201401-Tese CarlosEduardoCosta
201401-Tese CarlosEduardoCosta
201401-Tese CarlosEduardoCosta
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
por
CARLOS EDUARDO COSTA SCHERER
Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas
Rio de Janeiro,
Fevereiro de 2014
LIBERTATE OPVS EST: O Percurso da Sabedoria em Pérsio
Examinada por:
_______________________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Alice da Silva Cunha (UFRJ)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva (UERJ)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Arruda de Oliveira (UFC)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Vanda Santos Falseth (UFRJ)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Cecília Lopes Albuquerque Araújo (UFRJ)
________________________________________________________________
Suplente: Prof. Dr. Márcia Regina de Faria da Silva (UERJ)
________________________________________________________________
Suplente: Prof. Dr. Édison Lourenço Molinari (UFRJ)
Rio de Janeiro
Março de 2014
Scherer, Carlos Eduardo Costa.
Libertate opus est: O percurso da sabedoria em Pérsio / Carlos
Eduardo Costa Scherer. Rio de Janeiro, UFRJ/FL, 2014.
xi; 146 f.; 31 cm
Orientador: Alice da Silva Cunha
Tese (Doutorado) – UFRJ/FL/Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas, 2014.
Referências Bibliográficas: f. 141-145
1. Pérsio. 2. Sátira. 3. libertas. 4. Arte alusiva. 5. iunctura acris. I.
Cunha, Alice da Silva. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas. III. Título.
Parentibus
Optimis
Para:
Amigos,
Mestres,
Exemplos.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos:
Jean-Luc Pouliquen
Wu Nengchang
Nossa pesquisa teve como escopo analisar a maneira poética como Pérsio
desenvolve o conceito de libertas em sua sátira. Vimos que seu discurso se volta para a
liberdade interior, a necessidade de dominar as paixões e buscar a sabedoria como meio de
alcançar a verdadeira liberdade. Contudo, mostrou-se também que, subjacente a essa fala,
o poeta veladamente faz menção à falta de liberdade civil que impera na Roma Neroniana.
Quanto à elaboração do discurso, vimos que a poética de Pérsio apresenta dois pontos
fundamentais: a iunctura acris, união inusitada de termos muitas vezes de natureza
diversa, em que não raro o concreto se confunde com o abstrato; e a arte alusiva, que
não se restringe apenas a alusões textuais – seja a textos de outros autores, seja ao seu
próprio –, mas que também abarca questões sociais e políticas de seu tempo.
The aim of this thesis is to analyze how Persius develops, in a poetic way, the
concept of libertas in his satire. We saw that his discourse turns toward inner freedom, the
need to master the passions and seek wisdom as a means to achieve real freedom.
However, the analysis shows that, underlying this speech, the poet covertly mentions the
lack of civil liberty in the Neronian Rome. Regarding the construction of the speech,
Persius poetics presents two fundamental points: the iunctura acris – unusual union of
terms different in their nature, in which the concrete meaning is frequently confused
with the abstract meaning; and the allusive art, which is not restricted to textual allusions
to the writings of other authors or his own, but also related to social and political issues of
his time.
(Rilke / Bandeira)
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 1
2. SANITAS............................................................................................................. 8
2.1 Desidia.............................................................................................................. 11
3. LIBERTAS........................................................................................................... 58
4. CONCLUSÃO.....................................................................................................136
INTRODUÇÃO
(Antonio Machado)
João 8: 32
1. INTRODUÇÃO
Talvez por ter Santo Tomás dado cunho definitivo ao tema, é hoje quase um
senso-comum imaginar que foram os cristãos que inventaram os sete pecados capitais, e
que eles são uma forma de impor limites à liberdade de escolha pessoal, como se fossem uma
espécie de leis opressivas que restringiriam o acesso à liberdade e realização plena de cada
2
indivíduo. Esse tipo de pensamento traz em si dois erros fundamentais: 1) os vícios capitais
não são uma "invenção" do cristianismo, antes são resultado de uma profunda reflexão do
ser humano sobre si mesmo, e dos males que o fazem perder o controle de sua vida; já
aparecem, de fato, apontados por pensadores antes mesmo do nascimento de Cristo –
veremos um exemplo em um poema de Horácio, logo abaixo; 2) não são esses vícios uma
"imposição" que, de certo modo, restringiria a liberdade de escolha individual, mas, pelo
contrário, somos alertados para eles justamente para que possamos compreender que são
os vícios capitais - isto é, que 'comandam' os demais - que nos fazem perder o controle de
nossas vidas, e que nos tornam cegos escravos das paixões. Conhecê-los e buscar evitá-los
não são restrições a nossas liberdades individuais, mas, pelo contrário, são certamente a
única forma de conseguirmos obter a verdadeira liberdade. O estóico Epicteto diz
expressamente1: Não é pela satisfação dos desejos que se alcança a liberdade, mas pela destruição
do prazer. Neste trabalho, veremos um autor pagão, nascido no início da Era Cristã, que
nos alerta para o perigo das paixões; pois, se nos entregamos a elas, perdemos fatalmente
nossa liberdade, e, como diz o poeta, libertate opus est.
No poema que abre seu primeiro livro de Epístolas, Horácio – poeta augustano,
cuja morte ocorre oito anos antes do nascimento de Cristo – apresenta um exemplo de
recusatio, gênero de que alguns autores no período de Augusto se valeram2. Na carta,
endereçada a Mecenas, como costuma fazer nos poemas que abrem seus livros, Horácio
diz a seu protetor – o qual lhe pedira que escrevesse mais obras líricas – que não tem mais
nem idade nem espírito para se dedicar a esse gênero de poesia3, seu interesse agora é por
filosofia moral. Não que deseje tornar-se sectário ou abandonar sua vida social; antes,
busca princípios gerais que norteiem sua conduta. Após relatar sua ansiedade em começar
seu estudo moral, Horácio pondera que, mesmo que já não possa chegar à perfeição, não
1
Epiteto, Discursos, IV, 1, 175.
2
Cf. o próprio Horácio, Carmina, I, 6; IV, 2; IV, 15; Vergílio, Bucólica VI; Propércio, I, 7; III, 3; Ovídio,
Amores, I, 1.
3
Horácio, no entanto, ainda viria a publicar o quarto livro de suas Odes e o Carmen Saeculare.
3
será isso a impedi-lo de fazer o possível para uma conduta mais sábia; do mesmo modo
que uma pessoa não deixará de lavar os olhos simplesmente porque não poderá ter a visão
aguçada de Linceu4, nem deixará de se cuidar para evitar artrites, embora não pretenda
nunca chegar a ter os músculos de Glicão5 (vv. 28-31). Enfim, é possível ir até certo
ponto, mesmo que não nos seja dado ir além (v.32). Em seguida, enumera aqueles que são
os principais vícios a serem atacados6:
Destacamos em negrito os sete pontos que para Horácio devem ser evitados pelo
sábio, ou ao menos pela pessoa que pretende como ele ter uma vida mais saudável, liberto
das paixões. Não por casualidade, certamente, esses sete pontos coincidem perfeitamente
com os sete vícios apontados pelos autores cristãos supracitados.
4
Linceu foi um dos Argonautas, ficou célebre justamente por sua visão penetrante.
5
Glicão foi um célebre lutador, contemporâneo de Horácio.
6
Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 33-42.
4
Em nosso trabalho, procuramos, a partir da análise de suas sátiras, mostrar com que
arte o poeta volaterrano Pérsio – que nasce quando Roma está sob Tibério, e morre,
sendo princeps Nero – busca chamar a atenção para os vícios que nos são próprios a todos,
e que, se não forem compreendidos e combatidos, escravizam-nos, roubam-nos a
liberdade. A verdadeira liberdade. A crítica bem-humorada aos vícios aparece ao longo de
suas sátiras – e, como veremos, todos os vícios capitais acabam contemplados em sua
obra. Duas sátiras, em especial, serão analisadas por nós, aquelas que são as mais
estritamente filosóficas na obra de Pérsio: a terceira, que é uma crítica à preguiça e um
apelo ao estudo, à busca da sabedoria, pois, sem ela, acabamos inevitavelmente cedendo às
paixões – e as paixões são a doença da alma; e a quinta, que tratará justamente da questão
da verdadeira liberdade. O título de nosso trabalho toma de empréstimo o início de um
verso desta sátira quinta, que o escoliasta explica desta forma: libertate opus est tamquam
si diceret sapientia omnibus necessaria est. As demais sátiras também se farão presentes,
sempre que nos parecer que apresentem elementos que possam enriquecer e iluminar os
pontos analisados.
Ressalte-se que tratar do tema da liberdade, como o fez Pérsio, num momento em
que Roma vivia sob um Nero que mostrava suas garras despóticas, terá inevitavelmente
também um cunho político. E Pérsio deixa em sua sátira algumas claves que nos apontam
claramente para esse fim. E esses elementos são fundamentais para uma melhor apreciação
do trabalho do poeta. Porque o recurso da alusão, que Pérsio usa com mestria, não se
restringe apenas a seu diálogo com obras de outros autores – Horácio em especial –, mas
também há também alusão, em geral de algum modo cifrada, com o ambiente político da
Vrbs. E, como veremos, o poeta – com a repetição de alguma palavra-chave, ou alguma
imagem recorrente – alude por vezes a seu próprio texto, fazendo que ganhem novos
matizes e significados seus versos. Por isto, em nossa análise, será dada atenção especial a
esse recurso tão bem utilizado por Pérsio, porque a compreensão dessa arte alusiva é
fundamental para podermos apreciar a arte com a qual o poeta lapida seus poemas.
5
Pérsio foi em seu tempo aclamado como um ótimo poeta satírico7, ouvido com
entusiasmo8 e seu livro, ao ser postumamente lançado, foi disputado por seus
contemporâneos9. Durante muito tempo seu texto será admirado, como atesta a grande
quantidade de manuscritos antigos de sua obra; o valor moral de suas sátiras servirá de
referência mesmo a autores cristãos, como testemunha Santo Agostinho. Justamente por
esse caráter moralista de sua obra, Pérsio foi muito editado quando da invenção da
imprensa; as primeiras edições remontam ao ano de 1470. Dentre as principais edições
antigas, destacamos a feita por Antonio de Nebrija (Sevilha, 1503) e Isaac Casaubon
(Paris, 1615). Cumpre notar, no entanto, que, com o tempo, suas imagens, suas
referências foram tornando-se cada vez mais incompreensíveis para o leitor, e Pérsio, a
cada passo, passava mais e mais a ser referido como um poeta de difícil leitura, e criticado,
às vezes asperamente, por sua obscuridade. Também passou a ser alvo de outra crítica – a
nosso ver injusta: a de ser um escritor imaturo.
No século XIX, aparecem algumas edições que serão importantes para uma
reavaliação da obra de Pérsio. Em 1830, a coleção Lemaire publica uma edição, preparada
por A. Perreau, que apresenta uma compilação dos comentários mais pertinentes à obra
do poeta feitos até então. Mas é no ano de 1868 que O. Jahn publica aquela que se tornará
a primeira edição considerada verdadeiramente crítica de Pérsio10. Teremos em seguida
algumas edições que merecem destaque, como a de J. Conington e de F. Villeneuve, que
também publicará um alentado ensaio (Essai sur Perse, 1918) em que analisa não só a obra
do satírico, mas também sua vida, formação, influências. É, no entanto, sobretudo a partir
da década de 60 do século XX que começa a aparecer um bom número de artigos e
ensaios que reabilitarão definitivamente o poeta11, mostrando que sua poesia é obra de
7
Cf. Quintiliano, Inst. Or. X, 1, 94: "multum et uerae gloriae, quamuis uno libro, Persius meruit".
8
Lucanus mirabatur adeo scripta Flacci, ut uix se retineret recitantem a clamore: quae illius essent uera esse
poemata, se ludos facere (Vita Persi, §5).
9
editum librum continuo mirari homines et diripere coeperunt (ibidem, §8).
10
Em 1843, Jahn já publicara uma edição das sátiras de Pérsio, mas que é apontada pela crítica como ainda
bastante imperfeita; cf. DOLÇ (1949), p. 59.
11
Por exemplo, os ensaios de Harvey, Bramble, Dessen, Reckford, Bellandi.
6
extremo cuidado e erudição12, que o jogo intertextual que ele faz com seus modelos, em
especial Horácio, é fundamental para uma mais justa apreciação de seu trabalho13.
12
Cf. BELLANDI (1996), p. 21: “Nel corso di queste ultimi decenni gli studi su Persio hanno conosciuto un
notevole incremento e – quel che più conta – hanno imboccato vie decisivamente nuove”.
13
Cf. HOOLEY (1997).
14
No entanto, outras edições foram pontualmente consultadas (v. bibliografia). Procuramos assinalar em
nota as vezes em que nossa preferência não coincidiu com a de Clausen.
15
Como não há autoria certa para a obra, deixamos como entrada na bibliografia o título, Commentum
Cornuti, e todas as citações do escoliasta que aparecem no trabalho remetem a ele.
7
2
SANITAS
(Bruno Tolentino)
2. SANITAS
10
2.1 Desidia
1
Horácio, Sátira II, 3, vv. 1-16.
Encolerizado contigo mesmo, pois, amigo do vinho e do sono,
Não cantas nada digno de conversação. Que está acontecendo? Tu, porém,
| durante as próprias
Saturnais fugiste, sóbrio, para cá. Recita, pois, 5
Algo digno do que prometias. Começa! Nada há?
Em vão os cálamos recebem a culpa, e a parede - nascida estando
| encolerizados
Os deuses e também os poetas - sofre sem ter cometido nenhum mal.
Tua aparência, no entanto, era a de alguém que prometia muitos
| e belíssimos versos,
Se uma pequena casa de campo, com um teto acolhedor, te recebesse ocioso.
A qual finalidade serviu amontoar os livros de Platão sobre os de Menandro?
Levar contigo Êupolis e Arquíloco, e tão ilustres companheiros? 12
Pretendes aplacar a inveja alheia deixando de lado a virtude?
Ah, infeliz! Serás desprezado! A preguiça, ímproba sereia, deve ser evitada;
Se não, tudo aquilo que adquiriste num melhor momento de tua vida
Há de ser, de bom grado, posto de lado."] 16
12
Nenhum serviço?2 Ninguém?" A vítrea bílis começa a inchar-se.
Estou para rebentar... de tal modo que acreditarias em que todos os rebanhos
| da Arcádia estivessem rosnando.]3
2
i.e.: Alguém que possa me ajudar?
3
A edição de Clausen, seguindo os passos de Housman (cf. infra, p. 14), não marca nenhum diálogo em
todo o poema até o verso 62, com exceção da fala do comes (vv. 5-6), e do tirano (vv. 41-42). No entanto,
mesmo se pensarmos num diálogo interno de Pérsio, pontuar as falas nos parece trazer não somente mais
clareza como também mais vivacidade ao texto. Todas as demais edições críticas compulsadas por nós o
fazem: Villeneuve, Nikitinski, Conington, Cartault, Kissel.
13
que isso: pessoal. No verso 3, antes de o diálogo propriamente começar, o narrador se
apresenta, com o verbo stertimus. Com o emprego deste plural, Pérsio envolve o leitor e a
si próprio na descrição: todos passam por situações como essa. E é nesses momentos que a
consciência vem dialogar conosco, como um comes. Mas quem são, afinal, essas
personagens?
Housman, no início do século XX, publica um artigo com várias notas sobre a
obra do poeta; uma delas trata da terceira sátira, e defende a tese de que o jovem
preguiçoso no início desta sátira é o próprio poeta4:
This satire, throughout its first 62 verses, is aimed at those who live amiss though
they know the right way; and the satirist takes himself as a specimen of the class.
Persius is both the subject and the speaker, and no other person has a word to say
except the 'unus comitum' who utters verses 5 and 6, 'en quid . . . ulmo est.' But
Persius holds parley with himself: first it is the whole man who speaks, stertimus,
findor, querimur, uenimus; ere long his higher nature mounts the pulpit and
thence rebukes him in the second person, 18 poscis and recusas, 20 succinis and
effluis and tibi, using the first person of itself, 30 ego and noui; at 19 the lower
nature finds a voice and says studeam. In 44 sqq. the reminiscent portion of the
mind begins to talk, memini, tangebarn, nollem; and then in 52 sqq. it takes to
task the Persius of to-day, tibi, stertis, uiuis. The truth might have been discovered
from verses 10-22 alone; for these are a plain imitation of Hor. serm. II 3 1-16,
satire on the satirist's self.
4
HOUSMAN (1913); cf., em especial, pp. 16-18.
5
Cf. TATE (1928), TATE, J. (1929) e, especialmente, HENDRICKSON (1928): ambos não concordam
que o jovem seja Pérsio. Para SMITH (1969), ao contrário, Pérsio é o jovem preguiçoso, e o comes, outra
personagem, um amigo que surge para lhe fazer advertências e dar bons conselhos.
6
É curioso notar que o poema de Horácio abre com Damasipo fazendo a crítica de que o poeta raro scribit;
justamente a mesma observação é feita pelo biógrafo de Pérsio sobre o volaterrano: scriptitauit et raro et
tarde (Vita Persi, §8). Demais, essa informação não é sem valor para o debate em questão.
7
Na recordação feita de sua infância (vv. 44 e ss.), por exemplo, ele cita o pai orgulhoso trazendo os amigos
para ouvirem o filho – na casa dos dezesseis anos – fazer uma récita (cf. infra, p. 32). Ora, segundo a Vita
Persi, o pai do poeta morreu quando ele ainda era muito criança, com não mais de seis anos. É verdade que a
14
pode ser identificada com ele e com (boa parte d)os ouvintes; é um 'eu-transferível', como
o 'eu' das meditações cartesianas. Os detalhes não precisam, pois, identificá-lo
biograficamente: será escolhida a cena que melhor traduza o que deseja o autor, a qual,
sendo verossímil a quantos tenham contato com o texto, não precisará preocupar-se com
a veracidade histórico-biográfica da situação8. Isso, diga-se, em nada diminui a
sinceridade da obra; pelo contrário, ao levantar as dificuldades por que todos passam,
inclusive ele, Pérsio se torna como que cúmplice dos ouvintes, e assim, mais facilmente
alcança a captatio beneuolentiae. E, sem dúvida, quanto mais ele conseguir isso, tanto mais
se tornará eficiente a mensagem que quer passar. Em todo caso, o que nós temos, com
toda a certeza, é uma oposição entre atitudes não sadias de um lado; e de outro, conselhos
para uma vida mais saudável. Sobre a questão, a professora Cynthia Dessen tece o seguinte
comentário9:
The biographical approach to Roman satire is of doubtful value and in the third
Satire raises more problems than it solves. There is a simpler explanation for
Persius' alternation of roles. This device allows him to involve us, his audience, in
the poem, thereby including us in his criticism of the youth. To accomplish this,
Persius first establishes a deliberate ambiguity between the narrator's remarks to us
and the Stoic's words to his sleeping adversary.
mãe contraíra novas núpcias; no entanto, o segundo marido em poucos anos também vem a falecer; cf. Vita
Persi, § 3.
8
Na bela imagem escolhida por Horácio como perífrase para o inverno, na Ode I, 11, v. 5, as ondas do mar
Tirreno aparecem chocando-se contra rochedos. O poeta, para nos fazer ver os rochedos, escolheu o
poético pumex. Porém, afirmam os comentadores, não há pedra-pomes junto ao mar Tirreno. A imagem,
com não ser factualmente possível, em nada perde sua beleza poética, nem deixa de transmitir ao ouvinte, de
maneira fiel, a sensação que o poeta almejara.
9
DESSEN (1996), p. 49.
10
Horácio, Sátiras II, 3, v. 3.
11
Lucano transcreve quase literalmente a expressão usada por Pérsio: indomitum [...] spumare Falernum,
Lucano, X, v. 163.
15
por quinta linea tangitur umbrā. Os romanos dividiam o dia em duas partes de doze horas: o
dia propriamente e a noite; aquele começava às 6h, e ia até as 18h (a noite era divida em
quatro vigílias); assim, quinta hora equivale a um horário entre 10h e 11h da manhã12.
linea refere-se à marcação do relógio solar (a sombra da seta marca a hora em linhas
traçadas no chão). Esse horário traz um paralelo entre o tempo do dia (manhã já
adentrada) e tempo da vida do jovem que está em cena (o puer que passa a adulescens)13.
Assim, a idade já não permite mais adiamentos: é hora de dedicar-se à filosofia, ter
disciplina e deixar de lado as sombras do vício, a vida de engano, ir em busca do acesso à
luz da verdade; é hora de sair da caverna – a realidade lá fora espera para ser vista. Este
momento da encruzilhada – quando a infância termina e se deve, portanto, escolher o
caminho a ser seguido na vida – é retomado algumas vezes por Pérsio em sua sátira14.
No verso 5, siccas antecipa coquit, numa prolepse, com o qual forma uma idéia
única – de fato, o sol não estaria abrasando a messe já ressecada, mas ele próprio pratica a
ação de torná-la seca; em outras palavras: ‘a messe já se vai ressecando com a abrasadora
canícula’. O termo canicula se refere propriamente a uma constelação (Canícula), e, por
metonímia, remete ao tempo de extremo calor em que ela é visível, entre 23 de julho e 2
de setembro.
A série de perguntas que aparecem nos versos 7 e 8 demonstra a impaciência do
jovem senhor ao chamar seu escravo. Horácio, em uma de suas sátiras, empregara o
mesmo recurso15: nemon oleum fert ocius? ecquis? audit? [Ninguém disponível para trazer o
óleo? E então? Alguém está ouvindo?]. Em seguida, no verso 8, essa impaciência será
ilustrada com a expressão turgescit ... bilis, pois os romanos viam na bílis a sede da cólera16.
Para qualificar bilis, Pérsio usa o adjetivo uitrea, numa iunctura inusitada, que remete à
fragilidade da paciência do jovem, que, como o vidro, facilmente pode quebrar-se.
12
Lembramos que, na contagem do tempo, os romanos contavam o terminus a quo e o terminus ad quem.
13
Cf. hic, capítulo 3.1, p. 81.
14
Cf. Pérsio 3, vv. 56, cf. infra; e 5, vv. 34-35, cf. hic, capítulo 3.1, p. 82.
15
Horácio, Sátiras II, 7, vv. 34-35.
16
Cf. Horácio, Odes I, 13, 4: difficili bile tumet iecur. De fato, a tradição de ligar a bílis à ira já existe desde
Homero, cf. MIGLIORINI (1997), p. 142. Na quinta sátira, Pérsio voltará a falar na bílis, cf. hic, capítulo
3.2, p. 121.
16
No verso 111 de sua primeira sátira, Pérsio fizera o rosnar dos senhores irritados
com sua mordacidade ser ouvido pela sonoridade das palavras escolhidas (nil moRoR ...
miRae eRitis Res), que reproduzem a littera canina – R –, mencionada pouco antes pelo
poeta17. O mesmo se dá agora no verso 9 deste poema, sobretudo pelo alongamento da
letra u – rūdere, em vez de rŭdere18: podemos, assim, como que ouvir o rosnado de
irritação do jovem senhor, que ele próprio compara, hiperbolicamente, ao som produzido
por rebanhos da Arcádia. Note-se também a expressão cômica em Arcadiae pecuaria19: ela é
uma referência aos asnos. Com efeito, segundo Plínio Velho, havia uma raça destes
apreciada na Arcádia20. Além disso, destaque-se que a expressão comparativa do verso tem
sabor inegavelmente popular21.
17
Cf. Pérsio, 1, vv. 110-111, BROUWERS (1973), p. 253 e SCHERER (2004), cap. 5.1, p. 40.
18
Cf. hic, capítulo 3.2, p. 118.
19
Pérsio usa pecuaria, que propriamente é um adjetivo neutro plural substantivado, por pecora; já também
Vergílio o fizera, cf. Geórgicas, III, v. 64.
20
Plínio Velho, História Natural, VIII, 68; cf. tb. o sarcástico arcadico iuueni de Juvenal, VII, v. 160.
21
Em artigo em que estudo o uso do latim familiar na sátira de Pérsio, Gérard dirá o seguinte: "Comme celles
dont se sert le peuple, plusieurs des comparaisons que l'on trouve dans les Satires de Perse sont tirées des objets les
plus communs"; GÉRARD (1897), p. 101.
17
Queixamo-nos porque a cana solte dobradamente as gotas dissolvidas.
Oh desgraçado! E cada dia mais desgraçado! A tal ponto 15
Chegamos? Ah!, por que antes, semelhante a um pombinho
Delicado e a filhos de reis, não reclamas uma papinha em pequenos
Pedaços e, irritado com a mamãe, recusas 'nanar'?22
"Mas por acaso eu posso trabalhar com tal pena?" A quem diriges essas
| palavras? Por que contrapões
Esses subterfúgios? É tua vez de jogar. Como um insensato, te pões
| a perder;
Serás desprezado. Um jarro não cozido com argila fresca, quando for
| percutido,
revelará no som o seu defeito, a resposta ao toque soará desagradável.]
O jovem se prepara para escrever. Pega o material necessário para o trabalho. liber
está aqui por alguma obra que contenha o material de que ele precisa para suas anotações.
O esboço e as notas serão feitos sobre o pergaminho (membrana), chamado bicolor porque
possui um lado mais branco que o outro, e, além disso, era costume derramar óleo de
cedro no lado que não era utilizado na escrita, para conservá-lo melhor23. Para tornar-se
próprio para a escrita, o pergaminho tinha de ser raspado24, por isso o ablativo absoluto
positis capillis – em que capillus aparece empregado por pilus25. Depois, para a versão
definitiva, o papiro (charta) será utilizado.
Embora esteja o jovem com todo o material à sua disposição, sua atenção, no
entanto, não consegue fixar-se nas coisas devidas. A cada instante ele busca justificativas,
visivelmente impertinentes, para escapar ao estudo. É a tinta que agora corre de menos,
agora é a tinta que está aguada, depois é a pena, o cálamo, a fístula que não funcionam
como deveriam: e agora a tinta corre demais... Com efeito, é de notar-se que, entre os
versos 12 e 14, o jovem emprega três palavras diferentes para descrever o instrumento de
escrita: mas nada funciona a quem está buscando pretextos para fugir aos estudos. O
22
Outra leitura poderia ser dada pensando-se mammae como um genitivo dependente do infinitivo lallare,
cf. Sêneca, Ad Lucilium, 101, 13. Escolhemos a leitura mammae como um dativo ligado a iratus não somente
por ser mais natural, mas também porque remete a iratus tibi, de Horácio (cf. infra nosso comentário).
23
Por isso, Pérsio na primeira sátira empregara a expressão 'poemas dignos do cedro' (cedro digna carmina,
vv. 42-43), com o sentido de poemas que hão de resistir ao tempo; Cf. SCHERER (2004), pp. 54-56.
24
Este processo era feito com pedra-pomes.
25
O poeta Tibulo empregara coma com o mesmo valor, cf. Tibulo, III, 1, 10.
18
emprego do subjuntivo nesta passagem26 (pendeat, v. 12; geminet, v. 14) é irônico, e reforça
a idéia de 'causa alegada'27.
Com o vocativo o miser no início do verso 15, e repetido no segundo hemistíquio
do mesmo verso28, começa uma reprimenda ao estudante preguiçoso, a qual se estenderá,
de certo modo, até o final da sátira. Essa mesma interpelação aparecera ao preguiçoso
Horácio, no verso 14 da sátira citada no início do capítulo (II, 3). Naquele momento,
Damasipo pergunta a Horácio se este, com a preguiça a que se tem entregado e com o
abandono da virtude, pretende agradar aos invejosos. A virtude mencionada por
Damasipo (v. 13) diz respeito também à disciplina: à dedicação à leitura e, sobretudo, à
escrita. Seu propósito, porém, é fazer o poeta voltar a produzir suas grandes obras
literárias. O piger persiano está sendo chamado a abandonar a preguiça para dedicar-se à
busca da virtude. Mas, no contexto do volaterrano, uirtus terá um sentido muito mais
amplo, diz respeito à busca da sabedoria. Os livros e a escrita também aparecerão, por
certo, mas o objetivo agora não é a escrita de obras literárias de valor, e sim o auto-
conhecimento, visando a uma vida virtuosa.
Num primeiro momento, a voz escarnece do miser, que, como uma criança
mimada, reluta em cumprir seus afazeres, se não vier tudo muito mastigadinho – isto é, se
o material não estiver absolutamente perfeito –, como a comida que recebem na boca
filhotes de pombos e de reis. A construção iratus mammae lembra Horácio, que ouvira de
Damasipo iratus tibi. Horácio, amigo do vinho e do sono, não compunha seus versos, e
colocava em vão a culpa no cálamo. Depois, irritava-se consigo mesmo. A chacota que
Pérsio lança ao jovem preguiçoso é mais forte. Ele se comporta como uma criança. O
comportamento infantil segue: ele agora está irritado, não consigo próprio, mas com sua
mamãe porque a comida não estava exatamente como ele desejava, e, assim, recusa-se a
ouvir-lhe o acalanto. A escolha das palavras pappare, minutum, mamma e lallare (vv. 17 e
26
O modo usado regularmente para a completiva com 'quod' é o indicativo, cf. CONTE et alii (2006), p.
270.
27
O chamado 'subjuntivo oblíquo', "che descrive il processo verbale da un ponto di vista soggetivo, relativizzando
la verità dell'informazione", CONTE et alii (2006), p. 251.
28
O segundo miser aparece introduzido por ultra; essa maneira de expressar grau de um adjetivo é própria da
linguagem familiar; cf. nesta mesma sátira: v. 46 multum laudanda; v. 86 multum torosa.
19
18) se explica por serem palavras do vocabulário infantil e/ou próprias da literatura
cômica29, ilustrando a zombaria contida na admoestação30.
O interlocutor quer se defender; com uma pergunta retórica, procura fazer crer
que suas queixas são justas. Como escrever com tal cálamo? (v. 18) Pôr esta justificativa, a
do cálamo defeituoso, na boca do interlocutor, não foi, por parte do poeta, uma escolha
aleatória. De fato, Pérsio faz aqui um divertido jogo de palavras, que somente poderá ser
compreendido por quem estiver com o poema de Horácio na memória. Afinal, Damasipo
prevenira Horácio de que era em vão que os cálamos recebiam as culpas (culpantur frustra
calami)31.
Como resposta, aparecem novas perguntas, nos versos 19 e 20 (cui uerba? quid istas
succinis ambages?), na voz de um filósofo que quer mostrar que tais justificativas não fazem
sentido. O que está em jogo é a vida do jovem (tibi luditur v. 20)32, o caminho que ele vai
seguir em sua vida real, e isso não tem nada que ver com palavras para satisfazer ou
convencer um mestre. Este ponto nos parece fundamental para a compreensão dos
objetivos de Pérsio: a primeira coisa que alguém tem de fazer para poder alcançar a
sabedoria é a sinceridade consigo próprio, sem o quê, é inútil todo e qualquer esforço de
aprendizagem. É vaidade, preguiça, tempo desperdiçado. Recitar-se-á em vão um poema
cujo conteúdo não é acessível; o conhecimento, por mais simples que se queira – ligado a
um jogo infantil, por exemplo, quando se é criança –, se é buscado com sinceridade, tem
mais valor do que um discurso nobre que não se pode compreender. O emprego de
luditur, com efeito, não nos parece escolhido ao acaso: além de podermos reconhecer aqui
a metáfora da vida como jogo, serve, bem ao gosto do poeta, como uma preparação à
cena em que, alguns versos adiante, o poeta fará uma reminiscência da infância com os
jogos que as crianças costumavam jogar33.
29
Cf. PASQUALI (1920), p. 301.
30
O verbo onomatopaico lallare tem sua origem provável na melodia cantada pelas mães para fazerem
adormecer seus filhos pequenos, na qual empregavam apenas a sílaba LA.
31
Horácio, Sátiras, II, 3, 7.
32
A expressão tibi luditur tanto pode indicar é a tua vez de jogar, como é teu interesse que está em jogo – as
duas leituras são válidas, e são, a nosso parecer, lados da mesma moeda.
33
Cf. infra, vv. 43 e ss.
20
Com as desculpas que inventa, o interlocutor está pondo sua vida fora, como um
insensato. Com isso, ele não ganhará mais do que o desprezo (contemnere). Mais uma vez,
Pérsio dialoga com a Sátira II, 3 de Horácio, em que o mesmo contemnere aparece abrindo
o verso 15. Em seguida, Damasipo apresenta uma máxima, adornada com uma figura
poética: uitanda est inproba Siren / desidia [A preguiça, ímproba sereia, deve ser evitada]. A
Pigritia aparece, pois, ilustrada com a imagem da sereia (ou sirena), que era um ser
mitológico, metade mulher metade pássaro, cujo mavioso canto enlouquecia os homens.
Estes não conseguiam controlar seu desejo de ir ao encontro dela, e acabavam por ela
sendo devorados. Ou seja, a imagem nos está a dizer: a preguiça seduz o homem, a
preguiça devora sua vida.
Seguindo sua admoestação, o filósofo estóico desenvolve uma metáfora, que traz
em si uma comparação entre a argila e a alma de um jovem. Um objeto de cerâmica que
não foi trabalhado corretamente, cujo material usado não estava no ponto certo, acabará
por tornar-se defeituoso. Assim, o Jarro 'dará uma resposta ruim' (maligne / respondet, vv.
21-22), ou, em outras palavras, o som que ele produzirá, ao ser percutido, será opaco,
defeituoso; quer isso dizer que o próprio som produzido acabará por denunciar a má
qualidade da obra. Do mesmo modo, a alma de um jovem, se não foi trabalhada
corretamente e no tempo certo, acaba por tornar-se defeituosa34.
Pérsio segue na mesma metáfora, agora com o intuito de exortar o jovem aos
estudos. Para não desperdiçar a oportunidade de buscar o verdadeiro sentido da vida, é
hora de entregar-se ao estudo da filosofia:
34
Essa é uma metáfora cara aos filósofos; cf. Platão Teeteto, 179D: "É de mister [...] examinar de novo esse ser
inquieto e movediço, para percuti-lo e ver se emite som cheio ou de taboca rachada."
21
sed stupet hic uitio et fibris increuit opimum
pingue, caret culpa, nescit quid perdat, et alto
demersus summa rursus non bullit in unda.
Enquanto ele tem as condições, enquanto seu espírito ainda é maleável como o
barro úmido, ele deve moldar-se num torno justo. A imagem parece ter sido inspirada por
um verso de Horácio36: argilla quiduis imitaberis uda [Poderás modelar o que quiseres com
esta argila úmida]37; com uma diferença significativa, enquanto Horácio usa o verbo
imitaberis, Pérsio, ao escolher o verbo es, associa o ser humano à coisa, e torna mais
dramática a situação. Em todo caso, a metáfora que apresenta a educação como o trabalho
do oleiro aparece com freqüência entre os antigos38; Pérsio mesmo voltará a evocá-la em
sua quinta sátira, nos versos 39-40, enquanto faz um elogio de seu Mestre. Com o mesmo
cuidado de um hábil artista, que modela sua obra de arte, cinzelando com o polegar os
35
Alguns editores, como Nikitinski, Kissel e Conington vêem esta frase como interrogativa; no entanto,
afirmativa, ela nos parece muito mais contundente. Seguem esse parecer Clausen, Villeneuve e Cartault.
36
Horácio, Epístolas, II, 2, v. 8.
37
Pérsio escolhe a palavra lutum por argilla, esse uso já aparece consignado em Tibulo I, 1, 40.
38
Cf. DOLÇ (1949), p. 147.
22
detalhes do acabamento, Cornuto educa seus discípulos39. É, pois, justamente este o
conselho que o poeta dá ao jovem preguiçoso: que permita que seu espírito seja
modelado, antes que ele acabe disforme e irrecuperável como o de Nata. Se o artífice é o
Mestre, o torno afiado com que ele deve moldar-se (vv. 23-24) é uma metáfora para
'filosofia'.
O próprio filósofo deduz uma justificativa, algo arrogante talvez, do jovem, que
poria em questão a necessidade de tal dedicação – afinal, já possui propriedades e bens que
lhe garantem que não há de passar necessidades. Com que mais deveria ele preocupar-se?
O saleiro (salinum, v. 25) simboliza aqui a herança recebida, e o bem-estar com seus bens;
juntamente com a vasilha (patella, v. 26) são objetos imprescindíveis no lar de um
romano40. Na quinta sátira, a Auaritia usará a imagem de um saleiro vazio para convencer
o jovem a se deixar conduzir por ela41. O argumento do jovem traz em si a idéia de que
tudo o de que se precisa é de conforto material. Mas não é esse o conforto que o sábio
deve buscar: isso não basta, como dirá o poeta na pergunta retórica do verso 27. O
verdadeiro conforto, na verdade, é de ordem espiritual, e ele somente pode ser alcançado
por meio da conquista da sabedoria, como Pérsio constantemente nos quer alertar com
sua sátira.
Na continuação do verso 27, inicia-se outra pergunta retórica, em que o poeta
utiliza uma hipérbole a ilustrar o orgulho, por meio de um peito que está a ponto de
rebentar. Essa imagem remete-nos à conhecida fábula da rã que infla seu pulmão para
ficar tão grande quanto um bezerro. A historieta fora contada por Horácio na terceira
sátira de seu segundo livro, sátira essa que, como vimos, é a que Pérsio usa como principal
modelo para a construção desta. Damasipo, o interlocutor de Horácio, conta que42,
durante a ausência da rã, seus filhotes haviam morrido, pisoteados por um novilho; apenas
um sobrevivera. Ela começou a encher de ar os pulmões para igualar a dimensão do
bezerro. Ao querer saber do filho se, após muito inchar-se, já se encontrava do tamanho
39
Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 83-84.
40
Cf. DOLÇ (1949), p. 148.
41
Pérsio, 5, vv. 138-139; cf. hic, capítulo 3.2, p. 120.
42
Horácio, Sátira, II, 3, 314-320.
23
do animal que esmagara seus irmãos, recebe a seguinte resposta escarninha (vv. 319-320):
non, si te ruperis, par eris [Ainda que estoures, tu não o igualarás!].43
Segundo o oráculo da ninfa Vegóia44, os etruscos habitavam a região ao Norte do
Lácio desde as origens do mundo. Esse dado relativo à autoctonia etrusca vai ao encontro
da obsessão dos nobres etruscos em buscar as raízes mais remotas de sua árvore
genealógica45. Tudo isso certamente foi muito familiar ao volaterrano Pérsio, e é
justamente o ponto que ele aborda, de modo irônico, nos versos 27 e 2846: não importa
para o poeta a nobreza da ascendência – nem da ordem a qual pertence, como dirá no
verso seguinte. O orgulho pode fazer a pessoa rebentar de tanto inchar o peito, mas sua
posição social jamais a fará alcançar a grandeza do sábio. Parece que também nesta
citação, Pérsio zomba de si mesmo, afinal, ele é de família nobre e etrusca. O verso 29, em
que aparece vestido com a trábea – manto branco, ornado de franjas púrpura, usado por
cavaleiros47 – saudando uma imagem de um antepassado censor, também pode ser lido
como: 'Saúdas o censor (na parada anual de julho, quando o censor passava em revista os
cavaleiros)'. No verso 30, ele exorciza a vaidade – deixem-se essas vaidades à gente vulgar!
-, e, de certo modo, confirma a auto-ironia ao dizer: ego te intus et in cute noui.48 De fato,
parece-nos que ele busca novamente, ao criticar-se, angariar a simpatia do público, e com
isso convidá-los a todos a um auto-exame, tal qual ele o faz.
Como epíteto a Nata49, o poeta usa discinctus, i. e., 'dissoluto'. Propriamente, temos
aqui um particípio passado do verbo discingere, que significa 'tirar ou afrouxar o cinturão'.
Mais uma vez, portanto, vemos Pérsio apresentar uma imagem concreta para ilustrar algo
43
Com alguma variação, a mesma fábula é encontrada em Fedro I, 24. Na versão deste, a rã vê um boi no
prado, e, com inveja da magnitude deste, tenta igualar-lhe o tamanho. Tanto se incha que estoura ao final.
Também Marcial, em um epigrama contra seu desafeto Otacílio, faz menção à mesma fábula; cf. Marcial, X,
79.
44
Uma tradução latina do original etrusco deste interessante oráculo chegou até nossos dias, e data do século
VIII; os especialistas, porém, acreditam que seja a transcrição de uma tradução que remonta, pelo menos, ao
século I a. C.
45
Cf. RAMELLI (2001), p. 39.
46
O mesmo tema aparecerá novamente na última sátira de sua coletânea, cf. Pérsio, 6, 57-60.
47
Não nos parece excessivo lembrar que Pérsio era de família eqüestre.
48
O pronome pessoal ego aqui não é usado simplesmente como marca de coloquialidade, mas antes visa a
estabelecer uma oposição expressiva: ad populos phaleras / ego te noui. A expressão intus et in cute torna-se
famosa no fim da Antiguidade e na Idade Média, sendo retomada por diversos autores, em especial São
Jerônimo; cf. TOSI (2000), p. 149, §312.
49
Nome de origem etrusca; cf. VILLENEUVE (1918²), pp. 79-80.
24
que diz respeito propriamente a um valor moral. Possivelmente, Nata seja uma
personagem que vivera no tempo de Tibério. Pinarius Natta é citado por Sêneca50 e
Tácito51. Este conta que Nata era cliente de Sejano, e acusara Cremúcio Cordo de um
crime até então desconhecido: publicara ele um elogio a Cássio e Bruto. A reminiscência,
pois, a esta personagem é também um posicionamento político do poeta52. Nata é um
exemplo daquele homem que, quando podia, não seguiu o caminho da virtude, e deixou
uma capa de gordura cobrir seu coração: assim, não tem ele consciência alguma dos seus
erros. E o jovem, que Pérsio conhece tão bem – por dentro e por fora –, não se esforça
por oferecer resistência ao vício, e sem sentir vergonha, isto é, sem perceber a gravidade
do erro, se deixa viver ad mores53 de Nata. Por isto a afirmação forte do verso 31. Porque,
diferentemente do jovem interlocutor, Nata é um vaso que já foi (mal) cozido, e portanto
não tem mais remédio, ficou imperfeito para sempre. Seu exemplo mostra novamente que
nem a riqueza nem a nobreza de linhagem garantem que a pessoa não venha a tornar-se
um depravado, escravo dos vícios. O poeta nos quer fazer ver que é preciso buscar a
virtude enquanto somos ainda maleáveis como o barro úmido. Porque, depois que
estivermos submersos nas profundezas do vício, não conseguiremos mais emergir para a
vida novamente. Cícero usa a mesma imagem, ao se referir ao fato de que quem opta pela
virtude deve entregar-se totalmente a ela54:
ut enim qui demersi sunt in aqua nihilo magis respirare possunt, si non longe
absunt a summo, ut iam iamque possint emergere, quam si etiam tum essent in
profundo [...] item qui processit aliquantum ad uirtutis habitum nihilo minus in
miseria est quam illo qui nihil processit.
[Como aqueles que estão submersos na água não podem de nenhum modo
respirar – ainda que estejam próximos da superfície, de modo que logo
poderiam emergir – mais do que se então estivessem profundamente
mergulhados (...) Igualmente, quem faz pequeno progresso em direção à
formação da virtude não está em nada menos na miséria do que aquele que
nada progrediu.]
50
Sêneca, Ad Lucilium XX, 122.
51
Tácito, Annales, IV, 34.
52
Cf. infra, pp. 32-33.
53
A familiaridade do poeta com o jovem pode ser sentida até num detalhe, como o uso da preposição ad
com valor modal, que é próprio da linguagem coloquial; cf. GÉRARD (1897), p. 89.
54
Cícero, De Finibus, III, 14, 48.
25
Em todo caso, aquele que estiver perto da superfície, terá avançado um bom
percurso; esforçando-se, poderá salvar-se. Nata está submerso nas profundezas da
corrupção e do vício; ou seja, para ele já não há nenhuma esperança de emergir e voltar a
respirar.
Pérsio, em seguida, faz a Júpiter o pedido de que haja um único castigo aos tiranos,
em versos que exaltam a virtude como aquilo que de mais elevado um homem pode
almejar. Esse trecho do poema serve também como resposta à pergunta 'quid metuas?', que
aparecera no verso 26:
26
Em uma das últimas de suas 104 sinfonias, o prolífico compositor austríaco Joseph
Haydn faz uma brincadeira, pregando um susto na platéia. No segundo movimento da
obra a que fazemos referência55, um andante, as cordas tocam em staccato uma melodia
suave, quase monótona. Seguem em piano até o décimo-sexto compasso, quando vem um
tutti fortissimo da Orquestra, causando um choque no ouvinte, que é como que puxado
por sua jugular e intimado a não mais desviar sua atenção da música. O inopinado gesto
musical acabou por render à sinfonia a alcunha de 'Sinfonia Surpresa'. Pérsio, para criar
um efeito que faça ressaltar as coisas que está para dizer, sai das profundezas onde Nata
está submerso, e apresenta também ele um brusco fortissimo, com uma inesperada
interpelação ao mais alto dos deuses, o magnus pater deorum, a fim de que a surpresa
provocada no ouvinte faça que sua atenção fique presa ao que se vai anunciar, que é, de
fato, o ápice da primeira parte do poema.
A apóstrofe que o poeta faz a Júpiter é cuidadosamente trabalhada. Com efeito, os
versos 35 a 38, que clamam pelo castigo do tirano, aparecem com palavras tomadas de
empréstimo ao estilo elevado: o genitivo plural diuum, o arcaico haut e dira, por exemplo,
trazem solenidade ao pedido, que, afinal, é dirigido ao maior dos deuses. O imperativo
aparece amenizado pelo uso de uma forma perifrástica, uelis punire, em lugar de
simplesmente puni. Os tiranos do verso 35 trazem-nos à lembrança os melindrosos filhos
de reis que haviam aparecido no verso 17. Estão aí as conseqüências das escolhas erradas
do jovem56.
E o castigo que ele solicita ao 'Grande Pai dos Deuses' para os tiranos é o mais
terrível de todos: que eles possam contemplar a virtude que deixaram de buscar, para
então poderem dar-se conta de que puseram de lado o que realmente importava –
nenhum arrependimento pode ser mais terrível do que o daquele que percebe que jogou
fora sua vida por ter feito as escolhas erradas. Tal sentimento é mais terrível do que os
55
Haydn, Sinfonia 94, em Sol Maior.
56
Parece-nos provável que, além do sentido genérico do conceito, tenhamos aqui também uma alusão a
Nero, jovem que há pouco passara a ser o princeps em Roma. Pérsio certamente percebe que o enteado de
Cláudio já começa a dar indícios de que sua opção será pelo ramo errado ao final da haste do Y, isto é, de
que ele, o jovem princeps, que teve em sua formação o contato com a filosofia e tem como conselheiro o
estóico Sêneca, em breve tomará o rumo do ramo voltado para a esquerda, do vício, e se tornará um tirano.
Essa constatação do poeta pode também ter sido apresentada como uma forma de conselho: não temos
dúvida de que Nero conhecia a obra de Pérsio.
27
mais terríveis sofrimentos conhecidos pelo homem. Não se pode deixar de notar que os
tiranos (vv. 35-37) apresentam, com muito mais ênfase e intensidade, o drama que já fora
descrito com o discinctus Natta (vv. 31-34): uma vida perdida por ter ignorado ou
abandonado a busca da sabedoria.
Para mostrar de modo mais contundente como tal castigo é o pior de tantos
quantos se possam imaginar, Pérsio nos apresenta dois exemplos de sofrimento que, com
serem terríveis, ainda assim não se comparam a uma vida desperdiçada por uma opção
errada:
a) Temos na pergunta "Por acaso gemeram mais (intensamente) os bronzes
do novilho siciliano?" uma expressão sucinta, colorida pela hipálage, pois
o que se relata diz respeito ao touro de bronze dentro do qual Fálaris,
tirano de Agrigento, fazia queimar vivos seus inimigos – ou seja, quem
gemia eram evidentemente os que lá dentro queimavam, não o touro, e
muito menos o bronze de que era feito;
b) O terror provocado pela espada pendente faz remissão à espada de
Dâmocles: depois de expressar a inveja que sentia pelo tirano Dioniso,
Dâmocles foi convidado a um banquete. Neste banquete ficou sentado
sob uma espada suspensa por um fio tênue. Com esta angustiante
experiência, espécie de metáfora vivenciada, compreendeu os perigos que
ameaçam sempre um tirano, e que o impedem de ter uma vida de
prazeres57.
Após esses dois exemplos, Pérsio mostra o tirano deitado ao lado da esposa –
imagem a nos dizer que é noite, e é na calada da noite que o remorso mais profundo
costuma fazer-nos visita. Ele parece ter ouvido o conselho que Pérsio dá ao final de sua
quarta sátira58: tecum habita: noris quam sit tibi curta supellex! [Convive contigo mesmo:
tomarás ciência de quão míseros são teus utensílios interiores]. O tirano percebe então a
57
Os versos que falam desse episódio (vv. 40-41) são uma reminiscência de uma estrofe da Ode que abre o
terceiro livro de Horácio, em que o mesmo acontecimento é narrado; destrictus ensis cui super impia / ceruice
pendet, non Sicula dapes / dulcem elaborabunt saporem / non auium citharaeque cantus; Horácio, Odes, III, 1, vv.
17-20). Cf. tb. Cícero, Tusculanae, V, 21.
58
Pérsio, 4, v. 52.
28
vida que desperdiçou, o precipício que se aproxima, e o medo e o remorso aparecem –
descritos magistralmente pelo poeta com a imagem de uma palidez que descolore seu
espírito (intus palleat, vv. 42-43). Tanto mais é ousada a metáfora quanto pelo fato de que
a 'palidez' é propriamente um sinal externo, e muitas vezes é percebida apenas pelos
outros. Na imagem de Pérsio, ao revés, ela é invisível aos outros; para ele, o tirano, é a
dura percepção da mais cruel das realidades. Ninguém mais a pode reconhecer, nem a
pessoa que mais o conhece e que está a seu lado, sua esposa. Aqui aparece a solidão do
homem: o homem que não buscou em si o conhecimento e as razões de viver, e que está,
inelutavelmente, fadado ao vazio, ao precipício.
Temos, com efeito, entre os versos 39 e 43, uma gradação: o sofrimento físico, o
temor da morte e, no grau mais elevado, o sofrimento espiritual. Epicteto dirá mesmo que
não se deve sofrer por causa de dor física. Uma anedota muito conhecida relata que seu
senhor, Epafrodito59, o castigava, na única intenção de quebrar a impassibilidade do
escravo-filósofo. Epicteto serenamente advertiu-o de que, se ele continuasse a surrá-lo
daquele jeito, acabaria quebrando suas pernas. Epafrodito, irritado com o tom de
indiferença, começou a açoitá-lo mais violentamente, até o momento em que Epicteto
disse, por fim: "Eu lhe avisei, meu senhor, minhas pernas agora estão quebradas".
A idéia de que a vida verdadeiramente feliz é aquela em que o bem e a virtude são
interdependentes estivera presente no pensamento filosófico antes mesmo do surgimento
da escola estóica, remontando a Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suas obras filosóficas, o
eclético Cícero por diversas vezes retoma este mote; temos, assim, por exemplo60: beate
uiuere honeste, id est, cum uirtute uiuere [Viver feliz é viver honradamente, isto é, com
virtude]; beatus enim esse sine uirtute nemo potest [Sem virtude, ninguém pode ser feliz];
beatum autem sine uirtute neminem esse [Ninguém é feliz sem virtude]. O tratado De Vita
Beata, de Sêneca, desenvolverá também a mesma idéia.
A respeito do trecho que acabamos de analisar e a continuação do poema, Dessen
escreve o seguinte61:
59
Epafrodito, por sua vez, era um liberto de Nero.
60
Respectivamente: Cícero, De Finibus III, 29; De Natura Deorum I, 18; De Natura Deorum I, 32.
61
DESSEN (1996), p. 50.
29
The climax to this sermon, the apostrophe to Juppiter (35-38), attests to the Stoic's
sincerity and religion conviction. The following lines then offset this didactic
moralizing with a vivid scene from the Stoic's own childhood. Whether or not this
scene reflects Persius' own youth is immaterial; what is important is that here the
Stoic appeals to his own experience to persuade. By conceding his youthful lack of
interest in philosophy and preference for childhood games, he wins our sympathy so
that we listen more willingly to his precepts; and by implying that, unlike his
adversary, he gave up these childish pleasures for Stoicism, he gains our respect.
Pérsio fará em seguida uma reminiscência de sua infância, quando também fugia
aos estudos:
62
Há uma dificuldade de crítica textual nesta expressão; alguns dos melhores manuscritos, bem como os
escólios, apresentam a lição morituro uerba Catoni/ dicere, versão preferida de parte dos editores, como
Villeneuve, Nikitinski e Cartault; outros manuscritos, porém, trazem a forma morituri uerba Catonis/ discere,
escolhida por outros editores, como Clausen, Kissel e Conington. Sobre essa variante, escreve o Professor
Villeneuve: 'morituri uerba Catonis a toute l'apparence d'une conjecture amenée par la substitution, qui peut venir
d'un copiste, de discere à dicere', VILLENEUVE (1918²), p. xxiv.
63
Cf. hic, p. 19, nota 28.
30
Que ninguém seria mais hábil em fazer rodopiar com uma corda o pião de
| madeira.
Porém, a ti, não te é desconhecido discernir os maus hábitos
E as coisas que ensina o sábio pórtico pintado com os Medos bragados,
Às quais uma juventude insone de cabeça raspada
Se dedica, alimentada de legumes e de uma grosseira polenta; 55
E a letra que conduz os ramos sâmios por vias divergentes
Já mostrou para ti o atalho que sobe do lado direito.]
64
Como dissemos, nesse momento de sua vida, Pérsio já perdera o pai e o padrasto; cf. supra, p. 14.
65
DOLÇ (1949), p. 154.
66
Parece que Pérsio – com a criança que com razão (iure, v. 48) não se interessava por temas filosóficos, e
com Nata, que já desperdiçara sua vida sem ao menos perceber que o fazia, e que não conseguirá mais
emergir da ignorância – faz um contraponto ao início da famosa Carta a Meneceu, de Epicuro, que diz
justamente que quando se é criança não se deve esperar para se entregar à filosofia, nem se deve fugir a ela
quando se é velho – isto é, ninguém é jovem nem velho demais para tratar de sua alma.
67
VILLENEUVE (1918²), p. 81.
31
condenado à morte, em 62 a. C. porque imitava os antigos romanos, adotando a
arrogância da secta estóica. Pérsio, quando criança, não estava interessado em questões de
política, nem as podia entender. Neste trecho, parece-nos mais uma vez claro que Pérsio
vincula seu estoicismo e sua sátira a uma crítica no plano político. A Professora Catherine
Salles faz a seguinte observação a respeito das obras de oposição política (estóica) sob
Nero68:
Ce qu'il faut noter chez ces philosophes combattants, c'est qu'ils n'expriment
généralement pas leurs convictions dans des traités philosophiques (Sénèque
représente une exception), mais dans des ouvrages militants, historiques ou
poétiques à sous-entendus politiques. Ils font appel aux figures emblématiques du
stoïcisme pour combattre, à travers elles, la personne de l'empereur. Jamais on n'a
autant composé de biographies ou d'éloges de Caton d'Utique et des "héros de la
liberté", Brutus et Cassius, qui se sont opposés en leur temps aux menées
tyranniques de Jules César.
68
SALLES (2008), p. 205.
32
do estoicismo: sua parente Árria Maior69. Ficou ela conhecida pelas palavras pronunciadas
na hora da morte. Seu marido, Peto, fora condenado à pena capital por sua oposição
estóica; para encorajá-lo ao suicídio, a esposa cravou em seu peito um punhal, e, já a
desfalecer, entregou-o ao marido, com as famosas palavras: "Paete, non dolet".70 Parece-nos
plausível a hipótese de que Pérsio, com a construção alicui aliquid dicere, deixe presente
também esta leitura para o exercício retórico, isto é, de palavras de incentivo ao ato
heróico e de louvor ao grande homem, prestes a abandonar a vida em nome da ilibada
honra. Em todo caso, é de salientar-se o fato mesmo de o poeta ter escrito uma obra que
ressaltava uma heroína estóica71. Esse próprio gesto, no período em que Pérsio vivia, tem
com certeza, como vimos, um cunho eminentemente político, bem como o tivera a
menção a Pinarius Natta, no verso 3172. Ramelli chega mesmo a sugerir que a obra
dedicada a Arria Maior teria sido deixada de lado por Cornuto, não por seu menor valor
literário, como afirma o biógrafo73, mas sobretudo pelo significado de oposição política,
num momento em que começavam a acentuar-se as perseguições de Nero74. Percebe-se,
assim, mais uma vez, que o poeta aparece indubitavelmente envolvido em questões
referentes ao mundo político da Vrbs, e tomando parte nele de maneira efetiva.
A criança, entre os versos 49 e 51, reza para conhecer as coisas necessárias para sair-
se vencedora no jogo, e retoma assim o poeta a sua prece ao deus supremo (vv. 35-37),
em que pedia que os tiranos conhecessem a virtude. Entre os versos 48 e 51, Pérsio
apresenta imagens de jogos infantis: as senas no jogo de dados (v. 48) representam uma
jogada em que todos os dados apresentam o número seis, a mais lucrativa jogada. Já a
danosa canícula (v. 49), ao contrário, era a pior combinação: todos os dados com o um.
O diminutivo é pejorativo e faz lembrar a canícula abrasadora, que vai matando as messes
e o gado, nos versos 4 e 5. A orca (v. 50) era uma espécie de ânfora. Pérsio, na realidade,
se vale aqui de uma hipálage: a orca estreita aparece em lugar do seu estreito gargalo. O
69
Cf. Vita Persi, §8.
70
Plínio Jovem, em uma bela epístola, conta-nos outros episódios da vida de Árria Maior, em que sua
nobreza de caráter se faz notar; cf. Plínio Jovem III, 16 .
71
Para Ramelli, essa particular valorização do elemento feminino deve-se à sua identidade etrusca; cf.
RAMELLI (2001), pp. 42-43.
72
Cf. supra, pp. 24-25.
73
Cf. Vita Persi, §8.
74
Cf. RAMELLI (2001), p.46.
33
jogo a que o poeta se reporta consistia de jogar nozes à distância, tentando fazer que elas
entrassem numa ânfora de gargalo estreito. O uso do infinitivo arcaico fallier, por falli,
pode ilustrar a idéia de reminiscências de um tempo antigo, quando o poeta ainda era um
meninote75. Por fim, a criança quer aprender a fazer seu pião dar curvas (buxum torquere,
v. 51): buxum era uma forma popular para 'pião', em lugar do culto turbo76. Esta imagem
será contraposta no verso seguinte, quando aparece o estóico que aprende a enxergar os
costumes curvos (curuos mores, v. 52), com o intuito, claro está, de torná-los retos77.
Assim, a criança buscava o erro, mas ela era inconsciente do bem, como Nata; o
interlocutor, no entanto, já ouviu os ensinamentos estóicos. Era comum às escolas
filosóficas receber o nome do local onde se reuniam, assim ocorreu com a Academia78
platônica, assim ocorreu com o Liceu79 aristotélico; como Zenão de Cício e seus
seguidores costumavam reunir-se no pórtico de entrada de Atenas, e sendo que a palavra
que designa ‘pórtico’ em grego é ‘stoá’, passaram a ser conhecidos como ‘estóicos’. Esse
pórtico era chamado 'Pórtico Pintado' (Stoá Poikíle / Στοά Ποικίλη), porque nele havia
várias pinturas de Polignoto80, as quais tinham como tema a vitória dos Gregos sobre os
Medos. Por isso, nosso poeta vai chamá-lo inlita porticus (vv. 53-54), e, valendo-se de uma
prosopopéia, dá ao pórtico características próprias ao homem, tais como: ser sábio e
ensinar filosofia. A expressão de Pérsio 'bracati Medi' faz referência a calças compridas e
muito particulares que estes, os Medos, costumavam usar.
A insomnis iuuentus do verso 54 não somente nos traz à lembrança o jovem
preguiçoso do início do poema, como serve de contraponto ao verso 58, em que o jovem
reaparece e continua roncando (stertis adhuc). O ascetismo da escola é apresentado com
75
Sensação transmitida apenas pelo sabor arcaizante da forma; propriamente fallier já era forma arcaica no
latim quando Pérsio nasce. Talvez possa aventar-se a hipótese de ser uma forma que ainda seria usada em
sua Volaterra natal, daí seu uso nesta passagem.
76
O poeta Vergílio se vale das duas formas ao descrever um jogo de pião; Vergílio, Eneida, VII, 378-383.
77
Cf. intortos mores, sátira 5, v. 38; cf. hic, capítulo 3.1, p. 83.
78
Os seguidores de Platão se reuniam nos bosques com esse nome, por se situarem junto ao rio Céfiso,
consagrado a Academo, herói que teria ajudado a encontrar Helena, que havia sido raptada por Teseu.
Outros dizem que o bosque tem esse nome porque Academo fora enterrado no Cerâmico, cemitério de
Atenas que ficava junto ao bosque. As duas versões, em todo caso, não são necessariamente excludentes.
79
Liceu era um ginásio de Atenas, consagrado a Apolo Liceu, onde Aristóteles ensinava.
80
Famoso pintor cuja obra data do século V a. C.; suas pinturas se perderam, mas restam vários depoimentos
literários sobre a sua arte.
34
uma refeição frugal; os jovens alimentados de legumes e uma grosseira polenta (vv. 54-55)
lembram uma máxima estóica, citada por Sêneca81: "Disce paruo esse contentus; et illam
uocem magnus atque animosus exclama: 'habemus aquam, habemus polentam, Ioui ipsi
controuersiam de felicitate faciamus'" [Aprende a contentar-te com pouco, e exclama com
entusiasmo aquela famosa máxima: 'Temos água, temos polenta; podemos rivalizar em
felicidade com o próprio Júpiter!']82 O adjetivo grandis era usado para qualificar a polenta
feita com um grão ainda não moído, mas apenas esmagado – à moda grega83; a expressão
é encontrada já em Catão84.
O momento da vida em que, acabada a infância, devemos escolher o caminho a
seguir é o mote que sustenta toda a sátira. et tibi (v. 56) correlaciona-se a haut tibi do verso
52: ele sabe fazer a distinção entre o bem e o mal, e o momento da escolha se apresenta
agora para ele. A imagem da letra de Pitágoras, o Y, aparece para ilustrar este momento.
Temos, de fato, no verso 56, uma hipálage complexa, pois os 'ramos sâmios' dizem
respeito à 'letra sâmia' (Y), que, por sua vez, remete-nos a Pitágoras, nascido em Samos.
Essa letra era para os pitagóricos o símbolo do poder de escolha, uma das cinco 'letras
místicas'85 – sendo que até os dias de hoje é usada em escolas iniciáticas. A haste inferior é
o caminho que se trilha na infância, esse percurso segue até a bifurcação. Os dois ramos
que seguem simbolizam o caminho que o jovem deve escolher: o da direita representa a
sabedoria divina, que leva à virtude; e o da esquerda, o da sabedoria mundana, que leva à
devassidão e aos vícios86. Por isto, sobretudo, Pérsio escolhe um jovem, com uma idade
que já começa a ultrapassar o princípio da manhã, como protagonista da sátira: é ele quem
81
Sêneca, Ad Lucilium, XIX, 110, 18.
82
Propriamente, neste trecho da carta, Sêneca relata a Lucílio uma lição que ouvira a Átalo, em que este
mostra o pouco valor das riquezas materiais.
83
Em Plínio Velho temos a descrição do processo; cf. Plínio Velho, História Natural, XVIII, 72.
84
Catão, De Agricultura, 108.
85
Cf. WATSON (1952), p. 57.
86
Isidoro, em suas Etimologias, explica a simbologia do Y, e cita os versos de Pérsio: Y litteram Pythagoras
Samius ad exemplum uitae humanae primus formauit; cuius uirgula subterior primam aetatem significat, (...) biuium
autem, quod superest, ab adolescentia incipit: cuius dextra pars ardua est, sed ad beatam uitam tendens: sinistra
facilior - sed ad labem interitumque deducens. de qua sic Persius ait (3, 56): et tibi qua Samios deduxit littera
ramos/ surgentem dextro monstrauit limite callem. Isidoro, Etimologias, I, 3, 7-9.
35
está à frente da encruzilhada ramosa, é ele quem precisa decidir qual rumo, finalmente,
deverá seguir87.
Quando criança, diz Pérsio, podiam justificar-se suas gazetas, mas agora que ele já
teve conhecimento dos caminhos da vida, que a letra de Pitágoras se apresentou à sua
frente, ele tem a obrigação moral de seguir o caminho direito, sob pena de desperdiçar sua
vida roncando e regurgitando o vinho da noite anterior.
stertis adhuc aparece como contraposição à insomnis iuuentus (v. 54); Pérsio, com
este recurso – que, aliás, lhe é característico –, não somente fecha uma seção, como
também, ao retomar a imagem do jovem embriagado do início da sátira, conclui a
primeira parte do poema. A descrição do libertino é muito bem elaborada: as percepções
exageradas, e que deformam a realidade, tidas por alguém em estado de embriaguez são
pintadas de tal modo que o leitor 'veja a sensação', como se estivera num universo onírico,
como se vira a pintura de um artista surrealista. Assim, as articulações estão todas
'desarticuladas', a cabeça já não está controlada por ninguém, e ela própria boceja o vinho
– numa sintaxe que acentua a anormalidade do quadro, e com o uso de uma forma vulgar
87
Na quinta sátira, v. 35, Pérsio volta à mesma imagem, e lembra esse período de sua vida, quando
começava a bifurcação da vida, e era hora de ele decidir o caminho a tomar; cf. hic, capítulo 3.1, p. 82.
36
a pontuar o vulgar da cena88. Os bocejos são tão intensos e tão freqüentes que as
mandíbulas não resistem e acabam desconjuntadas undique!
Os três versos que se seguem servem como uma transição para a segunda parte do
poema. A metáfora derigere arcum para indicar objetivo na vida é de uso recorrente;
Aristóteles, no começo de sua Ética a Nicômano, perguntara89:
Se há, então, para as ações que praticamos alguma finalidade [...] evidentemente tal
finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens. Não terá então uma grande
influência sobre a vida o conhecimento desse bem? Não deveremos, como
arqueiros que visam a um alvo, ter maiores probabilidades de atingir
assim o que nos é mais conveniente?
A reflexão de Aristóteles está em harmonia com o que Pérsio vem tentando fazer
ver o interlocutor. Mas ele parece continuar "caçando corvos". A expressão escolhida por
Pérsio, sequi coruos, era proverbial, com o sentido de "não ter objetivos precisos"90. Os
cascalhos e pedaços de barro são as primeiras 'armas' que aparecem pela frente do caçador,
com o que sublinha a falta de organização e reflexão antes dos atos da vida; além disso, a
imagem opõe-se ao arco do verso 60. Ao final deste trecho, temos o adjetivo securus –
que corresponde aqui a non curans –, que é complementado por quo pes ferat,
reminiscência da expressão horaciana91: ire pedes quocumque ferent [ir aonde quer que
levem os pés]92. ex tempore uiuere, por sua vez, tem sabor epicurista, e remete pelo seu
sentido ao carpe diem de Horácio, que será criticado na quinta sátira93. O verso 62 todo
aponta, com efeito, para uma vida sem reflexão, sem direcionamento. O sentido geral
desses últimos versos é a necessidade da busca de um fim moral para a vida. Ainda na
88
Referência, claro está, ao uso oscitare pelo esperado depoente oscitari. Verbo esse que, de resto, é
intransitivo; aqui, porém, aparece complementado pelo acusativo hesternum. Esse adjetivo, por sua vez, diz
respeito ao desregramento, à ebriez, ao vinho, enfim, da noite anterior.
89
Aristóteles, Ética a Nicômano, I, 2; cf. tb. Sêneca, Ad Lucilium, VIII, 71, 3.
90
Aparece sobretudo na literatura grega, com sentido de 'ação insensata, infrutífera'; cf. TOSI (2000), p.
213, §453.
91
Horácio, Epodos, 16, v. 21.
92
Cf. TOSI, p. 265, §554.
93
Pérsio, 5, v. 151-153; cf. hic, capítulo 3.2, pp. 123-124.
37
apresentação do livro De Vita Beata, Sêneca escreve94: "decernatur itaque et quo tendamus et
qua" [Reflita-se, pois, sobre para onde vamos e por onde].
Enfim, tendo em vista que, depois da exortação do filósofo estóico, o jovem
continua roncando, Pérsio parte para uma nova investida a fim de que ele possa entender
a mensagem. Usando as doenças do corpo como metáfora para doenças da alma, mostra
que uma e outra têm de ser tratadas a tempo de ser curadas.
94
Sêneca, De Vita Beata, 1, 2.
38
2.2 Medicina animae
Nos versos seguintes, Pérsio apresenta a comparação muito usada pelos filósofos
estóicos entre a doença física e a doença espiritual.
Nella tradizione cinico-stoica era consueto il parallelo fra i vizi del corpo e quelli
dell'anima e vi era un continuo interscambio di termini per indicare gli uni e gli
altri. Il filosofo doveva focalizzare e descrivere i comportamenti devianti come il
medico i sintomi delle diversi affezioni; i vizi stessi erano indicati con una
terminologia ripresa da quella medica e talora venivano messi in rapporto con una
malatia specifica.
Também Pérsio recorrerá a esta metáfora, sobretudo em sua terceira sátira. Como
vimos, na primeira parte desta sátira, o poeta chamava-nos a atenção ao fato de que
devemos modelar nosso espírito enquanto somos argila úmida: quando se reconhece a
importância da aprendizagem moral, é preciso dedicar-se a este estudo. Se não dermos
importância a esse conselho, acabaremos como o doente que chega demasiado tarde ao
médico.
Embora a imagem da pele inchada pareça indicar que o doente sofre de hidropsia3,
cremos que não seja demasiado lembrar que o heléboro era uma droga comumente usada
contra a loucura.4 Pérsio, de fato, a usa algumas vezes como um eufemismo para dizer que
alguém está sem sua plena razão, ou que algo é loucura.5 Essa expressão aparece já
consagrada em autores gregos; Aristófanes dirá na peça As Rãs6 "Bebes heléboro",
querendo justamente dizer que o outro está louco. Na literatura latina, desde os seus
primórdios, o termo elleborus (ou helleborus) aparece empregado com esse sentido
metafórico. O médico, por exemplo, na peça Menaechmi, ao julgar que um dos gêmeos
1
Não se sabe com certeza se as maenae eram de fato sardinhas ou algum outro tipo de peixe miúdo.
2
MIGLIORINI (1997), p. 128.
3
Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 144-145.
4
Em Português temos um nome popular sugestivo para o heléboro: erva-besteira!
5
Cf. Pérsio 1, 51; 4, 16; 5, 100.
6
Aristófanes, As Rãs, v. 1489. Tosi apresenta várias outras passagens em que a expressão é usada na literatura
clássica; cf. TOSI (2000), p. 65, §144.
40
está fora do juízo, diz ao sogro deste7: non potest haec res ellebori iugere optinerier [A doença
dele não pode ser curada nem com um alqueire de heléboro!].
A expressão que o poeta usa no verso 64, occurite morbo, é amplamente atestada no
léxico médico com valor de 'socorrer'8, e acaba incorporada também ao léxico estóico,
com sentido metafórico. Assim, numa carta em que busca consolar sua mãe, Hélvia,
Sêneca dirá9: dolori tuo (...) sciebam occurrendum non esse [Eu sabia que não deveria vir em
socorro à tua dor]. Quanto à idéia de que se devam atacar as doenças logo no seu
princípio, Ovídio também a aproveitará ao falar da cura do espírito apaixonado10: principiis
obsta: sero medicina paratur/ cum mala per longas conualuere moras [Estanca a doença no seu
início: tardiamente aplica-se o remédio, quando os males já se acentuaram pela longa
demora]. Sêneca, em uma carta a Lucílio, usa a metáfora da doença do corpo para alertar
o quanto a "profilaxia filosófica" é fundamental para a saúde da alma11:
quid nos decipimus? non est extrinsecus malum nostrum: intra nos est, in
uisceribus ipsis sedet, et ideo difficulter ad sanitatem peruenimus quia nos aegrotare
nescimus. si curari coeperimus, quando tot morborum tantas uires discutiemus?
nunc uero ne quaerimus quidem medicum, qui minus negotii haberet si adhiberetur
ad recens uitium; sequerentur teneri et rudes animi recta monstrantem.
[Por que nos enganamos? Não está fora nosso mal, mas está dentro de nós;
tem em nossas vísceras sua morada, e, como não sabemos que estamos
doentes, por essa razão dificilmente recuperamos a saúde. Ainda que
comecemos a nos tratar, quando conseguiremos debelar tantas e tão grandes
forças que têm as doenças? Nem mesmo procuramos médico, agora que a
doença está em seu princípio e seria mais fácil saná-la. Espíritos dóceis e
inexperientes seguirão aquele que mostra o reto caminho.]
Se a doença for sanada no seu princípio, não será necessário dispender magnos
montis para sua cura12. A expressão escolhida por Pérsio para designar grande quantia de
7
Plauto, Menaechmi, v. 913; cf. tb. Plauto, Pseudolus, v. 1185.
8
Cf. MIGLIORINI (1997), p 131.
9
Sêneca Ad Heluiam 1, 2. Em sentido próprio, i.e., em relação ao corpo – mas, de todo modo, usado numa
comparação com o espírito –, cf. Sêneca, Ad Lucilium VII 68, 7.
10
Ovídio, Remedia Amoris, vv. 91-92.
11
Sêneca, Ad Lucilium V, 50, 4. Cf. tb. Sêneca, Ad Lucilium XVII-XVIII 104, 18.
12
Sêneca diz, em contexto semelhante, que não será necessário agarrar-se aos joelhos do médico (genua
tangere); cf. Sêneca, De Breuitate Vitae, 8, 2.
41
dinheiro encontra paralelo já na comédia latina. Assim temos em Plauto aureos montis, e
em Terêncio, montis auri pollicens. 13 Crátero foi um médico famoso nos tempos
ciceronianos; sua fama fez seu nome tornar-se epônimo de médico. Porém, não nos
parece haver dúvida de que a escolha do nome de Crátero por Pérsio é uma lembrança de
um verso de Horácio, que também se valera dele na terceira sátira de seu segundo livro14:
non est cardiacus (Craterum dixisse putato)/ hic aeger [Este doente não sofre do estômago15 –
imagina que o próprio Crátero o tenha dito]. No contexto do poema horaciano, temos
um diálogo em que o Stoicus está justamente a dizer que o auarus é um homem doente, e
precisa navegar sem demora para Antícira.16
Pérsio exorta todos ao estudo, que é o remédio para a doença espiritual: discite, o
miseri, et causas cognoscite rerum (v. 66). A exortação ganha realce pelo inusitado hiato
entre o imperativo e o vocativo; este retoma o vocativo miser do verso 15, dirigido ao
jovem preguiçoso, que criava subterfúgios para não começar a estudar. O conhecimento
da origem do mal como maneira de nos curarmos aparecerá em moralistas diversos17.
Celso, em seu prefácio, escreve18: occursurum enim uitio dicunt eum qui originem non
ignorarit [Há de curar a doença, dizem, aquele que não ignorar sua origem]. Vergílio, por
seu turno, dissera19: felix qui potuit rerum cognoscere causas [Feliz aquele que pôde conhecer
as causas das coisas]. Vemos que, enquanto Celso fizera sua prescrição tendo doenças
físicas como preocupação, o ponto de vista de Vergílio é filosófico, ou, mais
especificamente, diz respeito à origem da natureza. De certo modo, podemos dizer que
Pérsio une os dois sentidos em sua exortação: o sentido físico vale como metáfora para o
sentido filosófico. Esse verso, de fato, situa-se entre versos que tratam de doenças físicas e
versos em que Pérsio apresentará a finalidade do estudo filosófico, dando um resumo dos
pontos principais de busca de compreensão para uma vida plena.
13
Respectivamente: Plauto, Aulularia, v. 701, e Terêncio, Formião, v. 68. Cf. tb. Salústio, A Conjuração de
Catilina, 23, 3: maria montisque polliceri.
14
Horácio, Sátiras, II, 3, vv. 160-161; como vimos no início deste capítulo, esta sátira de Horácio é aquela
com que Pérsio dialoga mais diretamente em seu terceiro poema.
15
kardia, na língua hipocrática, fazia referência não ao coração, mas ao estômago.
16
Local de onde provinha o heléboro; cf. hic, capítulo 3.2, p. 109.
17
Cf. MIGLIORINI (1997), p. 131.
18
Celso, I, Praefatio, 18.
19
Vergílio, Geórgicas, II, v. 490.
42
quid sumus, no verso 67, não é uma referência a um preceito individual, mas uma
referência à natureza humana, questão fulcral da escola estóica. Sêneca, ao abordar esta
questão, escreve20: quaeris quid sit? animus, et ratio in animo perfecta [Queres saber o que é
essencial na natureza do homem? Sua alma, e, na alma, a razão perfeita]. A razão, para um
estóico, é uma parte do espírito divino, presente nos corpos humanos. Sendo divina, a
razão é também o centro ordenador da natureza; a razão humana, pois, é algo que indica
como se deve viver. A continuação do verso, quidnam uicturi gignimur, está ligada à
primeira parte; Marco Aurélio chega mesmo a escrever, em suas Meditações, o seguinte21:
"Quem não sabe para o que nasceu não sabe o que é".
No verso seguinte, Pérsio usará a corrida de cavalos como metáfora para a vida. O
circo, onde se realizavam as carreiras, era um longo recinto retangular; na verdade,
apresentava uma das extremidades semicircular, na outra estavam os carceres, de onde
partiam os carros. No meio, havia uma espécie de mureta, chamada spina, e, nas duas
extremidades dela, ficavam as metae, por onde os carros deviam fazer a volta. O ordo é o
lugar reservado nos carceres para a largada. Durante a corrida, os cavaleiros tinham de dar
voltas nas metae, e portanto deveriam encontrar qual o melhor caminho por onde fazer a
volta (qua) – isto é, o mais rápido, mas que, ao mesmo tempo, não representasse risco, que
poderia ser mortal – e desde que ponto (unde) deveriam começar a dar a volta.
Em seguida, Pérsio entra no tema das riquezas:
a) qual a medida (modus) para a riqueza? A riqueza não era um bem para os
estóicos, e apegar-se sofregamente a ela era entregar-se à perturbatio animi
ligada à avareza, e isso certamente era um mal. Em sua famosa definição para
uirtus, Lucílio escrevera22: uirtus quaerendae finem rei scire modumque [uirtus é ter
ciência do termo e da medida para o ganho];
b) o que nos é lícito (fas) desejar? Ao utilizar a palavra fas, o poeta esclarece que
não faz referência a leis mundanas; o que há, de fato, é um sentido
transcendente e moral para essa licitude;
20
Sêneca, Ad Lucilium, IV, 41, 8.
21
Marco Aurélio, Meditações, VIII, 52.
22
Lucílio, v. 6 do fragmento 23 dos hexametri incertae sedis, na edição de Charpin (= 1331, Marx).
43
c) qual a utilidade da moeda recebida? O único bem verdadeiro para os estóicos é
a virtude; algumas coisas podem ser consideradas 'preferíveis', em determinadas
circunstâncias, pelo sábio, se elas de algum modo forem auxiliares úteis para
que se possa alcançar a virtude; assim, a saúde, a riqueza material e mesmo a
vida23. Propriamente a imagem da moeda áspera traz em si a idéia de uma
moeda recém-cunhada; não nos parece, porém, que a escolha do adjetivo tenha
sido apenas por seu valor físico – embora não fosse inusitada a expressão24 –,
mas também e sobretudo pela carga moral negativa que traz em si;
d) quanto convém despender com a pátria e os entes queridos? Pérsio, em sua
sexta sátira, traz-nos exemplo do dever moral que temos para com um amigo
que teve sua riqueza arruinada25: "at uocat officium, trabe rupta Bruttia saxa /
prendit amicus inops remque omnem surdaque uota / condidit Ionio. (...) frange
aliquid, largire_inopi, ne pictus oberret/ caerulea in tabula. " [Mas te chama o teu
dever; um amigo necessitado, pois teve destruída sua embarcação, está preso
nos rochedos de Brútio, e escondeu suas riquezas e seus votos não ouvidos no
mar Jônio. (...) Sê generoso com o necessitado, para que não acabe
perambulando pintado num quadro azul-marinho]26. Cabe ainda trazer à
colação o que Lucílio, ao final da mesma definição de uirtus, a que há pouco
nos referíamos, dissera 27 : commoda praeterea patriai prima putare, / deinde
parentum, tertia iam postremaque nostra [E, além disso, colocar em primeiro lugar
o interesse da pátria, / depois o dos pais, em terceiro e último lugar, o nosso].
Podemos também lembrar um excerto da Arte Poética, em que Horácio – com
uma fórmula semelhante à usada por Pérsio, mas falando de modo mais amplo,
a respeito de deveres morais – ensina ao jovem escritor que, antes de escrever
23
Cf. BOURDIN (2009), p. 31.
24
Cf. Suetônio, Nero, 44: exegit (...) nummum asperum.
25
Pérsio, 6, vv. 27-33.
26
i.e., num quadro representando o naufrágio. Era comum que uma pessoa que sofrera naufrágio, a fim de
receber ajuda dos passantes, representasse a cena de sua tragédia numa pintura. Pérsio faz referência a esse
costume também em sua primeira sátira: cf. Pérsio, 1, vv. 89-90; cf. tb. SCHERER (2004), pp. 69-71.
27
Lucílio, vv. 11-12 do fragmento 23 dos hexametri incertae sedis, na edição de Charpin (= 1337-1338,
Marx).
44
alguma coisa, ele deve ter pleno conhecimento do tema28: qui didicit patriae quid
debeat et quid amicis, / quo sit amore parens, quo frater amandus (...)/ ille profecto /
reddere personae scit conuenientia cuique [Quem aprendeu o que deve à patria e
aos amigos, com que amor um pai deve ser amado, ou um irmão (...), este com
certeza sabe atribuir a cada personagem as coisas que lhe convêm].
O próximo ponto trata do papel que a divindade nos deu para exercer nesta vida. A
expressão humana res parece um jeu des mots cunhado a partir de romana res, e faz-nos
lembrar o conceito estóico do Universo como polis.29 Nossa missão, pois, é desempenhar
da melhor maneira possível o papel que nos foi destinado dentro da harmonia cósmica.
Epicteto, de modo bastante feliz, dirá a respeito disso:
Tem em mente de que és, na verdade, o ator de uma peça de teatro, longa ou curta,
na qual o Autor quis que tomasses parte. Se te cabe o papel de um mendigo, de um
comerciante, de um príncipe ou de um plebeu, é mister que o executes da melhor
maneira possível, entrando e saindo do palco no momento em que o Autor tiver
decidido. Tua tarefa, pois, é esta: executar bem esse papel; e é somente isso que te
cabe escolher.
Após os preceitos positivos30, Pérsio apresenta uma proibição: não invejar. Em sua
segunda sátira, Pérsio tratara também da inveja. Escrita em forma epistolar, e dedicada a
seu amigo Macrino, por ocasião de seu aniversário, ela trata da verdadeira religião. Após
elogiar Macrino por ser um dos poucos que podem aperto uiuere uoto (v. 7), i. e., fazer suas
preces em voz alta, passa a criticar aqueles que querem mostrar-se pios aos concidadãos,
pedindo em voz alta coisas justas, mas que murmuram, sub lingua (v. 9), pedidos, em nada
dignos, aos deuses31. Um exemplo descrito pelo poeta de tal hipocrisia é o do sujeito que
28
Horácio, Arte Poética, vv. 312-316.
29
Cf. Marco Aurélio, Meditações, IV, 4: "O mundo é como uma cidade".
30
Esta bela passagem do poeta volaterrano, entre os versos 66 e 72, é citada integralmente por Santo
Agostinho, em seu livro A Cidade de Deus. O filho de Santa Mônica expõe, a certa altura da obra, que as
cidades que não apresentavam nenhum aviso ameaçador que coibisse os vícios acabava por permitir que
estes, a pouco e pouco, pervadissem a alma de seus cidadãos. Então, como exemplo do que deve ser
aprendido, para que se evite a auaritia, a ambitio e a luxuria, o Bispo de Hipona cita nosso poeta. Cf. Santo
Agostinho, A Cidade de Deus, II, 6, 1-2.
31
Lembra-nos a recomendação dada por Nosso Senhor Jesus Cristo, no Sermão da Montanha: et cum oratis,
non eritis sicut hypocritae, qui amant in synagogis et in angulis platearum stantes orare ut uideantur ab omnibus;
amen dico uobis: receperunt mercedem suam; Mt., 6: 5.
45
inveja Nério, que tem sobrevivido às suas ricas esposas32. A frase, além de apresentar a
leitura de 'alguns como Nério têm muita sorte, por que não eu?', também pode ser lida
como se encobrira um desejo mais perverso: um anseio secreto de que também ele
pudesse ficar viúvo para casar-se outra vez. Essa é a leitura do Professor Villeneuve33: "Je
crois que Perse a voulu indiquer ici un souhait plus odieux encore que les précédents, si odieux
qu'on n'ose pas l'exprimer d'une manière explicite même à voix basse."
32
Nerio iam tertia conditur uxor; Pérsio, 2, v. 14.
33
VILLENEUVE (1918²), p. 58.
34
Difícil é não lembrar aqui a máxima schopenauriana: "Ninguém é realmente digno de inveja, e tantos o
são de lástima!"
35
Cf. Pérsio, 3, v. 60; e hic, capítulo 2.1, p. 37.
46
atque exporrecto trutinantur uerba labello,
aegroti ueteris meditantes somnia, gigni
de nihilo nihilum, in nihilum nil posse reuerti.
hoc est quod palles? cur quis non prandeat hoc est?' 85
his populus ridet, multumque torosa iuuentus
ingeminat tremulos naso crispante cachinnos.
Não será a única vez que Pérsio pintará soldados, em especial centuriões, como
pessoas pouco afeitas ao estudo, e sobretudo desdenhosas da filosofia36; com toda a
evidência, o centurião que se contrapõe ao estudo da filosofia é uma caricatura bastante
reconhecível ao ouvinte. O adjetivo hircosus (v.77), isto é, com características próprias a
um bode – mal-cheiroso ou peludo – parece apontar para uma pessoa com pouco ou
nenhum cuidado, desleixada. Num fragmento de Sêneca37, hircosus aparece em oposição a
unguentatus; também Horácio usará expressão semelhante, para indicar uma pessoa que
exala um odor desagradável38: facetus / [...] olet Gargonius hircum [O elegante Gargônio
cheira a bode].
A afirmação do centurião 'quod sapio satis est mihi', no verso 78, faz-nos recordar a
pergunta retórica 'hoc satis?', que o Stoicus fizera ao jovem no verso 27. Em seguida, o
militar, ao querer mostrar que conhece o que desdenha, citará nomes famosos – Arcesilau,
chefe da Nova Academia, que ficou conhecido como aquele que não ensinava senão a
36
Cf. em especial o final da quinta sátira, vv. 189-191; cf. tb. hic, capítulo 3.2, pp. 132 e ss.
37
in: Aulo Gélio, XII, 2, 11.
38
Horácio, Sátiras, I, 2, v. 27
47
colocar as coisas em dúvida, e Sólon, legislador ateniense –, mas que, pelo fato de serem
mal escolhidos, acabam antes por revelar sua parca cultura. O adjetivo aerumnosus, que o
centurião usa para designar os seguidores de Sólon, parece uma referência a Aristófanes,
que fizera Fidípides empregar o adjetivo kakadai/mwn (infeliz), para descrever Sócrates39.
Tanto mais porque, neste ponto da peça, o pai, Estrepsíades, está justamente a exortar o
filho, Fidípides, que recém acordara, ao estudo da filosofia. A expressão obstipo capite (v.
80) é uma reminiscência de Horácio, que escrevera40: Dauus sis comicus atque/ stes capite
obstipo multum similis metuenti [Faz como o personagem de comédia Davo: fica de
cabeça baixa como se estivesse com muito medo]. Os rabiosa silentia (v. 81) parodiam a
expressão vergiliana amica silentia41. De fato, este verso, murmura cum secum et rabiosa
silentia rodunt, é construído com palavras da linguagem familiar42; no entanto, não será
coincidência o fato de rabiosus e rodere – propriamente palavras que pertencem ao léxico
técnico da veterinária43 – terem sido aqui escolhidas44. Além disso, a combinação murmura
et silentia rodere é inédita, e une, como complemento ao mesmo verbo, duas palavras que,
do ponto de vista semântico, são contrastantes. Esse verso é um ótimo exemplo do
preceito dos uerba togae e da iunctura acris, que o poeta apresenta na quinta sátira45.
Acrescente-se ainda o fato de que Pérsio escolhe palavras que, com sua sonoridade
composta de SS e RR, fazem que ouçamos murmúrios e sussurros, ilustrando, assim, o
próprio sentido do verso.
O velho enfermo (aegrotus uetus, v. 83) é Epicuro, que ironicamente foi chamado
'médico de almas' – antes de dedicar-se à filosofia, exerceu a medicina – e morreu após
um longo período de doença. O uso por parte do soldado de aegrotus por aeger pode ser
reminiscência da linguagem da comédia, ou referência a um uso coloquial, talvez pouco
recomendável no período imperial; em todo caso, é mais um traço pitoresco a caracterizar
39
Aristófanes, As Nuvens, v. 104.
40
Horácio, Sátiras, II, 5, vv. 91-92.
41
Vergílio, Eneida, II, v. 255.
42
Cf. DOLÇ (1944), p. 163. Já no início de sua fala, o centurião dissera non ego curo (v. 78), em que aparece
o pronome pessoal redundante, próprio da língua vulgar.
43
É verdade nos Cativos, Plauto apresenta um precedente para rabiosus referido a um ser humano; cf. Plauto,
Cativos, v. 547.
44
Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 173-174.
45
Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 72-74.
48
a linguagem da personagem. Os somnia aegroti ueteris são sem dúvida uma bem humorada
lembrança da conhecida frase da sátira varroniana46: postremo nemo aegrotus quicquam
somniat / tam infandum quod non aliquis dicat philosophus [Por fim, nenhum doente
conseguirá sonhar nada que não possa ser dito por um filósofo]47. Parece que não nos
enganaremos se entendermos que, para o centurião, o estudo da filosofia está ligado à
rabugice da velhice, à fantasia do sonho, ao delírio da doença. A máxima citada nos versos
83 e 84 foi desenvolvida pelo epicurista Lucrécio, no primeiro livro do seu De Rerum
Natura48, e será retomada pelo estóico imperador Marco Aurélio, em suas Meditações49:
Assim como de alguma terra foi tirado o que há de terreno em mim, de outro
elemento o líquido, de alguma fonte o alento e de alguma fonte especial o quente e
o ígneo – pois nada procede do nada e tampouco para o nada se vai –,
assim também de algum lugar veio a inteligência.
Pérsio, no entanto, para dar mais ênfase ao ridículo da fala do centurião, repete por
quatro vezes a palavra nihil/nil no mesmo verso50. Parece que escarnecer da palidez do
homem de estudo era uma constante aos espíritos vulgares. No trecho que citamos há
pouco de Aristófanes, Fidípides também chamara os filósofos, e Sócrates em especial, de
"charlatães pálidos e descalços". Pérsio volta à expressão em várias oportunidades, às vezes
devolvendo-a aos críticos, outras vezes admitindo aos filósofos tal característica, mas
dando-lhe então um valor positivo51. Em todo caso, a idéia do filósofo que não se
preocupa com as refeições – e que o faz ficar pálido – é um lugar-comum. De novo
teremos em Aristófanes a expressão desabonadora; o Corifeu ironizará aquele que em
Atenas quer ser sábio: dentre outras renúncias relativas ao conforto físico, deve abster-se
do almoço e do vinho52. Horácio mesmo dirá, ainda na terceira sátira do livro II53:
46
Varrão, Sátira Menipéia, fr. 122.
47
Cícero dirá, de modo semelhante: nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum;
Cícero, De Diuinatione, II, 58.
48
Cf. Lucrécio, I, vv. 151-267.
49
Marco Aurélio, Meditações, IV, 4.
50
Para Villeneuve, o que o centurião acha ridículo é a repetição da palavra, pois esse preceito "est un des plus
simples et un des moins contestés de la philosophie", VILLENEUVE (1918²), p. 89.
51
Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 89-90.
52
Aristófanes, As Nuvens, v. 416.
53
Horácio, Sátiras, II, 3, v. 257.
49
"inpransi corretpus uoce magistri" [reprovado pelas palavras de um Mestre em jejum]. A
juventude multum torosa que parva e folgazã ouve as inépcias do centurião refere-se
certamente a jovens soldados. O emprego de multum reforçando um adjetivo no grau
normal, e conferindo-lhe um valor de superlativo, é próprio da linguagem familiar; tanto
na comédia de Plauto como nas sátiras de Horácio tal emprego se verifica com alguma
freqüência54. O riso que eles não podem segurar lembra a jocosidade a que se presta o
homem que saíra da caverna platônica e, ao voltar, em vão tenta ensinar aos que cá dentro
estão as coisas que lá fora vira.
54
No verso 46, Pérsio já empregara multum laudanda; construção semelhante aparece no verso 13: ultra
miser; cf. hic, capítulo 2.1, p.19, n. 28.
55
mutatis mutandis, lembra-nos o dito medieval: aegrotat daemon, monachus tunc esse uolebat; daemon conualuit,
daemon ut ante fuit.
50
in portam rigidas calces extendit. at illum 105
hesterni capite induto subiere Quirites.
enfermos58. O adjetivo grauis qualificando halitus, usado por Pérsio no verso 89, refere-se ao
56
Com efeito, no verso 96, o conselho ne sis mihi tutor dado pelo paciente nos remete ao comes, do verso 7;
cf. DESSEN (1996), p. 51.
57
Com esse valor, temos exemplo na literatura latina já em Plauto, que escrevera nos Persas: inspicere morbum
tuom lubet; Plauto, Persas, v. 316.
58
Celso, por exemplo, aconselha aos doentes, antes de tudo, quies et abstinentia; Celso, III, 2, 5.
51
odor presente na boca doente59. Usá-lo com esse sentido para seres humanos parece uma inovação
de Pérsio, os demais exemplos para esse valor semântico são encontrados em referência ao hálito
de animais60; o poeta parece tomar de empréstimo o vocábulo do âmbito veterinário para tornar a
imagem mais expressiva. No mesmo verso, a fórmula de cortesia 'sodes' (por favor) é um
coloquialismo, usado comumente sobretudo nas peças de Terêncio61.
No entanto, mal o doente se sente melhor, ele volta a deixar de lado as prescrições
médicas. A doença retratada nesses versos é a hidropsia, que tradicionalmente simbolizava
o vício da insaciabilidade62. Uma das ações mais decididamente vetadas a quem sofria esse
tipo de doença era a de banhar-se. Assim, a simples menção de que, ao sentir-se um
pouco melhor, seu primeiro ato fora justamente banhar-se bastava ao ouvinte para que ele
compreendesse a inadequação do gesto. Era costume de pessoas com posses presentear um
amigo doente com vinhos63. O uso do plural pelo singular, ao se falar de vinho, não era
incomum64; o adjetivo lene, quando relacionado com vinho, se refere a vinho envelhecido.
A garrafa modice sitiente, de acordo com o escoliasta, significa65: minus plena uel quod
uetustate decoquatur [não completamente cheia, ou porque parte do vinho teria evaporado
devido ao envelhecimento]. Acrescentamos, com o Professor Villeneuve66, que, mais do
que isso, ao pedir uma garrafa não cheia, nosso homem acreditaria estar fazendo uma
concessão à prudência. O amigo não se deixa enganar, e tenta dissuadi-lo do ato
temerário: sua pele ainda está amarelecida, ele parece inchar-se; a resposta, porém, vem
ríspida.
Em sua primeira sátira, também construída com diálogos, Pérsio se volta contra as
modas poéticas fúteis de seu tempo, ridicularizando poesia e poetas que mais buscavam
59
Alguns autores, como Villeneuve, preferem a leitura de uma respiração dificultosa ou entrecortada, mas as
'emanações mefíticas' do verso 99 parecem ratificar nossa leitura; cf. MIGLIORINI (1997), pp. 147-148.
60
Plínio Velho, por exemplo, escreve, a respeito do leão: grauem odorem, nec minus halitum; Plínio Velho,
História Natural, VIII, 46.
61
Mas também em Plauto e em cartas de Horácio e de Cícero podemos encontrar a expressão. De fato, o
que temos nesta palavra é uma contração de si audes, em que o valor etimológico de audere se faz presente –
i. e. 'agradar a, desejar', cf. auidus. Semelhante ao que ocorre com a fórmula sis, que possui o mesmo
significado de sodes, e é proveniente da contração de si uis.
62
Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 145-146.
63
Juvenal também fará menção a esse costume; cf. Juvenal 5, v. 32.
64
Cf. v. 93: lenia Surrentina; cf. Horácio, Sátiras, II, 4, vv. 55-56.
65
Commentum Cornuti, p. 91.
66
Cf. VILLENEUVE (1918²), p. 91.
52
alimentar sua vaidade do que construir uma obra sincera. Do círculo de poetas que Pérsio
atacava, fazia parte o próprio princeps, e na boca do interlocutor sai mesmo (pelo menos)
uma citação de Nero67: claudere sic uersum didicit Berecynthius Attis [Aprendi a encerrar
um verso desta maneira: Berecynthius Attis]. Quando fica explícito, pois, na sátira, o fato
de que Pérsio sabe que as poesias do princeps são ridículas, quando ele faz todos
descobrirem que o rei tem orelhas de asno, quando ele grita, enfim, a todos que o
Imperador está nu, o interlocutor avisa que os poderosos ficarão irritados, e que a littera
canina já está ressoando contra ele (v. 109). Ou seja, o ataque do interlocutor passa a ser
contra a pessoa de Pérsio, o diálogo se torna, pois, impossível e as idéias sobre o fazer
poético têm de ser deixadas de lado. Pérsio responde ironicamente que se é assim, não
criticará mais ninguém, para ele tudo estará bom; por fim, exclama discedo! (v. 114). A
mesma impossibilidade de diálogo reaparece agora na terceira sátira, e o interlocutor,
irritado com as ponderações justas que ouve, responde ameaçadoramente que seu tutor já
morreu, mas o Stoicus que o está a aconselhar ainda não... (v. 97). Então, resta a este
somente exclamar: tacebo! (ibidem)68.
A sátira é retomada por um narrador, que descreve as conseqüências da
imprevidência. No verso 98, vemos o doente indo banhar-se, inchado pelo tanto que se
refestelara em um banquete. É interessante cotejar a ação com a passagem em que Celso69
diz que, ao doente, após três dias de melhora70, cibus dandus est, sed exiguus, quia quartana
quoque timeri potest. [deve ser dado alimento, mas pouco, porquanto também há de
temer-se a febre quartã]. Pois é justamente um conselho como esse que, segundo se
depreende do poema, nosso doente não levou em conta. Como resultado, vemos as
emanações mefíticas voltando (v. 99, retomando o v. 88), num verso em que Pérsio
parodia a Eneida71. A cena que segue (vv. 100-103) é uma nova versão para o quadro
surrealista pintado nos versos 58-59: lá era o jovem que não seguia com disciplina os
67
Pérsio, 1, v. 93; cf. Dião Cássio, LXI, 20.
68
O assíndeto que aparece aqui (perge, tacebo) marca com mais ênfase a ruptura do diálogo.
69
Embora pouco se conheça da biografia desse enciclopedista, de que nos restaram apenas os escritos sobre
medicina, em oito livros, consta como certo o fato de que estava em atividade no período de Tibério;
portanto, pode-se afirmar que seu De Re Medica continha as principais idéias a respeito desse assunto que
circulavam em Roma na época de Pérsio.
70
Celso, III, 5.
71
Cf. Vergílio, Eneida, VII, v. 84: saeuam ... exhalat opaca mephitim; cf. DESSEN (1996), p. 51.
53
conselhos prudentes do Stoicus, e aparecia desconjuntado, com o laxum caput (v. 59),
depois de mais uma noite de ebriez; aqui é o doente, que não observou os conselhos
médicos, e agora é a taça que lhe cai das mãos trêmulas, e são agora as iguarias que correm
dos laxa labra (v. 102), enquanto os dentes se põem à mostra, e passam a ranger.
A conseqüência é trágica: seu corpo, por fim, não agüenta mais, e ele é levado para
seu último passeio. O diminutivo beatulus (v. 103) é um hápax persiano, carregado de
ironia, e, como sublinha Pasoli72, la voce è polisemica, in quanto designa sia la richezza
(beatus è, in armonia con l'etimologia, anzitutto il 'rico'), sia la condizione di defunto, come il
nostro 'buonanima'. A cena primeiramente é a da exposição do cadáver73, que antecedia o
funeral propriamente dito. Um instrumento de sopro costumava ser tocado durante a
cermiônia, para manter afastados os espíritos malignos. Sobre essa cena, Pasoli escreve o
seguinte74:
Após a exposição, temos o cortejo fúnebre, evocado já com o ritmo alternado nos
quatro primeiros pés, com espondeus nos pés ímpares e com dátilos, nos pares. Os Quirites
são os cidadãos romanos, em oposição aos Romani, ou milites, que são o povo em armas, i.
e., os soldados. A expressão hesterni Quirites (v. 106) está a indicar os escravos do senhor
cujo funeral estamos presenciando, e que desde a morte deste ganharam a alforria e
passaram à condição de libertos; capite induto (ibidem) remete-nos ao pileus, ou seja, o
gorro que recém-libertos punham na cabeça para indicar sua nova condição75.
72
PASOLI (1976), p 225.
73
De hinc tuba (v. 103) até extendit (v. 105).
74
PASOLI (1976), p. 225.
75
Pérsio faz menção ao mesmo costume em sua quinta sátira, v. 82; cf. hic, capítulo 3.2, pp. 95-96.
54
Pérsio, porém, dá ao interlocutor uma fala que somente poderia ser justa se o discurso que
a motivou tivesse sido literal:
Se o interlocutor não apresenta sinais de doença física, Pérsio mostra que seu
espírito está tão fragilizado que, assim como o corpo enfraquecido não resistiu há pouco
aos excessos, assim também qualquer objeto de tentação que lhe aparecer fará a doença de
sua alma vir à luz. Na fala do insanus, temos uma construção simétrica: tange – non calet /
attinge – non frigent, com as duas negativas no princípio de verso, a deixar mais enfática
sua apóstrofe.
76
Metonímia, por pão (de qualidade inferior).
55
O Stoicus inicialmente aceita que ele possa estar bem de saúde do ponto de vista
físico, mas mostra que, se ele não consegue dominar suas paixões, sua alma está doente.
Neste último trecho de sua terceira sátira (vv. 109-118), Pérsio elencará um bom número
de perturbationes animi: auaritia (v. 109)77; luxuria (vv. 110-111); gula (vv. 111-112); ira (vv.
117-118). O espírito sadio é aquele que sabe resistir e abster-se, como diz a famosa
sentença estóica. Aulo Gélio nos relata que Epicteto considerava mesmo a incapacidade de
resistir e abster-se o pior dos vícios78:
[5] praeterea idem ille Epictetus, quod ex eodem Fauorino audiuimus, solitus
dicere est duo esse uitia multo omnium grauissima ac taeterrima, intolerantiam et
incontinentiam, cum aut iniurias quae sunt ferendae non toleramus neque ferimus,
aut a quibus rebus uoluptatibusque nos tenere debemus, non tenemus. [6] “itaque,”
inquit, “si quis haec duo uerba cordi habeat eaque sibi imperando atque obseruando
curet, is erit pleraque inpeccabilis uitamque uiuet tranquillissimam.” uerba haec duo
dicebat: ἀνέχου et ἀπέχου.
77
Na segunda sátira, Pérsio descrevera os sintomas provocados pela auaritia de modo semelhante: si tibi
creterras argenti incusaque pingui/ auro dona feram, sudes et pectore laeuo / excutiat guttas laetari praetrepidum cor
[Se eu te trouxer jarros de prata e presentes incrustados de grossas camadas de ouro, suarás e teu coração,
batendo rápido de alegria, fará correr gotas de suor do lado esquerdo do teu peito]; Pérsio, 2, vv. 52-54.
78
Aulo Gélio, XVII, 19, 5-6.
56
sanguis uma reminiscência de feruens uenenum que aparece no verso 37, quando Pérsio
lançou sua maldição aos tiranos. E o feruens uenenum causava perturbação na mente do
tirano; e, tão imponente se mostra agora a insanitas, que o próprio Orestes o julgará non
sanus.
Essa evocação a Orestes no último verso pode ter um significado especial, afinal
Orestes é aquele cuja mãe, Clitemnestra, mata seu marido e pai de Orestes, Agamenão.
Como vingança, Orestes mata a própria mãe. Se lembrarmos a trajetória de Nero,
perceberemos que há similitude nos acontecimentos: sua mãe, Agripina, teria assassinado
seu esposo, o imperador Cláudio, para que Nero fosse o sucessor do trono. E Nero, ao
mandar matar sua mãe, começa a dar os sinais de que foi tomado pelas Fúrias79. Mas
Orestes tem uma justificativa que se quer razoável, afinal ele estava vingando a memória
do pai. Em Horácio80, Orestes, depois de matar a mãe, não prosseguiu com sua loucura, e
Pílades e Electra, insultados embora, têm contudo preservada a vida. A morte da mãe de
Nero81, porém, é apenas o começo de uma tirania que ceifará a vida de muitos e muitos
romanos. Para o mesmo enfurecido Orestes, as loucuras de Nero estariam além de toda e
qualquer compreensão.
Embora possamos ver aqui uma alusão crítica a Nero, o caminho de Pérsio é
direcionado para questões filosóficas. Se Nero pode ser usado como exemplo de alguém
que se deixa escravizar pelas paixões, Pérsio se vale do modelo para alertar aos demais que
não caiam na mesma armadilha. Os vícios, apontados e ilustrados de maneira viva pelo
poeta, apontam todos para a insanitas; todos eles impedem que se alcance a verdadeira
liberdade, que somente a sabedoria pode trazer, como veremos, com mais detalhe, no
capítulo seguinte.
79
Fato que se dá em 59; Pérsio escreve sua obra até 62.
80
Não por casualidade, certamente, ao final de sua sátira, Pérsio alude ainda uma vez mais a sátira II, 3 de
Horácio; cf. Horácio, Sátiras, II, 3, vv. 137-141.
81
O Senado Romano chega ao cúmulo de homenagear Nero pela morte de sua mãe; o único senador a se
indignar com gesto tão aviltante é o amigo dileto de Pérsio, Trásea Peto – tido por Tácito como o mais
nobre opositor do princeps –, que abandona a sessão.
57
3
LIBERTAS
(Edmund Burke)
3. LIBERTAS
1
Sila, depois de uma batalha civil em que derrota Mário – general romano, nove vezes cônsul, casado com a
tia de César –, estabeleceu novas leis, dentre as quais aquela segundo a qual o exército romano ficava
proibido de entrar em armas na Itália (entre Mégara e o Rubicão), justamente para evitar que romanos se
voltassem contra outros romanos.
2
GRIMAL (1990), p. 20.
60
romanos - e que pouco menos de uma quinzena de anos antes havia evitado uma
conspiração contra o Estado tramada por Catilina3 -: o célebre orador Marco Túlio
Cícero.
Em seu testamento político, a famosa inscrição de Ancira, Otávio – ou melhor, já
Otaviano Augusto – dirá: "Na idade de 20 anos reuni um exército, por iniciativa própria e
a minhas próprias expensas, graças ao qual restitui a liberdade ao Estado oprimido pela
tirania de uma facção." (Deve-se lembrar que Augusto eliminou toda oposição, e muitos
talvez possam dizer que, ao fazê-lo, também ele proporcionou a tirania de uma facção – a
sua própria.) A ironia sombria é que o próprio Cícero havia de certo modo formulado o
mesmo discurso, como se pode ver em sua Terceira Filípica, em que apóia Otávio contra o
então inimigo deste, Marco Antônio, dizendo que o jovem havia libertado Roma do
flagelo que era o futuro amante de Cleópatra...4
O fato é que, após essa sucessão de batalhas sangrentas em nome da liberdade,
Roma deixa de ser República e torna-se um Principado. E aqui temos outra ironia –
sombria também, por certo: para o romano dos tempos republicanos, a própria
insinuação de que voltariam a ter um rei era a mais temível afronta à liberdade, e isso
desde o tempo da expulsão dos reis, no século VI a. C. Por isso, nos primórdios da
República Romana, os filhos do primeiro cônsul e personagem-símbolo da libertas
Romana, Bruto, os quais foram descobertos participando de uma conspiração para que o
rei fosse reconduzido ao poder em Roma, receberam a condenação capital, que foi
executada na presença do próprio pai. Por isso, já nos estertores da República, César é
morto, sob a alegação de que tinha a ambição íntima de se tornar o rei de Roma.
Cabe salientar, como destaca Ortega y Gasset, que a visão que a modernidade deu
à noção de liberdade no campo social apresenta contrastes com a noção romana de libertas
no tempo de Cícero5:
3
Após ter em vão tentado conquistar o posto de cônsul, Lúcio Sérgio Catilina – um nobre da gens Sergia
(que, de acordo com a Eneida, descenderia de Segesto, companheiro de Enéias), cuja personalidade era
invulgar e forte, nos vícios e nas virtudes – trama uma conspiração para tomar o poder em Roma. O ano é
63 a.C. O golpe é descoberto, e Cícero, então um dos cônsules, com o pronunciamento de suas célebres
Catilinárias (Orationes in Catilinam), consegue, por fim, debelar o projeto revolucionário de Catilina.
4
Cf. GRIMAL (1990), p. 21.
5
ORTEGA Y GASSET (1960), p. 125.
61
La libertad europea ha cargado siempre la mano en poner límites al poder público e
impedir que invada totalmente la esfera individual de la persona. La libertad
romana, en cambio, se preocupa más de asegurar que no mande una persona
individual, sino la ley hecha en común por los ciudadanos. Esto último es lo que
representaban para Cicerón las instituciones republicanas tradicionales de Roma, y
a vivir dentro de ellas llamaba libertas.
Fica patente nesse exemplo da História Romana o imenso problema que pode
acarretar o uso – ou o mau uso – da palavra liberdade. E tantos outros poderiam ser
citados6. Mas cabe-nos ressaltar que vimos referindo-nos à liberdade civil, a liberdade que
diz respeito à nossa 'vida exterior', quando a vontade de um pode entrar em choque com a
vontade de outro, e aí ambos talvez queiram reclamar a liberdade de fazer sua vontade
prevalecer, e desse choque muitas vidas por vezes acabam sendo ceifadas. Mas há outra
liberdade, que, para muitos – um filósofo estóico, por exemplo –, não só é mais
importante, mas mesmo a única liberdade de fato verdadeira, e que diz respeito à nossa
'vida interior'.
No século V a. C., nasce na Grécia o filósofo que mudará completamente a
compreensão humana não apenas sobre o que são as coisas e de onde elas se originam,
mas sobretudo quem somos nós. Seu nome é Sócrates e a sua filosofia foi tão importante,
decisiva e inovadora, que todos os filósofos que vieram antes dele são hoje enfeixados num
mesmo e relativamente heterodoxo grupo conhecido por Pré-Socrático. É justamente
com Sócrates que a reflexão filosófica adentra o plano moral; sua mais famosa divisa será o
nosce te ipsum. Segundo uma fórmula recorrente, temos que7:
6
Pode-se fazer um paralelo com a seguinte opinião de Kirk Russel sobre questões complexas e semelhantes
da política moderna: "Não compartilho da opinião de que seria bom jogar o inebriante vinho de uma nova
ideologia goela abaixo dos jovens norte-americanos. Se invocarmos os espíritos das profundezas abissais, será que
poderemos esconjurá-los? O que precisamos transmitir é prudência política, não beligerância política. A ideologia é a
doença, não a cura. Todas as ideologias, incluindo a ideologia da vox populi vox Dei, são hostis à permanência da
ordem, da liberdade e da justiça. A ideologia é a política da irracionalidade apaixonada". RUSSEL, K., p. 98: “Os
Erros da Ideologia”. In: A Política da Prudência. Trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo, É Realizações
Editora, 2013. Cf. tb. ORTEGA Y GASSET (1960), em especial o capítulo "libertas", pp. 107-124.
7
GRIMAL (1990), pp. 108-109.
62
liberdade não mais estava nas coisas, ela se tornara uma atitude do ser, um bem
próprio do homem e não era um sentimento que era preciso defender com armas na
mão, mas um sentimento que era preciso proteger no mais íntimo de si mesmo.
Por volta da época em que Pérsio era dado à luz, o mundo conheceu as palavras de
Cristo, e a nova aliança que ele apresenta entre Deus e os homens. Ao subir a montanha e
pronunciar seu mais famoso sermão, ele indica que fará uma nova aliança, mais elevada do
que a primeira – no dizer de Santo Agostinho. E Cristo ampliará o espectro de visão a
respeito de nossas ações, chamando a atenção justamente para as 'ações' que praticamos
em nosso interior. Assim, se tínhamos, por exemplo, entre os dez mandamentos, uma
interdição ao adultério8, Nosso Senhor Jesus Cristo irá mais adiante: "audistis quia dictum
est: 'non moechaberis', ego autem dico uobis: omnis qui uiderit mulierem ad concupiscendum eam
iam moechatus est eam in corde suo."9
A filosofia estóica nasce na Grécia com Zenão de Cício, e tem em Sócrates sua
primeira e principal referência10. Em Roma, o estoicismo passa a ser a escola filosófica com
maior prestígio; e, visto que se coaduna perfeitamente com o espírito romano do mos
maiorum a exaltação das virtudes morais que preconizava o estoicismo, sua doutrina se
enraíza fortemente no coração da Vrbs. Partindo dessa busca da correção moral, o
estoicismo em Roma acaba por conduzir seus adeptos a formarem uma oposição política
ao princeps, que ficou conhecida como a "oposição estóica".
Conforme já mencionamos11, Trásea Peto foi, durante o período de Nero, o mais
destacado membro da oposição estóica, e voltou-se com firmeza e dignidade contra os
despropósitos do imperador. Foi Trásea casado com uma prima de Pérsio, e um de seus
melhores amigos. O filósofo estóico Sêneca, ao menos num primeiro momento, era nota
destoante, pois não apenas estava ao lado de Nero, como fora seu tutor e em seguida
8
'non moechaberis', Êxodo, 20: 14.
9
Mateus, 5: 27-28; podemos aqui lembrar uma bela reflexão de Ratzinger: "O homem é um ser relacional; se
fica perturbada a primeira relação fundamental do homem - a relação com Deus -, então nada mais pode estar
verdadeiramente em ordem. É dessa prioridade que trata a mensagem e atividade de Jesus: Ele quer, em primeiro
lugar, chamar a atenção do homem para o cerne do seu mal, fazendo-lhe ver: se não estiveres curado nisso, então,
apesar de todas as coisas boas que possas encontrar, verdadeiramente não estarás curado." in: RATZINGER, J.
(Bento XVI) A Infância de Jesus. Tradução: Bruno Bastos Lins. São Paulo, Planeta, 2013, p.43.
10
Cf. MARÍAS (1968), p.139.
11
Cf. hic, capítulo 2.2.
63
conselheiro. Pérsio não lhe tem grande simpatia. Quando Sêneca cai em desgraça junto ao
princeps, Pérsio já morrera. Um liberto da gens Annaea, porém, o filósofo estóico Aneu
Cornuto, foi o grande mestre de Pérsio.
A importância fundamental da liberdade interior e a pouca importância dada aos
bens exteriores fazem que, dentre os maiores filósofos estóicos do período imperial, se
encontrem um imperador, Marco Aurélio, e um escravo, o grego Epicteto. Uma das mais
célebres máximas deste filósofo dizia que "ninguém é livre não sendo senhor de si
mesmo." A fundamentação capital dessa filosofia vincula-se à vida prática: o estoicismo,
com efeito, é uma filosofia prática, é sobretudo uma 'arte de viver'12; ou seja, saber dizer
belamente palavras certas, mas não ter domínio sobre suas emoções mais mesquinhas, é
uma demonstração irrefutável da falta de sabedoria, e, conseqüentemente, de liberdade.
Epicteto ilustra essa premissa fundamental deste modo13:
Tendo em vista, pois, que Pérsio nasce quando Roma está sob o poder de Tibério,
passa por Calígula e Cláudio, e sua curta vida adulta se dará durante o principado de
Nero, isto é, Pérsio vive no momento em que Roma ainda vive de certo modo a tensão,
os desdobramentos e descontentamentos trazidos pela mudança de regime (e todo o luto
que consigo trouxeram as sucessivas lutas em nome da liberdade), e que a mensagem do
cristianismo se faz presente já nesse momento na Vrbs; tendo em vista, pois, que Pérsio
está fortemente ligado à filosofia estóica, esta ligada, por sua, vez aos ensinamentos de
Sócrates, nada será mais natural do que ver Pérsio crer que a liberdade verdadeira não é
12
Para Veyne, em Sêneca, a filosofia se resume quase exclusivamente a isto: uma arte de viver; VEYNE
(1993), p. 12.
13
Epicteto, Discursos, IV, 1, 141-142.
64
externa, mas ao contrário só é alcançada pelo espírito, por meio da prática e estudo da
filosofia.
Como veremos neste capítulo, no verso 124 da quinta sátira de seu livro, há um
diálogo em que um interlocutor diz: 'liber ego!' [Eu sou livre!] – tal afirmação para ele é
justa porque não possui um dominus –, ao que o poeta retorquirá: unde datum hoc sumis, tot
subdite rebus? [Baseado em que afirmas isso, tu que estás subjugado por tantas coisas?].
Como dissemos, este é o ponto que Pérsio quer fazer que compreendamos: o homem não
é livre graças à sua liberdade civil, ele somente será verdadeiramente livre se não estiver
subjugado por suas paixões.
Esta sátira, que passaremos a analisar, se estrutura claramente sobre dois pilares: o
primeiro (vv. 1-72), em que o autor faz uma bela homenagem a seu mestre, Cornuto, que
lhe apontou os caminhos da verdadeira liberdade; e o segundo (vv. 73-191), em que o
poeta discorrerá sobre a questão da verdadeira liberdade, desenvolvendo justamente o
paradoxo estóico "solum sapientem esse liberum, et omnem stultum seruom"14.
14
Esse mesmo paradoxo foi comentado por Cícero, no seu livro Paradoxa Stoicorum, livro em que o
Arpinate analisará seis paradoxos que estão presentes entre as máximas dos filósofos estóicos. O quinto
paradoxo analisado por Cícero nesse livro é justamente o mesmo de que Pérsio se valerá para construir sua
quinta sátira.
65
3.1 Ad Annaeum Cornutum Stoicum cuius fuit auditor
⁂
O poema se abre com um tom altissonante, próprio à poesia elevada:
Está claro que o poeta aqui ironiza poetas grandiloqüentes, ironia esta em acordo
com o prólogo e sua primeira sátira, quando tratará da questão literária2. O hemistíquio
que abre o poema é calcado em um verso de Horácio. No segundo poema de seu
primeiro livro de sátiras, o venusiano escrevera3:
No excerto evocado por Pérsio, vemos Horácio chamar a atenção para o fato de
que pessoas versadas em determinado assunto não se deixam levar por uma aparência
enganadora, mote esse absolutamente coincidente com a idéia que é aportada por Pérsio
1
ducere = educere; cf. VILLENEUVE (1918²), p. 111.
2
Cf. nossa Dissertação (2004), Pérsio e a Arte Poética, em especial os capítulos 4 e 5.
3
Horácio, Sátiras, I, 2, vv. 86-88.
4
"Sono un tipo della letteratura morale dell'antichità. Astuti, diffidenti, circondati da nemici, oltre che favolosamente
ricchi"; nota de M. Labate à palavra regibus; in: Orazio (2004).
67
no início do seu poema. O interessante é que Pérsio – seguindo sua virtude mais
característica, i. e., a quebra de expectativa – acabará por mostrar que também essas
palavras grandioloqüentes podem ser verdadeiras, quando o que se quer exaltar é uma
realidade elevada5. Pois, como se verá na seqüência do poema (vv. 1-29), este início não
deixa de revelar que suas palavras serão sempre poucas para demonstrar sua gratidão a
Cornuto. A imagem das cem bocas pedidas por Pérsio já aparecera na Ilíada, só que
Homero ali pedia não mais que dez bocas...6; o número cem, no entanto, não é um
exagero de Pérsio, ele já aparece consagrado na poesia latina pelo próprio Vergílio7.
Os versos 3 e 4 são uma perífrase a autores de tragédia (v. 3) e de epopéias (v. 4).
Há no uso de ponere um sentido duplicado, visto que o verbo é usado tanto para a idéia de
'compor (versos, peças)', como de 'servir (à mesa)'8. O jogo de palavras conjugando poesia
e alimento seguirá durante o primeiro trecho deste poema. A citação de um Parto ferido
para fazer alusão a uma epopéia aparece já em uma sátira Horácio9.
Do verso 5 ao 18, aparece uma voz que acumulará metáforas e referências
mitológicas, com o intuito de mostrar o ridículo da ênfase de poetas trágicos. Os
comentadores em geral estão de acordo que tal voz seria de Cornuto10, que interrompe a
invocação grandiosa de Pérsio, para chamá-lo de volta à sua escrita modesta. Na primeira
parte de sua fala (vv. 5-13), se faz presente a combinação entre alimento e obra literária,
numa crítica a obras que transbordam de dramaticidade:
5
Cf. infra, pp. 78 ss.
6
Homero, Ilíada, II, 489.
7
Cf. Georgicas II, 43-44 e Eneida VI, 625-626; antes dele, o poeta Hóstio, contemporâneo de César, já
pedira cem bocas para compor seu poema; cf. Macróbio, Saturnais, VI, 3, 6.
8
O próprio Pérsio já usara esta palavra com essas duas acepções em sua primeira sátira: no verso 70, "ponere
lucum", com o sentido de 'compor'; e no v. 53, "scis ponere sumen", com o sentido de apponere, i. e., 'servir'.
9
Horácio, Sátiras, II, 1, 13-15.
10
O vocativo 'Cornute' do verso 23 parece não deixar dúvida quanto a isso.
11
aut introduzindo uma pergunta irônica: cf. Pérsio 2, 29 e 3, 16.
68
nescio quid tecum graue cornicaris inepte
nec scloppo tumidas intendis rumpere buccas.
Seguindo o jogo de palavras entre alimento e obra literária, Cornuto quer mostrar
a Pérsio que a este não convém um estilo grandiloqüente. Possivelmente haja uma crítica
irônica na pergunta dos vv. 5 e 6, pois Cornuto pretexta querer saber que tipo de poemas
Pérsio anda lendo para que, de repente, fugindo de seu estilo franco habitual, passe a usar
de hipérboles vazias na abertura de sua sátira. Ao se valer desse tipo de recurso, o poeta
estaria também fugindo do estilo coloquial do gênero satírico, que, como em seguida
deixará claro, é próprio de Pérsio. Não sem ironia, Cornuto fará remissão ao Helicão,
monte em que se encontra a fonte de Hipocrene, que teria sido aberta pelo casco do
cavalo Pégaso, e era tida como um local consagrado às Musas. Para lá iam os poetas – ao
menos em seus versos – beber de sua água para receber, como num passe de mágica,
inspiração13. A expressão 'nebulas legere' (v. 7) é calcada num verso da Arte Poética de
Horácio, que, ao tratar da linguagem empregada pelos sátiros, diz que não é conveniente
que, dum uitat humum, nubes et inania captet14 [Enquanto evita a terra, se perca nos ares
e nas nuvens].
Cornuto diz que Pérsio deve deixar a pomposidade aos que escolhem seus temas
em dramas intensos, que, independentemente de sua qualidade literária, conseguem
12
Segundo o escoliasta: "Glicon tragoedus fuit Neronis temporibus", Commentum Cornuti, p. 111.
13
No prólogo a suas sátiras, Pérsio já negara enfaticamente ter molhado seus lábios no fons caballinus (forma
irônica usada pelo poeta para designar a fonte de Hipocrene – palavra grega que significa exatamente 'fonte
do cavalo') para se tornar, de inopino, poeta; cf. SCHERER (2004), pp. 25-27.
14
Horácio, Arte Poética, v. 230.
69
chamar a atenção do público pela mesma extravagância do tema; dá como exemplos desse
tipo de argumento duas personagens mitológicas cuja vida chega ao extremo de
apresentar um banquete antropofágico em que se serve a carne de entes queridos:
1) Procne → filha de Pandião, rei de Atenas, serviu, como forma de
vingança, a Tereu – seu marido, que se havia tornado amante de sua
irmã, Filomela15 – uma refeição cujo prato principal era o filho de
ambos, Ítis.
2) Tiestes → irmão de Atreu. O ódio recíproco entre esses dois irmãos
criou uma das mais terríveis histórias da mitologia grega. Tiestes se
tornou amante de sua cunhada; Atreu, como despique, matou os filhos
do irmão e serviu-lhos num jantar. Tiestes soube por um oráculo que só
alcançaria a desforra por meio de um filho nascido num incesto; assim,
tem de sua filha bastarda um filho, Egisto, que matará Atreu – e depois
Agamenão, filho de Atreu.
Cabe ressaltar que aqui não faz referência Pérsio a toda e qualquer epopéia ou
tragédia, e sim as que a literatura contemporânea vinha produzindo a mancheias. Sua
primeira sátira esclarece bem o alvo de sua crítica. Vergílio, por exemplo, não é
mencionado com desdouro por Pérsio, pelo contrário, quem vai criticá-lo é um poeta da
moda, chamando os versos vergilianos de 'rudes como um tronco seco'16. Contra esses sim
é que o satírico desferirá seus golpes17. Lembramos uma história muito conhecida – e que
envolve justamente seu mestre, Cornuto, e Nero – e que pode servir de subsídio para justa
ilustração deste ponto.
Cornuto foi exilado por Nero quando da conjuração de Pisão, em 65 d.C.
Segundo Dião Cássio, porém, o exílio se deveu antes a uma impertinência do filósofo do
que à sua participação na conjuração; conta o historiador que, após Nero ter declamado
versos que compusera sobre a guerra de Tróia, quis saber a opinião das pessoas que ali
15
Mais propriamente, ele a estuprou, e depois lhe cortou a língua, para que ela não o pudesse denunciar; cf.
GRIMAL (2000), p. 173.
16
Cf. Pérsio 1, vv. 96-98.
17
Cf. SCHERER (2004), pp. 72-73.
70
estavam, dentre as quais Cornuto, sobre quantos livros deveria escrever para compor um
épico que contasse todos os grandes acontecimentos da história romana; ao parecer de
alguns presentes que disseram que o imperador deveria escrever quatrocentos livros,
Cornuto respondeu que seria este um número exagerado e que não teria ele leitores.
Quando alguém lhe replicou que o estóico Crisipo, a quem tanto o filósofo admirava,
compusera setecentos livros, ele imediatamente pontuou: “Sim, mas aqueles eram úteis à
vida das pessoas.” Tal resposta lhe teria valido o exílio em uma ilha (provavelmente em 65
d.C.).
Com um assíndeto, o verso seguinte (v. 10) marca uma forte oposição que há na
linguagem desses poemas com a linguagem de Pérsio. Com o recurso de deixar na boca
de seu mestre a caracterização de seu estilo de escrita, Pérsio evita um auto-elogio18, e
tudo nos faz crer que a idéia contida nessas palavras realmente descreva o pensamento de
Cornuto. Observe-se que do verso 10 ao verso 16, Cornuto não endereçará conselhos a
seu discípulo, mas antes vai descrever qual é de fato o estilo natural de Pérsio, e o uso do
presente do indicativo – e não do imperativo – deixa isso patente; o que se poderá
entrever nessa constatação é simplesmente uma exortação a que ele siga o caminho que
lhe é próprio; o único imperativo da fala de Cornuto, no verso 17, ratifica essa
interpretação.
Cabe lembrar que o estoicismo apresenta como um de seus eixos fundamentais a
idéia de que devemos viver de acordo com nossa natureza, i. e., seguir tendências naturais
que estão inseridas no destino de cada um. A Natureza concede aptidões, tendências e fins
diferentes a cada ser humano. Por meio da razão aprendemos a viver de acordo com ela,
ou seja, a respeitar o que ela atribui a cada um. E o homem que vive de acordo com sua
razão, com a vida que lhe foi destinada – determinismo estóico –, não se deixará
escravizar pelas paixões e pelas ilusões do mundo exterior, mas, ao invés, será livre e feliz19.
O que Cornuto espera, pois, do jovem poeta é que ele siga sua natureza, em vez de
querer render-se a artifícios ensejados pela paixão mais sedutora a quem quer que tenha
18
Cf. DESSEN (2002), p. 72.
19
Epicteto descreverá com simplicidade e clareza o paradoxo da submissão do sábio à natureza e sua
liberdade, numa metáfora em que mostra que somos atores teatrais e que recebemos do Autor um papel a
cumprir; nossa tarefa é executar esse papel da melhor maneira possível; cf. hic, capítulo 2.2, p. 45.
71
inclinação artística: a Vaidade. No tempo de Pérsio, em especial, os poetas estavam
dominados por ela, como o próprio poeta demonstra com muito bom humor em sua
primeira sátira. Temos, com efeito, no trecho há pouco citado, elementos que remontam
a um episódio desse poema20: scribimus [...] / grande aliquid quod pulmo animae praelargus
anhelet [Escrevemos [...] / algo grandioso, para que seja pronunciado com o pulmão
cheio de ar!]. Pérsio está nesses versos introduzindo um poeta que se prepara para uma
leitura pública e que, após encher os pulmões para uma grandiosa poesia, revela, nos
versos seguintes, que sua maior preocupação está no penteado dos cabelos, os adornos –
como o anel natalício –, a toga nova, a garganta preparada para sua voz melíflua... ou, em
outras palavras, sua vaidade21.
Cornuto fica apenas no primeiro ponto, ou seja, uma composição apelativa para
arrancar lágrimas ao público. Pela própria escolha das palavras, percebe-se a combinação
entre esses dois momentos: grande (1, v. 14 e 5, v. 7) e anhelare (1, v. 14 e 5, v. 10). Uma
questão poderia ser levantada: será que Pérsio esperaria que tivéssemos a primeira sátira
em mente para que fosse evocada pela memória neste momento?
Em seguida, temos uma passagem bastante conhecida, que dirá qual é o estilo
natural a Pérsio, e serve como uma espécie de chave para compreendermos como o
volaterrano construía suas imagens e suas combinações tantas vezes surpreendentes de
vocábulos.
20
Pérsio, 1, vv. 13-14.
21
Cf. SCHERER (2004), pp. 47-52.
72
Ao enunciar o estilo de Pérsio, Cornuto traz informações precisas e preciosas sobre
o ideário poético de seu discípulo22. As 'palavras de toga' (uerba togae) referem-se às
palavras simples, do dia-a-dia, usadas pelo romano comum, em contraposição justamente
a palavras empoladas, muitas vezes grecismos, que há pouco Cornuto havia rejeitado.
Quando a literatura grega começou a ser importada por romanos, houve uma torrente de
imitação quase literal desta na Vrbs. Fato que acabou ocasionando uma forte reação
nacionalista, da qual se originaram dois tipos de tragédia: a fabula praetexta – tragédia
baseada em temas da história de Roma, em que os atores usavam a pretexta, toga própria
dos magistrados romanos; e a fabula togata, também de temas romanos, em que as
personagens usavam a toga do romano comum. Essa imagem usada por Cornuto (uerba
togae) faz remissão justamente à fabula togata, e, por conseguinte, ao uso de palavras
próprias ao falar simples e habitual dos romanos.
A expressão iunctura calidus acri é especialmente feliz ao descrever uma
característica essencial na poética persiana, ou seja, a habilidade em usar elementos
conhecidos, mas unidos de forma inusual e sagaz, causando surpresa e, com isso,
conferindo sabor ao escrito. Essa expressão é baseada num trecho da Arte Poética de
Horácio23:
Horácio, nesses versos, nos ensina que, mais do que usar palavras que sejam pouco
conhecidas, a maneira mais inteligente de provocar uma sensação de novidade no ouvinte
é a combinação hábil das palavras. Nos versos seguintes do poema, com efeito, Horácio
prosseguirá dando conselhos a respeito da escolha das palavras em função do texto que se
22
Estes três versos da quinta sátira foram já comentados por nós, em um contexto um pouco diverso: cf.
SCHERER (2004), pp. 62-65.
23
Horácio, Arte Poética, vv. 46-48.
73
escreve24. A maneira criativa com a qual Pérsio retoma o mote horaciano – em vez de
uma iunctura callida, temos em Pérsio uma iunctura acris, e callidus passa a ser o adjetivo
que descreve o autor – atualiza-lhe o preceito, e o exemplifica. Demais, em Pérsio, isso é
válido não somente com grupos de palavras, mas também com idéias e com jogos
intertextuais25.
Em seguida, Cornuto reporta a modéstia na fala (teres)26, em contraposição a
tumidas buccas, do verso 13. Temos propriamente uma hipálage, pois gramaticalmente o
adjetivo teres se liga ao sujeito; logicamente, porém, a referência é ao estilo da escrita. A
utilização dessa figura de linguagem faz, com efeito, ressaltar o uso de palavras cotidianas
como espelho da modéstia na vida.
Na continuação de sua fala, aborda a questão do uso do gênero satírico como arma
para combater os vícios. Quanto à expressão pallentis radere mores, M. Villeneuve faz a
seguinte observação27:
pallentis radere mores comme un médecin qui, pour nettoyer une plaie, la racle
avec un instrument tranchant [...] Perse est habile à porter le fer de la satire dans les
parties malades des mœurs humaines.
24
idem, ibidem, vv. 46-71.
25
A intertextualidade de Pérsio, sobretudo em relação à obra de Horácio, foi analisada por nós na
Dissertação de Mestrado, Pérsio e a Arte Poética (2004), em que se analisa, em especial, o jogo intertextual do
volaterrano em sua primeira sátira e suas remissões à Arte Poética (Ars Poetica ou Epistula ad Pisones) de
Horácio.
26
"teres: de elocutione neque humili neque tumida", NIKITINSKI (2002), p. 204.
27
VILLENEUVE (1918²), p. 114.
74
vergonhoso, como ele próprio anunciará em sua primeira sátira, em que condena quem
chama ‘caolho’ um caolho28 com o intuito de mostrá-lo, ipso facto, ridículo.
Por isso, ao chamar a atenção para os nossos vícios, diz Cornuto no verso 16,
Pérsio o faz com jovialidade, i. e., sem rancor, sem preconceito, sem maldade, mas, ao
invés, de modo bem-humorado. E essa é uma das características da sátira horaciana que
certamente mais levaram Pérsio a ter o poeta venusiano como principal modelo.29 (O que
não quer dizer que sua sátira não lhe tenha granjeado inimigos diversos e poderosos.30)
Essa expressão de Cornuto nos enseja a fazer uma rápida digressão sobre um ponto
por vezes controverso: o uso do gênero satírico por um estóico. Pià observa que os
antecessores de Pérsio na sátira, Lucílio e Horácio, evitaram fechar-se numa escola
filosófica particular, ao contrário escarneceram de todo discurso dogmático; assim, levanta
a questão31 : “La satura ne risque-t-elle pas d’atténuer ou même ridiculiser l’orthodoxie
stoïcienne?”. Saliente-se, porém, que o elemento cômico apresenta em si um caráter
moralizante, e isso pode ser facilmente depreendido, por exemplo, na comédia latina;
Plauto e Terêncio constantemente provocam o riso escarnecendo de comportamentos
pouco recomendáveis. A famosa divisa de Arlequino, que há pouco lembrávamos,
resumirá de modo bastante eficaz esta característica do cômico. É preciso também que
lembremos o fato de que o estoicismo, no período de Pérsio, enfatiza o aspecto moral, e,
mais do que isso, é justamente esse o ponto que Pérsio vai desenvolver em seus poemas –
seguindo, portanto, muito de perto o teor da sátira de seus antecessores. Porque, à
diferença de Lucrécio, que com seu De Rerum Natura busca apresentar de maneira
estruturada todos os elementos da filosofia epicurista, fazendo assim como que um
compêndio da doutrina da escola – e, por isso mesmo, seu poema costuma ser enquadrado
no gênero didático –, Pérsio terá, é verdade, como régua do bom percurso, os
ensinamentos do pórtico, mas não buscará, com sua obra, apresentar sistematicamente
uma doutrina geral e ordenada do estoicismo.
28
Cf. Pérsio 1, v. 128. Também aqui Pérsio aproveita para fazer uma crítica evidente a Nero; cf. Suetônio,
Domiciano, 1.
29
Cf. Pérsio 1, vv. 116-118.
30
Cf. Pérsio 1, vv. 107-110.
31
PIÀ (2007), p. 2.
75
Por isso também não nos parece justa a avaliação de Nisard32: “Cornutus manqua de
sens en le [Perse] laissant faire des satires; Perse était beaucoup plus propre à faire des traités [...]
Un stoïcien ne peut que disserter” Pérsio é, para nós, antes de mais nada, um poeta. Como
dissemos, embora seja inegável que diversos pontos da doutrina estóica apareçam em sua
sátira, e que uma exortação ao estudo da filosofia faça parte de seus objetivos na
elaboração de seus versos, tanto o estilo, como a linguagem, e a maneira de apresentar
idéias e fazer alusões a outras obras e pessoas são próprias de um poeta, e, se nos é
permitida tal apreciação, de um verdadeiro poeta.
Quanto aos ensinamentos estóicos – ao menos os de cunho moral – serem
absolutamente compatíveis com a sátira, podemos ainda lembrar o filósofo Sêneca,
contemporâneo de Pérsio, que escreverá em diversas de suas epístolas que seus mestres
usavam habitualmente a sátira para combater os vícios de seu tempo. Na carta 108 a
Lucílio, v. g., ele dirá33:
ego certe cum Attalum audirem in uitia, in errores, in mala uitae perorantem, saepe
miseritus sum generis humani [...] cum coeperat uoluptates nostras traducere,
laudare castum corpus, sobriam mensam, puram mentem non tantum ab inlicitis
uoluptatibus sed etiam superuacuis, libebat circumscribere gulam ac uentrem.
[Eu, sem dúvida, com ouvir as perorações de Átalo contra os vícios, os erros e
os males da vida, muitas vezes me compadeci do gênero humano [...] Quando
começava a ridicularizar os nossos prazeres e a enaltecer a castidade do
corpo, a frugalidade da mesa e a pureza da mente, não apenas no que tange
aos prazeres ilícitos, mas também aos absolutamente inúteis, a minha vontade
era cercear os prazeres do estômago.]
O próprio Sêneca não escreverá, por sua vez, uma sátira menipéia, a
Apocolocynthosis, ridicularizando o imperador Cláudio? Não será demais lembrar o mesmo
Cornuto, o estóico erudito e mestre de Pérsio, que, como lembramos no início deste
capítulo, não deixa de ironizar o projeto literário megalomaníaco do imperador.
32
NISARD (1849), pp. 215-216; de resto, Nisard não parece nem muito justo nem cuidadoso em suas
críticas, nem em relação a Pérsio, de quem diz: “Je dois dire en commençant que je fais un médiocre cas de ce
poëte” (p. 201); nem em relação a Cornuto, de quem dirá: “Je juge que l’enseignement de Cornutus se réduisait à
développer des aphorismes stoïciens” (p. 216); nem Quintiliano é poupado, a quem Nisard acusa de ‘très-
contradictoire’, por seu julgamento favorável em relação ao nosso poeta... (p. 218)
33
Sêneca, Ad Lucilium, XVII-XVIII, 108, 13-14. Outros exemplos são arrolados por BURNIER (1903), p.
14.
76
Encerrada a digressão, voltemos à fala de Cornuto. Finalizando sua intervenção
(vv. 17-18), e usando, agora sim, um imperativo (trahe), Cornuto exorta Pérsio a seguir o
estilo dentro dos temas que lhe são próprios e, retomando a metáfora dos banquetes,
encerra dizendo que Pérsio deve buscar as refeições simples, do romano comum, deixando
os banquetes com partes de corpos humanos aos reis de Micenas. Essa alusão remete-nos
ao verso 8, em que Cornuto falara de Tieste, pois, segundo a tradição, foi em Micenas que
ocorreu o banquete macabro, de que tratamos acima.34
[Com efeito, não busco isto, que minha página fique inchada
| com gratuitos
Vestidos de luto, própria para dar peso à fumaça. 20
Estamos conversando entre nós. É para ti agora que, ordenando as Musas,
Oferecemos nosso coração para ser examinado; agrada-me que
| eu possa mostrar-te
Quão grande parte de minha alma é tua, Cornuto,
34
Cf. supra, p. 70.
77
Meu prezado amigo. Faz o julgamento, tu que tens prudência
| para distinguir
Aquilo que ressoa com consistência e o que é apenas revestimento
| de uma língua enfeitada.] 25
hortante Camena: un élan porte le poète à découvrir tout son cœur devant
Cornutus. En faisant honneur de cet élan à la Muse, Perse laisse entendre que son
amitié pour le philosophe n'est pas une source d'inspiration moins haute que celles
dont les poètes épiques ou tragiques prétendent tirer leurs accents.
É por isto que, como afirmará em seguida, Pérsio se atreve a pedir cem vozes: para
que possa mostrar com palavras sinceras (uoce pura, v. 28) o quanto os ensinamentos de
seu mestre estão impressos em sua alma (in pectore fixi, v. 27).
35
Cf. Ovídio, Metamorfoses, VIII, v. 406 e Pônticas, III, 4, v. 69; Horácio, Carmina, II, 17, v. 5. No terceiro
poema de seu primeiro livro de Odes, Horácio dá a seu dileto amigo Vergílio o epíteto de 'animae dimidium
meae' (v. 8) [metade de minha alma].
36
VILLENEUVE (1918²), p. 115.
78
Revelem tudo aquilo que, inenarrável, se esconde nos arcanos de
| minhas fibras.]
37
CONTE (2006), pp. 195-196 (o grifo é do autor).
38
Cf. Lucílio, fragmento 1 do livro XXVII, na edição de Charpin (688-689, ed. Marx).
79
Enfim, sua abertura se justifica: ele pede cem bocas porque pretende narrar o
inefável. enarrabile (v. 29), palavra de uso raro, por sua vez, é retomada de Vergílio
(enarrabile textum)39. Dolç observa, com absoluta justiça, "la perfección técnica de este verso,
lleno de profundo sentimiento : preludio del tono grave del pasaje siguiente".40
[Tão logo deixei – não sem algum receio – minha proteção púrpura, 30
E minha bula ficou pendurada, oferendada aos lares;
Quando os complacentes companheiros e meu escudo branco
| me permitiram
Lançar impunemente meu olhar por toda a Suburra;
Quando o caminho se bifurca e a marcha desconhecida e sem direção
| definida
Conduz nossos espíritos inseguros para encruzilhadas ramosas, 35
Eu me coloquei sob tua tutela.]
Para dar realce ao momento em que se pôs sob a tutela de Cornuto (me tibi
supposui, v. 36), Pérsio se vale de uma anáfora - da conjunção temporal cum –, no início
39
Vergílio, Eneida, VIII, 625.
40
DOLÇ (1949), p. 199.
80
dos versos 30, 32 e 34. Com essa bela estrutura simétrica, o poeta nos apresenta então sua
passagem para a vida adulta:
1) (vv. 30-31) Fala de quando deixou a toga praetexta e consagrou sua
bulla aos deuses Lares,, numa referência à cerimônia em que os jovens romanos,
ao fim dos dezesseis anos, deixavam a toga pretexta para receber a toga viril, a
qual simbolizava a entrada do jovem na vida adulta41. A expressão poética
empregada por Pérsio para significar a toga pretexta é custos42 purpura, pois a
esta toga era guarnecida por uma tira de púrpura43. Além disso, a escolha do
epíteto custos, como observa Dolç, "indica el carácter de dicha toga como
'salvaguardia' de la infancia y símbolo de la santidad."44 A bulla era um medalhão
esférico que a criança recebia no seu batizado – o dies lustricus –, e que trazia
dentro um amuleto para protegê-lo do mau-olhado (fascinum)45. O jovem a
trazia presa ao pesoço, até o momento em que passava para a vida adulta,
quando oferecia sua bulla aos deuses Lares.
2) (vv. 32-33) A Suburra era um bairro em que se viam pessoas e coisas
não apropriadas para crianças; na passagem para a vida adulta, Pérsio pôde
enfim contemplar o que acontecia naquela espécie de 'bairro maldito', com a
complacência de seus companheiros – ancorado na qual, podia vencer sua
insegurança. De fato, a expressão 'companheiros complacentes' (blandi comites)
marca uma oposição a pauido mihi do verso 30. O escudo branco46 é uma
metáfora a significar a 'toga viril', cuja cor era branca.
41
Até os sete anos, o romano é considerado infans; depois, até os dezesseis, puer; no dia 17 de março – dia
das festas em homenagem a Baco – do ano de seu décimo sétimo aniversário, ele ingressa na maioridade,
tornando-se adulescens.
42
custos → no feminino, por se referir a uma toga.
43
Para que não haja dúvida, visto que há pouco falávamos da toga praetexta como a toga própria dos
magistrados romanos: essa toga era usada "pelos principais magistrados nas cerimônias públicas e pelos filhos
dos patrícios com menos de 17 anos" (Gomes Ferreira).
44
DOLÇ (1949), p. 200.
45
Cf. BORNECQUE et alii (1955), p. 166.
46
Dolç, a respeito de umbo, escreve o seguinte: "umbo era propriamente la protuberancia central del escudo,
metafóricamente el conjunto de pliegues que formaba la toga ajustada con elegancia sobre el pecho [...] y, por
consiguiente, la toga misma", DOLÇ (1949), p. 200.
81
3) (vv. 34-35) Os pitagóricos apresentavam a passagem para a vida
adulta como o momento de uma opção entre o caminho à direita, da virtude e
da sabedoria, e à esquerda, caminho do vício e da servidão; representavam eles
essa bifurcação com a letra Y47. Daí Pérsio falar do caminho que se bifurca
nesse momento de passagem, momento a um tempo de incertezas e decisões
fundamentais sobre a condução de nossa vida, e que nos vemos diante dessa
encruzilhada ramosa.
Quando, pois, Pérsio veste a toga viril e ingressa na vida adulta; quando os prazeres
proibidos lhe são apresentados; quando, enfim, ele se encontra no ponto em que a vida lhe
apresenta sua ramificação, em que ele tem de optar pelo caminho a seguir - se o da
virtude ou o dos vícios –, ele encontra Cornuto, e se coloca sob sua orientação. A
expressão utilizada pelo poeta, subponere se alicui (v. 36), é própria da linguagem técnica
jurídica, e indica 'colocar-se sob a custódia de alguém', e, conseguintemente, 'confiar-se a
alguém como um filho ou um discípulo'48.
Expandindo seu elogio, o poeta falará do ensino de seu mestre, que, como Sócrates,
recebe a juventude para lhe apontar, com generosidade, onde se encontram as falhas em
sua compreensão das coisas. Detectada a ignorância, o espírito começa a busca pela
verdade subjacente à aparência enganadora.
47
Pérsio chamará a letra Y, com esse mesmo significado, na terceira de suas sátiras (v. 56), a 'letra com ramos
Sâmios', justamente porque Samos é a ilha em que teria nascido Pitágoras; cf. nosso comentário no capítulo
2.1 deste trabalho, pp. 35-36.
48
Cf. DOLÇ (1949), p. 201. Em Plauto encontramos a expressão sibi supponere puerum, significando
exatamente 'fazer passar um filho por seu' (cf. Cistelária, v. 553 e Truculento, v. 804).
82
E se apresenta sob tua orientação com um aspecto de obra de arte. 40]
49
Podemos lembrar que, de fato, ambos os vocábulos portugueses, 'régua' e 'regra', são evoluções
divergentes deste mesmo vocábulo latino: regula.
50
Uma das imagens mais conhecidas para ilustrar essa tripartição interdependente é a do corpo de um
animal: assim, os ossos seriam a física; os nervos, a lógica; a carne, a ética.
51
Cf. BOURDIN (2009), p. 12.
52
Em realidade, a metáfora já aparece antecipada no verso 39, com a utilização do verbo premitur; cf.
VILLENEUVE (1918²), p. 119.
53
Cf. hic, p. 23.
83
Em seguida, o poeta fala da perfeita afinidade que existe entre ele e seu mestre, e,
com um eficiente jogo de palavras, diz que nasceram sob o mesmo signo – não fica claro
se é Libra ou Gêmeos, em todo caso, a própria referência de ambos os signos traz já em si
a idéia de afinidade: para os antigos, eram as constelações que mais influíam na união das
pessoas54.
54
Cf. DOLÇ (1949), p. 204.
55
O verso 41 é uma clara reminiscência da nona Bucólica de Vergílio (vv. 51-52): saepe ego longos/ cantando
puerum memini me condere soles [Lembro-me de, muitas vezes, ainda menino, passarem os longos dias
enquanto eu cantava].
56
A expressão Parca tenax ueri é calcada em Horácio, que escrevera Parca non mendax e ueraces Parcae,
respectivamente, in: Horácio, Carmina, II, 16, v. 39 e Carmen Saeculare v. 25.
84
Entre os versos 41 e 44, temos o relato do poeta de que ele e Cornuto passavam os
dias dedicados ao estudo, reservando apenas o início da noite para um jantar frugal,
quando então aproveitavam para falar de assuntos amenos. A afinidade de temperamento
sendo definida pelos astros – que Pérsio descreve na seqüência do poema – pode ser um
exemplo dessas conversas travadas durante o jantar.
A influência dos astros, que destina duas almas a se tornarem amigas diletas uma da
outra, já havia sido cantada por Horácio, em seu segundo livro de Odes, para justificar
poeticamente a amizade profunda que o unia a Mecenas57, conselheiro do imperador
Augusto58:
57
Mecenas formou um círculo intelectual que congregou nomes que vieram a se tornar os mais destacados
da poesia latina, como Vergílio, Horácio e Propércio. O auxílio generoso que prestou a artistas
proeminentes foi tão importante e conhecido que acabou fazendo que seu nome passasse a ser usado como
nome comum, com o significado 'patrono das Letras'.
58
Horácio, Carmina, II, 17, vv. 17-24.
59
refulgens = fulgens contra.
60
O significado que Horácio quis dar a pars uiolentior não é absolutamente seguro; para alguns
comentaristas, ele recai sobre as duas constelações (segundo Cerrati: pars uiolentior natalis horae: 'la parte che
più influisce nell'ora della nascita'; in: Odi Scelte, a cura di Michele Cerrati. Torino, SEI, 1946, p. 140); para
outros, ele tem um valor negativo, e liga-se exclusivamente a Scorpios; cf. Horace (1981), p. 81, nota do
Professor Villeneuve ao verso.
61
Quando a constelação de Capricórnio está dominante sobre os céus italianos, costuma haver chuvas
torrenciais sobre o mar Tirreno; o adjetivo hesperius diz respeito ao Ocidente de modo geral; aqui,
conforme M. Villeneuve, refere-se, mais especificamente, a 'águas italianas'; cf. Horace (1981), p. 81.
85
Dificilmente poder-se-ia dizer que Horácio tivesse sincero apreço pela astrologia62;
temos aqui um artifício poético, possivelmente ensejado pelo fato de que Mecenas, ao que
parece, não desprezava o poder de influência dos astros63. Sendo certamente os versos de
Horácio a fonte na qual Pérsio se abeberou para compor sua homenagem a Cornuto,
parece-nos bastante plausível que tenhamos no tema da influência dos astros no destino e
na personalidade das pessoas, como dissemos há pouco, um exemplo das conversações
amenas que Pérsio e seu mestre travavam durante as frugais refeições noturnas64.
Podemos destacar alguns pontos de convergência entre os dois poemas. Ambos os
poetas justificam a amizade que os unem ao dedicatario pela influência do astro que
presidira seus nascimentos65. Ambos falam da constelação de Libra, que era tida como
amplamente favorável. Em Horácio, porém, Libra refere-se especificamente à constelação;
já na construção elaborada de Pérsio, não apenas Libra mas também Gemini, além de
evocarem as constelações, podem ser lidos com seu sentido próprio de 'balança' e '(irmãos)
gêmeos'. Ambos falam que Júpiter, de algum modo, protegeu-os de Saturno. Ocorre que
a influência astrológica de Júpiter era tida como positiva, ao passo que Saturno
apresentava uma influência negativa; na verdade, mais do que isso: o influxo de Saturno
no nascimento de alguém determinava mesmo uma morte precoce.66 Mas a influência de
um astro bom anulava – ou ao menos diminuía – a dos maus.67
62
Cf. em especial a décima primeira Ode do primeiro livro.
63
Cf. Suetônio, Vida de Augusto, 94.
64
Cabe, não obstante, lembrar a afinidade dos estóicos com a astrologia – é verdade que o termo ‘astrologia’
para os estóicos deva ser tomado com sentido mais amplo do que aquele pelo qual hoje é entendido; para
um estudo sobre tal relação, cf. A. JONES, “Os estóicos e as ciências astronômicas”, em especial as pp. 373-
378, in: INWOOD (2006).
65
Pérsio, v. 51 e Horácio, v. 21.
66
Pode-se, outrossim, supor que Horácio, ao chamar Saturno de ímpio, se reporte ao fato de que ele teria –
segundo o mito de Crono, um dos titãs, com o qual Saturno fora identificado – devorado seus próprios
filhos; cf. CERRATI, op. cit., p. 141.
67
Cf. DOLÇ (1949), p. 204.
86
No verso 52, dirá que as espécies de homens são muitas (mille hominum species), e
passará a enumerar diversas ocupações que eles exercem. Tais atividades levam à dispersão
e à alienação, e tardiamente acabam por dar-se conta disso.
68
Segundo Plínio Velho, um dos efeitos provocados pelo cominho era o de provocar a palidez; cf. Plínio
Velho, História Natural, XX, 159.
69
Terêncio, Formião, v. 454. Horácio dissera o mesmo, com outras palavras (Sátiras, II, 1, vv. 27-28): quot
capitum uiuunt, totidem studiorum/ milia [Quantas milhares de cabeças vivem, tantos milhares são os
interesses]; cf. tb. Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 80-81.
87
Entre os versos 54 a 58, enumera, com a anáfora de pronomes demonstrativos (hic,
hic, hunc, ille), diversos caracteres humanos e suas atividades. O vazio a que conduz a alma
que leva uma vida assim é denunciado a partir do verso 58 – quando chegar o momento
de olhar para trás e vir que sua vida foi desperdiçada, virá o arrependimento tardio70. De
fato, podemos entrever nas atividades elencadas, diversas paixões – a avareza, a gula, a
preguiça, a vaidade e a luxúria – que, se não forem domadas e limitadas, acabam por
limitar e domar o homem. Chama a atenção o poeta para o engano de ver nessas coisas
mesmas o sentido da vida, e temos aqui uma reelaboração dos seguintes versos de
Horácio71:
70
Como vimos no capítulo anterior, em sua terceira sátira (vv. 35-38), Pérsio pede como castigo aos tiranos
que eles possam um dia contemplar a virtude que deixaram de buscar, quando se darão conta de que
deixaram de lado o que realmente importava na vida; cf. hic, capítulo 2.1, p. 27 ss.
71
Horácio, Sátiras, I, 4, vv.25-30.
72
i. e., do Oriente para o Ocidente.
88
diz sub sole recenti (sob o sol nascente)73, constrói uma expressão que contém duplo
sentido, pois que, além da idéia do comerciante que acorda cedo para fazer seu negócio74,
temos, como se mostra no verso seguinte, um comércio com produtos vindos do Oriente:
a pimenta da Índia, de que diz rugosum porque era deixada ao sol até ficar escura e
enrugada, e o cominho, vindo sobretudo do Egito e da Etiópia, usado como condimento,
e também para prevenir náusea e acidez no estômago75.
No verso 56, Pérsio menciona o ato de 'inchar-se com o sono irrigante' (turgescere
inriguo somno). Essa imagem se explica pelo fato de que o sono teria a propriedade de
irrigar as artérias cansadas, segundo a fórmula dada por Vergílio, em sua Eneida76: fessos
sopor inrigat artus.
Com a conjunção at (v. 62) marcando uma forte oposição ao que foi exposto nos
versos acima vistos, Pérsio contrapõe aquelas atividades à de Cornuto, que passa as noites
debruçado em livros para poder transmitir aos seus discípulos os ensinamentos de
Cleantes.
73
Cf. surgente a sole de Horácio, v. 29.
74
Mais abaixo, Pérsio apresentará de novo esta idéia, quando elaborar a alegoria da Auaritia, vv. 132-141; cf.
hic, capítulo 3.2, pp. 117 ss.
75
Cf. Plínio Velho, História Natural, XII, 26 e 29, e XIX, 160.
76
Vergílio, Eneida, III, v. 511; cf. também Lucrécio, IV, 904-905.
77
Em alguns manuscritos o es não aparece; seguimos a leitura de Villeneuve.
89
mudança de estado78, em outras palavras, utilizando-o, quer Pérsio aqui representar a
palidez que vai adquirindo seu mestre à medida que avançam seus estudos. Demais, pode-
se ressaltar que Pérsio apresenta em diversos momentos de sua obra palavras que se
referem à 'palidez'79: por vezes com um valor positivo, uma palidez adquirida pela leitura,
estudo e reflexão; por vezes, no entanto, a palidez apresenta um aspecto negativo ligado à
loucura ou à vergonha80.
Em seguida temos uma metáfora em que a figura do mestre, do mesmo modo
como ocorre na famosa 'Parábola do Semeador'81, se confunde com a daquele que deita
sementes à terra. Cícero já chamara a filosofia 'cultura animi'82. O verbo purgare no
contexto da metáfora apresenta a idéia de limpar o campo de pedras e outros obstáculos ao
plantio; não é inusitado esse valor, tendo o mesmo Cícero empregado a construção
purgare locum falcibus a fim de indicar a ação própria para que, em seguida, se pudesse
proceder à semeadura83. O mais ousado da imagem é a mistura de planos, pois dentro da
metáfora aparecem os ouvidos que hão de ser o campo a ser semeado pelas messes de
Cleante. Diga-se ainda que a própria construção inseris aures fruge por inseris auribus
frugem é insólita84.
Temos em purgatas aures um valor material – a limpeza dos ouvidos, feita com
vinagre –, e outro metafórico, significando um espírito que foi preparado para receber a
boa doutrina85. O uso de ouvidos (aures) para indicar o instrumento pelo qual se recebe o
ensinamento é freqüente. Lembremos a primeira Epístola do primeiro livro de Horácio,
em que ele dissera86: nemo adeo ferus est, ut non mitescere possit,/ si modo culturae patientem
commodet aurem [Ninguém é tão selvagem que não possa ser amansado/ Se tão-somente
78
Cf. CONTE et alii (2006), p.176.
79
Além de inpallescere, serão utilizados em sua sátira o adjetivo pallidus, o substantivo abstrato pallor e nada
menos que dez vezes o verbo palleo; cf. BOUET et alii (1978), p. 154.
80
Cf. v. 15 desta mesma sátira: pallescentis mores [costumes que empalidecem (de vergonha)]; cf. supra, p. 72.
81
Mateus 13: 1-8, Marcos 4: 1-9 e Lucas 8: 4-8.
82
Cícero, Tusculanas, II, 5, 13.
83
Cícero, ibidem, V, 23, 65.
84
Cf. DOLÇ (1949), p. 209.
85
Em relação ao uso metafórico de (purgatae) aures, cf. RECKFORD (1962), p. 497.
86
Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 39-40; cf. nossa introdução, pp. 3-4.
90
aplicar um ouvido atento aos ensinamentos]87. Acrescente-se ainda que Cleantes aqui
está metonimicamente pela escola estóica como um todo88.
Em seguida, Pérsio exorta jovens e anciãos a buscar o reto caminho, com uma
exortação que, na realidade, é uma paráfrase à fórmula epicurista para chamar os jovens a
participar da escola. Conforme as palavras da Professora Ilaria Ramelli89:
87
No verso 7 do mesmo poema, Horácio usara a expressão purgatam aurem com o mesmo significado. Cf.
tb. Lucrécio V, 44.
88
Há um estudo de N. Festa que mostra a relação de Pérsio com Cleantes (‘Persio e Cleante’); nele, o
estudioso italiano demonstra que Pérsio traz presente não só o ‘Hino a Zeus’, como outras obras do estóico;
um ponto interessante em relação a tal influência nesta sátira é o fato de que Cleantes costumava apresentar
os vícios de modo alegórico, como Pérsio fará no decorrer do poema; cf. PIA (2007), pp. 3 e 7.
89
Cf. RAMELLI, I. "Saggio Introduttivo", p. 24, in: Cornuto (2003).
91
Já consumimos o amanhã de ontem. Eis que um outro amanhã
Terá levado embora estes anos, e sempre haverá um outro amanhã
| um pouco adiante.
Pois, embora tu estejas próximo, e embora tu estejas sob um único e
| mesmo carro,
Ainda que, como uma roda traseira e no segundo eixo, corras , 71
Em vão ficarás tentando alcançar a roda que gira à frente.]
90
Cf. hic, capítulo 2.1, pp. 17 ss.
91
Cf. RECKFORD (1962), p. 484.
92
3.2 Solum sapientem esse liberum, et omnem stultum seruom
1
"Esta transición a la necesidad de la libertad, aunque parezca abrupta, es lógica y natural si se piensa en el estado
de esclavitud moral a que está sometido quien se pasa la vida difiriendo siempre el estudio de la sabiduría"; DOLÇ
(1949), p. 210
2
A crítica textual apresenta aqui divergências com relação à pontuação: para alguns editores ela deveria ser:
‘libertate opus est. non hac: [...]’ (Villeneuve, Clausen). Para outros, a leitura mais adequada seria: ‘libertate opus
est non hac: [...]’ (Nikitinski).
Públio tem direito a receber uma cota de farinha mofada ao apresentar
Sua senha. Ah estéreis da verdade!, aos quais uma volta sobre si mesmo
Gera um Quirite. Este Damas é um palafreneiro que não vale três tostões.
Remelento por causa do mau vinho e mentiroso até por um
| insignificante grão.
Seu senhor o faz dar uma volta sobre si mesmo, e no espaço do tempo
| de um giro
Eis que sai Marco Damas. Caramba! Sendo Marco fiador, recusas-te tu
A emprestar dinheiro? Empalideces quando Marco é juiz? 80
Se Marco disse, é verdade. "Marco, assina o contrato."
Esta é a liberdade pura! Os barretes no-la proporcionam!]
3
tessera é, em linguagem técnica, a senha que se precisava apresentar para que se obtivesse o alimento,
quando de sua distribuição.
94
descuidado. Percebendo, porém, que as frumentationes necesariamente acabariam
voltando, devido à sua popularidade, desistiu do intento4.
Em todo caso, o objetivo de Pérsio é certamente mostrar que a liberdade civil não
é liberdade genuína, por isso ele usa a forte expressão steriles ueri ao referir-se àqueles que
acreditam que a manumissio pode transformar uma pessoa, como que por encanto, de
escravo em um ser humano pleno de liberdade. O ato da manumissio consistia dos
seguintes passos: na presença de um praetor, o lictor, depois de tocar o escravo com uma
vara – a qual Pérsio designa, no verso 88, por uindicta; no verso 175, por festuca –,
pronunciava a fórmula 'hunc hominem liberum esse aio'. Em seguida, o dominus tomava a
mão do escravo – donde a designação manumissio –, e, como sinal de que este estava livre
para ir para onde quisesse, o fazia dar uma volta sobre si mesmo (uertigo, v. 76). Por fim,
ratificando as palavras do lictor, dizia 'hunc hominem liberum esse uolo'. 5
Como exemplo de que este ato transforma a condição social da pessoa, mas não ela
própria, Pérsio mostra o palafreneiro6 Marco Damas7, um escravo cuja conduta sempre
fora desprezível, a ponto de, a par de ser preguiçoso e 'beberrão', chegar a mentir para
obter em troca um insignificante grão. Será que, ao receber a sua manumissio, ele
imediatamente se tornará, ipso facto, um cidadão respeitável? Alguém o aceitaria de bom
grado como fiador? Não ficarás pálido se Damas te aparecer como juiz? Passariam a ser
tidas como confiáveis todas as coisas que ele diz?
Pérsio, no verso 81, exclamará ironicamente: haec mera libertas! (Esta é a liberdade
pura!), isto é, complementa, aquela libertas que os pillea representam. A forma pilleum é
rara em textos literários, tendo sido empregada anteriormente por Plauto; no uso comum,
era masculina – pileus. A opção de Pérsio por pilleum possivelmente também traga sua
carga de ironia, fazendo referência a um falar desleixado, quiçá próprio de um Marco
4
Suetônio, Vida de Augusto, 42, 4.
5
Cf. Tito Lívio II, 5, 10.
6
A imagem de um servo como alguém inepto é proverbial; é famoso o verso de Varrrão (Sátira Menipéia, v.
367B): infantiorem quam meus est mulio [É mais incapaz que meu almocreve]. Horácio já usara o mesmo
agaso que aparece em Pérsio, em referência a um camarista desastrado, incapaz de servir um prato sequer
sem criar problemas (Sátiras, II, 8, v. 72); cf. tb. TOSI (2000), p. 193, § 415.
7
O nome Damas para um escravo é também freqüente em Horácio; cf. VILLENEUVE (1918²), p.128.
95
Damas. Seja como for, o pileus – ou pilleum – era o gorro que o recém-liberto punha em
sua cabeça para indicar sua nova condição8.
Convém lembrar que, nesta separação entre liberdade civil e liberdade espiritual,
Cornuto era, ele próprio, um liberto, ao que tudo indica da gens Annaea, e, como sugere
Ramelli9:
questa riflessione poteva essere ben presente negli insegnamenti del maestro di
Persio, ad esempio come l'esperienza personale dell'esilio è ben presente nelle
Diatribe di Musonio Rufo. Persio prosegue, forse proprio ricordando le
considerazioni di Cornuto, che libertà non significa vivere come ci pare e che non
basta questo per essere, iperbolicamente, 'più libero di Bruto', colui che assassinò
Giulio Cesare in nome, appunto, della libertas – ma intesa in senso politico.
Uma voz surge para contrapor-se, e o poeta então é questionado sobre o que seria
a liberdade, se não for ela poder fazer aquilo que se deseja.
"E por acaso alguma outra pessoa é livre, se não aquela a quem
| é permitido conduzir sua vida
Como ela bem entende? É-me permitido viver como eu quero:
Não seria eu mais livre que Bruto?" "Fazes uma falsa dedução" , responde
Este estóico, tendo lavado seu ouvido com acetona mordaz: 86
"Aceito esta parte: 'é permitido'; mas suprime aquele 'como eu quero.'"
"Depois que, recebido o golpe da varinha, eu me afastei do pretor,
| como senhor de mim mesmo,
Por que não me seria permitido (fazer) o que quer que tenha
| ordenado a vontade,
Exceto aquilo que a rubrica de Masúrio Sabino11 tiver proibido?" 90
8
Cf. Pérsio, 3, 106, cf. hic, capítulo 2.2, p. 54.
9
RAMELLI, I. "Saggio Introduttivo", pp. 24-25, in: Cornuto (2003).
10
Clausen prefere aqui a versão 'corrigida' uetabit; seguimos neste passo a opção de Villeneuve.
96
A indagação do interlocutor é introduzida pela partícula an; com ela, indica que
sua pergunta de fato é retórica, ou seja, ele quer deixar manifesto que, em sua opinião, a
resposta à questão proposta é necessariamente negativa12. Com isso, marca claramente que
não consegue imaginar pessoa mais livre do que aquela a quem é permitido viver
conforme sua vontade. Para tornar sua fala mais impactante, o interlocutor evoca a figura
de Bruto – em uma pergunta retórica em que se vale de um subjuntivo de protesto (non
sim /liberior Bruto?, vv. 84-85)13 –, com o que quer mostrar que nem ele, Bruto, o
símbolo da liberdade romana, pode ser mais livre do que aquele que tem em suas mãos a
condição de conduzir seu destino seguindo os rumos apontados por seus anseios14.
Como vimos há pouco, para a professora Ilaria Ramelli, a personagem invocada,
Bruto, é o assassino de César; porém, de fato, nada impede que o interlocutor se refira
(também) ao primeiro cônsul de Roma15: ambos ligaram seu nome à libertas, entendida do
ponto de vista político. Essa referência evidencia novamente que o interlocutor de Pérsio
está sempre e necessariamente relacionando liberdade à liberdade civil. Como exemplo
diverso, podemos ver Epicteto que, ao buscar personagens históricos para ilustrar seu
conceito de pessoas livres, lembra o cínico Diógenes e Sócrates: não porque fossem
libertos ou filhos de homens livres, mas porque nada nem ninguém tinha o poder de
aprisionar sua alma.16
O estóico que a seguir toma a palavra teve seus ouvidos purgados com acetona
mordaz. Como já vimos, a palavra aures é empregada muitas vezes com o sentido de
11
"Masurio Sabino era un famoso jurista de los tiempos de Nerón [...] ; fué autor de obras de derecho civil, donde
comentaba las antiguas y contemporáneas disposiciones legales. Se escribían en minio los títulos o primeras palabras
de cada ley : de donde, la voz rubrica, significando texto o página [...] ; parece ser éste el primer pasaje poético en
que se usa rubrica en el sentido que había tomado en la lengua jurídica." DOLÇ (1949), p. 214.
12
Cf. CONTE (2006), p. 50.
13
A lição dos melhores manuscritos, faça-se esta ressalva, hesita entre a forma sim e a forma sum; a mesma
hesitação é encontrada nos editores.
14
Construção semelhante à de Pérsio (cui licet ut libuit, vv. 83-84), fora empregada por Cícero, em
referência à liberdade de expressão: cui quod libet hoc licet [A quem é lícito aquilo que (lhe) agrada] (Filípicas
I, 13, 33). Interessante é a reflexão, com o aproveitamento da mesma paronomásia – licet / libet –, feita por
Santo Agostinho: ne fiat quod non licet etiamsi libet [Para que não se faça o que é não lícito, ainda que agrade]
(Cidade de Deus, XXII, 23).
15
Nikitinski, por exemplo, ao comentar o nome Bruto (v. 85) afirma, peremptoriamente: "L. Iunius Brutus,
qui populum Romanum a rege Tarquinio Superbo oppressum in libertatem uindicauit". (2002), p. 226.
16
Cf. Epitcteto, Discursos, IV, 1, 151-169.
97
'instrumento com o qual se recebem os conhecimentos de um mestre'; os ouvidos
purgados são aqueles que apreenderam as boas lições17. A iunctura – acris, sem dúvida –
entre o substantivo 'acetona' (acetus) e o adjetivo 'mordaz' (mordax, v. 86) põe em relevo o
fato de que, no aprendizado, muitas vezes o tom satírico é empregado para que se possa
fazer entender o ridículo de verdades aparentes e falsas idéias18. O Stoicus quer fazer seu
interlocutor ver que, diferentemente do que este supõe, não basta a liberdade civil para
que se possa fazer o que se queira. Parece-nos plausível a hipótese de que, ao dizer que a
liberdade interior é a única verdadeira, Pérsio também nos esteja a dizer que muitas vezes,
como nos tempos de Nero, ela é a única verdadeiramente permitida, e então um segundo
nível de leitura nos trouxesse outra vez uma crítica política cifrada em sua sátira. Trilha
por esse caminho a tese de Coviello19:
El adversario concluye que la libertad que le acaban de otorgar le permitirá ser más
libre que Bruto, y el estoico de orejas lavadas con vinagre intenta desengañarlo: la
libertad civica nada vale mientras el poder de un solo hombre esté supra leges, y el
ejemplo más claro en este sentido es, precisamente, el caso de Tarquinio al que se
alude con la mención de Bruto. De esta manera, Persio consigue establecer un
paralelismo entre las situaciones políticas a las que se refiere y su propio presente
de enunciación, esto es, entre la situación de injusticia y despotismo con las que
Bruto acaba, y un presente político en el que el poder absoluto habitualmente
degenera en tirania, con la diferencia de que el presente aún no ha dado Bruto
alguno que valga. Sin mencionar a Tarquinio, y sin mencionar a Nerón, Persio
pone a ambos en relación al cuestionar la validez de la actual libertas civica y
distanciarla del tipo de libertad que Bruto había conseguido para los romanos en el
pasado.
17
RECKFORD (1962), p. 497.
18
Cf. hic, capítulo 3.1, p. 76.
19
COVIELLO (2005), pp. 314-315.
98
deixar claro que as idéias modernas de liberdade civil de um indivíduo não são as mesmas
que possuía um romano. No dizer de Ortega y Gasset20:
[el] sentido negativo de libertas – vida pública sin reyes – tiene, por fuerza, su
reverso positivo, a saber: vida pública según las instituiciones republicanas y
tradicionales de Roma. [...] Por tanto, Cicerón se sentía libre cuando era mandado
por las magistraturas, conforme las leyes que el pasado romano había establecido
hasta la fecha. Ahora bien, esas leyes no habían jamás ortogado ninguna de las
libertades que proclamó el liberalismo europeo contemporáneo ni, en verdad,
ninguna otra parecida. La constituición política de Roma no fué nunca
'liberal'. Y, sin embargo, se sentía libre bajo ella nuestro Cicerón.
[Aprende: mas que de teu nariz caia tua ira e um rugoso gracejo,
Enquanto arranco de teu pulmão velhas avozinhas.
Não era tarefa do pretor dar aos tolos os sutis deveres morais das coisas,
E, mais ainda, permitir o imediato bom uso da vida; 94
21
Mais rapidamente poderás adaptar uma sambuca a um valete
| bem fornido.
20
ORTEGA Y GASSET (1960), pp. 119-120; o grifo que consta da citação é do autor.
21
Instrumento grego; espécie de lira com várias cordas, semelhante a uma harpa.
99
A razão se levanta contra (isso), e sussurra em teu ouvido
Que não é lícito fazer-se aquilo que alguém que, ao fazê-lo,
| cometerá um erro.
A lei comum dos homens e a natureza contêm esta norma sagrada:
Que a ignorância incapaz se abstenha de ações que lhe são vetadas.
Preparas o heléboro não sabendo parar o fiel da balança 100
No ponto certo? A natureza do ofício do médico te proíbe de exercer
| a profissão.
Se um arador de belas botas que desconhece a estrela da tarde
Pedir um navio, Melicertes há de exclamar que já não existe
Vergonha de nada.]
22
Pérsio 1, vv. 107-110.
23
Pérsio, 1, vv. 116-118.
24
Cf. SCHERER (2004), pp. 76-77.
25
Talvez aqui possamos encontrar ainda um indício de que Nero é intermitentemente evocado como
interlocutor ou personagem na sátira persiana.
26
Cf. BROUWERS (1973), p. 253.
27
Referências às aniles fabellae, com esse preciso sentido, são encontradiças na literatura latina; cf. Cícero, De
Natura Deorum, III, 5, 12 e Horácio, Sátiras II, 6, 77. Tosi apresenta diversos exemplos na literatura clássica,
em que se marca clara oposição entre o que seriam superstitiones aniles (expressão cunhada por Cícero, De
Natura Deorum, II, 28, 70) e a verdade filosófica; cf. TOSI (2000), p. 313-314, §657.
100
pulmo (v. 92) pode ser entendido como praecordia ou pectus; a opção por essa palavra,
contudo, não é gratuita, e remete ao início do poema, em especial aos versos 10 a 13 desta
sátira28.
Na seqüência, a liberdade como algo que somente o sábio pode alcançar – própria
ao estoicismo e que é o mote desta sátira – aparece na declaração de que o pretor, ao
oficializar a manumissio29, não tinha o poder de também transmitir sabedoria ao liberto;
assim, fora este um stultus e sua manumissio não lhe pudera trazer a mera libertas. As
sutilezas que se escondem por detrás de um conceito pouco claro30, as razões para os
deveres morais e as coisas que se devem pesar para que se possa escolher o justo em
momentos de divergência31, enfim as coisas cujo conhecimento é fundamental para se
alcançar a liberdade verdadeira, e que Pérsio apresentará em resumo entre os versos 104 e
112 – nada disso será magicamente recebido por alguém que possui liberdade civil: é
necessária a busca da sabedoria. Este é o bom uso da vida, e, com uma imagem cômica,
faz ver que ensinar isso a um tolo é mais difícil do que um sujeito grosseiro – a aparência e
o ofício traduzem fisicamente aqui sua alma32 – possa se adaptar a um instrumento
delicado, difícil e requintado como o era a sambuca, a qual costumava ser, aliás, executada
por uma mulher.
A liberdade de poder fazer o que se quer, enfatizada pelo interlocutor, apresenta
limites justamente na falta de conhecimento, como Pérsio mostra nos versos seguintes.
Assim, se alguém de condição livre sente a vontade de ser médico, ele não estará
automaticamente livre para exercer tal profissão. Para fazê-lo é necessário conhecimento
sobre a arte da medicina. Se um homem do campo cujo conhecimento das coisas do mar é
insignificante quiser comandar um navio, Melicertes – filho que Ino arrastou consigo
quando se jogou no mar, e que se transformou em Palemão33, deus marinho – ficará
indignado com a falta de vergonha que grassa nos tempos hodiernos.
28
Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 71-72.
29
Cf. supra, p. 95.
30
Cf. a introdução a este capítulo.
31
Cf. Pérsio 4, vv. 10-13.
32
calo altus, v. 95.
33
Os romanos assimilaram o deus Palemão a sua divindade Portunus, cujo atributo principal é o de ser um
deus marinho a quem compete tomar conta dos portos.
101
A ignorância – e este é um postulado que a própria natureza traz em si como
norma sagrada – deve abster-se de ocupar cargos para os quais não está preparada: a cada
um seu ofício, cada um exerce atividades para as quais está preparado. Os versos em que o
poeta menciona coisas que, por esta mesma razão – de não serem conhecidas –, seriam
ilícitas estão calcados nesta passagem da epístola que abre o segundo livro de Horácio34:
No prosseguir de sua sátira, Pérsio lançará uma série de interrogações que levam à
reflexão a respeito do que seria o recte uiuere, a ser conquistado por meio da filosofia: saber
diferenciar das aparências o que é verdadeiro, e aquilo que devemos buscar do que
devemos evitar; ser moderado, austero, afável para com os amigos; não ser pródigo nem
avaro.
34
Horácio, Epístolas, II, 1, vv. 114-116.
35
Planta medicinal.
102
tibi recto uiuere talo
ars dedit et ueris speciem dinoscere calles, 105
ne qua subaerato mendosum tinniat auro?
quaeque sequenda forent quaeque euitanda uicissim,
illa prius creta, mox haec carbone notasti?
es modicus uoti, presso lare, dulcis amicis?
iam nunc adstringas, iam nunc granaria laxes, 110
inque luto fixum possis transcendere nummum
nec gluttu sorbere saliuam Mercurialem?
Usando de perguntas, pois, nosso poeta faz ver uma série de requisitos para alguém
poder dizer-se verdadeiramente livre, coisas que estão muito além da simples manumissio.
As perguntas não se apresentam, porém, despidas de cores; ao contrário, Pérsio lança mão
de recursos estilísticos vários para torná-las mais vívidas, com o fito de gerar no ouvinte
maior interesse, evitando com isso que um discurso monocórdio – mesmo que justo – crie
dispersão na atenção do público. Assim, o poeta desafia os que se dizem verdadeiramente
livres a antes de mais nada se perguntarem se conseguem realizar plenamente as seguintes
condições:
1) Saber distinguir o verdadeiro do aparente (vv.104-106): A ars para os
romanos referia-se tanto à conduta, maneira de agir, quanto à habilidade ou o
conhecimento técnico para a realização de algo. Assim, temos diversos títulos de obras
que tratam de conhecimentos específicos para realizar determinados ofícios com o título
103
de ars.36 No verso 105, o uso da palavra ars por Pérsio refere-se claramente à filosofia, por
meio de cujo estudo se alcança o conhecimento, o qual possibilita o reconhecimento da
ilusão e, conseguintemente, sua evitação; na célebre definição de Sêneca, lemos 'sapientia
[...] ars uitae est'37. A expressão rectus talus (v. 104) é a imagem a indicar uma vida em que
se tem firmeza pela capacidade de reconhecer o verdadeiro sem se deixar seduzir pelo
falso, e em que não se corre o risco de dar um mau passo. É ela tomada de Horácio, o
qual, numa dura crítica que faz a Plauto, diz que este quer encher seus bolsos de moedas,
não importando se para isso38 "cadat an recto stet fabula talo" [o enredo da peça fique
firme de pé ou tombe ao solo]. O som produzido pela moeda como metáfora para
identificar quando algo é verdadeiro e quando é uma falsificação era, ao que tudo indica,
proverbial39; em todo caso, a comparação entre filósofo e um experto em moedas não é
estranha ao estoicismo. Uma passagem em que Epicteto usa a mesma metáfora, e com o
mesmo intuito, é bastante ilustrativa40:
2) Saber distinguir entre o que é bom (e deve ser seguido) e o que é mau (e
deve ser evitado) (vv. 107-108): Após podermos divisar a realidade com firmeza, cabe-nos
36
Assim, temos desde a Ars Poetica de Horácio até obras que brincam com esse conceito de 'livro para
ensinar determinado ofício', como a Ars Amatoria (ou Ars Amandi), de Ovídio.
37
Sêneca, Ad Lucilium, 117, 12.
38
Horácio, Epístolas, II, 1, 176.
39
Cf. DOLÇ (1949), p. 218.
40
Epitcteto, Discursos, I, 20, 7-11.
104
saber fazer a separação dentro dela entre o que é bom e o que é mau. O bem moral como
escopo principal da vida era, com efeito, fundamento essencial da moral estóica, daí
primeiramente encontrar o bem (prius, v. 108), conforme bem define M. Villeneuve41:
illa prius 'celles-là d'abord', parce que la position du bien moral comme fin de la
vie était le principe fondamental de l'éthique stoïcienne. La vertu, pour les stoïciens,
était quelque chose de positif: 'vivre conformément la nature'; le vice, étant la
violation de cette loi, se définissait après la vertu et par rapport à elle.
Quanto à imagem usada por Pérsio, i. e., marcar algo positivo (quae sequenda) com
pedras brancas e algo negativo (quae euitanda)42 com pedras negras, ela já fora empregada
em contextos algo diversos pelo autor em outras sátiras. Na primeira sátira, após receber a
ameaça da littera canina43, ele diz ironicamente que tudo então para ele passará a ser honesto
– o termo que ele emprega é albus, que se tornara ao lado de niger proverbial para
distinguir o inocente e o culpado, respectivamente44. Na segunda sátira, Pérsio faz uma
homenagem a seu amigo Macrino, no dia de seu aniversário; para tanto, diz45: "hunc,
Macrine, diem numera meliore lapillo, / qui tibi labentis apponet candidus annos" [Marca este
dia, Macrino, com a melhor pedrinha / Que, branca, acrescentará para ti um ano aos anos
que passam]. A menção a um albus lapillus faz remissão ao costume de assinalar um dia
particularmente feliz com uma pedrinha branca, que acabou tornando proverbial a
expressão46. Segundo Plínio Velho, os trácios tinham por costume colocar numa arca uma
pedra branca para contar os dias felizes e uma negra para os tristes. No final da existência,
contavam-se as pedras para fazer um levantamento de sua vida.47
41
VILLENEUVE (1918²), pp. 135-136.
42
"Les expressions sequenda et euitanda répondent aux termes αἱρετά et φευκτά que les stoïciens appliquaient
aux vertus et aux vices (cf. Sén. : Épist. 71, 2 : 'quotiens quid fugiendum sit aut quid petendum')", VILLENEUVE
(1918²), p. 135.
43
Cf. supra, p. 100.
44
Cf. SCHERER (2004), p. 78.
45
Pérsio, 2, vv. 1-2.
46
Cf. Plínio Jovem, Ep. VII, 11, 3: diem notare candido calculo; cf. Catulo, 68, 147 e Marcial, IX, 52, vv.4-5;
cf. também: ELVIRA, A. R. de. "Albo lapillo." in: Cuadernos de Filología Clásica - Estudios Latinos, 1 (2003),
pp. 37-43.
47
Plínio Velho, História Natural, VII, 131; cf. DOLÇ (1949), p. 116.
105
3) No verso 109, Pérsio menciona características pertinentes a um sábio, a
humildade, a afabilidade, a generosidade. Pérsio faz uma ligeira mudança na fórmula
consagrada de dulcis amicus, que ele passa a dulcis amicis; o sentido geral permanece o
mesmo, mas a expressão – que, ao que tudo indica, é uma novidade persiana48 – realça a
nossa ação frente ao outro. Nos versos seguintes, o poeta empregará o subjuntivo
potencial para indagar do interlocutor se ele é capaz de não ser pródigo nem avarento, se
ele é capaz não ser movido pela ganância. A divertida expressão saliua mercurialis (v. 112)
une a fórmula corrente mouere saliuam49 a Mercúrio, que, a par de ser o mensageiro dos
deuses, era também considerado o deus do lucro e da ganância. Talvez também possamos
ver com Dolç uma assacadilha de Pérsio dirigida contra os comerciantes de Roma, que
formavam a corporação dos 'mercuriales'50.
Serás livre quando puderes dizer verdadeiramente que alcançaste essas coisas; afinal,
a sabedoria, a liberdade e as virtudes são interdependentes, conforme nos ensina a
primeira parte do paradoxo estóico: solus sapiens est liber.51
48
Cf. DOLÇ (1949), p. 219.
49
Cf. expressões nossas, como 'salivar' ou 'ficar com água na boca'; Petrônio emprega construção
semelhante, em que a expressão está em sentido próprio, i. e., refere-se a um prato saboroso (48, 2): quidquid
ad saliuam facit [Tudo aquilo que dá água na boca]. Em sentido metafórico, aparece também em outros
autores; Sêneca, por exemplo, escreve (Ad Lucilium, IX, 79, 7): Aetna tibi saliuam mouet [O Etna te dá água
na boca], ou seja, a contemplação do vulcão provoca em Lucílio a vontade de escrever poemas.
50
Cf. DOLÇ (1949), pp. 219-220.
51
Cf . Horácio, Sátiras II, 7, vv. 83-84: ‘quisnam igitur liber? sapiens, sibi qui imperiosus, / quem neque pauperies
neque mors neque uincula terrent’.
106
(Assim sendo), retiro o que acima te outorgara e puxo de volta a corda.]
Para o interlocutor afirmar que é livre terá de poder dizer que possui as virtudes
elencadas a partir das perguntas feitas por Pérsio entre versos 104 e 112; a expressão
empregada pelo satírico na abertura do verso 114, haec mea sunt, é tomada de empréstimo
a uma fórmula jurídica usada para expressar solenemente direito de propriedade52. Ao
dizer, em seguida, esto liberque ac sapiens, Pérsio invoca, para tal, o favor de Júpiter e dos
pretores. Há de fato aqui um jogo de palavras: os pretores eram os magistrados
encarregados da manumissio53, e Ioue dextro faz alusão ao epíteto Liberator, dedicado a
Júpiter, i. e., era ele considerado o deus protetor da liberdade. Pode-se também lembrar
que era Júpiter o deus supremo dos estóicos, alma e razão soberana do mundo. liberque ac
sapiens, embora seja um equivalente sintático de et liber et sapiens, apresenta, no entanto,
uma especificidade semântica que justifica o opção do poeta por aquela forma: a
conjunção ac é usada sobretudo para dar relevo ao termo que introduz, sublinhando "il
passaggio dal membro più debole al più forte"54. Marca, pois, Pérsio, fazendo-a introduzir
sapiens, a precedência da sapientia em relação à libertas.
Mas se o interlocutor não puder cumprir os requisitos listados, então ele deve
deixar de lançar jactâncias sobre a sua liberdade, e admitir que no fundo não passe de uma
pessoa como as demais, ou seja, subjugada por paixões e vícios. Pérsio usa uma expressão
proveniente da linguagem comum, nostra farina55. O possessivo nostra tem caráter
sociativo e de modéstia, inclui Pérsio no rol das pessoas que ainda buscam a sabedoria e,
conseqüentemente, a liberdade. Mais uma vez fica patente aqui que a crítica que se fez
muitas vezes ao poeta, de que se coloca de fora e/ou acima para exigir dos outros uma
perfeição sobre-humana, é infundada e injusta.
Nos versos 116 e 117, Pérsio sobrepõe referências, tornando o dístico talvez um
pouco carregado demais. No entanto, há que se ressaltar a justeza das evocações persianas.
52
Cf. VILLENEUVE (1918²), p.137.
53
Cf. supra, p. 101.
54
Cf. CONTE (2006), pp. 236-237.
55
nostra farina: equivalente à nossa expressão coloquial = '(és) farinha do mesmo saco (que nós)'.
107
Fedro, em Leo et asinus uenantes 56 , retoma uma fábula de Esopo, com pequena
modificação de cenário57. Nesta fábula, o leão esconde o asno sob folhagens, e ordena que
ele comece a soltar os sons mais aterrorizantes que puder. Quando este se põe a gritar, os
animais começam a fugir assustados, e o leão, que esperava em um ponto do caminho,
passa a abatê-los um a um. Depois que estava cansado da carnificina, pede ao asno que
silencie seus berros; este então pergunta como lhe parecera sua voz, e o leão: "insignis,
inquit, sic ut, nisi nossem tuum/ animum genusque, simili fugissem metu" ["Admirável",
responde, "de tal modo que, se não conhecesse tua coragem e tua raça, eu também teria
saído fugindo com semelhante medo"]58. É exatamente essa a idéia aportada por Pérsio,
quando diz que, embora possa ter mudado sua aparência e estar fronte politus, o
interlocutor não abandonou sua pelliculam ueterem ao se tornar um liberto59, i. e., continua
não sendo mais do que um stultus.60
Essa distinção entre a beleza aparente e a beleza interior já havia sido apresentada
pelo volaterrano em outras sátiras. Faremos aqui um breve parêntese, para apresentar um
excerto da quarta sátira em que vemos a mesma crítica, apresentada de maneira bastante
apurada pelo poeta. Nos versos 14 a 16 da quarta sátira, ao criticar o jovem que anseia
pelo poder, sem possuir ainda sabedoria para isso, diz que a beleza deste é apenas exterior,
56
Fedro, I, 11.
57
Enquanto em Esopo o jumento entra numa caverna para não ser reconhecido, Fedro cobre o asno com
ramagens, cf. Esopo (1999), p. 202.
58
Na segunda fábula do livro 4, Fedro apresenta a mesma idéia, em forma de máxima: "non semper ea sunt
quae uidentur dispici".
59
Demais, parece que a imagem do liberto que permanece com sua 'antiga pele' era comum. Platão, no
Alcibíadesˡ, usa expressão equivalente ao fazer referência a libertos provenientes do Oeste da Ásia: "gente que
procura administrar os negócios públicos enquanto ainda possui cabelos de escravo." (O grifo é do tradutor).
60
Fica esclarecida, assim, a aparente contradição que alguns comentadores quiseram ver entre 'mudar a
aparência' e 'manter a mesma pele', cf. VILLENEUVE (1918²), p. 119. A famosa expressão bíblica 'lobo em
pele de cordeiro' talvez possa também ajudar a explicar esse ponto. Em uma de suas parábolas, Jesus
aconselha a que se tome cuidado com os falsos profetas, "qui ueniunt ad uos in uestimentis ouium, intrinsecus
autem sunt lupi rapaces" (Mt, 7, 15). Podemos claramente entender que as vestes ou a pele de cordeiro é uma
pele falsa, que apenas na aparência se incorpora em quem a veste. Em verdade, por baixo da pele do
cordeiro, a pele do lobo permanece intacta, i. e., ele não trocou propriamente de pele, apenas ocultou a
verdadeira para praticar o dolo. Parece-nos, por fim, interessante ressaltar que a traiçoeira aparência, neste
caso, tenha um escopo exatamente oposto ao do asno na fábula de Fedro, que buscava aparentar ser muito
mais feroz do que era de verdade. Em todo caso, em ambas as histórias, temos uma aparência que é usada
como meio de enganar o homem desprevenido.
108
e deixa a entender que, no fundo, ele está louco, ao sugerir que deixe de beber o heléboro,
bebida que era usada no tratamento da loucura61:
Na continuação da quarta sátira, Pérsio mostra que, para seu interlocutor, o que há
de mais importante, o mais elevado bem, a par do poder, são a beleza exterior
(representado no verso 19 por uma pele curada com o contínuo banho de sol), prazeres –
em especial, aqui, os da mesa – e nobreza de linhagem. O que torna sua opinião sobre o
Bem tão perspicaz como a de pessoas vulgares, como uma velha e enrugada verdureira,
preocupada em vender manjericão a um escravo desleixado.
61
Pérsio, 4, vv. 14-16.
62
Horácio, Sátiras II, 3, v. 166; também no verso 83, Horácio fizera referência ao mesmo local, com o
mesmo intuito.
63
Commentum Cornuti (2004), pp. 98-99.
109
cum bene discincto cantauerit ocima uernae.
O contraste com que Pérsio apresenta essas duas personagens – que afinal possuem
a mesma profundidade moral – é cômico: Pérsio contrapõe o adjetivo pannucia (v. 21) ao
candidus (v. 20); assim, apresenta duas pessoas exteriormente absolutamente
dessemelhantes (e certamente essa aparência de trapos da velha verdureira haveria de
causar asco no Alcibíades do diálogo de Pérsio66). O prazer encontrado nos cardápios
refinados é contraposto ao manjericão vendido a um escravo displicente. E, em
contraposição à nobre linhagem de Alcibíades67, temos Baucis, uma velha verdureira68. Ou
seja, há uma oposição a todas as qualidades apontadas como importantes para o
interlocutor, mas a sabedoria vulgar dessas pessoas vulgares – que, na aparência, em tudo
diferem de Alcibíades - é equivalente à do jovem político.
64
Alcibíades é filho de Dinômaca, descendente dos Alceônidas.
65
Lit. 'branco'; cf. supra, p. 110.
66
Há, inevitavelmente, nesse Alcibíades persiano, referência a Nero.
67
O tema do orgulho pela nobreza da linhagem já aparecera na sátira 3; cf. hic, capítulo 2.1, p 25.
68
O nome Báucis parece remeter à esposa de Filemão; a história desse casal de anciãos é muito conhecida, e
foi contada por Ovídio, no oitavo livro de suas Metamorfoses (vv. 640 e ss.). Alguns autores, contudo,
discordam de que haja aqui essa referência, e pensam tratar-se de outra personagem, cf. DOLÇ (1944), pp.
179-180. O escoliasta diz apenas "Baucis nomen fictum inopis anus", Commentum Cornuti (2004), p. 100.
110
– segundo a imagem desenhada pelo poeta –, pelas 'intenções que se ocultam sob a (pele
da) raposa' (animi sub uulpe latentes)69. Para o peito onde a astuta raposa é mantida, Pérsio
encontra um adjetivo tão insólito quanto merecido: uapidus. Propriamente, esse adjetivo –
ligado etimologicamente ao substantivo uappa (vinho estragado), empregado no verso 77
desta sátira, justamente quando é apresentado um recém-liberto cujos valores morais são
baixíssimos70 – caracteriza o vinho evaporado e/ou que perdeu sua força, isto é, que já se
estragou, azedou.
Tendo em vista que está evidente que o interlocutor continua o mesmo que era
antes da manumissio, Pérsio puxa de volta a corda que havia deixado solta – referência
certamente a cordas ou correias com as quais animais de estimação são amarrados, e às
quais, depois de terem eles passeado à vontade por algum tempo, voltam a ser sujeitos –, e
retira aquilo que lhe outorgara nos versos 113-114, isto é, esto liberque ac sapiens.
Na seqüência, conclui o poeta: como pensas que podes ser livre, se nada alcançaste
por meio da razão?
A razão não te concedeu nada; erras até quando estendes o dedo, 119
E, no entanto, que pode ser tão pequeno? Não alcançarás bons presságios
| graças a um incenso,
De modo a que nos tolos possa ficar impregnada uma migalha do que é o
| correto.
Misturar essas coisas é um sacrilégio, e, como não passas de um rude peão,
Não conseguirias dançar nem mesmo três compassos de um sátiro
| de Batilo.]
69
Horácio, Ars Poetica, 437; cf. SCHERER (2004), pp. 56-58.
70
Cf. supra, p. 93 ss.
71
Alguns autores, como Villeneuve, preferem a variante satyri (Bathylli); além disso, há divergências quanto
a se tratar de uma peça com o nome de 'O Sátiro' – opção de Clausen – ou de uma personagem interpretada
por Batilo. A nossa opção leva em conta o fato de que um sátiro dançando era motivo freqüente no balé da
pantomima, cf. VILLENEUVE (1918²), p. 140.
111
digitum proferre (ou porrigere) era expressão habitual dos estóicos para significar algo
de pouquíssima monta. No livro De Finibus, por exemplo, Cícero nos relata que tanto o
estóico Crisipo quanto o cínico Diógenes "de bona fama (...) detracta utilitate ne digitum
quidem eius porrigendum esse dicebant"72 [diziam que, no que tange à boa fama,
abstraídas as motivações de ordem utilitarista, não se deve mover nem mesmo um
dedo por ela]73.
Analisando de um ponto de vista estóico os versos 119 a 121, M. Villeneuve tece os
seguintes comentários74:
L'homme qui n'a pas la liberté morale ne saurait avoir la sagesse ; or, chez ceux
qui n'ont pas la sagesse, chez les stulti, il ne saurait y avoir, aux yeux des stoïciens,
le plus petit grain de vertu (...). C'est que, dans leur doctrine, le bien et le mal moral
ont un caractère absolu : tout ce que l'homme fait est bien fait s'il a la sagesse, mal
fait s'il ne l'a point (...), même l'acte en lui-même le plus insignifiant (et quid tam
parum est?), comme de tendre le doigt (l'exemple était classique, cf. Épict. :
Fragm., 53 Schweigh. (...)). En effet, au point de vue moral ils n'admettent pas de
milieu entre le bien et le mal (...) Les choses indifférentes ne sont telles que prises en
elles-mêmes : c'est une matière dont nous pouvons faire un bon ou un mauvais
usage.
72
Cícero, De Finibus, III, 17, 57.
73
Outro exemplo freqüentemente citado é o de Epicteto, Fragmentos, 53 Schweighäuser.
74
VILLENEUVE (1918²), p. 139.
75
Horácio, Sátira I, 3, v. 77.
76
Ao lado de Pilades, Batilo foi um inovador na dança do teatro romano; enquanto aquele se ligou à
tragédia, este vinculou-se à comédia. Batilo é citado diversas vezes na literatura latina; cf. Sêneca Rétor,
Controuersiae III, praefatio, 10; Fedro V, 7, v. 5; Juvenal 6, v. 63.
112
de voz médio-passiva, equivalendo à idéia de 'dançar representando'. A mesma construção
já fora usada por Horácio em contexto muito semelhante77: nunc satyrum, nunc agrestem
Cyclopa mouetur [Dança ora como um sátiro, ora como um rude ciclope].
A voz discordante volta e insiste: ‘liber ego’ (v. 124), e Pérsio indaga quem lhe deu
essa liberdade, visto que está sujeito a tanta coisa. Em seguida, faz uma pergunta retórica:
o único senhor que ele conhece é aquele que pode dar a liberdade com um toque de
vara?78 Pérsio observará que, embora nada do exterior lhe venha dar ordens, dentro, no
fígado doente, surgem outros senhores.
["Eu sou livre!" Baseado em que afirmas isso, tu que estás subjugado
| por tantas coisas?
Acaso não conheces outro senhor se não aquele a quem a varinha
| torna livre?
"Vai, meu rapaz, e leva os estrígilos aos banhos de Crispino" 126
Se ele vocifera, ficas parado contando vantagens? Nenhuma áspera
| escravidão
Te obriga a nada, nem coisa alguma externa te penetra
De tal modo que te movimente os nervos; mas, se dentro e no fígado
| adoentado
Nascem senhores, de que modo receberias uma punição menor 130
Do que aquele a quem o chicote e o medo ao senhor conduziram
77
Horácio, Epistulae II, 2, v. 125.
78
Gesto característico, indicando a manumissio, i.e., a libertação de um escravo; cf. supra, p. 95.
79
Morgan, baseado no manuscrito P (Montpelier, considerado o mais importante), em que se lê scytice,
propõe 'scuticae metus egit erilis', em que erilis, em vez de genitivo objetivo ligado a metus, passa a modificar
scuticae, que por sua vez passa a ser o genitivo ligado a metus: 'medo do chicote do senhor'; MORGAN
(1988), pp. 567-568.
113
| aos estrígilos?]
[És tu realmente meu senhor? Tu, que estás sujeito a tantas e tão grandes
| imposições
Dos homens e das circunstâncias? Tu, a quem uma varinha três ou quatro
| vezes
Colocada sobre tua cabeça não poderá jamais afastar de ti teu medo infeliz83?
Demais, ajunta algo que não deve ter menos peso do que aquilo que já
| se disse:
Com efeito, quer seja um vicário – que obedece a outro escravo – como é
80
Horácio, Sátira II, 2, v. 31.
81
Cf. supra, p. 111.
82
Sêneca, De Vita Beata, 16, 3.
83
Hipálage, por: 'medo que te torna infeliz'.
114
| vosso costume
Chamar, quer seja um companheiro de escravidão, que sou eu para ti?
Pois tu, que me dás ordens, és um infeliz para outros servos, 81
E és movido como um lenho móvel por meio de nervos que outros
| manuseiam.]
Comparando a sua sorte com a de seu dominus, Davos deixa entender que sua
condição de escravo poderia deixar-lhe a ilusão de receber da uindicta sua liberdade.
Horácio não pode sonhar com esse instrumento para conseguir enfim libertar-se de seus
medos. Ambos são escravos, por isso Davos diz que no fundo têm eles a mesma condição;
Horácio no máximo poderia gabar-se de ser um vicário84, por ser dono de outro escravo.
Seus movimentos, no entanto, dependem de como manipulam as cordas às quais ele,
simples boneco de madeira, está amarrado.
A marionete que somos, em Horácio, é movida por nervos que estão em mãos
alheias (v. 82). Na recriação de Pérsio, ele vai deixar de lado esses senhores externos, mas
não sem antes fazer um jogo de palavras de duplo sentido, no intuito de ilustrar o
movimento provocado por outros em nós: os nervos agora são os da própria pessoa,
nervos esses movidos por agentes externos (os fios da marionete agora movimentam os
nervos da pessoa subjugada). Inserida na imagem persiana há uma alusão erótica, e sua
leitura é clara: temos um homem dominado pela luxúria85. Pérsio, depois de se ter
aproveitado da intertextualidade com os versos de Horácio para fazer essa brincadeira
maliciosa, mostra, em seguida, que não é desse senhor externo o de que ele fala. O poeta,
de fato, quer deixar de lado toda idéia de um comando externo, para mostrar que é dentro
da pessoa que estão os senhores mais tirânicos. Assim, se permitires que eles nasçam, como
pensar que ficarás livre ou que receberás um castigo menos cruel do que outro que possui
apenas um senhor externo? Demais, Pérsio, não sem uma razão específica, faz nascer os
84
"Il uicarius era uno schiavo acquistato da un altro schiavo (sopratutto nelle familiae delle case grandi e ricche) sul
proprio peculio (i beni guadagnati con lavori accessori, che egli metteva da parte e coi quali di solito finiva per
riscattare la propria libertà): originariamente questo schiavo 'di secondo grado' era impiegato per svolgere servizi per
conto dello schiavo 'di primo grado'", nota de Labate, in: Orazio (2004), p. 319.
85
Ressalte-se o fato de que neruus em latim apresenta também como significado possível o de 'membro
viril'. Parece-nos ainda clara a referência à 'alma inferior', que, segundo Platão, se deixa escravizar pelas
coisas mundanas.
115
senhores tirânicos 'no fígado adoentado' (in iecore aegro, v. 129); afinal, era no fígado
que os estóicos viam a sede da vida moral e intelectual.
Essa reminiscência tanto mais é buscada por Pérsio quanto pelo fato de que trará
ela à memória a pergunta que o mesmo Davos procurará responder em seguida: "quem
então é livre?":
O homem livre de Horácio é o mesmo de Pérsio, isto é, o sapiens. Ele não será
jamais subjugado por nada que venha de fora. Bens exteriores não podem ser a causa de
sua felicidade, nem de sua infelicidade. Assim, a Fortuna acaba por ver-se impotente para
colocá-lo à mercê de sua roda. Marco Aurélio, em suas meditações, traz uma bela reflexão
em que a imagem do fantoche se faz presente87:
Lembra-te! Quem move o títere é aquele poder oculto em teu íntimo; a eloqüência
é ele, a vida é ele, o homem, já que é mister dizê-lo, é ele. Não o envolvas na idéia
do invólucro que o reveste e desses órgãos plasmados em redor. Porque eles são
semelhantes a instrumentos, com a única diferença de serem congênitos. Com efeito,
sem a causa que as move e freia, nenhuma dessas partes é mais útil que a
lançadeira à teceloa, o cálamo a quem escreve e o relho ao cocheiro.
86
Isto é, não procura bens exteriores nem deles tem carência.
87
Marco Aurélio, Meditações, X, 38.
116
No verso 132, Pérsio começa a apresentar as paixões sob forma de alegorias.
Primeiramente temos a Auaritia.
Temos neste trecho um diálogo entre a Auaritia e uma personagem que parece
poder identificar-se não somente com qualquer ouvinte de Pérsio, mas também com ele
próprio. Este interlocutor que ronca preguiçosamente lembra, em sua descrição, a
personagem que aparece – também roncando, com o dia já avançado –, no início da
88
Aqui aparece uma dificuldade de crítica textual. Nossa opção por rogaS segue o consenso dos melhores
manuscritos; Clausen, por seu turno, baseando-se na lição dos escólios, opta pela forma rogaT, evitando,
assim, uma atipicidade de ordem métrica (cf. infra nosso comentário). Nesse caso, teríamos de pensar na
Auaritia a falar consigo mesma, à parte; a leitura seria, então, de uma exclamação equivalendo a: "Oh, e ele
ainda pergunta!".
89
Substância medicinal extraída do castor, usada como narcótico.
90
Plínio Velho, com efeito, elogiava o vinho branco originário desta ilha; cf. Plínio Velho, H. N. XIV, 73.
117
terceira sátira do nosso poeta91. A Auaritia aparece sob forma de alegoria, recurso muito ao
gosto dos estóicos; um dos fundadores do estoicismo, Cleantes, tinha mesmo especial
predileção por essa figura de linguagem, e não será certamente por coincidência que
Pérsio lembra seu nome no verso 64 desta sátira92. A Auaritia insiste com a personagem
que está a roncar para que ela levante (surge! - repetido quatro vezes em dois versos) e se
ponha a trabalhar; cada minuto perdido é dinheiro desperdiçado.
Em especial, nos três primeiros versos (132-134), ouvimos um diálogo rápido, de
frases curtas, lembrando, ipso facto, passagens da comédia latina. A Auaritia insta com o
piger para que ele acorde, este responde que não pode levantar, ela insiste ainda uma vez e
ele então pergunta por que deveria fazê-lo. Em seguida, aparece uma fala um pouco mais
desenvolvida da Auaritia, em que ela demonstra que, se ele não se apressar em fazer seus
negócios, outros o farão antes dele. No início dessa fala, a Auaritia perguntara rogas? (v.
134), e aqui um detalhe nos chama a atenção. Sabemos que os romanos eram bastante
atentos às quantidades, que muitas vezes eram marca distintiva entre palavras93. Cícero
chega mesmo a afirmar que94: "in uersu quidem theatra tota exclamant, si fit una syllaba aut
breuior aut longior" [Os teatros inteiros reclamam se, em um verso, uma única sílaba é
pronunciada mais breve ou mais longa]. No entanto, Pérsio, na pergunta 'rogas?' posta na
fala da Auaritia (v. 134), abrevia o –a do verbo, transformando a palavra iâmbica em
pírrica. Podemos pensar em um uso coloquial que Pérsio traz à cena, mas há também
outro ponto que devemos lembrar. Era uso generalizado entre os comediógrafos latinos a
correptio iambica, abandonada na poesia pós-silana95. Assim, essa passagem de rŏgās para
rŏgăs poderia trazer a lembrança da sonoridade típica da comédia latina, que justamente
caracteriza a ambiência deste trecho. Demais, como veremos um pouco mais abaixo,
91
Cf. hic, capítulo 2.1, pp. 11 ss.
92
Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 64 ss.; parece-nos pertinente lembrar também o filósofo estóico alegorista
Queremão, que estava dentre os mais próximos amigos de Cornuto, cf. RAMELLI (2003), p. 284.
93
Assim, temos diversos pares como: uĕnit / uēnit; puellă / puellā; pŏpulus / pōpulus, e tantos outros, em que
a simples mudança da quantidade de uma vogal pode marcar a distinção entre tempo verbal, entre função
sintática, e, mesmo, marcar uma alteração completa de significado.
94
Cícero, Orator, 51.
95
A correptio iambica resta apenas, neste período, em palavras dissílabas invaráveis (ŭbī → ŭbĭ) – ou sentidas
como tal (mĭhī → mĭhĭ). Segundo as palavras do Professor Boldrini: "la lingua letteraria avrà operato una scelta
cosciente, una scelta, in fondo, di stile, con l'escludere dal proprio ambito un fenomeno prosodico (la correptio
iambica) a questo punto sentito, forse, troppo popolare", BOLDRINI (2008), p. 59.
118
Pérsio nesta mesma sátira, fará a reconstituição de um diálogo de Terêncio96. Acrescente-
se ainda o fato de que, no verso anterior (133), a correptio iambica já aparecera, quando o
poeta abrevia o –o final de queo (quĕŏ por quĕō). A abreviação do –o final da primeira
pessoa do singular de um verbo, contudo, não era inusual nos poetas do período
imperial97.
O mercador que acorda cedo para ir ao porto fazer seus negócios já aparecera nos
versos 54-55 desta mesma sátira.98 A repetição do produto 'pimenta' (piper), presente nos
versos 55 e 136 ajuda a fazer essa ligação. Em sua busca de unir palavras que surpreendam
com o fito de produzir interesse na imagem, Pérsio faz concordar, no mesmo verso 136,
com o substantivo camelus, animal conhecido por suportar grandes períodos sem sentir
necessidade de beber água, o particípio presente sitiens. Com isso, transmite a idéia do
longo percurso – tão longo que até o camelo ao fim dele está sedento – feito pelo
comerciante até chegar a Roma99. Demais, primus, que aparecera na primeira parte do
verso, dá mais vigor ao discurso, pois temos a idéia de que o interlocutor deve fazer o seu
negócio antes mesmo que o camelo possa ter tempo de matar sua sede. A proximidade de
palavras que apresentam convergências semânticas, recens e primus no primeiro
hemistíquio do verso, e piper e sitiens, no segundo, aliada à aliteração que aparece em
primus e piper – palavras que se encontram na disposição do verso, e se separam pela cesura
–, dá a este hexâmetro uma notável musicalidade e harmonia.
A Auaritia, em seguida, faz que o homem pense mesmo em ardis para conseguir
enriquecer; a consciência quer pôr freios à má-ação, mas a Auaritia volta imperiosa e com
uma chantagem diz que quem segue os conselhos de Júpiter – conselheiro da boa fé –
acaba sem nada. Para tornar mais forte seu discurso, a Auaritia começa empregando uma
interjeição típica da comédia latina, eheu, que aqui tem um valor próximo ao nosso
popular 'Pobre diabo!', para, momento contínuo, chamar seu interlocutor baro (estúpido,
96
Mais exatamente, a partir do verso 161.
97
Cf. BOLDRINI (2008), p. 78.
98
Cf. hic, capítulo 3.1.
99
A leitura de sitiens como um epíteto que significa simplesmente 'que pode suportar a sede' parece-nos que
tira força expressiva ao verso, e o deixa 'menos persiano'.
119
imbecil). Esta palavra100 é palavra popular e rara na literatura latina; faz parte do
vocabulário de Lucílio e Petrônio101, mas Horácio, por exemplo, nunca a emprega. Após
sacudir os brios do interlocutor, a Auaritia cria uma hipérbole pintoresca, para impedir
que o comerciante dê ouvidos a pruridos pouco rentáveis, sob o risco de ficar o pobre
homem raspando um saleiro vazio, para não deixar de aproveitar até o último grão de sal
que possa ainda estar presente lá dentro.
100
Palavra de etimologia obscura, que acaba sendo empregada popularmente na Idade Média por 'homem';
daí o sentido da palavra 'barão/varão' em Português.
101
Cf. Lucílio, fr. 1121 Marx (H 120, na edição de Charpin); e Petrônio, LIII, 11 e LXIII, 7.
120
Queres mesmo atravessar o mar? Sustentado por um encordoamento
| retorcido,
Comerás num banco de remador, e uma caneca bojuda
Exalará o vinho tinto de Veios, estragado devido à pez deteriorada.
Que pretendes? Que o dinheiro, que aqui, em Roma, nutriras
| com modestos cinco por cento,
Persistam em destilar onze por cento? 150
Sê generoso com teu Gênio, colhamos as delícias da vida, o que vives
| nos é próprio,
Tu te tornarás cinzas, manes e assunto de conversação;
Vive tendo presente o fato de que vais morrer, o tempo foge, aquilo que
| te digo já é passado."]
102
Propriamente, segundo a tradição, a bílis estava relacionada com a ira, cf. hic, capítulo 2.1, p. 16. Em
Pérsio temos a primeira documentação da bílis ligada à loucura. Em todo caso, essa passagem facilmente se
compreende, pois a ira e a loucura eram tidas como coisas da mesma espécie; cf. Horácio, Epistulae I, 2, v.
62: 'ira furor breuis est'; e Sêneca, Ad Lucilum 18, 14: 'immodica ira creat insaniam'. Segundo Cícero, Ênio já
afirmara algo semelhante: "an est quidquam similius insaniae quam ira? quam bene Ennius initium dixit
insaniae"; Cícero, Tusculanas, IV, 23, 52.
103
Sêneca, Ad Lucilium, XV, 94, 17.
121
pessoal redundante, próprio da linguagem familiar – a Luxuria se mostra sempre íntima
do interlocutor –, temos uma construção própria da poesia elevada (mare transilire), a
sublinhar a dificuldade épica da missão a que está prestes a empreender o rapaz. Demais,
note-se o subjuntivo em oração principal, que, neste caso, traduz uma indignação, um
protesto104. Em seguida, descreve cenas que traduzem a falta de conforto por que terá ele
de passar: suas refeições terão de ser feitas sobre um banco, e um vinho de má qualidade
dentro de uma caneca bojuda será sua melhor bebida a bordo. O vinho proveniente de
Veios aparece na literatura latina sempre como exemplo de um vinho de má qualidade105.
A pez (v. 148) pode ser entendida simplesmente como o material usado para fechar a
garrafa. Porém, segundo nos ensina Plínio Velho106, ela era também usada na fermentação
do vinho, sobretudo quando ele era acre. Mas, ao fermentar novamente, seu aroma se
esvaía, e o vinho azedava. Segundo o Professor Villeneuve107, "on comprend dès lors la
valeur de l'épithète uapida donné à pice : c'est n'est pas la poix qui est éventée, mais elle forme
avec le vin un mélange qui a un goût d'évent, un goût de uappa"108.
Após ter feito, na primeira parte de sua fala, um discurso com o intuito de dissuadir
o rapaz de seguir as ordens da Auaritia, a Luxuria agora sussurra-lhe sensualmente nos
ouvidos um convite para que desfrute as delícias que o momento presente pode ofertar.
Ao dar cores à sua alegoria, Pérsio não cria uma caricatura desenhada com o intuito de
acentuar a perversidade desta paixão; pelo contrário, a imagem criada por Pérsio é tão
sedutora como verdadeira, deixando latente o perigo. Pià faz uma interessante
comparação entre o modo de Pérsio criticar a paixão amorosa e o de Horácio109:
104
Com o mesmo valor, fora já usado pelo poeta o subjuntivo no verso 84 desta mesma sátira, cf. supra, p.
97.
105
Cf. Horácio, Sátira II, 3, 143-144.
106
Plínio Velho, História Natural, XIV, 120 e 124.
107
VILLENEUVE (1918²), p. 145.
108
Para uapidus e uappa, cf. supra, p. 111.
109
PIÀ (2007), pp. 3-4.
122
Com a Luxuria, Pérsio aproveita para lançar um ataque a outra escola filosófica, o
Epicurismo, que parecia trazer a Voluptas muito próxima de sua finalidade – a ataraxia.
Como poderemos observar, no trecho em questão, Pérsio, como o faz muitas vezes,
reelaborará versos dos mais conhecidos de Horácio. No entanto, neste caso, ele discordará
do preceito horaciano (e epicurista) da busca do prazer imediato. Os versos 151 a 153
remetem claramente aos versos finais da famosa Ode I, 11 de Horácio110:
110
Horácio, Odes, I, 11, vv. 7-8.
111
inuidus apresenta propriamente dupla leitura: cruel (porque não volta) e invejoso (dos nossos prazeres).
112
Cf. v. g.: Sátiras II, 6, vv. 196 ss; Odes, I, 4, vv. 14 ss; II, 16, vv 17 ss; IV, 7, vv. 7 ss.
113
A muito conhecida expressão ruit hora [O tempo passa correndo] não é clássica. No entanto, o uso de
hora como sinéque para tempo é freqüente aparece não só neste verso de Pérsio, mas Vergílio e Horácio
também já a tinham empregado; cf. TOSI (2000), p. 256, §534.
123
8)114. Pérsio explicita essa relação latente em Horácio, e põe na boca da Luxuria não só a
expressão fugit hora, como apresenta, em seguida, a construção antitética uiue memor leti,
que nada mais é do que uma variação mais positiva e atraente do memento mori epicurista.
De fato, a Luxuria persiana destaca a vida que se deve viver, enquanto o enfoque da
máxima epicurista é a morte115.
É certo que Pérsio aponta como fraqueza deixar-se seduzir pelas palavras da
Voluptas; torna-se, porém, ainda mais interessante a leitura do trecho, como aponta Pià116,
se nós pudermos imaginar o poeta reproduzindo um discurso sedutor que lhe é familiar, e,
com isso, mostrando-se consciente de suas próprias fraquezas117. De fato, a construção da
fala da Luxuria não parece ser fruto de alguém que nunca a tenha ouvido falar dentro de si
– ou se tenha negado a ouvi-la –, mas, ao invés, parece mais própria de alguém que
conhece essa perturbatio animi muito bem: a ela, a suas armadilhas e a seus encantos.
Ainda referente à relação entre Pérsio e Horácio, parece-nos ilustrativa a seguinte
observação de Harvey118:
114
O mesmo Horácio, contudo, dissera anteriormente, em uma de suas sátiras (Horácio, Sátira II, 6, 97):
uiue memor quam sis aeui breuis [Vive sem esquecer o quanto é breve a vida].
115
É difícil não lembrar o profeta Isaías, que já criticara, cerca de 700 anos antes de Cristo – i. e., alguns
séculos antes de surgirem as escolas filosóficas helênicas – quem conduz sua vida a partir deste lema (Isaías,
22: 13): comedamus et bibamus, cras enim moriemur [Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos]. A
crítica é retomada por Paulo, em I Coríntios 15: 32.
116
PIÀ (2007), p. 4.
117
Assim também no início da sátira 3, quando a hipótese de que o jovem que dorme quando deveria estar
estudando filosofia é o próprio Pérsio torna a sátira mais flexível, menos dogmática. Essas leituras são
também mais uma mostra de que aquele adolescente rígido e devotado exclusivamente aos livros,
desprezando a vida comum é absolutamente caricatural e falsa; sobre isso, Burnier dá um veredicto que nos
parece definitivo: ‘la vivacité et l’exactitude de ses expressions prouvent qu’il [Perse] a su voir ce qui se passait
autour de lui et qu’il ne s’est pas uniquement inspiré des leçons de ses maîtres et des livres de sa secte’; BURNIER
(1909) p. 12
118
HARVEY (1981), p. 4.
124
Assim, a personagem aparece instigada de um lado pela Avareza, de outro,
seduzida pela Luxúria. Neste ponto, o poeta retoma a palavra.
[E agora, que fazes? Estás dividido por dois anzóis, que te atraem para
| direções opostas:
Segues este ou aquele? É necessário que alternadamente sirvas
| a um e a outro senhor
Com obediência intermitente, e alternadamente te afastes de um e de outro.
E não venhas dizer – ainda que tiveres sido firme uma única vez e te
| recusado a obedecer-lhes
Uma ordem veemente –: "Rompi já todos os laços."
Pois, uma cadela, após muito se debater, consegue arrancar o nó; no entanto,
Quando foge, traz no pescoço uma boa parte de sua correia. 160]
Pérsio mostra a personagem dividida: ora pende para o lado da Avareza, ora para o
da Luxúria. A voz interior, ilustrada pelo poeta por meio de alegorias, a qual busca nos
atrair para o vício é descrita no verso 154 por meio de uma metáfora freqüente na
literatura latina: o anzol (hamus) lançado com uma isca, de molde a fisgar o stultus que a
morde119. De certo modo, Pérsio deixa explícito aqui que o interesse da Luxuria não era
libertar simplesmente o jovem da Auaritia, mas de fato era um ardil para que ficasse
subjugado a ela, Luxuria. O tema de conseguir a libertação de um senhor, e acabar
escravo de outro, já aparece na tradição esópica, com a fábula do javali e do cavalo120. O
verbo subire, usado por Pérsio, no v. 155, para indicar que o interlocutor acabará servindo
a um e outro senhor, indica mais exatamente que terá de 'levá-lo às costas' ou 'sobre os
119
Tosi aponta exemplos da mesma metáfora em Plauto, Horácio, Ovídio e Sêneca; TOSI (2000), p. 118,
§255.
120
Esopo (2000), p. 157; cf. tb. Fedro IV, 4. Segundo Aristóteles, esta mesma fábula – alterando apenas o
javali por um cervo – fora contada por Estesícoro a seus concidadãos, quando estes cogitavam entregar o
poder da cidade ao tirano Fálaris de Agrigento (cf. Pérsio, Sátira 3, 39; hic, capítulo 2.1, p. 28), para poder
vingar-se de seus inimigos; Aristóteles, Retórica II, 20.
125
ombros'. Tal escolha remete justamente à narrativa mencionada; que fora, aliás, também
contada por Horácio, em uma de suas epístolas121. O cavalo, inferior no combate, para
vingar-se de seu inimigo, aceita a ajuda do homem. Derrotado finalmente o cervo, o
cavalo não consegue mais livrar-se do ginete em seu lombo, nem do freio em sua boca.
Horácio conclui:
121
Horácio, Epístola I, 10, vv. 34-41. Também na versão de Horácio é um cervo que aparece como
oponente do cavalo, e não um javali.
122
Cf. supra, p. 114.
126
praeteritos meditor' (crudum Chaerestrătus unguem
adrodens ait haec). 'an siccis dedecus obstem
cognatis? an rem pătriam rumore sinistro
limen ad obscenum frangam, dum Chrysidis udas 165
ebrius ante fores extincta cum face canto?'
'euge, puer, sapias, dis depellentibus agnam
percute.' 'sed censen plorabit, Daue, relicta?'
'nugaris. solea, puer, obiurgabere rubra,
ne trepidare uelis atque artos rodere casses. 170
nunc ferus et uiolens; at, si uocet, haut mora dicas
"quidnam igitur faciam? nec nunc, cum arcessat et ultro
supplicet, accedam?" si totus et integer illinc
exieras, nec nunc.' hic hic quod quaerimus, hic est,
non in festuca123, lictor quam iactat ineptus. 175
["Davo, ordeno-te que creias prontamente nisto: penso que as minhas antigas
| dores
Estejam no fim" – Queréstrato diz isso roendo as unhas
Em carne-viva. "Por acaso eu poderia apresentar-me a meus sóbrios parentes
Como alguém sem honra? Por acaso eu poderia dilapidar o patrimônio
| paterno
Dando lugar a rumores maledicentes, enquanto, ébrio, canto junto
| ao obsceno umbral
Defronte às úmidas portas de Críside com o facho apagado?" 166
"Bravo, meu rapaz! Mostra agora sabedoria e sacrifica uma cordeira
Aos deuses que afastam os males." "Mas achas, Davo, que ela chorará
| ao ver-se abandonada?"
"Tolice. Serás castigado com a sandália vermelha, meu rapaz;
Não sejas temerário, nem penses em roer redes bem atadas. 170
124
Uma hora , feroz e violento; mas, se ela te chamasse, responderias: 'Estarei
| logo aí.'"
"Que devo, pois, fazer? Nem então, se ela me chamar e suplicar
| com insistência
Nem assim devo encontrá-la?" "Se queres sair daqui inteiro e ileso,
Nem então." Aqui, é aqui que está o que buscamos, está aqui
E não na varinha que brande o inepto litor. 175]
123
festuca é sinônimo de uindicta que Pérsio usara no verso 88 para designar a varinha com a qual o litor
cumpria o ritual da manumissio, cf. supra, p. 95.
124
Cf. TATE (1925), p. 71.
127
uma jovem cortesã (Taís) 125. O conteúdo é basicamente o mesmo, o jovem está
perdidamente apaixonado, mas não parece ser correspondido na mesma medida. Por isso,
Fédria dispõe-se a esquecer Taís, no que é aplaudido por Parmenão. Este, no entanto,
pondera que, a bem da verdade, será bastante derramar ela uma lagrimazinha fingida que
já fará seu amo sentir-se culpado e aceitar o castigo. "O indignum facinus!" [Oh,
vergonhosa ação!] exclama Fédria no v. 70, pois vê que sua paixão é tão forte que ele se vê
a ponto de se deixar destruir; não sabe mais o que fazer. O escravo responde126: "quid agas,
nisi ut te redimas captum quam queas / minimo" [Que farás senão resgatar-te de tua
escravidão pelo menor preço que puderes?]. É, de fato, notável característica das peças dos
cômicos latinos ver os escravos mostrarem uma personalidade mais livre, mais astuta para
compreender as situações e mais propensa para encontrar soluções, do que seus senhores,
muitas vezes dominados por paixões127.
A construção propriamente da cena apresenta pequenas divergências entre
Terêncio e Pérsio128 – Queréstrato, por exemplo, diferentemente do Fédria terenciano,
preocupado com o patrimônio e a reputação, entra em cena decidido a terminar o
relacionamento com a sua amante, e somente aos poucos muda de posição –, mas nada
que impeça de reconhecer o claro parentesco entre ambos os episódios129. A própria
linguagem que Pérsio usa aproxima o diálogo desse trecho ao tom da linguagem familiar
e da conversação da comédia. Assim, temos, por exemplo, o uso de um freqüentativo sem
que o aspecto iterativo se faça notar, como em canto por cano (v. 166); a forma
(duplamente) apocopada censen, por censesne (v. 168)130; o imperativo negativo ne uelis
trepidare (v. 170), por noli trepidare.131 O objetivo dos dois poetas, contudo, não é o
125
Fédria, Parmenão e Taís correspondem, em Pérsio, a Queréstrato, Davo e Críside, respectivamente. Os
nomes escolhidos pelo satírico possivelmente tenham sido tomados da comédia Eunuco de Menandro, cf.
Commentum Cornuti, p. 135.
126
Terêncio, Eunuchus, vv. 74-75.
127
Assim, muitas vezes os papéis invertem-se, produzindo um efeito cômico: é o seruus agora que passa a dar
ordens ao dominus. No Poenulus vemos a lamentação de um jovem e apaixonado senhor nestes termos
exatos: Amor iubet / me oboedientem esse seruo liberum [O Amor ordena que eu, um cidadão livre, obedeça a
meu escravo]; Plauto, Poenulus, vv. 447-448.
128
Também Horácio retratará a mesma cena na Sátira II, 3, vv. 258-264.
129
Pode-se, contudo, aventar a hipótese de que a cena persiana é mais dependente de Menandro do que
propriamente de Terêncio, cf. ZIETSMAN (1994), p. 46.
130
Cf. censen hodie despondebit; Plauto, Rudens, v. 1269.
131
Cf. GÉRARD (1897), p. 88.
128
mesmo. Pérsio quer, com efeito, sublinhar, com a cena, a escravidão provocada pelo amor
sensual. Tendo alcançado essa demonstração, a história é abandonada, e não sabemos o
que acontecerá a Fédria; sabemos apenas – e basta para os fins almejados pelo poeta – que
ele é um escravo de sua própria paixão. O uso do tema do amor escravizador é recorrente
na ilustração do paradoxo estóico sobre a verdadeira liberdade; Cícero, ao analisar este
paradoxo, também empregará o mesmo exemplo.132 A insólita construção udas ante fores
(vv. 165-166) sintetiza a imagem do amante rejeitado recebendo um banho de água
quente perante a porta da cortesã133.
Quando vemos Queréstrato mostrar-se definitivamente derrotado por sua paixão,
ouvimos de Davo a indicação de que seu amo precisaria abandonar a loucura que o está
dominando se ele quiser permanecer totus et integer (v. 173), fórmula que indica o sábio
impenetrável a influências externas e com absoluta integridade moral. Neste ponto, a cena
é interrompida. Com a enfática repetição do advérbio hic - três vezes no mesmo verso!:
hic, hic quod quaerimus hic est (v. 174) –, Pérsio retoma a palavra, e sublinha que aqui, com
o exemplo a que acabamos de assistir, podemos ver a prova inconteste da escravidão a que
está submetido o jovem, por causa da paixão amorosa134. E é então que Pérsio invoca
novamente a imagem do recém-liberto que apareceu no início da segunda parte do
poema135 – quando este dizia que alcançara a liberdade plena com sua manumissio –, para
dizer que a liberdade que este passa a ter quando recebe em sua cabeça o toque da festuca
não o deixa livre de ser escravizado pelos tiranos que nascem dentro de seu espírito. O
lictor é incapaz (ineptus) de lhe dar a liberdade do espírito.
A tirania das paixões volta a aparecer; cidadãos pretensamente livres acabam por
ceder às investidas da Ambitio e da Superstitio.
132
Cícero, Paradoxa Stoicorum 5, 36. Também o servo estóico da Sátira II, 7 de Horácio se valerá desse
mesmo mote (vv. 46-94). Cf. ainda Epicteto, Discursos, IV, 1, 7.
133
Cf. FISKE (1916), pp. 165-66.
134
O Professor Walter de Medeiros, em um artigo seu em que busca traços de autobiografia na sátira de
Pérsio, aventa a saborosa hipótese de, nessa recomposição do excerto de Menandro, haver um eco –
'literariamente trabalhado' – a uma experiência pela qual pode Pérsio ter passado nos tempos em que foi
apresentado por condescendentes amigos à Suburra (cf. hic, capítulo 3.1, p. 81). Dessa experiência traria o
poeta em seu peito recordações que teriam deixado 'os requebros das cortesãs arteiras em seduzir os
incautos'; cf. MEDEIROS (1998), pp. 89-90.
135
Cf. supra, pp. 93 ss.
129
ius habet ille sui, palpo quem ducit hiantem
cretata Ambitio? 'uigila et cicer ingere large
rixanti populo, nostra ut Floralia possint
aprici meminisse senes.' quid pulchrius? at cum
Herodis uenere dies unctaque fenestra 180
dispositae pinguem nebulam uomuere lucernae
portantes uiolas rubrumque amplexa catinum
cauda natat thynni, tumet alba fidelia uino,
labra moues tacitus recutitaque sabbata palles .
tum nigri lemures ouoque pericula rupto, 185
tum grandes galli et cum sistro lusca sacerdos
incussere deos inflantis corpora, si non
praedictum ter mane caput gustaueris ali.
A Ambitio surge nos versos 176-177 vestida de branco (cretata) – em mais uma
imagem que une o abstrato e o concreto –, e sua aparição é extremamente sucinta. A
análise de palavras-chave contidas nesse pequeno trecho (palpo, 'adulador'; cretata, 'vestida
de branco'; e hians, 'boquiaberto') nos revela de modo inequívoco a intenção do poeta, e
ela aponta em direção ao candidato a um cargo eletivo. Cabe também ressaltar que
ambitio, antes de equivaler a 'ambição' tem como significado primitivo precisamente
130
'solicitação legal de votos'.136 Os candidatos, após oficializarem a inscrição de seu nome
para concorrer à eleição (professio nominis), passam a circular pelo Forum, vestidos com
uma toga branca (candida)137, em busca de votos junto aos eleitores. É a Ambitio que os
arrasta boquiabertos – i. e., cansados de ir de um lado para o outro para angariar o voto
dos cidadãos, adulando-os138. A Ambitio toma a palavra, e exorta o candidato a promover
uma festa inesquecível; o possessivo noster usado por ela junto ao nome da festa (nostra
Floralia, v. 178), sela um casamento entre o candidato e a Ambitio. Os Floralia, que
tinham lugar entre os dias 28 de abril e 3 de maio, eram promovidos pelos edis da plebe139;
a Ambitio ordena ao edil que as festas sejam promovidas e que sejam lançados à larga
grãos, no intuito de alcançar uma magistratura mais elevada. A idéia da festividade para
agradar o vulgo serve como transição para o derradeiro exemplo de paixão escravizadora:
a Superstição.
Ritos judaicos são abordados pelo poeta, entre os versos 180 e 184. Pérsio
menciona os Herodis dies (v. 180). A nota publicada por Brunner em 1968140, não nos
deixa dúvidas quanto ao fato de que esta expressão, Herodis dies, é uma remissão ao
sahabbat141 (dia de descanso hebraico), não ao aniversário de Herodes, o Grande –
considerado pela seita dos Herodianos como o Cristo142. O plural em dies indica, de fato,
136
Com efeito, a palavra ambitio é derivada do verbo ambire, 'andar à volta', que, por sua vez, é formado pelo
prefixo ambi, 'à volta de' e o verbo 'ire', 'ir'. Assim, o sentido originário de ambitio traz a idéia de 'ação de
andar à volta solicitando voto'. É, claro está, a partir desse valor inicial que, por extensão, ambitio passa a
significar 'ambição'.
137
É, justamente, a partir da toga 'cândida' (i. e., 'branca') que vestiam, que os postulantes a cargos eletivos
passaram a ser conhecidos como 'candidatos'.
138
De fato, eles chegavam a ter ao seu lado um escravo (nomenclator) unicamente para lembrar-lhes o nome
e a condição dos eleitores que encontravam durante o período da disputa dos votos (ambitus); cf.
BORNECQUE et alii (1955), p. 100. Horácio menciona em uma de suas epístolas: mercemur seruom qui
dictet nomina; Horácio, Epístolas, I, 6, v. 50. Cícero, por sua vez, julga que é um dolo (fallis et decipis) valer-
se de um nomenclator, e, portanto, que é vergonhoso (turpe est) esse costume; cf. Cícero, Pro Murena, 36, 77.
139
Na primeira sátira, Pérsio já fizera referência – não muito elogiosa, diga-se – a um edil (v. 130).
140
BRUNNER (1968), pp. 63-64.
141
A transcrição dessa palavra hebraica é variada – v. g. sahabbat, xabbat, sabbath. Adotamos a forma
empregada por Ernout & Meillet.
142
Essa é a leitura de alguns comentadores. Conington, por exemplo, escrevera o seguinte: "Herodis ... dies
seems to be Herod's birthday, which would naturally be celebrate by the Herodians", CONINGTON (1893), p.
119. Cf. tb. VILLENEUVE (1918²), p. 154.
131
uma repetição143. Elementos citados por Pérsio, como esclarece Brunner, também evocam
atividades próprias ao sahabbat144:
The obligation of lighting lamps at the onset of the sabbath is reflected in the dispositae ...
lucernae of line 181. lucernae would be appropriate, since the seven branched sabbath
lamp, which has its origin in the sanctity attached to the number seven by the cabalists, did
not come into household use until the middle ages. The fish diet of the sabbath evening is
clearly indicated by the rubrumque amplexa catinum / cauda natat thynni (182f),
where the natat probably defines the meal as the garum, fish pickled in sauce, a dish which
was very popular among the Jews of Persius' time and which is called by Pliny garum
castimoniale, i.e., "kosher garum" (Hist. Nat., XXXI, 95). tumet alba fidelia uino (183)
: In accordance with the admonition "Remember the Sabbath day, to keep it holy" (Exod.
XX, 8), a Kiddush service recited by the Rabbi holding a cup of wine had to play an
important part in the sabbath celebration even in Persius' time.
Por fim, a menção aos sabbbata, no verso 184, ajudaria a dirimir quaisquer dúvidas
que pudessem restar.
Entre os versos 185 e 188, Pérsio satiriza ritos egípcios. O sistrum era um
instrumento musical usado nas festas de Ísis. A sacerdotisa cega – ou caolha – que aparece
no verso 186 (lusca sacerdos) é a própria Ísis; Pérsio aqui lança mão de um artifício poético
surpreendente, pois o adjetivo ligado à sacerdotisa se refere realmente ao fato de que se
creditava a ela, Ísis, a ação de deixar cegos aqueles que excitavam sua ira.145 As doenças
que provocavam inchamento do corpo eram freqüentes no Egito, o que justifica o verso
188.146
143
"dies is plural either because the Sabbath affects two days, or because it is seen as continuing series of festal days
recurring weekly", ZIETSMAN (1997), p. 108.
144
BRUNNER (1968), p. 64.
145
Cf. Ovídio, Pônticas I, 1, vv. 51-54, e Juvenal, 13, 93.
146
Cf. VILLENEUVE (1918²), p. 156.
132
[Se quiseres explicar essas coisas entre centuriões cheios de varizes,
Um enorme Pulfênio há de soltar imediatamente uma gorda risada 190
E avaliará cem filósofos gregos por menos de cem asses.]
Esses três versos formam uma espécie de epílogo à sátira. Pérsio encerra, pois, o
poema fazendo uma brincadeira que nos remete ao início da sátira. Enquanto lá ele pedira
cem vozes, cem bocas e cem línguas para compor seu poema (vv. 1-2), aqui o número volta,
e, novamente, três vezes: os cem filósofos gregos, os cem asses e, certamente não por
coincidência, o militar grosseiro – e talvez não haja imagem que represente mais o
cerceamento da liberdade do que a de um militar –, que não dá nenhum valor ao estudo
da filosofia, é um centurião. Na terceira sátira, também os centuriões haviam sido
escolhidos como os representantes de uma classe de pessoas grosseiras e sem cultura147.
Há uma anedota muito conhecida, a respeito do filósofo estóico Musônio Rufo,
que parece ilustrar perfeitamente a aversão dos militares pela filosofia (e a de Pérsio pelos
centuriões...). Com a conjuração de Pisão, vários filósofos haviam sido banidos de Roma
por Nero, dentre eles Musônio Rufo. Depois da morte do tirano, Musônio volta para a
Vrbs, e, em pouco tempo, consegue bom nome como um professor que sabia estimular o
ardor da juventude. No final do ano de 69, as tropas flavianas se preparam para invadir
Roma. Vitélio envia uma delegação para tentar obter clemência; Musônio se junta à
embaixada com a intenção de dissertar para as tropas sobre estoicismo, e conseguir
convencê-las das vantagens da paz e dos perigos da guerra. Alguns soldados se divertiram
com o filósofo; a maioria, porém, se aborreceu. Ao fim, Musônio fatalmente teria sido
linchado se, sob conselhos de alguns moderados e ameaça de outros, não tivesse deixado
para trás a intempestiua sapientia.148
O contraste da caricatura – o ingente Pulfênio solta uma gorda risada ao ouvir
profundas reflexões sobre liberdade – pode ser comparado com o rude peão dançando
147
Cf. hic, capítulo 2.2, pp. 46 ss. Não nos parece excessivo mencionar a edição crítica da obra de Pérsio
elaborada pelo eruditíssimo Professor Léon Herrmann, na qual ele não só muda a ordem das sátiras, como
remaneja a ordem dos versos, por vezes trazendo versos de uma sátira para outra. Neste trecho, por
exemplo, ele considera que as duas menções aos centuriões pertencem à mesma sátira – a 5, segundo os
manuscritos, que ele reposiciona como a primeira. Embora algumas propostas de Hermann pareçam, de
fato, bastante interessantes, muitas outras – como esta – carecem de mais elementos para que possamos
considerá-las realmente consistentes.
148
Cf. Tácito, Histórias, III, 81.
133
sofisticados passos de Batilo (vv. 122-123). O epíteto ingens dado a Pulfênio – próprio da
poesia elevada, que costuma usá-lo de preferência a magnus ou grandis – cumpre
certamente uma função cômica de contraste entre o herói épico e o desajustado militar, e
faz-nos lembrar os grandes galli, que apareceram poucos versos antes (v. 186), isto é,
animais – ignorantes do bem e do mal – que são sacrificados em rituais, com os quais –
rituais e sacrifícios –, terceiros buscam conquistar benefícios próprios. A expressão crassum
ridet, reforça a caricatura do militar: além de sintaticamente pouco habitual149, une, bem
ao gosto de nosso poeta, duas palavras que pertencem a esferas distintas; assim o 'riso' que
ri o centurião se torna 'gordo', ou antes 'grosseiro' e por extensão 'estúpido' – e podemos
perceber que, de fato, a construção traz em si uma hipálage: o adjetivo é pertinente
propriamente a Pulfênio! É um riso, enfim, que, por ser descabido, proveniente da
ignorância e não da compreensão, acaba ele próprio sendo motivo de riso. Faz-nos
lembrar o centurião, na terceira sátira, que, ao querer mostrar sua cultura, escolhe
desastradamente nomes de filósofos150. A aliteração que aparece nesses três versos, e mais
especialmente no último, destacando sobretudo a repetição de C, é muito ao gosto de
brincadeiras populares. Em poesia, a validade desse recurso costuma ser vista com reservas.
O uso excessivo de aliterações, com efeito, acabou sendo uma das críticas preferenciais aos
versos de Ênio151. Pérsio, porém, ao lançar mão aqui desse expediente, visa certamente a
sublinhar o grotesco da personalidade do centurião, e com isso aumenta o efeito cômico
do verso final do poema.
Também de cunho popular é a indicação do insignificante valor que se dá a uma
pessoa, estimada por quantas (poucas) moedas ela vale. Numa cena do segundo ato da
peça Captiui, Plauto faz o escravo Tíndaro comentar, à parte152: Eugepae! Thalem talento
non emam Milesium [Bravo! Eu não pagaria um talento por Tales de Mileto]. Vê-se aqui
149
De fato, a expressão ridere crassum não é encontrada em nenhum outro autor latino; em todo caso, Pérsio
já usara construção semelhante em 3, v. 110: subrisit molle.
150
Cf. hic, capítulo 2.2, pp. 47-48.
151
O famoso verso: 'O Tite tute Tati tibi tanta tyranne tulisti' (Ênio, Annales, 108, ed. Warmington), v. g., é
citado, na Retórica a Herênio – obra durante muito tempo creditada a Cícero, autoria que hoje costuma ser
posta em dúvida por especialistas – (IV, 18), como exemplo de verso a ser evitado.
152
Plauto, Captiui, v. 274.
134
não só a coloquialidade da avaliação da pessoa por uma moeda de pouco valor153, mas
também a exígua estima de que, entre os populares, gozavam os filósofos. Tales de Mileto,
com efeito, é considerado o fundador da filosofia grega. Assim como em Plauto, para
Pulfênio, filósofos não valem uma moeda.154 Com efeito, centussis é palavra composta por
centum e ăs, isto é, 'cem asses'; em curto centusse (v. 191) temos um ablativo de preço.
Portanto, para um centurião, vale menos de um asse cada filósofo grego.155 Se lembrarmos
os versos 76 e 77, quando o ébrio e desavergonhado Damas é apresentado como um
palafreneiro que não vale nem três asses (tresis, v. 76), veremos que o ingens Pulfenius
avalia um filósofo grego em ainda menos do que vale o mandrião Marco Damas.
Enfim, o stultus Pulfênio aparece para nos fazer ver o quanto somos ridículos
quando deixamos de tentar entender sinceramente as razões das coisas. Pérsio sabe que
nada do que disse é alcançável por quem não se volta para o estudo da filosofia, por quem
não olha para dentro de si mesmo, em busca da sabedoria. Por isso, generosamente, busca
levar-nos, de maneira cordial e bem-humorada, à compreensão do paradoxo estóico que
afirma que só a sabedoria pode trazer-nos a liberdade. Enfim, uma famosa frase de
Sócrates parece-nos sempre subjazer ao discurso de Pérsio: "A vida sem reflexão não vale a
pena ser vivida".
153
O escravo fala em 'talento' não em 'asse' porque a peça se situa na Grécia.
154
Cabe, porém, ressaltar que o contexto em Plauto é um pouco diverso; Tíndaro, ao dizer que não pagaria
um centavo por Tales, estava sobretudo a fazer um elogio a uma observação – que lhe parecera
filosoficamente aguda – de Filócrates, que dissera que não o tratavam como escravo de modo muito pior do
que se fosse ele filho de família.
155
O asse, cunhado com uma liga de cobre, foi a primeira moeda romana. Quando apareceram as novas
moedas – o sestércio, o denário e, posteriormente, o áureo –, o asse tornou-se uma moeda de valor irrisório,
e seu nome passou a ser empregado para designar coisas de pouca monta. Com esse sentido, seria
equivalente ao nosso 'tostão'.
135
4
CONCLUSÃO
4. Conclusão
BIBLIOGRAFIA
5. BIBLIOGRAFIA
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