Dalcidio

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JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos.

Rio de Janeiro: Record,


1976. 291p.1

[5] Sempre ausente do Ginásio, às aulas não faltava. Sempre em


Cachoeira, aqui escondido. Da José Pio, Ana, jaqueira, da velha avó,
não sabia, deles tão perto, por isso mesmo mais separado. Maré vem,
maré vai, três linhas para mãe: me mande ao menos o Dicionário,
aquele, na mochila do búfalo. Sem resposta.
Pois sigo na Guilherme: surpreender no chalé o silêncio e os
ratos, entra pelos fundos, abre a dispensa, reencontra dentro da
garrafa a borboleta queimada há anos, está na saleta, o Major folheia
o catálogo, saltam do álbum as francesas nuas e embalam a rede.
Ficou na escadinha da Port Of, vendo a lancha sair. Vendo a
mãe, à noite, guiada pela acuraua, atrás de Maridonha pelo campo, de
bruços na beira-rio pescando o filho afogado. Aquela conversação na

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Texto de “orelha” (sem indicação de autoria): Chão dos Lobos [obra
concluída em 1968] é o seguimento da obra que Dalcídio Jurandir escreveu, em
termos de romance, em longos anos de fervor e solidão. A raiz da saga amazônica
está em Marajó, a grande ilha na foz do Amazonas, onde Alfredo, personagem
principal, desde Chove nos campos de Cachoeira, atravessa paisagens e costumes,
girando em torno de humildes seres de pé no chão de figuras de casario e latifúndio.
/ Em Chão dos Lobos, Alfredo, em plena juventude, encontra-se em Belém, a
cidade mágica e injusta, manipula sonhos, faz e desfaz esperando, se deixa envolver
pelo encanto das, primeiras surpresas, solto e aflito no descobrimento do amor, da
injustiça, da incompreensão, da pobreza extrema, do Não se Assuste, onde se
acumulam gentes e bichos e se recolhe a triste donzela que le alto o Carlos Magno à
mãe paralítica e cega com um menino que toca a flauta rachada. / O romancista,
neste volume, reúne quadros e situações de intensa dramaticidade, conflitos e cenas
em que se movimentam esquivos e pungentes personagens de extraordinário
realismo. / O capítulo de Guimarães, a cidade dos pianos mudos, a viagem da
professora pelo Baixo-Amazonas, o episódio do Oiapoque, a aparição de Roberta,
enfeitiçada pelo rio e pelo boi-bumbá, a fuga de Alfredo a bordo do navio do Lóide,
sustentaram-se como páginas de comovente veracidade. / Um livro bem brasileiro,
de leitura empolgante, que confirma as qualidades do romancista marajoara.
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escada do chalé — a história do lilás, o pescador obrigado pelos vivões! Que me diz, Dr. Raiz?
fazendeiros a desenterrar o defunto, irmão deles, te gruda na morte Junto às proas, Alfredo come a posta de peixe frito do tabuleiro.
dele, na morte que fizeste... — distanciava-se. Agora ouve a mãe em Nisto, no ombro o braço nu pitiando a gurijuba. O caboclo, calção lá
Muaná, entre os miritizeiros do avô, sentada nas pedras, no limo, nas embaixo, casquento de sol, o muque tatuado, lhe estende a mão cheia
lendas do Araquiçaua. Longe o som da moringa na camarinha de São de farinha:
Pedro, atravessando a baía. Do barco, que se afundava na memória, — Suco! Não me coma assim tão escoteiro, perde a sa-
subia o rosto da mãe, ao som da moringa as águas serenavam. borosidade, estraga é o peixe, assim, não, meu camarado. Apare esse
Chover não passava. O céu aquele chumbo. Bondes carregados pingo aqui da mea mão, não repare o tico. Já o senhor aí sem um cuí,
de mau humor, carvão e paneiro, de retardatários bocejando. A que um bago...
rumo vai o rabecão da Santa Casa? O galego, tabuleiro na cabeça: O caboclo lhe vira a farinha na palma da mão, a munheca
suando, suando a tatuagem, o bonde passa, o caboclo lambendo os
A tainha! A pescada! beiços, no pano de fundo das velas içadas. Um giro, corre a saltar
pelo cordame, enfia-se num toldo, agora na cana do leme, devorando
[6] Via pela cidade uma apressada gulodice, rápidos comedores a meia melancia como se a tivesse ganho num campeonato.
de pupunha e camarão frito, mingaus bebidos num repente, todo o [7] Alfredo jogou a farinha na boca à moda canoeira. O gosto
arroz doce numa colherada, e cedo esvaziam açougues, aparadores de que deu no peixe, no comer assim, já de frente para o bonde! Também
peixe, panelas de munguzá e caruru no Mercado de Ferro. A manhã, lambia os beiços. De pé sobre a cana do leme, o tripulante misturava
na feira da praia, se cobria de vinagreira, maxixe e cabelo de mulher. na melancia a cor das velas, o sol nos mastros, aquele veterano
Içando os panos molhados, as canoas se enxugavam. Parda uma, sossego dos telhados e tudo comeu, muito inocente.
subia a branca, azul aquela, esta vermelha alta, velame em cima, Corre a doca e a praia, corre entre os jerimuns e vendedeiras de
desabrochavam na maré seca, velas em girassol. Lá fora o rio passado cheiro, abriga-se entre as velas que parecem acesas. Esperou: na
a ferro. Na praia, as amassadeiras roxeavam mão e beiço provando canoa que baixou o pano, o tio chegando? O tio nunca chegava. Já a
açaí nos paneiros, donas no exigir o mais bom e a menos preço, os maré pelos igarapés de Belém abria, pelo fundo, a palma da mão e
vendedores remancheavam. embalava a cidade.
Queria ver no rosto das amassadeiras e dos sobrados o reflexo Bagé adentro, parou defronte do casarão de barra descascada.
do velame ao sol. Algumas janelas. Algum azulejo, certos semblantes. No beiral murcho, o urubu de asa aberta. O Orfanato. Bateu. Lá de
Aqui no aparador do Dr. Raiz, que raiz, erva, grude, miolo ou dente cima, a visagem puxa o cordão da porta. O que ele quis dizer, não
de bicho, lhe servia de remédio ou lhe guiava o passo? E que passo? disse (Irmã, a senhora conheceu uma que aqui morou, todo dia
Esse, do velho aposentado, resmungando: não é mais aquele tempo. gramando palmatória, horas de joelho, uma por nome Ana? De tanto
Hoje só dá caranguejo magro. Belém? Belém? Aquele tempo? Ah! apanhar bolo, escarrou, com perdão da palavra, o Corpo de Nosso
Era cada caranguejo! Cada um gordo! Todo esse Mercado de Ferro de Senhor Jesus Cristo?), a porta estronda-lhe na cara, se dá conta:
hoje não vale a unha de um daqueles caranguejos tão vivos da Vigia, Lá está o Arsenal de Marinha guardando as freiras. Melhor
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entrarmos nesta passagem onde só é lavação de roupa e serragem. vespertino na sala do major reformado que pula da sesta, café! pede
Salta entre os lençóis estendidos, retrocede, acertando o passo com o aos berros, engolindo o noticiário. Da outra janela, desce a cadeira de
silêncio e o sono destes sobradinhos beatos. Que será que até sentou vime para a calçada e logo na porta, pijama, calva e charutinho, o
na calçada do Carmo? É pelo sangue, aqui entranhado na laje, guarda da Saúde, os óculos pela vizinhança, um salamaleque para a
daquelas guerras? senhora que passa, o riso desdentado e feliz, coçando o pé na chinela,
Puxa pelo barbante a folha do portão: no encharcado, o correr agora estira-se no vime com o privilégio de abrir a folha, sua
de quartinhos de madeira com o magro alpendre, é a estância. Aí, no exclusividade, seu regalo, tudo no mundo só acontecia para o seu
2, a vinte o aluguel, guardou-se. Ribeiro saber e comentar, um pouco antes do aperitivo e da janta.
Arma a rede, embala-se, telhados, velas, lençóis se misturam no Vendo o Alfredo, que lhe fazia um aceno, levantou-se num festivo
cochilo. A laje, menos a laje, aquele sangue, pesava-lhe. A porta do cumprimento, jornal em punho, o sotaque de Mossoró.
Orfanato atroava. À sua rede, aqui no tão abafado, chegavam os sinos [9] — Boa tarde, cavalheiro. Será que pela boquinha da noite
de São Raimundo, o [8] bate-|boca do casal português encarregado da temos chuva? É que é a palestra do General Diocleciano. Às oito.
estância, e o barulho, aqui bem junto, bem saboreado, no banheiro de Tenho de ouvi-lo. Já leu o valoroso vespertino? Então? Domingo em
zinco, rente da parede. A vizinha se assustando: Mãe da Misericórdia, Marituba, na nossa caravana? Chegue-se ao nosso ideal excursionista,
um tamanho cururu! E este grilo! Ah, gelume d’água! chamando a ao nosso Garimpeiro. Um banho naquele igarapé, concidadão, lava os
atenção do mundo para o seu banho. E tudo isso embalava mais a refolhos. A água lá, vê-se a areia do fundo. Também assim voltamos
rede, fazia correr a tarde; apitava as seis, Folha!, passava o jornaleiro. de Marituba de alma transparente, creia. Um pouco de plena natureza!
Deste jornal escorre um fio de remota ou absurda notícia de Voltou ao vime, senhor do mundo, e Alfredo, agora, olha é para
Calcutá ou do posto policial do nosso bairro. Quem dá notícia daquele a D. Violante, da Cachoeira, na máquina de costura, catando nos
instante da farinha ao pé do tabuleiro e do velame ao sol? O jornal jornais trazidos pela Lobato, uma catástrofe, a derrubada de um trono,
sujava os dedos. Estaria Rodolfo, no chalé, compondo o Cachoeira a punhalada num grande da República, com um ora bolas! se não via
Nova? Neste, nunca impresso por falta de papel, o tipógrafo registra a nada, afasta o jornal, virando a máquina de fazer calça de homem.
vida de Cachoeira que ele faz de conta, acontecimentos que tão D. Violante! Agora recorda: Rapazinho, teu pai já te deu pra ler
sonhava, logo distribui o sonho pelas caixas; desfeita a composição, o Carlos Magno? Não? Pois tu não sabes que dois filhos meus têm
volta a compor, os passarinhos pela varanda, como repórteres, nome tirado do livro?
entrando e saindo. Aqui, no jornal e nas chinelas, seu Ribeiro mergulhava. Então,
Mas este aqui na mão, a duzentos réis, responde a esta informe entreabrindo as rótulas, na casa de lado, aparecia, furtiva. a cabeça da
indagação de tudo? De todo aquele mar lá fora, esta escuminha de filha-do-italiano, só o cabeça. só um repente nada mais. E era tudo. A
tinta, esta bolha de tempo. As cartomantes se anunciavam. Também o casa sempre num silêncio, trancada. Sabia-se do gramofone no
Porca Prenha? No novo escritório? E este piano aqui em leilão? O consolo, o reposteiro no corredor, o cão, enorme, mudo, se amontoava
compacto obituário. Como morre esta cidade! Chega de Guamá, mas no sofá. Que a moça só era ali toda hora, atrás da veneziana, à
sem aqueles bons bandoleiros, a lancha Antonina. O jornaleiro atira o espreita, Alfredo desconfiava. Na rua, passava com bandós, toda-toda
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abotoada, rosto atrás do leque, alta, fugidia. Alfredo seguia-lhe o grosso, atolava-se o Não-Se-Assuste, renque de palhoças onde a mãe
passo, o perfume, uma música, uma luz da Itália entrava pela estância, do Ferrinho, com aquele montão de roupas, o seu primeiro sangue
embalava-lhe a rede. Uma noite, na casa dela, soou, fanhoso, o dentro da tina cuspiu. E estes desconhecidos na soleira, calados, no
gramofone, logo parou. Atrás da veneziana, na sala apagada, a moça visgo que o ar trazia depois de chuva? Ali encolhidos, respiravam
espiava, Só sair na rua, ganhava aquela altura, sem ver e ouvir nada, calados, que nem moscas no batente de chão, destilando sonolência.
sem dar bola a ninguém, não por soberbia mas por nunca se dar conta, A lama entrava pelas portas. Ana, D. Dudu, o sótão da moura, a
muito italiana. Ali, nas rótulas, dobrava-se, atenta, ávida dos rumores jaqueira, a mãe errante [11] no campo, a moça atrás da veneziana,
e movimentos da rua, desabotoada, [10] des|calça. Seu Ribeiro, ao vê- coavam suas sombras no esverdinhado desta poça d’água. Batia na
la na rua, vergava-se a dar-lhe passagem, sussurrando para Alfredo: porta o gringo, ruivo, regougante, vendendo quadros de santo a pres-
— A nossa madona, a nossa madona. tação.
Alfredo, atrás dela, seguia para a Itália. Seu Ribeiro advertia-o: — Se me trouxer um daquela italiana, compro.
— Concidadão! Concidadão! — Que santa italiana, senhorr, que santa italiana, senhorrr?
Como ciumento, no risco de saber que a moça, lá um dia, quem — Da casa do lado. Do 142. Depressa. Compro.
sabe? por distração ou engano, desse pelo rapaz, respondendo-lhe ao Corriam rifas, vinha o bicho que deu, o rabecão veio cobrar um
boa tarde, O viajante viajava pela calçada, roçando na janela, defunto, também saiu o anjo, um morre-não-morre muitos meses, que
esperando ver ao menos entre as rótulas a pestana da espiona, ou a solteirona, a D. Sebastiana dos Prazeres, criava.
sentir-lhe o respirar. Só uma vez lhe ouviu a voz, surda, ríspida, não — Já posso ir depois bem sossegada. Nossa Senhora me
sabia se um tanto ressentida ou habituada àquela sala, àquela espreita, escutou. Agora ela te leva. Também tu meu não eras. Do pecado foste
àquele cão no sofá. Alfredo passou três vezes, três vezes na esquina, filho, gerado no erro foste. Faz muito tempo que te dei a ela. Pode ir,
sabendo-se espiado. A dama ali dentro, na casa adormecida, os meu filho.
incessantes olhos clandestinos. A voz pingava no silêncio, no calor, no zumbido lá fora das
Alfredo entrava. Pelo encharcado os inquilinos se serviam da meninas que queriam carregar o anjo. Mas Alfredo se adianta, apanha
mesma torneira e do mesmo banheiro onde Alfredo despejava a lata o caixão como um brinquedo, carregando aquele de Maninha, que só
cheia na velha tina, tomando banho o mais que depressa senão vazava ele queria carregar pelo campo, entre as vacas, sozinho no cemitério a
tudo. E se via, muito afobado, surpreendido pela vidente da abrir a cova com as mãos e assim guardar a irmã como guardou as
veneziana, até aqui vem o olhar da curiosa? Lá da sala fechada cinzas da borboleta. A seu lado as meninas zumbiam desaprovação e
olhando o mais miúdo de todos nós? À roda do banheiro e da torneira, raiva: quem mandou que ele... quem pediu? Ser visto pela moça da
as crianças merendavam esta e aquela sobra de sabão, rolam sabugo veneziana, carregando o anjo, Alfredo também queria. E olhou para a
de milho; de lama e do lixo faziam brinquedos, armas para briga e tal janela. Fechada. Por certo a abelhuda espiava. Voltou à barraca da
suas asas de anjo. Os cachorros disputavam prato cuia panela que D. Sebastiana dos Prazeres:
lambiam por teima e era apanhar guri distraído lhe tiravam a ração. — Me separa por lá um cantinho pra mim, meu filho, nem que
Na ponta das estacas, o urubu tomava nota. Aos fundos, num aguaçal seja no chão que aqui neste dos Lobos já tudo é por demais
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incômodo. o soldado e a velha, o surdo alarma: — Se escondam... o senhorio do


Alfredo ouvia era a voz da nhá Lucíola, aquelas noites: Não-Se-Assuste.
ela até que desejava a morte dele, os dois levados por Nossa — Por conta dos atrasados arrecado já-já essa rouparia toda aí
Senhora. Então lá em cima, aí, sim, tua mãe sou, meu filho és, certa da corda e do quarador! Onde estão as lavadeiras? Mando o Dr.
de que te pari. Viriato requerer o despejo! Apareçam as lavadeiras!
[12] Mal saiu o anjo, entra o investigador a arrancar lá de dentro [13] Ao pé da bica, guarda-sol aberto, o senhorio esperava.
do Não-Se-Assuste um rapazinho ladrão que trazia no pescoço cruz, — O Dr. Viriato, é o Dr. Viriatinho? — perguntou Alfredo,
rosário e várias orações no bolso contra cadeia e bala. Tem licença examinando aquela figura azinhavrada, de guarda-sol aberto.
dos santos, autorizado por eles a roubar, resmungou o encarregado da — É, é o Dr. Viriatinho por alcunha o Porca Prenha, o meu
estância; voltavam as mulheres do mercadinho trazendo a piramutaba advogado.
da viração, um quilo de “mulher-ingrata”, já meio fedida. E nem uma — O menino, Nossa Senhora levou, seu Batista, tenha uns
vez entrou, por milagre, a cabeça no portão, nem um só momento a diazinhos mais de santa paciência.
sem-nome da veneziana. Agora é a velha do outro sábado, chapéu de Era a D. Sebastiana dos Prazeres pondo a cabeça de fora. A
sol cobrindo a imagem que carregava: Esmolinha pro São Miguel. vizinha lhe varria a sala.
Esmolinha por São Miguel. Estância e Não-Se-Assuste se benziam — Pois tome dois mil réis. Ponha meu nome na lista da
sem pingar na mão da pedinte um mel coado. A velha, na rua, virava- subscrição do enterro. Será mais um anjo por nós lá nas alturas, sim.
se para o portão: São Miguel, meu São Miguelzinho, me façazinho E a senhora, D. Sebastiana, os dois meses que atrasou, pra quando?
isto pra mim, vos rogo, me jogue todos esses enjeitados naquele — O tempo que eu possa sair daqui seguindo o anjo, seu
caldeirão, já-já, me abra aí debaixo da bunda deles aquela goelona Batista. Espere só um tempinho que logo o senhor ocupa o que é do
fervendo. Alfredo seguia a velha que parava na janela da italiana, e senhor, o que é seu, seu é, sua posse, isso não desconheço. O alheio é
dois dedos alvos por cima da rótula, ariscos, deixavam cair na mão da o alheio, é a lei. Mas só espere o pouquinho que me falta pra juntar o
outra a moedinha. pé. Capaz até do meu espírito ir deixar a chave, a chave, não, que não
Pois bem ao pé do portão, um lunfa correndo não tomou o São tem, o japá com que fecho a porta, deixar bem embaixo de sua rede.
Miguel da velha? Veio varando o Não-Se-Assuste, como, onde se — Rede, não, D. Sebastiana. A conselho médico, durmo em
escondeu, ninguém soube. O soldado de polícia, com a velha atrás, cama.
bate as palhoças, uma a uma, as lavadeiras num vozerio: Não tinha — Então, na sua cama.
nem um ladrão na casa delas. Nem um São Miguel nem dentro dos — Olhe que um despejo pela Vara da Justiça não é uma folia.
baús nem na privada. Só se por dentro do nosso peito, debaixo da Aquele Dr. Viriato nisso é mais que uma fera. Duvidou, se apropria
nossa saia! O ladrão era o próprio santo, arre!, exemplou a bruxa. das roupas. Não sou eu, é o meu advogado. Ó lavadeiras! E eu pago a
Todo quarteirão varejado, invadido o Não-Se-Assuste. De lá, de onde taxa aos Lobos, que isto é chão dos Lobos, por lei antiga do Rei de
espiava, a moça da veneziana só espiando, e via tudo. Ou o ladrão, Portugal.
entrando pelo telhado, foi depor o São Miguel aos pés dela? Mal saiu De guarda-sol aberto, o senhorio foi na porta de D. Sebastiana,
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fez cair na mão dela duas moedas de dez tostões. Olhava como se nunca se olhasse no espelho, nunca soubesse de seus
— Nossa Senhora que lhe acrescente. olhos, deles sempre muito satisfeita, ou escondia? Mostrava a unha
— Os dois meses, D. Sebastiana, pra quando? podre.
Já não lhe disse, seu Batista? O anjo já não foi na frente — Foi um cobreiro mas já secou. Pode espremer que não sai
escolher e marcar o meu cantinho? mais matéria. E tua roupa, quem lava?
[14] — E as lavadeiras? Duvidou, duvidou, o meu doutor
manda fechar a água. Tranca a água, tranca a roupa. As lavadeiras, [15] Ia para a tina, entrava pela noite, lavando, incessante na
aonde andam? Pessoal parece que nunca viu a Vara da Justiça. Tranca sombra. Alfredo, então, fazia cair aos pés da mirolha um quintal de
a água. Onde estão as lavadeiras? borboletas.
D. Sebastiana agora só dizia: — Ah, agora é... ah, agora é... — Boa noite, seu Alfredo, ora me descubra um santo
Alfredo batendo, ensaboando, torcendo, não as roupas mas seus medicamento pra esta minha esipra, me estude um medicamento.
espantos, seus temores, seus silêncios, sua ronda pela janela da A D. Fausta, debaixo do braço a pasta das valsas, tocava piano
espiona. Vem e vai, folheando o Atlas, é o lente bêbado: Singramos, no cinema São João durante duas sessões.
agora, os mares da Hélade. Alfredo se lembrava do seu Antonino — Nem o Dr. Raiz, D. Fausta, corta a esipra?
Emiliano abrindo o casco do caranguejo para daí tirar a Vênus que — Nem, meu filho, nem. E no que me sento no cinema e vou
não era senão D. Celeste desembarcando do baile no Trombetas. tocando, meu filho, então que é doição.
Subia no alpendre o agente de seguros e de aparelhos contra surdez: — Mas nem o Dr. Raiz?
— Aqui dou com o nariz na porta. Minha freguesia é a outra, — Ontem na fita do Chico Bola, eu, sabe Deus como tocando e
bem sei. Mas sempre me condói, gostaria de fazer um seguro aí, aí gemendo, me via debaixo daquela gargalhada geral. Eu ardendo de
que é o que tem de mais inseguro nesta cidade. Quanto aos aparelhos dor acompanhando a comédia. Até numa passagem quando pensava
de surdez então é bater debalde. Aqui? Vou para São Jerônimo, que eu ia rir, gemi, tirei a mão do piano...
Nazaré, Serzedelo, o comércio... É que a maioria dos ricos surdos- — Valsa?
mudos são. — Berravam por um repinicado. Assobiavam, raspavam o
Também subia no alpendre a mocinha vesga, um antigo anjo de cimento. Platéia bem baixa aquela, seu Alfredo. Também não é
procissão de São Raimundo, de fita na testa: qualquer um que aprecia piano.
— Eu, se tal pudesse, um dia o que só criava no meu quintal? — E o seu piano, D. Fausta?
Só-só borboleta. Vender as enfiadas no vapor inglês. Borboletas de — Meu? O meu? Era. Vendi ao dono do cinema. Foi numa
raça. E tua roupa, quem lava? Diz depressa, quem lava? precisão, meu consolo é tocando nele este resto da vida. Está é um
Demorava sobre Alfredo os olhos zanoios, meio esverdeados, tanto desafinado.
sempre olhavam a outra coisa, ou parecia a Alfredo que ele era — Conhece aquele alemão...
sempre este e outro no olhar dela, qual dos dois era ou não, nem um — O dono do cinema não chama... Deixe indo assim mesmo
nem outro? Um poder, esse que eu queria, o de criar borboleta. desafinado, D. Fausta, pra quem é, bacalhau basta, ele me diz. Está
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que dá pena, uma lata velha. Coitado. Passei a minha esipra nele. — Biá, tu te lembras daquela tua escola? A professora:
— A senhora quer, eu consulto o Dr. Raiz lá no Mercado. Meninos, o Brasil é muito, muito, muito rico. Tem riquezas colossais.
— Não carece, meu filho. Já não espero o milagre. E tu: Professora, que é colossais? A mestra: Mas menino! E o nosso
Alfredo, atrás do milagre, vai na Ponte do Galo. ouro e o nosso café e o nosso Conselheiro Ruy Barbosa? Escreva no
— Tu não és o Biá, o filho do finado Sabino lá da Usina? Tu quadro.
não és o Biá? — Mas, professora, e o giz?
[16] — És o Alfredo do Major? — Então no caderno: o Brasil...
Sabino, o maquinista, o foguista, o eletricista da luz de [17] — Nem um tico de papel que dirá caderno, professora.
Cachoeira, quando tinha luz. Um dia o dínamo parou, lama entupia os — Tome papel, escreva a lápis.
canos, a usinazinha a lenha, adeus. Luz so era das seis às oito, — Lápis?
apagou-se a vila, um ano de escuridão, guerra na Europa, de Que é que tinha naquela escola? O Inspetor chegava. A
querosene se contavam as gotas e luz entre o geral dos pobres era professora com aquela cara de quem sempre jejuava, vexada,
candeia de azeite de andiroba ou luar. Todos os dias ia comprar, ou gaguejando:
trazia fiado, o meio quartilho no Delfim Ruela. A garrafa no dedo por — Inspetor, nem unzinho material escolar? Estou sem um toco
um barbante. O carocinho na palma de mão iluminava o mundo. Para de giz.
a lamparina, o farol na varanda, o candeeiro da saleta, bastava aquele — Providenciaremos, providenciaremos. Já decoraram o hino?
meio quartilho chorado. Vinha a Rita da Siá Pureza, com um vidro, E a mestra voltava a ensinar que o Brasil... Vamos decorar o
que foi de óleo de rícino: hino, criançada. Os meninos cabeceavam, sequinhos, ou roíam seu
— D. Amélia, mamãe mandou dizer, se a senhora pode. que a torrão de terra, a ponta da caneta, muitos vindo de longe, remando, do
senhora emprestezinho do seu querosene um pingo, que logo que o de comer só o ar do rio, só, sem um torrão de açúcar, um chibé. As
Amâncio chegue da tarrafeação lhe traz um peixe. letras viravam aquela rosca no balcão, o pão na canoa ligeira, a fari-
Aqui no chalé: Diminui essa luz, menino! Lá fora, já nem se via nha pesando na balança do Delfim, cuspiam. Não cuspam no chão,
mais o outrora poste que dava choque nos meninos, a vila no escuro, mal educados! Cantem. Nossa terra tem mais flores. A professora:
o carocinho no escuro, o Brasil no escuro, a guerra no escuro, no Vamos, meninos. Biá voltava, remando, apanhava pelo rio algum
escuro agoirava a matintaperera. Meio quartilho, quando tinha, era o taperebá que ia roendo, roendo até chegar no jirau da barraca onde o
que cabia ao chalé. Nas casas de baixo (casas! — palhoças de chão e periquito lhe beliscava o dedo. Em casa o pau de lenha à espera do
taboca), uma e outra candeia com a velinha de bubuia no azeite, luz aracu que o pai há de trazer — peixe anda arisco, arisco. Veio a mãe,
tão pobre e hoje para Alfredo tão escurinha como esse Biá do Sabino, amarela, seco e solto o cabelo, um trapo em cima da pele, verme até
aqui por acaso na Ponte do Galo. Adiante o rio passava no escuro, ou os olhos.
é ainda muito Brasil na escuridão, a aula de latim, o pingo de — Mamãe, por que diz que o Brasil é tão rico e a gente...
querosene, a mãe levando a lamparina para alumiar um momento de Perturbou-se, a mãe ralhou: Abom! O periquito gritava.
agonia do filho da D. Porcina? Alfredo abraçou o conterrâneo.
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— Tu te lembras, Biá? Foi, ou não, assim? E agora Biá? A professora falava:


— Me ajeito na boca de uma caldeira, em Val-de-Cans. — Pago promessa à Nossa Senhora da Conceição para que
Aprendiz. E tu? você, Raimundinho, possa ir estudar ao menos na Fênix Caixeiral, lá
— Estou lá. na cidade, o ofício de guarda-livros.
— Lá onde? Uma tarde, Raimundinho via chegar na lancha um senhor por
— Ah, rapaz, num tal de Ginásio. E tu, ganhas? nome o Deputado Federal, o doutor Bento.
— Aprendiz tu também nessa tua oficina? — Esse aí, Raimundinho, estudou na Politécnica. Sabe quantas
[18] — Não, não, Biá. Dizer que aprendo? Adeus. Dá lem- reses a família dele tem nas sete fazendas do Alto Arari?
brança. Ah, tu te lembras do Raimundinho? Sim, quedê ele? [19] Raimundinho nem sabia, essa aritmética não sabia. Por isso
Raimundinho. Pretinho, cabeça de coco, vendia os pastéis da mesmo segue pros rios acima num pontão velho. recolhendo cabos,
mãe da professora. Pela manhã, estudava. Que cabeça para os ali é a sua Politécnica.
números! — Até um dia, Biá.
— Raimundo, você tem é queda para os cálculos da Da Ponte do Galo ao Valha-me Deus, depois Pedreira:
matemática. É taco nas contas, número é contigo, não? passa pelo posto onde as serpentes desovam e há uma amare-
— Ah, meu camarada, pudesse... Pudesse, e este seu criadinho lidão geral.
aqui ia era ser um da engenharia. — Ara me deixa meter a mão no meio das cobras...
— E então? — Pois não, à vontade. Sem cerimônia. Cobras, lambam a mão
— Ouvi falar assim por alto, soprou aqui pelo meu ouvido que dele.
tem lá no Rio de Janeiro uma escola por nome Politécnica. Fede a calomelano. Espia a baixa de onde os sapos indagam:
Disse o nome, até assustou-se, ficou roendo a unha, melhor tens notícia da tua mãe? O Ginásio é a tua oficina?
tratar de vender os pastéis. Era chegar hora da tabuada, e Agora nesta chuva o subúrbio se sobrecarrega. Que faço, nesta
Raimundinho ficava sozinho, dono dos números, as quatro operações chuva, destes livros, desta idade? Parece que ali na barraca 46 tem um
na ponta da língua. Traçava a fração com um desembaraço! E tão vivente batendo o pacau.
maneiro com os sinais, com os problemas, o olhar comendo os — Já — gritou a vizinha.
algarismos. No arraial, em dezembro ficava ao pé do xarão de pastéis, — Já — respondeu a outra, carregando no colo o menino com
encolhidinho, mais pretinho, talvez mergulhado nas mil numerações. guariba.
E vender bem pastéis da mãe da professora, isso, também sabia. Os Aqui na baixa é o caldeirão das febres. Onde estás, Guamá, com
pastéis mereciam. teus cabanos? Na entrada da Pedreira, a faixa do aniversário:
— Aí na Politécnica, Raimundinho?
Os colegas vinham namorar o charão, comer o cheiro dos VIVA O SENADOR FACIOLA, O PAI DOS POBRES
pastéis. O pasteleiro acudia:
— Tomem unzinho só, se repartam. A azeitona é minha. Embaixo, uns curumins nuzinhos, só te olham. Um estica o
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dedo para o céu, para o arco-da-velha. Não é a mesma da casa em ruínas onde, lá na varanda, zumbia a
— Me dá do teu um tostão? Me dá do teu? escola estadual, com os meninos toda hora à volta do filtro, o filtro já
Do teu, onde, onde? Que fim levaram aqueles noivos guardados sem a pedra. Não mais a despenteada, o colo sem cautela, olhando do
pela Mãe Ciana, levados pelo seu Lício, na véspera do Círio? peitoril a lavadeira que estendia roupa. Aqui na casa alheia se cobre,
Voltarão? na janela, de cerimoniosa faceirice. Alfredo, mudo, encostadinho,
Um dia? depressa eivém a noite. Nisto, num sobressalto, dando conta do
Com seus filhos, muitos, atulhando o trem, eivém o trem, é escuro, Odaléa faz que vai mexer no cabelo dele, não fez, desaparece
agora, é agora, soltam o trem porta dentro do Palácio? Ó cidade do para dentro de casa, volto, acendo a sala?, as mãos atrás, senta-se na
Senador Faciola! cadeira de embalo, alva, desconhecida na sombra.
[20] O remédio é chegar ao quarto, sentir-se espiado pela — Olha, se não for tanto incômodo... Amanhã à tarde, estás
ragazza da veneziana. Bordeja pela calçada. estudando? Tem um tempinho deste tamanho assim [21] para ir
Mas, e essa menina, na porta desta casa? O bichinho sem um conosco, em nossa companhia, uma voltinha, no Largo da Pólvora?
sangue no beiço. Só pra distrair estazinha, esta febrenta.
— Menina, te conheço, tu não és a irmã da Odaléa? Chega a menina, fica no embalo.
Séria, tão bem penteada, repentina, a Odaléa diante dele, a — Não sou eu. Por mim não. É a maninha. Vai? Nos faltando
Odaléa de Muaná, a prima do lado branco. cavalheiro. Amanhã à tarde, sim?
— Estamos aqui nesta casa de uma família. Mamãe, eu e esta. A seguinte manhã no Ginásio, Odaléa nos mares da Hélade, no
Esta, com a tal de uma febre! Veio ao médico. teorema da pedra, e corre a pé até ao Marco, mais de uma hora ida e
— Odaléa! volta, como a tarde não passava! Na travessa Lomas, que o capim
— Milagre tu te lembrares do meu nome! cobria, a lavadeira, estendendo roupa. era, sem tirar nem pôr, aquela
— Odaléa! do Muaná:
— A carta, aquela, a tua, todos os namorados em Muaná — D. Odaléa, D. Odaléa!
copiaram. Sim, senhor, sim, senhor, seu escrivão dos namorados, seu — Senhora, D. Tertuliana?
fino! — Rezo que ele seja moreno!
Entram na sala, ela abre a janela, aqueles olhos iraúnas da — Olhe que lhe meto na sua boca um tição aceso,
Odaléa nos objetos, muito branca, a voz repleta. Canta baixinho: D. Terta! Mas a senhora!
— D. Odaléa!
À noite convida o apache — Senhora, D. Tertuliana?
A gigolete, a gigolete... O coração escurece que escurece as coisas, não escurece?
— Mas, D. Terta!
Do Marco ao Largo da Pólvora, tudo indolentemente
— Já sabemos o que é apache, o que é gigolete, Odaléa? longo, e suando, pessoas paradas num visgo de sossego e
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espera, bondes arrastam-se, as mangueiras ressonam, vão e carta.


vêm as carroças, carregadas de sono e ananás. Alfredo disfarçou, sentou no banco: Ainda não passei de
Largo da Pólvora, ao apito do Utinga, as quatro, numa aragem acompanhante. Assim fardado, guarda a princesa entre as plantas. E o
de chuva; aquele açaizeiro, sozinho, é ver um repuxo. rapaz que falava dos teus olhos no jornal, o jornalista? O vento te
— Não estás mais naquela casa? despenteava, mangabas e ingás te cobriam de resina nem sempre o
— Que casa? banho te limpava o calcanhar. Mais forte o vento e era uma vez o teu
— Ora, que casa... Então não sei? pardieiro, a escola na varanda, a professora lá dentro tirando do fogo
— Moro num sótão bem defronte da madrugada. a panela do camarão, desconsolado, um Lauro Sodré, na sala, tapava
— Tão alto que dá pra ver a Eunice atrás do tajá orelha de o buraco da parede e no lugar de honra o diploma da Escola Normal.
burro? Vizinho-vizinho, numa puxada entre goiabeiras e um pé de urucu
— E te ver também comendo mangaba na janela. carregado, era aquela doente-da-pele, tão dezesseis anos, cabelo pelo
— Aquela casa da José Pio, a dona mesmo... morreu? ombro, espiando, com a lamparina lá no fundo, podia espiar a seu
— Quem que te disse? gosto: O largo da festa, ali quase defronte, toca a banda, começou o
— Tio Leônidas. leilão, lá vai a Odaléa no seu organdi e laços de fita, o arraial cheira a
[22] — Por onde anda esse seu tio? pão-de-ló e foguete queimado.
— Ora por onde... Por esses rios costurando. E tu, onde moras? [23] — A moça, aquela, da puxada?
— No sótão, menina. Da minha janela avisto... — A Esperança? Já não vem na janela.
— Que fim levou aquele jabuti? — Agora é no rosto?
— Mora comigo. É o meu criado, varre o sótão, vou ao Ginásio — Nunca mais aparece. Não vem mais na janela.
montado nele. Odaléa num pasmo, confidente:
— Ah! — Também ela? Mas até a Esperança, Alfredo?
Odaléa vira-se para o Teatro da Paz, abrindo os braços: — Oh, Odaléa!
Ai, ai, Belém, Belém! Que só te vejo voando! Mamãe, só Odaléa nem se deu conta, vigiou o colo, chamou a menina que
acabar de consultar, é debaixo do toldo e o pé em Muaná. Mas deixa- fugia pelo jardim. Alfredo não se mexe. A prima habituara-se àquela
te está, deixa-te está! Um dia! Um dia me vingo... Mas, ah! Belém... doente, anos, e nunca a visitou, ou quem sabe, nunca mais a viu.
Teu visgo não me agarra. Odaléa dá uma volta com a menina, dedicada ao seu papel de moça
Ficou alheiosa, à espera de que surpresa? Ávida de que do interior passeando na cidade, filha de professora. Vai casar com
imprevisto? Tinha marcado um encontro? Vinga-se daquela carta? um promotor público, admite Alfredo. Vai entrar na magistratura.
Fazia-se tranqüila, satisfeita mas seus olhos procuravam, ou fingiam Some-se a lavadeira, chega o promotor público.
que procuravam, ocupada de si mesma, saboreando o instante. — Esta é a praça da República — diz a moça, categórica.
Calada, numa faceira expectativa, segura de que Alfredo, agora, sim, — Ali a estátua da mesma senhora — falou o rapaz,
tinha um outro olhar para ela e que a carta, aquela para Eunice, aquela temperando a goela.
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Ouve-se o espreguiçar da cidade, saem do banho as moças para grosso morrendo por muito grandes? E tua roupa, quem lava? A
a janela, a tarde cheira a moça. Odaléa, ajeitando o atracador no indagação ia além da roupa, além do entendimento. Era saltar da rede
cabelo, cuidadosa do penteado e do peitilho: para o alpendre, dava com os urubus no pouso, com a vesga inclinada
— Mas tão sem ninguém isto! na torneira, com as aulas da manhã lenta. Atravessava o Bulevar
— Ninguém-ninguém? onde, dobradinhos sobre os paralelepípedos do meio da rua, os
— Ninguém-ninguém. ferrinhos de dez anos catavam capim, reco-reco-reco-reco. Um senhor
— Eh, eh, ninguém? Mas noutro dia... Ninguém? Isto aqui baixo, corado, paletó e guarda-chuva, tomava conta deles, como um
virou um escarcéu, ninguém? Então que isto ficou repleto. Ninguém. velho guardador de carneirinhos sujos que pastavam aquele capim por
Ninguém, hem? entre os paralelepípedos. Era arrancar o capim, noutro dia o capim
— Aqui? Mas quando.., mas que mentira! Pensando que eu grelava. Um dos limpadores morava no Não-Se-Assuste. Mal
como coco? acabava, ia catar pelo cais um servicinho, ajuda a varrer navio, passa
— Daqui queriam marchar para o Palácio. As mães, só as mães, um bom pedaço da noite escolhendo e separando os bagos do feijão
não falo do resto. Só as mães queriam comer o governo vivo. do milho, o arroz do café e com isso trazia um sofrido mantimento
Ninguém, bem? para casa nem toda semana. Chegava tarde e aqui, no lamaceiro, à
— Eras, Alfredo! Agora em vez daquela carta para a Eunice, já noite, devolvia-se ao menino, entretido a soprar a velha flauta
inventando... As mãos antropófagas? Eras! rachada, encontrada num aterro do lixo. Soprava, soprava, precisava a
[24] — Odaléa, de lá pra cá muitas palavras, não? mãe:
— Muitas palavras? [25] — Dormir, Candoca, que é o emprego cedo, guarda é que
— Que aprendeste... é o peito pro capim que tens de arrancar, a manhã, olha a obrigação.
— Aprendi. Mas muitas. A metade na tua carta. Uma vez, vergado com o ferrinho tirando capim, mais que a
A menina corre para as mãos de Odaléa, esta, abraçada à irmã, curiosidade deu no menino um tal espanto: Vinha passando com
ficou de nariz no ar, compenetrada, solitária. banda de música a parada dos colégios de Nazaré e São Jerônimo,
— Perdida no bosque? escoteiros na frente, bastão, tambor, bandeira e padres. No seu pasmo,
— É. Adivinha o meu paradeiro? o pirralho ficou de joelhos, a mão na boca, rasinho como capim, a
— O bosque é imenso. Impossível. Quem é agora lá o promotor banda estalando os pratos, aquelas batinas escureciam ainda mais o
público? espanto do menino. Alfredo olhando. Entrou no Liceu: O Absoluto
— Por quê? Por quê? Que-que tu soubeste? Que-que te existe! Existe um princípio onisciente, uma ciência perfeita, uma
contaram? Como voam as coisas! Como tu soubeste? sabedoria total... Era o veterano falando, esmirrado, rouco, no pátio,
— Sentindo aquele meu frio — queixou-se a menina. puído o uniforme, sempre errado o passo militar. Alfredo trazia o
— Meu Deus! Então vamos! reco-reco lá de fora, o pasmo do carneirinho, de joelhos, esmagado
Alfredo voltou. Amadurecia nesse encharcado? A juventude era pela parada escolar, a batina dos padres amortalhava o Ginásio. Sol
como aqueles bichos do primeiro tempo da terra, enormes no sol em cheio no pátio, as paredes reverberavam; riam, rinchavam os
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belerofontes do trote, vaia e assobio. Um do bando, quartanista, Pereirinha, para livrar-se, do constrangimento, tira um papel da
aproxima-se do veterano, toca-lhe com o cigarro apagado: pasta, hesita, quer rasgar, rasgou, embolou, vai lançá-lo por cima do
— Certo que fazes voto de virgindade? Casto? Só no muro, Alfredo apanha-lhe o braço, toma-lhe um dos pedaços do
casamento? Posso apostar no que tu dizes, é a verdade? Que nem... papel, lê:
Outro abotoa o intruso, dá-lhe um empurrão, o pátio agita-se,
veio o inspetor, o veterano apaziguava. As montanhas e abismos que carrego
— Eu aceito a aposta. Aquele ar dele, que vocês julgam despedaçar-me nos despenhadeiros
insolente, é legítimo, sim, um desafio legítimo. Posso fazer a aposta. deixar trapos da túnica nas pontas
Admito que é um escândalo. É meu irmão que espalha a verdade, de eriçados penedos e marcar
quando só a quero para mim. Não quero dar exemplo. cada frágua com a flama do meu sangue
A um passo era o grosso do pátio, pés e bocas.
— Como falsa é a cópia que se faz da juventude, essa péssima — Frágua, Pereirinha?
cópia somos todos nós... Quando meninos esperamos, queremos que Os dois fitaram-se. Alfredo indagava, já não se sabia se por uma
ela venha o mais depressa, quanto antes... Chega, e tão de repente, insolência ou por ignorar a palavra ou repentina presunção de crítico.
que não sabemos o que fazer dela, nunca estamos preparados. E Pereirinha entrefechou os olhos, vexado, ferido, remexeu na pasta.
ficamos à espera [26] da juventude. A que chega não é verdadeira, — Sugere outra? Outra palavra?
verdadeira é a que não vem. É uma coisa que nunca pertence a Deus, Debicava, azedo. Alfredo até que se assustava.
a juventude? Sempre obra do Diabo? Adão caiu por muito verde. — Eu? Eu?
Alfredo afasta-se, avista o Pereirinha que fazia no Marco da [27] Pereirinha mete os pedaços do papel na pasta, retira-se a
Légua revista manuscrita Belemita, sem nunca trazê-la no Ginásio. um canto do pátio, só, com os seus despenhadeiros, assobiando.
Sempre com o Bilac debaixo do braço. Por dentro dos livros um e Alfredo acode:
outro soneto de Augusto dos Anjos e escrito, repetido, no caderno de — Vais publicar no GPC, ou é só na tua revista?
matemática: Vamos! Troca a palavra. Tira do teu dicionário a outra palavra.
— Mas eu, Pereirinha?
L’Amor che move il sole e l’altre stelle. Alfredo teme agravar o incidente também teme agradá-lo,
gostaria de dizer-lhe: “Toque, aperte a mão. Queres que eu escreva na
Meio arisco, temia que os colegas viessem a saber, de fato, da tua Belemita em letra gótica?” Pereirinha e ele, num esforço de se
revista que circulavas um só número, pela Avenida Ceará, sendo só aproximarem, cada vez mais se separavam.
ele que a escrevia toda, distribuído em muitos pseudônimos. Alfredo — Báiron, já leste, ouviste falar? BYRON?
chega-se: Pereirinha, rouco, repetia as cinco letras, numa fanfarra surda.
— E então a revista? — Báiron...
— Que revista? Alfredo dava um tempo a ele para explicar o Byron, ditar
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conhecimentos, ou desembaraçar-se da frágua. Disposto a ceder, sem apelo? Uma, duas, três bofetadas no Pereirinha.
contanto que se entendessem, até gostaria mesmo de colaborar na — Vamos tirar a limpo? Quer marcar lugar e hora?
Belemita com a sua letra gótica. Mas o Pereirinha! Distantes um do outro com certa distinção, dois diplomatas.
— Vamos! Ainda não encontrou a palavra entre os nomes das — Espero-te à noite na Vila Tubo. Sem testemunhas,
suas canoas do Ver-o-Peso? — falou o Alfredo pondo o quepe.
— Báiron... não é um clube de futebol em Niterói, no Estado do — Na Vila Tubo? Com aqueles pobres de lá só nos olhando?
Rio? Tomando a sopa do Santo Antônio? E quais as armas?
— Hilariante! Hilariante... — soltou o Pereirinha já a acenar a Pereirinha galhofava e ali mesmo os dois se atracam, se
um colega e agora subitamente em posição de sentido diante de esbofeteiam, purgam suas raivas, no meio do pátio que atiça a luta.
Alfredo, fez continência, a imitar o sargento do Tiro: Vem o inspetor. Os dois se levantam, triunfantes, quase felizes, já
— Hilariante o calouro que pensando entrar no primeiro ano parecem reconciliados.
entrou no terceiro e que na hora de enfrentar honradamente o trote... — Medievais! Medievais! E estamos na época do Gandhi! Do
Pernas pra que te quero? Gandhi! — repetia o veterano surpreendendo-se com o próprio
E rodou nos calcanhares, correu ao chamado do campo na saída contentamento — Veja! Veja! — ao ver [29]o duelo, e abraçou os
do pátio com Alfredo atrás dele a apanhá-lo pela ponta do dólmã. dois, o pátio se agitou numa aclamação, os dois carregados em
Virou-o num empuxão: triunfo. Alfredo, ao lado do veterano, sorria com um ar sobressaltado,
[28] — Repete. surpreendido consigo mesmo e grato ao Pereirinha. É assim, é assim
— Que é isso, Alfredo Coimbra? — Foi o grito do Novaes, o que se ganha um bom amigo.
primeiro aluno de Geografia, que diante de tudo se assustava, cheio Até a porta do Liceu chegava a raspar dos ferrinhos na pedra do
de exclamações. Os colegas acudiam. O Pereirinha apanhava a pasta Largo, rins dobrados, ali o dia inteiro, tão bichinhos do chão. Agora,
no chão. Escorou-se no muro do pátio, sorrindo, a mão pelo cabelo, na luz do pátio, passa lavado e gordo o Monsenhor da Moral e Cívica.
depois cruzou os braços, esperando. Alfredo olha o veterano, o feinho angélico, que erra o passo militar, a
— Que questão de honra é essa? Tão medievais, vocês! voz enrouquecida, Parsifal catando o Absoluto.
O veterano lhe tocava o ombro, se aproximou, abraçou-o. — Não pretende ser um possesso do Absoluto. Ou quem sabe...
Alfredo puxou um fôlego. Enfrentar honradamente... Era preciso uma Eu queria clareza, clareza absoluta. Não era o que queria também
surra no Pereirinha, ir ao Marco, rasgar diante deles a revista em aquele colega? Queria fazer uma aposta. A que provas me submetia?
miudinho. Ou merecia? Era merecido? Como se tivesse escutado a Ergue a cabeça, sem um sinal de desafio, sobre a agitação do
voz de Luciana. E lá de cima da porteira, ou do búfalo, do jirau rente pátio impuro. Bate a campa, o pátio se esvazia, Parsifal sobe a escada,
d’água, a Andreza escutava? Ou desafia o pátio inteiro para o total meio confuso, meio curvo, sempre errando o passo. Eivém o insolente
desagravo? Ou não tinha mais remédio? Via na boca do Pereirinha as correndo, dizendo-lhe: Não leva a sério, aquilo, viu? Hem? Sim?
mil bocas do pátio, a idéia que todos faziam dele, pátio sujo, sujo Alfredo, entre esquivo e zombeteiro, um pouco aturdido de si
estou eu também, uma surra no Pereirinha, sim. Ou tudo consumado, mesmo, subia-descia no Liceu entre o logro das aulas e o suado
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alarido do pátio. E o Pereirinha, onde estava, para abraçá-lo? Lá fora sem rumo pela Mundurucus ouvindo aquela ladainha lá embaixo sem
o reco-reco-reco dos ferrinhos catando o capim entre os um vagalumeio na quadra espessa de mangueira.
paralelepípedos. O velho guardador abria o guarda-chuva, a cada dia Já na frente da barraca suspendiam a lamparina dentro do
mais velhinho, os guris pastavam. Mas, espere, os meninos cantavam? paneiro, como nos sítios em festa. Esperou que acabassem de rezar.
Estão cantando? Cantando, sim, tão desentoado, ali vergados, ou de Esperou.
joelhos, tirando capim, cantavam? Roucos, fanhosos, apelo surdo, Veio se chegando, entreviu, na meia escuridão, a mesa, bancos,
gemer dos rins, ou súplica, coro abafado, os carneirinhos cantavam? pessoas, no terreiro a quem desejava pedir um sossego, qualquer
Ali debaixo do guarda-chuva o velho guardador parecia reger. Com o explicação e um pouco d’água.
reco-reco-reco entre os paralelepípedos o cantar feria, doía. Mas quem que ali estou vendo?
Alfredo ficava ao pé daquele que não degradava o amor, o Quem aqui no meio do terreiro, a saiona em cima da chinela,
consumido pelo Absoluto, o casto, o desajeitoso, o obstinado. olhem a blusa rendada, o bogari no cabelo, quem? Pois não era?
Sozinho contra a voz geral. Ostentava, humilde, a sua [30] pureza. E [31] — Ó Magá!
disso os demais tinham, entre o respeito, uma vergonha, escarneciam — Mas como? Como é que tu te atreve nem me tomar a bênção,
surdamente. O pátio se tomava mais. sujo diante dele. Os professores seu coirão? Perdeste o número lá de casa? Já não sabes o rumo dos
mais imundos. A verdade mais difícil. Também aqui, neste casarão, teus primos? Mas santo Deus! Nem te condói saber da Mãe Ciana?
ficou, para sempre, a vaga de Luciana. Como aceitar as coisas sem — Doente?
remédio? Quando olhava as moças do quinto ano, tão suficientes, — Ou não é doença bater Belém a pé todo dia sempre atrás
missa de cinco divisas, tentava ver um traço da morta ou a visão dos daquele invisível?
sonhos dela ali no ar feito poeira. Na rua, o cara-de-índio, o Parsifal, Alfredo beija-lhe a mão escura que cheira a tucupi e cera de
falou em Platão. Alfredo lembrou aquele almoço do Círio nos santo.
Alcântaras, o mesmo nome na boca do Porca Prenha, a indignação do — A Virgem de Nazaré não tire a mão de cima da tua cabeça,
seu Lício. O cara-de-índio recebia lições de grego com o padre Crolé. cuidado com o mundo! Cuidado! Nesta casa se rezou pra São
Por isso, agora, tão de repente, Alfredo apanha o bonde em movi- Francisco das Chagas, promessa da mea comadre Quelé, que o filho
mento, Platão e o feinho a pé pela Campos Sales. Entre os anúncios a dela? Quebrou o dedo direito na corda de uma polia, dedo esse... pois
palavra: Hilariante. Feliz um pouco, estava. não arruinou? Pois por pouco não perdia a mão? Então virou-se, se
Gastando a tarde pelas bandas de Batista Campos, deu num pegou com o santo.
portão com aquelas três moças de Marapanim tão ao mesmo tempo as Torcendo a orelha do parente, torceu, segredou:
três, que com as três se casaria. Passou, atrás do que, não indagava. — Cuidado é com o mundo. Com o mundo. Olha o que estou te
Atrás dele o cantar dos ferrinhos, cantar, chorar, ou só gemiam? Que dizendo: Com o mundo. A tua polia é o mundo!
havia com a noite, que tardava? Pensou em Libânia ao passar pelo Foi, destampou a panela da tacacá no terreiro.
Soledade onde as visagens do cemitério, trepadas no muro, puxavam, — Mas venham, pessoal, em nome do São Francisco das
à noite, os passantes pelo cabelo. No que escurece, entra a fundo e Chagas. Oferecimento é dele. Só hoje que amanhã adeus. Desfeiteiem
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o santo, depois agüentem. — Aqui, meu filho, a dona, a comadre Quelé, fez promessa de
Alfredo escorava-se numas estacas, pensando em Mãe Ciana distribuir de graça munguzá e tacacá entre gente convidada e gente do
que ia e vinha pela cidade atrás daquele “não-tem-descanso”. Eu sereno.
queria a tua paixão, Mãe Ciana, queria o teu pé incansável e a tua Magá andava magra, ao clareúme das lamparinas o rosto
mão que faz o cheiro, temperas a infusão com as tuas lágrimas e tuas reluzia. Tirava o tacacá como numa cerimônia. Debaixo das
raivas. Quero fazer uma promessa para o dia do Círio: Carregar de um bandeirinhas de papel, sob o fedor da vala perto, uns convidados se
lado a velha parteira e do outro a Mãe Ciana, as duas no ombro abanavam.
pesando menos que dois passarinhos. — E tua mãe, que nunca mais? Que cachorro te mordeu lá em
— Te chega mais pra cá, aqui, rapaz, te desescora, quem te casa que nem um ar de tua graça? Me admira é de ti, me admira é de
condenou pra ficares aí de castigo. Carece de escora? Quedê teu ti.
espinhaço? Me andas com um ar de arrependido ou desgarrado? Nisto, trovejou.
Tiraste é a sorte nascendo da mãe que tens, [32] felizardo. Então tu [33] — Hum, o porteiro lá de cima arrumando as malas pra
não conhece a comadre Quelé? A comadre Quelé? Que fizeste então viajar? Me levezinho na vossa bagagem, meu São Pedro.
da tua memória, seu rói-casca-de-queijo? A comadre Quelé? Cansa de De mangas enroladas, sisuda, distribuía cujas, ganhava uma cor
armar, coitada, todo santo ano, a barraquinha dela lá em Nazaré, mas cobre. Atenciosa no servir, não ria um só instante. Teria matado
da festa, no traseiro do arraial. Do lado esquerdo? De quem entra? recém-tartaruga?
Pois nesse correr a barraquinha dela, por nome É Aqui A Quelé, bote — Nestes seis meses? Olhe, meu anjo, que só uma! Casa do
idade, o que tem de fazer é passar tinta fresca nas letras da tabuleta, já contador do Tesouro. Só uma, que por sinal bem magralhona. As
tudo tão desmaiado. Fica entre o João Barabaia e a Cabana Luar das inocentes estão que estão escasseando. Raridade. Mais pimenta,
Flores, defronte da É Aqui A Sereia. Não vem me dizer que não te menino? Mais tucupi nessa goma, meu preto? Mais jambu? Comadre
lembras, sabendo eu a tua cabeça e o teu fraco pelas gulodices do Quelé, me mande mais jambu. E do mungunzá, gente? É o santo que
arraial, que herdaste de tua mãe. Também do teu pai. Sendo que ela é oferece. O único pago é beber sem dizer obrigado. Povo,
aquela tamanha quantidade de tanta pimenta oh!, rapariga! Bote, bote acanhamento de lado, só mandar servir. Não desfeiteiem o santo.
pimenta em toda e qualquer comida. Não olha o prato dela que só de Séria, na serventia do santo, o colo sobre o terreiro, Magá fazia
olhar te arde, O teu pai? Quanta vez! Ficava ali de molho no ver-o- sala.
peso da festa, e era um mingau e era um cuscuz e era uma coxa de — Que que então que te deu que de tão longe te atiraste de
pato no tucupi só pra esperar os fogos, saíam já pelo clarear, tua mãe, vento em popa aqui por esta baixa, como se tivesse te ligado o meu
sempre bem arrumada, ia pra casa como veio, no esmero, aquele rosto telefone? Que é que tu andas mariscando? Adivinhaste? Rastejando o
passado na pluma cetim e veludo. Ou já torces o nariz para alizinho a cheiro? Vai primeiro, vai primeiro pedir bênção do santo lá dentro,
bunda da igreja e são outros os teus comes-e-bebes, viraste princês? entra lá dentro, vai entrando, que não tem cachorro, a abundância que
Magá servia tacacá, recendia forte o molho das malaguetas, Na tem ai dentro é agrado, o que nunca falta é carinho. Comadre Quelé!
lata de querosene o mungunzá fumegava. Lhe apresento esse-um aí, esse pau-de-virar-tripa fardado, meu
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sobrinho, é da raça, anda perdido no Jurunas. Apresente ele ao santo, palmas de açaí, Alfredo ajoelha-se, beija a fita, o santo parecia
faça ele ao menos beijar a fita, coisa que já não faz, vá ver, conta as sufocado de flor, vela e reza ou a dizer-lhe: Me enganando, não, seu
folhas da folhinha, ocupadinho que anda — sabe lá... — com o estudo safado? Atrás, a comadre Quelé, o olhar das moças, eivém um guri,
dele... Susto que o santo te meta em confissão, saber teu fogo, que é vira-se para ele, muito espião, bastante adivinho, cadê que Alfredo
que tu andas... tamanha lonjura, aqui pela zona do Jurunas, atrás de queria ou podia levantar, pois lhe deu um embaraço. Ou culpava-se?
que companhia, no pegadio da Mundurucus? Te influi! Te influi! Te Melhor não era ter beijado a palma da mão da D. Quelé que vai agora
influi com o Jurunas! Te influi! Que a Mundurucus, por demais soprando as velas do oratório? As ceras se apagavam macio, macio, o
grudenta, gruda de arrancar pele, Vai atrás de isca neste remanso, santo só faltava pedir: Quelé, meu coração, me trás lá da Magá um
vai... Da feita que fisgou... tacacá mas com bem pimenta, antes que me feches neste oratório.
Magá falava por experiência? Aqui pegada, trazida de sua Alfredo desajoelhou-se. O filho de D. Quelé chegava..
esquina do tacacá na São Jerônimo onde é dona, moradeira velha da — Lhe cortou o dedo? A polia?
Ruy Barbosa em que passa o bonde, com o [34] retrato do falecido, — Ah, não foi nada.
mestre funileiro, na parede e no estandarte, e aqui na Mundurucus [35] — Não? Não foi nada? — Acudiu a mãe, franzindo ale-
servindo a São Francisco das Chagas, a um pecador do Jurunas, seu gremente a testa. — Olhe o Zezinho. Se atrevendo a dizer na frente do
travesseiro de orelha? Aqui no fisgo? De quem? Só por amizade à santo que nada foi, o prosa. Só que te aprecio!
comadre Quelé? Ou por um não-te-digo-o-nome do Jurunas, unzão da Alfredo foge para o terreiro.
estiva, do boi-bumbá ou da diretoria do São Domingos Futebol — Que te deu, que tu já vai que nem me toma a bença, rapaz?
Clube? Atrás do jirau, lá atrás, cachimbava um senhor afastado, só de Que desassossego esse, seu tão desempaciente?
banda, no-só-te-espio, era ele? Aqui na roda as meninas cantavam:
Eu te quero um homem, lhe disse Magá naquela longe tarde. A
casa Alcântara ia abaixo. Um homem. Já era? Ou tão só maliciando Das filhas de minha mãe
dela, a enxergar o que não via? Aqui, em torno do tacacá, descobria Sou eu a mais estimada
bruscamente no Não-Se-Assuste, no rosto da D. Fausta tocando que me importa
debaixo do assobio as suas valsas no cinema, este mundo sem apelo. que me importa
Por isso, aderia ou puxava o santo pela barba? que eu seja a mais desprezada
— Comadre Quelé, me guie essezinho penitente até o pé do sereno da madrugada...
santo.
— Entre, que só paga na saída. As feições da mãe, ele... Ela, Surdina um borrifo de chuva, a cidade se agasalhando nos
como vai? braços da comadre Quelé.
Comadre Quelé, barraqueira tão atrás do arraial, as faces em Agora em Batista Campos dormem de rede as três formosas de
festa, era rir e fazia as pessoas felizes; nos braços dela se podia Marapanim. Entra no parque, deserto, olha os portões, fechados, nas
agasalhar a cabeça. Diante do oratório azul, na sala de chão, entre as janelas ninguém.
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Escrevia no ar ao pé da mangueira: pela D. Pedro com a visão do pai, na varanda do chalé, compondo,
1 quarto, de preferência sótão ou mirante, rente das bem devagar, o livro do Juiz de Direito, os passarinhos espiavam da
madrugadas. janela a sacudir o bico a tão inútil esforço.
1 cama de soldado, defronte a rede com varandas vermelhas. Flutuava entre Liceu e vagabundagem, entre optar pelo mundo
1 retrato da filha de italiano a prestação no gringo. ou seguir aquele rabecão da Santa Casa até encontrar uma resposta.
1 enterro para Luciana. Reapareço para D. Dudu? Volto ao meu terreiro? Saboreava a feia, a
1 peça de linho para a mãe. má ausência que faziam dele, todos, todos, na José Pio, Curro, Rui
1 enxoval ao gosto da donzela viúva. Barbosa, na errante casa Alcântara, depois que se viu bem servido...
1 epitáfio, escrito por Parsifal, para a defunta do rabecão. Via, de longe, a Nini, uniformizada, mais a caminho do Orfanato que
1 lei desapropriando o chão dos Lobos. da Fábrica de Chapéus de Homem. Arriscou-se uma semana pela
1 aparição de Andreza sempre menina. Pedreira, uma tarde enfia os olhos por entre as estacas de um quintal:
1 flauta para o ferrinho. A Dalila?
1 explicação do Absoluto. Caminhando entre as populeiras em flor, Dalila, no pajé, espera
Todos os catálogos de pós-guerra para o pai. o seu banho.
[36] 1 peruca para Dadá. Um tempo.
1 vapor para a D. Celeste. Dalila entra no barracão.
1 tabuleiro de pupunha para aquele menino que derrubou no [37] Esperou.
comício do largo da Pólvora. Menino? Ela voltava com uma alegre pressa, e o seu cabelo? Ainda pedia
O endereço daquela operária que comia gergelim ao pé da um tifo?
estátua da República. Cortou pelo Acampamento, passa pelas cobras, entra na Curuçá,
Pendurar na jaqueira de Zulmira, a nua, o manto de Nossa espiando a Passagem dos Inocentes. Quis ver o jogo, não era
Senhora. domingo. Nem mais as traves senão a mangueira no meio,
1 oração, ou bom preparado que faça o seu Lício rojar-se aos empoeirada, sombria. Da ramagem ia saltar o Lázaro, voltando do céu
pés da Mãe Ciana. que não encontrou?
1 boa noite da filha de italiano. Aqui na rua da estância, vai e volta, aqui na esquina, comeu um
1 elixir de formosura para a Bina, a tão feia. pão, coragem! Roça a janela, lá dentro os olhos da espiona, a luz que
1 bobina de papel para Rodolfo, o tipógrafo. vem da veneziana é dela, apostava, apostava. Então te arrisca, te
1 tina para o banheiro. arrisca, coragem, bate palmas. Bate! Corre da porta, desce a rua, vem
1 carta da mãe: tudo bem no chalé, meu filho. voltando, sobe na calçada, bate palmas.
A roda, longe, sereno da madrugada, o munguzá fumaçava, Custou.
ardia a boca de pimenta. Aqui fora sol queimando e eis que da moldura desce o rosto
Virou que virou o calcanhar pelo Jurunas, agora caminhando oculto na toalha, entreabrindo a porta, só indagou de olhar, cortando
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afiado. Ria, desdentado. Do bigodinho saía todo o acolhimento.


— Um copo com água, se não for muito incômodo? — Olhem ali no cercado um amor-dos-homens florando,
Em cheio a porta na cara e já aqueles passos lá dentro e aqui florando. É ou não é a nossa primavera? A propósito, vamos
fora este sol, a rua escalda, aqui sem dar mais um passo. Lá dentro encontrar na estação, vendendo chouriço, aquele italiano, filho de
enchem um pote? Arrastam um banco? Ou é a princesa voltando à sua Catânia, que recita Petrarca.
moldura na parede? — Quem? — virou-se Alfredo com a visão do campo escuro, a
Veio passando rente. Já atrás da veneziana ela espiava, o ar mãe estirada na bosta de boi, carregada pelo bandido que, onde põe a
dizia, dizia a janela. mão, tudo apodrece.
No quarto, não sossega, corre ao Ver-o-Peso. Chegando uma — Ainda não sabe do freguês do chouriço em Marituba? Pois
canoa de Cachoeira? comeu milho. Pois então comeu milho, meu amiguito. Por um
— Leônidas! chouriço assado, sapeca-nos um soneto, o molho para o chouriço é
Os dois caminham debaixo das mangueiras do largo do Palácio. um soneto de Petrarca. Mas olhem! Contemplem. Tivesse eu o pincel
Leônidas se despede. Alfredo, impelido a apanhar aquele barco, a de Manoel Pastana! Sim, sim, sou serei um eterno admirador das
canoa aquela, não demora esta noite em Cachoeira. belezas da natureza. Admirai! Admirai!
Vem a pé para a estância, tranca-se, e então é a noite, aquela, de Passavam crestadas capoeiras, ali um pé de urucu morrendo,
que lhe falou Leônidas: eivém o aterro escuro onde já foi uma barraca, o burrinho e o pouco
— A mãe encontrada desfalecida no campo. Uma pessoa caso dele pelo trem, aqueles barrigudinhos ao peso de tanto verme
carregou ela para o chalé. nem adeus faziam. Seu Ribeiro, soprando o fumo do seu charuto,
[38] — Quem essa pessoa? admirava. Por incrível, o [39] trem vai ligeiro, arqueja nesta curva,
— Tu sabendo tu te aborrece. ligeiro coisa nenhuma, Alfredo. ligeiro é o teu imaginar, fugindo do
No campo. Na sua ronda, cercado de seus fantasmas, Edgar campo, do chalé, viajas para aquele 142 de platibanda carcomida
Menezes a leva ao chalé, entra pela porta dos fundos, deita a onde é a Itália. Mas o campo insiste, aqui a mãe despejada na va-
desfalecida na varanda. Lá na saleta o Major —ah, que aspérrimo randa, já vai o Capitão Edgar pelo aterro, contando o achado.
dezembro! — folheia o catálogo: quem é? Quem entrou? — Ó Zematias, vai direitinho o nosso farnel? Em ordem a
O chalé fecha-se, os bacuraus gritando. caranguejada?
Seu Ribeiro vem arrancá-lo do quarto. Esguio, resseco, sonolento, calça, sapato, camisa, chapéu, todo
— É o nosso Garimpeiro, concidadão, hoje é domingo. É a de branco, Zematias punha os óculos verdes. Junto de Alfredo,
excursão. É nosso convidado. Vamos. Desate a rede. E com cara de murmurou:
que não dormiu? — Tenho horror à paisagem. Só mesmo o banho, aquele, lá, é
Seu Ribeiro no trem: que me faz suportar a moldura. O igarapé é pra me livrar deste meu
— Aquele cróton! Ali ao pé do portão o cróton! Cróton sono, desta minha esquisita contrariedade por tudo.
selvagem, tinhorão lascivo! Recém-chegava do Nordeste, servia a escritório da Machine
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Cotton. Viajando no sertão deu com um bando de cabras do cangaço. Que Amazonas de amor não sairia
— Então como foi, Zematias? De mim, de ti, de nós, que nos amamos!
O viajante, num bocejo — Ah. Foi metido nos óculos verdes.
Puxava o chapéu sobre o rosto, cochilava. Morto o interesse dos E o único dente, o de cima, do seu Ribeiro ria.
amigos, saltava do cochilo: O trem perdia o fôlego. Parando? Seu Ribeiro espiou pela
— Uns cabras. Foi. Ah. Foi. janela:
Era de sociedade, a família debruçada nas suas quatro janelas da — Ah, a minha máquina fotográfica, que nunca tive, sempre
São Mateus, Alfredo via, ao passar de bonde. As Irmãs, três, toda sonho e nunca terei! O trem pára, não. O trem caminha.
tarde ali a rigor, em ruge penteado e anéis. Aos bailes da Assembléia Cumprimentarei, em nome dos Garimpeiros, o maquinista, lá na
às paradas altas do Pará Clube, Zematias preferia, no subúrbio, o estação.
relancinho com o Filemon e o sírio-libanês do curtume, a companhia — E aquele outro teu desejo, Ribeiro, aquelezinho? O carrinho
do seu Ribeiro com quem fundou os Garimpeiros, e um sabadozinho Ford? Quando?
ao mês, na Dois de Junho, a três mil a entrada, cervejando — sempre No que falou, Zematias baixa a voz, inclinando-se para o
com sono, sempre contrariado — com aquela Antonieta que amigo:
continuava a escancarar, com o seu sopro, as janelas de família. — Filemon, ali, caladão, coçando a fístula.
— Bem que podia ter trazido a Antonieta... — Ó Filemon!
Espreguiçou-se, oh, sono! Seu Ribeiro tirou o charuto da boca: — Aqui estou eu descansando da insônia desta noite.
[40] — Cavalheiro! Cavalheiro! E a finalidade de nossa ex- — A ferida? Como vai? Fecha ou não fecha?
cursão? Não desvirtue! [41] Seu Ribeiro acudiu:
Zematias pigarreando, sonolento, ria de contrariedade? O — O carrinho Ford, Zematias? Sim, sim, ah, um bem usado,
chapéu sobre o rosto, o lencinho no bolso da camisa. Usava o humildemente... O carrinho oficial das excursões. Propiciava,
perfume da família. propiciava. Mas bem usado, humilde, nem que seja se quebrando por
— É do hábito dela mesmo passar soprando dentro das casas? aí afora, sim... Não por mim mas pela finalidade... E aí você,
— Quem, Ribeiro? ginasiano, nem uma palavra? Nem a paisagem admira? A paisagem é
— Concidadão! Concidadão! Olhe os nossos estatutos! Os um estado de alma, é não? Já ouviu dizer? Olhe por exemplo aquela
nossos estatutos! palmeira.
— Soprou na tua, Ribeiro? Alfredo via: A filha de italiano se pendurava na pupunheira em
Ribeiro, sorrateiro, suspende a perna, os olhos em cima: flor, seguindo o trem, entra no carro com a fumaça da máquina e
— Quem sou eu, cidadão! Eu que não sou vós, concidadão, sempre ali atrás das rótulas, vergada na espionagem, gulosa da rua.
concidadão. Chegavam.
Se estes dois rios fôssemos, Maria — Sr. Maquinista! Sr. Maquinista! Os cumprimentos do grupo
Todas as vezes que nos encontramos excursionista. Os Garimpeiros pela boa disposição da locomotiva e
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por vossa perícia! criança e um rapaz. Aqui no limo e areia, vagarosamente desfiados,
Onde o chouriço e o Petrarca? O italiano do chouriço, viram? os cabelos de quem espia da veneziana. Sobre o peito a corrente fria,
Então caminhemos já para o éden. Ao garimpo! Desencardir a alma! desliza o rosto oculto, o rosto que desceu do quadro. É ou não é uma
Ah! Só este ar. Este orvalho! Este sossego! Balsâmico! Balsâmico! visão celeste? repetia o seu Ribeiro com outro gole, tirando a roupa:
Deleite-se! Deleite-se, menino! Por entre a folhagem entreabre-se o — Ao estado natural. Ao estado natural. Agora aos caranguejos.
igarapé tão de repente, ali aconchegando na sombra. É ou não é uma Ave, César, os que vão... Zematias, amarra a garrafa num ramo dentro
visão celeste? d’água. O embrulho de camarão seco, Zematias? O camarão seco?
— E os caranguejos, Zematias? Em ordem o bornal? Bem? Vinde a nós, São Francisco de Assis, meu pobrezinho, prega nestas
Alfredo, as mãos dela vê, muito alvas, dando-lhe água. Seu nossas águas, que nós te merecemos! O camarão seco, Zematias.
Ribeiro retira da pasta do clube a flâmula verde-amarela e pendura no Alfredo caçava no silêncio folharal, nos esconderijos, o olhar,
ramo: aquele, da veneziana.
— A missão excursionista de Os Garimpeiros é difundir o gosto — Que este igarapé me afogue esta... que choca dentro do peito.
pela natureza, fazer o turismo em nossos igarapés regionais. Se adoto — Quem que choca, Filemon?
o espiritismo, não menosprezo aos domingos o culto panteísta. — Aquela, rapaz, aquela, dona de todos nós, de todos nós.
Retirou a garrafa de cana: Filemon entrando n’água, com o copo que emborcava. Já o
Zematias, achando a água gelada, bebia na garrafa. Ainda com a visão
Ai dos teus tristes ais, moenda dos cabras na caatinga?
arrependida! — Viva os Garimpeiros! — gritou o guarda da Saúde, dentro
Álcool para esquecer os tormentos da d’água, chupando a unha de caranguejo.
vida — O martelinho de quebrar caranguejo! Esqueci-me! Agora só
a pau. Estão é magros. Dêem-me um charuto aceso [43] .e cortem.
[42] E cavar, sabe Deus! um tormento maior! Conhecem a frase? De Mariz e Barros que na casamata do
— Vamos deitar o néctar de bubuia, esfriarzinho no seio da encouraçado recebe um estilhaço e tem de cortar a perna... Ao herói!
linfa. Nas tuas mãos, mãe-d’água, a botija de Baco! Um golito, Ao herói!
Alfredo. In vino ventas! In vino ventas! Vinde, sereias! Filemon coçando o peito, a ferida que não sarava:
Desenrolou, um trago, abriu os braços: — Magros? Pois não fui eu que os comprei e mandei cozinhar?
Magros?
Tenho sede demais, samaritana — Estão magros, não?
Tenho sede demais, quero beber. Caranguejo gordo só dá nos meses sem R: maio, julho, agosto.
Nos demais meses é que é caranguejo junho, magro.
Alfredo estirou-se no fundo de areia e limo. O limo não mais — Mas estamos em maio, Filemon.
dos cabelos de Dolorosa naquela noite de Santana em que nasceu a — Por isso, Ribeiro, por isso, Ribeiro. Estão gordos! Magro é o
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teu conhecimento sobre o assunto, rapaz. Sabem? Vi seguir ontem no mano onde morava? E Catânia, em que parte da bota, aquela do mapa,
rabecão a Chiquinha Buá. Soube servir e empestar, no Umarizal, duas que o mestre de Geografia enchia de cana e virava?
gerações. A Chiquinha Buá! — Comer! Vamos comer! Esfreguem a alma!
Quando levantam na praça um monumento às putas? Seu — Sai isto de mim? — indagou, suplicante, o Filemon, batendo
Ribeiro, tomando pé, não sabia nadar, batia água: o peito, logo um trago.
— Dobra a língua, que isto não é dos nossos estatutos. E bem — Este sono, esta contrariedade? — zombou o Zematias,
que eu não quero morrer sem que ela morra... Sabes que sou sócio da tapando o rosto contra o sol.
Sociedade Olhar de Jesus que ampara as decaídas. — Abre um bicho desses, Alfredo. Esta unha! É ou não é uma
Alfredo sacudiu o ramo, descascou um camarão seco, olhando visão celeste?
aqueles excursionistas, no regozijo dominical. Seu Ribeiro lavava-se Alfredo apanhava a unha. De que valia? Onde o chouriceiro?
de seis dias de repartição, e do mergulho saía recitando: Zematias cabeceava de sono. Ou vomitando o seu terror trazido da
caatinga? Debaixo da ramagem, a mão n& peito, seu Filemon parecia
Porque na terra deu-se apenas isto sabendo a verdade.
Multiplicou-se o número de Judas — Sob o signo do caranguejo, Filemon! Comer! Viva Os
E vai crescendo a prole de Pilatos... Garimpeiros! Viva a democracia liberal! De 24 de fevereiro, a nossa
Carta Magna!
Zematias enxugava-se, branquíssimo, magríssimo, con- Os três escorregaram no limo e na areia, um trem longe apitou.
trariando-se, procurando o sol, ou enxugava ainda o seu terror? Alfredo espremia solidão e do mergulho breve trazia sobre as costas
Filemon escondia-se no cipoal, coçando o peitame, era ou não era? todo o chalé com a desacordada no meio da varanda. Os três
— Quero um grama de rádium! — gritou, rouco. emborcavam. Seu Ribeiro erguia a garrafa: E tu, verdade viril por
[44] Alfredo via-lhe o gordo rosto angustiado. O sol varou a quem trabalho, com a alma agradecida dos melhores paraenses, rodeie
folhagem. O olhar da espiona, era? Alfredo mergulhou, abriu os olhos cada vez mais [45] carícias sem conta a existência daquele a quem
no fundo, mais só, muito mais só, boiou ouvindo: deve o límpido fulgor de suas louçanias! Bebamos! Nem um canto de
— Viva os Garimpeiros! Viva os Garimpeiros! saudade!
— Este minuto só, em troca de toda aquela eternidade lá Zematias tentava acordar, Filemon mirava n’água o seu
embaixo! — Ergueu-se Filemon esticando sete dedos. Alfredo peitame, corriam ecos pelo mato, os passos no chalé entrando na
mergulhou de novo, tão-tão longe dos três que bebiam, partiam varanda. No meio d’água os três abraçavam-se, deu sol na garrafa de
caranguejos, cantavam. Mais longe de si mesmo, sim, batendo esta bubuia.
água, agora batendo aquela porta em vão,. e aquela noite em que entra — Será o meu banho de despedida? — perguntava Filemon.
pelos fundos do chalé o barbudo assassino carregando a desacordada. — Só vestir a roupa, visto a contrariedade — lastima-se
É ou não é uma. visão celeste? Onde o italiano do chouriço? Ouvir Zematias.
dele os sonetos que só aquela da veneziana merecia, sim, sim o carca- — Brilhe ao sol a nossa flâmula — gritou o seu Ribeiro.
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Alfredo abriu o peito do caranguejo com um súbito desespero. esqueci a flâmula?, o Zematias aposta no relancinho o sono e a
Os três saltaram d’água, já se vestiam em silêncio, agora é sol no contrariedade esquisita, o Filemon, à mesa espírita, isto aqui no peito?
caminho, onde o chouriceiro? Aqui no pé da plataforma o cavalo já Isto aqui no peito? São Pedro, lá em cima, arrumando as malas, ia
bem idoso. viajar? Adalberto! Um foguete pelas alturas do Ananindeua. Debaixo
— Me ceda um tempo só prum galope? deste caramanchel de maracujá, valia um descanso, sim. Da velha
Trotou à volta da estação, sobre o sono do Zematias, o peito do casa saem morcegos apressados. Será sono? Os caranguejos agarram
Filemon, a flâmula do seu Ribeiro. o cochilo, quando aquele copo d’água nas mãos da italiana? Filemon
— É o teu domingo hípico, ginete! abre o peitame, engolindo este limo, este domingo. Os morcegos
O cavalo empacou. olham a perfeição deste sono e não ousam, o pente cai do bolso, pinga
— Moço, isso é o aviso dele, melhor que desapeie. É a idade. das folhas a madrugada, os galos não respondem, gordos os
— Minha ou dele? caranguejos em maio, de que valia tudo? Os galos não respondiam,
— Dele. Não queira o risco. vamos de volta a pé, carregado de caranguejo, garrafas de bubuia, os
Soltou a rédea, foi-que-foi longe, desapareceu a vila. tomou a gritos da mulher, o pé do urucu morrendo, o burrinho no ombro, afia
galope, vamos, velho, senão perco o trem, o trem chegando. O trem, as tuas pestanas, espiona, e espia este-um aqui descaminhando pelo
Alfredo! O trem! O trem partia. trilho do trem, amanhecia rosa com duas estrelas crepitando alto, rosa,
Apela na estação deserta. Onde o chouriceiro? Agora rodeia a entrava pelo sono, restituía íntegro para o mundo este olhar, este
oficina da estrada de ferro; os ferros descansavam ou se cobriam de passo, este rumo, flâmula no ombro, alegre domingo em Marituba.
ferrugem e limo. Voltou ao igarapé, o mato resingava, quem que ali Iam a pé para a usina as quebradeiras de castanha.
deita a cabeça no tronco? Enforco a aula de desenho?
O folharal fiava os escurões para a noite. Atrás do tronco a Dá volta pelo Reduto, um café, ali se demora, vê a mãe de Zuzu
mulher soluçava. da Jaqueira (tão cedo?) à porta da lojinha [47] mi|rando, esquecida, a
— A senhora... peça de chita que o sírio desdobra e pendura, oi a tapuia-mãe não tira
[46] — Vamos, Durvalina! Acabas é tendo o inocente na beira os olhos.
deste igarapé, sua desesperada. Querer parir como as vacas do Deu a volta, de novo virou-se para a loja: O olhar da senhora na
compadre Abreu, cristã? chita que o vento sacudia.
Três homens agarram a mulher. Não quero. Não quero! A cristã E vem, a zanoia das borboletas lhe aparece, o beiço grosso de
debatia-se. Adalberto! Adalberto!, gritava surdamente. Alfredo pintura, o cabelo encaracolado, o tamanquinho, um galho de roseira
seguiu-os. Entraram numa barraca, os gritos continuavam. Nem um com duas rosas na ponta, os olhos cada um para o seu lado.
trem? A alegre excursão! E se a pé até a cidade? Seria a mãe assim, — Caçando borboleta?
grávida do primeiro filho, fugindo pela beira do igarapé, as mãos na — O senhor, sim, que mais parece. Vá, vá mangando, que um
barriga, Adalberto? Adalberto? dia... Um dia vai ver é eu saindo com a minha criação até a bordo do
Dos três garimpeiros... Ribeiro, na cadeira de vime, onde vapor inglês.
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— Já viu um vapor inglês? sapatos de seu número, em todos da prateleira deixar o rastro de seu
— Sempre olho nos anúncios do jornal, aquele vapor. Em pé e ir dizendo, ao ver cada um no pé das outras: Esse foi meu, meu
pessoa mesmo nunca vi, assim de dizer que vi de perto, de pertinho, também aquele, todos por mim já usados.
não. Mas penso. — Meu pé é grande? Acha?
— Pensa? — Mimoso.
— Não é? Oiço ou não oiço que tem navio inglês que vem e — Mimoso? Mas ah! Só estou seu gosto! Pois bem, muito
vai? Quem que compra borboletas? E essa flâmula enrolada na mão, é obrigado. Vou pôr no meu cofre a sua palavra.
o seu clube? — De vez em quando abra o cofre e tire a palavra que eu
— É. areio... dou um lustro. Sim?
— Me deixe ver as letras. — Acabei foi enfiando a cabeça num quintal de borboletas.
— Não. É um clube proibido. Não pode ver. É feio. Onde vai? Crio?
— Ali cobrar uma roupa. Depois vou na Cidade Velha. Lá onde A zanoia riu tão menina, lembrou aquele rir da Semíramis no
morei. baile em Muaná, e aqui os dois caíram pensativos.
— Te acompanho? — Agora, noutro mês... Parece. Ao que zoou... Zoou... que vou
Tinha morado, sim, na Cidade Velha. Também numa estância. pra fábrica de cigarros.
Sendo que lá, por mui pobríssimo que fosse, sempre cabia. Agora? — Cigarreira?
Naquele tal de Não-Se-Assuste? Na Cidade Velha, sim. A mãe levava — Aleja?
ela para as freiras, para a porta do Arsenal, os marinheiros lhe davam — Quem disse?
rebuçado, das cinco, na Sé. Dava-lhe vertigens, sabia? Certa missa, Nele brotou a moça do gergelim na praça: E tu, onde tu
zonzeou, olhando os vitrais, como se fosse ficar num deles, não sabia, trabalhas?
a cabeça rodava, por falta de café não era, bebeu [48] com pão, ou — Fuma?
medo? Fugindo de rezar ou ainda agarrada no sono? Nosso Senhor — Eu?
lhe dava a modo de um calafrio, de madrugada. De menina rezando [49] — Pois aprende com cigarro feito da minha mie, sim? Ah,
assim cedinho, a Nossa Senhora de Belém não aprovava. Ah, tinha, às peguei a falar, peguei a falar, já está então bem tarde, ah! vou cobrar a
vezes, cada um desgosto! Então que carregava cada aborrecimento! roupa. Tão aborrecido... É num instante. Me espera?
Olhasse ela por dentro. Por exemplo, cobrar roupa. Cabia? Era um Voltou.
instante só, passava. Passava? Primeiro um e outro preferir errando, — Na Cidade Velha, a estância onde morou, onde?
confronte as vitrinas, quiosques, aquele pano tão primeira vez que via Ela não quis dizer, caminharam, ela entrou em Santana, beijou o
no Paris n’América, e se desse a cabeça de ir no cais? E aquela pé de São Pedro. Quando viram estavam na Cidade Velha, cheios de
boneca, ali na Santo Antônio, de encher o colo? O olhar nas continhas suor e espanto. A mocinha olhava. A velha cidade lhe parecia mais
daquela volta, tanta rede no Mercado de Ferro e dela nem uma? pesada, a Sé caindo-lhe no coração, com aqueles altares, aquelas
Doideira de sair descalça entrar correndo na Gurjão provar todos os portas. Alfredo esperou que ela rezasse.
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— E a estância? aborreço de estar casada.


— Olhando esta queimadura no braço, esta marca? É Deus que — No Bosque, você dança? No Bosque?
ainda pude pular pela janela. Uma semana antes do casamento da — Bosque? De bosque só sei quando danço ali na rua na roda
titia. das meninas.
— Que foi? — Quantas vezes foi anjo de procissão?
— Queimou tudo, o casariozinho queimou tudo. Foi pegar fogo, — Uma só vez ah, me aborreci! Mordi o dedo de outro anjo, fui
a tia Magui casou-se. excluída.
O casamento da tia? Perdeu a conta do tempo do noivado. A — Quer dizer que é um anjo rebelado?
caixa de charuto assim de postais só do namoro deles e iam ficando os — Hein? Olhe, se for cigarreira até quem sabe... vou tirar uma
dois tão ressequidos, tão aborrecidos de se olhar um para outro aquela linha desse seu Bosque. Onde é mesmo?
toda noite nas cadeiras de fundo furado! Ele chegava, assinando o — Tão inocente!
ponto, tal e qual como na sua repartição, a das Águas, era do — Juro... Juro... De bosque só na roda da D. Sancha. Bem,
protocolo, entretia-se com um almanaque e ela com o croché. Ao agora a dona deve estar em casa. Vou cobrar a roupa. Espera?
apito do Utinga, às nove, o noivo bem, boa noite, não te esquece, Tinham voltado da Cidade Velha. Alfredo só agora temia ser
Magui o gengibre pra cabeça. De primeiro mimavam o futuro com visto no lado da zanoia e desse temor se envergonhava. Galho da
casa própria, mobília, e toalhas brancas no domingo, e lâmpada acesa roseira na mão, beiço grosso de pintura, a mocinha batia os tamancos.
ao Coração de Jesus, e um peru no Círio. O mimo escoando-se, deu — É num instante. Espera?
broca no futuro, este agora tão atrás, já nem se davam conta, quebrou- — Espero.
se aquele vidro de aumento que era a esperança. Nada mais preciso Não esperou. A moça voltou à estância, sorrindo para ele:
senão casar. Nada mais que o pobre dia, já cheio de bicho, velha — Esperou a vida inteira, não?
goiaba do chão. No que chegou, já tão fora de tempo! [51] — Foi.
[50] Passou do ponto, o doce queimou. Por baixo daquele sim, — Olha a mentira dele, pois foi menos dum instante mas ah!
um cuspo engolido. Mas ah!
A mirolha queria o casamento da tia mas na Sé, segurando-lhe o — Fui caçar borboleta.
véu, conta os carros, os preparos, as posições, o fotógrafo batendo a Ela, mordendo o beiço, num silêncio, não sabia onde pôr os
cerimônia. Acabou que nem na Sé foi, tão chinfrim na Intendência, olhos, quis rir, tapou o rosto. Alfredo, batendo a porta, entrou no
cobertos de mofo os noivos pareciam. Os botões da grinalda caíam de quarto, borboleta coisa nenhuma, coisa nenhuma! Desceu ao
velhos. O padre casava ou dava extrema-unção? banheiro, foi ao portão. A vesga, já sobre a tina, lavava; as duas rosas
— Casar, eu? Só se o rapaz na mesma horinha me dissesse: numa cuja sobre o cepo.
Vamos ficar papel queimado um com outro? E eu, aí sim, pois vamos, Mas não me lava aqui por dentro, borboleta coisa nenhuma!
seu bobo. Pois depois a tia veio: Olha, não diz nada a ninguém do que Longe no campo, no caminho das formigas, desmaiou a mãe. Vão
vou te dizer: Tão me acostumei de ser noiva que cada vez mais morrer as pixuneiras do campo. Por que não foste, tu, Sabá
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Manjerona, nas tuas rondas, que acudiste, levando-a para a cama de vizinho. A um resmungo da mãe, continuava, O galo já cantou,
ferro, esperando que ela acordasse e viesse pelo caminho de baixo, mamãe. Que tem o galo com a leitura, boa merda. E assim, folha a
molha a cabeça com água do moinho, o velho cachorro brabo lambe o folha, ia lendo com o galo cantando, já tinha gente cá fora aparando
pé dele, e entra no chalé pelos fundos, senta um pouco na escada, água da torneira.
devagarinho na varanda, maneja o prelinho, ralha com os ratos do Conta no dedo, tirante os folhetos, bote dúzias de romances que
telhado... leu, que a mãe ouviu. Aquele-um grande, em fascículos, olhe a altura
Agora aqueles gritos no Não-Se-Assuste: O diabo te entortou a deles, pesando mais de quilo e meio, leu todinho, quando acabou uf! a
vista, infortunada! E o meu lenço? Tiraste do lugar? Quem sabe já goela queimava, ardia a língua: Ponto Final, mamãe. Aqui bem
não vendeste o lenço que o teu irmão me mandou? Dá cá o lenço, pingado. Pelo tanto que padeceram, ela e ele bem felizes. E nós?
anda, quero apalpar. Bem pausado, bem pausado, estás correndo Diabo! tu não saltaste as folhas? Parece que saltaste, sua sem-
muito, desembestada. vergonha, o pouco tempo de tua leitura não casa com a porção do
A mocinha lia, lia. Ao menos me deixe molhar a goela, mamãe, livro. Não vejo mas apalpo, sua sem-vergonha. Tu saltaste!
espere um pouco. — Um aí entre os seus sem ser de estudo, tem? Tomara que
Noutra noite, a zanoia virou na roda, cantou a D. Sancha, veio não, senão me agarro nele, tenho de ler perante a mamãe até o ponto
assoviar na porta de Alfredo. final, e babau novena de São Raimundo, adeus, rua, roda, cabeça no
— Promessa é dívida, quedê as borboletas? Sua roupa, quem portão, e atrasando a roupa, ai! acaba me caindo a língua da boca... Já
lava? me corre é um frio aqui por dentro da espinha. Também a
— Olhe aí sua mãe... D. Imaculada, essa portuguesa da estância, que é que tinha só de
— Não sabia? emprestar um só dos dela? Mas não! São em língua francesa, me diz.
— Que? E olhe, no que acabo de ler, devolvo. Inda ontem devolvi pra dona,
— Que cegou da vista, entrevou das pernas? uma cara-de-onça lá de Curuçá, um mas desconforme! (carreguei o
— Ela? bicho num paneiro, e olhe [53] o tamanho peso! E escute eu dizendo
[52] — Não sabia? Mamãe paga inocente. O senhor tem por aí para a D. Imaculada:
aquele do Imperador Carlos Magno e os doze Pares? — Pois me deixe ver o francês de seus livros. E ela: —
Na sombra os olhos dela ganhavam uma fixidez, que diante dela Suspeitando de minha palavra, menina? Suspeitando? É assim?
tudo vira um pouco inocente? Suava no rosto, pálida. A mãe queria Os dois irmãos? Onde que mais senão no mundo? Passavam,
ouvir romance toda hora ou folhetos da Guajarina, onde achar? esta e aquela viagem, nos monarcas do Lóide, e deixavam um sapato,
Andava pelos vizinhos catando este e aquele, agora lia A Condessa um perfume, inveja e fogo nela, de segui-los. Nunca deixavam que
Cega, A Condenada à morte, lia com muita pausa, rendendo, ela fosse no cais. Por quê? Porque não, respondiam. A bem da
retardando o mais possível, e a mãe, pelas noites, a escutar, adeus, verdade, só um mesmo, o mais velho, deixava assinzinho as coisas
sono, escutando, nunca satisfeita, então parecia que a vizinhança em casa, o outro, o mais novo, nem “Bênção, mamãe?” Só mandava
dormindo escutava também. Mamãe, já é bem tarde. Acorda o retrato, em cada porto tirava um. O mais velho? Tempo já que não
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passa por Belém! A última que veio? Já não dizia macaxeira, dizia de repente, aqueles cinqüenta mil réis? Quinhentos, espalhou-se pelo
aipim. Nem jerimum, era abóbora. A mamãe babada. Filho bom como Não-Se-Assuste, meu filho mandou mas foi quinhentos. Desde os 18,
aquele? Quem que mais viajado? Felizona, ditosa mãe de semelhante Imbiriba embarcava. Tudo que mais queria era logo aposentar-se, o
filho. Andando que anda pelo mundo, sofreu um arranhão a índole do resto da vida então entre o peixe e a água de coco em Salvaterra.
Imbiriba? Quem te disse? Por que... olhe que o Rio de Janeiro é que é Papéis, selou, protocolou, direitinho tudo? Bem! Alto mar, meu
encantador de maridos alheios e de filhos, pois de toda aquela velho, adeus, linha da Europa, linha da América, bom proveito,
encantação, Imbiriba nem sinal. Assim como saiu de dentro da mãe, fornalhas, portos do mundo, muito obrigado por tudo, fundeio nesta
assim é dentro do mundo. Um agrado, sempre deixava, ou mandava, praia, agora é na montaria em cima das marés de Soure pescando, ou
um corte, um cartão, Quer ver? Justinho na hora da aflição de não debaixo dos coqueiros de Salvaterra tirando um cochilo. Belém, esta,
achar nem nas frinchas da mesa um bago de farinha, e já pensando não engolia. Na cidade, quando nada, sempre era uma dor de dente.
pedir uma sopa no Santo Antônio, chega da América do Norte aquele Que a mãe ficasse em Belém, o descanso dele, santa paciência, era
lenço de seda, todo-todo amarelinho, tão bem apreciado, de se pôr na aquele caldo de gurijuba e o coco verde em Salvaterra, lá um
cabeça, passado na gema. O de comer? Não tinha? Mas não chegava domingo o gole de tiborna pelos roçados e fornos de farinha de
o lenço? Vamos torrar, mamãe, a gente oferece na janela da filha do Jubim. Na visão da mãe cega, onde estava sempre o filho? Onde mais
italiano, sim? A brabeza da velha! De tanto jejum desmaiando, passa se não a bordo na boca da fornalha? Mas cercado pelos anjos. Quem
e repassa o lenço no pescoço, até com uns orgulhinhos de faceirice: quisesse espiar pelos muitos buracos da barraquinha, espiasse: Tama-
Agora isto! Tu que te atreva. Que a velha cegou e entrevou, disso, até nha madrugada, a mãe bem rezando. Aos vizinhos: Imbiriba, vejam o
hoje o mano não sabia. Ela não quis que mandasse dizer, proibiu, nem que lhe deu no juízo, pois não mandou uma caixa de passas? E aquele
uma linha, sim, um recado sequer, um sopro no cais. De minha parte sapato... vai buscar, não esconde o teu sapato, dos outros, coisinha!
respeito as vontades dela. É pura seda, dizia, apalpando o amarelo, Não esconde dos outros. Ela? Ela esconde! Certa de que a filha não
muito conhecedora, coração despencando à falta dum caribé. Coma o trazia, que [55] sapato não tinha, O Não-Se-Assuste viu foi no Natal:
lenço [54] de seda, mamãe. Jantando e almoçando as saudades do Da parte do filho o embrulho de castanhas portuguesas, toca a zanoia,
filho se empanturrava. Num esforço da faceirice, pedia que Lhe atasse da parte da mãe, a distribuir, em cada porta ou janela, lembrança do
na cabeça emplastada o lenço da América do Norte. E logo, braba- Imbiriba, não repare a insignificância, uma, todo mundo quebrava a
braba: Coisinha, estás engordurando o lenço, que o teu irmão me sua castanha de Natal, era ou não era? As restantes — toma a tua,
mandou, nos meus implastos, diaba! Mandava guardar o presente bem coisinha — a mãe guardavazinho no balaio dos retalhos, guardava,
debaixo da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Tu nunca me pega até que apodreciam.
nesse lenço, sua mexe-se-mexe, não te enxere com ele, respeita o pé — Fez de um saquinho de castanha um castanhal pra todos.
da santa, vê lá. Ela queria o lenço para quando morresse, ninguém lhe Imbiriba, o mais velho, até que engordou, linha da Europa, linha
visse o rosto nem por parte de sua morte olhar os vivos, fechem o da América, boca da fornalha, da fornalha para o ventilador e um
caixão com ele dentro. Ora, mamãe, a senhora só quer gozar quando copo de água gelada, ai! Um fôlego, um ar no bofe, enxuga este suor,
morrer? Ele assim não lhe manda é mais nada. Mais nada. E quando, não mereço? Ah, mea filha, tu veste, tu luxa mas não sabes que tudo
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isso é o teu irmão na boca da fornalha, aquele vagante por esses sem- — O senhor que sabe...
conta e arriscosas e diversas paragens e onde atracava, aí da América, — A metade já me contentava.
ali de Lisboa, lá vem carta, olhe esta encomenda. Boa noite, comadre — Isso o senhor quer dizer é mais o avesso, o avesso do que
Germina, aqui este dinheiro, de ordem de seu filho, chegava o diz. Me morda aqui... Não mangue de nós, que-que eu tinha então de
compadre Manduca Bagre que trabalhava no cais, coitado, carregando lhe contar. O senhor só mangando. É assim o seu mau-juízo?
aquela hérnia lá nele, que a hérnia? Só o tamanho, faça um juízo. Que A zanoia espichou o minguinho e sempre ocupada em falar,
é que fazia ainda aquele padecente no cais? Uma vez, Imbiriba agora com voz ressentida:
viajando, vinha da América, dormia. Quando viram, Imbiriba! — Tu veste... Tu luxa... Me visto? O mais, e olhe lá! Que faço,
Imbiriba! O adormecido soluçando, soluçando, que soluços são esses, é-é me cobrir. Me cubro, não me visto. Ao menos aquele lenço, uso?
e de sono ferrado. Sacudiram ele. E é só a boca da fornalha? E a beira daquela senhoríssima tina, a
— Em que altura estamos? corda de roupa, o quarador e entrega e cobra e lá vem na cabeça, de
— Muito ao largo. novo, o trouxão? Ah, não? Mas coitadinha da mamãe, sempre pagan-
— Não se pode mandar um telegrama pro Pará? do inocente. Mamãe passa martírio.
— Não, Imbiriba. Só pela altura de Salinas. Coçou o cangote, desceu o alpendre, voltou num pulo.
Pela altura de Salinas, com resposta paga: Notícias mamãe. — Sendo que o filho mais novo? O outro? Sobre este a mamãe
Responda para Bahia. Que a mãe tinha morrido, o que sonhou, sim. costura a boca. Abra só por uma curiosidade o travesseiro dela, na
Com resposta paga, com resposta paga! Para a Bahia. Passe, passe rede: Assim de retrato dele. É o preferido em segredo. Também meu,
logo, compadre Manduca Bagre. Para a Bahia. As lavadeiras Nosso Senhor não me castigue. O outro, meu aquele-menino... o
entravam, sentavam, o telegrama de mão em mão, resposta paga, outro? Eu, eu, se eu não fosse irmã dele, ou não sendo irmã, não fosse
ficavam escutando. [56] Res|posta para a Bahia. Para a Bahia. O assim tão desamparada de feição e talhe, as duas coisas não [57] fosse
vapor só vai pelo mar de fora. Bahia, Bahia, entre a espuma das para poder ser a outra, olhe, pela luz divina, que estava aqui ela se
lavagens, Bahia pelos lençóis do quarador. Tua mãe telegrafou com arrastando de joelho na pedra, na folha de urtiga, no caco de vidro, até
resposta paga, foi? Indagou aquela menina da roda da rua, meio não chegar no cais do porto rogando a Osvaldo: Te casa com ela. De tanto
acreditando. Da Bahia só conheço é aquela senhora do sobrado, mas que ele apaixona as pessoas. E tão sem cabeça, tão, tão! Do sem-
de um homem a voz dela, credo! blante? O senhor perto dele, vá me desculpando, que o senhor até que
A zanoia sacudiu o vestido. não é tão feioso, mas desaparece. Qualquer rapaz dos que eu conheço,
— Só esqueceu da minha, não? comparado com ele, ponha no lado dele, desista do concurso, que não
— Da sua? tem um. Ver um rosto tirado de um cinema. Agora me escute, tire só
— Sim, da castanha que me cabia. um cálculo:
— O senhor nem sonhava de vir morar aqui, nem sonhava, ora, Inteirinho escrito, escarrado, sem tirar nem pôr é um puro
ora. Só uma? demônio, que eu não pague pelo que eu digo. Me coçava com galho
— Então só uma não bastava? de cuieira, me queimava com tição. No meu braço a dentada dele,
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bem funda, arruinou. Me levantava tanto aleive. De perder a conta a Agora é Alfredo em silêncio, quase alheio, meio impaciente.
mamãe me castigando eu inocente-inocente, o aleivoso atrás da porta Sem mais nem menos ela sentou no alpendre, repentino dobrou-se
bem roendo caroço de bacaba roubada do alguidar da vizinha. E a tão num choro, miúdo, abafado, não cessava. Alfredo inclinou-se,
recolhida paixão da mamãe por ele, meça! Abra o travesseiro, aperte receando gente.
o nariz por via do enxofre e da fumaça e puxe de dentro os retratos, — Vamos, então, no Una, domingo, caçar borboleta.
mesmo que um mágico tirando o sem-fim das fitas da cartola vazia. Num instante, ela de pé, assoa-se, negou a mão, desceu.
No que amaldiçoa, a mãe suspende ele entre os querubins. Quando eu Alfredo escutava.
era anjo de procissão, no meu lugar, na procissão, ela só via o Os- — O remédio, mamãe.
valdo. Isso tudo ajudou a cegueira e a entrevação dela pois tão assim — Remédio é aquele rabecão, coisinha! Já acendeste lá fora o
tão das trevas outro mais não tem. Por que, por que eu falo? Se eu toco da vela para as almas? Me carrega até ao bacio, desgraçada. E o
também ficava cega, entrevada? Ficava, ficava. Ele cega as pessoas, livro? Onde tanto tempo te meteste que não trouxeste nem uma folha
por onde passa empeçonha. Deus de misericórdia, lugarzinho naquele de livro? O Imperador Carlos Magno, não me prometeste, esta noite,
caldeirão, dele, lá está reservado, se já não está lá. Mas ó mano, me infeliz? Mas a quem devo culpar, a quem? E a tua vaga na fábrica de
leva contigo, vem, me carrega! cigarros, diabo, quando, mas quando?
A zanoia fez que se assustou. — Tia Magui não traz a resposta, sábado? Sábado, mamãe.
— Olhe, olhe! Não leve a mal que tudo é a mea pura bestice. Eu Sábado. E só quero ver quem fica então cuidando da senhora. A
nos mais das vezes vario, entro na corrente do meu irmão. O que me minha alma? Só meu corpo lá fazendo cigarro?
falta é eu ter uma certa paciência comigo. É, lhe juro. Aai, que às Alfredo escutava. Ela voltou a bater roupa, repetindo
vezes me falta! Passo martírio! O meu merecido não era este. abafadamente: Sábado, sábado. Carregou água, pendurou na corda um
[58] De costas para Alfredo: lençol grande, lá dentro a mãe suplicava: O Carlos Magno, mea filha,
— Enfim, mamãe cegou por só ter olhos de coruja e entrevou o Carlos Magno.
porque os dois dela, meus irmãos, as pernas deles não param no [59] De manhã, ao seguir para o Ginásio, Alfredo deu com ela
mundo... Demais. Demais. Mas, e eu? As minhas pernas? Ando? Eu que vinha da padaria.
ando? Quando andei? Eu ando? — É domingo, no Una. Senão borboleta, vamos ver as cobras
Insistiu pelas borboletas. Espiou o quarto. do Posto?
— Um dia, um dia... Um dia entro aí dentro com um balde Ela deitou a cabeça pra trás, apressou-se, correu, daí em diante
cheio e baldeio o seu assoalho. Me deve, pelo menos, um par de sem uma palavra, sempre fugindo.
borboletas, ouviu? Onde está sua roupa suja? Alfredo, assim que saía, entrava, assim que entrava, saía.
— Aquela moça lá da frente, da janela de veneziana, mal Domingo. Viu que ela parava no canto da rua, fita no cabelo,
aparece, mal sai... pode me dizer o nome? Conhece? calçada, guardando um vexame.
Quis dizer mais: lavas roupa da casa dela? Não disse. Esperando por ele?
— Quem? Quem? Alfredo toma o rumo oposto, fugindo, correndo à própria
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pergunta: Mas por que fujo? Por quê? Ela o esperava? E aí, atrás da — Solte a próxima é que é. O senhor só o que o senhor usa á
veneziana, na emboscada a outra! De olhar perfeito, espia, sacudindo malvadez?
o cabelo nas costas, a alça dá camisa escorrendo pelo braço, espiando, Até que veio a tarde, na D. Januária, eivém o Curro, um
espiando. bagageiro, a arrastar-se. Alfredo! Alfredo!, e salta do bonde andando
Correu na casa do seu Ribeiro. aquele pretão alto e maneiro, todos os dentes na risada maciça,
— Tem aí um romance qualquer? Alfredo meio assustado, agora abraçado, o tio, O tio Sebastião, o tio.
— A Carne? A Carne? — Batendo este chão dos lobos atrás do teu rastro, foragido! Lá,
— De moça ler e velha ouvir. Um. Mas bem enorme. Tem o na José Pio, naquela campainha, aquela maçaneta, tudo debalde, me
Carlos Magno? enjoei de apertar e bater, ninguém. tudo trancado. Bordejei pelo
— Bem enorme? Quo Vadis? Serve? vizinho, indaguei que indaguei, canso de tanto indagar. De ti nem um
Correu com o livro para o portão nem sombra da zanoia. traço, me informei na Ruy Barbosa, as primas abriram na reclamação:
Entrou. Sobre a tina, sem fita no cabelo, descalça, ela batia e que de ti nem um adeuzinho passando de bonde pela janela da casa.
ensaboava roupa. Mas assim não, Alfredo! O remédio era eu ir agora lá no Liceu
Voltou com o livro ao seu Ribeiro. indagar de tua freqüência por lá. No Curro, as três vezes que fui?
— Mas já? Já leu? Tudo debaixo de tranca. Andei catando, catando e dei na José Pio
— Já. com aquela moça debaixo da jaqueira. Atrás da jaqueira a moça só
— Concidadão! Concidadão! Lhe apetece um charutinho? mostrava a cara, dizer a cara, minto, só os olhos e uma parte do
Domingo, a Peixe-Boi, combinado? Cada qual com a sua flâmula. cabelo, só os olhos.
Dou-lhe uma das minhas. Deixa que vou remexer no caixão do — Só os olhos?
corredor, desencavar o Carlos Magno, desconfio que tenho. De boa Alfredo se lembrou da formiga taoca que fazia o tio irresistível,
estante careço para desentulhar a livralhada. Esse do caixão arrematei Os olhos da Zuzu. Era?
num lote e com um único lance. Estão na minha posse desde... — Atrás do tronco da jaqueira só o par de olhos olhando e bem
desde... o fim da guerra. Entre eles o Amante de Jesus. De Jesus, [60] miúdo. A modo que à míngua de uma roupa, [61] não mostrava o
cida|dão. Fazer crer que Jesus antes de entrar, aquela triunfal entrada corpo. Só os olhos. Disse o teu nome, ela com o dedo que não, me
em Jerusalém, foi... Cedeu aos encantos da terra? Tens visto a respondia que não, não sabia de quem se tratava. Falar não falava, no
madona? Espio, espio, e não descubro dela sequer um fio de cabelo. que olhava, tirava os olhos, só o dedo conversava. Mas no pouco que
Concidadão! Concidadão! Então, Peixe-Boi? deu pra ver nos olhos dela faiscou que te conhecia, sim, sim, embora
Alfredo andou pela baixa da Curuçá, apanhou a borboleta e acenando que não. Que te parece?
chega no pé da tina: — Vou lá adivinhar, titio? Na jaqueira? Só olhos? Não era
— Cumpri ou não cumpri? Tome... efeito da formiga, tio?
Inclinada sobre a tina assim ficou a zanoia, tirando espuma do O tio fingiu espanto, garboso, consentidor, de repente
braço. — Aquela que mordeu o senhor. A força que lhe dá! Não era?
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— Tu, tamanhão que estás, metido ainda com aquela formiga? Calavam-se, embaraçados.
Bem, e então? Não lhe disse? Cheguei ou não cheguei a tempo? E — Onde atraca o seu vapor? Ou é ainda aquele cavalo? Um
essa cara amarela e esse esvaimento, meu sobrinho? Por que não toma barco? Gaiola? Pontão? Fretou o rebocador Conqueror?
um batatão, me andas é bem puxado! O tio rasgou a risada, amaciou a fala, vagaroso.
O tio numa encadernação! Pé-de-anjo no alvaiade, calça branca — Viajando a bordo de uma pele de jibóia... vou, sim. Pois se
talhe de Leônidas, camisa urucubaca quebrando tigela, paletó de admire.
burro quando foge, gravata pegando fogo, palhinha, o tio escorrendo — Esfolou a cobra?
o seu piche, sua altura, suas caminhadas na Amazônia. — A pele dela boiou rente-rente da popa do meu casco no furo
No portão da estância, paga-lhe os dois meses de aluguel e lhe do Pipixuna. Recolhi a prenda, me debrucei na borda e mandei mea
escorre na mão uns trocadinhos. voz lá pro fundo: Dentro dela sigo, meu caruana. Ao que o caruana
— E depois, meu sobrinho, e depois? respondeu fazendo dali por diante aquele tão bom tempo e aquela
Alfredo, agarrado ao portão, cuida que o tio não veja o quarto, bem lisa macia maré, eu ia pelo furo, as duas beiragens se roçando
não espie a estância por dentro, não aviste os urubus já ali tão uma na outra que era só miritizeiro cacheando.
inquilinos. — Mas então me viajando pelo fundo?
— Me deu na vontade de levar comigo na viagem um — É só me enrolar no couro, um repente varo as sete marés, no
almanaque da César Santos com o nome dos quarenta remédios da ferver de qualquer rebojo.
casa. Pode que eu tenha uma precisão é só correr na lista, mando — Onde atracou o prodígio?
aviar. Me arruma um? — No Porto do Sal.
— Mas não custa ir na farmácia. Vai mandar aviar os quarenta — Então, vamos.
remédios? Demora em Belém? A pé devagarinho. Possível encontrar o seu Lício na Sé, ali ao
— Chegar, virar, o repente de te dar a bênção e azulo. pé do altar lendo o eterno livro de suas idéias ou escrevendo contra o
— Não baixou pelo Arari? governo e a cavalaria. E perto, [63] fare|jando o velho, a Mãe Ciana
[62] — Vim que vim me arriando aí de muito mais altura. Não com o balaio do cheiro. A pé? Há dias falou na Liga da Liberdade
era em Belém o nosso encontro? E dela? Tens noticia? Tens escrito? contra os Lobos.
— Dela? — Seu Lício prepara o seu curare contra o governo na pia da
— Dela, sim, tua mãe, menino! Sé? Debaixo da guarda de Santa Maria do Belém? O governo que
O tio mentia? Calavam-se, embaraçados. solte os seus cachorros. E é bom encontrar a Mãe Ciana. Quero
— Do Maguari, Veio? Nunca se soube mesmo que fim levou também levar daquele cheiro dela. Mas daqui até o Porto do Sal a pé,
aquele Dr. Edmundo no búfalo, titio? na pátria-amada, menino? Me deixa num átimo alisarzinho o meu
— Até agora... Uai, que lembrança essa? sim-senhor num banco da carruagem inglesa, meu sobrinho. O bonde
— Pelo menos numa conversa, quem sabe? é bom. É ou não é?
E tinha um nome na boca para indagar do tio, não indagou. — Pois eu sou do peximetro. O andar não é seu oficio?
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— Este meu pé-de-anjo me sujiga um pouco o dedão. E aqui na pois não virou a embarcação na corredeira? Doze contos de réis do
cidade a pé? Aqui o andar, cada braça mede légua e meia, aquele- meu dinheiro? O meu revólver cabo de madrepérola? Adeus. E no
menino. que, por obra e graça, firmo o pé no escorregume da beirada, Deus te
— Agora pra onde, titio? O senhor nunca sossega? Ainda livre! Então que é pium, ventou foi morossoca me tirando cada lasca
perseguido? do lombo, popocou tudo, o beiço inchou, inchou o escroto, arriamos o
— Ainda secreto. Não sei se ainda perseguido. Se eu pudesse corpo no remanso e fomos que fomos, até dar com o casco e a
encontrar o velho Lício na Sé! Vou-que-vou me atirando prum mais lamparina na Goela da Morte. A Goela da Morte? Era que nem um
longe. vômito em cima do mar. Pois que saía no mar. Aquele aguaçal brabo?
— Saindo dum longe, entrando noutro? Só barro? Vomitava no mar. Então que avisto um barco garimpeiro
— Antes daquele nosso encontro em Cachoeira? Me engajei bolinando. Andam aí carecendo dum cozinheiro? E já, dessalgo o
num arremedo de circo pelas Guianas. Administrei a pantomima. mapará seco ardido, faço torresmo de um que se dizia toucinho e cadê
Fazia a função de porto em porto. O barco lastreado de artista e bicho. que mea mão pegava a banda de capivara que só fazia feder? Assim
E assim foi, e assim foi, e eu sei que entra no nosso camarim aquele de Calçoene à Guiana tudo não cabe num só postal. Trago aqui pela
gringo de um nariz! que era ver rola de cachorro, trazendo no bolso mochila a ripada daquela ventania, o sol, o sal da Costa Negra. Com
do culote um trevo de quatro folhas. Que botou o pé dentro, adeus, quarenta graus e carregado de cada calombo vi o cabo do Norte. Tive
modificou. Empanemou. Quebrou todo o segredo de nossas artes um diamante na mão.
mágicas e pantomimeiras, não dava mais certo um número. O — No delírio?
palhaço, uma noite, veio: Sebastião, adeus. Não sei onde deixei a — No meu exato juízo. Tive. Dizer que tenho? Tive.
graça, que de hoje em diante o meu papel é correr essa Costa atrás Pôs a mão no ombro do sobrinho. Alfredo tomava àquele guri
dela, a ver se acho, de novo, o saleiro que perdi. A trapezista, uma de Cachoeira, o tio se cobria com a espuma e os estrondos da
ruivinha de papouco, muito exímia, caiu na rede de um pororoca mãe.
contrabandista, já levantou-se de barriga, no prazo tem as dores a — E daquele enfermeiro cego? Fui guia dele. O pé, este agora
bordo, o barco no largão brabo de fora. Vento! Tu lembra da Prisca acochado no bostoque de anjo, comeu dezoito léguas. [65] E tome
em [64] Santana? Assim fui eu. A aparação do umbiguinho? Me encharcado, te sustenta na estiva de açaizeiro que aí embaixo é o
coube a proeza. Nesse dito instante escapole da corda o macaco que precipício, rapaz, e cada um monte, de subir, quem disse? e ladeiras
fazia o número com o palhaço e tibum! N’água como se atrás do de arrancar de uma só vez, inteirinha, a sola do pé e aqui o folharame
palhaço. Não espicho o acontecido: Já lá me vejo é guiando aquele nos metendo na goela e nos botando das suas tripas para um lavrado
comboio de gado, ai! Que coitadinho gado tão do magro, tão do triste, seco e atolento com rastro de onça e índio e ossadas que não se sabia.
tão nos ossos, que eu me dizia: Esse gado? É devera ou visão desta E o enfermeiro por aqueles trabalhos, acampamentos e loucuras
paragem? Guiava a um grama de ouro por dia. Bem. Entrego, dou cumprindo cego o seu ofício, cego, cego. Injeção era raro, ataduras?
conta dos meus flagelados e já venho de proa em riba do Maguari. O mais era um sal amargo, uns sarros, umas pomadas, umas cascas,
Quando em Cachoeira? Eu me indagava e assim no corta-volta vinha, se não sarava, desencarnava. E as trinta e seis cachoeiras? Eu guiando
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aquele cego por trinta e seis cachoeiras. E sete ilhas, o Travessão, — Como sabes, não baixei pelo Arari.
aquela cachoeira onde também tomba o que é o além, o outro mundo. — Mas vamos na farmácia.
Mais que o das águas era o barulho das almas. Lugar do muito assom- A cada momento o tio cortava o assunto com a sua risada,
broso. Aparição de acampamentos, palhoça que não era, redes no pau atravessam o Igarapé das Almas, param na Quinze de Agosto atrás
que não tinha, fogueira que de repente subia e era no céu aquele dum caldo de cana. Começa a soprar pelas mangueiras aquelazinha
penacho que Deus me acuda, todo um pessoal ali fincado, ali virou só aragem do cair da tarde.
alma catando ouro, enxergando diamante onde só bicho bebe. Vinham — E aquele seu cavalo?
dos tachos fervendo atrás de ouro com que pudessem saldar com o — Sempre salto no que vejo. Montaria não escolho. Cavalo,
diabo e pagar a entrada no purgatório. que fosse meu, já tive? Por essas e aquelas foi que lá me vi num
— O chaveiro do purgatório recebia? grande assado: aquele cavalo mal aparecido no Ananatuba, no pé da
— Ouro? Quer apostar? Já não digo São Pedro... bem... Ou porteira, pois não me afoitei em cima dele, o bicho só faltando me
também não ponho a mão no fogo? dizer: às ordens, cavaleiro. Dizer que principiou jogando, isto não,
— E o diamante? manso até que parecia. Só que a modo queimava lenha por dentro.
Alfredo via no tio, nos olhos do tio a explicação: Trevo de Num tal repente empinou, soltou aquele seu relincho, foi lá em cima,
quatro folhas, os doze contos na corredeira, o guiar enfermeiro cego, aquela altura, empinando, saltando, me agarrei na crina dele, que não
o aparar o umbigo, os quarenta de febre olhando o cabo Norte, culpa te conto, desembestando, desembestando, me escarrou no atoleiro e
de quem? Tudo ausência de Dolores, tudo ali no duro rumo de foi relampeando lonjura afora como coisa que o tropel dele era no ar,
Cachoeira, sempre atrás de Dolores pela Costa Negra, varando os na nuvem, no lavrado do céu. É Deus que passa um caçador, me
fogos do acampamento fantasma. O tio, como se ocultasse o puxou do atolado. Montou no Cão?, ele indagou. Um animal do seu
diamante, meteu a mão no bolso. bom tamanho, castanho, a crina a modo.., ah sim, quando ele
— Agora? Agora é pra aquelas alturas do Tapajós, vagareando, desembestou? A modo de uma labareda. Figure-se, era ou não era?
vagareando. Ou virar moquém na maloca? Índio come preto. Não No Ananatuba, arriba de Mocoões. Montei no que não cabia. No
come acará pixuna? Ou tirar uma linha [66] daqueles brabos meus mais, o restante é sempre o trivial, cavalo terrestre, bicho de gente.
pareceros pretos, bote um século, no Trombetas. Ouviu falar? Cavalo que cocei, a [67] quan|tidade? Bote! Em todas aquelas
— E ela? Também? cavalarias, meti o arreio, sim, arção, sela e balança de todo lugar me
— Que ela? conhece e, não 6 o pé, meu jogo, mea montação, meu tropel é muito
— Ora, tio Sebastião... E mamãe, viu? conhecido. Cobri o continente da ilha com o meu galope e a mea
Teme que o tio tenha visto a mãe e confirme, cru e nu, aquela risada. Aquele cavalo lá da vila? Foi só aquelezinho instante.
verdade. — Que instante?
— Ou me trouxe o diamante? Alfredo na súbita esperança, o tio revelasse o instante em que
O tio adota uma cerimônia, se descobre, examina o fundo do arrebata do balcão a filha do padeiro, puxando-a a laço de dentro da
palhinha, escolhendo uma resposta, teso. saca de farinha de trigo. — O tio temperou a goela, esticou-se,
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fechou-se. Tira um espelhinho do bolso, mira o nó da gravata, o — Oiapoque, não, Sebastião.


dente, o penteado. Ou só a sua felicidade? — Tem que tem diamante, Dolores.
— E o nome do circo? — Não cobiço, Sebastião.
— O Grande Circo Sul-Americano do Elefante Fantasma. — É a uma panada de Caiena, e aí de contrabando o luxo é lixo.
— Tinha? — Ligo luxo, rapaz?
— O fantasma? Só o mágico fazia ver. Tinha, sim. O mágico Já a revoada das garças anunciava o rabo da maré, o tralhoto
tirava o elefante da cartola. Diabo do trevo de quatro folhas! espetava a cabeça na lama do mangal, para o mangal corriam os
— Será aquele antigo mágico que uma vez apareceu em patos, cancã cantando fora de hora, cantando fora de hora, sinal, vai
Cachoeira comendo fogo e soltando o pombo e que fez filho na Zita se dar o estampido, estrondou, a maré sacode o rabo, subiu no mesmo
Marques? estrondo, eivém, a monstra galopando o seu rebojo. Atrás do mangal,
— Pois aquele mesmo! Vive agora de filar o gole nas tabernas o clareúme da noite lambia o rosto assustado. Sebastião abre o peixe,
de Caiena. lá fora o rabo danando as águas.
— E agora o seu cavalo? — Tu queres deste peixe, bem, sua finge-que-dorme?
— Meu cavalo? Sou eu mesmo. Alfredo se indagava: Certo o que dizia o seu Antonino
Alfredo recolhia a indagação, cismoso, mudo, e agora o tio, no Emiliano, marido da D. Celeste, que o tio desde o Juruá até o Anajás,
igual silêncio, aqui passado a ferro, por dentro voltava a galopar nos era só cruzando a raça? O seu Antonino Emiliano falava no adubo da
campos e descampos, poupando suas risadas, atalhos que inventou, África. Já bem adubada a dama da garupa? Num sovaco de rio,
lonjuras que o apanharam de surpresa, com aquela na garuna, a sentada na esteira, atrás do miritizal, já bem barrigudona? Mas aqui,
branca escanchada, suando suas alvuras na sela, pende a cabeça, pra no passeio da cidade, o tio apura a sua inglesia, muito cidadão.
fugir do sol, nas costas molhadas do cavaleiro, a ouvir miar a onça — — Então o cavalo é o senhor mesmo?
onde? e os búfalos, no piri, se entreolhavam, fumegantes, e neste pé — Monto em mim mesmo, me galopeio.
de ilha: Sebastião, me apeia aqui um pouco senão me urino no cavalo. — O senhor tem aí que dê para um sorvete na terrasse?
E logo na garupa, a galope, Sebastião, [68] está cerrado! Sebastião, — Terrasse?
seu cego, olha que ninguém atravessa este atoleiro, desvia o cavalo da [69] — Ali no Grande Hotel.
mãe de fogo ali de facho aceso no aterroado escuro, acerta o galope — Me livre a Virgem de Nazaré de semelhante sorvete naquelas
bem em riba da luzinha de vera lá longe, já enxerga o curral, os mesas de ferro. Não estou pra um garçom: desinfeta daí, tição, não
vaqueiros na porteira afinam viola, a dona estira-se na rede no rancho, tisna a cadeira. Isto aqui não é teu cocho, não é pra teu fundilho, zé-
o cavaleiro banha-a com leite escumoso tirado agorinha e já se vão ferrugem. E eu, por conta desta minha educação, fora do meu juízo:
com a madrugada, Marajó a fundo, desprende o cabelo sobre o conheceste, bicho? fazendo o filho-de-deus amarrotar a lamparina na
balcedo, onde mijava nascia açucena, os guarás vinham ver para crer, pedra da terrasse. Eu?
lá está o bago de lua, as águas sonham, o barco no Maguari acende o — Então saía cinza, era?
farol. — Cinza só faço sair quando dá pra ofender. Por isso evito.
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O tio elevou-se, o rosto no sol, os dentes de fora. — As suas primeiras voltas pelo mundo é ali no casarão pra
— Cinza, sim, por tua mãe, teus tios, pela pele da Areinha, a onde sua opiniosa mãe lhe mandou, menino. Teima de sua mãe? Boa
nossa fidalguia, rapaz, isto é pouca bosta? Põe no teu juízo a cor da teima, seus tios aprovam. Sua mãe, lá no chalé, olha sempre você
tua mãe. Ou o estudo te dá brancura? Essa tua pele disfarça, sim, entrando no Liceu, todo dia, seja dia santo feriado domingo. Olhando
pegou um alvume que é do teu pai, mas o ninho onde foste gerado debruçada na janela:
onde é? Lá vai o Alfredo entrando no Liceu. Debruçada na janela.
Carapinha partida ao lado, tio Sebastião examina o pé-de-anjo, Vamos pegar seu Lício, na Sé? Queria uma palavrinha com ele. Na
cauteloso, sopra da calça vincada o grãozinho de poeira como se escada da igreja a Mãe Ciana espera? Esperando?
soprasse de sua frente a terrasse do Grande Hotel. Vararam o comércio, conseguiram o almanaque, seguiam os
— O andar a pé pela cidade chama por demais poeira, meu trilhos do Bagé. A Sé fechada. Rodaram no largo. Desciam do
sobrinho. sobrado, como se desembarcassem de 1680 os dois frades
Olhava os passantes, o bonde, com certa soberania, logo nu: barbadinhos.
— Preferível a garapa aqui nesta portinha ah! mas ainda quanta — Já é tarde — diz o tio com súbita pressa — estou de caldeira
mosca! Queres um sonho? Desengasga com a garapa. Prova deste acesa.
sonho (Seu caixeiro, mais um sonho). — Medo de que lhe tomem a pele mágica?
— Ora me dê uma passagem na casca de sua jibóia... Me dê... A risada do tio pela praça deserta. E já sério, escondia uma
Pedia entre sério e brincalhão ou como se apostasse consigo preocupação, tomou um fôlego.
mesmo. Não me trouxe o diamante? A pele da cobra tentava, sim, — Já é tarde, a maré me chama. Você me cata um dia o seu
mas se quisesse não teria partido antes, moço a bordo, praticante de Lício pela cidade? Ou fala com a Mãe Ciana?
escrivão? Subia a escada do Ginásio carregando aquele rabecão da — Queria só uns cheiros?
Santa Casa, a mãe, atrás, [70] em|purrando-o, e ali na estância, pela — Queria dele uns papéis.
parede, riscava a carvão itinerários impossíveis. — Seu Lício?
— Olhe que ir a boi do assim... Debaixo das sete marés? [71] — Diga a ele que passei por aqui.
O tio, de cima de suas viagens, do seu mistério, palitando o — Falo com a Mãe Ciana.
dente, olhava a cidade, alto como um telhado. Belém ouvia-lhe o — Bem, na volta, na volta. Eu te escrevo. Na volta.
ranger do pé-de-anjo e a força de seus mergulhos pela Amazônia? — Mas essa volta, quando?
Na sua garupa um ano por aí por esses mais longes... (este — Vai arrancando folha da folhinha, folha a folha...
sonho é de ontem, seu caixeiro? Olhe que azedinho...) Anoitecia no Porto do Sal, tio Sebastião pulou numa proa.
Pedia a passagem, já levado pelas próprias palavras, como se — Ei! Ei de debaixo do toldo, ei!
esperasse sorte. — Chamando o prodígio?
— Apetitou a lonjura? — Ei! Ei! de debaixo do toldo, ei!
— Arrisca? De debaixo do toldo ninguém, nem luz lá dentro; o tio
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debruçou-se espiando, já preocupado, inseguro, não se decidia a janela, dava palmadas na perna contra os carapanãs da rua. Seu
entrar. Ribeiro relia As Noites na Taberna. Vamos, rente-rente da tal janela,
— Ei! Ei de debaixo do toldo... com uma voz cautelosa. com uma tesoura a aparar as pontas da pestana, aquela da espiã? O
Alfredo avança pela borda, salta na retranca. capitão reformado, com o facho do vespertino, queima lixo no meio
— Dolores... da rua. No que cessa a briga do casal, chega na porta do quarto o
Disse baixo, vendo-a na boca do toldo, como se chamasse: velho, cabeludo, num paletó mendigo, o ressequido rosto em que
Clara! Andreza! Irene! Luciana! A sombra de Isabel descendo do sobrava o bigode grisalho; recendia a cachaça e a sarro. Apóia-se na
jirau, rabeando entre jejus e sanguessugas, e de repente sobre a porta, tenta um espirro, dobra-se a um ataque de tosse. Para que entre
solitária pixuneira em flor a lua leite da vaca Merência na panela do a claridade dos outros quartos, Alfredo abre toda a porta.
céu coalhando. Tantos dias repelindo o mundo e pelo mundo repelido, — Seu Alfredo, o recibo. Aí no lusco-fusco?
ali recluso nos dois, e agora na boca do toldo a embiara do caçador — Lusco-fusco? Há séculos que é noite. E o portão? Conseguiu
negro, recortada pelo anoitecer, secreta na sua alvura e silêncio, a fechadura?
domada pelo tio na boca do toldo. Isto pagava. Mais alto que os telha- O velho empunhou as abas do paletó, cuspindo para o alpendre.
dos, o tio, era? Fez com ela o que fazem os vaqueiros pra domar — Este valhacouto? Esta estrumeira?
cavalo, tirando-lhe a seda do rabo e enterrando no fogão? Dela só um — Mais do que isto não é aquele ali, o Não-Se-Assuste, seu
fio do cabelo, e enterrou. Domou? O tio desenrolando a bijarruna, Rodrigues?
desenrolava a alma. Nisto, roque-roque-roque, puxam a vela, de onde O velho arquejava, mais curvo, abotoou-se, lento.
veio tanto pano? Vai subindo. Correu pra cima a bijarruna, larga! Só — Veja lá se meu compadre mete mais um preço neste alcoice.
aquela, na boca do toldo, não içava? Ou aparece aqui, meio pedinte meio assaltante, de recibos na mão
— Até outra volta, meu sobrinho. como o outro, querendo levar por conta a [73] roupa das lavadeiras. E
— Até outra volta, tio. assim é com as três estâncias. Cuida é só das vinte casas bem
[72] Ia dizer: adeus, Dolores, poupou-se, como se de súbito só alugadas, a oficina de marcenaria onde este seu criado arranca a
visse a prisioneira amarrada na garupa, com toda Belém nos olhos côdea do pão, não contando a mercearia na Serzedelo, as duas filiais,
dela, terrasse, o Bosque, a janela da São Mateus, lá se iam. o botequim no pé dos bordéis da General Gurjão, as duas vacarias, os
Dela trazia o leve aceno, quase nenhum, a mãe alva — o barco três capinzais, os depósitos no Ultramarino... Aqui, se fecho o portão,
noite adentro enrolado na pele da jibóia. Ficava a maré, prenha, é a barbante. Delindo de ferrugem a dobradiça. Mas todo fim de mês
espumando, lambendo o trapiche deserto e esta infrene solidão a pé tenho de lhe levar o numerário. E o terreno, por baixo destes esteios, é
pela cidade. Sem o diamante na mão. dos Lobos. O patrão paga a taxa.
Mais encharcada e escura agora a estância com aqueles sinos de — E um barril, uma tina, para o banheiro, seu Rodrigues? E a
ladainha, a zanoia torcendo roupa, o Não-Se-Assuste lá no fundo e chave do portão?
esse bate-boca, entre pigarros e bater de tamanco, do casal português. — Guardo a relíquia na caixa de ferramentas.
Já a vizinha do banheiro, cadeira de embalo na sapata de sua porta-e- — Esperando abrir com ela as portas da Divina Providência?
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É D. Imaculada, gemendo sempre, a custo chega à porta, rouca, — Por pretexto?


o buço espesso, as pernas inchadonas, ai meu menino, que é um — Foi bom, foi bom. Estamos conversando, dona Imaculada.
moimento dos pés à cabeça, me deu cupim nos ossos, ferrugem nas Nem meditando nem estudando. Eu só escutava — atalhou Alfredo
veias, e já aquela mão gelada pela alma... E a filariose e o reumatismo sem dizer-lhes que entrassem, não tinha um banco e a rede estava
e as dores na cabeça e as hemorragias e os resfriamentos e a insônia e armada.
a aflição pelo filho lá na América do Norte, pois não viajou clan- — Te lastimas com o rapaz, Jeremias? Falando do teu senhorio
destino? Lá pela América do Norte, e nem uma linha, um eco, um e bom patrão? Do teu compadre que te abriu no Pará o caminho da
sinal ao menos de que também seguiu clandestino para o outro país a fortuna? A fortuna em que mudamos, ah, graças a ele, graças a ele. A
que vamos todos nós, não é? fortuna? A ele! A ele. Só a ele. Só a ele que devemos esta fortuna,
— O filho, Imaculada? Dará sinal. esta ostentação, como somos felizes! Justiça se lhe faça! Vieste de
— Nem em sonhos nem desencarnado... São Paulo com uma ansiosa esposa às costas a bordo do Alegrete, já
— Todo filho é pródigo. se lá vão a galope vinte e cinco anos, correndo ao chamado do
— Aquele é que nunca mais, meu senhor, uma vez parido e compadre. Te acenou com uma quinta em Portugal onde pudesses
criado, já fui teu ovo, hoje não sou mais, galinha velha, cisca noutro morar bem a teu gosto com o teu reumatismo ao calor da lareira e a
terreiro, xô! É o merecido que me coube. É o que sempre converso tua tosse, já viúvo... já viuvo... meus ossinhos aqui no Santa Isabel.
com a D. Fausta. Os filhos dela? Onde? Então lá no cinema toca as Sabes bem o que ele queria há vinte e cinco anos!
valsinhas, recordando o tempo deles quando mamavam, A velha coçava a perna, a rir, gemendo. Nem mal estavam,
engatinhavam, apanhavam... Até que enfia uma valsa noutra, aonde aqueles anos, em São Paulo, bate aquela carta do seu Simas e num
andam os filhos? Ganha vaia, debaixo dos assobios chorando e relâmpago é tudo a bordo do Alegrete, e desembarcam marido e
tocando. mulher em Belém de olhos no [75] calçamen|to do cais a ver se as
[74] E as varizes embaixo e a esipra sobe-lhe pela coxa... Assim pedras eram... Eram ou não eram?
somos nós, mães, cadê os bendito-é-o-fruto? Os filhos? É próprio — E não eram, menino. Calçada de ouro era a ilusão do meu
deles serem como são. marido.
E olha para Alfredo como se encarnasse nele todos os filhos. — Imaculada, também a tua bagagem no Alegrete só era a tua
Alfredo tenta disfarçar, sorrindo, o olhar graúdo. Vem a voz de cima fantasia, menina. Quem te disse?
do toldo: até outra volta, meu sobrinho! E aquela alvura e silêncio de D. Imaculada ganhou um alívio — por tratada de menina? —
Dolores lhe dá Cachoeira, o rio, a mãe debruçada na janela, os sacudia a saia.
algodoeiros brabos florando. — E de São Paulo só tenho aquelas lembranças... O senhor
— E por que aí acabrunhando o rapaz, Rodrigues? O rapaz conhece a Bodorrada do Luiz Gama?
recolhido ao quarto, nas suas meditações, ou estudo, e invades o Do meio de suas dores e gemidos, a velha animou-se.
sossego do moço? É ele agora o muro das tuas lamentações? — Pois saiba o cavalheiro que fui vizinha da Faculdade de
— Trouxe-lhe o recibo. Direito de São Paulo. Vi o Bilac fazendo ali uma conferência. O
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Alberto de Oliveira. Namorei estudantes. Tenho um sotaque paulista. — Mas Imaculada! Convidas o rapaz e nem lhe podes brindar
Tinha um lampião a gás bem defronte da nossa residência. com um cálice de Porto?
— Residência, aí residência... Também tínhamos carruagens, — Vai só visitar-me as relíquias.
Imaculada? Me apanhaste num banco da Academia? Sobra-te ainda — Nem um cálice?
muito daquela fantasia, menina! — Basta-lhe ver as relíquias, meu filho.
Os dois velhos se encararam em silêncio, catre gado de moscas. Entraram. A sala, estreita, quente, janela sempre fechada, fedia
— A patroa aqui, moço, é o próprio vale do que chamamos a remédio, bolor, urina. Alfredo viu, numa litografia desbotada na
lágrimas. Nossa Senhora das sete mil setecentas e setenta e sete dores. parede, o Garrett, o Herculano, o Camilo, como lhe dizia a D.
Já? Uma delícia aos pés dela. Residência, ai residência — repetia o Imaculada.
velho, a encolher-se no seu paletó sovado. — Aí estão, conhecia? Ouviu falar deles no Ginásio?
Os dois juntos, mendigos na sombra, reconciliavam-se, agora — Mas nem um Porto, Imaculada?
em Lisboa, no São Carlos, ouviam a Bohème. — Meu marido, meu marido quer porque quer que abra aquela
— Imaculada, a ária. A ária! E daquelas tiradas do Alfageme? garrafa do Porto que venho guardando há tantos para uma data a que
Do Alfageme? A ária, Imaculada, a ária! tanto aspiro.
A velha escancarou a boca, falta de ar, Alfredo acudiu. — Carta do seu filho? A volta dele?
— A ária, Imaculada! A ária! Vá, coragem! Ar nos pulmões, — Para lhe dizer a verdade, não sei bem. Mas com toda a
gorjeia a ária, Imaculada! consideração que tenho por sua visita à nossa residência, perdoe-me
A velha tentava limpar a garganta, saía um regougo, as moscas não me ser possível, agora, abrir o Porto; É para aquela data. Qual
em cima, um cão latiu no alpendre. que seja ainda ignoro. Compreenda-me.
[76] — E a passagem do Alfageme, Imaculada! Ao menos! Foi — Imaculada!
no São Carlos! No São Carlos! O Alfageme! Oh, esse cão! [77] — E o Eça? Também não? E o Eça? — indagava a dona
O olhar da velha — buço mais escuro, rosto de estearina, dente Imaculada num pigarro grosso, sentando-se no baú onde guardava o
amarelo — pedia a Alfredo que não zombasse deles. Porto.
— Nunca ouviu? Nunca ouviu? A ária? — Do Eça tenho a Relíquia sim... Mas do Herculano escolho O
O velho, no alpendre, berrava contra o cão. Bobo. Conhece O Bobo? “Meu Deus, meu Deus! Por que me
— Não carece todo esse berro, seu Rodrigues — ponderou desfalece a esperança?” Conhece? Conhece O Bobo?
grosso o vizinho do quarto. — o cão não lhe mordeu. Passa pra — Que é aqui o marido dela, meu caro, o marido dela...
dentro, Beija-Flor. O velho, lamparina na mão, dobrou-se numa tosse. Dona
— Pois, seu Alfredo, faça a fineza de vir a nossa casa um Imaculada levanta-se, pesada e gemendo, remexe papéis, panos,
instante para tomar conheci mento de minhas três relíquias. Dê-nos a livros na cômoda atulhada, apanha uma brochura já sem capa,
honra. largando páginas pelo soalho que o estudante ajuntava, com
O velho, que discutia com o vizinho, aparece à porta: embaraço, o nariz na poeira.
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— Do Camilo basta-me este Amor de Perdição, meu menino. Alfredo, não acredita que um dia fomos noivos. Te lembra,
À luz da lamparina que o velho, curvo e tremendo, sustentava, Rodrigues, da carta que mandei ao vigário da aldeia em Portugal,
Alfredo folheou a brochura em pedaços. pedindo-lhe a certidão de batismo? O senhor não acredita? Justiça é
— E o Porto, Imaculada? E os direitos de hospitalidade? mesmo não acreditar. Não?
— Meu pai, lá no chalé, contava sempre passagens desse livro, Alfredo fez que sim, que acreditava, acreditava. Os velhos
D. Imaculada. trocavam olhares de zombaria e desconfiança.
— No chalé? — Sim, já fomos noivos, já fomos noivos — confirmou a D.
— Lá em casa, em Cachoeira, em Marajó, meu pai. Curioso que Imaculada, enxugando o rosto com o avental encardido, e
nunca encontrei o livro nas duas estantes. Mamãe ia pondo a mesa, eu bruscamente:
ajudava a trazer as colheres e a farinha, e eu e ela íamos escutando o — Mas que bobalhão és, Rodrigues, a porca da vida! O menino
Amor de Perdição. aí conversando com dois lixos catarrentos, com um bobo e com uma
— Até a partida do veleiro? Também de Mariana? bruxa. Não estás vendo o horror?
— Papai era melhor representando o pai da moça... D. Imaculada abateu-se sobre o baú num grunhido longo. O
— Pois seu pai, em Cachoeira? Seu pai? velho apressou-se a mostrar a Alfredo o “cabedal das garrafas”
— Sim, meu pai. Meu pai, uma noite na varanda do chalé, outrora cheias de Porto, Madeira, Moscatel, amontoado a um canto da
representou o Pilatos diante da Madalena que lhe vinha pedir a sala.
absolvição de Cristo. Foi o que viu aqui em Belém, no Teatro da Paz. — Desse cabedal vazio já vendeu mais de dez para o
Ele nos contava. garrafeiro... — troçou num gemido a D. Imaculada a coçar a barriga.
— Pois a varanda de seu chalé um palco e tanto, não? Pela porta do quarto, Alfredo via a cama de ferro. De ferro! Ah, Sabá
[78] — Era, é, uma varanda. Papai lavava as mãos numa bacia Manjerona, na tua cama de ferro recebendo, depois do ponto no
invisível. cemitério, a visita celeste.
Alfredo reanima aquela varanda, o pai nas representações, a [79] Agora em tua cama de ferro, velha rameira da rua das
mãe na platéia, a cachorrinha Minu na porta, lá fora, pela noite, os Palhas, Deus se deita contigo.
bacuraus em silêncio. À luz da lamparina, diante dos velhos, folheia, — E o Monge de Cister, Rodrigues? Também foi no lote que
pela primeira vez, o romance que o pai representava — tantas noites! levaste ao sebo para tuas águas, rapaz? Onde o puseste? Já bebeste o
— na varanda do chalé. Os três ficaram calados. As moscas. Ratos Monge?
pela cozinha. Alfredo prometeu a si mesmo escrever longa carta para O velho mantinha-se calado, torcendo o bigode, abotoando-se
o pai. No alpendre, o Ferrinho tentava a flauta rachada. um tanto respeitoso ou figurando-se arrependido.
— Do Camilo basta-me o Amor de Perdição — como que se — Essa senhora, meu caro visitante, tinha até ontem os seus
lastimou a D. Imaculada. Ou fazia uma indireta? vernizes. Mas já perdemos a esperança, lá se foi também o lustro. O
— Que lemos juntos, juntinhos, lá pelos tempos da flor da verniz agora é de seus emplastros, suas pomadas, suas andirobas.
laranjeira. Os tempos nupciais. Não acredita? Pelos seus olhos, seu D. Imaculada levantou-se, coçando as nádegas, avançou para a
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litografia: Quero o ofício de barbeiro. Queria ser barbeiro. Bem. Melhor em


— Meu Deus, meu bem! Por que me desfalece a esperança? cima que embaixo. Antes cabeça que pé.
Voltando-se para o estudante, tentou um mimo na voz: — No que te enganas, mulher. Preferível pé. Menos sujo que a
— E para o menino nem uma delicadeza temos. Nem uma cabeça é o pé. A cabeça? Nem com todo o dilúvio. Antes engraxate.
delicadeza! Estaria servindo a Deus ainda hoje no Reduto lustrando as botinas do
— A delicadeza? Mas está no baú, desmemoriada! desembargador Serra e Souza.
D. Imaculada aproximou-se do marido que sustentava a Ao nome do Desembargador, Alfredo guardou um sobressalto:
lamparina, ficaram juntos, muito sujos na sala morna e fedorenta. Via o Leônidas, com o luto de aluguel, voltando do enterro da noiva,
Alfredo folheava o Amor de Perdição, as páginas despencavam, O nome dela no jornal, a tarja do aviso para o enterro, o
assim parecia que era também a voz do pai agora, aos pedaços, na acompanhamento, coche de primeira. Leônidas voltava ao Ver-o-
sombra da varanda. Em consideração ao moço, D. Imaculada acendeu Peso, com o gogó mais fino, de repente muito emagrecido e desabou,
o candeeiro, apagou a lamparina. assim mesmo enfarpelado, na camarinha do Zéfiro. O cunhado
— Lá está o estupor do pequeno a soprar a flauta rachada. gritava-lhe:
Sobre uns tamancos, no chão, jaziam volumes e cadernos de O fato, rapaz! O prazo do aluguel morre às nove da noite. Te
música. desenfarpela que esse luto não é teu, é alugado, rapaz! O coche de
— Também música, D. Imaculada? primeira... No entanto, Luciana. Algo morria de Belém com Luciana,
Ouviu num ar de espanto, como acordando de repente. ou da juventude dele, Alfredo, ou do que deixou de ver no mundo, ou
— Música? Luciana servia apenas para tirar a limpo a idéia da justiça e da
— Tocava? moralidade? Nem a mãe acudia com uma palavra. Aquela família, na
— Eu? fazenda, prepara requeijões para o Arcebispo. O Dr. Gurgel advoga a
— Tocava? Questão. Sem apelo a condenada.
[80] — Dava patadas no teclado, em São Paulo. Hoje com o — Mas deu coqueluche de dólar, menino. Lá se me foi o
dedo duro só toco as coceiras e as aflições, O meu piano agora é barbeiro.
aquele filho lá na América do Norte, clandestino. [81] — Dólar?
— Queres, agora, desenrolar como um papiro a biografia do — Dólar, meu menino. De dólar os caminhos da América do
filho, Imaculada? Norte. O rapaz precipita-se...
— Primeiro era em arminhos, em veludos, com favos de mel D. Imaculada joga os braços para o lado, para a frente,
criado. No dia de escolher a carreira: É o Ginásio, menino? Não. Não figurando a sua incompreensão sem cura.
era o Liceu. — Não saia da fita em série, e com o nome do Ford na boca e
D. Imaculada exala um ai, corre-lhe um calafrio, apanha um dos lhe cai nos olhos de barbeiro a vista de Nova York...
cadernos de música. — A vista de Nova York? — indagou Alfredo se lembrando —
— Engraxate. Queria ser engraxate. Não passou uma semana: Onde? Onde? — de uma estampa de arranha-céus em Cachoeira —
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Onde, onde? — Ambição de engraxate. Cobiça de barbeiro. Nada mais. A


— A lenda vinha de Lisboa. Passavam por Belém, atulhando o mãe aí a contar as cartas que não recebe, a amontoar retratos e
porão, bandos de portugueses. presentes dele que nunca chegam.
O velho se chega para o pé do estudante com voz tremida: — Foi ambição? E isso é demais? Uma ambição não se admira?
— Recolhe de um pé de meia uns escudos e lá se vai também Justiça não é dar a cada um a sua ambição? —avançou a velha, com o
no porão, também clandestino. Pensando que ia nos dizer adeuzinho seu buço e o cheiro de seus remédios e moléstias.
lá de um décimo quinto andar de cimento e aço... — Não se admira? Teme-se e admira-se. Correu o risco.
— Meu filho costumava sentar, ainda pequenote, no Dicionário — Mas, Imaculada, não tentaste correr pelo cais gritando doida
de Cândido de Figueiredo e humildemente lustrava os sapatos dos que a polícia arrancasse do porão o clandestino? Não foi preciso te
vizinhos. Não vislumbrava eu nisso qualquer vocação, senão a da agarrar os pulsos? Debater-me contigo? Não lhe chamavas de
humildade. Um dia vendeu o Dicionário e com o dinheiro compra cabeçudo, de desnaturado?
uma escova, a lata de graxa e a banquinha de engraxate. Claro que foi — Era da parte de minhas fraquezas. Teme-se e admira-se, no
tudo uma pechincha. Mas acreditei que fosse um divertimento infantil que eu temia, eu dizia: Vai! me rasgando por dentro. E o digo pelo
e mais ainda. respeito que tenho pelo moço aqui presente. Tu também não
— Nem no cais fomos para a última bênção. Clandestino. Aqui arriscaste, Rodrigues? Não estávamos sossegadinhos em São Paulo?
a senhora D. Imaculada querendo atirar-se ao cais, bradar à polícia... Não me arrastaste até cá só pra me sobrecarregar de moléstia e
— Lá se me foi o barbeiro atrás de uma vaga nas barbearias da aflição? E por cima...
América do Norte. Não era um rapaz desajeitado. Queres ver? — Imaculada...
A velha levou o Alfredo pelo braço, mostrou, no quarto, o Alfredo quis fugir. Também ele, na idade de partir, de arriscar,
retrato do filho junto do oratório. Veio o seu Rodrigues) puxa o ali também culpado, sedento de graves faltas, sórdidas ou nobres
estudante para a sala, lhe diz ao ouvido: aventuras e desastres que não tinha. Ou não merecia? O menino, aí
[82] — Dólar. Atrás de dólar. O Moloch, lá, engoliu o fora, calou a flauta?
barbeirozinho. [83] — Olha, Imaculada, antes lustrando as botas do Desem-
E alto: bargador.
— A mãe, por ter ido o filho para a América do Norte, se cobriu — Mas eu culpo o Correio, sempre digo, acuso o Correio, o
de orgulho. Orgulha-se por isso. Mas não desgosta que eu espalhe aos Correio! O desviador da correspondência do meu filho, o Correio
quatro ventos a sua paixão de mãe querendo atirar-se no rio. Orgulha- dissolve amores, lares, a compreensão entre as pessoas. Meu filho
se disso também. E eu sufocando-lhe o grito com a palma da mão, escreve, escreve, o Correio declara guerra ao amor filial.
tapando-lhe a boca. E cá entre nós. Ele não tem obrigações tão Seu Rodrigues traz Alfredo para sala, segreda:
absolutas conosco. Eu aqui remendeio. Por lá, sabe lá, se sem trabalho — E nós neste alcouce e ele em Gomorra e sem duas linhas,
e, para esconder os revezes, não escreve. uma só, ao menos o nome dele dentro do envelope e isso bastava. Em
E sentenciou, sisudo: Gomorra.
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Ergueu o braço, numa voz surda: resfolegando, sentou-se no baú onde guardava o Porto.
— Engolido. — Resmungo um pouco contra os padres — esclarecia o seu
— Se ainda vive, quem sabe... — resignou-se a Dona Rodrigues. — Antes engraxate. E em que é que Deus pode ser
Imaculada. servido?
— Qual nada, Imaculada. Para semelhante barbeiro, tão cedo a — Antes engraxate, antes engraxate... mas desde que ele partiu,
morte não afia a navalha. Só sei que de mim o rapaz nada herdou. Rodrigues, ó deserdado, nunca mais fizeste o cabelo. Nunca mais.
Talvez levasse na bagagem ou na moleira fantasia da mãe. Antes engraxate. Nunca mais. Mas o teu cabelo nunca mais!
Voltou-se para a velha: Sobre o alguidar ao pé do velho crucifixo, A Relíquia; atrás se
— Ou tu querias deste tamanhinho na ventura, como engraxate cobria de pó A Velhice do Padre Eterno. Em cima da Bíblia o latão da
no Reduto, daquele tamanho na desgraça, desafiando o arranha-céu? farinha.
Barbeiro mas em Nova York e sem trabalho? — A Bíblia sustentando a farinha?
— Olha, Rodrigues, já estamos bem defuntos, é o que penso e — Já não guardamos farinha pois que não há grão a guardar.
tudo porque não respondemos às cartas dele que o Correio extravia, — Comem com pão como bons portugueses.
ele já nos julga no outro mundo. Enfim não vivemos mais. Não — Comíamos. A d’água esburacou-me o esôfago, fura-me as
vivemos mais. Já acabamos. Aqui só vagamos como almas. Céu, tripas, empedrou-me o fígado, meu amiguito.
inferno, purgatório, nos barram a entrada, por isso é que ainda Alfredo pedia licença, a sala abafava, pedia licença, ia escrever
andamos cá, rastejando. para o chalé, nisto batem no portão, vai o velho, logo volta, abre a
— Com a alma do teu marido lavrando na marcenaria? E não janela, fecha, vai no alpendre, vem amarrotando uma carta. D.
comes e não urras com os teus setecentos achaques? Não vais à Imaculada quer segui-lo, cansa-se, abatendo-se no baú:
latrina? Acalma-te, Rodrigues. Mas que te sucede? Teu coração te salta
— Uma rolha na boca, Rodrigues, a rolha, que tuas palavras pela boca, rapaz! Primeiro o teu coração. Primeiro o teu coração. Põe-
fedem, rapaz. Onde está o teu acatamento à visita? te um freio! Senta-te!
[84] D. Imaculada fez sinal a Alfredo, que o desculpasse e falou [85] Seu Rodrigues do quarto para o alpendre. Alfredo apanha-
com súbita rapidez: lhe a carta: sem selo, em mão.
— Viver é só pensamento, é só pensamento. Só de pensar que — Mas o portador, Rodrigues? Corre atrás do portador. Não te
ele está vivo, certo estou que está, e está conosco e isso me basta. Não disse nada?
sacudo o braço contra os reveses. — Entregou-me só, não me disse nada.
O velho empertigou-se. — A morte, Rodrigues?
— Moral cristã contra a qual me insurjo. Não! Tenho as minhas — Era um senhor de idade, Imaculada.
ponderações contra o clero. Já leu? D. Imaculada tentou erguer-se. Peso. Peso nas pernas.
Deu ao estudante o Palavras Cínicas. — Já não me levanto mais. Já não me levanto... Não é o recibo
Alfredo abriu a brochura com a preocupação distante. A velha, da água, Rodrigues?
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Alfredo, a carta na mão, esperava. — Mais nada, D. Imaculada.


— Eu leio, Rodrigues, eu leio. Dá-me os óculos. Eu leio. Sim, D. Imaculada leva as mãos à cabeça. Apressadamente o velho
ela não lia melhor que ele? Sempre foi assim, beira apanha a carta de Alfredo, some-se no quarto.
da cama, romances, poesias, jornais, cartas, documentos, D. Imaculada parecia alheia, ausente. O silêncio continuou. Seu
anúncios de cartomantes, charadas. O assassinato de Sidônio Paes não Rodrigues vai ao alpendre, volta, cai-lhe do paletó o último botão,
se lembrava? procura no soalho. Não encontra, levanta-se, inclinando-se para
— E a letra? Reconheces a letra, Rodrigues? O moço tem a Alfredo:
carta nas mãos. Lê por nós. — Assim é que estava escrito? Atolado na Gomorra? E por trás
Alfredo apressou-se a entregar a carta ao velho, que recusa. A das palavras? Talvez com o fogo se esclareça o enigma. Só?
velha pede, de mãos postas: Inocente? Culpado? Barbeiro? Trabalhando? Sem trabalho? Antes
— Não, meu filho, ampara-nos. Leia-nos por fineza a carta. engraxate?
Talvez nas suas mãos, por misericórdia! se transforme em boa notícia. D. Imaculada, como carregar as pernas? Arrasta-se até o
Agora, neste minuto, nem ele nem eu sabemos ler. oratório, sopra as teias de aranha de cima dos santos, rezou. Retirou
Alfredo foi lendo alto. A seu lado, a velha espalmava as mãos debaixo do latão a Bíblia, apanhou os óculos, abriu, abriu no Jó.
no rosto. Alfredo pedia licença. Escrever para o chalé. Conversar um
— Metido inocente? Estava inocente? Repita, por favor! pouco, ou longamente, com o menino da flauta. O velho, dobrado no
— Culpa dos colegas portugueses? Como? sofá, soluçava?
— De álcool? Álcool? Quando? A data! Como? Repita, repita, No portão, olha para a vizinha na calçada. Toda de branco na
menino! espreguiçadeira, desgrampeava o cabelo. Logo escutou da sala do
— A fábrica onde trabalhava? Escreveu? Escreveu? Não te casal os gritos da D. Imaculada: onde puseste a carta? A carta? Onde
disse, Rodrigues? Não te disse? O Correio? O Correio! E esse frio puseste tu a carta? O velho veio ao alpendre:
dele, terrível, moço, conte, leia! Onde? Mas onde os cobertores dele, — Já lá vão vinte e cinco anos! Vinte e cinco anos! E a meus
onde, onde? pés: Perdoa-me, Rodrigues, perdoa-me... Contigo, no teu perdão,
O velho temperou a voz: beberei o meu quinhão de fezes...
[86] — O tom, ao que parece, me soa um pouco falso, [87] Alfredo tentava acudi-lo.
Imaculada. A carta é um tanto enigmática. Não diz nem onde está, em — E não perdoei? Perdoei ou não perdoei? Ou foi só da boca
que cidade, em que prisão... para fora? Pode-se perdoar? Neste mundo cabe?
— Prisão, Rodrigues? Diz prisão? Assinou o nome dele, seu — Ateasse fogo em si próprio, desgraçado! Esse o teu perdão!
Alfredo? Diz prisão? Leia de novo. Prisão? Assinou o nome dele, seu Do teu perdão me sobram estas pernas, esta barriga podre, este
Alfredo, Manoel? charco, magnânimo!
— Manoel. Alfredo recolheu-se, o cão ladrava, a carta era invenção do
— Quando volta ou se volta? Mais nada? Diz prisão? velho? Lá está ao pé da torneira o menino com a flauta.
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— Candoca, dormir, que amanhã é a tua obrigação, meu filho! — Rodrigues! Rodrigues! Aquela verdade, não a merecias, que
Alfredo corre: só a merecem...
— Me dá a flauta por um dia para ver onde se conserta ela, sim? O cão ladrou. Aqui dentro, este outro cão, por dentro morde as
Rachada? correntes. Alfredo colou o ouvido para o banheiro da vizinha, agora
— Esta? Conserto? Rachou, adeus. Vou assim mesmo fazendo um coaxo, um ruído no zinco — as osgas?
que sopro. Já vou, mamãe. Tem uma chave inglesa? — voltou ao portão, a rua deserta, renteou a tal janela, sabia lá
— Pra quê? se aquela insone não espiava, agarrada à sua espreita.
— Desatarraxar a flauta. Entrou.
— Que que vocês cantam quando trabalham? Cochilou, ouvindo um som de flauta, chovia borboleta? Quem
— Nós? Cantamos. tomava banho na torneira? Pela tosse, é a D. Fausta chegando.
— O que cantam? — Meu piano, hoje, D. Fausta? Fale baixo, D. Fausta.
— Nós? Cantamos. Toda noite uma barata dorme dentro da — Mas que é isso, minha filha! Que te deu na cabeça!
flauta. — Baixinho, baixinho, D. Fausta. Bem baixinho... Meu fogo D.
E o que vocês cantam na rua, sopras aqui na flauta? Fausta.
— De tudo isso, Zezinho, só sei que cantamos. — Te cobre já-já com a toalha, variada. Te entrou o demônio?
Chegava a vesguinha lavando um prato na torneira. — Olhe, D. Fausta, um dia de são nunca, contrato a senhora pra
— Pode que ao som da flauta rachada as borboletas apareçam, tocar no meu aniversário, sim? Mas só valsa, sim? Mas só-só valsa.
não? Sim?
A moça não respondia. Tu que teu costume é sossegada, se de repente um homem? Se
— Os ferrinhos cantando no meio da rua, já ouviu? entra agora aquele que roubou o São Miguel, menina?
A moça correu ao grito da mãe: com quem que estás aí? Com — Ora, D. Fausta, na falta do santo, me roubava, que é que
quem? tem? É o piano e a flautinha do ferrinho, contrato assinado, sim?
Aqui dentro sem querosene para a lamparina nem as primeiras [89] Abre-se a porta, a porta do quarto dois, corre a menina com
palavras para o chalé. Descia pelo punho da rede a pele de cobra com a toalha para os fundos, o cão ladrou, deu um vento nas palhas.
Dolores, a retranca vibrava, o tio saca o paletó, enfia-se no toldo, sai Vergada ao peso da esipra, das varizes e das valsas, D. Fausta fecha a
de tronco relumeoso, pé solto. [88] Empina-se na proa como uma torneira.
bijarruna, e lá do toldo a branca fecha na palma da mão os rumores de — Boa noite, seu Alfredo, hoje muito estudo?
Belém, o sopro que vem do largo da Pólvora, da São Mateus. — E a senhora? Muita valsa, hoje?
No alpendre o cão ladrava. Embaixo, ao velório dos sapos, — Muita esipra, muita variz e muito assobio, meu filhinho.
fermentava o Não-Se-Assuste. D. Imaculada, gritando, pedia a carta Alfredo vai com a lamparina apaga-não-apaga caçando os
queimada. Mesmo que me queimar o filho, incendiário, incendiário! carapanãs da parede. Alumia os nomes a lápis e que o surpreendem,
A um rosno do marido, D. Imaculada vem ao alpendre: como se não tivesse sido ele quem escreveu:
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Luciano. Andreza. D. Amélia. Ana. Diante da teia de aranha, Fechada. Atrás da veneziana, ela espiava?
imagina o tio e Dolores na pele de jibóia sete marés adentro. — Pois só assim seria, professor. Esperaria chamá-lo professor,
Viu-se nos telhados, no telhado da espiona. Afasta a telha? Vê? pois não? Por que não? E então? O senhor consideraria o obséquio
Nada viu. Tudo lá embaixo era sono, lá dentro escuro escuro. Espreita que me faria. À tarde, sim, das duas às quatro, o senhor concordaria?
o Não-Se-Assuste adormecido. Com a carga desse escuro desce na É que o senhor sabe, compensar não compensa, poderia lhe contar os
calçada, banha-se nas estrelas, entrou. Saiu. Renteou a barraca da anos que sigo ao peso deste meu lenho de viúva. Imaginaria isso? Os
zanoia, espiou pela fresta: sentada no mocho ao pé da rede, à luz da alunos, pagarzinho mais, não poderiam. Quem nos dera! O senhor
lamparina, a zanoia lia. Um ler pausado, sonolento, a lamparina então sabe, o magistério — este, então, nesta redondeza e particular de
que fumaça. — Mais devagar, que teu defunto pai não está na forca, primeiras letras — só consumir é o que faz, e sempre. No mais, só
não dispara a língua. Repete esse pedaço, joça! Deus.
Lá pela frente aqueles dois reabrem o bate-boca. Incendiário! [91] — Mas não sei se...
Até caírem juntos na cama de ferro, com a cinza da carta cobrindo- — Não, não se escuse, não se escuse, pois não sei? Pois não
lhes a fadiga e o sono. Dentro da flauta dorme a barata, cochichou sei? Basta o que tenho tanto escutado e escuto a respeito do senhor.
Alfredo a si mesmo e com um não pequeno espanto, de repente: Sei que encontraria uma pessoa conforme sempre sonhei. O senhor.
— Mas foi que subi mesmo esse telhado? Foi? Não posso Por isso mais que tanto troquei a perna e apurei a vista atrás de
render a zanoia na leitura? encontrar o senhor. Foram dias! Nada! Meu Deus, seria o moço
Enrolou-se que enrolou-se na rede como na pele da jibóia. adivinhando que rastejo a sombra dele? Foi. Mas quem que não
[90] — Ando que ando mas nem calcule! fazendo já mais de teima, eu? Eu? Vejo que é verdade.
semana rezo para encontrar o senhor em casa ou onde mais seja, — Que verdade? Por quê?
contanto que lhe pudesse dizer uma palavra, que esperança! sempre o — O senhor. Tão boa ausência do senhor, que todos fazem!
senhor saindo, nunca acertava sua hora... hoje Deus me ouviu. Não Estou por ver igual. Das referências no tocante ao senhor fosse esta
ardeu todo instante, estes dias, a sua orelha? Até um recado pela filha sua criada anotar no caderno traria o caderno cheio.
daquela senhora cega e entrevada, aquela, que lava, a zanoinha... — Mas de mim? Eu?
Não? Mas não recebeu? Alfredo falou alto para a janela fechada, para a veneziana da
No portão da estância, Alfredo tira o quepe, põe o quepe, corre espiona. A senhora espalhasse pela rua as imprevistas coisas que ia
o dedo pelos botões do uniforme, o sol em cheio na rua deserta. A dizendo.
desconhecida abre a sombrinha, sustenta o ar de mestra puxando os — De mim? Mas eu?
efes e erres, aqui e ali o “vê-lo”, o “encontrá-lo”, um “quiçá”, repleta — Quem mais? Não é nem uma nem duas que sobre o seu
de condicionais. Por tudo isso uma velha fadiga no rosto ossento e nome só jogam flores.
luzidio, o olhar pedinte, a boca muito usada com um dente de ouro, o Alfredo quis rir, teme ofender a senhora, olhou, de novo, para a
peito comido, toda num antigo vestido de missa que a vergava um janela fechada, querendo correr até lá, como fazia a doida Antonieta:
pouco. Alfredo, no seu embaraço, vira-se para a janela da italiana. Soprar.
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— Não se escuse. Não se escuse. E é só o que lhe rogo, a sorte — Como, D. Nivalda?
de minha escola à tarde nas mãos do senhor está. — Me fio que o sr. não me coloque acima das minhas poucas
Suando debaixo da sombrinha, um tanto arquejante, a senhora posses, Sr. Alfredo, um preço...
se fazia mais descorada, a boca num tremor, um olhar cheio d’água. — Um preço?
— Vamos um pouco até a esquina, D. Nivalda? A gente pode ir — O senhor compreenderia...
até lá conversando mais um pouco. Alfredo caminhou, afastou-se da janela, olhava para o capinzal
Queria passar defronte da janela, agora fale mais alto, doutro lado, galante professora! A senhora mudava de voz? Mais sem
professora, e puxou pela senhora, a fazer-se rogado, então que os sangue, mais ossuda? Receias que te roube o dente de ouro, esse que
louvores choveram, alto. Lhe deu vergonha, certo espanto de si agora mostras, pechincheira?
mesmo, um impulso de fugir ou saber que a espiona escutava ou — Ah, sei que muito educado o senhor é. É só ver as suas
confessar-se diante da professora. maneiras... Ah, tão satisfeita que estou, tão-tão feliz por ter andado
[92] — Não se escuse. Não se escuse, sim? Conceda-me a tanto à sua procura e travar conhecimento com [93] a pessoa do
preferência, sim? À tarde, o sr. não vai ao Ginásio. senhor. Então, hoje, conforme a sua vontade, o que o senhor por bem
— Mas e as lições em casa? decidir. Às duas? O número, já sabe, mas olhe lá! chegando lá, não
— Sim, sei, ah, isto a... Estudioso que tanto o senhor a... Pensa ponha reparo em nada, que tudo ali é somenos, tudo aquilo foi, hoje
que não sei de sua aplicação e aproveitamento? Só que imagino é o não é, tudo teve um luzimento, agora... E o chão da casa ainda é dos
seu futuro... Conceda-me um pouquinho de suas tardes, sim? Lobos. Fui mulher de comandante, hoje viúva. Pela manhã dou aula
Aqui, professora, isto, bem defronte da janela, repita mais alto, na escola estadual. Ando é tão consumida, mas tão extenuada, Deus
D. Nivalda. que lhe conte. Aqueles meninos? Olhe que puxam muito, não por
— Não se escuse. Socorra-me. Deixe está que o santo de minha muito impossíveis, é que desemburrar os outros vai emburrando o
devoção, o meu S. Francisco de Canindé, lhe ajudará em tudo que de desemburrador. Aqui estou eu como um espelho. O que já perdi de
bom o senhor ambicione neste mundo, assim seria. É uma caridade. fósforo e hemoglobina... Então até lá, Sr. Alfredo. Espero o senhor.
Foi alto, bem-bem defronte, e a italiana? S. Francisco de Sua palavra é palavra! Ah, que foi Deus! Uma libra de cera é quanto
Canindé, abra a janela, escancare. Embaraçou-se mais, estou vai ganhar o meu santo, sete dias de vela acesa, sim, e eu rezando sete
descendo muito, a professora não se calava. terços.
— Pois, D. Nivalda, pois bem. Pois, hoje, logo às duas. Alfredo, agora só, cobiça o sótão da esquina de onde podia
— Hoje, seu Alfredo? Já hoje? Ah! dominar as baixas de açaizal e capim, talvez o telhado da italiana, ali
Certo estou que espias e escutas, atando o cabelo, o colo está a chave de abrir a madrugada. Sótão em que se refugiaria, noites,
suando, muito italiana, aí atrás, teu rosto clareia a sala. A professora, incomunicável.
tirando um alívio, agradecia. Num instante, pensativa, tentou fechar a Voltou, passo tardo, roça a janela na esperança de abri-la, de
sombrinha, fechou os olhos contra o sol, confusa. súbito, aquele rosto, plena Itália, ou lá dentro se entupia de macarrão?
— O senhor compreenderia? Veio devagar, mestre-escola de D. Nivalda, correu para o portão, que
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duas da tarde que nada nem hoje nem amanhã! Desceu pela Curuçá, bolso da saia a cadeado e segue gomando ou pregando botão nas
seguindo a empinação dos papagaios, ganhar algum dinheirinho? Um ceroulas do Bon Marché. Feliz, ferozmente feliz por ver nas sobrinhas
dez mil réis se delindo, sem saber se é ainda dinheiro, de tão o que previa. Feliz nos olhos mas por dentro? Que sei da D. Dudu?
emendado, das poucas e sovadas notas que circulam neste chão? Ou apanha nalguma parte a velha parteira. Ou Zuzu, nudez atrás
Qualquer trocado valia, sim, que os borós do chalé rareiam e convém das jacas, destas a mais madura?
trabalhar. A pé pela São Jerônimo, um tostão chorado, abaixo de suas Tudo isso subitamente se apagava, e de tudo isso tinha perdido
poucas posses, chorosa professora, agarrada professora. A professora o melhor gosto, o sumo mais secreto e necessário. Desperdiçava
pedia a seu santo, azeda por ter de adular, o dente de ouro dizia, viúva sempre. O último gomo da jaca, naquela tarde, comeu? O caldo de
de comandante. Algum. Para onde vão as ambições? Que éter gurijuba, já agora sabe o quanto não saboreou.
ambição nesta cidade, ao pé do Não-Se-Assuste, já que Luciana nem E vai, se vê defronte da taberna da Brasiliana, o balcão deserto;
morta lhe devolve a chave? Que prometia o Ginásio? Parsifal falava não, aqui está o jacamim, lá o sótão com os tajás [95] na janela, os
em perdão. Mas quem? Quem? pombos no telhado num burburinho de quem carrega do mar as sedas
[94] Quem a obra do perdão começa? Onde? Que será e os perfumes do contrabando.
conseguir? Aonde aquele dia que pensou ver nascendo na volta de Apanha o bonde, salta na D. Januária, segue até à beira do rio,
Marituba? Que fazer com estes passos, este olhar, este estar sozinho e os olhos no barco que suspende a vela, num caminho que o leve até o
arder para abrir essa janela e dizer: Como vai, meu irmão? campo onde está a mãe, desfalecida, ou adormecida, e dela afasta o
Vai em busca do ferrinho, pedir-lhe a flauta rachada. Decifrar a capitão Edgar, afasta o afogado, carrega a mãe nos braços, apaga a
esfinge, sabendo que dilacera mas é preciso. Agora é o forno, este, surra que lhe deu o tio Antônio, a morte de Maninha, as noites na
pela rua, queima o sapato, assa a cabeça, os urubus revoam, dispensa. Será que ela atravessa o rio a nado e magma que um dos
chamejantes; os papagaios precipitam-se no sol. Daquele monte de três pretinhos da extinta pororoca é o filho?
lixo, no meio da rua, que o reformado queima quase toda tarde, sobe a Mas agora, neste toldo, aqui na estância, neste quarto, cala a
italiana. flauta, ferrinho, calem-se, portugueses, durma mais um pouco, mãe.
A fumaça o leva para a escolinha da D. Nivalda, mais só, mais Deu com o número no tabuado que escondia a velha casa lá
desguiado, um pouco réu, ia-não-ia, onde está o teu espinhaço?, dizia dentro, duas janelas, rente da porta a torneira enchia a lata da vizinha.
Magá. Não se escuse, não se escuse, de repente levado ao pátio do — Professor, professor! Milagre de São Francisco de Canindé!
Ginásio, no redemoinho do trote, cuspido, batido, e o angélico a seu Em cima de sua palavra! Esteja a gosto, mesmo que em sua casa, só
lado, Parsifal casto e sangrento, o rolo com o Pereirinha; começa a que não vá reparando. É aqui o nosso... Mas, meninos, meninas! Não
subir do liceu a grossa poeira em que iam lentes, matérias, unifor- se levantaram? É o vosso professor. Oh!
mes... Corre o olhar pela sala, a mesa ladeada de dois bancos onde
Ou passa pela D. Dudu no Curro e lhe pede perdão? Queres sentam os alunos maiores. Nos banquinhos afastados, rentes da
café? ela responderá e será tudo, no modo sempre de esquecer a falta parede, os menores, todos agora de pé. Virou-se para a porta, a
(dele e não delas), que perdoar, não, ofensas e ingratidões atocha no vizinha acabava de encher a lata e espiava. O relógio, encardido e
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gasto, dá duas pancadas. Foi olhando os meninos do primeiro banco, como se compreendessem, à maneira delas, a recomendação da
seis rostos melados, de maloca e jirau sobre o rio, todos numa professora: Não desgostem o moço. Não desgostem o moço. De lá do
curiosidade festiva ou receosa. Dois lhe pediram a bênção. No outro corredor espichou-se a cabeça:
banco, defronte deles, três meninas, exagerando a surpresa, o — Um instantinho, professor, que é já que lhe façozinho o café,
agarravam com o olhar, tiravam e retiravam o pé das chinelas. E sim?
aquela, na pontinha do banco, cabeça baixa, vestido azul, riscando o — Não, não, professora. Vamos começar pelo ditado, um tema?
caderno com o lápis, menos de pé que vergada, a mais alta? Ajeitou o Que a senhora acha?
atracador no cabelo curtinho, os olhos no caderno, sem se dar conta. D. Nivalda, saco de café no braço, veio de mãos postas:
No que a professora corre e atende à porta onde batiam palmas, a — Que a senhora acha! Que a senhora acha! Ache o senhor é
aluna ergue um [96] ins|tantinho o rosto para a janela, morde o beiço, que é, que assumiu a cadeira, professor! Assuma. [97] Assuma. De
deixa cair o lápis, abaixa-se a apanhá-lo, agora folheia o caderno, suas luzes tudo espero. Máxima atenção e respeito, meninos e
tirou um santinho, séria, solitária. E Alfredo, sem dizer “sentem-se” meninas.
no seu silêncio: A Roberto? Na escolinha da D. Nivalda? Roberta! Voltou com a rosa no copo d’água, colocou no meio da mesa.
Sentem! Sentem! — pôde falar, engolindo o seu espanto, Espalhou-se o cheiro de café. Uma das meninas, por divertir-se,
transpirava vexame. — Sentem. apertou o nariz. A outra cutucou-lhe: Olha ele aí te olhando. Alfredo
A aluna da ponta do banco é a última a aceitar a ordem, a fingia-se atento ao caderno, receando o olhar dos alunos. Apanhou
sentar-se como a dizer-lhe: Quem tu és, Zezinho? ajeitava o vestido um Mário tão muito usado, capa roída, faltavam folhas, lhe fez
atrás, abana as moscas, logo numa compostura meteu a cabeça no recordar, por quê? o Didico destampando a lata d’água, onde
livro. guardava os peixinhos vivos que iam servir de isca na pescaria à
— Professor, são do primeiro e do segundo... O senhor sente noite. Também o professor Chiquinho em Cachoeira. Naquelas tardes
aqui na cabeceira da mesa. Não repare a mesa velha, é só risco de aprendia letra gótica, as ginjas lá fora, o máximo divisor comum aqui
lápis e tinta, pertenceu à minha família quando naquele tempo se no quadro, de repente um passarinho. Acabem com isso. Acabem com
jantava com o bico de luz em cima da minha avó. Pois sente. Use o isso, seu pio parecia dizer. Aqui os meninos por dentro muito agitados
rigor que carecer. Olhem, meninos, o moço freqüenta aquelas salas do nem se mexiam. E o olhar das três meninas? A primeira tirou uma
Ginásio. Por muita consideração da parte dele, veio e aqui nos dá a pétala da rosa e comeu, meio escondido, e assustada. Aquela
honra. Obra do São Francisco de Canindé! O máximo respeito. Mas o gorducha, carinha de lua, sorrateiramente imitou a professora com as
máximo! Não desgostem o moço. Não desgostem o moço. mãos postas. À terceira ralhou com as sobrancelhas e se pôs de pé:
O professor sentou-se, mal pôde crer: Roberta! Apanha o — Professor, licença de cuspir lá fora?
caderno: Descansado então o andar dela! Volveu com o sol no rosto —
Caderno do aluno Argemiro Gonçalves. escondeste o meu lápis, Zul? — disse por dizer, piscando para os
Externato S. Francisco de Canindé. meninos. A que comeu a pétala, empoada, escurecendo os cantos da
Roberta! Por trás dos seus livros, as três alunas lhe sorriam, boca, se movimentou, queria pedir, não queria, guardou-se, os dentes
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fáceis, e um colo de donzela que irrompia sobre a mesa. Aqui na tira de dentro do caderno a flor seca, esmigalhou sobre o livro, de
ponta, cotovelos fincados, mexia os lábios: novo o nome do Externato, a data, e esperou de cabeça baixa. Já
cheirava a moça o seu cabelo? Cheirava mais a milho verde. E o rosto
Una, duna, tena, catena do pai, escuro de barba e mágoa?
Undurinha, undurau... Era um velho carrossel de oito lugares, muito desarranjado,
quatro cavalinhos, um carneiro, três assentos de pau, rodava no
Pinheiro, girou pela Estrada de Ferro, um ano atravessou a baía de
Roberta olha o pêndulo, olha o fio da lâmpada forrada de papel Marajó e virou em Soure. Soure ou Salvaterra? Não sabia bem, O
crepom, logo se recolhe ao caderno, virando as folhas, quanto mais se dono, um gringo de óculos e chapéu colonial, O pai de Roberta
fazia de aluna menos era, sempre em si mesma, recebendo pelos ares tomava conta. Tinha o cego e sua flauta, um pequeno tocando viola,
o seu ar de moça. assim iam. Um domingo no Pinheiro quebra de uma vez a geringonça,
[98] — Pois bem, um tema. Vamos? o vento arranca a empanada; o pai de Roberta veio no trem [99]
Que vou dar a eles? Este ditado, o meu espanto, o logro do guiando o cego, o menino vende a viola na viagem, e a flauta, que
Ginásio, a visão da mãe no campo, a morte de Luciana, a briga com o rachou, era aquela nas mãos do ferrinho?
Pereirinha, o Não-Se-Assuste, a parecença do que não sou? E por que Debaixo da chuva, os sapos morando nos cavalinhos podres,
Roberta? Eis que me surpreende, por quê? À presença dela, por quê? acabou-se de uma vez o carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. O
Este sobressalto, me expliquem. cego espera-espera-espera o trem de Bragança, tirando esmola na
Lembra-se, lembra-se: A menina no meio do milho verde, o pai estação. O menino pegou um trole para Benevides, foi comendo doce
voltando do Pinheiro. Roberta, morreu o cavalinho. Acabou-se o de gergelim com pão torrado. A barba do teu pai, Roberta, crescia a
carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. Acabou-se o carrossel? O olhos vistos, agora pelo cais, na Rua 15 de Novembro, escovando
vento arrancava a empanada do carrossel. Roberta, no meio do milho urubu. Tua mãe costurava. Roberta, de cabeça baixa, como se visse
verde, abria as espigas. longe, no Pinheiro, o carrossel quebrado.
— Prontos? — Prontos?
Abriu o livro, esperou que os alunos preparassem os cadernos. À primeira palavra, “Amanhecia”, que ditou, repetiu
As três meninas com os olhos nele, submissas, atentas a uma mentalmente: Roberta. Roberta. Ditava abafado, o carrossel quebrava,
condescendência dele, a um olhar fora do regulamento... A morena de escoa-se o sobressalto, em cada palavra indagando, ditando sem
beiço roxo agitava o peito de rendas sobre a mesa, a esperar que ele firmeza nem pausa. Entre as letras salta aquela menina de carrossel e
só ditasse o que o seu olhar pedia. milho verde, sempre a pé-descalço da José Pio, no bando dos
— Pronta? moleques apedrejava a casa das Boaventuras, a foguete brincando
Pela primeira vez falando com a Roberta. Ela só fez foi abrir o juju nas toiças do largo mas já tão tamanha noite! E foi numa tarde,
caderno com fina má vontade, escreve na primeira linha o nome do jogavam bola no campo do Astor-Vila, a relâmpago trepa na
Externato, datou, borrou, vira a folha, interrompe para mudar a pena, mangueira vizinha, desce no telhado da Brasiliana, no meio dos
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pombos... Te capo, pirralha, gritou a moura, entre os seus. tajás na palhas do milho verde: Roberta, era uma vez o cavalinho. Borbulha a
janela, coberta de cetim, com a moringa na mão. Te capo, pirralha! voz da taberneira: É-é, de nascença... O. Brasiliana se benzia,
— Como, professor? — perguntou um aluno, aconcheando o escarrava o nome, o diminutivo. Diminutivo. Aqui soa bem, nesta
ouvido. gramática, entre os condicionais da D. Nivalda. Sua aluna! De tinta,
— Firmamento. Fir-ma-men-to. Vírgula. sardinha, giz e aritmética! Te capo, pirralha! O pai trazia um ar fla-
E pela esquina da roda dos rapazes o vem-vem-vem do capinzal gelado, seca de 15, de onde veio rapaz sempre assim, ninguém mais
e fundos de cerca com a doidinha no meio, criando asas, sempre na taciturno. A mãe falando Ceará: chora não, Roberta. Aquele
berlinda, chispando pela baixa mais que uni moleque, este conta isto, brinquedo da peste havia de ir para as profundas, chora não.
agora é aquele, o que um não viu por outro visto, ao balcão da taberna Parou de ditar, ouvindo repetir-se o nome sujo, já escrito no
devorando aquelas anedotas e fugindo rápida à mão cabeluda do quadro negro, nos cadernos, na tabuada cantada dos mais pequeninos,
taberneiro, caindo de costas no saco de milho. E a D. Brasiliana, severamente anunciado pelo relógio, escorre na torneira, gravado no
virando a registradora: Essazinha? Essa? Esse botão tirado do galho? coraçãozinho do cordão, esse aí da nossa aluna. Palmas na porta, as
[100] Já nasceu teimosa? Deus que me perdoe, que a pixota vozes da taberna:
nem caroço ainda grelou no peito, mas de tudo aquilo, assim e assado, [101] — D. Brasiliana, D. Brasiliana, ponha termo nesse apre-
todo o ré-mi-fá-sol de tudo aquilo que só vim a saber direitinho foi sentado!
bem mais tarde, ela, engatinhando, já traz na ponta da língua, de — Mas o vestido da menina, monstro?
mecha acesa... Essa lombriguinha é-é de nascença! Boa viagem, no — Eu?
teu descaminho, estradeira. Ela? É-é... Nascida, batizada na pia do — Quem mais, seu cachaça? Quem mais aí ao pé da lenha? Isto
Diabo, é... aqui não é cepo de sangrar menina, monstro! E tu, paturi danisca,
E soprou no ouvido dele. fora! Somezinho já daqui, onde é que tua mãe anda, enjeitada, que
— Não, D. Brasiliana! Uma menina? Tão menina assim? não te escalda num banho de malagueta? Ou já te botou na rua, mal-
D. Brasiliana sobre o balcão fechava o peignoir, com o jacamim desmamada?
no pé. — Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Me avie logo o
— Por ser tão menina assim, não nasceu de racha, meu anjinho, meu sal.
não? Aleijada? Ela tem parte com a Cabra-Cabriola. — Cantava: — Teu pai, onde está, que não te sova? Alguém já te conheceu,
Quem não me conhece chora. sua apressada? Já? Já?
A moura ajeitava os papelotes do cabelo, apanhava o leque — Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Pese é meu sal.
entre o sótão do contrabando e o bonde que a levava à Alfândega e ao As vozes somem. Os guris da cartilha coaxavam baixinho a
Foro. tabuada. Alfredo suspende o ditado, vai à janela, a papoula sangra ao
— Disse Mãos, professor? sol, volta olhando para Roberta. Ela, no meio do milho verde na porta
— Mãos, sim. Não tem pressa. da rua, os zebus passavam: “Vem comer milho verde na mea mão,
Debaixo destas palavras, quebra-se o carrossel, o pai entre as zebuão!”
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— Bem. Ponto parágrafo. Esfregou os olhos, quis soltar-se daquela mão.


E baixo para ela que se mostrava indecisa: — Anda. Me diga.
— Noutra linha. Então deu no aluno uma alegria:
Aqui de azul, caneta amarela, pés quietinhos na sandália, junto — Esta noite papai matou.
ao caderno o santinho e os restos da flor seca. Roça a perna um — Quem?
repente no vestido dela, um repente, sem querer, afastou a cadeira. Arrastou o tamanco, piscou muito, abaixou-se para apanhar um
Roberta. Fazia o ditado como se não escutasse, a letrinha esquiva, alfinete:
roda, carrossel, o cego tocava flauta, o guri a viola, o pai armava e — É o meu! — falou a menina que lhe tomou o alfinete.
desarmava o brinquedo, aqui a aluna suspende a cabeça. Tomando — Vamos. Diga. Você me anda um tanto cabeludo, não? Não
fôlego? Brusca contrariedade enxotando as moscas. Franziu a testa à precisa de uma escovinha?
caneta amarela. Cedo, com um s ou dois s?. Risca-não-risca, apressa- No que falou, Alfredo viu: era vexar mais o aluno e se lembrou
se a escrever a seguinte que o mestre repetiu, sem saber que ele daquela máquina, no barbeiro do Ver-o-Peso que lhe pelou a cabeça.
também repetia: Roberta. Roberta. [102] Veio o café, de novo o — A mucura.
sobressalto, a roçar no vestido, de repente lá de fora eivém! — Mucura?
“Gombra ouro guebrado!” [103] — Papai matou. Esta noite.
— Vamos vender o dentinho de ouro da professora? — — A tiro?
cochichou a rechonchuda, já a mão na boca, ao ver-se pilhada pelo — De espingarda.
mestre que lhe sorria. — Comia pinto?
— Ponto final. Marquem no ditado dois substantivos. — O meu pintinho. Quer ver, olhe.
— Como, professor? Diante da aula em silêncio, puxou do bolsinho umas penas, logo
— Dois substantivos. muito cuidadoso, guardou as penas correndo para o seu mocho.
— Dois?... Tornou a ficar de pé, a costa da mão pela testa suada. A morena da
— Dois substantivos. mesa. Licença, professor?, acudiu o menino, enxugando-lhe o rosto
— Ponto final? com o lenço lilás que ele trazia de enfeite. E cochichava-lhe: Deixe
— Ponto final. está. Deixe está que te trago um pintinho, sim? Onde escalavrou a
Nisto corre um menininho para o pé do mestre: unha?, e tudo isso um pouco também por faceirice, realçar-se diante
— Professor... do professor. O menino ganhou desembaraço:
Encabulou-se, o fura-bolo, de unha escalavrada, pela orelha e — Ajudei a jogar a mucura no rio. Amanheceu foi cheinha-
nuca. Virou-se, num pulo voltou ao seu mocho, ficou de pé, aí cheinha de formiga.
espirrou, “Santinho!” foi a aula em coro. Veio vindo, meio arrepiado. — Cheinha-cheinha? — A morena escapuliu, num falso
Alfredo lhe pegou a mão: espanto, se deu conta, vexada, voltou à mesa, abriu o livro, a colega
— Diga. lhe tocando com o cotovelo, baixo:
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— Mas, pequena?! aquela brutalidade tão familiar, tão necessária para que tivesse a exata
— Que foi? Que foi? Que foi que eu fiz? sensação de que vivia. Coçou a corcunda e se abriu num bocejo,
E fincou o nariz no livro, embaixo da mesa as pernas sem como um jacaré no balcedo. Sacudia o casaco roto e sebento.
sossego. Aqui consigo, Alfredo repetia: Que foi? Que foi que fiz para Esfregava as mãos sujas, de unhas ferozes, no nariz achatado. Ao
meter-me nisto? Roberta no mesmo alheamento, assinou, enxuga o peso da corcunda, batendo os tamancões de galego, sentava-se no
nome com um pedaço de giz, a última a passar o caderno às mãos do banco, junto do portão de casa. Tira o cachimbo. Na primeira fumada,
mestre, sem fitá-lo, já ocupada a guardar os restos da flor dentro da a careta, tabaco péssimo. Com aqueles olhos espremidos na cara
aritmética. A seu lado, as três colegas se cutucavam e sorriam com o sebosa, permanecia ali um vagabundo de gravura. Ninguém no largo.
livro aberto sobre o rosto, a espiar o mestre que corrigia os cadernos Ninguém, não, urubus.
(Que foi? Que foi que fiz?) num vago desamparo por não decifrar o (E esse estrondo surdo no dilúvio? Bonde?) O moço descerá?
que os alunos, nos seus ditados, queriam ou não puderam lhe dizer, Não, que agora só entra peixe e caranguejo. Os sapos ocuparão a
este instante, este instante em que Roberta fecha na aritmética os escola.
restos da menina e crava os olhos nele. O comandante apagava o cachimbo. Acendia. Ajeita o boné de
Varando a madrugada — meio-dia, uma da tarde — e o tempo viagem. Caminhões roem o silêncio, mais pesados e lentos como esta
não suspende! Pé-d’água! Nesta arca deserta, o [104] quadro-|negro, chuva. Uma zoada longe. Vozes vagas ondulando na ramerame do
os banquinhos. a mesa dos adiantados; não se salvou um bicho nem subúrbio. Tropeçam carroças na rua esburacada. Poeira, cheiro de
coberto de lama entrou desgarrado um só aluno! Nem um-nem-um, O gasolina, urubus no lixo, [105] moscas sobre o bagaço de cana atrás
professor? E esse vapor cobrindo a mangueira, onde a papoula? As da garapeira. De novo o silêncio. O comandante vai engolindo a
goteiras jorrando, o telhado estalava? Vão chegar, de novo, os fumaça, e os rios que viajou, e os gaiolas que guiou e afundou,
tucanos? Depois das moscas, a praga de formiga de fogo? Belém empapado de chuva, mormaço e cana. Boné, corcunda, cachimbo,
soçobra, os alunos chegarão a nado. tamancos, brutalidade recolhida como uma tromba, o comandante
Ninguém. Amanajás, o marido. Senta-se ou abre o relógio, berra contra o
Aqui dentro gordas moscas grudam na parede, na rosa relógio, investe contra os meninos da escola estadual. Seis e um?
murchinha do copo, no quadro de São Francisco de Canindé. O Quatro e dois? Sete vezes setenta? Noves fora? Que letra é esta, seu
relógio (quebrou a corda) é aquele trazendo o navio que resfolega e patetinha? A dordolho sarou? Antes cego que soletrando errado, meu
atraca, prancheou a porta. Bufando no aguaceiro, o fantasma de come-terra, meu comedor de barro, a tua especialidade é aquela
azulão e gorro. terrinha do Valha-me-Deus? Lombriga? Adjetivo ou substantivo?
— Amanajás, o teu chá, Amanajás. Esfriando na mesa. Depressa, antes que ela te saia pela boca. Que é gramática? Tu, aí,
— Lesa? Estás lesa? Ora, não amole. que estás com já-começa. Tu, aí, moleque, me traça no chão com o
— É um cozimento da flor do cravo pro teu resfriado, dedo do pé, inchado de bicho, me traça já-já um ângulo ou a grade do
Amanajás. Teu defluxo não passa... purgatório. Isto é aula ou bicharal?
Jogando fora o chá, Amanajás recolhe, como uma tromba, — Amanajás, lá fora te chamam.
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— Mentira! Queres que eu saia da sala! Mentira! adormecido, babando. A professora assumia a cadeira, terço da mão,
O comandante levantava o braço, os meninos sérios, uni os alunos principiavam a cantar a tabuada — ciu... silêncio.., não
papelinho passando pelas costas, de mão em mão. Jaburu Jaburu acordem o Jaburu... corria o cochicho.
Jaburu. — Ensaiar o hino.
A professora fingia corrigir cadernos e já lá fora, no Minerva, o — Mas agora, professora?
botequim da quadra, o Comandante bebia, até que lhe cortassem o — Quem atirou a casca de manga? Quem?
fiado. Voltava fumegante contra a instrução pública, pois tamanhos — Já podemos começar o hino, professora?
pais-d’égua estudando! Decretei feriado neste bicharal, abre a jaula! De bruços, encalhado no soalho, o antigo comandante de gaiola,
Bando! Embora, embora! Ponto facultativo, rua! donos dos rios, barrancos e trapiches, todo de branco pelo
— Amanajás! tombadilho, o navio embandeirado na manhã das regatas. Os meninos
Dava as costas, arquejante, suando. A corcunda, nem dez começavam a cantar.
carregadores de piano carregavam. E lá do fundo o sussurro: Pé-d’água! Nem a nado chegam. O moço, que parece sempre no
Jaburu. Jaburu. Avançou, brandiu o cinturão, a barriga de fora, ar, nem por esta janela entra como um tucano perdido.
a meninada debandava. Ninguém.
— Amanajás! O chuvaral arremessa a gaiola, arremessa o fantasma, aquela
Ficava só, atulhando a sala com a corcunda, num regougo. primeira viagem.
— Amanajás! Amanajás! — Entramos no Amazonas, Nivalda.
[106] A professora enxotava a picota. Os meninos na rua, à Amazonas? Debruça-se. O rio? Ai que me dói a barriga, essa
espera que o Jaburu desmoronasse na alcova, ao peso de mau água a bordo, onde o elixir paregórico? Bom é viajar trancada no
cachaça. (O cochicho nesta chuva: Jaburu. Jaburu.) camarote, o rio passando dentro do sono, passam [107] os estirões, as
— Mas, meninos, voltem. Para dentro. Pelo amor de Deus, seus vilas mortas, os trapiches caindo, as várzeas escorrendo maré.
diabinhos, entrem. — Juriti, Nivalda.
— É ou não é? É ou não é, Nivalda? Isto, aqui, é ou não é uma Os lagos pelo verão morriam como gente.
goela da Volta da Tripa? — Mas é um lago, Amanajás.
— E tu és o... O? Deus que me perdoe, Amanajás. Passaste o — Um lago?
ungüento? O tambaqui boiou debaixo do tauarizeiro. Pousava no pau do
— O o quê? O o quê? aparizeiro o pato brabo. O pica-pau subindo na tataparica. O
Avançou, esbugalhado, apanha a cadeira para atirar na mulher, comandante no trapiche: “Arpoaste o pirarucu? Gordo? Dá cá a
escorrega na casca de manga. ventrecha.” De pé, soturno, o velho arpoador esperava.
— A seus lugares, meninos. A seus lugares. — Tua filha afogou-se? Onde? Boiando entre os mururés, de
A professora cochichava. seus cabelos pulou um tralhoto? Foi? Pirarucus, quantos arpoaste este
A aula recomeçava. O comandante no soalho, estirado. ano? Toma este xarope. Uns anzóis? Leva também umas pílulas,
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rapaz. comandante”, desenrola o carretel, desenrola, me estende a ponta da


O arpoador calado. O arpoador fechado. Trazia nos olhos um linha, francês, ao menos, até onde era aquela beira d’água?
breúme de águas velhas, de noites no lago, sondando o corpo da filha. — Faro, Nivalda.
E agora, por que vamos neste paraná, roçando o fundo? O francês? Onde pajé é mina? Aqui um ente, por encantamento, choca
Esse francês a bordo vai mesmo ficar aqui, com sua mochila e seu pedra um caroço, um qualquer caroço, choca, é só o pajé querer. Mas
cabelo louro? Nesta beira d’água? Fincar aqui o seu aborrecimento do até agora nem caroço nem pedra. E de pajé nem um taquari, um
mundo, mas vai? Chega daquele mundo, minha senhora. Nem suspiro, um chocalho, uma toada, só a noite com os bichos piando, e
ninguém. Nem ninguém. Aqui, sim, aqui, sim. Encontrei, meu aquele guarda-sanitário tirando do morto, que chegou no batelão, o
comandante. fígado. Das palhoças se entornava um tal luto, um não ter ninguém
— E a França? nem nada! O rio, muito em si mesmo, ressumava seus remansos, e
— Fique com a máquina. Tire retratos de sua senhora. Só me dele fugia a terra, fugia geral até onde são índios. Os uruás, e
mande um carretel de linha.
(A máquina? Um dia, abre a mala do comandante, saltam Maria Pixi
retratos de Manaus, Itacoatiara, Porto Velho, Manaus: Acariquiçáua
Belarmina, Matilde, Dulcinéa, Emília, Mercedes, Nhanhá. Uruparanã
Manaus.) O comandante espremia limão-caiana na cachaça, comia na Sapucuá
folha do remo o pedaço de tambaqui, o beiço queimava, mete a
montaria no meio do matupá, de repente o tiro, a surucurana debaixo Mirixi e os lagos de pirarucu de Macuricanã, montanhas,
da folha, foi bem-bem na cabeça, e o sonho no camarote, os gritos do cachoeiras, castanhais. Nem caroço nem pedra. Tinha era aquela
francês por entre as canaranas e a acordar com a cobra debaixo do mulher em trânsito, sentada à porta da Casa Amigável, unicamente
sovaco, de [108] quem? Dela ou do francês? A surucurana a enrolar- entregue à sua espera, intocável nas [109] suas sedas. Olhava o rio,
se no bico do peito, debaixo desta folhagem aqui sempre oculta, ai esperava. E das montanhas a noite, as velhas tribos ali acossadas
Amanajás! a cobra! acudam aquele francês coberto de formigas de vomitavam. A viajante aqui na cadeira de couro de jacaré, sozinha,
fogo, escorrendo no jirau como um camaleão morto pendurado na em busca de sua viagem, armada de solidão e espera, a ouvir saindo
vara. Apitava o vapor no paraná, este com a sua língua amarela e seus de Manaus ou de onde nunca se sabe o navio que vem buscá-la. Nem
dentes de canaraua comia já o defunto, o alvo, o louro.., apitava o caroço nem pedra. Mas a modo que debaixo dela rezavam os
vapor, eivém para a proa, era sol era chuva, o navio atracava no arco- feiticeiros? Está nos cuidados da D. Maria Jardelina da Terra Santa de
íris e de novo, lá do fundo do paraná, alvinhos, no jirau os ossos do Faro? Trespassada pelos caruanas? Chocava?
francês. E de tarde no barranco dá de frente com o gavião. Menina! Nhamundá. Ali acolá é mesmo o espelho da lua?
Deu bem de frente com o gavião? É alegria, sua arara. É alegria. Bem — O lago? O lago?
de frente com o gavião? Insone no beliche com aquele gavião Mas olha primeiro um instante esses miudinhos de beira-rio
esvoaçando, desconforme, arrepiado, sinistra alegria, “até nunca, carregando lenha para o gaiola, carregando, carregando lenha, como
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vão vergadinhos! Correm pela prancha, o pé maneiro, ágeis, curvos dentro do sono, o rio, engasgado com seus abismos, na goela de
ao peso das achas, seres de uma estranha espécie, saídos da selva de Óbidos. A posse do Intendente com aqueles bogaris no jarro cívico.
repente, astutos e velozes. Deles a voz? não se ouvia. D. Nivalda Vem o advogado: aqui em Óbidos é na farmácia do Fonseca o nosso
atirou-lhes um pedaço de bolacha, passem um sebo no ombro deles, Agora. Quer ver na parede da casa os desenhos do Príncipe Adalberto
soprem no nariz deles para que tomem um fôlego. Me deixem com a da Prússia?
beira de minha saia enxugar o rosto de cada um? Carregando lenha. O urutaí gemia, onde? gemia era aqui dentro, o seu ninho, bem
Toda noite, Amanajás? fundo, neste sossego, tão, que desassossegava fundo. O navio se
— Queres ver o Espelho da Lua? Corta um dos teus peitos, aproxima do trapiche, prepara a prancha
icamiaba, mergulha no lago e traz do fundo aquela pedra. — para o trapiche ou para que a noite, que se debruça ali na
— Amanajás, tira da mão dos meninos a carregação de lenha. beiragem maciça, entre a bordo? O farol da proa, direito na face da
Santo Deus! Toda a noite? Dá ao menos depois uni bando lenha. Toda velha avó, ilumina a maloca destruída. Nas. redes da terceira, na
noite, Amanajás? popa, quem batia os dentes de frio da. febre? O navio apitava,
Carregando, carregando lenha. Cortar o peito, que nunca lhe caçadores atiravam longe, o comandante desceu.
secasse o peito, pois tomem o peito, curumins da lenha, e pela — No jantar temos paca, Nivalda. Paca.
madrugada, toda a madrugada, aqui está, mamem, mamem. Em Porto Velho, um espanhol ele falava, feito de todas. as
Do fundo do lago subiam os curumins verdes carregando lenha. línguas; a professora queria passear na Bolívia.
— Juruti, Nivalda. — Não me levas só por causa das tuas bolivianas?
Assim de longe, visto do gaiola, era que era uma paz. tudo ali se Dizia por um ardil de fazê-lo viajar um pouco mais. acima e
aninhando, onde mais verdejante? Vá, a prancha! [110] suba o perceber nele essa mal contida vanglória de suas. aventuras em tantos
barranco, o olhar daquele um, tão de lá de dentro, a mão na ilharga anos em navio da lama. Em [111] Madeira-|Mamoré, trilho do trem,
em cima de uma dor ou do que queria e não sabia dizer, o olhar dormentes ou cadáveres? Encalha no Purus. Nem repara na corcunda,
falava; aqui e na cova, faz diferença? O ar fervia. A febre aqui é ia crescendo nele, nem na brutalidade dele contra os marinheiros nem
verde. Debaixo destes folharais o delírio. Se despenca do barranco, nas horas em que se trancava no camarote: Não estou aqui, Nivalda.
chia fumegando na maré. Morri. Arma aí fora a tua rede? Purus? Madeira-Mamoré? Acre? As
— Óbidos, Nivalda. viagens se misturam, agora desce para Oriximiná. Ele quer abrir o
A ladeirinha, chão de tijolo, macio, da pensão, o advogado fala corpo do meu pai morto, tirar o fígado do meu pai, comandante, o
num Cícero, num Bevilaqua, na palavra precatória. Dois turcos se fígado do meu pai, não deixe, não deixe, não deixe! O fígado do meu
destratam na língua deles, tocou a cometa no Forte, aqui o frade pai, comandante! O rosto da menina! Aqui no braço dela o rosto da
acordou berrando; a índia! Emprenhei a índia! Emprenhei a índia! menina, o comandante a abrir os braços e a acenar que despeça a
Aqui morreu, entrevado, o caixeiro-viajante. A velha dona do menina, o baque da prancha, o resfolgo da máquina, o estirão abo-
muiraquitã que não mostra a ninguém. Na cabeça do trapiche, o canha o navio, entra lenha, entra lenha, o outro tempo! E um monte,
advogado, cruzando as mãos, declama: o crepúsculo! E aqui por na beirada, de ninguém-sabe-o-nome e de onde vinham? Defecados
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pela selva, um monte pedindo passagem, passagem, passagem! De lavavam, batiam a castanha com aquele sol serrando as nucas. Vão
onde vinham? Passagem! Passagem! O estirão, já longe, comia os carregando os paneiros de castanha. Amanajás, a castanha? De quem?
sem-nome. E que ansiedade a dela para ver os ingleses, turistas do Os mururés cingiam Alenquer no paraná, a cidade boiando do
Hildebrand, traje a rigor a trinta e quatro à sombra. O comandante en- mururezal, o promotor público, de emboscada, se fazendo lobisomem,
grossava a voz, a arrancar da goela o seu inglês. O postal dos estreitos a assaltar as lavadeiras mais novas debaixo do trapiche, à noite. Sobre
de Breves. O postal do encontro rio Negro x Amazonas. Os macacos carregou o gaiola, fedor dos couros, redes entre cachos de banana,
pendurados no mastro. O bando de jacamins viraram o jabuti, iam cestos, baútas de folha, e por cima da lenha: De quem aquela
comendo. Se regalem com a vossa embiara, bando de jacamins, mas harmônica? Monte de periquitos, o porco foge a galinha salta n’água,
me deixemzinho do jabuti só o fígado. O fígado, sim? Contrato na falta de capim o burro tenta comer a varanda da rede ali atada ao
assinado, sim? Manaus. O jantar no Hildebrand, traje a rigor a trinta e pé dele; reclamando contra a baldeação se levanta de sua tipóia
quatro à sombra. Aqueles seringueiros e fiscais de renda sabiam molhada o cego sem guia, barbudo, ossudo, a abrir a boca como se
comer à mesa? Se o inglês gaguejava uma, duas palavras em língua fosse lançar as sete pragas, a fatal profecia. O gaiola metendo lenha,
da terra, apressava-se o comandante: E o caboclo? Prestava? Os nos- não cabia mais uma acha, carrega, descarrega, o guincho baforando
sos bebedores de chibé, matadores de bicho, pais de terreiro? sobre a terceira, enrola, desenrola os cabos por entre as cordas das
Civilização? Quando? Quando? Como a dos senhores, hein? Quando? redes, roca-roca-roca... Que aconteceu que parou? Cerração? Onde?
E aí Nivalda intimamente protestava, o marido exagerava, o marido, Em que altura? O navio no escuro rente ao verde escurão. Ainda a
às vezes, zombava dos gringos. Os caboclos? Quem mais que eles? reboque a alvarenga dos inflamáveis? Estão tocando harmônica. [113]
Quem? Ao certo não sabia o que pensava o marido ou nunca pensava. Encadea|das com a luz de bordo as aves pelo salão da proa, ali
Ela [112] meio admirava os ingleses, as inglesas, ah não! Muito brua- apanhadas. Queres comer juruti no espeto, professora?
cas, ou se assustava. Saibam comer na mesa deles, autoridades locais, Agora em Guimarães, meses ali passou, tão breve, embalada
repórteres de Mares e Rios de Manaus e Belém. Muito termo, minhas pelo silêncio daquelas montanhas do Tapajós, daquelas areias onde as
senhoras da nossa sociedade, ou não sois a prata da casa? Dos sábios marés, entre as suas sementes, deixam montarias e lendas trazidas de
que aqui se embrenhavam, o marido dizia o nome de cada um, meio tão longe, ilhas, lagos, paranás, naufrágios. Lembra Guimarães como
enrolado. quem escreve a velha amiga, com amorosa negligência, aquele
Lambendo o beiço, alagado de suor, no seu rigor, o comandante abandono com que a cidade sabe acolher o forasteiro e faz dele um
voltava da civilização para o seu gaiola e tibum! dentro d’água, nu filho. Viajava no Vitória, ia de bubuia, viu a serra azulando na manhã
com a sua corcunda, bufando no rio, era de madrugada. Os urutaís em que se escondia a cidade. Não mais estirões da várzea encharcada.
gemiam. Assim viajava uma, duas, três, sobe-e-desce o Amazonas. Desfraldava-se pedra e cor, raiações sangrentas na chapada entre
Carrega em Alenquer castanha. Desce no jirau: as lavadeiras de nuvens e fumos e de onde escorria o silencio satisfeito do sétimo dia
castanha lavavam, uma a uma, escolhe as boas, separa as podres... da criação. O velho vaticano conseguia escapar do cenário em que foi
Aquela tapuia (mascava tabaco ou o seu desprezo) era nos olhar, e envolvido, avança pelo rio, desemboca nas águas — feitas de limo?
cada um de nós sentia o arpão. Febrentas, estropiadas, silenciosas, — do Tapajós e surpreende a cidade.
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Os silenciosos pianos de Guimarães, tão silenciosos, com seus Demônio, eu juro.


panos rendados, até pareciam tocando? Dentro do rio o Castelo era — Mas credo! D. Enilda! Tome é a sua sopa antes que esfrie.
um ingênuo sobrado de aventura, estalagem de folhetim, a hospedar Quem vê a senhora assim falando, vai pensar...
caixeiros-viajantes, o fiscal do imposto de consumo, um e outro D. Enilda!
quiromante de passagem, e o doutor Numa. E as procissões com a D. — Ah, D. Quitéria, não me venha dizer que ainda não reparou
Quitéria, da Irmandade do Sagrado Coração, que sempre dizia: sou na carnação daquela boca, ora veja lá se como milho.
uma mulher generosa, a exibir a sua fita, porta-estandarte das — D. Enilda, a senhora peca! D. Enilda! Se o seu marido
zeladoras? ouvisse todo esse despautério, D. Enilda! Deus o livre! Uma senhora
D. Quitéria, sem consultar antes o seu confessor, o Frei Pio, que a senhora é, tão distinta!
hospeda na sua pensão o Professor Pekim que instala no quarto, com — Sou só eu? O rezar do Frei Pio? Põe o termômetro debaixo
janela para a rua, o gabinete de cartomante. O Professor Pekim do sovaco de cada moça, na entreperna de cada casada ali de olho
baixou uma cortina e outros paramentos. revirado, põe e mede o paludismo. É do sopro de Lúcifer. Os vapores
Batendo lata pela rua, os curumins anunciavam a novidade. O do frei, quando abre aquela boca, se virando para os fiéis na hora da
brilhante no dedo do Professor Pekim encandeou a dona Quitéria. missa, dando a hóstia? Não é o Corpo do Filho de Deus que as
— Professora Nivalda, valei-me! O Frei Pio vem me pedir devotas apetecem, é a boca do homem ali soprando nelas, lhe digo eu.
contas! A senhora não viu, professora Nivalda?
[114] Menos temor e contrição que vanglória. Consagrava a — Não, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
pensão e sua dona à visita do Frei Pio. A Diocese punha na graça de [115] — Nossa Senhora, D. Enilda! Olhe o inferno! Não fale o
Deus a estalagem da D. Quitéria. que não sente, que a senhora, eu sei, que é tão distinta. D, Enilda! O
— Professora Nivalda! Meu querubim, que será de sua pobre horror que a senhora diz!
amiga diante de tamanha visita? Que foi que fiz, professora Nivalda? — E agora vem o frei, aqui na sua casa, repreender a senhora,
Eu nunca ofendo a Deus. Eu sou uma mulher generosa. D. Quitéria? Me deixe atrás da porta espiando um instantinho, Sim?
— O Frei Pio? Aquele a quem Deus deu aquela boca? — Quero tirar um retrato daquela boca. A missa dele é sempre à cunha,
indagava a D. Enilda, mulher do Secretário Municipal, recém- com as mulheres dependuradas no beiço dele. Não é, professora
chegada de Belém. Nivalda?
— D. Enilda! Não bula no sagrado. — Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda
— Olhemzinho só para a boca daquele frei. É de frei? Aquela? D. Quitéria, em pessoa, varreu a sala, lustrou a cadeira, com
A senhora já viu, professora Nivalda? bordadinho forra o velho sofá, o medalhão de Nossa Senhora, tão ali
— Ainda não — mentia a professora Nivalda. no baú com pó e caruncho, agora na coluna, o havia de pôr o véu para
— A boca muito bela, professora Nivalda. Uma boca de ouvir humildemente a pia mas severa repreensão. Repreendida,
precipício. Daquela não pinga prece, pinga favos. Não dá absolvição, agradecia e servia o piedoso censor com um cálice de vinho do Porto
põe a perder. Deus me livre! Ali não está uma boca de Deus mas do que o cartomante lhe deixara de lembrança.
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— Por que que fui eu hospedar aquele professor Pekim e o — E no dia da procissão, depois do Te-Deum? Todo nos
secretário, meu Sagrado Coração de Jesus? Mas não vinha da Capital paramentos, com aquela boca em cima das mulheres, gritou contra o
Federal? Me folheou um álbum de fotografias e referências. E o veneno que andava circulando em Guimarães, aqueles papéis do
brilhante no dedo e atando aquela cortina e me abre a mala! Fiquei de espiritismo. De repente abriu os braços, num arranco e deu aquele
vista escura com tanto Paramento atopetando a mala! Me deu berro: Viva o Cristo Rei! Viva a Maria Santíssima! Viva a Igreja
adiantado 260 mil reis. Pessoas direitas. Ciganos não eram. A Apostólica Romana! De se ver que belo foi, foi, professora Nivalda.
primeira coisa que me disse, foi: Esta casa aqui é católica? E no gabi- No beiço do homem o mulherio de Guimarães se esgoelando em
nete montado, no meio de toda a paramentagem de suas artes e Viva! Viva! e eu sei que para o Cristo não era. Para a boca do padre
figurações, o quadro do Sagrado Coração. No que abriu o consultório, isto que sim, ele de braço estendido a acalmar as mais derretidas, a
tudo foi na maior compostura. As coisas que ele adivinhava! Pois passar água benta nas possessas. O povo de saia entrava na igreja
muito me admira! Sabendo do passado, do presente, do futuro, olhe ralando o joelho pra Maria Santíssima. Eu bem que sei a Maria
que as cartas dele? Só faltavam falar. Sim que falavam pela língua Santíssima!
dele. Eu só sei que o que aqui fez, satisfez. Mas que se há de fazer, o — D. Enilda, minha flor, vá, vá quanto antes se confessar, hoje
Frei Pio aborreceu-se. Agora espero a repreensão. mesmo, que essas suas brincadeiras a Deus não agradam. Se confesse,
— Mas a senhora, D. Quitéria, também não põe suas cartinhas a sim. Não fique cega da razão, dona Enilda, que tão distinta que a
duzentos réis? senhora é. Mas a senhora está desenfreando a língua, me anda muito
— D. Enilda, pela honra de seu marido, não me ande ímpia, credo cruz, ave maria, valha-me Deus!
espalhando... É uma coisazinha à parte. — Confessar-me com ele? É o mesmo que perder-me.
[116] — À parte de quê? Do Frei, da Irmandade, dos Sa- [117] — D. Enilda! Brinque! Brinque! E se seu marido agora de
cramentos? repente... Ave Maria! Com Deus ninguém brinca.
— Mas, D. Enilda, é só um simples passarzinho o domingo à — Mas não é, professora Nivalda?
tarde no descanso das consumições e só entre as pessoas de minha — Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
estreita escolha e que me rogam o serviço. Pela honra de seu marido... E de volta da confissão, brandindo o rosário, D. Quitéria
— Não meto a mão nas brasas pela honra do meu marido, D. mandava para os infernos o parente atrasado na pensão dois meses.
Quitéria. Nem pela minha. Toda a honorabilidade das esposas nesta Despejou-o do quarto:
cidade anda correndo risco naqueles beiços do Frei Pio. Daquela boca — Meu parente? Parente? Parente? Dente é que é nosso
sai faísca. É preciso um abaixo-assinado exigindo já-já a remoção do parente! Está faltando arroz na mesa, peste! Parente? Dente é que é
frei. Ou fazer um esconjuro, todas nós, mulheres, na pracinha: Sai de parente. Ó, peste, não estás vendo que falta arroz na mesa? Parente?
dentro desse frei, Maligno. Que a tua boca é a dele, Disfarçado, sai, Dente é que é parente!
Príncipe das Trevas. Senão, senão o estrago é grande. Que a senhora A peste era a Rosilda. A conselho do comandante, que lhe
acha, professora Nivalda? conseguiu passagem num Lanchão de Monte Alegre, fugiu numa
— Não acho nada — mentia a professora Nivalda. madrugada. D. Quitéria, perdido o seu braço direito nos afazeres da
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pensão, trazia a terrina de sopa: pouquinho de arroz? Ou a Rosilda também levou?


— Eu que sou uma mulher generosa! E o bom pago? Pois uma — Esse comandante mesmo... Me mangando... O senhor me
bicha que meti dentro de casa, com licença da palavra, nua-nua, tudo faça um cálculo, meça o grau da afronta que sofri, comandante.
o que pode ser de mais flagelada e dota banho com creolina na — Por lhe roubarem a escrava, D. Quitéria? A bichinha rompeu
fedorenta, lhe tiro os piolhos, assim.., desculpando por estarem na o grilhão, se desenfiou do seu rosário, D. Quitéria. Ou não foi?
mesa... as bichas, levo ela pra fazer a primeira comunhão. Enfio-lhe — Ah, comandante... O senhor também leva tudo na caçoada...
um rosário na mão. E o bom pago? E depois? Não ia lavar no porto Não é, professora? Mais arroz, professora?
porque era quebrada do estômago — dizia. Pois nem a rede que não Por que o conselho do comandante, o interesse, aquele socorro a
era dela, era minha, nem a rede deixou? Tudo era meu, tudo do seu Rosilda? Também generoso? A idéia do gramofone era dele, que
uso era desta D. Quitéria,, me pertencia, que ela do que me pertencia imbirrava com aqueles dobrados tocando na hora da sesta. Rosilda e
até que abusava. A corda, a corda da rede ela levou. A chinela que eu ele... Agora é tarde para saber.
dava emprestado, levou. O meu trancelim, sim, que quebrado, mas era E o Fona, o pinta-cuia? O vagar do Fona desenhando cuja,
meu. Aquele meu cinto. Madrinha, me emprestezinho aquele cinto da pintando as pedras que vendia a bordo. Lembrava as mulheres cueiras
senhora, o mais usado, sim? Eu sou uma mulher generosa, disso Deus carregando o paneiro das cujas, rompendo chuva, madrugadas, ou
está ciente e dou por testemunho o Frei Pio. E por ser, saí premiada queimando o pé no pedrume quente, lá da Aldeia, pobrinhas palhoças
com aquela cachorra no perna-pra-que-te-quero? Pois até o meu da Aldeia, entravam a bordo. Viagem que não vendiam uma só cuia.
gramofone velho? Aqui a prova, carregou ele até o pé da porta da rua, O salão de proa ficava em flor e verde dos regalos de Guimarães.
viu que não podia, que pesava, Largou aqui no soalho com a corda — Queres, Nivalda?
quebrada. Dei, dei parte na polícia não pela honrinha [118] dela que [119] Guardava aquela porção, restam umas pelo fundo do
sei... ninguém me passa a perna nos meus territórios, ninguém me armário baú, desta a tinta saiu, daquela a filha fez um caco para a
mete no saco. Aqui em casa? Eu não via? Eu bem que via e ouvia. E água do pinto, e assim, Fona, o pinta-cuia e pedrinha, com o seu
por uma comodidade me fiz de cega, me fiz de surda, me faço de violão, fazia um tanto pelo povo que tanta coisa grande tem para
palerma quando convém. Dei parte, sim, mas pelo bom nome de fazer. Naquele pintar e naquele tocar, vinha um pouco das cunhatãs
minha casa que ela quis emporcalhar fugindo. Quem com porco se que todos os dias sobem as ruas da cidade com latas e baldes d’água
mete, farelo come. Mas eu pago a precatória atrás dela e exijo que o do Tapajós. Dos trabalhadores de madeira e balata, das canoas de
meu compadre Cristóvão, o sargento da guarda, ajoelhe ela em cima pesca, batelões e caminhos que levam os homens para as cachoeiras
do milho na cadeia e lhe dê de palmatória só duas dúzias, o suficiente, em busca de castanha, ouro e pau-rosa. As garças das cuias coloridas
e tudo muito bem gratificado. voam para dentro de nós, aqui se aninham. Via cadência na
O Frei Pio me disse sim. Duas dúzias só! Para isso aqui na terra caboclinha carregando água, subindo a rua. Sua beleza triste e
tenho os meus conhecimentos e sei com quem me pegar por lá por fatigada ficou nas cujas, na melodia, na manhã em que os velhos
cima. Que paga, paga. Paga! azulejos de Guimarães se enchem de uma luz e de acolhimento. O
D. Generosa, me consiga, me rape lá na sua panela um violão parou. Das cuias e das pedras, agora em silêncio, saltam
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garças, peixes, nomes de estimação e afago, palmeiras; os poentes do Por causa daquele impossível doutor doido? Daquele doutor doido
Tapajós, Fona, pintando e tocando, sabia recolher, e nos dá esta que perdeu a fortuna se educando na Europa, cursou universidades e
sensação tranqüila de que a paz virá e a felicidade é possível. A boêmias, para ser promotor público em São Domingos do Capim,
vizinha, a cantar às duas da tarde, invariável e doce, enchia a sesta. onde dormia no trapiche, promotor em Mocajuba, Baião, Almeirim,
A sesta de Guimarães? Aveiro. Vizeu, e aqui demitido, vagamente advogando. Uma tarde
Quanto mas quanto sono! O calor nos parava o coração. leva ela pelo braço para o pé da fogueira na travessa dos Mártires e
Unicamente os esses das redes. Na rua o sol roía a; pedras e a língua lhe faz uma mesura:
dos velhos cachorros. Até hoje na palma da mão a maciez dos — Vamos, vamos passar fogueira. Estou falando em termos de
azulejos da velha pensão da D. Quitéria, janelas e portas portuguesas, alegoria, D. Nivalda. De quê? Passar fogueira de quê? De minha
a bilha d’água no parapeito, o beco empedrado de onde apontava a alegoria? Sim, de minha alegoria.
sege lenta em que viria o capitão-mor. Os sinos da Matriz Três vezes sobre a fogueira, beijou-lhe a mão, murmurou:
anunciavam caravela, notícias de Portugal. Na missa de domingo ia — Salte daquele navio abalroado, senhora. Salve-se no meu
ouvir um sermão de Vieira? Junto ao Cristo de Martius, na igreja, escaler.
escutava o naturalista contar do seu naufrágio no Amazonas. Certas À noite, dormia nu pelas areias do Tapajós no meio das laranjas
missas, novenas, procissões, lhe falavam de um burgo católico de que levava num saco ou corria pela praia revirando imaginárias
1678, vagaroso e severo nos sacramentos, nas penitências. Diante de tartarugas. Vou revirar a lua! Vou revirar a lua! e entrava no baile,
velhas casas, como a dos Porandubas, não escondia seus cuidados: ia H.J., chapéu-chile, a reclamar da música as doze valsas. Era a boca
sair agora mesmo na rede, [120] carregada pelos escravos, a Cecília? cheia de filósofos alemães, [121] reci|tava aquele soneto do recife de
As velhas casas de ladrilho e varanda abrindo sobre a caramanchel em coral, e tome conhaque e tome conhaque! e foi que naquele domingo,
flor? A elas pedia benção. Naquela porta de gonzos, forrado de suas manhã cedinho, come lingüiça no mercado, quebra a garrafa vazia à
gramáticas. o professor Jaguarema ensinava, com assaz paciência, a porta da igreja, entra na missa, ao instante da comunhão. O padre.
colocar o pronome, pondo em português as cartas dos namorados e o aquele velhinho, cinqüenta anos de ofício pelo interior do Pará, com a
relatório do Intendente. sua velha Sexta-Feira, lá na Aldeia, cerzindo-lhe a batina e tendo dele
O comandante a levava para os Porandubas, havia mesa posta seis afilhados. O Bispo, por isso, só lhe permitia aquela missa ao
tão copiosa quanto acolhedora, salas de pedra tão feudais de espessura lusco-fusco, domingo. Em casa entre suas couves e plantas
quanto liberais de hospitalidade. Do outro lado, bairro da Aldeia, medicinais, o padre socorria os doentes, benzia com folha de arruda,
doía-lhe aquela custosa igreja em obra; em torno as palhoças se mestre em cataplasmas, esquentava cuja na barriga doendo dos meni-
apertavamzinhas de pé no chão. ninhos, mandava assar a canarana, espreme o sumo, põe no sereno, e
Toda tarde dava o seu bordo pela travessa dos Mártires onde um bebe, que é um repente a gonorréia. Em fomentar a barriga de
velho alemão relojoeiro, de tanto olhar a insensível D. Berta na senhoras, podia tirar patente. Assim ganhou o apelido de Pajé Padre.
sacada, estuporou. Recorda que anotou no seu diário, jogou no rio, Também desconfiavam que era espírita e ele mesmo partejava a sua
bruscamente, uma noite. Tudo ou não foi? Tudo um pouco, ou muito? Sexta-Feira. Pois bem. Vendo o padre que aquele doutor se ajoelhava
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e já abria a boca fumegante para receber o corpo do Nosso Senhor, sinuoso e crespo como os rios no verão. Tuas mãos, misteriosas
apertou a hóstia entre as pontas dos dedos, sussurrou, bonachão: pedras, errantes, como os muiraquitãs, desejos sem destino na noite
— Mas é o senhor mesmo, Dr. Numa? Matando o bicho? em que as florestas nasciam, os rios nasciam e procuravam correr e os
Primeiro vomite um pouco. bichos nasciam e procuravam cantar. Assim tuas mãos vagavam entre
Ali mesmo, entre as velhinhas que esconjuravam e as moças as jatoaranas e as lontras, com as índias dançando a puberdade e os
que acudiam, o Dr. Numa vomitou um pouco, recebeu a hóstia, logo jacarés em torno mundiados. Oiço o grito do acauã no Nhamundá, por
se virou, empinou-se, assoou-se, ganhou o largo na direção do ordem do pajé choco minha pedra. Dos meus ovos salta a ninhada. As
mercado onde ia recomeçar. Voltando de Souzel apanha, tão fora de guaribas dançam a anunciação da noite. Venho do rio Negro, fervi
idade, aquela catapora. Interna-se no pequeno hospital onde pelas num tabacuri, bebendo aqueles venenos, marquei o tempo e a paixão
rótulas zumbia um vento que ele dizia uivante. À noite, se logo não com os nós de um ainhém que a índia cobéua me deu, uma noite, as
fechava a janela, saltava aos brados pelo corredor, cobertor em punho saúvas saindo debaixo da chuva. Das alturas de Parintins vem o
a bater os carapanãs. Foi vê-lo, levando-lhe laranjas e encontra ao pé minguante, agasalha-se entre as escamas do peixeacará de onde
da cama dele aquela bela negra alta de olhos feéricos, ali silenciosa, nascem as auroras para o sairé de Alter-de-Chão. Dançam o sairé as
catingando intenso e suado como se fosse a magia mesma. velhas índias, se cobrem de limo e fumo no lago verde, e bebem
Uma tarde, passeando na travessa dos Mártires, encontra-se caxiri. No terreiro, na casa de dona Ana, bebo o meu tarubá. Ao lado,
com ela, lhe entrega um papel e um búzio. o meu mutum de [123] crista encarnada. De repente me vejo em
[122] — Guarde, D. Nivalda, esses rabiscos inspirados na se- dores: uma aranha de boca encarnada, com duas presas, me ferrou na
nhora e nos meus contratempos. Belém, Aveiro, Melgaço, Vizeu, São perna. Dia e noite me doendo perna, coração, o mundo. Sarou assim:
Domingos do Capim e a cachaça de Jararaca, tudo isso me apodreceu. o pé do lago, bem de madrugada, faz silêncio geral, de repente como
Fígado e alma, fígado e alma. Sinto-me agora entre minhas próprias pela primeira vez em terra chora debaixo do toldo aquele verdinho de
cinzas. E olhe, aquela escura, (o irmão vende macacos a bordo) peito.
aquela escura, que viu no hospital, a crioula Sulamita? Arrebatada por Os botos de bom gênio rondam o perau dos curumins afogados.
um inglês no rumo de Arapiuns. Bebia vinho branco com japana Tuas mios benzem os caboclinhos mortos que ficaram no fundo com
branca para só ter amante branco. Penso partir, hoje à noite. Estou as montarias perdidas, ali no fundo dos lagos por não morrerem de
bebendo muito. Ou pouco? Quem sabe? Quem sabe? Minhas fome no fundo das palhoças. Não morreram subindo o Nhamundá e o
homenagens ao comandante. Parto sem ter visto a tal dança dos Trombetas atrás de balata e pau-rosa, felizes, felizes, não morreram
tangarás. Guarde a jóia mal lavrada. Não comi ovo cozido de japiim de febre e bouba como os do Lago Grande e os de Arapiuns nem
no quarto minguante, por isso nada fiz. O búzio, sou eu que lhe vou rachados de inchação, nem acordam nas meias-noites debaixo da
falando. Sigo só no meu escaler. chuva para carregar de lenha os regatões com aquele doutor na rede lá
D. Nivalda retira do velho cesto de retalhos o canudo de em cima, com o seu conhaque, lendo o livro alemão. Felizes, felizes,
papelão de onde desata a folha amarelenta: porque não ficaram tristes ao pé do aturiá e no trapiche de lenha,
No puxo da maré, a errante amada renascerá dos lagos, o cabelo sentadinhos na antiga balança da borracha, inchadinhos e tuíras, e
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tristes, e tristes, errante amada, e tristes... Ah, teus cabelos se e amadas, o corpo fechado contra febre, fome, viuvez... Quem me
estendem sobre o vale à flor da enchente, se misturam com os periatãs fecha o corpo contra as promotorias públicas?”
e os barrancos desmanchados pela correnteza, o boi urrando no curral Aqui o doutor risca o escrito. A letra corrida, as emendas
dentro d’água e da noite. Teus cabelos uma ilha de aninga e miritizal ilegíveis, o papel amarelou muito, velho, velhas as palavras aqui
e garças de repente no anoitecer nascendo dos remansos. Março e deixadas, soam como o debater do bêbedo no rio. Naquela noite,
abril desatam as correntezas com os cedreiros na espuma, lá em cima conforme avisou na despedida, o Dr. Numa avança pelas areias,
reboam surdamente os repiquetes, aqui embaixo nos rebojos, pelo gritando: Quero rever as profundezas, e entrou, com a garrafa de
fundo, o pajé mergulhão escuta a receita de Urumutum, o caruana, conhaque, rio adentro, até hoje.
que há de curar no Boim a menina encolhidinha na rede, triste, cada Molequinhos pela rua, numa algazarra, batendo Lata,
vez mais triste, nem come nem dorme nem fala o que sente, os olhos anunciavam a fita do cinema. Era também como se anunciassem a sua
vidradinhos. E te oiço na voz do remeiro com febre no furo, na voz do partida; lembrava aquele bater de lata na João Balbi noite de eclipse
canoeiro baixando as velas sob a trovoada no furo, nas vozes da da Lua. Quero rever as profundezas, o que se escutou, quem por ali
ladainha para a Senhora do Perpétuo Socorro e na voz do seringueiro passava ou amava, ou à toa ao pé do rio, ao gosto do areal.
chamando os cachorros, por onde? Já ninguém sabe, e na voz dos Desesperou-se para partir, descesse logo de Aveiro o navio do
viradores de madeira e nas vozes da febre [124] voando sobre redes e seu marido. E a esconder o papel e as palavras [125] do afogado ali
tapiris, caminhos e jiraus, o canto da febre, e os cemitérios: Basta! encravadas na travessa dos Mártires como pedras do calçamento.
basta!, repletos. Teus cabelos vão para o mar oceano, são os Queria fugir daquela cidade, das cujas, cestos, doces decorativos,
inumeráveis caminhos para o mar oceano que é o amor e a morte. Teu cheiros da terra, que lhe falavam cio escaler, do doido pelo areal
pé marcou na várzea e o açaizeiro que dá o melhor vinho, o lugar entrando no rio, deste papei que quis queimar, queimou? Sigo só no
onde o tajizeiro queimado pelas formigas dá mais flor. Teu olhar meu escaler. O búzio deu-lhe um temor, podia ser como uruá, que não
domina o estuário, como o do pássaro sobre a maré. Nem toda liamba prestava levar pra casa, jogou n’água. De H.J., chapéu-chile, co-
me fará esquecer as promotorias públicas. Felizes peixes, me contem nhaque: Comandante, permita-me esta parte com a sua senhora?
de que brincam os curumins afogados, como dançam os peixes-bois Haverá no mundo, como os de Valência, bailes tão lembrados?
sob o capim nupcial, os tambaquis tão de súbito arpoados, me contem Era uma velha casa avarandada abrindo para o quintal, mesas do bar
onde se escondem aquelas noites, onde se afogam nas lagos do Alter- debaixo dos coqueiros. No salão, aquele estrado para os músicos
do-Chão, onde? Aquelas noites tão de minha vagabundagem e de servia também de palco às sessões cívicas e de posse. O mestre da
minhas buscas, como a noite dos homens para sempre perdidos nos música tocava piano, requinta e bombo, secretariava a Congregação
balatais. Como te poderei prender, se és dispersa e vives entre os Mariana e administrava o Cemitério. Chegava, pontualmente, a
elementos como a semente e a morte? Fica de ti no meu tormento a Honória, alta, pálida, os olhos machucados do serão. Ia sentar-se, soli-
sombra das mortas auroras. de Alter-do-Chão ou quando morre o tária dama, rente à porta da sala de jogo. Dentro de casa, que caía aos
marabaxo e sobe pelo tambatambatajá o suspiro do Urumutum, o pedaços na esquina, vivia costurando, coçando a frieira do pé no chão
caruana. As mulheres se enrolam nos teus cabelos para ficarem belas de tijolo. A mãe, a ocupar-se lá dentro com um neto, nunca aparecia.
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De instante a instante: Cadê o Lionel? Não deixa o Lionel no sol. um cochilo, sem um misericordioso, nem mesmo o Cobra Prenha, ali
Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel? Não deixa o Lionel no naquele suplício, toda a noite. Dá pra carregar um navio, o croché que
sol. Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel. Cessava a voz, os ela faz sem nunca desistir, no seu trono de rainha de chá de cadeira.
ruídos lá de dentro, voltava a máquina a coser o pano e o silêncio na Melhor assim que o Cobra Prenha. Pois me cubro de lantejoula, só
sala. Atrás de Honória entrava no baile a irmã, a Davina, miúda, a vou ao clube quebrando tigela, disfarço as pererecas da cútis, empôo
sobrancelha arqueada, sardenta, as pernas tortas, ali cerimoniosa, as espinhas e a lepra da costa, puxo de lá de dentro o colo, faço uma
meio assustadiça como se fosse a primeira vez que ia ao clube e desde figuração do peito com o olho de boto dentro da medalha, me benzo
os quinze anos a um baile nunca faltou, sempre bem comportadinha, ao entrar no baile, distribuo os meus olhares. Quem que vejo?
na sua cadeira cativa. Fossem vê-la junto da irmã, cosendo cuecas, Aquelas caras de papelão? Também que rapazes! Ah, Guimarães! Ah,
cortando a unha do pé: Era aquela boca apimentada, nomes, gíria, Guimarães! Rio Tapajós. me arranja uma bruta enchente e engole isto
anedota, apelido nos outros, arremedando o próximo, contando como com a Diocese e tudo!
se levantou da mesa o Cobra Prenha, larga o copo no banco e volta e Mestra em penteados, Davina cobrava pouco, à custa de soltar,
senta a bunda em cheio na boca ido copo, haja fazerem força para entre as íntimas, carregando na tinta, o que via na cabeça das suas
arrancar daquela bem [126] fornida bochecha os cacos do copo. Era freguesas, daquelas mais titis-de-galinha, a tal que encarecou e usa
um doutor local, traçava o seu latim, cheio de linhagens, espichando postiço dizendo que foi fumaça no [127] cabelo... Davina, tem dó, dá
suas raízes de família até a fidalgaria portuguesa conforme seus um descanso à língua. Como puxas no preço do teu penteado,
pergaminhos. Tinha uma coleção de solitárias conservadas em álcool. pequena! Corria a desinfetar as mãos no seu cheiro de garrafa, mas
Quem tem sua solitária, me chame que eu tiro e conservo no meu credo! axi! tamanhas moças! e ali estão elas no baile etc, e tal, por
museu. O seu cartão: fora muito enfeitadas e estratadas, pávulas dos meus penteados.
Quanto ao seu cabelo, passava o pente, joga a crina pra trás e pronto,
Dr. Cândido Belarmino seu costume, não se deixava pentear, sim que às. vezes uma fitinha,
Intelectual uma flor. Este meu desalinho é a minha elegância. Trazia ao peito o
seu cacho de jasmins, agora no salão, muito respeitadeira, seca para
Ao sinal do bombo abrindo o baile partia o Cobra Prenha a tirar fumar, mas aqui em público? e assim meio vexada era mais por fugir
a Davina. Demônios, se queixava ela ao pé da máquina, no dia do Cobra Prenha que a caçava e em pleno foxe:
seguinte, a mirar no espelho as sardas e as sobrancelhas, e logo a — De Quintiliano, já ouviu falar?
acender, aqui no muito reservado, o cigarrinho, pois o meu primeiro — Quem, Dr. Belarmino? Aquele seu Quintiliano meio coxó
cavalheiro é sempre o Cobra Prenha? Só ele só que me tira o selo do que abre cova no cemitério, o coveiro? É, Dr. Belarmino?
baile. Toca a marcha da despedida e lá me vem o coleciona-solitária — É o que eu digo. O mal de Guimarães é a sua falta de letras.
fechando com chave de ouro a minha bela noite no Valência. Isso não Deixa estar, deixa estar que hei de fundar o meu Liceu.
é pior que chá de cadeira? Preferível o croché da Jesuína Almeirim no Coibida na mão do cavalheiro, Davina queria coçar-se, peguei
seu vestido parece pano das bandeiras, emparafusada no assento, sem comichão desse velho? Vá ver que é sarna, cera! cera!
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D. Nivalda, olhando as duas irmãs no salão, via-as lá na casa a minha língua de pirarucu ralando as que tomaram o meu lugar lá
delas meio escura e suja com aquela estampa da parede escalavrada. dentro do salão. Tudo me sai virado. Que foi que aconteceu, que-que
Davina, os pastora e suas ovelhas na olhos no vazio, apanhava o se deu no mundo que eu me gerei na barriga de minha mãe, e logo em
abano, se abanava, se abanava, atira longe o abano: Bosta! Que faz Guimarães! Ó mamãe! a culpa é da senhora, me gorasse... me
nessa parede essa pastora, essas ovelhas? Chega. Ó calamidade! gorasse... Ao menos em criança tirasse três pontas de cipó tracuá,
Davina! ralhava a mãe, sempre invisível, a voz não sei onde, às fervesse, lavasse nele a a minha perna pra desentortar um tiquinho,
voltas com o Lionel, uma voz apagada, muito solitária, como se fosse ah! Também!
apurada no bater daquela bigorna do ferreiro. D. Nivalda, a senhora precisa de uma lavadeira? Posso pentear
— Vá tapando as oiças, mamãe. O baile do Valência não dá nem que seja uma porca-espinho num buraco de Belém? Não tem
nem dez réis de marido. Ficar no trapiche vendo navio pranchear e quem lave a bordo as escarradeiras dos passageiros? Aqui estou eu!
despranchear ou à espera do baile das flores pra ser tirada pelo Cobra Aqui estou euzinha!
Prenha? É me passar por sem-vergonha e sem-vergonha sem os E no que ia arrancar a estampa, já lhe deu pena, sacudiu a
saldos da [128] sem-vergo|nhice. Minha cruz é continuar honrada, ora cabeça, soprou a poeira, uma folhinha de 1916, 16, [129] coitadinha
já se viu! Mas a donzelinha saçariqueira fica pra semente? O da mamãe, coitada, tem cortado uma volta, aquele ano da viuvez dela
assanhamento dura uns cinco anos, o meu prazo escoa. E eu fiada nas e da nossa orfandade, fique ai sossegadinha, pastora, fiquem no pasto,
cartas do tal Pekim, aquele embusteiro, ah, meus cinco mil réis! Em ovelhinhas. O que é preciso é avivar as cores, vou chamar o Fona.
que mais que vou me fiar? Não tem conchavo que dê certo. Mas filha Mamãe, me atirezinho um naco do seu migado, me deixe aqui dar um
de Maria que não vou ser, abrir meus podres no ouvido do frade, trago já que em público é muito feio, oh, tudo que se apetece em
agora isso... Pela honra da firma é o pelo-sinal da pia e na hora de cair Guimarães é sempre muito feio, demais feio, merda para a Diocese.
na rede. Olhe que tenho me fiado! O prêmio é aquele par no Cale essa bigorna, ai, seu Adamastor!
Valência? Um dia... Um dia a donzela se enfia entre a carga dos A irmã em silêncio, tesa, virava a máquina, pescoço duro,
inflamáveis na Alvarenga e tudo salta pelos ares. Em vez de dar no costurando, a esperar o delfim que virá buscá-la. No clube, aquela
vinte, fico neste vinha-d’alho, aqui defronte dessa pastora de mentira, estampa, à altura de sua experiência de salão, a dar com
de onde tirei minha fantasia de carnaval de há três anos, dessas circunspecção e mestria o seu primeiro passo na abertura do baile nos
ovelhas de papelão? Aqui nesta cidade tem uma rua dos Remédios braços sexagenários do Capitão Fonteneles, o Coletor Estadual,
onde não se acha um pé de sabugueiro, é um lixaral, um foco! Tem membro da sindicância. Nos intervalos, o Capitão ia lá fora atrás do
uma rua da Misericórdia onde mora o seu Benigno, este não dá um coqueiro tomar rapé e livrar-se de seu numeroso vento. Honória
gole d’água a cristão, contando toda noite o dinheiro que guarda e aceitava o Capitão como se aceitasse um par de França. Que linha,
acumula na velha burra. Guarda nota que já não circula mais. É assim. abrindo o baile! E que competência no vestir, no deixar-se guiar pelo
E assim vou penteando as piolhosas, ouvindo o seu Adamastor bater a trôpego cavalheiro, ao sentar-se apanhando o vestido, como ninguém
bigorna entra-e-sai ano, a ferrugem cobrindo o meu cadeado, com em Guimarães, num saborear os seus feitios ali nas outras, tão dela
pouco estou coçando o meu caruncho no entulho daquele sereno com aqueles vestidos de baile, domingo na praça, procissão, dando-lhe
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fama e freguesia. Mas ai! o que era melhor, nunca vinha, nunca vem? mais, aprendo a bordar. Exibia pelo salão a sua aliança de dezoito. ia
O delfim? ao trapiche, praça e comércio, com o letreiro na testa: Estou noiva,
Davina, para fugir ao Cobra Prenha, escondia-se no camarim, estou comprometida, vejam como sei compenetrar-me. sem meter-me
como dizia, o reservado às damas, à espera que uma das senhoras, a besta como a Sinhá de Aragão que de todos se arredou, engaiolou-
com o marido no bar, a chamasse para uma cerveja. Entravam as duas se, com o rei na barriga. A irmã tinha uns olhos graúdos, rajados,
Pantojas. Não faziam os vestidos na Honória e sim na D. Vitalina da cheios de pasmo, dançando sem cessar com um aflitivo afinco e
terceira rua, muito achacosa: Esse teu vestido, Ambrosina, me Custou sempre a seco sem um licor, um copo d’água sequer um instante no
uma pedra no rim. E tu, Elvira, tua saia de cambraia me valeu este reservado das senhoras, sem perder uma, aplicada ao baile como uma
catarro no peito. Ambrosina, a mais velha, já trazia uns longes de titia serviçal. E entrava a Geltrudes, rotunda, sem pescoço, cara chata, a
menos no rosto que nas maneiras, cobiçada à meia distância pelo deslizar no salão com toda a sua fluência, uma pluma, diziam os
irresoluto Juiz que recém enviuvara. Contavam da secreta paixão dela rapazes, uma sílfide enchida a gás, dizia o doutor. Numa, sufocada
por um Frei Praxedes que abalou para o Xingu a converter índio. Sem nos moldes da Honória que não sabia mais como conter aquelas
nunca realçar-se nem apagar-se, ia mantendo com jeitosa discrição e banhas. Fazendo exame para [131] professora interina, com onze
[130] fideli|dade a sua paixão pelo missionário e o seu pendor pelo erros no ditado, foi nomeada. Devorava pastéis no bar com uma
Juiz. A irmã, essa, entrava no salão como enfurecida, rosto trancado, gulodice festeira, tirava um momento o seu pequenino pé do sapato,
coando dos olhos verdes a sonsice e o fogo. Dava-se ao cavalheiro certamente para dizer: Debaixo destas banhas olhem o pé, este é meu,
com um ar de recusa e enfado, a cara amarrada, os olhos verdes de não é bem da Borralheira?
banda, atolando-se no rapaz que logo errava o passo, perplexo, Neste momento, entra no salão a Nair Camacho, longo vestido
temendo a sindicância do salão. E ela, testa franzida, ciosa de seu de gaze, braços nus, costas nuas, o melhor penteado do baile, Davina
dever de engatar-se no homem e desdenhar dele, sem trocar palavra, a penteava de graça. Era cega. Na sua cadeira, puxando conversa com
ali atochada e com toda a surda arrogância da família de quem era, os as vizinhas, sorria sempre. a reconhecer, no tocar a mão, um por um,
Uchôas, tronco de monsenhores de Belém e desembargadores de os rapazes que a vinham tirar, tão satisfeita, macia, no braço do
Manaus. Também estudava para catequista. Com uni leve desvio na cavalheiro. a envolver o salão com o seu olhar defunto. Carregando os
espádua, a cicatriz no rosto, um tumor sebáceo que a fez ausente do seus estofos entrara a Hildebrandina, imponente de feiúra tão.
clube vários meses, chegava a Lucila Feitosa. Durante o baile, trocava proporcionada em todos os traços que a faziam tão feia. por isso saía
sinais com o clarinetista. Por ter tomado fita recente na Pia União ia dela uma espécie de beleza. É a vez da Romilda dos Pinas, cara
dizendo, bem agarrada ao par: Achei em Jesus o meu caminho. ralada, a bacante, como dizia o doutor Numa, ardente no dançar e
Chegavam as Lima e Silva. A primeira trazia na medalha o retrato do profunda no beber. Boa noite, D. Nivalda. Era a Jacira, franzina,
noivo ausente. Quando o casamento? Era sempre no fim do ano. Ali a exagerando a fragilidade, a dizer pelos olhos e pelos gestos: Protejam-
noite inteira, muito noiva, nunca dançava, acenando não aos me, protejam-me, que sou uma vítima. Apaixonada pelo noivo alheio,
cavalheiros, a exercer publicamente a sua obrigação de noiva, olhe na hora em que este ia dizer o sim a outra ao pé do altar, Jacira
nas minhas mangas compridas. Me pinto? Nem Davina me penteia irrompe em prantos gritando: Tu me fizeste mal, Coriolano; tu me
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fizeste mal, Coriolano, me desencaminhaste, debaixo da romanzeira oh oh de ternura e surdas pragas. As três pareciam dizer: Digam mui-
do quintal, tu me és devedor, Coriolano! Coriolano! A noiva desmaia- to obrigado pela nossa presença nisto. Isto não é a sociedade que
não-desmaia. arranca o véu, rompe a grinalda, igreja porta afora. sonhamos. Saindo do cartão-postal, numa aparição estudada, a
Quanto à desencaminhada, submetida a exame, inteira-inteira. E ago- Ivanilda num vestido de tafetá, o rosto compassivo, um ar de
ra tão frágil, sempre o ar desiludido, nos braços do par efetivo, o resignação como se agora mesmo escutasse o que diziam dela, que só
Coriolano. namorava homem casado e isso lhe dava certa auréola, a convicção de
Aproximava-se o Dr. Numa, com o seu copo de conhaque: que era em Guimarães a incompreendida. Um vernizinho nessa
— Repare aquele rosto. É uma cabocla? A mãe índia? Mais menina e ela poderia sustentar uma conversação comigo, dizia dela o
parece da Polinésia. Como se viesse pelos fundos do Pacífico e dos Cobra Prenha. Ivanilda, afetando languidez, fazia-se mais pequenina
Andes e boiasse precisamente aqui no meio do salão. Tem quinze no braço do ruivo doutor da Febre Amarela. O médico, entre os da
anos? É o primeiro baile? Vejo nela as meninas que amei na sua roda, contava dos exames de ânus que fazia das [133] senhoras.
adolescência, sobretudo as que [132] sonhei. Quero guardar para Ivanilda ali se agasalhava como se protegendo do mundo. Tu não me
mim, intacto, perene, o encanto dessa menina. toma o meu marido, safada, era o olhar da senhora dele na cadeira,
Com essa tirada, esvaziou o copo, um passeio entre os seguindo o par pelo salão, a sorrir para Ivanilda, as duas tão amigas.
coqueiros, convida a bacante para o bar. No aniversário do clube, Ivanilda recitava a saudação escrita pelo
Num rumor de argolinhas, colares, braceletes, brincos e fitas, Cobra Prenha que discutia este advérbio, aquela variação pronominal
caudas, leques, barbatanas e risinhos, chegavam as Munizes, irmãs e com o professor Jaguarema. O gramático pontuava a medo, cauteloso,
primas, uma penca, tiradinhas da roseira; faziam o lastro nos bailes do para não ofender o latinista. Nas festas lítero-cívicas, Ivanilda era
Valência, muito oferecidas, bastante faladas no trapiche, por serem indicada pela Diretoria para promover as representações. Era o bom
tão novas sempre debaixo do olho da sindicância. Filavam sorvete aos gosto do clube. Tudo assumia com gentil contrariedade, uma risonha
caixeiros-viajantes, vinham ao baile muitas vezes sem jantar, já no compaixão por aquelas que não tinham os seus dons, a sua cabeça.
almoço comeram escasso. Dançavam com bastante fome. Tudo aquilo Meu Deus, eu não sou insubstituível. E quando eu morrer? E se
é fiado e no calote, murmurava a Honória doutro lado, olhando o acudia no confessionário a contar de suas súbitas vaidades, seus
cardume. Acabava o baile, corriam as esfomeadas para o laranjal da impulsos de breve rancor e desespero ante as calúnias que lhe
Chiquinha Pipira onde amanheciam devorando laranjas. atiravam. Agora, D. Nivalda espanta-se: Mas a Sinhá de Aragão no
Agora é a vez das moças ricas, entravam por cima do ombro, baile? Desfeito mesmo o noivado? Exato que aquele passeio a cavalo
ostentando o comércio do pai, uma o curso de estenografia e pelas roças deu motivo ao rompimento? Um doutor de Belém aqui
escrituração mercantil, a outra o pulmão fraco em busca dos ares do passando dançou com ela no Valência, namora sete dias, pediu. Sinhá
Ceará e a terceira os seus três cachorrinhos de raça que invadiam o de Aragão ficava no peitoril da casa de azulejos, dominando o
salão, querendo pular no colo das moças, atacavam a música, trapiche, a sorveteria, as catraias e o sol que se afogava noutra banda.
ocupavam o reservado das senhoras; a empregada da família leva de Lá está a noiva, diziam todos, como se por toda Guimarães fosse a
volta na corrente os três anjinhos, o sereno abrindo-lhes ala entre os escolhida para semelhante noivado. Vai casar com um fino moço, um
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doutor de Belém. Guimarães numa sussurrante expectativa por aquele educado que repugnava, dizia a Davina, as gentilezas dele são de
casamento. O Valência, embora perdesse a sua mais formosa dama, embrulhar o estômago. Mas Davina não escondia o seu respeito pela
orgulhava-se, como se mandasse lavrar em ata o ter propiciado aquela moça: Como enfrenta! Aqui dentro e o sereno, é preciso raça. E todas
noiva, não havia outra em terras do Baixo Amazonas. Sinhá de nós debaixo do pé dela. Já um pouco tarde, chegava a Ritinha
Aragão, no que se vê noiva se encheu de vento, rompe amizades, Almeida, o olhar vidroso, a voz embuçada. Taciturna, sorrateira, sabia
corta o bom-dia a qualquer um, não mais o pé no clube, sair era só à colear a cintura, rara em Guimarães, sim que a perna um pouco
missa com a mãe, apurando a soberbia e a formosura no quadro de piririca. Rodava, só, na pracinha, faixa cor-de-rosa, apertando ao seio
sua janela, lacrada no seu noivado. Guimarães sem saber se dava o livro da missa. Constante ao confessionário e ao trapiche, com uma
razão a ela ou sufocava os ressentimentos. Sinhá de Aragão, no especialidade: se agarrar no escuro com os pilotos. No baile,
pouquinho que saía, [134] era tão evitando a cidade como se receasse reservada, obscura, confiava-se ao par que a descobria, sempre um
a peste, o mais que depressa no peitoril, intocável, no êxtase de seu forasteiro, e ia dando suas [135] licenças sem nunca dar na vista, nas
noivado. escalas do permitido, o mais possível longe do sereno. Nesta curva,
Uma tarde de sábado, a cidade sobressalta-se: Sinhá de Aragão nesta área mais à feição, favorecia a face, num repente virava o rosto,
a cavalo? A caminho das roças, subindo o platô, a cavalo, montada a entender ao cavalheiro que dado não foi, nem sugerido, fez que
como um homem, a cavalo. Como explicar? Como entender? tropeçou para apertar um pouco mais a mão do homem, fingindo um
Arrebatada por um centauro, dizia o Dr. Numa, vamos ver o deus que sobressalto. Voltava ao seu lugar, sem falar com as suas vizinhas e de
vai sair dela. Já à noitinha. a cavalo, voltava das roças a Sinhá de lá de sua obscuridade, mordia a ponta do leque, ávida para ser de
Aragão, defronte de casa, apeia, mas era? Dias depois a carta, novo descoberta, e de repente, sem mais nem menos pedia ao irmão
registrada, afirmou o agente do Correio, desmanchando o que a fosse deixar em casa onde ficava contando a coleção de
compromisso. Diziam que até fotografia da moça a cavalo foi santinhos ou a tomar caprichosamente o seu custoso banho de cheiro,
entregue em mão ao doutor, as peripécias daquele brusco passeio às dentro da tina, desfazendo com o penteado mais um baile do
roças tudo debulhadinho. O doutor: Pois case com o cavalo. Como Valência. Lá fora, defronte do clube, nas duas janelas do salão,
explicar? Como entender? Quem desmancha este novelo? Quebrou aglomerado e burburinhando, falado em todo o Baixo Amazonas, o
seus cadeados, por quê? Por que de sua redoma escanchou-se no crespo sereno de Guimarães, na maior parte velha geração da
cavalo? Voltavazinho agora ao baile, tão de repente dada, catando sociedade, casadas, veteranas no mexerico, laureadas no ofício, a
cumprimentos, a dirigir-se a Honória: Amanhã passo lá, ver um virago que apalpava coxa de moça, tudo gente de primeira, compactas
feitio, sim?, coisa que nunca mais fez, virava a cabeça na janela solteironas ali, no posto fiscal, vorazes e inapeláveis. Por efeito de tal
quando passava a costureira. Ali no meio das moças e diante do sereno, o Valência amargava crises, dissenções graves, quedas de
sereno, tão inesperada, toda devolvida, a afetar naturalidade e diretoria. Em muito baile os diretores mandavam distribuir entre
regozijo, aqui estou eu, diretores do Valência, a vossa melhor dama, aquelas megeras e palmatórias da cidade um agradinho de doce,
aqui estou, colegas, vos tirando da boca o melhor cavalheiro. E chocolate e guaraná, o que só servia para afiar o olho e a língua do
aceitava a corte daquele caixeiro-viajante besuntado de etiquetas, tão sereno insubornável. Entre as solteironas, avultava a Sinhoca
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Ervedosa, cara de holandesa, a sustentar os dois aríetes, como dizia o diante do rio e do inesperado transatlântico que passava, indiferente,
Dr. Numa, e que eram as mamas formidáveis, as mais eretas de meio fantasmal, rumo de Manaus. Outras a ouvir missa do galo
Guimarães, de bronze pareciam, eqüestres, encouraçadas, a virgem sentadas nos bancos do largo, comendo doce, o minguinho trançado
dos peitos de ferro, dizia o Dr. Numa, a bovina donzela, com aqueles no do rapaz na sombra. E aquele carnaval? Um certo conhaque fez o
ubres, abastecia Guimarães de todo o leite da maldade humana. Seja comandante piruetar no Valência que nem ninguém. ganhou
por pavulagem ou implicância ou aferrada ao detalhe, com os peitos subitamente fama de bem bom folião; foi curta a in— fluência, se
assestados sobre o salão, serenava a binóculo. recolhe ao camarote numa ressaca selvagem. No trapiche, D. Nivalda
E as moreninhas da Aldeia, mas tão bonitinhas, botões de rosa recebia a lata de lingüiças preparada pelo seu Bezerra lá da Coroa de
da arraia-miúda?, perguntava o Dr. Numa. Por que proibidas no Areia e aquele doce de cupuaçu que a D. Mundica fazia, lá na ilha
Valência? Ofereci-me àquela jovem negra para trazê-la no meu braço Daquetá, misturando ao doce os tão tamanhos sustos de saber, sentir
ao clube. Ofereci-lhe vestido, [136] adere|ços, perfumes, ou viesse que [137] o Amazonas vinha comendo devagarinho devagarinho toda
mesmo com aquele seu almíscar fabuloso. Sei o meu lugar, me & ilha.
respeite, me respondeu de cara braba. É verdade que barrariam na E que terá sido daquelas enfeitiçadas do Lago Grande Como se
porta. Sim, sim... Aqui no clube, negro só entra para varrer o salão, debatiam, a cabeleira em cima, desnudas. Vinham do Lago, do Lago
carregar as bebidas para o botequim. No mais não convém. Vedado às Grande, tiveram o pulo, flechadas do bicho, todos diziam, e a Cidade
moreninhas da Aldeia tão bonitinhas. Vissem a negra repelindo o meu ia ouvir os ais, suas convulsões. seus delírios. Aquela via onça preta,
convite! a outra o homem com rabo. Vinham do Lago Grande. No poder do
Assim conversava o Dr. Numa. D. Nivalda lia nos olhos meios pajé, saltavam dentro da rede como botas. Que é que estava
dormidos do cavalheiro: Não quer mesmo seguir no meu escaler? Já incorporado nelas? Quem retira delas a flechada? Tiveram o pulo.
lá estava o Cobra Prenha arrancando do bar aquela indefesa. Eu reino, Jaime!, gritava uma. Jaime deu o pulo nela? Chamassem o Pajé
D. Nivalda, eu reino... Não demora vomito ali mesmo no ombro dele, Padre.
cochichava a Davina a amarrar a calça no camarim, com um súbito Talvez a cidade ande mudada ou não a reconhecia mais, por que
querer chorar, ou rir de si mesma, sabia? terá de reconhecer-me?
D. Nivalda — chovia sempre — recompõe o baile, os bailes, Agora com esta chuva, bom ouvir aquele silêncio dos pianos, e
todos misturados, este naquele, desfeitos, refeitos, perdidos para o outro, seis da tarde, quando cessa a bigorna. Volta àquela noite em
sempre, achados em sonho, visão de chuva e de viúva, repleta de que viu a lancha partir, branca no rio escuro e rápido, como se fosse
moças, que aconteceu a elas, que fim tiveram, quantas casaram, em busca do Dr. Numa. Tudo tão secreto, tão dela! Não será
quantas no sereno, quantas na cova, onde os bailes do Valência? Guimarães ou só o meu fantasma pela cidade, nas ruas de pedra e
Mas tudo recomeçava, sim, outros bailes, outras debaixo do sono onde não ficou um vestígio dos meus passos? Aqui no peito,
laranjal, outra jovem negra proibida, vedado ainda às moreninhas da estás intacta, sim. O comandante, puxando sapiência, aponta a pensão
Aldeia? E são novas mocinhas girando na praça, girando em torno do do Castelo cercada pela maré:
coreto, dos fícus, em torno dos bancos, da adolescência mesma, — Lembra ou não lembra Veneza?
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Lá está, esculpida em acapu, a velha preta vendendo canjica. mesmo conhaque, haviam alterado as escalas, entrando num paraná,
O banho de curumins no Tapajós. Enche a moringa, carrega o saindo noutro, como se tudo dali em diante já não tivesse rota ou fim.
pote limoso, rola o barril d’água para o banho da velhinha entrevada. Subiam até as nascentes? Iam lançar o navio nos balsedos? Os dois
E aquela subida, em junho, tempo em que as pirapitingas, bem boas disputavam o conhaque, ou a mulher aqui trancada no camarote? A
não estão, pois comem louro e folha da paricá. Em que rio há melhor guarnição se agitava como se quisesse precipitar-se sobre a porta do
peixe?, indaga aquele frei perna-de-pau que bebia cana, a barba camarote. Apitando, soltando vapor, o gaiola ia-que-ia enfiar-se no
embebida de cana, babando no breviário? A pirapitinga, no banco da barranco, o piloto carrega o calhambeque para outro lado, desvia da
canoa, tinha as escamas prateadas. O frei: Ela, quando encrespa as ilha, evita o pedral, o desrumo, a catástrofe. Este outro paraná
escamas? Está guardando suas ovas rio abaixo. entregou os bêbedos a um afluente escuro e sem sonda.
[138] Sem mais nem menos aquela discussão no jantar, se [139] — D. Nivalda. Saia que é uma noite no Paraíso. Dos
Carlos Magno era ou não era. orvalhos do Éden nasceu este rio. Bebemos do rio.
— Um grande homem? Não era. Não respondeu, os olhos na vigia, O rio rebojava com seus
— Era. alambiques pelo fundo. Já de luzes apagadas, bebendo longamente
— Não era. Um analfabeto. naquelas águas, o gaiola desembestava por estirões e furos.
— Bem. Me deixe ver primeiro o dicionário. Foi diminuindo a marcha. Ofegava, esfalfado. Sem lenha’?
Nasce na Ordem Terceira a única filha, Eleonora, a primeira Com os peixes na bebedeira, ia de bubuia no rio. Agora esbarrou. Vai
dentição em Manaus, a admiração geral, Oh, tão ainda do peito e tão a afundar? Um banco de areia? Tudo se calou a bordo.
bordo, contezinho suas viagens, ó viageira, estudando o ofício de — Vamos todos dormir nesta areia, ao pé deste pau-d’arco,
piloto, vai herdar o leme do seu pai? Assim a bordo, mulher de comandante. O navio tem que dormir, bêbedo que também está.
comandante, mãe atrás da filha, seus espantos, sua obediência, seu Ela se guardou no camarote, a luz não acendia. A tripulação
cerimonial, a senhora é também professora?, escutando as ordens do dormindo. O Dr. Numa? O comandante? O navio dormia. Só os
marido e com a filhinha no portaló. bichos lá fora sacudiam o escurão. O dia, ai que nunca mais! Quanto
Subindo rios, rios descendo. Aqui esta passagem, vale a pena? rio, naquela vertigem, correu o gaiola?
Não lembrou antes, por quê? Por que, pedaço a pedaço, aquele tão — Não desce no meu escaler?
fora de propósito, o Dr. Numa? Ou efeito de uma noite de febre, por Dr. Numa na porta do camarote, sol alto, maré alta. o navio de
demais só, afligida sem motivo, ou quase culpada, espiando pela vigia fogo aceso, sinal de saída no mastro do traquete.
aquelas trevas de água e mato? — E o meu marido, Dr. Numa?
A bordo o Dr. Numa com o seu copo de conhaque, o livro Indagou como resignada, agora entregue àquele novo comando,
alemão, rede atada na popa, o gaiola subindo aquele afluente no mesmo instante em que o marido lhe traz o café. Foi? A febre? O
desconhecido, brusco retorcido de estirões e ilhas, um rio de outras terror? Entravam no Amazonas.
eras, as margens, sacudidas de bicho, com seus beiços de pau na Viu no marido um capitão corsário, seus marinheiros no ferro, o
lama. Ao cair da noite, já os dois, o Dr. Numa e o Amanajás, no faz-e-acontece na linha, fino no afundar e no ganhar o seguro, águia
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regatão, retarda a partida em Monte Alegre para terminar o os cachorros ladravam contra os urubus, aquela boca de maré sugando
relancinho. E guardando, por orgulho, aquela suspeita contra o Dr. as covas mastigando o cemitério, O gaiola descia.
Numa... Como se tivesse provocado aquela viagem para atirar o Chega em Belém, desembarca o comandante, chamado à
doutor nos balsedos, com a garrafa de conhaque, o livro alemão, o Direção, são os tantos cumprimentos, entra para a Superintendência.
escaler. Superintendente. Trazia de Solimões para a Virgem de Nazaré aquela
Ali no camarote? Os guardas fiscais vinham buscar o remédio arara azul, arrematada, no leilão do arraial, pelo inspetor do Arsenal
que os tornava cegos mudos surdos. Na ausência de D. Nivalda, que de Marinha. E como dona Nivalda continuasse professora, o
só ia sabendo aos bocadinhos em Belém, ou adivinhava, cunhatãs do Superintendente:
estirão saíam do camarote com [140] um corte de chita debaixo do [141] — Agora cumpre a promessa. Deixa o lugar. Uma banana
braço e um corte de sangue debaixo da saia. para a instrução pública.
Daquela pequena de Sena Madureira? Bateu a história em — É gosto meu, Amanajás.
Belém, meses depois, trazida aos pedaços. A pequena de Sena — Casei-me para ter mulher em casa ou na rua?
Madureira, O marido dela trabalhando na fronteira como soldado, Em casa entre as fronhas, criadas e as altas horas em que
acabou-se com beribéri. A mulher caçada de cima do jirau pelos entrava o comandante, batido de champanha, rameira e jogo. Escoam-
machos. Embarcou já barriguda, variando de febre. se aqueles anos, o inglês cismou, pegou:
— Tome o quinino. Tome. Vou-lhe mandar depois o doutor de O Superintendente metendo a mão? Queria partilha dos nossos
bordo? Entre. roubos? E lá se foi rampa abaixo o nosso Amanajás.
— Mas credo, comandante! D. Nivalda viu de perto aquela corcunda. Os credores cercavam
— Mostre o pulso, deixe lhe colocar o termômetro. Use esse a casa. Veio o leilão. Os colegas do comandante enchiam a sala e só
Cinto, enfia essa volta, e este tricoline tem três metros. Mas me deixe era a zombaria daqueles lances. A carta anônima: Mas você,
ver sua febre. Amanajás, tão pirata a bordo e no escritório e só com trastes velhos
— Mas credo, comandante. Mas o senhor, comandante! em casa! A tromba engrossou, saco de pedras nas costas:
O gaiola descia. Diabo! Ainda mais essa! E este grito abafado, — Mas, Nivalda, já podias ter arrumado de novo o teu lugar.
escumando no peito, na goela. Que faço deste lençol? Atiro pela Estou a nenhum, não estás vendo? A minha única porta aberta és tu.
vigia? A careta de choro, a mulher esvaindo-se, o gaiola descia, Acabei.
diabo! diabo! Marinheiro! Marinheiro! Entreabre o camarote, logo Coça a corcunda, estira-se na espreguiçadeira de fundo puído,
tranca-se, diabo! diabo! Tinha de ser. Não é nada. Engole o teu grito, lendo nos jornais o movimento marítimo, a pendurar na parede e na
rapariga. Tome um pouco d’água. Está com o comandante. Desem- corcunda as fotos de seus navios.
barca no primeiro porto de lenha, levada pelos lenheiros ao tapiri Dias e dias, a Palácio, de chapelinho e sapato roído, o bico
rente d’água, onde lhe puseram a cera na mão; faz o vestido de murcho, aparecimento de cãibras, e espera, e espera, e espera. Venha,
tricoline, põe o cinto, a volta, levada na rede ao cemitério beira rio, amanhã. Apareça, terça-feira. Venha sempre. Ou lhe serve São
debaixo do aguaceiro. A maré solapou o barranco, os botos sopravam, Domingos do Capim? Bagre? A vaga em Portel? Venha sempre. Por
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um milagre, aquela manhã... Ah, doutor é uma esmola o que o por mim, podem cantar o hino. Cantar? Urrar o hino! Sabem lá cantar
senhor... Ora, professora. Ora, professora. Era no subúrbio, com um o hino! Bem, vou passar meu telegrama.
lameiro na frente mas na capital. Conseguiu que a escola se instalasse Mal o comandante saiu, veio a aluna:
na casa dela, o aluguel pago pelo Estado. O ordenadinho, um mês — Professora, aqueles dois tostões que a mamãe me mandou
faltou. O procurador, coçando a corcunda, tentava explicar. deixar no oratório da senhora ao pé da Nossa Senhora das Dores?
— Jogaste, não, Amanajás? Pois o comandante, no que viu, tirou e mandou o Vadico botar todo o
O comandante bateu a porta, foi beber no Minerva. Ela então se dinheiro no 2464. Deu 2465, professora.
deu a uma ousadia: Retirou-lhe a procuração. No outro mês, o [143] — Otaviano, desce e tira isso do pescoço, meu filho.
procurador foi a Tesouro, e lhe disseram. Vamos! O hino!
[142] Estalou os dedos: Ah, sim. É verdade. Distraí-me. Vim D. Nivalda escutava, alta noite:
por hábito. Por falta de tempo, não podia eu mesmo receber, sim, sim, — Ei, marinheiro. Carrega o leme a boreste! Meta esse
esta cabeça! Em casa não piorou. À noite Nivalda, me cede aí uns dez amotinado nos ferros!
mil réis? Foi beber no Minerva. Com o marido no Minerva, e por que — Que é isso, Amanajás? Amanajás! Amanajás!
agora era uma necessidade, D. Nivalda enjoava a profissão. Também O comandante boiava da rede como um casco velho batia pela
alunos daquela espécie! Me deixa ver, como foi que arruinou esta casa atrás de sono ou do seu passado, acordando a vizinhança,
pereba na cabeça, Raimundo de Castro. Me deixa olhar essa tua carregado de seus navios. Ia para a rua cachimbar, à espera do pão. O
orelha inchada, Nazaré. Professora! O Zito aqui botando uma bruta padeiro deixava a cesta ao pé dele, a distribuir os embrulhos pela
lombriga, professora! O comandante eriçava a tromba, invadindo a vizinhança. Uma madrugada.
aula. Os meninos começavam a cochichar. Jaburu. Jaburu. D. Nivalda acorda e corre para aquele bate-boca no portão:
Enxugando as mãos no pano da cozinha, mandando o aluno remover — Como ousa dizer que te tirei pão da cesta, seu galego! Como
a lombriga e limpar-se, a professora reassumia as funções: ousa? Como ousa?
— Cantar o hino, meninos e meninas. Chegava do Minerva para o almoço:
— Marcha á ré, marcha à ré, Nivalda. Quero primeiramente — Mas só isto? Istozinho? Não mata a fome de uma pulga que
desembuchar um teu aluno: É aquele, o focinho de tatu. Tu, tatu, dirá de homem.
Otaviano Secundino de Paula, neto de um foguista meu no Rio Juruá. E tu és um homem?, quis indagar a mulher, de olhos baixos,
Tu, tatu! Tu! Tu! Sabias! Em vez do 5 me armaste o alçapão do 4! O colher suspensa entre os dedos. Também coitado. Naqueles jantares a
5 pingava do teu focinho e preferiste engolir o número. E estás te bordo, comandante à cabeceira, e aqui, corcunda, sujo, meio bêbedo,
rindo? Te rindo? Pois já de pé na janela, de focinho pra rua! Na janela debaixo de ração, Jaburu dos meninos.
e com o 5 pendurado no pescoço! Desse tamaninho já e já tão safado! — Ora, Amanajás, tu não queres, não come. Desintera de lá da
Pelo 5 que sabias e não me disseste! Pelo 5 que escondeste! Aí na gaveta da cômoda, do dinheiro da luz e compra uma lata de sardinha.
janela, aqui está o 5, pendura no pescoço, carrega o teu ferrete, Ficas te lembrando dos jantares do Hildebrand, é isto.
condenado! Na janela, de pé, por dez minutos. Assim! Bem, agora, — Nivalda, mea filha, esse teu feijão brocou de vez. O
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taberneiro que te avia, aquele Figueira da Foz, rouba além do — Bença, comandante?
consentido. — Deus te desabençõe, cabeça de boi. Seus sovinas! Só
— Esse, pelo menos, me fia, comandante Amanajás, me fia. istozinho de doce para a vossa professora? E por que essas rosas?
— Comandante é a mãe, Nivalda! Rosa é comida? Bacobaco, sim, é que é presente. Ou querem que a
— Ora, Amanajás, só queres que te chamem de comandante lá professora se sustente a pétalas?
fora? Aqui dentro não? Ai de quem lá na rua não te chame... Não? O bom é o bacobaco, é a paçaroca. O bacobaco. Sacudia a
Pois eu... pança, desfolhava as rosas:
O comandante estirava o beiço para a foto da parede: — Flores! Tragam nem que seja uma banana. Um beiju, um
[144] — E ela? ovo, um coco seco. Proibido florinhas nesta casa. Primeiro a
— Ela, quem? paçaroca.
— Ora, quem, Nivalda, a figurinha de cera. Escreveu? [145] Um e outro aluno tentava explicar: Banana? Ovo? Coco?
A filha, na parede, sorria com as suas antigas tranças A mãe, Mas quando? Era, se fosse.
aqui embaixo, varria o soalho. — Minha mulher se matando a desemburrar vocês todos e nem
— Onde, onde que está mesmo o trocado? um rebuçado!
— Mas, Amanajás, uma lata de sardinha, e não jogo e não Discutia com os meninos já agora em pleno comando, dirigindo
bebida, Amanajás. Era da luz. a manobra do seu gaiola, prancheou, desembarca suas copiosas coisas
Está bem, está bem. Como a sardinha lá mesmo. Com pão. de viagem, dono do cais, mares e rios. Quando aquela maior fábrica
— Onde, Amanajás? do norte do Brasil, de doces, pegou fogo à noite, o comandante correu
— Onde mais, mea velha, onde mais? a ver o espetáculo, ali defronte da igreja de Santana. Os bombeiros
Voltou do Minerva trauteando: não sabiam se combatiam o fogo ou combatiam o povo que iniciava o
saque.
No tempo dos apostólos — Não tem água! Faltando água!
os homens eram barbáros — E aí a caixa d’água?
subiam em cima das arvóres — Cheia está mas é das lágrimas das putas desta zona. Acuda,
para caçar os passáros comandante!
E foi que o comandante também entrou naquela fúria, a comer,
Entrava na alcova, abria a gaveta da cômoda, atrás daquele resto a encher os bolsos, no meio da fumaça, aqui apanhado pelo bombeiro,
da luz que a professora já havia escondido. saltando adiante sobre os pudins. tropeça num bolo inglês, afunda o
— Mas por que tudo escondem neste porão? Ah! Ah! Tudo pé num pão-de-ló, disputa a lata de bolacha, arrebata o queijo,
agora é a chave? Trancado? Sob o regime da desconfiança? precipita-se na barrica das torradas. Mais que o incêndio era a velha
Os alunos traziam doces e rosas para a professora tomados, no fome geral devorando a casa. Então irrompe no tumulto: São Pedro!
porão, pelo comandante: Eivém o São Pedro! Tinha saltado de sua cadeira lá da igreja, entra no
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meio das labaredas, lançando para o meio da rua os estoques da — Preferimos as três juntas no mesmo turno, professora.
confeitaria. Fluía ardente um rio de doce, manteiga, e maisena. Os — As três juntas?
bombeiros viam, entre golfadas de fumo e chama, aquele santo D. Nivalda ia notando que as três, na idade, nos chapéus e nos
escurão que arrancava dos depósitos lá do fundo as provisões, pela vernizes, se pareciam cada vez mais. E a escola, que julgava tão dela,
cidade tão reclamadas e sempre tão negadas. Com pouco chega a agora repartida, devassada. Três, sabia lá de onde e com que
cavalaria. São Pedro mais que depressa correu para a sua cadeira. O costumes, a invadir-lhe a casa e a ver, da porta ao quintal, tudo.
comandante em fuga, chamuscado, encharcado de açúcar, entrava em Vinham juntas, saíam juntas, ensinavam da mesma forma, enchiam a
casa trazendo para a mulher um saquinho de bombom. Foi contando o boca de “novos métodos educativos”, já não era mais merenda era
que fez não fez, vítimas e bens que salvou, alçou a mangueira, lanche. [147] Acabam não ensinando nada, dizia ela, num desabafo,
presenteou a solteirona com um bolo de noiva... Dormiu falando, em sem dar pelo comandante que logo assumia um ar dos grandes dias a
[146] seus pesadelos, a ferver num tacho de calda de goiaba e gema bordo, espanando os seus navios na parede:
de ovo. — Nivalda, o farelo que pudeste catar na Escola Normal foi se
Aqui o menino suspirava: gastando a bordo naquelas viagens. Assim como perdi meus navios, o
— Teu pai, sim, que é carregador... timão, a Superintendência e estou aqui espanando os meus fantasmas,
— Dia que nem um carreto, comandante. perdeste o teu farelo. Por isso te opões à pedagogia moderna.
— O entendido, o entendido, em carreto, em bagagem! Que Deu uns passos pela varanda como num tombadilho.
sabes de cais, de navios, de cargas e descargas, seu fedelho? Bem, já D. Nivalda até virou-se para ele. Pedagogia na boca de
te dei muita trela. Queres é escapulir de trazer o que se mastiga. Por Amanajás. Deus! Esse era aquele e aquele já era esse, escrito e
isso! Por isso que pisei nos calos quando meu pai quis me fazer escarrado, no uniforme de bordo? Pedagogia moderna. Na alcova, ao
professor. Para quê? Por quê? Para isto? espelho, viu no rosto não só o seu pasmo como a crispação de sua
Uma terça-feira, pela manhã, aquelas três enchapeladas com pergunta. Ali se mirou, querendo consolar-se, já um pouco divertida.
ofício do Diretor. Vinham servir na escola como professoras Não, tão ruim pessoa não sou, que merecesse. Isto é verdade. Aqui no
auxiliares. D. Nivalda cobria com as mãos o seu pasmo. Não tinha rosto se vê a sombra daquela corcunda, sim. Mas não era para estar
aluno para tanta professora. Mesmo que tivesse! Mesmo que tivesse! bem mais usada, mais roída, bem mais caindo aos pedaços? Atrás
— Aqui? Nesta escolinha poeira? Não está à altura das dela, o espelho mostrava aquele longe portão arriado na João Balbi
senhoras. Lugar das senhoras é lá no Barão, no José Veríssimo... onde a mãe curtia, debaixo das palhas e curvada sobre a Singer, a sua
— Professora, é só por ora. Pelo menos aqui é a capital. Onde viuvez. As irmãs bordavam, a caçula, na Escola Normal, indo, vindo,
estávamos? Ah, onde estávamos! Ah, não queira saber daqueles cola grau, sai a nomeação, de repente a bordo rumo de sua cadeira:
lugarejos, professora. Dispense-nos de pronunciar o nome deles. — Gostando da viagem, professora?
As três, com súbito pistolão em Palácio, transferidas do interior, — Só pensando para onde vou, comandante, para onde vou.
já faziam crer que nunca tinham saído da capital. — Passando esse estirão, está chegando, professora. Só mais
— Bem, então só dois turnos. um estirão e puxo o apito.
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Do trapiche de lenha vinha um bafo morno, um latido, duas três dias. Veio para a varanda: No meu uísque com os ingleses, eu só
velhas altas de luto fechado. E a escola? Defronte do cemitério. bebia era daquele carvoeiro tossindo na boca da fornalha o suor e o
Na descida, um mês depois, desembarca o comandante: sangue? O suor e o sangue? O suor e o sangue? Explodiu a caldeira
— Então, professora? em cima do velho Teodoro? Os gringos desembarcam de branco e
— Sim, comandante. entram no Cachimbo de Aço. O relógio da Companhia [149]
[148] — Marinheiro, me carrega pra bordo a mala da pro- mar|cando as horas da cidade. Marcando aquele tritura-tritura lá das
fessora. máquinas, guinchos, pranchas, porões, carrega lenha. carrega lenha, e
Fiel, foi, sim. Naquele escaler, não embarcou, embora quase os inflamáveis? Explodem os inflamáveis, Nivalda! Não vi, não
quase. O primeiro ano bulia um pouco por dentro dela, fervendo, cheguei a ver as manobras navais, ai manobras da esquadra inglesa,
fervendo, nas viagens passava a fervura. No primeiro ano, sim, aquela minha velha, minha velha...
noite de ópera, no Teatro da Paz, uma derradeira companhia passando Pedagogia moderna. Para mais, pela casa adentro, três víboras.
por Belém. Ela e marido aqui nas cadeiras e ali defronte o camarote Tira a cabeça do espelho empoa-se, apanha o leque e o ânimo,
onde um senhor não tirava o binóculo de cima dela. Uma autoridade? entra na sala para enfrentar, sorrindo, as três e manter delicadamente
Marinha? Exército? Agente do Lóide Brasileiro? Olhares, olhares, aquela linha de diferença entre ela e os bichinhos da Curuçá,
mas então olhares. Indiferente à cena repleta de cantoria e traje cada Passagem dos Inocentes, goela do subúrbio. As três ao mesmo tempo
um o mais antigo, via era aquela personagem lá do camarote, põe e tiravam um fiapo. A danada, no seu casabeque cerzido, até que
tira o binóculo tão... Exército? Comandante da Flotilha? Inspetor da sustenta bem a calamidade. D. Nivalda sob o olhar delas, os pés
Alfândega? Caiu na conta de sua curiosidade, barrou a vista com o suavam frio, desabafava com um e outro aluno. Vamos! o hino!
leque, ai! Como cantavam! E assim ficou de rosto no palco, sem ver Ninguém se metesse. Deixassem com ela só aquela corcunda.
nem ouvir nada, engolindo a surpresa (é comigo mesmo, sou eu?) a Com a aluna que ajudava a D. Nivalda na cozinha, apanhada no
vergonha, a curiosidade, debaixo daquele binóculo durante os três portão, as três insistiam:
atos. Por um tempo guardou o programa da noite d.e onde saltava, — O que eles vão comer hoje, hein?
como uma lanterna mágica, aquele binóculo. No mais, este velho — Ah, não sei lhe dizer, não, senhora.
papel embebido de conhaque. — Como que não sabe? Não é lá no fogão o teu lugar de aluna?
Pedagogia moderna. Além do mais, como diz o espelho, o Não é à boca da panela que ela te ensina a tabuada? Hein? Feijão de
desgosto me conserva a aparência. O roer muito mais por dentro, aqui ontem? Bucho requentado? Ou só-só vinagreira?
por dentro o berro, o escarro, os cambaleios do comandante e toda a — Agora isso é que não sei lhe dizer, não, senhora.
nossa cinza acumulada. E ele pensa estar sempre comandando. Ainda — Ela te amarrou a língua.
ontem, violando o seu orgulho, foi ao cais, que não via, meses. — Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
Bêbedo. Não lhe permitiram a entrada num gaiola. Os carregadores — Pois, sua boca grudada, e da filha? Tem recebido carta
vieram trazê-lo, veio na carroça como um lixo. Trancou-se no quarto, mesmo, como ela diz?
como no camarote, seguia a carta das navegações, numa ressaca de — Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
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Logradas se não assistiam a uma cena entre a professora e o — A mulher, comandante, é que faz o marido, sim. A boa
comandante. Saiam com qualquer coisa lhes faltando, tossiam, aparência do esposo é o espelho da boa dona-de-casa. Não acha?
escarravam. Viam no sorriso de D. Nivalda uma galhofa de quem diz: — Não, minhas senhoras. O homem tem sido um canalha com
Desta vez, hein? Passem fome desta vez. Não comeram hoje a nossa as senhoras. Se eu pudesse me casar de novo saberia como tratar bem
migalha de todo dia, víboras. Fiau. E as três a um tempo: minha mulher. Agora, tarde O tempo me dobrou o espinhaço, já não
[150] — Puxa, D. Nivalda, mas a senhora está tão bem hoje, posso variar de [151] hábitos. O uso faz o abuso. Me acomodo. Mas
professora. Mas tão bem. se eu me amarrasse hoje? Com a Nivalda? Hoje? Rá!
D. Nivalda guardava o suspiro. As três inclinavam-se: — Mas não são, comandante, felizes?
— E olhe, professora, que a senhora tem lutado, não? Instante em que saltou a tromba:
— Lutado? Credo! — Indagar de marido e mulher se são felizes não é mesmo que
— Tão bem que está a senhora! indagar a idade das senhoras? Bem, que data é hoje? Vou passar meu
D. Nivalda folheava os cadernos. telegrama.
Noutra manhã, o menino com um embrulhinho para a D. Nivalda acudia, fossem pacientes com o Amanajás, não
professora. levassem a mal, agora que afogava as boas maneiras no Minerva.
— Que é isso, seu... Com isso, quer mostrar-se melhor que ele e saboreia a ofensa que
— Doce, comandante. sofremos, refletiam as três, duplamente ofendidas. D. Nivalda com o
— De quê? desculpar-se, sabendo que assim feria muito mais, se vingava. A
— Não sei, comandante. Mamãe que manda pra mestra. idade das senhoras. Esse Amanajás mesmo! Foi rir na alcova. Com
— Deixa ver, deixa ver. efeito, o tempo. nas três, se distribuía a fundo e sem descanso, às três
No que entrega o doce, corre o guri para a aula, atrás o brado do dava igualmente quinhão implacável. Nisso tentavam diferenciar-se,
comandante, mandando-o subir na janela, ali de pé na janela. percebia a D. Nivalda. As duas vão mais depressa, dizia a primeira a
— Por que castigas o menino, Amanajás? si mesma diante do espelho. A segunda beijava a terceira com um
— É um particular entre nós. Entre nós dois só. súbito calor ao ver que a colega ia murchando muito mais. A terceira
Minutos depois fazia o aluno descer. via no rosto das amigas a ruína que, graças a Deus, graças a Deus,
— Vem cá, sua peste. Aquele sal amargo polvilhado de açúcar ainda não via no dela. E nessa, naquela ou na outra o mesmo
que me trouxeste como doce, seu langanho insolente, podias repetir o caruncho crescente. Tinham deixado longe, como uma tocha apagada,
presentinho para as três? As três? Aqui entre nós. Que tal para as três? aquela busca de marido. Famosas na vizinhança pelo que faziam no
Diante das três o comandante portava-se como a bordo, na escuro em tantos anos de namora-este-e-namora-aquele ao pé da
cabeceira da mesa. E elas: Finezas e distinções que tem esse homem! mangueira e na volta dos bailes. Tocha na mão, corriam Belém
Que lhe fez a delicada esposa para que ele se meta a casca grossa? inteira. Foram fazer a praça no interior, professoras, a. tocha já apaga-
Aqui conosco é aquele do salão a bordo. não-apaga, saíram à caça e às suas armadilhas não caía um, estezinho
O outro, acuado no Minerva, de quem a culpa; um, quanto mais um casacudo. Baixavam de preço e degrau, mas
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quem? Naquela altura um qualquer, um qualquer, o diabo quem fosse, alunos. Vem a parte dos recitativos. Lígia, do terceiro ano, dedica aos
o facho caindo-lhes da mão. Ou não foi melhor? Espiem essa, esse donos da casa, o Vida de Rosas:
espelho, a D. Nivalda. Casar? Deus que soprou, fez tombar o facho. E
isso as juntou, as tornou gêmeas. Construindo o lar dentro da vida calma
Sim, que a professora lançava o seu anzol naquelas três águas, E sempre assim tendo horas deliciosas
pareciam uma só, e pescava, por exemplo, a surda [152] porfia entre [153] Graças ao céu pela felicidade
elas no que toca a enfeites, braceletes, colares. Iguais no vestir, Vida de espinhos, fazem-na de rosas.
parelhas no modo de ensinar, em toda aquela sina tentavam
distinguir-se surdamente nas tetéias. Esta, as pérolas de mentira. As 3 tossiam, sacudindo os braceletes. O comandante
Aquela, o brinco, vá ver de perto, ah, mas tão ordinário; a terceira, o aplaudidor: Bravo! Muito bem! D. Nivalda roía a unha: esse recitativo
broche, arrancou do prestação, fingindo que comprou na Krauzer? Por é de propósito, obrinha delas, víboras. Mordia o beiço, ia chorar? Tão
isso mesmo cada vez mais semelhantes, Deus! Que é este mundo! A repentino, evitando o olhar da menina, como se aquilo tudo fosse
professora sacudia a cabeça. Já não distinguia esta daquela, as duas da verdadeiro, gentil, ou sonhou ou pediu, tão leal na menina. Ou porque
terceira. Completavam-se. A falsidade, escassa na primeira, era um na voz das crianças tudo... Logo a gorduchinha, a Íris, avança para o
dom na segunda que servia às colegas. Doenças ou birras que às duas meio da sala:
faltavam, acudia a terceira a distribuir das suas, irmãmente. O destilar
o fuxico, o invejarzinho acariciando a invejada, o cuspir no calcanhar Ergue o rosto formoso — é uma sultana
alheio, o ter pena com um arre! engasgado, o lastimar-se, não cabia a Tem um harém — o céu, róseo palor
uma só mas às três a um só tempo. Via uma só falando por três bocas. Tem um palácio — o Amor.
Ao se mirarem no espelho, não três mas uma só, ali se viam. A D.
Glafira? A D. Emeridiana? A D. Custódia? Uma só, sem nome ou As 3 anunciavam as notas, os prêmios, distribuíam os cadernos
com um número: 3. As 3. E isso dava medo. As 3 entrando na sala, no enlaçados de fita e flor, a capa com a Bandeira do Brasil e do Pará. D.
mesmo passo e ofego, com os meninos de pé, e lá fora, no rumo do Nivalda fez foi chorar um pouco na alcova. D. Nivalda! D. Nivalda!
Minerva, o comandante: As 3 chamavam. Na varanda, à cabeceira da mesa, o comandante
— Acaba de entrar no picadeiro a 3 Cabeças. abria a cerimônia, partindo o pão-de-ló que trazia escrito em cima:
Encerram-se as aulas, os alunos ornamentam a sala com palmas Salve professora Nivalda.
de açaizeiro, colocam seus doces no centro da mesa entre buquês e, D. Nivalda fecha a gaveta do outro tempo, abre a deste instante,
sempre com um fiscal de apito na boca, de sobreaviso: O comandante é só chuva e a aparição: o professor em uniforme de ginásio. A visão
rondando pela varanda. As 3, muito cívicas, dirigem o programa. dissipa-se, tudo lá fora é ver goma de tapioca, desfeita a cidade em
Com aquele terno preto de Superintendente, o colete, o corcunda, a chuva.
condecoração da Bolívia, o comandante perfila-se ao hino da Ban- — Ah, que não pára de chover, Santa Clara! De onde-tanta
deira. Cuidadinho com os doces, olho no Jaburu, cochicham os chuva?
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Morava ali atrás do Una a mãe da chuva, ali a sua usina arquejante:
destilava o dilúvio. — Vamos, vamos, meu São Raimundo!
No quarto, arma a rede, embala-se um minuto. Nas paredes, que — Quis subir, arrebatar lá de cima o santo, a inocente imagem
transpiravam, desenha-se aquela figura do professor e o olhar de traída.
Roberta em que a figura se consome. Goteja dentro do quarto, sobre a — O sacerdote deste templo é um paquiderme do mar do Norte,
moldura descascada onde a filha com aquelas tranças é que nem uma do mar do Norte. Correi com ele, São Raimundo! Esta igreja virou
ave mudando pena. cocheira. Cocheira. Chama, chama a cavalaria! bradava o padre que
[154] Cantava no coro de São Raimundo. fazia evacuar a igreja e se [155] pos|tou na porta, alto, ruivo,
— Não puxes tanto pela laringe, minha filha, que assim rebenta possesso, de óculos, banhado de suor como um cavalo.
as cordas. Se coçando ainda dos percevejos e dos furúnculos, ganhos no
— Mas, mamãe? Pois tem quem emende. xilindró, Cara-Longe esperou, umas oito e meia da noite, o reverendo
E ia puxando as cordas. No cantar, lá no coro, já a modo que a sair da igreja. Foi seguindo o padre pelo escurinho do largo do
menina ia era se acabando, Nossa Senhora! um piado de perua na Esquadrão. O padre meteu-se pela Jerônimo Pimentel, entrou num
chuva. Descia com falta de ar, que fim levou teu sangue, Eleonora? pardieiro. Cara-Longe espia: O padre dá extrema-unção, sim.
Boca aberta, caía na rede, pedindo uma breve morte, o livro da missa Esperou. Com pouco eivém, muito apressado, batendo a batina no
no soalho entre as patas da cachorra que ficava mirando os santinhos. capinzal, de novo no largo do Esquadrão, e aí, ao pé da vala, Cara-
Todo aquele subúrbio, domingo, ia escutar, na missa, a língua em- Longe atalhou: Reverendo, me desculpe lhe deter o precioso passo.
brulhada do padre holandês, que fazia cumprir a norma dentro da Por gentileza, me conceda um minuto, não sou um lobisomem mas,
igreja a peso de relincho, coice e polícia. Na porta, policiais com sua licença, purgue um pouco por mim na sua santa carne
obrigavam os fiéis: Ajoelha! ajoelha! ajoelha! Os devotos iam, sim, se holandesa os meus pecados, e deu-lhe de galho de cuia uma surra tão
ajoelhando de dente trincado, mais praguejando que rezando, Deus senhora surra que o ministro de Deus, esfolado e sangrando, foi
perdoasse, mas arre! E assim aconteceu que um, bem feito! não quis socorrido pelo seu algoz, nos braços de seu algoz até a Santa Casa.
dobrar o joelho, um por apelido Cara-Longe, ali de joelho duro, a cara Por afilhado do Senador Faciola, Cara-Longe escapou de uma
em retaguarda como se fosse arremessá-la contra o mundo: Nunca fui condenação. O padrinho tapou a boca da igreja com uma espórtula
idólatra. Não concebo. Não sou. Os santos é que deviam ajoelhar-se suplementar, fez o afilhado licenciar-se de Belém, das suas atravessa-
perante nós, humanos, agradecendo: ções no Ver-o-Peso, a benzer pela Bahia do Sol pessoas que traziam
— É por vossas sujeiras, meus filhos, que ganhamos a panariço. Nem pôde, noutro ano, pelo carnaval, fazer o Herodes e o
santidade. Venerar não venero, e aquele São Raimundo, ali Sardanapalo. O comandante Amanajás brindou a proeza no Minerva:
encolhidinho, nunca foi um qualquer ídolo gentio, que isto eu juro. Mais uma vez, e agora em Belém, batemos o batavo! E contam que
Espremido entre os policiais, lhe subiu à cabeça, lhe deu um trocou brinde com o seu Ribeiro (cá entre nós, comandante, mas a
desrumo, aconcheou a mão ao canto da boca, fez uma trompa, galho de cuja? Está na Carta Magna que separou o macho da fêmea?
desembestou pela igreja, na imprecação, pulou diante do altar, Ontem casada com o Governo. Hoje concubina e com todas as
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vantagens de uma concubina...). E o Filemon a desesperar daquela — E as tuas, comandante?


insarável ferida no peito e o Zematias aos primeiros sinais daquela — Que minhas?
contrariedade sem motivo, à toa, à toa... O intérprete do Hildebrand, — Vamos que como filha da professora... Mas como filha do
conhaque em punho, o pé na cadeira, puxava o God save the King. comandante?
Todos já naquele tempo assíduos no Minerva. Vai debochando, vai debochando, que qualquer noite dessas te
A visita, levando maçã, que Eleonora fez ao padre na Santa devolvem tua filha pela janela adentro esquartejada... rasgada ao meio
Casa, o comandante achou compreensível. Levou à [156] conta de pelo estuprador, professora.
que a filha se agarrava àquela batina, aos santos,. ao desagravo, [157] Só foi dizer aquilo e Amanajás lhe deu nele um arranco,
unicamente pelo Coló. Pegou pelo Coló aquela total cegueira mas tão arrancando da parede um dos navios, o Andirá, rasga e pisa, apanha
cega, tanto se embeiçou que se pai e mãe falassem, ela, tão franzina, os pedaços, quer juntá-los, colá-los, assim sombriamente ocupado o
no risco de desmaiar: não é minha dor de dente? A marca da bexiga resto da noite.
em quem é? A bexigosa é o senhor? A senhora? Quem que pega a Mas qual! A filha, com seu beicinho de meia defunta, olheira
lepra? Estou cega? Me deixem que me guio por mim mesma no crescendo, cantareira de fora, tão que tão fraca, batia que batia o pé,
escuro, que o caminho eu sigo, sei a minha luz. Que o rapaz — encravada no Coló. O pai, no escuro, sem ser visto, receando-a,
lastimava o pai com seus velhos botões, a meter-se no casaco sebento seguia a filha pela Dois de Dezembro urdindo um modo de separá-
para ir ao Minerva — cru e nu de qualquer recomendação era pote, los, a tapona no pirento e a vespa trazida pela orelha... Eleonora bem
cujo barro, só tocar, soa lodo e obra de porco. O rapaz fedia a pira. que adivinhava no escuro aquele pai com o peso da corcunda, mas
Condizia que a filha do comandante mostrasse o dente a um aceno de temia? Toda tarde tomava gemada com agrião para ter um fôlego no
um sabe-Deus-quem saindo de uma goela sem fundo, lá das baixas troca-perna pelo Umarizal atrás do seu pequeno, e o cujo, bem. pá-
impaludosas e minadas de alastrim da Sacramenta onde os bucheiros vulo, por se ver no píncaro, até que nem como coisa — amanhã te
baldeiam seus carrinhos? O comandante levantava o punho para os espero neste canto — vinha? Sumia uma semana, voltava na maior
navios da parede, soprando o pó dos navios, azedo por não tomar cara lisa, e tudo o mais assim, jogando bola no Marco, pelo São Brás
banho e não fazer nada, com um diabinho em riba da corcunda, de velório e farra, caçando dentro do Bosque as moreninhas ariscas
cochichando-lhe: Te empina para o lado da gazela, te empina... Não te que amansava com pipoca e sorvete rala-rala. Não vê uma saia que
atrevas senão ela te pendura na tromba murcha um anel daquela não se assanhe. Um estradeiro de marca, um rufião. Vou averiguar
carapinha, escorrendo pomada, do Coló. No bilhetinho dele o quantas entradas já deu na polícia!, rosnava o comandante voltando
garrancho: estremosa heleonura com h e h pequeno e aquele u. E do Minerva.
quem o pai dele? A mãe? Com h pequeno e o u. Claudomiro de quê? Senão quando, aquela manhã: pendido no galho da mangueira,
Me diz? Tua certidão? Indaguem dos cururus naquele cariazal. ali pendurou-se, o laço no pescoço, assim encontraram o rapaz,
Virava-se para a O. Nivalda. ninguém explicava, vestido para um passeio, paletó e gravata, se
— Estás fazendo sentir na tua filha a tua educação, a tua enforcou. A razão? A não serzinho o que se escutava pelo São Brás,
autoridade? pela oficina da Estrada de Ferro. aquele tão soturno agarradio dele
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com uma tal Dionísia, trazida zinha-zinha no trem de Bragança, menos. Remexe na mala velha de viagem, das viagens, mala outrora
criou-se com mingau e tacacá ali no mercado, mulata de venta acesa, copiosa, imponente: o baralho sujo, o dente de tubarão, a gazua.
já tamanha rapariga, no que olhou o recém naval saltando do estribo Tinha de descontar do seu ordenado mesmo. Rezou seus sete terços,
do bonde, como do torpedeiro, é já que dá dormida a ele, aninhou o embalou-se um minuto na rede, até desejou ficar ali o resto do tempo,
marujo debaixo de suas anáguas de renda, mais que de repente os dois pelo menos até que saísse o enterro. Morta estava ela, ali sepultada.
no Ita, até um dia, mercado e trem de São Brás, do Pará só a falta do Tinha de enterrar o marido em primeira classe, não por ele, ex-
açaí. comandante, mas por ela, professora em pleno exercício. Meia zonza
E de tudo isso o Coló? pela casa, ficava olhando os navios na parede, lá [159] está ele, de
[158] Que justamente noutro dia, paletó, gravata, sapato duas uniforme, a mão na roda do leme... Ausente estava ela, e não ele, que
cores, amanhece pendurado no galho da mangueira? tudo atulhava com a sua corcunda, seus navios na parede, sua morte.
Eleonora, esta, adeus, coro, adeus, largo do Esquadrão, lhe deu Da filha, no Piauí, nem o endereço. Nisto chegam as 3, lhe enfiam o
uma asma, O comandante e a professora, por que esconder, embora braço e a levam para a capela da Santa Casa onde os alunos da
com um doer pelo juízo, dizer nunca diziam mas um tanto se estadual, gozando o feriado, cobrem de flores o velho Jaburu. Como
aliviaram. E os cuidados com aquela asmática? Ah, quando a filha correram a apanhar o bonde, como tomaram conta do cemitério!
aparecia na varanda, à noite, sufocada no seu gogo e um vidro o — Pois comendo manga de cemitério, meninos!
corpo, de tão transparente. (Telefona pro Dr. Camilo, Amanajás, nos — Ah, professora, que que tem, tão doce!
dando uma hora, que ele escute os pulmões dela.) Pois muito bem. Na cova o caixão, apressaram-se a jogar terra que caía, ávida,
Não é que da noite para o dia, junta-se a Eleonora com um com fome do defunto. As 3 ralhavam surdamente:
terceiro sargento do Exército transferido para o Piauí? Os dois — Mais termos, meninos. Mas que é isso, demônios.
embora, deles nunca mais uma linha. Os demônios comendo manga, disputavam torrões e flores,
Da filha restavam aquelas tranças na moldura descascando, e felizes no inesperado brinquedo.
aqui, na memória, neste aguaceiro, aquele olhar de Eleonora seguindo As 3 vieram deixá-la em casa, tudo, tudo é tão transeunte,
o corpo do enforcado que os homens carregavam no jirau sobre a explicavam, a sacudir voltas e braceletes, satisfeitas de estarem ali
lama. Um olhar por onde soltou seu grito. acudindo. Que dia cheio! E que ocasião para bem avaliar a dona-
Nem demora, na Santa Casa, o comandante com um antraz. professora, o seu descuido: não internou a tempo o trambolho. As 3
— Nivalda, mea velha, só o Camilo meter a faca nisto, rasga insistiam em ficar. A viúva, numa súbita energia, armou-se de uma tal
este bicho, a tempo de ainda pegar aquela tartarugada, no domingo, delicadeza, foi botando as 3 de casa.
do meu compadre leiloeiro. A preparadeira é a Magá, da Ruy Quer, lhe faço um chazinho, lhe faço, sim, lhe diz a afilhada de
Barbosa. E na segunda-feira aquele tamautá no leite de coco no fogão, aquela do não sei, não, senhora. Entrou num sono, se via entre
Hilário. as 3 no meio da praça, numa ciranda, soltando balões de onde
Não comeu a tartaruga. D. Nivalda andou catando pelos papéis zarpavam os navios do comandante. De repente o comandante, no seu
do falecido um tostão poupado, uma cruz de vintém ocultas, ao uniforme de bordo, com o cadáver do Coló em punho, seguro pelo
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pescoço, varria as 3, três cabeças de uma só cobra, varria os meninos Agora toda tarde.
que escapavam para o largo da Pólvora, se enfiavam pela ramagens — Que roseira é essa agora que todo dia dá rosa, menina?
de Batista Campos, invadem a Basílica, voam para o Bosque onde — Rezo ao pé dela, professora, e peço: quero uma rosa todo dia
aquele doutor no seu escaler desembainha o sabre e barra o passo ao para a professora. Acordo e corro no quintal: lá está a rosa.
comandante. O escaler puxava os carros do trem por entre os estirões A sabidinha! A flor é pra ele. Está no olhar da astuciosa. Na
da noite. Só o sabre no ar contra o enforcado no ar. Ou era um navio mão da professora a rosa que te trouxe, diz, queimando o rapaz, arisca
no ar, a proa do navio na mão do comandante? Era? Cheguei com o em tudo que diz, guardando os olhos dentro da aritmética. Lá vem ela,
meu escaler, [160] ouvi-a. As 3 mordiam-se, espumavam, espremiam o vestidinho azul, um ar de má vontade, a rosa, taqui que lhe trouxe,
o antraz? Os meninos sepultavam a ciranda. Agora era o navio que o professora, [161] sen|ta-se sem nunca dar pela presença dele e dona
comandante fazia rodopiar, seguro pela chaminé. O chá, madrinha, o dele, faz o ditado, nunca olha o rapaz e vigia-lhe todos os
chá. Ao pé da rede com a xícara sem asa na mão suada, a Não-Sei- movimentos, sempre a última a entregar-lhe o caderno, no que vai
Não-Senhora. entregar não entrega: Ai, me esquecendo de assinar meu nome.
Noutra semana, bruxas no ar, foram-se as 3. Perde a casa, a Alfredo baixava a cabeça sobre os cadernos, a ouvir aquela pena no
escola fecha, enterra-se no subúrbio, consegue o lugar de adjunta na papel como se fosse lhe tatuando o peito, letra por letra,
mista do Umarizal. Ao seu ordenado, acrescenta a escolinha, esta,
particular, à tarde, tão pouco. Só por necessidade? Mais por estima
aos bichinhos? Se podia, só ela, dar conta, por que chama o ROBERTA
ginasiano? Agora, este sentir-se excluída e mais só, o ter as culpas
que não teve, quis e não soube praticar, a pedir, agora, tão tarde,
aquele escaler. Até se assusta com o caderno nas mãos e os olhos dela, um
Ali à mesa, nestas tardes, fazendo o ditado, o ginasiano mais instante olhar puxando o rapaz de lá de dentro. Assinou? indagou ele,
parece ditando do seu coração, não do livro. Ou só dos seus instintos, à toa, à toa, sem fitá-la, aqui com o nome dela no caderno. À porta do
acesos no olhar de Roberta, esta quem sabe roçando-lhe a perna por corredor, suspensa, é D. Nivalda, ralhando sem motivo com os
baixo da mesa, passando-lhe, quem sabe, bilhetinhos dentro do alunos, rouca. Roberta se voltou sorrindo: Fez a fatia parida,
caderno e na aritmética fechada. professora? Esperando que a senhora me ensine a fazer, sim?
D. Nivalda não tira os olhos. E isso lhe remexe as cinzas, um Demoninha! Já os olhos na aritmética, por baixo olhando o rapaz que
sobressalto lhe arde no rosto, algo maligno doendo-lhe nas rugas, não soube o que fazer dos ditados. Ou lia naquele último caderno as
atrás dela o olhar de Roberta a surpreendê-la, a dizer-lhe: Ainda não cifras de Roberta? Ela a cada instante mais moça, desabrochando-se
crê no que lhe diz o espelho? sobre o rapaz, este de rosto no ar, na tarde lá fora, tarde que só é
Se lhe dá de chamar a aluna: Não me apareça mais. Seu mal Roberta.
pega nas meninas. Suma-se? A aluna, toda tarde, com uma rosa: É da Por que o chamou? Foi por vê-lo, aquela tarde, e outra, e na
senhora, professora. Toda tarde. Foi ele entrando, noutro dia a rosa. manhã de domingo, ou por ouvir... Quis lhe falar na praça, não lhe
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falou, correu para casa, a doer-lhe a cabeça, rezou os sete terços. — Espere que é só pôr brasa no ferro. Num instante. Isso lhe
Depois aquele encontro, o embaraço dele, e ela no empenho de vê-lo faz mal. Enxugando a roupa no corpo? Não vale o sacrifício. Molhado
na escola. o senhor não está, está é empapado. Tão moço assim, de pulmão
— Mas meu Deus! Meu Deus! O senhor! verde, cuidadinho. Por que a proeza? O seu juízo, menino!
As mãos na face, vendo-o surgir, tão de súbito, de dentro do Disse menino? D. Nivalda queria dizer-lhe: Pois vai-te embora.
aguaceiro. Saltou na sala como um peixe, o rosto banhado daqueles Assim como as águas te trouxeram, que te levem. Carrega com a
orvalhos do Éden, de que falava o doutor Numa. zinha na enxurrada.
— Mas, meu Deus, o senhor? — Deixezinho de acanhamento, vá tirando a blusa. Ao menos
[162] — Boa tarde, professora. enxugue as costas. Perto de mim o senhor, ainda é, [163] é, sim, um
O que ele só falou, tentando enxugar o rosto, a custo menino. Com pouco está espirrando... Já tenho idade para ser...
reprimindo: Roberta? Roberta? D. Nivalda, a mão na boca, sem saber — Ora, professora, chuvão assim é que dá sustância. Me criei
se o seu espanto era por vê-lo aparecendo ou descobrindo nos olhos na chuva, dentro d’água. Onde moro? Em Cachoeira? Três meses de
dele nada mais que a outra, Vá ver nascia da chuva. Ou chegava bubuia na enchente. O velho jacaré, à noite, embaixo do soalho
jovem aquele doutor no escaler? batendo com o rabo: Õ gente desta casa! Õ gente desta casa!
— Ao menos tire a blusa que eu seco a ferro. Mas onde o seu Dormindo? Foi assim que me criei. Tempo que não tomava um banho
juízo? de chuva assim. Não saltei aqui na sala como um sapo? Foi ou não
Indagou mais de si mesma, colhendo dos olhos dele a busca de foi?
Roberta, a surpresa, a raiva, a amargura de não encontrá-la. E em Mordeu o beiço, foi à porta sacudir-se, bateu as roupas. Daquela
lugar de Roberta, essa sobrevivente do dilúvio. nem um sinal, um. Ainda podia vir? Ainda? A chuva abrandava.
— Deixe que acendo o ferro. Chegasse de repente, chinela na mão, de repente, molhada molhada, a
— Não, não, professora! Seca logo. Tanta chuva, não? Nem um chuva caindo de suas pestanas. A sua flor, professora. E sempre no
menino? Nem um menino! olhar aquelas águas rápidas. Recolhidos nesta arca, Belém afundando
O menino dele, quem, o menino! Nem um menino! E em tão no aguaceiro. Só você de aluna? Faça o ditado. Qual dos dois ditados,
poucos dias, tão poucas tardes! Que fiz para chamá-lo? Que fiz para o da boca, o dos olhos?
que esses dois tão de repente... Nem um menino! Unicamente nesta — Tome este paletó velho, professor, está limpo, tire a blusa.
sala era Roberta. Varando o aguaceiro por pensar — ou combinou? Pegue a toalha. Quer vir ao quarto?
— que Roberta viria também, um em busca do outro, ambos usando a Estremeceu, que pensará ele? Ou só sou eu pensando? Outra
chuva para o encontro na sala vazia, os dois únicos bichos nesta arca. intenção não foi senão enxugá-lo. Se alguém entra neste minuto ao
Em que virava a escola! Alfredo escorria ao pé da janela. O preço que vê-lo no quarto? Assim molhado mais parece despido, Deus meu! Se
dá à pequena, o preço! Como se tivesse se submetendo a uma prova. alguém entra... Um menino. Uma menina.
Saltou da chuva feito um encantado e ali ficava, gotejante, como sem — Seco já já a sua roupa a ferro. Não custa.
fôlego.
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Ia, vinha, no quarto apanhou o terço, se olhou no espelho, Quero fazer matrimônio
ajeitou o cabelo, largou o terço, trouxe duas toalhas. Um café quente? Estou com o dedo cansado
Mas molhado! Veio andando ou nadando? Ao menos os sapatos, eu De coçar este demônio
ponho no fogão. Ensopado. Da chuva ou de Roberta? Repentinamente
se via nas viagens, no escaler, roçando a rede das enfeitiçadas, todo — Quem te contou da Cabra-Cabriola?
todo um desperdício aquele guardar-se, agora se debatia nas cinzas de — A que comeu os bezerrinhos?
um fogo em que não soube se queimar, não saiu pura, saiu velha. — Quem?
Como em vez da chuva no rosto, ele só transpira Roberta! Não se — Comeu os coitadinhos. Um que me contou, pois foi.
arreda da janela. Quem sabe interceptada pela Brasiliana, pela moura atraída,
[164] — Não se acanhe, tire a blusa. Olhe que lhe faz mal. subindo o sótão, tira o vestido da chuva, cobre-se com sedas e rendas
Passe a toalha por dentro. Pelas costas. da Guiana. E aqui estou, e ela? O [165] tem|po desabava, relâmpagos,
À janela, Alfredo não enxuga o rosto que dirá as costas. Desça trovões, eivém a D. Nivalda com o ferro aceso: professor. a chuva!
neste relâmpago. Chegue nesta refega. Da espessura branca lá de fora, Não vá, professor!
o vestido azul, as chinelas na mão, o salto na sala... Espremia as Roberta anda pela Romariz onde queria se empregar para
mangas da blusa como se fosse a esperança. Os sapatos só lama. D. quebrar caroço. Entre menina de escola e moça de fábrica: moça.
Nivalda ia ao quarto, apanhava o terço, voltava, ia à cozinha, voltava. Sim, que moça de fábrica é mal falada, mal vista na cidade. Mas
Nem sua toalha nem seu paletó velho, professora. O que me menina de escola, ponto final no ditado, professor. Ficava no trapiche
enxuga um pouco é a sua cisma, é um pouco adivinhar que a senhora olhando.
também pensa nela e descobre... E eu de mim que sei? Sei ao certo? — Menina, olha como tu acaba! Moça que muito olha o rio, ou
Dessa lufada de chuva despenque a lontra-menina... Não acenda seu emprenhou ou quer emprenhar.
ferro, professora. Sei como enxugar-me, ou molhar-me muito mais, — O filho que eu pegar, de bicho que não há de ser. Tenho
quem sabe, molhado molhado... Ela entrou na Brasiliana? Solta no medo de bicho, não. Então me emprenha, rio, anda!
capinzal mamando nas tetas da Cabra-Cabriola. Entre os moleques, O rebocador passava, canoas de vela preguiçosa à espera de
caçando sapo? A rir, em casa, deste panema na chuva, deste panema vento, lama da praia faiscando, o esfumarado longe. Ouvia-se bater a
na janela. Não vem. Chova o que chover vou. Dizia. A água monte quilha do barco no estaleiro. Moleques patinavam na praia, catando
nas mangueiras, vou a nado. camarões.
Escutei o que não era? Nestas poucas tardes, vejo, ouço nela — Camaroeiro, me apanha um, que te dou um beijo.
uma outra que não é, só de mim nascida? Traz o cão nos olhos, sal na Roberta ninava as águas:
moleira, brasa nos chifres, calda nos peitos. Cabra-Cabriola. Escreveu Quase que perco o baú
no caderno: Cabra-Cabriola. E com a moura aprendeu esta: — Repete, rio: perco o baú.
Quase que não tomo pé
De coçar este demônio — Repete, rio: não tomo pé.
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Por causa do remador — Eh, mamãe, já agora? Neste friozinho eu me acordar? Eu


do remador não.
que remou contra a maré O pai, já de pé, o ar flagelado:
— Repete, rio: contra a maré. — Isso, mea filha, vá não, vá não.
A correnteza levava a imagem dela para o fundo onde estava a — Pois agora que eu vou — e senta-se na rede, inchada de
Come-Bezerrinho. Uma noite, ela e um bando ouviram a estória da sono, sanhanhando o cabelo.
Cabra-Cabriola. Fizeram de conta que pegaram a monstra, mete no — Então vá logo que senão chega a tempo não.
saco, arrasta até o rio, com uma pedra no pescoço lá no fundo, adeus — Pois agora que eu não me levanto — e deitava-se, enrolando
que comia bezerrinho mais. o trapo de lençol nas pernas.
— Me dá um camarão, que teu dou uma prova do meu beijo, — Pois então não se levante, é melhor, tire outro sono, que vai
camaroeiro. fazer lá?
O rio perdia seus mistérios, banhando aquela cidade de cimento Roberta saltava, trapo no chão, punho da rede gemia na
e telha, apitos, sinos, chaminés, bacharéis. [166] Abrindo-|se a navios escápula, ia direitinho no pote.
escuros, pesados, resfolegantes. Bóias lhe rasgavam a treva e o — Bem, pois agora vou.
silêncio. Aqui com Roberta, vêm à flor os antigos mistérios. Roberta [167] E aqui na Romariz:
mirava o rio. Com Roberta o rio restituía-se. — Mamãe não cansa de me ralhar que sou por demais
— Quem que não queria assim ficar encantada-encantada? carregada de meu querer. Sou, rio? Sou, chuva? Sou, meu príncipe de
Gosto meu ver o rio. Miro, miro até que me dê uma tontura. Uma manjericão?
vontade! Ficar quietinha lá no fundo, a piraíba se chegando: que me
vieste fazer aqui, sua menina? Quase não tomo pé
Abria a boca, o sono? Cruz no bocejo. Gosto de estudar, não, Não tomo pé
puxa! mas só chuva? Só chovendo? Chuva na pedreira mata a Por causa do remador
tucandeira. O rio por cima dela como um homem. Seu cabelo Que remou contra a maré
flutuava. Os camaroeiros lhe puxavam a perna. Dava uma claridade Contra a maré.
algodão, azul depois, até ficar bem noite, cor do fundo. Soava. Soava.
Chega ó meu príncipe do manjericão. Õ meu príncipe do manjericão.
Gosto de estudar, não. Quero quebrar caroço na usina Romariz, ca- Na praia atrás dos camaroeiros.
roço que dá um azeite. Camaroeiro, me dá um dos teus camarões, que Alfredo ia subindo o sótão, deu com a D. Brasiliana descendo.
te dou um meu cheirinho. Um. Não chega? Te dou dois. — Que é isso, menino? Delirando? Espere!
Roberta! Roberta! A mãe lhe sacudia a rede. Tropeça no jacamim, o telefone chamava, corre debaixo do
— Roberta! É hora! aguaceiro.
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Olha a barraca de Roberta, vizinha do capinzal. Agora, sim, — Deixe estar, deixe estar, seu Bahiano, deixe estar que o
encharcado até os ossos. Até os ossos. Apita as seis. Até os ossos. pássaro manda ligar o fio da eletricidade nesse seu navio velho, deixe
No seu quarto, se despiu, se enrolou na rede, e tanto que cerrou estar. Já não vai servir de nosso palco? Licença?
a noite, caminhou pelo silêncio do subúrbio depois da chuva e do A gorducha puxava o bando de suas companheiras, todas à
vento, o tempo estrelou. Rondou a quadra de Roberta, deu sete voltas, porta, com cerimônia:
nem luz nem rumor na barraca. Caminhou no trilho do bonde, — Mas por que não embarcam? O barco, de tripulação, só tem
querendo chamar, arriar-se no capinzal, e apanhou o bonde até o Ver- eu agora, é o marinheiro. A comandanta deu um pulo no espiritismo
o-Peso, voltou noutro que o deixa no fim do Curro. Espiou o serão do mas de com pouco volta. O palco às ordens. O tombadilho anda sem
curtume — Sabina trabalhava? — deu nove, dez, onze horas, calafeto. Tenham só cautela no escolher por onde andam, o pontão
chuviscou, escorou-se na cerca, esperando. não joga. Água, vocês querendo, tem o pote com caneco aí no
Temia encontrar-se com os seus companheiros da noite, corredor, às ordens, o pote esfria. Falta é as gambiarras. Quem que é o
caminhava. Parou no canto da Brasiliana. Sempre à boca da rua tesoureiro da sociedade?
aquele valão escancarado, agora com os sapos em festa. — Bem que havera de ser o senhor mesmo, seu Bahiano, ainda
Lá em cima, a janela abria, a luz apagou-se. Alfredo quis fugir. bem que o senhor está lembrando. Aí uma escolha a dedo. Dou o meu
Mas ao cabo que descia do sótão agarrou-se, subiu num desespero. voto, O senhor ia arrecadandozinho os donativos e as cotas no seu
[168] Aqui fora, roçando as plantas, olhava à janela: Seu charão de prata. Era ou não era? Não era? Feliz de quem é servido por
Bahiano pendurava na parede da sala o candeeiro aceso para o um charão como esse-um do senhor, de prata pura. Era ou não era.
primeiro ensaio do pássaro que ia sair pelo São João. Não era?
— Cumprindo promessa de ficar aí a noite inteira no sereno, só [169] Bem que era, bem que era, sim, aprovavam as moças en-
olhando do lado de fora, é menino? Aqui a bordo, convés arreia? Deu trando na sala. Alfredo, aqui fora, reconhecia rostos, laços de fita,
percevejo no beliche? O barco está de quarentena ou para embarcar flores no cabelo, a Carlinda apertando o cinto, sempre a modo
me cobra um imposto? Suba a prancha, não conspire com as plantas assustada, o trancelim da Catitinha, o colo da Pérola, a gaga — que
que elas aí sempre são inocentes, talvez se queixem do dono da casa papel o dela no bicho? — figurantes do primeiro ensaio,
pelo mau tratamento, precisam de um estrume, um canteiro. Por obsé- embaraçadas, uma esconde o rosto nas costas da outra, a Palmira, sem
quio, entre com as devidas honras, tome o navio, que acomodação termos, esparralha-se no banco, os sovacos de fora, afrouxa o cós,
sempre se arranja, suponho, isto aqui é um pontão velho, sem sanefas, como afrontada; na filha do seu Amaro Bucheiro, a amarelidez dava a
roído pelo turu, os assentos mancos mas não faz água. Que apito toca seus olhos um escurume fundo, não parava com a cabeça? A
no ensaio? Dono do pássaro? Caçador? Naturalista? Ensaiador? Ah, o gorducha entrega a seu Bahiano a garrafa de querosene.
enredo é seu, as letras? Muito que bem. Ah, só estou é o meu zinho — Mas eu não estava cobrando, eu pilheriava, falei por pura
querosene... mangação, que apavoramento esse de pagar na bucha a luz do
candeeiro?
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A Noca metia e tirava uma bola-de-cuba na boca. Aquela, ali, deu comigo. Ou se quiseres ficar, só ficar de parte, só criticando, fica.
donde conheço? De um sábado nos Estivadores? Da 20 de março? Do Faz um pouco de amizade, de conhecimento com essas moças. Põe o
15 de agosto? Não é a Mindoca? Cortou o pixaim bem rente. E essa, teu rosto na sala, índia gavião de pele descascada. Fica me contando
afastada das outras, solitária, alta, já de diadema na testa? Já subindo das tuas tias, da tua irmã — Dalila foi ao menos um dia no hospital?
o palco e recebendo palmas? A pirralha ali no meio, de chinelinho, é a — do que anda acontecendo no estaleiro, no Curro, no Una, e tua
que vai encarnar o pássaro? Bem debaixo do candeeiro, a Esméia, roseira? Diz que aquelas duas da vacaria, as duas fidalgas do Curro,
tirando o pé da chinela, tão empoado o rosto virava róseo, mira seu casaram na polícia? Eu não disse? Quantos quartos de anjo já fizeste
vestido claro, de sombra cor-de-rosa. A um ruído do portão debaixo este ano? Que te fizeram no orfanato, Ana? Quem te aborrece no
do maracujazeiro, Alfredo virou-se: Ela? Correu. mundo, Ana? Descobriste onde moro? Foste no meu rastro? Des-
— Entrada grátis, Ana. Tempos! Não? cobriste? Queres um papel no Japim?
— Cismei, aquele-menino, que até fosse quarto e tu o defunto. Ana escutava até numa paciência, de costas para ele, num
O rosto de Ana, no meio-escuro, branquejava. Alfredo quis repente saltou no maracujazeiro, tirou uma folha, mastigou:
apanhar-lhe a mão. Ana atolou-se na sombra. Alfredo querendo — Axi! Axi! Que eu me misture, axi que entre nesse teu cóio.
indagar: Carregas a sombra da tua tia Luciana? Puxas o rabecão dela Cuche! E nunca me passou pelo juízo te andar espiando, descobrindo
para o Santa Isabel? És a herdeira? A Babilônia, ela te legou? É a teu paradeiro, tu quem tu és? Farejar teu rastro... Cachorra é outra,
hóstia do Orfanato que cuspiste? Ana lhe deu as costas e ele na atrás de semelhante osso são as cadelas do teu cordão, que que te
remoição: Roberta prometeu que vinha. Ia aceitar um papel no incomodas comigo? Pois fizeram muito bem as duas da cocheira,
cordão. E lá de dentro: muito bem que elas [171] tivessem soberbia, os zebus são delas,
[170] — O seu charão, seu Bahiano, ia servir como depósito na nunca te deram confiança, batiam a janela no teu nariz, não eram pro
Pará Elétrica. O senhor deposita a jóia, o inglês, manda ligar a luz, teu bico... A roseira? Foi só arrancares a rosa, secou, seu
sim? Fora de brincadeira. Falamos agora em nome de uma comissão encaningado. Quisesse eu e hoje era a pastora do Tentém, também
de senhoritas, sim? Além da sala que tão de agrado nos deu, empenhe fica tu sabendo.
em nosso benefício o charão e assim o senhor virava o nosso Alfredo espalmava as mãos: Mais baixo. Mais baixo.
benemérito, sim? O padrinho do pássaro, selado? — Pássaro! Amizade com elas! Pássaro de asa já quebrada. Vai
— Meninas, suas precipitosas. eu ainda nem cobrando a luz do é levar tanto assobio, tanto caroço de manga, tanto peido de velha
candeeiro, eu brincava... aceso atrás das comas, que eu só de parte só me rindo... E olha, falo
Alfredo, no portão, outra vez não virá?, tentava a confidência no meu natural, não decreta a voz que devo ter. Não estou te dizendo
com a Ana: segredo pra falar baixo.
— Entra um pouco, menina — tanto tempo! pra me contares da Mas falava baixo, os olhos no pé que mexia a folha do portão.
tia Dudu, do Centro, da D. Santa. Rezou-se missa? Tive que sumir um Entre as moças, lá dentro, seu Bahiano ria.
pouco desde aquela manhã, Ana. Entra que te reservo um papel, — ... ah, mea filha, meu charão? No cofre do inglês? Meninas,
conseguiste lugar no curtume? Entra que te conto como foi, o que se meninas! O charão, esse ai...
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Alfredo fez um passo para Ana, na sombra. — ... esse charão, meninas, esse charão? Ainda hoje, esta noite,
— Ana, ao menos aqui dentro, tens medo da luz da janela? Das suspendo o ferro pra viajar com o meu charão debaixo do braço e
moças? E tua avó? Pegando criança esta noite? Atrás de ti? Ao menos abrilhantar um aniversário — bote lonjura! — quase no Valha-me
do pé das plantas, te acocoras, um pouco, ali ao pé da papoula, ao Deus, um cariazal, os moradores de lá que digam! Mas vou.
menos ela te dá um sono... Dalila? Moro numa estância, na Manoel Ana respondia mais baixo:
Evaristo, vizinho dos portugueses... — ... da jaqueira, que eu sei, sim. Debaixo da jaqueira! O anjo!
Estou falando para esta, ou para a outra que não vem? O teu estudo! Se. agachando de noite pelo telhado da Brasiliana,
— Rapaz, vê lá, ensaia tu, é que é, as tuas misses. A negra, ali apanhando os pombos do vizinho para os dois comerem de espeto?
na janela, de te espiar vira urubu, dos olhos dela só faltam sair os Um papel nesse aí Japim,? Dá pra tua, de Eva. Daqui com pouco ela
bagos despencando em cima do portão, com medo de perder a está serenando com o vestido do ultimo figurino: a folha da
carniça. Tens pulado muita janela? Com teu ar de sempre? E com bananeira. Te preza, arranja do boi do Bicudo, o Estrela Dalva, uma
carinha de santo, o anjinho da tia Dudu, sumiu, coitado, não se tanga de índio pra ela, veste a nua em pêlo, desalmado. Rouba uma
sabendo onde anda o mimoso, que desespero deu nele? No Ginásio, peça de pano lá de cima... O jacamim desenrola o pano com o bico.
quem informa? Pra Cachoeira, não foi. Em que lugar se enfurnou? — Jacamim?
Feito a tia Luciana, nem poeira? Ah, até que pode o nome dele sair — Morde este dedo, seu-se-faz-de-desentendido. Lá, onde
também no registro fúnebre, levado no rabecão.., onde a sepultura mudaste o teu Ginásio. Que a tua mãe descubra onde. Deixa-te está
dele? E o anjo bem saltando a janela, agarrado na corda do que um dia telefono pro Arsenal de Marinha. Quem que não te
contrabando! Teu desespero é aquele esconderijo em [172] que tu conhece...
sobes na corda? Ou se encharcando de laca debaixo da jaqueira, ela te [173] Ana distancia-se, apanha um capim. Alfredo afina o ou-
adorando? Te fazendo comer piramutaba podre? Por mim, sumisse vido pra dentro do portão:
que sumisse, o mais sumir possível, suma que pelo sumiço não
arranco um fio deste meu cabelo. Se os do meu sangue, renego, A gorducha
quanto mais tua raça. Fosse no oco da jaqueira, amanhecesse teso de
bubuia na maré do Una ou piraíba te cravasse o dente, te estrepassem Deixe estar, seu Bahiano, que o senhor no dia do ensaio geral
a caveira na estaca da Zuzu, eu? E olha, é livre de se andar na rua vai servir o chocolate pros nossos convidados no seu charão de prata.
ando, velo os meus anjos, pra vovó, onde vou, não abro a boca. As Se Deus quiser, se Deus quiser. Aceite esta rosa monte-cristo e ponha
noites que eu quiser, o pé, este pé, é meu e o sono. Sou só, eu, tua no pé do santo no seu oratório...
ausência e a dos outros é o meu sossego. (Espichou o olho pela porta entreaberta da alcova. Na sala, as
— Debaixo da jaqueira, menos verdade,, Ana. moças admiravam o couraçado Minas Gerais e a âncora na parede.
— Que me importa? Que tem a Ana com isso, ora, esta, uai! Seu Bahiano lá nos fundos tomava banho de cuja.)
Égua! A desgraça é minha?
E a voz do seu Bahiano:
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A gorducha Palmira

Que a imagem abençoe esta nossa brincadeira. Bom todos Se saber bem, bem, não se sabe, nunca se soube. Sim, que tinha
acenderem suas ceras em casa. Que este é o terceiro cordão que um namorado, na ocasião vaqueiro do Estrela Dalva. Mas havia o
promete sair na José Pio. Dois já goraram. (Não fomos nós, Maria outro, aquele que ensinava a ela os versos e ela, muito atormentada,
Emília! Não fomos nós!) O primeiro, no segundo ensaio, um dos gostando deste, gostando deste sempre em segredo, sendo este bem
diretores era bombeiro, torrou-se naquele incêndio, desmanchou-se o amigo, de tudo muito inocente, (Ou não?) amigo e nada mais, assim
cordão, O segundo, a feiticeira. creio, assim escutei, assim correu. Ou o rapaz mexeu com ela? Não.
Não que a família mandou fazer o exame na morta. Inteira. Direito
Palmira não se sabe. Torou a garganta, se atirou no poço. Quem explica?

Conheci ela. Ensaiava tão bem, tão bem entoado! Nem um Esméia
instante que não fosse alegre. Já com o cordão em forma, pra sair, ia
dançar na primeira casa, todos numa paramentação só vendo, a Vocês sabem da adivinha do poço? Por cima de ti...
orquestra tocando, a feiticeira de cetim e espelhinhos. Pois não corre
para os fundos, não anavalha a garganta, não se atira no poço? Coro

Esméia! Olha a memória da morta! ímpia!


A filha do bucheiro
A gorducha
Joana, Joana, Joana Soares de Almeida. Tanto verso que
recitava em festa de aniversário, naquela festa de uma revista escrita a Não digo que o nosso já entre no concurso... já ganhe taça.
mão... Muito mas muito meiga, tinha uns [174] den|tes! Trabalhava na Quem ainda somos nós? Ou vai também gorar?
Romariz. Na mão direita o dedo cortado pela máquina de carimbar
sabão. Todo o cordão correndo, ali no redor do poço, esperando subir, Palmira
içarem o corpo, Os faróis, os gritos, os homens lá dentro...
Qual de nós é a escolhida? Mande o seu Bahiano esconder a
Esméia navalha. Quem tem poço em casa, tape bem tapado, mande rezar no
redor. Poço atrai, sim.
Mas a causa?
[175] Esméia
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O meu só está reservado para a minha. Meninas! Deixem a morta em glória. Não agoirem, não
agoirem!
A gorducha
Noca
Que minha, rapariga?
Esméia, estás com um ar! Fadada a cair no poço?
Esméia
[176] Esméia
Morte, que mais? Não é só o que é meu? Que eu tenho? Poço e
eu fizemos um trato. Que a tua praga pegue, mea mana, pegue... Prometo só me atirar
depois do São João, prometo, assino um documento. Quero saber se
Palmira dá mesmo um sossego.

Joana. Vi a Joana no Necrotério. Semblante tão sossegado. A gorducha

Esméia Cismo que nesse pé não vamos nem criar pena, que este nosso,
coitadinho, vai gorar igual aqueles dois outros. Vocês soprando mau
Vestida de feiticeira? agouro! Esméia já se atirando no poço! Xô, suas corujas!

Palmira As moças

Como feiticeira, não caiu no poço? Como querias... Por nossa culpa, não, Maria Emília, por nossa culpa, não. Fé em
Nossa Senhora de Nazaré, em nossa boa memória, na nossa falta de
Esméia acanhamento, que este São João saímos. Que saímos, saímos! Se não
sair tão bem ensaiado, desonra não será! Que saímos, saímos! Tapa
Toda morte é sossegada? A minha que não. Eu defunta, essa tua boca, agoirenta!
ninguém me descubra a lamparina. Em quem me tirar o pano do
rosto, eu sopro. A morte é um sossego? Maria Emília, a gorducha

A gorducha Vocês? Todas ainda tão vergonhosas? Quando se quer a sério


um assanhamento da parte de vocês, aí que nunca sai. Descreio! Mas
a música? Nem a música? Noca, ficas com o pape!?
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queres fada, Noca? Fada? De fada já tens um arzinho, se não me


Noca, tirando a bola-de-cuba da boca engano.
Alfredo sacudiu o maracujazeiro, como se Roberta estivesse ali
De feiticeira? Eu de gênio sou tão pouca feiticeira, mana... oculta. Foi ao canto, passou pela jaqueira, suspeitou de Ana ali na
Bem, não custa tirar a prova, se não... ah! mas Simão jurou que trazia sombra. Voltou ao portão onde falava a filha do bucheiro:
os músicos camaradas deles! Também só um pouco mais de — E me digam uma coisa: o Japim? Quem confecciona o
paciência, sim? bicho? Quem me está armando o pássaro? Quem já viu bem de perto
um Japim verdadeiro? Onde está o ninho do nosso? O ovo? Em que
Alfredo, no portão beirada de rio?
Nisto, três moças encostadas na folha do portão, se segredaram
Entra, Ana, só um pouquinho, descansa a perna, já vens de e saltaram para fora, a rir, tapando a boca: Mas ah! mas, meninas!
algum velório? É o meu quarto, sim, lá na sala é o meu [177] corpo,
aqui só sou fantasma, com que cera me alumias? Vou num rabecão e [178] Maria Emília
tu a pé, atrás, de cera acesa, sim? Por que não aceitaste ser pastora do
Tentém? Querias ser a filha do duque? Olha, debaixo da jaqueira, isto A fabricação do pássaro? Só vão ver o bicho no ensaio geral.
é invenção tua. Zuzu, o que tem de nua, tem de pura. Ou queres, Esméia, encomendar um Japim vivo, ensinado, lá no rio
Barcarena? Por enquanto, fazendo de conta que o pássaro é aqui a
Ana, cuspindo nossa tripinha, tu já me tomaste a bênção, Chichita? Deus te faça
feliz, dê uma queda e quebre o nariz.
O papel? O da defunta tia Luciana naquele rabecão da Santa Fada, murmurou Alfredo. Fada. O papel para Roberta. Aqui é a
Casa? Me dás? (Batendo a folha do portão, “pura”, sacudindo o letra, falta a música, a flauta do Satiro que toca no Boi, meio bêbedo,
maracujazeiro, “tira o r e põe t”. Ana some-se.) aquele buraco na testa, o cabelo partido ao meio, tocando flauta. Fada.
Alfredo, debaixo do maracujazeiro, sozinho. Ana reaparece. Chegaram duas moças. A tripa correu para a madrinha, muito vexada,
— Aquela Roberta é tua aluna, que eu sei. Uma bela menina. O que queria ir lá dentro.
que dizem dela é um puro aleive, dou fé. Roberta paga inocente. — Menina, és frouxa da bexiga? Como é para passar a noite
Alfredo adivinha: Ana louvando a outra como se armasse uma com o Japim na cabeça? Que tripa nos tocou! Vai, entra. Eu não digo?
cilada. Instiga para que Roberta o agarre e o atire de vez naquela vala — Tripa? Não é o passarinho em cima da cabeça da menina
da José Pio. A minha vingança é a Roberta, lê nos olhos de Ana. dançando? Então é um pássaro tamanho do Boi para a menina dançar
Bruta menina. A desvairada tudo sabe neste subúrbio. Ana some-se. debaixo?
Alfredo escuta: — Ah, vocês sabiam? Ainda não sabiam? Do que aconteceu
— Esméia, te fica bem melhor fazer a feiticeira, menina. Noca, com o Cabuculino ainda não sabem? Não vai mais sair este ano. Um
a fada, se a recomendada do nosso ginasiano não aparecer... Tu cordão daquela fama, pois não sai este São João. Daquele luxo, pois
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este ano, gorou. Cordão ganhador de taças, metido a grande, este ano — Mas a cantoria quem puxa? Que música é? Ah, tudo ainda
babau. nem se sabe como se principia. Destrança, Maria Emília, tu que és a
— Que foi? cabeça. E a orquestra? Cordão só vai, se puxado a orquestra. Remédio
— O bichinho bateu o papo. é ir na Pedreira, Ângela, e catar um músico emprestado do Boi de lá.
— Mas que bichinho, filha de Deus? Não faz mal que seja o mais ratuína.
— O passarinho da representação, o Cabuculino! Não vem me — Do Flor da Pedreira?
dizer que tu não sabias que era um cabuculino vivo-vivo na cabeça da — O Gafanho, aquele, que pia no clarinete.
tripa? Cantava! Bem cantando quando representavam. Até que — Daquele Boi? Logo daquele Boi?
parecia ensinado. Pois bem. Estavam na metade do ensaio quando — Por quê? Que é que tem?
repararam que o bichinho adeus. — Vem cá que eu te digo bem baixinho.
— Na cabeça da tripa? Maria Emília inclina-se, a outra com a mão espalmada na boca.
— Ah, isso não sei se na gaiola ou na cabeça da tripa. Estou que Maria Emília sufocou a gargalhada.
foi velhice ou paixão. Ou desgosto do ofício. Sempre tão sozinho. — Põe uma tranca na língua, boca de tramela!
Também assim tão sem uma companhia, tão [179] solteiro, não? Por Alfredo vai ao canto, volta, nem a música nem a Fada. Se
isso este ano não tem Cabuculino. Bem feito. Uma vez me assanhei corresse até a casa dela? Me jurou. Me jurou a lápis que não faltava.
para entrar no cordão deles, me barraram, uma tanta exigência, pois [180] Onde que está tua aluna, rapaz? Ela vem, sim.
agora bem feito. — Com toda essa demora?
— E o enterro do passarinho? Fizeram? — Ela vem, sim.
— Não, dona indagadeira, assaram debaixo do teu fogo, — Ela vem, sim, ela vem, sim, e era uma vez a tua Fada. Ah!
comeste de espeto, sua indaga-tudo. Ou é mesmo uma, uma verdadeira tirada do teu bosque?
— Ah, a conversação está é comendo as horas, representar é — Tirada do meu bosque, sim. Não demora, chega.
que são elas. Seu Bahiano já saiu? Quando a mulher dele chega então Alfredo intimida-se. Maria Emília aceitará Roberta? Aquela
do espiritismo? De com pouco dá as nove e nem os papéis debruçada no balcão da D. Brasiliana? Aquela? Fada?
distribuídos. Cedo chega de volta o seu Bahiano, charão no sovaco. — Está esperando ela? Ela vem? Onde ela mora? O pior é que a
Quem aí de vocês já foi de algum cordão, entrou nalgum pássaro, música... E a música? O pior? — Indaga Alfredo a si mesmo. — O
numa pastorinha? Todas cruas? Entra em forma, entra em forma. pior?
Façam as alas. Alinhamento. Também que pássaro fomos escolher: — Feiticeira, te desencanta da janela, menina. Tira os olhos do
Japim. Antes tucano. Não choveu tucano em Belém? portão, ou é algum tajá no jardim te ensinando o papel? É o tajá?
Alfredo corre para o pé de Maria Emília, queria lembrar-lhe: Algum poço te atraindo? Queres meter uma folha do tajazeiro por
Me reserve sempre aquele papel. A condição dela: Fada. Sem ser dentro do vestido? Para a forma, caçador. Noca, ó Noca! Alfredo,
Fada, não entra no bicho. Escreveu a lápis na margem da aritmética: quando chega a sua aluna? Nem chega nem nada?
Fada.
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— Deixa, não faz mal que eu façozinho o papel dela, por ora, Roberta se negava, ou só desafiava? Ali na aula iam e vinham
comadre Maria Emília, tapo a falta, tapo a falta. Me experimente, os bilhetinhos, e tudo o que prometia o olhar dela, e certos momentos
comadre Maria Emília. séria, cobrindo o rosto com a aritmética.
Alfredo deu outro pulo no canto. Lá pelo sótão, lá em cima, D. Nivalda falava: E da Roberta, professor? Tem aproveita-
estava escuro. Será que ali em cima é a Roberta aprendendo as outras mento? Melhorou no ditado, na análise? Tão moça já, o senhor não
coisas? Volveu ao portão. acha? E agora, toda tarde, me trazendo rosa.
— E o papel de caçador é mesmo moça? Melhor não será Com o charão debaixo do braço, vem dos fundos o seu
homem? Bahiano:
— O combinado não era só moça? Só assim moça? Melhor não — E a música? O acompanhamento? Ou vão chamar o pirralho
será homem? da jaqueira que mal arranha a rabeca? Cordão, esse, que só na José
— O combinado não era só moça? Só assim mamãe consentiu. Pio mesmo! Já foram na polícia tirar licença? E o manuscrito para
E então, Alfredo? A sua aluna? Entrem em forma, meninas. dele cada uma tirar o seu papel, meninas? A partitura? Ali o moço
Entrem em forma. Assim é que vocês não querem que o cordão gore? escreveu mesmo o enredo do bicho, as letras? Vai ter um duque, vai
Qual! Pra o que que inventei essa tamanha dor de cabeça e, para mais, ter um bosque? O caçador mata o bicho e o bicho, vem a Fada, o
lidar com moça alheia, inventar nesta rua um cordão de bicho para o bicho ressuscita? As letras? Quem escreveu mesmo? O moço do
São João, já com [181] dois gorados, onde eu tinha o juízo? Bem que sereno?
podia era ficar preparando a sorte, os meus bons banhos, a locé na rua As moças à janela voltam-se para Alfredo que continua entre as
passando fogueira, criticando o cordão dos outros. Pra o que que me plantas, o rosto na luz que vem da sala. No peitoril o caderno de papel
meti. Não somos nós que vamos tirar a urucubaca desta rua. Entrem pautado.
em forma, entrem, entrem em forma. Alinhamento. Esméia, vira essa [182] — O senhor escreveu que escreveu, mas que quantidade!
tua bunda para a janela e entra em forma, janeleira. Te atira no poço Tão tamanha paciência, eu não lhe invejo o gosto, se eu escrevesse
mas só na queimação das palhinhas. tudo isso, o meu dedo me doía, criava calo no meu miolo. Dá até pra
Em casa? No capinzal? Na ciranda? No sótão com a Brasiliana? dois bichos, ainda sobrando. É escrito que não acaba. Encheu o
Pois hoje, na aula, escreveu: Vou, mas meu papel é Fada. Durante a caderno?
aula, Roberta só fazia de conta? Aprendiz ao pé dele e aqui fora já Tudo aqui foi seguindo os velhos enredos, foi, e escrito na
professora, aplicando as suas artes onde não se sabe? Lá aprendia intenção de Roberta. Aqui a Fada ressuscita o bicho, sim.
para aqui praticar, invisível, fugitiva, ou no sótão apurando-se? — O enredo modificou? Emendou o caçador, a Fada, a
Queria aprender de Ana aquela obstinação no rancor, na feiticeira? Como se chama a filha do dono do pássaro? E as outras
vagabundagem, pela liberdade ou pela sua perdição e com isso domar personagens?
Roberta, trazê-la até este portão, dizer-lhe: Entra, és a Fada deste — Tudo é seguindo o enredo antigo.
bicho, vagabundinha. — Como a gente vai decorar tudo isso? Mas tudo isso!
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— Falta tempo, Maria Emília, já se está nas portas do São João. — Que é, Esméia, que estás pedindo, pidona?
Tenho a fábrica. Só de noite... Cada folha cheia! — A língua de quem pergunta.
— Bem, se não serve, é só dizer, levo de volta o caderno... — Entra em forma, entra em forma, senão encalho este barco
— Não dê preço, Alfredo, essa menina ela só só é implicante. do seu Bahiano, é um repente que armo lá no meu oco de pau a mea
Me deixe espiar o caderno. Olhem! Olhem! O cântico pedindo licença rede, suas prosas, e adeus nosso assanhamento de botar cordão na rua.
para o bicho entrar na casa da vossa excelentíssima família! Está com Olhem os papéis! Feiticeira! E a Fada? De onde vem essa Fada,
toda a cortesia, ah! Aqui o papel da Fada. Fada escrito em letra Alfredo? Onde é o encanto dela?
gótica, meu Deus! — Presente, Diretora — apresenta-se a Esméia, piscando.
As moças se amontoavam sobre o caderno. — A substituta da Fada. Fada que nunca vem. Não afiançou que
— Comadre Maria Emília, ponha uma ordem em nós senão... vinha? A outra, a vice, em forma!
— Mas tudo isso! Tirou da sua cabeça? Só da sua cabeça? Não — Eivém a nanica, abram alas, é a vice-fada.
fez um translado? — Nanica não é tua mãe, peste, porque ela, coitada, é mea
— Olhem, a D. Brasiliana manda dizer que ajuda nas madrinha.
vestimentas, no enxoval do pássaro. D. Brasiliana. — Mas assim que não! Tem de haver boa união e acatamento,
Todas num espanto: D. Brasiliana? D. Brasiliana? criaturas. .. Alfredo, entra e vem me explicar as outras partes do
— A D. Marocas Soares costura os trajes, de graça, de graça. caderno. Mas, vocês aí? Querem uma comissão que traga vocês para a
Fez o seu oferecimento. Noite e dia na máquina, aquela senhora! forma, rogando: Princesas, tenham a honra? E a tal, aquela, me diz o
— Qual o meu papel, moço, e os versos das pastoras? O senhor nome dela, Alfredo? Ainda lá no canto pedindo o alvará do
é do Vinte e Seis, do batalhão? Ou da Brigada? namorado? Mas os músicos? As juras do Simão? Será que o pirralho
— Antes de indagar, põe atenção nas coisas, Sofia. Não estás da jaqueira dá um caldinho na rabeca?
vendo que é farda do Ginásio, sua cega, errada, zonza! [183] Gruda a — Ele então não aprende com o cunhado?
ignorância no céu da boca, menina. Peru calado, ganha um cruzado. — Rabeca?
Não vais entrar em forma? — Não, as letras.
— Não, que não venho aqui receber ralho dos outros, ora só. [184] Alfredo fechou o caderno.
Agora isso... Boa noite. — Menino, não vai atrás da burridade delas. Entrem em forma.
— Folgou! Folgou! Refrescou foi muito! E nunca mais o pé É sério ou não é sério?
aqui, escutou? Esméia saiu, veio até a janela, por fora, debruçou-se para dentro
Vagarosa veio Esméia, roça-se no dólmã do ginasiano, da sala, debruçou-se, bem de cara com Alfredo que se voltou para
cochichando: aquele negro rosto róseo, jasmins exalando, o beliscão no braço e ela
— Pensa que não sei que o papel de Fada... oh,, vergonha! Oh, cochichando, guardando o peito com as mãos:
vergonha! Quando soube, não acreditei. Aquela? Fada! Estou de boca — Cunhado, não? Cunhadinho? Já? Foi o caldo da piramutaba?
aberta. Já cunhado? Vão casar Adão e Eva naquele paraíso? Espera que vou
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dizer para a Fada. No que te tocou com a varinha de condão, arre! nas Leu, deu-lhe uma raiva, o molho? Engolia? Pela outra?
mãos da Fada! És o Adão da jaqueira? Escolheu, escolheu, tanto escolheu que caiu no alçapão. Roberta?
— Não, que a maçã que comi peguei de tua mão. Fada? Bem merecido!
— Um molho de malagueta, um molho de malagueta, era o que — Alfredo, vai com os namorados de Roberta, buscar o alvará.
devia te fazer engolir, seu-não-sei-que-diga. A Fada que te meta na A Fada se faz de rogada, assim não.
corrente, infeliz. Que aquela, tu bem que mereces, sim. Bem mereces. Alfredo, à frente do portão, não sossega. Maria Emília chama-o.
Mereces. Mas bem merecido. Faço voto. — Alfredo, o trato é você não se arredar durante o ensaio. Que
Maria Emília chamava. aconteceu com a sua aluna? Por que a sua aluna não vem?
Esméia entrou em forma, olhando de esguelha para Alfredo,. — Arrependeu-se? Ou desdenhou de vir? Soube quem somos, lhe deu
enfia o teu caderno no miolo das outras, no meu que não, ah, nojo? Vai buscar a menina, rapaz.
arrependimento... Aquela noite, só o meu fogo, onde eu estava? Foi a — Quem? — indagou Esméia, tapando o riso.
modo de um ímã, ah, arrependimento, O que agora ele de mim já — Em forma, Esméia.
espalha, falando de maçã, ah, arrependimento... Cerra os olhos como — Meu Deus, onde está a encantada, onde a encantada, que não
se voltasse àquela sala que lhe parecia, no escuro, deslumbrante, girou vem?
no sonho em torno do lustre, dos enxovais ali guardados, o mergulho Alfredo guarda-se debaixo do maracujazeiro e logo fortes
no leito, o salto para a rua... palmas no portão.
— O teu papel, Esméia. — É aqui a sede do pássaro de fama? Frondoso maracujazeiro,
— O meu já tenho em casa, mana. De cor, inteirinho, letra e sim, senhor. Deve dar muito. Pode-se apreciar o ensaio das gentis
música. Era dum antigo pássaro do Umarizal, vovó e mamãe se senhorinhas? Prontas para ganhar a taça na quadra joanina? Posso
lembram, bote que tempo, o Aritauá. Desse caderno aí pra mim já não entrar por uma curiosidade? Um lugar na platéia, consigo? Não vou
carece. desvendar lá fora para os rivais o que sucede aqui nos ensaios, os
— O teu papel, larga de pavulage, Esméia, pega! Assim vocês variados números, me comprometo. Entrada franca, senhoritas?
me obrigam a um regulamento de penalidade. [185] Alfre|do, me traz Licença?
amanhã, um regulamento, me traz? Toma o papel, mau-exemplo! — Maria Emília, o teu pai.
— Pego, mas leio de cabeça pra baixo, serve? A gorducha, bem baixa, lhe deu uma impaciência: Que cabeça
— Olha, Esméia, se gorar não é só só eu que me cubro de essa do papai aparecer... Que tinha de vir? Era só mandar pelo Bidico.
vergonha. Enquanto não veio, não sossegou...
— Não ralha comigo, Maria Emília, não ralha... Olha o poço! [186] — Entre, papai. Trouxe o apito?
E leu na margem do papel: Me desculpa, Ismênia, engulo o Alfredo reconheceu: Era aquele mesmo de Santana, o dos efes e
molho. erres, só faltava o papagaio no ombro, o dono daquela festa, o
presidente da irmandade de São Sebastião recebendo os convidados
com uma salva de palavras, a noite com os tios no barco Santo
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Afonso, o parto da misteriosa senhora fugida de Belém, a dança com a lei é deles, então, no relento sem no que me agarrar, atravesso para a
Dolorosa, a recémnascida no colo da D. Prisca a embarcar mal cidade com a família nas costas. A irmandade finou-se, o santo me dê
amanhecia maré enchendo, o seu Almerindo, o santo no colo, com indulgência. O São Sebastião, eu tive que me desfazer dele, precisão
palavras da Santa Escritura e lá fora a ilha, de dia, de noite boiúna. duns cobres, o santo é testemunha. Pra onde vou? Onde o agasalho?
Agora na voz, nos olhos do pai de Maria Emília, Alfredo revia o Trabucar no que ainda posso, não esmorece, Almerindo. Remexo esta
barco, os tios, o resto do menino que ficou em Santana, o suado cidade. Já peguei um lugar de vigia numa usina, começo amanhã.
amarelume de Dolorosa, a primeira mulher nas pedras, a baía lá fora Assim faço parte desta população, finco na baixa deste subúrbio a
braba. O rio, num limo, clareava com os botos sem sono, e ali boiava mea raiz marajoara. Começa sempre, sim, há quantos anos,
o rapaz, este. Agora este rapaz, com este caderno na mão, esperando a começando sempre, faz desfaz... Um chão, meu, nunca que tive. No
Fada. alheio ando porém nunca me apropriando, começando sempre, desde
— Licença pra tirar uma opinião desse vosso primeiro ensaio? curumim tapador de igarapé, vira tartaruga, arpoa pirarucu, caldereiro
Todo começo tem os seus embaraços. Bois e pássaros já ensaiei, par de ferro, e o mais no que experimentei o pé no mundo. Gosto meu,
deles, no Marajó, no estirão do Arapixi, par deles. Está lá o rio que meu amiguinho, era, isto sim, ficar numa beira de igarapé, ali pelo
não me deixa mentir. Então aquele que botamos, o Pirarucu Arari debaixo dos meus coqueiros, com um roçado atrás, a farinha de
Encantado? Não nego a sofrível experiência que tenho da ciência de tapioca espocada de forno bem quente, o cacuri na maré, ceva uns
cordão de bicho, modéstia à parte, mas pode somar os São João que capados, arma a rede no copiar, o meu mingau de crueira com açaí e
brinquei, graças a Deus, nunca desconheci ninguém nem ninguém a deixa cantar o tucano! Porém cismo que amarrei a envira neste porto.
mim graças a Deus, assim é o proceder, muito aprecio ainda os A sorte não maldigo. Obedeço ao decreto. E o seu pai, o Major, como
folguedos, folgazão que sempre fui depois de feita a obrigação, e está passando? Estou que conheço a senhora sua mãe, ou sua mãe
estou que a família o meu sangue herda, pegou de mim, não censuro nunca passou em Santana, estou que sim. Ou foi em Cachoeira, se não
mas façam na boa união e escolha e tudo no devido. Fazer má figura, me engano, te lembra, Almerindo, um inverno, que... Espere... Sim,
isto que não convém. Filha minha passando vergonha? sua mãe, pois não me lembro? Parece que estou vendo! Ela na porta
Vira-se para Alfredo, fingindo surpresa: do chalé com uma braçada de baunilha. Era, sim!
— As pedras se encontrando! Muito do bem aparecido! Devera — E a bacia de louça fina?
me regozijo que o senhor seja um honrador desta brincadeira em que — Onde lavou sua mão, aquela noite?
a mea filha Emília toca o apito. Naquela noite menino e nesta meça o Seu Almerindo desata a sua risada.
tamanho! Folgo de ver o amiguinho partilhando da idéia da mea filha — Não lhe fez mal o toucinho? Por certo não, que era do santo
e suas distintas [187] cole|gas no desempenho de uma representação o capado.
de um pássaro na quadra joanina. Pode nos dar um especial adjutório [188] Espicha-se para o ouvido de Alfredo:
com a sua luz? Bastante estudo? E os vossos tios? Ah, Santana! — Que é que eu podia fazer mais?
Acabou-se. Perdi a mea senhora, que Deus a tenha, Deus levou, em — Como?
Santana enterrada. Os brancos me pedem o barracão de volta,, que de
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— Ainda não sabe o que é arrancar uma família da velha toca, Vamos a ver. Vamos a ver. Safra de moças! Voto que seja um bicho
meu menino, carrega com os tarecos, sustenta as bocas na cidade na bem falado se bem ensaiado. Que é que falta?
primeira semana, mês, conforme o tempo, conforme a pedra e a D. Maria Emília, autoriza-me a usar o apito?
necessidade, até que encontre um osso? Tive que me desfazer não só Alfredo, agora num alento, tentando desenroscar-se corre no
da imagem mas da bacia, de duas frigideiras que a finada tanto portão, encontra os companheiros da noite que se espalham no jardim.
estimava, e do que possuía em tetéia... E depois, perdendo a patroa... — Chegou o rabequista da jaqueira? Manda entrar o rapaz. O
Tire o senhor um juízo. Sim, que os filhos pegaram tamanho. O meu rabequista da jaqueira?
mais velho embarcou. O outrozinho praticando a caldeira. Essa, aí, — Quede a rabeca?
não se vexou, logo se dando com as vizinhas, lá por conta dela entra — Falta encordoar e corda não tem.
na fábrica. E aqui me acho. O folgo não perdi. — Corre pela vizinhança atrás, mas meu Deus! Vai na
— Nem a sua risada. Brasiliana!
— Ah, que o senhor até que me lembrou! Dar uma risada é Entre os rapazes, Alfredo parece indagar de cada um:
soltar os passarinhos da gaiola. E só bem ri quem muito chorou sem Estiveram com ela? Um de vocês rolou com ela pelo capinzal,
ter chorado, decifre esta. Como vai a sua aritmética? Devo imaginar a andaram no estaleiro, aonde? Volta para a sala. O velho fazia as suas
alta numeração que vai nessa cabeça, não me diz porque não se gaba, caçoadas. Logo se compenetrou: Olha a forma! Bate palmas, apita
o gabar-se é oferecer-se, o oferecido valia não tem. Ainda sei rir, sim, com bravura.
entro nesta cidade feito um de primeira viagem, o tombo deste navio — Tirar a introdução?
não me põe n’água. Agora estou com uma promessa de cortar carne, Em forma, as moças se entreolhavam, num embaraço, Maria
viro açougueiro, assim espero, me adisponho, que conhecer boi, não é Emília de cabeça no chão, Esméia fazendo figa escondido para
por me gabar, sei pro meu gasto, reparto assim-assim um animal Alfredo. Assanhavam-se os rapazes debaixo do maracujazeiro.
bovino, que a partição de um boi exige uma fina arte, concordo. De Que formalidade falta?
talhe e das partes da carne verde para açougue sempre passei por um — A orquestra, papai! Não falta a orquestra?
curioso, talhei uns quantos, fiz matalotagem, sangrei, tirei couro, abri. — Pois então até que chegue a orquestra, licença para tirar uma
Já não falando em porco, que nisso tirei grau. Está lá o rio que não me lá das do Arapixi, as senhoritas pão reparem no meu grasno, entôo
deixa mentir. Ainda ontem estive na marchantaria, à espera da mas muito desentoado, só o trivial, acompanhem o meu solfejo.
promessa. Depende de uma vaga naquele mercadinho da São João. Vamos assim mesmo a seco, tudo é a boa disposição, é a boa
Espero. Mão no leme, traquete firme, vamos embora. Bem, esta hora influência, o acanhamento deixem para o dia, aquele que desejo a
não é pra falar das responsabilidades da vida, é uma hora recreativa e todas, O que sobra aí nas senhoritas ah! é a flor da idade, é o botão de
aqui entre nós, seu Alfredo, essa mea filha, pro senhor ver, em rosa, é a flor da idade! Imaginem, meninas, o que era no meu tempo!
pouquinho [189] tem|po em Belém e logo reunindo uma irmandade, Um temporal! Animação. Animação! Animação, meninas. [190]
cabeceando um cordão, que o que ela tem, tem, impõe respeito, é o Vexa|me? Põe debaixo do chinelo. Aí a menina, a que faz o pássaro,
sangue? E os senhores músicos? Não me dou mal nesta cidade. fique no centro, aprenda a evoluir, assim, assim! Maria Emília, tanto
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que o Bidico chegue manda de volta para buscar o nosso farol velho [191] Olha a manhã verde. Verde o chão, na calçada, nos ta-
que o candeeiro, esse, é pouco. Um! Dois! Três! O senhor não aprova, buleiros, bancas, alguidares, cuias, morenas, principalmente as mais
seu Alfredo? Tem notícias do nosso Major? Apreciou aquela nossa acesas e faceiras do Jurunas e Marco da Légua, verde, verdes as
festa de Santana? Ah, o rio, aquele, não vai ver outra igual. As festas? montarias que chegam da outra banda carregadas de São João.
Só as do passado. Feliz o senhor que ainda apanhou a derradeira. Não Amanheceu São João em Belém. Depois do banho de cheiro, sortes
é do seu parecer, principiar o ensaio assim mesmo a seco até que de madrugada, arrumação das lenhas para a fogueira da noite, Belém
cheguem os instrumentos? Acharam corda para a rabeca? Atenção! põe na cabeça a capelinha de São João. Da feira verde nesta beira
Maria Emília, já ensinaste a meia volta, por dentro e por fora? d’água sai a cidade repleta de ervas, raízes, grinaldas e folhagens,
Atenção! Afinem a garganta! Entoem! Ou vamos distribuir primeiro verde o rio, o cais, as janelas.
os papéis? Mãozinha na ilharga, passarinho! Assim! Balançando no — Magá!
galho da seringueira, a maré subindo, o vento ventando, o ninho Alfredo beija-lhe a mão cheirosa. Magá, com a sua capela de
balançando, ei, japim! Assim. Já! pataqueira, alta, escura, os jasmins no cabelo, a sala folhuda, exala
banho tomado aquele instante. Larga e lustrosa como folha de
Salve, salve, meu São João morirana.
Saiu, saiu em seu louvor — Tão cedo na beira da praia, aquele-menino? Estás com cara
O Japim de estimação de noite em claro! Olha! Olha! Vens buscar alguma garrafada com o
O Japim de estimação Dr. Raiz? Tento com o mundo! Tento com o juízo! O mundo é a
Cabra-Cabriola, só gosta de bezerrinho novo. Olha, meu cabeça de
pião! Queres um ramo? Fizeste, te prepararam uma garrafa de cheiro?
— Coro! Coro. Evoluir! O Japim de nossa estimação. Maria Uma capela pra uma das tuas tantas namoradas?
Emília, puxa as vozes, puxa a ala. Coro! Assim! Agora vamos — E a senhora? Preparou alguma tartaruga?
distribuir os papéis. Que o senhor está achando, seu Alfredo? — Olha ali uma virada... Fiz uma, sim, um dia (lesse. Anda
Acharam a corda da rabeca? Vamos, vamos distribuir os papéis. Uma vasqueiro, pequeno, ter, teve, e agora?
por uma, vou chamando, o senhor não concorda, seu Alfredo? Então — Me dê notícia de Mãe Ciana.
vou chamado: — Saindo na minha ilharga agorinha-agorinha com o balaio de
— O amo do pássaro! cheiro pros fregueses dela.
— A filha do amo! — E depois?
— O caçador! [192] — E depois? O depois tu bem que já sabes.., O depois é ir
— A feiticeira! no rastro daquele santo dela — por onde, é que não se adivinha — até
— A fada! que pegue o danado pelo papo e ralhe: Mas, rapaz! O banho que te
— A fada! preparei desde ontem, fiz serenar toda a noite, te espera, que tu queres
— A fada? Onde a fada? mais? Mas banho de São João num diabo velho daquele? Mãe Ciana,
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por dentro dela, é sempre uma de quinze anos. Estou por ver doença — Soube? Pois não soubesse. Quem te soprou?
igual. — O meu anjo da guarda.
— A senhora nunca teve? — Foi? Demais linguarudo esse teu anjo. Corto a língua dele.
— Pelo meu finado marido até que me comichou. Mas disse: — Vai?
Ah! Se for meu, outra não come, senão... o diabo que te leve. Nunca — Então pra que que comprei no Reduto o pano e o sapato?
padeci dessa febre. De tal gogo. Ah, Deus te livre! Querias que eu fosse, como? Vou pra não fazer desfeita a quem tanto
— Hoje bem que é o dia dela. Dia da Mãe Ciana. Dia do cheiro. me pediu que eu fosse. Culpa é minha de ser convidada?
— Ah, que hoje em Belém a modo que até a nossa obra, com — Só por isso?
perdão da palavra, cheira. — Só por isso. A quem me convidou, dizer não, não posso.
— Mais ou menos onde primeiro foi a Mãe Ciana? — Quem?
— Pra te dizer, aquele-menino, qual a banda que escolheu pra ir — Meu Deus! Bencinha, papai?
primeiro, pra te dizer, não sei. Só te digo que saiu pensa com o balaio, Deus te livre! Andou e reandou, maré vem, maré vai; para não
trescalando. Lá se foi, a pé, que é o bonde dela. se aproximar do Reduto onde era o baile, varou a Vila Tubo, vagueia
Mãe Ciana ia salpicar de cheiro o chão, o céu e os soalhos. E ele pelo cais, que se viu estava no meio da rua só espiando de longe, casa
queria seguir — Deus te livre! — com Mãe Ciana, carregando-lhe o iluminada, uns braços na janela, o jazz na alcova. Aqui fora tudo
balaio e a paixão. gelava, ou queimava, Deus te livre! O pé doía, o poste dando choque,
Também não seguia um rastro, uma sombra, um pé de vento? o bonde espirrou lama, lá dentro sumia Roberta, naquele clarão um
Não mais Andreza nem Luciana. Essa outra que esquecia de assinar o ombro, uma fita, o cabelo, os braços na janela, e esperou infi-
nome no ditado. Assim de braço com a Mãe Ciana, pelo cheirume nitamente o fim do baile. Lá saiu um bando, a pé pela São João, e
geral, caminhariam entre as fogueiras e os cordões, currais de boi e passa a convidada, pois de repente não tirou os sapatos? Correndo
banhos no sereno, os dois pela cidade, aonde anda o diabo velho? A atrás da manga que tinha caído?
demoninha, aonde? Ah, que lhe acertou fundo a flechada, Deus te — Não oferece?
livre. — Oi que me assustaste, rapaz. Donde já que tu saíste?
Já não pode esperá-la na D. Nivalda. Roberta na escolinha não — Dum baile na Piedade.
vai mais, virou moça de fábrica, trabalha na Parah, em solas de — Na Piedade? Tu? Como? Se nem me avisaste? Baile?
borracha. Sai dos serões da fábrica no meio dum bando, todo aquele — Baile.
bando, pitiando a borracha. No sábado, [193] entra em casa, rica do [194] — Toma, come deste lado da manga, que como deste..
seu salário. Lá pelo quintal a figura do pai, o sempre flagelado. No Dançou muito?
Reduto compra um pano no prestação, aquele atracador brilhoso, e o O bastante que pude.
sapato branco, tudo nos turcos do Reduto, vejam só a compradeira, Comeu a parte da manga que lhe cabia e ela cantarolava com os
agora é só “estive no Reduto”. sapatos na mão. Um tempo assim sem se falarem. Por fim:
— Soube que vai a um baile.
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— Carrega na tua mão este sapato... Com quem... Bem... Ah, O luar amadurecia a moça? Ou não era? Ou só lhe ensinei a tabuada e
assim, sim! De pé no chão! Vamos neste instantinho fugir nós dois? ela me ensina a sua álgebra? Essa era aquela a quem a Brasiliana
Volta agora do serão um pouco pálida, impregnada de borracha, gritava: Te capo, pirralha?
convencida moça de fábrica não mais uma aluna nem menina, e passa Iam até ao canto, voltavam, ao Longo do muro, os dois sem
sem vê-lo ou Consente que a acompanhe, seca, mais atenta às colegas língua, a prima inventou uma toada, calou-se. Era um velho muro, lá
que a ele, ou só, com pressa. Nem uma vez foi ao Japim espiar o dentro a horta, e foi que Roberta:
ensaio quanto mais receber seu papel de Fada. No que entrou na — Ah, eu só um instantinho nessa horta! Não era? Vamos,
fábrica... Em que capinzal ficou a molequinha, em que praia a Geralda? Tem de ter bom maxixe, tem não?
enfeitiçada pelo rio? Puxando um suspiro, a segurar a mão da outra, examinou o
A última vez que ele a viu aluna foi aquele domingo à noite, sapato.
rente do muro, os dois passeando, com uma prima de companhia. Ele — Vamos? Roubar um pé de couve. Meu jabutizinho lá de casa
leva ao sebo o livro de matemática para terzinho uns trocados no bem que anda me pedindo uma couve... Mas estou é com pena...
bolso, se traja meio tio bimba, paletó claro, calça azul puída, passável Pena de ter saído de sapato branco, o do baile, preferível ele na
para a noite, a sentir-se tão caboclo-do-sítio, jegue-jegue perante ela, mão, assim tão...
moça de fábrica que faz compras no Reduto, de sapato branco. Ainda — Tiro do pé, Geralda? Vamos na horta?
assim era a aluna a seu lado, um tanto quanto menina na voz, nos mo- Alfredo olhou para a sua dama. Ela parecia de asas com
dos muito exemplar. Como e onde levá-la? E aqui neste paletó ruço, o o sapato branco e a zombar de tudo, do luar, da cerimônia do
sapato salto comido, todo embaraçoso, melhor seria fardado, faltava rapaz que já se via entre as couves a apanhar uma folha para a
passar a farda, também levava em conta que perdia o Ginásio, não ia jabota... Como entrar no canteiro senão... Como fazer o desejo dessa
às aulas, por isso tinha vergonha de uniformizar-se, o ranger da jabota?
perneira peava-Ihe o passo. Convidava para a garapeira? Ao doceiro? — O jeito é me encostar no muro, você pula no meu ombro...
Um passeio até o Una? Olhar os imigrantes chegadinhos do Japão ali — Me tomando por quem? Por uma gata? Uma mucura? Eras!
amontoados na hospedaria? Uma volta de bonde? Ou em busca de um Roberta apressou-se, parou, olhando o sapato, olhando a lua:
quarto de anjo ou de um bom defunto, ali os dois se namorando mas Está que encadeia, não, Geralda? Mas é que o meu [196] sa|pato
com todo o respeito defronte do morto? Não. Melhor aqui rente do encarde. Está encardindo. Escorou-se no muro, de cabeça virada,
muro, escondido da mãe [195] dela, a prima de companhia, luar, fechou os olhos no luar.
caminhavam muito calados. A prima: Que é que vocês dois têm que — Adivinha o que estou pensando, Geralda. Adivinha. Mas
vão tão assim, comeram abio? adivinha!
O abio, sabia o que era, o que era, e só pressentia fim, o baile — Ainda mais! Não aprendi esse ofício, Roberta. Ele sim que
atravessado, aquele sapato branco, o serão da fábrica, o iminente bater adivinhe. Que adivinhe, que adivinhe.
de asa, as compras no Reduto, era uma vez a aluna. Roberta passava
pelo amor, molhando a ponta dos dedos no imenso mar. Ou não era?
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Ele veio, tocou-lhe o braço, a prima distanciou-se, Roberta deu rameiras de pé no chão metiam rama emborcando a garrafa atrás do
a mão, tão imprevisto, deu um passo e ele lhe roçou o beiço no curral e lá vai, mediante o cartão aceito para dançar em casa, o
cangote. coitadinho do Japim, as moças de amarelo e branco, cetim e
— Quem que lhe deu licença? Assim tão confiado? Acos- acetinado, o bicho na cabeça da tripa, o seu Almerindo puxando o
tumado? cordão como um diretor de irmandade, o irmão da Zuzu arranhava a
— Não adivinhei? rabeca e o Bahiano recolhendo o donativo do dono da casa com o seu
— Aquilo que te contei, Geralda? Sabes? Pois foi. Depois te charão de prata. Coberta de cetineta, sandália e fita na testa, Esméia
digo mais. uma rosada negra dançando no bosque, debaixo de palmas, “...Tão
Passou a mão pelo pescoço, desmanchou a fita do cabelo, logo bem de feiticeira!”
apanhou o rapaz pela aba do paletó, Alfredo temeu pelo paletó. De Ana não sabia. Fechada a janela do sótão. Os companheiros
— Pois venha agora me dizer, venhazinho me dizer. Quem que da noite andavam pelo arraial de São João, pelos bailes roceiros.
acabou no meu lugar naquele seu tão falado cordão? Quem a muito Quando foi, se viu defronte do sol raiando, defronte a barraca de
excelentíssima? A sua escolhida? Aquele cordãozinho tão chocho? Roberta. No sobressalto, apanhou o bonde, veio banhar de verde a sua
Coitado! E eu ali, pra fazer as vontades do meu professor, eu ali de noite em claro nesta feira de São João atrás do Mercado de Ferro.
Fada! As honras... Estas ouvindo, Geralda? Magá voltou com o jambu para o seu tacacá da esquina.
Alfredo sentiu a mão fugir-lhe. A fábrica arrancava-lhe a Fada, — Passa por lá à tarde por São Jerônimo, seu sumido, não te faz
não sabia mais desentranhar aquela flecha, como partir o cadeado. de tão caro. Queres que te prepare um banho? Vai lá em casa. Tirar a
Tocou-lhe o braço, juntou-se a ela que lhe deu a face, ele a beijou caninga, que de caninga Deus te guarde. Tás é a modo esverdeado,
bem no canto da boca fria, fria, de Fada, e assim se despediram, criatura! Não vá ter pegado da Mãe Ciana, Deus te livre!
desfeitas no luar as duas moças rente do muro. Os meninos, coroados de folhas, brincam na praia como filhos
Atrás daquele rastro, lá se vai no cadeado, aqui parando, capaz do curupira. Magá com as suas folhagens, por entre os peixes, os
de subir na Penitenciária e afundar a cabeça no colo de Bina, a feia, cheiros no ar, aqui é chão de feitiçaria. Alfredo apanha o Curro, o
agora correndo, como se uma febre, o beijo, o beijo no canto da boca bonde está que um bicho-folharal. Nesta exata manhã perde o
fria, perdida aluna, perdido luar, perdido Ginásio. Segue pelo Una, Ginásio. Cortada a matrícula, tantas são as faltas, agora é o muito
renteia o rio, escolhe o ponto do muro onde deve saltar para apanhar abandono de si mesmo ou desprezo, solidão sem socorro ou livre para
as couves, entra na estância, abre a torneira, a cabeça debaixo da saborear a sua postema. Que vai dizer ao chalé? Aos tios? Aquele
torneira. caminho [198] per|deu-se. Fechou-se a porta. No pé de Roberta, os
[197] Agora a todo momento espera o fatal bilhete a lápis: De restos do Ginásio. Ao chegar à estância, é o bilhete de Roberta? Bina,
hoje em diante tenho outro em seu lugar. Queira desculpar as faltas. tu que és a mais feia por isso a mais carecente, abre o teu colo a esta
Por isso esta noite inteira pelo subúrbio, nos currais de boi cabeça. E de tudo desligado, neste nada metido, o passageiro desce no
bumbá, entre a cabroeira da cachaça, entre a mulambada, viu num Reduto, na esperança de encontrar a moça de fábrica pelas lojas com
esgru à porta do botequim o pau cantando, alisou-se na roleta, as a sua grinalda de São João ou com um bando atrás de chita para o
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baile na roça. Ou prova a sua vestimenta de Fada do Estrela Dalva na e desfile ao calor das fogueiras, com os balões subindo e com este . . .
casa do seu Quintino Profeta, dono e amo do Boi? tudo de minha parte teve fim.
No centro da sala, cercado de meninos, o Boi. Seu couro é de — Professor, professor, passe fogueira comigo de padrinho,
veludo com estrelinhas prateadas. Alfredo quer entrar, não pode, toda sim?
a casa zoando de gente, preparativos, o quintal tomado, brincantes, — Ar, Zul! Pecado! Com ele de padrinho? Logo tu? Olha que
agregados, espelhinhos, maracás, pandeiros, o macaco, capacetes, São João te castiga, aquela-menina...
tangas, esse tinge o rosto, aquele põe a cabeleira, ali o curumim no Passaram fogueira, três vezes, São Pedro confirmou, bença,
urinol. O Boi, o Estrela Dalva, do São João do Bruno, com seus olhos padrinho? Olhem! Vamos! Depressa que o Boi vai longe, já
de fundo de garrafa e chifres dourados, levantou a cabeça. O seu tripa chegando! O Boi dá entrada no curral com trinta estrelas clareando na
alisa-lhe o rabicho: mão da tropa, estandarte, orquestra, a indiada com as suas plumagens
— Menino, não toque no Boi. Olha só, senão chamo o seu saltando, sobe no palanque debaixo das palmas do terreiro aqui cheio
Profeta. de lama e serragem, barraquinhas de mingau, arroz-doce, casquinha
É o que dança debaixo do Boi, leva o Boi para o meio da roda, do muçuã, tacacá, cariru, cerveja paraense, pato no tucupi, rama e um
para as arremetidas e volteios, na rua, palanque, arraial. Com seus pés joguinho, lá no fundo, de roleta e dado. Pode queimar, queime...
de homem, o Boi escarva, investe em círculo, curveteia, brabo ou Queime. O Boi ocupa o palanque de pau e palha, embandeirado e
travesso, rabeando atrás dos balizas, Boi dançador que só visto. com lâmpadas elétricas, o Boi dança:
— Aqui isto, professor.
O guri lhe põe o papel na mão, some-se casa adentro, Já chegou, já chegou
encandeado pelo Boi. Tá no terreiro
Não abre o bilhete. Soltaram um espanta-coió. Os três cachorros Tá no terreiro
ladraram, acendeu alto a fogueira da casa, também a do vizinho, Nosso fama caprichoso
aquela defronte, ateou-se ali a outra, as fogueiras iluminam a cidade, Alevantou
e este bilhete a lápis,. papel de embrulho, lido ao fogo das achas: “É Alevantou
pra lhe dizer somente que tudo de minha parte teve fim. Tudo que o Pra pisar orgulhoso
senhor me escreveu está no meu poder as suas ordens pra lhe mandar Alevantou
de volta. O que lhe escrevi pode queimar, queime. Alguma falta que Pra pisar orgulhoso
fiz foi sem querer. Desta sua amiguinha R.”
[199] Gibões de veludo vestem os vaqueiros e o Amo, lantejou- Machuca o bilhete, pra pisar orgulhoso, furando pelo curral à
las no peitilho, esta casa é o camarim do Estrela Dalva, aqui se guarda cunha, a tropa lá no palanque faz suas evoluções, [200] vai principiar
o Boi durante o ano, seus apetrechos, roupagens, instrumentos, as a comédia, O amo do Boi, vestido a fidalgo, desfolha a toada:
toadas, suas taças, sua fama, em dormitório especial, com as
fotografias do Boi na parede. Vai sair daqui um instante para exibição
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Arreceba o Boi
Prata fina brincadô a apresentação do Boi às damas e cavalheiros, às autoridades e
semeando pena de ouro demais convidados. Roberta, com os seus poderes, lá em cima, nunca
que a princesa lhe mandou olhava para baixo, toda em si mesma, na mão direita a varinha de
condão, tão certa de ser Fada, tão nascida para o Boi, Deus te livre! O
Na ponta da fila, luziu o diadema, saia de cetineta, o peito de Boi faz um pião, chifra o ar, o Pai Francisco entra e solta uma graça,
lantejoula; o manto de arminho, luvas brancas, varinha de condão, a desce a toada:
Fada. Assim, lá em cima, no palanque, tão de repente, vista de longe,
ao clarão das lâmpadas, dominava o terreiro, dominava este chão de Meu Boi é prata fina
serragem, esta poça de lama, os balões e as fogueiras. Agora é a voz É pai de muita malhada
do primeiro vaqueiro: Sai de noite do curral
Só volta de madrugada
Moça bonita
Sem ser mulata Roberta no Estrela Dalva. Ali no palanque, de Fada. Com a
Teu rosto é lindo prima de companhia ensaiou meio secretamente na casa do Boi,
Teus olhos mata nunca no curral, cortou os serões da fábrica, nunca aparecia no ponto
do namoro. Quando e como a viu o seu Profeta? Como principiou o
A simples amiguinha em pleno palanque, Fada! Numa nuvem, conhecimento? Muito manhoso, mandou uma comissão em nome do
semeando pena de ouro, reluz o diadema, vira-se daqui, vira-se dali, Boi em casa dela pedir aos pais licença para Roberta ser a Fada. Os
na cadência da tropa, rejeitou alpercata, calçou o sapato do baile, e pais. (para melhor dizer, a mãe,) se fizeram de muito rogados, que
seu manto de arminho? Deus te livre! E dela, nesta mão, como um não podia ser, que era por demais de todo impossível, que Boi era
lacrau ferrando, este papel de embrulho, a lápis, adivinhando esta Boi, muito do impróprio para uma moça. Não corria má fama? Que-
noite, esta manhã na feira verde, este meio dia no Reduto, esta tarde que não se falava! Boi? Minha filha no Boi? Saindo no Boi? Boi era
pelas estivas no cariazal, um minuto antes quando tentava de rojão Boi, sabendo-se muito bem os assuntos que saem, o que era Boi.
entrar no Profeta para ver os preparativos da saída do Boi. Alteraram Sabia de cor. A menina era família.
a velha comédia, que não tinha Fada, e introduziram a Fada, que era — Mas nosso Boi é de família, D. Domingas.
só de pássaros, agora é a Fada no curral, correndo os campos para — A menina tem sua educação. Fosse num pássaro. numa
proteger o Boi, tirar da mão da Feiticeira os vaqueiros enfeitiçados, pastorinha, num bloco de moças para o carnaval... Tinha um
vira-se daqui, vira-se dali, a tropa entoando: cabimento. Mesmo assim, ano passado, não consenti que ela saísse de
sabia na pastorinha do Prado. Agora no Boi? Logo no Boi? Naquele
[201] Levanta meu boi de fama Boi? A menina tenzinho a sua [202] educação, sim que pouquinha.
Estrela da madrugada Quem que de nós pode ter muita? Agora sem mais nem menos levada
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metida saindo no Boi? Pouquinha mas tem e com tão pouca que tem fios de conta na testeira quebrada, o apito preso [203] ao peito por um
ainda saindo no Boi? Assim desgraça tudo. Arrisco consentir não. cordão de ouro. Se não ser a senhora. Senhora! Só faltou vir no andor
— Mas, e o Boi, D. Domingas? Sabemos dar boa conta de filha a roupa de Fada. Senhora! Os panos comprados na D. Brasiliana?
alheia. A educação faz parte dos nossos regulamentos, lá no Boi, D. Quintino Profeta, no que mandava a comissão, já armava o seu laço?
Domingas. Nosso Boi é familiar, Mestre de Boi-Bumbá, isso era, que era, era. Ninguém lhe negava o
D. Domingas. bom brincar, o saber consumir-se, o merecer a Taça. Diabo é o seu
— Dou licença, não. costume, por todos esses anos de brincar com Boi: brincar também
— Sua menina é que melhor encarna., D. Domingas. com as xerimbabas do Boi, as mais de dentro do farrancho, aquele seu
— Dou licença, não. ninhal só fêmeo. Assim diziam, como de fato, era muito Cabra-
— Para aquele papel, outra não tem, D. Domingas, senão ela, só Cabriola com as bezerrinhas do seu curral. Quintino Profeta? Todos
a sua filha, D. Domingas. Não é por estar na sua presença, D. lhe conheciam a mandinga e a política, o seu macio abuso de: No que
Domingas. preferiu, possuiu. Como uma atribuição que o Boi lhe dava, cumpria.
— Dou não. Nesta hora inclina-se para a Fada, lhe diz.., sabe-se lá o que foi dito?
— Fada e sua filha é só uma, D. Domingas. Demais respeitoso à vista do público, o semblante fechado, os modos
A mãe já não falava, só era não com a cabeça. O pai, o ar de quem muito se preocupa com umas tantas coisas, o rigoroso apito
flagelado, se fechava na sua barba dura. A comissão ia desistir — na boca, transpirando moralidade, não se sabe quando e como afia as
Esperem, esperem o café. . . — quando a menina, que escutava de unhas, joga a sua tarrafa, iscando com a sua lisonja para colher as
costas na janela: mais verdoengas. Sua fala dá sossego, sua conversa é pouca, sua
— A vestimenta é toda nova? toada já não embrabece nem namora e da geração que fez já chegam
— Toda-toda nova, material e confecção. os netos lhe pedindo a bênção. Apanhou o maracá, voltou ao seu
— Nem um fiapo da do ano passado? posto de Amo:
— Toda-toda nova, quebra tigela. Nem um alfinete usado. Tudo
que requer um tal papel. Ainda por tirar selo. Sendo mais: que não sai O meu Boi de muita fama
Fada se não ser a senhora. Venha o Rei, venha a Rainha
— Pois então mamãe deixa, o pai, e eu como filha faço as Vou brincar com este Boi
vontades. Pra mostrar pr’estas meninas
Sendo mais: que não sai Fada se não ser a senhora.
Pisou o palanque com o sapato branco do baile, nesse Boi velha
prata da casa, que ali são anos e anos de fazer Boi, brincar com o Boi Estas meninas. O viveiro delas no putirum dos preparativos para
nas noites de junho, aquele Boi, o Estrela Dalva. a saída do Boi, passarinhando debaixo da mangueira, ao pilão
Num passo de fidalgo, seu Quintino Profeta se aproxima da socando os tucumãs para o vinho, dá a banana ao macaco, lava com
Fada, o chapéu armado com fitas de tantas cores, os espelhinhos e creolina os três cachorros, limpa o bucho e o mocotó para a
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maniçoba, seguindo o Boi onde o Boi vá, um viveiro onde o seu pessoal afiado na capoeira e na navalha, o contrário está dizendo que
Quintino Profeta é o urubu-rei. Das verdes, então, é que mais preferia. esta noite tira o couro, Boi que não tinha comédia, Boi do Cazumbá,
Passava maná [204] nas palavras. Sabia fazer coceira na palma da do Pai Francisco, Mana Maria, do Rebolo. Tempos do Rebolo! Dias
mão delas. Verde? Aquela do diadema? Até que ficou mais alta, vira- machos, o [205] Rebo|lo com a força de pai dó terreiro, seu peito
se daqui, vira-se dali, solitária, como é o costume de uma Fada no alvejado por bala de Boi rival. Que na escola do Rebolo, seu Quintino
Bosque, nas pastagens do Estrela Dalva, devia de estar suando um Profeta tirou grau. Como Rebolo, fechou o corpo, sua oração é forte,
bom pedaço, transpirava incanti. Naquele manto de arminho, sua filha seus santos e caruanas lhe dão poder sobre os rivais, favo e brio na
e Fada uma só é, D. Domingas. E de tudo que era aquela zinha da toada e boa guarda ao Boi até raiar. Antigo serralheiro, foguista de
rosa para a professora, do ditado esquecendo de assinar o nome, da gaiola, tocador de rabecão, Quintino Profeta carrega o seu Boi no
aritmética atrás da qual sorria e piscava, do muro ao luar, resta este meio dos afazeres e desenganos, atravessando a crise e as alterações
papel de embrulho, a lápis, assinado R. Teve fim. Pode queimar, do mundo, O Boi dava despesa desconforme, cada ano esticando a
queime. Agora é do Boi. Do baile do Reduto ao Boi não durou um conta e São João houve que nem acabar de vestir o pessoal podia. São
mês. Do Boi. Ali debaixo do apito e da toada do seu Quintino Profeta, João passado, não foi? Teve de empenhar a casa. Também tira uns
não duvidassem que este? Olhem que até com bota brincou na praia minguados nas orquestras tocando o rabecão, pela festa de Nazaré faz
Maiandeua, deflorador que só ele, Deus te livre! Roberta trazida pela parte de uma banda no arraial. No mais é o só pensar no Boi, que é a
maré, entrando no cacuri do seu Profeta. Guarda o Bosque e o campo sua fortuna e a sua fraqueza. Nome e história de Boi o seu Quintino
onde pasta o Boi, e quem salva a Fada daquele laçador de mão Profeta tem no jornal, no plantão da permanência, nas rodas da
certeira? Ou só se moldava, temperando um aleive? cabroeira, nos cantos do subúrbio. Não viu o seu Dois de Ouro
Desde zinho, bem zinho, o seu Profeta brinca de Boi. queimando duas vezes pela polícia? Precisou que o soldado rasgasse a
Balançando no macuru já via o Boi. Gatinhava atrás do Boi, se sabre o veludo do Boi, derramasse querosene, que só assim o Dois de
emperreando para ficar com o maracá do índio. Sua primeira palavra: Ouro pegou fogo, virou cinza com a sua tropa toda em caráter e trajo
Boi! Principiou a botar Boi na rua com seus pareceiros moleques, dentro da cadeia e o seu povo na rua com o coração queimando,
Boi-curumim, vira a folhinha do avesso, vira os dias para trás, enfia recolhendo a cinza. Aqui neste jarro de louça, a cinza recolhida é o
junho com julho, conta as temporadas. Veio vindo, veio vindo, até Dois de Ouro. Noutro ano, o mesmo contratempo, a armação do Boi
formar o Dois de Ouro, Boi que fez tremer terra: resistiu, a armação do Boi não pegou fogo, a cabeça, com o 2 de
metal na testa e uma figa na capela, saía chamuscada mas intacta,
O meu Boi por estas bandas mais parecendo cabeça de santo. Como tirar de dentro da
Não tem contrário melhor. subprefeitura a cabeça do Dois de Ouro? Deixa na mão dos meninos,
com o Mendobi na frente que te afianço. Como de fato. Os guardas
naquele plantão fizeram que dormiam e entram os meninos, saem
Tempo mesmo de Boi-Bumbá, ali da gema, contrário está me com a Cabeça para a casa do Boi. Salvavam a cabeça do Dois de
chamando, eu vou dar na boca dele, topando o contrário nos fuzuês, Ouro, Mendobi na frente, hoje um marujão da flotilha. Meninos
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daquele tempo hoje cada um pai-d’égua, bigus de batente brabo, saxofone, vai ao cais ver o Pixixi, dá um pulo no Satiro, o flautista, e
vaqueiros do Estrela. Não foi nem uma nem duas que Quintino Profe- tudo o mais que for preciso que de hoje em diante, neto do Dois de
ta gramou xadrez, viu seu Boi rasgado a sabre, sabrecado, [206] Ouro, filho do Caprichoso, nasce o Estrela Dalva. Vamos botar o
degolado. Ali no cesto tem ainda pertence de antigos Bois destruídos. [207] Boi. Tinha lido o nome em sonho como coisa que do céu lhe
Tudo aí nessa alcova do Boi é relicário e uma noite há de mandar mandaram dizer, ou do fundo onde seus guias estão, aí nessa água açu
rezar ladainha por todos que brincaram no Boi e que não são mais do Pará e ilhas e poções de cobra-grande, remansos e correntezas.
deste mundo. Aqui na alcova será a ladainha, defronte do Boi, com o Pediu ao professor Cirilo a primeira comédia para representar em
santo na mesa forrada. palanque. Os tempos da ferrugem, do tirasulapa, dos rolos de Boi,
Como ia contando, Boi se queima, Boi se faz de novo. O que é longe iam. Não podia escurecer a mudança das coisas. Tinha que
do homem bicho não come, o Dois de Ouro renasce das labaredas. acompanhar a transformação. Aluga o quintal do seu Moísés, que
Noutro ano armou outro animal, saiu com ele e sua tropa, abriu curral, paga o foro aos Lobos, finca o curral, arma o palanque, divide e
na rua brincou, no arraial desfilou, dançou em sala de branco, fez a arrenda terreno para os divertimentos da noite, e sobe, Estrela Dalva,
matança do Boi, varreu. Polícia só aí vendo sem piar, o seu Quintino no palanque, o soalho é teu. A cidade não mudava? De Belém,
Profeta tinha cartão de Senador conseguido numa audiência. Por fim, aquela, quem me dá notícia? Os ausentes, os morridos! Estas
morre o nome, o Dois de Ouro, morre naquele ano em que o velho saudades, outros semblantes, bem, Boi, entra no tempo do jazz, te
Timbó já de vela na mão ainda parecia fazer toada. Morria um de agüenta, que até avião já voa. Carecer de ir no cartório deixar o nome
raça, de lei, toadeiro de Boi estava ali, não renegava. Morte dele do Boi nos livros, não tem dúvida, ia. Corre na Pedreira atrás do seu
lembrava a do velho Macário, este do carimbó, rezador do Divino, Raimundo Alecrim para vir benzer o bicho. Procura no jornal o seu
morrendo, os seus companheiros foliões rezando a folia do Divino. Seabra, combina com ele uma roda de rama e peixe frito no Bonitinho
Morreu ouvindo a sua folia, o tambor tamboreando surdo, a vela e que assim ele publique as notícias do Boi. Planta os tajás protetores
acesa, a Coroa no colo da mulher, esta ali com as mãos ocupadas, sem do Boi. Pendura pela casa dente de jacaré, de boto, e vamos, que o
enxugar as lágrimas. Um pombo branco voou do telhado quando o Boi urrou, nosso-pessoal!
velho folião expirou. Seu Quintino Profeta ajoelhou-se diante da Estrela Dalva entrou no curral como Boi de comédia, a tropa
Coroa, desejou, pediu, assim fosse também a sua morte, ao pé do Boi. numa vestimenta só de cetim três peças, não digo os ornamentos. Seu
Então nasce o Caprichoso, chegam as chuvas, vêm as pupunhas, Quintino Profeta tirou as toadas saudando a assistência, repetiu umas
despencam as mangas, e sempre aquela cachaça, aquele sempre do falecido Timbó, apalpou a sua oração no bolso de dentro. Vera!
ajuntamento na porta de casa, acabando em serenata, Satiro e Cecílio, Vera! Vem pastar no lavrado o neto do Dois de Ouro, o filho do
o par de sopro, o rabecão falando, as meninas em roda, esta trazendo Caprichoso, observando um pouco as modas de agora sem quebrar o
um café, aquela o tição, as morenas aqui pelo ombro da gente no uso respeito pelo antigo.
do melhor dengo e do dá cá um cheiro ou deixa que te esprema o O Boi enfiou no chifre a estrela da madrugada, colou no lombo
cravo. São João se anunciava? Então reúne, que remédio, prega edital de veludo as Três Marias. E assim principiou o Estrela Dalva, assim
na porta, buzina para o Chaminé, bate no cochicholo do Cecílio, o do veio de longe o seu urro, varando a cidade. Nunca outro Boi entrou no
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bairro pra lhe fazer pique, axi! Estrela, o Boi, seus chifres riscam céu passar, o pau cerrou, poeirou o furdunço... Agora a toada é um
e terra, deixam um rastro de cantoria e fios de cetim. Do Esquadrão cumprimento, um dizer não fazer, mais por ser bonito:
para dentro. Chão dos Lobos, é chão que só um Boi pisa, um só Amo
[208] canta, uma só tropa entoa, um só curral festeja. Ainda assim [209] Urrou, urrou
barulhos não evitou, quando atravessava a cidade, subia o São Brás, Tornou a urrar
ou cruzava um rival. Um e outro chinfrim com a cavalaria e a polícia, Já urrou o Estrela Dalva
mas já não tomava Boi dos outros, ainda assim bota turuna pra correr Guerreiro deste lugar
quando carece. Bala, sabre, rabo-de-arraia, pau comendo mas
comendo mesmo, já não. Quintino Profeta e sua tropa campeavam Vai principiar a comédia?
num campo dando flor, protegidos pelo Cavaleiro Jorge.
Este ano, sob a varinha de condão, Estrela Dalva levantou a Boi, boi, boi
cabeça, urrando no seu curral, com a toada do Amo cheia de vozes Brinquedo de São João
mortas, de amos e vaqueiros do antigamente, Rebolo, Cazumbás, Deus queira que tu não veja
Mães-do-Mar de outros tempos: Satiro, com aquele buraco no meio A riqueza do meu chão
da testa que nunca sara, tocando flauta à frente do pau e corda.
Campeão nos concursos da cidade, Estrela Dalva é rival do Pai de O Amo dá um passo para o meio da roda, sacudindo o maracá.
Campo do Jurunas, do Canário do Umarizal, este não saiu mais. Dirige-se ao primeiro vaqueiro:
Cessada a briga de capoeira e navalha, desfeita a rixa, agora os Bois — Vaqueiro, toma conta do meu Boi. Leva o Boi pro campo pra
se respeitam, até que se cumprimentam, trocam ofícios, usam de pastar. Muito cuidado!
educação. A palavra contrário, num tom de desafio, é só pura toada, é — Sim, senhor, meu Amo. Não tenha cuidado que eu tomo
só um garbo, tudo o mais é faceiro. Acabou a emboança, cântico de conta do seu Boi com toda a vigilância.
vera, que xingue, trate o rival de resto, tem mais não. Cavalaria já não Entrem as famílias que o arraial é de sossego, sentem nas
vai atrás num tropel, de chanfalho em cima. Ali é a Fada como paz, a barraquinhas, ai reina o respeito. Foi-se aquele tempo.
menininha do milho verde, a pirralha que a D. Brasiliana queria capar Os vaqueiros vão dormir.
lá no telhado no meio dos pombos e das sedas de contrabando. O — Ó Estrela Dalva, nosso Boi vai pastando por aí enquanto nós
punhal, cabo de osso, seu Quintino já não traz no cinturão, é um vamos quebrar a cabeça do sono.
adorno na alcova do Boi, entre as taças e as medalhas, nunca mais O Boi no campo, pastando. Hora de aparecer o Pai Francisco?
desembainhado nem para cortar tabaco. Mas seu Quintino Profeta, Na ponta, vem e vai, vira-se daqui, vira-se dali, tesa, séria, a Fada,
basta um traguinho, deixa transpirar a saudade dos tempos de guerra, segurando a varinha, com diadema e arminho. De lá de cima, do seu
do brinquedo saindo fumaça, sem Fada nem Feiticeira, Boi nu e cru, reino, enxerga? Por curiosidade, divisou nesta serragem o
guerreiro, do tira a cisma e a teima, arreda da frente que eu quero desassossegado a quem mandou o bilhete? A lápis. Papel de
embrulho. Os músicos tocam a introdução. Satiro, a esta hora, no
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palanque, já deve estar reclamando a chilra. Aquele buraco na testa do Cecílio bem no Uberaba tocando aquela sua valsa para os
flautista nunca há de sarar? Difícil distinguir a voz de Roberta. Com quinze anos da Querubina, Feiticeira do Boi, mantilha amarela, lenço
pouco, vai entrar em cena, de varinha dura, tapando com as atado à cabeça. Por toda parte, o saxe e a Querubina. No Uberaba,
vestimentas o que ela tem desta serragem, capinzal, beira d’água, da Querubina, instigada a tomar aquelas misturas, foi, que lhe subiu à
mangueira onde subiu para espiar o sótão da loura. Desce do cabeça. Cecílio cala o saxofone, carrega a-que-bebeu-o-juízo para a
palanque, devolve o condão e vamos os dois mas só um instantinho? casa do Boi. Noutro dia, acordava espantada com a pergunta da outra:
Soa o teu passo no meu peito, já te perdia quando te encontrava nem — Querubina, esta noite foi a tua primeira?
bem te dou a mão, dela [210] te escapas, agora o que te cobre é — Que primeira?
cetineta e arminho, teu dono é o Boi. Satiro vem descendo do [211] — Que ele te conheceu?
palanque, a flauta no sovaco, depressa vem tomar a sua rama, que Correu no rumo do saxofone, onde tocava o saxofone? Agora
sem ela não soa. Este ano, está sem o parceiro. tocava para os quinze anos da Cilá, uma cabelo-nhã lá da Vila Isabel.
Entre os músicos, um não está, mas é verdade! Faltando, este Foi o único no subúrbio, que acertou o passo no São João Batista com
ano, o saxofone. aquela carioca aqui chegada, aqui revirando cabeças, num repente
Quiseram o saxofone no lado do defunto, seu Quintino não voltando para o Rio, atrás dela o Belúcio, o do cavaquinho, que
deixou. Melhor ficar ali na alcova do Boi, o pedido é feito, assim mandou tatuar o nome dela no braço e uma estrela com o nome dela
queria o finado. Aquele saxofone! Em glória esteja o tocador mas em cada ponta. Quando Querubina se viu era com aquela barriga já lá
aqui neste chão, oh, bicho! O quanto revirou nesta cidade com aquele embaixo, atrás do saxofone, seguindo as serenatas, o músico fazendo
saxofone! Falassem as casas de família, falasse o raparigal de pé de os seus traços no salão do baile, na porta do botequim, sem Bela nem
cerca e passagem. Falasse a Bela, que o nome já dizia, pelo saxofone Querubina nem Cilá, apreciava a variedade, era do saxe e da rama, ou
cega, perdida, meia-noite de São João fincou a faca na bananeira, na cativo de um desgosto? Em meio da serenata sentiu aquele orvalho de
faca amanhecia escrito: Cecílio. Encheu a boca de água, à espera de sangue, não disse a ninguém, onde a Bela? A Querubina? A Cilá? As
ouvir o primeiro nome de homem, que com esse havia de se casar. E noites em que o saxofone dobrava o soluço? Enxugou o bocal, era?
ouviu: Cecílio. Lhe aconselharam o uso das fezes de gato e mais Esmorecia? Seu som, seu sangue, ficava no bairro, no caminho da
coisas bem secretas que trouxessem o Cecílio aos pés dela, de joelhos Bela, da Querubina, da Cilá. Quando chamaram o Pedro Chaminé, o
tocando o saxofone. Que nada. Quando estava perto dele, era rezando músico já estava de vela na mão. Caiu ao peso das serenas, dos Bois,
aquela oração, que lhe ensinaram, tiro-e-queda para segurar o rapaz, das Belas e da rama, uma segunda-feira. Nem Bela nem Querubina. O
mas quem disse? Para depois, ali na raiz da mangueira: me digam por seu Quintino Profeta apanhou o saxofone:
tudo que é mais sagrado no mundo, me digam por onde viram o bom — É todo o haver dele, isto. Tivemos, justo é dizer, as nossas
daquele tão demônio, que eu acabo é tendo esta criança na rua atrás diferenças, mas na maior parte a gente se deu em boa irmandade. Fez
dele. foi facilitar com o peito, abusou do fôlego. O saxe esburacou, chupou
— Melhor chamar a D. Santa. Corre na velha parteira, já-já. o pulmão dele. Nunca teve um só descanso, nunca se privou, não foi
por falta de conselho. Era aquela toda noite. Sempre nosso
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apaixonado. Pra repenicar o que se pedia, nunca se fazia de rogado, o a cena, inventou a roubada do Boi. No Estrela Dalva, não se mata
beiço no saxofone. De dentro mesmo de casa, desta família, do pé do mais o Boi, se rouba, quem rouba é o Pai Francisco. Não se sangra
fogão, que foi, foi. Honrado rapaz. No lugar de um gema como esse nem se reparte, só se rouba o Boi, falou Pedro Chaminé, quebrando
cadê outro? O Boi faz o enterro. rigorosa regra do enredo que nunca mudava. Agora não tem comédia?
No enterro só faltou o Boi, sim que nem Bela nem Chá nem Não tem Fada? Feiticeira? O ferrador já não é uma moça? Aquela
Querubina. com funda cicatriz de ferida na perna? Não se mata mais o Boi, o Boi
Agora no palanque entra em cena, ladrando para fazer graça, o é roubado, muito melhor reaver o Boi que ressuscitar o Boi. Seu
Pai Francisco, seguido de três companheiros. [212] Deita|do no Quintino Profeta não [213] quis contrariar o velho amigo, aquele seu
campo, a capela nos chifres, as estrelas prateadas no veludo, o Boi. insubstituível personagem. Aceitou a alteração. Enfia da tua cabeça
— Olhem que tão bonito Boi encontrei nesta paragem! É a fala na comédia do professor Cirilo essa roubada do Boi, mete aí dentro
rouca de velho negro, o Pai Francisco. tua novidade, se der saldo é só teu, por tua conta só, que por mim me
Os vaqueiros quebravam a cabeça do sono. A Fada, vira-se esquivo. Disse por dizer, pois se fiava no preto, preto de cachola boa,
aqui, vira-se ali, fingia que ali não estava, estava no bosque ou no também inventar um outro tempero. mau não era.
prado colhendo florinhas, só vem quando chamada e vem cantando. O Pai Francisco põe um olho no Boi. Gira em torno do Boi, este
Assim, de cima, nas luzes, no brilha-rebrilha da sua roupagem, é a parece adormecido no meio do campo, debaixo da cobiça do Pai
Fada, ou já é aquela, conhecedeira do mundo, encorpando as suas Francisco. Os vaqueiros bem quebrando a cabeça do sono. Tremei,
tentações, maduro o peito, a anca? Aqui desta serragem o olhar já não vaqueiros, amigos do Boi, platéia do Boi, que o Boi vai ser roubado.
alcança tanto, e nesta serragem é o arraial repleto, chegou a D. Pedro Chaminé, Pai Francisco todo ele, limpa com a ponta do casaco
Brasiliana no braço de seu baixinho português, coberta de contraban- velho o suorzão do peito. A cara retinta com aquela alvacenta barba
do, agitando as pulseiras, espalha a loção da França, crioula postiça, chapéu de massa surrado e o clavinote. Espalhador de graça,
pompadour dominando o arraial. A dona aproxima-se do palanque, os arteiro no fazer rir, espremia a sua pimenta, nas ocasiões próprias
quadris ondeiam, a sinuosa abana o leque, o português é a sua carregava no sal. Queria um concurso dos Pais Franciscos do Pará,
bengala, e finca os olhos na Fada. A Fada, mas veja a pirralha! Só de Amazonas, Maranhão, para saber se havia esse-um que ganhasse ele.
cima, de sapato branco no nariz da moura. A Fada acompanha os Matança de Boi tão bem como a dele nas três capitais não tinha, tão
movimentos do Pai Francisco e uma graça do negro cobre o sorriso caprichosa era, tão bem acabada. Trazia do Una, onde morava, o
com a mão enluvada. Duvido que me diga, de novo, D. Brasiliana: Te tabuleiro de munguzá e cariru que a mulher vendia na barraquinha por
capo, pirralha. nome A Cabana Tupi. Vez em quando descia do palanque pelos
Agora é a vez do Pai Francisco. fundos e atrás da barraquinha matava o seu bicho, vertia suas águas.
Pedro Chaminé, que faz o Pai Francisco, esteve na Marinha, A outra sua voga, aquela, de bom benzedor no Una? De um santo
fez, na baía de Guanabara, o motim do encouraçado, com o João emplasto, tinha o segredo. Arca caída, nervo torcido, espinhela
Cândido, seu almirante. Como Pai Francisco, nos currais de Belém, arriada, carne rasgada, estava canso, era emplastar com o emplasto
por desempenho e idade, estava só. Este ano, de sua cabeça modificou dele e pá! casca! Tinha visões quando se concentrava rezando: via o
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pajé sacaca debaixo da maré bem fumando o seu taquari. Imitava o Daquilo ninguém arrecebe, nem do muito obrigado fazemos questão.
canto do curió. Carregava na arca do peito, sem perder nunca o É sabido e dito que uma coisa o Pedro Chaminé tem: o dom de curar
sentimento, a porção de modinhas, também apostava com quem que recebeu.,, recebeu de graça, e obrigação é dele dar de graça.
comesse mais que ele: quatro quilos de gurijuba, uma terrina de caldo Assim foi ajustado. Arrecade o seu dinheiro de cima da mesa, moço,
e quinhentos réis de açaí, pra rebater, foi aquele almoço que só ele antes que o meu velho apareça, veja, e me passe, olhe o tamanho do
comeu, apostando com o Bonitinho do botequim, dia dos Rezes. Isso raspa! Por eu ter consentido, coisa que o senhor sabe que não [215]
é fome, canina, [214] falava o seu Quintino Profeta, capaz de jurar estou consentindo, o senhor sem me ouvir foi logo puxando do seu
que comeste galinha choca. bolso para cima da mesa, ande, guarde o mais depressa, estou-lhe
Agora, neste instante, agora nesta noite, um rapaz procura a pedindo. No mais, não quero o meu velho aborrecido, pois assim só
Cabana Tupi. prejudica o papel dele lá no palanque. Ele ali no palanque é bastante
— Aqui é a barraca do seu Pedro Chaminé? É a senhora dele? divertidor mas nos assuntos de seu particular sempre é muito rigoroso
— Pra lhe dizer que sou a senhora dele carecia lhe apresentar os no que encontra uma falha. E da feita que se contraria, a velha dele
documentos. Estão em falta. Se não é o mesmo, faço as vezes. que agüente os azeites.
Ele está? — Mas, D. Brasilina...
— Brincando ali no Boi, ali. Suspenda a vista que dá com ele — É o que estou lhe declarando. De tudo que lhe disse não
ali. altera uma palavra. A contrariedade dele? Em cima do senhor não é,
— Estou é vendo que a senhora não está me conhecendo, D. mas da velha dele, que não cortou a sua intenção a tempo.
Brasiliana. Então o rapaz foi em casa dele, trouxe a noiva para apreciar,
Xá ver... Me deixe lhe ver direito. Dizer que lhe conheço... Me n’A Cabana Tupi, a roubada do Boi, as artes do Pai Francisco, os
parece que não. vaqueiros quebrando a cabeça do sono.
— Pois sou aquele um que vomitava sangue, um que ia já com — Porém o cariru, posso, pagar, não, D. Brasilina?
guia para o Domingos Freire, já desenganado. Já se lembra? — O cariru, ah, sim sim, agora isso pode, é à parte. O que
— Espere... Ah, sim, estouzinho já me lembrando. Ficou bom? desejar, tirar uma prova da nossa mercadoria aqui nesta barraquinha,
A Deus que deve. às ordens. O senhor paga o devido. Assim, sim.
— Abaixo de Deus quem me tirou da cova foi o emplasto do — Pois o meu peito fechou, D. Brasilina. Aquela guia o
seu Pedro Chaminé, D. Brasiliana. E aqui estes quarenta mil réis por Domingos Freire? Queimei na lamparina, Deus te livre! Seu Pedro
conta, a senhora faça entrega dessa insignificância, sabendo que nem Chaminé no que ia pondo o emplasto me salvava.
a maior fortuna paga o seu Pedro Chaminé pelo que me fez. Desculpe — Um outro assunto, com sua licença, o senhor não se
a demora. aborrece?, — me deixe lhe falar, é bom também lhe dar co-
— Tire já-já esse seu dinheiro de minha frente, moço, que se o nhecimento. É outra questão fechada desse meu velho. Ele é cheio de
Chaminé chega e vê, com toda a razão há de ficar bastante bem poréns. Não ande por aí falando que o meu velho curou o senhor. E
aborrecido comigo. Não é do trato o que o senhor está fazendo. ele também finca pé proibindo que espalhem por aí, de boca em boca,
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o senhor sabe, não é? Cale então sua boca. O senhor sabe, é No ouvido dele era sempre “te passa para o Boi da Pedreira,
conveniência dele. Isso também pro meu velho é lei. Do que ele não Chaminé não seja arara”. Mas seu Quintino Profeta não lhe deu um
gosta: Chamarem ele curandeiro. milheiro de palha para a cobrição da barraca do Una, três mil réis por
— Bem, se é lei dele,, D. Brasilina, me regulo pela lei, me calo. ensaio, seis mil por sábado de exibição? Era ou não era? Sim, que
[216] — É o regulamento dele, sim. Assim é o reto. Mais cobiçado e muito, todos lhe soprando: Vem pro nosso Boi, Chaminé.
cariru? E Pedro Chaminé:
— Um mais, D. Brasilina. Minha noiva, é o prato dela, o cariru. Só tenho uma palavra. Tudo é também a simpatia, a boa [217]
Não é, Corina? camaradagem, o não ter que dizer mal de seus parceiros, sendo mais
Um riso pelo arraial, são as graças do Pai Francisco na hora de que o Estrela Dalva é aqui do chão, Boi de casa, Estrela Dalva, o que
roubar o Boi. foi, ainda é. O Boi da Pedreira? Não tinha nem quem tirasse toada. E
— E aquela Catirina, D. Brasilina? Modo que não é a mesma, eivém um diretor de la querendo apalavrar o Chaminé para tirar
do ano passado... toada. Gente, que é isso? Não é da mea categoria. Não tiro toada.
— Um custo achar este ano uma outra Catirina. Aquela do outro Brinco, desempenho de Pai Francisco e nisso tirei patente, sou vita-
ano? Pegou um tumor lá nela, um inchamento na barriga lá dela, tão lício, no mais não meto o nariz. Toada é outra especialidade.
do perigoso, meu Deus! Aí que nem o emplasto do meu velho! Alfredo se desencosta do esteinho da Cabana Tupi. Triste,
Padecendo até hoje na Santa Casa. escura ó magra Catirina no palanque. Tão tão sem uma pedra de sal, a
— Na Santa Casa? saia poeirenta, o ombro murcho, o rosto sovado, representa lá em
— Na Santa Casa. Agora o senhor imagine. Na Santa Casa! cima o que aqui embaixo sempre é e, vão ver, já se gaba, lavada de
— Eu então que não imagino? luzes, quem sabe um pingo de faceirice, à sombra do Boi, par do Pai
— Então meu velho cuscuvilhou, cuscuvilhou, quebrou que Francisco, defronte da Fada, a azul-celeste. E ali parece de vera, de
quebrou cabeça por esse Chão dos Lobos até que arranjou essa aí, todos a mais personagem, da vida, da vida, repete Alfredo tomado de
mas tão envergonhada a rapariga... Que é da vida, ela. Meu velho uma áspera compaixão.
primeiro teve que fazer lá nela um tratamento que... nem lhe digo. Com o aperto de gente, o arraial um forno, o chão pegajoso,
Mas se desincumbezinho assim-assim mesmo aleijando, no palanque lama, serragem, roleta, peixe assando, fervendo a goma do tacacá,
debaixo das vistas do meu velho, um tanto desconsolada, uma água de entra pelas barracas o perfume francês da D. Brasiliana; o Pai
açaí. Só quer que seu Quintino Profeta lhe dê uma importância para Francisco, seu freguês de jenjibirra, capricha nas graças, girando em
uma saia, uns borós por noite. Também o pouco que ela representa! volta do Boi. Lama, mormaço, serragem, este bilhete na mão, Ginásio
Demais pouco. Está ali e não está... Dizer que diz duas palavras? perdido, o Boi lhe rouba a Fada, melhor é fugir deste fofo e úmido
Quem disse? É mais fazendo figura e o meu velho dando com o pau inferno, deste ímpeto de subir no palanque e arrebatar a Fada; talvez
na paciência. O certo, meu amiguinho, é que Pedro Chaminé carrega ela quisesse isso, na hora da roubada do Boi; de lá do palanque
esse Boi na costa. inacessível estruge fantasticamente aquela vaia do pátio sobre o
calouro, o arraial vaiando e a toada:
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Lá se vão os vaqueiros para a maloca. Os índios hão de prender


... o nosso Estrela Dalva os roubadores do Boi? Que é feito do Boi? Com pouco será a voz da
foi roubado da malhada Fada, seus poderes em cena, a varinha de condão salvando o Boi. O
palanque se distancia, o curral do Boi um minuto apaga-se,
interrupção da luz, e só a Fada no palanque, nunca mais conseguida,
Os vaqueiros se dão conta, o Boi? Mas e o Boi? Estonteados iluminava.
pelo campo deserto. E essa pouca trava que se fez no arraial alojou-se no peito, aqui
— Então, vaqueiro, que conta me dás do Estrela Dalva, Boi de se acumula, apodrece, ou crepita, aqui se destampa a panela de cariru,
minha estimação? espanta as moscas de cima do peixe frito; ali, no inacessível, a Fada, e
[218] — Meu amo, nós estava muito cansados. Trabalhando seis ao pé, com o apito, o Amo a chamar pelo Boi roubado, o Boi perdido,
dias, dia e noite. Nos foi preciso quebrar a cabeça do sono. o Boi, quem [219] sabe, sangrado e repartido. Os índios demorando.
Aí grita de longe para a platéia, gracioso, o Pai Francisco: O Amo dá o seu passo no palanque. E todo o seu desempenho mais
— Nunca vi sono com cabeça! parece para a Fada, o laço vai apanhá-la, o urubu-rei revoa com seu
O Amo se desespera, se desespera a tropa, o Boi roubado! Onde veludo e vidrilhos, as asas invisíveis.
encontrar, como recuperar o Boi? Aqui embaixo, nesta serragem, a Então será na derradeira noite, pela volta do arraial de São Brás,
desesperada busca, como arrancar do palanque a aluna? volta de campeão, a tropa cansada, Satiro escorrendo o bocal da
— Então, vaqueiro? Quero o Estrela Dalva de volta pro meu flauta, o tripa, debaixo do Boi, comendo a pamonha, mais dormindo
poder! que caminhando, viram rama pra espertar do sono, sa-gente! Pegue,
— Meu Amo, para conseguir de novo o Estrela Dalva, só com o Fada, leve a Taça, está em boa mão. Vai recolher o Boi, bote festejo,
Diretor dos índios. comes e bebes em casa e no quintal, faz a matança e varrição do Boi.
Aqui embaixo na A Cabana Tupi: E as grudes principiam a grudar o pé da Fada, as grudes do Amo que
— Mais cariru? se unge de marapuama. Também mordido pela formiga taoca? Tudo
— Mais um, sim, D. Brasilina. Olhe que o seu cariru, hein? Não não será em nome do Boi? Em nome do Boi, pois então! Corre o
é por estar na sua presença... frasco, já tomaste o vinho de tucumã que te guardaram? E desta
Lá no palanque chegam os vaqueiros: Pai Francisco atirou num. misturada de maracujá, uma prova, experimente, molha o beicinho,
forte? Dobre o manto, tire o diadema, descansezinho um pouco a
Ó sinhô meu amo varinha de condão, guarda a Taça, sim? Seu Quintino Profeta se des-
Chico me atirou cobre, recolhe o seu chapéu de Amo, suspira aquele suspiro que
Nem bala nem chumbo sempre dá no apagar da fogueira, acendendo o cachimbo no
Nada me pegou. derradeiro tição, fecha o curral, varre o curral, o Pai Francisco
aparece lá de dentro com o prato de barro cheio de maniçoba, e no
lugar de sempre se deita, ali sagrado, até outro ano, o Boi. Tudo antes
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no dormitório as meninas defumaram, e lá pelo quintal ao pé do A professora chegava em casa. Sentou-se no batente, arquejava,
araçazeiro arma-se a rede. Será assim. Noutra manhã, não mais Fada, como se tivesse feito aquele trabalho delas, aquelas, pela rua e
seguirá para a fábrica. Só para a fábrica? cercados, carregasse o escaler no ombro, suas viagens, o peso
No arraial fumegante cheirando a pimenta é difícil varar até a daquelas águas, ou chegasse de quatro patas arrastando-se... Deu-lhe
rua, agora a Fada lá em cima se cobre de poeira, névoa e toada. uma tosse, lá na esquina uns bêbedos principiavam a gritar. E por
Alfredo consegue sair. Incha-lhe na palma da mão, como um rato todo o subúrbio o espectro das fogueiras.
podre, o bilhete a lápis. Alfredo foge por este beco em silêncio. Agora vai caminhando
— Professora, a senhora por aqui? pelo Acampamento. Dá com a mulher de cócoras num esteio ao pé da
— Espairecendo... vala.
O que disse a ele, toda sem desculpa, pegada na falta, agora — Fazendo aí o que, Maria? Não estás no Boi?
querendo meter-se terra adentro. Alfredo, um [220] instan|te a seu A Maria Igarapé. Nasceu no Ceará, serra do Maranguape, casou
lado, olhando para o inacessível palanque que parecia subir como um lá, teve filho lá, como acabou no meio dos flagelados neste Chão dos
balão. Lobos não se sabia. No Cais, os [221] ma|rinheiros ingleses, que lhe
— Mas aquela, a Fada, professor? Professor, não é a nossa davam ficha, lhe diziam camone. Era da serra, virou do igarapé,
aluna? Aquela? Maria Igarapé.
— Não sei, parece. Será? A senhora aprecia Boi? — Vou é ver o Boi da Pedreira. Aquele com o curral no fundo
A professora calava-se. Disfarçado! O diadema te deixa em das sentinas. Por isso se diz que é o Boi da merda.
carne viva, partioso. Ou te escurece a vista? Um fogo no meu rosto. — E por que sentada, aí, o nariz na lama. Maria? Chocando?
Meu Deus! Preciso ir embora, agarrar-me a mim mesmo, e aqui — Chocando mea pedra.
miserável ao lado do moço. Falar, quem disse? Alfredo tinha os olhos — Chocando?
no palanque. Me leve, professor, até em casa, quis pedir, numa — Ah, meu mano, aqui debaixo deste escuro estava era só
súplica, um orgulho lhe tapou a boca, lhe veio a visão do escaler, das alembrando da serra... Ah! É o meu choco.
viagens, do navio que bebia, e do espelho lá na alcova. — Foste mesmo casada? Ele que te abandonou?
— Bem, professora, boa noite. — Não. Nós se abandonamos.
Tentou segui-lo, já não via nada, empurrada, batida, espremida Caminharam por um beco. Para ajudá-la a saltar a vala.
no arraial, náusea daquelas comedorias e de si mesma, até que pôde segurou-lhe o braço.
ganhar a rua, às pressas, as mãos no rosto., cega, a seus pés estalou — Olhe, quer, lhe arrumo uma... Conchavo pro senhor uma
um foguetinho, atravessou uma roda de fogueira, ouviu: Quem dá rede vaga. Que comigo, hoje não, que estou de lua.
confiança a bucho é feijão. Quem dá confiança a bucho é feijão. As Alfredo queria responder-lhe: Pela Roberta é que te acompanho.
risadas. Quem dá confiança a bucho é feijão. Bucho sou mas não do O mais, não, irmã.
teu cocho, que puta sou que Deus quis mas benquista. — Não acredita? Pois olhe.
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A Alfredo é a cena brusca na ladeira do Castelo, chegando


menino a Belém. É o defunto do necrotério, barriga aberta, gordo, é a Urrou meu Boi
mãe no quintal cheio... E a esta hora, a mãe? Como se acompanhasse Já urrou, tornou a urrar
a mãe pelo beco, a esta hora, pelo campo, ou correndo fogueiras e Nosso Boi Estrela Dalva
cordões da vila, e ela aos conhecidos respondendo: Meu filho? Meu Guerreiro deste lugar
filho? Há de voltar doutor.
— Tão que escureceu! — disse a Maria Igarapé, como um Lá estava o diadema, a roleta parou no Touro, não mais balões,
lamento baixando o vestido. aonde o Japim?
Pararam no caminho da baixa. Devolve aos sapos a Maria Aqui perto um resto de fogueira. Os cantos do Boi longe iam.
Igarapé de lua. Os sapos no cariazal esperavam. calados. Para as bandas de São Brás e da Pedreira subia uma sonolenta
E eu aqui, em vez do diamante na mão, com este bilhete a lápis. iluminação. Aqui as fogueiras cessavam, o curral, já ao longe, se
Tio e Dolores, embarcados na pele de jibóia, estavam chegando mas cobria de silêncio. Quis seguir a Fada, vê-la descer do palanque,
aonde? Saltou um sapo como se saltasse a Fada, azul celeste, levada pelo braço... Tornou ao curral que se apagava, o palanque
escrevendo o ditado. deserto, restavam bebedores pelas barracas, alguns rapavam os
— Vai mesmo no Boi? derradeiros carirus. A roleta rodava.
[222] — Com esta intenção. Ah, que não me agüento com estas Também trazia a visão de Maria Igarapé suspendendo a saia, as
mil dores, sabe? mil dores dela, o choco da serra. Era febre? [223] Cami|nha para o
— Pois se meta na rede. Onde mora? Não-Se-Assuste onde a zanoia, decerto, sem ter pulado uma só vez
Num dos quartos do Teófilo dentro do igapó. Como um trem a fogueira, lê para a mãe o Carlos Magno e os Dozes Pares. D. Fausta, a
fila dos quartos balançando sobre o charco, a quinze mil o mês. esta hora, sacode-se de pesadelos, debaixo da vaia no cinema,
— A esta hora, com a maré seca, o igapó fede que só o diabo. passando ao piano a sua ezipra. Na altura da José Pio, dá com um
— E isso aí também é dos Lobos? homem sentado na ponta da calçada.
— Esse lodo? Pode que ser. Ou da Marinha? Sei, não. — Não está no Bio, seu Satiro? Saiu de lá hoje tão cedo?
— Quer que te leve? O sentado custou a responder. Alfredo inclinou-se:
Respondeu que não, as mãos na barriga, o pé grosso de lama. — Se sentindo mal?
Prendeu o cabelo, ‘Ia ver o Boi da Merda. — Hoje? Hoje? Uma sombra daquele Satiro, menino, hoje sou.
— Então, bom Boi, Maria. Levas a faca no dente contra o Pigarreou, deu-lhe uma sufocação, com pouco aliviou.
lobisomem? Me deixa te dar um beijo na testa, boa noite. Tu queres — Tu aí, meu camarado, não te fazendo de meu moleque, acode
que a D. Santa olhe tua barriga, benza tuas mil dores? Conheces a D. o velho de perna morta. Me acende este toco de cigarro ali na cinza da
Santa? fogueira. Pois não?
Alfredo voltou para o São João, será que estou com febre? O Alfredo voltou com a bagana acesa.
arraial fervia, o Boi retornou ao Amo: — Hoje? Uma sombra... A sombra daquele Satiro.
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— Não lhe quero sentado assim na beira da calçada, falou uma — Não faça fita que fita o Boi não quer — cantarolava a
da-vida que boiou repentina no escuro, um tanto gorda, a modo gorducha desgrampando o cabelo, espalhando os seus cheiros de
sabrecada pelas fogueiras, o rosto contrariado. Era aquela que falava, banho.
muito ofendida, quando passou a professora Nivalda de volta do — Pétala desfolhada de uma rosa, vem cá. anda, sua sem-
curral. vergonha! Toma a chave do meu instrumento. Me chama, já-já, de
— Na beira da calçada, não. Sentado estou em cima da caixa de Sátiro, como o meu nome mesmo! Sátiro! Já-já. Pronuncia! Quero
minha flauta, pecadora. escutar o meu exato nome. De tua boca podre o meu exato nome.
Satiro levantou-se, esfregou o buraco da testa, Alfredo apanhou- — Olhe já! Mea língua que dá, seu Satiro? É ou não é, moço, o
lhe a flauta. senhor que presenceia, não acha? A língua não afina.
O pessoal só me chama Satiro mas meu nome é St. tiro! Sátiro! Satiro vomitou um pouco.
Foi andando, Alfredo devolveu-lhe a flauta. — Venha que lhe faço já-já um chá por seu estômago.
— Sátiro! — gritou, rouco, num gesto de quem ia lançar a — Estou é com pinima de acabar a noite lá no bucheiro da São
flauta na vala. João Batista. Lá de dama é só refugo. Só traíra de viração. Só quando
— Soa a invenção, já, a sua! Dizer seu nome, agora, como não a Antonieta passa na rua e sopra pela janela, os buchos ganham um
6, seu Satiro... — Riu a mulher, ajeitando a cintura, abanando a alento, o sopro da demônia a modo que remoça as caras, refresca o
cabeça para Alfredo. salão. Uma noite: Me [225] sopra na flauta, Antonieta, eu disse a ela,
[224] — Não sou o que sou. Me chamam como não devo ser e ela soprou. Um instante tirei um som, mas que som, que sonoridade,
chamado. Vontade tenho, por isto, de rachar esta flauta neste poste aquela mulher tira do peito um sopro encantado. Tu, tu vais comigo,
apagado. Sátiro! Onde estás, que me tiraram de ti? Racha a flauta! na São João Batista, lixo da noite!
Sátiro! — Mas primeiro sossegar esse seu estômago com o chá, sim?
— Mas, seu Satiro! — Acudiu a mulher detendo-lhe o braço. — — O selo! Tens o selo? A polícia empombou com a festa do
Quebrar a flauta, mesmo que quebrar esse seu espinhaço. Toque é que Sacramenta por via do selo da caridade que não foi pago. Ah,
é uma bem sentida aqui pra mim, pra mim e aí o moço... Olhe, moço, Quintino Profeta! Ah, Quintino Profeta! Pagaste?
o senhor... Eu bem que lhe conheço. E olhe que o senhor tirou uma De pé, a flauta em punho:
sorte por ser eu, eu só que vi, vi o senhor subindo aquela janelinha — Quintino Profeta! Pagaste o selo?
seguro num cabo... Mas eu? O que vejo, é pedra no fundo dágua, Sua voz enchia a quadra deserta, o vento levantava as cinzas da
adeus, pode contar. Petisque bem a sua mocidade, tenha sempre bom fogueira morta, a mulher mascava tabaco.
apetite. Toque, seu Satiro, sim? — E tu, velho bucho do Chão dos Lobos, megera das cloacas,
— Não te gasto — cuspiu o músico a sentar na caixa de flauta, pagaste o selo? Pagaste o foro dos Lobos? O selo da misericórdia?
todo urinado. — Não te gasto. Axi! Eu? Sátiro Gonçalves Pantoja! Tu, velha pirangueira, me mostra, tira de dentro do seu farrapo, dessa
Sátiro! tapera que é o teu peito, o papel de tua licença, o alvará da tua
desgraça...
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— Seu Satiro, me deixe lhe fazerzinho um chá... Bem ali suas anáguas de renda o arraial; oi que febre enxugou a serragem, a
naquele buraco que durmo, onde faço que moro. Seu estômago está lama, os vômitos do Satiro, os condicionais da professora Nivalda, a
enrolado. pungente insolência de Ana, a mágoa da Pulunga sempre tão ofendida
— Terreno dos Lobos? quando rejeitada, sempre a troco do-quanto-quiser-dar ou então-não-
— Onde moro? De quem mais? dê que é tudo que lhe resta neste atoleiro dos Lobos e sabe, com todo
— Também este buraco aqui no centro da testa é dos Lobos. Os o coração, fazer um chá, altas horas. Chá que necessito para passar
Lobos, um São João, hão de levar o Boi como penhora, por conta dos esta febre, esta flechada funda, um chá para arrancar dos Lobos este
foros do curral. Ainda ontem me foram cobrar o imposto lá na chão e estas almas, tapar o buraco na testa de Satiro, fechar aquele
barraca, como eu não tinha com que, o cobrador: Empenha a flauta. poço onde caiu Joana para que não caia Esméia. A febre queima o
Pagaste o selo, Pulunga? Essa é a D. Pulunga, rapaz. Gato bilhete a lápis [227] nesta trempe, chiam suas palavras ou se
antigo do Chão dos Lobos. Tu queres ir com ela no beiçame? Ela é transformam em piolho aqui pelas costelas, aninham-se no umbigo,
mãe de caridade. Aqui neste chão ela vai por um tabaco, serve por palavras de Roberta, a que escrevia o ditado, escrevia nesta pele,
uma cabeça de alho, dá pela graça de Deus. Tu és muito numa urgente tatuagem, o seu nome, o sonho do sapato branco, o
compadecida, Pulunga. Pois então me dá teu chá, onde é o teu cocho? lugar na fábrica de borracha, o baile no Reduto, de repente no Boi,
Vamos, vamos, que te toco a valsa bem baixinho enquanto o chá cantando no palanque, escrevia com as tintas daquele muro no luar, o
ferve. Servido, cavalheiro? sumo de mangue e gelo daquele beijo. O português tossindo. Andam
[226] Este quarto. Lá fora a torneira escorrendo, visões do pa- pelo telhado? A italiana? De dia era espiando pelas rótulas. De noite,
lanque: da serragem e da lama salta o Boi com a sua tropa de veludo, pelo telhado? A espiar sonos, fornicações, insônias, a reles e
dourados e arminho, a Fada no ombro do Seu Profeta, pendurando o imprevisível intimidade, aquelas redes como sepulturas, como se es-
diadema, a varinha e a vergonha na lança do Amo, os cordões atrás, piasse um cemitério, o do sono; só a menina acorda de repente, salta
maracás, triângulos, violões, seda e cetim, as plumagens, Esméia, a da rede: Mamãe! Mamãe! Estou com este sangue. Este sangue,
Feiticeira, sacudindo o jasmineiro nos zebus que passam, eivém seu mamãe! Abre-se a concha, todas as redes sacodem, rangem nos esses.
Almerindo com a bacia de louça, o São Sebastião no charão de prata Um vento pelas casas, agitam-se os mosquiteiros, espalham-se as
do Marujo, os peixes do cacuri debatendo-se na montaria carregada sementes, os gritos da menina acordam o cemitério, bebendo aquele
pelos três Garimpeiros, um com a esquisita contrariedade, o segundo sangue o galo anunciava, e nesta febre escorre, aceso, escaldante, o
com a ferida no peito, o seu Ribeiro, com a flâmula, recitando: o sangue, regando a cidade, a italiana pelo telhado flutua como um
beijo, amigo, é a véspera do escarro. A Maria Igarapé levanta a saia, pólen, a torneira escorre, o pé da italiana, por muito alvo, acende os
no seu corpo o ar da serra, o amanhecer na serra, a coalhada na serra; escuros do casario sobressaltado. Subo já e sigo aquele pé no sem-
os currais reúnem com fogo de artifício e com a volta dos tucanos, rumo da noite e de Roberta. A torneira escorrendo é lá longe no
coroando o Pedro Chaminé campeão dos Pais Franciscos e a seu lado, pedral da ilha das Pombas, um banzeiro na quilha do Santo Afonso,
liberta da Santa Casa, aquela Catirina: desinchou, de organdi e com o tio Antônio no leme, farejando aquela nuvem. Nesta febre
tarlatana, braço dado com esta outra Catirina que vai cobrindo com as melhor será sair, agarrar-me ao cabo que a moura me lança da janela
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e arder meu delírio entre aqueles anéis da serpente. Nesta febre das moendo o Ginásio, o chalé, o Não-Se-Assuste... Dezoito anos?
fogueiras, dos balões, do palanque inacessível, o quarto submerge Vamos queimar a flâmula, seu Ribeiro, vamos multiplicar essa
num caldeirão. Se de repente, ela... Que febre essa que tu tens, é por contrariedade, Zematias, apodrecer dessa ferida, seu Filemon. Aqui só
mim? Me deixa ver teu pulso. Põe tua cabeça bem em cima do meu fede a mofo. Zuzu flutua na sombra, com a sua melhor laca, peluda na
umbigo, que passa. sombra. Dolores e o tio enrolados na pele da jibóia, puxam a maré pra
Desarma a rede, rede debaixo do braço, tamanha hora da noite cima desta febre. Passa aí fora, Antonieta, e sopra na janela.
para a travessa do Curro. Ou no rumo do seu Pedro Chaminé? [229] Dói-lhe o osso, os escrotos, o sonho, o cata-vento mói
— Menino! Mas, menino! Estás pegando fogo, criatura! aqui dentro, zumbindo. Um boi urrando? O Estrela Dalva? Pedro
[228] Levado pela D. Dudu ao quartinho aqui atrás, aqui atrás Chaminé raspa o resto da maniçoba na queimação do Boi e o Amo
tomando um chá, mormaço escuro, igapó fumegante. com a Fada debaixo do araçazeiro. É um boi urrando, sim, um zebu
Dias sem se dar conta, no quarto, a todo instante morre ou salta desmergulha do valão e entra pela
para a rua, entra na barraca de Roberta, caindo aos pés dela. Já não D. Brasiliana adentro. Devagarinho vem a vila, o chalé, o velho
sabe do mundo, lá fora os ruídos de um universo perdido. Passa o curral das vacas, Maninha guardando os pintinhos no oratânio,
bonde, a carroça, por certo a mando de Luciana, o rabecão da Santa Andreza com a sanguessuga na coxa, e a mãe no campo entre os
Casa apanhando os defuntos do bairro, O búfalo do Dr. Edmundo lhe bacuraus naquele caminho da pixuneira em flor. Lobo um travesseiro
traz Andreza morta. O cata-vento range, o cata-vento range, o cata- na cama. Leontina, afilhada do Major, vinha ao chalé, gostando de
vento na cocheira dos zebus. Nesta porta-e-janela esburacada, a brincar com o menino na cama. A mãe acudia: Andem que o vinho de
centopeia pelo soalho, goteiras, as paredes suando, escorre chuva pelo tucumã já está na mesa. E ia para o Major ao pé do prelinho: Essa sua
punho da rede, oh, aquele apito do curtume! Vem a velha parteira, só afilhada... Deus o livre. Só é inocente quando dorme.
de camisa, a lamparina na mão, o cabelo solto, curva, encovada, Aquele vinho, um sangue tucumã, põe mais farinha e mel, o
falando fanhoso: Deixa te rezar na cabeça. Aonde andam as duas melado grosso escorrendo do pote. A guria se dava como uma patinha
netas? Vai beijar a mão da avó parteira e se encolhe, crispado. A n’água, era aflitivo, o nariz nos cabelos dela que se derramavam,
lamparina espicha a língua do fuligem, tisnando a parede. Febre com anelados, plumagem escura. A patinha naquela maré enchendo, as
o gosto dessa aflição da avó morrendo atrás das netas, desses trapos, fitas do vestido se mexiam como mururés na correnteza. Dela o
cacarecos, fumaças, murrão de lamparina, a sombra da louca, a mãe sempre cheirume, no travesseiro, cheirume de quem acorda suada
da Nini, no quintal de lama podre. Um visgo em que se queima, lento, com a chuva no zinco e com os cupuaçus abertos no alguidar. A mãe:
e se precipita na rede funda daquele irmão lá da saleta do chalé, morto — Já, já daí. Só não duvidar, um dia esse travesseiro acaba
como ele, não por Irene mas pela donzela do palanque, a que o Boi tendo filho.
comeu. Lá fora é verde, o capinzal defronte, os zebus ruminando ao Esta rede, nesta febre, coleia pelas sombras, O rosto de
pé do cata-vento e suas donas, aquelas duas do colégio das freiras, Leontina é o da Roberta no galho da mangueira espiando o
bem grávidas, na janela. Roberta a caminho da fábrica ou debaixo do esconderijo da moura e a moura com o frasco de loção aberto entre os
araçazeiro? Aqui dentro o cata-vento não é senão a febre girando, peitos suados: te capo, pirralho. O cata-vento geme. Nem Ana? As
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duas netas botaram o pé no mundo? Nini chega da Chapéus, de de partir para o sul. Largar Belém, seguir para o Rio ou em busca do
uniforme, choramingando, órfã cada vez mais. D. Dudu entra e sai tio Sebastião entre as tribos e os balatais. Engole a palavra, deita-se,
num ar de tão ocupada, como se festejasse a febre do rapaz e a ouvindo a fala da mãe, fala festeira, voz de Areinha, da família. A
desaparição das sobrinhas. Te tenho na mão, diz o olhar dela, que mãe, mas nem parece! Intacta, sem um sinal daquelas suas noites,
dizia eu das duas? Não foi? A velha parteira vagueia pela casa, imune ao tempo e à mão, que no que toca apodrece, do Capitão
dobrada e sem voz, saindo a um chamado. Edgar. O vestido de florinhas, novo, e seu penteado e suas unhas, o
Aqui no atoleiro fervendo, no visgo deste delírio, ouve lá fora, sapato, seus movimentos... Não muda, ou melhor, se apura. Agora
na calçada, as pequenas da fábrica e do curtume. [230] Trabalham. mãe e filho atravessam o mau tempo, ficam os [231] dois se
Pitiando a borracha e o couro. Trabalham. No curtume, atoladas nos enxugando à sombra do miritizal onde o velho avô tira tala para os
tanques. Trabalham. Sabina revira os couros verdes, trabalha e vai, de cestos. Entra a D. Dudu com a cadeira.
fita na testa larga, esgulepar na Dois de Junho. E neste tanque quem — Conforme se pôde, o doente foi assistido. Até que não
me remexe este couro, quem me sacode esta inércia? Visões inundam carecia de vir com tamanha pressa. Uma viagem é uma viagem. O
o travesseiro, a Fada escanchada na cabeça do Boi, o choco da Maria mais arriscoso já passou. Boa travessia, fez? Mas sente, D. Amélia.
Igarapé, o bucheiro daquelas onde toca e cochila o Satiro com a D. Dudu mantinha-se à distância, tesa, séria, e seu triunfo: Teu
Pulunga dando-lhe chá, cobrindo-lhe com folha de arruda o buraco da filho fora de perigo. Chegaste atrasada. Numa cortesia, deixa mãe e
testa. filho à vontade. D. Amélia sentou-se, esquecendo por alguns instantes
— Ei, mea gente desta casa! o doente para contar da viagem, tão sem mares a travessia, quem
Levanta meio corpo da rede e já no quarto: Ei, mea gente desta vinha de passageiro, a carga de porcos no barco... Alfredo cortou:
casa!, de repente, numa aragem: — E o Major? Como vai o Major? — num gracejo brusco,
— Mas então? Já morreu? sentado na rede, contendo uma impaciência. A mãe voltou-se, viu-lhe
Nem tomou bença, olhando para ela como se fosse pegado em a palidez, o constrangimento, curvou-se sobre ele:
extrema culpa, tivesse perdido toda vergonha, não merecesse aquela — Agora vai me dizer tudo bem contadinho onde e como me
visita. De novo o som da moringa. De novo a voz de Areinha. De arranjou essa febre na casa alheia. Dando consumição a D. Dudu! Os
novo, à boca do toldo, neste mau tempo, o rosto escuro, belo como o tantos incômodos! Vá ver... Tens de ir ao médico.
acará-pixuna. Vinha dos seus desmaios no campo, das caminhadas — Consumição, D. Amélia? Era ou não era obrigação de minha
pela beira-rio, de :sua janela olhando o ingazeiro, para colher do parte? A quem mais que a senhora confiou ele? Estou-lhe prestando
soalho a ponta deste lençol e tocando, de leve, o punho da rede: Mas conta. E me dê licença: pra ele, esta casa não é alheia, não, senhora.
tu nem mais febre tens? A mão, pela testa do filho, sábia e sossegada. Alfredo se encolhe no fundo da rede, já não sabe se vexado ou
Às perguntas que ela lhe fazia, mantinha-se calado, ou não, sim, sim, divertido. D. Amélia alteou a voz, um breve rir meio trocista ferindo o
não, confuso, escondendo a febre, como se tirasse de dentro da rede e filho.
depositasse aos pés dela o bilhete a lápis, aquela noite do Satiro e da — Mas então já é um homem, D. Dudu! Ou partiosidade dele
Pulunga, o Ginásio perdido. Sentou-se na rede para dizer que... Tinha para que a boba viesse a toque de caixa de lá de Cachoeira? Traga,
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por favor, a sua trena da costura e me tire o tamanhão desse mimi, — da tinta do prelinho, do caruncho da Intendência. E teimando
tome as medidas, D. Dudu. Só a ele mesmo se confia. Fazendo é de que é ácido úrico. E tu, meu fino, tens tosse, deixa ver teu olho, me
sua casa hospital, não lhe gabo a sorte, D. Dudu, o que a senhora faz é deixa ver tua língua, tens fastio? Então, menino, não, D. Dudu? O
de coração. não cobra. biguane! Menino!
— Bem que cobro, D. Amélia, bem que cobro, então que não Alfredo já entende. Debaixo daquela troça, daquele pouco caso,
cobro? Ai de mim se não cobrasse. Não costuro fiado. [232] Fiado é a mãe arrolha os seus ocultos e põe o filho em [233] brios. Seu olhar,
com a mamãe, à volta com os partos e benzições. e com as duas de vez em quando cauteloso, procura-o com uma certa malícia, como
cachorras, a sina é dela. Eu, não. De onde vinha a farinha? E a se lhe dissesse: Bem que te conheço. Ou empenhada em surpreender
senhora pensa que o seu filho não andou fazendo bem das dele nesta no filho o homem que dali saía? Quem sabe não teme perder para a D.
cidade? Deixe está que devagarinho vou-lhe dando parte dele, na Dudu aquela atribuição de conhecer o filho mais que ninguém? Tanto
presença dele pra que me desminta. tempo longe dele e ele com a D. Dudu tão junto.
— Pois me conte, D. Dudu. Desenrole o seu novelo, que eu — Olha, desta vez te trouxe... Adivinha! Adivinha!
ando um pouco seca pra saber os mistérios, um pouco crua desse O filho não adivinha.
cavalheiro. Ele tão nesta cidade e euzinha lá no pé do meu poço. Me — Mas roubado, viu? Bem roubado...
conte. Um homão adoecendo sem mais nem menos! Foi quarenta O filho não entende.
graus de febre ou nem um grau de juízo? — O Dicionário de Latim, rapaz! Que era que eu mais podia
— Pra mim, ele nessa rede, com aquela tamanha febrona... ver roubar do teu pai? Tanto que mandavas me pedir.
um menino. Alfredo se arrepiou. Nada mais lhe resta senão se levantar da
D. Dudu falou como se não admitisse contestação, dando o febre e partir, embarcar. Subir aquela escada do Liceu nunca mais.
preço de seu desvelo. Mas como dizer-lhe? Não dizia o tio que eIa no chalé só via era o
— Febrona? Agora então no que chego eu, ele engole a febre? filho entrando e saindo, toda manha no Ginásio? Era arrancar da mãe
Não é duvidando da sua palavra, D. Dudu. É que essa gente nessa a última confiança. Vai, quem sabe, romper o último laço que a
idade o que sabe é fazer dum estrepinho no pé um Deus-nos-acuda. prende ao chalé e entregá-la inteiramente ao seu demônio.
— Ele bem que variou... Falava sem ligar coisa com coisa. D. Dudu vem com o café.
Esteve feio. — Pois muito bem, D. Dudu, deu a mão à palmatória, já que
— Falei? — acode Alfredo e logo se encolhe, vexado daquela consumição não foi, foi gosto, lhe agradecer não lhe agradeço. O
situação, com receio de levantar-se e dar um grito com as duas. doentinho é seu. Serve de pago. Fique com essa prenda. Empregue ele
— Ou fez foi pregar susto na senhora, D. Dudu? Resta saber o para abrir vala no quintal, tirar goteira, embarrear buraco de parede,
que ele andou soltando debaixo dos quarenta graus. Qual, D. Dudu! capinar na frente de casa e acompanhar a D. Santa pelos partos com
Menino! E por que me mandou dizer tão tarde, Alfredo? Teu pai está um farol na mão... Fique com essa prenda.
bem, sim. Anda é com umas coceiras. Aquilo é mais dos catálogos — D. Dudu, mãos na ilharga, cabeça lá em cima, olhando de cima,
todo dia, todo dia! ganhou intimidade:
117

— Tudo passado no papel? Selado? Alfredo não responde, alisando a capa vermelha, o Dicionário
— Selado e sacramentado. Uai, D. Dudu, não lhe disse que é cheira um pouco a cânfora. A mãe volta ao baú e vem com um
seu? Pois carregue o peso. embrulho:
— Não apoiado, D. Amélia, o seu filho, o mister dele... — Também te trouxe isto, um morim espora tirado lá no turco,
— Mas o Dicionário? Aí na mala? Ou está brincando? — te fiz um lençol. Marquei tua letra. D. Dudu precisou chamar médico?
cortou Alfredo. Fez conta na farmácia? Teu tio passou por aqui, te adiantou algum
[234] — Querias que eu carregasse ele no colo toda a viagem? dinheiro? É certo que estás ensinando? Mas, meu filho... Febre, que
Ou num aturá na costa? seja febre, não tens mais. E é só febre? Foi? Me fala verdade.
Tão confiante! Nada lhe pergunta sobre o Ginásio, segura do — Perdido. Perdido.
caminho dele, trazendo-lhe o Dicionário, escondido. [235] E quer com isso, obscuramente, culpar a mãe, vendo-a
D. Dudu coloca-se de parte, já sem contestar mais nada. E de solta no campo, desfalecida no caminho do gado, levada ao chalé pelo
repente: bandido, e todo o silêncio dela (Fale, mãe, fale a sua verdade), do pai,
— Hora do teu chá, aquele-menino! Espera... de todo o chalé... Também mede com isso a própria culpa, é certo ou
— Não, D. Dudu. Deixe que mamãe... só agora acorda de seu descaminho. A mãe desembrulha o lençol sem
— Tua mãe aqui é só visita, rapaz. Não te dei alta. pressa, cuidadosa em guardar o papel de embrulho acetinado e o cor-
D. Dudu retirou-se, apressada. A mãe só fez foi sorrir, abriu o dão:
baú e tirou o Dicionário. Roubadinho, hein? Hein? — Teu pai sempre diz: vintém poupado... Sempre aquele teu
O Dicionário grande, o patriarca da estante, o pé de meia da pai. — Subitamente Alfredo vê nos olhos dela o primeiro filho
ilustração do pai. Roubado. Nos braços estendidos, como um cofre afogado. Mariinha morrendo... Quer pegar-lhe a mão, vira-se, sacode
repleto. No instante em que se curva sobre a rede a varanda da rede contra as moscas, torna a sentar, a mãe desdobra o
— Mamãe, perdi o Ginásio —, range a rede na escápula, passa lençol.
o bonde, o Curro, arrastando-se para o fim da linha, move-se o cata- — Quando recebi o recado, eu estava no pé do poço, puxando
vento, entra a D. Dudu com a tigela de chá. Agora com o livro na água. Lá no jirau dela a Isabel era escamando peixe, O recado veio
mão, pesado, como se a vergasse um pouco, D. Amélia encara o filho com o filho da Marcelina que passava do trapiche. Depressa dei um
que toma o chá, franze a testa, fica olhando o livro como se lhe pulo na ponte atrás de qualquer passagem, fosse lá no que fosse que
tivessem proposto um enigma ou aguardasse a D. Dudu sair do descesse. Larga-não-larga, estava a Boa-Esperança, carregada de
quarto. Que ele devolve a tigela à D. Dudu, toma, entrega-lhe o porcos. Tenha paciência... como é sua graça? Ah, seu Fileto. Seu
volume e se escora no esteio que separa o quarto da sala. Alfredo sus- Fileto, não desatraque antes que eu ponha o meu pé no seu convés.
tenta no braço o cofre já vazio. Até que quem me ajudou a passar a ferro foi a Isabel. Coitada, me
— E essa febre? Quantos dias? carregou o baú até o trapiche e ainda queria te mandar uns tamautás
salgados... Deus me livre! E olha que de me assustar não sou.
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Baixa a voz, confidente, e Alfredo sabe que ela quer dizer outra Alfredo saiu do quartinho para a sala onde já não cabia mais
coisa, fazê-lo confessar tudo, essa delicadeza da mãe o exaspera. Ela ninguém. Disputando a única janela, aqueles rostos da rua, o rosto do
desdobra o lençol sobre a rede, cobrindo o filho com aquele cheiro de Una, do São João do Bruno, do Valha-me-Deus, e em todos o barro
roupa lavada de chalé, limpezas da mãe, a mão de Isabel, a dos Lobos. Outras cabeças atrás se comprimiam. No quarto cheio, já
escamadeira de peixe no jirau. Debaixo do lençol, choro e ímpeto de preparada, a defunta na esteira. Alfredo descobriu-lhe o rosto à luz
sair porta afora, reprimia, O Dicionário pesa-lhe nas pernas como um das velas: só pele e osso, múmia tapuia em que se via ainda a pacífica
grilhão. obrigação de servir ao próximo e a obstinada busca das duas netas.
— Pra te falar a verdade, nem me lembrei de dizer à Isabel que Ana está de joelhos, suando, inclinada sobre a avó, uns olhos.
aquecesse a janta do seu Alberto. Mas que aqueceu, aqueceu, aposto. vorazes, o beiço insolente. Escorando-se na parede. Dalila ainda
Ou eu disse a ela? Seu Alberto: vá ver, não é nada. Ele já pegou apalermada. Veio D. Amélia:
sarampo? A Isabel: deixe [236] estar, D. Amélia, que hoje mesmo [237] — Alfredo, sai deste abafado. Isto aqui bem não te faz.
acendo uma cera em tenção de São Expedito da finada Lucíola. Na O quarto fedia a remédios; ardia ao canto um fogareiro de barro.
Bahia ficamos foi de bubia, bote... Valha-me Deus, que caíazinho um Coberto por um pano o espelho da parede. No oratório, os santos
vento... Rodolfo, esse, a gritar da beirada, me fazendo uma espiavam. Alfredo correu os olhos pela sala. Trepada no banco, Nini
encomenda (coitado, sempre esperando ocasião de ter um papel pra pendurava o candeeiro grande do vizinho no prego do esteio.
imprimir o jornal que compõe e desmancha, desmancha e compõe) e Cumprimentou a mãe de Roberta. E eu, como nunca tivesse
a Benedita, essa: Madrinha, me traga um par de brinco que aqui lhe febre nem nada? Chegou o caixão, estabeleceu-se o velório, vieram
pago. E Mercedes me pedindo que eu não deixasse de ver a sobrinha cadeiras e bancos da vizinhança. Alfredo preparou os dois castiçais.
dela lá no Orfanato. Ah! Eu com que cabeça? D. Amélia trouxe o crucifixo e Bina, a feia, num vestido bem colado,
Senta-se, como aliviada, cruza os braços: pastosa de talco e suor, entrou com uma braçada de angélicas. D.
— Mas então, essa tua febre, de que, de onde? Amélia pediu que evacuassem o quarto onde armou a rede para a D.
Levanta-se: morreu? Vai à janela: de um moinho de vento como Dudu que preferia o quintal, preferia ficar no tempo.
esse é do que estou precisada no chalé, volve ao quarto, recolhe o — Ou entregar a ossada pras cachorras.
lençol, dobra-o com aquela habilidade que o filho tão bem conhecia, — Não, D. Dudu, agora eu. É a minha vez. Deixe por minha
O filho, estirado na rede com o Dicionário nas pernas, bate as moscas conta. Descansezinho um pouco.
da tarde quente. No quarto, sentada na rede, dura, calada, D. Dudu parecia alheia
Entram dois senhores com a D. Santa nos braços, encontrada a tudo, como se a presença das duas sobrinhas a tomasse insensível à
caída na estrada do tina. Juntou gente na calçada, já invadindo a casa. morte da mãe. Ou a morte da mãe, para seu maior triunfo, consumava
Alfredo desarmou a rede, fugiu para o quartinho dos fundos. Não a profecia? Seu pé de meia pagava os funerais, as cuecas do Bon
demorou, Dalila e Ana chegavam. Entrou seu Pedro Chaminé. D. Marché pagavam. A Santa Casa aqui não pára a carroça. O rabecão
Amélia apanhou o bonde em busca do médico. A casa encheu. Pouco leva eu sei quem... Obra de Deus esse tombo no Una, esse fim mais
antes do Utinga apitar as nove, a velha parteira expirou.
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cedo, a vê-la pelo escuro e debaixo de chuva atrás das duas Às duas primeiras palavras quase festivas, seguiu-se um pesame
vagabundas. de voz lenta no silêncio da sala em que o charão fazia brilhar a sua
Mais mães entravam com seus filhos pela mão e no colo, prata.
algumas sentavam-se no chão do corredor para o resto da noite. — Ah, D. Santa! Inda ontem rezou na cabeça da mea patroa.
Outras iam à cozinha preparar mamadeiras ou oferecer-se para um Toda vez que lá passava, me abençoava. Abençoadeira que só ela.
serviço. A criançada principiava a correr e a chorar pela casa toda, — Também de lá nos abençoa. Nos abençoa a nós todos —
derramando-se pelo quintal. atalhou a senhora que fazia assoar o filho, dava palmada no outro por
— Sai daí dessa lama, meu filho! Seu demoninho, sai da lama! querer este por força ficar com o charão. Um estivador entregou a D.
— gritavam. Alfredo via a velha parteira cercada de mães. curumins Amélia um embrulho de café. De paletó e guarda-chuva, vindo da
chorando e correndo, ninhadas que pegou. Bem que merecia aquelas União Espírita, entra o seu Ribeiro alisando a careca:
vozes, era como se estivesse [238] escutan|do, melhor que entre os — Na porta de casa soube do desencarne. Ela? Mais um espírito
anjos. Alfredo ia na sala, ia na cozinha, entrava no quarto, passando a de luz, lá em cima, por nós. Mais do que fez nesta [239] nossa tão
mão no queixo, diabo desta penugem no queixo, viu-se cabeludo, curta passagem pela terra, no além ela fará e eternamente.
saindo daquela fornalha que nem caldereiro. Varou a cerca, foi ao Limpou os óculos:
vizinho, seu amigo Oscar o levou ao banheiro; a tina, cheia, que — Esta vidinha material! Esta vidinha material! — e puxou pela
entornava. Oscar lhe deu a chaleira quente: manga de Alfredo, agora num cochicho:
— Pra quebrar a friagem. Tira esse limo. Essa graxa da febre, — Mudou-se de lá? Doente? Temos, domingo, uma ex-
essa sarna da Roberta. cursãozinha a Marituba.
— Água de poço por que trava? Quando vamos ao aviso do teu — Boa noite, D. Brasiliana.
pai? Aquele perfume na sala só uma pessoa podia usar no bairro: D.
— Fosse do meu pai, fazia ele navegar para Paramaribo, Brasiliana, de lamê preto, o penteado alto, uns graúdos brincos
carregar seda. Toma o sabonete. verdes. Indagou de Nini:
Ah, banho! Lhe restituía o alvoroço de viver, tirava a flechada — O enterro?
do peito. Isto lhe dava o preço do mundo, do que tinha a fazer. Varou E no ouvido da moça:
a cerca, chegou ao quartinho escuro, dá com a Dalila a um canto atrás — Qualquer coisa, às ordens. Às ordens.
duns panos na corda, nua-nua se passando cheiro. De toalha passada E alto para toda a sala:
no corpo se aproxima dela, cochichando: Às ordens. Não façam cerimônia.
— O pajé te dava banho quando soubeste? — Não é preciso, não é preciso — exclamou Nini tão ofendida,
Lá fora a voz do seu Bahiano: lhe tremia o beiço. — Não é preciso. — Tremia o beiço, a voz tremia.
— O charão às ordens. Às ordens! Pra servir o café, às ordens! — Às ordens. D. Santa, o bem que fez! Morreu acudindo gente.
A quem se não deu a mão nestes buracos? Era o socorro em pessoa. A
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rezadeira que era! A falta que vai fazer nesta nossa carecência de ti, em tua busca, por ti a toda hora, e por ti se acabou? Fazedeira de
tudo... velório dos outros, faz agora o da tua avó. Alfredo remoía a
As mães se acotovelavam com desagrado e impaciência: Essa indagação com uma gana de arrastá-la ao quintal, dizer-lhe tudo, cara
intrusa. Ali mães pariam, assistidas pela velha e agora, de lamê e a cara ou... As velas a modo que avermelhavam o rosto de Ana, nem
penteado de gala, intrometia-se a manina do contrabando a falar em um sinal de culpa, medo ou abatimento, seu rosto dominava a sala,
nome delas, a abrir subscrição para o enterro e debaixo daquela projetava a sua luz nas faces da defunta. Alfredo voltou-se, viu, e fez
perfumaria como se viesse da Primeiro de Março... D. Brasiliana, um gesto de incredulidade: A italiana? Também a italiana? Sem dar
indiferente ao olhar das mulheres, ficou junto do caixão, muito boa noite, de bandós, vagarosa, esquiva, inclinou-se sobre o caixão,
formalizada. Ao despedir-se de Nini, então fez que deu com a rezando. Alfredo via nela um ressentimento que a levava a rezar
presença de Alfredo, armando um pasmo: assim:
— Assim tão pálido? Que foi? Não esperaste minha vez, velhinha, me farias um grande parto.
As mulheres seguiam os mínimos movimentos da taberneira. D. Rezou, e sem olhar para ninguém, retirou-se, apressada, como uma
Amélia até assustou-se com aquela crioula no trinque que lhe estendia dançarina. Alfredo seguiu-a e dela só trouxe um breve gesto quando
a mão, respeitosa: se voltou no escuro para ele ou por nada sumiu.
[240] — Conheço já a senhora de vista, sim. Mas ele? Andou [241] Seu Bahiano servia café no charão de prata. A romaria se
doente? Tão pálido! avolumava. Entravam famílias, mães solteiras, a Maria Igarapé, a
D. Amélia só fez sim, sem sorrir, com boa maneira, pedindo Pulunga e foi que também entrou, Alfredo reconhecia: A tal
licença, chamavam ela da cozinha. Antonieta, a que soprava para dentro das casas, afinou, com seu
— Às suas ordens, lá na nossa quitanda, minha senhora. sopro, a flauta do Satiro, aquela tal, neste instante se debruça sobre o
D. Amélia piscou para Dalila que viera espiar a sala. A moura caixão, chorando. Blusa lilás, saia branca, o cabelo à Nazareno, a
tirou de dentro do peitilho o leque negro de pontas douradas, abanou- chinelinha amarela. Chorando. Seu Ribeiro limpava relimpava os
se agitando a luz das velas, o que mais danou as mulheres, e com o óculos na manga do paletó. Diante do crucifixo, a mulher se benzeu, o
leque, séria, tocou no Alfredo que tentava evitá-la. rosto molhado, murmurou à Nini: Meus pêsames, saiu como
— Pode me levar, não for incômodo até a parada, sim? acossada, seguindo-se o repentino boa noite alto, do seu Ribeiro a
Saiu debaixo de todo o olhar do velório, como se saísse de um tropeçar no batente, amparado pelos estivadores que guardavam a
baile, rompendo caminho no sereno apinhado. Alfredo acompanhou-a porta, Cristo vos lhe pague! Cristo vos lhe pague! E a que horas o
em silêncio, pouco atrás dela, não trocaram palavra. O bonde por enterro? Lá se foi atrás. Com seus jasmins e suas parceiras, entrava
sorte não demorou. Esméia. Tentavam varar o aperto em torno do caixão. Roberta? Nem
Voltando à sala, o primeiro olhar sobre ele era de Ana como se no sereno. A mãe dela se aproximou:
lhe dissesse: Mas nem diante do cadáver? E engrossou o beiço, — Ela que me pegou a Roberta. E também o outrozinho. E
engoliu o cuspo, à cabeceira da avó, olhando as ceras pingarem nos olhe, seu Alfredo, chegou a ocasião, tenho um assuntinho a lhe falar.
castiçais. Ainda nem sabes, rapariga, que ela tombou ao teu peso, por
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Alfredo, fugia-lhe o sangue, quis levá-la para o sereno, agora Eu ia a caminho do curtume e quando vi seu filho me fazendo
impossível de atravessar com tanta gente. presente de uma rosa. Alfredo no corredor: A professora. D. Nivalda
— Não, não, aqui, aqui mesmo, Roberta lhe falou não? acompanhada de duas alunas.
— Tempo que não vejo Roberta, D. Domingas. Por obséquio, faça ciente à família para me desculpar... pois não
D. Domingas se esticou para falar-lhe ao ouvido: poderia passar a noite. Pudesse, passaria. Mas já rezei meus sete
— Pois o assunto é o de me dar umas aulinhas em casa, de terços. Meus sete terços. E o senhor? E o senhor? Nem para me
noite, pro meu filho, o Raimundo, que me anda tão rueiro! Pode? De mandar dizer! Por quê? Os seus alunos tão ansiosos...
noite? Me ceda duas das suas noites, é o bastante. Pagar justo, vou já A morte da velha parteira foi o pretexto para vê-lo, via-se nos
lhe desenganando, lhe pago, não. Mas lhe pago no que for do meu atrapalhados olhos dela, na canseira, no tremor das mãos. Com pouco
alcance. Pensa que não sei que quem desemburrouzinho o irmão retirou-se, já arrependida de ter vindo, depressa, meninas! Depressa
daquela semelhante índia da jaqueira foi o senhor? Sim, aquela que que está trovejando e ia ficar só, como sempre, na velha casa, ao peso
usa a folha de bananeira feito tanga. Agora é a minha vez. Roberta, na do seu comandante e suas viagens.
fábrica, botou de vez a pedra em cima de livro. Agora, de noite, Pelo braço do marido que capengava e trazia um embrulho,
aprende violino. O senhor pode? entrou a custo uma senhora grávida.
— Não, D. Domingas. Vou embarcar. [243] — Que será de mim, de mim que estou em véspera do
[242] — Ali, embarque, não... Roberta, é o que diz sempre, que quarto e sempre contei com ela?
o senhor é um professorzinho e tanto. Espremeu-se na sala à cunha, roçou a barriga alta na tampa do
Um professorzinho e tanto! Violino! Aprendendo violino! À caixão como se isso lhe desse sorte.
noite! Um professorzinho e tanto! As crianças choravam, faziam — Entrega o açúcar, meu filho... Como está de flor, não? —
pixixi pelo soalho. Todos suavam. A janela carregava aqueles rostos virou-se, já incorporada às outras que iam fiando e desfiando seus
de fora, pesados, parados, amarelos. Seu Bahiano trazia da cozinha o velhos assuntos, já íntimas daquela morte.
charão cheio, agora à janela, servindo o sereno. Dentro, na rua, na — O bonde parou defronte! — exclamou a Esméia aparando os
calçada, naquela aglomeração, Alfredo descobria o Satiro com a caixa jasmins que lhe caíam do cabelo e todo o velório se voltou para o
de flauta, o seu Quintino Profeta, o Pedro Chaminé, a Catirina, toda a bonde parado, bem defronte. Saltou o motorneiro com a chave na
tropa do Estrela Dalva, caras do Não-Se-Assuste, e maridos e mão, entrou. A linha do bonde queria custear o enterro.
companheiros, pessoal de oficina, carrinho de bucho e estiva. Será — Os meus três filhos? Os dois da minha cunhada? Os cinco de
que daí sai tacacá, sai cariru, sai dominó e roda de bisca no sereno? minha irmã? Tudo berrando na mão dela. Na mão dela. Sem falar dos
Sabina, a do curtume, afobada, sem nem olhar a defunta, varou o meus colegas.
corredor para tomar a bença da Ana, que acendia outro castiçal, bruscamente fugiu num choro
D. Amélia na cozinha repleta e fumacenta. Ali ficou, ajudando a surdo. Passou pela porta do quarto onde estava a tia e Alfredo viu a
lavar as xícaras e toca a perguntar sobre Cachoeira. Olhe, madrinha costureira levantar-se, metendo o pé na chinela.
Amélia, seu filho, uma vez, pois não foi que me ofereceu uma rosa? — Quer café, D. Dudu? Café no charão de prata?
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D. Dudu empertigou-se, o rosto seco, lívido, sorriso lívido, Um dia é tudinho abaixo, poço adentro. Embarcamos para a Guiana.
sentando-se; Alfredo deu um embalo à rede que pesava. Estou só à espera do Cassiporé. Vem comigo que te abro os
D. Amélia se chegou para o filho: caminhos. Me farás companhia, e te dou o estudo, esta garupa, até
— Não abuse do sereno, olhe... Fique aí conversando com a D. que me abandones... Espera, espera que inda te quero dizer mais...
Dudu. O seu Bahiano, entre aqui com o seu charão. Ia vender o Dicionário. Passou pela casa do Ribeiro que lia o
Incessante mãe, guardando seus tormentos, dona da casa alheia, livro sobre Messalina. Na cadeira de vime. O Sagrado Coração de
a trazer do quintal a Ana, a fazê-la sentar ao pé do fogão, a passar-lhe Jesus na parede, o Allan Kardec no banquinho:
a mão no cabelo. A ordem que dava ao velório! — Cidadão! Cidadão! Esgotada mas não saciada! Cidadão! Ah,
Seu Bahiano continuava a servir café no seu charão de prata e Roma! Ah, Roma!
assim foi até horas altas quando, com receio de D. Amélia, se meteu Ribeiro trazia no rosto o sopro da Antonieta.
na roda aqui fora, do Quintino Profeta, bebeu enfim a sua talagada. Entrou em casa, andou pela cozinha, bebeu um café frio. Nini
Dois dias depois do enterro, o embarque da mãe no Ver-o-Peso. acudia: Estalo já-já dois ovos, sim? Bateram palmas.
Fique com estes duzentos mil réis e veja lá o que é [244] que vai [245] — Professor, pro senhor falar com ela lá no canto da
bem, a cabeça não é minha, é sua. E a carta pro seu pai? Escreva, Só o travessa do Curro.
que disse a mãe no instante em que Alfredo lhe tomava a bença. O Ao aproximar-se do ponto, foi esmorecendo, quis fugir. Vendo
filho a sete chaves, sem uma palavra, uma razão. Ia embora a mãe a esquina deserta, afoita-se pela São João. Noutro lado, em
para as noites do chalé. A canoa ganhou o largo, dobrou a vela e tudo companhia da prima... Noutro lado. De vestido branco, de sapato
ao pé do Necrotério ficou vazio, irremediável. branco. Noutro lado.
Sacudia as sete chaves caminhando para o Curro. Fingia não vê-las. As duas vieram vindo pela quadra,
D. Dudu, no quarto, cosia o seu luto e o rancor contra as duas atravessaram a rua. Param na esquina. Alfredo passa rápido, o cordão
sobrinhas. Estas pelo bairro, espalhadas, com o fantasma da avó atrás. do sapato desmancha-se. Diabo!
Ia vender o Dicionário de Latim, cobrar os atrasados da escola e — Rico? Já nem conhece os pobres... — falou a prima.
partir. O professor de geografia lhe falara de sua amizade com um — Ah, não repare... Passeando?
comissário de bordo, o do Duque de Canas, que voltava de Manaus. Amarrou o sapato, emparelhou-se com a prima que se
Fácil encontrar o lente na terrasse do Grande Hotel tomando gim. distanciou da companheira.
Subiu na Brasiliana. A moura saia do banho. Os pombos — Tinha mas era gente no enterro, não?
arrulhavam no telhado. Os tajás na janela exalavam a sua magia. Atrás, a outra desatava a fita do cabelo, parou, de costas
Menino! Mas menino! dobrando a fita.
Ela agora insistia: Espera só um pouco que embarcamos juntos. — Um enterro tão bonito...
Só um mês e embarcamos. Vai comigo. Estou caladinha me — Sua prima que me mandou chamar?
preparando pra voar de uma vez deste galinheiro, de Belém, deste pé
de vala. A vala é cavando debaixo da taberna cada vez mais fundo.
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A moça fez sim com a cabeça e se esquivou, correu, escorando- — Até eu se quisesse... se ainda quisesse, até eu... ficava de
se no muro da horta. Roberta, atrás, ata e desata a fita, eivém aluna. Só de aluna. Mais, não.
vagarosa. — Não estou lhe pedindo nem menos nem mais.
— Me mandou chamar? — E eu? Se quiser ensinar meu irmão, ensina, está na sua
— Eu? Quando? Eu? Foste tu, Geralda? vontade, o saber é seu, ninguém lhe tira à força. Sim, que pagar nós
Geralda riscava o muro com a ponta da sombrinha sem dar pagamos. Para isso estou na fábrica. Faço serão. Suplicar não suplico.
resposta. Suplicar? Eu? Vem, Geralda!
— Não foi seu o recado? — indagou Alfredo, muito cavalheiro, — Era esse o assunto?
fazendo cerimônia. — Que outro mais, então? Eras! Era outro assunto, Geralda?
— Mas que não foi, que eu me lembre... Eu? Geralda!
— Então desculpe, boa noite. Geralda, ao pé do muro, cantarolava:
— Desculpado, boa noite. Amanhã devolvo seus papéis.
— Pode queimar, queime, jogue no fogo. Vou-me embora, vou-me embora
— Jogando no fogo enfeia sua letra, eu, não. Mineiro pau... Mineiro pau...
— Enterre no quintal. Na segunda para a terça
— Olhe que grela um pé de urtiga... Mineiro pau... Mineiro pau...
— Enfeite o Boi com ela.
— Quando é o embarque? — Que é que tem essa tua fita, que põe e tira, tira e põe...
[246] — Adivinhando? — Os incomodados... Com ela trago a morte amarrada. Não sou
— Mamãe que deu com a língua. Adoeceu que adoeceu eu quem manda na morte?
mesmo? Não soube, senão lhe mandava o meu médico. [247] — Bem, já está tarde. Pode o Boi nos pegar conver-
— O Pedro Chaminé, o Pai Francisco? sando...
— Não uso. Que que não posso lhe mandar um médico? — O Boi! O Boi! Quem aqui falou em Boi? A morte é o Boi?
— Bom não ter mandado. Senão era o meu aquele enterro. — O Boi é o Boi. O diabo te livre da chifrada do Boi.
— Quem me dera eu dispor da morte... Então sou eu quem — Não aprovou, professor?
manda a morte? Fale sério, adoeceu mesmo? — Quem sou eu para aprovar ou desaprovar. Não foi a Fada?
— Não. Mas vou embora. — Quem que está lhe pedindo opinião? És tu, aí, Geralda?
— Não antes de ensinar meu irmão, só umas noites. De. pois, Deu as costas, passou a fita pela cintura, jogando o seu
sim, me apresente a conta e corra que o navio está largando. Mamãe, escárnio:
eu sei, que lhe falou. — Então vai deixar Belém... Cada um procura as suas
Alfredo não respondeu. melhoras...
— Assim me consta.
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— Que vai ser de suas apaixonadas? — Me dê a fita que senão não amarro a morte...
— Cairão todas no poço. — Amarre, tome... Sem mais adeus, sustente o diadema.
— A primeira que se atira é a professora... — Agora-agora que vai embora?
— Assim espero. — Agora.
— Deixe está que pingo um veneno no chá da desconsolada. — Ali pra a garapeira? Pra sua rede? Por causa do sereno?
— Deixo-lhe uma procuração. Ou basta que você cuspa no chá? — Indague de sua varinha... Ou tudo acabou no palanque?
— Ou sua viagem é alizinho onde tem uma jaqueira, onde tem — Hein?
uma Eva, onde... Ou sentou praça? Espere um pouco, com licença. — Debaixo do araçazeiro?
Correu para a Geralda, cochichou-lhe, e voltou como — Me diga quando, que eu e a Geralda, não é, Geralda?, vamos
aborrecida, abrindo a boca com sono. nós duas ao seu embarque. Ah! Já vai...
— Ah, e os meus garranchos, queimou? Os meus erros de Cadê teu lenço, Geralda? Adeus, professor Alfredo...
ortografia? — Ai, que não sou merecedente — gracejou Alfredo, abrindo
— Bem, vou embora. os braços como para recebê-la, restituída, tirando-lhe o sapato branco,
— Se não diz pra onde, é que não vai pra parte alguma. Vai o partindo em dois o violino.
que... — E meu irmão?
Fez muxoxo: — Mas se estou com o pé na prancha?
— Por mim... que que tenho com a sua viagem, se vai não vai, — Nem uma, nem que fosse uma noite? Que foi que disse?
fica não fica. . . Geralda! Debaixo do araçazeiro?
[248] Sapato branco, vestido branco, descida do palanque. [249] — Já tirei passagem. E o seu violino? Já executa?
Laçava o pescoço com a fita sem sossego. Olhava sempre para o — Que araçazeiro é esse?
outro lado. Era outra a voz? De quem atravessou a fábrica, os bailes — É que nada mais temos a dizer, não é, Roberta?
do Reduto, o Boi, o som do violino. A prima, escorada no muro: Um no lado do outro, parados, debaixo do araçazeiro. A prima
correu do muro:
Vou-me embora, vou-me embora — Já se entenderam?
Mineiro pau... Mineiro pau... — Entendemo-nos — disse Alfredo afastando-se, com um
aceno, logo dobrou a esquina. Apanha o bonde, encontra o lente
— Geralda, vem cá, sua mineiro pau... Tão ruim não ter tido encharcado de gim na terrasse do Grande Hotel. O Duque de Caxias
serão hoje... voltava de Manaus.
Deu uma volta, veio vindo: Do Quinze de Agosto, embrenhou-se pelas transversais, viu-se
— E olhe aqui, se alguém lhe mandou chamar, está uma aqui no largo de Santana, de repente no Reduto, tornou ao largo da
que não foi. Se julga que fui eu, come coco. Pólvora, dobrou a Dr. Moraes, desceu pela Rui Barbosa, parou diante
Caiu-lhe a fita da mão, Alfredo apanhou-a. do capinzal no Igarapé das Almas, ali um tempo na boca do escuro-
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escuro, ou da baía que a mãe atravessava, devolvida ao rio, às noites defronte do Mosqueiro? Agora é ter em conta essas pessoas ainda sob
de Cachoeira. o espanto do embarque e da viagem, ainda não se sentem a bordo,
Já pela São João, parou no ponto para sempre perdido.. Aqui é esse-um alto, o rosto comprido, aqui ao pé, sombrio, sossegado.
debaixo do araçazeiro. Desce à terceira, engolido subitamente pelo porão, desce como uma
Acercou-se da barraca fechada. Pelas frestas luz na salinha. D. carga. Os beliches, uma enfermaria indigente, em tudo um pegadio
Domingas. D. Domingas tossiu. Com pouco a luz apagou. imundo, as caras subterrâneas. Subiu ansioso, falto de ar e olha para a
Em casa, entrou no quarto, D. Dudu, sentada na rede, mais de cidade que não tem mais. A proa devora o rio selvagem e tudo atrás, o
pedra parecia. Não-Se-Assuste, Boi, Chão dos Lobos, aquela fita no cabelo, fica na
[250] Terceira vez a campa, lá embaixo o cais, o seu Ribeiro. já mesma sepultura de Luciana. Nem uma palavra à mãe que carregou
miudinho, o Filemon, com a sua ferida, o Zematias doente de sono e para o chalé o Liceu perdido, o mistério da febre e da viagem. Aqui
da contrariedade esquisita. Fazendo-se de muito alegre, o Oscar na popa, olhando o turbilhão da hélice, como dormir, ou manter-se
acenava, quem sabe a repetir: Vou te ver no meu aviso de guerra. No acordado? Lá embaixo é percevejal, aí em cima os salões, os
meu aviso de guerra. Bina, desconfiou que Bina... Era? Se fosse Ana? escaleres, a impassível hostilidade de tudo. Voltou à terceira. Fedia.
A campa recolheu-se aqui dentro batendo longamente, esse monstro Aqui embaixo da escada, ao pé da mesa, junto de malas e sacos, tem
engoliu-me, os guinchos calaram, lá em cima os salões, a proa um banco. O pardo de rosto comprido, descendente de boliviano,
implacável. Aqui nasço de novo, um outro hei de ser. Nunca havia conversa abafado, confuso, e desaparece no forno dos beliches. Aqui
entrado no ventre de uma nave, leu isto, folheando velhos volumes do é o dormitório dos homens. Ali o das mulheres. Melhor este banco
sebo, já não sabia que livro, nunca havia entrado no ventre de uma que o beliche. Nele estira-se, arrepiado, ao peso desta insônia. Ou não
nave. É a minha pele de jibóia. A cidade é aquela? Em que rumo é o deixou no cais aquela carga? Ou toda a bagagem comigo é o chalé, a
chalé? Separei-me de mim, agora que me precipitei neste bojo. Salta mãe, o pátio do Liceu, a Maria Igarapé deitada no igapó, por
das águas revolvidas a jibóia com o tio dentro. Estamos passando travesseiro a serra do Maranguape? Dói a cabeça neste banco duro.
defronte da José Pio? Do estaleiro? Do aviso de guerra para sempre Com a cabeça nesta pedra, á Jacob, subo na tua escada? Subiu para a
encalhado, onde marujos assinam o ponto, lixam os metais, dormem a popa, o hélice revolve um breu escumoso. Por toda parte, lá fora, é
sesta, sonhando com um palpite de bicho? Do curtume? Da praia, treva e sono. Nem céu nem margens. E de uma luzinha da canoa ou
onde aquela menina queria emprenhar do rio? Ana, no trapiche, da palhoça numa ilha vem a D. Dudu na rede, de pedra feita. Ao
murmurando a praga ou espera o seu boto no camarote de um dos despedir-se dela, escutou: Que tu vais fazer tão de repente e tão longe,
navios mortos no Curro. Esméia debaixo do jasmineiro? A sombra da menino, mal saído de tamanha febre? Que te deu na cabeça? Te olha
jaqueira cobre a nudez de Zuzu. Da torre de contrabando, a moura no espelho. Estás ainda seco, verde da febre, seco e verde... Andou
assesta o binóculo. Vamos juntos para a Guiana. Em primeira no em busca de Ana pelo bairro, não encontrou senão o Satiro na esquina
Cassiporé... Vamos, até que me abandones... Até que me abandones... com a sua flauta, Pulunga a dar-lhe o chá e passar-lhe a mão na testa
Agora é neste silêncio em volta, os rumores do navio se tornam esburacada. Foi jantar no seu Ribeiro, aquela comidinha tão da velha
surdos, ou não anda? Verdadeiramente só [251] e capturado. Estamos [252] mãe do seu Ribeiro. O amigo lhe abriu um vinho e falou no
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filho pródigo, na reencarnação, em Messalina e Sodoma. Não olhe [253] — Nada tenho a ver com as suas complicações... Que
para trás. Não olhe para trás. E agora debruçado nesta popa em sal me tenho a ver com isso? Quem é o senhor? Mostre sua passagem...
tornei. Que será depois de Maranhão? O professor de Geografia a Desembarque no Maranhão.
bordo falou ao comissário e este muito atencioso: Vamos ver o que se — Mas sou o recomendado do professor... Já não se lembra?
faz, vamos ver o que se faz. Para facilitar, compre uma passagem de — Que é que o senhor já arranjou para usar o meu nome.
terceira até o Maranhão. Até o Maranhão. Depois serão tomadas Desembarque no Maranhão.
providências. Vamos ver o que se consegue. Uma passagem para o — Mas foi o senhor mesmo que...
Maranhão. Vamos ver o que se consegue. E nesta insônia amanhecia, — Carregue já a sua mala, rapaz, desembarque no Maranhão.
Salinas um fio de areia, a barca do prático se foi, bom será mergulhar Mas não ficou combinado?
nesta espuma, apanhar aquela cidade pela anca e mergulhá-la neste — Ou isto aqui é Pará e não Lóide? Mostre sua carteira.
banho, lavá-la nesta espessura. Cospe a tua insônia no mar, que te Taifeiro? Onde arranjou isso? Seu destino é o Maranhão.
recebe em pessoa, o que sonhavas, menino, quando enchias o tanque — O senhor prometeu, combinou...
embaixo do chalé, afogando os caroços de tucumã. Lá atrás o chão — Viajou até o Maranhão... Não posso perder meu tempo. Salte
desfeito, o formigueiro dos rios, agora, largamos. O navio não joga, no Maranhão.
jogam estes nervos, este ir não sei aonde... Bate a campa, é o café, — Só desembarco carregado. À força. Só à força fico no
distribuem-se os canecos, eivém o bule pesado, as bolachas duras, Maranhão.
agüente-se, o café é uma lavagem de espingarda, recusa; aceita as Eivém um marinheiro a chamar o Comissário que subiu ao
duas bolachas que o sombrio, sossegado companheiro lhe oferece. Em comando. Estavam no Maranhão.
volta do bule, os mal acordados da terceira estendem os canecos. Os Espera os guardas, ou quem quer que seja, que o carregue e o
marinheiros lavam o convés como se dançassem, agora é sol, estamos jogue no Maranhão. Junto a ele o descendente de boliviano, sombrio,
chegando ao Maranhão. sossegado. Bate a campa para a janta, sobe o caldeirão, fumegou no
— Esta passagem só é até o Maranhão. Tem de desembarcar no convés, apertem o nariz, que é a perfeita gororoba. Os da terceira,
Maranhão. com os pratos de folha, se aproximam como condenados.
— Fale com o Comissário. — A bóia! — berrou o tripulante impaciente, de concha cheia
— O Comissário? Que Comissário? Aqui já é São Luís. Tem de para o primeiro prato.
desembarcar no Maranhão. — Que nem pra porco — resmungou um com o prato nas
— O Comissário sabe... costas.
— Salta no Maranhão. — É mais vômito. Deles. Esquentaram o vômito dos da
— Espere... Lá vai o Comissário. Ó seu Comissário! Seu primeira. Isso tudo é vomitado.
Comissário! — É a bosta deles.
De branco, sobrecenho fechado, vira-se o Comissário,. outrora Alguns se arriscam. Alfredo, refugiado na popa, como um
tão gentil: desertor, envergonha-se. Por que recusa a gororoba? Não é do código,
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da aventura, do seu desafio? Que fraqueza [254] é que cede à náusea? — Será esse o seu ofício.
Ninguém vem desembarcá-lo? Entre o caldeirão e o desembarque, — Com a graça do Diabo, não é?
espia o mar. — Mas me diga...
— Deixe estar... Deixe estar.., Vá ficando aparece o — Penso em jornal...
companheiro, a oferecer-lhe um prato de comida. — Jornaleiro? Vender jornal, sim, sim... Agora sim..
— Faça uma boquinha com esta. Dá pra dois. É lá da copa. Vá [255] O outro fez um aceno aprovador e repetiu, suspirando:
comendo enquanto não vai desembarcando. — O ofício... Mostre as mãos. Finas. Pode, sim. Mão de ladrão
— Vai ser sempre essa mesma gororoba? é acetinada. A sua é. Mas vai vender jornal, já é o trabalho. Eu no
— Não. Pior. guincho. Guincheiro. É o que sei e me satisfaz.
Hesita em receber o prato, irrita-se por não ter se antecipado ao Subiram, O companheiro levou os pratos à copa, ajudou a lavá-
companheiro para conseguir aquela janta. Avançou com seu prato de los, trouxe duas bananas. Os dois ficaram na popa.
folha para o caldeirão. Recuou, a mão ao nariz, tropeçou numa caixa, — Viu que não lhe desembarcaram?
vai vomitar? — O Comissário se esqueceu.
— Dá pra dois, sim — lhe fala o companheiro. Alfredo olha o — Vá ficando. A cada porto, é: desembarca! sempre não
prato que recende. Um pedaço de omelete. desembarcando.
Desceram os dois, abancam-se debaixo da escada e se repartem. — Vou metade clandestino.
Terminado, o companheiro inclina o rosto na mão como tomado de — Com um pé a bordo e outro em terra.
um pesar. — Faz de conta que fiquei no Maranhão. O Comissário me dá
— Comendo vai ficando. Vai ficando. por desembarcado. Não estou mais a bordo.
— Vai passear no Rio? — É. Está em São Luís. Me mande um camarão.
— Não. Trabalhar. Trabalhar no guincho. E você? É mesmo — Seu nome?
taifeiro? — Emiliano Romero. Muralha o apelido.
— Não. Tirei a carteira na polícia por simples tirar. — Muralha?
— Por simples tirar? Sem ofício? Como? Sem ofício? — Muralha.
Ergueu-se num espanto. Muralha escorou o rosto na palma da mão e não mais falou,
— Mas em que vai trabalhar? Como viaja sem ofício? Ou não sombrio, sossegado, contemplando São Luís do Maranhão.
sabe ou não vai trabalhar? — Será que o navio não sai mais? — indagou Alfredo sem
— Não — disse Alfredo. sossego mas sem medo.
— Ainda não sabe? — Sai, mas na hora. Ele tem a sua hora. Não está escutando o
— Não sei. guincho? Na hora dele. Carrega.
— Então acaba ladrão? Muralha. O guincho era o seu canto, a sua viagem.
— Quem sabe?
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Passaram marinheiros, o Coberto chegou dobrou, outros vieram, Desce, estira-se no banco, a lâmpada em cima do rosto. Vai,
a quem procuravam? Alfredo desceu ao banco e esticou-se, atento. A abre a maleta, tira um livro, quer subir, e senta-se, ouvindo o silêncio
cabeça sobre o rolo de suas camisas, duas. Defronte aquele barbudo da terceira. Aonde o Muralha? Combatendo percevejal? Ou na popa,
cachimbava. Vinha dos dormitórios um mormaço. O companheiro se lá em cima, sombrio, sossegado, ao pé da casa do leme? Já não sabia
aproximou, inclinou-se: se... Desembarcado era [257] uma violência que o exaltava, edificava
— Com pouco é barra afora, sossegue, boa noite, meu amigo. seu orgulho. Seguiria a pé pelo sertão, vestido de couro e desespero.
[256] Meu amigo, repetiu Alfredo, com quase espanto, um ca- Aqui esquecido, virava resto de carga, rato de bordo... Já não queria
lafrio, querendo levantar-se, pôr a mão no ombro do outro, e ficou prosseguir? Que foi ao certo que o impediu? O banco onde se deita é
inerte, agora suava. Como um anjo da guarda, sombrio, sossegado, o amarelo, duro, estreito. O rolo das duas camisas cai-lhe da cabeça. O
outro entrou no dormitório e entregou-se aos percevejos. barbudo, de pé, bate o cachimbo, escoando-se pelo dormitório. Fica o
No Ceará, de novo a ameaça de ser desembarcado. Ficava na sarro, os odores do navio, carga, suor e restos de comida. E de
borda a olhar a cidade, a longe montanha tão ali num sossego que repente: à porta do dormitório das mulheres, aquele rosto em cheio,
podia assustá-la quem lhe tocasse de leve. Os botes traziam queimado, sério. Alfredo ergue-se, surpreendido. O rosto, pleno. Dele
passageiros que saltavam, com risco, na escada do navio ancorado. uma luz tranqüila, íntima, confiante. O olhar deu com ele menos que
— Na hora de me desembarcarem... — disse ele ao Muralha. um instante, o rosto fugiu. Escureceu a porta. Era a morena de
Muralha, o rosto na palma da mão, sombrio, sossegado. Alfredo muletas, com o seu rosto de sertão, agora no beliche, de olhos acesos,
caçando um alívio, voltava a olhar a serra lá aos fundos, como curiosa da viagem e sem sono, escutando o navio. Aqui Alfredo
suspensa, azul sobre Fortaleza, a Maranguape, aquele travesseiro da também escutava. Esperou. Vagueou ali embaixo da escada, topando
Maria Igarapé nos encharcados do Una? E por que tão de repente se bagagens, esperou. As muletas? Dormia com as muletas? Deixava
fez noite? Desembarca!, gritavam lá embaixo, dos botes. A noite embaixo? Indagação tola. As muletas. A perna seca, seca, sacudia um
boiava, espessa, do mar, o céu salgado. Já agora adeus, serra. Desce pouco a perna seca, a pressa com que entrou e desceu, o cabelo negro,
dos salões a luz e o gosto do jantar. Aqui embaixo fedeu a gororoba. a cabeça baixa, o rosto que não mostrava. E agora num repente, pelo
— Com pouco mais vou verzinho a nossa bóia — acudiu o meio da noite, brotando no mormaço, do silêncio, do mau cheiro, dos
Muralha num cochicho, ajustando o boné. percevejos, aquele rosto que ninguém viu chegando nem descendo,
Quando vê, entra a bordo a moça da muleta, a perna ressequida, assim queimado e sério. Esperou. Escutou. Compaixão, percevejos,
o solto e ondulado cabelo negro. Atrás o casal com a bagagem. Quis para semelhante rosto. Lhe toquem na face, não.
segui-la. Luzes, bagagens, rumores, gentes no navio o atordoavam. A Tentava ler, à mesa, sob os passos na escada descendo subindo.
aleijada desceu para a terceira de cabeça baixa, como apressada para Aqui embaixo, nesta popa, ruge a bunda do bicho. Muralha, o rosto
esconder-se no beliche. Alfredo via descendo a flagelada do sertão, o na mão, espia a máquina do leme.
Ceará emigrando, a Iracema de muletas. Batia a campa. Lá embaixo Subiu. Trazia para as trevas da navegação aquele rosto
no mar as últimas vozes da terra, a onda cobriu a cidade, já vamos, inesperado. As estrelas, sal cuspido do mar. O navio jogava. Num
aqui não desembarcou. pressentimento, desceu rápido para ver à porta do dormitório o
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mesmo e insone rosto. No que foi visto, desapareceu. Alfredo uma laranjeira-da-terra carregava, em glória quem aqui te plantou,
caminhou, deteve-se na porta, era proibido, e sentiu lá por dentro os criatura. As duas netinhas, sim, ah, coitadinhas! Depois que mataram
passos da fugitiva. Voltou ao seu banco, abriu o livro, à espera de a avó, herdassem o buraco velho. Era ou não era gosto da avó no
nova aparição. Santa Isabel de sepultura perpétua, cruz, nome, data? As duas damas?
[258] Ficou que ficou escutando. Compaixão para o rosto, Fossem ao leilão, [259] arrematassem a cama, a cama no meio da
aquele, percevejos. Ao menos o rosto, que é a única luz, tão de súbito, sala, vista pelo. bonde, pelos passantes da calçada, a cama; venham,
nesta terceira. Lhe toquem na face, não. pessoal! Pusessem placa na porta, ou reposteiro, alvará na parede,.
Badalou o café, acorda assustado, o banco duro na cabeça e sob preço de viração, a cama chamando. Mas aqui na Timbó? L o meu, e
o incessante sobe-e-desce na escada. Na porta do dormitório das pertence próprio, aos Lobos pago a taxa. Um cochicholo, quase todo
mulheres a moça espiava-o apoiada nas muletas. Desceu o Muralha destapado, a palha podre, chovia dentro, umas tabuinhas dando cupim
com a sua sombra e o sossego: na sala, aqui na mesa é o Santo Antônio, bem de raiz e a tábua de
— Ao café? engomar, mea camarada velha, lá na frente, oculto pelas ervas o poço,
Subiram. Alfredo cuspiu no mar se lembrando do chalé, a debaixo das folhas, aquelazinha água tão da encabulada.
pontezinha sobre a cheia, aquele raso aguaçal de mururé e horizonte, Se meteu feito um morcego pelo quarto, o único, de chão, já
um lento vôo de garça, mãe e pai tão juntos na janela quanto, quem cheio de cacareco e carapanã, só aqui tapado, escurecendo úmido.
sabe, tão separados, sem ver que a cascavel, fugindo das águas ou Vais quando? Estou te convidando pro meu palacete. Levava Nini
curiosa da casa, subia a escada; acabará por certo por enrolar-se com ela. Casebre fincado num teso dominando o capinal da vacaria,
dentro do oratório. as toiças de açaí na baixa, uns telhados no sol, e vinha dos açaizeiros
Que mudava em seu corpo, ou em seu espírito, ou nada mudava uma aragem com esta e aquela borboleta, sempre um cão, fosse no
senão pelo que via à porta da terceira, a tão de rosto cheia e a perna céu ou num quintal, ladrava. Lá doutro lado chispava pelas noites um
seca? Cuspia no mar, O Liceu, o Boi, boiavam ao mar. foguete de ladainha ou levando a São Pedro noticia de mais um anjo e
Muralha lhe entrega a caneca e nesta lavagem de espingarda o som de terreiro tamboreando nos longes da meia-noite. Lá está na
Alfredo vê a D. Dudu passando o seu café na José Pio (Queres café?), onda desfolhada a D. Dudu costurando, o rosto aplicado. O Santo
agora na Timbó, para onde se mudou. Mas tu me vais logo na Antônio no respingo da chuva naquele sem-que-fazer de santo nem se
horinha-horinha que eu compro o meu palacete? espreguiçar sequer. Tinha também um pé de papoula beirando o poço.
D. Dudu largava a porta-e-janela do Curro para encafuar-se na O orvalho das papoulas escorria dentro do poço e lá do fundo senão
Timbó. A do Curro adeus, dela não era, desistia da partilha. Esta água, se puxava sono, sonhos, um sapinho verde, uai! Esse mar virou
palha que me cubra, não aquele telhado, o soalho de lá não é mais pra lilás? Desbalançou o navio? Aqui, de verdade, o Muralha nem a goela
este meu pé. Livre é pras damas, as duas damas abrirem ali a porta do temperou. Alfredo voltou ao seu banco, lá embaixo, e deu com a
mundo. Se demitia dos seus direitos. Com trezentos mil réis compra a moça bem sentada.
barraquinha em Chão dos Lobos e pendura a rede e põe na sala a — Abusei do alheio. Deixei em casa o acanhamento. Roubei
máquina de costura e arma a trempe lá fora, rente da rede. No quintal seu beliche.
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— Não, não. Dá pra mais um, sim. — Que tanto me espia?


Ela sorria. Me dá por prenda o teu sorriso e com ele ser — Não te espio, te decifro.
desembarcado, com ele me perder pelos areais da Costa. Quis lhe — Tu não é besta, não?
tocar na pele queimada. Cheirava ainda a sertão, a caminhadas sabia Ela não se cansava de repetir. Tu não é besta, não?, e lhe deu
que longes, com aquelas muletas, [260] arrastan|do a perna seca. Com um pedaço de rapadura já molhado de sua boca. Alfredo subiu, atrás
estas mãos apanhar-lhe o rosto, apanhar-lhe o acolhimento, o sorrir, e do Muralha ou dum rumo, que fará [261] desta viagem?
toda a desalegria que essa perna lhe dá... Desembarcava? Será desembarcado em Cabedelo? Nunca mais viu o
— É de onde? Comissário. Não mudava a calça de mescla nem a camisa, já azeda,
Intimidou-se com a pergunta que ela fazia mais de olhar menos usava uns tamancões, ficava olhando os escaleres, um e outro
de boca. passageiro da primeira atirava sobre a terceira um pouco de fumo e
— É de onde? De que parte? um qualquer olhar de nenhum caso e cautela. Subia descia a escada,
— Lá do Pará — respondeu com modéstia. um modo de enganar o receio, ou curar-se daquela piedade, ou impu-
Ela fez uma admiração, as mãos no rosto. reza, que tomava conta dele na presença da Sem-Nome. Voltou. Ela,
— Pará? Primeira vez que ponho a vista num Pará. Pará? sentada no banco, cerzia.
A voz lembrava os Alcântaras, os antigos flagelados da — Viu eu lá por cima, viu eu? Foi o que vi, nada mais.
Penitenciária, o cantante de Bina e daquela quitandeira viúva da — Tu não é besta, não?
Podrona que pendurava as bananas pacovas à janela da barraca. — Quixadá, onde é?
Arriscou-se: — Onde vós não sabe. Mangue de minha terra, não, senão...
— Seu falar é assim de quem comeu bem rapadura... e me — Tire do dedo um instante esse anel, me mostre...
lembra uma família... — Cobiçando o meu ouro? Ouro pra não dizer chumbo.
Ela, cresceu o olhar, a mão na boca por um espanto, acabou se — Cor de chumbo não tem. Chumbo era, no que enfiou no dedo
rindo e muito, pois rir era sua riqueza. Ria como se chovesse sempre virou ouro.
no sertão. Deus! E lá embaixo do banco aquela perna morta, — É um de estimação. Não é por luxo. Foi minha madrinha.
ressequida. A outra, se via, desmanada, cheiosa. E o colo onde o peito — Aqui lhe devolvo, inteiro-inteiro. Ou é aliança?
cacheava, o corte da boca, o rosto. Ela apanhou as muletas, levantou-se, o olhar torcido para
— Meu nome? Sou sem nome. Mereço um nome, não. O seu, já Alfredo como se quisesse descobrir nele uma pena ou desprezo por
sei, é Pará. Precisa dizer, não, seu nome. Ó Pará... Deixe lhe meter ela ou qualquer troça ou desejasse que ele só tivesse olhos para o seu
este sal na boca. Batizado. Pará. rosto, que era tudo, o seu rosto, o colo em plena flor. Apoiou-se nas
Nada a te dizer, criatura, que só tua voz escuto. E és uma muletas, um pouco curva, os cabelos sobre o rosto. Foi subir,
espécie de sereia, mulher na banda do colo, o resto sereia e seca. A trabalhão, as muletas pesavam, a perna seca-seca, bambeava. Ao meio
seca do teu chão te secou a perna e sorris. E esse anel que tens, eu te da escada, voltou, lenta, entregue às muletas, retirando-se para o
pedia, com ele desembarcava, linda-pela-metade. dormitório. Alfredo deitou-se, o banco duro na cabeça, ou sobre
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aquelas muletas? Esperou que ela voltasse. Veio a noite. Apareceu, de Viu o livro na mão dele, tomou e de dentro do livro tirou o retratinho,
roupa mudada, o rosto empoado, ali no banco mas ausente, fingindo escondeu na palma da mão, meteu na boca. Enxugou-o no peitilho.
não vê-lo. Fez de repente um ar de sono, abria a boca, um sono... — Conhecida, minha conhecida, só.
fechava os olhos, tão mau-olhado, quem me deu, que só que quero é Fez que ia rasgar o retrato.
dormir? Um instante tão [262] afastada das muletas, estas e a perna — Nome?
seca jogadas no mar. Dez horas, levantou-se Alfredo, ia subir.
— Ainda? Vai dormir, não? Vai render serviço? Onde é a sua [263] — Quero me lembrar, mas não me lembra.
ronda lá em cima? — Pois olhe aqui, seu deslembrado, aqui meio apagadinho a
Quer saber por quê? Vai? Guardo o escaler. lápis. Soletre.
— Tu não é besta, não? Repôs dentro do livro que fechou, sentou em cima, cruzando os
— Tem razão, é. Não subo mais. braços.
— É que é um vento cão lá fora... — Tua noiva, sim.
Ela entrou no dormitório, não demorou, da porta atirou-lhe um — Era a Fada do Boi.
pequeno travesseiro e sumiu-se. Alfredo ficou olhando para a porta. — Tu não é besta, não?
Escura. Ninguém. Em suas mãos o pequeno travesseiro. Com ele E espetava o braço de Alfredo com o alfinete, pegou um papel
cobriu o rosto, um tempo assim, sujigando o nó, um soluço, sabia lá. escreveu a lápis: oh, que saudades tenho de ti, Roberta, meu anjinho
Deitava a cabeça no travesseiro ou no coração dela? que tristeza eu sinto por está tão longe de ti não achas? Alfredo.
Cabedelo. — Meta no envelope, sele e mande na mala-postal.
Espiou coqueiros, freges, aquele ar tão areoso, e escurecido, dos Abriu o livro e se demorou, atenta, fingindo ler, repetindo
que ali moravam, areia funda e morna. Lá de bordo, debruçada com Roberta, Roberta, Roberta, Roberta, o cabelo pelo rosto.
as suas muletas, a Sem-Nome olhava. — Pará, que tu vai ver lá no sul? Que apito vai tocar? Onde
Voltou com um desejo de lhe trazer cretone, um bordado de desapeia?
terra, uma rendinha de boneca e só lhe deu foi a laranja que ela Sul? Alfredo no ar, sem responder, desatando uma área nas
descascou, repartiu. Sempre comia tudo com alegre, travessa fome. nuvens, um sul que não vislumbrava, fosse uma enseada, o trem da
As coisas de comer já os dois se repartiam. Porém no prato que o Central, o Mourisco, sul? Então pediu segredo. Ele, por lei, não
Muralha trazia ela não tirava um fio de macarrão. Submetia-se à viajava, podia ser desembarcado a qualquer minuto, jogado num
medonha bóia da lei, saboreando a gororoba sem franzir a testa, muito escaler em plenos mares. Sua passagem? Só foi até ao Maranhão, até
festiva, comia gulosa (para divertir-me?) a mão ao nariz. São Luís. De fato viajava, de direito, não.
— Estou mais gordinha, estou, não? De comer isto. — Tu não é besta, não? Tu não é besta, não? — a Sem-Nome
Um pedaço de marmelada ou queijo, ela, aí, sim, com voz picava-lhe o braço com o alfinete.
menina: Me deixa morder nessa ponta. O que um tinha dos dois era. — Aí embaixo no porão estão juntando os paus da jangada onde
vou.
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— De volta pro Maranhão? O Pará é o Maranhão? Que o navio andou, ela veio, batendo as muletas.
— E a vela? Faço com teu cabelo? — Me peguei com meu santo pra que você fosse atrás dela. Se
Ela virou-se: dando bem no Maranhão? Sua noiva lhe escreveu?
— Tome meu cabelo, apare a vela e prenda no mastro da — Levo na jangada o travesseiro. Aquele seu travesseiro?
jangada. Amansou meus marimbondos.
[264] Assim sentada, embaixo dos degraus, esquecia as mule- — Virou eles de perna pro ar? Ah, Pará!
tas, o rosto de serão em luz de navio, no mais. só ele e ela na jangada. [265] — No que me atirou lá da porta...
À noite, a bordo aquela carga de cristãos, azeda de sol e das — Mangando do coitadinho... Seu mangão. Que é isso? Quer
léguas, esmolambados, ali amontoados, aninhando os. filhos à sombra tirar o anel do meu dedo? Pois tome. Francisco! Francisco!, ela
do toldo armado no convés. A carga entrava. Nisto, um corre-corre gritava. E eu: Se console com o Pará, desafortunada.
dos diabos, a polícia desembarca a moça que ia fugindo com o Guardou o anel, subiu a escada, tornou ao banco. Subiu de
namorado para os cafezais de São Paulo e eivém que ela eivém de novo, voltou. A moça num divertido espanto: Perseguido? Anda
volta correndo, atraca-se com Alfredo. Não me deixe desembarcar. perseguido? É o Comissário atrás? Olhe, mocinho, por favor, a sua
Não me deixe! Não me deixe!,. arrastada para fora. Francisco onde tu passagem. Alfredo via o colo que ali se dava e a perna, embaixo, seca.
estás! Francisco!, arrastada e sumida pelo areal. Alfredo se via Fugiu para o convés. Aquietou-se na popa, escutava os paraibanos, ia
culpado, no ombro os dedos da moça e o grito aqui, repetido, neste ouvindo neles o Brasil, variado, confuso, imitando o trem, no berreiro
navio implacável, com a outra das muletas, ali ao pé a dizer-lhe: dos meninos, nas muletas da Sem-Nome, vozes a bordo que abafavam
Que mal fez a criatura.., que mal fez a criatura... Já um sujeito as máquinas e o mar, a campa anunciando a gororoba e bumba!
mulato tentava fazer graça imitando trem, batendo o pé, apitando sem Estourou a contrariedade contra a comida. Foi geral. Era demais.
sossegar, sacudindo o macacão, O trem de ferro. O trem! E apitava: Vamos ao Comandante!
Francisco! Francisco! — É um motim? — gritou o Coberto olhando para Alfredo.
— Quase que você ia com ela... Em troca do dela que sumiu a — Motim ou o diabo que seja. Aos tubarões! Aos tubarões! Aos
bordo era o Pará que ela levava. Ai que agarrou-se com ele, como tubarões! — atirada ao mar a lata de gororoba, escureceu com um
agarrou-se! Já não era mais o outro, era o Pará. Foi, não? Está em vento áspero. Aos tubarões! Aos tubarões! Durou um tempo o
tempo de ficar na vez do outro. Vá com ela. Corra o areal. É dois rebuliço e Alfredo se viu entre os parai banos acuados no convés. O
desembarcados. Faz o par. Comandante, este não aparecia, Alfredo olhava as luzes da primeira.
Alfredo cismou: A aleijada via na outra era aquele par de pernas Lá em cima, na primeira, tinha música e omelete. Um longo, brabo
no areal, uma e outra, iguais, correndo pelo navio,. escada e areal. bater de pratos de folha aqui embaixo entrava pela noite. Não veio
— Quase pronta a jangada? Pra nós dois? outra comida. Alfredo recusou o jantar do Muralha. Encontra a Sem-
— Acuda a desamparada. Nome na escada, vira-lhe o rosto, deitou-se. Rejeitou o travesseiro. A
Ah, correr no areal com aquele par de pernas, embora perdida a cabeça no banco duro. A hora não cessava. As máquinas de bordo
viagem, perdido o Francisco. mastigavam a raiva e o sono.
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— Viu a cunhada? Viu, não? Viu? — indagava a senhora, já oculto do convés, mas veja! Ao pé duns cabos, atrás de umas
apreensiva. bagagens, encolhidinha, as muletas no chão, a cabeça nos joelhos.
— Pois não vejo faz hora. Viu? — Mas, menina, que esconderijo é esse, que foi que foi isso. .
Chega o marido, tinha procurado a irmã lá por cima. Passa-lhe a mão pelo cabelo, rosto molhado, abaixa-se e aperta-
— Ela não lhe disse nada, não? lhe os dedos úmidos que se negam.
Alfredo a desassustá-los: [267] — Mas, Sem-Nome! Atrás de ti pelo navio todo! Onde
[266]— Brincando de juju, ela. Só sendo. Não demora aparece. que não te procuramos? Quem te botou tão invisível?
— Trocou com ela, sem querer, alguma má palavra? Não lhe A cabeça nos joelhos, enrolada no silêncio, por dentro de seus
estou pondo culpa. Não trocou? Ela vive de sentimento muito cabelos.
exposto. Trocou? — E assustando tua cunhada, teu irmão... Só faltou o navio
Alfredo subiu, desceu, ora, inda mais esta. Má palavra? Foi o parar.
bastante? Atrás das bagagens, dos montes de gente. quem sabe no Toma um fôlego:
porão entre as cargas agarrada num marujo. Má palavra? Mas a — Saudades de Quixadá? Foi lá e voltou? Pediu asa de gaivota?
ofendeu? Por ter virado o rosto na escada? Muito de ferida exposta? Sabe o que já se dizia a bordo? Os tubarões jantaram a moça.
Ademais corria que as cearenses, por paixão, cortavam volta, muito Ela destapou o rosto, firmou-se nas muletas, assim de pé,
por demais sentidas, por istozinho assim se melindravam, de repente olhando as luzes da primeira.
se ofendiam e tomavam decisões desesperadas. Alfredo, aqui por — Me vomitaram, voltei.
cima, ia, vinha, que demônio deu nela? O vento pesado. O navio jo- Agarrada às muletas, na sombra do convés, o cabelo no vento.
gando. Ali na terceira ninguém sabia. Indagava, de novo, pela copa, Alfredo continha-se, temendo ofendê-la com a sua piedade e iludi-la
bar, escaler, quem sabe no beliche dum tripulante ou ajudando na com a sua ternura.
cozinha. Olhou lá fora. Vá ver, despencou-se Ferida com a desatenção — Vá, vá na frente, que meu costume é só.
na escada, corre e era uma vez. Desceu, varejou, insistiu, subiu com o — Ora, Sem-Nome, comigo que mal faz? Comigo, anda.
irmão dela e a cunhada atrás. Dela este travesseiro, este anel, e em Fez que não, tornou a sentar-se, enrolada em seus cabelos,
troca no meio da escada, lhe deu as costas, a ofendida se atirou? sustentando as muletas. Alfredo afastou-se entre aliviado e afligido,
Zonzeia a bordo, invade a primeira, atravessa os salões, é convidado a desceu ao banco, novamente subiu, espiando-a. Ficou de guarda.
descer, espiou pelas máquinas. Busca, rebusca, vira o navio do Vendo-a levantar-se e caminhar, correu para baixo, deitou-se, a
avesso, o restante é o lá-fora, desconforme, ventoso. Não lhe ponho cabeça no travesseiro. Esperou que ela descesse, coitadinha, com
culpa. Se perdeu a bordo ou despencou? Precipitou-se para a terceira, aquela dificuldade toda. Meu costume é só. Me vomitaram, voltei —
já reza-não-reza, a tanto levou a vergonha? Aqui o irmão dela foi descendo, ali, degrau a degrau, só lhe via o cabelo, mas o rosto,
puxando um silencio e ali a cunhada cheia de aves-marias, O navio onde?
avança como um monstro satisfeito. Erra pela popa, corre o
passadiço, volta a espiar os escaleres. Até que a desencanta num
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Desceu, passou, carregando-se a si mesma para o dormitório. Sem-Nome chegava, penteando o cabelo, e se ouvia lá nos homens
Meia hora depois voltava, aproximou-se do banco, sustentou-se nas um som de viola. Que lhe pregou o botão na camisa, a Sem-Nome:
muletas. — Que foi que não fala?
— Esta noite o navio jogando um bocado, não? Imagine lá fora, — Estou te vendo no chalé lá de casa, em Araquiçaua, Areinha,
não? as goiabas de lá estão te chamando. Queres?
Alfredo não insistia, ela de pé com as suas muletas pelos — Tem o juízo aonde?
tubarões vomitada. Sentou-se na beirinha do banco, de costas para — Jantando na primeira, música e omelete.
ele, veio a cunhada, conversaram, a cunhada saiu. — Danou-se! Virou o miolo? Vou chamar o doutor.. Ó doutor!
[268] Ficaram os dois no banco, num serão mudo, o travesseiro
os separava. À porta do dormitório dos homens, fumando, o Muralha [269] E o espanto no entrar — que será isto? —- em Vitória.
os espiava, sombrio, sossegado. Ver, tão surpresa foi, que ver o que via não era. O navio, por estes
Natal. encantados, vai abrigar-se no coral das delfins? A Sem-Nome veio e
Bahia. juntos ficaram olhando a pintura. Na popa, juntos, sem se tocarem ou
De Salvador aquele negro, subindo a ladeira com um baú azul falarem, com os últimos gomos, comiam a laranja e a paisagem. E
na cabeça, lembrava o tio. E esta laranja, a Sem-Nome lhe deu, e este dele o desejo de extrair daquele mar e daquela montanha o sumo para
mar é caldo daquelas comidas, mais nascido daquelas igrejas, reverdecer a perna, aquela perna. E então, numa cerimônia, lançar
candomblés e ladeiras. Pedia o risco de ser botado em terra, adotado nestas águas de Vitória as muletas da Quixadá. Roçou-lhe o braço, ela
pela Bahia. Os gomos da laranja na mão da Sem-Nome, repente de se olhava como habituada ao cenário (Ou quem sabe? Um instante a
esconder no porão, à espera que a cearense fosse encontrá-lo entre perna sã?). Silenciosa, consentida. Mas tão de repente desenfreado
cargas, no bem escuro. Toca a campa. Amanhece em Recife. O mar saltou diante deles o Muralha.
cuspia a sua espuma no pedral. Eivém a Sem Nome com um coco — Todo o nosso dinheiro... Todinho o dinheiro...
verde: queres a água? — Que dinheiro?
— Me dás na concha da mão. — O nosso! O nosso!
Na concha da mão. Alfredo se debatia entre os seus semelhantes — O meu? O nosso?
da terceira. Pertencia mesmo a estes ou aos outros lá de cima, lá por — Como abriram a mala é que não sei, não sei, no que subi,
cima, entre a música e a omelete? O tio viajava na terceira. Agora é desci, adeus, foi tudo, o meu, o seu, foi tudo!
pelo fundo, dentro da pele da jibóia, ou subindo a pé aquelas Muralha desarvorava-se. Só fazia coçar a cabeça, no que subi,
montanhas doutra banda para ver o Orenoco ou espiar onde se desci, adeus, cuspindo no espetáculo aqui fora, o navio neste canal e a
amamenta o Amazonas. O tio em terceira viajava, cabo do Exército Sem-Nome os olhos tamanhões, agora sim que se espantava. Os dois
na viagem de volta. A mãe, por preta, da terceira por nascença, levada desceram como se fossem achar o ladrão. Junto ao banco a mala do
pelo Major à primeira, ninguém mais senhora do seu camarote. A Muralha. Exalava extrato e canforina, intacta, intocada, e dela o meu,
o dele — quanto o dele? — e o meu, 260 mil réis, entregues pela mãe,
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agora furtados de mansinho no justo momento de cenografia e pasmo, e sossegado. Direito na voz, no coçar a cabeça, assentado de modo e
lá fora, à popa, com a Sem-Nome recolhendo ao colo os cromos de palavra. Dos dois a agir torto, era eu, por desfastio ou mau bofe, ou
Vitória. Aqui estava. Guardei aqui. Só eu e Deus sabia. Muralha teima de me atormentar. O Coberto batia danadamente a campainha.
coçava a cabeça, gaguejava, veste desveste a camisa, revira a mala, o Os esfomeados da terceira acudiam com os pratos de folha. A
olhar de acossado. O paraibano imitava o trem da Great Western. gororoba caía no bucho deles à força, à força de tão intragável. Os da
Alfredo ou por não acreditar ainda, decidiu ficar por cima: Foi? terceira? Só emporcalhavam a bordo, risco de desovarem sabe lá que
Melhor! Subiu, deu de ombro, com risonha indiferença e voltou ao peste no meio da viagem, carregavam mais doenças que bagagens,
postal. A Sem-Nome com as suas muletas: cacarecos da terra, batidos de azar, de calamidade. Nos beiços da
Não trancou a chave? E ali ao pé do banco na vista de tanto aleijada provou o flagelo. Isso nem carga é, quanto mais passageiro, é
povo? Só estou é o sangue-frio. bagaço só. Esta terceira acaba afundando o Lóide. Os de lá de [271]
[270] Alfredo não respondia, catando lá por dentro os cacos de cima olhando para baixo, cá embaixo, que viam lá de cima? Exato o
sua indiferença ou estupor, misturando o roubo ao rochedo, a esta que leu no diário de viagem do Dr. Genaro, Procurador Fiscal do
garganta de água azul, a colina... A moça calou-se em pleno sol e Estado, voltando de suas águas de Caxambu: Aqueles da terceira?
espanto, e dela o cheirume de Quixadá se espalhava, o navio Bichos. Escrito e escarrado bichos. E aqui mais lanzudo, ia e vinha
imperturbável ia indo. Alfredo se buscava na montanha, enseada, este-um de bicharal, que assaltou a aleijada, já suspeitava do Muralha,
botes, a areia, tão súbita, cintando a pedra, e o navio num vagar de farejando naquele monturo quem que era o ladrão. Ordinária proeza
enfeitiçado, a caminho dos delfins. A Sem-Nome roçou-lhe o braço na popa do Lóide. Legalmente desembarcado do Maranhão nem ao
(cheirando a rapadura?), rosto com rosto, o sol sobre os dois tão menos cuspido de bordo como clandestino. Roubava, isto, sim, o
solitários que a popa e paisagem: E então? Lhes diziam. Assim menos sossego da inocente. Em vez de juntar-se ao Muralha e bater o navio
que um instante Alfredo lhe deu o beijo, meio desesperado, meio atrás do ladrão, agarra-se àquele beiço, a aleijada deixou cair as
enraivecido, e ela que se fez quieta-quieta, a blusa entreabre-se, muletas. A perna mais seca. Olhos no espumejo já debaixo, navio em
faltando um colchete. Ao lado das muletas, embaixo a perna morta; manobra, a moça chorava; choraste em presença da morte? Dizia o
ele se afastou, mordendo o beiço, onde esconder-se? Chegava o pai no chalé ao pé do fogão, fazendo o velho tuxaua. A campainha
Muralha, coçando a cabeça, falando surdo, de que valia a queixa ao badalava, badalava, inchando a orelha, moendo nervo a nervo, não
Comissário, saber quem foi, mas como? O paraibano, imitando o trem duvidar vomito. Eivém a bosta com arroz e abóbora. Só falta vir no
da Great Western, ali mesmo na borda sobre o panorama, mijou. Lá penico, grunhia o penitente, pele e caveira, arrastando a perna com
na frente se desenrolavam os cabos da atracação? Que era? Muralha, tão antiga ferida; só vivia para a sua chaga. Metia a mão na gororoba
de lá para cá, descompassado, como aquela água lá embaixo virada e tudo engolia com ódio como para saciar a perna podre que o
pela hélice. Alfredo olhou para ele, um minuto, logo virou-se devorava.
arrepiado. Quem? Quem mais? Muralha? Muralha? Não, não cabia. A Sem-Nome chorava? Escondeu-se? Não. Está aqui na popa,
Muralha transpirava leal. Lhe deu a calça velha para andar a bordo, engolindo o manjar de bordo...
trazia-lhe a comidinha da copa. Verdadeiro em todo o seu ar sombrio Se eu tivesse... Se eu pudesse, olhe que eu lhe acudia.
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— Mais do que acudiu? E o travesseiro? isso! Trinta mil réis só? Saltando de bolso furado? Liso? Pega o pião
— Fingindo soberbia? Que não se abalou? Me deixe lhe ver aí na unha. Esta prova não me verga, não corro do desastre. Deu uma
por dentro. Com uma só espetada do meu alfinete lhe tiro a verdade. queda? Pois te levanta! Foi? Que remédio! E aqui, por onde entra o
— Tu não é besta, não? navio, é tudo inesperado, dizendo que vale a pena! Chegavam a Vi-
Diante dela parecia fechado ao desânimo. Vinha dela uma força tória. Será que aquilo ali, no relvado lá em cima, é um ganso? Os
simples que o acusava ao mesmo tempo. gansos novos devem ter fácil acesso à erva fresca, aconselhava La
— Sabe? O dele e o meu guardei foi dentro do travesseiro, o Hacienda aberta na rede, à tarde, pela sesta do Major. É mesmo um
seu. Escondi. ganso no relvado? Desponta o [273] telha|do do padrinho Barbosa,
— É mais meu, não, o travesseiro, não lhe dei? Guardou... Não calou-se, anos, o gramofone, o ganso velho reclama queijo e o
é o que vejo nos seus olhinhos. Todo o seu [272] so|brosso... Se padrinho, sem queijo, entre as louças da borracha, rapavazinho a sopa
fazendo aí de sossegado? Deixe lhe meter o alfinete. de falido. No tapete que saía para a rua a menina e este menino. A
— Vou só abrir o travesseiro no Rio, vá ver. caixa de música, tinha? Aqui em Vitória, debaixo da asa do ganso,
— Engolindo o fel e cuspindo potoca? Coitadinho do Pará. tocava. 260 mil réis. Que falta faziam se estava ali a bela pedra, o
— Com aquele travesseiro, eu, coitadinho? E olhe, queria lhe ganso no relvado, a moça do Quixadá tão com apetite?
dizer uma coisa a respeito do travesseiro e cadê? — Faz de conta que aquele ganso, ali... estás comendo assado.
Então é mentira. Tão nonada aquele travesseiro, oxente! Já sem dizer tu não é besta, não, a Sem-Nome, tão séria, comia
— Ela comia o intragável tão gostoso, lia-se nos olhos dela: mesmo ganso? Mas de repente adeus, ganso, eivém é a Fada batendo
Agora que você tão brusco me tirou esse beijo de minha boca, me suas asas de cetim e serragem, fez do relvado um palanque, num
meto numa fábrica, lavo, engomo, cozinho, por você eu faço, repuxo de fitas, cetim e penas, inteira nesta moldura. Confuso
contanto que carregue comigo esta perna. Ela capengou para outro instante, o gosto é castigar-se, o desrumo no Rio e tudo o mais muito
lado com o prato vazio, O prato vazio. O vapor não atracava? Alfredo bom pelo tamanho da inquietude. Mas a Sem-Nome batia palma
se via só, destilando suspeitas contra-suspeitas. como para acordá-lo. Sem-Nome! No meio do corpo para cima como
Muralha? Muralha que falava da noiva, da família, do di- era! Por que então tem Deus, se carrega embaixo aquele trambolho?
nheirinho que poupara, do guincho em que ia trabalhar. Não. Estava A perna seca, mais seca pelo meu beijo? Comia o ganso? Mar.
tudo consumado. Tudo consumado, como traduzia o pai aquele latim Montanha, aves, a perna secava.
na varanda ao fazer o Cristo na Cruz. Dissera ao Muralha: Olha, me À noite, estirado no banco, cabeça no travesseiro, então que
guarda na tua mala este meu cobrinho chorado, que aí é mais seguro. principiou a perder os 260 mil réis. Dinheirinho arrancado ao pai,
São os meus contos de réis. Na minha maleta é mesmo que deixar trazido pela mãe, queimando a mão. A mãe. esta, sem atinar por que
tudo à mão. Na maleta, foi, só deixou aquele trocado, que ninguém lhe fugia o filho. Que fugir era, ou não era, ou fugia da Fada, do Boi,
mexeu, este resto, trinta mil réis, o que se salvou. Tanta gente era na de novo a cabeça rapada no Ver-o-Peso, o trote no pátio, as duas
terceira, quando que se havia de saber? Trinta mil réis. Diabo! A esposas no descaminho em busca dos maridos de repente somem, o
Sem-Nome só faltava lamber o prato, o sabor que ela dá às coisas! É bilhetinho a lápis, o Satiro de buraco na testa chorando na flauta
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enquanto a Pulunga faz chá. Trinta mil restam. Com esses trinta — Mais baixo, boca de sapo, mais baixo e beba, seu des-
dinheiros salta no Rio, de esporão em brasa, ah, larápio! Foi ver o respeitoso.
mar. O navio jogava. A terceira adormecia. Bina, prometeste rezar — Teu leite?
por mim. Valeu de nada tua reza, á, feia da peste, os santos só — Onde tenho leite? Nunca pari.
atendem às outras. A Fada no palanque ou no revaldo ria a sua — É um leite de que falava um meu amigo lá do Pará, sempre
risadinha de ganso e se embalava debaixo do araçazeiro. O palanque me falava. Tinha em casa um sortimento de livros e eu disso me
se cobre de lama, [274] serra|gem, noites mortas. A esta hora, Maria aproveitava, lia. Ele, então, me festejava: Entre, que aqui é a fonte de
Igarapé caça um macho nos escuros do cariazal ou derruba, com um Castália, concidadão!
trago só, no Bonitinho, a sua fome, e se agasalha com a visão da [275] — Oxente!
serra. A Sem-Nome, dormindo, o sono lhe tirava as muletas. E ele, o — Não liga a palavra, é uma qualquer das tantas fechadas no
badalo da gororoba badalando-lhe insônia, sacudindo-o, oh, teu fedor, dicionário, deixa o dicionário em paz. Era por via das meas leituras.
gororoba! e doe vez em vez aquela do palanque e da aula, o joelho Sempre me convidava pra jantar, a velhinha mãe dele caprichava num
dela, não mais menina, na sua mão. Voltou para o banco. Sentou-se, escabeche que ai, ai... De pijama e chinelo ia na mercearia e mandava
olhando mais que olhando a porta das mulheres. A Sem-Nome arriar um vinho: ponha na conta, seu Alexandre. Na calçada da casa
dormindo, de que lado o seu beliche? Estirou-se, a cabeça no dele, se conversava. Ele falava de política, se dizia um cisne sem ter
travesseiro, trancava os olhos, aonde andas, sono? Que só encontro a uma cisne nadando a seu lado, e era espiritismo, Jesus e Samaritana, a
aluna e aqui defronte a outra, o seu carnume pela metade, suas mulher obrigada a montar no cavalo nua-nua... De repente: Nada
rapaduras, seu sertão. Duzentos e sessenta mil réis. Muralha? como a liberal-democracia. Quando luar, vinha um violão vadio ou
Muralha, não. Por um descuido a mala aberta, o ladrão foi num um antigo caixeiro-viajante contando das suas viagens. Tempo de São
relâmpago. Aquele susto, aquele coçar a cabeça, o Muralha não João, pagava para um cordão de bicho dançar na frente de casa pois lá
fingia. Não. Era uma só peça. de uma só, sombrio talvez por ser um dentro a sala não cabia e mesmo podia quebrar uma cadeira, sumir um
só. No dormitório dos homens aquela tosse que nunca acabava postal da coluna, noutro dia a velhinha mãe a lavar o soalho... E tome
acusava como diabo. Urgente era entrar no dormitório das mulheres e aluá! Na hora da cachacinha...
surpreender debaixo do lençol aquela linda metade do umbigo para — Tu?
cima senão quando o maço furtado. Ficou de bruços sobre o — Tu o quê?
travesseiro. Ergueu-se. Quis ler, lia coisa nenhuma! Abriu a maleta. — Já bebendo, Pará?
Virou-se. A Sem-Nome trazia-lhe café. — ... ele pedia ao Supremo Arquiteto que desse um cobro
— Onde arranjou? nessas nossas autoridades, fazer mais estradas de ferro, repartir mais o
— Precisa saber, não. bê-a-bá, pagar em dia, etc. e tal e de repente: Viva a liberal-
Falava em meia voz. Lá nos homens, a tosse se agravava. democracia!
— Esse café é de conta que é teu leite. — E que bicho é esse, a liberal...
Ela lhe pôs a mão na boca: — Pra te dizer a verdade...
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— Salta a palavra, vamos ao leite. vão despencar? Nos olhos o serão embaixo da escada, a ação do
— O leite? O leite, ele dava um nome. Sentado na cadeira de travesseiro, o entrar em Vitória, noites de gororoba e mar, a face da
vime, depois da janta, dizia de que peito, de quem era... cearense entre os cabos e os barulhos de bordo, aqueles muitos pés de
— Oh, Pará! Mais baixo, mais baixo... Não és a campa de Cabedelo na terceira, o beijo ao som do hélice lá embaixo escumando,
bordo. E bebe senão esfria. Mais baixo. De quem que era? o olhar de Muralha, o meu, o teu, adeus e a chaga do penitente pele-e-
— De uma tal bondade humana, assim ele dizia, tirando o caveira, o feroz flagelado. Onde fica ele? Salta em Santos? Dele, em
charuto da boca, embalando a cadeira. Santos, é só aquela chaga a saltar.
— O leite? Tu não é besta, não? [277] Aqui em terra e sem fôlego, com a falsa identidade de
[276] — Nos furtaram, minha irmã. taifeiro, e sua maleta. Sim, a carta para a rua do Livramento. Pelo
— Irmã? menos uma rua, um número, uma porta. Trinta mil réis? Agora
— Pois não foi? quinze.
— Irmã? Irmão esse na boca da irmã, tão, que tive de puxar — Cadê o sangue da cara, Pará?
meu beiço? Te descreio. Irmão o diabo, o diabo. Se despede, com o irmão e a cunhada, agora no cais, meio
Falava baixo, como se recebesse no rosto o cuspo da piedade dissolvidos no cais.
dele, o beijo devolvido. Quer agarrar-se àquelas muletas, os dois cidade adentro, e está
— Estou que ele saltou em Vitória, o nosso bom ladrão, — sem voz, os pés no ar; a moça, neste minuto, nada mais que aleijada
falou Alfredo, embaraçado, e cochichou miúdo: — Sim, o no cais, reduzida àquela perna; doeu-lhe pensar assim e ver assim,
ladrão. Eu? Aquele? O outro? Todos do navio? Um não foi? certo do que ia acontecer a ela neste cais duro e sujo e mais adiante.
Bebeu o café, assustou-se com o olhar dela... Ou foi... Alfredo — Te despede de eu, Pará. Pode que nunca a gente se veja mais
estalou os dedos, já a Sem-Nome bebia o sobejo da xícara. Alfredo um dia só, você faz voto?
lhe via os peitos cheios. Sorria, rainha de suas muletas, com elas pronta a romper cais,
Ia atracar. Nada via senão sua solidão, seu Susto, seu não saber cortiços, e demais durezas, tranqüila quanto ao imprevisível,
onde ir, onde mudar de roupa, ao vai-e-vem de bordo: aceitando o que ia lhe acontecer.
— Cala essa estrepolia de trem, apitador do Cão! Arrolha teus Teu sangue, Pará?
apitos, boca do diabo! Meio caçoava, como se indagasse: Foi quanto te custou, Para,
Divide os trinta mil réis com o Muralha que está a nenhum, aqui aquele boca-com-boca, te cobro dobrado, Pará. O sangue, cadê? Teu
sentado na sua mala agora fechadinha a chave. Ambos num sangue? As muletas a levavam. O aperto de mão, o; olhos dela. E teu
embaraço, envergonhados, como dominados por mútua suspeita ou é sangue? Sem sangue estou mas e por minhas baixezas, cospe no rosto
a despedida? Aqui se corta a amizade e tudo assim, chegando o porto, que desconfia de ti, inocente. Nunca mais. Quem te tirou teu sangue,
se interrompe. Perto, dente de fora, penteando-se, a Sem-Nome com o Pará? De repente sumiram?
seu vestido de saltar acostumando os olhos no que via. Veio o Muralha, desgovernado, tossindo, e se despedia, rumo
Com a sua maleta, vê-se no cais, o cais jogando, os guindastes ao guincho, ou atrás dela? Tinham combinado? De repente sumiram,
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esses dois, quem sabe? Tão entendidos que suspeitar paga no inferno? túnel.
Tinham combinado? Lá adiante, com as suas goelas, a cidade: Cá te Zarolho pelas esquinas, já nem se reconhecia, quem me devolve
espero, recruta. Cais sujo, duro, onde é a saída? Apalpa a carta no o que sou? Caminha jogando no ar o invisível tucumã, por isso aluga
bolso, os quinze dez tostões, aquele par de bordo, o guincheiro e a quarto na Sacadura — aquele mirante — tira as medidas no alfaiate,
aleijadinha. Cuspia no prato, estripava o travesseiro. Neste adeus, manda buscar a mãe. Me perdoa, Roberta, lhe escrevia, e acabava
nesta saudade, deu bicho. Correu para vê-los. Sumiram-se. Escutava gaguejando, esmorecido e suado, por um copinho d’água no café.
no calçamento o baque surdo das muletas. Com seu sola de borracha que até chamava atenção, descia pela
[278] — O senhor me ensina por favor a Rua do Livramento? Sacadura, roçando [279] naqueles desconhecidos do Lóide, Costeira,
Onde a rua, que não aprendia? O chão trepidava. Ia escurecendo Marinha, jogo de bicho e turfe, estiva e patentes do morro, aqui se
irreal, rodava o labirinto, em tudo um redemoinho. Andava que deu uma punhalada, ali um tiroteio, no beco, este, costuma passar va-
andava, onde era? Seguia trilhos, os bondes o enxotavam, ferozes; lentes, essas ladeiras no escuro e no silêncio fazem abrir navalha, aqui
parou nesta porta a ouvir bater a bigorna, bem batendo a bigorna, um nos batentes saiu carnaval e morte. Lá por cima os morros onde
som limpo, sossegado, parecia vir de longe e batia por dentro do parecia a paz, qual nada, escorria de lá uma pobreza de tamanco
peito, era o ferreiro de Cachoeira, chaves da cadeia, Andreza a chave apressado ou se jogava futebol todo dia num baldio e às quartas tinha
jogava no rio, a marca em brasa no quarto da Merência, o ferreiro feira. Aqui é a Saúde. Aqui bem na bunda do cais, transpirando
batendo. Queria misturar-se em tudo isto, bigorna, gente, portas, estiva, botequim, varejo, porão, o hálito das viagens e dos
assim no primeiro instante, e só via a Sem-Nome batendo as muletas contrabandos. Dos freges chinas o fedor de sebo, carne velha e
no barulho geral. Maleta na mão, se cansou, fico na esquina, a maleta repolho. O herói vagueando no calor de outubro a ouvir nesta esquina
pesando, era todo o Pará que carregava. E esses mendigos, esses falar do Vasco, é o Rio? Vamos nos guiar pelo toutiço da Galeria,
bêbados, esses com um ar de múmias, na calçada, chumbados? para a maré dos encontros, onde ninguém encontrava nem consigo
Pediam, escancaravam as chagas, espichavam o braço imundo. Onde mesmo, sendo um zero a mais no meio fio. Ah, Pará! A maleta pesava
a Livramento? lá na Livramento. Em Belém tudo é vizinho, tudo na palma da mão,
Até que entrou num túnel, lá do escuro explodiu aquele grito aqui o descostume amolece espinhaço, rói o sapato, pui o fato número
como nunca ouviu, alguém ali caído, onde estava, de onde vinha, um, escurece o colarinho, o juízo é um pião. Ah, Chão dos Lobos
quem? Os escuros do túnel faziam mais tenebroso o grito. Todos os aquelas tardes com o Oscar no aviso de guerra — Vamos fazer deste
miseráveis da Terra gritavam naquele grito. Retrocedeu, respirou aviso da Marinha a moradia da Maria Igarapé? — Subia fora da lei a
numa pracinha. Tornou a andar, com o Pará na maleta, voltaria ao janela do sótão, tão familiar, os sabores do a pé pelo Marco, o
cais? tempero de tucupi e ladainha na voz da Magá, a mão, por debaixo da
— Meu senhor, por obséquio, onde é que é a Rua do mesa, tateando o joelho e a dona do joelho aqui por cima estudando o
Livramento? catecismo. Suspenso sobre o Não-Se-Assuste, o quintal de borboletas
— Está andando nela, moço, andando nela. onde a zanoia lia o Carlos Magno para a mãe, e a ragazza atrás da
Aqui é o número, bateu. Dos bondes que passam salta o grito do veneziana, coçando o cotovelo, espionava Deus e o mundo. Com
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aquele seu pesão cavado de beijo, o velho São Pedro de Santana, sem chegado. Uma palavra, uma so, só uma quero escutar, que me
se afastar dali, fechava e abria a Porta lá de cima. Tudo na palma da assegure que estou em redor de gente ou comigo mesmo, uma
mão, visto e conferido, de cor e salteado, a desnuda entre as jacas, o palavra, uma palavra, ao menos aquela, a derradeira, no cais, que a
sapo ancião da vala, veterano do Paraguai, coaxando a batalha de Sem-Nome exalou: “e teu sangue?” tão Ceará, baixinho, como se
Tuiuti, fedores e cheirumes de Belém, aquele sempre piano na também se esvaziasse de Quixadá e de si mesma, aqui lançada às
travessa do Curro ao fim da tarde, depois da chuva, vá ver quem feras. Uma palavra. Neste calor só de gelo, aqui de cambulhada, no
tocava, outra não era senão D. Emília Alcântara. O jeito das corre-corre de um milhão de gente, adeus, quinze mil réis e a razão da
mangueiras em [280] cer|tas noites ou quando em São Brás viagem. Este edifício mais alto da América do Sul sorve e cospe as
desembarcava do trem a madrugada já no fim da serenata e se lesmas que entram e saem por entre os marinheiros bêbedos. Então
espalhavam os boêmios bebendo orvalho à falta do último gole. Onde vamos ao escritório levar a [281] se|gunda carta de recomendação do
a cova de Luciana, não sabia, e tão à vista na sala da José Pio. O rosto professor de Geografia, coitado, metia suas canas desde o café e do
da passante, quem, não sei, e é de toda intimidade, e aqui a rua cega, seu delírio ditava a aula e suas cartas de recomendação, sempre
apinhada, a areia come os passos, dormindo de misericórdia naquele desembaraçoso no recomendar, encerrando o dia com gim na terrasse,
cantinho do soalho, debaixo das inquirições de D. Aurora, aqui na seguia para a casa a pé pelos Alpes ou fundeava no Mediterrâneo, um
Livramento, neste sobrado encardido de três janelas com um buraco de cachaça e posta de piramutaba na São Mateus. Pois vamos
misterioso depósito no térreo sempre trancado. Porém, na José Pio, levar a carta de recomendação no tal escritório. Era chegar, no que
debaixo do jasmineiro, Esméia despetala seu escurume, como se põe o pé no primeiro degrau, dava atrás. vá ver puxado por uma alma,
gerasse jasmins. Lá no sótão a pompadour de jinjibirra2 e alho fazia tão atrás, varrido por um vento que o deixava na Avenida. Só dava
as malas para Caiena: Vem comigo que, é só não duvidar, a gente dá conta de si já pelas alturas da Ouvidor onde gritavam:
um saltinho lá na França, que tu achas? Tu gastando esse teuzinho — Pérolas Japonesas! Pérolas Japonesas!
francês decorado com a D. Marta, te despacha, meu arara, pula no E as vitrolas ganiam.
estribo, te agarra a esta costela, que meu vôo é esticado, vou é léguas. Horas e horas na rua para não almoçar na Livramento. Como no
Ter com o que viajar, ter, tenho. Não tão como o que tens e isso é de baile imaginário da fazenda Mãe Maria, Andreza lhe tirava das
berço. Entra no balaio que te carrego nas costas o tempo que der, sim vitrinas a lingüiça, o pão, o pudim, o vinho. O leitão assado com a
que depois, filho, que se há de fazer? Aí, o mundo é só teu. batata na boca. Aquele terno de casimira. Aquela camisa com aquele
Aqui ninguém sai do ouriço, dos seus ocos, de seus dentes preço tão nas nuvens. O jornaleiro: O crime da mala! O crime da
ferrados. Vozes, passos, rostos, roupas, aglomerações, bancas, mala! Agora com dois mil réis no bolso, o passo de borracha entre
estátuas e mictórios, estoura o barril do chope, desembestou a sirena, tantos e tamanhos bancos desta rua, bancos de nome comprido e
tudo o suficiente para ocultar o que pelas almas é solidão, o pé atrás, nome gringo, aqui neste guichê um senhor, oh, quantidade assim de
quarteirões de pedregulho e caco de vidro esfolando o recém- notas, não pára de contar? Fugia para Botafogo. Comia a enseada ao
molho inglês visto do Largo da Carioca. Pendurava a enseada no
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Bebida fermentada, feita de frutos, gengibre, açúcar, ácido tartárico, pescoço da Esméia ou no quarto de Bina, a mais feia. Passou pelo
fermento de pão; cachaça.
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hotel, aqueles criados na frente que nem marechais. Sentou-se num botando tromba: É a sessão, mulher, é a sessão da minha sociedade
banco do Flamengo. O mangue, onde era? Roberta salta daquele bote profissional, já vou atrasado. Atrasado! Sociedade profissional! Arma
a vela, ou doutro lado, com o Boi, conduzida no ombro do Amo, seu a Kodak, tira uma vista da sociedade profissional, bate a chapa.
Profeta. Descarado! Vou é saber já-já onde é no Mangue esse teu puteiro, bato
Entrava na Sacadura. Aqui, neste fim de tarde, o mesmo velho lá de táxi, pago, ponho um secreta grudado no teu fundilho! E de
dos bilhetes de loteria. Na esquina estendia a mão, em silêncio. Todo quando aqui chegando do Pará adoece e olhe os meses.., entre a visita
dia ali fincado, com um tremor no corpo todo, oferecendo a sorte. do médico e a vela na mão e te paguei, doutor, farmácia, as maisenas:
Ninguém comprava, ninguém olhava. Ah, tudo isso aqui é de Ai, Aurora, não me deixa morrer, Aurora..., o froxura! e colherinha
chumbo, só chumbo. Queria-lhe dizer, por exemplo: Boa tarde. A do xarope na boca e a bem dizer aparava na palma da mão o mijo da
língua não dava. O velho responderia duro, quem sabe também, de tua bexiga podre, cadê, seu descarado?
chumbo, [282] chumbo. Vem e vai, é o mesmo velho, mendigo de [283] Marinheiros e barbeiros, que comiam na D. Aurora, se
corpo inteiro sustentando o maço da loteria, de mão estendida a vergavam sobre o prato de sopa, partiam o pão com divertida
oferecer fortuna. Vem e vai, e é o mesmo velho. Segue para a paciência. O serralheiro, sapato duas cores, chapéu de palha, o lenço
Livramento. (O crime da mala! O crime da mala!) Novamente para no paletó com uma ponta de galhofa, descia pateando os degraus e
dizer que foi furtado e ninguém a acreditar? Me furtaram, dizia sem com um coice na porta. D. Aurora trazia no tabuleiro os sólidos da
calor como se não fosse exato. No túnel, gritou: Me furtaram!, todos janta e ia cantarolar, lá dentro, sobre o tanque, lavando o macacão.
os ecos o escuro comeu. Alfredo entrava debaixo daquele vexame, com o seu desaprumo de
Voltava à Livramento, cortando gente e esquina, mais zarolho, quem comia de graça e ali apanhava o prato já feito na mesa, comia
o fato mais sujo, mais suor pelos sovacos e com bosta de cachorro na tão de cabeça baixa, a ouvir o 3.º sargento da Armada falar de sua
sola de borracha. E o primeiro furinho no fundo do bolso, onde belonave e das mangas de Itamaracá.
enfiava o dedo e o ânimo. — Olhe, Pará, talvez lhe arranje a bordo uma vaga, servir à
Na Livramento, entrar quem disse? Como fugir das vistas da D. oficialidade a bordo. Serve?
Aurora que sempre puxava o cabo da porta? Gorduchona, — Serve, serve, sim — acudia lá do tanque a D. Aurora.
movimentada, falante, D. Aurora do Pará fornecia refeições, — E olha, grumete, antes de ir servir à oficialidade naval, me
subalugava quartos, agarrada ao seu serralheiro, o seu Mílton, comprezinho agora um sebo de holanda na drogaria do canto, sim?
também paraense, mulato amareloso, meio artimanhoso no falar, bem Alfredo arriava o cadáver no chão, onde, à luz da lâmpada lá do
mais moço que a D. Aurora. Menos se esperava rompia a D. Aurora teto, lia O País. Não demorava: Olha a luzinha correndo... Me
pela casa, bochechas em fogo, o cabelo à la garçonne, brandindo a apague, sim? Era a D. Aurora, metia pela entreporta o ombro nu e os
vassoura: Pois mal me chega, mal me toma banho, mal me janta, mal bugalhos.
atira no ombro da vaca velha o macacão da oficina pra que lhe seja — Este quarto, aqui, é baratinho, só sessenta. Você quando se
devolvido bem passadinho, etc. e tal, e o meu: Mas onde tu vais? Que empregar, pode ficar com ele. A refeição é duzentos e dez. É só você
se deu pra tamanha pressa, quem que na rua vais tirar da forca?, ele pegar um emprego.
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Não achava lugar no travesseirinho para a cabeça. Ficava pelo gororoba, para vomitar o Chão dos Lobos, o Ginásio, a Fada. A Fada,
quarto escuro a loção da D. Aurora, o amarelo daqueles bugalhos e a sobretudo. Vomitá-la na borda e saltar aqui sem um pó de serragem,
voz um tanto abafada. sem um estribilho do Boi, sem vê-la nunca mais debaixo do
Bateu a Saúde, correu cais, Central, Mauá, até no Caju foi, e da araçazeiro. Não era a carroça que chegava, era aqui atrás dele,
aleijadinha nem um eco. Ficava na janela defronte do sobrado onde desatando o avental, a D. Aurora.
tinha sempre o velho no peitoril. Toda boca da noite era o ancião de — Espere aí, me escute, índio gavião, agora é a sério, pão-pão,
gorro, cachimbo e silêncio à espera que aquela carroça parasse à sua queijo-queijo, ponha de lado o arco e a flecha, me dê uma audiência.
porta e o levasse enfim. Espiando o céu, Alfredo fez um espanto: Venha cá, se sente aqui, me venha dizer, me exponha a questão,
— Estrela! Mas tem estrela! Tem! cheguezinho cá, mais perto de mim, arraste daí sua cadeira que seu
Veio a D. Aurora, queria que ele, noutra manhã, preferível bem pedaço não tiro, não me dou com carne bugre e me diga devera sem
cedo, esfregasse o soalho com pano molhado, sim? comer uma palavra, [285] aqui entre eu, sua pessoa e Deus, só entre
[284] Salas, corredor, escada... sim? Faz crescer o músculo, não nós três, que essas coisas bem que eu compreendo, nunca são do meio
custa, sim? Sim, sim, por que não, não era por conta? Pelo menos da praça na boca do camelô e tanto que acontecem! Não finja que lhe
esfregava o soalho. Veio quarta e ela o rebocou com um cesto à feira desaconteceu, não finja. Disso é feito o mundo, é o nosso ingrediente.
e fez dele o seu moleque de carreto, e ai! Que dona mais Me explique de que é culpado ou de quem é vítima, desate comigo o
pechincheira, tira, refuga, tão titi-de-galinha no escolher como no seu nó. Que foi então que me andou por lá fazendo o meu cavalheiro,
pagar. Já alguma vez comeu cenoura, conterrâneo? Alfredo se via de lá pelas nossas malocas do Pará e já que de lá se atira pra cá assim
novo o tal menino lá da Gentil carregando com o velho Alcântara as sem mais nem menos — do que duvido — e a sete chaves e tão
compras de domingo. Foi distrair-se, caiu do cesto a cebola, a folha sobressaltado, a modo de um cachorro lhe cravando o dente atrás?
de alface. Descansou o cesto na calçada. Lá atrás a D. Aurora com o Então uma pessoa, que não creio que seja à toa, se arreda de onde
ramo de flores para o centro da mesa. Agora ao pé do tanque, enterrou o umbigo e de lá do confim inventa semelhante viagem, tão
chamou-o: — Que lhe falta pra rebaixar esse seu matagal da cabeça? despreparado, nem que viesse fugindo da ilha do Diabo? Está a
Aí noutro quarto o Ezequiel está fazendo tosquia. Entre, entregue a prêmio? Olhe o mapa aí na parede, tire uma imaginação só das
cabeça, que ele lhe corta a crédito. Ponha abaixo a cabeleira do Norte. distâncias, a enormidão do tempo, quinze vezes vinte e quatro horas
Talvez seja ela, talvez seja ela... Me mire bem, me olhe bem, mas de ou mais num qualquer calhambeque. Ou isto aqui não é a Capital? A
frente, sustente. Raça de índio, aí, que é de doer! Paraense a mais não toque de caixa, escapuliu de quê? Em que cumbuca apanhado? Fale
ser. Me mostre suas marcas da maloca, seus urucus. Que foi? Que se nem que seja baixo, estou de oiça limpa. Me declare. Chegando aqui:
deu? Tudo o que faz é sorrir nos olhos o selvagem. Me furtaram a bordo, foi no porto de Vitória e nada mais? E fica
De cabelo aparado, bastante alheio a tudo, a si mesmo, vai à assim numa sarapantagem? Olhe o seu inventário: suas roupagens.
janela, esperando ao menos aquela carroça chegue em busca do velho Deus que me perdoe. Um? Um? Uma beca só? Além do mais, que
lá defronte. Nem os balanços do mar lhe botaram fora a Aluna e a beca, de que fazenda! Um ao menos de casimira me trouxesse, um!
Fada. Nem uma noite se enjoou de enjôo do mar nem mesmo ao pé da Ou desembarcou para o zoológico, errou a porta? Todo nu, pintado de
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urucu, sendo assim servia. Mas já que veio em figura de gente, ah, — Alguma, D. Aurora?
não! Tenha paciência! Pra sua ciência, olhe o Mílton quando aqui — E por cima debochando? Sendo você um menor e eu a dona
desembarcou, só de ternos trouxe sete, sete! Todos de casimira. Aqui desta casa, não está no meu dever?
se chama terno a fato. E o meu cavalheiro? Roupa é o melhor D. Aurora mexe-se na cadeira, enfia a mão dentro do peito,
documento. Um de casimira, fosse de segunda mão, trouxesse. Ou arruma a massa dos seios, abana-se, suando as suas gorduras, ávida,
isto aqui não é a Capital? Que então que sucedeu? Faça o seu piscando o olho.
relatório. Tão carecente das mais mínimas coisas, qual a causa? Aí me — Foi fazer e... — palmeou a mão esquerda, logo cruzou os
furtaram a bordo. Fui furtado em Vitória e só? Rasgue a fantasia e braços.
mostre o tumor, mc tire do desentendido. Estou lhe dando um — Lhe botaram então os javalis no calcanhar?
vomitório? Por mal não é o que lhe digo. Conte as artes que fez. Ou Levantou-se, arrastou a cadeira para o pé do rapaz, fez a voz
que lhe [286] fize|ram. Olhe só: sua carinha não me engana. Até suas abafada:
espinhas de rapaz parecem falar. Só a sua voz não fala? Corrido? [287] Tudo, tudo, tudo faz crer sim. Não que eu queira
— Corrido? adivinhar. Deixe de maquiavelismo, criança, criança, e mostre o que
— Corrido, sim, que mais que é? Corrido? lhe fede por dentro que assim, sim. Se a polícia? Queria que
Alfredo afeta embaraço, instiga a suspeita, mira-se no espelho escondesse você debaixo da minha saia?
da parede: — A polícia me levava, ora essa, D. Aurora.
— D. Aurora! — Menino, enxugue a alma na bainha desta saia, que esta, aqui,
— Da justiça? que sou eu, má mulher não é, e a hospedagem que lhe deu foi em
— D. Aurora! muita consideração, que aqui? No Rio? No Rio é um buraco, olhe que
— Foi fazer, fugiu? Foi? é um buraco. Foi fazer, meteu-se a bordo? Fez?
— D. Aurora! — Que fiz?
— Vomite, ande, vomite. Vomite, que lhe aparo o vômito. Ou — Tire a chave na fechadura e me mostre os compartimentos,
recolhi no seio uma serpente? seu cabeçudo! A sua idade está dizendo, idade assim como essa sua,
Alfredo riu. D. Aurora abanava-se, respirava fundo fez-se um Nossa Senhora da Boa Morte! Olha só o rasgado da boca, um beiço
pouco sufocada. pimentão. Essa estatura toda. Por detrás desse teu sorriso, hein? Aí
— D. Aurora, já lhe disse, fui furtado. Sim, que o dinheiro não que está a cavilação, índio! Olhe, batida de polícia aqui dentro de
era senão para os primeiros dias. Um conto de réis. casa, Deus me defenda. Passar pela vergonha? Me escancara a casa
— Olhe, meu filho, no seu balão não vou. Bem. Já que insiste, com um escândalo? A quem abri a porta?
tão apregoa, vá lá, deixa pra lá, isso em Vitória, admito, não desminto D. Aurora desabotoa o peitilho, enxugou o rosto com o braço,
nem confirmo. Mas o fogo de pegar o navio, o fogo? O sem-que-nem- apertou o cinto na barriga. Fez um rogo na voz:
pra-que do perna-pra-que-te-quero? Alguma? — Desate seus ocultos, índio urubu. Me deixe ver essa sua mão,
Alfredo armou o espanto: olha a linha... oi! Infeliz de quem te escuta e te segue... Infeliz.
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Alfredo recupera a mão, levantou-se. — Aqui está o novo empregado.


— Bem, D. Aurora, se assim é, por isso não, pelo bom nome de — Vamos ver se dura, se presta.
sua casa, licença, licença, só é o tempo de pegar a maleta. O mulato, ajudante de cozinheiro, ensina-lhe a tirar do tanque as
— Mas ó, meu diabo! Estou te mandando embora? Vem cá! carnes velhas, a carregar o carvão, a cortar o repolho, a dispor da pia,
Vem cá! tinha água quente. O cozinheiro preparava as panelas para o fogo.
Maleta na mão, vara o túnel dá com aqueles gritos. Os mesmos — Vamos, traga mais carvão. De sapatos? Tome este tamanco,
berros de bêbedo ou doido atroando. O berreiro explode ali do escuro, ponha o avental, parece que está com cerimônia? Vá agora buscar o
da pedra, das bocas do mundo. Roda a carroça no escuro. Vai buscar carvão.
o velho na Livramento? [289] Aos poucos se movimenta o frege, se amontoam os
[288] Voltou pela Camerino debaixo dos gritos, descansa no pratos, o diabo é que nem almoçou antes, como é do regulamento. A
cais. Esse bicho norueguês, aqui descarregando, aceita um grumete? torre de pratos cobre a pia e nova pilhas chegam. O grito do garçom
Venderá a maleta, os dois livros, o anel. O travesseirinho. Mas onde? se mistura ao do túnel e ao jorro das torneiras.
pensa, agora, no menino guardado dentro do caroço de tucumã em — Nunca na vida lavou prato? Tire a gordura. A gordura.
Santana (talvez pendurado no pescoço de Dolorosa), o caroço Ponha água quente. A gordura! A gordura!
grelando em breve um tucumãzeiro, lá em cima entre os espinhos o As comidas saem, sabe Deus como, esse pescoço de galinha,
cacho do faz-de-conta. Aqui, meu senhor, me compre este caroço, não espreme que sai bicho. Repara no cozinheiro, um português, meio
jogue no ar e veja os resultados... Não tem preço mas fique com ele esverdeado, porco de língua, de gorro e sempre tossindo, tossindo
por cinqüenta mil réis pois preciso um casimira de segunda mão. sobre o cozido e o arroz.
Segue, de novo, pelo túnel debaixo dos gritos, o túnel despeja — Hoje é o meu derradeiro escarro. O resto do meu bofe podre
escuridão e o berro sobre a praça. Deságua na Central, o trem saía. sai neste ensopado, assim me pede o Diabo. Está por pouco esta
Deita-se no banco da praça, ouviu um toque no quartel. Põe a tísica. A cozinha me comeu o peito? Pois que agüentem o menu!
cabeça no travesseiro. O túnel entra-lhe pelo sono, reboando. Anda, Brito. Leva este ao molho Koch ao freguês!
Mal amanheceu. Nem lhe tinham furtado a maleta? Compra o Os pratos se derramam, frenéticos, lava, enxuga, se empapa de
jornal, corre os anúncios e de maleta em punho chega à Conselheiro sebo, fumaça e frio, agora sob a torrente dos talheres. Aqui
Zacarias. É o Café São Silvestre. devolvidos, quentes ainda das bocas saciadas. Lá fora comem o pasto
— É oitenta mil réis, com direito a café, refeição e duas garrafas brabo. Daquelas fomes lá fora chegam os pratos sujos, o sobejo, um
de cerveja. sarro, um palito, o arroto, a náusea. Teve uma necessidade, vai aos
— Não tenho documento. Venho do Pará. fundos e vê, através da cerca, aquela pretinha bem pretinha a estender
— Não importa. Espere o rapaz que vai lhe mostrar o serviço. roupa. Pedaço de quintal! Flui sossego, a roupa lavada, o rostinho da
Tome logo o café. lavadeira. O rostinho é o Pará puro, as escuras de Areinha, a mãe don-
Tinha que limpar o fogão, trazer o carvão do depósito, acender zela a estender roupa. Já o português berrando:
o fogo. Chegava o cozinheiro. — Ó meu rapaz! Só agora te lembras de mijar? Mija aqui
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mesmo na pia, lava os pratos no mijo, que é o azeite da casa. Aos De maleta na mão, flanando na Avenida, pára, surpreendido.
pratos! Aos pratos! Mas aquele se não é o seu Paula... Aquele fazendeiro do Curral do
Não cessam. Lava também suas suspeitas, seus vexames, seus Meio, lá do rio de cima. Ele mesmo! Ele mesmo!
espantos, o medo indefinido, a cara da D. Aurora, aquele Vem cá! — Ó seu Paula! Ó seu Paula!
Vem cá!, tantas como estes pratos. E se vê quebrando pratos, — Mas, seu menino! Que me anda fazendo, assim de maleta na
desmorona a torre, joga o avental na cara do cozinheiro, agarra a mão, com cara de perdido neste colosso?
maleta, salta pelos fundos, rompendo a corda da roupa, ouvindo atrás Neste colosso, perdido? Alfredo não vacilou: está rumo da
dele a voz doce: ladrão! ladrão! Escola de Agronomia de Piracicaba.
[290] Consegue ocultar-se num baldio, sentado na maleta, por [291] Seu Paula, não. Está com a senhora muito mal, tão mal
dentro o escarro do cozinheiro, viscoso, engordurado. que só Deus.
Calçou os sapatos, cheirou as mãos que tinham trabalhado, — Trouxe ela de lá faz dois meses, operou, tentou o rádium.
precisa fazer a barba, tomar um banho. E esse rumor de oficina? Mas aquele caranguejo, seu menino, quando crava, crava. Venha nos
Que anoiteceu, entrou no túnel que o recebe com os mesmos ver no Largo do Machado.
gritos, ou sai de mim este clamor? Os pratos giram. Outubro, Círio, Largo do Machado! Na cama, a senhora muito alva, penteado
em Belém roda no túnel a Berlinda, o Carro dos Milagres, o brigue feito, sobre o seio a mão exangue. Tudo muito limpo, sossegado,
dos serafins, mulatal do Jurunas, as descalças de São Brás, a Mãe lençóis brancos, a laranja descascada, o cacho de uvas, o vidro de
Ciana atrás do seu Lício, os bêbedos e raparigueiros do arraial, a perfume, a flor de ontem, as horas, o telefone. A que altura vem a
cabeça do Arcebispo, as cadeiras de embalo na Sociedade do carroça? Aqui será bem recebida. E isso deu a Alfredo:
Descanso, as bandas de música, os Alcântaras mais gordos, todos — O senhor pode já-já me pagar a passagem de volta? Lá lhe
dentro do túnel que devora a procissão. O túnel reboa. saldo. Pode?
Chegou ao banco da praça, tirou o travesseirinho e de cada Corre no cais, um cargueiro, pulou a bordo.
prato, no sonho, salta a menina, aquela, dançando em cima do arroz e
da salada, já sentada na Berlinda, toda de cera no Carro dos Milagres,
suspende a saia para os serafins, boiou entre os talheres na pia
imunda.
Acordou pela madrugada. Um mendigo, sentado na maleta, lhe
pede um cigarro.
— Então vamos ao café.
O restinho dos tostões paga. Os dois ao café bebem uma
cachacinha em silêncio, como se comungassem. O mendigo se benze.
Mostra a medalha no pescoço, medalha essa que trazia no meio os
olhos de Roberta.

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