PRÁTICAS DA PESQUISA
QUALITATIVA EM
GEOGRAFIA E SABERES
SOBRE ESPAÇO E
CULTURA
Álvaro Luiz Heidrich
L
Letra1
Cláudia Luísa Zeferino Pires
editora
Organizadores
PPG GEOGRAFIA
ABORDAGENS E
PRÁTICAS DA PESQUISA
QUALITATIVA EM
GEOGRAFIA E SABERES
SOBRE ESPAÇO E
CULTURA
Álvaro Luiz Heidrich
Cláudia Luísa Zeferino Pires
Organizadores
UFRGS L
Letra1
GEOCIÊNCIAS editora
PPG GEOGRAFIA
© 2016 – Autores
Revisão
Geordana Cavalheiro
Paulo de Toledo
Capa
Daniele Zelanis
Impressão
Gráfica da UFRGS
Dados Internacionais de Publicação
Bibliotecária Ketlen Stueber CRB: 10/2221
L
Letra1
www.editoraletra1. com.br
CNPJ 12.062.268/0001-37
[email protected]
editora porto alegre - brasil
ABORDAGENS E
PRÁTICAS DA PESQUISA
QUALITATIVA EM
GEOGRAFIA E SABERES
SOBRE ESPAÇO E
CULTURA
Álvaro Luiz Heidrich
Cláudia Luísa Zeferino Pires
Organizadores
Sumário
Apresentação
Álvaro Luiz Heidrich
Cláudia Luísa Zeferino Pires 9
I - Cartografias e narrativas
Felipe da Costa Franco, Igor Dalla Vecchia, João Pedro Izé Jardim,
Marília Guimarães Rathmann, Winnie Ludmila Mathias Dobal 85
IV - Decifrar falas
Apresentação
Cláudia Luísa Zeferino Pires
reunida em cada parte diz respeito a experiências, tanto teóricas como empíricas,
pautadas pela orientação comum de conterem reflexões e relatos metodológicos.
Nesse sentido, expõem fundamentos de pesquisa e apontamentos como recortes
espaço-temporais, métodos de coleta de dados e os desafios discutidos e analisados
na abordagem ali reportada.
A primeira parte reúne cinco textos com foco mais orientado para as
metodologias da participação entre pesquisados e pesquisadores, em trabalho de
diálogo e construção da compreensão de seus lugares de vida. No capítulo dois, Nola
Gamalho, ao tratar a oralidade como uma prática que perpassa várias modalidades,
observa que ela ultrapassa o material, mas como se trata do subjetivo de nossas
vidas, dele não se separa. O estudo está fortemente embasado em sua experiência na
pesquisa, permitindo-lhe trazer argumentos bem pautados, não deixando, contudo,
de oferecer a abertura teórica necessária. Reflete sobre a posição do estranho que se
adentra no espaço vivido do outro e como isso vai se transfigurando e oferecendo
possibilidades de leitura.
No capítulo três, Cláudia Pires, Christiano de Paula e Helena Bonetto recontam
uma vivência de extensão universitária que buscou trabalhar memórias de moradores
sobre seu bairro, à maneira de um resgate cartográfico vivido. Ao refazerem os
mapas, vivenciarem memórias, pesquisadores e moradores compuseram um conto.
Virou livro, registrou memória e transformou-se em conhecimento. Atrevemo-nos
a dizer que, de lambuja, retrabalhou metodologia, pois o recontar trazido aqui está
permeado de discussão bem amparada.
No capítulo quatro, Ana Mitchell discute a formulação de sua pesquisa na qual
buscou compreensão sobre a vivência de pequenos agricultores em espaço geográfico
demarcado por corredores ecológicos. Relata a ideia inicial da pesquisa, influenciada
pelo imaginário de encontrar tipos específicos de uso do solo à possibilidade de
corredores ecológicos, o que teria influenciado a escolha de entrevistados e sua
própria postura de pesquisadora. O reconhecimento de ter encontrado complexidade
muito maior denuncia sua honestidade intelectual. Seu texto ensaia filosofia e poética,
não deixando de ser criterioso – metodológico. Seu estudo percorre o trabalho de
campo como um espaço para conhecer outros pontos de vista e o diário de campo
como um espaço de autorização para registros e reflexões.
10
APRESENTAÇÃO
Apresentação
equipe sempre em contato com a comunidade e suas crianças e adolescentes, com a
ideia de desenvolver um processo educativo de aprendizagem sobre o espaço vivido
com procedimentos de construção de narrativas e cartográficas sobre ele. Nesse
texto, o grupo reflete sobre os fundamentos da ação-pesquisa e comenta o passo a
passo de seu percurso.
No capítulo seis, Dirce Suertegaray, Mateus Oliveira e Elisa Delfino relatam
o desenvolvimento de um projeto que teve o objetivo de registrar o uso da terra em
área protegida da Amazônia, porém sem desvinculá-lo dos modos das populações
tradicionais desse espaço. A cartografia social consistiu na metodologia ajustada
para a tarefa. Envolveu, evidentemente, tanto o levantamento das práticas de uso
e a concretude das paisagens da área, quanto as compreensões e significados delas
para as comunidades ribeirinhas.
A segunda parte conta com três diferentes enfoques de etnografia, todos eles,
porém, com sua própria associação dessa metodologia com o espaço, como espaço
vivido, microterritório ou multilocalização. No capítulo sete, Benhur Pinós da Costa
desenvolve autêntica discussão teórico-metodológica. Nela, ele expõe argumentos
em fundamentação de uma geografia do cotidiano, viabilizada por metodologia de
participação observante. Como já vem fazendo em vários de seus estudos, Benhur
desenvolve especial atenção para a escala e o enfoque microterritorial. A atenção para
esse âmbito da pesquisa justifica-se por favorecer o encontro espacial dos eventos
e das ações coletivas e individuais que, analisados por suas condições múltiplas de
negociações das diversidades, configura um procedimento metodológico “de dentro”
(Géographie dedans).
No capítulo oito, Adnilson Silva desenvolve um trabalho de etnogeografia, uma
etnografia orientada para a compreensão da territorialidade indígena Kawahib. Seu
texto relata a preocupação típica do etnógrafo (ou etnogeógrafo, então), à medida
que expõe descrição empírica e esforço de articulação teórica numa articulação
de bases históricas, antropológicas e geográficas. Trabalha autêntico passo a passo
metodológico, explicitado em dezessete pontos preparatório (pré-campo) e cinco
outros pontos basilares para o seu transcorrer amparado em fenomenologia. Seu
depoimento ainda nos enriquece ao final, mediante explanação de argumentos de
avaliação crítica.
1 Participaram os então alunos do Curso de Geografia da UFRGS, e associados da seção Porto Alegre da
AGB, Felipe da Costa Franco, Igor Dalla Vechia, João Pedro Izé Jardim, Marília Guimarães Rathmann e
Winnie Ludmila Mathias Dobal.
11
ABORDAGENS E PRÁTICAS DA PESQUISA QUALITATIVA EM GEOGRAFIA E SABERES SOBRE ESPAÇO E CULTURA
O capítulo nove fecha esta parte do livro, trazendo mais uma modalidade
de aproximação entre etnografia e geografia. Tem a ver com a necessidade de
rediscussão dos procedimentos etnográficos em vista de tratar aspectos não restritos
em localização. A renovação alcançada implica na realização do trabalho de campo
em outra escala, de processos mais globais, de articulação de redes sociais, o que
Apresentação
12
APRESENTAÇÃO
Júlia de Aguiar discorre, no capítulo treze, último desta seção, sobre a tomada
de cenas em vídeo-documentário. Ela se reporta à construção da experiência
cinematográfica para seu uso como uma metodologia de construção do saber em
campo. Embora preenchido de recursos e orientações técnicas, constitui modalidade
para lidar com a narrativa que envolve espaços vividos, por meio de um artefato
Apresentação
inteiramente cultural. Seu texto detalha revisão teórica e encaminha a ideia de
pertinência dessa arte com a geografia. O vídeo-documentário oferece uma maneira
de fazer entrevista, com a qual o entrevistador-cineasta proporciona ao sujeito
entrevistado a reflexividade, que permite associar imagens aos registros de fala.
A última parte desta coletânea traz três contribuições voltadas para a leitura
de narrativas, válidas tanto para os textos transcritos de entrevistas como para os
documentos já escritos. Elas envolvem a análise de elaborações dos discursos,
nos quais é necessário escrutinar e decifrar seus conteúdos. A primeira dessas
contribuições, o capítulo quatorze, de Daniela Grimberg e Adriana Dorfman, traça
uma orientação teórico-metodológica sucinta, como oferece a possibilidade do espaço
de um capítulo apenas, mas bastante completa. Oferece a possibilidade tanto de uma
primeira orientação, como de revisão dos aspectos básicos que estão ali associados.
O que se pode destacar como muito pertinente à proposta deste livro é a articulação
do embasamento conceitual sobre o imaginário, como as notícias sobre lugares e
fenômenos geograficamente localizados, geralmente portadoras de conotações que
reclamam desvelo. Pelo que se vê na discussão, reforça nossa compreensão de que
a subjetividade requer cuidado não apenas nas modalidades de sua coleta e escuta,
mas também na sua leitura.
Camilo Darsie discute, no capítulo quinze, geografia e saúde com o auxílio da
análise do discurso. Sua orientação apresenta a variante de fundamentar seu trabalho
com o aporte dos estudos culturais. Parte da indagação sobre as maneiras com que
o espaço é referido nos discursos sobre saúde, pois coinsidera que os mesmos são
capazes de orientar ou provocar transformações culturais. Sua discussão está bastante
centrada na análise dos documentos da Organização Mundial de Saúde, que apesar de
mencionarem aspectos espaciais nos problemas e ações de saúde, fundamentalmente
se configuram por meio de estatísticas e não por ações orientadas ao espaço como
um contexto integrado.
O capítulo dezesseis, de Edson Silva e Joseli Silva, também explora a análise
de conteúdo. O estudo, porém, centra-se no argumento de propor a clivagem de
gênero como fundamento para desnaturalizar o ponto de vista dominante nas
ciências sociais. Nesse sentido, defendem que a organização de instrumentos de
pesquisa estruturados em questionários fechados não permite essa exploração que
é justamente a abordagem do qualitativo, das entrevistas abertas, histórias de vida e
observações participantes que podem revelar aspectos não esperados que precisam
ser estudados, trazidos em consideração como informação efetiva. No decorrer do
13
ABORDAGENS E PRÁTICAS DA PESQUISA QUALITATIVA EM GEOGRAFIA E SABERES SOBRE ESPAÇO E CULTURA
texto, expõem procedimentos para lidar com a questão proposta e o recurso que
fazem (e propõem) de ferramentas informacionais.
Não é demais enfatizarmos aqui que o conteúdo que está neste livro reunido é
rico e emparelha-se à atenção e discussões atuais em crescimento sobre o tratamento
do imaginário. Alinha-se aos demais estudos que fazem reconhecimento da interface
Apresentação
Os organizadores
14
1 Método e metodologias na pesquisa
das geografias com cultura e
sociedade
Introdução
Álvaro Luiz Heidrich
1 Este termo tem uso frequente neste texto. Adiante aparecerá mais nitidamente
vinculado ao âmbito da pesquisa com enfoque sociocultural, que justamente
busca demonstrar ser o campo que solicita fortemente o uso das metodologias
qualitativas. Muito embora possamos aceitar para o termo o sentido mais
elaborado que Bourdieu (1989) adotou, que envolve posturas e defesas de posições
rigorosamente orientadas por definições institucionais e que, por certo, ocorre neste
mesmo que estamos nos reportando (ver o estudo de NABOSNY, 2014), aqui se
refere ao contorno primeiro usado por aquele autor e do sentido etimológico geral
do termo, de domínio e âmbito de ação.
16
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
vocabulário geográfico2 é extenso e atém-se aos fatos com que lidamos nas explicações
do emaranhado que é o espaço geográfico. Esses fatos estão predominantemente
ligados às suas feições, aspectos que os diferenciam e remetem à compreensão de
suas naturezas. Surgem por nossa experiência empírica e no cotidiano da vida de
cada um, diretamente relacionadas com o meio (social e ambiental).
Introdução
Para Moreira (2007), essa relação adquire feições geográficas como paisagem,
território e espaço, as categorias da geografia. Afirma, porém, que, antes delas,
são os princípios lógicos (localização, distribuição, extensão, distância, posição e
escala) dessa relação que fazem surgir a compreensão das feições geográficas e,
por consequência, de seus desdobramentos em outras categorias3. Evidentemente,
a relação entre elas nos transmite a imagem de um campo (universo) bastante
complexo. Uma geografia como um todo abstrato é um complexo de paisagens,
regiões, lugares, percursos, dinâmicas, etc. A combinação entre lugar e paisagem
permite construir noção de espaço geográfico (ou, geografizado), dinâmicas de
diferenciação e compreensão de temporalidades. A identificação de uma área desse
espaço, em particular, passa a ser reconhecida pela vinculação a seus respectivos
grupos como território, senão como ocupação, possivelmente como uso, produção
de marcas, particularização de processos etc.
Num esforço de formulação de método geográfico, Santos (2008), por meio de
uma abstração maior, mais distante da empiria geográfica, desenvolve compreensão
estrutural do espaço com as categorias de Estrutura, Processo, Função e Forma. Nesta
proposição, as formas não podem ser compreendidas isoladas de suas destinações
(funções), de seus processos formadores e de sua importância no condicionamento
de novas dinâmicas. Esse método, contextualizado por pensamento histórico-
dialético, exemplifica a importância da explicação do processo para a compreensão
da origem das formas. Ou seja, vai-se além da provocação inicial ocasionada pelos
princípios lógicos. A ação ou a dinâmica estão implicadas. Mas a consideração de
processos e dinâmicas os geógrafos já vinham trazendo para dar conta da explicação
da formação das paisagens e dos ambientes naturais da superfície terrestre (BLOOM,
1970; CLAVAL, 2014).
No contexto sociocultural, além da feição e da ação, o campo do imaginário
também é parte que se faz em geografia. Se espaço torna-se geográfico por produção
e/ou compreensão de geografias, por arranjos e configurações, se territórios são
2 Em “Entrevista” (capítulo do livro “Testamento intelectual”), Santos (2004) comenta que a
necessidade da explicação teórica divergente de seus mestres obrigou-lhe a propor definições e que,
frente ao manancial imenso de ideias e obras sem definição prévia de divisões disciplinares, trouxe-lhe
a compreensão de que necessitava de um mínimo vocabulário. Nesse mesmo espaço de conversa, ele se
queixa do “hábito de alienação cultural” (p. 31). Compreende-se assim, com sua experiência e trajetória
singular, a importância de termos e prezarmos por um vocabulário geográfico.
3 Associadas a espaço, os próprios princípios lógicos constituem subcategorias, a território, região, lugar e
rede, e a paisagem, arranjo e configuração (MOREIRA, 2007).
17
Álvaro Luiz Heidrich
4 A inseparabilidade entre o material e o simbólico, o campo das relações objetivas e das ideias, é
claramente argumentada por Henri Lefebvre. A interação dialética da prática espacial que envolve a
representação dominante, técnica e científica e a representação delineada no cotidiano, que implica na
apropriação do espaço, é o que mantém a produção do espaço e “as relações sociais em um estado de
coexistência e coesão” (LEFEBVRE, 2000, p. 42).
18
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
dialéticas como as fenomenológico-hermenêuticas, identificadas por Sposito (2004),
constituem referências de método desse enfoque. Além do aspecto metodológico, o
foco de atenção e as problematizações de pesquisa também têm se entrelaçado. Uma
pesquisa em particular sempre seleciona atenção mais restrita, mas o conjunto dos
estudos vem constituindo um campo maior de aproximação entre geografia cultural
e social, no qual as pesquisas qualitativas são cada vez mais necessárias.
19
Álvaro Luiz Heidrich
um pesquisador ocasional.
Sob a denominação de Geografia Cultural há um grande espectro de estudos
e temas de interesse, como o simbolismo das paisagens, o estudo de percepções e
representações do espaço, as identidades territoriais, estudos de gênero, religiões e
festas, microterritorialidades, geografias na literatura, cinema e música, problemas
Introdução
20
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
que seria imaginado sobre ele mesmo. Podemos ver assim o ganho de importância
do plano simbólico e sermos então instigados para o seu estudo.
Originalmente se reconhece a cultura como um conjunto de práticas, de
princípios e de atitudes. Há que se considerar, porém, que ainda que se tenha a
cultura em particular ela é, no singular e no plural, cultura em transformação e em
diversidade. Em espaço integrado, de forte intercâmbio comunicacional e ao mesmo
tempo local, interceptado em múltiplas escalas intermediárias até o mundial, o
âmbito dos problemas não se reduz ao social e ambiental local, ele possui múltiplas
referências. A apropriação de metodologias capazes de lidar com esse contexto assim
modificado (o espaço mundialmente condensado e localmente ampliado) torna-se,
por isso,
não essencial.
tratamos As feiçõesdas
diretamente da geografia estãoda
coisas, mas à nossa volta
relação quee estamos embebidos
temos com elas, do
delas, mas não basta captar sua imagem, delinear seus contornos objetivos, sem
que sentimos e compreendemos, por meio da linguagem, da arte, do mito, da
ciência e da religião
Figura(2005).
1 - Relações espaciais (espaço-homem-sociedade)
e objeto ou formas geográficas associadas.
de se lidar com o imaginário, o levantamento dos fatos em campo visa a captura das
falas e o envolvimento com os espaços culturais – geossimbólicos. Questionários
e tabulações com amostras aleatórias não expressam essas relações. Elas não são
quantificáveis, até porque não estão baseadas em parâmetros objetivos e quantificáveis.
O sociocultural é captado mediante o envolvimento do pesquisador com o contexto
da pesquisa. É preciso lidar com oralidade e posteriormente destrinchar os significados
e sentidos. É para isso que se recorre aos levantamentos e pesquisas qualitativas, que
permitem manejar informações textuais.
22
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
de um exercício de analogia, podemos dizer que vale a mesma ideia da situação
de mercado na qual se ganha mais por unidade de produto quando se lida com
pequenos estoques em relação à venda por atacado. Desse modo, o levantamento da
informação exige maior disponibilidade de tempo, tanto em função de ser necessário
adaptar o procedimento ao caso em estudo, como pelo fato de exigir diálogo aberto
e não dirigido, o que impede sua apropriação por um número grande de auxiliares
ou participantes da pesquisa.
Elas são aplicáveis ao estudo de situações em particular e não para a compreensão
de tendências gerais. A situação pesquisada é vista em particularidade. Por isso, a
escala de atuação é predominantemente local. Não se impossibilita, porém, lidar
com situações distantes, como no caso das pesquisas direcionadas para aspectos
multiplamente situados ou afetados pelas dinâmicas de mundialização. Se for essa
a situação, exigir-se-á deslocamento e apropriação dos locais pesquisados, a fim de
se possibilitar o diálogo mais aprofundado9. Contudo, esse exemplo não sugere
apropriação para efeito de comparabilidade das situações visitadas, tanto porque não
se reúnem tamanhos amostrais confiáveis, como pelo fato de que o próprio espaço
deva ser considerado uma situação, possivelmente local-mundial.
As questões de pesquisa não são elaboradas para os sujeitos entrevistados ou
envolvidos no levantamento responderem diretamente. É recomendável que sejam
perguntas-guia, para serem lembradas durante uma discussão num grupo focal,
numa entrevista ou participação ativa em situação de grupo. Isso também não quer
dizer que se desprezem conteúdos de diálogo não referidos diretamente ao guia
construído, pois a descrição de situações em particular, com mais raridade podem
ser previamente consideradas. Por isso, durante uma conversação, há mais ênfase
na explanação. É autenticamente uma conversa, momento no qual podem surgir
mudanças de situação, aparecer outros interlocutores e eventualidades. As surpresas
também podem trazer aspectos positivos antes não considerados no levantamento,
e isso deve ser acolhido como valiosa oportunidade de reconstrução de referências e
reorientação de procedimentos de levantamento, de consideração de novas questões
e ampliação do grupo pesquisado.
O pesquisador ou seu grupo assumem um papel mais ativo, diferenciando-
se da tradicional postura de neutralidade e distância da situação de pesquisa.
Particularmente nos enfoques etnográficos, o pesquisador é pessoa que participa
23
Álvaro Luiz Heidrich
Apesar de se representar a
Padrões concretos e exatos,
população considerada, não
relativos ao conjunto entrevistado,
se pode estendê-la para outras
não são usuais como informação
situações, lugares e períodos.
Limitações encontradas representativa, generalizável ou
Há risco de se produzir falácias de
comum.
inferência sobre indivíduos.
Relações podem ser estabelecidas
Possui poder explanatório
em muitas variações e situações.
limitado.
24
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
subjetivamente da situação e das vidas daqueles que são foco de atenção do estudo
(ANGROSINO, 2009). Nas práticas de observação participante, são vistos como
trabalhadores reflexivos em relação ao processo de construção da informação.
Uma das práticas de pesquisa qualitativa mais difundida é a observação
participante, por vezes também denominada como pesquisa participante ou
Introdução
participativa, porém há um importante aspecto que as difere. A observação participante
é fundamentalmente uma postura adotada pelo pesquisador em campo, enquanto
na pesquisa participante há envolvimento do pesquisador ou mediador com os
interesses da comunidade ou grupo envolvido na questão. Alguns exemplos desta
modalidade são os procedimentos de levantamento de necessidades para a elaboração
de documentos de reivindicação, realização de diagnósticos de problemas locais
ou comunitários e que, muitas vezes, podem estar envolvendo tomada de decisões
sobre uso de recursos, demanda ou adoção de políticas públicas (BROSE, 2001).
“No fundo, a [pesquisa participante] pode ser vista como participação baseada
na pesquisa10. Trata-se de fundamentação científica da opção histórico-política”
(DEMO, 2008). Muito similar a esse procedimento, caracteriza-se a chamada
Pesquisa-ação (THIOLLENT, 2004), quando se desenvolve em estreita associação
com um grupo social para o encontro da solução de um problema coletivo, estando
a pesquisa participativamente envolvida com esse objetivo. O detalhe acrescido é o
comprometimento no alcance dos resultados pretendidos pelo grupo (BARBIER,
2007).
Quando a questão envolve de modo mais exclusivo a realização da pesquisa
acadêmica e ocorre a identificação entre grupo de pesquisa e grupo pesquisado,
inclusive com o compartilhamento de resultados e discussão aberta dos problemas
em estudo, realiza-se então a observação participante. Muito embora a propriedade
das informações passe a ter uma responsabilidade formal do pesquisador, elas
também precisam ser compreendidas como um conhecimento do pesquisado, à
medida que se configure a interação nos questionamentos e também a atitude de
escuta. Apesar de não ser considerada propriamente uma metodologia, a ela se
associa a postura do envolvimento, do diálogo e provavelmente da entrevista não-
diretiva. Esta postura comumente adotada na etnografia (ANGROSINO, 2009)
tende a garantir legitimidade para sua atuação e presença junto ao grupo pesquisado,
possibilitando-se superar os constrangimentos de fala e assim facilitar a obtenção das
informações. Nessa prática, as informações são trazidas ou elaboradas conjuntamente
por pesquisador e pesquisado. Utiliza-se a etnografia quando há necessidade de
caracterizar o universo simbólico de modo autêntico, explicitado pela união do
conhecimento etnográfico, teórico e prático.
10 Grifo no original.
25
Álvaro Luiz Heidrich
muitas vezes não é captada nas pesquisas sobre temas econômicos, sociais e políticos
(CLAVAL, 2002b). Para Bonnemaison (2002, p. 96-97):
11 Como explicitado em Bonnemaison (2002, p. 96), por etnia se concebe “o campo de existência e de
cultura, vivido de modo coletivo por um determinado número de indivíduos”, querendo dizer que não
são exclusivamente povos intocados e de práticas tradicionais.
12 Esta foi a alternativa encontrada por Gamalho (2015) para construir a legitimidade de sua pesquisa
junto a jovens sobre suas práticas espaciais.
13 Ver capítulo 13: Geografia e experiência cinematográfica.
26
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
e formas veladas de dominação.
27
Álvaro Luiz Heidrich
14 Ver capítulo 4: Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico.
15 No estudo de Mitchell (2011), o texto é trabalhado por sua própria leitura e auxílio do editor de texto
28
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
Foto: Wagner Innocencio Cardoso.
Fonte: Heidrich e Museu da UFRGS (2013).
eletrônico e vai definindo atentamente as categorias encontradas em cotejo com sua reflexão. O estudo
de Brum (2015), sobre a terminologia utilizada em geografia cultural no conteúdo dos textos da Revista
Géographie et Cultures, explora com eficiência os atributos do software para análise de conteúdo,
impraticável de ser feito de outra forma, pois o corpus de 270 artigos gerou 1.048.618 palavras.
29
Álvaro Luiz Heidrich
É necessário que [se] traga [...] um enfoque que articule o linguístico e o social,
buscando as relações que vinculam a linguagem à ideologia. Sistema de significação
da realidade, a linguagem é um distanciamento entre a coisa representada e o
signo que a representa. E é nessa distância, no interstício entre a coisa e sua
representação sígnica que reside o ideológico (BRANDÃO, 2004).
Introdução
Desenlace
Estas reflexões foram iniciadas com a ideia de compreensão da utilidade e
pertinência das metodologias qualitativas na pesquisa de geografia. Considerações
sobre o método, em geral e na geografia, foram importantes para demonstrar o
quanto o enfoque qualitativo é necessário, assim como também ele oportuniza o
desenvolvimento dos estudos que envolvem o campo do imaginário sobre espaços e
lugares e, mesmo, verificar que esse não é um campo que se isola do objeto de estudos
presentes nos demais focos de atenção de nossa disciplina. Não há imaginário que se
reporte em si mesmo, sem ancorar-se em qualquer fato objetivo do vivido. Por isso,
não é fortuitamente que muitos arranjos dos procedimentos de pesquisa mesclam o
enfoque qualitativo em instrumentos semiestruturados, nos quais perguntas objetivas
permitem dar os primeiros recortes do contexto. Vimos, porém, que esse objetivo
é interpretado, trazido de modo particular por pessoas e grupos.
Dois entrelaces foram importantes nessa construção: (1) o reconhecimento
30
Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
Introdução
metodológico de uma geografia sociocultural. No segundo, observou-se que há uma
amplitude de aplicações dessas metodologias e que o entrelace faz surgir, justamente,
um campo inteiramente interdisciplinar, no qual desenvolvimentos alcançados numa
área revelam-se aplicáveis e extremamente importantes em outras.
Portanto, o que foi demonstrado não é um método geográfico, tampouco
geossociocultural. Certamente a própria etnogeografia pode ser explorada e adaptada
para outras áreas. Qualquer uma das modalidades delineadas neste texto não é
completa em si mesma como meio de se construírem as explicações. Necessitamos
de cartografias, descrições, trabalhos de campo (integradores de vários enfoques
analíticos, levantamentos semiestruturados e pesquisas qualitativas) e interpretação de
dados textuais e de imagens. Como foi visto, o contorno e a natureza de cada pesquisa
em particular, em função da questão a ser estudada, requer e merece adequação do
enfoque metodológico e da modalidade do procedimento a ser explorado.
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31
Álvaro Luiz Heidrich
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Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade
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33
Introdução
2 Narrativas do espaço nas histórias de
vida: os desafios das metodologias
Cartografias e narrativas
qualitativas na geografia
36
Narrativas do espaço nas histórias de vida: os desafios das metodologias qualitativas na geografia
Cartografias e narrativas
meio à aparente desordem e caos, produzem uma nova ordem. O problema de
pesquisa não raramente é fugidio, produz-se no fazer. Os métodos indutivo e
dedutivo (MORAES, 2003), quando combinados, propiciam o equilíbrio entre
o planejamento e o desvio. A inserção no objeto de estudo parte do método
dedutivo, de categorias a priori que estimulam e orientam as reflexões sobre
o problema. Parte-se do geral para o particular, assim, ao iniciar a pesquisa,
tem-se os referenciais teóricos que contribuem para a leitura do mundo. Já o
indutivo, constitui-se a partir das informações contidas no material produzido
em campo, que logo aparecem como categorias não planejadas. Os descaminhos
e insurgências redirecionam o olhar do pesquisador e o que se revela de forma
difusa, demandando densas reflexões, é a emergência de conhecimentos novos.
Assim, o problema emerge de forma maleável, reelaborando-se no percurso,
possibilitando, com isso, o desejo, o medo e a inovação. Ribeiro (1999) salienta
o “perigo da terra firme ao conhecimento”, reconhecendo o medo frente ao
inusitado, mas também a potencialidade de inovação ao adentrar por terrenos
desconhecidos. É preciso abrir-se ao inesperado, reelaborando os pressupostos
e direcionamentos no decorrer do percurso. São essenciais
(...) as insubordinações do próprio sujeito que delimita o objeto. Em muitos
momentos o sujeito apaga com o seu desejo e curiosidade as linhas traçadas para
o texto, trançando-o por caminhos que não foram intencionados (CARRANO,
1999, p. 2).
37
Nola Patrícia Gamalho
Este é o meu primeiro roteiro de montagem. Nele aparecem os três primeiros planos
do filme, os três movimentos da câmera em direção às fotografias. Na época, tentei
montar o filme. Para me ajudar, reuni expressões que ouvi de Santiago durante a
filmagem: grande roda da vida, redondo caminho, marionetes grotescas, mortos
insepultos, paisagem tétrica. Fiz um glossário das palavras que de algum modo
descreviam o mundo dele: redenção, memória, transitório, eternidade, perene,
contingente, inutilidade, despedida. Tentei organizar o filme em torno de temas
contrastantes: vida e morte, memória e esquecimento. Na época isso me parecia
uma ideia original. Filmei inúmeras cenas em estúdio. Elas serviriam para ilustrar
as histórias que Santiago me contou durante os cinco dias de filmagem. Um trem
elétrico, rolos de fumaça, um casal valsando, um vaso de flor, dois sacos plásticos
voando no ar, um lutador de boxe. (...) Não levei muito tempo até interromper
a montagem. No papel minhas ideias pareciam boas, mas na ilha de edição não
funcionaram. Foi o único filme que eu não terminei (SANTIAGO, 2007).
4 O documentário sobre Santiago, mordomo da família de João Moreira Salles, na casa da Gávea por
trinta anos, é dividido em dois momentos: o primeiro, em 1992, quando o cineasta fez o projeto e as
filmagens; e outro, em 2005, no retorno ao projeto, então com outros olhares e percepções.
38
Narrativas do espaço nas histórias de vida: os desafios das metodologias qualitativas na geografia
Cartografias e narrativas
aproximação dos atores sociais. Com ela, são mitigadas as distâncias inerentes aos
distintos papéis sociais. O estranhamento é a permanência da atenção aos detalhes
de um cotidiano a princípio banal e naturalizado, mas diferente ao observador.
A partir da condição de forasteiro (SCHUTZ, 1999) ou de estrangeiro
(SIMMEL, 1983), tem-se a inserção junto a um grupo de determinado território.
O forasteiro é exemplificado por ocupar uma posição em que é aceito ou tolerado
no grupo social, sua inserção propicia, no caso do pesquisador, ter compartilhadas
as experiências e histórias do grupo envolvido. O forasteiro marca uma posição
geográfica: é alguém de fora, o que também desenvolve a curiosidade referente a
si, posto o trabalho de campo ser uma relação, ou seja, estar permeada por trocas.
O estrangeiro também remete a uma analogia geográfica, a do viajante, em que sua
posição é a de alguém que, embora não pertença ao grupo, não tenha partilhado suas
experiências, estabelece um contato em que é racionalmente próximo e distante. O
papel social de pesquisador não elimina os demais papéis sociais, como ser homem
ou mulher, pertencer a determinado território, torcer por determinado time etc.
Alguns papéis são compartilhados com os atores sociais, produzindo proximidades.
O próximo distante marca a dualidade da posição do pesquisador, que, para
tecer compreensões a partir de dentro, precisa trilhar os percursos, entrar nas casas,
conversar com os atores. Essa dualidade pode ser positiva ou negativa e exige esforço
e autorreflexão constantes. Ao realizar as filmagens para o documentário “Santiago”
e, posteriormente, retornar ao material bruto, João Moreira Salles percebe que a
barreira entre os papéis sociais não foi ultrapassada.
Essa é a última filmagem que fiz com Santiago. Ela me permite fazer uma
observação: não existem planos fechados nesse filme, nenhum close de rosto.
Ele está sempre distante. Penso que a distância não aconteceu por acaso: ao
longo da edição entendi o que agora parece evidente. A maneira como conduzi
as entrevistas me afastou dele. Desde o início havia uma ambiguidade insuperável
entre nós, que explica o desconforto de Santiago. É que ele não era apenas o meu
personagem e eu não era apenas um documentarista. Durante os cinco dias de
filmagem eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa e ele nunca deixou de
ser o nosso mordomo (SANTIAGO, 2007).
39
Nola Patrícia Gamalho
40
Narrativas do espaço nas histórias de vida: os desafios das metodologias qualitativas na geografia
O espaço vivido, marcado pela experiência dos sujeitos com seus espaços, pelos
mecanismos de apropriação e produção de significados, referências e pertencimentos,
coloca-nos uma questão metodológica diferente das distribuições locacionais,
Cartografias e narrativas
formas e processos vinculados ao planejamento e desenvolvimento urbano a partir
de uma lógica distante (LEFEBVRE, 2001) ou tecnocrática (CERTEAU, 2009). A
definição do espaço vivido a partir da experiência dos atores evidencia as relações
multiescalares, uma vez que os sentidos da fé, do progresso, do lar, não são produzidos
exclusivamente na ordem próxima. O espaço geográfico das experiências e sistemas
de significado é antropocêntrico, logo, “lleva consigo dificuldades metodológicas
ampliadas porque solo pueda estudiarse desde la perspectiva del sujeto que lo
experimenta: no es posible verlo dede afuera del sujeto” (LINDON, 2008, p. 10).
O ator (DI MÉO; BULÉON, 2007) adquire papel central, é o narrador das
histórias e práticas. O ator é aquele que age, que constrói uma casa, caminha nas
ruas, ocupa os parques e praças, protesta no espaço público... Enfim, o ator age
intencionalmente, logo, reflexivamente, a partir de motivações diversas. Todavia,
neste estudo, suas práticas e ações são predominantemente microbianas (CERTEAU,
2009), delineando em astúcias e estratégias o cotidiano. Produz e é influenciado tanto
pelo espaço material, quanto imaterial. Atribui sentidos às ruas, elabora significados
da casa, estabelece relações territoriais. Essa cartografia de pequenos processos e
ações somente pode ser descoberta a partir de dentro. Nesse sentido, parte-se da
perspectiva de Geertz (1989), que argumenta sobre a necessidade de compreender
os sujeitos a partir de seus quadros de significações.
Ao narrar suas histórias, o ator as reconstitui reflexivamente, estabelecendo
uma primeira interpretação. Seleciona fatos que lhe são significativos, censura
outros. Percorre ruas, narra sobre moradores e lugares. Suas narrativas partem das
experiências e representações do lugar, posto o mesmo ser constituído simbolicamente
em múltiplas escalas. Vilas, periferias, favelas já detêm significados anteriores às
experiências dos atores, que acrescentam às múltiplas narrativas do lugar suas
experiências no misto entre fato e representação.
Contudo, os sentidos e representações raramente são explicitados
objetivamente, mas diluídos nas narrativas. Ao narrar suas histórias de vida, os
jovens falam: “meu pai é pedreiro, minha mãe, doméstica; meu pai estudou até a
5ª série. Eu quero ser alguém na vida” 5. Quais os sentidos dessas narrativas e quais
suas relações com o espaço? Os sentidos de mundo e sociedade estão implícitos nas
narrativas, marcam distâncias, indissociavelmente sociais e espaciais.
As narrativas do espaço não se encontram apenas onde são explicitadas,
mas permeiam as histórias de vida e práticas espaciais. A intrínseca relação entre
sujeitos e espaços, em mútua adjetivação, como a vila e o vileiro, a favela e o favelado,
41
Nola Patrícia Gamalho
demonstram que as falas dos sujeitos estabelecem vínculos com o espaço. Portanto,
as interpretações são elaboradas a partir do detalhe, da informação pontual, mas
compreendendo-a na totalidade da narrativa, que estabelece os sujeitos em quadros
Cartografias e narrativas
42
Narrativas do espaço nas histórias de vida: os desafios das metodologias qualitativas na geografia
suas ações a partir dessa tomada de posicionamento. Para Claval (1997, p. 93),
as representações “permitem superpor ao aqui e agora os algures, que são sociais,
geográficos ou metafísicos”. Partindo do pressuposto de que as ações partem de
Cartografias e narrativas
representações, por que negá-las? Amado (1995), em sua pesquisa sobre a Revolta
de Formoso, depara-se com o “Grande Mentiroso”, o que, em um primeiro momento
lhe causa revolta, pois os fatos são distorcidos e fantasiosos. Todavia, reencontra-se
com seus registros, reelaborando essa compreensão acerca da mentira.
Toda narrativa apresenta uma versão, um ponto de vista sobre algo. A narrativa
de Fernandes constituiu uma versão, entre muitas, da Revolta de Formoso;
até hoje ela disputa, com outras, espaços, audiências e adesões, em busca de
legitimidade social e histórica. “Importa a versão, não o fato”: o antigo ditado
popular já chamava a atenção par a importância e autonomia das interpretações
(AMADO, 1995, p.133).
As narrativas são espaços de criação através dos quais os atores recriam suas
trajetórias e elaboram seus pertencimentos. Revelam não apenas as histórias de
vida, mas sentidos e sistemas culturais por meio dos quais os atores se expressam.
Um músico trará em suas composições os sentidos elaborados, um religioso vai
expressar sua relação com o mundo a partir de pressupostos religiosos. Cada ator é um
narrador específico e cabe ao pesquisador refletir sobre os mecanismos de estimular
as narrativas, compreendendo-as como leituras do mundo. O quadro de referências
dos atores é aquele de suas narrativas, logo, o espaço e suas histórias devem ser lidas
nos sistemas de sentido e/ou ideológicos que esses atores usam para expressar-se.
Contudo, às narrativas deve ser associada uma intensa observação. Qual a
importância dos silêncios? Como interpretar e/ou driblar as censuras? Compreender o
outro está além de compreender o sentido das palavras, mas envolve todo o ambiente,
o momento, o contexto do narrador e o esforço do pesquisador em compreendê-lo
a partir de suas referências. Essa relação está bem explicitada nos diálogos de Franz
e Sabine, do romance A insustentável leveza do ser, ou de João e Santiago.
Ele a escutava falar de sua vida avidamente e ela o ouvia com a mesma avidez.
Compreendiam exatamente o sentido lógico das palavras que pronunciavam,
mas sem ouvir o murmúrio do rio semântico que corria entre essas palavras
(KUNDERA, 1985, p. 94).
43
Nola Patrícia Gamalho
44
Narrativas do espaço nas histórias de vida: os desafios das metodologias qualitativas na geografia
Cartografias e narrativas
A partir da proposta de análise textual de Moraes (2003), tem-se a
instrumentalização para operar com o material bruto das narrativas e registros
de campo. Três etapas entrelaçadas compõem o processo de interpretação, de
transformação dos dados brutos em informações:
– Unitarização; consiste em fragmentar o material textual em unidades de
sentido. Cada entrevista, cada narrativa tem seu corpus fragmentado e identificado,
produzindo, com isso, leituras detalhadas. Quanto mais fragmentado, maior a
profundidade da leitura em reconhecer as unidades de sentido;
– Categorização: a partir do caos e diversidade produzidos na unitarização,
tem-se o estabelecimento de categorias aglutinadoras das unidades de sentido e
das distintas narrativas. Desta forma, a ordem criativa constitui-se do caos. Tem-
se, portanto, uma análise relacional entre a parte e o todo, em que as categorias são
construções, portanto, resultam da intensa leitura, impregnação e aporte teórico;
– Construção de um metatexto: envolve a descrição e interpretação do corpus
textual. O material empírico dissecado e agrupado nas etapas anteriores é reelaborado
em associação com o referencial teórico prévio ou que as narrativas suscitam na
emergência de unidades de sentido e categorias. Nesse processo, o pesquisador
assume a posição de autor, estabelecendo relações, interpretações e, com isso, produz
um texto além das narrativas, além do cotidiano ofuscado, mas reelaborado sob as
lentes da inquietude e estranhamento de quem pesquisa. O metatexto, “mais do
que apresentar as categorias construídas na análise, deve constituir-se a partir de
algo importante que o pesquisador tem a dizer sobre o fenômeno que investigou”
(MORAES, 2003, p. 22).
O movimento entre o singular e o conjunto do corpus textual é também do
indivíduo para o social. Cada narrativa tem elementos reveladores da construção do
mundo a partir do indivíduo, mas que na categorização e produção textual adquirem
sentidos sociais, no caso, socioespaciais. As relações de afeto ou de aversão, as
trajetórias de opressão ou de aventura, são dados que emergem de forma manifesta
ou latente, demandando a impregnação do material produzido. Termos como aqui,
lá, subindo, descendo evidenciam relações espaciais. Todavia, categorizar o espaço
e as práticas espaciais não deve reduzir-se ao manifesto. Pegar esse ônibus e não o
outro, argumentar sobre o nível de instrução dos pais, pode, dentro dos múltiplos
sentidos que a própria identificação das unidades de sentido suscita, estar diretamente
associado aos significantes do lugar.
45
Nola Patrícia Gamalho
Considerações finais
A construção dos sentidos e práticas do espaço, a partir do uso de oralidades,
coloca importantes desafios à ciência geográfica. É um mergulho nas práticas
Cartografias e narrativas
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47
Cartografias e narrativas
3 Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
Cláudia Luísa Zeferino Pires
Cristiano Quaresma de Paula
Helena Bonetto
Apresentação
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Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
narradores, ao contarem sobre sua chegada à Restinga, partem do “nada”, ou seja, do
momento histórico em que os primeiros moradores chegam após serem removidos
de áreas centrais da cidade, e seguem apresentando a sequencia de loteamentos,
a instalação de infraestruturas, sempre vinculando as práticas diárias e as lutas
assumidas pelas organizações comunitárias. Eles marcam no espaço representado
em mapa símbolos que são significantes no momento histórico apresentado e
compõem significados no presente. É um processo de mapeamento atravessado por
sentimentos de vitória, derrotas, frustrações e perseverança de pessoas que vivem e
entendem o bairro onde moram.
A compreensão desses referenciais espaço-temporais, repletos de significados,
deu-se através da análise do mapa concomitante com a revisão de narrativas desses
moradores gravadas e anotadas no contexto de elaboração desse. Essas narrativas
dão significado a cada símbolo expresso no mapa a partir de experiências individuais
e coletivas, por isso chamamos de mapas-narrativas. Assim, compuseram-se outras
histórias sobre o espaço do Bairro Restinga, que vão além do contexto de violência
e marginalidade social que se expressa na mídia de Porto Alegre. São histórias que
transitam no espaço e em determinados momentos se encontram, uma vez que
os moradores que participaram do processo frequentemente se encontram em
momentos de luta e compartilham as mesmas experiências.
No conto, essas experiências espaciais formam um percurso que acontece
em diversas temporalidades. O título do conto é “Desvendando a Tinga: o mistério
das caixas”. Nesse trajeto, os personagens, crianças em idade escolar, encontram
os moradores que participaram do projeto e recebem deles caixas com símbolos a
serem desvendados. Esse conto, problematizado no cotidiano escolar, proporciona
reflexões acerca da geografia do lugar, onde substitui conhecimentos mais genéricos
por um detalhamento de contrastes espaciais do bairro e se relaciona com conteúdos
mais específicos, não somente com a geografia, mas com outras disciplinas. Além
de favorecer o desenvolvimento de atividades interdisciplinares nas escolas, tende a
um contexto de educação geográfica cotidiana, uma vez que expressa experiências
e vivências de moradores do bairro, repercute na própria Restinga que reconhece
sua trajetória e dialoga com o conto. A figura 1, na página seguinte, apresenta a capa
do livro-conto.
Na sequência deste texto, apresentaremos o contexto da pesquisa e a
aproximação com o contexto escolar onde as atividades foram realizadas, e os
caminhos da pesquisa e suas reflexões teórico-metodológicas.
51
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
A Tinga, a Escola
52
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
certo padrão, mas que também possui áreas com ocupações irregulares e habitações
precárias; a mais nova unidade vicinal é denominada de quinta unidade da Restinga,
que possui casas populares pequenas e padronizadas, construídas pela prefeitura,
Cartografias e narrativas
mas já alteradas devido à necessidade de ampliações e carências de infraestrutura
urbana (AIGNER; PIRES, 2012).
Conforme Aigner (2002), a Escola Municipal Prof. Larry José Ribeiro Alves foi
fundada em 1987, era organizada por séries e implantou a organização do ensino por
ciclos de formação apenas no início do ano letivo de 2000. A partir da implantação
dos ciclos por formação, a comunidade escolar buscou algumas aproximações entre
o trabalho pedagógico realizado na escola com a realidade da comunidade atendida
nessa instituição. Essa organização trouxe a possibilidade de pesquisa para o contexto
escolar e assim trouxe aproximações significativas entre escola e comunidade. É
nesse contexto que surge a possibilidade de integrar pesquisa, ensino e extensão,
articulando e fortalecendo o papel da escola na integração com a comunidade.
Consideramos importante frisar que esse trabalho foi possível nesse contexto
de conformação de um ambiente escolar aberto à comunidade. Isto favorece as
atividades de pesquisa, pois os participantes já estabeleceram vínculos com os
pesquisadores e com a comunidade escolar e, por isso, se sentem à vontade para
exporem as suas histórias. Os participantes expõem seus saberes, pois se sentem
respeitados e valorizados quando chamados a falar na escola pelos pesquisadores.
Houve o compromisso explícito de que os participantes e toda comunidade se
relacionariam com a atividade e os princípios da pesquisa teriam um retorno em
forma de um livro-conto.
Os caminhos metodológicos
Os caminhos metodológicos adotados para escrita do livro-conto “Desvendando
a Tinga: O mistério das caixas” foram constituídos por meio da escuta de narrativas
espaciais, a qual se dava concomitante com o mapeamento dos marcadores das
memórias históricas e espaciais dos moradores da Restinga.
Para esclarecer nosso leitor, explicaremos as conceituações de narrativas
espaciais, mapeamento e marcadores espaciais. Após a explicação destes referenciais,
será encontrada a proposição conceitual mapa-narrativa, tendo em vista que esses
procedimentos metodológicos foram realizados de forma simultânea nos encontros
com os narradores da Restinga.
As narrativas espaciais são entendidas a partir dos pressupostos teórico-
metodológicos de Lindón (2007). Para a autora, a reconstrução das experiências
vividas se dá através das narrativas nas quais as pessoas desvelam o espaço e a
espacialidade de diferentes formas. O narrador se vale do espaço para a simples
localização dos fatos, para a atribuição de lembranças carregadas de significados,
53
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
para a afirmação de si mesmo, quando esse lugar está relacionado com prestigio,
ou para depreciação de si mesmo, quando esse lugar é perigoso (LINDÓN, 2007).
Além das narrativas resgatarem experiências, fatos importantes da vida
Cartografias e narrativas
54
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
ser compreendido como instrumento de pesquisa em processos de “pesquisa-
ação” (THIOLLTENT, 2002), pois mais do que uma resposta a uma questão
pesquisada, deve responder às questões de interesse da comunidade (PAULA,
2015, p. 49).
55
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
de saúde, escolas etc.), mas também imateriais, como lugares de reuniões, encontros,
cultos etc. Assim, houve o empenho de contemplar diferentes dimensões da vida
no lugar.
Com o objetivo de valorizar a Restinga e seus moradores, o mapa e o conto
gerado a partir dele constituiriam um instrumento de luta. Luta por reconhecimento,
respeito e tratamento digno. Contudo, na medida em que se mapeava a Restinga
que eles construíram ao longo dos anos se evidenciava que, além de instrumento, o
mapa expressa a materialização das conquistas alcançadas por meio de lutas sociais.
No projeto, utilizamos como base cartográfica uma imagem de satélite com a
sobreposição de um shape das ruas do bairro. Após, o narrador reconhece o bairro e
principais pontos de referência são marcados no espaço. Alguns participantes faziam
tais marcações enquanto narravam, outros preferiam marcar após a narrativa (nesse
caso a equipe de pesquisadores registrava os principais referenciais para posteriormente
percorrê-los com os narradores). É importante salientar que a cada novo encontro foi
utilizada uma nova folha de papel vegetal, assim foram gerados mapeamentos para cada
um dos narradores que participaram do projeto do livro-conto. Quando foram realizados
todos os mapeamentos, as informações compuseram um único mapa-síntese, o qual
serviu de base para traçar o percurso do conto.
A partir do processo que envolveu a escuta de narrativas e mapeamento
de marcadores espaciais, identificamos a Restinga como espaço de moradia, de
criação dos filhos, das possibilidades de vivência. Ou seja, traz o lugar como um
espaço afetivo, encontrado nas significações do pertencimento: sou da Tinga. As
espacialidades se revelam durante as narrativas/mapeamento pelos campos de
disputa por melhorias por equipamentos urbanos ausentes no bairro, tais como:
transporte, escolas, água, postos de saúde, que materializam as lutas e mobilizam
subjetividades transformadoras na busca destas melhorias.
Nossa estratégia, nesse momento, foi identificar marcas (materiais e simbólicas)
presentes ao longo do processo de vivência dos moradores com o bairro. A figura 2,
na página ao lado ilustra esta etapa.
A escrita do conto surgiu da necessidade de permanência contínua do diálogo
com a comunidade, proporcionando leituras sobre cotidianos, espacialidades e de
valorização de suas conquistas através da mobilização política que os narradores
participaram da história da Restinga.
56
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
A partir de reuniões e atividades de campo realizadas na Restinga, elaborou-se
uma cartografia que sintetiza pontos, marcas territoriais que participam da memória
dos narradores e que contam como foram ocorrendo as transformações espaciais.
Busca-se, assim, a reconstrução de narrativas de vida dos moradores do bairro, numa
tentativa de resgate da construção do espaço coletivo a partir da memória individual.
Lindón (2007) nos coloca que os lugares também são construídos pelos sentidos
e significados que lhe são atribuídos, compondo assim uma complexa trama. As
narrativas foram registradas em vídeo, áudio e anotações de campo. Estas serviram de
base para a interpretação das marcas e possibilitaram a construção de uma cartografia
da memória do bairro. A figura 3 demonstra esta etapa.
Após a construção de mapas-narrativas com os sujeitos, integraram-se os
referenciais espaciais em um só mapa (Figura 3, página seguinte). Este expressa
trajetos que se entrecruzam de acordo com a significação no contexto comunitário.
Foi possível, então, verificar, no espaço do bairro Restinga, elementos que favorecem
a construção de significações espaciais e que estas poderiam inspirar um conto para
crianças e jovens. Mapas-narrativas compreendem um diálogo que relaciona o vivido
entrecruzado com o espaço. Representam sentidos e linguagens de significação do
conhecimento pela percepção do mundo em suas transformações experienciadas.
57
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
Cartografias e narrativas
58
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
o bairro através de narrativas que se situam em temporalidades e espacialidades
diferentes, mas se encontram em contextos de organização comunitária. Como o conto
expressa vivências desses moradores, decidimos apresentá-los como personagens,
para valorizar suas trajetórias na comunidade. Eles vão presentear crianças, em idade
escolar, com caixas cheias de símbolos. Essas caixas representam as suas memórias,
que, na compreensão de história oral, são transmitidas entre sujeitos em relações
sociais.
Com base no mapeamento, estabeleceu-se um trajeto para a construção de um
conto geográfico. Para que jovens se reconhecessem nesse conto, os personagens são
inspirados em estudantes da escola em que foi realizado o projeto, os quais saem do
ambiente escolar em busca de descobertas no bairro. Assim, a provocação é de que
os educandos que leem o conto também valorizem e busquem, com seus amigos e
familiares, memórias sobre a Restinga.
À medida que se deslocam no bairro, os jovens encontram caixas com símbolos,
que são oferecidas por personagens reais (os narradores). Essas caixas representam
a memória destes narradores que são recheadas com símbolos que remetem aos
marcadores espaciais. Assim, o espaço vai se tornando significante na medida em
que se compreende o significado dos símbolos.
Tendo elaborado a primeira versão do conto, a equipe de pesquisadores
convidou os narradores e estudantes da escola para uma pré-apresentação da obra.
Este foi um momento importante para avaliar o quanto o conto era apreensível pelos
estudantes, bem como promover o diálogo entre os narradores que, no momento
anterior, participaram individualmente juntamente conosco. Para tanto, utilizamos
como estratégia o círculo hermenêutico-dialético. Esta técnica, para Oliveira
(2001), situa o diálogo numa ação na qual os diversos atores sociais da pesquisa
se encontram para discutir seus resultados. A partir de um vaivém ininterrupto de
interpretação e reinterpretação, os participantes se colocam em construção de um
diálogo sobre a pesquisa, que, em nossa situação, foi o conto geográfico. As críticas,
as revisões, as análises e construções textuais do conto buscaram reunir no conjunto
as falas e os significados que poderiam ser apresentados nesse conto. Na ação dessa
técnica, reuniu-se o grupo de pesquisadores da Universidade, da Comunidade e
da Escola.
Não houve impasses entre os narradores, mas complementações, celebração
de conquistas, e por isso um importante momento de reescrever o conto e de pensar
a comunidade. Destacamos que foi nesse encontro que o grupo de pesquisadores e
narradores decidiram manter a identificação destes últimos como personagens do
59
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
conto, para valorizar as suas trajetórias. Outra questão a frisar foi o impacto do conto
nos estudantes, que se mostraram muito interessados em escutar as histórias dos
narradores, questionando-os e trazendo relatos que já haviam escutado dos pais e avós.
Cartografias e narrativas
60
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Ainda, antes da divulgação do conto impresso, este serviu de base para dois
trabalhos de campo no Bairro Restinga. Neste, se observou a potencialidade do
conto para aprendizados, também fora da sala de aula. O primeiro trabalho de
Cartografias e narrativas
campo foi realizado no contexto das Jornadas Pedagógicas promovidas pela AGB
(Associação de Geógrafos Brasileiros - Secção Porto Alegre) e o LIAU (Laboratório
de Inteligência Urbana).
Os amigos ficam muito surpresos com o que encontram dentro: uma pedra, um
escrito e um desenho. Atraída pelas risadas das crianças, a professora Giselle
entra na biblioteca e pergunta o que está acontecendo (CONTO, p.2, 2013).
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Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
Figura: 5 - A biblioteca.
Cartografias e narrativas
A figueira já não existe, mas está na memória dos moradores, pois foi lembrada
por nossos narradores, e ainda durante vários campos foi possível observar que tudo
que existe no entorno dela leva seu nome: bares, pequenos comércios, entre outros.
Os moradores se referem ao lugar como “volta da figueira”. Para Maria Clara, a figueira
simboliza o espírito do restingueiro, a força dos moradores do bairro. A figueira grafa
espacialmente o bairro e torna-o um lugar de memória para os moradores, o lugar
62
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
parte de suas vidas.
Nossa história não termina aqui! Continuamos o trajeto com as crianças
que recebem uma segunda caixa na figueira, não esquecendo que a pedra dada na
primeira caixa continua no bolso da personagem Ana sem explicação.
As crianças seguem para a esplanada, outra marca espacial. A Esplanada da
Restinga – praça central localizada na avenida João Antônio da Silveira – é um lugar
de muita importância para o bairro. É lugar de encontro, possui uma centralidade
onde acontecem às principais comemorações, festas e outras atividades. Para nossa
narradora, Maria Clara, é na Esplanada onde estão os diferentes poderes, o judiciário,
representado pelo Fórum, o religioso, representado pela Igreja Nossa Senhora da
Misericórdia, e o cultural, representado pela Escola de Samba Estado Maior da
Restinga (Figura 6).
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Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
64
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
só poderia ser resolvido pelo nosso narrador José Carlos, mais conhecido como
“Beleza”.
A avenida Nilo Wulff encontra-se, nos dias de hoje, na parte do bairro
que é chamada pelos moradores de Restinga Nova. Na formação da Restinga,
compreende-se na segunda forma de ocupação, tendo em vista que a primeira
se dá por meio das remoções de moradores do centro da cidade.
A segunda forma de ocupação deu-se predominantemente pela obtenção
de casas ou apartamentos através do cadastramento realizado no Departamento
Municipal de Habitação (DEMHAB). As pessoas realizavam um cadastramento
no DEMHAB e esperavam ser chamadas para receber suas casas, as quais não
eram dadas pelo DEMHAB, tendo em vista que muitos moradores pagam até
hoje uma pequena prestação.
Logo que chegamos à avenida Nilo Wulff, observamos na sua paisagem
os blocos habitacionais daquela área. Os arredores e a própria avenida foram
marcados por diferentes eventos da história da Restinga. Nosso narrador, o
Beleza, detalha esses eventos durante sua narrativa de vida espacial e mapeamento.
Na Nilo Wulff, está situado o CECORES, Centro Comunitário da Restinga,
que foi palco de diferentes eventos, Beleza explica o que ele simboliza:
O empenho de muitos moradores foi transformando o nosso espaço. Foi com
muita luta que ajudamos a construir o centro comunitário, o CECORES. Nele
acontecia até baile de debutantes. Nesse momento, Daniel comenta:
- Então, a Restinga se encontrava no CECORES.
Beleza exclama: - Isso mesmo! Sua construção nos ajudou muito nos movimentos
de melhoria do bairro. Nossas dificuldades foram vencidas com muita garra e
atitude. Hoje temos muitas escolas no bairro, elas foram conquistadas. A escola
é o espaço de transformação social. Gurizada é o seguinte: a gente se mobilizou
muito pela Restinga e esse espírito deve continuar (Conto, p. 14, 2013).
65
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
– Ana aqui pode ver nossas histórias. Têm lembranças das pessoas, com quem
conversamos. Logo em seguida, chegam Maria Clara, Carla, Augusta, Deja e o
Beleza, que pergunta:
– Desvendaram o mistério? Ele mostra pela janela o horizonte da Restinga e
de lá observam o Morro São Pedro, o Arroio do Salso, a Esplanada e a vida do
bairro. Tetê responde:
– Ainda não. Quem fez o mapa? Vamos ter outra pista?
Beleza esclarece às crianças que aquele mapa se faz e se refaz todos os dias pelas
pessoas que constroem a nossa Restinga e que existem muitas outras caixas
(Conto, p. 15, 2013).
66
Mapas-narrativas e um Conto Geográfico
Cartografias e narrativas
entendendo e compreendo os significados destes lugares e observando que existe
um entrelaçamento entre passado, presente e futuro pela memória, luta por melhores
condições de vida, manifestações culturais e práticas socioespaciais dos moradores
da Restinga.
A partir das marcas espaciais, foi possível contar sobre o bairro dando acento
às transformações dos lugares geográficos, os quais se constituem como marcos
memoriais. Assim, não temos apenas uma história contada a partir do tempo,
mas uma história contada a partir do tempo e do espaço, em sua simultaneidade e
multiplicidade .
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Cláudia Luísa Zeferino Pires, Cristiano Quaresma de Paula e Helena Bonetto
Referências
AIGNER, C.H. O. Alfabetização em geografia e educação ambiental: construindo a cidadania
em escolas voltadas a educação popular. 2002. 207 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) –
Cartografias e narrativas
68
4 Entre corredores ecológicos e salas
poéticas: conexões criativas no fazer
Cartografias e narrativas
científico
outros pontos de vista para enxergarmos o que nunca vimos. Experienciei essas
questões durante a realização da pesquisa e escrita da dissertação para o mestrado
em Geografia. A reflexão sobre essas experiências é o tema deste artigo.
70
Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Cartografias e narrativas
do observador. Utilizei este caminho na pesquisa para descrever, por exemplo, a
situação de um bioma no espaço geográfico de estudo.
(2) No domínio das ontologias constitutivas, denominado objetividade entre
parênteses, aceita-se a pergunta pelo observador e pelo observar; trata da explicação
do fenômeno cognitivo. Toda explicação é uma reformulação da experiência com
elementos da experiência. A realidade, neste caso, é uma proposição cognitiva,
um argumento explicativo, cujo número de realidades corresponde ao número
de domínios explicativos, todas legítimas. Utilizei este caminho para explicar, por
exemplo, diferentes vínculos de grupos humanos com o espaço geográfico de estudo.
Na vida cotidiana, movemo-nos de um caminho explicativo para outro:
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Ana Stumpf Mitchell
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Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Essa espiral concêntrica estreita-se, por exemplo, na leitura que faço, com
o eixo local atravessado por distintos âmbitos de coesão social e solidariedade
proposto por Álvaro Heidrich , correspondendo o eixo local à primeira pele segundo
Cartografias e narrativas
Hundertwasser :
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Ana Stumpf Mitchell
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Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Cartografias e narrativas
de novo sistema social) e o método terapêutico de Sigmund Freud (a essência do
processo psicanalítico é ajudar os pacientes a se tornarem conscientes das causas
de sua doença; intuição dos pacientes de que sua doença pode ser curada, desde
que removidas suas causas). Utilizar tal linha de raciocínio passou a ser uma escolha
didática e uma intenção colaborativa ao relatado estudo, exercitada a seguir.
Estamos sofrendo e temos consciência desse sofrimento: dificuldade de ver
o que nunca se viu
A escolha de um tema de pesquisa pode se dar, por exemplo, por uma
inquietação, uma dúvida, uma vontade de resolver uma questão. “Descobrir” é deixar
de cobrir, e se a visão é o sentido mais estimulado, descobrir é retirar o que cobre
para passar a ver. Assim, a princípio, pesquisamos o que não sabemos, pesquisamos
o que nunca vimos. Antes de prosseguir, convido o leitor a um desafio: observe a
imagem da página seguinte.
Observe, principalmente, suas reações ao observar a imagem. Se for preciso,
retorne à imagem. O que você viu? Quanto tempo você conseguiu investir para
observá-la? Tentou encontrar figuras conhecidas, numa tentativa de “resolver” o
que você via?
Essa imagem é uma reprodução de uma pintura que faz parte de uma série
na qual Tomie Ohtake vendou os olhos para pintar. Suas pinturas são registros de
um momento:
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Ana Stumpf Mitchell
Figura 3: sem título, 1959, de Tomie Ohtake | óleo sobre tela, 100×70cm, col. particular.
Cartografias e narrativas
76
Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Cartografias e narrativas
de um momento.
No processo de pesquisa para o mestrado, fui a campo com a intenção de fazer
um registro de uma realidade específica, que eu já esperava encontrar. O tema da
pesquisa estava imerso, sem que eu estivesse consciente, em uma representação de
mundo específica: a que eu vivia a partir da instituição em que eu estava envolvida.
Embora com uma intencionalidade metodológica de abertura ao inesperado,
minha primeira postura foi a de tentar coincidir o meu imaginário, construído inclusive
com a revisão bibliográfica, com as informações levantadas nos trabalhos de campo.
Havia, no entanto, uma incompatibilidade das minhas sensações durante as entrevistas
com a minha visão condicionada pelo meu imaginário. Apreendi que o imaginário
participa de forma muito relevante tanto nas escolhas dos entrevistados, quanto na
postura do pesquisador. No domínio da representação, segundo Sandra Pesavento,
as coisas ditas, pensadas e expressas têm outro sentido além daquele manifesto:
77
Ana Stumpf Mitchell
uma pequena praia de Torres, perguntei qual das duas bananas ele consumia. Sem
hesitar, respondeu: “a com veneno, pois é mais bonita, claro! Pois nós comemos
com os olhos”. Convidou-me a degustar a banana sem veneno para provar que era
Cartografias e narrativas
mais saborosa e disse que ela apodrece no seu mercado por falta de demanda, afinal,
“todos comem com os olhos” (MITCHELL, 2011, p. 145).
Esses casos demonstram a força do imaginário, a qual não estamos imunes
enquanto pesquisadores. Fui a campo com a intenção de associar tipos específicos de
uso do solo à possibilidade de corredores ecológicos e encontrei uma complexidade
muito maior do que a que eu poderia apreender apenas com meu olhar. A partir da
revisão bibliográfica, também esperava encontrar nos trabalhos de campo elementos
que comprovassem a situação de isolamento do município enquanto consequência
de fatores externos à própria Colônia. Na revisão bibliográfica, encontrei apenas
dois trabalhos que contestam esse isolamento (DREHER, 1999; WITT, 2001). A
análise final que fiz, depois de todo o processo pelo qual passei, apontou uma maior
concordância com esses dois trabalhos (para maiores detalhes, favor consultar
MITCHELL, 2011).
Frequentemente, vem-me à mente esta máxima de Camargo [s. d.]: “É preciso
que o fruto que está dentro do artista amadureça no vagar do tempo. Aquele que tem
pressa em vendê-lo, fará frutos de cera ou irá apanhá-los no pomar do vizinho”. Estar
consciente da dificuldade de ver o que nunca se viu é um instrumental essencial na
pesquisa, pois prepara-nos para a abertura ao inesperado, ao desconhecido.
78
Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Cartografias e narrativas
A grande promessa, no entanto, foi frustrada, resultante da desumanização e
desnaturalização do ser humano. As premissas psicológicas do hedonismo radical e do
culto ilimitado do eu revelaram-se premissas contraditórias. A primeira contradição
é a de que somos seres felizes: “o objetivo da vida é a felicidade, isto é, o prazer
máximo, definidos como a satisfação de todos os desejos ou necessidades subjetivas
que alguém possa sentir” (FROMM, 1979, p.25). O ideal de trabalho disciplinado,
com sua ética de trabalho obsessivo, em linha de montagem automática e rotina
burocrática, combina contraditoriamente com o ideal do prazer sem limites, da
completa ociosidade durante o restante do dia e nas férias, em que as formas de
passar o tempo são passivas. Se em uma parte da jornada há a máxima produção,
na outra há o máximo consumo, em que “matamos” o tempo duramente poupado
anteriormente. Embora contraditória, é a combinação desses dois ideais que permite
sua coexistência em um mesmo ser humano, que enlouqueceria se vivesse apenas
um deles. Como resultado, somos uma sociedade de pessoas notoriamente infelizes:
solitárias, ansiosas, deprimidas, destrutivas, dependentes.
A segunda contradição é a de que o culto ilimitado do eu traria a paz: “o culto do
eu, o egoísmo e a voracidade, como o sistema precisa gerar a fim de funcionar, levam
à harmonia e paz” (FROMM, 1979, p.25). Criou-se a ilusão de que as qualidades
exigidas pelo sistema capitalista (culto do eu, egoísmo e cobiça) são inatas na natureza
humana. Em realidade, “cobiça e paz excluem-se reciprocamente” (FROMM, 1979,
p.27). Sociedades em que essas qualidades não existem, por sua vez, são consideradas
“primitivas” e seus membros “infantis”.
A procrastinação foi elemento presente e recorrente durante o processo de
escrita da dissertação e está relacionada à frustração da grande promessa do progresso
ilimitado, apresentada por Fromm. Compreender a causa da procrastinação foi
fundamental para o prosseguimento da pesquisa. Segundo Joseph R. Ferrari , a
procrastinação está ligada a nossa baixa autoestima e a nossa insegurança:
E, por causa delas, acabamos protelando por evitar o medo de não termos o
sucesso esperado em algumas tarefas. “As pessoas com essas características são
muito preocupadas com o que os outros pensam delas. Dessa forma, preferem
que pensem que ela é displicente e tem problemas em se esforçar para agir do
que percebam que, no fundo, elas não têm habilidade para isso”, explica. [...] O
perfeccionismo exacerbado tem a capacidade de nos fazer desistir ou postergar
por um tempo ilimitado nossos afazeres, desejos e intenções (TONON, 2009).
79
Ana Stumpf Mitchell
produção de conhecimento – foi então imperativo me estudar, uma vez que minhas
dificuldades internas, fragmentações do sujeito, atrapalhavam a pesquisa.
Cartografias e narrativas
80
Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
se tornaram, por sua vez, mediadores. A dinâmica das entrevistas procurou respeitar o
cotidiano dos entrevistados. Foi feito um primeiro contato para me apresentar, dizer
de onde sou, explicar do que se trata a pesquisa para, então, agendar as entrevistas.
Cartografias e narrativas
Os nomes dos entrevistados foram substituídos por códigos, conforme
combinado previamente. Essa escolha pelo anonimato dos entrevistados foi uma
decisão que me gerou muitas dúvidas após os trabalhos de campo. Essa opção, num
primeiro momento, foi concebida como uma ferramenta para deixar os entrevistados
mais à vontade para falar. Entretanto, hoje penso que o anonimato impediu os devidos
créditos das ideias a seus autores.
Desenhei a rede socioespacial dos sujeitos na pesquisa através de um diagrama
a partir de mim. Os vínculos de parentesco com o mediador principal de cada núcleo
familiar foram destacados em colchetes e conectados através de linhas tracejadas,
alguns deles entrevistados (indicados por códigos), outros apenas referenciados
(indicados apenas pelo vínculo familiar). Utilizei o recurso de diferentes tonalidades
de cores para representar as localidades de origem dos entrevistados.
81
Ana Stumpf Mitchell
Esse diagrama foi uma estratégia bastante útil para o leitor da pesquisa
compreender como a rede se formou.
Cartografias e narrativas
Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada
ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua
atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade,
por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre
ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência,
de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (LARROSA, 2002, p.19).
Como afirmou Haesbaert (2004, p.370): “para poder ‘amar tudo o que existe’
e construir territórios efetivamente – o que significa, sobretudo, ‘afetivamente’ –
apropriados, é necessário, primeiro, acabar com toda exploração e indiferença dos
homens entre si e dos homens para com a própria ‘natureza’”. Acrescentaria que é
necessário acabar com toda exploração e indiferença do sujeito para consigo. Para
tanto, é importante cuidarmos da saúde de nosso corpo, pensado de forma integral,
integrando-nos efetivamente à nossa condição de natureza; e da saúde de nossas
relações, integrando-nos afetivamente à nossa condição humana.
82
Entre corredores ecológicos e salas poéticas: conexões criativas no fazer científico
Referências
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Cartografias e narrativas
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83
Ana Stumpf Mitchell
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Cartografias e narrativas
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colonos alemães – 1840-1889. 2001. 262 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.
84
5 A pesquisa-ação em educação popular
e o lugar nos quilombos urbanos de
Cartografias e narrativas
Porto Alegre/RS
Introdução
Neste texto, discutimos o envolvimento articulado de dois
projetos1, com os quais buscamos tornar o conhecimento geográfico
um instrumento teórico-metodológico gerador de entendimentos
sobre grupos urbanos remanescentes de quilombo, os quais têm
sofrido contínua opressão social, cultural, econômica e política,
nos marcos do imaginário da sociedade heterônoma que produz e é
produzida pelo sistema capitalista em sua fase globalizada. Ambos
os projetos compreendem um processo de trabalho em pleno
andamento e as pesquisas foram concebidas por meio de cooperação
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A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
(THIOLLENT, 2009). Para isso, devem-se elencar objetivos e instrumentos que
viabilizem a evolução conjunta de cada grupo territorial. Para Morin, Ciurana e
Motta (2003, p. 29): “O método é aquilo que ensina a aprender. Trata-se de uma
viagem que não se inicia com um método, inicia-se antes procurando um método”.
Desse modo, pode-se prever que o resultado da interação de ideias com sujeitos
individuais/coletivos distintos não tem como resultado o mesmo produto.
87
FRANCO ET AL.
88
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
geral de compreender a subjetividade dos que produzem cultura urbana desde a
perspectiva da etnia negra e suscita o problema da forja de uma identidade quilombola
na contemporaneidade no Brasil. A ontologia da produção dos territórios quilombolas
no Brasil Colônia é assentada na cultura de matriz africana e na diversidade de etnias,
sendo que a diversidade cultural na contemporaneidade se torna mais acentuada
quando caracterizamos a sua expressão em escala nacional (Campos, 2010).
Para tratar do objetivo do problema de pesquisa, introduziremos brevemente
o caso do quilombo da Família Silva sob o ponto de vista de seu lugar, como exemplo
elucidativo para a análise da questão identitária. Esses mesmos conceitos serão
aprofundados mais adiante e com outras perspectivas dentro desta análise.
Em dissertação, Sommer (2011) analisa a configuração morfológica da
comunidade dos Silva e denomina-a de “Kraal Brasileiro” – tipo de formação
socioespacial rural com origem em Angola e no golfo da Guiné, na costa ocidental
africana. Sobre o território, a autora coloca que “o uso coletivo do solo, não havendo
propriedade individual dentro do núcleo é claro, além da predominância dos espaços
públicos de uso coletivo sobre o individual” (p.118), diferentemente do seu entorno
que apresenta “maciça presença de condomínios horizontais de ocupação recente.
Destaque para a altura dos muros que circundam a área: extremamente altos e com
vigilância por microcâmeras. O traçado regular predomina no entorno da área
exclusivamente residencial” (p. 121). Existem três acessos que convergem para o
espaço público de uso comum, o qual possui em seu centro uma árvore seringueira
de quatro metros de diâmetro (SOMMER, 2011, p. 143) que projeta sua sombra
sobre a quase totalidade dessa mesma área. Na ausência de qualquer impedimento
físico ou cerceamento para a entrada ou saída de visitantes, o assentamento pode ser
descrito como altamente permeável, diferentemente dos condomínios horizontais do
entorno. Esses vizinhos dos condomínios poderiam, por qualquer motivo, adentrar
o quilombo, mesmo que isso viesse a gerar um estranhamento imediato. Porém, o
mesmo não poderia acontecer em qualquer condomínio horizontal do entorno
a não ser na condição de trabalhadores a cumprir algum serviço e devidamente
identificados de modo formal.
O termo “quilombo” vem sendo parcialmente incorporado pelos moradores,
principalmente quando se dirigem a agentes externos – políticos, acadêmicos, entre
outros. Para designar internamente o seu espaço público de uso comum, ou seja,
o centro integrador das vivências no local, o termo usado cotidianamente pelos
moradores é “pátio”.
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FRANCO ET AL.
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A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
espaço onde acontecem as festas. O funk carioca e o pagode são os estilos musicais
que compõem a trilha sonora dessas comemorações.
Esses fatores caracterizam o lugar dos moradores do Quilombo da Família
Silva e são constituintes de sua identidade, distanciando os preconceitos formados
pelo senso comum naquilo que se imagina como a essência de uma “identidade
quilombola”. Esses elementos híbridos estão relacionados ao advento do capitalismo
em sua fase de globalização, assim como indicam os estudos de Hall (2006):
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que
estão suspensas, em transição, em diferentes posições; que retiram seus recursos,
ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais e que são misturas desses
complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num
mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização,
como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando às suas
‘raízes’ ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse
pode ser um falso dilema (p. 88).
Por conta deste “falso dilema”, de que não podemos determinar uma identidade
essencialista, e nem mesmo outra, dispersa, para os moradores desses quilombos
urbanos em Porto alegre nos quais temos atuação direta, é de grande importância
a realização da pesquisa com enfoque nas relações existentes entre cada uma das
comunidades quilombolas com os moradores e as comunidades do entorno. Por
isso, fazemos esse esforço teórico e prático para chegar mais próximo dos saberes
vividos no(s) lugar(es).
91
FRANCO ET AL.
92
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
sociabilidade dos quilombos com as comunidades do seu entorno, as quais se
identificam entre si por sua situação socioeconômica e traços culturais. Desse
modo, a pesquisa busca entender o lugar dos sujeitos individuais/coletivos e seus
vínculos que se efetivam através de uma teia de convivência expressa por elos
de parentesco, lazer e trabalho. Os relatos de acontecimentos e o entendimento
dos jovens estudantes sobre o seu espaço imediatamente experienciado pode ser
desvelado por meio do desenvolvimento de métodos pedagógicos em oficinas
em sala de aula.
Para a sistematização da análise sobre o meio urbano do entorno das
escolas que estabelecem relação direta e indireta com as comunidades, pode-se
referir ao conceito de geração de ambiências (REGO, 2002), o qual nos serve
como nexo ideativo na relação meio em torno com o meio entre. Segundo o autor:
o conjunto dos meios entre é também constituinte dos meios em torno, assim como
cada um dos meios entre é condicionado pelo meio em torno, material e simbólico.
Geração de ambiências, nesse caso, significa elencar as questões e os problemas do
meio em torno como suporte ou veículo para os processos educacionais de algum
meio entre (uma sala de aula, por exemplo) (REGO, 2002, p.201).
93
FRANCO ET AL.
94
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
os saberes são transmitidos daqueles que sabem para aqueles que não sabem. O
conhecimento não é construído somente no estudo das palavras e teorias científicas,
mas também ao entender as experiências cotidianas do educando, sendo a escola
um espaço importante nessa construção. A dialogicidade se dá quando esses saberes
são colocados em um mesmo plano de interação.
Na visão de Rego (2002) o prefixo “di” da palavra dialogia pode ter duplo
significado. O termo pode suscitar o diálogo como ponte comunicativa, assim como
acontece de maneira mais frequente, mas também indica a sua lógica oposta, ou seja,
a divergência como muro divisório. Esse sentido duplo do mesmo conceito “não
apenas acentua oposições entre essas, mas igualmente acentua nas divergências
as possibilidades de conciliações provisórias” (p. 207). É nessa questão da análise
que podemos apontar, nas diferenças entre métodos pedagógicos, as causalidades
dos acontecimentos naquelas comunidades escolares, pois o CARU inseriu-se em
instituições formais de ensino com proposta de educação não-formal, o que gera
limites e possibilidades. Esse fazer educativo flexibiliza a escolha dos assuntos e, num
primeiro momento, parece atrair de modo mais efetivo o interesse dos educandos, o
que não é uma regra. A questão avaliativa é um ponto nevrálgico quando tratamos
das diferenças entre métodos. O jovem que não tem a obrigatoriedade de “passar de
ano” nas oficinas de Diversidade Cultural necessita de motivações e estímulos que
se diferenciem da aula regular, o que aumenta o desafio do educador não-formal
para combinar responsabilidades que sejam cumpridas com o objetivo de mostrar
meios alternativos de aprender.
Dessa maneira, não se poderia reduzir esse processo pedagógico a um programa
prévio a ser aplicado pelos educadores e seguido pelos educandos. Antes, se teve que
conhecer os espaços educativos do ponto de vista interno e o exame de questões a
serem problematizadas acerca do espaço vivido dos adolescentes, sob a necessidade
de valorizar temas convergentes que venham a ser concebidos como temas geradores.
Essas são ações necessárias para a construção de uma educação dialógica. Segundo
Schnorr (2001):
95
FRANCO ET AL.
com mapas mentais baseados na metodologia Kozel e Galvão (2008), a qual foi
proposta em oficina aos educandos para que realizassem “mapas desenhados” a
partir de perguntas que se relacionam com o seu lugar.
Cartografias e narrativas
96
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
Por conta dessa relação com o entorno, a escola Bahia se constitui como um
dos principais redutos de formação da identidade da população de baixa renda do
Bairro Três Figueiras.
As questões relevantes detectadas no contexto dos educandos e a reflexão sobre
o seu espaço vivido geram a problematização do universo temático do educando,
vista como modo de ressignificar aquilo que se conhece de forma empírica e, muitas
vezes, simplória. Em outras palavras, o tema gerador é um ponto de instauração do
inédito viável que nos permite caminhar para outro estágio do processo pedagógico
e buscar novas problematizações e desafios que complexificam o objeto em questão.
Dar nome aos temas geradores, e codificá-los, permite a ambos, educadores e
educandos, falar sobre a mesma coisa, aprimorando a interação e o aprendizado.
No processo das práticas educativas, optou-se por realizar um percurso livre
pelas ruas do entorno da escola que cumprisse dois papéis: o primeiro era de que
os educandos, ao caminharem conjuntamente com os educadores, mostrassem o
que sabem sobre este entorno, possibilitando que os educadores percebam a sua
relação com o lugar. O segundo era de captar imagens que, após um processo de
seleção e sistematização, fossem capazes de gerar reflexões conjuntas sobre essas
relações dos educandos com o lugar.
97
FRANCO ET AL.
Neste sentido, procurou-se uma metodologia que fosse capaz de mobilizar essas
reflexões. Optou-se pela construção de fanzines3. A metodologia de construção do
fanzine é também uma forma de captar e expressar as representações socioespaciais dos
Cartografias e narrativas
3 Publicação artesanal de baixo custo com o intuito de distribuição local, permite a inserção e
desenvolvimento de temáticas significativas.
98
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
Cartografias e narrativas
99
FRANCO ET AL.
Ilhota, na área central de Porto Alegre. Esse espaço foi reduto característico de parcela
pobre e negra da população que, a partir do Projeto Renascença de urbanização,
promovido pelo Estado, foi removida para zonas periféricas da cidade na década
de 1960. Segundo Souza (2008), em sua dissertação de mestrado, a Ilhota sofreu
um processo de gentrificação, um conceito desenvolvido a partir da análise de
fenômenos que tenham em comum o movimento de classes dentro de um mesmo
espaço urbano, motivado por iniciativas públicas de “revitalização” de regiões
consideradas empobrecidas.
Embora o trabalho de campo tenha sido realizado no mesmo espaço, as
abordagens dadas para os educandos de cada instituição foram diferenciadas. No caso
da Escola Bahia, o campo foi um estímulo para que os educandos estabelecessem
relações comparativas entre o espaço da antiga Ilhota com o seu espaço vivido,
expandindo e problematizando a sua percepção sobre os espaços da cidade. Espaços
esses velados de uma carga étnica e cultural negra em que os educandos encontram,
a partir do trabalho, a possibilidade de ressignificá-los a ponto de se identificarem.
Por sua vez, as lentes sobre a antiga Ilhota para os educandos do CEDEL permitiram
outras apreensões além daquela com o seu espaço vivido. Isso porque tanto o CEDEL
como a Vila Lupicínio Rodrigues e os quilombos da Família Fidelix e Areal da
Baronesa se localizam na antiga Ilhota. O trabalho de campo com esses educandos
priorizou a compreensão da formação socioespacial da área, partindo da composição
presente do espaço até a descrição da antiga Ilhota, destacando a presença negra
como ator protagonista nesse processo. Assim sendo, os educandos do Bahia tiverem
uma percepção comparativa entre dois espaços no mesmo tempo, enquanto os do
CEDEL analisaram o mesmo espaço em tempos diferentes.
Por meio do trabalho de campo, foi possível intermediar o diálogo entre os
educandos e as lideranças da Vila Lupicínio Rodrigues e do quilombo da Família
Fidélix. Esta proporcionou aprendizados tanto para educandos quanto para os
moradores, já que estes, na busca de explicar a trajetória da antiga Ilhota, refletiram
os seus papéis no processo de formação socioespacial dos lugares. Destaca-se que,
de significante para os educandos, o campo representou uma ressignificação dos
seus espaços de moradia. No início, pelo fato de terem vínculos de sociabilidade
com a Vila Lupicínio e inseridos no contexto do imaginário pejorativo que cerca
os espaços populares de moradia, alguns educandos se mostravam contrários a
visita a esse lugar. Porém, após conversarem com um dos moradores da Vila, e
discutirem com os educadores a respeito do que significava viver neste espaço,
causas e consequências, os educandos concluíram que a “Vila não é um lugar ruim
100
A pesquisa-ação em educação popular e o lugar nos quilombos urbanos de Porto Alegre/RS
para morar, muito pelo contrário, é o lugar onde eles se sentem bem”, demonstrando
identificação e desfazendo o preconceito presente antes do trabalho de campo.
Cartografias e narrativas
Conclusão
No ano de 2013, a lei 10.639 e o decreto 4.887 ADCT completaram dez
anos de vigência em âmbito federal. A partir desse marco temporal, a sociedade
pode fazer avaliações mais precisas sobre o modo e a abrangência com que as
ações têm sido implementadas. Dentre as instituições de ensino formais onde o
CARU atuou naquele ano, pôde-se constatar a incipiência no tratamento com a
questão etnicorracial, mesmo que essas escolas atendam alunos oriundos de territórios
quilombolas, sendo percebidas ações isoladas por parte de professores ou pais no
período próximo ao dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. O coletivo
acadêmico reconhece também a incompletude de seu trabalho não-formal, sendo
necessária a autocrítica para continuar a realizá-lo com maior precisão.
Assim, considera-se imprescindível o enfoque centrado nas relações dos
sujeitos com o seu lugar para compreender sua situação atual. Desse modo, sabe-se
que a emancipação surge do próprio povo, mas que pode ser estimulada por quem
conhece intimamente as suas demandas e aspirações ao amadurecer ideias que
surgem do diálogo e resultam em ações organizadas e mais precisas. A emancipação
quilombola e popular tem como necessidade primordial a questão educacional e
continua sendo um fator de grande dificuldade para aqueles que almejam construir
uma verdadeira Reparação Histórica e Social para o povo negro, ou seja, autônoma
frente ao Estado.
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102
6 Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM:
Cartografia Social na compreensão do
Cartografias e narrativas
modo de vida
Introdução
O objetivo deste capítulo é trazer a público o trabalho de mapeamento
feito junto à Floresta Nacional (FLONA), de Tefé - AM. Este mapeamento, mais
especificamente, é relativo ao Uso da Terra e foi elaborado com o objetivo de,
juntamente com os demais mapas necessários, subsidiar o Plano de Manejo dessa
Unidade de Conservação UC, que vem sendo elaborado pelos gestores da FLONA
de Tefé. Para tanto, foi construída uma parceria entre o escritório do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Tefé - AM, e o grupo
de Pesquisa Geografia e Ambiente, vinculado ao Núcleo de Estudos Geografia e
Ambiente (NEGA), do departamento de Geografia da UFRGS.
O projeto de mapeamento é resultado de uma construção coletiva composta
por um grupo de pesquisadores e alunos da UFRGS, em parceria com os gestores
da FLONA de Tefé, que estruturou um procedimento de mapeamento a priori,
e apresentou para discussão aos gestores do ICMBIO/FLONA de Tefé e, na
continuidade, foi sendo adaptado a partir do diálogo com os ribeirinhos.
A metodologia proposta se articula aos estudos relativos à Cartografia Social
e tem como princípio mapear o uso da terra em diálogo com os comunitários,
mais especificamente, os caboclos1 ribeirinhos, moradores em áreas no interior da
FLONA, bem como os moradores da área de entorno.
Oficialmente decretada no dia 10 de abril de 1989, através do Decreto n°
97.629, a FLONA de Tefé foi criada no contexto do Programa de Polos Agropecuários
e Agrominerais da Amazônia, que tinha como objetivo promover a exploração
agropecuária e mineral em alguns pontos prioritários da região amazônica, entre
elas o interflúvio dos rios Juruá e Solimões.
Integrante do Corredor Ecológico Central da Amazônia Ocidental, a FLONA
de Tefé, Figura 1, encontra-se distante de centros urbanos e do arco de desmatamento
da Amazônia, constituindo-se de uma unidade de conservação com difícil acesso
e sendo este um dos fatores que têm beneficiado sua conservação. Possui uma
extensão de 1.020.000 hectares, divididos entre os municípios de Tefé, Alvarães,
1 Segundo Lima (1999), o termo caboclo é muito utilizado na Amazônia brasileira como uma categoria
social. É também usado na literatura acadêmica para fazer referência direta aos pequenos produtores
rurais de ocupação histórica. (...) No sentido antropológico, a conceituação de caboclos como
camponeses amazônicos objetiva distinguir os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-chegados
de outras regiões do país.
104
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Cartografias e narrativas
500 famílias distribuídas em pequenas comunidades nas margens dos rios Bauana,
Tefé e Curumitá de Baixo, os principais e mais influentes cursos d’água da FLONA
(BRIANEZI, 2007). O número de famílias registrado mais recentemente pelos
gestores ICMBIO/Tefé é de aproximadamente 700.
105
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
106
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Cartografias e narrativas
2007, p. 95).
107
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
Planejamento inicial
O processo iniciou-se com reuniões preliminares com os gestores do ICMBIO/
Tefé, nas quais foram levantados os elementos a serem mapeados para a elaboração
do plano de manejo. O grupo do NEGA/UFRGS ficou responsável por produzir os
mapas básicos de Uso da Terra relativos à FLONA de Tefé, estruturada com base
nos pressupostos da cartografia Social/Participativa. O mapeamento do uso da terra
é realizado com o intuito de subsidiar o estabelecimento de diferentes zonas na UC
(Unidade de Conservação), item obrigatório do plano de manejo.
Para a realização desse mapeamento, procedeu-se à obtenção de imagens
orbitais do programa Google Earth e confecção de uma carta imagem para a área
de estudo. Para recobrir toda a área de entorno e interior da FLONA, se adquiriu
266 cenas com altitude do ponto de visão de 8,71km, salvas em formato TIFF, e
unidas através do CorelDRAW em quatro blocos de imagens, Figura 2. A partir
dessas imagens, foi realizado um mosaico da área, utilizando-se o software ENVI 4.7.
Num segundo momento, foi feito o georreferenciamento dos quatro blocos através
da utilização do ARCGIS 10, por meio de pontos de controle de quatro imagens
SRTM (shuttle radar etc), correspondentes à área de estudo.
Imagens de radar foram também utilizadas para extrair, automaticamente, a
hidrografia da UC, com base nas ferramentas de análises espaciais do ARCGis 10.
108
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Cartografias e narrativas
Foi ainda elaborado o ajuste da drenagem extraída a partir do SRTM com a
carta imagem gerada com imagens do Google.
Ao final dessas etapas, tem-se pronta a Carta Imagem da FLONA de Tefé
e entorno, com seus respectivos cursos d’água. Na continuidade, esta imagem foi
fatiada em 19 cortes. Esses dezenove cortes constituíram a base para interpretação e
mapeamento em campo, pelos ribeirinhos, gestores e pesquisadores. A presença da
drenagem, em particular numa região como a Amazônica, se torna indispensável, visto
que é através dela que o ribeirinho orienta a si mesmo e suas atividades espacialmente.
109
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
O uso do SIG
Entre a primeira e a segunda expedição, tem-se o processo de sistematização
dos dados adquiridos em campo, para a elaboração de mapas temáticos. Para esse
Cartografias e narrativas
procedimento, foi utilizado o software ARCGis 10, um exemplo desse processo é
representado na Figura 4. Nessa etapa, o procedimento consistiu em representar
o uso da terra, anteriormente desenhada no papel vegetal, em reunião com os
comunitários, para um ambiente digital e criando um banco de dados espaciais
atrelados à informação visual. Sendo assim, cada linha, ponto ou polígono traçado
não indica apenas a posição absoluta de um uso, mas, também, sua qualidade.
111
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
zonas a serem criadas para FLONA de Tefé para fins de zoneamento. As referidas
zonas e os critérios de definição foram propostos pelos gestores do ICMBIO e
acordado seus limites em diálogo de acordo com as demandas dos comunitários.
Cartografias e narrativas
Finalização do mapeamento em ambiente do SIG
Esta etapa consistiu na elaboração final do mapeamento de uso da terra
elaborada no retorno da segunda expedição, a partir dos dados coletados e confirmados
na segunda etapa de campo. Nesse momento, se realizaram, então, os ajustes finais
aos shapes que representam o uso da terra pelos ribeirinhos, amplia-se e revisa-se o
banco de dados espaciais, além de passar por um trabalho de consistência dos dados.
113
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
Figura 7 - Ciclo Anual da produção, elaborado com os ribeirinhos, em papel pardo. FLONA
de Tefé. Abril de 2012.
Cartografias e narrativas
114
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Figura 8 - Mapa preliminar de Uso da Terra – Setor Boa Vista do Rio Curumitá,
Cartografias e narrativas
FLONA de Tefé-AM.
115
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
a pesca e a caça, ambas para serem comercializadas nos espaços de venda na região.
Tal qual a pesca, que se expressa espacialmente de acordo com a configuração
hídrica, a atividade extrativista também possui uma condicionante espacial, sendo
observadas duas possibilidades para sua distribuição: o extrativismo em várzea,
representada pelos polígonos verdes contíguos aos rios e igarapés, e o extrativismo
em terra firme, representado pelos ícones de árvore em caixa verde. Essa distinção
é realizada em função de duas variáveis. A primeira é referente às espécies vegetais
que se desenvolvem em cada um desses espaços de forma desigual: existem aquelas
que somente são encontradas às margens dos rios, como o açaí e o buriti, e aquelas
presentes na terra firme, como a castanheira. A segunda é a precisão da informação
– enquanto a ocorrência de extrativismo em área de várzea pode ser delimitada com
certa segurança, pois o critério de limite é a extensão da várzea, o extrativismo em
terra firme é marcado como um ponto, ou nuvem de pontos, pois não se obteve com
precisão onde ocorre cada uma das espécies vegetais utilizadas na atividade extrativa.
A respeito da precisão da informação, tem-se a mesma lógica para as áreas
de caça, onde o polígono hachurado aponta para áreas bem definidas onde ocorre
a atividade, e o ícone do caçador em caixa amarela indica a área aproximada. Usa-
se o mesmo ícone para área de caça indefinida, só que em cor rosa, este aponta o
conflito referente à atividade de caça, podendo ser observado que conflitos, nesse
setor, aparecem em diversos pontos.
A atividade de roçado, que junto à pesca e ao extrativismo constituem a fonte
de alimento e renda para os comunitários, é demarcada no mapa pelos polígonos
em laranja.
O roçado apresenta, por sua vez, uma localização definida, em geral a retaguarda
da comunidade. Embora exista uma distinção do conjunto do que se planta em
cada comunidade, a produção de mandioca merece destaque, pois está presente
em toda quadra de roça. Aliás, a questão da quadra de roça é pauta de debate entre
ribeirinhos e gestores. Entre os ribeirinhos, a expansão da área agricultável de uma
ou outra comunidade pode gerar conflitos entre os próprios, pois a abertura de
novos talhões acaba por gerar uma pressão sobre o uso da terra.
116
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Amazonas, ainda se encontra fora do cinturão de desmatamento. São populações que têm,
na sua origem, migrantes nordestinos provenientes mais especificamente do Ceará, que
se deslocaram para o Amazonas no período da exploração da borracha (1890 e 1910) e,
Cartografias e narrativas
na região, constituíram família, em muitos casos com mulheres indígenas provenientes
de grupos indígenas locais. Há também a presença de afrodescendentes.
Por meio de entrevistas com líderes dessas comunidades, no decorrer das
reuniões de mapeamento do Uso da Terra, constatou-se que as comunidades na
sua quase totalidade têm sua origem nos anos 1960/70 em decorrência da forte
ação da Igreja Católica através da CEB (Comunidades Eclesiais de Base). Antes
dessa ação, relatam os ribeirinhos, com a extinção e/ou declínio da exploração da
borracha, viviam isolados na floresta, dispersos e com grande dificuldade de contato.
As comunidades surgem, então, com o objetivo de reuni-los em um lugar comum
onde, de forma mais coletiva, pudessem desenvolver suas atividades.
Para obterem sua sobrevivência, essas populações recriaram suas vidas através
da atividade agrícola, plantando seus roçados, praticando a pesca e o extrativismo.
Essas atividades estão diretamente associadas ao ciclo das águas, ou seja, aos períodos
de cheia (de fevereiro a julho) e vazante ou seca (de agosto a janeiro). Mas, não só
as suas atividades de subsistência e renda estão associadas a esse ciclo, a mobilidade
e acesso a outras comunidades, e mesmo às cidades maiores, a exemplo de Tefé,
dependem desse ciclo. Embora os rios principais sejam caudalosos, como observados
nos períodos de cheia, em período de vazante ou mesmo de seca, o isolamento pela
dificuldade de navegação faz parte de suas vidas. Este isolamento se reflete, por sua
vez, nas condições objetivas de suas vidas, como comercialização da produção,
saúde, educação e infraestrutura. Essas deficiências são cada vez maiores à medida
que nos distanciamos dos centros irradiadores, como Tefé, e nos dirigimos para ao
alto dos rios Tefé, Bauana e Curumitá, onde o acesso se faz impossível, mesmo em
pequenos barcos (rabetas ou voadeiras) no período da vazante, ou seca.
Para um melhor entendimento de seu modo de vida, passamos a analisar o
Ciclo da Produção Anual e a Jornada Diária de Trabalho elaborados para o conjunto
das comunidades de ribeirinhos da FLONA de Tefé. Sete gráficos foram produzidos
para cada uma dessas categorias compreensivas, cada um deles representa um setor
administrativo estabelecido pelos gestores da FLONA de Tefé. Cada setor congrega o
conjunto de comunidades contíguas ou mais próximas, muito embora a escolha, pelo
ribeirinho, para a sua participação na reunião leve em conta outros critérios, como
dia, horário e acesso. Os gráficos, portanto, aproximam as informações, podendo
se perceber que há muito em comum entre os moradores da FLONA de Tefé, que
hoje correspondem a aproximadamente 700 famílias, de acordo com os dados do
Cadastro da Floresta Nacional de Tefé, fornecido pelos gestores do ICMBIO.
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Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
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Figura 9 - Ciclo anual de produção para os sete setores da FLONA de Tefé-AM.
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
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Cartografias e narrativas
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
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Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Cartografias e narrativas
tucumã, cipós, andiroba, pupunha, bacuri e cupuaçu.
Ao observar a Figura 9 verifica-se que cada comunidade promove um tipo de
extrativismo, em algumas dessas comunidades alguns tipos de recursos da floresta não
são citados pelos ribeirinhos. Pela leitura do gráfico, se depreende que a subsistência
do ribeirinho é, em termos de variedade de produtos para consumo, mais rica nos
meses de cheia. O número de espécies indicadas por setor não é o mesmo. É possível
observar que os setores mais próximos à cidade de Tefé, Setor do lago Tefé e do Rio
Bauana, têm um extrativismo pouco expressivo.
No período da seca verifica-se (Figura 9) uma diminuição significativa do
número de espécies utilizadas, são elas: seringa de várzea, patuá, arumã e ambé (cipós
extraídos na várzea), bacaba e bacabinha. Algumas das espécies indicadas como
extraídas no período úmido em algumas comunidades, em outras, são extraídas na
transição do seco para úmido ou do úmido para o seco, a exemplo de: buriti e patoá,
tucumã, bacaba, piquiá, uixi, entre outras, conforme pode ser observado nos gráficos.
O roçado é a denominação da atividade de plantio (agricultura de subsistência).
Conforme já nos referimos, pode ser visualizado em todos os gráficos, para além
da mandioca que é produzida para alimentação (macaxeira) e para produção de
farinha (praticamente a única fonte de renda dos ribeirinhos a não ser as bolsas,
mais recentemente recebidas, relativas aos programas sociais do Governo Federal),
destacam-se: açaí, banana, cupuaçu, manga, abacate e tucumã, cana-de-açúcar,
abacaxi, pupunha, cará, melancia, milho, jerimum (abóbora), feijão, pepino, maxixe,
melão, batata e castanha.
A mesma Figura 9, em relação ao roçado, revela que desse conjunto não
há uniformidade de produção em todos os setores. Alguns setores, em especial os
mais próximos à cidade de Tefé, apresentam uma variabilidade maior de produtos
plantados. Já comunidades distantes, como o exemplo do setor Alto Tefé, a produção
se restringe, de maneira geral, à mandioca e à banana.
A produção alimentar, o extrativismo e a pesca são reveladores do modo de
vida e das condições alimentares dos ribeirinhos. Diante disso, o cotidiano dessas
pessoas se expressa numa dinâmica que envolve essas três atividades como centrais,
acrescidas da fabricação da farinha, e mais, no caso das mulheres o cuidado dos
filhos e da casa.
121
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
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Figura 12 - Jornada diária de trabalho para os sete setores da FLONA de Tefé- AM.
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
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Cartografias e narrativas
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
às 18 horas, neste o dado precisa ser relativizado, pois não foram computadas,
por essas mulheres, as atividades da casa após o término do trabalho no roçado,
por exemplo. Para ambos, a jornada de trabalho é longa, em média, conforme os
Cartografias e narrativas
dados tem-se: para os homens 13 horas de trabalho diário e, para as mulheres, 13,4
horas diárias. Se excluirmos as comunidades cuja computação não inclui o trabalho
noturno (entre 20h e 22h) da mulher, essa média aumenta para mais de 14 horas de
trabalho-dia entre as mulheres. Pelas informações orais, inclusive acordadas, durante
o diálogo por homens e mulheres participantes das reuniões, a jornada feminina é
efetivamente maior.
A análise do ciclo anual da produção e da jornada do trabalho permite construir
o que aqui denominamos modo de vida, ou seja, a expressão da cotidianidade dos
ribeirinhos ao longo de um ano ou de sucessivos anos, pois essa tem sido a condição
de vida dessas populações. São populações que, pelo seu ritmo de trabalho associado
às condições técnicas para a produção, apresentam um conhecimento e um vínculo
efetivo com a natureza, registrada pela lógica da produção em associação com
os recursos obtidos da floresta e das águas, seja em relação ao alimento, seja em
relação aos objetos produzidos para o desenvolvimento dessas atividades que são
predominantemente construídas a partir dos recursos locais, a exemplo do paneiro
e do tipipi, objetos símbolos da produção de mandioca, os caniços da pesca, ou
mesmo as canoas e outros utensílios.
Essa realidade revela um modo de vida particular e diferenciado em que a
natureza e o homem ainda vivem amalgamados, como se referia La Blache ao tratar dos
gêneros de vida. Realidade essa que, por sua vez, vem lentamente se transformando,
seja pela substituição dos objetos técnicos utilizados, como, por exemplo, o uso da
voadeira, barco de alumínio a motor mais rápido que a canoa com motor rabeta.
Da mesma forma, pela mudança nos hábitos alimentares favorecidos pelas
políticas sociais, que permitem ao ribeirinho acesso a outros bens, sejam eles alimentos
industrializados, vestuários e mesmo equipamentos eletrônicos, como máquinas
fotográficas, celulares e, mais restritamente, computadores. Essa transformação não é
generalizada, não é comum, por isso persiste entre os comunitários um modo de vida
ainda centrado nas relações comunitárias, no trabalho coletivo, por exemplo, quando
da produção da farinha, em especial da queima, o exemplo mais emblemático. Ou
ainda pelo hábito de vizinhar, ou seja, compartilhar a alimentação em períodos de
escassez (mas não somente), com os vizinhos com maiores dificuldades. Seus desejos,
no entanto, são de melhorar suas condições de vida, suas atividades profissionais,
transformar suas jornadas de trabalho em um menor número de horas-dia, ter maiores
oportunidades no campo da educação, extremamente débil nas comunidades em
geral devido à falta de escolas equipadas e também da presença de professores.
Esse modo de vida expressa carências, conflitos e potencialidades. A
infraestrutura e os serviços de responsabilidade dos administradores municipais se
124
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
fazem precária, como, por exemplo: a luz, a água potável, a coleta de lixo, a saúde
e a educação. Conflitos são observados em geral com os denominados invasores,
populações que se utilizam dos recursos dessa Unidade para, na maioria das vezes,
Cartografias e narrativas
comercializar. No entanto a abundância de recursos lhes permite dispor de uma
riqueza potencial.
Considerações Finais
Este relato é expressão de um trabalho que se inicia com um processo de
mapeamento do Uso da Terra. As expedições programadas para esse mapeamento
permitiram um convívio de mais de vinte dias, considerando as duas expedições. O
diálogo desde o barco e nas reuniões, além daquelas que ocorreram nos intervalos de
refeições ou em momentos de visitas às comunidades, permitiu aos pesquisadores uma
inserção na cotidianidade dos ribeirinhos, facilitando a atividade de mapeamento e
o conhecimento da realidade local. A experiência foi rica em informações e vivências
e, sobretudo, em aprendizado coletivo. A acessibilidade da população, a curiosidade
pelo trabalho realizado e, sobretudo, a receptividade, constituem expressões desse
modo de vida, ainda em grande parte centrado na lógica comunitária. O apoio mútuo
entre comunitários se revelou significativo, certamente muita coisa está mudando,
mas ainda é possível observar essa dimensão nas relações cotidianas. É um modo
de vida que se revela pela imbricada relação com a natureza, com seus ciclos e com
seus recursos. Viver é conviver com a natureza.
Entretanto o que se observa é que, independentemente dessa condição, são
comunidades extremamente carentes de infraestrutura e de serviços, com dificuldade
de acesso quando necessitam uma maior urgência, por exemplo, na doença, pois
sempre nesses casos precisam se deslocar à cidade, deslocamentos longos, muitas
horas gastas, dependendo da comunidade, são 4, 5, 6 horas ou mais horas para
percorrer as distâncias. São tempos lentos, sob todos os aspectos, mas ao mesmo
tempo são tempos longos, se observarmos a jornada de trabalho. Trabalho este que
é esgotante, sob sol escaldante, altas temperaturas, chuvas abundantes.
O que se depreende dessa análise é aquilo que muito já foi escrito: os ribeirinhos
do Amazonas vivem esquecidos e, em certa medida, a parte das discussões sobre
os projetos nessa região, muito embora sejam eles e os demais grupos que ocupam
essa parcela do território, coabitantes das florestas e das águas. É delas que vem sua
base de sustentação num local onde o acesso é difícil, seja em termos de mobilidade
espacial ou relativo à comunicação, além do acesso à infraestrutura e serviços. Os
ribeirinhos conhecem seu espaço de vida e a natureza com propriedade sob todos
os aspectos, dominam a geografia do local e com o lugar se identificam.
Concluindo, pode-se afirmar que o projeto e a metodologia propostos
permitiram um efetivo diálogo entre os sujeitos envolvidos (comunitários,
125
Dirce Maria Antunes Suertegaray, Mateus Gleiser Oliveira e Elisa Caminha da Silveira Delfino
Agradecimentos
Embora o texto acima tenha sido sistematizado por três dos pesquisadores, o
grupo envolvido, efetivamente, neste projeto – Cartografia Social em Comunidades
Ribeirinhas: Flona De Tefé – Amazonas, é bem maior. Assim, segue a menção das
pessoas sem as quais este trabalho não teria sido possível, organizados pela instituição
a que pertencem. Grupo do NEGA: Cláudia Luiza Zeferino Pires, Cleder Fontana,
Cristiano Quaresma de Paula, Daniele Machado Vieira , Laurindo Antônio Guasselli,
Luiz Morelli, Pablo Leandro Proença Ferreira, Pedro Saldanha Frantz, Renato Barbieri,
Sinthia Cristina Batista, Theo Soares De Lima. Grupo do ICMBIO/Tefé: Astrogildo
Martins de Moraes, Gabriella Calixto Scelza, Rafael Suertegaray Rossato.
Referências
ACSELRAD, H.; COLI, L. R. Disputas cartográficas e disputas territoriais. In: Acselrad, H.
(Org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: editora UFRJ/IPPUR, 2008. p.13-44.
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GIRARDI, E. P. A construção de uma cartografia geográfica crítica. Revista Geográfica de
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ICMBIO. Plano de manejo Floresta Nacional de Tefé. Versão Preliminar. Brasília, 2004.
JOLIVEAU, T. O lugar dos mapas nas abordagens participativas. In: Acselrad, H (Org.).
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MILAGRES, C. S. F. O uso da cartografia social e das técnicas participativas no ordenamento
territorial em projetos de reforma agrária. 2011. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural)
– Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. 2011
126
Ribeirinhos da FLONA de Tefé-AM: Cartografia Social na compreensão do modo de vida
Cartografias e narrativas
THIOLLENT, M.; SILVA, G. O. Metodologia de pesquisa-ação na área de gestão de problemas
ambientais. Revista Eletrônica de Comunicação Informação & Inovação em Saúde, Rio de
Janeiro, v.1, n.1, p. 93-100, jan.-jun. 2007. Disponível em: <http://www.reciis.icict.fiocruz.br/
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THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2005.
127
Cartografias e narrativas
7 Geografia e cotidiano: reflexões sobre
teoria e prática de pesquisa
perante um espaço que já parecia ter sido compreendido. O espaço urbano, desse
modo, transforma-se de uma representação monolítica condicionada à dureza da
funcionalidade econômica para um campo de possibilidades múltiplas de existência.
A ampliação temática na Geografia com enfoque cultural colocou em cheque as
visões massificantes da produção do espaço geográfico e até mesmo do social como
uma estrutura rígida condicionante das expressões e manifestações humanas. Ao
contrário de uma estrutura rígida, o espaço poderia ser entendido como produção de
uma série de agentes em conflito (RAFFESTIN, 1993), como produto e produtor de
diversidades de eventos de diferentes ordens e comandos (SILVEIRA, 1999), assim
como pela ação criativa da pluralidade social ainda não vista pelas ciências humanas
condicionadas aos preceitos ideológicos da modernidade unificadora (MAFFESOLI,
2010). Além de uma espacialidade divergente e criativa, produzida de forma tática
por ações microscópicas que sorrateiramente modificam o uso e o entendimento
Etnografias em redes e territórios
sobre o lugar comum (CERTEAU, 1994), o próprio espaço, que antes poderia ser
somente a forma do poder que condiciona e reprime a criatividade (FOUCAULT,
1993), apresenta-se pela desordem, como produto de manifestações diversas de
potências latentes de forças subterrâneas (MAFFESOLI, 2002, 2010) a uma pretensa
estrutura homogênea que só se faz assim aos olhos legitimadores da ciência que serve
ao discurso hegemônico. Neste sentido, o espaço torna-se algo em contínua construção
porque é lugar do encontro da diversidade (de sujeitos e de eventos: tanto de ações
estruturantes dos agentes econômicos que atuam em diferentes escalas, como da
interseção dos sujeitos comuns e suas formas de relações espontâneas) e, assim, o
espaço é algo que vai além da representação porque tal representação procura fixar
algo que, na verdade, sempre se transforma (MASSEY, 2009).
É nesse contexto que uma abertura do debate sobre a questão do cotidiano
se torna importante à Geografia, ou pelo menos um tipo de Geografia. Algumas
pesquisas e debates na Geografia brasileira, nessas últimas décadas, vêm se ocupando
com o estudo de pequenos espaços (ou o processo de diferenciação e também de
inter-relação de espacialidades vistas em muito grande escala) e/ou produção plural
do espaço urbano na perspectiva do uso, da percepção e da representação espacial de
pluralidades culturais e de uma variabilidade de grupos focais de pesquisa. Muitas
destas discussões veem a necessidade de se entender a complexidade do espaço
geográfico por um olhar “de dentro” da dinâmica social (muito parecido com um
sociologia du dedans, discutida por MAFFESOLI, 2010), sendo este espaço social
visto por sua multiplicidade de vivências que ora são constituídas, ora constituem
a (des)organização da sociedade.
Em virtude disso, certas tradições teóricas e metodológicas, que constituem
a Geografia, começam a ser revistas, principalmente seus conceitos articuladores
de visões da realidade e seus métodos de pesquisa. Podemos citar alguns trabalhos
importantes nessas discussões, como os de Souza (1995), que discute o conceito
130
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
131
Benhur Pinós da Costa
hegemônica do espaço geográfico). É por esse viés que escrevemos este ensaio, para,
em primeiro lugar, colocar em discussão certos preceitos conflituosos sobre cotidiano
e, posteriormente, trazer estes preceitos para a análise da Geografia, principalmente
em relação às posturas de pesquisa empírica.
132
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
133
Benhur Pinós da Costa
Ocorrem, então, duas lógicas de ação, uma estratégica e outra tática. A estratégia
representa o cálculo das relações de força e ela postula o lugar capaz de ser circunscrito
como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações
como uma exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica
foi construída segundo modelo estratégico. A tática é como um cálculo que não
pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que distingue o
outro como totalidade visível.
134
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua
ou para os enunciados proferidos [...] É um processo de apropriação dos sistemas
topográficos; é uma realização espacial do lugar (assim como o ato da palavra é
um realização sonora da língua); implica relações entre posições diferenciadas,
ou seja, contratos pragmáticos sob a forma de movimento. [...] Se é verdade
que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades e
proibições, o caminhante atualiza algumas delas, tanto fazendo-as ser como
aparecer. Mas também desloca e inventa outras, pois as variações e as improvisações
das caminhadas privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais.
[...] Também pode transformar em outra coisa cada significante espacial. Torna
efetivas algumas possibilidades fixadas pela ordem construída, do outro aumenta o
número dos possíveis ou dos interditos (se proíbe de passar). O usuário da cidade
extrai fragmentos do enunciado para atualizá-los em segredo. [...] Caminhar é ter
falta de um lugar. A cidade é uma imensa experiência social da privação do lugar.
O caminhar é a tática da busca de um próprio que se constitui no efêmero que
não se repete mas desestabiliza o lugar estratégico na reinvenção dos elementos
do espaço e no compartilhamento da experiência non sense. (Esta passagem é
135
Benhur Pinós da Costa
Não apenas a história, mas o espaço é aberto. Nesse espaço aberto interacional há
sempre conexões ainda por serem feitas, justaposições ainda a desabrochar em
interação (ou não, pois nem todas as conexões potenciais têm de ser estabelecidas),
relações que podem ou não ser realizadas. Não são relações de um sistema coerente,
fechado, dentro do qual, como se diz, tudo está relacionado com tudo. Um espaço
de resultados imprevisíveis e de ligações ausentes. Trajetória e estória significam
enfatizar o processo de mudança em um fenômeno. Noção de espaço ordinário,
o espaço e os lugares através dos quais, na negociação de relações dentro da
multiplicidade, o social é construído (p. 32).
136
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
lado, isso é ainda um desafio metodológico que nós, da Geografia, temos que nos
debruçar mais seriamente. Por outro lado se, segundo esta ideia sobre a produção
ininterrupta do espaço, do cotidiano, das ações hegemônicas e da sociedade, tudo se
transforma e nada é fixo, podemos pensar também que possa existir inúmeros fazeres
de pesquisa para captar tais construções complexas em seus “se fazeres” imprevisíveis.
Nessa ideia, a seriedade, a responsabilidade e a dedicação incansável se tornam
cada vez mais necessárias para construir suas próprias estratégias de descoberta
e de argumentação. O importante é tentar procurar saber de tudo e encontrar as
mais minúsculas e incoerentes relações, mesmo sabendo que esse tudo no tempo
mais próximo possível se esvairá em outras trajetórias constituídas do encontro
que as transformou e que pensamos ter captado. A pesquisa assim é contextual e
situacional, mas ela pode captar certos laços de relações que constituíram outras e
assim entender certos aspectos e fenômenos que ocorrem no espaço. A seguir, vamos
A escala, a microgeografia
Gomes (2001) denomina de “microgeografia” a abordagem geográfica que se
ocupa da análise dos fenômenos em grande escala. Porém, o mesmo autor argumenta
que não podemos voltar a uma geografia dos “casos únicos”, sendo necessário
estabelecer comparações e reconstituições de influências de outras escalas aos
fenômenos visíveis no cotidiano. Nesse sentido, essa análise microgeográfica se
relaciona metodologicamente aos estudos do cotidiano, uma vez que estes preveem
que toda manifestação cotidiana que se dá no lugar e no tempo “aqui e agora” deve
ser valorizada perante as análises estruturais da sociedade, mas, por outro lado,
estas mesmas análises devem ser levadas em conta, pois existem certas influências
interescalares que tanto podem construir e ser desconstruídas pela ação local cotidiana.
Nos trabalhos de Costa (2002, 2008), observamos essa tentativa de agregar
relações escalares na análise sobre os processos de microterritorializações homoeróticas
no espaço urbano. No caso destas microterritorializações, desenvolvemos uma
análise das questões estruturais da sociedade que condicionam uma organização
do espaço social assim como seus regramentos, mas ao contrário das representações
sociais institucionalizadas e das diretrizes do espaço público e privado, algo escapava
à normatização das convivências espaciais. Certas condições espaciais, que se
apresentavam desvinculadas dos regramentos contidos no espaço, possibilitavam
o encontro de uma diversidade dissidente, no caso do estudo vinculado aos desejos
homoeróticos.
Ao mesmo tempo, na discussão encontrada em Costa (2011), o mercado
apresentava-se como uma força que desorganizava as condições estruturais de
137
Benhur Pinós da Costa
138
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
Em outras palavras, digamos que, sem ser forçosamente participante ou ator – tal
como exigem certas metodologias – há certa interação, que logo se estabelece
entre observador e seu objeto de estudo. Há conivência; às vezes, cumplicidade;
diríamos mesmo que se trata de empatia (al. Einfühlung). Talvez seja isto o que
constitui a especificidade de nossa disciplina (grifo do autor). A compreensão envolve
generosidade de espírito, proximidade, “correspondência”. É justamente porque,
de certo modo, “somos parte disto tudo” que podemos apreender, ou pressentir,
as sutilezas, os matizes, as descontinuidades desta ou daquela situação social.
139
Benhur Pinós da Costa
analisarmos o contexto de ação em que agimos, ligando ação e reflexão em nós mesmos
e em relação aos outros com que convivemos. Além disso, ela possibilita sempre o
diálogo entre mim (agindo no contexto em que faço parte), o eu (a reflexão sobre
minhas representações nas ações) e o outro (aquele que age junto ou contra mim
no contexto de ação, podendo captar, assim, as continuidades de descontinuidades
de ações e representações). (Sobre essa relação entre “mim”, “eu” e “outro” ver as
discussões de Honneth (2003) e sua teoria das relações sociais de reconhecimento).
A dúvida que parte da reflexão contida no meu próprio eu (a reflexão sobre o mim e
sobre minhas ações nos contextos de interação e espacialização) gera um interesse
reflexivo também sobre o outro (que participa ou que contradiz) no sentido do
meu próprio entendimento e do entendimento dos contextos de ação e relação
(as espacialidades). Além do entendimento sobre os atos e o próprio contexto que
liga “mim”, “eu” e “outro”, vem a ampliação sobre as influencias contextuais em que
Etnografias em redes e territórios
estamos inseridos (Por que gostamos do que fazemos? O que nos reprime e o que nos
causa tristeza? O que nos lança à alegria? O que e por que nos definem dessa forma?
De onde vêm tais ideias e processos de que partilhamos? Etc.). Assim começamos
a questionar as influências estéticas e éticas em que estamos imersos e procuramos
explicações na tentativa de construir uma espiral de compreensões fora de nós e
dos contextos imediatos de que partilhamos. A isso implica perceber, contatar e
interpretar outras tramas que nos conduzem (fazendo outras relações escalares)
a formação do contexto, a certas historicidades, como representações contidas
nas mídias, nas esferas de consumo e de propriedade e formação estratégica dos
lugares, como as burocracias e as normativas institucionais etc. Porém, essa espiral
é produzida em primeiro plano no/por “mim” (“mim” agindo e “eu” pensando sobre
mim e o “outro”) e no meu contexto de ação que se torna contexto (espacialidade)
à ideia descrita por Maffesoli sobre a proximidade do pesquisador com o grupo focal e/ou lugar de
pesquisa, no sentido de se manter uma cumplicidade com o objeto e, até mesmo, ser participante ativo
das interações estabelecidas no cotidiano. Mesmo sendo participante do grupo, o papel de pesquisador
crítico altera o olhar em relação ao “eu” (pesquisador) e a “nós” (grupo que participo) e, na complexidade
das relações estabelecidas, o esforço de procurar questionar-se sobre as “coisas mesmas” simplórias, que
se repetem, deve custar muito a esse tipo de posicionalidade de pesquisa. Por um lado, a cumplicidade
pode levar a uma falta de parcialidade em relação às críticas estabelecidas, como uma acentuada defesa
do grupo e das ações estabelecidas, por outro lado, os resultados podem apresentar uma excessiva visão
do eu-pesquisador-participante, no sentido de que o conforto da participação tende a fazer esquecer
a visão dos outros componentes do grupo. Deve-se ter cuidado a essas duas questões nesse tipo de
posicionalidade e, mesmo sabendo profundamente dos fatos, atividades e acontecimentos, isto deve
representar somente uma pista a ser investigada, no sentido de trazer à tona outras opiniões e descrever,
como que desconhecida, outras atividades estabelecidas nos lugares de interação. Por outro lado, ainda,
sempre existirão coisas que são estranhas a nós, pois sempre lugares e grupos de convivência se alteram e
se transformam. A atenção aos estranhos cotidianos apresenta-se como profícua aos dados da pesquisa,
desde que nos esforcemos a não lançar nenhum juízo de valor apressado a elas, uma vez que nosso
estranhamento e “proximidade-distanciada” entre certos elementos do grupo e atividades desenvolvidas
é controlado por nossas afetividades e “desafetividades” cotidianas, que constantemente mobiliza
psiquicamente preconceitos e estereótipos. Esse tipo de pesquisa apresenta-se muito desafiadora.
140
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
Etnogeografia
Se o espaço é o encontro da multiplicidade constituído por “estórias até agora”,
estas estórias advêm da condução de sujeitos em interação que transitam por uma
diversidade de espacialidades. As estórias são trazidas de espaços em espaços em
diferentes momentos cotidianos, assim como determinados sujeitos transformam e se
transformam nos espaços trazendo contribuições de estórias distantes. Parker (2002)
analisa a produção de espaços de consumo gays no Brasil a partir de influências de
141
Benhur Pinós da Costa
142
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
143
Benhur Pinós da Costa
Representações
Segundo Maffesoli (2010), o mundo social contido nas representações
dos sujeitos apresenta-se com um conjunto de formas em formação, ou seja,
imagens inacabadas, transpostas e justapostas que definem igualdades, alteridades
e estranhamentos. Esse mundo social não é somente algo externo ao contexto do
pesquisador. Ele mesmo está condicionado por suas experiências empíricas, sociais,
científicas e conceituais a definir uma complexidade de formas socioespaciais. Dessa
forma, como geógrafos, somos acostumados a construir imagens dos fenômenos
com base em nossas experiências pessoais e acadêmicas. No entanto, temos que
ter cuidado com o controle das imagens estereotipadas que podemos construir,
principalmente porque elas são veículo de algum controle que queremos ter dos
fenômenos e espacialidades que queremos entender a fundo. Isso se torna crucial
quando existem algumas disjunções em nossos dados qualitativos (entrevistas,
Etnografias em redes e territórios
144
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
A ação estudada faz sentido, somente não sabemos que sentido é este
Um dos propósitos de trabalhar com a “hipótese nula” é tornar parte integrante
das atividades, processos e relações que produzem e são produzidos pela/na
espacialidade. Como parte integrante, encontramos um conjunto de sentidos e
compreensões em que nos conectamos com determinados sujeitos que serão fontes
de nossas descrições e reflexões sobre tal espacialidade cotidiana. Porém, temos que
ter cuidado para não nos apropriarmos em demasia daquilo que nos faz sentido e
tornar isto a condição de nossos resultados. Determinadas ações, reações, expressões
e interações não fazem sentido para nós no processo de integração etnogeográfica.
Temos que nos dar conta que determinados acontecimentos fazem sentido só que
não temos compreensões fundantes deles. Temos que procurar essas discordâncias
e os inesperados como uma “boa ideia” e seguir um novo esforço de aproximação,
como outra camada de atividade e descrição, para a compreensão dos sentidos e
145
Benhur Pinós da Costa
À discussão acima leva, sem dúvida, falando do ponto de vista prático, à ideia
de que as coisas não apenas acontecem, mas ocorrem numa série de etapas, que
nós, cientistas sociais, tendemos a chamar de “processos”, mas que igualmente
poderiam ser chamadas de histórias. Uma história bem construída pode nos
satisfazer como explicações para um evento. A história nos diz como algo aconteceu
– como isto aconteceu primeiro e fez, de uma maneira que parece razoável, com
que aquilo outro acontecesse, e depois como estas coisas levaram à seguinte...
e assim por diante, até o fim. [...] Aprendi, em grande parte sob influência de
Evertt C. Hughes, a pensar sobre essas dependências de um evento em relação a
outro como “contingências”. Quando o evento A acontece, as pessoas envolvidas
146
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
Assim sendo, temos que nos ocupar dos improváveis e inesperados fatos
ocorridos nas espacialidades que estamos apreendendo etnogeograficamente. Os
acontecimentos que fogem de nosso controle e explicação são os mais importantes
para tornarem mais próximas a compreensão do espaço como convergência
da multiplicidade e da diversidade de sujeitos e seus conjuntos de “estórias até
agora” (MASSEY, 2009). A composição dessas estórias nos possibilita um passo
para representar a trama de situações e espaços que se integram à emergência
da espacialidade, assim como tal evento, constituído na espacialidade, a alterará
Considerações finais
Observamos neste texto que os estudos do cotidiano são importantes para a
análise geográfica, como o desenvolvimento de uma “Geografia du dedans”, paralela
à sociologia du dedans, proposta por Maffesoli. Isso quer dizer que a experiência
etnográfica pode ser um processo metodológico discutido no estudo e na pesquisa
sobre o espaço, principalmente porque nossas fontes de dados se ocupam das
informações e grupos culturais e sujeitos que trabalhamos. Por outro lado,
demonstramos que essa pesquisa etnográfica deve também prezar uma ideia de espaço
geográfico dinâmico, em que a vida espacial de tais grupos e sujeitos apresentam-se
em constante transformação e instabilidade. Nesse sentido, na pesquisa, é de vital
importância captar a atividade dos sujeitos e não suas estabilidades, no sentido de
buscar uma representação acomodada de suas relações com o espaço. Nesse tipo
de projeto, também frisamos a possibilidade de aproximação do pesquisador com
o grupo pesquisado, rompendo a postura positivista da neutralidade científica. As
intersubjetividades construídas nos grupos de pertença não se apresentam de forma
estabilizada, como se pensa, uma vez que os sujeitos, na sociedade contemporânea,
partilham e participam de grupos muito heterogêneos, assim suas relações com o
espaço são híbridas e conflituosas. Mesmo o sujeito pesquisador ser parceiro do sujeito
pesquisado, suas visões de mundo são dispersadas pela diversidade e heterogeneidade
da vida social, fazendo com que a pesquisa se mantenha no sentido da descoberta
das instabilidades “no meu próprio mundo”. O desafio dessa discussão é grande, mas
147
Benhur Pinós da Costa
REFERÊNCIAS
BECKER, H. S. Segredos e truques de pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.
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(orgs.). Geografia cultural: um século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. v. 3.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. v. 1.
COSTA, B. P. A condição homossexual e a emergência de territorializações. 2002. Dissertação
Etnografias em redes e territórios
148
Geografia e cotidiano: reflexões sobre teoria e prática de pesquisa
149
Etnografias em redes e territórios
8 A pesquisa etnogeográfica com os
Kawahib em Rondônia: desafios,
trilhas e horizontes
152
A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
1 Além do herói mítico fundador Baíra, Bahira ou Mbahira’nga (demiurgo terreno, relativo à pedra e
promotor da cultura), os Kawahib possuem em sua cosmogonia Ivaga’nga ou Yvaga’nga (demiurgo
celeste, relacionado à espiritualidade) e Anhang (correspondente à natureza e aos espíritos inferiores
[demônios]), conforme Kracke (1984b) e Peggion (2005).
153
Adnilson de Almeida Silva
154
A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
2 O termo tradicional utilizado aqui é aplicado às demais coletividades, cujo modo de vida (ou
experiências socioespaciais) é marcado pela lógica de relações estreitas com o meio. Assim, constitui-
se como uma visão e interpretação do mundo, cujos valores de formas, representação simbólica e
presentificação são distintas daqueles da sociedade envolvente, porque se fundamenta no contexto da
sobrevivência material e espiritual na espacialidade e/ou territorialidade e encontra-se desvinculada da
ideia de apropriação dos recursos com finalidade econômica. Logo, possui certa proximidade conceitual
com os indivíduos indígenas.
155
Adnilson de Almeida Silva
[...] a partir da reprodução de uma imagem visual, que substitui o real através
da lembrança, provocada por fragmentos do real. O objeto pode ter sido
anteriormente percebido, como pode ser novo, produzido pelas capacidades
criativas e a representação (KOZEL, 2004, p. 223).
156
A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
A trilha metodológica
A pesquisa foi desenvolvida em quatro grandes componentes com fulcro
interdisciplinar e inter-referencial, conforme se vê:
– O primeiro componente transcorreu com o aprofundamento das
reflexões quanto às questões epistemológicas e aproximação teórica por meio das
discussões suscitadas em salas de aula, com o estabelecimento de leituras de obras
desenvolvidas por teóricos das mais diversas áreas do conhecimento. Esse momento
foi imprescindível para subsidiar a elaboração da teoria ou de sua teorização a partir
da temática proposta para a Tese, com ênfase na análise geográfica dos “marcadores
territoriais”, seus sentidos e seus significados da construção, forma e representação
simbólicas e presentificação do universo cosmogônico dos Kawahib da TIUEWW.
– O segundo componente efetivou-se com um minucioso levantamento
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A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
sendo que a ação humana ocorre no tempo e no espaço por meio de formas, de
representações simbólicas e de presentificações.
Figura 1. Trilhas da pesquisa.
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Adnilson de Almeida Silva
[...] envolve observação com anotação mental constante, muitas vezes, significa
deixar o papel de escriba das anotações de campo, enquanto pesquisadora [...]
acontecem as ricas conversas informais e/ou para a longa viagem de volta ao
campo. Esse é o ônus que se paga em um contexto de pesquisa aplicada [...]
há armadilhas conceituais relacionadas a temas cristalizados, emblemáticos do
positivismo, por exemplo, o trio ‘confiabilidade’, ‘validade’ e ‘generalização’ [...]
dois conceitos são importantes: a identidade e as representações sociais [...]
(CAVALCANTI, 2008, p. 238-239).
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A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
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A pesquisa etnogeográfica com os Kawahib em Rondônia: desafios, trilhas e horizontes
culturais, humanos, sociais refletidos em seu modo de vida, inclusive ser aceito e
respeitado como um deles – um parente, receber o nome indígena de Apinagá.
Conclui-se, desse modo, que os aportes teóricos e metodológicos relacionados
à vivência e à experiência no espaço de ação (dos e com) Kawahib contribuíram na
construção do trabalho científico e, em contrapartida, ofereceu-se a possibilidade
de sua visibilidade no contexto da sociedade envolvente. Aos Uru-Eu-Wau-Wau
(autodenominados Jupaú ou Pindobatywudjara-Gã), aos Juma e aos Amondawa
(autodeterminados de Envuga) nosso agradecimento pelo respeito e amizade.
Referências
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168
9 Etnografia Multilocalizada em
Antropologia e Geografia
1 Todas as traduções de trechos em língua estrangeira para o português foram realizadas pelos
autores.
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Etnografia Multilocalizada em Antropologia e Geografia
5 Importante ressaltar que Frobenius não era geógrafo, mas sim um etnólogo e arqueólogo
treinado por Ratzel. Contudo, naquele momento (século XIX), os limites disciplinares entre
etnologia, geografia e arqueologia não estavam totalmente claros, e muitos pesquisadores
encarnavam várias figuras e utilizavam métodos caros ao conjunto dessas disciplinas.
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Lucas Manassi Panitz e Luis Felipe Rosado Murillo
Haesbaert (1997) conclui que muitos sulistas reforçam seus laços identitários
ao fundarem, por exemplo, os Centros de Tradições Gaúchas que, ainda que
conservadores, constituem-se num contraponto à racionalidade da economia de
mercado que, contraditoriamente, é por esses mesmos grupos difundida. Para
realizar essa pesquisa, o autor não só fez diversos trabalhos de campo no nordeste
brasileiro, como considerou o trajeto que o levava do sul/sudeste até o nordeste –
realizando entrevistas durante o trajeto, no ônibus que o levava, coletando estórias
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Lucas Manassi Panitz e Luis Felipe Rosado Murillo
No Brasil, outras cidades acolhem os artistas por meio de instituições como o SESC7.
A Argentina, com menos artistas envolvidos na rede, recebe pequenos eventos,
principalmente em Buenos Aires, contudo é o local preferido pelos artistas para a
gravação de álbuns em função da qualidade técnica dos estúdios e dos produtores,
além do baixo custo de produção.
Figura 1: A rede de produção musical em destaque.
Etnografias em redes e territórios
7 Serviço Social do Comércio, rede nacional dedicada à formação profissional, serviço social e
ações culturais.
186
Etnografia Multilocalizada em Antropologia e Geografia
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Lucas Manassi Panitz e Luis Felipe Rosado Murillo
Considerações finais
Durante a reunião da Associação Norte-Americana de Antropologia (AAA),
em 2012, George Marcus apresentou um paper com a avaliação do trabalho etnográfico
experimental corrente desde a publicação de seu artigo de revisão bibliográfica que
tornou a proposta de etnografia multilocalizada bastante conhecida para além da
antropologia norte-americana. Em sua apresentação, Marcus discutiu os avanços
em direção ao trabalho colaborativo entre antropólogos e pesquisadores de outras
áreas no processo de desenho de pesquisa e definição de estratégias de representação,
evocação e interpretação. Em sua reflexão acerca da forma de exposição da proposta
de etnografia multilocalizada no texto de 1995, Marcus sugeriu que a metáfora
de “seguir” objetos e atores sociais carregava um sentido geográfico muito forte e
que a noção de “ativismo circunstancial”, que fechava o artigo, aparecia como uma
das consequências dessa forma, então emergente, de engajamento etnográfico.
Dada as transformações das condições de possibilidade do trabalho de campo na
contemporaneidade, a crítica à proposta de etnografia multi-sited apontava para o
risco da dissolução do poder explicativo e interpretativo da etnografia, dada a sua
dispersão potencial em diversos campos. O fundamento do fazer etnográfico na
188
Etnografia Multilocalizada em Antropologia e Geografia
Referências
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193
Etnografias em redes e territórios
10 Entre a paisagem sonora religiosa
e as paisagens da memória e
da imaginação: uma proposta
metodológica
Introdução
Os elementos sonoros da paisagem, entendidos na perspectiva
de Schafer (1991, 2001) como paisagem sonora1, apresentam-se
como elementares à compreensão da cultura em sua intrínseca relação
com a paisagem. Na busca de tal compreensão, há que se considerar
as paisagens sonoras de espaços restritos, pois adentrar determinados
espaços implica embrenhar-se num universo específico de valores
1 O termo “paisagem sonora” surgiu nos países de língua latina como tradução do
termo “soundscape”, um neologismo criado pelo músico e compositor canadense
Murray Schafer a partir da palavra inglesa landscape.
espaços externos ao espaço religioso por meio das ações dos indivíduos. Desse modo,
cada espaço religioso possui uma paisagem sonora específica que envolve seus fiéis,
ao passo que comunica acerca do sagrado – base da religião. Comunica ainda sobre
a comunidade, produzindo valores que se difundem no espaço externo ao religioso
por meio da espacialidade dos crentes.
O presente artigo apresenta e discute possibilidades metodológicas para o
estudo da paisagem sonora religiosa, tendo como base a pesquisa realizada junto ao
programa de pós-graduação em Geografia na Universidade Federal do Paraná, em
âmbito de doutorado, com a comunidade religiosa Adventista da Promessa do Bairro
Alto, na cidade de Curitiba-PR (TORRES, 2014). Para tanto, cabe, primeiramente,
assinalar as relações que se estabelecem entre a paisagem sonora e as paisagens da
memória e da imaginação.
Cada espaço religioso possui uma sonoridade própria e apresenta especificidades
e particularidades nos sons que produz, guardando semelhanças entre as religiões
de mesmas denominações e raízes, e diferenças entre as demais. A multiplicidade
de sons e sonoridades produzida e contida no interior dos espaços religiosos, aqui
denominada paisagem sonora religiosa, envolve seus fiéis por meio dos diferentes
elementos que a compõem, o que a faz portadora de mensagens e significados que
participam da identidade e do sentimento de pertença do ser religioso. Os fiéis e
frequentadores identificam-se com o espaço sonoro, reconhecem e interpretam
cada som e cada música, e também são capazes de interpretar e interagir em cada
momento do culto. Dessa forma, verifica-se uma reciprocidade de ações entre o ser
religioso e o espaço religioso e, consequentemente, com o espaço sonoro nele e por
ele produzido, o que reflete a identificação religiosa.
Percorrer, ver e escutar em campo
196
Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
pela imagem sempre presente do seu próprio corpo, ao que se pode afirmar que as
experiências corporais definem a construção da percepção, que estão diretamente
relacionadas às memórias, e que se vinculam às experiências compartilhadas entre
os integrantes de um mesmo grupo de convívio social.
O contato com as histórias de vida de outras pessoas do mesmo convívio
social, o compartilhamento de fatos e fenômenos ocorridos na coletividade, são
experiências que fazem do espaço e do tempo elementos essenciais à construção
da identidade. Do mesmo modo, essas experiências resultam em imagens para cada
indivíduo que, segundo Cassirer (2001), são produtos da capacidade empírica da
imaginação produtiva.
O que se tem início no contato imediato do indivíduo com o objeto/fenômeno,
a partir das sensações e percepções, perpassa a memória e a imaginação, elementos
que constituem a capacidade humana de significação simbólica que, quando
compartilhadas, encontram no outro possibilidades para a reconstrução do fato/
fenômeno a partir de suas experiências.
O espaço religioso apresenta-se como lugar familiar às pessoas que o
frequentam. Nele, experimentam e compartilham as manifestações do sagrado, além
de comunicarem entre si a fé e suas convicções, que se manifestam na paisagem e
integram o cotidiano do ser religioso. O espaço religioso é portador de uma paisagem
religiosa, que contempla as manifestações do sagrado, bem como o ser religioso,
que a refaz constantemente por meio de suas práticas religiosas, e nela encontra
elementos que participam da sua construção/reafirmação identitária.
Dentre os elementos que compõem a paisagem religiosa está a história da
religião e da instituição religiosa, que está intrinsecamente relacionada a um discurso
197
Marcos Alberto Torres
está conosco a todo instante, “debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar”
(BERGSON, 2006b, p. 48), num progresso que se soma aos anteriormente vividos, de
modo acumulativo, o que é trazido à consciência sempre que necessário à compreensão
da situação presente.
As paisagens da memória, portanto, constroem-se a partir das experiências,
vivências e valores compartilhados pelas pessoas, o que abarca os processos que
envolvem tanto o indivíduo como também a coletividade. O espaço religioso é
um dos espaços que proporcionam tais compartilhamentos, visto que nele os fiéis
frequentadores comunicam experiências e memórias, o que contribui para a construção
da identidade dos indivíduos, do grupo de religiosos e da religião, e também para a
construção da ideia de mundo, pois os fatos e momentos compartilhados no espaço
religioso somam-se às demais experiências pessoais do cotidiano.
A capacidade da imaginação e a faculdade da memória complementam-se,
visto que a imaginação baseia-se em elementos reconhecidos, pela experiência, que
integram as paisagens da memória; e a memória utiliza-se de elementos imaginados,
muitas vezes apropriados de relatos e discursos de terceiros. No caso das paisagens,
cabe estabelecer limites para que se torne possível distinguir as paisagens da memória
das paisagens da imaginação.
Nas paisagens da memória, prevalecem os elementos vivenciados, sentidos e
com significados atribuídos principalmente pelo indivíduo que recorda, enquanto
que nas paisagens da imaginação prevalecem os elementos idealizados, construídos
principalmente a partir de elementos que se aproximem da paisagem idealizada, com
base nas experiências do indivíduo. Como exemplos de paisagens da imaginação,
podem ser destacadas as que se referem ao Jardim do Éden e à Nova Jerusalém,
Percorrer, ver e escutar em campo
198
Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
199
Marcos Alberto Torres
2 Apesar de possuir 86 membros matriculados, a média de presença e participação nos cultos da Igreja
Adventista da Promessa do Bairro Alto é de 50%. Contudo, os números oficiais são ainda menores, pois
há apenas o registro dos participantes da Escola Bíblica, que ocorre das 9h até as 10h, antes do culto.
3 Brados de Júbilo é o hinário oficial da Igreja Adventista da Promessa. Trata-se de um compêndio de
hinos de diferentes hinários, como o Salmos e hinos, Cantor Cristão, Harpa Cristã, dentre outros. A
primeira edição foi publicada em 1939, e contava com 247 hinos. Atualmente, na 12ª edição, possui uma
seleção de 420 letras de hinos.
200
Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
201
Marcos Alberto Torres
Do total de arquivos gravados nos cultos, três foram selecionados para uma
análise mais profunda. Para tanto, foram consideradas as participações das pessoas
selecionadas para as entrevistas, de modo que cada arquivo foi ouvido para levantar
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Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
de mapas mentais a partir dos autores: Kevin Lynch, Lloyd Rodwin, Peter Gould,
Alexander Siegel, Gary Moore, Constancio de Castro Aguirre e Salete Kozel. Ao
analisar as distintas possibilidades metodológicas para a análise dos mapas mentais,
Kashiwagi concluiu que a metodologia Kozel é a mais complexa, pois vai além
da classificação e alcança a interpretação a partir de teorias sígnicas e linguísticas
(KASHIWAGI, 2011, p. 202). Essa metodologia considera a interpretação das
imagens com base em quatro elementos:
205
Marcos Alberto Torres
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Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
207
Marcos Alberto Torres
Considerações finais
O estudo da paisagem religiosa necessita de abordagens que superem o
seu aspecto visual, de modo a abarcar os significados e sentidos nela contida. A
interpretação das subjetividades daqueles que a constroem carece de uma imersão do
pesquisador nesse meio, de modo a revelar a religiosidade dos fiéis e a participação
de cada um na construção da paisagem.
Na pesquisa aqui relatada, a observação participante natural proporcionou o
registro de momentos espontâneos dos fiéis dentro do espaço religioso. De igual modo,
as entrevistas semiestruturadas realizadas nas residências também encontraram a
espontaneidade dos entrevistados, que falaram abertamente e sem constrangimento de
suas experiências religiosas, além de produzirem mapas mentais que se apresentaram
como importantes instrumentos na busca de respostas acerca das paisagens da
memória, o que contribuiu para o estabelecimento de relações entre as memórias
Percorrer, ver e escutar em campo
208
Entre a paisagem sonora religiosa e as paisagens da memória e da imaginação: uma proposta metodológica
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GIL, S. F. Espaço sagrado: estudos em geografia da religião. Curitiba: Ibpex, 2008.
209
Marcos Alberto Torres
210
11 Um mosaico de relações – o Pagus e
as múltiplas leituras para o estudo da
paisagem
Roberto Verdum
Daniele Caron
Letícia Castilhos Coelho
Marina Cañas Martins
Lucas Panitz
Maurício Pimentel
Geovane Aparecida Puntel
Mário Rangel
João Paulo Schwerz
Luis Aberto Pires da Silva
Juliane da Soller
Lucimar de Fátima dos Santos Vieira
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
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Verdum ET AL.
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
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Verdum ET AL.
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
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Verdum ET AL.
Berque, Denis Cosgrove, Paul Claval, Michael Jakob, Alain Corbain, David Lowenthal,
Paul Ricouer, Gaston Bachelard, entre outros. Como estudo de caso, utilizam-se
fotografias de Porto Alegre vista do Guaíba em diferentes períodos, considerados
emblemáticos em relação às transformações urbanas. Ao acessar as fotografias
enquanto vestígios deixados como uma experiência sensível do mundo, a paisagem
se revela, permitindo a apreensão de seus significados.
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
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Verdum ET AL.
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
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Verdum ET AL.
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Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
por imagens que reflitam as representações sociais dessas paisagens. A escolha das
professoras é justificada, segundo observações prévias de seus discursos e relatos de
ações pedagógicas desenvolvidas no CEFET do Município de São Vicente do Sul/
RS, caracterizando uma dinâmica de engajamento de um educador ambiental. As
professoras foram convidadas para um diálogo, onde se estabeleceu um debate inicial
sobre suas percepções da paisagem regional, como integrantes da comunidade local,
assim como o reflexo nas suas práticas pedagógicas. Utilizaram-se, como parâmetro
desse diálogo, as visitas já realizadas aos areais, focalizando diferentes escalas dessas
paisagens e buscava cercar o meu interesse as representações que esses caminhantes
construíam ao vivenciar essas paisagens.
Complementou-se a cena ao fomentar a realização de encontros para debates
locais sobre essas paisagens, incentivando a participação da comunidade escolar,
a fim de efetivar a apropriação das discussões sobre os destinos de tais paisagens
nas previstas apropriações econômico-desenvolvimentistas. As revelações das
representações sociais, resultantes das entrevistas e imagens produzidas no cenário
dos areais, constituíram os alicerces para novas possibilidades de leitura, tornando
viáveis novas práxis nas paisagens dos areais do pampa gaúcho. Foram utilizados
recursos de captura de imagens, se servindo de câmeras fotográficas digitais ou
representações através de desenhos, músicas, poemas, entre outras manifestações,
buscando captar as impressões significativas deixadas por essas paisagens.
223
Verdum ET AL.
224
Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
Conclusão
O uso de paisagem, enquanto categoria de análise do espaço, pode ser
considerado recente, sofrendo grande interesse, a partir do início do século XX,
nas discussões de geógrafos alemães e franceses distinguidos como naturalistas.
Duas abordagens foram recorrentes, uma que prioriza a morfologia da paisagem
(paisagem concreta), estabelecida no início do século XX, e aquela voltada para a
simbologia da paisagem (paisagem fenômeno), que começa a ganhar destaque no
final dos anos 1960.
Atualmente, a distância existente entre o entendimento da paisagem como
estudo morfológico e o entendimento da paisagem como estudo simbólico não
encontra espaço na atual noção de paisagem, por ser justamente na relação entre a
forma e seu valor como símbolo que reside o avanço dessa aproximação conceitual.
Com algumas dissonâncias típicas de um conceito ainda em fase de afirmação,
a paisagem acaba por ser adotada em diversos campos do conhecimento, tal qual
território: Geografia, Sociologia, Biologia (e Ecologia mais especialmente), Artes,
225
Verdum ET AL.
Referências
BACHELARD, G. A dialética da duração. São Paulo: Editora Ática, 1988.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios literatura e história da cultura. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense. (Obras Escolhidas), v.1, 1994.
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São Paulo: Edusp, 1994.
BUSQUETS, J. La importància de l’educació em paisatge. In: NOGUÉ, J. et al. (Orgs.) Paisatge i
Percorrer, ver e escutar em campo
226
Um mosaico de relações – o Pagus e as múltiplas leituras para o estudo da paisagem
227
Verdum ET AL.
228
12 Dos recortes do espaço à
instrumentalização da geografia
Apontamentos
Este artigo tem como objetivo expor e aprofundar uma das
temáticas que envolveram a pesquisa de dissertação de mestrado
deste autor (LIMA, 2015), as ambiências enquanto ferramenta
de regionalização do espaço urbano. Para tanto, realizar-se-á um
movimento que parte das noções de phýsis e kósmos, passando pela
origem da Geografia e da compartimentação analítica da Terra, como
em Heródoto e Eratóstenes, até chegar a duas noções de ambiência,
que levarão à sistematização de apontamentos metodológicos e,
enfim, à conclusão.
O leitor pode se perguntar a razão de, novamente, recuperar-se
o conceito de região, dado que autores “de maior peso” já o fizeram
A natureza e o universo
As origens da Geografia, como ocorre com diversas outras disciplinas e
assuntos em geral, remontam aos gregos da Antiguidade. Como certa feita foi dito
a este autor: “antes de achar que pensaste algo original, tenhas certeza se os gregos já
não falaram sobre o assunto”. No presente caso, de fato, contamos com Heródoto, “o
primeiro geógrafo” (CLAVAL, 2014, p. 77) e, dois séculos depois, com Eratóstenes,
quem efetivamente cunha o termo Geografia (CLAVAL, 2014, p. 66). Esses são,
“[n]a Antigüidade, os grandes nomes relacionados ao conhecimento geográfico”
(LENCIONI, 2003, p. 39). É necessário adentrar nessa espécie de genealogia (de ir
às origens) da geografia/região, a partir da época efervescente que foi o nascimento
da Filosofia, porque é daí que se lançam as bases para a construção do que veio
a ser o “pensamento ocidental”, e, por óbvio, o próprio pensamento geográfico
(LENCIONI, 2003, p. 32-44).
Percorrer, ver e escutar em campo
230
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
231
Theo Soares de Lima
[...] a partir do fato de que uma dada coisa tem uma phýsis, Heródoto não nos
permite inferir que sempre a veremos na posse total dessa phýsis. Assim, é da phýsis
de um crocodilo ter um rabo, mas não se segue daí que este crocodilo o terá: ele
pode tê-lo perdido em uma briga ou de qualquer outra maneira. A única coisa
certa para Heródoto é que, exceto pela intervenção do sobrenatural, sempre que
as coisas interagem, as suas phýseis estabelecem os limites do que pode acontecer.
O que os physiológoi fazem é abandonar essa exceção [do sobrenatural]. Eles
fazem do mundo um cosmos, conservando o que lá já estava em forma de phýsis
e eliminando todo o resto (negrito nosso; VLASTOS, 1987, p. 22).
A primeira coisa que se pode salientar na relação dos dois termos presentes
na citação, a partir dela própria, é que kósmos é mais amplo do que phýsis: esta é
açambarcada por aquele. Explique-se, novamente, por meio de etimologia.
Cosmos, como chega até o português, advém de kósmos, que significa um
conjunto de coisas ordenadas, resultado da ação verbalizada pelos gregos como
“kosméo: colocar em ordem, arranjar, arrumar” (VLASTOS, 1987, p. 11). Entretanto,
este termo não se esgota no seu sentido de ordem, posto que há um componente
estético no ordenamento, aproximando-o da ideia de “ornamentar, ornamento”
(VLASTOS, 1987, p. 11), “ordenação com beleza” (MURACHCO, 1997, p. 21), “uma
organização que impressiona os olhos e a mente como agradavelmente apropriada;
como estabelecendo, mantendo ou repondo as coisas em sua ordem própria” (grifo nosso;
VLASTOS, 1987, p. 11). Não por coincidência, este sentido de belo é que origina
a palavra “cosmético” (VLASTOS, 1987, p. 11).
Enfim, o grande salto a ser entendido aqui é de que forma esse termo - utilizado
para aquilo que faz um comandante, ao dispor seus homens em batalha ou, então,
para o que fazem os funcionários de justiça, ao preservar a ordem legal - passa a
Percorrer, ver e escutar em campo
ser aplicado “[...] como nome de um sistema físico composto pela Terra, Lua, Sol,
estrelas e tudo o que estivesse em, sobre ou entre esses objetos [...]” (VLASTOS,
1987, p. 11-12).
Tal salto se configura, conforme consta no trecho supramencionado, pelo
abandono da exceção. A “natureza”, entendida por intermédio da ideia de cosmos,
passa a ser compreendida por meio da percepção de suas regularidades. Essa
concepção, ademais, é uma operação de duas pontas: de um lado, ela ataca o caráter
sobrenatural que explica, pretensamente, os fenômenos por meio de mitos, como
uma erupção vulcânica ser uma intervenção divina. De outro, ela é a possibilidade
de produzir “teorias sobre a phýsis do Universo como um todo” (VLASTOS, 1987,
p. 22), sendo a previsão atribuída a Tales, de um eclipse total do Sol, exemplar nesse
sentido (BORNHEIM, 1998, p. 22).
Por último, como curiosidade, podem ser lembradas duas concepções
libertárias que se aproximam muito da concepção grega – uma que afirma que a
natureza é “o todo, do qual o homem é uma metáfora” (grifo do autor; BOOKCHIN,
s/d, p. 86), e outra que diz que o “homem é a natureza tomando consciência de si
232
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
233
Theo Soares de Lima
2 Um bom quadro sinótico, contendo diversos nomes mencionados nos tópicos 2 e 3, pode ser encontrado
ao final do capítulo “As origens do Conhecimento Geográfico” (LENCIONI, 2003, p. 71).
234
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
Ambientes e comportamentos
235
Theo Soares de Lima
apregoa, em sua expressão máxima, que “a principal atividade dos moradores será a
deriva contínua” (IVAIN, 2003, p. 71), em resposta às concepções modernistas que,
segundos os situacionistas, carregaram para dentro das cidades um viés urbanista
funcional, fragmentador do tecido urbano em áreas com finalidades de usos específicos.
Para que o urbanismo unitário pudesse ser alcançado, os situacionistas
propuseram uma técnica de investigação que se ocupava de identificar ambiências
existentes no espaço urbano. Esse primeiro resultado deveria servir para impulsionar
novos usos para os locais, como um catalisador pelas constatações que gera. A
essa técnica deram o nome de “psicogeografia” (DEBORD, 2003, p. 56), definido
como o “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado
ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”
(INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2003, p. 65).
Foi essa proposta que assumiu lugar central na dissertação deste autor (LIMA,
2015), tendo como principal fonte, para entender a “metodologia” da psicogeografia,
o relatório das derivas realizadas por Abdelhafid Khatib no bairro parisiense Les
Halles (KHATIB, 2003, p. 79-84). Neste bairro, estava presente um mercado público,
para o qual o situacionista pensou o uso de “um parque de diversões para a educação
lúdica” (KHATIB, 2003, p.84). O mercado foi demolido logo após o término
forçado de sua pesquisa, entretanto, o relatório permaneceu como exemplo do que
esse movimento pretendia, quando falava em superar o funcionalismo moderno.3
Ressalta-se que, depois da abertura deste tópico, por duas vezes utilizou-se
deriva nos dois sentidos que os situacionistas têm para esta palavra (DEBORD,
2003) – uma atividade cotidiana e um meio para um fim, a pesquisa psicogeográfica.
Ambos, porém, são transversalizados pela noção de ser uma “técnica da passagem
Percorrer, ver e escutar em campo
[...] uma noção de espaço geográfico como um sistema composto por relações
sociais articuladas a relações físico-sociais, espaço condicionador da existência
3 Como esclarece a nota ao fim de seu relatório, um decreto passou a proibir a permanência de norte-
africanos nas ruas parisienses depois das 21h30 e as principais ambiências do bairro eram noturnas.
236
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
humana e que pode, este espaço, ser eleito como objeto catalisador de ações
transformadoras exatamente por este motivo – por ser condicionador da existência
humana (grifos nosso; REGO, 2000, p. 7).
Vivências e parâmetros
Da abordagem feita até aqui, decorrem duas afirmações centrais. A região
(e, consequentemente, a ambiência) é composta, necessariamente, de “um fato
externo, presente na superfície terrestre, e um fato teórico, presente na ação de
237
Theo Soares de Lima
quem grafa” (LIMA, 2015, p. 74). É isso que faz dela um “artefato” (HAESBAERT,
2010), resultado de um artifício particular, utilizado pelo sujeito que regionaliza
um fenômeno específico.
A abertura desse item serve de alerta epistêmico, pois não permite conceber
regiões somente como um intuito analítico, nem somente como um fato natural,
dado e único para cada local. Assim, o que se está defendendo é que a mesma área
pode comportar, simultaneamente, diversas regiões, o que não pode acontecer é
circunscrever-se, arbitrariamente, porções de algo que inexiste factualmente, como
ocorrências de florestas em áreas de desertos.
Novamente, faz-se notável o pensamento dos physiológoi: ainda que algo
seja manifesto (que é o sentido etimológico grego de fenômeno, phenomenon -
fato, ocorrência, aquilo que aparece)4, sua ordenação precisa ser desvendada. É
um acontecimento que independe do observador para acontecer e que, contudo,
aquele só pode ser explicado por este. Essa é uma constatação evidente pelo fato de
que os gregos da antiguidade sustentaram, como causa da ordem e da subjacência
do cosmos, elementos diferentes. O mesmo fenômeno é explicado de inúmeras
maneiras, verdadeiras ou não, mas a existência do mesmo não é colocada em xeque.
Aproveitando-se essa retomada dos itens 2 e 3 deste artigo, mais uma vez são
importantes as noções de phýsis e kósmos, porque auxiliam a situar as ambientações.
As ambiências gerais comportam inúmeras totalidades singulares e cada uma, todo
ou partes, formada de acordo com as características que as fazem ser o que são, uma
natureza própria que se dá de maneira ordenada. Tal qual em Heródoto, em que
o mundo era composto por quatro grandes regiões, formadas de regiões menores,
como a Cítia, que comporta, por sua vez, regionalizações internas, como a Hiléia:
Percorrer, ver e escutar em campo
regiões dentro de regiões. Essa é a máxima legada pelos physiológoi, no que concerne
as ambiências, porque independente da escala em que sejam demarcadas, há sempre
uma organização que lhe dá suporte e que a propicia. Com Reclus (1985b) temos a
mesma percepção, transposta diretamente para as cidades, porque cada uma
[...] tem sua individualidade particular, sua vida própria, sua fisionomia, trágica
ou triste em algumas, alegre ou espiritual entre algumas outras. As gerações que
ali se sucederam lhe deixaram seu caráter distintivo; constitui uma personalidade
coletiva, cuja impressão sobre o indivíduo isolado é má ou boa, hostil ou
acolhedora. Mas a cidade é também um personagem muito complexo, e cada
um dos seus diversos bairros se distingue do outro, por uma natureza particular (grifo
nosso; RECLUS, 1985b, p. 154).
238
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
239
Theo Soares de Lima
240
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
(RECLUS, 1985b, p. 154), ela certamente calca-se nas condições da natureza, que
“influem, para melhor ou para pior, no desenvolvimento das cidades” (RECLUS,
1985b, p. 151).
Assim, evidencia-se uma dupla preocupação com a materialidade – natural
e social/construída –, que sustenta as práticas das derivas. De forma geográfica e
sintética, pode-se dizer que a delimitação de ambiências calca-se num “substrato
espacial material” (SOUZA, 2013, p. 63-76).
(b) A delimitação de ambiências depende do indivíduo que a efetua.
Mesmo que não se estivesse falando do presente tema, a ressalva contida
neste parâmetro é válida para qualquer pesquisa. Não existe obra sem autor, e, assim
sendo, não há trabalho que não contenha um cunho biográfico, “porque todos os
filósofos, sem exceção, pensam a partir de sua existência própria” (ONFRAY, 2010,
p. 13). Ainda que os resultados e o compromisso crítico não devam, jamais, ser
suprimidos frente a questões pessoais - como muito se fez em nome da ideologia
-, os caminhos são particulares às vidas que os trilharam. “Cada um de nós é, na
realidade, um resumo de tudo aquilo que viu, ouviu, viveu, de tudo aquilo que pôde
assimilar pelas sensações” (RECLUS, 1985a, p. 57).
Portanto, as ambiências são, sim, resultado do mundo sensível, mas não
se esgotam nele, muito menos são devaneios de quem deriva, porque não se dão
apenas na individualidade do que cada ente acha e opina sobre as coisas manifestas.
Também é “necessário buscar teorias e dados estatísticos e documentais para auxiliar
tal investigação” (LIMA, 2015, p. 125), de maneira que haja suportes que extrapolem
as próprias vivencias.
(c) A delimitação de ambiências depende das existências compartilhadas.
241
Theo Soares de Lima
51), aclarando apenas que é uma ideia que inverte as comumente chamadas “saídas de
campo”, que dá a impressão de que o trabalho de campo ocorre por serem deixados
escritórios, laboratórios, salas de aula. Quando, em verdade, o que importa é para
onde se está indo, a área a ser explorada. A segunda vez, foi na dissertação (LIMA,
2015, p. 14-17), em que foram feitos apontamentos metodológicos sobre a realização
das derivas que lá seriam relatadas. Dentre tais apontamentos, alguns já foram aqui
mencionados, mas cabe o reforço. Num período de dois anos, não há a necessidade
de realizar derivas diariamente. É preciso deixá-las assentar: pensar e escrever sobre o
que foi vivido. Claro que se houver uma disponibilidade curta de tempo, a discussão
é outra. Não é necessário, também, restringir as vivências do local apenas aos dias
inicialmente programados, porque o acaso tem papel importante nesse submergir.
Na dissertação, por exemplo, foi exatamente por um desses acasos que se tomou a
decisão de incluir todas as experiências relacionadas ao bairro como integrantes da
subjetividade em construção. Tal foi o desdobramento de uma conversa em um táxi,
indo para a rodoviária e falando sobre as (im)possibilidades de sua expansão física.
A discussão, por sua vez, das entradas de campo enquanto viagens investigativas,
deu-se em um subcapítulo da dissertação, denominado “Botar o pé na estrada” (LIMA,
2015, p. 103-114), em que é apresentada a proposta de Onfray (2009) e sua poética
da geografia, que supõe a “arte de deixar-se embeber pela paisagem, para querer
depois compreendê-la, vê-la em suas combinações [...]” (ONFRAY, 2009, 106).
Não cabe retomá-lo completamente agora, apenas aclarar a relação feita com o autor.
Quando se prepara uma viagem, escolhe-se um destino, ou vários, discutem-se
possibilidades de deslocamento, criam-se expectativas e, quando chega o momento,
deixa-se o conforto do lar e ruma-se ao desconhecido. O encontro com novas
Percorrer, ver e escutar em campo
paisagens e paisanos transforma o viajante que, quando retorna, não é mais o mesmo
de quando partiu. Desses encontros são feitos registros para a posteridade, como
diz a expressão - Onfray chama isso de “organizar a memória” (ONFRAY, 2009,
p.49-54). Esses registros podem ser elaborados de diversas maneiras, pois uma foto
não é, em princípio, mais realista que um desenho, ou mais esclarecedora que um
poema. Finalmente, quando se está de volta aos lugares familiares, o viajante traz
consigo novas estórias e pertences, que cristalizarão a versão narrada a outrem. Esse
momento é o “depois”, ao qual Onfray (2009, p 98-108) atribui o próprio sentido
etimológico de geografia, de estar escrevendo sobre a Terra.
Pois todas essas características da viagem são partilhadas pelas experiências
derivantes da psicogeografia. Organização, partida, vivência, registros e retorno, para
repassar tudo de novo com o labor da escrita, afinal, não é o momento em si que dirá
o que representou a viagem, mas a versão relatada dele. Enfim, não só as viagens e
as derivas possuem suas semelhanças, os viajantes e os derivantes também, porque
ambos o fazem diferenciando-se do turista. Enquanto este compara, o viajante/
derivante - investigador da psicogeográfica - separa, por meio de uma “vontade
242
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
243
Theo Soares de Lima
(LIMA, 2015, p. 50), porque sua utilização não demanda que, ao término, tenha-se
um mosaico completo, perfeitamente limítrofe entre as partes e todo - a ambiência
geral e as internas. Também é válido pensar nas variações que pode apresentar uma
mesma ambiência: dois derivantes estão de acordo que o bairro Centro Histórico de
Porto Alegre, por exemplo, possui uma ambiência geral, que lhe distingue dos bairros
subjacentes, mas um acredita que a ambiência se confunde exatamente com as vias
do limite administrativo e o outro, não, que a ambiência termina algumas quadras já
no bairro seguinte. Mesmo que haja essas discordâncias, e, de fato, elas existem, isso
não só é aceitável, como é salutar. Primeiro, porque isso tende a ser uma questão de
ajuste, de detalhes que, além de não comprometerem o escopo maior do trabalho,
podem torná-lo mais rico. Nesse caso de impasse, uma opção seria representar o
encontro das duas ambiências, sobrepondo seus limites em uma área hachurada.
Em segundo, porque a diversidade de pessoas e opiniões é condição para a própria
existência da cidade, portanto, da própria psicogeografia.
***
244
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
Encerramentos
Em termos de proposições gerais, o presente artigo foi formado por três
momentos que costuram os assuntos de cada item/tópico. O primeiro momento
mostrou que as origens da Geografia remontam, especialmente, aos gregos da
Antiguidade. Suas noções de phýsis e kósmos influenciaram a maneira com que
geógrafos enxergaram, e enxergam, a disciplina. Tendo chegado com força, inclusive,
no momento de institucionalização da ciência moderna. Acompanhando as duas
noções, esteve a prática de dividir a superfície terrestre, que legou a discussão acerca
do conceito de região. O segundo momento explicitou os conceitos de ambiência e
encaminhou alguns apontamentos metodológicos. O terceiro, por sua vez, foi o de
elaboração dos parâmetros, propriamente, e da conclusão que segue.
Já mencionados, os conceitos de natureza e universo não foram desenvolvidos
na dissertação do presente autor, na qual permaneceram como entendimentos
245
Theo Soares de Lima
Referências
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246
Dos recortes do espaço à instrumentalização da geografia
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SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro:
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VLASTOS, G. Os gregos descobrem o Cosmos. In: VLASTOS, G. O Universo de Platão.
Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1987, p. 11-24.
247
Percorrer, ver e escutar em campo
13 Geografia e experiência
cinematográfica: apontamentos para
uma metodologia
Apresentação
O presente texto parte da reflexão sobre possíveis contribuições
do registro audiovisual à pesquisa qualitativa geográfica em contextos
socioculturais. A pesquisa nesses contextos complexos impõe a
necessidade de compreender situações singulares, na escala do
mundo vivido, do cotidiano. Esse é o tempo em que a ação se
inscreve no espaço produzindo as geo-grafias e os territórios. Há
assim o desafio de aproximar a pesquisa da experiência humana
2 Para Heidrich (2010), podemos falar de cultura pela ação, no sentido de cultivar, de fazer uma ação
no espaço, transformá-lo, produzir um habitat. Assim, as paisagens adquirem identidade, lugares são
denominados, e falam de si mesmos por serem resultado das inúmeras formas de mediação. Cultura
possui uma morfologia e produz diferentes feições no espaço.
250
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
251
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
Para Tarkovski (1998), nessa linha, o cinema teria como uma de suas
especificidades a reconstituição da experiência espaço-temporal humana. O filme
assim pode ser considerado como um espaço-tempo impresso. Os fragmentos de espaço-
tempo podem ser combinados com outros para serem projetados, vivenciados pelo
espectador como um tempo dentro de outro tempo. Por outro lado, procedimentos
técnicos e teóricos desenvolvidos ao longo da história dessa arte permitem aos
cineastas obterem intencionalmente o que se denomina de realismo cinematográfico.
E essa experiência de realismo seria o que leva o espectador a conectar-se com a
narrativa e a compartilhar a experiência do personagem na tela. Ao considerarmos
que a representação pode ter como função produzir imagens, comunicar e causar
uma impressão naquele com quem se interage, a reflexão sobre esses processos na
produção de representações em pesquisa qualitativa parece-nos de fundamento.
Nessa linha, a partir de revisão bibliográfica, dedicamo-nos no presente texto a
abordar procedimentos técnicos e noções teóricas da linguagem cinematográfica
ou audiovisual3. Para tanto, dividimos nossa argumentação em quatro partes.
A primeira parte aborda especificidades do cinema em suas modalidades
ficcional e documental. Problematiza-se a relação dessa produção de imagens com
o mundo histórico e com o espectador, pensando a legitimidade e questões éticas
envolvidas na criação de uma representação audiovisual da realidade. A segunda
parte discute qualidades da experiência cinematográfica. A reflexão é feita a partir
de dois procedimentos considerados como específicos da arte cinematográfica, a
mise-en-scène, entendida como encenação cinematográfica, e a montagem. A terceira
parte se volta para as especificidades da linguagem cinematográfica e o realismo
no documentário. E a quarta parte se volta para a construção do personagem no
Percorrer, ver e escutar em campo
3 Nossa reflexão parte também de experiência empírica no âmbito acadêmico. Junto à Faculdade de
Arquitetura/UFRGS, com a realização do dasgaragens (AGUIAR; AGUIAR; OLIVEIRA, 2010)
e Tempo de Pedra (AGUIAR, 2009; AGUIAR; WEBER, 2009; AGUIAR; AGUIAR 2010), com
orientação do Prof. Douglas Aguiar. Como parte da dissertação de mestrado, na Geografia/UFRGS,
com a produção de Assentamento (AGUIAR, 2011), orientação do Prof. Álvaro Heidrich. Também
a experiência como ministrante de cursos de capacitação junto ao Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Rural/UFRGS (AGUIAR; VERCH; KUBO, 2016), com orientação da Profa. Rumi
Kubo. Além disso, a experiência profissional motiva-nos a levantar as questões trabalhadas neste texto.
252
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
253
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
254
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
255
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
Ele é maior que suas partes e as orquestra enquanto: 1) vozes recrutadas, sons
e imagens recrutados; 2) a “voz” textual expressa pelo estilo do filme como um
todo (de que modo sua multiplicidade de códigos, inclusive os pertencentes às
vozes recrutadas, é orquestrada num único padrão de controle); e 3) contexto
256
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
histórico, incluindo o próprio ato de assistir, que a voz textual não pode ignorar
ou controlar plenamente (NICHOLS, 2005, p.63).
257
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
It is probably true that we cannot experience the action of a play from ‘within’
its space time in the way we can in film. The perceptual causes of that probable
difference are not hard to find. They lie in the technical capacities of the
cinematograph, its perspectival deployment and movement, its ability to shoot
its subjects from a whole range of distances, as well as the nature of perceived
movement on the screen in whose flow and rhythms we tend to be caught and
carried as on a slow or fast moving stream. They present very sophisticated
techniques involving the use of a variety of camera lenses, including the wide-
angle lens, increase the ability of film to transport the viewer perceptually and
Percorrer, ver e escutar em campo
258
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
ou vir de fora para dentro do recorte. Essa ação supõe a continuidade do espaço
cinemático para além dos limites da tela. E o movimento de câmera panorâmico
abre a perspectiva para o espaço fora de tela e, assim, amplia a área da narrativa,
estendendo-a em direção ao mundo.
Outra qualidade do espaço cinemático é a capacidade de proporcionar ao
espectador a ilusão de profundidade, graças às leis da perspectiva que se imprimem
com a utilização de diferentes lentes e posições de câmera. Assim, além de ter
continuidade homogênea para além do recorte da tela, dentro da mesma o espaço
pode ser trabalhado em profundidade. Para Bazin (1991), filmes de cineastas como
Orson Welles e Jean Renoir são fundadores dessa exploração da profundidade
de campo e criam uma nova forma pensar a ação no espaço, com consequências
transformadoras também para o processo de montagem. Nesse sentido, com o uso
da profundidade de campo, cenas inteiras são tratadas numa única tomada, com a
câmera ficando até mesmo imóvel. Os efeitos dramáticos anteriormente exigidos
da montagem surgem aqui do deslocamento dos atores dentro do enquadramento
escolhido. Assim, com a busca da composição da imagem em profundidade, os
cineastas conseguem uma supressão parcial dos cortes e das mudanças no ângulo
de visão da câmera, ou seja, uma supressão da montagem. Essa seria substituída por
frequentes panorâmicas e entradas no quadro. O uso desse espaço que adentra a tela
nesse sentido supõe um respeito à continuidade do espaço dramático.
Ao analisar a obra de Orson Welles, Bazin (1991, p. 76) reforça que a utilização
frequente de planos-sequência6 pelo cineasta, tratando de determinada ação num
mesmo quadro, não é um registro passivo da ação. Pelo contrário, “a recusa de cortar
259
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
ela afeta as relações intelectuais do espectador com a imagem e, com isso, modifica
o sentido do espetáculo. Para o autor, nesse sentido:
conta ainda com uma organização em narrativa, que tem início, meio e fim, e que
fixa os limites entre ela e o resto do mundo. A narrativa, assim, se opõe ao mundo
real, fundando momentaneamente seu próprio mundo. Nesse sentido, para Metz
(2006), o realismo no cinema também diz respeito à organização do conteúdo
narrativo. A narração, nesse sentido, seria uma sequência temporal, um sistema
de transformações temporais, que realiza a transposição de um tempo para outro
tempo8. Na sequência temporal construída pela narrativa, o usuário/espectador
leva certo tempo para percorrer as transformações programadas pelo autor/diretor
(seja o tempo da leitura, na narração literária ou o tempo da projeção, na narração
cinematográfica). O espaço cinemático, onde se desenvolve a narrativa, precisa ser
dinâmico, mantendo a unidade da ação, do lugar e da visão do espectador. Conforme
observam Aitken e Zonn (2009), essa unidade é concebida a partir das convenções
8 Para Metz (2006), a narração diferencia-se da descrição justamente por sua relação com o tempo, já que
a descrição realiza a transposição de um espaço para um tempo. Por outro lado, o espaço está sempre
presente na narrativa cinematográfica, já que essa se realiza através da imagem - que transpõe um espaço
para outro espaço - e oferece a ilusão espaço-temporal criada pela sobreposição das imagens fotográficas.
260
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
261
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
Por imagem entendo de modo bem geral tudo aquilo que a representação na
tela pode acrescentar à coisa representada. Tal contribuição é complexa, mas
podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem
e os recursos da montagem (que não é outra coisa senão a criação de um sentido
que as imagens não contêm objetivamente e que procede unicamente de suas
relações) (BAZIN, 1991, p. 67).
9 Para Aumont e Marie (2003), trucagem seria toda a manipulação realizada na produção de um filme
que acaba mostrando na tela algo que não existiu na realidade. É assim implicitamente reconhecido que,
além de sua capacidade analógica e realista, o cinema também tem um poder de invenção e fabricação
de mundos.
262
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
a montagem não desempenha [...] praticamente nenhum papel, a não ser o papel
totalmente negativo da eliminação inevitável numa realidade abundante demais.
A câmera não pode ver tudo ao mesmo tempo mas, do que escolhe ver, ela se
esforça para não perder nada (BAZIN, 1991, p. 69).
Tarkovski observa, contudo, que toda forma de arte envolve algum processo
de montagem, no sentido de seleção, cotejo e ajuste de partes e peças. Na perspectiva
do cineasta, embora a junção das tomadas seja responsável pela estrutura de um
filme, não é a montagem que cria o seu ritmo. O ritmo estaria expresso no fluxo do
tempo no interior do fotograma. Esse seria o fator dominante e todo-poderoso da
imagem cinematográfica.
263
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
Nessa perspectiva, o tempo específico que flui através das tomadas criaria o
ritmo do filme. O ritmo não seria determinado pela extensão das peças montadas,
mas sim pela pressão do tempo que passa através de cada uma. Poderíamos, nesse
sentido, pensar que a pressão de tempo pode ser traduzida em termos de ação, de
encenação, movimento e relações espaço-temporais dentro do quadro. Assim, no
processo de montagem, o desafio do diretor seria valorizar o fluxo de tempo registrado
no fotograma durante a filmagem.
Aproximando essas noções da produção documental, Ramos (2012) sugere
que a mise-en-scène, nesse gênero, não deveria necessariamente ter como principal
referência os parâmetros imagéticos e sonoros do cinema de ficção. Apoiados neles, diz
o autor, não abordamos a carne viva, o corpo em vida, que encarna necessariamente
a ação cênica. A ação do corpo dentro da tomada seria assim o coração da encenação
documental.
A ação deste corpo, juntamente com a expressão do afeto na face, pelo olhar,
compõem, em sua conformação com a câmera, o núcleo dos procedimentos que
caracterizam a encenação fílmica. Bate aí o coração da cena cinematográfica. A
ênfase no que significa um corpo na tomada constitui o umbigo da especificidade
da encenação documentária. É através das especificidades do movimento e da
expressão do corpo em cena que recortaremos o conceito de mise-en-scène para
articulá-lo com o campo do cinema documentário. É na ação do corpo em cena,
Percorrer, ver e escutar em campo
264
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
É o devir da personagem real [que deve ser apreendido], quando ela própria
se põe a “ficcionar”, quando entra “em flagrante delito de criar lendas”, e assim
contribui para a invenção de seu povo. A personagem não é separável de um
antes e de um depois, é o que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela
10 Ver capítulo 1, Método e metodologias na pesquisa das geografias com cultura e sociedade.
265
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca querer ser fictícia
(DELEUZE, 2005, p.183).
266
Geografia e experiência cinematográfica: apontamentos para uma metodologia
267
Julia Saldanha Vieira de Aguiar
Considerações finais
Nossa intenção ao longo das páginas deste artigo foi trazer elementos que
possam enriquecer o uso de ferramentas audiovisuais em pesquisas qualitativas
geográficas. Buscamos, assim, uma aproximação entre possibilidades da arte e
necessidades da ciência. Parece-nos, nesse sentido, uma interface rica, na qual a
linguagem cinematográfica poderia representar dimensões do vivido que o texto, o
gráfico e até mesmo as fotografias esboçam, mas não são capazes de apresentar em
sua totalidade fenomenológica, principalmente pela ausência do movimento. Nessa
linha, reconhecidas e utilizadas as possibilidades da linguagem cinematográfica, a
câmera e seu sujeito, bem posicionados e relacionados com os sujeitos filmados,
seriam capazes de apreender singularidades, com suas particularidades do uso do
espaço-tempo. A linguagem documental nos aproximaria, assim, do espaço-tempo
vivenciado, percebido, sentido e expresso pelos seres humanos em sua condição
complexa integral. A partir dessa abordagem introdutória, percebe-se que os caminhos
de diálogo entre as duas formas de conhecimento do mundo, tanto as que estudam
as grafias da terra, quanto as que se utilizam das grafias da luz, possuem diálogos
profícuos.
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Percorrer, ver e escutar em campo
270
14 Imaginação geográfica e análise de
notícias como fonte em pesquisas em
Geografia
Introdução
A imaginação geográfica não é fruto apenas das aulas de
Geografia. Escrevendo em 1947, o renomado geógrafo John K.
Wright já constatava que, para além de um “núcleo” acadêmico
produtor e difusor de informações sobre o espaço, a Geografia teria
uma “uma zona periférica muito mais vasta”, em “livros de viagens,
em revistas e jornais, em muitas páginas de ficção e poesia e em
muitas telas” (WRIGHT apud NOVAES, 2010).
O uso de notícias como fonte de informação para pesquisas
acadêmicas é prática comum a muitas áreas do conhecimento. A
análise desse tipo de unidade informativa em pesquisas fora do
campo epistemológico da Comunicação tem diversas finalidades.
Ela pode auxiliar na contextualização de determinado fenômeno
ou acontecimento da vida pública, bem como informar sobre sua
evolução e repercussão, além de ampliar o contato com processos
cujas informações ou atores envolvidos são pouco acessíveis, como
fatos do passado. Além disso, as notícias podem, inclusive por
sua estrutura ou posicionamento, revelar discursos, tendências e
estereótipos. É por isso que o uso das mensagens divulgadas por
veículos jornalísticos deve ser realizado levando-se em conta tanto
Decifrar falas
Geografias imaginativas
Edward Said, que estabeleceu o conceito de geografias imaginativas, chamava
a atenção para o fato de que a forma como imaginamos um continente, um país, uma
região ou uma rua influencia no modo como decidimos agir sobre estes espaços.
“Lugares, regiões e setores geográficos” estão sempre associados a “um imaginário,
uma tradição de pensamento, um vocabulário que lhe dá realidade e presença” (SAID,
2007, p. 31). E, logo de saída, ele alerta: a “força” da Geografia não estaria “apenas em
soldados e canhões”, mas também em “imagens e imaginários” (SAID, 2007, p. 51).
Na representação de um espaço desconhecido, a imaginação geográfica é
particularmente evidente. São recorrentes as associações simplistas entre atributos
selecionados e zonas geográficas específicas sobre as quais se desenvolvem sentimentos
de alteridade. Entidades geográficas como “Oriente” e “Ocidente” – esse era o objeto
do estudo que notabilizou Edward Said – foram historicamente construídas como
contrastantes e opostas, com o Ocidente apresentando-se como racional, histórico,
moderno, democrático e masculino, e o Oriente aparecendo como irracional, eterno,
atrasado, fundamentalista e feminino. Cada uma dessas designações representava
interesses, alegações, projetos, ambições e retóricas que não somente estavam em
violento desacordo, mas também em situação de guerra aberta. Said apresenta o
orientalismo como legitimador da exploração colonial, por meio de embasamentos
que justificam a ótica do Ocidente (Europa) de que o Oriente é inferior, e acrescenta:
“Toda cultura contemporânea está marcada pela experiência imperialista. Na periferia,
sem dúvida; no centro do império; na organização do mundo” (SAID, 2003, p. 72).
Outras geografias imaginativas ordenam hierarquicamente os “mundos” como
se fossem colocados em competição, transformando a proposta de não-alinhamento
do Terceiro Mundo em um deplorável terceiro lugar no desenvolvimentismo mundial.
André Reyes Novaes, ao estudar a representação das fronteiras nacionais na
imprensa, nos fala do emprego de arquétipos e estereótipos espaciais que representarão
Decifrar falas
272
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
273
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
274
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
a uma empresa jornalística, que visa lucro, portanto, tem interesses mercadológicos,
comercializa espaço publicitário, dá cobertura aos acontecimentos locais, com a
abordagem de assuntos diretamente sintonizados com a realidade local, que em
geral não têm espaço na grande mídia (DORNELLES, 2008).
Notícias e objetividade
A notícia, produto básico da atuação jornalística, consiste em uma unidade
informativa cujo objetivo é descrever um acontecimento veiculando informações
que, de acordo com os padrões jornalísticos, mereçam ser tornadas públicas. Jorge
Pedro Souza caracteriza as notícias como:
275
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
De fato, faz parte do senso comum considerar que, sendo uma forma de
narrativa da vida social, a prática jornalística tenha seu princípio norteador na
verdade. Apesar da obviedade aparente da importância desse conceito – e não só
no jornalismo como na maior parte das áreas profissionais –, a verdade constitui-se
em exigência para a descrição de um fato e é o que realmente faz com que a notícia
venha a existir, como explicam Kovach e Rosenstiel (2003, p. 61): “com efeito, a
verdade cria uma sensação de segurança que se origina da percepção dos fatos e
está na essência das notícias”. No entanto, ressaltam os autores, a verdade pode ser
questionada, tanto numa discussão filosófica ampla, como especificamente, pela
evidente influência dos financiadores do veículo de comunicação (entre os quais se
podem citar os governos e as empresas) nos conteúdos veiculados.
Cabe lembrar que os primeiros jornais eram veículos para as ideias de partidos
políticos e que só mais recentemente passaram a ser financiados pelas propagandas
comerciais. De qualquer forma, com o fortalecimento da democracia, a mídia
jornalística passou a ser justificada a partir do compromisso com a verdade: “A
promessa de veracidade e precisão logo se tornou uma parte poderosa até mesmo das
primeiras tentativas de marketing do jornalismo” (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003,
p. 62-63). No entanto, mesmo com um princípio bem consolidado de jornalismo
livre das pressões governamentais, a verdade, como um conceito abstrato e passível
de discussão, é relativa. Kovach e Rosenstiel concluem que, ainda assim, há uma
função bem delimitada para o jornalismo na busca pela verdade:
276
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
que serão relativas a diferentes contextos sociais e geográficos. Por fim, as relações
interorganizacionais influenciam em determinadas práticas dentro das redações,
o que pode ser exemplificado nas relações hierárquicas internas, através de cargos
de chefia, premiações e sanções a jornalistas, ou ainda nas relações externas com
fontes e anunciantes.
As relações externas parecem ter maior força, inclusive, no âmbito dos jornais
locais. Para a autora, esses fatores são relevantes, não apenas por seus aspectos
funcionais, mas também porque apontam para as estratégias de “proteção” à prática
jornalística que, submetida à tirania do tempo, dificulta um levantamento mais
aprofundado sobre o tema a ser tratado em determinada matéria: “O manuseamento da
‘estória’, isto é, o uso de certos procedimentos perceptíveis ao consumidor de notícia,
protege o jornalista dos riscos de sua atividade, incluindo os críticos” (TUCHMAN
apud TRAQUINA, 1999, p. 75). Assim, é conveniente ao jornalista profissional
apoiar-se na objetividade e nas práticas já consolidadas no processo de fabricação
das notícias. Essas são algumas razões pelas quais frequentemente as notícias se
parecem entre si.
277
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
278
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
ingleses acerca da entrada ou saída de um país no Mercosul, por exemplo. Nesse caso,
pode-se acompanhar o que foi publicado no dia em que a decisão foi ratificada e nas
semanas seguintes, enquanto o assunto esteve em evidência na agenda midiática.
279
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
A escolha do veículo, por fim, tem uma correlação com a questão espacial ou
de escala de análise. Para se coletar informações sobre obras de infraestrutura para a
mobilidade urbana no município de Porto Alegre, na década de 1960, evidentemente,
analisar as publicações de um jornal local ou regional faz mais sentido do que buscar
tais notícias num jornal nacional. Acompanhar o que um grande jornal norte-
americano divulgou sobre as manifestações de junho de 2013, por outro lado, pode
servir para se compreender o olhar estrangeiro sobre os protestos.
Em ambos os casos, uma breve caracterização do veículo jornalístico que
produz as notícias será útil no momento da análise do conteúdo das unidades
textuais. Quem é seu proprietário, desde quando o mesmo é publicado, como o
veículo jornalístico circula, qual o seu público, essas são informações que, ao serem
explicitadas, ajudarão na interpretação das informações coletadas.
Para além das questões políticas que envolvem a postura editorial de um
veículo, convém, em boa parte das vezes, compreender o posicionamento deste
acerca de certos âmbitos da vida pública. Um jornal de direita ou esquerda irá
selecionar e construir as notícias com sua inclinação, mesmo que sutil – o que,
mesmo se tratando de notícias, é inevitável em qualquer lugar do mundo. Mais
uma vez, a objetividade, em teoria, deve ser uma meta fixa na produção de notícias,
mas a própria seleção de um fato já pressupõe o posicionamento editorial de um
jornal, bem como a hierarquização das informações no texto ou a escolha das fontes
entrevistadas. Dessa forma, dependendo da temática e dos objetivos da pesquisa, é
importante levar a postura editorial em consideração.
das peculiaridades que mantêm entre si, devem ser considerados rigidamente na
pesquisa, por meio de um ou mais critérios, sem exclusão de nenhuma unidade
pertinente à delimitação do corpus.
280
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
281
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
infraestrutura para megaeventos, por exemplo, pode ter uma categoria de análise
voltada à opinião desses moradores sobre essa questão. A melhor forma de organizar
as notícias e as categorias observadas é a criação de fichas de análise para cada
unidade noticiosa. O Quadro 1 exemplifica uma forma de catalogação do material.
Veículo Sul 21
Movimentos sociais e moradores da periferia caminham
Título
juntos na vila Cruzeiro
Data 05/07/2013
Local Porto Alegre, bairro Santa Tereza
Temática Despejos
Palavras-chave Moradia; Despejo; Obras; Copa do Mundo; Protesto
Prefeitura Municipal; militante; documento; Associação
Fontes
de moradores; moradores da comunidade;
“O pessoal aqui ainda tem muito temor de protestar,
pensam que isso pode piorar esta situação (das
remoções) que já é complicada. Mas eu acho maravilhosa a
ideia de pressionar a Prefeitura com esta manifestação”
“Não existe uma noite em que os ratos não entrem nos
Opinião de moradores nossos lençóis. Como não tem mais muro, as pessoas
mijam nas nossas paredes e já tentaram arrombar a casa”
“É uma boa. Com essa manifestação pode ser que mude,
vai sair na televisão”
“O povo que vai receber está sendo massacrado”
“Simplesmente nos ignoram”
http://www.sul21.com.br/jornal/movimentos-sociais-
Hiperlink e-moradores-da-periferia-caminham-juntos-na-vila-
cruzeiro/
Outros recursos Fotos dos protestos.
Uma organização sistemática nesses moldes pode ser feita a partir de softwares
como Microsoft Excel, SPSS e NVivo, dentre outros. Esses são recursos úteis,
Decifrar falas
importante, sobretudo, por permitir uma melhor visualização dos resultados por
meio de gráficos e tabelas.
282
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
Considerações finais
Burgess e Gold apud Novaes (2010, p. 9) afirmam que, até a década de 1970,
os geógrafos faziam análises quantitativas do crescimento das telecomunicações, e a
partir de então há uma valorização de estudos sobre o “conteúdo das reportagens e
seu impacto nas imagens individuais e grupais dos lugares”, em busca de significados e
repercussões das informações veiculadas pelos meios de comunicação, particularmente
pela imprensa. Como geógrafos, cabe-nos inserir a geografia no texto em análise.
Talvez a imagem seja inversa, cabe-nos também exumar a geografia presente nos
textos, contextualizando-os espacialmente, sublinhando as injunções sociais, políticas
e culturais que os originam e que os mesmos terminam por moldar.
Os usos ligados à própria dinâmica dos fatos foram menos problematizados
na literatura corrente, e é dentro dessa linha que nos propusemos a sugerir algumas
considerações a serem feitas envolvendo as particularidades dos processos jornalísticos
e do texto noticioso, de modo a tornar a análise de notícias mais organizada e
efetiva. Além da análise de conteúdo, cabe salientar, há outros métodos de análise
de notícias, sendo a análise de discurso também bastante comum. No entanto, em
boa parte das vezes em que as notícias sobre certo fato são incluídas em um estudo
enquadrado em outras áreas, acredita-se que a análise de conteúdo possa prestar
um auxílio por si só satisfatório, por ser mais simples, mais objetiva e propor uma
boa confiabilidade nos resultados.
Um resumo da discussão e dos procedimentos aqui explorados encontra-se
na Figura 1, a seguir.
Decifrar falas
283
Daniela de Seixas Grimberg e Adriana Dorfman
284
Imaginação geográfica e análise de notícias como fonte em pesquisas em geografia
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Decifrar falas
286
15 Geografia e Saúde: articulação de
saberes, práticas discursivas e
produção do espaço
Camilo Darsie
classificam populações, assim como dos riscos e das práticas relacionadas a eles.
Diante disto, encontrei algumas das principais pistas relacionadas às transformações
– acerca do espaço – provocadas por tais discursos em situações nas quais ele não
288
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
289
Camilo Darsie
290
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
Essa instância, segundo ele, é formada por práticas que envolvem a Promoção e a
Educação em Saúde, o marketing social, a imunização dos indivíduos, o controle de
riscos relacionados às doenças, entre outras. Nessa direção, ela está embasada pela
291
Camilo Darsie
insistente do sentido último ou sentido oculto das coisas” (p. 198). Para ela, é
necessário permanecer no nível das palavras ditas – ou escritas – e se trabalhar
intensamente com o próprio discurso. Não se trata de procurar por sentidos que
292
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
estejam escondidos em algum lugar obscuro, mas operar com aquilo que efetivamente
é dito e que se articula com as práticas que descreve. Analisar discursos significa
analisar práticas que se encontram vivas dentro deles.
A autora refere que ao falarmos de discursos publicitários, políticos, médicos,
pedagógicos, entre outros, pode-se pensar que cada discurso compreende um conjunto
de enunciados que se apoiam em um determinado sistema de formação discursiva.
Assim, um enunciado pode ser tomado como objeto interpretativo, mas não deve
ser desprezado o fato de que ele se encontra amarrado a um determinado contexto
espacial e histórico que criou possibilidades para que um discurso dominante fosse
estabelecido. Conforme aponta Foucault (2005), um discurso é constituído pelos
controles que se exercem sobre as palavras que podem ou não serem ditas e escritas.
Fairclough (2001) refere que é importante que se ressalte as coerências e as
incoerências lógicas que ocorrem no âmbito dos discursos de modo a se identificar
as diferentes possibilidades que formam um sistema discursivo. Para ele, são as
diferentes direções apontadas, discursivamente, que moldam diferentes dinâmicas
sociais. Devem ser constituídas unidades de modo a apresentar as distinções que
ocorrem em um sistema complexo. Essa situação, pelo que entendo – e relacionando
à temática do trabalho que desenvolvi –, torna possível a formação de conhecimentos
e comportamentos ligados à saúde que são sobrepostos uns aos outros (FISCHER,
2011).
Diante do que apresentei até aqui, ressalto que minhas análises foram feitas
tendo em vista os discursos que envolvem a Saúde e que podem ser analisados por
meio das publicações da Organização Mundial da Saúde. Para tanto, levei em conta
os conhecimentos relativos ao controle e à prevenção de doenças, ligados ao corpo
e ao espaço, de forma articulada. Assim, fiz uso desses documentos para apontar,
a partir de seus textos, as verdades que são constituídas e apresentadas por eles de
modo a discutir as práticas que têm causado efeitos relacionados à produção do
espaço. Na sequência, esclareço algumas questões relacionadas à obtenção, à escolha
e à organização do material com que trabalhei.
293
Camilo Darsie
2 <http://www.who.int>
294
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
A página conta com ícones especiais que garantem acesso aos boletins
informativos, que estão em constante atualização, e que são relacionados aos surtos de
doenças que ocorrem em diferentes partes do mundo. Esses boletins são adicionados
com certa regularidade, visto que suas datas indicam que são apresentados dez
ou mais documentos por mês. Esse número varia de acordo com o surgimento
de novos surtos3. Todos os boletins estão disponíveis para os internautas e assim
toma forma um histórico relacionado aos problemas anunciados, fato que garante o
acompanhamento do desenvolvimento de determinadas doenças em áreas distintas
bem como das estratégias que foram e que, em alguns casos, estão sendo tomadas
com o intuito de contê-las.
Essa página garante também a possibilidade de acesso aos manuais que
orientam populações e serviços de saúde no que diz respeito aos procedimentos
a serem colocados em prática em casos de emergências relacionadas à propagação
de epidemias ou desastres que possam causar a contaminação de áreas extensas.
Nesses manuais, são apresentadas orientações que abrangem desde o controle de
fronteiras nacionais até as precauções a serem tomadas em caso de necessidade
de isolamento individual. As estratégias apresentadas são as ações tecnicamente
postas em prática, atualmente, em hospitais e setores de controle alfandegário em
caso de crises mundiais, regionais ou nacionais. Além dessa página inicial, mais sete
guias compõem esse ambiente virtual. Nelas são disponibilizados documentos e
publicações a serem usadas por diferentes áreas ligadas à saúde e também por toda
e qualquer pessoa que se interesse pelo tema: Sobre a OMS, Centro de Imprensa,
Países, Temas em saúde, Dados e estatísticas, Programas e Projetos, e Publicações4.
As guias Sobre a OMS e Centro de Imprensa são direcionadas à apresentação
dos objetivos da Organização, da sua estrutura e descrição de suas principais funções
relacionadas aos membros da Organização Mundial da Saúde. Nelas é possível se
encontrar os endereços dos escritórios da Organização e os seus endereços eletrônicos
para que diferentes pessoas ou instituições possam entrar em contato. Além disso, são
disponibilizados diversos atalhos que levam aos boletins informativos relacionados
aos eventos que estão programados para ocorrer em datas futuras e àqueles que já
aconteceram. As imagens e as comunicações dos representantes regionais e dos
diretores são, frequentemente, publicadas a fim de “aproximar a OMS dos cidadãos
e dos representantes de órgãos oficiais” (OMS, 2011, s/n).
É possível acompanhar as direções que as atividades em escalas mundial,
regional e nacional têm tomado com o objetivo de equilibrar as condições sanitárias e
3 De acordo com Duarte (2007), um “surto” é definido como a ocorrência de dois ou mais casos
epidemiológicos relacionados. Para ela, os surtos epidemiológicos podem ser localizados em áreas
Decifrar falas
restritas, de pouca abrangência, mas, se não são controlados, podem se tornar epidemias.
4 Esses nomes foram traduzidos por mim, tendo como embasamento suas apresentações em inglês e em
espanhol. Não é disponibilizada versão em português da página da OMS na internet.
295
Camilo Darsie
a segurança da vida das populações, bem como dos territórios que se encontram sob
risco de propagação de doenças. Na página “Países”, são publicados os relatórios, os
índices e as ações referentes a cada país atendido pela Organização, com o objetivo
de “proporcionar o maior número de informações que possam ser úteis aos estados
e aos cidadãos no que se refere ao desenvolvimento da melhoria das condições
de saúde” (OMS, 2011, s/n). São esses mesmos dados que são utilizados para a
definição dos perfis, relacionados à saúde, de cada região classificada e atendida pela
Organização Mundial da Saúde.
Na seção intitulada “Temas em Saúde”, cerca de 200 atalhos são disponibilizados
para o acesso às principais informações ligadas aos diferentes temas que intitulam os
tópicos. Podem ser encontrados temas relacionados a doenças endêmicas, epidêmicas
e pandêmicas, além de problemas ligados às moléstias ocasionadas em decorrência de
desastres naturais, desastres radiativos, zoonoses, entre outras. Assim, funcionando
como aquilo que Lévy (1996) chama de hipertexto, cada tópico oportuniza o acesso
a outros atalhos que levam o leitor a diversas informações relacionadas ao tema de
interesse, inclusive aos documentos que constam nas páginas chamadas de “Dados
e Estatísticas”, “Programas e Projetos” e “Publicações”.
Os “Dados e Estatísticas” se encontram organizados em publicações anuais
que estão disponíveis para serem lidas e armazenadas nos computadores particulares
dos leitores. Cada um dos livros eletrônicos oferece dados relativos às últimas
quantificações feitas pelos países e apresenta os resultados das ações desenvolvidas
em nível regional. A partir disso, são apontados os principais avanços referentes às
políticas de saúde regionais e locais bem como problemas emergentes e questões
que não puderam ser resolvidos no ano anterior à publicação. É interessante ressaltar
que tais números são frequentemente utilizados, conforme aponta Chaimovich
(2005), para a elaboração de estratégias estatais de combate a enfermidades e para
o desenvolvimento de pesquisas científicas associadas a temas como, por exemplo, o
atendimento em saúde, a elaboração e a distribuição de medicamentos e a destinação
de recursos tecnológicos e financeiros para diferentes partes do mundo.
No setor chamado de “Projetos e Programas”, da mesma forma como ocorre
com o “Temas em Saúde”, outros 200 tópicos direcionam os interessados a documentos
relacionados aos diversos programas e projetos que estão em andamento e a páginas
virtuais criadas para a divulgação e disponibilização de materiais relacionados a
ações específicas. Essa seção, associada à seção “Publicações”, que é constituída
por livros eletrônicos que envolvem as normas ligadas ao controle e à segurança
em saúde, dão forma ao principal conjunto de textos que fiz uso para a elaboração
da pesquisa descrita.
Decifrar falas
296
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
297
Camilo Darsie
Fechamento
Minha intenção, neste texto, foi apresentar algumas das estratégias
metodológicas que me auxiliaram em relação ao desenvolvimento de uma pesquisa
em que articulei as áreas da Geografia e da Saúde por meio da análise do discurso.
Contudo, acredito que seja importante se atentar à transitoriedade de meus
apontamentos, ou seja, à necessidade de serem tomados enquanto disparadores de
ideias para futuras pesquisas e não como normas a serem seguidas de forma rígida.
O que pretendo é que minhas experiências possam ser conhecidas, questionadas
e adaptadas às necessidades e possibilidades daqueles que optam por se arriscar na
produção de pesquisas qualitativas a partir da área da Geografia. Esse cuidado deve
ser tomado, justamente, pelo fato de que as pesquisas desta ordem são constituídas
por uma espécie de imprevisibilidade que emerge de descobertas e de formas
distintas de olhar para os objetos de estudo que envolvem os pesquisadores durante
o processo de análise e a problematização de seus materiais.
Decifrar falas
298
Geografia e Saúde: articulação de saberes, práticas discursivas e (re)produção do espaço.
Referências
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de Telma Costa. Lisboa: Teorema Editorial, 2005.
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Petrópolis: Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005.
Decifrar falas
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
299
Camilo Darsie
300
16 Ofício, Engenho e Arte: inspiração
e técnica na análise de dados
qualitativos
nas mãos de um lapidador, permitem revelar aspectos da realidade, que não obstante
lá estivessem, necessitavam de lapidação para deixar ver sua beleza. Cada face da
pedra exige seu próprio procedimento – às vezes o disco, eventualmente a espátula
302
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
–, mas a forma final é determinada pela relação entre o material bruto e o artesão.
De certa maneira, esses procedimentos se encaixam no que Laurence Bardin
chamou, no prefácio de seu livro, de análise de conteúdo:
303
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Frequência e Relação
Ao analisar fundos documentais de grande porte, um dos procedimentos é
avaliar a frequência no emprego de termos. Isto corresponde a um dito do Evangelho:
“a boca fala do que o coração está cheio” (Mt, 12:34). De fato, a ênfase no emprego
de palavras e expressões revela valores e sentimentos comuns expressos em um
conjunto de discursos. Esta observação é consequência do papel da linguagem
na formação do mundo cultural. A linguagem não apenas expressa o mundo, mas
ajuda a produzi-lo. O uso da linguagem é, portanto, um dos principais indicadores
que os pesquisadores dispõem para realizar mapeamentos de fenômenos culturais.
Quando nos referimos à análise de frequência, não estamos nos referindo
apenas à análise estatística da repetição com variações morfológicas ou semânticas,
como foi feito brilhantemente por Klemettinen (2009) ao analisar discursos de
Charles de Gaulle, mas incorporar a relação existente entre os termos como fez
Paranyushkin (2011).
A proposta de Paranyushkin (2011) é evitar qualquer influência subjetiva ou
cultural no processo de construção do gráfico, na medida em que ele trata somente
da frequência e da relação das palavras no discurso a ser analisado, revelando as
estruturas de sentido do texto em si. Em outras palavras, ele busca revelar a “verdade”
a partir da multiplicidade e pretende – ao usar como critério único de organização
do “grafo” as relações de intensidade na conexão entre as palavras empregadas no
discurso – deixar que a forma resultante do procedimento “fale por si mesma”.
Uma rede, entretanto, é uma relação binária, isto é, devemos criar uma conexão
entre dois nós, e esta conexão é a estrutura básica sobre a qual vão sendo construídos
os demais componentes. Como critério para procedimento inicial, Paranyushkin
(2011) escolheu a proximidade entre as palavras, partindo de um intervalo de “2”.
Vale dizer que cada palavra geraria um nó na rede e ao intervalo de até duas palavras
produziríamos as relações entre essas palavras chamadas de arestas.
Neste artigo, propomos um caminho diferente. Vamos criar uma relação
binária entre cada uma das palavras de uma frase. Tomar a frase como unidade na
qual as conexões serão criadas nos parece mais coerente com a estrutura natural de
produção do sentido em um discurso. E, para criar essa rede, vamos nos utilizar de três
softwares, todos livres, descrevendo os passos de maneira que não haja a necessidade
do uso de técnicas de programação. Usaremos apenas as funções básicas de cada
um dos programas indicados.
A representação gráfica das relações entre as palavras exige um trabalho de
preparação antes que os dados sejam importados para um programa de análise de
Decifrar falas
304
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
Embora pareça um trabalho repetitivo, ele deve ser realizado apenas uma
vez, pois na aba “Undo/Redo” podemos usar o botão “Extract” para obter todo o
histórico de operação na forma de um script no formato JSON ( JavaScript Object
305
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Notation), que poderá ser aplicado a todos os demais arquivos a ser tratados. O
Script pode ter uma forma parecida com o exemplo a seguir:
A operação seguinte busca transformar todas as palavras para a forma de
minúsculas. Podemos fazer isso com o comando “Edit Cells>Common Transforms>To
lowercase”. Na sequência, é necessário dividir as frases em palavras alocadas em
[
{
“op”: “core/row-removal”,
“description”: “Remove rows”,
“engineConfig”: {
“facets”: [
{
“query”: “Edson”,
“name”: “Nome”,
“caseSensitive”: false,
“columnName”: “Nome”,
“type”: “text”,
“mode”: “text”
}
],
“mode”: “row-based”
}
},
{
“op”: “core/text-transform”,
“description”: “Text transform on cells in column Nome using expression grel:value.replace(\”i\”,\”\”)”,
“engineConfig”: {
“facets”: [],
“mode”: “row-based”
},
“columnName”: “Frase”,
“expression”: “grel:value.replace(\”?\”,\”\”)”,
“onError”: “keep-original”,
“repeat”: false,
“repeatCount”: 10
}
]
Decifrar falas
306
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
Devemos observar que ainda não temos um formato que possa ser transformado
em rede, por duas razões. Em primeiro lugar, ainda não temos a relação binária para
construir uma rede. Além disso, verificamos a presença de termos muito frequentes que,
entretanto, se descontextualizados da frase, não terão sentido próprio, por exemplo,
os termos “o”, “e”, “da”, “eu” etc. Então vamos executar mais alguns procedimentos
para poder criar uma rede semântica.
O primeiro procedimento é completar as lacunas criadas na coluna
“Identificação da Frase” com o comando “Edit Cells>Fill down”. Isto cria uma relação
entre cada palavra e a frase a que ela pertence através do número de identificação
da frase. O procedimento “copia” o número de identificação para as linhas abaixo
até encontrar um novo identificador.
O próximo passo é a exclusão das “stopwords”, palavras que não guardam
significado fora do contexto da frase. Normalmente são artigos, preposições,
conjunções, pronomes e advérbios.
Existem diversas listas de stopwords para a língua portuguesa na internet1,
porém muitas vezes podem ser necessárias algumas adaptações, conforme o contexto
da pesquisa. O comando no OpenRefine para fazer esta exclusão é “Facet>Text
facet”. Isto cria uma lista das palavras da tabela na aba à direita da interface gráfica,
Decifrar falas
307
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Identificador Frase
1 sim
1 divido
1 dia
1 cuidar
1 família
1 trabalho
2 então
2 tô
2 casa
2 tento
2 privilegiar
2 família
2 não
2 levar
2 trabalho
2 pra
2 casa
2 não
2 precisar
2 fazer
2 trabalho
2 horários
2 trabalhar
ser facilitada pela interface do OpenRefine, pois nela as palavras estão agrupadas
e organizadas em ordem alfabética, permitindo a intervenção em vários linhas
simultaneamente.
308
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
o programa apenas preencha os campos faltantes sem criar novos nós, mantendo a
consistência entre a tabela de nós e a tabela de arestas.
309
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Esses procedimentos irão gerar uma rede a partir da relação entre frases e
palavras. Podemos visualizar esta rede a seguir:
Esta rede ainda não nos traz muitas informações, apenas marca quais palavras
significativas foram usadas numa determinada frase e em quais outras elas foram
também utilizadas. Isso acontece porque os nós que representam as frases “poluem”
o grafo e ocultam a topologia que uma rede de palavras poderia revelar.
Com a finalidade de representar graficamente os sentidos, precisamos ainda
executar dois procedimentos. O primeiro será projetar a rede bipartida (dual mode)
Decifrar falas
em uma rede monopartida (one mode). No nosso caso, iremos transformar uma rede
baseada na relação FRASE-PALAVRA em uma rede baseada na relação PALAVRA-
310
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
PALAVRA. A projeção irá, assim, criar uma aresta entre as palavras que estão na mesma
frase. Podemos exemplificar com a frase 23, que contém dois termos significativos:
serviços-23-pesados. A projeção elimina a codificação da frase “23” e cria uma ligação
direta: serviços-pesados. Para executar esse procedimento, iremos utilizar um plugin
criado por Kuchar (2014) chamado “Multimode Networks Transformations”.
O procedimento seguinte será a aplicação do algoritmo de detecção de
comunidades. Comunidades, também chamadas de módulos ou clusters, são
conjuntos de nós cuja relação intra é mais densa do que a relação extracomunidade.
Se estivéssemos analisando redes sociais a partir da comunicação por e-mail, a
detecção das comunidades seria a identificação das “panelinhas” ou grupos que se
comunicam mais intensamente entre si. Neste caso, o algoritmo irá identificar o
conjunto de palavras que costumam aparecer juntas, revelando os sentidos produzidos
nos discursos.
A rede a seguir (figura 2) foi produzida por um conjunto de discursos produzido
por mulheres ao responderem à seguinte questão: “Achas que o teu papel social de gênero
interfere na tua produtividade científica?”. Estas entrevistas, que estamos usando como
exemplos, foram realizadas pelo pesquisador Vagner André Morais Pinto, integrante
do GETE (Grupo de Estudos Territoriais), em um projeto intitulado “O Gênero
como componente da produtividade científica no espaço acadêmico da UEPG”
(PINTO, 2014). Ele entrevistou seis casais de professores da Universidade Estadual
de Ponta Grossa, todos submetidos a idênticas regras funcionais e pertencendo
à mesma carreira acadêmica. O exercício seguinte busca revelar os caminhos de
sentido produzidos nos discursos femininos e masculinos sobre a mesma realidade.
A topologia da rede revela uma tensão entre três polos: um dos polos tem
como palavra de maior centralidade o termo “filhos”; o outro, o termo “casa”, seguido
de “mulher” e “família”. Juntas, essas duas comunidades significam 46,4% da rede.
O terceiro polo, que tensiona os demais, tem como termos centrais as palavras
“produção”, “científica” e “artigo” e representa 19,2% da rede. A quarta comunidade,
em termos de representatividade na rede, é a que tem as palavras “marido” e “fazer”
e representa 12,8% da rede, mas se coloca em uma posicionalidade marginal, se
comparada com as demais.
No discurso das mulheres, a frequência e as relações no uso das palavras, três
das quatro primeiras comunidades se referem ao ambiente doméstico, e uma delas
reúne os termos comuns no ambiente de produção acadêmica. O significado dessa
distribuição fica mais claro quando a comparamos com o grafo produzido pelo
discurso dos homens (figura 3).
Mesmo vivendo realidades muito próximas e compartilhando o mesmo
Decifrar falas
311
Decifrar falas
312
Figura 2: Discursos Femininos: frequência e relação
313
Decifrar falas
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
314
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
funcionalidades exigidas pela análise de dados qualitativos, que funciona nos principais
sistemas operacionais (Windows, Linux e MacOSX) e possui uma interface gráfica
simples e intuitiva. O mais interessante, porém, é que essa plataforma possui uma
arquitetura aberta e armazena os dados num banco de dados chamado SQLITE
CONSORTIUM (2014). Assim, o pesquisador pode trabalhar com os comandos
oferecidos pela interface gráfica ou fazer cruzamentos mais sofisticados, usando
a linguagem de programação em banco de dados chamada SQL. Neste trabalho,
vamos usar um misto das duas coisas, porque vamos fazer a categorização no RQDA,
extrair os dados com um comando SQL simples e exportar os dados para análise e
visualização no GEPHI.
Depois de conceber o projeto, importar os arquivos e criar os códigos
(ou categorias), o processo de categorização é simples. Basta selecionar o
trecho desejado, clicar na categoria que se deseja atribuir ao texto e clicar no
botão “Mark”. Trabalhar com um software facilita o trabalho de reanálise que
se torna necessário na medida em que nos aprofundamos no conhecimento da
documentação. Na página a seguir, segue uma imagem da interface gráfica do
RQDA e de uma parte do texto codificado.
Nesta imagem, temos duas janelas: uma com os principais comandos da
interface gráfica, organizada em abas, e outra com a transcrição das entrevistas com
a marcação dos códigos. O interessante é que, ao criarmos um código e marcarmos
o texto com ele, tanto o código como o texto são armazenados em um banco de
dados, de onde eles podem ser extraídos com um simples comando como este:
“SELECT name, seltext FROM freecode, coding WHERE freecode.id=coding.cid
AND coding.fid=3”. Traduzindo para o português, estamos pedido que o banco nos
forneça o campo “name” da tabela “freecode”, onde estão armazenados os códigos,
e o campo “seltext” da tabela “coding”, onde está colocado o texto marcado com o
respectivo código.
Isso resulta em uma tabela com códigos e frases como o quadro da página
315, a seguir.
Decifrar falas
315
Decifrar falas
316
Figura 4 - Interface Gráfica do RQDA
Categoria Palavras
Não. Acho que não né. Tem algumas vantagens... Eu ajudo bastante em casa, mas
sempre a mãe tem responsabilidades extras né. As crianças têm uma ligação um pouco
Homem maior com a mãe, apesar de eu sempre me apresentar pra ajudar. Então eu acho que
ajuda, facilita um pouco pra mim né ser homem em função disso né. Mas eu sempre
tento dar uma força pra minha esposa, porque ela faz a mesma coisa que eu.
Sim, eu divido o meu dia entre cuidar da família e o trabalho. Então quando eu tô em
casa tento privilegiar a família e não levar trabalho pra casa, não precisar fazer trabalho
fora dos horários em que eu teria que trabalhar. E quando minhas filhas tão em casa
eu privilegio as duas do que atender a vida profissional […] Sobrecarregam porque
Mulher a nossa exigência com relação à produção científica é grande, eu sou comparada com
homens, por exemplo, quando estão em casa às vezes não estão cuidando da família
pra poderem escrever um artigo, um projeto, por exemplo. No meu caso em particular,
eu deixo o artigo de lado pra poder cuidar das crianças, então se eu não tivesse filhos,
eu imagino que a minha produtividade científica seria muito maior do que hoje.
Acho que é diferente você ter filho, ter esse papel, ter uma casa pra gerenciar e você
Família
não ter... independente do sexo ser masculino ou feminino.
317
Decifrar falas
318
Figura 5 - Rede de Categorias e Palavras
Organizado por Edson Armando Silva no programa Gephi.
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Figura 6 - Interface do Gephi: seleção de “TRABALHO DOMÉSTICO”
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
319
Decifrar falas
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
320
Figura 7 - Interface do Gephi: seleção de “trabalhar”
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
321
Decifrar falas
Decifrar falas
322
Figura 8 - Interface do Gephi: seleção de “sobrecarga”
323
Decifrar falas
Decifrar falas
324
Figura 10 - Interface do Gephi: seleção de “responsabilidade”
325
Decifrar falas
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Retornando ao texto
Reveladas as tendências estruturais na produção discursiva de um grupo,
podemos então retornar ao fundo documental para selecionar as passagens lapidares
que confirmam, ou mostram os limites das interpretações apontadas nas estruturas
representadas nos grafos, mas com a vantagem de podermos revelar a posição que
as expressões do depoente ocupam na estrutura discursiva do conjunto. Vejamos,
então, o seguinte: nossa depoente F5, mulher, nos diz que: “Atualmente não. Pra mim
não tem interferência nenhuma. Eu acho que talvez o grau de titulação interfira bem mais
do que ser homem ou mulher.” Este depoimento parece estar em contradição com a
tendência do conjunto. Quando buscamos informações adicionais no banco de dados,
verificamos que se trata de uma mulher recentemente casada e ainda sem filhos. Ora,
isto tem correspondência com outros enunciados, por exemplo, F3, mulher, nos
informa que: “quando eu tive o bebê interferiu um pouco porque eu tive que me dedicar
mais a ele e aí deixar um pouco a parte científica de lado...”. Podemos ainda confirmar
a mesma tendência com a declaração de F2, também mulher, que, segundo ela, as
mulheres “tenham a tendência de puxar mais a questão de gerência de casa, de gerência
de filhos, estudo de filho, tudo...” O conjunto das citações, então, tende a confirmar a
estrutura discursiva apresentada no grafo. O núcleo da tensão se encontra entre o
tempo e a atenção destinados à produção acadêmica e à atenção aos filhos e à casa.
Quando voltamos aos discursos feitos pelos homens, temos um leque de
possibilidades no qual um dos polos destaca a impessoalidade na carreira acadêmica,
por exemplo, o depoente M5, homem, afirma que: “na universidade você tem plano
de carreira e esse plano de carreira não se define pelo sexo, se você tem chance maior ou
menor para atingir um determinado grau dentro da carreira. E com relação à publicação,
quando você manda um artigo pra uma revista, você manda o nome, e muitas vezes só as
iniciais do nome e o teu sobrenome, nem se define se é homem ou mulher”. No outro polo,
M1, homem, de maneira tímida reconhece “certa” desigualdade nesses termos: “Eu
ajudo bastante em casa, mas sempre a mãe tem responsabilidades extras, né? As crianças
têm uma ligação um pouco maior com a mãe.”
As posições masculina e feminina em relação aos polos do trabalho acadêmico
e do trabalho doméstico ficam evidentes quando observamos o uso das palavras
“ajuda” e “responsabilidade”. Embora vários depoentes afirmem “ajudar” nas tarefas
domésticas, como no depoimento de F3, mulher: “e daí também com o meu marido
aqui, um ajudando o outro então eu acho que isso ajuda um pouco. Acho que agora eu
não vejo que isso atrapalhe na parte científica, não. A gente consegue manter, claro, não
é uma produção muito alta, mas a gente consegue manter”, ou, menos enfaticamente,
como no depoimento de F4, também mulher: “os homens dizem que ajudam... se
Decifrar falas
você pedir eles ajudam, mas eu não sou de pedir, né? Eu prefiro fazer, então eu me acho
muito mais sobrecarregada do que meu marido. Se filho fica doente eu tenho que levar
326
Ofício, Engenho e Arte: inspiração e técnica na análise de dados qualitativos
Considerações finais
O objetivo deste trabalho, na verdade, não é discutir os resultados que
possam ser obtidos na análise deste conjunto específico de fontes, mas apresentar
as potencialidades de associação de um conjunto de procedimentos ao texto para
revelar sua estrutura e, ao mesmo tempo, manter e explorar as condições das falas
dos diversos atores. A associação criativa das técnicas de análise de frequência,
análise de redes e procedimentos de categorização, permitiu explorar os vários
significados produzidos nesses discursos, e, ao mesmo tempo, verificar a coerência
entre as representações resultantes dos procedimentos e as falas dos entrevistados.
Além dessas considerações de caráter mais geral, procuramos descrever os
procedimentos passo a passo, apresentando as características dos softwares que
possibilitam e aumentam a velocidade desse trabalho. Assim, o leitor poderá, com
alguma paciência, explorar os mesmos procedimentos para diferentes conjuntos
Decifrar falas
de fontes.
327
Edson Armando Silva e Joseli Maria Silva
Referências
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THE DOCUMENT FOUNDATION. LibreOffice. [s.l.: s.n.], 2014. Disponível em: <http://
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Decifrar falas
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Sobre os autores
Adriana Dorfman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Doutora em Geografia pela UFSC
E-mail: [email protected]
Camilo Darsie
Universidade de Santa Cruz do Sul
Doutor em Educação pela UFRGS
E-mail: [email protected]
Daniele Caron
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Arquiteta, Doutoranda em Urbanismo e Ordenação do
Território na Universidad Politécnica de Cataluña
E-mail: [email protected]
Helena Bonetto
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação
Sobre os autores
em Geografia da UFRGS
E-mail: [email protected]
330
sobre os autores
331
sobre os autores
Mário Rangel
Geógrafo, Mestre em Geografia
Geógrafo do Departamento de Recursos Hídricos da SEMA/ RS
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
332
sobre os autores
Roberto Verdum
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Doutora em Geografia pela Universidade de Tolouse
E-mail: [email protected]
Sobre os autores
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Apoio
UFRGS
GEOCIÊNCIAS
PPG GEOGRAFIA