Presença Auditiva e Escuta em Presença
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Marcus Borja
Paris Sciences et Lettres
Conservatoire National Supérieur d’Art Dramatique de Paris
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Elemento mais sutil e mais maleável sempre foi, tanto para mal quanto para
do concreto, não é verdade que o som bem, associada ao fenômeno teatral, sen-
constituiu e ainda constitui, no devir da
humanidade como no do indivíduo, o
do o elemento visual, frequentemente,
lugar de encontro inicial entre o univer- a condição indispensável para que tal
so e o inteligível? fenômeno possa simplesmente ser cha-
Paul Zumthor (1983, p. 11)1 mado de “teatro”. Peter Brook escreveu:
“Posso chamar qualquer espaço vazio
Teatro, sabemos, vem do latim theatrum de cena. Alguém atravessa esse espaço
que vem por sua vez do grego antigo vazio enquanto um outro o observa, e isto
ϑέατρον (theatron), combinação dos é suficiente para começar a ação teatral”
morfemas θεα (ver) e τρον (indicador de (BROOK, 1991, p. 19). Foi esta mesma
lugar). Assim, o teatro é o lugar onde (e “contemplação” que valeu ao teatro o pro-
de onde) se vê. É interessante lembrar cesso que lhe intentou Platão pela boca
também que, na França do Antigo Re- de Sócrates no último livro da República
gime, também se chamavam théâtre2 e os “socorros” que, segundo Jacques
as laterais esquerda e direita do palco Rancière (2008), tentaram prestar-lhe as
das salas de espetáculo (fossem elas vanguardas teatrais do século XX, sobre-
jeux de paume ou, mais tarde, teatros tudo o teatro épico de Bertolt Brecht e o
à italiana) onde se dispunham assentos teatro da crueldade de Antonin Artaud. Em
para os espectadores mais afortunados O Espectador Emancipado (Le Spectateur
que “dividiram” a cena com os atores até émancipé), para definir o teatro a partir
1759. Lugar de onde se vê por certo, mas do ponto de vista platônico, Rancière fala
também – e não é à toa que tais assentos de uma “máquina ótica que condiciona os
resistiram por quase dois séculos – lugar olhares à ilusão e à passividade” (2008,
de onde se é visto. p. 9). E é sempre em torno do paradigma
visual que o autor resume as teses do
De fato, a noção de contemplação, ob- alemão e do francês no que diz respeito
servação, olhar (por parte do espectador) ao espectador de teatro.
voltado para uma ação (por parte do ator)
Para um, [o espectador] deve afirmar
1 Todas as traduções de textos estrangeiros foram feitas por seu olhar, para o outro, ele deve ab-
mim. dicar da própria posição do que olha
2 «J’étais sur le théâtre, en humeur d’écouter / La pièce, qu’à
[regardeur]. As empreitadas modernas
plusieurs j’avais ouï vanter» [Estava no teatro, disposto a es-
cutar / A peça, que por muitos eu ouvira elogiar.] (Molière,
de reforma do teatro constantemente
Les Fâcheux, ato I, cena 1. Minha tradução). Notemos que, oscilaram entre esses dois polos: a in-
neste trecho, é precisamente o traço auditivo, isto é, a ação vestigação distanciada e a participação
de escutar, que é associado à “prática do espectador” diante vital, mesmo que por vezes mesclando
da representação teatral. Contudo, não nos enganemos: é à seus princípios e efeitos respectivos.
peça de teatro enquanto texto escrito – como não poderia (RANCIÈRE, 2008, p. 10-11)
ser diferente na segunda metade do século XVII – que se
refere o personagem de Erasto na fala aqui transcrita. É o
texto do autor que lhe interessa escutar, na falta da possibi- Mas até que ponto o fenômeno teatral é
lidade (ou da vontade) de lê-lo.
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Figura e ideia, teatro e teoria, espetá- De onde viria essa “incapacidade de dizer
culo e especulação se convêm melhor, o som e a audição sem […] tomar em-
se superpõem e mesmo se substituem
prestado, adaptar, deturpar os conceitos e
com mais conveniência que o audível
o inteligível ou o sonoro e o lógico. Ha- processos nascidos das ciências ligadas
à ótica e à visão”? (BOVET, LARRUE,
5 A primeira versão de Théâtre estreou em 7 de abril de
2015 na sala Louis Jouvet do Conservatoire national supé-
MERVANT-ROUX, 2011, p. 17). O som
rieur d’Art dramatique (dispositivo que figura nas imagens – ou a escuta – em virtude de seu caráter
apresentadas neste artigo), e foi reapresentado em 17 e 18 mais descontínuo e mais “impermanente”,
de fevereiro de 2016 no Festival JT16; em 3 e 4 de março do
mesmo ano, novamente no CNSAD, e em 7 e 8 de junho
esfumaça com mais facilidade os contor-
na grande salle do Théâtre National La Colline no festival nos de qualquer postulado hermenêutico
Impatience. O espetáculo fará uma temporada de dez repre- que se queira aventar sem engano a uma
sentações no Théâtre de la Cité Internationale de 24 a 28 de
abril de 2017.
experiência sensível. Ao contrário: ele
6 Jonathan Sterne (2003) denuncia esse discurso binário se apresenta ao ouvinte como um enig-
de oposições estanques (e evidentemente redutoras) entre ma aberto ou “o denominador comum de
audição e visão que ele chama de litania audiovisual. “A lita-
nia descreve a história dos sentidos como um jogo de ‘soma
mundos, de espaços sociais muitas vezes
nula’ onde a dominação de um sentido leva necessariamen- heteróclitos e contraditórios.” (ROMIEU,
te ao declínio do outro. Contudo, a afirmação segundo a 2014, p. 233).
qual a utilização de um sentido provoca a atrofia do outro
não está fundamentada em nenhum dado científico.”
Aceitar a porção de invisibilidade do mun-
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do, não como uma incompletude, mas ritmo se traduz em som. Welles fala de
um enriquecimento da percepção e um som, de ritmo e de andamento. Em outros
catalizador de novos modos de relação termos, fala de música. Não da “disciplina
e descoberta da alteridade. Confiar no música”, mas da musicalidade no sentido
elemento sonoro não somente como um mais amplo, indissociável do fenômeno e
meio, um caminho para se chegar en- da prática teatral: a música como princípio
fim à fonte e à confirmação visual que organizador do tempo no espaço e como
lhe dê sentido, mas pensá-lo ele próprio sucessão e entrelaçamento das camadas
como fonte e rio de sentidos móveis e sonoras estruturadas em uma duração
autônomos. Sentido sensato quo só pode que, mesmo não sendo imediatamente
transbordar (se e quando transborda) do significativa, desenha um caminho orde-
sentido sensível. “O som produz sensa- nado no caos dos ruídos que nos circun-
ções antes mesmo de produzir sentido. E dam. “O mundo é barulho e é silêncio. A
é pela sensação que se deve chegar ao música extrai som do ruído num sacrifício
sentido” (DESHAYS, 2010, p. 23). cruento para poder articular o barulho e o
silêncio do mundo.” (WISNIK, 2011, p. 35).
Em um banquete dado em sua homena-
gem pelo sindicato francês de crítica de É precisamente esta articulação das ca-
cinema no dia 25 de fevereiro de 1982 madas sonoras do mundo, alternadamen-
nos salões do Fouquet’s em Paris, Orson te (ou ao mesmo tempo) caótico e harmô-
Welles declarou: nico, como vetor de sentido independente,
que me interessa interrogar nesta pes-
Se o som e o ritmo do som – sobretu- quisa a partir de um dado fundamental
do o ritmo – estão errados, nenhuma do teatro, frequentemente presente no
imagem os pode salvar. […] Acredito
que o som é o primeiro dos sentidos discurso de diversos atores e diretores:
humanos para o teatro, e não a visão. a escuta. Esta última é o espaço comum,
Penso que o primeiro teatro foi uma o terreno partilhado entre performers e
estória contada por um contador. E espectadores. Nem os primeiros nem os
de alguma forma a voz determina as últimos podem existir fora deste espaço
imagens. Não se trata apena do que
se diz, mas do ritmo e da velocidade onde linhas são tecidas de performer a
de todas as vozes em cena. Por isso performer, de performer a espectador,
tenho o costume, quando dirijo, de dar de espectador a espectador, formando
as costas à cena.7 uma trama maleável mas resistente que
sustenta a dramaturgia.8 A partir deste
Todo som se fragmenta em ritmo. Todo 8 Sobre este assunto, ver meu artigo « L’Écoute active et le
silence parlant. La musicalité comme base pour la direction
7 Orson Welles déjeune avec la critique, programa Ciné- d’acteurs » in La Direction d’acteurs peut-elle s’apprendre ?,
ma Cinémas, dirigido por Claude Ventura e Michel Bou- Jean-François Dusigne (org..), Paris, Les Solitaires intem-
jut, transmitido no antigo canal francês Antenne 2 em 16 pestifs, 2015, pp. 377-402. “[A escuta] é percebida, aqui, não
de março de 1982, disponível no site do Institut National somente como a execução e o resultado de um movimen-
de l’Audiovisuel no endereço: http://www.ina.fr/video/ to do exterior para o interior, um deixar-se atravessar, mas
I00008532 também – por oposição, e logo, numa tensão fecunda e per-
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ali ecoa e transforma esta mesma sala teatro, criado pelo encontro presencial
que já não é mais a mesma. É a persistên- de atores e espectadores, dá lugar ao
cia da memória de um espaço, projetada espaço visual da exposição, registro do
no interior de um « novo » espaço, que o passado. Mas, assim como a memória de
torna, de fato, novo. E nós sublinhamos um está contida no outro, o visual pode
essa transformação do espaço-tempo emergir do sonoro e vice-versa. Se vários
através da exposição dos retratos de cada espectadores frequentemente têm prazer
um dos atores suspensos nas paredes em nos contar todas as imagens, formas
da sala, em volta do círculo14: uma pre- e cores que viram (insistem em usar este
sença pela ausência ou uma ausência verbo!) na escuridão, outros continuam
presentificada. ouvindo vozes que escapam dos retratos
calados na galeria visível, sem atores.
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