ROUXEL, A. Autobiografia de Leitor e Identidade Literária
ROUXEL, A. Autobiografia de Leitor e Identidade Literária
ROUXEL, A. Autobiografia de Leitor e Identidade Literária
Annie Rouxel
(Tradução: Neide Luzia de Rezende)
Realizar uma autobiografia de leitor pode se impor como uma necessidade entre
aqueles que, escritores ou críticos literários, mantêm com os livros e a literatura uma
É assim que Pierre Dumayet conta “como os escritores entraram” naquilo que
ele denomina “sua segunda vida”3, aquela que os livros nos oferecem,
independentemente de nossa vida cotidiana e de nossa idade. Essa metáfora apresenta a
cultura literária como um universo autônomo disponível a todo momento. Ao pretender
estruturá-lo cronologicamente, o jornalista sublinha as dificuldades próprias do gênero
autobiográfico, ligadas à memória recomposta. Ele se pergunta: como “filtrar sua
memória”? E chega a lamentar não ter mantido, como Queneau, durante sessenta anos
um caderno de leituras. Ele constata também: “Como é difícil reencontrar o leitor que
éramos”4. Sua busca é dupla: reencontrar os textos que compõem “sua segunda vida” e
se reencontrar ele mesmo tal qual era. Esse desejo de autenticidade o conduz às vezes a
se descuidar das traições da memória, a preferir a releitura de um livro cujo enredo se
apagou, à “lembrança esquecida” que o faz ouvir a “voz sem palavras” das
personagens5. Desse modo, P. Dumayet desloca e circunscreve o objeto do pacto
autobiográfico rumo à sinceridade – e à verdade – não do indivíduo no seu conjunto,
mas do leitor.
Essa tentação de se dizer pelos livros existe também em numerosos escritores,
mas, de fato, ela se limita com frequência à cena inaugural da vida de leitor e às leituras
de infância ou de juventude. Les Confessions, Claudine à l’école, Si le grain ne meurt,
Les Mots, Mémoires d’une jeune fille rangée, e W ou le souvenir d’enfance dão lugar a
esses motivos cujo liame com o devir de seu autor podemos pressentir.
Em Gide, entretanto, existe a ideia da autobiografia de leitor. No seu Diário6 ,
em agosto de 1940, declara: “Eu queria escrever, nem que fosse apenas por
reconhecimento, por elogio das obras que me ensinaram a me conhecer7, que me
é a voz de Madame Thérèse, uma voz sem palavras, quase real, uma voz que não canta, mas que
poderia falar em caso de perigo. Mélisande tem uma voz dessa natureza...”.
6 A. Gide, Journal 1939-1942, p. cit. p. 78.
7 Ibid., p. 76: Gide cita como exemplo a tragédia de Eurípedes, as Bacantes, que o abalou profundamente
quando a leu pela primeira vez, pois ela entrou em forte ressonância com seu conflito interior naquele
momento. “Eu deparei com as Bacantes num tempo em que me debatia ainda contra o cerco de uma
moral puritana. A resistência de Penteu era a minha àquilo que um Dioniso secreto propunha”.
formaram. O grande defeito de Si le grain ne meurt...: não digo nesse livro quais foram
os meus iniciadores. Haveria aí matéria para um outro livro, e num plano
completamente diferente”. Contudo, mesmo evocando a autobiografia de leitor, Gide
não a realiza, ou o faz de maneira indireta, pois é um diário que ele escreve, e por causa
disso ele se percebe como sujeito leitor apenas fragmentariamente, na sucessão dos
momentos da escritura, ainda que a atividade de releitura o leve às vezes a mergulhar
em si mesmo para confrontar sua recepção do momento presente àquela de antes.
Por outro lado, ao descrever sua relação com a literatura, introduz a noção
complexa de identidade literária: identidade revelada e construída pela literatura, mas
também por esta descrita. “Frequentemente – escreve – me sinto tentado a elaborar
durante minhas leituras cotidianas uma espécie de antologia, grão que, aqui e acolá, vou
recolhendo”8. Esse gesto antológico aparece como constitutivo dessa identidade literária
na qual se exprimem os gostos pessoais. As obras assim colhidas são revestidas de valor
na história pessoal do leitor: elas são prometidas, julgadas dignas de representá-lo.
A noção de identidade literária supõe, pois, uma espécie de equivalência entre si
e os textos: textos de que eu gosto, que me representam, que metaforicamente falam de
mim, que me fizeram ser o que sou, que dizem aquilo que eu gostaria de dizer, que me
revelaram a mim mesmo. Essa noção requer e estabelece a memória de textos que
perfizeram um percurso – evoca um universo literário – mas inclui também uma relação
com a língua, com a escrita, e com a singularidade do modo de ler, o que Alain Viala
denomina “a retórica do leitor”9 e que ilustra tão bem o romance de Ítalo Calvino, Se um
viajante numa noite de inverno...10
Assim descrita, a autobiografia de leitor é uma tarefa exigente do adulto, grande
leitor, escritor ou mediador e podemos perguntar que pertinência e que desafios essa
prática pode ter no meio escolar.
8 Ibid., p. 108.
9 VIALA, A. “L’enjeu em jeu”, in PICARD, M. (dir.), La lecture littéraire. Paris: Clancier-Guénaud, 1987, p.
15-31.
10 CALV INO, I. Se um viajante numa noite de inverno... São Paulo: Cia. das Letras, 1995
Como assumir um estatuto de não-leitor e contar a seu professor sobre a falta de
interesse ou o tédio diante da ideia de abrir um livro? Como falar da falta de vontade de
ler quando se nos propõem uma experiência literária? Para certas escolas, ler é ainda
uma performance que se mede pelo número de páginas e pelo tamanho dos caracteres.
Privada de seus desafios simbólicos, e por isso tornada atividade mecânica, a leitura é
um sofrimento; certos alunos não hesitam em confessá-lo.
Um leitor forçado
Uma segunda dificuldade se refere ao próprio âmbito escolar que tende a
disseminar a imagem de um leitor forçado. As cerca de duzentas autobiografias de
leitores nas quais se apóia esta reflexão foram realizadas por um lado no 1º. e 2º. anos
de escolas de ensino médio e, por outro, na universidade Rennes 2, junto a estudantes de
graduação em Letras que se habilitam para o ensino. As condições de realização são
evidentemente diferentes.
Qualquer que seja o objetivo ou o nível considerado, os discursos colocam em
evidência, entre os jovens leitores, uma clivagem identitária entre o leitor escolar e o
outro leitor que existe nele. Inúmeros testemunhos convergem para denunciar a
obrigação da leitura escolar. Os textos propostos em classe, culturalmente distantes das
leituras pessoais, o ritmo de leitura imposto para a descoberta das obras, a lentidão de
seu estudo são igualmente queixas pelas quais alguns alunos justificam sua hostilidade.
Alguns, como esta aluna, se recordam dos terríveis sofrimentos e do trauma de uma
aprendizagem difícil: “E minha vida continuou, engatando as leituras incompreendidas,
forçadas, aumentando meu sofrimento”.
Esse sentimento de obrigação é ainda mais intenso à medida que é reforçado
pela pressão familiar, o que leva o jovem leitor a, às vezes, ele mesmo se forçar à
leitura. Uma estudante de letras clássicas, depois de recordar o papel desempenhado
pelos benefícios da leitura, revela: “Parece que, ao ler, eu associo sempre – em graus
diversos, claro – a ideia de uma certa obrigação externa, às vezes sutil (...) Eu tenho a
impressão que, para mim, ler se conjuga na maior parte do tempo com o verbo dever”.
Finalmente, é bastante surpreendente descobrir, um pouco atenuado nos escritos
dos estudantes universitários, mas ainda assim bem presente, a mesma dicotomia que se
observa junto aos alunos do ensino médio entre leituras escolares e leituras não
escolares. Isso mostra uma identidade dual.
Um ato fundador
Entretanto, apesar das dificuldades, a prática da autobiografia de leitor é
felizmente carregada de ensinamentos para os sujeitos leitores em formação. Fazendo
emergir na consciência uma imagem de si mesmo, ela constitui com frequência o gesto
de uma identidade de leitor constituindo-se ou afirmando-se. Aos professores, ela
oferece a oportunidade de descobrir como se constrói a relação com a leitura e a
literatura. Ainda mais que a rica coleta de autobiografias de leitores em formação se
encontra em muitos pontos com aquelas dos leitores já consolidados.
Meu objetivo não é aqui aprofundar os elementos de uma poética do gênero 11.
Pareceu-me mais interessante explorar alguns motivos comuns a todos esses textos
numa perspectiva mais antropológica do que semiótica ou sociológica.
11 Seria legítimo, a partir das invariantes – iniciação à leitura por intermédio da mãe, leituras de infância e
de juventude, obras marcantes, maneira de ler e relação com o texto no ato lexical e, finalmente,
transformação da autobiografia em auto-retrato – de aprofundar a poética do gênero.
12 BARTHES, R. Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p.13. “O texto que você escreve deve me dar a
Paris, Belin, 2002; “Les relations”, conferência pronunciada em 13/11/2003 nas jornadas de estudos da
ADBDP (Associação dos Diretores das Bibliotecas Departamentais de Prêt), publicada na internet:
HTTP://www.adbdp.asso.fr/je2003/petit.htm
14 Ibid.
pronto a reaparecer ao longo da vida. A vontade de compartilhar o prazer ou o
conhecimento do outro estimula a curiosidade. Os adolescentes do 1º ano do ensino
médio insistem no gesto de mediação que permite que se situem numa comunidade15.
Os livros aconselhados por alguém próximo, mas sobretudo pelos colegas suscitam
interesse; da mesma forma, o fato de recomendar um livro é mais conscientemente o
prazer altruísta do compartilhamento, de não deter sozinho o segredo, do que o ato de
reconhecimento de uma obra. Essa experiência que todos conhecemos ocupa um grande
lugar nos relatos dos grandes leitores. Assim, Pierre Dumayet homenageia seu vizinho
de dormitório em Westcliff-on-sea que lia Rabelais em voz alta morrendo de rir16 e
também Étienne Lalou que o fez ler Les nourritures terrestres, enquanto que Gide, na
sua maturidade, rememora a curiosidade que se apossou dele quando ouviu Jean
Schlumberger e Marie Delcourt falar sobre a peça de Eurípides, as Bacantes 17. O desejo
de ler ou reler é um desejo de conhecimento que nasce de uma vontade de compartilhar
com os outros leitores, e a palavra desempenha um papel essencial.
Contudo, os textos dos adolescentes do 1º ano mostram que não há relação
obrigatória entre desejo de ler e prazer de ler. Muitos alunos superam sua reticência em
ler um texto e aceitam de bom grado que sentiram prazer. Mas essa experiência positiva
não chega a vencer no espírito deles o preconceito desfavorável que se associa à ideia
de ler. O que remete à força das representações anteriores e à importância (no caso, a
fragilidade) da ligação com a literatura construída na primeira infância. “A capacidade
de construir com os livros uma relação afetiva, emotiva, e não apenas cognitiva, parece
decisiva” diz ainda Michèle Petit. E é verdade que todas as autobiografias de leitores
mostram que a leitura é quase sempre antes de tudo a procura de uma emoção. Alunos
do ensino médio e superior usam termos hiperbólicos para descrever a recepção das
obras de que eles gostaram, que fizeram com que derramassem lágrimas. Essas reações
sensíveis e violentas são com frequência transcritas metaforicamente pelos escritores.
“Eu vibrei como um violão”, conta Gide em Si Le grain ne meurt18 , evocando, não sem
ironias, sua emoção no trecho do marquês de Saint-Vallier em Le roi s’amuse. Mais
tarde, qualificará a perturbação que o tomou como uma embriaguez ou estado lírico19, e
instante feliz em que era tomado por esse delírio era aquele em que Dionisos me visitava”.
fala de deslumbramento para descrever o élan de entusiasmo que o leva à leitura20.
Quanto a P. Dumayet, ele compara a embriaguez à leitura dos filósofos “à sensação que
experimentamos quando entramos numa catedral cuja arquitetura é tão arrebatadora que
nos perguntamos onde ela vai dar”21. Essa impressão de amplitude do ser22 que resulta
do trabalho secreto efetuado pelo texto sobre o sujeito leitor é sem dúvida o que é
essencial na leitura e é precisamente aquilo que não se diz.
Leitura e transformação de si
“Mas o que podemos falar de uma leitura?”, pergunta André Gide, relembrando
o “erro fatal” de seu “relato assim como de todas as memórias; apresenta-se o mais
aparente; o mais importante, sem contornos, elide a apreensão”23. Acontece que, de fato,
cala-se sobre o essencial, aquilo que emerge de si na leitura do texto, a “maneira pela
qual se é perpassado pelo pensamento do outro e que transforma seu próprio
pensamento”24.
Com exceção das obras que espicaçam a consciência e das quais não se
consegue facilmente se desfazer25, é raro que alunos, tanto do ensino médio quanto do
superior, analisem a transformação interior que se opera neles durante a leitura. O mais
frequente é que isso ocorra à revelia, e seus comentários se limitem a um breve resumo
da obra acompanhado da rápida constatação de uma transformação de sua visão de
mundo26.
Quando a construção de si pela leitura é evocada enquanto tal, isso ocorre em
termos genéricos e raramente a partir de uma obra em particular. É assim que uma
estudante universitária explica como após a leitura ela permanece impregnada pelo texto
e percebe as metamorfoses que em surdina se produzem nela: “Tenho dificuldade para
engatar num novo livro logo após ter terminado um: preciso deixar passar o tempo para
Hersberg, Dans la peau d’um intouchable de Marc Boulet, Crime e castigo de Dostoievski, Moravagine de
Blaise Cendrars
26 Como mostra este comentário de um aluno de 1º ano: “La mort est mon métier me ajudou muito e eu
agradeço Robert Merle de me fazer avançar no meu modo de pensar, mas de um outro modo que aquele
de Rudolf. Compreendi que é preciso ter caráter para se sair bem numa idade em que tudo muda: a
adolescência”.
que as informações obtidas e as emoções se dissipem e se ordenem, sobretudo se eu
acabo de ler uma obra rica em emoções, fascinante, que me tomou por inteiro!”.
Acontece, porém, que alguns alunos se refiram aos abalos que vivenciaram
revelando sua perplexidade e indecisão diante de um texto que os perturba. É assim que
um aluno de 1º ano fala de seu mal-estar diante da fascinação que experimentou lendo
O Perfume de Süskind, cujo personagem, Grenouille, causa-lhe horror. As questões
identitárias são latentes nessa recepção que mistura prazer e desprazer, mas que as
palavras transcrevem sumariamente. O estado de confusão interior, intuitivamente
percebido, permanece parcialmente não formulado ou se encontra empobrecido e
simplificado pelas frases que os transpõem.
Por outro lado, mais acessíveis à consciência, os fenômenos de identificação ou
os laços tecidos com as personagens são experiências pelas quais se forja ou se afirma a
personalidade do sujeito leitor.
28Ver, por exemplo, a seleção feita por Bernard PIVOT na sua obra: Le métier de lire. Réponses à Pierre
Nora, Paris, Gallimard, Coll. Le débat, 1990
É no 2º ano Literário29 que aparece de modo bem marginal a ideia de uma
correlação possível entre a personalidade do leitor e certas obras consideradas
“importantes”, “significativas”, aptas a “representá-lo”, obras que “refletem sua
personalidade”. Na universidade, a expressão utilizada é a de universo literário e é nesse
nível que se afirmam escolhas estéticas bastante precisas, as quais levam a uma relação
com a escritura que é a de um leitor experiente: “Gosto do estilo apurado da escritura
moderna”, escreve uma estudante de graduação. “Às vezes, quanto mais a frase é curta,
mais ela é carregada de sentido e de imagens. Quando o texto subentende mais do que
diz, o silêncio que reina entre as palavras deixa ver um mundo para além do escrito, um
mundo de branco e de ausência onde a imaginação vagueia”. Essa relação com o texto é
expressão de um gosto profundo, baseado na experiência literária.
Mas, entre os alunos do ensino fundamental I, só podemos observar o
nascimento de gostos de cuja permanência não temos ainda ideia. Se para uma minoria
deles podemos falar de identidade literária, para a grande maioria, o emprego da noção
é prematuro e pouco pertinente30. Para estes, é preferível usar a noção identidade de
leitor, não baseada em categorias quantitativas, como grande, mediano e fraco leitor –
pois tais categorias são aleatórias31 – mas na relação com o texto no ato de ler e na
retórica do leitor: maneira de ler no seu entorno, ritmo de leitura.
juvenil as mais propícias a construir a imagem de uma comunidade (de um grupo etário) do que a
favorecer a individualização.
31 Nas autobiografias de leitor, elas correspondem a uma autoavaliação necessariamente muito subjetiva.
dos textos – não se lê Proust como se lê um romance policial! e pode-se gostar de um e
de outro –, em função da vivência de cada um, de pulsões ou fantasmas que escapam a
seu controle; esses modelos podem entrar em conflito ao longo de uma leitura.
O escapista
A primeira dessas figuras é a do escapista que vê a literatura como uma evasão
de si e da realidade num tempo abolido. O ritmo da leitura é rápido, ofegante: a atenção
do sujeito se localiza na intriga, em busca do desenlace. Frequentemente descrita pelos
alunos de 1º ano do ensino médio, essa postura, ainda que próxima do ledor [liseur] de
M. Picard, dele difere, uma vez que, contrariamente ao ledor, o escapista não mantém
contato com a realidade.
O espectador
Muito mais frequente e particularmente representativa dos alunos de 2º ano do
ensino médio, essa figura de leitor, menos preso à trama dos acontecimentos, privilegia
os ecos do texto em si mesmo. Esse modo sensível de leitura é também celebrado pelos
estudantes da universidade: “Espero da leitura que ela me torne realmente vivo. Leio
para que as palavras me façam vibrar”, escreve uma estudante de graduação. O
espectador assemelha-se ao lido (lu) de M. Picard, uma vez que a trajetória do leitor se
não é voluntária, como ele diz, ao menos é consciente: busca-se a literatura antes de
mais nada para revelação da identidade, jogo consigo mesmo. O leitor esquece
rapidamente o detalhe da intriga ou a essência do discurso e só se recorda da emoção
experimentada.
O boêmio
O boêmio é um leitor diletante, amador, a exemplo desse estudante de graduação
de letras modernas, que se descreve assim: “Eu me dedico raramente a um segundo
nível de leitura que visaria a aprofundar minha análise. Eu medito, divago, devaneio
diante de um livro. Em geral, não avanço na análise além da vaga impressão geral que
resta depois da leitura feita”. Ligada à figura anterior, mas dela de algum modo distinta:
o texto permanece pretexto, mas o descontínuo instaura uma distância em relação à
matéria existencial que ele contém. O tempo é dilatado, a exemplo da leitura de fruição
que R. Barthes descreve em O prazer do texto.
O crítico
Essa figura designa um leitor experiente, sensível aos efeitos do texto e atento a
sua forma. Ele se prende aos desafios da escrita, empreende aproximações com outros
textos. Essa postura de leitante (lectant) só aparece verdadeiramente entre os alunos de
2º ano e de modo ainda bastante marginal. No entanto, ela é bastante presente entre os
estudantes de graduação e mestrado. Esse modo de leitura repousa na experiência e em
uma “distância envolvida”32. A exemplo do que escreve Gide, em seu Diário, sobre as
obras que ele lê ou relê: “Eu reli uma vez mais Cinna com um encantamento e uma
admiração extrema”33; “Termino de reler Werther não sem irritação. Tinha esquecido
que ele levava tanto tempo para morrer. Não termina nunca e dá vontade de empurrá-
lo”34. “Releio Polyeucte com um desconforto que às vezes se torna intolerável. O
protesto se superpõe à admiração e eu não consigo entrar no jogo da peça, é uma
obrigação muito arbitrária. Que dever é esse se confunde com uma obediência idiota?”.
A leitura experiente é uma leitura sensível em que as emoções do leitor dirigem e
comandam as análises. Às vezes a figura do crítico alcança aquela do artista, quando o
ato de leitura se faz no âmbito da consciência e da fruição de uma criação a dois, assim
como analisa uma estudante de graduação: “Trata-se de um verdadeiro prazer quando
conseguimos perceber vontades e desejos do autor. Cria-se então uma relação
intelectual interna entre autor e leitor; o autor e o leitor vêem se debater sob seus olhos
os personagens que eles criaram”.
É claro que esse modo de leitura está no horizonte dos estudos literários e
oferece àquele que o pratica um sentimento de plenitude, a partir do momento que seu
exercício regular suprime a dificuldade. Esse modo é valorizado pela instituição escolar
que hierarquiza os diferentes modelos, que coloca o crítico acima do escapista, do
espectador e do boêmio. Essa visão é implicitamente presente em muitos discursos que
estabelecem uma correlação entre essas modelizações e a idade dos leitores. Se é
verdade que o crítico é a imagem de um leitor adulto, os outros personagens não têm
idade. O escapista ou o espectador desapareceriam talvez definitivamente? Entre os
sujeitos leitores que praticam regularmente a literatura, eles não se deixam ver, mas
podem surgir a todo momento por ocasião de uma leitura mais interessada, e é nesse
sentido que se pode falar de uma leitura identitária.
32 LANGLADE, G. “Sortir du formalisme, accueillir les lecteurs réels”, in Le Français Aujourd’hui, n. 145,
2004.
33 GIDE, A., Journal, o. cit., p. 115.
34 ibid., p. 98.
Tal fenômeno é particularmente sensível aos estudantes que evocam o conflito
que ocorre neles entre o espectador e o crítico. “Apesar de meus estudos em literatura
que impulsionam à análise aprofundada e objetiva, eu me envolvo muito, com os textos
que eu leio, deixo minha imaginação trabalhar com todas as identificações, me mostrar
os lugares desconhecidos... Penso que nesse ponto permaneci uma leitora-criança”,
escreve uma estudante universitária enquanto outra exprime sua nostalgia por ter
perdido sua identidade de espectador:
O que às vezes posso lamentar é de perder na minha recepção de uma obra essa
primeira atitude de leitura que desperta em nós emoções espontâneas, sensações
originais, desprovidas de toda abordagem aprofundada e precisa [...] Esse estudo
tornado quase instintivo e que às vezes sobrepuja sistematicamente o instinto
emocional pode ser penoso. Temos vontade de colocá-lo à distância por alguns
momentos.
35 BARTHES, R. , S?Z, Paris, Seuil, Coll. Points n. 70, 1970, p. 18: “En regard du pluriel du texto (...). Des
sens peuvent bien être oubliés, mais seulement si on a choisi de porter sur les textes un regard singulier.”
[Quanto ao plural do texto (...). Alguns sentidos podem ser esquecidos, mas somente se escolhemos
lançar para os textos um olhar singular.”].
36 PICARD, M. La lecture comme jeu. Paris: Minuit, 1986.
37 Conforme sobretudo Umberto Eco, em Lector in fabula e Wolfgang Iser, O Ato de Leitura.
38 Ver CHANFRAULT-DUCHET, M.-F, “L’insercurité interprétative dês enseignants de français”, in Enjeux,
n. 51/52, 2001.
realização a uma leitura experiente, pois a leitura experiente, como vimos, não é
asséptica. Indevidamente, há quem acredite que normas escolares e direitos do texto
coincidam. O texto é mais liberal. Tentando preservá-lo dos delírios do sujeito leitor, o
ensino médio transforma a leitura em uma prática formal, descarnada, ao mesmo tempo
em que busca desenvolver a sensibilidade dos alunos.
Várias pistas são abertas hoje com atividades que reivindicam uma implicação
do leitor e só por esse meio ganham sentido: leitura cursiva, escrita de invenção,
encontros estimulantes por intermédio dos livros. Essas atividades que se sustentam
numa confrontação íntima do jovem leitor e do texto literário dão mais lugar à
expressão da subjetividade e deveriam favorecer a emergência de gostos e de uma
identidade literária.
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