COSTA, Cristiane - Pena de Aluguel
COSTA, Cristiane - Pena de Aluguel
COSTA, Cristiane - Pena de Aluguel
<em branco>
CRISTIANE HENRIQUES COSTA
Pena de aluguel
Escritores jornalistas no Brasil 1904/2004
Copyright c 2005 by
Capa
Foto de capa
Revisão
Índice onomástico
<ficha catalográfica>
[2005]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Introdução
Conclusão
Bibliografia
Introdução
Voltemos a 1904. Nesse ano, o jornalista e escritor João do Rio publicou, na Gazeta
de Notícias, uma enquete com os principais intelectuais do período. A série partiu de onze
entrevistas e 25 cartas de autores, que responderam a cinco perguntas, originalmente [*1] Comentário: não seria "vinte e
cinco"?
enviadas a mais de cem pessoas. Após três anos, as respostas foram reunidas no livro O
momento literário, hoje considerado um dos principais documentos sobre a vida intelectual
brasileira na virada do século 20.
Entre as cinco questões, está uma que o próprio autor considerava capital: o
jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?
Um século depois, a proposta desta pesquisa, que teve o apoio da Bolsa Vitae de
Literatura, é dar conta das possíveis respostas, em vários momentos literários brasileiros, à
questão que angustiava o repórter João do Rio provavelmente tanto quanto um autor
contemporâneo como Bernardo Carvalho: trabalhar na imprensa atrapalha ou ajuda alguém
que pretende ser escritor?
E ainda acrescentar outra pergunta: para a literatura, o que significou essa
aproximação entre o escritor e o jornalista? Será que é apenas um salário no fim do mês a
contribuição que a imprensa vem dando à ficção e à poesia brasileiras desde meados do
século 19, quando os primeiros homens e mulheres de letras começaram a se infiltrar nas
redações? É possível que, trabalhando com a mesma matéria-prima, a palavra, em algum
momento o muro que separa um discurso do outro tenha se tornado apenas uma linha
tênue? Ou que alguns aspectos da narrativa jornalística tenham acabado por se incorporar
ou mesmo renovar o texto literário (e vice-versa)?
• Esta pequena história comparada da literatura e da imprensa brasileiras divide-se
em cinco períodos, concentrando-se em seus principais representantes. Em resumo,
primeiro dá conta dos primórdios da imprensa, especialmente o período que vai de 1808 a
1830, quando o Brasil publica seus primeiros jornais e livros. Uma segunda etapa, que vai
de 1840 a 1910, narra a transição entre o reinado do publicista e a república dos homens de
letras. Seus principais personagens são José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac,
Coelho Neto, Lima Barreto e João do Rio. O terceiro período discute a era da
modernização, entre 1920 e 1950, com destaque para nomes como Graciliano Ramos,
Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade,
Jorge Amado e Erico Verissimo. O quarto sustenta que, de 1960 a 1980, houve um boom,
com o crescimento considerável da ficção feita por jornalistas no Brasil. Aí a lista é
enorme, e inclui quase todos os ficcionistas e boa parte dos poetas do período: Antonio
Callado, Antônio Torres, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Carlinhos Oliveira,
Ferreira Gullar, Ivan Angelo, João Antônio, José Louzeiro, Otto Lara Resende, Paulo
Francis, , para ficar só entre os principais. O quinto e último período vai de 1980 a março
de 2004 e mostra o descarte da experiência tradicionalmente fornecida pela imprensa. Os
escritores que trabalham em jornal progressivamente se afastam das editorias de hard news,
como Política e Polícia, e passam a preferir as editorias de Cultura, dialogando diretamente
com o mundo intelectual e o meio editorial.
Vale explicar que só considerei jornalistas aqueles que efetivamente trabalharam na
imprensa como repórteres, pauteiros, chefes de reportagem, redatores e editores, assim
como escritores apenas os que produziram ficção ou poesia. Não estão incluídos
colaboradores avulsos, que se dedicaram ao articulismo, à crônica ou à crítica, nem
jornalistas que escreveram livros de não-ficção, como biografias, grandes reportagens e
ensaios. Esta divisão nos leva à questão “o que é um autor?”, desta vez sob uma ótica
comparativa.
O que é um autor jornalista e o que é um autor literário? Como e quando os dois
campos se constituem em separado? Quais as diferenças entre o trabalho do escritor na
literatura e na imprensa? De que forma os dois gêneros se cruzam? A partir de que
momento as hierarquias entre eles são naturalizadas?
Se na fase dos grandes publicistas, como Hipólito da Costa; dos políticos-
jornalistas-escritores, como José Bonifácio; e mesmo a dos polígrafos, como Olavo Bilac,
os dois tipos de homens de letras ocupavam praticamente o mesmo espaço no jornal e na
vida literária, a partir da virada do século 20 a literatura se constituiu como um campo em
separado, em que um ideal de arte pura e desinteressada se contrapõe à possibilidade de
profissionalização, sinônimo de massificação, do texto jornalístico.
Aos poucos, os escritores começam a se afastar e a serem afastados do jornal. O [LPS2] Comentário: meu acréscimo.
processo se exacerba a partir do great divide modernista, entre as décadas de 1920 e 1950,
que, não por acaso, coincide com o primeiro boom do mercado editorial brasileiro e com a
crescente industrialização dos jornais. Mas já nas respostas à questão de João do Rio sobre
a influência do trabalho na imprensa nas obras literárias é possível verificar uma certa
ansiedade de contaminação entre os reinos da arte e da técnica.
De um lado, há posições como a de Luis Edmundo, para quem o jornalista mata a
sua arte por causa de 300 mil réis por mês. De outro, defesas radicais da imprensa, como a
de Medeiros e Albuquerque, que compara a baixa produtividade dos literatos a uma prisão
de ventre intelectual, para a qual o exercício braçal do jornalismo seria o melhor remédio.
O resultado é um empate: dos 36 intelectuais que responderam ao questionário, dez [*3] Comentário: não seriam "trinta e
seis
afirmaram que o jornalismo prejudica a vocação literária, onze disseram que não, onze [*4] Comentário: trinta e seis?
responderam que tanto ajuda quanto atrapalha e quatro não quiseram ou souberam
responder.
Uma vez demarcadas as fronteiras, a literatura será identificada com a alta cultura e
o jornalismo com a cultura de massa. Esta separação será tão naturalizada que se esquecerá
que as duas atividades começaram juntas no Brasil, em 1808, quando finalmente foi
permitida a publicação de impressos, com a vinda da Coroa Portuguesa. E também que a
primeira se beneficiou enormemente da segunda para sua difusão, em forma de folhetim,
durante todo o século 19 e início do 20.
Na prática, as fronteiras entre arte e mercado começam a desaparecer justamente
quando parecem mais fortemente estabelecidas. Com a modernização da indústria editorial
brasileira, surge uma literatura de mercado que já ousa dizer seu nome, praticada por
autores como Benjamin Costallat, Monteiro Lobato, Erico Verissimo e Jorge Amado, todos
eles best-sellers com experiência prévia na imprensa.
Paralelamente, cresce a necessidade de especialização da atividade jornalística. O
que faz com que escritores já consagrados, como Graciliano Ramos, passem a ser
incorporados não mais como cronistas, críticos ou articulistas, mas como mão-de-obra
interna, vestindo em geral o uniforme do copidesque, cuja função era consertar erros,
vícios e defeitos do texto jornalístico.
Curiosamente, será por meio do trabalho na imprensa de um Oswald de Andrade,
de um Carlos Drummond de Andrade e de um Graciliano Ramos, a partir dos anos 1920,
que a literatura (ou, antes, o beletrismo) será expuls do jornal. Limpando o terreno para [*5] Comentário: Expulsa ou expulso?
[*6] Comentário:
uma separação radical das técnicas literárias e jornalísticas que culminou com a importação
[*7R6] Comentário:
do modelo americano de objetividade, nos anos 1950, estes escritores transformaram sua
busca por um texto moderno, expurgado de barroquismos e seco de adjetivos, numa
cruzada contra ornamentos e penduricalhos na imprensa. Mas o manual de redação baseado
na cartilha modernista—realista teria que enfrentar a ira de autores como Nelson
Rodrigues, para quem a divisão entre texto jornalístico e literário era inviável.
Inconformado com as novas regras, que proibiam os pontos de exclamação, as reticências e
os adjetivos, Nelson pregou nos copidesques o rótulo de idiotas da objetividade.
De mero coadjuvante, como o repórter sensacionalista que freqüentou praticamente
toda a obra de Nelson Rodrigues, o jornalista se transformou no grande protagonista da
literatura brasileira. Entre os anos 1960 e 1980, ele se fez presente, por exemplo, em A
festa, de Ivan Angelo; Cabeça de negro e Cabeça de papel, de Paulo Francis; Um novo
animal na floresta e Domingo 22, de Carlinhos Oliveira; no romance-reportagem e nas
memórias da guerrilha. Seu engajamento propiciou uma revisão no conceito benjaminiano
de narrador. Quem tem melhores condições para contar a história: quem a vê a partir de um
ângulo privilegiado ou quem a vive na própria pele marcada pela tortura, marginalidade,
engajamento, patrulhismo ou cooptação? O que acontece quando o mesmo personagem
ocupa as duas posições?
Em meio ao embate com a censura da ditadura militar, a ficção brasileira viveu seu
melhor momento em termos de vendas. Uma ficção parajornalística de certa forma
substituiu a imprensa amordaçada em sua missão de informar. Mas não apenas isso. Se,
hoje, os escritores se ressentem da brutal retração do interesse dos leitores pela literatura
brasileira contemporânea, ela pode ser creditada não apenas ao fim da censura, que
devolveu à imprensa suas tarefas usurpadas, mas ao fim de um projeto de Brasil, que
nasceu com o romantismo, viveu seu auge entre os anos 1930 a 1950, orientou
praticamente toda a literatura dos anos 1960 aos 1980 e quase desapareceu nos anos 1990.
“Que país é este?” deixou de ser a grande questão que move a ficção brasileira e seus
leitores. Pelo menos até que a violência saltasse das manchetes dos jornais para as páginas
dos livros, telas de cinema e faixas de CDs.
A aparente despolitização da ficção contemporânea está relacionada ao novo perfil
do escritor jornalista. Para identificá-lo, reeditei o projeto do repórter João do Rio e fiz uma
nova enquete, entre 2001 e 2004. Meu objetivo principal era saber como os novos autores
responderiam à pergunta-chave de O momento literário, que acabou desdobrada em treze
outras. Por exemplo: pretendia ser escritor quando ingressou no jornalismo? A linguagem
dos jornais oferece um aperfeiçoamento formal ou bloqueia o texto literário? A
profissionalização através da imprensa permite a sobrevivência financeira do escritor ou o
afasta de seu caminho? Até que ponto a obra literária é influenciada pela atividade
jornalística?
Foram ouvidos 32 escritores jornalistas de todo o Brasil que começaram a se [*8] Comentário: Não seriam trinta e
dois?
destacar a partir dos nos anos 1990: Antonio Fernando Borges, Arnaldo Bloch, Arthur
Dapieve, Bernardo Ajzenberg, Bernardo Carvalho, Cadão Volpato, Carlos Herculano
Lopes, Carlos Ribeiro, Cíntia Moscovich, Fabrício Marques, Fernando Molica, Gisela
Campos, Jorge Fernando dos Santos, Heloisa Seixas, Heitor Ferraz, João Gabriel de Lima,
João Ximenes Braga, Jorge Fernando dos Santos, José Castello, Juremir Machado da Silva,
Luciano Trigo, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelo Coelho, Marco Pólo, Mário Sabino,
Michel Laub, Paulo Roberto Pires, Rosa Amanda Strausz, Ronaldo Bressane, Sérgio
Alcides, Sergio Rodrigues e Toni Marques. Suas respostas permitem compreender os
dilemas específicos de um momento em que literatura e jornalismo já não freqüentam mais
as mesmas páginas. E como, nestes cem anos de convivência, a separação entre os dois
campos foi naturalizada, eventualmente apagada e hierarquicamente invertida.
1. Momento literário 1900
O jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito
humano. Nulifica-o como o livro nulificará a página de pedra? Não
repugno admiti-lo.
Machado de Assis
A verdade é que Machado de Assis prometeu, mas não respondeu. Aluísio Azevedo
mandou uma carta simplesmente para dizer que não tinha tempo. Artur Azevedo e Raul
Pompéia, nem isso. Lima Barreto não foi procurado. Apenas 36 intelectuais aceitaram [*9] Comentário: não seria
[*10] Comentário: trinta e seis?
participar da pesquisa de João do Rio, publicada inicialmente na Gazeta de Notícias, entre
os anos de 1904 e 1905, e reunida no livro O momento literário em 1907. Destes, onze
foram entrevistados pessoalmente e 25 por carta. [*11] Comentário: vinte e cinco?
Podemos resumir suas respostas da seguinte maneira: dez acharam que o jornalismo
prejudica a vocação literária; onze disseram que é favorável; onze opinaram que ajuda o
aspirante a escritor, mas também o atrapalha; três não responderam à questão; um [*12] Comentário:
Sempre que uma profissão usa dos recursos de qualquer arte para fins
industriais, os cultores da arte se indignam e depreciam sistematicamente
os profissionais, que assim se põem na vizinhança. Quanto mais o
emprego dos meios é o mesmo e há, portanto, perigo de serem às vezes
confundidos, mais também os artistas ostentam o seu desprezo e procuram
cavar um fosso profundo entre os dois domínios.11
Não vejo bem por quê. São diferentes dos romance ou do conto, mas
visam o mesmo fim: usar de palavras escritas para impressionar cérebros
humanos, fazer vibrar inteligências e corações [...] Por que razão há nisso
menos arte do que em amassar meia dúzia de substâncias coloridas, borrar
uma tela, e dar assim a impressão de uma paisagem [...].12
Para o acadêmico, “os que acham que não produzem obras-primas, porque estão
jungidos aos trabalhos da imprensa, se dispusessem de todo o tempo preciso e não tivessem
necessidade de trabalhar, talvez não produzissem nem nada na imprensa nem na literatura”.
Certamente, a necessidade de ganhar a vida pode impedir “que homens de certo valor
deixem obras de mérito”, mas isso poderia acontecer se tivessem qualquer outro emprego,
acredita.13
Curvelo de Mendonça — que faz questão de frisar que é insuspeito, porque nunca
foi jornalista — também é enfático: considera a imprensa mais importante do que a
literatura. “[Os jornalistas] são agentes mais poderosos do nosso movimento literário do
que os egoístas que, insensíveis ao meio, de quando em quando se apresentam, vaidosos, de
ponto em branco, com um livro na mão. Esses livros, algumas vezes, são tão úteis ao
Brasil... como à China.”14 Além de útil, o jornal é ainda, como afirma Garcia Redondo, o
espaço de consagração por excelência para o escritor, sem o qual “a arte estaria às
escuras”.15
Se infelizmente “só têm grande ração os que assim vivem” presos ao jornal, como
afirma João Luso, a frustração com a impossibilidade de se tornar escritor profissional no
Brasil não é exclusiva dos jornalistas. Inglês de Souza chama a atenção para o fato de que
“também há diretores e amanuenses de secretaria e outros rabiscadores de papel que são
excelentes poetas e grandes romancistas. O que não quer dizer que a burocracia seja fator
bom para a arte literária”.16 O mal não seria o jornalismo em si, mas a falta de mercado para
a literatura. É o que também admite o magistrado e poeta Rodrigo Otávio.
opostas: a do artista desinteressado pelo aspecto econômico, que busca apenas lucros
simbólicos por sua obra, como a glória, e a do artista que deseja viver de seu talento, e que,
portanto, precisa ter lucros reais com seu trabalho. O problema não dizia respeito somente
ao momento (e ao mercado) brasileiro.
A pesquisa de João do Rio se inspirou na do jornalista Jules Heuret, organizador de
uma Enchête sur l’evolution littéraire, com 64 escritores, publicada originalmente no jornal
L’Echo de Paris, em 1881. As duas obras refletem os dilemas provocados pela crescente
conquista da autonomia do campo literário. Campo que se acredita sujeito às próprias leis,
pregando a arte pela arte, mas que tem sua autonomia alcançada justamente num momento
de expansionismo industrial, que ameaça com a subordinação de todos, jornalistas e
escritores, ao mercado.
Nova forma de dependência econômica, o jornalismo tem, por outro lado, um efeito
libertador, oferecendo a jovens sem diploma ou renda a possibilidade de viver de seu
próprio trabalho intelectual — mesmo que batalhando literalmente como um burro, como
reclamava o polígrafo Olavo Bilac. Por outro lado, impede que o escritor se dedique
exclusivamente a sua vocação.
O movimento é circular. O desenvolvimento da imprensa é indício do aumento da
população escolarizada, expansão do mercado de bens culturais e sua democratização no
Brasil. Ele alimenta-se de uma crescente população de jovens literatos sem fortuna, que,
incentivados pela valorização social da figura do escritor, vão tentar “viver de uma arte que
não pode fazê-los viver”.23
Do romantismo de José de Alencar à Belle Époque de João do Rio, processou-se
uma grande mudança no papel social do escritor. Encantados com o prestígio do homem de
letras que só fez crescer, “políticos, militares, médicos, advogados, engenheiros, jornalistas
ou simplesmente funcionários públicos, todos buscavam na criação poética ou ficcional o
prestígio definitivo que só a literatura poderia lhes dar”.24 E que só uns poucos poderiam
alcançar.
Nesse sentido, a figura de Machado de Assis funciona como uma espécie de mito
fundador da literatura brasileira. A partir dele, tudo seria possível. É como se as conquistas
de um determinado indivíduo num determinado contexto histórico estivessem abertas, a
partir de então, para todos os que se aventurassem a trilhar o seu caminho. Mas mesmo
nosso mito fundador não brotou do nada.
Machado seguiu a mesma estratégia destes escritores jornalistas marcados pela cor,
como Teixeira e Souza e Paula Brito, para encontrar seu caminho. Afinal, de que forma um
jovem mulato, pobre, órfão e epilético poderia se firmar como o maior escritor brasileiro de
uma sociedade escravagista? Entrado nos salões da literatura pela porta de serviço: o
jornalismo. E, se alguém tão estigmatizado conseguiu, por que não eu, provavelmente
pensaram outros tantos literatos pobres e mestiços que seguiram seu exemplo. Parecia
apenas uma questão de empurrar a porta.
Isso foi feito em algum momento entre os anos de 1854 e 1855, quando Machado
forçou a mão do destino ao tomar coragem e entrar na livraria de Paula Brito. Ali o jovem
de pouco mais de quinze anos daria início a uma atividade como jornalista e escritor que só
terminaria 53 anos depois. Mas também na imprensa não entraria pela porta da frente. [*17] Comentário: cinquenta e três?
Trabalhou como caixeiro na livraria e depois como empregado da tipografia de Paula Brito.
Lá era editada a Marmota Fluminense, jornal que publicou seu primeiro poema, em 6 de
janeiro de 1855.25 Jornalzinho cultural, a Marmota Fluminense saia às terças e sextas-
feiras, com apenas seis páginas, pelo menos três delas ocupadas por poesias e glosas.
Não é difícil imaginar por que o popular Paula Brito teria aberto as portas ao rapaz
desconhecido. Na biografia desse poeta, jornalista, editor e livreiro, um mulato self made
man que parecia subverter a lógica escravagista do Segundo Império, há inúmeros pontos
de contato com a vida de Machado de Assis.
Filho de carpinteiro, Paula Brito não teve uma educação formal. Na verdade, nunca
chegou a ir à escola, e aprendeu a ler com uma irmã. Mesmo assim, tornou-se poeta e
tradutor. Foi aprendiz na Tipografia Nacional e na tipografia de René Ogier, antes de
trabalhar na tipografia de Plancher, que produzia o Jornal do Commércio, onde chegou a
administrador e editor. Em 1831, comprou uma pequena loja com suas economias, além de
uma prensa, em que publicava o jornal O Restaurador. Dois anos depois, já tinha dois
endereços e duas impressoras. Em 1848, possuía seis prensas manuais e uma mecânica, tida
como “a maior do Brasil”.26 Em 1855, quando Machado teria trabalhado para Paula Brito,
suas empresas tinham nada menos do que sessenta empregados, nove deles franceses.
O escritor não foi o primeiro a ser ajudado por Paula Brito. Antes dele, o mulato
Teixeira e Sousa (autor que teria escrito o primeiro romance da literatura brasileira, O filho
do pescador, de 1843) encontrou apoio financeiro e literário no editor, que publicou, entre
outros livros de importância, os Últimos cantos, de Gonçalves Dias, as comédias de
Martins Pena e A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães.
A Petalógica, sociedade literária e artística fundada por Paula Brito, tinha caráter
absolutamente democrático. O objetivo da “Peta” (mentira) “lógica” era “contrariar os
mentirosos, mentindo-lhes a fim de que eles, tomando como verdade tudo o que ouviam, o
fossem repetindo por toda a parte e se desmoralizassem inteiramente, ou perdessem o
vício”.27
vezes, se discutia a superioridade das divas do tempo e as vantagens do ato [*19] Comentário: É um citação,
tratam-se de seguidores de um ou outro
adicional, os sorvetes de José Tomás e as nomeações de confiança guru.
Apesar de sua condição social, Machado fez parte desse círculo que reunia —
durante a semana na casa de Paula Brito e, aos sábados, no Largo do Rossio, em dois
bancos em frente à livraria — alguns dos principais escritores da corte, como Casemiro de
Abreu, Gonçalves Dias e o jornalista Joaquim Manuel de Macedo. Lá, Machado também
conheceu Francisco Otaviano, relação que lhe seria extremamente útil.
Em 1856, Machado arrumou emprego como tipógrafo aprendiz na Imprensa
Nacional, tendo como diretor o também escritor Manuel Antônio de Almeida. Não teria
sido o melhor dos operários. Alfredo Pujol, citado por Lucia Miguel Pereira, diz que
“descuidava do serviço para ler nos cantos” e, por isso, foi chamado pelo diretor, autor de
Memórias de um sargento de milícias. A conversa entre os dois escritores, em vez de uma
repreensão, teria rendido a Machado a proteção de Macedoe uma grande amizade.
Embora até hoje esteja guardada no Museu da Imprensa Nacional a prensa manual
em que o escritor trabalhava como tipógrafo, pesquisadores como Godim da Fonseca e
Jean-Michel Massa duvidam da história. Segundo Massa, apesar de narrada por Capistrano
de Abreu, nenhum documento prova que o nosso autor tenha sido aprendiz ou operário na
Imprensa Nacional, mas deixa em aberto: “Nenhum documento prova o contrário”.29
Lenda ou não, o que se sabe é que Machado teria ficado dois anos na tipografia da
Imprensa Nacional. Em 1858, deixaria o emprego para ser revisor de provas de Paula Brito
e, no ano seguinte, ocuparia o mesmo cargo no Correio Mercantil, de Francisco Otaviano,
poeta diletante, jornalista e político que deu a Alencar a coluna Ao correr da pena. Subindo
esse degrau, Machado deixou de ser operário para trabalhar no andar de cima do
jornalismo, embora ainda em um cargo subalterno. No mesmo ano, publicou algumas
poesias no Correio Mercantil, que tinha posições políticas muito claras contra a escravatura
e o poder clerical.
Resquícios do sentimento de inferioridade que acometia o aspirante a escritor
naquela época podem ser percebidos no conto “Miloca”, escrito em 1874. Quase vinte anos
depois de ter escapado dessa condição, o autor narrou a história de um poeta pobre, ex-
tipógrafo promovido a revisor de provas, que percebe, no olhar do dono de uma mansão,
onde acontece uma festa, o desprezo que sentiria se confessasse sua profissão: “Pois este
pelintra tem a honra de jantar aqui comigo, ver dançar os outros, estar aqui confundido com
pessoas de certa ordem, e se há de ouvir e calar, responde quando ninguém lhe pergunta e
por fim confessa-se revisor de provas”.30
Mas a ascensão social do jovem e pobre revisor não parou no andar intermediário.
Quando publicou Memórias póstumas de Brás Cubas, pela Imprensa Nacional, Machado já [*20] Comentário: discordo da retirada
desta frase, porque ela situa a data da
não era mais um desconhecido, mas um nome ilustre da literatura nacional. A consagração publicação do livro e chama a atenção para
os 20 anos que se passaram entre a entrada
e a consagração de Machado.
podia ser percebida quando, depois do trabalho, parava para a habitual prosa com os
[LPS21] Comentário: a inf. que tirei já
literatos nas editoras Garnier e Lombaerts, ou nas redações de A Semana e de A Revista tinha sido dada antes.
Brasileira.
Do último grupo, jornalistas e colaboradores da revista, dirigida desde 1895 pelo
crítico José Verissimo, seria arregimentada a base da Academia Brasileira de Letras,
fundada em 20 de julho de 1897, com vários escritores jornalistas ocupando suas quarenta
cadeiras, entre eles Machado, Coelho Neto e Olavo Bilac. Como presidente da nova
instituição, Machado fez ouvidos moucos às críticas de que a criação da Academia
correspondia à instauração de uma aristocracia intelectual pouco compatível com os ares
republicanos, mera importação de um modelo europeu inútil num país de iletrados.
Logo ele que, 35 anos antes, tinha ironizado o adjetivo “imortal” num artigo no [*22] Comentário: não seria trinta e
cinco?
Diário do Rio de Janeiro sobre a inauguração da estátua de D. Pedro I, chamando atenção
para o ridículo de toda a cerimônia. “Mas sabe o leitor quem teve grande influência na festa
de anteontem? O adjetivo. Não ria, leitor, que o adjetivo é uma grande força e um grande
elemento”, afirmava, para logo depois declarar:
Machado chega a pôr a literatura numa posição inferior em relação à imprensa. “Há
alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos [o livro] em face do jornal”, afirma.
“O jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-
o como o livro nulificará a página de pedra? Não repugno admiti-lo.”37 A verdade é que
Machado de Assis morreu em 1908, dois meses depois de publicar seu último livro,
Memorial de Aires, sem que o livro tivesse matado o jornal nem o jornal matado o livro.
Seu caso foi exemplar de como um gênero narrativo pode mais do que nulificar, fertilizar o
outro.
No ano seguinte à publicação dos artigos, Machado foi cooptado pela grande
imprensa, contratado para o Diário do Rio de Janeiro pelo amigo Quintino Bocaiúva.
Machado trabalhava na “cozinha” do jornal: escrevia e reescrevia os anúncios, as pequenas
notícias, com um estilo já “nítido e limpo”...
muito mais limpo do que a caligrafia onde se lhe expandia o nervosismo
em rabiscos incríveis, em borrões de todos os feitios. A desordem de seus
manuscritos, que só lhe saíam à custa de dedos manchados de tinta e
inúmeras penas quebradas, chegou a tal ponto que contra ela se revoltaram
os revisores do jornal, vendo-se o novo redator obrigado a aprender a
escrever com um professor especialista, o calígrafo americano Guilherme
Scully.38
Como muitos escritores depois dele, Machado descobriu no jornal uma forma de
alargar seu universo, freqüentando rodas distintas de seu ambiente de origem, conhecendo
de alto a baixo da escala social pessoas de que, como leitor, só ouviria falar. Mas o jornal
também era fonte de aborrecimento. Afastado do cargo de cronista por dois anos — seu
último Comentário da Semana foi em maio de 1862 e o primeiro da coluna Ao acaso, em
1864 —, ele continuou trabalhando todos os dias na imprensa, mas de forma anônima,
assinando apenas cinco textos em 23 meses. O afastamento parece ter obedecido a questões
estratégicas, num momento em que o jornal desejava moderar os ataques ao governo,
embora não se saiba com certeza se foi Machado que se afastou ou foi afastado da política.
Além da crônica e da crítica literária, Machado escrevia os editoriais e acumulava
funções administrativas. Era “pau-para-toda-obra” de funções múltiplas na redação e na
administração, responsável por tudo”.41 Sobrecarregado, percebeu que teria de deixar a
imprensa para voltar a escrever romances. “Nas condições em que se encontrava quando
assumiu no Diário as responsabilidades que acabamos de mostrar, pôde sentir quanto esta
atividade devorava o indivíduo, o privava de seu tempo e de sua liberdade”, comenta o
biógrafo Jean-Michel Massa, assinalando a reação de Machado a um problema comum aos
jornalistas escritores: a absorção sem limites do trabalho jornalístico.42
Em algum momento — mais precisamente em 1878, ano da morte de José de
Alencar — foi preciso fazer a tão temida quanto desejada opção. Aquela que liberta os
maiores sonhos, mas também os piores pesadelos. Deixar o jornalismo diário foi uma
aposta. “No momento, parecia errar, pois era melhor jornalista do que escritor de ficção”,
julgava Lucia Miguel Pereira, para quem “as crônicas do Diário do Rio são muito
superiores aos contos da mesma época e muito superiores a Ressurreição, o primeiro
romance, escrito aos trinta anos”.43 Doente, deixou momentaneamente de escrever para a
imprensa e decidiu tirar suas primeiras férias. Seis meses depois, Machado de Assis
publicou seu primeiro grande livro, Memórias póstumas de Brás Cubas.
Do final do século 19 até hoje, quando os postos de trabalho no jornalismo
começam a escassear, por conta da informatização, forte recessão e exigência de diploma, o
sonho de uma carreira literária gloriosa como a de Machado de Assis continuamente tem
movido aspirantes a escritor de todo o Brasil aos grandes centros, como Rio de Janeiro e
São Paulo.. Mas dificilmente escapam de ter com o mercado uma relação ambígua.
O jornalismo costuma ser a porta de entrada, a forma de divulgação e até a instância
de consagração de seus nomes. No entanto, muitos permanecem presos ao mito de que o
verdadeiro escritor é o que consegue ser artista em tempo integral, sem concessões. Não se
dão conta de que se trata de um personagem social construído pela mesma modernidade
que os aproxima e afasta de seus objetivos, integrando-os ao campo literário, mas
obrigando-os a vender seu tempo e talento. Presos à visão ambivalente do escritor como um
intelectual aristocrata ou um marginal da sociedade burguesa, eles não vêem que produzem
seus livros contra essas determinações e, ao mesmo tempo, graças a elas. [LPS23] Comentário: acho que essa
“conclusão” está precipitada aqui. é melhor
ficar apenas na história, deixando isso para
depois. cf. com obs. negativa do parecerista
sobre o termo “reserva intelectual”.
2. Momento jornalístico 1900
Não vendes a consciência. Vendes a pena, que não é a mesma coisa. [LPS24] Comentário: melhor: não
vende a consciência. vendas a pena...??
Ramón del Valle-Inclán
[*25] Comentário: Respo
[*26] Comentário: resposta ao
comentári
Como o próprio Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, responderia à
[*27] Comentário: resposta ao
célebre pergunta de O momento literário: O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator comentário: não deve ser mudado, é uma
citação: não vendes, vendes
bom ou mau para a arte literária?
Escritor e jornalista, certamente João do Rio tinha posições próprias a respeito de
uma questão que, se não o angustiasse, dificilmente seria explicitada como “a pergunta
capital” da enquete. É provável que, dado o caráter contraditório do personagem e da
questão, ele se identificasse com Olavo Bilac quando o poeta diz que o jornalismo é um
meio de chegar ao leitor. Mas dificilmente deixaria de se emocionar com a confissão logo a
seguir:
Já que o próprio João do Rio tentou fazer a mesma coisa com Machado de Assis, a
quem confessa ter perseguido durante vários dias para pinçar uma ou outra frase, não seria
um abuso buscar suas respostas a partir de fragmentos e pequenos comentários dispersos
aqui e ali no livro. Por exemplo, quando ironiza o que disse o escritor Fabio Luz:
Antes de João do Rio, grandes escritores, como José de Alencar, Machado de Assis
e Olavo Bilac, embrenharam-se nas redações. Mas o jornalismo que faziam estava muito
mais próximo da crônica e dos editoriais de hoje. Baseado no modelo francês, privilegiava
a análise e o comentário, e não a informação. Na história do jornalismo, o rodapé
alencariano evoluiu para a crônica de Machado e Bilac e, só no início do século 20, abriu
espaço para a reportagem e a entrevista, até então raramente usada. Foi esse modelo de
reportagem de campo que marcou o nascimento do jornalismo moderno.
Conta Brito Broca que, na época em que João do Rio preparou O momento literário,
o jornalismo passava por uma fase de modernização, cuja primeira etapa tinha começado
mais de vinte anos antes, com as ousadias da Gazeta de Notícias e do Cidade do Rio, que
acolhiam os literatos e a literatura, pagando até 70 mil réis por sua colaboração. Na segunda
etapa dessa modernização, de 1900 em diante, os jornais se voltariam claramente para o
noticiário e a reportagem.
“Eu te sentencio a escrever para os jornais pelo resto de seus dias, tendo ou não
alguma coisa a dizer, estando ou não doente, desejando ou não escrever!”, diz uma espécie
de Mefistófeles a um escritor interessado em vender sua alma em troca do sucesso, numa
crônica publicada por Olavo Bilac, em 1887, na Gazeta de Notícias.1
Se esta era a pena, o discurso abaixo, proferido duas décadas depois, demonstra o
papel que o jornalismo teria na literatura brasileira no novo século. Ainda não era possível
viver de direitos autorais, mas já era viável, com certo esforço, ganhar dinheiro com o
trabalho intelectual. Os jornais experimentavam uma franca expansão, abrindo caminho
para os anatolianos — o primeiro tipo de intelectual profissional do país —, que ganharam
esse apelido pelo excesso de vezes em que repetiam o nome do escritor francês, símbolo de
uma otimista era das letras. Em 1907, um ano antes da morte de Machado de Assis, “o
príncipe dos poetas” Olavo Bilac definiria a contribuição de sua geração às letras nacionais:
a profissionalização.
Bilac completava o vigésimo aniversário da publicação de Poesias e o décimo da
crônica dominical na Gazeta de Notícias, o que mereceu uma grande festa. Nomes ilustres
da política nacional foram à comemoração. Na homenagem ao escritor que passara quatro
meses preso na Fortaleza da Lage e dois anos exilado em Minas Gerais por seus textos de
jornalismo político, compareceram os ministros da guerra, da marinha, da fazenda, da
viação e obras públicas e o prefeito do Rio de Janeiro, além de senadores e deputados. Os
maiores nomes do meio intelectual também prestigiaram a festa. Entre eles, Machado de
Assis, Coelho Neto, Graça Aranha, Oliveira Lima, Manuel Bonfim e João do Rio.
Em meio a discursos elogiosos, o homenageado tomou a palavra e ressaltou o papel
do jornalismo na transformação da literatura num trabalho assalariado, dando ao homem de
letras brasileiro a tão sonhada legitimação social:
Apesar de ter sido uma espécie de best-seller da poesia, com tiragens de até 4 mil
exemplares, não era com os livros que Bilac mantinha seus luxos no Brasil e na Europa.
Nem mesmo Coelho Neto, seu contemporâneo, com mais de cinqüenta livros escritos,
conceberia essa façanha. Assim como boa parte dos integrantes do meio intelectual de
então, era o jornal e não o livro que pagava as contas do escritor no fim do mês.
Além de sustentar o literato, seria o cronista de texto leve e coloquial quem iria
resgatar, para as novas gerações, o nome de um poeta símbolo de um estilo caracterizado
pelo excesso de formalismo. O nosso príncipe parnasiano tinha apenas um ano de idade
quando o movimento eclodiu na França, com a edição de Le parnase contemporain, em
1866, numa reação à exuberância do romantismo. Seus primeiros versos foram publicados
na Gazeta Acadêmica, quinzenário estudantil da faculdade de medicina, em 1883, dois anos
depois de ingressar no instituto, com autorização imperial, aos quinze anos. Para desespero
do pai, médico renomado, Bilac jamais terminaria a faculdade, mas desenvolveria ali o
gosto pela vida boêmia. Irritado, cortou a ajuda financeira ao rapaz às vésperas de
completar vinte anos. Mas o ex-futuro doutor recebeu um presente melhor: teve dois
sonetos publicados por Artur Azevedo na Gazeta de Notícias, com um comentário
favorável que lhe assegurava um brilhante futuro.
Para se ter uma idéia do que era escrever para a Gazeta naquela época, é útil ouvir o
próprio Bilac falar do que representava o jornal — “o único que dava espaço para a
literatura” — para um aspirante a escritor.
Bilac partiu para São Paulo dois anos depois, decidido a estudar direito, trabalhar para
juntar dinheiro e se casar. Arrumou emprego no Diário Mercantil e, com isso, a carreira de
advogado, única opção para os homens de letras da época (metade dos fundadores da ABL
passaram pela faculdade de direito), também foi abandonada. Para quem não era capaz de
seguir regularmente uma das profissões imperiais — medicina, engenharia e direito —, o
único caminho era mesmo o jornalismo, que, se exigia do seu postulante uma habilidade
com as palavras acima da média, não fazia questão de diploma. No entanto, ainda não
contava com o prestígio das profissões tradicionais. “Antes de nós, Alencar, Macedo e
todos os que traziam a literatura para o jornalismo eram apenas tolerados: só o comércio e a
política tinham consideração e virtude”, reconheceria Bilac.4
Ao voltar para o Rio, o poeta arrumou emprego no Novidades, jornal abolicionista
de seu ex-colega de medicina Alcindo Guanabara. Bilac também publicava versos no
Cidade do Rio, de José do Patrocínio, para onde se transferiria mais tarde, com Pardal
Mallet e Raul Pompéia. Com eles fundou o semanário A Rua.
Em 1889, no entanto, o sonho de ter o próprio jornal acabou e os “desertores” do
Cidade do Rio começaram a voltar. O primeiro foi Bilac, numa atitude que Pardal Mallet
tomou por traição e que resultou em duelo.
Parnasiano apenas na arte, Bilac teve forte atuação política como jornalista. Em
1892, pagou caro por ter se juntado ao grupo que fundou o periódico antiflorianista O
Combate, ficando quatro meses preso. Quando o Cidade do Rio, jornal em que acabaria
chegando a secretário de redação, teve a circulação suspensa pelo governo, achou por bem
se esconder em Minas Gerais. Só voltou dois anos depois, em 1894, quando o estado de
sítio ao Distrito Federal foi levantado.
Sua vocação para a política foi ficando cada dia mais forte, como mostram as
páginas de A Cigarra, semanário colorido e ilustrado, criado em 1895, em que era o único
redator, escrevendo desde a crônica de abertura até as notas, sob pseudônimos como Puck e
Fantasio. A revista era ilustrada pelo caricaturista português Julião Machado, que, em
1886, fundou com Bilac A Bruxa, publicação em que o poeta pôde exercitar toda sua veia
cômica. E, mais ainda, seu humor negro, sob pseudônimos como Belial, Diabo Coxo,
Mefisto, Belzebu, Lúcifer e Diabinho, enquanto Coelho Neto escrevia escondido sob o
pseudônimo de Caliban.
O humorismo estava realmente na moda e, em agosto de 1896, o jornal criou o
suplemento gaiato O Filhote, no qual se publicavam gozações em prosa e em verso. Tantas
peripécias não impediram que o Diabinho e o Caliban fossem escolhidos para fazer parte do
seleto grupo de fundadores da Academia Brasileira de Letras, no mesmo ano. Mas é certo
que a pompa e a circunstância exigida pela Academia acabaram por lentamente transformar
o boêmio no homem sério. Não sem desencanto.
Quando o amor dos versos rimados foi diminuindo à medida que crescia a
responsabilidade da vida; quando deixei de crer (com que tristeza!) que o
homem capaz de fazer versos não tem necessidade de fazer mais nada;
então, um novo cerco, mais paciente e mais longo, começou. O que eu
queria era ter ali o meu dia marcado, o meu cantinho de coluna, o meu
palmo de posse. Já não me bastava a glória de entrar às vezes na casa, para
beijar a mão da linda senhora, e segredar-lhe ao ouvido um galanteio
rimado: o que eu queria era um quarto no castelo, um lugar certo na mesa,
um posto na fileira.5
Esse lugar de honra seria nada menos que a cadeira que foi de Machado de Assis.
Um Bilac sério e maduro substituiria o principal cronista da tão desejada Gazeta de
Notícias, onde publicara seus primeiros poemas. É tocante a forma como o poeta narra a
sucessão:
Machado de Assis, um nababo egoísta, que, um belo dia, ali por volta de
1897, meteu dentro de um saco as luzes e os perfumes, as estrelas e as
rosas que costumava espalhar por esta seção, e levantou acampamento,
obrigando o leitor, habituado ao livro precioso do seu estilo, a contentar-se
6
com a água chilra do meu.
Quanta cousa tenho deixado por aqui, quanto sonho vago, quanta palavra
alegre ou magoada, quanta sincera piedade e quanta ironia mal contida, na
contínua contradição deste trabalho diário, que se desfaz e desaparece
mais facilmente do que as pegadas de um caminhante sobre a neve!7
Pegadas que levaram Bilac ao topo da fama em 1907, quando se realizou a grande
festa em sua homenagem. Mas, no ano seguinte, a lua-de-mel com a imprensa chegaria ao
fim. O poeta rompeu, no fim de 1908, todos os compromissos profissionais com a Gazeta
de Notícias e a revista Kosmos. Agia em represália por ter sido alfinetado pela imprensa por
participar da organização de uma agência de notícias patrocinada pelo Itamaraty. Prometeu
nunca mais trabalhar em jornais. De fato, sua cada vez mais rara contribuição se destinava
às revistas. Deixou todos os empregos e partiu para a primeira de suas vinte viagens para a
Europa e os Estados Unidos. Não sem antes colocar em funcionamento, com códigos
telegráficos e correspondentes nas principais praças, a tal agência de notícias que se
destinava a informar homens de negócios do Brasil, em particular produtores de café, sobre
as cotações das bolsas de Londres, Paris e Nova York. Bilac estava em Paris quando a
revista Fon-Fon organizou uma eleição para escolher o “Príncipe dos poetas brasileiros”,
em 1913, da qual foi vencedor. Mas a medida de sua fama foi a multidão que lotou as ruas
do Rio de Janeiro, acompanhando a pé seu enterro, quatro anos depois.
PROSTITUTA OU MENDIGO
Olavo Bilac teria conseguido tal popularidade se tivesse seguido o conselho dado ao
jovem escritor na enquete de João do Rio, o de enfrentar a pobreza e o silêncio, mas não
prostituir o seu talento? Na verdade, a posição do “príncipe dos poetas” em relação à
imprensa oscila conforme a época e a situação. Em retrospecto, porém, não há dúvidas
sobre qual teria sido a escolha de Bilac se Mefistófeles o tentasse com uma proposta
irrecusável, tal como a que descreve na crônica de 1887: em troca de fama e conforto
material, o poeta venderia sua alma.
Proferido por quem podia se orgulhar de uma carreira bem-sucedida nas letras e no
jornalismo, o ferino discurso de Bilac vinte anos mais tarde tinha um alvo preferencial: os
escritores marginais, que incorporavam o fantasma do literato morto de fome, algo que os
pragmáticos anatolianos gostariam de exorcizar mais do que depressa. Ele encarnava
exatamente o que o poeta teria sido se tivesse seguido o próprio conselho, recusando-se a
“prostituir” o seu talento.
Como se fosse uma cruzada coletiva dos intelectuais do período, era contra esses
mesmos escritores marginais que o interlocutor secreto de João do Rio em O momento
literário se debatia ao afirmar:
Para movimentar uma sociedade fascinada pelo consumo, pelo ornamento e pelo
supérfluo, como a capital brasileira durante a Belle Époque, foi preciso unir três fatores: um
rápido crescimento econômico, que possibilitasse a concentração de renda nas mãos de uma
classe ociosa, uma classe emergente disposta a qualquer sacrifício pessoal para conquistar
os símbolos de distinção social e uma ampla gama de excluídos. Os homens de letras não
ficaram imunes a nenhum destes fatores.
Com isso, o poeta pobre encarnaria o pesadelo do escritor consagrado: ele
representava a marginalização social com que a literatura ameaçava aquele que não
seguisse as novas regras. O escritor bem-sucedido precisava varrer sua sombra para
debaixo do tapete, não tanto porque ela o lembrasse o tempo todo que estava “prostituindo
sua arte por 300 mil réis por mês”, mas porque ilustrava o que ele poderia vir a ser, se não
conseguisse ou se recusasse a alugar sua pena. Mesmo sabendo que, mais dia menos dia,
Mefistófeles viria cobrar seu preço, como na crônica de Bilac.
No entanto, o jornalismo também estava longe de ser uma profissão bem-
remunerada. Para conseguir melhor renda, até os mais famosos escritores eram polígrafos
obrigados a se dividir por vários órgãos de imprensa. Em A conquista, Coelho Neto
aconselhava o aspirante a escritor a diplomar-se e fugir dos jornais, pintando um quadro do
jornalista sem nome não muito diferente do poeta maldito.
[o jornal] diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da [LPS32] Comentário: onde fecha?
Depois de Machado, a república das letras foi ficando cada vez mais dividida entre
os vencedores — “o filão letrado que se solda aos grupos arrivistas da sociedade e da
política, desfrutando a partir de então enorme sucesso e prestígio pessoal”.15 E os
derrotados, marginalizados socialmente, a quem pouco restava além da miséria, a loucura, a
doença e o alcoolismo.
É instrutiva a visita de um representante do primeiro grupo, Coelho Neto, a um
exemplar do segundo, à beira da morte.
Que trabalho para conseguir achar a pocilga em que se extinguiu o espírito
radiante! Um casarão secular em um beco da Cidade Nova, perto do
Gazômetro. Nem lhe sei o nome. Escuro e sórdido como uma caverna. A
escada, em dois lances retorcidos, rangia ameaçando desabar. Uma
lanterna de cárcere vasquejava em cima fazendo rebrilhar a umidade que
ressumava das paredes sujas e esburacadas. Tresandava.
O quarto ... Ah! Meu amigo ... uma estufilha com um postigo
sobre o telhado. Cama de ferro sem lençóis, uma mesa de pinho atulhada
de jornais e brochuras, uma cadeira espipada, andrajos escorrendo de
pregos à parede, e, num caixote, um coto de vela vasquejando numa
garrafa.16
A descrição é ainda mais chocante quando comparada com a que João do Rio faz da
casa de Olavo Bilac em O momento literário.
Quem eram esses poetas mortos de fome que, longe de terem sucumbido no
passado, pairavam como sombras em meio ao luxo da Belle Époque? Em geral, simbolistas,
nefelibatas, decadentistas e últimos românticos, que acreditavam numa arte pura e
desinteressada, como Cruz e Souza. Mas, mesmo este andou tentando a sorte no
jornalismo. No primeiro semestre de 1891, o poeta simbolista empregou-se no Cidade do
Rio, de José do Patrocínio, como noticiarista, a 50 mil-réis semanais. Ele ainda colaborou
na Revista Ilustrada, de Ângelo Agostini, no Novidades e em O Tempo, antes de desistir
definitivamente da imprensa, onde nunca conseguiu ir além da vala comum, apesar dos
visíveis esforços para escrever uma prosa mais coloquial.18
Enquanto os integrados se reuniam na Livraria Garnier, os apocalípticos marcavam
ponto em outra livraria, também francesa, de madame Fauchon. Lá, eles se deleitavam em
criticar a vulgaridade dos naturalistas, o pernosticismo dos parnasianos e Machado de
Assis. Às vezes, os tais poetas mortos de fome nem mesmo eram poetas. Podiam ser
romancistas encrenqueiros, como Lima Barreto, que ousavam levantar a voz nos cafés para
falar mal dos medalhões. Dizia, em alto e bom som, que “o Senhor Coelho Neto é o sujeito
mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual”. Também não poupava
Machado de suas críticas, afirmando que ele “escrevia com medo”, escondendo o que
sentia.19 Para Lima, além de omisso, Machado não era autêntico. “Não tem naturalidade.
Inventa tipos sem nenhuma vida”, quase fantoches.20
Lima Barreto tinha como alvo a circularidade de elogios do meio literário
provinciano, uma espécie de “autopúblico, num país sem público”.21 Filho de um antigo
mestre das oficinas de composição da Tipografia Nacional e de uma professora primária
que chegou a fundar um colégio para meninas, o escritor estudou engenharia na Escola
Politécnica, entre 1898 a 1903, mas foi sucessivamente reprovado em matérias como
cálculo matemático. Mulato culto, sem diploma nem dinheiro, iria parar fatalmente no
jornalismo.
Também não encontraria nas redações o reconhecimento literário que deixou de
obter em vida. Seu trabalho na imprensa mais interessante foi uma série de reportagens,
sem assinatura, no Correio da Manhã, em 1905, sob o título Os subterrâneos do Morro do
Castelo. Pediu demissão de A Época por não aceitar escrever notas elogiosas sobre
figurões da república. Ficou apenas três meses no cargo de redator da revista Fon-Fon, e
criou outra, a Floreal, que só durou quatro números. Assinou crônicas diárias no Correio
da Noites e, sob pseudônimo, no vespertino Lanterna. Escreveu para O País e no
quinzenário A Voz do Trabalhador, assinando como Isaías Caminha. Mais tarde,
trabalharia em outro jornal de esquerda, O Debate. Em 1922, quando morreu quase no
ostracismo, aos 41 anos de idade, a revista O Mundo Literário publicava o primeiro
capítulo de Clara dos anjos.
Nas páginas de seus livros, Lima Barreto exibiria os bastidores do jornalismo e do
sistema de compadrio que fazia triunfar as mediocridades literárias, numa espécie de
seleção natural invertida pelo espírito de corpo, usando e abusando da influência da
imprensa na opinião pública. Muito embora não tenha escapado de alugar sua pena à
grande imprensa, como forma de lucrar com seu talento ou mesmo como estratégia de
inserção intelectual, Lima não a poupava de suas críticas.
Embora não fizesse concessões em matéria literatura, Lima Barreto alugou sua pena
para o jornalismo sorriso, mais especificamente para a revista O Riso, que publicou vários
contos humorísticos do escritor. Mas a vida real não era nada alegre. Em 1914, quando
começou a escrever uma crônica diária para o jornal A Noite, sofreu sua primeira internação
no Hospital Nacional de Alienados.
Na volta, pegou dinheiro emprestado e resolveu publicar por conta própria Triste
fim de Policarpo Quaresma. O livro, editado no ano seguinte, finalmente chamou atenção
da crítica, com a exceção óbvia do Correio da Manhã, que não veiculou nem uma palavra
sobre a edição. Houve, porém, restrições, principalmente aos deslizes gramaticais. Quatro
anos depois, Lima Barreto conseguiu sua aposentadoria e passou a colaborar mais na
imprensa. Escrevia no ABC, A Notícia, Hoje, O País, Gazeta de Notícias, Careta e até no
Rio-Jornal, fundado por Paulo Barreto. Nesse sentido, era quase um anatoliano. Na noite de
Natal de 1919, porém, sofreu seu segundo surto psicótico. Internado, começou as anotações
de O diário do hospício, onde desabafaria: “A minha pena só me pode dar dinheiro
escrevendo banalidades para revistas de segunda ordem. Eu me envergonho e me aborreço
de empregar, na minha idade, a minha inteligência em futilidades”.32 Hoje, é possível ver
que essa passagem pelo jornalismo não foi apenas perda de tempo.
Depois que saiu do manicômio, Lima Barreto entrou numa produção literária
frenética e concluiu cinco livros: Marginália, Histórias e sonhos, Feiras e Mafuás, Clara
dos anjos e Bagatelas. O próprio escritor definiria seu estilo de uma forma que poderia
constar de qualquer manual de jornalismo moderno:
De fato, no auge de sua miséria e desespero, Lima era a imagem do escritor que os
anatolianos tanto temiam ver do outro lado do espelho. Ao narrar a história do período em
Vida literária 1900, Brito Broca comenta:
Em 1923, ano seguinte à morte de Lima Barreto, a jovem Rosalina Martins Pontes
ainda tinha na cabeça a imagem do escritor morrendo de fome e desespero, quando se
deparou, durante um cruzeiro para a Europa, com seu oposto, Roberto Fleta, autor de um
livro que marcou sua geração, A menina que pecou.
Roberto Fleta não era nada daquilo que ela pensava. Bem nutrido, corado,
musculoso, Fleta não tinha nada do que sua imaginação criara. Podia ser
tão bom jogador de foot-ball como era escritor. Soube então que vivia não
num quarto miserável e sim num maravilhoso bungalow em Santa Teresa.
Sua mesa era a mais linda mesa de trabalho que se possa imaginar. Toda
burilada em bronze e da mais rica madeira de lei. Sua casa era um museu
de cousas interessantes e ricas. Objetos de arte e de luxo jogados em cada
canto. Saletas exóticas, salões pomposos. O ambiente, finalmente, de um
escritor moderno, cuja maior glória é ganhar dinheiro, muito dinheiro,
com a sua literatura.2
literatura era o editor. Até Monteiro Lobato, porém, nenhum escritor tinha tido coragem de
falar abertamente do livro como mercadoria e da literatura como negócio. Antes dele,
editoras como Garnier e Francisco Alves eram braços editoriais de grandes livrarias, que
publicavam autores consagrados e obras didáticas. Para criar uma indústria editorial
nacional, Lobato precisou inventar um mercado para o livro, o que implicava mudar o estilo
e as palavras com que era escrito, a forma como a obra era anunciada e distribuída, o
público a que era direcionada. Em resumo: transformar o livro em produto para consumo de
massa. Estrategicamente, o escritor começou o processo na imprensa, garantia de acesso
aos leitores em potencial e publicidade certa e gratuita para seu nome.
Embora já tivesse fundado o jornal O Minarete com um grupo de amigos da
faculdade de direito e publicado artigos em vários órgãos da imprensa paulista e carioca,
Monteiro Lobato não passava de um ilustre e desconhecido juiz provinciano que, com a
morte do avô, o visconde de Tremembé, transformou-se um grande proprietário rural,
passando a se preocupar com a modernização dos métodos agrícolas. No artigo “Velha
praga”, escrito originalmente como carta para a coluna Queixas e reclamações do jornal O
Estado de S. Paulo, Lobato denunciou o hábito caipira da queimada, criando um dos seus
principais personagens de ficção dentro da própria imprensa: o Jeca Tatu. Ao primeiro
artigo, publicado em 1914, seguiu-se outro, “Urupês”, que seria o título de seu primeiro
livro assinado.
No Estadão, Lobato se tornaria um “sapo”, jargão que definia os que visitavam a
redação quase todas as noites, mas que só escreviam quando tinham algo a dizer. Espécie
de conselheiros, comentavam as notícias do dia, davam palpites, criticavam o próprio
jornal. Mas o interesse do escritor pelo jornal era principalmente mercadológico.
Em 1917, Lobato vendeu a fazenda e se mudou para São Paulo. No ano seguinte, o
“sapo” alcançaria altos cargos no Estadão por pura obra do acaso. Durante a gripe
espanhola, toda a cúpula caiu de cama. E Lobato foi obrigado a assumir as funções do que
se ausentavam, trabalhando sucessivamente como redator-chefe, secretário e editor. O
escritor deixou gravadas as recordações do período.
Lobato mostraria seu desagrado por “escrever forçado”. “É o mesmo que andar
arcado. Nada emperra mais a pena, e tolhe tanto o correntio da frase, como sentirmos sobre
os ombros alguém a espiar-nos.”6 Mas, em vez de diminuir, aumentou suas colaborações
em revistas como a Dom Quixote, Vida Moderna, A Cigarra e nos jornais O Correio da
Manhã, O Queixoso e até em O Pirralho, editado por Oswald de Andrade.
Com o dinheiro da venda da fazenda, Lobato deu mais um passo importante no seu
processo de consagração: comprou a prestigiosa Revista do Brasil, onde escrevia a elite
literária do país, de Rui Barbosa a Olavo Bilac. Ao lado do secretário de redação, o também
escritor Leo Vaz, Lobato conseguiria multiplicar o número de assinantes com habilidosas
jogadas de marketing, que acabaria implantando também no negócio dos livros.
Na época, organizou para O Estado de S. Paulo uma pesquisa sobre o saci-pererê.
Sua proposta era interativa, pedindo aos leitores que respondessem um questionário e
contribuíssem com histórias sobre o personagem. Depois de uma chuva de cartas, a
pesquisa acabou transformada em livro, que, usando um expediente comum na imprensa,
mas raro no mercado editorial, era patrocinado por vários anunciantes.
Em 1918, Lobato lançou o livro de contos Urupês, inaugurando sua própria editora.
O livro reunia textos já publicados em revistas e o famoso artigo de jornal que o projetou,
em que desancava as ilusões românticas do indianismo ao expor o ridículo de um “jeca-
centrismo” que endeusa o atraso. Sua repercussão foi enorme. Dez anos mais tarde o livro
já tinha alcançado nove edições e 30 mil exemplares vendidos.
Quando suas duas primeiras obras tornaram-se best-sellers, Lobato passou a
acreditar que era possível ganhar dinheiro com livros no Brasil, entrando com ímpeto num
mercado dominado pelo capital estrangeiro. Até então, Garnier, Briguiet, Garraux
imprimiam na França. Francisco Alves preferia os medalhões da Academia Brasileira de
Letras. E os escritores que não conseguiam espaço mandavam seus originais para Portugal.
A concorrência não era problema, mas sim a falta de distribuição.
Pode-se dizer que Monteiro Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a conceber a
literatura como mercadoria. Não teve o menor pudor de enviar uma carta aos donos dessas
casas comerciais propondo: quer vender também uma coisa chamada livro? “Vossa
Senhoria não precisa inteirar-se do que essa coisa é. É um artigo comercial como qualquer
outro batata, querosene, ou bacalhau.”8 O editor se propunha a mandar os livros em
consignação. Se um açougueiro, por exemplo, vendesse algum, teria uma comissão de trinta
por cento. Se não, poderia devolver o livro pelo correio, com o porte pago pela editora. A
proposta deu certo e, de quarenta livrarias, a editora de Monteiro Lobato saltou para 1200
pontos de venda.
O editor aproveitou também a rede de assinantes e distribuidores da Revista do
Brasil para ampliar o negócio e investiu na qualidade gráfica dos livros, com capas mais
chamativas, e na divulgação na imprensa, com críticas e anúncios pagos. Lobato ironizava
o velho modelo editorial “de tantas galinhas velhas — Alves, Garnier, Briguiet — que de
vez em quando botam um livro”:9
Mas o furor comercial não se deu sem crise de consciência. Em 1921, Lobato
mandou uma carta para o escritor Godofredo Rangel em que dizia: “A minha obra literária,
Rangel, está cada vez mais prejudicada pelo comércio. Acho que o melhor é encostar a
coitadinha e enriquecer, depois de rico, e portanto, desinteressado do dinheiro, então
desencosto a coitadinha e continuo”.11 A frustração começava a bater à porta. Em meio a
uma crise nostálgica, Lobato chega a dizer que foi um escritor enquanto não sabia que o
era, num tempo em que escrevia só pelo prazer de escrever. Acreditava que “esse belo
escritor morreu quando se concretizou. Surgiu em lugar dele a sórdida coisa que é o
profissional, ‘o homem de letras’”.12
Uma das compensações do editor foi lançar autores novos, como Lima Barreto. Na
contramão da concorrência extremamente conservadora, saiu em busca de escritores
inéditos. E recebeu uma avalanche de originais de todo o país. Apesar de sua briga com os
modernistas, após a Semana de 22 não hesitou em editar Os condenados, de Oswald de
Andrade, e O homem e a morte, de Menotti del Picchia, com capa desenhada por ninguém
menos do que Anita Malfatti.
Com Jeca Tatu, Lobato também pegou carona na nascente indústria
farmacêutica, transformando seu personagem jornalístico-literário em peça publicitária do
Biotônico Fontoura. No Almanaque Fontoura, a história do Jeca redimido pela indústria
farmacêutica teve sua circulação muito ampliada.
14
escritor. A resposta seria dada por ele mesmo: “Anúncios, circulares, cartazes, o diabo. O [*38] Comentário: Está assim na
citação, acho que é uma expressão popular,
15 que diz respeito ao carrossel.
público tonteia, sente-se asfixiado e engole tudo [...] editar é fazer psicologia comercial”.
Capitalista e marqueteiro, o editor Lobato está muito distante da imagem de bom
velhinho que ficou para a história da literatura infantil. Mas é preciso ver em seu
mercantilismo a toda prova o nascimento de um mercado editorial mais agressivo no
Brasil.16 Monteiro Lobato faliu várias vezes, mas não desistiu. Em 1925, fundou a
Companhia Editora Nacional, já de olho num filão muito especial: livros infantis, a serem
adotados por colégios em grandes quantidades. Além de escritor, jornalista e editor, Lobato
se tornaria tradutor e adaptador de clássicos estrangeiros para crianças.
O Brasil acabou ficando pequeno para ele. Pouco antes de viajar para Nova York
como adido comercial brasileiro, em 1927, Lobato publicou o folhetim O choque das raças
ou O presidente negro: romance americano do ano de 2228, no jornal carioca A Manhã, de
Mário Rodrigues. Tinha grandes planos para o livro nos Estados Unidos, onde pretendia até
fundar uma nova editora, a Tupy Publishing Company. O tema era polêmico, o que,
segundo o escritor, poderia aumentar seu potencial comercial e transformá-lo num best-
seller internacional, demostrando sua aguda consciência das técnicas promocionais
desenvolvidas de forma pioneira pelo mercado editorial americano.
Mas o livro não aconteceu, em grande parte pelas acusações de eugenia implícitas.
Para piorar, como outros empresários de então, Lobato perdeu tudo o que tinha com o crack
da Bolsa de Nova York em 1929 e foi obrigado a vender sua participação na Cia. Editora
Nacional. Voltou ao Brasil dois anos depois.
Sua opção por uma literatura “desliteraturizada”, que revela a tentativa de atingir
um público mais amplo, foi duramente criticada por intelectuais como Mário de Andrade,
que o chamava, entre outras coisas menos leves, de mercenário. Dá para entender a briga, e
também as eventuais aproximações por baixo do pano entre Mário de Andrade e Lobato.
Cada qual foi moderno a seu modo. Mário, ligando-se ao projeto de arte pela arte. Lobato, à
sedução da arte como mercadoria. Um, ao modelo europeu; outro, ao americano. Em
comum, pode-se dizer que os dois buscaram nas raízes da cultura popular um modelo livre
do academicismo da geração anterior.
O editor tinha uma resposta sempre na ponta da língua para ataques ao seu furor
comercial. “Eles são uns gênios — mas não vendem; têm que viver como carrapatos do
Estado, presos a empreguinhos. Lobato é uma besta, mas está vendendo bestialmente.”18 De
fato, esse era o destino dos escritores que não contavam com a venda de seus livros para se
manter: o funcionarismo público. Logo o Estado Novo percebeu as vantagens da cooptação
de intelectuais oposicionistas por meio de cargos e salários.
Devido a seu talento nato para o marketing, Monteiro Lobato foi o primeiro nome
pensado por Getúlio Vargas para chefiar o embrião do que viria ser o temido DIP,
BEST-SELLERS NACIONAIS
No ano anterior, Érico comunicara à mãe que queria se mudar da pequena Cruz Alta
para Porto Alegre. “— Vou tentar a vida como escritor — murmurei, apenas
semiconvencido de que isso fosse possível”, revelou em suas memórias. “Bom .... sei que
essa profissão não existe no Brasil. Mas, que diabo! Não custa tentar.”23
A revista traduzia contos e artigos da imprensa estrangeira, publicava retratos dos
assinantes e até sonetos dos fregueses da livraria. A editora se dividia entre a literatura
estrangeira, especialmente a popular, produzida por autores como Agatha Christie, e a
publicação de escritores locais. O próprio Érico lançou pela Globo seu primeiro livro de
contos, Fantoches, em 1932, que encalhou. Mas Clarissa, editada numa coleção de bolso,
com tiragem de 7 mil exemplares e preços populares, fez grande sucesso.
A década de 1930 deu início a um período favorável à indústria editorial do Brasil.
A depressão tornou proibitivo o livro importado e as editoras partiram para as traduções.
“Ninguém, naquela época, punha em dúvida uma realidade: a de que uma indústria editorial
brasileira, viável, havia surgido praticamente do nada no período que se seguira à
revolução.”24
Viável para o editor, pode ser. Mas nem tanto para o autor. Diante do novo quadro,
muitos escritores, como o próprio Érico Verissimo, teriam que se dedicar à tradução como
forma de ganhar a vida. Dentro do espírito de uma literatura de massa, de baixo preço, e
voltada para um público distante das elites intelectuais do país, a Editora Globo lançou uma
nova revista, A Novela, em 1937, que também seria dirigida por Verissimo. Mensal,
reproduzia romances inteiros, além de contos, peças de teatro, novelas e resenhas de livros.
Érico aproveitaria seu papel de editor da revista e conselheiro editorial para lançar
Caminhos cruzados, Um lugar ao sol e As aventuras de Tibicuera, praticamente um livro
por ano a partir de 1935. Em 1938, publicou Olhai os lírios do campo, que imediatamente
esgotou três edições.
Sua independência política começou a incomodar o Estado Novo. Em matéria de
crítica social, Caminhos cruzados se une, em maior ou menor grau, a outras obras
polêmicas de Érico, como Música ao longe, O resto é o silêncio e O senhor embaixador
(além, é claro, do clássico Incidente em Antares, já na década de 1970). Caminhos cruzados
quase o levou à cadeia, na década de 1930, assim como a alegoria explícita de Incidente em
Antares provocou furor quarenta anos depois.
Rotulado pela crítica como um autor superficial, Érico Verissimo tentaria vôos mais
altos na trilogia O tempo e o vento — pioneira em apontar o potencial de livros com
temática local no mercado gaúcho — e no romance Incidente em Antares.
No entanto não foi de uma hora para a outra que o livro passou a se tornar uma
mercadoria vendável no país, como revela Jorge Amado:
Filho de fazendeiro de cacau, em 1927, com apenas quinze anos Jorge Amado
começou a trabalhar como repórter de polícia do Diário da Bahia e de O Imparcial. Dez
anos depois, lançou Capitães de areia. É o romance mais jornalístico do escritor, desde sua
temática até sua estrutura narrativa, que intercala reportagem e ficção. E também uma
chave para a compreensão do sucesso comercial de sua obra.
Uma das inovações de Capitães de areia foi seu prólogo jornalístico, composto de uma
reportagem publicada no Jornal da Tarde sobre o assalto à casa de um rico comerciante
realizado por meninos de rua; uma carta do secretário do chefe de polícia ao jornal
atribuindo a responsabilidade de coibir os furtos das crianças ao juiz de menores; uma carta
do próprio juiz, defendendo-se das acusações; uma carta da mãe de uma das crianças
denunciando as péssimas condições do reformatório; uma carta de um padre confirmando
as acusações sobre o reformatório; uma carta do diretor do reformatório negando as
denúncias; nova reportagem do jornal, dessa vez elogiando o reformatório.
O prólogo denuncia o círculo vicioso por trás do aumento da criminalidade, a falta
de interesse real em atacar a questão e as injunções políticas disfarçadas por uma suposta
neutralidade jornalística. Como se as páginas do jornal fossem muito pequenas para
expressar o problema em toda a sua dimensão, o romancista optou por contá-lo de dentro,
transformando-o em ficção. Jogando o tempo todo com os gêneros, ao final Jorge Amado [*42] Comentário: prefiro o jeito que
estava "ficcionalizando-o"
volta ao relato jornalístico. O capítulo “Notícias de jornal” relata a trajetória dos
personagens a partir de informações recolhidas na imprensa alternativa.
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não
tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas,
jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram
lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante
proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de
cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos
ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida. No ano em que
todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite
de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela
liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa
colônia.34
Em Capitães de areia, Jorge Amado parece querer mais do que conscientizar seus
leitores sobre o problema do menor abandonado, o que inúmeras reportagens antes e depois
já tentaram. Percebe-se que, ao contrário do jornalista, o narrador deste romance jamais é
neutro. Seu autor não hesita em apontar um caminho: o da luta política. E o faz através da
ficção. No livro, a frieza do relato jornalístico é contrabalançada por um lirismo que não
nega seu objetivo de despertar emoção, piedade ou revolta. Por experiência própria, Jorge
Amado sabia que a objetividade jornalística seria insuficiente para despertar os fortes
sentimentos que deveriam ser canalizados para a revolução comunista.
Esse interesse — inicialmente político e, mais tarde, comercial — pela recepção de
seus livros afasta Jorge Amado progressivamente dos ideais de uma literatura pura e sem
concessões em nome de uma ficção de alta voltagem emocional. Não é por acaso que,
quando o engajamento cede ao puro prazer, ele se torna um dos primeiros escritores de
massa da literatura brasileira e entra no seletíssimo time dos autores que conseguiram viver
exclusivamente de seus livros neste país.35
A grande influência da rede de intelectuais comunistas que apoiou Jorge Amado no
Brasil e no exterior não deve ser menosprezada. Mas só três anos depois de deixar o PC, em
1958, o ex-deputado escreveria seu primeiro best-seller, Gabriela, cravo e canela, uma
virada em sua carreira de escritor e ponto de partida de seu desengajamento político. Em
duas semanas, o livro vendeu 20 mil exemplares e, em seis meses, mais de 50 mil. Com ele,
Jorge também ganharia os principais prêmios literários do ano. Em 1961, foi eleito para a
Academia Brasileira de Letras. E, no ano seguinte, veria sua primeira adaptação para a TV.
O cinema e a televisão rapidamente descobriram o potencial comercial dos livros de
Jorge Amado, que inspiraram cinco telenovelas, quatro minisséries e oito filmes. Entre eles,
Dona Flor e seus dois maridos, que, lançado em 1976, foi um recorde de bilheteria, com
mais de 10 milhões de espectadores em dois meses. Seu exemplo não deixa dúvidas de que
não só a imprensa, mas outras mídias, como o cinema, a TV, o rádio e os quadrinhos,
passaram a impulsionar o mercado de livros no Brasil. Até o início de 2002, os livros de
Jorge Amado tinham vendido um total de 21 milhões de exemplares só no país. Os
números relativos às vendas de seus romances são impressionantes: cinco deles — Mar
morto (1936), Capitães da areia (1937), Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade
do interior (1958), A morte e a morte de Quincas Berro D'Água (1961) e Dona Flor e seus
dois maridos: história moral e de amor (1966) — ultrapassaram a marca de um milhão de
exemplares.36
Jorge Amado também foi um dos escritores brasileiros mais traduzidos no mundo
— em nada menos do que em 48 idiomas — e sucesso especialmente na França. Primeiro
autor brasileiro a estourar fora do país, essa rara inserção no mercado de best- sellers
internacionais certamente ajudou a assegurar-lhe o status de escritor que pode viver do que
escreve.
No entanto, só isso não explica a paixão do público, que os livros de Jorge Amado
despertavam já em 1969, quando Tenda dos milagres foi lançado com a tiragem recorde de
75 mil exemplares. Uma pista foi dada por Graciliano Ramos, que, sem contar ainda com as
altas vendagens que consolidariam seus livros entre as obras de ficção mais adotadas do
país, tentava entender o fenômeno Jorge Amado.
Num artigo depois reunido no livro Linhas tortas, Graciliano diz que o escritor
baiano representava uma “literatura nova”, voltada para a experiência do real, numa
descrição sem floreios de linguagem, a partir de uma pesquisa de campo muito próxima da
apuração jornalística. E também do naturalismo preconizado por Zola.
Para Graciliano, um exemplo desta nova literatura era o livro Suor, de Jorge
Amado, que descreve a fauna de um casarão do Pelourinho.
Quando a coisa era feia, Graciliano Ramos alisava o cabelo e xingava: Cavalo!
O temido e admirado revisor do Correio da Manhã odiava palavras e expressões
empoladas perdidas no meio do texto, e rugia para o repórter do outro lado da redação:
“Outrossim é a puta que o pariu!”. A maioria dos repórteres o via como antipático e grosso.
Quando começou, Otto Lara Resende achava ser difícil ver “uma ponta da alma desse
cacto fechado, casmurro e amargo que era Graciliano Ramos”.1 Impopular, logo ganharia
no jornal um apelido: neurótico da língua. Mesmo para a literatura, preconizava regras que
poderiam constar de um manual de redação de jornal. Só respeitava o substantivo, riscando
o adjetivo, que ele chamava de miçanga literária. Era contra “reticências porque é melhor
dizer do que deixar em suspenso”. Exclamações também não usava: “não sou idiota para
viver me espantando à toa”.2
Em 1947, mesmo depois de ter publicado obras-primas como São Bernardo e Vidas
secas, o escritor ainda lutava para sobreviver. Por isso, aceitou a indicação de Aurélio
Buarque de Holanda para substituí-lo no Correio da Manhã, jornal onde que tinha
ingressado como suplente de revisão, trinta anos antes, quando tentou pela primeira vez a
vida de jornalista e escritor no Rio. O redator-chefe do Correio da Manhã, o também
alagoano Pedro da Costa Rego, surpreendeu-se com a indicação, achando que Graciliano já
deveria estar rico. Longe disso. Vivia e escrevia sob extremas dificuldades, num apertado
quarto de pensão dividido com mulher e filhos.
Na época, o Correio da Manhã era um dos matutinos mais importantes da capital.
Seu corpo de redatores fez história não só na imprensa como na literatura brasileiras. No
mesmo ano que Graciliano, o também jornalista e escritor Antonio Callado ingressou no
jornal — um dos poucos que pagavam em dia, sem apelar para vales. O Graciliano que
ficaria na memória de Callado era mandão, exigente e irritadiço. E, principalmente,
obsessivo. “Mestre do idioma, não era como certos escritores que derrapam no português
porque aprenderam a escrever de orelhada. Ele sabia teoria da língua, como um
gramaticólogo.”3
Para Callado, que chegaria à direção do Correio da Manhã em 1954, Graciliano
“optou por lutar, com as armas possíveis, pelo ideal literário e pagou um preço alto num
país, ontem como hoje, adverso ao trabalho intelectual. Jamais amaldiçoou sua sina de
grande tigre condenado a viver de caça tão miúda”.4 O jornal tinha uma rotina pesada para
um escritor de seu porte, idade avançada e saúde abalada pela prisão.
Graciliano chegava em casa depois da meia-noite, mas acordava cedo para escrever.
De tarde, trabalhava como inspetor de colégios, emprego arrumado por Carlos Drummond
de Andrade no ministério da educação. Dava uma passada na livraria e editora José
Olympio e, no início da noite, seguia para a “banca de remendão”, onde consertava
“engulhando produtos alheios”, sempre antes de seu horário, às sete da noite.5 Com o paletó
pendurado na cadeira, de gravata e suspensórios, mangas dobradas até o cotovelo para não
sujar a camisa de tinta, fechava o jornal. Graciliano permitia-se pequenos intervalos, dois a
três por noite, para beber cachaça no bar do Hotel Marialva, ali perto. Eram copos cheios
até a boca, mas o escritor não demostrava nenhuma alteração, segundo os colegas. Como
ocorreu a tantos jornalistas, o hábito de beber durante ou depois do expediente acabou se
transformando em alcoolismo e, em 1950, Graciliano foi obrigado a fazer um tratamento
para desintoxicação.
Na verdade, ofício nem tão modesto assim quanto descreve Paulo Mendes Campos.
A sala ocupada por Graciliano foi batizada de Petit Trianon, por reunir a elite intelectual do
jornal, como os editorialistas Otto Maria Carpeaux e o crítico literário Álvaro Lins. Entre os
redatores do Correio da Manhã, figuravam nomes do porte de Franklin de Oliveira, Otto
Lara Resende, José Lino Grunewald e o próprio Paulo Mendes Campos, o que dá uma idéia
da importância do cargo na época — mas que desde os anos 1990 vem sendo extinto de
forma radical nos jornais brasileiros, assim como a figura do revisor, ambos substituídos (e
mal) pelo corretor ortográfico do computador. Num momento em que as universidades
ainda não concentravam a produção cultural do país, a maioria dos intelectuais era
autodidata, formada na vida e em centros de convergência, como a imprensa.
Era uma estrutura intelectual impressionante [...]. Creio que não se repetiu
no país uma redação tão impressionante como aquela, inclusive porque
havia uma simbiose, uma ligação maior entre o intelectual e o redator de
jornal. Hoje os jornais estão mais profissionalizados e, sob muitos
aspectos, mais fortes do que os daquela época. Mas isso tirou certo brilho
intelectual que existia em redações como a do Correio.7
Imagina que agora tenho que usar nada menos de três ortografias. Se no
Correio da Manhã aparecer alguma vez Brazil, com z, eu tenho de
substituir o z por s; se no Século vier a mesma palavra com s, tenho que
trocar o s por z. De sorte que uso a ortografia do Correio, a do Século e a
minha, porque eu tenho uma, que é diferente das deles. Um horror!
Trabalha-se pouco, ganha-se pouco, dá-se afinal com os burros na água,
com todos os diabos.9
O MANUAL DE REDAÇÃO
Com a crescente industrialização, a partir dos anos 1920 o papel do escritor nos
jornais já não seria o de uma estrela, como nos tempos de Olavo Bilac e Coelho Neto. Ao
homem de letras seria exigido que — em vez de produzir contos ou poemas — escrevesse
reportagens, fizesse entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas,
chefiasse redações. E foi como jornalistas braçais que escritores como Graciliano Ramos,
Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade levaram para a imprensa os preceitos
de uma literatura moderna, muito antes que lides, sublides e pirâmides invertidas fossem
copiados do jornalismo americano.
Há claramente uma identidade de projeto entre a ficção e o jornalismo produzidos
por autores modernistas e realistas, embora a ruptura literária com o passado tenha se dado
entre os anos 1920 e 1930 e a jornalística sido sistematizada apenas nos anos 1950. O
inimigo era comum: a literatice, o beletrismo, o penduricalho, o adjetivo. Portanto, não se
deve estranhar que escritores identificados com este projeto tenham tomado para si o
trabalho de chefe de redação, como Drummond, ou do copidesque, como Graciliano, ou
ainda de repórter, redator, diretor de suplementos literários e até dono de jornais e revistas,
como Oswald, reescrevendo o jornalismo, assim como a ficção e a poesia que se fazia até
então.
Um impacto semelhante ao provocado pela Semana de 22, separando a literatura
parnasiana da moderna, seria repetido na imprensa nos anos 1950, com a introdução do
lide. Foi uma sentença de morte ao nariz de cera, aquelas intermináveis digressões que
costumavam preceder a informação propriamente dita. A partir da importação do novo
modelo, promovida por jornalistas brasileiros que passaram temporadas nos EUA, como
Danton Jobim, Samuel Wainer e Alberto Dines, técnica jornalística e a arte literária
começariam a se afastar definitivamente.
Nos Estados Unidos, essas inovações marcaram o momento em que os jornalistas
“adquiriram um sentido de categoria profissional que os diferencia dos literatos”.16 O
treinamento específico para o jornalismo — profissão que no Brasil só seria regulamentada
em 1969, com a obrigação do diploma — gradativamente faria com que a carreira deixasse
de ser um caminho natural para o aspirante a escritor, que nos EUA conta com outros
mecanismos de formação, como cursos universitários de creative writing. Com isso, a
imprensa ganhava valores estéticos particulares e seus próprios mecanismos de
consagração.
Foi o trabalho dos correspondentes americanos no estrangeiro — já a partir da
criação do telégrafo, em 1840, e de seu uso pela Associated Press e pela Reuters, entre
1848 e 1851 — que firmou aos poucos as bases do novo modelo de jornalismo: a pirâmide
invertida, a sumarização, a normatização do texto, a desvinculação do repórter do redator,
com a nítida separação entre notícia e opinião.
Oswald soube usar o prestígio de repórter talentoso, com coberturas importantes, até
mesmo em áreas como política e esportes, nos principais jornais do país para publicar uma
série de artigos sobre o movimento modernista.31 Especialmente no Correio Paulistano,
onde assumiu a seção literária e chegou a ser correspondente na Europa, entrevistando
personalidades como o guru Krishnamurti. “O Correio Paulistano teve grande importância
para os modernistas, não só no período que antecedeu à Semana de Arte Moderna, como
depois, no período de agitação literária que se estendeu até 1930”, reconheceria.32 Aquele
que era então o principal jornal paulista tinha Cassiano Ricardo e Plínio Salgado como
redatores e Menotti del Picchia como cronista social e redator político. Porém, foi no
nacionalmente conhecido Correio da Manhã, em 1924, que Oswald lançaria o Manifesto da
Poesia Pau-Brasil, e onde decretaria: a poesia existe nos fatos.
Foi essa doce música que o levou a dizer que, além da literatura, só faria uma coisa
com prazer: o jornalismo profissional.34 Drummond se referia não ao trabalho de cronista,
que manteve paralelamente ao de funcionário público, mas ao
[...] jornalismo no duro, que vai pela noite adentro ou pelo dia afora,
conforme a pressão da notícia. Jornalismo suado e sofrido, com algo de
embriaguez, pela sensação de viver os acontecimentos mais alheios à
nossa vida pessoal, vida que fica dependendo do fato, próximo ou distante,
do imprevisto, do incontrolável, da corrente infinita de acontecimentos.
Isso eu pratiquei em escala mínima, como redator de jornais em Belo
Horizonte, na mocidade remota. Mesmo em escala modesta, senti o frisson
da profissão. Sempre gostei de ver o sujeito às voltas com o fato, tendo de
captá-lo e expô-lo no calor da hora. Transformar o fato em notícia,
produzir essa notícia do modo mais objetivo, claro, marcante, só palavras
essenciais. Ou interpretá-lo, analisá-lo de um ponto de vista que concilie a
posição do jornal com o sentimento comum, construindo um pequeno
edifício de razão que ajude o leitor a entender e concluir por si mesmo:
não é um jogo intelectual fascinante? E renovado todo dia! Não há pausa.
Não há dorzinha pessoal que possa impedi-lo. O fato não espera. O leitor
não espera. Então você adquire o hábito de viver pelo fato, amigado com o
fato. Você se sente infeliz se o fato escapou à sua percepção.35
O próprio Emilio revelou que, para esquentar o jornal, o chefe e sua turma
inventavam vários colaboradores: “modernistas uns, outros passadistas, jogávamos estes
contra aqueles, forjávamos polêmicas crudelíssimas. Drummond era inesgotável em
iniciativas dessa natureza”.41 Entre elas, forjar votos para um concurso que elegeria o
príncipe e a princesa dos poetas mineiros e que, naturalmente, tinha seu nome entre os mais
fortes concorrentes.
À frente do jornal, Drummond apressou-se a divulgar a visita da caravana
modernista a Minas, em 1924. Foi uma chance de seus jornalistas se aproximarem de gente
como Oswald e Mário de Andrade, a quem ciceronearam pela cidade. Depois das
despedidas, Mário se tornou uma espécie de orientador literário dos mineiros,
principalmente de Drummond. A ele, reservava conselhos até sobre a carreira de jornalista
e a vida pessoal.
Cuidado com o Diário de Minas, hem! Grude nele fazendo, como redator,
é lógico, as concessões indispensáveis para sustentar o lugar. Isso não é
feio não, Carlos, e não é pra desculpar coisa nenhuma que hoje cheguei à
convicção de que a gente fazendo pequenas concessões humanas e imbecis
consegue muito mais pras próprias orientações que sendo inflexível.42
Depois de passar por A Tribuna, periódico criado em 1933 para substituir o Diário
de Minas, Drummond deixou o jornalismo diário para se tornar chefe de gabinete de
Gustavo Capanema, seu amigo de colégio, ministro da educação e saúde entre 1934 e 1945.
Em 1949, o poeta voltou a escrever para o Minas Gerais, como correspondente no Rio de
Janeiro, e só se demitiu do cargo de redator em 1953. Jamais se afastou completamente dos
jornais, mantendo uma produção regular como cronista do Correio da Manhã e depois do
Jornal do Brasil, onde escreveu entre 1969 e 1984. A crônica lhe deu visibilidade,
ajudando a projetar seu nome como o do poeta mais popular do país.
Em 1973, Drummond dedicou mais um poema à velha musa, a imprensa: “A casa
do jornal, antiga e nova”.
Rotativa do acontecimento
Vida fluindo
pelos cilindros,
rolando
em cada bobina.
Rodando
em cada notícia.
No branco da página
explode.
Todo jornal é explosão.
Café matinal
de fatos
almoço do mundo
jantar do caos;
radiofoto.
Restruturam-se os cacos
do cosmo
em diagramação geométrica.
A cada méson
de microvida
contido
na instantaneidade do segundo
e vibração eletrônica
da palavra-imagem
compõe
decompõe
recompõe
o espelho de viver
para servir
na bandeja de signos
a universalidade
do dia.
Fato e repórter
unidos
re-unidos
num só corpo de pressa,
transformam-se em papel
no edifício-máquina
da maior avenida,
devolvendo ao tempo
o testemunho do tempo.
Na superfície impressa
ficam as pegadas
da marcha contínua:
letra recortada
pela fina lâmina
do copydesk;
foto falante
de incrível fotógrafo
(onde colocado:
na nuvem? na alma do Presidente?);
libertário humor
da caricatura
de Raul e Luis
a — 50 anos depois —
Lan e Ziraldo.
repleto, a render-se
dia e noite
à fome sem paz
dos linotipos,
casa entre terremotos
óperas, campeonatos
revoluções
plantão de farmácias
dividendos, hidrelétricas
pequeninos classificados
de carências urgentes,
casa de paredes de acontecer
chão de pesquisa
teto de detetar
pátria do telex infatigável
casa que não dorme
ouvido afiado atento
ao murmulho mínimo
do que vai, do que pode
quem sabe? acontecer.
Um dia
a casa ganha nova dimensão
nova face
sentimento novo
diversa de si mesmo
e continuamente
pousa no futuro
navio
locomotiva
jato
sobre as águas, os caminhos
os projetos
brasileiros
usina central de notícias
cravada na estrela dos rumos
NSLO
em cobertura total
da vida total:
conhecimento
comunicação.
Todo jornal
há de ser explosão
de amor feito lucidez
a serviço pacífico
do ser.54
Seria impossível que autores tão identificados com uma nova linguagem literária,
como Drummond, Oswald e Graciliano não tivessem levado a marca inconfundível de seu
estilo para as redações dos jornais, revolucionando os gostos pelas exclamações,
reticências, adjetivos e superlativos. Afinal, jornalistas e escritores estavam sendo
influenciados pelas mesmas forças culturais de seu tempo. Mas a verdade é que só quando
uma nova geração chegou aos cargos de chefia é que a cartilha modernista se tornou
também a cartilha da redação. Influenciada pelo jornalismo americano, a imprensa nacional [LPS47] Comentário: mudei bastante
pq ela já falou diversas vezes em manual de
descobriu que já era hora de romper de vez com a literatura e se constituir como um campo redação...
[*48] Comentário: Manter manual de
completamente em separado. redação, faz parte do jargão jornalístico
O aparecimento do SDJB não foi um fato isolado. Todos os grandes jornais diários,
como o Correio da Manhã, O Diário de Notícias e O Estado de S. Paulo contavam com
suplementos ou seções específicas para a cultura na década de 1950, a maior parte dirigida
por escritores, como Otto Lara Resende, responsável pelo suplemento Letras e Artes do
jornal A Noite. Estes suplementos funcionavam como ponto de encontro de gerações de
escritores nascidas entre 1880 e 1930.
Desde o início, os poetas Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Mário Faustino
estiveram à frente do SDJB, onde escreveriam também Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura,
Clarice Lispector, Carlinhos Oliveira, além de jovens intelectuais como José Guilherme
Merquior e Glauber Rocha. “Como um subversivo que vai infiltrando seus pares, sugeri
que convidassem o Amilcar de Castro. É assim que se faz a história: um grupo de pessoas
que pensa igual e quer incutir uma idéia nova, propagando-a”, recorda Gullar. “O Reynaldo
Jardim adorou e começou ele próprio a fazer igual, de maneira às vezes até mais audaciosa
e irreverente. Isso criou problema com a direção, novamente a história do branco, do papel
sobrando.”57
Com a publicação de A luta corporal, em 1954, o copidesque Ferreira Gullar se
aproximou dos poetas concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Em
1956, seria realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a Exposição Nacional
de Arte Concreta. O SDJB, recém-lançado, seria o centro da discussão entre concretistas
paulistas e cariocas. E a publicação do artigo “Da fenomenologia da composição à
matemática da composição”, em que os Campos defendiam uma poesia segundo fórmulas
matemáticas, ao lado de um artigo de Gullar, “Poesia concreta: experiência
fenomenológica”, negando a relação causal entre linguagem matemática e linguagem
verbal, foi o marco do rompimento entre os dois grupos.
À frente do concretismo carioca, Gullar arriscaria projetos como o livro-poema e o
poema espacial. Algumas dessas criações ousadas foram publicadas no SDJB, e a reação do
público levou o jornalista a perceber a falta de comunicabilidade dessas experiências
poéticas. Enveredando por uma discussão cada vez mais de vanguarda, intelectual e
antiacadêmica, o SDJB angariou antipatia, afastando-se do leitor comum, dos medalhões da
ABL e dos interesses do mercado editorial.
Embora tenha sido a semente da renovação gráfica e editorial do Jornal do Brasil e
conquistado peso intelectual ao se tornar porta-voz da vanguarda, o caderno recebia muitas
críticas internas: difícil, ininteligível, feito só para iniciados, patoteiro. Os donos do jornal
se dividiam entre os que amavam o SDJB — a condessa Pereira Carneiro —, e os que o
detestavam —, seu genro Nascimento Brito. Em 1958, Gullar, que ocupava o poderoso
cargo de chefe do copidesque, acabou demitido numa desavença interna. Menos de um ano
depois, foi chamado de volta, num momento que coincide com o lançamento do movimento
neoconcretista no Rio, cujo manifesto foi publicado numa edição especial do SDJB. Mas o
suplemento só sobreviveria até 1961. Dois anos depois, Gullar seria demitido, após liderar
uma greve. E foi trabalhar como copidesque na surcursal de O Estado de S. Paulo, onde
passou três décadas, com um único intervalo de oito anos, quando esteve no exílio e na
clandestinidade. Durante todo esse tempo, o Estadão continuou pagando seu salário, o que
permitiu a sobrevivência da família. Essa era uma norma desde que Júlio de Mesquita
Filho, o diretor do jornal, teve que se exilar durante a ditadura Vargas. Fora do jornal e do
Brasil, Gullar lançou seus livros mais aclamados, Dentro da noite veloz (1975) e Poema
sujo (1976).
Mas um de seus poemas mais famosos, “Traduzir-se”, foi escrito em plena redação.
O que não é de se estranhar. Embora não tenha sido este o objetivo de Gullar, percebe-se no
texto uma clara divisão entre o profissional, preso ao dia-a-dia, e o artista, com seu
estranhamento profundo.
Gullar não se ressente de ter dedicado mais de quatro décadas de sua vida à
imprensa, com direito a passagens pela revista Manchete e pelo Diário Carioca. Para ele, o
jornalismo moderno, em sua cruzada para expurgar o nariz de cera e a subliteratura de suas
páginas, acabou por fazer os escritores de sua geração enxergarem a palavra como um
instrumento, que podia e devia ser afiado. Por sua vez, a poesia também seria útil ao
jornalismo.
Sim, deu um domínio maior da língua, uma segurança maior com relação
ao instrumento e uma preocupação nata com a economia, com a eficiência
da linguagem, com a palavra que não pode ser nem mais nem menos. A
poesia é a linguagem econômica por definição. Isso no jornalismo é
importante. Desde que não se leve dez horas para fazer uma notícia.59
OS IDIOTAS DA OBJETIVIDADE
Esse ponto tem algumas implicações importantes. Uma delas é que a voz
imparcial utilizada por muitas empresas jornalísticas, aquele familiar,
supostamente neutro estilo de redação de notícias não é um princípio
fundamental do jornalismo. Ao contrário, é quase sempre um recurso
oportunista que as empresas usam para destacar o fato de que produzem
alguma coisa obtida por métodos objetivos. A segunda implicação é que
essa voz neutra, sem uma disciplina de verificação, cria um verniz que
esconde alguma coisa turva.63
Mais difícil para Nelson era se acostumar ao fato de que a mistura de jornalismo e
ficção, de que o jornalismo sensacionalista tanto se fartou, dava lugar ao modelo americano
de texto uniformizado. Redatores como ele, que praticamente escreviam as matérias para os
repórteres, foram substituídos pelos copidesques, os tais “idiotas da objetividade”, que
policiavam não só a língua e o estilo, como a veracidade das informações e sua exposição
segundo as regras da pirâmide invertida, mudando a ordem dos fatores de forma a
responder logo no primeiro parágrafo às questões elementares: O quê? Quem? Quando?
Onde? Por quê?
Era o fim da imprensa com ponto de exclamação, que tinha feito a glória e a miséria
da família Rodrigues. E também do jornalista de vários empregos, já que a Última Hora
pagava o triplo dos outros jornais para ter exclusividade. Até contra isso Nelson reagiria,
numa adaptação do conceito de “arte pela arte” para o jornalismo que se profissionalizava.
Mas, para Nelson, o grande e irredutível abismo entre a velha e a nova imprensa era
a linguagem. E propunha: “Examinem duas manchetes — uma de 1908 e outra de 1967”. A
primeira, além de enorme impacto visual, era “um uivo impresso”. Sem o adjetivo, o
jornalismo estava sendo “castrado emocionalmente”, acreditava. Ele mesmo reconhecia que
o adjetivo era sua “tara estilística”.69
Nelson reagiu como pôde à superação do jornalismo literário pelo normatizado e até
mesmo aos novos códigos de conduta, que exigiam a verdade e nada mais que a verdade.
Como na Última Hora ninguém podia fazer literatura, a não ser em artigos assinados, para
ele foi reservada uma coluna diária de crônicas, A vida como ela é... A idéia era que
escrevesse a partir de fatos reais. Mas o escritor preferiu inventar tudo, preenchendo sua
coluna com os mesmos personagens típicos da Zona Norte carioca que faziam parte de suas
reportagens e de seu teatro. Assim se tornou o jornalista mais popular do Rio.70
Com seu nome, sem apelar para pseudônimos, Nelson Rodrigues só publicou um
romance, O casamento, e um folhetim, Asfalto selvagem. Nele, levaria para a literatura os
dramas de A vida como ela é. Um dos personagens de Asfalto selvagem era um repórter
sem escrúpulos, Amado Ribeiro, da Última Hora, que realmente existia, assim como vários
outros jornalistas escritores citados: Otto Lara Resende, Wilson Figueiredo e Carlinhos
Oliveira. Vítima preferencial, Otto seria citado em dezenas de histórias de A vida como ela
é... e veria se nome no título de uma peça de Nelson, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas
ordinária.
O folhetim Asfalto selvagem foi transformado em livro de dois volumes, assim
como A vida como ela é..., que teve suas histórias gravadas em disco, lançadas como
fotonovela e narradas na rádio. Mas a situação dos direitos autorais no país impedia até
mesmo um escritor tão popular quanto Nelson Rodrigues de viver de sua própria pena. Ele
nunca soube quantas edições vendeu nem viu boa parte do dinheiro arrecadado com a sua
“subliteratura”. O mesmo aconteceu com os outros livros publicados sob pseudônimo.
Em O beijo no asfalto, o escritor voltou à figura do repórter sensacionalista, na pele
de Amado Ribeiro. O verdadeiro ria das histórias de Nelson e dizia que era ainda pior do
que o retratado. A peça, escrita em 21 dias, foi inspirada na história de um outro repórter,
Pereira Rego, que, atropelado por um ônibus, pediu um beijo à pessoa que o socorreu (no
caso, uma mulher).
Na ficção, o atropelamento é na Praça da Bandeira e o beijo é pedido a um homem.
O repórter da Última Hora vê tudo. Unido a um delegado amoral, cria um escândalo sobre
pederastia para vender jornal. Num crescendo angustiante, Nelson descreve as
conseqüências destrutivas para a vida daquelas pessoas da reportagem — da mesma forma
como, na vida real, a matéria que difamou Sylvia Thibau e provocou a morte de seu irmão
Roberto deu início a uma tragédia familiar.
A ficção acabou por invadir a realidade. O próprio Samuel Wainer teria pedido para
tirar seu nome e o da Última Hora da peça, que mostrava como o bom e velho
sensacionalismo ainda não tinha sido de todo expurgado da nova imprensa. A crise fez com
que o Nelson se demitisse do jornal onde trabalhara por dez anos e publicara cerca de mil
histórias de A vida como ela é... Ainda assim, manteve a referência à Última Hora e a seu
repórter inescrupuloso.
6. Mediação e missão
Quando você é repórter e quer participar da oposição, não pode usar juízos
de valor nem adjetivos como os grandes articulistas que têm um espaço à
sua disposição. O que você pode fazer é organizar os fatos de forma tal
que incomode o adversário.
Fernando Gabeira
A LÓGICA DA ESQUERDA
Enquanto esse dia não chegava (se é que um dia chegará), a pena do jornalista era
ser uma classe intermediária, espremida entre a elite e o proletariado. Mas seu papel parecia
absolutamente claro: preparar as bases da revolução que parecia estar cada vez mais
próxima. Já não era, como conta Ferreira Gullar, a revolução comunista sonhada por
Graciliano, Oswald e Drummond.
Na linha de frente dessa revolução, “os jornalistas eram de esquerda quase que por
ofício”, como recorda Paulo Francis, atribuindo uma história famosa do presidente das
Organizações Globo, Roberto Marinho, ao personagem Sadat, o manipulador proprietário
do Noite Ilustrada, em seu romance Cabeça de papel. “Ditado pela virtual impossibilidade
técnica de se fazer um jornal com redação direitista”, Sadat teria defendido um copidesque
de um general mais afoito. O militar chega a acusá-lo de permitir no jornal “um golpe de
mão dos comunistas”, afirmando que dezenove dos seus vinte copidesques tinham ficha no
Dops.6 Cinicamente, Sadat argumenta que, se fosse expulsar todo jornalista de esquerda,
simplesmente não teria mão-de-obra para fazer o jornal no dia seguinte.
Longe de fazer com que concordassem, o quase consenso em torno da esquerda
colocava os jornalistas eventualmente no papel de patrulhistas ideológicos uns dos outros.
No perímetro que ia do Nino’s ao Antonio’s, “mandarins da ética esquerdista” e fiscais da
coerência política davam cotações ao radicalismo alheio, segundo a língua ferina de
Francis, que cita nominalmente no livro:
É preciso ver que Cabeça de papel foi escrito em 1977, portanto depois que o antigo
redator do Pasquim foi preso e deu uma virada política. Primeiro romance de Francis, traz o
jornalista dividido em dois alter egos. Ele se coloca na pele de Hugo Mann, um típico
crítico que detesta cinema, desencantado e sem perspectivas, e Paulo Hesse, ex-comunista
que, após o casamento com uma ricaça, aderiu ao sistema e passou a editar um jornal
reacionário.
Não foram os dois romances (Cabeça de papel e Cabeça de negro), uma novela
(Filhas do segundo sexo), ou os outro sete livros misturando memórias a análises políticas e
culturais que deram a Paulo Francis a notoriedade que mantém mesmo depois da morte. O
ex-ator que foi crítico de teatro, editor de cultura e redator do Correio da Manhã, do JB e do
Pasquim, editor da revista Senhor, correspondente nos Estados Unidos, colunista amado e
odiado da Folha de S.Paulo, além de personalidade de programas de televisão como o
Manhattan Conection, ganhou fama com o jornalismo. Inicialmente elaborados para formar
uma trilogia, Cabeça de papel e Cabeça de negro não trouxeram ao escritor a repercussão e
o sucesso literário que esperava. E o último volume jamais foi escrito.
A LÓGICA DA DIREITA
Verdadeiro estudo etnográfico das redações dos anos 1960—1970, Cabeça de papel
conta ainda a história de personagens tão comuns quanto Zeca, um foca (como são
chamados os repórteres iniciantes) que sobe na hierarquia depois de ser premiado por uma
reportagem em que demonstrou ao patrão até que ponto poderia manipular e ser
manipulado. E Audálio, migrante nordestino que, quando vira editor executivo, abre mão
dos “caprichos da juventude”, que o faziam esvaziar as gavetas nos jornais cuja linha
detestava, e abandona definitivamente a imprensa nanica em que trabalhou a preço de
banana. Depois de ganhar experiência, “que agora usa, tecnicamente”, dá o salto: mora em
Ipanema, compra casa de praia, prepara os filhos para não serem jornalistas e tem um caso
com uma subordinada. “O negócio é ser um técnico, dos melhores da praça, o negócio é ser
indispensável no trabalho, os que precisam do nosso trabalho terminam notando, pagam
direito e nos prestigiam, adolescente é que acredita em se impor no grito”, explica.11
Em que consistia esta técnica?
É estranho que, ligado ao jornalismo cultural, Francis pouco fale da editoria de artes
e espetáculos. Segundo ele, há uma divisão clara de importância para o jornal entre o
segundo e o primeiro cadernos. Se temas como cultura e comportamento aumentam a
circulação, é na política e na economia que os donos de jornal fazem seu ganho político.
No segundo caderno, há o “bazar”, criação pessoal de Sadat, moda,
cozinha, conselhos médicos a donas-de-casa, correspondência sentimental,
fofocas locais e internacionais, astrologia (a Cúria desistiu de protestar, em
troca de monótonos editoriais antidivorcistas), histórias em quadrinhos,
folhetins históricos e ‘galantes’, palavras cruzadas etc., etc., que muita
gente suspeita constituírem a base da circulação do jornal. Hesse visa sem
ler. É adiantamento, será revisto por subeditores, e se houver bronca,
ficará no nível da freguesia, inconseqüente e irrelevante, ao contrário de
uma ofensa às elites dirigentes, que atacam pelo telefone direto de Sadat,
reclamando da editoria nacional, internacional, ou econômica, esta vulgo
mágicas & milagres, título aceito, e de bom humor até por Sadat [...].
Essas seções-chave Hesse lerá atentamente e introduzirá certas matérias,
não incluídas na pauta, que o proprietário e ele articularão em conjunto,
baixando prontas e invioláveis a Audálio. Não que ofereçam surpresas. Os
rendimentos maiores do jornal provêm de ênfases, omissões, nuances, que
o leitor comum jamais perceberá.15
[...] a frase dele é uma frase extremamente chocante, por causa disso: é
uma frase gramaticalmente mal construída, de sintaxe inteiramente
irregular, palavras de linguagem oral com a deformação da língua
estrangeira. E tudo isso forja uma linguagem “mal escrita”, no sentido
acadêmico, mas que pretende ser altamente elaborada ali, porque ele está
imitando uma não-construção do jornal. É um instrumento adequado para
falar do jornal. Penso que uma das idéias centrais do livro é o intelectual
jornalista não só se mostrar como mostrar as entranhas do jornal.18
Paulo Francis escreveu uma continuação para Cabeça de papel. Seu Cabeça de
negro é um exemplo de que fazer literatura é bem diferente de ditar regras como crítico
literário. E, ainda, de que um livro está longe de ser um mero veículo para descarregar as
idéias do autor, por mais poderosas que sejam. Em Cabeça de negro, novamente o
protagonista é Hugo Mann, que, com a morte de Hesse, tem que carregar nas costas o peso
de ser uma voz dissonante no meio cultural brasileiro. E, na consciência, um cheque de 300
mil dólares, recebido quando correspondente em Nova York, por agir como lobista no
Congresso americano para um magnata brasileiro.19
O fato é sintomático: mediador entre a linguagem literária e a coloquial, entre fatos
e opinião pública, o jornalista se percebe também como intermediário de grandes interesses.
Emparedado na escala social entre a classe alta e a baixa, ele se vê como “freguês de duas
tentações”, como define Hugo Mann. Ou, dependendo de sua posição na empresa, como
um “acionista menor de Wall Street”, como declara Paulo Hesse.
Nas infindáveis discussões entre os dois alter egos, embute-se uma necessidade de
explicação sobre as posições ambíguas, irônicas, e muitas vezes reacionárias assumidas
pelo autor em seu trabalho na imprensa. Em época de censura, o jornalista tem uma posição
privilegiada em relação ao resto da população. Ele vê, é informado, acompanha de perto os
dramas sociais e movimentações políticas. No entanto, o senso crítico, apurado pelo
ceticismo inerente à profissão, dificulta sua adesão incondicional a uma causa. Mas, nos
anos 1960—1970, diante do maniqueísmo da Guerra Fria, só havia duas posições possíveis
— embora Francis transite entre elas, assim como seus personagens.
EM CIMA DO MURO
À MARGEM
Do alto de sua condição de escritor consagrado, ganhador de dois Jabutis, da [LPS50] Comentário: acho que é
preciso contar o que é esse prêmio. e jabuti
Câmara Brasileira do Livro, um dos mais tradicionais prêmios literários brasileiros, João do quê?
João Antonio percebe que a linguagem ascética dos jornais não serve para descrever
a vida das ruas, assim como seu estilo supostamente coloquial despreza a fala do povo. Para
ele, o texto jornalístico e a própria estrutura industrial da grande imprensa, que a torna
solidária com os interesses da classe dominante, impediriam essa aproximação com a
realidade brasileira. Desmascarando o radicalismo chique da esquerda festiva, dizia que, em
comparação com jogadores profissionais, os jornalistas seriam (maus) blefadores.
Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês
nem sabem onde mora e como. Não reportem povo, que ele fede. Não
contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o resto que
vocês não vêem humanidade ali. Que vocês não sabem escrever essas
coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não
percebe ultra-sons.34
Os jornais estão muito longe de atingir uma grande parcela da população, aponta o
escritor, ao comparar as tiragens com o número de habitantes do Brasil. Ainda que
chegassem a vender centenas de milhares de exemplares, não ultrapassariam a barreira da
classe média. Jamais chegariam ao povo.
Essa imagem de jornalista não difere muito da de Karl Marx, que, já em 1842,
questionava o mito da liberdade de imprensa.
A LÓGICA DO CONTRABANDO
O que não é estranho que, sendo exercida majoritariamente por jornalistas, essa
literatura tenha tomado emprestado da imprensa várias de suas técnicas. Esse misto de
ficção e jornalismo podia resultar numa literatura esteticamente inovadora, como o caso de
A festa, de Ivan Angelo. Ou gerar um faction, acrescentando ao fato um pouco de ficção,
caso do romance-reportagem. Em meio à ditadura, esses romances falavam a um público
interessado em buscar na literatura uma representação da realidade que não conseguia
espaço nos meios de comunicação. Construídos literalmente com retalhos de jornal —
apurações, notícias, manchetes do dia, telex de agências internacionais, contavam a história
que não podia ser escrita.
“O uso de procedimentos técnicos não usais em nossa tradição literária — como a
montagem — pode significar uma expressiva alteração na relação que o romance brasileiro
pós-64 estabeleceu com a substância histórica”, aponta Renato Franco.42 Sua aproximação
tão explícita com a reportagem indicava “uma forte predisposição para questionar o próprio
romance ou, mais precisamente, para romper com a composição romanesca tradicional e
transgredir os limites estabelecidos entre o conto, o romance, a novela e mesmo o ensaio”.43
Para fugir do paradigma da imprensa, escritores jornalistas muitas vezes apelaram
para a alegoria pura e simplesmente, disfarçando tanto o fato que seu texto dava ao leitor
apenas a possibilidade de intuir sobre o que se estava falando, como nos romances de
Roberto Drummond. Mesmo quando não se trata mais de uma literatura mimética, o
recurso à alusão parece repetir uma prática dos jornais do período para driblar a censura,
publicando receitas de bolo ou poemas de Camões. O leitor, pelo menos o leitor típico
desses romances, aprendeu a ver nos remendos costurados aqui e ali uma piscadela de olho
do autor.
Vale chamar a atenção para o fato de que a tão propalada fragmentação da narrativa
ficcional dos anos de chumbo — que funcionaria como “metáfora para o império da lei
arbitrária e o caos urbano” — também equivale ao processo típico de apuração do
repórter.46 Cartas, notas, documentos, artigos de jornais, transcrições de conversas,
multiplicidade de vozes narrativas, tudo é válido durante a apuração do fato, antes que ele
seja devidamente expurgado de informações incoerentes e costurado em forma de
reportagem.
A montagem dos dados era o segredo dos bons repórteres e redatores, que, mesmo
prisioneiros do mito da isenção jornalística, têm seus métodos para veicular suas idéias.
“Quando você é repórter e quer participar da oposição, não pode usar juízos de valor nem
adjetivos como os grandes articulistas que têm um espaço à sua disposição. O que você
pode fazer é organizar os fatos de forma tal que incomode o adversário”, revela Fernando
Gabeira em O que é isso, companheiro?47
— Deixa isso para lá, rapaz. Amanhã o governo resolve o que faz.
— Amanhã é tarde. A polícia vai embarcar todo mundo hoje à
noite. O jornal podia telefonar para o governador, pedindo uma
providência. Aposto que ele não sabe o que está acontecendo aqui.
— Claro que sabe. Olha aqui, vê se traz logo essa matéria que está
ficando tarde.
— O jornal não vai fazer nada?
— O jornal vai fazer o que o jornal faz: publicar a matéria.49
Às 22h54, Samuel ouve o choro de uma criança dentro do cercado onde são
mantidos os retirantes. O pai do menino o acalma com um tapa. O repórter vai ao bar,
compra comida e dá à família da criança. Outros pedem ajuda, as pessoas em volta o
imitam.
Enquanto tudo isso acontece, no bar e restaurante Lua Nova, jornalistas do
suplemento literário praticam o jogo “escritores-impedidos-de-escrever-porque-o-Brasil-
não-estava-precisando-disso-agora”.50 Com o correr da história, é possível perceber que um
deles é quem escreve a “anotação do escritor”, sucessivas intervenções entre parênteses
como, por exemplo:
(Anotação do escritor):
Incluir em Antes da festa várias “anotações do escritor” (inclusive esta).
São projetos, frases, idéias para contos, preocupações literárias, continhos
relâmpagos, inquietações. Assim, o escritor seria, junto com Samuel,
personagem principal da história que está escrevendo.51
O conflito está pegando fogo lá fora, mas, alienado, esse “outro autor” preocupa-se
ora em desenvolver histórias passadas num campo de concentração, ora em bolar um filme
passado nos Estados Unidos.52 E, mais do que tudo, com sua esterilidade.
(Anotação do escritor):
O papel está na máquina há uma hora e meia, branco até eu começar a
escrever esta carta aberta a quem interessar possa — porra, porra, porra
[...]. Gostaria de dar uma porrada no meu superego. Preciso entender
direito o que é que me impede. Hipótese um: medo da crítica e eu disfarço
com escrúpulos de escrever um livro inútil. Hipótese dois: o ambiente
rarefeito de liberdade me inibe, inibe todo mundo, e escrever virou uma
bobagem sem importância. Hipótese três: estou entre deus e o diabo na
terra do sol, entre escrever para exercer minha liberdade individual e
escrever para exprimir minha parte da angústia coletiva; imagino histórias
que tenho vergonha de escrever porque são alienadas e tenho medo de
escrever histórias participantes porque são circunstanciais. Hipótese
quatro: sou consciente de estar vivendo num momento de obscurantismo
da Literatura, um daqueles períodos estéreis de que a História não guarda
nada e sei que é inútil escrever qualquer coisa, participante ou não, que
tudo sairá uma bosta e se perderá na noite da História e é melhor não
desperdiçar meu tempo. Hipótese cinco: tem muita porra estéril derramada
por aí e eu não quero ser mais um punheteiro. E o que é que eu faço com a
minha porra?53
Às 20h58, “a turma do suplemento” do Estado de Minas é informada do que está
acontecendo na estação e resolve conferir. No meio dela, está “o escritor”, que pela
primeira vez participa da ação.
(Anotação do escritor):
Atravessamos o cordão de isolamento. A polícia nem ligou porque Pena
Forte e Valdiki estavam dando show de bicha e parecia que aquele bando
de veados não ia atrapalhar nada. Fomos falar com o líder dos retirantes,
Marcionílio. Para nós era folclore, um programa nesta cidade de merda,
porque o homem tinha o encanto de ter sido cangaceiro. Marcionílio
estava sendo entrevistado pelo Samuel Fereszin, do Correio, conhecido
nosso.54
Às 23h31, o jornal Correio de Minas está fechado (em gíria de jornalista, pronto e
acabado, com as páginas rodando). Sem a matéria de Samuel. Quem passa as informações é
“a turma do suplemento” do jornal concorrente.
À 1h12, Samuel desiste de procurar ajuda e pensa na reportagem que deixou de
fazer. O que acontece a seguir é tão rápido que não pode ser cronometrado. A polícia
afirma, depois de ouvir testemunhas, que Samuel teve a idéia de botar fogo no trem para
que os retirantes pudessem sair e dispersar pela cidade. Ele teria ido a um posto, dito que a
gasolina de seu carro tinha acabado e pedido para vender um galão. Depois de derramar o
líquido em quatro vagões, botou fogo em tudo.
O repórter teria sido visto pela última vez liderando um grupo de retirantes em fuga,
enquanto a polícia tentava salvar o trem. “Samuel conduzia o grupo de umas trezentas
pessoas na direção do viaduto de Santa Teresa quando surgiram aqueles oito/nove soldados,
tiros, luta, e ele ficou caído na avenida dos Andradas, morto.”55
Sintomaticamente, quem sobra para contar a história é o escritor.
Na vida real, o engajamento dos jornalistas se daria não de forma intempestiva,
como o de Samuel, mas lenta e gradual, como descreve Fernando Gabeira em O que é isso,
companheiro?: “Era preciso fazer alguma coisa. Quantas vezes você não ouviu esta
frase?”.56
Primeiro, o ex-pauteiro e redator do departamento de pesquisa do Jornal do Brasil
prestou “ajuda humanitária” à mulher de um sargento assassinado sob tortura, procurando
abrigo para ela e os filhos em embaixadas. Depois, foi procurado na redação por uma
pessoa que precisava noticiar na rádio que um ex-sargento caíra nas mãos da polícia. Passo
seguinte, sua tarefa consistiu em distribuir propaganda nas fábricas, para conscientizar o
operariado. Daí para participar de uma organização clandestina e entrar na luta armada foi
um pulo, revela o livro.
Tudo isso fazia com que o jornalista verdadeiramente engajado levasse uma vida
dupla.
Para mim, era sempre uma sensação estranha fazer passeata diante do JB.
O cortejo se detinha ali, alguém fazia um discurso contra a imprensa
burguesa em geral, e as pessoas vaiavam aquele prédio cinzento, os
redatores e contínuos que olhavam as coisas acontecendo da sacada da
redação. Era uma sensação estranha porque parecia que eu estava vaiando
a mim próprio.57
Naquele momento, o jornalista deveria escolher entre ver a vida passar na janela ou
usar a máquina de escrever literalmente como arma e descer para a rua disposto a lutar.
Dividido, torturava-se. “Quantas vezes tive vontade de saltar da sacada para ajudar alguém.
Quantas vezes tive vontade de subir para a sacada, para estar ao lado dos redatores amigos
e comentar com eles o curso da demonstração”, lembra Gabeira.59
O dilema do escritor jornalista, entre os anos 1960 e 1980, foi levado ao extremo
por esse militante que acabou virando autor de onze livros e deputado federal, depois de
preso, torturado e exilado por quase uma década. Na sua dúvida entre a janela e a rua,
estava a grande questão narrativa levantada pelos numerosos jornalistas que escreveram a
ficção do período: “Quem narra a história é quem a experimenta ou quem a vê?”. Melhor
dizendo, “só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o
que eu narro e conheço por ter observado?”, questionava o crítico Silviano Santiago.60
Olhar de fora é papel do jornalista. Entrar na pele, do romancista. Mas, ao colocar o
jornalista como protagonista da história, a ficção do período inverteu os papéis,
estrategicamente permitindo narrar de dentro os fatos que só eram descritos de fora e
friamente pelos jornais.
Dizer que esses livros só vendiam porque o romance jornalístico de certa forma
substituía a imprensa em sua missão de informar — e que, quando acabou a censura, ele
perdeu a razão de ser — é enxergar apenas um lado da questão. Foi todo um mundo que
ruiu. Os leitores engajados que tão avidamente consumiam a ficção e a poesia nacional
sumiram, assim como as condições econômicas e políticas que favoreceram essa
aproximação, como a politização da vida intelectual, o milagre econômico, que bem ou mal
permitiu o acesso de uma ampla parcela da população ao consumo, o ensino público de
qualidade e, principalmente, a entrada em cena de uma ficção inteiramente voltada para as
massas: a televisão.
A retração do interesse dos leitores pela ficção nacional certamente coincidiu com o
fim da censura, que permitiu aos jornais voltarem a tratar de temas antes só abordados nos
livros. Mas também com o fim de um projeto de Brasil por parte dos escritores e do público
leitor. A globalização marcou o abandono do projeto nacionalista que nasceu com o
romantismo, teve seu momento marcante entre as décadas de 1930 e 1950 e sustentou
praticamente toda a literatura dos anos 1960—1980.
Em relação ao grande tema da identidade nacional, que sempre moveu a literatura
brasileira, estabeleceu-se um diálogo de surdos (leitores) e mudos (autores), que pelo
menos concordavam num ponto: “Que país é este?” deixou, durante bom tempo, de ser a
grande questão que movia a literatura brasileira. O novo perfil do jornalista escritor a partir
dos anos 1990 pode ter muito a ver com isso.
7. Momento literário 2000
Felizes os que deixam isso para lá e vão cuidar da vida. Mas que vida? A
nossa andou tão misturada com essa coisa da literatura que é impossível
concebê-la de outra forma. E mesmo os que abandonam o barco
continuam sonhando com o mar.
Marçal Aquino
A visibilidade como jornalista deve ser, de tudo, o que mais atrapalha o escritor. E
eu sempre soube disso: uma vez me convidaram para ser repórter do caderno
cultural e eu respondi dizendo que não, porque preferia continuar oculto na minha
confortável cadeira de redator-tradutor, que raramente assinava matéria e só muito
excepcionalmente tinha que fazer uma entrevista ou telefonar para alguém. Há um
tremendo preconceito contra os jornalistas de uma maneira geral. A imagem do
jornalista, nesses “círculos intelectuais”, está associada à inconsistência, à
superficialidade, ao conformismo ou à ingenuidade, até mesmo à leviandade que
notamos em muitos jornalistas de destaque na mídia. Sem falar no fato de que o
escritor, se é jornalista, recebe da própria imprensa um tratamento diferenciado
(para pior) — já que, além de não haver aquele distanciamento que “embeleza” os
outros escritores, os próprios jornalistas muitas vezes reproduzem o preconceito
geral contra eles mesmos. E é um preconceito particularmente forte justamente por
causa da visibilidade social dessa profissão de mediadores.4
Outro perigo é a política de compadrio dos cadernos culturais, permitindo que seu
espaço seja usado para a troca de favores entre jornalistas, editores e críticos. E, com isso,
os contatos e a visibilidade conquistada na imprensa camuflarem a falta de qualidade de um
trabalho literário. “Se o escritor souber utilizar estas, digamos, facilidades, poderá
desenvolver um bom programa de autopromoção, o que pode ajudar em termos de
publicação, divulgação e vendas. Mas isto não o ajudará a ser melhor escritor”, reconhece
Marco Pólo. No entanto, a “rede de amigos” não o livra do teste do tempo, acredita
Marcelo Moutinho. “Neste caso, o autor pode até conseguir algum destaque, mas sua
literatura decerto não vai perdurar. Perdura apenas o que tem qualidade.”5
Há um preço a ser pago por pular etapas. “Creio que o jornalismo estimula demais a
vaidade do autor, e o faz perder um pouco de vista a necessidade de maturação e
durabilidade que toda obra literária deve ter”, adverte Marcelo Coelho.6 Editor do
Suplemento literário de Minas Gerais, o poeta Fabrício Marques chegou a dedicar um
poema a essa delicada questão:
A concentração nas editorias de Cultura revela uma clara ruptura com os padrões da
geração anterior. Entre os anos 1960 e 1980, os escritores buscavam no jornalismo um
corpo a corpo com a realidade, dirigindo-se para as editorias de Política, Polícia, Geral ou
Nacional, onde poderiam ter acesso direto aos fatos e ampliar seu horizonte de [*55] Comentário: para seguir o
padrão, não teriam que vir em caixa baixa?
experiências. Se antes era a realidade brasileira que estava sendo posta em questão, um dos
temas subjacentes à literatura feita por jornalistas hoje é a própria cultura, seja ela a alta
cultura ou a de massa. Não é um fenômeno restrito aos jornalistas escritores: a
desvalorização da experiência e a metaliteratura são duas das principais tendências da
narrativa pós-moderna. Coincidentemente, o jornalista deixa de ser o herói da nova ficção.
Ele não é mais seu protagonista nem seu narrador privilegiado.
Em compensação, surgiram novos protagonistas, produtos do marketing, como o
escritor-celebridade de Talk show, de Arnaldo Bloch, contraponto perfeito ao escritor
anacrônico de Antonio Fernando Borges, que, em seus dois romances (Que fim levou
Brodie? e Braz, Quincas & Cia), dialoga diretamente à tradição literária, no caso com Jorge
Luis Borges e Machado de Assis, sem a mediação da realidade. Há ainda o editor de lixo
cultural, do romance Do amor ausente, de Paulo Roberto Pires, o juiz, de Música anterior,
de Michel Laub, numerosos calculistas equivocados, como os arquitetos e engenheiros de
Bernardo Ajzenberg, José Castello e Marçal Aquino.
Acima de todos, paira o protagonista paranóico, com suas características
fronteiriças: pensamento em círculos, visão fragmentada, opção aleatória por uma verdade,
minúcia, obsessão, capacidade de construir ficções, de encontrar lógica no ilógico. Presente
em quase todos os romances da nova geração, esse protagonista—narrador paranóico pode
ser lido como uma hiper-reação imaginária à desagregação, ao caos e à violência das
megacidades na virada do século. E até mesmo como seu subproduto.
Criado pelo escritor argentino Ricardo Piglia, o conceito de “ficção paranóica”
originalmente se aplica ao romance policial. Mas o narrador paranóico ultrapassa as
fronteiras do gênero e se faz presente em boa parte da ficção brasileira contemporânea. Em
especial, os personagens eternamente perseguidos por complôs, armações e fantasmas
pessoais, como o ex-policial de Teatro, entre tantos outros paranóicos de Bernardo
Carvalho.
Assim como seus personagens, na prática o jornalista também assume uma postura
diferente a partir dos anos 1990. Já não é mais o homem de letras sem formação específica,
que, por rebeldia, indisciplina ou falta de condições financeiras, abandonou o curso de
direito pela metade ou nem isso, mas um profissional formado diretamente para o trabalho
jornalístico. Ao contrário das gerações anteriores, que tiveram grandes nomes que passaram
longe dos bancos universitários, como Graciliano Ramos e Ferreira Gullar, praticamente
todos os escritores jornalistas de hoje são egressos da faculdade de comunicação, treinados
desde o início para o exercício de um modelo específico de texto. Fator que certamente
contribui para fazer com que a ficção se transforme no principal espaço de subjetividade e
liberdade formal, ao mesmo tempo em que torna o bloqueio criativo mais resistente. “As
formas da reportagem, da crítica etc. são fórmulas em que é mais difícil inovar. O romance,
a ficção, por definição, são mais livres”, compara João Gabriel de Lima.9
Para o escritor contemporâneo, a formação e a prática do jornalismo pode ser uma
“camisa-de-força”, como sugere Carlos Ribeiro. “É, sem dúvida, a liberdade de expressão
que me faz sentir a literatura como um espaço ideal para a escrita. Na literatura, eu posso
fazer tudo o que a linguagem me permite fazer, nos limites do meu talento e da minha
criatividade.”10
Praticamente todos os entrevistados (apenas seis fugiram à regra) já sonhavam com
a literatura quando ingressaram na faculdade de jornalismo. Ela tem sido uma alternativa
natural ao curso de letras, como demonstra o depoimento de José Castello.
Desde cedo, sabia que desejava me tornar escritor. Pensava, por isso, em
cursar letras. Um professor de literatura francesa do “clássico”, porém, me
convenceu de que, se viesse a cursar letras, me tornaria professor de
literatura, e não escritor. Que o ideal, em meu caso, seria cursar
jornalismo, profissão que não só me obrigaria a praticar a escrita
diariamente, como também me empurraria para a realidade, aguçando meu
senso de observação e minha sensibilidade. Sem nenhuma segurança a
respeito do que fazia, decidi seguir seu conselho e por isso, e só por isso,
cursei jornalismo, que foi a profissão de meu pai, mas que eu jamais
pensara em seguir.11
A lógica da concorrência, que define como pecado mortal deixar de publicar uma
matéria que todos os outros jornais exibirão no dia seguinte, somada à lógica da
produtividade, que dificulta a liberação do repórter da pauta diária, contribuem para que os
jornais tenham cada vez menos grandes reportagens, que exigem tempo, recursos e
dedicação. A esses fatores, devem ser acrescentadas a negligente formação técnica do
jornalista pelas universidades, a idade cada vez mais baixa com que um repórter passa a
editor (em geral quando começa a elaborar criativamente seu texto), a padronização
imposta pelos manuais de redação, a cobertura centrada nos mesmos assuntos e
personagens oficiais e a dependência cada vez maior das assessorias de imprensa. Com a
crise econômica, a partir da década de 1990, o enxugamento das redações e dos custos
extras com transporte, hospedagem e alimentação, tornaram cada vez mais proibitivas as
grandes reportagens.
Mas a questão política também não deve ser menosprezada. Se até os anos 1970 o
mercado jornalístico contava com um número maior de órgãos de imprensa, com claras
orientações ideológicas, hoje “todos disputam o mesmo leitor: o eleitor de centro”.18 Com
isso, o profissionalismo suplantou o tradicional envolvimento partidário do jornalista.
Paralelamente, verificou-se um enorme desgaste das utopias políticas que mobilizaram os
anos 1960 e 1970, quando a opção por trabalhar numa redação estava particularmente
vinculada ao engajamento de quem queria mudar o mundo e, portanto, precisava exibir
todas as suas mazelas.
NOVOS DILEMAS
Mas, com a virada do século, começou a surgir uma nova leva de romances de
jornalistas voltados para o Brasil. O marco pode ser considerado o livro Nove noites,
lançado em 2002. Escrito justamente por quem melhor refletiu a ruptura com o sentido de
missão entre os escritores jornalistas contemporâneos, o livro de Bernardo Carvalho é uma
espécie de anti-Quarup.
Assim como na obra de Antonio Callado, o protagonista convive diretamente com
os índios de uma aldeia. Mas os índios de Bernardo Carvalho só exacerbam o grau de
idealização dos de Callado. Eles não são dóceis vítimas da civilização e, sim, exibidos com
toda sua carga de violência, selvageria e habilidade para manipular o sentimento de culpa e
o deslumbramento dos homens brancos. Na foto que ilustra a orelha do livro está a chave
para compreender a surpreendente relação entre esse autor eminentemente cosmopolita, ex-
correspondente nos Estados Unidos e França, com o que o Brasil tem de mais primitivo.
O autor—-narrador se diz bisneto do marechal Rondon e filho de um latifundiário
que nos anos 1960 foi dono de fazendas no Araguaia e no Xingu. E afirma ser o menino
que segura a mão de um índio nu na foto da orelha do livro. Por conta desses detalhes
surpreendentes de sua biografia, dos quais o leitor não tem certeza quanto à veracidade,
teria tido a experiência privilegiada (e arriscada) de conhecer a realidade das aldeias sem a
o romantismo mediatizado pelas grandes reportagens, pela literatura indigenista, pelos
documentários de cinema e TV, pela onda ecológica ou pelos relatos antropológicos. E é
justamente sobre um antropólogo americano que viveu entre os índios brasileiros na década
de 1930 o livro que marca sua virada para o interior do país.
Personagem que mais parece saído da ficção do que da realidade, Buel Quain chega
ao Brasil às vésperas da Segunda Guerra, em pleno Estado Novo, quando além dele
circulam pelo país pesquisadores estrangeiros como Lévi-Strauss, Ruth Landes e Margaret
Mead. Porém, ao contrário dos antropólogos, etnólogos e naturalistas que traduziriam o
exotismo natural destes tristes trópicos em relatos na primeira pessoa e imagens admiradas
no mundo todo, Buel Quain, aos 27 anos, matou-se em meio aos índios.
Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia,
inventariando documentos, arquivos e depoimentos reais, misturados a personagens e cartas
imaginadas e às próprias lembranças do autor e sua relação problemática com o pai. Ao
falar desse pai, e de sua morte lenta, acaba falando do próprio país. Desvenda a associação
das elites urbanas com os militares durante a ditadura, que empurra os índios cada vez mais
para o interior, enquanto toma suas terras. Traça um painel da falência dessas elites regadas
a uísque escocês que, quando a coisa desanda, vão curtir sua decadência de frente para o
mar em Miami. Faz um perfeito apanhado das relações dos pesquisadores estrangeiros entre
si, com as universidades americanas e francesas e com as instituições brasileiras durante o
Estado Novo.
O menino da foto usa uma fantasia de caubói, de estrangeiro em sua própria terra.
Ele não se encanta com o exótico, mas teme ser deixado nu pelos curumins que o querem
igualar a eles. Ao voltar ao convívio de uma tribo, já adulto, o autor não esconde os
resquícios desse desconforto em relação aos índios, recusando-se a ser “batizado” — o que
significa ganhar um novo nome, ter o corpo pintado e coberto de penas, além do cabelo
cortado à moda krahô —, rejeitando a comida, sintomaticamente trocada por barras de
cereais que esconde na mochila, e desconfiando de tudo o que os nativos dizem ou deixam
de dizer.
Mas é ao expor sua história pessoal, quando recuperar a verdade através das versões
dos outros é impossível, que o escritor enriquece a experiência do jornalista. E essa é uma
questão decisiva na obra de Bernardo Carvalho. Como correspondente em Paris e Nova
York, teve ampliada essa experiência de mundo, o que se reflete especialmente em livros
como Teatro e As iniciais, que começa justamente quando o correspondente internacional
entra de férias. Nove noites marca a volta do autor, literalmente, ao solo brasileiro.
Para mim, a influência do jornalismo na literatura não tem nada a ver com
a linguagem, mas com a experiência. O jornalismo permite entrar em
contato com pessoas e situações sobre as quais você não faria a menor
idéia se não fosse pelo pretexto da reportagem. Ele funciona como uma
fonte de histórias e experiências. Nesse caso, ele pode ter um papel vital e
decisivo para literatura. Não é, porém, uma exclusividade do jornalismo.
Outros escritores podem se servir da experiência da medicina ou de
qualquer outra profissão que os faça entrar em contato com um mundo que
não é o deles. O importante é que não haja regras. Qualquer meio de
contato com outras pessoas e situações é interessante para a literatura.20
Assim como Bernardo Carvalho, mais da metade dos entrevistados admitiu que, de
alguma forma — seja pela linguagem, pela estruturação do texto ou pela temática — ,o
jornalismo influenciou seu trabalho de ficção ou poesia. Mesmo que tenha sido
negativamente, obrigando-os a se esforçar para se distanciar completamente dos modelos
pré-fabricados. Também não falta quem veja benefícios nessa mistura, como Marçal
Aquino.
Como vivem, cem anos depois da pesquisa de João do Rio, os escritores jornalistas?
No limite. Exatamente como no reality show homônimo, no final dos anos 1990 as
redações passaram por um encolhimento que mais parece uma dança das cadeiras. A cada
rodada de “passaralhos” — termo usado na imprensa para definir as reengenharias que
periodicamente colocam uma parte dos jornalistas na rua —, dezenas de vagas são
congeladas, profissionais mais velhos e salários mais altos sacrificados. No momento
jornalístico de 2000, já não há mais espaço para pauteiros, redatores e revisores,
substituídos pela figura multifuncional do editor. Isso faz com que, com raras exceções, o
escritor já não encontre no jornalismo o emprego estável que subvencionaria sua literatura.
Nesse momento de forte concorrência e dedicação integral ao trabalho, talvez seja
hora de refazer a questão de João do Rio, como sugere Sérgio Alcides. Seria a aspiração
literária prejudicial para o jornalismo?
da Tarde, mais recentemente, os dois jornais podem ser considerados os novos celeiros de [*58] Comentário: é século passado,
sim, século 20.
vocações literárias. Entretanto, estão longe de funcionar com estufas. “O jornalismo
brutaliza as pessoas, mas ao mesmo tempo as torna mais ligadas à realidade”, compara
Bernardo Ajzenberg. “A literatura faz o contrário, torna o homem mais sensível, mas, ao
mesmo tempo, tende a prendê-lo num mundo virtual.”9
Não surpreende que a maior parte dos escritores jornalistas da nova geração esteja
radicada em São Paulo e que se dedique a uma literatura urbana. Há toda uma questão
geoeconômica envolvida. Com a decadência das revistas semanais nos moldes de O
Cruzeiro, Manchete e Fatos e Fotos, o principal centro produtor de revistas deslocou-se
para a capital paulista, especialmente a partir do lançamento de Veja, em 1968, pela Editora
Abril.
A literatura carioca ainda sobrevive, assim como seu jornalismo, que se ressente da
perda de milhares de postos de trabalho com a falência da Editora Bloch e da TV Manchete,
a crise que levou o Jornal do Brasil a terceirizar e reduzir ao mínimo sua equipe e as
organizações Globo (TV aberta, a cabo, rádio, jjornais, editora de revistas e livros) a [LPS59] Comentário: e editora de
revistas e livros.
praticamente congelar suas vagas. Várias sucursais de jornais e revistas foram fechadas,
passaram a trabalhar com free-lancers ou diminuíram o tamanho de suas representações.
Desde a década de 1950, o número de jornais vem diminuindo de forma assustadora no Rio
de Janeiro. De 22 diários, a cidade passou para dezesseis na década seguinte e sete, vinte
anos depois. Hoje, conta com quatro jornais de grande circulação (O Globo, Extra, O Dia e
Jornal do Brasil), enquanto a Última Hora e Gazeta Mercantil enfrentam crises sem
precedentes. Se não tem o mesmo peso do paulista, o jornalismo carioca não sofre como o
mineiro e o nordestino, que, assim como sua literatura, perderam repercussão em termos
nacionais. Nesse sentido, o sul sobrevive como um caso à parte, onde o mercado editorial é
sustentado por um público local, que é um dos principais consumidores de livros e jornais
do país.
Um fato revelado nesta pesquisa é que, surpreendentemente, as mulheres
continuam sendo uma pequena minoria entre os escritores jornalistas. A questão de gênero
merece ser levantada, já que a proporção de jornalistas do sexo feminino chega a mais da
metade das redações dos principais órgãos de imprensa. No entanto, apesar desta massa de
mulheres ter ocupado seu espaço nos jornais, a literatura brasileira continua sendo um lugar
para homens. Dentre as jornalistas escritoras contemporâneas, destacam-se Cíntia
Moscovich, Gisela Campos, Heloisa Seixas e Rosa Amanda Strausz.
RECONFIGURAÇÃO DO CONTEÚDO
Se o processo recessivo que, desde o final dos anos 1990, assola o Brasil forçou essa
reconfiguração do tamanho das redações, o que a permitiu foi, sem dúvida, a introdução do
computador na década anterior. Com seu ganho em velocidade, a informatização fez com
que o mesmo repórter fosse capaz de bater quatro ou cinco matérias no mesmo dia. E não [MS60] Comentário: ?? jargão?
[*61] Comentário: é jargão, sim.
foi só isso: várias atividades foram extintas. Redatores foram substituídos por corretores
ortográficos; revisores dispensados pela supressão da etapa — tão propícia a
empastelamentos — em que o texto do repórter datilografado em lauda, já modificado à
mão pelo redator, ia para as oficinas ser montado. Pauteiros perderam sua razão de ser
depois que a informação em tempo real, as agências de notícias dos grandes jornais e os e-
mails das assessorias de imprensa ofereceram a possibilidade de se produzir um jornal
inteiro praticamente sem sair da redação.
Ao mesmo tempo em que permitiu o enxugamento das redações, o computador
proporcionou um aumento real no mercado de trabalho e no salário dos jornalistas. Pelo
menos entre 1999, quando o Brasil viveu o boom dos sites de conteúdo jornalístico na
internet, e 2001, momento em que essa bolha de crescimento estourou.
Com comandos para cortar e colar, para suprimir sem pena palavras e trechos
indesejados, o computador mudou a forma de o jornalista escrever seus textos. Na época da
lauda e da máquina de escrever, por mais que fosse possível rasurar e mesmo cortar com
um estilete o trecho abolido, colando um pedaço da lauda a outro, o processo era
extremamente artesanal. Em geral, o repórter tinha que pensar antes de escrever (pelo
menos o lide e o sublide), estruturar a eventual divisão em coordenadas, e só depois deixar
o texto correr. Hoje, voltar atrás e refazer já não são empecilhos, pensar e digitar tornaram-
se quase concomitantes.
Com o tempo, a relação entre a máquina e o jornalista passou a ser essencial, como
registrou o repórter Davi Nasser. Ele não poderia mais se dar ao luxo de escrever à mão,
como um romancista ou poeta.
Escrevo desde menino, e [como] não tenho boa dicção, eu passei a pensar
com os dedos, uma estranha transferência da hipófise para a tiróide e da
tiróide para as pontas dos dedos. Eu tenho a impressão de que, quando eu
escrevo, caio numa espécie de transe. Não estou falando isso para me
auto-elogiar — conheço minhas limitações —, mas tenho a impressão de
que não estou usando a cabeça quando estou escrevendo. Tenho a
impressão de que, se eu não usar os dedos e a máquina, eu não consigo me
expressar.13
Aquele que escreve na era da pena, de pato ou não, produz uma grafia
diretamente ligada a seus gestos corporais. Com computador, a mediação
do teclado, que já existia com a máquina de escrever, mais que se amplia,
instaura um afastamento entre o autor e seu texto. A nova posição de
leitura, entendida num sentido puramente físico e corporal ou num sentido
intelectual, é radicalmente original: ela junta, e de um modo que ainda se
deveria estudar, técnicas, posturas, possibilidades que, na longa história da
transmissão do escrito, permaneciam separadas.15
Os prós e contras do trabalho na imprensa para quem pretende ser escritor foram
resumidos por Juremir Machado da Silva: “Ensina a síntese e a prática do texto constante.
Corta a imaginação e favorece o realismo banal”.5
Se eventualmente a ficção pode compartilhar dos mesmos temas do jornalismo, o
grande diferencial entre um e outro gênero reside na linguagem, apontam os autores que
atuam nos dois campos. Na literatura, “a palavra não é vista como portadora de informação
e sim de significação. Ela muda totalmente de estatuto. E a imaginação e a memória
(pessoal e literária) atuam o tempo inteiro”, diz Heitor Ferraz.6
Na imprensa, a linguagem muitas vezes pode ser empobrecida pela falta de tempo
hábil para uma elaboração formal. Fatores como a normatização, o espaço pré-determinado
pela diagramação e a própria necessidade de comunicação com uma ampla gama de leitores
também podem fazer com que o texto jornalístico diminua o repertório e até mesmo
bloqueie a capacidade de expressão e a imaginação do escritor. “Viciar o texto”, como
define Gisela Campos.7
É como se para escrever reportagens e ficção, ou poesia, ele tivesse que utilizar
outra musculatura, eventualmente atrofiada pelo exercício diário na imprensa. Em seus
depoimentos, muitos usaram a metáfora “trocar de canal” para expressar a necessidade de
sair do automático e se conectar a suas emoções. Mas não é fácil desligar o objetivo e ligar
o subjetivo.
As linguagens literária e jornalística são “registros diferentes”, assinala Luciano
8
Trigo. Mais do que isso, seriam como “azeite e água”, para Carlos Herculano Lopes, duas
linguagens que “não podem se misturar”.9 Uma comparação já usada por Medeiros e
Albuquerque é retomada por Mário Sabino: “Jornalistas e escritores: eles guardam as
mesmas diferenças e semelhanças que existem entre pintores de parede e pintores
artistas”.10 Uma imagem semelhante é usada por João Gabriel de Lima: o jornalista seria
tão diferente de um escritor quanto um torneiro mecânico de um físico nuclear.11 Os dois
ofícios teriam “naturezas distintas”, parece concordar Luiz Ruffato, por sinal, ex-torneiro
mecânico.12
“Se quiser ser escritor, não escreva como jornalista”, pontifica Juremir Machado da
13
Silva. São “linguagens opostas”, radicaliza Bernardo Ajzenberg, para quem uma tentativa
de síntese pode ser fatal para o ficcionista.
Quando esta pesquisa foi computada, em janeiro de 2004, quase a metade dos
entrevistados tinha deixado de trabalhar como jornalista em período integral, mas mantinha
seu nome na imprensa ou internet como free-lancer, cronista, colunista, ensaísta, crítico
literário. E até como escritor.
É uma opção, como define Sérgio Rodrigues, autor de O homem que matou o
escritor, “economicamente muito menos viável e esteticamente muito mais ambiciosa”.15 A
julgar pelo título de seu primeiro livro, o temor de que o jornalista matasse o escritor o
levou a fazer uma opção mais radical — assim como a boa parte dos que fizeram a ruptura.
Não durou. Logo depois de enviar por e-mail seu depoimento, em 2001, o escritor
estava de volta às redações. O que levaria a este salto no escuro, dado por Machado de
Assis em 1978, quando deixou uma carreira bem-sucedida na imprensa para escrever seu
primeiro grande livro, Memórias póstumas de Brás Cubas, e repetido por tantos escritores
jornalistas mais de um século depois? Poderia o jornalista efetivamente matar o escritor que
existiria dentro dele? Para responder a essas questões, é preciso definir o que os tornaria tão
diferentes.
O QUE É UM ESCRITOR
Em resumo, mostrar “o jogo das representações que formaram uma certa imagem
do autor”.19 Uma imagem que foi devidamente naturalizada com os séculos, a ponto de se
ignorar que seu processo de construção está longe de ser universal e atemporal. Alguns de
seus pressupostos chegaram até mesmo a ser invertidos com o tempo.
Foi durante o romantismo que o artista tornou-se proprietário intelectual de sua obra
de arte, proclamando valores como a inventivividade, o subjetivismo e a genialidade, que se
chocavam frontalmente com o modelo medieval, em que escrever era sinônimo de
reescrever. Assim, o romantismo, “identificando o literário com o novo, único e original, e
o trabalho do escritor com atividade particular e solitária, expressão íntima do indivíduo,
ajuda a difundir o privilégio do texto”.25
O QUE É UM JORNALISTA
Não é à toa que nosso primeiro jornalista tenha escrito na Inglaterra, depois de
escapulir dos cárceres da Inquisição. A luta pela liberdade de imprensa em relação ao
Estado começou exatamente nesse país, no século 17, quando John Milton apresentou os
argumentos em favor da pluralidade de vozes em seu texto fundador, Aeropagítica. A
censura deixou de existir na Inglaterra a partir de 1695. No século seguinte, a liberdade de
imprensa seria citada na declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e
se tornaria a primeira emenda à constituição americana (1791). Editado em Londres, entre
1808 e 1821, o combativo Correio Braziliense ousou desafiar explicitamente as ordens
expressas da Coroa Portuguesa proibindo o jornalismo na colônia.
“Resolvi lançar esta publicação na capital inglesa dada a dificuldade de produzir
obras periódicas no Brasil, já pela censura prévia, já pelos perigos a que os redatores se
exporiam, falando livremente das ações dos homens poderosos”, justificou o responsável
pelo Correio, Hipólito da Costa, no primeiro número do jornal.35 Ex-diretor da Imprensa
Régia de Portugal, Hipólito exilara-se em Londres desde que fugira dos cárceres da
Inquisição e de lá mandava seus editoriais. Aceitando-se — como a maioria dos
pesquisadores — este jornal escrito e impresso na Inglaterra como parte da imprensa
brasileira, o Correio Braziliense é considerado o marco inicial do jornalismo no país. [*68] Comentário: seria bom manter a
reverência
Seu formato dá uma idéia de como, há apenas dois séculos, jornais e livros eram
pouco diferenciados. Se hoje correspondem a modos de escrever, editar e publicar distintos,
a ponto de mesmo um analfabeto ser capaz de distinguir um livro de um jornal, em 1808,
isso não era tão fácil. Exemplares do Correio eram impressos in-oitavo, o mesmo formato
dos livros, e a numeração de suas páginas continuava no número seguinte. Edições avulsas
dos jornais também eram vendidas em volumes encadernados, com capa dura. Apenas no
século 19, quando os jornais adquirem uma capacidade de distribuição ampliada é que a
distinção estrutural em relação aos livros começa a se formatar.
Apesar de o Correio Braziliense se auto-intitular também Armazém Literário, de
literatura teve muito pouco nos seus 174 números. O mesmo se verificou nos dois únicos
números de As Variedades ou Ensaios de Literatura, editados em fevereiro e julho de 1812,
na Bahia. Sua proposta era divulgar “discursos sobre costumes e virtudes morais e sociais,
algumas novelas de escolhido gosto e moral; extractos de história antiga e moderna,
nacional ou estrangeira, resumo de viagens; pedaços de autores clássicos portugueses, quer
em prosa quer em verso, cuja leitura tenda a formar gosto e pureza na linguagem; algumas
anedotas e boas respostas etc.”.36 Mas a publicação faliu por falta de assinantes. Motivo
idêntico para o fracasso de O Patriota, que circulou entre janeiro de 1813 e dezembro do
ano seguinte, e tinha em seus quadros alguns dos principais jornalistas escritores do
período, como o aristocrata Borges de Barros e o militante Silva Alvarenga.
Borges de Barros e Silva Alvarenga são personagens exemplares dessa fase, cada
qual a seu modo. O árcade Borges de Barros é considerado um dos precursores do
romantismo no Brasil. Aristocrata ligado a intelectuais franceses, foi tanto escritor quanto
jornalista envergonhado. Em O Patriota, assinava seus artigos apenas como B., seu livro
Poesias oferecidas às senhoras brasileiras por um baiano foi publicado em Paris sem o
nome do autor e só a edição de Os túmulos foi devidamente assinada. Mais do que timidez,
sua atitude denota um certo preconceito do gentleman-writer, do erudito amador, legítimo
representante do velho regime literário, contra a idéia do escritor como celebridade, que
ganharámais força no romantismo. Demonstra ainda a pouca distinção que os homens de
letras do período faziam entre jornalismo e literatura.
Já Silva Alvarenga foi o protótipo do escritor que faria do jornalismo sua catapulta.
Nascido de uma família humilde de Vila Rica, de pai músico e mãe negra, estudou em
Coimbra, publicou poemas em louvor de seu mecenas, o marquês de Pombal, trabalhou
como advogado e professor de retórica e poética, e morreu como um nome respeitado no
Rio de Janeiro. Militante da causa literária, o autor de Glaura participou da criação do
jornal O Patriota e da Sociedade Literária e foi também militante político, participando da
insurreição de Ouro Preto, quando ficou três anos preso. Em oposição ao aristocrata e
senhor de engenho Borges de Barros, o mulato e pobre Silva Alvarenga encontrou na
cultura e na política uma porta de entrada para os salões da corte. Mas os dois iriam
trabalhar lado a lado no mesmo jornal. A pauta de O Patriota dá bem uma idéia do que se
considerava por “cultura” numa época encantada com os progressos científicos do
iluminismo: textos sobre agricultura, matemática, hidrografia, física, química e história. Por
mais minguada que fosse, sua seção de obras publicadas marca o início da crítica literária
militante no país.
Originalmente, o jornal é um veículo muito próximo do livro, mas o jornalista pode
ser considerado também um autor? Mesmo sem tocar no assunto, também aqui Foucault
pode ser de grande ajuda. Para ele, a função autor é “característica do modo de existência,
de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.37
Assim, a menção ao nome do autor “manifesta a ocorrência de um certo conjunto de
discursos, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma
cultura”.
O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está
localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo
de discursos e seu modo singular de ser. Conseqüentemente, poderia-se
dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de
discursos que são providos da função “autor”, enquanto outros são dela
desprovidos.38
Embora não seja de todo desprovido desse status, o jornalismo moderno vem minar
a noção de autoria. Ele não é expressão de interioridade, mas informação. Sua autoridade
não emana da subjetividade ou da imaginação do autor, mas de seu compromisso de
comunicar a verdade. Especialmente quando o estilo europeu de jornalismo opinativo e
analítico cede espaço, a partir do século 20, ao modelo objetivo, impessoal e informativo,
da imprensa americana.
O jornalista pode tanto exercer as funções de repórter (o que narra o
acontecimento), redator (o que escreve ou corrige) e editor (o que corta e organiza
hierarquicamente o material). Por isso, se todo o texto jornalístico tem um narrador, no
sentido benjaminiano do termo, nem todos têm um autor.
Um redator de jornal, por exemplo, não é um autor, já que sua função —
principalmente a partir da implantação da figura do copidesque no final dos anos 1950 — é
justamente o apagamento da individualidade autoral. Mas um jornalista que assina sua
reportagem teoricamente o é, uma vez que “só existe autor quando se sai do anonimato”.39
E não foram poucos os que transformaram grandes reportagens ou textos jornalísticos em
livros, de Euclides da Cunha até hoje.
A demolição feita pelo jornalismo no conceito de autoria implica que, pelo
menos no que diz respeito ao texto literário, a subjetividade seja vista
como uma ilusão, um fantasma, um efeito efêmero produzido por
convenções estilísticas e garantido pela assinatura do escritor ao final do
texto.40
Não sei. No Brasil, a prática consagrou que escritor é quem escreve livro,
mesmo que o livro seja uma grande reportagem. Sempre aceitei esta
divisão, talvez porque eu tenha entrado no jornalismo em um momento em
que a profissionalização da categoria tenha se radicalizado. Não havia
mais espaço para uma etapa mais romântica, em que jornalismo e
literatura podiam, muitas vezes, se confundir.43
GÊMEOS INCESTUOSOS
grandioso. Para se ter idéia, em 1822, o diário A Malagueta, criado um ano antes, era o
jornal de maior repercussão nacional e com o maior número de assinantes no Rio de
Janeiro, quinhentas pessoas. O mercado para a literatura era ainda menor.
Num momento em que a Independência era o principal objetivo dos raros homens
ilustrados, o escritor tinha um status inferior ao do jornalista. “O intelectual considerado
como artista cede lugar ao intelectual considerado como pensador e mentor da sociedade,
voltado para a aplicação prática de suas idéias.”7 Vivia-se a era dos jornalistas estadistas.
Gente mais interessada em mudar os rumos do país com suas palavras do que fazer versos
ou inventar romances. “O processo de Independência acentuou esse caráter missionário: o
intelectual considerado como mentor da sociedade, voltado para a aplicação prática das
idéias. A imprensa foi o meio privilegiado de sua ação.”8 E para ela se voltam as penas
mais hábeis, os melhores cérebros e os maiores esforços.
Um dos principais escritores jornalistas do período foi José Bonifácio de Andrada e
Silva, o “Patriarca da Independência” e um dos políticos mais influentes do Império. José
Bonifácio editou nove pequenos jornais e 32 panfletos políticos, de perfil conservador,
além de um livro de poemas, sob pseudônimo, Poesias de Américo Elísio, publicado em
1825. Espécie de paramilitar do jornalismo, o diretor da Imprensa Régia — e mais tarde
Inspetor dos Estabelecimentos Literários, responsável pela censura de todas as obras
publicadas no país — editava seus jornais e panfletos mais amenos na tipografia oficial. Os
outros, de uma agressividade ilimitada, eram publicados clandestinamente em tipografias
particulares.
Exemplo de como essa virulência política podia ter lá sua poesia são os famosos
versinhos com que Bonifácio destruiu seu desafeto, José da Silva Lisboa, o visconde de
Cairu:
Bonifácio não é um caso isolado. A poesia dessa fase tem uma qualidade muito
inferior aos gêneros públicos como o ensaio e o jornalismo, usados como armas de guerra.
Se, num país sem letras, escritores que se dedicaram à causa pública, como
Gregório de Matos e Antonio Tomás Gonzaga, podem ser considerados jornalistas lato
senso, por sua vez jornalistas de pena hábil, como Hipólito da Costa, podem ser julgados
escritores. Em Formação da literatura brasileira, Antonio Candido não se furta de fazer
uma análise literária da obra dos principais jornalistas brasileiros do período. Para ele, o
jornalismo que se faz até 1836, quando surgem as primeiras manifestações românticas,
pode ser dividido em três ramos: ensaio, panfleto e artigo.
Hipólito da Costa teria sido o melhor representante do primeiro. A ele, o crítico
reserva elogios que não ofereceu até então a nenhum escritor, no sentido estrito do termo,
em seu estudo sobre a formação da literatura brasileira.
Num livro de história literária, cabe não apenas como representante dum
momento em que a literatura pública domina em qualidade e quantidade,
mas como prosador de raça, como o primeiro brasileiro que usou uma
prosa moderna, clara, vibrante e concisa, cheia de pensamento, tão
despojada de elementos acessórios, que veio até nós intacta, fresca e bela,
mais atual que a maioria da que nos legou o século 19 e o primeiro quarto
deste. Como maior jornalista que o Brasil teve, o único cuja obra se lê toda
hoje com interesse e proveito, foi um escritor e um homem de
pensamento, exprimindo melhor que ninguém os temas centrais da nossa
época das luzes.12
O segundo modelo apontado por Antonio Candido foi o panfletário, de Frei Caneca,
que difere do de Hipólito da Costa por seu arrebatamento. Patriota radical e coerente até o
fuzilamento, o religioso foi poeta ocasional e autor de Cartas de Pítia a Damão. Criador do
Tifis Pernambucanos, jornal que editou entre 1823 e 1824, redigindo ao todo 29 números,
Frei Caneca influenciou profundamente a revolta armada de 1824. Literariamente falando,
suas idéias podem ser “comuns do tempo, expressas sem maior personalidade”.14 Mas...
ousadias de metáfora e sintaxe [...] vai a extremos de irreverência, [*74] Comentário: o termo é este
mesmo
misturada a arroubos poéticos e a um nacionalismo pitoresco, análogo ao
que os modernistas utilizarão, cem anos mais tarde.15
Alfredo Bosi também não deixa de incluir o jornalismo em sua História concisa da
literatura brasileira, chamando a atenção para o fato de Hipólito ter passado boa parte da
vida na Inglaterra, em contato com uma cultura política mais complexa do que a de
Evaristo, o que explicaria a diferença de densidade entre um estilo e outro. “A prosa de
Hipólito é a do ensaísmo ilustrado. A de Evaristo cinge-se à crônica política que tempera
como pode as reações ao imprevisto. Mas uma e outra foram indispensáveis à formação de
um público ledor em um país que mal nascera para a vida pública.”20
Como principal gênero literário do século 19, o jornalismo político abriu espaço
para o primeiro contato do escritor brasileiro com seus leitores, criando uma mediação entre
a língua falada nas ruas e a dos clássicos da cultura européia. O problema, entretanto, é que
a militância intelectual, girando em torno dos gêneros públicos, como do auditório, do
palanque e do púlpito não formou exatamente um público de leitores, mas, sim, como
sugere Bosi, de auditores. O que responde, em parte, à sua pergunta sobre o porquê de tanta
má literatura no período.
Certamente, o intelectual era ouvido. Mas muito pouco lido, contentando-se com
seu prestígio social, distinção inquestionável num país onde a dificuldade de instrução era
enorme e os livros, raros. E desse reconhecimento social vinham os cargos e os mandatos.
Para os homens letrados chamados a tomar as rédeas da nação, a literatura não passava
mesmo de uma “acanhada musa”, tão luxuriosa e supérflua que os que a ela dedicavam seus
louvores preferiam fazê-lo sob pseudônimo, como José Bonifácio. Sem o valor artístico que
mais tarde lhe seria atribuído...
UM LONGO NAMORO
Foi apenas em 1836 que o jornal realmente descobriu a literatura. Nem tanto através
da crítica, que nesse mesmo ano começava de forma pioneira por revistas literárias como a
Nictheroy, ou da publicação de um eventual poema inédito nas páginas sempre receptivas
de A Aurora Fluminense.23 Nesse ano, o francês Émile Girardin fez uma experiência
inovadora: pediu a alguns romancistas que escrevessem histórias para serem publicadas em
capítulos no jornal La Presse. Sem querer, Girardin provocaria uma revolução editorial.
Com o folhetim, o jornal encontrou na literatura um multiplicador de vendas. Em um ano, a
tiragem de La Presse pulou de 70 mil para 200 mil exemplares. E seu exemplo seria
copiado por inúmeros jornais em todo mundo.
A febre do folhetim não tardou a contaminar a imprensa brasileira. Menos de dois
anos depois de surgir na França, um folhetim — O capitão Paulo, de Alexandre Dumas —
foi traduzido e publicado no Jornal do Commércio. Os escritores nacionais logo iriam
seguir o exemplo de pioneiros, como João Manuel Pereira da Silva, que viria a ser um dos
fundadores da Academia Brasileira de Letras. Vindo de Paris, onde escreveria para a
Nictheroy um dos primeiros artigos sobre os fundamentos da crítica literária romântica,
Pereira da Silva acabaria se dedicando ao jornalismo político (mais tarde chegaria a
deputado e senador) em órgãos de imprensa como o Jornal dos Debates, Jornal do
Commércio e O Cronista. O interesse pela política, no entanto, não o impediu de publicar
nos jornais obras de ficção como O aniversário de Dom Miguel em 1828, escrito apenas um
ano depois de a moda do folhetim ter chegado ao Brasil.
Entre os precursores, encontra-se ainda Justiniano José da Rocha, que, apesar de
família humilde e mulato, estudou em Paris e ocupou cargos importantes no Segundo
Reinado. Foi deputado três vezes, professor do Colégio Pedro II e da Escola Militar.
Justiniano escreveu sobre política para O Cronista, O Regenerador e o Jornal do
Commércio, entre outros órgãos de imprensa, além de ensaios críticos para a revista da
Sociedade Filomática, precursora do romantismo, em que já apelava para uma literatura
nacional, livre da imitação dos clássicos e fiel à realidade local. Justiniano também
escreveu contos e novelas. Com Os assassinos misteriosos ou a paixão dos diamantes,
estreou no romance-folhetim em 1839. No entanto, segundo o escritor, a história era uma
tradução livre de um livro francês. Ele mesmo o revela, depois de fazer um pouco de
suspense: “Será traduzida, será imitada, será original a novela que ofereço, leitor benévolo?
Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer”.24
Dois autores que, na posteridade, iriam brigar pela honra de terem escrito “o
primeiro romance da literatura brasileira”, Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa (O filho do
pescador, de 1843) e Joaquim Manuel de Macedo (A moreninha, de 1844), também tiveram
passagem pelo jornalismo e pelo folhetim. Nessa época, a imprensa já começa a se tornar
um espaço de profissionalização e inserção social para literatos pobres. Se essa não foi a
história de Joaquim Manuel de Macedo, médico, professor dos filhos da princesa Isabel, e
várias vezes deputado — além de fundador da revista Guanabara, redator de A nação e do
Correio Mercantil, onde posteriormente trabalharia José de Alencar —, certamente foi a de
Teixeira e Souza, o “Camões africano”, e de vários outros que ingressariam no mercado
editorial pela porta dos fundos da tipografia.25 Carpinteiro, tipógrafo, caixeiro da livraria de
Paula Brito, revisor de provas, jornalista, folhetinista, chegaria a abrir uma oficina
tipográfica e uma loja de objetos de escritório. Falido, conseguiu ainda alguns empregos
com os poderosos da época, e terminou a vida como escrivão, em 1861, exatas quatro
décadas antes de Lima Barreto contar a história de um jovem negro e talentoso que conhece
as ilusões e desilusões do jornalismo e acaba a vida encerrado no mesmo cargo do serviço
público em Recordações do escrivão Isaías Caminha.
Os jornalistas escritores Teixeira e Sousa e Joaquim Manuel de Macedo são
testemunhas de um momento em que os folhetins começaram a formar o público para a
ficção nacional e para os jornais. Encantados com o poder de penetração da imprensa num
país de poucos leitores e parcas livrarias, praticamente todos os grandes escritores
brasileiros do final do século 19 e início do século 20 iriam publicar seus romances
primeiro no jornal, como José de Alencar e Machado de Assis.
Os folhetins encontraram um terreno propício no Brasil porque o perfil da imprensa
mudou completamente a partir de 1840. Após o golpe da maioridade de D. Pedro II, os
jornais panfletários e os pasquins políticos que proliferaram desde a volta de D. João VI a
Portugal cederam lugar a uma imprensa menos belicosa. E o jornalista revolucionário ao
novo homem de letras. “Na fase anterior, essa não era a regra: Cipriano Barata, Borges da
Fonseca não eram homem de letras, a rigor, mas tão somente jornalistas. Mais ainda os
panfletários e os pasquineiros. Não havia, então nos jornais, espaço para as letras.”26
Como sede da monarquia, o Rio de Janeiro passou a contar com tipografias,
livrarias, bibliotecas e escolas. Quando, em 1854, José de Alencar ingressou no Diário do
Rio de Janeiro, passando logo depois para o Correio Mercantil (onde o rapaz de 25 anos
ficou responsável pela seção forense e pelo rodapé dominical), o jornalismo já era a opção
preferida dos aspirantes a escritor, como Bernardo Guimarães (o autor de A Escrava
Isaura) e Manuel Antônio de Almeida, dispostos a usar seu espaço na mídia como vitrine,
quando não como trampolim para maiores saltos.
Disposto a fazer carreira, depois de uma rápida passada pelo Jornal do Commércio,
Alencar foi contratado como gerente redator do Diário do Rio de Janeiro, ainda em 1855.
O escritor usaria a visibilidade oferecida pelo jornal de grande prestígio para se legitimar
social e intelectualmente. Foi lá que, na histórica batalha crítico-literária sobre A
confederação dos tamoios, Alencar enfrentou, num lance ousado, o maior medalhão da
época, o poeta Gonçalves de Magalhães e o próprio imperador, patrocinador do livro.
Protegido pelo cargo de direção, em 1856, Alencar publicou uma série de oito cartas,
desancando o grande poema e, de quebra, o esquema de mecenato dos românticos da
primeira geração.
É preciso reconhecer que Alencar tirou da briga muito mais do que um reles
“alpinista” intelectual conseguiria. O jornalista daria a chave para o escritor. A discussão o [LPS75] Comentário: é gíria de agora.
coloquei as aspas. é suficiente, ou melhor
obrigou a pôr no papel jornal seu próprio projeto nacionalista de literatura, que não se daria trocar?
[*76] Comentário: eu prefiro manter
pela poesia, mas a prosa. E não por meio do mecenato, mas de um projeto de literatura
popular.
Beneficiado pela onda do folhetim, desde o sucesso inesperado de Cinco minutos,
escrito com funções puramente mercantis (para servir de brinde de fim de ano aos
assinantes do Diário do Rio de Janeiro, em 1856), Alencar deu início, no ano seguinte, a
sua arrancada literária, escrevendo dois romances (entre eles O guarani), também
publicados em forma de folhetim, e três peças de teatro. Tudo isso sem deixar suas funções
executivas no jornal. Não abandonaria a imprensa nem ao entrar na política, fundando dois
jornais. Como principal autor do romantismo, José de Alencar faria todo o trajeto descrito
por Silvio Romero, em seu Compêndio de literatura brasileira: “No Brasil, mais ainda que
noutros países, a literatura conduz ao jornalismo e este à política”.28
Mas pagaria um preço pela popularidade alcançada: o desprezo da crítica, da qual
reclama o total silêncio quanto ao primeiro livro e, mais ainda, após o lançamento de O
guarani. Se, por causa do desdém da roda literária, o livro caiu nas pocilgas dos
alfarrabistas, O guarani foi um sucesso quando publicado em folhetim, o que diz muito
sobre os hábitos de leitura no Brasil do Segundo Reinado. Manuel Antônio de Almeida
reclamaria do mesmo fenômeno. Quando publicou Memórias de um sargento de milícias
em folhetim, entre 1852 e 1853, foi bem-sucedido. Mas o mesmo texto lançado em livro,
em 1854, foi um fracasso de vendas.
Cada capítulo desses folhetins era aguardado como se fosse uma telenovela de
sucesso nos dias de hoje. O Rio de Janeiro, em peso, lia O guarani e seguia comovido e
enlevado os amores de Ceci e Peri. O boca-a-boca ultrapassou até as fronteiras do estado.
Também Machado de Assis conquistou nas páginas dos jornais seus futuros leitores.
A mão e a luva e Helena foram publicados em O Globo. Iaiá Garcia serializado em O
Cruzeiro, jornal em que Machado escrevia semanalmente. No entanto, se a imprensa a
médio prazo trouxe leitores para os romancistas, também manchou a prosa de ficção com as
tintas do preconceito contra toda e qualquer arte popular. O maior pecado do folhetim foi
inverter os terrenos previamente delimitados para a literatura e para o jornalismo, em que à
primeira caberia a arte desinteressada e casta, ao segundo, a comercialização da palavra.
11. Fronteiras cruzadas
Híbrido por natureza, o folhetim não seguia um modelo, mas vários: o romance em
folhetim, capaz de manter sua integridade literária quando reunido em livro; o mirabolante
folhetim folhetinesco, uma obra aberta cujas soluções oscilavam ao gosto do leitor; além do
ensaio, da crítica e da crônica. O conceito de folhetim muda de sentido ao longo do tempo e
até na obra de um mesmo autor, tornando difícil sua definição em regras rígidas, como, por
exemplo, ficção e não-ficção.
O que se pode dizer com certeza é que originalmente, a palavra feuilleton se refere
não a um estilo, mas a um espaço geográfico preciso, o rodapé do jornal, quase sempre na
primeira página. Cabia de tudo neste espaço, também chamado de variétés: piadas, histórias
de crimes e suicídios, charadas, receitas de cozinha, críticas de livros e peças de teatro,
narrativas que, se ultrapassavam o espaço da coluna, eram publicados em série. O modelo
de folhetim ficcional, que se firma a partir de 1836, acabaria deslocando a seção de
variedades para as páginas internas.
Mesmo nobre, o espaço seria pequeno para contar uma história com início, meio e
fim. Para manter a fórmula do “continua amanhã”, os escritores precisaram mais do que
retalhar romances. Foi necessário criar ganchos, suspense, redundâncias para atualizar a
memória do leitor distraído ou não deixar os novos confusos, personagens fortes e, mais do
que tudo, uma obra aberta capaz de ser encurtada ou espichada, modificada segundo o
maior ou menor interesse do público. “Brotou assim, de puras necessidades jornalísticas,
uma nova forma de ficção, um gênero novo de romance: o indigitado, nefando, perigoso, o
muito amado, o indispensável folhetim folhetinesco.”5 Os críticos odiaram. Os leitores
adoraram.
De olho no sucesso de público, praticamente todos os escritores do final do século
19 e início do 20 passam a fatiar seus romances em forma de folhetim nos jornais e nas
revistas ilustradas. Além de publicar ficção, muitos jornais mantiveram um espaço também
denominado “folhetins” para abrigar as variétés. Multifuncional, ele era “aberto a qualquer
recheio, apelando tanto para o acontecido quanto para o imaginário”, da mesma forma que
as colunas de crônicas hoje.6 Assim, o mesmo Correio Mercantil podia publicar tanto um
folhetim como Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida,
entre junho de 1852 e julho de 1853, quanto o rodapé Revista da Semana, com as crônicas
de José de Alencar, escritas entre 1854 e 1855.
Se é difícil definir o folhetim, que dirá seu autor. Para Machado de Assis, se “o
folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista”.7
FOLHETIM E SENSACIONALISMO
O novo animal teria vida relativamente longa. Só em meados do século 20, com a
radical expulsão da literatura das páginas dos jornais, ele se tornaria uma espécie em
extinção. Embora várias tentativas de reavivar o gênero tenham sido feitas posteriormente,
coube a Nelson Rodrigues o título de último grande folhetinista brasileiro. Sem atentar para
os limites entre os dois tipos de texto, o escritor é provavelmente o melhor exemplo de
contaminação entre jornalismo e ficção. Nos 68 anos em que viveu, Nelson Rodrigues
escreveu dezessete peças de teatro, oito folhetins e apenas um romance propriamente dito.
Nas cinco décadas em que freqüentou as redações, acompanhou de perto a substituição do
jornalismo político pela imprensa sensacionalista, sua derrocada em nome da objetividade,
a crescente influência do rádio, da TV, do cinema. A censura do Estado Novo e da ditadura
militar. O nascimento de O Globo e da TV Globo, a explosão e decadência dos Diários
Associados e da revista O Cruzeiro, as pressões políticas que levaram à criação e à crise do
jornal Última Hora. E ainda teve tempo para inserir seu nome como autor na história da
literatura, do teatro, da TV e do cinema brasileiros.
É o autor nacional que mais teve textos transformados em filmes: Meu destino é
pecar, Boca de ouro, Bonitinha, mas ordinária, o premiado A falecida, Asfalto selvagem, A
dama do lotação, Toda nudez será castigada, O casamento, além de episódios de A vida
como ela é..., como “Traição” e “Gêmeas”. Também escreveu telenovelas — A morta sem
espelho, Sonho de amor (anunciada como uma adaptação de O tronco do ipê, de José de
Alencar, para driblar a censura) e O desconhecido. O personagem Nelson Rodrigues faria
ainda quatro aparições semanais na TV Globo, no quadro A cabra vadia. Na hilariante seção
do programa Noite de Gala, havia uma cabra de verdade, que testemunhava suas entrevistas
(a cabra começara como um personagem em prosa da coluna À sombra das chuteiras
imortais). A TV, o teatro e o cinema tornaram Nelson ainda mais popular.
Foi o jornal, porém, que projetou seu nome. Mais especificamente um tipo de
jornalismo que não temia cruzar as fronteiras da ficção. Para Nelson Rodrigues, elas eram
quase inexistentes. “Eu não via nenhuma dessemelhança entre literatura e jornalismo. Já ao
escrever o primeiro atropelamento, me comovi como se fosse a minha estréia literária”,
dizia.9 O atropelamento também faria parte de sua estréia no teatro, com Vestido de noiva.
A peça que revolucionou o teatro brasileiro em 1943 levou apenas seis dias para ser escrita,
boa parte na redação de O Globo Juvenil, onde Nelson e Antônio Callado, entre outras
coisas, traduziam balões de história em quadrinhos.10 A reportagem sobre esse primeiro
atropelamento, de 1925, quando Nelson tinha treze anos, exigiu não dias, mas várias horas
de concentração. “Eu me torturei como um Flaubert fazendo uma linha de Salambô”,
recordava o escritor, confessando a tentação de acrescentar elementos ficcionais — uma
vela e uma senhora de preto — na nota.11
Nas reportagens seguintes, o redator mostrou que era capaz de inventar histórias
mirabolantes a partir de um único telefonema a uma delegacia. Sua imaginação criava
diálogos, cenários, tramas. Sua especialidade era macabra: os pactos de morte entre
namorados, os únicos crimes que faziam Nelson sair da redação para apurar in loco. Ele
defenderia o sensacionalismo até o fim da vida.
Via de regra, o nosso jornal moderno tem pudor de valorizar e dramatizar
o crime passional (fora os casos já referidos de O Dia e da Luta
Democrática). Marido que mata mulher, ou mulher que mata marido, é [LPS77] Comentário: revista?
tratado sem nenhum patético, em forma de pura, sucinta e objetiva [*78] Comentário: não é revista, é um
jornal que sai sangue.
informação. (O Jornal do Brasil vai mais longe. Ignora qualquer
modalidade de crime e de criminoso. Os atropelados, os esfaqueados, os
enforcados, que comprem outros jornais. O do Brasil não lhes dará a
mínima cobertura).13
Mas, antes, o cronista precisou suar muito como jornalista. Braga fundou um jornal
(Folha do Povo, em 1935) e uma revista (Diretrizes, em 1938, com Samuel Wainer). Atuou
como correspondente do Diário Carioca na Segunda Guerra Mundial e chegou a diretor de
redação da TV Globo, entre outras atividades. De seus 31 livros, incluindo seis publicações
póstumas, apenas dois são de poesia. A maioria reúne crônicas, como Ai de ti, Copacabana,
e reportagens, como Com a FEB na Itália. Mesmo na guerra, o escritor falaria mais alto que
o jornalista. Como lembra Joel Silveira, seu concorrente nos Diários Associados, a questão
era também tecnológica. Joel usava o telégrafo para agilizar a cobertura. Rubem Braga, que
representava o Correio da Manhã, a mala postal. Seus artigos só chegavam ao Brasil mais
de um mês depois dos fatos, o que praticamente inutilizava a reportagem. O que acabou
sendo um trunfo, como admite Joel.
Ele podia ficar dois, três dias num posto de comando. Não tinha a
obrigação idiota, como eu, de ter que correr de um lado para outro, com
medo de perder uma notícia, pois minhas reportagens eram diárias. Então,
com aquele talento que Deus lhe deu e a capacidade de observação
extraordinária, ia vendo mais coisas do que os outros. Esses detalhes
acabaram fazendo de seus artigos algo histórico, bonito, apesar do lado
triste, desumano da guerra.38
Aos que cobravam um romance, Braga lembrava que, no fundo, não passava de um
jornalista que sonhava ser poeta. “Não sou de inventar história”, dizia. “Como jornalista, eu
me acostumei a escrever sempre para ser publicado no dia seguinte ou na próxima
semana.”39 As crônicas não exigiam necessariamente um enredo. Algumas das melhores,
admitia, foram feitas justamente a partir da falta de assunto. “Isso porque trabalhei muito
tempo em jornal, tendo que escrever todo dia, com ou sem assunto.” Apesar do
reconhecimento em vida, Rubem Braga duvidava que seu nome fosse entrar para a história
da literatura brasileira. “Cronista quando fica velho ou morre, o pessoal esquece. Portanto,
não tenho razão para me enfeitar.”
Também o cronista Paulo Mendes Campos traía um grande poeta. Para ele, “a única
relação que existe entre o poeta, o cronista e o jornalista é a matéria-prima: palavras. O
cronista é um ser ambivalente, fica sempre no meio, uma ponte entre o castelo do poeta e a
redação da notícia”.40 Assim como Braga, Paulo Mendes Campos começou na imprensa na
vala comum do jornalismo, como redator do Correio da Manhã. Foi cronista do Diário
Carioca, de O Jornal, do Correio da Manhã e da revista Manchete, entre outras
publicações, além de redator de cinema e publicidade. Seu primeiro livro, A palavra
escrita, foi publicado em outubro de 1951, numa edição minimalista de apenas 37 poemas e
126 exemplares.
Em sua geração, o escritor Otto Lara Resende foi talvez que mais investiu na
carreira jornalística. A literária se resumiu a um romance (O braço direito, de 1963) e cinco
livros de novelas e contos. Cronista, como os colegas de juventude Paulo Mendes Campos
e Fernando Sabino, ao contrário destes jamais abandonou completamente “o cativeiro do
jornalismo de banca”. Desde que começou a trabalhar no jornal mineiro O Diário, em
1940, com apenas dezoito anos, Otto passou por praticamente todos os jornais importantes
da época: Diário de Notícias, O Globo, Diário Carioca, Correio da Manhã, Última Hora,
Folha de S.Paulo. Sem temer a responsabilidade e o nível de absorção de um cargo de
chefia, dirigiu o Jornal do Brasil, a revista Manchete e a TV Globo.
Frasista de primeira, dizia que desde jovem fora vítima de um certo vírus literário.
“Esta grave infecção que me impediu de ter um destino mais pacato, de dormir melhor e
viver menos cansado.”44 No entanto, a veia literária acabaria quase que completamente
absorvida pelo jornal, se não pelas atribulações da chefia, pelo exercício da crônica, que
escrevia habitualmente no sábado pela manhã, com a redação vazia. O jornalismo para Otto
teria sufocado e atrofiado a vocação para a literatura? Ou ele seria um escritor que
simplesmente teria encontrado na crônica seu meio de expressão?
Nelson Rodrigues, com quem trabalhou em O Globo, na Última Hora e na
Manchete, não se conformava que tivesse publicado apenas um romance, o eternamente
reescrito O braço direito (foram três versões, dentre várias inacabadas), e os alguns livros
de contos. E não perdia a oportunidade de espetá-lo, como na segunda parte de Asfalto
selvagem, folhetim publicado originalmente na Última Hora, entre 1959 e 1960. Seu
personagem, o juiz Odorico, tem uma admiração obsessiva por Otto, citado a torto e a
direito, e lamenta apenas que um taquígrafo não andasse atrás dele, as 24 horas do dia, para
imortalizar-lhe as frases perfeitas. E perguntava como um gênio verbal como Otto não
produzia uma Comédia humana, uma Divina Comédia ou mesmo A vida dos doze Césares
por semana. Em 1962, Nelson levaria o jornalista mineiro ao desespero ao entitular uma
peça de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.
O problema é que Otto dizia e repetia ter perdido a fé na literatura. Ou talvez a
adorasse demais.
E não era só Nelson Rodrigues quem lembrava, a todo momento, o que Otto jamais
esqueceu. O crítico Álvaro Lins, com quem o jornalista conviveu no Correio da Manhã,
perguntava: “O que está fazendo? O que planeja escrever? Sempre esperei de você um
grande destino literário”.46 Também Guimarães Rosa o incitava: “Condense-se [...]. Não se
disperse [...], que ninguém faz nada se se divide entre dois senhores”.47 Em 1975, numa
carta a Paulo Mendes Campos, Otto confessaria: “Talvez agora eu possa pensar em
escrever. Sempre penso. Vivo, sobrevivo porque tenho esse recado, esse telegrama a
entregar”.48
Otto Lara Resende ingressou na imprensa em 1938, aos dezesseis anos, por ser uma
profissão que, na época, não exigia pré-requisitos. “Fui jornalista pela mesma razão que o
cachorro entra na igreja: porque achei a porta aberta.”49 Mas, cumprindo o destino de
muitos escritores no Brasil, reconhecia: “o uso do cachimbo me fez a boca torta. Jornalista
a vida toda, acabei jornalista”.50 O que não impedia que, desde cedo, questionasse seu
destino profissional. E, ao longo da vida, deixasse escapar uma frustração literária que o
sucesso na imprensa jamais aplacou. Era como se tivesse se resignado a esquecer os sonhos
de juventude. “Moço, irritei-me com o dia-a-dia do jornalismo. Eu me acreditava reservado
para tarefas mais altas, mais nobres. Soberba intelectual, restos daquele menino orgulhoso
que a vida iria quebrar o topete.”51
Ainda hoje, em pleno momento literário 2000, dois dos mais renomados escritores
jornalistas brasileiros vivem das crônicas e não dos livros. Ao escapar da estiva diária, João
Ubaldo Ribeiro e Carlos Heitor Cony encontraram no “gênero menor” a tal tríplice
liberdade com que todos os repórteres sonham e os escritores realistas (no sentido não-
literal do termo) resignam-se. Em 2002, perguntado se podia se orgulhar de viver de
direitos autorais, João Ubaldo Ribeiro foi taxativo: “Não, vivo das minhas crônicas. Os
direitos autorais são uma coisa incerta”. Por mais consagrado que seja, segundo ele, um
escritor nunca sabe dizer se um livro fará sucesso ou não. “Às vezes você acha que um livro
não vai dar em nada e ele vende extraordinariamente. Às vezes você acha que vai ser um
sucesso e dá com os burros n’água. Não há profissional que consiga predizer o que o
público vai gostar. Seria o sonho...”52
Carlos Heitor Cony diz que vive de literatura num sentido amplo:
Nenhum dos dois parece se incomodar com o fato de escrever sob encomenda.
Ubaldo chega a dizer que “não há maior fonte de inspiração para um escritor” do que o
cheque de adiantamento.
Não é apenas uma questão financeira. Até mesmo os mais bem-sucedidos best-
sellers brasileiros, Luis Fernando Verissimo e Paulo Coelho, os únicos que podem se dar ao
luxo de viver exclusivamente de seus livros, assinam colunas nos jornais. No caso de
Verissimo, que chegou a trabalhar como jornalista em Porto Alegre, é da própria crônica
que tem sido feita boa parte de sua obra.
Além da “tríplice liberdade”, de que falam Otto Lara e Paulo Mendes Campos, o
gênero oferece ao escritor jornalista uma quarta vantagem: a visibilidade, mantendo o
contato com o leitor entre a produção de um livro e outro, que pode levar anos.
E ainda uma quinta, a de usar o pronome cada vez mais raro na imprensa objetiva e
impessoal: a primeira pessoa no seu mais absoluto singular.
O projeto de fazer um jornalismo literário foi frustrado a partir dos anos 1980, entre
outras coisas, pela crescente tendência à normatização do texto jornalístico. Em 1982, o
jornal U.S. Today inaugurou um novo padrão formal: o da TV impressa. O declínio da
circulação dos jornais foi atribuído ao menor tempo dedicado a sua leitura no mundo
moderno. Para corrigir essa defasagem, o jornal americano inovou — e vários outros em
todo o mundo o acompanharam em maior ou menor grau —, investindo em infográficos
coloridos, muitas fotos, cobertura jornalística centrada em serviços, celebridades, TV e
esportes, interatividade e atualização das notícias em web sites e, acima de tudo, matérias
curtas, básicas e puramente informativas. A fórmula logo foi copiada no Brasil,
reorientando projetos gráficos e manuais de redação. Se o leitor não tem mais do que
quinze minutos para folhear seu jornal diário, para que gastar tempo, papel e dinheiro com
grandes reportagens e textos elaborados?
deve-se investir no jornalismo investigativo; o leitor quer matérias curtas X O leitor quer
grandes reportagens; o leitor deseja furos de reportagem X o leitor deseja textos primorosos;
a principal preocupação deve ser a relação entre custos e benefícios X a principal [LPS85] Comentário: estava em forma
de tabelinha. ok assim, texto corrido?
preocupação deve ser a qualidade.
[*86] Comentário: ficou melhor após a
alteração do preparador
A proposta não é aposentar os tradicionais “quem, quando, onde, como e por quê?”,
que formam a base da pirâmide invertida e do padrão moderno de jornalismo. Mas adaptá-
los ao modelo de narrative writing, de forma que permitam a construção de um texto mais
complexo. Dessa forma, “quem?” vira sinônimo de personagem; “o quê?”, de plot;
“onde?”, de cenário; “quando?”, de contexto; “por quê?”, de leitmotiv; “como?”, de estilo.
Também caracterizam os termos deste jornalismo literário um narrador com uma
personalidade discernível, que não esconde sentimentos, sensações e observações atrás da
máscara da impessoalidade jornalística. E que, de alguma forma, ao transformar essa
experiência pessoal em narrativa, consegue se relacionar com o leitor.77
A diferença entre new journalism e narrative writing é, antes de mais nada, uma
questão de contexto. Enquanto o primeiro rotulou os procedimentos experimentais que
caracterizaram a aproximação entre jornalismo e literatura nos anos 1960, o último é um
termo mais geral, usado hoje para descrever um texto escrito num estilo narrativo, não
exatamente experimental. E que pode ser aplicado tanto à reportagem quanto a textos de
não-ficção sem qualquer relação com o jornalismo, como as narrativas de viagem, a crônica
e o memorialismo.
Em relação à imprensa, o modelo de narrative writing não prega a volta aos tempos
anteriores ao jornalismo-verdade, em que tudo valia desde que houvesse um mínimo de
verossimilhança. Mesmo que leve em conta a subjetividade do jornalista e utilize
procedimentos ficcionais para dar colorido ao texto jornalístico, as linhas entre ficção e
não-ficção são claramente demarcadas. A narrative writing permite a incorporação de
recursos literários, como uso da primeira pessoa, transcrição de diálogos, descrições das
reações físicas dos personagens, seus gestos, os cheiros que sentem, os sons que ouvem e
até mesmo de seus pensamentos mais íntimos. No entanto, quando aplicada ao jornalismo,
seu primeiro mandamento continua sendo o mesmo que rege a imprensa em geral:
A era do ilusionismo
A separação entre ficção e jornalismo ficou ainda mais clara quando Nasser
publicou o melancólico artigo “Luz de vela”, no mesmo ano, congratulando um colega da
revista que, com um texto objetivo e puramente informativo sobre retirantes da seca,
ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo. No júri, alguns “idiotas da objetividade”, como
Antônio Callado, então redator-chefe do Correio da Manhã, Danton Jobim, diretor-redator-
chefe do Diário Carioca, e Otto Lara Resende, diretor da revista Manchete. No artigo,
Nasser admitia que, mesmo no coração de um típico homem de imprensa como ele, pulsava
o sangue de um ficcionista. Mas que daí em diante precisaria abrir mão de sua imaginação,
interditada pelos novos tempos, que exigiam uma separação radical entre ficção e realidade.
A briga entre os dois modelos de jornalismo esquentou nos anos seguintes. Acuada
pela concorrência com a Manchete, a revista O Cruzeiro tentou uma modernização estética
e ética de seus textos, com a criação de uma “seção de texto”, em que atuou o jornalista
Jânio de Freitas. Mas o novo grupo se bateu com os que, acostumados a faturar com suas [*88] Comentário: faturar por fora,
ganhar um pagamento extra, de forma
matérias, queriam evitar qualquer mudança ética. corrupta
[LPS89] Comentário: ??
Eles passaram a ser o estorvo, o vinhoto, o bagaço de cana da sua usina.
São os velhos, os superados, os que não souberam acompanhar o ritmo da
revista. Os que já não sabem fazê-la. Os que deixaram de ser mestres para
se tornarem alunos na universidade de imprensa que foi O Cruzeiro [...].14
Nos anos 1960, com a entrada do grupo de Odylo Costa, filho, mesmo os textos de
repórteres premiados passaram a ser reescritos, por incompatibilidade com o novo estilo,
em que não havia espaço para linguagem empolada, nariz-de-cera, informação não-checada
e reportagens quilométricas. Tomando as dores dos companheiros, postos de lado pela nova
geração, Nasser registraria o embate num artigo da própria revista O Cruzeiro, intitulado
“Esquadrão de ouro”.
Depois disso, Nasser foi para a Manchete. E, assumindo seu lado ficcional, criou
uma novidade estilística: a “entrevista imaginária”. Podia ser com um morto, como Costa e
Silva, Tiradentes ou a princesa Isabel, ou mesmo vivos, como Kissinger ou Médici. Muitas
vezes, os personagens dialogavam, como numa conversa entre Ernesto Geisel e a rainha
Elizabeth. Homem de fronteira, nunca assumiu a ficção por inteiro. Giselle foi seu único
livro ficcional, contra dezessete de memórias e reportagens, muitas delas tão criativas
quanto o folhetim. Jamais se dobrou à ditadura da objetividade. Em dezembro de 1980, foi
enterrado sob um epitáfio que resume seu credo: “Saio deste mundo com a convicção de
que não é nem a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a
resoluções definitivas”.17
Mas descrever um acontecimento não é algo tão simples assim, mesmo para quem
se atém à ética jornalística. Numa reportagem, o mais importante pode ser encoberto pelo
mais interessante. Fatos objetivos são suscetíveis a interpretações discordantes. A verdade
depende da perspectiva de quem observa — e de um olhar treinado para perceber
manipulações. O jornalista Zuenir Ventura narra o momento em que o conceito de
objetividade começou a ser posto em questão.
MAKING OF
Eu não queria fazer ficção, pesquisei muito. Mas, quanto mais pesquisava,
mais via que tudo já tinha sido escrito. E eu sou jornalista, não sou
sociólogo, psicanalista, antropólogo. Eu sei contar histórias. Até que me
toquei que, mais do que o que eu encontrava, a ida a certos lugares, o fato
de conhecer certas pessoas, era o mais interessante. No jornalismo, a gente
não conta o processo, só conta o resultado. Às vezes, você chega na
redação e conta o que aconteceu e é muito mais legal do que a matéria que
sai publicada. Então resolvi falar do processo.Por que não fazer um livro
sobre o making of, não à parte, como no cinema? Mas dentro, um livro
sobre alguém que estava escrevendo um livro. A partir de determinado
momento, comecei a ver que teria problemas de natureza ética por ser um
tema explosivo de como usar determinados personagens. Comecei a
disfarçar esses personagens, misturar, tirar nomes. A partir daí, tive
liberdade para criar. Foi fundamental ter tido a base das pesquisas.A
literatura começa a partir de uma realidade perdida ou de uma que não
existiu. Essa realidade está sempre dentro da ficção. Essa base da realidade
faz bem para a ficção. Zé Rubens Fonseca é um exemplo disso. Passou
noites com mendigo para escrever A arte de andar nas ruas do Rio. Até
para transcender, para inventar, é preciso conhecer.27
Existe uma literatura que está, a rigor, muito próxima do jornalismo, que é
quase o registro in natura da ocorrência cotidiana. Tem outra que só parte
da realidade, o que é maravilhoso. Não se pode ter a pretensão de
apreender a realidade, você parte dela para criar. A realidade é sempre
mais brutal do que qualquer ficção enlouquecida. No meu caso a realidade
está muito próxima do meu texto, é um caminho que escolhi, é até uma
limitação minha.
Mas até pela prática do jornalismo percebi que querer transportar
a realidade de forma direta sem o filtro da ficção soa artificial.
Milton Hatoum chama a atenção para a falta de elaboração estética de uma ficção
realista, que herdaria as piores características do jornalismo, entre elas, a pressa, inimiga da
perfeição, e a preocupação com o mercado. Segundo ele, “há uma pressa muito grande em
publicar. E temas comuns em grande parte. Um erotismo cru, a violência, como se de
alguma forma o conto-reportagem dos anos 1970 ressurgisse com outra feição”.
Bernardo Carvalho voltaria ao tema do realismo cinco meses depois, em sua coluna
na Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Ao comentar a obra de um novo escritor, João Paulo
Cuenca, representante da geração batizada de 00, ele aprofunda suas concepções estéticas.
“Todo escritor que se preza sabe que os infernos reais, quando transpostos para a literatura,
são sempre imaginários, são sempre uma criação. Se a literatura é um espaço privilegiado e
libertário, é justamente por dar à imaginação o mesmo peso da vida”, afirma.
Seria preciso uma certa dose de pobreza de espírito para defender a esta
altura do campeonato a ilusão de que só faz boa literatura quem viveu na
carne o que tem para contar. Seria endossar uma concepção empobrecida
do que significa viver (e escrever). Seria reduzir a literatura ao
depoimento. Seria descartar noventa por cento do que de melhor já se
escreveu na história da humanidade, o fim da imaginação, da invenção e
da arte. Basta estar vivo para contar. Em literatura, a experiência é sempre
imaginária, por mais que ela tenha sido vivida pelo autor (e ela sempre é
vivida, de uma forma ou de outra, o que torna essa questão totalmente
secundária. O texto literário não é apenas o relato de uma experiência
prévia; ele é a própria experiência.37
“É bem possível que falte à realidade a riqueza estilística da mentira — assim como
a verdade desconhece a retórica tentadora da imaginação” filosofa o escritor morto, “como
o século 20 e as canetas-tinteiro”, de Antonio Fernando Borges, em Braz, Quincas e Cia.41
Essa “tensão dialética dos estratos reais e irreais” permeia, de forma sutil ou explícita, toda
a ficção produzida por escritores jornalistas.42 E, mais ainda, coloca em jogo uma questão
metodológica: em que sentido a narrativa do real difere da narração imaginária?
Sem dúvida, o principal critério de distinção entre textos ficcionais e não-ficcionais,
mesmo que produzidos pelo mesmo autor é a realidade. Convencionou-se que a narrativa
jornalística trata de um fato real e não imaginário. Já à literatura, o critério de verdade não
se aplicar. Quando muito, o da verossimilhança.
O segundo critério que distingue os dois gêneros é a linguagem. Em oposição ao
discurso literário, o jornalismo dá ênfase a seu aspecto utilitário, com uma linguagem
voltada para a compreensão do leitor, e também a sua transparência, como se os fatos
pudessem falar por si mesmos. Esse efeito de objetividade é produzido na medida em que o
narrador jamais intervém, apagando as marcas de sua subjetividade.
Mas, na ficção ou no jornalismo, a escolha do pronome pessoal pode ser apenas um
“álibi retórico”, um efeito literário como outro qualquer.
A nível de discurso, a objetividade — ou carência dos signos do [*92] Comentário: é transcrição, deixar
assim mesmo
enunciante — aparece assim como uma forma particular de imaginário, o
[LPS93] Comentário: deixar assim
produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o mesmo?
historiador pretende deixar o referente falar por si só. Essa ilusão não é
exclusiva do discurso histórico: quantos romancistas — na época realista
— imaginam ser “objetivos” porque suprimem do discurso os signos do
eu!43
Ainda não se pode dizer com certeza quem é o grande nome, talvez nem tenha sido
escrito o grande romance da geração que se firmou a partir dos anos 1990 — se é que este
tipo de raciocínio ainda é possível. Mas parece ser bastante claro que o mercado para a
ficção e a poesia contemporâneas mostra um encolhimento em relação às grandes tiragens
dos autores da geração anterior. Os jornalistas que conseguem chegar às listas de mais
vendidos com seus livros escrevem, em geral, não-ficção, como Caco Barcellos, Eduardo
Bueno, Elio Gaspari, Ernesto Rodrigues, Fernando Morais, Marcel Souto Maior, Mario
Sergio Conti, Ruy Castro e Zuenir Ventura. Seus livros são verdadeiros best-sellers, com
números de vendagem que ultrapassam os cinco dígitos. No topo, está Fernando Morais,
autor de Olga (400 mil exemplares vendidos desde o lançamento, em 1985, até o início de
2004, antes de virar filme e voltar às listas de mais vendidos), Chatô (205 mil exemplares)
e Corações sujos (65 mil exemplares).1
Entre esses escritores jornalistas, apenas dois, Zuenir Ventura (com Inveja: mal
secreto) e Ruy Castro (com Bilac vê estrelas), aventuraram-se na ficção, buscando uma
síntese entre imaginação e apuração. No caso de Zuenir Ventura, trata-se do making of de
uma reportagem sobre esse pecado capital. No de Ruy Castro, um pastelão de romance
histórico. “Hoje você precisa do mercado. Mais do que nunca. E o mercado não é literário,
é jornalístico, com pouquíssimas exceções”, comenta Zuenir, arriscando explicações para o
“fastio do leitor pela ficção.”
Como mostra o exemplo destes dois jornalistas, que tiveram a vendagem de seus
livros sensivelmente diminuída quando enveredaram pela literatura, existe um maior
interesse do público pela não-ficção produzida por jornalistas — biografias, grandes
reportagens, depoimentos, memória, história — do que pela ficção nacional. Em
comparação com o livro-reportagem, a ficção e a poesia nacionais merecem o título de
worst-sellers. A literatura “pouco rendeu, quase nada foi editado em outros países”,
assinala Nelson de Oliveira no prefácio de Geração 90: manuscritos de computador.3
Sintomaticamente, nessa coletânea de contos de dezessete autores contemporâneos, sete
[LPS94] Comentário: como a ordem
são jornalistas, assim como outros cinco (Antonio Fernando Borges, Cadão Volpato, Carlos foi dada alfabeticamente, isso de primeiro e
último não tem qualquer sentido de valor.
seria mais fácil dizer que dos XXX autores
Ribeiro, Marçal Aquino, Michel Laub, Luiz Ruffato e Cíntia Moscovich). representados, sete eram jornalistas, ou
XXX por cento.
A partir dos anos 1980, difundiu-se na imprensa a idéia de que os leitores estão
ocupados demais, imersos num excesso de informação, para se interessar por grandes
reportagens, cuidadosamente apuradas e escritas. No entanto, se elas foram virtualmente
expulsas dos jornais e revistas, no mercado editorial vivem uma era de ouro. Livros-
reportagem têm mais chance do que a ficção de render para seus autores polpudos
adiantamentos, prêmios e até contratos de adaptação para o cinema e para a TV.
Por trás disso, há o problema do custo. Revistas e jornais estão redefinindo seu
espaço editorial em torno de reportagens menores, mais rápidas e baratas. Em vez de pagar
uma estrela do jornalismo para se dedicar a uma matéria que pode levar semanas, ou meses,
para ocupar algumas páginas, os órgãos de imprensa optam por contratar repórteres
iniciantes, que se disponham a preparar várias matérias (e preencher muitas páginas) ao
mesmo tempo, de preferência sem sair da redação. E usar o jornalista mais experiente para
editar seus textos ou escrever uma coluna. O jornal já não quer mais pagar pela reportagem,
subsidiando os gastos, viagens e salário de um profissional caro, que pode levar semanas
para pesquisar, apurar, estruturar, escrever e reescrever um texto. Uma série de reportagens,
como a desenvolvida por Zuenir Ventura entre 1989 e 1990, em torno do caso Chico
Mendes, hoje seria financeiramente inviável para um órgão de imprensa como Jornal do
Brasil. Mesmo que pudesse render prêmios, como o Esso de Jornalismo e o Vladimir
Herzog de reportagem. A volta do repórter à Amazônia, em 2003, foi viabilizada pela
editora que publicou o livro, apostando em seu potencial comercial. Lançado em dezembro
do mesmo ano, Chico Mendes: crime e castigo logo chegou ao topo da lista de mais
vendidos.
Mas não foi só o enxugamento dos custos que minou a grande reportagem. Fatores
como as breaking news, canais de notícias as 24 horas, e a informação em tempo real na
internet fizeram com que a noção de tempo do jornalismo mudasse, gerando ciclos mais
curtos até mesmo na formação de seus profissionais, que dificilmente saem das faculdades
prontos para encarar uma grande reportagem.
Por sua vez, a ficção vive, neste momento, uma desconfiança do leitor semelhante
ao do espectador de cinema, dez anos atrás: se é produção brasileira, não vi e não gostei.
Nem os críticos e professores de literatura escapam deste preconceito, indiferentes até aos
prêmios que seus principais representantes já conquistaram. De costas para o presente, a
grande maioria prefere repisar o caminho seguro das obras-primas indiscutíveis a analisar
as questões que estão sendo colocadas pela nova geração. Nos colégios, os alunos saltam
das obras infanto-juvenis para um treinamento forçado em história da literatura brasileira.
Isso faz com que, em matéria de autores contemporâneos, cheguem no máximo aos
clássicos do alto modernismo. Dos escritores que tratam das questões de seu tempo, em
geral, nunca ouviram falar.
Poetas, então, nem pensar. O gênero é desprezado pelas grandes editoras, porque
não vende, e seu consumo restringe-se quase que exclusivamente ao próprio círculo de
produtores. No momento em que esta enquete foi realizada, apenas quatro escritores
jornalistas da geração 1990 dedicavam-se à poesia, três deles paralelamente à carreira
acadêmica.
BEST-SELLERS E WORST-SELLERS
Em vez de se dar conta das raízes etimológicas que novel divide com
journalism (O que é novidade?), este gênero, quando visto como uma
categoria naturalmente superior, ganha uma transcendência sobre a
imprensa, torna-se uma forma de acesso a uma verdade maior, acima dos
meros fatos e dia-a-dia do jornalismo. Assim, a divisão dos discursos no
início do século 20 passou da separação da poesia e da prosa para a
separação da literatura de formas não-literárias, da ficção para a não-
ficção.6
Quem mata essa ilusão de um sujeito superior, dotado de uma riqueza interior que o
permite desprezar os bens terrenos, é a lingüística, ao mostrar que discursos como
jornalismo, poesia e literatura de ficção compartilham as mesmas unidades básicas. Suas
qualidades e defeitos não são intrínsecos, mas resultados de um longo processo de distinção
entre arte e produto, alta e baixa cultura, ficção e não-ficção, subjetividade e objetividade.
EFÊMEROS E PERENES
Dentre estas distinções, uma das mais arraigadas é a que coloca o livro do lado da
posteridade e aprisiona o jornal no império do efêmero. Um olhar treinado pode ver que,
novamente, quando se trata de literatura e imprensa, pares de opostos denunciam que, na
verdade, tratam-se de dois lados da mesma moeda. Para a cultura de massa, tudo é
descartável.
O que faria o livro superior ao jornal? A pergunta foi respondida pela maioria dos
entrevistados com uma referência à “durabilidade” e à “permanência” da obra literária.
Mesmo que seja com ironia, como faz Sérgio Rodrigues. “Custa mais caro, leva mais
tempo para fazer, e no dia seguinte não está forrando gaiola de passarinho.”9 Cíntia
Moscovich usou a própria experiência para descrever essa superioridade:
Essa é outra palavra que parece fazer parte da mística da literatura. Assim como
vocação, que, em geral, é usada pelos escritores em contraposição à profissão, o jornalismo.
Tudo isso está ligado a um mistério: o da criação artística. “O que escrevo vem de uma
região abissal, dentro ou fora de mim, sei lá. A pessoa pode ser agnóstica, dar o nome que
quiser, mas uma coisa é inegável: o escritor, ao fazer ficção, abre um canal misterioso, sem
controle. Entra em contato com o desconhecido”, afirma Heloisa Seixas.15 José Castello
também fala de um abismo insondável.
O público não ficaria alheio a esta “deficiência”. “Lendo certas novelas, temos o
desejo de perguntar de que vivem as suas personagens”, questiona Graciliano.3 É
colocando-se do outro lado que o escritor afirma: “Leitores comuns e perfeitamente
equilibrados, buscamos na arte figuras vivas, imagens de sonho; tipos que se comportem
como toda a gente, não nos mostrem ações e idéias que briguem com as nossas”.4
Ignorando este fator, a literatura brasileira estaria atulhada de “criações mais ou menos
arbitrárias, complicações psicológicas, às vezes de um lirismo atordoante, espécie de
morfina, poesia adocicada, música de palavras”.5
A verossimilhança, para Graciliano, exigiria do escritor não só a observação direta
da realidade, mas uma análise estrutural da sociedade. Não se deve menosprezar a
influência do marxismo, quando o autor de São Bernardo diz que o fundamento desta
análise não deveria ser procurado na política ou na sociologia, e sim no estudo das bases
econômicas em que se movem os personagens. Seus argumentos sugerem a necessidade de
uma literatura mais racional do que subjetiva.
Parece-nos que novelistas mais ou menos reputados julgaram certos
estudos indignos de atenção e imaginaram poder livrar-se deles. Assim,
abandonaram a outras profissões tudo quanto se refere à economia. Em
conseqüência, fizeram uma construção de cima para baixo, ocuparam-se
de questões sociais e questões políticas, sem notar que elas dependiam de
outras mais profundas, que não podiam deixar de ser examinadas [...]. Os
romancistas brasileiros, ocupados com a política, de ordinário esquecem a
produção, desdenham o número, são inimigos de estatísticas.6
Com certeza, os nossos autores dirão que não desejam ser fotógrafos, não
têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que se passa na vida. Mas
então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as vestem,
fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores?8
A análise é mais arguta quando Graciliano aponta o dedo para a ferida: o escritor
brasileiro não toca na questão econômica porque tem que medo de sujar as mãos com o
dinheiro, ferindo sua imagem de artista desinteressado. Para ele, uma literatura que se
pretendesse moderna não deveria escamotear essas relações arcaicas, pré-capitalistas, do
escritor com o produto de seu trabalho.
Uma cena do livro resume a relação do escritor com o dinheiro. “Quanto você vai
ganhar?”, pergunta a esposa, quando o poeta chega animado de um encontro com um
tipógrafo que se propõe a editar um de seus livros de poesia. “Você também só pensa
dinheiro?”, responde.14 Campos Lara não era do tipo que pensava nisso. Ou melhor, tentava
não pensar. Seguidor confesso do modelo romântico de escritor na primeira parte do
romance, era presa fácil para o culto do desinteresse de que fala Bourdieu, em que o
infortúnio não é sinônimo de falta de talento, mas, sim, prova de autenticidade e filiação
aos mais elevados valores da arte. Na descrição dos pensamentos do escritor, Orígenes
Lessa faz uma radiografia da relação do literato com o mercado.
Nunca passara pela cabeça de Campos Lara que um livro de versos fosse
objeto de lucro. Dava graças a Deus que um livreiro estivesse disposto a
fazer a bobagem de publicá-lo. Parecia-lhe até um crime pensar quanto
dinheiro lhe poderia render o Borba Gato ou qualquer outro poema.15
No entanto, o fato de que o valor de uma obra literária não possa ser medido pelo
mercado não quer dizer que o artista não busque algum lucro com ela. Pelo menos indireto.
Campos Lara dá um salto em direção à profissionalização ao trocar a poesia, literatura de
baixo consumo, pelo romance, mais popular. Pela primeira vez, recebe um polpudo
adiantamento, antes mesmo da entrega dos originais. O poeta entra de cabeça no novo
mercado: a visibilidade conquistada abre para o ficcionista as portas da imprensa, que lhe
dava “trabalho para quase toda a noite e ordenado modesto. Mas pago em dia. Não chegava
a cobrir as despesas. Deixava de pé, violentas, ameaçadoras, as velhas dívidas. Mas já
entrava pão, o açougue fornecia”.16
Além do jornal, também o serviço público e a propaganda, ofício em que Orígenes
Lessa começou a trabalhar com 25 anos, ajudavam a pagar as contas do escritor. A
indiferença ao dinheiro ostentada por Campos Lara, no início da vida, obriga-o à
humilhação de fazer versos publicitários para um açougue, permutando sua arte por um
quilo de filé. Foi a primeira vez em que o poeta efetivamente recebeu algum pagamento por
seu trabalho.
Com o tempo, o perfil sonhador é trocado por outro “mais prático, materialão”, que
decide abrir mão da poesia definitivamente: “Verso não dava lucro. Só faria romances”.17 A
dificuldade de lidar com o dinheiro, que parecia uma inabilidade inata ao escritor, mostra-
se, na verdade, uma espécie de deficiência adquirida. Na postura romântica do não-escrevo-
para-ganhar dinheiro, está embutida a mensagem subliminar de que é indigno viver da
própria pena.
Profissional ou marginal, o escritor divide-se entre escrever de olho no mercado e
julgar-se acima dele. O embate, que já está presente na discussão levada a cabo pelos
escritores ouvidos por João do Rio, no início do século, acirrou-se nos anos 1930, quando
os retirantes, os flagelados da literatura, migram em busca de um lugar ao sol na capital do
país. Os Búfalos do Nordeste, como foram apelidados por Oswald de Andrade os
precursores do romance regionalista, enfrentam, na disputa por um espaço no concorrido
campo literário, a concorrência de uma elite urbana, encastelada na fortuna familiar ou em
cargos públicos. Uma concorrência desleal, baseada no oligopólio, denunciou Graciliano
em seu artigo “Os donos da literatura”, de 1937.
A literatura, para Graciliano, é um mau negócio. Pelo menos no curto prazo de uma
vida, já que hoje seus livros, adotados por escolas em todo o Brasil, rendem uma pequena
fortuna para seus herdeiros. Em 1 de dezembro de 2003, quando Vidas secas (cuja primeira
edição de mil exemplares levou dez anos para se esgotar) chegou a 92 edições, em 2002 já
eram mais de 1 milhão de exemplares vendidos)25 Uma herança que poucos homens de [LPS97] Comentário: não entendi: um
milhão, cento e quinze mil exemplares
negócio poderiam deixar para seus descendentes. Preso às vicissitudes de uma vida dura, o publicados e 2 milhões vendidos?
[*98] Comentário: mudei para tornar
escritor ignorou uma das regras ocultas do campo literário, que prevê uma defasagem mais claro
temporal entre a oferta e a procura, necessária para que as obras que rompem com padrões
estéticos se imponham ao público. Antes de se tornar um clássico do realismo, a história de
Graciliano Ramos não foi diferente da de muitos outros escritores: frustração, dificuldades
financeiras, necessidade de apelar ao jornalismo para sobreviver.
Parece que se trata aí de um modelo muito geral, que vale para todos os
empreendimentos baseados na renúncia do lucro temporal e na denegação
da economia. A contradição inerente a empreendimentos, que, como os da
religião ou da arte, recusam o lucro material, ao mesmo tempo que
asseguram, a prazo mais ou menos longo, lucros de todas as ordens
àqueles que mais ardentemente os recusaram, está sem dúvida no princípio
do ciclo de vida que os caracteriza: à fase inicial, toda de ascetismo e de
renúncia, que é a da acumulação de capital simbólico, sucede uma fase de
exploração desse capital que assegura lucros temporais e [...] os herdeiros
e os sucessores podem recolher os lucros do empreendimento ascético sem
jamais ter tido de manifestar as virtudes que os asseguram.26
TEMPO É DINHEIRO
Se a falta de uma compensação financeira pelo trabalho literário passa, com o fim
do regime de mecenato que sustentou o primeiro romantismo, a ser uma reclamação
constante entre os escritores, a falta de tempo desde então já era a grande frustração dos
jornalistas. Em Como e por que sou escritor, Alencar nos dá uma mostra de como dividia o
seu no ano de 1857, quando escreveu nada menos que O guarani, A viuvinha e as peças de
teatro Rio de Janeiro (verso e reverso), O demônio familiar e O crédito. E ainda carregava
nos ombros de editor-chefe a tarefa de reerguer o Diário do Rio de Janeiro. Recordando-se
da forma como O guarani foi produzido, “dia por dia para o folhetim do Diário”, entre os
meses de fevereiro e abril de 1857, revela:
Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava, por assim dizer, na mesa do
trabalho; e escrevia o resto do capítulo começado no dia antecedente para
enviá-lo à tipografia. Depois do almoço entrava por novo capítulo, que
deixava em meio. Saía então para fazer algum exercício antes do jantar no
Hotel de Europa. À tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no
escritório da redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era
preciso.33
Para haver futuro para a literatura no Brasil, diz Oswald, antes “precisaria existir
quem lesse”.37 Por isso, o título de suas memórias foi Um homem sem profissão: “Pois no
Brasil ser escritor é não ter profissão. Foi o que me aconteceu. E a tantos outros”.38 Sem
profissionalização possível, o escritor não passaria de um pobre coitado que “tem de se
vender, se isolar ou sorrir”.39 E, principalmente, trocar as horas dedicadas à literatura a
alguma atividade rentável: “Intelectual, aqui no Brasil, se não trabalha em outras coisas,
morre de fome”.40
Quando tempo se torna sinônimo de dinheiro, o maior benefício do jornalismo para
um escritor corresponde ao seu pior problema. Sem retorno financeiro, pelo menos a curto
e médio prazo, a literatura só pode ser encarada como uma segunda atividade, a ser levada
a cabo nas horas insones, com o cérebro e os dedos já esgotados por horas de trabalho.
Nem mesmo nomes consagrados, capazes de conquistar os cargos mais altos do jornalismo,
como Otto Lara Resende, escapariam do mesmo sentimento de frustração que
eventualmente acomete todos os escritores que buscam na imprensa uma forma de
sobrevivência. Homens fracionados, divididos entre o feijão e o sonho, que, depois de
algum tempo, já não conseguem mais escolher ou renunciar.
Ainda jovem, Otto ficou marcado por um encontro com Murilo Mendes e Carlos
Drummond de Andrade, em que ficou patente a grande diferença entre escritores e
jornalistas: o tempo livre.
Nesse momento, Otto se fez a mesma indagação que todo o escritor jornalista (ou
pelo menos aspirante a escritor) que estiver lendo estas páginas pensou um dia.
Uma coisa que me pergunto, com todas estas reminiscências, é por que me
deixei seduzir pela dispersão, por que me deixei ficar preso no jornal, por
que aceitei a direção, por que entrei full time num ambiente que não era o
meu, que não passava pelo horizonte da minha ambição... Por que não me
condensei, como me implorava o Rosa [Guimarães Rosa]? Por que não
conservei da vida apenas o essencial, como me aconselhou o MM [Murilo
Mendes]? Por que cedi à vida burguesa, à obrigação de uma rotina, de
uma canga dura?43
No “vasto cemitério literário”, onde Otto Lara Resende calcula ter enterrado o
escritor que poderia ter sido, há desde obras apenas esboçadas a corpos de desavisados que
escorregaram no precipício.44 Especialmente dos que não notaram que, como já tinham
avisado Bilac e seus contemporâneos, a modernidade não comportava a personagem
anacrônica do escritor marginal. No prefácio de Órfão da tempestade: a vida de Carlinhos
Oliveira e da sua geração, entre o terror e o êxtase, o também escritor e jornalista Carlos
Heitor Cony admite que o biografado, apesar de ter descrito e vivido a turbulência dos anos
1960—1970 como poucos, nunca foi moderno. “Pelo contrário, no físico e na obra se
aproximava, por temperamento e circunstâncias, do escritor maldito que teve sua hora e vez
no início do século.”45 O próprio Carlinhos reconheceria: “A simpatia pelos malditos e a
antevisão do reino da inocência me fazem crer no meu futuro de romancista. (Devo repetir
mais uma vez que sou um romancista frustrado?)”.46
Pobre (era filho de uma lavadeira, viúva aos 33 anos com sete filhos para criar, e de
um soldado que se matou quando ainda era criança), provinciano (em 1952, o garoto que já
começava a ganhar fama como jornalista no Espírito Santo veio tentar a sorte no Rio de
Janeiro com a cara e a coragem), autodidata (embora carecesse de formação universitária
gostava de se proclamar intelectual), Carlinhos descreveu sua peregrinação pelos jornais do
Rio atrás de um emprego, no início dos anos 1950, quando a cidade tinha o Correio da
Manhã, Diário Carioca, Jornal do Brasil, O Globo, O Jornal, Tribuna da Imprensa, Diário
de Notícias, Última Hora, A Noite, Jornal do Comércio e A Manhã. Além de revistas O
Cruzeiro, A Cigarra, Revista da Semana, A Cena Muda, Eu Sei Tudo, Manchete e muito
mais. Um grande mercado, mas pouco profissionalizado.
Diziam: “Volte daqui a quinze dias. Pode ser que apareça alguma vaga
daqui até lá”. Os mais sinceros diziam: “Vê-se na sua cara que está sendo
consumido por uma fome de meses. Pelo estado dessas roupas, é evidente
que anda dormindo ao desabrigo, debaixo das estrelas. Não adianta
trabalhar conosco, pois nosso patrão não tem o hábito de remunerar os
seus jornalistas. Só quem recebe o salário no fim do mês, religiosamente,
são os linotipistas, porque têm um sindicato organizado e podem parar as
máquinas no dia em que não encontrarem no guichê o dinheiro que o
patrão lhe deve. Jornalismo não é profissão — é bico. Jornalista bem-
sucedido é aquele que consegue realizar chantagens sem dar chance ao
chantageado de se queixar na polícia. Mas esses vitoriosos são raros. A
maioria, de vez em quando, recebe um vale correspondente a cinco dias de
trabalho, e com essa miséria tem que continuar vivendo. Sinto muito,
rapaz. Você nasceu no país errado”.47
Nem assim ele desistiu. Espécie de alter ego do autor, era assim que o personagem
de Domingo 22 se apresentava. “Charlot. Profissão: repórter. Vocação: escritor”.48 Assim
como Carlinhos, Charlot suportava a imprensa porque não poderia viver de literatura.
Convidado para jantar na casa do patrão Gottemburgo (personagem claramente inspirado
em Adolfo Bloch), ele demonstra em um diálogo com a dona da casa o status que conferia
ao literato. “Não posso adular seu marido, porque sou escritor, tenho meu orgulho, e acho
que quando um homem rico e poderoso encontra um escritor pobre e obscuro, mesmo
assim a adulação deve partir do homem rico.”49
Mas uma coisa era a fantasia. Outra, a realidade. Sentindo-se “esmagado pela
pedreira do jornalismo”, Carlinhos repisou todo o ressentimento dos escritores brasileiros
na crônica “O escritor visto como Drácula”, publicada no Jornal do Brasil em 24 de agosto
de 1983.
O depoimento contrasta com uma das cartas de Caio, enviada doze anos antes para
Emediato, em que o escritor se diz estimulado pela atividade na imprensa, embora
“cansado, vampirizado”.52 Entre outras coisas, Caio trabalhou como repórter de Veja e da
IstoÉ, foi redator de revistas femininas da Editora Abril e da Editora Bloch, da Pop e da
Around, do jornal Folha da Manhã e do Zero Hora, fez roteiros de TV e cinema, foi
tradutor e revisor.
ENRIQUECER COM URGÊNCIA”, Caio gritava, em letra maiúscula, ao amigo Luiz Arthur
Nunes, em carta de 1984. Mesmo tendo consciência de que literatura não enchia barriga,
numa entrevista publicada seis anos depois, explicaria por que deixou o jornalismo: “Para o
escritor — um ficcionista que se alimenta de sonho, ilusão e fantasia — é melhor ser
jardineiro ou sapateiro do que se submeter ao vão comércio da palavra”.56
A vida ascética, reduzida ao essencial, que Murilo Mendes pregara a Otto Lara
Resende, como única forma de se dedicar à literatura no Brasil, já não era viável, mesmo
para um escritor sem mulher e filhos, como Caio. Na sua boca, a metáfora econômica
novamente volta à tona: “Você vai fazendo exercícios franciscanos exaustivos, reduzindo
tudo ao mínimo essencial, e o resultado, claro, numa sociedade ca-pi-ta-lis-ta, é pura falta
de prazer”.57
Para se dedicar integralmente à literatura, alguns escritores se afastariam não só do
jornalismo como das grandes metrópoles, como o mineiro Luiz Vilela, um dos nomes mais
promissores de sua geração. Depois de lançar dois dos principais romances dos anos 1970,
Os novos e O inferno é aqui mesmo, este sintomaticamente passado numa redação de
jornal, e ser traduzido para o alemão, inglês, polonês e até servo-croata, o escritor passou
uma temporada nos Estados Unidos, participando do International Writing Program, e na
Europa. Na volta, preferiu ficar em Ituiutaba, no interior de Minas, sua cidade natal. “Ao
voltar, tomei a decisão de me dedicar só à literatura, fosse qual fosse o preo a pagar”,
revelou numa entrevista.58
A opção pela volta às origens rurais já estava prevista no último capítulo de O
inferno é aqui mesmo, em grande parte baseado na experiência do escritor como repórter do
Jornal da Tarde, em 1968. O romance descreve as baixarias de gente que vive para o jornal
24 horas por dia, sua febre e excitação, suas maluquices, derrubações, frituras e paixões. É
como se o ambicioso protagonista—autor não tivesse ouvido os conselhos do velho
jornalista amargurado de O Estado de Minas, que aparece em Os novos, e seguido em
frente. “Isso aqui é uma máquina de destruir talentos, uma fábrica de esterilização literária.
Se o sujeito quer é mesmo se dedicar ao jornalismo, então OK, nada de mais. Mas se é
literatura o que ele quer, é preferível passar fome do que entrar para um jornal.”59
Para os que nunca dispuseram a tanto sacrifício, um alto preço literário deveria ser
pago. O jornalismo “desgasta fisicamente o escritor e o entrega cansado à sua atividade
criativa ou aos seus estudos e especulações”, admite Ivan Angelo.
Uma obra como um romance exige tempo livre pela frente, não se escreve
nos intervalos. Os intervalos de um romance é que deveriam ser
preenchidos com pequenas coisas. Outra atividade não tenho, além do
amor. Mulher, filhas, e vem um neto por aí. Pessoas queridas merecem
renúncias, senão não vale a pena ser pai, marido. Não sou daqueles gênios
que bradam “minha obra em primeiro lugar!” e o resto se der.60
LEITORES DE MENOS
Nas grandes cadeias, livros de pequenas editoras não são nem aceitos. O
perigo é o mercado virar a indústria do best-seller, em que os livros de
venda lenta, de autores mais sofisticados, não encontrem mais espaço. A
preservação das pequenas livrarias não tem como objetivo preservar o
livreiro, como se fosse um mico-leão dourado, mas sim a pluralidade, da
diversidade de títulos, de características, deidéias, de pequenos editores.75
Afinal, o jornalismo é um fator bom ou mau para a literatura brasileira? Por mais
que tenha entrevistado jornalistas escritores contemporâneos, vasculhado vidas e obras dos
que não estão mais vivos, garanto ser impossível formular uma resposta única para esta
pergunta. Cada momento literário ou jornalístico tem seus próprios dilemas. Cada autor,
uma forma de lidar com o problema.
No entanto, é possível mapear os pontos de conflito e convergência entre os dois
campos ao longo dos últimos cem anos. E, numa apropriação do modelo sugerido pelo
crítico uruguaio Ángel Rama em seu clássico ensaio “Dez problemas para o romancista
latino-americano”, propor uma lista de dez problemas para o escritor jornalista brasileiro.1
Com isso, explicitar o que há por trás do jogo de antagonismos entre imprensa e literatura
que há mais de cem anos divide a literatura nacional.
1 — ARTE X MERCADO
Ao mesmo tempo em que o talento para escrever é visto como atividade rentável é,
enquanto arte, um dom inegociável. Dividido entre essas duas grandes forças, o escritor
jornalista sente-se como se fosse obrigado a escolher entre a prostituição e o monastério.
Quando se mistura aos que vendem o seu talento por mil-réis ou reais, desvirtua-se. Caso
ceda aos apelos ciumentos de uma arte pura e virginal, arrisca-se a viver à margem da
sociedade de consumo, preso a um modelo romântico de artista que se sacrifica por seu
ideal tal qual um monge por sua fé. Mas arte e mercado, como as nove oposições binárias
que a seguem, revelam-se duas faces da mesma moeda. Diferentes, como cara e coroa, mas
interligadas. Isso porque as condições estruturais que permitiram a profissionalização do
trabalho intelectual no Brasil, nos últimos cem anos, desenvolveram-se paralelamente à
massificação dos meios de comunicação. Mas não à constituição de um efetivo mercado
para a literatura que, de cara, exclui praticamente 75 por cento da população.
2 — ARTISTA X TRABALHADOR
4 — EXPERIÊNCIA X ESTERILIDADE
5 — VISIBILIDADE X PRECONCEITO
6 — PERENIDADE X IMEDIATISMO
8 — OBJETIVO X SUBJETIVO
9 — TEMPO X DINHEIRO
A relação, por vezes híbrida, por vezes antagônica, eventualmente parasitária, entre
jornalismo e literatura não é privilégio dos ficcionistas e poetas brasileiros. A intimidade
entre os dois gêneros está na base da dicotomia news/novels do romance inglês: uma
tradição inaugurada por escritores jornalistas, como Daniel Defoe, que tem em Jack
London, Charles Dickens e George Orwell seus mais famosos seguidores. E, na França,
Émile Zola como seu principal exemplo. Também a ficção e a poesia latino-americanas
devem sua força a muitos escritores jornalistas, como García Márquez e Vargas Llosa. Na
literatura portuguesa, verifica-se, de Eça de Queirós a José Saramago, toda uma linhagem
de escritores jornalistas. Nos Estados Unidos, ela se faz sentir na obra de autores
fundamentais, como Walt Whitman, que trabalhou 25 anos em jornais antes de publicar seu
primeiro livro de poemas. Ou Mark Twain, que também passou mais de duas décadas em
redações antes de editar seu primeiro romance. Ernest Hemingway, John Dos Passos,
Eugene O’Neill, Norman Mailer, Tom Wolfe, a lista de escritores que deram seus primeiros
passos no jornal é aparentemente infinita. Menor apenas do que a dos sonhadores que
gastaram seus fósforos sem jamais acender a grande fogueira.
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