Clastres A Fala Sagrada Mitos e Cantos Sagrados Dos Indios Guarani

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LUCAS CIMBALUK

A CRIAÇÃO DA ALDEIA ÁGUA BRANCA NA


TERRA INDÍGENA KAINGANG APUCARANINHA:
“POLÍTICA INTERNA”, MORALIDADE E CULTURA

CURITIBA
2013
LUCAS CIMBALUK

A CRIAÇÃO DA ALDEIA ÁGUA BRANCA NA


TERRA INDÍGENA KAINGANG APUCARANINHA:
“POLÍTICA INTERNA”, MORALIDADE E CULTURA

Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Departamento de Antropologia, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Miguel Carid Naveira

CURITIBA
2013
Catalogação na publicação
Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9/1607
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR

Cimbaluk, Lucas
A criação da aldeia Água Branca na Terra Indígena Kaingang
Apucaraninha : “política interna”, moralidade e cultura / Lucas
Cimbaluk. – Curitiba, 2013.
250 f.

Orientador: Profº. Drº. Miguel Carid Naveira


Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do
Paraná.

1. Terra Indígena Apucarana (PR). 2. Aldeia Água Branca. 3.


Reservas indígenas - Brasil. 4. Cultura indígena. 5. Índios da
América do Sul. 6. Índios Kaingang – Paraná. I.Título.

CDD 980.41
AGRADECIMENTOS

Aos indígenas que me atenderam em Apucaraninha agradecimento é pouco. A eles é


devido este trabalho. É impossível também não mencionar algumas pessoas em
agradecimento, importantes no processo de construção deste texto: Josiane Fernandes de
Carvalho, grande incentivadora deste trabalho desde o projeto inicial; Paulo Homem de Góes,
que forneceu referências e informações de grande valia; Alexandre Húngaro da Silva, que me
atendeu pacientemente e revisou o texto de qualificação; Flávio Wiik, que favoreceu minha
reaproximação dos Kaingang em Apucaraninha, juntamente com outros pesquisadores que
integravam a equipe do Diagnóstico, além de compartilhar reflexões sobre os projetos e a
situação política e religiosa na comunidade; Ledson Almeida, que indicou caminhos para a
pesquisa antes mesmo de eu os vislumbrar. Agradeço também a meu orientador Miguel Carid
Naveira, pelas considerações teóricas e reflexão antropológica. Agradeço aos professores
integrantes das bancas de qualificação e defesa, Edilene Coffaci Lima e Ricardo Cid
Fernandes e Luciana Maria de Moura Ramos, pelas indicações, complementações e críticas
elaboradas.
RESUMO

Na Terra Indígena Apucarana, ou Apucaraninha como é usualmente chamada, de etnia


kaingang, localizada ao norte do Estado do Paraná, houve, em 2011, a criação de uma nova
aldeia, denominada Água Branca. Esta aldeia, diferentemente das outras três ali já existentes
(Sede, Barreiro e Serrinha), pretendia uma autonomia política em relação ao cacique que
representava a Terra Indígena como um todo. Esta ruptura, significativa no contexto
kaingang, onde se defende a unidade político-territorial baseada atualmente na Terra Indígena,
é tratada neste trabalho, a partir de narrativas sobre o fato bem como análise de suas
consequências durante o período de trabalho de campo junto ao grupo. Trato aqui de três
elementos chave que envolveram o processo de criação e a manutenção da diferenciação entre
as aldeias: a “política interna”, relativa à característica faccional dos kaingang e as
articulações políticas e sociais relacionadas a ela; a moralidade, como elemento diretamente
relacionado à chefia mas também às formas de convivência na comunidade, representadas
através, principalmente, da “lei interna” ou “lei indígena” e sua relação com o que seria o
tradicional; e a cultura, também relacionando a tradição, os conhecimentos e práticas e o
próprio ser kaingang, a diferenciar-se dos brancos. Em um contexto vivido pelos moradores
da Terra Indígena envolvendo uma indenização por uma antiga usina hidrelétrica na área, bem
como a construção de uma nova usina em rio adjacente, com suas compensações então em
negociação, analiso como o movimento de criação da nova aldeia, com símbolos, discursos e
práticas relativas à moralidade e à cultura permitem articulações políticas e formas de
sociabilidade que indicam a necessidade de um reforço da indianização, contra um possível
tornar-se branco. Esta indianização, para além de ser contraposta ao branco, é, então,
contraposta ao próprio outro indígena, representado na outra aldeia, favorecendo as
transformações do ser indígena, do ser kaingang.
ABSTRACT

In the Kaingang Terra Indígena of Apucarana, or Apucaraninha, as usually denominated,


located in the North of the Paraná State, there was, in 2011, the creation of a new settlement,
denominated Água Branca. Otherwise the other three previous existing settlements (Sede,
Barreiro and Serrinha), Água Branca desires political autonomy from the cacique which
represented the whole Terra Indígena. This rupture, meaningful in the kaingang context,
where the political-territorial union is defended based on the land of the Terra Indígena, is the
object of this work. It was reached by narratives from the fact and by the analysis of its
consequences, observed during the field work period with the group. I write here about three
key elements that concern such process of creation and the perpetuation of the differences
between the settlements: the “política interna”, or the internal politics, referring to the
faccional characteristic of the kaingangs and the political and social articulations related to it;
the morality, as an element directly related to the leadership but also to the means of
conviviality in the community, the respect and the reciprocity, represented specially through
the internal law and its relation to what would be the traditional; and the culture, also related
to the tradition, the knowledge, practices and the kaingang being, differentiated from the
white people. In a context involving an indemnification due to an old hydroelectric plant in
the area and the construction of a new one in an adjacent river, with the negotiation for its
compensation to the community, I analyze how the movement to the creation of the new
settlement, with symbols, discourses and practices related to the morality and the culture,
allow political articulations and ways of sociability that indicates the necessity of the
reinforcement of indigenous identification, against a possible process of becoming white. This
indigenous identification, besides being opposed to the white, is then opposed to the very
other indigene, represented in the other settlement, favoring the transformations of the being
indigenous, the being kaingang.
Geralmente os caciques, e ainda os que mais trabalham,
são os que menos objectos teem, pois é de regra entre
esta gente, que nunca se deve negar o que é pedido; e
uma das maiores injurias que se lhes pode dirigir é
chamal-os de pouco liberaes, - deicamá. - É gente de
caracter altaneiro e independente que não presta
obediência a ninguém; e só por meio de dádivas e boas
maneiras se póde delles conseguir alguma obediência.
Telêmaco Borba, Actualidade Indígena
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
NOTA METODOLÓGICA ...................................................................................................... 17
OPÇÕES ANALÍTICAS .......................................................................................................... 20
INSERÇÃO E CONTATO NAS ALDEIAS............................................................................ 22
1. TEMPO E ESPAÇO KAINGANG .............................................................................. 28
1.1. CARACTERIZAÇÃO GERAL DA TERRA INDÍGENA APUCARANINHA ........... 28
1.2. HISTÓRIA DA TERRA INDÍGENA APUCARANINHA: TEMPO ANTIGO E
ATUAL ........................................................................................................................... 32
1.3. ÍNDIOS PUROS, BRANCOS E MESTIÇOS ................................................................ 42
2. POLÍTICA E MORAL ................................................................................................. 55
2.1. LEI ANTIGA E LEI NOVA ........................................................................................... 55
2.2. CONSTRUÇÃO DAS LIDERANÇAS .......................................................................... 64
2.2.1. Cacique, lideranças-políticas e lideranças-polícias ......................................................... 67
2.2.2. Grupo doméstico, parentagem e constituição de lideranças ........................................... 70
2.2.3. Autoritarismo e democracia: “O cacique” ...................................................................... 74
2.3. POLÍTICA ENTRE A PARENTAGEM E A MORALIDADE ..................................... 81
2.4. POLÍTICA E RELIGIÃO ............................................................................................... 87
3. INDENIZAÇÃO PELA USINA HIDRELÉTRICA APUCARANINHA ................ 90
3.1. GUERREIROS KAINGANG ......................................................................................... 90
3.2. USINA E APUCARANINHA – COMPENSAÇÃO E INDENIZAÇÃO ...................... 93
3.3. ATIVIDADES ECONÔMICAS ................................................................................... 102
3.4. PROJETO EMERGENCIAL ........................................................................................ 109
3.5. PERCEPÇÕES SOBRE A INDENIZAÇÃO ............................................................... 112
3.5.1. Luta da comunidade e “política em cima do direito do índio” ..................................... 112
3.5.2. Determinação e uso dos 20% da indenização ............................................................... 118
3.5.3. Opiniões sobre projetos ................................................................................................. 120
3.6. NEGOCIAÇÕES, MERCADORIAS E CHEFIA ........................................................ 124
3.6.1. Dinheiro e mercadorias ................................................................................................. 125
3.6.2. Generosidade do chefe .................................................................................................. 132
3.6.3. Negociações no Comitê e Chefia Kaingang.................................................................. 135
4. “POLÍTICA INTERNA”............................................................................................ 140
4.1. BREVE HISTÓRICO POLÍTICO E A ELEIÇÃO DE 2011 ....................................... 141
4.2. CRIAÇÃO DA ALDEIA ÁGUA BRANCA ................................................................ 156
4.3. DUAS COMUNIDADES? OS PARENTES QUE ESTÃO PRA LÁ. ......................... 167
4.4. MANUTENÇÃO DA FACÇÃO OU A FORMA DE FAZER POLÍTICA ................. 175
4.5. MORALIZAÇÃO E RETORNO À INDIANIZAÇÃO ................................................ 186
4.5.1. Novo espaço (antigo), antiga moral (nova) ................................................................... 186
4.5.2. Nova aldeia, novas predações ....................................................................................... 186
5. A CULTURA KAINGANG........................................................................................ 190
5.1. DESCER AO RIO: CONSANGUINIDADE E RIQUEZAS ESTÉREIS .................... 190
5.2. EVENTO CULTURAL – REVITALIZANDO A TRADIÇÃO KAINGANG ............ 196
5.3. CULTURA E TRADIÇÃO ........................................................................................... 201
5.4. FESTA: RITUAL DE DISTRIBUIÇÃO E UNIDADE POLÍTICA ............................ 211
5.4.1. Aliança, incorporação de alteridade e diferenciação..................................................... 216
6. OUTRAS SIMBOLIZAÇÕES E LIMITE DA PESQUISA .................................... 220
6.1. OUTRA HISTÓRIA DA CONQUISTA DA INDENIZAÇÃO, OUTRAS
AGÊNCIAS E ENCONTROS COM O DIABO ...........................................................220
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................227
DOCUMENTOS CONSULTADOS ....................................................................................232
ANEXOS ................................................................................................................................233
CADERNO DE FOTOS .......................................................................................................240
Legenda das fotos....................................................................................................................249
13

INTRODUÇÃO

Os Kaingang integram o grupo linguístico dos Jê-meridionais. Suas reservas estão


localizadas desde a porção sul do Estado de São Paulo até o Rio Grande do Sul. Todo este
território, juntamente com a província de Missiones na Argentina, foi historicamente ocupado
pelo grupo, que já foi denominado como Gualachos, Guaianás, Coroados, Camés,
Cayurucrés, dentre outras formas (MOTA, 2004; VEIGA,1994). Tendo hoje sua unidade
étnica constituída e reconhecida, apresenta diferenças significativas entre as diversas regiões e
Terras Indígenas ocupadas, seja pela forma de relação política com o branco, suas condições
físicas na terra que possuem, em sua história, etc1.
Na bacia do rio Tibagi, ao norte do Estado do Paraná, os Kaingang vêm sendo
estudados em conjunto e comparativamente por alguns autores, tendo as atuais terras
demarcadas, Apucarana, Barão de Antonina, São Jerônimo, Mococa e Queimadas, sido
oriundas de processos históricos interligados, ainda que com particularidades marcantes, além
de seus habitantes possuírem até hoje relações permanentes. A Terra Indígena (TI)
Apucarana, ou TI Apucaraninha como é usualmente denominada, foco deste estudo, com
cerca de 1.500 habitantes, está localizada no município de Tamarana, distando 25 km de seu
núcleo urbano, e a 80 km do núcleo urbano de Londrina, cidade polo regional no norte do
estado do Paraná. A área da TI é de pouco mais de 5,5 mil hectares, tendo seus limites em sua
maior extensão nos rios Apucarana, Apucaraninha e Tibagi, todos integrantes da bacia deste
último.
A comunidade indígena da TI Apucarana tem passado por diferentes processos
políticos decorrentes de empreendimentos hidrelétricos instalados, em instalação e em
planejamento dentro de seu território e a seu redor. A Usina Hidrelétrica (UHE) de
Apucaraninha foi construída na década de 1940 dentro de seu território. A UHE Mauá, no rio
Tibagi entre os municípios de Ortigueira e Telêmaco Borba, foi inaugurada em dezembro de
2012, sendo Apucarana uma das oito TIs consideradas como impactadas por sua construção.
A UHE Mauá, construída por consórcio das empresas Eletrosul e COPEL, fica a montante da
TI Apucarana, a cerca de 40 km da Aldeia Sede, em linha reta. É a primeira usina hidrelétrica
a ser construída no rio Tibagi, havendo projetos para construção de ao menos mais três.
1
Ver mapas dos anexos 1 e 2.
14

Dentre essas, a UHE São Jerônimo, se construída como no projeto original, alagará parte da
TI Apucarana.
Este trabalho teve como intenção inicial focar-se sobre ações relativas à indenização
recebida pela comunidade referente ao primeiro empreendimento citado, a UHE
Apucaraninha. A aproximação inicial ao tema se deu devido a eu ter trabalhado na
Companhia Paranaense de Energia (COPEL), por nove meses entre julho de 2010 e abril de
2011, ainda que não diretamente com esta questão. Enquanto empregado desta empresa tive
uma fortuita aproximação a algumas lideranças desta comunidade devido a projetos
decorrentes do trabalho de prospecção arqueológica e educação patrimonial da UHE Mauá,
tomando conhecimento sobre a questão da indenização predominantemente de forma indireta.
A indenização em questão foi decorrente de acordo realizado no ano de 2006,
gerando Termo de Ajustamento de Conduta assinado entre a empresa que detém a concessão
de operação da Usina, a COPEL, Ministério Público Federal (MPF), FUNAI, e representantes
da comunidade indígena Apucaraninha. No acordo, foi definido o valor de R$ 14.000.000
(catorze milhões de reais) pagos pela empresa “pelos impactos ambientais e também os
impactos morais e culturais, para presentes e futuras gerações” da comunidade pela
construção e operação da Usina. Abrangia o período de 1946, quando começou sua
construção, até o ano de 2002, quando se estabeleceu novo acordo com a comunidade para
prosseguimento da geração de energia. Com esta indenização era prevista a realização de um
Programa composto de “projetos de sustentabilidade socioeconômica e ambiental” para a
comunidade, com duração prevista de 10 a 20 anos.
Iniciei meu campo acompanhando algumas oficinas entre os meses de setembro e
novembro de 2011, nas quais pesquisadores que haviam elaborado diagnóstico para
embasamento dos projetos apresentavam seus resultados e discutiam possíveis projetos com a
comunidade. Nestas visitas apenas ajudei, voluntariamente, a fazer o registro dos encontros e
debates realizados. O período de meu trabalho de campo, de 12 de março a 07 de maio de
2012, foi coincidente com uma estagnação de tal Programa, o que era de meu conhecimento
de antemão. Decidi ir a campo mesmo assim, evitando atraso no desenvolvimento de minha
pesquisa, ainda que criasse a potencialidade da mudança de tema. Assim, outras questões que
estavam em pleno debate no interior da comunidade tendiam a me chamar mais a atenção e
render mais conversas e interesse que o tema da indenização. Com isso, meu tema de pesquisa
parecia estar se alterando a medida que eu permanecia na aldeia. Cheguei a pensar em
abandonar completamente o projeto inicial, mas não pude fazê-lo já que o tema da
indenização se articulava com os outros que passaram a me interessar. Em especial a questão
15

de uma divisão interna ocorrida no ano de 2011 na comunidade. Antes de tal divisão, havia na
TI três aldeias distintas e espacialmente separadas: Sede, Barreiro e Serrinha. Com o conflito
ocorrido, formou-se nova aldeia no interior da TI, chamada de Água Branca (Goio Kuprig)2,
também espacialmente separada das demais, mas com a diferença de pretensão de autonomia
política e financeira em relação à Sede, fato bastante relevante ao contexto kaingang, que
tende a representar a unidade política coextensivamente à unidade territorial. Desta forma, era
questão bastante controversa dentro da comunidade.
Se muitos dos índios tratavam tal divisão como “política interna”, quase como
dizendo que isso não devia interessar para mim, outros, índios e brancos, faziam uma ligação
direta entre este fato e a indenização. Procurarei aqui tratar a indenização, mas meu foco está
sobre a divisão política e criação da nova aldeia, que acabou se tornando um evento que me
permitia interligar as principais questões que se fizeram relevantes em campo a partir da
relação com meus interlocutores e dentro daquilo que pude presenciar dos principais
acontecimentos enquanto lá estive.

Estudar a divisão de um grupo implica tratar também daquilo que une. Aquilo que
mantém os grupos unidos é tema recorrente na Antropologia desde sua fundação. Durkheim
(1970) deu atenção à moral como elemento de coesão dos grupos, como elemento que começa
onde começa a vida em grupo. Comparando-a ao sagrado e ao domínio religioso, indica que
seria elemento a transcender as consciências individuais e por isso também a atribuir à
sociedade uma autoridade moral sobre os indivíduos que a compõem. Seu foco está sobre a
existência de uma moral comum, para todas as pessoas pertencentes a uma coletividade, com
base na qual se fazem os julgamentos, mesmo tendo consciência das particularidades
avaliativas de cada indivíduo, e que estes não seriam necessariamente adaptados
completamente à moral de seu tempo.
Afastando-me um pouco de tal visão transcendente da moral, irei tratá-la a partir de
referenciais mais relativistas do que ela seja, ainda que sempre nestes reste a visão de que
existe o que seriam valores mais gerais, referenciais sobre os quais se torna possível a
compreensão da própria sociabilidade. Assim, por exemplo, podemos tomar a questão em
voga hoje na etnologia da consanguinização e afinização ao tratar de parentesco. Veremos,
então que tais princípios, com base em ideais de reciprocidade, poderão compor o que seja

2
Optei por privilegiar a denominação em português atentando para o fato de ter tido poucos conhecimentos da
língua kaingang durante meu trabalho. Ambas as formas de denominação eram correntes, conforme o
contexto. Para localização das aldeias ver anexo 4.
16

uma unidade mais coesa de um grupo. No entanto, temos que antes de deixar em segundo
plano, destacar a relatividade destes preceitos, existentes apenas enquanto nas consciências e
agências dos indivíduos em relação. Mesmo assim, ela se constitui enquanto referencial que
pode embasar eventos e práticas sociais. A moralidade pode representar, em um contexto de
tensões políticas e rupturas, elemento a aproximar e a afastar pessoas e grupos, tendo estes
uma feição mais fluida. Veremos como no contexto estudado ela pode ser representada por
um lado pela reciprocidade, por outro pelo respeito, duas esferas que favorecem
possibilidades de convivência na comunidade.
Podemos dizer que a moral, ao ser constituinte ou como plano de comunicação e
avaliação da sociabilidade, também tem uma feição política evidente. Clastres (2003)
caracteriza a política ameríndia pelo contra o Estado, com aversão e contraposição ao Um,
fundada na figura da chefia sem poder. Seria também geradora da características de tais
sociedades como para a guerra, em um âmbito centrífugo, gerador de novos grupos e
garantidor de autonomia política. Teríamos aqui, portanto, um referencial bastante
contraposto ao durkheimiano, pensando no plano coesivo e unificador. Neste trabalho poderei
explorar como a moralidade se torna fundamental na política kaingang a partir do evento e
avaliações sobre a criação da nova aldeia.
Também na política temos a cultura. Este conceito fundamental e complexo
antropologicamente, acompanhando Manuela Carneiro da Cunha (2009b), seria elemento
residual mas irredutível ao tratar-se da etnicidade, na caracterização dos grupos em si e para
si, tomando assim também uma feição política evidenciada. Hoje é um conceito tão diverso
que muitas vezes se faz difícil saber sobre o que exatamente está se falando, quem é que está
definindo o conceito em cada contexto. A cultura ao colocar a questão de quem, ou do que
seria o ser kaingang, insere-se também no contexto moral, ao levantar o que seria a “lei
interna” da comunidade, ou seja, um conjunto de referenciais presentes que indicam formas
de respeito e reciprocidade valorizadas e que podem ser referenciadas como um mais
tradicional kaingang.
Ao tratar da divisão política no contexto da TI Apucaraninha irei trazer, portanto,
discussões sobre política, moralidade e cultura, apenas apontando aqui para a complexidade
das temáticas que envolvem a situação tratada e como tais elementos encontram-se
interrelacionados. Enquanto análise da criação de uma aldeia independente, estes elementos
tomam uma feição particular ao serem postos nesta situação de tensões entre lideranças e
autoridades.
17

Neste trabalho, irei analisar como a moralidade e a cultura são utilizadas como
referenciais não no processo de estabilização de coletivos, mas de sua transformação. Tomo
tal transformação como intrinsecamente constituinte do próprio ser indígena, com base no
devir outro (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). São elementos em grande medida
conscientemente resgatados e trabalhados no interior do grupo estudado, tomando uma feição
política evidente. Tratar da cultura, da moralidade e do devir é tratar de política. Mas também
esta será tratada aqui especialmente enquanto “política interna”, tomando uma conceituação
nativa, representativa do faccionalismo e neste caso da efetivação do mesmo pela divisão
física de um grupo, constituindo um novo espaço diferenciado, com lideranças independentes.
Se tal movimento, como veremos, é fruto das composições de sociabilidade que estabelecem
as facções, também é fundamentado no devir a partir da moralidade e da cultura. Neste
sentido será importante também analisar o contexto atual da TI Apucaraninha a partir do
recebimento da indenização mencionada e seus efeitos em tais transformações.

NOTA METODOLÓGICA

“Caciques e pesquisadores só simbolizam!”

A frase acima me foi dita por um interlocutor com quem conversei apenas uma vez.
Ele dizia que tanto caciques como pesquisadores prometiam muitas coisas mas não as
cumpriam, se remetendo a casos concretos que vivenciara. Na conversa, ele citava a questão
do Programa, que até então não tinha tido grande efetividade, como veremos, e as exaustivas
pesquisas e especialmente os “papéis” delas e dos acordos derivados, gerando a morosidade e
não os resultados esperados. Voltarei a esta questão adiante. Mesmo sem ter prometido
grande coisa a ele ou outros interlocutores a não ser dar um retorno do produto da pesquisa
(mais alguns papéis) e levar algumas fotos tiradas durante o campo, a frase me tocava, mesmo
não tendo sido dita sobre mim, era dita a mim, e me servia em alguma medida. Sua
ambiguidade de sentidos me atingia. Gostaria de pensar nesta nota inicial como ela se aplica a
este trabalho.
Chama a atenção a reunião de dois sujeitos aparentemente bastante distintos:
caciques e pesquisadores. Eles estariam reunidos por representarem pessoas que possuem
acesso a recursos através de cargos ou posições políticas, podendo elaborar, criar e
18

desenvolver projetos, e antes de tudo prometê-los. Essa posição implica alguma forma de
autoridade, em quem os demais poderão confiar e a partir de então dar seu apoio, um apoio
político e colaborativo para a realização da promessa, a partir da qual irão também organizar
seus projetos particulares. Assim, estes dois sujeitos possuem um papel político, uma
autoridade, para fazer algo para a “comunidade” e também por ela, na medida em que levem
seu nome a outras instâncias para angariar tais coisas. Sendo, porém, as promessas
sistematicamente frustradas, e os recursos não revertendo à comunidade que os apoia, ou não
revertido a tempo e como esperado pelos indivíduos ali, estas figuras passam a ter um papel
outro, apenas figurativo. Ou seja, são figuras que estão empossadas de autoridade para fazer,
mas nada fazem de concreto, apenas simbolizam que lá estão para fazer ou que representam a
comunidade frente a outros.
No que tange aos caciques, isso será tratado no decorrer deste trabalho (e poder
separar os elementos da frase faz parte da autoridade do pesquisador). Mas é preciso antes
refletir sobre esta autoridade investida ao pesquisador, mesmo quando não se trata de projetos
que tenham como fim último a produção de resultados de cunho econômico para a
comunidade, mas de projetos de conhecimento. Melhor dizendo, que outra coisa estes
trabalhos e seus autores fazem senão simbolizar?
A autoridade do pesquisador situa-se no produto mesmo de seu trabalho, a etnografia
e sua escrita, resultados autorais controlados por seus autores, sob o resguardo da veracidade
não passível de questionamento, pelo “estar lá”, como destaca Geertz (2005). A experiência
do autor o legitima a falar da mesma, mas tanto ela como o processo de escrita não são isentos
de relações específicas. O estar em campo deve ser visto, como destaca Clifford (2011), como
uma negociação construtiva envolvendo diferentes sujeitos conscientes e politicamente
significativos. Estas relações são sempre subjetivas e dificilmente podem ser esclarecidas
completamente de uns aos outros, mas envolvem interesses diversos, desconfianças,
confianças desconfiadas, etc. Enfim, não há discurso sem interlocução e contexto.
No entanto, o processo de transformação da oralidade e do evento em narrativa, em
escrita, no sentido estrito, é efetuada por um indivíduo apenas dessa relação. Este sujeito é o
demandante da relação, que se interpõe entre “outros” no campo. Com ele, a partir deste
momento, a relação passa a ser suplantada pela representação. O antropólogo irá escrever
sobre aquilo que se passou, ou seja, sobre falas e eventos deslocados no tempo, tornando
relações concretas estabelecidas e momentos específicos dentro delas, para criar significados
outros. Mesmo com o cuidado para não torná-los presentes, e criar generalizações sobre a
experiência através de sujeitos absolutos, sempre se estará criando uma simbolização sobre os
19

mesmos. Clifford caracteriza esta simbolização como alegoria, uma prática na qual uma
ficção narrativa continuamente se refere a outro padrão de ideias ou eventos, uma
representação que “interpreta” a si mesma, por mais realistas que possam denotar ser
(CLIFFORD, 2011, p.61).
Podemos aderir que é principalmente (mas não só) nesse processo que, como diz
Wagner (2011), o antropólogo inventa as culturas que estuda. Como vencer a autoridade nesta
invenção é uma questão ainda não resolvida, ou mesmo insolúvel. Algumas experiências
foram feitas neste sentido. Cito apenas uma delas em particular, de Kevin Dwyer (1987), em
que o autor opta por apenas transcrever, traduzidos, diálogos que gravou com um interlocutor
privilegiado, fazendo antes breves descrições de eventos que motivavam as conversas e o
contexto e situação das mesmas. Desta maneira procura trabalhar justamente a relação
pesquisador–interlocutor, sempre presente em todo momento da pesquisa, tornando em
grande parte ela própria um objeto da pesquisa e mostrando a interdependência destes sujeitos
ao invés de criar uma barreira entre eles. Ou seja, trazendo o caráter relativo da pesquisa ao
centro do trabalho, rompendo com a ilusão de um “eu” objetivo, exemplar e coerente,
independente do “outro”.
Este tipo de experiência, como ressalta Clifford (2011), cria novas formas de
autoridade, não as vencendo, pois mesmo experiências em busca de uma polifonia no
processo de escrita não conseguem senão ser uma heteroglossia domesticada, necessária à
imposição de coerência ao texto. Como mostra Dwyer, apesar de sua preocupação durante o
campo em não impor conceitos ocidentais ao seu interlocutor, imbuindo-os em suas
perguntas, isso era inevitável. No entanto, o autor procura indicar como suas perguntas eram
não apenas tomadas pelo nativo, mas transformadas por este no processo dialógico que
construía a pesquisa e que passa a constituir também o texto, ainda que transformado em
escrita e recortado e editado pelo antropólogo.
Existe, porém, uma distância fundamental no processo, utilizando a fraseologia de
Geertz: entre o “estar lá” e o “estar aqui”. Com inspiração em Strathern (2006) e na
concepção de dividualidade da pessoa, podemos dizer que o pesquisador em relação com seus
informantes não é o mesmo que aquele que escreve, e que este de certa forma trabalha sobre o
trabalho do primeiro e também sobre o primeiro, mas privilegiando outras relações, que são as
que motivaram, via de regra, o “estar lá”: o “estar aqui”, ou seja, estar entre outros estudiosos,
antropólogos e seus textos. Nessa passagem, o eu do campo se perde em favor do eu
antropólogo. Este constrói um eu narrativo fictício que dá unicidade, coerência e linha de
raciocínio, com uma linguagem construída e com determinadas especificidades. Nem por isso
20

esse estilo narrativo torna as afirmativas mais verdadeiras, nada mais sendo que um estilo
literário.
Talvez, como sugere Clifford, a maneira mais eficiente de vencer estas barreiras
hierárquicas fosse através da possibilidade da leitura crítica por “outros” não acadêmicos, em
especial os próprios nativos. Sendo assim, implicaria no não rompimento completo da relação
enquanto da escrita e da possibilidade de outras leituras, as quais o autor não pode em
qualquer situação controlar.
Neste trabalho procuro, ainda que bastante timidamente utilizar algumas transcrições
de diálogos com interlocutores, buscando uma dimensão mais ampla de seu discurso em
relação ao eu pesquisador em diferentes momentos. Há, contudo, flutuações de estilo exigidas
pela coerência e percurso narrativos, especialmente no diálogo com outros antropólogos e
teorias. Ainda que leituras não acadêmicas sejam sempre possíveis, muitas vezes as
referências deste meio podem exigir maiores conhecimentos teóricos da disciplina, fato que é
um tanto incontornável na utilização da linguagem analítica comparativa. Tendo em vista o
tema do trabalho e as tensões políticas que o envolvem, deve-se ter em mente que o presente
texto não se trata mais do que uma certa simbolização, reforçando o que dizia meu
interlocutor casual. Aliás uma simbolização bastante limitada temporalmente. “Dados” não
são dados a não ser como dados em relação. E o que se lê não é a verdade, ou como diz
Clifford (2011, p.89) “se estamos condenados a contar histórias que não podemos controlar,
pelo menos não contemos histórias que acreditemos serem as verdadeiras”.

OPÇÕES ANALÍTICAS

O percurso utilizado para a análise inicia com a descrição do histórico dos kaingang
na região, a partir principalmente de relatos de alguns interlocutores indígenas. Esta
caracterização, além de dar uma dimensão do passado de tais indígenas, também indica uma
vinculação entre espaço e tempo fundamental para estes. Defenderei que tal vinculação é
também relacionada a determinada moralidade, enquanto valor de reciprocidade e de respeito.
Tais valores são caracterizados como relativos a uma indianidade, contrapostos a referenciais
brancos. Tais concepções nos levarão, no segundo capítulo, à conceituação da “lei” interna da
comunidade. Em seguida, atrelada a esta veremos a concepção do que seja a chefia entre os
kaingang. Trabalharei como são constituídos os caciques e as lideranças na comunidade e
qual suas funções em relação ao que seja esta lei, trabalhando a conceituação clastreana de
21

política e indicando matizes no caso kaingang e as distintas formas de liderança. Indicarei


como a moralidade é relacionada à chefia, não apenas em sua constituição e manutenção, mas
também enquanto princípio avaliativo da própria chefia.
O terceiro capítulo trata da indenização recebida pela comunidade de Apucaraninha
pela UHE que leva seu nome. Para tanto, resgato inicialmente a caracterização dos kaingang
enquanto guerreiros, situando estas novas lutas no contexto atual. Descrevo o processo de
conquista e as dificuldades enfrentadas até o presente de meu trabalho de campo na utilização
de tal recurso. Trato das atividades econômicas na TI indicando a importância de tal recurso e
como os projetos agrícolas implementados a partir dele se situam nestas. Trabalho com
avaliações indígenas da indenização e da forma de utilização estabelecida, mostrando as
insatisfações então presentes. Parto então para uma análise sobre as negociações, o dinheiro e
as mercadorias e as consequências na função de chefia a partir da indenização.
No quarto capítulo, trato efetivamente dos eventos relativos à divisão da aldeia Água
Branca, movimento que ganha força a partir de um suposto “erro” do então cacique. Aqui se
verão fundamentais as conceituações e contextualizações feitas nos capítulos precedentes,
sendo então retomadas, em especial a moralidade, fundamental à análise deste movimento.
Veremos a Água Branca como esforço de moralização e de indianização, em um espaço de
tradicionalidades que indicam, além da forma de funcionamento do faccionalismo kaingang, a
necessidade de transformações relacionada, contrapondo-se a um possível embranquecimento
a partir do acesso às mercadorias e dinheiro. Isso será complementado nos capítulos
seguintes. No quinto capítulo a partir da descrição da festa de 19 de abril, dia do índio, e a
realização de um Evento Cultural na Sede, trato da cultura kaingang, dos esforços de
revitalização cultural, bem como de aliança, incorporação de alteridades e de diferenciação.
O sexto capítulo, que substitui as considerações finais, traz novos elementos a
complementar a análise, indicando o “conhecimento social implícito” presente na
comunidade, a partir da leitura de alguns interlocutores sobre questões relacionadas aos
acontecimentos tratados na dissertação. Com uma apresentação um tanto incompleta,
indicando limites da pesquisa, este capitulo pretende abrir possibilidades de análise ao invés
de fechá-las, ainda que articule conceitos utilizados no decorrer deste trabalho.
Contrariando de certa forma o intuito de destacar as relações em que se constroem os
dados, nesta simbolização optei por mudar todos os nomes dos interlocutores por ter tocado
em dois momentos do texto em questões que poderiam expor de alguma forma os sujeitos
relacionados. Estratégia esta, aliás, que reconheço de pouca serventia, já que as pessoas são
facilmente identificáveis por quem conhece o contexto e já não seriam identificáveis por
22

quem não o conhece3. Optei também por adequar as transcrições de gravações ao português
formal escrito: outros eus, outras relações, outros códigos. Faço uso por vezes do tempo
presente, tendo em consideração que se trata de maio de 2012 a não ser quando se indique o
contrário.

INSERÇÃO E CONTATO NAS ALDEIAS

Antes de passar aos capítulos, faço um relato da forma de minha inserção nas aldeias
e relação com alguns de meus interlocutores, que, além de situar a base de elaboração deste
trabalho, também já começa a indicar diferenças das aldeias relativas à presença de brancos,
pesquisadores e algumas formas de sociabilidade entre os índios.
Nunca tendo trabalhado em comunidade indígena, e tendo meu interesse pelo tema
desta pesquisa inicialmente se dado pelo meu trabalho na COPEL, após ingressar no mestrado
e deixar a atividade da empresa, me aproximei do grupo de pesquisadores que em 2011
terminava trabalho de diagnóstico de embasamento dos projetos do Programa a ser
estabelecido com a indenização recebida, acompanhando algumas oficinas que encerravam
este trabalho. A partir daí, meu principal contato para inserção na TI foi uma “nova liderança
política”. Esta categoria é utilizada por Gersen Baniwa (LUCIANO, 2006) ao estudar
experiências de lideranças indígenas no Alto Rio Negro, em especial baniwas, em projetos de
etnodesenvolvimento. Neste contexto “novas lideranças políticas” estabeleceriam o contato
com brancos, especialmente no âmbito de questões legais e econômicas, como na luta por
direitos e projetos, diferenciadas das “lideranças tradicionais”, com funções e posições
políticas definidas pela dinâmica do próprio grupo.
Esta liderança, Alex, era colocada pelo cacique como seu “secretário”. Após estes
primeiros contatos, marcamos um encontro em Tamarana, já em 2012, para que eu explicasse
minhas intenções de pesquisa de forma mais detalhada. Neste encontro, bastante informal,
estavam presentes o Cacique Pedro, o Vice-Cacique Getúlio, e Alex, além de outros dois
homens. Após este encontro, retornei para realizar o trabalho de campo em março. No dia de
minha chegada, uma segunda-feira, marquei de seguir de Tamarana até a aldeia acompanhado
por Alex. Após algum desencontro, seguimos até a aldeia com o carro com que fui a campo,

3
Como vários nomes são bíblicos, especialmente do antigo testamento, fato já notado por Juracilda Veiga
(2004) em várias TIs Kaingangs, especialmente entre famílias pentecostais, procurei manter a referência
quando havia, ainda que isso tenha eventualmente causado a coincidência com nomes de outros moradores da
TI.
23

chegando já à noite. Fomos até a casa de Pedro, avisar de minha chegada, já combinada
anteriormente. Pedro estava na casa de Getúlio, seguimos para lá. Ali, preparavam-se, para
matar um porco criado no paiol deste. Dois jovens, em especial o genro de Pedro, fariam o
serviço. Conversamos um pouco ali. As conversas neste caso eram em português, mesmo
entre eles. Tanto Alex como o genro do cacique são mestiços, sendo que estes tendem a falar
mais o português mesmo em ambientes domésticos. Depois seguimos, eu e Alex, jantamos em
sua casa e eu fui para o “escritório”, próximo ao pátio da família de Alex, onde eu ficaria
hospedado durante o campo.
A partir daí, minha inserção foi se dando aos poucos, conhecendo primeiro algumas
lideranças que vinham ao escritório, conversando, especialmente na primeira semana, em
viagens que fizemos para Londrina e Tamarana, e mais tarde com outras lideranças e outros
moradores, de forma um tanto casual. Utilizei por vezes os locais de sociabilidade
estabelecidos, como a praça, os campos de futebol e os bares para estabelecer alguns contatos.
Em outros casos abordava pessoas, especialmente aos fins de semana, quando algum homem
estava na varanda de sua casa. Algumas vezes fui abordado por algum homem que vinha me
perguntar o que eu fazia ali. Três de meus maiores interlocutores, que aqui denominei Áureo,
Bruno e Benedito encontrei casualmente numa tarde de domingo no bar do último, passando
mais tarde a frequentar as casas de Áureo e Benedito e também ser visitado por eles no
escritório. Mais tarde também estabeleci contato maior com Adriano, a quem paguei como
guia mais com o interesse de conversar com ele, mas apreciando também os pontos a que me
levava para conhecer ao redor da aldeia Sede. Há uma posição de guia de pesquisadores
estabelecida principalmente após a pesquisa das universidades para elaboração do
Diagnóstico para embasamento do Programa da indenização, para o qual foram empregados
diversos moradores, como guias ou tradutores. Havia inclusive um preço estabelecido, mais
ou menos consensual, e também uma expectativa de que eu precisaria de guias e que eu
deveria estar interessado em conhecer os arredores da aldeia. Assim, alguns homens sem
emprego ou atividade que gerasse renda no momento que eu fazia a pesquisa demonstraram
interesse em cumprir esta função.
Com uma divisão de gênero bastante marcada, tive pouca interlocução com
mulheres. As mulheres mais velhas ou mesmo de meia idade, geralmente não se dirigiam
diretamente a mim, e algumas vezes que me dirigi diretamente a algumas delas, houve certo
constrangimento, especialmente quando não havia homens perto e não se tratava de ambiente
público, como a escola, ainda que se tratasse apenas de pedir alguma informação de
localização. Ainda assim, tive duas interlocutoras mais regulares e outras ocasionais.
24

Minha inserção na Água Branca foi bastante distinta. Na terceira semana de campo,
tive conhecimento de que o cacique desta aldeia, Levi, estava na Sede para uma reunião
referente à saúde na área. O Cacique Pedro não reconhece o cacique da Água Branca como
tal, apesar deste se colocar desta forma, como uma liderança independente. Nas outras aldeias,
há apenas “representantes do cacique da Sede”.
Eu já conhecia Levi, pois ele também participava das oficinas do diagnóstico.
Aproveitei a ocasião para me convidar a conhecer a Água Branca. Ele e seu vice, Rafael, me
convidaram para ir no sábado seguinte por volta das nove horas da manhã, pois teriam
reunião, como faziam todos os fins de semana, e assim todos poderiam me conhecer. Assim
fiz, tendo ido junto com Augusto, ex-presidente da Associação dos Moradores do Posto
Indígena Apucaraninha, morador da Sede, mas atualmente ligado ao grupo da Água Branca.
Também me acompanharam um primo de Augusto e mais um homem, o qual deixamos logo
na entrada da nova aldeia. Chegamos mais cedo, e Levi não estava ainda no local. Fomos à
casa de Gabriel, uma das lideranças da aldeia, com quem conversei um pouco. Demos a volta
pela estrada principal a pé, passando em algumas casas de parentes (tio e sobrinho) dos
homens. Entre eles as conversas se davam em kaingang, sendo em português apenas para
responder algum questionamento meu. Tive oportunidade de entrar em uma das casas, onde vi
haver eletrodomésticos como geladeira, televisão e aparelho de som, apesar de não haver
energia elétrica na aldeia. Segundo eles, as casas foram construídas pelas próprias famílias,
reunindo irmãos, filhos, tios e sobrinhos. Foi facilitado pelo transporte do material com trator
da comunidade. Percebi haver uma proximidade entre as residências do mesmo grupo
doméstico4, e comentando com os homens eles confirmam. Em alguma medida também há
afastamento da residência de alguns grupos domésticos em relação a outros, ainda que não
seja regra geral. No caminho, ouvimos em um capão de mato próximo o som de tiro. Depois
eles confirmariam que alguns homens haviam caçado uma cotia.
Quando voltamos, a reunião já começara. Sob uma alta árvore 5, um grupo, em
círculo mal formado conversava. As lideranças estavam mais ao centro, especialmente
aquelas que estavam falando. A reunião se deu toda em kaingang. Tanto homens como
mulheres não integrantes da liderança também participavam, inclusive discutindo alguns
pontos colocados. A certa altura, Levi me chamou ao centro do grupo reunido para me
apresentar. Procurei explicar um pouco minha intenção de pesquisa. Foram feitas algumas

4
Este conceito será trabalhado no segundo capítulo.
5
Apesar de a árvore parecer uma peroba, árvore, assim como o pinheiro araucária, característica da região, um
interlocutor disse se tratar de uma “piteira”. Este local fica ao lado da entrada para a casa de Gabriel.
25

perguntas a mim por Gabriel, ele era quem se dirigia em português a mim, os demais fazendo
comentários em kaingang a ele. Tentei responder e esclarecer minha posição enquanto
pesquisador. Augusto me auxilia nisso, em kaingang, tendo talvez mais sucesso que eu. Feita
a apresentação, eu me afastei do centro, e a reunião continuou com outras pautas. Busquei,
junto a Augusto ter alguma ideia do que era discutido. Ele informou que eram questões como
a necessidade de melhor cumprimento da função de fiscal 6 pelos ocupantes do cargo, a
necessidade de os projetos de agricultura a ser implantados em caráter coletivo, pois não havia
espaço para projetos familiares, e a escolha de um representante para cuidar da questão dos
projetos, já que o cacique, por estar resolvendo questões fora da aldeia, muitas vezes não
podia acompanhar o trabalho. Houve comentário pelo cacique que a reunião estava
estabelecida aos sábados naquele horário, não necessitando que fosse confirmada, mas que
seria sim avisado quando não houvesse. Segundo lideranças desta aldeia, também eram feitas
reuniões após negociações ou notícias importantes.
A partir de então, ficou estabelecido que o melhor dia para visitar a aldeia era aos
sábados, quando as pessoas não estavam trabalhando e estavam na aldeia e em suas casas, já
que aos domingos percebi que era comum várias lideranças e moradores se deslocarem para
Sede ou outras TIs para torneios e jogos de futebol. Efetivamente, a maioria de minhas visitas
posteriores se deu aos sábados ou em feriado. Senti uma preferência de que eu fosse
acompanhado nestas visitas por Augusto, e, por vezes, quando segui sozinho, senti certo
estranhamento ao circular pela aldeia, muito mais do que quando fazia o mesmo na Sede. Na
Sede, não é raro ver brancos circulando, principalmente aos fins de semana, em bares ou
passando em carros e caminhonetes. A mão de obra empregada na construção de uma nova
escola na Sede é de brancos e índios. Assim, mesmo nos dias de semana há brancos
circulando pela aldeia. Estes trabalhadores, assim como outros brancos da região podem ser
vistos em bares junto com índios. Algumas vezes meus interlocutores não sabiam quem eram
alguns brancos que vinham pescar na região. Na Água Branca, durante minhas visitas
encontrei poucos brancos, uma vez se tratando de funcionária de assistência social que viera
em uma das caminhonetes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) fazer uma visita
a um morador. Ela passou primeiro na casa do cacique notificar que faria a visita e perguntar
onde ficava a casa do morador. Outras duas vezes encontrei brancos comerciantes que vinham
vender seus produtos ou fazer entrega de produto a morador.

6
Neste caso se tratava da fiscalização de trabalho agrícola, que envolve a organização dos diaristas em
plantios coletivos. Também existe fiscalização de território, que envolve proteção contra invasões e
incêndios.
26

Na Sede, sempre há alguma movimentação por suas ruas e espaços públicos, mesmo
em dia de semana, com raras exceções em dias muito frios e após dias de festa, quando se
percebe maior calmaria principalmente pela manhã. Especialmente aos fins de semana,
inclusive à noite, há bastante circulação de pessoas, destaque-se os jovens com suas motos.
Na Água Branca, nos fins de semana e feriados, há alguma concentração de pessoas junto ao
campo e em frente à casa do cacique, e circulação maior apenas no acesso à aldeia, fora isso,
não se percebe muita movimentação. Em uma das visitas, um grupo de evangélicos fazia
orações e cantos em frente a uma casa.
Enfim, nestas condições, apesar de meus intentos, não estabeleci contatos mais
próximos com moradores da Água Branca, fazendo no máximo duas ou três conversas
bastante formais e apenas com lideranças, com uma exceção apenas. Meu contato nas aldeias
Barreiro e Serrinha foi mais casual, em dias de semana. Fiz apenas uma visita ao Barreiro, e à
Serrinha fui algumas vezes conversar com o representante do cacique ali.
Não realizei levantamento de moradores, devido à dimensão da população.
Privilegiei contatos informais, procurando sempre me afastar de questionários ou entrevistas
fechadas, ainda que nem sempre tenha conseguido isso. Esta estratégia, além de embasar uma
análise mais qualitativa e que leve em conta a relação pesquisador-interlocutor, também
procurava me afastar da figura do pesquisador com a qual estavam acostumados, justamente o
que vem, faz questionários, e parte sem olhar para trás, lembrando que haviam recentemente
passado por algo que remetia a isso, com a elaboração do diagnóstico e a morosidade em dar
início aos projetos. Ou seja, procurei ao menos criar uma relação mais intensa enquanto estive
em campo, já que o retorno de meu trabalho à comunidade seria mais indireto e pouco
previsível. Como meu tema inicial era a indenização e considerando o fato de eu ter
trabalhado na COPEL, isso exigia algumas vezes explicações de minha parte para dar a
entender o que eu fazia ali, o que, porém, não era tão difícil como imaginei, a não ser pelo
entendimento de quem, afinal de contas, estava me pagando para eu estar ali e com que
interesse, o que em alguns casos talvez não tenha conseguido esclarecer inteiramente, ou não
tenha conseguido fazer alguns acreditarem plenamente em minha desvinculação aos projetos
de novas usinas hidrelétricas.
Acreditando que tivessem consciência do resultado pouco proveitoso diretamente de
minha pesquisa a eles, sempre procurei ceder a seus interesses diretos em transporte, favores
ou pequenos presentes, ainda que tenha recusado alguns por vezes, o que talvez tenha causado
algum constrangimento em algumas das relações. Enfim, como foi dito as intersubjetividades
e os interesses mútuos não são inteiramente transmissíveis aos outros e são sempre
27

dependentes de pequenas decisões, algumas vezes irrefletidas. Neste sentido, nem sempre
cumpri o que todos esperavam da posição a mim investida, e posso em algum momento ter
ido contra ela. Por isso, Alex e eu tivemos um pequeno desentendimento em meados de meu
campo, que alterou um pouco nossa relação posterior, causando uma opção minha por
afastamento. Rusgas também fazem parte do processo de conhecer o outro e das
transformações das relações, mas espero não ter deixado mágoas intransponíveis nem muitas
expectativas frustradas.
28

1. TEMPO E ESPAÇO KAINGANG

1.1. CARACTERIZAÇÃO GERAL DA TERRA INDÍGENA APUCARANINHA

A língua kaingang em Apucaraninha é uma constante. Classificada no tronco


linguístico Macro-Jê, ela é o principal meio de comunicação interno. Apesar disso, dentre os
kaingangs da área, apenas as mulheres mais velhas são monolíngues, o que contrasta com a
década de 1990, quando, segundo Tommasino (1995) a maioria das mulheres não falava
português. Hoje praticamente todos os homens dominam bem o português, mas o uso da
língua kaingang continua sendo importante marcador étnico em seu discurso.
A TI Apucaraninha hoje tem a maioria de seus moradores de etnia kaingang,
existindo alguns xokleng, guaranis e fulni-ôs, além poucos brancos residindo na área. De
acordo com os dados Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), no ano de 2010 haveria 1.434
pessoas residentes na Terra Indígena de Apucaraninha. Estes dados tomam em separado
apenas a população da aldeia Barreiro, já que os dados são anteriores à criação das aldeias
Água Branca e Serrinha.

TABELA 1 – DADOS POPULACIONAIS TI APUCARANINHA 2010


ALDEIA ETNIA Quantidade de Quantidade de Quantidade de
pessoas famílias residências
Apucaraninha (Sede) Guarani 7 3 3
Apucaraninha (Sede) Kaingang 1351 234 186
Apucaraninha (Sede) Não indígena 4 4 4
Apucaraninha (Sede) Xokleng 2 1 1
Barreiro Kaingang 69 17 16
Total 1434 259 210
FONTE: SIASI - FUNASA/MS, 27/12/2010 (Dados referentes à 1º de julho de 2010)

A presença de família xokleng, etnia que junto com os kaingang compõe os


chamados Jê-meridionais, é referenciada por Tommasino (1995), e tal família extensa
permanece estabelecendo o vínculo entre Apucaraninha e a TI Ibirama, em Santa Catarina.
Tal relação é bastante antiga. Segundo um de seus descendentes, com cerca de 30 anos, seu
avô, que foi cacique de Apucaraninha, teria trabalhado como intérprete na “pacificação” de
xoklengs, tendo estabelecido nesta época sua relação com tal grupo através de um casamento,
depois desfeito. Ramos (2008) já mencionava a presença de uma família extensa fulni-ô, que
também encontrei, derivada de um índio vindo de Pernambuco. Estas famílias de etnias
29

minoritárias, como ela já menciona, possuem relações de parentesco e casamentos com os


Kaingang, inclusive os brancos que ali moram.
A aldeia Serrinha faz parte de um movimento de retomada da terra, que detalharei
adiante, estando fora do atual limite demarcado da terra, tendo sido criada em julho de 2010 7.
O representante do cacique nesta aldeia apontou residirem 12 famílias nesta, contanto 21
adultos e mais 13 crianças em idade escolar.
A aldeia Água Branca está localizada entre as outras três aldeias, mas afastada delas
territorialmente e próxima a um local de antiga ocupação chamado Toldo Velho. Por
informações de lideranças da Água Branca, haveria nesta aldeia, quando estive em campo,
128 famílias residindo ali. Este número pode estar superdimensionado por questões políticas,
produzindo a mesma relação estabelecida ao se contabilizar as famílias e habitantes da
Serrinha, que resulta em uma média de três pessoas por família, ao contrário da contabilização
da FUNASA, que resulta em uma média de 5,7 pessoas/família. Segundo antropólogo que
trabalha com projetos na TI, ele teria contado 55 casas nesta aldeia8 em período logo posterior
a meu campo. Se multiplicarmos esta contagem pela média da FUNASA e a contagem
indígena pela relação citada na Serrinha teríamos uma população entre 313 e 384 pessoas,
contando crianças. Mesmo que tais números sejam imprecisos, é significativa a população da
nova aldeia considerando a total da TI, ainda que este possa ter crescido nos últimos anos.
A aldeia Sede é organizada em ruas, seguindo em certa medida o relevo da região.
Há uma região de ocupação mais antiga que se estrutura em ruas paralelas, como no modelo
urbano. Nesta aldeia há um posto de saúde, com atendimento permanente de enfermaria e
médico duas vezes por semana, atendendo a população indígena e também com cota de
atendimento para não indígenas da região, já que há carência de atendimento nas localidades
próximas. A escola existente nesta aldeia possui apenas o Ensino Fundamental, e os alunos
que passam ao Ensino Médio tem que se deslocar diariamente até o distrito de Lerroville do
Município de Londrina para estudar, havendo transporte escolar para tanto. Esta situação deve
mudar em breve, com o término da construção de Escola Estadual na aldeia, em fase de
acabamento enquanto estive em campo. Na Sede também se encontra posto da FUNAI, onde
hoje podem ser feitos registros civis de nascimento e casamento dos indígenas.
A aldeia Barreiro, que foi criada entre as décadas de 1950 e 1960, segundo o cacique
da época, por iniciativa do SPI, possui característica distinta da Sede, sendo estabelecida no

7
Há ainda outra ocupação também de retomada da terra, próxima ao Barreiro, em sede de fazenda (Fazenda
Tamoio) tomada pelos índios em 2005, onde haveria duas famílias indígenas na época que estive em campo.
Não cheguei a visitar esta área.
8
GÓES, P. H. R. (informação verbal).
30

modelo de colonização com casas alinhadas em uma única rua, não tendo se expandido para
além desta área.
No Barreiro, há também escola com Ensino Fundamental, com apenas um professor,
e Posto de Saúde, apenas com atendimento de enfermaria. Tanto na Sede como no Barreiro,
há energia elétrica. Há água encanada nestas aldeias, porém, no Barreiro, enquanto estive em
campo havia problema no abastecimento, segundo o representante do cacique, sendo
problema já antigo.
A aldeia Água Branca segue modelo de ocupação aproximado ao da Sede, com rua
de acesso principal em forma de “6”, em torno da qual estão as residências, havendo algumas
destas mais afastadas, com acesso apenas por caminhos em meio às plantações. Uma
diferença marcante é o fato de que enquanto na aldeia Sede há certa separação, ainda que não
absoluta, entre os espaços de residência (centro) e roças (periferia), na Água Branca não há tal
distinção, estando as residências em parte no meio das roças, especialmente aquelas mais
afastadas do arruamento principal.
Grande parte das residências na aldeia Sede são de alvenaria, construídas através de
um programa de habitação indígena do governo do Estado do Paraná, implantado em 2003.
Neste programa foram feitos dois modelos de casas, um destinado aos Guarani e outro aos
Kaingang. Em Apucaraninha, portanto, são casas deste segundo modelo. As casas tem 52m²,
cobertas com telhas cerâmicas, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro externo, varanda e
um pequeno espaço coberto aos fundos. Além destas casas, recentes, há outras bem mais
antigas, pré-fabricadas, com blocos de concreto, e casas de tábuas, geralmente cobertas com
telhas de fibrocimento (“Eternit”), e ainda casas de pau roliço, a pique, amarradas com cipó,
estas muitas vezes anexas às casas de outros modelos e bastante usadas também como ranchos
à beira dos rios, em pontos de pesca e sítios. É comum este modelo de casa ter suas paredes
revestidas com lonas plásticas, dando maior proteção contra ventos e chuvas. As casas no
modelo de planta próprio geralmente possuem apenas uma divisão, sendo de um lado a sala e
cozinha (espaço público) e de outro, com acesso interno apenas, os dormitórios (espaço
privado). A divisão é feita com o mesmo material da casa ou utilizando móveis, como
armários ou e guarda roupas e cortinas. Além disso, são usadas como residência construções
antigas que perderam sua função original como as antigas escola e igreja, fundos do salão de
baile, e outros.
No Barreiro, a maioria das casas são de blocos de concreto, havendo duas de
alvenaria oriundas do programa de habitação estadual. Também há ranchos anexos de pau a
pique.
31

A aldeia Serrinha foi estabelecida em torno de uma igreja católica, hoje utilizada
como residência pelo representante do Cacique da Sede na aldeia. A escola da aldeia, de
ensino fundamental, é de pau a pique assim como as demais residências. Apenas um professor
dá aula na escola. A aldeia não possui energia elétrica ou água encanada, sendo o
abastecimento de água através de caminhão pipa.
A aldeia Água Branca, estabelecida em agosto de 2011, lutava, enquanto lá estive,
para conseguir a instalação de energia elétrica, elemento necessário para a instalação de
bombas para poços artesianos. Os moradores usavam água de nascentes próximas, sem
qualquer tratamento. Não havia ainda qualquer estrutura no local além das próprias casas dos
moradores, estando suas lideranças buscando alternativas para instalação de escola e posto de
saúde, principalmente. As residências são em maioria de tábuas ou pau roliço, cobertas com
folhas de fibrocimento, materiais conseguidos em grande parte através de trocas por suas
antigas casas na aldeia Sede. Duas casas de alvenaria estavam sendo construídas quando ali
estive, por iniciativa particular de moradores.
Na Sede há templos da igreja católica e das seguintes denominações evangélicas:
Assembleia de Deus, Igreja do Cristianismo Decidido, Igreja Só o Senhor é Deus,
Congregação Cristã do Brasil, Igreja Restauradora Base para Deus. No Barreiro há apenas o
templo da Igreja do Cristianismo Decidido. Nas outras aldeias não havia templos em
atividade.
Na Sede, além dos espaços públicos já citados, há uma praça central e um salão de
baile. A praça e seu arredor é ponto de encontro tanto de velhos como jovens, normalmente
homens, mas também de mulheres. O posto da FUNAI se localiza de frente para ela. Nela há
ainda um lava-car de uso público e a churrasqueira onde são feitos os churrascos das festas.
Em frente à churrasqueira, mas já fora da área da praça, fica a igreja católica. As igrejas
evangélicas ficam mais dispersas pela aldeia, sendo apenas uma delas mais próxima a este
local, mas não de frente à praça. Mais acima da praça fica a cadeia indígena. O salão de baile,
de uso esporádico, onde se concentram atividades relativas à festa fica a cerca de 100 metros
da praça, a leste, em uma área aberta entre o arruamento paralelo, em meio a área residencial.
Neste local é também onde se concentram igrejas evangélicas, com três templos de
denominações distintas. Nesta área aberta, próximo ao salão de baile é o local onde é montada
arena para rodeio durante a festa de 19 de abril.
Há dois campos de futebol na aldeia Sede, o “de baixo”, localizado a nordeste da
aldeia, em frente à casa do atual cacique, sendo por ele administrado. O outro campo
localizado a oeste é administrado por morador que se mudou para a Água Branca. Ele fica ao
32

lado do escritório construído como sede da Associação de Moradores, onde fiquei hospedado.
Há outros campos de futebol mais afastados da aldeia, associados a locais denominados de
“paióis”. Há vários paióis na TI, todos com donos, geralmente próximos a locais de pesca nos
rios ou represas. A maioria deles é acessível apenas a pé ou a cavalo. Dois deles tem campos
de futebol anexo, um localizado no limite da reserva, próximo à represa principal da Usina de
Apucaraninha, sendo hoje de ex-cacique relacionado ao grupo da liderança da Sede. Há um
campo desativado ao lado do “paiol” do atual vice-cacique, ao lado da barra do rio
Apucaraninha, tendo esse campo sido instalado e administrado pela COPEL anteriormente.
Na Água Branca há um campo de futebol em área central. No Barreiro também há um, mais
afastado da aldeia, mas que não vem sendo utilizado e também um pequeno campo de areia
próximo à entrada da aldeia.
O cemitério fica afastado da aldeia Sede, a mais de dois quilômetros em linha reta e a
cerca de 3,5 km pela estrada9.

1.2. HISTÓRIA DA TERRA INDÍGENA APUCARANINHA: TEMPO ANTIGO E


ATUAL

O histórico de ocupação das últimas décadas pelos Kaingang na região é bastante


presente na memória dos moradores mais velhos de Apucaraninha. Estes, inclusive, faziam
questão de me contar sobre os tempos antigos ao saber que eu era pesquisador antropólogo.
Isso se dá tanto pela presença de pesquisadores na área anteriormente, mas também certo
saudosismo sobre outros tempos. Sendo assim, neste tópico, irei expor um pouco de tais
narrativas, comparando-as com trabalhos anteriores realizados por antropólogos na área, em
especial por Kimye Tommasino (1995). Tomo como base as narrativas de alguns poucos
interlocutores. Se por um lado isso se deve a um maior contato com os mesmos nesta questão
histórica especificamente, também se dá porque são poucos os índios na comunidade que são
considerados como conhecedores desta história, sendo indicados a mim como bons
interlocutores. Esta posição é geralmente reconhecida aos “velhos”, categoria que será tratada
no segundo capítulo, mas como um interlocutor comentou, os velhos já teriam morrido quase
todos. Nem todos meus interlocutores sobre o tema, porém, eram considerados “velhos”.
Inicio com um trecho de uma longa explanação de Áureo sobre tal história. Áureo tem cerca

9
Ver Anexo 6 para referencial esquemático do interior da Aldeia Sede . A localização do cemitério está
indicada no Anexo 5.
33

de 55 anos, é morador da Sede e liderança-polícia da mesma, termo que explorarei no


segundo capítulo.

Áureo: Como eu disse. ...Eu acho que os índios têm muitos pedaços de terra.
Qualquer lugar tem. Tem lá no Jataizinho tem uma reserva dos índios que...
moravam ali, paravam ali. Esses fazendeiros com... dizem que compraram, dizem
que é deles. Mas não é documentado, não é registrado. Então, tem muitas terras dos
índios, e tem. Mas e porque que o prefeito vende?
Lucas: mas é o prefeito que vende?
Áureo: é, ele que vende10. Porque ali, eles fazem escritura, fazem um documento,
fazem muitas coisas ali... e já vendem. Assim que os prefeitos fazem. Eu não sei se...
o governo sabe ou não. Eles pisam em cima e vendem. E sinto muito nesse ponto.
Porque tem muitos pedaços de terra, na área indígena, que já foi, que era área
indígena. Então como eu disse [...] os índios pararam ali também, meu bisavô
contava pra mim. Os índios moraram ali, ficaram, depois pra ser Londrina ali,
jogaram a gente pra cá também. Empurraram a gente pra cá. Daí que, fizeram asfalto
do lado de cá, São Jerônimo, Ortigueira, eu sei, eu sei daí. De Londrina pra cá
conheço tudo ali. Ali, como é que é a outra cidade ali, São Luiz. Aí que conheci, rio
Taquara ali. Aí que os índios mesmo faziam paris lá embaixo, o Taquara caía aí no
Tibagi lá embaixo. Tem até meu sogro, fazia paris lá. Tem uma área indígena
também, em roda do paris, e está lá.
Lucas: qual área indígena que é essa?
Áureo: aqui mesmo
Lucas: ah, entendi.
Áureo: essa área indígena. O rio Taquara, você conhece o rio Taquara ali. Pra ir a
Tamarana.
Lucas: não sei...
Áureo: Então a mina ali dele sai lá no Califórnia. Já contaram pra mim também.
Sempre eu vendo os balaios ali também, na cidade ali. Mauá, Marilândia, Califórnia,
Apucarana, Araponga... sempre eu vendo ali, sabe? Então eu ando perguntando.
Meus avôs contaram pra mim, aqui era área dos índios aqui, aqui os índios moravam
aqui, a gente saiu daqui, nos tiraram aqui, nos mudaram pra lá pra outro lugar, então
meu bisavô contava pra mim. […] Aí, do rio Taquara pra cá, ponte seca pra cá.
Ponte seca ali era só Bernardo, na aviação nova ali. Na aviação velha ali, nós não
tínhamos patrimônio. Nem o formigão não tinha no meu tempo.
Lucas: mas o que é...
Áureo: formigão ali, em Londrina, na chegada, ali, não tem posto de gasolina ali?
Ali que nós falamos ponte seca ali. Uma mina ali, cai ali, cai lá no, no saltinho aqui.
Então ali, conheço tudo ali. Aí que nós viemos embora, eu nasci aqui na Fundação
Nacional, no São Roque, eu nasci ali. Aí, o... quem entrou aqui primeiro, era o
Barbosa, pai do Plínio, o Otávio Lima... quatro famílias que chegaram ali primeiro.
Eu era pivetão já, pivetão, já conhecia tudo. Então, ali eles fizeram o barraco ali,
fizeram barraco ali, daí os parentes deles, as famílias, vieram atrás pra morar junto
com eles ali. Aí eles compraram, foi comprando, comprando. Não sei na mão de
quem que eles compraram. Esse eu não sei. Esse eu não sei, não sei na mão de quem
que eles compraram. Aí foram „induzindo‟ os índios. „Induzindo‟ os índios. A
Fundação era, já era uma área… Depois que eu falei pra você, quando eles pegaram,
quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, já tinha índio. Trazia roupa lá de
Portugal, trazia roupa, sapato, chapéu, enxada, machado, foice, faca. Trazia tudo de
lá pra cá. E tem, quando trazia foice pra nós era foice que não prestava pra nada.
Lucas: é?
Áureo: é, tem alguma ali, lá em casa. Parece que está guardado ali. Tempo que o
meu bisavô pegou, Fundação Nacional ali. Hoje eu vou campear, amanhã vou
campear, vou mostrar pra você. Que eles traziam de lá, entregava essa foice pra nós.
Meu bisavô pegou ali, e está aí guardado. Tinha enxada também, que sempre eles

10
A fala anterior de Áureo era referida a mudança de um Centro Cultural Indígena na cidade de Londrina, a
qual, antes usada como ponto de pouso para índios que iam à cidade, havia sido transformada em museu.
Assim, a relação entre a venda de terras e o prefeito não é descabida.
34

traziam pra nós, davam pra nós, pro meu bisavô, pro meu pai. E enxada eu não
guardei. Era enxadinha pequenininha também. Não era que nem essas umas que eu
tenho lá. Aí sim... aí Fundação Nacional. Daí eles nos tiraram dali. À força também.
Mandaram-nos lá para a Igrejinha. Igrejinha aqui, você sabe mais ou menos aí...
você está aí sempre, às vezes você vai lá. Aí nos tiraram dali, depois, daí tinha esse
posto aqui, veio o Allan Kardec, um alemão, pra comandar os índios, comunidade.
O cacique primeiro era capitão. Fundação Nacional era capitão. E mudou. Mudou
daí cacique, pro nome de cacique. Meu padrinho era capitão, o... Gregório, era
capitão. Depois mudou nome, que daí tinha idade. E daí que ele tomou conta,
Bernardo, meu tio. Aí foi... aí nós estávamos na Igrejinha, daí o chefe do posto já
estava pra cá. A mulher dele era professora, a Nair, minha madrinha. Fazia aula duas
vezes por semana, aqui. Fazia duas vezes por semana. Aí sim... nos mudaram a
força, moramos aqui no Toldo Velho aqui, ó. Morei lá.
Lucas: ah, você morou ali também.
Áureo: morei aqui. Bem onde, tem um plantio de laranjal lá, eu morei ali, aonde que
me criei daí. Aí não pude nem estudar aqui. Daí o Afonso, o Afonso é vivo ainda,
ele está na Água Branca, lá. Ele morou aqui no Apucaraninha aqui. É no Tibagi.
Eles moravam lá, o Afonso, o genro dele, o Caetano, moravam lá. Daí depois
subiram pra cima, morar perto aqui. Fazia festa na Igrejinha, fazia festa de Santa
Cruz. Lá na Igrejinha lá. Dali no Toldo ali ia lá festar com nós. De lá da Igrejinha,
fazia festa aqui, aqui onde está, onde morou o Bernardo, o Gregório ali, fazia
churrasco, dezenove de abril. De lá que eles vinham, festar com nós. Eu vinha
também a cavalo. Muitos anos, os índios usavam muito cavalo. Daí de lá vinha
festar ali, ó.
Lucas: então essa festa de 19 de abril é antiga?
Áureo: é muitos anos! No tempo que acho que eu não existia ainda. Já teve essa
festa. Teve essa festa, daí foi 19 de abril, festar com nós ali. Dali a turma daqui que
morava aqui, ia festar com nós. Daí depois eles mudaram aqui. O posto aqui já
estava aqui, o Allan Kardec tomou conta aqui. De lá nós morávamos no matão ali,
daí nós viemos aqui, festar com eles aqui. Era poucos índios. Agora que aumentou
agora. Que nem que eu falei pra você ontem, os brancos mataram muitos índios.
[Para] tomar a terra dos índios. Então os índios ficaram poucos. Agora que nós nos
criamos mais agora. Se vê agora tem uma 'tantada' boa. Você vai ver hoje lá no
campo, lá. Então o índio era pouco. Qualquer aldeia dos índios era poucos índios.
Nós éramos bastante! Tempo do Pedro Álvares Cabral, [quando] descobriu o Brasil.
Era bastante! O Paraná inteiro era tudo índio. Misturado com índio Guarani, Terena,
Xingu, índio Morcego, mas daí nos separaram. Pra colocar reserva indígena. Cada
separado. Tem Barão de Antonina, São Jerônimo da Serra, Pinhalzinho, Laranjinha
e Apucaraninha, Mococa, Ortigueira [Queimadas], Faxinal, Mangueirinha, Rio das
Cobras11. Então cada aldeia daqui eles fizeram daí. Pra não acabarem os índios. Que
nem eu estava falando pra você. Pegaram General Rondon era pivetinho. Daí que
„estudaram‟ ele. „Estudaram‟ ele, daí que ele disse: estão matando todo meu sangue,
eu vou fazer cada área indígena. Daí que eles fizeram, esse que eu to falando pra
você.
Lucas: esse General Rondon era índio então?
Áureo: era índio puro, pegaram ele pelado. No mato, no Paraná. Daí „estudaram‟ ele.
Daí como foi um... foi um governador daí. Daí muito, fez estudo, assunto índio,
comunidade indígena, o General Rondon. Daí estudou, daí que fizeram reserva
indígena pra nós aí, cada separação, outra ali, outra cá. Foi desse tipo. Pra não
acabarem os índios puros. Então ele fez esse ponto. … A área indígena era grande.
Rio Taquara, que nem falei pra você. Pega lá no Califórnia, cai aqui no Tibagi.
Agora, a divisa certa mesmo, meu avô contava pra mim mesmo, era linha de trem.
De... cai ali no... nessa cidade Marilândia, cai lá no Rio Preto. Aqui é Igrejinha,
Igrejinha do Rio Preto. Lá é o Rio Preto, pra lá da Serra do Cadeado. Tomamos um
pedaço de terra lá também, está lá. Hoje tem, tem um matão lá. Tomamos lá, então

11
As TIs de Faxinal, Mangueirinha e Rio das Cobras são também de etnia kaingang no estado do Paraná (ver
localização no anexo 2). Além das TIs citadas, no Estado ainda há as TIs Ivaí, Marrecas (Guarapuava), Boa
Vista e Palmas. As TIs Pinhalzinho e Laranjinha, citadas, são de etnia Guarani, também localizadas no norte
paranaense.
35

faz divisa e vem rio Apucarana, que vem aqui, nessa divisa aqui. Daí que eu sei,
Fundação Nacional, pra cá conheço tudo: Dourados. Ali no Guaravera ali, era só
mato. Tinha muita fruta, palmito, coqueiro, taquara, coró de taquara. Já vi duas
vezes já, a cada trinta ano dá. A cada trinta ano dá mais taquara. Ela seca, depois
brota de novo. Aqueles caroços que caem, aí nascem de novo. É desse tipo. Daí...
daí... nós ficamos assim. Daí estamos assim agora. Daí fiquei aqui, me criei aqui.

Esta fala foi a segunda conversa que tive com Áureo, e como se vê, eu não conseguia
acompanhar as referências territoriais. O mapa no anexo 3 pode auxiliar em algumas delas.
Com esta fala também gostaria de apontar de início os limites da compreensão e da
interlocução entre pesquisador e seus informantes. E, por outro lado, a partir da
“simbolização”, denotar que há nela uma dimensão da visão histórica sobre a terra e as
condições de vida na dos índios na região. Esta fala condensa vários elementos que serão
retomados a seguir neste tópico. Primeiro podemos destacar que qualquer lugar é terra de
índio, em qualquer lugar há locais de ocupação pelos índios antigos, já que o Paraná inteiro
era tudo índio. Estes locais são demarcados pela presença de paris, armadilhas para a captura
de peixes feitas nos rios12. Mas a chegada dos brancos, em especial representada por Pedro
Álvares Cabral, no tempo de seu bisavô, muda a situação. Traziam roupa, foice e enxada de
Portugal para os índios, mas estas coisas trazidas não prestavam. Depois foram empurrando e
jogando os índios a força, matando-os, para tomar suas terras, restando poucos deles. Através
de sua política, fazem escritura, documento, e vendem a terra do índio. Na Fundação
Nacional, no São Roque, chegaram as primeiras famílias de colonos, quatro apenas, mas logo
vieram suas famílias, comprando a terra dos índios. Estes foram mandados para Igrejinha, do
Rio Preto, e depois da chegada de Allan Kardec, chefe do posto do SPI, são novamente
realocados para o Toldo Velho. Mesmo assim, os índios da região ainda mantinham relações
intensas entre si, denotada com as festas, especialmente a de 19 de abril, com churrasco.
General Rondon, considerado índio puro, foi quem conseguiu, ao estudar e se inserir na
política dos brancos, como governador, estabelecer as reservas hoje existentes, para não
acabarem os índios puros, seu próprio sangue. A reserva que era grande e era só mato, com
fruta, palmito, coqueiro, taquara, coró, foi tomada e os índios foram limitados e divididos em
pequenos espaços e tudo isso acabou.

A área atual, hoje oficialmente chamada de TI Apucarana, deriva de decreto de 1900,


que diz que: “ficam reservadas, para estabelecimento de colônias indígenas, as terras

12
Será feita descrição mais pormenorizada no quinto capítulo. O paris pode ser referenciado aqui como
marcado por grupos de reciprocidade, na medida em que envolvem trabalho inicial e grande quantidade de
pesca após armado. (TOMMASINO, 2004).
36

devolutas sitas entre os rios Tibagy, Apucarana, Apucaraninha e a serra do Apucarana, no


município do Tibagy” (TOMMASINO, 1995, p.164). O tamanho original da reserva seria
imenso, comparado aos oficiais 5.574,945 ha, hoje demarcados, indo para além do que hoje
seria o município de Tamarana (47.215,6 ha), especialmente por não haver limites claros de
“ocupação” indígena, com diversos toldos ou aldeias na região. Como menciona Tommasino
(1995), os próprios índios consideravam uma área só São Jerônimo e as aldeias na Serra
Apucarana. Como Áureo coloca, depois foram separando os índios nas diferentes reservas.
Nas décadas de 1930 e 1940, o impulso colonizador, tornado política de estado, é
largamente implementado na região, com a presença de empresas de colonização, e
estabelecimento de colônias de migrantes nacionais e estrangeiros. Sem uma demarcação
efetiva, as terras indígenas já decretadas passam a ser ocupadas também por brancos. Em
1949 acordo feito entre governo do estado e governo federal, para “reestruturação” das áreas
indígenas no estado, com objetivos claros de “colonização e localização dos migrantes” das
terras excedentes, tomou como base a área de 100 ha por família indígena de cinco pessoas
mais 500 ha para as instalações do Posto Indígena, atingindo quase todas as áreas da região e
no restante do estado já concedidas: Apucarana, Queimadas, Ivaí, Faxinal, Rio das Cobras e
Mangueirinha (TOMMASINO, 1995, p. 168; MOTA, 2008; RAMOS, 2008, p.62) . No caso
de Apucaraninha, de uma área de cerca de 54.000 ha ou 45.864 ha, conforme o documento de
referência, passou para duas glebas, conforme ata de reunião entre Comissão do SPI e
representantes do Estado em 1950:

Uma de 5.300 ha à margem esquerda de rio Preto, a começar na confluência deste


rio no rio Apucarana Grande, rio Preto acima até abranger a igrejinha do bairro de
Rio Preto, onde deverá ser localizado o novo Posto, no lugar denominado “RUA”,
pouco abaixo da dita igrejinha; outra de 1.000 ha, à margem direita do rio
Apucaraninha, abrangendo casa situada na Campininha e todas as suas dependências
(SPI, 1950, apud. TOMMASINO, 1995, p.168).

Segundo Tommasino, a própria aldeia de Rio Preto, localizada na base da Serra do


Cadeado, há cerca de 40 km da atual Sede da TI ficava fora dessas áreas, o que resultou na
transferência de quase todas as famílias ali residentes para a Sede, o que confirma a fala
Áureo. Ela ainda apresenta documentos que mostravam a não concordância do próprio SPI
com a drástica redução, chegando a fazer contrapropostas que quase dobrariam tal área, sem
sucesso.
A redução dos 6.300 ha para os pouco mais de 5.5 mil ha constatados em vistoria da
FUNAI na década de 1990, foi feita por invasões, problema existente até hoje, especialmente
na divisa seca da área, além de arrendamentos feitos pela própria FUNAI até o fim da década
37

de 1970, que acabavam incentivando a ocupação por brancos (TOMMASINO, 1995, p.190).
Atualmente há processo de revisão dos limites da área, tendo alguns índios comentado a sua
participação em Grupo Técnico (GT) da FUNAI na região para isso.
Segundo depoimentos coletados por Tommasino, até esta época, a administração do
Posto Apucarana, localizava-se em São Jerônimo, havendo apenas um capitão indígena
nomeado para “cuidar” dos índios. A chegada de Francisco Graça, enquanto o posto era
localizado no Toldo Velho, citada pela autora não foi mencionada a mim, mas sim a posterior,
de Allan Kardec, como citado, funcionário do SPI, que durante a década de 1940 acentua o
trabalho de concentração transferência dos índios da região, criando um Posto do SPI e a atual
aldeia Sede. A primeira Sede do Posto Indígena era localizada no aldeamento denominado
Campina (ALMEIDA, 2004), não por acaso o primeiro “capitão” indígena é referenciado a
esta localidade, o “Dito Campina”.
Há registro de brancos nas áreas indígenas da região desde a criação delas, como
mostra Tommasino (1995, p.155s). Com as práticas de arrendamento, primeiro pelo SPI e
posteriormente pela FUNAI, em 1976, um levantamento do INCRA registrou 24 famílias não
índias em Apucaraninha, num total de 163 pessoas, ocupando 302,5 ha. (TOMMASINO,
1995, p.190). A desintrusão das Terras Indígenas da região só ocorreria após os movimentos
sociais indígenas de 1979 até 1985, pesquisados pela mesma autora. Apesar disso, os relatos a
mim da relação com os posseiros de então eram sempre no sentido de relações amistosas, de
trabalho e de lazer.
Mas a experiência de relação com os brancos, se é em certa medida positiva neste
âmbito, ela é radicalmente distinta quando se trata da ação do SPI, especificamente através
dos chefes de posto, com a exploração do trabalho indígena e uso dos recursos existentes na
terra.
A chegada dos brancos, e as transformações decorrentes no espaço e forma de vida e
trabalho são identificadas por Tommasino (1995), que distingue então duas temporalidades
distintas, referenciando-as como o tempo antigo, vãsy, ou wãxi, contrastado ao tempo atual,
uri. O wãxi costuma ser visto como perfeito, e o uri imperfeito. Como fala a autora, um e
outro não são separáveis e se constroem mutuamente. Não consegui chegar a tais termos
kaingangs com meus interlocutores. O que identifiquei como a demarcação do antigo e do
novo eram os conhecimentos sobre as situações e acontecimentos antigos, sabidos pelos mais
velhos. Os novos não saberiam essas coisas, e viveriam, como veremos, uma “lei nova”. O
tempo antigo é sempre referenciado temporalmente através dos nomes de capitães, caciques e
chefes de posto, como aparece nos relatos.
38

A temporalidade é relacionada pela autora a outra espacialidade, em que além de um


território mais amplo, de ocupação mais dispersa, é marcada pela presença dos pinhais,
muitos palmitos e perobas, a mata, os rios repletos de peixe, bem como o preparo de comidas
tradicionais, ainda que muitas delas sejam feitas atualmente. A transformação do espaço no
tempo antigo é histórica, relacionada aos chefes de posto e suas ações, tanto de realocação dos
índios, sempre procurando concentrá-los em aldeias fixas, como de exploração os recursos
materiais da TI.

Antônio: tem uma aldeia que a gente chama Toldo, Toldo Velho, pra cá, indo
naquele caminho ali, vai lá. Toldo Velho que a gente fala. Aí... e naquela época cada
um tinha sua roça, cada família, tinha sua roça, trabalhava com os filhos todos. E...
tinha, só que a comunidade também era [pequena], naquela época, e hoje aumentou
bastante.
Lucas: mas daí, eles saíram daqui, e foram lá pra Sede daí...
Antônio: é que daí veio um chefe do posto, um tal de Allan. Aí, ele nos chamou
todos pra lá.
Lucas: você sabe que época que foi mais ou menos isso?
Antônio: foi... Nessa época eu estava mais ou menos com uns doze anos, onze anos
mais ou menos.
Lucas: e você tem hoje quantos?
Antônio: estou com cinquenta... cinquenta e cinco.
Lucas: e daí, vocês foram pra lá.
Antônio: aí, chefe do posto nos chamou lá, foi no tempo do SPI, nos chamou lá,
fizeram uma escola, pra gente poder estudar. Fizeram escola, uma colônia. Olha,
aqui era tudo pinheiro, araucária, tudo, essa área aqui era tudo! Palmito, bicho,
cateto, porco do mato, tinha demais! Aí, esse tal de Allan, começou a arrendar a
área. Começou arrendar, e foi... foram desmatando tudo. Serraria ele botou uma
serraria lá embaixo, lá na Sede. Tinha serraria, tirava as tábuas, fez umas casas lá pra
nós. E o resto das madeiras... não sei pra onde ia. Não sei se [para] Bauru, que
naquela época era Bauru que tomava conta aqui... Mais ou menos no ano 60, mais
ou menos. Essas madeiras, aqui, de araucária, tinha demais. Aquele capão de
pinheiro ali, que está ali embaixo ali, era um arrendatário que plantou aqueles
pinheiro mais. Porque ele estava desmatando tudo, aí ele começou a plantar aqueles
pinheiro lá, ali, aqueles capões que estão ali. Era um arrendatário, que plantou ali.

Temos um tempo marcado pela mudança de espaço e do espaço, demarcado pela


chegada do branco e suas ações de redução e exploração. Pela fala de Antônio, hoje morador
da Água Branca, que foi cacique da área na década de 1980, e tido como grande conhecedor
da história e “cultura” Kaingang, a extinção da aldeia do Toldo Velho, local hoje dentro da
reserva, sem ocupação intensiva, e a transferência para a Sede das famílias dali, foi posterior
ao primeiro movimento de redução após 1949. Vemos como a mudança também se deu na
forma de organização do trabalho e produção, já que antes cada família tinha sua roça. A
forma e condições de trabalho neste período são vistas como muito sofridas:

Áureo: no meu tempo, tempo do meu pai, do meu tio, parente, irmão do meu tio,
primo-irmão13, primo-segundo, primo-terceiro, já foi muito escravo aqui. Muito

13
As expressões de parentesco nativo “primo-legítimo” e “primo-irmão” abrangem relações de parentesco de
39

escravo aqui, que nem falei pra você. Ali no Toldo ali fizeram cinquenta alqueire.
Lá no paris do Campina, o Campina é falecido já, meu compadre, fizemos trinta
alqueires, trinta e cinco alqueires. Aqui nós fizemos trinta aqui, ó. Olha, gente... a
gente não tinha roupa, tinha roupa que acabava daí. Acabava, tinha até buraco assim,
a minha avó emendava pra ele. Onde colocava foice aqui nas costas, rasgava aqui, ó.
Tudo emendado. Roupa que nós tínhamos. Hoje acostumamos usar. Fomos trabalhar
sem sapato, os índio trabalhavam. Aqui mesmo no posto aqui, ó, fizeram roçada
aqui, cozinhava feijão carunchado pra eles. Chefe do posto mandava cozinhar!
Chefe do posto, mandava cozinhar pros índios. Pros índios comer e trabalhar. Dado
ainda, sem ver nem um tostão. Acho que vinha alguma coisa pros índios, só que o
chefe do posto acho que embolsava também. Porque o governo já ajudou muito os
índios, sabe, já ajudou muito os índios. E por causa desse, o chefe do posto, outro
que era velho também, outro quer também, tirou o pouco que é dos índios... agora
hoje não vê mais nada: FUNAI já acabou. FUNAI ajudava muito os índios. Dava
trator. Comprou trator, dava pra nós. Aquele trator velho que está encostado ali. Ali
no tempo do outro chefe do posto, seu Carlos, veio aqui está ali, ó, encostado. Ele
que comprou pra nós, governo que comprou, mandou pra nós pra: trabalhar. Pra
gente fazer terra mecanizada. Primeiro que fizeram essa terra ali, ó, onde está o
feijão, com esse trator. Plantava milho, plantamos algodão também, com esse trator
aqui. Tinha só ele só. Depois, ganhava porcentagem. Não sei quanto por cento nós
ganhávamos também. Nesse tempo eu ganhei, no tempo que dinheiro valia também,
118 cruze... eu ganhei, na colheita. Tirou dinheiro, deu pra nós. Pra todo mundo
também. Todo mundo que trabalhou ali. Aí, foi assim, os índios foram trabalhado,
foram escravos do chefe do posto. Ó, tempo do Allan. Tempo do João Martin, que
era da Fundação Nacional, não era assim, os índios viviam por conta.
Lucas: isso antes daí?
Áureo: isso depois desse, desse chefe agora. Plantava milho pururuca, milho
vermelho, fazia bolo, socava no pilão, fazia bolo, comia com peixe assado com fogo.
No meu tempo não tinha panela, não tinha colher, tempo do meu bisavô, não tinha
colher, não tinha panela, não tinha açúcar, sal. Eu não tinha não. Eu comi sem sal,
peixe assado no fogo sem sal. Eu comi. Palmito assado no fogo, comi sem sal. Mel
de abelha comi com palmito. Coqueiro tirado, comi com mel de abelha. Meu açúcar
era mel de abelha. Tinha um litro de óleo, aquele reto, cortava a tampa, esquentava,
tirava um pedacinho assim, ó, jogava ali assim, mexia com colher de madeira, colher
de pau. E sofri muito. Sofri muito, cara. Eu era bombeiro atrás desses um que
trabalhava ali.
Lucas: era o quê?
Áureo: eu era bombeiro, levava água num purungo. Eu tenho purungo em casa.
Sempre eu o vejo, aquele tempo que eu carregava água atrás da turma. Descalço
ainda! Sem sapato, cara! A turma também que trabalhava, sem sapato trabalhava
também. Não ganhava nem um tostão.

Aqui fica claro o contraste do tempo do SPI, de trabalho escravo, trabalho dado, com
o tempo em que os índios trabalhavam por conta, na Fundação Nacional, sendo que é na
figura do chefe do posto que tal mudança se centra. Como identificou Almeida (2004, p.228),
João Martins teria sido o primeiro chefe de posto da região, provavelmente não residente na
área de Apucaraninha. Ele teria sido responsável pela implantação de alambiques na região,
nos quais os índios trabalhavam de forma autônoma.
Almeida (2004, p.226) cita que o aldeamento de Igrejinha, ao qual também faz
referência Áureo, era organizado em torno de um alambique implantado por iniciativa
governamental, segundo a informação coletada por ele, tal aldeamento teria sido extinto no

primos de segundo e terceiro graus.


40

fim da década de 1930. O trabalho neste alambique bem como no cultivo da cana é registrado
como sendo autônomo pelos índios. A instalação de alambiques para trabalho indígena é
presente inclusive nas primeiras tentativas de aldeamento realizadas na região, como em São
Pedro Alcântara, pelos próprios missionários católicos que os administravam. Como coloca
Amoroso (1998), havia também por parte dos índios o desejo de possuir o controle total do
ciclo produtivo da cana, tendo em alguns casos demandado alambiques do governo.
O tempo do SPI é colocado como sofrido pelas condições de trabalho e trabalho
forçado. Nota-se a marcação deste tempo sofrido através de seus parentes citados no início da
fala. Mas o tempo anterior, também era sofrido sem as condições materiais de hoje, sem
colher, panela, açúcar, sal. No entanto, mesmo sofrido, há um saudosismo e idealização deste
tempo.
O sistema do “panelão” e o de “cantina” já descrito por Tommasino (1995) na região
e largamente conhecido no Brasil, foram modelos implantados pelo SPI e FUNAI. Se o
panelão era o trabalho dado a troco de boia, nas condições descritas por Áureo, a cantina
fornecia alimentos, roupas e instrumentos de trabalho aos indígenas envolvidos. O trabalho
era forçado, com o uso do tronco, ao qual eram amarrados os índios, ou da cadeia, espaço
também instituído pelo órgão indigenista e existente até hoje, como veremos.
Tommasino afirma que algumas vezes o sistema da “cantina” é lembrado com
saudosismo, sem se levar em conta o trabalho realizado, sendo uma memória sobre o que
atendia a uma expectativa da comunidade sobre órgão tutor, como Pay-bang, ou seja, o
grande chefe ao qual se submetiam os Pay, que seriam os atuais caciques, esperando sua
generosidade (TOMMASINO, 1995, p.95; 197). Não é o caso aqui, ainda que algum índio
tenha tal visão, inclusive resgatando-a quando se trata do Programa oriundo da indenização.
De forma geral, no entanto, se destaca o sofrimento daquela época, além da própria
transformação do espaço.
A implantação de serrarias pelo SPI na área é importante ponto lembrado nesta
mudança fundante do tempo antigo histórico, na medida em que está diretamente relacionada
com a transformação do espaço, também utilizando o sistema de panelão, como expõe Bruno,
morador da Sede e liderança-polícia, com cerca de 45 anos.

Lucas: E do tempo que você era criança pra cá teve muita mudança?
Bruno: já tinha mudado, sabe por quê? Já tinha serraria ali embaixo, aqui era monte
de peroba. Mas no tempo do capitão Nivaldo, [...] ele acabou com esses paus de
peroba que tem por aí, ó. E hoje, eles não querem que derrube nem um pau, agora
pra usar. Era pra nós usarmos, só aqui dentro da aldeia, não era pra nós vendermos.
E aquele tempo que o capitão Nivaldo mandava aqui ele cortou tudo até os
pinheiros, até as perobas, que acabou os pinheiros, agora hoje não tem peroba, está
41

pouco os pinheiros por aí, ó. Agora já embargou tudo, agora não tem jeito pra fazer
uma casinha boa. Só o... peroba caída agora, mas estão poucas as perobas.
Lucas: e usava pra que as perobas?
Bruno: era pra fazer uma casa. Naquele tempo não usava uma casinha boa. Fazia
casinha... barroteava com os paus, amarrava com cipó. Daí não usava igual os
brancos que usam. Cobria com folha de coqueiro também. Fazia cobertura com
folha de coqueiro.

Segundo Cecília Helm (1978) o abandono tanto da serraria como de beneficiadora de


arroz, engenho de açúcar e moinho de milho teria sido por falta de recursos do SPI. No
entanto, em falas de lideranças a mudança do sistema de exploração dos índios é marcada
como de origem interna, uma virada política, com mudança de atitudes tomadas pelos
próprios índios. Assim, obtive relato afirmando que o sistema de panelão acabara depois que
surraram o então chefe do posto, fato que Helm também menciona (ibid., p. 73). Da mesma
forma, após o fim do SPI, a mudança na forma de tratamento do chefe com os índios, é citada
pelo então cacique Emanuel, que pode ser considerado um dos “velhos” da TI hoje, com cerca
de 65 anos, morador da Sede. Ele destaca sua iniciativa, mandando o chefe embora:

Emanuel: Daí falei pra ele: se você quiser fazer esse jeito que o chefe, que os outros
chefes que entravam [faziam], você não fica aqui. Eu não quero fazer assim, eu sou
cacique, aqui, eu não quero judiar da minha gente. Eu quero fazer bem pra minha
gente, não judiar. Agora você quer judiar! Quer só judiar os índios! Quer só [fazer]
as famílias dos índios passar fome!

Este momento representaria uma virada na situação de poder, com a superação do


poder do chefe do posto pelo poder então centralizado na figura do cacique em um território
agora transformado e restrito para a comunidade. Voltarei ao que seja este “poder” adiante.
O tempo antigo que tratamos aqui é histórico, no entanto, na primeira citação da fala
de Áureo percebemos como também há uma mitificação do mesmo, relacionada a este tempo
histórico, com a planificação das categorias branco e índio em um tempo antigo planificado.
Assim, se identifica a chegada mais incisiva dos brancos à região com a chegada de Pedro
Álvares Cabral, correlacionando suas atitudes com à daqueles brancos. Como considera
Tommasino (2004, p. 165, 1995, p. 239), os tempos antigos histórico e mítico são conectados
e não muito separáveis, e estão sempre em construção, até mesmo no próprio fato de seu
estabelecimento discursivo para o pesquisador. Sendo assim, é mais marcante na fala de
alguns índios e menos nas de outros, inclusive de mais idade. Adiante retomarei a questão da
ligação entre tempo e espaço, ao tratar a criação da Água Branca, como um novo espaço
criado, que busca um resgate de um tempo antigo, com uma organização espacial próxima a
este.
42

A dimensão indígena deste tempo mítico também é expressa para além do espaço, ou
seja, a mata e suas riquezas, estando nos próprios corpos:

Bruno: Tem o índio que andava a pé pro mato assim. Não pisava nem espinho.
Lucas: como assim não pisava no espinho?
Bruno: não pisava mesmo. Hoje nós pisamos agora. Quando eu ando por aí nessas
pedrinhas, já machuca meu pé.
Lucas: Mas como é que fazia pra não pisar no espinho?
Bruno: não sei, parece que é pé curado.
Lucas: pé curado é (riso).
Bruno: Tem umas folhas aí pra curar os pés, pra andar bem, pra baixo dos matos aí.
E anda mesmo, igual estrada pra ele andar.
Lucas: e não sabe como é que faz isso aí?
Bruno: não sei. Nem espinho arranha ele.
Lucas: esse é bom, ein.
Bruno: Aqueles tempos era assim. Mas hoje não, hoje nós usamos tudo as coisas do
branco.

Há uma potência e força dos índios expressa em seus corpos e na relação com a
natureza. Segundo Bruno, esta força é presente no índio através de seu sangue, enquanto
substância. A manutenção desta força seria dada principalmente através do casamento.

1.3. ÍNDIOS PUROS, BRANCOS E MESTIÇOS

Os Kaingang têm sido historicamente caracterizados como dualistas, ou seja, que


classificam a totalidade ou parte de seus membros em metades complementares
(TOMMASINO, 1995; FERNANDES, 2003; ALMEIDA, 2004; VEIGA, 1994; 2000). Tal
divisão, além de separar dois grupos de pessoas, também separaria os seres da natureza e
sobrenatureza, com atribuição a estes das características denotadas a cada uma das metades,
sendo considerada como um sistema classificatório cosmológico. Este sistema seria
complementar, na medida em que as duas partes estão em relação, mas assimétrico, na medida
em que uma das partes teria preeminência sobre a outra. Além da classificação, esta divisão
regraria o casamento e a descendência, pela identificação via paterna aos filhos e a exogamia
entre as metades.
O nome das metades seria relativo ao nome de dois irmãos, personagens dos mitos de
criação do grupo, Kamé e Kairu. Cada uma seria subdividida em dois grupos, a metade kamé,
dividida entre kamé e wonhetky e a metade kairu subdividida em kairu e votor. Em
Apucaraninha não se utiliza tais nomes atualmente, sendo os grupos referenciados através das
“marcas”. Registrei quatro nomes de marcas. Duas delas são mais utilizadas, re joj (ou re
43

ioio)14, correspondente ao “riscado”, e re kutu, correspondente ao “ponto”. Há também outras


duas, re doro, “círculo”, e re nor (ou re newy), que foi identificada como ponto ou não se
soube relacionar a um desenho de marca. Essas denominações se aproximam das identificadas
por Tommasino (1995, p. 252). Segundo a autora, as três últimas marcas mencionadas
pertenceriam a uma mesma metade, ror (circular ou redondo), e a primeira à metade téie
(comprido ou riscado).
Nos mitos, coletados desde o século XIX, indica-se a assimetria entre as metades,
sendo os kamé mais fortes ou perfeitos, os kairu, imperfeitos ou inacabados, estabelecendo
uma relação hierarquizada entre eles (FERNANDES, 2003, p. 40). Não identifiquei, no
entanto, destaque à assimetria entre as marcas em Apucaraninha.
A regra de casamento exogâmico entre as metades é ainda hoje uma referência para
os Kaingang em Apucaraninha. Mesmo pessoas de idade próxima aos 20 anos conhecem a
regra. No entanto, por exemplo, um rapaz de pouco mais de 20 anos reconhecia a regra, mas
não a considerava ao procurar uma esposa para si, ainda que isso causasse reprovação por sua
avó. Algumas pessoas mais velhas reclamam de tal situação, em algum caso culpando as
igrejas evangélicas ou então a situação de “bagunça” na aldeia, termo bastante usado, de
forma geral relacionado à venda de bebidas na aldeia e principalmente ao comportamento
visto como permissivo do ponto de vista sexual. Apesar disso, como veremos no quinto
capítulo, as crianças da TI ainda são identificadas às respectivas marcas.
Tendo a separação em metades uma dimensão cosmológica, as implicações do
casamento entre pessoas da mesma marca já foram relatadas por outros autores
(FERNANDES, 2003; ALMEIDA, 2004) como gerando fraqueza aos descendentes. A mim,
da mesma forma, além da questão do não respeito à “tradição indígena”, também foi dito que
os filhos de tais casamentos não viveriam muito ou que seriam “pequenos”, de baixa estatura.
Isso não quer dizer, no entanto, que no passado não havia tais tipos de casamento.
Veiga (2000) observou, estudando entre os Kaingang da TI Inhacorá e Rio da
Várzea, que os subgrupos votor e wonhetky seriam decorrentes dos casamentos entre
membros da mesma metade, e Fernandes (2003, p. 73) observa que com tais casamentos,
segundo kaingangs de Rio da Várzea, os pais seriam punidos e a família enfraqueceria, sendo
que seus filhos seriam classificados na categoria péin, para reestabelecerem sua força. Esta
categoria péin seria dada a pessoas com doenças graves ou situações de risco de morte, e é
caracterizada pelo recebimento das duas marcas, recebendo um nome especial, jiji koreg,

14
Há variações de escrita em função de não haver uma grafia oficialmente estabelecida da língua kaingang. As
utilizadas seguem Tommasino (1995).
44

nome ruim ou feio. Esta categoria de pessoas tinha importante papel ritual, em especial no
kiki koi, ritual dos mortos, podendo entrar em contato com os corpos e objetos dos mortos.
Este ritual é característico pela pintura corporal das marcas e separação ritual dos grupos.
Segundo informações obtidas com algumas lideranças, em Apucaraninha não
existiriam mais pessoas péin. Tommasino (1995, p. 253) registrou relato da existência de duas
pessoas desta categoria no local, na época de seu trabalho de campo. O próprio ritual do kiki
não é realizado na TI Apucaraninha, segundo levantamento feito por Almeida (2004), desde o
fim da década de 1930, sendo coincidente com o período de concentração populacional e
intensificação da política indigenista, o que tem implicações na própria efetivação ritual das
marcas e categorias. Como veremos no quinto capítulo, a partir de um “evento cultural” que
pude participar na semana do dia do índio, existe movimento de “revitalização” destas
categorias e rituais a partir da valorização do que seria a cultura tradicional.
Em Apucaraninha não há uma implicação jurídica no casamento com metades iguais.
Atualmente, como descreve Ramos (2008), os casamentos são feitos por decisão dos
cônjuges, acertado entre os pais (no caso de ser primeiro casamento), submetidos então ao
cacique, que dificilmente irá se opor. A intermediação do cacique se faz mais importante
quando se trata de desfazer o casamento, especialmente nos casos em que não haja
concordância entre as partes, seja sobre a guarda dos filhos, separação de bens, ou por
conflitos pessoais em caso de adultério15.
Em relação à residência uxorilocal, não obtive relatos que a expusessem como regra,
“lei”, nem mesmo como referência, apesar de ser visível em alguns casos, com maior ou
menor sucesso. Geralmente o que se punha como ideal era a residência de filhos de ambos os
sexos próximos aos pais, sendo que em alguns casos isso se dava efetivamente, inclusive
facilitado com a mudança de grande número de famílias para a Água Branca, com a
negociação de suas casas antigas na Sede e também na Água Branca pelo estabelecimento das
residências em um novo local. A regra uxorilocal tende a ser mais visível, porém, em
casamentos entre pessoas de TIs distintas, havendo vários casos de maridos que se mudaram
para a TI da família da esposa.

O casamento com brancos e também com índios de outras etnias tem maiores
implicações hoje, tanto no plano discursivo, como no plano da “lei” interna. Para além de não
se saber a qual metade pertencerão os filhos, em algum caso sendo considerada a da mãe ou a

15
Almeida (2004) também registrou aconselhamento pelo pastor em caso de casais evangélicos.
45

oposta à da mãe, ele implica na mistura, nos mestiços. Desta forma, implica na própria
definição de “índio puro” e também no local de residência, adentrando, desta forma, o plano
da “lei”.

Lucas: e o que é branco puro?


Áureo: branco puro é... que nem você. Você é puro branco.
Lucas: mas e aí, vamos supor assim, um branco casa com uma índia, [o filho deles]
vai ser o que?
Áureo: é mestiço.
Lucas: vai ser mestiço, mas daí não importa se ele morar aqui, ou se ele morar fora.
Áureo: agora [para] nós importa, agora. Porque antigamente era assim, tempo do...
tempo do João Martin, tempo do Allan, tempo do capitão Nivaldo. Então eles
falavam assim, uma índia casar com branco, vai embora fora, assim que eles
falavam pra nós, na reunião. E o índio puro casar com uma branca, fica dentro da
área. Assim que era, sabe, tempo do SPI.
Lucas: mas daí o fato de morar aqui ou morar fora daí... se um índio casar com uma
branca e for morar fora, aí o filho dele vai ser índio ou não vai ser índio?
Áureo: da índia com branco? Daí se mistura tudo daí. Porque o pai vai ser mestiço, a
mãe vai ser índia pura. E... a filha casar com branco, fica mais puro. Aí fica mais
puro daí.
Lucas: tá, daí o que é puro...
Bruno: branco puro.
Áureo: é branco puro daí. Se a índia casar com branco, se a filha da índia com
branco, aí fica puro, fica puro branco. Daí a família da filha dela daí é tudo branco
daí.
Lucas: ah, é? E pra ser índio puro como é que é?
Áureo: pra ser índio puro tem que ser eu com a índia pura.
Lucas: só? Mas que nem ali você [falou] que ela vira branco puro, e pra virar índio
puro, se for casando com índio, daí vira puro de novo ou não?
Áureo: bom, só se for a índia casar com branco, e a filha dela casar com puro índio,
ainda fica mais [um] pouco [de] mistura. Um pouquinho de mistura ainda.
Lucas: daí se a filha dela casar com um índio?
Áureo: com índio puro? Daí a filha dela casar com... às vezes se cria uma menina,
menina ou menino, casar com puro daí fica puro.
Bruno: vira índio de novo.
Áureo: vira índio de novo.
Lucas: mas isso é pelo...
Áureo: é pela família daí.

A residência de brancos e mesmo mestiços na reserva é parte constituinte do que se


entende por “lei” interna da reserva. Podemos entender tal “lei” como as regras gerais que
fazem a mediação da convivência da comunidade em um determinado tempo e situação, como
veremos no próximo capítulo. A questão tem que passar pela aprovação da liderança, em
especial o cacique, e, vista como uma possibilidade, não é desejada por alguns. Fala-se de
uma lei antiga, em que isso não era permitido, ou melhor, o direito era visto como do lado do
homem, assim, se um índio casasse com uma branca poderia continuar residindo na reserva,
mas se pelo contrário, uma índia casasse com branco deveria seguir com ele para fora, para
viver com os brancos. Segundo um ex-cacique, em seu entendimento isso se dava porque o
homem tem que garantir o sustento da família, assim, se for índio, poderá trabalhar na terra
que é sua, e se for branco terá que “se virar” como branco.
46

A residência de brancos e de mestiços na reserva é vista, em especial por lideranças


mais velhas, como negativa por motivos que envolvem a própria relação entre índios e
mestiços. Em um plano abstrato temos o seguinte, continuando a citação anterior:

Lucas: ...E o que diferencia o índio puro? Qual que é a diferença do índio puro e do
branco puro?
Áureo: a diferença é porque ele é mais brabo daí. Por exemplo, você é puro branco,
você casar com uma índia, teu filho vai ficar mais brabo que o índio.
Bruno: vai ficar mais brabo que o branco também.
Áureo: vai ficar mais brabo que o branco daí.
Lucas: por que o índio é mais brabo.
Áureo: porque daí já puxa muito, puxa os dois sangues daí.
Bruno: misturado, sangue misturado.
Áureo: sangue misturado. Índio puro, com branco puro, daí o sangue se mistura
tudo. Daí fica mais brabo.
Lucas: então daí ele fica mais brabo que o índio e mais brabo que o...
Áureo: é que daí mistura tudo, o sangue do branco com índio. Daí se mistura tudo,
daí fica mais brabo daí.
Lucas: mas como é que é esse mais brabo?
Bruno: qualquer coisinha ele fica brabo. Qualquer coisinha ele quer matar você.
Áureo: é, matar a mãe, matar o pai, matar qualquer um.
[...]
Lucas: mas os mestiços aí, eles são mais preso daí, porque eles são mais brabos, ou
não?
Áureo: é, mestiço não pode ficar junto com nós aqui.
Lucas: mas não tem aí?
Áureo: tem, tem muito aí, ó.
Lucas: e daí?
Áureo: daí estão... estão misturando daí. Já estão quase misturando já.
Lucas: mas daí é ruim.
Áureo: tanto que esse aí... não queria que um puro casasse com índia pura,
antigamente, tempo do SPI. Agora eles casaram.
Lucas: mas daí fica ruim ou dá igual...
Áureo: daí […] ele não respeita nem você nem família dos outros, o mestiço,
qualquer coisinha ele já quer roubar. Qualquer coisinha ele já quer meter a cara, a
mão.
Lucas: mas são todos assim?
Áureo: é, todo mestiço é assim. Agora índio não, índio puro se entende um com
outro. Agora se misturou, mestiço, misturou uma índia com puro, ih...

Este é o plano do discurso abstrato ao pesquisador. Porém, nos casos concretos de


mestiços residentes na área que eu colocava, sempre era feita alguma relativização, assim, não
foi feita acusação similar para nenhum caso concreto. Muitos mestiços eram tidos como
“bonzinhos”, em especial se eram pessoas com as quais se tinha relações mais próximas, seja
por trabalhar junto às lideranças ou pertencer à mesma religião, no caso de interlocutores
evangélicos.
No caso de mestiço entre etnias indígenas, obtive relatos que colocavam os mestiços
entre kaingang e xokleng como “bonzinhos”, pois os xokleng também seriam “bonzinhos”.
Por outro lado, mestiços entre kaingang e guarani, eram vistos como os mais brabos e
perigosos. Isso porque os próprios guarani são tidos por brabos. Mas nos casos em que tal
47

visão aparecia não se utilizava o referencial dos guarani ali residentes e sim dos que se havia
conhecido no estado do Mato Grosso do Sul, no caso de homens que lá foram trabalhar no
corte de cana de açúcar.
O brabo é sempre deslocado para a alteridade mais afastada. Entre índios puros, por
outro lado, era destacado o fato de se distribuir alimentos entre os parentes e pagar bebidas
aos companheiros nos bares, ao passo que os brancos geralmente guardariam tudo para si.

Lucas: [Qual é] a diferença de índio civilizado e índio brabo, que você tava me
falando esses dias?
Áureo: porque civilizado é assim, tem um, tem um que é... por exemplo eu sou... eu
tenho pra mim, os outros não tem, daí eu tenho que arrumar pra eles, quiser dividir.
Nós somos assim, civilizado. Mesma coisa, eu já sou civilizado, eu já tenho
documento, tudo. Todo mundo tem documento agora.
Lucas: Mas como assim, se precisar de mim, não entendi. ...É, você falou, se o outro
precisar de mim...
Áureo: é, porque nós somos assim, se eu precisar do Bruno, ele arruma pra mim.
Então como nós somos... não é que nem vocês também, vocês que são branco, é
mais separado. E nós não, nós somos puro, nós somos tudo parentagem, tudo
parentagem. Se ele precisar de mim eu arrumo pra ele. Então, como eu sou bem
civilizado, tem outro, tem um pobre, tem um que não tem, tem um que tem, tem um
que não tem, e nós arrumamos pra ele. E nós somos assim. Agora vocês não, vocês
quando precisar, vocês não arruma nem uma colher de açúcar nem de sal pra mim,
se eu precisar de vocês.
Lucas: mas então você tá falando que vocês são mais civilizados que os brancos?
Áureo: é, nós somos mais entendido, é... pro lado de vocês. Porque um tem dó do
outro.
Bruno: o branco é mais seguro. E nós não. Eu tenho família, eu trato até a família
até... até o neto ainda. Eu ajudo até o neto ainda, é assim. E o branco não, e o
branco, o moleque já está com idade, ele já larga, ele já vai pro outro lugar, pra
trabalhar. E nós não, nós ajudamos...
Áureo: fica no mesmo lugar.
Bruno: fica no mesmo lugar, por isso que nós não saímos da aldeia. E vocês não.
Você está por aqui, ó, e nós, nós somos índio. E nós não vamos trabalhar lá em
Curitiba, não, é difícil, pra nós irmos lá. Tem uns índios [que] estudam por aí, mas
eles não vão longe, querem pegar emprego só aqui, dentro da reserva. É assim. Ele
não sai longe, não, não sai longe dos parentes, não sai longe do pai, não sai longe da
mãe, não sai longe do irmão. E vocês não, quando você fica duma idade, vocês já
completam estudo, vocês vão até pra São Paulo, pra lá de São Paulo, você vai. É
assim que vocês fazem, e nós não. Nós ficamos nosso... nossa reserva. Não sai longe
não.

Nesta fala, vemos que há uma articulação entre a moralidade do índio puro em
relação a sua parentagem (termo que retomarei no próximo capítulo, onde veremos tal
categoria pode ser tomada como ultrapassando o parentesco estrito senso) e seus parentes,
com a ajuda mútua e reciprocidade, caracterizada como a civilidade do índio, sendo que a
questão de possuírem documento eu acabo por descartar nesta passagem. Contrastam a esta
reciprocidade a seguridade do branco, que guarda para si, não ajudando nem seus netos ou
filhos a partir de certa idade, ou seja, o branco prefere guardar para si, sendo mais “seguro”.
Isso implica na própria residência, pois enquanto a reciprocidade mantém os índios próximos,
48

mesmo quando tem mais estudo, a não reciprocidade dos brancos permite afastamento, o que
inclusive era evidenciado pelo meu isolamento em meio a eles. Por outro lado, os índios
quando vão à cidade trabalhar, ao vender artesanato, por exemplo, como destacou outro
interlocutor, preferem sempre que possível ir em família.
Interessante notar que a civilidade em um primeiro momento é contrastada a índios
brabos, decorrente de minha pergunta, depois caminhando para o contraste com os brancos.
Em outros momentos, a separação entre índios civilizados e índios brabos foi argumentada
com a identificação dos primeiros com um modo de tratar com conversa, com diplomacia,
enquanto os segundos, sempre localizados a distância seja historicamente, como os índios não
“pacificados”, ou geograficamente, como grupos de índios da amazônia (“na amazônia tem
índio brabo”), teriam um comportamento, como vimos, agressivo.
Cecília Helm (1974; 1978) ao trabalhar em Apucaraninha e outras TIs kaingang,
identificou também a diferenciação entre índios puros, mestiços e brancos, que também são
chamados de “português”, percebendo a relatividade da classificação ao se deparar com
mestiços que se diziam índios puros. Havia dúvidas sobre a origem de algumas pessoas na
comunidade em especial um homem chamado de Pernambuco, que possuía um comércio e
ajudava o então cacique. A autora é enfática ao caracterizar situações como esta: “famílias
que se fazem passar por índios, ocupam posição de destaque na administração e manipulam o
poder, devido a laços de parentesco e compadrio estabelecidos e principalmente porque atuam
sempre junto às autoridades do Posto e dos índios” (HELM, 1978, p.65). Havia outro caso
dúbio de nordestino tido como índio Carijó16. Ela coleta relato bastante crítico à presença de
brancos na área, atribuindo a esta causa a condição precária dos índios na TI.

Os índios daqui só vão melhorar quando saírem todos os portugueses e ficar a área
limpa. O índio antes tinha plantação grande, dava conta de plantar o chão. Agora o
português tomou conta de tudo (HELM, 1978, p. 110. Adaptado).

Na TI Faxinal, Helm ouviu relato dizendo que “somos índios puros, mas índio só
serve para ser explorado, então nós estamos sendo civilizados para viver melhor” (HELM,
1974 p. 153) O ser civilizado em Apucaraninha era caracterizado, segundo ela, por falarem o
português, irem à escola e se vestirem (ibid., p. 130), além de um caso em que havia
referência à religião evangélica por um pastor, então liderança do Barreiro (HELM, 1978,
p.104). Apesar desta diferença no que se considere ser civilizado, confirma-se haver uma
categorização relacional muito ligada à forma de convivência na comunidade.

16
É possível que algum destes casos se tratasse de índio fulni-ô vindo de Pernambuco, citado no início deste
capítulo.
49

Tendo em vista o embasamento na reciprocidade nestas categorizações, no plano das


relações, com base no comportamento, é possível a aproximação de uma dimensão indígena
ou de uma dimensão branca. Assim, em algumas relações com mestiços, a mestiçagem é
deixada de lado, e o indivíduo é considerado índio, sem qualquer implicação de seu caráter
mestiço ser levantada. Inverte-se o determinador e o comportamento do indivíduo passa a
defini-lo: “o fulano é bonzinho”. Da oposição brabo-civilizado, à oposição brabo-bonzinho.
Verifiquei isso especialmente em casos em que o indivíduo evitava relações com seus
parentes brancos, e estes não residiam na reserva. Em alguns destes casos, casamentos
forçados das mães índias são fonte de constrangimento a estas pessoas, e o tema é evitado. Há
nesta situação, um mestiço que foi cacique na década de 1990 e hoje faz parte da liderança da
comunidade e é, pelo que pude perceber, bem visto, inclusive como tendo feito um bom
serviço.
Assim, o discurso com base no sangue é mais definidor de uma indianidade pura, em
casos em que ela não é questionável por ninguém, ou mesmo para torná-la não questionável
pelo inconveniente pesquisador, ou seja, onde se pode identificar uma ascendência índia, sem
misturas, que seria marco fundamental da alteridade em relação ao branco e legitimadora da
posse da terra. Por outro lado, havendo mistura, se irá operar na prática na categorização
conforme as relações estabelecidas e o comportamento moral do indivíduo, e ao pesquisador
se mostram contrários aos mestiços considerados genericamente.
O caso de mestiços de outras reservas casados com brancas, donos de bares, melhor
sucedidos economicamente é relevante, passando tais mestiços a serem chamados de “brancos
puros” por alguns índios em determinados contextos mais informais, e às vezes seus filhos
continuando a ser considerados mestiços, especialmente se casados com índias. Há grande
resistência a tais “brancos”, o que não impede que se compre em suas vendas, e se mantenha
relações amistosas com eles. As críticas eram veladas, não lançadas aos mesmos no cotidiano.
Neste caso, mesmo havendo algum grau de parentesco, este não era levantado. Em um dos
casos foi colocado o fato de que o mestiço era meio irmão do Cacique, havendo algum
privilégio a ele pela relação de parentesco com este. Ainda assim, a atitude destes indivíduos
tende a sobrepor à sua identificação por sangue, ainda que as caracterizações sejam sempre
relacionais com o próprio interlocutor, neste caso, o pesquisador. De forma similar, havia
críticas quanto à residência de índios de outras reservas, em especial de Ortigueira, TI que
historicamente teve certo afastamento político das demais TIs kaingang da Bacia do Tibagi,
inclusive integrando administrativamente a regional do Ivaí da FUNAI. No entanto, as
relações na maioria das vezes transpassam essas barreiras, e assim, como veremos no quinto
50

capítulo, de Ortigueira vieram vários índios para a festa de 19 de abril em Apucaraninha,


inclusive a banda evangélica que fez a abertura oficial desta.
Alguns mestiços, no entanto, se definiam abertamente como tal. Ainda que
considerações sobre a positividade do ser mestiço necessitem maiores investigações, estes
indivíduos reforçavam a própria diferença de pensamento deles e dos índios puros, marcando
alguns desentendimentos e a dificuldade de se realizar algumas coisas na reserva por causa da
maneira indígena de proceder, como uma mestiça que se queixava, entre outras coisas, da
forma como eram tratadas questões burocráticas, o que acabava gerando trabalhos que depois
não eram remunerados. Por outro lado, ela destacava que tinha conseguido fazer todos os seus
filhos morarem em casas ao redor de sua casa, em um modelo que seguia, em teoria, mais a
regra indígena que muitos índios. Um branco nascido na reserva e casado com índia também
tinha críticas similares, especialmente quanto à forma de emprego pelas lideranças dos
recursos obtidos pela comunidade, gastando demais para poucos resultados, sem contar os
desvios e não execução de serviços necessários. Este branco, tio de Alex, teria sido um dos
únicos brancos com autorização para permanecer residindo na área na época dos movimentos
de desintrusão da década de 1980 já mencionados, fato que é justificado, segundo ele, por seu
pai ter ajudado muito os índios na área, com cuidado de crianças que estavam doentes à
época. Assim, mesmo com os brancos, apesar das definições identitárias mais claras, segue-se
as relações estabelecidas com estas pessoas ao se tratar sobre as implicações destas
definições, em destaque a residência na área.
Se podemos considerar que estas classificações se aproximam mais de uma
identidade, sendo utilizada como tal pelos indivíduos, ao mesmo tempo ela é tornada mais ou
menos importante aos indivíduos através das relações estabelecidas, permitindo uma maior
proximidade aos índios, e uma consequente autorização de residência na reserva, ou um
afastamento, e o afastamento da residência. Por outro lado, ao se promover as críticas quanto
ao comportamento dos “não-índios”, há uma menor flexibilidade no sentido das relações
estabelecidas pelos sujeitos, e os termos passam a ter conotações pejorativas.
As relações, ainda, não necessariamente precisam ser estabelecidas pelo indivíduo
em si, como no caso de outro mestiço, que teve autorização de residência na área, mesmo
tendo passado boa parte de sua vida trabalhando como caminhoneiro em diferentes regiões do
Brasil, por ter irmãos residindo ali, sendo a solicitação feita por eles ao cacique à época. No
entanto, a posição deste indivíduo enquanto conhecedor de remédios naturais, fornecendo-os
a preço de custo, isto é, cobrando apenas eventuais gastos com produtos base, como álcool
para sua elaboração, pode ser ponto positivo em sua avaliação, propiciando uma sociabilidade
51

que o configura como “bom” mestiço, e o autoriza a permanecer residindo ali aparentemente
sem maiores questionamentos. Ainda assim, quando indaguei sobre ele a um índio puro, este
pareceu querer desconversar a posição deste homem ali na aldeia.
Mesmo no plano discursivo abstrato a ideia do mestiço brabo pode ser amenizada e
repensada, sempre dependendo da experiência que se teve, podendo se considerar mais o fato
se houver uma briga entre familiares e mestiços ou não, por exemplo. Vemos este tipo de
reflexão na fala de Hélio, um dos “velhos” da TI, dentre os mais idosos ali residentes, com
mais de 70 anos, que foi cacique entre as décadas de 1950 e 1960, tendo chegado ao cargo
quando tinha apenas 18 anos. Em Apucaraninha ficou 15 anos como cacique.

Hélio: tem mestiço que é... todos esses chefes que eu trabalhei [...], eles falam assim,
mas parece que é mesmo, já andei muito posto aí também. Uns chefes falam pra
mim: ó, mestiço é duro de lidar com eles. Qualquer coisa assim, eles querem brigar
com a gente, querem brigar com os índios. Esse é duro, falam assim. Agora esses
mestiços aí, não... às vezes dá briga, mas a briga... é pouco, a briga.

Como no plano prático as classificações e opiniões são bastante relacionais, mesmo


pessoas que tinham discurso radical sobre mestiços, chegaram a me oferecer o arranjo de
mulheres índias. Em um caso foi me feita uma oferta direta de casamento, por um índio, com
uma de duas filhas suas. No entanto, a insinuação de um homem branco casado, vizinho da
TI, sobre uma destas filhas teria gerado ameaças de morte entre o pai e tal homem, um ponto
de tensão bastante presente enquanto estive em campo. Os contextos e leituras das formas de
aproximação são fundamentais neste sentido.
Entre os Kaingang, Tommasino (1995, p. 91) aponta a oferta de mulheres como
evento prático-simbólico do desejo de estabelecer aliança com os brancos, durante os contatos
do século XIX. Atualmente, pode-se dizer que se tais ofertas se dão no sentido de se
estabelecer alguma aliança, ela tem caráter muito mais restrito e individualizado, pela
transformação do outro em cunhado ou genro, marcado pela categoria iambré17, e
estabelecimento de alguma obrigação ou reciprocidade para com a família da mulher. Esse
tipo de oferta não parece ser raro, sendo que ouvi relato de que um estudante que trabalhara
em pesquisa na área teria tido proposta mais séria de casamento e teria se afastado por conta
disso. Assim, mesmo se tendo a ideia de mestiços brabos e ruins, isso não implica
necessariamente em um não desejo de aliança com brancos, até por essa via. Algum índio até

17
Iambré seria o cunhado, mas também categoria utilizada no ritual do Kiki para caracterizar a “outra” marca,
conjugaria, assim tanto a “afinidade efetiva”, como a “afinidade potencial” (VIVEIROS DE CASTRO,
1993).
52

ficou decepcionado em eu não ter aproveitado alguma das propostas, mesmo que só pra
“aproveitar”.
O casamento permite o controle e o englobamento da diferença marcada neste caso
pela oposição branco-índio. No entanto, ele só o faz em determinados contextos de
sociabilidade e moralidade ou ética pessoal, e as expectativas geradas em relação a elas. No
quarto capítulo voltarei à questão da reciprocidade enquanto condição para a convivência na
aldeia e o desejo de morar juntos.

A questão da mestiçagem é tratada por Peter Gow (1991) ao realizar estudos no


baixo rio Urubamba, na amazônia peruana, identificando a caracterização de “pessoas
misturadas” (gente mezclada) ou “mestiços” (mestizos), como valor positivo, que marcaria
diferenças naquele contexto por um lado dos índios selvagens, identificados com a floresta, e
por outro, em relação aos brancos, oriundos das cidades. As comunidades de mestiços,
localizadas às margens dos rios, seriam de gente civilizada, marcadas principalmente pela
presença da escola, decorrente da centralidade desta no contexto missionário que envolveu
parte da origem destas comunidades, e a legitimidade do título a terra tendo como um dos
referenciais a presença da escola missionária como marcador dessas comunidades, além do
conhecimento escolar ser visto como civilizador, contra a possibilidade de escravização.
Tal situação, podemos dizer, seria característica de relações de contato entre
indígenas e brancos por séculos, com imposição de grande alteração de sua forma de vida a
partir dele. Assim, Gow identifica a narrativa de diferentes “tempos”. No caso um tempo
primordial, dos anciãos, antes da chegada dos brancos; um tempo da seringa, com o trabalho
no sistema de aviamento para exploração da borracha, caracterizado pela dívida; depois em
fazendas, caracterizadas pela escravidão; e então a liberação da escravidão e a situação das
“comunidades nativas”, com amparo legal que lhes garante título da terra.
No caso kaingang, observamos o mesmo através da divisão entre o tempo anterior ao
SPI, caracterizado pela autonomia, o tempo do SPI, caracterizado pela “escravidão”, com
nuances de acordo com os diferentes chefes de posto, até se chegar ao tempo atual, que não
tem um marco diferenciador claro, mas que se caracteriza pelo fim do trabalho para o chefe e
a passagem para a autonomia política da comunidade. Esta passagem é caracterizada
principalmente pela ruptura política e expulsão de chefes do posto autoritários, e também em
alguns casos pelo estudo escolar.
No caso das “comunidades nativas”, a identidade positiva como mestiços se dá
justamente em oposição à ingenuidade dos índios e à escravidão de seus próprios
53

antepassados. Assim ela é símbolo de autonomia e civilidade por um lado. Por outro lado,
ainda que procurem uma identificação maior da “comunidade” com a cidade, esta é marcada
por redes de parentesco, marcadas por sua construção e manutenção através da reciprocidade.
A própria construção da pessoa advém das relações de afeto, cuidado e reciprocidade.
No caso kaingang estudado, há uma a positividade pela identificação enquanto
indígena (índio puro), que é marcada pelo parentesco e a reciprocidade, em oposição ao
branco. A civilidade indígena é marcada pela reciprocidade e afetividade, ao passo que do
branco seria mais característico o egoísmo, ou a segurança. Neste sentido, seguindo a lógica
deste pensamento, o índio poderia ser considerado mais civilizado que o branco, como eu
disse a Áureo e Bruno, ou então com uma civilidade caracterizada por uma moralidade com
base nesta reciprocidade. Neste contexto, o lucro comercial ou mesmo a produção em larga
escala podem indicar um embranquecimento, já que iriam contra a troca e auxílio mútuo
característico indígena. Mesmo assim, estas formas de sustento não são por si condenadas ou
indesejadas pelos índios. A diferença se localiza na dimensão ética e afetiva, não
necessariamente na acumulação de objetos em si.
Gow destaca que as identificações índios-mestiços-brancos são relacionais e não
absolutas, podendo ser diferentes na relação de um mesmo indivíduo. Elas são antes
categorias de pessoas que identidades pessoais, assim, pode ser até insultante utilizá-las
diretamente para identificar alguém naquele contexto.
No contexto do presente trabalho, vimos que se trabalha diretamente com a questão
da mestiçagem, como identificador dos indivíduos. Pude registrar, no plano do discurso uma
separação radical e bastante determinista do que seriam os tipos de pessoa neste caso, baseada
no tipo a que pertenceriam os pais, ainda que possa haver uma indigenização ou um
branqueamento em casamentos sucessivos até se purificar o sangue dos descendentes. Se este
é um dos planos discursivos, que envolve o próprio caráter dos indivíduos gerados (“os
mestiços são brabos”), sendo, portanto, a pessoa não apenas criada a partir das relações, mas
de sua própria substância, por outro lado, se considerados os casos específicos é evidenciada a
importância das relações estabelecidas e a construção de laços com um lado ou outro em um
gradiente índio-mestiço-branco, que, lembremos, é cruzado com a oposição
kaingang/xokleng-guarani, de acordo com um tipo de pensamento civilizado do índio em
ajudar seus parentes, sua parentagem.
Desta forma, o discurso radical com base no sangue não necessariamente pode ser
observado para além do discurso. E mesmo quando a questão é tornada política ela deve ser
relativizada, dependendo bastante de contextos e interlocutores. No entanto, o casamento com
54

brancos e em especial a residência destes na TI incide em um discurso sobre o trabalho do


cacique, uma vez que esta decisão passa por ele.

Áureo: Agora eu, por exemplo, eu não quero que esses mestiços, um branco casar
com uma índia, dentro da área indígena, Apucaraninha. Eu não queria, mas eu não
sou cacique, cacique tem que responder isso aí.
Lucas: mas se você fosse cacique?
Áureo: se eu fosse cacique, expulsava toda essa mestiçada. Eu fazia reunião, entre
eles, mandava essas „mestiçada‟, as „mestiça‟, os „mestiço‟, os mandava sentar
todos, fazia em roda, mesa redonda: olha, a família de vocês, se casar com branco,
mulher, vai fora com ele. Família de vocês fica toda lá, vocês tem que registrar
família de vocês lá fora. Aqui não, no nosso escritório [da FUNAI] não. Ia dizer
assim na reunião, se fosse o cacique. E... daí sim, e... tirava tudo, daí. Se mulher
casasse com branco, uma índia pura casasse com branco, ia fora. Se tiver família lá
com branco lá, tirava registro lá e se entende lá.
Lucas: e o contrário também? Se casasse um índio puro com uma branca.
Áureo: é, aí, só depende do cacique daí. Se ele, se índio puro casar com uma branca,
ficar aqui, aí tem...
Lucas: mas se você fosse cacique você deixava ou não?
Áureo: se eu fosse cacique eu não deixava também. Eu não deixava. Depois os
parentes vêm todos, no lado dela, a família, vem aí, quiser ficar na área aí, quiser,
quer tomar conta da área inteira. A família dela acho que vem tudo.

Assim, entre o discurso radical colocado por alguns e as relações efetivas que
envolvem o casamento e a residência de brancos haveria uma aparente tensão. A mediação
desta tensão recairia sobre o cacique, que teria a função de avaliar as relações dos indivíduos
envolvidos diretamente em cada caso e ao mesmo tempo não desconsiderar a ideia da “lei”,
como veremos a seguir. Mas deve-se considerar que mesmo com este discurso de Áureo, que
podemos considerar como radical, ele é um grande apoiador do atual cacique. Assim, essa
aparente tensão pode por um lado ser fruto de diferentes contextos e interlocuções, e pode se
manter latente e sem uma efetivação. No entanto, foi justamente esta efetivação que pude
observar nos discursos e na realidade da aldeia Água Branca.
Na Água Branca havia um forte discurso da tradicionalidade, resgatando inclusive a
história de ocupação do local, próximo ao Toldo Velho. Na Água Branca só haveriam índios
puros morando, e mesmo a circulação de brancos é mais restrita. Retornarei a este ponto no
capítulo 4, onde veremos como esta situação latente toma corpo a partir de certas situações
específicas e acaba sendo um dos elementos constituintes do discurso político das lideranças
da Água Branca, juntamente com a questão da moralidade e da lei indígena, que serão tratadas
no próximo capítulo. Após isso será possível retornar à questão da ligação estabelecida entre a
espacialidade da nova aldeia e a moralidade defendida ali, como uma forma de realização de
um outro tempo-espaço articulados, como foi apontado neste capítulo.
55

2. POLÍTICA E MORAL

2.1. LEI ANTIGA E LEI NOVA

Áureo: Você vai conhecer os outros agora, você vai pra Água Branca agora, vai
conhecer agora. O que contaram pra você, eles vão, algum, as vezes, algum eles vão
contar certo, o que eu estou dizendo pra você. As vezes eles vão contar outras coisa
aqui, que aconteceu, o tempo do cacique do Levi, o tempo do cacique Getúlio,
tempo do cacique Antônio, tempo do cacique Isaías, tempo que o cacique era
Paulinho. As vezes eles vão falar igual que eu falei pra você. Que o sistema que
muitos anos, que eu falei pra você, eu carregava água sem sapato, roupa era um só.
As vezes eles vão contar isso pra você lá também. O Afonso é mais velho dos índios
lá, o Afonso lá. Não sei se ele vai saber explicar bem ou não também, já é homem de
idade já, o Afonso. E tem os mais novos, que já entendem essa lei que está
acontecendo agora. Porque cada ano tem lei. Então esses novos já estão cumprindo
essa lei nova. Não sabem o que aconteceu antes [quando] eu me criei.
Lucas: como assim, cada ano tem lei nova?
Áureo: lei nova assim, porque muda. Muda o sistema.
Lucas: como assim?
Áureo: Muda sistema assim. Por exemplo, eu vou sair daqui agora, vou mudar pra
outro lugar. Assim que muda a ideia. Porque aqui pra mim é mais apertado. Eu
mudo a cerca pra cá, ou não. Então eu vou mudar pra lá. Então [assim] que as coisas
mudam. É esse que esses „rapagão‟ agora estão seguindo, uma coisa que [é] nova
agora. É lei nova agora. Porque quando minha família nascer, quando nascer... criou,
já tem outra lei. Tem outro pensamento. Assim que nós somos também, que nem
vocês. Porque hoje... por exemplo, „mudação‟ assim, quer ver. Mudar é assim. Às
vezes daqui uns dias nós vamos arrancar, tirar esses fazendeiros aumentando nossa
área indígena agora, daqui uns dias. Então assim que, assim que estou falando pra
você, muda as coisas.

Pelo discurso de Áureo, a lei tem relação direta com a vivência e os conhecimentos
das pessoas. Dessa forma, ele, Afonso, outros mais velhos, teriam conhecimento que
poderiam me explicar, mas isso é relativo a uma lei antiga, que não é seguida pelos mais
novos. Isso não quer dizer que os mais velhos não a sigam, não a comentem e aconselhem os
mais novos. No entanto, estes seguem um estilo de vida distinto, relativo a uma lei nova, que,
note-se, é sempre relacionada ao tempo de determinados caciques, diferenciado mesmo para a
situação mais recente.
O sistema muda de acordo com a mudança de pensamento, relativa às condições
práticas da vida em um determinado tempo e em determinado espaço. Se hoje estão
“apertados” em um local, podem conseguir mais terra em breve e isso irá alterar a forma de
pensamento e organização, afetando as relações entre as pessoas e assim, afetando a lei,
“mudação” da lei. A lei tem uma abrangência de significação que incide sobre a própria
consideração do “ser índio (kaingang)” em um espaço-tempo. Desta forma, vemos como a
dimensão da inter-relação entre espacialidade e tempo vista no capítulo anterior se atualiza e
56

continua a ter um significado. Da mesma forma, podemos dizer que a lei se transformou nos
diferentes “tempos” vividos, desde antes do contato com os brancos, a política indigenista e
hoje os processos de autonomia política. Estes tempos também envolvem a política dentro da
comunidade, com a função do cacicado. A lei se refere, portanto a uma forma de vida e
conhecimentos em um dado momento, de acordo com condições físicas e também políticas.
Para além desta concepção mais ampla, podemos também destacar o que seria o
sistema jurídico Kaingang, a partir das formas existentes de controle sobre os
comportamentos, que estará intimamente relacionada às formas compreendidas da moralidade
em um dado período.
Ramos (2008) estudou o que chama de sistema jurídico dos Kaingang no Tibagi. Ela
analisa o que seria o direito civil e o direito penal, apesar de esta divisão ser apenas
metodológica para ela, já que não haveria tal separação entre os Kaingang. Em kaingang ela
identifica as categorias jykré ou vénh jykré, com o sentido de lei, cultura, sistema ou costume,
e ki ha han ke, as regras morais, ou “fazer a coisa certa”. Jykré seriam regras menos flexíveis
e comandos gerais impessoais, ordenamento determinado mitologicamente ou por agente
legítimo, indígena ou não indígena, do que fazer ou não fazer. Assim, seriam arbitradas pelo
cacique e lideranças, sendo sua transgressão erro grave. Seria o caso de assassinatos, por
exemplo. Ki ha han ke, seriam os comportamentos ideais, referentes à sexualidade, aos
parentes, aos chefes, aos co-cidadãos, etc. São reprováveis, mas tem consequência penal
apenas se publicamente questionados ou denunciados.
Os aspectos de tal lei (ki ha han ke) são constantemente renovados. Assim, não por
acaso a autora já identifica que muito do que já foi lei, hoje não é mais seguido,
permanecendo apenas como referencial. Um exemplo seria o próprio casamento entre
metades exogâmicas, já citado, sendo conhecido, e muitos dos mais velhos sabendo a que
metade pertencem, mas sem que os casamentos atuais necessariamente levem isso muito em
conta, mesmo com aconselhamento feito pelos mais velhos.
A lei constitui um conjunto de referenciais que se atualizam constantemente ao se
colocar em prática. É um referencial existente, mas ele se elabora e se transforma, ou mesmo
se efetiva como lei enquanto for posto em prática. E os eventos, como vimos com Áureo,
atualizam este sistema e o transformam. O casamento entre metades iguais é reprovável, no
entanto, ele deixa de ter um peso “jurídico”, deixando gradualmente de ser “lei” ao esta não
incidir sobre os indivíduos que infligem a regra, que deixa de ser regra, para ser uma forma
cada vez menos preferencial de união, salvo movimentos de “revitalização cultural”, como
veremos no capítulo 5, que dão novo sentido à prática.
57

Ou como descreve Ramos (2008, p.145)

O sistema jurídico Kaingang, como outros sistemas de direitos tradicionais, é


informal, apresenta grande flexibilidade, é contextual e relacional. Nesse sentido,
pode ser visto como um sistema multiplex, tal como proposto por Gluckman para os
Barotse, pois além desses elementos, dispõe ainda de um corpus juris, ou de árbitros
legitimados e socialmente reconhecidos […] para a solução de conflitos internos e
mesmo externos.
Entre os Kaingang, o que se observa é que tudo se mistura e que um sistema jurídico
só existe e opera imerso na organização sócio-política e cultural mais ampla, logo,
em conexão com o sistema de parentesco, com outros princípios estruturais, com as
formas de atuação das lideranças locais no momento considerado, com as adesões
religiosas dos envolvidos, com as alianças e cisões tecidas pelos sujeitos e grupos
em contexto, com o status pessoais e familiares dos envolvidos e muitos outros
aspectos, que variam conforme o caso.

De forma prática isso se realiza pela maneira em que as transgressões, chamadas de


“erros”, vêm a público e são tratadas caso a caso.

Áureo: Por exemplo, meu filho está aí. Se ele errar pra mim, duas vezes, três vezes,
eu mando o cacique prender meu filho. Eu sou liderança, se um brigar aqui, na
minha frente aqui, eu não vou lá não, eu os mando virem, me avisar, pra prender
quem está errado. Nós somos assim. Então, que nem as moças andam à noite, de
madrugada aí. Você já está vendo tudo, sempre você fica aí. Se uma mulher sair à
noite, o problema é dela. A filha andar a noite, dez horas, onze horas, problema é
dela com a mãe e com o pai. Se a mãe dela mandar prender, o pai mandar prender
ela, daí nós [polícias] prendemos. Assim que nós estamos fazendo isso. Se não
mandar prender, fica solto que nem animal. Se a mãe não corrigir. Se a mãe não
corrigir, o pai não corrigir, fica rodando aí.

A liderança não tem a princípio a autoridade de trazer a público “juridicamente” a


questão a não ser que ela seja notificada, que alguma das partes exija avaliação por parte da
liderança. Assim, a autoridade da liderança não está sobre a autoridade do grupo familiar ou
doméstico.
É atribuída uma autoridade moral aos chefes das famílias nucleares, os quais devem
reagir ou não conforme a avaliação da atitude dos filhos. No entanto, a não repreensão dos
mesmos, até por não considerar a conduta dos mesmos “erro”, poderá tornar a própria família
como alvo de críticas na aldeia. Por outro lado, a denúncia contra os filhos seria assumir a
incapacidade de resolução da questão no âmbito doméstico, o que pode também resultar, não
obrigatoriamente, a depender do caso, em uma avaliação externa de que os chefes de tal
família não tem autoridade sobre os filhos18. A forma de avaliação e penalização pelo erro
dependerá de diversos fatores, em especial pela qualidade das relações entre os envolvidos.
Da mesma forma a opção de se levar ou não o caso para a liderança pode envolver tais

18
Ao fim da citação, Áureo compara a liberdade dos filhos em andar a noite a ficarem soltos como animais. No
caso analisado por Lodoño Sulkin (2012) denominadas de “People of the Centre”, na Amazônia colombiana,
há uma forte distinção entre a moralidade humana, sem a qual haveria proximidade à animalidade. Não
poderia aqui fazer uma comparação neste sentido, sendo esta a única citação que permitia leitura similar.
58

fatores, avaliando-se os fatos e as possíveis soluções que o cacique dará ou não, com
implicações, seja morais ou de status, ao próprio delator, dentro de sua rede de relações e uma
ética pessoal de comportamento relacionada.
Tomemos algumas situações para chegarmos ao que seria esta moral, comparando-a
com a referência à moralidade feita no capítulo anterior. Cito primeiro o caso de uma briga de
casal, decorrente de adultério por parte do homem. Tendo a esposa tomado conhecimento do
adultério, ou como se diz, que o marido estava “bagunçando”, a esposa pode trazer ou não o
caso a público. Isto quer dizer, todos na aldeia podem estar sabendo, mas cabe a ela, parte
entendida como interessada, levar o caso ou não à liderança, de acordo com o que ela entenda
ser o correto. Usualmente, por se tratar de uma mulher, o caso seria levado à liderança através
da mulher do cacique. É necessário acrescentar ao caso que tanto mulher como marido eram
mestiços, fato que também pode ser relevante à resolução pública ou doméstica do caso.
A mulher não levou o caso à liderança. Agrediu o marido fisicamente e foi agredida
por ele. O caso foi intermediado por dois dos filhos do casal, que tomaram partido da mãe.
Foi “solucionado” após ameaça de separação, parando então o marido de “bagunçar”.
Segundo a mulher, ela não levou o caso à liderança porque achava que quem estava errado era
seu marido, assim, o erro dele é avaliado e resolvido por ela mesma, ao ameaçar a separação
após a agressão física mútua.
Esta leitura do caso indica que levar o caso a público traria desgaste a ela própria,
como assumindo ser uma mulher traída, não apenas a ele, preferindo ela agir no âmbito
doméstico, seguindo uma ética que tende a resolver os conflitos no interior do grupo
doméstico para apenas em último caso levá-los a público, sendo relevante o fato de até então a
esposa frequentar uma igreja evangélica. Caso o fato fosse levado à liderança, provavelmente
implicaria na prisão do esposo por um ou mais dias e aconselhamento a ele, como em outro
caso ocorrido enquanto estava em campo, ou então, em caso de decisão pela separação pela
esposa, seria mediada pelo cacique, variando a forma de aconselhamento ou resolução de
acordo com a forma de atuação deste, que, se de forma geral tenderá à manutenção dos
casamentos, irá avaliar as vontades dos dois e também o histórico de sua relação, entre si e
com seus filhos, suas relações sociais e condições em que vivem. No caso em questão, porém,
a esposa ao resolver o conflito da forma descrita, deixou de frequentar a igreja evangélica a
qual ia, entendendo que se fosse crente estava impedida de bater no marido (e de certa forma,
seguindo seu raciocínio, também de levar o caso à liderança), pois crente não pode bater, se
alguém o ofende, ele “tem que ficar quieto”.
59

Nem sempre, porém, o caso necessitará de queixa, como em caso de prisões que
pude levantar causadas por porte de drogas ilícitas (pela lei dos brancos), depredação de bem
da comunidade ou também em casos anteriores a mim relatados de brigas, em especial
quando estas se dão publicamente, como por ocasião de festas. Nestes casos, que poderíamos
considerar como as jykré, além de poder haver atuação direta da liderança, ela pode ser
articulada inclusive com a “lei dos brancos”. O caso de assassinatos é marcante neste sentido,
sendo que segundo uma liderança: “se matar, aí já é com os lá de fora”.
A lei indígena pode ser aplicada para qualquer pessoa que adentre a área, inclusive
brancos. Foi relatado caso de branco que teria sido preso em uma das festas de 19 de abril
passada, por estar brigando com sua mulher, também branca. O caso teria inclusive sido
publicizado regionalmente por uma rádio, sendo a atitude aprovada pelo comentarista.
Novamente, a aplicação irá depender das condições de inserção da pessoa na comunidade. Em
um caso de conflito pessoal entre um índio e um branco vizinho à TI este teria sido impedido
de entrar na reserva, e se o fizesse seria preso. Este caso, mencionado no capítulo anterior,
dizia respeito à insinuações do branco, casado, sobre uma das filhas do índio.
Em todos os casos sempre entrarão em conta para além do fato em si, as relações
particulares nas quais a pessoa se encontra e que levanta no caso, já que algumas questões que
poderiam ser consideradas erros, podem ser legitimadas se forem em resposta a causa anterior
entre os envolvidos.
Em casos em que há prisão, quando se chega e este ponto, aquele que “errou” é
levado à cadeia. O cacique então é comunicado do caso, já de alguma forma investigado pela
liderança. O cacique normalmente é quem decidirá sobre a pena a ser imposta, isto é, quanto
tempo a pessoa ficará presa. Antigamente, além de ser usado o tronco ao invés da cadeia,
costumava-se exigir trabalho forçado ou outros tipos de compensação por danos causados.
Hoje aparentemente a pena costuma se resumir à prisão na cadeia, por tempo variando,
segundo o cacique, de cinco minutos até alguns poucos dias, apesar de em meu campo não ter
tido conhecimento de alguém preso por mais que um dia ou uma noite. Eventualmente a
pessoa pode ser mandada para outra reserva em que tenha parentes, como ocorreu em dois
casos enquanto estava em campo. Em um destes casos, foi preso um homem bêbado que teria
desrespeitado a própria liderança, acusando-a de não resolver uma questão que o envolvia, um
incêndio de um carro na aldeia. Este homem foi fortemente amarrado em um poste em frente
a um bar frequentado pelas lideranças em questão, ficando ali até que um parente seu o
buscou para levá-lo a outra reserva. O caso do incêndio do carro era uma das situações em
que a liderança não agiu por considerar o histórico da situação entre vítima e acusado.
60

A determinação da pena e avaliação do caso pode ser levado às lideranças, a


depender de sua gravidade e o contexto geral em que se insere. Não há um limite claro
estabelecido do que seja um caso de deliberação do cacique ou de lideranças. A forma de
decisão irá depender de qual o erro e mais do que isso, das redes de sociabilidade daquele que
errou. Tomei conhecimento de um caso de decisão conjunta entre cacique e lideranças no
último dia que estava em campo. Neste caso, houve agressão física grave entre um genro e um
sogro, tendo o primeiro quase cegado o segundo com uma faca, tendo sido feita “reunião
grande”, ou seja, com a presença das lideranças, na escola da comunidade, para decidir sobre
qual ação tomar, sobre a qual não tive conhecimento. Em outro caso, em que houve expulsão
de um rapaz por porte de drogas, não foi feita reunião aos mesmos moldes, tendo o cacique
decidido neste sentido. O interessante neste caso era que se tratava de filho de família oriunda
de outra Terra Indígena e que era mal vista por várias pessoas, por ser considerada de
mestiços e que também era mais bem sucedida economicamente, especialmente com plantio
de eucalipto na outra TI para venda. Apesar de o cacique sustentar ali sua presença, quando
houve o incidente, decide pela expulsão do jovem, permanecendo a família ali. Assim, a
própria decisão do cacique tem que considerar as relações estabelecidas ao avaliar e decidir
sobre os casos19.
O cacique além de determinar a pena para os casos de erros menos graves, aconselha
os presos antes de serem soltos, para que não voltem a errar novamente. Este papel também é
complementado por outras lideranças. Esta função é uma das razões colocadas para que tanto
o cacique como as lideranças tenham necessariamente uma postura correta, pois se eles
cometem os mesmos erros que os presos, não teriam como aconselhar estes. As lideranças não
podem ser pessoas recém-separadas e devem dar o exemplo. Como cita Ramos, referindo-se
ao cacique como ég jo tĩg han, ele deve ser aquele que deve “andar certo na frente dos outros”
(Ramos, 2008, p.149). Desta forma, a moralidade passa também a ter peso constituinte na
política. Isto tanto pela agência do cacique e das lideranças em casos acontecidos, devendo ter
a capacidade de resolvê-los satisfatoriamente, como por sua própria conduta pessoal. Isso é
relativo à própria função do cacique perante a comunidade.

Áureo: Porque o cacique está ali pra orientar todo mundo. Até os homens, mulheres,
as moças, os moços, está pra orientar as famílias da comunidade indígena. Então
assim eu gosto de ter cacique aqui. [Se] não tiver cacique bagunça tudo. [...]
bagunça porque ninguém respeita a família dos outros.

19
Note-se que alguns destes casos poderiam ser levados à Polícia Federal. No entanto, não há uma tendência a
se fazer isso nem pelo cacique e aparentemente nem pela parte prejudicada, que tende a reconhecer a
autoridade e decisão do cacique e das lideranças. Sobre outras situações envolvendo o Ministério Público
Federal e a Polícia Federal ver Ramos (2008).
61

Lucas: mas [como] que o cacique garante que respeite [a família dos outros]?
Áureo: é porque cacique, ele fala que tem que respeitar a família. Família, os
parente, que nós moramos aqui junto.

O trabalho do cacique e das lideranças, mais do que julgamentos, aplicações de pena


e prisões, diz respeito acima de tudo a aconselhamento e mediação de conflitos que surjam na
comunidade, especialmente na medida em que estes não consigam ser resolvidos no âmbito
do grupo familiar ou doméstico. Mesmo as prisões, como foi dito antes, ocorrem
prioritariamente nestas mesmas ocasiões. É interessante a visão de que é o cacique, ou
melhor, a própria existência do cargo e a fala do cacique, sejam garantia do respeito, em
especial às outras famílias. Como se destituído o cargo de cacique a relação entre as famílias
não teria mais garantia de possibilidade de harmonização, “bagunça tudo”. Seria, então, cada
grupo de parentes por si.

No capítulo anterior vimos a defesa do que identifiquei como uma moralidade


indígena na comparação entre a relação entre índios e entre brancos. Vimos ali o papel
fundamental da reciprocidade e ajuda mútua entre os índios, vista como reduzida entre os
brancos. Esta moralidade teria implicação na própria caracterização da comunidade enquanto
tal, já que a reciprocidade favoreceria um viver junto. A partir dos casos e discursos aqui
colocados vemos que existe outra dimensão da moralidade na comunidade que diz respeito
também ao comportamento perante aos parentes e entre as famílias.
Se a moralidade é relativa a uma reciprocidade, ela também é relativa ao respeito.
Este seria garantido pela “lei indígena”. Ou seja, esta lei, mais do que um código, é um
referencial abstrato e relacional de comportamento no interior da comunidade. Para pensar o
que significa esta moralidade, resgato dois outros contextos em que autores viram nela
modelos explicativos da ação e sociabilidade.
Ao estudar o contexto das “Pessoas do Centro” (People of the Centre) na amazônia
colombiana Lodoño Sulkin (2012) utiliza o referencial da moralidade como forma de designar
as percepções avaliativas, reações e entendimentos sobre subjetividades, ações, pessoas e
formas de vida, como sendo admiráveis, desprezíveis, detestáveis ou distintas. Seriam
associadas a sensibilidades e julgamentos baseados em práticas simbólicas, e portanto,
abrangem a capacidade reflexiva e avaliativa do “eu”, reconhecendo a qualidade
intrinsecamente social da pessoa, isto é, considerando o indivíduo como produto das relações
sociais, mas como autorreflexivo, ainda que operando com os símbolos mais ou menos
objetificados ou institucionalizados, que serão interpretados e transformados pelos sujeitos.
62

Neste caso, estes referenciais eram em grande medida dependentes de determinadas


substâncias relevantes naquele contexto, articulados a práticas, entendimentos e relações de
grupos, com os quais se constituía a pessoa moral.
Márnio Teixeira-Pinto (1997) ao estudar os Arara, no vale do rio Iriri, no baixo
Xingu, observa dois referenciais de moralidade, entendida ao nível dos valores como
imperativos e normas de atitude. Por um lado, uma relação predatória fundante nas relações
estabelecidas no cosmos, características pelo egoísmo e a violência. Por outro lado, relações
de solidariedade no seio da sociedade Arara, com um sistema de dádivas e rituais, sempre em
elaboração. A partir destes valores gerais, haveria um nível de condutas, a ética, como
princípios de ação, divididos então entre uma sociabilidade primária, onde a regra da
mutualidade é imperativa dentro de determinados tipos de relações específicas e em uma
sociabilidade secundária, onde há maior lugar à espontaneidade nas relações de solidariedade.
Esta moralidade e ética seriam imperativos a afastar o egoísmo e violência reinantes no
cosmos.
Se tomarmos a moralidade como estes referenciais mais abstratos de valores que
permitem o estabelecimento e atualização da solidariedade, como coloca Teixeira-Pinto, não
devemos perder de vista como coloca Lodoño Sulkin que apesar de simbolizados a partir de
elementos mais ou menos objetificados, eles são também dependentes da reflexividade dos
sujeitos e do âmbito das relações sociais específicas.
Vimos que a reciprocidade seria um valor importante a definir relações entre
parentes e entre a parentagem. Se este valor tem alto apreço na comunidade, a sua negação
tem como consequência um afastamento social daqueles que os negam. Ou seja, negar a
reciprocidade é negar a sociabilidade. Assim, seria importante para o que Teixeira-Pinto
chama de sociabilidade primária. Por outro lado, vemos agora que o respeito entre as
diferentes famílias também é necessário, neste caso não passando necessariamente pela
reciprocidade, ou seja, um sistema de ajuda mútua, ainda que isso possa ocorrer. Sua garantia
não seria exatamente a ajuda mútua, mas sim a lei indígena. Tal lei não é um código
estabelecido, como vimos, mas determinados princípios abstratos que são dependentes não
apenas do contexto em que são aplicados mas dos próprios sujeitos que avaliam as ações. Daí
a importância dada ao cacique e às lideranças, uma vez que tais pessoas teriam a função de
resguardar estes princípios. Sua responsabilidade neste sentido se coloca sempre que a
autoridade de um chefe de família é extrapolada, seja pela gravidade da questão, pela ação ter
extravazado o âmbito familiar, seja por iniciativa de algum dos que se viram vitimizados, seja
pela relação entre vítima e agressor.
63

Em princípio, os chefes de família devem cobrar a manutenção da moralidade de


seus filhos, a lei e seus “defensores” não agem contra qualquer conduta considerada imprópria
por eles próprios. Ou seja, podemos dizer que não são eles dos donos da lei ou seus
promulgadores. Cabe a alguém que se considera prejudicado demandar a ação da lei em
determinada questão. A partir de então tal questão passa a ter a consideração das lideranças e
em especial o cacique. A depender destas considerações teremos então efetivamente a lei, que
é, portanto, sempre contextual e relacional, tendo em vista que as lideranças e o cacique não
são isentos de relações sociais, tanto quanto vítima e agressor. Ela irá se estabelecer ao se
atualizar, e portanto se modificar, de acordo com a denúncia de tais casos e as ações tomadas
pelas lideranças perante eles. Lembrando a citação com que inicio este capítulo, tais decisões
serão relativas a um determinado tempo-espaço, que implica em determinadas relações entre
âmbitos doméstico e público20. E da mesma forma ela é dependente dos tempos de
determinados caciques, já que tal temporalidade é marcada por sua posição e sua posição
implica nas considerações feitas sobre a lei.
Lideranças e cacique só terão autoridade imediata em casos que avaliem ferir
imediatamente o código de respeito e convivência. Sempre relacionais, os limites entre uma
situação e outra não são claros, ainda sejam mais evidentes os casos de violência física.
Para serem passíveis de serem considerados como defensores de tal lei, lideranças e
cacique precisam dar o exemplo do que ela seja. Assim, sua conduta deve representar a ética
que seria a referência a toda a comunidade. Isso é fundamental para que eles próprios possam
cobrar dos outros o comportamento adequado e reprimir os comportamentos considerados
impróprios. Uma liderança com um comportamento considerado inadequado logo perderia
sua credibilidade, sendo passível de críticas em parcelas da comunidade. Como foi notado, as
avaliações e preceitos éticos são dependentes da religião e por outro lado também podem ser
definidores de relações entre indivíduos. Um comportamento de um indivíduo avaliado
negativamente por outro pode gerar afastamentos tanto quanto a não reciprocidade. Ou seja,
seria uma consideração de que tal indivíduo não estaria agindo com respeito em relação aos
demais, e às demais famílias. O respeito seria também uma esfera a definir redes de
sociabilidade.
Desta forma, dentro do que podemos chamar de moralidade, estão imbuídas as
questões da reciprocidade e o respeito, mutuamente implicadas, e que podem aproximar ou

20
Estou considerando a separação doméstico e público em termos formais, ou seja se o caso é resolvido pela
própria família ou levado às lideranças. Como descrito, em qualquer dos casos, poderá haver consequências
para além da família diretamente envolvida e também sobre ela.
64

afastar do ideal de sociabilidade na comunidade. Sendo sempre avaliações relacionais, há


sempre margens para considerações diversas pelos sujeitos implicados. Mesmo assim,
podemos considerá-los como princípios mais gerais, no interior dos quais os indivíduos farão
suas avaliações. Após tratarmos de como se constituem as lideranças e seu papel dentro da
comunidade, voltarei a este ponto indicando exemplos de implicação política destes princípios
e avaliações.

2.2. CONSTRUÇÃO DAS LIDERANÇAS

Os kaingang são tomados historicamente como um grupo faccionalista apesar de não


haver termo nativo que configure tal caracterização feita pelos etnólogos. Ricardo Cid
Fernandes (2003) realizou uma análise da política kaingang em que busca o que consistiria tal
faccionalismo. Ele procura analisar as formas de agrupamento e as unidades políticas
presentes. Através de etnografia em várias TIs kaingang, identifica quatro unidades de
sociabilidade. Os grupos familiares seriam constituídos pela família nuclear, ou seja, o casal e
seus filhos solteiros. Este grupo teria seu fogo, isto é, local de residência, bem como um sítio,
geralmente de meio até alguns poucos hectares, ao qual teria direito de uso para fazer sua
roça, que seria transmitido a seus descendentes, via patrilinear, mas não constituindo direito
de propriedade. Este grupo é envolvido pelo grupo doméstico, isto é, a família extensa,
constituída em torno dos “velhos”.
O grupo doméstico seria caracterizado pela aglomeração residencial, uxorilocal, dos
grupos familiares com manutenção de obrigações produtivas, especialmente entre genros e
sogro. Tal unidade teria uma característica menos física e de herança e mais política, sendo
seu legado as relações políticas. Seu poder é determinado historicamente através de sua
capacidade produtiva e reprodutiva enquanto grupo, ou seja, o poder do velho sobre seus
genros. A relação entre diferentes grupos familiares e diferentes grupos domésticos se daria
através da parentagem, evidenciada nos trabalhos de ajudório, em torno das atividades
produtivas e também para realização de festas, seja por obrigação ou por troca de dia de
trabalho. Sendo uma das principais formas de articulação das unidades sociais, daria uma
medida sociológica da legitimidade dos grupos domésticos, sendo realizadas principalmente
65

em torno dos “troncos velhos”21. Estes seriam não apenas as pessoas mais velhas, mas aquelas
reconhecidas como intimamente relacionadas à história local.
Desta forma, Fernandes conclui que

o território kaingang, […] é uma constelação de grupos domésticos, envoltos em


parentagens e cujos núcleos são preenchidos por seus troncos velhos. As categorias
nativas tronco velho e parentagem, respectivamente, o foco ancestral e o campo
relacional dos grupos domésticos, fundem irremediavelmente política e parentesco
na organização social kaingang. (FERNANDES, 2003, p.140)

No entanto, a parentagem não necessariamente se resume ao parentesco, sendo


composto também por indivíduos identificados como “próximos”, não constituindo também
uma unidade corporada exógama, não configurando unidades de troca, mais característica do
grupo doméstico, mas a reunião para fim determinados e em ocasiões determinadas, de
participação optativa, através da qual se dá realidade a uma moralidade específica.
O autor ainda identifica um quarto tipo de unidade, que seria a comunidade, muitas
vezes identificado como sinônimo à Terra Indígena ou “área” indígena, como sendo resultado
histórico da articulação entre grupos domésticos, seus troncos velhos e suas parentagens.
Como conceito político, “comunidade” estaria sujeito a manipulação, mas o autor identifica
no plano ideológico a distinção entre aldeia, como um território de uma parentagem e a
comunidade como Terra Indígena, ainda que sem uma fronteira explícita entre as duas
categorias.
Estas categorias identificadas por Fernandes estão no plano da sociabilidade, ou seja,
como relações moralmente positivas estabelecidas, se tomarmos a definição dada por Carlos
Fausto (2001, p.146). É a partir delas que o autor irá compor o entrelaçamento entre o
parentesco e a política kaingang. Desta forma, ele se afasta de uma delimitação político-
territorial do “grupo local”, utilizada principalmente em registros do século XIX do grupo, e
utilizado por outros pesquisadores, como comenta Tommasino:

Se os rios maiores delimitavam os territórios Kaingang, os rios menores, afluentes


daqueles, formavam os limites dos subterritórios de cada grupo local que se
estabelecia em áreas contíguas. Cada grupo local ainda se distribuía em toldos ou
aldeias menores. […] Os do P.I. Apucarana constituíam [...] grupo local, da mesma
forma habitando vários toldos. Cada grupo local tinha uma autoridade política que
na memória dos atuais Kaingang já eram conhecidos como capitães.
(TOMMASINO, 1995, 74, grifo meu)

A organização do grupo local é caracterizada como centrada politicamente em um


chefe, denominado pay ou põ'í, cuja figura teria sido apropriada pela centralização de poder

21
Como mencionado, em Apucaraninha não se utiliza o termo “tronco-velho”, mas apenas “velhos”.
66

utilizada para se relacionar com os grupos, nas políticas indigenistas estatais, ou seja, na
figura do cacique ou do capitão.
Com base nas unidades sociais identificadas, Fernandes produz uma análise que se
afasta do recorte territorial do grupo local, especialmente ao considerar as relações da
parentagem e troncos velhos, que seria mais apropriada ao se tratar a política kaingang, uma
vez que ela não se resumiria à posição do pay ou chefe político. Ainda assim, afirma que seria
característico dos kaingang, nas situações atuais,

Reconhecerem uma, e apenas uma, posição política superior - diferente de outros


grupos Jê que reconhecem um cacique para cada aldeia, os Kaingang reconhecem
apenas um cacique para cada T.I., não importando o número de aldeias que
compõem cada T.I. (FERNANDES, 2003 p.162).

O autor em outro lugar (FERNANDES, 2004) aproxima os grupos locais às atuais


Terras Indígenas, como unidades político-territoriais históricas que hoje representariam o
território de uma “comunidade” com uma chefia centralizada, ainda que constituído
internamente por uma dinâmica de conflitos e alianças entre os grupos do ajudório
(parentagem). A parentagem, centrada nos troncos velhos, se sobrepõe à autoridade da chefia
política, pois havendo uma história com a terra, os troncos velhos não dependem da chefia
política da situação para sua permanência no local, associada ao próprio território e à história.
Portanto, grupos de oposição mantêm-se junto à comunidade, tendo que a própria liderança
política considerar tal posição.
É central à composição da liderança nos casos analisados por Fernandes, a presença
de chefes de grupos domésticos que representam oposição direta. Neste sentido, o processo de
tomada de decisão pelo cacique e liderança são pontuados por três concepções: a divisão da
comunidade em grupos; a concepção de que a comunidade constitui uma unidade; a
concepção da comunidade como um agente em relacionamento com o mundo dos brancos
(FERNANDES, 2003, 267). Estas concepções indicam que a própria liderança política se
estabelece ao reconhecer as diferenças e incorporá-las, unificando a comunidade, e
possibilitando a esta relacionar-se com o exterior como unidade.
Assim, as unidades sociais identificadas seriam referência para a política kaingang.
As “facções” seriam mais próximas às parentagens, especialmente por centrarem-se nos
troncos velhos (FERNANDES, 2003, p.278). O chefe político se legitima através de sua
relação com a parentagem e do reconhecimento das demais, para compor com estes sua
sustentação. As parentagens ao invés de se oporem, se aproximam. No entanto, ao possuir
dentro de uma estrutura de liderança e social, “outros” políticos, isto é, membros de outras
67

parentagens, se incorpora uma oposição, sem se dissolver a unidade fundamental. A facção só


se evidenciará, portanto, em conflitos, quando então, realmente se opõem. Esta passagem da
parentagem à facção, segundo o autor, é evitada:

as fronteiras são todas dadas: a terra é dividida em sítios, a história é dividida em


troncos velhos, os arranjos matrimoniais são divididos pelos grupos domésticos, a
produção é dividida em ajudórios, as identidades são divididas em parentagens. Não
cabe à política se sobrepor a estas divisões. Cabe à política, isso sim, representar tais
divisões como uma unidade, seja pela consolidação de leis escritas, seja pela atuação
fora dos limites comunitários, seja pela realização de eleições para cacique. No
entanto, a facção estará sempre na antessala da política kaingang. A espreita.
Observando a força de seus princípios constitutivos ser contornada. (FERNANDES,
2003, p. 280)

Na seção anterior vimos a partir de uma fala indígena justamente tal concepção,
sendo a função do cacique relacionada a uma manutenção da relação respeitosa entre as
famílias, e sua suspensão caracterizada como “bagunça” generalizada. No entanto, os
movimentos faccionais, como diz Fernandes, estão sempre à espreita, e segundo ele, quando
se dá o conflito e entra em cena a facção, esta se cola à parentagem, e com ela irá se recompor
a estrutura de poder estabelecida, seja com expulsão, realização de eleição ou outra solução
conforme o caso. Antes de falar dos conflitos e da ruptura em Apucaraninha, que se contrapõe
à referida unidade político-territorial, de um cacique centralizado em uma TI, vejamos como
as lideranças e o cacicado se compõem em Apucaraninha, comparando-o com as unidades
sociais indicadas por Fernandes.

2.2.1. Cacique, lideranças-políticas e lideranças-polícias

Com a divisão política a partir da criação da Água Branca, podemos considerar a


composição da liderança da Sede em conjunto com as aldeias Barreiro e Serrinha e
separadamente a da nova aldeia. No caso das três primeiras é possível identificar uma
distinção clara entre o que designarei de lideranças-políticas e lideranças-polícias, de forma a
facilitar as descrições.
De forma resumida podemos dizer que as lideranças-políticas são as que tem função
representativa, ou seja, são os representantes de uma aldeia ou da TI como um todo e estão
articulados entre si em um mesmo grupo. Envolve também pessoas que auxiliam diretamente
o cacique nesta função de representação. As lideranças-polícias são um conjunto de
lideranças que tem função mais propriamente de controle moral na comunidade. Ainda que a
função do cacique comporte as duas coisas, os dois tipos são bastante diferenciáveis até por
sua forma de seleção.
68

Em Apucaraninha o cacique é escolhido através de eleição. Calculando pela fala de


um ex-cacique, isso se daria desde a década de 1990 , ainda que possa ter havido variações
nas formas de escolha não mencionadas a mim. Anteriormente era indicado pela comunidade,
sendo então apresentado ao chefe do posto e por este (sempre) aprovado. Comparando
diversas narrativas, teria havido ao menos 18 caciques na área desde a década de 1930. Nas
eleições, seguindo a ocorrida em 2011, podem votar homens e mulheres, excluídas as
crianças, cuja idade limite não é ponto pacífico, mas tendendo a seguir o modelo de eleição
nacional, de 16 anos. As eleições normalmente são acompanhadas por funcionários da
FUNAI, que elaboram relatório ao fim do processo.
Dentre os caciques já atuantes em Apucaraninha, há relações de parentesco do tipo
pai-filho, irmãos e tio-sobrinho. Com a redução das obrigações sogro-genro, este tipo de
relação perde sua unidade social, mas parece se manter como meio de transmissão de status.
A família em torno de uma liderança que passou pelo ou está no poder pode levar ao
incentivo e a construção da pessoa para o papel de liderança, incentivando o mesmo a se
colocar mais incisivamente na política. Falo em construção da pessoa pois além de, como fala
Fernandes (2003, p. 226) ser preciso que um homem construa sua autoridade ao longo do
ciclo de desenvolvimento da família e da história política da comunidade, tal autoridade
também depende de características como, por exemplo, o saber falar, seja produzindo o
discurso para a comunidade ou fazendo a interlocução com brancos22.
Quanto à seleção das lideranças-políticas, sendo apenas o cacique eleito, sua
candidatura já compreende apoios nas outras aldeias e mesmo na Sede que são fundamentais à
eleição. Existem certas posições hoje que compõem o grupo de chefia junto ao cacique: o
vice-cacique (Getúlio), os representantes das aldeias Barreiro (Marcos) e Serrinha (Valdir) e
ainda o “secretário” Alex que trabalha mais na articulação com brancos, se aproximando,
como disse anteriormente, de uma nova-liderança (LUCIANO, 2006) 23. Esta situação deve ser
entendida como histórica, cuja articulação se deu por elementos conjunturais específicos.
Tanto é que na Água Branca a distinção liderança-política e liderança-polícia não é

22
O saber falar era bastante destacado na interlocução com brancos, sendo que era notável em vários casos
esforços para uma “fala boa” a mim, principalmente por lideranças mais recentemente colocadas no cargo ou
jovens não-lideranças. Um jovem, inclusive, perguntou a mim se sua fala estava sendo boa.
23
Seria possível incluir ainda a mãe de Alex, Adélia, neste grupo, já que ela não se configura como liderança-
polícia, mas atua em processos como na representação junto ao Comitê relativo às ações da indenização pela
UHE Apucaraninha, da qual tratarei no capítulo 3. Não a inclui por não ter tido muito contato com ela, que
estava afastada da TI enquanto estive em campo por estar fazendo curso de nível superior. Marcos é também
presidente da Associação de Moradores de Apucaraninha. A função de chefe de posto hoje, ainda existente,
tem pouca relevância política, não sendo analisada aqui. Segundo o cacique Pedro, o chefe de posto seria
índio indicado pela FUNAI, sendo a anuência pelo cacique e a “comunidade” requerida.
69

demarcada como na Sede, já que não existem as posições de representantes do cacique em


outras aldeias e tampouco função similar ao do Secretário. Neste caso são diferenciados
apenas os cargos de cacique e vice-cacique. Na Sede ou na Água Branca, a composição destas
lideranças compreende alianças que perpassam parentagens distintas, mas estas acabam por se
aproximar bastante ao compor este grupo.

Escolhi o termo liderança-polícia em referencia ao termo “polícia‟ ainda usado para


denominá-las, por mais que prevaleça o uso do termo lideranças, sem diferenciação das
lideranças que aqui chamei de “políticas”. A mudança de denominação, nesse caso, não
parece ser casual já que mais do que polícias, enquanto lideranças, segundo o cacique Pedro,
também atuariam como “vereadores”, ou seja, aprovariam regras, analisariam projetos a
serem implementados para a comunidade, avaliando se seriam bons para ela. Poderiam ainda
“fiscalizar” o trabalho do cacique mais diretamente. Sua função compreende assim a prisão de
indivíduos que erraram, mas também, como foi mencionado anteriormente, podem participar
do processo de determinação de sua pena, especialmente para os casos mais graves, bem
como em ações do cacique que tenham grande importância para a comunidade. Funcionaria
de certa forma como um conselho consultivo do cacique, já que este não consulta a
comunidade como um todo para tomar suas decisões, no caso da Sede 24. Estas lideranças
poderão auxiliar o cacique em seu papel de aconselhamento.
As lideranças-polícia não são escolhidas diretamente pelo cacique, mas por um
“chefe das lideranças”, que além de selecioná-las, também centraliza e organiza suas ações
sempre que necessário. Segundo Jair, o chefe das lideranças atual, ele escolheria de 15 a 20
dentre os homens que não bebem ou que “sabem beber”, estando então trabalhando com 18.
Tal escolha, porém, é referente a um comportamento “correto” mais geral, sendo pessoas que
não “bagunçam”, casados, respeitados, e geralmente as pessoas indicadas como tendo maior
conhecimento. Há um evidente recorte moral, portanto, em sua seleção, assim como o
estabelecido para o cacique, com o exemplo de conduta. Por isso, estas lideranças ao
mudarem para outras TIs podem se tornar lideranças lá e, da mesma forma, podem se manter
com a mudança de cacique na mesma TI. Era evidente a questão etária, sendo as lideranças
homens com mais de 45 ou 50 anos, mas ficando de fora pessoas mais idosas, com mais de 70
ou 75 anos.

24
Veremos a diferença em relação à tomada de decisão na Água Branca no capítulo 4.
70

A forma desta escolha leva em conta principalmente a conduta recente da pessoa e


apesar de se dizer que é feita pelo chefe das lideranças, há margem para escolha também pelo
cacique. Assim, Benedito, um de meus informantes, apesar de ser viúvo, não se casando
novamente, disse ter sido convidado pelo cacique a ser liderança. Ele não aceitou a proposta,
apesar de estar sempre junto a outras lideranças-polícias, dando apoio a elas e até atuar de
forma similar a elas em determinados momentos, ainda que sempre junto com algumas delas.
Na composição do grupo das lideranças-polícia havia representação de diferentes
parentagens, havendo pessoas que não eram ligadas muito diretamente à rede política do
cacicado. Apesar de haver pleno respeito à posição do cacique por estas lideranças, por vezes
elas apresentavam críticas à atuação deste, de forma que não devem ser consideradas com um
grupo homogêneo, mas sim a representação de diferentes grupos e interesses em um espaço
político. Representam justamente o “outro” incluído, fundamental à sustentação política da
chefia.

2.2.2. Grupo doméstico, parentagem e constituição de lideranças

Pude presenciar uma situação que indica como se constituem as próprias lideranças
em incentivos expressos dentro de um grupo doméstico. Em uma casa, uma liderança-polícia
aconselhava seu genro a entrar na política, após este reclamar de atitudes do cacique. O genro
achava engraçado tal aconselhamento, mas este era bastante sério e prático, indicando as
formas de se fazer isso, que passavam pelo estabelecimento de relações diretas com o cacique
atual, ou seja, deveria questioná-lo diretamente sobre suas ações e pedir auxílio ao cacique
para ele próprio trabalhar. O questionamento do jovem era sobre plantio realizado de forma
particular pelo cacique, achando o jovem que tal produção deveria ser para a comunidade. A
partir daí, o aconselhamento prosseguiu em relação à esfera econômica e as vias de acesso ao
sucesso neste âmbito, com articulação entre atividade de comércio na aldeia, plantio de
pequeno porte e produção e venda de artesanato. De certa forma isso já demonstra que existe
uma diferenciação de lideranças neste sentido, mas que tal diferenciação não é ponto pacífico,
sendo sempre suspeita de uso de recursos da comunidade, como retomarei adiante25.
O interessante neste caso, que reforça o que foi colocado, é a presença da oposição
no interior do grupo político no poder, já que o homem que aconselhava era ele mesmo uma
liderança-polícia. A própria construção de uma liderança de oposição se dá pelo

25
Todo este aconselhamento e conversa foi em kaingang, sendo em seguida a mim explicada pelo que
aconselhava.
71

relacionamento com a liderança de situação. Não por acaso, esta liderança-polícia da Sede que
aconselhava seu genro, é pai do cacique da Água Branca. Ele próprio, no entanto, como
liderança-polícia da Sede, era contrário à formação da Água Branca, com seu filho à frente,
fazendo inclusive críticas diretas à forma de atuação deste. Assim, a sustentação política passa
por relações diversas que vão além do parentesco de sangue em si, assim como destaca
Fernandes, e não são de unidade estabelecida previamente, dependendo da história das
relações entre os envolvidos e de sua atualização.
A composição da liderança-polícia nos dá uma dimensão de como o cacique atua na
mediação de relações de grupos distintos formando a comunidade, sendo sua própria posição
dependente da capacidade de articulação destes grupos, e o espaço da liderança-polícia de
grande importância para isso. Mas é preciso compreender o que são tais grupos.
A partir do contato mais próximo com algumas lideranças-polícia na Sede, pude
observar que o que poderíamos caracterizar por parentagem no caso de Apucaraninha não se
articula diretamente com os “troncos velhos”. Os ajudórios não ocorrem da mesma forma
como descrita por Fernandes na composição destes grupos, ou não são necessariamente o
vínculo privilegiado. As parentagens, apesar de envolverem parentesco em muitos casos, são
articuladas em torno de ajuda mútua, mas não no sentido de uma troca de dia ou serviço,
constituindo um anfitrião e aqueles que o ajudam. Diria que se constituem em “quase grupos”
na medida em que há uma grande fluidez e permanente reavaliação e recomposição das
relações estabelecidas, não se constituindo em grupos excludentes, mas inter-relacionados.
Por exemplo, alguns de meus melhores interlocutores compunham um grupo, ou
“quase grupo” assim. Áureo e os dois irmãos Benedito e Bruno, estavam sempre a conversar e
jogar sinuca no bar de Benedito. Áureo é “primo-irmão” dos outros dois, ou seja, primo em
segundo grau. Eles também marcavam pescarias no paiol de Benedito. Eventualmente
Benedito e Áureo trabalhavam juntos, na terra de um deles ou mais usualmente como
assalariados em um sítio vizinho à TI. Bruno também visitava Áureo em sua casa. Outros
homens, apesar de não comparecerem tanto ao bar, também combinavam trabalhos juntos,
como Jair, chefe das lideranças, que trabalhava eventualmente junto a Áureo, sendo que os
dois possuem áreas de plantio contíguas, e também ia ao paiol de Benedito. Adriano, irmão de
Áureo também ia algumas vezes ao bar, mas dificilmente trabalhava com estes homens, e
tinha uma posição mais dinâmica, trabalhando para diversos grupos, em troca de benefícios
imediatos ou futuros26. Hélio, pai de Benedito também ia ao bar, principalmente nos fins de

26
Este tipo de trabalho não diretamente remunerado envolve muitas tensões, pois terá como base expectativas e
lembranças futuras sobre o trabalho desenvolvido, podendo assim como reforçar vínculos entre os
72

semana, para assistir ao jogo de futebol no campo em frente. Apesar de ele ser o “velho” mais
próximo ao grupo, não se pode dizer que fosse o centro de articulação do mesmo. Também
outros homens iam ao bar com menos frequência e já haviam trabalhado no passado com
alguns dos outros.
A composição de um grupo, portanto, não é exclusiva. Mesmo assim, ela é
importante politicamente, pois estes homens tenderão a discutir e seguir uma mesma linha
política em contextos de tensões. Também é importante, por exemplo, na escolha das
lideranças-polícias e nas relações entre elas. Tais vínculos serão importantes inclusive para a
sustentação do cacique.
A reavaliação e recomposição se dão principalmente pelo trabalho em conjunto e por
outras atividades que envolvem a sociabilidade. Em relação ao trabalho, ele pode ser feito na
terra de um dos homens do grupo, no modelo de agricultura não mecanizada, ou quando da
preparação para a festa27, geralmente envolvendo poucos dos companheiros, mas reforçando
relações entre eles, podendo haver trocas de serviço, sempre envolvendo o trabalho em
conjunto. Por outro lado, o encontro em bares, a ida a paióis de pesca, os times de futebol e
festas particulares realizadas, favorecem também tais vínculos. Quanto aos bares, há uma
clara regularidade em sua frequência pelos homens, principalmente aos fins de semana. Os
paióis de pesca reúnem homens relacionados a seus donos, seja para pescar ou para outros
eventos mais festivos, como veremos no capítulo 5. O futebol é uma das principais atividades
recreativas masculina e também feminina. Todos os fins de semana há jogos nos dois campos
da aldeia Sede e no campo da Água Branca. A composição dos times, apesar de em alguns
casos haver alguma intenção de reunir regiões da aldeia, tendo times com o nome das
mesmas, é visível uma articulação entre outros vínculos pré-estabelecidos, ainda que os times
não possam ser vistos estritamente como parentagens em si mesmos, envolvendo diversos
tipos de relação, estabelecendo também novos vínculos entre os integrantes. Se estas formas
de relação tem alguma base no parentesco, elas extrapolam certamente esta base e permitem
formar outras articulações dando maior flexibilidade na construção dos vínculos de
sociabilidade.
Podemos ter como referência aqui a teoria de parentesco ameríndio de Eduardo
Viveiros de Castro (2000), que tem como base a estrutura de “atualização” e “contra-

envolvidos, os romper.
27
Pelo que pude levantar não são feitas atualmente festas de santo em Apucaraninha, como observado por
Almeida (2004), tendo elas caráter exclusivamente secular. Houve relato de no passado terem sido feitas
bandeiras dos santos reis. Em frente à igreja católica observei uma bandeira em estado precário, praticamente
desfigurada, em um mastro, similar à presente em fotos tiradas por Veiga (2000, p.210s) na TI Xapecó.
73

efetuação” da afinidade, onde as posições podem se transformar, sendo atraídas ou


englobadas, descendo ou subindo no diagrama onde de um lado se tem a afinidade potencial e
de outro a consanguinidade, seja em função do gradiente de distância operado ou por
motivações mais pragmáticas que classificatórias. Sendo a afinidade, segundo ele, o fundo
virtual sobre o qual se estabelecem as relações, a consanguinidade necessitaria estar sempre
sendo construída. No entanto, a consanguinidade nunca poderia esgotar a afinidade, que seria
o fundamento do processo vital do parentesco, e assim, a cada nível de consanguinização, no
nível seguinte esta é englobada pela afinidade, se opondo novamente a outro grau de
consanguinidade. Este movimento de atualização da consanguinidade, teria o seu movimento
de contra-efetuação pela linha ascendente de afinização. Para um lado, a progressiva
particularização da diferença geral mediante a constituição de corpos de parentes, para o
outro, as concreções de identidade consanguínea dentro do campo universal de afinidade
potencial (VIVEIROS DE CASTRO, 2000, p. 29). Alguns autores trabalham como o processo
de consanguinização pode se dar, na criação de parentes especialmente através de relações de
substância, como a comensalidade e consubstancialidade, ao produzir efetivamente os corpos
dos parentes, atribuindo-lhes sua própria humanidade (COELHO DE SOUZA, 2004;
LODOÑO SULKIN, 2012).
Se tomarmos a parentagem como descrita aqui como uma forma de
consanguinização, ou seja, de criação de um grupo de parentes nesta estrutura, em que as
posições são relacionais, percebemos que sua fluidez está em alguma medida relacionada aos
diferentes tipos de relações estabelecidas, pelas diferentes formas mencionadas, abrangendo o
plano da sociabilidade. Se dentro dela temos pais e filhos, irmãos, com uma relação de
substância, também temos a comensalidade e o trabalho ou outras atividades em conjunto em
outras relações, agregando-os ao que seria este grupo, mas sem que as pessoas neles tenham
um “pertencimento” exclusivo, já que são consanguinizadas também em outras relações. Por
isso não há necessária centralidade nos “troncos velhos”. No entanto, estas relações tem
grande importância política. Assim como ela aproxima, ela afasta, podendo separar
politicamente parentes de sangue quando se acirram os conflitos entre elas, como menciona
Fernandes (2003), nos momentos de tensão faccional.
O exemplo colocado envolvia lideranças-polícias. No caso das lideranças-políticas
da Sede, temos a situação de um cacique oriundo de outra Terra Indígena, sem redes de
parentesco estabelecidas previamente, mas que através de vínculos neste sentido chegou a ser
vice-cacique, passando a cacique posteriormente, dando o cargo de vice ao cacique anterior.
74

Mesmo este caso sendo uma exceção, indica como tais vínculos podem se constituir para
além da via estrita do sangue.
Uma mulher “velha” criticava essa situação, mostrando como mesmo assim essa
condição não era plenamente aceita. Outro velho dizia que ao invés de terem escolhido Pedro
como cacique, deveriam ter feito um cacique novo, algum jovem que nunca tivera sido
autoridade, para ver como ele iria trabalhar com a comunidade, já que os últimos caciques
teriam feito muitos erros. Neste caso, havia reclamação direta sobre a atuação da atual
liderança, que envolvia questões particulares de tal velho. Este caso é interessante, pois o
velho, temendo que a liderança não resolveria o seu caso, um roubo acontecido em sua casa,
não levou efetivamente o caso ao cacique, assim, não tinha uma atuação, mas não se colocava
sob a autoridade do cacique. No entanto, criticava genericamente a atuação do cacique neste
tipo de caso. Parece haver, portanto, certa tensão entre a posição dos velhos e a chefia
atualmente.
Além destas lideranças-políticas, existem dois conselheiros do cacique por ele
escolhidos. Auxiliam o cacique em sua função de aconselhamento. Na Água Branca era
composta por dois jovens. Este fato pode reforçar a não centralidade dos “velhos” na política
atual. Como citado, os “velhos” já teriam morrido quase todos. Se velhos que estão vivos tem
certo reconhecimento em termos de respeito isso não significa que terão voz junto à liderança
atual.
A composição destas lideranças depende tanto das parentagens como de outras
conjunturas específicas. Este ponto será retomado no capítulo quatro, onde detalharei melhor
a conjuntura dos últimos cacicados e principalmente a situação que levou à eleição ocorrida
em 2011 que elegeu Pedro mas resultou na criação da aldeia Água Branca.

2.2.3. Autoritarismo e democracia: “O cacique”

Vimos que o cacique tem um importante papel no que tange a lei interna da
comunidade, no processo em que esta toma forma ao se colocar em prática. Também vimos
que isso tem relação com a visão de que o cacique é importante na própria conformação da
comunidade na medida em que ele representaria a instituição que garantiria o respeito entre as
famílias. De forma prática, indiquei a autoridade do cacique ao deliberar sobre penas àqueles
que erraram. Exposta brevemente a forma como se chega ao cargo, cabe refletir melhor sobre
esta posição na comunidade.
75

Em primeiro lugar, destaco que tal análise do cacicado só me é possível realizar a


partir de algumas observações que fiz sobre a atuação de Pedro. Em relação ao cacique Levi,
na Água Branca, deixarei a discussão para o capítulo quatro. Sobre o cacique Pedro, de modo
a exemplificar sua atuação, coloco quatro “lugares” institucionais ou atividades que tipificam
o que representaria sua posição, sem levar em conta seu conteúdo, já que isso estava para
além de minha possibilidade de inserção. Assim, podemos dizer que Pedro podia ser
encontrado em quatro “lugares”: em sua casa, na praça central, em suas correrias, e em
direção à cadeia.
Como foi dito é atribuído ao cacique o papel de aconselhamento àqueles que erram,
sendo este papel até mais destacado que o da própria prisão em si. Sua casa era o espaço em
que se podia encontrá-lo para se fazer demandas, para procurar solução de conflitos e também
para uma conversa de aconselhamento. As entrevistas que fiz com ele foram neste espaço.
Sendo o espaço da família, nestas funções sua esposa também é importante, ao receber, servir
bem e atender às mulheres.
Na praça, há uma continuidade destas funções para o cacique, mas aí destaca-se sua
acessibilidade, presença e visibilidade, e também podemos dizer uma imagem de controle
sobre a comunidade, vigiando o espaço público, papel que, no entanto, seria mais próprio das
lideranças-polícias. Ali ele pode estar sentado, conversando com jovens ou com outras
lideranças, esperando alguém vir buscá-lo, pode estar de passagem. As conversas ali também
tem tom de proximidade, com piadas e risos. Ali o vi conversando com algumas jovens, fato
que é estranho para outros homens de sua idade.
As correrias se dão nos trajetos e nos destinos a que o cacique vai para tratar de
determinados assuntos. Na maioria das vezes não o vemos nas correrias, apenas ficamos
sabendo que ele foi. Este lugar seria o da representação da comunidade e o fazer pela
comunidade, comentado na introdução deste trabalho. Acompanham o cacique nesta função
outras lideranças-políticas, como o vice-cacique, Alex e eventualmente também outras
lideranças-polícias. Os assuntos tratados vão desde a organização da festa, indo a comércios
seja em Tamarana ou Londrina, ou questões relativas à indenização, ao atendimento à saúde, à
educação, em reuniões na TI ou nas cidades. Entre estas correrias e a praça ficam as correrias
internas, resolvendo assuntos na própria comunidade como a questão da organização da
produção agrícola, ainda que esta função seja hoje designada a outro indígena, fato que será
retomado adiante, ou a organização dos bares para a festa.
76

Entre a praça e o lugar da cadeia teríamos o cacique na reunião grande, quando há


algum erro que a demande. Não tive oportunidade de acompanhar nenhuma destas situações
e, portanto, nada posso dizer sobre ela.
Finalmente, temos o cacique em direção à cadeia. Em direção porque nunca o vi na
cadeia nem muito próximo a ela. Vi sim lideranças-polícias alertas quando o cacique estava
para ir nesta direção. Lideranças-polícias acompanham o cacique nesta direção. Neste
momento podemos ver o cacique com poder coercitivo. Ele manda prender, levar dali, soltar.
As lideranças-polícias o fazem. Apesar do papel das lideranças em relação à lei indígena ser
relacional e sempre implicar em algum risco ao próprio aplicador da lei caso faça julgamentos
que venham a ser considerados abusivos ou equivocados, parece haver nesta posição, em
especial na posição do cacique, um papel de autoridade atribuído e que permite o exercício de
coerção sobre os demais. A cadeia teria a função de permitir aquele que errou em se acalmar e
refletir. E estaria relacionada ao imediato aconselhamento, quando da soltura de quem foi
preso. No entanto na prisão também se sofre. A cadeia possui duas celas sem janelas ou
qualquer outra estrutura, sendo, segundo relatos, quente e fedorenta, sendo um dia ou uma
noite ali considerado já de grande sofrimento. Há um claro poder coercitivo na efetivação de
prisões e no encarceramento e na atribuição do chefe enquanto aquele visto como garantidor
da lei.
Na visão clastriana sobre a chefia indígena, o chefe, não teria um poder efetivo de
coerção e uma relação hierárquica (superior-inferior) com o grupo, representando a própria
imagem de união do grupo, de seus diversos grupos familiares, em especial através de sua
fala, enquanto mediação, apaziguando disputas, regulando divergências, buscando
reconciliação.

O chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de


nenhum meio de dar ordem. O chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não
têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder [...] o
chefe indígena não pode arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e
não pode se permitir tomar partido por um ou por outro; mas para, armado apenas de
sua eloquência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar [...]
Empreendimento cuja vitória nunca é certa [...] pois a palavra do chefe não tem
força de lei. (CLASTRES 2003, p. 223, grifo do autor)

Vimos entre os kaingang o cacique com a posição de mediador e aconselhador,


próximo talvez ao que proponha Clastres, especialmente no que diz respeito nos lugares da
casa e em certa medida na praça. Há a visão de que o aconselhamento e a mediação dada por
sua posição entre as famílias seja o que pode manter o respeito e, portanto, manter a
sociabilidade da comunidade. No entanto, o cacique está em outros dois lugares nos quais se
77

pode ver a autoridade para além da mediação: nas correrias e em direção à cadeia. No
primeiro, o cacique é autorizado a falar pela comunidade, demandar por ela, e deliberar por
ela. Ele, auxiliado pelas lideranças-políticas, irá decidir sobre ações que incidirão sobre a
comunidade. Mesmo que segundo Pedro, em alguns casos ele peça a opinião das demais
lideranças, a própria sociedade envolvente o investe deste poder de decisão e este poder
também é aceito na comunidade, sendo seguido os projetos e ações deliberados por ele,
mesmo se haja necessidade eventualmente do aval ou consulta das lideranças-polícia.
Em direção à cadeia o papel coercitivo fica ainda mais evidente, sendo a deliberação
sobre as penas em grande parte de sua alçada. No caso de erros graves, a autoridade poderá ou
ser compartilhada com as demais lideranças ou ser passada a agentes externos, na “lei do
branco”. O cacique avalia e determina a sanção, de acordo com análises caso a caso das
relações e das implicações da aplicação ou não das mesmas, que envolvem a própria posição
de quem ocupa o cargo de cacique. Ainda que a lei diga respeito a uma forma mais geral e
abstrata que inclui a forma de convivência na comunidade, vemos que a função de cacique é
peça chave em sua execução e assim em sua atualização. Sua posição é mais relevante neste
sentido que a das lideranças-polícia, pois que os julgamentos acabam de alguma forma
centralizados nele, apenas em casos mais graves sendo recorrido diretamente a estas
lideranças, ainda que ele próprio leve em consideração fatores e opiniões diversos ao fazer as
determinações e suas decisões são de alguma forma, mais ou menos dependentes das
avaliações das lideranças.
Apesar de a posição do cacique ser institucionalizada, sua efetivação irá certamente
variar conforme as conjunturas e as personalidades dos indivíduos que são escolhidos para a
posição. Com isso, estes lugares do cacique podem ter maior ou menor dimensão. No discurso
sobre as formas de liderança-política, algumas destas lideranças defendiam um modelo
considerado “moderno” ou “democrático”, característico por uma maior liberalidade e
articulação direta com os brancos. A própria participação das lideranças em geral em algumas
decisões apontariam isso. Contrapõem este modelo a um antigo, que seria conservador, não
adequado à realidade vivida atualmente por sua falta de dinamismo e diálogo, característico
por maior autoritarismo. Os lugares aqui propostos, eram ocupados em quantidades de tempo
e empenhos distintas. Era muito mais frequente o cacique estar nas correrias que em qualquer
outro lugar. Ele também podia estar em sua casa. Mais dificilmente na praça. Raramente em
direção à cadeia. Mesmo que se considere a força desta última posição, ao demonstrar e
exercer poder, não acredito ser possível dizer que ela predominasse sobre as demais.
78

A análise de Waud Kracke (1978), estudando o contexto kagwahiv, pode iluminar


estas diferentes formas de chefia, mais autoritárias ou democráticas. Ele analisa duas
lideranças distintas em duas comunidades, indicando as diferenças do histórico e da
personalidade das figuras de liderança e as diferenças na característica das próprias
comunidades a partir da relação com seus líderes. De um lado Homero, um líder mais
autoritário e hierarquicamente afastado da comunidade, de outro, Jovenil, um líder mais
democrático, interessando-se e levando em conta a opinião dos demais ao tomar suas ações. O
primeiro, com uma posição estruturalmente segura, através das relações de parentesco na
comunidade e do histórico da ancestralidade da chefia, com voz de mando e supervisão sobre
a comunidade e clamando prerrogativas especiais, com dificuldade para delegar funções. O
segundo, em uma posição instável, sem garantia pelas relações de parentesco e histórico de
ancestralidade de chefia muito vantajoso, buscava o consenso e dar o exemplo aos demais,
delegando determinadas funções a outros. O primeiro baseado em uma glória guerreira
permitia maior facilidade na organização de trabalhos coletivos sob sua supervisão, o segundo
baseado em uma relação contratual que permitia e incentivava autonomia aos membros,
trabalhando junto com eles.
Se no caso kaingang aqui em análise não podemos afirmar estarem as lideranças em
um destes polos divergentes, a liderança de Pedro parece se aproximar mais do segundo caso.
Ainda que não possa fazer considerações sobre a liderança de Getúlio enquanto cacique, me
parece também ele se aproximar desta segunda posição, mesmo tendo uma situação
“estrutural” mais estabelecida, sendo filho de Emanuel, cacique da TI por nove anos entre as
décadas de 1960 e 1970. Getúlio não trabalhava de forma centralizadora, ainda que pudesse
ser mais centralizadora que a de Pedro. Este, por sua vez, como vimos, trabalha junto com
lideranças-políticas que se não são propriamente delegadas por ele, cumprem importante
função de apoio especialmente quando se trata da relação com agentes externos à
comunidade. Dentro da comunidade estes apoios são fundamentais tanto para reforçar as
relações de parentagem, inserindo-o em um contexto relacional mais intenso que o permite ser
cacique apesar de não ser de Apucaraninha.
No entanto, lideranças que teriam uma postura mais próxima ao modelo de Homero,
ou que são vistas como tal, ainda que não se encaixem nele totalmente, podem ser inseridas na
composição da liderança-política e na liderança-polícia na medida em que as mesmas sejam
fundamentais à sustentação política do grupo, seja por representarem outras parentagens, ou
por representarem um modelo mais tradicional de atuação. A posição de Valdir seria mais
evidente neste sentido. Desta forma, o modelo de liderança mais liberal e articulado ao
79

branco, necessitaria de uma presença forte de lideranças do outro modelo, conservador. No


capítulo quatro veremos como tais vínculos se constituíram e como são passíveis de
mudanças históricas a partir de contextos políticos específicos, e que sua articulação segue
avaliações e oportunidades dos indivíduos.
O cacique, mesmo tendo um poder de coerção independente da forma de sua
liderança, está sempre em avaliação pelos demais, e a visão de sua centralidade faz com que
muitos problemas da comunidade sejam atribuídos à sua liderança. Como escreve Almeida:

A cadeia cumpre, em parte, o papel de controle, mas não é eficaz para garantir a
continuidade da liderança, pois esta pode se indispor com grupos importantes
responsáveis pelo sustento de sua permanência no poder. Como é cada vez mais
comum a manutenção de um cacique no cargo depender da aceitação da
comunidade, o cacique precisa harmonizar a “bagunça”, mas dentro da oposição
complementar que caracteriza esta relação (ALMEIDA, 2004, p.238).

Esta “harmonização” que seria muito mais como uma mediação em que o papel do
mediador será avaliado por ambos os lados, e possivelmente questionado, devendo por isso o
próprio mediador considerar as implicações do caso para si, pode se dar em outras questões
que não envolvam diretamente a “bagunça”. As diferentes reações à determinação do cacique
mostram como o poder é algo bastante negociado e calculado em meio às relações
estabelecidas. Almeida sugere que o papel das lideranças kaingang é de

convergir as discordâncias para um consenso, bem como, controlar os efeitos


faccionais dos fuxicos entre as famílias […] Um bom líder, desta forma, é aquele
que consegue manter a 'ordem' no interior do grupo, mesmo que para isto precise
desenvolver discursos, muitas vezes contraditórios, navegando por entre as
diferentes tendências. Ele jamais é um ente, mas sim um entre. O chefe Kaingang
nunca é, mas está sempre em devir. “Tornar a vir é o ser do que devém. Tornar a vir
é o ser do próprio devir, o ser que afirma no devir” (DELEUZE, 1976, p.19). O
cacique então lida com a projeção na imagem vislumbrada por ele sobre a
expectativa do outro, este podendo ser grupos diferentes locais ou estrangeiros
(ALMEIDA, 2004, p.236).

Esta visão se afasta de um poder entendido como unilateral e institucionalizado, a


partir da visão deleuziana do devir, em que a projeção da imagem de cacique é fundamental
para a atualização do mesmo e, portanto, entre os demais, não como ente sobre os demais. O
autor não explora a relação deste tipo de chefia com a conceituação das Sociedades contra o
Estado. Através da exposição dos lugares do cacique entre os kaingang neste capítulo,
podemos nos questionar sobre esta relação do cacique entre e suas atribuições de poder, tanto
no que diz respeito à correria, onde ele passa a representar o grupo ao exterior, como nas
funções mais próximas à coerção, como quando vai em direção à cadeia e quando se faz
visível e vigilante na praça.
80

Vimos que o cacique pode ser visto como representante de uma unidade da
comunidade, garantidor do respeito entre as famílias. Assim poderia representar a “metáfora
da tribo imago de seu mito” como afirma Clastres (2003, p.63). Nesta posição ele se coloca
entre vislumbrando a expectativa dos múltiplos, internos e externos, ao se posicionar em
contextos específicos. Através da oratória, especialmente representada no aconselhamento e
dissolução de tensões e como veremos também na generosidade do chefe através de festas o
chefe e a comunidade estabeleceria relações de reciprocidade pela troca. Como coloca
Sztutman (2012), a partir da leitura de Deleuze, o chefe aqui não representaria um centro de
ressonância capaz de subjugar multiplicidades. Mas esta posição também implica que se faça
uso da coerção. Ou seja, é demandado que o cacique faça uso de alguma coerção para manter
a moralidade na aldeia. Usá-la é necessário e até pode ser visto como positivo em casos de
bagunça. Abusar desse meio é arriscado pois pode comprometer a posição entre, aumentando
indisposições e inimizades.
Em contexto faccional, quando os outros incluídos se voltam contra a chefia
estabelecida, esse papel é desafiado e entra em questão a força centrífuga identificada por
Clastres (2011), gerando a divisão dos grupos em favor da autonomia política. Clastres
destaca a guerra como inscrita no ser da sociedade primitiva. Haveria a necessidade
simultânea da troca e da guerra para a manutenção da comunidade como totalidade una,
distinta e independente do Outro. No âmbito interno se buscaria a indivisão, através da
reciprocidade, especialmente entre chefe e comunidade, com a troca de mulheres, bens e
palavras, sem a hierarquização através do poder, já que o chefe sempre está em dívida com a
comunidade, que o abandonará ou o exterminará caso tente sobrepor sua vontade; no âmbito
externo, em alianças (sempre instáveis) necessárias para se contrapor ao Outro através da
guerra, manifestando assim sua independência frente ao Outro. Tal disposição para a guerra
geraria uma lógica centrífuga, de dispersão e atomização dos grupos locais, sempre tendendo
a independência e autonomia. Clastres identifica tal lógica também internamente, com a
tendência de fragmentação dos grupos.
Deixando tal debate suspenso aqui, no próximo tópico irei levantar outras funções
deliberativas do cacique que dizem respeito à moralidade da comunidade e alguns
questionamentos levantados contra o cacique enquanto estive em campo relativos a este
ponto, que indicarão mais adiante alguns dos fundamentos da criação da Água Branca. No
capítulo quatro, tratarei diretamente do movimento faccional que levou à criação da Água
Branca, que poderá indicar caminhos para esta reflexão do papel da chefia em Apucaraninha.
81

2.3. POLÍTICA ENTRE A PARENTAGEM E A MORALIDADE

Vimos a ligação da chefia e da moral na função de aconselhamento e mediação, bem


como nos casos de prisão. No entanto, a chefia tem também a função de deliberar sobre
algumas questões mais gerais, que implicam também na avaliação moral mais geral dentro da
comunidade. Nestas, da mesma forma, a tomada de decisão é ponderada pela avaliação dos
posicionamentos mais gerais na comunidade, dificilmente podendo ser autoritária sem alguma
consequência à própria chefia, ainda que cumulativamente a outras questões e a médio ou
longo prazo. Se a qualidade de mediação do cacique é algo que pode ser avaliado de maneira
muito dispersa, uma vez que se dá caso a caso, entre diferentes envolvidos, as deliberações
gerais do cacique poderão ter uma avaliação mais recorrente dentro da comunidade, com
diferentes posicionamentos, podendo daí advir uma implicação política mais direta. Destaco
aqui a questão da residência de brancos e mestiços na TI, a liberação da venda de bebidas
alcoólicas dentro da TI e a atitude perante as “bagunças”, pontos que serão levantados na
diferenciação da liderança e da experiência da aldeia Água Branca, juntamente com uma outra
forma de relação entre esta e a comunidade.
No capítulo anterior vimos uma tensão entre a classificação índios-mestiços-brancos
em um plano discursivo e as relações estabelecidas entre os mesmos. Se esta relação tem por
base a sociabilidade, tem também um fundamento moral, com base na conduta dos
indivíduos, caso se aproxime de um modelo indígena ou não, considerando que tais
avaliações são sempre de acordo com interpretações julgamentos individuais. Assim, mesmo
sem relações dentro de uma parentagem, por exemplo, uma pessoa pode ser moralmente
aceita por se portar dentro dos parâmetros morais da generosidade, apoio aos outros utilizando
de recursos próprios e não andar bagunçando com as moças nos bares, respeitando as outras
famílias.
A questão do local de residência é um dos pontos a demandar uma decisão da
liderança, em especial o cacique, pelo menos quando envolve brancos na Terra Indígena,
sendo controversa na medida em que haja desaprovação de sua presença em alguns discursos
generalizantes, mas que é regulada, relativizada e aceita conforme as redes de relação e
conduta estabelecidas com tais pessoas. Neste caso, havendo maior permissividade à
residência de brancos e de mestiços na TI, apesar de tal relativismo, temos discursos
condenando-a de forma genérica, recaindo desta forma sobre a avaliação que fazem do
82

próprio cacique, no plano do discurso, com uma diferenciação de julgamentos sobre casos
específicos conforme as relações estabelecidas.
Outro ponto controverso é a venda de bebidas alcoólicas dentro da Terra Indígena,
uma das questões bastante presente enquanto estava em campo, que recai sobre questões
morais e de sociabilidade. O cacique Pedro e Alex me explicaram sua perspectiva na defesa
da liberação da venda, contra a proibição legal hoje vigente, explicitando uma visão
“democrática” de liderança. Segundo eles, vendendo no interior da TI, teriam maior controle e
poderiam aconselhar aqueles que bebem, não no sentido de falarem para não beberem, mas
sim para se controlarem, beberem pouco. Interessante que Pedro dizia que ele não podia dizer
para algum homem: não beba! Isso geraria um descontentamento no outro homem, que se não
expresso na hora, contrapondo-se, portanto, à posição do cacique, deixaria o homem nervoso
e irritado contra o cacique, podendo se voltar contra este futuramente. Por outro lado, segundo
eles, se os índios vão beber na cidade, não há controle pela liderança, “o cacique não está
vendo”, e alguns índios ficavam até dois ou três dias dormindo pelas praças, brigando. E na
cidade, os brancos ao invés de apartarem a briga, incitariam ainda mais os bêbados. Citaram
que houve reunião com o Ministério Público sobre essa questão, onde defenderam a liberação
da venda, por considerarem uma discriminação contra o índio, por considerá-lo incapaz de se
controlar. A venda de bebidas dentro de Apucaraninha já existe há vários anos, inclusive em
cacicados anteriores, mesmo com caciques evangélicos.
Segundo o cacique Pedro, ele vinha sendo cobrado desde que ganhou a eleição para
acabar com a venda de bebida dentro da TI. Ele diz que a cobrança seria por parte do
Ministério Público, mas também ouvi muitas críticas internas em relação a este fator. Tais
críticas, com iminente valor moral não partiam apenas de crentes mas de mulheres mais
idosas, principalmente, independente de religião. Estas críticas estão também entre lideranças-
polícia. Por vezes a bebida é colocada como razão das “bagunças”. Este termo é referente
principalmente à liberalidade nos comportamentos sexuais, especialmente nos bares
chamados de “escondidos”, como são chamados bares que geralmente funcionam apenas à
noite, na periferia da aldeia, local privilegiado de tais comportamentos. O termo é usado ainda
para caracterizar o comportamento de jovens que circulam com suas motos à noite, estando
tais comportamentos geralmente considerados conectados 28. Índios puros contrários à
presença de mestiços e brancos na reserva, algumas vezes ligam esse fato a estas “bagunças”,
o que reforça a valoração moral, atravessando a classificação étnica e a moralidade.

28
Boa parte de tais motos foi adquirida com recurso recebido diretamente pela comunidade como parcela da
indenização.
83

Sendo as “bagunças” geralmente centradas discursivamente na questão da bebida,


Almeida (2004) aponta que elas estariam ligadas à distinção entre a bebida no âmbito
doméstico, onde se manteria o respeito ao grupo familiar, e no âmbito público, onde se
extrapola a autoridade do grupo familiar, recaindo sobre a autoridade do cacique 29. Assim,
grande parte das prisões seriam relacionadas ao consumo excessivo de bebida e brigas de
casais. O autor ainda acrescenta que justamente por se situar no âmbito de socialização extra-
familiar, o uso da bebida em espaços públicos seria meio de formação do homem, em termos
sociais. Além disso, ela propicia espaços de criação de afinidade com brancos, especialmente
nas vendas, no caso de Apucaraninha, dentro e fora da TI. Assim, não era incomum ver
grupos de homens, índios e brancos, nos bares dentro da aldeia, nos arredores da TI e em
Tamarana.
Como vimos anteriormente, as lideranças devem ter um comportamento correto, para
“andar certo na frente dos outros”. O fato do consumo de bebidas pelas lideranças-políticas,
assim, é altamente reprovado neste contexto, já que com isso se tornariam incapazes de
controlar a bebida entre os demais. As atuais lideranças-políticas, no entanto, eram também
liberais neste sentido. No entanto, evitavam beber em situações públicas, isto é, em bares,
salvo alguma exceção, restringindo-se ao contexto doméstico e de suas festas particulares.
Tais festas, que feitas por alguma liderança em sua casa ou paiol extrapolam o domínio
privado, podem ter uma leitura moralmente negativa entre pessoas da comunidade, que as
veem como permissivas.
No sentido da conduta ética, as lideranças-polícias pareciam ser muito mais
rigorosas, sendo que das que tive maior proximidade, não observei beberem em nenhum
momento. As não evangélicas contavam de épocas em que bebiam muito e como pararam de
beber, sendo o fato de serem lideranças colocado como um reforço para evitarem a bebida.
Segundo o cacique, ele teria se comprometido com o Ministério Público a acabar
com a venda de bebidas dentro da TI após a festa de 19 de abril em 2012. Isto é bastante
significativo, pois indica a existência de implicações políticas internas, já que a festa, como
veremos no quinto capítulo é também fundamental para a sustentação, ou diria a constituição
do cacique, mostrando que a proibição também é controversa, e como uma decisão
eminentemente política e moral tem que ser negociada com expectativas e demandas dentro
das relações estabelecidas de apoio. Efetivamente, uma semana após a festa foi dada a ordem
de que não se poderia vender mais bebida ali. Foi uma proibição mediada, pois considerou os

29
Almeida (2004) diferencia este uso público da bebida do público-ritual, como no caso do kiki, bebida
fermentada feita pelos Kaingang, bebida durante o ritual de mesmo nome.
84

estoques de bebida dos donos de bar, restantes da própria festa. Não pude acompanhar o
desenrolar da questão nas semanas seguintes, com o fim do período em campo. Um dono de
bar (liderança-polícia, mas crítico ao cacicado atual) era descrente à proibição, já prometida
por caciques anteriores; outro (não liderança, favorável ao cacicado atual), alarmado, se
desfez de seus estoques de imediato, sujeitando-se a perda financeira; um terceiro (não
liderança, pai da nora do cacique) continuava vendendo normalmente, esperando resolução
final do cacique. Circulava a ideia de que seria liberada a venda apenas aos fins de semana,
mantendo a proibição durante a semana, solução esta que seria próxima ao levantado em Rio
da Várzea por Almeida (2004), estabelecendo assim um “controle liberado” da bebida.
Neste caso, vemos que esta questão parece extrapolar a simples vontade do cacique e
a sua suposta autoridade. Se ele defende a bebida dentro da TI por ali ele estar vigiando
aqueles que bebem, por outro lado ele destacava que era preciso saber aconselhar os índios,
não se contrapondo diretamente a eles. De forma similar, o cacique fica entre pressões por um
lado de controle da venda, seja por órgãos externos (se isso se dá realmente) ou por parcelas
da comunidade, destaque-se o setor evangélico e mulheres mais idosas, e por outro lado a
liberalidade, apreciada e defendida por outras parcelas, contra as quais o cacique também não
pode se indispor, a exemplo dos donos de bares. Vemos então que mesmo tendo supostamente
este poder de decisão em suas mãos, ele não pode resolver sem ponderar as consequências e
as redes em que se insere.
A ação e deliberação do cacique nos casos de brigas decorrentes da bebida e em
outros mais específicos nos quais venha a ser demandada a mediação pelo cacique, que
comporia o poder de julgamento deste, sempre pode deixar alguma das partes a se sentir
injustiçada ou mesmo não atendida, gerando descontentamento. Como a solução de tais casos
envolve não apenas indivíduos em situações isoladas, mas sim relações históricas, dentre as
quais se encontra o próprio cacique, nem sempre existem soluções simples, especialmente em
situações de tensão política eminente. Assim, se o boi de alguém entrou no sítio de outro e
comeu toda sua roça, a solução irá depender de quem são os donos do boi e do sítio em
relação ao cacique. Se alguém queimou o carro de outro, irá depender do que o primeiro havia
feito ao segundo anteriormente e de quem são agressor e vítima em relação às lideranças-
políticas. Dependendo da leitura de cada um de tal história, poderá achar que a aparente não
atuação das lideranças é justa ou injusta. Se cabe ao cacique em último caso decidir sobre tais
casos, sua decisão, se não bem ponderada, poderá gerar críticas diretas pelos que se sentirem
prejudicados. Dependendo de quem forem estes no jogo das parentagens, a questão pode
85

ganhar maior ou menor dimensão. Assim, o cacique está sempre a lidar com um jogo
estratégico de aproximações e afastamentos.
Outra crítica existente, apesar de menos recorrente, era a própria forma de relação
entre o cacique e a comunidade, com falta de informação, desde a situação dos projetos da
indenização, como a circulação de pessoas estranhas na reserva. A falta de contato mais direto
leva também a criação de algumas contra informações, que não são esclarecidas a não ser que
se entre em contato direto ao cacique ou lideranças ou outras pessoas mais próximas a ele. Em
alguns casos isso pode se voltar contra o próprio cacique, quando suas ações não são
compreendidas ou mal interpretadas. O contato mais direto, no entanto, é dificultado pela
própria rotina da liderança e o tamanho da comunidade. O fato de muitas das questões serem
complexas, como no caso dos projetos da indenização, envolvendo agências externas, se
tornam de difícil compreensão na comunidade, segundo as próprias lideranças.
Todas estas questões acabam influenciando a permanência ou não do cacique no
poder, mesmo que não sejam determinantes, considerando a composição dos grupos políticos
mencionada no tópico anterior. Se houver um erro (dependendo qual e em que condições) do
cacique, mas ele for um bom cacique de forma geral, fazendo boas avaliações nos eventos que
afastam e que aproximam determinados sujeitos, poderá se sustentar. Ao contrário, um
cacique que é visto como agindo em benefício próprio em muitas questões, com deficiências
no cálculo do código da generosidade, errando, será mais facilmente substituído, pois grupos
contrários a ele podem conseguir maior apoio, sustentando oposição direta com base nos erros
dele e na lei.
Algo um tanto similar por sinal pode se dizer das próprias lideranças-polícia. Durante
meu campo houve depredação do Posto de Saúde, com quebra de alguns vidros. Aventavam-
se suposições de que o ato fora praticado por algum bêbado, em busca de álcool, ou por
jovens residentes da Água Branca. Não soube o desfecho da história, mas acusavam as
lideranças-polícia de terem prendido um inocente, o que, verdade ou não, deixava o chefe das
lideranças evidentemente constrangido por ter agido possivelmente com base em um falso
testemunho. Note-se que o erro da prisão seria das lideranças-polícias, não do cacique, que
não é responsável pela investigação ou pela prisão em si. As suposições sobre os possíveis
culpados evidentemente indicam, ainda, os principais pontos de tensão social presentes na
comunidade então.
Como avaliações morais e que envolvem as redes de sociabilidade, dificilmente há
concordância geral sobre tais pontos. Muitas destas questões aqui mencionadas eram
utilizadas por moradores e lideranças da Água Branca, procurando indicar a diferença desta
86

aldeia em sua moralidade, no entanto, as críticas levantadas aqui foram relatadas na própria
Sede, entre lideranças e não-lideranças, homens e mulheres, jovens e mais velhos, na maioria
das vezes se referindo a uma continuidade da situação entre o cacicado de Getúlio e de Pedro.
Tais críticas não levam necessariamente a uma oposição direta ou que resulte na procura por
um modelo de moralidade outro que extrapole o âmbito doméstico. Estas questões são
atravessadas pelas redes de sociabilidade, as parentagens e grupos domésticos.
No entanto, no discurso sobre a Água Branca era isso que tínhamos, com a busca por
um espaço com outra moralidade. Mas a criação da Água Branca também é decorrente de
relações pessoais históricas, assim, muito da objeção à Água Branca se deve às diferentes
leituras da história das lideranças de lá, em especial a seu cacique, que já foi cacique da
reserva anteriormente. O apoio de um lado ou de outro pode se dar, como exemplo, por uma
das lideranças-políticas ter resolvido um problema com a vigilância sanitária em um bar, ou
por se ter sido colega de trabalho de outra. Por outro lado, se pode ser contrário a um lado por
uma recusa de compadrio por uma liderança-política, sendo um elemento fundamental para se
apoiar o outro lado30. Há que se considerar ainda a própria disposição em se mudar
efetivamente no caso dos que foram à Água Branca.
Podemos dizer que a moralidade atua em dois planos simultaneamente na questão
política. De um lado, um plano em que a chefia é contraposta à comunidade em geral. Neste
âmbito, se faz fundamental o exemplo moral da chefia e seu discurso como garantidores do
respeito e assim da comunidade em si, como vimos, fazendo valer a lei. Este âmbito não é
desvinculado das relações de parentagem, mas uma mediação é necessária entre os vínculos
ao se tratar de conflitos. É fundamental por isso conhecer o cacique e sua família, por isso
existe a consideração de que o cacique tem que ser da própria TI e o fato de o atual cacique
ser de outra ser criticado.
Outro plano da moralidade está mais diretamente ligado à sociabilidade e à
reciprocidade. Ele pode ser positivo, seja através do trabalho ou da generosidade, reforçando
as parentagens e vínculos entre algumas delas, mas pode ser negativo, no sentido de ações que
tendem a enfraquecer tais vínculos, como a negação do compadrio ou pessoas que se veem
prejudicadas ou menos beneficiadas na esfera da generosidade devida pelo chefe.

30
Sobre a relação de compadrio não fiz maiores investigações, podendo ser outra forma de relação a atravessar
o parentesco estrito e reforçar a flexibilidade de outras formas de relação no sentido da consanguinização. Ela
me foi citada como uma das motivações de um homem que se mudava com a família para a Água Branca
enquanto estive em campo. A negação da relação se deu porque, segundo ele, o então cacique tinha um jogo
de futebol fora da TI na data do batismo.
87

A moralidade, portanto, não é uma avaliação rígida, condenatória entre bem/mal,


bom/mau, mas julgamentos diversos, relativos por um lado ao “erro” contraposto, portanto a
um correto (representado, por exemplo, na conduta adequada das lideranças que por isso são
selecionadas) e em algum caso se aproximando de uma estética bonito/feio, ainda que não
tenha sido possível identificar uma generalidade em avaliações neste último sentido. Estas
avaliações tem implicação na sociabilidade e na comunidade em geral, e entrelaçadas com as
relações das parentagens, produzem implicações políticas. A moralidade pode levar à prisão,
pode demarcar status (sempre temporários e relacionais), pode aproximar ou afastar. No
quarto capítulo veremos como o erro de um cacique pode ser fundamental para alterar o
cenário político através do faccionalismo, envolvendo estas três consequências.

2.4. POLÍTICA E RELIGIÃO

Neste capítulo vimos que em grande medida a política está ligada à moralidade e a
parentagem. Cabe, aqui, portanto, tecer breves comentários sobre a relação entre a política e a
religião, uma vez que esta tem uma implicação moral evidente e criaria outro tipo de grupo no
interior da comunidade e para fora dela.
Podemos identificar o kuiã, inicialmente, como categoria religiosa que incorpora
propriedades políticas. Segundo Fernandes (2003) e Rosa (2005), o kuiã é capaz de acessar o
mundo espiritual e com isso, ser um negociador espiritual, visionário e especialista em cura,
através do poder de seu guia espiritual, sendo este animal ou santos. Através de seu
conhecimento, estaria posicionado sobre o cacique, englobando todos os poderes da
comunidade, mas sem representar perigo a ele, uma vez que é marcado pela marginalidade,
estando “subordinado sobre a comunidade”, como diz cacique Wilson, de Rio da Várzea, a
Fernandes (2003), tendo a obrigação de oferecer sua sabedoria à comunidade e celebrar suas
conquistas junto a ela. O kuiã definiria o domínio xamânico, aproximando política e
alteridade na série cosmológica ao pretender incorporar todos os poderes da comunidade
através de seu saber (FERNANDES, 2006, p.39).
Com as transformações ocorridas com o trabalho missionário e a política indigenista,
o sistema xamânico centrado no kuiã passou a sofrer influências e consequências destas
ações. Com as igrejas cristãs, os kuiãs sofreram censuras, perseguições e acusações de
feitiçaria. Em muitas terras indígenas, passou a ter um peso ainda mais marginal em relação à
chefia (VEIGA, 2004; ROSA, 2005). Por outro lado, a presença de igrejas passou a marcar as
88

aldeias, primeiramente a católica, presente em reduções desde o início do trabalho missionário


do século XVII, e a partir da década de 1950, evangélicas, de diferentes denominações,
coincidindo com a concentração dos grupos em territórios reduzidos, em aldeamentos.
Em Apucaraninha, lideranças-políticas da Sede afirmaram não haver kuiãs ali,
havendo alguns curadores indígenas, que teriam influência do catolicismo. Como veremos no
quinto capítulo, tal caracterização tem também um fundamento político por estas lideranças.
Ao trabalhar com o complexo xamânico dos kaingang da TI Votouro, Rosa (2005) apontou a
contiguidade entre o que chama de sistemas kuiã do xamanismo e o sistema caboclo, com o
contato com curadores regionais. A contiguidade se daria pelo caráter integrador do
xamanismo, aberto à experiência do “outro”, no caso kaingang especialmente ao Guarani e o
caboclo. Assim, tais integrações constituiriam o própria realização do xamanismo kaingang.
Adiante apontarei alguns dos usos que se fazem de “curadores” em Apucaraninha, como são
chamados genericamente tanto xamãs indígenas ou regionais.
A presença das igrejas nas terras indígenas também se dá de forma particular.
Almeida (2004) faz uma análise sobre a relação entre crentes, como são usualmente
denominados os evangélicos, e católicos. Estudando diversas TIs kaingang, ele identifica que
as diferentes denominações religiosas não são separações, mantendo relações complementares
entre si, e sua adesão e significado varia em cada localidade. A igreja católica, no entanto,
teria preeminência sobre a evangélica ao ser caracterizada como a “religião do índio”, isto por
sua precedência e disseminação histórica, mas principalmente por permitir a maior
permanência de elementos como o próprio kuiã e outros curadores e rezadeiras, as festas
regadas a bebidas fermentadas, e a própria realização do kiki, nas TIs onde é feito. Como
destaca Rosa, tal denominação muitas vezes é mais uma referência do que uma efetiva
identificação, assim, como diz um de seus interlocutores, “hoje a gente diz que é católico pra
dizer que é” (2005, p.323). Elementos relacionados à cosmologia kaingang, podem seguir
sendo importantes para muitos crentes ou católicos, tornando a conversão e a inconstância dos
adeptos elementos recorrentes, bem como o trânsito entre diferentes denominações. No
entanto, a identificação católica se faz mais aberta no sentido da não exclusão de elementos
xamânicos. Isto não significa necessariamente que haja uma identificação com a Igreja
Católica oficial ou que não haja contraposição desta ao modelo xamânico.
Segundo Almeida, as igrejas evangélicas, com seu discurso fundamentado na família
(nuclear) contra as bebedeiras e bagunças, muitas vezes são importantes a pessoas em
momentos de crise conjugal advinda de tais comportamentos. Assim, passado o momento de
maior tensão, poderão ser abandonadas. Por outro lado, ao trazerem certo status a seus líderes
89

religiosos, são importantes meios de construção da pessoa enquanto liderança-política,


lembrando que assim como o cacique, o pastor terá que dar exemplo de conduta pessoal, e
poderá ter maior crédito junto aos frequentadores da igreja quando de disputas políticas,
representando importante meio ao estabelecimento da facção. Neste momento, o político e o
moral novamente se encontram.
Na única vez em que vi a igreja católica da TI aberta durante meu campo, no
penúltimo dia deste, encontrei um quadro afixado na sacristia com documento de 2003,
quando Levi era cacique da TI, ata de reunião feita na comunidade sobre a possibilidade ou
não de instalação de novas igrejas evangélicas na área. Lê-se: “após muita discussão, decidiu-
se pela não construção de mais Igrejas, evitando assim, criar conflitos entre eles [lideranças e
membros da comunidade]”. Assinam o documento várias lideranças, que coincidem em
grande parte com lideranças-políticas e polícias atuais da Sede e lideranças da Água Branca.
Havia ao lado, no mesmo quadro, várias fotos atestando a assinatura pelos participantes. A
criação de novas Igrejas pode contribuir ao fortalecimento de outras lideranças e potenciais
grupos faccionais, mesmo estes não se reduzindo ao contexto das Igrejas, daí a possibilidade
reconhecida de “criar conflitos”. O fato de estar afixado, ainda que em local de pouca
visibilidade, também dá certo teor de vitória ao grupo católico.
O trabalho do cacique, porém, sendo o de congregar as facções dentro de sua própria
liderança, geralmente irá procurar não se indispor com nenhuma das igrejas e compor sua
liderança eventualmente com outras denominações conjuntamente. Desta forma, a religião
hoje ocupa um papel complementar à liderança, constituindo também o jogo político
(Almeida, 2004). Voltarei a este tema no decorrer do trabalho.

Tendo discutido nestes dois primeiros capítulos questões gerais de caracterização e


relação entre a política e a moralidade em diferentes planos, podemos agora começar a
explorar elementos históricos mais diretos relacionados à criação da Água Branca,
discorrendo sobre os acontecimentos que o precederam e as ações das lideranças e a partir daí
retornar aos temas expostos aqui. No próximo capítulo me volto para a questão da
indenização recebida pela comunidade decorrente da UHE Apucaraninha, e suas implicações
na comunidade. Este capítulo será importante para apreciar o contexto que depois, aderido de
outros elementos tratados no quarto capítulo, geraram o movimento que criou a Água Branca.
90

3. INDENIZAÇÃO PELA USINA HIDRELÉTRICA APUCARANINHA

3.1. GUERREIROS KAINGANG

Os Coroados tinham terror dos botocudos e de outra nação selvagem quase idêntica
à dos botocudos […] têm um ódio hereditário tão grande às duas referidas nações de
selvagens que as guerras de vingança, entre si, tornam-se intermináveis, de parte a
parte. (Mabilde, 1983, p. 9-11)

Ainda que todos os coroados tragam o mesmo distintivo na cabeça tonsurada e o


cabelo cortado da mesma maneira, pertencendo, assim, à mesma nação, muitos não
são amigos e pode-se dizer, sem correr risco de errar ou exagerar, que entre as
tribos, na sua grande maioria sempre existem rivalidades […]. Entre algumas tribos
o ódio que nutrem entre si e a guerra que perpetuam são devidos a fatos ocorridos
com seus antepassados. Quase sempre foram motivados pelo fato de um indivíduo
de uma tribo ter seduzido a mulher de uma outra tribo – isto no tempo de seus
antepassados, há quase vinte gerações – ou ainda, porque os índios de uma tribo
foram ao pinhal dos outros colher algum pinhão sem a respectiva licença do cacique
daquela época! […] Uma paz duradoura entre as várias tribos dessa mesma nação é
impossível, dado o caráter inconstante e feroz dos indígenas. (Mabilde, 1983, p.45-
46)

Os Coroados, como se refere Mabilde aos Kaingang, eram guerreiros. A descrição


deste engenheiro que esteve em contato com grupos do Rio Grande do Sul em meados do
século XIX, mostra a importância da guerra, enquanto vingança, com outros grupos de
“selvagens” e outras tribos da região. Com base, como ele procura levantar, em “sedução” de
uma mulher por membro de outra tribo, ou a colheita de pinhão no território de outro cacique,
o ódio seguiria por gerações, sendo passado oralmente aos mais novos.
Analisando principalmente o caso Tupi, como vimos, Clastres (2011) destaca a
relevância da guerra entre os povos ameríndios como forma de garantia da autonomia e
independência do grupo. Por isso, a alteridade do outro-inimigo segundo o autor é importante
à própria constituição do grupo. Desta forma, além de sociedades contra o Estado, seriam
sociedades para a guerra, com um impulso centrífugo constituinte.
Eduardo Viveiros de Castro (2001) desenvolve esta concepção, analisando o caso da
guerra na sociedade Tupinambá. Ali identifica a vingança não apenas como perpetuação de
um ódio, mas como o próprio princípio motor da sociedade. O guerreiro ao matar seu inimigo,
perpetuando sua honra, incorporaria a alteridade, transformar-se-ia no processo de absorção
do outro. O matador toma o ponto de vista de sua vítima após matá-la, incorporando-a, tendo-
a como anexa a si mesma para o futuro, sendo este o fundamento de seu status diferenciado.
Neste processo perpétuo de vingança estaria a chave da memória. Ao matar sua vítima, a
memória de sua afronta aos antepassados é recolocada, no drama ritual da execução, e a morte
91

torna-se a manutenção da relação no tempo, pois será vingada, gerando assim a possibilidade
do futuro. A captura da alteridade e sua subordinação pela incorporação responderiam ao
impulso centrífugo.
Apesar de não podermos fazer a mesma leitura para os kaingang, o relato de Mabilde
indica a guerra intertribal e intratribal como meio de perpétua vingança. Os dados sobre a
guerra kaingang normalmente se focam, porém, na guerra contra os colonizadores. Os
guerreiros kaingang também podiam voltar contra os brancos colonizadores que vinham
adentrar seu território e tomá-lo. Uma efetiva guerra se deu no Sul do Brasil desde meados do
século XVIII, com sucessivas derrotas de expedições militares ofensivas contra os Jê da
região, com destaque para os conflitos nos campos de Guarapuava e de Palmas, prosseguindo
confrontos durante os séculos XIX e inícios do XX (MOTA, 2009; SANTOS, 1973).
Segundo Mota (2009), os guerreiros kaingang desenvolveram técnicas bélicas como
forma de resistência à tomada de seu território, promovendo também ataques a cidades e
territórios de ocupação já consolidados, gerando temor nos colonos. Amoroso (1998) levanta
que também os aldeamentos instalados no Paraná no século XIX como estratégia para
“civilizar” e catequizar os índios sofreram ataques até conseguirem estabelecer relações de
aliança com líderes indígenas. Na visão de Perrone-Moisés (1992), neste contexto prevalecia
a lógica da aliança e da guerra entre brancos e índios, com a distinção dos colonizadores entre
índios aldeados (aliados considerados livres) e os índios dos sertões (inimigos do Estado e
passíveis de serem mortos em guerras consideradas justas e tornados escravos). As alianças,
dependiam, como destaca Amoroso, dos interesses e circunstâncias transitórias presentes. No
decorrer do século XIX, e a partir da república, as lideranças kaingang passam cada vez mais
a fazer uso da negociação e demanda política junto aos governadores e administradores, em
busca de autonomia econômica, como o exemplo a demanda por alambiques ao governo da
província.
Tommasino (1995) relata que nos anos 1980 e 1990, dentro do contexto do
movimento indígena de recuperação de terras invadidas por posseiros e expulsão de brancos
das reservas do Tibagi, os grupos de “guerreiros” kaingang, assim então denominados, tomam
a frente das lutas políticas. Segundo a autora, em alguma medida, este posicionamento seria
decorrente do próprio imaginário histórico formado dos Kaingang como índios bravos e
guerreiros, constituindo a própria identidade do grupo. Mas vemos que algo mais pode ter se
mantido à “pacificação”, e que a guerra talvez não tenha terminado.
Os guerreiros agora são diferentes. Agora eles trabalham articulados entre suas
diferentes lideranças e fizeram novos aliados. Nestes movimentos, também lutavam
92

guerreiros guarani e xetá, em articulação de diferentes comunidades da região, que teriam se


unido na categoria de “índios”, que incluiria mestiços, em oposição aos brancos. Contra eles
detêm outras armas, que tem base na indianidade e nos direitos do Estado, conseguidos por
meio de outras lutas. Perderam batalhas, mas ao lutar mataram e incorporaram o novo
inimigo, perpetuando sua própria história. Podem agora tomar a perspectiva legal do Estado e
com ela lutar contra ele mesmo.
Se, como vimos no primeiro capítulo, a história kaingang é baseada em concepções
de tempo e espaço articuladas, a disputa pela manutenção e retomada deste é fundamental,
não apenas, mas também, como forma de perpetuação física e temporal. Decorre daí a
importância dos movimentos de expulsão dos invasores brancos. O ser guerreiro neste
movimento retoma uma “essência” do “ser kaingang”. Não no sentido de uma tradição
internalizada, mas de uma transformação no sentido da indianidade, de forma a opor-se
radicalmente ao branco, uma tradição exteriorizante, onde o costume, o modo de fazer as
coisas e, no caso ameríndio especificamente, o corpo são a tradição, como destaca Vilaça
(2000). Inspirada pela centralidade do corpo para os ameríndios e no perspectivismo
(SEEGER et al., 1987; VIVEIROS DE CASTRO,1996) ela afirma: a diferença de ponto de
vista é determinada pela constituição física. Com poucas roupas, pintados, armados com
arcos, flechas, lanças, falando outra língua, reafirmam e opõem a identificação do ser índio,
do ser brabo. Como sublinha Tommasino, até os mestiços podem se tornar índios neste
processo. Na identificada gradação índio-mestiço-branco produz-se um corte ritual para a
guerra. A forma de se processar isso é resgatando elementos “tradicionais”.
José Antônio Kelly (2005) narra situação similar entre os Yanomami em protesto em
2001, onde diferenças internas entre os mais próximos aos brancos (napë), mais “civilizados”,
são aproximados aos Yanomami “de verdade”, em uma performance, no sentido straterniano,
segundo ele, uma ação intencional que visa fazer com que as pessoas respondam em um
sentido determinado, visando produzir uma resposta que constitua tanto evidência da
efetividade daquele que age, quanto uma forma de autoconhecimento (KELLY, 2005, p.221).
Da mesma forma que os Kaingang, Guarani, Xetá e ainda os mestiços se reúnem, com suas
diferenças, em torno de uma indianidade, os Yanomami se reuniram, utilizando a separação
espacial, a aparência guerreira, pintados, com flechas e bordunas, falando em sua língua,
procurando simultaneamente intimidar brancos e buscar sua compaixão para com seu
sofrimento. No caso kaingang, sendo todos ali “civilizados”, se trata de uma performance em
direção ao índio brabo em conjunto, ou mais propriamente ao índio bravo, identificado
positivamente.
93

Se tais movimentos não podem ser vistos estritamente como a guerra de vingança
Tupinambá, segundo Gordon (2006) poderiam funcionar de maneira similar, recolocando a
agência indígena através do poder de incorporação de alteridades exteriores domesticadas,
pela apropriação de forças reprodutivas da alteridade. Voltarei a isso adiante.
O caso que irei descrever a seguir se fundamenta em uma mobilização que traz
elementos também neste sentido, ainda que seja mais restrita que o movimento indígena mais
amplo descrito acima, por se tratar não de um contexto regional, mas apenas a TI
Apucaraninha com uma demanda de direito específica a si. O momento político é outro, mas
da mesma forma a manifestação dos guerreiros é destacada e colocada como fundamental às
negociações.

3.2. USINA E APUCARANINHA – COMPENSAÇÃO E INDENIZAÇÃO

A usina de Apucaraninha foi construída para abastecer principalmente o município


de Londrina, que cresceu rapidamente a partir da década de 1940 a partir de empreendimento
de colonização perpetrado pelo Estado na região com base na concessão de terras a empresas
de colonização, iniciado em 1922. A construção da usina teve início em 1946, entrando em
operação em 1949. Empreendimento da Empresa Elétrica de Londrina S.A. (ELSA), foi
incorporada integralmente pela COPEL em 1974. A COPEL é empresa mista estadual, criada
em outubro de 1954. Atua com geração, transmissão e distribuição de energia, além de
telecomunicações. Segundo seu site é “a maior empresa do Paraná”, tendo seu controle
acionário mantido pelo Estado do Paraná.
A usina funciona com o aproveitamento do Salto Grande, com 125 m de altura, no
rio Apucaraninha. Dois reservatórios fazem parte do projeto, sendo o menor chamado de
Apucaraninha, com um milhão de metros cúbicos, a cerca de um quilômetro da aldeia Sede. E
o outro, de regularização, a montante do primeiro, denominado de Fiú, com 15 milhões de
metros cúbicos, a cerca de cinco quilômetros da aldeia Sede. A Casa de Força localiza-se a
jusante do Salto Grande, tendo capacidade instalada de 10MW/h (megawatt-hora), sendo
considerada, por isso, de pequeno porte31.
A UHE Apucaraninha ocupa uma área de 39,9 hectares da Terra Indígena, mas
inicialmente eram ocupados 276,73 ha, com área de conservação e vila residencial destinada a
funcionários. A ocupação desta área e operação da Usina era feita com contrapartida
31
Ver Anexo 5 a localização da usina e reservatórios em relação à Aldeia Sede.
94

financeira pelas empresas responsáveis em forma de arrendamento. Pelo acordo inicial com a
ELSA eram pagos Cr$ 36.000,00 (trinta e seis mil cruzeiros), dos quais era descontado o
consumo de energia da aldeia. O valor pago era questionado pela comunidade, e
historicamente foi de difícil apropriação por ela, sendo administrado pelo SPI e depois pela
FUNAI.
No fim da década de 1990, a comunidade de Apucaraninha foi mobilizada a opinar
sobre a construção de outra usina hidrelétrica, a UHE São Jerônimo, que se construída, com a
barragem a apenas três quilômetros a jusante da foz do rio Apucaraninha e, portanto, do limite
atual da TI Apucarana, alagaria, segundo projeto inicial 300 alqueires desta e ainda 7,02
alqueires da TI Mococa (HELM, 1998). Conforme a Constituição de 1988 em seu artigo 231º
§ 3º, para a construção de tal usina, seria necessária a consulta à comunidade indígena e
autorização pelo Congresso Nacional. Em 2001 foi realizado o leilão de concessão do
empreendimento, vencido por consórcio envolvendo a COPEL (como sócia minoritária) e
outras empresas de capital privado. No entanto, após manifestações contrárias de lideranças
indígenas e a avaliação do IBAMA de que era necessário estudo integrado da Bacia do
Tibagi, conforme laudo antropológico, o processo foi arquivado (HELM, 2003) 32.
Tal mobilização, no entanto, alertou a comunidade e suas lideranças para o acordo
em vigor com a COPEL pela usina de Apucaraninha. Após repetidas manifestações com
fechamento e ocupação da usina, iniciadas em 1999, com a intermediação do Ministério
Público Federal e acompanhamento da FUNAI, a comunidade conseguiu em 2001 declarar a
nulidade dos acordos anteriormente firmados com as empresas responsáveis. Evitando a
judicialização da questão, a COPEL aceitou a assinatura de Termos de Ajustamento de
Conduta (TACs), vistos também como mais vantajosos pelos índios por sua teórica maior
agilidade.
Em dezembro de 2002 foi assinado o primeiro TAC (MPF, 2002) 33. Seu objeto era a
revisão do valor pago como compensação pelo funcionamento da Usina de Apucaraninha,
regulamentação de seu pagamento e também do acesso e delimitação da área ocupada. Foi

32
Conforme Helm (1998) o estudo de potencial energético do rio Tibagi foi realizado em 1965, e pela COPEL
foram feitos posteriormente dois inventários energéticos, chegando à proposição de sete usinas em 1994, e
em 1999 reduzidas para quatro. A UHE Cebolão atingiria as terras das TIs São Jerônimo e Barão de
Antonina. Há ainda projeto da UHE Jataizinho a jusante desta. A montante de Apucaraninha temos hoje a
UHE Mauá já em operação e existe atualmente novo projeto de usina a montante desta.
33
Informações relacionadas aos Termo de Ajustamento de Conduta mencionadas nesta Dissertação
foram extraídas de documentos que integram o Inquério Civil Público 1.25.005.000832/2006-55, que tramita
na sede da Procuradoria da República no município de Londrina – PR.
95

definido o valor de R$ 1,39 por MW/h gerado pela usina34, sendo a compensação paga
anualmente à Associação dos Moradores do Posto Indígena Apucaraninha.
Com este recurso, a comunidade pagaria seu consumo de energia à COPEL e o
restante deveria ser gasto conforme Plano de Aplicação previamente estabelecido, com
supervisão da FUNAI e MPF. Atualmente praticamente todo o valor desta compensação está
sendo revertido à própria COPEL pelo aumento do consumo de energia elétrica pela
comunidade. Em janeiro de 2012 restara à comunidade cerca de nove mil reais referente ao
ano anterior35.
O acordo ainda previa a redução da área de ocupação pela empresa aos 39,9 hectares,
exclusivamente para a exploração dos recursos hídricos para geração de energia elétrica,
tendo seus funcionários, ou pessoas por ela autorizadas, livre acesso exclusivamente para tal
fim, já que o acesso à casa de máquinas localizada no interior da TI se dá por estrada dentro
desta. A empresa ficava responsável pela demarcação e sinalização de tal área até março de
2003, com acompanhamento da FUNAI e MPF. Isso representava devolução mais de 200
hectares à comunidade.
Este TAC se restringia à compensação pela manutenção da exploração energética no
local. Em janeiro de 2002 foi instituído Grupo Técnico (GT) pela FUNAI para avaliação e
valoração econômica dos impactos decorrentes da instalação e operação da Usina
historicamente, considerando o período de 1946 até 2002. Segundo uma das lideranças que
acompanhou o processo, esta avaliação teria chego a valores de 15 a 80 milhões de reais,
assumindo a dificuldade em se quantificar financeiramente os impactos causados. O estudo
foi contestado pela COPEL, que contratou avaliação paralela que teria chego ao valor de
cinco milhões de reais. Tais estudos se desenrolaram entre os anos de 2002 a 2005.
Sem uma solução para o impasse, a comunidade resolve em 2006 montar
acampamento junto à casa de máquinas da Usina, paralisando seu funcionamento. A
manifestação ocorreu justamente entre o primeiro e segundo turnos da eleição que incluía
votação para Governo do Estado, acentuando seu peso político regional. As lideranças

34
Foram estabelecidos o limite mínimo de 7,57 MW/h, valor correspondente a 90% da energia média gerada
entre os anos de 1997 a 2001, e o limite máximo de 10 MW/h, correspondente à capacidade instalada da
usina. O valor de referência seria a partir de então reajustado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor
(INPC) a cada ano. O documento apresenta a base de cálculo tendo como referência o valor estimado
proposto (base janeiro de 2002) de R$ 102.665,21. Este valor estimado, dividido pela energia média gerada
nos cinco anos anteriores multiplicados pelo número de horas do ano, gerando o valor de referência para a
Compensação, de 1,39 R$/MWh.
35
Segundo informações obtidas na COPEL, em 2009 o repasse foi de cerca de R$ 150.000,00, sendo o
consumo de energia em torno de R$ 75.000,00. Foi confirmado que nos últimos dois anos, porém, houve um
crescimento do consumo de energia chegando ao valor mencionado pelas lideranças como diferença
recebida.
96

indígenas teriam exigido a presença de diretores da empresa para negociar, enquanto alguns
empregados da empresa eram mantidos pelos índios junto ao acampamento. No local não
havia água encanada, tendo sido usada água de um córrego próximo, fato bastante lembrado
ao se falar da manifestação, bem como estarem mal instalados, sujeitos a chuvas, havendo
apenas um abrigo natural próximo. Assim, a manifestação é lembrada como sofrimento à
comunidade em especial por dela terem participado mulheres e crianças. É destacado pelas
lideranças que os empregados mantidos no local, por outro lado, eram bem servidos e bem
tratados.
Com ameaça de queima da casa de máquinas pelos índios, com a suposta alocação de
barris com combustível no local, a COPEL marca reunião em Londrina, para 24 de outubro,
com o então diretor de Geração da empresa. Os índios conseguem que seja disponibilizado
ônibus para irem a tal reunião. Os índios então se pintam para a guerra, colocam cocares e vão
armados com suas lanças e um machado de pedra. Chegando ao local, em um auditório,
diretores e representantes dos órgãos estatais à mesa, e os índios nas primeiras fileiras da
plateia. Guerreiros com lanças, frente a frente com o diretor. Ali seria negociado o valor da
indenização. Como num “leilão”, como compara Alex ao narrar o evento, a empresa dava
seus “lances”. Os índios saíam para discutir as propostas. A proposta inicial da empresa foi de
dois milhões. Por quatro vezes os índios se retiraram para avaliar as propostas. Queriam
chegar a 15 milhões. Na última de suas conversas teriam combinado de, caso a proposta de 15
não fosse aceita, ir com as lanças para cima do diretor. Segundo Alex, isso teria ocorrido
realmente. A proposta final foi de R$ 14 milhões, sendo aceita pela comunidade.
Após esta negociação, em 1º de dezembro de 2006 foi assinado outro TAC (MPF,
2006) intermediado pelo MPF, estabelecendo a forma de pagamento e uso de tal recurso. O
objeto do termo é “a criação e implementação do programa gerador de projetos de
sustentabilidade socioeconômica e ambiental da Comunidade Indígena Apucaraninha”
(doravante aqui referenciado como Programa) com duração entre 10 e 20 anos, que seria
coordenado pela COPEL Geração S.A., em gestão compartilhada com a comunidade,
supervisão e assessoramento da FUNAI e fiscalização do MPF.
O termo formaliza a indenização:

Cláusula 2ª – A empresa COPEL GERAÇÃO S.A. indenizará a presente e as futuras


gerações da Comunidade Indígena pelos impactos ambientais, morais e culturais
decorrentes da instalação e funcionamento da Usina Hidrelétrica
APUCARANINHA, no valor de R$ 14.000.000,00.
97

Vinte por cento (R$ 2.800.000,00) desse recurso seria apropriado pela comunidade
por critérios estabelecidos por ela própria, pagos em 12 de dezembro de 2006 pela COPEL,
através da Associação de Moradores.
O critério adotado para partição dos 20% foi a distribuição por família, sendo
entendida como o grupo familiar, ou seja, as famílias nucleares, a depender do número de
pessoas de cada um deles, contadas crianças36. Parte de tal recurso, em torno de R$
500.000,00 foi reservado para possíveis contestações judiciais de índios não indenizados que
requisitassem tal direito. Este montante foi redistribuído no início do ano de 2012, por
nenhuma demanda ter sido considerada procedente. Quando estive em campo alguns índios
ainda resolviam junto às lideranças problemas de documentação para receberem esta parcela.
Os oitenta por cento restantes do total do recurso da indenização (R$ 11.200.000,00)
compuseram um Fundo para subsidiar o Programa referenciado, sendo administrado por um
Comitê-Gestor. Este recurso é discriminado como indenização aos menores e às futuras
gerações37. Tal Fundo, diferentemente do recurso anterior, seria mantido em conta própria em
nome do Comitê-Gestor. Sua movimentação e resgate só poderia ser feita através de
autorização expressa deste, para “aplicação obrigatória em projetos de sustentabilidade
socioeconômica e ambiental devidamente aprovados”. E finalmente “os valores não poderão
ser utilizados para atender ações de responsabilidade do Estado”.
O Termo ainda previa a elaboração de Termo de Referência (TR), pela FUNAI,
MPF, COPEL, a Comunidade Indígena, e Antropólogo por ela indicado, para contratação de
consultoria para elaboração de um Diagnóstico da Terra Indígena e proposição de um
Programa. Os custos de subsídios à elaboração de tal Programa ficaram sob responsabilidade
da COPEL, algo já previsto no acordo de outubro, sendo o Fundo exclusivamente utilizado
para a implementação e manutenção dos projetos propostos. Assim, previu-se que a empresa
custearia inclusive o transporte necessário para criação de tal TR, bem como uma viagem a
projetos a outras TIs com projetos originados por indenizações por empresas hidrelétricas. A
COPEL contrataria o serviço de consultoria. A seleção de tal empresa se daria por licitação
feita pela COPEL.
A composição do Comitê-Gestor é definida pelo TAC, composta por três
representantes da Comunidade Indígena, três representantes da COPEL, e supervisão e

36
O recurso foi pago em espécie, na sede da Associação de Moradores, através de funcionários do banco para
ali deslocados, sendo acompanhados pela Polícia Federal.
37
Ele foi pago pela COPEL em cinco parcelas anuais de R$ 2.240.000,00, com a última parcela paga em
dezembro de 2011. Como na compensação, o valor da indenização seria reajustado pelo IPCA anualmente. A
divisão deste recurso e esta forma de aplicação já era prevista na ata da reunião de 24 de outubro de 2006,
sendo apenas detalhada no TAC.
98

assessoramento da FUNAI, fiscalização do MPF, com assentos garantidos. As deliberações


deveriam ser por consenso, mas em caso de necessidade de votação o MPF teria direito a
voto, sem o qual as decisões seriam invalidadas. Além deste Comitê-Gestor, foi formado um
Conselho Indígena, formado por lideranças-políticas, para tratar do assunto internamente.
Este TAC ainda adita o de 2002, prevendo a retirada de uma tela de alambrado
colocada pela COPEL em torno do reservatório próximo à aldeia, mantendo apenas a tela
sobre ponte, vertedouro e canal de adução e na extensão próxima ao Salto Grande. As cercas
deveriam ser substituídas por cercas vivas mantidas pela empresa, o que não implicava a
liberação de uso do reservatório pela comunidade, que, uma vez sinalizados, desobrigavam a
empresa à responsabilidade de acidente por uso indevido. Em caso de multa decorrente de tal
uso à COPEL, a mesma seria revertida à comunidade38.
Nota-se que os TACs têm a pretensão de encerrar os conflitos entre empresa e os
índios prevenindo litígios futuros, assim, no de 2006 lemos:

Cláusula 8ª – Os valores pagos a título de arrendamento nos anos anteriores à


assinatura do TAC celebrado em 20.12.02, que determinou o pagamento da
compensação financeira pela utilização do potencial de geração de energia em área
indígena, não serão descontados da indenização nem serão objeto de contestação a
qualquer título e tempo pela Comunidade Indígena. (MPF, 2006; grifo meu)

De forma similar, nos dois TACs, prevê-se multa a seu descumprimento por alguma
das partes, assim, um atraso ou não pagamento pela COPEL gera multa a esta, bem como uma
paralisação da atividade geradora da Usina, gera multa à comunidade e atraso legal dos
pagamentos devidos pela empresa a esta. Além disso, os TACs, como termo jurídico, são
irretratáveis e irrevogáveis, obrigando as partes e seus sucessores.
Ao mesmo tempo em que obrigam a empresa, podem ser usados como um meio de
esta se precaver contra futuras contestações pela comunidade, de maneira a manter um acordo
perpetuamente estável. Como afirma Ramos (2008) algo estranho aos acordos feitos entre os
Kaingang, sempre quebrados quando estes passam a se sentir lesados.
Pelo TAC de 2006, deveria haver a proposição já concluída de Programa até meados
de 2007. No entanto, em janeiro de 2010 é feito um termo aditivo a este TAC (MPF, 2010).
Neste termo aditivo, consta que o TR foi entregue à COPEL apenas em outubro de 2007. A
partir de então, o processo de licitação para contratação de consultoria teria sofrido “múltiplas
impugnações, administrativas e judiciais” por empresas concorrentes ao mesmo. No Termo
aditivo, reconhece-se que os atrasos decorrentes geraram tensões na TI. E tendo em vista que

38
Segundo empregado da COPEL, esta situação é de grande preocupação para a empresa, já que em caso de
acidente por uso indevido do reservatório pelos índios ela responderia civilmente por ele.
99

neste período parte da indenização ter sido gasta em “projetos agrícolas emergenciais”, isso
acarretava a necessidade de revisão do TAC, bem como do TR elaborado39.
O termo aditivo alterou a forma de contratação da consultoria, passando a ser
estabelecida através de convênio ou contrato com instituições públicas de ensino superior ou
fundações vinculadas. Também foi previsto que a coordenação do Programa pela COPEL se
daria por cinco anos após assinatura do Termo Aditivo, sendo então avaliadas as condições
para a autogestão do mesmo pela comunidade, dependente das condicionantes de implantação
e funcionamento regular dos projetos. Seria feita capacitação dos indígenas para sua gestão e
execução e concordância da comunidade, FUNAI e MPF. A transferência poderia ser parcial,
projeto a projeto, na medida em que alcançassem tais condicionantes, inclusive antes dos
cinco anos previstos, sendo estes apenas “indicativos”. A transferência dos projetos não exime
a empresa de sua participação no Comitê-Gestor.
O tema da tela em torno do reservatório é novamente colocado, afirmando-se que o
plantio de mudas de espécies nativas para composição da cerca viva foi finalizado em março
de 2009, sendo que a cerca de arame só seria retirada após seu fechamento, e diz que a
comunidade se compromete a não prejudicar o crescimento das mudas. A COPEL realizaria
consulta à comunidade, intermediada pela FUNAI para sinalização e iluminação ao redor das
áreas de risco do reservatório. No próximo capítulo veremos como a questão da cerca é
relevante, tendo causado em última instância a queda de um cacique.
Para elaboração deste Termo Aditivo já haviam sido feitos contatos prévios com
universidades estaduais e verificada a possibilidade de estabelecimento de convênio. Assim,
no TR de 2009 já são citadas as Universidades Estaduais de Londrina e Maringá, que teriam
“amplo e prévio conhecimento sobre a comunidade indígena”. Com as respectivas fundações
destas universidades a COPEL estabelece efetivamente contrato em 2010.
O objetivo do contrato era a elaboração de um “diagnóstico socioeconômico e
cultural da população e ambiental do território de uso atual da comunidade Apucaraninha,
bem como propor um programa de sustentabilidade socioeconômica, cultural e ambiental”,

39
O TR sofreu revisão em reuniões em setembro de 2009, entre comunidade, FUNAI, COPEL, MPF, e é
anexado a este termo aditivo. Segundo este TR (MPF, 2010), durante os dez meses utilizados em sua
elaboração, foram realizadas nove oficinas com a comunidade com participação de 320 pessoas. 23 reuniões
formais foram realizadas com conselheiros indígenas e membros do Comitê-Gestor, com seus membros
indígenas, da COPEL, MPF, FUNAI e também a antropóloga indicada pela comunidade para coordenação do
diagnóstico. Além de uma viagem a projetos congêneres. Esta viagem ocorreu de 30 de junho a 08 de julho
de 2007, integrando a comitiva 13 indígenas, 4 empregados da COPEL, uma antropóloga da Prefeitura
Municipal de Londrina (futura coordenadora do Diagnóstico), uma antropóloga e um procurador do MPF que
acompanham o processo e 3 funcionários da FUNAI. Foram visitadas a TI Xerente em Tocantinia (Tocantins)
impactada pela UHE Lajeado e a TI Waimiri-Atroari, em Presidente Figueiredo (Amazonas), impactada pela
UHE Balbina.
100

com projetos nas áreas produtiva (economia de subsistência, geração de renda e outros),
socioambiental (recuperação ambiental e outros), sociocultural e de capacitação indígena
(valorização cultural e identitária, treinamento e capacitação para execução do Programa, dos
projetos e outros interesses da comunidade). Prevê-se no TR que projetos executivos que
necessitassem de estudos complementares ou que não tivessem subsídios, seriam objeto de
uma segunda etapa.
Os objetivos específicos do Programa são definidos como

a) Garantir a médio e longo prazos a sustentabilidade socioeconômica de todas as


famílias residentes na TI Apucaraninha, promovendo a melhoria de sua qualidade de
vida a partir da perspectiva e valores Kaingang;
b) Possibilitar a melhoria das condições alimentares da população (quantitativa e
qualitativamente) e suas condições gerais de saúde;
c) Recuperar as condições ambientais da TI, contemplando os usos atuais que dela é
feito pelos Kaingang e os novos usos decorrentes da implementação do Programa
delineado no presente Termo de Referência;
d) Promover a valorização cultural da comunidade indígena e o fortalecimento da
identidade étnica Kaingang;
e) Fomentar e incentivar as práticas culturais atuais e tradicionais dos Kaingang
através da arte, da dança, da musicalidade, do artesanato, dentre outros;
f) Equilibrar as relações econômicas e culturais entre a comunidade indígena e a
sociedade envolvente por meio da quebra de estigmas.

Dentre os termos metodológicos, prevê-se a ampla participação da comunidade em


todas as etapas do Programa e assessoramento por Antropólogos em todas as etapas de
elaboração do Programa, bem como nas atividades de campo de cada equipe de profissionais,
acompanhadas por dois indígenas bilíngues indicados pela comunidade, tendo um deles, ao
menos, conhecimento sobre o tema de pesquisa da equipe.
Não pretenderei aqui realizar uma análise do Termo de Referência ou da execução do
Diagnóstico, já que não acompanhei sua formulação ou desenvolvimento. Basta salientar que
de maneira geral, prevê-se que os projetos deveriam se tornar “autossustentáveis”, ou seja,
que a partir de certo momento, trouxessem retorno para sua automanutenção, especialmente
os projetos produtivos, sendo administrados pela própria comunidade. É evidente no TR a
tentativa de estabelecer vínculo com as características específicas da comunidade, sendo
sempre colocada e reforçada a participação da comunidade e respeito a suas características,
sejam produtivas ou seus conhecimentos, bem como à especificidade das realidades local e
regional da comunidade.
O TR prevê estudos nas áreas de Antropologia, Biologia (botânica e zoologia),
Geologia, Geoprocessamento, Agronomia, Economia, Administração, Nutrição, Veterinária e
101

Zootecnia, e Direito. Para cada uma dessas áreas são previstos profissionais específicos,
especificando o detalhamento desejado para cada estudo40.
Ao fim de 2011, estavam sendo concluídas as atividades previstas. Já realizado o
Diagnóstico, e várias propostas de projetos estabelecidas com base no trabalho feito pelos
pesquisadores, eram feitas oficinas de apresentação dos resultados à comunidade, conforme
previsão do TR41. Com a entrega em maio de 2012 do produto final elaborado pelas
universidades, concluía-se a primeira fase da elaboração do Programa.
No entanto, os projetos apresentados como sendo de “alta complexidade” deveriam
ter seus projetos executivos elaborados através de um segundo convênio ou contrato a ser
realizado pela COPEL. Enquanto estive em campo isso ainda não tinha se efetivado. Em
fevereiro de 2013 a empresa elaborava termo de referência para tal contratação.
Desta longa história depreende-se que tendo sido estabelecida em 2006 a
indenização, até o início de 2013 não foram implementados projetos com as características
pretendidas em seu objeto42. Como mencionado, porém, depois da assinatura do TAC de
2006, foram implementados alguns projetos chamados de “emergenciais” na comunidade.
Tais projetos, voltados à produção agrícola ocorreram até 2011, quando foram encerrados.
Para tratar deles é preciso antes tecer considerações sobre o sistema produtivo agrícola na TI e
demais atividades geradoras de renda, para dar uma maior dimensão da importância do
Programa para a comunidade.

40
Apenas como referência, para área de Antropologia deveriam ser levantados os dados de condição
socioeconômica de cada família, local de residência, hábitos alimentares, renda, atividades produtivas e
reprodutivas, de subsistência ou não de cada grupo família, considerando ao menos o último ciclo anual e de
acordo com gênero e faixa etária. Além de levantamentos mais gerais sobre política, religião, cosmologia,
organização social, as expectativas sobre o projeto e o que se gostaria de desenvolver com ele, nas diferentes
áreas, forma de gastos dos 20% do recurso repassado diretamente, agentes econômicos externos atuando na
TI e outros projetos existentes, além do acompanhamento das demais equipes e articulação de seus produtos.
41
Como mencionado anteriormente, acompanhei algumas destas oficinas entre setembro e novembro de 2011,
sendo este meu primeiro contato com o campo com a intenção de pesquisa.
42
Como meu campo se deu neste período, não foi possível acompanhar a implementação de ações mais
concretas. Também não tive acesso às reuniões do Comitê-Gestor ocorridas. Durante o período de campo,
tais reuniões tiveram como pontos de pauta, segundo participantes, o estabelecimento de um regimento
interno do Comitê e a questão da contratação de um coordenador geral do Programa, por parte da COPEL,
que se desenrolou de janeiro até março, quando foi contratada como empregada concursada pela empresa,
uma socióloga. A contratação da empregada pela COPEL segue a lógica presente no TAC de que todos os
gastos de sustentação do Programa devem ser diretamente feitos pela empresa, sendo a indenização
direcionada única e exclusivamente à execução deste. Meses depois de meu retorno do campo, tive a
informação de que Alex acabara sendo contratado conforme a vontade das lideranças-políticas no Comitê,
mas sendo pago com recurso da indenização.
102

3.3. ATIVIDADES ECONÔMICAS

Atualmente as atividades econômicas realizadas pelos moradores de Apucaraninha


(Sede) incluem principalmente o trabalho em roças particulares, o trabalho em roças coletivas,
o artesanato, o trabalho em fazendas e sítios vizinhos a TI, o trabalho formal e informal na
cidade, principalmente em Londrina, e empregos formais e informais na TI. Geralmente estes
trabalhos são combinados de forma a diversificar a renda familiar, garantindo o sustento nas
diferentes épocas do ano. É preciso considerar também que a aposentadoria é bastante
relevante na renda familiar. Além disso, contam com benefício federal Bolsa Família e
também com Cupom Alimentação da prefeitura de Londrina.
O artesanato é trabalho eminentemente feminino. São confeccionados principalmente
balaios e cestos de taquara. Aos homens cabe a coleta da taquara e confecção de arco do
tampo dos balaios, considerados de difícil confecção. Todo o restante do trabalho cabe às
mulheres. A dependência da renda familiar deste trabalho varia bastante, podendo ser sua base
ou apenas eventual contribuição. São vendidos nas cidades geralmente pela família que os
produz. O homem pode acompanhar ou não a viagem para a venda, mas crianças menores
geralmente acompanham as mães. Segundo alguns índios, as crianças maiores só não
acompanham por terem que frequentar a escola. A cidade em que são vendidos varia
conforme a família, seu histórico de vendas ou notícias de vendas por outras. Podem ir à uma
cidade mais de uma família juntas, mas a venda é responsabilidade de cada uma delas.
Aparentemente em Apucaraninha há uma tendência a se deslocar para cidades do norte
paranaense e sul do estado de São Paulo. No entanto, também relataram vendas no sul do
estado do Paraná e estados do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Os deslocamentos a
cidades mais longínquas normalmente segue um histórico de conhecimento destas cidades. O
deslocamento geralmente é feito em ônibus convencionais de viagem, o que encarece o custo
da venda. Muitos índios além de venderem, aceitam fazer “rolos” principalmente por
alimentos básicos.
Não realizei um levantamento dos índios de Apucaraninha que trabalham nas
cidades. Foi relatado o trabalho em construção civil e no comércio varejista de Londrina.
Nestes casos, geralmente o trabalhador e sua família passam a residir temporariamente na
cidade, podendo manter ou não sua casa na aldeia, a depender de suas condições e de sua
família extensa.
103

Há também empregos dentro da TI, na escola, no posto de saúde, no escritório da


Associação de Moradores, como fiscais e no posto da FUNAI 43. O trabalho na escola,
especialmente o de professor indígena, exige formação superior, ainda que incompleta,
restringindo bastante as possibilidades de contratação, centralizadas em poucas famílias com
condições e histórico de escolarização. Todos os demais serviços, e em alguma situação o de
professor inclusive, seguirão em alguma medida as relações estabelecidas com a chefia
política, podendo ser eventualmente trocados com a mudança desta. Como são dependentes
de órgãos públicos, no entanto, a mudança dos funcionários sempre dependerá da negociação
ou relações estabelecidas nestes. A substituição, no entanto, se dá apenas em casos muito
específicos, de oposição forte, sendo uma ferramenta para a liderança beneficiar diferentes
parentagens que a apoiam. Mais recentemente este tipo de troca tem se tornado mais difícil,
burocratizada em alguns casos, por exemplo, com a exigência de contratação com carteira
assinada através da Prefeitura de Tamarana dos empregados da Associação de Moradores.
Estes empregos, por terem um salário fixo são desejados na comunidade, em especial o de
professor, daí decorre muitas vezes a valorização do estudo dos filhos, por vezes com sustento
deles na cidade a duras penas.
O trabalho agrícola possui algumas variantes que podem ser tipificadas. Existem
roças próximas ao modelo de “coivara”, ou seja, derruba-se uma área de mata e prepara-se a
terra com a queima dos tocos. Isto seria a princípio feito por uma família, com seus filhos e
genros, podendo-se trabalhar com outros parceiros ou vizinhos, com base em troca de
serviços, dentro do que caracterizei como a parentagem. O trabalho é manual ou com tração
animal em determinadas fases, mas sem mecanização. A partir de então tal terra e sua
produção será desta família, até que se desinteresse pela produção, abandonando a área,
vendendo ou cedendo a outra família. O uso desta porção de terra pode passar através de
gerações dentro da mesma família.
A produção, em geral de grãos como feijão, milho e arroz, e de mandioca,
geralmente é voltada ao consumo próprio da família, mas é possível o plantio com fim
comercial, inclusive de produtos não alimentícios, como a vassoura ou de característica
arbustiva como o café. Geralmente este modelo não usa insumos agrícolas e as sementes são

43
No Posto de Saúde, apenas para os serviços gerais são contratados índios, enfermeiros e médicos são
brancos. No Posto do Barreiro a enfermaria fica a cargo exclusivo de uma índia. O trabalho de fiscal se trata
de vigiar a TI contra invasões, prevenção e controle de incêndios e prevenção contra danos em estruturas
comunitárias. Também há funcionário pago através do ICMS ecológico para coordenar os trabalhos e
maquinário agrícola. No posto da FUNAI atualmente trabalham três funcionários indígenas.
104

guardadas de um ano para outro. Por vezes, constrói-se um rancho ou paiol próximo ao local e
cria-se porcos ou galinhas.
Este modelo é restrito, hoje, segundo os índios, pelo impedimento de derrubada de
áreas de mata, ainda que sejam regeneradas de áreas de plantio passadas, o que torna o
abandono de áreas raro. Geralmente quando há início de recomposição de mata é feita a
queima pelo “dono” ou por terceiros. Este tipo de plantio é feito em áreas não mecanizadas e
geralmente de meio a três alqueires. Em alguns casos, este modelo possui uma feição mais
próxima à de “sítio”, podendo assim ser denominado inclusive. Neste caso, ao invés de
plantio de toda a terra de um produto por safra, há repartição da mesma em diferentes
produções, incluindo legumes como abóboras e árvores frutíferas. Em um destes sítios que
conheci, seu dono produzia feijão para venda dentro da aldeia e café para venda externa, além
de outros produtos. Segundo ele, seu sítio seria um dos únicos neste modelo na aldeia. O
modelo de coivara, muitas vezes é complementado com o da produção nos quintais próximos
às casas, onde há maior diversificação da produção, principalmente de frutas e legumes
(verduras são raras).
Eventualmente neste sistema pode haver apoio de alguma forma, seja de agências
públicas ou da própria comunidade, como no fornecimento de sementes, calcário e colheita,
mas não parece ser muito usual. Apesar de o trabalho tradicionalmente se dar pela família
extensa e com troca de serviço, este sistema vem aparentemente se enfraquecendo, pois
alguns proprietários com quem pude conversar, não podiam contar com trabalho de filhos
casados ou genros, uma vez que estes teriam suas próprias ocupações para sustento de sua
família, especialmente se estas não incluíam diretamente a produção agrícola neste modelo.
Pode haver ainda trabalho com troca de serviço entre parceiros, mas o serviço poderá ser
cobrado através de parcela da produção, com o pagamento de diária ou com compensação
indireta, ou seja, sem um pagamento diretamente relacionado ao serviço, mas com apoio,
financeiro ou outro, em momentos de precisão. Em alguns casos, inclusive, algumas famílias
substituem a mão de obra familiar pela de terceiros (índios) remunerados.
Tanto os donos de tais roças como os que nelas trabalham como terceiros podem
complementar a renda familiar através do trabalho em fazendas e sítios vizinhos. Filhos
solteiros também podem trabalhar desta forma. Os maiores empregadores de mão de obra na
região são pequenas áreas de laranjais, já quase inteiramente substituídas pelo plantio de grãos
(principalmente soja), colheita e beneficiamento de vassoura, fazendas de criação de bovinos
e sítios de pequeno ou médio porte de produção semifamiliar. Alguns dos donos destes sítios
105

comercializam parte da sua produção a índios, seja em estabelecimentos comerciais próprios


ou diretamente aos índios44.
Um segundo tipo seria a produção mecanizada de grãos, além dos já citados, a soja,
em terras de particulares. Praticamente toda a área agricultável existente atualmente na TI
possui donos. No caso das terras mecanizadas45, pode-se realizar preparos e plantio coletivo,
com maquinário da comunidade46, sendo cada família responsável pela manutenção e
colheita, bem como pelos produtos conseguidos, que poderão ser vendidos ou para consumo
próprio. A origem do direito de uso de tais terras foi a mim relatada como sendo a mesma que
a anterior, ou seja, pelo destoque original ou compra, no entanto, é notável que tais terras
pertençam em sua maior parte a lideranças (políticas ou polícias) ou pessoas e famílias de
maior status dentro da reserva47.
Estes dois tipos de trabalho poderiam ser enquadrados no que se chama de
“familiar”. Um terceiro tipo seria o modelo “coletivo”. Este é feito necessariamente com
apoio externo, uma vez que necessita da compra de insumos e sementes, geralmente visando
venda parcial da produção. As terras são as mesmas do segundo modelo citado, sendo cedidas
por seus proprietários para este fim, mas com a manutenção e possibilidade de retorno de seu

44
Tommasino (1995, p.304) já relatara o trabalho de índios de Apucaraninha e também de outras TIs da região
em usinas de cana no estado do Mato Grosso do Sul e as consequências do mesmo para as famílias destes
índios. Ela relata as péssimas condições de trabalho e cita acidente fatal de índio de Apucaraninha ocorrido
em 1994. Os índios que diziam ter ido trabalhar no corte de cana, justamente na mesma usina, Debrasa,
lembravam, com comoção, exatamente de acidente fatal com índio dali, o que teria ocasionado o fim das
viagens dos índios da região para realizar este trabalho.
45
Atualmente há três tratores da comunidade. Os tratoristas são pagos através da Associação de Moradores, que
obtém seus recursos pelo recebimento do ICMS ecológico, revertimento de imposto do governo estadual a
municípios com áreas de conservação ambiental. No caso de Terras Indígenas, prevê-se a destinação a estas
de 50% do valor revertido, mas tal valor é disponibilizado via prefeitura, o que muitas vezes causa
dificuldade em seu acesso efetivo pela comunidade. No caso de Apucaraninha, apesar de haver ainda
dificuldades, como a necessidade de contratação e compras via prefeitura, e restrições à presença de
maquinário para melhorias em estradas e outras, parece haver uma relação melhor do que existente no
passado. Este é o único recurso que mantém a Associação. Para dimensionamento de tal recurso cabe dizer
que em 2011, o município de Tamarana recebeu o valor de R$ 467.102,98 relativo à reserva de Apucaraninha
(SEMA/IAP, 2012). A manutenção dos tratores é feita ou através da Prefeitura, com este recurso, mas
também por vezes com recursos do Fundo da indenização, em especial a partir de 2008, segundo empregado
da COPEL.
46
A mecanização hoje utilizada é o gradeamento (arado), principalmente com fim a remoção inicial de
braquiárias, que infestam toda a área agrícola. Após isso, geralmente é feita a queima, para então realizar o
plantio. Neste caso, como não é utilizado herbicida, é necessária a capinagem manual da braquiária e outros
matos até mais de três vezes durante uma safra agrícola, sob o risco de perda da produção. Desta forma, este
sistema exige grande quantidade de mão de obra. Os engenheiros agrícolas responsáveis pelo diagnóstico da
TI eram radicalmente contra este sistema por causar compactação do solo, assoreamento e torná-lo ácido, por
possuir muita matéria orgânica sem ser feita correção com calcário. Dos produtos usualmente plantados
apenas o arroz seria adequado para solos ácidos.
47
Lembrando a questão índio puro e mestiço, em casos de mestiços que melhor sucedidos economicamente
passam a comprar muitas terras deste tipo, passam a ser um tanto mal vistos e, sendo casados com brancas,
passam eles próprios, e não apenas seus filhos, a serem chamados de brancos puros, mesmo se tiverem
relação de parentesco ascendente com lideranças indígenas (índios puros).
106

uso particular após a finalização do projeto. Neste caso a produção é entendida como da
comunidade, uma vez que o trabalho nela realizado é todo coletivo, organizado pelo cacique e
seus designados. A produção é em parte repartida à comunidade, sem vantagem aos
proprietários das terras ou aos trabalhadores. Parte poderá ser destinada a venda com fins a
custeio da produção ou outros. Neste modelo também há uso para consumo interno, em
especial através de colheita verde por famílias na medida em que estas desejem, para consumo
direto.
Este modelo pode ser visto como derivado do “panelão”, mantendo a centralização
do controle da produção e venda. Ao estudar as TIs Kaingang do Paraná na década de 1970,
Cecília Helm (1974; 1978) aponta para formas de integração dos indígenas à estrutura agrária
regional como mão de obra. Para o caso de Apucaraninha resume:

São pequenos cultivadores e consumidores dos produtos de suas roças; parte da


produção é para o mercado; a divisão do trabalho familiar é significativa; estão
submetidos ao controle de fora da aldeia; articulam-se com a sociedade regional pela
venda de artesanatos e produtos agrícolas e, estabelecem relações sociais e de
trabalho por meio do compadrio e pela venda da força de trabalho – que é atividade
complementar de sobrevivência (HELM, 1978, p. 29)

De maneira geral podemos dizer que não houve grande alteração nestas
características. A principal diferença é que não há controle atualmente pela FUNAI. À época,
a pesquisadora se deparou com críticas do trabalho na “roça grande” havendo consciência da
exploração e não distribuição justa da produção e lucro.
Almeida (2004) cita que após a extinção do “panelão”, a FUNAI continuou dando
apoio às lavouras coletivas na área, até a década de 1980, quando perdeu força, por competir
com o trabalho da lavoura familiar. O autor destaca que este modelo de trabalho enfraquecia
unidades produtivas e os grupos locais nelas baseados, por inviabilizar o sistema de troca de
dia e o puxirão. Almeida caracteriza como sinônimo o sistema de troca de dia e o “puxirão”.
Em informações coletadas por mim, o “puxirão” foi também realizado em benefício do
capitão, com anuência do chefe de posto, com a contrapartida como a realização de baile para
os índios. Além do trabalho na lavoura, o puxirão também foi realizado para construção de
casas, por exemplo. Hoje este tipo de empreendimento seria praticamente inviável sem o
pagamento de diárias.
A distribuição da produção atualmente fica a cargo exclusivo das lideranças. A
chefia indígena, por outro lado, não controla mais o trabalho realizado fora da TI, como fazia
na década de 1970, funcionando como uma espécie de “gato” interno. Por outro lado, como
veremos no tópico seguinte, a chefia controla o trabalho na roça coletiva e o pagamento das
107

diárias. Além disso, a situação estabelecida para a indenização, restringindo o seu uso,
causavam uma situação que pode remeter a uma dependência a órgãos externos existentes
nesta época.
Sobre a introdução do sistema de diárias no sistema produtivo da comunidade, uma
liderança o interpretava como gerador de uma transformação no sistema de trabalho na
reserva, já que desestimulara o uso do trabalho familiar tradicional (com obrigação genro-
sogro) e monetizara as relações produtivas também nesta esfera. Tendo em vista o reduzido
período em campo e desconhecimento a médio e longo prazo do sistema produtivo e suas
transformações em Apucaraninha, não poderei tratar tal interpretação aqui. Um fato narrado
por engenheiro florestal que coordenou um projeto piloto de reflorestamento na área, indica
algo próximo a isso. Tendo ele inicialmente ficado admirado com a participação e interesse
indígena no projeto, foi surpreendido pelo fato de que os índios estavam recebendo diárias
para trabalhar. É digno de nota que a área reflorestada foi queimada algum tempo depois, mas
várias mudas ainda resistiam enquanto estive em campo, estando a área abandonada. Ainda
assim, veremos no próximo capítulo iniciativas que indicam para formas ou desejo de retorno
deste sistema na aldeia Água Branca.
Mais recentemente a FUNAI deu apoio a lavouras familiares mecanizadas no modelo
do plantio moderno convencional, com uso de agrotóxicos, reduzindo a quantidade de mão de
obra necessária. Este apoio consistia em envio de cota anual de sementes, especialmente
arroz, feijão e milho, bem como adubo. Não era feito pagamento em dinheiro pelas sementes,
mas troca em uma relação de dois por um (ALMEIDA, 2004).
Um quarto modelo pode ser identificado com a terceirização de serviço a brancos,
com maquinário e técnicas modernas. Neste caso, a centralização da produção e recursos
obtidos na mão da chefia é ainda mais marcante. A terceirização do serviço também pode ser
utilizada no segundo tipo, em áreas de particulares somente, na medida em que os mesmos
tenham condições para financiá-las. Neste tipo de produção, porém, é possível o surgimento
de queixas da comunidade e acusação de arrendamento da terra, o que é proibido por lei48,
podendo ser feitas denúncias junto à FUNAI. Mesmo quando se diz contratar serviços de
terceiros por alguma liderança-política ou cacique, o fato torna-se mais grave, por suspeita de
uso de recurso da comunidade para plantio particular, tomando uma conotação
eminentemente política na comunidade.

48
A Constituição de 1988 estabelece que as Terras Indígenas são bens da União, de uso exclusivo aos índios,
sendo proibida, segundo a lei 6001/1973 (Estatuto do Índio), arrendamento ou qualquer ato ou negócio
jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena, constituindo crime,
segundo a lei 8176/1991, sua exploração por terceiros sem autorização legal.
108

Por exigir menor quantidade de mão de obra, a agricultura convencional, seja


coletiva ou particular, teria, na visão de algumas lideranças, maior possibilidade de retorno
financeiro, sendo desta forma preferido por elas. Para além disso, ele pode ser visto como
vantajoso pela liderança política especificamente pela própria centralização da organização
nela, o que se traduz em sucesso da liderança na medida em que houver bom resultado na
safra. Isto pode ser diretamente avaliado na comunidade através da distribuição, que reforça o
caráter de generosidade da chefia à comunidade. Por não estar sendo feita colheita na época
em que estive em campo, não foi possível avaliar a forma de distribuição, narrada a mim
como igualitária entre as famílias. Em projeto emergencial de 2011 de feijão, era relatado o
recebimento de cerca de duas latas de feijão para cada família, cerca de 20 quilos. Isto era tido
como muito pouco, tendo em vista que era para o ano inteiro.
A generosidade é também moralmente necessária ao cacique, como no modelo
clastreano. Ela é representada principalmente através da festa e da distribuição de alimentos.
Como veremos no capítulo cinco, a festa tem um caráter de reprodução de sociabilidade, com
baile, rodeio e distribuição de alimentos, em especial carne. O chefe é ainda responsável por
distribuição de alimentos básicos como feijão, arroz, milho, mandioca, oriundos de projetos
coletivos.
Além disso, parte da função da chefia é de garantir alguma alternativa de trabalho e
renda, ou melhor dizendo, de sustento, para os moradores. Esta responsabilidade não é
absoluta, ou seja, em última instância cada grupo doméstico é responsável por seu sustento,
mas cabe ao cacique e às lideranças-políticas promover ações de caráter estrutural ou geral
para gerar oportunidades aos grupos. O discurso de Pedro ia ainda além do sustento e
trabalho, focando sobre o próprio dinheiro.

Meu objetivo como autoridade é ver o índio ganhar dinheiro, porque hoje o índio
precisa de dinheiro para comprar calçado, material para o filho ter um estudo bom,
tecnologia, que hoje está na cabeça do índio. Celular, parabólica, carro, está na
cabeça do índio e querem cada vez mais esse daí.

Pedro pretende alcançar isso através da interlocução direta com brancos, como fala
Alex “Apucaraninha prospera, também porque corremos atrás junto com o branco...”. Uma
vez que não há outra forma de estabelecimento desta generosidade sem recursos externos, e
na medida em que não há atualmente regularidade em auxílio neste sentido por órgãos
oficiais, a chefia tem que trabalhar sistematicamente para angariar recursos externos. Por
outro lado, uma vez que consiga tais recursos, tem a obrigação de repassá-los à comunidade,
109

sob o risco de desconfiança por esta de ele estar utilizando-os para fins particulares. Neste
contexto se insere a indenização e seus projetos.

3.4. PROJETO EMERGENCIAL

Com a interrupção do apoio da FUNAI a projetos agrícolas, em meados dos anos


2000, a manutenção do plantio mecanizado foi impossibilitada. Em ata de reunião do Comitê
Gestor de março de 2008, relata-se a preocupação das lideranças indígenas frente à situação
dos projetos agrícolas e a necessidade de início imediato de correção do solo para o plantio da
safra 2008/2009, requisitando ainda acompanhamento agronômico para orientações na
aplicação de sementes e insumos para a maximização da produção. A partir desta demanda,
propôs-se o início de “projetos emergenciais” com acompanhamento de antropólogo e
agrônomo e liberação de recursos para sua implementação, com prestação de contas ao
Comitê. Segundo empregado da COPEL, tais projetos:

Surgem enquanto o roteiro do TAC não é cumprido. Suplementam a lacuna


relacionada à não realização do Diagnóstico, que racionalizaria o emprego do
Fundo.

Assim, considera que as amarras estabelecidas no TAC, enquanto não desenroladas,


precisaram desta ação, como medida a beneficiar a comunidade e reduzir as tensões e
problemas decorrentes da produtividade agrícola. Acrescento que apesar da citação escrita por
ele a mim, não se pode dizer que ele visse como plenamente “racionalizadoras” as propostas
elaboradas posteriormente no Diagnóstico.
Foram feitos quatro projetos emergenciais entre os anos de 2008 e 2012.
Inicialmente, para a safra 2008/2009 foi feito plantio utilizando métodos convencionais, com
agrotóxicos, sendo plantados 74 alqueires de soja e 19 de milho. Este foi utilizado para
consumo da comunidade. Segundo o empregado da COPEL referido anteriormente, ele era
contrário a este modelo, que, no entanto, foi defendido pelos indígenas e demais integrantes
do Comitê então presentes. Segundo antropóloga do MPF tal decisão foi também orientada
por procurador, com formação em agronomia, que então participou da reunião. O plantio foi
feito com trabalho e maquinário terceirizado, seguindo o viés coletivo também substituição de
herbicidas químicos pela mão de obra indígena pagos através de diárias, tendo sido gasto
cerca de 500 mil reais, dos quais foram recuperados apenas 240 mil com a venda da produção.
O empregado minimizou a diferença com o fato de que a terra estaria fértil, reduzindo custos
110

futuros de plantio. O retorno da venda da soja foi revertida para a comunidade através de
cestas básicas e o pagamento parcial de um caminhão requisitado pelas lideranças ao Comitê
e que segundo o empregado teria sido comprado por um valor maior ao que fora previsto pelo
Comitê. Esta safra foi coordenada por funcionário da FUNAI, com formação em agronomia, e
então residente na cidade de Tamarana. Posteriormente foi contratado engenheiro agrônomo
para acompanhamento técnico da safra. Empregado da COPEL também acompanhou o
trabalho.
Na safra 2009/2010 optou-se pelo plantio de milho, feijão, mandioca, e vassoura, em
pequenos talhões escalonados, com a intenção de se implantar um sistema de rotação de
culturas. Optou-se pelo modelo orgânico, com mão de obra indígena. No entanto, sendo o
controle de diárias feito por indígenas, o número delas foi aumentado em relação ao
inicialmente previsto e aprovado, passando de 30 a mais de 100.
Segundo algumas lideranças, este modelo encarece a produção justamente por este
motivo: a concessão de diárias. As diárias pagas, no valor de R$ 22,50, sendo R$ 0,50
recolhido para fins de pagamento de seguro contra acidentes, são vistas como baixas,
inferiores à diária paga em trabalhos na região aos índios, de R$ 30,00 até R$ 50,00, segundo
eles. Dizem que os demais integrantes não índios do Comitê Gestor defendem o valor abaixo
do de mercado por o produto do plantio reverter à própria comunidade. Note-se, no entanto,
que a distribuição é generalizada, não tendo nem os trabalhadores nem os donos da terra
vantagem nela, a princípio. Este fato, porém, não foi a mim destacado por qualquer dos
envolvidos. O encarecimento da produção, no entanto, não impedia o acréscimo das
concessões de diárias por eles.
Com esta safra, verificou-se a inviabilidade do cultivo de mandioca para a venda,
tendo em vista a distância de pontos de compra regulares para fabricação de farinha. Além
disso, a mandioca colhida foi mal avaliada no mercado por supostamente conter mandioca
brava misturada, reduzindo significativamente seu valor de mercado.
A safra 2010/2011, diferentemente das anteriores, não contou com o
acompanhamento direto pelo empregado da COPEL, devido a uma mudança de visão no
interior da empresa, segundo ele, devido ao entendimento equivocado que isso ficaria por
conta das equipes que realizariam o Diagnóstico. Foi feito plantio de feijão, milho e vassoura.
Uma parcela da produção de feijão, segundo o empregado da COPEL, teria sido perdida
devido ao atraso no plantio e plantio de área muito extensa, prejudicando a colheita. Ainda
assim, houve produção passível de venda, mas o cacique teria optado pela distribuição de toda
a colheita. A vassoura acabou sendo perdida. Ela havia sido estocada, depois de colhida, em
111

barracão na aldeia. Em 19 de outubro de 2011, no entanto, um incêndio acometeu tal


barracão, causando também perda de insumos agrícolas ali depositados. As causas do
incêndio não foram concluídas, mas havia a suspeita de que um andarilho que fora visto
próximo a casa da COPEL49 nos arredores da aldeia naquela noite pudesse ter causado o
mesmo.
Em 2010, após o inicio dos trabalhos desta safra, foi verificada uma diferença entre
valores orçados e gastos (com a autorização documentada pelo Comitê) e os valores sacados
junto ao banco. O que implicou em apuração pela PF e MPF, ainda em trâmite.
Finalmente, a safra 2011/2012 novamente contou com o acompanhamento de
sociólogo da COPEL e um agrônomo contratado. Eles estiveram na comunidade em agosto de
2011, após a eleição para cacique que elegeu Pedro e antes da fundação da aldeia Água
Branca. Constataram já a mudança de algumas famílias para este novo local e enfrentaram as
demandas dos dois grupos políticos em oposição. Fizeram reuniões separadas com os dois
grupos. Ouviram o grande descontentamento das lideranças do grupo da Água Branca
referente ao uso de recursos coletivos pelas lideranças da Sede e suspeitas de apropriação
destes. Também era ponto de questionamento a forma de uso dos tratores, ação coordenada
por Vicente, indígena da Sede com responsabilidade atribuída pelo Cacique Pedro, mas que
deveria também considerar a população da nova aldeia.
Foram aprovados projetos para as duas áreas, com gastos em cerca de R$
293.000,00, reduzindo o número de diárias pagas, sendo parte da responsabilidade dos
cuidados agrícolas repassados aos diretamente interessados, usando parcialmente o sistema
que divide os espaços plantados por famílias. Foi considerado o número de 60 famílias
beneficiadas na Água Branca e 300 nas demais aldeias (Sede, Barreiro e Serrinha), sendo o
valor total repartido de forma proporcional. O plantio, a despeito das considerações técnicas e
também do privilégio político da Sede, foi feito primeiro na Água Branca, pelo fato dos
tratoristas serem integrantes do novo grupo. Este fato foi criticado pelo cacique Pedro e
Vicente publicamente durante uma das oficinas da equipe do Diagnóstico em novembro de
2011. Foram feitos plantios de feijão e milho e pequenas áreas com vassoura, mandioca,
batata doce e batatinha. Foi feita compra de sementes de arroz, mas o mesmo não foi
plantado. 12 alqueires de feijão e 13 alqueires de milho foram plantados no sistema coletivo,
com diárias. O restante das sementes foi distribuído beneficiando 34 famílias, a grande
maioria da Sede. No plantio coletivo, houve diminuição da produtividade novamente por

49
Apesar de não haver mais vila residencial, a COPEL mantém duas casas nas proximidades da barragem do
Salto Grande.
112

atraso no plantio e chegada do período de chuvas antes da colheita. Segundo relato do


sociólogo, o fato de a colheita também ter coincidido com o recebimento da parcela final dos
20% da indenização teria causado certo desinteresse no trabalho agrícola na Sede, tendo o
cacique recorrido a um regional para tanto, com uso de máquinas. O resultado foi distribuído
à comunidade. Ainda segundo tal sociólogo, os indígenas teriam se recusado a realizar a
capina na área em que fora plantado milho. Quando estive em campo, esta área estava
completamente tomada por mato. A mim, lideranças atribuíram o fato ao não pagamento de
diárias pela COPEL para a capinagem. Na Água Branca, tais problemas não foram relatados,
tendo sido feita a colheita pelos moradores de lá com pagamento de diária.
Mesmo não tendo presenciado tais acontecimentos e os fatos acima terem base
sobretudo em empregado da COPEL, podemos considerar que por mais que tenham ocorrido
projetos que tiveram retornos à comunidade, ocorreram com vários percalços e muitas perdas
também. Como veremos em seguida, quando estive em campo havia uma insatisfação geral
de lideranças em relação a estes projetos.

3.5. PERCEPÇÕES SOBRE A INDENIZAÇÃO

Algumas falas poderão indicar algumas percepções sobre a indenização, seu processo
de conquista e as situações criadas posteriormente. É preciso notar que tais opiniões se deram
em um momento específico, após a realização de projetos emergenciais, após a presença de
diversos pesquisadores e equipes para elaboração do Diagnóstico, e antes do início da
implementação de projetos efetivos do Programa. Em sua maioria, são falas de lideranças-
políticas e polícias, feitas individualmente a mim.

3.5.1. Luta da comunidade e “política em cima do direito do índio”

Lucas: Aí essa questão da indenização […] como é que foi isso, você acompanhou?
Valdir: acompanhei, um bom tempo. Por quê, por que é que fizemos isso. Pra o
governo destruir dentro de uma área indígena é fácil, ele acaba, vamos dizer assim...
Primeiro o homem branco, acabou [com] os índios com o que, com o que ele
acabou... com a terra, tomou a terra deles, os matou, os queimou... e agora, o que os
homens da lei, os governos estão fazendo. Agora eles estão acabando [com] os
índios com as usina agora, com as usina. [...] Nunca ninguém traz um benefício, um
projeto a favor da área indígena. Quando constrói alguma coisa dentro da área,
quando os índios querem negociar, os, seja qual empresa que for, o que seja
construído dentro da área indígena, daí vem muita gente de fora, meter a colher no
meio. Aí o que eles falam, mesma coisa que nós negociamos essa indenização.
Quem é... a usina faz 57 anos que ela está ali dentro, 57 anos, qual é um da FUNAI,
113

um da lei, do governo, que disse, olha você está com essa usina dentro da área de
vocês, explorando a área de vocês, e vocês têm que pegar reajuste, tantos por cento.
Nunca falou, nunca fez, nunca veio, falar isso. Quando os índios se levantaram,
vamos entrar, vamos embargar isso, pra nós vermos se nós pedimos indenização
desses 57 anos. Conseguimos na luta! Foi difícil, foi um mês e pouco embaixo do
mato, morando, dormindo, em cima das cobras. Negociamos 14 milhões, foi difícil,
chegaram até sete, foi subindo com a briga, foi até 14. E bem no fim os índios não
tiveram, vamos dizer, aquela alegria de gastar seu dinheiro, receber. Os homens,
Ministério Público e alguns, lá de cima, acham que nós não [merecíamos] pegar
aquele dinheiro pra comprar alguma coisa pra [colocar] dentro de casa. Eu acho um
desaforo muito grande isso. Eu acho um desrespeito isso. Eu acho que a gente nunca
mereceu isso. Porque coitado, brigou, conseguiu, por que eles vêm ali e fazem o que
eles querem com o índio? Você não pode gastar isso porque você não pode! Por que
é que antes disso eles não montaram projeto a favor do índio, dizia: não mexa a
usina e você tem projeto desse aqui, pra você construir, vamos dizer, usina de
açúcar, usina de álcool, usina mais não sei o que, e aqui vocês vão trabalhar, vocês
vão produzir, e pra você ter riqueza, e pra você comer bem, e pra você dormir
tranquilo, e tem essa empresa. Nunca ninguém falou isso. Quando eles querem
brigar por uma coisa, quando eles fazem, e o índio tem que ser dominado por eles.
Isso é um absurdo. Hoje nós temos esse, parece que é 12 milhões, pra gastar durante
cinco anos, ou 15 anos que seja, ou 20 anos que seja, mas como é que vou trabalhar?
Como é que vou trabalhar? Diz que o projeto é autossustentabilidade. Sustentar o
quê? Sendo que tem projeto, estou indo buscar, ontem eu fui buscar três sacos de
feijão lá na cidade, que doaram pra mim, pra eu dar de comer pros meninos aqui,
sendo que o projeto está ali, pra plantar feijão, pra plantar trigo, ou plantar soja, ou
plantar milho, fazer fubá, botar uma padaria, para os índios comerem uns pães. Eles
não fazem isso, como é... então não adianta... eu acho que o índio, eu acho que
usam... eles usam o índio como... ele não é nada. E o índio hoje, ele tem que saber
andar com as próprias pernas dele, saber negociar.

Esta fala, de Valdir, representante do Cacique na Serrinha, tem tom profundo de


crítica, na medida em que indica como desrespeito e desaforo o fato de “os grandes” quererem
interferir na forma de uso do dinheiro recebido pela comunidade, com sofrimento e luta desta.
Desta forma, este processo é integrado a uma ação mais geral que ele identifica dos brancos
acabando com os índios, com evidente referência à dominação e exploração dos recursos
conseguidos pela comunidade, e perpetuação, assim, da dominação sobre o próprio índio.
Depois de uma história longa, esta situação se repete com as usinas hidrelétricas. Ele
questiona a “sustentabilidade” como conceito presente nos projetos, entendendo que sua
família não tem o que comer, ou seja, não é sustentada. Este fato é ainda mais marcante por a
Serrinha não possuir espaço de plantio, dependendo inteiramente de donativos, cestas básicas
ou benefícios conseguidos em órgãos governamentais.

Pedro: Então eles trabalham através da lei. Só que eles não conhecem... a origem do
índio. Eles não trabalham através da cultura do índio. A cultura do índio é outra.
Então o índio quer trabalhar através da cultura dele. E o branco já quer trabalhar na
cultura do branco mesmo. Então a cultura do branco e a cultura do índio não se
encaixam. Então houve uma política na forma de trabalhar junto com o índio.
Porque o índio cobra: é meu, por que você não quer me ajudar? Você não quis tomar
conta do que é meu pra mim. Porque hoje... porque cinquenta anos atrás, a COPEL,
o Ministério Público nunca chegaram na reserva. Nunca disseram assim pro índio:
esse aqui é seu, esse aqui existe que é seu, você tem direito nesse daqui. Ministério
114

Público nunca fez esse aí. A COPEL, por tudo que ela fez, aqui dentro da reserva,
ela nunca chegou e disse pro índio: eu estou dentro do que é seu, eu tenho que pagar
tanto pra você. A COPEL nunca veio falar isso aí. A FUNAI, que está pra defender
o índio, está pra ajudar o índio, a FUNAI nunca chegou, disse assim pro índio: você
tem direito nesse aqui, isso aqui é seu, você tem tanto dinheiro pra receber nesse
lado. Depois que o índio pegou no lápis, pegou na caneta, e estudar, estudar, por
tudo que os avôs deles sofreram, depois que eles estudaram, que aprenderam as
coisas, eles aprenderam a cobrar o que eles têm direito. Cobraram o direito deles.
Depois que eles conseguiram o direito deles, daí que veio gente em cima, pra querer
tomar conta do que é do índio. Ainda estão reivindicando o que é do índio ainda.
Porque a comunidade pra ganhar essa indenização, ela sofreu. Teve criança que
passou dor de barriga ali, na máquina, da usina, teve velhinho que ficou doente lá,
tomando água suja, enfrentando sol quente, brigando pra adquirir o que os pais, os
avôs dele já tinham perdido. E depois que eles ganharam, a COPEL veio em cima
querer administrar, Ministério Público entrou no meio, quer administrar também, a
FUNAI já entrou no meio, já queria administrar. Pra querer administrar o que o
índio ganhou a peito, na briga. Por que eles já não avisaram os índios antes que
aquele era direito deles? Então houve uma política em cima do direito do índio. E
hoje, eles deviam é estar reivindicando o direito do índio pra ele. Por que eles não
falam assim: os índios sofreram, ganharam a questão, dê tudo pra eles o que é direito
deles. „Se vira‟ pra lá, comam, bebam, rasguem o dinheiro, queimem. Porque vocês
sofreram pra ganhar, se quiser queimar, queima. Por que eles não fizeram assim.
Hoje, hoje está uma política em cima de dinheiro.

Esta fala reforça a anterior, contrastando a passividade e aproveitamento de


oportunidades de órgãos públicos e a empresa e por outro lado o sofrimento dos índios para
conseguirem seus direitos, o que conseguiram através da luta e do estudo, para cobrar sobre o
sofrimento de seus avós, indicando novamente a afetividade e o parentesco na leitura do
passado, como mencionado no primeiro capítulo. Entre as lideranças da comunidade há um
generalizado sentimento de impotência frente ao recurso ganho. Eles são cobrados pela
comunidade, que quer ver o uso, a realidade ou realização deste recurso. No entanto, o
impedimento de seu uso sem um projeto delineado, e estudos para embasá-lo, geram a
impossibilidade disso, postergada e adiada como vimos anteriormente. Não por acaso a
referência a uma diferença entre a cultura do índio e do branco. O tempo de seis anos para a
comunidade, desde a obtenção do mesmo, é altamente significativo e recai na avaliação e sob
suspeitas às lideranças-políticas. Assim, a assinatura dos TACs e acordos anteriores feitos
com a empresa antes destes, acabam impedindo a liderança de agir e interferem diretamente
sobre a relação desta com a comunidade.

Pedro: hoje nós temos 12 milhões. Mas já é um órgão do dinheiro público. Então
dentro desse dinheiro que sai o dinheiro do projeto. Mas só que eles fazem do jeito
que eles querem. Eles não fazem o que o índio está pedindo.
Lucas: mas porque que ficou desse jeito assim, por que eles não passaram logo esse
dinheiro pra vocês? Você acompanhou isso?
Pedro: eu acompanhei. Isso aí é um, é uma lei que saiu de dentro do Ministério
Público. Então quando o índio quer fazer, amarra. Então, a comunidade...
Lucas: mas é o Ministério Público que segura?
Pedro: o Ministério Público que segura. Então hoje a comunidade achou que o
dinheiro... a comunidade hoje achou, que eles não têm parte naquele dinheiro. […]
115

Hoje, por exemplo, a comunidade vai fazer uma reunião hoje com o cacique.
Comunidade indígena vai decidir: nós queremos que o Ministério Público pague isso
aqui pra nós. Daí, faz a reunião, junto com o Ministério Público, se o Ministério
Público pagar, está bom pra comunidade. Se ele não quiser pagar, acham que o
dinheiro é do Ministério Público. Por isso a comunidade decidiu que um tempo, eles
vão largar o dinheiro na mão do Ministério Público pra fazer do jeito que ele quer.
Eles acham que o dinheiro não é mais deles. Então a comunidade... eles ficam assim,
no pensamento deles, da comunidade, eles não tem mais direito naquele dinheiro.
Porque se fosse nosso, comandaria. Mas nós não comandamos, então não é nosso.
Então deixa que o Ministério Público aproveite lá sozinho, se ele quiser comer, ele
coma. Assim foi a decisão da comunidade.
Lucas: ah, foi assim é?
Pedro: foi. Mas esse que eles falaram, não está previsto. Mas com o tempo vai
acontecer. Porque hoje a comunidade eles pedem: nós queremos esse de projeto, nós
queremos esse de projeto, nos queremos aquele de projeto. Mas o Ministério Público
já entra com outro projeto diferente, que os índios não estão de acordo em fazer
aquele.

É colocado que não conseguem fazer o que querem com o dinheiro, assim o dinheiro
é visto como não pertencente à comunidade realmente. Ao invés de ser visto como da
empresa (que já repassou a totalidade do recurso, depositado em fundo), passa a ser visto
como do MPF, uma vez que, tendo este órgão elaborado o termo do acordo e seja ele que faça
a mediação as relações, acaba tendo centralidade maior na questão. Vimos que as decisões do
Comitê devem ser consensuais, sendo o MPF um mediador com o voto de minerva. Por outro
lado, o MPF, tendo sido o órgão através do qual o acordo foi feito através dos TACs, tem que
seguir o texto do mesmo. Não por acaso, quando a COPEL colocou um advogado para
trabalhar com a questão junto ao Comitê, a insatisfação das lideranças que acompanham o
processo cresceu. A análise mais detalhada do posicionamento do MPF exigiria
acompanhamento das reuniões do Comitê, o que não foi possível fazer. A leitura de algumas
atas do Comitê, elaboradas pelos representantes do MPF parecem indicar preocupações destes
com os posicionamentos e preocupações indígenas, tanto que a partir delas foram criados os
projetos emergenciais, mesmo com problemas decorrentes. No entanto, mesmo com este
posicionamento, com o tempo, tornam-se grandes problemas as negociações e demoras
decorrentes do esquema administrativo estabelecido no TAC.
Todo o processo de formulação dos projetos, bem como o Diagnóstico elaborado
pelas universidades, é perpassado pelas esferas decisórias que envolvem o MPF e a COPEL.
Assim, apesar de terem sido feitas oficinas, reuniões, inclusive com a presença da
“comunidade”, ou seja, de pessoas de fora da liderança-política, e mesmo que muito das
reivindicações tenham sido incluídas na formulação dos projetos, o fato de o recurso estar
bloqueado para uso fora de tais projetos e para sanar necessidades imediatas acaba implicando
na visão colocada pelo Cacique de que não se tem um efetivo controle do recurso que em
última instância é da comunidade. Além disso, determinadas posições políticas tornam mais
116

vantajosos para lideranças determinados tipos de projetos, e na medida em que eles são
parcialmente bloqueados ou tem seus recursos reduzidos, causa insatisfação na própria
liderança. Dessa forma, o cacique coloca que “houve uma política em cima do dinheiro do
índio”, indicando que estas negociações passam a demandar uma ação política permanente
das lideranças frente aos demais integrantes do Comitê. O abandono do recurso em favor do
MPF mencionada não foi levantada por nenhum outro interlocutor, devendo indicar aqui o
desgaste do cacique nesta esfera de negociações, já que uma ação neste sentido seria
altamente reprovável, via de regra, na comunidade, pesando sobre sua posição como
liderança.

Lucas: mas quem que é que barra [os gastos] ali?


Marcos: ah... pelo jeito que eu vejo ali, é um pessoal da COPEL e o promotor. Eu já
vi, a maioria das vezes, reunião, eu já fui ali, quando a gente quer alguma coisa, eles
estão travando ali pra nós. Hoje nós temos dinheiro ali e a comunidade indígena está
devendo bastante pra fora.
Lucas: devendo?
Marcos: hoje a Associação, eu entrei hoje como... eu entrei hoje na Associação. Eu
fui eleito pela comunidade, ali. E, o que eu vejo ali, a Associação está bem
quebrada. E meu medo, […] é um dia a gente não ter [de] onde tirar o parafuso pra
colocar no trator. Nós não temos... e o dinheiro nosso está lá, depositado ali. Então
eu vejo que mais pra frente, nós não vamos ter lugar nenhum, pra comprar uma
coisa assim, pro trator, assim.
Lucas: e como é que você acha que, como é que ia ficar bom pra vocês?
Marcos: eu pensava assim, [que] eu como [Presidente] da Associação ia ser fácil.
Nós temos dinheiro ali, se estragar alguma coisa, nós tínhamos que ir ali, pra
arrumar essas coisas. Mas hoje eu vejo que está sendo muito difícil pra mim, como
Associação. Hoje não temos nem um carro aí. Podia ter um carro pra Associação,
não temos nada. Eu, quando quero resolver algumas coisas na cidade, estou indo
de... de tratorzinho. Lá da minha aldeia pra cidade. Então eu vejo que, se nós temos
dinheiro ali, depositado, eu vejo que, devagarzinho está complicando a vida do índio
ali. Hoje o Barreiro mesmo, não tem nada ali. Ali, pra começar, a estrada nossa está
bem feia. Saúde está péssima ali. Agora que entrou esse carro que subiu ali [da
SESAI]. Mas nós sofremos ali, viu. Ah, faz dez anos que nós estamos querendo
resolver o problema da água nossa ali, que está tudo parado ali. A FUNASA 50 está
quebrada. Essas... Hoje a FUNAI está quebrada, até a FUNASA. Esses dois órgãos
estão bem quebrados. Então pensei que ia ser fácil, quando tem esse dinheiro ali.
Quando tem alguma coisa, tinha que resolver com aquele ali. Só que mais é para os
projetos. Só que até agora não vi nenhum dos projetos pronto ali. Uma coisa bonita
que eu vi, que saiu, é esse casarão que está aqui [escritório]. Não temos nem
estrutura pra trabalhar aqui dentro51.

O uso do recurso deve ser em benefício da comunidade em tudo o que ela precisar.
Não há sentido em haver um recurso sem poder ser gasto enquanto a Associação, por
exemplo, passa por dificuldades e não pode dar a assistência necessária a comunidade. Em
lideranças da Água Branca uma visão similar é presente. Na fala de uma delas já podemos

50
A saúde indígena foi transferida da FUNASA, Fundação Nacional de Saúde, para a SESAI, Secretaria
Especial de Saúde Indígena, em 2010, mas permanece a referência à primeira.
51
O escritório mencionado é o que foi construído com recurso de uma multa paga pela COPEL pelo atraso no
pagamento de uma das parcelas da indenização. Nele funciona a sede da Associação de Moradores.
117

notar como tal questão influencia o trabalho da liderança junto à comunidade, a partir do
conflito no que se entende como sendo um projeto adequado.

Isaías: bom, daí a gente luta pela comunidade, tem que ver, tentar trazer alguma
coisa pra comunidade, lutar, não pode ficar parado. Tem que sair fora, se mexer.
Mas só que... a coisa complicada também que eu acho é... a lei do índio. Porque a lei
do índio ela é muito rígida, sabe. A lei do índio não é como a lei do não índio.
Lucas: e como que é então?
Isaías: é porque aqui dentro, aqui ele é aldeia. Aqui ele é aldeia, que é só pra etnia
índios.
Lucas: mas daí como que funciona aí, como que...
Isaías: então, é assim, porque quando a gente já tenta trabalhar com a comunidade,
quando a gente começa encaixar as coisas, assim, pra melhoria, as autoridade lá, dos
não índios, eles já entram não aceitando. Eles entram, chegando, fazendo outra
mudança. Mudança assim, não pode melhorar a vida de indígena. Eu analisei bem
nesse... eu já analisei bem isso aí dentro de cinco, seis anos, já. Quando, depois
daquela indenização da COPEL. Eu analisei tudo, desde aquela indenização. Porque,
aquela época eles foram indenizados, mas só que daí eles foram indenizados, e cada
comunidade, cada pessoa que ele foi indenizado, eles não podiam fazer o que eles
querem. Por isso que todo mundo fala hoje, por que o índio sofre, por que o índio ele
não melhora a vida? Então, eu analisei bem isso aí. Por que não melhora, porque não
tem como você se movimentar no trabalho sozinho. Porque os não índios que
movimentam os bens, o que eles têm, eles que movimentam. Então não tem como.
Por exemplo, você vai ser indenizado, mas se alguém tomar conta daquela
indenização sua, não tem como. Você pode fazer, você pode tentar fazer do jeito que
você quer, você pode tentar melhorar sua vida, mas não consegue. Isso que dá na
vida dos índios. Isso é complicado, muito complicado. Então é difícil também, a
gente se... trabalhar aqui assim, quando, com as pessoas que tomam conta na verba,
verba dos índios, não tem como.

Esta fala reforça a visão de uma incompatibilidade entre o modo de vida indígena,
representado na lei do índio, e a dinâmica dos projetos como estabelecido no TAC, dentro da
forma de negociação estabelecida, tornando a liderança impotente para atender as demandas
da comunidade. Se aproxima da primeira fala de Pedro, em que este cita a diferença da cultura
indígena e do branco. No caso da Água Branca, o impedimento do gasto da indenização com
assistência básica, por serem entendidos, pelo texto do TAC, como dever do Estado, causa
bastante impacto, uma vez que a aldeia não possui estrutura alguma a não ser as casas
construídas pelos próprios moradores, em situação bastante similar à da Serrinha, com o
agravante de não terem em geral apoio da liderança da Sede. Assim, as lideranças da Água
Branca têm buscado alternativas para instalação de posto de saúde, escola e moradia, por
exemplo. Isto sem falar na questão da instalação de energia elétrica e água encanada que será
tratada adiante. Por isso há tendência a se rejeitar tal impedimento ao se considerar
compensações por outras usinas hidrelétricas, seja as que estão em instalação ou que
futuramente venham a afetar a TI.
118

3.5.2. Determinação e uso dos 20% da indenização

A determinação da divisão entre 20% da indenização paga diretamente e 80%


destinada a projetos foi descrita para mim por uma liderança-política da Sede e uma liderança
da Água Branca como sendo baseada em experiências de outras TIs da região sul do Brasil,
em especial a TI Ibirama, de etnia Xokleng, que teriam recebido indenizações pela construção
de usina, com repasse direto integral do recurso. Nestas situações, afirmam que, sendo pago
em espécie na aldeia, além de confusões e conflitos em seu pagamento efetivo, os
beneficiados gastaram todo o recurso em pouco tempo, especialmente na compra de carros e
motos, muitas vezes veículos com problemas jurídicos ou de documentação, podendo
inclusive ser procedentes de roubo. Com a notícia do recebimento do recurso, pessoas mal
intencionadas chegariam para se aproveitar dessa forma, vendendo veículos em más
condições, que somada à falta de manutenção, criaria na aldeia um cemitério de carros velhos.
Entendem que o repasse total pode deixar a comunidade até em pior condição, por acostumá-
la ao recurso recebido, pela criação de dívidas. Outras pessoas comentaram o próprio fato de o
índio não se preocupar em guardar dinheiro:

Marcos: Nunca pensei em guardar. A riqueza do índio é a saúde, e vivendo bem com
a família dele, comendo bem, tiver arroz e feijão e misturinha, pra ele já está certo
pra ele. Não se preocupa com nada, não se preocupa com os filhos, não se preocupa
em guardar em dinheiro pra depois pra se for pra ficar pras crianças dele. Ele não
pensa em ficar rico. E o branco já não, se sobrar um pouco ele já vai guardando pra
ele. Pra ele mais pra frente ter alguma coisa na vida. Agora índio já não, quando ele
recebe um dinheiro bom ele já vai à cidade, já gasta, o que ele trouxer pra mulher
dele já está bom pra ele, se não estiver faltando alimento dentro de casa dele, ele já
está satisfeito.

Vimos no primeiro capítulo a diferenciação entre índios e brancos neste sentido, ao


relacionar a maneira indígena de sociabilidade com base na reciprocidade entre a parentagem
e os parentes, sendo o ato de guardar característico do branco. Algumas lideranças-políticas
da comunidade, no entanto, destacavam a necessidade de projetos para geração de emprego e
renda na comunidade, especialmente para os jovens. Neste caso, porém, não se fala da
aparente contradição que isso causa ao se estabelecer um fundo para uso nos projetos a médio
e longo prazo. Em geral, no entanto, na medida em que há este recurso sem poder ser gasto e
os índios tem necessidades básicas, recai o peso na liderança ou órgãos que “controlam” o uso
do recurso.
No TAC, a justificativa a esta repartição é baseada na aplicação às futuras gerações,
mas sem esclarecimento dos motivos dos valores das duas parcelas. Dentro da empresa,
porém, existe uma visão de controle de gastos desenfreados pelos índios, o que poderia gerar
119

novos pedidos e manifestações pela comunidade. Desta forma, a empresa teria se mantido na
gestão de tais recursos. Esta manutenção, é em parte justificada pela responsabilidade da
empresa das contratações para fundamentação dos programas, fato que seria único dentro do
setor elétrico. Desta forma, a empresa não se isentaria de responsabilidade após o pagamento
da indenização. Dentro da própria empresa há visões distintas em relação a esta situação, que
não poderei detalhar aqui, mas cabe notar que me foi relatado que antigo empregado
responsável pela coordenação do Comitê, que iniciara as negociações com os índios, teria
certo orgulho em ter atrasado seu uso por vários anos. Por outro lado, com as contratações do
Diagnóstico e dos projetos executivos sendo feita diretamente pela empresa, ela tinha que
lidar com preços dos mesmos, citados como abusivos em reuniões do Comitê, além de ter que
arcar com custos dos acompanhamentos das reuniões e projetos por empregados até a
contratação de empregada especificamente para o projeto.
Não tive acesso à documentação formal relativa ao repasse dos 20% às famílias. Por
algumas informações obtidas com alguns interlocutores, foi primeiro paga uma parcela igual
de 2.000 reais a cada família (cerca de R$ 500.000,00 ao todo). Em seguida uma parcela
maior, por família de acordo com o número de seus membros. E finalmente em 2012, a
parcela final (ao todo também próxima aos R$ 500.000,00).
De forma geral, este recurso foi gasto em parte com móveis para as residências,
eletrodomésticos e veículos automotores, além de muita festa. Em menor grau foi utilizado
para outros fins, como reformas ou melhorias na residência ou compra de animais. Alguns
homens disseram ter dado até três quartos do dinheiro recebido para a esposa, o que indica a
função desta de responsabilidade pelas condições internas à casa. Após o pagamento da maior
parcela, vários comerciantes, especialmente de lojas de móveis de Tamarana, levaram
produtos para venda na aldeia em caminhões, tendo sucesso em seu intento. Alguns índios,
porém, disseram ter se recusado a comprar destes comerciantes por estarem cobrando preços
abusivamente altos.
A opinião sobre a delimitação dos 20% é também criticada diretamente,
especialmente a partir da experiência de dificuldade de negociação sobre os projetos e
impedimento de gastos em projetos visto como mais vantajosos por algumas lideranças, como
se percebe na fala de Getúlio, que era cacique quando da assinatura do TAC de 2006.

Lucas: mas por que aconteceu desse dinheiro ficar parado assim?
Getúlio: ah, que quando... nós pegamos uma parte, 20%, quando nós conseguimos.
Foi difícil pra gente conseguir isso aí. Nós ficamos mais de 20 dias na usina ali,
debaixo da lona, ali, sabe. Chuva, frio.
Lucas: [você] estava junto lá?
120

Getúlio: nós [estávamos] lá. Todo mundo estava lá. Aí até que nós conseguimos, aí
muita gente se envolveu, a prefeitura de... algumas pessoas... algumas pessoas da
prefeitura de Londrina, as antropólogas e... Ministério Público. Aí liberaram só vinte
por cento pra nós. Pra nós dividir. Aí... deixaram isso pra projetos. Pensei que era
algum projeto grande, mas pelo jeito que eu vejo é só pelo meio ambiente, sabe.
Mais pelo meio ambiente, mais do que pelos... indígena assim, sabe.
Lucas: mas o que você acha que é projeto grande.
Getúlio: ah, pensei que ia trazer algum... alguma coisa que ia dar um empreguinho
pra algum índio aí, sabe. Algum emprego para o índio, pra trabalhar por mês assim.
Então um que nós estávamos torcendo pra sair primeiro era... turismo, sabe. Nós
estávamos contando com o Salto Apucaraninha, aí, sabe. Muita gente, turismo.
Receber turista aí. Só que... eu... o jeito que eu, eu acompanho, parece que vai ser
esses „projetinho‟.

Ao invés de uma definição negociada, e reflexo de experiências anteriores, tem-se


uma imposição por parte de outros agentes envolvidos. O recurso para projeto, da mesma
forma, não é aplicado em projetos de maior porte, ou seja, coletivos ou envolvendo a
comunidade de forma mais geral, com geração de empregos direta, mas uma diversidade de
pequenos projetos voltados ao ambiente, que geralmente empregariam maior quantidade de
trabalho familiar, partindo de iniciativa e interesse de cada família nos projetos propostos.
Isso é menos interessante à liderança-política, já que para ela seria mais vantajosa, como
forma de cumprir sua função enquanto chefia, a centralização na distribuição dos cargos e
geração de renda na comunidade.

3.5.3. Opiniões sobre projetos

A opinião sobre os projetos, geralmente tomava em conta a experiência do projeto


emergencial, que como vimos, teve vários problemas:

Hélio: Cobrou, tirou esse dinheiro que a COPEL pagou eles, quarent... não, quatorze
bilhões (sic), tirou, não sei se é advogado, não sei o que é, mandou-lhe atender esse
dinheiro, atender esse dinheiro, tempo de fazer roça, tempo de fazer planta, ele ia
tirar esse dinheiro dos índios, pra todo mundo! Então ele tirou um pouco, o resto
ficou lá. Depois tirou mais um pouco, tirou lá. Depois, esse que estava atendendo o
dinheiro dos índios lá, diz, mandou fazer projeto, por 20 anos. Então já fizeram. Já
fizeram. Eu acho que já está não sei se três anos, quatro anos, que eles tão
trabalhando. Mas projeto não dá nada! não dá nada! Ó, tem um índio que pega só 20
litro de feijão... diz que era pra plantar milho também. Nem milho não foi recebido.
Lucas: não plantaram milho?
Hélio: plantava mas não dava nada.

A preocupação não é apenas com o retorno em termos de produção para consumo


mas também retorno financeiro, tendo em vista a necessidade de consumo de produtos
industrializados.

Bruno: Esse do projeto, da COPEL? Eu, por mim, eu não acho bom, sabe por que eu
não acho bom? Não compensa. Não compensa sabe por quê? Ele não dá lucro, nós
121

só estamos gastando a toa, que é indenização da usina lá embaixo. Então nós


estamos gastando a toa, não está dando lucro. Só que eles plantam, esse... pra nós o
feijão, milho, mas só pra comer, não faz o dinheiro. Hoje a gente usa sapato, usa
meia, usa roupa, usa roupa boa. E a gente antiga não usava. Usava roupa, mas usava
pouco. E hoje nós usamos muito. Aquele do nenê, e a manta, tudo, carrinho do nenê.
Nós não estamos usando o dinheiro nosso não. Eles que, pra mim eles que estão
usando. Vai só dinheiro do projeto.
Lucas: você quer dizer que vocês não podem usar o dinheiro com as coisas que
precisam.
Bruno: Não pode gastar. E quando a gente pega o dinheiro nós não [vamos] hoje...
Hoje essa gente nova, já tem estudo, já tem estudo, ele já sabe onde é que ele vai
sair, onde é que ele vai ver as coisas [boas], e pra ver as coisas [boas] e pra fazer. E
a gente antiga não, meu bisavô não era assim não, andava no mato, não precisava
carne, não precisava mistura. E hoje nós precisamos. Ontem eu fui pra Tamarana, eu
estava sem mistura, sem carne. Daí fui pra Tamarana. Nós usamos gás, usamos
fogão, usamos móveis, mas... e nós não podemos esquecer-nos da cultura... do índio,
nossa cultura, sou índio, então eu não posso esquecer a cultura.

A necessidade do dinheiro e do lucro, ligada à necessidade das coisas dos brancos,


contra um tempo antigo em que isso não era necessário, não significa mudança da cultura, o
que é necessário tornar claro ao pesquisador, evidenciando o uso político do termo. Fazer o
projeto de acordo com o que seria uma cultura antiga, porém, não é bom, pois são coisas que
os novos não usam mais, e afinal, o que dá lucro são as coisas dos brancos. Acaba se recaindo
em uma tensão no discurso, entre a cultura do índio, na medida em que esta é baseada em
grande medida em cultura material, portanto objetificada, e a necessidade de bens
industrializados. Procura amenizar a tensão, que aparece no discurso ao pesquisador, mas não
necessariamente na prática, e utilizar como recurso para reafirmar a necessidade da
indenização, tanto em um caso como no outro, sendo a impossibilidade de seu uso o
verdadeiro conflito demarcado.

Bruno: aqueles tempos eles faziam um chapéu com criciúma, igual desse aqui, estou
com chapéu aqui ó, mas estou usando dos brancos também. Hoje tão esquecendo
tudo as coisas que fazia a gente antiga, por isso que nós estamos, querendo dinheiro,
mas o branco já tranca. Nós temos dinheiro pra gastar, só que eles já trancam. Eles
querem dominar o nosso dinheiro. Eles estão querendo fazer um projeto. Só que eles
querem fazer projeto que não dá lucro pros índios. Querem fazer projeto do... desse
coqueiro, plantação de árvore. E outras coisas que eles tão querendo plantar. Coisas
que não usa o novo não.
Lucas: e o que daria lucro, o que seria bom pra dar lucro?
Bruno: Era bom pro lucro? A coisa do branco dá lucro. Sabe por quê? E as coisas
nossas aqui que nós usamos não dão lucro, não.
Lucas: e o que são essas coisas?
Bruno: Essas coisas, às vezes eu vou comprar uma caixa dessa coisa... sorvete, vou
vender por aqui... eu ganho. Eu estou aqui hoje, mas não estou ganhando nem um
real aqui hoje. Se tivesse uma caixinha de sorvete, vendendo por aí, já ganhava uns
troquinhos. É a coisa dos brancos que dá lucro, as coisas do índio não dão lucro não.
Lucas: mas não tem como fazer as coisas do índio darem lucro?
Bruno: coisa do índio pra dar lucro? Mas é difícil.
Lucas: mas o que o índio faz que não dá lucro, que vocês produzem, vocês plantam?
Bruno: nós plantamos, mas nós plantamos pra comer, arroz ou feijão, milho. Nós
usamos esse que nós plantamos. Aqueles tempos era um matão, aí nós usávamos só
122

os coró, as gente antiga, usava só os coró. […] Coró da paineira, tem o coró do
coqueiro. Aquele que eles usavam. Mas aquele tempo que [tinha] os matos virgens,
tinha muita caça. Londrina existia... tempo da minha mãe, não tinha essa estrada
feito com as máquinas aí, ó. [Tinha] só picada que chegava pra Londrina. […] Não
precisava trabalhar, sabia, só que tinha muita comida pra eles. Tinha pinhão, tinha
palmito, tinha coqueiro, tinha toda caça. Quando sai pra lá da casa já achava caça. E
hoje não, é difícil pra achar caça. Hoje é difícil. Aqueles tempos, não era proibido
matar uma caça. Hoje é, hoje não tem jeito viu. Se não tivesse uns troquinho no
bolso, não come nem mistura. Então a gente tem que se virar pra comprar as coisas.

Se os novos estão esquecendo muita coisa e com a necessidade dos bens


industrializados implicada nisso, é necessário o trabalho como os brancos, mas então este tipo
de trabalho não seria liberado, impedido pelos que “controlam” o recurso. Como vimos, no
projeto emergencial, os gastos as vezes superaram os ganhos, e a produção foi pequena ou
parcialmente perdida. Além disso, as propostas dos projetos que envolvem, por exemplo, a
produção de mudas nativas e seu plantio, é vista como improdutiva, uma vez que isto não
trará os lucros imediatos necessários. As condições e necessidades são ligadas a um tempo-
espaço presente, contraposto a um passado, assim, se antes não era preciso trabalhar, hoje se
precisa, pois não há mais os recursos naturais de antes. Como vimos no primeiro capítulo, há
uma idealização deste tempo antigo, e ela soluciona a tensão mencionada acima. Fazer as
coisas dos brancos, porém, tem outra conotação, relacionada à fala de liderança da Água
Branca citada, ou seja, a lei do índio, a forma de trabalho e organização indígena. Não se trata
apenas de fazer um trabalho que dê lucro, mas este trabalho não pode ser deslocado da forma
de trabalho já estabelecida, com produções e projetos já concretamente observados. A visita a
outras reservas indígenas com projetos similares é marcante:

Marcos: Então hoje eu vejo que, eu vi que não está saindo nenhum projeto. Porque
faz tempo que nós estamos atrás. Nós fomos ver alguns projetos fora, fora do Paraná
e eu vi que, o que nós fomos ver ali, não saiu nenhum dos projetos que nós
estávamos querendo fazer aqui, que nós íamos implantar aqui, e não... não vi
nenhum ainda.
Lucas: você foi junto ver esses...
Marcos: aham, nós fomos ver alguns projetos, alguns... reserva em Manaus ainda.
Porque o deles é bem diferente do que nós estávamos querendo fazer ali.
Lucas: que você viu lá?
Marcos: ali, eles estavam, ali nos projetos deles, eles estavam, tinha uma criação de
tartarugas e cabritos, criação de cabrito... coelho, e tinha uma plantação tipo de um...
coco, daqueles grandes. Só que ali acho que é só pra aquela... pra aquela aldeia ali,
porque aqui eu nunca vi uns projetos de coco aqui. Então acho que ali não era,
nenhum que nós subimos ali... não vi nenhuma coisa boa, pra ser realizada aqui. Daí
nós fomos aos Xerente ali, eles estavam fazendo criação de peixe e de uns frangos
ali também. Então, só que sempre algumas coisas que a gente quer fazer aqui,
sempre o pessoal lá de cima... eles falam que não está certo, que não pode ser feito
aqui, que essas terras não são pra aquelas coisas que nós estamos querendo fazer
aqui. Então eu vejo que nós não temos opinião pra decidir nenhuma coisa que a
gente quer aqui. Então eu vejo que... só o pessoal lá de cima que quer fazer o deles.
Eles não escutam a gente. Eles querem, sempre eles querem fazer o deles aqui.
Quando a gente fala: nós queremos fazer aquele ali, aquele lá. Eles falam: não,
123

aquele lá dá muito caro, não pode ser feito aqui, e a terra não é pra aquele ali. Eles
ficam travando a gente. Por isso que eu vejo que... uma coisa que a gente quer,
então... não vai ser feito aqui. Então nós estamos dependendo mais deles ali.
Lucas: e...mas não teve um pessoal aí que veio fazer estudo aí?
Marcos: vieram, então, só que eles querem fazer o deles ali. Então eles não estão
aceitando o que a gente quer aqui.
Lucas: mas eles escutaram vocês? Ou não?
Marcos: escutaram. Daí nós fizemos as oficina ali. Daí veio esse pessoal de fora,
fazer estudo, na Terra Indígena, o que pode ser feito. E já está levando, acho que uns
cinco, acho que já está indo pros seis anos já, que eles estão mexendo ali. E é bem
demorado. E a gente tem dinheiro ali, guardado ali. E a gente não está conseguindo
o que nós queremos ali. Sempre o cara... que está atrás desse daí, sempre ele fica...
parece que travando os índios ali. As vezes faz assim: quer fazer aquele ali, então
vamos fazer aquele ali pra eles, porque o dinheiro é da... da comunidade indígena,.
Só que não temos nem, pelo jeito que eu vejo a gente não tem nem nada pra opinar
ali. Então a gente está fazendo a maioria das coisas... só dos brancos.

Deve-se considerar que a fala de Bruno e de Marcos não se contradizem, mas tomam
pontos de referência distintos, se complementando. Se para Bruno é melhor fazer projetos
como o dos brancos, pois são estes que dão lucro, para Marcos, o projeto dos brancos
representa o mesmo que os “projetinhos” citados por Getúlio, ou seja, voltados ao ambiente.
São diversos projetos apresentados pelos pesquisadores, visando à recuperação ambiental da
área, como Bruno cita a plantação de coqueiro (palmito) e outras árvores, que não seria de
interesse dos mais novos. Os projetos que estas lideranças enxergam como mais vantajosos,
envolvem as lavouras no modelo convencional, utilizado nas fazendas ao redor da TI, ou
outras experiências conhecidas até mesmo com as visitas feitas aos projetos dos Xerente e
Waimiri-Atroari. Assim, não será qualquer projeto no modelo dos brancos que será bem visto.

Lucas: e que tipo de projeto você acha que seria melhor pra comunidade?
Marcos: eu achava que... eu acho que o melhor projeto era as lavouras. Eram as
lavouras, só que... o pessoal lá de cima não quer que nós trabalhemos na... eles não
querem que a gente faça essas lavouras, porque mexe muito com veneno. Então isso
ele não quer, o promotor. Aí depois tem a... Porque antigamente o índio mexia mais
com lavoura, a gente sabe trabalhar só com lavoura. E eu concordava com esse daí.
Se entrar outros projetos, projetos diferentes, por exemplo, como fazer uma
fabricação de tecido ali, de... fraldas 52, pras crianças. Eu sei que a gente não ia
conseguir tocar pra frente. Porque esse não é... já não faz parte da... da cultura dos
índios. Só que me parece que um projeto que foi... que eu ouvi falar que deu certo,
foi a fabricação de fraldas, parece que a plantação de... palmito também. E outras
coisas ali, que eu não me lembro. Daí eu sou... eu fico pensando, será que esses
projetos vão dar certo. Porque antigamente a gente só trabalhava só com as
lavourinha da gente ali. Aí eu achava melhor se fizesse os projetos em lavouras. Eu,
agora os outros... as outras lideranças tem a opinião diferente da gente.

A realização de projetos de lavoura é o mais destacado pelas principais lideranças, de


forma generalizada. Retomando o discurso de Valdir é interessante como o termo

52
A fábrica de fraldas teria surgido como ideia por moradores em uma oficina realizada na aldeia. A ideia teria
surgido de reportagem televisiva sobre a implantação de fábrica de pequeno porte em uma comunidade.
124

“sustentabilidade” presente no TAC e no discurso dos pesquisadores, é apropriado para o


direcionamento a tal tipo de projeto:

Lucas: mas o que você entende por sustentabilidade?


Valdir: […] no meu modo de entender, que eu entendo sustentabilidade é assim, ó,
se for pra um conjunto, um projeto em conjunto, seria do jeito que eu falei, 60 sacos
de feijão, 100 saco de arroz, 200 saco de milho, não sei quantos saco de soja. Pra
poder melhorar a qualidade de índio, a qualidade de alimento do índio. O índio não
vai viver só na comida típica dele. Hoje pra começar ele não tem mais o mel nativo,
ele tem que comprar açúcar lá fora, hoje o índio não tem um palmito nativo. Se ele
quiser um palmito ele tem que comprar enlatado. Hoje se ele quer um remédio, não
tem mais nativo, remédio acabou, então comprar hoje [o remédio], pra alguma dor
de cabeça qualquer, que não tiver no posto de saúde, ele vai ter que comprar na
cidade. Então é tudo isso. Como é que se ele não tiver hoje um projeto desenvolvido,
que [estiver] gerando renda, como é que ele vai sobreviver? Não está dando pra
sustentar... não dá pra sustentar ninguém.
Lucas: mas tem alguns projetos, que o pessoal das universidades pensou que são
justamente pra o índio ter de novo o mel, ter de novo o palmito, plantar as coisas...
Valdir: tem, plantar palmito, alguém já falou que eles vão fazer um projeto aí pra
plantio de palmito, plantio de mato nativo, mel nativo, criar...[colocar] algum
apiário, criar projeto de peixe... mas até quando isso, a gente não está vendo nada!
Era pra estar começando, janeiro já se foi, fevereiro já se foi, março já passou...

Há a mesma questão apontada anteriormente da cultura do índio, focando a comida, e


as condições ambientais insuficientes para se viver desta maneira, lembrando a relação
espaço-tempo e a forma de vida vista no início deste trabalho. Assim, quando eu induzo a
uma ligação entre os projetos de plantio de palmito, “mato”, produção de mel, que seriam o
tradicional indígena segundo ele, não se opõe a criação dos mesmos, acabando por resumir
sua crítica à demora em seu início. No entanto, no início da citação é clara a visão, próxima
aos demais, de que os projetos deveriam ser de grande produção de alimentos ou produtos da
lavoura para venda, já que precisam de dinheiro para comprar elementos que inexistem na TI,
e que hoje consomem em substituição a tais elementos tradicionais.

3.6. NEGOCIAÇÕES, MERCADORIAS E CHEFIA

Retornando ao tema do capítulo anterior, podemos agora acrescentar a questão


econômica em relação a chefia e a moralidade em Apucaraninha, com foco na situação gerada
após a indenização recebida apenas parcialmente, no processo descrito. Nesta seção trato da
função da chefia perante a comunidade e o exterior, isto é, na negociação com brancos,
partindo da questão econômica e dos bens, que trazem como pano de fundo a moralidade e
ética da atuação da chefia, seja pelo modelo da reciprocidade e distribuição como funções
125

nela investida, ou como angariadora de recursos para tanto, e ainda traz a questão da distinção
econômica e de status da chefia.

3.6.1. Dinheiro e mercadorias

O recurso financeiro na comunidade de Apucaraninha a partir do pagamento dos


20% da indenização foi rapidamente gasto em festas, bens e melhorias nas condições de
moradia. Dentre os bens, vale destacar móveis, eletrodomésticos e veículos motorizados.
A festa seria elemento da generalização da reciprocidade. Como vimos no primeiro
capítulo, esta característica é destacada na moralidade indígena, contrastada com a do branco.
Assim como no momento de ajuda mútua, o momento de fartura ou abundância também
aproximaria os grupos entre si, reforçando os laços existentes. Por outro lado, a compra de
móveis, eletrodomésticos e melhorias na casa representam a destinação do recurso em uma
esfera mais individualizada. Quer dizer, este gasto se restringirá aos parentes mais próximos,
mesmo quando houve repasse de uma parcela para algum filho solteiro, ou mesmo casado.
Estes gastos, ao contrário da festa, poderiam tender a diferenciar os diferentes grupos
familiares, ainda que de forma sutil. As casas passarão a ter melhores ou piores condições,
serão menos ou mais equipadas.
Pegando o que podemos considerar dois extremos nas casas em que mais frequentei,
temos a casa de Áureo e de Alex. Áureo morava apenas com sua mulher, em um rancho de
pau roliço e chão batido, coberto com lonas, com pouquíssima estrutura. Uma geladeira velha
que não sei se ainda funcionava, fogão a lenha de barro, um sofá e um pequeno armário. Não
havia banheiro, pia ou água encanada. Os filhos dele, porém, tinham casas maiores, de tábua
ou alvenaria, com televisores, aparelhos de som, fogões a gás, e vários móveis. Áureo havia
comprado várias telhas de fibrocimento que estavam guardadas em outro rancho de pau
roliço, usado por ele como depósito e que ele intencionava substituir com a construção de
uma nova casa, não dispondo, à época, de recursos para tanto. Alex, por outro lado, estava
morando junto com a sogra e uma filha de criação desta. Esta situação era temporária
enquanto sua esposa fazia um curso superior em Maringá, onde também estava residindo seu
filho caçula. Um filho de Alex com outra mulher morava na aldeia com esta. A casa de Alex
era de tábuas, coberta com folhas de fibrocimento e piso de cimento. Possuía banheiro de
alvenaria anexo, com acesso externo. Na casa havia dois armários, pia com água encanada,
fogão a gás, microondas, grill, geladeira, um grande televisor de tela plana, máquina de lavar
(tipo tanquinho), uma poltrona e uma mesa com duas cadeiras entre outros móveis menores.
126

As condições de moradia devem ser vistas como dependentes da condição familiar e


também o estágio do ciclo de vida em que o chefe da casa se encontra. Há notável dispersão
de recursos no caso de Áureo e seus filhos o que não ocorre tão acentuadamente com Alex, já
que a casa em que sua esposa mora em Maringá é mantida por ela e pela mãe de Alex. Apesar
da melhor equipagem da casa de Alex, não se pode dizer que haja extrapolação significativa
do valor de uso dos objetos. Quero dizer, com exceção do microondas e do grill que nunca vi
serem usados, os demais móveis e equipamentos eram utilizados e sentia-se necessidade de
até mais móveis, como mais cadeiras ou um sofá, especialmente ao se receber visitas.
Apesar disso, as casas das lideranças-políticas a que pude adentrar, me pareceram se
aproximar mais do segundo caso, sendo elas também maiores e mais bem equipadas. Isto
indicaria uma possível marca de diferenciação destas lideranças. Helm (1974) ao estudar na
área se referenciava à posse de algumas mercadorias como demonstrativos de que o indivíduo
“está bem de vida”. À época eram rádio a pilha, máquina de costura e guarda-chuva. Esta
diferenciação, hoje com outros elementos, é sutil, já que muitas pessoas possuem casas de
alvenaria do programa governamental citado anteriormente e mesmo não lideranças possuem
casas maiores, além de que em várias casas havia equipamentos similares aos existentes na
casa de Alex. Ainda assim é possível que haja diferenças neste sentido, pois se havia
televisores em outras casas, não eram tão grandes e modernos como o de Alex e outras
lideranças-políticas. Mas uma afirmação neste sentido necessitaria de um levantamento mais
apurado dos bens nas casas. Devemos lembrar também que houve um aumento significativo
do consumo de energia na comunidade desde o recebimento da indenização.
Mesmo o consumo para a casa e nesta tendem a ser regidos pela reciprocidade
seguindo os vínculos de parentesco, especialmente entre pais e filhos e até com netos,
seguindo o que foi destacado no primeiro capítulo. Lembremos que a forma definida de
repasse dos 20% da indenização foi por família nuclear. Mesmo assim, quando do
recebimento dos 20% da indenização, as relações de parentesco eram importantes, por
exemplo, ao um pai ceder parcela em dinheiro ao filho que por questão de documentação ou
por ser solteiro ficou sem receber, ou mesmo na cessão de bens após comprados, no mesmo
sentido. Mesmo casas são cedidas desta forma, como em caso de um velho que fora morar em
um rancho parecido ao de Áureo para que seu neto recém casado morasse em sua casa de
alvenaria.
Em relação à posse de terras, lembremos que são lideranças-políticas e lideranças-
polícias que detêm a maior parte da área mecanizada. Assim, poderia, além de ser um símbolo
de que o individuo está bem de vida, indicar um parâmetro de diferenciação enquanto modelo
127

de realização indígena atual, ou seja, o modelo de agricultor e especialmente agricultor


independente, o que faria importante a posse da terra mesmo sem haver condições efetivas
para se produzir nela individualmente. Ou seja, não se trata do lucro possível com a terra, uma
vez que arrendá-la era moralmente reprovável, pois em última instância a posse da terra
representa apenas um direito de uso, não de propriedade, que se formalmente é da União, é
vista como pertencente à comunidade como um todo.
Algo mais evidente como consumo tendente a individualização e diferenciação
ocorre com os veículos. Dizendo que eu não voltaria à comunidade, e sabendo de sua
contribuição para meu trabalho, Áureo me pediu de presente um carro para ele. Um carro
vermelho. Mesmo que houvesse tom de brincadeira, ou que eu tenha tomado isso dessa
forma, ainda que eu tenha tentado explicitar que meu estudo não garantia qualquer retorno
financeiro maior a mim, mesmo que tal afirmação não diminuísse a diferença presente de
nossa situação econômica, esta solicitação é interessante no que diz respeito a posse de
veículos, seu uso e seu significado.
A indenização possibilitou uma proliferação na posse e uso de motos. Muitas delas
sem documentação adequada eram usadas apenas na aldeia e no trajeto até Tamarana. Se a
compra de motos não era em si reprovada, seu uso abusivo sim. Um dos fatores ligados às
bagunças seria justamente as andanças dos jovens de moto a noite, e mesmo estas andanças de
dia eram criticadas por velhos, que se perguntavam o que tais jovens fariam da vida e se
preocupavam com a velocidade e o risco de atropelamentos na aldeia. Há, portanto, um foco
no comportamento, no uso, não na compra e posse do bem.
Se as motos se tornaram acessíveis com a indenização, o mesmo não ocorreu com
carros. Apenas algumas pessoas os possuíam. Os carros na comunidade até onde pude
verificar eram: dois de lideranças-políticas atuais (cacique e vice-cacique), quatro de
comerciantes da comunidade mais um caminhão de um deles, dois de professores da escola e
um de um músico. Na Água Branca vi dois carros de lideranças. Ao todo teríamos não muito
mais que quinze destes veículos particulares em funcionamento na comunidade. A posse de
carros tampouco era criticada e também pouco ouvi contra seu uso, com uma única exceção,
em caso que se fazia uso similar aos das motos, nas bagunças. O problema maior que poderia
haver era a eventual recusa de se levar alguém ou fazer algum favor ou a cobrança por fazer
isso e por outro lado o não pagamento, mesmo assim não sendo uma questão muito frequente.
Uma liderança, por exemplo, se queixara que sua irmã chegara a possuir uma van e sempre
era requisitada para fazer transporte, nunca sendo paga. Geralmente o uso dos veículos seguia
um modelo individual e restrito à família. Para emergências médicas geralmente era possível
128

contar com duas caminhonetes da SESAI. Assim, a posse de carros indica mais
evidentemente uma individualização e possivelmente diferenciação, ainda que seu uso possa
incluir favores aos parentes e parentagem ou até para a comunidade em geral, sob o risco de
se ser acusado de avareza. Outros elementos indicam isso, especialmente relacionado à chefia.
Quando estive em campo estava em circulação uma Kombi da comunidade. Ela fora
comprada com recurso do Fundo oriundo da indenização para dar suporte aos projetos
emergenciais bem como atendimento à comunidade. Haviam sido compradas duas Kombis e
um fusca para esse fim, em 2009. O fusca teve seu motor fundido e estava encostado em uma
oficina em Tamarana. Com a outra Kombi, que então atendia a aldeia Barreiro, houve
acidente com grandes danos. O motor desta segunda foi passado à primeira Kombi quando o
motor desta fundiu. Apesar de a Kombi ter sido comprada para atender toda a comunidade,
com o problema ocorrido e a não regularização da documentação, ela vinha sendo utilizada
exclusivamente para atender a Serrinha, ou melhor, por Valdir. Ouvi crítica a isso de morador
da própria Serrinha. Outro caso ocorrido foi a gradual apropriação por Alex de meu carro no
decorrer de meu campo, até termos um conflito sobre a questão. Quando da festa de 19 de
abril, ele também circulava com uma grande caminhonete do dono da empresa de rodeios
contratada. Havia alguma preocupação em relação à imagem dele dentro do carro. Se por um
lado ele parecia gostar de circular pela aldeia de carro, por outro em certa ocasião em que
íamos a Londrina, ao passar por alguns índios da comunidade que esperavam o ônibus,
voltamos para dar-lhes carona, segundo Alex “para eles não pensarem que estamos muito
metidos”. Outros indígenas eram muito mais cautelosos ao solicitar a mim que lhes levasse a
algum lugar ou aproveitar carona, sendo que eu cedia, com uma ou duas exceções por ter
programado outra coisa para o dia ou para evitar transitar por estradas em péssimas condições.
Mesmo Valdir quando solicitou por uma vez, no início do campo, o fez com cautela, e por
outra vez em que foi mais incisivo eu pude desconversar tomando por brincadeira.
Como vimos no segundo capítulo, uma das funções da chefia são as correrias para a
representação da comunidade e obtenção de recursos para ela junto a diferentes instituições.
Essa função exige o uso de veículos de forma a agilizar sua realização. Como então não havia
um veículo da comunidade que estivesse em situação regular para cumprir essa função, eram
usados os veículos particulares. Enquanto estava em campo foi comprado um carro em nome
da Associação de Moradores, mas o mesmo era usado para suprir a demanda gerada com a
interrupção do transporte que era feito com ônibus até Tamarana 53. Assim, se meu carro

53
A comunidade adquiriu a linha de ônibus e o veículo que fazia o percurso de Tamarana até a Sede, mas
enquanto estava em campo o serviço tinha sido interrompido. Não verifiquei a causa disso. A comunidade
129

ajudou em algumas situações o cacique ou outras lideranças-políticas quando não era possível
usar o carro do vice-cacique, o cacique logo também comprou seu carro. Este fato, ocorrido
paralelamente ao plantio de área particular com uso de maquinário terceirizado pelo mesmo,
ajudava a levantar suspeitas sobre a apropriação de recursos da comunidade.
A solicitação de Áureo, que não sabe dirigir, indica que há na posse e uso de veículos
um fator de diferenciação marcante. Eu me diferenciava também neste quesito, para além de
ser branco, pesquisador, da cidade. Se ela é importante para a chefia neste sentido, ela tem
sempre a contrapartida da suspeita sobre a origem dos recursos e uma apreciação sobre a ética
em seu uso.
O desejo de posse de carros nas lideranças-políticas era marcante. Com a negociação
pela indenização pela Usina de Mauá estas lideranças fizeram tentativa de substituir outros
elementos pela compra de caminhonetes, que queriam ter em mãos o mais rápido possível,
desejando sua entrega para a festa de abril em 2012, antes do início, portanto, de qualquer
ação do PBA indígena. Havia uma marcação estética também na questão, discutindo marcas,
modelos e cores. Após outras negociações conseguiram aprovação de duas caminhonetes para
a TI, sendo pauta de discussão sua destinação já que seriam entregues no decorrer dos anos,
destinadas à uma ou outra aldeia. Em relação à Água Branca adianto que Levi teria pedido
contribuição aos moradores para comprarem um veículo para a aldeia, conseguindo comprar
um pequeno caminhão, fato criticado na Sede por utilizar recursos particulares das famílias.
Assim, podemos ver que há na posse e uso de veículos elementos a indicar
diferenciação, especialmente no caso da chefia, mas havendo reconhecimento disso na
comunidade, como vemos na solicitação de Áureo e na definição do “estar bem de vida”. No
entanto os veículos também podem se tornar ponto de questionamento por sua origem ou uso,
contribuindo para avaliações sobre o cacique e suas lideranças-políticas. Há uma leitura que
não recrimina propriamente a posse, mas as formas de uso vistas como contrárias ao modelo
moral, do respeito e da reciprocidade.
Para tratar desta questão da posse e uso dos bens como forma de diferenciação,
podemos fazer referência a Alfred Gell (2008), que analisa os Muria, um grupo tribal na
Índia, apresentando a particularidade da introdução do grupo aos mundo das mercadorias a

dispunha de outro ônibus que havia sido obtido com troca de um caminhão, comprado com recurso do Fundo
e parcialmente com resultado da safra de 2008. Este ônibus, no entanto, estava em uma oficina em Londrina,
não tendo sido pago seu conserto, foi feito acordo com o dono da oficina, cujo resultado foi o carro citado.
Para utilização deste carro era cobrado combustível mais a diária do motorista, o que, encarecendo seu uso,
tornava mais vantajoso o aluguel informal de motos ou solicitação de favores com alguma compensação.
Sobre o uso das caminhonetes da SESAI havia controle e dificilmente seriam liberadas para uso que não
relacionado à saúde, o que desagradava lideranças, por exemplo, ao haver recusa de usá-las para levar índios
a um funeral em outra TI.
130

partir de uma melhoria significativa das condições econômicas em uma área específica. O
autor destaca ali um conservadorismo exagerado na forma de consumo, havendo privilégio do
consumo seguindo moldes tradicionais, destinado à coletividade e à exibição coletiva a esta,
através de banquetes e festas, sendo considerados arrogantes e desagregadores atos de
consumo a demarcar individualidade (ou mesmo impensáveis na medida em que não há uma
valorização social deles). Há uma condicionante moral do consumo, que tende a rejeição de
pessoas que consomem mercadorias diferenciadas, mas não é focada na pobreza, sendo a
riqueza visível através dos meios de produção como terras e criação de animais bem como na
quantidade de casas de uma família. Com isso a melhor condição econômica combinada com
o não consumo tende a deixar os Muria cada vez mais ricos.
Outro contexto pode iluminar também a questão, dentro do contexto indígena Jê.
Vanessa Lea (2012) analisando um grupo Mẽbêngôkre, destaca a diferenciação marcante
entre as pessoas no interior do grupo a partir da acumulação de nomes e determinados bens,
resumidos no termo nekretx, melhor traduzido como “tudo aquilo que as pessoas amontoam”.
Esta acumulação teria por base as diferentes casas, enquanto categoria criada a partir do
conjunto de habitações mas também com base em suas prerrogativas e signos rituais. Os
nekretx advinham do exterior, incorporado de outros grupos, e com a introdução ao mundo
das mercadorias dos brancos, algumas destas passam também a funcionar de forma similar
aos nekretx em sua transmissão e apropriação.
Ainda no contexto Mẽbêngôkre, Gordon (2006) analisa os Xikrin, dando destaque
para a existência de um aparente consumismo neste grupo gerado por esse tipo de apropriação
das mercadorias, apontando que o sistema de diferenciação no topo do qual estariam as
lideranças, passa a operar com estes bens, gerando inflacionamento à medida em que ao
mesmo tempo as lideranças tem que se diferenciar dos demais e distribuir à comunidade. Esse
inflacionamento é possível porque o grupo recebia indenização pela exploração mineraria da
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) na Floresta Nacional do Carajás, unidade de
conservação limítrofe à TI Xikrin do Cateté. Gordon (2006) utiliza o modelo de análise da
economia simbólica da alteridade, representada principalmente por Viveiros de Castro (1986;
2002) citado no início deste capítulo.
Gordon avalia que a negociação com a empresa em questão funcionaria de forma
similar ao da guerra ameríndia Tupi, permitindo a incorporação da alteridade, num devir outro
a partir da predação, através do destaque à agência indígena guerreira. O autor destaca, no
entanto, que neste processo de devir produzido especialmente através das lideranças, no
relacionamento, domesticação e incorporação de princípios alteridade, no caso, através
131

principalmente das mercadorias, haveria um risco de kubenização, de tornarem-se brancos.


Segundo Gordon, há uma facilitação do patrocínio de cerimônias, reduzindo a diferenciação
interna do grupo, causando um risco de ficarem muito parecidos entre si, que juntamente com
o risco da kubenização pela ingestão dos alimentos industrializados e uma gradativa
transformação do corpo, embaralha o esquema de identificação-alteração. Há, porém,
tendência ao deslocamento de tal diferenciação para certa concepção de “riqueza”, em um
contexto não ritual, ou seja, no consumo e incorporação diferencial do dinheiro e das
mercadorias, valorizando a quantidade, variedade e vanguarda do consumo.
O contexto dos Muria é interessante aqui por ressaltar a ligação do consumo com a
moral. Já o caso Mẽbêngôkre indica a acumulação como forma de diferenciação de lideranças
em um sistema que é intensificado pelo mundo das mercadorias e por aportes financeiros
oriundos de indenização à comunidade.
Como destaca Helm, o consumo ou a posse de bens ou mesmo de residências seriam
uma forma de indicativo de que o indivíduo está bem de vida. Seria este estar bem de vida
uma forma possível de diferenciação como no caso Mẽbêngôkre, apesar do consumo das
mercadorias não ser ritualizado?
O que podemos perceber neste capítulo é que o consumo segue a diretiva moral mais
geral da reciprocidade, assim como já ressaltado no primeiro capítulo, sendo sempre
destacada a ajuda mútua entre os índios. O estar bem de vida deve englobar o estar bem com
os parentes. O uso dos bens também pode ser mal visto na medida em que atentem contra a
moralidade da aldeia enquanto respeito, com as bagunças. No entanto, há uma margem maior
para o consumo destinado aos parentes e também na própria casa. A forma escolhida para
repasse dos recursos para famílias nucleares aponta isso. Esta forma, inclusive, ainda que seja
uma forma mediada para que fosse aceita pelo Comitê, indica a possibilidade de uma
indiferenciação mais geral na comunidade.
Vimos também em algumas falas neste capítulo o destaque dado para as condições
dos índios hoje, com a necessidade de dinheiro para compra de alimentos e mercadorias,
justapostas à questão da cultura tradicional, objetificada, e a impossibilidade de sua
manutenção devido às transformações no ambiente em que vivem. Apesar de não ter
explorado as formas de constituição da pessoa kaingang, tenderia a dizer que antes de a
incorporação de mercadorias representar um risco no sentido de se tornar branco, poderia ser
vista próxima à análise de Gell, como uma forma de realização enquanto indígena, distante,
portanto, de uma aspiração de classe média. O que dizem Lea e Gordon, é que as mercadorias,
ao entrarem no contexto indígena, passam a integrar um processo indígena de ser, e seu
132

inflacionamento se devem a este. A forma do devir, como defende Gordon, seria a realização
do ser indígena.
Se no caso dos Xikrin esta forma de incorporação da alteridade era centrada nos
chefes, em Apucaraninha ela parece estar mais dispersa e dependente das unidades familiares
em rede. Mas então chegamos à questão dos carros e vemos isso trabalhar de uma forma
aparentemente distinta ou mais marcada, com a possibilidade e o desejo de diferenciação. O
estar bem de vida poderia então representar também algo mais, indicando poder e status,
ainda que isso pareça estar ainda bastante insipiente pelas condições da comunidade.
A proliferação das motos, seu uso visto como abusivo pelos velhos, e o desejo ou
compra de carros pelas lideranças parece indicar uma forma de incorporação de mercadorias
mais próximo ao modelo atribuído aos Mẽbêngôkre. Ao se tratar dos carros, ainda que seu
consumo não seja baseado em uma ritualização e marcação de prerrogativas rituais, e não seja
possível identificar um status bem definido em sua posse, parece haver apropriação destas
mercadorias como uma marca de distinção nas esferas de poder da comunidade. Sua posse, no
entanto, também não é isenta de avaliações morais, que poderão aproximar ou afastar aqueles
considerados egoístas, e no caso da chefia, tenderão a incluí-la como elemento de avaliação,
como mais egoísta ou mais generosa, ou seja, entre o limite daquilo que seria o uso de
veículos, em especial os oriundos de recursos da comunidade, para uso próprio ou para a
comunidade. Se isso não é possível ser avaliado de forma direta, o será de forma indireta, pela
avaliação da generosidade do chefe.

3.6.2. Generosidade do chefe

Apesar de ser bem demarcada durante a festa, como detalharei no capítulo 5, a


generosidade do chefe também abrange a garantia o sustento das famílias na reserva, em
corresponsabilidade com os chefes dos grupos domésticos. Isto pode se dar pela criação de
oportunidades de geração de renda e complementarmente ou em decorrência desta, da
distribuição de produtos. As demandas ao cacique antes de serem em maior grau de
ferramentas ou de produtos, são de condições de trabalho e de renda para as famílias. Ao
invés de distribuir bens industrializados como no caso dos Xikrin, há distribuição de
alimentos básicos ou das condições para sua produção ou obtenção.
O modelo de produção agrícola coletivo é um dos meios que possibilita uma coisa e
outra conjuntamente. No entanto, o modelo de plantio coletivo orgânico adotado no projeto
emergencial, apesar de teoricamente levar maior renda para a comunidade, pela criação de
133

maior quantidade de diárias, não era bem visto pelas lideranças, por ser visto como caro
demais em termos absolutos. O modelo convencional seria melhor por trazer maiores lucros.
Este modelo tem a vantagem à liderança por centralizar nela os recursos conseguidos. Um
projeto familiar poderia produzir alimentação e renda, com a venda de excedentes. No
entanto, este modelo de projeto possui a característica de dispersar a renda inteiramente entre
as famílias que possuem terra e condições para trabalho. O modelo coletivo orgânico, mais
democrático no sentido da possibilidade de participação no trabalho, centraliza o possível
rendimento na chefia política. Mas esta defendia o modelo convencional, a que se opunham
outros membros do Comitê, que preferiam o modelo orgânico ou familiar.
Por outro lado, a chefia buscava sempre nos projetos o estabelecimento de
assalariados, em trabalhos como fiscalização e brigada de incêndio, funções de fácil
destinação a pessoas relacionadas ao grupo político ou a sua sustentação. Um caso
interessante para indicar como tal distribuição de cargos se dá era de um fiscal, que integrava
uma parentagem relacionada a um dos “velhos” da reserva. Esta parentagem não tinha ligação
direta com o grupo atual de poder na aldeia Sede. Com a criação da aldeia Água Branca, o
velho se mudou para lá, e tal fiscal, que também era simpático à moralidade desta aldeia,
mesmo tendo a família extensa a qual pertence se mudado para lá, permaneceu na aldeia Sede
de forma a manter sua função. Ele dizia que evitava qualquer manifestação de oposição ao
cacique da Sede, mesmo não concordando com algumas atitudes, por temer a perda de seu
cargo. É interessante complementar o que foi exposto por Fernandes (2003), no sentido de
que mesmo a atribuição de cargos a pessoas não diretamente relacionadas à liderança são
importantes para sustentação do grupo de chefia no poder. Neste caso, se dava de maneira
mais direta do que a própria relação entre as lideranças-polícias, ainda que com um peso mais
periférico, na medida em que estes cargos não implicam na possibilidade de questionamento
político mais aberto, gerando, em verdade, certa dependência em relação ao grupo político.
Estes cargos são interessantes justamente para o cacique poder fornecer alternativa
direta de renda a grupos domésticos importantes que eventualmente venham a ele fazer
demandas, sendo muito mais relevantes ao serem cargos permanentes. O trabalho na roça
coletiva, através de diária, apesar de também ter importância no sentido da distribuição de
renda, foge aos parâmetros de distribuição de cargos, uma vez que há uma grande demanda de
trabalho mas por um curto período de tempo. Desta forma, há maior dispersão do benefício.
Isto não é ruim à liderança-política, tanto que ao invés de um inflacionamento dos produtos
industrializados de forma acentuada, como no caso Xikrin, aqui o que se observa é um
inflacionamento da quantidade de diárias aos projetos. Isto era sempre ponto de conflito entre
134

funcionários da empresa e os índios. Acabavam sendo dadas maiores quantidades de diárias


pela liderança, que tinha que defender seu aumento nas reuniões do Comitê. A própria
limitação de sua concessão é vista como uma impossibilidade de gerência da liderança sobre o
recurso.
Vemos que apesar das diferenças em relação ao caso Xikrin, existem semelhanças no
que tange a forma de apropriação do recurso pela comunidade através das lideranças,
seguindo um modelo de organização interno. Ao invés de seguir turmas de trabalho ou as
casas, segue as parentagens em relação com o cacique, sendo um recurso importante inclusive
para criar vínculos entre a chefia e as parentagens que potencialmente podem se opor a esta.
As dificuldades para isso são marcantes, como vimos, tanto pela estrutura gerencial criada
pelo TAC e seu funcionamento, bem como às restrições aos projetos. Estas características são
inclusive fundamentais no sentido de impedir o uso do recurso de forma “descontrolada”, ou
seja, delineando projetos com objetivos específicos e estabelecidos, com dimensionamento de
mão de obra e recursos empregados, bem como do acesso a eles por diferentes famílias.
Fazendo isso, porém, está intervindo diretamente na função da chefia na atribuição de cargos
e oportunidades de renda, que passa a ter que ser negociada dentro de uma esfera mais
complexa de decisão, o Comitê Gestor. Este modelo, de forma geral, impossibilita gastos que
não sejam previamente previstos, em especial no âmbito dos projetos, assim, tem-se a visão,
como colocada pelo cacique, de que o recurso da indenização não é realmente da comunidade.
Por outro lado, este esquema de negociações a partir do TAC e a realização de
trabalhos coletivos com centralização de controle pela chefia reforçam o papel da chefia,
interna e externamente, como instituição de poder sobre a comunidade. De um lado, o papel
de negociação dos chefes perante os brancos é constantemente atualizado, e a partir dele se
fornece recursos para realização da distribuição pelo chefe, reforçando a situação política
existente. Ao mesmo tempo que o cacique está entre as parentagens, ele reforça seu papel
diferencial e seu status entre elas. No entanto, podemos dizer que quanto mais correria o chefe
faz, mais ele tem que mostrar resultados distribuindo na comunidade e se sua diferenciação
enquanto chefe neste sentido não trouxer tais frutos, novamente temos a reprovação de sua
posição. Voltando à questão das formas de chefia, se a chefia neste caso passa a privilegiar a
dimensão da correria, que enfatiza a relação com o branco e o papel de negociação e
representação frente a este, ela terá menor presença nas demais funções, ou seja, não será tão
presente na casa, para fazer aconselhamentos, na praça central, para vigiar e mostrar-se
presente, ou em direção à cadeia, para punir. Isso é possível desde que a correria resulte em
fartura, ou se houver outras formas de equilíbrio, no entanto, pode sempre dar margem a
135

questionamentos morais seja na aldeia ou na própria ética do cacique, como veremos no


próximo capítulo.

3.6.3. Negociações no Comitê e Chefia Kaingang

Vimos neste capítulo enfáticas queixas sobre a impossibilidade de controle direto e


gasto conforme o desejo dos índios do recurso que é deles. Estas queixas eram embasadas na
restrição ao uso direto para suprir necessidades e projetos imediatos para a comunidade, na
visão das lideranças entrevistadas. O texto do TAC, como vimos, restringe a possibilidade de
uso do recurso fora de projetos bem delimitados. No entanto, com o atraso na implementação
destes, houve uma adequação em reuniões do Comitê a partir de demandas das lideranças-
políticas nele. A partir dessas demandas na esfera negociativa do Comitê foram conseguidos
alguns recursos e projetos não previstos inicialmente, a beneficiar mais imediatamente a
comunidade. Assim, além dos projetos emergenciais relatados, a partir dele se justificou a
compra de veículos e despesas com oficina mecânica e combustível, muitas vezes tidas como
abusivas por outros integrantes do Comitê. A compra de um caminhão em 2008 com preço
superior ao previsto demandou liberação de mais recursos pelo Comitê. No trabalho das safras
houve o inflacionamento na concessão de diárias, superando o dobro do liberado inicialmente.
Além disso, desde 2008 se previu a liberação de recursos para a festa da semana do índio, que
então girava em torno de R$ 30.000,00 e que em 2012 foi de R$ 40.000,00. Foi financiado um
campeonato de futebol que em 2012 estava em sua segunda edição, a “Copa Liderança
Indígena”, e o “natal gordo” com a antecipação do repasse direto de recurso à comunidade.
Estas medidas, por vezes, são assumidas até pelas próprias lideranças como formas de
“acalmar os índios”, insatisfeitos com a situação da indenização, aparecendo desta forma
inclusive em atas do Comitê, explicitando-se a insatisfação da comunidade54.
Desta forma, a chefia passa a ter uma posição constante de tentar fazer o recurso ser
revertido à comunidade, sendo cobrado por isso. E na medida em que há recurso para tanto, e
o Comitê, mesmo que com ressalvas e restrições acabe liberando parcelas para atender as
demandas colocadas, permite que a liderança cumpra em certa medida sua função de
angariação de recursos e distribuição. Isso é feito, no entanto, em um ponto de tensão, já que
o recurso já existe e já é da comunidade, sendo seu controle parcial através do Comitê

54
Com tais “desvios” de fins do recurso, um dos empregados inclusive indicou a possibilidade de a COPEL ter
que recompor o recurso, por exigência do MPF, quando do início efetivo dos projetos. A questão do saque
feito no banco sem autorização do Comitê, em investigação, não pode ser incluída aqui uma vez que ainda
não foram apurados os responsáveis.
136

podendo ser visto como impotência da chefia nesta mesma esfera de ação, com a ideia, como
vimos de que quem controla o recurso é o MPF.
A compensação anual estabelecida possui uma fórmula estabelecida de cálculo e de
atualização conforme a inflação. Não há, a princípio, muitos argumentos possíveis dos
indígenas a não ser uma nova anulação e revisão do acordo. A indenização possui também um
valor fixado. Assim, à liderança resta a luta para a possibilidade do uso deste recurso de forma
mais imediata.
Tive oportunidade de observar voluntariamente, ainda enquanto empregado da
COPEL em 2011, apenas uma das reuniões do Comitê, realizada em uma sede recreativa de
associação de terceiros, próxima à TI. Participavam da reunião representantes da empresa e
indígenas integrantes do Comitê, além de vários outros índios que a acompanharam, estando
ausentes representantes do MPF. Algumas demandas colocadas indicavam a apropriação e
controle em alguma medida dos recursos, como o gasto com combustíveis e oficinas
mecânicas. Nestes casos havia entre os funcionários desconfianças de desvios, através de
acordos com comerciantes locais. Era marcante o fato de os índios interromperem o curso da
reunião para debater em kaingang as questões em pauta, sendo isso bastante comum segundo
empregados que acompanhavam as reuniões. Estas interrupções pareciam ter um caráter de se
fazer discussões paralelas até se chegar a algum acordo entre as lideranças, e de certa forma
também com isso indicando controle sobre a reunião. As reuniões, porém, muitas vezes eram
realizadas na cidade de Londrina, o que fazia com que apenas os membros do Comitê e
eventualmente mais alguma liderança indígena participasse delas devido à dificuldade de
transporte. Em reuniões mais importantes havia esforços para levar maior número de pessoas,
com locação de vans, por exemplo. Segundo avaliação de antropóloga do MPF que
acompanha tais reuniões, havia nestas bastante performance das lideranças, de maneira
impositiva, o que muitas vezes impedia a possibilidade de consensos, colocando inclusive os
representantes do MPF na difícil posição de mediar posicionamentos de dois grupos, empresa
e índios, que não cediam de nenhum lado.
A forma de negociação estabelecida pelo Comitê por um lado favorece a função de
correria da chefia, bem como a possibilidade desta cumprir seu papel na distribuição de
recursos. No entanto, há consciência de que estes recursos foram conseguidos com esforço
mais disperso na comunidade e que já existem para serem revertidos a ela, sendo esta uma
obrigação da chefia. Ao mesmo tempo, portanto, que há uma possibilidade de um reforço da
posição de chefia estabelecida, há uma tensão na posição desta ao não conseguir reverter o
recurso de ainda mais imediatamente à comunidade. De forma similar, no gasto dos recursos
137

conseguidos, se há maior distribuição, os atrasos e fracassos em projetos passam a ser


avaliados como incapacidade das lideranças em controlar e usar o recurso, enquanto ainda
houver recurso.
Voltando à comparação com o caso Xikrin, segundo Gordon, a forma de organização
e performance indígena para/nas reuniões com a CVRD mostraria como elas tem amplo
significado ritual e sociocosmológico, no sentido de representarem ritualmente a identificação
do grupo como xikrin e como aldeia unificada, e por outro lado a alteração, através do
espírito guerreiro àkrê, em última instância a verdadeira agência, a perspectiva xikrin através
da capacidade de assumir o ponto de vista do sujeito, frente ao branco, kubẽ, também
generalizado, e sendo predado pelos indígenas, colocado na posição de estranho, externo,
sendo capturado pelos indígenas, que ao fazê-lo incorporam este outro ritualmente. A
estrutura administrativa estabelecida permitia aos chefes uma constante renegociação de
novos recursos anualmente, na reunião de planejamento, renovando os recursos e permitindo
seu inflacionamento. Daí a importância dada a estas reuniões e também um grande foco na
performance das lideranças nas mesmas, pelo foco no espírito guerreiro àkrê. Através dela os
chefes indígenas procuravam ter o maior controle possível do uso do recurso na esfera da
macrogestão, entrando em choque com os atores não indígenas envolvidos, que pretendem o
atendimento à “comunidade”, com uma ideia própria sobre o que seria esta. Por outro lado, no
plano da microgestão o controle se dava pelo “desvirtuamento” dos fins do Convênio e
desarranjo orçamentário com gastos “emergenciais”, utilizando ou não os projetos
implementados.
No caso kaingang de Apucaraninha, vemos que a estrutura do TAC não permitia a
ação indígena desta forma, evitando o inflacionamento do recurso bem como a possibilidade
de uso direto dele e apropriação pelas lideranças. Por isso, as reuniões do Comitê não tinham
tanto peso como no caso Xikrin, sendo as reuniões destes comparáveis mais diretamente
apenas à luta inicial para conquista destes acordos, trazendo uma performação dos Kaingang
guerreiros como vimos no início do capítulo. Mesmo assim, as lideranças parecem ter
estratégias que direcionam neste sentido para tentar reverter o recurso à comunidade.
Desta forma, as demandas indígenas eram colocadas e, através da mediação do MPF,
houve modificações no cumprimento do TAC. Isso também cumpria duas funções já que
evitava provocar revolta indígena contra este acordo, evitando novo confronto com a empresa,
que então certamente judicializaria a questão, mas também permitia o cumprimento ainda que
parcial da função de liderança da atual chefia, conseguindo algumas formas de reversão de
138

recursos da comunidade para “acalmar os índios”. Avaliar as formas destas negociações, no


entanto, exigiria um maior acompanhamento das reuniões.
De qualquer maneira, acredito que se há uma função de predação da chefia em
relação aos brancos ela é limitada neste caso. E nesta tensão entre a existência de um recurso
da comunidade e sua não distribuição, poderíamos dizer que seria uma falha na forma de
apropriação, na medida em que a figura de mediação, responsabilizada no sistema kaingang
pelo controle dos recursos da comunidade não consegue realizá-lo. Não por acaso é o cacique
Pedro quem diz que então o recurso não seria “da comunidade”. Com isso, além de indicar a
visão da centralização do controle dos recursos, ele está procurando eximir-se desta função.
Ele diz que é “a comunidade” que está achando isso, apesar de eu não ter encontrado uma
visão generalizada sobre isso. De forma geral, se o recurso é da comunidade, cabe ao cacique
revertê-lo a ela e na medida em que a liderança não consegue implementar os projetos, faz
sentido pensar: ou os recursos não são da comunidade, ou o cacique não está cumprindo sua
função, e provavelmente estaria utilizando os recursos para si próprio. Quando algumas ações
do cacique passam a dar margem a tal interpretação está-se a um passo da ruptura política,
pois grupos que antes compunham a liderança podem passar a questionar o chefe político.
Sobre tal ponto serão aderidos outros questionamentos, como vimos no capítulo dois, e será
feita “política”: a facção entra em cena!
Getúlio, deposto da função de cacique em 2011, diz isso diretamente: no plano do
uso do recurso, em que sua não utilização gera condição para sustentação política de
oposição:

Lucas: e da indenização o que está, o que vocês estão fazendo, como é que está isso?
Getúlio: ah! Tem uns projetos que eles estão querendo fazer. Aí fizeram estudo aí,
UEL e a Maringá, UEM de Maringá. Está em andamento ainda, estudo que eles
fizeram aí. Mais pelo meio ambiente também.
Lucas: mas daí o que você está achando
Getúlio: ah, eu acho que isso é muito ruim pra comunidade. Eu acho que por causa
desse dinheiro parado aí, por causa disso aí que aconteceu essa divisão daí. Tem
Água Branca hoje, que... os outros índios achavam que era... que não era bom
projeto, eles achavam que era bom pegar tudo em dinheiro. E... tem alguns índios
que fazem política em cima disso aí: ah, se fosse autoridade, eu pegava tudo, já
dividia tudo, ficava pra vocês. Não estava nesse rolo aí... Então, os outros índios
acham que é verdade.
Lucas: ah, eles falam isso, aí os outros acreditam aí...
Getúlio: acreditam. Ah, eu fazia isso, fazia isso, pegava o dinheiro e fazia isso.
Pegava em cesta básica todo mês pra vocês ai. […] eu acho que deu muito... esse
dinheiro parado aí traz muito problema na comunidade.

No plano da relação com a comunidade, onde a dificuldade de comunicação sobre as


dificuldades no uso do recurso e termos (brancos) de controle do mesmo:
139

Lucas: agora vocês estão discutindo como vai funcionar isso aí, o regimento [interno
do Comitê Gestor]...
Getúlio: é, nós estamos discutindo regimento agora.
Lucas: e como que está, está difícil de acertar as coisas ou está...
Getúlio: é... nós sabemos que, acho que uns que... essas pessoas que mais...
estudaram pra essas coisas, eles confundem mais a cabeça do índio, sabe. Eu não
tenho como ir lá, na... reunião lá e... chegar aqui, explicar. Explicar posso explicar,
mas todo mundo não vai concordar. Ah, umas dez pessoa concorda, mas o resto
acho que não concorda não. Também tem algumas palavras meio difíceis que eles
falam lá. A gente tenta explicar pra eles, mas eles não entendem.
Lucas: tipo o quê?
Getúlio: ah, esse regimento mesmo, regimento, TAC... E nós já sofremos. Eu acho
que um que... trouxe mais problema pra nós foi essa indenização, depois quando nós
conseguimos. Muita „converseira‟ na comunidade. Acha que um está roubando, um
está pegando dinheiro, liderança está pegando dinheiro. Eu era cacique antes do
Pedro, ali. Mas foi assim. E está assim de novo. Ah, cacique pegou dinheiro, vai
pegar dinheiro... Eles acham que lá é fácil, mas... complicado.

No plano da negociação com o branco, com discursos sem efetividade sobre a


demanda indígena e dificuldade de acesso às reuniões:

Getúlio: Quando eles querem, não querem liberar uma coisa, eles não liberam sabe.
Ó, nós pedimos, uma horta comunitária, esse aí acho que já está com dois anos, já,
horta comunitária. Tem vez que nós pedimos pra fazer o muro do cemitério. Aí não
foi... aí ficou nisso. Tem vez que nós pedimos uma cadeia indígena, aqui na
comunidade.
Lucas: substituir aquela que tem ali?
Getúlio: é. Na hora da conversa tudo bem. Só que na hora de liberar dinheiro, o
dinheiro está liberado pra isso, ninguém chega falar pra nós. Daqui nós temos que ir,
gastar, pra chegar neles lá [ir até a reunião].[...] Aí manda nós, nós não temos
dinheiro também, cem milhões lá no banco lá e não tem como sair daqui.

No plano da autogestão, com a contratação de funcionária pela COPEL para


coordenar o programa ao invés da contratação de uma liderança já atuante, contratado
posteriormente:

Getúlio: E do lado nosso eles colocaram um... uma menina lá, nem sei como que é o
nome dela agora, parece que é... não sei se ela é bióloga ou socióloga, uma coisa
assim.
Lucas: acho que ela é socióloga, que ela vai... coordenar aí os projetos.
Getúlio: vai coordenar, é coordenadora geral, parece. E nós estávamos querendo
colocar o Alex, que o Alex tem mais conhecimento que já... estudou fora assim,
num... nós estávamos querendo contratar com nosso recurso, pagar pra ele pra ele
acompanhar as coisas com ela. Mas...
Lucas: eles não deixaram?
Getúlio: eles não deixam também. Não sei o que eles querem, sabe! Uma hora...
uma hora aí, eu não sei como que vai ser feito, acho que é muita pressão em cima do
cacique, sabe. Então uma hora a gente vai ter que resolver alguma coisa. Que tem
muitos advogados que a gente tem conhecimento, com algum advogado, pra fora,
então eles querem nos ajudar, sabe. Uns três, quatro aí. Eles falam pra gente... tem
que ver onde está esse resto do dinheiro, sabe.
140

4. “POLÍTICA INTERNA”

O cacique Braga sempre transmitia suas ordens ao cacique subordinado Doble […].
Doble, entretanto, aproveitando-se da preponderância que tinha sobre os demais
chefes e os indivíduos das suas tribos, assim como os companheiros da sua tribo,
erigiu-se, clandestinamente, em cacique principal. Prometeu, aos demais chefes e
indígenas de sua tribo, usurpar e tomar para eles as matas de pinheiros onde se
alojavam o cacique principal Braga com as demais tribos subordinadas. […]
A festa [organizada pelo cacique Braga, sem saber da traição,] foi perturbada por
uma peleja sanguinolenta em que o novo cacique Doble perdeu quase metade de sua
gente e perturbou a paz que, até aquele momento, existia entre aquelas tribos que
ficaram, desde aquele momento, divididas em dois cacicatos: um, do cacique Braga
e o outro, do cacique Doble que se erigiu em cacique principal dos iludidos
derrotados. Após a perseguição, ao regressarem ao alojamento geral, o cacique
Braga declarou uma guerra de vingança e de extermínio ao novo cacique Doble e a
seus subordinados. […] Nunca quiseram voltar à antiga amizade, não obstante os
empenhos que fazia, mais tarde, o cacique Doble para reconciliar-se com o cacique
Braga. (Mabilde, 1983, p.160-164)

Como vimos no capitulo anterior, a guerra e a vingança estão presentes entre os


Kaingang em relação tanto a outros grupos como entre os próprios Kaingang. Isto se
representa internamente através de dissidências das quais decorrem divisões políticas e
consequentes separações espaciais do que antes era apenas um grupo. No relato de Mabilde
acima vemos justamente o processo de divisão, resultando em uma hostilidade posterior.
Sendo este processo recorrente entre os Kaingang e entre muitos grupos ameríndios, analisar
como se chega a ele e como é possível processá-lo em um contexto em que as terras são
reduzidas e limitadas, permitirá desenvolver as reflexões sobre a importância da moralidade,
da “tradição” e a forma de política entre os Kaingang em Apucaraninha.
No capítulo anterior, vimos como o contexto da indenização criou por um lado
reforço de um certo grupo na chefia, mas ao mesmo tempo uma tensão sobre o mesmo. Ao
final do capítulo vimos como a fala do ex-cacique Getúlio reforçava a vinculação entre as
tensões sobre a posição do cacique e a divisão política na comunidade a partir do
impedimento do gasto do recurso da indenização, ou podemos dizer, da “política sobre o
dinheiro dos índios”, como diz o cacique Pedro.
Se esta política tinha como origem elementos exteriores à comunidade, como órgãos
oficiais e seus representantes, integrando a mesa do Comitê-Gestor, neste capítulo veremos
outra forma de política envolvida na divisão da Água Branca. O termo “política interna” era
usado para caracterizar uma tensão ainda existente em relação ao fato enquanto estive em
campo. Se utilizava expressão para caracterizar uma situação existente (“tem política interna
ainda”), ou como uma ação (“fizeram política interna”). Podemos dizer que essa designação
seria uma maneira de se referir ao que chamaríamos como facção política, em sua articulação
141

e o momento tenso existente em decorrência desta. Como citado no segundo capitulo, sendo a
comunidade kaingang composta de parentagens em articulação, no momento em que afloram
as tensões, surgem as facções, coladas a estas parentagens, como coloca Fernandes (2003).
Assim, a “política interna” representaria tanto a ação de articulação de facções como a
situação de conflitos e disputas decorrente, seja com embates diretos ou retaliações indiretas.
Após verificarmos neste capítulo as situações e ações concretas desta “política interna” será
possível voltar a ela em uma conceitualização mais aprofundada.
Podemos dizer que o ápice desta “política interna” se deu na eleição para cacique em
meados de julho de 2011 e nos acontecimentos que levaram a ela. Um mês depois desta
eleição foi criada a aldeia Água Branca. Ainda havendo muita tensão sobre o fato enquanto
estava em campo, ou havendo ainda “política interna”, as narrativas sobre ele geralmente
tinham caráter bastante parcial, com acusações de lado a lado. O detalhamento dos fatos foi
possível a mim somente ao conversar com um velho, não muito envolvido diretamente com
os acontecimentos e que tinha críticas aos dois lados. Ele estava tão indignado e ressentido
com a situação que ele próprio entrou no tema quando fui entrevistá-lo, logo quando
começamos a conversa. Esta fala é, portanto, fundamental para o desenvolvimento deste
capítulo, e optei por tornar o interlocutor anônimo, referindo-me a ele como “interlocutor” ao
trazer suas falas sobre este tema neste capítulo. É preciso ressaltar, como mencionado na
introdução, a relatividade das falas em conformidade com os interlocutores envolvidos, não
podendo haver uma narrativa “neutra” sobre a questão e que seja isenta de julgamentos
morais. Como narrativas, representam uma das possíveis realidades interpretativas sobre os
eventos. Ficará claro aqui como os julgamentos são fundamentais na narrativa do evento e na
avaliação de ambos os lados, indicando a moralidade envolvida também na “política interna”,
a partir da leitura feita por este entrevistado e de outras falas e elementos que indicam a
possibilidade de outras leituras sobre os acontecimentos.

4.1. BREVE HISTÓRICO POLÍTICO E A ELEIÇÃO DE 2011

O primeiro mandato de Getúlio como cacique teria iniciado em 1994, tendo se


mantido no cargo até 2000. Segundo ele e Adriano, a saída de Getúlio do cargo teria se dado
por razão da emancipação do município de Tamarana do município de Londrina. No entanto,
a emancipação se deu em 1995, sendo em 2000 a segunda eleição municipal realizada. Não
foi possível levantar outros motivos para a saída dele do cargo, mas já há alguma indicação de
142

que elementos políticos regionais tem implicação na política da TI. No caso, a eleição
municipal é relevante, pois grande parte da assistência dada à reserva e seus moradores é de
competência da prefeitura.
Adriano era contra a emancipação e disse que muitos ali tinham esse posicionamento
por Londrina ser um município mais “forte”, tendo mais indústria e recursos para manter a
assistência. Adriano diz que vários índios dali foram à manifestação no Congresso Nacional,
defendendo a não emancipação, conseguindo barrá-la. Mas após nova tentativa, a
emancipação se efetivou e ele diz que, como esperado, foram fechados postos de saúde na
área rural próxima à TI, apesar de o posto na aldeia Sede nunca ter fechado, hoje atendendo
parcialmente a demanda da redondeza.
Atualmente, mesmo estando a reserva no município de Tamarana, grande parte da
população da TI tem seu título eleitoral de Londrina. O município de Londrina administra a
saúde na TI, recebendo recursos federais para tanto. Este município ainda presta assistência
social especialmente através da concessão de um auxílio alimentar chamado “Cupom
Alimentação”, além de ser responsável pela manutenção da estrada de acesso à TI que se dá
por seu território. Também mantém uma antropóloga contratada que foi indicada como
coordenadora das atividades do Diagnóstico da comunidade contratado pela COPEL. O
município de Tamarana, conta com o repasse do ICMS ecológico pelo Estado, sendo
responsável por seu repasse e uso, também em benefício da comunidade, como com a
manutenção das demais estradas, contratações de pessoal da Associação. Este recurso no
passado também foi usado para festas de 19 de abril.
Com a emancipação de Tamarana e a suposta queda de Getúlio por este motivo, foi
feita eleição, tendo como candidatos Levi e Augusto. Levi venceu e seguiu no posto de
cacique até 2004. Ele, portanto, esteve à frente no início das negociações da indenização pela
UHE Apucaraninha. Neste período, foi fundada a Associação dos Moradores do Posto
Indígena Apucaraninha, sendo Adriano seu primeiro presidente.
Levi teria saído da posição de cacique após desentendimentos relativos a uma tela de
alambrado instalada pela COPEL. Como vimos no capítulo anterior, este fator era bastante
relevante, entrando por duas vezes no termo dos acordos. O acordo de 2002 previa a
demarcação e sinalização da área a ser ocupada pela empresa até março de 2003. Desta forma
vaga, não ficava claro se os reservatórios seriam cercados e se seu uso pelos índios ficaria
restringido, tendo sido efetivamente instalada cerca ao redor do reservatório próximo ao salto,
causando a queda do cacique, com boatos, segundo Adriano, sobre o cercamento do
reservatório do Fiú. O reservatório próximo ao Salto é bastante usado para recreação e banho
143

pelos índios, sendo muito comum em dias quentes ver crianças, jovens e até adultos no local.
O reservatório do Fiú é mais utilizado para pesca. No local e proximidades tive oportunidade
de ver famílias pescando, o que não vi em outras partes dos rios, onde aparentemente há
predomínio masculino nesta atividade. A importância da questão da cerca é notada pelo
retorno à pauta no acordo de 2006, com mudança em relação ao disposto no TAC de 2002,
especificamente detalhando este ponto, determinando onde permaneceriam as cercas
instaladas e onde seriam substituídas por cercas vivas, uma solução evidentemente mediada, e
isentando a empresa em caso de ingresso indevido, desde que sendo sinalizados os locais de
risco. Ramos comenta este fato:

Os kaingang respeitam bastante as decisões e acertos que suas lideranças realizam


extra-aldeia. Entretanto, neste caso, a empresa cercou com alambrado a principal
barragem, que é utilizada pelas crianças para o banho e, especialmente, para a pesca
feminina. Como a ampla comunidade se sentiu lesada, em ação conjunta violaram a
cerca em vários pontos, garantindo o acesso das pessoas à barragem e depuseram o
cacique e suas lideranças. (RAMOS, 2008, p.176)

Apesar desta consideração, que reforça o poder da comunidade sobre seu chefe em
alguma medida, há que se considerar, nos dois casos levantados, que as situações externas são
mais fáceis de serem lembradas e citadas, sem uma implicação mais direta dos atores e de
questões morais ou de outra ordem. No segundo caso também foram citados a mim por
algumas pessoas desconfianças ou afirmativas de que o cacique teria pegado dinheiro da
indenização para si, reforçando o que já foi tratado no capítulo anterior e incidindo na
avaliação de Levi nos eventos posteriores. Com a saída de Levi, foi novamente eleito Getúlio,
que esteve na posição até 2011, carregando, junto com seu vice Pedro, o fardo da dificuldade
de implementação dos TACs e problemas advindos deles. Durante este período, um grupo
liderando por Levi, do qual participava Adriano, que então já não era presidente da
Associação, tenta novamente derrubar Getúlio, sem sucesso.
Em 2010 houve a criação da aldeia Serrinha, fora dos limites atualmente
considerados da TI. Segundo Valdir, liderança que esteve à frente deste movimento:

Valdir: nós viemos pra cá porque nossa terra já não estava mais suficiente pra gente
viver [...], pra gente trabalhar, plantar. [A] população cresceu muito, então não tinha
como a gente trabalhar mais lá dentro. [...] Não dá mais, pelo seguinte: terra é muito
pouco. Se hoje eu fizer um alqueire de terra, eu estou tomando do outro parceiro. Eu
não preciso fazer só um alqueire, eu preciso fazer dez alqueires de roça, pra eu poder
manter mais ou menos minha família. Pra eu poder comercializar fora, pra eu poder
manter minha despesa, junto. Pra eu poder comercializar fora, comprar uma roupa,
comprar um par de sapatos, comprar essas coisas. Material para as crianças, pra
poder estudar no ginásio. A gente não tem. E não tem terra suficiente pra isso. Então
nós subimos aqui, dia 3 de 2010 (sic), por motivo de nova retomada da terra nossa,
que ela já era nossa, no [tempo dos] nossos avós. Eu tenho ali dentro documento
dessa terra de Apucaraninha, isso aqui era de Apucaraninha inteira, tudo isso que
144

você está vendo aí. [Documento de] 1902, de 1903. Aquela época era 50 mil
alqueires, Apucaraninha. A área indígena Apucaraninha. E hoje nós temos 2.650,
pra completar 2.650 faltam 700 hectares ainda. Onde está o resto? Então é por aí o
problema. Hoje você viu aquela terrinha cultivada ali, só dali da terra boa dali pra
cá. E o resto é tudo pirambeira, pedra, serra, então não tem como a gente poder fazer
[um plantio] suficiente pra gente poder mandar uma comunidade dessas.

A motivação, portanto, seria eminentemente territorial, necessitando de espaço para


moradia e principalmente plantio para a população atual, em crescimento, e suas atuais
necessidades. Destaque-se do fim da citação a ligação feita entre o plantio e o “mandar”,
novamente reforçando o papel da liderança enquanto responsável por garantir o sustento
elementar da comunidade, através de distribuição, bem como de possibilidades de
diferenciação55. Sendo esta motivação pela retomada da terra evidentemente legítima e
fundamentada, como vimos no primeiro capítulo, ela também é integrante de movimentos
políticos internos. Na fala de outro interlocutor, dois pontos destes movimentos são marcados:

Interlocutor: [diziam à época:] porque já vendeu nosso gado tudo aí. Porque diz que
eles estão, eles mesmos tirando nosso dinheiro [da indenização] lá também. Nós não
estamos sabendo, nem ele não conta. Ih, os índios ficaram brabos. Por isso que eles
mudaram pra lá [pra Serrinha].

Segundo Almeida (2004), na época de sua pesquisa haveria duzentas e vinte cabeças
de gado da comunidade, tendo inclusive dois touros reprodutores. Os animais eram abatidos
para festas na comunidade. A venda pelo então cacique sem a distribuição, causa
desconfiança do uso particular de recursos da comunidade da mesma forma que a situação da
indenização, acirrando tensões. Não obtive relatos que relacionassem a tentativa frustrada de
Levi derrubar o cacique e a criação da Serrinha, apesar de muitos dos fundadores da Água
Branca terem sido também fundadores da Serrinha. A criação da aldeia Serrinha é um marco
em uma forma de dissidência que cria oposição, em outro espaço, mas mantém em certa
medida a estabilidade política da reserva. A liderança de Valdir é muito relevante neste caso.
Importante liderança, ex-cacique da TI, com importância também fora da aldeia, foi
presidente do Conselho Indígena Estadual do Paraná por oito anos. Esta função é significativa
e muitas vezes mencionada, pois o Conselho é tradicionalmente local de negociação de
conflitos internos nas comunidades, tendo já atuado de diferentes maneiras, de forma menos
ou mais autoritária e incisiva. Também é um espaço de maior representatividade em esferas
de negociação junto aos governos Estadual e Federal56.

55
Também é interessante destacar, como chamou a atenção Ramos durante a banca de defesa desta dissertação,
que a ocupação da Fazenda Tamoio se deu posteriormente à discussões da indenização e a criação da
Serrinha se deu posteriormente às discussões do PBA da UHE Mauá, indicando para a visão de necessidade
de terras agricultáveis para implementação dos projetos oriundos desta pelos índios.
56
No Estado, há também o Conselho Indígena Estadual do Sul do Paraná, centralizado em Guarapuava.
145

A aldeia Serrinha, portanto, já representava certa oposição à chefia da reserva.


Consideradas as condições do local, onde não havia energia elétrica 57, água encanada, ou
córrego nas imediações, era um movimento significativo com 380 pessoas em seu início.
Instalaram-se em terreno da igreja católica, patrimônio remanescente do tempo em que havia
maior população rural e que, em meio a fazendas de agricultura extensiva atualmente, foi
então cedido aos indígenas. Mas logo o movimento perdeu sua força original. Segundo
Valdir:

nós entramos, nova retomada, ficamos aqui, quando nós entramos aqui entramos
com 380 pessoas. Daí devagarzinho, como a justiça é longa, e um pouquinho vai
saindo, vai saindo. Precisa „estudar‟ os filhos, também, alguns têm que ir para o
ginásio, sobre transporte é muito difícil. Então e... ficamos pra trás, tomando
decisão, tomando a justiça, vamos dizer... esperando a justiça o que vai dizer pra
nós, e nós estamos à espera da terra.

O esvaziamento da Serrinha, no entanto, segundo uma das lideranças que lá residia, e


que hoje está na Água Branca, foi decorrente de uma falta de apoio da Sede, o que acirrou a
crítica a Getúlio, de onde vem a ameaça a sua posição.

Antônio: Daí nós... eu fiquei na Serrinha, deu um problema lá, queriam tirar o
cacique [Getúlio], ele não estava dando apoio pra nós ali, esqueceu-se de nós. Aí foi
indo, foi indo, foi indo até que conseguiram tirar ele. Porque daí, parece que ele se
esqueceu de nós ali. Deixou-nos ali, não voltou mais pra lá. Aí ficou Valdir [na
Serrinha]. Aí eu fiquei lá também.

Estratégias de fortalecimento e enfraquecimento de parte a parte. De um lado há um


fortalecimento de um grupo ao se afastar da liderança da Sede, por outro, esta não dá apoio, o
que ao mesmo tempo enfraquece o movimento em termos de adesão, mas pode fortalecer
lideranças que resistem mesmo sem ter apoio, tornando-as mais independentes, ou seja não
incluídas no jogo das parentagens que sustenta o cacique da Sede, reforçando inclusive a
unidade de seus integrantes enquanto grupo. Um ponto fundamental, portanto, à oposição
política a adentrar o já tenso estado. Com o atraso na elaboração do Diagnóstico, que só se
encerrou ao fim de 2011, a impossibilidade de uso do recurso, como vimos no capítulo
anterior, e a desconfiança de uso do recurso pelo cacique, restava à oposição um motivo para
enfim derrubar o cacique: um erro.
Havendo denúncia de erro do então cacique, a facção tinha força para reverter o jogo
político então estabelecido:

57
Segundo Valdir o transformador de energia fora roubado antes de eles se instalarem no local. Segundo
empregado da COPEL a comunidade solicitou a ligação de energia, mas esta foi obstada por recurso de
proprietário de terras junto à empresa.
146

Lucas: mas por que eles foram morar pra lá, na Água Branca?
Interlocutor: (ri) por que eles foram morar pra lá? Sabe uma coisa... até eu fico com
vergonha de contar tudo, viu rapaz. Só por causa do cacique! Andou namorando as
moçada aí, bebendo, bebendo. Ó, diz que era... não sei se é presidente [do
Conselho], não sei se o senhor o conhece, o Valdir. Então Valdir diz que falou pra
um homem aí, falava pra um homem aí: ó, se o cacique fizer demais, nós o tiramos,
nós o tiramos! […] Daí, quando já fez essas coisas, quando ele já andou dormindo
com essas mulheradas, então um já esteve com ele, esteve com ele. Daí esse rapaz,
foi contar pro Valdir: olha esse cacique nosso está fazendo isso, isso. Então Valdir
falou: então nós o tiramos agora. É muito feio. Muito feio. Também antes disso,
antes disso ele fez muita coisa. […] Daí, foi assim, até... esse homem foi contar pro
Valdir […]. Outro era Rafael, outro era... não sei quem. Mais quatro que chegaram
lá. Mas o cacique quando ele soube que o Valdir estava querendo tirar ele, fez
reunião. Fez reunião, até eu fui. […]. Daí, foi assim, olha, foi assim. Logo, quando
nós estávamos... nós estávamos lá, e muita gente no terreiro do cacique lá, do
Getúlio, antes do Pedro entrar de cacique, quando ele era vice dele. Então já estava
cheio de gente lá, homem... Os quatro chegaram lá, eu vi! Daí eles falaram com o
cacique, com o Getúlio. Eu fiquei escutando. Falaram pra ele: olha, Valdir quer que
você saia agora. Diz que o povo não está gostando mais de você. Diz que você está
fazendo muito erro agora. Então Valdir não está gostando não. Então Valdir quer
fazer outro cacique. Daí, eu vi [o Getúlio] reclamando: não, mas eu não fiz nada
com a mulherada, eu não estava, não estava com a mulher, não fiz nada. Eu estava
só bebendo, com a mulher, não fiz nada pra mulher. O outro rapaz que estava com
ele ficou quieto, ele não quis contar. Não quis contar. Mas quando ele veio de lá,
acho que a mulher desse rapaz que estava junto com Getúlio, não sei se ela ficou
braba, ou... ela ficou braba. Prendeu esse, que estava junto com ele. Mas daí, outro
dia eu cheguei lá já tinha soltado ele. Então esse rapaz já estava perto lá, desse
cacique, o Getúlio [...]. Acho que se ele tivesse falado aquele dia também: não, mas
nós andávamos dormindo com as mulheradas... Por isso que eles souberam. Garanto
que os outros tiravam todos eles na hora, naquele dia. Nem o Pedro não era cacique.
Eles iam tirar todos eles, até o vice, até as autoridades que estavam junto com o
Getúlio, eles iam tirar todos eles. Mas outro que era companheiro do Getúlio não
quis contar nada.

Vê-se nesta fala como o “erro” passa a integrar a política de forma determinista.
Sendo a situação de Getúlio já prejudicada pela avaliação de que antes ele já havia feito
muitas coisas reprováveis, pondo em questão sua avaliação moral no que tange a
reciprocidade e generosidade para com a comunidade, a avaliação do erro moral no
comportamento sexual seria o estopim para sua deposição, seria fatal à posição do cacique e
suas lideranças-políticas.
A poliginia, instituição presente em vários grupos ameríndios, seria, segundo
Clastres (2003) restrita a poucos homens e privilégio do chefe. Estaria relacionada à condição
de generosidade de chefe e troca com os grupos dentro da comunidade. Dentre os kaingang é
uma instituição presente à época do contato, horrorizando missionários, e posteriormente
suprimida. Ela indicaria uma outra esfera de diferenciação do chefe enquanto tal, com a sua
função privilegiada de troca com os demais grupos. Hoje, como vemos, isso é regulado
moralmente, sendo considerado erro.

Marcos: tem alguns cacique que quando... quando um cara, se ele se ergue mais um
pouco... por exemplo, nas lideranças, sempre nas lideranças, quando o cara está
147

trabalhando, de repente se ergue mais um pouco, como liderança, daí tem uns
pessoal que se envolvem, aí tem aqueles problemas, com mulher ali, aí, aquele ali
não pode ser mais liderança da comunidade. [...] Daí a comunidade não aceita
aquele. Daí como a liderança tem que ser certo e ter uma palavra só, se não mais pra
frente ele não se... não vai saber como aconselhar aquela comunidade dele.

Note-se nesta fala a junção da diferenciação, no sentido colocado, ou seja, “quando a


liderança se ergue mais um pouco”, o envolvimento com outras mulheres e o erro,
impossibilitando a função mediadora do cacique enquanto aconselhador. É possível então,
indicar uma possibilidade de diferenciação e privilégio do cacique no sentido sexual, ainda
que não represente mais a poliginia e tampouco sendo as “bagunças” restritas ou liberalizadas
a ele. Pelo contrário, elas são também controlada por fatores morais, indicadas no “erro”.
O erro estabelece um rompimento da moralidade do cacique fundamental à própria
comunidade, já que sem o exemplo moral não poderia garantir o respeito entre as famílias,
como descrito no segundo capítulo. Mas sem uma acusação pública do erro por testemunha e
considerando-se a defesa do cacique, o caso pode ser relevado por parcelas da comunidade. A
acusação neste caso poderia ser qualquer um que presenciasse o fato, por se tratar do cacique,
ou melhor, digamos que qualquer um minimamente confiável, já que alguém com conduta
muito reprovável e um histórico marginal na TI poderia colocar a acusação em dúvida, e
provavelmente nem faria a acusação sob o risco de conseguir mais perdas com a instabilidade
política e já avaliando também sua posição em relação à chefia. Como foi destacado no
capítulo dois, em todos os casos de erro as redes de relações estabelecidas atuam diretamente,
tanto na avaliação do acusador como na do acusado. Neste caso não houve a confirmação
pública e a acusação fica esvaziada, mesmo se tendo conhecimento da situação, mas incerteza
sobre a gravidade do erro. Note-se que o rapaz que teria se recusado a delatar acabou preso,
supostamente por acusação de sua mulher, mas devido ao posicionamento em relação ao
cacique logo foi solto. Esse rapaz depois foi morar na Água Branca quando ela foi criada.
Apesar de Valdir, segundo esta narrativa, ser central neste caso, ele não parece
representar a facção, mas sim uma dissidência que é procurada pela facção, representada pelos
quatro rapazes, grupo que já tentara retirar Getúlio do cargo sem sucesso, que vão até Valdir
procurar apoio para sustentação do movimento. A fala de Valdir a mim revela um pouco isso:

Lucas: Essa aldeia que foi formada ali da Água Branca, por que eles foram pra lá?
Valdir: porque eles são... como é que é... desobediente.
Lucas: desobediente (riso)
Valdir: é, desobediente. Porque desobediente assim, desrespeito às autoridades
dentro da área. Porque dentro das áreas indígenas tem que ter uma lei. Aonde o
cacique foi eleito, tem que ser respeitado. Porque hoje quem ilumina, seja as
autoridades „brancos‟, seja qualquer autoridade, onde está o povo, é o Deus. Deus
que ilumina para o povo, pra ele eleger aquele povo, aquela pessoa. Então nem que
148

for inimigo, nunca gostou dele, mas se ele for eleito, a gente tem que respeitar ele. A
tentar „salariar‟ com ele, na política dele, e buscar ajuda pra poder trabalhar junto
com o povo. Senão cada vez, o povo... a própria comunidade sofre com isso, porque
quem não conhece e vai junto, sofre com a pessoa [que foi contra a autoridade].
Então eu acho que é um absurdo isso. Eu acho que desde que a gente quer ser uma
autoridade, a gente nunca deve fazer a comunidade sofrer desse jeito. Como está
esse povo hoje. O que eles têm levado hoje? Não levaram nada, não levaram
vantagem nenhuma.

Vemos a defesa de uma autoridade centralizada e única, que no caso tem forte
conotação religiosa. Valdir se assumiu a mim como de todas as religiões, entendendo que
tanto evangélicos, católicos, curadores, etc., trabalham com o mesmo Deus. É interessante,
perceber que se Deus ilumina o cacique eleito, o respeito ao cacique eleito deve se dar pela
“lei” dentro das áreas indígenas. Esse respeito é fundamental para se conseguir as coisas para
a comunidade, contra, portanto, a permanência da divisão política na comunidade. Se por um
lado há um discurso que nos remete à figura de uma liderança autoritária e impositiva,
percebe-se a procura de Valdir por articular diferentes grupos, mediando, e se definindo entre
eles, mesmo que isso signifique uma mudança de seu posicionamento em relação às demais
lideranças. Isto, no entanto, pode também gerar descontentamentos.

Interlocutor: Mas depois que eu vim embora, diz que Valdir chegou lá, daí diz que
quando esse Valdir chegou, diz que o Getúlio, o cacique, diz que: vamos pra dentro
aí, conversar. Foram pra dentro e, conversou, conversou, conversou... Daí quando
saiu, diz que [o Valdir] já falou assim: agora nós acertamos tudo com o cacique,
então nós vamos trabalhar junto de novo, nós vamos trabalhar, então vocês não
podem reclamar mais, porque o cacique vai trabalhar mais três meses, mas se ele
fizer mais um erro, nós tiramos ele agora. Mas primeiro ele vai trabalhar mais três
meses. Daí que os índios já não gostaram. Por que ele mandou a gente tirar ele lá?!
Lucas: estranho.
Interlocutor: até eu fiquei brabo também, viu. Se ele tivesse falado pra mim assim,
até eu mesmo ficava brabo com o Valdir: ó, Valdir, por que você falou assim, falou
assim, do cacique, falou assim. Você não é homem pra sustentar a palavra. Então
melhor fazer eleição, falaram assim, o cacique [Getúlio falou]. Então fizeram aquela
eleição, fizeram eleição. Mas daí ele já pôs o Pedro na frente dele, pra votar [para]
ele. Ele já ficou já meio tirado, o cacique, o Getúlio.

Nem sempre há pleno sucesso, portanto, no estabelecimento das alianças e


articulações, ou ela traz outras consequências, como uma visão de mudança radical de
posicionamento, que se torna inclusive suspeita, ou no mínimo desonrosa por indicar a “falta
de palavra”. A este nível de relações, pode-se dizer que há uma diferença na interpretação
sobre os poderes e bases de sustentação dos lados e do próprio apoio à facção. Parece haver,
para a facção fundadora da Água Branca, uma mudança de posicionamento de Valdir. No
entanto, considerando seu posicionamento em geral, seria possível ver uma tentativa de
articulação política por este, possivelmente mais vantajosa a ele e simultaneamente evitando
uma ruptura política radical.
149

Retornando à discussão da parentagem e da moralidade na composição das


lideranças e chefia, vê-se a flexibilidade e relatividade de sua aplicação em um contexto
específico. Por um lado teríamos uma liderança que parecendo querer cumprir a função
destacada de tornar junto o separado como citado no capítulo dois, acompanhando Fernandes
(2003), evitando a ruptura e buscando mediação, independente do fato de ter havido ou não
interesse pessoal mais direto, busca relevar a questão moral levantada a respeito do então
cacique, procurando justificar e apoiar a permanência deste na função. Esta atitude acabou
fazendo com que a avaliação sobre essa própria liderança fosse prejudicada, pois o grupo de
oposição que se articulava era independente a esta e avaliou poder sustentar-se com base na
mesma questão, ressaltando o problema moral do cacique e se revoltando com o que vê como
mudança de posição de Valdir.
No segundo capítulo vimos como diversos fatores morais podem interferir na
avaliação de um cacique. No entanto, eles não levariam necessariamente a sua destituição.
Vimos também que outros fatores que afetam a comunidade em geral podem também ser o
estopim para a destituição do cacicado, como a questão da tela de alambrado e o uso do
reservatório, ou a emancipação de Tamarana. Mas neste caso vemos que se o cacique erra, ou
apenas a acusação de que o cacique errou, tendo em vista o cenário constituído da moralidade,
ou seja, uma grande desaprovação moral presente em relação às ações do cacique e as
condições da aldeia, o cargo do cacique é colocado em questão.
A facção constituída pode ser vista como baseada em parentagens na medida em que
esta foi caracterizada como espécie de vínculo que transcende o parentesco, apesar de este ser
também um de seus fundamentos. As parentagens geram aproximações que neste caso passam
a ser não apenas em direção a formas possíveis de consanguinização, mas também como
forma de interesses políticos comuns. Neste sentido, o processo de constituição da facção ao
mesmo tempo se dá com base na parentagem como também atualiza e cria esta. Assim, é
possível neste processo tanto aproximações ou afastamentos da parentagem tornada facção, na
medida em que por um lado a adesão a ela terá uma significação política que passará, neste
momento de maior tensão, a significar o apoio direto de um dos lados: ou da chefia
estabelecida ou da oposição. E, em oposição, os integrantes das lideranças de cada lado
tenderão a reforçar as relações entre si, através do afastamento dos que estão do outro lado,
enfraquecendo em relação a este os vínculos então estabelecidos ou potenciais. Isto porém,
não significa que os vínculos suspensos neste contexto faccional não possam ser retomados
posteriormente.
150

Elementos diversos, como o fato da presidência do Conselho, e posições estratégicas


de lideranças podem atribuir mais status e importância neste contexto de oposição. A facção
busca tal apoio em Valdir, que, lembrando, era considerado pelas demais lideranças-políticas
como tendo outro modelo de liderança, mais conservador. Seu posicionamento, tendo em
vista seu status e sua posição enquanto uma oposição que trabalhava junto com o cacique
seria fundamental a uma virada política da facção.
Vemos, portanto, como se entrelaçam no momento de tensão política a moralidade,
os modelos de chefia baseados nesta, e as parentagens. Não haveria o fortalecimento da
facção e os fatos que se seguiram caso não houvesse articulação destes elementos.
No momento anterior, com a criação da Serrinha sem uma ruptura política em
relação à Sede, podemos destacar a chefia enquanto mediadora e articuladora entre as
parentagens. Nesta posição ela procurava regular o apoio, para evitar a possibilidade de
independência política a atentar contra sua própria posição. No entanto, já havia uma tensão
pela não domesticação, e não incorporação completa das demais lideranças dentro do grupo
de apoio ao cacique. O elemento da ética pessoal do cacique acaba por desequilibrar esta
situação, dando um elemento que possibilita o fortalecimento da oposição. A partir de então e
da decisão de se fazer eleição, o cacique passa a não estar mais entre as parentagens. Ainda
que não se torne propriamente um, ente, ele passa a mediar apenas algumas das parentagens,
sendo defendido por elas. O mesmo ocorre com o grupo de oposição. Nesta posição, porém, o
cacique já fica “meio tirado”, como vimos na citação, não representa mais o grupo.
A defesa do cacique toma uma configuração inclusive física. Foram montados dois
acampamentos, um em frente à casa de Getúlio, para defendê-lo em caso de agressão ou
tentativa de expulsão. Outro foi montado próximo à casa de um dos moradores da Sede que se
opunha ao cacique, nas proximidades do campo de futebol, do outro lado da aldeia.
Estabelece-se assim, uma divisão territorial temporária que representa a situação de oposição
política radical, ainda que de forma relativa, já que as residências, que não são de todo
deixadas, continuam permeadas nas duas áreas. Na fala atribuída a Valdir, ele concordava em
continuar com o cacique Getúlio, mas este teria se recusado a continuar depois das acusações
feitas. A proposta era para se fazer eleição dali três meses. No entanto, a facção, representada
por Levi, exigiu que fosse realizada dali poucos dias, evitando que o cacique “aprontasse”
neste período, deixando problemas para o sucessor. Fizeram eleição dali quatro dias. É
interessante a fala de um informante ao dizer que se tivessem esperado ao menos um mês,
Levi teria ganhado a eleição, sendo que ele próprio votaria em Levi, que já foi seu cunhado,
tendo achado errado o fato de ser feita eleição desta forma, tão rápida. Mesmo sendo essa uma
151

posição que considera os fatos posteriores à eleição, o posicionamento favorável a um ou


outro grupo pode depender de condições específicas de como se deu o questionamento do
poder estabelecido, bem como o processo de constituição da facção. Esta fala se coaduna em
certa medida com a de Valdir, ou seja, o respeito à autoridade constituída. Se o cacique
aceitou renunciar ao cargo, não é adequado tirá-lo à força, faz-se as coisas com calma, o que
pode até remeter ao modelo de índios “civilizados” discutido no primeiro capítulo, ou seja,
com privilégio da negociação ao invés da força ou violência mesmo que simbólica ou
potencial.
A FUNAI e o MPF foram contatados sobre o processo que ocorria. Getúlio aceitara
realizar eleição, mas junto ao MPF teria sido formalizado que nem ele nem Levi poderiam
concorrer ao cargo. Ou seja, se a facção de oposição exigia que Getúlio não poderia se
candidatar, ele exigiu o mesmo em relação a Levi, em seu ver a colocar em igual condição o
outro grupo. Os candidatos então foram Pedro, então vice-cacique de Getúlio, e Rafael, já
citado em fala anterior como um dos principais mobilizadores da facção. Como vice de Pedro
foi colocado Leonardo58. Foi definido que votariam apenas pessoas com mais de 16 anos,
seguindo o modelo nacional de eleição. Esta procura destaca como os órgãos oficiais do
Estado são tomados como mediadores em questões políticas internas, quando a autoridade da
chefia está em questão, quando o cacique está “meio tirado”. A estratégia de retirar da
candidatura os dois personagens principais parece, juntamente com a aproximação formal do
modelo de eleição nacional, querer retirar a pessoalidade das relações no momento eleitoral e
enfraquecer o outro grupo justamente por se tratar de relações muito pessoais e históricas em
jogo.
O processo eleitoral foi acompanhado por funcionários da FUNAI de Londrina,
realizado na escola da Sede. Segundo Adriano, primeiro votou o grupo de Levi e Rafael
depois o de Getúlio e Pedro. Este fato mostra novamente as facções constituídas, onde não há
segredo sobre os respectivos apoios. O modelo de eleição seria uma forma de se estabelecer a
chefia sem a histórica necessidade de rompimento da unidade político-territorial. A visão é:
uma “reserva”, um cacique, como já destacado. Mais de um cacique seria a manutenção da
disputa faccional e tensão política. Ela não é, em princípio, desejada, como vimos no segundo
capitulo: tudo já é dividido no mundo kaingang, como aponta Fernandes (2003), não se deseja
dividir a chefia. Como demonstra a citação de Mabilde no início deste capítulo, a disputa

58
Leonardo tem 55 anos. É da TI São Jerônimo e se mudou para Apucaraninha após seu casamento, sendo sua
esposa desta TI. Foi por oito anos responsável pela Igreja Assembleia de Deus em Apucaraninha mas nunca
tinha sido autoridade, como também são chamadas genericamente as lideranças em geral.
152

faccional é histórica entre os Kaingang, e é baseada na separação espacial, ou seja, dividem-se


os grupos e um deles se muda para algum lugar distante. Com a restrição territorial após a
intensificação da colonização e redução das terras indígenas, a separação espacial se torna
praticamente inviável. A oposição faccional então irá se basear na expulsão para outras terras
indígenas das famílias principais dos grupos opositores, ao menos temporária, como forma de
enfraquecimento do movimento. Algo diferente ocorreu em Apucaraninha.
Adriano estava com o grupo de Pedro59, ficou na dúvida se este ganharia, mas
acabaram ganhando, segundo ele de 360 a 280 votos aproximadamente 60. Com a vitória, o
grupo de Pedro o ergueu sobre os ombros ao sair da escola, comemorando. O grupo opositor é
acusado, então, de ter estourado fogos de artifício, mesmo tendo perdido. Um dos rojões teria
sido acendido em direção ao grupo que comemorava, atingindo e ferindo, ainda que sem
gravidade, algumas pessoas. Finalmente há a ruptura:

Interlocutor: daí, esses que estão para o lado de cá [na Água Branca], que estavam
morando perto do Valdir lá [na Serrinha], ficaram brabos. Parece não sei se é dez, ou
é oito. Eu não ia lá. Ficaram brabos: ah, melhor nós sair daqui, porque o Valdir é...
fez isso pra nós, não sustentou a palavra dele. Queimaram a „ranchada‟ dele já...
Lucas: queimaram o quê?
Interlocutor: fizeram já outra morada agora. Por causa disso! Por causa disso!
Lucas: o quê que eles queimaram?
Interlocutor: o rancho deles. Porque eles iam fazer rancho perto do Valdir. Era
companheiro do Valdir, aquele tempo. Mas companheiro dele que queimou as casas
deles. Porque ele não sustentou a palavra do cacique, que ele ia tirar o cacique, não
sustentou. Então ficaram brabos com ele. Até Valdir, não sei se ele trabalha de... não
sei, não sei o que ele trabalha. Por causa disso que eles se separaram. […] Falaram
pro Valdir, você não sustentou nada o que falou, melhor nós sairmos aqui e atacaram
fogo nos ranchos deles. Porque os ranchos deles são todos de sapé, madeira roliça
que nem esse aí. Eu fiquei quase bobo, viu, quando contaram que os outros
queimaram todas as casas. Perderam a eleição, e já foram lá, e diz que de noite
mesmo já tiraram as tralhas pra fora, e... atacaram fogo.

Alguns integrantes da facção perdedora, revoltados com o aparente reposicionamento


de Valdir, uma das causas tomadas como motivo da perda da eleição, vão até a Serrinha e
incendeiam seus próprios ranchos, por considerarem que aquilo que ali defendiam não estava
sendo sustentado pela liderança61. A igreja em que Valdir mora na Serrinha não foi queimada,
não era um atentado à sua pessoa, mas à sua política e a sua posição enquanto liderança.

59
Note-se uma mudança de Adriano em relação às facções. Ele, porém, não compunha a liderança da Sede
enquanto estive em campo, apesar de seu irmão Áureo ser liderança-polícia. O fato de Adriano beber também
poderia contar negativamente neste ponto.
60
Conforme o posicionamento da pessoa, diziam ter sido esta a diferença, ou uma diferença de poucos votos,
quatro ou cinco.
61
Pode-se considerar que permaneciam na Serrinha até então apenas lideranças mais fortes de oposição, uma
vez que esta aldeia já se encontrava esvaziada. É importante notar também que Valdir sempre manteve e
ainda mantém sua casa na Sede, e também tem terra no local.
153

Podemos dizer que além do jogo político, o espaço da Serrinha não representava
mais um espaço de oposição, perdendo sua função em sua sustentação enquanto um espaço
diferenciado. Mas a crise permanecia, tanto ao nível econômico, principalmente com as
questões relativas à indenização, vistas no capítulo 3, como no plano moral, vistas no capítulo
2, e com o erro do cacique, e a manutenção e seu grupo no poder. Apesar de não terem feito
queixa formal à FUNAI sobre o processo da eleição, o grupo perdedor apontava
irregularidades, com a votação de menores de 16 anos.
É possível dizer que o próprio processo ocorrido contribuiu para o fortalecimento da
facção opositora, tornando impossível sua manutenção na Sede, e principalmente na Serrinha.
A aldeia Barreiro, já caracterizada por Ramos (2008) como um espaço de acolhimento de
pessoas de outras áreas com “erros” ou expulsas, ainda que mais voltada a um acolhimento
exterior que um afastamento interior, também não poderia cumprir a função de afastamento
político uma vez que já possuía liderança alinhada com o grupo vencedor na Sede, sem contar
que não comportaria a dimensão que o movimento tomara. Além disso, a expulsão das
lideranças da facção perdedora, seja para outra aldeia ou para outra TI, não ocorreu.
Segundo um interlocutor indígena não morador de Apucaraninha, o Conselho
Indígena teve até anos atrás importante posicionamento ao tratar destes movimentos políticos.
Era temido pelos caciques, tendo uma atuação por vezes agressiva em certos casos. No
entanto, vem prezando atualmente por negociação e uma postura democrática, lembrando que
os ocupantes de seus cargos também têm relações históricas com lideranças em outras TIs. No
caso de Apucaraninha, Valdir, apesar de ser o vice-presidente do Conselho Indígena do Norte
do Paraná, não houve atuação mais efetiva no caso62. Órgãos oficiais nestes casos, se tendem
a não ver com bons olhos casos de expulsão, com base em algumas situações em que famílias
inteiras foram deixadas à beira de estradas sem qualquer recurso, por outro lado mostram
resistência em intervir diretamente. A FUNAI de Londrina, com um kaingang de Barão de
Antonina como seu representante, também não atuou neste sentido. Acima de tudo, porém,
parece não ter havido movimentação pelo próprio cacique eleito para tanto. O fato de Pedro
não ser de Apucaraninha poderia tornar uma ação neste sentido não legítima, além da própria
situação crítica em que chegou ao cargo, após as acusações contra Getúlio. Com isso, e
considerando as relações de parentesco existentes entre os grupos faccionais, não houve
expulsão. Para além de uma “bondade” ou “democracia” do grupo ganhador, se trata de

62
Acredito que parte disto se deva a uma indisposição frente a outras lideranças de TIs do Tibagi especialmente
por Getúlio e Valdir, decorrente de ações suas quando da consulta aos indígenas sobre a usina de São
Jerônimo (HELM, 2003).
154

condições políticas e morais para tanto. Mas sem ela, mantinha-se uma tensão no interior, era
preciso externá-la, era preciso a efetivação do plano centrífugo proposto por Clastres. Fazia-se
necessário um novo espaço para a facção.
Fernandes (2006) analisa um caso em que o contexto faccional foi mais
evidentemente colocado na TI Ivaí. Durante as eleições para prefeito no município Manoel
Ribas, onde se localiza a aldeia Sede da TI, a divisão entre dois grupos o “15” e o “23”,
relacionados aos candidatos a prefeito63, centralizados no cacique (apoiando o “23”) e um
grupo de oposição a ele (apoiando o “15”), estabelece uma divisão na aldeia que engloba os
serviços existentes, desde o leite distribuído na escola e a própria escola e o posto de saúde,
que acabam sendo fechados por determinação judicial até a eleição após conflitos pelo uso
dos mesmos. Com a vitória do “15”, na eleição municipal, famílias apoiadoras do “23” se
deslocam a outra aldeia, que, porém, logo se vê esvaziada por falta de atendimentos básicos e
condições precárias, retornando para a Sede, onde o cacique (do “23”) acusando opositores do
“15” de ameaçá-lo de morte, consegue apoio da Polícia Federal para transferir as lideranças
de oposição para outra TI. Após esta atitude, a revolta contra o cacique aumenta, o que
ocasiona prisões pelo mesmo. Isto finalmente levou opositores a procurarem o Promotor
Público, que determinou a liberação dos presos e prisão do cacique, que após o fato acabou
renunciando, dando lugar ao grupo opositor organizar nova liderança.
Com a impossibilidade da dispersão territorial como solução, devido à restrição
espacial da Terra Indígena e principalmente às condições de assistência e recursos hoje
necessárias à manutenção do grupo, os grupos faccionais buscam na articulação com agentes
externos as condições para a substituição ou manutenção da chefia. Neste contexto fica
evidente como tais agentes acabam integrando a lógica faccional, a Justiça, com a intervenção
nos serviços em função de um processo eleitoral, a Polícia Federal auxiliando a transferência
de lideranças, e finalmente o MPF contrariando as ações do cacique “derrotado”, não na
eleição da aldeia, mas seu candidato a prefeito na eleição municipal.
Em Apucaraninha, os agentes externos parecem ter evitado uma atuação similar, não
participando em uma possível expulsão, ou mesmo não lhes foi requerido uma atuação neste
sentido. Eles procuram mediar a eleição e as disputas em torno dela, visando garantir iguais
condições aos candidatos, mas a partir dela e dos conflitos estabelecidos não tomam ações
mais diretas. O procurador inclusive, em reunião com grupo de estudantes da universidade, ao

63
Os números se referem ao número eleitoral dos candidatos, cujas candidaturas abrangem coligações de
vários partidos.
155

comentar o fato, disse arrepender-se de ter atuado no primeiro momento, avaliando como erro
de sua parte.
Analisando a atuação dos agentes externos até este momento, especialmente no que
tange a indenização, vimos que eles não estão afastados da “política interna”, ainda que
indiretamente relacionados à posição da chefia frente ao recurso, pelo tipo de acordo
estabelecido nos TACs. Através dele e das formas de negociação estabelecida, estes agentes
externos acabam levando a outras formas de apropriação do recurso da indenização,
intervindo na lógica da generosidade indígena ao manter o recurso durante mais de seis anos
longe da possibilidade direta de apropriação e distribuição dele através da chefia, o que por
seu turno poderia trazer outras consequências para a chefia pela fortuita exponenciação da
distribuição.
No caso de Ivaí, é a eleição municipal que causa o fortalecimento do movimento
faccional, e a atuação de órgãos externos é sempre assertiva quando demandados,
beneficiando um ou outro grupo, dentro da lógica kaingang. No caso de Apucaraninha, as
ações dos órgãos posteriores à eleição para cacique tentava buscar uma reconciliação entre as
partes, o que também tem outras implicações. Uma vez instaurado o conflito político não há
muita saída, ou se favorece um lado ao agir, ou o outro ao não se agir. Estar trabalhando com
o grupo é estar trabalhando com sua lógica. A “política interna” não se dá apenas dentro da
comunidade, tende a envolver todos aqueles em relação com ela.
Com base no contexto de Ivaí, Fernandes (2006) destaca que o chefe kaingang
articularia política e alteridade na série sociológica, ao se associar ou opor aos agentes
institucionais, com atributos de representação e mediação definidos pela relação com a
alteridade. Analisando os põ'i xin, que seriam a autoridade política de grupos domésticos e os
põ'í mbãg, as autoridades das comunidades, conclui:

O poder dos põ'í xin (pequenos chefes), tanto quanto o poder dos põ'í mbãg (grandes
chefes), é constituído em relação a expressões da alteridade, seja esta uma relação
diferencial entre grupos domésticos ou entre comunidades dispersas territorialmente.
A tarefa dos põ'í não é outra se não garantir a reprodução social através da
mediação-domesticação da alteridade, celebrada em processos rituais, ou predada
em situações de conflito. (FERNANDES, 2006, p. 39)

No capítulo anterior vimos caso em que se poderia caracterizar como a predação em


relação aos agentes externos, em situações de conflito, e as situações de “negociação” com
eles, e que sua não efetivação enquanto mediação-domesticação acaba recaindo sobre a
chefia. Quando o conflito é instaurado, a chefia que não promove a mediação-domesticação,
ou expulsando a alteridade interna, seja só ou através de agentes externos, ou incorporando-a,
156

por não ter condições políticas de fazê-lo, torna a alteridade não mediada, alteridade não
incluída.
Se, como sugere Clastres, a cisão entre os grupos ameríndios é constituinte a eles, e
entre os Kaingang ela é recorrente historicamente, vemos aqui uma forma como ela se
processa. O que move o conflito aqui é a moralidade, que inclui tanto a generosidade da
chefia e reciprocidade com as redes de parentagens e a ética sexual no comportamento da
chefia, o respeito às famílias. Se o cacique dá privilégio à correria e se mostra liberal quanto à
moralidade na aldeia, ele abre margem para o descontentamento por parcelas da comunidade.
No entanto, se ele fere o “andar certo na frente dos outros” que seria fundamento do papel da
chefia ao garantir o respeito entre as famílias, ele não pode mais se sustentar. Também está
em jogo, como vimos, a possibilidade de diferenciação material, multiplicada com a
indenização e a possibilidade de se acessar ao recurso, mesmo com dificuldade. Tal
apropriação também incide sobre a moralidade, a diferenciação aqui é vista com
desconfiança, pois vai contra a reciprocidade.
Desta forma, ao analisar a “política interna”, entendendo-a como um momento de
divisão política bem marcada, que tende a dividir também outras agências, externas ao grupo,
como seus potenciais aliados e beneficiadores respectivos, é importante ter atenção às formas
de moralidade que envolvem a liderança, sobre a qual ela faz sua política, mas também sob a
qual ela se submete ou deve se submeter, em sua ética pessoal, para garantir sua posição
enquanto liderança frente ao grupo. Podemos dizer, para bem simbolizar o grupo.
Quando, porém, se chega à “política interna” o papel de mediação do cacique passa a
ser suplantado pelo jogo faccional, não sendo mais possível incluir a alteridade. É uma guerra,
não como aquela em que se faz contra os brancos, aqui o inimigo é interno. Como coloca
Clastres, para a guerra são necessárias alianças externas. Se nenhum lado conseguiu fazê-la, a
solução só podia ser a que sempre se fez, ruptura política e fundação de outra aldeia, outra
unidade político-territorial.

4.2. CRIAÇÃO DA ALDEIA ÁGUA BRANCA

Infelicidade histórica: não havia mais espaço novo para se buscar. Vimos no primeiro
capítulo o histórico de restrição e tomada da terra dos Kaingang no processo de colonização.
Como vimos com Fernandes, a unidade político territorial kaingang acabou apropriando o
conceito de Terra Indígena imposto, de forma que é admitido apenas um cacique para cada
157

uma destas unidades. Além disso, o espaço da TI hoje é restrito, especialmente o espaço
passível de ocupação no modelo de aldeia. A própria aldeia Sede já era vista como grande
demais, com muitos moradores, especialmente nos últimos anos64. Isso trazia implicações na
própria dificuldade de se manter a proximidade de residência dos grupos familiares
estabelecendo a proximidade de residência entre afins, sem falar na dificuldade de terras para
plantio, e nas críticas referentes ao excesso de movimentação e bagunças. Assim, algumas
lideranças e também pesquisadores e observadores externos diziam que era necessária a
criação de outra aldeia. Resta a questão, poderia ser criada uma aldeia nova de forma
negociada com a liderança política da TI? Após a experiência da Serrinha, vemos que a
criação de espaços, de aldeias, não é algo que possa ser isento das relações de oposição
faccional. Reconhecer um espaço a uma liderança é dar-lhe maior status e melhorar sua
posição junto ao grupo que com ela irá residir. Ainda que trabalhe junto a ela, se está
potencialmente fazendo crescer o inimigo, tendendo a separá-lo de si, limitando as
possibilidades de mediação-domesticação do mesmo. Se as relações de alteridade são
fundamentais ao grupo, seguindo o modelo clastreano, elas também devem ser incorporáveis,
no modelo da predação da alteridade, sob o risco da perspectiva se inverter.
Após os acontecimentos narrados, seria impossível, e mesmo indesejável pela facção
perdedora a criação de um espaço como fora a Serrinha. Criar outra aldeia fora da área da TI
seria repetir uma oposição subordinada, que logo se veria esvaziada. Obviamente, o grupo
ganhador diz que caso os perdedores viessem pacificamente negociar uma solução neste
sentido seriam apoiados. No entanto, o caso da Serrinha mostra que este apoio é uma
negociação de autoridades, que ao mesmo tempo em que a reconhece, retira-a, regulando o
fortalecimento do grupo opositor, outro incluído, ainda que mal domesticado.
Dentro da TI, porém, havia um espaço anteriormente utilizado para a agricultura,
mas que por alguns anos não vinha sendo utilizado. É próximo ao Toldo Velho, o qual apesar
de ser passível de ocupação, implicaria a derrubada de mato nativo em recomposição, além de
ser de mais difícil acesso do que o local escolhido, à beira de um dos acessos principais à
reserva, entre as demais aldeias estabelecidas. A criação da aldeia Água Branca ocorreu em
agosto de 2011, tendo as primeiras famílias ali levantado suas casas. O nome foi escolhido em
referência a um córrego existente ali, com esta denominação, em Kaingang: Goio Kuprig.

64
Apesar de não haver indícios estatísticos de aumento na população em levantamentos oficiais realizados, e eu
não ter realizado levantamento de origem da população atual, não seria estranho haver certo inchaço
populacional decorrente da indenização, com o recebimento das parcelas em dinheiro, com a expectativa de
criação de oportunidades de trabalho e renda, bem como melhores condições de vida de forma geral na TI,
atraindo pessoas de outras TIs da região, fato apontado por lideranças e outros pesquisadores.
158

Este primeiro movimento a princípio é mais faccional, pelos indivíduos mais implicados no
processo da oposição que gerou a eleição. Ele é seguido por outro, em que se destaca a
diferença moral, a diferença de chefia e as parentagens neste novo espaço, com a mudança de
mais famílias de forma mais intermitente. Tanto que nove meses após a criação da aldeia,
quando estive em campo, algumas famílias ainda se mudavam para lá ou cogitavam a
mudança.
Há basicamente duas visões internas sobre o processo da criação efetivamente da
Água Branca, iniciado em menos de um mês após a eleição. Por um lado, em especial
algumas lideranças da Sede, o descrevem como centrado na figura de Levi, o que em si é
criticado, já que ele assinara documento junto ao MPF dizendo que não seria cacique, e não
concorrera à eleição (“não recebeu nenhum voto”). Por outro lado, outras pessoas indicam um
processo democrático, surgido da base da comunidade. Interessante que alguns interlocutores
localizam a demanda pela mudança, inclusive, partindo de mulheres, que teriam convencido
Levi e suas lideranças a criar uma nova aldeia. Neste sentido, já desponta uma motivação que,
obviamente política, é baseada em uma moral e na família, pois, como vimos no segundo
capítulo muitas das questões morais, como a crítica às “bagunças”, eram mormente
destacadas por mulheres, ainda que não exclusivamente por elas.
Tanto na Sede como na Água Branca, as mulheres com quem pude conversar,
normalmente mais velhas, indicavam a motivação moral para a criação da nova aldeia, seja
pelo excesso das “bagunças” na Sede ou a presença de brancos a ela relacionada. Uma mulher
mencionou especificamente a falta de respeito, quando do falecimento de uma de suas filhas.
Enquanto ela velava a filha, a festa corria do lado de fora, com rodeio e baile. Assim, ela
concluía que na Sede não respeitavam mais nada.
Esta mulher, idosa e moradora da Água Branca, pertencente a uma das famílias mais
importantes da TI, com irmão como liderança na Sede. Ela mencionava outras motivações
para a criação da aldeia, como o fato de o ex-cacique ter bagunçado e não ter assumido isso,
não respeitando mais a comunidade, já que ele não poderia continuar a frente dela depois
disso. Também o fato de o cacique Pedro não ser de Apucaraninha, assim ela não sabia da
vida dele, e com o caso narrado do velório, ela apontava que não respeitavam “os que
nasceram ali primeiro”.
No capítulo 2 mencionei a respeito da importância dos velhos, como uma posição
que pode se colocar sobre a autoridade do cacique. Tratei a parentagem como um grupo mais
fluido e com possibilidade de recomposição mais dinâmica, não necessariamente estruturada
em torno de um velho. Neste caso, a crítica parece ser justamente contra o não respeito em
159

relação aos velhos. Isso foi apontado também por outro velho, morador da Sede, após revelar
críticas que tinha sobre o cacicado da reserva a mim, apesar de não relacionar tal questão à
criação da Água Branca:

Lucas: Mas por que o senhor fica quieto e não reclama?


Interlocutor: é, porque... depois fico com medo de eles falarem assim: ah, mas você,
a sua prosa não adianta mais nada. Falar assim… Não, porque o velho, se ele for
meio sabido, ele tinha que dar conselho. Tem que dar conselho, pra autoridade:
vocês estão fazendo isso, vocês estão fazendo isso, não pode fazer isso, com a
comunidade. Senão a comunidade vai encima de você. Podia falar assim, mas
ninguém não fala nada.
Lucas: então... as... as autoridades não tão escutando os velhos mais?
Interlocutor: não! Não... mas de primeiro, pra fazer um serviço, um negócio bom
para os índios, a gente avisava: tem que fazer isso pra vocês, tem que fazer isso pra
vocês. Era assim. Mas agora não é mais.

Apesar de tal crítica não ser generalizada entre os velhos, ela indica um dos motivos
da insatisfação com a liderança atual. Ou seja, as citadas formas defendidas pelas lideranças
atuais como mais modernas e democráticas, nem sempre são vistas como tal, ou não são
valorizadas enquanto tal pelos velhos, e ressente-se de um desrespeito a eles e às famílias.
Este desrespeito aos velhos, no entanto, não é visto como derivado da idade da chefia, sendo
interessante a defesa deste interlocutor por um cacique novo, algum jovem que não tivesse
ainda trabalhado como liderança:

Interlocutor: Esses que já trabalharam de cacique, pra mim esses já não eram mais
nada. Eu ia falar assim. Agora vocês tem que escolher, agora vocês querem que
esses mesmos trabalhem conosco, mas vocês, pra mim vocês estão errados também,
vocês estão querendo fazer o índio brigar. Então melhor fazer outra autoridade nova.
Tirar todos esses que já trabalharam com os índios. Porque esses que já trabalharam
com os índios, muitos já não estão gostando mais deles. Então precisa colocar
outros, que nunca foram, entraram de cacique. Pra ver o que, como é que ele
trabalha com os índios. Eu ia falar assim. Esse Levi trabalhou de cacique, mas
também pegou muito dinheiro dos índios também. Pegava dinheiro da COPEL aí. Só
ele mesmo pegava.

Em sua opinião, portanto, havendo o contexto faccional, a briga entre os índios,


dever-se-ia optar por uma terceira possibilidade, de se fazer um cacique novo. No contexto
faccional dar apoio para um seria excluir o outro. Como a posição deste velho o colocava
entre os dois grupos, ele prefere um terceiro que permita a permanência da unidade política na
comunidade. Isso também seria favorecido pela queixa existente também a Levi, similar à
feita para Getúlio e Pedro. Levi também tinha erro.
Apesar disso, havia um reforço da moralidade na Água Branca, sem o destaque para
erros eventuais de Levi. A interlocutora citada criticava a presença de mestiços na liderança
da Sede. Outras mulheres e homens mesmo na Sede, criticaram a presença de brancos na
reserva. Na Água Branca só haveria índios puros, questão fundamental para sua diferenciação
160

moral. A criação da Água Branca cola a moralidade ao gradiente índio-mestiço-branco


reforçando uma identificação interna do grupo em oposição à Sede. Desta forma, apesar de
não haver necessariamente o foco nos velhos enquanto articuladores da parentagem, se
possibilita a visão de um privilégio moral a partir da presença exclusiva de índios puros.
Sendo a questão moral geralmente levantada ao se definir a experiência da Água
Branca, a religião não pode ser considerada como fundamento da criação e divisão dos dois
grupos. No capítulo 2 vimos com Almeida (2004) que a existência de católicos e crentes não
estabelece uma divisão, mas relações de complementaridade. Assim, por mais que o discurso
crítico às atuais lideranças-políticas da Sede seja por vezes próximo a uma moral evangélica,
prezando a família, contrário à “bagunça”, não necessariamente as pessoas que as colocam se
identificam com igrejas evangélicas, ainda que por vezes as mesmas tenham em algum
momento integrado algumas delas.
O não seguimento religioso predominante na clivagem das aldeias fica mais evidente
ao se considerar as lideranças e suas adesões religiosas. Na Sede, as lideranças-políticas a
princípio eram mais próximas ao catolicismo, dentro da configuração apontada deste,
enquanto representativo de uma conjunção de elementos cosmológicos kaingang, com o
sistema de curadores caboclos, apontada no segundo capítulo. Uma das lideranças-políticas,
enquanto eu estava em campo, se convertera à igreja Cristianismo Decidido, especialmente
como forma de tentar salvar seu casamento, em risco devido às “bagunças”. Isso, segundo ele,
teria gerado certo desagrado em outras lideranças-políticas mais próximas a ele, por impedir
que ele participasse de festas realizadas por elas, o que era importante ponto de articulação
entre elas como citado anteriormente. Também gerou alguns comentários jocosos por uma das
lideranças-políticas pois Levi é pastor desta mesma igreja, ainda que não realize cultos no
templo frequentado pela liderança em questão. A adesão a esta igreja específica por ele teria
se dado pela participação da esposa na mesma e facilitado pelo local de residência e do
templo, único existente na aldeia Barreiro, onde residia tal liderança. As lideranças-polícia da
Sede, são de diferentes denominações, ainda que predominem católicos. Lembremos também
que Leonardo, o primeiro vice-cacique indicado por Pedro, era quem cuidava do templo da
Assembleia de Deus.
Na Água Branca, as lideranças são de diferentes denominações, e se Levi é pastor,
isso não implica que sua igreja necessariamente tenha preeminência sobre as demais. Este
fato, porém, como foi afirmado anteriormente seguindo Almeida (2004), contribui tanto para
sua construção como liderança como para seu apoio efetivo, representando uma esfera de
articulação que não necessariamente passa pelas relações de parentesco. O discurso do próprio
161

Levi não tomava conotações de âmbito moral ou religioso mais diretamente ao explicar a
criação da Água Branca, sendo mais focado na questão da “política interna”, ou seja, as
relações entre as lideranças, seus conflitos e as facções, e na demanda da “comunidade” para
sua criação.
Uma das lideranças mais fortes da Água Branca era uma das duas pessoas que
articulavam o catolicismo oficial na Sede, antes da separação. Até alguns anos atrás eram
realizadas missas mensais na Sede, mas não me foi precisado se logo antes da cisão elas ainda
ocorriam. Segundo o outro homem responsável pela articulação com a Igreja, houve
desentendimento com os padres em projetos a serem implementados na aldeia, seguindo
críticas similares às feitas ao cacique, sobre apropriação particular dos recursos conseguidos.
Depois da criação da Água Branca, o catolicismo oficial se vê ainda mais enfraquecido, tanto
que durante o período em campo, observei a igreja aberta apenas no penúltimo dia, tendo sido
lavada na ocasião e depois novamente fechada.
Assim, se há alguma predominância evangélica na Água Branca, ela não é definitiva
e determinante. Podemos dizer que devido ao estopim do rompimento ter partido de uma
questão moral, e na medida em que o novo grupo se cria sobre este argumento, pessoas com
uma ética evangélica, integrando ou não efetivamente as “instituições” religiosas, tenderão a
simpatizar com a moralidade da nova aldeia. Assim, na medida em que mais pessoas assim
constituam o movimento, mais seu caráter moral será reforçado. No entanto, para além da
moralidade temos a facção, e pessoas podem aderir à nova aldeia privilegiando as relações de
parentagem ou outras questões pessoais. Como foi dito, o cacique ao invés de separar, precisa
agregar os distintos grupos, sendo a religião um dos âmbitos em que isso pode ser favorecido,
ainda mais em contextos de conflito, em que é preciso para se fortalecer, agregar mais grupos
para se poder colocar entre, enquanto chefia.
Além das questões morais e políticas, foi citada por alguns interlocutores a questão
estética panorâmica da Água Branca, espaço amplo, com vista ampla da região, diferente da
Sede, de onde não se vê muito além do que a serra à outra margem do Tibagi. Na Água
Branca, é possível ver ao longe, até a serra do Cadeado, ou seja, para além de 40 km de
distância. Assim, apesar de esta não ser uma questão recorrente colocada, parece ser
importante para alguns, com a valorização da vista de um horizonte amplo. Estes informantes
consideravam a aldeia Sede como um “buraco”. É importante notar que apesar de não ter sido
mencionada a questão estética neste sentido da aldeia Serrinha, ela também se aproxima de tal
paisagem, ainda que neste caso haja o predomínio da vista de fazendas. Apenas um
interlocutor da Sede mencionou um prejuízo similar em relação à Água Branca, dizendo que
162

lá não haveria sombra como na Sede, e sim muita poeira. Apesar de não haver arborização na
Água Branca como na Sede, até por suas características anteriores de área de plantio, ao redor
dela há capões de mata em maior quantidade e aparentemente mais bem preservados, com
vários pinheiros e caça, por exemplo.
O espaço da aldeia Água Branca foi diversas vezes destacado como próximo à antiga
aldeia do Toldo Velho, havendo assim, além da estética, certa tradicionalidade e originalidade
de ocupação, mesmo este Toldo estando localizado do outro lado de um córrego. Alguns
moradores destacavam o fato, por exemplo, de seus pais e avós terem morado no Toldo
Velho, sendo que alguns dos moradores haviam inclusive nascido e até vivido quando
crianças no local.
Foi citada também a questão da terra e a possibilidade de plantio nos terreiros ou
quintais, o que era impossibilitado na Sede em alguns casos, pelo espaço restrito e localização
de residência. O fato de a Água Branca ser um novo espaço possibilitou a proximidade de
residência de grupos domésticos, ou seja, casas de velhos, pais, tios, filhos e filhas, sobrinhos
e netos localizadas próximas, ainda que nem sempre em um mesmo pátio, mas em alguns
casos até mais afastadas de outros grupos domésticos. Isso era impossibilitado na Sede em
larga medida, pelas condições de aglomeração e localização física das casas de alvenaria, o
que torna o modelo de residência sujeito a negociação com vizinhos, aumento da densidade
populacional no espaço restrito, ou mudança da família para outro espaço. A criação da Água
Branca e mudança de várias famílias por outro lado, possibilitou ajustes neste sentido para
algumas famílias na Sede, ao negociarem casas de vizinhos que se mudavam.
Além do espaço “tradicional”, a legitimação da Água Branca era colocada sobre a
moralidade “tradicional”, reforçada pelo fazer valer “a lei” e pelo fato de só haverem ali
índios puros. Ali, havendo erro eles amarram no tronco. Como mencionado, esta forma
tradicional, ou representada como tradicional, incorporada a partir da política indigenista
(TOMMASINO, 1995, p. 179) e vista de forma geral como negativa na Sede, por ser cruel e
ultrapassada, seria usada como recurso até por não haver o espaço de uma cadeia na Água
Branca. Isso passa a integrar, porém, um discurso que articula “lei” e punição à maneira
tradicional kaingang. Pelo que pude levantar, no entanto, tal recurso dificilmente era
efetivamente utilizado, sendo narrado a mim apenas um caso em que teriam amarrado um
branco, pois já tendo engravidado uma menina da Sede, tentava namorar uma índia da Água
Branca. Foi proposto que se quisesse continuar com esta índia que fosse embora com ela, mas
ele não aceitou. Só o fato de existir esta possibilidade, porém, representa um significativo
fator de coerção. Mencionando-o, algumas pessoas da Sede, ainda que de maneira jocosa,
163

tentavam me influenciar para que não visitasse a Água Branca, passando uma imagem de que
lá teria índios “brabos”, retomando uma caracterização utilizada para caracterizar os índios
“não-civilizados”, antes do contato definitivo com a sociedade nacional através do SPI65.
Não civilizados ou guerreiros? Para Água Branca mudaram os dois organizadores do
grupo de Guerreiros kaingang da TI, assim como seus guerreiros. Mais um ponto a contar na
“tradicionalidade” da Água Branca. Voltarei a isso no próximo capítulo.
Uma fala de uma das lideranças da Água Branca explicita a diferença da experiência
da Água Branca em termos da lei e da presença de brancos:

Lucas: e está melhor aqui do que [estava] lá?


Isaías: aqui é melhor porque aqui eles quase não bebem, sabe. E lá embaixo [na
Sede] o álcool roda. Então todas as pessoas falam que aquele local parece que... é
local que ninguém toma providência. Dá uns problemas lá, dá uns problemas lá
embaixo e ninguém toma providência. E aqui não, aqui é calmo, é tranquilo, aqui
ninguém tem dor de cabeça. Aqui não tem confusão. Aqui desde que o dia que
entramos aqui ninguém deu dor de cabeça pra nós. Tudo tranquilo. Porque sempre
nós estamos conversando aqui, sabe. Porque todo sábado nós temos reunião. Se não
tem reunião no sábado, nós fazemos no domingo, talvez amanhã vá ter uma reunião
agora. Com a comunidade inteira. Aqui não para, aqui é direto, porque a gente tem
que conversar com eles, explicar como as coisas têm que funcionar, como as coisas
terão que ser aqui dentro. Porque sempre nós falamos que a lei aqui é outra. Nesse
local. Que a lei lá embaixo deve ser outra, aqui já é outra. Então através de todas as
coisas que a gente faz, a gente vai conversando com eles, com a comunidade, fala
que não é pra fazer isso, que não é pra fazer aquilo, que assim não pode.
Lucas: mas o que é diferente na lei?
Isaías: diferente é os brancos que entram muito dentro das aldeias. Dentro da área.
Lá embaixo é muita gente [que] já entra pescar, só que aquilo a gente não aceita.
Desde o dia que a gente entrou aqui, nem os brancos lá fora não entram. Muito
difícil.
Lucas: só eu.
Isaías: só você, mas só que você aí a gente já conhece, porque você faz trabalho
aqui. Mas só que lá dentro não, lá eles entram de qualquer jeito. […] Lá tem os
brancos que já entram, assim, para tentar namorar as índias. Aqui já quase
aconteceu, daí o pegamos, o amarramos naquele tronco lá, porque eles desrespeitam
a área indígena, e a área indígena tem que ser respeitada, porque ali dentro tem
autoridade também, então tem que respeitar a área indígena, primeira coisa que a
gente vai ter que fazer, é entrar e procurar as lideranças, os caciques. Porque se você
não fizer isso, os índios que estranham, pegam ele, fazem alguma coisa. Então
primeira coisa vai ter que ser feito assim. Em todo lugar. Porque a primeira coisa é
andar com respeito.

É destacado aqui também o diálogo, a conversa, as reuniões, as explicações à


comunidade. Isso é contraposto à Sede, onde dificilmente há contatos similares aos que
existem na Água Branca entre lideranças e comunidade em geral. Esta fala fecha um triângulo
formado pela indianidade, a moralidade e a espacialidade, todas ligadas a uma

65
Após verem que eu realizava as visitas independente disso, tal estratégia deixou de ser usada, e pelo
contrário, estas mesmas pessoas geralmente mostravam curiosidade em saber o que eu vira e o que haviam
me falado lá, avaliando e muitas vezes procurando “desmentir” de alguma forma a argumentação do outro
grupo.
164

tradicionalidade na Água Branca. Augusto e Levi colocam isso de forma bastante clara,
relacionando às reuniões periódicas à “lei” antiga e a uma forma tradicional de trabalhar com
a comunidade, vista como mais “democrática”, um democratismo que podemos considerar
baseado em outros aspectos ao do defendido na Sede, muito mais relacionado a uma
articulação com os brancos e uma “liberalidade” relativa. Se na Sede a fala do cacique é
direcionada aos que erram, como aconselhamento, na Água Branca ela é direcionada à
comunidade como um todo, discutindo com ela questões que surgem, como vimos no início
do primeiro capítulo, e como é citado aqui, explicando como devem funcionar as coisas ali,
como é a lei. A lei é outra.

Augusto: No tempo que eu era criança, aí tinha os caciques velhos, faziam reunião.
O negócio era mais... sei lá, acho que era mais lei na época. Quer dizer, melhor na
época. Daí cada um respeitava um ao outro na época. Hoje não, cada um, ninguém
sabe respeitar um ao outro. Então isso que eles [da Água Branca] querem fazer
respeitar isso aí de novo. Que sempre algum pai de família aí fala: e lá [na Sede] não
tem lei, lá é, lá não tem lei nem para os nossos filhos, nem para as nossas filhas.
Então essa que é a mudança que aconteceu isso. Na época, nessa mudança pra cá. Vi
alguma mãe falando: e lá não tem lei. Os próprios caciques andavam na bagunça
[…] E aí esse também, se você é uma autoridade e dá mau exemplo pra comunidade,
diz que a educação tem que partir de dentro da casa, de dentro da família da gente,
pra depois a comunidade, o povo daí. Só que lá não existia. Então a mudança é isso
aí. Então o que as mulheres falaram: não, vamos fazer uma aldeia nova e vamos
planejar isso e vamos nos mudar daqui. Aqui só tem índio puro aqui, só tem índio
puro. Fala na língua. Fala pouco português. E lá embaixo? Lá embaixo você vê, tudo
mestiço, tem até branco morando lá dentro.
Lucas: e aqui se um branco quiser vir, ou mestiço, daí não pode?
Augusto: daí a liderança que vai ter que resolver isso aí.
Lucas: mas hoje não tem?
Levi: Não só o cacique que vai dizer, a liderança. Porque a comunidade que vai
decidir. Que tem outra parte que o cacique tem que... faz assim, e faz. E tem outra
que a comunidade decide, junto com o cacique. Que nem [um] mestiço, eu não vou
decidir sozinho, quem vai decidir é a comunidade, se ele, a comunidade aceita ele
aqui, ou não.
Augusto: Já é diferente. A decisão aqui já é diferente. E lá embaixo, quem decide lá
é a liderança do cacique. Por isso que você não vê reunião, ele só chama a liderança
dele: ó, eu quero fazer isso, vocês concordam ou não? Se eles concordarem... Então
quem decide ali é a liderança, não é a comunidade. Então por isso. Aqui não, aqui já
coloca a comunidade. Por isso que existem essas reuniões. E eles, por causa disso,
não fazem reunião lá. Eles sabem que às vezes a comunidade vai dar [opinião]
contra. Então é isso.
Lucas: mas o Getúlio já não fazia [reunião] também?
Augusto: não. Até o próprio [promotor do MPF] fala assim: cheguem lá, vocês estão
na reunião [do Comitê], cheguem lá, chamem todo mundo, passa essa reunião pra
comunidade ficar por dentro, que o dinheiro é da comunidade, precisam saber o que
estão fazendo com isso. Só que nunca fizeram. Eles só fazem entre eles que estão
ali. E a comunidade fica sem saber. Hoje garanto que eles nem sabem que foi
aprovado esse recurso [para a festa] pra eles lá [na Sede]. E eles [aqui na Água
Branca] já não, quando vem de alguma reunião, da saúde, educação, já, se não fizer
a reunião na mesma hora, já faz no outro dia, [para] saber o que aconteceu. É assim.
Então a mudança, a diferença é assim, aqui, e lá não. Aí participam Associação,
liderança, a comunidade em geral.
Lucas: aberto a todo mundo.
165

Augusto: aberto, quem quiser falar alguma coisa, eles falam. Alguma reclamação, se
acha de acordo ou não, fica aberto.

Um maior “democratismo” que leva à presença maior da “lei”, que para além das
reuniões em si, é tornado discurso sobre uma maior legitimidade da própria liderança e da
aldeia no local, sabendo-se este valor ser caro aos brancos, fato que é destacado pela citação
do promotor do MPF, e utilizando-se e reforçando comentário que eu mesmo fizera sobre as
reuniões, por me chamarem a atenção em comparação com a Sede. Se na Sede o
“democratismo” se dá pela liberalidade, aqui ele alcança a rigorosidade da lei. É alcançado
por vias distintas. Enquanto na Sede se procura a articulação entre as parentagens na liderança
(o que não é sinônimo de representação) e na concessão de trabalho na mesma lógica, na
Água Branca há a reunião aberta a todos. Como descrito na introdução, há efetiva
participação inclusive de mulheres nestas reuniões, ainda que não seja possível avaliar a
consideração efetiva que se faz dos diferentes discursos, por ser toda feita em kaingang 66.
Outro fator muito destacado relativo à “lei” era a proibição da venda de bebidas
alcoólicas na aldeia Água Branca, contrastada à permissividade da Sede, relacionada às
“bagunças”. Destaque-se que isso não representa uma proibição do consumo de bebida, mas a
proibição da venda na aldeia, e um consumo permitido no âmbito familiar, bem como fora da
aldeia, desde que isso não implicasse em bagunça na aldeia. Assim, foi mencionada a
proibição de circulação de motos e veículos após a meia noite, sob pena de apreensão do
veículo e prisão ao tronco até o amanhecer, ainda que não tenha verificado sua efetividade.
Tratar-se-ia aqui de uma lei acima das próprias famílias tomadas individualmente, ou seja, a
lei passa a incidir sobre todos “indiscriminadamente”, independente de reclamação específica
caso a caso, como na Sede. Ainda que isso seja uma demanda da “comunidade” dada em
reunião, maior autoridade às lideranças acaba sendo reconhecida.
Esta forma de atuação da chefia na Água Branca é vista como mais tradicional,
resgatando o modo de fazer dos “caciques velhos” e adicionada a outros fatores que
representariam a tradição. Para além da tradicionalidade, representa outra forma de fazer
política, focada no respeito à família. Como vimos no capítulo 2, na Sede, a lei funciona a
partir da família, ou seja, são as famílias que são em primeira instância responsáveis pelos
filhos. Mas aqui temos que na Sede “não tem lei nem para nossos filhos, nem para as nossas
filhas”, seja na não tomada de providência em determinados casos, como diz Isaías, ou no
66
Havia acusações, por exemplo, por lideranças da Sede de que as lideranças da Água Branca passavam
informações falsas aos moradores de lá. Se há nestes comentários evidente conotação política, não deve-se
desconsiderar a possibilidade de controle sobre informações pelas lideranças da Água Branca da mesma
forma que na Sede. Algumas informações por exemplo, que obtinha de diferentes lideranças em uma e outra
aldeia sobre algum ponto específico eram incompatíveis.
166

mau exemplo dado pelos caciques. O plural aqui se coloca porque Getúlio passou a ser vice
de Pedro67. Assim, não basta neste caso haver a posição de cacique para garantir o respeito
entre as famílias, mas é necessário o exemplo moral. A este exemplo moral é seguida a
existência apenas de índios puros, que falam em kaingang entre si. Os brancos, como diz
Isaías, vem tentar namorar as índias.
O fato de haver apenas índios puros é moralmente marcado. Vimos no primeiro
capítulo ao comparar com o contexto analisado por Gow (1991), como existe em
Apucaraninha um discurso de classificação índio-mestiço-branco baseado no sangue,
passando de geração em geração, que implica em uma diferenciação de caráter brabo-
civilizado, ou mais propriamente brabo-bonzinho. No entanto, na prática os comportamentos
que acabam por interferir no posicionamento de um indivíduo no gradiente, podendo um
mestiço vir a ser considerado branco puro mantendo seus filhos a categoria de mestiços, ainda
que a mãe deste tenha sangue de branco, e com base nos comportamentos, o ser branco não
necessariamente exclui o ser índio. A oposição política poderá recair sobre a classificação e
passar a ser considerada a relação de sangue ou a passagem de uma categoria a outra por
afastamento em relação àquele que classifica.
Um de meus interlocutores da Sede procurou desmentir o fato de na Água Branca só
haver índios puros dizendo que haveria dois “brancos puros” residindo na Água Branca.
Diferentes posições, diferentes leituras. Este interlocutor procurava indicar a mim o que seria
a “mentira” da Água Branca. O que ele indica é um afastamento em relação a si próprio, por
razões políticas, utilizando o gradiente identificador em casos em que isso é possível, ou seja,
nas famílias em que há alguma ascendência branca ou mestiça no fator sangue. Por isso, pode
considerar alguns indivíduos como brancos. Neste caso, como em outros mencionados, a
acusação era de que “o pai do fulano é branco puro” não se ressaltando o fato do fulano ser
mestiço.
No discurso da Água Branca, para além do predomínio efetivo dos índios puros
enquanto substância (afinal seriam apenas dois “brancos” entre tantos índios puros), está se
falando de uma indianidade com base na moral. Antes do sangue, é a moralidade, o respeito
às famílias, a lei, e em último caso o tronco para amarrar aquele que erra que está sendo
destacado. Por isso, não há um impedimento à mudança de mestiços à nova aldeia, desde que

67
Segundo Leonardo, então vice, ele haveria decidido renunciar da posição após alguns meses devido ao
trabalho ser muito puxado, tendo que viajar constantemente acompanhando o cacique. No entanto, ouvi
boatos entre lideranças-polícias da Sede de que ele também “bagunçara”, podendo ter saído para evitar maior
enfraquecimento do grupo político com base em erro de suas lideranças. Pedro ficou alguns meses sem vice
até colocar Getúlio na posição.
167

seja aprovado pela comunidade, ou seja, se forem moralmente aprovados, ainda que tal
aprovação também passe pelas relações de parentagem estabelecidas. Puxa-se a indianidade
com base na moralidade.
De forma resumida, podemos dizer que o que legitimaria a criação da Água Branca é
a crítica à Sede em relação à moral, ao modelo de chefia e também envolvendo a parentagem,
com a defesa de outro modelo na nova aldeia. A moralidade inclui a questão da indianidade,
com a crítica da presença de brancos na Sede e a defesa da presença de apenas índios puros na
Água Branca. Também é relativa a uma lei distinta, com utilização do tronco e moralização
das condutas que pode inclusive vir a ultrapassar o âmbito da parentagem ao punir. A
parentagem é questionada na Sede na medida em que o cacique Pedro não é de Apucaraninha,
não se conhecendo sua vida, apesar de ele estar a mais de 20 anos residindo ali. Finalmente, o
modelo de chefia é criticado ao não se haver mais respeito dentro da aldeia Sede, tendo as
próprias lideranças bagunçado e feito festa em momento de luto. Todos estes elementos são
vistos como integrantes a uma tradicionalidade kaingang. A defesa de um modelo distinto está
necessariamente vinculada a um novo espaço, já que com a perda na eleição a liderança ficou
impossibilitada de mudar a situação na Sede. Antes de aprofundar a questão das formas de
liderança levantada neste tópico, cabe refletir o que representa a criação desta nova aldeia
dentro da TI.

4.3. DUAS COMUNIDADES? OS PARENTES QUE ESTÃO PRA LÁ.

Com o uso recorrente do termo comunidade para caracterizar os moradores na Água


Branca, procuro avaliar uma distinção nativa para as duas aldeias através deste termo:

Lucas: então vocês consideram aqui, a Água Branca, como uma comunidade
diferente, separada?
Augusto: é
Lucas: mas daí, você por exemplo, mora lá, mas está aqui, faz parte daqui ou faz
parte de lá?
Augusto: tanto faz. Eu tenho parente que mora lá. Não tem como dizer que eu não
vou lá. Eu acho que é assim. Os que estão lá [na Sede], as lideranças que estão lá,
têm parentes aqui também. O Getúlio é o vice lá, o cunhado dele mora aqui, é o
[Isaac], que é o [presidente] da Associação [dos moradores da aldeia Água
Branca68]. Então os de lá tem parente aqui e os daqui tem parente lá.
Lucas: mas mesmo assim é... outra comunidade.
Augusto: e foi nascido tudo aqui, não tem como separar, não tem fronteira. Daí eu
fico pensando, imaginando. Eu que já... já sou macaco velho, já entendo um pouco
de lei, essas coisas. Eu já [teria] feito acordo há tempo já, mas com dó da

68
A criação desta associação será tratada adiante.
168

comunidade. Dó das crianças aí, ó. E, então, agora não sei. Eu acho que não tem
fronteira.

Acompanhando esta fala, não haveria sentido em uma separação entre as aldeias,
uma vez que as relações de parentesco são entrecruzadas. As visitas de moradores da Água
Branca à Sede são de fato comuns, ainda que muitas vezes o contrário não se dê, em especial
pelas lideranças-políticas e polícias da Sede. A própria criação da Água Branca pode ser
colocada justamente como uma estratégia de não ruptura definitiva com os parentes:

Lucas: mas daí, vocês vieram pra cá, e por que foi escolhido esse lugar aqui?
Antônio: olha, foi escolhido esse lugar aqui, pra nós não entrarmos em conflito com
nossos parentes. Que deu um... Aí nós [tivemos] que nos afastar. Pra não acontecer
nada.
Lucas: vocês não estavam concordando com o que estava...
Antônio: não, nós estávamos concordando... pra... fizeram eleição, entraram em
conflito. Aí falei: vamos escolher um lugar aí, escolher um cacique, aí foram se
reunindo, conversando. Até que, enfim, nós escolhemos esse lugar. O cacique Levi
veio, junto. Pra nós não entrarmos em conflito com nossos parentes. Porque se nós
estivéssemos lá, parece que... Até agora está assim! Até agora está assim.
Lucas: mas você vai sempre pra lá, não é?
Antônio: sempre eu vou pra lá. É que eu tenho filho morando lá. Aí eu vou lá
passear. Só que eu não vou pra encher o saco de ninguém. Vou lá, eu chego com
respeito. Respeito o lado de lá. A melhor coisa que tem é esse aí. O respeito, hoje.

Afastaram-se para evitar conflito, mas a briga com os parentes continua até o
presente. Sem pretender estabelecer um detalhamento das relações de parentesco entre os
moradores ou lideranças das aldeias, praticamente todas as lideranças tem parentes na outra
aldeia. São filhos, irmãos, cunhados, tios, avós, netos, que se separaram, permanecendo
juntos, ainda que em outra aldeia. Assim, é recorrente a fala do medo de que saia briga entre
os grupos, já que se têm parentes de ambos os lados:

Hélio: Até fico com medo de algum dia dar alguma briga viu. Porque eu tenho os
filhos também. Tem meus filhos que são contra aos outros. Ó, esse rapaz meu mora
lá. Tem mais outros dois, lá do Barreiro, mora lá. E tem um, ó, tem um que é do
cacique, o mais novo, o mais novo é companheiro do cacique [, representante do
cacique no Barreiro]. Os outros já são do lado do... desses que tão morando [na
Água Branca]. Mas eles não estão bem, com esses outros, com o cacique. Então eu
penso que assim, eu penso, algum dia, eu estou com medo de sair uma briga.

Pelo mesmo motivo, destaca-se a “dó” ou “tristeza” pela (parte da) comunidade que
está na Água Branca, por não terem energia elétrica ou água nas casas, caracterizado também
como “sofrimento”.

Hélio: é, tem outros netos pra cá. Tem neto acho que não tem quantos netos aí. […].
Então fico... algum dia fico triste, por causa disso que a turma se esparramou pra lá.
Levaram... eu tenho lá um primo, primo-legítimo 69. Olha tem muitos índios... eles
tomam banho com água morna, eles têm geladeira, tem televisão, levaram, mas está

69
No caso em questão o interlocutor esclarece que se tratava de um primo paralelo por parte de mãe.
169

tudo parado lá, sem rádio, sem falar nada. Até fico... esse meu primo, já é velho
também, mais velho do que eu. Trabalha, parece que ele não trabalha mais. Esse um
quando toma banho com água morna, de tarde, de noite. Mas de certo ele está
tomando banho com água fria, eu penso assim, viu. Pra comprar alguma coisa não
sei se ele sai a pé. Não sei como é que ele está fazendo lá.

Mesmo sem concordar com a mudança para a Água Branca, o sentimento em relação
aos que para lá foram se mantém desta forma.

José70: eu não vou lá [pra Água Branca] também. Meu pai vai morar lá também. Ele
tem casa aqui, está fazendo casa lá. […] Acabando de terminar a casa, diz que ele
vai lá.
Lucas: e você vai também, ou não?
José: tsc, tsc. Como é que eu vou deixar minha casa aí? Tenho minha casa aí, eu vou
deixar para os outros aí?
Lucas: e ele não está indo, deixando a casa?
José: eles estão vendendo.
Lucas: e você não quer vender?
José: eu não quero vender, não fui eu que fiz aquela casa. Foi o governo que fez pra
mim. Não pode vender aquela casa.
Lucas: mas tem um pessoal que vendeu, não?
José: vendem, eles venderam bastante casa aí. Tsc, tsc, tsc... lá não tem água, não
tem energia também.
Lucas: mas por que é que teu pai quer ir pra lá?
José: não sei, rapaz... eu não converso com ele não. Falar alguma coisa pra ele, ele
fica brabo comigo.
Lucas: mas por quê?
José: porque eu estou aqui sozinho aqui. Do Pedro, eu estou do lado do Pedro. Mas
o Pedro é cacique daqui, então tem que estar junto com o cacique daqui, com o
Pedro aqui. Não vou atrás de quem perdeu, vou ficar com quem ganhou de cacique.
[...]
É aqui é duro, rapaz. Todo sábado eles vêm aí... como é que eles foram embora,
como é que eles vêm aí? […] todo sábado à noite eles vêm aí. Não querem sair
daqui não, rapaz... Eu tenho minha casa, tem água, chuveiro, tem geladeira,
televisão, tenho rádio. Levar tudo, meu rádio, aí estragar lá?
Lucas: nem vai funcionar, não tem energia lá.
José: só se eu tiver dinheiro eu vou lá, mando a COPEL colocar poste pra mim lá.
Instalar uma energia, daí eu vou lá, mas cadê a grana pra eu fazer lá? Não tem.
Lucas: mas tem mais parente pra lá?
José: tem meu irmão que foi embora.
Lucas: mas daí eles vêm pra cá?
José: eles vêm, amanhã eles vêm aí, vão fazer campeonato aqui também.

É verdade que estas falas não eram generalizadas, havendo alguns que diziam que os
outros foram à Água Branca por burrice, que não conseguiram nada e iriam penar com o
cacique Levi. No entanto, acredito que elas e os comportamentos a elas relacionados,
indiquem que a separação das aldeias não é radical no sentido das parentagens como definidas
neste trabalho. Ao lermos as falas indígenas colocadas nesta seção, vemos que os que estão na
outra aldeia são parentes, e há mútua preocupação com os que estão na outra aldeia. Assim, a
divisão das aldeias ainda permite a manutenção de laços de consanguinidade. No entanto,
houve uma alteração no sentido da moralidade na criação da nova aldeia. A partir daí,
70
José tem em torno de 35 anos, morador da Sede.
170

transforma-se também a própria convivência cotidiana, que será distinta à da Sede, podendo
reforçar uma outra esfera de sociabilidade.
Para entender o que seja esta convivência, podemos nos referir ao conceito de
conviviality usado por Joana Overing e Allan Passes (2000) ao estudar povos ameríndios.
Segundo eles seria algo próximo ao conceito latino de convivir. Esta dimensão da socialidade
se daria no contexto cotidiano, no cuidado, afeto, dos sentimentos, nas relações de
mutualidade e generosidade, onde não teria lugar a predação ontológica. No âmbito da
conviviality, seria destacado o ideal de viver bem e sentimentos morais relativos a ela, sempre
relativos ao íntimo e pessoal espaço harmonioso de relações, em uma estética característica
prezada.
Seguindo esta linha de análise que pode ser denominada de “economia da moral e da
intimidade”, Santos-Granero (2000) elabora uma tipologia analítica sobre a fissão de grupos,
com base em diversos autores e grupos pesquisados. Identifica que as condições gerais dos
grupos que se fissionam apontadas pelos pesquisadores geralmente recaem sobre a
demografia, que causaria a ruptura ou por competição de recursos naturais ou
complexificação social, sendo que esta causaria diminuição da ética de parentesco
(relatedness), crescimento de relações fragilizadas entre afins ou multiplicação de grupos com
potencial faccional. Diferentemente de tais proposições, o autor defende que haveria um ciclo
de desenvolvimento da conviviality ameríndia. A ruptura seria em função da busca por uma
solidariedade ideal, baseada na comensalidade, mutualidade e ética do parentesco, no
estabelecimento firme de ideais e objetivos para se alcançar uma comunidade perfeita, bonita,
real. Estes ideais não seriam inalcançáveis, mas trariam em si o germe da destruição, pois a
intensidade da conviviality faria com que, pelo próprio ideal formulado sobre ela, não fosse
tolerada a desarmonia e o conflito na comunidade. A conviviality começaria a esgotar-se
assim que é atingida.
No modelo de Eduardo Viveiros de Castro (2000) da “economia simbólica da
alteridade”, por outro lado, a afinidade é englobante, valor genérico, o qual tem que ser
atualizado (nunca esgotado) através do parentesco, relação construída sobre o fundo da
alteridade. O autor aponta que não se trata exatamente de dado e construído, utilizando-se do
referencial de Roy Wagner, já que na experiência humana todo dado deve ser construído
como tal, e que se trataria mais do englobamento da consanguinidade pela afinidade, no
modelo de hierarquia de Dumont (2008). Como vimos no segundo capítulo, ao mesmo tempo
em que existe uma linha que desce em direção à consanguinização, mesmo que esta nunca
171

esgote a afinidade, sempre englobada por ela no nível anterior, existe uma linha que sobe no
sentido da afinidade.
Santos-Granero (2000) afirma que o grupo da “economia simbólica da alteridade”
criticaria o da “moral e da intimidade” por este, indicando que a consanguinidade seria
preponderante como “dado”, estabelecida pela consubstancialidade, e olhando desta forma
ignoraria os conflitos, idealizando a vida comunal ameríndia.
Viveiros de Castro toma esta discussão e divisão da seguinte forma:

Enquanto algumas sociedades amazônicas (e/ou seus etnógrafos) parecem dar


grande ênfase à diagonal descendente de meu metadiagrama, isto é, ao vetor de
consanguinização que guia o processo do parentesco, outras mantêm seus olhos
firmemente voltados, por assim dizer, para a fonte e condição geral desse processo:
a afinidade potencial. Tal diferença de orientação dentro de um mesmo quadro
cosmológico explica, a meu ver, os contrastes que estão constantemente vindo à tona
na etnografia da região: pacifismo ou belicosidade, mutualidade íntima ou
reciprocidade predatória, xenofobia ou abertura ao outro, visada filosófica
intramundana ou extramundana, e assim por diante. Esses contrastes só podem
mesmo vir à tona: eles são, precisamente, superficiais. Em que pese toda a sua
saliência intuitiva, não passam de visões parciais de uma única estrutura geral que se
move necessariamente nos dois sentidos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2000, p.34,
grifo do autor)

Podemos dizer, então, que Santos-Granero privilegia uma dimensão da linha que
sobe em direção à afinidade potencial em função da linha que desce em direção da
consanguinidade, com base no conceito de conviviality. Ele irá propor uma leitura dos
conflitos e cisões de grupos, mostrando que nos processos temporais há construção e
destruição da conviviality. Voltando a Viveiros de Castro, podemos dizer que a conviviality
ao começar se esgotar assim que atingida seria a atualização da consanguinidade trazendo o
germe da contra-efetuação da afinidade.
Minha leitura sobre a cisão em Apucaraninha baseou-se em dois conceitos:
parentagem e moralidade. O primeiro advindo da análise de Fernandes (2003) sobre os
Kaingang, verificada em campo, mas com uma característica mais fluida, que caracterizaria
um processo de consanguinização, com importante relevância política, como vimos na seção
anterior, quando um grupo tenta articulações para a substituição do cacique. O segundo
conceito foi trazido a partir de meus dados de campo, pela ênfase percebida na questão da
“lei” e os julgamentos sobre comportamentos adequados dentro da comunidade, com base no
respeito e na reciprocidade, questões também vistas como fundamentais no processo de
destituição de Getúlio e também presente na avaliação de Pedro. Recorri a duas
conceituações, uma de Lodoño Sulkin (2012) e outra de Teixeira-Pinto (1997) para discutir o
que seria tal moralidade, atentando para a relatividade das avaliações morais, dependendo da
172

reflexividade dos sujeitos, mas também para seu peso representativo de valores gerais em um
determinado período e para determinadas condições do grupo, trazendo para a prática social
elementos mais ou menos objetificados. Vimos nos dois primeiros capítulos como o respeito e
a generosidade com os parentes são importantes na atualização da consanguinidade e da
própria indianidade.
A parentagem possibilita pensar neste caso a ruptura política em sua dimensão
histórica, da relação entre os indivíduos. Quando do momento de divisão da aldeia, ela se
torna facção e causa em última instância a cisão. Mas a criação da nova aldeia não é apenas
isso. Caso fosse, teríamos um contexto similar ao de Ivaí (FERNANDES, 2006), onde depois
da crise política, há um movimento de saída do grupo perdedor, mas que não se sustenta, há o
retorno, que culmina em sua expulsão para outra TI. Na crise que culmina na criação da Água
Branca em Apucaraninha este movimento político é similar. No entanto, a efetiva criação da
Água Branca representa algo mais. Até porque vimos que as parentagens também perpassam
as duas aldeias.
A moralidade principalmente no âmbito do relacionamento entre as famílias na Água
Branca é tida como diferenciada da existente na Sede bem como sua possibilidade de
efetivação através das lideranças. Ali se garante o respeito, visto como já inexistente na Sede.
Ali se faz valer a “lei”, referida ao passado. Ali se garante através disso que as relações sejam
propriamente indígenas, kaingangs. Para além de uma estratégia política que propicia o
estabelecimento da chefia na nova aldeia, se trata de outra experiência moral neste novo
espaço, um espaço-moral diferenciado.
A moralidade pode ser tomada, portanto, como um referencial mais geral de valores,
representado na “lei”, e que desta forma, no contexto em questão se torna um importante
recurso discursivo político, mas também produz realidades distintas. Sendo o referencial
simbólico, com elementos objetificados, que motiva o evento da deposição do cacique e
criação da nova aldeia, também nesta produz práticas e relações, sociabilidades, diversas,
neste novo espaço.
Esta diferenciação se dá pela forma da “lei”, das formas de conduta entendidas como
respeitosas. Mesmo quando se destaca a exclusividade de residência de índios puros ali, isto é
puxado pela moralidade neste sentido, de evitar a bagunça, contrapondo à falta de respeito na
Sede, inclusive ou principalmente pelas lideranças-políticas. Na medida em que se trata de
uma conduta defendida de forma mais generalizada na nova aldeia, poderíamos ver aí uma
aproximação da conviviality, constituindo um espaço de residência comum e diferenciado. Ela
é mais voltada para a forma de relação entre as famílias, o respeito entre as famílias, que
173

possibilita a vida em conjunto, neste sentido relativa a outro nível de consanguinização da


afinidade. Neste processo de consanguinização se garante a indianidade deste novo espaço,
informada portanto, pela reciprocidade, o respeito e o próprio conviver garantido nestas duas
esferas. Isso resultou como vimos neste capítulo de uma ruptura com a moralidade enquanto
valor mais geral, na avaliação de parcelas da população da TI. Ao haver o erro do cacique e o
não respeito, com a festa em momento de luto, a negação de compadrio em privilégio de um
jogo de futebol, e a condição mais geral na aldeia da permissividade das bagunças e
lideranças-políticas que as incentivam, fazendo também suas festas e bebendo, há uma visão
de que não há mais respeito. A proposta é o novo espaço com privilégio às famílias e o
respeito mútuo, proibindo ou procurando conter qualquer elemento relacionado à bagunça:
bebidas, circulação à noite e não índios.
Esta moralidade neste novo espaço não impede a sociabilidade, o parentesco, a
consanguinização ou afinização entre as pessoas das duas aldeias. Isto fica explícito nas falas
apresentadas nesta seção. Pode-se dizer que a residência é um aspecto passível a atualizar a
consanguinidade, mas não elimina necessariamente outros. Por isso, mantém-se potencial a
junção política das aldeias em outra conjuntura. Por isso na Sede mantém-se a preocupação
com os que foram para a Água Branca, pela ausência de recursos tidos como essenciais nesta.
Mas são parentes, e podem contar com o apoio dos seus na Sede. Ou seja, o plano da
solidariedade, generosidade e afeto perpassam as aldeias junto com as relações de parentesco.
Os sobrinhos de José que moram na Água Branca foram tomar banho na casa dele na Sede,
assim como uma tia de dona Maria que mora no Barreiro foi lavar roupa na casa de Maria na
Sede por não haver água no Barreiro. Assim, não há um rompimento de parentagens, que se
mesclam e permeiam as aldeias, mantendo os vínculos existentes, ainda que possam ser
enfraquecidos em alguns casos, justamente pelo rompimento da convivência comum mais
próxima.
No entanto, se existe tal permeabilidade, ela não é generalizada. À medida que se
aproxima das parentagens que mais apoiam as chefias, que integram suas lideranças, se acirra
a oposição. Um caso me deixou um tanto impressionado. É comum o uso de curadores
indígenas e brancos por alguns indígenas, como citado anteriormente. Um dos usos que se faz
deles diz respeito à saúde. O caso: a neta de Benedito, morador da Sede e forte apoiador de
Pedro, estava com lombrigas. Ele a levou a um curador indígena residente na Sede. Este teria
aparentemente tratado a menina. No entanto, ela não melhorou. Benedito levou-a então a uma
curadora branca, nas proximidades da reserva, sendo que já tinha longo histórico de consultas
com ela, tendo ela batizado seus filhos, sua comadre, portanto. Esta curadora dissera que o
174

outro curador nada fizera para tratar da menina. O motivo ela diz: “aquele curador é Água
Branca”.
Rosa (2006) já apontou a existência de rivalidades e desconfianças entre curadores e
kujãs no contexto kaingang, especialmente decorrente das diferenças de seus guias. No
entanto aqui vemos a rivalidade colocada em uma argumentação política do mundo kaingang
neste contexto específico. Esta forma de considerar, como ser Água Branca, é por vezes
utilizada entre os índios neste contexto de maior oposição. Se a Água Branca é um espaço de
outra moralidade, a adesão ao grupo político da nova aldeia não necessariamente passa pela
residência, o espaço, e, assim, à sua moralidade necessariamente. O plano da parentagem
pode ser mais relevante nestes casos, o faccionalismo se sobrepõe. Neste caso, a ação do
curador, no processo de cura, foi tomada como orientada pela facção.
A parentagem se torna mais relevante neste âmbito que a moralidade diferenciada. A
Água Branca não é um espaço, mas um grupo político ao qual se pertence. Neste âmbito da
“política interna” se é de um lado ou de outro. A mudança de lado é traição. As lideranças
deste grupo são sustentadas pelos moradores da Água Branca enquanto espaço, já que sem
este espaço, seria puramente a facção, uma oposição. Com este espaço, as lideranças se
tornam chefia. Mas elas continuam a ser facção, e como tal englobam em suas relações não
apenas moradores da Água Branca.
Por isso há críticas quanto à moralidade da Sede entre as lideranças-polícia desta. A
moralidade não é o fator preponderante para elas. Trabalham no âmbito da parentagem, da
facção, e consideram antes o histórico das relações. Por outro lado, outras pessoas trabalham
em determinado momento focando a moralidade, podendo esta ser um fator decisivo para sua
mudança para a nova aldeia, ainda que isso também siga em alguma medida as relações de
parentesco e parentagem.
Desta forma vemos que a questão moral é fundamental ao estabelecer a nova aldeia e
a relação diferenciada de seus moradores, representando um vínculo de convivência
(conviviality) mais marcante. No entanto, ele não substitui outras formas de consanguinização
e relação em todos os casos, havendo possibilidades de trânsitos e afetividades para além da
divisão de aldeias. A ruptura de afetividades mais evidentes se dá com relação às chefias. E
estas passam a ter um papel também relevante na definição do espaço moral.
Tomando a conceituação de que é o cacique quem garante o respeito e a moralidade
entre as famílias, a liderança na Água Branca é o que garantiria a lei diferenciada, ainda que
não seja exclusivamente tal chefia que defina tal lei. Se após a criação da Água Branca tivesse
sido feito acordo com a Sede ou expulsas as principais lideranças, a nova aldeia poderia
175

acabar com o mesmo posicionamento político da Sede. Assim, haver um cacique outro é
importante para haver o espaço-moral outro.
Por este novo espaço-moral, com outra chefia, estar no que seria a unidade político-
territorial antes estabelecida, ou seja, a Terra Indígena, ele apresenta uma afronta à chefia
deste espaço. Assim, permanece a tensão faccional. A chefia da nova aldeia para além de ser
constituída como representante de outra moral, também é constituída enquanto grupo político
para o exterior. E a partir deste posicionamento terá que buscar os benefícios para o espaço da
aldeia para garantir a sua posição de chefia no espaço-moral, já que terá que operar nos
mesmos moldes que a chefia na Sede, ou seja, terá que garantir os meios de obtenção de renda
e subsistência, garantir sua generosidade, e ainda mais, terá que buscar os serviços básicos a
esta população: saúde, educação, energia elétrica, água encanada, para começar...

4.4. MANUTENÇÃO DA FACÇÃO OU A FORMA DE FAZER POLÍTICA

Antônio: Agora está assim, cacique Pedro não está tentando acordo com Levi. Nós
já tentamos fazer acordo aqui, lá com eles, mas não conseguimos. Até agora ainda
está assim.
Lucas: mas por que não dá certo?
Antônio: não dá certo porque eles... não querem obedecer a nós aqui, o Levi, não
querem fazer acordo. Nós tentamos fazer acordo com eles. É pra nós não... . Perdoar
um o outro, pra nós não brigarmos. Até agora não fizeram acordo ainda. Essa
indenização da COPEL. Tudo isso. Hoje nós estamos... hoje vou fazer três anos sem
ter... energia, sem nada71. Lá são os outros que estão usando a energia lá [na Sede], e
nós estamos só por aqui. Então eles têm que ver aquele ali. Eles têm que ver aquele
de lá e fazer um acordo com a gente. Trocar uma ideia, vamos fazer isso, um projeto
pra cá... Agora está assim.

As lideranças da Água Branca afirmam tentar acordo com as lideranças da Sede,


enquanto as lideranças da Sede afirmam que as primeiras nunca as procuraram, e eles mesmos
não os procurariam, uma vez que foram os da Água Branca que foram embora, “porque
quiseram” não tendo ninguém os mandado para lá, para sofrer. As lideranças da Água Branca,
afirmam procurar uma reaproximação através de outros meios, portanto, como a promoção de
campeonatos de futebol, utilizando o “campo de cima” da Sede, próximo ao escritório. A
confraternização conseguida, no entanto, é possível apenas no nível da “comunidade”, não das
lideranças, sendo que os times mais ligados a elas não participam de tais campeonatos72.

71
Ele considera o tempo em que morava na Serrinha, aproximadamente dois anos.
72
É interessante notar que estes campeonatos são principalmente femininos, que dificilmente são organizados
pela liderança da Sede.
176

Residindo na mesma TI, as lideranças da Água Branca enfatizam os direitos iguais


que a população desta aldeia teria sobre benefícios e especificamente sobre a indenização, um
recurso que “é para todos”. Neste âmbito, os órgãos oficiais, FUNAI e MPF, são acionados e
tem que tomar um posicionamento, sendo colocados necessariamente na “política interna”,
mesmo que seja ao tentar fazer cumprir o texto dos TACs já acordados, isto é ainda mais
reforçado na medida em que estes órgãos passam a ser vistos como os que autorizam os
gastos.

Augusto: a Água Branca tem direito nessa indenização, alguém tem que tomar
providência, é a FUNAI, o Ministério Público, o Ministério Público que está
administrando esse dinheiro, ele que autoriza, não é aprovado, nem o comitê não
aprova. Então eu acho que está demais, já, eu acho. Já foi barrado negócio de saúde,
energia, que ele estava falando aí, ó. E tudo quem faz tudo ali, essas politicagem
tudo ali, é difícil acabar. Se o Ministério Público não pegar um dia e disser: a Água
Branca tem tantas famílias, eles têm direito também, vamos repassar o recurso deles
também. Separado um do outro, recurso de vocês, daí funciona. Mas se ele quer
fazer assim [na Água Branca] faz… do jeito que eles querem fazer lá, faz...
Levi: [fazer] acordo.

Justamente a “politicagem”, categoria que se pode aproximar à da “política interna”,


é o que impede o acordo. Mas a politicagem é intrínseca ao movimento, e um acordo efetivo
ou ao menos um acordo explícito à comunidade entre os grupos políticos não é algo em vista
em curto prazo, enquanto se mantiverem as mesmas parentagens ou ao menos os mesmos
caciques e suas condições políticas na chefia das aldeias. Ambos os lados se constroem ao se
oporem. Para vencer a guerra procura-se estabelecer alianças. Assim, após a eleição, um
grupo de lideranças da Água Branca teria ido a outras TIs procurar apoios para depor Pedro
do cargo recém-assumido. De forma similar, quando estive em campo ainda procuravam fazer
reunião com o Conselho Indígena do Sul do Paraná, com sede em Guarapuava. Assim, se em
alguma medida o grupo de Pedro, pela posição de Valdir no Conselho do Norte, teria apoio
deste, o grupo da Água Branca procura um aliado de mesmo porte, no outro Conselho.
Também buscam os órgãos externos, não indígenas. Toda a ação aqui é “política interna”, isto
é, faccional, e como no caso analisado por Fernandes (2006) em Ivaí, os órgãos ao serem
envolvidos, são inseridos inevitavelmente nela.
Segundo o cacique Pedro, o MPF logo após a divisão, estabeleceu em reunião que os
projetos emergenciais em implementação seriam feitos também para a população da Água
Branca, determinando inclusive a extensão do plantio para esta aldeia 73. Como estes projetos,
de agricultura mecanizada, dependem do uso de tratores e tratoristas da comunidade, o
73
Parte da terra que foi ocupada pelos moradores da Água Branca também já tinha donos, e inclusive havia
receio pelos donos de terras vizinhas a esta de que abarcassem também suas terras, especialmente na medida
em que não estavam sendo usadas por eles nem em projetos para a Sede.
177

cacique da Sede seria responsável por liberar seu uso para este fim. Isto se tornou ponto de
tensão iminente, já que estabelece uma necessidade de relação direta entre lideranças. Foi
amenizado pelo fato de o cacique da Sede já trabalhar com um fiscal responsável pelo uso do
maquinário, Vicente. É interessante notar, porém, que no plano da efetivação do trabalho, isso
não era tão problemático. Os tratoristas, uma vez solicitados para realizarem outros serviços
na Água Branca diretamente pelos moradores, muitas vezes acabavam fazendo-os sem o
conhecimento e consentimento do fiscal, ou mesmo invertiam a ordem estabelecida dos
serviços, privilegiando a Água Branca por ali residirem ou terem parentes. Isto causava um
problema para a coordenação dos trabalhos, em especial quando de dano a um trator por uso
impróprio em um destes serviços. Neste ponto fica evidente a manutenção das relações entre
as diferentes aldeias se mantém e pode até desafiar a posição ou deliberação da chefia na
Sede.
Todos os trabalhos relacionados à indenização e ao Programa a partir do rompimento
acabam passando por esta questão. A participação de Levi e outras lideranças da Água Branca
em reuniões gera um questionamento do próprio posicionamento do promotor do MPF, que
teria falado em reunião anterior à divisão, segundo diversas lideranças da Sede, que não iria
trabalhar com dois caciques74. Em uma das oficinas de apresentação dos resultados do
Diagnóstico, que acompanhei em novembro de 2011, este tipo de tensão vem à tona. Dela
participavam apenas pesquisadores e os indígenas. Após uma ligação de uma liderança da
Água Branca para um dos integrantes da equipe do diagnóstico requisitando que os
buscassem, a Kombi que trouxera os pesquisadores sai com esta intenção, aproveitando que já
iria buscar Valdir na Serrinha. Este ao saber da intenção de buscar lideranças da Água Branca
(com ele junto) se revolta, liga para o cacique e há uma grande tensão entre a equipe de
pesquisadores e a chefia da Sede. Antes do início da oficina, Pedro faz um discurso primeiro
em kaingang, depois em português, em que estas questões são colocadas, reafirmando sua
autoridade sobre a reserva, sendo ele o único cacique ali, dizendo que se os da Água Branca
quisessem vir, deveriam vir a pé, mas que ele não se responsabilizava se houvesse conflitos
ali dentro do escritório. Ele acusa lideranças da Água Branca de terem tentado articular um
golpe contra sua chefia, buscando articulações políticas em outras TIs, o que teria sido em
vão, voltando-se inclusive contra os próprios conspiradores75.

74
Vale destacar que em programas similares como entre os Xerente, visitados em 2007 por representantes da
comunidade e do Comitê, a divisão do recurso por aldeias gerou uma proliferação de aldeias distintas.
75
Um interlocutor comentou enquanto eu estava em campo que iriam fazer um documento para ser distribuído
a todos os caciques das TIs explicando o processo que ocorrera e desmentindo boatos. Quando passei na TI
Queimadas em meu retorno do campo, ouvi comentário de que João era muito brabo, e por isso houvera a
178

No entanto, como o recurso da indenização é entendido como para todos os


moradores da TI, a tendência dos órgãos, seguindo uma (outra) visão de democratismo, é
incluir todas as aldeias no Programa, independente dos conflitos políticos, que têm que ser
negociados a cada ponto dos projetos. Apesar de serem impedidos gastos da indenização com
ações de necessidade imediata da Água Branca, por serem entendidos como de
responsabilidade do Estado (energia elétrica, água e saneamento, moradia, educação, saúde) o
fato de o Programa e tudo que o envolve tender a incluir, dá alguma força para o grupo
dissidente, que mesmo com dificuldades, aos poucos consegue alguns benefícios, através do
constante posicionamento de suas lideranças.
Como o trabalho de campo do Diagnóstico foi feito antes da divisão, não previa
ações divididas. Nas oficinas após a cisão, porém, havia temor por alguns pesquisadores de
serem cobrados neste sentido e de terem que repartir os projetos, em especial no caso dos de
infraestrutura. Ao tomar o modelo de organização e temporalidade dos brancos, o Programa
se torna estruturalmente desatualizado frente ao modelo de organização e temporalidade
indígena, tendo que ser atualizado nas reuniões, nas quais os brancos se veem entre o
cumprimento do que foi documentado e a demanda oriunda da pressão dos indígenas e frente
às possíveis consequências de se seguir tanto em uma direção ou em outra, o que é agravado
ao se estar em meio à “política interna”.
Mas também os índios tem que negociar. Os benefícios à Água Branca que
dependem do cacique Pedro são evitados por este. No entanto, quando é preciso negociar, ele
eventualmente pode concordar com os mesmos. Se a liberação de recurso para uma festa na
Sede depende da liberação também para a Água Branca ele pode aceitar. Seu discurso, no
entanto, reforçará sempre que se tratou de ordem do MPF, mesmo sendo as decisões tomadas
no Comitê. Desta forma, mesmo se submetendo discursivamente ao órgão oficial, ele prefere
isto a dizer que autorizou algo, ou negociou juntamente com o grupo opositor. A manutenção
da imagem da oposição política radical é essencial a ambas as chefias.
As lideranças da Água Branca também tentam conseguir outros recursos, benefícios
e direitos através de uma associação própria criada. Segundo lideranças da Água Branca e
Augusto, o ex-presidente da Associação de Moradores do Posto Indígena Apucaraninha, a
criação da nova Associação foi motivada pela forma de eleição do atual presidente da
primeira. No início de 2012, o mandato de Augusto já vencera, mas ele seguia no cargo por
não ter sido feita eleição. Finalmente, por iniciativa do cacique da Sede, teria sido convocada

divisão, e então estava impedindo a ligação de energia elétrica na nova aldeia, comparando com a própria TI
Queimadas, onde houve briga mas não houve divisão.
179

eleição. No entanto, o próprio Augusto ficara sabendo da mesma quando foi chamado à escola
e lá informado que naquele momento seria realizada. Desta forma, os moradores da Água
Branca não tomaram conhecimento da eleição, não comparecendo à votação. Mesmo com
manifestação de Augusto, apoiada por outra liderança, de ir buscar os moradores de lá com o
ônibus da comunidade, isto acabou não acontecendo. O cacique da Sede teria colocado três
pessoas como candidatos (por sinal todos seus apoiadores). Acabou vencendo o representante
do cacique no Barreiro como presidente. Na Água Branca, em reunião, teria sido decidido
após isso que, não estando eles mais representados pela Associação existente, deveriam criar
outra, escolhendo também em reunião o presidente, Isaac. Destaque-se que nem a escolha de
Levi ou de Isaac para cacique e presidente da Associação, respectivamente, se deu por
eleição, mas sim por escolha em reunião aberta. Isso pode ser visto como um elemento de
retorno à tradição, já que a eleição seria algo tomado de empréstimo dos brancos. A reunião
em si, como vimos, é tomada como uma forma de democratização por lideranças da Água
Branca. Quando estive em campo, a nova Associação, apesar de já possuir CNPJ, conta
bancária e ter profissionais de apoio em contabilidade e advocacia de Tamarana, não possuía
fonte de rendimentos.
Independente das condições que levaram à criação da nova Associação, há uma
procura por uma independência no plano econômico e político em relação à Sede, apesar da
manutenção dos vínculos entre as aldeias. Por outro lado, o cacique na Sede procura evitar
disputas no âmbito da Associação retirando “um Água Branca” e colocando alguém de seu
grupo político76. Para a Água Branca, a criação de associação própria é importante à
manutenção de sua liderança, já que esta precisa disto para se estabelecer no plano da
generosidade, além da conquista de benefícios junto à sociedade externa, é preciso autonomia
econômica para ter independência política. É preciso que faça a articulação no interior, do
cacique entre parentagens e garantidor do respeito, e no exterior, cumprindo também o lugar
da correria da liderança. No entanto, as dificuldades são grandes, uma vez que disputam
espaço com a Associação de Apucaraninha, a qual possui, em termos legais, a legitimidade de
agência e angariação de recursos para a TI. Isto também acontece em questões que dependem
de deliberação do cacique da Sede, ainda possuindo tal prerrogativa.

76
A posição de Augusto é peculiar. Concorreu a cacique contra Levi, trabalhou como presidente enquanto
Getúlio era cacique. Tem parentesco com a família de Alex e namorava a mãe deste. Mas após problemas
financeiros na Associação não detalhados a mim e a criação da Água Branca, culminou o processo eleitoral
que o retirou do cargo. Ele, sem rendimento e trabalho passou em alguma medida a depender de auxílio da
Água Branca, embora continuando a residir na Sede, próximo ao grupo doméstico de Adélia e Alex. Como
ficou aparente, tornou-se defensor da Água Branca e bem visto por lá, sendo sugerido por outras lideranças
que ele sempre me acompanhasse na aldeia.
180

O caso da ligação da energia elétrica é notório neste sentido, estando em discussão


enquanto eu estive em campo e seguindo posteriormente sem uma solução. Os moradores e
lideranças da Água Branca se queixavam que o cacique Pedro estaria impedindo a ligação da
energia, dizendo que prenderia funcionários da COPEL se ali viessem com esse propósito.
Indicavam que o cacique estaria negando um direito à população da Água Branca, podendo
ser responsabilizado legalmente por isso. Por outro lado, na Sede, um interlocutor, um dos
quais procurava me passar a imagem de que na Água Branca seriam índios brabos, apontou
que Pedro iria liberar energia para a nova aldeia, mas recuou após briga ocorrida, em que
foram feridos com gravidade três moradores da Sede por moradores da Água Branca. Procurei
investigar o que teria ocorrido, mas não obtive sucesso, e quando colocava a questão
diretamente a outros interlocutores ou eles negavam tal visão ou apropriavam minha
colocação para reforçar a brabeza e o estilo violento das lideranças da Água Branca. Agiriam
de forma violenta despropositada e não legítima.
Lembrando outras acusações de violência por lideranças da Água Branca, como o
estouro de rojões em direção às pessoas após a eleição, a queima dos ranchos, o uso do tronco
e ainda a apreensão de veículos, notamos que há por parte de algumas pessoas na Sede a
intenção de caracterização destas lideranças como o que poderíamos caracterizar como não
civilizadas, como índios brabos. Esta caracterização vai contra justamente o apelo moral da
nova aldeia, indicando que, ao contrário do que se propõem, tais lideranças tem menor
consideração ao plano da conviviality, da sociabilidade, e até mesmo da humanidade, na
medida em que atentam contra sua própria comunidade e parentes.
A questão da energia passa, porém, por outra fundamental, a qual o cacique Pedro
destacava: o pagamento da energia. Como vimos, atualmente este pagamento vem sendo feito
com desconto no valor da compensação anual, que vem sendo utilizada em quase sua
totalidade para este fim. A ligação de energia para a Água Branca representaria aumento do
gasto, possivelmente ficando acima do valor da compensação. Assim, a princípio, o cacique
não estaria negando o direito à ligação da energia elétrica, mas não se comprometendo com o
pagamento da parcela de consumo da Água Branca. Se desejam ser autônomos ele procura
garantir isso com todo o zelo.
Outra questão destacada era a das casas e outras estruturas básicas dependentes de
políticas estatais. Na Sede, era recorrente o argumento do abandono das casas construídas
pelo programa do governo estadual por pessoas que se mudaram para Água Branca. Estas
casas foram feitas de forma nominal aos moradores, estabelecendo uma “propriedade” sobre
elas. No entanto, por terem sido feitas sem ônus aos moradores, eles não teriam direito de
181

vendê-las, segundo a argumentação de pessoas contrárias ao movimento da Água Branca.


Efetivamente, as casas em sua maioria não foram vendidas, mas foram feitas trocas
principalmente por telhas de fibrocimento e pregos, utilizados para a construção das casas na
Água Branca. No entanto, sem uma transferência de propriedade, a manutenção da
titularidade do beneficiado impediria a reivindicação de novas casas àqueles que já teriam
conseguido a sua. A “propriedade” das casas, efetivamente se dá, portanto, de maneira similar
à da terra, sendo mais um direito de uso, inclusive com preferência de negociação dentro do
grupo familiar ou parentagem e em alguns casos apenas cedido sem contrapartida. No
entanto, neste caso, esbarraria em certa medida na burocracia e entendimento de propriedade
pelo Estado. O cacique da Sede afirma que não pleitearia novas casas aos moradores da Água
Branca, mas aos moradores da Sede.
A requisição de construção de escola na Água Branca seria comprometida pela
construção em andamento de nova escola na Sede, conquistada após vários anos de
reivindicações junto ao Estado. Assim, às lideranças da Água Branca já teria sido vetada tal
reivindicação pela Secretaria da Educação do Estado. O micro-ônibus disponibilizado pela
prefeitura de Tamarana, para o transporte das crianças da Água Branca para escola em
Lerroville foi apreendido pelas lideranças, sob o argumento de que ele não comportava o
número de alunos. Estes acabaram deixando de frequentar a escola, seja pela dificuldade de
transporte ou uma alegada discriminação pelos demais alunos ou funcionários da escola na
Sede. Com isso fica comprometido também o recebimento de benefícios como Bolsa Família,
ligado à frequência escolar. No caso do Posto de Saúde, segundo as lideranças da Água
Branca, estava dependendo apenas da instalação de energia elétrica, já estando acertado junto
ao secretário da SESAI.
Com tamanha dificuldade para conseguir estes serviços, a liderança da Água Branca
chama uma emissora de televisão, de âmbito estadual, como forma de visibilização de seus
problemas, em que são destacados o conflito político interno como motivador da criação da
nova aldeia, com base na não concordância com ações do cacique da Sede e na existência de
uma “lei própria” na Água Branca. A reportagem, porém, não consulta ou notifica a liderança
da Sede, gerando grande desconforto a esta, que chama novamente a emissora para uma nova
reportagem, realizada na semana seguinte. A emissora é colocada na “política interna”.
Acompanhei parte da gravação desta reportagem em campo. Ela foi focada justamente na
“venda” das casas, algo apontado como ilegal, já que foram concedidas pela COHAPAR. A
divisão é colocada explicitamente como decorrente da eleição, sendo o grupo perdedor que
182

formara a nova aldeia. O cacique é explicito: “foram pra lá porque quiseram, lá eles acharam
que ia ser melhor que aqui, lá eles podem se virar, mas não culpem a mim”.
Esta fala recorrente do cacique e de outras lideranças aponta para uma lógica política
decorrente de uma visão que leva em conta a facção e a centralização na figura do chefe, não
como representante político, mas como líder a frente de uma comunidade, fazendo ressoar a
figura do pay-bang, citada por Tommasino (1995) ao comparar a posição assumida pelo
cacique e o chefe de posto após a política indigenista do SPI. Se a criação da Água Branca
tende à autonomia e independência, os que a ela aderem dependerão da agência de suas
lideranças. Mas como ficou claro aqui, estas lideranças dependerão da avaliação de suas ações
feitas pela população das respectivas aldeias. No último dia em campo ouvi boatos de que
Levi teria sido substituído por Isaac como cacique da Água Branca, por não estar conseguindo
benefícios e serviços básicos que teriam sido prometidos por ele para a nova aldeia. O boato
não se confirmou mais tarde, seguindo Levi como cacique. De qualquer forma, a posição da
chefia sempre está em avaliação e risco.

No segundo capítulo apontei para a função do cacique como imagem da unidade do


grupo, estando entre os grupos e tendo que harmonizá-los, através de seu aconselhamento e
mediação, mas também com um papel coercitivo, podendo decidir sobre aqueles que são
presos e também representando a comunidade para o exterior. Foi apontado, no entanto, que
este papel coercitivo não seria capaz de subjugar as multiplicidades. Como vimos, as diversas
parentagens continuam em articulações paralelas e agora vemos como o erro do cacique
somado a avaliações da moralidade na aldeia se somam para a derrubada do cacique tornando
o contexto em violência potencial de grupos faccionais. Assim, é possível sugerir que a
moralidade, especialmente nas dimensões do respeito e da reciprocidade são fundamentos que
se colocam sobre o cacique. É com base neles que o cacique tem seu poder, e também com
base neles é que o cacique é avaliado e pode ser destituído pelos grupos diversos entre os
quais o cacique se posiciona. Assim, o poder coercitivo do cacique não o isenta da
consideração moral e das relações sociais necessárias à sua manutenção.
Voltemos à comparação dos estilos de liderança, que poderá tornar mais evidente a
relação entre a moralidade e o poder coercitivo do chefe. Comparando com os modelos de
liderança apresentados por Kracke, aproximei o estilo de liderança de Pedro e de Getúlio a um
modelo mais liberal e democrático. Vemos no entanto, que eles eram criticados por não levar
tanto em conta as opiniões e tomando decisões com consulta no máximo às lideranças-
polícias. Assim, seriam mais liberais e não autoritários no sentido de não privilegiarem o
183

lugar da chefia enquanto “em direção à cadeia”, permitindo por outro lado a bebida entre
lideranças-polícias e acusados de permitirem o estado de bagunça e enfim de terem
bagunçado. Mesmo apoiado, então, por uma liderança considerada mais conservadora,
Getúlio acaba caindo, mas Pedro é eleito, demonstrando a não generalidade do
questionamento e a situação estruturalmente favorável entre parentagens.
Na Água Branca vemos por outro lado um apelo moral muito bem demarcado,
conservador. Este modelo permite que a chefia tenha um papel coercitivo mais acentuado,
destaque-se a questão do poder de apreensão de motos e prisão de quem circular à noite e a
penalidade vista como mais cruel de amarração ao tronco. No entanto, a chefia tende a
destacar que sua forma mais democrática de trabalho em relação à comunidade, privilegiando
reuniões em que todos são informados, podem opinar e de onde sairiam as grandes decisões
da comunidade. No entanto, também houve acusações na Sede de agressividade de lideranças
da Água Branca contra moradores.
Para esclarecer a diferença que quero chamar a atenção, chamemos o primeiro caso
de “democratismo liberal não informado” e o segundo de “democratismo informado
moralizante-autoritário”. As duas formas, tendo a palavra democratismo um pouco
provocativamente usando os referenciais usados por interlocutores em Apucaraninha, estão
intimamente ligadas à como a autoridade lida e é demandada a lidar com a moralidade, seja a
sua pessoal ou a da aldeia. No primeiro, é possível que a chefia tome decisões de forma mais
centralizada, a não ser em casos mais graves, mas não há um predomínio coercitivo, ainda que
tal papel exista. Como foi mencionado há grande enfoque da liderança nas correrias, de onde
pode advir a potencialização de seu papel de distribuição e em alguma medida de
diferenciação. No segundo caso, o foco na moralidade permite com que a chefia tome atitudes
mais coercitivas, potencializando este papel, e tendo dificuldades em sua função de correria,
ainda que tente cumpri-lo. A potencialização da coerção, no entanto só é possível a partir da
característica informada, através das reuniões com a comunidade. Desta forma, cumpre-se a
expectativa da moralização da aldeia Água Branca, ainda que tal característica não coloque o
cacique acima da moral.
Por mais que a chefia seja uma função tida como fundamental nos dois casos, está
sempre sob observação e sob risco. Seu comportamento como pessoa e como autoridade é
importante tanto para a manutenção do grupo como para sua desestabilização política. A
desestabilização seria ponto estável. O perigo de a chefia se colocar acima dos demais é
seguido do perigo de a chefia ver a violência voltada contra si. Daí recorrentes casos de
184

expulsões e assassinatos de lideranças kaingang, ainda que no caso em análise, tenha havido
uma solução peculiar, com a criação da nova aldeia em contraposição política direta.

A oposição política entre as aldeias, além de representar as distintas moralidades e


formas de relação política com a comunidade, também constitui as próprias lideranças. Por
parte das lideranças-políticas da Sede liberar ou facilitar qualquer apoio à outra comunidade é
evitado, fazendo com que a liderança de lá por um lado ganhe independência, mas por outro
enfraqueça sozinha na medida em que não consiga estabelecer na aldeia o que ela necessite. A
todo o momento é afirmado que educação, saúde, energia, água, transporte, tudo isso está
disponível na Sede, podendo dela usufruir qualquer um da TI. Efetivamente moradores da
Água Branca utilizavam o posto de saúde da Sede, aparentemente da mesma forma que os
demais. Para o cacique Pedro, se quiserem mudar para um local onde não há estes recursos,
são livres para irem, desde que se virem por conta própria. Afirma-se que caso queiram voltar,
serão bem acolhidos, mas terão que, da mesma forma, conseguir por conta própria novas
residências (e evidentemente local para as mesmas) até que novamente seja aberta proposta de
construção de casas pelo governo estatal, da qual poderão, então, participar.
Se espaço e facção não coincidem, eles estão intimamente ligados. Tudo por que a
facção passa a buscar é para o seu espaço, para aqueles que nele residem. E aqueles da facção
que não residem no espaço da facção podem representar um ponto de tensão. Isso está
presente em alguma medida no caso do “curador Água Branca” e também aparece em outro
caso. Foi-me comentada reunião realizada, durante o período de meu campo, com algumas
lideranças e o cacique da Sede sobre a mudança de um tratorista e mais algumas pessoas para
a Água Branca. Estas pessoas foram também à reunião. O cacique teria dito a elas que
querendo mudar, eram livres para fazê-lo, mas ele recomendava que o fizessem logo, pois
com o posicionamento delas neste sentido ele se isentava de tomar qualquer providência caso
tivessem algum problema ali, enquanto não se dava a efetivação da mudança. Ou seja, eles
poderiam sofrer algum tipo de represália e mesmo ataque direto e o cacique estava
informando-os que isso deveria ser resolvido com o cacique da Água Branca, não mais por
ele. Neste caso, levar a questão ao cacique era importante como uma forma de não
rompimento, devido à função remunerada exercida. O tratorista, ao menos, decide não se
mudar, aguardando a ligação da energia elétrica na nova aldeia para tanto. Isto indica também
outra importância do retardamento desta ligação, para evitar mais mudanças para a nova
aldeia.
185

O espaço é representativo da facção, ainda que esta não se restrinja a ele. A


manutenção da residência em uma das três aldeias de uma facção de alguém que passara para
a outra é um ponto de conflito potencial. Pelo mesmo motivo havia um clima de receio
durante a festa da semana do índio. Foi liberado recurso de quarenta mil reais para a
realização da mesma. Segundo lideranças da Sede estava claro que este recurso era para a
festa nesta aldeia Sede, sendo aberta a todos os moradores da TI. Na Água Branca, porém, se
falava que o recurso deveria ser dividido, tendo sido isso definido no Comitê. Lideranças da
Água Branca então abordaram o cacique Pedro e Getúlio quando estes iam ao banco em
Tamarana, onde houve discussão sobre o tema. Afinal, a Sede levou todo o recurso. No
entanto, havia a preocupação de que pessoas da Água Branca realmente comparecessem e
causassem brigas. Se a circulação normal de pessoas, inclusive lideranças da Água Branca é
liberada e usual em contextos cotidianos, durante a festa, representaria entrar na política da
Sede, em sua ação de generosidade e dádiva mais marcante, e como não ficariam satisfeitos
em se submeter a ela, negando a faccionalidade estabelecida, iriam atentar contra ela, num
contexto em que os ânimos podem se exacerbar com o consumo de bebidas alcoólicas. Os
moradores da Água Branca não apareceram na festa. Queriam fazer uma no aniversário de
criação da aldeia em agosto, mas sem a ligação de energia, e provavelmente sem conseguir
recursos até então, ela foi adiada. Segundo Góes (informação verbal), posteriormente as
liderança da Água Branca coseguiram recurso para esta festa através do PBA indígena da
UHE Mauá.
Estes conflitos, no entanto, dizem antes da situação política vivenciada, podendo ser
superados ou transformados conforme esta situação também mude. Aliás, as transformações
são a constante e já em 2013 haviam alterações significativas conforme antropólogos que
trabalham com o grupo. Assim, no contexto, em que a desestabilização é a constante, a
situação de oposição política pode ser transformada. Resta a dúvida se a diferenciação moral
se manterá, com base na espacialidade, no ser Água Branca, e no reposicionamento de suas
lideranças.
186

4.5. MORALIZAÇÃO E RETORNO À INDIANIZAÇÃO

4.5.1. Novo espaço (antigo), antiga moral (nova)

No primeiro capítulo vimos como tempo e espaço são articulados, ao resgatar


narrativas sobre um passado em que o espaço era diferente, comparado ao espaço presente.
Neste capítulo vemos a tentativa e efetivação em certa medida de um espaço distinto
moralmente, em oposição direta ao espaço da Sede e sua moralidade. A Água Branca é um
espaço de respeito, um espaço da lei, um espaço da família, um espaço do índio puro. Por ser
um espaço de moradia, o próprio cotidiano é diferenciado em alguma medida e gera novos
vínculos com a conviviality. Tratam-se então de espaços-morais distintos, ainda que esta
distinção seja relativa e não absoluta.
A distinção do espaço-moral é também relativa a uma distinção no tempo, na medida
em que busca esta moral no passado, nas coisas como eram antigamente, considerando a lei
antiga, como vimos no capítulo 2. Busca a reatualização do passado. Neste sentido, a própria
criação da Água Branca, como um retorno, resgate da lei, respeito, da sociabilidade
“tradicional”, mesmo da relação entre liderança e comunidade da forma “tradicional”, a
presença dos guerreiros kaingang residindo ali, articula um tempo passado que seria então
revivido ou reafirmado.
A Água Branca é um espaço novo, mas próximo ao espaço mais antigo (Toldo
Velho), é a realização da “tradição” moral, que se dá por vias políticas através da facção. É
uma nova moral colocada em referência ao passado, em oposição ao presente do outro espaço,
antigo mas não tanto, a Sede.

4.5.2. Nova aldeia, novas predações

No capítulo anterior vimos como a indenização e a negociação de seu uso, seguindo


o modelo estabelecido no TAC criava por um lado o reforço da função de correria da chefia e
por outro limitava a potência desta, ao impedir que os recursos fossem diretamente repassados
à comunidade ou facilmente revertidos a ela. Vimos também como a chefia ao fazer suas
negociações procurava alguns meios de aparente diferenciação, ainda que um tanto insipiente,
bastante focada nos carros atualmente. Foi sugerida então uma aproximação à análise feita por
Cesar Gordon sobre os Xikrin e o convênio com a CVRD, em relação à necessidade de
187

diferenciação da chefia e inflacionamento dos bens, que em Apucaraninha seria limitada, mas
também presente. Ao fim do capítulo apontei que a não reversão do recurso da indenização
causava a desconfiança sobre o cacique e outras lideranças-políticas, estando isso presente na
fala do ex-cacique Getúlio. Tendo agora apresentado a crise política então ocorrida e seus
elementos mais aparentes ressaltados na minha relação com interlocutores, gostaria de
retornar à comparação com o contexto dos Xikrin, que nos pode dar pistas sobre a
necessidade do reforço moral tão acentuado nos discursos e na convivência na Água Branca.
Gordon (2006) analisa a relação entre índios e brancos no contexto Xikrin a partir do
modelo da predação. Ele enfoca como, em decorrência do convênio com a CVRD e a
incorporação das mercadorias industrializadas com um valor próximo ao dos bens cerimoniais
nekretx, há um incremento do papel da chefia Xikrin em incorporar a alteridade. Isso se daria
pela articulação de dois elementos fundamentais na chefia Xikrin: a diferenciação e a
generosidade. Os chefes deveriam se destacar, enquanto pessoas, com suas prerrogativas e
bens cerimoniais. Uma vez que estes passam a incorporar as mercadorias, há um
inflacionamento em seu consumo. Isto porque, apesar do chefe se diferenciar, ele tem a
obrigação moral de distribuir. Todos sempre irão querer ter tanto quanto o chefe, e este deve
garantir isto, evitando críticas de ser egoísta, mas ao mesmo tempo deve garantir sua
diferença em relação aos demais.
Os direitos e prerrogativas cerimoniais, kukràdjà e nêkrêjx, e as coisas belas, möja
mejx, ambos relacionados à construção de pessoas belas e incorporados do exterior
representariam bem a forma de mediação privilegiada do chefe em relação aos demais grupos,
assim como a incorporação predatória destes através desta apropriação. Para o autor, o poder
na sociedade mebêngôkre estaria vinculado à capacidade diferencial de incorporar as relações
sociais externas, que condicionariam as relações internas (diferenciação interna), e vice-versa.
Os chefes seriam gente mais forte, seriam o ponto de vinculação ao outro, mas ao mesmo
tempo tentariam conter, através de seu sacrifício cerimonial, suas idas e vindas, a mudança de
perspectiva definitiva. São criticados, porém, por serem quase kubẽ (brancos), quase não-
parentes, justamente pela predação acentuada neles sobre os brancos, se kubenizando no
processo de predação que implica no devir outro, que se por um lado seria fundamental ao ser
mebêngôkre sempre traria o risco de não se saber mais onde estão os limites.
Assim, valeria perguntar onde se enraizaria esse “nós” que se transforma. A hipótese
é que seria na produção dos corpos semelhantes, na moralidade que atesta o reconhecimento
mútuo de humanidade das pessoas que pretendem viver juntas. Estes mecanismos, no entanto,
188

podem falhar ou tornar-se equívocos, e então os parentes começam a se estranhar, a não se


(re)conhecer.
Em Apucaraninha não vemos uma ritualização na incorporação de bens do exterior,
mas vimos alguma diferenciação da chefia, ainda que menos marcada que no caso Xikrin. A
distribuição de bens é também limitada ou mesmo impossibilitada nos acordos do TAC. Isso,
como vimos, é de grande peso ao cacique e traz suspeitas sobre ele. Ele estaria justamente a
diferenciar-se dos demais com o recurso da comunidade, utilizando-o egoisticamente. Vimos
também como o estilo de chefia na Sede privilegia o contato com brancos e negociação com
eles, sendo isso demarcado inclusive discursivamente pelas lideranças-políticas. Seu papel de
correria também é acrescido no contexto das negociações não apenas dos TACs da UHE
Apucaraninha, mas também com o PBA indígena da UHE Mauá. Por outro lado, vimos as
queixas na comunidade referentes às bagunças então existentes na Sede e a presença constante
de brancos ali. Finalmente, o erro do cacique Getúlio, indicando que ele próprio não
respeitaria as famílias da comunidade.
Aproximando à leitura de Gordon, podemos dizer que haveria aqui a visão de um
embranquecimento das lideranças, com a transformação de sua moralidade e a transformação
consequente da moralidade da aldeia. Ainda que, como vimos, não seja o chefe a definir a
moralidade, a ele é atribuído um papel fundamental de controle, e enfim, ele pode em grande
medida regulá-la através de seu poder de coerção (em direção à cadeia). O chefe, no entanto,
ao não enfocar a moralização, antes permitindo e até fazendo festas tidas como liberais, e ele
próprio bebendo, não respeitando um velório, e enfim ele próprio “errando” há uma visão de
um rompimento do respeito e da conviviality, pela falta de afeto.
Vemos a partir daí o movimento que cria a Água Branca com um discurso focado na
moralização das relações e no retorno a uma situação de respeito entre as famílias. Seria,
então uma resposta diferente frente ao devir branco. Seria o reforço de outra transformação,
remetendo ao passado, aos índios puros, à lei antiga, à relação entre liderança e comunidade
de forma mais próxima, mas ao mesmo tempo mais rígida. Isto não quer dizer que a chefia
não terá também função de correria, de mediação e predação em relação ao branco, para
conseguir distribuir e até mais, pois terá também que conseguir as condições básicas para
perpetuação da aldeia, como energia, água, trabalho. Se a chefia na Sede não representava
mais a comunidade por ter errado, por ter contrariado a moralidade, o respeito e a
generosidade, começa-se novamente em outro ponto. O fato de Levi já ter sido cacique o
coloca na posição de potencial mediador da predação, mas que, mesmo se tenha antes
ultrapassado o tornar-se branco da mesma forma, hoje já não é mais assim representado pelos
189

que o seguem. Seria assim, uma transformação possível ao nível da identificação indígena,
kaingang, da comunidade, a partir deste novo espaço, com uma moralidade remetendo a um
passado. Mas tal identificação, também um processo de transformação, destaco, será relativa a
uma diferenciação em relação à Sede.
Levi e suas lideranças, além de predarem o branco, predarão também as próprias
lideranças da Sede. Desta forma, elas também se indigenizam, podemos dizer, ao predar e
tentar domesticar este outro. Seu devir será simultaneamente branco e indígena. Isto será
reforçado pelo enfoque no passado, tornando a transformação uma feição de diferenciação
também em relação à Sede. E esta nova situação, criada em uma tensão política, possibilitará
também às lideranças da Sede movimentos similares, na tentativa de reincorporar,
domesticando, a Água Branca. Em um contexto em que novas facções podem surgir, como
ficou indicado, isso pode ser fundamental à manutenção das lideranças na Sede. Neste caso,
porém, pode haver mais acordos e domesticações mútuas que indicam aproximações
potenciais das lideranças, por interesses que passam a ser comuns, momentaneamente, mas
que podem indicar possibilidades de novas cisões e configurações políticas. Se Levi está
interessado em se manter como chefia conseguindo os recursos para a Água Branca, Pedro
pode facilitar isso para evitar novas fissões ou sua destituição ou perda de privilégio político
de seu grupo, proporcionando também substituições da chefia, que não alteram o grupo
político na chefia, mas substituem a figura principal da predação e do devir.
As facções, a “política interna” e enfim, a divisão das aldeias, portanto, representam
formas de diferenciação interna que permitem ou que se tornam um meio para a própria
identificação do grupo enquanto indígena kaingang, construindo-se mutuamente em
contraponto ao tentar a domesticação política do outro.
No capítulo que se segue, veremos como neste contexto também são importantes
determinados rituais não tanto enquanto cerimônias a representar a incorporação da
alteridade, ainda que isto apareça de determinada forma, bastante distinta do caso Xikrin, mas
como formas de resgate cultural e também de distribuição, com o papel da generosidade da
chefia bastante reforçado, complementando desta forma as transformações indicadas aqui.
190

5. A CULTURA KAINGANG

No capítulo anterior vimos principalmente a diferenciação moral da Água Branca e o


contexto de “política interna”. Foi citada a relação da moral e do próprio espaço da nova
aldeia com uma tradicionalidade. Neste capítulo buscarei levantar a relação de tal
tradicionalidade e os efeitos da divisão sobre alguns elementos do que podemos chamar de
cultura kaingang, termo que será então trabalhado com base em concepções nativas e
antropológicas. Para fazer tal abordagem, irei partir basicamente da festa de 19 de abril e de
um Evento Cultural ocorrido em 2012 próximo à Sede. Não participei da festa ocorrida
posteriormente na Água Branca, podendo contrastar a distinção desta apenas por discursos
das lideranças. Antes da descrição do Evento Cultural narro uma experiência anterior minha
no local onde foi realizado, que indica de que forma ele é utilizado em contextos diferentes,
de forma a demonstrar a relevância da realização do evento neste local e a diferença entre seu
uso quando do Evento Cultural.

5.1. DESCER AO RIO: CONSANGUINIDADE E RIQUEZAS ESTÉREIS

Após uma primeira semana agitada em campo junto a lideranças da Sede, fiquei
ansioso pela proposta de ida ao local onde estavam preparando um Evento Cultural para a
semana do índio, junto ao rio Apucarana, a alguns quilômetros da Sede. Ali poderia
estabelecer um contato mais próximo com alguns interlocutores fora da liderança. Com a
impossibilidade de Alex, que organizava o evento, me acompanhar, ele me indicou um guia,
Adriano. Após algum atraso, descemos na terça-feira, 20 de março, eu sempre aproveitando as
caminhadas para conversar com o Adriano, que se revelou ótimo interlocutor.
O caminho até o rancho à beira do rio, uma trilha em meio à mata, havia sido limpo
recentemente. Alex tratara um acordo como o dono do rancho, Carlos, para realizar o Evento
Cultural no local, o que incluía a limpeza do acesso, a construção de um rancho coberto com
folha de palmeira, construção de um paris e preparo geral do local para receber os
participantes do evento. O dono do local é dono de um dos mais estabelecidos pontos
comerciais na aldeia Sede. Ele é da reserva de Ortigueira, considerado mestiço (por sangue),
casado com uma branca, que toma conta de seu estabelecimento comercial. Um de seus filhos
é genro do atual cacique e também trabalhava na preparação do local. Estes ranchos são
191

negociados, comprados e vendidos, entre índios. Carlos, por exemplo, citou três donos
anteriores de seu paiol.
A região no entorno do rio Apucarana é a de mata mais preservada, reconhecida
como tal por pesquisadores que elaboraram o Diagnóstico, sendo o local onde puderam
registrar maior variedade de fauna e flora, tanto na mata como no próprio rio, com maior
abundância de peixes e melhor qualidade da água. Segundo dois interlocutores esta região foi
usada para sítios e plantios de “safristas”, com mão de obra indígena, há certamente mais de
30 anos, tendo eles ou seus pais trabalhado no local. Isso é indicado pela presença de
vegetação em altura bastante regular, apesar de densa, com exceção de algumas poucas
grandes perobas, que ainda guardam marcas das queimadas feitas em tais sítios. A região a
montante do rancho ao largo do rio Apucarana e os topos dos morros por outro lado parecem
não terem tido uso agrícola, onde se podem encontrar palmeiras, em locais de difícil acesso,
como avistamos ao subir pela margem do mesmo rio.
O acesso ao local pode ser feito por duas maneiras a partir da aldeia, uma pela trilha
na mata, com declividade bastante acentuada. Outro meio é a descida até um porto de areia no
rio Tibagi, com acesso por uma rua em condições razoáveis para trânsito de automóveis,
seguindo de barco pelo rio Tibagi e pelo rio Apucarana até onde se conseguir, e depois a pé
pela margem do rio e pela parte plaina da mesma trilha.
Chegamos ao rancho, depois de cerca de duas horas de caminhada com algumas
paradas. No local, passa-se por uma roça de milho para chegar aos ranchos. Já estava pronto o
novo rancho, ao lado do já existente anteriormente que chamarei aqui de “casa” para facilitar
a descrição. O interior desta, como as outras casas similares na aldeia, é dividido em dois
espaços. No primeiro cômodo há um fogão a lenha uma mesa para preparo e armazenamento
de alimentos, e um banco, além de materiais de caça, pesca e outros utensílios. No outro
cômodo há três camas.
Existem várias bananeiras e duas laranjeiras que indicam ocupação do local há vários
anos. Dos ranchos, avista-se o rio Apucarana. O paris, geralmente referenciado desta forma,
no plural, fica alguns metros a jusante do local dos ranchos. Trata-se de uma armadilha
considerada tradicional kaingang, como uma técnica própria, que é utilizada inclusive como
referencial de demarcação de uso do território antigo, se constituindo como emblema objetivo
do uso do território e da tradição. A armadilha consiste em utilizar a força da correnteza do rio
para aprisionamento de peixes. É feito um cerco em forma de “V” com pedras coletadas no
próprio rio, em cujo vértice é colocado um cesto, o paris propriamente dito, que é
confeccionado de taquara. O cerco, feito apenas pela sobreposição das pedras deixa passar
192

boa parte da água, mas direciona os peixes que descem o rio para o cesto, no qual caem, mas
permanecem parcialmente em água corrente, de forma que se mantêm frescos por mais tempo.
A armação do cerco segue algumas pré-condições da margem do rio, bem como de sua vazão
no período em que se pretende construí-lo. Costuma-se utilizar locais mais estreitos, com
correnteza, já que é a força desta que fará com que os peixes caiam no cesto ao invés de
nadarem na direção contrária. É também notável a análise dos peixes e seu comportamento
no local pelos indígenas. O ideal para se ter muitos peixes é o período após a desova dos
peixes a montante, principalmente nos meses de inverno, de abril a julho, e após uma chuva
grande na cabeceira do rio, sujando a água e aumentando a vazão.
Tommasino (2004) descreve o uso histórico dos paris, como atividade que implica
uma organização social baseada em grupos de reciprocidade, já que a construção do cerco
envolve cerca de quatro ou cinco homens por alguns dias e o resultado da pesca, nas
condições ideais e quando havia fartura de peixes nos rios da região, podia ser distribuído
entre as famílias envolvidas e seguindo suas redes de parentes e afins aldeia acima, no que a
autora caracteriza como reciprocidade generalizada, havendo grande satisfação na expansão
da distribuição. A autora menciona como eram analisados e adaptados os locais a forma e a
distribuição dos paris de maneira a se ter um aproveitamento máximo de cada rio.
Os paris têm seus donos, sendo geralmente referenciados pelos nomes dos mesmos.
Ainda hoje os locais são identificados pelos mais velhos desta forma (“lá onde tinha paris do
fulano”). Em alguns casos é possível identificar paris antigos sem uso, a depender do tempo
sem manutenção, já que com uma chuva maior o paris transborda e arrebenta, sendo
parcialmente descaracterizado na medida em que as pedras vão rolando e sendo levadas.
Segundo Tommasino (2004) a propriedade dos paris é vitalícia, passando de pai para filho,
sendo seu uso por terceiros necessitando de autorização e implicando geralmente em doação
de parcela do pescado ao dono. Usualmente, no entanto, o trabalho no paris segue redes de
parentesco e alianças, como mencionado ao caracterizar o termo parentagem, sendo
perpetuada no passar dos anos.
Quem trabalhava no local nesta minha primeira visita era um irmão, um filho e um
sobrinho de Carlos. Eles trabalhavam na preparação ao redor dos ranchos para o Evento
Cultural. O paris já estava pronto e era visitado ao amanhecer e ao anoitecer em busca dos
peixes. Por ser ainda março e o tempo estar seco, não estavam “caindo” muitos peixes. Eu
havia combinado com o irmão do dono, Emílio, minha estadia ali por alguns dias. Fui bem
recebido e a comida que leváramos foi adicionada ao almoço que já estava sendo preparado.
193

À tarde fiquei conversando com Adriano enquanto os demais trabalhavam no corte de uma
porção de mata que fora pedido por Alex.
Ao escurecer, acenderam uma fogueira em frente ao rancho ao redor da qual
sentamos, após a janta. Ali começaram a contar causos de encontros com onças. Elas,
presentes na literatura antropológica referente aos Kaingang de forma bastante marcada
(TOMMASINO, 1995, 2004; ROSA, P. C., 2011; ROSA, R., 2005), foram descritas a mim
como detentoras de vários atributos que podem ser atribuídos à humanidade, como a
capacidade de andar em pé sobre duas patas, a capacidade de produzir ruídos muito
diversificados, imitando qualquer bicho da mata, com assobios, gritos, bufos e ainda produzir
sons de machado. Ela é sobretudo um animal temido por poder caçar homens. Poucos já a
viram realmente, mas muitos já ouviram ou viram sinais delas. Atualmente um encontro com
ela é bastante difícil, sendo que no passado já haveriam até caçado algumas e vendido suas
peles. Também contam causos de tesouros e outros perigos da mata, dos quais tratarei no
próximo capítulo.
Enquanto contavam algumas destas histórias eles ouvem um barulho vindo da mata
nas proximidades. Dizem que seria uma onça. Não sei se diziam isso para tentar me assustar
ou se acreditavam realmente nisso. Outros barulhos, que estes sim ouvi, vindos das margens
do rio são identificados como sendo de capivaras. Eles dizem que iriam caçar mas acabam
não indo e vamos dormir na casa.
A manhã seguinte segue rotina similar, os homens continuam o roçado enquanto eu e
Adriano somos levados pelo sobrinho de Carlos à ceva de caça morro acima. Ela é distante do
rancho e em local de mata mais adensada, que eles caracterizam como sendo “na boca da
onça”. Há certa preocupação citada de a espreita colocada estar muito baixa e de fácil acesso à
onça, com o perigo de o caçador acabar virando caça. A ceva feita com milho é direcionada
principalmente à paca. A própria roça de milho também serve para atração de animais para
caça, no entanto, tinham ali problemas com javalis, animal introduzido na região e que pode
tornar-se agressivo, além de ser mais difícil de caçar, e que ao andar em bandos pode
rapidamente destruir uma roça. O trabalho dos homens no roçado acaba rendendo um tatu,
encontrado no local, morto e assado à tarde em uma fogueira próximo à casa. Uma cascavel
também é encontrada e morta, mas não se utiliza qualquer cobra para consumo. Eles avistam
uma cobra caninana próximo ao rancho que é afugentada de volta para a mata, pois não é
representada como perigo, não é venenosa e se alimenta de outras cobras. O perigo desta
cobra é ela sair rodando e dando “corridão” em alguém, que inevitavelmente sairá apavorado,
dando ótima oportunidade para ser caçoado pelos demais.
194

À tarde chega Carlos e depois Alex a cavalo, com outro rapaz. Orientados por Alex e
Carlos, os outros homens fazem bancos dentro e ao lado do rancho construído, preparando o
local para o Evento. Alex tem uma relação bastante próxima com os dois jovens ali, havendo
diversas gozações e brincadeiras, como roubo de carne trazida pelo primeiro. O clima geral é
de descontração e jocosidade, sendo bastante presentes piadas relativas à sexualidade e a
acusações de práticas homossexuais. O fato de haver ali apenas homens contribui a isso, e
apesar de dizerem que por vezes mulheres também vão ao local, ele parece ser um espaço
bastante masculino. Alex quer levar peixe para sua família e pede para os outros irem pescar a
noite no Tibagi, fornecendo em troca duas garrafas de pinga.
Eu aceito o convite ao fim da tarde de pescar com vara na ceva à outra margem do
rio Apucarana, próximo ao rancho. Cerca de um quarto do tatu assado é reservado a mim, que
o aprecio enquanto pesco com Adriano e Emílio.
Depois, conversando com Carlos, ele diz que prefere permanecer ali a ficar na aldeia,
pois é mais sossegado e quieto, sem o som das motos e o movimento na aldeia. Ele conta um
pouco de seus trabalhos para brancos no Mato Grosso, sempre vistos como sofridos. À noite
os demais vão pescar no Tibagi, ficando apenas Alex, Carlos e eu, conversando perto da
fogueira. Eles começam falando sobre o mesmo tema, de onças e tesouros, reforçando a
relevância destes temas no imaginário neste contexto de beira de rio e no mato, tendo sido
mencionado também durante aquela tarde. Falam depois de ruínas e monumentos indígenas
ali e no município de Ortigueira, onde haveria pirâmides de cerca de um metro de altura,
cobertas por pedras, alinhadas. No dia seguinte subo para a aldeia acompanhando Alex e o
rapaz que com ele descera.
Além desta visita também fui a um rancho similar de outro interlocutor, já ao fim de
meu trabalho de campo, desta vez convidado por ele próprio. As experiências foram bastante
similares em termos gerais, tirando o fato dos trabalhos para o Evento e a existência do paris,
ausente neste segundo rancho. Estes dias no rio me chamam a atenção para o rancho à beira
do rio como espaço essencialmente diferenciado da aldeia, regulado por outra temporalidade e
outras preocupações e pensamentos. Uma vez o local estabelecido com casa, pequena roça e
paris, ele representa poucos esforços, centrados nas atividades de caça e pesca, que não são
separáveis da diversão. No caso descrito, o roçado de mato era feito com motivação exclusiva
do Evento Cultural, bem como o novo rancho, já que a casa existente era suficiente para a
atividade normal no local.
Se por um lado ele é um espaço de perigo, especialmente pela espreita da onça e
presença de outros animais perigosos como cobras, ele representa uma proximidade com
195

grandes riquezas como ouro e diamantes escondidos, bem como mistérios antigos, também
com um caráter ambíguo de riqueza associada a algum tipo de perigo. Em geral espaços de
mata possuem esta característica, inclusive em alguns casos nas proximidades da aldeia,
havendo histórias diversas de visões e outros acontecimentos sobrenaturais também neles.
Além disso, vale ressaltar que se na aldeia se está em meio a uma rede complexa de
parentesco, facção, afins e opositores políticos, no rancho se está em meio à parentagem
(todos ali, inclusive a liderança, tinham alguma relação de parentesco, sendo consanguíneos
ou afins efetivos), reforçando estas mesmas relações em um ambiente mais descontraído,
sendo este um espaço e situação privilegiada para a construção e reforço destas relações, na
consubstancialização e consanguinização, como mencionado no segundo capítulo.
É interessante notar que este privilégio neste espaço se dá em uma maior evidência
da oposição humanidade e não-humanidade. Se na aldeia a ameaça é humana pela presença da
facção (afinidade potencial, portanto, humana e indígena), na mata ela é eminentemente não-
humana, os parentes contra o não-humano. Esta categorização é colocada por Gow (1997) ao
estudar os Piro, vinculando intrinsecamente a humanidade e o parentesco. Como sublinha
Coelho de Souza (2004), esta identidade tem a consequência da esterilidade, ao passo que a
diferença significa perigo, mas fertilidade. Se no rio e na mata temos a identidade dos
parentes contra a não-humanidade (não-reciprocidade), na aldeia se teria a fecundidade, por
haver a diferença (dos afins) introjetada. Neste caso, a esterilidade é colocada como
brincadeira, não no incesto, mas na homossexualidade.
Apenas para complementar esta questão, tendo Áureo mencionado sua vontade de
morar em um rancho como o descrito, destacando suas vantagens, especialmente em relação
ao trabalho, pergunto por que ele, já aposentado, não construía um rancho para si em algum
local. Ele diz que para tanto era preciso ter dinheiro. Apesar de minha insistência em dizer
que em tal situação seria necessário menos dinheiro que na aldeia, havendo caça, pesca e a
possibilidade de fazer uma pequena roça, bem como utilizar outros alimentos do mato, que ele
se vangloriava de conhecer, ele insiste que seria necessário ter dinheiro, não relacionando esta
necessidade à compra de local, mas sim a manutenção no mesmo, pela compra e transporte de
mantimentos. Efetivamente, a comida no local, para além do caçado e pescado, constitui-se
em grande medida de alimentos comprados ou conseguidos na aldeia e na cidade. Neste
sentido, a mata, apesar de ser vista como rica, não é vista como suficiente para a manutenção
humana.
É importante notar que, tendo dinheiro ou não, os donos destes ranchos, geralmente
donos de comércios ou pessoas com salários por trabalho na aldeia ou fora dela, não residem
196

nos mesmos. Foram mencionados apenas dois casos de residência efetiva em locais similares.
Um índio, que moraria em localidade próxima ao Toldo Velho, isolado, sendo raro aparecer
na aldeia e tendo vivido desde muito tempo nesta situação; e um homem cuja origem não
pude precisar, que morava ao lado do antigo porto de areia também sozinho. Não tive
oportunidade de conversar com eles. São situações limite, portanto, em que se assume a
negação da sociabilidade e mesmo da socialidade. São projetos focados no indivíduo.
Lembrando a ligação entre riqueza e a ambição individual, não seria por isso a necessidade de
muito dinheiro para viver num local deste?
No caso do rancho descrito aqui, Carlos mantinha um índio guarani que trabalhava
ali durante a semana subindo à aldeia nos fins de semana, além de seu irmão que
eventualmente também trabalhava ali. Não conheci o guarani nesta minha primeira visita, mas
durante o Evento Cultural. Ele tem uma história bastante peculiar, tendo sido criado por
brancos e após inúmeros percalços (que envolviam enriquecimento e alguma fama como
cantor sertanejo) acabara ali. No entanto, tendo problema de saúde, pensava em voltar para a
cidade, onde tinha uma namorada. Assim, com exceção destes casos específicos, todos
caracterizados por uma opção de “marginalidade” em relação ao mundo social ou uma
situação temporária, a residência afastada da aldeia não é tida como alternativa real, e quando
se efetiva é caracterizada pela ausência de relações sociais, ou seja, a solidão, ao contrário de
quando é temporária, espaço da parentagem (homens).
Durante esta minha presença no rancho a beira do rio, eu não toquei no tema da
tradicionalidade deste tipo de espaço e atividade, da pesca e do paris, e ela não foi enfatizada
pelos demais a mim. Para eles, apesar de haver uma clara diferença cotidiana entre o estar no
rancho e o estar na aldeia, ela é vivida como um contínuo, não sendo adequado separá-la
radicalmente, apesar das distinções feitas aqui.

5.2. EVENTO CULTURAL – REVITALIZANDO A TRADIÇÃO KAINGANG

A festa de 19 de abril, data instituída por Getúlio Vargas em decreto em 1943, foi
estabelecida à época do SPI como uma festa de caráter cívico-indígena, tendo sido apropriada
pelos Kaingang em Apucaraninha. Ocorrendo em época próxima ao ritual do Kiki então
realizado, foi transformada, perdendo o caráter sagrado de ritual aos mortos, sendo hoje uma
junção de festa de caráter cultural-identitário e de sociabilidade diversificada que envolve a
relação entre comunidade e a chefia política, bem como relação com brancos. Sendo esta a
197

primeira festa que acompanhei na área, não será possível fazer uma comparação e avaliação
de eventuais mudanças em curto prazo, também porque outros antropólogos que estiveram na
área não a descreveram em detalhes.
A festa é um evento muito esperado, marcador do tempo do ano, comentado a mim
desde a primeira semana que estive em campo, mais de um mês antes. Há uma preparação
efetiva dos grupos domésticos para ela. Os que trabalham com artesanato geralmente
procuram acumular peças para vender até o dia da festa, de forma que nas semanas que
antecedem a festa há muita movimentação neste sentido. Homens também procuram por
vezes trabalhos remunerados fora da TI para terem dinheiro. É expresso o desejo ou mesmo a
necessidade de se usar roupas novas para a festa, sendo esse um costume já presente desde a
época do SPI, quando o órgão distribuía roupas novas neste período, como lembravam alguns
de meus interlocutores.
A festa é considerada geralmente como tendo duração de uma semana, apesar de no
caso terem sido três dias de rodeio e baile. Desde o início da semana, porém, praticamente
todas as atividades foram interrompidas e todos concentram esforços no trabalho para a festa
e na festa em si. Assim que passou a festa, havia certo sentimento de tristeza em ter que
esperar mais um ano todo para se festar novamente com igual intensidade. Além desta,
disseram haver apenas a festa de ano novo como algo comparável. Os preparativos da festa
pelas lideranças iniciam-se muito antes, abrangendo desde a arrecadação de recursos,
contratações de equipes de som e de rodeio, exigências junto à prefeitura para melhoria de
acesso à aldeia bem como vias e áreas utilizadas no interior da aldeia, compra dos alimentos a
serem distribuídos, etc.
Normalmente, segundo interlocutores, no dia 19 propriamente dito, vinha sendo feita
em anos anteriores uma apresentação de dança com as crianças da escola, na praça central da
aldeia Sede. A inovação em 2012 foi a organização de um “Evento Cultural”, ampliando a
atenção dada a esta apresentação. Ela foi transferida para a área do rancho descrito na seção
anterior. Foram feitos convites a diversos não-índios com alguma relação com a TI, como
pesquisadores de universidades ou com alguma relação passada ou presente com o grupo,
profissionais que dão assistência técnica para atividades agrícolas e funcionários da FUNAI,
além de moradores da região amigos de Alex, quem organizou o Evento. É importante notar
novamente que a família de Alex, em especial ele e sua mãe Adélia, são importantes figuras
na interlocução com agentes externos brancos e com questões burocráticas. Apesar de não
comporem formalmente a “liderança” em sentido estrito, estão inseridos diretamente nas
esferas decisórias, sendo Adélia inclusive um dos representantes da comunidade no Comitê
198

Gestor do TAC. Não por acaso também meu contato formal com a comunidade se deu através
de Alex. É interessante também o fato de que eles compõem família de mestiços entre
kaingang e xokleng, e que Alex tem pai branco. Note-se que se eles tem papel fundamental na
organização do Evento Cultural, o mesmo não se dá com a festa em si, organizada e
centralizada na figura do cacique, como veremos adiante.
Uma equipe de filmagem e pesquisa, composta por um cinegrafista, uma fotógrafa e
uma antropóloga, acompanharia o Evento, fazendo parte de contrato estabelecido em
negociação decorrente da construção da UHE Mauá, no rio Tibagi. Este trabalho era
diretamente relacionado aos serviços de resgate do patrimônio cultural, histórico e
arqueológico decorrente da construção da usina. Foi conseguido paralelamente ao PBA
indígena, por negociações diretas durante Câmaras Técnicas relativas à usina, que envolveram
representantes indígenas especialmente de Apucaraninha, em especial Alex e Adélia, as quais
acompanhei ainda enquanto empregado da COPEL. Destas negociações acabou surgindo
exigência específica do IPHAN relativa ao trabalho de educação patrimonial a comunidades
indígenas, sendo incluída na proposta da empresa a filmagem aqui referida. Cabe destacar que
caso a UHE São Jerônimo seja construída esta área será alagada completamente e os paris
serão inviabilizados em todos os rios da Terra Indígena.
Alex também articulou a vinda de Agenor uma importante liderança da TI Iraí, no
Rio Grande do Sul, bem como uma kuiã daquela área, irmã de Agenor e mais uma mulher
junto com eles. Este convite tinha um sentido claro de aproximar o Evento de uma “tradição”
kaingang, tendo como referência, ainda que distante, o próprio ritual do Kiki.
Posso dividir o evento em dois momentos. Decidi acompanhar um primeiro grupo
que desceu ao rio na véspera do dia de início do evento. Ele era composto pelos alunos que
realizariam a dança, duas professoras indígenas, uma funcionária da escola e dois pais,
maridos de duas dessas mulheres, que tem filhos na escola. É importante notar que os adultos
integrantes deste grupo estão de alguma forma relacionados à família de Alex, sendo seus
irmãos ou pessoas de convivência próxima a estes. Este primeiro momento tem um caráter
mais familiar, portanto, apesar de haverem crianças de diversas famílias. Duas situações são
dignas de nota por contrastarem com situações similares performadas nos dias seguintes. A
primeira é apresentação do paris às crianças, de maneira informal, por Emílio. Algumas das
crianças mostram bastante admiração e interesse, aparentando não conhecerem a armadilha. A
segunda situação é quando, na manhã do dia seguinte, o irmão de Alex, marido de uma das
professoras e pai de uma das crianças, percebendo haver um pé de urucum ao lado do rancho
colhe algumas sementes e as esmaga, extraindo a tinta vermelha característica.
199

Descompromissadamente ele e outra mulher começam a pintar as crianças. Começam com o


filho dele, depois vão chamando os outros que passavam ali, até que resolvem pintar todos.
São feitas as marcas de cada criança em ambas as faces, dois riscos verticais se a criança fosse
re joj, três pontos em triângulo se re kutu. Além disso, são pintados com urucum em grandes
regiões do peito, costas e em uma faixa nos braços, lembrando-me pinturas xinguanas. A
marca para a pintura é perguntada à criança. Nos poucos casos em que elas não sabiam, foi
perguntado aos adultos ou a outras crianças mais velhas. Após a pintura, as crianças seguem
brincando no rio, descendo e subindo ao rancho incansavelmente.
Ainda nesta manhã se inicia um segundo momento, com a chegada de outros índios,
incluindo outros professores e alguns poucos pais, Alex e Adélia, os convidados da TI Iraí.
Também chegaram convidados brancos e a equipe de filmagem. A partir de então, algumas
ações passam a ser mais claramente ritualizadas.
É filmada uma ida ao paris, em que Alex se preocupa que aparecessem só índios. À
tarde, a kuiã prepara uma infusão de ervas, com a qual é feito um benzimento de todos os
presentes, índios e brancos, de forma ritualizada. Primeiro ela circula o local ao redor dos
ranchos, delimitando uma área com um risco no chão. Depois, começando com as crianças,
um a um se agacha em frente a uma grande panela onde foi preparada a infusão, lava o rosto
com esta, e a kuiã comprime as folhas sobre a cabeça e a testa da pessoa. Após isso, a pessoa
toma um pouco da infusão, reservada em uma jarra e também uma bebida a base de vinho,
permanecendo junto à fumaça de folhas verdes que são queimadas ao lado. Aos poucos as
pessoas vão dispersando, sem um encerramento determinado do ritual. O restante da infusão é
jogado no rio. Este ritual, como me explicou posteriormente Agenor, seria para “cura” em um
sentido bastante amplo, para afastar o mal e os pensamentos ruins, renovando as ideias, o jeito
de pensar. Quanto a infusão em si, Agenor mostrava bastante cuidado em falar dela, mesmo
sem eu ter insistido neste ponto. Ele evitou dizer do que se tratava, falando do uso do
conhecimento indígena por laboratórios que vão atrás de conhecimento indígena para ganhar
dinheiro.
Depois deste ritual, a kuiã segue para fazer o benzimento do paris, sendo pedido que
tal ação não fosse filmada ou fotografada, único momento em que isso é exigido. Apenas
Agenor fotografa, denotando que o problema não é o registro em si, mas seus possíveis usos.
Mais tarde, sob a cabana, Adélia apresenta em kaingang Agenor e a kuiã, em fala direcionada
às crianças, na qual explica as coisas que estavam acontecendo ali, como o preparo do emi,
bolo de milho azedo assado sob as cinzas, o benzimento pela kuiã, a celebração do dia do
índio com o Evento. Quando Agenor começa a falar, Adélia o interrompe comentando sobre o
200

“dialeto” diferente que ele falava do kaingang. A fala de Agenor é centrada na “revitalização
da cultura kaingang”, relacionando temas como o contato e conhecimento da natureza, saúde,
a comunidade e os parentes (usa o termo iambré), a importância do evento para a
revitalização e valorização da cultura, especialmente entre os jovens, a importância desta
valorização para demarcação de terras (citando diretamente os antropólogos e seus laudos),
destacando na “cultura” os modelos de medicina tradicional, comida, educação. Ele se opõe
ao termo resgatar, destacando o revitalizar, já que entende que o resgate seria de algo morto, e
a cultura kaingang não estaria morta, apesar dos “projetos genocidas” do governo, sendo
citado diretamente o caso da construção das hidrelétricas. Destaca a importância do
conhecimento da história kaingang e da valorização da cultura como projeto de futuro,
garantindo às crianças ali e às gerações futuras a demarcação da terra. Há uma preocupação
clara com os conhecimentos da medicina tradicional pela kuiã serem apropriados
indevidamente por universidades. Adélia encerra a fala reafirmando no mesmo sentido da
importância da revitalização da cultura, principalmente no contexto escolar, falando também
sobre a construção da barragem da UHE Mauá. Ela destaca o valor do índio, como a situação
ali vivida e a terra, não o valor do branco, como o vestir sapato e roupa de marca. Diz que
primeiro deve vir o valor do índio, depois estas outras coisas77.
A maior parte dos convidados dormiu no local para o dia seguinte. Cada grupo
montou seu acampamento separadamente, isto é, pais, professores e crianças no rancho
construído, equipe de filmagem em redes, outros grupos em barraca ou acampamentos
improvisados.
Pela manhã foi feita nova filmagem no paris. Desta vez, foi preparada uma cena em
que as crianças iriam coletar o peixe que caíra na armadilha durante a noite. Alex as
acompanha usando um grande cocar. Há uma performação efetivamente de uma cena, ainda
que improvisada, sendo que inclusive parte do peixe no cesto do paris fora tarrafeado no rio e
colocado ali durante a noite por Emílio, sem que a equipe de filmagem e outros participantes
soubessem. A preocupação com a cena vai desde as pessoas que deveriam aparecer até o cesto
em que seria coletado o peixe para ser levado à aldeia. A ida e a volta são filmadas, como
parte da performance, mostrando as crianças com os peixes.
Mais tarde, as crianças se vestem para realizar a dança, usando saiotes de estopa com
as respectivas marcas pintadas. O irmão de Alex, como no dia anterior, começa a pintar seu
filho com as marcas. Ele é interrompido por Adélia que diz que quem faria a pintura era a

77
Estas falas não foram traduzidas a mim, sendo seu conteúdo obtido por termos e partes em português, bem
como perguntas gerais que fiz posteriormente sobre o que se falara.
201

Agenor, do jeito certo. Este inicia isto logo em seguida, utilizando uma tinta preta.
Interessante notar que os riscos de kamé, pois é como esta liderança se referencia à marca, são
feitos na horizontal, sendo pintadas apenas as marcas nas duas faces e no peito, em quatro
locais. O menino pintado com urucum recebe a pintura em preto por cima da que fora feita,
cruzando-as. Segundo Veiga (1994, p.79) a pintura é feita com carvão de pinheiro ou sete-
sangria. Segundo ela, a quantidade de riscos seria por gosto estético de quem está pintando.
Isto poderia indicar que também a orientação dos mesmos poderia ser assim motivada, no
entanto, em Apucaraninha sempre se indicava o re ioio a mim passando-se verticalmente dois
dedos sobre a face.
Após a pintura, a liderança de Iraí fala mais uma vez às crianças sobre a revitalização
da cultura, e em seguida as crianças, junto com três professores, um homem e duas mulheres,
fazem a dança circular, ensaiada na escola. Terminada a dança, não sabem muito o que fazer,
e o cinegrafista pede para eles repetirem a dança ficando ele ao centro do círculo desta vez.
Após a dança, reúnem-se todos os “índios” em frente à cabana para a foto oficial. Nesta foto
fica incluída a kaingang funcionária da FUNAI, não moradora de Apucaraninha, e excluído o
guarani, que desde a tarde anterior vinha sendo repreendido por estar tomando pinga e sendo
inconveniente. Especialmente por causa da filmagem, Alex havia feito aviso expresso aos
homens em relação à moderação do consumo de bebida durante o evento.
Logo em seguida alguns participantes se preparam para subir em retorno à aldeia.
Outros ficam para o almoço, sendo servida carne de javali e veado, que haviam sido
conseguidas com caçador branco morador da TI e trazidas para o local. Elas são
evidentemente direcionadas aos convidados brancos, tendo sido divulgada como um dos
atrativos do Evento. Os índios neste momento comem peixe com emi78. Após o almoço todos
retornam para a aldeia.

5.3. CULTURA E TRADIÇÃO

Manuela Carneiro da Cunha (2009a) fala da cultura como uma categoria de ida e
volta, isto é, a categoria usada pelos colonizadores retornou a eles transformada pelos

78
O consumo de carne de caça na aldeia é algo muito raro, mesmo o peixe sendo mais escasso, geralmente
consumido por pessoas relacionadas aos donos de ranchos que vão com eles pescar. As carnes mais
consumidas são de frango, porco e boi, nesta ordem, apesar de haver certa preferência pela carne do segundo.
Os peixes são, no entanto, os mais apreciados, especialmente se acompanhados de emi ou pixé, farinha de
milho torrado.
202

indígenas, e transformada em argumento político, sendo importante hoje nos contextos de


propriedade de conhecimentos tradicionais e outros direitos. No retorno, a cultura tomada
“para si” não apenas “em si”, passa a ser demonstrada performaticamente. A diferença entre
esta “cultura” e a cultura segundo os antropólogos, não seria necessariamente no nível de
conteúdo, mas de discurso, nos contextos em que são usadas, mas acabando por se influenciar
e se confundir.
Por isso, Marcela Coelho de Souza (2010) evita a distinção da cultura com e sem
aspas, destacando o looping effect da reflexividade colocada por Carneiro da Cunha e
defendendo a partir de Roy Wagner (2010) que se a antropologia se cria sobre o paradoxo de
pensar a cultura para pessoas que não as concebem para sim mesmas, todos agora parecem
ocupados no exercício desta imaginação, muitas vezes até reforçando fronteiras,
permanências, purezas que os antropólogos já excluíram de seu exercício. Assim, nunca
poderíamos saber de antemão o que os índios querem dizer com cultura. Se o contexto de
relação conosco será um parâmetro para tal definição, o conceito também terá uma
compreensão própria indígena:

Quando usam nossa palavra – ou alguma tradução engenhosa dela - eles estão
produzindo um objeto que significa sua relação conosco, mas trata-se ainda da
produção deles: o que eles devem estar fazendo – eles não têm alternativa – não é
objetificar sua cultura (sem aspas) por meio de nosso conceito, mas sua relação
conosco por meio dos conceitos deles – quero dizer, por meio de sua própria
compreensão do que constitui criatividade, agência, subjetividade... (COELHO DE
SOUZA, 2010, p.112. Grifos da autora)

Com base no caso kaingang, diria que a palavra já se tornou também deles. Nesta
perspectiva teórica, a performance, como possibilidade de agência, é também uma forma de
atualização deste conhecimento, para os outros mas também para si. No inicio do terceiro
capítulo vimos como os guerreiros kaingang ressurgem em um contexto específico. Foi
sugerido que se trataria de uma transformação no sentido da indianidade, opondo-se
radicalmente ao branco, uma tradição exteriorizante, onde o costume, o modo de fazer as
coisas e no caso ameríndio especificamente o corpo são a tradição (VILAÇA, 2000). Marilyn
Strathern (2006) aproxima a performance ou apresentação a uma forma de conhecimento,
como atualização. Ela se opõe à suposição de podermos entender os símbolos como
instrumentos expressivos do significado. Uma performance não é uma expressão
representativa simplesmente. Na interação entre pessoas, ao performar elas próprias se
descobrem: “como indivíduos negociando e conduzindo a interação com outros, cada qual
também adquire assim um valor de troca (comunicacional)” (STRATHERN, 2006, p.454).
203

Com base nestas proposições, podemos, então nos preocupar com o que representaria
a cultura para os indígenas e interlocutores pesquisados, bem como a relação desta cultura no
contexto em que se inserem, o que produzem estas culturas.

O Evento Cultural narrado indica um entendimento específico do que seja cultura e


da forma de sua atualização, como “revitalização”. É uma forma que tem uma repercussão
pequena na comunidade da Sede. O próprio Agenor destacava que eram poucos os que
estavam interessados neste trabalho, elogiando os que o faziam. Vemos que boa parte dos
participantes tinha ligação direta à família de Alex e Adélia ou à escola ou a ambas. Esta
família se destaca na comunidade por um histórico de maior escolarização, sendo Adélia
professora bilíngue hoje aposentada, fazendo graduação em história, e seus filhos com
formação ou cursando nível superior. O esforço do Evento Cultural é voltado para as crianças
da escola, sendo a elas dirigidas as falas e por elas feita a dança. A revitalização proposta
segue um contexto próximo ao escolar, ainda que seu método se afaste um pouco dele,
também não o faz totalmente. Os ensaios foram na escola, a dança foi com os professores e
crianças. As falas seguiram um modelo de palestra, com as crianças sentadas e quietas e os
adultos que falavam em uma posição de destaque e acima delas.
A visão de cultura proposta contempla tanto questões mais objetificadas como uma
abordagem mais abstrata, sendo esta, no entanto privilegiada. Na fala de Agenor a mim isso
fica mais evidente que nas falas dele e de Adélia acima descritas indiretamente:

Lucas: mas o que o senhor acha que significa cultura?


Agenor: cultura é... é uma forma de civilização. Quando você fala de civilização,
nós estamos falando de cultura, organização própria. As leis originárias, as
organizações próprias. O jeito de nós fazermos organizações com nossas famílias, o
planejamento familiar, tudo isso faz parte da educação indígena, diferente. Então
isso me parece que está... muito forte, o pensamento dos profissionais, os
professores, dessa [Terra Indígena], estão preocupados pela cultura, que está quase
desaparecendo. É um momento de nós estarmos juntos, retomando, revitalizando, a
cultura, a história verdadeira das comunidades indígenas e de cada povo, não só do
kaingang, mas, por exemplo, o guarani, xetá e outras tribos que existem nesse país.
Tem uma forma de viver, forma diferente, tem um trabalho, forma de organizações.
Então quando você fala de civilização, estamos falando dessas diferenças. Só que o
governo historicamente, o governo que veio, com um modelo de civilização, trouxe
lá de fora, uma civilização que não faz parte da nossa cultura. Desrespeitando o
nosso jeito de civilizar as nossas... as nossas futuras gerações. Tipo de educação,
tipo de... de tudo, porque tudo que se aprende na faculdade hoje, nós temos, só que é
diferente. Então essas civilizações, nossas leis originárias, nossos chefes, nossos
líderes, que tem nas aldeias pra fazer nossas leis originárias, esse pra nós é
civilização, própria! Aí o governo veio, trouxe um modelo de civilização, juntando o
índio, o negro, o alemão e o italiano, polonês e japonês, aqui no Brasil. Juntou tudo
e botou no mesmo saco e fez uma civilização desrespeitando a civilização dessas
nações. Não só pra índio, mas todas essas nações que existem nesse país, alemão,
italiano, tem uma forma de organizar, tem forma de língua, tem uma forma de
204

planejamento familiar. E assim pra nós também, tem uma forma, cada povo que tem
no país tem uma forma de organização.
Lucas: e o que caracteriza os kaingang, nessa forma de organização?
Agenor: pois é, nosso jeito de viver, nosso jeito de planejar, o nosso jeito de fazer
nossas leis originárias. O nosso jeito de educar nossas crianças. Mas também nossa
religiosidade faz parte da nossa civilização. Mas historicamente a nossa
religiosidade não foi respeitada até pelas igrejas. Então, muitos... foram impostas pra
nós. Modelos, modelos de educação, modelo de saúde, modelo de uso da terra.
Modelo de... planejamento, planejamento familiar, planejamento de... da
comunidade. É bem diferente do que a sociedade não índia. Principalmente nossas
leis originárias. As nossas marcas tribais, o controle dos nossos... nossos
casamentos. As festas tradicionais. Tudo isso é uma civilização própria pra nós. O
nosso jeito de nós fazermos nossas bebidas tradicionais

Agenor já trabalhou com vários antropólogos e daí sua familiaridade com o tema. Na
fala acima, cultura é uma das formas da civilização. A civilização engloba a cultura, pois ela
toma um sentido muito mais político e moral, por isso o reforço da lei própria, organização
própria e educação própria, e nos chefes (na medida em que se trata de um grupo com seu
chefe, não o “povo” kaingang). A civilização permite uma implicação mais direta sobre a
própria constituição da pessoa, já que isto envolve mais do que a cultura, ainda que a inclua,
não esteja em absoluto desvinculada dela. Por isso, “principalmente as leis originárias”,
representadas pelas marcas e controle dos casamentos ao mesmo tempo que as festas e
bebidas tradicionais.

Lucas: [...] a cultura em si não está sempre mudando, não está sempre se adaptando?
Agenor: olha a gente, nossos jovens, nossas crianças hoje... que tem que mudar, a
política de trabalho hoje está mudando cada vez mais. Hoje nós temos todo o poder,
e toda a capacidade, de estar inserido nas duas políticas, na política indígena e na
política do branco. Quando eu falo de políticas é aprender o que o branco aprende,
sem deixar de ser índio. Nós podemos estar na faculdade, como tem índios na
faculdade hoje, com essa ideia de ter esse conhecimento. A... a preocupação pela
cultura. É um complemento, não é questão de abandonar cultura quando vai
aprender na faculdade. Mas é um complemento a mais, conhecer a política do
branco, pra um dia nossos filhos terem autonomia. Nós temos esse sonho. Por isso
nós temos lutado pra ingressar nossos filhos na faculdade. De índio pra índio,
trabalho. Entendeu?

A cultura tem um sentido muito claramente político. A transformação é na política, é o


conhecer e adquirir, incorporar o conhecimento do outro como ação política. Isso não faz
menos índio, é sim fundamental para a autonomia (política) indígena. Civilizações que
incorporam para dominar o conhecimento, dominar o outro. Joga-se na mesma moeda. E se a
cultura precisa de uma base material é justamente porque ela é substantiva, se diferencia ao
estabelecer as relações, perpetuando as marcas corporais. Porque o branco não tem marca.

Agenor: A cultura pra nós é a vida. A terra e a cultura pra nós é a vida.
Lucas: mas por exemplo, pra vocês viver no meio dos brancos assim, já não dá
certo.
205

Agenor: só se nós nos misturarmos na aldeia, brancos e índios. Daí se torna difícil.
Mas dentro das aldeias, tem alguns casos em que existe brancos casados com índios.
Daí fica difícil de nós controlarmos nossas marcas tribais. Porque o branco não tem
marca. Isso também é um desafio que nós, como líderes, estamos discutindo muito
no Rio Grande do Sul, que eu sou do Rio Grande do Sul, a gente está discutindo
muito isso. Que o branco ele tem um conhecimento... outro, outro interesse. E a
cultura não... não combina com a cultura indígena.
Lucas: mas o que vocês querem é evitar esse tipo de casamento com branco.
Agenor: evitar, evitar. Na minha aldeia é totalmente proibido. Que é a Terra
Indígena Iraí, é proibido mesmo.

Neste caso, vemos como a cultura, como lei originária, representando até a forma de
vida, e aqui se referindo especificamente à possibilidade do controle das marcas dos
indivíduos índios, chega a um resultado similar ao que víamos no primeiro capítulo, ou seja, o
desejo da restrição de casamento entre índios e brancos ou a expulsão daqueles que o fazem.
Na fala de Agenor, a cultura toma uma dimensão, portanto, ampla e complexa. Neste caso, até
a produção da pessoa através das marcas poderia ser colocado, já que na fala as marcas
parecem ser um dos quesitos que torna os interesses de índios e brancos distintos,
descompatibilizando sua cultura.
Patrícia Carvalho Rosa (2011) ao trabalhar com alguns grupos kaingang ao redor da
cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, aponta que as metades kaingang tem grande
significância na constituição dos corpos e pessoas kaingang:

a instauração da forma dual da diferença, efetivada com a criação das metades,


distingue dois tipos de corpos e pessoas. Esta distinção é primeiramente expressa
pelos nomes pertencentes aos acervos das metades, de função sobretudo
classificatória e que operam como alicerces para a constituição de corpos e pessoas.
Dar nome à pessoa, ao animal ou às árvores é “recrutá-los” às metades, inscrevê-los
nelas. Ser kamé ou kairu é estar marcado por essa diferenciação necessária ao
processo de produção social em que consiste a administração das articulações
coletivas e a manutenção dos laços pretendidos. (ROSA, 2011, p.169)

Assim, a criação dos corpos e pessoas passa pela marcação kamé/kairu, constitui o
processo de produção da pessoa, produção dos parentes e dos corpos. Isso parece se refletir na
fala de Agenor. No entanto, outros interlocutores tinham visões distintas da cultura. Mesmo
Adélia, quem não tive oportunidade de entrevistar, procurava destacar às crianças que a
cultura indígena era aquela situação, recriada no Evento, ou seja, o estar ao lado do rio,
pescar, comer peixe com emi, estar naquela situação, naquele lugar. Ela inclusive contrastava
isso ao saber e fazer acadêmico, destacando aqueles que como ela tiveram que faltar aulas
para estar ali. Isso seria muito importante, da mesma forma que era mais importante as coisas
ali presentes, como o emi, às coisas dos brancos, como tênis de marca. Se os índios também
querem e tem o direito de querer as segundas, devem ter em mente as coisas dos índios em
primeiro lugar. Procura-se dar uma objetividade também a esta cultura.
206

Se nas falas de Agenor há um caráter marcadamente político e abstrato da cultura,


também estava presente sua objetificação. Se o grupo escolar é privilegiado como meio de
inserção deste conteúdo cultural, neste momento se trata também de fazer a cultura, de
performá-la, com a dança, a preparação do emi, filmando-as. Este Evento, no entanto não tem
interesse generalizado na aldeia. Um rapaz, por exemplo, questionara Alex sobre a
necessidade de fazer o Evento Cultural (gastando dinheiro com isso), considerando este
menos importante, interessado que estava na realização de um bom rodeio.
Vemos que as duas experiências narradas aqui, de minhas duas descidas ao paiol de
Carlos, distinguiam-se no sentido de que na primeira não havia uma preocupação evidente
entre os presentes com a cultura, embora essa fosse o pano de fundo de nossa presença ali. Na
segunda, a cultura era o foco. Na primeira, eu era o único branco, na segunda, haviam vários
brancos e uma equipe de filmagem. Destaco, então, que a cultura ao tornar-se preocupação
também modifica a própria realização de si mesma, no processo de tornar-se metalinguagem.
A partir de então ela pode tomar conotações e realidades conscientemente políticas. Na
primeira eu me convidei para ir. Na segunda vários brancos foram convidados e as ações
foram feitas com a intenção de sua exposição, com preparação e explicação e filmagem.
Em relação à cultura na Água Branca, vimos que alguns elementos ali eram
relacionados a uma tradição indígena passada, como o uso do tronco, a realização de reuniões
com a comunidade pela liderança, a lei antiga, e mesmo o espaço, próximo a uma ocupação
anterior à criação da Sede. Vimos que a moralidade defendida também era relativa a um
passado, atualizando este passado. Além disso, ali também havia o interesse da realização de
algo similar ao presenciado com o grupo da Sede.

Lucas: mas então, o Augusto estava falando que aqui vocês querem resgatar essa...
esses costumes antigos tal, que não estava acontecendo lá na Sede.
Isaac: sim, na verdade, na verdade a gente vai resgatar, sabe. Porque nós temos um
grupo de dança aqui, sabe. Dança tradicional. Chama Guerreiro. [...] Então nós
temos um grupo próprio pra isso. E aquele dia, dia que nós fundamos aqui [a aldeia
Água Branca], foi dia 15, 15 de agosto [de 2011]. Dia 15 de agosto [de 2012] nós
vamos fazer comemoração. Daí nós vamos colocar esse grupo nosso pra eles fazer
essa dança deles. Dança da cultura indígena. Fazer uns projetos aí, ver se eles
aprovam dentro desse programa pra nós, do jeito que eles aprovaram lá pra eles [da
Sede]. […] Pra resgatar, tem que ter uma pessoa que já conhece. Que nem eu estou
falando pra você o meu cunhado [Antônio]. Ele já conhece tudo [...]. E eu não, [...]
eu quero estar junto com eles também, pra estar bem preparado pra isso também.
Acho que daqui uns... um mês já, nós vamos preparar eles, uns guerreiros
tradicionais aí. Então a gente se pinta, é... faz lança, outro faz flecha. […]

Na fala de Isaac, a cultura era plenamente objetificada. Isso aparecia inclusive ao ele
defender que os índios andassem na cidade com alguma marcação de sua condição, como com
colares e uma pena na orelha. Desta forma poderiam ser reconhecidos como indígenas e
207

respeitados como tais, seguindo-se a lei (dos brancos) existente em relação a eles. Ele
lamentava um fato de abuso de autoridade policial ocorrido com seu filho em Londrina, em
que o policial agredira este, que havia ido jogar futebol na cidade. O policial não acreditara na
indianidade do filho de Isaac, e dissera que lugar de índio era no mato. Sem recorrer à FUNAI
ou ao MPF, Isaac denunciara o abuso, estando o processo em trâmite na justiça, segundo ele.
Assim, a objetificação não é menos política e consciente de seu potencial na esfera dos
direitos e da própria concepção da sociedade envolvente sobre os índios.
Isaac destacava a cultura existente na própria TI Apucaraninha, com pessoas com
conhecimento sobre ela, mais do que ele próprio conhecia. Ele contrastava a cultura dali com
a de kaingangs de outras regiões.

Isaac: aqui faz só cesto. Agora Rio Grande [do Sul], também já é cesto diferente
daqui. Lá faz tiara, pulseira, anel, colar... lá faz chapéu, chocalho. Então no Rio
Grande já é diferente também. Então é isso daí.
Lucas: mas daí, são kaingang também? Esses que você está falando.
Isaac: é kaingang, mas só que sotaque deles é diferente também. Quando eu estou
falando com eles hoje, vamos supor, por exemplo, eles vêm me visitar aqui, do Rio
Grande, aí se eu conversar com eles, eles não vão entender. Não sei por quê. Uma
vez estava no... Pato Branco, fazendo curso lá, e conversando com pessoal do
Nonoai, sabe. Mas só que eles não entendiam minha língua, sabe. Aí ele falou pra
mim: não, teu sotaque é muito rápido, muito rápido. E o sotaque dele é meio lento,
assim. [...] Ele queria que eu falasse o sotaque meio lento também. Mas só que já
sou acostumado já. Aí quando falava rápido assim pra ele, falava: eu não estou
entendendo. E aí nós quase não o entendemos, não entende, porque é meio lento.
Então é isso daí.
Lucas: mas e daí esse, a tradição que vocês querem resgatar aqui é a mesma de lá,
ou não é, é diferente?
Isaac: é diferente. É diferente. Então... é diferente. Nós estamos querendo gravar
[um vídeo] lá no meio do mato, daí estar mostrando bem. Inclusive talvez nós vamos
gravar ali, embaixo desse pinheiro ali. Você já foi ver ali já? Tem um trilhozinho
que tinha bem feito ali, daí nós vamos abrir mais ali, abrir pra cá, abrir mais ali. E
fazer a nossa tradição ali. E lá no Apucarana grande também nós estamos pensando
fazer, tipo paris assim.

Neste caso, há ênfase no conhecimento existente ali. No caso da Sede, para o Evento
Cultural se buscou tal tradicionalidade fora da TI, procurando também deslegitimar a
“tradicionalidade” da Água Branca. Durante o Evento Cultural Adélia conversava com uma
funcionária da FUNAI sobre a Água Branca, dizendo que lá não saberiam nada da tradição
kaingang. Haveria apenas o grupo de dança, mas as principais lideranças de lá não saberiam
nada da cultura. Ela ainda destaca o fato de que não havia ninguém daquela aldeia ali no
evento. Dias depois, na aldeia, escutei Alex conversando com o diretor da escola de
Lerroville, e criticando a reportagem em jornal em que funcionário dissera em nome da
FUNAI que na Água Branca tinham a proposta de resgate da cultura kaingang. Alex
contrapunha justamente com a realização do Evento Cultural, como sendo o efetivo resgate da
208

cultura. Assim se contrapunham ao discurso da “tradição” e à presença do grupo de


Guerreiros na nova aldeia.
Ao passo que no Evento Cultural se buscou uma “cultura” em outra comunidade, isto
é, com o convite e a presença de uma liderança e uma kuiã kaingangs da TI de Ivaí, no Rio
Grande do Sul, destacando a ausência de kuiãs em Apucaraninha e o grande conhecimento da
cultura kaingang pela liderança convidada, a liderança da Água Branca reforça a diferença da
“cultura” de Apucaraninha e de kaingangs do Rio Grande do Sul. Em um caso se traz a
“cultura” mais “tradicional” de fora, ainda que este fora seja um “fora dentro”, um kaingang
de outra TI. De outro lado, destaca-se a diferença em relação ao de fora e afirma o que tem
dentro.
No Evento Cultural, kamé e kairu usados pela liderança de Iraí tiveram que ser
traduzidos para re joj e re kutu para que as crianças entendessem. A marca feita foi a marca
horizontal, com carvão, não urucum. Procurou-se uma autenticidade fora. Na Água Branca ela
é reconhecida dentro, contraposta ao de fora. Por fotos antigas que pude ver do grupo de
Guerreiros, o re joj é feito na vertical, assim como outras pessoas indicavam para mim ao
referir-se à sua própria marca, e com tintura preta. No Evento Cultural a dança é feita pelos
professores e crianças, sendo o evento em si focado nelas, e por sua configuração à beira do
rio, em local de difícil acesso, acaba excluindo os velhos. Na Água Branca seria uma dança
com os adultos do grupo dos Guerreiros, não apenas crianças. Os organizadores do grupo de
Guerreiros não são “velhos”, mas reconhecidos como grandes conhecedores da cultura
kaingang e história da TI.
Apesar da maior objetivação da cultura no caso de Isaac comparativamente à de
Agenor, por ambos era destacada a necessidade de conhecimento do branco para a autonomia
e o direito indígena. A motivação política em relação ao branco não é tão distinta. No entanto,
a disputa política existente na comunidade, então, acaba por criar diferentes posicionamentos
frente à cultura e sobre quem a conhece, seguindo também as diferentes parentagens.
Ainda que não tenha presenciado a festa mencionada por Isaac, que acabou sendo
postergada sob o pretexto de não haver sido feita ligação de energia elétrica, sugiro que o foco
na cultura no caso da Água Branca, como algo intrínseco ao grupo, mas com a necessidade de
resgate, seja coextensivo ao foco colocado sobre a moralidade ali defendida. Ela seria relativa
a um mesmo movimento de atualização do passado, permitindo o restabelecimento das
relações de sociabilidade vistas neste passado. Assim, além de fazerem a festa, queriam fazer
novamente também puxirões. A objetificação passa a ser importante fator, criando símbolos
de uma indianidade mais tradicional.
209

Desta forma, podemos dizer que a cultura aqui entraria como elemento a criar
diferenciação entre as aldeias e identificação no seio de cada uma, a exemplo da identificação
através da performance feita para a conquista da indenização. A importância destes eventos
tem uma motivação política entre as lideranças das aldeias. São elas quem mobilizam tais
eventos, articulando suas parentagens para tanto, bem como buscando recursos junto aos
brancos para sua realização. Além de diferenciar as aldeias, a cultura diferencia as lideranças,
no sentido de sua exposição mas também de seu conhecimento ou sua atuação para sua
atualização. Há um sentido político interno para além da diferenciação das aldeias.

Coelho de Souza sugere, a partir do caso kĩsêdjê, que antes de os indígenas


utilizarem a cultura como meio de diferenciação em relação aos brancos e de seus vizinhos
utilizam-na como meio de diferenciar-se de si mesmos, pois que permite a perpetuação das
transformações através de referenciais aos “índios puros” em contraponto ao “virar branco”,
cujo risco se daria através dos conhecimentos, comidas, roupas, máquinas destes acessadas
pelos indígenas (COELHO DE SOUZA, 2010, p.106).
Tal proposição pode ser aproximada à de Gordon, vista no capítulo anterior. No caso,
além da busca das mercadorias industrializadas, também se busca elementos materiais ou
objetificáveis a indicar uma diferenciação indígena, a atuar em relação aos brancos e aos
próprios indígenas. A exposição destes elementos aos brancos é fundamental na diferenciação
e garantia de direitos, ainda que de forma indireta. Esta exposição, no entanto, é também feita
para os próprios índios e por eles, sendo, como sugerido antes, um meio de identificação
comunicacional. Mas ela também diferencia aqueles que conhecem a história e os elementos
do fazer indígena. Tal conhecimento também é lido diferentemente pelo posicionamento
dentro da situação política.
Vimos no primeiro capítulo como a identificação entre índio-mestiço-branco é
relacional, seguindo os vínculos de sociabilidade mantidos entre as diferentes pessoas. No
entanto, também há um discurso radical de diferenciação através do sangue, com supostas
implicações no caráter do indivíduo. Aqui vemos esta diferenciação relacionada ao
conhecimento e à pessoa, que incidirão sobre a cultura diferencial entre eles.
Já no terceiro capítulo apontei falas preocupadas com a cultura indígena quando se
levanta a necessidade dos bens industrializados dos brancos e também com a forma de
trabalho indígena. Aqui vemos o contraponto, como propõe Coelho de Souza, com elementos
da cultura, diretamente contrapostos às mercadorias. Vemos exatamente a preocupação com a
performação da tradição pelas crianças, a descrição da cultura a elas, a colocar em primeiro
210

lugar o ritual, o paris, o emi, depois os tênis de marca, as coisas dos brancos. A criar corpos
indígenas identificáveis aos outros.
Note-se que são as lideranças que mais se preocupam com estas transformações em
direção à indianização. No Evento Cultural da Sede, Alex, Adélia e Agenor eram as
lideranças que mais destacava a necessidade de “fazer a tradição”. Na Água Branca, o
presidente da Associação de Moradores Isaac. São lideranças com grande papel de articulação
com brancos. Se tomarmos a leitura de Gordon, ao mesmo tempo em que elas representariam
o maior grau de alteração, do tornar-se branco, podemos colocar que eram também elas que
buscavam controlar a alteração na comunidade, através da indianização pela via da cultura.
Nas duas aldeias é preciso performar a cultura contra o risco da alteração, neste
momento em que a relação com os brancos se torna ampliada pela conquista da indenização e
pela construção da UHE Mauá, com seu respectivo PBA indígena, neste momento em que as
lideranças estão constantemente em suas correrias para incorporar os recursos. Há, porém,
uma diferença, pois no caso da Água Branca, tal movimento é mais generalizável na
comunidade já que integra o sentido maior da diferenciação proposta em relação à Sede,
articulada à moralidade, como destacado no capítulo anterior. Assim, é possível à liderança ali
querer articular formas de trabalho vistas como tradicionais como o puxirão, o que se alia com
uma forma vista como tradicional de liderança. A oposição ali é fundamental pois além de se
contrapor ao banco em si, se contrapõe à perda da tradição suposta na Sede, um
embranquecimento moral e cultural. Este contexto, juntamente com o movimento na Água
Branca, causa a necessidade de fazerem na Sede o Evento Cultural, reforçando a indianidade
através da ampliação da importância dada à dança das crianças nesta comunidade, acrescendo
outros elementos culturais, como o paris e o emi. Para tanto, na Sede é procurado um
referencial “mais tradicional” em outra TI, já que os articuladores dos Guerreiros estão na
Água Branca, o que possibilita nesta segunda aldeia o reforço de que ali está a tradição, ainda
que isso seja questionado por lideranças-políticas da Sede. Destaque-se que isso causa
diferenças no produto cultural da performance. Reforçando o que foi apontado no capítulo
anterior, as duas aldeias passam a se opor e buscam tentativas de domesticação do outro como
forma transformativa de reindianização.
Na Sede é visível que há uma restrição à repercussão destes movimentos, pois nem
todos ali estão tão preocupados com a alteração do virar branco enquanto uma forma que
necessite o contraponto cultural ou moral indígena. Enfim, muitos ali estão mais preocupados
com a festa propriamente dita, a despeito das preocupações de lideranças como Agenor e
Adélia.
211

5.4. FESTA: RITUAL DE DISTRIBUIÇÃO E UNIDADE POLÍTICA

O início do preparo dos bares para a festa se dá cerca de uma semana antes, com
repartição dos lugares e armação de pequenos toldos em frente ao salão de festas. Neste
serviço é possível perceber redes de sociabilidade atuando, com ajuda na construção dos
mesmos. No atendimento dos bares durante a festa se percebe mais facilmente relações de
parentesco (grupos domésticos) e as principais famílias da aldeia representadas em
respectivos bares. Como vários dos donos das barracas têm bares na aldeia, muitos destes
fecham durante a festa. A armação de bares necessita de autorização do cacique, no entanto, é
organizada de forma autônoma. O próprio cacique montou um bar, mas em uma casa a alguns
metros do salão. Percebe-se já de início a festa como local de articulação política da chefia em
meio às principais parentagens. Alguns não-índios da redondeza também conseguem
autorização para instalar bares e tendas com comidas ou jogos. Ao todo foram montadas sete
barracas por moradores e três trailers ou barracas de não-índios em frente ao salão. Com o
risco de chuva durante a festa, foi alugado e armado um grande toldo em frente ao salão,
ficando sobre alguns dos bares.
No início da semana havia movimentação de caminhões e máquinas da prefeitura de
Tamarana, arrumando vias de acesso e as principais vias no interior da aldeia. As vias no
interior da aldeia arrumadas eram apenas as que davam acesso até a área do rodeio, que de
certa forma já eram boas, as ruas em piores condições não são arrumadas. Também foi
arrumada a área da arena de rodeio e adjacências, com acompanhamento neste último caso do
Cacique e lideranças. Enquanto isso, alguns jovens treinavam para o rodeio em bezerros, em
uma pequena arena ao lado da casa do cacique. A churrasqueira em que seria assada a carne
era reformada e pintada.
Ao retornar para a aldeia no dia 19 de abril vi a arena do rodeio já armada. Para todo
o rodeio foi contratada empresa especializada, que monta a arena, traz bois e peões, produz o
show e faz a premiação. A maior parte dos bares já estavam montados. À noite, Pedro e
Getúlio fazem a abertura da festa, no salão. Acho interessante o Cacique afirmar que Getúlio
foi escolhido por ele para continuar o trabalho e que a comunidade aceitara isso. Lembre-se
que Pedro substituíra o vice que se elegera junto com ele, colocando Getúlio no cargo pouco
tempo antes de eu ir a campo. Eles destacam também a questão da abertura com show
evangélico, dizendo que fazem isso todos os anos. Dizem que após o show haveria baile. Nos
dias seguintes também haveria baile, após o rodeio. Eles destacam a presença de grupo que
212

viera de Ortigueira (Queimadas) para participar da festa, e no dia seguinte chegariam grupos
de São Jerônimo e Barão de Antonina. É feita uma oração, direcionada a Pedro e Getúlio. A
banda convidada a fazer a abertura após seu discurso é evangélica, de índios kaingang de
Ortigueira. Eles tocam uma espécie de vanerão gospel em kaingang. Getúlio fica com os
jovens à frente embalando-se com a música. Pedro fica parado ao lado do palco, virado ao
público. Sendo ambos Cacique e Vice não evangélicos, mais uma vez temos marcada a festa
como espaço de possível articulação e demonstração de unidade entre diferentes grupos
internos. É interessante notar que o salão de baile e a arena do rodeio estão localizados entre
três igrejas evangélicas, as quais fizeram culto nos dias de festa.
As principais atividades públicas durante os dias de festa na aldeia foram os bailes, o
rodeio, a distribuição de comida, o bingo e a final do campeonato de futebol. Os bailes
ocorriam sempre à noite, no salão, iniciando por volta das 23 horas ou mais cedo, adentrando
a madrugada, com estilos musicais diferentes, possibilitando agradar diferentes gostos.
Os rodeios ocorreram de sexta a domingo, antes do baile. Na sexta, foi feito mesmo
sob chuva. A inscrição de homens da comunidade ou da redondeza é permitida, mas há
poucos que se arriscam. Entre os espectadores, pode-se perceber grande presença de brancos,
muitos dos quais, se não todos, são conhecidos dos índios. Dentre os índios, há de todas as
idades, tanto homens como mulheres.
A final do campeonato de futebol ocorreu no sábado à tarde, sendo então feita a
entrega dos troféus aos ganhadores. Ela foi marcada intencionalmente para ocorrer durante a
festa, tendo o jogo anterior ocorrido semanas antes. Este campeonato, chamado de II Copa da
Liderança Indígena fora criado no ano anterior, segundo Alex, que o organizou, com recurso
da indenização, como forma de acalmar os ânimos na aldeia. Participavam do campeonato
apenas times da própria aldeia Sede. Com a chuva, o campo, já em situação ruim, ficou
precário. O jogo foi marcado por muitos escorregões, tombos, resvalos e faltas. Usar o campo
de cima, visto como possibilidade por algumas lideranças por estar em condições muito
melhores, obviamente estava fora de cogitação por ser ligado a moradores da Água Branca,
especialmente por ser a final da copa organizada pela liderança-política da Sede, com entrega
de prêmios, que é, então, feita em frente à casa do Cacique. No domingo ocorreram amistosos
com times das outras TIs que haviam ido participar da festa, utilizando ambos os campos.
Desde o almoço de sábado era distribuída carne assada para consumo imediato,
sendo sempre à vontade. A churrasqueira fica ao lado da praça central, em frente à igreja
católica. A distribuição de carne crua, o restante da assada e de refrigerantes e pão foi feita no
sábado à tarde, também na praça central, sendo aguardado o fim do jogo para seu início,
213

adentrando a noite. Foram distribuídos cerca de sete mil quilos de carne, segundo as
lideranças, assada e crua, contei aproximadamente 360 fardos de refrigerante, cada um com
seis garrafas de dois litros (4.320 litros), além de vários quilos de pão. Há um ordenamento na
distribuição, em fila, por ordem de chegada, podendo pegar a comida homens, mulheres,
crianças, desde que índios, o que inclui os visitantes. Não pude observar desvios na
distribuição, de forma que a distribuição tem a intenção de ser mesmo generalizada. Algumas
lideranças e outras pessoas, inclusive, acabam conseguindo menos que os demais por estarem
trabalhando na organização.
Houve um desentendimento em relação ao local de armazenamento dos alimentos a
serem distribuídos, tendo Alex dito para serem colocados no escritório, houve resistência por
outras lideranças, que viam a ação como uma forma de tentativa de desvio da distribuição,
tradicionalmente localizada na praça. O refrigerante e pão inicialmente estocado no escritório
foi depois transferido à praça no dia da distribuição.
Nesta transferência, houve uma tentativa de desvio de refrigerante e pão feita por
alguns homens que trabalhavam no carregamento e transporte dos mesmos, acabou frustrada
quando não me responsabilizei em guardar a mesma na sala em que eu estava instalado no
escritório. Suponho que outros carregadores tenham levado tudo para a distribuição. Aqueles
que não conseguiram pegar muita coisa por estarem trabalhando avaliaram, por vezes, uma
má distribuição, fato que é interessante por representar uma inversão do sentido da
distribuição, já que pessoas com maior status acabam conseguindo menos, dependendo de
redes de relações para conseguirem algo a posteriori. No caso dos refrigerantes, por terem
sido distribuídos em fardos, pode ter havido maior desequilíbrio, tendo acabado muito antes
que a carne.
De forma geral, no entanto, a grande quantidade garante a distribuição sem muitos
problemas, ainda que os que estavam antes na fila tenham vantagem, lembrando que mesmo
com os visitantes indígenas o total de pessoas não deveria passar de 1500 pessoas, incluindo
crianças, descontada a população da Água Branca. Pude observar geladeiras cheias de carne
em algumas casas após a festa, levando muitos dias para ser consumida pelas famílias, já que
o sistema distributivo entre os parentes se torna praticamente inoperante, pois todos tem muita
carne. Após a distribuição, foi feito bingo na praça central, envolvendo algumas famílias,
aparentemente fazendo mais sucesso entre os moradores de outras terras indígenas.
Além destes eventos, o espaço em frente ao salão tinha sempre algum movimento,
entre os bares. O consumo nestes segue uma orientação menos familiar e mais de relações
individuais. É comum quem está bebendo pedir a amigos e parentes ou mesmo estes terem a
214

iniciativa de pagar bebidas ou tomarem juntos. Assim, muitos de meus interlocutores que
bebiam agiam desta forma comigo, havendo certo constrangimento quando me negava a fazê-
lo. Também outros brancos eventualmente bebiam com índios. Em geral apenas nos trailers
ou barracas de brancos há coisas para comer. Apenas um dos bares indígenas servia
churrasco, nos demais há predomínio da venda de bebidas, principalmente cerveja, pinga e
vermute, além de refrigerantes.
A importância dada a cada um destes eventos componentes da festa varia bastante
conforme avaliações individuais. Por exemplo, um velho avaliou que a festa tinha sido boa,
mas considerava a mesma acabada após a distribuição de comida, sendo sua avaliação
diretamente relacionada a esta. Um homem de meia idade, músico, índio não kaingang,
considerou fraco o rodeio e, na média, razoáveis os bailes. Por outro lado, outros eram apenas
elogios a tudo. Obviamente que tais avaliações passam por posicionamentos políticos e o fato
de saberem que eu era pesquisador.
A festa, para além de um espaço de sociabilidade, tem implicação direta sobre a
autoridade da chefia política. Isto é em grande parte uma ideia dos próprios envolvidos, pois
como vimos o cacique deixou para tomar atitudes de maior peso político após a festa. Da
mesma forma, um cacique já teria sido retirado do cargo por a carne a ser distribuída durante
a festa ter estragado. Havia preocupações entre lideranças-políticas e polícias de que a festa
fosse boa, como forma de estabelecer o poder do cacique e suas lideranças políticas, em uma
referência evidente aos problemas relativos à existência da aldeia Água Branca. Faz parte do
próprio papel da liderança, porém, produzir uma boa festa, o que era explicitado em
negociações com equipes e empresas a serem contratadas. Até o fato da possibilidade de
chover durante estes dias é de grande preocupação, assim como, entre lideranças-polícia, de
não haver brigas durante o evento. Houve algumas, sendo que a mim foram mencionadas
duas, ambas sem gravidade, rapidamente resolvidas e afastadas, sem maiores implicações. A
preocupação maior, no entanto, era a possibilidade da vinda de integrantes da Água Branca,
em especial suas lideranças, ou alguma tentativa de arruinar a festa pelos mesmos. O fato de
chover na sexta também foi colocado por um interlocutor como positivo, evitando que
pudessem ter a intenção de incendiar a casa do cacique. Alguns de meus principais
interlocutores que eram lideranças-polícia faziam plantões durante a noite em um bar em
frente à casa do cacique, do outro lado do campo, sempre atentos a movimentações na
redondeza. Isso também ocorreu em outras ocasiões, como no fim de semana da páscoa,
aparentemente sempre que há clima mais festivo na aldeia. Além disso, um interlocutor estava
visivelmente preocupado durante a festa por haver a possibilidade de presença de branco por
215

quem já havia sido ameaçado de morte. Valdir também estava apreensivo, e quando
questionado por mim negou que estivesse preocupado, dizendo estar atento para não levar um
tiro de repente. Afinal, nada disso ocorreu. Não houve atentados e os moradores da Água
Banca não foram à festa.
A ligação entre a festa e a liderança-política é direta, sendo os nomes desta
mencionados incansáveis vezes no caminhão de som contratado, seja por índios ou pelos
narradores do rodeio durante o mesmo. Durante os eventos, se há a presença de alguma das
lideranças-políticas ela é destacada, se não há, ela é colocada como expectativa. As falas
públicas de Pedro e de Getúlio e outras lideranças-políticas também apontam neste sentido
geral. Na abertura da festa, se destaquei o discurso focado na legitimidade do cacique e do
vice, no último dia de rodeio houve um discurso ainda mais diretamente relacionado à
afirmação da liderança através da festa.
Na abertura do rodeio, que começou mais cedo, às 21h30, todas as lideranças-
políticas foram chamadas à arena. Pedro começou falando, dizendo ser o melhor rodeio que já
viu ali e dizendo que estava triste porque festa assim só dali um ano. Não queria nem pisar ali
no dia seguinte, pois veria as pegadas de todos que ali estiveram, todos, os de outras reservas
e os de outros lugares. Alex, que usava seu enorme cocar, falou que Pedro conquistou a
comunidade, a simpatia das pessoas e foi escolhido para ser cacique. Diz que a festa foi boa,
mas iriam trabalhar para melhorar sempre. Valdir então diz que Pedro foi eleito no dia 12 de
julho. Todos ali saberiam, todas as outras terras indígenas saberiam e tinham documento
atestando. Reforça que se Pedro foi eleito têm que respeitá-lo. Diz que Pedro é um homem
grande, mas juntos poderiam melhorar. Fala ainda que na luta tem que ter união, para ser
bonito e bem feito. Ele pede então a proteção a Deus e Nossa Senhora pelos peões porque
enfrentariam os bichos, que não são batizados, sendo perigosos, para que não acontecesse
nada de grave aos peões. Finalmente, Marcos também fala, repetindo ser o melhor rodeio já
visto na aldeia, e que trabalhariam para melhorar no próximo ano.
Corre o rodeio, e o último peão acaba desmaiando na arena, sendo ajudado para sair.
Após ser retirado, o locutor e animador chama as autoridades para entrega dos prêmios. Ele,
no entanto, anuncia apenas o quarto lugar. Logo que entram as quatro lideranças-políticas, é
interrompido o anúncio. Apesar de Getúlio estar acompanhando o rodeio, não vai neste
momento à arena. É feita uma queima de fogos de artifício. As lideranças-políticas se afastam,
mas guiados por Pedro, ficam próximos e no fim fazem um círculo abraçados os quatro,
ficando assim até que a luz da arena seja acesa novamente. O momento é de evidente intenção
de reforçar e demonstrar união. Pedro então fala ao locutor que este é o melhor que já pisou
216

ali, e estaria ali no ano seguinte novamente. Alex, agora apenas de chapéu como os demais,
igualmente agradece ao locutor. Lembra que no dia anterior ocorrera a final do campeonato de
futebol. Lembrando assim que além do rodeio, organizam também o futebol. Destaca que a
festa é “de porteira aberta”, sem ônus a quem vem, sendo difícil organizar uma festa assim79.
Assim, vemos explicitada a relação entre a chefia e a promoção da festa, tentando ela
destacar seus eventos como muito bons. Além da menção direta a eleição e à legitimidade do
cacique, feita neste caso justamente por Valdir, performam a unidade (aliança) e força das
lideranças-políticas, através do abraço na arena do rodeio à luz dos fogos de artifício.

5.4.1. Aliança, incorporação de alteridade e diferenciação

Uma interessante conceituação sobre o que seriam os rituais é feita por Calavia Sáez
(2004) em relação aos Yaminawa que seriam vistos como povo sem rituais. Brincadeiras,
bebedeiras e danças, organizadas em torno de itens culturais estrangeiros (cachaça e
chocolate, português e forró) seriam passíveis de serem analisadas como rituais. Seu uso seria,
porém, dentro de uma regulação específica dada pelos chefes, e ao passo que a comida divide
ao ser distribuída pelas relações de parentesco, a cachaça agrega, circulando. E assim como
não há festa sem bebida, não há festa sem briga, apesar de estas serem evitadas e controladas.
São brigas dentro de certas relações de parentesco, aqueles que representam as verdadeiras
linhas opositoras não participam da festa.

To sum up, the Yaminawa have the rituals they need: not celebrations, but rehearsals
of an order that only exists virtually. At the end, the chief congratulates himself for
the success of the endeavour: the feast managed to gather all the Yaminawa and
made them interact in a meaningful way; and he, the chief, was endorsed as the main
link in the network. (CALAVIA SÁEZ, 2004, p.165)

Suplantando as leituras funcionais, estruturais e posmodernas, propõe que os rituais


não seriam feitos, seriam organizados, mantendo assim a improvisação. Teriam, porém, ainda
sua função estruturadora ao criar um sistema e extrair um valor coletivo da simbologia que os
compõem. Esses rituais entre os Yaminawa estariam trabalhando na predação simbólica da
alteridade, no caso o branco, por isso a insistência em usar a cachaça, não as bebidas
fermentadas “tradicionais”, de falar em português. Os brancos tomariam simbolicamente o
papel dos inimigos, dos espíritos e dos mortos. Assim, estes rituais performariam a sociedade,
trazendo os Yaminawa como “todo”. Ao contrário, os rituais da “tradição”, como o próprio

79
As lideranças-políticas cogitavam cobrar a entrada por carro que entrasse na aldeia, mas acabam desistindo
da ideia. Um problema que se questionavam era como e principalmente por quem seria feito o controle e
cobrança, para que se cobrasse de todos sem haver brigas e ainda não houvesse desvios.
217

Kiki dos Kaingang, que agora seriam feitos “para o outro”, transformam-se em commodities,
valores de troca. No entanto, os rituais descritos, baseados na improvisação, em pouco tempo
podem ser tornados tradicionais.
Na seção anterior procurei tratar dos rituais entendidos como “tradicionais” sendo
revitalizados junto com a “cultura”. Estes rituais tinham também improvisação. Foram mais
organizados que ensaiados. Mas se a kuiã e os guerreiros tem seus rituais, também tem o
cacique.
O restante da festa, porém, pode ser visto mais exatamente o “ensaio” que propõe
Calavia Sáez. Aqui tudo foi apenas mais ou menos organizado e durante o ritual em si, o
grupo das lideranças-políticas procurou se evidenciar permanentemente. Faziam plantão,
havendo briga algum estaria ali para rapidamente solucionar. Os discursos focavam a
legitimidade, a eleição, a escolha do cacique e do vice. Eram eles que davam esta festa,
melhor que qualquer outra, com fartura de carne, refrigerante e pão, distribuída a todos os
índios, a toda a comunidade.
Se o ritual performa o chefe, também performa a comunidade. Mas não apenas esta.
Da festa participavam muitos brancos. Moradores da região, conhecidos e amigos de índios.
A festa tem também um sentido de integração regional, sendo de “porteiras abertas”. Não se
pode dizer que o rodeio seja mais ou menos indígena. Não ouvi discursos de índios neste
sentido. No entanto, atrai os brancos, que são muito bem vindos (assim como também os
índios de outras TIs) desde que não causem brigas, caso em que são submetidos à lei e
autoridade indígena. Neste sentido, nele é performada uma comunidade e suas lideranças em
articulação com o branco, mas este fica sob o jugo das lideranças, e mesmo da comunidade,
pois poderão por ela ser denunciados. Esta ritualização não informa uma “indianidade”, nos
termos da cultura, fato destacado no Evento Cultural, onde em determinados momentos da
filmagem os brancos não deveriam aparecer, ainda que fosse muito importante sua presença
no próprio evento, sendo feitos diversos convites para tanto.
No Evento Cultural a presença dos brancos era importante como observadores. Os
atos não eram performados apenas para eles, mas também em relação a eles. Na festa, os
brancos também estão presentes, mas integram a performação juntamente aos índios. Seja no
rodeio, no baile, nos bares, os brancos são bem recebidos ali. É evidente que sua integração
nestes eventos dependerá de seu histórico de relações ali na aldeia e também com as
lideranças. Assim, alguns podem ser mal quistos e vistos como ameaça se vierem à festa,
outros podem ser até mais bem recebidos que esperam. Em um dia que entrei no salão de
baile Pedro acenou enfaticamente em minha direção, sorrindo. Eu não entendi que fosse para
218

mim, me convencendo disso logo em seguida, deixando-o em uma situação um pouco


constrangedora ao não ter acenado imediatamente de volta. Assim, com determinados brancos
espera-se durante a festa uma aproximação, pelo beber junto, o dançar no baile, o assistir ou
participar do rodeio, fica-se feliz por ela. A festa aproxima as pessoas, não apenas os índios
mas também alguns brancos. Nela reforçam-se alianças políticas, como o convite para o vice
prefeito de Tamarana, que vai à TI fazer a entrega das taças do campeonato de futebol.
Neste sentido da festa como forma de estabelecimento de alianças, Gabriel Coutinho
(2011), estudando os Aparai e os Wayana meridionais (caribe), aponta a festa como
orientação “contraeconômica” da troca indígena, coexistente à lógica da guerra e as
consequentes alianças, seja com índios ou com regionais brancos. Desta forma, resgata o
debate clastreano da generosidade e reciprocidade bem como da tendência guerreira dos
ameríndios. Ele indica que no processo de pacificação, houve uma transformação da guerra
em troca, sendo um de seus principais elementos as festas. Ele destaca na leitura de Clastres
que a guerra é sempre prevalente à aliança, sendo esta sempre construída em função da
primeira. Assim, a pacificação não seria nunca concluída, e mesmo na festa, ou
principalmente nela, o risco de brigas e agressões estaria presente. No entanto, ele descreve
como a festa marcaria a incorporação do outro, seja o jovem iniciado, o convidado, os animais
abatidos, os antigos cativos. Assim, as festas neste contexto representariam a apropriação de
forças reprodutivas por meio da domesticação de uma alteridade exterior, e a troca, seria uma
forma de incorporação do outro, de agenciamento e manutenção das diferenças, definidor da
condição humana plenamente socializada. Assim, na festa, estariam presentes tanto as
parcerias de troca, os intercasamentos e as agressões.
Podemos dizer que em Apucaraninha a festa representa o ápice da reciprocidade do
chefe, com a distribuição aos índios, sendo, portanto moralmente significativa. Desta forma
ela também permite incorporações de princípios de alteridade e produção de alianças, seja
entre as TIs kaingang ou com brancos, políticos, pesquisadores, etc. Os atrativos ali agradam
também os regionais, que vem e socializam (ou são socializados) com os indígenas. A festa,
então, representa uma forma de incorporação e estabelecimento e reforço de tais alianças. Por
outro lado, os inimigos são mantidos afastados e sua presença representa um perigo iminente
neste momento. Como coloca Calavia Sáez, nestes rituais festivos sempre pode haver brigas,
mas as brigas são entre parentes e amigos, os verdadeiros inimigos não participam. Há um
sentido de exclusão também de alteridades que não são domesticáveis. A presença destas
representa um risco verdadeiro, inclusive da mudança de perspectiva de quem é que está a
domesticar e incorporar princípios de alteridade. Se a festa representa um elemento de
219

transformação da guerra em um contexto de pacificação, ela também não pode representar


uma inclusão completa e tradução do que seja atualmente os princípios guerreiros.
Vimos que com a criação da Água Branca, o destaque à moral e à cultura pode ser
produtivo a ambas as aldeias e lideranças, permitindo transformações no sentido de novas
identificações a princípios indigenizadores. No entanto, isto é feito a distância, e quando há
negociação, isso não é admitido, a princípio, pelas lideranças. A intenção é marcar a diferença
e através dela produzir a diferenciação, tentando predar o outro. Portanto, na festa, exclui-se
tais inimigos, pois, não domesticados, sua presença seria as vias de fato da guerra, tomando
caráter de violência física.
Se os brancos estavam na festa e também no Evento Cultural, na aldeia ou no rio, os
excluídos não eram necessariamente brancos, eram excluídos os Água Branca. Sua presença
era o verdadeiro risco. Ao serem excluídos e se excluírem da festa reforçavam a diferença
mútua. Uma diferença de moralidade, de política e de cultura. Seriam então verdadeiros
outros. Os esforços de domesticação do outro são contínuos. Através deles as transformações
se fazem constantes.
220

6. OUTRAS SIMBOLIZAÇÕES E LIMITE DA PESQUISA

Na introdução deste trabalho mencionei que “pesquisadores e caciques só


simbolizam”, conforme dissera um interlocutor a mim. A simbolização circulou sobre três
aspectos principais: a moralidade, a política interna e a cultura. Estes elementos seriam
fundamentais no processo da criação da aldeia Água Branca. Ao redor deles foram aderidos
alguns outros, como a indianidade ou o devir branco, a diferenciação e a identificação. Para
finalizar este trabalho gostaria de, ao invés de fechar esta simbolização em considerações
finais, indicar uma possibilidade de abertura, a partir de outros elementos que pouco pude
explorar durante o campo, mas que possibilitam aqui uma complementação às simbolizações
propostas, apontando outros possíveis da vida real, outras imaginações que dão sentido às
formas de sociabilidade abordadas neste trabalho e o mundo no qual se situam e criam.

6.1. OUTRA HISTÓRIA DA CONQUISTA DA INDENIZAÇÃO, OUTRAS AGÊNCIAS


E ENCONTROS COM O DIABO

Logo na primeira semana em campo, após entrevistar Valdir, ele me pediu um favor,
de levá-lo junto com o cacique à Londrina no dia seguinte. Eu aceitei e no dia seguinte fomos
para lá, levando também Alex. Em Londrina, deixamos Alex no centro. Passamos numa loja
de carros para tratar da questão da banda e som para a festa de 19 de abril. O dono parece ser
evangélico. Esperamos o almoço oferecido pelo comerciante (combinado antes com Valdir).
Após o almoço fomos à periferia da cidade em uma casa com uma oficina de carros ao lado.
Como em outras ocasiões saí do carro e fui acompanhando eles. Pedro disse então para eu
ficar cuidando do carro. Eles entram pelo que parece ser a garagem da casa. Fico escrevendo
no carro, sem achar que fosse mesmo necessário cuidar do carro ali. Não muito tempo depois
saiu da casa uma mulher de aspecto estranho, um pouco arcada e com semblante fixo. Ela
caminhou firme pela rua em direção a meu carro, passou ao lado dele, bem rente, e seguiu até
a esquina. Ali parou por um momento e então retornou pelo mesmo caminho. Em seu retorno,
ao passar novamente pelo carro, notei que ela levava na mão um cachimbo. Isso fez
finalmente eu perceber porque eu fora deixado no carro. Se tratava de uma consulta a um
curador. Pedro e Valdir saíram da casa e embarcaram no carro. Ao sair, vejo novamente a
mulher com cachimbo à entrada da casa. Provavelmente percebendo meu interesse, Valdir
221

comenta que foram se benzer. Seria uma benzeção contra a inveja, pois haveria muita inveja
àqueles que ocupam a posição de cacique. Pergunto a ele se não fazem benzeções com
curadores da aldeia, e ele diz que sim. Pergunto se não era forte o bastante a benzeção de lá e
ele apenas concorda e o assunto morre.
Apontei com Rosa (2005) o uso de curadores pelos kaingang, numa conjunção do
que seriam os sistemas kuiã e caboclo, segundo a denominação dada por este autor. Para ele,
pela característica inclusiva aberta a experiência do “outro”, o complexo xamânico tende a
incluir elementos externos e não a excluir. Ele também aponta que a complexidade religiosa
kaingang tende acomodar os desafios históricos, políticos, sociais, religiosos e ambientais
desta sociedade. Durante tais desafios, seriam fundamentais as trocas com o plano
cosmológico. Os curadores e kuiãs seriam justamente quem fariam a intermediação entre o
mundo-aqui e o mundo-outro, onde estariam os “espíritos” e também outras agências, muitas
vezes perigosas. Dentre tais agências, estariam os véinh kupríg korég, espíritos dos mortos
(especialmente os espíritos ruins, qualificados pelo termo korég, “mau”) que retornam para
carregar o espírito de caçadores, transeuntes ou crianças para o outro mundo, ou os nén korég,
que poderiam ser caracterizados como diabos que castigariam espíritos dos caçadores que
destroem a floresta virgem, espaço privilegiado destes seres espirituais, ou ainda o dét korég,
que é traduzido como o diabo (ROSA, 2006; TOMMASINO, 2004).
Nas vezes que desci ao rio aos paióis de pesca, à noite, predominavam histórias com
ar de mistério e perigo sobre tais agências. Ali é o lugar privilegiado para tais histórias, mais
próximo ao domínio da floresta. Comentei sobre as histórias de onças. Delas, passava-se à
histórias de locais com ouro e diamantes, indicados por luzes como fogo que correm sobre o
local, horizontal ou verticalmente, similares aos boitatás. Alguns dos homens contavam que já
andaram buscando tais riquezas nestes locais, sem sucesso. Eles e outros interlocutores depois
me indicaram algum destes locais, com uma esperança de que eu pudesse encontrar os
mesmos, já que as riquezas tem destino certo à determinada pessoa e só ela poderia encontrá-
la. Áureo tinha certa insistência em tirar fotos do “peral” na margem oposta do rio Tibagi,
avistado da aldeia. Segundo eles, após uma pessoa tirar uma foto do local foi identificado um
ponto brilhante, e sendo buscado com auxílio de um helicóptero levou ao encontro um caixão
de ouro ali. Acredito que a insistência tenha relação com a esperança de encontrar outro. Os
relatos de encontro efetivo de riquezas são sempre a respeito de não índios, e apesar da visível
expectativa da possibilidade de as encontrar, os relatos de situações com índios acabam não se
concretizando. Talvez daí a insistência em perguntar se eu não teria um detector de metais,
talvez com ele, e eu sendo “branco puro” pudéssemos encontrar algo.
222

Quando fui ao paiol de Carlos, os homens comentavam de um local na TI Mococa


onde haveria três barris enterrados, um com ouro, um com carvão e outro com uma bomba.
Em outra ocasião foi-me indicado um local onde sabiam haver um tesouro enterrado, à
margem do rio Tibagi, protegido por um grande peixe, capaz de engolir um homem.
Novamente neste caso, quem teria primeiro visto o tal peixe e indicado o local aos demais
fora um branco. Outros tesouros são guardados por cobras. Geralmente estes tesouros
envolvem uma aura de perigo a quem os encontra, e quem enriquece com ele teria vida curta.
Também são comuns causos de encontros com seres diabólicos, geralmente em
estradas das redondezas, quando o homem está só. Há também locais de mata próximo à
aldeia onde se saberia de sua presença. Os diabos, portanto, apesar de na mata, estão muito
próximos à aldeia quando não nela própria. É possível dizer que com as transformações
ocorridas na TI, os perigos deixaram de ser localizados privilegiadamente na floresta virgem.
Estes diabos, geralmente são referidos como “compadres”, já que eles não gostam de
ser chamados pelo nome, e não respondem se assim o forem (é preciso consanguinizá-los). O
diabo pode assumir diversas formas e aparências, e a princípio não se pode saber que se trata
de um diabo. Um homem gordo careca, um japonês, um homem alto de capa preta num
cavalo. Nenhum dos descritos a mim tinha aparência de índio. Há locais propícios para estes
encontros, mas há relatos de encontro tanto nos matos, na aldeia (à noite), na barragem. Estes
encontros também podem levar a uma outra aldeia, no mato, podendo ficar dias perdido nela,
sem poder ser encontrado.
Os “compadres” oferecem riquezas, que implicam em vida breve, a não ser que se
mude para longe. Os encontros com o diabo são de alguma forma relacionados à bebida.
Geralmente quem encontra com ele bebe, encontra com ele depois de beber e utiliza o
dinheiro conseguido para a bebida. Índios que tiveram encontros com ele no tempo que
bebiam (sem aceitar as propostas dele, já que então estariam ou longe dali ou mortos), quando
pararam de beber não mais o encontraram. O dinheiro é sem fim, se gastá-lo, ele volta ou se
pega mais com o “compadre” no mesmo lugar.
Um destes encontros é particularmente interessante. Um interlocutor contou-me que
certo índio teria encontrado com um destes diabos próximo à barragem da UHE
Apucaraninha. Dissera que morava ali e que era por sua causa que teriam conseguido o
dinheiro da indenização pela mesma. O interlocutor disse que por isso não conseguiriam
gastar o restante deste dinheiro. O índio que foi indicado, no entanto, apesar de também ser
um de meus interlocutores mais próximos não confirmou esta visão em particular apesar de
ter-me contado outras. Geralmente estes causos de encontros são contados por terceiros,
223

dificilmente sendo assumidos pelo indicado pela visão, ou ao menos os contados em primeira
pessoa eram os que, por algum motivo, o pacto não fora concretizado.
O diabo não apenas traz fortuna. Já o viram de terno e pasta preta na mão, querendo
expulsar os índios de suas terras. Afugentaram-no com um facão, quase lhe decepando a mão.
Encontros com o diabo já produziram visões da aldeia urbanizada, com asfalto, casas todas de
alvenaria, agência bancária.
As descrições dos tesouros e dos encontros com o diabo poderia ser comparada com
o contexto analisado por Taussig (2010), entre camponeses do vale do Cauca na Colômbia e
em minas Bolivianas, em que uma riqueza fácil conseguida através de espíritos diabólicos
produz impotência, esterilidade. No caso dos camponeses, Taussig identifica que os diabos
ocupariam um lugar específico entre a oposição por um lado do trabalho baseado na
reciprocidade e a posse comunal da terra, onde se funde diferenças para formar uma totalidade
e, por outro, a troca mercantil onde despontam o indivíduo e sua ambição particular. O
encontro com o diabo seria o confronto destes dois sistemas, onde são figurados aqueles que
tentam impedir a manutenção do primeiro sistema. O indivíduo que se submete a esta
ambição, consegue a riqueza, mas ela não lhe é produtiva, esvai-se, e junto com ela, vai
também a vida, com uma morte precoce e sofrida.
Em Apucaraninha, a fortuna advinda do branco é estéril para o índio. A fortuna
existente na Terra Indígena é encontrada pelo branco que a leva embora. Se o índio faz o
pacto com o diabo para ter dinheiro, morre logo a não ser que se mude para longe. A fortuna
sem o trabalho é fonte do rompimento em relação à comunidade e os vínculos sociais, seja
pela morte ou pela mudança, e a curto prazo mantém a bebedeira, fator moralmente
reprovável. O diabo em si é a representação do branco, careca e gordo, japonês. Note-se que a
região de Londrina teve grande colonização por japoneses e há fazendeiros com esta
ascendência nos arredores da TI, e uma das acusações de invasão é atribuída a um deles.
Junto com a fortuna podem vir outras ameaças quanto à forma de vida indígena: a
tomada de suas terras, ou a transformação da aldeia, urbanizada e tornada capitalista (com
agência bancária), além do roubo da riqueza existente em seu território. Se atentarmos aos
comentários do gradiente índio-mestiço-branco, vistos no primeiro capítulo, podemos ver que
no plano discursivo, os mestiços comerciantes bem sucedidos podem se tornar “brancos
puros”, para além de sua ascendência por sangue. Indícios de que a economia mercantil é
associada à branquitude, o trabalho baseado na reciprocidade é associado à indianidade.
Se a causa da indenização é o diabo que mora na represa, o que dizer das
possibilidades dos resultados? Voltando ao terceiro capítulo, podemos ver como em alguma
224

medida ela também teve relação com um rompimento social, ainda que relativo,
especialmente na medida em que havia a esterilidade, pois o dinheiro não podia ser gasto,
controlado, distribuído em sua totalidade, pelas regras da reciprocidade indígena,
especialmente em relação à chefia. Seria aí que entraria a desconfiança sobre a ambição
particular do cacique, ou diga-se agora, dos caciques. Eles poderiam estar usando a fortuna
para si. Por isso são fundamentais as festas para restabelecer a reciprocidade liderança-
comunidade. Através delas é possível a contraposição ao egoísmo do chefe, destacando sua
generosidade.
Mas vemos que o cacique e Valdir tinham certo temor da inveja. Contra ela fazem
benzeções com um curador na cidade. A inveja indica justamente a diferenciação do cacique
frente aos demais, seja por sua posição privilegiada politicamente, sexualmente ou
economicamente. Vimos neste trabalho que o cacique e as lideranças-políticas possuem
indícios de diferenciação e desejos neste sentido. Politicamente, através das funções
atribuídas, nos “locais” que identifiquei sua presença: no aconselhamento em sua casa, nas
correrias, na praça e em direção à cadeia. As correrias, no entanto, são o lugar privilegiado
para o cacique conseguir as condições para diferenciar-se economicamente e ao mesmo tempo
para distribuir. Por outro lado, a condição de cacique implicaria uma posição historicamente
privilegiada sexualmente e hoje regulada moralmente. Admitir a inveja contra si é admitir que
sua posição e condições são melhores que de outrem (e que assim deve ser). A festa e o
reforço da cultura indicam possibilidades de se reverter a caracterização do egoísmo, típica do
devir branco e da falta de solidariedade. Como vimos, a criação da Água Branca, com o
reforço da moralidade indicava uma saída radical vista como necessária contra o aparente
descontrole ou excesso deste devir, redundando na bagunça e erro do cacique. Estes fatos, no
entanto, tem sua leitura na inveja e nos trabalhos com curadores feitos a partir dela. Os
curadores então atuariam em um outro plano, articulando o mundo aqui e o mundo outro,
combatendo os males advindos da inveja através deste último.
A inveja, na proposta de Taussig (2010, p.369) seria “espécie de sexto sentido ou de
antena” do que denomina “conhecimento social implícito”, que enquanto situação entrelaça a
multiplicidade de possibilidades em assuntos grupais, bem como o fracionamento de
significados e sugestões em uma profusão de apreensões e precisões não apenas da sociedade,
mas da própria vida, e se voltam à reflexão. Desta forma, no contexto aqui colocado, ela dá
um sentido à luta entre as lideranças pelo poder de diferenciação, pelo dever de retribuição.
Vimos esta tensão presente na chefia, comparando com outros contextos em que o acesso a
bens, mercadorias e dinheiro é ampliado, gerando uma aceleração da função de correria e uma
225

consequente necessidade de reforçar a distribuição, que no caso de Apucaraninha foi agravado


pela restrição ao uso direto do recurso e às formas de apropriação do mesmo, ainda que as
houvessem.
Assim como propõe Rosa, os curadores (indígenas e brancos) atuam como
mediadores também no plano sociológico, das rivalidades políticas e sociais neste mundo.
Curadores e feitiços são usados para casos amorosos e na relação entre esposos. Por exemplo,
uma mulher na Sede disse que haviam encontrado foto de uma filha sua enterrada no
cemitério. Acusava uma terceira de ter feito isso para tentar matar sua filha e ficar com o
namorado dela. Disse que haviam também na ocasião encontrado uma foto de outra moça, na
mesma situação. Mas para esta já era tarde, a moça já estava morta. A filha desta informante
felizmente foi salva. Foi levada à uma igreja evangélica e foram feitas muitas orações e
conseguiram afastar o mal. Em outro caso menos trágico, um interlocutor afirmava ter
procurado um curador para “amansar” sua esposa, que era muito braba. Disse ter ido a “mesa
branca” e “mesa preta”, em diversas cidades. A diferença entre as “mesas” é que na segunda é
possível fazer o mal para outrem. Disse que, em um dos casos, levou coração de boi e Pinga
Oncinha (uma marca então usual na TI). A guia abriu o coração e colocou a pinga dentro
depois costurou, embebedando simbolicamente o coração da esposa. Em outra ocasião a guia
jogou pinga numa tigela e pisou em cima, como se amassasse com os pés, depois saiu
dançando em volta dele. A uma terceira ele levou melancia e galinha preta, que teve
dificuldade em achar. Feito o serviço, levam o trabalho para o mato e não sabe mais o que
fazem, jogam lá. O artefato passa a representar um perigo para quem passe por perto. As guias
sabem tudo, pois, sendo pessoas já mortas, podem transitar. Assim, ao perguntar se sua
mulher o traía, a guia disse que não, que era ele quem traía a mulher. Elas também fazem de
tudo, desde que pagas. Outro interlocutor lamentava o fato de sua mulher ter partido com
outro e o trabalho do curador para que ela voltasse não ter dado certo, após ele tentar lograr o
curador, não o pagando conforme o combinado.
Comentei anteriormente o caso da lombriga não curada pelo curador que “era Água
Branca”. Este caso diz respeito a uma não cura por motivação política, segundo a leitura de
Benedito. Outras acusações diretamente relacionadas à ataques através de curadores eram
presentes. Dizia-se que Pedro havia pagado curador para garantir sua eleição para cacique. De
outro lado, havia acusações de terem sido usados os serviços de curadores para arruinar a
festa de 19 de abril de Pedro por determinada liderança Água Branca. Uma curadora da Água
Branca, ridicularizando esta afirmação, disse ter encontrado um trabalho feito contra
lideranças da Água Branca, para que as lideranças da Sede passassem a mandar também ali.
226

Encontrou o “saquinho de saravá” enterrado em um lugar na aldeia Sede, sendo indicado o


local a ela por Nossa Senhora Aparecida, sua guia. Garantia que caso as lideranças da Água
Branca tivessem feito algo ela teria descoberto da mesma forma.
Existem, portanto, outras agências a atuar nos mais diversos casos. O controle, ou a
luta contra elas só é possível através destes mediadores. No contexto de tensão política visto
aqui, tais agências e seus mediadores são também polarizadas e, utilizadas ou não pelas
partes, a desconfiança é presente e é necessário ao menos proteger-se e tentar saber dos
perigos que vêm do outro lado. Como propõe Taussig (1993; 2010) se a inveja constitui um
conhecimento social implícito, possibilitando imaginações e possibilidades da vida real que,
como forças discursivas dão sentido às formas de sociabilidade, os demônios servem como
mediação histórica em um mundo de transformações aceleradas. Ambos estão aqui a por a
prova a indianidade, seja pelas obrigações morais destacadas, ou pelo desafios de um
enriquecimento e do rompimento da sociabilidade, que garante a unidade da comunidade e
enquanto indígena, enquanto parentes que se ajudam.
Estas agências são completamente reais e perigosas. Representam os perigos da
alteridade. Nunca é demais um pouco de desconfiança. Na introdução mencionei a
relatividade dos dados antropológicos, construídos em relação com os outros. Muitas vezes
também aí a desconfiança prevalece. Possivelmente até mais pelo pesquisador que pelo
próprio nativo. Na quarta semana em campo, enquanto eu tentava explicar exatamente qual
era minha intenção de pesquisa a Adriano, ele sem entender e achando-a relacionada à
construção de outras usinas hidrelétricas, propôs que eu lhe desse um fio de cabelo em troca
de um dele. Eu dei uma gargalhada, disse que não e continuei tentando explicar-lhe a
condição de minha pesquisa e motivações. Talvez ele só se tenha convencido quando, ao
retornar para Curitiba, dei carona a ele e a seu cunhado até a TI Queimadas para ele trocar
laranjas por pinhões com seu irmão, e eu tenha acabado negociando, por trocas, algumas
parcelas para mim e tenha pagado o retorno dele a Apucaraninha. Talvez, sem o cabelo, ele
não tenha se convencido.
227

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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233

ANEXOS

Anexo 1 – Ocupação Kaingang no Brasil Meridional ............................................................ 234


Anexo 2 – Terras Indígenas Kaingang ................................................................................... 235
Anexo 3 – Área de ocupação histórica de Apucaraninha ....................................................... 236
Anexo 4 – Aldeias da TI. Apucaraninha ................................................................................ 237
Anexo 5 – Aldeia Sede e Usina Apucaraninha....................................................................... 238
Anexo 6 – Croqui da Aldeia Sede .......................................................................................... 239
234

Anexo 1 – Ocupação Kaingang no Brasil Meridional

FONTE: Vista parcial do Mapa Etno-histórico de NIMUENDAJÚ, 1987, apud LAROQUE,


2007.
235

Anexo 2 – Terras Indígenas Kaingang

FONTE: D‟ANGELIS, 2010.


236

Anexo 3 – Área de ocupação histórica de Apucaraninha

FONTE: D‟ANGELIS, 2012.


237

Anexo 4 – Aldeias da TI. Apucaraninha

FONTE: Adaptado de Isa/Google, 2012.


238

Anexo 5 – Aldeia Sede e Usina Apucaraninha

FONTE: Adaptado de Google Earth.


239

Anexo 6 – Croqui da Aldeia Sede


CADERNO DE FOTOS
241

Aldeia Sede
242

Aldeia Água Branca

* Reprodução fotográfica: autoria não conhecida


243

Aldeias Barreiro e Serrinha


244

Usina Hidrelétrica Apucaraninha


245

Paris e Paiol no Rio Apucarana


246

Evento Cultural
247

Festa
248
249

Legenda das fotos

1 – Vista parcial da aldeia Sede a partir de roça nos arredores.


2 – Área central da aldeia, com Posto da FUNAI à esquerda.
3 – Praça central.
4 – Salão de festas.
5 – Escola em construção.
6 – Escola.
7 – Reunião com os moradores da Água Branca (detalhes ao lado).
8 – Caminhão comprado pelas lideranças da Água Branca.
9 – Fotos de diferentes apresentações do grupo dos Guerreiros.
10 – Posto de Saúde na aldeia Barreiro.
11 – Escola na aldeia Barreiro.
12 – Vista geral da aldeia Barreiro.
13 – Igreja na aldeia Serrinha.
14 – Escola na aldeia Serrinha (detalhe ao lado da parte interna da mesma).
15 – Abastecimento de água na aldeia Serrinha.
16 – Vista a partir da aldeia Serrinha, com casas indígenas.
17 – Barragem do reservatório do Fiú. Mulheres indígenas pescando.
18 – Vista a partir do Salto Grande, com a casa de máquinas da usina ao centro.
19 – Homens no reservatório do Salto Grande.
20 – Família indígena pesca no reservatório do Fiú.
21 – Paiol construído para o Evento Cultural (ao lado: detalhe da amarração da cobertura)
22 – Cama no interior da casa ao lado do paiol.
23 – Peixe cozido com pixé.
24 – Espreita armada sobre a ceva para caça.
25 – Partes de pilão de pedra encontradas nas proximidades do paiol pelos indígenas.
26 – Paris no Rio Apucarana, armado para o Evento Cultural.
27 – Crianças são filmadas ao coletar peixes no Paris.
28 – Pose para a foto oficial do Evento Cultural. Abaixo: outros participantes que faziam o
registro.
29 – Equipe de pesquisa coletando informações e imagens no Evento.
30 – Fala para as crianças sob o paiol.
31 – Dança durante o Evento Cultural.
250

32 – Pintura das crianças com as marcas.


33 – Troféus do campeonato de futebol – Copa Liderança Indígena
34 – Final do campeonato de futebol.
35 – Vice-prefeito de Tamarana e lideranças entregam a premiação do campeonato.
36 – Churrasco servido durante a festa.
37 – Rodeio na aldeia Sede.
38 – Fila para a distribuição de carne, refrigerante e pão na praça. Foto abaixo: momento da
entrega.
39 – Refrigerante para distribuição.

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