(Espada, Henrique) Sob o Domínio Da Precariedade Escravidão e Os Significados Da Liberdade de Trabalho No Século XIX
(Espada, Henrique) Sob o Domínio Da Precariedade Escravidão e Os Significados Da Liberdade de Trabalho No Século XIX
(Espada, Henrique) Sob o Domínio Da Precariedade Escravidão e Os Significados Da Liberdade de Trabalho No Século XIX
escravidão e os significados da
liberdade de trabalho no século XIX
4. Os sentidos da“transição”
Não há dúvida de que a historiografia sobre a escravidão nas últimas
décadas avançou imensamente na direção de compreender de um modo
mais denso o funcionamento da sociedade escravista no Brasil e nas Améri-
cas. Dimensões fundamentais da experiência dos escravos foram exploradas
com cuidado em diversos trabalhos que lançaram luz sobre as ações autôno-
mas dos escravos no sentido de minar a legitimidade da escravidão, bem
como suas estratégias para construir – dentro e fora das relações escravistas –
um universo viável de relações sociais. Assim, as formas de resistência e
negociação dos escravos, suas redes de sociabilidade, o lugar e a permanência
de suas relações familiares, sua cultura, e as formas de luta sob o cativeiro
foram amplamente discutidos39.
Aspectos fundamentais do sistema escravista permaneceram, entretan-
to, menos explorados, especialmente no que concerne aos sentidos e aos
significados da liberdade. A pergunta sobre o que existe para além da escra-
vidão muitas vezes comportou respostas que, ao mesmo tempo que anali-
savam com detalhe o trabalho escravo em suas dimensões econômicas, so-
ciais e políticas, com muita freqüência acabaram por tratar a liberdade como
um conceito indiferenciado e que raramente era colocado em exame. 40
Mesmo aqueles trabalhos que enfrentaram diretamente o problema
do “significado da liberdade”, indagaram antes de tudo sobre suas dimen-
sões culturais e políticas em sentido amplo – iluminando, por exemplo,
questões referentes à cidadania, raça e etnia41. Assim, a questão dos signifi-
cados que “trabalho livre” poderia ter nos vários contextos do pós-emanci-
pação ainda merece alguma atenção. Ao enfrentar esse problema, denunci-
de um projeto para sua emancipação gradual. Entre outras coisas, ela liber-
tava imediatamente todos os filhos de ventres escravos nascidos após a data
de sua promulgação, estabelecendo as regras para a indenização do trabalho
dos menores e o cuidado destas crianças livres e seus compromissos com
relação aos senhores sob as quais, em última instância, permaneciam sob os
cuidados. A lei dava também consistência jurídica a uma série de práticas
correntes na relação escravista53, como a possibilidade de o escravo acumu-
lar pecúlio, de resgatar sua liberdade com o pecúlio acumulado, e das inde-
nizações devidas aos senhores. Outra das práticas costumeiras que ganha
regulação é aquela em que o escravo se valia de empréstimo de um terceiro
para resgatar sua alforria.
No artigo 4º, § 3º, limitava-se o contrato de locação de serviços a um
período de sete anos. No artigo 6º, § 5º, definia-se que os escravos libertos
através da lei seriam “obrigados a contratar seus serviços sob pena de serem
constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos públicos”.
A lei de 1871 foi considerada como a peça central de uma estratégia
legal que atrelava diretamente a libertação dos escravos à reordenação do
trabalho e a transição para um mercado de trabalho livre. Não há dúvida de
que a primeira parte da afirmação está correta; por outro lado, o problema
da constituição deste “mercado” não foi analisado de outro modo que não
através da lógica legal e dos debates parlamentares ao redor das leis. Assim,
antes de qualquer outra coisa, é a auto-imagem dos legisladores e os seus
projetos que vêm à tona. O que permanece submerso são os sentidos que os
próprios trabalhadores dão ao “mercado” no qual são “livremente” lançados.
Se nos aproximamos dos contratos estando armados dos parâmetros
teóricos do “homem econômico”, trata-se de arranjos cujo significado cen-
tral nos está dado de antemão: revelam o jogo universal da barganha que,
dentro dos limites de uma relação desigual, conduz os ex-escravos a tirarem
o melhor resultado material possível dos novos arranjos de trabalho54. Se
assim não o fizerem, resta concordarmos com a retórica senhorial que via
nos ex-escravos homens e mulheres despreparados para o mundo, que pre-
cisariam ser educados sobre os seus próprios interesses e para comportarem-
se racionalmente em suas novas escolhas como livres55.
As observações anteriores certamente desautorizam essa aproximação.
A escolha inversa – isto é, interrogar os contratos em sua positividade –
pode ser, por outro lado, uma experiência importante no sentido de recuperar
as “visões alternativas da vida econômica”56 que poderiam guiar as escolhas
desses sujeitos em sua nova situação e a definição dos seus “interesses” 57. Mais
do que isso, é preciso dizer que não basta constatar a existência de uma
racionalidade alternativa: é preciso interrogar o seu significado para os sujei-
tos que a operam. Fazer isso ajudará certamente a lançar luz sobre o conteú-
do concreto que as ações dos ex-escravos poderiam estar atribuindo à “liber-
dade” que conquistavam.
Gostaria agora de tentar um exercício nessa direção, interrogando uma
pequena amostra de “contratos de locação de serviços”, que fazem parte de
um conjunto maior de contratos e títulos de liberdade que são objeto de
uma pesquisa que venho realizando sobre a experiência do trabalho “livre”
na cidade do Desterro no século XIX58.
Em um levantamento inicial, localizei 56 contratos de locação de ser-
viços para o período entre 1849 e 188759. Partirei de uma seleção desses
registros para – a partir das discussões que propus até aqui – propor algumas
hipóteses para sua leitura.
O primeiro contrato dessa natureza que encontrei data de 9 de feverei-
ro de 1847 e envolvia um africano liberto de nome Antônio, de Nação
Mocingo. Antônio fazia contrato de locação de serviços a um certo José
Manoel de Souza, que lhe havia emprestado a quantia de 263$610 (duzen-
tos e sessenta e três mil e seiscentos e dez) réis, com a qual havia resgatado o
valor de um outro contrato que havia feito anteriormente com Zeferino
Fernandes (que é apenas citado na nota). Em troca desse dinheiro, Antônio
obrigava-se a prestar 8 anos dos seus serviços ao seu novo patrão, “como se
fora seu cativo”. Este, por sua vez, comprometia-se a “vesti-lo, sustentá-lo e
curá-lo em suas enfermidades”60.
Em outro contrato, datado de abril de 1849, uma mulher africana de
25 anos, de nome Thereza, contrata seus serviços com Dona Filisberta
Coriolana de Souza Passos. Desta vez, trata-se de uma dívida de cem mil
réis que a ex-escrava havia contraído em favor de sua liberdade. Em troca da
quantia, comprometia-se com nada menos que 25 anos de seus serviços,
aceitando trabalhar “como se fora sua cativa” e a acompanhar sua patroa, ou
qualquer um a quem ela indicasse, “para qualquer parte que se destine”.
Além disso, comprometia-se a não contratar-se com mais ninguém durante
[e] a fazer o serviço doméstico que lhe for ordenado”. Soncini, por outro
lado, comprometia-se a dar-lhe “sustento e vestuário”, além de “tratar a
devedora em suas enfermidades até o tempo de quinze dias”. Depois desse
tempo, correria por conta de Gertrudes, as contas de “Botica, Médico e
dieta”. Declarava ainda que, “se por ventura ela devedora não se der bem
com ele credor e a sua família, poderá se alugar em qualquer casa de família,
dando-lhe a ele credor mensalmente a quantia de dez mil réis até completar
o tempo estipulado.”66
Em 26 de janeiro de 1887, é o pardo liberto Germano que também
encontramos alugando seus serviços domésticos à família de Frederico
Momm. Resgatava sua dívida de 150$000 réis comprometendo-se com 4
anos de “seus bons serviços”, “compatíveis com sua força e sexo”. Em troca
do respeito e da obediência devidos (e lavrados em nota), recebia o compro-
misso do novo patrão em “tratá-lo em suas enfermidades quanto estas mes-
mo excedam de quinze dias, com Médico, Botica, dieta e tratamento sem
ônus algum para o devedor”67.
Como interpretar a diversidade expressa nessas notas? O que elas reve-
lam sobre as distintas situações em que poderiam se encontrar os ex-escra-
vos ao terem que enfrentar o desafio de articular um arranjo possível de
trabalho na condição tão incerta de credor de uma dívida que correspondia,
de fato, ao próprio lastro de sua liberdade?
A nova situação não aparecia de forma homogênea para todos: a mãe,
provavelmente solteira e com vínculos precários para além da escravidão,
vê-se forçada a comprometer o seu trabalho e prometer o de sua filha, ainda
pequena, pelos vinte anos seguintes, em troca da promessa ambígua de vê-
la receber “a devida educação”. A jovem de vinte e cinco anos, praticamente
se reescraviza voluntariamente pelos vinte e cinco anos seguintes de sua exis-
tência. Como comparar essas situações com aquelas que mostram trabalha-
dores conseguindo não apenas prazos confortáveis para o pagamento de
suas dívidas, como uma tolerância difícil de explicar com cumprimento
desses mesmos prazos? Como articular na mesma pergunta essas situações
com o caso – certamente excepcional – do crioulo liberto Antônio Martins
da Rocha, que em 1869 assinava de seu próprio punho o contrato de loca-
ção de serviços em que se compromete a pagar uma dívida de um conto de
réis – contraída com o negociante e notável local, Joaquim Augusto do
Livramento – com nada menos do que oito anos dos seus serviços “de
vender água”, obrigando-se a entregar mensalmente a quantia de 100 mil
réis por todo o período?68 A situação de um ex-escravo que é capaz de se
comprometer a mobilizar recursos desse montante – que pagariam, em
oito anos, várias vezes o valor de mercado de um escravo adulto e apto para
o trabalho –, ao mesmo tempo em que se amarra a um arranjo de trabalho
draconiano, revela certamente muito da condição paradoxal com que vive
seu trabalho “libertado”69.
Os fios invisíveis que ligam esses fragmentos de histórias não são auto-
evidentes. A maior parte das perguntas que evocam não podem ser enfren-
tadas com o fôlego deste artigo. Por hora, entretanto, basta levantar algu-
mas hipóteses que remetem a uma interpretação geral sobre os sentidos que
a liberdade de trabalho poderia ter para esses homens e mulheres. Deixando
de lado, por enquanto, a interrogação sobre as condições específicas desse
tempo e lugar – a cidade do Desterro no século XIX –, tentarei me deter nos
aspectos das experiências desses trabalhadores libertos que podem lançar
alguma luz sobre os desafios comuns que estavam presentes no próprio
âmago dessa nova condição de “trabalho livre” que enfrentavam.
Ao ser lançado no “mercado” de trabalho em um ambiente urbano, as
opções de um ex-escravo, homem ou mulher, eram freqüentemente muito
restritas. O fato de que a esmagadora maioria das alforrias concedidas na
última década da escravidão no principal cartório do Desterro envolvia al-
guma cláusula de prestação de serviços – seja para o ex-senhor, seja para
terceiros através de contratos de locação – parece ser um indicativo impor-
tante. Transformar a escravidão em um contrato para o pagamento de uma
dívida poderia também significar a tentativa de garantir de algum modo a
continuidade de uma ocupação que garantisse a subsistência e uma menor
incerteza frente ao futuro. A compensação pecuniária desse trabalho – como
sugerem, na verdade, os próprios contratos – era certamente subordinada a
essa condição70. Esse parece ser o elemento principal que se revela nessas
escolhas. Por outro lado, a possibilidade, também presente, de resgatar sua
liberdade com um pecúlio acumulado com o trabalho remunerado durante
a escravidão podia revelar uma realidade menos desconfortável, que impli-
cava a existência de vínculos de solidariedade fora da escravidão, o conheci-
mento de um ofício e o acesso a oportunidades melhores de trabalho. Mas
essa era apenas uma possibilidade e não uma certeza. E, certamente, não
estava ao alcance de todos71.
Em cidades como o Desterro, onde as ocupações industriais eram
inexistentes ou muito limitadas e onde a produção agrícola (nas freguesias
rurais) funcionava com uma mão-de-obra pequena e estável, para aqueles
que não conheciam um ofício e não eram empregados como domésticos
(ou ainda, no caso do trabalho feminino, em ocupações complementares
ao trabalho doméstico, como lavadeira ou costureira), o “mercado” para os
ex-escravos significava antes de tudo as ocupações não especializadas que
envolviam o aluguel de suas forças como carregador ou outra ocupação
braçal. São ocupações intermitentes, ligadas aos movimentos do porto, às
obras públicas, a demandas localizadas de particulares. Incertos, descontínuos
e mal pagos, constituem, entretanto, os trabalhos mais prováveis em uma
economia local que desconhece completamente aquela “carência de braços”
que preocupava os senhores de escravos e empregadores da economia agrí-
cola de exportação72.
Como a dura história dos trabalhadores do século XIX não cansou de
ensinar, a “liberdade de trabalho” não significava o direito ao trabalho. Como
em toda economia que se “modernizava”, esta liberava indivíduos “disponí-
veis”, mas não necessariamente “recrutáveis” para o trabalho73. O resultado
disso era, obviamente para a maioria, uma perspectiva pouco promissora de
acesso aos atributos positivos que revestiam a noção de “liberdade” como
ideal e horizonte de expectativa: o acesso à propriedade e a um ofício remu-
nerado que permitisse viver dignamente por si, a garantia de poder cons-
truir autonomamente seus vínculos de sociabilidade e pertencimento.
A única certeza dos libertos era a de estarem lançados em uma nova
situação social marcada pela precariedade, raramente com as ferramentas e
recursos necessários para enfrentá-la. Essa precariedade poderia aparecer de
modo abrupto e irremediável a cada esquina: através da doença e da indi-
gência, do acidente de trabalho e da invalidez, da viuvez, da orfandade ou
do abandono, da velhice solitária e desassistida.
Não se pode abordar minimamente os sentidos dos termos dos con-
tratos a que se submetiam esses homens e mulheres sem levarmos em conta
essa realidade básica que se levantava como o horizonte negativo de suas
MATTOS, Hebe Maria & Ana Maria Rios. O pós-abolição como problema
histórico: balanços e perspectivas. Topoi, volume 5, no 8, janeiro-junho 2004,
pp. 170-198.
MATTOS, Hebe Maria & Ana Maria L. Rios. Memórias do cativeiro: família,
trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários
e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Edunicamp/Cecult, 1999.
MOREIRA, Paulo Roberto S. Os cativos e os homens de bem: experiências negras
no espaço urbano. Porto Alegre, 1858-1888. Porto Alegre: EST Edições, 2003.
PECK, Gunther. Reinventig Free Labor: Padrones and Immigrant Workers in the
North American West, 1880-1930. New York: Cambridge University Press, 2000.
PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face. A astúcia escrava frente aos senhores e à
lei na Curitiba Provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999.
PINHEIRO, Paulo Sérgio (ed.). Trabalho Escravo, Economia e Sociedade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
POLANYI, Karl (with collaboration of Abraham Rotstein). Dahomey and the
slave trade. An analysis of an archaic economy. Seattle and London: University
of Washington Press, 1966.
POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. 7a edição,
Rio de Janeiro: Campus, 2000.
REIS, João José & Eduardo Silva. Negociação e conflito. A resistência negra no
Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor. Esperanças e recordações na formação da
família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
STANLEY, Amy Dru. From Bondage to Contract. Wage Labor, Marriage, and
the Market in the Age of Slave Emancipation. Cambridge (Mas.): Cambridge
University Press, 1998.
STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor in the Nineteenth Century.
Cambridge (Mas.): Cambridge University Press, 2001.
STEINFELD, Robert. The Invention of Free Labor: The Employment Relation
in English and American Law and Culture. Chapel Hill (NC): North Carolina
University Press, 1991.
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tra-
dicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TURNER, Mary (ed.). From Chattel Slaves to Wage Slaves. The Dynamics of
Labour Bargaining in the Americas. Kingston/Bloomington & Indianapolis/
London: Ian Randle/Indiana University Press/James Currey, 1995.
Fontes:
Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio
de Janeiro de 1870, versão digitalizada: http://ara.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/
ordenacoes.htm
Livros de Notas do 1º e 2º Ofício de Notas do Desterro (século XIX) – Atual 1º
Ofício de Notas e 3º de Protestos de Florianópolis (Cartório Kotzias).
Notas
1
A noção de “interesse”, como nos lembra Albert Hirschman, assume um caráter quase que
estritamente econômico a partir do século XVIII. A história dessa transformação está discutida
por ele em Paixões e interesses. Argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo. Rio
de Janeiro: Record, 2002.
2
POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. 7ª edição, Rio de Janeiro:
Campus, 2000 (1944), p. 89. As páginas seguintes se apóiam amplamente nas análises
desenvolvidas neste livro.
3
Sigo, mais uma vez, a discussão de Polanyi contida no conjunto de A grande transformação.
Os termos: “encapsulado” e “desencapsulado” traduzem os termos embedded/disembedded, que
são centrais na tipologia teórica de Polanyi (cf. GRENDI, Edoardo. Polanyi dell’antropologia
economica alla microanalise storica. Milano: Etas Libri, 1978). Essa escolha de termos é
distinta daquele utilizada pela tradução brasileira citada, que eu utilizo para todo o resto.
4
O livro de Hirschman, citado na nota 1, serve como uma útil introdução ao tema. Ver
também o livro de Louis DUMONT, Homo aequalis. Gênese e plenitude da ideologia econômi-
ca. Bauru: Edusc, 2000.
5
Cf. POLANYI, op. cit. p. 18.
6
O triunfo intelectual do modelo liberal foi muito mais extenso e duradouro que qualquer
triunfo político ou econômico que tal modelo tenha tido. É preciso ter isto no horizonte
quando analisarmos as posições políticas, os planos reformadores, ou os cálculos de eficácia dos
agentes sociais que tinham esse modelo no seu horizonte racional.
7
Uma referência fundamental permanece sendo a discussão de E.P. Thompson sobre o
sentido das lutas camponesas na Inglaterra do final do século XVIII contra a imposição das
regras de mercado para a regulação do preço dos gêneros: Costumes em Comum. Estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, principalmente capítu-
los 4 e 5 (A economia moral da multidão inglesa no século XVIII e Economia moral revisitada, pp.
150-266).
8
Cf. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis:
Vozes, 1998, p. 170.
9
Ibid, p. 155.
10
Essa é, pelo menos, a imagem que os defensores do livre mercado fizeram do trabalho
forçado. Podemos constatar o quanto de “retórica” há nesta imagem ao lembrarmos da impor-
tância crescente que o trabalho escravo teve nas colônias do Novo Mundo durante a própria
ascensão da economia liberal. Em economias onde a mão-de-obra “não estava prontamente
disponível no lugar certo, pelo preço certo ou insuficientemente afastada das relações não-
capitalistas de produção” – como no caso da América –, o trabalho escravo e forçado era usado
largamente no mesmo momento em que, na Europa, o sistema capitalista do trabalho assala-
riado estava amadurecendo (Cf. COOPER, F., T. Holt & R. Scott, Introdução, In: Além da
escravidão. Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 73).
11
Cf. CASTEL, op. cit., p. 44.
12
Cf. CASTEL, op.cit., p. 212.
13
Para uma discussão sobre o significado do pauperismo, ver os capítulos 9 e 10 de A grande
transformação e o capítulo 5 do livro de Robert Castel. Este sociólogo, em particular, discute
como os discursos sobre pauperismo – que representa os operários como moralmente degra-
dados – não representa apenas o medo dos abastados frente aos novos conflitos sociais, e nem
apenas o etnocentrismo ou o puro preconceito anti-operário (ainda que também o seja), mas
revela algo da realidade sociológica daquela sociedade: “a novidade [o pauperismo] é devida a
tomada de consciência de uma condição trabalhadora de tal modo degradada, que coloca
populações inteiras nas fronteiras da associabilidade” (CASTEL, op. cit., p. 289).
14
Cf. CASTEL, op. cit., p. 219.
15
Cf. CASTEL, op. cit., p. 221.
16
Cf. CASTEL, op. cit. p. 284. É esse também o sentido da afirmação de que “a vagabunda-
gem representa a essência negativa do assalariado”, pois, “o vagabundo é um assalariado ‘puro’
no sentido em que, falando de modo absoluto, só possuía a força de seus braços. É a mão-de-
obra em estado bruto. Mas é-lhe impossível entrar numa relação salarial para vendê-la. Sob a
forma da vagabundagem, a condição de assalariado, poder-se-ia dizer, ‘chega ao fundo’, é o
grau zero da condição salarial: um estado impossível (mas que, entretanto, existiu em carne e
osso para centenas de milhares de exemplares), que condena à exclusão social. Porém, este caso-
limite sublinha traços que, na época, a maioria das situações salariais partilhou.” (ibid. p. 149).
17
Cf. CASTEL, op. cit. p. 250.
18
Cf. POLANYI, op. cit. p. 298.
19
Cf. CASTEL, op. cit., p. 263.
20
Id. Ibid.
21
POLANYI, op. cit., p.90. O conceito de “mercadoria” é central aqui. Como nos lembra
Polanyi, é através dele que “o mecanismo do mercado se engrena aos vários elementos da vida
industrial. As mercadorias são aqui definidas, empiricamente, como objetos produzidos para
a venda no mercado; por outro lado, os mercados são definidos empiricamente como contatos
reais entre compradores e vendedores. Assim, cada componente da indústria aparece como
algo produzido para a venda, pois só então pode estar sujeito ao mecanismo da oferta e procura,
com a intermediação do preço. Na prática, isto significa que deve haver mercado para cada um
dos elementos da indústria; que nesses mercados cada um desses elementos é organizado num
grupo de oferta e procura”. (op. cit, p. 93, grifo meu).
22
Cf. POLANYI, op. cit., pp. 94- 95.
23
Cf. CASTEL, op. cit., p. 255. Aqui, mais uma vez, as análises de Polanyi e Castel se
complementam. Podemos dizer que ambos compartilham a tese central de Polanyi, que é
perseguida sistematicamente em A grande transformação: “Nossa tese é que a idéia de um
mercado auto-regulável implicava uma rematada utopia. Uma tal instituição não poderia
existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela teria
destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto.” (Cf. POLANYI,
op.cit., p. 18).
24
Cf. CASTEL, op. cit., p. 273.
25
Cf. CASTEL, op. cit., p. 44.
26
Cf. CASTEL, op. cit., p. 45.
27
A tentativa de compreender esta nova miséria que surge com a industrialização está tam-
bém, de resto, na própria origem da teoria social moderna: do liberalismo econômico ou o
darwinismo social ao positivismo ou o marxismo. Polanyi aponta a ligação entre o pauperismo,
a economia política e essa “descoberta da sociedade” que fundamenta a busca por uma
explicação “do verdadeiro significado tormentoso da pobreza” (Cf. POLANYI, op. cit. p.
153). A solução que, garantindo as premissas da economia clássica, vê na natureza a explicação
da sociedade (transformando as leis do mercado em leis naturais), começa a assombrar as
ciências do homem também aí. O darwinismo social, o naturalismo, o racismo “científico” são
exemplos disso. O marxismo como pensamento social, por outro lado, é uma tentativa (ma-
lograda do ponto de vista teórico, de acordo com Polanyi) de reintegrar a sociedade no mundo
humano. Para uma discussão mais extensa (ainda que freqüentemente impressionista) desses
temas, ver os capítulos 9 e 10 de A grande transformação.
28
O conceito de “desfiliação social” é usado por Robert Castel para descrever uma situação
social definida pela vulnerabilidade da posição de um indivíduo com relação às redes de
integração social, que envolvem desde o pertencimento precário a uma comunidade ou rede
de sociabilidade, até a precariedade do trabalho e a fragilidade dos vínculos sócio-culturais. O
conceito é fluído, mas central em suas análises sobre a constituição da “sociedade salarial” no
século XIX e suas especificidades. Para uma discussão extensa sobre o tema, ver a introdução e
o primeiro capítulo de As metamorfoses da questão social (pp. 21-93). Ver também: CASTEL, R.
et alli. “Symposium sur Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du salariat”, Sociologie
du travail, nº 43, 2001, pp. 235-263.
29
O que é sugerido, por exemplo, pelo trabalho de PECK, Gunther. Reinventing free labor:
Padrones and immigrant workers in the North American West, 1880-1930 (New York:
Cambridge University Press, 2000), que mostra que em pleno oeste americano, em um
espaço e em um tempo que a historiografia dos Estados Unidos costuma considerar
paradigmático do espírito empreendedor americano, a noção de trabalho livre comportava
ambigüidades importantes, e relações de trabalho centradas nas figuras dos padrones e basea-
das na coerção e tutela eram empreendidas não por rudes e primitivos empregadores, mas por
empreendedores modernos.
30
Cf. STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor in the Nineteenth Century.
Cambridge (Mas.): Cambridge University Press, 2001, p. 2. Para uma discussão anterior de
Steinfeld sobre a história jurídica do “trabalho livre”, ver o seu The Invention of Free Labor: The
Employment Relation in English and American Law and Culture. Chapel Hill (NC): North
Carolina University Press, 1991.
31
Steinfeld chama a atenção para a necessidade de se construir uma visão “anti-essencialista”
das tipologias com que se lida com a questão do trabalho: “Uma dificuldade com a sabedoria
convencional é que ela retifica os tipos de trabalho, trata-os como ‘coisas’ com um conteúdo
fixo, ao invés de tratá-los como práticas sociais/legais que podem ser construídas em uma série
de maneiras distintas” (Coercion, contract and free labor, cit. p. 33).
32
BRASS, Tom. Free and unfree labour: the debate continues, In: BRASS, Tom & Marcel Van
Der Linden (eds.) Free and Unfree Labour: The Debate Continues. New York: Peter Lang
Publishing, 1997, p. 12. Brass discute nesta passagem da introdução os artigos de Robert
Steinfeld e Stanley Engerman publicados no volume.
33
Sobre isso ver os artigos publicados na primeira parte (Negotiating Slavery) do livro organi-
zado por TURNER, Mary: From Chattel Slaves to Wage Slaves. The Dynamics of Labour
Bargaining in the Americas. Kingston, Bloomington and Indianapolis, London: Ian Randle,
Indiana University Press, James Currey, 1995.
34
Cf. GLICKSTEIN, Jonathan A. Concepts of free labor in Antebellum America. New Haven: Yale
University Press, 1995, p. 2. E uma afirmação como essa, poderíamos acrescentar, é obviamente
válida do mesmo modo para outros lugares, como o Brasil, por todo o século XIX.
35
Ver sobre isso: COOPER, F., T. Holt, & R. Scott, Introdução, in Além da escravidão... cit.
Ver também, especialmente, o artigo de Frederick Cooper no mesmo volume: “Condições
análogas à escravidão”, pp. 201-279.
36
Cf. COOPER, F., T. Holt, & R. Scott, Introdução, in Além da escravidão... cit., p. 45. Os
autores deste livro inspirador colocam o problema da “liberdade” em termos que valem a pena
mencionar: a “liberdade não é um estado natural. É um construto social, um conjunto de
valores coletivamente comuns, reforçado pelo discurso ritual, filosófico, literário e cotidiano.
A liberdade tem uma história que contém noções distintas cuja própria fusão numa tradição
histórica específica é tão importante quanto a tensão entre elas.” (pp. 51-52).
37
“Em torno de 1890, as elites inglesas desenvolveram sua própria definição do ‘trabalho
livre’. ‘The Economist anotou em 1891... que ‘a controvérsia geral sobre o trabalho está para
transformar-se amplamente sobre os respectivos direitos e deveres dos trabalhadores livres e
dos sindicalistas’ – os trabalhadores livres sendo definidos como todos aqueles que queriam
fazer seus próprios contratos independentes com seus empregadores, sem levar em conta a
posição do sindicato.’ John SAVILLE, Trade Unions and Free Labour: The Background to the
Taff Vale Decision, In: Essays in Labour History, ed. Asa Briggs and John Saville (London,
1967), 319.” Apud: STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor in the nineteenth-
century, cit. p. 14, nota 27.
38
POLANYI, Karl (e Abraham Rotstein). Dahomey and the slave trade. An analysis of an
archaic economy. Seatle and London: University of Washington Press, 1966, p. xvii.
39
As referências aqui são inúmeras. No caso do Brasil, para fazer uma lista (necessariamente
incompleta) dos trabalhos mais influentes, podemos citar: CARDOSO, Ciro F. (org.) Escravi-
dão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro, Zahar, 1988; LARA, Sílvia H. (org)
Escravidão (número especial da Revista Brasileira de História com vários artigos sobre o tema,
vol. 8, nº 16, março/agosto 1988); REIS, João José & Eduardo Silva, Negociação e conflito. A
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB,
Sidney, Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990; MATTOS, Hebe Maria, Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no Sudeste escravista. Brasil, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998 (1995);
FLORENTINO, M. e J. R. Góes, A paz nas senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; SLENES, Robert.
Na Senzala uma Flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste,
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
40
Nesse sentido, vale também para o Brasil aquilo que os autores de Além da escravidão
afirmam para a historiografia americana sobre a escravidão: O “trabalho livre”, desse modo,
acabava por ser definido apenas como “o fim da coação, não como uma estrutura de controle
da mão-de-obra que precisasse ser analisada a seu próprio modo”, cf. COOPER, F., T. Holt, &
R. Scott, Introdução, cit. p. 42. E acrescentam: “O conceito de sociedades escravistas inspirou
e encorajou o estudo de uma totalidade: uma economia política, sua legitimação ideológica e
suas conseqüências ecológicas e culturais, tudo, de algum modo, iluminado por um conjunto
específico de relações sociais de trabalho e, por sua vez, iluminando-o. Não estamos acostuma-
dos a pensar em ‘trabalho livre, e ‘sociedades livres’ do mesmo modo” (ibid. pp. 43-44, grifo
meu).
41
Dois importantes trabalhos que, no Brasil, tematizaram o problema do “significado da
liberdade” diretamente – o de Sidney Chalhoub e o de Hebe Mattos citados duas notas atrás
– fazem isso sem enfrentar de modo integral, entretanto, o sentido da “liberdade de trabalho”.
Mais recentemente, o problema historiográfico do pós-abolição vem sendo objeto de estudos
inspiradores. Ver, por exemplo, os trabalhos recém-lançados: MATTOS, Hebe Maria & Ana
Maria Rios. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, volume 5, nº
8, janeiro-junho 2004, pp. 170-198; o já citado Além da escravidão, cit., recém-traduzido no
Brasil com um importante prefácio de Hebe Mattos; e ainda: MATTOS, Hebe Maria e Ana
Lugão Rios. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
42
Aqui, mais uma vez, as referências são variadas. Algumas das mais importantes são: COSTA,
Emília Viotti da. Da senzala à colônia, São Paulo: Liv. Ciências Humanas, 1982 (1966);
PINHEIRO, P. S. (ed.). Trabalho Escravo, Economia e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984; GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo:
Brasiliense, 1986; KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil.
São Paulo: Brasiliense, 1987; LAMOUNIER, M. L. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de
locação de serviços de 1879. Campinas: Papirus, 1988.
43
LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil, Projeto História, nº
16, 1998, pp. 25-38.
44
Como por exemplo, no trabalho clássico de FRANCO, Maria Sílvia de Carvalho – Homens
livres na ordem escravocrata, 3ª edição, São Paulo: Kairós, 1983 – que continua a influenciar
as análises sócio-históricas a esse respeito. Para uma crítica ponderada a esse trabalho e uma
visão alternativa sobre alguns de seus temas, ver MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio... cit.
45
Manolo Florentino e João Fragoso mostraram, em contraste, que a “racionalidade” da classe
senhorial não era efetivamente homogênea e podia abraçar, em pleno século XIX, um projeto
amplamente “arcaico” (não necessariamente no sentido valorativo, mas no sentido polanyiano
de “economia arcaica”): O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite
mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840. 4ª ed. rev. e
ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
46
Assim, partindo dos pressupostos de como a sociedade brasileira deveria ser, tenta-se analisar
aquilo que ela é (ou foi). Ao fazer isso, constrói-se uma armadilha que arrisca fazer a interpre-
tação andar em círculos.
47
Como mostra eloqüentemente Amy Dru Stanley no seu livro From Bondage to Contract.
Wage labor, marriage and the market in the age of slave emancipation. Cambridge (Mas.):
Cambridge University Press, 1998 (sobretudo o primeiro capítulo). Sobre as questões em
torno do significado da liberdade e do contrato no Caribe inglês pós emancipação, ver o artigo
de Thomas C. Holt no já citado Além da liberdade (2005), além do seu livro, The Problem of
Freedom. Race, Labor, and Politcs in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore and London:
Johns Hopkins University Press, 1992.
48
Ademir Gebara e Maria Lúcia Lamounier (ver nota 43) desenvolvem esse argumento
analisando, respectivamente, a Lei nº 2.040, de 28/09/1871 (a Lei Rio Branco) e o Decreto
nº 2.827, de 15/03/1879 (Lei Sinimbu).
49
Títulos XXIX a XXXVI (Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de
Almeida, Rio de Janeiro de 1870, versão digitalizada: http://ara.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/
ordenacoes.htm).
50
Essa lei é de 13/09/1830. Sobre a história da legislação sobre o trabalho no período
escravista, ver GEBARA, O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888), cit. (principal-
mente o capítulo 2). Esta é a bibliografia principal para os apontamentos sobre o tema feitos
neste parágrafo.
51
Quando é editada a lei sobre a locação de serviços agrícolas. Ver LAMOUNIER, Da
escravidão ao trabalho livre, op. cit.
52
Lei nº 2.040, de 28/09/1871. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1871, Tomo XXXI,
Parte I (Rio de Janeiro, 1871), pp. 147.151 (referências tiradas de CONRAD, Robert. Os
últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, INL, 1975, que
transcreve integralmente a lei no seu apêndice II, pp. 366- 369).
53
E, desse modo, a principal novidade que introduzia na relação senhor/escravo era a legalida-
de de práticas que antes eram apenas costumeiras e cuja validade dependia, antes de tudo, da
vontade senhorial. De todo modo, esse foi certamente um elemento desestabilizador da
ordem senhorial sobre a qual assentava as relações escravistas. Para uma discussão dos signifi-
cados da lei de 1871 com relação às práticas costumeiras da escravidão, ver de Sidney
CHALHOUB, Visões da liberdade (cit.).
54
Esse é o sentido exclusivo que se dá aos contratos dos escravos se seguirmos, por exemplo,
o que diz Mary Turner sobre os termos de barganha disponíveis para os escravos: Falando de
um “novo filão de resistência do trabalhador escravo” que os estudos da escravidão apontavam
(para além da tradicional dicotomia “acomodação” e “rebelião”), a “negociação” dos escravos,
de acordo com ela, revelava “uma população escrava trabalhadora consciente do valor do seu
trabalho e determinada a ganhar o melhor retorno por ele” “Introduction” (by Mary Turner)
In: From Chattel Slaves to Wage Slaves, cit. p. 2. Esse livro é uma prova de que mesmo um
conjunto formidável de trabalhos que tematizam criticamente o problema da negociação dos
escravos pode cair nas armadilhas montadas pelo paradigma do “mercado”, mesmo quando
tenta explicitamente se desvencilhar dele.
55
Ver sobre isso a discussão de Joseli Maria Nunes MENDONÇA – Entre a mão e os anéis. A
lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp/Cecult, 1999
(sobretudo o primeiro capítulo, pp. 45-135).
56
Sobre isso, ver a Introdução de Além da escravidão, cit., principalmente p. 70. Sobre uma
discussão acerca da “visão alternativa da vida econômica” dos escravos e libertos jamaicanos,
confrontadas com as expectativas dos oficiais coloniais britânicos no pós-emancipação, ver
HOLT, Thomas, “A essência do contrato”, In: Além da escravidão, cit. pp. 89-129.
57
Além disso, vale partir da consideração de Edoardo Grendi de que “pensar a sociedade
econômica não deve necessariamente contemplar a exigência de uma abstração da esfera
econômica do ‘resto’” (GRENDI, Polanyi... op. cit., p. 3). Em outras palavras: entendendo
que essas “visões alternativas” não se referem a uma “economia” abstraída da cultura e das
relações sociais.
58
A amostra que trato a seguir contém dados levantados pela minha própria pesquisa, assim
como pelas pesquisas de Clemente Gentil Penna e Tamelusa Ceccato, a quem agradeço.
59
Esta amostra foi retirada de uma pesquisa em andamento nos livros de notas do Cartório do
2º Ofício de Notas de Florianópolis. Este cartório contém uma série bastante lacunar de livros
que pertenciam ao 1º e 2º Ofício de Notas do Desterro no século XIX. A amostra é resultado
do levantamento completo de todas as notas registradas nos livros seguintes: livro 11 do 1º
Ofício de Notas (1886-7), 2º Ofício de Notas: livros 11 (1847-1848), 12 (1849), 14
(1853), 22 (1859), 23 (1861), 29 (1866), 31 (1868-9), 33 (1870), 58 (1884), 59
(1885), 60 (1885-86), 61 (1886-87), 62 (1887).
60
“Escritura de loucação de serviços que faz o preto liberto Antônio de Nação Mocingo a José
Manoel de Souza...”, Livro 11 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1847-1848).
(escrivão João Antônio Lopes Gondim), fls. 4 e 4v.
61
“Escriptura de loucação de serviços que faz a preta liberta Theresa, a Dona Filisberta
Coriolana de Souza Passos”, Livro 12 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1849)
(escrivão João Antônio Lopes Gondim), fls. 10 e 10v.
62
“Escriptura de loucação de serviços que faz o preto liberto Sebastião Cabinda a Pedro
[Kemper]”, Livro 11 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1849) (escrivão João
Antônio Lopes Gondim), fls. 31v e 32.
63
“Escriptura de loucação de serviços que faz a preta liberta Maria Leocadia ao Capitão
Fernando Antônio Cardoso”, Livro 11 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1849)
(escrivão João Antônio Lopes Gondim), fls. 41, 41v e 42.
64
“Escriptura de loucação de serviços que faz o preto liberto Francisco Benguella a Antônio
Lopes da Silva”, Livro 11 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1849) (escrivão João
Antônio Lopes Gondim), fls. 54 e 54v.
65
“Escriptura de contracto de loucação de serviços que faz o crioulo liberto João Ancelmo a
Jacinto Feliciano da Conceição como abaixo se declara” Livro 58 do 2º Ofício de Notas da
Cidade do Desterro (1884) (escrivão Leonardo Jorge de Campos), fls. 27v, 28 e 28v.
66
“Escriptura de contracto de loucação de serviços que faz a crioula Gertrudes a Fortunato
Soncini como abaixo se declara”, Livro 59 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1885)
(escrivão Leonardo Jorge de Campos), fls. 5v e 6.
67
“Escriptura de contracto de loucação de serviços que presta o pardo liberto Germano a
Frerderico Momm”, Livro 62 do 2º Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1887) (escrivão
Leonardo Jorge de Campos), fls.48 e 48v.
68
“Escriptura de loucação de serviços que presta o crioulo liberto Antônio Martins da Rocha
ao Doutor Joaquim Augusto do Livramento na forma que abaixo se declara”, Livro 31 do 2º
Ofício de Notas da Cidade do Desterro (1868-69) (escrivão Leonardo Jorge de Campos),
fls.88. (nota datada de 31/05/1869).
69
Que ele seja – para criar um neologismo anacrônico – uma espécie de “micro-empresário ao
ganho” apenas torna a pergunta mais interessante, na medida em que revela a ambigüidade da
própria idéia de “empreendedor” que se supunha estar ao alcance de qualquer trabalhador
“livre”.
70
A aceitação de um compromisso financeiro tão oneroso quanto aquele aceito pelo liberto
Antônio da Rocha (ver nota 68) só pode ser entendida nesse contexto como uma escolha que
coloca a estabilidade do trabalho (e de um trabalho capaz de prover uma subsistência digna
e estável) à frente dos ganhos pecuniários.
71
A existência de atividades remuneradas durante a escravidão envolviam uma série de
arranjos de trabalho entre os escravos e seus senhores. Essas atividades são fartamente docu-
mentadas e mereceram a atenção de trabalhos de vários especialistas sobre a história da escra-
vidão. Ver, por exemplo, SOARES, Luiz Carlos, Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do
século XIX, Revista Brasileira de História, nº 16, mar./ago. 1988 (número dedicado à “Escra-
vidão”, organizado por Sílvia Lara), pp. 107-142; assim como o trabalho clássico de Sidney
CHALHOUB, Visões da liberdade (cit.). Para o Sul do Brasil, vale citar pesquisas que apontam
na mesma direção: PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face. A astúcia escrava frente aos senhores
e à lei na Curitiba Provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999; MOREIRA, Paulo Roberto
S. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre, 1858-1888.
Porto Alegre: EST Edições, 2003.
72
Essa era uma preocupação que atravessava toda a discussão sobre a importação de mão-de-
obra estrangeira e o manejo da mão-de-obra escrava e nacional, por exemplo, na lavoura
cafeeira nas últimas décadas da escravidão (cf. LAMOUNIER, Da escravidão ao trabalho livre,
cit.). É importante notar que as diferenças entre as situações rural e urbana são muito impor-
tantes e irão merecer mais atenção na continuidade deste trabalho.
73
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social. cit. p. 117.
74
Cf. LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século
XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 104.
75
Cf. POLANYI, K. A grande transformação, cit. p. 191.
76
Como sugere Bernard Lepetit como alternativa ao termo “filiação social” usado por Robert Castel
(cf. LEPETIT, B. “Le travail de l’histoire”, Annales HSS, mai-juin 1996, nº 3, p. 537).
77
Cf. a Introdução de Além da escravidão, cit. p. 60.
78
Como aponta David Brion Davis, tratava-se também de uma transformação radical na
consciência moral ocidental, marcada pelo aparecimento de uma opinião relativamente gene-
ralizada de que a escravidão no Novo Mundo “simbolizava todas as forças que ameaçavam o
verdadeiro destino do homem”, Cf. DAVIS, D. B. The problem of Slavery in the Age of
Revolution 1770-1823. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 41.
79
Ver, sobre isso, mais uma vez, a discussão sobre a idéia de cidadania, direitos e liberdade no
contexto das sociedades escravistas e no pós-emancipação, que atravessa o trabalho de Cooper,
Holt e Scott, em Além da escravidão (cit.).
80
Cf. CHALHOUB, S. A enxada e o guarda-chuva: a luta pela libertação dos escravos e a
formação da classe trabalhadora no Brasil (trabalho apresentado no XXI Simpósio Nacional da
ANPUH, Niterói, junho de 2001, mimeo.).
81
Do ponto de vista das elites, como mostra Castel, “quando se recusa a opção literalmente
reacionária de reconstituir, enquanto tais, as antigas sujeições, é necessário reconstruir, num
universo onde em princípio reina o contrato, novas regulações que sejam compatíveis com a
liberdade e mantendo as relações de dependência, sem as quais uma ordem social é impossível”
(Cf. CASTEL, R. As metamorfoses da questão social, cit. p. 307).
82
Cf. CASTEL, R. op. cit. p. 278. Ver, para as Américas (sobretudo o Caribe), ver HOLT,
Thomas, “A essência do contrato”, cit. In: Além da escravidão; SCOTT, Rebecca C. Fronteiras
móveis, ‘linhas de cor’ e divisões partidárias, In: Além da escravidão, cit. pp. 131-200; CRATON,
Resumo
O artigo aborda as ambigüidades que envolvem a noção de “liberdade de traba-
lho” no século XIX, partindo de uma discussão comparativa não apenas sobre a
história e a historiografia da escravidão, mas abrangendo a história social, econô-
mica e institucional do trabalho de um modo geral. Parte-se do princípio de que
uma abordagem deste tipo permite formular de modo mais agudo uma interpreta-
ção sobre a experiência coletiva dos trabalhadores livres e escravos, evitando algu-
mas das armadilhas do modelo de “transição” utilizado – muitas vezes acriticamente
– pela historiografia no Brasil e nas Américas para explicar a relação entre sujei-
ção e liberdade na esfera do trabalho. Algumas das questões levantadas na primei-
ra parte do trabalho são articuladas na discussão de uma amostra de “contratos de
locação de serviços” envolvendo ex-escravos e patrões, registrados nos cartórios de
notas da cidade do Desterro entre as décadas de 40 e 80 do século XIX.
Palavras-chave: escravidão, liberdade, trabalho, contratos de trabalho.
Abstract
This article examines the ambiguities raised by the concept of “labor freedom” in
the XIXth century, through a comparative perspective of not only the history and
historiography of slavery, but also the social, economic, and institutional history of
labor. It considers that this approach will allow a better understanding of the
collective experience of free laborers as well as slaves, in order to criticize the
“transition” model that is still used – often without any criticism – by the
historiography on slavery and free labor in Brazil and in the Americas to explain
the relationship between freedom and bondage in labor history. Some of the questions
raised in the first part of the article will be used to analyze a sample of labor
contracts between formal slaves and their formal masters or new bosses, notarized
in the city of Desterro, in Southern Brazil, between the 1840s and the 1880s.
Keywords: slavery, freedom, labor, wage contracts.