As Ideias São Lentes
As Ideias São Lentes
As Ideias São Lentes
Uma idéia, como a de amigo, poderá nos fazer destacar, em meio à multidão, algumas
pessoas especiais. Será possível identificar alguém como amigo por termos na mente
algo mais que aquilo que o olho nos mostra. Este olhar, impregnado por uma idéia, faz
ver. Porém, também pode nos impedir de ver, ou nos permitir ver apenas algumas
possibilidades de amizade, dependendo da idéia que temos do que é um amigo. A visão
dos olhos está ligada a uma visão mental. E esta visão é parte da realidade, pois
interagimos como ela, e em função dela escolhemos os rumos das nossas vidas. As
idéias têm conseqüências práticas, motivam escolhas, delimitam posturas. O mundo é
visto através delas: átomo, molécula, vida, responsabilidade, liberdade, felicidade,
justiça, são idéias que permitem ver, viver e agir. Mas as idéias não nascem prontas: são
construídas... e reconstruídas. Construir idéias é instaurar visões de mundo. Dependendo
da idéia, modifica-se a visão.
Geralmente julgamos que o conjunto de nossas ideias é completo e perfeito. Que esse é
o modelo definitivo que expressa o mundo e a realidade. Por não tentarmos ver além
daquilo que nossa cognição revela, não dimensionamos quão pequena ela pode ser. E
tentar ver além requer muito esforço e pensar. Não apenas isto, mas também o descobrir
como pensamos o que pensamos.
As idéias nos fazem ver, mesmo que não estejamos preocupados em ver o limite da
nossa própria visão. Este é o ponto cego da nossa visão mental do mundo. Julgamos
muitas vezes que o que vemos e pensamos é tudo o que há para ver e pensar. E que a
nossa percepção do mundo e as nossas idéias estão completas e acabadas. Mas, o que
aparece só parece ser a totalidade apenas quando não vemos que há algo mais para ver,
ou para pensar. Pois, nesse caso, não vemos que não vemos. Este é o tema da Alegoria
da Caverna, de Platão, onde a ignorância não é um não-saber, mas um saber que não
reconhece seu próprio limite, e não busca ultrapassar a si mesmo, pois está preso nas
aparências. Assim, esta idéia platônica de ignorância nos ajuda a ver algo mais... Outro
tema central deste texto é que, a cada limite do nosso conhecimento do mundo e de nós
mesmos, há um enfrentamento, e passar pela crise que este enfrentamento propõe é
condição de sua superação, o que faz da crise motivo de auto-superação. Assim, esta
idéia não convencional de crise talvez nos permita ver algo mais... Em todos os casos,
para aprender a ver é preciso aprender a pensar. E aprender a pensar sobre como
pensamos. O que implica indagar sobre aquilo que parece ser óbvio. Pois, assim como
as idéias, as perguntas também são lentes. Elas fazem ver para além do visto, já que
indicam um caminho para o pensar.
Toda a riqueza e beleza da vida nos convidam ao profundo refletir. A compreensão de
seus segredos são tesouros inestimáveis. Apenas um repensar contemplativo pode fazer
jus a sua nobreza. Na busca de uma completa compreensão devemos estar
incansavelmente prontos a abandonar o que consideramos próximo ao definitivo por
outro conceito que seja ainda melhor que o último.
A filosofia foi, desde o seu início, a invenção do olhar. Quando os primeiros filósofos
refletiram sobre a realidade eles não viram apenas os pássaros, as árvores, o rio que
fluía, não viram apenas o céu e as nuvens. Eles viram o que antes era invisível.
Pensaram sobre a conexão de todos os seres e sobre a ordem e o princípio que rege esta
conexão. Deram-se conta de que as idéias poderiam fazer ver além do horizonte visível,
e criaram conceitos como ser, essência, aparência, lógica, argumentação, dentre tantas
outras. Modificaram o uso das palavras comuns, criaram linguagem, construíram idéias,
instauraram visões. Até hoje os filósofos continuam a polir estas lentes-idéias para
tentar ver mais além, propondo assim novas possibilidades de experimentação da vida.
Por isso, aprender a filosofar é aprender a superar os limites do próprio olhar, o que
implica ir além das idéias cristalizadas e das verdades dogmáticas.
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