Climatologia
Climatologia
Climatologia
PRESIDENTE PRUDENTE
2001
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
SANT’ANNA NETO, João Lima. História da Climatologia no Brasil: gênese, paradigmas e a
construção de uma Geografia do Clima. Tese de Livre-Docência. Presidente Prudente:
FCT/UNESP, 2001.
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SUMÁRIO
A GÊNESE DA CLIMATOLOGIA NO BRASIL: O DESPERTAR DE UMA CIÊNCIA 03
Antecedentes e contexto histórico 03
O pioneirismo de Frederico Draenert 06
A sistematização da Climatologia no Brasil: as contribuições de Henrique Morize e
Delgado de Carvalho 11
A criação da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo: Belfort de Mattos e a
Climatologia paulista 15
A contribuição de Afrânio Peixoto e a Climatologia Médica 17
As primeiras tentativas de classificação dos climas do Brasil 19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 47
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A GÊNESE DA CLIMATOLOGIA NO BRASIL: O DESPERTAR DE UMA CIÊNCIA
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Tanto Morize quanto Draenert, assim como o grupo de pesquisadores do Observatório
Imperial do Rio de Janeiro (que a partir de 1889, com a proclamação da república, passou a ser
denominado Observatório Nacional) oriundos das escolas politécnicas, direcionaram seus estudos
mais para a climatologia (com forte uso da estatística) do que para a meteorologia.
Em São Paulo, entretanto, foi no campo das geociências que a climatologia surgiu. Com a
criação da seção de meteorologia da Comissão Geográfica e Geológica, Orville Derby e Alberto
Loefgren, num trabalho pioneiro, realizaram um enorme esforço de instalar uma rede de estações
meteorológicas por todo o estado, a partir de 1886, e já em 1900, contava com cerca de 40 postos e
estações.
Ao findar o século XIX, praticamente todos os estados brasileiros haviam organizado seus
respectivos serviços de meteorologia e climatologia. Estações e postos já estavam instalados e
muitas séries temporais se encontravam em pleno registro. Entretanto, segundo Ferraz (1980), a
maior parte destes se encontrava em órgãos governamentais estranhos às ciências atmosféricas.
Alguns pertenciam a departamentos de obras públicas, outros à da agricultura. Isto provocava, além
de observações díspares, o uso de instrumentos e normas distintas o que, não raras vezes,
ocasionavam problemas de ajustes dos dados.
Há que se ressaltar também a importante contribuição da antiga Repartição dos Telégrafos,
estão dirigida pelo barão de Capanema. Através de sua Seção Técnica, chefiada por Weiss,
instalaram-se várias estações meteorológicas pelo Brasil dotadas de instrumentos de alta qualidade
(os meteorógrafos Theorell), a partir de 1886.
Se considerarmos que praticamente todo o desenvolvimento da meteorologia e da
climatologia mundial se deu, basicamente, a partir do século XIX, estas primeiras iniciativas
brasileiras e os esforços iniciais da implantação das ciências atmosféricas em nosso país, não
estavam tão defasadas como se poderia supor, a despeito da rarefeita rede meteorológica.
Foi necessário pouco mais de meio século, de 1820 até 1880, para que as bases científicas
iniciais fossem se acumulando até potencializarem a construção dos conceitos e teorias
fundamentais para o nascimento das ciências atmosféricas. Isto só foi possível a partir das novas
concepções da física newtoniana e de seus desdobramentos ocorridas nos séculos XVII e XVIII,
particularmente no continente europeu.
Os viajantes e naturalistas que para cá vieram logo após a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro foram responsáveis pela disseminação de instrumentos e técnicas de
investigação do meio físico, inclusive da meteorologia. Foi, entretanto, com a Independência do
Brasil e a criação do Observatório Imperial, que a reunião de uma plêiade de cientistas agrupados
naquela instituição propiciou não somente um estreito intercâmbio de informações científicas com
os países europeus, como incentivou o desenvolvimento de uma nova postura e uma nova
concepção de pesquisa no país.
É importante lembrar que por esta época, o eminente cientista Julius Hann publicava o
Handuch der Klimatologie, considerado como a grande obra de síntese dos conhecimentos do clima
do século XIX. A partir das informações obtidas através dos trabalhos de Stringer (1972) e Ferraz
(1951), elaboramos o quadro 2, que demonstra a evolução dos conceitos e de técnicas que foram
divulgadas principalmente na segunda metade do século XIX, e que fundamentaram Hann a
produzir o seu grande manual.
Se até o século XIX, tanto a climatologia como a meteorologia, no contexto mundial tiveram
uma evolução paralela e, às vezes, inclusive, se confundindo, pouco se distinguindo em seus
métodos de análise, a partir de 1860, com o extraordinário avanço da física e com o aparecimento
das primeiras cartas sinóticas, a meteorologia dá um enorme salto quali-quantitativo, passando a se
diferenciar e a se distanciar da climatologia, tanto em termos metodológicos, quanto em técnicas de
análise.
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QUADRO 2 – Evolução dos principais conceitos climáticos e meteorológicos do século XIX
Ao apagar das luzes do século XIX vieram a público as duas primeiras obras mais completas
e de caráter mais sistemático sobre o clima do Brasil. Em 1889, Morize publicou no Rio de Janeiro,
o seu “Esboço da Climatologia do Brazil” (obra que será abordada mais adiante) e, sete anos mais
tarde, em 1896, surgiu a obra de Draenert “O Clima do Brazil”. Ambas tiveram em comum o
objetivo de apresentar um quadro geral das características climáticas de nosso país e propor uma
primeira tentativa de classificação dos climas regionais.
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Antes, porém, que estas duas publicações viessem à público, uma série de trabalhos esparsos
baseados em curtas séries temporais já haviam sido produzidas e divulgadas, de forma a fornecer
subsídios, os mais variados, sobre o clima e suas relações com a saúde pública, a adaptação e
assimilação da população aos tipos climáticos regionais, além de análises das séries temporais,
ainda que parciais, dos elementos meteorológicos (Quadro 3)
A seguir apresentamos uma lista de alguns destes trabalhos, os mais significativos,
publicados no decorrer do século XIX, que podem fornecer uma idéia de conjunto, mais ou menos
clara, do tipo de temática abordada, tomando como fonte os trabalhos de Draenert (1896), Morize
(1889 e 1922), Delgado de Carvalho (1916 e 1917) e Sampaio Ferraz (1934):
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QUADRO 3 – Séries temporais de dados meteorológicos conhecidos no Brasil nos Séculos XVIII e
XIX
Além deste acervo, muitos artigos que analisavam as variações dos elementos atmosféricos e
suas relações com o ambiente natural e humano foram publicados, principalmente nos periódicos
das associações científicas e de classe, como na Revista de Engenharia, na Revista Médica, na
Revista da Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro, no Arquivo Médico Brasileiro e nos Annaes
Brasileiros de Medicina. Também foi possível identificar algumas teses de cátedra apresentadas às
faculdades de medicina do Rio de Janeiro e de Salvador, sobre a relação clima e saúde, como a do
baiano Jeronymo Pereira, de 1862.
Há que se destacar que, desde 1851, o Observatório Imperial do Rio de Janeiro passou a
publicar com bastante regularidade, não apenas os dados meteorológicos em seus boletins e anais,
como também artigos que pretendiam dar conta de suas análises, na Revista do Observatório. A
partir de 1886, a recém criada Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo também inicia a sua
publicação dos dados meteorológicos das primeiras estações implementadas no estado, em seus
Boletins mensais.
A contribuição de Frederico Draenert à climatologia do Brasil é exemplar. A sua principal
obra, aquela de 1896, demonstrava uma perfeita sintonia com o estado da arte no contexto mundial,
presentes em poucos intelectuais de sua época. Na introdução desta obra, escrevia o autor sobre o
que constituiria o campo de estudo da climatologia:
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“Demonstrar como o período de um anno se revela nos phenomenos da vida sobre a
terra, sob as formas do movimento e repouso, da evolução prodigiosa e do
retrahimento acanhado, do nascimento e da morte; como az zonas de latitude se
distinguem nas suas multiplas sub-divisões pela evolução peculiar das mesmas e de
diversas formas de vida, constitue o assumpto da climatologia”. (Draenert, 1896:5)
Após tecer uma série de considerações sobre a utilização da estatística em busca de valores
médios e extremos (periódico e não periódico, em suas palavras), reconheceu a grande variabilidade
dos fenômenos atmosféricos ao afirmar que tão importante quanto determinar o que é frequente no
tempo, é a busca do que é extraordinário, aquilo que pela pouca frequência, se torna incomum,
porém real.
Desta forma, a ênfase nos estudos climatológicos deveria estar em torno dos tipos de tempo,
que o autor define como:
Além de descrições tão completas como esta, o autor também não se eximiu da tentativa de
explicação, sempre perseguindo uma abordagem tão dinâmica quanto possível para sua época, de
outros fenômenos importantes da climatologia brasileira. Baseando-se em Julius Hann, caracterizou
as secas do nordeste, distinguindo aquela do Maranhão e do Piauí com a do nordeste oriental, pela
direção dos ventos, disposição geográfica das serras e da linha de costa e pela sazonalidade das
estações chuvosas, explicadas por diferentes correntes de ar.
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Ao final de sua obra, Draenert propôs um conjunto de regras para a previsão do tempo,
tomando como ponto fundamental as variações barométricas e a direção dos ventos.
Trata-se, sem dúvida, de uma obra extraordinária para sua época, pois não se limitou às
descrições e análises simplistas, mas sim, ousado e criativo, buscou as associações entre tempo e
clima, entre a atmosfera e o ambiente terrestre, entre as leis físicas e a distribuição dos fenômenos
junto à superfície. Ao contrário de Henrique Morize, como veremos mais adiante, Draenert
apresentou uma análise genética e dinâmica, rica em relações e interrelações geográficas e
atmosféricas. Talvez sua obra tenha sido a mais ousada e geográfica do período inicial da
climatologia brasileira.
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Quanto ao primeiro aspecto, Morize se distinguia de Draenert pois, enquanto este último
relacionou os elementos do clima com a paisagem e com as sensações humanas, o primeiro,
recorrendo ao conhecido geógrafo e meteorologista norteamericano Ellsworth Huntington, tecia
uma série de considerações a respeito da influência do clima na sociedade, de forma bastante
ambígua, ora afirmando o caráter determinista do clima no comportamento humano, ora
minimizando estes aspectos quando se refere ao Brasil.
Huntington (1915), desde o início do século XX, ficou bastante conhecido por suas
concepções polêmicas sobre a influência dos climas nas características dos povos. Reproduzindo os
velhos preconceitos do “mal dos trópicos” e da natural “superioridade” do homem do mundo
temperado, o autor afirmava, em sua mais importante obra “Civilization and Climate”, que o mundo
tropical não favorece o desenvolvimento econômico, e argumentava com o seguinte exemplo:
Idéias como estas eram bastante difundidas nos meios acadêmicos da Europa e Estados
Unidos até meados do século passado e, por mais paradoxal que possa parecer, tinham seus
seguidores mesmo em terras tropicais como as do território brasileiro. Henrique Morize, apesar de
aceitá-las, em tese, demonstrava que no caso brasileiro, ao contrário da África e partes da Ásia, as
condições climáticas de grande parte de nosso país poderiam, com certo esforço, ser ocupadas com
sucesso.
Para isto, mesmo reconhecendo que as zonas reputadas como impróprias ao implante da
civilização européia poderiam progredir, argumentava que as primeiras civilizações do planeta se
desenvolveram em zonas tórridas como o Egito e a Índia, época em que os germanos, celtas e
saxônicos não passavam de bandos selvagens.
Depois de tecer uma série de considerações sobre as influências da temperatura e da
umidade nos casos de criminalidade, suicídios e eficiência no trabalho concluia:
Por esta época é interessante notar que já havia vozes contrárias a esta visão deturpadora do
mundo tropical, mesmo no Brasil. Uma destas vozes mais lúcidas e radicais foi a de Afrânio
Peixoto, médico carioca que sempre foi intransigente contra esta postura preconceituosa em relação
aos trópicos. Em uma de suas obras, “Les Maladies Mentales dans les Climats Tropicaux”,
publicada em 1905, em co-autoria com Juliano Moreira, demonstrou a inexistência de qualquer
dependência entre as variações meteorológicas e os números de casos de alienação e demência,
como se afirmava na Europa e nos Estados Unidos, considerando os aspectos sazonais do clima do
Rio de Janeiro.
Morize, ao longo das páginas iniciais de sua principal obra, parecia ser mais tolerante com
as proposições dos autores europeus quanto as influências climáticas no comportamento humano.
Tanto isto é verdade, que se esforçou para demonstrar, como poderá ser averiguado mais adiante,
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que a maior parte do território brasileiro se encontraria nas faixas subtropicais e temperadas, para
justificar as possibilidades de adaptação do europeu em nosso território.
O segundo importante aspecto da obra de Morize foi a sua proposta de classificação
climática, primeiramente divulgada em 1889 e reformulada em 1922, que tomava como ponto de
partida os conceitos adotados por Köppen, no que se refere às médias térmicas, sazonalidade e
totais pluviométricos. Utilizando 106 estações meteorológicas, o autor se apoiava nos climogramas
para determinar os tipos climáticos. De forma resumida, a proposta de classificação climática de
Morize pode ser esquematizada da seguinte maneira:
É de tal modo evidente a preocupação do autor em demonstrar que os climas do Brasil eram
mais propícios do que o de outras regiões de mesma latitude, que além de considerar grande parte
do Nordeste e do Brasil central como sub-tropical, argumentava:
Desta forma, Morize utilizou o critério de Köppen para delimitar as zonas tropicais e
temperadas, a partir da isoterma média de 18o C para o mês mais frio, o que certamente provoca
uma grande polêmica, principalmente com Delgado de Carvalho, que não aceitava este critério,
como analisaremos mais adiante.
De qualquer modo, a preocupação técnica e estatística demonstrada no trabalho de Henrique
Morize, seu enorme esforço em compilar um vasto conjunto de séries temporais, esparsas pelo
território brasileiro, e suas análises no sentido de caracterizar a variabilidade e a sazonalidade
climática, coloca esta obra como um marco no desenvolvimento das ciências atmosféricas,
notadamente da climatologia.
Por esta mesma época, Delgado de Carvalho publicou suas duas obras que tratam dos
aspectos climáticos do Brasil, a primeira “Climatologie du Brésil” (1916), apesar de resumida, já
apontava as concepções gerais sobre o tempo e o clima, que um ano mais tarde, em 1917, apareceria
muito mais elaborada na excelente “Météorologie du Brésil” que, em realidade, tratava mais dos
aspectos climáticos do que meteorológicos.
Há que se considerar que devido a sua longa estada na Europa, principalmente na França,
Delgado de Carvalho assimilou e divulgou no Brasil, as principais obras e concepções da Geografia
que se produzia naquele país. Além de Paul Vidal de la Blache e Jean Brunhes, quem mais o
influenciou foi Emmanuel de Martonne, que poucos anos antes havia publicado o “Traité de
Géographie Physique”, em 1909.
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Ao contrário de Morize, Delgado de Carvalho buscou uma explicação geográfica do clima,
admitindo que o campo de estudo da Climatologia seria o da zona de contato entre a atmosfera e o
globo sólido e líquido, que se constituiria no domínio por excelência da observação do geógrafo.
Assumindo as concepções de De Martonne que não só admitia uma concepção geográfica do
clima, como se mostrava muito crítico em relação aos estudos que lançavam mão das normais
médias dos elementos meteorológicos, preconizava:
“Ces influences générales des types tropicaux sur l’homme, en somme trés favorables à
son développement, on fait des zônes intertropicales des régions trés peuplées, partout
oú ne domine pas le désert. Quant au Brésil luimême, sa partie la plus peuplées s’étend
entre les bouches de l’Amazone et le Tropique du Capricorne. Une des raisons du
rapide accroissement des populations tropicales doit être recherchée dans l’extrême
facilité de la vie, causée par la prodigalité de la Nature et la douceur du climat.”
(Delgado de Carvalho, 1917:43)
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Depois de discorrer por três capítulos para caracterizar as influências cósmicas, o regime dos
ventos e o regime das chuvas tomando como base os dados da rede meteorológica nacional, em
número muito mais reduzido do que pode dispor Morize em sua obra de 1922, Delgado de Carvalho
dedicou cerca de 2/3 de seu trabalho ao aprofundamento de uma proposta de classificação climática
dos tipos regionais, o que possivelmente foi sua maior contribuição à Climatologia do Brasil.
A classificação climática proposta por Delgado de Carvalho, apesar da aparente similaridade
com aquela proposta de Morize, foi bastante conflitante, principalmente no que se refere aos limites
entre os climas tropicais, subtropicais e temperados, como já nos referimos anteriormente. Mas, por
questões éticas e pelo enorme respeito que Delgado de Carvalho nutria por Morize, de forma muito
elegante, não comparecia nas discussões entre ambos.
A divisão climática proposta compreendia três grandes grupos climáticos subdivididos em
tipos característicos, como demonstramos na tabela a seguir
Além disto, para cada um dos tipos de clima, propunha ainda uma outra subdivisão
contemplando feições regionais, mais ou menos bem delimitadas, considerando os aspectos termo-
pluviométricos e os traços gerais da circulação atmosférica, portanto, de caráter muito mais
meteorológico do que a proposta de Morize, com a vantagem adicional de incorporar, nas escalas
inferiores – regionais e subregionais – os fatores geográficos.
O fato é que Delgado de Carvalho não somente produziu a obra mais completa sobre a
Climatologia brasileira de sua época, como introduziu uma análise eminentemente geográfica. Esta
classificação, segundo Serebrenick (1942), representou um notável avanço, dado o cunho mais
científico e a terminologia empregada, demonstrando total sintonia com a produção do saber de
seus contemporâneos dos países mais avançados.
Todo o procedimento metodológico e as concepções empregadas nas análises climatológicas
permitem a afirmação de que esta obra pode ser considerada como a primeira produzida sob um
paradigma geográfico no Brasil, numa época em que a Geografia ainda não existia enquanto área
específica do conhecimento e, portanto, não estava institucionalizada em nosso País.
Na segunda metade do século XIX, com o início das grandes expedições científicas
norteamericanas em território brasileiro, uma nova fase de descobertas e um novo conjunto de
procedimentos científicos, principalmente no campo das ciências naturais (incluindo-se as
geociências) se instalaram em nosso país.
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Com a expedição Thayer, em 1865, a primeira das cinco empreendidas por cientistas dos
Estados Unidos, vieram entre outros, os geólogos Louis Agassiz e Charles Hartt. O extraordinário
volume de informações geográficas, geológicas, paleontológicas, botânicas e etnográficas
produzidas se configuraram como os embriões da nascente ciência geográfica, mais especificamente
da Geografia Física.
Segundo Pereira (1980), Hartt voltaria ao Brasil em 1870, chefiando outra excursão
científica, a Expedição Morgan, confirmando o enorme interesse que os Estados Unidos passaram a
dedicar ao território brasileiro e as suas possibilidades de exploração econômica. Na equipe de Hartt
se encontrava Orville Derby, um dos mais eminentes cientistas que atuaram no Brasil, que teve
destacado papel tanto na criação da Comissão Geológica do Império, em 1875, quanto na Comissão
Geográfica e Geológica de São Paulo, para onde se transferiu em 1886.
Orville Derby não somente foi um estudioso da Geologia e da Geografia Física brasileira,
quanto um apaixonado por nosso país, aqui permanecendo até sua trágica morte, por suicídio, em
1915. Em São Paulo, de 1886 até 1905, dirigiu a Comissão Geográfica e Geológica implementando
uma sistemática de trabalho que consistiu, entre outros fatores, numa estratégia de reconhecimento
físico e territorial do Estado, além de criar as diversas seções de pesquisa, como a de Meteorologia,
de Botânica, de Solos, que mais tarde resultariam no grande parque científico que compreende os
institutos de pesquisas do Estado de São Paulo.
Ao seu redor, Derby pode reunir um grupo de excelentes intelectuais e cientistas, como
Alberto Löfgren, Teodoro Sampaio, Belfort de Mattos e Frederico Schneider, que tiveram relevante
papel tanto da produção científica quanto em sua institucionalização no Estado de São Paulo.
Já em 1887, com o apoio de Derby, Alberto Löfgren implantou o Serviço de Meteorologia
da Comissão Geográfica e Geológica, do qual foi diretor até 1902, instalando a primeira estação, na
cidade de São Paulo e, dois anos depois, eram criadas as de Tatuí e Rio Claro. Obedecendo os mais
criteriosos métodos de coleta e utilizando aparelhos análogos aos da Europa de então, em 1900, a
rede paulista já contava com cerca de 40 estações meteorológicas espalhadas em seu território.
Este rápido crescimento, aliado a um enorme conjunto de trabalhos de pesquisa publicados
nos boletins do Serviço de Meteorologia, então denominados “Dados Climatológicos” serviram de
suporte para o estabelecimento e fortalecimento da Climatologia paulista.
Além da publicação dos dados meteorológicos, comentados e analisados com bastante
profundidade, este Boletim também foi o veículo de divulgação dos resultados das pesquisas
produzidas que tentavam explicar as características e particularidades do clima de São Paulo. Em
1902, José Nunes Belfort de Mattos assumiu a Seção de Meteorologia, que acabara de ser
transferida para a Secretaria da Agricultura, permanecendo como seu diretor até 1926.
À frente do Serviço de Meteorologia da Secretaria de Agricultura, Belfort de Mattos pode
ser considerado o primeiro grande estudioso do clima de São Paulo. Muito influenciado por Löfgren
e por Derby e, tendo em mãos as séries temporais de dados meteorológicos do Estado de São Paulo,
as mais completas do país, pode caracterizar e analisar de forma bastante detalhada a climatologia
paulista.
Em seus primeiros trabalhos nota-se uma profunda preocupação com as técnicas estatísticas
utilizadas na interpretação dos elementos meteorológicos, sempre comparando-os espacialmente.
Quando publicou “Breve notícia sobre o clima de São Paulo”, Mattos (1906) já tinha bem clara uma
proposta de regionalização dos climas paulistas salientando o papel da latitude, altitude e distância
do mar, ao propor a existência de três tipos climáticos: o do litoral, o do alto da serra e o do interior.
Em 1908, introduziu a análise sinótica na primeira tentativa de produzir uma previsão do
tempo destinada à cafeicultura. Dois anos depois (Mattos, 1910b), publicaria uma polêmica nota
“Em defesa do clima de São Paulo”, quando procurava, de forma bastante engajada com a política
de imigração do governo estadual, demonstrar as vantagens do clima paulista para o
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estabelecimento de imigrantes europeus e para o desenvolvimento da agricultura. Neste artigo,
comparava o clima de São Paulo com o de Palermo – na Itália – argumentando que as médias
anuais da capital paulista oscilavam entre 17,5oC e 18oC e, por isso, configurava-se como um clima
“quase” europeu.
Em suas observações de caráter mais geográfico, como no artigo que publicou, neste mesmo
ano, no primeiro Congresso Brasileiro de Geografia (Mattos, 1910a), sobre a influência das matas
sobre o clima, este autor já alertava para o sério problema da devastação das matas e florestas e suas
consequências para o balanço hídrico e para o uso do solo agrícola, comentando que:
“O regimen dos rios de um paiz, com as seccas que elles apresentam e as inundações a
que dão logar, depende, em grande parte, da importancia e extensão das florestas que o
cobrem, e a acção que as vastas regiões florestadas exercem sobre a regularisação das
cheias e das estiagens é um fato indiscutível, assim como está reconhecida a influencia
benéfica das mattas, amenisando os climas, ao determinarem uma quéda na
temperatura média do ar, ao mesmo tempo que evitam os saltos excessivos das
temperaturas extremas que se verificam nas regiões desnudas.” (Belfort de Mattos,
1910a:19)
Mais adiante, neste mesmo artigo, e ainda discutindo as relações entre a atmosfera e a
superfície terrestre, o autor fazia uma série de comentários sobre as possibilidades de influência do
homem na constituição e características do ambiente atmosférico e apontava para as mudanças que
já estariam ocorrendo no clima da cidade de São Paulo, relacionando como possíveis causas, a
expansão territorial urbana. Neste caso específico sugeria que as mudanças estariam sendo
benéficas, ao afirmar:
“Dizem os velhos paulistas que o clima da Capital do Estado de S.Paulo não é mais o
que elles conheceram há 40 annos atraz, e não se enganam os velhos n’essa
affirmação, porque nos 20 annos mais chegados já encontramos mudanças bem
sensíveis na taxa de humidade de S.Paulo, resultando felizmente um clima mais
saudavel, por isso que o ar se tornou mais secco com a transformação e melhoramentos
soffridos pela urbs.” (Belfort de Mattos, 1910a: 24-25)
Apesar das limitações da obra de Belfort de Mattos e das duras críticas que Sampaio Ferraz
teceu às suas primeiras tentativas de introduzir a previsão do tempo a partir das cartas sinóticas, é
inegável sua contribuição para o conhecimento e desenvolvimento da climatologia do Estado de
São Paulo, no primeiro quarto do século XX.
Dos primeiros estudos sobre o clima do Brasil em meados do século XIX, foi a partir dos
paradigmas da salubridade, adaptação, higiene e saúde pública, que a climatologia deu os seus
primeiros passos rumo a sua institucionalização como campo do saber.
Entre os médicos e sanitaristas brasileiros, nenhum outro interpretou tão profundamente as
relações entre o clima, o homem e a cultura quanto Afrânio Peixoto. Pelo conjunto de sua obra, não
seria exagerado afirmar que tenha sido o precursor da Geografia Médica em nosso país.
Professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Peixoto foi um ardoroso defensor do
mundo tropical contra o preconceito dos detratores deste ambiente, que apregoavam a “natural”
inferioridade dos povos da zona tórrida. Já em 1907, publicava um de seus primeiros trabalhos que
tratava da relação entre o clima e as doenças no Brasil. Nesta obra, empolga-se com as
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possibilidades de se pensar o país a partir de soluções internas para a superação dos problemas
brasileiros.
No prefácio de sua obra capital “Clima e Saúde”, o discurso do autor revelava as armas de
que dispunha, ao tentar interpretar a realidade nacional do início do século XX, quando afirmava:
“Doenças climáticas foram outrora a cólera, a malária, a doença do sono: hoje têm
uma etiologia conhecida, sem nenhuma subordinação ao clima; invadem terras sobre
todas as latitudes; nas zonas de um mesmo clima, têm recuado diante daquelas cuja
higiene as tem sabido preservar. E essa verdade tão simples, e de tão grandes
consequências – porque a conquista territorial e econômica do mundo aí está, - que
não há doenças climáticas – portanto não há doenças tropicais – se impõe, substituindo
velhas crenças por essa outra científica pela observação e pela experiência: existem
apenas doenças evitáveis, contra as quais a higiene tem meios seguros de defesa e
reação.” (Peixoto, 1938:76)
Nesta mesma obra, o autor analisou as questões sobre a “meteoropatologia”, relacionando os
tipos de clima e suas variações sazonais, com os casos de morbidez, epidemias e endemias.
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Concluiu que, a partir de certas condições climáticas, algumas patologias são facilitadas e outras
inibidas, entretanto, uma vez detectadas e diagnosticadas muitas deixam simplesmente de existir.
Podem, todavia, reaparecerem em outros ambientes climáticos, em função das condições de higiene
e saúde.
Retomando o seu interesse pelas questões mais particulares da Climatologia, Peixoto (1908),
ao propor uma nova classificação climática para o Brasil, considerava três tipos climáticos, assim
como Morize e Delgado de Carvalho, porém, ao contrário dos outros dois, enfatizava o caráter de
tropicalidade de nosso território.
A classificação climática de Peixoto, primeiramente divulgada em 1908, e ligeiramente
modificada em 1938 e 1942, está assim estruturada:
De todas as tentativas de se obter uma classificação dos climas globais, entre o final do
século XIX e início do século XX, as propostas de Wladimir Koppen de 1901 (1931) e a de
Emmanuel de Martonne (1909) foram consideradas as mais completas e, portanto, as mais
utilizadas, as que influenciaram os climatólogos de todo o mundo, na produção de classificações
regionais (Serebrenick, 1942).
A primeira proposta de classificação climática para o território brasileiro foi elaborada por
Henrique Morize, em 1889. Em função das enormes dificuldades de obtenção de dados e da parca
rede de estações meteorológicas existentes no Brasil daquela época, como bem afirmou Serebrenick
(1942), ela tem apenas um valor histórico pois, partindo do reconhecimento das zonas térmicas do
globo, acrescentou elementos geográficos, como altitude, maritimidade e latitude, para subdividi-la
em tipos característicos.
Classificava os climas em três grupos: Equatorial, sub-tropical e temperado, baseado nas
isotermas superior a 25o C, de 20o C a 25o C e inferior a 20o C, respectivamente.
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O que mais chama a atenção nesta primeira proposta, é que Morize considerava toda a
região compreendida entre as isotermas de 20o C e 25o C como correspondente ao clima sub-
tropical, numa nítida manobra para demonstrar que o Brasil apresentava enorme potencial de
receber imigrantes europeus e, portanto, de desenvolvimento econômico. É interessante notar que
este critério desapareceu quando divulgou sua nova versão, em 1922.
De caráter mais ou menos semelhante a este de Morize, o alemão Frederico Draenert (1896)
caracterizava as regiões climáticas do Brasil sem, contudo, espacializa-las. Mesmo assim,
reconheceu dois grandes climas: o da zona tórrida e o temperado. Na zona tórrida, distinguiu os
tipos continentais e litorâneos; os de altitude e os dos vales, descrevendo as variações térmicas e
pluviométricas. A zona temperada, segundo o autor, também apresentaria uma distinção entre os
tipos litorâneos e continentais marcados, fundamentalmente, pela amplitude térmica.
Estas duas classificações iniciais dos climas brasileiros, sem dúvida alguma, apesar das
limitações impostas pelo contexto histórico, devem ser tratadas como os primeiros esboços de uma
ciência ainda em implantação, entretanto, são reveladoras da capacidade analítica e de observação
de nossos primeiros climatólogos.
Afrânio Peixoto (1908) apresentou sua proposta de classificação climática para o Brasil
afirmando que qualquer classificação, antes de mais nada é um artifício didático e, por isso, é
sempre uma ação arbitrária. Mesmo assim, ao contrário de Morize e Delgado de Carvalho, utilizou
critérios mais astronômicos para a delimitação das três zonas climáticas que reconhecia como mais
características.
O autor utilizou, de forma arbitrária, o paralelo de 10o e o Trópico de Capricórnio como
parâmetros para delimitar as zonas equatorial, tropical e temperada, respectivamente. Sua proposta,
como nos apontou Serebrenick (1942), apresentou a vantagem de aperfeiçoar as classificações de
Morize e Delgado de Carvalho, no que tange ao reconhecimento das diferenciações entre os climas
dos planaltos interiores e da planície do Pantanal, bem como sugeriu a existência de dois tipos
climáticos no Brasil meridional, o litorâneo e o dos planaltos interiores.
Quase uma década depois, Delgado de Carvalho (1916) tornou pública sua nova proposta de
classificação, depois de tomar conhecimento dos sistemas de De Martonne (1909) e a de Penck , em
1910 (apud Serebrenick, 1942). Em 1909, foi divulgada a classificação de De Martonne, que assim
como a de Köppen, sofreu várias alterações até a versão final de 1925. De caráter mais geográfico,
com nítidas preocupações sistemáticas e regionais, propôs 6 grandes grupos de climas subdivididos
em 32 tipos, nomeados em função da região em que o tipo climático aparece com mais nitidez.
Nesta revisão, acrescentou a terminologia utilizada por Penck, para propor os tipos regionais
(super úmido, semi-úmido, semi-árido), além de reconhecer a existência de um clima temperado de
latitude média, representada pela planície rio-grandense (Pampa gaúcho).
Em 1922, Henrique Morize elaborava sua segunda proposta de classificação climática, agora
de posse de um significativo número de séries temporais de dados meteorológicos, espalhados por
todas as regiões brasileiras. Reconhecendo as características da classificação de Delgado de
Carvalho de 1916, com pequenas alterações publicadas em 1917, em sua “Météorologie du Brézil”,
além de incorporar alguns princípios da classificação climática de Köppen, Morize (1922)
distinguiu entre os tipos super úmido e semi-úmido, um tipo intermediário úmido, que não
comparecia no sistema de Delgado de Carvalho.
A classificação climática de Köppen foi divulgada pela primeira vez em 1901, e reformulada
diversas vezes (1918, 1923 e 1928) até a sua versão definitiva em 1931, já com a colaboração de
Rudolf Geiger. O sistema de classificação enfatizava os aspectos da distribuição média anual,
sazonal e dos meses extremos (verão e inverno) e do comportamento anual e sazonal das chuvas
(inclusive os períodos de concentração). As zonas climáticas foram delimitadas considerando,
também, a distribuição biogeográfica dos seres vivos e das grandes formações vegetais do planeta.
20
Köppen elaborou um complexo sistema combinando três conjuntos de letras, cujo primeiro
grupo se refere às grandes zonas latitudinais do clima, além das regiões de altitude, polares e
desérticas. No segundo conjunto particularizaria, dentro destas grandes zonas, os tipos a partir do
regime, duração e concentração das precipitações pluviométricas e no terceiro, as variações
térmicas, enfatizando os limites entre as máximas de verão e mínimas de inverno.
Assim, Henrique Morize abandonou o termo subtropical utilizado em sua proposta anterior
(Morize, 1889) e passou a adotar o termo tropical para as regiões Nordeste e Centro Oeste, cujas
temperaturas médias anuais compreendiam a faixa entre 20o C e 25o C.
A derradeira proposta de classificação foi divulgada por Delgado de Carvalho (1926), quatro
anos depois, quando publicou a sua “Fisiografia do Brasil”. Nesta última, que foi considerada
coincidente com a de Morize (1922), na verdade apresentava algumas diferenças, a começar pela
adoção de oito tipos climáticos, e não nove, pois não aceitava o tipo úmido. Também não aceitava a
denominação do tipo continental para a fachada Atlântica do Sudeste, que denominava de altitude.
De qualquer forma, as semelhanças eram maiores do que as diferenças, tanto que esta
classificação passou a ser conhecida como a classificação “Morize-Delgado. Sendo adotada
oficialmente por quase duas décadas e servindo como base conceitual para todos os fins, em todo o
território nacional.
Segundo sugeria Serebrenick (1942:455) todas as discussões e propostas de classificação
dos climas do Brasil que tiveram início no final do século XIX, indicavam que: “poderia parecer
concluída esta evolução, com o estabelecimento de um esquema único, definitivo, merecidamente
qualificado de classificação Morize-Delgado”.
No quadro a seguir apresentamos estas seis classificações divulgadas entre 1889 e 1926,
demonstrando as áreas climáticas segundo os vários autores, conforme Serebrenick (1942).
Com relação a estas propostas de classificação há que se considerar que no período histórico
analisado, os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, eram considerados
como estados do norte. Assim como por zona tórrida denominava-se o que se classifica, na
atualidade, os climas equatoriais e tropicais.
21
QUADRO 4 – Características das classificações climáticas para o Brasil
22
OS AVANÇOS DA METEOROLOGIA SINÓTICA E O PARADIGMA DINÂMICO
Antes de se proceder à análise do advento da meteorologia sinótica e seus reflexos na
climatologia dinâmica, é importante que se resgate como se processou a institucionalização da
climatologia e da meteorologia na Brasil, uma vez que, foi no interior das instituições públicas –
civis e militares – que se travou um intenso debate sobre os rumos das ciências atmosféricas em
nosso país.
Com a reestruturação do Observatório Imperial, em 1871, quando os estudos sobre o tempo
e o clima passaram a merecer maior destaque, em função das demandas originadas tanto pelo
desenvolvimento da agricultura, quanto pela política de imigração, e com a criação da Repartição
Meteorológica da Marinha, em 1888, fortemente influenciada pela doutrina militar norteamericana,
estabeleceu-se no Brasil um conflito de interesses que extrapolando o campo científico, adquiriu
conotações político-ideológicas (Ab’Saber, 1979).
No apagar das luzes do regime monárquico e com o nascimento da República, em fins do
século XIX, o embate entre monarquistas e republicanos atingia todos os setores da sociedade
brasileira, quando se contrapunham dois modelos de nação. Desde o processo de Independência de
nosso país, o modelo de ciência que foi se estabelecendo, seguia os princípios da escola idealista
romântica de Humboldt, e mantinha fortes vínculos com os círculos científicos europeus (franceses,
alemães, austríacos, ingleses, portugueses).
Por outro lado, com a emancipação política do Brasil, em 1821, e com o surgimento dos
Estados Unidos como potência continental, crescia a influência norteamericana, principalmente a
partir da Doutrina Monroe, fortalecendo os laços militares entre os dois países.
Desta forma, os meios militares brasileiros aos poucos abandonaram as doutrinas européias
e se alinharam aos Estados Unidos, assumindo o lema “A América para os americanos”. Tanto isto
é fato, que desde fins do século XIX, o alto escalão das forças armadas do Brasil, passou a realizar
os seus cursos doutrinários, de estratégia militar e de atividades conjuntas, nos Estados Unidos.
Emmanuel Liais e Henrique Morize, dois dos maiores nomes que impulsionaram as ciências
atmosféricas no Brasil, eram franceses de nascimento, com fortes ligações com as cortes do Império
e formados sob a influência da escola humboldtiana – o idealismo romântico (Ferraz, 1934).
Já nas forças armadas, principalmente na Marinha, onde surgiu a necessidade de se montar
uma estrutura de investigação das ciências atmosféricas, os jovens tenentes – republicanos e
positivistas – Adolpho Pinheiro, Américo Silvado e Tancredo Burlamaqui, representavam o
pensamento doutrinário norteamericano, sendo fortemente influenciados por Matthews Maury,
oficial da Marinha, que implementou o sistema de observações meteorológicas nas embarcações
dos EUA (Neira, 2000).
Em realidade, apesar da existência de um setor de investigação em Meteorologia no
Observatório do Rio de Janeiro, no qual trabalharam Morize e Liais, as pesquisas desenvolvidas
naquela instituição eram essencialmente voltadas para a descrição climatológica do País. Ao passo
que, nos setores da Marinha, as preocupações com a previsão do tempo e os aspectos sinóticos,
fundamentais para a rotina da navegação, é que norteavam as suas pesquisas.
Neste contexto, um caloroso e violento debate sobre os rumos das nascentes ciências do ar
tomou corpo no final do século XIX, quando, depois de criar a Repartição Central Meteorológica,
pelo Ministério da Marinha, o jovem tenente Tancredo Burlamaqui, e pouco depois seu sucessor,
Américo Silvado, propuseram a unificação dos diversos serviços meteorológicos do Brasil. O grupo
de politécnicos do Observatório Nacional (denominação adotada depois da Proclamação da
República), principalmente na figura de Henrique Morize, apesar de concordar com esta unificação,
discordava quanto aos objetivos e métodos propostos pela Marinha (Ferraz, 1980 e Ab’Saber,
1979).
23
Esta polêmica, na verdade, retratava uma diferença que, até hoje, subsiste entre climatólogos
e meteorologistas no Brasil. De um lado, os técnicos da Marinha, preocupados em dotar o serviço
meteorológico de técnicas de previsão do tempo (baseadas em cartas isobáricas) e na melhoria
qualitativa do instrumental técnico. De outro, o grupo de politécnicos do Observatório Nacional,
que defendia a expansão da rede de superfície e o investimento na obtenção das séries temporais.
Ferraz (1934), que acompanhou de perto este episódio, assim o comenta:
Ao final deste embate, em função do maior prestígio dos politécnicos, Morize conseguiu
obter a criação da primeira organização nacional, a Diretoria de Meteorologia e Astronomia,
vinculada ao Ministério da Agricultura, absorvendo as redes da Marinha e a do Telégrafo Nacional,
em 1909. Mesmo tendo resistido por muito tempo à implantação das cartas sinóticas e orientado os
trabalhos mais para a linha da climatologia, não conseguiu evitar que o Serviço Meteorológico da
Marinha continuasse a desenvolver suas pesquisas aplicadas à previsão do tempo.
Outro acontecimento marcante no que se refere à institucionalização da Climatologia em
nosso País foi a implantação da Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo, em
1886, sob a direção de Orville Derby. Criada a Seção de Meteorologia, coube a Alberto Loefgren e
sua equipe, a elaboração do projeto de implementação de uma rede de estações meteorológicas que,
em 1887, contava com apenas três estações – São Paulo, Rio Claro e Tatui – mas em poucos anos,
já em 1900, somaria cerca de 40 estações espalhadas pelo território paulista e se tornaria a mais
completa e numerosa de todo o país (Loefgren, 1900).
Mais do que Alberto Loefgren foi Belfort de Mattos, chefe da Seção de Meteorologia da
Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, a partir de 1902, quem mais se dedicou ao estudo
da Climatologia paulista e realizou as primeiras tentativas e ensaios com a utilização de cartas
sinóticas.
Nas primeiras décadas do século XX, dois acontecimentos foram responsáveis pelo avanço
dos estudos do tempo e do clima no Brasil. O engenheiro carioca Joaquim de Sampaio Ferraz (de
quem comentaremos mais adiante) retornava do exterior em 1903, por onde estivera por quase 8
anos, completando seus estudos em prestigiosos institutos da Inglaterra e dos Estados Unidos. Neste
mesmo ano foi admitido no Observatório do Rio de Janeiro, e ali organizou os primeiros mapas
sinóticos para a previsão do tempo. Subordinado à Henrique Morize, que reconhecidamente não se
interessava por tais estudos, Ferraz conseguiu convencê-lo da eficácia destas técnicas e, a partir de
1917, foi autorizado a publicar os prognósticos para a então capital federal.
Logo após, em 1921, de acordo com Neira (2000), convencidos de que chuvas e estrelas não
eram tão afins, ocorreu a separação das seções de Meteorologia e de Astronomia, que estavam
vinculados ao Observatório Nacional. Foi então, criada a Diretoria de Meteorologia, dirigida por
Sampaio Ferraz desde a sua fundação até 1930, quando se extinguiu e foi substituída pelo
Departamento Nacional de Meteorologia, o que hoje constitui-se no INMET – Instituto Nacional de
Meteorologia. Nestes quase 70 anos de vida, perambulou por vários ministérios, sempre vítima do
descaso de nossos governantes e da penúria financeira.
Portanto, deve-se atribuir a Joaquim de Sampaio Ferraz, a introdução dos estudos de
Meteorologia Sinótica em nosso país.
24
BJERKNES E ROSSBY: AS ESCOLAS DE BERGEN E DE CHICAGO
Desde o último quartel do século XIX, que os estudos que tratavam dos padrões mundiais
dos ventos, do estabelecimento dos conceitos de ciclone e anticiclone, das baixas e altas pressões e
das definições dos sistemas atmosféricos, pertenciam ao conjunto de preocupações dos
meteorologistas e climatólogos da época, como Ley, Coffin, Köppen, Hann, Teisserenc de Bort,
entre outros.
A análise sinótica começava a ser empregada nos estudos de previsão do tempo,
significando enorme avanço técnico. Porém, as limitações impostas pelos modelos de circulação
atmosférica concebidos até então, não permitiam, ainda, o estabelecimento de um padrão global,
tridimensional, que só seria possível a partir da aplicação das leis termo-hidrodinâmicas de
Boltzman na Meteorologia.
Segundo Stringer (1972), o grande salto paradigmático que possibilitou o desenvolvimento
da Meteorologia Sinótica e, por consequência, da Climatologia Dinâmica, ocorreu quando o
norueguês Vilhelm Bjerknes, entre os anos de 1897 e 1902, em Estocolmo, Suécia, iniciou a
aplicação dos conceitos hidrodinâmicos na construção das cartas sinóticas.
Depois de uma rápida passagem por Leipzig, na Alemanha, entre 1913 e 1917, quando
implantou a primeira escola de Meteorologia de que se tem notícia, Bjerknes estabeleceu-se em
Bergen, na Noruega, onde produziu as mais importantes descobertas no campo da Meteorologia
sinótica e dinâmica. Em associação com um grupo de cientistas, físicos, oceanógrafos, engenheiros
e meteorologistas, que mais tarde ficariam conhecidos como o grupo de Bergen – a Escola de
Bergen – estabeleceu as bases físicas conceituais deste novo paradigma.
Entre 1917 e 1929, junto com Solberg, Bergeron, Rossby e outros, Bjerknes concentrou seus
estudos sobre as zonas de fronteira entre as massas de ar – frias e quentes – elaborando os conceitos
das frentes quentes (1918), oclusas (1919) e a teoria da frente polar (1922), convencido que estava
sobre o papel determinante das perturbações frontais e dos anticiclones migratórios na produção dos
tipos de tempo. Concepções estas que marcariam profundamente a Meteorologia moderna.
A respeito da Escola de Bergen, Burroughs (1998) comenta que:
“La escuela de Bergen realizó un avance significativo, entre 1918 y 1923, cuando
plantearon la teoría de que la actividad meteorológica se concentra en zonas
relativamente reducidas, en las fronteras entre las masas frías y calientes. Llamaron a
estas zonas de frentes por analogía com los frentes de batalla de la Primera Guerra
Mundial. Posteriormente se confirmó que dichos frentes son la principal causa del
tiempo atmosférico, y se desarrollaron métodos que permiten a los meteorólogos
predicir sus movimientos com una precisión considerable”. (Burroughs, 1998:74)
Todos os modelos anteriores de circulação atmosférica fracassaram por causa das limitações
impostas pelas teorias laplaceanas, dominantes até então, que os reduziam à implicação da lei da
gravidade. Com as novas propostas de Bjerknes de aplicação da termo-hidrodinâmica em
Meteorologia, iniciavam-se novas possibilidades de compreensão e interpretação dos climas
baseadas na origem, frequência e trajetória dos campos de pressão atmosféricos.
O climatólogo norte-americano Edward Stringer, ao analisar o impacto – e as limitações - da
teoria da Frente Polar, afirma que:
“At the time of the formulation of the Polar Front theory, emphasis was on the traveling
depressions and anticyclones of middles latitudes. The enthusiastic disciples of the
Bergen School believed that all local weather could ultimately be axplaines in terms of
air masses and fronts, once enough local varieties of these had been recognized. They
25
also believed that depressions and anticycoles would have some effect on the upper
atmosphere, but, lacking observations, they did not emphasize such effect. (Stringer,
1972:8)
26
Na década de 30 do século XX, Rossby definiria os “jet streams” e propunha um modelo de
conexões entre os movimentos do ar na baixa troposfera com os da estratosfera, que seriam
fundamentais para a compreensão do complexo jogo de interações entre as circulações geral e
secundária, que aliadas às cartas isobáricas de superfície resultariam num enorme avanço no grau de
confiabilidade da previsão do tempo.
O fato é que tanto Bjerknes quanto Rossby desenvolveram as bases conceituais e as
aplicações concretas dos mecanismos físicos que possibilitaram o surgimento da Meteorologia
Sinótica que acabou por determinar uma mudança paradigmática na Climatologia, através da
incorporação dos atributos dinâmicos.
Foi a partir do contexto histórico descrito no capítulo anterior, em que a evolução da física
possibilitou uma revisão conceitual dos processos dinâmicos da atmosfera, com o surgimento da
teoria das frentes (ciclogênese e frontogênese) de Bjerknes, do desenvolvimento da climatologia
complexa de Federov, dos conceitos da climatologia dinâmica de Bergeron e Hesselberg e do
modelo de circulação geral da atmosfera de Rossby, no período entre as duas grandes guerras
mundiais - décadas de 20 e 30 do século XX – que Sampaio Ferraz pode elaborar as primeiras
análises sinóticas no Brasil.
Aliás, foi um entusiasta do novo paradigma da Meteorologia Dinâmica, cujas análises
podem ser observadas em sua obra mais importante, a “Meteorologia Brasileira”, publicada em
1934, que se constituiu num marco histórico das ciências atmosféricas no Brasil.
Engenheiro, meteorologista e climatólogo, o carioca Joaquim de Sampaio Ferraz pode ser
considerado o precursor da Meteorologia nacional. Além de ter sido o primeiro a efetivar a previsão
sistemática do tempo, divulgado ao público do Rio de Janeiro a partir de 1917, introduziu os novos
paradigmas da Meteorologia Sinótica, quando passou a dirigir a Diretoria de Meteorologia, entre
1921 e 1930.
Sampaio Ferraz estagiou em vários centros avançados de estudos atmosféricos da Europa
pouco antes da Primeira Grande Guerra, quando entrou em contato com a Escola de Bergen e, ao
retornar ao Brasil, segundo Ab’Saber (1979), recebeu a incumbência de organizar os primeiros
mapas sinóticos para a previsão do tempo. A este respeito, Ferraz argumentava que este deveria ser
o novo paradigma e o princípio norteador da nova Diretoria da Meteorologia, pois:
“A previsão do tempo deverá ser estabelecida de forma a servir no campo e no oceano,
sendo os seus avisos distribuídos por todos os meios viáveis. A aerologia virá proteger
a aviação civil e militar nas principais rotas do país, satisfazendo às necessidades
administrativas, comerciais e estratégicas. A meteorologia agrícola difundirá
detalhadas informações relativas à influência do tempo sobre as culturas; estudará a
relação entre o fator meteorológico e a evolução vegetativa – quer cotejando as
estatísticas climatológicas com as da produção agrícola, quer procedendo às
observações fenológicas, ou pesquisando nos próprios campos experimentais de outras
dependências do Ministério da Agricultura, estabelecendo, destarte, as épocas críticas
das culturas de valor econômico e facilitando o problema capital das previsões de
safras.” (Ferraz apud Ab’Saber, 1979:132)
Desde 1917, Sampaio Ferraz passou a divulgar seus primeiros ensaios sobre a previsão do
tempo, a partir da confecção de cartas sinóticas, para a cidade do Rio de Janeiro. Quando assumiu a
Diretoria de Meteorologia do Ministério da Agricultura, em 1921, além de envidar esforços para a
ampliação da rede de superfície, desenvolveu o serviço de previsão do tempo que, aquela época,
cobria praticamente todo o centro sul do Brasil.
27
A despeito da intensidade de trabalho institucional que Sampaio Ferraz empreendeu naquele
órgão pelas necessidades de implementação de sua política de dotar o país de um sistema eficiente
de previsão do tempo e de estudos meteorológicos e climáticos, pôde produzir um vasto conjunto de
obras que impressionam tanto pela variedade temática quanto pela capacidade científica de domínio
do instrumental técnico de seu tempo.
Em 1925, publicou sua primeira monografia que tratava das secas nordestinas. Procurando
averiguar quais os agentes atmosféricos mais diretamente responsáveis pelo fenômeno das intensas
estiagens aperiódicas, Sampaio Ferraz (1925) empregou seus ensaios a partir da análise das cartas
sinóticas para explicar as causas prováveis das secas do Nordeste Brasileiro. Analisou, também, o
papel do anticiclone polar atlântico e definiu-o como o responsável pelo fenômeno da friagem
amazônica, destruindo a falsa noção que se tinha à época, de que esta seria produto da descida dos
ventos frios andinos, fato que seria confirmado duas décadas mais tarde por Serra e Ratisbona
(1942).
Ao final da década de 30 do século passado, Sampaio Ferraz (1928 e 1929) publicou dois
outros importantes trabalhos ao introduzir o método de correlações e suas fórmulas regressivas à
previsão do tempo de longo prazo e associando-os ao modelo de circulação de Walker.
Sua obra capital, a primeira do gênero a incorporar os modelos sinóticos e dinâmicos à
análise meteorológica no Brasil, veio a público em 1934, configurando-se como o principal manual
de ciências atmosféricas em língua portuguesa de sua época. Sobre este trabalho, o próprio autor
assim se referia:
“A primeira edição da Meteorologia Brasileira de Sampaio Ferraz, elaborada em 1934
e, publicada um ano depois, apareceu justamente na época do início da campanha
investigadora americana em prol da: a) classificação das massas de ar; b)
cristalização da chamada análise isentrópica, criada pela escola americana de
meteorologistas. Tudo, na realidade, cifrando-se no desenvolvimento do que lançara
brilhantemente, entre as duas Grandes Guerras, a insigne escola bergerniana de
meteorologia sinóptica, graças, sobretudo, à expansão da aerologia. O êxito daquela
campanha tão útil à ciência da atmosfera, em geral, e à previsão do tempo, em
particular, foi logo aproveitado entre nós pelos citados estudiosos do Serviço de
Meteorologia – Adalberto Serra e Leandro Ratisbonna, numa série de publicações
valiosas.” (Sampaio Ferraz, 1980:229)
O que mais chama a atenção neste trabalho de 1934 é que ao contrário dos demais
publicados até então, Sampaio Ferraz tratou de praticamente todos os temas do vasto leque que
constituem as ciências atmosféricas. Iniciou a análise pelos padrões de circulação atmosférica –
global e sobre o Brasil. Depois de discorrer sobre os aspectos astronômicos, como a radiação solar,
distinguiu os vários ramos de aplicação da Meteorologia, ao estabelecer os objetivos da
Meteorologia Marítima, da Aerologia, da Meteorologia Sinótica, da Meteorologia Ótica e Acústica,
aprofundando até os limites da Paleoclimatologia.
No capítulo em que tratava da Climatologia, Sampaio Ferraz (1934) diferenciava de modo
claro o que seriam os campos de estudos da Meteorologia e os da Climatologia que, em suas
palavras, não poderiam ser considerados como sinônimos, pois:
“Acontecia, assim, uma aliança que assumia um aspecto dúplice que merece ser
considerado. De um lado, os geógrafos divulgaram seus trabalhos capitais na
Meteorologia Dinâmica que, malgrado um interesse já despertado, oferecia ainda
certas dificuldades aos geógrafos em assimilar-lhes o conteúdo técnico. Desde a
publicação de Massas de Ar na América do Sul, (Serra e Ratisbonna, 1942) já se sabia
da importância do estudo das massas e dos mecanismos frontais em Climatologia mas
havia aquela dificuldade de penetrar na malha intrincada da terminologia da
Meteorologia Dinâmica”. (Monteiro, 1991:24-25)
Assim, o desenvolvimento da Meteorologia sinótica e dinâmica no Brasil, configurada
basicamente a partir das contribuições de Sampaio Ferraz, Adalberto Serra e Leandro Ratisbonna,
pode ser considerado como o marco histórico do próprio desenvolvimento da Climatologia
Dinâmica que, acrescida das concepções de clima de Max Sorre, nas décadas de 1940 e 1950,
permitiriam o surgimento de uma Climatologia eminentemente comprometida com os propósitos da
Geografia, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo.
30
A CLIMATOLOGIA DOS GEÓGRAFOS:
A CONSTRUÇÃO DE UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA DO CLIMA
Além disto, para De Martonne (1909) as relações entre os diversos fenômenos ressaltariam
com maior clareza toda a engrenagem dos mecanismos atmosféricos e possibilitariam o
acompanhamento de sua marcha, tal como Teisserenc de Bort, em 1884, na França, havia
estabelecido as bases teóricas para a análise dos tipos de tempo.
Ao reconhecer que o tempo não varia de maneira desordenada, mas que se apresentaria a
partir de situações características que se repetiriam durante períodos mais ou menos longos, estes se
constituiriam em autênticos tipos de tempo.
Numa tentativa de estabelecer as diferenças das noções de clima e definir a mais adequada
para a análise geográfica, considerava que:
31
“Em consonância com os princípios geográficos gerais estabelecidos pelos fundadores
da nova ciência, princípios, aliás, refundidos e ampliados pelos grandes mestres que
lhes seguiram, os estudiosos da Geografia do Brasil, em sua maior parte, não puderam
até o terceiro decênio do século atual, realizar pesquisas, bem assim elaborar a
apresentar trabalhos à altura dos requisitos exigidos pelo importante ramo de saber
humano. Imbuídos do espírito da Geografia, mas não realmente penetrados de Ciência,
aos diletantes brasileiros faltou, por infelicidade, uma boa formação geográfica.”
(Pereira, 1980:391-392)
Desta forma, foi a partir da criação dos cursos superiores de Geografia que se deu um
enorme salto qualitativo em seu desenvolvimento, reforçado pela criação do Conselho Nacional de
Geografia, poucos anos depois.
32
eminentemente geográfico, que compreende o período de 1934 a 1964. Consideramos que essa foi
fase inicial da busca de afirmação de um conceito geográfico do clima.
Como marcos iniciais, tomamos a publicação da “Meteorologia Brasileira” de Sampaio
Ferraz (1934), a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e a implantação
dos cursos universitários de Geografia, ambos em 1934, a fundação da Associação dos Geógrafos
Brasileiros – AGB em 1935 e do Conselho Nacional de Geografia – CNG, em 1937, além do
surgimento da Revista Brasileira de Geografia, em 1939.
Este segmento temporal se estende até 1964, quando Monteiro publicou os primeiros
trabalhos que demonstravam sua insatisfação com os conceitos e métodos empregados na análise
geográfica do clima, a partir de uma leitura bastante pessoal das concepções que Max Sorre
divulgou em seu “Les Fondements de la Géographie Humaine”, particularmente no capítulo quinto,
quando tratou do papel do clima como fenômeno geográfico.
Assim, a década de 30 do século XX significou o início da institucionalização da Geografia
enquanto campo do saber científico em nosso país. Se até esta época, como nos apontou Pereira
(1980), havia mais um “espírito” geográfico do que a sistematização do conhecimento, objetivos
definidos e instrumental analítico específico da ciência geográfica. Com a criação dos cursos
superiores nas universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, em 1934, iniciou-se o processo de
implantação da Geografia Científica no Brasil.
Para Monteiro (1980), a fundação da AGB, em 1935, sob a liderança de Pierre Deffontaines,
e a criação do IBGE, (e dois anos depois do Conselho Nacional de Geografia – CNG), durante o
Estado Novo, período da ditadura Vargas, em 1935, as condições para o pleno desenvolvimento da
ciência geográfica no Brasil estavam colocadas.
O surgimento da Revista Brasileira de Geografia, em janeiro de 1939, pode ser considerado
como outro marco histórico no desenvolvimento de nossa ciência. Dirigida por três dos maiores
nomes da Geografia brasileira, Carlos Delgado de Carvalho (que ao voltar da Europa, assumiu a
cadeira de Geografia do Brasil na Universidade Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro) e os
engenheiros Silvio Fróis de Abreu e José Carlos Junqueira Schmidt (Revista Brasileira de
Geografia, 1939).
Nesta fase inicial, coube a uma plêiade de geógrafos estrangeiros, notadamente franceses, o
papel de transmissores da cultura geográfica, essencialmente decorrentes das teorias lablacheanas, e
de aplicação de técnicas e métodos novos. Entre os principais pesquisadores e professores,
conforme nos informa Pereira (1980), vieram para São Paulo Pierre Deffontaines (1934), Pierre
Monbeig (1935/1936), Emmanuel De Martonne (1937), Roger Dion (1947), Maurice Le Lannou
(1947) e Pierre Gourou (1948). Para o Rio de Janeiro, além de Deffontaines (1935/1938), pode-se
contar com Phillippe Arbos (1938), André Gibert (1939) e Francis Ruellan (1941/1952).
Além destes, vários mestres europeus e norte–americanos estiveram por períodos
intermitentes ministrando cursos e orientando programas de pesquisas, como Pierre Dansereau
(1945), Leo Waibel (1946/1950) Robert Platt (1947), Lynn Smith (1947) Clarence Jones (1948)
Preston James (1949) e Gottfried Pfiffer (1950).
A efervescência científica deste período pode ser observada pela quantidade e qualidade dos
trabalhos apresentados e publicados nos antigos Congressos Brasileiros de Geografia, patrocinados
pelo Conselho Nacional de Geografia, que ocorreram até 1944. A partir daí, com a reestruturação da
AGB, os fóruns científicos de discussão passaram ao seu controle e iniciava-se a prática das
assembléias anuais, cuja primeira ocorreria em Lorena, em 1946.
Além disto, com a criação da Revista Brasileira de Geografia (IBGE/CNG), em 1939, no
Rio de Janeiro, e do Boletim Paulista de Geografia em 1949 (publicação que na verdade começara
em 1935, com a efêmera revista Geografia da AGB, seção de São Paulo), estabeleceram-se os
veículos de comunicação e difusão do conhecimento geográfico.
33
Não é nosso propósito abordar de forma mais aprofundada o contexto histórico da
institucionalização e evolução da ciência geográfica em nosso país, tema este que já foi detalhado
em trabalhos de maior fôlego e propriedade, entre outros, por Pereira (1980) e Monteiro (1980),
mas tão somente estabelecer um elo de ligação entre este momento histórico e a produção científica
da Climatologia no escopo da Geografia realizada nesta fase inicial de sua implantação, como uma
estratégia para caracterizar e compreender, de forma analítica, os propósitos e paradigmas que
puderam, décadas mais tarde, propiciar o nascimento de uma Geografia do Clima.
Por mais que na literatura nacional ainda se encontrassem aqueles que consideravam a
Climatologia como mero conjunto de técnicas estatísticas ou, ainda, como disciplina da
35
Meteorologia, França insistia nas particularidades e especificidades de uma análise do clima
comprometida com os objetivos da Geografia, afirmando que:
“...os climatologistas devem dedicar-se aos estudos do que ocorre nas camadas de ar
que recobrem imediatamente a superfície de um lugar, o que vale dizer, para o campo
da geografia. Para os meteorologistas não interessando diretamente o que se passa na
superfície, mas o estudo das massas de ar, principalmente das colocadas muito acima
da superfície e subtraídas às influências desta, a questão é colocada em outros termos,
os da Física. Climatologistas e meteorologistas falam, assim, linguagens diversas, mas
o campo de seus estudos forma um todo que não pode ser dividido”. (França, 1945:30)
É interessante notar que, nesta tese, o autor já assumia as concepções que Max Sorre havia
divulgado dois anos antes (Sorre, 1943), quando ao criticar o conceito de clima vigente,
argumentava que estes estudos deveriam adotar a definição de “ambiência atmosférica”, no sentido
de incorporar a noção de ocorrência de tipos de tempo na sua sucessão habitual. Conceitos a partir
dos quais Monteiro, duas décadas mais tarde, elaboraria o paradigma rítmico, concebido como a
análise geográfica do clima.
Nas considerações finais de sua Tese de Doutorado, Ary França (1945), ao discordar de
trabalho anterior de Sampaio Ferraz (1942), que tratava de alguns aspectos da climatologia paulista,
estabeleceu uma polêmica sobre os conceitos de tipos de tempos. Assim escrevia em sua Tese:
“Em um estudo dedicado aos climas do Estado de São Paulo, Sampaio Ferraz (1942)
apresentou uma classificação em oito tipos de tempo que seriam fundamentais e que
ocorreriam com frequências mais ou menos definidas, no Brasil Meridional. Porém, o
que este autor chama de tipo francamente distinto nada mais é do que uma condição
média, de predomínio temporário e sucessivo, das massas de ar. Sampaio Ferraz
admite que há múltiplas nuanças das condições que ele chama tipo de tempo. Julgamos,
porém, preferível considerar essas múltiplas nuanças como sendo os verdadeiros tipos
de tempo – ao invés de o fazer para as condições gerais de que resultam”. (França,
1945:53)
36
Andrade (1952), Lins (1953) e Guerra (1956) concentraram suas contribuições a partir de
monografias sobre os climas regionais do nordeste e as características do fenômeno das secas. Além
destes, fora do âmbito do CNG/IBGE, Sternberg (1953) analisava a grande seca de 1951 no Ceará
através de uma abordagem episódica, buscando o entendimento das repercussões e consequências
sócioeconômicas. Sampaio Ferraz (1950) alertava sobre a iminência de uma grande seca para a
região nordeste, a partir de um estudo bastante ousado para a época que utilizava os seus
conhecidos métodos de previsão do tempo através de cartas sinóticas, sugerindo algumas medidas
governamentais para a atenuação do drama das secas.
Ainda sobre a região Nordeste, tanto Salomão Serebrenick (1953), quanto Linton de Barros
(1957), analisaram a circulação atmosférica e os movimentos das massas de ar no vale do rio São
Francisco.
Estes trabalhos tinham em comum dois aspectos fundamentais. De um lado, adotavam as
teses de circulação atmosférica e dinâmica climática de Sampaio Ferraz (1934), Serra e Ratisbonna
(1942) e, de outro, incorporavam influências geográficas, a partir da análise regional proposta por
De Martonne (1909 e 1925).
Sobre a Amazônia, José Carlos Junqueira Schmidt (1942) produziu uma das obras mais
completas sobre o clima daquela região, resgatando dados históricos e demonstrando que a aparente
homogeneidade paisagística da hiléia, na verdade mascarava a diversidade climática que existia na
região.
Utilizando-se mais de técnicas estatísticas no sentido de um estudo climatográfico, José
Setzer (1944, 1945 e 1946) divulgou um excelente conjunto de trabalhos sobre a climatologia
paulista, quando analisou um enorme conjunto de estações meteorológicas e de postos
pluviométricos distribuídos pelo território bandeirante, demonstrando, a partir da proposta
classificatória de Köppen, os regimes climáticos.
No extremo sul do Brasil, Floriano Peixoto Machado (1950) publicava (em obra póstuma)
uma contribuição ao clima do Rio Grande do Sul, incorporando elementos dinâmicos na análise
climática em busca dos tipos de tempos característicos das diversas regiões gaúchas, bem ao estilo
das concepções de identificação de tipos fundamentais e mais frequentes.
O clássico texto de Aroldo de Azevedo (1950) sobre as regiões climato-botânicas do Brasil,
publicado pelo Boletim Paulista de Geografia, mesmo sem ter sido um trabalho muito aprofundado,
teve o grande mérito de utilizar uma abordagem didática de grande alcance junto aos professores
secundários.
João Dias da Silveira (1952), num trabalho de caráter mais regional, mas de grande valor
metodológico pela abordagem integrada da paisagem, analisou o papel do clima na composição dos
sistemas naturais, sobre as baixadas litorâneas quentes e úmidas.
Para encerrar esta breve sinopse sobre a produção científica em climatologia das décadas de
1940 e 1950, é necessário lembrar que Sampaio Ferraz (1951 e 1954) publicava dois excelentes
artigos de caráter mais reflexivo e denotando sua enorme erudição sobre o clima e o homem. No
primeiro deles, que veio a público em três números seguidos do Boletim Geográfico, em 1951,
analisou historicamente a relação entre o clima e as sociedades desde a antiguidade, abordando as
concepções teológicas, folclóricas e científicas.
Na obra de 1954, encomendada pela AGB de São Paulo, escreveu sobre as condições
climáticas e meteorológicas que teriam influenciado na ocupação e desenvolvimento da capital
paulista, numa edição comemorativa do quarto centenário da cidade.
Não só como mero registro histórico, mas já prenunciando a capacidade intelectual e
criadora de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, em 1951, ainda como estudante de graduação
do curso de Geografia da antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), Monteiro (1951) publicava
seu primeiro artigo científico na Revista Brasileira de Geografia, sobre o clima da Região Centro-
37
Oeste. Neste trabalho já elaborava uma análise que demonstrava uma insatisfação com o sistema de
classificação climática de Köppen e incorporava as situações sinóticas como gênese dos climas
regionais.
Este é apenas um resumo das principais obras sobre a climatologia brasileira que, a partir de
um referencial teórico que pode ser considerado como geográfico, mesmo que alguns dos autores
tivessem formação acadêmica em outras áreas do conhecimento, foram produzidas neste período
histórico. Obviamente esta relação está longe de abarcar toda a bibliografia sobre o assunto,
entretanto, acreditamos que esta seleção possa dar uma boa idéia sobre as temáticas analisadas.
Na segunda metade do século XIX, como resultado das amplas discussões e críticas de Vidal
de La Blache ao caráter determinista da Geografia alemã, personificada por Ratzel, foi que o
possibilismo passou a ser aceito como concepção que definiria as relações homem – natureza. De
acordo com Moraes (1983), La Blache não aceitava a concepção fatalista e mecanicista da relação
entre a sociedade e a natureza, presentes na Antropogeografia “ratzeliana”. Assim:
“A ação de um fator não depende apenas de sua intensidade atual, mas do caráter mais
ou menos repentino de sua aparição (limite diferencial), de sua frequência e de sua
duração, características estas inclusas na idéia de variabilidade.” (Sorre, 1954, apud
Megale, 1984).
Voltando à questão da crítica de Max Sorre aos conceitos de tempo e clima preconizados por
Julius Hann e também, por que não dizer, da análise que Emmanuel De Martonne produziu para o
estabelecimento destas concepções no escopo de Geografia, o autor justificava que, apesar das
propostas dos dois eminentes estudiosos partirem da escala local, buscando os encadeamentos com
as escalas regional e global, esta somente poderia ser alcançada a partir do estudo prévio da
39
circulação atmosférica regional a qual, sob a influência dos fatores geográficos dentro da região,
possibilitaria a definição dos climas locais (Monteiro, 1962).
Desta forma, as novas perspectivas teóricas que se abriram através dos postulados de Max
Sorre, no campo da Climatologia como fenômeno Geográfico, possibilitaram toda uma revisão
conceitual que, assumida por Pierre Pédélaborde na França, na década de 1950, e no Brasil por
Carlos Augusto de F. Monteiro, na de 1960, cada um a sua maneira, propiciou uma verdadeira
revolução paradigmática. As noções de dinâmica, gênese e ritmo passaram a constituir os
fundamentos do entendimento do fenômeno atmosférico como categoria de análise geográfica,
contrastando com as abordagens generalizadoras e de caráter regional, mais em busca de tipologias
do que de processos.
O mais interessante destas concepções sorreanas é que, sem nunca ter realizado qualquer
estudo empírico sobre a climatologia, uma vez que sua obra se concentrou em aspectos de discussão
teórica, Sorre pode captar a essência do caráter dinâmico e genético do clima e, talvez, exatamente
pelo fato de ter relido o seu papel a partir de uma perspectiva externa ao problema, conseguiu
extrair daí um novo paradigma. Esta é a razão pela qual Max Sorre é considerado o mentor
intelectual de uma Climatologia eminentemente geográfica. Seus trabalhos estão no cerne das
reflexões que Monteiro, pouco mais de uma década mais tarde, concretizaria em sua proposta de
análise rítmica, como a essência da análise geográfica do clima.
Somente a partir do início dos anos trinta do século passado é que floresceu uma Geografia
eminentemente norte-americana, quando Richard Hartshorne, ao propor uma releitura da abra do
geógrafo alemão Alfred Hettner, produzida entre 1890 e 1910, retomou uma análise teórica que
buscava uma terceira possibilidade de interpretação da Geografia, como uma superação da
dicotomia entre Determinismo e Possibilismo (Moraes, 1983).
Para Hartshorne, caberia à Geografia o estudo das inter-relações entre fenômenos
heterogêneos, apresentando-as numa visão sintética, pois:
Daí a afirmação de Leslie Curry, transcrita na epígrafe deste capítulo, que considerava o
clima como uma teoria e não como um fato. Esta noção nos remete ainda para a avaliação de seu
significado funcional, a qual somente seria viável para as grandes correlações, num nível de análise
aquém das aspirações da Geografia Econômica (Curry, 1962).
Todo o progresso conceitual inerente ao desenvolvimento da ciência em geral e pela
Geográfica, em particular, no decorrer do século XX, representados no exterior pelos avanços da
Meteorologia Sinótica das escolas de Bergen e de Chicago e interpretados em terras brasileiras por
Adalberto Serra, além da revisão dos conceitos de clima efetuados por Max Sorre, na França e por
Leslie Curry, nos Estados Unidos, ofereceram os elementos a partir dos quais Carlos Augusto F.
41
Monteiro se apropriou de maneira original e criativa, para elaborar sua proposta de análise
geográfica do clima.
A estes elementos incorporou, ainda, a perspectiva da abordagem episódica extraída e da
obra de Hilgard Sternberg, a discussão filosófica de Kant sobre a idéia de “acidente” no sentido do
princípio da permanência da substância e as concepções científicas, quanto ao método, de Paul
Feyerabend, além das influências que sofreu em sua formação acadêmica, do mestre francês Francis
Ruellan.
Este complexo conjunto de idéias, concepções e paradigmas está na base do pensamento
“monteriano” e na formulação de sua proposta de estabelecer o ritmo como fundamento e
paradigma da construção de uma Climatologia Geográfica, cuja análise será aprofundada no
capítulo seguinte.
42
O RITMO COMO FUNDAMENTO DO CLIMA: MONTEIRO E O NOVO PARADIGMA
Nascido em Teresina, no Estado do Piauí, em 1927, Monteiro veio para o Rio de Janeiro em
1945, e dois anos depois ingressava na então Universidade Nacional do Brasil (atual UFRJ), atraído
pelo curso de História. Mas, a partir de uma excursão ao Planalto Central, chefiada pelo eminente
geógrafo francês Francis Ruellan, que por esta época ainda trabalhava no Brasil e lecionava nesta
instituição, Monteiro acabou sendo cooptado, felizmente, pela Geografia, tornando-se um de seus
mais importantes nomes, tanto pela variada e original produção científica e intelectual, quanto pela
excelência e inovadora forma de ensinar.
Neste mesmo ano, ingressou nos quadros do Conselho Nacional de Geografia do IBGE,
como auxiliar de Geógrafo e, em 1950 concluiu o curso de licenciatura. Neste período, conviveu
com os grandes geógrafos brasileiros que implementaram as bases institucionais da pesquisa
geográfica no Brasil, como Fabio Macedo Soares, Lysia Bernanrdes, Dora Romariz, José
Verísssimo da Costa Pereira, além dos professores, que cada um a seu modo, tiveram alguma
influência no seu modo de pensar e fazer Geografia, como Francis Ruellan, Hilgard Sternberg e Leo
Waibel.
Em 1950, em função das atividades desenvolvidas com o Prof. Ruellan, Monteiro recebeu
uma bolsa de estudos para a Faculté des Sciences da Universidade de Paris (Sorbone), onde
estagiou no Laboratório de Geomorfologia, chefiado por aquele mestre francês. Também teve a
oportunidade de permanecer uma temporada no Laboratório de Sedimentologia, na Universidade de
Rénnes.
Neste período, assistiu a cursos ministrados por grandes geógrafos como Pierre George,
Andre Cholley e Jean Dresh e, como o próprio autor diz (Geosul, 1987), foi um período de muito
estudo e dedicação a temas de Geografia Física.
Voltando da França em 1953, estava disposto a sair do CNG/IBGE mas, dois anos depois,
por indicação de João Dias da Silveira, foi contratado pela Faculdade Catarinense de Filosofia
(atual UFSC) sem , entretanto, se desligar do CNG, que o transferiu para a sua seção de
Florianópolis.
Ali pode elaborar, junto com os colegas do DEGC e professores da Faculdade de Filosofia, o
Atlas Geográfico de Santa Catarina, um de seus primeiros trabalhos de fôlego (o primeiro foi Notas
para o Estudo do Clima do Centro-Oeste Brasileiro, publicado pela Revista Brasileira de Geografia,
em 1951).
Depois de cinco anos trabalhando naquela instituição, um convite de João Dias da Silveira
para que viesse trabalhar na Faculdade de Filosofia de Rio Claro e a perspectiva de iniciar seu
doutorado na USP, convenceram-no a se transferir para o interior paulista.
Nesta passagem por Rio Claro (1960 a 1964), é que Monteiro acabou elegendo a
Climatologia como o seu maior foco de interesse. Publicou então uma série de artigos em que
propunha uma reflexão crítica sobre a climatologia e divulgava uma série de ensaios em busca de
um novo paradigma para a análise geográfica do clima (Monteiro, 1962, 1963b e 1964). O aspecto
mais importante deste período foi a realização do Atlas sobre a Dinâmica Climática e a Gênese das
Chuvas no Estado de São Paulo, quando teve a oportunidade de apresentar a sua concepção de
clima, a partir dos fundamentos da análise rítmica.
Entre 1965 e 1968, voltou para o CNG/IBGE no Rio de Janeiro (1965/1966) e teve uma
rápida passagem pela Universidade de Brasília, em 1967. Defendeu a sua Tese de Doutorado com o
clássico trabalho sobre a Frente Polar Atlântica e as Chuvas de Inverno na Fachada Sul-Oriental do
Brasil, em 1967 (Monteiro, 1969), trabalho este inovador não somente pelas contribuições teóricas e
43
aplicação de técnicas estatísticas e cartográficas, como também pela proposta metodológica de
análise do clima na perspectiva genética, dinâmica e rítmica.
Mas foi a partir de seu ingresso no Departamento de Geografia da USP, em 1968, e do
estabelecimento de um programa de pesquisas no Laboratório de Climatologia do antigo Instituto
de Geografia, que a concepção “monteriana” de Climatologia Geográfica se impôs como
paradigma, quando publicou dois trabalhos de ordem conceitual (Monteiro, 1971 e 1973). Com as
primeiras orientações de alunos de Pós-graduação, voltou-se às questões do ritmo climático
aplicado as atividades agrícolas e de organização do espaço (Guadarrama, 1971, Tarifa, 1973 e
1975, Barbiére, 1974, Conti, 1975; Monteiro, 1976 e Câmara, 1977, Aouad, 1978).
As questões geográficas vinculadas ao espaço urbano também atraíram as atenções de
Monteiro desde o início da década de 1970. Deste interesse e do acúmulo de reflexões sobre o
desempenho da atmosfera e seus reflexos sobre a cidade, resultou sua Tese de Livre-Docência
defendida em 1975: Teoria e Clima Urbano (Monteiro, 1976), em que propôs o conceito de Sistema
Clima Urbano. Inaugurava então uma nova vertente temática dos estudos climáticos no escopo da
Geografia, através de sua concepção dos canais de percepção do fenômeno.
Nesta perspectiva, alguns de seus orientados enveredariam pela temática do clima urbano,
como Tavares (1974), Ribeiro (1975), Tarifa (1977), Morais, Costa e Tarifa (1977), Sartori (1979),
Fonzar (1981), Pascoal (1981), Leite (1983), além de outras publicações do próprio autor, como
Monteiro e Tarifa (1977) e Monteiro (1980, 1986 e 1990). Aliás, em outras das inúmeras obras,
principalmente a partir dos anos 1980, o autor mergulharia na abordagem sistêmica no contexto da
análise ambiental, até a sua aposentadoria na USP, em 1987.
Não se pretende realizar uma extensa descrição da obra de Monteiro, pois esta consistiria
num outro trabalho. O que nos interessa é o momento em que o autor concebe e expõe à
comunidade científica a sua concepção geográfica do clima, que basicamente se deu entre as
décadas de 1960 e 1970. Mesmo considerando que após este período Monteiro ainda produziu obras
de grande profundidade teórica e filosófica, como o seu Clima e Excepcionalismo (Monteiro, 1991)
e outras, cujas reflexões já se dirigiriam para aspectos mais amplos, no domínio das relações entre a
Geografia, a filosofia e a literatura.
Desta forma, não é ilegítimo e nem exagerado considerar a obra “monteriana” como a
precursora de uma postura eminentemente científica e original de análise do clima como fenômeno
geográfico, como veremos a seguir.
A revisão conceitual proposta por Max Sorre, entre os anos de 1940 e 1950, sobre o papel do
clima na análise geográfica, como vimos no capítulo anterior, suscitou o surgimento de um novo
paradigma, a partir das definições de tempo e clima, numa perspectiva genética e dinâmica.
Quando estagiou na França (Sorbone, década de 1950), Monteiro tomou conhecimento da
obra de Max Sorre. As reflexões suscitadas por esse contato já apareceram em seus primeiros
trabalhos (Monteiro, 1962, 1963b e 1964).
Pouco antes, na França, Pierre Pédélaborde (1957 e 1959), que também partia da aceitação
dos pressupostos teóricos de Sorre, propôs o método sintético das massas de ar, interessado na
elaboração de um conjunto de técnicas que permitisse a definição dos tipos de tempo encarados em
sua totalidade, portanto, demonstrando menor interesse pela questão do ritmo.
Entretanto, a leitura que Monteiro realizou a partir da obra de Sorre, sobre os fundamentos
genéticos e dinâmicos do clima, o levaria a uma concepção bastante diferente daquela preconizada
por Pédélaborde, pois enquanto este se preocupava com a totalidade dos tipos de tempo, Monteiro
se interessava mais pelo mecanismo de encadeamento sequencial desses tipos, ou seja, pelo ritmo.
44
Nos primeiros artigos que vieram ao público através da Revista Geográfica do IBGE,
Monteiro já demonstrava a sua preocupação em incorporar a gênese na classificação dos climas. Foi
neste período, também, que o autor propôs o uso das cartas sinóticas, em sequência, para a análise
geográfica do clima. Além disto, apresentava suas primeiras tentativas de estabelecer um índice de
participação das massas de ar aplicadas à classificação climática.
Num de seus últimos trabalhos publicados, Monteiro (1999) sintetizou de maneira muito
clara o que foi a sua busca, por várias décadas, de um novo conceito de clima como fenômeno
geográfico. Nesta obra, afirma o autor:
“Os passos decisivos ao longo dessa trajetória foram galgados a partir de uma revisão
conceitual, ou seja, o caráter verdadeiramente geográfico de Clima e a procura de um
novo paradigma para conduzir o seu estudo, promovendo uma nítida distinção entre os
propósitos da Meteorologia e da Geografia. A partir do que procurei sanar os
resultantes defeitos de classificação procurando distinguir os processos genéticos de
causalidade, considerados mais consistentes, daqueles de simples caracterização de
padrões espaciais de regionalização. O paradigma análise rítmica, malgrado as
limitações de abordagem estatístico generalizadoras mas compensadas pela mostra
dinâmica de padrões extremos e habituais, foi capaz de ensejar compreensão
geograficamente mais válida do que aquela abordagem calcada em estados médios e
propostas de regionalização por valores indecimétricos a partir do local para o geral.
(Monteiro, 1999:9)
Desta forma, o autor elaborou um conjunto de procedimentos com a certeza de que somente
o fundamento do ritmo, analisado a partir do encadeamento dos tipos de tempo, portanto, na escala
diária, seria a única estratégia possível de conciliar a compreensão dos mecanismos atmosféricos
com as possibilidades de entendimento do papel do clima como fenômeno geográfico e, portanto,
de interferência nas atividades humanas e na organização do espaço.
Para viabilizar esta estratégia, Monteiro adotou a perspectiva da análise episódica, a partir
da aplicação concreta que Sternberg (1949) divulgou em seu clássico trabalho sobre os movimentos
coletivos do solo no Vale do Paraíba, quando elaborou essa proposta. Incorporou ainda, a esta
estratégia, o conceito de “padrões” do clima, numa tentativa de substituir os valores médios pelas
definições de padrões habituais (mais frequentes) e excepcionais (representativos das
irregularidades climáticas, anos secos e úmidos, frios e quentes, etc...)
A necessidade de entendimento dos mecanismos dinâmicos e da circulação atmosférica,
levou Monteiro a buscar na obra de Adalberto Serra, principalmente aquela sobre as massas de ar na
América do Sul (Serra e Ratisbonna, 1942), os princípios gerais desta circulação em território
brasileiro, principalmente no que concerne à caracterização das massas de ar e sistemas
perturbados, em suas áreas fonte e trajetos mais frequentes.
Este conjunto de procedimentos aplicados à escala regional resultou na proposta de
classificação genética das células dos climas regionais para o Estado de São Paulo. Trabalho este
publicado em forma de atlas que, apesar de ter sido concluído em 1964, veio ao público apenas em
1973 (Quadro 5)
Nesta obra de Monteiro (1973) já comparecem os elementos fundamentais de uma
construção teórica sobre seu conceito de clima, materializada num conjunto de procedimentos que
podem ser interpretados como:
desprezo dos valores médios e a utilização de dados reais, em escala diária, em proveito
de uma minuciosa análise da variação dos elementos do clima.
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A utilização das cartas sinóticas de superfície como subsídio à identificação dos tipos de
tempo, possibilitando a relação entre a circulação atmosférica regional com as
manifestações individualizadas localmente.
A elaboração de um ciclo evolutivo da penetração da massa Polar Atlântica, por
considerar a sua presença (ou sua ausência) como o elemento fundamental, composto de
três momentos: prenúncio, avanço e domínio.
A escolha de períodos “padrão” (anual, estacional, mensal e episódico) que seriam
capazes de fornecer um quadro dinâmico das situações concretas, demonstrando a
amplitude de ocorrência dos tipos de tempo habituais, ao lado daqueles afetados por
irregularidades na circulação com capacidade de produzir situações adversas.
A análise da sequência e encadeamento dos tipos de tempo, na busca do entendimento
das variações locais dentro de um quadro regional, marcado pelas características e
influências dos fatores geográficos.
E, por fim, a tentativa de classificação climática, em bases genéticas e dinâmicas, a partir
de índices de participação dos sistemas atmosféricos atuantes e suas respectivas
repercussões no espaço geográfico.
A aplicação destes procedimentos, ao longo dos anos 60 do século passado, culminou com a
proposta de “análise rítmica” em climatologia que Monteiro (1971) estabeleceu como o seu
programa de pesquisa no Laboratório de Climatologia da Universidade de São Paulo, quando
procurou direcionar suas pesquisas e de seus orientados, na busca do ritmo climático como
paradigma e na sua aplicação aos estudos geográficos.
A fundamentação teórica estabelecida pelo autor pressupõe um conceito de ritmo como:
O autor admitia que uma primeira aproximação válida para este conceito de ritmo poderia
advir das variações anuais percebidas através das variações mensais, a partir de um conjunto de
anos como fundamentação da noção de regime (Monteiro, 1971), como era muito difundido nesta
época.
Entretanto, a sua avaliação crítica a respeito do uso do conceito de regime considerava que
não se chegaria à noção de ritmo pois, esta exigiria uma análise que permitisse a decomposição
cronológica em unidades bem menores, ao nível diário e, até horário, para que se pudesse
compreender a contínua sucessão dos estados atmosféricos. Assim, o autor admitia que a única
maneira possível de conceituar e fundamentar a noção de ritmo climático, como paradigma, se
compreendermos que:
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