ROUXEL, A. Autobiografia de Leitor e Identidade Literária

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AUTOBIOGRAFIA DE LEITOR E IDENTIDADE LITERÁRIA

Annie Rouxel
(Tradução: Neide Luzia de Rezende)

Em 2000, o jornalista Pierre Dumayet inaugura, com seu Autobiographie d’un


lecteur [Autobiografia de um leitor]1, um gênero que situa a identidade do leitor no
coração do percurso autobiográfico. Grande leitor, ele evoca os livros que o marcaram e
analisa, ao longo das obras e de sua vida, as variações de sua relação com o texto na
leitura. Ele “autonomiza”, no gênero autobiográfico, um percurso latente em muitos
escritores, como Gide, que não podia falar dele próprio sem evocar suas leituras, uma
vez que a identidade de leitor é um componente da personalidade desses escritores2, mas
isso é feito de modo fragmentário no âmbito de um projeto mais amplo. Totalmente
centrado na leitura, esse gênero abre a reflexão para a importância que pode ter a
literatura na formação de um indivíduo, para a multiplicidade de modos de apropriação
dos textos, para o lugar da subjetividade no sujeito que constrói o sentido. Não é de
surpreender que a escola se aproveite desse gênero!
Não obstante, a escolarização do gênero suscita inúmeras questões. Podemos, de
imediato, perguntar sobre a pertinência de propor a prática a jovens leitores: qual é o
interesse de um tal exercício? Quais são seus limites? Mas também pensar em que
ensinamentos podemos extrair da experiência de grandes leitores para analisar e
compreender os fundamentos da experiência estética nos leitores em formação? A
autobiografia de leitor permite igualmente de entrever como se determinam os gostos
literários e a identidade de leitor. Descrevendo como se encontram o mundo do texto e o
mundo do leitor, ela permite observar o lugar que ocupa o processo de identificação na
recepção dos textos e a que fenômenos de desdobramento identitário são convidados os
sujeitos leitores durante o ato de leitura.

De um percurso de especialista a sua escolarização

Realizar uma autobiografia de leitor pode se impor como uma necessidade entre
aqueles que, escritores ou críticos literários, mantêm com os livros e a literatura uma

1DUMAYET, P., Autobiographie d’un lecteur. Paris, Pauvert, 2000.


2GIDE, A., Journal 1939-1942. Paris, Gallimard, 1946, p. 24-25: a leitura é um “vício impune”, um “guia do
pensamento”.
relação privilegiada. Grandes leitores, eles não podem se descrever sem evocar os textos
que os marcaram.

Da autobiografia de leitor à identidade literária

É assim que Pierre Dumayet conta “como os escritores entraram” naquilo que
ele denomina “sua segunda vida”3, aquela que os livros nos oferecem,
independentemente de nossa vida cotidiana e de nossa idade. Essa metáfora apresenta a
cultura literária como um universo autônomo disponível a todo momento. Ao pretender
estruturá-lo cronologicamente, o jornalista sublinha as dificuldades próprias do gênero
autobiográfico, ligadas à memória recomposta. Ele se pergunta: como “filtrar sua
memória”? E chega a lamentar não ter mantido, como Queneau, durante sessenta anos
um caderno de leituras. Ele constata também: “Como é difícil reencontrar o leitor que
éramos”4. Sua busca é dupla: reencontrar os textos que compõem “sua segunda vida” e
se reencontrar ele mesmo tal qual era. Esse desejo de autenticidade o conduz às vezes a
se descuidar das traições da memória, a preferir a releitura de um livro cujo enredo se
apagou, à “lembrança esquecida” que o faz ouvir a “voz sem palavras” das
personagens5. Desse modo, P. Dumayet desloca e circunscreve o objeto do pacto
autobiográfico rumo à sinceridade – e à verdade – não do indivíduo no seu conjunto,
mas do leitor.
Essa tentação de se dizer pelos livros existe também em numerosos escritores,
mas, de fato, ela se limita com frequência à cena inaugural da vida de leitor e às leituras
de infância ou de juventude. Les Confessions, Claudine à l’école, Si le grain ne meurt,
Les Mots, Mémoires d’une jeune fille rangée, e W ou le souvenir d’enfance dão lugar a
esses motivos cujo liame com o devir de seu autor podemos pressentir.
Em Gide, entretanto, existe a ideia da autobiografia de leitor. No seu Diário6 ,
em agosto de 1940, declara: “Eu queria escrever, nem que fosse apenas por
reconhecimento, por elogio das obras que me ensinaram a me conhecer7, que me

3 DUMAYET, P., op. cit., p. 40.


4 Ibid., p. 29.
5 Ibid., p. 12-13. P. Dumayet evoca a leitura de Madame Thérèse de Erkmann e Chatrian: “O que me resta

é a voz de Madame Thérèse, uma voz sem palavras, quase real, uma voz que não canta, mas que
poderia falar em caso de perigo. Mélisande tem uma voz dessa natureza...”.
6 A. Gide, Journal 1939-1942, p. cit. p. 78.
7 Ibid., p. 76: Gide cita como exemplo a tragédia de Eurípedes, as Bacantes, que o abalou profundamente

quando a leu pela primeira vez, pois ela entrou em forte ressonância com seu conflito interior naquele
momento. “Eu deparei com as Bacantes num tempo em que me debatia ainda contra o cerco de uma
moral puritana. A resistência de Penteu era a minha àquilo que um Dioniso secreto propunha”.
formaram. O grande defeito de Si le grain ne meurt...: não digo nesse livro quais foram
os meus iniciadores. Haveria aí matéria para um outro livro, e num plano
completamente diferente”. Contudo, mesmo evocando a autobiografia de leitor, Gide
não a realiza, ou o faz de maneira indireta, pois é um diário que ele escreve, e por causa
disso ele se percebe como sujeito leitor apenas fragmentariamente, na sucessão dos
momentos da escritura, ainda que a atividade de releitura o leve às vezes a mergulhar
em si mesmo para confrontar sua recepção do momento presente àquela de antes.
Por outro lado, ao descrever sua relação com a literatura, introduz a noção
complexa de identidade literária: identidade revelada e construída pela literatura, mas
também por esta descrita. “Frequentemente – escreve – me sinto tentado a elaborar
durante minhas leituras cotidianas uma espécie de antologia, grão que, aqui e acolá, vou
recolhendo”8. Esse gesto antológico aparece como constitutivo dessa identidade literária
na qual se exprimem os gostos pessoais. As obras assim colhidas são revestidas de valor
na história pessoal do leitor: elas são prometidas, julgadas dignas de representá-lo.
A noção de identidade literária supõe, pois, uma espécie de equivalência entre si
e os textos: textos de que eu gosto, que me representam, que metaforicamente falam de
mim, que me fizeram ser o que sou, que dizem aquilo que eu gostaria de dizer, que me
revelaram a mim mesmo. Essa noção requer e estabelece a memória de textos que
perfizeram um percurso – evoca um universo literário – mas inclui também uma relação
com a língua, com a escrita, e com a singularidade do modo de ler, o que Alain Viala
denomina “a retórica do leitor”9 e que ilustra tão bem o romance de Ítalo Calvino, Se um
viajante numa noite de inverno...10
Assim descrita, a autobiografia de leitor é uma tarefa exigente do adulto, grande
leitor, escritor ou mediador e podemos perguntar que pertinência e que desafios essa
prática pode ter no meio escolar.

A autobiografia de leitor no ensino médio e na universidade:


dificuldades e desafios

Uma experiência limitada


Não seria a priori paradoxal propor essa tarefa a jovens leitores, mesmo a alunos
de pouca leitura? O exercício – pois é preciso denominá-lo assim – não é sem risco.

8 Ibid., p. 108.
9 VIALA, A. “L’enjeu em jeu”, in PICARD, M. (dir.), La lecture littéraire. Paris: Clancier-Guénaud, 1987, p.
15-31.
10 CALV INO, I. Se um viajante numa noite de inverno... São Paulo: Cia. das Letras, 1995
Como assumir um estatuto de não-leitor e contar a seu professor sobre a falta de
interesse ou o tédio diante da ideia de abrir um livro? Como falar da falta de vontade de
ler quando se nos propõem uma experiência literária? Para certas escolas, ler é ainda
uma performance que se mede pelo número de páginas e pelo tamanho dos caracteres.
Privada de seus desafios simbólicos, e por isso tornada atividade mecânica, a leitura é
um sofrimento; certos alunos não hesitam em confessá-lo.

Um leitor forçado
Uma segunda dificuldade se refere ao próprio âmbito escolar que tende a
disseminar a imagem de um leitor forçado. As cerca de duzentas autobiografias de
leitores nas quais se apóia esta reflexão foram realizadas por um lado no 1º. e 2º. anos
de escolas de ensino médio e, por outro, na universidade Rennes 2, junto a estudantes de
graduação em Letras que se habilitam para o ensino. As condições de realização são
evidentemente diferentes.
Qualquer que seja o objetivo ou o nível considerado, os discursos colocam em
evidência, entre os jovens leitores, uma clivagem identitária entre o leitor escolar e o
outro leitor que existe nele. Inúmeros testemunhos convergem para denunciar a
obrigação da leitura escolar. Os textos propostos em classe, culturalmente distantes das
leituras pessoais, o ritmo de leitura imposto para a descoberta das obras, a lentidão de
seu estudo são igualmente queixas pelas quais alguns alunos justificam sua hostilidade.
Alguns, como esta aluna, se recordam dos terríveis sofrimentos e do trauma de uma
aprendizagem difícil: “E minha vida continuou, engatando as leituras incompreendidas,
forçadas, aumentando meu sofrimento”.
Esse sentimento de obrigação é ainda mais intenso à medida que é reforçado
pela pressão familiar, o que leva o jovem leitor a, às vezes, ele mesmo se forçar à
leitura. Uma estudante de letras clássicas, depois de recordar o papel desempenhado
pelos benefícios da leitura, revela: “Parece que, ao ler, eu associo sempre – em graus
diversos, claro – a ideia de uma certa obrigação externa, às vezes sutil (...) Eu tenho a
impressão que, para mim, ler se conjuga na maior parte do tempo com o verbo dever”.
Finalmente, é bastante surpreendente descobrir, um pouco atenuado nos escritos
dos estudantes universitários, mas ainda assim bem presente, a mesma dicotomia que se
observa junto aos alunos do ensino médio entre leituras escolares e leituras não
escolares. Isso mostra uma identidade dual.
Um ato fundador
Entretanto, apesar das dificuldades, a prática da autobiografia de leitor é
felizmente carregada de ensinamentos para os sujeitos leitores em formação. Fazendo
emergir na consciência uma imagem de si mesmo, ela constitui com frequência o gesto
de uma identidade de leitor constituindo-se ou afirmando-se. Aos professores, ela
oferece a oportunidade de descobrir como se constrói a relação com a leitura e a
literatura. Ainda mais que a rica coleta de autobiografias de leitores em formação se
encontra em muitos pontos com aquelas dos leitores já consolidados.

Desafios identitários, motivos recorrentes

Meu objetivo não é aqui aprofundar os elementos de uma poética do gênero 11.
Pareceu-me mais interessante explorar alguns motivos comuns a todos esses textos
numa perspectiva mais antropológica do que semiótica ou sociológica.

Na origem, o desejo, a emoção

O primeiro elemento que merece reflexão é a importância do desejo e do afetivo


na construção do sujeito como leitor. Como o texto é um “desejo de leitor”, o leitor
deve ser em desejo de texto12. O desejo de ler nasce de mediações cuja natureza às
vezes é imponderável. “A leitura é uma arte que se transmite mais do que se ensina”,
escreve Michèle Petit13. Essa afirmação que pode parecer um tanto provocadora quando
submetida a uma comunidade de professores designa menos o habitus cultural próprio
“dos herdeiros” de Bourdieu do que a questão complexa dos modos de transmissão do
desejo de ler. Este, ela escreve, “nasce frequentemente do desejo de roubar o objeto que
encantava o outro, para ter acesso a ele, conhecer seu segredo, se apropriar de seu
poder, do seu suposto charme”14. Esse desejo de compartilhar uma emoção e de poder
fazê-la nascer, se é fundador e preside ao nascimento do leitor, está também sempre

11 Seria legítimo, a partir das invariantes – iniciação à leitura por intermédio da mãe, leituras de infância e
de juventude, obras marcantes, maneira de ler e relação com o texto no ato lexical e, finalmente,
transformação da autobiografia em auto-retrato – de aprofundar a poética do gênero.
12 BARTHES, R. Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p.13. “O texto que você escreve deve me dar a

prova que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura”.


13 PETIT, M. antropóloga, professora em Paris 1, autora de Eloge de la lecture: la construction de soi,

Paris, Belin, 2002; “Les relations”, conferência pronunciada em 13/11/2003 nas jornadas de estudos da
ADBDP (Associação dos Diretores das Bibliotecas Departamentais de Prêt), publicada na internet:
HTTP://www.adbdp.asso.fr/je2003/petit.htm
14 Ibid.
pronto a reaparecer ao longo da vida. A vontade de compartilhar o prazer ou o
conhecimento do outro estimula a curiosidade. Os adolescentes do 1º ano do ensino
médio insistem no gesto de mediação que permite que se situem numa comunidade15.
Os livros aconselhados por alguém próximo, mas sobretudo pelos colegas suscitam
interesse; da mesma forma, o fato de recomendar um livro é mais conscientemente o
prazer altruísta do compartilhamento, de não deter sozinho o segredo, do que o ato de
reconhecimento de uma obra. Essa experiência que todos conhecemos ocupa um grande
lugar nos relatos dos grandes leitores. Assim, Pierre Dumayet homenageia seu vizinho
de dormitório em Westcliff-on-sea que lia Rabelais em voz alta morrendo de rir16 e
também Étienne Lalou que o fez ler Les nourritures terrestres, enquanto que Gide, na
sua maturidade, rememora a curiosidade que se apossou dele quando ouviu Jean
Schlumberger e Marie Delcourt falar sobre a peça de Eurípides, as Bacantes 17. O desejo
de ler ou reler é um desejo de conhecimento que nasce de uma vontade de compartilhar
com os outros leitores, e a palavra desempenha um papel essencial.
Contudo, os textos dos adolescentes do 1º ano mostram que não há relação
obrigatória entre desejo de ler e prazer de ler. Muitos alunos superam sua reticência em
ler um texto e aceitam de bom grado que sentiram prazer. Mas essa experiência positiva
não chega a vencer no espírito deles o preconceito desfavorável que se associa à ideia
de ler. O que remete à força das representações anteriores e à importância (no caso, a
fragilidade) da ligação com a literatura construída na primeira infância. “A capacidade
de construir com os livros uma relação afetiva, emotiva, e não apenas cognitiva, parece
decisiva” diz ainda Michèle Petit. E é verdade que todas as autobiografias de leitores
mostram que a leitura é quase sempre antes de tudo a procura de uma emoção. Alunos
do ensino médio e superior usam termos hiperbólicos para descrever a recepção das
obras de que eles gostaram, que fizeram com que derramassem lágrimas. Essas reações
sensíveis e violentas são com frequência transcritas metaforicamente pelos escritores.
“Eu vibrei como um violão”, conta Gide em Si Le grain ne meurt18 , evocando, não sem
ironias, sua emoção no trecho do marquês de Saint-Vallier em Le roi s’amuse. Mais
tarde, qualificará a perturbação que o tomou como uma embriaguez ou estado lírico19, e

15 Assim se explica em parte o sucesso de Harry Potter.


16 DUMAYET, P. op. cit., p. 40
17 GIDE, A. Journal 1939-1942, op. cit. p. 76.
18 Gallimard, p. 1965, Ed. folio, p. 146.
19 Ibid, p. 194: “Logo compreendi que a embriaguez sem vinho nada mais é que o estado lírico, e que o

instante feliz em que era tomado por esse delírio era aquele em que Dionisos me visitava”.
fala de deslumbramento para descrever o élan de entusiasmo que o leva à leitura20.
Quanto a P. Dumayet, ele compara a embriaguez à leitura dos filósofos “à sensação que
experimentamos quando entramos numa catedral cuja arquitetura é tão arrebatadora que
nos perguntamos onde ela vai dar”21. Essa impressão de amplitude do ser22 que resulta
do trabalho secreto efetuado pelo texto sobre o sujeito leitor é sem dúvida o que é
essencial na leitura e é precisamente aquilo que não se diz.

Leitura e transformação de si

“Mas o que podemos falar de uma leitura?”, pergunta André Gide, relembrando
o “erro fatal” de seu “relato assim como de todas as memórias; apresenta-se o mais
aparente; o mais importante, sem contornos, elide a apreensão”23. Acontece que, de fato,
cala-se sobre o essencial, aquilo que emerge de si na leitura do texto, a “maneira pela
qual se é perpassado pelo pensamento do outro e que transforma seu próprio
pensamento”24.
Com exceção das obras que espicaçam a consciência e das quais não se
consegue facilmente se desfazer25, é raro que alunos, tanto do ensino médio quanto do
superior, analisem a transformação interior que se opera neles durante a leitura. O mais
frequente é que isso ocorra à revelia, e seus comentários se limitem a um breve resumo
da obra acompanhado da rápida constatação de uma transformação de sua visão de
mundo26.
Quando a construção de si pela leitura é evocada enquanto tal, isso ocorre em
termos genéricos e raramente a partir de uma obra em particular. É assim que uma
estudante universitária explica como após a leitura ela permanece impregnada pelo texto
e percebe as metamorfoses que em surdina se produzem nela: “Tenho dificuldade para
engatar num novo livro logo após ter terminado um: preciso deixar passar o tempo para

20 GIDE, A. Jornal 1939-1942, p. cit., p. 23


21 DUAMYET, P., op. cit. p. 36.
22 Ver também GIDE, A. Si Le grain ne meurt, p. 202: “eu as sentia (as rimas) crescer em mim como o

bater ritmado de duas asas e alçar voo”.


23 ibid, p. 204
24 ibid, p. 320
25 Como Le pavillon des enfants fous, de Valérie Valère, Lettres d’Algérie de Philippe Bernard e Nathaniel

Hersberg, Dans la peau d’um intouchable de Marc Boulet, Crime e castigo de Dostoievski, Moravagine de
Blaise Cendrars
26 Como mostra este comentário de um aluno de 1º ano: “La mort est mon métier me ajudou muito e eu

agradeço Robert Merle de me fazer avançar no meu modo de pensar, mas de um outro modo que aquele
de Rudolf. Compreendi que é preciso ter caráter para se sair bem numa idade em que tudo muda: a
adolescência”.
que as informações obtidas e as emoções se dissipem e se ordenem, sobretudo se eu
acabo de ler uma obra rica em emoções, fascinante, que me tomou por inteiro!”.
Acontece, porém, que alguns alunos se refiram aos abalos que vivenciaram
revelando sua perplexidade e indecisão diante de um texto que os perturba. É assim que
um aluno de 1º ano fala de seu mal-estar diante da fascinação que experimentou lendo
O Perfume de Süskind, cujo personagem, Grenouille, causa-lhe horror. As questões
identitárias são latentes nessa recepção que mistura prazer e desprazer, mas que as
palavras transcrevem sumariamente. O estado de confusão interior, intuitivamente
percebido, permanece parcialmente não formulado ou se encontra empobrecido e
simplificado pelas frases que os transpõem.
Por outro lado, mais acessíveis à consciência, os fenômenos de identificação ou
os laços tecidos com as personagens são experiências pelas quais se forja ou se afirma a
personalidade do sujeito leitor.

Identificação, apropriação, memória

Experiência essencial, altamente reivindicada pelos alunos do ensino médio


como fonte do prazer de ler, a identificação está no coração das lembranças evocadas ou
analisadas pelos jovens bem como pelos grandes leitores adultos. Enquanto P. Dumayet
se pergunta sobre a natureza dos sentimentos que experimentamos pelas personagens,
certo aluno de primeiro ano afirma que lê para se “encontrar sob algumas fisionomias
como um clone sentimental das personagens fictícias ou reais” para “se descobrir por
intermédio da experiência do outro”; uma estudante de graduação escreve: “Os livros
têm esse estranho poder de multiplicar nossa vida. Cada leitura nos abre as portas de
uma existência única. Portamos milhares de identidade” (segue-se uma enumeração). A
identificação não é necessariamente fusional: ela pode ser, como ocorre com frequência
entre os jovens leitores, um primeiro movimento, espontâneo, involuntário; ela pode ser
também uma constatação refletida, fruto de um investimento intelectual e afetivo como
mostra esse comentário que Gide fez sobre o O Processo de Kafka: “A angústia que
esse livro respira é, por momentos, intolerável, pois como não se dizer o tempo todo:
esse ser perseguido, sou eu”27. Aquilo que é sentido e vivido ecoa no coração (o corpo)
e no espírito do leitor: não há leitura forte sem ser sensível.

27 GIDE, A. , op. cit. , p. 80


Se a identificação constroi e alimenta a interioridade do leitor, a consciência que
este tem varia segundo uma escala dupla que interfere na intensidade e no momento em
que a identificação ocorre. Ela pode ser ínfima, leve, apenas aflorando, ou então plena e
lúcida; ela pode ser adesão ou projeção; ela pode ser simultânea ou se suceder à leitura,
segundo a disposição e a experiência do leitor. Esses elementos se conjugam a cada vez
de modo particular.
A forma de apropriação de um texto pode igualmente obedecer a uma ação
voluntária. Sublinhar as frases, copiar um texto, aprender sobre ele, lê-lo em voz alta
são gestos simples que marcam a apropriação do texto. Todos esses gestos,
aparentemente banais, remetem, assim como às questões do desejo de ler, aos desafios
identitários que estão no âmago das autobiografias de leitor.

Identidade literária e identidade de leitor

A questão do gosto, suas determinações, seus modos de afirmação é induzida


pelo gênero autobiográfico. Entre a maioria dos estudantes de ensino médio e superior,
esses gostos são instáveis e ecléticos.
Os três indicadores – gostar, reler, preferir – se revelam de uma confiabilidade
relativa para circunscrever os gostos literários uma vez que estes são diversos e
flutuantes. Não surpreende que os leitores em formação descubram a literatura e se
espelhem nela. O ecletismo revela a curiosidade ou a incerteza sobre o que eles gostam
de verdade. O ecletismo é ambivalente: com frequência índice de uma indeterminação,
caracteriza também as escolhas estéticas dispersas de grandes leitores, mediadores do
livro.28 Poder-se-ia mesmo alegar que essa abertura à diversidade dos textos é um sinal
de maturidade e de agudeza intelectual: assim os estudantes se separam do gênero
dominante no colégio, o romance, para revelar seu gosto – não exclusivo – pelo teatro
ou pela poesia; assumem também o risco de ser confrontados a obras suscetíveis de
desagradá-los. Essa dispersão e essa mobilidade de interesses de leitura explicam
porque dificilmente, na análise das autobiografias de leitores, se pode passar da noção
de gosto (textos de que se gosta) àquela mais restrita e mais precisa de identidade
literária (definição de si pela literatura).

28Ver, por exemplo, a seleção feita por Bernard PIVOT na sua obra: Le métier de lire. Réponses à Pierre
Nora, Paris, Gallimard, Coll. Le débat, 1990
É no 2º ano Literário29 que aparece de modo bem marginal a ideia de uma
correlação possível entre a personalidade do leitor e certas obras consideradas
“importantes”, “significativas”, aptas a “representá-lo”, obras que “refletem sua
personalidade”. Na universidade, a expressão utilizada é a de universo literário e é nesse
nível que se afirmam escolhas estéticas bastante precisas, as quais levam a uma relação
com a escritura que é a de um leitor experiente: “Gosto do estilo apurado da escritura
moderna”, escreve uma estudante de graduação. “Às vezes, quanto mais a frase é curta,
mais ela é carregada de sentido e de imagens. Quando o texto subentende mais do que
diz, o silêncio que reina entre as palavras deixa ver um mundo para além do escrito, um
mundo de branco e de ausência onde a imaginação vagueia”. Essa relação com o texto é
expressão de um gosto profundo, baseado na experiência literária.
Mas, entre os alunos do ensino fundamental I, só podemos observar o
nascimento de gostos de cuja permanência não temos ainda ideia. Se para uma minoria
deles podemos falar de identidade literária, para a grande maioria, o emprego da noção
é prematuro e pouco pertinente30. Para estes, é preferível usar a noção identidade de
leitor, não baseada em categorias quantitativas, como grande, mediano e fraco leitor –
pois tais categorias são aleatórias31 – mas na relação com o texto no ato de ler e na
retórica do leitor: maneira de ler no seu entorno, ritmo de leitura.

Transformações do eu e leitura identitária

A questão da relação com o texto durante a leitura é, como vimos, muito


presente nas autobiografias de leitores. Ela permite definir um jogo de cartas identitário
composto de figuras emblemáticas de certos comportamentos. Esses modelos marcam
um leve desvio em relação às figuras de Michel Picard por não serem fixos: em geral,
elas se combinam segundo uma alquimia recomposta incessantemente em função dos
textos e de parâmetros pessoais como a motivação e a experiência. Numa pessoa, eles
podem se suceder e figurar, pela passagem de um a outro ao longo da experiência, as
etapas de um percurso. Eles permanecem disponíveis no presente do leitor, em função
29 No currículo escolar francês, o ensino médio é composto por três anos que são nomeados de maneira
decrescente do ensino fundamental. Assim o 1º ano do ensino médio na França é denominado “segundo”,
o 2º ano, “primeiro” e o 3º ano, “terminal” por ser o último ano do ensino básico. A partir do “primeiro” o
currículo passa a ser mais específico em função dos interesses dos alunos. O “primeiro L” implica uma
dominante curricular literária. n.t.
30 Assim como as obras de referência, com frequência são aquelas do corpus escolar ou do repertório

juvenil as mais propícias a construir a imagem de uma comunidade (de um grupo etário) do que a
favorecer a individualização.
31 Nas autobiografias de leitor, elas correspondem a uma autoavaliação necessariamente muito subjetiva.
dos textos – não se lê Proust como se lê um romance policial! e pode-se gostar de um e
de outro –, em função da vivência de cada um, de pulsões ou fantasmas que escapam a
seu controle; esses modelos podem entrar em conflito ao longo de uma leitura.

O escapista
A primeira dessas figuras é a do escapista que vê a literatura como uma evasão
de si e da realidade num tempo abolido. O ritmo da leitura é rápido, ofegante: a atenção
do sujeito se localiza na intriga, em busca do desenlace. Frequentemente descrita pelos
alunos de 1º ano do ensino médio, essa postura, ainda que próxima do ledor [liseur] de
M. Picard, dele difere, uma vez que, contrariamente ao ledor, o escapista não mantém
contato com a realidade.

O espectador
Muito mais frequente e particularmente representativa dos alunos de 2º ano do
ensino médio, essa figura de leitor, menos preso à trama dos acontecimentos, privilegia
os ecos do texto em si mesmo. Esse modo sensível de leitura é também celebrado pelos
estudantes da universidade: “Espero da leitura que ela me torne realmente vivo. Leio
para que as palavras me façam vibrar”, escreve uma estudante de graduação. O
espectador assemelha-se ao lido (lu) de M. Picard, uma vez que a trajetória do leitor se
não é voluntária, como ele diz, ao menos é consciente: busca-se a literatura antes de
mais nada para revelação da identidade, jogo consigo mesmo. O leitor esquece
rapidamente o detalhe da intriga ou a essência do discurso e só se recorda da emoção
experimentada.

O boêmio
O boêmio é um leitor diletante, amador, a exemplo desse estudante de graduação
de letras modernas, que se descreve assim: “Eu me dedico raramente a um segundo
nível de leitura que visaria a aprofundar minha análise. Eu medito, divago, devaneio
diante de um livro. Em geral, não avanço na análise além da vaga impressão geral que
resta depois da leitura feita”. Ligada à figura anterior, mas dela de algum modo distinta:
o texto permanece pretexto, mas o descontínuo instaura uma distância em relação à
matéria existencial que ele contém. O tempo é dilatado, a exemplo da leitura de fruição
que R. Barthes descreve em O prazer do texto.
O crítico
Essa figura designa um leitor experiente, sensível aos efeitos do texto e atento a
sua forma. Ele se prende aos desafios da escrita, empreende aproximações com outros
textos. Essa postura de leitante (lectant) só aparece verdadeiramente entre os alunos de
2º ano e de modo ainda bastante marginal. No entanto, ela é bastante presente entre os
estudantes de graduação e mestrado. Esse modo de leitura repousa na experiência e em
uma “distância envolvida”32. A exemplo do que escreve Gide, em seu Diário, sobre as
obras que ele lê ou relê: “Eu reli uma vez mais Cinna com um encantamento e uma
admiração extrema”33; “Termino de reler Werther não sem irritação. Tinha esquecido
que ele levava tanto tempo para morrer. Não termina nunca e dá vontade de empurrá-
lo”34. “Releio Polyeucte com um desconforto que às vezes se torna intolerável. O
protesto se superpõe à admiração e eu não consigo entrar no jogo da peça, é uma
obrigação muito arbitrária. Que dever é esse se confunde com uma obediência idiota?”.
A leitura experiente é uma leitura sensível em que as emoções do leitor dirigem e
comandam as análises. Às vezes a figura do crítico alcança aquela do artista, quando o
ato de leitura se faz no âmbito da consciência e da fruição de uma criação a dois, assim
como analisa uma estudante de graduação: “Trata-se de um verdadeiro prazer quando
conseguimos perceber vontades e desejos do autor. Cria-se então uma relação
intelectual interna entre autor e leitor; o autor e o leitor vêem se debater sob seus olhos
os personagens que eles criaram”.
É claro que esse modo de leitura está no horizonte dos estudos literários e
oferece àquele que o pratica um sentimento de plenitude, a partir do momento que seu
exercício regular suprime a dificuldade. Esse modo é valorizado pela instituição escolar
que hierarquiza os diferentes modelos, que coloca o crítico acima do escapista, do
espectador e do boêmio. Essa visão é implicitamente presente em muitos discursos que
estabelecem uma correlação entre essas modelizações e a idade dos leitores. Se é
verdade que o crítico é a imagem de um leitor adulto, os outros personagens não têm
idade. O escapista ou o espectador desapareceriam talvez definitivamente? Entre os
sujeitos leitores que praticam regularmente a literatura, eles não se deixam ver, mas
podem surgir a todo momento por ocasião de uma leitura mais interessada, e é nesse
sentido que se pode falar de uma leitura identitária.

32 LANGLADE, G. “Sortir du formalisme, accueillir les lecteurs réels”, in Le Français Aujourd’hui, n. 145,
2004.
33 GIDE, A., Journal, o. cit., p. 115.
34 ibid., p. 98.
Tal fenômeno é particularmente sensível aos estudantes que evocam o conflito
que ocorre neles entre o espectador e o crítico. “Apesar de meus estudos em literatura
que impulsionam à análise aprofundada e objetiva, eu me envolvo muito, com os textos
que eu leio, deixo minha imaginação trabalhar com todas as identificações, me mostrar
os lugares desconhecidos... Penso que nesse ponto permaneci uma leitora-criança”,
escreve uma estudante universitária enquanto outra exprime sua nostalgia por ter
perdido sua identidade de espectador:

O que às vezes posso lamentar é de perder na minha recepção de uma obra essa
primeira atitude de leitura que desperta em nós emoções espontâneas, sensações
originais, desprovidas de toda abordagem aprofundada e precisa [...] Esse estudo
tornado quase instintivo e que às vezes sobrepuja sistematicamente o instinto
emocional pode ser penoso. Temos vontade de colocá-lo à distância por alguns
momentos.

Essas considerações convidam a refletir sobre o papel dos afetos e da


subjetividade na leitura literária da forma como é ensinada da escola à universidade.

Conclusão: do lugar essencial da subjetividade

A coletânea de autobiografias de leitores mostrou que a subjetividade é essencial


para a leitura. A subjetividade dá sentido à leitura. “Não creio que um texto possa sofrer
ofensa em razão de uma leitura muito pessoal”, diz P. Dumayet. O leitor encontra sua
via singular no plural do texto35, e a literatura, em razão de seu jogo metafórico, lhe
permite exprimir os eus diversos de que é feito36. Essa ideia, presente há mais de trinta
anos na teoria literária37 parece ter permanecido sem muita incidência no ensino onde a
subjetividade suscita desconfiança, o que explica a insegurança interpretativa dos alunos
de ensino médio e superior, bem como dos professores em formação38.
Em busca senão de objetividade pelo menos de consenso, a leitura escolar
distanciada, atenta à forma não poderia ser assimilada na maioria de seus modos de

35 BARTHES, R. , S?Z, Paris, Seuil, Coll. Points n. 70, 1970, p. 18: “En regard du pluriel du texto (...). Des
sens peuvent bien être oubliés, mais seulement si on a choisi de porter sur les textes un regard singulier.”
[Quanto ao plural do texto (...). Alguns sentidos podem ser esquecidos, mas somente se escolhemos
lançar para os textos um olhar singular.”].
36 PICARD, M. La lecture comme jeu. Paris: Minuit, 1986.
37 Conforme sobretudo Umberto Eco, em Lector in fabula e Wolfgang Iser, O Ato de Leitura.
38 Ver CHANFRAULT-DUCHET, M.-F, “L’insercurité interprétative dês enseignants de français”, in Enjeux,

n. 51/52, 2001.
realização a uma leitura experiente, pois a leitura experiente, como vimos, não é
asséptica. Indevidamente, há quem acredite que normas escolares e direitos do texto
coincidam. O texto é mais liberal. Tentando preservá-lo dos delírios do sujeito leitor, o
ensino médio transforma a leitura em uma prática formal, descarnada, ao mesmo tempo
em que busca desenvolver a sensibilidade dos alunos.
Várias pistas são abertas hoje com atividades que reivindicam uma implicação
do leitor e só por esse meio ganham sentido: leitura cursiva, escrita de invenção,
encontros estimulantes por intermédio dos livros. Essas atividades que se sustentam
numa confrontação íntima do jovem leitor e do texto literário dão mais lugar à
expressão da subjetividade e deveriam favorecer a emergência de gostos e de uma
identidade literária.

Anexos

Autobiografias de leitores: alguns exemplos

Morgana: o infortúnio de uma leitora (aluna de 1º ano)


“A leitura representa para mim uma espécie de angústia, pois raramente senti um
grande prazer em ler. O que me falta é a concentração, fico pensando em outra coisa. Eu
leio, porém, não leio, não escuto o que leio. Eu faço duas coisas ao mesmo tempo, eu
penso e reflito sobre outra coisa e leio.
Aconteceu de uma vez eu “devorar” um livro inteiro, ao contrário do que com
muita frequência me acontece, de abandonar o livro, pois não sentia nenhum interesse
pela leitura. Esse livro é Blé en herbe de Colette. Ele me deu a sensação de fugir da
realidade mesmo estando em outra realidade totalmente diferente da minha. Também li
e apreciei alguns poemas de Prévert como “Barbara”. Eu adorei esse poema e continuo
adorando, até digitei no computador e preguei no meu quarto, o que me permite não
esquecê-lo, pois sempre o leio.
Hoje eu gostaria de poder ler para enriquecer e desenvolver meus
conhecimentos”.

Fanny: “Le mal de lire” (aluna de 2º ano Literário)


“Minha biografia de leitora só pode ser simples, pois “minhas leituras” são feitas
em duas etapas.
Quando pequena (até mais ou menos 14 anos), eu me recusava a ler, certamente
decepcionada pela minha aprendizagem. Minhas leituras de menina se limitaram ao
livro de leitura da escola primária. Nessa época, me forçavam a ler, além de mais, me
forçavam a ler coisas das quais eu não extraía nenhum prazer; eu não gostava de ler, eu
me recusava a ler. Minha mãe, contudo, fazia esforço, lia histórias para mim à noite me
incentivando a ler com ela. Mas o meu primeiro verão na escola passou sem que meus
olhos roçassem uma única frase de livro, mas o segundo foi decisivo. Minha professora
não se deixou levar pelo meu rechaço à leitura e não me largou. O que acentuou o meu
rechaço à leitura. Minha vida continuou, encadeando leituras incompreendidas,
forçadas e meu sofrimento aumentou. Na 6ª. série pediram que eu lesse um livro inteiro
sozinha; era Cabot-Caboche de Daniel Pennac. Fiquei surpresa e meu medo era enorme,
um livro de 200 páginas, nunca poderia imaginar ler um livro inteiro, sozinha. Foi assim
que a maioria de minhas leituras do fundamental ficou inacabada; meu sofrimento
começava a me criar armadilhas, eu lia mais lentamente que os outros, os prazos de
leitura eram muito curtos.
No primeiro ano do ensino médio veio L’ami retrouvé de Fred Uhlman. O
primeiro livro de leitura cursiva que eu consegui terminar; deu o clique. No entanto,
quando o olho hoje, ele me parece bem pequeno. Mas foi depois desse dia que eu passei
a gostar de ler, que me deu vontade de ler. Minha incompreensão dessa arte naquela
época me prejudicou. Era incompetente para ler rápido e bem, minhas leituras tomavam
muito tempo e, por causa disso, eram poucas. Mas depois muitos livros me ajudaram a
melhorar meu nível de leitura, principalmente o livro de Dai Sijie Balzac et la petite
tailleuse chinoise que me fascinou e li em pouquíssimo tempo. Na noite em que
terminei dê-lo me deitei muito tarde; era um domingo à noite, 1h da madrugada e me
restavam ainda cerca de 30 páginas para ler mais eu não conseguia parar, estava
enfeitiçada. Mas foi ainda pior quando eu terminei, não consigo nem descrever os meus
sentimentos daquele instante. Tinha lágrimas nos olhos... terminar um livro, foi esse o
meu prazer.”

Elisa (Graduação em Letras Clássicas)


“Eu faço parte daqueles que, crianças, tinham outras preocupações que não a
leitura. Contudo, fui obrigada a ler por imposição dos pais, convencidos de seu
benefício. Assim, em geral, o livro que eu fazia de conta de ter em mãos na hora do
tradicional “boa noite” só era um objeto que, aberto em qualquer página, me permitia
evitar as broncas dos pais...
Logo, à força de me ver confrontada à tradicional questão “o que você está lendo
agora?”, acabei lendo efetivamente esses “livros-objetos”.
Penso que essa anedota está na origem de meu atual perfil de leitora: os livros
não são vitais para mim; se eles me ensinam e me comunicam a vida, a vida é, acredito,
outra coisa.
Eu poderia, suponho, passar um mês sem abrir um livro, se bem que eu não me
lembro de já tê-lo feito.
Parece que, pelo fato de ler, associo sempre – em diferentes graus, claro – a ideia
de certa imposição exterior, às vezes pouco perceptível. Eu fico arrasada de sentir certa
culpa quando leio um “policial”, que não seria suficientemente literário, nem muito
“enriquecedor” culturalmente, antes, escolarmente. Eu sou uma leitora em parte escolar,
dimensão que pertence a essas obrigações que eu disse antes. Tampouco não é raro que
eu escolha um livro reconhecido na literatura e que me pode servir por ocasião de uma
monografia, por exemplo.
Eu tenho a impressão de que, para mim, ler se conjuga na maior parte do tempo
com o verbo “dever”. “Deve-se ler”, então leio; e eu compreendo perfeitamente e
admito essa necessidade, mas me parece, e o fato de não ter essa necessidade me
entristece, que ela não está integrada no círculo das minhas necessidades vitais,
individuais. Admiro as pessoas conhecidas que passam tardes inteiras imersas na leitura,
eu queria ser assim, mas sou incapaz.
Entretanto, ler é para mim um verdadeiro prazer, tenho, claro, autores
“adorados”, páginas grifadas a lápis na minha estante, passagens sublinhadas, copiadas.
Sou sensível ao que leio – a primeira parte de meu auto-retrato faz pensar que eu só
tenho acesso ao livro racionalmente – tenho a mesma relação com os livros que tenho
com a pintura, com a escultura, numa palavra, com a arte. Eu gosto do livro que me fala
e me emociona, o livro onde compreendo o que é dito, por meio da minha sensibilidade:
gosto do livro que fala para mim, que diz o que eu não saberia dizer, aquilo que vivo
sem mesmo às vezes me dar conta. Assim, sou uma leitora em expectativa: espero a
frase que me parecerá como uma luz, uma revelação. O livro, a obra onde eu tenho
talvez mais prazer e consequentemente a de Proust, o Em busca: nunca me decepcionei,
minha expectativa está sempre em suspenso nessas longas descrições que às vezes me
entediam, mas que eu leio à espera de uma pequena, mínima frase que fale para mim,
que fale de mim.”

Sophie (Graduação em Letras Modernas)


“Os livros que me tocam mais são aqueles que transmitem emoções intensas.
Gosto do estilo depurado da escritura moderna. Às vezes, quanto mais a frase é curta,
mais ela é carregada de sentido e de imagens. Quando o texto subentende mais do que
diz, o silêncio que reina entre as palavras deixa ver um mundo para além do escrito, um
mundo de branco e de ausência onde a imaginação vagueia. Eu me deixo levar pelas
palavras como quando o corpo é tomado pelas drogas. Deixo para a escritura o trabalho
de me liberar das correntes desse mundo. Os livros têm esse poder estranho de diminuir
o ritmo da nossa vida. Cada leitura nos abre a porta para uma existência única. Nós
carregamos milhares de identidades: aquela de uma jovem apaixonada como Emma
Bovary, aquela de uma pianista incrivelmente capaz durante a segunda guerra mundial
como Wladyslow Szpilman, aquela de uma criança que afirma com uma voz trêmula
que um dia ela será escritora... Nós nos tornamos aquilo que diz o livro, nós nos
tornamos uma palavra, um sorriso, uma lágrima. Eu espero da leitura que ela me torne
realmente viva. Leio para que as palavras me façam vibrar. Para que elas deslizem em
mim como milhares de estrelas.”

Caroline (Mestrado em Letras Modernas – C2 Literatura e ensino) – excerto


“Enfim, o que às vezes lamento, é de perder na minha recepção de uma obra essa
primeira atitude de leitura que desperta em nós emoções espontâneas, sensações
originais, desprovidas de todo procedimento analítico aprofundado e objetivo. Para ser
explícita, vou tomar como exemplo a situação do espectador diante de uma peça de
teatro. Todas as primeiras obras encenadas, a cuja representação se assiste, são mágicas
e a ilusão é impactante já que o espectador instaura uma distância bem menor que o
espectador iniciado, experiente. Se o espectador tem conhecimentos aprofundados sobre
a encenação, a cenografia, a intenção, ele encontra dificuldades para se desvencilhar de
sua visão analítica da representação: ele estuda o cenário, a iluminação, o figurino e
perde essa primeira sensação global da cena e dos atores. Lamento às vezes ter perdido
essa impressão “primitiva” ou ingênua de uma representação. O mesmo acontece com a
leitura. Por exemplo, analisamos conscientemente durante a leitura os procedimentos
narratológicos utilizados. Esse estudo quase instintivo e que às vezes sobrepuja
sistematicamente justamente o instinto emocional original, pode também ser ruim. Dá
vontade de se afastar dele por alguns momentos.”

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