Ricoeuriana
Ricoeuriana
Ricoeuriana
Marcelo, Gonçalo (ed.); Arias, César Correa (ed.); Lavelle, Patrícia (ed.);
Autor(es): Moratalla, Tomás Domingo (ed.)
Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/43630
persistente:
DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5
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digitalis.uc.pt
2184-190X
ISSN
Gonçalo Marcelo
César Correa Arias
Patrícia Lavelle
Tomás Domingo Moratalla
#1 COORDS.
Ricœuriana
A Atualidade
de Paul Ricœur
numa Perspetiva
Ibero-Americana
Ricœuriana 2184-190X
ediç ão
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: [email protected]
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc
A SIER
Associação Ibero-Americana de Estudos Ricœurianos
URL: http://www.asieronline.org
D e sign
Carlos Costa
I n fogra f i a
Imprensa da Universidade de Coimbra
I m pr e ssão
CreateSpace
ISSN
2184 -190X
ISBN
978-989-26 -1513-4
ISBN D igi ta l
978-989-26 -1516 -5
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26 -1516 -5
© N ov e m bro 2017,
I mprensa da Universidade de C oimbra
2184-190X
ISSN
Gonçalo Marcelo
César Correa Arias
Patrícia Lavelle
Tomás Domingo Moratalla
#1 COORDS.
Ricœuriana
A Atualidade
de Paul Ricœur
numa Perspetiva
Ibero-Americana
RICŒURIANA
Imprensa da Universidade de Coimbra / Associação Ibero-Americana de Estudos Ricœurianos
ISSN: 2184-190X
Coord. Ed.
Gonçalo Marcelo (Universidade de Coimbra / Católica Porto Business School)
César Correa Arias (Universidad de Guadalajara)
Introdução
(Introduction)
Gonçalo Marcelo, César Correa Arias, Patrícia Lavelle,
Tomás Domingo Moratalla...................................................................... 15
Testemunhos
(Testimonies)
10
Parte II: Varia
(Part II: Varia)
11
Parte I
D o ss i e r T e m á t i c o – A A t u a l i d a d e
d e P a u l R i c œ u r n u m a P e r sp e t i va
Ibero-Americana
Part I
T h e m at i c I s s u e – P au l R i c œ u r ’ s
Timeliness from an Ibero-American
Perspective
Introdução
Introduction
A A t ua l i da d e d e P au l R i c œ u r
n u m a P e r sp e t i va I b e r o ‑A m e r i c a n a 1
P au l R i c œ u r ’ s T i m e l i n e s s
f ro m a n I b e ro ‑A m e r i ca n P e r s p e c t i v e
1 Esta introdução e os dados que nela vêm relatados teriam sido impossíveis de
escrever sem um esforço colaborativo que envolveu várias pessoas de diferentes
países. Os editores gostariam de agradecer em especial a Fernando Nascimento, María
Luján Ferrari e Patrício Mena Malet pela ajuda na colheita de dados relevantes para
traçar este panorama do espaço ibero‑americano. Quaisquer imperfeições ou omis-
sões que possam ser apontadas, e que serão aliás inevitáveis num esforço parcelar
e introdutório, são obviamente da nossa inteira responsabilidade. O agradecimento
é obviamente extensível à Imprensa da Universidade de Coimbra, nomeadamente
na pessoa do seu diretor, Delfim Ferreira Leão, pelo apoio ao projeto desta série e
pela disponibilidade em acolhê‑la, bem como a Maria Luísa Portocarrero, principal
impulsionadora das atividades dedicadas a Ricœur em Coimbra. O agradecimento
estende‑se igualmente ao Comité Editorial do Fonds Ricœur pela autorização dada
para que o projeto viesse a lume e utilizasse o presente nome. Estamos especialmente
gratos a Jean‑Paul Ricœur, presidente do referido comité, bem como a Olivier Abel,
Johann Michel e Michaël Foessel, que colaboram desde há muito com as atividades
da ASIER e sempre encorajaram e apoiaram este projeto. Finalmente, agradecemos
também a todos os membros da ASIER, aos revisores que anonimamente ajudaram
a selecionar e melhorar os capítulos e aos autores publicados neste volume, pela
paciência com que aguardaram pela publicação deste número que, embora tenha
sofrido alguns percalços ao longo do tempo que atrasaram a sua data de publicação
original, nem por isso deixou de ser o primeiro tijolo, a obra inaugural de uma
atividade que esperamos profícua no futuro, contribuindo para a expansão da ASIER
e dos estudos ricœurianos no espaço ibero‑americano.
Gonçalo Marcelo
Universidade de Coimbra/Católica Porto Business School 2
César Correa Arias
Universidad de Guadalajara 3
Patrícia Lavelle
PUC Rio 4
Tomás Domingo Moratalla
Universidad Complutense de Madrid 5
16
a receção da sua obra sofreu um pouco em virtude de o seu au-
tor ser um constante desalinhado, cristão de esquerda, sem escola
oficial de seguidores e sem pretender constituí‑la mas, por outro
lado... com um pensamento de tal forma aberto, plural, acolhedor
e heterodoxo que foi conseguindo paulatinamente granjear simpa-
tias em diversos pontos do mundo entre especialistas de diferentes
áreas. E esse reconhecimento tornou‑se praticamente consensual,
aumentando exponencialmente depois da sua morte em 2005. Por
entre a multiplicação de encontros científicos, publicações e outras
homenagens surgiu, de forma ainda informal, a ASIER (Associação
Ibero‑Americana de Estudos Ricœurianos) em 2010.
Tendo organizado Congressos em Guadalajara (2010), Rio de
Janeiro (2011), Santiago do Chile (2013), La Plata (2015) e em
São Leopoldo (2017), esta associação que federa os diversos estu-
diosos do pensamento de Paul Ricœur no espaço ibero‑americano e
organiza atividades em rede, prepara‑se para organizar o seu sexto
congresso, na Colômbia, em 2019. Paralelamente, o número cada vez
maior de investigações sobre Paul Ricœur em português e espanhol,
e a maturidade que a área dos estudos ricœurianos já atingiu ao
longo dos últimos anos, justificam o aparecimento da presente série.
A Ricœuriana, fiel ao pensamento de Ricœur, constitui‑se como uma
série de livros de publicação em acesso livre, dedicada à obra do
autor que lhe dá o nome mas, ao mesmo tempo, aberta a contribui-
ções que também versem sobre outros autores e áreas, fomentando
um permanente espírito de diálogo e interdisciplinaridade.
Como expressão de um dos traços característicos desta série,
a equipa editorial decidiu consagrar o dossier principal deste
volume inaugural à atualidade de Paul Ricœur numa perspetiva
ibero‑americana. Por “perspetiva ibero‑americana” entendemos si-
multaneamente um diagnóstico da influência que Ricœur de facto
tem no panorama intelectual de diferentes países ibero‑americanos
e as múltiplas intersecções que podem ser feitas entre a sua obra e
17
questões especificamente ibero‑americanas. Imediatamente a seguir
ao dossier temático encontrar‑se‑á uma secção de varia, com um
capítulo e uma recensão dedicados a aspetos do pensamento de
Ricœur não diretamente ligados com o tema do dossier. Passemos
então a uma breve contextualização e apresentação do conteúdo
deste número inaugural.
Assinale‑se, em primeiro lugar, que este trabalho não é, nem nun-
ca poderia ser, exaustivo. Outros trabalhos, localizados e específicos,
sobre a receção de Ricœur em diferentes contextos do espaço ibero
‑americano foram publicados anteriormente 6 e não existe nenhum
estudo aprofundado e exaustivo sobre este tema. Considere‑se este
dossier temático como um contributo para começar a construir de
forma integrada esse esforço de mapeamento do pensamento de
Ricœur; esforço que, decerto, continuará no futuro, não sendo de ex-
cluir a possibilidade de virmos a dedicar mais dossiers a este assunto.
Importa, em primeiro lugar, referir a questão das línguas em que
Ricœur é publicado, ainda para mais quando nos debruçamos sobre o
trabalho de um filósofo para quem a hospitalidade linguística foi tão
importante. Falar da presença de Ricœur no espaço ibero‑americano
confunde‑se, até certo ponto, com a história da sua receção em por-
tuguês e espanhol. É evidente que o espaço ibero‑americano e estas
duas línguas não são co‑extensivos – relembremos o óbvio: ambas as
línguas são faladas em muitos outros pontos do mundo e, por outro
6 Veja‑se, por exemplo, Ricœur em Coimbra: receção filosófica da sua obra, edi-
tado por Maria Luísa Portocarrero e José Beato (Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2016), sobretudo o capítulo de Marcelino Agís Villaverde, “La Huella
de Paul Ricœur en la Península Ibérica”,13‑41; e igualmente A Filosofia de Paul
Ricœur, editado por Fernanda Henriques (Coimbra: Ariadne, 2006), sobretudo a
secção “Paul Ricœur em língua portuguesa” (477‑484), preparada por Margarida
I. Almeida Amoedo e Ana Carina Vilares, e que faz uma recolha, atualizada até
novembro de 2005, da bibliografia primária e secundária de Paul Ricœur. Para um
levantamento mais aturado, em português, espanhol, e outras línguas, poder‑se‑á
consultar a clássica bibliografia de Frans D. Vansina, Paul Ricœur Bibliography
1935‑2008 (Leuven: Peeters, 2008), atualizada até 2008 e, para toda a bibliografia
posterior, a página do Fonds Ricœur: www.fondsricoeur.fr
18
lado, elas não esgotam, de forma alguma, a diversidade linguística
que povoa este espaço – mas não nos parece descabido conjeturar
que a esmagadora maioria da receção da obra deste filósofo se tenha
feito, nos países ibero‑americanos, através da publicação das suas
obras em português e espanhol (apesar da presença sempre óbvia de
um público francófilo mais cultivado que sempre as terá lido no ori-
ginal, em francês, bem como de um conjunto de especialistas da obra
que, mesmo trabalhando em território ibero‑americano, publicam
frequentemente estudos sobre Ricœur noutras línguas, sobretudo em
francês ou inglês). E, em relação a este panorama, importa recordar
que as primeiras traduções dos livros de Ricœur em português e es-
panhol datam de finais dos anos 60. Em 1968 é publicado, no Brasil,
História e Verdade 7 decorrendo depois quase uma década até que
outros livros fossem traduzidos: Da Interpretação 8 , O Conflito das
Interpretações 9 e Interpretação e Ideologias.10 Em Portugal, as tradu-
ções e a força da receção de Ricœur começaram mais tarde, tendo
a década de 80 assistido não só ao seu início como a um enorme
aumento do interesse pelas suas obras num curto espaço de tempo,
com a publicação de A Metáfora Viva,11 Teoria da Interpretação12
19
e O Discurso da Acção.13 Em Espanha, Finitud y culpabilidad14 é
publicado em 1969, seguindo‑se‑lhe, em 1970, no México, a pu-
blicação de Freud: una interpretación de la cultura.15 No decurso
dos anos 70, a obra de Ricoeur começa a ser publicada a bom
ritmo na Argentina, com diversas traduções parciais de O Conflito
das Interpretações e, em 1977, a publicação de La Metáfora Viva.16
No que diz respeito a esta receção da obra de Ricœur em portu-
guês e espanhol, se medida pelas traduções dos seus livros em ambas
as línguas, é importante assinalar que elas se multiplicam de forma
exponencial ao longo das décadas seguintes, sobretudo impulsiona-
das pelo grande sucesso, em França e um pouco por todo o mundo,
dos livros mais relevantes: Tempo e Narrativa17 na década de 80, O
Si‑mesmo Como um Outro18 no início da década de 90 e A Memória,
a História, o Esquecimento19 em 2000. O carácter marcante de cada
um destes livros, em diferentes áreas disciplinares (da teoria lite-
rária à historiografia, passando, obviamente, pela filosofia) serviu
certamente para popularizar o nome do filósofo e atrair o interesse
de cada vez mais leitores à sua obra e incentivar editoras por todo
o mundo (inclusive, obviamente, no espaço ibero‑americano) a pu-
20
blicar não só as traduções destes livros mas também a ir recuperar,
traduzindo‑os, livros anteriores que, por vezes, tinham tido tendência
a ter uma receção mais modesta e quase caído no esquecimento 20.
E este movimento acelerou, reiteramo‑lo, após a morte de Ricœur e
a profusão de homenagens e estudos em seu torno. Hoje em dia, a
esmagadora maioria dos livros de Ricœur está traduzida em portu-
guês e espanhol sendo que as novas publicações póstumas (como é
o caso dos Escritos e Conferências 21) são muitas vezes rapidamente
traduzidas e publicadas em diferentes línguas.
Porém, como é evidente, nem só de traduções se tem feito a
receção de Ricœur. E muitos têm sido, portanto, os autores que, no
espaço ibero‑americano, contribuíram não só para a difusão da obra
de Ricœur mas também construíram pensamentos sólidos e originais
inspirados por ele. Em muitos dos países ibero‑americanos a influ-
ência é antiga e muito beneficiou de contactos pessoais de alguns
pensadores que se tornaram bastante próximos de Ricœur. Isto não
significa, é claro, e como já referimos, que qualquer “escola” se te-
nha constituído em torno dele. Porém, não é possível ignorar, numa
história da receção do filósofo, as múltiplas pessoas que, ou por via
de relações pessoais desenvolvidas com Ricœur ou pelo encontro
propriamente intelectual com a sua obra, depois contribuíram para a
difusão do seu pensamento, fosse na forma de traduções, de ensino
e orientação de teses, da organização de eventos académicos (em
que o filósofo por vezes marcava presença) ou na publicação de bi-
bliografia secundária relevante. A receção do pensamento de Ricœur
21
fez‑se, por conseguinte, de todos estes encontros e produzindo todos
estes resultados. Não podendo ignorar esta marca relevante deixada
por inúmeros estudiosos e próximos de Paul Ricœur, também nos
seria impossível, no exíguo espaço desta introdução, fazer um le-
vantamento pormenorizado de todos aqueles que desempenharam
um papel relevante ao longo dos já quase 50 anos de receção signi-
ficativa desta obra no espaço ibero‑americano. Ainda assim, e sob
a forma de uma mera descrição de alguns dos momentos históricos,
estudiosos pioneiros e tendências gerais da receção de Ricœur neste
espaço (incluindo, de forma muito circunscrita, alguma investigação
recente), aventurar‑nos‑emos a assinalar, nesta introdução, alguns
dos seus protagonistas principais.
Fará talvez sentido, pela força que a presença do pensamento de
Ricœur aí assume, começar com uma descrição da receção no Brasil.
Neste país, para além do trabalho pioneiro de tradução e divulgação
levado a cabo por Hilton Japiassu, é importante mencionar a influên-
cia de Maria da Penha Villela‑Petit,22 filósofa brasileira radicada em
França e que, desde meados dos anos 60, assistia aos seminários
de Ricœur na Sorbonne e em Nanterre, tendo depois participado
no seminário da Rue Parmentier, no Colóquio de Cerisy dedicado
a Ricœur no final dos anos 80 e, para além de ter revisto algumas
das traduções preexistentes no Brasil, foi também uma das grandes
divulgadoras do seu pensamento. 23 Num país onde o número de
produções académicas (livros, artigos, teses) sobre a obra de Ricœur
é enorme, destaquem‑se ainda, pela sua influência, os trabalhos de
22
Constança Marcondes César 24 e Jeanne Marie Gagnebin 25, filósofa
suíça residente no Brasil desde finais dos anos 70, e cujo traba-
lho incide tanto nos estudos literários quanto na filosofia. Merece
igualmente destaque a área dos estudos literários, nos quais a pre-
sença da hermenêutica ricœuriana é inegável. De facto, a receção
de Ricœur no Brasil tem sido muito forte não só na filosofia, como
também no campo dos estudos literários. Há, neste país, um inte-
resse considerável pelos objetos teóricos que marcaram a sua obra a
partir dos anos 70 e que assumem relevância considerável no vasto
e polimorfo campo literário. Assim, a sua obra é relevante não só
nos departamentos de filosofia, mas também nos de letras. A este
respeito, cabe sublinhar o papel de Jeanne Marie Gagnebin, cujos
trabalhos contribuíram significativamente para a receção de Ricœur
em ambas as áreas uma vez eles abordam temas literário‑filosóficos,
como a narrativa e a metáfora e contribuem para pensar a relação
entre a literatura e a filosofia a partir da obra ricœuriana. Nos dias
de hoje, como os dados quantitativos que citamos abaixo comprovam,
a presença da filosofia ricœuriana no Brasil é extremamente forte,
com um grande conjunto de professores e jovens investigadores a
renovar e continuar o esforço de receção.26
23
Já em Portugal a influência também é antiga e presente em
múltiplos polos universitários, sendo a influência do pensamento
ricoeuriano talvez mais patente em Lisboa, Coimbra e Évora. Em
Lisboa, o filósofo belga Michel Renaud, antigo aluno de Ricœur
desde os tempos da sua presença em Lovaina no início dos anos 70,
iniciou vários alunos e investigadores ao pensamento de Ricœur na
Universidade Nova de Lisboa, o mesmo podendo ser dito de Joaquim
Cerqueira Gonçalves na Universidade de Lisboa, de Joaquim de Sousa
Teixeira na Universidade Católica Portuguesa, e de Miguel Baptista
Pereira na Universidade de Coimbra, tendo o trabalho pioneiro de
cada um destes autores contribuído igualmente para criar um espaço
de difusão e debate sobre o pensamento ricœuriano em Portugal 27.
São igualmente de mencionar os múltiplos trabalhos e o esforço
de formação nos estudos ricœurianos levados a cabo em Coimbra
por Maria Luísa Portocarrero28 , em Évora por Fernanda Henriques29
e Reconhecimento (São Paulo: Loyola, 2013); Elsio José Corá e Claudio Reichert do
Nascimento, “Reconhecimento em Paul Ricœur: da identificação ao reconhecimento
mútuo” in Revista de Ciências Humanas v. 45, n.º 2 (2012): 407‑423; Adriane da
Silva Machado Möbbs, “A importância do símbolo na obra de Paul Ricœur” in Peri,
v. 6 (2014): 1‑27; e Weiny César Freitas Pinto, “Ricœur, leitor de Freud: notas sobre
a questão do sujeito em Freud” in Peri, vol. 7 (2015): 87‑105.
27 Veja‑se, a título de exemplo: Michel Renaud, “Fenomenologia e hermenêutica.
O projecto filosófico de Paul Ricœur”, in Revista Portuguesa de Filosofia Tomo XLI,
fasc. 4 (1985): 403‑442; Michel Renaud, “O discurso filosófico e a unidade da verda-
de nas primeiras obras de Ricœur”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo XLVI,
fasc. 1 (1990): 19‑48; Joaquim Cerqueira Gonçalves, “O que devemos e gostaríamos
de dever a Paul Ricœur” in A Filosofia de Paul Ricœur, 45‑47; Joaquim de Sousa
Teixeira, Ipseidade e Alteridade: uma leitura da obra de Paul Ricœur (Lisboa: INCM,
2004); Joaquim de Sousa Teixeira, “Paul Ricœur e a problemática do mal”, Didaskalia,
Tomo VII, 1 (1977): 43‑129; Miguel Baptista Pereira, “A Hermenêutica da Condição
Humana de Paul Ricœur” in Revista Filosófica de Coimbra n.º 24 (2003): 235‑277.
28 Veja‑se Maria Luísa Portocarrero, A Hermenêutica do Conflito em Paul Ricœur
(Coimbra: Minerva, 1992); Horizontes da Hermenêutica em Paul Ricœur (Coimbra:
Ariadne, 2005); Ricœur em Coimbra: receção filosófica da sua obra, op. cit.
29 Veja‑se Fernanda Henriques, Filosofia e Literatura. Um percurso hermenêutico
com Paul Ricœur (Porto: Afrontamento, 2005); Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal,
editado por Fernanda Henriques (Porto: Afrontamento, 2005); Feminist Explorations
of Paul Ricœur’s Philosophy, editado por Annemie Halsema e Fernanda Henriques
(Lanham: Lexington Books, 2016).
24
e em Lisboa por Carlos João Correia 30 e Paula Ponce de Leão 31 e
que contribuíram, cada um à sua maneira, para a vitalidade deste
pensamento em Portugal – não esquecendo igualmente a presença
histórica dos estudos ricœurianos noutros pontos do país, como
atestam as obras de Maria José Cantista32 (Porto), Manuel Sumares33
(Braga) ou Maria Gabriela Castro 34 (Açores). Hoje em dia, podem
talvez assinalar‑se dois ou três grandes polos de interesse em torno
do pensamento ricœuriano neste país, sendo de assinalar a vitalidade
dos estudos de hermenêutica ricœuriana35, sobretudo em Coimbra,
através da linha de investigação “A Racionalidade Hermenêutica”,
dirigida por Maria Luísa Portocarrero, e a original ligação entre
Ricœur e os estudos feministas36, promovida em Évora por Fernanda
25
Henriques, sem esquecer a tradicional atenção prestada a temas
como a história37, a ética e a bioética,38 a imaginação,39 a identidade
pessoal40 e o conflito.41 É igualmente de mencionar a centralidade
do pensamento ricœuriano neste país, o que é comprovado, por
exemplo, pela tarefa constante de tradução e introdução da obra do
autor, com grande destaque para as edições 70 e, em anos recen-
tes, sobretudo através dos esforços dos tradutores Hugo Barros e
Gonçalo Marcelo 42 , e pelo próprio acolhimento desta série no seio
da Imprensa da Universidade de Coimbra.
26
Como prova da vitalidade dos estudos ricœurianos em língua
portuguesa, podem até citar‑se alguns dados quantitativos, ainda que
conservadores, para que se possa obter uma noção mais exata da
penetração do pensamento do autor francês na língua de Fernando
Pessoa e Drummond de Andrade. Uma colheita de dados on‑line
feita por Fernando Nascimento mostra que podem ser identificadas
cerca de 250 publicações diretamente sobre Ricœur em português,
publicadas entre 2010 e 2015. Uma pesquisa por áreas revela a ética
como sendo a área mais representativa (com quase 23% de todas as
publicações, seguida da hermenêutica (16%), dos estudos literários /
linguística, dos estudos na área do direito e da política, e da religião
(contando cada uma destas rúbricas com um pouco mais de 10% de
todas as publicações). Só no Brasil, desde 2000 podem ser encon-
trados dados sobre 26 teses de doutoramento e 32 dissertações de
mestrado diretamente sobre Ricœur, o que mostra bem o interesse
que o seu pensamento mobiliza.43
27
Em Espanha44 , tal como em Portugal, a receção mais significativa
da obra de Ricœur dá‑se a partir dos anos 80, também beneficiando
das deslocações frequentes que o autor começa a fazer à Península
Ibérica (com maior frequência a Espanha) para participar em diversas
atividades académicas, em sítios como a Universidade Complutense
de Madrid, a Universidade Autónoma de Madrid, a Universidade de
Santiago de Compostela e diversas universidades catalãs.45 A ligação
de Ricœur a Espanha era forte, a ponto de, em novembro de 2003,
já num estado de saúde bastante frágil, ter decidido fazer aquela
que foi umas das suas últimas viagens de trabalho a Santiago de
Compostela 46 , e da qual resultou um dos seus últimos textos im-
portantes 47, sobre o dom e o reconhecimento, pouco tempo antes
de ser publicada a sua última obra, Percurso do Reconhecimento.48
Tal como noutros países, a forte ligação pessoal de Ricœur a al-
28
guns académicos, como foi o caso de Marcelino Agís Villaverde 49,
facilitou a penetração e divulgação da obra em Espanha. Outro dos
grandes divulgadores da filosofia de Ricœur neste país foi Manuel
Maceiras50 , que estudou com ele em Paris e foi outros dos gran-
des promotores das suas visitas a Espanha, tendo sido importante,
num primeiro momento, para incentivar as traduções da sua obra
para espanhol. Maceiras deu a conhecer o pensador francês, tanto
pessoal como intelectualmente, a outras figuras que, mais tarde,
viriam a impulsionar os estudos ricœurianos em Espanha, como
foi o caso do já mencionado Marcelino Agís Villaverde ou dos ir-
mãos Tomás Domingo Moratalla51 e Agustín Domingo Moratalla que,
hoje em dia, são dos principais impulsionadores e divulgadores da
obra ricœuriana na península ibérica. Finalmente, entre as figuras
pioneiras, mencione‑se também Juan Masiá,52 que conheceu Ricœur
nas suas visitas ao Japão (nos anos 70 e 80) e que, assim, contribuiu
para introduzir o pensamento ricœuriano tanto no Japão como em
49 Para além das obras já citadas, mencione‑se também uma obra sua traduzi-
da em português e com influência na receção de Ricœur em língua portuguesa:
Marcelino Agís Villaverde, Paul Ricœur: a força da razão compartida (Lisboa:
Instituto Piaget, 2004).
50 De Manuel Maceiras podemos destacar os trabalhos, pioneiros no seu tempo,
Introducción al personalismo actual (Madrid: Gredos, 1975) no qual propunha uma
interpretação personalista e hermenêutica do pensador francês e La hermenêutica
contemporânea (Madrid: Cincel, 1990), obra na qual Ricœur é apresentado, junta-
mente com Gadamer, como uma das grandes figuras da hermenêutica. Mencionem‑se
também as sugestivas e corretíssimas introduções que fez tanto a La metáfora viva
quanto a Tiempo e narración. Veja‑se Manuel Maceiras, “Presentación de la Edición
Española” in Paul Ricœur, Tiempo y Narración I. Configuration del tiempo en el
relato histórico (Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 1995), 9‑29.
51 Mencione‑se, a título de exemplo do trabalho de divulgação levado a cabo
pelos irmãos Moratalla, a coleção “Paul Ricœur” dirigida na editora Hermes: La ética
hermenêutica de Paul Ricœur (Valencia: Hermes, 2013); Para leer a Paul Ricœur
(Valencia: Hermes, 2013); Laicidad y pluralismo religioso (Valencia: Hermes, 2013) e
Bioética e Hermenéutica. La ética deliberativa de Paul Ricœur (Valencia: Hermes, 2013)
52 Por entre os múltiplos trabalhos de Juan Masiá, podem‑se destacar aqueles
que se encontram em Lecturas de Paul Ricœur (Madrid: Universidad Comillas, 1998)
livro que, para mais, incluía as contribuições de dois doutorandos: T. Domingo
Moratalla e A. Ochaita Velilla).
29
Espanha. Entretanto, a receção expandiu‑se e foi contando com novos
protagonistas.53 Uma apresentação mais sistemática da história desta
receção específica pode ser encontrada no capítulo de Francisco José
García Lozano, que mencionamos abaixo.
Na América Latina de expressão espanhola a situação é diversifi-
cada. Se existem alguns países nos quais a receção de Ricœur ainda
tem um longo caminho a percorrer e, por isso, há que incentivar a
sua expansão, existem outros nos quais a presença de Ricœur vem já
de longa data e a sua receção é fecunda e profícua. Correndo embora
o risco de deixar de fora desta breve recapitulação histórica alguns
países e figuras importantes, não poderemos deixar de mencionar
a situação na Argentina, no Chile e no México. Na Argentina54 a
receção da obra ricœuriana é tão antiga quanto o final dos anos 60/
princípio dos anos 70, e foi motivada pelo interesse, quer da filosofia,
quer da literatura, por um pensamento que se afigurava ser uma
alternativa válida ao neopositivismo. Um pouco mais tarde, com a
publicação de La metáfora viva e Tiempo e narración, a obra de
Ricœur começa a figurar nos planos de estudo de diversos cursos,
sendo os cursos de História e Letras das Universidades de La Plata
e de Buenos Aires bons exemplos. É igualmente de mencionar que
Ricœur participou num colóquio na Facultad de Filosofía y Letras
de la Universidad de Buenos Aires em 1983. Por entre as figuras
30
importantes da receção e difusão do seu pensamento, há que referir
que Mario Presas55 (Univ. de La Plata), Roberto Walton56 (Univ. de
Buenos Aires), Graciela Ralón de Walton57 (Univ. de San Martín),
Rosa Belvedresi58 (Univ. de la Plata / Univ. de San Martín), Daniel
Brauer 59 (Univ. de Buenos Aires) e Francisco Naishtat 60 (Univ. de
Buenos Aires e La Plata) todos introduziram a obra de Ricœur nos
programas que foram lecionando e portanto desempenharam um
importante papel na formação de várias gerações de estudantes e
na introdução ao pensamento ricœuriano. Tiveram igualmente um
lugar de grande destaque na difusão do pensamento ricœuriano
Marie‑France Begué 61, da Universidad del Salvador (Buenos Aires)
e Aníbal Fornari 62 , da Universidad Católica de Santa Fe, pelos inú-
meros trabalhos que lhe dedicaram e pela intensa dedicação à sua
55 Veja‑se por exemplo Mario Presas, “La lectura de Freud de Paul Ricœur” in
Cuadernos de Filosofía vol. 44 (1998): 37‑48.
56 Roberto Walton, “Husserl y Ricœur sobre la intersubjetividad y lo político” in
Investigaciones Fenomenológicas, vol. 3 (2011): 35‑60.
57 Graciela Ralón de Walton, “La posibilidad de la no‑violencia y el carácter
trágico de la acción histórica” in Devenires XVI, 31 (2015): 43‑64.
58 Rosa Belvedresi, “Consideraciones acerca de la memoria, el olvido y el per-
dón a partir de los aportes de P. Ricœur” in Revista latinoamericana de filosofía
vol. 23 (2006): 199 ‑ 211
59 Daniel Brauer, “El yo ajeno a sí‑mismo. Un estudio comparativo entre la
noción de ‘ipseidad’ en Paul Ricœur y el concepto de autoconciencia en Hegel” in
El retorno del Espíritu. Motivos hegelianos en la filosofía práctica contemporánea
(ed. Miguel Giusti) (Lima: Pontificia Universidad Católica del Peru, 2003), 201‑214.
60 Francisco Naishtat, “Del Ipse existencial al Ipse narrativo. Fronteras y pasajes
entre la fenomenología ontológica de Sartre y la fenomenología hermenéutica de
Ricœur” in Revista de Filosofía y Teoría Política nº 38 (2007): 95‑120. Mencione
‑se igualmente o seminário “Lecturas del último Ricœur: En torno a la noción de
reconocimiento”, animado por Naishtat em La Plata em 2006.
61 Das numerosas publicações de Marie‑France Begué sobre Ricœur, destaque‑se
a obra Paul Ricœur: la poética del sí‑mismo (Buenos Aires: Biblos, 2003). Veja‑se
igualmente o artigo “De la pulsión a la solicitud por el otro: bases antropológicas
para la ‘pequeña ética de Ricœur” in Études Ricœuriennes/Ricœur Studies vol. 2,
n.º 2 (2011): 15‑32.
62 Veja‑se, para além do capítulo de Fornari no dossier temático desta revista,
a obra Razón y Sentimiento: La formación de la consciencia de pertenencia en la
antropología de Paul Ricœur (Roma: PUL‑Edizioni, 1987).
31
obra. No presente, novas gerações continuam a levar a cabo uma
importante obra de difusão deste pensamento em diversas áreas.63
Também no Chile64 podemos encontrar um primeiro contacto com
a pessoa e a obra de Ricœur a partir de meados dos anos 60. Mais
exatamente, o primeiro encontro de que há registo data de 1965, altu-
ra em que Humberto Giannini,65 filósofo chileno discípulo de Enrico
Castelli, o conhece pessoalmente, por ocasião do Colóquio Castelli
dedicado ao tema “Démythisation et morale”. Giannini propõe‑se
então traduzir a conferência dada por Ricœur. Assim, a publicação
de “Simbólica del mal y Reflexión” inaugura uma receção da obra
ricœuriana no Chile, muito ligada às temáticas da Simbólica do Mal,
receção que Giannini promove através da sua hermenêutica reflexiva
e da sua antropologia da falibilidade. Esta pista é igualmente seguida
por Cristóbal Holzapfel, 66 da Universidade de Chile e Iván Trujillo
Correa da Universidad Católica de Valparaíso. Este último animou,
em meados dos anos 90, um seminário em Valparaíso, para o qual
32
convidou diversos especialistas de filosofia francesa em geral e do
mundo ricœuriano em particular (para além do já citado Giannini,
marcaram também presença Ana Escríbar Wicks da Universidad de
Chile ou Gonzalo Portales, da Universidad Austral de Chile) e cujo
foco era a hermenêutica dos símbolos e dos textos, promovendo ao
mesmo tempo uma interação entre a hermenêutica ricœuriana da
via longa e outras abordagens, como a desconstrução derridiana e
mesmo outras áreas das ciências humanas e sociais. Outro tema im-
portante da receção no Chile está ligado à ética, à bioética e à ética
aplicada, sobretudo através dos trabalhos de Ana Escríbar Wicks. 67
Uma via próxima investiga a questão ético‑política, por exemplo
nos trabalhos de Mariano de la Maza (PUC), que se debruçam sobre
a questão do reconhecimento ou da filosofia prática em Hegel e
Ricœur68 , através da exploração da sabedoria prática, que tem sido
feita com inegável mestria por Beatriz Contreras Tasso 69 (PUC) ou
ainda fundando uma ética e política da interculturalidade, caso da
filosofia de Ricardo Salas Astrain.70 Finalmente, dois últimos temas
são de mencionar: o interesse pela poética ricœuriana, não só no
domínio filosófico e literário, mas também no da teologia71; e a área
da fenomenologia. Em suma, o Chile permanece, hoje em dia, um
33
dos países onde a presença do pensamento de Ricœur se faz sentir
com mais força, contando igualmente com uma nova geração de
académicos ricœurianos particularmente ativos.72
Finalmente, também no México a presença da receção do pen-
samento de Ricœur é especialmente importante, sendo de destacar
as áreas da hermenêutica (incluindo análises da linguagem e da
narratividade), da ética, da política e da pedagogia. Neste contex-
to, importa começar por mencionar a obra de Mauricio Beuchot
Puente, filósofo mexicano com uma obra original e influente e que
não só usa o Ricœur da La Metáfora Viva para pensar o plano da
metáfora como, indo mais longe, propõe aquilo a que chama uma
“hermenêutica analógica”73 para pensar a operação analógica em
toda a sua extensão. Já Julieta Lizahola (UNAM) utiliza a o modelo
interpretativo da ação humana de Ricœur e a sua noção de uma
hermenêutica do sagrado na sua investigação sobre a obra de María
Zambrano.74 Greta Rivara Kamaji, por seu lado, centra‑se na análise
ricœuriana da relação entre linguagem e realidade para redefinir
a questão da abertura da linguagem ao ser e remeter para a aber-
tura da linguagem ao real extralinguístico.75 No que diz respeito à
34
relação entre a temporalidade, a narratividade e a historiografia é
imperioso referir as importantes obras de Luis Vergara Anderson
e Alfonso Mendiola Mejia, ambos da Universidad Iberoamericana.
Respondendo aos três tomos de Tiempo e Narración, Vergara publica,
por sua vez, uma trilogia76 na qual repensa alguns dos principais
conceitos ricœurianos: memória, ética, reconhecimento, gesto, para
além das já mencionadas temporalidade e narrativa. Já Mendiola77
dedica a sua atenção à análise historiográfica de Ricœur e à noção
de sentido, na relação entre textualidade e textura. Por fim, importa
igualmente mencionar os trabalhos de José Juan Sainz Luna (UNAM)
e César Correa Arias (Universidad de Guadalajara). Luna desenvolve
uma análise que se ancora parcialmente na economia do dom de
Ricœur e que, com Levinas, interroga a questão do justo meio para
a fundamentação do reconhecimento social pela via ética‑política,
buscando o exercício de uma vida digna e de emancipação do sujeito
da ação. César Correa Arias78 desenvolve o seu trabalho em torno
da viragem pedagógica como evolução da viragem linguística para
a viragem narrativa. Apoiando‑se na fenomenologia hermenêutica
de Ricœur, tenta ligar os conceitos de identidade narrativa (Ricœur)
e imaginação narrativa (Nussbaum) para pensar a pedagogia, nesta
relação, como cultivo da humanidade.
35
Esta lista não exaustiva de países e estudiosos historicamente
ligados à receção, divulgação e discussão do pensamento de Ricœur
mais não pretende que servir como recordação do forte enraizamento
e da marca indelével da sua presença no espaço ibero‑americano.
Porém, esta série e o presente dossier temático não visam apenas
uma recordação do passado; à sua maneira, olham também para o
futuro, e para a fecundidade das análises ricœurianas, se aplicadas
a temas especificamente ibero‑americanos. Assim sendo, passemos a
apresentar o conteúdo deste número inaugural, (composto por cinco
capítulos e dois testemunhos incluídos no dossier temático e uma
secção de varia) que poderá ser lido a seguir a esta introdução.
O primeiro par de capítulos tem como objetivo principal focar de
forma específica a receção do pensamento de Ricœur na Península
Ibérica. Se, no primeiro capítulo, da autoria de Francisco José García
Lozano, e intitulado “La hermenéutica en España: la recepción de
la obra y pensamiento de Paul Ricœur” o objetivo é traçar a his-
tória da receção da obra e pensamento de Ricœur em Espanha de
uma forma geral, situando‑a no contexto mais alargado da presen-
ça da hermenêutica em Espanha, o segundo capítulo, “A receção
do pensamento histórico de Ricœur na historiografia portuguesa:
Fátima Bonifácio e Fernando Catroga”, de Martinho Soares, incide
sobre uma questão muito mais específica, a saber, a forma como
as contribuições de Ricœur para a prática historiográfica e a epis-
temologia da história tiveram uma influência decisiva em dois dos
mais importantes historiadores portugueses contemporâneos. Na
sua história da receção, García Lozano invoca Ortega y Gasset como
precursor do pensamento hermenêutico em Espanha e relembra o
trabalho pioneiro de figuras como Schökel, Panikkar, Lledó e Conill
(entre muitas outras) que, cada uma à sua maneira, abriu portas ao
trabalho hermenêutico neste país. O resultado é que, hoje em dia,
a hermenêutica é reconhecida em Espanha como uma filosofia de
pleno direito, com diferentes praticantes e divulgadores. Para isso
36
muito terão contribuído as filosofias de Heidegger ou Gadamer. Mas
também, com toda a certeza, a de Ricœur. García Lozano traça o
mapa dos diversos domínios do pensamento ricœuriano tipicamente
trabalhados por autores espanhóis, elegendo a fenomenologia, a
hermenêutica geral, a antropologia hermenêutica, a temporalidade/
narratividade, a hermenêutica simbólico‑religiosa, a hermenêutica
da ação e a justiça como os domínios deste pensamento mais fre-
quentemente trabalhados sob a perspetiva ricœuriana.
O capítulo de Soares centra‑se numa questão específica, a receção
do pensamento histórico de Ricœur na historiografia portuguesa.
Soares começa por notar que, em Portugal, as reflexões de carácter
epistemológico sobre a tarefa dos historiadores são raras, assinalando
duas exceções: Fátima Bonifácio e Fernando Catroga. Depois, todo
o capítulo consiste numa discussão minuciosa da forma como as
reflexões ricœurianas sobre a epistemologia da história são apro-
priadas ou criticadas por ambos os historiadores. Soares mostra
como as abordagens de ambos são muito diferentes entre si. Se,
por um lado, Bonifácio parece estar mais preocupada em chamar
à colação a discussão epistemológica para justificar o seu próprio
método histórico, que recupera a história política e factual, Catroga
assume‑se como um verdadeiro pensador da ciência histórica. Soares
relembra a recorrência do pensamento sobre a história na obra
de Ricœur, desde História e Verdade até A Memória, a História, o
Esquecimento, elencando as suas teses principais. O capítulo mostra
como Bonifácio se apoia sobretudo nas teses de Tempo e Narrativa
para desenvolver um esforço histórico narrativo e, para além disso,
uma postura epistemológica assumidamente narrativista. Já Fernando
Catroga desenvolve uma reflexão mais ampla, que se inspira de
Ricœur mas não só e na qual é apropriada de forma mais específica
a dialética entre explicação e compreensão no trabalho do historia-
dor – distanciando‑se assim, pelo menos de forma parcial e como
também o faz Ricœur, de uma história pura e simplesmente narrati-
37
va. Tendo em conta estes elementos, Soares acaba por concluir que,
independentemente do mérito inegável do seu trabalho, a apropria-
ção que Bonifácio faz de Ricœur é parcial enquanto a presença do
pensamento deste filósofo na obra de Catroga, sendo mais fiel ao
pluralismo das metodologias históricas, também acaba por estar mais
de acordo com o espírito das reflexões de Ricœur sobre a história.
Um segundo grupo de capítulos debruça‑se sobre questões prá-
ticas, de aplicabilidade política, e que consistem em análises de
conflitos em diferentes países da América latina, recorrendo a noções
tipicamente ricœurianas, como as de vítima, sujeito capaz, ou perdão.
No capítulo “La víctima como sujeto capaz. A propósito del conflicto
colombiano” o autor Manuel Prada Londoño dá conta de algumas
conclusões de um grupo de trabalho que, em 2010 e 2011, analisou o
conflito colombiano e que, entre outros objetivos, pretendia deliberar
sobre o estatuto das vítimas. Londoño mostra como a questão sobre
as vítimas foi abordada a partir da confluência das perspetivas de
vários autores (Benjamin, Reyes Mate, Ricœur) e referindo como a
visão ricœuriana foi importante para conceder às vítimas o estatuto
de sujeitos de direito, dignos de estima e respeito. Nesta operação,
trata‑se de valorizar os esquecidos da história, neste caso, perante
a violência de um conflito armado de longa duração. A antropologia
filosófica de Ricœur mostra‑se útil para o fazer porque consiste numa
afirmação ontológica das capacidades de base de cada ser humano;
e Londoño argumenta que o processo de recuperação das vítimas
passa por restituir‑lhes as capacidades que, muitas vezes, lhes foram
negadas. Este processo passa então, na tese do autor, por processos
de reconhecimento mútuo que envolvam os diferentes atores sociais,
o Estado e a sociedade civil, tudo elementos indispensáveis para a
ação em comum e a construção de instituições justas. Neste con-
texto, as reflexões ricœurianas mostram a sua utilidade para tentar
enquadrar da melhor forma possível alguns dos mais injustiçados
por um dos conflitos mais graves na América Latina.
38
Já o capítulo de Esteban Lythgoe, intitulado “Los límites del
perdón ricœuriano desde la perspectiva argentina” adota uma abor-
dagem crítica do modelo ricœuriano de perdão, tentando perceber
até que ponto a história recente da Argentina pode ou não ser
compreendida a partir deste prisma. Lythgoe recorda a definição
ricœuriana de perdão, recolocando‑a no contexto do debate que
Ricœur tem com outros autores, como Hegel, Arendt, Derrida e Abel.
O autor deste capítulo vê, neste modelo proposto por Ricœur, não
só uma aplicabilidade ética na relação entre dois indivíduos, mas
também uma possível finalidade política: a da reconciliação nacio-
nal. Lythgoe leva a cabo uma discussão honesta e sem reservas dos
méritos e problemas do modelo ricœuriano, recolocando também a
questão no contexto da polémica que teve lugar pouco tempo depois
da publicação de A Memória, a História, o Esquecimento, com o
violento ataque de Badiou, e a defesa de Dosse. Segundo Lythgoe,
podemos distinguir dois modelos de perdão: um monopolar, o outro
bipolar. O primeiro teria sido defendido por Derrida; o segundo, por
Ricœur, na senda de Hegel. Para Derrida, o perdão seria um fim em
si mesmo, fora de qualquer lógica de intercâmbio. Para Ricœur, seria
a relação de interação intersubjetiva e a renúncia à posição particular
de cada um que permitiria a reconciliação. O objetivo principal do
capítulo de Lythgoe é o de mostrar os limites do perdão, tomando
como exemplo a ditadura argentina de 1976‑1983 e o subsequente
processo de reconciliação nacional, mais tarde revogado. Na opinião
de Lythgoe, este caso mostra que o perdão pode acabar por bene-
ficiar mais quem comete o crime do que as vítimas dele. Assim, o
modelo ricœuriano seria talvez apropriado para pensar o caso sul
‑africano, mas não o argentino, uma vez que foi graças ao facto de a
pressão cidadã, e das organizações de direitos humanos, ter levado a
tribunal os perpetradores de crimes que foi possível fazer justiça às
vítimas. Cada um à sua maneira, os capítulos de Londoño e Lytghoe
mostram assim, sob diferentes perspectivas, as vantagens e limites
39
da filosofia ricœuriana quando aplicada à questão sempre espinhosa
de saber como lidar com vítimas de processos violentos.
O último capítulo do dossier temático deste número, da autoria
de Aníbal Fornari, intitulado “Temporalidad, acontecimiento y po-
der”, é de grande fôlego e também toca, à sua maneira, na questão
argentina. Neste capítulo, Fornari desenvolve uma vigorosa reflexão
sobre o exercício do poder, nas suas relações com a temporalida-
de, chamando a atenção para a importância das experiências de
passividade na relação com a alteridade e também para o carácter
inescapável dos acontecimentos na configuração da nossa experi-
ência humana. Para o fazer, o autor aborda um grande número de
temáticas, partindo das reflexões ricœurianas sobre a temporalidade,
sobretudo a partir da leitura que Ricœur faz de Santo Agostinho em
Tempo e Narrativa, passando pela ênfase arendtiana na natalidade
e pelo que ela nos ensina sobre o poder como capacidade de trazer
a novidade ao mundo e culminando numa reflexão sobre a capa-
cidade dos povos hispano‑americanos e, sobretudo, a Argentina,
de exercer o poder de forma adequada e constituir comunidade.
Fornari pretende criticar a tendência do poder para se reificar e ser
exercido de forma violenta, naquilo que é um esquecimento e uma
negligência do poder em comum exercido no viver‑juntos de uma
comunidade e para cuja importância tanto Ricœur como Arendt tanto
chamavam a atenção. De facto, para Fornari, o exercício autêntico
do poder político implica o reconhecimento do sentido relacional
da pluralidade e radica no consentimento à decisão renovada de se
viver em comum, o que envolve ir para lá da vontade de dominação
e do recurso à violência. Ora, na sua conclusão, o autor questiona,
no momento da celebração do bicentenário da libertação e fundação
de diversos Estados sul‑americanos, se de facto tem sido possível
constituir tais comunidades sem uso de violência; relembrando, com
Juan Bautista Alberdi, que a libertação na América do Sul se fez,
em muitos casos, pela força da violência, Fornari nota, também
40
seguindo Alberdi, que este facto muitas vezes resultou em socie-
dades civis fracas e frequentemente ameaçadas pela brutalidade
de uma violência que parece passar do ato fundador de libertação
para a imposição da força do Estado enquanto tal. Neste pano de
fundo, Fornari propõe que, por um lado, se reconheça o elemento
de conflitualidade presente nas múltiplas perspetivas presentes nas
sociedades pluralistas mas que, por outro, isso se faça num clima
de complementaridade e de respeito pelo carácter pacífico das re-
lações em sociedade. Ou, nas palavras de Fornari, fomentando uma
“criatividade relacional”. Finalmente, termina o capítulo lamentando
que, no caso da sua Argentina natal, tal comunidade política em
sentido estrito ainda não se tenha propriamente podido constituir,
perdida que tem estado, segundo Fornari, numa história de lutas
fratricidas. Porém, a conclusão do autor também conta com uma
nota de esperança em relação à possibilidade de transição para um
estado de coisas em que se possa estabelecer uma verdadeira divisão
de poder e uma capacidade da sociedade perdoar os problemas do
passado, naquilo que é um contraponto em relação à conclusão do
capítulo de Lythgoe.
Finalmente, o dossier temático deste número fecha com uma con-
tribuição especial. Ela consiste em dois breves testemunhos de duas
figuras muito importantes na difusão do pensamento de Ricœur em
língua portuguesa, e sobretudo no Brasil, país que, como dissemos,
acolheu em 2017 o congresso mais recente da ASIER. Ambos se
pronunciam sobre a importância e os traços específicos da filosofia
ricœuriana. O primeiro de entre eles é da autoria de Jeanne Marie
Gagnebin e foi recolhido por Patrícia Lavelle. Quanto ao segundo, foi
confiado a Claudio Reichert do Nascimento, a quem agradecemos a
permissão para o publicar aqui em acesso livre. Infelizmente, pouco
tempo após ter enviado esta contribuição, o Professor Japiassu dei-
41
xou de estar entre nós.79 Este breve testemunho reveste‑se, pois, de
particular importância, uma vez que não só condensa a sua opinião
sobre o grande legado de Paul Ricœur à filosofia contemporânea
como também terá sido, porventura, uma das últimas vezes que o
filósofo brasileiro se pronunciou sobre a obra de alguém que ele
tanto fez por honrar e difundir. Assim sendo, a esta homenagem
de Hilton Japiassu a Ricœur junta‑se a nossa, ao próprio Professor
Japiassu, que assim fica ligado ao início desta nova fase dos estudos
ricœurianos no espaço ibero‑americano.
A secção varia deste primeiro volume é composta por dois ca-
pítulos, o último dos quais uma recensão. O capítulo de Vinicius
Oliveira Sanfelice, intitulado “Esboço para uma dimensão estética
em Paul Ricœur” analisa a dimensão estética da obra ricœuriana
tomando como ponto de partida e modelo a sua teoria da imaginação
e, sobretudo, a teoria da metáfora. O autor destaca a centralidade da
questão da inovação semântica e do excesso de sentido na estética
ricœuriana, sublinhando o carácter inovador da imaginação poética.
Através deste tipo de imaginação, tal como aparece exemplificado
na metáfora, uma obra de arte é capaz de transformar a realidade.
Sanfelice assinala assim as possíveis ligações entre a poética ricœu-
riana e uma estética. Porém, construir estas ligações, elevá‑las a
algo que seja mais que um esboço, implica ainda, segundo o autor,
“tomar em amplitude a releitura do mundo‑da‑vida operada pela me-
42
taforização e testá‑la em outro vocabulário”. Ao escolher debruçar‑se
sobre este tópico, Sanfelice coloca‑nos na pista de uma das temáticas
– a imaginação e a metáfora – que, certamente, será explorada de
forma muito mais aturada no futuro, sobretudo tendo em conta a
publicação, que se espera para breve, do curso sobre a imaginação
(as Lectures on Imagination, proferidas em Chicago, nos anos 70), e
ao qual esta série dedicará certamente bastante atenção no futuro.
A secção varia termina com uma recensão, da autoria de Marcos
Alonso Fernández, ao livro editado por Tomás Domingo Moratalla
e Agustín Domingo Moratalla, intitulado Bioética y hermenéutica.
La ética deliberativa de Paul Ricœur, livro de atas de um congres-
so internacional que teve lugar em Valência em 2013, aquando do
Centenário de Ricœur.
43
L a h e r m e n é u t i c a e n E sp a ñ a : l a r e c e p c i ó n
de l a obra y pensamiento de Paul Ricœur
H e r m e n e u t i c s i n S pa i n : t h e r e c e p t i o n
o f P au l R i c œ u r ’ s t h i n k i n g a n d wo r k s
1 Francisco José García Lozano, Calle Neptuno 5, 18004 Granada, España. E‑mail:
[email protected]
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_1
Abstract: Hermeneutics in Spain begins to take form as a
result of the publication and translation of the Gadamer’s
work “Truth and Method” (Wahrheit und Methode) in the
1970s. After it, hermeneutics has been implemented gradu-
ally throughout the country by outstanding figures such as
Schökel, Lledó, Ortiz‑Osés or Panikkar, among others. Since
then the Spanish hermeneutical paradigm has not stopped to
be enriched with countless proposals. In this article we will
consider some of the main ideas generated by the Spanish
hermeneutics, focusing on the acceptation of Paul Ricœur’s
work and thought.
Keywords: philosophical hermeneutics; Paul Ricœur; Spanish
hermeneutics.
Introducción
46
la hermenéutica propone un método más afín a la realidad del
siglo xxi, en el sentido de que resulta más eficaz para abordar
problemáticas tales como la libertad de acción, la responsabili-
dad moral, la identidad, la individualidad, entre tantas otras. 4
Comprender e interpretar, para decirlo con Heidegger, más allá
de un instrumento específico de la filología o la historiografía,
constituyen nuestro propio modo de estar en el mundo, la esencia
de nuestra mundaneidad.
Que a lo largo de este proceso hasta los paradigmas filosóficos
de contornos más definidos hayan perdido su unidad interna es
cosa que resultaría difícil de negar. Entendida durante siglos como
interpretación normada de textos eminentes (teológicos, filológicos y
jurídicos), la hermenéutica no ha dejado de vivir también, desde su
revitalización por Dilthey, cuando menos, su propia explosión hasta
la gran obra de Hans‑Georg Gadamer, Verdad y método (1960), foco
de las realizaciones contemporáneas en el paradigma de la compren-
sión. La obra representa una inflexión lingüístico‑interpretativa en
el filosofar, que reclama sus tesis especialmente de Schleiermacher,
Dilthey y Heidegger. Al igual que Schleiermacher, Gadamer se pro-
pone elaborar una teoría universal del comprender y de los modos
todos de comprensión. Con ello la hermenéutica entra en el giro
lingüístico de la filosofía contemporánea.
En España tal giro llegaría relativamente tarde. Julián Marías,
uno de los grandes conocedores de la España del siglo pasado, de
su filosofía y creatividad cultural, exponía en los años sesenta un
47
certero diagnóstico de lo que había sido la filosofía española del
siglo xx :
48
La hermenéutica en España
49
En este texto contemplamos cómo uno de los pilares sobre los
que construye Ortega y Gasset su filosofía será la respuesta del pen-
samiento a la situación humana y vital del sujeto, constituyéndose
como uno de los ejes fundamentales de su ontología. Junto a esto,
la idea del “ser” que pone en juego Ortega y Gasset implica la no
aceptación de la realidad como objetiva, pero tampoco como una
proyección arbitraria de la subjetividad del sujeto. De esta manera
su epistemología se revela como una actividad hermenéutica, por un
lado, y su ontología como el resultado de esa praxis interpretativa.
Sin embargo, como señala Ortiz‑Osés, tendríamos que considerar
a Luis Alonso Schökel (1920‑1988) como el primer gran hermeneuta
español, que consideró todo su obra como un aporte hermenéutico,
bajo un tema específico: los textos literarios, cuyos muchos ejemplos
y apartados proceden del ámbito bíblico. Así explica su propia teoría
de la comprensión‑interpretación:
50
como teorización sobre la comprensión‑explicación e interpretación
de los textos literarios y una hermenéutica específica, la de los textos
bíblicos, en los que a partir del método histórico‑crítico se acercó
al tratado de la inspiración bíblica como forma de entroncar el tex-
to religioso y su explicación en el hecho del lenguaje y de la obra
literaria. Hay paralelismo y continuidad entre el cambio de la teoría
de la inspiración y el cambio de la teoría hermenéutica. Todos estos
aspectos son recogidos en una breve obra, Apuntes de hermenéutica,
donde destila lo más sintético de sus años de docencia.
Mención merece también la labor desarrollada por el catalán
Raimon Panikkar (1918‑2010) y su “filosofía comparativa”, donde el
término “comparar” se entiende como aquella actividad de la men-
te humana que toma una postura neutral con respecto a las cosas
comparables. Por lo que toda filosofía se considera una filosofía
comparativa en la medida en que ésta se compara a sí misma con
otras visiones filosóficas. Es el estudio filosófico de uno o algunos
problemas a la luz de más de una tradición. Desde este planteamien-
to, Panikkar desarrolla su particular hermenéutica, que denomina
“hermenéutica diatópica” que describe de la siguiente manera:
51
Busca, entre otras cosas, superar el círculo hermenéutico creado
por los límites de una sola cultura, esto es, la hermenéutica diató-
pica intenta poner en contacto horizontes humanos radicalmente
diferentes, tradiciones o lugares culturales (tópoi) diferentes, para
lograr un verdadero diálogo dialógico que tenga en cuenta las di-
ferentes culturas.
Un tercer baluarte de la filosofía hermenéutica española viene
representado por Emilio Lledó, cuya filosofía se sustenta, por una
parte, en la hermenéutica filosófica de H.‑G. Gadamer; por otra,
en el lenguaje como “energeia”; es decir, el lenguaje, como había
dicho con anterioridad el propio Heidegger, también “habla” (Die
sprachespricht). Lledó también cultiva con esmero las ideas de su
maestro: la concepción hermenéutica del lenguaje, la historicidad
de la comprensión, la pertenencia a una tradición, la rememoración
y el reconocimiento del pasado, etc. Lledó, lo mismo que Gadamer,
defiende la autonomía de la obra escrita en relación con su creador,
lo que implica, por una parte, abrir desde el tiempo silencioso de
lo escrito el otro tiempo de la escritura, que es el tiempo del lec-
tor. “El lógos escrito (lógosgegramménos), no es lógos si no recibe
el tiempo del lector”.10 De este modo se produce la apertura hacia
las infinitas formas de decir que determinan la finitud de nuestra
propia existencia y al mismo tiempo el diálogo infinito que el fu-
turo ofrece a los innumerables lectores. “Con la escritura – afirma
Lledó – la memoria alcanza un grado superior de intersubjetividad
que aquel que se manifiesta en el inmediato diálogo del hombre
con otro hombre, o del hombre consigo mismo”.11
Referencia obligada es la “ética hermenéutica impura” propuesta
por Jesús Conill. El autor sabe que una comprensión radical del ser
humano, como la que él intenta ofrecer, está siempre transida de la
52
dimensión ética y práctica. En este sentido estamos de acuerdo con
el profesor Conill cuando opina que
53
P. Ricœur, a partir de su concepción del simbolismo como mediación
entre la remitologización del sentido arcaico y su desmitologización
crítica, materiales imprescindibles para su filosofía simbólica: “El
sentido es la sutura simbólica de fisura real”,13 aforismo a partir del
cual Ortíz‑Osés reorienta simbólicamente su hermenéutica. Su tarea
se puede concebir así como una filosofía simbólica que plantea una
crítica profunda, al igual que hace P. Ricœur, al modelo ilustrado
racionalista occidental: “La filosofía occidental ha tergiversado el
amor a la sabiduría (simbólica) como un amor al ser (racionalístico).
Se impone así un tipo de saber no‑sapiencial, insipiente, funcional
y funcionarial, que se encuentra en la gran corriente ilustrada su
lumbre, lustre y lastre. Podríamos hablar de Filosofía simbólica, por
contraposición a la Filosofía racionalista oficial”.14
El interés de la filosofía ortiz‑osesiana está en haber planteado
la cuestión candente de la identidad personal y humana no de un
modo fundamentalista sino hermenéutico y abierto. Su proyecto
hermenéutico pretende una interpretación simbólica de la metafísica
clásica presidida por una serie de oposiciones (ser/devenir, acto/
potencia, sensible/inteligible, doxa/episteme, materia/forma, etc.) en
la que uno de los términos obtiene una valoración positiva y otro
queda cargado de connotaciones negativas. Pues bien, la tarea de
la hermenéutica simbólica cultivada por Ortiz‑Osés consiste preci-
samente en el intento de suturar (simbólicamente) esa herida real.
Una sutura que debe darse también en un plano antropológico, de
un “humanismo hermenéutico” en el que lo específico humano es la
interpretación simbólica que descentra al sujeto en virtud de lo que
consiente: “El hombre trata de remediar simbólicamente la propia
escisión producida por su misma aparición a través de un lenguaje
54
suturador. El lenguaje hermenéutico constituye ese espacio abierto
(celeste) del tiempo humano‑terrestre del sentido, el cual es más
que lo mentado: lo consentido”.15
Igualmente, Patxi Lanceros comparte la misma noción de herme-
néutica que Ortíz‑Osés, ya que comparece como la contextura “en la
que se constituye la verdad posible (parcial y episódica), dado que
el hombre y el mundo son, desde el punto de vista de las ciencias
de la cultura, conjuntos significativos, formas simbólicas o urdim-
bres de sentido, en los que co‑inciden interpretación y lenguaje”.16
Lanceros abre el camino para la concepción de un sistema que
dé cuenta de las relaciones, de las transiciones entre los diversos
ámbitos de la experiencia, sin poder aspirar a ninguna suerte de
cierre o clausura, sin poder de‑finirse o de‑terminarse. Una herme-
néutica del sentido que sea capaz de hallar una confluencia entre
las diferentes perspectivas, entre las diferentes miradas que pueden
posarse en el objeto real.
La obra de Lanceros, La herida trágica, parte igualmente desde
el planteamiento crítico que A. Ortiz‑Osés hace desde su filosofía
simbólica como sentido e implicación. Con ecos al “cogito herido”
ricœuriano, Lanceros ensaya una “Hermenéutica a la vez sim‑bólica
y dia‑bólica. Implicación, límite, herida trágica”. Cómo él mismo
señala: “La herida trágica se configura como lo abierto (Rilke), el
silencio (Hölderlin), la ausencia (Nietzsche). Es el espacio que hemos
identificado como el hay del peligro, o como realidad que deja ser
(y no‑ser) al manifestarse en (la) contradicción y, por lo tanto, al
sustraerse en cuanto plenitud o unidad”.17
55
Esta radicalidad ontológica de la herida impele a la búsqueda de
formas de sutura que, si nunca terminan de recomponer la unidad
rota, impliquen los fragmentos en dispersión. He aquí la función del
símbolo: “se pueda afirmar que, en un sentido radical, toda sutura
es simbólica y todo símbolo ha de ser comprendido como vínculo
o sutura”.18
Destacar, por último, otros proyectos como el realizado por Javier
Recas con su propuesta de reconstrucción de una nueva hermenéu-
tica crítica en clave de diálogo. Diálogo con Gadamer, obviamente,
por razones históricos y sistemáticas; diálogo con la gran tradición
hermenéutica; y, diálogo, finalmente, entre las distintas perspecti-
vas del criticismo hermenéutico. Una hermenéutica consciente de
la escisión entre lo patente y lo oculto, atendiendo a los síntomas,
inquisidora del sentido soterrado bajo las formas manifiestas; una
hermenéutica situada entre la hermenéutica de las tradiciones y la
crítica de las ideologías (la Ideologiekritik). Recas reconoce en la
nueva hermenéutica crítica contemporánea (Gadamer, Habermas,
Apel, Vattimo, Rorty, Derrida y Ricœur), que, a pesar de sus discre-
pancias, heterogeneidad y personalidad propias, “hay en la obra de
todos ellos una actitud común de profundización crítica respecto al
estándar ontofenomenológico de la hermenéutica tradicional, frente
al que reclaman el reconocimiento del potencial crítico inscrito en
todo otorgamiento de sentido, y la necesidad de una hermenéutica
profunda, de huellas y síntomas, frente a la mera recolección del
significado”19.
56
La recepción de la obra y pensamiento de P. Ricœur en
España 20
20 Para una información más detallada cfr. F. D. Vansina, Paul Ricœur. Bibliography
1935‑2008 (Lovaina: Leuven University Press, 2008).
21 M. Agís Villaverde, “Paul Ricœur en España”, en José Luis Mora García, Delia
Manzanero, Martín González, Xavier Agenjo Bullón (eds.). Crisis de la Modernidad
y Filosofías Ibéricas. X Jornadas Internacionales de Hispanismo Filosófico (Madrid:
Fundación Ignacio Larramendi, 2013), 481. El artículo de Agís Villaverde hace un
recorrido por las localizaciones geográficas más destacadas por las que ha pasado P.
Ricœur (Granada, Madrid, Cataluña, Santiago de Compostela y Galicia), y la huella
bibliográfica, principalmente colaboraciones en congresos, que ha dejado en ellas.
Para nuestro fin más interesante nos parece la aportación de Alfredo Martínez Sánchez
titulado “Recepción de Paul Ricœur en español: bibliografía en castellano”, en Ideas
y Valores 127 (2005): 73‑98. Este artículo nos permite reconstruir la introducción de
la obra de P. Ricœur desde 1969, la primera traducción, hasta 2003.
57
guientes pensadores, podríamos señalar diversos campos típicamente
ricœurianos trabajados desde el pensamiento español:
58
La cuestión de la temporalidad/narratividad ha sido tema-
tizada exhaustivamente por Mariano Peñalver, 31 Ángel
Gabilondo 32 y Gabriel Aranzueque; 33
Aportaciones a la hermenéutica simbólico/religiosa podemos
encontrarlas en la labor de Jesús E. Albertos34 o Jorge Pérez
de Tudela y Velasco, 35 entre otros;
La hermenéutica de la acción ha sido trabajada por Francisco
José García Lozano; 36
Sobre la temática de hermenéutica y justicia ha trabaja-
do profusamente Xavier Etxebarría Mauleón 37 y Teresa
Picontó. 38
59
Aranguren hace una breve presentación del pensamiento de Ricœur
resaltando, precisamente, el vacío existente en nuestro país de un
pensador tan relevante en el ámbito europeo: “Considero un gran
acierto editorial la traducción de este bello libro, de tan claro in-
terés interdisciplinar, que apareció en Francia va para diez años,
y cuyo autor es relativamente poco conocido en nuestro país”. En
esta breve presentación para el público español, Aranguren sitúa
las raíces del pensamiento de Ricœur en Merleau‑Ponty, Gabriel
Marcel y Karl Jaspers, definiéndolo como el pensador más abierto y
razonable de Francia y considerándolo una referencia obligada para
el diálogo de la teología, la antropología y, en general, la filosofía.
Anteriormente sólo teníamos alguna recensión de dicha obra en
algunas publicaciones españolas como la de M. Mindán (1954) o B.
Waldenfels (1965).
Tras la traducción de esta obra de P. Ricœur, Finitud y culpa-
bilidad, empezarán a publicarse algunos acercamientos de los que
solamente citamos algunos, a modo de ejemplo, para hacer ver la
repercusión y recepción de su obra en los años sucesivos:
60
Sin embargo, una de las primeras reflexiones sistemáticas en
torno al pensamiento de P. Ricœur fue la abordada en los años 70
por Mariano Peñalver en su obra La búsqueda del sentido en el
pensamiento de Paul Ricœur (1978). Como señala Peñalver, Ricœur
se propuso elaborar una poética de las experiencias de creación y
recreación, poética que constituiría una verdadera filosofía de la
Trascendencia. La poética como disciplina descriptiva que es alude,
tal como lo indica su raíz griega (fabricación de algo que resulta
ser diferente de su autor), al carácter productivo de algunos tipos
de discurso (sin distinguir entre prosa y poesía) y también del sim-
bolismo. Ricœur reconoce en los símbolos una singular potencia
de invención o creación, es decir, de producción de sentido, la cual
implica a su vez una función heurística, que es un poder de descu-
brimiento o invención de rasgos inéditos de la realidad, de aspectos
inauditos del mundo, pero cuya fuente sigue ubicándose en la forma
del pensar: “La forma de pensar puede así comprenderse como la
superabundancia de sentido que excede su desarrollo al contenido
pensado determinado (suscitado, alimentado) por su carácter ori-
ginario, por su entorno histórico”.39 De hecho, podríamos definir
como de optimismo ilustrado la conclusión de M. Peñalver: “Porque
sólo bajo la forma del pensamiento abierto un sentido puede darse
a los otros”.40
En otro sentido, M. Peñalver ha abordado la filosofía de Ricœur
desde lo que ha denominado “pensamiento de la intersección”, que
es aquel “que situándose entre el pensamiento de la recolección (al
modo de Gadamer) y el pensamiento del a diseminación (al modo
de Derrida), nos ofrece y nos hace habitar aquellas encrucijadas
61
donde se sitúan los conflictos y perplejidades”.41 Un pensamiento
de intersección que se desarrolla a un doble nivel. A un “nivel dia-
lógico”, es decir, en relación de posición del discurso respecto a los
otros discursos, como a un “nivel dianoético”, es decir, en proceso
mismo de constitución de sí mismo. Un “nivel dialógico” que apunta
hacia el “entreambos”, que “es el modo de pensar hermenéutico que
punta a un inédito cuya conexión con los discursos ya formulados
no consiste en recoger lo mínimo común entre ellos sino en la
búsqueda simultánea de la distancia (el entre) y el de la fusión (el
ambos), es decir, del lugar desde donde puedan ser pensadas sin
contradicción la diferencia y la conciliación”.
A un “nivel dianoético”, esto es, lo concerniente al movimiento
que adopta un pensar en la efectuación de su despliegue como dis-
curso, se configura como un “desde‑hacia”, donde “el término desde
contiene una idea de origen, de procedencia, y el término hacia una
idea de dirección de un movimiento respecto al punto al que se abre.
Ambos términos apuntan a la actualidad de un ya donde se encierra
el contenido semántico de lo originario y de lo futuro”.42
Ricœur reconoce que este segundo nivel ha sido sobre el que más
ha incidido y el que más productivo se le ha revelado: “Está muy
claro que es este segundo nivel el que más ha atraído mi atención,
aunque lo que se dijo del primero no carezca de interés”.43
La preocupación por la ontología es constante en la obra de
Ricœur y, de hecho, es una de las cuestiones que más reflexión ha
generado en su recepción dentro del panorama hispánico. Por ceñir
nuestro tema nos centraremos en la recepción y reflexión llevada a
cabo por Manuel Maceiras y Juan Manuel Navarro Cordón.
62
Según Manuel Maceiras, en “Paul Ricœur: una ontología militan-
te”, en la obra de Ricœur encontramos una “intención ontológica que
desea alcanzar el ser del yo, entendido como primera persona”,44
preocupación ontológica que responde “a una convicción igualmente
ontológica”. Maceiras identifica algunos presupuestos básicos de la
filosofía de Ricœur, que marcan su planteamiento de la ontología;
el primero es la convicción de que el yo es “acto más que forma,
afirmación viva”,45 esto es, no es posible la intuición del yo por sí
mismo: reflexión e intuición no se identifican. Toda reflexión es
hermenéutica, lo que significa que toda identidad del yo queda
pendiente de la interpretación: ser es igual a “ser interpretado”. De
todo ello se deriva lo siguiente: ya que no es posible una hermenéu-
tica única y universal, sino que son varios los posibles caminos de
interpretación, sólo es posible lo que Maceiras llama una “ontología
militante”, no separada, contingente e incluso revocable. Sería una
ontología fragmentaria, pues ella va haciendo aparecer aspectos rea-
les pero siempre parciales del ser. Por último, el símbolo adquiere
una significación ontológica, pues sólo siguiendo la intencionalidad
del símbolo podemos acceder a parcelas de lo real.
Según el artículo de Maceiras, la obra de Ricœur es, por medio
de una gran complejidad temática, un desarrollo coherente de estos
presupuestos. Se refiere en primer lugar al proyecto de la filosofía
de la voluntad, que Ricœur lleva a cabo parcialmente: a la eidética
corresponde Le volontaire et l´ involontaire; de la empírica no tene-
mos más que la introducción en El hombre lábil y en La simbólica
del mal; finalmente, la poética concluiría la ontología del sujeto, “con
un nuevo cambio de método, ya que incluiría la trascendencia”46 .
63
Poética, señala Maceiras, que está implícita, por ejemplo, en La me-
táfora viva y en Tiempo y narración, pero siempre en el contexto
fundamental de una “ontología militante o identificación del sujeto
a través de los signos”.47
Maceiras señala cómo también en la confrontación de Ricœur con
el estructuralismo aparece la búsqueda ontológica, en su insistencia
de romper la cerrazón del lenguajes sobre sí mismo y de abrirse al
ser del lenguaje. Esta vehemencia ontológica se prolonga no sólo en
sus estudios sobre la metáfora y la narración, sino en sus trabajos
sobre el lenguaje bíblico.
A la interpretación de Maceiras, Ricœur responde ratificando la
tesis de la imposibilidad del acceso directo al yo, tesis que marca
el distanciamiento con respecto a la filosofía existencial. Ricœur
mismo matiza su ontología iniciática al señalar en Sí mismo como
otro, cómo el acceso indirecto del yo queda subrayado pro el paso
del vocabulario del “yo” al vocabulario del “sí” reflexivo y en donde
desarrolla la tesis de la atestación como el modo epistemológico
apropiado para acercarse a la ontología del sí.
Igualmente Ricœur da la razón a Maceiras cuando este relaciona
la “afirmación originaria”, el acto de ser del yo, con el conatus de
la Ética de Spinoza y el appetitus de la Monadología de Leibniz, y
sugiere que es por medio de estos dos filósofos “como nos es posible
quizá reactualizar esta parte de la ontología aristotélica que no está
captada en la teoría de la sustancia sino que marca la independencia
de la significación acto‑potencia por relación a la serie de categorías
que gravitan en torno a la sustancia”.48
Otra aproximación a la ontología ricœuriana la encontramos en lo
que podemos llamar la “ontología de la libertad”. En esta línea está
escrito el artículo “Existencia y libertad: sobre la matriz ontológica
47 Ibíd., 56.
48 Ibíd., 72.
64
del pensamiento de P. Ricœur”, de Juan Manuel Navarro Cordón; el
autor sostiene la tesis de una “matriz ontológica” en la que puede
encontrarse el hilo conductor y la clave última de la variada y plural
temática de la obra de Ricœur, articulándola en torno a los temas
de “existencia y libertad”, es decir, “un sujeto que es existencia y
se sabe y actúa como libertad”.49
Navarro Cordón señala una estrecha circularidad entre reflexión,
existencia y libertad; a partir de aquí, identifica en las obras de
Ricœur, sobre todo hasta la década de los setenta, una serie de te-
mas ontológicos: el esfuerzo y el deseo de ser que expresan la “falla
existencial” de la que habla en Finitud y culpabilidad, el lenguaje
en el que se expresa ese deseo de ser, el sentimiento “que me une
a las cosas, a los seres, al ser”, la desproporción entre finitud e in-
finitud que “constituye el lugar ontológico entre el ser y la nada” y,
finalmente y sobre todo, la libertad como modo de ser en el “acto”
de existir, ya que es el originario y fundamental.
En su respuesta a Navarro Cordón, Ricœur empieza por recono-
cer que “siempre me sentí intimidado por la cuestión ontológica,
siendo por otro lado muy consciente de su urgencia”, recurriendo
a una imagen bíblica para referirse a su postura ante la ontología:
“A veces se me ocurrió escribir que mi filosofía se dirigía quizá al
umbral de la ontología pero sin franquearlo, como un Moisés, al
que se le prohíbe entrar en la tierra prometida”.50 Al igual que con
Maceiras, Ricœur apunta al paso del yo‑soy al sí‑mismo como la
expresión correcta que mejor recoge todas las personas gramatica-
les y que permite el paso del ¿quién habla? al ¿quién obra?, ¿quién
hace memoria?..., en sí, “la búsqueda de un sujeto de imputación y
responsabilidad”51, reconociendo incluso un “retroceso” en La me-
49 Ibíd., 150.
50 Ibíd., 188.
51 Ibíd., 192.
65
táfora viva y Tiempo y narración con respecto a las afirmaciones
ontológicas de sus trabajos anteriores.
Sin embargo, señala en este ámbito tres puntos de su filosofía
en los que no ha hecho ninguna concesión: la subordinación de la
conciencia a la posición en el ser del sujeto mismo, la subordinación
del lenguaje al ser‑dicho que lo convoca, la convicción de que el
ser que somos es tanto esfuerzo (afirmación), como deseo (ausencia,
falta, ausencia). Estas tres convicciones se resumen en la fórmula
que afirma el primado del yo soy sobre el yo pienso.
En la trayectoria del pensamiento filosófico de Ricœur, el paso
de la década de los sesenta a la década de los años setenta supone
un viraje importante en su propia concepción de la hermenéutica,
el concepto de “palabra” o “discurso” reemplaza paradigmáticamente
al de símbolo, efectuando un importante ensanche hermenéutico en
su propia concepción filosófica. Frente a este cambio hermenéutico
se han dado posturas encontradas y contrarias, dos acercamientos
importantes, uno a favor de la tesis de la ruptura, Tomás Calvo, y
otro en contra, José Mª. Rubio Ferreres, vienen a sintetizar el debate
que se generó en su momento.
La teoría del texto supone por una parte la salida del psicologismo
de la hermenéutica tradicional y, por otra, el paso a la textualidad
como clave hermenéutica permite tomar al texto como modelo a
aplicar a otros campos de la filosofía y de las ciencias humanas tales
como el campo de la ciencia histórica o de la reflexión ética bajo el
prisma de la acción intencionada. Todo ello hace postular a Tomás
Calvo el concepto de “ruptura” en la reflexión filosófica de P. Ricœur
y la apertura de un horizonte teórico sustancialmente nuevo: “creo,
en primer lugar, que el cambio que va del símbolo al texto compor-
ta una transformación radical de la concepción de la hermenéutica
y no un mero ensanchamiento o ampliación del objeto de ésta”.52
52 Ibíd., 128.
66
Tomás Calvo señala cómo Ricœur, en su confrontación con el
estructuralismo, lo aborda desde sus mismas claves, esto es, desde
la oposición sistema‑acontecimiento y lengua‑discurso. Sin embargo,
la introducción en el concepto de discurso de la distinción “discurso
hablado‑discurso escrito” es lo que obliga a Ricœur a la subsiguiente
ruptura en su concepto hermenéutico:
53 Ibíd., 132.
54 Ibíd., 142.
67
significación: el sentido y la referencia del discurso, el decir algo y
hablar sobre algo. El discurso como acto del habla puede pasar a la
escritura. Para Ricœur este paso a la escritura no es simplemente la
fijación material de la palabra viva, sino más bien el establecimiento
de una relación específica con las cosas dichas: “Me parece que el
problema se origina en la dificultad que hay en ordenar correcta-
mente, en el interior mismo del discurso, el componente léxico,
digamos la palabra, y el componente sintáctico, digamos la frase, y
más allá de ella, la propia discursividad”.55
Ricœur se limita a la exposición, pero no entra a discutir la
tesis de T. Calvo, por la razón de que, aunque no lo afirme directa-
mente, ubica tal problemática en un momento anterior a la teórica
bifurcación de las dos hermenéuticas. Desde su talante conciliador
difícilmente Ricœur aceptaría el concepto de “ruptura” que postula
T. Calvo, sin embargo sí aceptaría una cierta “discontinuidad” que
no entraría en contradicción con lo postulado por T. Calvo: “Ninguna
de mis observaciones contradice la tesis de Tomás Calvo sobre la
discontinuidad entre la hermenéutica de los símbolos y la herme-
néutica del texto. Pretenden solamente situar esta discontinuidad
en el segundo plano de problemas previos a la bifurcación entre
las dos hermenéuticas”.56
José Mª. Rubio Ferreres parte de la misma constatación que Tomás
Calvo, un viraje en el planteamiento hermenéutico de P. Ricœur, aun-
que con derivaciones distintas. El mismo José Mª. Rubio se muestra
taxativo en su planteamiento: “El principal motivo, a nuestro juicio,
de este cambio de insistencia – subrayamos “cambio de insistencia”
puesto que nos oponemos a la tesis de la “ruptura” del pensamiento
55 Ibíd., 142.
56 Ibíd., 144.
68
de Ricœur – fue la toma de conciencia, cada vez más clara, del ca-
rácter lingüístico de la experiencia humana”.57
De hecho, José Mª. Rubio Ferreres localiza en la relación “lenguaje
‑experiencia humana‑realidad” el eje central del pensamiento de
Ricœur. Para Rubio Ferreres estamos siempre ante un problema de
lenguaje, y así lo constata en el mismo Ricœur, ya que desde el
principio lo que intenta Ricœur es injertar la filosofía lingüística en
la fenomenología, es decir, estamos ante el hecho de la creatividad
semántica del lenguaje, hecho marcado por la ambigüedad y por el
doble sentido. La hermenéutica es para Ricœur una filosofía de la
interpretación cuyo objeto fundamental es la palabra, palabra que es
potencia, que tiene el poder de desplegar el ser nuevo que anuncia.
Para poder desplegar ese ser nuevo, la palabra se sirve del sistema
de signos que conforma el lenguaje. El lenguaje es la estructura que
permanece independiente de quien habla, es una mediación, un vehí-
culo que nos permite dirigirnos hacia la realidad. Sin embargo, para
que el lenguaje alcance toda su riqueza necesita el acto del habla, si
no permanece estructura, permanece simplemente como instrumento.
Rubio Ferreres desarrolla, a colación de la reflexión misma de
P. Ricœur, una “hermenéutica del lenguaje religioso” centrando su
análisis en cómo P. Ricœur introduce la cuestión hermenéutica en
una reflexión filosófica sobre el discurso o texto religioso: “Partimos
de la tesis, según la cual, el lenguaje religioso, en tanto lenguaje
poético o metafórico, es un ‘discurso ficticio’, aunque no despro-
visto de ‘referencia veritativa’, según hemos afirmado antes. ¿Qué
significa esto? Que en el discurso religioso, como en cualquier otro
discurso, es pro‑puesta siempre la cosa o mundo del texto a través
de las distintas formas de discurso”58 .
57 Ibíd., 219.
58 Ibíd., 227.
69
En la hermenéutica religiosa de Ricœur, lo Sagrado permanece
como manifestación anticipadora, pero que aún no poseemos, in
fieri, sobre la que se hace necesaria una hermenéutica crítica para
con caer en ideologías, bajo un nuevo precepto que recogerá en La
simbólica del mal: “Hay que comprender para creer y hay que creer
para comprender”.
Ricœur reconoce lo ejemplar y clarificador de la propuesta de
José Mª. Rubio que ha sabido llevar sus propuestas lingüísticas hasta
sus últimas consecuencias: “Lleva lo más lejos posible la exploración
de las fuentes del lenguaje, que el fenómeno religioso maneja y la
hermenéutica filosófica explora. Vuelve a encontrar en la dialéctica
entre manifestación (de lo sagrado) y proclamación (del kerygma)
una estructura hermenéutica comparable a la que gobierna la re-
lación entre símbolo y metáfora. Este acercamiento es sin duda
muy clarificador”.59
Juan Masiá ha calificado el proyecto filosófico de P. Ricœur como
“el arte de la mediación”, un arte de la mediación entre “existencia y
razón”, “comprensión y explicación”, “ficción y realidad”, “tiempo y
eternidad”, “heteronomía y autonomía” y entre “filosofía y teología”:
“Ricœur es el filósofo de la mediación por excelencia. Conjuga lo
francés, lo alemán, lo anglosajón. Acepta y critica lo existencial, lo
fenomenológico, lo hermenéutico”60. La postulación de lo humano
como animal hermenéutico transido e interpretado a través de sig-
nos, símbolos y textos.
Masiá resume la trayectoria filosófica de Ricœur bajo la fórmula:
“del deseo de narrar a la narración del deseo”. Un “deseo de narrar”
que nos remite al tema de su filosofía de la voluntad: desemboca en
la hermenéutica de los símbolos y acaba confrontando el conflicto
59 Ibíd., 245.
60 J. Masiá Clavel y T. Domingo Moratalla, Lecturas de Paul Ricœur (Madrid:
Universidad Pontificia de Comillas, 1998), 7.
70
con las diversas hermenéuticas. Un “deseo de narrar” que se desdobla
en un primer periodo (Lo voluntario y lo involuntario, 1950; Finitud
y culpabilidad, 1960) y un segundo periodo (Sobre Freud, 1965; El
conflicto de las interpretaciones, 1969), que son reflejo de las dos
caras de su hermenéutica: “una esperanzada y otra angustiada, una
sugeridora y otra cuestionadora, una que redescubre los símbolos
y otra que destruye los símbolos”. 61
En los años 70 y 80 Ricœur proyecta y desarrolla, según Masiá, la
segunda parte del lema citado: del “deseo de narrar” a la “narración
del deseo”. Aquí será la narración la portadora y configuradora del
deseo. Dos son las obras claves: La metáfora viva (1975) y Tiempo
y narración (1983‑85). “Del deseo de narrar a la narración del de-
seo” es la fórmula con la que Masiá condensa la clave del estilo de
filosofar de Ricœur: el arte de la mediación, de tender puentes y
derribar fronteras.
Igualmente importante es el trabajo realizado por Tomás Domingo
Moratalla. Tomás Domingo en su tesis doctoral, Creatividad, ética
y ontología. La fenomenología hermenéutica de Paul Ricœur, ya
abordó la totalidad de la obra de Ricœur bajo la óptica de lo que
ha denominado como “fenomenología poética”. Con ello Domingo
Moratalla quiere indicar que la hermenéutica de Ricœur es una her-
menéutica fenomenológico‑reflexiva cuya pretensión es recuperar el
ser del yo (nivel ontológico) en las producciones en que éste muestra
su efectividad (nivel lingüístico‑hermenéutico) a través, siempre, del
trabajo del concepto (nivel metodológico). Todo ello es, en el fondo,
una tarea ética que pide por parte del sujeto responsabilidad: “Este
recorrido es el que quiero indicar con la expresión fenomenología
poética: la palabra poética crea, inventa, y así, al crear, descubre la
realidad en y por un ser que es imaginación y posibilidad; realidad
61 Ibíd., 11.
71
siempre finita, y también, por la acción del habitar poético, siempre
abierta”. 62
Desde esta “fenomenología poética”, Ricœur aborda los tres hitos
sobre los que ha desarrollado su reflexión: el “yo”, que se correspon-
dería con el momento reflexivo, el “Mundo”, donde ha desarrollado
su idea de referencia, refiguración e iniciativa en el mundo, y el
“Otro” como constitutivo de mi ipseidad. Yo‑Mundo‑Otro como cons-
titutivos del triángulo hermenéutico de la experiencia. Ciertamente,
Ricœur no ha de dejado de insistir continuamente que el objetivo
último de la filosofía es comprender la experiencia humana, en su
amplitud y complejidad.
Conclusiones
62 Ibíd., 127.
63 Ibíd., 129.
72
pensamiento hermenéutico y su pertenencia en la actualidad hasta
hoy. Lo constitutivo de la hermenéutica es su estar diseminada en
esa pluralidad de mediaciones.
La hermenéutica es la filosofía de los nuevos tiempos, dice acer-
tadamente Vattimo. La hermenéutica es ejercicio cotidiano, siempre
problemático, atento a las dinámicas del mundo contemporáneo y
sus problemáticas. Era necesario y pertinente, por lo tanto, un aná-
lisis de la recepción de la hermenéutica en el panorama hispánico
y sus principales rostros.
A pesar de la tardía recepción de la hermenéutica, en su sen-
tido más restringido y usual, caracterizada por el pensamiento de
autores como Hans‑Georg Gadamer (1900‑2002) y Paul Ricœur (1913
‑2005), podemos hacer un balance muy positivo de la recepción de la
hermenéutica en España. Todas las visiones que hemos recorrido, ne-
cesariamente parciales, configuran el rostro de la hermenéutica hoy.
Las obras y autores citados en este capítulo son complementarios
y convergentes con las obras sobre hermenéutica filosófica publica-
do en los últimos años en el ámbito hispánico. En primer lugar, el
libro editado por J. J. Acero, J. A. Nicolás, J. A. Pérez Tapias, L. Sáez
J. F. Zúñiga, El legado de Gadamer (2004) que recoge las actas del
Congreso Internacional sobre Hermenéutica Filosófica que tuvo lugar
en dicha ciudad entre el 10 y el 12 de diciembre de 2003 es un buen
ejemplo de ello, que junto a las actas del Symposium Internacional
sobre el pensamiento filosófico de Paul Ricoeur, Paul Ricoeur: los
caminos de la interpretación (1991), constituyen una panorámica casi
completa de la recepción de la hermenéutica filosófica en España.
En segundo lugar, los números monográficos de revistas dedi-
cados a la hermenéutica filosófica no han dejado de sucederse (en
la revista Diálogo Filosófico 61, 2005, Endoxa 20, 2005, Estudios
Filosóficos 156, 2005), al igual que constantes homenajes y congresos
tras el fallecimiento de Paul Ricœur (Hermenéutica y responsabi-
lidad. Homenaje a Paul Ricœur, 2005; II Seminario Internacional:
73
Centenario Paul Ricœur: tiempo, dolor y justicia, organizado por
la UNED, 2013).
Aunque sin duda hemos de resaltar de entre todos el trabajo
coordinado por A. Ortíz‑Osés y P. Lanceros con su Diccionario de
hermenéutica. Una obra interdisciplinar para las ciencias huma-
nas (2004) y Claves de hermenéutica. Para la filosofía, la cultura
y la sociedad (2005), continuación de la anterior. La edición del
Diccionario de hermenéutica constituye un acontecimiento cultural
digno de mención por dos motivos, en primer lugar, por su novedad
no sólo en el ámbito de lengua castellana sino a nivel mundial, y en
segundo lugar, por la atinada selección de conceptos así como por
los especialistas que los elaboran resultando un trabajo de calidad
manifiesta. Igualmente Claves de Hermenéutica: para la filosofía,
la cultura y la sociedad, es una obra colectiva en la que un con-
junto de especialistas de relevancia nacional e internacional en las
distintas áreas del conocimiento articula respuestas diversas a esos
nuevos retos y a esos nuevos riesgos, replanteando las cuestiones
candentes en torno al sentido en la postmodernidad. En la senda
del Diccionario de Hermenéutica, estas Claves pretenden ofrecer
pautas de interpretación y comprensión, presentándose como pro-
puesta múltiple y abierta. Como respuesta plural a los diferentes
temas y problemas que se plantean en un mundo a la vez unificado
y conflictivo.
Concluimos, sin voluntad de clausura, esta aproximación en la
que la diversidad de voces, armonizan positivamente en un legado
hermenéutico que se va elevando poco a poco, y sigue haciéndolo,
en el horizonte de la reflexión española. Son muchas las aporta-
ciones que quedan fuera, pero nada se cierra aquí, los intersticios,
huecos e involuntarias omisiones son oportunidades para crecer
en el diálogo y ampliar horizontes de reflexión. En hermenéutica
nada se cierra definitivamente y esta aportación queda totalmente
74
abierta, pues como señala Gadamer, mala hermenéutica es aquella
que quiere quedarse con la última palabra.
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A receção do pensamento histórico de
Ricœur na historiografia portuguesa:
F át i m a B o n i fác i o e F e r n a n d o C at r o g a
T h e r e c e p t i o n o f R i c œ u r ’ s h i s t o r i ca l t h o u g h t
i n P o rt u g u e s e h i s t o r i o g r a p h y : F át i m a B o n i fác i o
a n d F e r na n d o C at ro g a
Martinho Soares
Univ. Católica do Porto/CECH, Univ. de Coimbra 1
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_2
Fátima Bonifácio Apologia da História Política. A historiadora
socorre‑se da obra Temps et Récit sobretudo para escorar a sua
apologia da história política. Independentemente da legitimida-
de da sua opção historiográfica, denotamos uma leitura parcial
e conveniente. A terceira secção é dedicada à assimilação e
transmissão do pensamento histórico ricœuriano em várias
obras e artigos de teoria histórica da autoria de Fernando
Catroga, leitor assíduo do filósofo francês. Concluímos con-
frontando a forma como os dois autores recebem e empregam
a hermenêutica histórica de Paul Ricœur.
Palavras‑chave: Fátima Bonifácio; Fernando Catroga; história;
narrativa; Ricœur.
80
We conclude by comparing the way the two authors receive
and employ Paul Ricœur’s historical hermeneutics.
Keywords: Fátima Bonifácio; Fernando Catroga; history; nar-
rative; Ricœur.
Introdução
81
não mesmo repudiado, pelas grandes correntes historiográficas do
século xx , incluindo no nosso país, e pugnar pela sua reabilitação.
Falamos obviamente da história política ou factual, que ocupou
quase todo o campo da historiografia até às primeiras décadas do
século xx . Fernando Catroga, porque soma ao ofício de historiador
o de pensador e teorizador da ciência histórica, por via da sua fun-
ção de docente, tendo publicado vários livros sobre esta matéria.
Como historiador, está mais próximo da Nova História francesa e
do estudo das Ideias, embora não despreze nas suas investigações
o facto político ou o modo narrativo, podendo, em coerência com a
dialética ricœuriana, articular acontecimentos breves com estruturas
de longa duração, para descrever, por exemplo, os costumes sociais
relacionados com o culto tanatológico.3
Sobre a receção do pensamento e da obra de Paul Ricœur em
Portugal, podemos dizer que não se fica atrás da de outros grandes
filósofos da contemporaneidade, merecendo uma atenção considerá-
vel quer por parte da comunidade académica e científica portuguesa
quer por parte do público instruído. Para isso concorre, grande-
mente, o facto de a sua obra ser extensa e polimática, fruto dos
múltiplos diálogos que o filósofo foi capaz de estabelecer com outras
ciências humanas e sociais. De facto, as teses de Ricœur encontram
hoje admiradores em áreas do saber tão diversas, ou afinal tão com-
plementares, como a Filosofia, o Direito, os Estudos Literários, a
Psicologia e a Psicanálise, a História, a Teologia, a Ética e a Bioética,
entre outras. Curiosamente, com uma pluralidade de assuntos tão
profícua e ampla, um dos temas que menos eco tem tido na comuni-
dade lusa é justamente o da hermenêutica histórica;4 isto a despeito
82
de o filósofo, como adiante veremos, ter dado a esta questão um
lugar de não pouca relevância, como se pode comprovar pela biblio-
grafia publicada. Pensamos que os motivos desta fraca adesão estão
justamente relacionados com a escassa produção epistemológica
que acima denunciámos. Por força desta omissão, ganham ainda
mais importância os preciosos contributos de Bonifácio e Catroga,
que aqui nos propomos analisar, com a vantagem de serem ambos
assimiladores da hermenêutica ricœuriana.
Ricœur e Tucídides. (Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014). Ainda dentro
desta temática, temos proferido diversas comunicações e publicámos: «Ekphrasis e
enargeia na historiografia de Tucídides e no pensamento filosófico de Paul Ricœur»,
Talia Dixit 6 (2011). http://www1.unex.es/arengas/taliadixit6.htm
5 Roger Chartier, “Le passé au présent”, in Le Débat 122 (2002): 4. Sobre o im-
pacto das teses de Ricœur na historiografia francesa veja‑se C. Delacroix, F. Dosse,
P. Garcia, Les courants historiques en France, (Paris: Gallimard, 2007), 587‑588.
83
narrativismo e o estruturalismo, o positivismo lógico, o negacio-
nismo. É inegável que a história ocupa um lugar de destaque na
economia do pensamento ricœuriano. Para além de significativo
número de artigos e ensaios, contam‑se cinco obras com a herme-
nêutica histórica em destaque: Histoire et vérité (1955), Temps et récit
I e III (1983 e 1985), Du texte à l’action: Essais d’herméneutique II
(1986), La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000).
Numa entrevista publicada na revista Esprit, em 1981, pouco
antes do lançamento do primeiro volume de Temps et récit, Paul
Ricœur justifica a sua opção pela história com três razões de ordem
essencial e várias de ordem técnica. 6
Em primeiro lugar, considera que não é possível uma filosofia
sem diálogo com as ciências humanas e que a história ocupa um
lugar fundamental no concerto das ciências humanas. Em seguida,
afirma que não há conhecimento de si que não se efetue através
do desvio por sinais, símbolos e obras culturais; entre estas obras
culturais encontram‑se de forma permanente as histórias que con-
tamos e que o historiador escreve. Por fim, sublinha a necessidade
de preservar a diversidade das formas de linguagem existentes – a
Ricœur interessava, sobretudo, nesta altura, o caráter narrativo do
ato de contar histórias, em ordem a uma poética do tempo.
As razões de ordem técnica prendem‑se com várias questões in-
terligadas. Desde logo, o desejo de superar a subdivisão paradoxal
do ato de narrar entre história e ficção. Não haverá um fator de con-
vergência, de unidade? Para Ricœur, a intriga é o elemento comum
que une os dois géneros narrativos. Em segundo lugar, pareceu‑lhe
que este ato narrativo unificador tem uma relação privilegiada com
a experiência humana do tempo, porquanto esta não é redutível ao
tempo cronológico marcado pelos relógios. Daqui surge a bifurcação
84
entre tempo cronológico e tempo histórico; se o segundo é o meio
através do qual nós narramos, conclui‑se o seguinte: “O caráter nar-
rativo da experiência do tempo seria pois uma espécie de teste para
articular filosoficamente a estrutura do tempo, o que sempre foi tido
como um dos grandes problemas da filosofia”.7 Contra a opacidade
e mudez da experiência temporal, Ricœur propõe a loquacidade da
narrativa, que serve como uma “espécie de janela aberta sobre o
que é o tempo humano”. 8
Finalmente, há ainda razões de uma terceira ordem, secundá-
rias do ponto de vista filosófico mas centrais do ponto de vista das
suas convicções pessoais. Ricœur recorda “o caráter essencialmente
narrativo da fé bíblica, que, antes de se exprimir em dogmas, em
expressões abstratas sobre Deus, se apoia em histórias contadas:
a história do Êxodo, a história da Crucificação e da Ressurreição,
a história do Pentecostes, da Igreja primitiva …”.9 O ato narrativo
possui, por conseguinte, uma dimensão religiosa que poderá estar
relacionada com o potencial da narrativa para estruturar o tempo.
Todavia, antes desta dimensão religiosa, existe uma dimensão ética
na narrativa. Nenhuma existência pode viver sem história, nenhuma
consciência humana é autotransparente ou autoposicional, porque
toda a experiência está imbuída de temporalidade, e ninguém se
pode conhecer a si próprio sem ser por intermédio das narrativas
que conta sobre si, o que leva a falar de uma função identitária
pessoal e comunitária da narrativa.10
85
Talvez não seja possível identificar um tema que possa unificar
a ampla e heterogénea bibliografia ricœuriana sobre a temática
histórica, que conta com as obras axiais já referidas e uma panó-
plia de artigos, comunicações, entrevistas e ensaios dispersos por
revistas, livros, enciclopédias e atas de colóquios. No âmbito da re-
flexão epistemológica, um dos tópicos mais recorrentes é a dialética
explicação‑compreensão, sob a qual se discute a relação da história
com a ciência e a narrativa, e daí com o tempo, a memória e a ficção.
Na área da reflexão hermenêutica, da ontologia e da filosofia da his-
tória, os escritos de Paul Ricœur versam sobre o sentido da história,
da consciência histórica e da condição histórica do homem, da me-
mória e do esquecimento. No entanto, parece‑nos que a preocupação
maior do autor nesta matéria como, de um modo geral, em toda a
sua produção filosófica tem como cerne a compreensão do homem
no seu meio a partir da sua ação: o que é o homem, o que (e de
que forma) as “praxeis” culturais humanas (muito particularmente as
mediadas pela linguagem simbólica‑metafórica‑narrativa) nos podem
revelar acerca do agente e do paciente humano? Em última análise,
é sempre o mistério do homem temporal, agente, falível e sofredor
que o filósofo procura iluminar através da análise semântica dos
elos simbólicos que medeiam a nossa relação com o mundo e con-
nosco próprios. Neste processo interpretativo, as narrativas ocupam
um lugar cimeiro: a narrativa diz de forma indireta (poética), mas
significativa, o homem concreto e a realidade que o envolve. Ricœur
parte da constatação de que o homem vive enredado em histórias,
procura conhecer‑se e dar‑se a conhecer através delas.
Compreende‑se, pois, que a história – sendo, de um modo espe-
cífico, uma narrativa e, além do mais, uma narrativa que visa relatar
factos verdadeiros, comprováveis – ocupe um lugar central nesta
et, bien entendu aussi, par les interprétations symboliques ou autres qu’elle greffe
sur ces histoires. Mais le premier noyau est un noyau narratif” (Ibid.).
86
dinâmica. Que a história é uma narrativa comprova‑o a própria
ambiguidade do termo que na maior parte das línguas europeias
significa, simultaneamente, o que realmente aconteceu no passado
(dimensão ontológica do termo) e o discurso que sobre isso se faz
(dimensão epistemológica do termo).11 Ricœur acredita que esta
ambiguidade semântica não acontece por acaso, contribuindo para
reforçar a similitude entre o ato de narrar a história e o estar na
história, ou seja, entre fazer a história e ser histórico. Vai ainda mais
longe ao destacar o papel que história e ficção desempenham na
construção de narrativas que direta e indiretamente contribuem para
desfazer a opacidade da experiência humana.12 De facto, as histórias
e a história são fautoras de historicidade humana.13 A polissemia da
palavra história serve para recuperar o papel da narrativa na his-
tória, depois de um período de eclipse,14 obrigando o historiador a
interrogar‑se sobre o seu ato de escrita, sobre a proximidade deste
com a ficção e ainda sobre a fronteira que os separa.15 Apesar de
87
reconhecer essa polissemia do termo história, que tanto pode signi-
ficar história como histórias, o filósofo francês acentua as diferenças
que separam a história das narrativas ficcionais, nomeadamente no
que à pretensão à verdade diz respeito. É que a imaginação não
está confrontada com as mesmas exigências críticas e científicas da
história, sendo que esta se pauta pela realidade dos documentos e
dos arquivos.16
A suspeita de que a história não é totalmente verdadeira porque
está enredada na ficção nasceu com a própria história e acompanhou
‑a ao longo dos séculos. Contudo, foi a partir do século xix , com
o eclodir da chamada história científica (epifenómeno do hegemó-
nico e otimista modelo positivista), que a questão se agudizou e
ganhou novos contornos. Para a história exigiu‑se o mesmo tipo de
método e resultados que as ciências físicas e biológicas almejam
(Montesquieu, Voltaire, Condorcet). No entanto, a conclusão de que
a lei e a causa positivista não estavam ao alcance da história não
fez os historiadores arredarem pé da senda das ciências, já não das
naturais mas das sociais e humanas. Enquanto teóricos narrativistas
e estruturalistas tentaram aproximar a história da narrativa, acentu-
ando a sua dimensão de artefacto literário, sujeito ao relativismo de
todo o discurso ficcional, os historiadores franceses da entourage dos
Annales e os teóricos do modelo nomológico procuraram afastar a
88
história da narrativa e do acontecimento breve, aproximando‑a das
ciências exatas. A história é confrontada com a alternativa de ser
ciência idiográfica (compreensiva) ou ciência nomotética (explicativa),
narrativa de acontecimentos singulares ou conjunto de proposições
científicas que inscrevem factos sob leis gerais.
É neste cenário de real tensão que surgem as reflexões de Ricœur.
Homem atento às questões do seu tempo, leitor assíduo dos histo-
riadores, contribuiu de forma determinante para uma conciliação.
A sua grande vitória foi justamente a de ter conseguido congraçar
dois conceitos aparentemente contraditórios sem retirar credibili-
dade e autoridade explicativa à história. Esta, apesar de recorrer à
ficção para cativar o público leitor, para dar visibilidade aos factos
narrados, em suma, para se dar a ler, continua a ter como alvo in-
substituível a verdade. Não uma verdade de teor positivista (em que
haveria coincidência entre o real e o conhecimento histórico), mas
a verdade visada através da positividade do ter‑sido e reconstruída
sob o regime analógico da representância [représentance].17 Só assim
a história mantém a capacidade para dar conta, de forma científica,
de uma realidade exterior ao discurso, evitando cair no relativismo
que os teóricos do linguistic turn alimentaram.
Atualmente, é relativamente pacífica entre historiadores e filósofos
a admissão da componente ficcional da história em concomitância
com a autonomia explicativa e científica da mesma. É reconhecido o
contributo de Ricœur para este processo.18 A história é uma ciência,
17 Paul Ricœur, Temps et récit III : Le temps raconté, (Paris: Seuil, 1985), 252‑283;
Idem, La mémoire, l’histoire, l’oubli (Paris : Seuil, 2000), 359‑369.
18 “Le tournant interprétatif adopté par les travaux actuels permet de ne pas
se laisser enfermer dans la fausse alternative entre une scientificité qui renverrait
à un schéma monocausal organisateur et une dérive esthétisante. Le basculement
est particulièrement spectaculaire dans la discipline historique qui a été nourrie
tout au long des années soixante et soixante‑dix, sous l’impulsion de l’école des
Annales, d’un idéal scientiste, celui de trouver la vérité ultime au bout des courbes
statistiques et des grands équilibres immobiles et quantifiés. Grâce au travail sur le
temps de Paul Ricœur, on redécouvre la double dimension de l’histoire qui, sous
89
ainda que não como as outras, e uma arte, ainda que diferente de
todas as outras.19 A ficção, sabemo‑lo, é do domínio da criação, da
modelação, do recurso à imaginação; tem contacto com o mundo,
mas não tem contrato com a verdade factual nem está obrigada a
prestar provas das suas declarações. A opinião de Ricœur é de que
a história, ainda que não possa dispensar a imaginação, a inter-
pretação e a retórica, é um discurso que, por meio de um método
científico e crítico, busca incessante e incansavelmente a verdade
rigorosa dos factos que narra, nisso ocupando um espaço distinto
do da ficção. O historiador estabelece implicitamente com o leitor
um compromisso ético e profissional de verdade, que implica julgar/
explicar mediante a apresentação de provas. E, nesse sentido, a sua
tarefa aproxima‑se da do juiz.20
Começámos este estudo com uma epígrafe alusiva à dívida que
os historiadores franceses sentem para com Ricœur, movidos pelas
suas pertinentes e valiosas reflexões epistemológicas sobre a histo-
riografia. É nosso intuito agora dar nota da forma como as teses da
história de Paul Ricœur foram recebidas por historiadores portu-
gueses, nomeadamente nos dois que mais longamente se detiveram
e absorveram as suas lições.
90
II – A apologia da história política em Fátima Bonifácio
91
e do alargamento do questionário a dimensões socioeconómicas,
ligadas às massas sociais e já não a indivíduos particulares, a factos
e a datas.23 Pois bem, Fátima Bonifácio pretende deseclipsar a nar-
rativa, reinvestindo‑a do seu estatuto científico objetivo e racional,
configurador de identidades e ações humanas passadas, e afastar
da narrativa histórica tudo o que sejam trends seculares, séries de
preços, padrões demográficos, evoluções estruturais, modos de pro-
dução, isto é, a ciência social. Não que menospreze o valor destas
informações, apenas as remete para o campo das Ciências Sociais.
A sua tese compreende um preâmbulo e três andamentos. No
preâmbulo é bem patente a crítica severa à história estrutural e
de longa‑duração implementada por Braudel e seus seguidores.
Lamenta‑se a autora pela perda do sujeito, das ações humanas e dos
acontecimentos que delas resultam como fonte de inteligibilidade
histórica, para dar lugar às estruturas profundas do fenómeno social.
Na primeira parte do ensaio, analisa os impasses da história
como ciência, tentando desmascarar as suas pretensões científicas
de âmbito nomológico. O seu ataque dirige‑se de modo particular
à Escola dos Annales, desde a fundação à sua terceira vaga, a da
chamada Nova História ou História das Mentalidades. Mantendo um
registo por vezes irónico e retórico próprio da diatribe, a historia-
dora, mostrando‑se muito segura e convicta na argumentação e bem
apoiada nas provas bibliográficas, prossegue o seu libelo contra a
história económica e social, estrutural e das ideias, acusando‑a de
ter erradicado do campo da historiografia a sua matriz fundadora
e identitária, a história política, e a sua forma natural, a narrativa.
O suposto retorno da “nova história política”, objeto da segunda
92
parte do ensaio, não serve de desagravo nem de compensação, pois
que esta dita “nova história política”, na ótica da autora, nada tem
de político, continuando a repudiar como insignificantes a narrativa,
o acontecimento breve, os grandes homens. Em muitos casos – de-
nuncia a mesma – “não se deixa distinguir de outras disciplinas das
ciências sociais como a politologia, a semiótica e a sociologia”. 24
Evocando os principais artigos impulsionadores dos “retornos”, desde
o célebre e liminar texto que Lawrence Stone deu à estampa em 1979,
“The return of Narrative”25, também citado por Ricœur na página
312 de La mémoire, l’histoire, l’oubli, até às reflexões autocríticas da
própria Escola dos Annales, conhecidas como tournant critique,26 a
partir de finais da década de 80, e apelando a um ressurgimento da
narrativa, a autora pretende pôr a nu a falácia do retorno. Destaca o
contributo de Roger Chartier, o qual, apoiando‑se nas teses de Paul
Ricœur expostas em Temps et Récit, tenta demonstrar, na esteira
do filósofo francês, que a história não chegou a perder totalmente
a sua ligação à narrativa. 27 A autora discorda, considerando que
esta suposta nova história narrativa está muito longe da narrativa
clássica como a definiu Ricœur, com base nas teses de Danto, a
saber, um realinhamento retrospetivo de acontecimentos passados
provocados por agentes humanos e interpretados pelo historiador
à luz de acontecimentos ulteriores relacionados com os primeiros.28
No seu entender: “‘a nova história narrativa’ não conta uma histó-
ria. A história da França de Zeldin, ou a história de Montaillou de
93
Ladurie, ou a história da morte de Ariés, ou a história do medo de
Delumeau, não contam propriamente algo que reconheçamos como
uma história – em alguns casos nem há história nenhuma”.29
Mesmo a micro‑história, que Ricœur, em La mémoire, l’histoire,
l’oubli (obra publicada posteriormente ao ensaio de Fátima Bonifácio),
considera ter recuperado a narrativa para o campo da historiogra-
fia, não colhe as graças da historiadora, considerando esta que a
mudança de escala de macro para micro e a fixação num indivíduo
particular, representante de toda uma comunidade, época, ou ide-
ologia, continua refém da descrição e do social.
No terceiro andamento do seu ensaio, a autora explica, com
base maioritariamente nas teses de Ricœur, o que considera ser
uma verdadeira história política narrativa. Começa por reestabelecer
como núcleo fundamental da história a compreensão empática ou
simpatia intuitiva prenunciada em Giambattista Vico, apropriada
pelo historicismo alemão, com reflexos significativos na sociologia
compreensiva de Max Weber e daí na obra do pensador e historiador
francês Raymond Aron. Refazendo o percurso histórico‑filosófico
também percorrido por Ricœur em Temps et Récit, Fátima Bonifácio
evoca o modelo nomológico da história, advogado por K. Popper
e C. G. Hempel, e os seus críticos narrativistas, William Dray, Paul
Veyne, Arthur Danto. Expondo o confronto entre as duas fações,
coloca‑se como seria expectável do lado dos narrativistas e dos
defensores da sociologia compreensiva. Interessa‑lhe sobremaneira
fundamentar a compreensão narrativa e a imputação causal singular
como método inteligível específico e único do discurso histórico, e
logo da história política, a seu ver, a única possível e verdadeira. Em
seu auxílio, convoca novamente a definição de história que Ricœur
formula a partir do conceito de frase narrativa de Arthur Danto, a
saber: “a história é uma descrição de acontecimentos anteriores sob
94
a descrição de acontecimentos ulteriores, desconhecidos dos atores
dos primeiros”.30 Daí em diante toma o filósofo francês como o seu
“principal guia”, mas com as devidas ressalvas: “muito embora eu
me guie a mim mesma num sentido diferente daquele em que ele
[Ricœur] pretende conduzir o leitor”.31 A autora alude aqui ao facto
de a reflexão de Ricœur se encaminhar para uma poética do tempo,
investindo a narrativa histórica e ficcional como solução poética à
aporia do tempo.
Bonifácio toma como ponto de partida a asserção ricœuriana de
que entre a Nova História, mesmo a mais fundamentalista, e a nar-
rativa existe um vínculo, seja ele ténue ou indireto, mas essencial
para preservar o caráter propriamente histórico da história. Evoca,
em seguida, a conhecida tese defendida por Ricœur da dimensão
configurante da narrativa enquanto síntese do heterogéneo, relem-
brando a capacidade que esta tem de convocar em simultâneo causas
heterogéneas e reuni‑las num todo coeso e inteligível. Deste modo,
a narrativa “dá‑nos uma visão global dos acontecimentos, quer dizer,
permite‑nos ‘apreendê‑los juntos’ através de uma espécie de ‘juízo
sinótico’ que abarca, ‘num único ato mental’, coisas separadas no
tempo e no espaço, e até separadas de um ponto de vista lógico”.32
Daqui passa a concluir que “a narrativa constitui a forma natural da
explicação histórica, querendo com isso dizer que narrar e explicar
se não distinguem”.33 Acrescenta que Ricœur “vai ainda mais longe
e afirma que ‘uma narrativa que fracassa em explicar é menos do
que uma narrativa’. Daí que explicar melhor consista simplesmente
em narrar mais”.34 Esta última afirmação, apresentada como corolário
95
da sua argumentação, se pretende ser a tradução da famosa senten-
ça “en expliquant plus on raconte mieux”35 ou de uma sua similar
que Ricœur colhe em Paul Veyne, “Expliquer plus c’est comprendre
mieux”36 exige da nossa parte crítica e correção. Há uma divergência
significativa entre o modo como Veyne e Bonifácio de um lado e
Ricœur do outro entendem a asserção. Na verdade, nunca foi inten-
ção de Ricœur considerar autossuficiente a explicação narrativa, a
ponto de esta poder dispensar uma explicação de teor nomológico.
De facto, Ricœur perfilha a ideia dos narrativistas de que narrar já
é explicar. O famoso conceito aristotélico do “um por causa do ou-
tro” (di’allela), em vez de um a seguir ao outro, próprio da crónica,
faz a conexão lógica de qualquer intriga. O filósofo francês também
reconhece às teses narrativistas da história a virtude de chamar a
atenção para o facto de a qualidade propriamente histórica da his-
tória só poder ser preservada por meio do elo que liga a explicação
histórica à compreensão narrativa, contra a rutura epistemológica que
pretendeu dissociá‑las. Todavia, afasta‑se dos narrativistas por estes
contemplarem apenas as formas historiográficas com ligação direta e
visível à narrativa, ignorando as transformações que a historiografia
foi sofrendo ao longo do século xx ;37 ou por não conseguirem inte-
grar a explicação através de leis no tecido narrativo da história. Esta
crítica aplica‑se perfeitamente ao ensaio de Fátima Bonifácio, o qual
podemos classificar categoricamente de narrativista, defendendo a
narrativa como única “estratégia de explicação na qual ficam sub-
sumidas a teoria, a análise e a demonstração”.38 Para a historiadora
35 Paul Ricœur, Du text à l’action: Essais d’herméneutique II (Paris: Seuil, 1986), 15.
36 Paul Ricœur, Temps et Récit II (Paris: Seuil, 1984), 14. Cf. Paul Veyne, Comment
on écrit l’histoire, (Paris : Seuil, 1971), 132.
37 Ricœur é desde o início muito assertivo e cauteloso nesta matéria: “ma thèse
concernant le caractère ultimement narratif de l’histoire ne se confond aucunement
avec la defense de l’histoire narrative” (Paul Ricœur, Temps et Récit I (Paris: Seuil,
1983), 165). O itálico é do próprio autor.
38 Fátima Bonifácio, Apologia da história política (Lisboa: Quetzal, 1999), 50.
96
não há como conciliar narrativa e ciência nomotética. Alguns dos
seus pares criticaram‑na justamente por verem nesta sua Apologia
o retorno da velha história política tal como se fazia em finais do
século xix.39 A própria não refutaria essa objeção. E embora conceda,
na esteira de Ricœur, que a narrativa histórica incorpore elementos
heterogéneos de ordem estrutural, descritiva ou não evenemencial
entre o relato dos acontecimentos, tal deve ser feito em proporção
que não quebre a unidade dramática ou a coesão narrativa, aludindo
aos preceitos que Aristóteles preconiza na Poética para o modelo
trágico.40 Com estas restrições, torna‑se muito difícil aceitar como
narrativos a maioria dos trabalhos historiográficos produzidos ao
longo do século xx até à atualidade, cuja natureza narrativa Ricœur
nunca pôs em causa, embora tivesse considerado muitos no limiar
da sociologia e em risco de apagar a identidade da história enquanto
ciência social e humana autónoma.
O filósofo francês nunca pretendeu denegar o caráter científico da
história nem excluí‑la do campo das ciências sociais e humanas; pelo
contrário, trabalhou no sentido de marcar a sua especificidade, pela
sua ligação umbilical à narrativa e desta ao acontecimento temporal
– peça fundamental sem a qual não existe narrativa. Este facto leva
‑o, como bem viu Fátima Bonifácio, a fazer uma revisão crítica do
contributo da escola francesa dos Annales, da sua repugnância pelo
acontecimento breve e, consequentemente, pela narrativa, bem como
39 Vide Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, e Fernando Catroga, História da
História em Portugal. Sécs. XIX‑XX, vol. 2. (Lisboa: Temas e debates, 1998), 69. O seu
colega historiador, Nuno Severiano Teixeira, também aborda a temática em “A histó-
ria política na historiografia contemporânea”, publicado na revista Ler História 13,
(1998): 77‑102. Não obstante, este procura conciliar a nova história política com a
história social e a própria sociologia, uma solução inteiramente consentânea com
a visão de Paul Ricœur, o qual defende que a compreensão histórica pode e deve
recorrer às explicações científicas das outras ciências sociais, mais gerais mas irmãs,
como a sociologia, a antropologia, a demografia, para aclarar os factos particulares
por ela narrados.
40 Fátima Bonifácio, Apologia da história política (Lisboa: Quetzal, 1999), 125.
97
do modelo nomológico, que tenta inscrever a história no círculo
fechado das ciências exatas. É verdade que estas teorias da história
conduziram ao abandono da história política e factual, substituída
que foi por uma história de longa duração, tornada história social,
económica, cultural, mas que, segundo Ricœur, permanece unida
ao tempo e dá conta de acontecimentos que ligam uma situação
inicial a uma situação final, pois não é a velocidade da mudança
que faz a história.41
Neste sentido, um dos passos mais ousados e também mais ad-
miráveis de Ricœur é a arguta e paciente análise da extensa obra
histórica de F. Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à
l’époque de Philippe II (publicada em 1949), no intuito de fazer emer-
gir da sua estrutura tripartida as características de uma intriga.
Ignorar a inteligibilidade de base da narrativa (a sua capacidade
configuradora) impede de compreender como é que a explicação
histórica se pode coadunar com a compreensão narrativa, de maneira
que: “en expliquant plus on raconte mieux”.42 É este famoso adágio
que nos oferece como solução à antinomia explicação‑compreensão.
Ele serve de divisa aos estudos desenvolvidos pelo autor em Temps
et récit I e II, onde se trata de ligar explicação e compreensão ao
nível, respetivamente, da historiografia e da ficção, mas assoma já
nos estudos hermenêuticos que encontramos reunidos em Du tex-
te à l’action: Essais d’herméneutique II. Apesar de as análises de
98
Temps et récit serem mais detalhadas, ambas as obras convergem
na finalidade. No que à história diz respeito, Ricœur não nega que
esta possa recorrer a leis, que pode pedir emprestadas a outras
ciências sociais mais sofisticadas como a demografia, a economia,
a linguística, a sociologia ou que a explicação histórica possa ser
constituída por leis, causas regulares, funções, estruturas; questiona,
sim, o seu funcionamento, o facto de não funcionarem em história
da mesma maneira que funcionam nas ciências da natureza, e terem
de se articular necessariamente com a compreensão narrativa que
lhes subjaz. As leis só por si não têm significado histórico, para o
adquirirem têm de estar inseridas numa narração de acontecimentos
aos quais se referem, pois é a compreensão narrativa que preserva
o caráter irredutivelmente histórico da história. De facto, observa
Ricœur, o historiador não estabelece as leis, utiliza‑as.43
Esta dialética entre compreensão e explicação é ignorada por
Fátima Bonifácio, essencialmente – podemos conjeturar nós – por-
que a sua aceitação inviabilizaria o seu dogmatismo narrativista
e político, que pretende fazer à ciência social o que a Escola dos
Annales fez à narrativa. Do mesmo modo que a história estrutural
socioeconómica francesa entendeu erradicar da escrita historiográfica
qualquer intriga, para a transformar numa sequência de dados cien-
tíficos, a mais das vezes quantitativos, também Bonifácio pretende
expurgar da história política todo o dado científico geral, proveniente
das outras ciências sociais, porquanto afetaria a unidade narrati-
va, entendida esta no seu sentido clássico, promanado da Poética
aristotélica. No fundo, a grande preocupação de Bonifácio consiste
na preservação a qualquer custo da narrativa e da intriga histórica
tradicionais. Compreende‑se, por conseguinte, a preferência pelo
facto político‑militar, o único passível de uma configuração narra-
99
tiva linear. Esta posição estremada vai contra o espírito dialético
e conciliador de Ricœur. No entanto, a mesma dialética encontra
noutro historiador e académico português um bom acolhimento, de
que falaremos a seguir.
100
em França e em Espanha, e constituem textos embrionários das teses
expostas posteriormente em La mémoire, l’histoire, l’oubli, acabando
por se incorporarem de forma diluída na própria obra.45
Os passos do homem como restolho do tempo. Memória e fim do
fim da história, publicado em 2009, em edição da Almedina, retoma
os três ensaios referidos, em versão revista e aumentada, aos quais
se juntam uma série de outros estudos, alguns reconduzidos a partir
de revistas, outros da obra anterior, Caminhos do Fim da História
(2003). 46 Em boa verdade, o volume de 2009 funciona como uma
espécie de ponto de chegada de todo um percurso académico e
intelectual consagrado à reflexão historiográfica. A influência de
Ricœur é aqui notória, servindo as suas próprias ideias bem como
a de outros autores reunidos de forma eclética nos seus textos,
como Halbwachs, Bergson, M. de Certeau, F. Hartog, R. Koselleck,
Santo Agostinho, Aristóteles e Platão ou que refletiram sobre e com
base na sua obra, casos de Jeffrey Barash e François Dosse. Todos
encontram em Catroga uma autêntica caixa‑de‑ressonância, que não
se limita, muito longe disso, à mera paráfrase. Tendo como pano
de fundo o trabalho intelectual destes e de outros como M. Augé,
Le Goff, S. Mosès, I. Berlin, H. Arendt, T. Todorov, W. Benjamin,
M. Bloch, Durkheim, Hegel, Catroga expõe as suas, por vezes, in-
trincadas leituras com perspicácia e originalidade, não se limitando
45 São eles: “Entre mémoire et histoire”, Projet 248 (1996): 7‑16; “Vulnerabilité
de la mémoire”, in Patrimoine et passions identitaires. Entretiens du patrimoine.
Théâtre National de Chaïlot, Paris, 6, 7 et 8 Janvier, 1997, ed. Jacques Le Goff et al.,
(Paris: Fayard, 1998); La Lectura del tiempo passado: memoria y olvido, (Madrid:
Ediciones de la Universidad Autonoma de Madrid, 1998); “Un parcours philosophi-
que”, in Magazin Littéraire 390, (Septembre, 2000).
46 Fernando Catroga, Caminhos do Fim da história, (Coimbra: Quarteto, 2003).
Nesta obra há apenas esparsas referências explícitas a Ricœur, mas adivinha‑se muitas
vezes o seu pensamento em pano de fundo, nomeadamente quando o autor aborda
as temáticas do tempo, ou a relação entre história e ciência, a partir da dialética
compreensão/explicação. A demonstrar a influência de Ricœur está o facto de o
autor citar‑lhe várias obras na bibliografia final: Temps et récit, 3 vols.; La mémoire,
l’histoire, l’oubli e La lectura del tiempo passado. Memoria y olvido.
101
ao exposto pelo filósofo francês, mas demonstrando uma aptidão
muito ricœuriana de pôr em diálogo à volta do mesmo assunto
uma plêiade intelectual assaz heterogénea, quer nas ideias quer
nas áreas científicas.
A figura tutelar de Ricœur é particularmente relevante nas duas
primeiras partes da obra, onde se reflete acerca de memória, his-
toriografia, morte, tempo, alteridade e epistemologia. A obra de
referência continua a ser La mémoire, l’histoire, l’oubli, mas à colação
vêm também Histoire et vérité, a trilogia Temps et récit e os artigos
já referidos anteriormente.47 O autor recupera temas ricœurianos
como a dialética entre recordação e esquecimento, as teorias plató-
nica e aristotélica sobre a memória como representação (eikon) do
passado, o binómio aristotélico mneme e anamnesis, o traço como
testemunho e indício e a relação destes com o documento, a impor-
tância do questionário, a memória como narrativa e ipseidade, os
abusos da memória e da comemoração, a escrita da história como
mediação com o passado, os três estádios da operação historiográ-
fica definidos por Certeau48 e retomados por Ricœur, e a história
como representância ou, como gosta de lhe chamar Catroga, re
‑presentificação de um referente ausente. Transcrevemos um passo
sintomático da forma como o historiador conimbricense perfilha
assumidamente uma meditação ricœuriana, por sua vez apoiada em
Michel de Certeau – também ele aqui muito citado –, a da poética
da ausência, para suavemente introduzir um tema da sua eleição
como historiador das ideias: o papel dos cemitérios e do culto dos
mortos nas sociedades ocidentais.49
102
… são conhecidas e pertinentes as posições que Ricœur tomou
na contenda: para ele, a memória e a história (incluindo a histo-
riografia) mantêm uma relação que, na perspetiva da inevitável
presença de horizontes de pré‑compreensão no questionamento
historiográfico, consente pôr‑se “la mémoire comme matrice de
l’histoire” (Paul Ricœur, 2000).
Propendemos para concordar com os que sustentam esta tese.
E se outras razões não houvesse, bastaria ir ao encontro da raiz
de onde nasce a necessidade de recordar para a perfilharmos,
a saber: a experiência humana de domesticar os mortos através
do culto tanatológico. E, por mais estranho que à primeira vista
possa parecer às leituras pouco sensíveis ao simbólico, a escrita
da história também é, à sua maneira, “um gesto de sepultura”.
Com efeito, as narrações do passado são equiparáveis à linguagem
dos cemitérios nas povoações, porque procuram “re‑presentar [ou,
dizemos nós, re‑presentificar] mortos através de um itinerário
narrativo” (Michel de Certeau, 1975). Portanto, pode afirmar‑se
que a historiografia também exorciza a morte, introduzindo‑a no
discurso para criar, como no jogo simulador e dissimulador do
culto cemiterial dos mortos, a ilusão da sua não existência. 50
103
em troca do nada segundo uma lei de compensação ilusória pela
qual, quanto mais signos temos mais existe o ser e menos o nada”
( Jean‑Didier, 1997) … Por isso, o túmulo e o cemitério devem
ser lidos como totalidades significantes que articulam dois níveis
bem diferenciados: um invisível e outro visível. E as camadas se-
mióticas que compõem este último têm o papel de dissimular a
degradação (o tempo) e, em simultâneo, de simular a não morte,
transmitindo aos vindouros uma semântica capaz de individuar
e de ajudar à re‑presentação, ou melhor, à re‑presentificação do
ontologicamente ausente. É à luz destas características que é lícito
falar, a propósito da linguagem cemiterial – tal como do discurso
historiográfico –, de uma “poética da ausência” 51
51 Idem, op. cit., 39; cf. Fernando Catroga, Memória, História e Historiografia
(Coimbra: Quarteto, 2001), pp. 40‑44 e Idem, O Céu da memória. Cemitério român-
tico e culto cívico dos mortos (Coimbra: Almedina, 2006). A expressão “poética da
ausência” é atribuída por Catroga a Ana Anais Gómez, “La sepultura, monumento
que constituye la memoria de la vida”, in AA. VV., Una Arquitectura para la muerte.
I Encontro internacional sobre los cementerios contemporáneos (Sevilha: Junta de
Andaluzia, 1995). A citação de Jean‑Didier Urbain reporta‑se a “Morte”, Enciclopédia
Einaudi, vol. 36, (Lisboa: Imprensa Nacional‑Casa da Moeda, 1997).
104
para visões parcelares do campo histórico. Declara o mesmo que
“explicar por causas e/ou compreender intenções são atitudes que
decorrem do jaez das perguntas feitas às informações retiradas da
massa documental que o processo foi selecionando”.52 E corrobora
a sua afirmação citando Ricœur, de quem retirara o que acabava
de afirmar:
105
Sanada a tensão explicação/compreensão por via da dialética
ricœuriana, Catroga defende um caminho plural para a historio-
grafia contemporânea, nisso se afastando claramente da perspetiva
de Fátima Bonifácio. Na senda do filósofo francês, o autor admite
a diversidade de métodos explicativos consoante a diversidade dos
problemas e dos objetos por estes selecionados, “sem que isso sig-
nifique, contudo, a apologia de qualquer ecletismo, ou a busca de
sínteses artificiais”.54 Por conseguinte, em linha com Ricœur, ele vê
com bons olhos a utilização de métodos quantitativos ou de leis de
outras ciências, se estas ajudarem à explicabilidade de determinada
interpretação histórica. Por outro lado, a pluralidade e renovação da
historiografia atual mostra que outras interpretações históricas só
ficarão comprovadas com o recurso a análises qualitativas, havendo
outras que possam apelar mesmo a combinatórias metodológicas. Os
debates epistemológicos contemporâneos são avessos a uma conceção
unitária de ciência, anulando o conflito tradicional entre ciências
da natureza e ciências do espírito. “A hora será de intercâmbio e
de colaboração”.55
Outra problemática que merece a atenção de Catroga é a relação
entre sujeito e objeto ou entre o historiador e passado. Neste âmbito,
tornam‑se assaz operativos dois conceitos fundamentais da episte-
mologia histórica ricœuriana: o conceito de operação historiográfica,
axial para Ricœur‑Certeau, e o de representância; o primeiro para
credibilizar o trabalho do historiador, evitando derivas ficcionistas,
revisionistas ou relativistas; o segundo para classificar o estatuto
da mediação entre a narrativa e a realidade referenciada, evitando
imediatismos positivistas do género adaequatio rei et intellectus.
106
Foi precisamente para cortar com as ilusões vindas, quer da
crença no mimetismo imediato da representação, quer, no polo
oposto, da redução desta à pura ficcionalidade, que Paul Ricœur
preferiu falar, já em Temps et récit e, depois, em La Mémoire,
l’histoire et l’oubli, em representância. 56
Conclusão
107
para justificar e sustentar uma opção historiográfica e ideológica
específica. Com esse intuito, faz uma apropriação apenas parcial e
conveniente, ignorando uma parte substancial do todo que lhe era
incómoda. Sem embargo, a opção pela história política narrativa
não põe em causa o rigor e a excelência das suas investigações e
produções historiográficas, como bem o comprovam os estudos de
história política do século xix subsequentes ao ensaio epistemológico
por nós analisado e muitos outros que vem publicando. Em linha
com o que temos vindo a dizer, hoje a história é plural e admite
no seu interior vários modelos explicativos, com a única exigência
metodológica de haver acerto entre o objeto, a problemática e o
modelo explicativo. Fátima Bonifácio, em função de uma história
política que determinou como objeto de estudo, aplica com eficácia
e legitimidade o modelo explicativo narrativo, atinente à explicação
por razões. Esta opção, sendo coerente, não pode ser criticável.
É, ademais, salutar que num país onde a maioria dos historiado-
res tendeu para as propostas dos Annales, haja quem se ocupe de
história política, sem a qual corremos o risco de passar ao lado de
grandes acontecimentos transformadores das sociedades. Não sen-
do um ramo da historiografia que atraia muitos adeptos no nosso
país, há ainda uns quantos assinaláveis e dignos de menção: casos
de Vasco Pulido Valente,58 Rui Ramos,59 ou José Pacheco Pereira, 60
autores de inestimáveis trabalhos de história política.
Catroga, por seu turno, faz uma leitura mais abrangente e ide-
ologicamente descomprometida das teses de Ricœur, as quais se
refletem substancialmente nos seus escritos e preleções de Teoria
108
e Filosofia da História. Tem da hermenêutica histórica ricœuriana
uma conceção rigorosa e bem assimilada, donde ressumbra não só
a admiração pela figura do filósofo, mas também uma extraordiná-
ria capacidade para o integrar e diluir nas suas próprias reflexões.
Também nas suas alocuções o nome do filósofo francês se ouve ami-
úde, alcançando, por vezes, o professor e historiador problemáticas
ricœurianas ainda não refletidas nos seus livros, caso da teoria do
Mesmo, do Outro e do Análogo, desenvolvida por Ricœur em Temps
et récit, como caminho intelectual para chegar à criação do conceito
de representância. Estamos certos, por isso, de que novas vertentes
do pensamento de Ricœur poderão aflorar em futuras publicações
de Fernando Catroga.
109
L a v í c t i m a c o m o s u j e t o c a pa z .
A propósito del conflicto colombiano
T h e V i c t i m a s a c a pa b l e s u b j e c t .
N ot e s o n t h e C o lo m b i a n c o n f l i c t
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_3
los sujetos, especialmente de las víctimas; y el último apartado
hace las veces de conclusión de todo el recorrido.
Introducción
112
Buenaventura (Bogotá, Colombia) entre 2010 y 2011.2 El proyecto
surgió sobre todo por la convicción de que la Filosofía tiene mucho
por decir en contextos como el colombiano y, de forma más parti-
cular, respecto a las discusiones que se estaban llevando a cabo en
torno a la llamada “Ley de víctimas” aprobada en 2011. Vimos que,
además de las problemáticas históricas, jurídicas o económicas que
la ley suscitó en su momento, era necesario hacer unas considera-
ciones de carácter antropológico y ético que permitieran poner en el
centro del debate a la víctima misma: ¿quién es la víctima? ¿De qué
es víctima? ¿Es posible salir de la condición de víctima? ¿Cómo?3
El grupo de investigación comenzó a trabajar en febrero de 2010.
En el diseño de la investigación estaba previsto que se examinara la
noción de víctima y las posibilidades de restitución de su condición
de ciudadanos a la luz de tres grandes referentes: 1) un referente
histórico, que se concentraría en revisar las múltiples cronologías
del conflicto colombiano y en establecer puntos comunes y diver-
gentes que permitieran entender algunos antecedentes de la Ley de
víctimas; 2) un primer referente filosófico especialmente inspirado
en Walter Benjamin y la lectura que de él hace Reyes Mate en el
que la noción de “víctima” ocupa un lugar protagónico; 3) un se-
gundo referente filosófico centrado en filosofías latinoamericanas
de carácter post‑colonial. Al entrar a formar parte de la Facultad de
Filosofía en agosto de ese mismo año, fui invitado a participar en
este grupo; y dado que el “espíritu” del trabajo fue de total aper-
tura a mis intereses, consideré que Paul Ricœur sería una buena
113
guía para profundizar en el problema filosófico de las víctimas en
el contexto colombiano.
No obstante, como siempre se intentó que hubiera diálogo entre
los tres referentes, la primera parte del presente texto esboza una
relación con el segundo referente filosófico que hemos mencionado.
Empero, es necesario advertir que no se presentan sistemática-
mente las líneas generales que vinculan o en las que se distancian
Ricœur y Benjamin/Reyes Mate. El lector encontrará más bien un
tono común que permite el diálogo, tono que está inspirado por
la propuesta ricœuriana.
Las otras secciones del capítulo se centran en la perspectiva de
Ricœur y desarrollan la tesis según la cual las víctimas deben ser
asumidas como sujetos de derecho, esto es, como lo que el fran-
cés denomina “sujetos dignos de estima y respeto”. Esta asunción
requiere el ejercicio pleno de las capacidades, que solo es posible
en escenarios de reconocimiento mutuo, en los que, a su vez, está
comprometida la atestación del sujeto responsable del otro en la
figura de la víctima.
114
sucedido es irrepetible, no puede recuperarse sino por el recurso a
la memoria o a diversos tipos de archivo, siempre marcados por la
distancia entre lo acontecido y nosotros, así como por la amenaza
del olvido.
A su vez, las formas de recuerdo individual y colectivo en las
que se configuran nuestras maneras de entender la historia perso-
nal y social, las identidades individuales y sociales, la problemática
diversidad cultural, la paz o la violencia, dependen no sólo de la
estructura misma del acto de recordar – que, al requerir selectividad,
está aguijoneada por el olvido –, sino de diversos poderes políticos
y económicos que pugnan por imponer, al mismo tiempo que por
ocultar, ciertos recuerdos, hechos o agentes.
Esta pugna nos lleva a reflexionar también sobre la prevalencia
de un relato trágico, hegemónico, “defensor del statu quo, globa-
lizador de las dependencias y sustentador de las ciudadanías de
excepción”5, esto es, aquellas que viven en un contexto marcado
por “aumento de la desigualdad social, des‑legitimidad del sistema
político, disminución de la participación ciudadana y bancarrota
de imaginarios nacionales orientados hacia la construcción de un
esperanzado porvenir”. 6
Así las cosas, queda claro que el instante del peligro en el que
se halla el pasado no se advierte por un prurito objetivista o una
nostalgia epistemológica de acceder directamente al pasado. Esta
mirada tampoco es la de la filosofía de la historia que no logra ver
las evidencias esperadas de un progreso moral de la humanidad, ni
la del pesimista que plantea su grito con el color del desconsuelo
que le otorgan los signos visibles de una decadencia en diversos
órdenes y extendida hoy en día a la esfera global. Es una mirada
115
ética que descubre cómo el querer vivir juntos de hombres y mujeres,
y la multiplicidad de formas de relatar el despliegue de ese deseo,
parece entregarse con frecuencia a la barbarie; pero también es una
mirada que, a pesar de reconocer señales de esperanza en la historia,
tiene razones de sobra para coincidir con el lamento de Benjamin:
“Quien hasta el día actual se haya llevado la victoria, marcha en el
cortejo triunfal en el que los dominadores de hoy pasan sobre los
que también hoy yacen en tierra. Como suele ser costumbre, en el
cortejo triunfal llevan consigo el botín. Se le designa como bienes
de cultura”.7
Si seguimos leyendo la tesis VI de Benjamin, encontramos otro
matiz de la advertencia respecto al “instante de peligro”: “tampoco
los muertos estarán seguros ante el enemigo cuando éste venza.
Y este enemigo no ha cesado de vencer”. 8 El enemigo es el olvido
instaurado por las voces de los “vencedores” que promueven el
peligro de la desaparición de los “vencidos” por vía de una doble
violencia: desaparición física, exterminio, aniquilación o expropia-
ción – aceptadas como naturales y necesarias – y desaparición
simbólica auspiciada por una hermenéutica histórica que se empe-
cina en ubicar a los “otros”, buenos, pero prescindibles, en el “polo
del bárbaro y del vencido”,9 y frente a los que apenas cabe sentir
una “tibia empatía”. Esa misma violencia hermenéutica que inclina
la balanza de la memoria y de la historia a la aniquilación es la que
posibilita que a los muertos del pasado se sumen impunemente los
muertos del presente, en un mismo relato de progreso que deja por
fuera toda posibilidad de lecturas alternativas de la historia.
Por otra parte, para Reyes Mate, la experiencia histórica de nues-
tro siglo nos pone frente al escándalo de estar “haciendo las cosas
116
de tal manera que si las víctimas levantaran la cabeza verían con
asombro que nada ha cambiado sobre ellos en la conciencia de las
nuevas generaciones”.10 Y la razón de este desvío permanente, a su
juicio, es que hemos olvidado que “[no] se puede ser digno de la
dicha a costa de los no dichosos”.11
Este olvido contrasta con el horror que experimenta el ángel de la
historia de la muy conocida Tesis IX, en la que Benjamin interpreta
un cuadro de Klee titulado Angelus novus:
10 Manuel Reyes Mate, La razón de los vencidos (Barcelona: Ánthropos, 2008), 169.
11 Ibíd., 192.
12 Benjamin, Tesis sobre la historia, 24‑25.
13 Reyes Mate, La razón de los vencidos, 205.
117
dicha lógica porque nos hemos habituado a los acontecimientos,
porque nos parecen “normales” o, al menos, porque ya no nos sor-
prenden: en la escuela, por ejemplo, se nos ha sugerido, cuando
no se nos ha explicado o instado a creer en ello, que el exterminio
de comunidades enteras (indios, negros, campesinos), la esclavitud,
las formas indignas de trabajo asalariado, la conformación de una
sociedad profundamente jerárquica y desigual que se origina desde
las prácticas coloniales, y se extiende a las diversas versiones de
república que hemos tenido, obedecen al cumplimiento de una es-
pecie de destino;14 en los medios de comunicación nos bombardean
con las promesas del progreso – proferidas por banqueros, orga-
nismos multilaterales, partidos políticos, economistas – que, dicen,
se realizará si se sacrifican poblaciones o países prescindibles; y
en la vida cotidiana, parece imponerse la idea – con sus prácticas
consecuentes – según la cual sólo el más fuerte es el que sobrevive
en un mundo signado por el “sálvese quien pueda”.
La filosofía de inspiración benjaminiana, en cambio, nos insta
a un combate contra el olvido, que exige tomar en nuestras manos
“todos esos sueños de felicidad, otrora pastoreados por la religión
y que ahora tienen que pasar a la filosofía”, y hacernos “cargo de
esas ansias insatisfechas o de esos derechos pendientes [de los
“vencidos”]” a fin de “desenmascarar y superar las barreras del
118
presente, que es el de los vencedores”.15 En últimas, nos convoca
a asumir que
119
indiferencia, como la lástima inactiva rayana en la connivencia o el
deseo de venganza.
La segunda dificultad remite a que la esperanza lucha contra “la
aceptación de un presente – y de sus estructuras – construido sobre
los derechos de los vencedores”.19 Tal aceptación nos impide vivir
la solidaridad con el pasado, que se transfigura en solidaridad con
el necesitado, informada racionalmente “al considerar… que el otro
no es un pobre hombre, sino un hombre al que se le ha privado de
la dignidad de sujeto”.20 De hecho, aceptar estos basamentos nefas-
tos del presente es cerrarse a la posibilidad de asumir que cuando
todo otro es negado en su dignidad “yo mismo (es decir, el otro
polo de la relación compasiva) me descubro privado de la dignidad
y dependiendo del otro”.21 Así, pues,
19 Ibíd., 216.
20 Ibíd., 19.
21 Ibíd., 153.
22 Ibíd., 155. Sea este el momento para anotar que podría explorarse un matiz
ricœuriano que establecería cierta distancia respecto a la lectura de Reyes Mate.
Ricœur señala que es constitutivo de nuestras relaciones con los otros (sea en el
modo del cara a cara, sea con el “tercero”) la tensión entre disimetría – enten-
dida como inconmensurabilidad entre uno mismo y los otros – y búsqueda de
reciprocidad que teje el querer vivir juntos. Así pues, el autor de Parcours de la
reconnaissance no se cansó de insistir en que la búsqueda de la reciprocidad no
elimina la disimetría constitutiva entre los seres humanos, incluso si tal reciproci-
dad acaece como mutualidad, esa forma particular de reconocimiento mutuo que
no se fija en lo que intercambian las personas, sino en las personas mismas. Ver:
Parcours de la reconnaissance. Trois études (Paris: Stock, 2004), 319‑354. A la luz
de lo anterior, parece necesario al menos sugerir que el reto de la formación de
120
2 – La noción de víctima. Esbozo de algunas dificultades
121
un rosario interminable de víctimas olvidadas es constitutiva de la
historia de nuestro pueblo colombiano y latinoamericano. La pregun-
ta por las víctimas es motivada por el anhelo de mantener, avivar o
recuperar nuestra constitución como sujetos morales, según nos lo
recuerda Reyes Mate: “La constitución del hombre como sujeto moral
se produce en una relación intersubjetiva, en una aproximación al
otro. … La universalidad es el grito del necesitado. … No hay sujeto
moral más que como respuesta a esa demanda”.26
Antes de presentar la reflexión sobre las víctimas a la luz de la
fenomenología del hombre capaz, es necesario situar algunas di-
ficultades que se nos presentaron en la comprensión de la noción
misma de víctima.
Ricœur define “víctima” como aquel que padece una disminución
o aniquilación de su poder‑hacer causada por el poder‑hacer de otro.
El espectro de situaciones que cabe aquí es muy amplio: tortura, des-
aparición forzada, desplazamiento o asesinato, pero también sutiles
formas de humillación, violencias del lenguaje o astucias propias de
la “intimidad del cuerpo‑a‑cuerpo”.27 De esta manera, la noción de
víctima puede operar en el análisis de las relaciones intersubjetivas
con el prójimo, con el allegado o con cualquier otro, un tercero.
En la investigación en la que se enmarca este trabajo, nuestra
atención se centró en el conflicto armado en Colombia, lo que nos
sitúa frente a víctimas de actores definidos (Estado, paramilitares,
guerrilla) y en un escenario limitado, el rural. 28 No obstante, el
fenómeno “violencia” es de tal envergadura, que se puede identi-
ficar en múltiples escenarios de la geografía nacional y de la vida
122
social, cultural y política colombiana en realidades tales como la
imposibilidad de realizar proyectos vitales a causa de la ausencia
de garantías en el cumplimiento y la protección de los derechos, el
empobrecimiento sistemático, la estigmatización del “diferente”, la
desesperanza aprendida o la indiferencia, que sirven de caldo de
cultivo al mismo conflicto armado.29
Otra de las dificultades estuvo atravesada por la pregunta: “¿Quién
es la víctima?”. No hay obstáculo en identificar como víctima al
desplazado, al asesinado, al desaparecido o a sus familiares. Pero,
¿desde cuándo?, ¿las víctimas de qué período histórico? La aprobación
de la Ley de víctimas (ley 1448 de 2011) fue el telón de fondo de
estas preguntas, al determinar en su articulado que, para el conflicto
específico al que respondía, son considerados víctimas
29 Una lectura muy amplia y con puntos de vista no solo diversos sino contra-
dictorios sobre los orígenes y el desarrollo del conflicto armado en Colombia la
hallamos en: Comisión Histórica del Conflicto Armado y sus Víctimas, Contribución
al entendimiento del conflicto armado en Colombia (Bogotá: Comisión Histórica
del Conflicto Armado y sus Víctimas, 2015, documento de trabajo, http://www.
altocomisionadoparalapaz.gov.co/oacp/Pages/informes‑especiales/resumen‑informe
‑comision‑historica‑conflicto‑victimas/el‑conflicto‑y‑sus‑victimas.aspx).
123
sufrido un daño al intervenir para asistir a la víctima en peligro
o para prevenir la victimización. 30
Aclara también la Ley que “las personas que hayan sido víctimas
por hechos ocurridos antes del 1° de enero de 1985 tienen derecho
a la verdad, medidas de reparación simbólica y a las garantías de no
repetición previstas en la presente ley, como parte del conglomerado
social y sin necesidad de que sean individualizadas”.31
Las reflexiones que se presentan en este trabajo proponen ir más
allá de la letra de la Ley, amparadas como están en la convicción
según la cual es necesario reconocer que la historia nacional está
tejida sobre distintas violencias evidentes u ocultas, sistemáticas
unas, esporádicas otras, que han dejado a su paso la negación del
poder hacer de quienes las han padecido. No nos adentramos aquí
en el análisis de las implicaciones jurídicas, sociales y económicas
que tiene el artículo citado, ni en la Ley en su conjunto, ni negamos
que su proclamación ha sido motivo de esperanza para quienes
estamos convencidos de la necesidad de sostener jurídicamente la
reparación de las víctimas. Sin embargo, atendiendo de nuevo a la
relación entre solidaridad y formación moral del sujeto, siempre es
necesario recordar que una ley, por más pertinente y completa que
ella sea, no agota las posibilidades de acudir al llamado que hace
el rostro del otro sufriente.32
124
La tercera dificultad que nos hallamos se refiere al “peligro exor-
bitante que coloca al resto de la gente en posición de deudor de
créditos” respecto a las víctimas.33 Si cualquiera de nosotros puede
eventualmente ejercer su poder sobre otro hasta llegar a disminuir
o negar su poder‑hacer, ¿todos, entonces, somos igualmente respon-
sables? Si todos somos responsables, es probable que nadie lo sea,
que la responsabilidad se diluya al punto de desaparecer. Sólo un
discurso populista, demagógico o encubridor puede pretender que
todos respondan ante las masacres, los desplazamientos o el empo-
brecimiento sistemático de miles de colombianos como si ejercieran
los mismos cargos, u ostentaran idénticos poderes. Ciertamente, po-
dría trazarse una cartografía cultural, política, económica y moral de
imputación de responsabilidades que atañen a diversos actores de la
sociedad civil, pero sin que ello impida nombrar, juzgar y sentenciar
a miembros del gobierno, de las fuerzas militares, de los grupos
alzados en armas, o a empresarios y multinacionales. En suma, la
imputación de responsabilidades requiere poner en una balanza
acciones, agentes y motivos para distinguir y juzgar con justicia.
Unida a esta dificultad, con Ricœur podemos alertar respecto a
la imposición de un deber de memoria reclamado por quienes no
han sufrido los vejámenes del conflicto armado, pero que sacan
provecho de alguna cercanía con las víctimas sin que medie en ello
un auténtico espíritu de solidaridad.34 La advertencia de Ricœur
no significa, en modo alguno, un desconocimiento del deber de
luz las víctimas de violencias estructurales que no necesariamente pasan por lo que
ha definido la ley y que, sin embargo, existen y nos interpelan moralmente.
33 Ricœur, La memoire, l’histoire, l’oubli, 104.
34 En este punto se requiere mucha cautela. Algunos sectores políticos colombia-
nos han argüido que las ONGs, los colectivos de abogados, los movimientos sociales
o los defensores de derechos humanos sólo pretenden beneficiarse económica o
políticamente del supuesto botín que deja la defensa de las víctimas. Está claro
que hay una intención de desacreditar este trabajo, y que no nos unimos a ella. No
obstante, la advertencia de Ricœur es sensata y por ello la incluimos aquí.
125
memoria, que “no se limita a guardar la huella material, escritura-
ria u otra, de los hechos pasados, sino que cultiva el sentimiento
de estar obligados respecto a estos otros… que ya no están pero
que estuvieron”. En últimas, “entre estos otros con los que estamos
endeudados, una prioridad moral corresponde a las víctimas. … La
víctima de la que se habla aquí es la víctima que no es nosotros, es
el otro distinto de nosotros”.35
126
cara a cara y el “cualquier otro” o el “tercero” de las relaciones
sociales más amplias – la que permite “el trayecto de la capacidad
a la efectuación”.37
Las capacidades son “estos poderes básicos [que] constituyen
el primer cimiento de la humanidad, en el sentido de lo humano
opuesto a lo inhumano”.38 Esos poderes van aparejados con un no
‑poder constitutivo39, con la pasividad que hiere las pretensiones de
autosuficiencia de los sujetos y que apuntan a “formas de fragilidad
ciertamente inherentes a la condición humana”, pero que se agudizan
en contextos que refuerzan e instauran esa heteronomía por la vía
de desigualdades crecientes.40
El sufrimiento de las víctimas va más allá de ese no‑poder cons-
titutivo, de la pasividad propia del sí mismo. Lo que es necesario
precisar en el caso de las víctimas es que la violencia que se ejerce
sobre ellas es una agudización extrema de dicho no‑poder.41 Las
víctimas son testigos sufrientes de la negación de todo poder; su pa-
sividad aquí no da cuenta de una ontología quebrada, como leemos
en el estudio IX de Soi même comme un autre, sino que enrostra el
horror de la negación de humanidad.
127
Decir “negación de humanidad” tiene que ver con el carácter
concreto de hombres y mujeres con nombres propios, con historias
de vida truncadas y esperanzas suspendidas, cuando no cercenadas,
es decir, tiene que ver con la negación de la respuesta a la pregunta:
¿quién soy yo? Esa pregunta, cuya enunciación resulta las más de
las veces imposible para las víctimas, reaparece de otra manera en
nuestra meditación filosófica y en nuestras consideraciones como
ciudadanos: ¿quiénes son los sujetos que, en primera persona, pero
también como sujetos sociales y colectivos, están ahora en condición
de víctimas?
Estas dos maneras de preguntar – la de la víctima que acaso ni
siquiera formule la cuestión, pero que padece la negación de su perso-
na; la del que reflexiona y se siente convocado por el dolor del otro –,
nos llevan a la exposición de las diversas capacidades humanas iden-
tificadas por Ricœur, así como de su contrapartida, los no‑poderes,
para luego fijarnos en aquella negación que caracteriza la violencia
sobre las víctimas. Incluso, aunque no sea objeto de atención aquí,
esta reflexión nos pone de frente a la fragilidad propia, así como a
la responsabilidad que tenemos al ejercer nuestro poder sobre otro.
Las capacidades a las que alude Ricœur son básicamente cuatro:
decir o hablar, esto es, designarse como el autor de enunciados
propios; actuar, intervenir en el curso del mundo, iniciar un acon-
tecimiento, hacer que algo pase; narrar y narrarse, contar la propia
vida y la de otros en tramas que organizan la dispersión de lo vivido
en relatos que pueden seguirse, volver a relatarse de modos distintos,
con otros sentidos; imputabilidad de una acción, es decir, recono-
cerse como el autor, el responsable de una acción determinada, que
se articula a la capacidad de reconocer el bien o la obligación, de
“estimar como buenas o malas, de declarar permitidas o prohibidas
las acciones de otros o de nosotros mismos”.42 Ricœur tratará tam-
128
bién la capacidad de recordar43 que complementa la configuración
del ¿quién? como una capacidad de atribuirse recuerdos, de luchar
contra el olvido, mucho más cuando éste no es resultado del paso
ineluctable del tiempo, sino de poderes extraños que se imponen
mediante la violencia o la ideologización. Por último, nos hallamos
la capacidad de prometer que supone en primer lugar hacer lo que
se promete a otro que se hará, pero que sobre todo concierne a “una
voluntad de constancia, de mantenimiento de sí, que pone su sello
en una historia de vida enfrentada a la alteración de la circunstan-
cias y a las vicisitudes del corazón.44
A la capacidad de hablar se opone el silencio, el no poder decir,
el no encontrar las palabras adecuadas, el hallarse en situaciones en
las que no se sabe qué y cómo proferir un discurso. Por su parte, la
víctima pierde la capacidad de decir o hablar cuando es silenciada
con la amenaza constante a su vida o a la de su familia. Se le niega
la posibilidad de decir su mundo, de llamar por su nombre a los
victimarios y a las circunstancias que han propiciado su situación;
en últimas, la víctima es testigo de excepción de “la impotencia para
decir que resulta de una exclusión efectiva de la esfera lingüística”
y corre el riesgo de “creerse incapaz de hablar”, de ser “inválido del
lenguaje”, mutilado.45
La contrapartida de nuestra capacidad de acción es la pasividad,
nuestra no‑omnipotencia, el aguijón de la ausencia de fuerzas, de la
enfermedad, del desgaste por el paso del tiempo, así como la impo-
sibilidad de calcular completamente los efectos de nuestras acciones.
Esta incapacidad se agudiza en el caso de las víctimas, que pierden
su capacidad de reconocerse como agentes: se ven obligados a irse
de su tierra; no pretenden dejar sus formas de vida asociadas a su
129
territorio y de repente se ven empleados en oficios que ni siquiera
conocen o que nunca imaginaron, y viviendo de la caridad de un
familiar o del escaso subsidio que consiguen en diversos estamentos
públicos o privados.46
A esta capacidad negada o disminuida de agencia se suman expe-
riencias en las que se crea un ambiente de culpabilización – aneja al
rompimiento de mínimos lazos de camaradería y solidaridad – res-
paldado por el afán, legítimo, claro está, de encontrar responsables,
pero que termina viendo en todo otro un sospechoso, presuntamente
culpable, o a un enemigo. En otros casos, “los sentimientos de culpa
[son] generados por las imágenes y juegos mentales de las proba-
bilidades: si yo no lo hubiera dejado ir, si se hubiera venido antes,
etc.”;47 en otros, los sobrevivientes “todavía hoy deben vivir de forma
permanente en la tensa frontera del miedo. Su única culpa es haber
quedado vivos; han sido sometidos a no tener rutinas diarias y a
no tener proyectos de vida estables. Hasta para entrevistarlos hay
que buscar condiciones especiales de seguridad. En su cotidianidad
ocupa un lugar central aquello de ‘tener un bajo perfil’”.48 Y a ello se
suma que el Estado, cuando tendría que reconocer su culpabilidad,
sólo “se solidariza” con las víctimas,49 una expresión que reduce la
grandeza de la solidaridad al juego teatral de sentir lástima, y que
130
no se traduce en imputación de cargos ni en juicios a los perpetra-
dores de los crímenes, junto con autores intelectuales, auxiliadores y
cómplices, ni en la generación de condiciones efectivas para resarcir
el carácter de sujetos de derecho de las víctimas.
En lo concerniente a la memoria – cuyo revés es el olvido – la
idea rectora del análisis ricœuriano es que ésta “es del pasado”.50
Esto significa que lo recordado: (1) pasó de verdad; (2) ya pasó y (3)
permanece.51 Lo que pasó pasó de verdad, no puede negarse, echarse
para atrás, no se puede torcer el curso de los acontecimientos; sólo
queda hacerse cargo. Este hacerse cargo va acompañado del asalto
permanente de las imágenes dolorosas que acompañan la vida de los
sobrevivientes, testigos excepcionales de los crímenes: “Las víctimas,
constituidas en cuanto tales por ese traumatismo, configuran sus
recuerdos con imágenes, en imaginación ‘ven de nuevo’ lo que vieron
y vivieron, pero se trata de imágenes que dan cuerpo al recuerdo,
no que lo volatilizan haciéndolo imaginario”.52 Por su parte, ya pasó
hace referencia a que la vida de sus seres queridos no será más,
ni sus pies retornarán a la tierra natal, ni recuperarán los vínculos
sociales ni los proyectos de vida deseados. Sin embargo, lo que pasó
adquiere un carácter presente al seguir repitiéndose en el sueño y
el llanto, en el vacío evidente marcado por pequeñas ausencias en
las rutinas cotidianas, en el silencio doloroso de sus muertos. La
prueba de la realidad hace que muchas víctimas experimenten que
fueron disminuidos en su vitalidad, que se acabó la vida también
para ellos, todo lo cual es característico de la melancolía en la que
“es el yo mismo el propiamente desolado: cae bajo los golpes de su
131
propia devaluación, de su propia acusación, de su propia condena,
de su propio abatimiento”.53
Por último, lo que pasó permanece como testimonio de fidelidad:
fidelidad de reconocimiento en tanto deber de memoria; fidelidad
a los que ya no están, que bien puede relacionarse a la deuda
con las promesas incumplidas de los hombres y mujeres que nos
precedieron. Desafortunadamente, también pueden permanecer un
tipo de promesa pronunciada por los detractores: “volveré”, “si no
te vas…” “si hablas…”, que imposibilitan no solo el tejido de lazos
intersubjetivos con los que han sobrevivido, sino cualquier atisbo
de compromiso social, político y económico del “Nunca más”, todo
lo cual impide la restitución de las capacidades.
No obstante, esta promesa que se inscribe en el deber de la me-
moria tiene que estar atenta a no permitir la “captación de la palabra
muda de las víctimas”.54 Esta captación no sólo arrebata la capacidad
de decir que debe agenciar la víctima, sino que le impide a ésta
la recomposición de su quién en la confrontación con el otro. No
puede haber silenciamiento, así éste se inspire en una consideración
respecto a la dificultad de hablar. Ningún trabajo con las víctimas
puede amparar la consagración de cualquier tipo de minusvalía.
El peligro de la captación se le atribuye también a los sistemas
de poder que pretenden imponer una identidad unívoca mediante
etiquetas como “víctima”, “desplazado”, “marginal”, que reducen el
“¿quién?” al “¿qué?”. Estas etiquetas, además, corren el peligro de
legitimar el orden social injusto si no propenden por el reconoci-
miento efectivo del carácter de sujeto de derecho que le corresponde
a todo ser humano.
En esta misma dirección, Ricœur advierte sobre la “función selec-
tiva del relato”, que nos pone de frente a la capacidad de narrarse.
132
Todo relato selecciona entre muchos acontecimientos aquello que
quiere ser tejido en la trama narrativa. Asimismo, la selección hace
parte del deber de memoria, que Ricœur considera como el deber
de hacer justicia55. Más aún, como lo recuerda Silvia Pierosara,56 hay
una relación entre la exigencia de ser reconocido y la demanda de
ser reconocido, justamente, como narrador [y añadiría, siguiendo el
Estudio VI de Sí mismo como otro: protagonista, coautor del sentido]
de su propia historia. Pero cuando esa selección está marcada por
una estrategia de manipulación política que estipula qué se puede
narrar, a quién se le atribuye la responsabilidad y a quién se consi-
dera “innombrable”, o a quién no puede imputársele delito alguno,
la selección se vuelve cómplice de la impunidad y – ¡una vez más! –,
del silenciamiento.
133
victimarios; capacidad de recordar de otro modo, de emprender
otras vivencias y ganar otras memorias, de hacer nuevas promesas
e incluso capacidad de perdón entendido como don, y no como im-
posición religiosa o jurídica que opere como el punto de partida de
una paz que pretende ser duradera a condición de la amnesia o la
impunidad.57 Esto es posible si las iniciativas estatales, en conjunto
con las de la sociedad civil, apuestan por la configuración de esce-
narios donde sea posible la restitución de las capacidades humanas.
En estos escenarios se asume que el ejercicio de las capacidades
requiere aprendizajes individuales y colectivos, pautas compartidas
de reconocimiento y ámbitos de desarrollo.
¿Por qué ponemos este énfasis en el Estado y en la sociedad civil?
Seguramente como respuesta a la urgencia de la mediación institu-
cional para destrabar, sostener o iniciar trabajos con víctimas que
se vienen llevando a cabo a lo largo y ancho del país, cuya mera
descripción ocuparía un trabajo independiente. También porque el
“detonante”, por llamarlo de algún modo, de nuestra investigación
fue la Ley de víctimas que compromete al Estado y todas sus ins-
tituciones, como al cambio necesario de una sociedad civil a veces
cansada, a veces indiferente o a veces temerosa de lo que puede
pasar en su seno si tiene que modificar paulatinamente sus modos
de ser, de actuar, de juzgar incluso a esos “otros” que parecen ser
las víctimas.
Pero también este énfasis cobra sentido si lo examinamos a la luz
de los planteamientos de Ricœur. En Parcours de la reconnaissance,
134
Ricœur cierra la exposición de su fenomenología del hombre capaz
indicando que las capacidades comienzan a desarrollarse como prác-
ticas sociales, es decir, como “componentes del obrar en común”,
como “la esfera de las representaciones que los hombres se hacen
de sí mismos y de su lugar en la sociedad”58 y que “contribuyen a
la instauración del vínculo social”.59 En otras palabras: en medio de
prácticas sociales aprendemos nuestra lengua y, con ella, a nombrar
el mundo, a actuar de determinadas formas y a evaluar la bondad,
la justicia o la conveniencia de nuestras acciones; son prácticas
sociales las que nos enseñan a narrar de determinadas maneras, y
a seleccionar trozos de nuestra vida en función de su evaluación
retrospectiva y de su proyección futura; asimismo, recordamos según
formas enmarcadas socialmente, consagradas en rituales familia-
res, barriales, nacionales o de otra índole. Así, en el vínculo social
se pone en juego más que un mecanismo de asociación con fines
egoístas o de mera preservación de la especie; al vincularnos unos
con otros, posibilitamos el ejercicio de nuestros proyectos de vida
que forzamos a hacer aparecer en la historia.
Si remitimos esta idea concretamente al propósito de que las
víctimas vuelvan a ser considerados seres humanos capaces, ten-
dríamos que evitar cualquier ejercicio inspirado en el principio
individualista del “cada uno es responsable de su futuro” que cir-
cula abierta o discretamente en nuestra sociedad y que ha marcado
varios proyectos del gobierno que pretender hacer de los despla-
zados “pequeños empresarios”. Por el contrario, un trabajo con las
víctimas, a la vez que ayuda a que cada quien se reconozca como
sujeto capaz, se apropie de las condiciones necesarias para hacer
su proyecto de vida y luche por la restitución de sus derechos,
propende por la restauración de sus lazos y prácticas sociales en
135
medio de los cuales se representaban como hombres y mujeres
dignos de estima y respeto, así como por la transformación y aper-
tura del derecho, de las instituciones políticas y de los modos de
ser de la sociedad civil.
En suma: sólo en la articulación entre la base antropológica
del autorreconocimiento y el reconocimiento mutuo tiene razón de
ser la lucha decantada en leyes y sostenida (cuando no suscitada)
por diversos colectivos, movilizaciones sociales, ONGs y entes gu-
bernamentales. Sin la institucionalidad, se corre el riesgo de que
las demandas por el reconocimiento en contextos problemáticos
como el del conflicto armado – y acaso también en el pretendido
postconflicto – carezcan de los dientes suficientes para garantizar
su cumplimiento; sin el recurso a la base antropológica, acrisolada
por la meditación sobre qué es lo justo y lo bueno en el contexto de
nuestras sociedades plurales, la aplicación de la ley puede adquirir
el cariz de un proceso técnico, que sigue instrumentalizando a las
víctimas. Se trata, diremos con Ricœur, de lograr una “estructura
dual del reconocimiento jurídico” que “consiste… en la conexión
entre la ampliación de la esfera de los derechos reconocidos a las
personas y el enriquecimiento de las capacidades que estos sujetos
se reconocen”. 60
60 Ibíd., 288‑289. Queda para una discusión posterior la crítica que hace Taylor
según la cual “mientras en sus últimos trabajos Ricœur reconoce el conflicto entre
universalismo y contextualismo, él concede demasiado al papel de lo universal
en normas de ética y justicia” (George Taylor, “Ricœur versus Ricœur? Between
the Universal and the Contextual”, en From Ricœur to Action. The Socio‑Political
Significance of Ricœur’s Thinking, eds. Todd Mei y David Lewin (New York:
Continuum Books, 2012), 136. La discusión enriquecería no sólo los estudios sobre
Ricœur, sino las disputas en torno a cómo implementar leyes mediante las cuales
se atienda a la particularidad de cada caso que involucre víctimas, al mismo tiempo
que se mantiene vigente la posibilidad de la garantía de sus derechos a largo plazo,
toda vez que aún no arribamos al “Nunca más” que ponemos en el horizonte de
nuestras luchas políticas.
136
5 – La formación del sujeto. El lugar de la atestación
137
Pero como no hay sí mismo sin otro – pieza clave de la filosofía
práctica ricœuriana – también me atesto como sujeto en el momento
en que mis propios puntos de vista, proyectos, planes, ideales, se
ponen frente a otros, tanto a los otros de las relaciones cercanas
como los otros de las relaciones sociales más amplias; a esto se suma
que mis puntos de vista se ven confrontados con los puntos de vista
más decantados y estables de la sociedad, así como con un marco
simbólico de normas, y también con el ámbito del derecho. Aquí
Ricœur define la atestación como la “capacidad de yuxtaponer los
puntos de vista personales e impersonales con respecto a la propia
vida”.62 En otras palabras: entre lo que quiero y lo que puedo, entre
lo que quiero y me es permitido atesto mi capacidad de desarrollar
mis proyectos de vida.
No solo tenemos estos dos “modos” en los que atestamos nuestro
sí, sino que hay un tercer modo que puede resultar más exigente.
Digamos que existen situaciones en las que mis proyectos y la
sociedad en la que vivo no entran en contradicción, sino que pare-
ciera que se enriquecen mutualmente. Pero Ricœur suele remarcar
situaciones en las que debemos responder por nosotros mismos y
por los otros, en las que no está del todo claro lo que ha de hacer-
se, en las que hay incluso contradicciones entre nuestros propios
proyectos o entre dos normas que, en otras ocasiones, conviven sin
problemas en la sociedad. Aquí la atestación, dice el francés, es “la
certeza según la cual, en esta situación, esta decisión es la mejor,
lo único que hay que hacer”. 63
El énfasis pareciera estar puesto siempre en el sí mismo: primero
ante sus propias capacidades, luego sometido a las exigencias de las
relaciones con otros y luego ante situaciones de difícil resolución
en las que tiene que decidir. Sin embargo, volvemos a decir que no
62 Ibíd., 79.
63 Ibíd., 82.
138
se entiende la filosofía ricœuriana si no se considera el doble mo-
vimiento que va del sí al otro y del otro al sí, doble movimiento en
el que es posible la atestación de nosotros mismos. Este movimien-
to no solo concierne a una declaración de la necesidad – de algún
modo “inevitable”, por así decirlo – de que los otros estén de algún
modo en mi vida desde mi concepción hasta mi muerte, sino sobre
todo a una íntima invitación mutuamente lanzada a responder por
el otro, que procede de las entrañas de nuestro modo de ser, pues
la alteridad “no se añade desde el exterior a la ipseidad, como para
prevenir su derivación solipsista, sino que pertenece al tenor de
sentido y a la constitución ontológica de la ipseidad”. 64
En relación con la problemática de las víctimas del conflicto co-
lombiano, digamos que el hecho – convertido ya en lugar común y no
por ello falso – de que un alto porcentaje de colombianos tenemos un
familiar, un conocido, un amigo o un vecino que ha sido víctima del
conflicto armado (cuando no lo hemos sido nosotros mismos), cons-
tituye un desafío que no puede dejar quieto al pensamiento ni a la
acción. Y más allá de esta consideración acaso meramente estadística,
tendremos que asumir en serio que la víctima es quizás el otro‑otro,
el otro que desafía esta especie de modo de ser mortífero instalado
en la sociedad.65 A riesgo de caer en una generalidad, diríamos que
signos de este modo mortífero de ser los hallamos en la costumbre
de la muerte, en el alto umbral de maltrato que podemos soportar
antes de indignarnos y actuar consecuentemente, en la corrupción
de las instituciones, en la práctica de la justicia que se compra con
dinero, y un largo etcétera. ¿Qué significa atestarnos en un contexto
semejante? Ricœur resalta una forma particular de atestación del sí
según la cual decir “aquí estoy” significa sobreponerse al hecho de
estar constituido por las aberraciones de la historia, cuyos efectos, si
64 Ibíd., 367.
65 Ricœur, Soi‑même comme un autre, 298.
139
bien no son dominados por una conciencia individual que pretende
enseñorearse sobre el sentido, tampoco pueden ser una mordaza
para la resistencia interior. Esto, sin embargo, nada tiene que ver con
el heroísmo moral de unos pocos elegidos, ni con la indiferencia,
sino con una imaginación creadora capaz de proyectar sobre lo que
hay, precisamente porque lo ha vivido y reflexionado, la posibilidad
de una nueva manera de habitar el mundo. En esta nueva manera,
frágil y necesitada siempre de nuevos respaldos institucionales, el
sujeto está llamado a responder de sí, por otros y con otros.
Asimismo, la atestación es la forma en que cada quien como
sujeto capaz da cuenta de sí mismo respondiendo al llamado del
otro, respuesta que acontece en la asunción para mí, en primera
persona, de la voz del otro que dice: “¡No matarás!”, “hasta el punto
de convertirse en mi convicción, esa convicción que iguala el acu-
sativo del “¡Heme aquí!” al nominativo del ‘Aquí estoy’”. 66 Dicho de
otro modo, lo que atrás citábamos de Reyes Mate 67 asume la figura
de una responsividad en la que doy testimonio de mi condición de
sujeto capaz en la relación con el otro a quien le ha sido negada su
humanidad. “Aquí estoy” dice también “aquí respondo” a situaciones
que me generan indignación, cuyo punto más sensible “concierne
al contraste insoportable… entre la atribución igualitaria de dere-
chos y la distribución desigual de bienes en sociedades como las
nuestras, que parecen condenadas a pagar el progreso como pro-
ductividad en todos los campos por un incremento sensible de las
desigualdades”. 68
66 Ibíd, 391. La expresión “aquí estoy” es tomada de Gen 22, 1 y 1 S 3,4, que
suele citar Levinas en Totalité et infini.
67 “Sólo hay sujetos morales cuando la relación es simétrica, pero hasta llegar ahí
los dos sujetos necesitan el reconocimiento del otro, aunque no de la misma manera.
Aquí debe (en el sentido de deuda y de obligación) más quien más tiene”.
68 Ricœur, Parcours de la reconnaissance, 292.
140
Sentirnos concernidos por las víctimas no es [sólo] una temática,
un problema teórico, o un problema político, sino una “respuesta
moral” al atentado contra la dignidad de otros que obliga a que cada
quien, como sujeto capaz, se sienta partícipe (obligado, impelido,
convocado) del “proceso de ampliación de la esfera de los derechos
subjetivos”, de suerte que asuma esta convicción: “la responsabilidad
en cuanto capacidad para responder de sí mismo es inseparable de
la responsabilidad en cuanto capacidad para participar en una dis-
cusión razonable sobre la ampliación de la esfera de los derechos,
sean civiles, políticos o sociales. El término responsabilidad abarca,
pues, la aserción de sí y el reconocimiento del mismo derecho del
otro a contribuir a los avances del derecho y de los derechos”.69
Asumir una tal responsabilidad tiene que ver con la educación
política en el seno de la ya frágil sociedad civil. Y no puede hacerse
al margen de un diálogo con las ciencias sociales, al mismo tiempo
que con la pluralidad de voces de la sociedad, que nos permita en-
tender un contexto como el colombiano – así como orientar nuestras
acciones en él – inserto en una red de relaciones históricamente
constituidas que opera como una máquina de producción de víc-
timas, en una lógica que calcula su progreso a costa del sacrificio
de seres humanos prescindibles; de escandalosa distribución de la
tierra, reducción del campesino a pequeño productor cuyo trabajo
jamás logra competir con las multinacionales o debe ponerse a su
servicio; de empobrecimiento y expropiación hecha por vías legal-
mente protegidas; de abandono del papel estatal en materia de salud,
educación o servicios públicos, entre otras prácticas que están en
los tuétanos del Estado y de la sociedad.
En esta tensión entre el deseo de vida buena articulada a la
consecución de relaciones intersubjetivas de reconocimiento y en
69 Ibíd., 293.
141
instituciones justas,70 se realiza una forma de atestación que hunde
sus raíces en lo que Ricœur denomina “el principal problema de la
democracia: ¿cómo educar en la adhesión crítica a unos ciudadanos
que se encuentran en la situación de no alcanzar nunca a generar
por sí mismos lo político?”.71 Dicho de otro modo, atestar el sí mismo
es mantener viva – si es que, en algunos casos, no hay que decir:
iniciar – la responsabilidad histórica que tenemos como sujetos en-
carnados, que habitamos el mismo mundo de la vida y en el cual nos
las tenemos que ver con nuestra propia finitud, de “participar en el
proceso de ampliación de los derechos subjetivos”,72 a lo que habría
que añadir: de nuestros derechos económicos, sociales y culturales.
Es fomentar “la capacidad, reconocida a la vez por la sociedad y por
sí mismo… [de] pronunciarse de una manera racional y autónoma
sobre cuestiones morales”.73 En fin, asumir que la responsabilidad
como capacidad para responder de sí mismo es inseparable de la
responsabilidad a la que nos invita la configuración de una sociedad,
de una cultura, de un sistema económico que detenga su carrera de
producir seres humanos prescindibles.
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L o s l í m i t e s d e l p e r d ó n r i c œ u r i a n o d e sd e
l a p e r sp e c t i va a r g e n t i n a
T h e l i m i t s o f R i c œ u r ’ s c o n c e p t o f f o rg i v e n e s s
f ro m a n A rg e n t i n i a n p e r s p e c t i v e
Esteban Lythgoe
UADE – CONICET, Argentina 1
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_4
Ricœur. Este ejemplo nos llevará a sostener que este modelo
de perdón, termina beneficiando a los culpables de crímenes
de estados en detrimento de sus víctimas.
Palabras clave: Hegel; legitimador; perlaboración; reconcilia-
ción; rehabilitación
146
Perdón en el marco de la justicia transicional y la memoria
traumatizada
147
diálogo con Jaspers, Hegel, Arendt, Derrida y Abel.4 Nuestra hipó-
tesis es que, pese a que Ricœur presenta al perdón sólo como un
problema ético entre dos individuos, también incluye una finalidad
de corte político: la reconciliación nacional. Esta hipótesis se funda
en el ejemplo seleccionado para poner de manifiesto los beneficios
del perdón y el antecedente hegeliano en el que se basa el desarrollo
del perdón. Este último punto nos llevará a tomar distancia de la
tesis de Badiou5 de que la base de toda la argumentación de Ricœur
es la religión. Aun coincidiendo en la existencia de premisas religio-
sas dentro de la argumentación, consideramos que el perdón está
asociado con su interés en sus últimos años por el reconocimiento.
Habiendo determinado un objetivo individual y uno colectivo del
perdón, concluiremos este capítulo remitiéndonos a un ejemplo de
la historia transicional de la Argentina reciente para ilustrar ciertos
aspectos que fueron desapercibidos por Ricœur. Este ejemplo nos
llevará a sostener que el modelo ricœuriano de perdón, termina
beneficiando a los culpables de Crímenes de Estado en detrimento
de sus víctimas.
4 Nuestro capítulo se centra en el debate que lleva a cabo Ricoeur con sus con-
temporáneos, pero resulta interesante el contrapunto que se puede hacer sobre la
temática de la falta y el perdón con Nietzsche en la Genealogía de la moral. Aunque
Ricoeur no lleve a cabo explícitamente ese diálogo en el capítulo abordado, la pre-
sencia del autor de Las consideraciones intempestivas es manifiesta en La memoria,
la historia, el olvido. Para el tratamiento del diálogo entre ambos autores sobre este
tema, cf. Polivanoff, “Historia, olvido y perdón. Nietzsche y Ricoeur: apertura de la
memoria y el olvido a la vida.”
5 Badiou, “The Subject supposed to be a Christian: On Paul Ricœur’s Memory,
History, Forgetting”.
148
que podemos denominar “monopolar”, y otro, “bipolar”. El primero
de estos modelos es defendido por Derrida en El siglo y el perdón.
Allí el perdón es caracterizado como una facultad o posibilidad
humana excepcional o extraordinaria, que interrumpiría el curso
ordinario de la temporalidad histórica.6 Entre otras particularidades,
el filósofo argelino lo presenta como fin en sí mismo, fuera de toda
lógica de intercambio, por lo que, quien lo conceda lo debe hacer
de manera gratuita, incluso a quienes no se arrepienten ni lo piden.7
Con otras palabras, no hay intercambio alguno: el que perdona dona
algo, aun cuando quien lo afectó lo desconozca o haya muerto.
Ricœur adelanta el segundo modelo en su interludio a Sí mismo
como otro. 8 Allí afirma que Hegel, tras haber descripto la natura-
leza de la tensión entre Antígona y Creonte como “…la estrechez
de perspectivas del compromiso de cada uno de los personajes.”,9
propone al perdón bipolar como vía para su conciliación. En líneas
generales, en la Fenomenología del espíritu se sostiene que, sólo
se habría podido lograr que ambos protagonistas de la tragedia de
Sófocles hubiera sobrevivido, si ambos hubieran podido renunciar
149
a sus posiciones particulares. En esta obra el perdón es descrito
como una relación de reciprocidad que posibilita la reconciliación
a través de la renuncia de las parcialidades mutuas de quienes se
encuentran en conflicto.
Nuestro autor rechaza toda propuesta hiperbólica, como la de
Derrida, para quien “cada vez que el perdón está al servicio de una
finalidad, aunque ésta sea noble y espiritual (liberación o reden-
ción, reconciliación, salvación), cada vez que tiende a restablecer
una normalidad (social, nacional, política, psicológica) mediante un
trabajo de duelo, mediante alguna terapia o ecología de la memoria,
entonces el “perdón” no es puro, ni lo es su concepto.”10 En su lugar
recurre al estudio de Mauss sobre el don11 a fin de “… recuperar la
dimensión recíproca del don en contra de una primera caracteriza-
ción como unilateral.”12
Dicho análisis pone de manifiesto la gran generosidad del
donatario, cuyo gesto sería vista como derrochadora, desde una
perspectiva mercantil. Sin embargo, no se trata de dar sin esperar
nada a cambio: hay una lógica de intercambio diferente a la del dar
y devolver, que se la caracteriza como la de dar y recibir. El don
exige una respuesta: “el mandato de amar a sus enemigos comienza
por quebrar la regla de reciprocidad, al exigir lo extremo; fiel a la
retórica evangélica de la hipérbole, el mandato querría que sólo
fuera justificado el don hecho al enemigo, del que, por hipótesis,
no se espera nada a cambio. Pero, precisamente, la hipótesis es
falsa: del amor se espera precisamente que convierta al enemigo
en amigo.”13
150
Frente a la posibilidad de que la horizontalidad del intercambio
lleve a la suposición de la existencia de una reciprocidad entre am-
bas partes, se enfatiza el abismo vertical existente entre cada uno
de los polos, deteniéndose en aquellos atributos en las que se funda
esta cesura. El primero de los polos, la falta, ya había sido tratado
de manera tangencial en la tercera parte de esta obra. Allí, desde
la perspectiva heideggeriana de la deuda, se hacía abstracción del
componente moral, para limitarse sólo a la problemática temporal.14
En este epílogo, en cambio, se incorpora la cuestión moral. En lugar
de detenerse en las consecuencias que la falta tiene en sus víctimas,
su interés gira en torno a los efectos que la falta tiene en el agente
del acto. El análisis comienza con la confesión, como instancia don-
de el agente se hace responsable de su acto, y evalúa, desde una
perspectiva “metafísica”, los motivos por los que la falta paraliza el
poder obrar del culpable.15
Cuando se vincula la falta con el mal de la manera propuesta
por Jean Nabert,16 se puede explicar los motivos por los que la
capacidad del culpable se encuentra limitada.17 La remisión al mal
posibilita asociar la experiencia de la falta con la del fracaso, en
tanto ineficacia de lo realizado, y con la de la soledad, como rup-
tura de toda comunicación recíproca. La relación de la falta con lo
14 Cf. Ricœur, Op. Cit., 468‑9: “El vínculo entre futuridad y paseidad es garan-
tizado por un concepto puente, el de ser deudor. … Pienso que la idea de falta
debe recuperar su lugar en una fase bien precisa del juicio histórico, cuando la
comprensión historiadora es enfrentada a daños probados: la noción de daño hecho
a otro preserva entonces la dimensión propiamente ética de la deuda, su dimensión
culpable. … Pero antes es bueno disponer del concepto moralmente neutro de deuda
que no diga más que el de herencia transmitida y que hay que asumir, lo que no
excluye inventario crítico.”
15 Cf. Ricœur, Op. Cit., 585: “La cuestión ahora planteada trata de otro enigma
distinto del de la representación presente de una cosa ausente marcada con el sello
de lo anterior. Es doble: el enigma de una falta que paralizaría el poder obrar de
este ‘hombre capaz’ que somos; y, como réplica, el de la eventual suspensión de
esta incapacidad existencial designada por el término perdón.”
16 Jean Nabert, Ensayo sobre el mal.
17 Cf. Ricœur, La memoria, la historia, el olvido., 591‑3.
151
injustificable, por su parte, explica el sufrimiento de sus víctimas y
la degradación de su agente. El agente en este estado entra en con-
tacto “… con un impedimento interior, con una impotencia radical
para coincidir con un modelo de dignidad, al mismo tiempo que
con un frenesí de compromiso en la acción cuya medida apenas la
da el odio, y que hace estallar la idea misma de afección de sujeto
por sus propias acciones.”18
La confesión, por su parte, es caracterizada como un tipo de im-
putación, en la que la reflexión se atribuye a sí un acto. La diferencia
clave con la adscripción, empero, es el componente moral presente
cuando el sujeto autoexaminado asume una acusación y se hace car-
go de la falta, y se autodesigna “culpable”. Este reconocimiento lleva
a que el sí asuma el componente activo de obrar mal y el pasivo de
haber sido afectado por la propia acción. Ricœur no llega a enfati-
zar suficientemente la importancia moral de la confesión en tanto
incorpora al culpable en el reino de la moral, precondición necesaria
para el perdón. Jaspers observa, en nuestra opinión atinadamente,
que no a todos se les puede predicar la culpa moral. En su libro
sobre la culpa, este autor distingue entre aquella pequeña minoría
que planificó y llevó a cabo los crímenes de estado, de aquellos
que cometieron “… un error culpable, tanto si se encubrieron có-
modamente lo que sucedía o se adormecieron y se dejaron seducir
o comprar para obtener ventajas personales cuanto si obedecieron
por miedo.”19 Dado que la culpa moral está ligada con una capaci-
dad reflexiva, lo criminales carecerían de este tipo de culpa por ser
incapaces de arrepentirse. Los segundos, en cambio, sí lo son, pues
son aquellos pasibles al arrepentimiento y la confesión.20
152
La experiencia de la falta es un hecho para la reflexión, el “hay
perdón”, también. Este simple planteo aleja a Ricœur respecto de
autores como Hartmann,21 que rechazan su posibilidad. “Si el per-
dón fuera posible, afirma, constituiría un mal moral, que pondría
la libertad humana a disposición de Dios y ofendería la dignidad
humana.”22 Este polo será caracterizado por dos aspectos. En coin-
cidencia con Derrida, el primero consiste en señalar su origen en
las religiones judía, cristiana y musulmana. Ambos autores disien-
ten respecto a los motivos por los que su uso se ha generalizado, a
punto de que está habiendo casos resonantes de perdón en países
con tradiciones completamente diferentes a la abrahámica. Mientras
Derrida lo asocia con una suerte de banalización de dicho concepto
con finalidades geopolíticas,23 Ricœur insinúa motivos de carácter
extra históricos y políticos que podrían justificar su globalización,
y que sus investigaciones pretenden revelar.24
En el marco de esta consideración resulta pertinente volver hacia
la crítica de Badiou. Este editor de La memoria, la historia, el olvido
calificó a Ricœur de hipócrita por haber ocultado la raíz cristiana
que se encuentra a la base de su argumentación: “Mi crítica principal,
en el fondo, apunta a lo que considero menos como una hipocresía
que como una falta de civilidad, y que es común a tantos fenome-
nólogos cristianos: la absurda disimulación de la fuente verdadera
y transformación. Son como son. … Hay culpa moral en todos aquellos que dejan
espacio a la conciencia y al arrepentimiento. Son moralmente culpables las per-
sonas capaces de expiación, aquellos que supieron o pudieron saber y que, sin
embargo, recorrieron caminos que ahora, en el autoexamen, estiman como un error
culpable.
21 Nicolai Hartmann, Ética.
22 Ricœur, Op. Cit., 595.
23 Cf. Derrida, Op. Cit., 11‑2.
24 Cf. Ricœur, Op. Cit., 597: “Esta simple observación plantea el gran problema
de las relaciones entre lo fundamental y lo histórico para cualquier mensaje ético
con pretensión universal, incluido el discurso de los derechos del hombre.”
153
de las construcciones conceptuales y de las polémicas filosóficas.”25
François Dosse defiende a Ricœur, señalando la contradicción en la
que cae Badiou, por basar, por una parte, sus planteos en la tesis
de que “…los creyentes no tiene derecho de ciudadanía en el mun-
do de la filosofía…”26 y haber reconocido, por la otra, la existencia
de un diálogo riguroso con Ricœur acerca del cristianismo, al que
considera como un tema central para la actualidad. El historiador
refuerza su defensa señalando la meticulosidad ricœuriana de no
confundir el plano religioso del filosófico, pese a su reconocida
convicción religiosa. En mi opinión, las respuestas de Dosse no son
suficientemente contundentes frente al embate de Badiou. Con res-
pecto a la primera observación, es posible sostener sin contradicción
alguna que el cristianismo es una problemática importante a ser
debatida desde una perspectiva sociológica, política, antropológica
e, incluso, conceptual, sin por ello aceptar la posibilidad de una
filosofía cristiana. En segundo lugar, por más reconocida que sea
la capacidad de Ricœur de deslindar lo filosófico de lo religioso,
eso no quita el carácter explícitamente religioso de un punto tan
nodal para la posibilidad del perdón como la afirmación de que el
desacomplamiento entre el sujeto moral y sus acciones “… expresa
un acto de fe, un crédito otorgado a los recursos de regeneración del
sí.”27 También resulta religiosa la tesis de que la confianza en esta
tesis descansa en última instancia en las religiones del Libro. Ahora
bien, en la medida en que estas tesis son explícitamente religiosas,
pierde sentido la carátula de hipócrita. Esto no levanta la duda de
si se puede hacer filosofía desde el cristianismo. Sin embargo, con-
sidero que el hecho mismo de que el perdón, por más banalizado
que pueda llegar a estar, tenga un origen religioso habilita a que se
154
recurra a ese origen para resolver sus paradojas. A esto le debemos
agregar, finalmente, que el carácter que tienen estos aportes es,
en última instancia, de atestación,28 lo cual deja abierta la fuente
epistémica de donde pudo surgir esta afirmación.
El segundo aspecto que caracteriza a este polo es el amor, en
tanto agapé o caridad, como fuente de inicio del perdón. Este amor
no sólo es incondicional, sino que coloca a quien perdona en las
alturas. De esta manera, se vuelve manifiesto el contraste que existe
entre el lugar de quien perdona y la condicionalidad y la profun-
didad de quien ha cometido la falta. Aquí también se recurre a la
tradición religiosa, en este caso, cristiana, para explicar la capa-
cidad de perdonar lo imperdonable, es decir, aquello que por su
aberración no se puede castigar. Mientras autores como Arendt 29 o
Jankélévitch 30 están en contra de dicha posibilidad,31 Ricœur la avala
recurriendo a los planteos de San Pablo. Así explica que entre la fe,
la esperanza y el amor, esta última virtud es “la más valiosa: porque
el amor es la Altura, la grandeza misma. Pero si el amor disculpa
todo, ese todo comprende lo imperdonable. Si no, el propio amor
sería aniquilado.”32
155
Habiendo sido descrito al perdón como una relación bipolar y
asimétrica entre un culpable y una víctima, el siguiente paso con-
siste en determinar en qué dimensiones opera. Para ello, se toma
como punto de partida la distinción de los cuatro tipos culpas de
Jaspers (criminal, política, moral y metafísica). Al igual que Derrida,
Ricœur dedica una parte importante de su exposición en deslindar
el perdón de la dimensión jurídica.33Esta confusión se funda en la
tesis del carácter sustitutivo del castigo y el perdón, utilizado como
premisa contra la posibilidad de perdonar aquello que no puede
ser castigado. Aunque el castigo y el perdón se refieran al mismo
acto criminal, uno no sustituye al otro, pues perdonar lo ya cas-
tigado crearía impunidad. De este modo, “… el perdón no puede
enfrentarse frontalmente con la falta, sino marginalmente con el
culpable.”34 Una de las consecuencias más importantes de esta dis-
tinción entre el perdón y la justicia es la posibilidad de perdonar
crímenes imprescriptibles. En el desarrollo de esta argumentación,
Ricœur disocia al crimen del culpable, adelantando lo que será su
explicación de cómo funciona el perdón: “son los crímenes los que
se declaran imprescriptibles. Pero los castigados son los individuos.
Teniendo en cuenta que culpable significa penable, la culpabilidad
se remonta de los actos a sus autores.”35
El perdón tampoco opera de manera política. Arendt está en lo
correcto al ubicarlo junto con las acciones humanas, no sucede lo
mismo con la tesis de que “… descansa en experiencias que na-
die puede realizar en la soledad y que se fundan totalmente en la
presencia del otro.”36 Los fracasos que se produjeron al intentar ins-
titucionalizar al perdón demuestran que es inconcebible su carácter
33Cf. Ricœur, Op. Cit., 586: “La cuestión planteada es, pues, la del perdón al
margen de las instituciones responsables del castigo.”
34 Ricœur, Op. Cit., 599.
35 Ricœur, Op. Cit., 605.
36 Ricœur, Op. Cit., 623.
156
político.37 El motivo de esta imposibilidad radica en el amor sobre
el que se funda. Apoyándose en Kodalle,38 Ricœur sostiene que los
pueblos no son capaces de perdonar, por carecer de conciencia moral
y porque, a escala colectiva, el amor y del odio funcionan de ma-
nera distinta que la memoria.39De este modo, el tratamiento de esta
capacidad queda encuadrado en las dimensiones moral y metafísica.
Esta última dimensión fue llevada a cabo en el análisis de la falta,
donde ésta era vinculada con el mal y, por esa vía, con la soledad
y el fracaso. Queda pendiente, pues, su dimensión moral.
El perdón es la capacidad de desligar al agente de su acto. De
esta manera, queda presente la deuda del agente, pero sin la carga
de culpabilidad. La falta no se olvida, pero una vez desvinculado
de la carga, “el culpable [está] capacitado para comenzar de nuevo:
ésta sería la figura de esta desligadura que rige todas las demás.”40
Con esta tesis, toma distancia respecto, por una parte, de Arendt,
para quien el perdón consistiría en desligar el acto de sus conse-
cuencias.41 Esta posición resulta contraproducente para Ricœur, ya
que funcionaría de manera análoga a como lo hace la amnistía, es
decir, imponiendo una suerte de olvido de la deuda con el pasado.42
Se trata, por el contrario, de levantar la condena al sujeto moral, sin
157
dejar de condenar por ello el acto. Como adelantamos más arriba,
Ricœur también disiente con Hartmann y Badiou, quienes consideran
imposible desligar al agente de su acto. Según estos autores, el sujeto
se identifica con sus actos, por lo que al desvincularlo de sus actos,
se convertiría en un sujeto diferente al que cometió el crimen. 43
Ricœur reconoce la dificultad de esta objeción, pero sostiene que
la verdadera disociación no se produce entre un primer sujeto que
comete el daño y otro segundo que es el castigado, como arguye
Badiou. Reivindicando la metafísica aristotélica del acto y la potencia
por sobre la sustancialista, sostiene que el desacople se produce
entre “…la efectuación y la capacidad que ésta actualiza.”44 Así,
43 Cf. Badiou, Op. Cit., p. 27.7. Si bien es cierto que Ricœur le hace esta ob-
servación a Derrida, y no a Badiou, cuyo artículo es posterior a La memoria, la
historia, el olvido, considero que esta respuesta es más aplicable a Badiou que a
Derrida. Como adelantamos en la nota iii, el argumento derridiano no hace descansar
el cambio del sujeto en quien perdona, como sí lo hacen el texto de Ricœur y de
Badiou (“me acerco, una vez más, al argumento de Derrida: separar al culpable de
su acto, en otras palabras, perdonar al culpable sin dejar de condenar su acción,
sería perdonar a un sujeto totalmente distinto del que cometió el acto.” (Ricœur,
Op. Cit., 628). Derrida, por su parte, sostiene que la modificación se produce en el
momento del arrepentimiento del culpable, es decir, previo a la intervención del
perdón: “imaginemos que perdono con la condición de que el culpable se arre-
pienta, se enmiende, pida perdón y, por lo tanto, sea transformado por un nuevo
compromiso, y que desde ese momento ya no sea en absoluto el mismo que aquel
que si hizo culpable. En ese caso, ¿se puede todavía hablar de un perdón? Sería
demasiado fácil, de los dos lados: se perdonaría a otro distinto del culpable mismo.”
(Derrida, Op. Cit., 18).
44 Ricœur, op. cit., 628.
158
abandona a la desnudez de su enunciación, sería: vales más que
tus actos. 45
159
ofensores y delante de los testigos.”46 Reconoce, en cambio, el prag-
matismo de los perpetradores que recurrían a la confesión pública
como una estratagema para obtener una amnistía judicial. Pese a este
resultado fáctico desalentador, uno de los móviles de este epílogo
tiene como presupuesto la capacidad del perdón para levantar las
limitaciones en las potencialidades del perpetrador.47 Ricœur señala
en más de una oportunidad este beneficio existenciario‑existencial:
“esta diferencia respecto al estatuto de criatura contiene en reserva
la posibilidad de otra historia inaugurada continuamente por el acto
de arrepentimiento y acompasada por todas las interrupciones de
bondad y de inocencia en el transcurso de los tiempos.”48
Pese a rechazar el vínculo directo entre perdón y política, nuestra
hipótesis es que este tratamiento del perdón incluye un objetivo in-
directo de corte político. Entre los elementos que avalarían nuestro
planteo se encuentran: el modelo en el que se inspira su propuesta,
el ejemplo fáctico utilizado, y la aspiración política del autor. El
modelo en el que se inspira no sólo es político, sino que también
es interpretado de este modo. La lectura hegeliana de la Antígona
de Sófocles pone de manifiesto la irreconciabilidad de dos regíme-
nes legales antitéticos representados en las figuras de Antígona y
Creonte. Su propuesta es que, la única manera de haber salvado a
ambos hermanos, hubiera sido renunciando a sus parcialidades y
reconciliándose a través del perdón. En efecto, “… esta reconciliación
descansa en una renuncia efectiva de cada bloque a su parcialidad
y adquiere el valor de un perdón en el que cada uno es verdadera-
mente reconocido por el otro. Y es precisamente esta conciliación
160
mediante la renuncia, este perdón por reconocimiento, lo que la
tragedia – al menos la de Antígona – es incapaz de producir.”49
Cuando Ricœur recupera estas consideraciones en Sí mismo como
otro tiene como objetivo poner de manifiesto la importancia política
y ética de la sabiduría práctica en situación.50
La elección del ejemplo fáctico para determinar los efectos so-
ciales del perdón tampoco es casual. Habiendo recurrido a Osiel51
para evaluar la relación conflictiva entre el enfoque jurídico y el
histórico, Ricœur estaba al tanto de lo sucedido en los tribunales de
Nuremberg, Tokio, Argentina y Francia. Sin embargo, cuando tuvo
que elegir un caso para estudiar, se inclinó por el sudafricano. No
cabe duda que esa elección fue motivada por el espíritu conciliato-
rio de su comisión. Habiendo reconocido el objetivo político de la
reconciliación de la comisión “Verdad y reconciliación”,52 recurre a
su lema para contraponerlo al caso alemán y japonés.53
Esto nos lleva finalmente a la aspiración de una política concilia-
toria por parte de nuestro autor. El último apartado de La memoria,
la historia, el olvido, denominado “El perdón y el olvido”, presenta
161
un resumen de lo tratado en el epílogo desde una perspectiva ins-
titucional. Cuando presenta a las instituciones del olvido, Ricœur
explica que se fundamentan en el hecho de que “la sociedad no
puede estar eternamente encolerizada consigo misma.”54 Aunque
presenta una serie de reparos frente a ellas, reconoce valor a la paz
interna y el aporte pragmático que la amnistía hace en esa dirección:
“aquí, el filósofo se guardará de condenar las sucesivas amnistías
de las que la República francesa en particular ha hecho gran con-
sumo, pero hará hincapié en su carácter simplemente utilitario y
terapéutico.”55 Nuestro autor reconoce la importancia epistémica del
dissensus social, pero no parece tener la misma consideración de él
a nivel político y jur íd ico.
Si el beneficio colectivo del perdón es la reconciliación, ¿cómo
se puede producir, cuando es imposible un perdón colectivo? En
términos generales, nuestro autor buscaría establecer que la recon-
ciliación social es el resultado del pasaje de la memoria individual
impedida a la memoria feliz a través del perdón. En primer lugar,
asocia al perdón con la reconciliación. Ricoeur, en Caminos del
reconocimiento, plantea al perdón como una vía para llegar a la
memoria feliz: “la relación que establecemos entre la memoria y la
promesa hace eco, en un sentido, a la que Hannah Arendt plantea
entre el perdón y la promesa, en la medida en que el perdón hace
de la memoria inquieta una memoria apaciguada, una memoria
feliz.”56 Por su parte, en La memoria, la historia, el olvido la memo-
ria reconciliada es señalada como una de las figuras de la memoria
feliz: “así se despliega la dialéctica del desatar‑atar a lo largo de las
líneas de la atribución del recuerdo a sujetos múltiples de memoria:
memoria feliz, memoria apaciguada, memoria reconciliada, como
162
serían las figuras de la felicidad que nuestra memoria desea para
nosotros mismos y para nuestros allegados.”57
El vínculo entre la reconciliación y los demás no es, empero,
inmediato en La memoria, la historia, el olvido. La reconciliación
es presentada inicialmente desde una perspectiva psicoanalítica y
ligada al vínculo con el pasado: la per‑laboración, como trabajo de
rememoración, rompe con los procesos de repetición y permite que
el paciente se reconcilie con el pasado reprimido. Ni bien el concepto
es introducido, se lo asocia con el perdón con la siguiente adverten-
cia: “Guardemos de momento este término de reconciliación, que
volverá al primer plano en nuestras reflexiones posteriores sobre el
perdón.”58 El vínculo más explícito entre el perdón, la reconcilia-
ción y los demás se realiza en el cierre del epílogo, tomando a la
atribución como hilo conductor:
163
Abel, quien sostiene que el perdón es una cuestión menor dentro
de La memoria, la historia, el olvido y ajena al desarrollo del resto
de obra:
Las palabras de Ricœur, explicando por qué este tema fue re-
cluido al epílogo, parecieran abalar esta posición. El filósofo explica
que ambas partes difieren en contenido y metodología. El aborda-
je metodológico, denominado “escatológico”, no se identifica con
ninguno de los tres anteriores (la fenomenología de la memoria, la
epistemología de la historia y hermenéutica de la condición histó-
rica). Por su parte, la falta como paralizador del hombre capaz y el
perdón como suspensión de esta incapacidad difieren de la temá-
tica del cuerpo de la obra que es la representación del pasado. 61
Badiou, por el contrario, sostiene que la totalidad de la obra está
supeditada al perdón:
164
en el momento crucial de la correlación entre olvido y perdón.
Luego el sujeto, no importa cuán anónimo ha permanecido no
tiene ninguna oportunidad de escapar a la sobre determinación
cristiana. 62
165
sesgado, y que el caso tomado, en lugar de los tratados por Osiel,
incidieron fuertemente para avalar las conclusiones a las que se
arriba nuestro autor. De haber tomado otros ejemplos, se hubiera
puesto fácticamente de manifiesto los límites de esta propuesta,
ya que beneficia al criminal en detrimento de la víctima. En esta
sección quisiéramos poner de manifiesto estos aspectos que que-
daron ocultos, tomando para ello lo sucedido con los juicios a los
represores en la Argentina. 63
Tras un golpe de estado en marzo de 1976, un gobierno de
facto cívico militar, autodenominado “Proceso de Reorganización
Nacional”, se hizo cargo del país durante seis años. Según los da-
tos de diversas organizaciones de derechos humanos, el gobierno
asesinó a alrededor de treinta mil personas.64 En lugar de reconocer
la responsabilidad por estas muertes sumarias, se desentendieron
de ellas, caratulando su situación de “desaparecidos”. Tras la caída
de este régimen, el gobierno del Dr. Alfonsín (1983‑1989) inició
los juicios a las responsables de este genocidio. Ante el aumento
exponencial de las prosecuciones y el surgimiento de dos revueltas
166
militares, este gobierno decidió limitar el alcance de los juicios.65
Para hacerlo legisló dos leyes, en 1986, la ley de punto final, que
imponía un límite de sesenta días tras su declaración para el inicio
de procedimientos ulteriores, y en 1987, la ley de obediencia debida
que excluía de la prosecución a todos los miembros de las fuerzas
armadas que hubieran actuado bajo órdenes superiores. Ambas le-
yes fueron rechazadas vehementemente por las organizaciones de
derechos humanos.
El gobierno subsiguiente, del Dr. Carlos Menem (1989‑1999), pri-
vilegió la gobernabilidad por sobre las violaciones a los derechos
humanos. Con ese fin en mente, propuso una reconciliación nacional,
que incluía el perdón de cientos de militares juzgados así como de
militantes de izquierda acusados de crímenes durante la década del
setenta. En este período de inmunidad algunos militares confesa-
ron públicamente las atrocidades realizadas durante los años de la
por ellos denominada “guerra sucia”. De ellas, se destacaron la del
capitán retirado Scilingo, que afirmó haber participado en dos de
los llamados “vuelos de la muerte” en los que se arrojaron treinta
víctimas drogadas desde un avión de la armada hacia el mar; y
la del entonces jefe de las fuerzas armadas, general Martín Balsa,
reconociendo oficialmente el uso de metodologías ilegales durante
esos años. En lugar de aceptar seguir estas tendencias conciliato-
rias y perdonar a los perpetradores de estas masacres, las distintas
organizaciones de derechos humanos coincidieron en rechazarlas
y reclamaron su anulación a través de distintos actos públicos. Al
grito de “ni olvido ni perdón” exigían que se juzgaran a los res-
ponsables de estos crímenes de lesa humanidad. En el año 2001 el
poder judicial declaró la inconstitucionalidad y nulidad de las leyes
de amnistía, punto final y obediencia debida. A partir del año 2003,
el gobierno del Dr. Kirchner tuvo políticas proactivas para proseguir
167
con estos procedimientos, llevándolos hasta sus últimas consecuen-
cias. Gracias a este cambio de actitud por parte del gobierno, se
pudo llevar a juicio no sólo a militares subordinados, sino también
a empresarios civiles vinculados con el régimen.
Dada la reconocida importancia de la presión de las organizacio-
nes de derechos humanos en este cambio de tendencia respecto a los
juicios a los culpables, surge la pregunta de qué hubiera sucedido
si, asintiendo con la propuesta gubernamental, estas organizaciones
hubieran perdonado a quienes confesaron estos crímenes, en vez de
rechazar toda medida conciliatoria. Evidentemente hubieran quedado
indemnes todos aquellos que no fueron juzgados después de la ley
de punto final. Dicho de otro modo, los criminales se hubieran visto
más beneficiados por el perdón que sus víctimas. Ricœur rechaza la
eliminación de la pena a raíz del perdón, considerándola un acto de
impunidad, pero pasa por alto que la anulación de una prosecución
a raíz del perdón también lo sería.
Hemos visto que, a diferencia de Ricœur, Jaspers insinúa el ca-
rácter casi alternativo de la culpa criminal y la moral. En su opinión
es muy improbable que los culpables criminales vayan a tener culpa
moral, porque es improbable que se arrepientan. Los que se arre-
pienten y asumen la culpa moral, carecen de culpa criminal. 66 Esto
significa que, independientemente de su arrepentimiento, el grupo
minoritario es juzgado y condenado; los segundos, que se vieron
beneficiados en lo económico, laboral e incluso social, en cambio,
no tendrán juicio ni condena. A falta de castigo para estas personas,
el perdón terminaría legitimando los privilegios que obtuvieron
durante los años de violencia, amparándose en su alianza con los
criminales, en detrimento de sus víctimas. Al igual que en el caso
66 Cf. Jaspers, op. cit., 90: “Culpa criminal: sólo afecta a unos pocos, a mí no;
no me incumbe para nada.
168
anterior, los culpables morales que fueran perdonados terminarían
siendo favorecidos por sobre las víctimas.
Conclusión
169
crímenes juzgables, pero que se han visto beneficiados por los
criminales, legitima la posición privilegiada que lograron obtener
a costa de las víctimas.
En su artículo “Sanción, rehabilitación, perdón”, escrito seis
años antes de La memoria, la historia, el olvido, la preocupación
de Ricœur parecía más enfocada en la víctima. Así explicaba que,
“el perdón es una suerte de cura de la memoria, el fin del duelo.
Quitado el peso de la deuda, la memoria es libre para grandes pro-
yectos. El perdón le da a la memoria un futuro.”67 ¿Cómo es posible
que el perdón se centrara más en la víctima que en el criminal?
Básicamente porque el perdón funcionaba de manera diferente que
en la obra del dos mil. Pese a haber referencias a la economía del
don y a la lógica de la superabundancia, los problemas de la víctima
y el culpable se resolvían por caminos diferentes. En efecto, era la
justicia, y no el perdón, la que rehabilitaba al culpable.68 La reha-
bilitación es “… finalmente la que restaura una capacidad humana
fundamental, aquella del ciudadano como portador de derechos
cívicos y legales.”69
Independientemente de todos los recaudos que se tomen, resulta
contraproducente todo modelo de perdón que intente resolver en
un mismo proceso los problemas de la víctima y de su perpetrador.
Coloca a ambos polos en un inaceptable mismo nivel: el de dos
parcialidades que deben conciliarse.
170
Bibliografía
171
——. La memoria, la historia, el olvido. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2008.
——. Pasado y presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina. Buenos Aires:
Siglo XXI, 2002.
172
Temporalidad, acontecimiento y poder
T e m p o r a l i t y , e v e n t a n d p ow e r
Aníbal Fornari
Facultad de Filosofía ‘Edith Stein’
de la UC de Santa Fe/ CONICET, Argentina 1
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_5
formalidad de la natalidad. Esta formalidad requiere tematizar
el contraste fundamental que sustenta la experiencia viva del
tiempo, a nivel personal e histórico. Finalmente, a través de
la racionalidad narrativa, que despliega aún más la dinámica
estructural de la temporalidad, se aborda la dimensión del
acontecimiento, que profundiza el contraste del tiempo y re-
descubre el sentido originario del poder en forma convergente
con el sentido propiamente humano de la identidad como
ipseidad. Este trayecto teórico pretende poner radicalmente
en crisis superadora el uso político de la violencia, al rememo-
rarse el bicentenario de la independencia hispanoamericana.
Palabras‑clave: acontecimiento; alteridad; identidad; pasivi-
dad; verdad.
174
rative rationality – one which reveals even more the structural
dynamics of temporality – the paper tackles the dimension of
the event, which deepens the aforementioned contrast of time
and rediscovers the originary meaning of power as converg-
ing towards the properly human meaning of identity as being
ipseity. With this reflection, I aim at radically criticizing the
political use of violence by recalling the bicentennial birthday
of Hispano‑American independence.
Keywords: alterity; event; identity; passivity; truth.
Introducción
175
es: capaz de convocar las subjetividades desde su experiencia exis-
tencial originaria y dejarlas reunir para potenciando sus respectivas
identidades a través del libre convivir. Se trata del nacimiento del
poder desde un positivo sin‑poder, que es críticamente asumido
cuando se reconoce que el dinamismo hacia la propia identidad sólo
puede acontecer como ipseidad, como atravesamiento liberador de
la mismidad por la alteridad, a través de los vectores o experiencias
de pasividad. En ellas, más allá del horizonte intencional, se indica
meta‑categorialmente la discreta presencia de la alteridad fundamen-
tal, sugiriéndose desde
176
todológica, aún cuando se han atestiguado en su historia potentes
indicios pre y meta‑políticos de una cultura del encuentro, de alta
significación universal en el proceso mundial venidero. Mientras
por el camino del estigma sólo se instala el injusto fracaso de las
naciones y de su gente, concentrando la culpabilidad en los de
afuera, sin pensar ni asumir la responsabilidad por una discusión
libre y profunda sobre las condiciones efectivas de posibilidad del
desarrollo de sus pueblos.
177
del irrecusable progreso que representa esta psicología respecto de
toda cosmología del tiempo”,3 cabe preguntarse si, efectivamente,
conviene a nuestra experiencia humana postular la necesidad de una
interpretación psicológica que erradique la pertinencia antropológica
de la dimensión cosmológica del tiempo. El sorprendente dinamismo
pluriforme de la naturaleza material‑viviente compenetrada desde
la síntesis de la subjetividad con la corporeidad humana, al par que
marca, sitúa y solidariza nuestra existencia en el orden natural de
la finitud y la mortalidad, también esa misma naturaleza cósmica
nos provoca hacia la altura con su inagotable carga de inteligibi-
lidad, a ocuparnos de ella como nuestra casa y a explorarla como
nutriente, tornándose ámbito de infinitos hallazgos y referencia de
todos nuestros encuentros.
Sin la dimensión cosmológica, además de nuestra alma poética,
se vacía de referencias el tiempo calendario (desde la pasividad de
la carne), el de la sucesión de las generaciones (desde la pasividad
de nuestra pertenencia intersubjetiva) y el tiempo de la huella es-
tética y ético‑religiosa (rememorada en la voz de la conciencia). No
se trata de una marginalidad pietista sino de exhibir los presupues-
tos últimos alterativos atestiguados por la razón crítica, acerca de
un componente decisivo de la pluralidad cultural inherente a una
democracia viva. Lo cual es ratificado tras haberse experimentado
la censura cultural y política totalitaria, que aprisionó al conjunto
social en el tráfico de la sospecha y en el adoctrinamiento positi-
vista. En efecto, Václav Havel (1936‑2011), discípulo del filósofo Jan
Patocka y con él perseguido y excluido por el régimen, llega a ser
el primer presidente democrático de la República Checa (1989‑2003),
y muestra la positiva significación axiológico‑política del contraste
que constituye la temporalidad misma, cuando es llevada al diálogo
3 P. Ricœur, Temps et récit III. Le temps raconté (Paris: Seuil, 1985), 19.
178
con el lenguaje de la alteridad del ser, a través de la naturaleza
como signo:
179
reivindicar para ello ese significado decisivo que se niega; res-
petar con humildad de sabios los confines del mundo natural y
el misterio presente detrás de esos criterios; reconocer que en el
orden del ser hay algo que manifiestamente supera nuestra com-
petencia; dirigirnos siempre de nuevo al horizonte absoluto del
ser, horizonte que – basta con quererlo – nos permite descubrir
y experimentar nuestro ser de modo siempre nuevo. 5
180
todas las otras relaciones, sin ser corroída por el tiempo perdido.
Estando a la altura del deseo y del sentido de la pregunta que soy
para mí mismo: quæstio mihi factus sum.
Entonces, la distentio animi, la distención del yo es la dilatación
de la conciencia encarnada que acompaña el curso intencional del
yo‑en‑acción articulado entre el presente, el futuro y el pasado.
La intentio animi hilvana las relaciones efectivas que establece el
actuar en el tiempo. Por tal razón el movimiento cosmológico – que
de todos modos implica el tempus animi – es medido numerando
su movimiento, pero no puede totalizar el contraste de la tempo-
ralidad que comienza con la transposición del instante cualquiera
de Aristóteles hacia la centralidad existencial del triple presente:
del pasado en la memoria presente, del futuro en la espera pre-
sente y del presente en la atención y en la iniciativa que articula
en el ahora futuro y pasado. El instante aristotélico, en cambio, es
un corte efectuado por el animus sobre la continuidad numerable
del movimiento en un momento cualquiera, ya que todo momento
puede ser el instante presente. Mientras “que el presente agusti-
niano es todo instante designado por un locutor como el ‘ahora’
de su enunciado”. 6
Los instantes numerables como puntos en una línea son de por
sí indiferentes, son de nadie. El descubrimiento filosófico del tiempo
en términos existenciales por parte de Agustín significa que “no hay
futuro ni pasado sino en relación a un presente, es decir, en relación
a un instante cualificado por la enunciación del yo que lo designa.
El pasado no es anterior y el futuro no es posterior sino respecto
de un presente dotado de la relación de sui‑referencia, atestada por
el acto mismo de enunciación”.7 La primacía del presente es la pri-
macía del cogito corporal que, aconteciendo en el mundo, se hace
181
presente en un aquí y ahora tomando la palabra, o sea, abriendo
la pregunta que él es acerca de su ser y su destino con los otros en
el mundo, transformando el instante cualquiera en presente vivo.
La certeza del yo‑soy es inútil si no es el reverso de la dramática
pregunta quién‑soy‑yo, dirigida a sí mismo como un otro, como
ipse. La fragilidad del decisivo presente se ahonda o se esfuma en
la nada del mero instante numérico si esta dimensión existencial
del tiempo no se personaliza en relación a la totalidad del sentido
y a la universalidad y alteridad de todos los hombres. En tal lógica
acontece el momento axial del tiempo histórico articulado con el
tiempo existencial del individuo.
La pertenencia generativa a la particularidad cultural de una
historia es la primera hipótesis de sentido que se da a conocer y
a verificar en su capacidad de amigarse con la razón y la libertad
personal, responsable de sí y de todos. El tiempo histórico emerge
del entrelazamiento de aquel preguntar personal comprometido con
respecto a la pluralidad generativa a la que pertenece el individuo,
con el horizonte abierto al género humano. Porque un significado
para la existencia no es tal si no es intencionalmente totalizador y
abierto a una comunicabilidad crítica universal. Un mero mandato
político invasivo es incapaz de configurar y hacer perdurar el antes
y después axial del tiempo histórico, decretando su significado. Este
siempre surge desde abajo, desde el silencioso y paciente trabajo de
las conciencias que someten el sentido escuchado a la experiencia
vivida. El momento axial del tiempo histórico es fruto del reconoci-
miento intersubjetivo de un acontecimiento vivido como encuentro
excepcional, cuya incidencia liberadora de la existencia como un
todo se realiza a través de generaciones de testigos que transmiten
tal acontecimiento con su vida cambiada, tal como ello fue ates-
tiguado por los “padres fundadores”. Por definición, esa instancia
axial sólo permanece viva al repetirse en su novedad existencial en
el presente, como acontecimiento.
182
¿Cuál es la razón de este énfasis en el presente y la presencia?
El presente dotado de sui‑referencia implicada en el acto mismo de
enunciación arraiga en la forma de ser de quien es el portador del
preguntar. El preguntar es responder – y en tal sentido comenzar
siendo precedido por el Otro en el mismo acto de preguntar como
pedido de diálogo – a una presencia relacional constitutiva del yo
y por eso tan familiar y deseada cuanto desconocida, otra e in
‑deducible. La sui‑referencia es, entonces, al sí‑mismo en cuanto
Otro y por eso no es tautológica: es la relación originaria, misteriosa
es decir: luminosa, que se actualiza. Es el presente de la pasividad
deseosa e interrogativa (sufrida) del yo‑en‑acción que, desde esa
pasividad, se inicia abriéndose al horizonte total de la relación
(actuándose).
183
del tiempo vivido y el curso del tiempo del mundo, desafiando
de nuevo la dicotomía insostenible entre exterioridad cósmica e
interioridad reflexiva.
¿Cuál es la condición ontológica de posibilidad de la temporali-
dad y de la sociabilidad que se manifiesta en el acontecimiento del
“comenzar”? ¿Cómo es posible sustentar la capacidad de iniciar una
acción incidente en el curso del mundo a través del consentimiento
a vivir‑juntos, renovado por el metódico y permanente intento de
ejercer la amplitud correctiva de la capacidad de encuentro? Aquí
Ricœur asume plenamente la genialidad filosófica de Agustín quien,
desde el principio ontológico de creaturalidad de lo existente, dis-
cierne la diferencia entre el hombre (varón‑mujer) y los animales
en el hecho de que el hombre es, por su dimensión espiritual que
atraviesa y trasciende la humanidad como especie, un existente único
y singular (unum ac singulum), mientras que la vida animal emerge
como pluralidad (plura simul iussit existere) y es inmanente a la
especie.9 En efecto, hay iniciativa porque hay alguien que, en cuanto
tal, es un inicio. Sólo un sujeto que es comienzo puede ejercer en el
cosmos y en su mundo la acción de comenzar en el sentido fuerte
de retomar y desplegar lo precedente de un modo dramáticamente
nuevo a nivel del sentido sobre el modo de tratarse a sí‑mismo, a los
otros y a las cosas, desde la libertad. Un existente singular abierto
a lo universal conlleva una distancia interna en la que enraíza la
libertad. Todo ello resulta de la constitución relacional originaria de
quien es único y singular y, por tanto, initium.10 Pues antes de que
sea creado el hombre había principio, la naturaleza había comenzado
y estaba en marcha, pero el inicio aún no existía.
9 Cfr. San Agustín, De civitate Dei, ed. bilingüe, trad. de José Morán (Madrid:
BAC, 1964), tomo xvi de las Obras de San Agustín, Liber XII, cap. xxi .
10 “Para que haya inicio es creado el hombre, antes de quien no hubo inicio”.
“Initium … ergo ut esset creatus est homo, ante quem nullus fuit”. Agustín, De civi-
tate Dei, tomo xvi , Liber XII, cap. xx . [mi traducción]
184
Al ser en el mundo quien es inicio abre el mundo porque lo tras-
ciende en una soberanía protectora que le da un destino. Proviniendo
de la materialidad cósmica y de la novedad terrena de la vida en la
diversidad de sus formas y especies, el yo corporal participa y ex-
cede el orden de la multiplicación de las especies. Dicha excedencia
relacional y fundante constituye también al existente personal como
aquel hacia y para‑quien se ha ido efectuando el devenir cósmico
‑evolutivo, que encuentra en él su télos y que él mismo puede leer
e ir reconociendo en su verdad inagotable, tal como cultivando lo
donado y capitalizado por su propia historia en el horizonte de
la intersubjetividad universal. Entonces, por un lado está lo que
principia, hay principium: la expansión vertiginosa del cosmos, la
configuración excepcional de la tierra, la irrupción de la vida. Por
otro lado hay initium en el continuum del movimiento del universo.
Dice H. Arendt comentando a Agustín:
11 Hannah Arendt, La vida del espíritu, trad. Ricardo Montoro y Fernando Vallespin
(Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984), 496.
185
Sólo quien es procreado viene al mundo bajo la formalidad del
nacimiento: porque irrumpe la novedad de un deseo infinito e in-
colmable que se pone en juego en toda relación atrayente y creativa
como demanda de verdad y felicidad. Tal es el sentido de que en
el hecho de la natalidad enraíza ontológicamente la facultad de la
acción humana. Así prosigue H. Arendt,
186
novedad inherente a la radical pasividad del nacimiento es la que le
otorga al obrar el anclaje ontológico e histórico, de modo que cada
acción puede ser comprendida como el eco del comienzo de una
vida ella misma prometida a comenzar. La temporalidad converge
en el presente porque vivir es comenzar. Y comenzar es responder
al origen, al acontecimiento de nacer. La superior racionalidad del
homo temporalis consiste en cuidar la libertad responsable porque
respondiente, renovando la autoconciencia del comienzo.
2 – Poder y verdad
Iniciativa; h e a q u í l a p a l a b r a c l ave a n i ve l fe n ó m e n o
‑antropológico – exclama Ricœur comentando a Arendt; a lo que
corresponde el consentimiento a vivir‑juntos en el plano político.
Por la iniciativa la acción se excluye de la labor y de la fabricaci-
ón; por el consentimiento el poder se excluye de la dominación
y de la instrumentación que, aplicados sobre el otro, es siempre
187
violencia y sobre las cosas y la naturaleza, uso inteligente o
usura irracional. Que la acción, además, pase por la palabra, no
plantea problema, en la medida en que, en el plano político, el
consentimiento vive de palabras intercambiadas o más precisa-
mente, del principio mismo del intercambio de palabras, a saber,
de la promesa. En última instancia se trata de actos de lenguaje
que tejen los intercambios de donde nace el poder, si este ha de
distinguirse de la instrumentación violenta. 13
188
los acontecimientos históricos y políticos del mundo. Entendiendo
el pensamiento no como una facultad abstracta, intelectualista y
carente de profundidad, sino como la verdadera vida de la mente.
Es decir, la capacidad que tiene cada hombre para buscar y captar
un significado adecuado para vivir y para actuar, siguiendo la voz
cuestionadora de la recta conciencia. Los totalitarismos del siglo xx
nacen precisamente del hecho de inhibir sistemáticamente esta ca-
pacidad crítico‑positiva del pensamiento humano. Hasta el punto
de evidenciar como las formas más brutales, ideológicas y hasta
científicamente calculadas de ejercer la violencia y la depredación
se resuelven en la conciencia totalitaria, como lo destaca el título
de uno de sus libros, en La banalidad del mal de 1963. Allí, más
que identificar en Eichmann, como era de esperar, con el monopo-
lio del mal absoluto, ella dirigió esta mirada despiadada pero de
enorme realismo al hecho de que el mal mismo se esconde entre
los pliegues de las decisiones ordinarias y profesionales de hombres
normales, a los que el régimen ideológico militante hegemónico
los ha privado, con su consentimiento, de la vida de la mente, del
mismo sentido común.
Las decisiones de las que Eichmann trataba de defenderse eran
justificadas por él por el hecho de que “sólo” estaba obedeciendo
órdenes. El contexto político‑partidista de total hegemonía donde él
ejercía su oficio daba obviedad y licitud a comportamientos que, en
una cotidianidad despierta y atenta al criterio de lo humano y lo inhu-
mano, jamás consideraría moralmente factible. La cuestión sostenida
por Hannah Arendt, en medio del griterío escandalizado y farisaico,
es que el mal sigue siendo una posibilidad terrible pero abierta ante
nuestra libertad y, por tanto, es algo que de manera realista todos
podríamos hacer. Basta ver lo que hombres antes “normales” (varones
y mujeres) son capaces de hacer cuando su actuar está cubierto y
excusado por el contexto del odio, de la violencia y de la guerra. Ya
Aristóteles nos advertía que una cosa es la lógica del poder político
189
y otra cosa es el mecanismo violento de la fuerza despótica y que el
pasaje de la una al otro es siempre posible, cuando la sociedad ha
perdido las evidencias universales básicas de la dignidad humana
y la unidad de sentido de las cuatro virtudes cardinales, al menos.
El auténtico poder político es, entonces, del orden del aconteci-
miento. Vive de la cultura del encuentro y de la continua reiteración
gestual de la promesa de vivir juntos para bien‑vivir. Un aconteci-
miento, en sí mismo potenciante de la confianza y de la esperanza
también puede desvanecerse. Sobre todo cuando se enfatizan circuns-
tancialmente las diferencias de ideas y los conflictos de intereses.
Dicho poder desaparece tan pronto las diferencias de ideas y los
conflictos de intereses, en lugar de convertirse en ocasión de una
mayor autoconciencia y capacidad de juicio en la recreación de la
voluntad de vivir juntos, degeneran en partidismo excluyente, en
voluntad de soledad y de hegemonía despótica. ¿Qué subyace a
esa regresión al imperio de la contraposición, del conflicto por el
conflicto y de la violencia como horizonte de una presunta solución
final? Subyace una desfiguración del sentido de la libertad propia de
la singularidad y de la pluralidad humana que, en lugar de regirse
críticamente por la sensibilidad a la verdad de sí y del otro, por la
primacía de la exigencia de justicia y paz, de belleza y felicidad en
la convivencia, hace prevalecer la ilusoria utopía voluntarista de ha-
cerse a sí mismos, la estrecha autoafirmación solipsista y partidista
de bastarse a sí mismo, donde crece el desierto de la despolitiza-
ción, de la prepotencia, del irrespeto y de la enemistad social. En
el miedo a la alteridad del otro se desvanece el sentido y el gusto
por espacio público de aparición y relación, cuyo reconocimiento
es consolidado por el sistema jurídico constitucional. Porque la li-
bertad está siempre en inicio como capacidad de decisión y porque
hay formas regresivas tentadoras siempre al asecho para deshacerse
del problema, pacta sunt servanda y conservan la amistad, en este
caso: el poder de intervenir de todos los implicados.
190
¿Significa esto que la razonabilidad del poder político radica en
última instancia en la forma jurídica y que se sustenta en la validez
de las reglas pactadas? ¿Acaso una banda de ladrones y de mentirosos
no se caracteriza también por sellar bien sus pactos, por cultivar
cierto afecto que mantenga la complicidad y permita resolver cierto
nivel de desavenencias, así como exigirse mutua sinceridad para
estar atentos y evitar ser confundidos por las mentiras de otros o
por tácticas que hagan fracasar sus fechorías? Esta forma de poder
criminal ¿instituye espacio público de aparición y de relación? A no
ser que esté hasta tal punto corrompida la vida política y desnatu-
ralizada la sociedad civil, la mentira y la rapiña tratan siempre de
operar a escondidas. Entonces ¿qué relación hay entre pluralidad,
poder propiamente político de operar a la luz y verdad o pretensión
de verdad? Para Arendt “una de las bases indispensables de todo
poder es la opinión y no la verdad”.14 Esto es importante y precisa
ser bien entendido. En primer lugar, en la tradición filosófica, sobre
todo en el realismo de Aristóteles, la praxis en general y la praxis
política en particular procede sobre lo que es variable, “futuro y
probable”. Por tanto la doxa, la opinión co‑recta según los griegos,
es el logro de un conocimiento aproximado y sabio porque basado en
la experiencia ampliada por la memoria de situaciones análogas y la
pluralidad de opiniones. También es un conocimiento prudente, que
se sabe ampliable y corregible porque la opinión es aquí lo contrario
de la ilusión prepotente de saberlo todo, máxime sobre algo sólo
probable que sucede en situaciones particulares y cambiantes.
En segundo lugar, observa Ricœur que “la doxa griega pasa a la
Öffentlichkeit de la Ilustración, la cual pone en evidencia la diferen-
cia de opiniones, sin la cual no existiría el problema del consenso
para vivir juntos… ¿Se argumentaría en política si se dispusiera de
191
un saber intelectualmente constringente? Más aún: ¿no es acaso el
error, a menudo el crimen, siempre la falta de los regímenes tota-
litarios pretender saber y saber por todos y en lugar de todos?”.15
En tercer lugar, al valorar la diferencia de opiniones como condi-
ción de un posible auténtico consenso y de algún modo invalidar
la pregunta por la referencia del poder a la verdad, considerando
con H. Arendt que no es la verdad sino la opinión una de las bases
indispensables de todo poder, se advierten dos cuestiones. La pri-
mera es que la diferencia de opiniones concerniente a la condición
humana de pluralidad es una diferencia real y productiva cuando
las opiniones son la expresión de una pluralidad singularizada y
consistente. Esto es: cuando corresponde a un cierto grado de ejer-
cicio crítico personal de la razón sensibilizada por la lealtad a la
experiencia, apropiada e intercomunicada con el tino de objetividad
propio del sentido común.16 Esta sensatez elemental impide que la
propia capacidad mental de vinculación con lo real dado en la ex-
periencia sea sistemáticamente mediada por los prejuicios y por las
pre‑comprensiones ideológicas que invalidan la intercomunicación
productiva y sin mediatizaciones de las diversas opiniones.
Planteada esta primera cuestión se percibe que la opinión y, más
aún, la diversidad de opiniones, como base del auténtico poder, im-
plican una tensión de la opinión discursiva hacia la verdad buscada
en el diálogo, cual versión más profunda y realista de entender el
acceso a la verdad en base al primado de la propia conciencia, en
la medida en que ella es educada en la sensibilidad por la simple
objetividad de lo concreto dado en la experiencia e investida por
el sentido de que el otro es, por principio, un bien para vivir más
192
humanamente la propia vida. En efecto, vuelvo al testimonio de
quien como Václav Havel ha expuesto su vida por sostener paciente
y pacíficamente el ideal de la verdad y de la libertad, cuando no
había esperanza calculable alguna de que el sistema totalitario se
resquebrajara, mientras su existencia encarcelada era cubierta por
el manto del silencio impuesto por el estado despótico. ¿Qué es lo
que hay que tener la valentía de aportar personalmente, despriva-
tizándolo, para que acontezca el espacio público de aparición y el
auténtico poder político interpersonal? Se trata de fundar
193
de opiniones: es la promesa de ver mejor contenida en el aporte
posible de singularidades personales, consistentes e insustituibles,
que no son apenas intercambiables átomos de multitud. Se trata
de la verdad‑viva que es la verdad‑relación, la verdad del cuidado
del espacio público de aparición, del gratuito entre‑tenerse juntos,
plurales y diversos para vivir‑mejor. Sólo la intención de encuentro
en esta verdad previa y viva abre el espacio público de aparición,
mientras la mentira y las manipulaciones se preparan y cultivan en
las tinieblas. Se trata, entonces, de la verdad en cuanto es “la visi-
bilidad misma del vínculo social, del ‘entre’ del inter‑esse”.18 Sobre
esa base es después posible el debate de las ideas sin huir de la
sensatez ni de la realidad del hecho político fundamental.
El consentimiento instaurador de vivir‑juntos muestra que, si la
fundación del poder viene de esa libre decisión de la pluralidad de
preferir este camino y establecer las condiciones que lo facilitan
antes que insistir en cobrarse los desencuentros o sacar ventajas
injustificables, la reiteración de este origen puede ser favorecida pero
no garantida por los mecanismos del sistema político‑institucional.
La organización, aún cuando sea evidentemente necesaria, es radical-
mente insuficiente para cubrir lo que es del orden del acontecimiento,
de lo que no existe sino en la medida en que reinicia en el presente.
“Puesto que no hay consentimiento sin fundación, la fundación, pa-
radojalmente, no es algo que hacer sino algo a repetir”.19 Esto es: la
fundación sólo es en cuanto acontece de nuevo. También reaviva la
memoria y el deseo el reconocimiento de los hechos del pasado que
dieron lugar al mencionado consentimiento, en cuanto también hoy
son identificables al ser atestiguados y, así, ellos están ofreciendo
la discreta promesa de un nuevo inicio posible.
194
Si el poder es volátil entonces la fundación es lo único que puede
tornarlo duradero, pero, paradojalmente, la autoridad y durabilidad
le son conferidas al poder por el consentimiento instaurador del
vivir juntos, que puede reiniciar en el presente por obra y gracia
de un acontecimiento de renovación relacional. El que no es po-
sible producir, porque no es un artefacto, pero que sí es posible
desearlo de modo explícito predisponiéndose a él, reconociéndolo
en sus indicios y recibiéndole cuando adviene. Por eso se pregunta
Ricœur: “¿Lo olvidado de lo político se escindiría siempre en dos:
en lo olvidado de lo que somos por el solo hecho de vivir juntos
–aunque sea de modo polémico‑, y lo olvidado de lo que hemos
sido en razón de una fundación anterior siempre presumida y tal
vez nunca encontrable?”20 Efectivamente, no se puede pretender
un nivel epistémico de reflexión crítica dando por obvia la previa
existencia de lo que somos, de lo que existe y bien podría no existir
como lo atestigua su casual origen o dejar de existir como lo mues-
tra su persistente inclinación al desvío y su decadente deterioro. El
pasado tampoco es el fundamento mítico de la comunidad ideal a
restaurar en términos románticos. El pasado ha sido tan dramático
y pendiente de un acontecimiento como lo es el presente. Es parte
del drama captar los indicios relacionales actuantes en el presente
y reconocerlos como posibilidad de reabrir y ampliar el deseo de
vivir‑juntos. Porque para no hundirse en la repetición mecánica
del estrechamiento del deseo en pretensiones sin horizonte, que
anticipan el propio colapso como comunidad histórica, se requiere
la decisión de secundar el deseo‑de‑ser y el mensaje estructural de
la temporalidad misma. La vivencia de la historicidad brota de la
autoconciencia distendida y alterativamente intencionada respecto
del triple presente que articula la conciencia histórica, gracias al
nexo vital del tiempo con su contraste.
195
La distención, en cuanto vivida en la autoconciencia de la subje-
tividad encarnada, no se disipa en las contradicciones del futurismo
utópico ni en el bloqueo ante lo nuevo del pasatismo ideológico,
como maneras de huir del reclamo del tiempo. La consistencia arti-
culadora del presente radica en la instancia de relación participativa
del yo ante una presencia que trasciende el mero transcurrir y
engloba el origen y el destino del tiempo, re‑significándolos. Tal
totalización del tiempo abierta a lo imprevisible e imprevisto desde
el presente vivo que se nutre en la pulsión relacional infinita del yo,
es correlativa a la experiencia de la historicidad en el ethos de una
comunidad por eso mismo abierta e histórica, no encarcelada en el
eterno retorno sobre su mismidad, ni agobiada por la horizontalidad
del indefinido tiempo lineal progresista (a nivel instrumental pero
no a nivel de la libertad). A través del presente del futuro vivido en
la espera atenta de los sucesores que ingresan en el presente del pa-
sado por la memoria afectivo‑crítica de los predecesores, el yo como
relación intencional a una presencia alterativa presente, que eleva la
existencia y la mirada, es urgido por la posibilidad de protagonizar,
asumiendo heridas arrastradas, una cultura del re‑encuentro. Porque
el tiempo mismo, en la distentio animi, es desafío al encuentro del
contenido humano de los éxtasis temporales. En esta articulación
interhumana entre contemporáneos desde predecesores para recibir
a sucesores acontece el auténtico poder y la conciencia crítica de su
sentido, de su operatividad y de su fragilidad.
196
poder y no necesita tanto de nuestro hacer cuanto de nuestra capacidad
de reconocer y proseguir la sugerencia de la alteridad en la pasivi-
dad? Señala Ricoeur que, desde la experiencia de sí como pregunta
sufrida en la curiosidad deseosa de lo verdadero, Agustín plantea
197
perfección concebida como ese tota simul con el que la eternidad
ha sido definida, p. e. simultaneidad entre desear y obtener, entre
proyectar y hacer, entre saber y poder, entre conocer y obrar, entre
prometer y cumplir, entre mandar y obedecer, etc. Por otro lado,
la eternidad como idea‑límite, como alteridad que afirma su otro,
en este caso la positiva significación del tiempo, indicaría en eso
mismo la relativa trascendencia de la conciencia o del yo relacional,
a la disgregación, el olvido y la pérdida inherentes al suceder. Éste,
librado a sí mismo, apartado de la dinámica humana originaria, se
tornaría en cierto modo despiadadamente destituyente y sustituyente
de los individuos entre‑sí.
La desproporción estructural vivida por el yo relacional que so-
mos se enfrenta al desasimiento de su carnal ser en el mundo. La
certeza de su mortalidad, de la que no sabe el día ni la hora de
su cumplimiento, aflige la conciencia de sí y sus implicaciones al-
terativas y afectivas. Pero esa anticipada aflicción no sería posible
sin su aún previa participación corporalmente temporalizada por
el contraste con la dimensión espiritual de eternidad, que se expe-
rimenta en la trascendencia del yo respecto de la materialidad del
mundo que él mismo despierta a la significación y a su expresión
intersubjetiva en la sublimidad de sus obras, sobre todo aquellas
que celebran el encuentro con el significado. Además, el mortal
temor a la voracidad del tiempo es atravesado e intencionalmente
recentrado en la síntesis que la distento animi de hecho realiza en el
triple presente, cuando la idea‑límite de eternidad se anticipa como
condición trascendental de posibilidad del sentido del tiempo mismo
como lugar de manifestación del significado. De modo que dicha
idea‑límite es tal porque no atrae hacia la anulación del tiempo en
una especie de evaporación hacia la eternidad informe, sino que se
encarna como vivencia de una experiencia de la relevancia eterna
del tiempo que la prefigura. El límite que dicha idea señala es como
si dijera: no se evadan del tiempo porque la eternidad necesita
198
tiempo, necesita del drama de la desproporción o de la libertad en
el tiempo. A la gélida pregunta ¿por qué hay tiempo y no más bien
sólo ser? Responde la exclamación ¡qué bueno es que también haya
tiempo, alteridad, pluralidad, diferencia e ipseidad y no sólo ser,
eternidad, totalidad, unidad, indiferencia e identidad! La relevancia
eterna del tiempo, es una esperanza fundada porque ya anticipada
en el triple presente donde el yo ahí‑está, articulando el tiempo y
la eternidad en la densidad del instante. En la medida en que el
instante es vivido en la autoconciencia de la infinitud relacional
del yo respecto de la alteridad fundamental que, en su designio,
resignifica, libera y rescata la pluralidad. De esta pasividad emerge
el poder de los sin poder:
199
(1901‑1999): “De la idea de creación resultan un cosmos temporario,
una conversión temporal, una religión histórica. Así el tiempo es,
al par, justificado y fundado”.23 ¿En qué sentido el tiempo es justi-
ficado y fundado? Me parece que lo es en la medida en que tiempo
y eternidad no se confunden en una perdurable monotonía (tiempo
imagen móvil de la eternidad), ni se contraponen de modo dualista
(tiempo sublunar de la generación y la corrupción, por un lado, y
celeste eternidad astral que permanece indiferente e incólume a lo
que pasa abajo, por el otro). Sólo la dualidad polar, el contraste y el
requerimiento mutuo entre el tiempo y su otro irreductible, indicado
por la idea‑límite de la eternidad, hace saltar la chispa del significado
del tiempo y de su pasiva posibilidad de ser atestado de donación.
Estamos ante una nueva figura del contraste entre mismidad e
ipseidad. Lo otro del tiempo se indica en la experiencia de pasivi-
dad de la distentio animi. Por lo que señala Ricœur a partir de las
Confessiones:
200
de los encuentros y de las cosas que pasan, en todo y por sobre
todo busca, en la atención que perdura y en la que el yo se man-
tiene presente, el objeto o el otro correspondiente a la estatura
significante de su deseo. ¿Quién es en realidad el sujeto de esa
bisagra existencial de la desproporción en la que se contrasta crea-
tivamente el tiempo con su otro, de modo que el tiempo no es ya
un desvanecimiento de la eternidad sino una participación en ella?
No se trata de un sujeto que por ello se torna dueño del ser y del
tiempo. Esta atención sostenida, esta tensión (intentio animi) que
perdura, este yo‑mismo polarizado hacia la idea‑límite del tiempo,
no es el dueño del significado de ese otro que, precisamente, se da
como idea‑límite cuyo contenido él no puede poner. No es dueño
del tiempo porque no es dueño del objeto adecuado del deseo. ¿No
es esto, acaso, hacer experiencia de la propia trascendencia altera-
tiva dentro del límite de la propia mismidad, de modo que ya no
se trata de una anónima eternidad sino de un rostro inalcanzable
desde nuestro esfuerzo por existir?
En efecto, reflexiona Ricœur sobre Agustín: “La noción de disten-
tio animi no recibe lo que le es debido mientras no se contraste la
pasividad de la impresión con la actividad de un espíritu tendido
entre direcciones opuestas, entre la espera, la memoria y la atención.
Sólo un espíritu tan diversamente tendido puede ser distendido”.25
Esto, por un lado, implica que la pasividad de la distentio animi
como carencia de presencia plena de sí a sí‑mismo y como carencia
de eternidad no es apenas un límite de pensamiento (una idea
‑límite kantiana), sino también una ausencia sufrida en el corazón
de la experiencia temporal. Una falta de ser, una limitación que se
manifiesta en el sentimiento ontológico de la tristeza de lo negativo,
de la distancia entre nuestro esfuerzo‑para‑existir respecto de la
plenitud estable y siempre nueva de la vida gloriosa a la que el
201
corazón aspira en el deseo‑de‑ser. Por otro lado y precisamente por
esto último, la pasividad de la dialéctica entre intentio et distentio
animi y el contraste significativo entre tiempo y eternidad ponen de
manifiesto que la mencionada carencia es también positivo indicio
de que ninguna respuesta a la mano, que sea más de lo mismo, está
a la altura de satisfacer la grandeza destinal que urge desde dentro
a la temporalidad humana.
El sentido del contraste entre tiempo y eternidad en San Agustín
es dialógico más que dialéctico. A diferencia de la concepción uni-
dimensional del tiempo como horizontalidad sinfín, que se afirma
utópicamente contra la eternidad en un indefinido transcurrir que
devora generaciones en su propia horizontalidad. Y dicho contras-
te también es dialéctico a diferencia de la interpretación dualista,
donde la referencia vertical a la eternidad devalúa el significado
del tiempo, cual precio a pagar para una liberación hacia lo eterno
informe. El contraste de la eternidad, por el contrario, apremia el
tiempo dándole una finalidad, al par que el tiempo se potencia a
través de instancias que se suceden en la realización de la obra del
hombre mismo y de su mundo, anticipando la eternidad que los lleva
a la plenitud de su propia forma. El contraste nada tiene de evasivo
como abandono de este mundo hacia otro mundo, porque el tiempo
es dramática (o trágica) anticipación de otro mundo en este mundo.
El contraste mediador de la eternidad relanza el tiempo colectivo de
etnias y pueblos hacia el horizonte universal del tiempo histórico.
En el mismo Agustín se verifica el dilatarse de la consideración del
tiempo desde la ontología hermenéutica fundamental (Confessiones)
hacia la filosofía de la historia (De civitate Dei).
Ricœur puntualiza lo precedente al señalar
202
idea‑límite que obliga a pensar conjuntamente el tiempo y el otro
del tiempo. Su segunda función es intensificar la experiencia de
la distentio en el plano existencial. Su tercera función consiste en
llamar a esta experiencia misma a la superación en dirección de la
eternidad y, entonces, a jerarquizarse interiormente, en contra de
la fascinación por la representación de un tiempo rectilíneo. 26
203
una etnia que vive prendida al nostálgico recuerdo de su nacimiento,
cada vez más recluido en lo inmemorial, donde el tiempo se con-
funde con lo eterno que retorna ritual y alegóricamente. Tampoco
hace referencia a un futuro intrahistórico‑utópico de cumplimiento
lineal e indefinido y siempre postergado, cual modelo de perfección
colectivo destinado a cosificarse y desvanecerse a medida que el
presente cobra sus duras exigencias perentorias. En cambio, cuan-
do el momento axial del tiempo es un acontecimiento que sucede
en medio del tiempo, bisecando el tiempo, porque la alteridad de
lo eterno se inserta y se reitera en él con rostro humano, entonces
se abre una historia universal de la atracción sin fronteras a esa
trama de encuentros humanos fundada en el cruce personalizado
del tiempo con la eternidad. Donde la lógica de lo nuevo y del
cruzamiento de lo diverso se da en anticipos testimoniales de una
realización ecuménica.
La tercera función de la idea‑límite es llamar a esta experiencia
del triple presente a jerarquizarse interiormente. El pasado ya no es
y el futuro todavía no es. Sólo el presente es y su mayor jerarquía
consiste en que al cruzarse con la eternidad en la puntualidad del
yo con‑trae pasado y futuro en la conciencia distendida de la propia
existencia desplegada en el tiempo. Abraza en la memoria‑presente
una historia en acción que viniendo del pasado actúa en el presen-
te como contexto de pertenencia y de encarnación del yo. El cual
es, a su vez, relanzado por la espera‑presente hacia un futuro de
posibles atisbados en el presente, cuya forma de cumplimiento no
es del dominio del yo.
Atravesando estas tres funciones de la idea‑límite de la eternidad
Ricœur observaba que ellas cuestionan la fascinación por la repre-
sentación de un tiempo rectilíneo, es decir, privo de referencia a
la alteridad y de diálogo fundamental entre la temporalidad y su
idea‑límite. Lo que, en realidad, es banalización del conjunto del
tiempo, descarte de lo que en él se arriesga y despersonalización
204
del drama de la libertad en la historia. La representación del tiem-
po rectilíneo homologa la temporalidad reduciéndola a un proceso
unidimensional de fuerzas colectivas cuyo progreso es instrumental.
Esta interpretación es inducida por la impresión de un mundo de
identidades privadas de horizonte humano, individualistas e imper-
sonales, a‑históricas y des‑comprometidas y, por eso, irrelevantes.
Lo que responde a una posibilidad degenerativa agazapada en la
historicidad. Pero que debería ser pensada en contraste con la tempo-
ralidad originaria que entiende el hecho epocal sin justificar el poder
que se vale de él como estrategia de ocultamiento y dominación. La
competencia narrativa ¿podrá contribuir, como expresión creativa
de las variadas peripecias vividas por los hombres, a captar otros
aspectos estructurales de la relación entre temporalidad y poder?
205
de lo narrativo es virtualmente desplegado aquí: comenzando por el
simple poema, pasando por la historia de una vida entera, hasta la
historia universal. A estas extrapolaciones, simplemente sugeridas
por Agustín, se consagra esta obra”.28
Si cabe decir que una vida no examinada es una vida que no
merece ser vivida, también se puede decir que la primera figura de
una vida examinada es una vida narrada. Esta conjunción de la vida
en tanto humana con la narración y la temporalidad de la trama,
manifiesta la racionalidad de la práctica narrativa y su despliegue
de un aspecto decisivo de la dinámica estructural del tiempo, que
es la dimensión del acontecimiento y que tiene especial relevancia
para entender el origen y el sentido del poder. Lo cual debe ser
interceptado y reconocido dentro de la dramática de la ipseidad
– de sí mismo en cuanto otro – y liberado de su encierro en la
tautología de lo mismo. La tensión narrativa entre concordancia y
discordancia subsiste si comporta sorpresas y si éstas, al quebrar
la coherencia previsible del relato, sin embargo son creíbles sin
dejar de ser intrigantes. Esto invita a proseguir el hilo de la trama
hacia lo que todavía está ausente y no obstante atrae a continuar el
relato para culminarlo en una historia de pronto entendible como
un todo que invita a pensar. La concordancia de un relato expresa
el principio de orden, propio de la intentio animi, en la concate-
nación de los hechos narrados. Mientras la discordancia remite a
la distentio animi como efectivo transcurso temporal sorprendido
por encuentros imprevistos y por cambios de suerte que hacen de
la trama una intriga.
Entonces, la lógica temporal del relato nunca es lineal y es racio-
nal justo por incluir lo imprevisible mediante una transformación
reglada, que da lugar a la expectativa propia del relato significativo.
28 P. Ricœur, Temps et récit I., 41. De tal sugerencia de Agustín fluye la respuesta
de Ricœur con la extraordinaria trilogía Tiempo y narración.
206
La racionalidad narrativa es coherente con la desproporción humana
y revela al tiempo como síntesis de lo heterogéneo, de lo mismo y
de lo otro, de la interioridad y la exterioridad, de lo previsible y de
lo imprevisto. La concordancia discordante del relato es correlativa
a la trascendencia encarnada del ego en el tiempo y, a través de
esta característica, el relato manifiesta la racionalidad del contraste
dramático del tiempo en su idea‑límite. De hecho, el relato pretende
sostener el testimonio de la vida más allá de su carnal caducidad.
Pero el tiempo – y el curso del relato – están urgidos no tanto porque
se deslizan hacia un previsto aunque incierto momento final donde
la trama se apaga porque se le termina el tiempo, sino porque la
alteridad de la idea‑límite respecto del tiempo suscita la espera que
dinamiza al relato. Además, esta finitud de la vida y de la trama
exalta la búsqueda y la espera porque el triple presente expresa la
relación originaria del yo a una presencia alterativa abscondita que
se hace llamativa a través de las circunstancias. Esa presencia‑ausente
es el lugar fontal de la discordancia, cuestionadora del tiempo li-
neal. La discordancia hace posible la creatividad de la vida y de la
competencia narrativa, restableciendo la concordancia con el nivel
más profundo de la experiencia originaria del contraste del tiempo
y del sí‑mismo a través de otro. Como llanamente se dice, no hay
auténtico relato sin misterio que deja pensando.
Es preciso reconocer que gracias a la desproporción humana
acontece la conciencia de finitud y del desgarro por la contradicción
enrostrada al deseo‑de‑ser por la persistencia del mal y la implacabi-
lidad de la muerte. No hay relato significativo que no esté atravesado
por esta contradicción. ¿Puede tener ello, acaso, un sentido conver-
gente con el deseo que concentra al infinito el dinamismo de la vida
y con ello nutre la trama de los relatos y la misma competencia narra-
tiva? La contradicción que nuestra desproporción atesta ¿no significa,
más bien, que estamos hechos para vivir la relación originaria con lo
que nos supera para superar al fin la contradicción? Que el hombre
207
supera infinitamente al hombre – de pascaliana memoria – significa
que el deseo supera el poder de corresponderlo adecuadamente.
No sólo habla de ello la inteligencia de las evidencias de nuestra
desproporción abierta a la alteridad fundamental, sino también, a
contrario sensu, la voluntad de abolirla mediante la exacerbación
de la autoafirmación y la caída en la necesidad de re‑mitificar el
poder. De ahí la razonabilidad profunda de estas preguntas, que
cuestionan la pretensión de liberar la vida desde la exacerbación
vitalista de la vida misma o desde la capitulación a la sola finitud,
encerrando al deseo en la lógica del idem:
208
instruir en esto la trascendental competencia narrativa? La narración
replica metódicamente esta problemática de la apertura de la exis-
tencia en la experiencia del tiempo a través de la función esencial
de la dimensión del acontecimiento, que es el corazón del tiempo.
Su estatuto ontológico alterativo “transporta a su más alto nivel la
dialéctica de la mismidad y la ipseidad, implícitamente contenida en
la noción de identidad narrativa”.30 Pues en todo relato, la búsqueda
de algo otro es lo que “hace posible la trama, la disposición de los
acontecimientos que pueden ser considerados conjuntamente. La
búsqueda es el motor de la historia en tanto separa y reúne lo que
falta y su superación. Ella es el nudo del proceso. Sin ella no suce-
dería nada”.31 La tensión de la búsqueda posibilita la atención de la
espera. Ambos componentes de la racionalidad narrativa convergen
en la dimensión del acontecimiento, que es el núcleo de sentido de
la temporalidad y del relato que la expresa en sus concretas vicisi-
tudes. Al respecto, Ricœur señala que
209
El acontecimiento, entonces, sólo es y permanece como tal si
asume lo humano e incide en la totalidad de la experiencia de sí,
articulando los tres vectores de la experiencia de pasividad (la car-
ne, la intersubjetividad y la conciencia), que remiten a la alteridad
fundamental meta‑categorial, y si, además, re‑acontece en el presente
abriendo un proceso en el que se renueva y relanza la novedad del
sentido de la trama de la existencia. Si tanto la vida como la trama
se configuran como síntesis abierta de lo heterogéneo, cada circuns-
tancia como fragmento de tal heterogeneidad recibe su significado
y valor del acontecimiento que va piloteando el proceso de totaliza-
ción narrativa. Más aún, el mismo detalle circunstancial es portador
de una vibración del acontecimiento princeps y esta vibración no
sucedería sin tal detalle aportado por la circunstancia, que viene en
todo momento elevada a la significación como lugar privilegiado de
lo imprevisto. El sentido acontece en circunstancias, las totaliza en
su conjunto a medida que ellas se suceden en la tensión discordan-
te de un proceso unitario; finalmente, el acontecimiento revive en
sí mismo desde el desafío de circunstancias que, solicitándolo de
nuevo, lo actualizan, poniendo a prueba su consistencia para llevar
a su culminación la existencia y el relato.
La racionalidad narrativa reúne poéticamente lo que en la coti-
dianidad se tiende a disociar: la sorpresa del sentido totalizador del
rumbo de la trama y la particular dispersión circunstancial. ¿Qué es
lo que cualifica un acontecimiento como princeps o fundante de un
nuevo inicio? Precisamente su capacidad de convertirse en nuevo
principio de inteligencia de lo real y de acción comunicativa a par-
tir de las circunstancias, de lo particular, porque así atestigua una
novedad que, en su libre accesibilidad, refiere y acompaña hacia el
destino, despertando al uso integral de la razón. Estimo que es esto
mismo lo que Ricœur expresa de otro modo: un tal acontecimiento
“pone en falta las esperas creadas por el curso anterior de los acon-
tecimientos. Es simplemente lo inesperado, lo sorprendente y no se
210
vuelve parte de la historia sino de contragolpe, una vez transfigurado
por la necesidad en cierto sentido retroactiva, que procede de la to-
talidad temporal llevada a término”.33 De contragolpe, lo inesperado
se torna necesario para la inteligibilidad significativa de la totalidad
de la vida como trama dramática de la libertad.
Señalaba antes Hannah Arendt que la irrupción de lo impre-
visible e inesperado desde la idea‑límite del tiempo genera, en
quienes se topan con él, esa fe y esa esperanza fundadas, que
transfiguran la naturaleza en historia. Esto es, en expectantes re
‑inicios de encuentros y descubrimientos que se anteponen a esa
natural pendiente al retorno cíclico de lo mismo, en la multipli-
cidad de las dispersas vicisitudes humanas, reducibles al “nada
nuevo bajo el sol”. El acontecimiento fundante es portador de su
propio contragolpe, que Ricœur denomina “inversión del efecto
de contingencia en efecto de necesidad en el corazón del mismo
acontecimiento”.34 Pues éste no es tan sólo “lo que sobreviene en
cierto modo antes de ser posible; sino que aporta también consigo
su propio horizonte de inteligibilidad”.35 Es decir, la experiencia
de la correspondencia entre el deseo‑de‑ser y la excepcionalidad
del contenido radical del acontecimiento, en cuanto significa la
relación originaria constituyente del yo.
Este proceso de asimilación de su mensaje revelador, al par de
consolidar el acontecimiento fundante en la conciencia crítica y
sistemática de la experiencia de la vida personal e intersubjetiva,
también puede desvirtuarse en un proceso de desligamiento de
las consecuencias axiológicas del acontecimiento respecto de la
gratuidad inmanejable de su originario acontecer. Así, comienza a
211
erosionarse y a decaer en su integral significación existencial y a
transmitirse en el tiempo mediante retazos semántico‑culturales o
ramales truncos a la moda de lo que sería una tradicionalidad ínte-
gra y viva. Entonces, el acontecimiento ya no es reconocido como
tal sino fagocitado como un hecho que tarde o temprano habría
de suceder, según la lógica progresiva del determinismo histórico
ontológicamente lineal. Tal sería la lógica de la decadencia de una
gran civilización que, al concebirse en estado de ruptura y des
‑compromiso con la gratuidad del acontecimiento originario que la
posibilitó en su poder‑ser comunidad histórica, pierde también la
inteligibilidad de las consecuencias que pretendía aislar, preservar
y manejar a través de una concepción técnica del poder como capa-
cidad de dividir la sociabilidad y producir hegemonía.
Mientras tanto, “más real que toda realidad, más exterior que
toda exterioridad, el acontecimiento es lo que impide todo cierre
de la existencia sobre ella misma, sobre sus posibles y sobre su
sentido. Si de cualquier modo se quiere mantener el término, tal
es, posiblemente, el verdadero ‘realismo’”.36 Se trata del realismo
que reconoce la existencia como aventura que excede las medidas
del poder‑ser proyectante porque recupera, junto a la experiencia
de pasividad, el estado de nacimiento y de donación por el que esa
existencia está “suspendida originariamente de posibles que ella
no ha hecho posibles, inmersa en un sentido que la precede y que
ella no sabría enteramente dilucidar, atravesada por una historia
de la que ella no es el origen; en breve, como determinada en su
esencia por acontecimientos fundadores”.37 ¿Cuál es la estatura de
esos acontecimientos fundadores de la experiencia del significado
y del valor de la existencia? Ellos no son un depósito manejable de
212
poderes porque originariamente emergen de la conciencia de las
experiencias fundamentales de pasividad portadoras de
213
esperamos?”.40 La mentada desproporción humana,41 que se decanta
como conciencia del presupuesto de todos los presupuestos, esto
es, como juicio expresivo del asombro por la existencia, se sigue
diciendo de diversas maneras:
214
que el yo salve su apariencia. Al estar ante un futuro mudo e inde-
finido, en el que no hay alteridad ni por ende responsabilidad en el
presente, el sentido de toda relación consiste sólo en el manejo del
aspecto técnico‑estratégico del poder, como capacidad de presionar
y violentar para imponerse.
Es justamente aquí donde se nota que el poder ya se ha des-
vinculado de su origen y de su auténtico sentido como riesgo
inteligente de decisión a reabrir, cada vez de nuevo, el espacio
del reencuentro, el cual es su mismo origen. A falta de ello, el po-
der inicia un proceso de desnaturalización que implica organizar
la mentira para homologar las mentes, hacer desaparecer al yo
y doblegar la alteridad bajo la presión del esfuerzo organizador
por mantenerse y de la fuerza para imponerse, hasta llegar al uso
metódico de la violencia. Esta torpeza del amor propio solipsista
exacerba los indicios de división para administrar el conflicto ra-
dicalizándolo y así reinar.
Este juego diabólico implica eludir la significación presente del
previo acontecimiento meta‑político que toda sociedad implica, y
cuya dramática configuración histórica de testimonios del reencuen-
tro atraviesan sus inicuos enfrentamientos y les señalan un más‑allá
posible. Esta corriente testimonial, que nunca falta en las naciones,
es ese mismo sustrato‑signo histórico, significante de lo relacional,
que llama a las puertas de la conciencia y de la libertad de los su-
jetos personales y sociales. Pues es lo que posibilita la vida política
misma y lo que la reclama a la libertad del presente para su reinicio.
Este es el núcleo de la verdadera educación. Porque la libertad en
la historia no es acumulativa y cuenta siempre con la ventaja del
comienzo y con la presencia de los nuevos, pero, por eso mismo,
también está siempre en peligro.
215
5 – A modo de conclusión: Latinoamérica y el poder como
acontecimiento
216
viene y define la trama. El relato instruye acerca de la racionalidad
del acontecimiento.
Si tal es el hilo conductor, sin embargo, puede objetarse que la
dimensión del acontecimiento es poco práctica para tener también
un significado decisivo en la forma de concebir el poder y ejercer la
responsabilidad política. En lo que sigue se muestra, para concluir,
que la incorporación existencial de la dimensión del acontecimiento
genera una conciencia crítica del sentido auténtico del poder, que
verdaderamente da poder, porque es inmanente al origen del poder
mismo. El consentimiento a vivir‑juntos y el encuentro que en con-
secuencia puede llegar a suceder en la medida en que no se trate de
un proyecto formal sino de un deseo real y razonable, transforma
radicalmente el sentido de la acción y del conocimiento político.
Para entender esto es preciso tener en cuenta que el consentimien-
to a vivir juntos puede tener otro canal de acceso, precisamente
contradictorio con la lógica del acontecimiento del encuentro. En
la década del año dos mil diez se rememora en las diversas na-
ciones hispanoamericanas el bicentenario de la declaración de la
independencia como estados nacionales. Y cabe preguntarse si lo
traído hasta aquí aporta una perspectiva crítica contributiva a una
rememoración innovadora. Vale considerar el estado de cosas en ese
siglo xix , que de diversas maneras se prolonga hasta el presente
como una distorsión fundamental en el modo de entender y vivir
la política, atestiguado por el pensador más preclaro de ese siglo,
el tucumano Juan Bautista Alberdi:
217
todo libertador es militar. No hay libertador civil ni político y la
razón de ello es que la espada es el solo instrumento conocido
de la libertad en Sud América. Se diría que la sola libertad aquí
conocida es la “libertad militar”, es decir, la libertad del sable. Tal
libertad es la digna hija de su madre, la espada: hija de la fuerza,
su temperamento es la violencia. La fuerza convertida en libertad
es la tiranía. La tiranía no es sino la libertad concentrada en uno
solo: un monopolio de la libertad. 43
43 Juan Bautista Alberdi, Peregrinación de luz del día, 3° Parte, 1871, X. Cfr.
Idem, Edición crítico‑genética y estudio preliminar de Elida Llois (Buenos Aires:
Editorial UNSAM, 2009). (Entre corchetes es mío)
218
excluir ni aun a los malos porque también forman parte de la
familia. Si establecéis la exclusión de ellos, la establecéis para to-
dos, incluso para vosotros. Toda exclusión es división y anarquía.
¿Diréis que con los malos es imposible tener libertad perfecta?
Pues sabed que no hay otro remedio que tenerla imperfecta y en
la medida que es posible al país, tal cual es y no tal cual no es
… Si tenemos derecho para suprimir al “caudillo” y sus secuaces
porque no piensan como nosotros, ellos le invocarán mañana para
suprimirnos a nosotros porque no pensamos como ellos … No
hay más que un medio de admitir los principios, y es admitirlos
sin excepción para todo el mundo, para los buenos y para los
pícaros. Cuando la iniquidad quiere eludir el principio, crea dis-
tinciones y divisiones; divide a los hombres en buenos y malos;
da derechos a los primeros y pone fuera de la ley a los segundos,
y por medio de ese fraude funda el reinado de la iniquidad, que
mañana concluye con sus autores mismos. 44
219
la transformación benéfica del mundo. Toda la cuestión radicaría
en localizar ese mecanismo o inventar el esquema estructural que
posibilitaría ser justos a bajo precio de compromiso de la libertad.
Quitando del medio a quien se oponga. El despotismo político de
raíz hobbesiana y su continuidad reaccionaria o revolucionaria hasta
el presente tiene así, como constante, la cancelación virtual de la
sociedad civil. Ésta es unilateralmente concebida como el lugar del
mero conflicto, de la violencia y la irracionalidad egoísta. Por ende
es abolida en su original e insustituible positividad, como lugar
de libre y creativa expansión de la convivencia política (a diferen-
cia del dominio concentrado, invasivo y despótico), más allá de la
entronización totémica de poder político en el estado. Porque ahí
donde el poder se concentra como dominio también se lo disputa
al borde de la violencia. La lucha por la posesión del estado, ten-
dencialmente privatizado a favor de quien lo gobierna, procura la
desaparición del otro como contendiente del único lugar de presunta
libertad (arbitraria). La conciencia política se desfigura así en dia-
léctica amigo‑enemigo, la vida social en espíritu de sospecha y de
temor, y el ejercicio del poder en sistemática complicidad.
¿Cuál sería, entonces, la verdadera concepción y praxis del po-
der como acontecimiento, tanto a nivel interpersonal cuanto a nivel
político? El progreso político de la sociedad nacional, regional e
internacional radica en su propio desarrollo relacional. Esto no es
espontaneo sino que implica ser educados a ser parte del protagonis-
mo de la subjetividad de la sociedad. Lo cual supone captar la razón
de la sensibilidad atenta por el otro, de la maduración de la propia
personalidad a través del encuentro verdadero y del descubrimiento
de la belleza de la vida a través de la actitud de vivir el conjunto de
las relaciones que suceden como ocasiones de cultivo de la amistad
social. Esta disponibilidad por la existencia brota de la apertura de
la autoconciencia personal a la relación originaria, manifiesta en
la gratitud conmovida por el don de la existencia. Esta gratitud se
220
descubre a sí misma en la alegría de la gratuidad vivida – al menos
como deseo que intenta – desde el llano de la cotidianidad de la
familia, del trabajo y de la sociabilidad más inmediata.
No se trata de un ensueño romántico distraído de la conflictivi-
dad social. Se trata de valorizar no sólo la complementariedad sino
también la conflictividad de los temperamentos diversos, de las
distintas perspectivas culturales, de los intereses sociales a menudo
opuestos, de las injusticias que sublevan el alma, propios de la plu-
ralidad interpersonal y de la inclinación hacia el mal que malversa
nuestras relaciones con lo que es bueno. Asumir la conflictividad
de hecho significa abrir los intereses y las perspectivas, que por
ceguera de horizonte aparecen enfrentados, sobre una posibilidad de
realización más abarcadora, digna y conveniente, donde lo que era
insistencia impaciente o indignación violenta accede a su pacificado
e imprevisto cumplimiento, si anticipadamente cuenta con la ayuda
de otro. Como lo atestigua un ex protagonista de la violencia:
46 Héctor Leis, “Los límites de la política: acerca de la carta de Oscar del Barco”,
en: Lucha armada en la Argentina, (Buenos Aires: Año 2, N.° 5, 2006)
221
El origen del auténtico poder en una madura creatividad relacio-
nal, que no incurre en el dualismo de lo público y de lo privado sin
más, sino que concibe toda acción individual auténtica como dotada
de dignidad y de aporte a la satisfacción personal en cuanto es al
par afirmativa del bien común y, por ende, no necesita disociar lo
personal de lo social ni de lo político, es algo que demuestra
47 C. Hoevel, “Prólogo…”, 5
222
son actores sociales libres, el estado necesita ser fuerte no ya por
su inercia creciente como exactor de la creatividad de la sociedad,
sino por su equilibrada institucionalidad mediante la división de
poderes y por su iniciativa correctiva enérgica de los desvíos res-
pecto del cuidado fundamental del bien común. Atento a que nadie
quede privado de los bienes humanos básicos, mediante el apoyo a
la responsabilidad de cada uno para superar la propia carencia, con
el concurso de la iniciativa social solidaria, procura la armoniza-
ción correctiva de las distorsiones que se producen en la dinámica
social, sea por injusta retribución, competencia desleal, monopolios
paralizantes, etc. Entonces, esa
48 C. Hoevel, “Prólogo…”, 7
223
del trabajo, de la amistad, de la vida familiar o de la participación
en proyectos sociales, económicos o culturales. La prueba de que
hay un sustrato generativo de la amistad social más profundo que el
pacto político es que, en el caso de Argentina, habiendo pasado por
severas luchas político‑partidarias internas perdió sangre y tiempo,
padeciendo el de otro modo inexplicable atraso en el desarrollo
de su pueblo, pero permaneciendo sin fragmentarse a pesar de los
intentos irresponsables de polarización.
Aquí es donde se plantea la dimensión más radical del acon-
tecimiento y se pone a prueba la posibilidad de reinicio de la
lábil Argentina‑Estado desde el nivel más profundo de Argentina
‑Comunidad histórica cierta de sí‑misma. Los argentinos no hemos
sabido crear todavía una comunidad política en sentido estricto.
Nuestra historia está repleta de luchas fratricidas que ni siquiera son
denominadas con ese nombre, casi dando por sentado que se trata de
una condición normal y no malvada de vivir la política. Hoy aparece
un primer plano de derecho elemental de la ciudad‑estado, hasta
ahora eludido, que concierne a la justicia jurídico‑constitucional y
que significa juzgar y punir a todos los culpables de crímenes de
los años 60‑70‑80, de acuerdo con la ley. Si esto no sucede, queda
abierta la espiral de la violencia, porque va prevaleciendo la ven-
ganza y la ley del talión, que pretende limpiar una ofensa con otra
ofensa. Si, en cambio, este primer plano se cumple de alguna ma-
nera desde la división equilibrada de poderes del estado, entonces,
se realiza el pasaje del estado‑lábil todavía infectado por el espiral
de la violencia, al estado propiamente constitucional que eliminaría
los conservantes jurídicos de tal espiral, debido a la inconstitucio-
nalidad en la aplicación de las condenas a los militares. Al respecto
señala Héctor Leis:
224
la verdad, ni a la justicia, sino a la venganza. La buena memoria
histórica es aquella que ayuda a una comunidad a ser amiga de
ella misma, sin faltar a la verdad. Pero sepamos también que, en
la Argentina de hoy, la salvación no viene de la culpabilización
del otro, sino de la reconciliación con él. La superioridad moral
no deriva del sufrimiento padecido sino de la capacidad de per-
donar, de reconstruir la comunidad. 49
225
dan razón de la esperanza aportada por el encuentro iniciado
y de pronto comienza a expandirse socialmente la alegría del
acontecimiento renovado de la cultura del encuentro y del poder
constructivo concomitante a ella.
226
Testemunhos
Testimonies
Sobre a recepção da filosofia
de Paul Ricœur no Brasil1
O n t h e r e c e p t i o n o f P au l R i c œ u r ’ s p h i lo s o p h y
in Brazil
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_6
A mestranda, Maria‑Carolina Alves dos Santos, que depois se tornou
professora na UNESP de Marília,3 citava La Symbolique du mal, em
particular o belo capítulo “Le mythe de l’âme exilée et le salut par la
connaissance”.4 Descobri o livro com admiração. Em segundo lugar,
soube do livro de Ricœur sobre Freud pelos colegas do Departamento
de filosofia da Unicamp, na hoje extinta linha de pesquisa “filosofia
da psicanálise” (da qual participavam, entre outros, Bento Prado
Júnior, Luiz Roberto Monzani e Osmyr Gabbi Faria). O livro de
Ricœur, na pioneira tradução de Hilton Japiassu de 19775, era leitura
obrigatória, longe das querelas francesas e lacanianas.
No mesmo ano, Japiassu também organizou e traduziu uma pe-
quena coletânea de textos de Ricoeur, intitulada Interpretação e
Ideologias (Livraria Francisco Alves, há uma nova edição pela Editora
Vozes em 2008), 6 sendo que esse título é do tradutor e reflete bem
as cores do tempo! Japiassu escolhe alguns artigos de Ricœur e os
traduz antes mesmo de sua reunião, pelo autor, em Du texte à l’ac-
tion. Essais d’herméneutique II.7 Graças a essas primeiras traduções,
Ricœur entrou pela porta da teoria da psicanálise e do debate mais
epistemológico sobre a hermenêutica (Habermas versus Gadamer)
num círculo de leitores brasileiros bastante restrito ao meio filosó-
fico e académico, que, ademais, podia também consultar algumas
traduções já existentes em Portugal.
230
Como se sabe, a tendência da “recepção” de obras literárias
e filosóficas (ou de ciências humanas em geral) no Brasil segue
uma dinâmica marcada pelas traduções de um lado, pelas “modas”
de fora, do outro. O eclipse da filosofia ricœuriana nos anos da
predominância do estruturalismo na França, aquilo que François
Dosse chama de “desvio americano de 1970 a 1985”8 , anos de ensi-
no fecundo nos Estados Unidos, repercute também no Brasil: nesse
período, Ricœur é conhecido por alguns especialistas, mas está
longe de constituir uma referência mais ampla. Eu diria até que o
caráter muito pedagógico e generoso de seus textos, sua argumen-
tação decidida, mas sempre cordata e equilibrada, o afasta até hoje
de certa notoriedade intelectual, muitas vezes confundida no país
com posições provocativas, com afirmações peremptórias, senão
escandalosas, que podem fornecer boas manchetes aos cadernos
culturais dos grandes jornais. Esse senhor sério, um honesto pai de
família, também tem um defeito insuportável para muitos filósofos
de plantão: ele nunca renegou sua fé cristã. Se pelo menos fosse
ateu, agnóstico, até mesmo judeu como Levinas ou Derrida!! Mas
ser “protestante” significa que ele é ou chato ou piegas ou ambos.
Mesmo que Ricœur nunca se tenha cansado de separar sua fé pesso-
al de sua atividade filosófica, que ele sempre tenha defendido uma
“filosofia sem absoluto” (isto é uma filosofia que não encontra na
figura de Deus nem sua fonte nem seu fundamento), mesmo que ser
protestante na França seja uma realidade distante, a anos‑luz das
diversas correntes evangélicas ou pentecostais do Brasil, Ricœur é
mal visto, ou melhor, é sempre visto como “o filósofo cristão Paul
Ricœur” – como lhe chamou a Folha de São Paulo ao anunciar sua
morte em maio de 2005.
8 Ver a oitava parte do livro de François Dosse, Paul Ricœur. Les sens d’une vie
(Paris: La découverte, 1997), “L’éclipse: le détour américain, 1970‑1985”, 439‑502.
231
Claro, essa recusa por parte de um meio universitário francamente
anticlerical e antirreligioso (Aufklärung oblige!) tem sua contraparte:
a saber, uma apropriação da reflexão de Ricœur, em particular de
sua ética, por pensadores e filósofos ligados ao catolicismo, especial-
mente nas universidades católicas (as PUCs) e numa editora ligada
aos Jesuítas como a Editora Loyola. Essas últimas interpretações são
de qualidade diversa, mas têm em comum uma visada ética que não
consegue sempre abranger a dimensão política do pensamento ético
de Ricœur, dimensão a meu ver sempre presente no autor (veja
‑se o belo artigo “Le paradoxe politique”9 datado de 1957, sendo
fruto de uma reflexão sobre a invasão da Hungria em 1956). Essa
dimensão devia se tornar, aliás, cada vez mais clara, nas últimas
reflexões de Ricœur, cada vez mais interessado pelo pensamento
de Hannah Arendt, a respeito da justiça e do direito ou do perdão
e do esquecimento.
São sem dúvida os três tomos de Temps et Récit 10 publicados,
respetivamente, em 1983, 1984 e 1985, que vão recolocar Ricœur
no centro do palco da filosofia francesa, não mais ocupado com
exclusividade pelas querelas estruturalistas, “desconstrucionistas”
ou pós‑modernas (notemos que Derrida detestava a palavra “des-
construção” e Lyotard a palavra “pós‑modernidade”). A notoriedade
de Ricœur nos Estados Unidos ajuda seus compatriotas a prestar
atenção a este filósofo francês tão pouco reconhecido, e, por ri-
cochete, ajuda a que o público brasileiro também o faça.11 Há,
no entanto, uma razão mais consistente para esse sucesso: nessa
obra exigente e generosa ao mesmo tempo, temos um pensamento
9 Artigo republicado no livro Histoire et vérité. Ver Paul Ricœur, “Le paradoxe
politique” in Histoire et vérité (Paris: Seuil, 1964), 294‑321. Ver igualmente, sobre as
posições de Ricoeur contra a Guerra da Argélia, Dosse, op. cit, 289 e ss.
10 Paul Ricœur, Temps et récit. Tome 1: L’intrigue et le récit historique (Paris:
Seuil, 1983); Tome 2: La configuration dans le récit de fiction (Paris: Seuil, 1984);
Tome 3: Le temps raconté (Paris: Seuil, 1985).
11 Ver Dosse, op. cit., 565 e ss.
232
genuinamente filosófico que se confronta com as pesquisas mais
avançadas tanto nos campos da história quanto nos da teoria lite-
rária e da literatura. Isto é, Ricœur leva a sério a rica ambiguidade
da palavra “récit” (narrativa e narração), decorrente da tríplice
significação do conceito de “história”, Geschichte em alemão: o
processo dos acontecimentos, a narração que recolhe, portanto
lembra e interpreta esses acontecimentos em si mudos, e igualmen-
te, as narrativas de ficção que inventam outra(s) história(s) e outra
“realidade”. A confrontação de um filósofo com os campos da histo-
riografia e da teoria literária revela uma prática filosófica que não
se restringe à auto reprodução de si mesma enquanto “história da
filosofia”, com todas suas querelas e chicanas, mas ousa se deixar
questionar pelas práticas de outras ciências chamadas humanas ou
sociais; e, de maneira recíproca, que reconstrói com discernimento
os fundamentos e pressupostos dessas disciplinas e pode arriscar
‑se a questioná‑los. Temos aqui uma outra concepção da filosofia
que seu enclausuramento num diálogo exclusivo com sua própria
tradição. Sem abdicar de sua clareza e de seu tão propalado rigor,
a reflexão filosófica de Ricœur é uma exigente interrogação de
conceitos, sem dúvida filosóficos (sujeito, verdade, real, ficção,
para citar alguns), mas que não pertencem somente ao exercício
da filosofia: pertencem ao pensamento em constante transformação
das práticas artísticas e científicas. Esse gesto já estava na base do
livro de Ricœur sobre Freud: se a argumentação filosófica podia
ler o texto de Freud e apontar para sua grandeza, mas também
para seus impasses, a repercussão da reflexão psicanalítica sobre a
filosófica era ainda mais importante. Com efeito, depois de Freud,
o conceito de “sujeito” não podia mais continuar, mesmo no dis-
curso filosófico genuíno, a ser o mesmo. A leitura e a interpretação
filosófica de Freud (e de outros “mestres da suspeita”) obriga a
reconhecer “a ruína definitiva ... do ideal cartesiano, fichtiano e,
em boa parte também, husserliano de uma transparência do sujeito
233
a si mesmo”.12 Essa “opacidade” é rica: ela aponta para o famoso
“desvio” pelas obras da cultura na auto compreensão do sujeito
e, igualmente, para a importância decisiva que possui a força da
imaginação (Einbildungskraft) não só nas práticas artísticas, mas
também para uma teoria da ação humana.13
A mim me parece que a filosofia de Paul Ricœur começou mes-
mo a ser reconhecida em suas verdadeiras dimensões a partir da
publicação dos três volumes de Temps et Récit, volumes traduzidos
primeiramente pela Editora Papirus, com três tradutores diferentes,
de 1994 a 199714 e, com nova tradução em 2010, pela Editora Martins
Fontes15. Hélio Salles Gentil, autor do primeiro doutorado em filosofia
sobre essa obra16, escreve uma bela introdução à tradução de Tempo
e narrativa na Editora Martins Fontes, na qual situa esse livro maior
de Ricœur no contexto mais amplo de seu pensamento, desde sua
hermenêutica dos símbolos até suas pesquisas muito precisas sobre
a Metáfora viva17; Gentil resume a tese “fundamental, fundadora do
234
empreendimento...: é a narrativa que torna acessível a experiência hu-
mana do tempo, o tempo só se torna humano através da narrativa”.18
A partir da publicação de Temps et récit, justamente pelo viés da
narração e das narrativas, como assinala Gentil, Ricœur entra na
discussão brasileira, nomeadamente nas pesquisas de literatura e
de história. Isto é: ele é lido não só por filósofos profissionais, mas
por escritores, teóricos da literatura, psicanalistas,19 historiadores.
Como literatura e história no Brasil têm uma importância decisiva na
auto compreensão cultural do país – sem querer ofender os colegas
de ofício, muito mais do que filosofia! –, as reflexões filosóficas de
Ricœur, justamente porque levam a sério a temporalidade das narra-
tivas históricas e das narrativas ficcionais, penetram no debate sobre
história e literatura no Brasil, renovando‑o graças à sua amplitude
reflexiva. Assim, por exemplo, o departamento de teoria literária da
Unicamp organizou duas vezes colóquios concorridos sobre a obra
de Ricœur (em 2008 e em 2015). Ousaria dizer que é justamente o
gesto filosófico de reconhecer a “dignidade ontológica”20 de outras
disciplinas, diferentes da própria filosofia, que torna a filosofia de
Ricœur tão vigorosa.
Para concluir, diria que essa recepção muito positiva e agora
muito política da filosofia de Ricœur se repete com a publicação,
em 2000, de La mémoire, l’histoire, l’oubli21, traduzido em 2007 no
Brasil (por uma equipe de tradutores na Editora da Unicamp).22 Com
235
efeito, esse livro que busca delimitar “uma política da justa memória”
(segundo as palavras do autor na primeira página da obra), caiu
num terreno fértil: o da discussão das políticas de memória (alguns
preferem dizer de esquecimento!) dos governos brasileiros em relação
aos crimes cometidos durante a ditadura militar. As distinções ao
mesmo tempo firmes e finas que Ricœur opera, por exemplo, entre
os conceitos de anistia, de perdão e de esquecimento (na última
parte do livro) ajudam, a meu ver, a criticar com mais profundida-
de reflexiva um tema tão candente como a Lei da Anistia. Clareza
filosófica e resistência política conseguem se apoiar mutuamente na
leitura desse belo volume de 2000.
236
Q u a l o l e g a d o p r i n c i pa l d e P a u l R i c œ u r
à Filosofia Contemporânea?
W h at i s P au l R i c œ u r ’ s m a i n l e g ac y
t o c o n t e m p o r a ry p h i lo s o p h y ?
Hilton Japiassu 1
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_7
Convencido de que o símbolo nos leva a pensar (representa um
conteúdo inconsciente), fez da Hermenêutica um trabalho e uma
tarefa intelectuais de decodificar o sentido oculto por detrás do
sentido manifesto, notadamente nos fenômenos concernentes à vida
humana e a seu destino. Donde sua Filosofia se apresentar sempre
como uma atividade ao mesmo tempo concreta, temporal e pessoal,
mas com pretensões à universalidade e aberta à Transcendência,
pois sua esperança é uma flâmula na noite. Como um dos últimos
Maître à penser, e a fim de responder aos grandes desafios de seu
tempo, não hesitou em sair do corpus propriamente filosófico para
deixar‑se interpelar pelos problemas de um Lebenswelt (Mundo da
Vida), mas com Leben e com Welt, pois jamais deixou de consagrar
sua reflexão sobre os conhecimentos novos que modificam nossas
concepções do mundo, do real e do homem.
Filósofo de todos os diálogos, abriu a interrogação filosófica a
uma busca frenética pelo sentido ao refletir em profundidade sobre
os problemas vividos pelos homens concretos na Cidade. Donde sua
obra ser considerada sem fronteiras servindo‑nos de uma incrível
mina de inspiração e instigando‑nos a encontrar uma Ética adap-
tada à nossa modernidade e a seus novos desafios, notadamente
o de resgatar uma utopia em sua função libertadora capaz de im-
pedir o horizonte de expectativas de confundir‑se com o simples
campo da experiência. Porque o luto das visões teológicas pode se
transformar numa chance para podermos refundar um projeto de
futuro comum a partir do reexame permanente dos possíveis não
realizados em nosso passado. Donde seu empenho em revivificar,
rejuvenescer e descobrir o sopro inicial do desejo de estar sempre
voltado para a ação e o presente. Donde sua busca constante de
recarregar de energia uma deontologia da vontade graças a uma
“teleologia do desejo”. Seu pensamento, podendo ser considerado
uma lição de coragem contra todas as formas de despistes, sejam
eles céticos, fatalistas ou niilistas, abre‑nos os caminhos de uma
238
esperança exigente, convocando‑nos a jamais nos esquecermos da
responsabilidade e da dignidade humanas, pois, como dizia a frase
de Heidegger, a ser entendida como um apelo: “a origem não se
encontra atrás de nós, mas em nossa frente”. Porque, não só o in-
divíduo, mas também a sociedade possui um projeto, um horizonte
de expectativas e de esperança permitindo‑nos fazer do sentido
atribuído ao passado uma fonte potencial para a construção de
nosso futuro no qual o homem precisa se conceber como ser‑com,
cuidando de sua alma e, para ser feliz, praticando (como ensinara
Sócrates) tudo o que é bom, honesto e justo, sem se esquecer do
que já dizia Heráclito (séc. VI a.C.): “a mais bela harmonia nasce
das diferenças”.
239
P a r t e II
Varia
Part II
Varia
E s b o ç o pa r a u m a d i m e n s ã o e s t é t i c a
em Paul Ricœur1
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_8
Procuraremos reconstruir a fundamentação ricœuriana da pro-
dução de imagens poéticas, e sua importância na redescrição
da realidade e na arte. A relevância dessa teoria, assim como
os elementos estéticos encontrados nela, será discutida através
dos comentadores que deram primazia ao papel constituinte
da imaginação e da metáfora.
Palavras‑chave: Arte; Estética; Imaginação; Metáfora; Ricœur.
Introdução
244
são o símbolo, a metáfora e a narrativa. O ponto que interessa
é a inovação semântica, que procuro explicar na seqüência, e
que é comum à metáfora e à narrativa. São diferentes inovações,
e é importante dizer que na passagem de uma à outra ocorrem
mudanças de vocabulário, mas até de metodologia. Para alcan-
çar os objetivos deste capítulo, a narrativa vai ficar em segundo
plano – pela minha hipótese, é necessário explicá‑la por meio da
metáfora. Usarei a teoria ricœuriana da metáfora para pensar as
obras de arte: a arte pictórica, por exemplo, criando imagens que
aumentam a realidade, que acrescentam a ela por meio da am-
pliação icônica (condensando aspectos da realidade). A metáfora,
considerada como ícone, afirmando o aspecto quase sensorial da
imagem metafórica. Seu momento propriamente figurativo é um
processo que conjuga invenção e recriação ao revelar dimensões
da experiência que não existiam antes da obra. Essa experiência
pode ser exemplificada pela redescrição que ocorre ao lermos um
texto. No entanto, é preciso superar os preconceitos originados
na separação entre discurso que denota e discurso que conota – a
crença de que apenas o discurso científico denota a realidade, e que
acaba por condenar as artes à impossibilidade de ser um discurso
verdadeiro (mas apenas um discurso conotativo cujo papel é evocar
sentimentos e emoções sem referência). Nada é mais prejudicial
para o reconhecimento da referência produtiva da imaginação do
que a afirmação desta dicotomia, pois é a questão da referência que
implica a transformação no real empírico a partir da experiência
virtual que o suspende.3
245
Esteticamente, a experiência que evidencia a ligação entre lin-
guagem poética e imaginação produtora pode ser resumida assim:
o movimento da linguagem poética em direção à realidade por
meio das ficções heurísticas resulta em uma experiência que abala
a referência comum, e que é a condição para a emergência da re-
ferência metafórica. A estrutura da imaginação pode ser trazida à
linguagem sob a forma proposicional, e é precisamente o trabalho
de síntese, gerador de um sentido completo, que pode ser entendido
sob a forma predicativa. A redescrição é o resultado final do pro-
cesso metafórico enquanto ficção heurística, processo que acredito
servir de modelo à experiência estética da obra de arte. A dimensão
estética, na filosofia de Ricœur, parece ter o objetivo de explicitar
sua concepção enriquecida de linguagem.4
4 “The work of art is in this way, for me, the occasion for discovering aspects
of language that are ordinarily concealed by its usual practice, its instrumentalized
function of communication. The work of art bares properties of language which
otherwise would remain invisible and unexplored”. Paul Ricœur, Critique and con-
viction (New York: Columbia University Press, 1998), 172.
5 Os critérios da textualidade foram apresentados em “La tâche de l’herméneutique”,
artigo de 1975 republicado em Du texte à l’action (1986). O tópico semântico será
aproximado da hermenêutica ao tomarmos o texto (produção do discurso) como
obra singular. Entendê‑la como sequência fechada do discurso – obra – permite a
hermenêutica textual considerar o poema como obra em miniatura e a metáfora
como guia para sua compreensão.
246
uma primeira ideia de que a obra de arte é direcionada contra o
real, que visa ficcionalmente “destruir o mundo” e, por isso, de-
manda outra referência. Uma das estratégias do discurso que pode
ser analisada e fornecer inteligibilidade sobre essa outra referência
é a metáfora. Em Ricœur, a metáfora fez a transição da hermenêu-
tica do símbolo para a hermenêutica do texto. Em um primeiro
momento ela tem um objetivo preciso: articular pelo discurso a
dimensão não linguística do símbolo. A relação com o logos é uma
vantagem da metáfora e uma desvantagem do símbolo, que “vacila
na fronteira entre logos e bios”. Mas a confusão do símbolo, isto
é, a impossibilidade de descrevê‑lo como enunciado de predicação
bizarra, ou como impertinência semântica, de modo algum significa
que ele nada diz à teoria da metáfora. O artigo “Parole e symbole”
torna mesmo questionável a ideia de uma completa transição em
relação ao símbolo, embora a mudança de perspectiva diante dos
seus limites analíticos seja considerável. O vocabulário é ampliado.
O que um poema estrutura, como estratégia discursiva comparável
à obra musical, é um mood; a função heurística do modelo revela
um elemento comum – a ficção – no discurso científico e no dis-
curso poético; finalmente, a dimensão referencial que é alterada
pela redescrição. 6
A primeira tentação a evitar, portanto, é ignorar o caminho de
retorno à opacidade do simbólico. Não foi ali que a síntese figurada
apareceu como solução para o “pensar a mais” dos fenômenos de
excesso de sentido? A segunda tentação a evitar é repetir, ingenua-
mente, o percurso entre La Métaphore vive (MV) e Temps et récit (TR).
O estudo das narrativas desenvolve uma fenomenologia da leitura
247
– apenas implícita na teoria da metáfora – a partir de elementos
relacionados à historiografia e temporalidade. Os desenvolvimentos
dessa fenomenologia incluem a mímesis da ação, a identidade narrati-
va, a abertura ética. A metáfora não é ferramenta suficiente, embora
a reconfiguração narrativa seja entendida como aplicação particular
dela. Não estou abdicando das análises que norteiam uma hermenêu-
tica literária, como a noção de mímesis, tópico comum na filosofia
da arte.7 Minha proposta é separar os dois fenômenos de inovação
e sustentar a metaforicidade como eixo heurístico fundamentado na
transição da linguagem à imagem presente na poética ricœuriana.
Não é a identificação de uma estética com essa poética.
2 – A pintura do pensamento
248
Ricœur se diferencia de Aristóteles no nível lingüístico em que ocor-
re a metáfora (da palavra para o enunciado), e na teoria do efeito
de sentido operado por ela (da substituição para a interação entre
os termos). Na teoria tradicional, a metáfora ocorre no processo de
denominação – é o empréstimo de significado de um termo para
outro. A metáfora, então, é uma figura de linguagem derivada do
processo de substituição de significado entre os termos do enuncia-
do – do figurado pelo literal.
A metáfora que pressupõe a inovação semântica está vincula-
da à semântica contemporânea – ocorre no enunciado, em níveis
iguais ou maiores que a frase. O enunciado metafórico é explicado
conforme uma teoria da tensão entre os termos do enunciado, ou
seja, é um fenômeno de predicação.9 Em um primeiro momento nos
deparamos com a impertinência semântica ou “predicação bizarra”,
o choque entre campos semânticos. No exemplo de Ricœur, “A natu-
reza é um templo onde vivos pilares...” (do poema Correspondências,
de Baudelaire), o que ocorre é a aproximação entre “natureza” e
“templo”, e a construção da imagem na emergência de uma nova
significação: inovação semântica.10 Há o conflito entre os termos e
o leitor dá a resolução, ou melhor, ele constrói a resolução na for-
ma da figura, que é sentido e imagem unidos. A natureza como o
local em que os homens, os pilares vivos, habitam... Esse processo
de resolução é identificado com o que Aristóteles denominou “pôr
249
sob os olhos”11 uma forma de “ver” que também pode ser entendi-
da como uma “assimilação” ou um “insight”. Esse “ver” está ligado,
ainda, à função icônica da metáfora. A ampliação icônica (o “modo
icônico de significar”) é uma fórmula para construir a imagem. É o
que permite entender sua dimensão verbal, ou seja, a possibilidade
de trabalhar a partir de uma imaginação poética que é exigida pelo
conflito dos termos. A dimensão verbal da imagem necessita de uma
teoria da imaginação para ser explicitada.12
250
Faculdade de Juízo, o juízo de gosto é o responsável por colocar a
teoria da imaginação sob o domínio da estética e não mais da epis-
temologia, na produção de um prazer desinteressado. A expressão
da singularidade por meio do juízo reflexivo marca a presença de
Kant na dimensão estética do pensamento de Ricœur – a comuni-
cabilidade como portadora de uma universalidade distinta daquela
do juízo determinante.
Em relação aos elementos kantianos em sua filosofia, trata‑se
de ultrapassar o tratamento da imaginação em função da percep-
ção para ligá‑la a um uso da linguagem (metafórico). Ricœur irá
incorporar o aspecto verbal da imagem, afirmando um esquema-
tismo da atribuição metafórica, juntando o verbal e o não verbal
na emergência do sentido figurativo.13 A imagem é tomada como
o produto final de uma teoria semântica e o imaginário aparece
implicado na linguagem. Como funciona isso? O viés semântico da
imaginação pode ser compreendido como um “ver como” – é disso
que trata a manutenção da ambigüidade por meio do imaginário, e
que pode ser exemplificada com a figura do pato‑coelho, utilizada
por Wittgenstein. Passar de um aspecto da imagem – o pato – para
outro – o coelho. É o que chamamos anteriormente de “insight”,
que Ricœur considera o aspecto sensível da linguagem poética, a
imagem construída a partir dessa experiência do pensamento. O
“ver como” está ligado a um ato de leitura de constituição intuitiva
(“metade pensamento, metade experiência”) fundamental para a
união entre sentido e imagem. Um exemplo ricœuriano da expe-
riência de ter uma imagem por meio de sua construção: na peça
de Shakespeare, Troilus and Cressida, pode‑se ver o tempo como
13 “Traitée comme schème, l’image présente une dimension verbale; avant d’être
le lieu des percepts fanés, elle est celui des significations naissantes. De même
donc que le schème est la matrice de la catégorie, l’icône est celle de la nouvelle
pertinence sémantique qui naît du démantèlement des aires sémantiques sous le
choc de la contradiction”. Paul Ricœur, La Métaphore Vive (Paris: Éditions du Seuil,
1975), 253.
251
um mendigo.14 A natureza icónica do sentido metafórico é também
chamada de passagem intuitiva da impertinência à pertinência.
Da construção do sentido em união com a imagem torna‑se ne-
cessário, para a noção de experiência estética, a passagem desses
conceitos de linguagem e imaginação para a esfera da referência – o
que diz o enunciado metafórico acerca do real, ou seja, o extralin-
güístico. Ricœur introduz um vocabulário analítico ao estender a
distinção fregeana entre sentido e referência para todo o discurso.
É relevante também a interlocução com a teoria estética de Nelson
Goodman, cuja contribuição principal é a idéia de referência genera-
lizada. Ela sustenta, em parte, a referência metafórica e a sua função
de redescrição, proporcionada por essa referência duplicada. Ricœur
detém de Goodman alguns pontos relevantes para a reflexão sobre
a experiência estética: 1) refazer a realidade é tarefa dos sistemas
simbólicos; 2) nessa teoria simbólica a metáfora é caracterizada como
um tipo de transferência, ou seja, a aplicação de predicados de uma
coisa à outra; e 3) a representação entendida a partir da referência
generalizada, e não como imitação por semelhança. O aprofundamen-
to da noção de referência em direção à “verdade metafórica” será a
última etapa da metaforicidade.15 A importância dessas contribuições
é desconsiderar que a função poética (e estética) da linguagem tenha
252
como princípio a distinção entre conotação e denotação, e também
que as qualidades de uma representação, na sua forma expressiva,
sejam irreais ou efeitos subjetivos.16 Além disso, elas apontam para
um preconceito específico – em conjunto com a crítica positivista
de que toda linguagem que não é descritiva é emocional, há um
privilégio dado ao caráter auto‑suficiente da linguagem poética con-
cedido por muitos teóricos da literatura. O problema disso é negar
à linguagem poética seu poder referencial e apelar para uma auto
‑suficiência particular.
253
do trabalho ficcional da imaginação, é a mímesis criadora – mas é a
teoria da leitura que confere, segundo Amalric, produtividade práti-
ca ao ficcional. Sua proposta é ligar essa mímesis a um simbolismo
originário que dinamiza o trabalho semântico da metáfora, e com
isso, substituir a dialética ricœuriana entre simbolismo implícito e
simbolismo explícito por outra: a dialética entre um ficcional virtual
(pré‑reflexivo) e um ficcional atual (que corresponde ao trabalho
reflexivo e semântico da imaginação poética). Para o artigo, seguindo
o vocabulário proposto, é importante a afirmação de que uma “me-
taforicidade virtual” precederia toda invenção metafórica, ou seja,
toda a metaforicidade atual. Uma modificação desta dialética revela
uma contribuição ainda maior. No processo da inovação semântica
está em jogo uma imaginação ficcional (em relação de atualização
de uma imaginação simbólica) e uma experiência situada na jun-
ção do verbal e do não verbal. Denominada por Amalric de quase
experiência ficcional, ela remete, na sua dialética, ao “ver como”,
implicando uma reflexão logicamente articulada que não há na ex-
periência simbólica.17
O interesse de Amalric no trabalho da metáfora é dirigido para
o esclarecimento da experiência simbólica (inclusive dentro do
processo metafórico) que seria a essência de todo trabalho fic-
cional. Esse esclarecimento, finalmente, é tarefa de uma teoria
254
geral da imaginação. Nos trabalhos paralelos, ou até secundários
a ela, encontram‑se teorizações sobre a criatividade e sobre a in-
venção poética que dizem respeito à dimensão estética e ajudam a
esclarecê‑la – é o caso, particularmente, da leitura do esquematismo
kantiano no plano da imaginação poética. Acredito que a dialética
entre virtual e atual, que Amalric afirma ser essencial para uma
teoria geral da imaginação, é essencial também para uma estética
ricœuriana fundamentada sob a noção de metaforicidade – uma
significação que opera de maneira transgressiva, porém ligada a
um logos trazido à linguagem, que pode ser explicado. Não uma
explicação última e unívoca, mas preservando sua polissemia sem
incorrer em ininteligibilidade. É uma indicação de que a reserva
de sentido, o simbólico implícito, estaria presente na obra de arte
como metaforicidade atualizada.
255
Os exemplos. Primeiro, há uma escultura de Henry Moore (inti-
tulada Nuclear Energy de 1967) descrita como polissêmica ao reunir
diversos significados. Segundo Ricœur, essa “esfera explodida” pode
representar o crânio de um sábio, um átomo que explode ou a
própria terra – ele fala de uma capacidade de intensificar esses
significados ao condensá‑los, ao reuni‑los.18 A análise ricœuriana
defende também que a escultura ultrapassa os recursos tradicionais
do figurativo, e que deve, portanto, ser descrita como polifigurativa.
Em outro exemplo, ao dizer que Cézanne nunca pinta a mesma mon-
tanha (na série de pinturas que compõem Mont Sainte‑Victoire and
the Viaduct of the Arc River Valley, 1882–85) e que o pintor realiza
um acréscimo em relação à representação pura e simples de um ob-
jeto da realidade, ele afirma a idéia de ruptura com o real e de uma
função de ampliação icônica, própria ao enunciado metafórico.19 Mas
o que significa restituir à montanha, por meio da ampliação icônica,
a sua singularidade própria? A singularidade é referida à doutrina
kantiana do gênio e ao juízo reflexivo: é a criação, por parte do ar-
tista, de regras próprias a partir das regras fornecidas pela natureza,
isto é, o modo exclusivo com que ele comunica universalmente a
experiência singular, violando – de maneira ordenada – as regras
da natureza. Penso que até aqui a hermenêutica ricœuriana é um
256
guia seguro, justamente porque se mantém nos limites do textual e
da (poli‑) figuração. Como ir além?
Ricœur acredita que a idéia de acréscimo pode ser estendida
também à pintura não figurativa e à música. A pintura abstrata é um
primeiro caso‑limite.20 Não apenas a teoria da metáfora ricœuria-
na, mas a idéia de jogo de linguagem não verbal ou de uma lógica
da imagem pictórica do ponto de vista semântico parece, até aqui,
insuficiente ou impossibilitada de fornecer uma coerência a essa
extensão que deseja percorrer. E o caso da música, assim como o
da pintura não figurativa, é importante por sinalizar o polo mais
extremo de retirada do real, onde a função de representação é mais
tênue.21 Talvez seja por isso que um vocabulário heideggeriano apa-
reça sob o nome de manifestação de mundo, conforme a definição
de Gadamer. Para dar conta da pintura abstrata obrigatoriamente
deve‑se fazer um ajuste aqui, aprofundando essa manifestação ou
inserindo outras abordagens. De qualquer forma, essa é a primeira
dificuldade que deve ser enfrentada. A segunda é o entendimento de
que toda obra de arte, inclusive a musical, corresponde a um humor
20 “One could say that nonfigurative painting freed what was in reality already
the properly aesthetic dimension of the figurative, a dimension that remained veiled
by the function of representation that fell to pictorial art. And it is when the concern
with the internal composition alone was disconnected from the representative function
that the function of manifestation of a world was rendered explicit; representation
once abolished, it becomes obvious that the work expresses the world in a manner
other than by representing it; it expresses it by iconizing the singular emotional
relation of the artist to the world, which I have called the mood”. Paul Ricœur,
Critique and Conviction (New York: Columbia University Press, 1998), 181.
21 “But music permits us to go even further in this direction than painting,
even nonfigurative painting. For the latter often contains figurative remnants. I am
thinking, for example, of Manessier’s four magnificent paintings: The Passion … In
these works there is something like an allusion to reality: forms of the cross against
red, orange or pink backgrounds; the figuration is allusive, even recessive, but not
entirely absent. In music, by contrast, there is nothing of the sort. Each piece pos-
sesses a certain mood, and it is as such, without representing anything of the real,
that it establishes in us the corresponding mood or tone. Paul Ricœur, Critique and
Conviction (New York: Columbia University Press, 1998), 174.
257
(mood), a uma emoção perdida, restituída e preservada pela obra.22
Ricœur afirma que as tonalidades afetivas (Stimmungen), o humor
próprio de uma peça musical, são criadas: cada peça gerando a sua
cadeia de tonalidades. O exemplo que ele usa é a recriação do canto
dos pássaros no São Francisco de Assis de Messiaen. A dificuldade
está em saber que tipo de figuração estaria presente nessas dispo-
sições de humor que aparecem, ou o que significa “abrir” o espaço
emocional onde os sentimentos serão figurados, e o que seria esta
transfiguração dos sentimentos. A capacidade de uma obra de arte
significar e transformar a realidade, afirma Ricœur, é maior nessas
expressões que revelam sua pureza em relação ao real. Dito de outra
forma, quanto mais afastada, mais se percebe o poder de influência
e de não superficialidade da arte.
6 – Extensões
22 “What the artist restores is the mood that corresponds to the singular, prere-
flexive, antepredicative relation to the situation of a given object in the world. The
mood is like a relation outside of the self, a manner of inhabiting a world here and
now; it is this mood that can be painted, put into music or into narrative in a work,
which, if it is successful, will have the right kind of rapport with it”. Paul Ricœur,
Critique and conviction (New York: Columbia University Press, 1998), 179.
23 Ricœur, “Architecture et narrativité”, in Urbanisme 303 (novembre‑décembre
1998): 44‑51.
258
que impulsiona a construção (etapa de configuração do espaço) e
que precede o “habitar como resposta” (a refiguração do ambiente).
Além disso, a tipologia defendida por Nelson Goodman da represen-
tação em arquitetura – proposta pelo seu neo‑representacionalismo
(1988/2009) – e a “nova teoria da representação”, que Giannotti
defendeu a partir das obras de David Hockney (1983/2010), suge-
rem ao menos uma porta de entrada ao debate contemporâneo. 24
Ricœur também realizou uma análise das aproximações freudia-
nas à teoria da arte. A análise da poesia foi elogiada por certo
rigor analítico. No entanto, critica o ensaio sobre a pintura de Da
Vinci, porque ele buscaria explicar o mecanismo da criação es-
tética pela biografia do artista. Afastando‑se de análises técnicas
ou estruturais, Freud pretenderia explicar a Mona Lisa pelas ini-
bições do pintor. Trata‑se de um confronto hermenêutico com a
interpretação que é focada apenas no arqueológico: privilegiar o
significado que está ausente na obra de arte, no caso as relações de
Leonardo com sua mãe, segundo Ricœur, é como duplicar o enigma.
Também aponta para os limites da psicanálise, e com isso, para a
necessidade de superá‑la com o objetivo de dar conta da “supera-
bundância simbólica”. Uma terceira implicação é tomar a dialética
de inovação e sedimentação para pensar os movimentos artísticos.
É o que Alberto Martinengo 25 faz, ao considerar que eles também
comportam o processo de inovação semântica. Ele é estendido aos
movimentos artísticos na forma de um novo cânone que surge da
violação ordenada do paradigma artístico tradicional, expandido
ou transformado em sua estrutura. Antes de erradicar o cânone
259
anterior, a inovação testa seus limites transgredindo‑os. Ao usar o
exemplo do abstracionismo de Kandinski, Martinengo afirma que
é um movimento que se coloca ao lado do mundo, em competição
com ele; mais do que abstração, suas obras parecem estar desligadas
de elementos da realidade natural, constituindo mais propriamente
outra proposta de realidade. A radicalidade desse estilo, em sua
experimentação, rompe com o princípio naturalista da tradição na
busca de um canal privilegiado para a construção de significados.
260
seu resumo da hermenêutica identifique as contribuições da poética
ricœuriana, a textualidade não sofreria modificação quando relacio-
nada com a reflexão sobre a arte. A exceção caberia aos fenômenos
teológicos de excesso de sentido. Trata‑se, portanto, de uma dimensão
estética e religiosa. Esta conclusão parcial resulta da análise tímida
do que permite a interpretação tanto do “mundo do texto” quanto da
obra de arte – a imaginação. Alterá‑la para incluir a reflexão estética
é, mesmo sem formular uma teoria geral da imaginação, assumir
uma reformulação conseqüente da hermenêutica. Cottin não propõe
a alteração, antes procura os indícios do trabalho que Ricœur poderia
ter realizado a partir de interesses harmonizáveis. O artigo de Kaelin
assume uma estética que vai se alterando segundo fases específicas do
pensamento de Ricœur – Aristóteles, Freud e novamente Aristóteles.
Sua concepção de metáfora reforça as conotações da catarse psicoló-
gica envolvida na recepção do texto no limite de quase naturalizar a
tensão da referência metafórica. Ele também analisa a tríplice mímesis
para concluir que a discussão principal é sobre a significação onto-
lógica do tempo, e que TR foi escrito como um tratado de ontologia
fundamental. No final do artigo propõe que a tensão causada pela
referência metafórica deve ser entendida como a luta entre “terra”
e “mundo”. Mas essa luta não precisa ser descrita metaforicamente
como Heidegger fez. Assim é possível compreender que, ao afirmar
“que a mais forte impressão crítica para o seu leitor [de Ricœur] é
de que ele seguiu demasiado, e indiscriminadamente, a tradição”, o
exemplo de Kaelin não seja em relação ao próprio Heidegger ou mes-
mo Gadamer (Habermas poderia ter notado). O exemplo é a catarse.
O grande mérito do artigo foi receber uma resposta generosa da parte
de Ricœur.27 Se Kaelin interpreta a narrativa regressivamente até o
261
confronto com Freud, Ricœur não assume a limitação dos aspectos
estéticos da metaforização à afetividade das emoções e ao prazer.
E reforça a transformação do mundo do leitor como uma ampla me-
taforização. A clarificação das emoções seria apenas um momento
específico dessa transformação.
Os dois artigos, realizados a partir de sugestões efetivas, distintos
em pretensão, integram uma noção estética pouco crítica, no sentido
de que sugestões dispersas exigem a reconstrução da teoria primária.
O passo além de um esboço será questionar os motivos da dimensão
estética restar nuançada, o que impede de destacá‑la, e que benefí-
cios isso traria para a filosofia de Ricœur. Mesmo em uma obra que
modifica seus métodos filosóficos, propícia a um recorte específico, a
classificação hipotética por fases ou interesses declarados resulta em
segundas sugestões. “Logique herméneutique?” (2010), comunicação
de 1978 publicada em 1981, é mais que sugestiva sobre o papel que a
compreensão estética (verbal ou não verbal) desempenharia em uma
hermenêutica renovada, disposta a enfrentar suas ambiguidades em
relação à teoria crítica e ao radicalismo ontológico heideggeriano.
Tratamento que sugere algum tipo de renovação hermenêutica
foi realizado por Claudia Elisa Annovazzi 28 , que também assume a
possibilidade de uma teoria estética. Ela afirma que a análise ricœu-
riana da metáfora, em um primeiro momento, limita‑se à dimensão
lingüística das obras (a relação obra‑leitor) e não desenvolve de
maneira direta a relação obra‑autor. Partindo disso, Annovazzi ar-
gumenta que o tratamento do estético em Ricœur é essencialmente
do ponto de vista da percepção e não da criação. Há, portanto, a
necessidade de se construir o ponto de vista da criação. Ela sugere
262
que a função do autor seria a de dar um testemunho de dimensões
do real que a descrição objetiva não alcançaria, apoiando‑se aqui
na referência cruzada entre história e narrativa e nos empréstimos
mútuos que realizam para representar de forma adequada o seu
objeto, especificamente, a identificação da função de representa-
ção na história e no testemunho. Na interpretação que Annovazzi
faz da emoção restituída pela obra de arte, o artista expressaria a
representação simbólica de uma ausência, reconstruindo, a partir
de vestígios, a experiência singular que experimentou. O exemplo
é de um autor que vivencia o holocausto e é chamado a dar tes-
temunho da sua experiência – vivenciar e ser chamado envolvem
aplicações possíveis desse entendimento estético na filosofia de
Ricœur, assim como a dialética entre ideologia e utopia na alteri-
dade ética e religiosa. Essa é uma possibilidade: uma hermenêutica
do testemunho. 29
Uma segunda possibilidade, proposta por Annovazzi, é a de fun-
damentar uma estética da criação sob a figura do autor e por meio da
imaginação produtora, em analogia à espécie de estética da recepção
esquematizada sob a figura do leitor (e adicionando o vocabulário
da metáfora ao da intriga narrativa). Ela afirma que se assumirmos
o termo “estético” em um sentido mais amplo, que inclua também
a dimensão da criatividade artística, já se encontraria o âmbito
propriamente estético da filosofia de Ricœur.30 Ampliar, aqui, é não
263
reduzir‑se à sua primeira definição de estética na acepção grega de
aísthesis. Annovazzi assume o cuidado que Ricœur tomou de não
identificar o âmbito poético com o estético – afirmou, em seu artigo
sobre a hermenêutica bíblica, a separação entre eles com a intenção
de preservar a função poética como uma capacidade discursiva e
imaginativa de modificar a realidade.
Não está claro que tipo de apelo à função poética ocorre no ob-
jetivo de fundamentar a criatividade artística. Se existe uma relação
mais proveitosa, ou que mais bem justificada, entre a poética ricœu-
riana e uma estética. Mas será um bom começo tomar em amplitude
a releitura do mundo‑da‑vida operada pela metaforização e testá‑la
em outro vocabulário. Cabe ainda atualizar a metaforicidade com
os desenvolvimentos recentes da filosofia da imagem – propostas
esboçadas por Annovazzi e Martinengo. É uma ousadia produtiva
retornar à questão da imagem quando Ricœur desenvolveu a reabili-
tação da imaginação para além dela – mas não o fez para distinguir
a imagem‑cópia da imagem‑ficcional? A busca por uma dimensão
estética é menos dispersa que sua própria sugestão, ou intenção,
por parte de Ricœur. Na espera das palestras inéditas sobre a ima-
ginação (que devem alterar a recepção da sua teoria da imaginação
– como?), nas tentativas recentes de encontro com a filosofia analítica
ou com a teoria crítica, a unidade encontrada até agora foi a do
esboço. Alguns escolhem traços mais nítidos, outros apelam para
cores impressionistas, difusas. Cabe ao leitor, agora, ver.
quindi al problema della percezione e della ricezione dell’opera da parte del suo
fruitore. Ma se assumessimo il termine in un accezione più ampia, che comprendesse
nell’estetica anche la dimensione della creatività artistica, non c’è dubbio che anche
la poetica ricoeuriana rientrerebbe nell’ambito dell’estetica. Questo inserimento
offrirebbe non solo nuove prospettive d’interpretazione dell’opera ricoeuriana, ma
anche nuovi spunti di riflessione per le questioni sollevate in campo estetico come,
in particolare, le indagini sull’ontologia dell’immagine”. Claudia E. Annovazzi, “Tra
parola e imagine: prospettive estetiche nella poetica di Paul Ricœur”, in Entyhema IX
(2013), 93.
264
Bibliografia
265
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——. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil, 1986.
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University of Toronto Press, 1991.
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Metáfora. São Paulo: Editora da PUC‑SP & Pontes, 1992, 145‑160.
——. Autobiografia intelectual. Tradução de Sílvia Menezes. Lisboa: Piaget, 1995.
——. “Architecture et narrativité”. In Urbanisme 303 (novembre‑décembre 1998):
44‑51.
——. Critique and conviction. New York: Columbia University Press, 1998.
——. “Arts, language and hermeneutical aesthetics: Interview with Paul Ricoeur”, In
Philosophy & Social Criticism (October 2010): 935‑951.
——. “Cinco lições: da linguagem à imagem”, In Sapere Aude v. 4 (2013): 12‑36.
Taylor, George H. “Ricœur’s Philosophy of Imagination”. In Journal of French
Philosophy 16 (2006): 93‑104.
266
Reseña (Book Review) de Tomás Domingo Moratalla, Agustín
Domingo Moratalla (ed.), Bioética y hermenéutica. La ética
deliberativa de Paul Ricœur (Actas del Congreso Internacional,
Valencia, España, febrero 2013), Editorial Hermes, Valencia, 2014,
pp. 429 (libro electrónico‑Amazon) ISBN: 978‑84‑96657‑33‑5
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-1516-5_9
trabajos compendiados en Bioética y hermenéutica. La ética delibe-
rativa de Paul Ricœur.
Entre los trabajos de la primera línea, dedicada a la hermenéu-
tica, cabría destacar la clara introducción a esta base hermenéutica
del pensamiento de Ricœur por parte de Marcelino Agís Villaverde
en “Fundamentos hermenéuticos de la ética de Paul Ricœur”.
Encontramos interesantes reflexiones sobre la naturaleza de tes-
timonio y confesión en “Du témoignage et de l´aveu”, de Johann
Michel, lo mismo que sobre la base bíblica de algunas concepciones
éticas ricœurianas en “Palabra bíblica e autonomía ética en Paul
Ricœur” de Michel Renaud. Dos sugerentes trabajos sobre la com-
prensión hermenéutica de la enfermedad son “Santé, médecine et
maladie. Lecture comparative des écrits topiques de Paul Ricœur et
de Georges Canguilhem” de Gilbert Vincent y “Expliquer, compren-
dre et vivre la maladie” de Jérôme Porée.
La segunda línea de aportaciones, centradas en el aspecto ético
del pensamiento de Ricœur, tiene también una fuerte representación
en la obra. Un trabajo a destacar es, por supuesto, la aportación de
Diego Gracia, quien examina los distintos niveles de la reflexión
ética ricœuriana en “Supra‑ética” y “pequeña ética” en Paul Ricœur.
El trabajo “Sagesse pratique, soin et responsabilité: les ressources
éthiques de la philosophie de Paul Ricœur” de Lazare Benaroyo es
también una brillante aportación al libro. En este importante trabajo
se presenta a la ética ricœuriana dentro de las llamadas éticas del
cuidado, mostrando asimismo la productividad de las categorías
de Ricœur en este campo. Una aproximación más fenomenológica
y metafísica es la de Gonçalo Marcelo “A Ética como Exploração
do Possível”; una línea en la cual también se inserta el trabajo de
Daniella Iannota “Por une éthique de la vie heureuse: Paul Ricœur”.
En el intersticio entre ética y bioética encontramos el trabajo de
César Correa Arias “Mi sufrimiento contado por otros. Los procesos
de narración en salud desde una ética hermenéutica”. Estos trabajos
268
dan una muestra de las posibilidades de la ética ricœuriana, un
terreno fértil que todavía puede dar mucho de sí.
Es precisamente la línea bioética la que acapara una mayor parte
de trabajos. Encontramos en esta línea importantes trabajos como:
“Ricœur, the bioethics of happiness and related delusional states”
de Alison Scott‑Baumann, donde se apunta una reflexión sobre la
felicidad y su importancia en el ámbito sanitario; “A humanidade do
homem. Do neuronal à ética da deliberação” de Paula Ponce de Leão,
trabajo en el que se pone en conexión la neurociencia con la ética
de la deliberación ricœuriana; o “A importancia de P. Ricœur para
o ámbito da decisäo em bioética: imaginação narrativa e sabedoria
prática” de María Luisa Portocarrero, donde se reivindica con fuerza
la vigencia y actualidad de Paul Ricœur en la reflexión bioética.
Esta rápida referencia a alguno de los estudios contenidos en
Bioética y hermenéutica. La ética deliberativa de Paul Ricœur puede
darnos una buena idea de lo que esta obra nos ofrece. No obstante,
comentaré con más detalle algunos artículos en los cuáles encon-
tramos aspectos particularmente interesantes.
El trabajo que abre el libro es “Crítica y corazón: la ética narra-
tiva de Paul Ricœur”, de Agustín Domingo Moratalla. El trabajo de
A. Domingo, uno de los más completos e interesantes de la obra, se
centra en exponer la ética narrativa de Ricœur, justificando el adje-
tivo bajo la que se presenta dicha ética. A. Domingo explica cómo
la filosofía de Ricœur estaba orientada desde un principio hacia la
ética con sus trabajos sobre la voluntad, si bien esta ética implícita
solo se volvió explícita cuando se abrió al diálogo con otros autores
como Marcel o Jaspers. Es así como Ricœur acabará abanderando la
“transformación narrativa de la fenomenología” en los años setenta
y ochenta, sentando las bases para la que sería una fuerte tradición
filosófica. En este sentido, los análisis ricœurianos de la narratividad
son clave a la hora de llevar a cabo una ampliación – que no una
anulación – de la racionalidad, que a su vez nos permite entender
269
mejor a un sujeto que pasa a comprenderse como descentrado y
necesariamente parte de un relato. La importancia de la identidad
narrativa para la identidad moral no puede ser subestimada, según
A. Domingo, pues es el único método que se acerca a dar verdadera
cuenta de la complejidad inherente a los asuntos humanos. La ética
de Ricœur, acabará diciendo A. Domingo, será por tanto una ética
del reconocimiento, una ética de la responsabilidad, y, por tanto,
una ética prudencial que recoge la indispensable categoría aristo-
télica de la phronesis.
Fernanda Henriques lleva a cabo un sugerente análisis titulado
“La ficción narrativa de la identidad narrativa de Paul Ricœur”, donde
muestra cómo Ricœur pone de manifiesto la constitutiva fragilidad
y vulnerabilidad humana, junto a sus consecuencias éticas. La iden-
tidad se basa en una compleja permanencia en el tiempo, del cual
es ejemplo privilegiado el caso de la promesa. Este tiempo humano
vendría a ser un entrecruzamiento del tiempo fenomenológico y tiem-
po cosmológico, que sin embargo nunca permite la construcción de
una identidad cerrada y perfectamente acabada. F. Henriques reitera,
como otros trabajos del libro, la importancia que estas averiguaciones
narrativas tienen para nuestras consideraciones ético‑prácticas, un
punto que nos parece de especial importancia y cuya reivindicación
es más necesaria hoy que nunca.
El trabajo de Patricio Mena, “La lucidez del cuidado”, supone un
interesantísimo ejercicio fenomenológico sobre el cuidado, tomando
como punto de partida la filosofía de Ricœur. Partiendo del análi-
sis ricœuriano sobre la atención, P. Mena expone como el cuidado
contiene en sí mismo categorías tan importantes como la apertura a
lo inesperado, la responsividad y la responsabilidad. El cuidado es
un acontecimiento que implica una apelación, y que, por tanto, nos
pone en el camino de la escucha. Todo lo cual lleva implícita una
crítica al sujeto trascendental husserliano, que desde filosofías como
la de Ricœur aparece duramente criticado en sus pretensiones.
270
Con la aportación de Lydia Feito Grande, “Ricœur ‘en’ los comi-
tés de bioética: la práctica de la deliberación. Interdisciplinaridad y
metáfora deliberativa”, nos encontramos con uno de los trabajos más
jugosos y potentes del libro. L. Feito tratará el problema concreto
de los comités de bioética, con comentarios e indicaciones prove-
nientes de la propia experiencia y de la filosofía de Paul Ricœur.
El interés del trabajo es, por tanto, doble: se trata un tema real y
relevante, pero a la vez se ponen en uso y a prueba las categorías
ricœurianas sobre bioética. L. Feito, tras un breve recorrido por la
historia de la joven disciplina bioética, expone su preferencia por
una idea de “integración en la complejidad”, frente a la ambigua
concepción de la interdisciplinariedad. Respecto del tema concreto
de los comités de bioética, L. Feito empezará diciendo que los con-
flictos no son necesariamente negativos, por cuanto muchas veces
son generadores de sentido. Precisamente, el método deliberativo
defendido por Ricœur parte del reconocimiento de que no podemos
aspirar a verdades absolutas, solo a aproximaciones prudenciales.
Esto no debe hacernos caer en el relativismo; y para ello la única
solución es una ida y venida continua desde el plano normativo
al caso concreto. El consenso, desde esta perspectiva, no es el fin
último, sino que está supeditado a la creación de sentido, donde
la imaginación y la metáfora se erigen como categorías clave. La
bioética, concluye L. Feito, pasa a ser así algo más que una mera
ética profesional, pudiendo aplicarse algunas de sus categorías a la
política o a la educación.
La reflexión de Juan Masiá, titulada “Reconocimiento y respon-
sabilidad”, es una bella mezcla de sucinta exposición de la ética de
Ricœur y testimonio personal de su relación con el hombre que fue
Ricœur. El reconocimiento, en este caso, deja de ser una categoría
filosófica y pasa a ser algo que transpira de las palabras de J. Masiá,
al recordar al que considera, sin lugar a dudas, como un maestro.
El texto de J. Masiá se centra en la importancia que tuvo la lectura
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para Ricœur. Un leer, que siempre fue un interpretar, y que por
tanto no fue solo un leer textos, sino un leer personas, tradiciones
y vidas. Un leer complejo y trufado de puntos de vista, que siempre
enriquecía lo leído. El autor destaca asimismo la persistente reivin-
dicación ricœuriana de la sagesse pratique, la cual, en continuidad
con Aristóteles, evitaba caer extremos y privilegiaba categorías como
la deliberación y la responsabilidad.
En “Los niveles del juicio médico y las tareas de un Comité
Nacional de Bioética” de Antonio da Re, podemos ver otro buen
ejemplo de aplicación bioética de las categorías ricœurianas. A. da Re
expone la distinción entre los tres niveles del juicio médico: pruden-
cial, deontológico y reflexivo, relacionando cada uno de los niveles
con un filósofo paradigmático de cada corriente: Aristóteles con el
prudencial, Kant con el deontológico y, en menor medida, Rawls con
el reflexivo. Vemos así las posibilidades internas del pensamiento
ricœuriana para el diálogo entre distintas tradiciones, un potencial
de valor incalculable.
Otro trabajo fundamental de los compendiados en el libro es el
de Tomás Domingo Moratalla. Bajo el título “El ‘efecto Ricœur’ en
bioética. La pequeña bioética de Paul Ricœur (hacia una bioética her-
menéutica)”, T. Domingo nos invita a pensar una “pequeña bioética”
al hilo de la “pequeña ética” defendida por Ricœur; al mismo tiem-
po que se aboga por una bioética hermenéutica en la que la unión
de ambos términos no sea casual sino mutuamente reafirmante. El
método de Ricœur, nos dirá el autor, si por algo se caracteriza es
por su complejidad, por optar siempre por la vía larga. La bioética
ricœuriana, como su ética, será deliberativa, responsable y estará
basada en la constitución narrativa y frágil del ser humano. El efec-
to Ricœur, que da título al trabajo, se refiere precisamente a este
enriquecimiento y ganancia en complejidad, siempre basado en el
diálogo, que la hermenéutica ricœuriana ha supuesto para la bioética,
y de la que todavía puede seguir aprovechándose. Como termina
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diciendo el autor, y con lo que estamos plenamente de acuerdo, el
efecto Ricœur es un efecto beneficioso que además importa mucho
que se deje notar, por cuanto con él se ponen en juego algunos de
los problemas más acuciantes de nuestro mundo actual.
Bioética y hermenéutica. La ética deliberativa de Paul Ricœur es,
en definitiva, una obra que hace justicia a la vida y obra de Paul
Ricœur, reivindicando el enorme valor de su pensamiento. Muestra
de ello es la vigencia de Ricœur para la bioética, una disciplina que
ejemplifica de la mejor manera los valores filosóficos defendidos
por Ricœur: la aproximación compleja y alejada de reduccionismos,
la responsabilidad ante los problemas del presente, la voluntad de
diálogo y la preponderancia de la preocupación práctica. De este
modo, el presente libro alcanza su más alto fin: convertirse en una
irresistible invitación a la lectura de la obra de Paul Ricœur.
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Gonçalo Marcelo é licenciado em Filosofia e doutorado
em Filosofia Moral e Política pela Universidade Nova de
Lisboa. Atualmente, é bolseiro de pós-doutoramento (SFRH/
BPD/102949/2014) da FCT, desenvolvendo o seu projeto como
membro do CECH (Universidade de Coimbra) e em parceria com
a Departamento de Filosofia da Universidade de Columbia, sendo
igualmente professor convidado na Católica Porto Business School.