ColCadMem MestresArtificeis MinasGerais M PDF
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MINAS GERAIS
Cadernos de Memória
Torno para fazer panelas, Serro
Leonardo Barci Castriota
Coordenação
MESTRES ARTÍFICES
MINAS GERAIS
Cadernos de Memória
Autores
Douglas Ferreira Gadelha Campelo
Guilherme Maciel Araújo
Leonardo Hipólito Genaro Fígoli
Leonardo Barci Castriota
Paulo Henrique Alonso
créditos
Presidenta da República do Brasil Execução
Dilma Rousseff Mestres Artífices: Minas Gerais
Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa - Fundepe
Ministra de Estado da Cultura Pesquisa realizada para identificação de mestres artífices
Ana de Hollanda detentores de saberes construtivos tradicionais e
registro das técnicas que dominam, com financiamento
Presidente do Instituto do e supervisão do Iphan/Unesco/Monumenta/BID.
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional As opiniões apresentadas nos textos desta publicação são
Luiz Fernando de Almeida de responsabilidade de seus autores, bem como o modo
pelo qual as entrevistas foram nele transcritas e citadas.
Diretoria do Iphan
Andrey Rosenthal Schlee Equipe de Pesquisa - Mestres
Célia Maria Corsino Artífices em Minas Gerais
Estevan Pardi Corrêa Leonardo Castriota - Coordenador geral
Maria Emília Nascimento Santos Guilherme Maciel Araújo - Coordenador
do Estado de Minas Gerais
Coordenador Nacional do Programa Monumenta Vilmar Pereira de Sousa - Coordenador de logística
Robson Antônio de Almeida Livia Fortini Veloso - Assistente de coordenação
Leonardo Fígoli - Coordenador Antropologia
Departamento de Patrimônio Imaterial
Ana Carolina Rollemberg de Resende Pablo Lima - Historiador/Pesquisador de arquivo
Ana Gita de Oliveira Bernardo Capute - Pesquisador de campo Arquitetura
Daniel Barbosa Cardoso Fabiana Correia Dias - Pesquisadora de campo Arquitetura
Márcia Genésia Sant’Anna Maria Raquel A Ferreira - Pesquisadora
Maria de Fátima Duarte Tavares de campo Arquitetura
Mônia Luciana Silvestrin Roberto Fonseca - Pesquisador de campo Antropologia
Yêda Virgínia Barbosa
Douglas Campelo - Pesquisador de campo Antropologia
Superintendência Estadual do Leonardo Freitas - Pesquisador de campo Antropologia
Iphan em Minas Gerais Paulo Henrique Alonso - Pesquisador de Arquitetura
Leonardo Barreto de Oliveira Rosemere da Silva - Pesquisadora de Arquitetura
Fernanda Silva, Guilherme Costa, Nikolas Mendes,
Coordenação editorial Arlete Soares de Oliveira, Flávia Mosqueira
Sylvia Maria Braga Possato Cardoso, Alexis Azevedo Morais
Organização Fotografia
Márcia Genésia Sant’Anna Arquivo INRC/Iphan
Douglas Campelo
Revisão do projeto gráfico e diagramação
Fernanda Cristina de Oliveira e Silva
Raruti Comunicação e Design/Cristiane Dias
Guilherme Felip Marques da Costa
Revisão de texto Leonardo Freitas
Fabiana Ferreira M. Raquel Ferreira
Nikolas Mendes
M586 Mestres artífices de Minas Gerais / coordenação de Leonardo Barci Castriota. – Brasília, DF : Iphan, 2012.
160 p. : il. color. ; 20 cm. – (Cadernos de memória ; 1).
ISBN 978-85-7334-216-1
CDD 720.288
www.iphan.gov.br | www.cultura.gov.br
Detalhe de esteira feita com taquara
5
Encaixe do espigão nos frechais visto por baixo
7
Apresentação 13
Ofícios da Pedra: 58
Cantaria
Ofícios do Ferro: 88
Ferreiro/Forjador
9
Mestre Paulo Narciso amassando barro
10
11
Detalhe das peças de espigão encaixadas em boca-de-lobo na cumeeira
APRESENTAÇÃO
Luiz Fernando de Almeida
Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan
Este Caderno de Memórias, fruto dos Inventários realizados pelo Programa Monumenta
/Iphan em regiões de Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina, traz os resultados
expostos num documento destinado a especialistas, estudantes e público em geral.
Ao tratar do repasse de conhecimentos de geração em geração, dos hábitos presentes
na vida de inúmeros cidadãos, das particularidades territoriais dispersas pelas regiões
brasileiras, nos deparamos com a diversidade e a complexidade de processos que
retratam um conjunto de práticas culturais e se constituem em diferentes dimensões
do nosso patrimônio cultural, tanto de natureza material, quanto de natureza imaterial.
No âmbito dessa diversidade do patrimônio cultural, as técnicas construtivas
tradicionais constituem-se nas formas pelas quais vários exemplares de nosso
patrimônio edificado foram erguidos e se mantêm íntegros até hoje. Mas, de fato, a
representatividade desse acervo não se completa sem o conhecimento acumulado
pelos mestres e artífices responsáveis pela perpetuação da prática e aplicação dessas
técnicas no acervo arquitetônico brasileiro.
Com o avanço da indústria da construção civil em nosso país, tais recursos construtivos
têm sido, em larga escala, substituídos e relegados a aproveitamentos localizados a
partir de manifestações populares, em locais situados fora dos principais eixos de
interesse do mercado formal. Apesar desse processo hegemônico dos novos materiais
e técnicas construtivas hoje em uso na construção civil, não se descarta o potencial
de aplicação dos processos e técnicas construtivas tradicionais, tanto em obras de
restauro, quanto na perspectiva de seu aproveitamento em locais e circunstâncias não
alcançadas por avanços tecnológicos. Essa possibilidade, em vários casos, representa
uma condição real de melhoria na qualidade de vida daquelas populações que se
encontram fora dos eixos de atendimento do mercado formal.
A perspectiva de um mapeamento das principais técnicas utilizadas nas diferentes
regiões do país, do registro desse saber-fazer local, além da valorização e resgate
dos detentores desse conhecimento são intenções iniciais que nortearam a proposta
de implementação de um Inventário Nacional de Referência Cultural sobre técnicas
construtivas tradicionais a partir dos saberes e fazeres dos mestres e artífices.
O Projeto Mestres e Artífices nos possibilita identificar, documentar e buscar formas
de transmissão desses saberes e ofícios tradicionais, numa perspectiva de inclusão
e valorização dos seus detentores em práticas que vão além de sua aplicação no
restauro dos bens patrimoniais a serem preservados. A sistematização e difusão
desse conhecimento e de suas formas de aplicação viabilizam seu uso em diferentes
áreas, seja pela inserção de técnicas tradicionais no sistema corrente da construção
civil, com a introdução do tema nas cadeiras de formação de profissionais e técnicos
da área de arquitetura e engenharia, seja pela formação e capacitação de mão-de-
obra que viabilize a aplicação e difusão de tais técnicas.
13
Forro de taquara
15
Espelho de fechadura feito por mestre Antônio Elói
O PROJETO DOS MESTRES ARTÍFICES:
PRESERVAÇÃO DO SABER-FAZER DA
CONSTRUÇÃO TRADICIONAL
Leonardo Barci Castriota
Arquiteto-urbanista, doutor em Filosofia, professor da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) – coordenador geral do INRC de MG e SC
17
Aqui nos parece importante ressaltar que a revalorização atual do chamado
patrimônio imaterial ou intangível passa pela compreensão do patrimônio não mais
como um produto, mas como um processo. Mediante essas expressões ressalta-se,
como anota texto do Iphan,
É neste quadro mais amplo que devem ser situadas as chamadas técnicas construtivas
tradicionais, importante “saber-fazer” a ser preservado como patrimônio intangível.
Como se sabe, a arquitetura tradicional, fruto de um conhecimento profundo do meio
envolvente e da sua relação com os materiais, é um dos mais importantes testemunhos
dos modos de viver de um povo e da visão de mundo de uma cultura, que se manifesta
na presença humana no território, integrando contextos socioeconômicos, técnicos e
culturais. Essa ocupação, no entanto, não pode ser compreendida (nem preservada)
apenas em sua dimensão física, na medida em que repousa, em última instância,
num “saber-fazer” que a gerou: as técnicas construtivas tradicionais.
Ao se tratar dessas técnicas tradicionais não podemos perder de vista que, num mundo
em rápido processo de globalização e homogeneização cultural, elas se encontram
crescentemente ameaçadas por um processo de rápido desaparecimento. Se esta vai
ser a tendência dominante, pode ser detectada, no entanto, uma contra-tendência
no que diz respeito às técnicas tradicionais: o reconhecimento da necessidade de
se preservar o patrimônio edificado bem como a crescente preocupação ecológica
têm levado à sua revalorização. Assim é que, aos poucos, tem-se desenvolvido todo
um trabalho de pesquisa e recuperação da memória, através de várias estratégias,
desde investigações em laboratórios até consultas aos velhos mestres. Em alguns
casos, como em Portugal, ao se constatar que havia falta de técnicos especializados
para a recuperação do patrimônio, chegaram-se a se estabelecer cursos como o de
Mestre de Construção Civil Tradicional, pela Escola Profissional de Desenvolvimento
Rural de Serpa, numa parceria com a Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais. Nesta mesma linha, no Brasil a parceria Iphan/Monumenta/Unesco tem
desenvolvido vários cursos para a formação de oficiais em diversas dessas técnicas.
E aqui não se trata apenas de se recuperar técnicas próprias para o restauro: o fato
é que muitas dessas técnicas construtivas tradicionais prestam-se perfeitamente
a uma construção ecologicamente mais adequada, conforme as visões mais
contemporâneas de um desenvolvimento sustentável. Assim, foi unindo essas duas
perspectivas – preservação do patrimônio e novas construções sustentáveis – que
se criaram vários projetos internacionais, entre os quais pode se destacar a Cátedra
Unesco sobre Arquitetura de Terra, Culturas Construtivas e Desenvolvimento
Sustentável3 .
18
Parte superior da guarita existente em muro em pedra seca
19
Viola e fôrma
Os inventários como instrumentos de preservação do
patrimônio imaterial
Para “assegurar a identificação com fins de salvaguarda” desses bens, a Convenção
de 2003 recomenda a execução de “inventários nacionais de bens culturais a
serem protegidos”, estabelecendo em seu artigo 12 que cada Estado Parte deverá
confeccionar “um ou vários inventários do patrimônio cultural imaterial presente em
seu território”. Em relação especificamente às “técnicas tradicionais relacionadas ao
patrimônio cultural tangível (como, por exemplo, as técnicas associadas à arquitetura
vernacular)”, a Unesco recomenda a sua manutenção e registro, “para manter o
estoque de técnicas para restauração, manutenção e substituição do patrimônio
tangível criado por técnicas tradicionais”4. Assim, no campo da identificação em
geral, já se publicou um manual sobre como coletar o patrimônio musical, e está
sendo preparado um manual para se coletar o saber fazer (know-how) da arquitetura
tradicional5.
I. as formas de expressão;
21
da tutela de seus “costumes, línguas, crenças e
tradições”, (art. 231 da CF).
22
Seus principais instrumentos são o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial
e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), instrumento legal e técnico,
respectivamente. Respeitando a diversidade desse novo campo, o Decreto 3551
propõe o registro dos bens culturais, segundo sua natureza, nos seguintes livros:
Livro de Registro dos Saberes, para os “conhecimentos e modos de fazer enraizados
no cotidiano das comunidades”; Livro de Registro de Celebrações, para os “rituais e
festas que marcam vivência coletiva, religiosidade, entretenimento e outras práticas
da vida social”; Livro de Registros das Formas de Expressão, para as “manifestações
literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas”; e Livro de Registro dos Lugares,
para “mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram
e reproduzem práticas culturais coletivas”, podendo ainda ser criados novos livros
para abarcar melhor as especificidades do patrimônio.
23
Mestre Luiz Antonio da Silva
25
se citar, entre outros, os inventários do Círio de Nossa Sra. de Nazaré, do Ofício das
Baianas de Acarajé, da Viola do Cocho, do jongo, da Cerâmica Candeal, do Bumba-
meu-Boi, do Museu Aberto do Descobrimento.
26
Iphan para o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Neste caso
específico, cabe chamar a atenção para o fato do inventariamento das técnicas
construtivas tradicionais, realizado no âmbito do Projeto Mestres Artífices apresentar
um eixo temático e não espacial, como foi a tônica predominante em grande parte
dos trabalhos desenvolvidos pelo Iphan. Apesar disso, não podemos perder de
vista que a própria estrutura do INRC dá importância à dimensão espacial dos bens
inventariados, ao ligá-los sempre a “sítios” e “localidades”.
Finalmente, cabe chamar a atenção ainda para um dos marcos teóricos centrais deste
trabalho, a noção de “referência cultural”, tal como tem sido utilizada no âmbito do
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) do Ministério da Cultura e no INRC,
desenvolvido pelo Iphan. É importante perceber que, ao se adotar esta expressão,
está se privilegiando não só a diversidade da produção material, mas também “dos
sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais”.
Assim, se as informações a serem coletadas partem sempre de um “suporte” material
– no caso, práticas culturais -, elas só se constituem em “referências culturais”
“quando são consideradas e valorizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos
definidos”. Com isso, os sujeitos de diferentes contextos culturais não têm papel
apenas de “informantes”, mas também de “intérpretes” de seu patrimônio cultural9.
Seguindo esta lógica, as técnicas construtivas tradicionais registradas são sempre
referenciadas – antropologicamente – a seu contexto cultural mais amplo.
27
etc...) mas, e principalmente, a interface entre elas, permitindo um aprofundamento
do conhecimento e registro em aproximações sucessivas, fundamentais para a
abordagem de objeto tão complexo como as técnicas construtivas tradicionais.
O desafio da preservação
Finalmente, cabe chamar a atenção para outro objetivo desse projeto: propor
ações estratégias para a preservação e transmissão do saber vinculado às práticas
tradicionais da construção. Em sua atuação sobre o patrimônio imaterial, o Iphan tem
desenvolvido planos de salvaguarda, que, na mesma linha proposta pela Unesco, vão
atuar na melhoria das condições sociais e materiais de transmissão e reprodução,
que possibilitam a existência do bem cultural de forma a apoiar sua continuidade
de modo sustentável. Não se trata aqui, como no caso do patrimônio material, de
apenas garantir a preservação de bens culturais, mas muitas vezes de se garantir
o apoio para sua sobrevivência. Como se tem visto, esse apoio pode acontecer
de formas variadas, podendo viabilizar desde a ajuda financeira a detentores de
saberes específicos, objetivando a sua transmissão, a organização comunitária ou
a facilitação de acesso a matérias primas. Nesta perspectiva, o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial já realizou diversos Planos de Salvaguarda, podendo se
citar aqueles concernentes à Arte Kusiwa – Pintura corporal e Arte gráfica Wajãpi,
ao samba de roda do Recôncavo baiano, ao ofício das Paneleiras de Goiabeiras, à
viola de cocho, entre outros. As ações prioritárias nesses Planos de salvaguarda,
pautadas pelas questões observadas nos inventários e debatidas com os segmentos
sociais envolvidos e interessados, se estruturam em duas linhas gerais: difusão
(produção de filmes, cd-roms e impressos) e articulação/fortalecimento de grupos e
comunidades (reuniões, oficinas, etc).
Com isso, se retoma aquele desafio que já se colocava para o Centro Nacional de
Referência Cultural nos anos 1980: como realizar um trabalho de preservação orientado
a partir da noção – ampla e dinâmica – de referência cultural? Não se trata aqui, como no
caso da noção tradicional de patrimônio, de se preservar apenas em sua materialidade
bens de grande valor, valor esse reconhecido extrinsecamente por técnicos dos órgãos
de preservação. Aqui, ao contrário, coloca-se a questão da referência que esses bens
vão ter para os próprios sujeitos envolvidos
na dinâmica de sua produção, circulação e
consumo, reconhecendo-lhes, como anota
Cecília Fonseca, o estatuto “de legítimos
detentores não apenas de um saber-fazer, como
também do destino de sua própria cultura”.
28
de um processo, que teria sequência com a instauração de um procedimento de
certificação desses mestres, que poderia se constituir em instrumento eficaz de
valorização dos saberes tradicionais e, ao mesmo tempo, criar instrumentos legais de
melhoria de mão-de-obra envolvida nos processos de restauro. A nosso ver, o atual
aquecimento do mercado da construção civil e programas como o PAC das Cidades
Históricas10 poderão significar, de fato, uma ampliação significativa no mercado de
restauração no país, gerando, consequentemente, uma maior demanda por mão-
de-obra qualificada na área e condições de maior atratividade para a formação nos
ofícios tradicionais. E aqui se abrem novos desafios: como garantir a qualidade na
execução desses ofícios? Como combinar a perspectiva das técnicas tradicionais
com as descobertas científicas na área, que poderiam aprimorá-las? Como lidar, na
contemporaneidade, com o ensino dos ofícios tradicionais?
NOTAs
1. A própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível, aprovada em 2003, enuncia:
“Reconhecendo que os processos de mundialização e de transformação social por um lado criam as
condições propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, porém, por outro, também trazem
consigo, ..., graves riscos de deterioração, desaparição e destruição do patrimônio cultural imaterial,
devido em particular à falta de recursos para salvaguardá-lo.”
2. MINC/IPHAN, 2003, p. 17. Nesta mesma linha vai a Convenção, que define o patrimônio imaterial como
“os usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto como instrumentos, objetos,
artefatos e espaços culturais que lhes são inerentes – que as comunidades, os grupos e em alguns casos
os indivíduos reconheçam como parte integrante de seu patrimônio cultural.” (UNESCO, 2003)
3. Criada em 1991, essa Cátedra Unesco agrupa o Centro Internacional de Construção de Terra (CRATerre-
EAG), o Instituto de Conservação Getty e o Centro Internacional de Estudos sobre a Conservação e
Restauração do Patrimônio Cultural
4. Some Considerations on the Protection of the Intangible Heritage: Claims and Remedies. Lyndel V.
Prott. Chief International Standards Section Division of Cultural Heritage, Unesco.
5. The Unesco Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore (1989): Actions
Undertaken by Unesco for Its Implementation. Mrs. Noriko Aikawa. Director Intangible Heritage Unit,
Unesco.
6. A esse respeito, confira BOSI, 1987.
7. http://portal.iphan.gov.br
8. http://www3.accu.or.jp/PAAP/
9. LONDRES, 2003, p. 14.
10. Lançado pelo Governo Federal em outubro de 2009, o Programa de Aceleração do Crescimento
das Cidades Históricas deverá destinar, nos próximos anos, R$ 890 milhões para a preservação do
patrimônio histórico nacional. Através dele, as cidades históricas contempladas poderão receber obras
de requalificação e infra-estrutura urbana e de recuperação de monumentos e imóveis públicos. Também
estão previstas ações de divulgação nacional e internacional, de sítios históricos, de espaços públicos,
monumentos e símbolos socioculturais do país, além de cursos de especialização para guias de turismo
e da criação de uma página na internet bilíngüe sobre as cidades.
29
Telhado da Igreja Nossa Senhora do Amparo em Minas Novas
TÉCNICAS CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS EM
MINAS GERAIS: SÍTIOS, LOCALIDADES E OFÍCIOS
Este seu caráter de palimpsesto seria o que transformaria a paisagem num valioso
instrumento que nos permitiria rever as etapas do passado, sem perder a perspectiva
de conjunto. Dentro desta revisão é que nos seria permitido “retomar a história que
esses fragmentos de idades diferentes representam juntamente com a história tal
como a sociedade a escreveu de momento em momento”. Olhando desta forma,
reconstituiríamos “a história pretérita da paisagem”. Se por um lado, observando-a
conseguimos esta reconstituição, por outro, só entenderemos sua função se a
confrontarmos com a sociedade atual e suas necessidades. Assim, a paisagem seria
a “história congelada”, mas participante da “história viva”. As suas formas, seus
elementos naturais e materiais é que realizam, no espaço, as funções sociais.
Assim, sob este ponto de vista, foi que procuramos observar as paisagens que
caracterizam os sítios nos quais essa pesquisa se delineou no Estado de Minas Gerais.
Nesses sítios, sua paisagem, como sabemos, se modificou e se modifica, através
das relações dadas entre o homem e a natureza, o homem e os objetos, e entre
o homem e o próprio homem. Seria aquela paisagem constituída por elementos
naturais e artificiais que, tocada pela ação e pelo trabalho do homem, tornou-se um
“espaço humano em perspectiva”. Aquele espaço humano sobre o qual se projeta
aquele “conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem
transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência
social”2, que, homogeneamente cultural, distingue um determinado grupo social de
outro. Assim, a pesquisa de identificação e documentação das técnicas construtivas
31
Parede e porta originais de sobrado em Berilo
desenvolveu-se em três sítios que foram inventariados, ou seja, a Região das Minas,
a Região do Vale do Jequitinhonha e a de São Tomé das Letras, no estado de Minas
Gerais. Tal delimitação justificou-se pelo fato de que esses sítios se constituíam
claramente como áreas cultural, histórica e geograficamente homogêneas, assim
como suas subdivisões guardavam características de semelhança e peculiaridades.
Buscou-se assim, tecer um fio condutor sob o qual pudéssemos ler, através da
paisagem, a formação daqueles sítios, compreendendo os elementos que distinguem
histórica e culturalmente os grupos sociais que neles vivem.
32
Detalhe do altar da Igreja Nossa Senhora do Rosário
em Chapada do Norte
33
Num breve olhar sobre a área central do estado de Minas Gerais, pode-se notar que ela
tem como elemento marcante sua paisagem natural, com os rios e morros. O relevo
é, em sua maior parte, montanhoso e marcado pela presença da Serra do Espinhaço,
formada por uma cadeia de montanhas que segue em direção ao norte. Considerando
ainda esses elementos, existem importantes picos e serras que conformam o maciço
do Espinhaço e se destacam na paisagem em todo o sítio, e muitas vezes dos próprios
municípios ali presentes, que são principalmente: Serra São José, no município de
Tiradentes; Pico do Itacolomi, em Ouro Preto; Serra do Caraça, em Barão de Cocais
e em Santa Bárbara, e Serra do Curral, em Belo Horizonte. Assim, muitas vezes em
função de sua imponência, esses elementos contribuíram significativamente para
dar a feição daquelas paisagens e para orientar os homens nas escolhas dos seus
locais de fixação. Além disso, esses elementos também contribuíram, é claro, para
a formação da paisagem cultural do sítio onde surgiram os pequenos povoados que,
por sua vez, se constituíram em cidades portadoras de uma cultura que guarda
características da região.
Por detrás destas formações montanhosas é que podemos dizer que esse sítio
surgiu e se caracterizou socialmente e culturalmente. O processo de ocupação e
povoamento da região das Minas pelos colonizadores se fez, efetivamente, somente
a partir das expedições para descoberta de ouro e metais preciosos no início do
século XVIII, através das incursões que paulistas e outros forasteiros fizeram por
esta região, vindos principalmente de São Paulo. A primeira grande expedição,
incentivada pela Coroa Portuguesa, foi a de Fernão Dias Paes, em 1674, que, segundo
alguns historiadores, deixou marcas no território como o chamado “caminho, velho”.
A partir de então, a descoberta de ouro e metais preciosos e o grande afluxo de
imigrantes exploradores propiciaram o surgimento de pequenos arraiais que, mais
tarde, se configuraram como vilas e, posteriormente, como comarcas. Boa parte dos
historiadores descreve que as primeiras descobertas de ouro se deram na região
da atual cidade de Ouro Preto, no córrego Tripuí, ainda no final do século XVII. Foi
a partir dessas descobertas que começou a corrida pela busca desses metais nas
Minas e, consequentemente, o povoamento e ocupação da região por outros povos.
A atividade mineradora (ouro e pedras preciosas) atingiu o auge de produção na
primeira metade do século XVIII, proporcionando o surgimento de uma rede de
lugares que sobreviveram e se desenvolveram em função da mineração.
34
mais nivelado em um grupo social unitário. Surgem novas necessidades e com elas
novos profissionais: ferreiros, carapinas, alvanéus, alfaiates, seleiros, entalhadores,
que vão contribuir, dentre outras coisas, para dar feição àquela paisagem construída.
Dessa forma, as Minas vão sendo ocupadas por povos de origens diversas e
multiculturais, conformando uma sociedade basicamente urbana, que enfrenta toda
sorte de adversidades: a convivência com povos diferentes; terrenos íngremes,
montanhosos, desconhecidos, de difícil locomoção e instalação; luta constante contra
as restrições impostas pela Coroa Portuguesa; luta contra os próprios pares na busca
pelo ouro e metais preciosos ao mesmo tempo em que precisam se organizar para
sobreviverem. Segundo alguns autores, foram essas condições que fizeram surgir nas
Minas uma sociedade irrequieta, dinâmica, rebelde, democrática e, de alguma forma
organizada, diferente da que se fez anteriormente no ciclo da cana-de-açúcar, que era
relativamente estável, paternalista e conservadora na manutenção dos privilégios.
35
Detalhe do frechal (marcas de estrutura de pau-a-pique) com os cachorros
do beiral encaixados em Ouro Preto
37
do século XVIII, está no auge do seu desenvolvimento propiciado pela atividade
mineradora, no século XIX, já com essa atividade exaurida, através dos meios que
se tinha para explorá-la, a região não consegue o mesmo desenvolvimento com
a pecuária e agricultura tendo em vista a natureza do seu solo pouco propício a
essas atividades. No entanto, pouco a pouco, durante o século XIX, algumas novas
iniciativas são tomadas no que diz respeito à atividade mineradora, dessa vez em
relação à descoberta e utilização do ferro, mineral também abundante nas terras
de Minas. Verifica-se a criação, em toda a região, de fábricas de ferro. Em 1876,
a criação da Escola de Minas, em Ouro Preto, é interpretada como um marco do
que seria a nova vocação das Minas, consolidada no decorrer do século XX. Estas
atividades econômicas impactariam consideravelmente na formação de profissionais
especializados em determinados ofícios.
É ainda interessante notar que aquela interpenetração mútua entre os fatores naturais
e culturais daria origem a uma paisagem construída de grande significado para a
vida dos moradores das Minas. Neste contexto, destaca-se o conjunto arquitetônico
e paisagístico do Santuário de Nossa Senhora da Piedade no município de Caeté,
santuário religioso fundado no século XVIII e situado no alto da Serra da Piedade, de
onde se descortina paisagem montanhosa; o conjunto arquitetônico e paisagístico do
Colégio do Caraça, no município de Catas Altas, que tem suas origens ligadas à ação
devocional da Capitania de Minas no século XVIII e se transforma, no século XIX, em
centro de formação educacional da província; o conjunto arquitetônico, paisagístico
e escultórico do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos no município de Congonhas,
que teve sua construção iniciada em 1757, por iniciativa do imigrante português
Feliciano Mendes como agradecimento de graça alcançada. Esse último é composto
por templo, um grande adro ornamentado por conjunto de doze profetas esculpidos
em pedra-sabão e capelas que abrigam imagens, e hoje é bastante conhecido pelos
trabalhos artísticos de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Francisco Xavier
Carneiro e Manuel da Costa Athaíde.
38
evidências claras da presença e da ação de uma
sociedade complexa naquela região, com seus
saberes e ofícios.
E por fim, na localidade constituída por Belo Horizonte, Contagem e Nova Lima, cuja
ocupação é mais recente em relação às outras localidades, os profissionais atendem
com frequência às demandas dos órgãos de preservação não somente na região,
mas em todo o sítio e até mesmo fora dele. Aqui foram constatados profissionais de
nível superior, cuja obtenção do saber relativo ao ofício, diferentemente das outras
localidades, está menos ligados à tradição e seus meios de transmissão.
No sítio como um todo foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais
diferentes ofícios e que contribuíram para conformar a paisagem cultural do sítio e de
suas diferentes localidades. Os ofícios identificados e documentados foram: ofício de
carpinteiro e marceneiro, estucador, forjador artístico, fundidor, marmorista, pintor,
canteiro, esteireiro, ferreiro, pedreiro, oleiro, calceteiro.
41
Conforme aponta relato feito pelos próprios pesquisadores, neste sitio “foram
encontrados profissionais que trabalham na restauração de edificações históricas da
época do início da construção da capital”. A aplicação de trabalhos bastante elaborados
(em ferro, como as escadarias das antigas secretarias, feitas sob encomenda na
Alemanha e aqui montadas; em estuque, tanto externo como nas fachadas) fez com
que os profissionais contratados atualmente para as restaurações nestes edifícios
soubessem tanto quanto seus predecessores, observando e aprendendo o saber
fazer até mesmo na própria obra original.
O Vale do Jequitinhonha
Continuando nossa caminhada, agora ao longo da porção nordeste do estado de Minas
Gerais, notamos a existência de uma região conhecida como Vale do Jequitinhonha,
cujo rio de mesmo nome é o seu principal elemento articulador, percorrendo todo
o seu território. Assim como na região das Minas, nota-se que o sítio tem sua
paisagem marcada pela presença dos rios. O Rio Jequitinhonha, com nascentes na
Serra do Espinhaço, nos municípios de Serro e Diamantina, percorre toda a área
desenvolvendo-se no sentido nordeste e desaguando no Oceano Atlântico, no
estado da Bahia. O Rio Araçuaí é outro importante rio do sítio, que, afluente do
rio Jequitinhonha, nasce nas proximidades do município de Diamantina, percorre
o sítio em sentido nordeste, paralelamente ao Rio Jequitinhonha, onde deságua no
município de Araçuaí. Esses rios foram os grandes responsáveis pelo povoamento
42
local, era onde as populações se instalavam para o garimpo de diamante. O relevo é
caracterizado pela serra do Espinhaço, os planaltos e a depressão do Jequitinhonha,
cobertos em sua maioria pela Mata Atlântica.
Parede de adobe
43
ligada à atividade agropecuária de subsistência, que por auxiliar no abastecimento da
atividade mineradora, vinha se firmando aos poucos nas margens do rio Jequitinhonha,
mais próxima à foz e ao estado da Bahia, apesar das restrições impostas pela Coroa
Portuguesa. Cabe notar que, nesta porção
do Vale do Jequitinhonha próxima à foz,
desenvolveu-se, mesmo que de forma
incipiente, as atividades mais antigas ligadas
à economia baiana – pecuária, agricultura e
extrativismo –, haja vista a influência que
a Capitania da Bahia exercia sobre a região
pela facilidade de acesso através do vale do
Rio Jequitinhonha.
44
Vale do Jequitinhonha. Em 1972, as chapadas são classificadas como áreas de terras
devolutas e são incorporadas por empresas estatais e privadas, que implantam
projetos agrícolas, como a monocultura do eucalipto, com incentivo do Estado, para
atender siderurgia, produção de papel e celulose. Esta iniciativa levou, segundo
alguns autores, à ruptura entre a fauna, flora e recursos hídricos da região.
Rabecas
45
Fole elétrico
Nesse sítio foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais diferentes
ofícios, saberes que contribuíram para conformar a paisagem cultural do sítio. Os
ofícios identificados e documentados foram: ofício de carpinteiro e marceneiro,
canteiro, ferreiro, oleiro, adobeiro, taipeiro, pintor, ladrilheiro, esteireiro. Muitos desses
adotaram transformações que impactaram significativamente o desenvolvimento
de suas atividades. Assim, na região de Minas Novas e Diamantina, foram vistos
ferreiros que substituíram os tradicionais foles utilizados na forja, para atiçar fogo ao
carvão, por motores movidos a energia elétrica. Em Araçuaí, a equipe notou que o
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ferreiro visitado substituiu o fole por uma espécie de ventilador manual que funciona
através de uma manivela comandada pelo artífice.
Isso pode ser claramente notado no que diz respeito, por exemplo, à produção de
adobe. Essa apresenta algumas variações na fabricação da massa utilizada podendo
apresentar, ou não, o capim meloso que, segundo os artífices, garante uma maior
consistência do material. Por outro lado, alguns artífices afirmaram que a ausência
do capim meloso acelera o processo de secagem do adobe. Assim, nota-se que a
escolha pelas etapas da atividade acaba por ser bastante pessoal.
Neste mesmo sentido, notou-se também, durante o trabalho de campo o claro processo
de “industrialização” pelo qual passaram alguns ofícios e suas oficinas, ou seja, seus
locais de execução da atividade. Em alguns casos, a equipe de campo percebeu
que o método artesanal foi substituído pela adaptação de algumas máquinas, como
aconteceu com uma tupia e um desengrosso em duas marcenarias, em Diamantina,
para a produção de cimalhas. Nos municípios de Araçuaí e Almenara encontrou-se
a utilização de cimento na mistura para a produção de ladrilhos hidráulicos e pisos
cerâmicos queimados utilizados em obras de restauro.
Por fim, destaca-se que a execução ou não das atividades durante o ano está ligada
principalmente a fatores socioeconômicos – migração para o interior do estado de
São Paulo durante os meses destinados ao corte da cana; fatores climáticos – período
das chuvas e mudança da lua; e fatores culturais – festas populares e religiosas.
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São Tomé das Letras
Localizada ao sul do estado de Minas Gerais, a região de São Tomé das Letras tem
sua paisagem marcada pelas formações naturais, como a conhecida Serra de São
Tomé das Letras. Outro marco que chama atenção é a Serra de Cantagalo, que
aparece também como um elemento marcante na paisagem. Em especial, essas
duas serras conformam um vale em meio ao qual se desenvolveram algumas cidades
da região.
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Casa de pedra construída por mestre Vitor Castro
em São Tomé das Letras
49
Preparação da pedra com corte manual
50
quartzito já estavam circulando pela região que faz o entorno da serra. O segundo
durou do final do século XIX até o início da década de 1940, quando é iniciada, no alto
da serra, a “indústria da pedra”, termo utilizado pelos próprios mineradores. O terceiro
estágio se deu entre as décadas de 1940 e 1970, época em que provavelmente a
utilização de explosivos foi incorporada ao método de lavra. O quarto se estende de
1970 até a década de 1990, e tem como marco o início da atuação do poder público
sobre a mineração e os agentes fiscalizadores, que passaram a controlar a extração
dos quartzitos em função da degradação ambiental gerada pela atividade. O último
estágio corresponde à incorporação de medidas que visavam satisfazer as exigências
dos órgãos fiscalizadores do meio ambiente como maneira de garantir a permanência
da atividade mineradora no alto da Serra de São Tomé das Letras.
51
situação de abandonar as construções e trabalhar nas pedreiras para sobreviver.
Apesar do predomínio da construção em pedra, foi encontrado também um senhor
de 80 anos que construiu muito com pau-a-pique na região.
Por fim, podemos perceber que na região na qual se localiza São Tomé das Letras, os
municípios são ainda tipicamente rurais e pouco povoados, mas bem desenvolvidos.
O turismo é uma atividade econômica importante do município, cujos principais
atrativos são a história e arquitetura peculiar, com edificações civis e religiosas
erguidas em pedra, as belezas naturais - que exibem quedas d’água, grutas, cavernas
e paredões, e também pelo misticismo. Entretanto, uma das maiores fontes de renda
do município ainda é a extração do quartzito que data desde o início da ocupação
do arraial. Essa atividade de mineração tem se firmado como uma das principais
fontes de trabalho da população local e tem sido feita sem planejamento, o que tem
prejudicado a atividade turística, já que as paisagens natural e urbana estão sendo
comprometidas pela mesma.
Notas
1. SANTOS, 2002.
2. BOSI, 1995.
3. VASCONCELLOS, 1968.
4. HOLANDA, 2003.
52
Serra de fita
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Queima do sino em São João Del-Rey
OFÍCIOS: PERMANÊNCIAS E
TRANSFORMAÇÕES NOS OFÍCIOS
Foi com base nas observações, registros e impressões de campo elaboradas por cada
equipe de pesquisa que desenvolvemos esta parte do Caderno de Memórias. Durante
o trabalho de campo, os pesquisadores procuraram não se ater exclusivamente
aos materiais e às técnicas para perseguir um conjunto intrincado de percepções,
sensibilidades e afetos dos mestres artífices em relação aos seus ofícios.
Na tentativa de penetrar nesse intrincado universo, foi necessário uma escuta atenta
das falas dos mestres. Uma escuta direcionada às possíveis fissuras nos tijolos
de adobe, às rachaduras das paredes de pau-a-pique e às dobras produzidas nos
ferros pelas forjas dos ferreiros para que pudéssemos penetrar num universo de
percepções, sensações e afecções que as falas dos
mestres permitiam inferir ampliando os sentidos
das práticas artesanais da construção civil no Brasil.
55
das mais variadas adaptações,
produziu correspondências
estreitas e recíprocas entre
os ofícios praticados e as
técnicas corporais requeridas
por cada indústria, resultando
em corpos moldados pelos
ofícios e conformados para a
modelagem das diversas artes.
Essas “sensibilidades treinadas” reveladas pelas falas e inscrita nos corpos dos
mestres artífices se apresentaram em todas as artes: no decifrar os sons da pedra
a ser talhada, no ditar ou acompanhar os ritmos dos golpes na forja que ordenam
o trabalho associado; no reconhecer os sutis cheiros e gostos das madeiras para
decifrar suas propriedades; no praticar o delicado e ágil reconhecimento tátil
das boas texturas, seja da argila, da madeira ou do gesso; na espera de visões
para a antecipação visual dos intrincados trançados das taquaras e bambus, todo
um universo prático de sensações, e de sentidos, que configuram esses mundos
complexos e vivos dos ofícios pesquisados. De um lado, os materiais falam, de outro,
os mestres olham, escutam e sentem, e com suas ferramentas iniciam um diálogo
silencioso para extrair o melhor de cada um deles.
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Loja Casa de Artes São José em Chapada do Norte
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Cantaria
Ofícios da Pedra
A arte da cantaria chegou ao Brasil em meados do século XVI. Nesse período, trazia-
se diretamente de Portugal boa parte da matéria-prima a ser utilizada no Brasil:
pedras talhadas, ferros fundidos e objetos de decoração portugueses foram as bases
para as primeiras construções erguidas no Brasil, desprezando-se inicialmente a
matéria-prima local. Peças inteiras em calcário Lioz vinham como lastro dos navios
para serem utilizadas nas construções pelos mestres canteiros1.
Três fases se destacam no uso da pedra nas construções regionais. Na fase inicial,
foram usados para alvenarias blocos avulsos de minério de ferro (canga). Em seguida,
vieram os quartzitos, amplamente empregados em Vila Rica, sobretudo nas partes
nobres das construções. A terceira fase do uso das rochas nas construções da vila
teve início em meados do século XVIII, com o emprego da esteatita, conhecida como
pedra-sabão3.
61
aperfeiçoamento da arte de construir deram origem às obras que caracterizaram a
arquitetura colonial das Minas Gerais.
Em Coronel Xavier Chaves, município próximo a São João Del-Rey, a cantaria também
ressurge com força no início dos anos de 1990. A cantaria nessa localidade tem
como pioneiros Mestre Davi e Mestre José Maria Mendonça. A cantaria na região
62
surge como uma promissora fonte de renda
para os mestres canteiros que começaram
a produzir peças talhadas em pedra com
o objetivo vendê-las aos turistas que
visitavam São João Del-Rey e Tiradentes.
Apesar de não haver uma preocupação de
manutenção do patrimônio como em Ouro
Preto, o modo de fazer e as técnicas em
muito se assemelham.
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São Tomé das Letras
Tem uma pedra enterrada no planeta
São Tomé das Letras!
E essa pedra já não faz minha cabeça
Pedra ramada, pedra branca, pedra preta
Um arco-íris num Vale das Borboletas
E essa pedra quis espalhar em meu planeta
São Tomé das Letras!
São Tomé das pedras, das lendas!
É tudo o que eu preciso
Aqui é o paraíso
Tem o céu, o luar, a noite pra gente cantar
Aqui tem noite escura
Aqui tem nostalgia
E tem minha poesia
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Francisco raramente responde à pergunta de maneira direta. Sua narrativa é repleta
de desvios, sobreposições e meandros. Ele responde: Eu vou começar pelo começo.
Normalmente, as pessoas, onde elas estão, elas se adaptam ao ambiente em que
vivem. Eu acredito que lá no começo, quem descobriu São Tomé das Letras, usou
a matéria-prima que tinha aqui na época: a pedra. Eles a trabalharam para montar
as suas casas, é daí que veio a cidade. Então, quando criança, eu nasci em cima das
pedras e fui vendo as construções, fui crescendo, o tempo foi passando. Meu pai
trabalhava na pedra, foi um dos pioneiros na pedra. Então, eu fui direto trabalhar
com a pedra e desde criancinha, vendo aquilo ali e mexendo com as pedras, sempre
construindo, desde pequeno, aquelas casinhas de pedra eu fui sobrevivendo delas. Aí
me chamaram para trabalhar, pois viram que eu tinha como trabalhar com construção
de pedra. Então eu comecei a trabalhar, mas vendo que eu tinha que trabalhar mais
ela. Tinha que ir vendo o serviço dos antepassados...”
Após essa bela introdução, Francisco Rosa fala sobre a sua infância, as pedras, o
aprendizado e escolhas relacionadas ao modo de trabalhar: Eu comecei meio cedo no
serviço, com oito anos eu comecei a trabalhar. E trabalhando nessa linha de talhar de
forma cuidadosa a pedra. Fala-se recortar as pedras, né? Eu comecei logo a recortar
as pedras. E vi que o recorte era uma coisa gostosa de fazer. Dentro do trabalho de
extração das pedras, o recorte é uma coisa que eu sentia mais prazer de fazer. Aí
eu comecei...
Eu sempre tive esse dom também, eu sou um pouco curioso, muito curioso de
conhecer o desconhecido, sabe? Aí, eu queria além de recortar a pedra começar a
domá-la. Eu estou aprendendo a domar a pedra até hoje. É difícil porque, muitas
vezes, a gente acha que sabe domar a pedra. Esse é o perigo. Eu acredito que é ela
que doma a gente, mas você tem que trabalhar com ela, conversar com ela.
Quer um exemplo? Essa igreja aqui do Rosário, acho que ela foi terminada em 1978.
Ela é uma construção inacabada. Então. Enquanto criança eu brincava em cima
dela. A gente escalava a igreja e andava em cima dela. Então eu cheguei a ver as
pedras empilhadas pelos escravos. Hoje, eu tenho essa consciência, assim, mais
clara. Porque antes não, antes eu corria e via aquilo. Mas eu não percebia. Estava
vendo que a igreja era feita da forma como eu gosto atualmente de trabalhar com a
pedra. Na época, eu não tinha tanta consciência de que ela era mais encaixada. Com
o passar dos anos é que a gente envelhece e o corpo fica lento, mas a cabeça vai se
encaixando, as peças, lá dentro, se assentando, como as pedras. Então, eu acho que
a gente aprende às vezes da raiz, da raiz do nosso passado, porque, normalmente
tudo já está na cabeça da gente, já está tudo pronto na cabeça. É com o passar dos
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66 Pedras filetadas de quartzito
anos que a gente vai reaprendendo aquilo. Reaprendendo a refazer aquelas coisas.
Então, eu acho que ela tem que ser bem encaixada como as pedras da Igreja do
Rosário. Tem uns que usam outra forma. Mas a minha técnica é essa de encaixar
bem. E bem devagar, bem processo lento, tranquilo.
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Conversar com a pedra
“É por isso que você tem que conversar com a pedra. Algumas vezes você a golpeia,
e ela te golpeia. Nessa, vai a cabeça de um dedo embora, vai uma bolha na mão.
Então, se você quebra a pedra, ela também te quebra de vez em quando. Tem dia
que se você estiver de mau humor, brigado com a mulher, aí... Aí tem um perigo
danado de se machucar. Por isso, que eu me recuso ficar de mau humor e brigar
com a esposa, porque eu vou chegar lá no serviço eu vou acabar me machucando.”
Vocês estiveram na Igreja Matriz? Lá em cima na torre? Lá em cima ainda tem pedra
de 8, 10 toneladas que foram parar lá em cima daquela torre em 1700, cara! Naquela
época não tinha máquina. Não tinha mecanismo nenhum! Os caras usaram a técnica
para deixar a pedra lá, tipo aquela obra... Machu Pichu. Os caras colocaram aquelas
pedras lá... Aqui também, colocaram porque... É uma paciência. É uma engenharia
dos burros que eles falam. Eu já ouvi falar, não tenho certeza. Eles soltavam o
burro na estrada para poder acompanhar o burro. Eles colocavam um peso bom em
cima dele, nas costas dele, e normalmente ele estando pesado ele não queria subir
morro, ele ia buscando os lugares mais baixos. Então eu acredito que antigamente
eles também tinham essa técnica dos burros. Não se usava tanto a força, usava-se
a sabedoria para colocar as pedras nesses lugares. Eu também, de vez em quando,
ainda uso as técnicas dos burros para colocar uma pedra em cima, uma pedra
pesada, quando não tem ninguém para ajudar, ainda uso a técnica dos burros e
consigo colocar sem muita força. Porque a pedra mesmo ensina a gente...
Olha para você ver, uma outra engenharia. Meu pai e o pessoal antigo da cidade
falavam ‘dar fogo’, explodiam as pedras. Eles pegavam uma pedra e colocavam
canela de ema [Vellozia squamata] por baixo da pedra. Pegavam um pedaço de
ferro e levantavam ela numa altura, principalmente a parte que a gente chama
de ‘pedrão’. Pedrão é uma parte bem grossa assim. Eles levantavam aquele bloco,
pegavam a canela de ema e colocavam em cima daquele blocão, de uma distância
que ia da ponta do bloco até o meio do bloco, e colocavam fogo. Deixavam aquilo ali
queimando numa noite inteira com bastante canela de ema. Depois, no outro dia,
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eles raspavam, puxavam aquela canela de ema para fora dali e jogavam água. Aí,
colocavam um choque e quebravam ali. Eles falavam ‘dar fogo’, então até hoje ainda
se usa essa palavra ‘dar fogo’, porém hoje nos garimpos se utiliza as dinamites.
Atualmente, acho que o pessoal tinha que usar melhor a pedra. Acho que a cidade, a
estratégia da cidade, o lugar, a cidade é muito conhecida. Tinha que se explorar melhor
a pedra. O garimpo está desenfreado. Estão só tirando e destruindo, destruindo... E
construindo quase nada. E... Parece até difícil, não é fácil, entalhar uma pedra e pegar.
Mas é que nem voltar atrás como eu estava falando. É tempo, o pessoal precisa ter
tempo, ter mais calma com ela. Ela é uma matéria-prima muito boa. É pedra, né? Se
você faz uma construção de pedra é uma coisa eterna. Como lá no Peru.”
Percepções
“E você, quando está trabalhando, está sozinho. Tem vezes que quando você bate a
ferramenta o eco ecoa lá longe. Você vê o silêncio. Você consegue ouvir o silêncio.
Eu consigo ouvir o eco da minha voz. O barulho das pedras, quando você joga as
pedras assim, você vê o barulho delas ecoando... lá longe. A música eleva a gente, a
alma, o espírito. Tem uma do Milton Nascimento... ‘Longe, longe, ouço essa voz. Que
o tempo não...’ É engraçado, quando moleque eu gostava muito de gritar. Como aqui
é pedra para todo lado, eu gritava, o eco ia lá longe. Eu ficava gritando para ver o
eco da minha voz, entendeu?
Da mesma forma que eu converso com a minha filha, eu conversei com o meu pai
e foi numa conversa com o meu pai – um dos pioneiros em São Tomé das Letras
com relação à construção de pedra – que ele me contou. E eu acredito que isso
aqui foi um quilombo. Havia uma fazenda aqui perto e houve um assassinato nessa
fazenda. Uma história muito comprida. Os fujões dessa fazenda vieram para cá. E
aqui, quando eu era mais novo, eu via muitas construções de pedra esparramadas
pela serra, no meio do mato. É por isso que eu falo que foi um quilombo. Porque
naquela época, em torno de 1700, eles vieram para o meio do mato, na serra virgem
e começaram a trabalhar a pedra. Eu imagino que esses fujões devem ter vindo de
Ouro Preto, São João Del-Rey. Eles devem ter aprendido por lá a entalhar a pedra.”
Partindo da fala de Francisco Rosa, é em São João Del-Rey e Ouro Preto que
encontramos com dois outros importantes canteiros: Ediniz José Reis e José de
Fátima, e nos deparamos com a reinvenção da cantaria em ambas as cidades.
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Ouro Preto
Conversar com Ediniz José Reis sobre a sua relação com a cantaria é trazer à tona
a figura de Seu Juca – importante mestre e canteiro de Ouro Preto. A relevância de
Seu Juca na formação de Ediniz é percebida quando diz: “Eu descendo de um mestre.
Eu não fui a uma faculdade. Eu fiquei com meu mestre por mais de dez anos.” A
formação de Ediniz na arte da cantaria iniciou-se quando Seu Juca administrava o
curso de cantaria na FAOP (Fundação de Arte de Ouro Preto) para a sua segunda
turma. Desde então, Ediniz foi um aprendiz bastante próximo de Seu Juca, até a sua
morte em 2006, e com ele realizou trabalhos de restauração, além de ajudá-lo nos
cursos de cantaria para as turmas posteriores.
Ediniz relembra quando foi apresentado a Seu Juca: “a gente começou a bater papo,
e eu fui descobrir que seu Juca era vizinho dos meus pais. Ele conhecia toda a minha
família. Inclusive ele me conhecia desde pequeno. E aí, eu gostei. Ele também gostou
de mim. E como ele estava fazendo um trabalho de restauro, então ele falou para
mim: ‘ó! eu estou fazendo um trabalho lá, se você quiser...’ Aí, eu fui ajudá-lo, né?
Ele trabalhava sozinho na época [1998], não tinha ninguém que trabalhava com ele.
A gente tinha uma amizade muito boa. Eu vou te falar que aprendi muita coisa que
eu nem imaginava que pudesse aprender.”
Ediniz narra algumas historietas sobre o modo de ensinar e a forma de Seu Juca se
relacionar com as pessoas: Porque é. Ele é. Ele era uma pessoa que tinha uma forma
de ensinar bem diferente. Ele era prático. Ele não chegava e falava o que você tinha
que fazer. Ele geralmente fazia e falava: ‘olha aqui o que eu estou fazendo’. E, se
você não tivesse uma percepção, ele saía e te deixava. Ele te dava a pedra, ia lá e
rabiscava o desenho, ‘faz isso aí’. E ele fazia um pouco pra gente ver, e saía.
Eu me lembro de uma vez que ele pegou uma marreta de 15 quilos e começou a
bater numa pedra. Ele está batendo, batendo e eu olhando. Ele dizia: olha aí. Eu
falei: tá... Aí, eu pensei: pô, esse moço não vai me deixar bater nessa pedra? Passou
40 minutos, 50 minutos... Ele batia sem parar, o suor já tava pingando nele. Eu
falava: ô seu Juca, deixa eu dar uma batida, aí? Ele: não, olha aí, primeiro! Falei: tá.
Aí, uma hora e quinze dele batendo na pedra, ele virou e perguntou: toma, você viu
mesmo? Falei: vi.
Eu peguei a marreta, olhei pra ele, falei: é, agora que eu vou mostrar pr’ocê. Vou
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quebrar essa pedra aí com uma marretada só! Peguei a marreta e dei uma pancada
na pedra. Do jeito que a marreta foi, ela voltou dois metros. Ela foi lá longe e me
levou junto. Seu Juca virou pra mim e falou: Está vendo! Você não tava me olhando!
Aí, ele pegou a marreta, continuou e disse: Olha aí!
Eu vi o que ele estava fazendo. Vi o que é que ele fazia. Ele pegava a marreta, jogava
ela pra cima, batia ela na pedra e a deixava cair. Ele fazia o pêndulo, só a força inicial.
Na hora que ele batia na pedra, a marreta quicava. Aí, ele deixava a marreta vir,
fazer o pêndulo e voltar.
Essa era a praticidade dele. Ele já tinha aquele costume de trabalhar. Ele começou
com cantaria, acho que com cinquenta e poucos anos. Não foi o primeiro ofício da
vida dele. Ele já teve outros porque ele já tinha sido aposentado umas duas vezes.
Ele já tinha muita experiência de vida e de profissão. Então, ele fazia a coisa de
forma bem natural, sabe?
Além disso, Seu Juca tinha muita força de vontade. Ele fazia questão que a gente
entendesse isso, que era necessário ter força de vontade e querer fazer o negócio.
Por isso que o Seu Juca, ele não fazia nada pelo dinheiro, pra ele o dinheiro era uma
coisa que não importava, entendeu? Às vezes, ele pegava um trabalho, ele fazia um
trabalho na cidade e ele pagava a gente com o dinheiro dele. Ele sabia que a gente
tinha que ter dinheiro e a prefeitura não pagava, ou ele mesmo não pegava todo o
dinheiro, então, ele pagava.
A cantaria para nós era uma coisa bem... Era mais uma poesia, sabe, a gente tava
preocupado em desenvolver a técnica, porque a nossa técnica era muito rústica.
Então, por exemplo, a maceta, tinha uma maceta só. Eu peguei essa ferramenta,
trouxe aqui, na mina. A gente conseguiu que eles fizessem mais. A gente tinha essa
vontade de fazer, de descobrir e ir atrás das coisas que facilitassem o nosso trabalho
e a gente tinha que descobrir. Porque toda a cantaria aqui era o que Seu Juca sabia,
o que ele sabia era experiência dele mesmo, ninguém nunca chegou pra ele e falou:
ó, é assim. Entendeu? Ele sozinho foi desenvolvendo e descobrindo.”
Sobre a condição de mestre: “É por isso que eu considero Seu Juca um mestre.
Primeiro, o mestre tem que ter experiência de vida. Não adianta eu falar que eu sou
um mestre. Eu não sou. Por quê? Porque eu não tenho experiência de vida. A vida
tem essa carga que você leva. Ela te ensina muita coisa. Então pra ser mestre eu
acho que a pessoa deve ter mais de cinquenta anos de idade. Porque, aí, sim, ela
já é uma pessoa madura. Não no trabalho, mas na vida. Porque, quando o Seu Juca
está trabalhando, o trabalho faz parte da sua vida e vice-versa. O mestre tem que
ter essa dedicação também no trabalho. Eu acho que são fatores fundamentais. Não
adianta falar que eu sou um canteiro. Não sou. A gente está aprendendo e isso vai
ser um aprendizado até o final da vida.”
Ediniz diz que os canteiros discípulos de Seu Juca trabalham da seguinte maneira.
Todos ficam sentados na pedra segurando-a. Com uma das mãos seguram a
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ferramenta e com a outra sentem a pedra. Ediniz comenta que é preciso fazer isso,
pois não se trata somente de uma pedra e sim de um objeto diferenciado. “Deu uma
pancada mal dada nela, volta também. E ainda, sempre que a gente está trabalhando
estamos com a mão na pedra. Isso é pra poder escutar a pedra. Ali, quando se dá
um batido que o som é diferente, você consegue entender aquele som. É porque o
material está vivo, com muita energia. Eu, quando eu vou tirar uma pedra maior,
sempre vou ao seu lado e peço licença. Pra ela me levar onde eu preciso, que é pra
eu não ficar perdendo tempo e para eu ter uma ligação com ela, justamente pra
você entender o que tem na sua frente. A pedra tem energia. Se ela não quiser sair
dali, ela não vai sair. Ela tem uma vida própria, ela está mudando, nós não vemos o
processo. É bem diferente a questão do tempo. Mas, ela muda! Até mesmo as pedras
que estão ali no patrimônio, elas estão mudando. E eu, na época, escolhi trabalhar
com a pedra justamente por causa disso.
Engraçado, às vezes a gente está trabalhando e não está legal a energia, a gente tem
que parar. Entendeu? E quem trabalha com a pedra eu tenho certeza absoluta que
sente isso. O quartzito, me parece que ele passa mais isso, ele vibra mais. Quando
você tá trabalhando com ele, ele tem uma vibração maior. Então, se ela vai quebrar,
ela te avisa antes. É uma coisa que se aprende com o tempo, até mesmo quem não
tem muita sensibilidade, começa a trabalhar e com o tempo vai percebendo isso.”
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São João Del-Rey e proximidades –
a cantaria em Coronel Xavier Chaves
José de Fátima Aparecida Chaves, mais conhecido como “Godinho”, relembra que no
início dos anos de 1990 – quando começou a trabalhar como canteiro em Coronel
Xavier Chaves – o comércio das peças fruto da cantaria praticada na cidade acontecia
sem a presença de intermediadores lojistas, como é atualmente. Nesse momento
inicial, o produto era vendido diretamente ao turista que, ao visitar as cidades de
São João Del-Rey e Tiradentes, passava em Coronel Xavier Chaves para conhecer
a famosa arte em pedra da cidade. Nesse período, relembra José de Fátima, a
produção era “mais artesanal” pois não se usava o pesado maquinário elétrico que
se usa atualmente. José de Fátima relembra todo esse processo.
73
Pedras brutas para serviço de cantaria
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o poder aquisitivo do pessoal era maior. Até hoje eu não sei o que aconteceu. Uma
peça que a gente vendia numa média de cinco salários, há quase vinte anos, hoje
vendemos por apenas um salário, dois salários no máximo. E é interessante que a
qualidade era muito inferior também, pois nós estávamos iniciando. Aí, começamos
a comprar maquinário para aumentar a produção. Então uma peça que gastávamos
um mês para fazer manualmente, em uma semana essa mesma peça era feita com
o martelete pneumático.
Aqui nós trabalhamos muito com os comerciantes, com os lojistas. Eles não valorizam
o produto da gente. O lucro maior fica na mão deles. Essa é a maior dificuldade que
nós enfrentamos. Porque apesar de ser perto de São João Del-Rey e Tiradentes, que
são cidades históricas, os turistas que vão para lá, eu acho que nem três por cento
descobriram a nossa cidade. Eu acho que o que falta é isso.”
Nos dois primeiros anos, quando comecei na cantaria, o trabalho era só manual,
com a marreta, o ponteiro e a talhadeira. Era bem difícil. Tinha dia que dava vontade
de ir embora e não voltar mais. Porque a pedra é muito dura. Rende muito pouco
o trabalho, a gente fica batendo o dia inteiro ali. E no final do dia a gente via que
tínhamos pouco serviço. Eu me lembro. A pedra era muito dura. A experiência que
eu tinha não era nenhuma ainda. Eu machucava muito a mão. Às vezes a marreta
batia, o ponteiro escapulia e pegava na mão. Eu ficava todo machucado. Porém, o
pouco que a gente conseguia produzir, nós conseguíamos um bom preço.
Por isso que, primeiramente, a pessoa deve ter vontade de aprender. Depois que
começar a trabalhar com a pedra ela deve ter persistência. Muita força de vontade
mesmo porque é um trabalho meio árduo. Trata-se de um trabalho que exige muita
força também, por causa do peso. Mas ao mesmo tempo a pessoa precisa da técnica,
da paciência, principalmente com relação ao acabamento. Os retoques finais, o
acabamento. Todos eles exigem muita habilidade e paciência, por causa da técnica.
A pessoa não pode ser uma pessoa nervosa, afobada, tem de ser uma pessoa calma.
Então, no dia que a pessoa não estiver muito bem, ela já não pode trabalhar. Se a
pessoa briga em casa e está meio ‘pê’ da vida, esse dia já não dá certo, não sai nada.
A pessoa deve estar em paz de espírito. Muito concentrada.
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Foi na oficina do José Maria Mendonça que eu já consegui uma técnica boa. A melhor
escola que eu tive foi lá. Porque lá a gente era obrigado a trabalhar com medidas
exatas, entendeu? Nós trabalhávamos sob encomenda. Então eu já comecei a trabalhar
em cima dos projetos. Então éramos obrigados a trabalhar com medidas exatas. As
medidas tinham que ser em cima do que estavam nos pedidos dos projetos. Aí, eu
fui obrigado a aprender, a adquirir rápido essas técnicas. E lá era alta produção. Lá,
eu não estava para aprender mais, eu estava para produzir mesmo. Já era fábrica
mesmo, a gente não podia errar. Porque se errarmos a gente perde a pedra. Aí o
patrão já vem e puxa a orelha, já ‘alopra’ né? Lá, tinha o encarregado, que qualquer
dúvida ele ajudava, ele dava algumas dicas e nós tínhamos que descobrir as coisas
sozinho. Se era peça com esquadro tinha de ser com o esquadro, se fosse coluna,
chafariz. Lapidar a pedra, a face dela devia ser tudo super certinho, não podia ter um
empeno não podia ter nada. Fazíamos isso numa régua. Igual um pedreiro mesmo
para fazer uma parede mesmo, tinha que ser impecável mesmo. Essa foi a minha
principal escola.”
“Os meus funcionários, aqueles que não desistiram antes, com dois anos eles ficaram
bons. Os dois que começaram comigo e que não tinham experiência nenhuma, com
dois anos eles ficaram bons mesmo. Hoje eles são excelentes em qualquer tipo de
trabalho que eles desenvolvem. Eles tiveram força de vontade e, com dois anos,
eles conseguiram. Porque até os dois anos, o que eles produzem é só para cobrir
os gastos. Antes de dois anos, o profissional não tem lucro nenhum. Ele tem de
acreditar e investir.”
“Bom, e aí, depois que o funcionário se torna profissional, que você pode confiar.
Quando você pode entregar um projeto para ele executar. Aí, você tem que remunerar
bem também, porque senão ele vai embora. O que acontece muito é isso. Ele começa
a produzir bem e pensa: ‘Ah! Eu vou trabalhar por minha conta’. Então você tem que
remunerar eles bem, porque senão você perde a mão de obra. Aí, eu vou ter que
pegar um outro que nunca trabalhou, vou ter de ensinar ele, apenas depois de dois
anos ele vai começar a dar lucro, aí, se eu não melhorar a gratificação dele, ele vai
embora e, aí, eu vou estar sempre formando mão-de-obra e sempre sem mão-de-
obra.”
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transmitiu o conhecimento das técnicas de cantaria para, pelo menos, dez pessoas
que trabalharam com ele em sua oficina. Ele comenta com pesar a possibilidade da
profissão acabar pela diminuição, a cada ano, das vendas: “acho que, de agora pra
frente, vai ser difícil começar outros, formar os profissionais por isso, porque já não
está sendo tão compensador mais como era no início. É uma pena, porque isso aí
não está criando, não está ajudando a resgatar uma época do Brasil colonial.”
Notas
1. Cf. VILELA, 2003.
2. Cf. VILELA, 2003.
3. Cf. VILELA, 2003.
4. Cf. KATINSKY, 1994, p. 81.
5. Cf. VILELA, 2003.
77
pintor
estucador
78
Ofícios da Cor e do Ornato
Detalhe das folhas de acanto desenhadas no florão
80
Ofícios da Cor e do Ornato:
Pintor/Estucador
Num sentido amplo, a arte pode ser considerada como todo embelezamento da vida
ordinária alcançado com destreza e que tem uma forma que se pode descrever1. Ne-
nhum povo que conhecemos – diz Franz Boas – por dura que seja sua vida, investe
todo o tempo, todas as energias na aquisição do alimento e moradia. Todos os gru-
pos humanos produzem obras que lhes proporcionam prazer estético e todas as ati-
vidades humanas podem revestir formas que concedem mérito estético: ocupações
industriais como cortar, talhar, modelar, tecer, etc. Quando o tratamento técnico
dos materiais alcança certo grau de excelência, quando o domínio dos processos é
tal que produz certas formas fixas, típicas, ao ponto de alcançar a perfeição formal,
damos a esse processo, por simples que seja, o nome de arte2.
Tabatinga
Mais fácil de encontrar do que a cal – primeiro importada, mais tarde obtida de
conchas ou mariscos – o emprego da tabatinga para o revestimento das vedações
se generalizou. O uso da tabatinga é frequente, hoje, na zona rural do Vale do Je-
quitinhonha, na construção das casas de pau-a-pique ou adobe e rebocadas com
estrume de boi. O termo tabatinga é
de origem tupi: tawa’tinga, que quer
dizer ‘argila, barro branco, esbran-
quiçado’; também há registro das va-
riantes tauatinga, tobatinga, tabatin-
gua3. Trata-se de uma terra argilosa
mole e untuosa ao tato, geralmente
de cor branca, que resulta numa es-
pécie de argamassa usada para caiar
e revestir casas populares. À tabatin-
ga adiciona-se algum fixador, como
leite ou resina de sorveira, leite de
vaca, soluções de pedra-ume4, ou
água de mandioca - esta última mais
comum na atualidade na região do Parede de adobe pintada com tinta de barro branco
81
Vale do Jequitinhonha. A partir de um modo artesanal de trabalho, o barro branco é
transformado em uma pasta, posteriormente a pasta é coada, e por fim adiciona-se
goma de mandioca, dando origem à mistura para aplicar nas paredes e no chão das
construções. A aplicação, que dá à construção um aspecto liso e claro, é feita com
um pau (pau d’ema), com a ponta em formato de pincel. A melhor época para se
pintar as casas é no período de estiagem, para que a chuva não desmanche a pintura
antes desta secar totalmente.
José Trindade da Costa é um mestre com múltiplas habilidades, e desde 1983 parti-
cipa da equipe de obras do Iphan em Tiradentes. Apesar de considerar-se um espe-
cialista da marcenaria, conhece profundamente inúmeras das técnicas construtivas,
desde o adobe até as tintas que produz a partir da tabatinga. Zé Trindade lembra
que aprendeu a manipular o material ainda moleque, quando frequentava uma fá-
brica em Tiradentes que produzia tintas com a tabatinga. Curioso, ficava ali horas
a observar os mestres manipulando terras e cores. Zé Trindade não apagou de sua
memória o contato que teve com esses mestres das cores de Tiradentes, lembra o
nome de todos eles: Pedro Gameleira, Zé Malta e Ramalho. Hoje, é capaz de criar e
manipular diversos materiais de origem vegetal com materiais industrializados pro-
duzindo tintas utilizadas para restaurar e embelezar igrejas e casarões mineiros do
período colonial.
Pintura
A técnica da pintura à cal é bastante difundida nas regiões visitadas, especialmente
na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana, Congonhas e San-
tana dos Montes. Esta técnica data da época colonial, quando dos primeiros assen-
tamentos urbanos em virtude da atividade mineradora, e atualmente é empregada
em obras de restauração.
82
pela experiência, mas todos concordam que a tinta à cal
deve ter uma consistência bem ralinha, semelhante ao
leite, para não desprender da parede; apenas Eliana de
Oliveira, de Belo Horizonte, indicou a proporção de uma
parte de cal para três de água.
83
Artesãos restauradores de ornatos e esculturas, Leandro Marchi
(filho) e Afonso Marchi (pai), estucadores tradicionais
84
85
tabatinga branca ou alvaiade, que, por conter chumbo na composição, material tóxi-
co ao organismo, foi substituído por branco de zinco.
A camada de fundo da pintura com pigmentos é feita com uma demão de uma mis-
tura de branco de zinco com óleo de linhaça. Após secar a base, passam-se duas
demãos de tinta a óleo com pigmento. A aplicação de tinta a óleo nos elementos
construtivos em madeira é feita através do uso de pincel chato.
Estuque
Ofício encontrado, principalmente, nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto, o
estuque é uma técnica que foi muito utilizada nas construções de estilo neoclássico
e eclético, ambos predominantes na cidade de Belo Horizonte no final do século XIX
e início do XX.
O estuque consiste numa argamassa branca, o policroma, composta de cal fina, areia
fina, pó de mármore e gesso, usada em variados tipos de ornatos relevados, em
muros exteriores, interiores ou tetos. Há
várias modalidades de estuque. Pode ser
usado para revestir paredes internas, for-
ros para vedações, para preencher inters-
tícios, para pinturas de afrescos ou ain-
da para revestimentos conhecidos como
marmorino e escaiola. Também, para se
fazer altos e baixos-relevos, como florões,
rosáceas, arremata pináculo, centro de
teto, centro de abóbada conforme o lugar
e o fim a que se destina, interna ou exter-
namente, num edifício5. Na atualidade, o
termo estuque é reservado para referir-se
às argamassas aplicadas em edificações
antigas.
86
mais lisas são moldadas com gesso e as mais detalhadas com silicone ou borracha.
O molde de borracha precisa ser cozido durante 15 dias, porém é mais barato e pode
ser reutilizado. O molde em silicone, material mais contemporâneo, é feito com a
aplicação em camadas do líquido de silicone com pincel, e tem um tempo de seca-
gem de cinco minutos.
Notas
1. Cf. HERSKOVITS, 1968, p. 416.
2. Cf. BOAS, 1947, p.15.
3. TABATINGA (verbete). In: DICIONARIO ELETRÔNICO HOUAISS. 2001.
4. Cf. VASCONCELOS, 1979, p. 71.
5. Cf. REAL, 1962, p.226. Ver também: ESTUQUE (verbete). In: DICIONARIO ELETRÔNICO HOU-
AISS. 2001.
87
ferreiro
forjador
88
Ofícios do Ferro
Bigorna na ferraria de mestre Luiz Gonzaga
90
Ofícios do Ferro:
Ferreiro/Forjador
O que para uns é o inferno, para outros é o céu, com santos, ídolos e tudo o mais.
Desde a antiguidade, e em quase todas as culturas, a metalurgia sempre exerceu
esse fascínio, foi considerada uma arte sagrada. Os metais representavam a presença
mesma de forças obscuras, desconhecidas, mágicas. Por isso, a fundição dos metais
sempre foi rodeada de lendas, crenças e segredos.
O ferreiro é esse homem, o homem dos metais, aquele que conhece os segredos da
metalurgia. Com forja, bigorna, marreta, tenaz e maçarico, sabe aquecer o metal e,
assim, os domestica,h sua resistência, o molda, fura, torce, corta, rosqueia e dobra
para criar uma grande variedade de objetos.
91
você tem que me ajudar, você tem que me ajudar. E
trazia o filho, puxando-o pelas orelhas, quando este
se escondia na casa de um vizinho querendo brincar.
Foi também na relação com o pai que se deu o
aprendizado de Antônio Elói Coelho – mestre ferreiro
de Ouro Preto – que, assim como Mestre Zinho, ensinou
o ofício a seus filhos.
92
Fabricação de dobradiça
espelhinho para ele. Só depois, que ele me pediu para bater uns cravos.” Já Antônio
Elói, aos nove anos de idade, era capaz de realizar trabalhos com forja e solda.
Se depender de boa parte desses mestres, o ofício ainda perdurará por algumas
gerações. Além de seu filho, Luíz Gonzaga França formou vários outros ferreiros
em Tiradentes e costuma brincar: “se eu ensinar mais para outras pessoas, eu não
terei mais como trabalhar.” Em Ouro Preto, Antônio Elói também possui uma relação
generosa com seus aprendizes, que chama de ‘pessoal’. “Vem gente aqui. Esse
pessoal tem um respeito com a gente, viu? Tem um, ele deve ter uns 50 anos, mais
ou menos. Respeita a gente como se fosse pai dele.”
Por outro lado, a forma generosa de se relacionar com aprendizes não é encontrada
na fala de outro mestre de Ouro Preto, Sebastião Ferreira: “Você começa a ensinar
a pessoa uma coisa, ela já acha que sabe tudo. Aí, ela não vai fazer o acabamento
do serviço igual eu faço e passa, sem querer, a derrubar o nome da gente. Por
isso eu prefiro trabalhar sozinho.” Em Minas Novas, Júlio Sena Chagas não possui
aprendizes, pois na sua visão o trabalho não atrai jovens, já que mexer com a
93
94Dobradiça
95
Carimbo de marcar gado
96
Candelabros e lamparinas de meineiro feitos por meste
Sebastião Ferreira
97
Até se iniciar a restauração da
Igreja do Amparo em Minas
Novas, Júlio Sena Chagas
nunca tinha trabalhado em
obras de restauro. Com o
início das obras, Júlio pôde
fazer as dobradiças, as
caixinhas do sacrário e as
fechaduras. Em Ouro Preto,
tanto Antônio Elói quanto
Sebastião Ferreira possuem
como clientela, em sua
maioria: clientes particulares,
empresas de capital privado,
órgãos e instituições
públicas - como a Prefeitura
Municipal de Mariana - e
instituições privadas - como
a Arquidiocese de Mariana.
Porém, como todos os
serviços foram realizados para
edificações de uso público, o
trabalho de ambos destina-
se à comunidade em geral.
Já em Tiradentes, os turistas
aparecem como os principais
compradores de Luiz Gonzaga
e seu filho Luiz Heitor.
98
Luiz Gonzaga França gosta de ser desafiado e de trabalhar com peças mais complexas,
ricas em detalhes e arabescos – como eram as peças dos séculos anteriores. Gosta das
peças que exigem “muito da mente”. O bom trabalho, na visão de Luiz é aquele que,
quando finalizado, se diz: será que foi eu mesmo que fiz? Sobre o processo de criação, Luíz
relata que quando vê uma peça na cidade olha para ela e começa a imaginar uma nova.
“Eu, às vezes, estou lá na minha mesa. Acabo de jantar, pego um papel, com a
caneta começo e penso: ‘ó, isso aqui ficou bom’. Aí, eu passo o desenho para a chapa
e começo a fazer.” Para Luiz é necessário que o ferreiro tenha uma criatividade que
sai “de dentro”, do “interior”, e reclama da falta de criatividade dos ferreiros no
mercado. Herdeiro da tradição iniciada pelo pai, Luiz Heitor da Silva França também
gosta de desafios e se considera um perfeccionista: gosta de trabalhar cada detalhe
de uma peça em ferro, repete inúmeras vezes até conseguir o resultado almejado,
“quando sai certo é um alívio”, comenta. Quando se depara com muitas dificuldades
na execução da peça chega a sonhar com ela e no sonho, muitas vezes se vê
executando e encontrando soluções para os problemas ao realizar uma peça.
Desde a antiguidade a metalurgia foi considerada uma arte sagrada por ter o poder
de mudar a natureza dos elementos que submete à sua forja. Do mesmo modo,
observando, imaginando e criando, os mestres ferreiros percorrem e recriam os
saberes, as práticas e as técnicas metalúrgicas tradicionais refazendo a cidade
colonial. São verdadeiros artífices-artistas, mágicos-ferreiros-criadores de novas
peças, no limite tênue entre o novo e o objeto que, ao mesmo tempo, reencarnam
as formas e o espírito das peças tradicionais que povoam as cidades onde nasceram.
Os artífices acabam por criar peças para cidades e construções que ainda virão a
ser, mas que não deixam de emergir desse passado imaginado, tanto pelos turistas
– seus principais clientes – quanto pelos próprios artífices, que o recriam com suas
interpretações perduráveis, pela magia da ressurreição dos metais.
99
Oleiro
adobeiro
taipeiro
100
OFíCIOS DA ARGILA
102 Boca do forno da olaria em Prados
OFíCIOS DA ARGILA: OLEIRO/
ADOBEIRO/TAIPEIRO
Não sem razão, diz Claude Lévi-Strauss, são várias as mitologias que comparam a
obra do criador à do ceramista: dando forma à argila tirada do solo, o criador deu
vida à matéria bruta “amorfa e nua”, segundo a Bíblia1.
Na arte da fabricação do adobe, a mão é que determina a forma dos materiais. Entre
as artes da civilização, a cerâmica é provavelmente aquela em que se encontra
realiza o menor número de etapas intermediárias entre a matéria-prima e o produto,
que sai formado das mãos do artesão. Se a arte da cerâmica encurta a distância
entre a matéria-prima e a forma, é, em compensação, uma arte de resultados
incertos e cheia de riscos, que repercutem no psiquismo daqueles que a praticam. A
preocupação com a segurança de resultados induz o ceramista a reproduzir fielmente
os materiais e os métodos de fabricação, que sabe, por experiência, que são os mais
apropriados para evitar um desastre. Desconfiado em relação a todas as inovações,
o ceramista é um espírito profundamente conservador. Assim, o conhecimento
das técnicas cerâmicas é um assunto privado, só se fala dele em família3. Esses
103
mesmos traços característicos do ofício foram notados entre os mestres das várias
regiões percorridas no estado de Minas Gerais: o emprego de escassas ferramentas
na moldagem direta da argila, a execução das tarefas a relativa distância dos
aglomerados urbanos, o aprendizado em família e um espírito predominantemente
conservador dos seus artífices em relação às técnicas tradicionais.
Oleiros
Nos arredores do município de Santa Bárbara, em Minas Gerais, os pesquisadores se
perdem pelas estradas tortas do distrito desta cidade conhecido como Cubas. Eles
estão à procura do oleiro José Vicente Lopes, conhecido como Seu Juca Ceramista.
Na procura de informações para se chegar até a olaria, um dos membros da equipe
desce do carro e atravessa a porteira de uma fazenda, onde encontra algumas
crianças moendo milho. Chega até elas, e pergunta: Vocês conhecem o Seu Juca
Ceramista? Uma delas interrompe a sua atividade, pensa, e responde: “Ah! Sei sim,
ele é meu primo!” O pesquisador pergunta a essa criança se ela pode ensinar-lhe o
caminho. Com riqueza de detalhes, o garoto tece as imagens do caminho por onde
a equipe deve passar. Cita a Igreja do distrito como ponto de referência e diz: “...é
só observar a fumaça no outro lado do morro e as madeiras queimando, lá vocês
encontrarão meu primo e sua olaria.”
Seguindo essas pistas, os pesquisadores chegam até a olaria de José Vicente Lopes.
A conversa flui, o sol esturrica a nuca dos pesquisadores. José Vicente os convida
a se protegerem do sol sob o teto do local onde empilha as telhas. Elas ainda estão
úmidas. Todos protegidos do sol, inicia-se a entrevista.
104
passei a trabalhar na olaria do meu pai e então aprendi
a mexer.” Como várias crianças da sua geração, José
Vicente teve de conciliar os estudos e o aprendizado
no ofício. “Antigamente, menino trabalhava desde novo.
Eu, por exemplo, vinha caminhando 6km da escola até
a minha casa, eu descansava um pouquinho e ia para
a olaria do meu pai; ali trabalhei dos 10 anos até os 20
anos de idade.”
105
procurou o melhor local para construir a sua olaria. Ele precisava de um lugar onde
não houvesse vegetação densa, pois isso facilitaria a construção da olaria. Após um
tempo de procura, encontrou o lugar adequado e explica: “sabe por que encontrei
esse lugar com pouca vegetação onde hoje é a minha olaria? Vou te explicar. No
passado, antes do meu pai comprar a sua terra em 1920, toda essa região pertencia
a um ‘senhor de escravos’. Nesse espaço onde hoje você vê a olaria, existia uma outra
olaria e não foi meu pai que construiu, não, foi muito antes dele. Quando comecei a
procurar argila no local, encontrei as ruínas de um forno e um cercado de pedras. Ali
nesse cercado fui descobrir com os mais velhos que os escravos colocavam cavalos
e burros para pisotearem o barro, por isso é que não cresceu vegetação no lugar. Eu
aproveitei o mesmo lugar para tirar o barro.”
José Vicente explica que o “período áureo” de produção das olarias na região foi
durante os anos de 1920 a 1975. Percebe-se a discrepância entre esse período e
o atual quando ele comenta: “de 1920 até 1970 existiam pelo o menos 30 olarias
na região. Atualmente, acho que é só a minha, e ela funciona de forma esporádica
apenas quando ocorrem raras encomendas.”
Apesar de ainda produzir e trabalhar como oleiro, José Vicente considera que o período
áureo da olaria já passou e, que para a comunidade de Cubas, praticamente não está
106
tendo muita importância a atividade. “Quem fez
telhado com isso aqui praticamente foi embora
para a cidade. Ficaram só os velhos aí, mas
eles não mexem com isso, não. Além disso, eu
não dou emprego para as pessoas daqui mais.
Todos estão saindo para trabalhar na cidade.
Eu preciso buscar gente na cidade [que esteja
desempregada] para trabalhar aqui.” Sobre a
sua clientela atual, comenta: “Normalmente,
os clientes são apenas pessoas que possuem
alto poder aquisitivo. Esse produto é apenas um
“artigo de luxo”, raridade. Eles compram pois
gostam de algo mais rústico, tem uns que até
me pedem para produzir ranhuras no tijolo para
ele parecer mais rústico ainda.” Ele compara
a compra desse material à moda, e o sucesso
ou não do seu uso, à maneira como a relação
entre produto, pessoas e mídia é efetuada. “É
assim, se um artista começar a usar uma roupa, Mestre José Gonçalves mostra como se
produz uma telha
mesmo esta sendo pior, todos usarão, assim o é
também com os tijolos e telhas.”
107
Mestre José Gonçalves alisando a argila enformada na grade
Diante da dificuldade técnica para a produção das telhas que dificulta a presença
de ajudantes, José Gonçalves ressalta a solidão do ofício. O mestre artífice relata
que no período de grande produção é necessário permanecer em tempo integral na
olaria. As atividades são diurnas e noturnas. Durante o dia, aproveita-se o sol para
secar as peças que ainda se encontram úmidas. Uma vez secas, essas peças são
levadas ao forno.
O forno deve ser observado de forma contínua. Para que o forno não perca o seu
calor, é necessário dormir ao seu lado durante toda a noite para que se possa
colocar lenha em seu interior constantemente. Por isso, José Gonçalves possui uma
cama ao lado do forno para ali permanecer nos períodos noturnos. Nesse espaço,
o entrevistado passou várias noites, teve diversos sonhos e chegou até a encontrar
com o espírito de um cliente. “Ah! Isso tem uns três anos, dessa vez eu fiquei até
com medo de trabalhar aqui no forno. Apesar dessa floresta aqui atrás, eu nunca
fiquei com medo de nada, de bicho, de assombração, mas dessa vez eu fiquei com
medo. Foi um rapaz que me encomendou 2000 telhas dessa daqui e ele era o meu
vizinho aqui. Ele morava perto da igreja, numa casa cor de vinho. Aí, eu não sei o que
108
aconteceu, ele mexia muito com roça. Ele trabalhava perto da caixa d’água, lá em
Tiradentes. Lá havia uma ponte cheia de cabo de aço. O cara caiu lá e morreu. Aí, os
urubus começaram a comer ele. Comeu ele quase todo. E ele tinha me encomendado
essas tal de telha, aí eu estava queimando aqui e estava sozinho, foi numa noite.
Eu morava ali naquela casinha, vim para cá para o forno havia pouco tempo. Aí eu
comecei a ver o homem aqui do meu lado, morto. Aí, eu não aguentei ficar aqui,
não, eu tive de ir embora. Só no outro dia é que eu vim aqui olhar o forno, resolvi ir
embora para casa. Foi a única coisa que me deu medo, fora isso, fico dias sozinho
aqui trabalhando.”
Adobeiros
Dona Tereza Vaz Fernandes Machado, mais conhecida como Tereza do Dito, nasceu
em Leme do Prado e mudou-se aos 16 anos para Chapada do Norte, no Vale do
Jequitinhonha, onde reside até os dias atuais. Dona Tereza nunca frequentou
a escola, não sabe ler ou escrever e atualmente é considerada uma agricultora
aposentada. Como várias pessoas da região onde ela nasceu, Dona Tereza fez todo
o tipo de atividade capaz de gerar renda para sua família. Foi doméstica, cozinheira,
109
benzedeira, curandeira, cortadora de cana,
catadora de lenha e água, e fabricante de
tijolos de adobe. A essa última atividade
dedicou pelo menos 35 anos da sua vida
e atualmente não a exerce pela falta de
demanda.
110
aqui, depois de mim. Essa outra de lá, essas que
tem aqui, depois que desmancharam pra... ficou
estragando, né? Então, tudo ‘pra-qui-afora’,
tudo pra rua de cima, ali tudo, inclusive uma
casa, uma casa que eles desmancharam, ‘véia’,
lá na... rua de baixo, em frente de Dona Dodô...
Ô menino, eu vou te contar uma história, um
dia eu fui apostar mais um ‘homi’, esse ‘homi’
até já morreu... Eu fui apostar com ele quantos
adobe que eu cortava... e ele cortou duzentos e
eu cortei trezentos e cinquenta. Num dia.”
Sobre o período em que trabalhou com adobe, Dona Tereza relata que: “Vendia pro
povo, pro pessoal. Tinha vez no ano, eu fazia era cinco, seis mil adobe, num ano.
Não dava quase nada de dinheiro. Naquele tempo era pouca coisa... Naquele tempo,
era um dinheiro fracassado... Era pouco dinheiro. Eu chegava, cavava... Meu marido
bebia muito, o coitado... Era muito trabalhador, mas bebia demais. Quando pegou
beber... Eu que tomei conta do serviço todo..., da casa... pra poder sustentar, que ele
dominou só na bebida... Ainda tinha a ‘buscação’ de lenha no mato... pra vender...,
pra vender... Água no rio... pra vender... Buscando lata de água no rio... pra vender,
que não existia água na rua... Ô pro cê vê como a coisa... a pessoa sofre... Toda hora
eu falo... Hoje... As mulher de hoje tão banhando em água de rosa... tão banhando
água de rosa, porque os marido dá de tudo... Ainda tinha a lavoura, ainda... Eu ainda
trabalhava na lavoura...”
Em Bichinho, não são poucas as casas construídas recentemente com tijolos de adobe.
Os novos moradores advindos de outros estados, principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo, preferem os adobes da região para dar um aspecto mais rústico e tradicional
às suas casas. É nesse cenário e contexto que encontramos com o adobeiro Luiz
Fernando Moreira, conhecido na região como Luiz Brejeiro, que, diferentemente de
Dona Tereza, continua a produzir os seus adobes para a venda.
Quando seguimos pela estrada que dá acesso a Bichinho pode-se ver, da estrada,
tijolos empilhados sob a proteção de uma lona - é fevereiro –, período de muitas
111
112
Pilha de tijolos de adobe
113
chuvas na região, o que explica a utilização da lona. Da estrada, vê-se também a
terra extremamente avermelhada que dá o tom não só aos adobes, mas também às
inúmeras casas de joão-de-barro espalhadas pelas árvores em volta da propriedade
de Luiz Fernando Moreira.
Luiz, como Dona Tereza, aprendeu a produzir adobe por necessidade; porém,
diferentemente dela, iniciou a fabricação de tijolos para a construção da sua casa,
no ano de 1988, e apenas posteriormente começou a comercializá-los.
Quando começou a produzir os tijolos para erguer a sua casa, não teve orientação,
“era na base do erro e do acerto mesmo”, comenta Luiz. Quando construiu a sua
casa teve dificuldade para “enformar” e “desenformar” o barro - processo de encher
a fôrma que dá forma aos tijolos de barro e posteriormente esvaziá-las em um chão
previamente limpo para deixá-los secar. Luiz comenta que tinha muita dificuldade já
que muitos dos seus tijolos rachavam. Como não encontrou alguém para “enformar”
o barro, começou a trabalhar sem a ajuda de terceiros. Pensou: se outros sabem, eu
mesmo vou “enformar” os tijolos da minha casa.
Diante da sua experiência inicial de fabricar tijolos de adobe para construção da sua
casa, procurou a orientação das pessoas mais velhas para conhecer os “segredos
do adobe”, principalmente com relação à rachadura dos adobes que produzia. Um
dos “antigos tijoleiros” ensinou a Luíz que para os tijolos não racharem é necessário
coletar o barro na lua minguante.
Luíz comenta orgulhoso que ensina a técnica aos filhos adolescentes de sua prima,
e menciona que seu pai foi um grande fabricante de adobe na região. Porém, Luiz
Fernando Moreira não teve oportunidade de acompanhar o pai no período em que
este produzia adobes - comenta que o pai chegava a fabricar cerca de 600 adobes por
dia, juntamente com outro morador de Bichinho. Por último, Luiz Fernando Moreira
comenta possuir uma “raizinha” herdada do pai com relação ao ofício, apesar de não
ter aprendido o ofício diretamente com o ele.
114
Deterioração de parede de pau-a-pique junto ao esteio
Taipeiros
José Ladislau estudou até a 3ª série do ensino fundamental. Caminhava uma hora da
zona rural até a escola, na cidade de Bom Jesus do Amparo, na companhia de uma
turma de meninos, dentre os quais vários tornaram-se pedreiros, como ele. Aprendeu
o ofício com o pai, um carpinteiro da cidade de Bom Jesus. Iniciou o trabalho com o
pai quando tinha 10 anos e parou de trabalhar com ele aos 20. Com o pai, aprendeu
as técnicas construtivas tradicionais, como: adobe, peneira seca, alicerces e pau-a-
pique. Não teve nenhum outro mestre além do pai, e, indiretamente, o avô paterno,
que ele ensinou as técnicas ao seu pai. Pouco aprendeu diretamente com o avô,
pois morreu quando José Ladislau tinha apenas cinco anos. O aprendizado depois
da morte de seu pai veio com o tempo, com a prática, por meio da execução das
atividades, aprimorando-as.
115
foi chamado para retornar para Bom Jesus e reformar uma casa – construída com
técnicas construtivas tradicionais. Recentemente, recebeu o convite para trabalhar
na restauração do prédio da Secretaria Municipal de Turismo e Cultura de Barão de
Cocais, no entanto o projeto da obra ainda não foi concluído.
O entrevistado é um dos poucos mestres artífices que habita uma casa de pau-a-
pique, porém José Ladislau manifesta certo desconforto ao falar da sua moradia. O
incômodo pode ser notado, pois, enquanto revela todo o seu conhecimento sobre as
técnicas construtivas tradicionais com cuidado, empolgação e generosidade, quando
indagado o tipo de casa em que prefere morar, sua voz praticamente some, parece
não querer que outras pessoas escutem a sua resposta. Com essa postura, sussurra
ao microfone: “vou falar com vocês a verdade, eu não tenho casa, eu tenho um
barraco de pau a pique.”
A contradição manifesta entre o explícito valor que o mestre artífice atribui às técnicas
construtivas tradicionais, que conhece e executa, e a confissão embaraçosa sobre sua
própria moradia, coloca questões complexas em relação a essas mesmas técnicas,
tanto práticas quanto simbólicas,
que merecem ser exploradas e
problematizadas. A contradição
sugere fortes divergências
entre os modos idealizados ou
românticos de representação dos
modos vernáculos de construção,
postos à luz nos discursos mais
ou menos cristalizados sobre as
técnicas, visão estimulada, talvez,
por um mercado consumidor ou
turístico que as valoriza porque
“exóticas”, e os modos locais
de percepção dessas mesmas
técnicas. Do ponto de vista local,
muitas vezes, constituem soluções
técnicas que sofrem o peso de
uma desvalorização simbólica,
quiçá negada, talvez até alvo
de uma relativa estigmatização
enquanto signos sociais negativos
– quando olhadas da perspectiva
dos atores ou, mais ainda, quando
consideradas como recursos
Mestre José de Lau
116
técnicos para o uso pessoal dos próprios artífices que, no entanto, e paradoxalmente,
as conhecem profundamente e as praticam com virtuosismo artístico para o mercado.
Notas
1. LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 222.
2. LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 17-18.
3. LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 222-223.
117
carpinteiro
marceneiro
esteireiro
OFíCIOS DA MADEIRA
E DA TAQUARA
Plaina manual
120
OFíCIOS DA MADEIRA E DA
TAQUARA: CARPINTeiro/
MARCENeiro/ESTEIREIRO
Em Minas Gerais, a madeira foi um dos materiais de uso mais intenso e diversificado
nas técnicas construtivas e obras de ornamentação do período colonial. Constam
nos autos de arrematação e de condição de execução dos contratos, as madeiras
de lei mais empregadas e a sua utilização: braúna e aroeira para esteios e cunhais;
candeia, canela, cangerana, guapeva, ipê e sucupira para telhados; bagre, braúna,
canela, cedro e sucupira para os assoalhos; vinhático para os forros; aroeira e peroba
para as vigas do assoalho e coro; cedro, pinho, pinho de riga, canela preta e parda,
jacarandá e sucupira para esquadrias, escadas, janelas e portas; e toda sorte de
madeiras de lei para as mais diversas peças de ornamentação e mobiliário2.
121
parentes próximos nas incursões na mata,
à procura das madeiras adequadas para
os serviços encomendados. Introduzidos
pelos mais velhos no universo das
madeiras, aprenderam cedo a distinguir
as árvores pelas folhas, pelas cores,
pelas fibras e pelas cascas. As mudanças
sociais e econômicas ocorridas ao longo
do tempo trouxeram o adensamento
urbano e a diminuição das áreas de mata
nativa. Muitas espécies entraram em
extinção e tiveram que ser substituídas
por madeiras vindas de outros estados ou
recicladas.
122
Detalhe aproximado do encaixe de espigão em cumeeira e pernas no pontalete
Caminhando pelos morros da cidade de Ouro Preto, em meio a igrejas barrocas, lojas
diversas, turistas e moradores locais, encontramos o marceneiro José Geraldo Rosa.
Com seus 55 anos, 36 deles dedicados à carpintaria, Sô Geraldo – como é conhecido
na cidade – comenta modestamente: “não sou bem um mestre.” Apesar da modéstia
do carpinteiro, seu trabalho é muito valorizado em Ouro Preto. Na cidade, possui
muitos clientes e tem consciência da importância do seu trabalho para a manutenção
do patrimônio edificado. No entanto, para ser respeitado como carpinteiro e como
restaurador o caminho do sr. José Geraldo foi longo.
123
Filho de lavradores começou a trabalhar
com carpintaria e marcenaria aos 19 anos
de idade na cidade de São Paulo, onde
trabalhou com marceneiros e começou
a se interessar pelo ofício. Na capital
paulista, trabalhou com montagem de
móveis e, posteriormente, passou a
trabalhar com carpintaria na construção
civil. Ao longo de sua vida participou
de diversos cursos, dentre eles: um
curso de mestre de obras na UFOP que
envolveu conhecimentos nas áreas de
carpintaria, estrutura, acabamento,
concreto armado, instalações elétricas
e hidráulicas e posteriormente um
curso de restauração, pelo Projeto
Monumenta do Ministério da Cultura,
em Veneza, na Itália.
Seu Geraldo comenta que, para trabalhar com restauração, além de conhecer
as técnicas tradicionais, o carpinteiro precisa ter paciência, saber trabalhar com
ferramentas específicas, dialogar com outros profissionais envolvidos na obra e
saber quando concordar e quando discordar destes profissionais. Segundo o sr. José
Geraldo, ao discordar, o profissional assume responsabilidades, o que é uma postura
difícil. É preciso ainda um dom intelectual para perceber o que o outro fez e saber
desenvolver o trabalho sozinho, pois a mão faz aquilo que a cabeça manda.
124
A partir da sua experiência como carpinteiro, José Geraldo Rosa conta com pesar que
muitas empresas realizam obras de restauração sem o conhecimento necessário para
executar serviços específicos da carpintaria. Segundo ele, o resultado dos trabalhos
em carpintaria não se diferencia de um profissional para outro, mas as técnicas
usadas pelos carpinteiros são diferenciadas, e implicam em bons resultados ou não.
“Ninguém fica a olhar os detalhes. Depois de coberto, tudo é telhado, está tudo
bonitinho. Agora, os detalhes de execução do trabalho, a segurança, a durabilidade
é que vem depois. Então, frechais encaixados, tesouras encaixadas, cachorros
encaixados, espigões, tudo encaixadinho na cumeeira, nos frechais, isso é que é o
espírito de durabilidade do telhado. E muitas vezes, isso não acontece, porque muitos
carpinteiros chegam com uma peça na outra e bate prego. E amanhã, o telhado
trabalha muito, aí começa: abre num canto um pouquinho, puxa no outro. Às vezes
a carga de um lado tá mais do que no outro, aí, aquele troço vai desequilibrando e
o telhado começa aí: selando, abrindo, empurrando parede. Isso aí o proprietário só
vê depois que começam os danos, né. E valor também, porque a mão de obra bem
aplicada, ela tem uma demanda maior de tempo. Aí, começa aquele negócio, aquela
questão de orçamento: um faz por dez, o outro faz por quinze, o outro faz por oito, o
outro faz por vinte. Mas o proprietário não olha muito isso, ele quer o mais barato.”
A exigência que tem enquanto profissional é repassada para seu filho que atualmente
acompanha sr. Geraldo nos intervalos do seu curso, no Centro Federal de Educação
125
Bancada de marcenaria
Luis Antônio da Silva opta por não confeccionar portas e janelas que não necessitam
da técnica do entalhe, devido à presença de duas grandes empresas que se dedicam
126
à produção em larga escala dessas peças. “Eu trabalho com o que chamamos de
obra só se for assim: se tiver uma casa antiga lá e eu tiver que copiar duas janelas
daquele tipo lá, aí, a gente vai fazer. Então eu trabalho com aquilo que exige técnica,
porque esses serviços corridos em que eu tenho de fazer dez portas, eu não gosto.
Eu consigo esse serviço pela paciência que empenho. Uma firma pega aí, a reforma
de um telhado de alguma igreja famosa. Eles se perguntam: ‘mas como é que vamos
fazer com essa balaustrada que tem duas ou três peças entalhadas?’ Aí, alguém vai
e diz: ‘ah! Procura o Tonho, o sr. Luís. Ele tem paciência, isso aí ele gosta de fazer”.
A relação de Luís com a marcenaria é de longa data, ele aprendeu o ofício na infância,
frequentando a marcenaria de seu pai, conhecido como Geraldo Militão da Silva. “Eu
fui nascido e criado dentro de uma marcenaria. É por isso que eu te falo: se você
falar: ‘ ó seu Luís, eu preciso fazer um serviço que ninguém está querendo fazer aí
porque é um serviço antigo’. Eu falo: olha, posso não fazer agora, mas eu dou um
jeito. É porque está apurado, todos os tipos de técnicas. Porque a gente foi nascido
e criado dentro de uma coisa e aprendi desde pequeno, então tenho profundidade
da coisa, entendeu?”
Luís relembra que produziu as primeiras peças aos 13 anos e comenta sobre como
se processou o aprendizado na arte da marcenaria: “Eu vou te falar, até hoje, a
sequência que é repassada para um garoto dentro da oficina. Ele chega, ele vai
varrer, observar as pessoas trabalhando, vai carregar... ‘ah, vai carregar isso daqui
para lá’. Começa assim, só observando, aí, você aprende a ligar uma máquina. Você
sente uma satisfação em aprender a ligar uma máquina...”
E foi assim que ocorreu seu aprendizado. Após aprender as primeiras atividades
dentro da marcenaria – varrer, carregar peças e ligar máquinas – o pai, Geraldo
Militão, sugeriu ao filho que começasse a aprender a técnica do entalhe em madeira.
“Meu pai queria muito que eu começasse a entalhar, aí tinha o mestre que trabalhava
para ele lá, e meu pai dizia: ‘você vai varrer e, de vez em quando, você ficará mais
perto dele’. Então eu o via desenhar, eu começava a desenhar junto dele e aí a coisa
foi fluindo... Aí, depois, quando eu desenhava, o mestre dizia: ‘esquisito, você para
desenhar tem uma mão melhor do que a minha. Acho que porque você está mais
novo, está com uma vista melhor, é por isso.”
O mestre ao qual se refere Luís era conhecido como Totonho Andrade. Sobre ele e a
arte do entalhe relembra o aprendiz: “Totonho Andrade era aquele senhor antigão,
todo cheio de mania, mas que tinha um carinho e generosidade muito grande com
o jovem. Ele era viciado em álcool. E foi por isso que eu não me aprofundei só
na técnica do entalhe. Porque eu fui pela experiência dele e fiquei com medo de
trabalhar só com o entalhe. E principalmente com a produção de imagem de santos.
Eu acho que fica muito bitolado, muito focado. De repente, eu vi isso nele, não sei se
eu estou certo. Aí, meu pai disse: ‘ó, agora eu já estou começando a ficar cansado,
e você terá de administrar a marcenaria’. Eu achei a melhor coisa do mundo, pois
eu tinha de comprar, eu tinha de vender, eu tinha de atender o cliente. E isso, me
127
Oficina do mestre Luís Antônio da Silva em São João Del-Rey
128
tirava muito do entalhe. Aí, eu me
senti melhor, pois no entalhe eu
senti que eu poderia sair igual ao
mestre, e me envolver muito com
o álcool.”
129
necessita, mesmo , de pelo menos uns dez anos. A não ser que o cara vai aprender
só o entalhe. Mas ele precisa de ir na máquina. Ele precisa de aprender a tirar, ele
precisa aprender a textura de madeira. Isso não se aprende assim só fazendo o
entalhe. Ele tem que fazer outra coisa. Ele tem que aprender alguma coisa dentro da
marcenaria. Não pode ser só o entalhe, eu acho que não funciona. Ele precisa saber
posição de fura, porque você vai fazer uma peça, vai mandar ela desmontada para
a pessoa. Uma mesa, por exemplo, ele vai entalhar tudo, ele precisa ter uma noção
de tudo, ele não pode ser só profissional no entalhe. A não ser que ele vá trabalhar
com imagem, escultura, aí , eu fico quieto. Mas se for em marcenaria, ele precisa
aprender um pouco mais da marcenaria, ele não precisa aprender só do entalhe. Se
for só no entalhe e tem dom, aprende em menos tempo. Se tem dom, aprende com
menos tempo, com dois anos se forma um bom entalhador.”
Outra história que eu gosto muito de contar. Quando nós temos duas morsas para
mexer com entalhe, quando chega cinco horas, momento que nós vamos parar, deve-
se tirar tudo. Nada deve ficar preso, porque, senão, a gente sonha com o serviço. Está
vendo aquela peça de madeira presa ali? Quando chega cinco horas, bambeia, tira
a peça de madeira e põe em cima da bancada. Com relação à caixa de ferramentas,
130
deixa ela fechada. Não deixa aberta, porque senão a gente sonha com o serviço. Essa
é uma lenda que tem por aí. Eu sigo, pois eu não quero nem pensar no meu serviço de
noite. Eu bambeio tudo e a gente vai para a casa. Isso que eu estou lhe falando pode
ter certeza que tem uma grande história por trás disso, e a gente às vezes apega.
Tudo tem uma grande história, e que deve ser respeitada, porque é bonito.”
O marceneiro sustenta sua família e criou os filhos com a renda da oficina. Luís
demonstra orgulho e consciência por deter o conhecimento de uma técnica que vem
sendo empregada no lugar desde a época colonial. Demonstra ter consciência da
técnica enquanto patrimônio cultural imaterial. Comenta que as peças produzidas
pela marcenaria, pelo engenho e habilidade exigidos, desde uma simples janela até
um móvel ou adorno entalhados, consistem em obras de arte. Luís tem a intenção
de realizar um museu com as ferramentas e os equipamentos antigos herdados de
seu pai e obtidos com outros marceneiros da cidade. Também considera importante
a transmissão deste conhecimento para que haja continuidade do saber fazer.
Agradece ter tido a oportunidade de aprender com o pai uma atividade tão prazerosa
e criativa e considera importante transmitir aos aprendizes o que foi bom para ele
na infância, adolescência: as noções de vivência que acabam sendo passadas junto
com o conhecimento da técnica, dando responsabilidade e auxiliando na formação
do indivíduo de forma integral.
Claude Lévi-Strauss observa que não temos a cestaria em alta consideração, não
há espaço para ela nos museus, ao lado da pintura ou da escultura. Instigado por
esse esquecimento e pelos múltiplos significados da sua arte e tecnologia, lembra a
antiguidade e utilidade da cestaria, que fora praticada pelos patriarcas do deserto e os
eremitas em seus retiros. Tiravam daí a maior parte de sua subsistência e forneciam
131
obras muito refinadas para servir à mesa dos grandes, de onde desapareceram
substituídas pelos recipientes de cristal5.
É entre os povos sem escrita que esta arte ocupa um lugar importante e, muitas
vezes o mais elevado. A cestaria se perpetua na mão de especialistas, constitui
uma arte nobre, que entre alguns grupos indígenas se converte em privilégio de
um círculo de iniciados. A rica mitologia dos cestos, encontrada em quase toda a
América, evidencia a importância dada a cestaria entre os povos indígenas, por
representar, na visão de Lévi-Strauss, um estado de delicado equilíbrio entre a
natureza – as fibras vegetais extraídas da floresta – e a cultura – o utensílio obtido
com o entrelaçamento das fibras6.
Apesar das suas sofisticadas invenções técnicas, o legado do índio à cultura brasileira
e à universal, na sua qualidade de Homo faber, ainda não foi totalmente avaliado e
“talvez nunca venha a sê-lo, em toda a sua plenitude, porque grande parte do saber,
do conhecimento e manejo da natureza se perdeu na noite dos tempos”10.
É essa a impressão que se tem quando nos deparamos com os forros de taquara
confeccionados pelos mestres esteireiros espalhados pelo estado de Minas Gerais. É
possível que essa técnica construtiva tradicional seja uma incorporação dos materiais
e técnicas indígenas de tecido de fibras naturais, adaptadas como solução para a
construção das moradias do homem branco.
Olhar para o teto de uma casa construída nas cidades setecentistas do interior do
estado de Minas é se deparar, muitas vezes, com um jogo intrincado de imagens, que
remetem ora a um imaginário indígena ora a um imaginário cristão ocidental. De um
lado, vemos imagens de escamas e rabos de peixes, desenhos de cobras, o couro da
onça, além de objetos geométricos e figurativos que muito se assemelham àqueles
produzidos nas cestarias indígenas11. Do outro lado, vemos também a inserção de
símbolos cristãos e ocidentais como cruzeiros e letras do alfabeto.
132
A taquara era conhecida e usada pelos povos nativos da América do Sul, que lhe
davam as mais diversas utilidades, desde o uso de seus colmos ocos como pequenos
recipientes, como canudos para diversas finalidades (inclusive a zarabatana), vigas e
travessas leves para a construção de suas habitações, cercas ou paliçadas leves para
a contenção de aves ou outros pequenos animais e, principalmente, com suas lascas,
para feitio de cestas das mais diversas formas e para as mais diversas utilidades,
como alqueires e balaios12.
133
mundos imaginários, feitos de uma constelação
de formas, desenhos e figuras nos forros que
laboriosamente tecem.
Seguindo pelas ruas da cidade chegamos a uma pequena vila em meio a muitas
árvores e plantas. Caminhando por uma trilha em meio a alguns pés de banana,
cana, milho e mamão, a certa distância, avistamos Divino, que se movimentava entre
as casas e as plantas de forma apressada. Ao nos ver, Divino disse logo um ”venha,
pode chegar“ e pela movimentação do seu ágil corpo, que ainda não se revelava
completamente, percebemos a intimidade que tem com o espaço que o cerca. Ao se
movimentar, permitiu que os visitantes notassem o contorno peculiar de seu corpo.
Divino caminhava com as costas curvadas, com um aspecto corcunda, despertando a
curiosidade dos visitantes.
Assim que nos aproximamos, o mestre artífice começou a falar. Ele retornou ao
passado, à sua infância e à sua adolescência, comentando sobre o grande interesse
134
e persistência que teve para aprender o ofício. Ele se lembra da primeira vez que
viu uma pessoa tecendo um forro de taquara e das dificuldades: “eu tinha 5 anos de
idade e vi o senhor Djalma, ele trançava o forro de maneira muito apressada. Ele não
permitia às pessoas aprenderem a fazer forro. Senhor Djalma percebia o interesse
das pessoas à sua volta, mas ele não ensinava. Ele tinha medo das outras pessoas
tomarem o serviço dele.”
A dificuldade enfrentada com senhor Djalma não foi empecilho para o aprendizado
de Divino. Sua curiosidade e vontade de aprender permitiram a ele superar a todas
as dificuldades. “Eu observava com atenção como os fazedores de forro executavam
o seu trabalho. Eu não conseguia aprender, eles trançavam muito rápido eu tinha
de praticar. Eu desmanchava forro velho e fazia novamente, só que nunca que saía
igual. Após inúmeras tentativas fiz a primeira esteira aos 10 anos de idade.”
Esse cenário muda com a chegada, à cidade, de Natividade, uma exímia esteirista
oriunda da cidade de Bom Jesus. “Com ela aprendi a fazer forro”, comenta Divino e
logo após, completa: “aos 14 anos fiz a minha primeira esteira para ser vendida e
aprendi a fazer diversos tipos de trançados.”
135
A parcimônia característica do ofício
Divino lembrou-se também dos antigos esteireiros de Barão de Cocais. Na sua
fala percebemos que no passado havia toda uma ética e parcimônia dos mestres
esteireiros em não dizer, de prontidão, a habilidade que possuem. No meio da sua
narrativa surgiu a seguinte história: “Uma historiazinha que eu sei... foi um caso.
Não foi comigo que aconteceu, não... Um moço contou-me que morava em uma
fazenda aqui para o lado de Catas Altas. Ele foi lá em Itabira buscar dois fazedores
de forro. Porém, havia um fazedor de forro que trabalhava há muitos anos nessa
fazenda. É assim, sempre que a pessoa sabe, ela não demonstra que sabe. O rapaz
que me contou a história foi lá em Itabira buscar os dois fazedores de forro, pois eles
realmente eram bons. Chegaram na fazenda e pediram para o fazedor de forro – que
não disse a ninguém que sabia fazer forro – para ele bater 5 quilos de taquara ou
mais, pois eles precisavam retornar para Itabira. Ao retornarem, a matéria-prima
para a realização do forro já estaria pronta para ser utilizada. Um dos fazedores de
forro de Itabira disse em tom de brincadeira para o fazedor de forro da fazenda:
- Ah, se você souber fazer algum forro já pode começar a fazer e deixar pronto.
O fazedor de forro da fazenda elaborou o forro da sala e nele escreveu: Fazenda
Magalhães Pinto. Quando os dois fazedores de forro de Itabira retornaram, eles
ficaram espantados. Um deles ficou nervoso com o patrão e disse a ele:
- Uai moço, você está abusando com a cara da gente.
- Não estou, não - o patrão responde.
Um dos fazedores de forro de Itabria replica:
- Não, não é possível, você sair daqui de Catas Altas, ir lá para Mariana para nos
buscar sendo que você tem um fazedor de forro aqui, que comparado a nós... Nós
não servimos nem para lavar os pés dele.
O patrão, sem entender, diz:
- Não, o que que é isso, uai? Você está doido?
Um dos fazedores de forro de Itabria diz:
- Então nós vamos lá que eu te mostro.
Eles foram até o forro, o abriram e os fazedores de forro de Itabira comentaram:
- Aqui, nós sabemos fazer muitos desenhos de forro, mas esse desenho aqui nós
não somos capazes de realizar, nós nem sabemos por onde que passou esse trem.”
“Aí”, comenta o entrevistado, “os caras ficaram nervosos, os fazedores de esteira
de Itabira ficaram nervosos, e insistiram com o patrão:
- Você está é querendo curtir com a cara da gente.
O patrão responde:
- Não, eu não estou querendo curtir, não, sô. É que eu não sabia. Agora é que eu
estou sabendo.
136
O fazedor de esteiras da fazenda comenta:
- Eu trabalho há muitos anos para o meu patrão, mas ele
quis buscar vocês lá em Itabira.
Os fazedores de forro de Itabira perguntam:
- Mas por que você não quis fazer forro para ele?
O fazedor de esteiras da fazenda responde:
- Não, uai, ele acreditou em vocês lá de Itabira, sabia
que vocês é que eram bons e foi buscar vocês, se ele
quisesse que eu fizesse, eu fazia.”
E Divino continua: “um dos fazedores de forro de Itabira
queria ir embora e disse:
- Não, vocês agora terminam o forro, pois eu tenho muito
forro para fazer e dá para vocês trabalharem sem mim.
Porém, o patrão pediu para eles terminarem o forro.
Eles quase foram embora por causa do outro fazedor de
forro que já existia na fazenda. Eles foram fazer forro
em um lugar e encontraram um fazedor de forro até
melhor do que eles. É... Então, foi essa história que eu
queria contar. Ela é importante.”
137
Desenho feito por Cristiane Ferreira da Silva de um
tema de esteira que mestre Divino Ferreira da Silva faz
A única herdeira de
todo um saber e sua
capacidade criativa
Enquanto a conversa com Divino
prosseguia, acercou-se uma adoles-
cente com seus aproximados
17 anos. Em seus braços, trazia
biscoitos e refrigerante para os
convidados. Cuidadosa e educa-
damente começava a participar da
entrevista. Pela sua fala, demons-
trava conhecimento profundo das
questões e problemas do ofício.
Ela é filha de Divino. Orgulhoso,
o pai explicou: “ tudo o que eu sei,
eu passei para ela, os filhos estão
sempre a superar os seus pais.”
O pai relembrou a infância de
Cristiane: “com cinco anos, Cristiane
já sabia trançar forros e com seis
anos produzia forro para vender. Ela
aprendeu ficando próxima de mim
enquanto eu trançava esteira. Ela
observava atentamente. Aprendeu
a trançar errando e acertando. Eu a
ensinava, sempre ao seu lado.”
138
Aflitos em nos mostrar como se trança um forro, pai e filha lamentaram o fato de não
possuírem, naquele momento, nem um pouco do material adequado para se trançar
um forro taquara.
Para a sorte dos pesquisadores, Cristiane coleta tiras de plástico conhecidas como
fitas de arquear. Tiras que possuem uma textura extremamente dura, que possibilita
a realização da trama de pequenos forros. Juntadas as tiras de plástico em cores
verde e preta, pai e filha caminharam até uma casa em construção ao lado da
residência de Divino e começaram a cortar em pedaços as tiras. Divino as separava
por cores. Cristiane o ajudava.
Divino terminou o forro bordado e pediu para desmanchar a trama - queria mostrar
outro desenho mais complexo, de uma cruz. Com o passar do tempo, aos poucos
o desenho foi formado. No início, não se via o desenho e só com o avançar das
sobreposições pôde-se entender a sua forma. Divino pediu: “mudem de posição,
senão vocês não conseguem ver.” Mudamos de posição, de perspectiva, de ponto de
vista, mas nada. As mãos do pai e da filha se misturavam e cada vez mais rápido, o
desenho se formava. A maestria de ambos ficou clara e de forma mágica para nossos
olhos destreinados, surgiu uma bela cruz da sobreposição das fitas de arquear verde
e preta.
139
e coube a ele dar soluções a essas imposições. “Os
clientes reclamavam da repetição dos desenhos por
parte dos esteiristas: elas me pediam ‘ah! Faz assim,
ah! Faz assado’ e eu fazia. Hoje sou capaz de fazer pelo
o menos uns 50 desenhos. Numa espécie de desafio a
ele mesmo, acrescenta: estou prestes a criar mais um
desenho, quando retornarem talvez eu já tenha mais
de 51 desenhos.”
Cristiane, assim como seu pai, é uma criadora e pensadora do ofício. Ambos amam o
que fazem. O uso das tiras de plástico (fita de arquear), 50 tramas distintas criadas e o
caderno de memória do pai criador são exemplos da dedicação de pai e filha ao ofício.
Cristiane explicou que a utilização das fitas de plástico é uma forma dela continuar
a “brincar” de fazer forro, já que as encomendas, nos últimos 5 anos diminuíram
bastante e, além disso, as taquaras tornaram-se escassas devido às queimadas, o
que intensificou a fiscalização do Ibama – órgão que atualmente proíbe a retirada
de espécies vegetais para fins comerciais. Sendo assim, pai e filha concluíram: esse
é um ofício morto. Ambos continuam a trançar e a refletir sobre a prática do seu
ofício pelo puro e simples prazer que sentem em fazer isso, já que não recebem mais
encomendas.
Olhando a silhueta de Divino sob a pouca luz que penetrava naquele cômodo, veio a
nossa memória um corpo que se assemelha ao de um pássaro a trançar um ninho.
140
Uma esteira-ninho? Não seria o joão-graveto (Phacellodomus rufifrons), perguntamos,
tal qual marceneiro José Trindade da cidade de Tiradentes, que também compara os
adobeiros com outro pássaro, o joão-de-barro. Os mitos e o folclore, por numerosos
exemplos, atestam esse tipo de comparação16.
Lembramos do forro de esteira servindo como forro das diversas casas por onde
passamos. O forro de esteira aparece como uma superfície utilizada para separar
a parte mais alta da casa – o telhado, local onde termina a casa, fronteira com
a natureza, onde algumas espécies de pássaros costumam pousar ou trançar os
seus ninhos – e a parte mais baixa – o assoalho, os cômodos, local onde moram
os humanos. Assim, o forro de esteira fica a meio caminho entre a humanidade e
a animalidade, ou, como foi observado para a cestaria, num “estado de delicado
equilíbrio entre natureza e cultura”.
Notas
1. KANTINSKI, 2003.
2. AVILA, 1996, p. 61.
3. LÉVI-STRAUSS, 1986. p. 15.
4. ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAIN AND IRELAND, 1973. p. 336-340.
5. LÉVI-STRAUSS, 1997a, p. 128.
6. LÉVI-STRAUSS, 1997a, p. 128-132
7. ADOVÁSIO, 1976, p. VII, apud RIBEIRO, 1989, p. 38.
8. RIBEIRO, 1989, p. 38.
9. RIBEIRO, 1989, p. 39. Sobre a arte de trançar e seus diversos usos praticados pelos povos indígenas no
Brasil, Lévi-Strauss observa: Na floresta e no cerrado, vi muitas vezes um índio, para transportar frutas
selvagens ou caça, cortar uma folha de palmeira, dobrar os folíolos e trançá-los in loco. Assim, fabrica-
se com as plantas um cesto que será jogado fora assim que se retorna ao acampamento, pois é uma
embalagem improvisada e de pouca utilidade. Trata-se sem dúvida de um caso extremo em comparação
com as obras-primas que costumam ser, na América, os cestos de trançado espiralado, costurados
em vez de trançados, cuja fabricação toma vários dias de uma artesã experiente, e que muitas vezes
sobrevivem à geração que os viu serem fabricados. Entre os mesmos povos, os cestos flexíveis utilizados
para guardar os objetos domésticos eram, ao contrário, pouco duráveis. (LÉVI-STRAUSS, 1997a, p. 129)
10. RIBEIRO, 1989, p. 41
11. Cf. GUSS 1989 e RIBEIRO, 1989 e 1988.
12. http://pt.wikipedia.org/wiki/Taquara.
13. Cf. SAINT-HILAIRE, 1830, p. 432.
14. Segundo as narrativas do viajante francês: Les Indiens emploient encore le bicho da taquara à un
usage fort différent. Lorsque l’amour leur cause des insomnies, ils avalent un de ces vers que l’on a fait
sécher, sans en ôter Le tube intestinal, et alors ils tombent dans une espèce de sommeil extatique qui
dure plusieurs jours. Celui qui a mangé un ver desséché Du bambou raconte, en se réveillant, des songes
merveilleux; il a vu des forêts brillantes, Il a goûté des fruits exquis.
15. Cf. MAXAKALI (2009a e b).
16. Cf. LÉVI-STRAUSS 1997b, 229.
141
142
Detalhe de espelho de fechadura em Minas Novas
143
CONSIDERAÇÕES finais
144
fatores favoráveis, no momento atual, para as pretendidas ações de valorização e
transmissão do saber vinculado às práticas tradicionais de construção. Em primeiro
lugar, a própria iniciativa do Iphan2 de inventariar essas técnicas estaria criando um
banco de dados amplo e sistemático, que poderia ser continuamente alimentado e
enriquecido com registros realizados nas diversas regiões brasileiras.
Dentro de uma visão mais ampla, portanto, essa produção e documentação das
técnicas tradicionais seria apenas o primeiro passo de um processo, que teria
continuidade com a instauração de um sistema de certificação desses mestres
artífices, que poderia se constituir em instrumento eficaz de valorização desses
saberes tradicionais, criando instrumentos que propiciariam a melhoria de mão-
de-obra envolvida. Esse processo de certificação por instâncias legais recriaria, de
certa forma, o reconhecimento sócioinstitucional que, no passado, era conferido ao
saber-fazer pelas corporações de ofício e pelas Casas de Câmara e Cadeia, no caso
do Brasil Colonial.
Apesar dessa perspectiva positiva, não se pode negar que os profissionais envolvidos
145
na área percebem a necessidade de um maior reconhecimento social dessas técnicas
e do saber-fazer de seus detentores, já que muitas vezes também elas são ligadas no
imaginário popular à pobreza e ao atraso. Para se atingir esse maior reconhecimento,
foram sugeridas ações de divulgação e um efetivo trabalho de envolvimento da
sociedade e dos órgãos públicos na questão, através de seminários, publicações e
ações institucionais de valorização desses saberes.
Finalmente, o seminário apontou para uma questão central: a da formação dos novos
oficiais e mestres da construção. Se já não temos mais as corporações, um mestre
se forma hoje no exercício diário de vários anos do seu ofício. Há diversos processos
de aprendizado: alguns fizeram cursos formais; outros aprenderam, trabalhando
com mestres; outros, ainda, fizeram cursos práticos administrados pelo mestre no
processo de trabalho. Percebe-se, no entanto, que todos aprenderam a partir da
experimentação, da repetição e do aprimoramento.
Notas
1. OLIVEIRA; NAVES, 2005, p. 12.
146
Detalhe de taquara que serão usadas para a produção de forros
147
148
149
Referências bibliográficas
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brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
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150
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KATINSKY, Júlio Roberto. Sistemas construtivos coloniais. In: VARGAS, Milton (Org.).
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MESTRE OFÍCIO CIDADE REGIÃO
157
MESTRE OFÍCIO CIDADE REGIÃO
158
MESTRE OFÍCIO CIDADE REGIÃO
159
Este livro foi finalizado em Março de 2012, impresso pela
Finaliza Editora, utilizando a família da fonte Verdana no
corpo e títulos. Utilizou-ze na capa, papel Cartão supremo
300g e no miolo, papel couché fosco 115g. A tiragem foi de
3.000 exemplares.