Mapas, Saber e Poder
Mapas, Saber e Poder
Mapas, Saber e Poder
Confins indicar como, enquanto forma manipulada do saber, eles contribuíram para moldar
estas características. Certamente, na geografia política e história do pensamento
geográfico, vinculam-se cada vez mais os mapas e o poder, sobretudo nos períodos de
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia
história colonial. Mas o papel particular dos mapas, como imagens ligadas a contextos
históricos precisos, quase não se sobressai do discurso geográfico no qual eles estão
5 | 2009 : inseridos. O que falta, é o sentimento do que Carl Sauer3 chamava de eloqüência dos
Número 5 mapas. O que podemos fazer para que os mapas “ falem ” dos mundos sociais do
passado?
1
Perspectivas teóricas
Mapas, saber e poder 2 Inicio por explorar o discurso dos mapas no poder político, e minha linha de estudo é
preponderantemente iconológica. Os mapas serão considerados como parte integrante
Cartes, savoir et pouvoir da família mais abrangente das imagens carregadas de um juízo de valor, deixando de
ser percebidos essencialmente como levantamentos inertes de paisagens morfológicas
BRIAN HARLEY ou como reflexos passivos do mundo dos objetos. Eles são considerados imagens que
contribuem para o diálogo num mundo socialmente construído. Nós distinguimos
assim a leitura dos mapas dos cânones da crítica cartográfica tradicional e de seu
rosário de oposições binárias entre mapas “ verdadeiros e falsos ”, “ exatos e inexatos ”,
Notas da redacção “ objetivos e subjetivos ”, “ literais e simbólicos ”, baseados na “ integridade científica ”
Ensaio publicado com o título, Maps, knowledge and Power In The iconography of landscape :
ou marcados por uma “ deformação ideológica ”. Os mapas nunca são imagens isentas
Essays on the symbolic representation, design and use of past environnements, sob a direção
de juízo de valor e, salvo no sentido euclidiano mais estrito, eles não são por eles
de Denis Cosgrove e Stephen Daniels (New York : Cambridge University Press, 1988).
mesmos nem verdadeiros nem falsos. Pela seletividade de seu conteúdo e por seus
símbolos e estilos de representação, os mapas são um meio de imaginar, articular e
estruturar o mundo dos homens. Aceitando-se tais premissas, torna-se mais fácil
Texto integral compreender a que ponto eles se prestam às manipulações por parte dos poderosos na
Dê-me um mapa; depois mostre-me sociedade.
Tudo o que me resta para conquistar o mundo ... 3 Nesta paisagem conceitual, eu apontaria três pontos de vista que permitem perceber
Aqui, eu comecei a andar em direção à Pérsia, certos contornos ideológicos mais específicos dos mapas. De início, eu encaro os mapas
Ao longo da Armênia e do mar Cáspio, como uma forma de linguagem (não é vital para a informação que esta afirmação seja
Depois até a Bitínia onde eu fiz prisioneiros tomada pelo sentido metafórico ou literal)4. O conceito de uma linguagem cartográfica é
Os Turcos e sua grande Imperatriz. preferível àquele originado da semiótica e, embora tenha atraído alguns cartógrafos, é
Depois eu andei até o Egito e a Arábia, uma ferramenta muito desgastada para conduzir uma investigação histórica específica.
E aqui, não distante de Alexandria, O conceito de linguagem se traduz mais facilmente em prática histórica. Ele não apenas
Onde o Mediterrâneo e o Mar Vermelho se encontram, nos ajuda a ver nos mapas imagens – espelhos servindo para intermediar diferentes
Distantes um do outro menos de cem léguas, visões do mundo, mas também nos leva a procurar dados empíricos sobre aspectos tais
Eu pretendo abrir um canal entre os dois como os códigos e o contexto da cartografia assim como sobre seu conteúdo tomado no
Para que os homens possam navegar rapidamente em direção à Índia. sentido tradicional. Uma linguagem , ou melhor uma “ literatura dos mapas ” nos incita
Depois, de lá, em direção à Núbia perto do lago Borno, também a formular questões sobre a evolução dos usuários dos mapas, sobre o nível de
E ao longo do mar da Etiópia, familiarização com eles, sobre sua paternidade, sobre os aspectos atinentes ao segredo e
Cortando o trópico de Capricórnio, à censura, e sobre a natureza das informações neles inscritas.
Eu conquistei tudo até Zanzibar. 4 Além disso, a crítica literária pode nos ajudar a identificar a forma particular do
Christopher Marlowe,Tamburlaine, Segunda parte (V.iii 123-139) discurso cartográfico. O discurso foi definido referindo-se aos aspectos de um texto que
possuem uma carga apreciativa, avaliativa, persuasiva e retórica em oposição àqueles
1 Um livro sobre o conjunto de imagens geográficas que não incluísse o mapa pareceria que tratam somente da denominação, localização e narração. Ao se demonstrar que o
um Hamlet sem o Príncipe. Entretanto, ainda que os mapas estejam há muito tempo no “ simples ” fato de se denominar ou situar um elemento sobre o mapa possui
centro dos discursos sobre a geografia, raramente eles são lidos como textos freqüentemente uma carga política, pode-se todavia aceitar que uma separação idêntica
“ profundos “2ou como formas de saber socialmente construídas. “ A interpretação dos se aplique aos mapas. Estes últimos formam uma categoria de imagens retóricas,
limitadas pelas regras que regem seus códigos e seus modos sociais de produção, de são explorados sob três ângulos : a universalidade dos contextos políticos na história da
troca e de utilização, de tal modo a não importar outra forma de discurso. Por sua vez, cartografia; a maneira pela qual o exercício do poder estrutura o conteúdo dos mapas, e
isto nos leva a melhor compreender os mecanismos pelos quais os mapas, como os a maneira pela qual a comunicação cartográfica, num nível simbólico, pode reforçar este
livros, tornaram-se uma força política na sociedade5 poder por intermédio do conhecimento cartográfico.
5 Um segundo ponto de vista teórico foi extraído da formulação que Panofsky nos dá de
iconologia6. Já se tentou estabelecer uma correspondência entre os níveis de
interpretação definidos por Panofsky para a pintura e aqueles que são identificáveis nos
mapas. Neste último caso, pode-se utilizar a iconologia não apenas para identificar um
Os contextos políticos dos mapas
nível de significação “ superficial ”ou literal, mas também um nível “ mais profundo ”, O Czar
geralmente associado à dimensão simbólica do ato que consiste em emitir ou receber
uma mensagem. Um mapa pode carregar em sua imagem um simbolismo passível de E tu meu filho, o que fazes? O que é isto?
ser associado à zona, à característica geográfica, à cidade ou ao lugar particular que ele
representa. É neste nível simbólico em geral que o poder político dos mapas é mais Fyodor
eficazmente reproduzido, comunicado e percebido.
É o mapa da Moscóvia, nosso império
6 A terceira perspectiva é extraída da sociologia do conhecimento. Já foi colocada a
idéia de que o conhecimento cartográfico é um produto social, e para esclarecer esta de ponta a ponta. Vês :
proposição foram introduzidos neste ensaio dois conjuntos de idéias para sustentar os
exemplos empíricos. O primeiro conjunto foi retirado de Michel Foucault que, ainda ali, Moscou,
que suas anotações sobre a geografia tenham sido breves7, fornece um modelo
Ali Novgorod, aqui Astrakhan.
interessante para a história do conhecimento cartográfico em sua crítica da
historiografia. Eis aqui o mar,
7 A cartografia pode ser também uma forma de conhecimento e uma forma de poder.
Assim como o historiador pinta a paisagem do passado com as cores do presente, o Eis aqui as espessas florestas de Perm,
geômetra, conscientemente ou não, não reproduz somente o entorno em sentido
abstrato, mas também os imperativos territoriais de um sistema político. Seja o mapa e lá está a Sibéria
produzido sob a bandeira da ciência cartográfica, como foram a maior parte dos mapas
O Czar
oficiais, ou seja um exercício de propaganda declarada, é inevitável que esteja envolvido
no processo do poder. Da mesma forma, pode acontecer que algumas implicações E o que é aquilo, o que serpenteia
práticas dos mapas caiam também na categoria que Foucault qualifica como atos de
vigilância, sobretudo aqueles guerra, à propaganda política, à delimitação de fronteiras Como um desenho bordado ?
ou à preservação da ordem pública.
8 Foucault não é o único a estabelecer uma ligação entre poder e saber. Ao formular Fyodor
teorias sobre a maneira pela qual os sistemas sociais foram integrados no tempo e no
É o Volga.
espaço (sem entretanto mencionar explicitamente os mapas) Anthony Giddens8 se
refere aos “ recursos de autoridade ” (em oposição aos recursos materiais) que o Estado O Czar
controla : “ o estoque de recursos de autoridade implica sobretudo a retenção e o
controle da informação e do saber (conhecimento) . Sem dúvida, o evento decisivo aqui Muito bem! Eis aí os doces frutos do estudo !
é a invenção da escrita e dos números ”. Os mapas foram uma invenção similar no
Como do alto das nuvens, podes de uma só vez abraçar
controle do espaço ; eles facilitaram a expressão geográfica dos sistemas sociais e são
um meio de consolidar o poder do Estado. Como instrumentos de vigilância, eles se Todo o império : fronteiras, cidades
prestam ao mesmo tempo à coleta de informações pertinentes para o controle dos
cidadãos pelo Estado e à vigilância direta de sua conduta. Nos tempos modernos, e rios !
quanto mais a administração do Estado é complexa, mais suas ambições territoriais e
sociais são ampliadas, e maior será sua demanda por mapas. Alexandre Pushkin e Boris Godounov
9 Estas idéias nos ajudam a considerar as imagens cartográficas sob o ângulo de sua
10 Em todo estudo iconológico, é somente graças ao contexto que se pode discernir
influência política na sociedade. O simples fato que, durante séculos, os mapas tenham
corretamente a significação e suas influências. O contexto pode ser definido como as
sido classificados como imagens científicas, e que eles sejam ainda colocados nesta
circunstâncias nas quais os mapas foram elaborados e utilizados. Numa analogia com a
categoria pelos filósofos e semioticistas, torna a tarefa mais difícil. As relações dialéticas
“ situação de fala ” num estudo lingüístico, isto implica reconstruir os quadros físicos e
entre imagem e poder não podem ser dissociadas dos procedimentos destinados a
sociais que determinaram a produção e o consumo dos mapas, os acontecimentos que
avaliar o conhecimento topográfico bruto dos mapas e não há teste para verificar suas
conduziram a essas ações, a identidade dos produtores e dos usuários dos mapas, e a
tendências ideológicas. Compreendidos como saber assimilado a um poder, os mapas
maneira como eles percebiam o ato de produzir e utilizar os mapas num mundo imperial, eles fornecem um complemento à retórica dos discursos, dos jornais e dos
socialmente construído. Estes detalhes podem nos revelar não apenas os motivos que textos escritos, ou aos contos e canções populares que exaltam as virtudes do império.
sustentam os eventos cartográficos, mas também os efeitos que os mapas tiveram e a 15 Nestes contextos imperiais, os mapas apoiaram sistematicamente o exercício direto
carga de informação que eles veiculam em termos humanos. do poder territorial. As malhas desenhadas pelos agrimensores romanos, tornadas
11 Mesmo uma inspeção rápida na história da cartografia revela a influência do poder funcionais pela criação das centúrias, exprimiam um poder que avançava em todas as
político, religioso e social. Um estudo detalhado da cartografia na Europa pré-histórica, direções, homogeneizando tudo em sua passagem. Nos estados Unidos o traçado do
antiga e medieval e no Mediterrâneo demonstrou isso claramente. Ao longo deste levantamento topográfico retangular criou igualmente “ a ordem sobre a terra ”, em
período, a confecção de mapas foi uma das armas de inteligência especializadas para muito mais acepções que uma simples reprodução de um desenho clássico. A
adquirir um poder, administrá-lo, codificá-lo e legitimá-lo. Além disso, este redescoberta do sistema de coordenadas geográficas de Ptolomeu no século XV foi
conhecimento estava concentrado nas mãos de relativamente poucas pessoas : os também um evento cartográfico crucial, que privilegiou uma “ sintaxe euclidiana ” como
mapas eram assim associados à elite religiosa do Egito dinástico e da Europa cristã estruturadora do controle territorial europeu. De fato, a natureza gráfica dos mapas
medieval, à elite intelectual na Grécia e em Roma, e à elite mercantil das cidades Estado permitia a seus usuários imperiais um poder arbitrário, facilmente dissociado
no fim da Idade Média. responsabilidades sociais e suas conseqüências. O espaço podia ser dividido sobre o
12 O mundo da Europa antiga e medieval não era exceção neste aspecto. A cartografia, papel. Assim, o Papa Alexandre VI delimitou as possessões portuguesas e espanholas no
quaisquer que sejam os outros significados culturais que lhe possam ter sido vinculados, Novo Mundo. Dividindo a América do Norte, no contexto de um imperialismo mundial
sempre foi uma “ ciência dos príncipes ”. No mundo islâmico, sabe-se que são os califas, europeu, as “ linhas do mapa revelavam este poder e o processo imperialista porque
durante o período da geografia árabe clássica, os sultões, durante o Império otomano e foram impostas no continente sem referências às populações indígenas e até mesmo,
os imperadores mongóis na Índia, que patrocinaram a confecção dos mapas e os freqüentemente, sem referências ao próprio território. Os invasores dividiam entre eles
utilizaram para fins militares, políticos, religiosos e de propaganda. Na China antiga, os o continente segundo os esquemas que refletiam suas próprias rivalidades complexas e
mapas terrestres detalhados eram elaborados em conformidade com as prescrições dos seu poder relativo ” 9
dirigentes das sucessivas dinastias e serviam como instrumentos burocráticos e 16 No século XIX, quando os mapas foram institucionalizados e relacionados à expansão
militares e emblemas espaciais do Império. Nos primeiros tempos da Europa moderna, da geografia como disciplina, seus efeitos de poder se manifestam novamente no
da Itália aos Países-Baixos e da Escandinávia a Portugal, os monarcas absolutistas e os crescimento permanente do imperialismo europeu. A corrida à África, que permite às
dirigentes tinham consciência do valor dos mapas para a defesa e para a guerra, para a potências européias fragmentar a organização territorial indígena, tornou-se um
administração interna ligada à expansão do governo central, e como instrumento de exemplo clássico desses efeitos. E, no século XX, com a divisão da Índia, efetuada pela
propaganda territorial com o objetivo de legitimar as identidades nacionais. Escritores Grã-Bretanha em 1947, pôde-se ver como um traço de lápis sobre um mapa podia
como Castiglione, Elyot e Machiavel defendiam o uso dos mapas pelos generais e determinar a vida e a morte de milhões de indivíduos. Existem inúmeros contextos nos
homens de Estado. Com os levantamentos topográficos nacionais que tiveram início no quais os mapas tornaram-se a moeda de “ negociações ” políticas, de divisões, vendas e
século XVIII na Europa, o papel da cartografia no exercício das relações de poder tratados feitos sobre o território coloniais, e nos quais, uma vez tornados permanentes
favoreceu geralmente as elites sociais. pela imagem, estes mapas adquiriam freqüentemente força de lei.
13 As funções específicas dos mapas no exercício do poder confirmam também a
Figura 1. Mapa do Império Britânico
onipresença desses contextos políticos por meio das escalas geográficas. Essas funções
vão da construção de um Império mundial à manutenção do Estado-nação e à
afirmação local dos direitos de propriedade individuais. Em cada um desses contextos,
as dimensões do regime político e do território são compiladas em imagens que, assim
como o ordenamento jurídico, fazem parte do arsenal intelectual do poder.
Mapas e Império
14 Da mesma forma que os canhões e os navios de guerra, os mapas foram as armas do
imperialismo. Na medida em que os mapas serviram para promover a política colonial e
onde os territórios forma reivindicados no papel antes de ser efetivamente ocupados, os
mapas anteciparam o império. Os geômetras marchavam ao lado dos soldados,
elaborando primeiro os mapas para as missões de reconhecimento, depois com
informações gerais, antes de fazê-los instrumento de pacificação, civilização e de
exploração dessas colônias. Mas isto vai muito além da demarcação de fronteiras para
submeter política e militarmente as populações. Os mapas prestam-se a legitimar a
realidade da conquista e do império. Eles contribuem para criar mitos que ajudam a
manter o status quo territorial . Como instrumentos de comunicação de uma mensagem
antigas comunidades estavam a partir de então divididas e loteadas com ajuda dos
mapas , e nas extensões selvagens das antigas terras indígenas da América do Norte, os
limites traçados no mapa eram um meio de se apropriar das terras às custas daqueles
que não estavam familiarizados com os métodos de levantamentos geométricos e que
não podiam contestá-los. Os mapas entravam no direito, adquiriram a aura da ciência e
contribuíam para engendrar uma ética e uma virtude ligadas à definição cada vez mais
precisa. Os traçados feitos sobre os mapas, excluíam ao mesmo tempo em que
limitavam. Eles determinavam hierarquias territoriais segundo a loteria do nascimento,
os acasos das descobertas e cada vez mais, o mecanismo do mercado mundial.
independente. Por trás do criador dos mapas se esconde um conjunto de relações de impedindo a representação de certos elementos; daí as ausências, origem de mal-
poder, que cria suas próprias especificações. Sejam impostas por um particular, pela estares por aqueles que são intencionalmente esquecidos.
burocracia do Estado, ou pelo mercado, estas regras podem, às vezes, ser reconstruídas 29 A justificativa mais freqüente da censura cartográfica sempre foi de natureza militar.
a partir de um conteúdo dos mapas e do modo de representação cartográfica. Na sua forma mais ampla, ela implicou a proibição da publicação dos levantamentos.
Adaptando as projeções individuais, manipulando as escalas, aumentando Além disso, os detalhes de povoamento nos mapas do século XVIII foram mantidos não
excessivamente ou deslocando os sinais ou a topografia, utilizando cores com forte revisados por Frederico o Grande, assim como se supões que em certos mapas russos,
poder emotivo, os elaboradores de mapas de propaganda foram defensores de uma as cidades foram intencionalmente localizadas em lugares errados durante os anos
visão geopolítica de único sentido . Seus mapas fizeram parte do arsenal da guerra sessenta a fim de evitar que medidas estratégicas fossem tomadas por potências
psicológica que era a moeda corrente muito antes da sua utilização pelos geopolíticos inimigas. E desde o século XIX, uma prática quase universal consistiu em “ suprimir“
nazistas. As guerras de religião na Europa do século XVII e a Guerra Fria do século XX sistematicamente das séries de mapas topográficos oficiais, os dados relativos às
foram conduzidas mais pelo conteúdo dos mapas de propaganda que por outros meios instalações militares importantes12. Esta prática se estende hoje a outros aspectos os
quais sua inclusão seria embaraçosa para o governo. Por exemplo, os locais de
Figura 3. Mesmo simples mapas temáticos podem veicular sutis mensagens de
deposição de dejetos nucelares são omitidos dos mapas do Serviço geológico dos
propaganda.
Estados Unidos.
30 Uma falsificação intencional dos mapas decorre de considerações políticas, além das
puramente militares. Nos mapas, as fronteiras foram objeto de distorções geográficas,
as quais provêm de tentativas de afirmar pretensões históricas em um território
nacional, ou seja, de utilizar os mapas por antecipação para projetar e legitimar futuras
ambições territoriais. Por exemplo, fronteiras contestadas13 que aparecem nos mapas
oficiais, nos atlas ou em imagens mais efêmeras como os selos de correio, foram
incluídas ou suprimidas segundo a preferência política do momento. Estas práticas não
se limitam também ao traçado das fronteiras políticas. Há muitas informações que
mostram que as geografias da língua, da “ raça ” e da religião foram representadas em
conformidade com as crenças dominantes. Existem numerosos casos em que os nomes
dos lugares indígenas de grupos minoritários são substituídos nos mapas topográficos
por topônimos padrão do grupo que detém o poder.
universo chinês na China, os mapas gregos em Delfos, os mapas islâmicos em Meca, e único dos confrontos étnicos e sustentaram o direito divino da Europa de se apropriar
aqueles do mundo cristão, em que Jerusalém aparece como “ verdadeiro ” centro do dos territórios. Construindo uma maior massa de conhecimentos geográficos, os atlas
mundo. É difícil apreciar o efeito desta geometria, que reforça certos lugares, sobre a europeus favoreceram, assim, uma visão eurocêntrica, imperialista, introduzindo um
consciência social do espaço, e seria errôneo sugerir que esses modos de representação desvio sistemático em favor do espaço interior da Europa que reforçava a percepção da
fizessem eclodir visões de mundo idênticas. Portanto, os mapas tendem a focalizar a superioridade dos Europeus no sistema mundial. Os silêncios dos mapas, que
atenção do observador sobre o centro e a promover assim o desenvolvimento de visões freqüentemente faziam parte de estereótipos culturais, vieram expressar as profecias
de mundo exclusivas, voltadas para o interior com um centro cultural povoado sobre a geografia do poder.
unicamente de verdadeiros crentes ...
Figura 4. Os silêncios dos mapas
33 É possível que uma visão etnocêntrica da mesma ordem tenha inspirado algumas das
projeções cartográficas oficiais da Europa durante a Renascença. Igualmente, neste
caso, um mapa estrutura a geografia que ele representa segundo um conjunto de
crenças sobre o que deveria ser o mundo, a verdade. Tomando-se um exemplo bem
conhecido como a projeção de Mercator, é de se duvidar que o próprio Mercator, que
concebeu os mapas com os navegadores, tenha tido consciência da influência de seu
mapa sobre a visão hegemônica mundial dos Europeus. Entretanto, o simples fato de
que a Europa esteja situada no centro do mundo nesta projeção, e que a superfície das
massas terrestres esteja tão deformada que dois terços da superfície do globo pareçam
se situar em latitudes elevadas, somente pôde favorecer um sentimento de
superioridade dos Europeus. O fato de que os “ Estados colonialistas brancos ”
apareçam relativamente maiores sobre o mapa do que aqueles que eram à época apenas
“ as colônias ” habitadas por povos de cor representadas “ muito pequenas ”, nos
convida a ver no mapa uma profecia geopolítica.
símbolos dos vilarejos, ainda que eles ocupem menos espaço no solo. Os brasões,
símbolos de possessão territorial, servem para localizar a sede do senhor, enquanto os O simbolismo cartográfico do poder
burgos dos meeiros que dele dependem na ordem feudal são designados por sinais
A terra é um lugar onde se encontra a Inglaterra,
inferiores, independente de sua população ou de sua superfície. Este tipo de
representação é particularmente freqüente nos mapas do território alemão pertencente Vós a encontrareis qualquer que seja o sentido no qual vós girardes o globo,
ao Santo Império Romano Germânico. Os mapas dedicam igualmente uma atenção
considerável à geografia do poder eclesiástico. A principal mensagem era Pois suas possessões são vermelhas e o resto inteiramente cinza.
freqüentemente a da onipresença da Igreja. Fosse no território “ infiel ” dominado pelos
Turcos, nas terras pertencentes ao Papado, nas regiões geralmente dominadas pelos Tal é o sentido do Dia do Império.
protestantes ou por seitas particulares como os Hussitas, os mapas situavam a extensão
G.K. Chesterton, “ Songs for Education : 11 Geography ”,
das possessões temporais das Igrejas. Os mapas passavam também uma mensagem
secundária : não somente eles reforçavam a percepção do poderio da Igreja enquanto The collected poems of G. K. Chesterton
instituição no seio do conjunto da sociedade, mas eles registravam as hierarquias
espaciais e as dominações conflituosas no seio da própria Igreja. Sobre este primeiro 39 Na imposição do poder, o nível simbólico revela uma importância cartográfica maior.
ponto, note-se, por exemplo, na legenda do mapa da Islândia de Boazio (1599) um É neste nível que os mapas são mais imagéticos e persuasivos. Pode-se tomar, por
símbolo pictórico exagerado da “ cidade do Bispo ”; nos mapas regionais da Inglaterra à exemplo, os mapas simbólicos que se encontram nas pinturas; pode-se também
época da Reforma, os símbolos das torres e campanários da igreja são maiores do que apreciar o papel que desempenham os emblemas artísticos ( que não têm
exige o conceito de escala vertical. No que concerne à hierarquia, os símbolos necessariamente uma natureza cartográfica) enquanto signos nos mapas decorativos
individualizados para os arcebispados e os bispados, sob a forma de cruzes simples ou onde eles estão integrados ao discurso do mapa. Após estudar as ligações entre o
duplas, cajados, mitras e outros paramentos eclesiásticos, testemunham a organização significado destes emblemas e o território representado, se verá como os mapas não
social da religião14. Aí também as amplificações seletivas dos sinais cartográficos decorativos também podem simbolizar valores culturais e políticos.
estavam estreitamente ligadas à fidelidade em relação às religiões, sendo a expressão,
nos primeiros tempos da Europa moderna, das guerras religiosas.
38 Mas se os sinais dos mapas refletiam por vezes as mudanças da situação religiosa,
também favoreciam o status quo, legitimando as hierarquias estabelecidas dos mapas
Os mapas na pintura
anteriores. Na França, por exemplo, os cartógrafos, a serviço da coroa utilizavam 40 Desde a idade clássica, os artistas utilizavam os globos e os mapas como emblemas de
imagens que consistiam numa forma de propaganda de Estado, insistindo nas seu próprio simbolismo. Como signos políticos, o globo ou a esfera freqüentemente
engrenagens administrativas de sua burocracia centralizada e representando diversos simbolizaram a soberania sobre o mundo. Desde a época romana, nas moedas e nos
aspectos do código jurídico do Antigo Regime15 Em 1721, Bouchotte utilizava sete manuscritos, um globo ou uma esfera eram colocados nas mãos de um imperador ou de
categorias administrativas (grão ducado, principado, ducado, marquesado, condado, um rei. Na era cristã, a esfera, a partir de então encimada com uma cruz, tornou-se uma
viscondado, baronado) e cinco níveis eclesiásticos (arcebispado, bispado, abade, das insígnias dos Imperadores do Santo Império Romano Germânico, e na pintura
priorado, paróquia)16 para codificar os mapas regionais (mapas particulares) religiosa, ela estava sempre colocada nas mãos do Cristo Salvator Mundi, ou de Deus
Pai, Creator Mundi. Estas significações encontram-se na arte da Renascença. No século
Figura 5. Confirmação das hierarquias sociais pelos sinais cartográficos
XVI, os globos, que assim como os mapas apareciam com mais freqüência graças à
imprensa, começam a fazer parte das insígnias de autoridade nos retratos de reis,
embaixadores, homens de estado e nobres. Mas elas visavam sobretudo a veicular a
extensão dos poderes, ambições e empreendimentos daqueles que as portavam. Estas
pinturas proclamavam o direito divino do controle político, e o emblema do globo
indicava que era possível exercê-lo ou se desejava exercê-lo em escala mundial.
41 Na pintura, os mapas serviram como símbolos territoriais. Por exemplo, pode-se
interpretar os ciclos de mapas murais da Renascença italiana como uma Summa visual
do saber, do poder e do prestígio religioso, em geral secular. Nos retratos dos
imperadores, monarcas, homens de Estado, generais e papas, os mapas são um recurso
gráfico que exprimem o poder social e territorial. Não é por acaso que Elizabeth I
aparecia num mapa da Inglaterra do século XVI, que o retrato de Luís XIV foi
representado com um mapa de seu reino por Cassini, que o Papa Pio IV supervisiona o
levantamento e a drenagem dos pântanos, e que Napoleão é freqüentemente
representado com os mapas na sua possessão, seja a cavalo, em campanha, ou sentado,
discutindo as conquistas realizadas ou futuras. Mesmo quando o suporte passa da
Prancha 14 de Bouchotte, Les règles du dessin et du lavis (Paris, 1721). Reproduzido com a pintura à fotografia ou ao filme, o simbolismo poderoso dos mapas persiste, como bem
autorização da Biblioteca Britânica. captaram os autores de filmes sobre Napoleão ou Hitler. Nos jornais, nas telas de
televisão e nos inúmeros desenhos de sátira política, os chefes militares são sempre
representados em frente aos mapas, para confirmar ou reafirmar àqueles que os olham
o direito imprescritível ao poder sobre o território. Os motivos cartográficos continuam
a ser aceitos como signos políticos na sociedade contemporânea.
Neste retrato de Thomas, décimo quarto duque de Arundel, e de sua mulher Alethea (Van Dyke, circa
1639), o duque aponta a empresa colonial que ele incentivou na ilha de Madagascar. Reproduzido com
a autorização do Duque de Norfolk.
Nesta edição de 1573 do Theatrum Orbis Terrarum, de Abraham Ortelius, a Europa, personificada
como a mestra do mundo, está sentada num trono sobre os outros três continentes. Reproduzido com
a autorização da Coleção da Sociedade Geográfica Americana, Universidade de Wisconsin-
Milwaukee.
Notas
1 In GOULD, Peter e BAILLY, Antoine. Le pouvoir des cartes et la cartographie. Paris,
Antropos, 1995. p. 19-51. Traduzido por Mônica Balestrin Nunes
2 O termo “ profundo ” remete à expressão “ descrição profunda ” utilizada pelo antropólogo
americano Clifford Geertz para exprimir a idéia segundo a qual as descrições cuidadosas e
muito detalhadas são indispensáveis para explicar cultura diferentes das suas.
3 Carl Sauer é um geógrafo cultural americano pertencente à Escola de Berkeley, na Califórnia.
4 Harley faz alusão a Jacques Bertin e a sua importante obra Sémiologie graphique. Les
diagrammes, les réseaux, les cartes (Paris : Gauthier-Villars, 1967).
5 O pensamento de Harley sofreu a influência de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, L
´apparition du livre (Paris : Ed. A. Michel, 1958).
6 Erwin Panofsky, um dos grandes historiadores de arte do século XX, pioneiro em novos
estudos interpretativos na obra Studies in iconology : humanistic themes in the art of the
Renaissance (Oxford : Oxford University Press, 1939).
7 Aqui, e em vários outros escritos, Michel Foucault exerceu uma importante influência sobre
Harley. Como referências específicas, citamos Les mots et les choses : une archéologie des
sciences humaines (Paris : Gallimard, 1966) ; Surveiller et punir : naissance de la prison (Paris :
Gallimard, 1975) ; e questões a Michel Foucault sobre a geografia, em Herodote, I, 1976.
8 Sociólogo inglês da Universidade de Cambridge que procura resolver a questão sempre difícil
das estruturas da sociedade na qual se encontra o indivíduo, e do modo como essas estruturas
se mantêm ou se modificam. A citação é tirada de “ A contemporary critique of historical
materialism : Power, property and the State “(Londres : Macmillan, 1981).
9 Referência a Donald Meinig, eminente especialista americano em geografia histórica, e à sua
obra em três volumes The Shaping of America (New Haven : Yale University Press, 1986), p.
232.
10 N. T : antigas medidas de superfície : perche = vara, arpent, equivalente a cem perches, de
20 a 50 ares.
11 Bartholomew e Rand McNally são importantes editores de mapas, respectivamente inglês e
americano, que produzem a cada ano milhões de mapas.
12 Na Grã-Bretanha, o semanário New Statesman (27 de maio de 1983 p. 6) escreveu : “ os
agentes secretos do Serviço cartográfico nos transmitiram um manual secreto extremamente
interessante que cataloga e define na Grã-Bretanha lugares que não têm existência oficial e que
A cena está representada sobre um mapa mudo da África meridional. A Grã-Bretanha, que mostra um não podem portanto figurar nos mapas”.
mapa da Zambésia, incentiva os colonos a tirar partido da riqueza econômica do país enquanto a 13 Tomemos o exemplo da fronteira entre o Haiti e São Domingos que segundo o caso, aparece
população indígena africana está excluída da cena. Reproduzido com a autorização da Coleção da ou não nos manuais de ensino do país.
Sociedade Geográfica Americana, Universidade de Wisconsin-Milwaukee.
14 Referência à François de Dainville, Le langage des géographes : termes, signes, couleurs
des cartes anciennes. (Paris : A e J. Picard, 1964).
57 Restringindo sua importância, nós nos distanciamos de uma história dos mapas que
descreve a intenção do cartógrafo e seus atos técnicos em proveito de uma história que 15 François de Dainville, Le signe de “ justice” dans les cartes anciennes, Revista Histórica do
Direito Francês e Estrangeiro, 34, 1956, PP.111-114.
situa a imagem cartográfica num contexto social.
16 M. Buchotte, Les règles du dessin et du lavis (Paris : Jombert, 1721, 1743).
58 Enquanto tipo de conhecimento impessoal, os mapas tendem a “ dessocializar ” o
território que eles representam, Eles favorecem a noção do espaço socialmente vazio. A
qualidade abstrata do mapa, tanto incorporada nas linhas de uma projeção ptolomaica
do século XV quanto nas imagens contemporâneas da cartografia informatizada, atenua Tabela das ilustrações
a tomada de consciência de que os seres humanos vivem na paisagem. As decisões
Arquivo image/jpeg, 420k Legenda Neste retrato de Thomas, décimo quarto duque de Arundel, e de sua
mulher Alethea (Van Dyke, circa 1639), o duque aponta a empresa
colonial que ele incentivou na ilha de Madagascar. Reproduzido com
Título Figura 2. Mapa fundiário em grande escala a autorização do Duque de Norfolk.
Legenda Mapas fundiários em grande escala e cadastros escritos tornaram- URL http://confins.revues.org/docannexe/image/5724/img-6.jpg
se a partir do século XVI um instrumento na ascensão do
capitalismo rural na Inglaterra. Neste fragmento de mapa fundiário Arquivo image/jpeg, 376k
de Garnetts, em Essex (1622), atribuído a Samuel Walker, os
detalhes das propriedades (DN= domínio de Edward Naylor, DL =
domínio de Richard Lavender, etc.) , sua delimitação fixa e sua Título Figura 7. Página inicial de um atlas como afirmação geopolítica
medida precisa ( em acres, quarts d´arpent, perches) (10)
transformam os direitos de propriedade em uma imagem tangível e Legenda Nesta edição de 1573 do Theatrum Orbis Terrarum, de Abraham
legalmente constrangedora. Reproduzido com a autorização da Ortelius, a Europa, personificada como a mestra do mundo, está
Biblioteca Britânica. sentada num trono sobre os outros três continentes. Reproduzido
com a autorização da Coleção da Sociedade Geográfica Americana,
URL http://confins.revues.org/docannexe/image/5724/img-2.jpg Universidade de Wisconsin-Milwaukee.
Título Figura 4. Os silêncios dos mapas Título Figura 9. Os mapas tornaram-se imagens que substituem o
próprio Estado-nação.
Legenda Parte do “ plano das cidades de Londres e de Westminster ... ” de
John Rocque (1755), mostra a zona construída a oeste da cidade de Legenda Nesta gravura tirada de The Polish captivity (Vol. 1, Londres, 1863),
Londres e as novas organizações de espaços verdes de a divisão da Polônia está representada pelo rompimento do mapa.
Bloomsbury. Quando os distritos situados ao norte de Covent Os espectadores contemplam este ato com desespero, enquanto um
Garden e no entorno de Boad Street e de St. Giles tornaram-se anjo, representando a Igreja católica, dá as costas com horror e soa
cortiços, o cartógrafo produziu uma vista idelaizada que acentua a o alarme com um trompete. Reproduzido com a autorização da
ruralidade elegante dos principais lugares mas omite a miséria Coleção da Sociedade Geográfica Americana, Universidade de
sórdida da cidade. Reproduzido com a autorização da Biblioteca Wisconsin-Milwauke
Britânica
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Arquivo image/jpeg, 312k
Arquivo image/jpeg, 440k
Título Figura 10 Página inicial de Zambesia, England´s El Dorado in
Título Figura 5. Confirmação das hierarquias sociais pelos sinais África (Londres, 1891).
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Autor
Brian Harley
Direitos de autor
© Confins
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