Amizade Foucault
Amizade Foucault
Amizade Foucault
A
Nilmar Pellizzaro*
Revista de Filosofia
A amizade na perspectiva de
M. Foucault
RESUMO
ABSTRACT
The study here presented has the goal of exhibiting the concept of friendship in
Michel Foucault, from its relation to power and ethics. Given that friendship is a
relationship of power, our hypothesis is that it is the best relationship from the ethical
viewpoint, considering ethics as being that relation in which each one is invited to
take care of oneself and to stimulate the other to do the same as well. When lived in
the perspective of ethics of the care for self, friendship is capable of stimulating big
changes in the relations of power, making people freer, less governed. Thinking from
the standpoint of friendship is to issue a challenge so that new kinds of relationship
may emerge and thereby also new kinds of subjectivity and sociability.
Situando o problema
O conceito de amizade, a julgar pelo restrito espaço de que dispõe nos úl-
timos escritos de Michel Foucault, pareceria de pouca relevância quando conside-
rado em relação à vasta obra do autor. Contudo, de nosso ponto de vista trata-se
de um conceito essencial, na medida em que a amizade é uma espécie de vórtice,
em torno do qual, novos modos de vida podem ser gestados.
Neste sentido, o presente estudo quer mostrar que a amizade pode ser me-
lhor compreendida, se a tomarmos na sua relação com o poder e a ética. Consta-se,
no transcurso do pensamento Foucault, um processo no qual o sujeito deixa sua
condição de sujeitado e vítima do biopoder, para uma condição de sujeito autô-
nomo, capaz de se autoconstituir eticamente. Nossa hipótese é de que a relação de
amizade é a melhor relação de poder do ponto de vista ético, isto é, a amizade é
uma profunda experiência humana na qual cada um pode cuidar de si e estimular
o outro para que também cuide de si. Para desenvolver esta ideia, apresentaremos
de maneira breve os aspectos essenciais dos conceitos de poder e da ética do cui-
dado de si, a fim de que no final possa ficar clara a relação entre amizade, poder e
ética e em que medida a amizade é a melhor forma de poder.
Definindo o poder
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Numa de suas entrevistas, em 20 de janeiro de 1984, Foucault cita um exemplo desta mobilidade: “O fato,
por exemplo, de eu ser mais velho e de que no início vocês tenham ficado intimidados, pode, no transcorrer
da conversa, se inverter, e serei eu que poderei ficar intimidado diante de qualquer um, precisamente
porque ele é mais jovem” (FOUCAULT, 1994b, p.720).
No fundo, Foucault quer nos mostrar que a via do poder não passa nem pelo
direito e nem pela violência. Não pode também ser pensado maniqueisticamente,
como se fosse um bem ou um mal. Somente onde há espaço para a manifestação
livre dos sujeitos é que melhor percebemos a sua dinâmica. O poder é uma re-
lação entre sujeitos livres que têm diante de si um leque de possibilidades de
ações. Exercer o poder é sempre a tentativa de governar2 o outro, em que se pro-
cura estruturar seu eventual campo de ação. Mas é também a possibilidade de
recusa. Por isso, relações de poder são essencialmente agonísticas (FOUCAULT,
1995b, p.245), isto é, relações de incitação recíproca e de luta. Mais que uma opo-
sição, trata-se de uma provocação permanente.
Esta influência acontece seja em sentido unilateral - em que apenas uma
pessoa exerce o poder sobre a outra - seja em sentido reversível - em que sob al-
guns aspectos uma pessoa influencia a outra, mas sob outros aspectos ela é in-
fluenciada também. Sendo assim, o poder é produtor de realidade, isto é, ele é
motivo que induz, facilita, amplia, torna provável uma série de influências capaz
de direcionar resultados, comportamentos, modos de ser. A capacidade de exercer
influência sobre a ação de outrem não enseja que haja determinismo nas relações
de poder. No seu limite, é claro, relações de poder podem tornar-se repressoras e
de dominação, porém o que diferencia as primeiras das últimas é a liberdade pre-
sente nas relações de poder, este espaço em que o outro tem a chance de dizer
não, de manifestar a sua recusa perante a influência de um terceiro.
Embora as relações de poder não se originem do Estado ou mesmo de outras
instituições, como bem observa Dreyfus e Rabinow, o poder é produtivo quando
suas tecnologias encontram uma localização em instituições especificas como es-
colas, prisões, hospitais etc. (DREYFUS & RABINOW, 1995, p.203). É o caso, por
exemplo, do biopoder - esta forma de poder subjetivante e totalizante . Foucault
faz uma ampla análise histórica de suas duas grandes tecnologias que se desen-
volveram a partir do século XVII chamadas de poder disciplinar e biopolítica. O
poder disciplinar surgiu durante os séculos XVII e XVIII. É um poder centrado no
adestramento do corpo do indivíduo, a fim de que haja uma internalização da dis-
ciplina, dos ritmos do dia, dos horários etc. Enfim, ele visa criar um indivíduo en-
quadrado na estrutura social, atua no detalhe, produzindo efeitos individuali-
zantes, tornando este indivíduo útil e dócil. Por sua vez a biopolítica se desenvolve
a partir de meados do século XVIII e sua ação incide no controle dos processos
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O conceito de governo foi desenvolvido por Foucault nas últimas obras e trata-se de um conceito central
para se pensar o poder. A relação de governo ocorre no âmbito do jogo estratégico em que se procura
influenciar a conduta do outro, mais que oprimir e dominar. Por isso, para que alguém governe é preciso
que o outro seja livre e aceite ser governado. Quem procura governar o outro não o força a fazer algo, mas
o induz, incita. Assim, mantém-se o equilíbrio entre o indutor da conduta e a possibilidade de recusa por
parte de quem é induzido. (FOUCAULT, 2011, p.155-6).
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Num primeiro momento, no período em que vive Sócrates e Platão, havia como que uma submissão da
ética à política, no sentido de que cuidar de si era uma condição para melhor conduzir a cidade. Já no
período Helenístico, especialmente nos séc. I e II da era cristã, o cuidado de si se transforma numa
verdadeira “arte de viver”, uma prática social (GALLO, 2006, p.183).
Num contexto em que as cidades perdem a sua expressão política, - pois nos
séculos I e II a política se dá de modo mais amplo com o império - os assuntos
relacionados à cidadania são subsumidos pelas práticas de si, as quais cada vez
mais vão se tornando uma prática social.
A ética foucaultiana não tem um programa definido. Ela não diz o que é a
verdade que cada um deve buscar. Porém não é destituída de parâmetros. Para
Foucault, uma postura ética diante de si exige um conhecimento de certas ver-
dades. Conforme ele comenta,
São esquemas que ele encontra na cultura e que lhe são propostos, sugeridos e
impostos por sua cultura, sociedade ou grupo social.” (FOUCAULT, 1994b, p. 719).
Sendo assim, o cultivo da ética de si envolve um processo de subjetivação dos
conteúdos morais presentes na sociedade por parte do sujeito. Neste sentido, uma
ação moral é sempre composta por uma via dupla e complementar. Por um lado, uma
referência a algum código – certa regra ou princípio aceito socialmente; por outro,
uma ascese, que é o trabalho de interiorização, maneira através da qual o indivíduo
se relaciona com esta regra e vai construindo interiormente um sentido para ela.
Toda ação moral comporta uma relação com o real onde ela se efetua, e
uma relação com um código ao qual ela se refere; mas ela implica também
certa relação consigo; esta não é simplesmente “consciência de si”, mas
constituição de si como “sujeito moral”, na qual o indivíduo circunscreve
a parte de si mesmo que constitui este objeto de prática moral, define
sua posição em relação ao preceito que ele se apropria, determina para
si certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo, e,
para realizar-se, age sobre si procurando conhecer-se, controlar-se, pôr-se
à prova, aperfeiçoar-se e a transformar-se. (FOUCAULT, 1994d, p. 558).
Meu papel [...] é mostrar às pessoas que elas são bem mais livres do que
pensam, que elas supõem verdadeiros e evidentes certos temas fabricados
em um momento particular da história, e que esta pretensa evidência
pode ser criticada e destruída. (FOUCAULT, 1994e, p. 778).
Nossa essência não está dada, mas se constitui como obra do si mesmo.
Para Foucault a vida é ampla nas suas possibilidades, está sujeita à contingência,
à variabilidade, à transformação. Por isso não existe algo que seja universalmente
necessário na ordem do sujeito, mas todos os processos de subjetivação, bem
como as instituições, são produtos de escolhas humanas e, como tal, passíveis de
modificações, sujeitos a novos direcionamentos históricos.
A amizade em Foucault
A temática da amizade tratada por Foucault faz parte do seu último projeto
filosófico que ficou inacabado em razão de sua morte em 1984. Não somente por
isso, mas dada a natureza do seu conteúdo esta questão permanece aberta e con-
tinuamente em construção por aqueles que estão dispostos a se debruçar sobre o
assunto. Por isso, assim como a estética da existência ela é tratada por Foucault
como um ponto de partida e não uma teoria acabada. Foucault sugere que as rela-
ções de amizade são relações abertas, são um espaço da convivência humana que
precisa ser criado e recriado gradativamente, com diferentes nuances e tonali-
dades. Pensar a partir da amizade é lançar o desafio para que novas formas de
sociabilidade sejam possíveis, novos modos de relacionamentos possam surgir
para além do modelo familiar nuclear.
O âmbito no qual Foucault situa a amizade é o da homossexualidade, espe-
cialmente pelo fato de que a relação homossexual, para manter-se, precisa de
amizades mais do que as relações heterossexuais. Por não ser uma relação insti-
tucionalizada, a relação homossexual precisa ser constantemente reinventada.
Neste sentido, a amizade torna-se um conceito crítico a um modelo de sociedade
que limita as subjetividades ao padrão familiar, dificultando assim que novas
formas de relação de desenvolvam. Neste contexto, pensar uma sociedade a partir
da ética da amizade, é pensa-la aberta à pluralidade, à diversidade, possibilitando
que o ser humano se expresse e se recrie constantemente em suas relações. Nossa
suspeita é de que, embora Foucault parta da amizade no contexto das relações
homossexuais, ela não se limita aos homossexuais, mas é um convite para que
todas as identidades se autoafirmem em suas singularidades e criem novas
formas relacionais.
Foucault nos apresenta o modo de vida homossexual como algo questio-
nador, não sob a ótica sexual, mas sob a ótica do afeto nas relações.
Neste sentido, a amizade pode ser vista como uma atualização da estética da
existência, na medida em que o modo de vida gay representa o fomento de novas
formas de subjetividades, relações,4 e, acima de tudo, de afetividade. O modo de
vida gay torna-se uma forma de resistência política, uma vez que as práticas de
liberdade, que se desenvolvem a partir dos novos tipos de relações homossexuais,
vão gradativamente flexibilizando as relações de poder e, consequentemente, os
modelos relacionais estabelecidos pela sociedade.
Pensar a amizade para Foucault significa ainda pensar uma nova economia
dos prazeres de natureza não genital, o que ele chama de “dessexualização do
prazer.” (FOUCAULT, 1994c, p. 738). De acordo com sua pesquisa, na história do
ocidente o prazer sempre esteve ligado ao sexo, enquanto que na antiga Grécia a
amizade só era possível mediante a supressão das relações sexuais. A ética se-
xual, marcada pela dissimetria e pela penetração, não oferecia espaços para a
philia, permanecendo constante a sua separação de Eros. Foucault pretende a re-
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Foucault nos diz que um modo de vida é um tipo de relação que pode ser compartilhado por indivíduos
de idade, status ou atividades sociais diferentes. Poderão ser relações muito intensas e que em nada se
pareçam às institucionalizadas na sociedade. Por isso, ser gay não significa identificar-se com os traços
sociológicos ou com as máscaras visíveis dos homossexuais, mas definir e desenvolver um modo de vida.
(FOUCAULT, 1994a, p.165).
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Para Foucault o sadomasoquismo se utiliza de práticas para erotizar várias partes do corpo e obter prazer
por meio dessas partes. Com isso, ele procura mostrar que o prazer sexual não é a fonte dos demais
prazeres físicos e que o prazer em geral com o corpo pode ser muito mais amplo que o prazer sexual.
(FOUCAULT, 1994c, p.738).
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No prefácio da obra de Ortega, Jurandir F. da Costa aponta que em Foucault não há um critério para
diferenciar o prazer que escraviza do prazer que libera. E ele acrescenta que este tipo de problema reflete
um pouco as imagens de uma vida ideal que Foucault estava ainda esboçando quando veio a falecer. Por
isso, a ascese dos prazeres não passaria de uma colagem dos melhores momentos da Grécia, de Roma e
das “Califórnias” de hoje. (ORTEGA, 1999, p.17). De nosso ponto de vista, ainda que faça sentido o que
afirma Jurandir, o fato é que para ser fiel aos próprios princípios Foucault não poderia estabelecer um
critério normativo, justamente porque sua proposta é que os modos de vida e os prazeres a eles ligados são
uma invenção dos próprios sujeitos. Ainda que se trate de uma nova cultura, não cabe ao filósofo determinar
os parâmetros desta cultura. Por isso, a proposta foucaultiana é mais útil enquanto crítica ao invés de um
programa elaborado, mais como uma provocação para suscitar novas formas de ver e sentir. Porém, o risco
de sua proposta é o relativismo.
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Foucault pensa que estabelecer um programa para a amizade é algo perigoso, pois, ao ser amparada por
normas ou leis, não se é mais permitido inventar. (FOUCAULT, 1994a, p.167).
que cada um dos amigos ganha, porque é marcada pela troca de afetividade, de
conhecimentos, extrapolando assim os padrões de relacionamentos instituciona-
lizados de nossa sociedade.
Note-se que a amizade é um tipo de relação de poder de caráter especial, porque
traz em seu bojo um aspecto subversivo e transformador. Ela se apresenta como uma
força, uma pulsão que opera na ordem individual e coletiva. Ou, diríamos ainda, ela
é uma relação a dois, mas com uma capacidade de afetar a esfera político-social, in-
troduzindo novas formas de pensar e viver, novos vínculos afetivos e sociais.
Mas ela é, essencialmente, a melhor relação de poder porque está também
estritamente conectada à ética do cuidado de si. O aperfeiçoamento de si mesmo
leva a uma relação de estímulo do outro e não de busca pela opressão do outro. À
medida que nos conhecemos e aperfeiçoamos nossa ascese, mais seguros es-
tamos de nossa identidade e mais livremente podemos nos relacionar com os
amigos e até mesmo ajudá-los em seu crescimento. “Amigo não é aquele que
cuida do outro, nem é quem se faz cuidar pelo outro, mas quem estimula o outro
a que cuide de si mesmo, enquanto é estimulado pelo amigo a que faça o mesmo
consigo.” (ASSMANN; LEIS, 2006, p. 82). Por isso que a amizade gera o cresci-
mento mútuo, porque é uma relação de estímulo, em que cada um pode ser si
mesmo sem simulações ou cálculos. É na amizade que a verdade de cada um se
revela sem arestas ou artimanhas, assim como a verdade da própria relação, pois
cada um dos amigos pode ser ele mesmo diante do outro. Numa relação em que o
vínculo fundamental é o afetivo, e por isso não está presa ao peso institucional,
cada um está tão livre para permanecer ou sair. Assim, se um dos amigos perma-
nece, na medida em que cuida de si, pode ser estímulo para que o outro faça o
mesmo consigo. É claro que podem existir relacionamentos patológicos, casos de
forte dependência afetiva. Contudo a amizade é justamente este espaço, pautado
na liberdade, para que cada um faça sua ascese com a ajuda do outro e torne-se
mais livre afetivamente para mais livremente interagir nesta relação de poder.
Por isso, a relação de amizade pode ser marcada pelo equilíbrio entre a di-
mensão da afetividade –deixada de lado pelo indiferentismo econômico– e a da
razão, tão necessários para a convivência humana. Conforme ressaltam Assmann
e Leis, “Se nas relações profissionais se privilegia uma racionalidade instrumental,
calculada, e nas relações sexuais prevalece a paixão, a amizade exige algo mais:
um equilíbrio entre razão e afeto.” (ASSMANN; LEIS, 2006, p. 78).
Em síntese, precisamos ser livres para viver uma vida prazerosa e para criar
a vida que queremos. Assim o fazemos através de uma prática de ascese, um tra-
balho constante de aprimoramento de nós mesmos e, ao mesmo tempo, estimu-
lando o outro para que cuide de si mesmo. Esta ética nos possibilita interagir e
modificar as relações de poder subjetivantes, transformando-as em relações mais
livres, em que novas formas de vida e de sociedade possam gradativamente ser
experimentadas. Vale lembrar que para Aristóteles a amizade virtuosa é um exer-
cício de liberdade e, como tal, também é útil e traz prazer. Ela é a grande virtude
política, que, se vivida de forma plena, dispensa até mesmo a justiça. Por isso,
está acima da própria justiça.
Referências bibliográficas