1 Estrutura Trabalho Cientifico
1 Estrutura Trabalho Cientifico
1 Estrutura Trabalho Cientifico
Bolsa: FAPESP
Araraquara/ SP
2006
1
AGRADECIMENTOS
À Marilda Gonçalves Dias Facci, pela leitura atenta, pela solicitude e por suas
preciosas contribuições no Exame de Qualificação.
Aos professores Ari Fernando Maia, Elenita de Rício Tanamachi, Salete Alberti e
Sueli Terezinha Ferreira Martins, cuja contribuição para minha formação é
inestimável.
À Nádia Mara Eidt e Lidiane Teixeira Brazil Mazzeu, duas colegas de curso que
em tão pouco tempo se tornaram eternas companheiras. Pela incrível afinidade,
pelo suporte nos momentos de dificuldade, pelo acalanto nos momentos de
desesperança, pelas alegrias partilhadas, pelo cuidado e pelo carinho.
2
A Fernando Ramalho Martins, grande amor da minha vida, por estar ao meu
lado na realização desse trabalho e em todas as escolhas, angústias e conquistas
dos últimos quase nove anos. Pela hombridade. Pela paciência. Por ser um
companheiro no sentido mais pleno dessa palavra.
RESUMO
ABSTRACT
This study investigated the specificities of the relationship between instruction and development in 0
to 6-year-old children through bibliographic research of selected works by Vigotski, Leontiev and
Elkonin, searching to contribute with the contemporary debate on the specificity of pedagogical action
directed to children at this age. Considering the hegemony in the literature of ideas which propose the
withdrawing of child education from school, this research analyzed the hypothesis that the theoretical
production of these authors points to the defense of instruction as a primordial element of the teacher’s
pedagogical action with 0 to 6 year-old children. We analyzed the general principles which conduct
the child development from the perspective of historical-cultural psychology, emphasizing the
historical-dialectical feature of this process, the development of psychological functions, the close
relationship between the psychological development and the child activity, and the relationship
between instruction and development in general. Concerning to the specificities of this relationship in
0 to 6 year-old children, we analyzed the stages which characterize the child development until the
transition to scholar age, having the category of ‘principal activity’ as pivot; the pertinence of
introducing the activity of studying at pre-school age; the generalization structures which characterize
child mental development; the spontaneity which characterizes children acting and thinking; and the
development of voluntary control of self-conduct at this age. We concluded that, from the historical-
cultural perspective, the teacher which deals with 0 to 6-year-old children cannot be defined as
somebody which merely stimulates and follows child development, but as the one who directs the
educational process, transmitting to children the results of historical human development, making
explicit the features of human activity crystallized in culture objects and organizing the children
activity, promoting their mental development. The results suggest the confirmation of the research
hypothesis and bring to discussion the importance of consistent and deeper analysis on the definition
of the activity of teaching.
Key-words: historical-cultural psychology, child development, instruction, children scholar education
5
SUMÁRIO
Pg.
LISTA DE FIGURAS..................................................................................................................... 06
INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 07
ANEXOS.................................................................................................................................. 204
6
LISTA DE FIGURAS
Pg.
.B.Elkonin................................................................................................................................ 146
7
INTRODUÇÃO
interfaces entre Psicologia e Educação, paralelamente a uma grande afinidade com a abordagem
elegemos como objeto de nossas reflexões. Nosso contato com as instituições públicas de
condições de trabalho para os educadores e despreparo dos mesmos para uma prática
ultrapassasse a rotina de alimentação, banho e sono, bem como uma baixa ou quase nula
seu trabalho.
8
sua escolaridade. No entanto, nos inquietava perceber que, apesar de tais condições, o trabalho
do Ensino Fundamental, na maioria das vezes permeada pela falta de clareza do conteúdo e
pudemos constatar que parte dos educadores participantes da pesquisa associa ainda a Educação
Infantil à preparação para o Ensino Fundamental e a maioria deles entende que o principal
objetivo do segmento é a socialização da criança, o que pode ser ilustrado pela fala de uma
professora: “[O objetivo da Educação Infantil] é preparar a criança para o ensino fundamental,
assim como trabalhar a socialização da criança, desenvolver sua coordenação motora fina e
grossa, obedecer horário de cada atividade, o respeito aos coleguinhas e aos pertences”.
pragmático e quase doméstico e pela redução de finalidades das creches e pré-escolas – vistas
apenas como “espaços socializadores”. Respaldados pela literatura da área, podemos afirmar
que a Educação Infantil ainda é uma tarefa a se realizar no Brasil. Apesar dos avanços
representados pela LDB/96 e outras iniciativas no plano das políticas públicas que apontam para
Nacional de Educação Infantil pelo MEC, em 2003), é preciso assumir, conforme Martins
1
Projeto de pesquisa realizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil (NEPEI), vinculado ao
Departamento de Psicologia da UNESP campus Bauru, sob coordenação da Prof. Dra. Lígia Márcia Martins, no período de
2002 a 2005.
9
(2005, p.7), que a Educação Infantil até o presente “(...) não existiu de fato como expressão do
direito educacional das crianças de zero a seis anos”, visto que, para a autora, “(...) os modelos
de educação infantil até agora implantados não são representativos daquilo que deveria ser o
mobilização e luta política pela garantia das condições objetivas/ materiais para a edificação de
de finalidades pedagógicas para este segmento de ensino que superem a tarefa de socializar e
disciplinar a criança. É preciso explicitar qual deve ser o papel da educação escolar infantil na
de sua especificidade. Ao longo de sua história, a Educação Infantil no Brasil vem sendo
das creches, quanto como estratégia de prevenção do fracasso escolar, preparação para o Ensino
identidade, que ora apóia-se em modelos domésticos ou hospitalares (CERISARA, 2002), ora
atendam à especificidade deste segmento tem sido objeto de debates e iniciativas dos
profissionais e pesquisadores da área: “vem sendo cada vez mais freqüente, entre os
Algumas respostas têm sido oferecidas pelos pesquisadores. Afirma-se, por exemplo,
que as instituições de Educação Infantil devem educar e cuidar – e que o binômio cuidado-
educação expressaria o objetivo principal do trabalho pedagógico junto a essa faixa etária. O
cuidar-educar, nesse sentido, aparece na literatura como algo que marcaria a identidade desse
oficial concernente ao segmento. Procuraremos demonstrar neste trabalho que tal proposição
pouco contribui para o entendimento das especificidades do ensino infantil, na medida em que
esclarecer como e para quê educar – e cuidar de – crianças nas instituições de educação
infantil.
escolas de educação infantil vêm sendo atribuídas por diversos pesquisadores à adoção do assim
chamado modelo escolar. Não se trata da crítica à antecipação imprópria de tarefas típicas do
Ensino Fundamental que acaba ocorrendo como forma de suprir a lacuna da falta de clareza do
que deva ser a prática pedagógica junto à faixa etária atendida pela Educação Infantil, a qual
educação infantil deva ser um espaço educativo, porém não-escolar. Afasta-se a prática
Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental o
ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola têm como objeto
as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito
a criança de 0 a 6 anos de idade (ROCHA, 1999, p.70)
Educação Infantil, para a qual o ensino assume acento explicitamente pejorativo. A proposição
significativa, visto que resulta do trabalho de pesquisa que a autora desenvolveu em sua tese de
trajetória das pesquisas da ANPEd3 como foco central. Em seu trabalho, Rocha (1999b)
demonstra, entre outras coisas, que as pesquisas analisadas têm se voltado para a criança como
sujeito social, enfatizando suas manifestações espontâneas e buscando definir eixos norteadores
escola” (p.137) – dado que é apresentado pela autora com conotação notadamente positiva.
Constata-se, assim, a força que vem ganhando esse ideário no cenário educacional brasileiro.
Mas é possível haver educação sem ensino? Se as instituições de educação infantil não
tiverem por objetivo último o ensino e a aquisição de conteúdos por parte das crianças,
o que caracterizaria a especificidade dessas instituições perante outras como, por
exemplo, um clube, onde a criança também interage e brinca?” (p.156).
tem-se incorrido, em contrário, numa diluição das fronteiras entre a educação escolar infantil e
2
A tese da autora foi publicada sob a forma de livro intitulado “A pesquisa em educação infantil no Brasil: Trajetória
recente e perspectiva de consolidação de uma Pedagogia da Educação Infantil” (ROCHA, 1999).
3
“Para identificação da trajetória da pesquisa na área da educação das crianças de 0 a 6 anos no Brasil, este estudo tomou
como base de análise a produção científica que vem sendo apresentada nas Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd – principalmente nos últimos sete anos (1990-1996). (...) De forma
complementar, foram também incluídos na seleção os trabalhos apresentados neste mesmo período, em congressos científicos
representativos, das Ciências Sociais (ANPOCS), da História (ANPUH), da Psicologia (SBP) e da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) (...).” (Rocha, 1999b, p.21).
12
outras agências socializadoras, como apontado por Arce (2004a). Tal perspectiva pode
– afinal, se a Educação Infantil não atende alunos e não promove o ensino, são efetivamente
sociedade contemporânea – mas, para tanto, é mister garantir uma formação sólida aos
projeto-piloto de Orientação Profissional junto a 28 alunos da turma do pré, com idades entre 5
e 6 anos, numa escola com funcionamento em período integral que atendia crianças
permaneciam com a professora apenas meio-período do dia, sendo que no restante do tempo –
formação pedagógica.
Ao iniciarmos o projeto, deparamo-nos com uma situação que nos causou enorme
colocadas para esta faixa etária, revelando dificuldades em compreender instruções simples,
com regras, dentre outras. Surpreendeu-nos, em especial, encontrar crianças nesta faixa etária
4
Este trabalho é relatado em: GARBULHO, N.F., PASQUALINI, J.C. & SCHUT, T. Orientação profissional com crianças:
uma contribuição à Educação Infantil. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 2004, 5 (1), pp.71-86.
13
com dificuldades em verbalizar a idade ou mesmo indicá-la com os dedos das mãos. Seus
de ilustração, as únicas profissões conhecidas previamente pelo grupo eram médico, professora
e pedreiro. O quadro se torna ainda mais significativo diante dos resultados obtidos por uma
escola particular do município com uma turma do jardim II, ou seja, com crianças entre 4 e 5
anos: constatou-se amplo conhecimento prévio sobre profissões e rápida aquisição de novos
conhecimentos (GARBULHO et al, 2003). Dados sobre a população infantil de classe média e
alta são também trazidos por Felipe (2003), a partir de uma investigação a respeito da percepção
do mundo do trabalho por crianças da 1ª série do Ensino Fundamental (idade entre 6 e 7 anos)
saúde, segurança, educação, ídolos do esporte e do meio artístico, a autora relata que
(...) em relação às representações que elas têm a respeito do trabalho também surgiram
associações (...) com o lazer, o estudo, o sustento próprio e familiar, o uso do
computador, a prestação de serviços em geral e o esforço físico. (...) Também se
destacou o fato das profissões dos pais não terem predominado nos desenhos, o que
demonstra a quantidade e variedade de estímulos visuais e auditivos expostos
diretamente às crianças (...) (p.24).
Embora nosso trabalho de intervenção com as crianças tenha enfocado uma questão
constatar que a expropriação do conhecimento a que são submetidos os indivíduos das classes
oprimidas na sociedade capitalista se produz desde a mais tenra infância. Fica evidente, nesse
Educação Infantil revela um compromisso político divergente das necessidades das famílias
14
das classes populares, que têm na escola um dos poucos – talvez o único – espaço de acesso
ao conhecimento sistematizado.
demandas colocadas no cenário atual do segmento no que se refere ao plano pedagógico, isto
grandes representantes. Entre os demais autores soviéticos que compõem essa escola podemos
citar Elkonin, Davidov, Galperin, entre outros. Essa escola inaugura uma abordagem histórica
de 1980. As contribuições dessa perspectiva teórica para a Educação Infantil começam a ser
exploradas apenas a partir da década de 1990, com destaque aos trabalhos de Vigotski. Vale
ressaltar, no entanto, que grande parte dos trabalhos no país que têm buscado em Vigotski
Leontiev aborda uma série de aspectos que possuem implicações diretas para a área da
educação, tais como: a análise realizada pelo autor acerca da apropriação da experiência sócio-
evidente, assim, que o conhecimento produzido por tais autores pode contribuir
operar o ensino escolar. A pergunta que nos orientou foi: “quais as especificidades da relação
entre desenvolvimento e ensino na faixa etária de 0 a 6 anos?” O acervo pesquisado inclui obras
5
No artigo “A Escola de Vigotski e a Educação Escolar: Hipóteses para uma Leitura Pedagógica da Psicologia Histórico-
cultural”, Duarte (2001) afirma que a maioria do que tem sido escrito sobre Vigotski no Brasil busca enquadrá-lo no modelo
epistemológico interacionista-construtivista, o qual não corresponde e, mais que isso, se contrapõe aos princípios
pedagógicos contidos nessa escola da psicologia.
16
de L.S.Vigotski (1993, 1995, 1996, 1996, 2001a, 2001b, 2002, 2003), A.N. Leontiev (1960a,
1960b, 1978, 1980, 1987, 1982, 2001a, 2001b) e D.B. Elkonin (1960a, 1960b, 1960c, 1987a,
1987b, 1998).
íntima relação com os processos educativos6. Em outras palavras, acreditamos que a psicologia
Cumpre esclarecer que, apesar das recentes mudanças no sistema educacional brasileiro
que estabelecem o Ensino Fundamental de nove anos, reduzindo a faixa etária atendida pela
Educação Infantil, optou-se nesta pesquisa pela manutenção da faixa etária de 0 a 6 anos, tendo
acima destacada, a hipótese da qual partiu nossa investigação é a de que a produção teórica dos
Educação Infantil.
infantil encontram sustentação na obra dos autores mencionados em especial porque, segundo
Arce (2004b), em oposição a uma visão idealizada da infância, Vigostki, Leontiev e Elkonin
sociedade na qual a criança está inserida, procurando apreender a infância dentro de todo o
pelos homens. De acordo com Facci (2004a): “a superação dessa visão idealista [do
construída historicamente a partir das necessidades humanas” (p.66). Para essa autora, Leontiev
área.
buscando-se identificar os princípios que regem esse processo segundo a perspectiva histórico-
cultural, bem como as especificidades da relação entre desenvolvimento e ensino na faixa etária
de 0 a 6 anos.
a Lei Federal que implementa o Ensino Fundamental de nove anos em todo o território
nacional. Procuramos, ainda, situar a presente investigação perante as demandas deste segmento
Apresentamos, por fim, a categoria de atividade, que tem grande destaque na análise do
desenvolvimento da consciência.
Por fim, o terceiro capítulo apresenta os princípios gerais que regem o processo de
educação da criança.
atividade de ensino.
19
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 1
aproximações”, resgata as origens da educação escolar, afirmando que esta constituía outrora
sociedade burguesa.
transmissão oral, incorporada aos costumes e ritos, à divisão de tarefas e à tradição (PETITAT,
1994). Nas palavras de Saviani (2005), a forma predominante de educação era a educação pelo
trabalho.
alterações nas relações entre produção material, produção do saber e apropriação do saber.
básica:
Com o advento desse tipo de sociedade [burguesa], vamos constatar que a forma
escolar da educação se generaliza e se torna dominante. Assim, se até o final da Idade
Média a forma escolar era parcial, secundária, não generalizada, quer dizer, era
determinada pela forma não-escolar, a partir da época moderna ela generaliza-se e
passa a ser a forma dominante, à luz da qual são aferidas as demais (SAVIANI, 2005,
p.96).
capitalista na atualidade. No que se refere à educação infantil, como veremos, tais necessidades
(2005):
O atendimento institucional à criança de zero a seis anos esteve, por toda sua história,
substancialmente atrelado a transformações sociais que incluíram a expansão da
industrialização e do setor de serviços, a intensificação da industrialização e
consequentemente a reorganização das estruturas familiares, a incorporação do
trabalho de um grande número de mulheres pelo mercado, etc. Tais transformações
intensificaram as necessidades de criação de espaços institucionais destinados não
apenas ao atendimento das crianças pequenas, mas também aos idosos. No Brasil, o
surgimento e expansão destes espaços marcaram significativamente o século XX,
aparecendo, em suas origens, como equipamentos de cunho confessional, assistencial e
caritativo. (p.3)
surgidas na Europa em fins do século XVIII (KISHIMOTO, 1988). Tais instituições, que
funcionavam em regime de internato, tinham como objetivo amparar a infância pobre (em
especial crianças órfãs e abandonadas) e reduzir as altas taxas de mortalidade nos primeiros
anos de vida. Sua única preocupação era “a guarda pura e simples dessas crianças” (MERISSE,
22
1997, p.27), o que era feito em instalações bastante inadequadas e sem preocupações
Paris, e disseminaram-se pela Europa, chegando até a Rússia; em suas instalações, segundo a
autora, até “(...) 100 crianças pequenas obedeciam a comandos dos adultos dados por apitos”
(p.17).
No Brasil, a “Casa da Roda” ou “Roda dos Expostos” (ou ainda “Casa dos Enjeitados”)
foi o primeiro tipo de atendimento institucional destinado à criança pequena (MERISSE, 1997;
FREITAS & SHALTON, 2005). A primeira Casa da Roda foi criada em 1738, no Rio de
tinham como objetivo, a exemplo das salas de asilo, reduzir os altos índices de mortalidade
exploração sexual dos senhores sobre suas escravas7 (MERISSE, 1997). Segundo Merisse
(1997), “várias dessas instituições serão criadas pelo país afora e essa será praticamente a única
instituição de referência para o atendimento à infância, em nosso país, até a segunda metade do
século XIX” (p.28). Vale ressaltar que, contraditoriamente a seus propósitos, a Casa da Roda
apresentava taxas de mortalidade que beiravam 50% (MERISSE, 1997; FREITAS &
SHELTON, 2005).
asilares” (p.29). No entanto, algumas novas características por ela incorporadas vão delineando
um outro tipo de instituição. Surgidas na França, as primeiras creches, diferentemente das casas
7
Conforme Merisse (1997), a denominação Casa da Roda faz referência ao mecanismo cilíndrico de madeira com uma
pequena abertura onde se depositavam as crianças: “a criança era colocada na abertura, pelo lado de fora da instituição.
Girando-se a roda, ela passava para o lado de dentro, de tal modo que o depositante não podia ser visto, impedindo-se assim a
sua identificação” (p.28).
23
destinavam-se ao atendimento de bebês e crianças de até três anos durante a jornada de trabalho
As primeiras creches, de acordo com Merisse (1997), teriam aparecido na França por
primeira creche teria sido criada em Paris no ano de 1844, num contexto em que, em função da
necessidade do trabalho, mães operárias abandonavam seus filhos pequenos em asilos ou aos
cuidados de “amas mercenárias” e até de outras crianças mais velhas, condições que favoreciam
o aumento da mortalidade infantil e mesmo o infanticídio. Ainda segundo essa autora, 40 anos
França.
com os asilos infantis, pois atendiam basicamente crianças órfãs e filhos de indigentes em
na extrema miséria, que aumentam nos núcleos urbanos, fruto do deslocamento de populações
pobres, em busca de melhores condições de vida” (idem, p.24). De acordo com a autora, o
atendimento era em geral realizado sob péssimas condições de higiene, funcionando como
trabalhadores:
Os donos das indústrias, por seu lado, procurando diminuir a força dos movimentos
operários, foram concedendo certos benefícios sociais e propondo novas formas de
disciplinar seus trabalhadores. Eles buscavam o controle do comportamento dos
operários, dentro e fora da fábrica. Para tanto, vão sendo criadas vilas operárias, clubes
esportivos e também algumas creches e escolas maternais para os filhos dos operários.
O fato dos filhos das operárias estarem sendo atendidos em creches ou escolas
maternais, montadas pelas fábricas, passou a ser reconhecido por alguns empresários
como vantajoso: mais satisfeitas, as mães operárias produziam melhor. (p.18)
criança pequena surgiram no início do século XIX, como demanda do crescente processo de
instituições, destinadas aos filhos dos trabalhadores, “o objetivo principal não era o
desenvolvimento das crianças, mas evitar que elas perambulassem pelas ruas” (idem, p.198).
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o surgimento e a difusão das creches no Brasil e
conseqüente demanda por mão-de-obra feminina: a mão de obra das mulheres passa a ser
requerida para engrossar a atividade produtiva e “a presença da mulher nas fábricas exige a
Embora tenham sido idealizados por Froebel para o atendimento a crianças pobres,
localizando-se inclusive nas favelas alemãs (ABRAMOVAY & KRAMER, 1988), verifica-se
que os jardins-de-infância se difundirão no Brasil e em outros países, como nos Estados Unidos,
Em 1856, Margareth Schurz, imigrante alemã que havia sido aluna de Froebel, funda
(FREITAS & SHELTON, 2005). Segundo Freitas e Shelton (2005), nesse país os primeiros
com três anos de idade ou mais e foram as famílias abastadas as que primeiro tiveram acesso a
linguagem e cálculo, escrita, história e religião. O primeiro jardim-de-infância público foi criado
em 1896, anexo à Escola Normal Caetano de Campos, em São Paulo; também apresentava
caráter elitista, conforme Kishimoto (1988): “essa instituição oficial, criada como escola-
padrão, ao invés de favorecer o povo, tem suas vagas disputadas pelos filhos da elite cultural e
um lado, instituições destinadas aos filhos dos trabalhadores – as creches – e, por outro,
Firmaram-se por estas vias institucionais dois segmentos distintos, quais sejam: o das
creches, destinadas ao atendimento integral prioritariamente de crianças até três anos
ou de idades mais avançadas em razão da carência econômica e os jardins-da-infância
8
Foge aos objetivos dessa dissertação uma discussão pormenorizada acerca da história desse segmento educacional. Para
tanto, ver: Kishimoto (1988) e Kuhlmann Jr. (2000).
26
Dessa forma, a partir de 1975 o atendimento à criança de quatro a seis anos em pré-
escolas foi inserido nas ações do Ministério da Educação (MEC), enquanto as creches
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, como veremos, que se determina a
educativa.
Fica evidente o quanto os menores provenientes das diferentes classes sociais vão
sendo submetidos a contextos de desenvolvimento distintos e desiguais. O contexto
destinado às crianças pobres [creches] orientado pelas idéias de carência, deficiência e
assistência, o contexto destinado às demais [pré-escolas e jardins-de-infância]
orientado pelas idéias de estimulação da criatividade, da autonomia, da socialização e
preparação para o ensino fundamental (MARTINS, 2005, p.4).
Ao longo de sua história, a creche foi apresentada ora como difusora de hábitos de
higiene e saúde (MERISSE, 1997; OLIVEIRA, 2002), ora como uma dádiva aos
desafortunados, isto é, como agência promotora do bem-estar social e via de combate à pobreza
(OLIVEIRA, 2002; ROSEMBERG, 2002b). Esta instituição foi (e ainda é!) compreendida
criança pequena seria permanecer junto à mãe. Nessa perspectiva, recorreriam a essa instituição
Cavalcante (2005), “os movimentos sociais em prol da implementação destes espaços [creches]
ainda tinham a crença de que o ambiente familiar é o melhor lugar para o desenvolvimento da
criança. Apenas a necessidade econômica justificaria a ausência parcial da mãe no trato com o
27
filho” (p.4). Vale ressaltar o quanto tal ideário é gerador de conflitos e sentimentos de culpa na
mulher trabalhadora – a qual, por um lado, se vê obrigada a trabalhar fora do domicílio, pela
precariedade da condição sócio-econômica familiar, mas por outro, diante da difusão de uma
imagem idealizada da maternidade, acaba sentindo-se culpada por ter de ‘abandonar’ os filhos
Salientamos que a identidade da creche como instituição destinada à guarda das crianças
enquanto as mães trabalham está longe de ser superada, a despeito dos avanços históricos
obtidos ao longo das últimas décadas. Consideramos bastante representativa, nesse sentido,
noticiando que algumas das creches de uma cidade vizinha pela primeira vez não
por uma foto na qual 17 crianças de aproximadamente três anos encontram deitadas dividindo
12 pequenos colchões no chão de uma sala. Não há brinquedos ou materiais pedagógicos, nem
nenhum tipo de decoração ou cartazes na parede; a educadora está sentada junto às crianças –
com os sapatos calçados – em cima de um dos colchões. A legenda da foto diz: “Objetivo é
discurso oficial, em especial a partir da década de 1970, ganha força a perspectiva de preparar
as crianças para a escola primária e reduzir os altos índices do assim chamado fracasso
escolar por meio da compensação de carências culturais, nutricionais e afetivas desses alunos.
chamada teoria da carência cultural ou privação cultural, gestada nos Estados Unidos da
América em fins da década de 1950 e início de 1960. Em linhas gerais, essa “teoria”
preconizava que a explicação para os altos índices de fracasso escolar de crianças de nível
28
sócio-econômico baixo é que essas crianças seriam portadoras de inúmeras deficiências nas
várias áreas do seu desenvolvimento porque viveriam em ambientes familiares que não
denuncia Patto (1997), essa teoria “(...) é portadora de todos os estereótipos e preconceitos
sociais a respeito dos pobres e continua marcando presença nos meios em que se planeja e se
medida em que acaba por justificar os alarmantes índices de fracasso social ao reafirmar a
“profecia segundo a qual os pobres não têm capacidade suficiente para o sucesso escolar”
(PATTO, 1997).
estaria presente, de acordo com Abramovay & Kramer (1988), nas próprias origens do
atendimento pré-escolar:
(...) durante o século XIX, uma nova função passa a ser atribuída à pré-escola, mais
relacionada à idéia de ‘educação’ do que à de assistência. São criados, por exemplo,
os jardins de infância por Froebel, nas favelas alemãs, por Montessori nas favelas
italianas, por Reabodif nas americanas etc. A função dessa pré-escola era a de
compensar as deficiências das crianças, sua miséria, sua pobreza, a negligência de
suas famílias... Assim, podemos observar que as origens remotas da educação pré-
escolar se confundem mesmo com as origens da educação compensatória (...) (p.23)
Até o final dos anos de 1960, nota-se uma base compartilhada entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos, seguindo, grosseiramente (com variações
nacionais), dois modelos institucionais: o das creches e seus similares, instituições
que acolhem exclusiva ou principalmente crianças pobres; o dos jardins-da-infância,
não especialmente destinados a crianças pobres. Essa trajetória relativamente
comum se cinde ao final da década de 1960, quando a EI passou a integrar, também,
a agenda de políticas de desenvolvimento econômico e social elaborada pelos
organismos vinculados à ONU (Organização das Nações Unidas) para os países
subdesenvolvidos (...). (p.32-3)
29
1990, verificando-se desde então uma maior intervenção do Banco Mundial, que persiste até a
atualidade.
pôde detectar alguns princípios subjacentes às ‘orientações’ transmitidas por esses organismos
ensino fundamental, este deve ser tomado como prioridade e a expansão da EI deve se realizar
por meio de modelos de tipo “não formal e a baixo custo”. Nas palavras de Rosemberg
(2002b):
Cabe aqui ressaltar o caráter nitidamente ideológico das proposições de tais organismos, as
compensa carências e previne o fracasso escolar será, como demonstra Rosemberg (2002b),
30
assumido pelos órgãos responsáveis pela regulação das políticas públicas de atendimento à
Com a trajetória histórica brevemente aqui relatada, fica evidente, conforme Martins
(2005), “(...) que, desde suas origens, a educação infantil aparece como empreendimento a
baixo custo, legado histórico que se expressa nas frágeis expectativas educacionais que se tem
a seu respeito” (p.5). Corroboramos, nesse sentido, a consideração da autora de que a história
da Educação Infantil pode ser caracterizada como uma história da subalternidade, uma
instituições.
incluíram movimentos de defesa dos direitos da mulher e da criança, apresenta pela primeira
vez a Educação Infantil como direito universal das crianças de 0 a 6 anos (ROSEMBERG,
opção da família.
Ministério da Educação (COEDI/ MEC), estabelece diretrizes gerais sobre a política para o
segmento, afastando-se do modelo não formal e a baixo custo e propondo metas de expansão
que os organismos internacionais pouco atuaram na área de Educação Infantil em nosso país,
A autora ressalta, contudo, que a implementação de tais propostas foi interrompida com a
Nacional (LDB) em 1996. Embora traga em seu bojo uma concepção liberal de educação e
reconhecer que do ponto de vista da história da Educação Infantil a LDB/96 traz avanços
etapa da Educação Básica. Além disso, a Lei conserva o princípio da equivalência entre
creches e pré-escolas, determinando – pela primeira vez – a inserção das creches nos sistemas
de ensino municipais.
Diante de tal quadro, para Martins (2005), deve-se analisar a situação atual da
Educação Infantil no Brasil considerando os avanços presentes na LDB em vigor – bem como
9
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Infantil e Fundamental. Política Nacional de Educação Infantil:
pelos direitos das crianças de zero a seis anos à Educação. Brasília, MEC/SEIF/COEDI/CPE, 2003.
32
9 anos o tempo de escolaridade obrigatória e estabelecendo como prazo para adequação dos
sistemas de ensino o ano de 2010. Sem pretender uma análise definitiva a respeito da questão,
maioria dos países da América do Sul. Além disso, segundo relatório10 do Conselho Nacional
Em Minas Gerais, por exemplo, até maio de 2005, 680 municípios haviam implantado o
ultrapassa mil12. Uma das justificativas apresentadas para a promulgação da medida é, dessa
10
Referente ao processo de número 23001.000157/2005-43, disponível em www.aprofem.com.br.
11
Segundo reportagem da Folha Online de 17 de maio de 2005: www.folha.uol.com.br/folha/educacao.
12
Jornal Nota 10, disponível em www.nota10.com.br/jornal_impresso/marco_2006.
13
Jornal Nota 10, disponível em www.nota10.com.br/jornal_impresso/marco_2006
33
movimento de antecipação do ingresso das crianças na escola como parte de uma ‘tendência
não deixa de reafirmar, mais uma vez, a histórica posição de subalternidade da educação
infantil em relação aos demais sistemas de ensino e a ausência de identidade do ensino infantil
Além disso, podemos nos perguntar: espera-se que o conteúdo da primeira série seja
antecipado em um ano? Não parece ser essa a proposta. Na verdade, um dos grandes
questionamentos que vem sendo feitos à nova medida – talvez o principal deles, refere-se à
ausência de uma proposta pedagógica clara. Não há ainda clareza acerca do conteúdo
pedagógico pertinente a esta nova série do Ensino Fundamental. Ela passa a compor os “Anos
constituição de uma espécie de ‘pré-ciclo’: em Curitiba, por exemplo, a nova série vem sendo
realizado na Educação Infantil, tal medida vem certamente confundir ainda mais o professor.
à nova medida deve se efetivar mediante estudos e debates realizados de forma criteriosa.
Entendemos, contudo, que tais estudos e debates deveriam ter sido esgotados anteriormente à
instituição da mudança.
compreendem a idade pré-escolar como fase que inclui o sexto ano de vida, apontando o
início da idade escolar aos 7 anos. Esperamos que esse estudo possa também contribuir, nesse
sentido, para a reflexão acerca do trabalho pedagógico a ser realizado com as crianças de 6
implementados até o presente não são representativos daquilo que deveria ser o trabalho
educativo com essa faixa etária. Segundo a autora, os desafios colocam-se tanto no plano das
qual centraremos nossas análises no presente trabalho – pode-se constatar na última década
segmento.
das creches, quanto como estratégia de combate à pobreza, prevenção do fracasso escolar,
atendida.
Nesse contexto, Machado (2001) aponta que a construção de propostas que atendam à
explicitação de qual deve ser o papel da educação escolar infantil na formação e na promoção
Considerando a infância como um período que também prepara a criança para a vida
adulta, em cada fase etária caberá à escola um papel próprio nessa formação. Daí
resultam diferentes identidades de cada segmento escolar. A Educação Infantil possui
uma identidade distinta do Ensino Fundamental, que por sua vez se distingue do
Ensino Médio e assim, sucessivamente (p.12, grifo nosso).
Para as autoras, o que confere identidade a determinado segmento de ensino são “(...) as
atividades que lhe são específicas (...), os motivos e finalidades que sustentam essas ações, as
condições materiais (físicas) para que as atividades se realizem, bem como as formas de
relações dessas atividades com outras instituições sociais” (MARTINS & CAVALCANTE,
2005, p.12).
Para que a Educação Infantil desempenhe sua função, ainda segundo Martins e
Cavalcante (2005), “(...) é preciso que se organize mediante objetivos representativos de sua
que ensinar? Como ensinar? Ensinar para quê?: eis as questões a serem respondidas pelos
Infantil.
O objetivo principal das instituições de EI tem sido proclamado nos últimos anos sob o
Para Tiriba (2005), mais que objetivo, pode-se afirmar que o “educar-cuidar” vem sendo
os pesquisadores da área (FARIA, 2005; CERISARA, 2004; ROCHA, 1999, 2002) quanto na
2005; CORRÊA, 2003). De acordo com Corrêa (2003), o termo foi cunhado pela psicóloga
37
americana Bettye Cadwel, “(...) como expressão daquilo que entende ser o ‘ideal’ no
atendimento a crianças pequenas, ou seja, uma perfeita integração entre educação e cuidado”
tona o núcleo do trabalho pedagógico conseqüente com a criança pequena. Educá-la é algo
Segundo Azevedo e Schnetzler (2005), “ao longo dos dez últimos anos a discussão
sobre a necessidade de integrar cuidado e educação na EI tem sido feita exaustivamente, tanto
na literatura da área quanto em fóruns nacionais de debates sobre educação” (p.4). De acordo
Infantil, realizado em Belo Horizonte no ano de 1994, pode ser considerado um marco nas
a 6 anos no país.
meio ao processo de busca pela compreensão das especificidades desse segmento de ensino e
Para Tiriba (2005), o binômio educar-cuidar emergiu com o quadro que se desenhou
no país na década de 1990, com a incorporação das creches e pré-escolas aos sistemas de
Para Tiriba (2005), dessa forma, tornou-se necessário “(...) integrar as atividades de
desenvolvidas nas pré-escolas” (p.2). O binômio educar e cuidar, para a autora, foi a solução
Corrêa (2003), apoiada em Cerisara, apresenta uma análise semelhante, afirmando que
é possível compreender a ênfase nos termos cuidar e educar a partir da análise do surgimento
instituições de cunho educativo, nas quais, conforme Rosemberg (1994 apud CORRÊA,
superar a histórica dicotomia entre assistência e escola, de modo que toda e qualquer
instituição de educação infantil, seja ela creche ou pré-escola, teria como função precípua
cuidar de e educar crianças pequenas, o que pode ser depreendido da colocação de Faria
encontrar uma série de menções a dificuldades referentes a essa integração entre as dimensões
de educação e cuidado que se pretende afirmar com o binômio educar-cuidar. Corrêa (2003),
por exemplo, afirma que embora se saiba que a dimensão do cuidado deva necessariamente
39
estar presente nas práticas educativas com crianças pequenas, ela “(...) ainda é fruto de muita
Tiriba (2005) denuncia que tanto nos textos acadêmicos quanto nas propostas
se não abordado adequadamente na formação inicial, esse binômio pode reforçar a separação
das práticas de cuidado e educação nas idéias e práticas dos futuros profissionais.
Face o exposto, pode-se constatar que o binômio educar-e-cuidar não vem cumprindo
Para Kuhlmann Jr. (2005), tal dicotomização pode ser decorrência da adoção desse
binômio como um jargão do modismo pedagógico – o que esvaziaria seu sentido, repondo
justamente o oposto do que se pretende. Esse, para o autor, foi um equívoco que se
(2005) acredita que, para prevenir tal dicotomia, “a tradução da palavra inglesa precisaria
manter a unidade dos termos, utilizando-se elos de ligação entre eles: educar-e-cuidar” (p.60).
não se trata de um mero problema de utilização ou não de elos de ligação entre os termos, ou
14
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação.
40
Curricular Nacional para a Educação Infantil, é possível encontrar uma definição da atividade
educação infantil:
Unidos e no Brasil, apontam para uma lacuna conceitual no que se refere à noção de cuidado,
a qual, segundo as autoras, é apresentada sempre de forma bastante vaga. Em nosso ponto de
vista, tal adjetivação é válida para a definição de cuidado do RCN acima apresentada. Freitas
apenas para os pobres), afirmando que, diante desse quadro, não basta integrar cuidado e
(...) um conceito de cuidado no atendimento à criança pequena (...) que não reduza o
cuidado ao atendimento de necessidades básicas nem o restrinja a medidas para
curar doenças, mas um conceito que vise à promoção do desenvolvimento da criança
em suas várias dimensões (FREITAS & SHELTON, 2005, p.203)
criança em suas várias dimensões não pode ser considerada um objetivo educacional?
Craidy (2002) afirma, nesta direção, que é impossível cuidar de crianças sem educá-
las. Para Corrêa (2003), toda relação entre o educador e a criança no âmbito pré-escolar é
permeada por algum tipo de cuidado, seja ele explicitado e consciente ou não. Faz-se, assim,
bastante representativa a fala de uma mãe de aluno de pré-escola do município de São Paulo,
41
reproduzida por Corrêa (2003): “a professora cuida melhor, não é? Porque ela também
ensina” (p.102).
que se refere aos limites entre educar e cuidar, é que cuidado e educação constituem
pedagógica. Para Martins e Cavalcante (2005), apenas uma apreensão superficial de tais
fenômenos, que não vá além de suas dimensões operacionais aparentes, pode estabelecer uma
(2005):
(...) se educar e cuidar são dois pólos que precisam estar integrados, ao invés de
assumirmos o binômio, não seria o caso de questionarmos a manutenção da
dualidade, propondo, simplesmente, educar? (p. 5)
Conforme Corrêa (2003), idéia semelhante é apresentada por Maria Malta Campos, já
em 199415. A autora propõe uma noção de cuidado mais abrangente, que seja incluída no
conceito de educar. Dessa forma, todas as atividades ligadas à proteção e apoio necessários ao
cotidiano da criança, que remetem à dimensão do cuidado – alimentar, lavar, trocar, curar,
proteger, consolar, entre outras, deveriam integrar aquilo que chamamos de educar.
educá-las, consideramos que toda instituição de cuidado encerra uma determinada proposta
pedagógica. Corroboramos, nesse sentido, a perspectiva de Kuhlmann Jr. (2005), para quem
diferencia as instituições não são as origens nem a ausência de propósitos educativos, mas o
15
CAMPOS, M. M. Educar e cuidar: questões sobre o perfil do profissional de educação infantil. In: BRASIL. Ministério da
Educação e do Desporto. Por uma política de formação do profissional em educação infantil. Brasília: MEC/SEF/Coedi,
p.32- 42, 1994.
42
público e a faixa etária atendida. Foi a origem social e não a institucional que inspirou
assistencialismo pode ser compreendido como uma proposta educacional dirigida às classes
populares:
Fica evidente, dessa forma, que a creche, ao ‘cuidar’ das crianças enquanto suas mães
EI. Nenhum dos autores pesquisados afirma que a necessidade de cuidado se encerra com a
passagem da criança ao Ensino Fundamental. Em última análise, todos concordam que tal
dimensão está presente, de alguma forma, em todos os níveis de ensino. Kuhlmann Jr (2005),
criança pequena, o cuidado deve ser observado nos mais diferentes níveis educacionais.
Corrêa (2003) relata uma pesquisa realizada por Marília Pinto de Carvalho junto a
professores das séries iniciais do Ensino Fundamental, na qual se observou que os dilemas
enfrentados pelos professores desse nível de ensino no que diz respeito à dimensão do
cuidado em suas práticas cotidianas é bastante semelhantes ao que parece ocorrer com os
Para Carvalho, em trecho reproduzido por Corrêa (2003), é preciso ter clareza de que o
(...) se atender a certas necessidades básicas do ser humano durante seus primeiros
meses de vida é uma questão de sobrevivência, determinada por características
biológicas, tudo o mais nessa relação é histórica e culturalmente determinado: o
tempo de duração dessa atenção, as pessoas mais indicadas para provê-la, o tipo de
43
(...) é verdade que a educação das crianças de 0 a 6 anos exige cuidados específicos,
decorrentes da sua dependência física em relação aos adultos; entretanto, se não só os
pequenos necessitam de cuidados, por que o cuidar se configuraria como
especificidade da educação infantil? (p.1)
educar não constituem ações necessariamente ‘positivas’. Côrrea (2003) chama a atenção para
o fato de que há variadas formas de cuidar e educar: “(...) com diálogo e afeto ou com
repressão e agressividade, por exemplo” (p.107). Esse aspecto nos remete às práticas de
Nesta direção, Duarte (1993) afirma que o processo educativo não é necessariamente
emancipatório e pode ter acento ‘negativo’, posto que pode contribuir para a reprodução e
de esclarecer como e para quê educar (e cuidar!) a criança pequena em contexto escolar.
Por fim, destacamos que esse movimento, embora ainda incipiente, de questionamento
ao binômio educar-cuidar, começa já a ser feito por seus próprios propositores, como
podemos verificar no trecho a seguir, de autoria de Cerisara (2004), em que a autora lança
Acreditamos ter demonstrado que a resposta à questão colocada pela autora sobre o
quanto esse objetivo fez avançar a compreensão do caráter educativo das instituições de
44
impossível cuidar de crianças sem educá-las; b) a noção de cuidado avança em direção à seara
ensino e em toda relação educativa. Parece-nos plausível afirmar, dessa forma, que postular o
nesse segmento de ensino. Concordamos com Martins (2005, p.10), para quem “(...) o
cuidado e a educação”.
o caráter escolar (ou não-escolar) da Educação Infantil vem sendo objeto de debate entre os
pesquisadores. Conforme aponta Kuhlmann Jr. (2005), uma “formulação que se tem adotado
escolarização, leitura escolar da educação infantil, práticas escolarizantes entre outras, têm
aparecido com freqüência na literatura da área nos últimos anos. Nesse contexto, toda e
pequenas aparece com forte acento pejorativo. O mesmo sentido pejorativo estende-se a
conceitos ou expressões relacionados ao assim chamado modelo escolar, tais como ensino,
aluno, professor, aula, conteúdo, currículo, entre outros. Trata-se, como procuraremos
sem valorizar as experiências infantis” (p.235, grifos nossos). Em artigo no qual relata os
Para Rocha (2001), em função das peculiaridades da criança nos primeiros anos de
vida, as instituições de educação infantil não devem ser instituições do tipo escolar. Assim, a
especificidade da educação infantil é afirmada por meio da negação de seu caráter escolar,
Nessa perspectiva, Rocha (2001) afirma que a escola, por um lado, e creches e pré-
Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental
o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola têm como
objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem
como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (p.70)
Brasileira de Educação (1998), afirma que o uso do termo ensino na educação infantil
Educação Infantil – a autora alerta que a caracterização da EI como nível de ensino poderia
Para essa autora, o fato de a Educação Infantil ter sido inserida nos sistemas de ensino
de fiscalização e submissão das creches e pré-escolas aos órgãos superiores: “do ponto de
vista da pressão para que o poder municipal assuma a fiscalização da educação infantil e que
(NASCIMENTO, 2005, p.112). Por outro lado, para Nascimento (2005) essa determinação
implica uma série de normatizações próprias à instituição escola, favorecendo uma indesejada
A criança, alvo do atendimento multifacetado que deveria ser capaz de dar conta das
questões afeitas ao cuidado e à educação, passa a ser vista como aluna mesmo que
tenha três meses de idade (p.107, grifo nosso).
A autora parece constatar com pesar o fato de que bebês de três meses sejam vistos
necessidades dessas crianças. Tal afirmação é coerente com a perspectiva de Rocha (2001),
que considera que a criança “nos primeiros anos de vida, antes de ingressar na escola
fundamental (...) ainda não é ‘aluno’, mas um sujeito – criança em constituição” (p.9, grifos
nossos).
forma o ato de ensinar, pois a educação infantil “faz parte da Educação Básica, mas não tem
como objetivo o ‘ensino’ e, sim, a ‘educação’ das crianças pequenas” (CERISARA, 2004,
da Pedagogia da Infância (ou Pedagogia da Educação Infantil), como Rocha (1999, 2001),
Cerisara (2004), Faria (1999), entre outros. Embora haja divergências no interior desse
próprio campo teórico, é possível afirmar em linhas gerais que para essa vertente: a) a creche
e a pré-escola não devem ser consideradas, tratadas ou organizadas como escolas; b) o ensino
de 6 anos não deve ser considerada ou tratada como aluno, pois isso representaria um
Infância:
educação infantil são definidas como mais ‘amplas’ que o processo de ensino-aprendizagem
(ROCHA, 1999), o qual é compreendido como processo que privilegiaria o aspecto cognitivo.
Tais relações abarcariam, além da dimensão cognitiva, as dimensões “(...) expressiva, lúdica,
criativa, afetiva, nutricional, médica, sexual” (idem, p.65). Em nota de rodapé, Rocha (1999)
esclarece que o termo educacional-pedagógico “(...) tem sido utilizado por Maria Lúcia
Machado para explicitar as diferentes dimensões desta relação no plano político, institucional
Cabe questionar se: na medida em que o ensino é definido como processo voltado
entre cognição e afeto já há muito tempo questionada pela ciência psicológica16? Afinal, o
ensino é negado pelas autoras quando se trata da Educação Infantil, mas assumido como
16
Vigotski (1996), já na década de 1930, afirmava que o afeto constitui um fator essencial do desenvolvimento psíquico em
todas as suas etapas, postulando que “(...) o afeto e o intelecto não são dois pólos reciprocamente excludentes, mas duas
funções psíquicas estreitamente vinculadas entre si e inseparáveis” (p.314).”
49
“(...) a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental o ensino nas diferentes
nomenclatura adequada para se referir ao profissional que atua junto à criança pequena nos
espaços de convívio coletivo torna-se objeto de debate, como pode ser verificado no parecer
reflete-se de alguma forma já nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
momento, afirma-se que educação infantil constitui um “momento e lugar de transição entre a
vida familiar e a Escola” (p.14) – donde se conclui que “ainda” não é escola... Em outro
momento, contudo, o documento “sugere” que, embora não devam antecipar rotinas e
não deixam de ser escolas. Optamos nesse caso pelo termo “sugere” em vista da cautela na
redação do documento para não empregar diretamente o termo escola, como pode ser visto a
seguir:
2004, p.5). Nesse contexto, assim como as noções de aluno e ensino, a própria adoção de um
infantil:
Para Faria (1999), a experiência dos Parques Infantis17 de Mário de Andrade, os quais
tinham como objetivos oficiais a educação moral, higiênica e estética, pode trazer inúmeras
contribuições para se pensar a organização das instituições de educação infantil nos dias de
autora, “para não reproduzir o modelo escolar, a ênfase do PI estava no aspecto lúdico, nas
brincadeiras, nos jogos tradicionais infantis” (p.68). Segundo Kuhlmann Jr. (2000), tais
parques tinham como marca de sua trajetória a recreação. Vejamos como é descrito por Faria
Por isso mesmo, uma das funções da instrutora era observar a criança e estudá-la
nos seus aspectos higiênico, psicológico e social (...) Além da pesquisa, da
observação e da divulgação do trabalho realizado (...), no PI as instrutoras também
deveriam brincar com as crianças, ensiná-las a brincar e preservar as brincadeiras
tradicionais (...) e não lhes perturbar ou ameaçar sua liberdade e espontaneidade
(...). A instrutora tinha muitas responsabilidades em relação à organização e à
manutenção do espaço físico (...), seu ‘instrumento de trabalho’. (p.68, grifo nosso)
próprias de instituições dessa natureza” (FARIA, 1999, p.65). Vejamos o que afirma Cerisara
(2004):
17
Os Parques Infantis (PIs) foram criados por Mário de Andrade, em 1935, quando ocupou o cargo de diretor do
Departamento de Cultura (DC) da prefeitura do município de São Paulo. O projeto dos PIs integrava uma série de programas
dirigidos ao operariado, sendo estas instituições destinadas especificamente a crianças de 3 a 12 anos. As crianças em idade
pré-escolar (3 a 6 anos) correspondiam a aproximadamente 30% da população atendida pelos três primeiros PIs (Parque Dom
Pedro, Lapa e Ipiranga). As crianças em idade escolar freqüentavam os parques em horário oposto ao da escola. Em 1937 foi
criado o Clube de Menores Operários, destinado a jovens trabalhadores de 12 a 21 anos, que funcionava nos Parques Infantis
das 18h às 22h (Faria, 1999). A expansão dos PIs foi refreada em 1940, com a gestão Prestes Maia (KUHLMANN Jr., 2000).
51
O que vem sendo realizado nas instituições de Educação Infantil precisa ser revisto e
reavaliado à luz da Pedagogia da Educação Infantil (ROCHA, 1999), no sentido da
construção de um trabalho junto às crianças de 0 a 6 anos, que, apesar de ser
formalmente estruturado, pretende garantir a elas viver plenamente a sua infância
sem imposição de práticas ritualísticas inflexíveis, tais como se cristalizam nas
rotinas domésticas, escolares ou hospitalares. (p.14-15, grifos nossos)
artigo de Faria (1999), no qual a autora discute a contribuição dos Parques Infantis para a
construção de uma Pedagogia da Infância. Neste artigo, Faria (1999) transcreve um trecho do
discurso de inauguração do Parque Infantil de Santo Amaro, proferido por Nicanor Miranda
em 1938 – quem, para a autora, “foi bastante feliz ao enfatizar o caráter complementar do PI
em relação à escola, criticando-a com as idéias do educador argentino Ernesto Nelson” (p.66):
A escola é o lugar onde a criança tem que ficar sentada, bem quietinha, quatro horas
por dia e nove meses por ano, absorvendo abstrações e sem a prática da
experimentação. Tudo se passa como se o interesse da criança gravitasse em torno
de livros, silêncio, passividade, inatividade. A escola é ainda individualista, na
época em que vivemos, não se propondo a ensinar cooperação, iniciativa,
autodireção ou a arte de fazer amigos e dirigir os outros. Violando as leis do
crescimento físico e psíquico, prepara homens sem iniciativa, sem vontade, sem
idéias. Forma pulmões e corações débeis, braços e pernas macilentos e debilitados,
gerando na criança uma anemia e uma constituição acanhada e incompleta (...) Ao
invés de respeitar o corpo e deixar a mente cuidar de si mesma, respeitamos a mente
e descuidamos do corpo. Ambas as atitudes são erradas, mas não podemos deixar de
reconhecer esta verdade tão simples: o físico serve de base ao mental e este último
não deve ser desenvolvido em prejuízo do primeiro. A escola não é, pois, o sistema
ideal de cultura infantil. Um outro sistema precisa, não diremos substituí-la, mas
completá-la. Um sistema que tome a criança como ela é, e a nossa complexa
civilização como ela é, harmonizando os dois fatos de uma maneira científica e ao
mesmo tempo humana. Este é o parque infantil’.
segmento, rompendo definitivamente os laços com a escola e com a figura do professor como
(...) essa caracterização também precisa ser adotada com muita cautela.
Primeiramente, porque admite, tacitamente, que a educação escolar no ensino
fundamental possa ser prejudicial à criança, demonstrando interesse e preocupação
apenas com relação aos menores de 7 anos. Em segundo, porque confunde a
educação infantil com instituições educacionais de outra natureza. Há quem tenha
afirmado, para se contrapor à formulação genérica de instituição educacional para a
creche e a pré-escola, que a família também o é. Ora, estamos querendo delimitar
uma instituição educacional coletiva, distinta da familiar. (...) Por que não
considerar que elas sejam um tipo de instituição escolar? (p.61, grifos nossos)
Kuhlmann Jr. aponta no trecho citado duas questões que consideramos de fundamental
criança, que sustenta a recusa veemente em identificar-se com o modelo escolar. A segunda
questão é o apagamento dos limites (ainda nem bem delimitados) entre escolas de educação
Nesse sentido, Kuhlmann Jr (2005) alerta para a incoerência que representa o fato de
Kuhlmann Jr. (2005) considera que uma instituição escolar é aquela que tem por
O pesquisador não deixa de realizar uma crítica a uma disciplina escolar arbitrária,
mas considera que o compromisso com o conhecimento é uma característica fundamental das
instituições escolares que deve ser preservado na Educação Infantil: “é de se esperar que
A autora, no entanto, vai além em sua análise, apresentando uma crítica contundente e
radical a essa perspectiva teórica. Arce (2004b) aponta as relações entre esse ideário e o
sobre o jardim-de-infância. Não se trata, portanto, de uma solução radicalmente nova para o
professor que não ensine, mas apenas acompanhe, oriente, estimule, partilhe, para a autora,
Em última instância, para Arce (2004b), o processo educativo junto à criança pequena
18
Essa relação começa a ser resgatada por alguns pesquisadores vinculados à perspectiva da Pedagogia da Infância. Assim,
no artigo de Pinazza (2005) intitulado Os pensamentos de Pestalozzi e Froebel nos primórdios da pré-escola oficial paulista:
das inspirações originais não-escolarizantes à concretização de práticas escolarizantes, podemos encontrar um elogio aos
ideais destes autores e a defesa da necessidade de sua retomada: “(...) na perspectiva de Froebel a educação da criança
pequena não pretendia ter um caráter de escolarização. Contudo, a forma como aconteceu a apropriação de suas idéias, tanto
no Brasil como em outras partes do mundo, fez com que o jardim-de-infância se aproximasse do modelo do ensino escolar e
tivesse sua prática reduzida aos dons e ocupações e, por conseguinte, distanciada dos princípios originalmente anunciados por
Froebel” (p.98-9).
54
educativo na própria formação dos desejos, interesses e necessidades da criança e, mais que
citados nestes artigos – todos eles formadores de profissionais de EI19. Referindo-se aos
brevemente, ter demonstrado que essa perspectiva teórica: a) contribui não para a
compreensão das especificidades do trabalho pedagógico junto à criança pequena, mas para a
19
Foram entrevistados cinco formadores, os quais, dentro do conjunto dos autores citados em mais de 25% dos artigos
analisados, concordaram em conceder a entrevista.
55
pequena por meio da negação do ato de ensinar; e d) contribui, assim, não para a melhoria da
formação do profissional deste segmento mas sugerindo implicitamente que uma sólida
formação teórica é menos importante para o professor de Educação Infantil, pois seu trabalho
Por fim, vale destacar que os argumentos anti-escolares são justificados por seus
etária atendida pela Educação Infantil. Neste sentido, Rocha (1999) afirma que “(...) as
fundamental, enquanto ainda não é ‘aluno’, mas um sujeito – criança em constituição (...)”
20
Reforçando, dessa forma, a crença disseminada no senso comum de que ser professor de educação infantil é,
conforme expressão de Duran (2006), ‘atividade laboral de menor importância’.
56
que essa questão merece investigações mais aprofundadas, que verifiquem em que medida há
suficiente clareza por parte dos pesquisadores que propagam o ideário anti-escolar na
justificam a negação do ensino como elemento fundante do trabalho pedagógico junto a essa
faixa etária.
nesse sentido, lidando com a criança como sujeito empírico, sem alcançar sua dimensão de
sujeito concreto. Para o autor, o indivíduo empírico é “(...) aquilo que cai sob o campo de
nossa percepção sensível; é o aparente, aquilo que aparece diante de nós. É, portanto, de certo
modo, uma abstração, pois nossa percepção sensível não alcança as múltiplas conexões e
aparentes e imediatas do sujeito. Compreender o indivíduo como sujeito concreto, por sua
vez, implica analisá-lo como síntese de múltiplas determinações, isto é, como síntese
(singular) das relações sociais próprias da sociedade em que vive, indo além, assim, pela via
Como indivíduo empírico, dessa forma, “(...) a criança se interessa por satisfações
2004, p.49). Pudemos verificar que esse é um aspecto que desperta grande preocupação nos
autores da Pedagogia da Infância, o que pode ser ilustrado pelo trecho a seguir de autoria de
Faria (2005). A autora enfatiza a importância de se garantir que nas instituições de educação
(...) dormir, acordar, tomar banho, molhar-se, secar-se, tomar sol, conviver com a
natureza, crescer, criar, brincar, conviver com diferentes adultos e crianças de várias
idades, ficar sozinhas, comer, movimentar-se das mais variadas formas, amar, ficar
brava, e manifestar os diferentes sentimentos e emoções (...) (p.76)
Não negamos a importância de que tais condições sejam garantidas à criança, mas,
consideramos fundamental nos perguntarmos: brincar... para quê? conviver com adultos e
57
múltiplas necessidades e garantir na instituição espaço para o lúdico, ou de que ela precisa ser
objeto de cuidados dos adultos, entre outras, são fundamentais, mas circunscrevem-se ainda
pequena do ponto de vista histórico e de classe social são exemplos de questões que se
Arce (2004), ao discutir como o papel da brincadeira vem sendo analisado pelos
empírico e meramente descritivo, não restringindo o brincar a uma atividade prazerosa para a
segmento, no que se refere ao plano pedagógico. Somos levados a concluir que as questões
colocadas para o segmento – ‘o que ensinar?’, ‘como ensinar?’, ‘ensinar para quê?’ –
O presente trabalho pretende contribuir nessa direção, pela via da compreensão das
filosóficos e teóricos dessa vertente da psicologia, bem como seus principais postulados, os
CAPÍTULO 2
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL:
ORIGENS E FUNDAMENTOS TEÓRICO-FILOSÓFICOS
60
CAPÍTULO 2
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL:
ORIGENS E FUNDAMENTOS TEÓRICO-FILOSÓFICOS
início do século XX na então União Soviética (URSS), tendo como principais representantes
Zaporojets, Galperin, entre outros. O conjunto de seus trabalhos tem sido também
Embora, conforme Duarte (2003), a denominação teoria da atividade tenha surgido mais
especificamente a partir dos trabalhos de Leontiev, “muitos autores acabaram por adotar essa
denominação também para se referirem aos trabalhos de Vigotski, Luria e outros integrantes
dessa escola da psicologia”. Lompscher (2006), por exemplo, adota o termo ‘teoria histórico-
cultural da atividade’, que engloba tanto os trabalhos de Vigotski, Luria e Leontiev quanto de
teórica.
garantida a perspectiva de unidade da corrente teórica, isto é, desde que esteja garantida a
marxista.21
cultural, compreendendo que tal contextualização nos revela a dimensão ética e política
subjacente ao projeto de construção de uma nova psicologia, situando a busca por uma
psicologia de base marxista no conjunto das demandas colocadas pela (e para a) sociedade
grupo de pesquisadores que ficou conhecido como a Escola de Vigotski, sua consolidação e
como expressão da busca por uma aplicação do método histórico-dialético aos fenômenos
cultura pela criança. Por fim, exploraremos as categorias de atividade e consciência, que são
humano e que estabelecem entre si uma relação de unidade dialética; destacamos que ambas
21
Essa ressalva se faz necessária tendo em vista as diversas tentativas de se afastar ou separar a obra de Vigotski da obra de
Leontiev e de outros autores da escola da psicologia soviética, neutralizando o caráter marxista de sua produção, conforme
analisado por Duarte (2001).
62
tratamento abstrato que vem sendo dado à produção teórica desse autor no ocidente e afirma a
necessidade de se compreender sua obra à luz da história, como produto das lutas travadas na
União Soviética (URSS) desde a Revolução Russa até a década de 1930, ou seja, como um
constituía uma “(...) minúscula minoria, mesmo que estrategicamente localizada” (TULESKI,
2002, p.47); o campesinato, liberto dos laços servis, vivia sob condições extremamente
para o país. Assim, a Revolução de 1917 congregara interesses divergentes: “(...) o proletariado
Hobsbawm, a autora afirma que a união entre campesinato e operariado ocorreu pela
reivindicação comum que era o fim da guerra – “mas, sob esta reivindicação coletiva, o que
buscavam os pobres da cidade era pão, os operários melhores salários e menos horas de trabalho
A Revolução Russa, portanto, para Germer (s/d), não pode ser compreendida apenas a
partir de uma contradição interna entre as forças produtivas (FP) e as relações de produção (RP)
daquele país. Cientes do pequeno e lento desenvolvimento das forças produtivas na Rússia, a
expectativa de Lênin e demais líderes da Revolução era que essa se expandisse a todos os países
63
estimulando a revolução em outros países” (TULESKI, 2002, p.52). Afirma Germer (s/d) em
relação à URSS:
Revolução Russa acabou por combinar elementos de uma revolução burguesa com elementos
conforme Tuleski (2002), a luta de classes não desaparecera com a abolição da propriedade
(...) a luta de classes permanecia porque a relação burguesa de produzir não fora
inteiramente ‘abolida’. Em cada unidade de produção os produtores inseriam-se no
mesmo tipo de divisão do trabalho, mantendo-se a separação entre trabalho intelectual
e manual, entre tarefas diretivas e executivas. (...) Pode-se dizer que as relações
capitalistas foram apenas parcialmente transformadas, uma vez que as formas sob as
quais estas se manifestavam continuavam a reproduzir-se, como: a moeda, o preço, o
salário, o lucro, etc. Tais formas não podiam ser abolidas por decreto (p.53-4).
De acordo com Germer (s/d), embora se tenha abolido a forma jurídica capitalista da
russa.
não parece procedente, uma vez que não havia outras FP disponíveis, e forças
produtivas socialistas não poderiam ser imediatamente construídas (...) (p.23)
relações burguesas de produção, para Tuleski (2002), está intrinsecamente ligada à luta de
industrialização intensa e abrangente; além disso, tal contradição imprimia ora características
conviver com relações de produção que desejavam ver destruídas” (TULESKI, 2002, p.130).
vinham se desenhando havia alguns anos, encontraram nesses momentos a atmosfera propícia
para seu desenvolvimento” (SHUARE, 1990, p.24)22; esse mesmo processo se observou na
conforme Golder (2004), a década de 1920 ficou conhecida como a “década de ouro”: um
22
As traduções para o português de trechos retirados de textos em espanhol são de responsabilidade da autora.
65
sociais e a possibilidade de sua aplicação prática são preocupações que aparecem com grande
força: “é nessa vinculação da psicologia com a prática humana que Vygotski encontra o
culturais, mas também uma época de “(...) de extrema recessão, escassez de alimentos,
choques entre grupos antagônicos e, sobretudo, de ameaça ao projeto coletivo, aos objetivos
da própria Revolução e ao ideal da nova sociedade” (TULESKI, 2002, p.123). Por outro lado,
industrialização e à melhoria do nível cultural da população, embora tais avanços tenham sido
interior da URSS foi uma das características fundamentais desse período. A partir de 1928,
produzir subjetividades burguesas. Uma das expressões dessa contradição, para a autora, é a
Quando ele [Vigotski] se refere à ‘velha psicologia’ como psicologia burguesa, está
referindo-se à psicologia que reflete e referenda as relações burguesas, isto é, que
66
explica o homem burguês, seus sentimentos, seu funcionamento mental e sua ação
no mundo. Quando se coloca na luta com o objetivo de superar a psicologia
burguesa, posiciona-se no sentido de mostrar a necessidade de superação das
relações burguesas no interior da sociedade, as quais dão base material a esta
psicologia. A construção da sociedade comunista e, conseqüentemente, do homem
comunista, necessitaria de uma nova psicologia que fosse capaz de explicar o
funcionamento mental deste novo homem. (p.78)
original). Para o autor, essa transformação da personalidade do homem tem três raízes
da vida social, que permite a liberação do homem; a segunda é o enorme potencial positivo da
indústria de grande escala que, liberta das ‘velhas correntes’, converte-se em poderosa força
(...) a terceira fonte que inicia a alteração de homem é mudança nas próprias
relações sociais entre as pessoas. Se as relações entre pessoas sofrem uma mudança,
então junto com elas as idéias, padrões de comportamento, exigências e gostos
também mudarão. Como foi averiguado por pesquisa psicológica a personalidade
humana é formada basicamente pela influência das relações sociais, i.e., o sistema
do qual o indivíduo é apenas uma parte desde a infância mais tenra. ‘Minha relação
para com meu ambiente’, diz Marx, ‘é minha consciência’. Uma mudança
fundamental do sistema global destas relações, das quais o homem é uma parte,
também conduzirá inevitavelmente a uma mudança de consciência, uma mudança
completa no comportamento do homem (idem).
Nesse sentido, para o autor, a educação assumiria enorme importância nesse processo
plenamente, por seu momento e por seu sentido, com o auge revolucionário em todas as
67
ciências na URSS.
reunindo pesquisadores de todo o país. Conforme Luria (2001), tratava-se do mais importante
fórum de debates para os cientistas que trabalhavam na área geral da psicologia – sob a
fez sua primeira aparição pública no cenário da grande ciência psicológica” (SHUARE, 1990,
p.54), despertando grande admiração entre os ouvintes – o que resultou em um convite para
trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou. Foi nesse ano que Vigotski,
Ficou decidido que Vigotski deveria ser convidado para se juntar ao jovem corpo de
assistentes do novo e reorganizado Instituto de Psicologia de Moscou. No outono
daquele ano, Vigotski chegou ao Instituto, e nós iniciamos uma colaboração que
continuou até sua morte, uma década mais tarde. (...) Reconhecendo as habilidades
pouco comuns de Vigotski, Leontiev e eu ficamos encantados quando se tornou
possível incluí-lo em nosso grupo de trabalho, que chamávamos de ‘troika’.
(LURIA, 2001, p.22)
psicologia: “não resta dúvida alguma de que a condução teórica do grupo era, nessa época, de
Vigotski (...)” (GOLDER, 2004, p.22). Luria e Leontiev “(...) foram os primeiros discípulos
23
A data de 10 a 15 de janeiro 1923 é indicada por Shuare (1990); Golder (2004), no entanto, afirma que o I Congresso de
Psiconeurologia teria acontecido em 1922.
68
consolidação desse grupo, sendo que a primeira ampliação da “tróika”, somada à posterior
projeção da teoria já traçada naquele qüinqüênio” (p.22, grifo nosso). Ainda segundo Golder
Por volta de 1930, de acordo com Shuare (1990), com a ascensão e consolidação do
da cultura em geral e também no campo da ciência – para a autora, é possível se falar em uma
“deformação da ciência nas mãos da ideologia” (p.86). A filosofia stalinista, que se tornara
contexto, a Escola de Vigotski será alvo de duras críticas, acusada de produzir uma teoria
contrária aos princípios do marxismo. Segundo Shuare (1990), as críticas então dirigidas à
2004). Lá, o autor coordena um grupo do qual participavam Bojovich, Zaporojets, Galperin e
atividades em Leningrado, onde aprofundou seu vínculo com Elkonin, que era oriundo dessa
cidade (GOLDER, 2004, p.23). As críticas e retaliações sofridas por Vigotski culminaram
com a proibição de suas obras a partir de 1936, dois anos após sua morte 1934.
Algumas das obras de Vigotski só voltariam a ser publicadas na Rússia mais de vinte
anos após sua proibição (SHUARE, 1990). Após prematura morte de Vigotski em 1934,
Elkonin estabeleceu uma relação bastante próxima com Leontiev, como ele mesmo relata no
Segunda Guerra Mundial (ELKONIN, 2004) e Leontiev assumido tarefas de defesa da cidade
Estatal de Moscou e publicou mais de 100 trabalhos científicos, sendo que suas produções
Não só investigou, de fato, todas as áreas da ciência psicológica, mas foi também o
fundador de um enfoque específico – a teoria psicológica geral da atividade – capaz
de ser o marco teórico geral para o estudo de todos os processos psíquicos em
qualquer plano em que os investigue (do ponto de vista filogenético, ontogenético,
etc). (p.121).
marcadamente de outros sistemas científicos pela relação que estabelece com a filosofia.
qual, em sua análise, conforme Tuleski (2002), não passava de “(...) uma colcha de retalhos de
que não se trata de buscar nos ícones do marxismo a “solução” do problema da psique, mas
sim o método para construir uma ciência que permita investigar o psiquismo humano: “(...) o
que desejo é apreender na globalidade do método de Marx, como se constrói a ciência, como
defende que o método e o objeto de investigação mantêm uma relação muito estreita, na
medida em que o método deve ser adequado ao objeto que se estuda. Nesse sentido, o estudo
dos processos psíquicos superiores especificamente humanos, que constituíam por excelência
método de investigação próprio. As bases desse método de investigação seriam buscadas nos
análise de Duarte (2000). O autor demonstra que, assim como Marx, Vigotski considerava
que a apreensão da realidade pelo pensamento não se realiza de forma imediata, pelo contato
direto com a aparência dos fenômenos, mas implica a mediação de abstrações teóricas: trata-
psicologia, considerando que esta “(...) toma o fenômeno tal como aparece externamente e
supõe com toda a ingenuidade que o aspecto exterior ou a aparência do objeto coincide o nexo
real, dinâmico-causal que constitui sua base”. (p.103). Apoiando-se na máxima de Marx24, o
Para além de uma análise descritiva, portanto, Vygotski (1995) defende uma análise
24
“(...) toda ciência seria supérflua se a forma de aparecimento e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX,
1983, p.271).
72
A adoção deste pressuposto pelo autor pode ser constatada, por exemplo, em seus
(1996) afirma que os fundamentos de tal periodização não devem ser buscados nos sintomas
ou indícios externos, como em geral procedem os pesquisadores, mas nas mudanças internas
análise psicológica das etapas do desenvolvimento psíquico consiste, para ele, em “(...) em
investigar o que se oculta por trás dos sintomas, aquilo que os condiciona, isto é, o próprio
processo de desenvolvimento infantil com suas leis internas25” (VYGOTSKI, 1996, p.253).
Duarte (2000) demonstra ainda a adoção de outros dois princípios do método dialético
daquilo que ele chamava de ‘método inverso’, isto é, o estudo da essência de determinado
fenômeno através da análise da forma mais desenvolvida alcançada por tal fenômeno”
(DUARTE, 2000, p.84). Segundo Duarte (2000), Vigotski pressupunha que o estudo das
formas mais desenvolvidas “(...) revelaria aspectos válidos também para formas menos
Este novo enfoque nos mostra que a realidade determina nossa experiência; que a
realidade determina o objeto da ciência e seu método e que é totalmente impossível
estudar os conceitos de qualquer ciência prescindindo das realidades representadas
por esses conceitos. F.Engels assinala repetidas vezes que para a lógica dialética a
metodologia da ciência é o reflexo da metodologia da realidade (p.289).
25
Cumpre ressaltar que o caráter interno desse processo não remete a um caráter biológico: “(...) o desenvolvimento interno
se produz sempre como uma unidade de elementos pessoais e ambientais, ou seja, cada avanço no desenvolvimento está
diretamente determinado pela etapa anterior, por tudo aquilo que surgiu e se formou na etapa anterior” (VYGOTSKI, 1996,
p.385).
73
ressaltar que tal postulado não se refere a uma cópia passiva e idêntica da realidade na
imagem psíquica dos indivíduos, mas considera que “(...) os resultados do conhecimento
exemplo, Vygotski (1996) defende que esse processo caracteriza-se pela alternância de
certo limite e se manifestam mais tarde como uma repentina formação qualitativamente nova;
Trata-se de uma perspectiva coerente com o método dialético, o qual, conforme Prado
totalidade – ou da relação dialética entre a parte e o todo. Conforme Kosik (1976), para o
método dialético:
análise atomística que decompõe os processos psíquicos em elementos que são estudados
isoladamente:
p.99-100). Desse modo, a ‘nova psicologia’ deveria constituir-se como uma psicologia de
único e possui uma determinada estrutura, que vai-se modificando em cada estágio desse
processo. Assim, os processos parciais não podem ser compreendidos em si, pois seu papel e
peso específico são determinados pelo todo, pela estrutura psicológica que caracteriza cada
substituição da análise de objetos pela análise dos processos. A análise não deve enfocar as
psíquicos não devem ser compreendidos como formas estáveis e sólidas, isto é, como objetos
– embora possam, à primeira vista, aparecer dessa forma. É o caso do que Vygotski (1995)
sua formação – tornando-se uma espécie de fóssil psicológico. Faz-se necessário converter o
Em Pensamento e Linguagem26, uma das últimas e talvez sua principal obra, Vigotski
Para o autor, portanto, a análise psicológica deve identificar aquelas unidades que
característica da unidade não está presente nos elementos, os quais, uma vez decompostos,
26
A edição que apresenta a tradução do texto integral em russo para o português, publicada pela Editora Martins Fontes no
ano de 2001, recebeu o controverso título de A construção do pensamento e da linguagem. Para Duarte (1996), a inserção do
termo construção no título, além de não ajudar a esclarecer que se trata da edição integral da obra Pensamento e Linguagem
(diferenciando-a da versão resumida publicada por esta editora), pode sugerir, de forma deliberada ou não, uma associação
entre a teoria vigotskiana e o Construtivismo.
76
campo do pensamento, e constitui, para Vigotski (2001, p.407), uma unidade indecomponível
– o “(...) elemento central e fundamental que faz da palavra palavra e sem o qual a palavra
psicologia. Ele estabeleceu as bases para a construção de um novo sistema para a psicologia,
passos, os passos mais difíceis na nova orientação, deixando para os futuros investigadores
unidade na obra de Vigotski. Seu objetivo principal, na análise de Elkonin (1996), era
consciência.
humana só pode ser compreendida como história da conduta – esta é, para Vigotski, a
verdadeira concepção dialética em psicologia. Nesse sentido, Shuare (1990) considera que a
soviética.
(...) só seria possível com a elaboração de uma ‘nova psicologia’ que tratasse a
relação homem e natureza de uma perspectiva histórica, na qual o homem fosse
produto e produtor de si e da própria natureza. (...) Significaria abandonar as
relações mecânicas, empíricas e simples entre os fenômenos, para compreender o
homem como um ser complexo e dinâmico, cujas relações estabelecidas com o meio
determinam sua forma de ser e agir (p.65, grifo nosso).
Nas palavras de Shuare (1990), Vigotski teria introduzido a psique no tempo histórico.
os fenômenos psíquicos, a psique humana, sendo sociais por sua origem, não são
dados de uma vez para sempre; existe um desenvolvimento histórico desses
fenômenos, uma relação de dependência essencial dos mesmos em relação à vida e à
atividade social. (...) a história da psique humana é a história social de sua
constituição. (...) Assim como a psique não é algo imutável e invariável no curso do
desenvolvimento histórico da sociedade, não é tampouco no curso do
desenvolvimento individual; as transformações que ela sofre são tanto estruturais
quanto funcionais (SHUARE, 1990, p.61, grifo no original)
diversas vertentes da psicologia vigentes em sua época, nas quais se supunha como
criança européia de família culta dos dias de hoje e uma criança de alguma tribo primitiva,
(...) da criança da Idade da Pedra, da Idade Média ou do século XX (...)” (p.22). Na análise do
27
Tal concepção é compartilhada por Tuleski (2002).
78
nesse meio.
psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais, transferidas para dentro e que se
tornaram funções da personalidade e formas da sua estrutura” (VIGOTSKI, 2000, p.27, grifo
histórica dialética, compreende a sociedade não como algo externo ao indivíduo ou como uma
força estranha à qual o indivíduo deve adaptar-se, mas como aquilo que cria o próprio ser
A compreensão das relações entre homem e sociedade, para Duarte (1993), remete ao
indivíduos.
apropriação e objetivação. A diferença dos animais, conforme Marx e Engels, o homem não
(MARKUS, 1978). O trabalho pode ser definido como a atividade humana em que o homem
modifica a natureza para produzir os meios de satisfação de suas necessidades: “um processo
entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media (sic),
28
Nas Teses sobre Feuerbach, Marx (1982) afirma que a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo,
mas o conjunto das relações sociais.
79
regula e controla seu metabolismo com a Natureza” (MARX, 1983, p.149). Nesse processo,
incorporar a matéria natural a sua atividade produtiva. Conforme Marx (1983), no processo
de trabalho o homem
(...) se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em
movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas,
cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua
própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e
ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (p.149, grifo
nosso).
O homem precisa, por meio de sua atividade, apropriar-se da realidade natural, para
que possa transformar objetos naturais em instrumentos da prática social. Duarte (2001)
ilustra esse processo de apropriação da matéria natural pelo homem em sua atividade
Na medida em que o homem passa a apropriar-se não mais apenas da matéria natural,
mas da matéria transformada pelo próprio homem, o processo de objetivação pode ser
processo que tem por resultado a reprodução pelo indivíduo de caracteres, faculdades e
característica apontada pelo autor é que se trata de um processo ativo do ponto de vista do
como resultado de uma atividade efetiva do indivíduo em relação aos objetos culturais. A
apropriação, portanto, não significa uma reprodução passiva no indivíduo das aquisições
em sua atividade as operações motoras que estão nele incorporadas, o que exige desse
29
A análise da dialética entre objetivação e apropriação não pode prescindir da análise da relação entre humanização e
alienação. Conforme Duarte (1993), “se essa relação [entre objetivação e apropriação] gera aquilo que caracteriza a
especificidade do gênero humano frente aos animais, por outro lado, à medida em que ela se realize sob relações sociais de
dominação, ela se torna, ao mesmo tempo que humanizadora, também alienadora, isto é, se torna a base tanto para os
processos de humanização quanto os de alienação” (p.70). Assim, cumpre ressaltar que na sociedade capitalista, a
apropriação dos objetos da cultura pelos homens se dá pela mediação (alienante) da propriedade privada.
30
Corroboramos a interpretação de Duarte (2001) de que a atividade que reproduza os traços essenciais da atividade
encarnada no objeto, a que se refere Leontiev no trecho citado, não necessariamente remete à atividade de produção desse
objeto, mas muitas vezes de sua utilização.
81
indivíduo novas aptidões, novas funções psíquicas. Na análise de Duarte (1993, p.35), “o que
especificamente humanas não se transmitem pela via da hereditariedade, pois não podem
fixar-se morfologicamente; tais funções e aptidões fixam-se sob uma forma objetiva, exterior
aos indivíduos, nos produtos da atividade humana – por meio do processo de objetivação.
Assim, quando nos referimos às chamadas aquisições históricas do gênero humano, estão
incluídas nesse conceito funções e aptidões psíquicas, de modo que o processo de apropriação
procedimentos de sua conduta, transforma suas inclinações naturais e cria novas formas de
forma por si mesma na criança, pelo contato direto, imediato ou espontâneo com os objetos
os procedimentos socialmente elaborados de ação com os objetos não estão postos de forma
imediata em tais objetos, mas exigem um processo peculiar de apropriação por parte da
criança, no qual o adulto aparece à criança como portador de tais procedimentos sociais de
ação.
Tal princípio é ilustrado por Leontiev (1978) em uma referência à obra de H. Piéron31,
na qual se descreve uma situação fictícia em que o planeta é vítima de uma catástrofe na qual
pereceria toda a população adulta e seriam poupadas apenas as crianças menores. Nas
palavras de Leontiev (1978, p.272), “(...) isso não significaria o fim do gênero humano, mas
(...) a história da humanidade teria de recomeçar”, na medida em que não existiria ninguém
capaz de revelar às novas gerações o uso dos ‘tesouros da cultura’. A comunicação entre
31
A obra citada por Leontiev (1978) é: PIÉRON, H. De l´actinie à l´Homme. t.II, Paris, 1959.
83
da qual parte esta pesquisa – a idéia de que a Psicologia Histórico-Cultural sustenta a defesa
conduzir a uma interpretação equivocada da análise teórica desenvolvida pelo autor. Isso pode
ser constatado, por exemplo, na afirmação de Mello (1999) reproduzida a seguir, na qual a
(...) a aprendizagem resulta sempre de um processo ativo por parte do sujeito, que
deve desenvolver em relação ao objeto a ser apropriado uma atividade que
reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade para a qual o objeto foi
criado. Em outras palavras, as crianças aprendem por sua própria atividade,
imitando o adulto e procurando fazer sozinhas aquilo que vão testemunhando em
seu meio, fazendo sozinhas aquilo que aprendem a fazer com os outros (MELLO,
1999, p.21, grifo nosso)
Em nosso ponto de vista, a conclusão inferida pela autora de que a criança aprende por
sua própria atividade, fazendo sozinha o que testemunha em seu meio, não corresponde à
questiona:
Mas pode-se supor que esta atividade adequada apareça no homem, na criança, sob a
influência dos próprios objetos e fenômenos? A falsidade de uma tal suposição é
evidente. A criança não está de modo algum sozinha em face do mundo que a
rodeia. As suas relações com o mundo têm sempre por intermediário a relação do
homem aos outros seres humanos. (p.271).
educação da criança pequena. A afirmação de que a criança aprende sozinha, por sua própria
mediação do adulto nesse processo, que, em nossa avaliação, não é coerente com a análise
A imitação dos atos do meio como forma de educação não é descartada por Leontiev
(1978). O autor situa-a como forma dominante nas primeiras etapas do desenvolvimento da
direcionador do meio nesse processo. Para ele, a educação “(...) nas crianças mais pequenas, é
uma simples imitação dos atos do meio, que se opera sob o seu controle e com a sua
Na continuidade da análise acerca das diversas formas que pode assumir a educação,
Leontiev (1978) afirma que ela “(...) depois complica-se e especializa-se, tomando formas tais
formação autodidata” (p.272). Chama-nos a atenção o fato de que autor diferencia as formas
com uma precisão conceitual, coloca-se, com isso, a possibilidade de que o autor não
compreenda o ensino como uma forma de educação voltada à criança pequena, o que iria na
No entanto, Leontiev (1978) apresenta, em seguida, algo que considera comum a todos
Mas o ponto principal que deve ser bem sublinhado é que este processo [de
educação] deve sempre ocorrer sem o que a transmissão dos resultados do
desenvolvimento sócio-histórico da humanidade nas gerações seguintes seria
impossível, e impossível, consequentemente, a continuidade do progresso histórico.
(...) O movimento da história só é, portanto, possível, com a transmissão às novas
gerações, das aquisições da cultura humana, isto é, com educação (p.273, grifo
nosso).
85
pertinente concluir que, na perspectiva do autor, não é possível se pensar o papel do educador
como alguém que apenas estimula e acompanha a criança em seu desenvolvimento, mas como
primeiros elementos para a reflexão sobre o ensino na educação infantil: por um lado, a defesa
pela criança; por outro, a possibilidade de a forma específica do ensino não ser adotada pelo
autor na reflexão sobre a educação da criança pequena. Trata-se ainda de proposições do autor
meio da atividade dos indivíduos. Os homens transformam a natureza e a cultura por meio da
entre indivíduo e sociedade vigente na “velha psicologia”. Nesse sentido, a vertente histórico-
(...) esforços persistentes dos positivistas para opor o indivíduo à sociedade. O seu
ponto de vista [dos positivistas] é que a sociedade fornece apenas um meio externo a
que o homem se tem de adaptar a fim de sobreviver, tal como o animal se tem de
adaptar ao seu ambiente natural. (...) Mas o ponto principal é ignorado, que na
sociedade o homem encontra não só as suas condições externas às quais ele deve
adaptar a sua atividade, mas também que essas mesmas condições sociais
comportam em si próprias os motivos e objetos da sua atividade, os modos e os
meios da sua realização; numa palavra, que a sociedade produz a atividade humana.
Isto não quer dizer, sem dúvida, que a atividade do indivíduo se limite a copiar e
personificar as relações da sociedade com a sua cultura. Há ligações cruzadas muito
complexas que excluem qualquer redução estrita de uma à outra. (LEONTIEV,
1980, p.52)
86
atividade prática da criança. Leontiev (2001a) afirmará que “ao estudar o desenvolvimento da
criança, como ela é constituída nas condições concretas de vida” (p.63. grifo nosso). Tendo
em vista tais proposições dos autores, dedicaremos o próximo item à análise e discussão da
categoria atividade.
Para Leontiev (1978), a atividade constitui um elo prático que liga o sujeito ao mundo
atividade que visa a produção dos meios de satisfação das necessidades, é a atividade humana
Marx (1982), nas onze teses sobre Feuerbach, apresenta uma crítica ao materialismo
mecaniscista então vigente, apontando suas insuficiências. O autor atribui enorme relevância à
categoria de práxis humana, à qual se remete em diversas das teses. Para o autor, Feuerbach
apreende a realidade humana como objeto do conhecimento sensível do homem, mas “(...) não
toma o mundo sensível como atividade humana sensível prática”. Na análise de Leontiev
87
conhecimento da atividade sensorial prática e das relações práticas vitais do homem com o
mundo que o rodeia, ou seja, compreendiam o conhecimento como resultado da influência dos
objetos sobre os órgãos dos sentidos do sujeito e não como produto do desenvolvimento de
principal insuficiência de seu materialismo. Não basta, para Marx, afirmar que os homens são
precisamente pelos próprios homens. Assim, o filósofo postula a atividade prática humana
como a base do conhecimento humano, “(...) como o processo em cujo curso surgem as
que, além disso, possui o critério da adequação e da veracidade dos conhecimentos (...)”
determinada pelo ser, e não o contrário: “(...) a consciência do homem se determina sempre
88
em última instância por sua forma de viver, ou seja, por sua vida real nas condições históricas
Isso não significa, contudo – conforme Leontiev (1978) – tomar a consciência como
condição necessária da vida” (p.133). Para Shuare (1990), a psicologia soviética fundamenta-
Afirmar a unidade dialética entre consciência e atividade, para Martins (2001), implica
da consciência, e esta por sua vez a regula: “trata-se de firmar a impossibilidade da separação
de seu psiquismo, que adquire particularidades diversas segundo as condições sociais da vida
consciência depende do modo de vida do homem: “isso significa estudar como a estrutura da
p.92). Fica evidente, nesse sentido, que a consciência não é tomada como um fenômeno
A atividade, assim, não pode ser desvinculada da vida social. A atividade humana
atividade de qualquer indivíduo depende do lugar que este ocupa na sociedade e de suas
comércio material dos homens” (p.25). Apoiado nesses autores, Leontiev (1978) afirma que a
reprodução material da vida dos homens. Nesse sentido, as condições gerais que tornam
trabalho, na qual a relação do homem com a natureza é mediatizada por suas relações com os
outros homens.
divisão fortuita e instável, certos indivíduos passam a ter funções de produção fixadas
indivíduos diferentes: numa caçada (atividade), por exemplo, um afugenta a presa na direção
animal só por si não incita naturalmente [o indivíduo] a assustá-lo” (LEONTIEV, 1978, p.80)
– mas adquire sentido no interior da atividade coletiva, graças às ações dos outros indivíduos.
Assim, a ação do indivíduo que afugenta a presa numa determinada direção só se torna
possível e ganha sentido na relação com a ação dos outros que a espreitam para abatê-la: “(...)
condições do trabalho coletivo” (idem, p.79). Dessa forma, para Leontiev (1978), a
(...) ação só é possível desde que reflita as ligações que existem entre o resultado que
ele goza antecipadamente da ação que realiza pessoalmente e o resultado final do
processo de caçada completa, isto é, o ataque do animal em fuga, a sua matança, e
por fim o seu consumo (p.79)
determinada direção) e das relações entre esse resultado intermediário e a atividade como um
todo (que visa suprir a necessidade de alimentação do coletivo). Dessa forma, a ação do
indivíduo passa a estar orientada a um fim consciente, que ganha sentido no processo global
que responde a uma necessidade da coletividade: “(...) o homem torna-se consciente das ações
dos outros homens e, através deles, das suas próprias ações” (LEONTIEV, 1980, p.62).
Assim, conforme exemplo apresentado por Leontiev (1978), a ação de atirar requer inúmeras
como ações. Isso pode ser facilmente visualizado na aprendizagem de uma nova habilidade:
para o aprendiz de tiro ao alvo, colocar-se na posição correta é a princípio um fim consciente.
Tendo dominado esta ação, seu resultado se torna meio de execução de outra: segurar e
apontar a arma, cujo resultado, por sua vez, se tornará meio de execução da ação de puxar o
operações – meras condições para a ação de acertar o alvo – todas elas subordinadas a esse
dos instrumentos mais primitivos, os utensílios complexos não podem mais resultar de uma
simples adaptação dos objetos naturais às condições da ação de trabalho – sua produção exige
Segundo Leontiev (1982), “(...) a atividade não é uma reação, nem tampouco um
conjunto de relações, mas um sistema que possui uma estrutura, passagens internas e
Como visto, a atividade do homem está dirigida a satisfazer suas necessidades. Toda e
atividade humana é que ela tem um objeto: “a principal coisa que distingue uma atividade de
outra reside na diferença entre os seus objetos. É o objeto da atividade que lhe confere uma
da atividade é o seu motivo real32. O motivo da atividade refere-se àquilo que incita o sujeito a
agir – é o gerador da atividade. Denomina-se motivo “(...) aquilo que, refletindo-se no cérebro
do homem, excita a atuar e dirige esta atuação a satisfazer uma necessidade determinada”
(LEONTIEV, 1960b, p.346). O motivo pode ou não ser reconhecido pelo sujeito que age –
independentemente da detecção pelo sujeito, o motivo comanda sua atividade. De acordo com
Leontiev (1980), o motivo de determinada atividade pode estar oculto, mas não há atividade
sem motivo.
32
O autor alerta contra a adoção de uma compreensão rígida do motivo como o objeto material ou ideal, mas não discute
efetivamente a questão – apenas menciona em nota de rodapé: “Tal compreensão rígida do motivo como o objeto (material
ou ideal) que estimula e dirige a ação até si, se distingue da [compreensão] corrente; mas este não é o lugar para entrar em
polêmicas sobre esta questão” (LEONTIEV, 1982, p.83).
93
outras palavras, a atividade humana existe como ação ou como cadeia de ações. Vale ressaltar
que a atividade não é um processo aditivo, ou seja, as ações não são elementos separados ou
incluídos na atividade. Leontiev (1982) define atividade como uma “(...) unidade molar não
aditiva da vida real do sujeito corporal e material” (p.66, grifo nosso). De acordo com o autor,
a ação pode ser compreendida como “(...) o processo que corresponde à noção de resultado
que deve ser alcançado, isto é, o processo que obedece a um fim consciente” (LEONTIEV,
1980, p.55). Os fins referem-se, portanto, ao resultado imediato e parcial para o qual se
voltam cada uma das ações que compõem a atividade e obedecem ao motivo pelo qual foram
estipulados. Para Leontiev (1980), pode-se considerar que o motivo está para a atividade
Martins (2001), da mesma forma que a análise da atividade implica a análise das ações, as
ações não podem ser analisadas em separado das operações. Para a autora, as operações
processos operacionais são condicionados pelas condições objetivas postas aos indivíduos
humana, segundo Leontiev (1978; 1980): o motivo; as ações e seus fins; e as operações. Cabe
ressaltar que as relações entre os componentes da atividade não é estática: “(...) a atividade é
atividade humana aquilo que era condição converte-se em resultado: a atividade produz novas
A atividade humana é mediada pela consciência: “em um sentido mais estreito, isto é,
em nível psicológico, esta unidade da vida [atividade] se vê mediada pelo reflexo psíquico,
cuja função real consiste em que este orienta o sujeito no mundo dos objetos” (LEONTIEV,
1982, p.66). O reflexo psíquico consciente regula e canaliza a atividade do sujeito, tanto a
A consciência é, para Leontiev (1960a), uma forma específica de reflexo mental, isto
é, uma forma qualitativamente nova de refletir a realidade objetiva. Não se trata, portanto, de
divisão técnica do trabalho, que implica a decomposição da atividade em ações, engendra uma
relação mediatizada e indireta entre o que o sujeito faz e o motivo que o leva a agir. Conforme
Duarte (2004, p.54), “essa relação mediatizada e indireta entre a ação e o motivo da atividade
como um todo precisa ser devidamente traduzida no âmbito subjetivo, ou seja, na consciência
dos indivíduos”.
dividir funções e transmitir uns aos outros as experiências adquiridas cria a necessidade da
humana” (p.80). Isso não significa, contudo, que a linguagem engendra a consciência, mas
De acordo com Leontiev (1978), a base para a consciência humana é dada pelo
real. O conteúdo sensível é uma forma universal de reflexo mental gerada pela atividade
objetiva dos indivíduos, que forma a composição sensorial da imagem especifica da realidade.
Ele constitui “(...) o tecido material da consciência que cria a riqueza e as cores do reflexo
96
Muito embora constitua sua base e condição, o conteúdo sensível não exprime toda a
de refletir psiquicamente a realidade consiste em que este reflexo se efetua por meio da
verbal, de modo que o homem não apenas recebe impressões dos objetos e fenômenos que o
imediata recebida do objeto se relaciona com uma generalização verbal elaborada pela
indivíduo. Salientamos que os significados têm existência objetiva e não perdem sua natureza
33
Isso não elimina, para Leontiev (1960), as formas inconscientes de reflexo da realidade: “ainda que o reflexo consciente
seja a forma principal e mais desenvolvida de reflexo da realidade no homem, não é, sem dúvida, a única que existe nele”
(p.86)
97
assimilação das representações, dos conceitos e dos pontos de vista elaborados pela
sociedade” (p.89). Não obstante, para o autor, não se pode supor que os significados
apropriados pelos indivíduos sejam apenas projeções mais ou menos completas dos
mundo não surge nele [no indivíduo] como resultado da projeção direta sobre seu cérebro de
“(...) na atenção seletiva, no colorido emocional das idéias, na dependência dos processos
cognitivos das necessidades e inclinações” (LEONTIEV, 1980, p.69). Não há, conforme
adquirem novas qualidades sistêmicas, na medida em que passam a integrar um novo sistema
de relações. É preciso, dessa forma, analisar o significado em relação com outro elemento
98
formativo da consciência: o sentido pessoal. Para Leontiev (1978), a relação entre significado
independentemente das suas relações com a sua vida, com as suas necessidades e motivos”
fenômeno tem para o indivíduo coincide com o sentido que ele tem para a coletividade”
34
Esse conceito aparece traduzido em algumas obras como sentido (pessoal) e em outras como significado pessoal. Optamos
em nosso texto pelo termo sentido, por considerar que ele demarca com maior clareza a natureza do conceito e sua
diferenciação em relação ao conceito de significado.
99
fim (parcial/ imediato) estabelece seu significado. Trata-se do conteúdo da ação: o que o
sujeito faz. O significado da ação tem, portanto, caráter objetivo e é socialmente estabelecido.
No entanto, compreender por quê o sujeito age implica identificar a atividade que constitui a
totalidade que dá sentido à determinada ação (DUARTE, 2004). Pode-se dizer que o sentido
consciente da atividade é criado pela relação objetiva que se reflete no psiquismo entre os fins
e o motivo: “(...) para encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe
corresponde” (idem, p.97). Vale destacar que os conceitos de sentido e significado da ação
sentidos não são elementos separados e estanques da consciência; ao contrário, formam uma
unidade. De acordo com Leontiev (1980), os significados objetivos são os únicos meios pelos
quais os sentidos pessoais podem ser expressos. Pode-se dizer que o sentido pessoal encarna
nos significados objetivos, num processo nunca automático ou instantâneo, nem imutável ou
irreversível.
O sentido da palavra refere-se à “(...) soma de fatos psicológicos que ela desperta em nossa
consciência. (...) é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de
estabilidade variada” (p.465, grifo nosso). O sentido real da palavra é, assim, inconstante,
100
pensamento. Já o significado constitui “(...) uma zona mais estável, uniforme e exata. (...) o
ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra
Essa relação entre sentido e significado da palavra é apresentada por Vigotski (2001)
como uma peculiaridade da linguagem interior, mas, segundo o autor, está também presente
em alguma medida no discurso exterior. Cabe ressaltar que, do ponto de vista genético, a
significado como ponto mais estável e imutável, uma de suas principais teses, resultante das
pensamento infantil. Vigotski (2001) ressalta que, nesse sentido: “o significado da palavra é
sob diferentes modos de funcionamento do pensamento. É antes uma formação dinâmica que
estática” (p.408).
produzido: “o sentido real de cada palavra é determinado, no fim das contas, por toda a
riqueza dos momentos existentes na consciência e relacionados àquilo que está expresso por
uma determinada palavra” (VIGOTSKI, 2001, p.466). Verificamos, portanto, que, na mesma
101
parcialidade da experiência do indivíduo. O significado da palavra, por sua vez, tem caráter
mais propriamente objetivo, atuando como mediador entre o pensamento do sujeito, carregado
consciência humana, por ser ela, segundo expressão de Feuerbach, ‘impossível para um
homem e possível para dois’. Trata-se, para Vigotski (2001, p.486), da célula da consciência:
homem com a realidade a um segundo plano, podendo resultar numa compreensão do sujeito
não como alguém que realmente opera com o ‘mundo das coisas’, mas apenas como alguém
consciência. Esta seria, em sua análise, uma deficiência da teoria vigotskiana, incoerente com
marxista. Para Talízina (1988), essa questão foi superada por Leontiev e outros psicólogos
De nossa parte, salientamos que, embora a relação entre atividade e consciência possa
não estar explicitamente colocada em alguns momentos da análise de Vigotski (2001), o autor
não deixa de enfatizar a primazia ontológica da atividade do homem, o que fica evidente, por
“no princípio era o verbo”35. Afirma Vigotski (2001): “a palavra não esteve no princípio. No
35
“’No princípio era o verbo’. A essas palavras do Evangelho Goethe respondeu pelos lábios de Fausto: ‘No princípio era a
ação’, procurando com isso desvalorizar a palavra. Mas, observa Humboldt, mesmo se com Goethe não colocarmos
demasiado alto a palavra como tal, isto é, a palavra sonora, e com ele traduzirmos o verso bíblico ‘No princípio era o verbo’,
poderemos lê-lo com outro acento se o abordarmos do ponto de vista da história do desenvolvimento. No princípio era a
102
princípio esteve a ação. A palavra constitui antes o fim que o princípio do desenvolvimento. A
Vale ressaltar, ainda, conforme aponta Duarte (2001), que uma das principais críticas
pode ser visto como resultado de interações verbais puras, desvinculadas da atividade social,
mas como processo que se realiza por meio dessa atividade. Para Duarte (2001), “não há,
com sua realidade concreta. Assim, as relações entre significado e sentido – seja da ação
humana como um todo, precisam ser compreendidas no contexto das relações sociais de
produção. Nesse sentido, Leontiev (1978), afirma que as relações objetivas engendradas pelo
na sociedade de classes.
ação. Com isto ele quer dizer que a palavra lhe parece o estágio supremo do desenvolvimento do homem comparada à mais
suprema expressão da ação. É claro que ele tem razão. A palavra não esteve no princípio. No princípio esteve a ação”
(VIGOTSKI, 2001, p.485).
103
em que os indivíduos não mais estabelecem relações idênticas perante os meios e resultados
trabalho na sociedade capitalista opera mais que uma diferenciação entre significado e sentido
– opera uma ruptura. Nas relações de produção capitalista, não há relação necessária entre o
significado da ação – o quê o sujeito faz – e seu sentido – por quê ele faz. A estrutura do
salário – motivo que pode ser atendido pelos mais diversos tipos de atividade. Não há,
portanto, relação necessária entre o conteúdo da atividade e seu sentido, mas ao contrário,
ruptura, alienação. Esse processo acaba por engendrar uma fragmentação da consciência,
Para resumir, a consciência do homem, tal como a sua atividade, não é aditiva. Não
é uma superfície plana, nem mesmo uma capacidade que possa ser preenchida com
imagens e processos. Nem tão-pouco as conexões dos seus elementos separados. É o
movimento interno dos seus ‘elementos formativos’ ligados ao movimento geral da
atividade que efetua a vida real do indivíduo na sociedade. A atividade do homem é
a substância da sua consciência (p.76)
sociedade burguesa – nos dão pistas acerca de seu compromisso social e político, apontando
para uma teoria psicológica – e uma teoria do desenvolvimento infantil, em particular – que
capitalista, que resulta em uma “(...) incapacitação dos seres humanos, (...) [em um]
desenvolvimento unilateral e distorcido das suas várias capacidades” (idem, p.3). Esse autor
defendia a construção de uma nova forma de organização da sociedade (de caráter socialista),
que criasse as condições para a “(...) libertação da personalidade humana das correntes que
2000, p.78-9).
central nessa perspectiva teórica da psicologia. Como vimos, Leontiev (1978) considera que o
36
Ver: MANACORDA, M.A. O homem onilateral. In: ___________. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez, 2000.
105
poderíamos nos perguntar: qual deve ser a contribuição da educação infantil para o
atendimento desse imperativo? Qual a sua potencialidade e quais os seus limites no interior da
sociedade capitalista?
refletir acerca das relações entre desenvolvimento infantil e ensino na criança de 0 a 6 anos –
o objeto de nossa investigação. Constatamos a busca por uma abordagem dialética e histórica
cultural humano pela criança e a impossibilidade de realização dessa apropriação pela relação
direta entre criança – mundo dos objetos. O educador, dessa forma, assume a função de
Detectamos, ainda, uma menção de Leontiev (1978) ao ensino como algo não
propriamente voltado para a criança pequena, o que nos coloca a tarefa de averiguar a
discutiremos os resultados da análise das obras selecionadas para essa investigação, tendo
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 3
L.S.Vigotski, A.N.Leontiev e D.B.Elkonin, visando analisar como são abordadas pelos autores
bibliografia, ou seja, o trabalho não teve como proposta analisar e esgotar as obras
desenvolvimento e ensino na criança pequena38. Foram ainda selecionadas obras que, embora
sua compreensão.
dessa Escola – de grande interesse para a temática dessa pesquisa, mas que ainda não são
acessíveis aos pesquisadores brasileiros, nem pela via de traduções para o português, nem
mesmo para o espanhol ou inglês. De acordo com Davidov & Shuare (1987) Elkonin, por
en la edad infantil, Vigotski discute temas de grande interesse para a educação infantil, dentre
37
Já apresentado na introdução dessa dissertação e comentado a seguir.
38
Em função desse critério, não foram incluídas na seleção, por exemplo, trabalhos de Vigotski como O significado histórico
da crise da psicologia, Psicologia da Arte, Paidologia do adolescente, Problemas gerais da defectologia, entre outros.
110
infantil. São também abordados temas como a criação literária e a criação teatral, mas já
No artigo Play and its role in the mental development of the child, de 1933, conforme
indica o próprio título Vigotski discute o jogo e seu papel no desenvolvimento infantil,
período.
O objetivo principal do livro no qual está contido esse capítulo, segundo os autores, “é
mostrar a gênese cultural de toda uma série de processos comportamentais e sua influência
composto de 15 capítulos, totalizando 329 páginas. Os cinco capítulos iniciais têm caráter
investigação, bem como a análise, estrutura e gênese das funções psíquicas superiores. Do
sexto ao décimo primeiro capítulo são abordadas funções específicas, quais sejam: linguagem
décimo segundo capítulo discute a questão do domínio da própria conduta, problemática que
111
perpassa toda a obra; os capítulos seguintes abordam a educação das formas superiores de
A obra Pensamento e Linguagem foi pela primeira vez publicada em 1934. Essa
pesquisa utilizou a edição em português, traduzida direto do russo, publicada pela editora
Vigotski pretende lançar as bases para uma teoria geral das raízes genéticas do pensamento e
da linguagem. O livro é composto por uma discussão inicial acerca do problema e do método
de investigação, seguida de uma revisão crítica das teorias de Piaget e Stern, consideradas por
Vigotski as mais elaboradas e fortes teorias da época acerca das relações entre pensamento e
linguagem. O quarto capítulo apresenta uma investigação teórica que busca elucidar as raízes
pensamento verbalizado. São então apresentados dois estudos experimentais, que buscaram
ou verbalizado.
Vigotski – El problema da edad e El primeiro ano – nos quais o autor trabalhou nos últimos
anos de sua vida (1932 a 1934); somados à transcrição de conferências proferidas pelo autor
112
Crise do primeiro ano, A primeira infância, Crise dos três anos e Crise dos sete anos. No
fases etárias.
sobre psicologia e compõe o segundo tomo das Obras Escogidas do autor, publicadas pela
Editora Visor. Nas seis conferências ministradas pelo autor, são abordados o desenvolvimento
humano e da unidade entre atividade e consciência. Dessa forma, grande parte de seu
relações entre desenvolvimento infantil e ensino pré-escolar. Este livro contém ainda o
escolar, a estrutura dessa atividade e as relações entre significado e sentido das ações da
primeiro capítulo dessa mesma coletânea, intitulado Las necessidades e los motivos de la
desenvolvimento.
114
análises acerca das três categorias que considera fundamentais para a compreensão do
psiquismo humano. O autor retoma a análise do reflexo psíquico e sua natureza e examina as
relações entre atividade e consciência, bem como postula a atividade como a base da
páginas, no qual o autor toma como objeto de investigação a forma da atividade lúdica da
criança. Elkonin analisa a origem histórica do jogo protagonizado, bem como seu
Tem também grande importância para a educação infantil o texto do autor intitulado
Toward the problem of stages in the mental development of children (Sobre o problema da
edição em inglês do artigo quanto sua edição em espanhol, que integra a antologia La
infantil numa perspectiva histórica e dialética, tendo como eixo o conceito de atividade
principal.
Nessa mesma coletânea consta ainda o texto Problemas psicológicos del juego em la
no capítulo anterior, pelo prisma das leis da lógica dialética. Assim, o desenvolvimento
(...) o desenvolvimento não se produz pela via de mudanças graduais, lentas, por
uma acumulação de pequenas peculiaridades que produzem em seu conjunto e ao
final alguma mudança importante. (...) observamos a existência de mudanças
bruscas e essenciais no próprio tipo de desenvolvimento, nas próprias forças
motrizes do processo (VYGOTSKI, 1995, p.156, grifo nosso).
manifestam mais tarde como uma repentina formação qualitativamente nova em uma idade.
quantitativas destroem a qualidade anterior e produzem uma nova. A crise produziria, assim,
revolução. Na perspectiva dialética, conforme o autor, evolução e revolução são duas formas
116
também nos trabalhos de Leontiev (2001a) e Elkonin (1987). Leontiev (2001a) postula a
desenvolvimento infantil; não considera, contudo, como veremos, que esses momentos sejam
que não transcorre de maneira evolutiva progressiva, mas que se caracteriza por interrupções
(p.107).
lugar ocupado pela criança nas sociedades. Sua análise acerca da origem histórica do jogo
protagonizado (jogo de papéis) ilustra com clareza essa tese. Elkonin (1998) demonstra,
Miklukho-Maklai, A.G. Bazánov, H.G. Kazânski, entre outros, que o jogo protagonizado é
baseada em formas rudimentares de agricultura e pecuária; conclui, assim, que a origem desse
117
jogo está relacionada à mudança do lugar ocupado pela criança na vida das sociedades –
O que nos importa é deixar estabelecido que nas etapas iniciais da humanidade,
quando as forças produtivas ainda se encontravam num nível primitivo, no qual a
sociedade não podia enfrentar o sustento de seus filhos e as ferramentas permitiam
incluir diretamente as crianças, sem preparação especial alguma, no trabalho dos
adultos, não existiam nem exercícios especiais para aprender a manejar as
ferramentas nem, ainda menos, o jogo protagonizado. (ELKONIN, 1998, p.79).
função da complexificação das forças produtivas, que vai tornando o trabalho dos adultos
infantil o vínculo entre criança e sociedade, ou o lugar que a criança ocupa no sistema das
relações sociais. Vale ressaltar, conforme Elkonin (1998), que esse vínculo entre criança e
sociedade, que constituía, a princípio – nas comunidades primitivas – uma relação direta e
imediata, apresenta-se na sociedade contemporânea como uma relação mediada pela educação
e pelo ensino.
universal, válida para toda e qualquer criança em todo e qualquer contexto e a qualquer
tempo.
“(...) a tarefa da psicologia consiste justamente em revelar não o eterno infantil mas o
39
Ver ELKONIN, D.B. Acerca da origem histórica do jogo protagonizado. In: _________. Psicologia do jogo. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
118
(p.96).
Nem o conteúdo dos estágios nem sua seqüência no tempo, porém, são imutáveis e
dados de uma vez por todas. (...) As condições históricas concretas exercem
influência tanto sobre o conteúdo concreto de um estágio individual do
desenvolvimento, como sobre o curso total do processo de desenvolvimento
psíquico como um todo. (...) Assim, embora os estágios do desenvolvimento
também se desdobrem ao longo do tempo de uma certa forma, seus limites de idade,
todavia, dependem de seu conteúdo e este, por sua vez, é governado pelas condições
históricas concretas nas quais está ocorrendo o desenvolvimento da criança. Assim,
não é a idade da criança, enquanto tal, que determina o conteúdo de estágio do
desenvolvimento; os próprios limites de idade de um estágio, pelo contrário,
dependem de seu conteúdo e se alteram pari passu com a mudança das condições
histórico-sociais”. (p.65-6)
Diante do exposto, podemos estabelecer como uma primeira constatação que Vigotski,
dialético, que não é determinado por leis naturais universais mas encontra-se intimamente
situação objetiva ocupada pela criança no interior das relações sociais em cada período de seu
psíquico da criança e afirma que o primeiro elemento a ser considerado é que “(...) durante o
desenvolvimento da criança, sob a influência das circunstâncias concretas de sua vida, o lugar
que ela objetivamente ocupa no sistema das relações humanas se altera” (p.59).
119
Para Leontiev (2001a), essa mudança da posição real ocupada pela criança nas
relações sociais, que resulta em uma reestruturação de suas relações sociais básicas, é um
análise não se encerra no lugar ocupado pela criança no sistema das relações sociais; é
como essa atividade é constituída nas condições concretas de vida. Logo, o desenvolvimento
categoria atividade:
Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das condições externas
de sua vida, como das potencialidades que ela possui. Só com esse modo de estudo,
baseado na análise do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é
que podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da
criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da
realidade, e determinando, portanto, sua psique e sua consciência. (LEONTIEV,
2001a, p.63).
operar precisamente na atividade da criança e em sua atitude perante o mundo e, com isso,
determinar seu psiquismo e sua consciência. Leontiev não deixa dúvidas quanto ao papel
Consideramos tal afirmação bastante relevante no contexto de nossa investigação, posto que
se opõe diretamente à concepção do educador como alguém que deve limitar-se a “seguir as
análise da atividade da criança visa justamente fornecer ao educador subsídios para uma
(2001) foi bastante claro ao afirmar que o desenvolvimento intelectual infantil deveria ser
estudado como resultado da assimilação prática da realidade, ou seja, em estreita relação com
a atividade prática da criança, de modo que, como vimos, uma de suas principais críticas à
autor.
partir dos trabalhos de Leontiev e Rubinstein – representou uma grande contribuição para a
psicologia soviética. Para o autor, a categoria atividade permitiu modificar radicalmente tanto
intelectual, corroborada por Elkonin (1987), não se refere, contudo, à atividade da criança em
geral, mas a determinados tipos de atividade que são mais importantes para o
Cabe destacar que a freqüência com que uma determinada atividade é encontrada em
daquele estágio – ou seja, não se trata da atividade que ocupa mais tempo na vida da criança.
A atividade principal tem três características básicas para Leontiev (2001a), quais sejam: a) é
personalidade infantil.
pela mudança do tipo principal de atividade: “surge uma contradição explícita entre o modo
de vida da criança e suas potencialidades, as quais já superaram este modo de vida. De acordo
com isso, sua atividade é reorganizada e ela passa, assim, a um novo estágio no
meio que a rodeia, que é peculiar, específica, única e irrepetível em cada idade ou estágio do
Vigotski (1996) consiste em que as forças que movem o desenvolvimento da criança de uma
idade a outra acabam por negar e destruir a própria base do desenvolvimento da idade
criança com a realidade social, tendo em vista que essa relação se realiza precisamente por
Leontiev (2001a) analisa a transição a um novo tipo de atividade principal apoiado nos
dissertação.
De uma maneira geral, o autor afirma que o surgimento de novas atividades se dá com
a transformação da ação em atividade. Isso ocorre quando o resultado produzido por uma
ação torna-se para a criança mais significativo que o motivo da atividade à qual a ação
casa porque ela quer sair rapidamente e brincar. No fim, isto leva a muito mais; ela não
apenas obterá a oportunidade de ir brincar, mas também a de obter uma boa nota.”
(LEONTIEV, 2001a, p.71). Assim, o motivo ao qual se subordina inicialmente a ação de fazer
a lição de casa é poder sair para brincar; no entanto, o resultado dessa ação, que é obter uma
boa nota, começa a tornar-se mais significativo para a criança do que a própria possibilidade
Inicialmente, portanto, Leontiev (2001b) considera que a permissão para sair e brincar
constituía um motivo realmente eficaz para a criança, ao passo que fazer seus deveres e obter
desenvolvimento alcançado pela atividade da criança, Leontiev (2001a) aponta que “o motivo
realmente eficaz que induz a criança, agora, a fazer sua lição de casa é um motivo que,
anteriormente, era apenas compreensível para ela” (p.70). Verificamos, assim, que motivos
apenas compreensíveis “(...) tornam-se motivos eficazes em certas condições, e é assim que os
123
novos motivos surgem e, por conseguinte, novos tipos de atividades” (LEONTIEV, 2001b,
p.70).
Vale destacar que Vygotsky (2002), no artigo Play and its role in the mental
uma nova atividade principal, é necessário que o novo motivo corresponda às possibilidades
reais da criança. Uma nova atividade cujo motivo não corresponde às reais possibilidades da
criança não pode, portanto, surgir como atividade principal, desenvolvendo-se ao longo de
uma linha secundária durante esse estágio. Como exemplo, Leontiev (2001a) menciona uma
criança que domina a dramatização em uma peça de teatro na escola e percebe o êxito como
resultado de suas ações, passando a aspirar à produtividade objetiva de sua atividade; nesse
criança em idade escolar, justamente por tratar-se de uma atividade produtiva em sua
especialidade.
criança e seus novos processos psicológicos surgem, então, pela primeira vez exatamente
nessa atividade, o que significa que ela começou a desempenhar o papel da atividade
Embora o autor apresente essa discussão apenas como uma reflexão, sem análises
novos motivos não ocorre espontaneamente, mas em estreita relação com a atuação do adulto/
educador, que cria as condições para a transição para tipos mais elevados de motivos que
operações. Isso se dá quando o que antes se apresentava como alvo da ação se torna condição
Para converter a ação de uma criança em uma operação, é preciso que se apresente à
criança um novo propósito com o qual sua ação dada tornar-se-á o meio de realizar
outra ação. Em outras palavras, aquilo que era o alvo da ação dada deve ser
convertido em uma condição da ação requerida pelo novo propósito. (LEONTIEV,
2001a, p.75).
Leontiev (2001a) postula que toda nova operação a ser ensinada à criança é
seja, como ação. Tendo a criança dominado a tarefa, não se faz mais necessário que o
objetivo a ser atingido seja refletido em seu psiquismo – a ação pode converter-se em
operação, tornando-se mera condição para realização de outra ação. Aponta Leontiev (2001a,
p.76) que
Vale destacar do trecho citado a afirmação de que o cultivo das funções psicológicas
exercícios formais. É preciso, diferentemente, que tais funções integrem processos dirigidos
por um alvo, ou seja, é preciso que seu desenvolvimento seja intencionalmente buscado pela
criança como condição para a realização da atividade. Leontiev (2001a) ilustra esse processo
estrangeira. Vejamos:
Durante seu desenvolvimento, uma criança, como sabemos, adquire uma capacidade
extremamente acentuada de diferenciar fonemas, isto é, os sons significativos da
língua, mas isto só porque sua diferenciação é uma condição necessária para a
distinção das palavras que são sonoramente semelhantes, mas diversas em seu
significado. A distinção dos sons cujas diferenças não constituem um meio real para
a criança distinguir palavras pelo sentido permanece muito menos perfeita. Mais
tarde, por conseguinte, quando a criança começa a estudar uma língua estrangeira,
no começo não ouve a diferença entre fonemas semelhantes, que são novos para ela,
como a diferença, por exemplo, entre o som vocálico em francês em mais e mes.
Além disso, é notável o fato de que para se tornar sensível a esta diferença não basta
126
ouvir freqüentemente falar a língua francesa, sem todavia tentar dominá-la. É isso
que torna possível que alguém passe muitos anos entre pessoas que falam outra
língua e, mesmo assim, permaneça surdo às nuanças de sua fonética (p.78).
Fica evidente, assim, que as funções psicológicas a serem cultivadas na criança devem
ser requeridas por atividades em que esteja colocada, em alguma medida, a intencionalidade
inclusive com a criança de 0 a 6 anos, portanto. Podemos afirmar que não basta expor a
criança a estímulos diversos, não basta disponibilizar a ela os objetos da cultura; mais que
isso, é preciso organizar sua atividade. Conforme Davidov (1988), a educação e o ensino
Leontiev (2001a) afirma que é necessário que a função que se pretende desenvolver na
criança ocupe um lugar preciso na atividade, estando incluída em uma operação cujo
analisado por Vigotski (1995), particularmente na obra Historia del desarrollo de las
funciones psíquicas superiores, de 1931, em que o autor estabelece uma diferenciação entre
127
espécie e são comuns a homens e animais; são exemplos de funções elementares a atenção
eminentemente culturais.
psicologia infantil não havia até então elaborado um método adequado para o estudo do
com o autor, a psicologia tradicional não estabelece essa diferenciação entre os planos natural
e cultural do desenvolvimento psíquico, e acaba por oferecer uma interpretação biológica das
modo de adaptação à natureza difere radicalmente do animal. Nesse sentido, Vigotski (1995)
se, para ele, de um enfoque naturalista da psicologia humana, que não leva em conta a
vigotskiana, o desenvolvimento da conduta desde o animal até o ser humano não se esgota na
complexidade das relações entre estímulos e reações, e tampouco se explica pelo aumento
conduta um salto dialético que modifica qualitativamente a própria relação entre o estímulo e
que passam a mediar essa relação (antes direta e imediata) entre estímulo e reação. Esse novo
isto é, constituem meios para dominar a conduta (própria ou alheia). A origem – estímulos
introduzidos pelo próprio homem – e a função – meio para dominar a conduta – são, para o
afirma que a peculiaridade da conduta humana “(...) em primeiro lugar se deve a que o
homem intervém ativamente em suas relações com o meio e que, através do meio ele mesmo
modifica seu próprio comportamento, submetendo-o a seu poder” (p.90, grifo nosso). Fica
A mediação pelo signo é o traço distintivo das formas superiores de conduta humana –
foco de todo o processo” (VYGOTSKI, 1995, p.123, grifo no original). O emprego de signos
signo, têm função mediadora na atividade humana. Tanto o emprego de signos quanto a
utilização de ferramentas, para Vigotski, podem ser considerados, do ponto de vista lógico,
entanto, diferenças importantes entre eles. A ferramenta influi sobre o objeto da atividade do
homem – é o meio de sua atividade exterior. O signo, por sua vez, não modifica nada no
objeto – é o meio de que se vale o homem para influir psicologicamente sobre a conduta
própria e alheia, ou seja, é um meio para sua atividade interior, que reestrutura a operação
psíquica. Assim, se do ponto de vista lógico signo e ferramenta podem ser considerados
equivalentes, do ponto de vista funcional pode-se dizer que cumprem funções psíquicas
dos nexos reais entre ambos remete à história de constituição do gênero humano. O domínio
da própria conduta por meio dos signos é uma exigência do processo de adaptação ativa do
homem à natureza. Segundo Vigotski (1995, p.85), “à cada etapa determinada no domínio das
memoriza’, na memória cultural, com a ajuda dos signos, ‘o homem memoriza algo’
(VYGOTSKI, 1995).
130
É importante salientar que Vigotski não estabelece uma dicotomia entre as funções
elementares e superiores. Para o autor, as formas inferiores não se aniquilam, mas continuam
conservam em forma oculta. O homem chega a dominar a sua própria conduta na etapa
superior de seu desenvolvimento subordinando ao seu poder suas próprias reações com base
nas leis naturais do comportamento. Posto que tais leis naturais do comportamento baseiam-se
implica o domínio do estímulo: “a criança, dessa forma, domina sua própria conduta sempre
que dominar o sistema dos estímulos que é sua chave. A criança domina a operação aritmética
quando dominar o sistema dos estímulos aritméticos” (VYGOTSKI, 1995, p.159). O mesmo é
válido para todas as demais formas de comportamento. Vigotski chama a atenção para a
constatação de que o sistema de estímulos é uma força social dada à criança de fora.
Nesta direção, o autor corrobora a caracterização de P.Janet acerca da lei geral que
outros aplicavam a ela, isto é, a criança assimila as formas sociais da conduta e as transfere
para si mesma. Essa lei é válida, de acordo com Vigotski (1995), para todo emprego de
signos:
Assim, Vigotski (1995) irá postular que “toda função psíquica superior passa
social” (p.150). Em outras palavras: “toda função psíquica superior foi externa por haver sido
social antes que interna; a função psíquica propriamente dita era antes uma relação social de
Tais proposições são sintetizadas por Vigotski no que ele denomina de lei genética
aparece duas vezes, em dois planos; primeiro no plano social e depois no psicológico, a
princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como
categoria intrapsíquica” (VYGOTSKI, 1995, p.150). Essa lei é válida, conforme o autor, para
afirma o autor: “a palavra ‘social’ aplicada à nossa disciplina tem grande importância.
Primeiro, em sentido mais amplo significa que todo cultural é social. Justamente a cultura é
um produto da vida social e da atividade social do ser humano (...)” (VYGOTSKI, 1995,
ordem social é coerente com a perspectiva de Leontiev (1978), que afirma, como já analisado
no segundo capítulo, que as novas aptidões e funções psíquicas formam-se no indivíduo por
meio do processo de apropriação da cultura. Como vimos, Leontiev (1978) demonstra que as
mas fixam-se sob uma forma objetiva, exterior aos indivíduos, nos produtos da atividade
humana (por meio do processo de objetivação), devendo ser apropriadas por cada indivíduo
justamente por meio da atividade da criança: ela deve reproduzir a atividade adequada aos
perspectiva do autor, o desenvolvimento cultural tem sempre como ponto de partida a atuação
Vigotski (1995) afirma que a princípio o adulto dirige/orienta a atenção da criança por meio
de palavras, o que desencadeia uma interação da criança com o entorno, em que ela passa a
utilizar a palavra como meio para dirigir/orientar a conduta alheia (do adulto). Por fim, a
criança torna-se capaz de dirigir sua própria atenção, atuando sobre si mesma; para tanto,
40
Leontiev (1987) também se ocupou da investigação do desenvolvimento do caráter voluntário da conduta. Para o autor, é
na idade pré-escolar que a conduta da criança, que até então apresenta um caráter reativo circunstancial, vai-se convertendo
paulatinamente em conduta voluntária. Sua análise, que se apóia na estrutura da atividade da criança, será por nós analisada
no tópico destinado ao tema do desenvolvimento e ensino de 0 a 6 anos.
133
qual se torna um hábito automático. Nesse sentido, o pesquisador afirma: “(...) o importante é
que organizamos para a criança essa operação mediada, dirigimos sua atenção primária e tão
somente depois a própria criança é quem começa a organizar-se por si mesma” (VYGOTSKI,
1995, p.237). Conclui-se, assim, que a condição para o desenvolvimento da atenção mediada
– assim como das diversas funções psíquicas superiores – é, portanto, uma operação cultural
superiores traz implicações diretas para se pensar o trabalho pedagógico, pois ressalta a
fundamentalmente cultural e não biológica, torna-se evidente que o ensino não deve basear-se
na expectativa da maturação espontânea das funções psíquicas superiores (nem tomar tal
maturação como condição prévia para as aprendizagens), mas, ao contrário, é responsável por
acerca do desenvolvimento das funções psicológicas pode culminar numa espécie de inversão
anos deve constituir uma primeira etapa do processo de superação das relações naturais e
41
Um claro exemplo dessa inversão pode ser encontrado na alarmante “epidemia” do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade.
134
técnico-científica: “na solução das tarefas colocadas devem tomar parte os psicólogos, de
p.46).
desenvolvimento das funções psíquicas superiores lança já algumas luzes sobre a questão, na
aprendizagem quando Vigotski se refere a essa relação. Assim, encontramos nessa tradução a
ensino. O tradutor justifica tal opção pela elasticidade semântica da palavra russa obutchênie e
pela falta de coesão conceitual entre os pesquisadores brasileiros que se dedicam ao estudo do
135
aprendizagem. A palavra russa obutchênie, segundo Paulo Bezerra, deriva do verbo transitivo
direto obutchít que significa ensinar, ilustrar, adestrar, transmitir algum conhecimento ou
do verbo transitivo indireto obhtchítsya, que significa ser ensinado, aprender, assimilar
Na edição em língua inglesa, que integra o primeiro volume de The Collected Works
refere à relação entre esse fenômeno e o desenvolvimento. Na edição espanhola dessa mesma
obra, que compõe o segundo volume das Obras Escogidas, encontramos o termo enseñanza;
além disso, em textos de autoria de outros pesquisadores traduzidos para a língua espanhola,
optamos por adotar na presente análise o termo ensino, de forma que nos referiremos,
portanto, às relações entre desenvolvimento e ensino. Note-se, contudo, que grande parte
dessa análise está apoiada na tradução brasileira do texto, o que ficará evidente quando da
desenvolvimento e aprendizagem.
Para apresentar sua perspectiva, Vigotski (2001) inicialmente analisa como essa
questão vinha sendo abordada por outros teóricos da psicologia. Vigotski refuta, nesse
42
Vale destacar que os editores dessa tradução da obra de Vigotski para a língua inglesa alteraram o título da primeira
tradução para o inglês – Thought and Language – para Thinking and Speech, justificando tal alteração por sua busca pela
maior fidelidade possível aos significados que o autor pretendia transmitir. Os editores afirmam que essa alteração
exemplifica e sinaliza a filosofia que sustenta todo o trabalho de preparação das seis obras que compõem a coleção.
136
independentes entre si. Tais teorias efetuam uma diferenciação entre os produtos do
(VIGOTSKI, 2001, p.296-7). Assim, para que se pudesse ensinar algo à criança, seria
necessário aguardar até que ela tivesse atingido determinado nível de desenvolvimento.
Por outro lado, Vigotski (2001) opõe-se também às teorias que tomam ensino e
desenvolvimento e ensino está presente, segundo Vigotski (2001), na obra de William James e
(...) cada forma nova de experiência cultural não surge simplesmente de fora,
independentemente do estado do organismo em um dado momento do
desenvolvimento, mas o organismo, ao assimilar as influências externas, ao
assimilar toda uma série de formas de conduta, as assimila de acordo com o nível de
desenvolvimento psíquico em que se encontra (VYGOTSKI, 1995, p.155).
O autor considera, portanto, que o ensino de cada nova operação cultural é, de certa
forma, possibilitado por um processo de desenvolvimento. Isso pode ser constatado, para ele,
assimilação externa, mas “(...) cada ação externa é o resultado de leis genéticas internas”
situando-se em uma posição intermediária entre os dois pontos de vista já expostos, levando
“(...) a uma certa unificação desses pontos de vista” (VIGOTSKI, 2001, p.301). A despeito da
que introduz a perspectiva de uma certa interdependência entre ambos processos (o ensino
influencia de certo modo a maturação e a maturação influencia de certo modo o ensino). Além
disso, essa vertente, representada por Koffka, sinaliza a possibilidade de o ensino promover
efeitos para além do imediato, de modo que ele “(...) pode ir não só atrás do desenvolvimento,
não só passo a passo com ele, mas pode superá-lo, projetando-o para a frente e suscitando
nele novas formações” (VIGOTSKI, 2001, p.304). Trata-se, na análise de Vigotski, de uma
Concluída a análise teórico-crítica das três abordagens, Vigotski (2001) apresenta sua
Vigotski (2001):
O ensino apóia-se, portanto, naquilo que ainda não está ‘maduro’ na criança. Mediante
essa constatação, o autor defende que a psicologia e a pedagogia devem se libertar “(...) do
ciclos, preparar inteiramente o solo em que a aprendizagem [o ensino] irá construir seu
edifício” (p.332). Para Vigotski (2001), o ensino está sempre adiante do desenvolvimento.
obra de Vigotski fica evidente a aproximação entre seus postulados e a análise de Leontiev
(1978) acerca do processo de apropriação, pela mediação de outros homens, das aptidões e
139
Ainda em relação ao trecho citado, salientamos que, ao afirmar que o ensino não é, em
si mesmo, desenvolvimento, Vigotskii (2001) nega a identidade entre esses processos, o que
implica que a curva do desenvolvimento não coincide com a curva do ensino. Desse modo,
em sua perspectiva, não há paralelismo mas discrepâncias entre o processo de ensino escolar e
tem sua própria lógica e não há correspondência direta e imediata entre um determinado
dessa operação e desse conceito não termina mas apenas começa (...)” (VIGOTSKI, 2001a,
p.324).
Esse conceito aparece no artigo Play and its role in the mental development of the child
psicologia Infantil como “(...) a esfera dos processos imaturos, mas em vias de maturação”
43
Utilizamos aqui o termo próximo ao invés de imediato, como preferido por Paulo Bezerra, na tradução para o português da
obra Pensamento e Linguagem adotada nessa pesquisa, tendo em vista evitar aproximações indevidas desse conceito com a
categoria filosófica marxiana de imediato ou imediaticidade, ou, ainda, com a explicação vigotskiana das funções psíquicas
elementares, que, como vimos, têm como uma de suas principais características a relação imediata com a realidade.
140
zona de desenvolvimento próximo é determinada pela discrepância entre, por um lado, o nível
atual de desenvolvimento, que se refere aos problemas resolvidos pela criança com
autonomia, apoiada nas funções já desenvolvidas (em outras palavras, o que ela já sabe fazer
sozinha); e, por outro, o nível atingido pela criança com auxílio e colaboração de outra
uma revisão das concepções de ensino. Para o autor, o bom ensino é aquele que passa adiante
do desenvolvimento e o conduz, atuando sobre aquilo que ainda não está formado na criança:
publicado pela Editora Pedagógica de Moscou em 1983. Consideramos tal definição bastante
significativa:
Com isso, segundo Vigotski (1995), altera-se profundamente a concepção acerca das
Supunha-se que era preciso seguir a direção dos prazos, do ritmo, das formas de pensamento
próprias da criança, de sua percepção etc.” (p.307). O novo enfoque não deixa de buscar tal
Para o novo ponto de vista seria uma loucura se nas classes escolares não se tivesse
em conta a índole concreta e imaginativa da memória infantil: ela é o que deve servir
44
Rector.
141
de suporte; mas seria também uma loucura cultivar este tipo de memória, pois
significaria reter a criança em uma etapa do inferior do desenvolvimento e não
compreender que o tipo de memória concreta não é mais que uma etapa de transição,
de passagem ao tipo superior, que a memória concreta deve ser superada no
processo educativo (idem, p.307).
nos processos diagnósticos, não apenas aquilo que a criança é capaz de fazer sozinha, mas
também aquilo que ela é capaz de fazer com ajuda ou sob orientação do adulto ou de outras
que já está maduro, deixando de lado o que está em processo de maturação, jamais poderá
dispor de uma visão completa e verídica do estado interior de todo o desenvolvimento (...)”
segundo a qual toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes –
consegue realizar apenas com ajuda – na atividade coletiva, em colaboração com o professor e
com crianças mais experientes. Tais processos apóiam-se em funções que ainda não
142
órgãos de sua individualidade. Contudo, Vigotski (2001a) demonstrou que o que a criança é
capaz de fazer hoje em colaboração – plano interpsíquico – conseguirá fazer amanhã sozinha
– plano intrapsíquico: “a investigação demonstra sem margem de dúvida que aquilo que está
o autor:
num processo organizado e dirigido pelo adulto. O pesquisador chama a atenção, contudo,
para a constatação de que nem todos os atos dos adultos têm suficiente influência sobre o
desenvolvimento da criança:
desenvolvimento psíquico tem sua própria lógica, não havendo correspondência direta, linear
encontra em um ou outro grau de desenvolvimento com o qual se deve contar para exercer
qualquer influência posterior sobre ele” (ELKONIN, 1960a). Por outro lado, recoloca o
Essa organização adequada do ensino implica, para Elkonin (1960a), garantir que as
considerando-se que as diferenças entre os períodos não são meramente quantitativas, mas
desenvolvimento não significa que o pedagogo deva orientar-se somente pelo nível de
ensino] ocorre em todas as fases do desenvolvimento da criança mas (...) em cada faixa etária
ela tem não só formas específicas mas uma relação totalmente original com o
obra:
144
Hoje já sabemos que em cada idade existe o seu tipo específico de relações entre
aprendizagem [ensino] e desenvolvimento. Não só o desenvolvimento muda de
caráter em cada idade, não só a aprendizagem [ensino] em cada estágio muda
inteiramente a organização específica, o conteúdo original, mas também, o que é
mais importante a relação entre aprendizagem [ensino] e desenvolvimento é
especialmente própria de cada idade (idem, p.388).
específico em cada fase etária, cabe evidenciar essa especificidade, como subsídio para a
Leontiev e Elkonin, que incluiu o olhar histórico e dialético sobre o fenômeno, o exame das
de cada fase do desenvolvimento para fazê-lo avançar. Tal constatação refuta necessariamente
na faixa etária que é objeto de análise dessa pesquisa: 0 a 6 anos. Iniciaremos a análise
(1987b), bem como dos apontamentos de Vygotski (1996), abordando os estágios ou períodos
infantil tem grande importância teórica, na medida em que implica compreender as leis de
escolar e a atividade de estudo, na idade escolar45. Cabe lembrar que, segundo Leontiev
(2001a, p.66), “essa é a sucessão das atividades [principais] e das [principais] relações que
45
O autor analisa também a adolescência e o início da juventude, identificando as atividades principais em cada um desses
períodos.
146
Na vida surgem novos tipos de atividade, novas relações da criança com a realidade.
Seu surgimento e conversão em atividades principais não eliminam as atividades
existentes anteriormente, elas apenas mudam de lugar no sistema geral de relações
da criança com a realidade, tornando mais ricas essas relações. (ELKONIN, 1987b,
p.122).
mas afirma que o caráter objetal – de conteúdo da atividade não foi devidamente explorado
etc. O autor acredita que, em função disso, somado ao fato de terem sido estudados apenas os
De fato, o desenvolvimento psíquico não pode ser compreendido sem uma profunda
investigação do aspecto objetal contido na atividade, isto é, sem elucidar com que
aspectos da realidade interage a criança em uma ou outra atividade e, em
conseqüência, a que aspectos da realidade ela se orienta (ELKONIN, 1987b, p.109).
abordagem do desenvolvimento afetivo, por um lado, e intelectual, por outro, como linhas
Elkonin (1987b), na separação que se estabelece entre a educação e o ensino. É preciso, para o
Infância. Como vimos, essa perspectiva diferencia o ensino das relações educativo-
pedagógicas afirmando que o ensino privilegia o aspecto cognitivo ao passo que as relações
expressiva, lúdica, criativa, afetiva, sexual, etc. (ROCHA, 1999). Podemos afirmar, nesse
da criança.
hipótese que o desenvolvimento psíquico tem um caráter periódico, sendo possível classificar
seus objetivos, motivos e normas subjacentes às relações entre as pessoas contraídas em seu
cognitivo, pela via da assimilação dos procedimentos socialmente elaborados de ação com os
objetos.
infantil, quais sejam: primeira infância, infância e adolescência, de modo que cada época
seria composta por dois períodos – um do primeiro grupo e um do segundo. Assim, chegamos
comunicação emocional direta (1º grupo) e da atividade objetal manipulatória (2º grupo); a
época infância é composta pelos períodos do jogo de papéis (1º grupo) e da atividade de
estudo (2º grupo); por fim, a época adolescência é composta pelos períodos da comunicação
íntima pessoal (1º grupo) e da atividade profissional e de estudo (2º grupo). Essa hipótese está
demonstrando que em cada período do desenvolvimento uma das linhas está em proeminência
e a outra encontra-se latente – condição que se altera com a transição a novos períodos. Estão
desenvolvimento47. A transição entre as épocas, segundo Elkonin (1987b), se deve a uma falta
46
Capturado no “Arquivo Elkonin” do sítio www.marxists.org. Não há referência de data ou veículo em que foi publicado o
gráfico.
47
Encontramos, ainda, no gráfico, uma subdivisão dos períodos do desenvolvimento em fases, tema que não é abordado pelo
autor no artigo dedicado ao tema da periodização.
149
motivos de sua atividade. As transições de um período a outro, dentro de uma mesma época,
investigações empíricas realizadas por ele e por seus colaboradores, mas não têm caráter
definitivo, apresentando-se muito mais como hipóteses teóricas. Do ponto de vista prático,
vida. Em seu interior e a partir dela, tomam forma as ações sensório-motoras, de orientação e
manipulação.
Para Vigotski (1996), a situação social do bebê no primeiro ano de vida caracteriza-se
pela contradição entre, por um lado, sua máxima sociabilidade – pois em função de sua
completa dependência dos adultos, toda a relação do bebê com a realidade circundante é
socialmente mediada48; e por outro, suas mínimas possibilidades de comunicação – visto que
ainda carece dos meios fundamentais de comunicação humana. Segundo Vigotski (1996), a
reações positivas ou negativas” (p.304). Nesse período, para o autor, o afeto é o processo
central responsável pela unidade entre as funções sensoriais e motoras; vale ressaltar,
48
Vigotski (1996) procura contrapor-se, com tal afirmação, à concepção de que o bebê é a princípio um ser a-social ou pré-
social, imerso em sua própria subjetividade, que vai gradativamente socializando-se, concepção essa presente em diversas
teorias psicológicas – como por exemplo na noção de autismo do bebê de Piaget ou do narcisismo do bebê de Freud.
150
ademais, que nessa etapa do desenvolvimento infantil, não se verificam ainda ações dirigidas
(1960a) afirma:
Neste período todas as aquisições da criança aparecem sob a influência imediata dos
adultos, que não somente satisfazem todas as suas necessidades, mas organizam
também seu contato variado com a realidade, sua orientação nela e as ações com os
objetos. O adulto leva à criança distintas coisas para que as contemple, movimenta
junto com ela o chocalho, coloca em suas mãos os primeiros objetos para que os
segure; a criança aprende a sentar-se com ajuda do adulto, o adulto a sustenta em
suas primeiras tentativas de colocar-se em pé e andar, etc. (p.507)
Leontiev, Mukhina, Venger, Vigotski, Talízina, entre outros, aponta alguns objetivos
no domínio dos procedimentos socialmente elaborados de ações com tais objetos. Verifica-se,
chamada inteligência prática. Vale ressaltar que o domínio dessas ações é impossível sem a
participação dos adultos, que as mostram para a criança e as realizam juntamente com ela.
151
Conforme Elkonin (1987b), o adulto constitui, dessa forma, o elemento mais importante da
situação objetal, mas pode-se dizer que permanece ‘oculto’ pelo objeto e por suas
desenvolvimento da linguagem, como meio para organizar a colaboração com os adultos, não
contradiz a tese de que a atividade principal nesse período é a atividade objetal (...)”
(ELKONIN, 1987a, p. 118) Segundo Elkonin (1987b), a análise dos contatos verbais da
criança demonstra que a linguagem é utilizada por ela essencialmente no contato prático entre
adulto e criança, isto é, para organizar a colaboração com os adultos no interior da atividade
objetal conjunta. Dessa forma, a comunicação emocional direta com o adulto passa, portanto,
a um segundo plano, e ganha destaque a colaboração prática. Assim, verifica-se que, se por
um lado, a linguagem atua como meio para organizar a comunicação com o adulto, por outro,
primeira infância. O autor afirma que a linguagem infantil deve sua origem às relações da
criança com os adultos e que “são eles [os adultos] que impulsionam a criança a uma nova via
vinculados e há uma unidade entre a percepção afetiva e a ação – cada percepção da criança é
seguida por uma ação. O que caracteriza a situação social da criança, de acordo com Vigotski,
é a dependência da situação. Leontiev (1987) afirma, nessa direção, que “(...) a criança que
152
ainda não alcançou a idade pré-escolar, se encontra como se estivesse em poder das
percepção sem palavras vai sendo paulatinamente substituída pela percepção verbal, dotada
no interior de um todo que possui, para além de suas propriedades físicas, um determinado
sentido social.
identificar na conduta da criança a compreensão verbal dos objetos e de sua própria conduta:
“(...) creio que a primeira infância é, justamente, a etapa na qual surge a estrutura semântica e
sistêmica da consciência, quando surge a consciência histórica do ser humano existente para
De acordo com Lima (2001), o trabalho do professor junto a essa faixa etária deve
visar:
ocorrência da chamada crise dos três anos. Elkonin (1987b) não se debruça sobre essa
A crise dos três anos é discutida de maneira relativamente breve por Vigotski49. O
autor alerta o leitor acerca do caráter inicial e inacabado de sua exposição acerca da crise dos
três anos: “a tentativa de explicar teoricamente a crise dos três anos é uma tentativa inicial (...)
nossa tentativa é totalmente prévia e, em certa medida, subjetiva, que não pretende ser uma
a crise dos três anos, quais sejam: a) negativismo, que se caracteriza pelo fato de a conduta da
criança opor-se a tudo o que lhe propõem os adultos – ressaltando-se que não se trata de uma
reação ao conteúdo específico das solicitações ou proposições, mas ao fato mesmo de tal
solicitação ou proposição ter sido feita pelo adulto; b) teimosia, que se refere à atitude da
criança de insistir em ser atendida em suas exigências (vale destacar que tal insistência não se
deve ao desejo intenso da criança de obter algo, mas ao fato de querer ser atendida em algo
que ela disse ou exigiu anteriormente); c) rebeldia, atitude de protesto generalizado, dirigido
não a pessoas (como no caso do negativismo), mas às normas educativas e ao regime de vida
independente e querer fazer tudo por si mesma. Além desses, são descritos pelo autor outros
49
O capítulo intitulado La crisis de los tres años, que compõe a obra Problemas de la psicologia infantil, trata-se da
transcrição de uma palestra ministrada por Vigotski. O capítulo contém apenas 7 páginas, o que corresponde a um terço do
número de páginas dedicadas à crise do primeiro ano (21) e quase um quarto do número de páginas dedicadas à primeira
infância (26).
154
criança: “todos esses sintomas, que giram em torno do ‘eu’ e das pessoas que o rodeiam,
demonstram que as relações da criança com as pessoas a sua volta ou com sua própria
Chamou-me muitas vezes a atenção o que disse Ch. Darwin: a criança, no momento
em que nasce, se separa fisicamente da mãe, mas nem sua alimentação nem sua
locomoção são possíveis sem ela. Para Darwin, trata-se de uma prova da
dependência biológica da criança (...), quer dizer, biologicamente a criança continua
unida à mãe. Desenvolvendo a idéia de Darwin, cabe dizer que a criança no período
da primeira infância está separada biologicamente, mas não psicologicamente das
pessoas que a rodeiam. Para Beringer, a criança até os três anos está socialmente
unida às pessoas a sua volta, mas a crise dos três anos marca uma nova etapa de sua
emancipação (p.373)
Há uma constatação bastante importante acerca dos avanços na conduta da criança que
aparecem nessa fase: modifica-se a relação da criança com seus próprios afetos e ela já é
capaz de agir contra seus próprios desejos. Vejamos um exemplo referente a um experimento
realizado por Vigotski: pelo imperativo de contrapor-se ao adulto, a criança é capaz de recusar
um convite para um passeio, mesmo que tenha anteriormente expressado o desejo de fazer o
passeio – simplesmente porque o convite foi feito pelo adulto. Trata-se de uma grande
conquista da criança, que revela que ela não é mais totalmente dominada pelo afeto (no
exemplo, o desejo de fazer o passeio), como ocorria na primeira infância em função unidade
entre afeto e atividade; agora, o motivo de sua reação não está mais necessariamente
infantil pode conduzir os educadores a atitudes inadequadas perante a criança que se recusa a
atender suas solicitações, por exemplo – atitudes essas que, ao invés de promoverem o
155
Cabe destacar aqui, que, na análise de Leontiev (2001a), a crise dos três anos e as
(dentre elas a crise dos sete anos), não são necessárias e inevitáveis. Afirma o autor:
Essas crises – a dos três anos, a dos sete anos, a da adolescência, a da juventude –
estão sempre associadas com uma mudança de estágio. Elas indicam, de forma clara,
de forma óbvia, que estas mudanças, estas transições de um estágio a outro possuem
uma necessidade interior própria. Mas serão, tais crises, inevitáveis no
desenvolvimento de uma criança?
A existência do desenvolvimento de crises é conhecida há muito tempo, e a
interpretação clássica de tais crises é que elas são causadas pelas características
interiores da criança em maturação e pelas contradições que surgem nessa área, entre
a criança e o ambiente. Do ponto de vista desta interpretação, as crises são, é claro,
inevitáveis porque essas contradições são inevitáveis em quaisquer condições.
Porém, não há nada mais falso na teoria do desenvolvimento da psique de uma
criança do que esta idéia.
Na realidade, as crises não são absolutamente acompanhantes do desenvolvimento
psíquico. Não são as crises que são inevitáveis, mas o momento crítico, a ruptura,
as mudanças qualitativas no desenvolvimento. A crise, pelo contrário, é a prova de
que um momento crítico ou uma mudança não se deu em tempo. Não ocorrerão
crises se o desenvolvimento psíquico da criança não tomar forma espontaneamente
e, sim, se for um processo racionalmente controlado, uma criação controlada.
(p.67)
Esse trecho traz, de forma clara, a perspectiva de Leontiev (2001a) de que o educador
mas, ao contrário, deve dirigir ou controlar racionalmente esse processo. Cabe esclarecer que
a liberdade não são características dadas a priori na criança, mas justamente possibilitadas
pelo processo educativo50. Leontiev (1978) defende que o professor conheça profundamente o
processo de desenvolvimento infantil e suas forças motrizes, para que, de posse de tal
50
A propósito da criatividade da criança, Vigotski (2003) afirma que a atividade criadora da imaginação “depende
diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior do homem, já que esta experiência proporciona o material
com qual se estrutura a fantasia” (p.22).
156
até o sexto ano de vida, é o período em que se abre cada vez mais para a criança o mundo da
realidade humana que a rodeia: “em toda a sua atividade e, sobretudo, em seus jogos, que
ultrapassaram agora os estreitos limites da manipulação dos objetos que a cercam, a criança
penetra um mundo mais amplo, assimilando-o de forma eficaz” (p.59). De acordo com o
autor, a criança assimila o mundo humano reproduzindo as ações humanas com objetos.
manipulatória é, para Elkonin (1987b), a inclusão das ações no sistema social de relações
humanas, permitindo à criança, dessa forma, apropriar-se do sentido social das atividades
humanas. Para o autor, “sobre essa base se forma na criança a aspiração a realizar uma
surgimento de uma nova e rara contradição entre, por um lado, o rápido desenvolvimento da
157
necessidade da criança de agir com objetos – não basta para a criança contemplar um carro
em movimento ou mesmo sentar-se nele, ela precisa agir, guiá-lo, comandá-lo – e, por outro
lado, a impossibilidade de executar as operações exigidas pelas ações: “a criança quer, ela
mesma, guiar o carro; ela quer remar o barco sozinha, mas não pode agir assim, e não pode
principalmente porque ainda não dominou e não pode dominar as operações exigidas pelas
Leontiev (2001b, p.120) ressalta que: “para a criança, neste nível de desenvolvimento
físico, não há ainda atividade teórica abstrata, e a consciência das coisas, por conseguinte,
emerge nela, primeiramente, sob a forma de ação. Uma criança que domina o mundo que a
cerca é a criança que se esforça para agir neste mundo”. Assim, essa contradição entre a
a criança por um único tipo de atividade: a atividade lúdica, o jogo. Também na análise de
“tendências irrealizáveis”.
Por não se caracterizar como uma atividade produtiva, o alvo do jogo não está em seu
resultado objetivo, mas na ação em si mesma. Dessa forma: “o jogo está, pois, livre do
aspecto obrigatório da ação dada, a qual é determinada por suas condições atuais, isto é, livre
dos modos obrigatórios de agir ou de operações” (LEONTIEV, 2001b, p.122). Por essa
por outras sem prejuízo do conteúdo da ação. Do ponto de vista da estrutura da atividade
lúdica, verifica-se, nesse sentido, no jogo, uma discrepância entre a ação e a operação: a ação
cavalo utilizando um objeto diretamente acessível a ela, como, por exemplo, uma vara, de
modo que “(...) a operação corresponde à madeira [vara] e a ação, ao cavalo” (idem, p.125)51.
uma área mais ampla da realidade por parte da criança – área esta que não é diretamente
não produtiva, é que a criança não compreende os motivos que a levam a brincar, ou seja, não
age conscientemente – ao contrário: “ela brinca sem perceber os motivos da atividade. Nisso,
(VYGOTSKY, 2002, p.4). Leontiev (2001b) afirma que a brincadeira infantil pode ser
autor afirma que ela se torna possível com a separação dos campos da visão e do significado
que ocorre no período pré-escolar. Enquanto nos períodos anteriores predomina a união entre
afeto e percepção, o que torna a criança presa à situação imediata, com o jogo pré-escolar a
criança aprende a agir mais em função de tendências e motivos internos do que estímulos
A ação em uma situação que não é vista, mas apenas concebida num nível
imaginativo e em uma situação imaginária, ensina a criança a guiar seu
comportamento não apenas pela percepção imediata dos objetos ou pela situação
que a afeta imediatamente, mas também pelo significado da situação (p.9)
Assim, a ação da criança passa a ser determinada pelas idéias, não mais pelos objetos
– e isso representa uma grande mudança na relação da criança com o meio circundante. Nesse
51
Essa discrepância detectada na estrutura da atividade da criança se reflete na estrutura da consciência. Assim, para
Leontiev (2001b), a atividade lúdica caracteriza-se por uma ruptura entre significado e sentido. No exemplo da criança que
brinca de montar a cavalo com o objeto vara de madeira, temos que as propriedades da vara e o modo possível de utilizá-la
formam o significado desse objeto. Na brincadeira, portanto, o objeto conserva seu significado para a criança, cujas
operações corresponderão exatamente às propriedades concretas. Em outras palavras, a vara permanece uma vara para a
criança – retém, portanto, seu significado. Por outro lado, a vara adquire um sentido na brincadeira estranho a seu significado:
“(...) a vara adquire o sentido de um cavalo para a criança. Este é um sentido lúdico” (LEONTIEV, 2001b, p.128).
159
sentido, é possível compreender o jogo como uma transição entre a absoluta dependência da
totalmente liberto das situações reais, que constitui uma conquista tardia do desenvolvimento
humano (VYGOTSKY, 2002). Para Elkonin (1960b), nesse sentido, no jogo de papéis se
papel), na medida em que exige a contenção dos impulsos imediatos, sua subordinação à
Leontiev (2001b), o conteúdo fundamental dos jogos de enredo infantis refere-se às atividades
sociais dos adultos e relações sociais que se estabelecem entre eles. A criança reproduz no
jogo as funções sociais dos adultos e atua de forma semelhante a eles, refletindo em sua
produção que a rodeiam. Quanto mais estreito é o círculo da realidade com o qual a
criança tem contato, mais monótonos e pobres são as tramas de seus jogos. (...) O
desenvolvimento do assunto dos jogos infantis está em relação direta com a
ampliação do círculo de conhecimentos da criança, com o aumento de sua
experiência de vida e com a aquisição de um conhecimento mais amplo do conteúdo
da vida dos adultos. (ELKONIN, 1960c, p.513, grifo nosso)
realidade social “(...) provêm dos encontros diretos com essas pessoas, do que sobre elas
relata o pedagogo, dos livros. Nesse sentido, as fontes de conhecimentos que adquirem as
crianças são múltiplas” (ELKONIN, 1987a, p.92). É tarefa da escola de educação infantil,
portanto, ampliar o círculo de contatos com a realidade da criança. Essa tarefa assume ainda
maior relevância, em nosso ponto de vista, quando se trata das crianças provenientes das
classes populares – ou classe que vive do trabalho52, tendo em vista o quanto a organização
social capitalista restringe desde a mais tenra infância a essas crianças o acesso ao
não são tão claras e definidas quanto em outras tarefas. Nesse sentido, o autor considera a
tarefa de organizar e estimular o jogo criativo das crianças pré-escolares mais difícil do que
Dessa forma, Elkonin (1987a) concebe que a análise da natureza do jogo deve permitir
não apenas compreender a importância do jogo para o desenvolvimento da criança, “(...) mas
também dar-nos a chave para dominar o processo de jogo, para aprender a dirigi-lo
52
Segundo a expressão de Antunes (1997).
53
Essa constatação foi por nós ilustrada na introdução desse trabalho, por meio do relato de nossa experiência de estágio
junto a um grupo de alunos da turma do pré de uma escola de educação infantil integrada.
161
escolar” (p.85). Também Leontiev (2001b) considera que, sendo o jogo a atividade principal
da criança nessa faixa etária, é fundamental para o educador saber controlar o brinquedo de
uma criança, o que se torna possível através da compreensão das próprias leis do
(1987a) afirma:
O desenvolvimento dos jogos, tanto no que diz respeito a seu argumento quanto a
seu conteúdo, não se efetiva de uma maneira passiva. A passagem de um nível do
jogo a outro se realiza graças à direção dos adultos, que sem alterar a atividade
independente e de caráter criador ajudam a criança a descobrir determinadas facetas
da realidade que se refletirão posteriormente no jogo: as particularidades da
atividade dos adultos, as funções sociais das pessoas, as relações sociais entre elas, o
sentimento social da atividade humana. O conteúdo dos jogos de argumento tem
uma significação educativa importante. Por isso é preciso observar com cuidado do
que brincam as crianças. É preciso dar-lhes a conhecer aquelas facetas da realidade
cuja reprodução nos jogos pode exercer uma influência educativa positiva e distraí-
las da representação daquilo que possa desenvolver qualidades negativas
(ELKONIN, 1960b, p.513, grifo no original)
O autor esclarece, nesse trecho, que a intervenção do professor no jogo não implica na
diferenciação indicada por Leontiev (2001a) entre o necessário ‘controle’ da brincadeira pelo
para ensinar) e ‘atividades livres’ (supostamente para brincar), bastante presente nas
tais atividades, dentre elas o jogo de papéis, é imprescindível que o professor que atua junto à
54
Essa dicotomia fica evidenciada em pesquisa realizada por Lara (2000) em uma instituição de educação infantil. As
professoras entrevistas pela pesquisadora afirmaram que “nas brincadeiras a professora não deve intervir; a atividade deve
ser planejada, a brincadeira não” (p.220) e que “a gente não pode ficar só na brincadeira porque a gente tem que passar a
parte pedagógica também” (p.221).
162
faixa etária de 0 a 6 anos, em seu processo de formação, tenha acesso aos diferentes saberes
CAVALCANTE, 2005). Dessa forma, o professor revela para a criança, como indica Elkonin
(1960b), aquelas facetas da realidade que ela somente pode conhecer pela via de sua
Elkonin (1987a) conclui sua análise sobre os problemas psicológicos do jogo na idade
tanto na seleção de temas para a brincadeira, quanto na distribuição dos papéis entre as
crianças e definição dos acessórios a serem utilizados. O autor esclarece ainda que os papéis
propostos pelo educador às crianças podem ou não ser atrativos para elas, sendo que serão
tanto mais atrativos quanto mais repletos de ações saturadas de conteúdo e sentido e relações
163
profundas com os outros papéis que compõem a brincadeira: “saturando o papel de conteúdo
desejos infantis, de dirigi-los, faz do jogo um poderoso meio educativo quando se introduzem
nele temas que possuem grande importância para a educação” (idem, p.101).
Elkonin (1987a) ilustra essa questão afirmando que quando a criança representa em seu jogo,
por exemplo, um piloto de avião, ela pode tanto reproduzir relações de subordinação e
marcadas pela camaradagem e pelo respeito. Cabe ao professor, portanto, introduzir no jogo
infantil uma nova atitude do homem perante o homem, dirigindo a atenção das crianças e
tornando assim atrativos para elas aqueles aspectos da vida dos adultos que caracterizam essa
atitude comunista55.
Tendo em vista o exposto, fica evidente que a enorme importância do jogo de papéis
Para Vigotski (1996), a transição da idade pré-escolar à idade escolar é marcada pela
crise dos sete anos. Essa crise se caracteriza, segundo o autor, fundamentalmente pela ‘perda
55
Elkonin (1987a) considera que os sistemas burgueses de educação não podem encontrar o verdadeiro lugar do jogo no
desenvolvimento da criança, porque as qualidades que se educam nessa atividade, dentre elas o desenvolvimento dos
aspectos criativos da personalidade, contradizem o sistema de relações sociais em que o indivíduo deverá atuar nessa
sociedade. Para o autor, apenas no sistema socialista de educação o jogo pode ser explorado em todo o seu potencial
educativo.
164
da espontaneidade infantil’56. A criança passa a ser capaz de julgar a si mesma e a valorar sua
posição no contexto social. A partir desse período, pode-se dizer que as vivências da criança
adquirem sentido.
Com a transição à idade escolar, segundo Elkonin (1987b), emerge como atividade
de estudo consiste em que, por meio dela, se mediatiza todo o sistema de relações da criança
com os adultos que a circundam. Logo, somos levados a concluir que, anteriormente a esse
momento do desenvolvimento infantil, as relações da criança com os adultos têm caráter mais
propriamente imediato.
como aquela na qual transcorre a assimilação de novos conhecimentos, “(...) cuja direção
constitui o objetivo fundamental do ensino” (p.119). Tal afirmação do autor sugere que a
atividade de ensino poderia ser definida como aquela que tem como objetivo fundamental
dirigir a atividade de estudo. Nesse sentido, sua pertinência na atuação pedagógica junto à
faixa etária de 0 a 6 anos poderia ser questionada. Vale ressaltar que essa definição aproxima-
(1978), como visto no segundo capítulo dessa dissertação, entre a simples imitação do meio,
atividade de estudo não se inicia com a transição à idade escolar, mas já na idade pré-escolar,
embora não figure ainda como atividade principal. Ao analisar – no texto Característica
general del desarrollo psiquico de los niños – as atividades produtivas que, ao lado do jogo,
56
Deter-nos-emos mais demoradamente na análise da ‘perda da espontaneidade infantil’ no tópico dedicado à discussão da
espontaneidade do pensamento e das ações da criança de 0 a 6 anos.
165
também fazem parte da idade pré-escolar – tais como desenho, construção, modelagem, etc. –
Dentro desses tipos de atividade, pela primeira vez se coloca a tarefa de aprender
determinadas habilidades. Assim aparecem as premissas para sua aprendizagem. Na
segunda metade da idade pré-escolar se torna possível separar o ensino em classes
especiais nas quais as crianças aprendam conhecimentos e habilidades que lhe são
acessíveis. Essas classes nas quais se coloca a tarefa de adquirir conhecimentos e
habilidades são um grau preparatório para o ensino primário. Preparam as crianças
para a escola. (p.515-6, grifo no original)
principal é aquela na qual surgem e a partir da qual se diferenciam outros tipos de atividade,
dirigir a atividade de estudo, na perspectiva dos autores o ensino deve iniciar-se já antes da
atividade de ensino.
anos é apontada por Davidov (1988), no contexto de sua análise das mudanças do sistema de
ensino em seu país. O autor nos esclarece que a Reforma Escolar de 1984 antecipou, na
Rússia, o início da escolaridade para os seis anos e não deixa dúvidas quanto à possibilidade
Embora o autor não explicite quais seriam as novas formas e meios para realizar essa
atividade, podemos inferir que, segundo sua perspectiva, a atividade de estudo teria como
pensamento teórico em Davidov refere-se ao pensamento que opera sobre a base de conceitos,
realidade e se pauta pelos princípios da lógica formal, o pensamento teórico pauta-se pelos
Fundamental de 9 anos, Davidov (1988) considera que essa mudança lança uma série de
questionamentos para os pesquisadores e profissionais que atuam junto a essa faixa etária:
educação da criança.
preparação para o ingresso na escola. O autor postula que na primeira época de estudo na
escola, o trabalho do escolar depende em grande medida do grau de preparação com que
chega a ela, o que, por sua vez, é determinado pela educação na primeira infância e na idade
pré-escolar. Além disso, Elkonin (1960c) chama a atenção para os possíveis prejuízos que a
167
educação da criança de 0 a 6 anos tem como uma de suas tarefas fundamentais ensinar a
resultado do processo educativo. Fica evidente, ainda, que uma educação meramente calcada
no prazer, que não exija da criança pequena ‘esforços mentais’, não apenas desconsidera as
futuras exigências que se colocarão para a criança na escola como pode retardar as
aprendizagens escolares, por não ter garantido, no processo de desenvolvimento infantil, suas
premissas.
A segunda conclusão refere-se à vinculação mais estreita que deveria existir entre a
segundo a qual a idade pré-escolar e a idade escolar compõem uma mesma época do
De acordo com as exigências que se depreendem dessa hipótese, ali onde no sistema
atual se observa uma ruptura (instituição pré-escolar – escola) deve existir uma
vinculação mais orgânica. Por outro lado, ali onde existe hoje uma continuidade
(graus primários – graus médios) deve haver uma passagem a um novo sistema
educativo e de ensino. (p.124).
168
Fica evidente, assim, que a idade pré-escolar e a primeira idade escolar apresentam
importantes vinculações que merecem ser exploradas pelos pesquisadores, movimento que
infantil como segmento voltado para a preparação para a escola, tem-se incorrido, muitas
desenvolvimento e ensino na faixa etária de 0 a 6 anos. Essa temática foi objeto de análise de
propriamente escolar.
e dos meios pelos quais o homem domina o processo do próprio comportamento, bem como
Assim, Vigotski considerava que o emprego funcional da palavra/ signo era a chave
(...) um conceito é mais do que a soma de certos vínculos associativos formados pela
memória, é mais do que um simples hábito mental; é um ato real e complexo do
pensamento que não pode ser aprendido por meio de simples memorização, só
podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já
houver atingido o seu nível mais elevado. A investigação nos ensina que, em
qualquer nível do seu desenvolvimento, o conceito é, em termos psicológicos, um
ato de generalização. (VIGOTSKI, 2001a, p.246).
Nesse sentido, para Vigotski (2001a), no momento em que a criança assimila pela
desse conceito não termina, mas está apenas começando. Uma das teses fundamentais
Facci (2004b) nos informa que Vigotski realizou experimentos sobre a formação de
conceitos com mais de 300 pessoas de diferentes faixas etárias, buscando compreender o
conceitos. A constatação a que chega Vigotski a partir de suas pesquisas, segundo a autora, é
a seguinte:
Com isso, fica claro que o pensamento conceitual ainda não é plenamente acessível à
criança de 0 a 6 anos. Por outro lado, é nesse período que se estabelecem as raízes para o
funcionais como formações intelectuais originais que em sua aparência externa assemelham-
mas pondera que “(...) pela sua natureza psicológica, a composição, a estrutura e o modo de
atividade, eles têm tanta relação com os conceitos quanto um embrião com o organismo
maduro” (p.168). Vale ressaltar que a evolução das formas inferiores para as superiores de
pensamento não se dá por uma mera complexificação quantitativa, mas por mudanças
qualitativas.
caracterizada pela extensão difusa e não direcionada do significado da palavra ou signo a uma
infância. A criança tende a associar elementos os mais diversos, fundindo-os numa imagem
que não pode ser desmembrada. Assim, o significado atribuído pela criança a alguma palavra
pode lembrar, em aparência, o significado dado à palavra pelo adulto, em especial quando se
refere a objetos concretos da realidade que rodeia a criança – o que possibilita a comunicação
entre adulto e criança – mas constitui nesse estágio um encadeamento sincrético de objetos
171
particulares que aparecem à criança concatenados em uma imagem mista. Trata-se, para
Vigotski (2001a), de uma “(...) tendência infantil a substituir a carência de nexos objetivos por
pensamento com a relação entre os objetos” (p.175). Essa superprodução de nexos subjetivos
criança não mais confunde as relações entre as suas próprias impressões com as relações entre
complexos são ainda inteiramente diversas daqueles que determinam o pensamento conceitual
embora ela conceba o mesmo objeto de forma diferente do adulto, por outro meio e com o
vínculos e relações entre os objetos que são impossíveis e impensáveis do ponto de vista do
pensamento conceitual.
O complexo tem em sua base vínculos concretos e factuais os mais diversos entre
elementos particulares que se revelam na experiência imediata. Ele representa “(...) uma
unificação concreta com um grupo de objetos com base na semelhança física entre eles”
impressão obtida a partir dos objetos, ou seja, o complexo expressa um vínculo concreto,
172
factual e fortuito. Desse modo, qualquer relação concreta descoberta pela criança pode levar à
inclusão de um dado elemento no complexo. No conceito, por sua vez, os objetos estão
generalizados por um traço essencial. A característica mais importante que permite distinguir
o complexo do conceito é a diversidade de vínculos que lhe servem de base, visto que o
conceito caracteriza-se pelo caráter essencial e uniforme dos vínculos. Além disso, no
complexo não há relações hierárquicas entre os traços dos diversos objetos – todos os traços
uma forma que se assemelha em muito àquela dos complexos infantis. (...) o universo dos
objetos isolados torna-se organizado para ela pelo fato de tais objetos se agruparem em
‘famílias’ interligadas” (p.180). Nessa fase do desenvolvimento, pode-se dizer, portanto, que
permite compreender porque inicialmente para a criança “(...) uma mesma palavra [pode]
apresentar significados diferentes ou até mesmo opostos em diferentes situações, desde que
haja algum elo associativo entre elas” (VIGOTSKI, 2001a, p.204). Posteriormente, o
concreto e factual em que são dados na experiência. O signo desempenha a função de meio de
sua síntese e simbolização. O domínio do processo de abstração, condição sine qua non para a
Cada um desses três grandes estágios divide-se em várias fases. Por tratar-se de
resultado de análise experimental, as conclusões a que chega Vigotski têm, segundo o próprio
autor, caráter eminentemente lógico. Por esse motivo, o autor salienta que as fases e sua
suas investigações:
complexos ou noções gerais da criança pré-escolar. O autor afirma que os complexos são
57
“Mas o conceito, ou melhor, o pré-conceito, como preferiríamos denominar esses conceitos do escolar não-conscientizados
e que ainda não atingiram o nível superior de seu desenvolvimento, surge justamente na idade escolar e só amadurece ao
longo dessa idade” (VIGOTSKI, 2001, p.287).
58
“Já tivemos oportunidade de ressalvar que o processo de desenvolvimento dos conceitos infantis foi apresentado na
maneira como nós o verificamos nas condições artificiais da análise experimental. Essas condições constituem o processo de
desenvolvimento dos conceitos em sua seqüência lógica, e por isso se desviam inevitavelmente do processo real de
desenvolvimento de tais conceitos” (VIGOTSKI, 2001a, p.219).
59
“Essas formações complexas espontâneas constituem todo o primeiro capítulo da história do desenvolvimento das palavras
infantis” (VIGOTSKI, 2001a, p.204).
174
na criança. Ele vincula a própria atividade da criança, ao orientá-la por um curso determinado
das palavras são dadas, para Vigotski (2001a), pelas pessoas que rodeiam a criança no
Por outro lado, em função das possibilidades ainda restritas de operações intelectuais
colocadas nesse momento de seu desenvolvimento, a criança não pode assimilar de imediato o
modo de pensamento dos adultos; dessa forma, a criança “(...) recebe um produto que é
semelhante ao produto dos adultos porém obtido por intermédio de operações intelectuais
“obtém-se algo que, pela aparência, praticamente coincide com os significados das palavras
para os adultos, mas no seu interior difere profundamente delas” (idem, p.193). Essa
da criança, por possibilitar a compreensão mútua entre adulto e criança com o auxílio de
Cabe ressaltar que, para Vigotski (2001a), o pseudoconceito não é uma ‘conquista’
exclusiva da criança, mas também está presente com freqüência no pensamento cotidiano do
(...) mesmo depois de ter aprendido a operar com a forma superior de pensamento –
os conceitos –, a criança não abandona as formas mais elementares, que durante
muito tempo ainda continuam a ser qualitativamente predominantes em muitas áreas
175
do seu pensamento. Até mesmo o adulto está longe de pensar sempre por conceitos.
É muito freqüente o seu pensamento transcorrer no nível do pensamento por
complexos, chegando, às vezes, a descer a formas mais elementares e mais
primitivas.
Mas os próprios conceitos do adolescente e do adulto, uma vez que sua aplicação se
restringe ao campo da experiência puramente cotidiana, freqüentemente não se
colocam acima do nível dos pseudoconceitos e, mesmo tendo todos os atributos de
conceitos do ponto de vista da lógica formal, ainda assim, não são conceitos do
ponto de vista da lógica dialética e não passam de noções gerais, isto é, de
complexos (VIGOTSKI, 2001, p.228-9).
cotidiana, comumente se detém na forma transitória dos pseudoconceitos: “do ponto de vista
dialético, os conceitos não são conceitos propriamente ditos na forma como se encontram no
nosso discurso cotidiano. São antes noções gerais sobre as coisas” (idem, p.218).
consciência de sua existência são, para Vigotski (2001a), aspectos distintos do processo. Para
o autor, a análise da realidade fundamentada em conceitos surge bem antes que a análise dos
processos de síntese abstrata e tomada de consciência, são próprias aos conceitos não-
cotidianos ou não-espontâneos, os quais têm nos conceitos científicos sua expressão mais
“pura” (VIGOTSKI, 2001, p.260). Diante dessa constatação, Vigotski (2001a) empreende
desenvolvimento dos conceitos científicos segue por uma via oposta àquela pela qual
próprio conceito; sua formação parte da relação da criança com objetos vivos e reais. Os
por sua riqueza de conteúdo empírico e sua vinculação com a experiência pessoal da criança.
A criança compreende as causas e relações mais simples, mas não tem consciência dessa
mas tem dificuldades em empregar o conceito abstratamente. Vigotski (2001a) cita o conceito
de irmão como exemplo de conceito espontâneo: “a criança sabe muito bem o que significa
irmão, esse conhecimento está saturado de uma grande experiência, mas quando precisa
resolver um problema abstrato sobre o irmão do irmão, como nas experiências de Piaget, ela
se confunde”60 (p.346).
No conceito científico, por sua vez, a criança toma consciência do conceito bem
melhor do que do objeto nele representado; seu desenvolvimento parte não de uma relação
determinadas situações, visto que carecem de uma vinculação com a experiência pessoal da
criança.
60
Nos experimentos de Piaget, crianças capazes de dizer corretamente seu número de irmãos não eram capazes de responder
corretamente à pergunta sobre o número de irmãos que tem seu irmão.
177
elevam ao nível superior os espontâneos – a nova estrutura, uma vez constituída, transfere-se
para os conceitos anteriormente elaborados: “os conceitos científicos são os portões através
dos quais a tomada de consciência penetra no reino dos conceitos infantil” (p.295).
(2001a), são traços que começam a formar-se na criança apenas no limiar da idade escolar,
Se pedirmos a uma criança pequena que produza uma combinação de sons, sc, por
exemplo, descobriremos que ela não o fará porque a articulação arbitrária
[voluntária] é difícil para ela; mas dentro de uma estrutura como, por exemplo, na
palavra Moscou, ela pronuncia livre e involuntariamente os mesmos sons. Fora dessa
articulação não consegue produzi-los. Assim, a criança consegue pronunciar um
som, mas não consegue fazê-lo voluntariamente. Este é um fato central que diz
respeito a todas as outras operações da criança com a linguagem, este é um fato
fundamental com que deparamos no limiar da idade escolar. Conseqüentemente, a
criança domina certas habilidades no campo da linguagem mas não sabe que as
domina. Essas operações são inconscientes. (p.319-20).
Como na escrita a criança toma consciência pela primeira vez de que a palavra
Moscou é formada pelos sons m-o-s-c-o-u, ela toma conhecimento de sua própria
atividade na produção de sons e começa a pronunciar arbitrariamente
[voluntariamente] cada elemento isolado da estrutura sonora, de igual maneira,
quando está aprendendo a escrever, ela começa a fazer arbitrariamente
[voluntariamente] a mesma coisa que antes fazia não arbitrariamente
[voluntariamente] no campo da linguagem falada (p.321).
ser consideradas as novas formações essenciais da idade escolar. Segundo o autor, todas as
funções básicas envolvidas na aprendizagem própria à idade escolar giram em torno do eixo
dessas novas formações. Desse modo, a idade escolar constitui o período mais propício para o
voluntário. Como vimos, Vigotski (2001a) ressalta que a formação do conceito e a tomada de
consciência de sua existência são aspectos distintos do processo. O autor afirma, nesse
sentido, que “(...) a criança adquire certos hábitos e habilidades numa área específica antes de
“para tomar consciência é necessário que haja o que deve ser conscientizado” (p.286).
como condição para o desenvolvimento dos conceitos científicos por meio do ensino na idade
escolar:
(...) neste momento só nos interessa uma coisa: demonstrar que o sistema e a tomada
de consciência a ele vinculada não são trazidos de fora para o campo dos conceitos
infantis, deslocando o modo próprio da criança de informar e de empregar conceitos,
mas que esse sistema e essa tomada de consciência já pressupõem a existência de
conceitos infantis bastante ricos e maduros, sem os quais a criança não dispõe
daquilo que deve tornar-se objeto de sua tomada de consciência e de sua
sistematização (...) (VIGOTSKI, 2001a, p.293, grifo nosso).
pedagógico na Educação Infantil pode ser extraída dessa análise de Vigotski (2001a) acerca
que o desenvolvimento dos conceitos espontâneos atinja efetivamente esse limiar indicado
pelo autor:
Adiante, porém, esclarece que essa análise encontra-se fora dos objetivos de sua
professor não deve trabalhar conceitos científicos com a criança pré-escolar? O professor
Ainda nos resta dizer que a investigação dos conceitos reais nos levou a expor
também o último elo de toda a cadeia das relações de transição de um estágio para
outro. Já nos referimos ao vínculo entre os complexos e os sincrets no processo de
transição da tenra idade para a idade pré-escolar e à ligação dos pré-conceitos com
os conceitos na transição da idade escolar para a adolescência. O presente estudo
dos conceitos científicos e espontâneos revela um elo intermediário que aí está
61
O objeto da investigação é o desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar.
180
disponibilizados pela cultura. Não é ainda acessível à criança até o sexto ano de vida o
Na verdade, tal funcionamento não é ainda inteiramente acessível nem mesmo à criança no
próximo.
Dessa forma, a cronologia sugerida pelo autor não deve, em nossa avaliação, ser
lógica dialética, buscar o movimento que caracteriza a relação entre uns e outros conceitos.
revelam interligados por complexos vínculos internos e que os conceitos espontâneos atuam
Para elucidar essa relação, Vigotski (2001a) recorre a uma analogia com o ensino da
língua materna e estrangeira. Para o autor, o desenvolvimento da língua materna começa pelo
uso livre e espontâneo da fala e termina na tomada de consciência das formas de linguagem e
Vigotski (2001a) esclarece, nesse sentido, que os conceitos não se recriam a cada novo
Essas investigações nos levam a rever a maneira como se realiza a própria transição
de um estágio de desenvolvimento dos significados para outro. Se, como
imaginávamos antes, à luz da primeira investigação, uma nova estrutura de
generalização simplesmente anula a primeira e a substitui, reduzindo a nada todo o
trabalho anterior do pensamento, a passagem para o novo estágio não pode significar
nada a não ser a reconstituição de todas as palavras antes existentes em outra
estrutura de significação. Um trabalho de Sísifo!
Entretanto, a nova investigação mostra que a passagem se realiza por outra via: a
criança forma uma nova estrutura de generalização primeiro com uns poucos
conceitos, habitualmente readquiridos, por exemplo, no processo de aprendizagem;
quando já domina essa nova estrutura, por força disto reconstrói e transforma a
estrutura de todos os conceitos anteriores. (p.374-5)
Fica claro, assim, que a aprendizagem dos conceitos científicos na idade escolar
nova fase de generalização não surge, afirma Vigotski (2001a, p.375), “(...) senão com base
na anterior”. Isso significa que o trabalho anterior do pensamento não é anulado, mas
conhecimento científico para a idade escolar. Em outras palavras, o fato de a criança ainda
não operar cognitivamente de forma voluntária e consciente com os conceitos não impede que
o professor insira nas atividades pedagógicas conteúdos científicos. Segundo a Profª Drª Lígia
atuam como mediadores na apropriação dos conceitos científicos, então podemos inferir que
quanto maior a discrepância entre os significados assimilados pela criança na fase espontânea
tomada de consciência dos conceitos que começa a se produzir na idade escolar é a existência
de conceitos infantis bastante “ricos e maduros”. Assim, poderíamos afirmar que o trabalho
183
Vale lembrar que Vigotski (2001a) não analisa a atividade do educador, mas investiga
professor que atua junto a essa faixa etária é como trabalhar o conhecimento científico com
espontâneos. Trata-se, contudo, de um desafio que não pode ser respondido exclusivamente
tópico anterior, vale ressaltar que a tarefa de ensinar a pensar não pode ser plenamente
realizada senão pela via da transmissão (e apropriação) de conceitos. Vigotski (2001a) refuta
a separação entre conhecimento e pensamento subjacente, segundo ele, à obra de Piaget: “(...)
Piaget faz perguntas à criança já precavido de que a criança pode ter algum conhecimento do
que lhe estão perguntando. E se fizermos esse tipo de pergunta à criança, não obtemos
faixa etária.
anos
aparece com clareza na conferência em que Vygotski (1996) aborda a crise dos sete anos.
Para o autor, como já sinalizamos, a principal característica da crise dos sete anos é o
que ele denomina de perda da espontaneidade infantil. Segundo Vygotski (1996), a criança
exterior – a criança se manifesta externamente tal como ela é “por dentro”. Em linhas gerais,
incorporamos à nossa conduta o fator intelectual que se insere entre a vivência e o ato direto”
(p.378).
Com a crise dos sete anos, segundo Vigotski (1996), a criança passa a ser capaz de
julgar a si mesma e a valorar sua posição no contexto social. A partir desse período as
vivências da criança adquirem sentido para ela; dessa forma, tornam-se possíveis novas
relações da criança consigo mesma, que até então não lhe eram acessíveis.
Uma criança de seis anos pode ler muito bem e, em certas circunstâncias, seu
conhecimento pode ser relativamente grande. Isso, todavia, em si mesmo não apaga
– e não pode fazê-lo – o elemento infantil, o elemento verdadeiramente pré-escolar
que existe nela. Pelo contrário, algo de imaturo colore todo o seu conhecimento
(p.60-1, grifo nosso).
185
Uma criança, na fase pré-escolar, responde a uma pergunta que lhe é feita, e uma
criança de primeiro ano responde à mesma questão que lhe é apresentada por seu
professor. Com uma resposta de mesmo conteúdo, todavia, quão diferentes serão
seus discursos. Onde está a antiga naturalidade da fala da criança? A resposta dada
em classe é um ato não-motivado pela necessidade do professor de que lhe falem
sobre algo ou que partilhem algo com ela. Ela inclui uma nova relação e realiza
outra atividade, a de aprender.
A professora pergunta: ‘Quantas janelas há na classe?’ E ela mesma olha para as
janelas. Apesar de tudo é preciso dizer que há três janelas. (...) ‘Pois a professora
não faz perguntas só para entabular uma conversa’ – foi assim que um aluno de
primeiro ano explicou a situação psicológica surgida durante a aula. E é exatamente
isso: ‘não é para conversar’. E por isso o discurso da criança durante a aula é
estruturado psicologicamente, de forma diferente da do discurso empregado no
brinquedo, ou nos contatos verbais com os colegas, pais, etc. (LEONTIEV, 2001a,
p.60-61, grifo nosso).
embrionário, que vai se tornando acessível à criança apenas ao final da idade pré-escolar.
Vimos que no jogo de papéis, atividade principal da idade pré-escolar, a criança brinca
sem perceber os motivos da atividade, ao passo que na atividade de estudo, atividade principal
da idade escolar, está colocado o objetivo consciente de aprender algo. É por meio do próprio
jogo de papéis, contudo, que as ações da criança se tornam pela primeira vez objeto de sua
situação imediata que caracteriza os primeiros anos de vida (VYGOTSKY, 2002). Além
possibilidade de que a criança se proponha a aprender algo que ainda não sabe (ELKONIN,
1960b). Por meio de tais atividades, desenvolve-se na criança a capacidade de estabelecer fins
Podemos dizer, nesse sentido, que ao longo da idade pré-escolar vão se criando as
condições para que a criança vá se tornando paulatinamente mais consciente de sua própria
conduta e dos motivos de suas ações, até que se opere o salto qualitativo na transição ao
qualidade, podemos afirmar que as conquistas obtidas na transição à idade escolar só são
Vigotski (2001), deve criar condições para que a voluntariedade e a tomada de consciência
da transição à idade escolar. Assim, diante de todo o exposto, parece-nos plausível concluir
que, embora a espontaneidade das ações e do pensamento infantis constitua uma importante
característica da criança de 0 a 6 anos, o trabalho pedagógico deverá criar condições para sua
gradual superação.
caracterizado por Vigotski (1996) pela perda da espontaneidade infantil, resulta das
outra se forma pela primeira vez na idade pré-escolar (...)” (p.61). Nesse período do
criança, que se formam sobre a base da separação entre os motivos mais importantes e aqueles
De acordo com Leontiev (1987), a criança se torna capaz de realizar durante bastante
tempo uma ação que não gosta em vista da perspectiva de ter acesso a outra mais interessante,
como, por exemplo, numa situação em que a criança se aborrece montando quebra-cabeças e
187
lhe oferecem outro brinquedo mais interessante – mas com a condição de que ela só poderá
criança lembra imediatamente o adulto de que agora deve receber o brinquedo prometido.
Vale ressaltar que, segundo o autor, a possibilidade de subordinar uma ação a outra aparece
entre os motivos é criada a princípio pelas exigências do adulto e somente se efetiva quando
aproximadamente aos 3 anos de idade, encontrando seu pleno desenvolvimento aos 6 anos.
operações, isto é, em meras condições para realização da ação, todas elas subordinadas a um
único fim. Com isso, as operações não mais ocupam a atenção e a consciência da criança,
embora possam, a qualquer momento, ser conscientizadas por ela. A formação de operações
As capacidades requeridas para dirigir a própria conduta, afirma o autor, “(...) se educam e
não se formam por si mesmas” (p.64). Nesse sentido, “é indispensável, portanto, educá-las
corretamente na criança pré-escolar a fim de prepará-la também neste aspecto para a escola”
(idem, p.64). Tais afirmações do autor revelam que a preparação da criança para a escola
deve, em sua análise, constar entre os objetivos pedagógicos das instituições de educação
da criança, vale destacar a afirmação de Vigotski (2001) de que o ensino da idade pré-escolar
transição do tipo espontâneo de aprendizagem em tenra idade [primeira infância] para o tipo
trate, segundo Vigotski (2001a), muito mais de uma conjectura para estudos futuros do que
investigação – 0 a 6 anos.
Buscando assim, mais um elemento para responder à questão que norteou essa
de 0 a 6 anos? – poderíamos afirmar que o trabalho pedagógico nessa faixa etária incide sobre
ou para a tomada de consciência dos motivos de sua atividade e dos conceitos que constituem
62
Vale ressaltar que a plena ‘tomada de consciência’ se efetivará apenas na adolescência e vida adulta, segundo as condições
de vida e educação do indivíduo.
190
CONCLUSÃO:
A defesa do ensino na Educação Infantil
191
que a produção teórica dos autores em questão sustenta a defesa do ensino como elemento
constituído a partir da atividade dos homens em sociedade. Vimos, com Leontiev, que a
formação das aptidões e funções tipicamente humanas não é determinada pelo aparato
biológico da espécie, mas resultado desse processo de apropriação. Esse mesmo postulado
esta presente na obra de Vigotski, em sua análise das funções psíquicas superiores, cujo
desenvolvimento tem origem cultural e não biológica. Vimos, ainda, com Leontiev, que o
desenvolvimento das funções psicológicas dá-se na atividade da criança e que toda função
processa por mudanças meramente quantitativas, mas apresenta saltos qualitativos, que
complexifica em termos estruturais e que novos motivos são formados em íntima relação com
que a criança deve ser ensinada a pensar e a fazer esforços mentais, bem como ser levada a
avançar no sentido do domínio da própria conduta. Verificamos que não é ainda acessível à
criança nessa faixa etária a tomada de consciência dos motivos de suas ações e de seu
não-voluntário, condição essa que vai sendo superada como resultado do processo educativo.
etária, sendo a transição à idade escolar associada, para Vigotski, à perda da espontaneidade
infantil.
junto à criança pequena preconizada pela Pedagogia da Infância. Essa perspectiva teórica não
criança pequena para o trabalho do professor? Não estaria, dessa forma, naturalizando a
Cultural não é possível se pensar o papel do educador como alguém que apenas estimula e
criança.
psíquico da criança, sugerindo, assim, uma possível distinção entre ambos processos. Além
da criança pequena) das formas mais especializadas de ensino escolar. Embora em nenhuma
outra obra do autor tenhamos identificado semelhante distinção, cumpre ressaltar sua
afirmação de que a instrução ‘no sentido mais estrito do termo’ inicia-se na idade pré-escolar
pela referida teoria? A atividade de ensino pode ser associada à instrução (‘no sentido mais
194
estrito do termo’)? E ainda: a distinção entre educação e ensino sugerida na obra dos autores
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que em nenhum momento encontramos a obra dos
autores definições precisas de um e outro processo, não ficando claro, a princípio, o que
permite distingui-los.
como visto, Elkonin (1987b) sugere que a atividade de ensino pode ser definida como aquela
respeito dessa questão na ocasião de sua análise que, mesmo se definida dessa forma, a
atividade de ensino mostra-se pertinente ao trabalho pedagógico junto à criança em idade pré-
escolar.
Nesse mesmo artigo, Elkonin (1987b) afirma, como vimos, que a tentativa de
superado pela psicologia e pelas teorias pedagógicas. Dessa forma, em relação à definição de
criança, podemos argumentar que os autores pesquisados refutariam tal definição, tendo em
vista sua crítica à dicotomização entre a dimensão intelectual e afetiva no processo educativo.
necessariamente sobre as dimensões intelectuais e afetivas da criança, por não ser possível
Vigotski, Leontiev e Elkonin sustentam a defesa do ensino junto à criança de 0 a 6 anos. Se,
de outra forma, definimos o ensino como processo que tem por finalidade dirigir a atividade
de estudo, podemos afirmar que Elkonin e Leontiev defendem sua pertinência e importância
já na idade pré-escolar.
entanto, que essa definição não pode ser buscada exclusivamente no âmbito da psicologia do
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
198
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ANEXOS