José Honório Rodrigues - Aspirações Nacionais

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ASPIRAÇÕES mina as caractensucas e aspi-

NACIONAIS rações nacionais, permanentes


INTERPRETAÇÃO e atuais. Mostra que as as-
HISTÓRICO-POLÍTICA r-irações permanentes consti-
tuem a substância, o depósito
fo:sÉ HONÓRIO RODRIGUES é sagrado do nosso patrimônio
diretor do Arquivo Nacional e que as atuais devem pôr
e professor de História Eco- :.i nação em dia com os tempos
nômica na Faculdade de modernos. Mas todos os pro-
Ciências Econômicas do Es- blemas estão atados num nó
rn do da Guanabara. Foi pro- górdio e, numa época em que
fessor, de 1946 a 1956, de tomar decisão é o importante,
História Diplomática no Ins- a indecisão aparece como o
tituto Rio Branco, do Ministé- principal elemento partidário
rio das Relações Exteriores. É e, mais que o compromisso,
membro do corpo consul- como a essência psicológica
llvo da Revista de Historia da política brasileira. Por isso
da America (México), dos estamos chegando a um xeque-
Cahiers d'Histoire Mondiale mate e para vencê-lo preci-
(UNESCO, Paris) e do His- samos de uma votação nacio-
torical Abstracts (Munique, nal, uma maioria nacional,
Aiemanha) e ex-Associa te Edi- uma liderança nacional, que
ror da The Hispanic Ameri- defenda a unidade indissolú-
can Historical Review (E. vel dos valores permanentes
U .A. ) : Tem participado de f. atuais. A luta que se trava
diversas conferências interna- agora é, para o Autor, a luta
cionais de História e tem sido entre a morosidade e a velo-
convidado para reger cursos cidade do processo histórico,
em algumas Universidades es- çntre a Reforma e a Contra-
trangeiras. Sua obra abrange· Reforma. Será o Congresso
vários aspectos da história :i Contra-Reforma e a Presi-
brasileira e tem merecido dência a Reforma? pergunta.
ampla crítica nacional e es- Por tudo isso o próximo fu-
trangeira. turo referendo sôbre o Ato
Êste estudo tem caráter su- Adicional de 1961 tem uma
gestivo e não exaustivo. Exa- significação decisiva para o
destino nacional.
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

ASPIRAÇÕES NACIONAIS
INTERPRETIÇiiO HISTÓRICO· POLITICI

EDITÔRA FULGOR
OBRAS DO AUTOR

LIVROS

Teoria da História do Brasil. 1• edição, São Paulo, 1949. 2• edição,


Brasiliana, Grande Formato, 1957, 2 volumes.
Historiografic1 e Bibliografia do Domínio Holandês no Brasil. Rio
de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1949.
Notícia de V ária História. Rio de Janeiro, Liv;·aria São José, 1951.
A Pesquisa Histórica no Brasil. Sua Evolução e Problemas Atuais.
de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1949.
Brnsil. Período Colonial. México, 1953.
O Continente do Rio Grande. Rio de Janei,·o, Edições São José, 1954.
Historiografia dei Brasil. Siglo XVI. México, 1957.
Brasil e África: Outro Horizonte. Rio de Janeiro, Editôra Civili-
zação Brasileira, 1961.

OPÚSCULOS

Capitalismo e P1·otestantismo. Estado At11al do Problema. São Paulo,


1946.
As Fontes da História do Brasil na Europa. Rio de Janeiro, Im-
prensa Nacional, 1950.
Alfredo do Vale Cabml. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1954.
Capistrano de Abreu, ein Fre11nd De11tschlands. São Paulo, 1958.
Antônio Vieira, Do11trinador do Imperialismo Port11g11ês. Rio de
Janeiro, 1958.
Afonso Taunay e o Revisionismo Histórico. São Paulo, 1958.
La Historiografia Brasileiía y el Act11al Proceso Historico. Sevilla,
1958.
Algumas Idéias Políticas de Gilberto Amado. Belo Horizonte, 1959.
D. Henrique e a Abert11ra da Fronteira "Mundial. Coimbra, 1961.
The Influence of A/rica on Brazil and of Brazil on Af1·ica. Reprin-
ted from Journal of African Histor.y, Londres, Vol. 3, 1962.
T he Foundations of Brazil' s Foreign Policy. Reprinted from lnter-
national Ajfafrs, Londres, Vol. 38, n• 3, July 1962.

EM PREPARO

A Política Exterior do Bi·asil. Fundamentos e Flutuações.


íNDICE

INTRODUÇÃO
A PSICOLOGIA POLITICA E OS BRASILEIROS 9
1. Características Nacionais
9
2. Aspirações Nacionais e Partidos Políticos 17
3. Personalidade e Poder 30
PARTE 1
CARACTERÍSTICAS NACIONAIS 37
1. Características Nacionais 39
2. Imagem do Brasil Pelos Estrangeiros 48
3. Tradições Gerais e Características Atuais 58
4. Características Positivas Tradicionais 64
5. Características Positivas Atuais 65
6. Características Negativas Tradicionais e Atuais 67
7. Conclusão 68
PARTE II
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 71
1. Introdução 73
2. Independência e Soberania 75
3. Integridade Territorial 79
4. Ocupação Efetiva 80
5. Unidade Nacional 85
6. Equilíbrio Nacional e Regionalismos 86
7. Comunicações e Unidade Nacional 92
8. Integração Psico-Social 94
9. Miscigenação e Tolerância Racial 96
10. Aculturação e Nacionalização dos Imigrantes 98
11. Classes e Justiça Social 103
12. Regime Representativo. Podêres Divididos e Harmônicos 107
13. Oligarquia e Democracia 112
14. Centralização e Federação 117
15. Desenvolvimento Econômico e Bem-Estar 121
16. Educação 130
17. Saúde 143
18. Dialética do Permanente e do Atual 146
BIBLIOGRAFIA 157
1. Características Nacionais 157
1. 1. Bibliografia dos Autores Brasileiros 157
1. 2. Bibliografia dos Viajantes Estrangeiros 159
2. Aspirações Nacionais 161
2. 1. Fontes e Referências 161
2. 2. Bibliografia 161
INTRODUÇÃO

A PSICOLOGIA POLfTICA E OS BRASILEIROS

1. CARACTERISTICAS NACIONAIS

Reúno neste livro dois ensaios muito ligados, mas


escritos em épocas diferentes. O primeiro foi uma con-
ferência feita em 1957 e ampliada para ser apresentada
ao III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasilei-
ros (Lisboa, 1957). Nesse ano e nos que o antecederam,
vinha lendo alguns estudos teóricos sôbre o tema do
caráter nacional, que renascera, por ocasião da Segunda
Guerra Mundial, sob inspiração muito diferente da que
orientara os estudos de Psicologia Coletiva inaugurados
por Wundt e Tarde. Entre os trabalhos publicados pela
UNESCO, que já iniciara sua série W ay of Life de dife-
rentes povos, interessou-me especialmente o estudo de
William Buchanan e Hadley Cantril, Como as Nações se
Vêem Umas às Outras.I A matéria foi ganhando con-
sistência, a formulação teórica, especialmente antropoló-
gica, desenvolveu-se e se firmou, a Sociologia e a Psicologia
trouxeram suas contribuições numa bibliografia hoje muito
extensa. Todo um instrumental teórico e metodológico
podia servir à expansão monográfica. Havia também
uma oposição sistemática, conduzida pelos que viam no
exame do caráter nacional a volta a velhos preconceitos
sociais já superados ou em vias de superação. Quase
sempre, esta última pensava em caráter herdado e não
educado numa situação histórica, e por isso mesmo mu-
tável. Êsse era o caso de Hamilton Fyfe, no seu T he
lllusion of National Character.2

1 How Nations See Each Other, UNESCO, University of Illinois


Press, 1953.
2 Londres, 1940.

9
10 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Se os estudos de Geoffrey Gürer3 e Margaret Mead4


revelavam aplicações insatisfatórias pelas generalizações fá-
ceis, a obra sociológica de David Riesman5 significava um
grande avanço teórico e prático. O caráter era consi-
derado como um produto de formas sociais, variáveis com
a mudança histórica, e correlacionado com as tendências
demográficas. Para Riesman o indivíduo é beneficiado
quando vive mais ou menos confinado na roupagem do
caráter nacional que lhe é impôsto pela tradição e pela
necessidade. Desde que o caráter é socialmente condi-
cionado, é lógico que existe uma relação entre determi-
nada sociedade e a espécie, ou espécies, de caráter social
que ela produz. A função social desta consiste em asse-
gurar ou permitir a conformidade. O estudo de Riesman
é, então, uma construção modêlo da interação de certos
padrões de conformidade no caráter da classe média ame-
ricana e em certos elementos da produtividade, da política
e do lazer americanos. Êle observou a seqüência histórica
das formas sociais do caráter, não esquecendo, assim, de
ligar o conceito à vida concreta, não puramente conjun-
tural, mas estrutural.
Maurice L. Farber, um dos primeiros a formular a
metodologia da pesquisa sôbre o caráter nacional, ligou-o
à História.6 O caráter social e nacional está entrosado
na História e esta, como disciplina da mudança, ajuda a
compreender não só o permanente ou o constante, como
também as variações. Margaret Mead, estudando as re-
lações e os problemas comuns à Antropologia e à História,
afirmou que na área da personalidade e da cultura, corren-
temente referida como caráter nacional, historiadores e
antropólogos auxiliavam-se mutuamente devido ao interês-
se dêste estudo para as culturas contemporâneas das gran-
des nações. Os estudos modernos a respeito do caráter,
acrescentava Mead, tinham muito pouco em comum com

3 T he American People: A Study in National Character, New


York, 1948.
4 '"The Study of National Character'", in The Policy Sciences,
Stanford University Press, 1951.
5 The Lonely Crowd: A Study of Changing American Cha·
racter, Yale University Press, 3• impressão, 1952.
6 '"The Problem of NationaJ Character: a Methodological Ana-
lysis'", in Journal of Psychology, 1950, vai. 30, 307-316.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 11

os antigos métodos, pois não se referiam a raça ou clima;


ao contrário, relacionavam estudos antropológicos de cul-
tura, com estudos históricos de coerência e persistência
de traços, no mesmo grupo ou povos.7
A caracterização nacional não foge, assim, à tarefa
histórica. Não é possível compreender a sociedade ou
a política, partindo delas, mas sim de seus próprios desen-
volvimentos históricos. A mais importante contribuição
de Riesman, analisada num vasto exame críticos, consistiu
cm ter observado, no caráter, a tendência para a mudança.
E esta não pode ser vista sem a História, sem as variações
históricas, no jôgo dinâmico do permanente-variável. O
historiador deve enfrentar o assunto, e não abandoná-lo
aos antropólogos e sociólogos que, se adiantaram o co-
nhecimento do problema, não o resolveram.
Conhecemos algumas tentativas feitas por historia-
dores americanos, como Max Lerner9 e Henry S. Com-
magerlü, a segunda uma súmula imodesta de pretensões,
soberba, e presunções. Nosso caminho, embora incom-
pleto, nesta apresentação que agora fazemos, é diferente,
totalmente diferente. Acredito que para retratar traços
característicos é necessário vê-los de vários ângulos: pri-
meiro, como os estrangeiros nos viam e nos vêem; segundo,
como os brasileiros se viam e se vêem; e, finalmente,
relacionar estas visões ou imagens às estruturas sociais
e econômicas, pois creio que a abundância econômica e
o subdesenvolvimento marcam, na evolução do processo
histórico, as suficiências ou insuficiências de nossos valores.
Escrita a primeira parte, de forma sugestiva e não
exaustiva - pois não foram examinados senão alguns dos
viajantes mais representativos - o estudo foi pôsto de
lado, embora sempre estivesse presente no meu espírito.
Outras tarefas e outros entusiasmos impediram sua com-
plementação, mesmo porque, quando podia pensar nêle,

7 "Anthropologist and Historian. Their Common Problems",


m American Quartedy, Summer 1951, vol. III, n9 1, 3-13.
8 Culture and Social Character, editado por Seymour M. Lipset
e Leo Lowenthal, The Free Press of Glencoe, New York, 1961.
9 American as a Civilization, Simon and Schuster, New York,
1959.
10 "American Character", in E. N. Saveth, Understanding the
American Past, Little, Brown Co., Boston, 1954, 552-563.
12 JOSÉ HONÓRIO IlODillGUES

era para acrescentar mais um aspecto que deveria ser


encarado. Ocorriam-me pesquisas interessantes, que não
pude fazer, mas que merecem ser mencionadas. Para
realizar a segunda parte - a mais difícil - não era
possível limitar-se à bibliografia caracterológica brasileira;
era preciso buscar, no conhecimento direto e não inter- ·
pretativo, as imagens próprias de várias correntes e épocas,
e reler tôda a literatura de ficção, sondando a imagem
genuína nos nossos tipos e as formas sociais do caráter
brasileiro. Álvaro Lins escreveu recentemente «que tôda
a História do Brasil se poderá reconstituir e escrever pela
nossa Literatura de prosa e poesia».11 Se a literatura
pode e deve ser, para os historiadores, uma fonte direta
de conhecimento, como constituíram, os Sermões, a fonte
para Bernard Groethuysen retratar a consciência moral
burguesa da França, a verdade é que não só ela, mas
outras fontes, também, deveriam ser examinadas.
Uma história da imagem do Brasil pelos brasileiros,
a imagem oficial, a oposicionista e a dos pensadores po-
líticos, a dos grupos e a popular, exigiria a leitura de
outras fontes, Anais do Congresso, Relatórios Ministeriais,
Falas, Mensagens, Jornais e Periódicos, e tôda a literatura
popular e folclórica - esta última agora registrada e
selecionada na bibliografia e antologia que Cavalcanti
Proença prepara com devoção e cuidado. Como ver os
estereótipos brasileiros apenas na simplória visão presente
e momentânea, sem buscar as origens de suas formações
e mudanças? Ligar o caráter às tendências demográficas,
e relacionar as mudanças sociais à evolução econômica
significaria uma pesquisa tão vasta, que à medida que o
tempo corria, minha coragem ou meu entusiasmo para
tentá-la diminuía, porque, sozinho, o trabalho, como o
vejo hoje, seria a realização de uma vida. Pensar em
trabalho de equipe era impossível, especialmente quando
os institutos de pesquisas ou estudos sociais e políticos
no Brasii, com suas direções jurídicas, seu exclusivo inte-
rêsse sociológico presente, e um quase «imperialismo»
sociológico e antropológico, manifestam uma indisfarçável
objeção às pesquisas históricas.

11 "Sugestão Para Uma História Literária do Brasil", m Diá-


rio de Notícias, 22 de abril de 1962.
1\SP!RAÇÕES NACIONAIS 13

Sei, portanto, que êste ensaio apresenta inúmeras


insuficiências, a começar pela base, nos viajantes, a res-
peito de cuja precipitação e incompreensão tôda a cautela
é pouca, embora de suas distorções se possa deduzir
alguma coisa. Não só a simpatia, como ensinava Max
Scheller, é fonte de compreensão. A antipatia também o é.
Por tudo isso resolvi publicá-lo como foi escrito em
1957, com correções apenas formais, esperando que êle
possa sugerir caminhos novos de investigação histórica,
tão arcaizada pelo domínio medievalesco da cátedra uni-
versitária, pela sedução saudosista do período colonial, e,
especialmente, pela sobrevivência da estrutura econômica
agrária e pelo domínio ultrapassado de minorias alienadas.
Há, ainda, a respeito dêste pequeno estudo, alguns
outros reparos a assinalar. Num continente cultural como
o Brasil, desenvolvido e subdesenvolvido, africanizado e
ocidentalizado, em idades históricas diferentes, apressado
e lento na evolução social e econômica, as seqüências
temporais ensinam formas variadas de conformidade e
rebeldia. Nos vários Brasis, os padrões variam: num,
em que domina a tenacidade do costume e da estrutura
social, se aprende a viver com adaptação, e não com
inovação; noutro, o ritual ou a etiquêta pouco represen-
tam, mas há uma grande sensibilidade às expectativas e
às novas situações que se apresentaram; nontro, ainda,
convivem etiquêta e rusticidade, ritual e bisonharia, usança
e inexpenencia. As descontinuidades históricas e as des-
conformidades sociais e econômicas tornam ainda mais
difícil exprimir as formas sociais do caráter. As próprias
tendências e aspectos positivos e negativos são apresen-
tados como hipóteses provisórias. Seria escamotear a
realidade ver de outro modo. Não há um caráter brasileiro
único, nem uma série de categorias com as quais possamos
classificá-lo.· Afirmar, também, que cada brasileiro é,
em si mesmo, um campo de batalha onde fôrças sociais
travam combate, seria o supra-sumo do individualismo,
insubmisso a qualquer tratamento científico. A unidade
de nosso processo histórico não exclui a diversidade das
formas sociais, nem a variedade dos taminhos do desen-
volvimento social.
Os que acreditam que os estudos sôbre o caráter
nacional envolvem uma concepção imobilista devem atentar
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

para êstes dois pontos: primeiro, o que se deseja é ver


as formas sociais de conduta na História, em mudança,
quando se põe de lado o que se tornou obsoleto no
processo e se aprende o que se tornou indispensável;
segundo, são vários os tipos de caráter social que se
desenvolvem e se transformam numa sociedade, especial-
mente numa sociedade como a nossa, em mµdança e à
procura de uma síntese.
Não se tentou definir êstes tipos em face das razões
acima expostas. Nem se procurou ver os traços essenciais
de uma personalidade básica, pois esta, como escreveu
recentemente David Riesman, parece existir .nas histórias
em quadrinhos, e não na História.12 Tentou-se, num
esbôço unilateral e provisório, ver alguns traços gerais,
ou características de vários tipos, de várias classes exis-
tentes na sociedade brasileira, no seu processo histórico,
segundo a imagem estrangeira.
Uma forma simplista - é triste, não é triste, é
ou não cordial, é ou não hospitaleiro - não basta. A
chave não é o índio, nem o negro, pois a mistura dissolveu
as culturas. Não é também o português, de quem nos
distanciamos dia a dia, desde o primeiro dia. Não é a
fronteira, nem o sertão, nem o litoral, não é o cangaço,
nem o alienado euro-afrancesado; não é o pai de santo,
nem o fanático·, nem o capoeira, nem o coronel; nem o
lavrador, nem o senhor de engenho, nem o fazendeiro,
comerciante, industrial; não é o medalhão, nem o esnobe,
nem o finório, nem o alienado ou caiado - porque é
tudo isso e mais «algo» que se tenta exprimir e que
exige pesquisa mais ampla e séria.
O que somos, veio na caravela de Colombo, escrevia
Machado de Assis em 1876. Aí está um problema fun-
damental. Uma forma clássica e ortodoxa consiste em
ver-nos como neo-europeus.13 «Perguntemo-nos, antes, a
nós mesmos, o que será a Europa - escrevia em 1936
o Professor J. L. Faure14 - mãe das civilizações, mãe

12 '"The Lonely Crowd: A Reconsideration in 1960'', in Cu/_


ture and Social Characte1; ob. cit., 1961, 426.
13 J. Halcro FERGUSON: Latin America. The Balance of
Race Redressed, Institute of Race Relations, Londres, 1961.
14 O Que é e o Que Será o Brasil, prefácio de Aloysio de Cas-
tro, Rio de Janeiro, 1936.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 15

das Américas, que verá, para além dos mares, os seus


filhos crescendo à luz ela glória, enquanto ela inclinará,
talvez, para o chão, a fronte desesperada.» Esta concepção
europocentrista, tão perfilhada pelas elites nacionais e mi-
norias dominantes, foi ainda melhor definida por Troeltsch,
quando indagava a posição da América em face do euro-
peísmo. Para êle, esta fôra sempre colônia, inteiramente
impregnada, espiritualmente, da velha Europa, e tomaria
cada vez mais a lógica interior da evolução espiritual euro-
péia. Seu provincialismo colonial estava, agora, no fim.
Ela marcharia para um futuro incalculável, e levaria con-
sigo tôdas as fôrças do europeísmo.15
A forte influência européia não se mantém incólume,
como parecem ver êstes e aquêles que hoje falam poli-
ticamente, e não culturalmente, numa civilização ocidental
âos povos americanos. Certamente aceitam as transfor-
mações culturais que, em silêncio, por modificações inter-
nas ou por influências ativas de grupos imigrantes, de
alienados e caiados, aqui se operaram. Mas parecem
esquecer que a experiência cultural atual é produto da
confluência de várias fontes, antigüidades esquecidas ou
transformadas, novidades absorvidas, adaptadas e elimi-
nadas. O estudo da História é o estudo dessas mudanças
e de seus efeitos sôbre o homem e sôbre a comunidade.
O contato com o mundo ocidental trouxe a morte de
várias culturas, formou desesperadas caricaturas e está
abrindo caminho para uma síntese, pois, mesmo onde uma
instituição ocidental é aceita como um todo supostamente
inalterado, ela não permanece o que era, mas se adapta
à estrutura geral do povo que a adotou. As razões eco-
nômicas, sociais e espirituais do desmoronamento ou da
decomposição de várias culturas indígenas, negras, arabi-
zadas ou não, conduzem à formulação de uma síntese
que não permite se diga que somos simplesmente a imi-
tação euro-ocidental das minorias dominantes, ou a cari-
catura desenraizada e desfigurada de outros círculos culturais,
ou, ainda, simplesmente, a transição deserta e desvalori-
zada, onde predominam a magia e a bruxaria.
Em fevereiro de 1819, Bolívar dizia, com bastante
intuição, em Angostura, que «no somos europeos, no

15 Der Historismus und Seine Probleme, Tübingen, Mohr,


1922, 729·730.
16 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

somos índios, sino una especie media entre los aborígenes


y los espaiíoles». Uma síntese em que cada nova
geração parece viver num mundo nôvo, reprovável, e até
mesmo incompreensível, aos olhos dos velhos. Nós somos
ocidentais, afirmava um rebelde às manifestações de ma-
cumba, candomblé, quimbanda e umbanda, aos fanatismos
sertanejos, ao cangaço, ou às presentes vacilações no
alinhamento total aos interêsses das chamadas potências
ocidentais. Não se pensa nas tensões que a Guerra dos
Bárbaros, dos Palmares, as lutas dos sertanejos represen-
taram, nem nas máculas que a escravidão ou a Lei do
Ventre Livre geraram; na crassa incompreensão, na cruel-
dade, nas compensações e nas diversas transições que
tiveram lugar para que, da síntese dêstes encontros, re-
sultasse algo nôvo. Em 1915, João José Maria, chefe
dos fanáticos do Contestado, exprimiu essas tensões ao
escrever que <móis não tem direito de terra, tudo é para
as gentes da Oropa».16
Tempos mais calmos alternam-se com as revoluções,
tentativas de saltos históricos, cujos efeitos estendem e
aprofundam os contrastes, ou encurtam os estádios para
a síntese mais avançada. As análises interpretativas variam
de acôrdo com a formação, não puramente partidária, mas
cultural, do pesquisador. São Leopoldo, a mais antiga
colônia européia do Brasil, há de pensar diferente de
Salvador; e Bandeirantes e Pioneiros e o Pagador de Pro-
messas são contrastes brutais da imagem brasileira. Um,
puramente ocidentalista, não ultrapassa, na sua racionali-
zação; os limites da compreensão européia. É válido, mas
limitado na compreensão da síntese cultural brasileira.
O outro abre uma fenda entre o mundo dos valores
ocidentais e o núcleo sobrenatural afro-brasileiro. Retrata
o conflito, a tensão, e revela, especialmente, que é uma
caiação impor padrões inteiramente diferentes sôbre cul-
turas populares. Estas, ou não são orgânicamente assi-
miladas, ou não lhes servem como fôrça de crescimento,
ou, ainda, apenas as destróem.
A implantação da civilização européia no Brasil não
se fêz sem profundas alterações impostas pelos elementos
estranhos nativos, negros, orientais, arábicos, nem sem a

16 Herculano AssuNçÃo: A Campanha do Contestado, Belo


Horizonte, 1917, vai. 1, 245.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 17

sobrevivência paralela de culturas populares mistas, ser-


tanejas, que surgiram da morte das culturas primitivas,
no seu encontro com a européia, ultimamente reforçada
pela euro-americana, com seus novos valores positivos e
negativos.
Uma sociedade assim, que muda e resiste à mudança,
que procura uma síntese e encontra tantos elementos
antitéticos, apresenta diferenças essenciais e marginais nos
traços de seus vários tipos de caráter social. Êsse esbôço
hipotético e provisório é apenas sugestivo e cumpre tão-
sàmente seu primeiro objetivo, de ver como nos viam
os estrangeiros.

2. ASPIRAÇOES NACIONAIS E PARTIDOS POUTICOS

O segundo ensaio foi escrito em 1960, e tem sido


revisto e ampliado. Não exige muitas explicações: é uma
síntese das grandes aspirações nacionais, dos objetivos
permanentes conquistados, da conquista, aparecimento e
morte dos objetivos atuais. A parte introdutória pro-
curou revelar a significação e a interação dêsses objetivos.
Desejo, aqui, apenas acentuar que não creio tanto numa
história incruenta brasileira, como é moda afirmar-se hoje
em dia. Em primeiro lugar, no sentido marxista da
palavra, as revoluções brasileiras não são revoluções, pois
não visaram a uma modificação estrutural da economia,
nem à mudança das relações sociais. A tradicional aris-
tocracia latifundiária manteve sempre o poder final de
veto e, assim, nunca houve mudanças radicais, como as
produzidas pelas revoluções sociais. As lutas que rompem
a tradicional balança do poder têm sido travadas entre
o govêrno formal, representativo de fôrças econômicas
dominantes, e os grupos informais, que desejam participar
do Poder e representar essas fôrças. O personalismo é
expressão desta relação social, no fundo, uma herança
colonial. l 7
A aberta luta de classes é mais característica de so-
ciedades em estágio de crescimento, em fase de transição,

17 José Honório RODRIGUES: "Personalismo e Caráter Nacional",


m foma/ do Brasil, 23 de abril de 1957.

2
lf' JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

enquanto nas sociedades em estagnação ou em lenta evo-


lução as lutas se ferem entre pessoas do mesmo status
e de idênticas condições ou interêsses. Tem-se dito muito,
cm tom depreciativo, que a América Latina foi concebida
em revolução, desde Colombo, contra quem Roldán se
rebelou. Como acentuo adiante, as revoluções não são
próprias de nenhum povo ou continente,, e os personalis-
mos que caracterizam as tomadas de poder, sem trans-
formação de relações sociais de classe, não são da América
Latina, mas originadas da chamada civilização ocidental,
constituindo exceções apenas a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos, que só conhecem uma grande revolução em suas
respectivas histórias. Creio apenas que o personalismo
se exacerbou nas sociedades semicoloniais da América, onde
sobrevivem, após a Independência, a mesma estrutura
econômica e as mesmas relações de casta e de classe. Os
Estados Unidos constituem a única sociedade na América
em que o rompimento com o passado e com a estrutura
colonial foi total;· o povo esperou e recebeu terras, subsí-
dios, estradas e muitas melhorias do govêrno. Na América
Latina e no Brasil, um govêrno semicolonial, pobre, pouco
dava, e era dominado pela oligarquia rural.
Não se negam, nem se podem negar, as características
sociais da Guerra dos. Bárbaros (1688-1691), quando os
índios resistem à expropriação de suas terras, nem da
Guerra dos Palmares (1687-1709), nem das inumeráveis
insurreições negras ou movimentos sociais, como o da
Bahia, em 1798. Antes da Independência, 1817 tem seu
conteúdo social, como o têm a Cabanagem no Pará
( 1833-36), os Cabanas em Pernambuco ( 1834-35), a
Balaiada no Maranhão ( 1838-41) ou a Praieira em Per-
nambuco ( 1848-49). Eram tôdas, como disse Capistrano
de Abreu, manifestações incorporando agravos seculares
de classes oprimidas e, pode-se acrescentar, reivindicações
sociais e nacionalistas. Os moviméntos posteriores, ser-
tanejos, fanáticos, em luta pela posse da terra e contra
as opressões sociais, como Canudos ( 1893-97), o Con-
testado (1912-1916), a Sedição do Juazeiro (1913-14),
Lampião, mostram nossa história ensangüentada. A re-
volta dos marinheiros, em 1910, contra a chibata não é
estúpida, como a classifica Pedro Calmon; as revoltas de
1842 em Minas e São Paulo, os Farrapos no Rio Grande
do Sul (1835-1845), a Federalista no Sul e a da Esquadra
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 19

no Rio de Janeiro ( 1892-1894 ), as sedições de 1924,


1926, as rebeliões de 1930 e 1932, os golpes de 1937
e 1938 são levantes armados, movimentos políticos, ten-
tativas de trocas de posição de comando, réflexos de
crises econômicas, mas não são revoluções sociais, não
visam a reformas estruturais, mesmo quando vitoriosas.
A de 19 3 5, embora comandada por uma coligação fun-
dada por iniciativa do Partido Comunista do Brasil e de
evidente predomínio comunista, não foi uma luta de clas-
ses, mas uma insurreição de tropa. Nas complexas con-
dições econômicas agravadas desde 1929, a luta se desen-
volveu entre grupos da mesma classe, da oligarquia ca-
feeira, dos latifundiários, banqueiros e industriais, com
pequeno e variado apoio popular, todos aspirando ao
Poder, mas, em têrmos simples, divididos apenas em
conservadores e liberais. As fôrças majoritárias, os ope-
rários e os lavradores não participaram dos movimentos,
mas, tão-somente, a classe média e a chamada pequena
burguesia urbana. As lutas entre as correntes oligár-
quicas, entre conservadores e liberais, não ensangüentaram
também a nossa história, e tôdas elas foram resolvidas
pela solução compromissária, exceto as de 1935 e 1938.
História incruenta? Pode ser, se comparada às his-
tórias .dos .povos da América Hispânica. História cruenta
não o é também, pois a isso se contrapôs não só a falta
de aguçamento das lutas de classes, como a finória ca-
pacidade de transigir, que distinguiu o comando· político
oligárquico, a chamada arte da conciliação, que Honório
Hermeto, em 1853, consolidava, mas que nasceu, creio
eu, dos contatos e da necessidade de controlar imensas
massas negras, analfabetas e insatisfeitas. Nesta arte dis-
tingüiram-se mineiros e baianos - exatamente os que
deviam enfrentar o povo mais sangrado do Brasil - e
a êles sempre pertenceu grande parte do poder ou da
delegaçfo de poder no Brasil. Quem se dispuser a levantar
estatísticas verá que a êles coube sempre a parcela maior
do comando e da representação nacional, e, sempre, sem
êles, nada ou pouco se fêz. Sem esquecer também que
os analfabetos não eram excluídos dos ·colégios de elei-
tores e votantes, desde a colônia até 1881 quando, por
influência de Rui Barbosa, foram afastados.
A entrada dos trabalhadores na área política e sua
organização como fôrça política mudam a face das coisas,
2(1 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

e a história da conformidade e da inconformidade começa


sua verdadeira luta. A importância histórica desta luta,
suas implicações e complicações não podem, desde 1930,
ser depreciadas. O aparecimento de várias minorias ur-
banas, o crescimento das organizações trabalhistas, o de-
sespêro da classe média, a ofensiva populista, as lutas de
diferentes interêsses econômicos e sociais, e até mesmo
regionais, as fôrças nacionalistas, as intolerâncias oligár-
quicas e a dos grupos econômicos ligados às finanças
internacionais, a decadência do coronelismo e o desenvol-
vimento das reivindicações dos lavradores, mostram que
não é mais possível governar em formas antiquadas e
que se chegou a um xeque-mate.
A persistente irresolução dos principais Partidos, a
corajosa indecisão dos políticos, alguns irradiando serena
confiança, outros atacados de sentimentos de inferioridade,
e outros, ainda, cochichando segundo os velhos métodos,
fazem crer que seus objetivos se reduzem a ganhar o
tempo para o futuro. Mas a indecisão, mais que o com-
promisso, é a essência psicológica da política brasileira,
resultado de séculos de inércia. A indecisão é o produto
de um ponto morto e da inexistência de uma maioria
efetiva que se tenta alcançar, eleição após eleição, e que
os vetos dominantes ameaçam inutilizar. O poder das
minorias · dominantes tem buscado no veto sua grande
arma. Veta-se tudo, desde o candidato até o eleito, e
se o veto não se efetiva, pela oposição majoritária e
pelo apoio militar, sempre de inspiração democrática, o
compromisso é a solução de retardamento. Êle tem feito
muita gente chefe, e muitos não pensam senão no com-
promisso, esquecendo-se de que êste só apresenta duas
perspectivas: adiar o ponto furiosamente morto do xeque-
mate, que impedirá a barganha entre os inconciliáveis, ou
ser lançado logo em extremos irreconciliáveis e, portanto,
na revolução radical.
O fato urgente é que virtualmente todos os problemas
políticos, econômicos e sociais estão atados num nó górdio.
Mas numa época em que tomar decisão é o importante,
a indecisão aparece como o principal elemento que mantém
alguém, ou algum Partido, no Poder. Não são mais os
conflitos políticos que dividem a Nação, mas os problemas
sociais e econom1cos. Se o compromisso é função par-
tidária, êle se transforma em frustração mútua quando
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 21

visa apenas a barganhar concessões políticas. Mas, na


realidade, nas raríssimas vêzes em que os Partidos
majoritários apenas pela marginalidade de cêrca de 50%
da população analfabeta - competem entre si, suas se-
melhanças, suas ligações com o passado ou falta de con-
temporaneidade os inabilitam a formular e tomar decisões.
O P.S.D. foi sempre um Partido oligárquico, ligado ao
campo, e a U.D.N. volta-se instintivamente para o passado;
ambos estão alarmados com a extensão e a rapidez do
crescimento brasileiro, que independe dêles. O P.T.B.,
especialmente urbano, parece desejar transformar o mo-
vimento trabalhista numa fôrça conservadora e burocrática,
e combate, apesar de seu peleguismo, como fôrça disci-
plinadora e estabilizadora. Ó populismo tem sua impor-
tância no destino político do Brasil, e seus principais
aliados são o rádio e a televisão, em má hora comer-
cializados e dedicados à barbarização de grandes massas
analfabetas. Quem o viu e o vê hoje, nota que ora êle
segue o descaminho de um radicalismo subextremista,
ora transforma a política num bom negócio.
Dos grandes Partidos, um se interessa em preservar
o atual xeque-mate, outro não se ajusta às novas situações,
e com isso favorece, também, a indecisão, e o terceiro
tapeia a legitimidade histórica do movimento trabalhista,
aliando-se ao Partido oligárquico e dominante. Todos
iludem, não querem as reformas básicas, tingem-se das
mais variadas côres, ou misturam o mais grosseiro con-
servantismo com as mais revolucionárias proposições. O
comportamento político de seus chefes caracteriza-se pela
indecisão, e seu instrumento de ação política é o com-
promisso.
O P.T.B. é, dos três, o mais progressista, sendo o
nacionalismo, hoje, sua ideologia básica, embora seu so-
cialismo seja menos doutrinário que oportunista, mais con-
juntural que estrutural. No nacionalismo se confundem
o patriotismo, a luta pela liberdade ~conômica e contra
o imperialismo, na sua forma de exploração econômica,
a defesa dos interêsses e aspirações nacionais, a tendência
pelo neutralismo e contra as tutelas internacionais, e, nas
formas extremadas, o sentimento antiamericano. Os de-
mais Partidos são junções ocasionais, para as disputas
eleitorais, sem maiores significações políticas, excetuados
o P.S.P., onde predomina o populismo, o P.S.B., um pe-
22 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

queno grupo de elite intelectual e operária, sem influência


maior, e, finalmente, o P.C.B., colocado na ilegalidade, em
que sua ação sofre de grande debilidade, transformando-o
em seita, sem ligação com os trabalhadores e sem maiores
influências, especialmente pela ojeriza popular aos dogma-
tismos doutrinários inflexíveis.
O nacionalismo não se enquadra nos moldes parti-
dários; seus defensores e inimigos encontram-se em todos
os Partidos. Em 1960-6118 um inquérito promovido e
dirigido por americanos mostrou que 84% dos legisla-
dores achavam que o Govêrno deveria encorajar o inves-
timento de capital estrangeiro no Brasil, e somente 4%
declararam não; cêrca de 4 9 % responderam que a re-
messa de lucros deveria ser regulamentada; 18%, que
alguns investimentos deveriam ser permitidos, e outros, não;
16 % , que não se deveria permitir que os investidores
estrangeiros sugassem nossa economia, e 13%, que boa
parte dos lucros deveria ser reinvestida no Brasil. Os
pctebistas, dentro dos cem membros interrogados, mani-
festaram-se a favor do encorajamento aos investimentos
estrangeiros. Já na opinião pública, os índices são mais
baixos; 3 3 % da opinião urbana e 17 % da rural são
favoráveis aos investimentos estrangeiros, e 24% e 11 % ,
respectivamente, são contrários, sendo 43% e 72% sem
opinião, o que a esvazia do conteúdo nacionalista. O
inquérito assinalou que somente 19% da opinião urbana
e 6% da rural ouviram ou leram alguma coisa sôbre o
nacionalismo e os nacionalistas brasileiros. Os naciona-
listas confessas, que conhecem o nacionalismo, são apenas
7 % da população urbana e 1 % da rural, sendo que a
maior parte se encontra no meio universitário das cidades
e é constituída de homens.
O P.S.D., que tem sido um partido mais rural que
urbano, liga-se ao passado e busca nas áreas rurais, anal-
fabetas e semi-analfabetas, miseráveis e dominadas pelos
coronéis e pelos proprietários de terra, sua fôrça e in-
fluência. Como a sociedade que representa é dirigida
pela tradição, êle tem tido interêsse em conservar o
statu quo, em defender o xeque~mate que conduz à inde-

18 Lloyd A. FREE e Hadley CANTRIL: Some InternaJion.il


Implications of the Political Psychology of BrazilianJ, The Institu-
te 'for International Social Research, 1961.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 23

osao e ao compromisso. Seu objetivo único é ser govêrno,


estar com o govêrno ou aderir ao govêrno. De regra
seus políticos manifestam sentimentos de culpa, pois dêles,
especii!lmente de alguns setores mais retardatários do P.S.D.
e da U.D.N., advém, na área de decisão, a obstinada resis-
tência às mudanças.
A U.D.N., como partido mais urbano que rural, busca
na classe média seu poder e sua influência. Suas soluções
são sempre moralizadoras, atacam a corrupção, mas cuidam
pouco da justiça e do bem-estar sociais. A indignação
moral e a verborragia são suas armas de ação política.
Dia a dia perde fôrças, porque a congestão das cidades,
o industrialismo, as novas gerações, as modificações de-
mográficas, com as migrações de populações do interior,
marcadas pela pobreza, fazem aumentar os quadros pro-
letários e favelados, e êsses resistem às pregações sim-
plesmente morais e agressivas, que alimentam o povo de
ódios, para depois explorá-los em seu proveito.
Não há de ser pelo prazer séxual do verbo, ou pelo
caráter oral das agressões brutais, que as grandes po-
pulações urbanas se deixarão conduzir pela liderança da
classe média, tão reduzida, tão respeitável numa época
populista, tão incapaz de harmonizar seus próprios interês-
ses com os das fôrças do trabalho. A contradição entre
a respeitabilidade e o grosseiro ataque pessoal que sua
iiderança pratica não é estranhável, como não o é a mal-
queria de suas seguidoras, atraídas pelas suas durezas
verbais. O auge da indignação moral da classe média,
no ano de 1954, com seus vetos e sua exacerbada pressão
contra o nacionalismo, fêz revirar contra ela as correntes
majoritárias das cidades e deu impulso ao processo his-
tórico progressista.
O sentimento de vergonha é, então, a pena social-
mente imposta aos que, sem sucesso, vêem seus padrões
de conduta derrotados sempre pela maioria. O imobilis-
mo, a incapacidade de encontrar soluções adequadas, ex-
prime as contradições dos dois grandes Partidos. Os
grandes industriais, os banqueiros - com 35 elementos
no Congresso - o alto comércio e até mesmo os grandes
proprietários de terras cada vez se ligam mais, e procuram
enfrentar, num ou noutro Partido, a demagogia populista
e o nacionalismo trabalhista. Seu esfôrço aumentou o
xeque-mate, influiu na indecisão e nos compromissos pro-
24 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

v1sonos. A influência do poder econômico, exercida sob


várias formas, não conseguiu decidir a indecisão, primeiro,
porque êle mesmo se encontra dividido entre soluções
menos avançadas ou mais recuadas; segundo, porque não
harmonizou seus interêsses com os dos trabalhadores; e
terceiro, porque os Partidos do centro são mais ou menos
iguais, baseiam-se numa mesma área de acôrdo, apelam
para a mesma gente - aumentando a indecisão.
Se o P.S.D. é estúpido, a U.D.N. é muito estúpida,
como disse Sir lvor Jennings a respeito dos conserva-
dores e liberais inglêses. Ambos não acreditam em nada
e seus políticos não defendem princípios ideológicos ou
programáticos; o objetivo de seus membros tem sido a
preservação <la injustiça social do statu quo. Não querem,
não podem romper as fronteiras do privilégio. Os treze
Partidos existentes mostram a necessidade da reforma
eleitoral e da representação, que os Partidos majoritários
vivem adiando, receosos de mexer em casa de marim-
bondos. Na verdade, sua inconsistência ideológica não
resulta da grande percentagem de analfabetismo e das
conseqüentes dificuldades na expressão dos interêsses e
aspirações populares.
O inquérito americano dirigido por Lloyd Free e
Hadley Cantril mostrou que, se a opinião pública urbana
e rural pode hesitar ou desconhecer problemas internacio-
nais e de nacionalismo, revela aguda consciência e preo-
cupação pelas suas aspirações pessoais e, mesmo, por
aspirações nacionais. Umas e outras existem claramente
definidas, e resumidas nas chamadas reformas básicas.
Elas independem da extensão territorial do País, do de-
sequilíbrio entre suas várias regiões, dos diferentes graus
de progresso ou das variadas condições econômicas, sociais
e políticas. Os vários setores da opinião pública nacional
conhecem e definem suas aspirações permanentes, defen-
didas ao longo da História. Êsse mínimo independe de
ideologias, pois é na ação política que varia a forma
program&tica de realização, sendo aí, então, que se refletem
as divisões no quadro das elites dirigentes e os desco-
nhecimentos na opinião urbana e rural.
Nas aspirações pessoais de cêrca de 2 168 pessoas,
1 026 urbanas e 1 142 rurais19, 44% da opinião urbana

19 Lloyd FREE e H. CANTR!L, ob. cit., 52-68.


,A.SP!RAÇÓES NACIONAIS 25

e 41 % da rural colocam em primeíro lugar, entre seus


objetivos, um padrão de vida decente ou melhorado para
si e sua família; 43% da urbana e rural consideram, em
seguida, a saúde pessoal e da família; 29% da urbana
e 12% da rural aspiram a casa ou apartamento próprios, ou
a melhoria do que possuem; 28% da urbana e 13% da
rural desejam oportunidades adequadas, inclusive educação,
para seus filhcs, e 16% e 7%, uma vida feliz (casamento
feliz, vida familiar feliz, e filhos). A aspiração pela
melhoria do padrão de vida manifesta-se mais na zona
urbana do Nordeste ( 55%) do que na do Leste ( 30%)
e Sul ( 44 % ) , e mais no Nordeste rural ( 4 7 % ) do que
no Leste ( 38%) e no Sul ( 39%). As aspirações pes-
soais apresentam índices muito elevados de afirmação e
expressão, e não será por desconhecê-las que os Partidos
deixarão de advogá-las. Sàmente 5% da gente urbana
e 12% da rural deixaram de manifestar-se.
Muito significativa, também, foi a resposta dada à
questão relativa ao progresso pessoal nos últimos cinco
anos (a pesquisa foi realizada do fim de 1960 ao comêço
de 1961 ) , quando se evidencia que, embora o nordestino
urbano se classifique inferiormente ao sulista e ao da
zona leste, todos os homens da cidade têm sentimento
de considerável progresso pessoal, e 44% do povo rural
·considerava-se em melhor situação em 1960-61 do que
no passado. Apesar de 24% da gente do campo con-
siderar-se em situação pior, não havia sentimento de deses-
pêro. E, o que é mais importante, 60% da população
urbana e 41 % da população rural julgam possível e espe-
ram o progresso pessoal.
Na pesquisa de Lloyd Free, em face de uma escala
onde o tôpo significava a parte melhor, e o suporte, o
ponto pior, perguntou-se aos entrevistados qual a situação
do Brasil, há cinco anos passados, no presente e daqui a
cinco anos. O resultado final revela, da parte de legis-
ladores e da opinião urbana e rural, um notável acôrdo
sôbre a situação do País e seu progresso. A confiança
e o sentido progressista dominaram a resposta.20 Um
tom altamente otimista domina, pessoalmente, as expec-
tativas do povo brn.sileiro - o que não nos surpreende,

20 Ob. cit., 55-58 e 64-67.


26 JOSÉ HONÓl\IO RODRIGUES

pois o otimismo, como uma filosofia das esperanças his-


tóricas, é uma das caracterfaLicas brasileiras.21
Se o povo não hesita em relação às suas próprias
aspirações, não vacila também quanto ao essencial para
o Brasil. . Fizemos questão de assinalar, no início do
capítulo relativo às aspirações nacionais permanentes, que
elas independem de diferenças regionais, de classes ou de
minorias étnicas, bem como que é do equilíbrio destas
com as aspirações atuais que depende o futuro da Nação. O
inquérito de Lloyd Free vem mostrar a generalidade ou
a nacionalidade de certos interêsses, e, ainda, que a pros-
peridade nacional e a estabilidade econômica são objetivos
populares. 42 % da opinião urbana e .31 % da rural
consideravam que a obtenção de um melhor ou mais
decente padrão de vida e uma maior prosperidade na-
cional representavam seus desejos e esperanças para o
futuro do País; e, dêstes, 20% e 12%, respectivamente,
consideravam que essa prosperidade seria obtida pelo
adiantamento tecnológico e por maior produtividade; .35%
da opinião urbana e 25 % da rural acharam que a esta-
bilidade econômica e a falta de inflação representariam seu
maior desejo; para 21 % e 9%, respectivamente, um bom
govêrno, honesto e eficiente é o ideal; a educação repre-
sentava apenas 9% e 4%; o pleno emprêgo, 6% e 4%,
a justiça social, 5 % e 6 % .22 Os baixos índices dêstes
últimos revelam a grande intuição popular de que, se há
prosperidade nacional e estabilidade econômica, as demais
aspirações são de mais fácil conquista.
O alto índice a favor de um govêrno honesto e efi-
ciente indica como o povo sente a pobreza moral da lide-
rança dominante, a carência de quadros administrativos e
a penúria das minorias partidárias. A própria valorização

21 José Honório RODRIGUES: "The FoundatiOó.s of Brazil's


Fo:·eign Policy", in International Affairs, julho, 1962, 338.
22 No inquérito, a independência nacional no sentido de li-
berdade da interferência ou excessiva influência de outros podêres,
ou de formulação de uma política exterior independente ou de
auto-suficiência econômica, foi colocada abaixo da educação e acima
do pleno emprêgo e da justiça social (7% da opinião urbana e
menos de 1 % da rural), enquanto os congressistas a colocaram logo
após a melhoria do padrão de vida (38% em conjunto). bste as-
pecto serâ tratado no meu próximo livro: "A Política Exterior do
Brasil: Fundamentos e Flutuações", em p:·eparo.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 27

,dos objetivos patenteia a extraordinária percepção política


popular, pois entre a prosperidade nacional e a estabilidade
econômica, colocadas no tôpo das aspirações, e a educação,
o pleno emprêgo e a justiça social, situadas abaixo, fica
o Govêrno, a administração eficiente e honesta. Não cai,
assim, a opinião pública urbana ou rural, nos descaminhos
pequeno-burgueses ou de classe média, que faz da luta
contra a corrupção ou pela moralidade o objetivo primordial.
J\ melhoria do padrão econômico de vida como objetivo
popular básico revelou-se como aspiração pessoal e nacio-
nal e, portanto, significa, pela sua alta proporção -
especialmente quando se considera que 64% dos con-
gressistas também a colocaram como objetivo primeiro -
,que a Nação tem consciência de seus problemas, e está,
moral e espiritualmente, preparada para as tarefas do
desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem espírito
de desenvolvimento; como não houve capitalismo sem
,espírito de capitalismo, ou socialismo sem espírito de so-
cialismo. O povo quer e deseja o desenvolvimento.
De outro lado, a guerra em geral ( 23 % da opinião
urbana e 17 % da rural), a instabilidade econômica e a
inflação (19 % e 19 % ) , a desunião, a instabilidade po-
lítica e a guerra civil ( 16% e 3% ), a piora ou os padrões
inadequados de vida ( 9 % e 8 % ) , o comunismo ou o
temor comunista interno ( 8% e 6%), o mau govêrno,
desonesto e ineficiente ( 8 % e 3 % ) constituem, em
ordem, as preocupações e receios principais do povo. A
preocupação com a guerra é natural num povo que fêz
da paz e das arbitragens internacionais sua inspiração
permanente, e revela o acêrto da política externa visando
às relações pacíficas indiscriminadas, à condenação da
guerra, à não intervenção e à defesa da autodeterminação.
O desassossêgo em relação à instabilidade econômica e
ao inadequado padrão de vida reforça a aspiração popular
ao desenvolvimento, do mesmo modo que o temor ao
caos da guerra civil mostra a fôrça da aspiração de unidade
nacional e integridade territorial. O baixo índice de receio
ao comunismo revela não só que o povo é pouco pro-
penso às ideologias extremistas, mas, também, o des-
caminho da liderança udeno-direitista, que transforma a
luta anticomunista, no Brasil, no principal problema po-
lítico brasileiro.
28 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

A pequena preocupação com um mau govêrno não


surpreende, mas reforça a tese de que, apesar dos maus
governos, temos progredido, sendo êles um mal crônico
no Brasil, em parte provocado pelas cúpulas partidárias
e pela limitação da área de decisão política. Não sofre
o povo, no Brasil, felizmente, de frustrações generalizadas
ou nacionais, que provocassem, como provocaram na Ale-
manha e na Itália, profundos ódios e discriminações.
Acreditam os brasileiros no seu futuro, crêem nas con-
quistas que fr'.eram, a independência, a integridade terri-
torial e a unidade nacional, confiam no equilíbrio regional,
na integração psico-social, na tolerância racial, não se ate-
morizam com fantasmas políticos, e esperam o desenvol-
vimento econômico, o bem-estar, a justiça social e os
benefícios da educação. O descontentamento popular é
também crônico no Brasil, pois seu voto tem sido fraudado
pelas minorias dominantes, sucessoras ininterruptas do
antigo poder colonial, para o qual o povo era uma enti-
dade abstrata, uma posse da Coroa ou uma possessão
privada.
O povo brasileiro - nunca é demais repetir - foi,
como disse Capistrano de Abreu, capado, isto é, sem voz,
sem audiência, subjugado e sangrado, isto é, explorado,
extorquido, esvaziado e atormentado. Por isso mesmo é
incorreto dizer - deve-se repetir também aqui - que
nossa história tenha sido incruenta. Se não foi cruenta
coletivamente, com a freqüência da América Hispânica,
o foi individualmente, na pobreza em que foi mantido o
povo, com a mortalidade infantil, a falta de saúde, de
médicos e de hospitais, a baixa média de vida - a média
de vida do escravo era de apenas 10 anos - e no desa-
tendimento às suas mais legítimas reivindicações, como a
de possuir terras, resultado do sistema semifeudal de
sesmarias, que a Lei de Terras, de 1850, não destruiu
porque não era conveniente aos interêsses das minorias
dominadoras. E, até hoje, a reforma agrária continua
a sofrer delonga astuciosa, embora contando com a una-
nimidade do apoio nacional.
Pode o povo brasileiro vencer suficientemente suas
dissensões internas, e restabelecer uma efetiva maioria
política, que desencadeie a Reforma e evite a Revolução?
Que dê sucessão lógica e racional ao processo progressista
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 29

de desenvolvimento, iniciado por Getúlio Vargas e reto-


mado por Juscelino Kubitschek?
Para isso não se pode admitir poder presidencial
fraco, nem esta tendência lunática de fragmentação do
Poder - que é o Parlamentarismo - num País que
tem vivido em estado mercurial. Será a Presidência o
símbolo da Reforma, e o Congresso, o símbolo da Contra-
Reforma? É certo que temos o costume, velho costume
personalista, de atribuir aos Presidentes as maldades e
as bondades de nossos governos. Muitos dêles são menos
causa que efeito. São válvulas de transmissão, e não
motores. Outros foram motores, motores do desenvol-
vimento, e seus desarranjos funcionais resultaram da falta
de uma maioria efetiva ou de apoio espiritual que do-
minasse a Nação. Hoje as condições espirituais facilitam,
apóiam, ajudam o crescimento material.
A tendência desenvolvimentista precisa ser menos
oportunista· e mais realista, menos conjuntural e mais estru-
tural. Ela tem que aproveitar ~ oportunidade psicológica
do despertar da consciência da nossa insuficiência, para
impor a decisão e afetar a estrutura, ajudando a promover
o desenvolvimento. Mas, como o nosso povo não segue
ideologias, não há de ser com nenhum chá-chá-chá filo-
sófico que se ganhará o tempo e a vida. Marx disse
dos jovens hegelianos que êles combatiam por frases e
slogans. «Êles se esquecem, simplesmente - acrescen-
tava êle - de que a essas frases se opõem outras frases,
e que não se combate realmente o mundo existente, se
só se combatem as frases dêste mundo.»
Com ou sem frases, com ou sem a tricotomia clás-
sica e ortodoxa, de direita, centro e esquerda, com ou
sem coalizões, animada ou não por filosofias, mas nunca
improvisadamente, a marcha para o progresso se fará.
Há limites para a indecisão. Por quanto tempo pode-
remos pagar o preço da irresolução? Por quanto tempo
pode o povo suportar a conciliação superficial ou a busca
incessante de soluções?
Esbanjamos tempo na Colônia, no Império, na Re-
pública. Agora não podemos perder mais tempo. Há
um ritmo ajustado entre o tempo e a oportunidade. Antes,
desperdiçávamos tempo, porque não havia oportunidade.
Perdemos talvez várias partidas, engasgamos nas saídas,
afogamo-nos nos excessos do palavrório; os vários take-
30 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

off do açúcar, das minas, do algodão, da borracha, do café


não significaram avanços nacionais, mas avanços da Coroa,
pessoais ou grupais. Os grandes negócios não fizeram a
Nação crescer, mas engordaram suas minorias.
Se não podemos «comprar» ou recuperar o tempo
perdido, não podemos permitir que a irresolução, a de-
sunião, o compromisso que estanca e estafa, sem vantagens
reais para o povo, que é a encarnação da pátria, nos
faça ter meno' tempo para as gigantescas tarefas desta
geração.
O aumento do voto pelo aumento da taxa da nata-
lidade, o crescimento das famílias pobres, o despertar da
consciência das grandes massas urbanas e rurais - que
se enfileiram como paredes humanas entre os velhos po-
líticos e sua dominação passada - e a participação pro-
letária exigem uma real liderança, que enfrente estas ta-
refas e explore ao máximo tôdas as nossas possibilidades.
Que nos desligue das sobrevivências coloniais e promova
o desenvolvimento materi\!I e cultural. Estamos engajados
num grande reexame do nosso destino, e vamos precisar
de uma resposta nacional, que aliste o talento, as idéias,
as energias e a devoção de todos. Promete-se, há muito
tempo, um grande futuro para o Brasil, grandes vitórias,
grandes feitos, mas êles dependem das novas gerações,
que preparamos mal ou desperdiçamos.

3. PERSONALIDADE E PODER

Enquanto preparamos estas novas gerações - 82 %


com menos de 40 anos e 41,8% até 15 anos23, a lide-
rança é um problema fundamental. Pela própria estrutura
demográfica, essas entradas novas, no sufrágio universal,
nos Partidos, nos debates políticos, ameaçam o predo-
mínio rotineiro e conservador.
Assim, as relações entre as personalidades e o Poder
são extremamente complexas na sua significação histórica.
Que qualidades próprias, além das comuns, atraem o
Poder? Nestes últimos anos as preferências dos quadros
eleitorais têm-se modificado muito. Aquêles atributos de

23 Flagrantes Brasileiros. Conselho Nacional de Estatística,


vol. 11, 1958, 7.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 31

·compostura aristocrática, de seriedade, de rígida conduta


inspirada na tradição, na rotina, de uma sociedade rural,
que encontravam nêles próprios a fonte de conselho e
decisão, que se dirigiam para objetivos fixos, determinados
pela própria estrutura econômica, pelos membros de seus
grupos e pelos seus pais, perderam, desde 1930, qualquer
possibilidade de êxito e deixaram de representar o apêlo
que atraia os eleitores. O radical desaparecimento das
personalidades paulistas da cena política nacional deve-se
a esta transformação. Mesmo os mais moços pareciam
sofrer de prematura decrepitude, e os mais velhos, de
uma senilidade prorrogada.
Getúlio Vargas trouxe novos elementos, conservando
qualidades tradicionais, como a compostura, a dignidade
do cargo, a seriedade da presença. Êle não era membro
de uma classe privilegiada, nem havia sido nomeado pela
máquina dos velhos Partidos, mas sua atração podia
consistir, talvez, nas idéias de justiça social - novas,
então, para os políticos brasileiros - e no apêlo popular
direto, especialmente ao proletariado. Não era um tri-
buno, mas usava da linguagem direta e do senso comum.
Desde então a luta entre os vários Brasis - melhor sim-
plificados nos dois de Jacques Lambert, o arcaico e o
nôvo - rompeu o caráter altamente individualizado da
sociedade tradicional. A nova fase representa, desde
então, a emergência de novos tipos de personalidade, de
novas formas de apêlo, de novos atores.
Uma sociedade em estágio de crescimento exige novas
formas de conformação dos políticos às necessidades sociais,
e novos mecanismos psicológicos que atendam aos apelos
populares. Agora êles não podem mais inspirar-se nêles
próprios ou na tradição, na rotina, nos grupos eco-
nômicos estáveis que controlaram, por trás dos bastidores,
a feitura histórica. São os «Outros», os que apareceram
na cena da escolha, cada vez em maior número, cada
vez representando interêsses variados, divergentes ou não,
que decidem se o Poder lhes será ou não entregue. Há
restos e sQbrevivências tradicionais; há a industrialização
e o urbanismo a alterarem relações sociais; há novos ca-
pitães da indústria, novos chefes do consumo. A socie-
dade gira sem contrôles de medição tão fixos como anti-
gamente. Uns continuam consumindo palavras, adoram a
32 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

loquacidade; outros querem fatos, números, objetivos con-


cretos. Antes uma psicologia sem maiores recursos bas-
tava; hoje são tantos e tão variados os tipos humanos,
criados pelos pedaços de história e sociedade, que um
político deve usar de psicologia diferencial, aqui ou ali,
P.ara satisfazer ou inspirar a todos. Novas classes médias,
camadas mais amplas do operariado, novos industriais têm
imagens diferentes do Poder, e exigem atributos diferentes
para seus líderes. A personalidade política encontra,
nestes «outros» que entraram na cena, se não a fonte
de direção, pelo menos a fonte de aprovação. Além
disso, capitães da indústria e do consumo apareceram a
disputar as preferências na luta pelo Poder, pois se vêem
como os heróis que, pelo trabalho tenaz, chegaram ao
sucesso. Uns são heróis de histórias em quadrinhos, e
esperam entrar na História, como líderes políticos; uns
são moralizadores que buscam na classe média as fontes
do Poder; outros, ainda, buscam nas drenagens históricas
o Poder oligárquico.
O fogo ou a fôrça da oratória, a voz sonora, o
magnetismo pessoal, e sobretudo a indignação moral, são
as fontes principais do político das classes médias. De
um dêles - o mais representativo - pode-se dizer que
acredita, como nenhum brasileiro acreditou, que a violên-
cia é o elemento histórico fundamental. O empobreci-
mento da classe média, sua insegurança emocional, seus
sentimentos de culpa e de inferioridade a têm levado a
apoiar a violência verbal, a ameaça de punição, a agressão
moral que um dos seus líderes pratica, sem nenhuma
indulgência cristã. Mas a humanidade, que está na essên-
cia do povo brasileiro, não só repele a violência, que não
foi instrumento comum de conquista do Poder, como
também não aceita, devido ao seu cristianismo, que sempre
e sempre, na predestinação de seu futuro, sobressaia a
perspectiva da danação sôbre a esperança da salvação.
Para o cristão, como ensinava Santo Agostinho, a história
se faz mediante o pecado, isto é, pela ruptura da lei
divina, pelo afã de conhecer o bem e o mal. Para a classe
média que êsse líder dirige, não há salvação para nenhum
êrro, não há senão o castigo, o insulto, a calúnia. Tôda
sua linguagem, todo seu pensamento busca, na ameaça do
terrorismo, a fonte do Poder, para poder castigar os
ASP!P.AÇÓES NACIONAIS 33

que dêle divergem. O ressentimento, disfarçado em indig-


nação moral, é uma característica da classe média, daqueles
que vivem em condições que forçam seus membros à
auto-restrição e à frustração de seus desejos normais. Dia
a dia, essa liderança, que nutre e alimenta os ressenti-
mentos da classe média, tende a falsificar a nossa his-
tória, ou, pelo menos, a propor divisões desfiguradas e
a tormr marginal sua participação no processo histórico.
A marginalidade se agrava pela dissociação da classe mé-
dia, não só das aspirações populares atuais, como das
próprias características nacionais: o compromisso, a con-
ciliação, a política liberal, 3 tolerância, a forma pacífica
das relações raciais e sociais.
Outra liderança encontrou, também, na inabilidade
do compromisso e no recurso ao autoritarismo, sua fra-
queza essencial. Inspirava-se em setores mais amplos -
e não só na classe média - mas foi pelos defeitos desta
que ela falhou. Seu sucesso foi uma tragédia. Fêz crer
que lutaria contra as cidadelas do privilégio e conseguiu
entrar como um vitorioso, mas a cidadela se converteu
numa prisão, e, quase como um renegado, teve que des-
prezar a liderança. Sua retirada espontânea do processo
histórico - depois de algumas vitórias - foi uma cena
humilhante de nossa história. A política exterior dominou
sua época, mas não foi por isso que êle saiu. A tragédia
veio da vontade inflexível que não admite o compromisso
- a mais comum forma de jôgo político no Brasil.
Da inabilidade para o compromisso e da coragem con-
traída - por quem procurava exibir um machismo auto-
ritário - nasceu a ambivalência insolúvel entre a potência
e a impotência. É mais fácil reter que reganhar, mas
ainda assim ela não está fora do páreo e pode encontrar
fôrças de recuperação, num equilíbrio entre a presidência
forte, tão indispensável ao desenvolvimento, e a capaci-
dade de transigir, tão necessária à vitória política.
Nem uma, nem outra dessas lideranças revela pos-
suir aquêle traço de otimismo que sensibiliza e atrai os
brasileiros. A liderança otimista, que vê no desenvol-
vimento o problema fundamental, que promete e confia
no alívio próximo das dificuldades populares, que acre-
dita mais n'a salvação do que na danação, que não odeia;
não discrimina, não alimenta frustrações ou ressentimen-
tos, continua a ser a mais autêntica e a mais aceita. Se

3
34 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

a primeira é a mais antibrasileira das correntes políticas


brasileiras, a última é a mais brasileira. Se no fundo da
alma de cada uma delas há uma intensa vitalidade, uma
energia infatigável e uma magnética influência, nenhuma,
como a última, interpreta genuinamente o jeito, a tolerân-
cia, a aversão à violência, a simpatia, a compreensão, a
fé e o otimismo brasileiros. Ela promete paz e tranqüi-
lidade - aspirações sempre atuais - embora saiba que a
História é verdadeiramente dramática, é a própria inquie-
tude, é o viver sem repouso. Renova-se sempre, não na
solidão ou na meditação, mas na conversa e no contato pú-
blico. Luta sempre, engaja-se em campanhas de interêsse
público, e procura estar em dia com os tempos modernos.
Sua contemporaneidade é permanente. A verdade está
nos quadros gerais e não nos detalhes; seu método é
intuitivo, . mas sua execução, lógica. Essa liderança não
possui ódios, não discrimina, não impõe; ela tranqüiliza,
apazigua, convence, e quando vence, não amesquinha ou
persegue os vencidos. Busca alianças com outra liderança
que apele especialmente para os trabalhadores.
As convicções progressistas desta última não escon-
dem seu sentido reformista. Sua função consiste em
liderar o avanço comedido, dando-lhe as pausas necessárias,
e, quando é indispensável, tenta embromar o processo
histórico. Ao contrário do que pensam seus mais encar-
niçados inimigos - especialmente a liderança da classe
média, indignada com seus aspectos vulgares e populistas
- ela age como um amortecedor do nosso processo his-
tórico. As crises de exclusão que a têm ameaçado várias
vêzes, as conspirações para afastá-la do processo político
e as agressões da classe média a têm transformado numa
liderança assediada, que por isso mesmo assume algumas
vêzes um papel radical, não na direção extremista-co-
munista, mas no sentido nacionalista e socialista. Outras
vêzes, depois de certas bênçãos internacionais, as chamadas
classes conservadoras tradicionais aproximam-se dela, pre-
conizando paz, tranqüilidade e bons negócios - que de-
pendem sempre da assistência estatal acenando-lhe com
a confiança do centro, manifestando-se contra a demagogia,
fingindo que dissiparam desconfianças, mas, na realidade,
pressionando-a e sitiando-a O'.l tentativa de fazê-la tapear
as necessidades populares. Nela domina a ambivalência
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 35

entre o libertário e o liberticida, entre o cabra destemido


e o tirano acovardado.24
Na verdade, para o povo, o que importa é o que
acontece agora, e não, o que aconteceu há muito tempo,
ou vai acontecer no futuro. Como êle tem sido deutera-
gonista na cena política e continua semi-soberano - espe-
cialmente pelo analfabetismo - a liderança não exprime
totalmente essa relação entre a personalidade e o Poder.
À medida que a luta política se intensifica, que os grupos
de pressão disputam aos Partidos as rédeas do comando,
o Congresso se torna um ninho de representantes de
grupos, ou como disse Earl Latham, se transforma no
juiz que retifica a balança do Poder entre os grupos em
conflito. Só com a real soberania popular, o govêrno
se nacionalizará, e os interêsses nacionais serão priori-
tários. A sobrevivência da democracia no Brasil não está
ameaçada, a menos que se continue a defender os inte-
rêsses seletivos de uma fração da minoria.
Mas isso se torna dia a dia impossível. As aspirações
atuais do povo brasileiro crescem mais ràpidamente do
que os níveis de satisfação promovidos pelas minorias
dominantes. A diferença entre o padrão de vida que
possui e o nível de vida a que aspira aumenta sempre
. e mais. Nem por isso êle busca soluções extremistas,
porque é, como convém repetir, infenso, por feitio, às
ideologias. Sua posição não é engaiolada, doutrinária,
fechada, dogmática, mas flexível, conciliável, personalista;
êle aceita as mais esdrúxulas alianças promovidas pelas
cúpulas, e rejeita, de um ou de outro lado, as atitudes
discriminatórias, fanáticas, indiscutíveis, extremas.
Suas aspirações permanentes constituem a substância,
o depósito sagrado do nosso patrimônio; as aspirações
atuais, variáveis, não podem violar as permanentes -
que são obras mais sua do que da liderança - e devem
apenas torná-las vivas e atuantes para corresponderem às
vitórias do progresso. As aspirações atuais devem pôr a
Nação em dia com os tempos modernos, e tornar seu
povo contemporâneo de sua própria época.

24 Os gaúchos têm dominado essa liderança. Vide, sôbre a


ambivalência gaúcha, José Honório RODRIGUES: O Co11tinente do
Rio Grande, Rio de Janeiro, 1954.
36 JOSÉ HONÓ11.IO ROD!l!GUES

Uma clara consequencia logo se avista: a superação


do subdesenvolvimento exige o fortalecimento da Presidên-
cia, pois sàmente uma real liderança presidencial pode defen-
der, pela unidade de comando, as aspirações permanentes,
mobilizando os recursos da Nação para as tarefas atuais.
Uma votação nacional, uma maioria nacional, uma lide-
rança nacional defenderá a unidade indissolúvel do per-
manente e do atual. A luta que se trava agora não é
entre conservadores e liberais, mas entre reformistas pro-
gressistas e contra-reformistas. A luta é entre a moro-
sidade e a velocidade do processo histórico, entre os que
vivem do saudosismo e estão dominados por valores ultra-
passados, e os que tiram sua fôrça do fato de serem
vivos, definitivamente vivos, e ligados aos problemas do
povo e da Nação.

\,
PARTE I

CARACTERÍSTICAS NACIONAIS

"Ficai na certeza de que é coisa difícil


ser sempre o mesmo homem."
FRANCISCO OTAVIANO, Discu•so na Câma-
ra, 11 de fevereiro de 1864.
l. CARACTERISTICAS NACIONAIS

Os estudos sôbre o caráter brasileiro contam com


tradição filosófica e literária. Desde José Bonifácio, nos
inícios de nossa Independência, até os ensaios mais re-
centes, um crescente interêsse dos brasileiros pelo Brasil
e pelos brasileiros criou ambiente próprio para o estudo
Jisciplim1do dêste tema.1
As tentativas de interpretação das constantes do cará-
ter brasileiro à luz da História constituem uma bibliografia
tão extensa, que só um estudo mais exaustivo poderia re-
velar suas origens e mostrar seus resultados. Nem todos
apresentam a mesma virtude de observação, a mesma exce-
lência dE método de pesquisa, a mesma capacidade de
interpretação. Variam e oscilam em proporções desmedidas.
Em quase todos predomina o impressionismo, mas,
por não terem sido rigorosos no exame das fontes diretas
e não terem sabido controlar seus achados, não devem ser
postos de lado. O impressionismo científico representa,
ao lado da literatura de ficção, um dos instrumentos de
análise e interpretação.
A expressão «caráter nacional», usada pot José Boni-
fácio e Capistrano de Abreu, com quase um século de
diferença e métodos de exame desiguais, ainda hoje não
tem um significado precioso e definido. O tema do caráter
nacional ia atingir seu momento amadurecido durante a
última guerra, quando se tornou um assunto prático, útil
e necessário. Já anteriormente Salvador de Madariaga fôra
comissionado, no fim da primeira Grande Guerra, para
estudar franceses, inglêses e espanhóis, porque se reco-
nhecera que a comparação de culturas de diferentes povos
poderia ser relevante para os problemas da organização e
da paz mundiais.
Obrigados a enfrentar uma guerra total, inclusive psi-
cológica, contra inimigos pouco conhecidos e inacessíveis,
os Estados Unidos estimularam êsses estudos com fins

1 Os principais trabalhos brasileiros estão indicados em lis-


ta bibliográfica no final do livro.

39
40 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

práticos. O conhecimento da natureza dos nossos inimigos


podia ser uma arma poderosa no armário da guerra psico-
lógica, na manipulação política e, mesmo, na arte e índole
das operações militares. Mais importante era ainda a sua
segunda significação: a planificação satisfatória das relações
internacionais depois da guerra podia ser incomensurà-
velmente ajudada pela compreensão dos fins e motivações,
das complexidades emocionais que caracterizam as nações
consideradas individualmente.
Sob a pressão das urgências da guerra e da fabricação
da paz, as teorias do caráter nacional cresceram nos seus
métodos de investigação, nas suas técnicas de análise e nas
suas teses conclusivas. Não foram também poucos os que
se opuseram a êste caminho na descoberta das caracte-
rísticas nacionais, especialmente no campo das doutrinas in-
ternacionais, desde que se considerava a teoria do caráter
nacional como produto do nacionalismo. As várias teorias
do caráter nacional, desde Morris Ginsberg até David Ries-
man e David Potter, foram ganhando aos poucos as mais di-
ferentes adesões, e hoje, em vários países, europeus e ame-
ricanos, se estuda a distribuição de certos traços típicos dos
diferentes .grupos humanos. Na própria União Soviética
reconhece-se que a unidade do processo histórico mundial
implica, necessàriamente, a diversidade das formas histó-
ricas e a variedade do desenvolvimento social, em função
das condições específicas dos povos de diferentes países.
Desde os primeiros estudos de Otto Klineberg se
reconheceu que «O estudo da História é um pré-requisito
absoluto para um quadro completo» e, aos poucos, novos
métodos, com a aplicação da Psicanálise e da Antropologia
Cultural, foram definindo o conceito, apurando o método,
desenvolvendo as pesquisas. Para Riesman, o caráter, no
sentido científico contemporâneo, é o conjunto das unifor-
midades padronizadas da resposta aprendida, que distingue
homens de diferentes regiões, eras e grupos. O indivíduo
é sempre beneficiado quando vive mais ou menos confi-
nado na roupagem do caráter nacional, que lhe é impôsto
pela tradição e pelas necessidades, ou seja, pela História e
pela sociedade.
Dos trabalhos individuais chegou-se aos inquéritos
sociais, alguns promovidos pela UNESCO, com o fim de
estabelecer os estereótipos nacionais ou as imagens fabri-
cadas, que fazemos de nós mesmos ou de outras nações.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 41

Se o caráter nacional denota a conduta total do povo,


deve-se procurar, primeiro, os traços comuns geralmente
distribuídos, e depois, os padrões de conduta reconhecidos
no grupo como um todo. O caráter nacional é o ponto de
tensão no estudo das relações entre o indivíduo, a cultura,
a sociedade e o Estado. Daí a importância e a signifi-
cação de seu estudo. Ora, desde Sílvio Romero, Capis-
trano de Abreu, João Ribeiro e Afonso Celso, até Oli-
veira Viana, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda,
Alcântara Machado, Afonso Arinos de Melo Franco, Gil-
berto Freyre, João Camilo de Oliveira Tôrres, Alceu Amo-
roso Lima, Eduardo Friero e Viana Moog, procura-se
catalogar os traços e características do povo brasileiro,
vistos mais como virtudes e defeitos do que como expres-
sões de conformidade histórico-social.
Não seria difícil somar as virtudes e os defeitos dos
brasileiros aí apontados e apresentá-los num conjunto em
que a presença de certos qualificativos denunciasse, pela
freqüência e somatório, o quadro de nossos traços psico-
soc1ais. Mas, como já acentuaram vários estudiosos, a
cultura de um povo não é um somatório de grupos re-
gionais, nem de pessoas, e, sim, a integração dêstes numa
síntese nova, em que o conteúdo espiritual se revela, na
sociedade, em traços permanentes ou variáveis, através
de períodos históricos.
Dêste modo, para tentar captar os traços em mu-
dança e poder afirmar a permanência ou constância de
alguns dêles, parece-nos que o melhor é destacá-los em sua
função social, isto é, na sociedade de cada período.
Na primeira fase, são tais as contradições da tese
portuguêsa e da antítese do ambiente, dos índios e negros,
que a síntese do antigo e do nôvo é uma criação intei-
ramente nova e original, apesar da europeização dominan-
te, do lusitanismo vitorioso, na aparência das formas sociais.
Os primeiros povoadores (desertores, degredados e
náufragos), como observou Capistrano de Abreu, subor-
dinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao meio,
ao ponto de furar lábios e orelhas, matar prisioneiros
segundo os ritos e cevar-se em sua carne; outros insur-
giram-se contra êles e impuseram-lhes sua vontade. Mas
havia, ainda, um tipo intermédio: é o Caramuru, Diogo
Álvares, que não usava o batoque, nem se alçava ao
poder, mas conseguia viver bem com o natural. Influía
42 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

pouco e sofria pouca influência. A fôrça da natureza é,


então, decisiva e, se somada à influência indígena, densa
ou exígua, calculada recentemente em cêrca de um milhão
e quinhentos mil habitantes, não só na costa mas no
interior, há de mostrar que desde a primeira hora o Brasil
não é o mesmo que Portugal.
Iniciado o desmoronamento da cultura indígena, pela
ação europeizante portuguêsa, aquêles primeiros habitantes
eram tidos como modelos, e imitados nos seus princípios
políticos e sociais. Os indígenas vencidos e os negros
cativos hão de impor, ajudados pela ação da natureza e
do tempo, os traços diferenciadores, numa sociedade que
se procurou transplantar e criar segundo modelos es-
tranhos. Mas o complexo que se formava era especial-
mente europeu-lusitano no seu conjunto, pois só os ven-
cedores determinam o conteúdo do processo histórico.
A sociedade dos primeiros séculos foi assim suma-
riada por Capistrano de Abreu: a evolução social em re-
lação à família brasileira consistiu no maior número de
relações regulares e na paridade crescente das etnias. Na
religião começamos com padres desmoralizados, que escan-
dalizavam pelo exemplo. A moralização do clero foi obra
dos jesuítas. Na literatura começamos com o auto sacro
e a comédia: literatura para quem não sabia ler, literatura
identificada com religião. A evolução consistiu na elimina-
ção do elemento religioso e no aparecimento de uma forma
literária para os que sabiam ler. As manifestações públicas
não se limitavam às solenidades religiosas, procissões, nove-
nas, romarias: nos templos representavam-se comédias e
autos, em que havia trovas entoadas ao som da viola. O jôgo
era um derivativo benéfico, numa sociedade em que os
assuntos religiosos eram privilégios do clero e em que
qualquer palavrinha, por mais inocente, podia ser detur-
pada e ter conseqüências gravíssimas. Quanto menos se
pensava e falava, melhor. O elemento humano era, em
sua maior parte, inconciliável; mesmo entre portuguêses
prevalecia a hostilidade; o reino! não queria confundir-se
com o peão; havia ciganos e mouriscos. A colônia já
possuía boticas e letrados em jurisprudência.
A família podia ser assim retratada: pai soturno,
mulher submissa, filhos aterrados. Enfim, a terra era
melancólica, pelas suas privações, pelos perigos internos
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 43

de bichos e índios, e pelos externos, que traziam os habi-


tantes em constante sobressalto.
Os filhos de portuguêses nascidos no Brasil eram
tratados com desdém, «faltos de engenhos» e afeiçoados
aos costumes indígenas. A camada ínfima da população
era formada por escravos, filhos da terra, e africanos ou
seus descendentes, sem terra e sem liberdade. Acima
dêsse rebanho seguiam-se os portuguêses de nascimento
ou de origem, sem terra, porém Hvres; coroavam essa
hierarquia os proprietários rurais e, especialmente, o Senhor
de Engenho, «título a que muitos aspiram, porque traz
consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos»,
como disse Antonil. Dominavam fôrças dissolventes e
só se percebiam as diferenças, não havendo consciência
de unidade, mas de multiplicidade. Existia discriminação
racial, sendo a mestiçagem com o negro vista com aversão.
Dominavam, assim, fôrças dissolventes, e a hostilidade era
generalizada.
Êste foi o quadro geral, desde 1500 até o movimento
da restauração pernambucana (1645-1654). Daí até a
descoberta do ouro, grandes transformações materiais e
econômicas, a exploração do interior, as bandeiras, a con-
quista do sertão, a criação do gado, promovem mudanças
de sensibilidade, de moral e de características.
Os auxílios que Pernambuco e o Nordeste recebem
de todo o Brasil revelam que se forjava um início de
solda entre os vários elementos étnicos, e que começava
a unidade nacional.
Aos poucos, vai desaparecendo o sentimento de des-
dém pela gente aqui nascida, e de desapreço pela terra.
A miscigenação, apesar dos preconceitos raciais, que sepa-
ravam, por exemplo, as irmandades de côr e impediam
habilitação sacerdotal aos mulatos, vai ensinando a con-
vivência entre os grandes grupos étnicos brasileiros, dos
quais o negro é o sustentáculo da economia colonial. A
grande vitória obtida contra os invasores, pela fôrça dos
próprios recursos coloniais, as proezas dos bandeirantes,
a riqueza da criação do gado, geram e nutrem a superação
do sentimento de inferioridade. Os daqui sentem-se iguais
aos portuguêses da metrópole. Quando êstes quiseram
assumir novamente sua atitude de superioridade e proteção,
uma irreparável e irreprimível separação se verificou entre
44 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

brasileiros e portuguêses. Daí as lutas dos emboabas


e mascates.
A descoberta do ouro só fêz aumentar o sentimento
de que os brasileiros eram iguais aos portuguêses, mas
as revoltas entre portuguêses e brasileiros, índios e brancos,
negros e brancos revelaram os descaminhos da convivência.2
A massa imigratória portuguêsa não crescia porque
era estorvada pelas leis, que, desde 1667 e 1720, emba-
raçaram o livre trânsito dos reinóis. Com o povoamento
precoce, o derramamento da gente pelas novas terras de-
vastadas, conquistadas pelos bandeirantes ou pela criação
do gado, a indiada, os escravos negros e os mestiços de
primitiva cultura, constituíam a massa dominante, cada
vez mais hostil ao português, ou, pelo menos, às suas
tentativas de impor a sua antiga superioridade, já não
mais aceita.
Se no litoral havia ainda alguns rudimentos de cul-
tura e instrução, a gente do interior regredia, ou, mesmo,
se barbarizava, pois era incapaz de manter os contatos
indispensáveis a uma civilização evoluída. Os grandes
proprietários rurais bastavam-se a si mesmos e exerci:m1
um poder incontrolável, pois só a partir de 1690 foram
criados os primeiros juízes no sertão, ainda assim sub-
missos ao poder dos grandes senhores.
A vida econômica era atrofiada, sem liberdade ne-
nhuma, a não ser a de exportar a matéria-prima para o
mercado metropolitano. O mercado externo era fechado
pela política do govêrno, e a disseminação da propriedade,
as distâncias, as dificuldades de comunicação tornavam
precário o mercado interno. A hostilidade grupal não
deixou assim de existir, mas a miscigenação, que é exercício
e lição de convivência, a corrigia. A barbarização da
gente do interior, sem escola, sem livro e sem imprensa,
continua seu processo negativo.
A ampliação da fronteira, no princípio e fim do
século XVII, representa novos contatos culturais decisivos
na evolução das características nacionais. O Estado do
Maranhão, criado em 1621, é, como São Paulo, indígena
na sua totalidade; um e outro ·só adotam a língua por-

2 Especialmente a Gue:-ra dos Emboabas ( 1708-1709), a·


Guerra dos Bárbaros ( 1680-1700) e os Quilombos <los Palmares
(1687-1709).
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 45

tuguêsa a partir, respectivamente, de 1755 e 1758. Veri-


fica-se, assim, nôvo impacto de tupização da vida cultural
brasileira. Negou Capistrano de Abreu que os traços
característicos do indígena fôssem a indolência e a ocio-
sidade, mas a trova paraense retrata êstes traços:
«Vida do Pará
Vida de descanso
Comer de arremêdo
Dormir de balanço.»
O Continente de São Pedro do Rio Grande é tam-
bém indígena, mas, aí, a obra portuguêsa fêz-se mais
ràpidamente devido à precedente ação bandeirante, de lu-
sitanização das áreas espanholas e jesuíticas. Um traço
marcante denuncia a área geográfica sem limites, ampla,
generosa, rica, independente: a liberdade. Levada, porém,
aos extremos, indisciplinada ou desfreada dos entraves jurí-
dicos, ela gera a tirania e o monarca de grande opmiao,
às vêzes confundido com o caudilho. A trova popular
também exprime êsse sentimento:
«Quem é gaúcho de lei
E bom guasca de verdade
Ama acima de tudo
O bom sol da liberdade.»
O plano político pombalino de 1757 e a transfe-
rência do Vice-Reinado (1763) restabeleceram, de certo
modo, a unidade ameaçada em 1621. A falta de ensino
superior e de imprensa, abafada em 1750, e a escravidão,
acompanhada da ociosidade, da indolência, do servilismo
e da corrupção, impediam, porém, a formação de uma
verdadeira consciência pública. As hostilidades, atritos e
malquerenças continuavam, e vez por outra, rompiam-se
os diques: as revoluções negras e sociais e a Inconfidência
Mineira representam a tentativa de ganhar o tempo social
cultural atrasado.3

3 Especialmente a Revolução dos Alfaiates na Bahia ( 1798).


Cf. Afonso RUI: A Primeira Revolução Social Brasileira, 1798, São
Paulo, Companhia Editôra Nacional, 1942. Quanto às revoltas ne-
gras, .cf. José Honório RODRIGUES: Teo1·ia da História do Brasil,
~ão Paulo, Cia. Editôra Nacional, 1957, 2• edição, vol. J, 215,
n9 64.
46 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

A percentagem cobrada pela Coroa sôbre a produção


mineira tornou-se, em breve, o propulsor de todo o me-
canismo colonial. Nunca, em nossa História, o fisco teve
tanta importância. Daí o complexo mineiro antifiscal, a
incurável oposição ao tributo oficial. A Inconfidência,
como outras conspirações, era inspirada pelo absolutismo
ideal: mais pelas idéias européias não portuguêsas do
que pelo realismo americano brasileiro. A educação con-
tinuava sua obra aterradora, expungindo a vivacidade e
a espontaneidade dos pupilos. Poucos aprendiam a ler.
As aulas pré-universitárias e universitárias (comércio, ar-
quitetura militar e economia) foram criadas na segunda
metade do século XVIII. Terminava a obra de três sé-
culos, assim resumida, numa síntese admirável, por Capis-
trano de Abreu: «Cinco grupos etnográficos, ligados pela
comunidade ativa da língua e passiva da religião, moldados
pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo
pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso,
sentindo pelo português aversão ou desprêzo, não se pre-
zando, porém, uns aos outros de modo particular.»4
Agora, o estrepitoso amor à terra, a aversão ao por-
tuguês, que se transforma, passada a Independência, em
desaprêço e indiferença, e o particularismo e a divergência
do sistema colonial mais incompatibilizavam o Brasil com
a Metrópole e mais geravam, não o nativismo, mas o
nacionalismo. O Alvará de 1785, proibindo a existência
das fábricas de sêdas e algodões, e não de panos grossos,
para o povo, foi a culminação lógica das leis discrimi-
natórias do govêrno metropolitano. Ao findar o século
XVIII, a população disseminada e as comunicações difí-
ceis tornavam raros os contatos, favoreciam as descon-
fianças, despertavam as antipatias, concorriam para a inso-
ciabilidade, o subjetivismo e o irrealismo, que prefere di-
vagar sôbre os fins e não sôbre os meios de atingi-los.
O povo, pouco cultivado, no litoral, ou barbarizado, nos
bolsões interiores, não podia formar uma moral social.
Em 1808 começa a decomposição do sistema colonial,
que sofre um golpe profundo quando D. João declara

4 Capistrano de ABREU: Capítulos de Histt5ria Colonial, ed ..


rev. por José Honório RODRIGUES, Rio de Janeiro, Briguiet, 195'4,
337-338.
ASPlllAÇÕES NACIONAIS 47

abertos, às nações amigas, os portos do Brasil. Profundas


transformações espirituais vão se operar. Os viajantes
da época pouco posterior, como Spix e Martius ( 181 7-
1820), afirmam que os 24 000 portuguêses e os vários
estrangeiros imprimiriam mudanças nas características dos
habitantes e na sociedade, em cujo tom «nota-se pouca
influência européia».5
Ao fazer-se a Independência, o sentimento de igual-
dade em relação a Portugal é substituído pelo de supe-
rioridade. Procura-se reagir, então, contra todos os males
advindos de três séculos coloniais, carregados de escravidão,
de falta de instrução e de liberdade de expressão, de
submissão total da mulher, de servilismo, de opressão
econômica, de excessiva disciplina das crianças, que viviam
aterradas e eram fortemente castigadas. A grande pro-
priedade, a ociosidade, o horror ao trabalho, castigo de
quem não tem escravos, continuam gerando e nutrindo
grandes deficiências e insuficiências de nossa economia e,
conseqüentemente, do conjunto total da cultura nacional.
Infelizmente, muitos erros não puderam ser corrigidos
desde logo, porque, em vez de consultar os germes de
organização que começavam a abrolhar nas juntas e câ-
maras, os estadistas leram Benjamin Constant e os ideó-
logos coevos. Já então se faziam as coisas para inglês
ver. Numa nação imberbe, aplicavam-se os princípios
políticos das nações européias muito mais adiantadas. Ve-
rifica-se nova europeização superestrutura!, pois ainda do-
minavam a subordinação e o sentimento de inferioridade
diante, especialmente, de inglêses e franceses.
Esta tendência para o idealismo, êste vêzo de indagar,
antes de tudo, o que a nosso respeito dirão na Europa,
não podia deixar de dar maus resultados. Já dizia José
Bonifácio que, no Brasil, o real vai além do possível. Até
1889, a escravidão foi o sustentáculo econômico do país.
A miscigenação continuava sua obra e a convivência das
várias etnias cada vez mais se exercitava, num amplo e
generoso sentido humano.

5 A fim de evitar a repetição de citações, indicamos, em


lista bibliográfica no final do livro, os viajantes estrangeiros uti-
lizados.
41' JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

2. Il'.IAGEM DO BRASIL PELOS ESTRANGEIROS

Para a maioria dos viajantes, o brasileiro do século


XIX tinha horror ao trabalho manual, exercido por escra-
vos, e desejava, como os velhos colonos portuguêses, o
enriquecimento rápido e súbito. A escravidão deixou mar-
cas profundas: o servilismo dos mulatos, os preconceitos
dos senhores contra a vida ativa, o desgôsto pelos sérios
labôres da indústria e do comércio, a primeira inexistente
e o segundo dominado por estrangeiros, especialmente o
de varejo, controlado pelos portuguêses. Não havia espe-
cialização nos trabalhos; o operário, que se utilizava tam-
bém de escravos, exercia vários ofícios, tal como acontecia
desde a época colonial.
Entre 1836 e 1842, os homens de maior notabili-
dade no Brasil, segundo Kidder e Fletcher, pertenciam às
profissões liberais. «Qualquer coisa assim do gênero de
um grande mecânico ou comerciante ocupando alta po-
sição oficial, creio que nunca se viu.» Era o desprêzo
pelas profissões técnicas e comerciais e o aprêço pelas
liberais. Todos ou quase todos que queriam distinguir-se
dirigiam-se ao sacerdócio, à profissão das armas, à advo-
cacia e à medicina. Continuava a existir a chamada mo-
bilidade social, ou a movimentação de uma classe para
outra. Pessoas de tratamento perdiam sua situação, ao
passo que outras, vencendo obstáculos, conseguiam sair
das classes subordinadas e elevar sua posição social. Sem-
pre fôra assim no Brasil. Frei Vicente do Salvador,
escrevendo em 1618, transcrevia esta sentença: «Vá de-
gradado para o Brasil, donde tornará rico e honrado.»
Essa frase, entretanto, na época colonial, em que os pre-
conceitos raciais dificnltavam a ascensão, restringia-se aos
remo1s. Agora subiam também os de cêr, dos quais os
mulatos eram os mais engenhosos, capazes e ladinos. A
sociabilidade era inexistente. mas aos poucos a sociedade,
sonhadora, divagadora, abstrata, irrealista, sempre muito
afrancesada nas modas e no gôsto pela literatura francesa,
foi ganhando mais vida.
A segregação feminina era total, a princípio tanto
no interior como na cidade. As mulheres completavam
sua reduzida educação aos treze ou quatorze anos, quando
ASPIRAÇÕES NACIONAIS

estavam preparadas para os afazeres domésticos; a prin-


cípio, restritas à fiscalização dos serviços dos escravos, mais
tarde, com a abolição, cuidando da casa e dos filhos.
Ainda em 1808 reduziam-se, as mulheres, à obscuridade
doméstica, e só passaram a ser vistas, raramente, nos
teatros e lugares públicos, depois de 1820 e, com maior
freqüência, a partir de 1863 ou 1883.
A educação continuava sua obra deficiente, incompleta,
memorizadora, não prática. Alguns pais, especialmente
os fazendeiros ricos de Minas, enviavam seus filhos para
se educarem na Europa, mas outros, como os baianos,
receavam que êles aí freqüentassem más companhias ou
contraíssem casamento inferior. Os filhos dos senhores
eram educados pelas mães-pretas, e recebiam tôda a in-
fluência prejudicial da escravidão. A instrução, apesar
de acanhada, pois não se desenvolvia nas massas, ia
fazendo alguns progressos. Havia, em 1874, 4 653 escolas
particulares.
As crianças, excessivamente disciplinadas, tinham ar
grave e pensativo, mais pareciam pequenos homens que
crianças. «Não correm, não rodam o arco e não atiram
pedras, como as crianças da Europa ou da América do
Norte», observaram Kidder e Fletcher. Ao contrário do
que notou Gorer6, na Grã-Bretanha eram elas que se
exibiam aos pais. As crianças aterradas do século XVI
e as excessivamente disciplinadas no século XIX cons-
tituem as gerações de profundo respeito à autoridade e
aos superiores, em geral, e ao Rei, em particular, e não
à Constituição. O Rei Imperial representa o govêrno
paternal de S. M. Colonial, e não são as leis que importam,
mas as autoridades pessoais. Rejeições paternas houve no
princípio e no fim; primeiro pelo ódio e, no fim, quando
se instaurou a República, fixou-se por algum tempo o
complexo de remorso, «pois não era esta a República
dos nossos sonhos». A própria administração provincial
era organizada de modo a reforçar a autoridade e não
para desenvolver os recursos materiais do país, diz Agassiz.
As famílias eram numerosas e a autoridade pate,.na
era geral e totalmente respeitada, afora êsses casos. É

6 G. GORER: The Amerhan People. A Study in Nation11/


Character, New York, 1948.
50 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

uma sociedade patriarcal, de pais, com o Rei como Pai


coletivo, ao contrário da sociedade de mães, matriarca!,
que são os Estados Unidos atual. O complexo patriarcal
reflete-se também no culto ao Marechal de Ferro, a neces-
sidade de um pai que nos governe e nos discipline, como
lembrou Gilberto Freyre, ao prefaciar o estudo de Luís
Martins sôbre o complexo de remorso da geração parricida
da República.
Os vários viajantes notaram a peculiaridade do beija-
mão, sinal respeitoso de obediência paterna, daquele pai
taciturno que, desde 1500 e poucos, retrata a família
brasileira. Porque é ou foi uma sociedade patriarcal e
também uma sociedade velha, tradicional, naquele sentido
a que se referia Riesman 7, onde a inovação pouco re-
presenta, e só a adaptação, com seu ritual e rotina, dirige
a vida social. Por isso o brasileiro era cerimonioso, for-
malista e distinguia muito, com altas e compridas sauda-
ções. Vossa Excelência, Excelentíssimo Senhor, Ilustrís-
simo Senhor eram expressões oficiais correntes, quando.
no período colonial, por Ordem Régia de 1730, foi
vedado o tratamento de Senhor a qualquer pessoa, e só
em 1841 determinou-se dar aos Senadores o de Excelência
e aos Deputados o de Senhoria. Aos poucos foi-se gene-
ralizando o tratamento formalista, sempre reflexo de uma
sociedade ritualista. O brasileiro, porém, é naturalmente
muito menos formal do que o português, de onde lhe
veio certa gravidade e solenidade corrente até o comêço
da República, mas que vai desaparecendo hoje, graças à
influência simplificadora norte-americana.
O personalismo é o traço dominante nas relações
públicas e políticas, porque a personalidade básica por-
tuguêsa, ainda forte na constituição da personalidade bra-
sileira, apesar de tôdas as variações, coloca sua ênfase
nas relações pessoais, diretas e simpáticas, e não nas
impessoais, categóricas e indiretas. Os partidos políticos
não têm nenhuma significação ideológica, chamem-se li-
beral, conservador, progressista, liberal-radical ou repu-
blicano. Durante muito tempo, o que decidiu e dominou
foi a aristocracia rural, os grandes proprietários, os fa-

7 D. RIESMAN: The Lonely Crowd. A Study of the Chan-


gitrg American Character, Yale University Press, 1952, 3• imp:·essão.
J.SPIRAÇÕES NACIONAIS 51

zendeiros, os «coronéis» que comandavam um povo semi-


soberano. A paixão política era mais ou menos ardente
onde a tradição de liberdade se formara no sangue e
na luta, como em Pernambuco e no Rio Grande do Sul.
Mas a retórica perturba os caminhos da prosperidade
e da eficiência, cuja falta é decisiva. Os estrangeiros,
desde Mawe, consideram os brasileiros loquazes, tendo
Bryce observado, em 1912, que a prosperidade depende
menos dos recursos naturais do que da qualidade do
trabalho aplicado ao desenvolvimento do país, e ainda vale
menos do que a inteligência que dirige o trabalho. O
Brasil, sob êste aspecto, era menos afortunado, dizia êle,
e nem podia ser de outro modo, pois não havia educação
completa, e a profissional ou universitária é de nossos
dias. Perturba a retórica a política, continuava Bryce,
porque muitos homens de talento indubitável são muitas
vêzes traídos pelas palavras, e preferem palavras a fatos.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra há excesso de pala-
vras e gôsto pela retórica, como observou Gorer, mas a
retórica é conhecida, clara e conscientemente, como re-
tórica. Lá, retórica é retórica, e não oferece soluções.
No Brasil, retórica é parte do pensamento, e é apresen-
tada como solução.
Não foi também devido ao predomínio do bachare-
lismo na política imperial que muitas soluções adormece-
ram. Os advogados, mais do que qualquer outra profissão,
deram Presidentes aos Estados Unidos, como Jefferson,
Lincoln e Roosevelt. Dos trinta e três presidentes norte-
americanos, vinte foram advogados, dois, juízes, e dois
eram formados em direito, mas não exerceram a advocacia.
A manipulação da palavra é um instrumento na conquista
do Poder, ou na influência política. Por isso foi crescendo
o poder dos jornais, cujos desmandos nos ataques ao
Imperador e cuja falta de opinião firme era observada
pelos viajantes, surpreendidos, em 1868, com a vida ex-
traordinàriamente ativa do jornalismo brasileiro. Excessos
que se explicam, talvez, pela imaturidade da imprensa
no Brasil, nascida somente a 13 de maio de 1808, depois
da tentativa frustrada de 17 4 7. Corrupção e venalidade
não são também defeitos recentes. Vários viajantes assi-
nalam sua existência, que remonta ao período colonial;
52 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

foi também tratada em A Arte de Furtar8, escrita no


século XVII.
A miscigenação e a possibilidade de ascensão social
criaram o ambiente da convivência e das relações pací-
ficas. Se ainda em Minas, no século XVII, havia o pre-
conceito racial, aos poucos foi desaparecendo qualquer dis-
criminação; desde 1755 reconheceram-se oficialmente os
casamentos com indígenas e desde 1773 terminou a dis-
tinção entre cristãos novos e velhos. A favor dos negros
trabalhou muito sua própria influência doméstica. Na
fase imperial, com o crescente sentimento dos males e
prejuízos da escravidão, há o das vantagens do trabalho
livre, tornando-se logo a emancipação uma aspiração na-
cional. A brandura do tratamento do escravo negro se
generalizou, e o Brasil deixou de ser o Inferno dos Negros,
mas continuou por muito tempo como o Purgatório dos
Brancos e o Paraíso das Mulatas, na famosa frase de
Francisco Manuel de Melo.
A ascensão social dos mulatos já era um fato indis-
cutível, como tão bem salientou Gilberto Freyre, em seus
Sobrados e Mucambos. A beleza das mulatas e morenas
e a inteligência e habilidade dos mulatos facilitou sua
subida social. Os negros constituíam ainda a grande
massa trabalhadora, embora sustentem alguns viajantes que,
quando alforriados, eram indolentes e preguiçosos. O
problema da abolição não era um espantalho político: era
discutido livremente e com alma, diz Agassiz, por tôdas
as classes sociais, e o sentimento geral era contrário à
escravidão. A escravidão era um obstáculo ao progresso,
que atuava sôbre o povo como uma enfermidade moral.
A ela ligava-se o desdém pelo trabalho, com que se
justificava a preguiça, e os donos de escravos deixavam
a êstes o trabalho de ganharem o necessário à sua vida.
Uma das características da escravidão no Brasil foi a
variedade dos métodos de alforria que libertou os escravos:
~m 1798 havia 400 000 negros livres e na época da
Abolição existiam três vêzes mais negros que escravos.

8 1~ ed., Lisboa, 1652. Vide ed. João RIBEIRO, Rio de


Janeiro, Garnier, 1928. A corrupção vinha do alto, e as próprias
autoridades recebiam propinas pelos contratos públicos. Vide F .
.A. de VARNHAGEN: HiJtória Geral do Brasil, 3• ed., São Paulo,
T. IV, 27 e 35
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 53

Os negros livres possuíam um estatuto social situado


entre o dos europeus livres, proprietários, e o dos escravos.
Desde 1818 começou a imigração livre, mas ainda
em 1855 só haviam entrado no país 40 000 colonos. No
princípio do século XX, Pierre Denis e Bryce assinalaram
que a imigração européia renovava a vida rural e que o
«Norte» (Nordeste), porque não a recebeu, possuía a
mais medíocre população rural do país. Atribuíram as
diferenças entre o sul e o norte à qualidade do trabalho.
É unânime o elogio estrangeiro à hospitalidade bra-
sileira. Nunca fomos xenófobos, e nosso nacionalismo
terá sempre êsse traço distintivo: não somos contra nin-
guém, somos a nosso favor e de todos que comungam
nas nossas aspirações, que venham colaborar ou simples-
mente conviver conosco.
A falta de liberdade, a opressão colonial, a sombra
da Inquisição, vigilante até o século XVIII contra qual-
quer heterodoxia, as perseguições políticas pessoais, inau-
guradas por José Bonifácio, foram substituídas, a partir
da maioridade, e sob a direção de Pedro II, pela mais
livre expressão de pensamento, de liberdade de imprensa
e de palavra.
Koseritz registrou os desmandos da imprensa nos
ataques ao Imperador, cuja vida íntima era tratada de
forma desrespeitosa, apesar de a Constituição considerar
sua pessoa como «sagrada e inviolável» (Artigo 99 da
Constituição de 1824). A propaganda republicana e po-
sitivista se fêz sem opressão. Portanto, pode-se dizer que
havíamos ganho muito: liberdade de palavra, tolerância
religiosa, louvada por pastôres protestantes, como Kidder
e Fletcher, despojamento de preconceitos raciais, livre
acesso social, relações pacíficas entre as várias etnias,
generosa convivência humana, em lugar do exclusivismo.
Atacado ou desrespeitado pela imprensa, dizia Ri-
beyrolles em 1858, «o Parlamento é uma instituição que-
rida do povo. Suas liberdades estão profundamente enrai-
zadas e seria mister uma tormenta forte para abatê-las ou
desmoroná-las.» A sorte do povo era, como ainda é
hoje, dura, mas a mobilidade social e a inexistência de
castas permitiam a livre e particular melhoria. Ainda
se sentia repulsa pelo trabalho manual, e falta de atração
pela indústria e pelo comércio. O melhor da vida não
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

era o negocio, mas o oc10. O trabalho era um castigo


e a pobrezâ não era um pecado danado. Os que podiam
desejavam as profissões liberais. Mas, na verdade, como
observou Wetherell, por volta de 1850, o brasileiro pa-
recia não ter qualquer objetivo, nem pretender posição
melhor. A influência política era a única ambição que
atraía sua atenção, e os senhores de engenho eram os
grandes senhores do país, gastando com desregramento.
Apesar de progressistas, diziam Kidder e Fletcher, os
brasileiros herdaram, entre outras características, dos seus
antecessores, a antipatia pelas inovações. Tudo se fazia
sem presteza e celeridade, e a palavra «paciência» era
das mais ouvidas para os que tinham de sofrer o eterno
adiamento das soluções. Time is not money, disse o
alemão Canstatt, e com isso se vê que o espírito do
capitalismo não se formara no Brasil. Não se carregava
um embrulho, por menor que fôsse, nem sequer um livro,
pois isso era trabalho de escravo .
. Diferenças regionais saltam aos olhos dos viaiantes,
sábios ou levianos. Saint Hilaire, em 1820, referia-se às
sensíveis diferenças nos costumes das populações das
várias províncias; Martius também notou diferenças e
semelhanças, por exemplo, entre gaúchos e pernambuca-
nos. De todos, o que recebe maiores louvores é o paulista.
Martius recolheu um provérbio que dizia que eram dignos
de gabo, na Bahia, êles e não elas; em Pernambuco, elas
e não êles; em São Paulo, elas e elas. Alguns defeitos
nacionais, observados por Canstatt, tais como desrespeito
às leis e natural sensualismo, ligam-se ao personalismo da
cultura luso-brasileira e à promiscuidade e miscigenação,
causadas pela escravidão. Qualidades serão, diz o mesmo
Canstatt, a já falada hospitalidade, a veneração pelos pais
e a boa índole do povo. E, acima de tudo, a consciência
histórica de sua pátria. Observou Martius que o paulista
dizia a si mesmo, não sem orgulho, que sua pátria possuía
uma história. Segundo as observações dos viajantes es-
trangeiros, desde Saint Hilaire, em 1816, até Cooper, em
1917, o sentimento de patriotismo brasileiro liga-se a
uma história conscientemente adquirida e conservada. Um
defeito capital, porém, perturba nossa vida nacional: a
confusão das palavras com os fatos, das aspirações com
as realizações; numa palavra, o verbalismo conjugado ao
irrealismo político.
ASP!ItAÇÕES NACIONAIS 55

Poucos países oferecem tantas possibilidades de


mudança, dizia Bryce em 1912. As observações de Cooper,
feitas em 1917, quando terminava propriamente a predo-
minância da influência européia, quer econômica, quer
espiritual, não fazem senão reforçar aquêles traços já
assinalados: falta de iniciativa industrial, horror à vio-
lência, hospitalidade, energia intermitente, idéias conser-
vadoras, aversão à mudança, a declamação oratória a
dirigir o país, a coesão representada pela consciência
histórica e a comunidade da língua, país agrícola dirigido
e dominado pela autocracia rural, a autoridade decisiva
paterna, analfabetismo ao redor dos 70%, apesar do
crescimento das escolas ( 13 000), não compensado pelo
crescimento populacional ( 20 milhões), falta de Univer-
sidades, e espírito pacifista.
O que havia de nôvo no retrato era a educação
superior de algumas mulheres, a crescente prática dos
esportes, especialmente a do futebol, a ausência, durante
vinte anos, de revoluções (período pequeno comparado
com o Império, que desde 1849 a 1889 não foi per-
turbado por revoluções) e especialmente uma melhor
valorização social dos homens de negócio em São Paulo,
onde começava a nascer uma suspeita geral contra o norte-
americano, no fundo admirado pela eficiência dos negócios
e pelá maneira prática de fazer as coisas, o que, ao
brasileiro industrial ou comerciante, parecia incompatível
com o ideal dominante de fazer tudo decentemente.· «Vocês
amam o trabalho, e o negócio vem em primeiro lugar,
sendo o prazer e a vida doméstica coisas secundárias»;
«Vocês vivem para trabalhar e não trabalham para viver»;
frases transcritas por Cooper, retratavam o estereótipo for-
mado pelos brasileiros dos norte-americanos. Imagem
que refletia o desejo de superar a contradição, que vinha
do mundo ibérico, entre a indignidade do trabalho comer-
cial e a dignidade da vida especulativa. Já era um passo
adiante.
De 1917 em diante, um mundo de transformações se
operou na estrutura espiritual, nas influências novas, com
a americanização em lugar da europeização, a valorização
social das atividades econômicas, a racionalização do tra-
balho, a audácia, o espírito renovador, e, o mais estranho
de tudo, a pressa, o dinamismo, que Monbeig observou
56 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

especialmente em São Paulo. O otimismo generalizado,


a audácia intelectual e a fôrça de empreendimento carac-
terizam os homens apressados das zonas pioneiras de São
Paulo, tão diferentes dos que deixavam tudo para amanhã.
As novas culturas que se expandem pela zona pio-
neira, com novas técnicas de plantio e produção, criam
novas formas de pensar, mas todos os jovens povoadores
procuram abraçar-se a uma tradição e criar uma história
que justifique seu tumulto. A energia com que se lançam
ao trabalho e a convicção de que a fortuna os espera, faz
Monbeig acreditar que a divisa publicitária da Loteria
Federal «Fique Rico» seja, afinal, sem exagêro, uma pa-
lavra de ordem coletiva. Até que ponto não se ligará
essa procura de enriquecimento ao velho sonho do enri-
quecimento rápido, que se assinalou na fase colonial e
imperial, somado a um espírito mais enérgico, audacioso
e independente da época atual?
Como Monbeig, Camacho acredita que o Brasil está
em pleno processo de emancipação política, econômica e
cultural. Nada era tão desmoralizado para o estrangeiro,
acostumado e ensinado pela ciência européia, como o clima
da Amazônia, onde o povo morria de fome, escrevia
Agassiz, e cujo futuro não pertencia à nossa geração,
dizia Bryce. A reabilitação da Amazônia na imagem
estrangeira foi feita por Charles W agley, ao mostrar que
as principais razões do seu atraso deviam ser buscadas
na cultura e na sociedade amazônicas, na relação dessa
região com os centros do poder econômico e político e
com as fontes de difusão cultural, e não, finalmente, no
seu clima. Os valores positivos da cultura brasileira, os
traços característicos dos brasileiros como grupo social e
nacional, apontados por Wagley, serão relembrados nas
conclusões.
A tese nova da escola sociológica e geográfica, apre-
sentada primeiro por Jacques Lambert, repetida por Mon-
beig em nôvo estudo e, ainda, por Morazé, é a de que
o Brasil e os brasileiros estão divididos em duas socie-
dades diferenciadas pelos níveis e modos de vida, a rural
e a urbana, a velha e a nova, que não evoluíram no
mesmo ritmo e muito se distinguem, embora estejam unidas
pelo mesmo sentimento nacional. Não formam duas civili-
zações, mas estão separadas por séculos. O Brasil velho é a
zona rural, o nôvo é a zona pioneira e urbana. Neste
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 57

Brasil nôvo, as classes médias representam um papel decisivo


no jôgo político, pois, não sendo numerosas, reclamam a
adoção de reformas modernas, mas encontram a oposição da
sociedade rural, arcaica, colonial, que resiste às inovações.
Indignadas diante de suas derrotas eleitorais e políticas,
apelam freqüentemente para as soluções revolucionárias.
Lambert repete o velho retrato imperial, velho e verda-
deiro, de que em sua massa o povo é relativamente pouco
sensível às ideologias, lento em revoltar-se, e constitui,
por excelência, o tipo de população fácil de governar-se.
Não exprime a realidade falar de dois Brasis, um
arcaico e outro nôvo, ou, um desenvolvido e outro, sub-
desenvolvido, pois, na verdade, há, como disseram recen-
temente os Professôres Leslie Lipson e Gilberto Freyre,
vários Brasis, tantos quantas são as suas regiões espe-
cíficas ou as suas seções econômicas.
As freqüentes agitações políticas revelam apenas uma
nação imberbe diante das tarefas imensas de sua eman-
cipação econômica e da falta de quadros, conseqüência da
juventude de sua população e da pobreza dos meios cul-
turais e universitários. Até o ensino está sendo feito
às pressas, por universidades e colégios criados deficien-
temente. Monbeig e Morazé acentuam o número insu-
ficiente de adultos e a falta de quadros, que tornam
enormes as tarefas e deficiente a administração pública.
Maurice Le Lannou observou também o frenesi e a
rapidez da ação paulista. A seu ver, a política imigra-
tória de quotas fixas, inaugurada em 1934 com o objetivo
de proteger a alma brasileira e fixar a consciência nacional
sôbre as bases étnicas do momento, consideradas como
suficientemente coerentes, pode conduzir o país, tão pouco
xenófobo, a um nacionalismo demográfico; estas bases
são o grupo de lusitanos, herdeiro das glórias da conquista,
uma massa de mestiços mais ou menos claros, que re-
presentam, em suma, um belo êxito da humanidade tro-
pical, e minorias européias recentes, sofrivelmente assi-
miladas e já fiéis, consideradas como brasileiros natos.
Eis um esbôço europeu excessivamente colonizador, que
não pode ser aceito, porque o brasileiro não se considera
mais um grupo lusitano, nem suscetível de colonização.
O divórcio entre o sentimento e o comportamento, que
Lannou notou no contraste brasileiro entre a apatia con-
5R JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

servadora e a conv1cçao ardente de riquezas ao alcance


da mão, pode ligar-se ao velho irrealismo brasileiro, que
prefere, antes, divagar do que realizar.
A imagem estrangeira do brasileiro deveria ser com-
pletada pela imagem brasileira do caráter nacional, e com
ela comparada, para que um quadro melhor se desenhasse.

3. TRADIÇÕES GERAIS E CARACTERISTICAS ATUAIS

O Brasil foi o único país do Nôvo Mundo que fêz


a Independência com a instituição de um regime monár-
quico, idêntico ao da Metrópole. Não se recorreu à di-
nastia estrangeira, e a emancipação política assumiu a
aparência de um desenvolvimento natural, frenando as ten-
dências à anarquia civil, e contribuindo para conservar
intato o patrimônio territorial da América Portuguêsa. A
conseqüência imediata da unidade foi o gigantismo dos
problemas e das tarefas, desafio que, desde a Indepen-
dência, tiveram de enfrentar as minorias dirigentes. Gi-
gantismo acrescido de várias dificuldades, para uma po-
pulação precocemente dispersada e que, no exclusivismo
colonial e no isolamento nacional, só fêz regredir, tor-
nando-se insuficiente, econômica e espiritualmente. Re-
velava também, essa sua primeira ação política, uma ca-
pacidade muito plástica de acomodamento político, que
se prende à contemporização e à capacidade de adaptação.
A solução era facilitada pela própria constituição da so-
ciedade patriarcal, dividida em duas castas, a dos senhores
e a dos escravos.
A sociedade colonial e imperial brasileira baseou-se
na aristocracia rural - o que é um privilégio de socie-
dades envelhecidas. Por isso, na América, comparado
com outros países, especialmente a Argentina e os Estados
Unidos, o Brasil não é um país jovem, no sentido de
que o passado e as tradições não agem fortemente na
sua configuração política atual. Observava Pierre Denis,
por volta de 1908, que os brasileiros gostavam de dizer
que seu país é jovem; mas o europeu que houvesse per-
corrido outros países europeu-americanos; como a Argen-
tina e os Estados Unidos, sentir-se-ia menos expatriado
no Brasil, pois não experimentaria a sensação de surprêsa
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 59

ou de susto que lhe davam aquêles dois países, com sua


sociedade mal estabelecida, sem hierarquia e sem raízes,
e orientada exclusivamente pelo gôsto da independência
individual e pelo interêsse pela fortuna, características que
no Brasil só passaram a ser notadas recentemente.
O patriotismo brasileiro comporta mais recordações.
Neste sentido o Brasil é um país velho, cheio de tradições,
e constituído, em sua maior parte, de brasileir.os de mais
de três gerações, o que não é o caso argentino e o norte-
americano. O Brasil recebeu, de 1850 a 1950, apenas
4 800 000 imigrantes, dos quais somente 3 400 000 per-
maneceram no país; dêstes, a maior parte é constituída de
portuguêses, cuja personalidade básica foi a predominante
no caráter brasileiro durante três séculos coloniais, somada
às variações indígenas e negras, e que tem, em algumas
de suas peculiaridades, permanecido constante, sendo re-
forçada pelo contingente imigratório. Tem havido, assim,
uma continuidade de população, de personalidades e cul-
turas, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos e
na Argentina, onde os povos de muitos países alteraram,
às vêzes, fundamentalmente, a personalidade, a cultura e
a própria sociedade.
É no sul que se notam brasileiros de primeira e
segunda gerações e menor imposição das tradições his-
tóricas, mas ainda ali predominam a personalidade básica
luso-brasileira e sua cultura, e, por isso . a sociedade no
sul, mesmo a pioneira, procura ligar-se a uma tradição e
criar uma história. Talvez, diz Monbeig, sintam a neces-
sidade de buscar nessa história, se não uma justificativa
de seu tumulto, pelo menos uma fonte de energia. Mas,
na sua totalidade, o país é, como observaram Bryce e
Cooper, consciente do seu passado, e o brasileiro tem uma
forte tradição nacional que o torna cioso da integridade
do país.
Existem no Brasil uma cultura e uma nacionalidade
única,s, de que os brasileiros se orgulham, mas que repre-
sentam duas faces bem diferentes. Segundo Jacques Lam-
bert, os brasileiros estão divididos em duas sociedades,
diferenciadas pelos níveis e modos de vida: uma é parti-
cularmente rural e conserva seus quadros tradicionais
(Nordeste, especialmente), e outra, particularmente urbana
(São Paulo e o sul urbano e rural, e urbana no resto
do país). A primeira é uma sociedade arcaica e a se-
60 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

gunda um Brasil nôvo. Ambos, apesar da diferença social,


estão estreitamente entrelaçados e s?io unidos pelo mesmo
sentimento nacional e por outros valores comuns, não
formando culturas diferentes, mas duas épocas de uma
mesma cultura, atrasada de séculos. Os elementos posi-
tivos e negativos, a fôrça e a fraqueza da cultura básica
brasileira estão presentes nas duas sociedades. Foi a dis-
persão precoce do povoamento no Brasil do século XVII
(nos Estados Unidos a expansão territorial começou depois
de 1830, com as estradas de ferro) que fêz predominar a
cultura básica brasileira, seus traços particulares e tra-
dicionais, ainda hoje existentes, apesar das variações pro-
vocadas pelas mudanças técnicas urbanas.
O Brasil nôvo oferece uma estrutura social menos
hierarquizada e uma espantosa mobilidade social. Dêste
modo, as tradições da sociedade colonial e arcaica encon-
tram-se hoje bruscamente em contato com traços culturais
novos, introduzidos pela rápida importação de novas téc-
nicas de produção, novas culturas e modos de vida, espe-
cialmente a norte-americana.
A americanização da cultura ocidental trouxe a racio-
nalização do trabalho, a valorização da vida econômica,
especialmente da atividade mercantil e industrial, o estí-
mulo ao capitalismo e à superação do passado, e também
todos os males da propaganda, da mentalidade do consumo
conspícuo que favorece a inflação, a barbarização do rádio
e da tevê comerciais, as ansiedades e a difusão da alienação
à classe média. A personalidade básica luso-brasileira de
caráter arcaico afrouxou-se, com o aparecimento de uma
nova personalidade menos formal, menos personalista e mais
objetiva. Porque a sociedade está dividida em parte arcaica
e parte nova, a vida política torna-se inevitàvelmente uma
luta entre duas concepções sôbre a natureza das instituições
políticas.
O ônus de três séculos de colonialismo, isto é, de
sujeição a interêsses metropolitanos, de quatro séculos de
existência da escravidão, de gigantismo dos problemas e
de falta de quadros dirigentes gerou um sentimento de
insuficiência, não de inferioridade, que perturba também
psicolàgicamente a decisão e escolha das tarefas e soluções
primordiais. Capistrano de Abreu explicou a evolução das
características nacionais pela progressiva superação do sen-
timento de desdém, pelo sentimento de superioridade em
P.Sl'IllAÇÕES NACIONAIS 61

relação ao português, que nos deu o Sete de Setembro.


Continuava, porém, diz êle, o sentimento de inferioridade
em relação à Europa. Mas êsse sentimento não pode ser
interpretado como um complexo, pois reconhecer uma hie-
rarquia de valores e saber admirar, longe de ser um sintoma
de inferioridade, retrata índole generosa quanto à sua saúde
moral. Só quando se dissimula a inferioridade, simulando
superioridade, num circulus in probando dialético, e se
transtorna e nega a hierarquia de valores, com ressentimento
e emoção, se manifesta o complexo de inferioridade.
Não se deu isso conosco em relação aos Podêres
Europeus, especialmente a Grã Bretanha, que prodomina-
ram sôbre nossa vida nacional. Passado o otimismo e
a confiança das primeiras horas da Independência, quando
estava o brasileiro ainda fascinado pelas drogas e minas,
pela grandeza e possança que lhe ensinara Antonil9, êle
sufocou sua insuficiência diante do catálogo interminável
de suas riquezas, que não estavam tão à mão como lhe
parecia antes, e, pelas suas próprias tendências, caiu no
irrealismo. Aí está a raiz do ufanismolO: riquezas e não
tarefas, excelências, e não suficiências, econômicas e es-
pirituais.
Não se reconheceu que o grande pecado era a po-
breza, que se vencia pelo trabalho e pela poupança. Des-
prezou-se o primeiro, entregue exclusivamente a escravos,
e não se ligou à segunda, não formando o capital nacional
indispensável à disputa da posse e gôzo da riqueza que
se alardeava em discursos. Fêz-se uma Lei Máxima
bastarda, copiando trechos de Benjamin Constant, num
casamento frustrado entre o irrealismo da doutrina e a
realidade nacional, e que só com o tempo se foi ajus-
tando mais aos interêsses elitistas do que aos majoritários.
O mais obstinado elemento da vida política brasileira pa-
rece ser o hábito de adotar soluções em resposta a dou-
trinas e não a situações. A observação de José Bonifácio,
de que no Brasil o possível vai além do real, parece ligar-se
a êsse irrealismo e ao verbalismo, apontado por Bryce e

9 João André ANTONIL: Cultura e Opulência do Brasil po,.


St1as Drogas e Minas, lº ed., Lisboa, 171l.
10 O ufanismo tem origens remotas, mas quem o condensou
foi Afonso CELSO, no seu Porque me Ufano do Meu País, 1• ed.,
1901; 13' ed., 1943.
62 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Cooper. Ou quis José Bonifácio criar uma doutrina do


possibilismo político, segundo a qual são tantas as possi-
bilidades no Brasil que a realidade do momento, as apa-
rências conjunturais as iludem e escondem? Neste caso
ligar-se-ia a frase de José Bonifácio à enganosa aparência
das riquezas escondidas, ao otimismo da visão de que
sem trabalho já as possuíamos e que mais cedo ou mais
tarde se revelariam.
A insuficiência era de tudo, de quadros dirigentes
e de formação de quadros dirigidos, e se acentuou com a
República, à medida que as tarefas foram crescendo, com
as necessidades de bem-estar de setenta milhões de bra-
sileiros e as imposições de expandir o progresso até as
áreas retardadas do vasto território. A culpabilidade está
mais no irrealismo e no verbalismo do que no bachare-
lismo, no sacrifício da realidade à beleza da forma e da
sonoridade, ao mundo da palavra e do ouvido. Está tam-
bém no personalismo que caracteriza nossa vida política
e as nossas minorias dirigentes. Liga-se à personalidade
básica brasileira, que coloca a ênfase nas relações pessoais,
simpáticas e diretas, e não nas categóricas, impessoais e
práticas. A simpatia está acima da lei.
Mas o personalismo, que histàricamente se concen-
trava nas figuras políticas, especialmente constituídas de
bacharéis, nas culturais, nas eclesiásticas e, no comêço da
República, nas militares, se dispersa atualmente nos mais
diversos grupos. Desde 1930 a promoção jornalística,
chefiada especialmente por Assis Chateaubriand, começou
a exaltar as personalidades do grande comércio e da indús-
tria, que, através de suas associações, formam grupos de
pressões e impõem suas reivindicações. Com o rádio e
a televisão novas personalidades populares exprimem as
fôrças do populismo, meio barbarizado, e contrabalançam
as personalidades sociais, que a crônica mundana revelou.
Dêste modo, também desde 1930 desvalorizam-se al-
gumas personalidades, no conceito geral, e valorizam-se
outras pela aclamação popular ou social. Se a extrema
subdivisão parece revelar sinais de democratização do pro-
cesso histórico, não deixa de traduzir, de um lado, a
fôrça irracional do populismo barbarizado, de outro, o
poder das classes conservadoras, mais interessadas nos seus
interêsses do que nos nacionais, e, finalmente, o mundo
ASPIRAÇÕES NAC!ONAIS 63

da personalidade frívola e ociosa, exaltada pela coluna


social.
O sacrifício do bacharel e do intelectual, depreciados
hoje na escala dos valores sociais e sàmente representados
institucionalmente, não significa um ganho, como não
o significa a valorização da personalidade social que se
caracteriza pela emulação pecuniária e pelo consumo cons-
pícuo, grandioso, inútil, contraditório às necessidades. de
poupança da fase de desenvolvimento.
Assim, a maior fragmentação da personalidade é
contraditória, revelando aspectos democráticos e oligár-
quicos, e ajustando-se à fragmentação do Poder, que vive,
como disse Riesman, em estado mercurial. Ambos revelam
o possível futuro rompimento das fronteiras dos privi-
légios oligárquicos.
Os momentos de suficiência da nossa história são
aquêles em que as minorias tomaram o caminho da auto-
nomia ou, ainda, deram certo grau de impersonalidade à
sua ação, somado a um conteúdo de idéias, problemas e
soluções. A suficiência ou insuficiência, com a satisfação
ou a insatisfação de um conjunto de exigências de deter-
minado nível de vida é um conceito econômico e moral.
Não se trata de um conceito marxista, de que a pobreza
de nossa economia explica as deficiências psico-sociais in-
dispensáveis à economia capitalista, ou que a fartura e
a abundância norte-americanas esclarecem sua superiori-
dade, como quis ver David Potter.11 Com a tese de
Max Weber12 pode-se compreender que as insuficiências
espirituais ibéricas tenham impedido ou dificultado a for-
mação do espírito do capitalismo. Assim, também, nossas
insuficiências espirituais, nossas características psico-sociais
acompanharam nossa insuficiência econômica, e não será
só com o desenvolvimento econômico que a venceremos,
porque, se as insuficiências continuarem, dificilmente virão
a abundância e a fartura. São indispensáveis certas sufi-
ciências psico-sociais para o desenvolvimento econômico.
O jôgo é funcional, e mútua a interdependência do
comportamento. Sem rejeitar o passado, pecado de que
11 David M. POTTER: People of Plenty. Economic Abundan-
ce and the Amel'ican Character, The University of Chicago Press,
1954.
12 Max WEBER: The Protestant Ethic and The Spiril of Ca..
pitalism, London, George Allen & Unwin, 1930.
64 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

nos livramos, pois a condenação do passado significa a


Revolução, soubemos conservar sempre uma ligação com
nossa história e formar uma consciência histórica da uni-
dade do nosso patrimônio territorial e espiritual. A
própria personalidade básica luso-brasileira tem horror à
violência e manifesta sempre um jeito de acomodar as
coisas, um comedimento que evita as rupturas definitivas.
A habilidade, a prudência em evitar os extremos, o esque-
cimento, o rico senso de humor, a cabeça fria e o coração
quente contornam as horas difíceis. Estas características
psico-sociais ligam-se ao personalismo da nossa cultura, à
convivência pacífica que a história processou, à paciência
da personalidade básica, incentivada pela escravidão. Daí
os compromissos, que, na Independência, na Abdicação,
na Maioridade, na Abolição, na República e em movimen-
tos recentes apararam as arestas, conciliaram, abrandaram
e, finalmente, permitiram, ràpidamente, a cooperação.
A conciliação, mais do que a revolução, domina nossa
história, em parte porque o povo, com seu espírito de
concórdia, prefere obter menos a recorrer à violência, em
parte porque os grupos oligárquicos dominantes preferem
ceder pouco a arriscar muito e, finalmente, porque as
fôrças armadas, democráticas, liberais e progressistas, re-
presentam um poder de equilíbrio, que antes modera as
minorias do que subjuga as maiorias. Além disso, em
geral, os inconformismos brasileiros, as próprias revolu-
ções são expressões confusas de reivindicações populares
e de personalismos. Para amansá-los contribuiu, no Im-
pério, a política de conciliação, de que foi expressão não
só Honório Hermeto, o Marquês de Paraná, mas também
o Marechal Caxias. O único mal estava, como está, em
que o compromisso tem sido prático-pessoal, e não prático-
real, o que significa, sempre, mais a vitória personalista
da minoria dominante do que o progresso nacional. Por
isso as conquistas populares são lentas, pequenas e sofridas.

-4. CARACTER1STICAS POSITIVAS TRADICIONAIS

Em síntese, e apenas como conclusões provisórias, po-


deríamos dizer que as características positivas tradicionais
são as seguintes:
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 65

1. Uma sensibilidade nacional muito viva, que exige


que as contribuições estrangeiras passem por um processo
de abrasileiramento; uma consciência muito alerta da
herança histórica.
2. A coesão nacional representada pela língua comum.
3. Uma tradição política liberal (embora tenha sem-
pre havido intervenção no plano econômico) e civil.
4. A homogeneidade religiosa, de um catolicismo
muito flexível.
5. A forma relativamente pacífica das relações ra-
dais.
6 . A importância das relações de família, que é
ainda o núcleo da vida social.
7 . O povo brasileiro é dos mais abertos e acessíveis
do mundo, o que facilita a capacidade de adaptação, as
aquisições da técnica e o uso desta na utilização dos
nossos recursos.
8 . Pela própria forma tradicional da cooperação
agrícola ( puxirão, mutirão) pôde-se desenvolver o espírito
associativo geral, muito reduzido.
9. Na sua massa, o povo brasileiro é relativamente
pouco sensível às ideologias, lento em revoltar-se, e cons-
titui, por excelência, o tipo da população fácil de ser
governada.
1O• A sociedade brasileira tem um enraizado sen-
timento democrático, que se origina da sua profunda e
essencial humanidade cristã. Ela desaprova as desigual-
dades, que se impõem por causas econômicas.
11 . Espírito de conciliação que acomoda e evita
os extremos. Rejeição às medidas ou soluções extremas
ou violentas.

s. CARACTERÍSTICAS POSITIVAS ATUAIS

Em síntese, e também a título provisório, podem ser


indicadas como características positivas atuais as seguintes:
1 . Tendência generalizada ao otimismo e audácia
intelectual e de ação, que incentivam o espírito de ini-
ciativa e de empreendimento, antes quase inexistente.
66 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

2 . Tendência ao amor ao trabalho e à valorização


da atividade econômica, antes desprezada.
3 . Estímulo ao capitalismo, à racionalização do tra-
balho e à superação do passado colonial.
4 . Desejo de emancipação econômica e de progresso
social. O desejo de reformar as instituições sociais é
muito poderoso, e a tomada de consciência das possibic
lidades geográficas e da herança histórica é muito forte.
Conseqüentemente, a antiga aversão à mudança e ao pro-
gresso está desaparecendo. Há alguns anos a pressa era
considerada como «inimiga da perfeição»; hoje é tida como
«inimiga do atraso».
5 . O sistema fixo hierarquizado de classes sócio-
cconômicas, dominante nas zonas rurais, está desaparecendo.
6 . Sinais de crença na fortuna orgânicamente ganha
e no sentido da destinação social do dinheiro, ao contrário
do amor ao jôgo e ao enriquecimento fácil e rápido, tão
comuns na sociedade colonial e na imperial. Exemplo
curioso das mais recentes modificações na mentalidade da
juventude de origem oligárquica é a sedução pela atividade
comercial e industrial, ao invés da caça ao cartóriol3, ou
ao emprêgo público.
7 . O pacifismo que se liga à disciplina rígida da
criança, à autoridade paterna, ao horror à solução trágica.
O Brasil defende sempre o princípio das arbitragens e
soluções pacíficas, porque é um país de posição sàlidamente
protegida por títulos jurídicos, tem livre disposição de
sua área territorial e uma população sem problemas de
minotias étnicas ou lingüísticas, e sem discriminação racial.
Sua aversão às soluções violentas no campo nacional, e
à guerra, e a crença na sua habilidade nas negociações
diplomáticas aumentam a tendência ao espírito conciliatório.
Estamos conscientes de que devemos viver numa comu-
nidade internacional e não nos atalhos da História.

13 Minas Gerais é o estado que possui maior número de car-


tórios (2 603 dos 12 258 existentes no Brasil em 1958), seguindo-se
a Bahia ( 1 63 7) . Os mineiros detêm a maioria dos cartórios da
cidade do Rio de Janeiro. O chamado estado cartorial liga-se à
oligarquia mineira que tem predominado no comando político do
Brasil.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 67

8 . O nacionalismo que defende é uma forma de


lealdade às aspirações e interêsses nacionais; pode ter
havido inconfidências à Coroa Portuguêsa, mas não pode
haver inconfidências ao Brasil. A singularidade e a indi-
vidualidade nacionais dão um caráter próprio à sua polí-
tica nacional e internacional.
9. A indignação moral da classe média, puritana e
moralizadora, revela inconformismo com as mazelas e os
erros, e, portanto, fôrça moral; mas todo objetivo de
solução política meramente moral é negativo e tem prece-
dido os movimentos do extremismo direitista.

6. CARACTERÍSTICAS NEGATIVAS TRADICIONAIS E ATUAIS

Ainda a título provisório, e em síntese, podem ser


indicadas como características negativas tradicionais e
atuais as seguintes:
1 . Restos da tendência de adiar para amanhã o
que pode ser feito hoje; resíduos do conservantismo
português.
2. Instabilidade social e política, provocada pela
luta entre as tradições da sociedade colonial arcaica e os
elementos culturais do Brasil Nôvo.
3 . Grande falta de quadros na administração e na
política brasileira.
4. Reduzido número de adultos e grande contin-
gente de jovens tornam esmagadoras as tarefas da atual
geração, sobretudo em face do gigantismo dos problemas.
5. Corrupção administrativa e inautenticidade do
sistema representativo. A primeira tem suas raízes his-
tóricas na fase colonial e foi denunciada por Antônio
Vieira e pela A Arte de Furtar. As oligarquias sucessoras
continuaram a arte antiga, que vem sendo dominada. O
sistema eleitoral tem se aperfeiçoado, evitando a fraude,
mas ainda não é uma realidade no sentido representativo.
O voto continua a representar a nação e a antinação, con-
forme sintetizou Gilberto Amado, em 1931.
6. O personalismo da vida brasileira, que pode e
deve ser corrigido pela ênfase dada aos problemas e não
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

às pessoas. As considerações afetivas complicam a direção


dos negócios públicos. Daí o filhotismo, o nepotismo,
o genrismo e outras formas comuns de favoritismo ligadas
ao personalismo, à relação patrão-cliente do Estado, a
que aderem os políticos em geral, desde os mais oligár-
quicos aos mais trabalhistas.
7. Irrealismo das minorias dirigentes, que pode e
deve ser corrigido pela capacidade de responder aos desa-
fios, com soluções e não com teorias. Êsse irrealismo
nasce da alienação das minorias dirigentes, sempre sedu-
zidas pelo prodígio do exterior e não pela realidade do
quotidiano nacional. A alienação é uma fuga ao complexo
de inferioridade, de que não participam as maiorias. A
caiação é quase sempre um complexo de mestiços, que
renegam suas origens e sua cultura, e servem aos objetivos
da minoria dominante. Já em 1817 o povo cantava, no
Recife, que os «caiados o Brasil não hão de governar»,
sentindo que êles eram antinacionais, como o são os
alienados. As classes médias hesitam entre a alienação,
a caiação e a autenticidade.
8 . A crença na sorte e no jôgo - quase todo
negócio não é negócio, é jôgo - e os excessos de feriados
e dias santos de guarda revelam que a puerilidade é domi-
nante e que ainda não adquirimos racionalização e efi-
• ciência indispensáveis ao progresso econômico.
9. Insuficiências do bem-estar e de educação. Ainda
continuamos com 50% de analfabetos e, como contraste,
com mais de 20 Universidades oficiais, afora mais de
200 estabelecimentos avulsos de ensino superior. Deficiên-
cia de um lado e pletora de outro. O nível médio de
vida continua baixo ( 44 anos)· e a duração média da
vida econômica ativa é de 28 anos.

7. CONCLUSÃO

As influências que modelam o caráter são impalpáveis,


acumuladas e desperdiçadas no processo histórico, e podem
ser observadas através da prodigiosa variedade de pessoas
significativas. Se a função social do caráter é assegurar
os padrões de conformidade e certos elementos da produ-
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 69

tividade, da política, do lazer e da cultura, e se o caráter,


no sentido científico contemporâneo de caráter histórico
social, deve ser considerado como as uniformidades pa-
dronizadas da resposta aprendida na articulação da socie-
dade, é lógico e conseqüente o papel capital que desem-
penha a juventude num país de 50 % de jovens (mais
de 3 O milhões de zero a 19 anos ) .
A infância e a juventude brasileiras devem ser sufi-
cientemente preparadas para a enormidade dessas tarefas.
Assim, o investimento é tão importante na educação quan-
to no desenvolvimento econômico. Sàmente atendendo
às duas tarefas suprimirá, o brasileiro, os sinais de insu-
ficiência, mencionados nos aspectos negativos. A fartura
não deve ser apenas econômica, mas também moral. Para
isso o combate ao personalismo não deve significar a
despersonalização, como os benefícios do conformismo não
devem levar à submissão. Sem inconformismo não há
progresso. Nem o nacionalismo econômico deve levar
à xenofobia.
A mudança cultural deve acompanhar as transfor-
mações industriais e tecnológicas, de modo a que as alte-
rações dos meios tradicionais de vida possam ser acompa-
nhadas da execução de programas de melhoria técnica e
educacional.
Êsse povo de boa índole, na imagem estrangeira,
começa a manifestar, nos aspectos positivos de seu na-
cionalismo, uma fé crescente no seu futuro e nos largos
caminhos da história em processo. Êle não parece acre-
ditar nos atalhos da História. «Êste Brasil - dizia Fernão
Cardim em 1590 - é já outro Portugal.» A progressiva
aceleração do tempo histórico brasileiro revela que, sob
o impulso de características novas, da liderança e do povo,
vencidas a sobriedade e o conservantismo português, êste
Brasil é já outro Brasil.
PARTE II

ASPIRAÇÕES NACIONAIS

"Quem julgará entre nós e vós ? Quem


será o juiz entre conservadores e progressis-
tas? Respondo: a Nação. A Nação não é
um Partido. "
ZACARIAS DE Górs E VASCONCELOS: Câ-
mara dos Deputados, 26 de janeiro de 1864.
1. INTRODUÇÃO

As nações, como sociedades políticas, vivem sob o


impeno de interêsses vitais, que criam reações emocionais
e convicções racionais, e dão ao povo e à sua liderança
um comportamento histórico unitário. Tôdas elas têm
aspirações permanentes que são fruto do processo his-
tórico, das características do povo e da etapa do desen-
volvimento econômico.
É no processo histórico que se revelam novas ener-
gias espirituais, fôrças econômicas em expansão, vitalidades
políticas que podem manifestar e garantir a perspectiva de
expansão das aspirações nacionais, no campo interno ou
internacional, maiores ou menores conforme a capacidade
do povo, da liderança e da fôrça econômica.
A autodeterminação pode ampliar-se ou reduzir-se nas
garantias individuais, na forma federativa, ou centrali-
zadora, no regime democrático ou autocrático; a integração
nacional pode ou não limitar-se à manutenção do terri-
tório ou à ocupação efetiva, ao equilíbrio ou desequilíbrio
regional, à harmonia ou desarmonia agrícola e industrial;
a prosperidade e o bem-estar podem ou não contrairem-se
à satisfação de grupos dominadores, ou ampliarem-se a
todos os membros da comunidade nacional; e, finalmente,
o prestígio internacional pode ajustar-se apenas ao reco-
nhecimento dos seus direitos legítimos na comunidade
internacional, ou estender-se, como decorrência natural
de suas potencialidades, no expansionismo territorial ou
na hegemonia política.
As aspirações nacionais permanentes não são um
somatório das aspirações atuais, realizadas ou frustradas.
Estas inspiram-se na estrutura ou na superestrutura, mas
são sempre reflexos da conjuntura; manifestam valores
secundários, aceitos sem conformid!lde; são imagens atuais
e controvertidas de grupos, de seções, de regiões, da
elite ou do povo. As aspirações permanentes são herança
histórica, têm valor duradouro e vital, refletem valores
primários tradicionais unânimemente aceitos, de que deri-

73
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

vam outras aspirações, e são nacionais, constituindo uma


projeção de todos, e não da elite ou de grupos populares.
Comuns a tôdas as camadas sociais, resultam de uma sele-
ção discriminatória no processo histórico.
A transitoriedade das aspirações atuais, a sua oca-
sional transformação em permanentes, e a redução ou
ampliação destas últimas - pois a História é mudança, e
a nação é uma história singular e original - revelam a
fecundidade da minoria, o avanço cultural da maioria, as
regenerações, o progresso e o desenvolvimento nacionais.
Se não houvesse aspirações atuais, a nação seria o escon-
derijo da morte da criatividade. O futuro das energias
políticas e econômicas nacionais depende do equilíbrio
do permanente e do atual, das diferenças de interêsses
e dos interêsses comuns. Sem a defesa dos interêsses per-
manentes as nações falecem ou se desintegram, mas, sem
os interêsses atuais, podem envelhecer e esterilizar-se; o
permanente é vital o~ básico, mas o atual derrota o arcaico,
anima o orgânico e serve como antítese à criação do
futuro; ambos, em sua conjunção, mostram a unidade do
processo histórico, o passado, o presente e o futuro da
nação.
Mas, se não é difícil distinguir as aspirações per-
manentes das atuais na sua atuação constante no processo
histórico, não é fácil classificar umas e outras. Primeiro,
porque o poder transformador da História pode discri-
minar, das atuais, as que terão caráter permanente. Se-
gundo, porque as Constituições e os programas partidários,
que são os documentos que melhor deveriam refleti-las,
não distinguem precisamente, pelas próprias insuficiências
do sistema representativo ou pelos contrôles minoritários,
os interêsses «elitistas», ou partidários, dos nacionais, e
freqüentemente revelam a vontade de forçar a adesão do
povo às aspirações atuais de grupos de pressão, mino-
ritários ou majoritários. Aspirações nacionais, comuns a
todos, que nenhum brasileiro hesitaria em considerar fun-
damentais, são, por exemplo, a independência e a sobera-
nia, a manutenção da integridade territorial e a defesa e
manutenção da unidade nacional. Já a fidelidade à forma
republicana federativa parece-me apenas uma aspiração
atual; a aspiração permanente resume-se na forma demo-
crática de Regime Representativo, com os podêres divi-
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 75

didos e harmônicos. A centralização promoveu e ajudou


a unidade nacional, e o Império regeu-nos como nação
livre pouco menos que a República.
Se examinarmos o processo histórico brasileiro ve-
temos não só a multiformidade com que se apresentaram
algumas aspirações permanentes, mas - e isso me parece
importante - como as aspirações permanentes de natureza
política, econômica, social e internacional se asseguraram
muitas vêzes através de aspirações momentâneas, atuais.

2. INDEPEND:ENCIA E SOBERANIA

Politicamente, como tôdas as comunidades america-


nas submetidas à colonização, lutamos pela conquista da
independência. Os perigos iniciais de invasões estran-
geiras, que podiam secionar a nossa unidade territorial,
foram vencidos nas lutas contra piratas franceses, cor-
sários inglêses e conquistadores holandeses. Sofremos
afrontas e humilhações, mas mantivemos a integridade
territorial, que iríamos receber como herança, quando a
independência fôsse alcançada. A consciência nacional foi
aos poucos se formando, não só em conseqüência das
ameaças estrangeiras, como, também, dos dissídios com
os colonizadores portuguêses e das comparações que se
faziam entre as suas e as nossas realizações e atividades.
À medida que a zona agrícola e pastoril avançava para
o interior, atenuava-se progressivamente o pavor do estran-
geiro. O crescimento da sociedade aumentava a respon-
sabilidade da defesa coletiva e fazia crescer o sentimento
da segurança nacional.
Os triunfos colhidos na guerra contra os holandeses,
escreveu Capistrano de Abreu, as proezas dos bandeirantes,
a abundância do gado, animando a imensidade dos sertões,
as copiosas somas remetidas para o govêrno da Metrópole,
as numerosas fortunas, o acréscimo da população influíram
consideràvelmente na psicologia do colono. Não queriam,
não podiam mais reputar-se inferiores aos nascidos além-
mar os humildes e envergonhados mazombos do comêço
do século XVII. Por seus serviços, por suas riquezas,
76 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUE~

pelas magnificências da terra natal, contavam-se entre os


maiores beneméritos da Coroa Portuguêsa.l Ainda em
1801 se procurava, como refere o autor do «Roteiro do
:Maranhão a Goiás»2, acomodar os interêsses dos brasilei-
ros à Metrópole e evitar que se enfraquecesse o vínculo
da dependência que, sempre vigoroso, devia atar as co-
lônias. Mas a abertura dos portos, a entrada e a irradiação
das idéias novas, a acumulação das pressões libertadoras,
a impraticabilidade das medidas repressivas, o estímulo
do embate, a perda do comando da minoria dominadora
lusitana fizeram rebentar, para usar a expressão de Ca-
pistrano de Abreu, a emoção de superioridade que nos
deu o 7 de Setembro.3 Quando se fêz a Independência,
a desunião das províncias embaraçava a unidade nacional
e ameaçava a própria conquista da liberdade nacional.
Foi no Rio que se elaborou e comandou a Independência.
Ao poder do Rio só aderiram unânime e imediatamente
São Paulo e Rio Grande do Sul; Pernambuco tende à
independência própria; Minas hesita entre a sujeição ao
Rio e a separação autônoma; e Bahia, Maranhão e Pará
preferem obedecer a Lisboa.4
A Guerra da Independência durou onze meses e
fortaleceu o nexo político que desde então se iniciou.
São Paulo e Minas auxiliaram o Rio de Janeiro a expulsar
as tropas de Avilez, como, depois, Pernambuco levou
seu contingente para libertar a Bahia das fôrças de Ma-
deira; o Ceará e o Piauí correram em socorro do Maranhão,
ajudando-o a vencer a resistência da capital e a incor-
porar-se ao Império. A pressão externa das Côrtes de
Lisboa operou uma solda, e a Monarquia, encarnada na
pessoa do Príncipe, constituiu-se, como escreveu Tobias
Monteiro, no «núcleo de atração das províncias que tornou

1 Capítulos de História Colonial, 4° edição preparada por


José Honó"io RODRIGUES, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de
Janeiro, 1953, 248; e "A Literatura B:·asileira Contemporânea"', in
Ensaios e Estudos, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janei-
ro, 1931, 75.
2 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, T.
LXII, pte. 1•, 1900, 127 e 135.
3 ""A Literatu:·a Brasileira Contemporânea"', artigo citado, 76.
4 Oliveira VIANA: Popuh1ções Meridionais do Brasil, 3' ed.,
São Paulo, 1933, 328.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 77

possível a Independência com a incorporação de tôdas


das ao Império».5
A Independência, como secessão, revela, desde seu
comêço, que a minoria dirigente, sem o lêvedo da criação
original, imitou instituições européias, algumas inadaptá-
veis ao meio social brasileiro. A imitação começou com
n caricatura da proclamação, em 12 de outubro de 1822,
de D. Pedro I, como Imperador do Brasil, quando é
~.1bido que êste título se referia a uma soberania ecumê-
nica, ao Santo Império Romano, e fôra usurpado por
Napoleão Bonaparte aos 18 de maio de 1804.6
A idéia de superioridade, implícita no título de
Imperador, falsa ou não, persistiu e afetou a negociação
da Independência com Portugal.7 O pensamento oculto
de D. Pedro era a futura reunião do Império Lusitano,
quando fôsse chamado a suceder em Portugal como
D. Pedro IV.
O reconhecimento foi duro e difícil. Em 14 de
junho de 1822, José Bonifácio diria ao representante dos
Estados Unidos estas belas palavras ·de independência e
altivez, que os acontecimentos afrouxariam: «Ü Brasil
é uma Nação, e como tal ocupará seu pôsto sem ter que
esperar ou solicitar o reconhecimento das demais potências.
A elas enviará agentes diplomáticos ou ministros. As
que os recebam nessa base e nos tratem de Nação a
Nação continuarão sendo admitidas nos nossos portos e
favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão
excluídas dêle.»8
Os Estados Unidos foram os primeiros a reconhecer
a Independência, a 16 de maio de 1824, mas o destino
do Brasil estava ligado ao da Europa e, sobretudo, ao
da Inglaterra. As potências européias condicionaram seu

5 História do Império. A Elabo1·ação da Independência, Rio


·de Janeiro, 1927, 854.
6 Arnold ToYNBEE: A Study of History, Oxford Unive:-sity
Press, 1954, Vai. VII, pág. 22, nota 1, e Vai. IX, 11.
7 Charles WEBSTER: B1·itctin and the Independence of Le1tin
.America. 1812-1830, Oxford University Press, 1938, Vai. I, 57.
8 W. R. MANNING: Diplomatic Correspondence of the Uni-
ted States Concerning the Inde/Jendence of the L,1tin Americcm N,,_
.tions, New York, 1931 T. II, pte. III, 739.
78 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

reconhecimento ao da Côrte de Lisboa, só conseguido


através da intervenção inglêsa.
O adiamento indefinido do reconhecimento poderia
trazer resultados desastrosos para o Brasil, ameaçado de
cair na anarquia e de dividir-se, como a América Espa-
nhola, em várias pequenas repúblicas. O preço do reco-
nhecimento, além da soma de dois milhões,9 consistiu
na renovação dos privilégios da nação mais favorecida
(tarifa de 15%) concedida à Inglaterra, que a ela tanto
nos sujeitou, e logo exigida por outras nações; e, ainda,
na repugnante concessão da conservatória inglêsa, que
dava jurisdição extraterritorial à Grã-Bretanha no Brasil.
A conta inglêsa, transformada em Tratado, alienou o apoio
dos patriotas a D. Pedro e foi um dos fatôres decisivos
que levaram à Abdicação. Transformou-nos num prote-
torado inglês até 1844, quando nos recusamos a renovar
os acôrdos.
Nacionalizados o Trono e o Exército com a depor-
tação dos elementos portuguêses mais exaltados e as lutas
no Sul, objetivos imediatos e atuais visavam a obter e
consolidar aspirações permanentes. Durante a Regência
( 1831-1840), experiência republicana e federativa incapaz
de assegurar a ordem no vasto Império, ainda mal arti-
culado, e de manter a coesão nacional, várias vêzes houve
perigo iminente de desmembramento, e, portanto, de que-
bra da integridade territorial. O Trono passou a ser,
então, o grande princípio da integridade, e os políticos
conservadores que pleitearam a Maioridade possuíam bas-
tante sentimento nacional para reconhecer que integri-
dade e unidade eram aspirações afins, perigosamente amea-
çadas pelas inúmeras revoltas que podiam cindir o país.
Apesar de seus notáveis serviços à pátria, consoli-
dando a Independência e entregando o Brasil aos brasi-
leiros, a Regência era a demasia do poder pessoal, o
fracionamento da soberania, a casa dividida em grupos
inconciliáveis. O compromisso político consistia em evitar
as posições extremadas ou violentas, e salvaguardar a
integridade pelas concessões mútuas. O compromisso,

9 "Convenção Adicional, 29 de agôsto de 1825", in Pereira


PINTO: ,4./"mlamentos Para o Direito Internacional, Rio de Janei-
ro, 1864, T. 1, 339·341; e Hildebrando Ac1ou: O Reconhecimento
da lndependêncict do Brnsil, Rio de Janeiro, 1927, 215-216.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 79

sinal de amadurecimento e experiência, tão ajustado ao


comportamento conformista do povo, foi a Maioridade.
Como aspiração da época, ela serviu ao fim permanente:
assegurar a estabilidade política e, com esta, a soberania
plena e indisputada, reconhecida dentro e fora do país.

3. INTEGRIDADE TERRITORIAL

A integridade nacional foi, para o povo brasileiro,


como disse José Maria dos Santos, «a idéia dominante,
até ver o seu país definitivamente consolidado num sis-
tenrn geral de fronteiras, que nunca mais pôde ser alte-
rado ou mesmo corrigido, num sentido qualquer de
restrição» .1 o
A conquista e manutenção de um litoral atlântico
de 7 400 km, onde nasceu nossa civilização, e a proeza
de dominar uma imensidão de território pelo interior do
continente, criando uma personalidade histórica distinta··
mente brasileira, é um processo longo e demorado e mos-
tra que a nossa história é um vasto sistema de incorporação.
A integração territorial vem-se realizando paulatinamente
desde a época colonial. Os três núcleos de povoamento
foram, a princípio, a Bahia, Pernambuco e o Rio de
Janeiro; mais tarde, o caminho da interiorização foi diri-
gido de São Paulo, cuja situação geográfica o impelia para
o sertão. O primeiro impulso conduziu à ocupação do
extenso litoral, desde o Amazonas ( 1616) ao Rio da
Prata (Colônia do Sacramento, 1680), em pontos tênue-
mente unidos, mas onde se ergueram os padrões de nossa
soberania. As lutas coloniais contra as tentativas de posse
francesa, a vitória sôbre a ocupação holandesa e a expulsão
dos hispano-argentinos do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina asseguraram o domínio de tôda a costa, articulado
por vários núcleos espalhados por imensas distâncias. A
obra paulista de dilatação e incorporação do território
colonial é sem paralelo na história americana. O espan-
toso cr~scimento físico da nação é um resultado do seu
esfôrço, de sua desordenada ambição, de sua extraordi-
nária capacidade de iniciativa.

10 A Política Ge1·al do Brasil, São Paulo, 1930, 32.


80 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Já no século XVIII o aspecto geral da ocupação


guardava flagrante semelhança com o dos nossos dias. Que
a população se espalhava por todo o território não resta
dúvida, pois o Tratado de Madri, de 1750, que delineou
efetivamente as linhas divisórias entre a América Por-
tuguêsa e a Espanhola, pràticamente as mesmas de hoje
(excetuando o Acre, incorporado pela diligência cearense),
seguindo o critério da ocupação, estabelecia: «Cada parte
há de ficar com o que atualmente possui.» Ora, se assim
se procedeu, é evidente que a colonização portuguêsa
ocupava de fato tôda a imensa área que constituiria o
nosso país. De outro modo não teríamos criado e invo-
cado o princípio do uti possidetis, nem êle se aplicaria.
A mudança do eixo econômico para o Rio e a trans-
ferência do Vice-Reinado dão singular vitalidade ao Leste
e ao Sul, e iniciam uma trajetória de adensamento po-
pulacional nessas áreas e de avanço para o centro. Logo
se destaca o senso de direção e a intermitência histórica
de nossa expansão territorial. A falta de gente e as
asperezas dos caminhos dificultavam o trato entre o inte-
rior e o litoral, mas, ainda assim, no princípio do século
XVIII, «estava todo o país ligado, imperfeitamente em-
bora, por meio de vias terrestres ou fluviais».11
O resultado final foi a formação de um vasto con-
tinente, o quarto país de maior área terrestre contínua
do mundo, gozando, para fins comerciais e de estratégia
mundial, de uma posição altamente favorável e importante.

4. OCUPAÇÃO EFETIVA

A ocupação efetiva do território manifestou-se desde


cedo como aspiração nacional permanente. Como o Brasil
foi desbravado muito cedo e ocupado muito depressa,
escasso foi o povoamento em grande parte do interior; daí
as grandes lacunas de distribuição de população nas regiões
de antigo povoamento, o atraso cultural c!a gente do sertão
e o baixo nível econômico. Ao contrário dos Estados
Unidos, onde os colonos anglo-saxões ocupavam ainda em
1776 um território menor do que a França, e cuja expansão
para o oeste, realizada depois de 1830, foi um movimento

11 Capistrano de Aaiwu: Caminhos Antigos e Pon1oameulo


do Brasil, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 1930, 117.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 81

em massa, que em poucos decênios ocupava todo o país,


no Brasil a penetração, no século XVII, se fêz em pe-
quenos grupos que, pelo seu número reduzido, não pu-
deram realizar o verdadeiro povoamento. Heinrich Han-
delmann, já em 1860, escrevia, contrastando as duas
marchas de povoamento, que «no Brasil o grosso do
exército de colonizadores desagregou-se numa corrente de
batedores que, cada um por si, em investidas rápidas,
obtiveram grandes êxitos. Mas, então, êles eram obri-
gados a ficar estacionados como postos avançados isolados,
sem uma ligação regular com a retaguarda, e só podiam
esperar auxílio num futuro remoto, com a multiplicação
do número de habitantes.» Essa multiplicação, porém,
não veio auxiliar os homens deixados no sertão, separados
uns dos outros por várias centenas de quilômetros de
terras.12
No Império, para ampliar a área ocupada, já que
a dispersão precoce não favorecera senão uma ocupação
muito rala, pensou-se, desde a sua fundação, no estabe-
lecimento de colônias estrangeiras, especialmente alemãs
e suíças. Tavares Bastos, em 1870, propunha a criação
de novas províncias e novos territórios, com o objetivo
de povoar os grandes desertos da nossa carta~ como o
Alto Amazonas e Mato Grosso, as extremidades seten-
trionais e meridionais do Pará, o ângulo meridional do
Maranhão e o setentrional de Goiás, os campos gerais
que do Rio Grande do Sul ao norte de São Paulo se
estendem até o Uruguai, em Santa Catarina, e à Serra
do Maracaju, em Mato Grosso.13
Em 1912, quando Rio Branco rematava a obra de
integração jurídica e definitiva que vinha do Império, a
ocupação efetiva continuava, como hoje, um sonho nacional.
E, ainda em 1940, em plena fase de nacionalização dos
núcleos coloniais estrangeiros, a área econômicamente
explorada no Brasil, apurada pelo censo, compreendia 2
milhões de km 2 , ou seja, 23% da área total do país.
Dêstes, apenas 188 000 km 2 , ou seja, 2,2%, são de área
cultivada, e 830 000 km2 , ou cêrca de 10%, são utilizados

12 Citado por Leo WAIBEL, Capítulos de Geografia Tropical


e do Brasil, Rio de Janeiro, 1958, 285.
13 A Província, 1• edição, 1870; 2• edição, Companhia Edi-
tôra Nacional, São Paulo, 1937,, 358.

6
82 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

como pastagens. O restante, isto é, 77% do território


nacional, não é económicamente utilizado, ou não é uti-
lizável, ou está nas mãos dos «intrusos» que escaparam
ao levantamento estatístico.14 Embora êsses números
sejam de 1940, e dêsse ano a 1950 se tenha progredido
no aproveitamento da terra em apenas 1,4%, pouco mais
de 3 % estão sendo agricolamente aproveitados, e sua
propriedade é concentrada, tendo o ex-Ministro João Cleo-
fas afirmado, em sessão da Comissão para a América
Latina, das Nações Unidas, que, em 1953, 7,8% dos
proprietários possuíam 7 3 % da terra. Em todo caso,
pode-se dizer que mais da metade da área do Brasil está
inexplorada, do ponto de vista agrícolal5, e pràticamente
despovoada, visto que 48 % (Amazonas, Pará, Mato Gros-
so) contêm somente 4% da população, e 64% da super-
fície do Brasil (região Norte e Centro-Oeste) contêm
apenas 7% da população.
Como são ilusórias as enormes dimensões que o
Brasil ocupa no mapa, os espaços mais vazios, como o
da Amazônia, excitam a imaginação internacional e criam
a idéia de sua ocupação efetiva pelos povos famintos de
terra. A tese não começa com Bryce, mas êle é dos seus
mais fiéis intérpretes, ao perguntar se as selvas ameri-
canas da Amazônia, que formam o mais vasto e fértil
espaço desocupado da superfície terrestre, não podem ser
reclamadas para o serviço do homem. Uma área tão vasta
e fértil não pode ser deixada para sempre inútil, escrevia
Bryce em 191216; 40 anos depois o Professor Walter
Prescott Webb classificava a Amazônia com uma nova
fronteira, uma espécie rejeitada pelos pioneiros dos sé-
culos XVIII e XIX, e dizia que, se os Estados Unidos
despendessem os fundos que gastam na Europa e na Ásia
desenvolvendo estas fronteiras, recriar-se-ia a prosperidade,
com lucro líquido para o mundo ocidental.17

14 Leo WAIBEL, ob. cit., 263.


15 Um exemplo típico é dado por Minas Gerais (583 248
km2), com uma área cultivada de apenas 12 % .
16 James BRYCE: South America, Observations and Impres-
sions, London, Macmillan, 1912, 560.
17 The Great Frontier, Hougton Mifflin Co., Texas Edition,
1952, 285 e 416-417.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 83

Territorialmente satisfeito, com domínio pleno e ju-


rídico reconhecido internacionalmente, o Brasil não se in-
tranqüiliza com visões ou ânsias expansionistas, hoje tão
desmoralizadas, mas observa que não cumprimos uma
das mais arraigadas aspirações nacionais. Como cumpri-la,
eis a questão.
Duas correntes ideológicas disputam a maneira de
se efetuar a ocupação efetiva, que nem o Império nem
a República puderam concretizar. A primeira, que vinha
orientando o govêrno antes de Getúlio Vargas e possui
grandes defensores políticos e doutrinários, defende o
estímulo à imigração, o amparo às zonas pioneiras e a
consolidação do leste, onde está o centro vital do Brasil,
como as bases de nossa expansão paulatina e segura para
o oeste e o noroeste. Constituindo o Brasil um império
que une em seu imenso território áreas metropolitanas e
coloniais, é do coração do Brasil, o triângulo Rio-Belo
Horizonte-São Paulo, área densamente povoada, com as
duas maiores cidades, as maiores riquezas agrícolas, o
mais poderoso parque industrial e a maior rêde de trans-
portes, que deve partir o movimento de expansionismo
brasileiro, cabendo-lhe recuperar velhas áreas de povoa-
mento, como o Nordeste, valorizar centros de unidade
nacional, como o Vale de São Francisco, e grandes reservas
de terras disponíveis, como o Vale do Amazonas, sem
estender demasiadamente a colonização para o oeste antes
que se tenha firmado o povoamento do leste, preencher
as grandes lacunas na distribuição da população na região
de povoamento antigo, apoiar as várias zonas pioneiras
do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná,
da região do vale do Rio Doce, do chamado «mato grosso»
de Goiás e de São Paulo, cuidar de portos, dragagem e
marinha mercante num país de costa tão vasta, e cons-
truir estradas e rodovias que liguem especialmente estas
áreas econômicas, para que não se reincida nos erros da
antiga colonização. O seu lema não é «Marcha para o
Oeste», mas «tomar pé firme no leste» e, ainda, me-
lhorar as obras do litoral.
A outra corrente, de que se fizeram intérpretes ousa-
dos e incansáveis Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek,
deseja avançar e ocupar imediatamente o extremo-oeste,
pois na valorização e colonização dos dois Estados mais
interiores, Goiás e Mato Grosso, se fundem as esperanças
84 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

de muitos brasileiros. Em agôsto de 1940, Getúlio Vargas


sintetizava esta tendência ao afirmar que «O verdadeiro
sentido da brasilidade é o rumo do Oeste», que reata a
campanha de bandeirantes e sertanistas,18 Esta diretriz
geopolítica e político-econômica não tem modéstia na
escala de seus objetivos, e formula os mais grandiosos
projetos. O Oeste é a terra da Promissão, com grandes
reservas de terras férteis, que podem muito bem substituir
as esgotadas e devastadas do leste.
A interiorização da capital já fôra pleiteada por
Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, o
fundador do Correio Brasiliense, por José Bonifácio, em
1821 e 1822, e pelo nosso historiador Francisco Adolfo de
Varnhagen, em 1850. O Império não tomou conheci-
mento dessa idéia. Na Constituinte Republicana ela foi
acolhida e transformada no Artigo 3. 0 da Constituição de
1891. Durante a primeira República, Floriano Peixoto,
em 1893, assediado pela Revolução, enviou ao Planalto
Central uma comissão demarcadora da área da futura
Capital, e demonstrou o desejo de transferir desde logo
a Capital, provisàriamente, para alguma localidade do
interior.19 Os trabalhos da comissão Cruls ficaram,
porém, no esquecimento, visto que os Governos Rodrigues
Alves e Afonso Pena se dedicaram a grandes obras de
remodelação do Rio, «como condição indispensável para
que todos os elementos de progresso possam ser ativados
eficazmente».20 Em 1904 dizia Rodrigues Alves à Câ-
mara dos Deputados: «Tornou-se, porém, em meu espírito,
inabalável, a crença, felizmente generalizada, de que as
fôrças econômicas do país não poderão ser eficazmente
ativadas enquanto a Capital da República não se cons-
tituir em centro poderoso de atração de braços e capitais,
sem as suspeitas de insalubridade que, exageradas por
uns e exploradas por outros, vão, sem sentirmos, entor-
pecendo o nosso desenvolvimento.»21

18 A Nova Política do Brasil, Rio de Janeiro, José Olímpio,


1941, Vol. I, 31.
19 "Mensagem Presidencial", in Anais da Câmara dos De-
putados, Rio de Janeiro, 1893, 18.
20 "Mensagem Presidencial",, in Anais da Câmara dos Depu-
tados, Rio de Janeiro, 1907, 318.
21 "Mensagem Presidencial", m Anais da Câmara dos Depu-
tados, Rio de Janeiro, 1904, 6.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 85

Ninguém pensou mais, em face dos grandes progres-


sos realizados, entre 1902 e 1912, na Capital do Rio,
em dar execução à cláusula constitucional. A reforma
de 1926, o decreto que instituiu o Govêrno Provisório e
a carta de 1937 desconheceram aquela exigência, enquanto
as Constituições de 19 34 e 1946 a incluíram entre as
Disposições Transitórias. Coube ao Presidente Juscelino
Kubitschek levar adiante, desde o primeiro ano de seu
govêrno, em 1956, a idéia da construção de Brasília e
da transferência da Capital. É cedo para o julgamento
da eficácia histórica da mudanca e dos efeitos criadores
da tese da «Marcha para o Oe~te», oficialmente vitoriosa
como capaz de ampliar de modo sistemático a fronteira
demográfica e lograr a ocupação efetiva. O que se pode
avançar é que não há exemplo histórico de uma civilização
criada de costas para o mar, nem é possível substituir de
imediato o espírito de unidade nacional que o Rio de
Janeiro criou.

5. UNIDADE NACIONAL

Mais importantes e mais vitais do que a ocupação


efetiva são a defesa e a manutenção da unidade nacional.
Êste foi o grande tema da nossa história, e não a divisão
que, remediada depois, foi o das colônias norte-americanas,
e, irremediada, o da América Espanhola.22 Ao findar o
período colonial, o Brasil era apenas uma unidade geo-
gráfica. Era a divergência, o particularismo; o centro
ficava além-mar. O estabelecimento da Côrte no Rio
de Janeiro começou a favorecer a aproximação das capi-
tanias e a estabelecer, de certo modo, a unidade do país.
O supremo desafio enfrentado pela Independência foi o
de criar uma consciência nacional e formar a unidade
pátria, mesmo diante das enormes disparidades econô-
micas e sociais das várias regiões. Devemos ao triunfo do
poder central no Rio, ao qual se sujeitaram as fôrças da
vida local e provincial, a unidade da nação. A função
asseguradora da unidade nacional, que o Rio começou a
exercer desde 1808, não foi, como disse Oliveira Viana,

22 Pontes de MIRANDA: "Preliminares Para a Revisão Cons-


titucional", in À Mctrgem da História, Rio de Janeiro, 1924, 182.
86 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

um fiat histórico. Foi <<Uma conquista lenta, com uma


evolução sua, própria, cheia de lances que o brilho da
majestade real obscurece, mas que a análise histórica evi-
dencia.»23 Por isso, Capistrano de Abreu escreveu que
«se não foi aqui [no Rio] que primeiro se concebeu a
idéia de uma nação, aqui pelo menos se realizou êste
sonho que bem perto estêve de esvair-se em sonho».24
Além disso, coube ao Rio de Janeiro contribuir econô-
micamente, e sozinho, para a unidade nacional.25
O espectro do separatismo irrompeu em várias opor-
tunidades, mas foi logo se desfazendo, como foi sendo
derrotado o próprio provincialismo. Somente com a Maio-
ridade realizou-se totalmente a aspiração de unidade. De
1840 a 1889, quando a Monarquia caiu, apenas duas vêzes,
em 1842 e 1848, tivemos sérias perturbações da ordem.
Restabelecida a paz no Rio Grande do Sul em 1845, depois
de 1O anos de lutas, a Maioridade, como um parapeito,
resgu~.rdou a Nação e evitou que se fizesse em pedaços
a unidade nacional. A idéia de unidade, que vive em
nós, e de nós depende, é um produto da nossa história
comum e da crença no nosso futuro, também comum.

6. EQUILÍBRIO NACIONAL E REGIONALISMOS

Se a unidade foi um ato criador da Independência,


e especialmente do Império, promovido no Rio, é certo
que não éramos um todo orgânico, mas, antes, um con-
junto de várias regiões ou seções econômicas que viviam
sua vida própria. Observando-as, Martius foi o primeiro
a sugerir, em 184 3, que se escrevessem histórias regionais.
Desde aí se vêm mostrando as distinções que separam
os grupos regionais e pleiteando a defesa dos seus inte-
rêsses, abafados pela centralização política imperial. Alguns
historiadores, como Handelmann, João Ribeiro e Capis-

23 Populações Meridionais do Brasil, Companhia Eclitôra Na-


cional, São Paulo, 3• edição, 1933, 326.
24 Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, Sociedade Ca-
pistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 1930, 118.
25 Vide carta de D. Pedro a D. João VI, de 17 de julho
de 1821, in Barão de São Clemente (Clemente JosÉ DOS SANTOS):
Dom111entos Pcir,1 t1 História das Côrtes Gernis de11 Nação Port1tgt1ha,
Lisboa, 1833-1899, 1• vol., 244.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 87

tran~ de Abreu, atentaram para o estudo de certas con-


dições geográficas, de tradições históricas, de peculiaridades
étnicas e de determinados interêsses econômicos que se-
param regiões ou seções econômicas. Grande parte da
luta política doutrinária no Império, tão bem caracterizada
na obra de Tavares Bastos, consiste em defender a pro-
víncia, como região, contra a centralização. A compreen-
são do desenvolvimento brasileiro exige que se notem as
semelhanças e diferenças básicas que unificam regiões ou
agrupam seções. Não exprime a realidade falar em dois
Brasis, um arcaico e outro nôvo, ou um desenvolvido e
outro subdesenvolvido26, pois, na verdade, há vários Bra-
sis, tantos quantas suas regiões específicas ou suas seções
econômicas, como sugeriu o Professor Leslie Lipson.27
Neste sentido somos um império, uma federação de
seções, uma umao de regiões, embora subsista o conceito
de que há zonas desenvolvidas e zonas subdesenvolvidas,
ou arcaicas e novas, com áreas metropolitanas e áreas
coloniais, separadas por etapas diferentes de desenvolvi-
mento histórico. Nunca houve uma evolução uniforme
de desenvolvimento, nem o poder nacional foi arrebatado
por uma só província ou Estado. Fatôres históricos, geo-
gráficos e econômicos conspiraram contra as igualdades
. regionais, como conspiram contra as igualdades humanas.
E assim como o poder mundial é transitório, também é
transitória a fôrça dos Estados no poder nacional.
A nossa história mostra as variedades do predomínio
regional, ligada a fôrça política à econômica. A fase colonial
foi de predomínio do Nordeste, excetuada a curta etapa
mineira, e São Paulo, no século XVIII, sofreu um ver-
dadeiro cataclismo que o travou até os meados do século
XIX. Ainda no comêço do século XIX, eram o Rio
de Janeiro, Bahia e Pernambuco as capitanias que mais
floresciam28, e durante o Império tôdas as três continua-
ram a fornecer os grandes valores da liderança nacional

26 Le Brésil. Stmcture Sociale et lnstitutions Politiques, Pa-


ris, 1953. Tradução brasileira, revista, Os Dois Bi·asís, 1. N. E. P.,
Ministério da Educação e Cultura, 1959.
27 "Government in Contemporary Brazil", in Ccmadian Jour'nal
of Economics and Political Science, Maio, 1954, 189.
28 "Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí",
RIHGB, T. LXII, 2• parte, 104.
88 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

e a maior arrecadação aos cofres da União.29 Lenta-


mente, com a plantação de café, que dera substância, no
Império, ao Rio de Janeiro, com a imigração e as estradas
de ferro, São Paulo começa a preponderar. Em 1874,
André Rebouças considerava predestinada a província de
São Paulo, «a Pensilvânia do Brasil», «a mais ousada e
a mais ativa das províncias do Império», pois apresenta
«O exemplo, nôvo neste país, de construir com capitais
seus cinco caminhos de ferro ao mesmo tempo». Seu
progressivo desenvolvimento não tinha igual em todo
o Império.30
Na República, ao lado de São Paulo, de Minas e
do Distrito Federal31, aparece o Rio Grande do Sul, que
vê sua posição reforçada com o movimento de 1930. A
maior estranheza é que Minas Gerais, a única Província,
desde o Império, que mantém inquebrantável sua fôrça
política, reforçada na República, não totalmente obscure-
cida depois de 1930 como a de São Paulo, nem sempre
tenha dado à União contribuição econômica equivalente
ao seu predomínio político. Se é verdade que o poder
nacional não pertenceu sempre ao Sul e que nem tôdas
as províncias gozaram sempre do mesmo prestígio, é
indiscutível que o comando político nacional sempre contou
com a colaboração mineira. Sem o apoio de Minas, nunca
teve êxito movimento algum e sua expulsão significa o
malôgro.
O fato é que o poder nacional não pertenceu sempre
a uma só prcvíncia nem tôdas elas gozaram sempre do
mesmo prestígio em nossa história. Acusou-se muito o
Império de ter agravado, com a centralização, êste pro-
blema, e Tavares Bastos foi dos que mais batalharam para
mostrar que a coesão dependia da liberdade secional. Mas
a República, com a política dos Estados ou dos grupos
de Estados, abafou ou adiou o adiantamento das regiões
e das seções.

29 Relató1'io do Ministé1'io da Fazenda, Rio de Janeiro, 1859,


47, 49 e 50.
30 Grt1'antia de fu1'oS. Estudo Para Sua Aplica,rão às Emprê-
sas de UtilidC/de Pública no 81'asil, Rio de Janeiro, 1874, 2, 3 e 23.
31 Ocupava o primeiro lugar na expansão industrial. Cf.
Mens1gem de Nib ?1:~_:,•.NH,\ ao Congresso, in Anais da Câmara
dos DeptttC/dos, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1910, 458.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 89

Ninguém crê que o Norte ou o Nordeste, que sofre-


ram tantas desvantagens," desejem mudanças radicais se-
paratistas ou secionistas. Êles representam, tanto quanto
outras secções, os princípios tradicionais do povo brasi-
leiro, e viram na deslocação para o Centro e na construção
monumental de Brasília, a negligência pelas suas aspira-
ções, ou o desatendimento às suas necessidades mais
urgentes. Talvez êles tenham vivido demais no passado,
mas é quase um crime da Federação desligar-se dos pro-
blemas fundamentais destas populações tradicionais que
fizeram muito pela unidade nacional, para criar, no deserto,
uma nova cidade. O Brasil é seu povo, e se parte dêste
povo, que nasceu para o país antes de outros, defendeu
seu solo de invasões estrangeiras, lutou pela criação da
originalidade de sua civilização, se vê abandonado pela
possibilidade de ocupação efetiva de outros trechos terri-
toriais sem povo, a Federação não serve aos seus fins.
Como o possível no Brasil vai além do real, segundo
José Bonifácio, abandonamos a realidade da população nor-
destina e nortista, pela possibilidade de uma nova capital,
cuja alma nacional precisamos ainda criar. Êles reconhecem
a superioridade da riqueza material do Sul, mas proclamam,
contra o zero do deserto, suas antigas virtudes, e acreditam
que não é real arruinar uma grande parte da nação. É
evidente que o Sui não pode manter-se próspero, enquanto
o Norte e o Nordeste se transformarem em dependências
ou colônias. Já se torna comum, como argumento falacioso
embora, usar na O.N. u. ou em estudos sôbre o colonialis-
mo32, a afirmação de que o Brasil possui um dos maiores
impérios coloniais do mundo, apesar de não ser acoimado
de império colonial.
Como um corpo, a nação é única, singular, indivisível,
e só pode sobreviver se cada seção ou região realizar sua
função, sem empobrecer as demais ou reduzir seu tra-
baiho. A tarefa de atender aos desequilíbrios, não para
eliminá-los - o que seria pretensão ahistórica - mas para
diminuí-los, é temporária. A tarefa de evitar a secessão
e manter a unidade, esta, sim, é permanente. O Brasil
nunca estêve dividido contra si mesmo, e creio que jamais
venha a estar.

32 Robe:i Strausz HuPÉ e Harry W. HAZARD: The Idea of


Colonialism, New York, F. A. PRAEGER, 1958.
90 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

As Constituições de 1934 e de 1946, especialmente


a última, procuraram atender ao justo equilíbrio entre
as várias regiões do país. A fim de promover a valo-
rização do Vale do São Francisco, da Amazônia e do
Nordeste, estabeleceu-se que se aplicassem nessas regiões,
durante 20 anos, quantias não inferiores a 1 % , 3 % e
3 % das rendas tributárias da União.
A Bacia do São Francisco, com área de 632 000 km 2
e população superior a 5 milhões, era sede de flagrantes
contrastes sociais e políticos, e foi aí que se desenrolou a
grande campanha de Canudos, que serviu de tema aos
Sertões de Euclides da Cunha. O rio, com um curso
total de 3 161 km, liga portos e cidades importantes,
localizadas no vale. A construção de estradas de rodagem,
de usinas elétricas, a recuperação de terras de várzeas, a
construção de sistemas de abastecimento de água em várias
cidades, o combate à malária, a regularização da nave-
gabilidade de 1 300 km e a construção de várias usinas,
especialmente de Três Marias, são as principais realizações
da Comissão do Vale do São Francisco.33
Já o Plano da Valorização da Amazônia enfrenta
um problema de muito maior grandeza, pois, para efeitos
legais, a Amazônia protegida não compreende apenas o
Amazonas com 1 583 281 km 2, mas 9 unidades da Fe-
deração (Territórios do Amapá, Rio Branco, Rondônia,
os Estados do Pará e Acre, e áreas de Mato Grosso, Goiás
e Maranhão) com 5 milhões de km 2 , área maior do que
a metade do território nacional. Antes dos constituintes,
em 1940, Getúlio Vargas defendia a tarefa de dominar
os grandes vales equatoriais, e aos poucos ganhava maiores
adesões a idéia de libertar a Amazônia de um dos mais
baixos padrões ele subdesenvolvimento. O seu ingresso
definitivo no corpo econômico da Nação, como fator de
prosperidade e de energia criadora, exige a sujeição da
floresta, o domínio das águas, a construção de um13. socie-
dade econômicamente estável. O Plano figura entre os
mais ousados empreendimentos já tentados no Brasil e

33 A Lei que criou a Comissáo é a de n° 541, de 15 de


novembro de 1948. Vide "A Recuperação de um Vale", in Obser-
vador Econômico, nº 170, março 1950, idem, idem, nº 240/241, fe-
vereiro-março 1956. Vide também Represamento do São F1·ancisco,
Dois Irmãos e Pi1"1po,.a, Rio <le Janeiro, 1958. Editado pela Co-
missão.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 91

tem tanta grandeza quanto a hidreletrificação do São


Francisco (Três Marias) e do Rio Grande (Furnas), a
recuperação do Nordeste, a criação do parque siderúrgico
ou da indústria automobilística.34
Tenta-se ainda corrigir as desigualdades regionais re-
cuperando o Nordeste, região composta de 8 Estados,
abrangendo 14% da superfície total do Brasil ( 1 221 577
km 2 ) e mais de 20 milhões de habitantes, área de colo-
nização das mais antigas do país e uma das mais subde-
senvolvidas de todo o Hemisfério Ocidental. Como região
considerada área-problema, pela curta duração de vida,
pelo alto índice de mortalidade, pelo baixo nível de saúde,
pelos níveis deficientes de alimentação e moradia, e pela
baixa renda per capita, o Nordeste inspirou desde o co-
mêço da República um movimento de restauração, que
evite ou minore a disparidade crescente, que se agrava
entre o Nordeste e o Leste-Sul. Apesar dos recursos ofe-
recidos pela Constituição de 1946, a verdade é que a
participação do Nordeste na renda total do país caiu, de
15,5% em 1948, para 11 % em 1959. Convencido de
que a política de combate à sêca não basta e que se
exige um programa integral de combate ao subdesenvol-
vimento regional, que relacione sua economia com a eco-
nomia geral brasileira, instituiu-se em 15 de dezembro
de 1959 a Superintendência do Desenvolvimento do Nor-
deste, que congrega todos os órgãos federais dêste, uni-
ficando a ação da União.35
Tôdas estas iniciativas, que se completam com o
Plano de Valorização da Região da Fronteira Sudoeste,
criado em 1956 para elevar o padrão de vida das popu-

34 Vide as Publicações da Superintendência do Plano Je Va-


lorização Econômica da Amazônia (s.P.V.E.A.), especialmente Sócra-
tes BoNFIM: Valoriu1ção da Amazônia e Sua Comissão de Planeja-
mento, n• 6 ( 1958); Adriano MENEZES: O Problema da Coloni-
zação da Amazônia, n 9 7 ( 1958); Agnelo BITTENCOURT: Navega-
ção da Amazônia & Portos da Amazônia, n• 8 (1958); e Waldir
BoUI-UD: Amazônict & Desenvolvimento, 1959.
35 Stephan H. RoBOCIC Projeto de Planejmnento Global Ptira
o Nordeste do Brasil, Fortdeza, Banco do No:-deste do I3:asil, 1955.
Jimmye S. HILLMAN: O Desenvolvimento Econômico e o Nordes-
lt: Brasileiro, Banco do Nordeste do Brasil, mimeog. 1956; Aná-
lise Estmttt1'al dei Economia Nordestina, Banco do No:-deste do Bra-
sil, 1956; Celso FURTADO: A Operação Nordeste, Instituto Supe-
rior de Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, 1959.
92 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

lações de áreas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,


Paraná e Mato Grasso e integrá-las na economia nacional,
revelam que não se atingiu, nem se atingirá tão cedo, a
um equilíbrio mais proporcional entre as várias regiões
do país36, embora mostrem que se tenta estabelecer a
coesão, evitar os desequilíbrios mais flagrantes e, pelo
tratamento desigual, favorecer regiões desiguais.
Mas, na verdade, nos últimos anos, depois da Cons-
tituição, o progresso econômico se tem concentrado em
certas unidades, como São Paulo e Paraná, onde a renda
interna se ampliou de 36% a 38% da renda global do
país, em detrimento de outras regiões, como a amazônica,
reduzida de 2,4% a 2,2%, e o Nordeste, de 16,2% a
14,3%. A política de desenvolvimento de Juscelino
Kubitschek foi acusada de ter agravado as disparidades
regionais e de ter, mesmo, provocado a crise de empobre-
cimento do Rio Grande do Sul, descapitalizado em cêrca
de 40 bilhões de cruzeiros, só nos últimos dez anos.37
O agravamento da situação nordestina, o desastre na
região Sul, o êxodo mineiro superior ao nordestino ( res-
pectivamente 1 200 000 e 980 000) impõem uma vigilante
política de integração, pois todo o Brasil está se tor-
nando tributário do centro industrial paulista.

7. COMUNICAÇÕES E UNIDADE NACIONAL

Outra das grandes aspirações nacionais, que desde


o nosso despertar anima os brasileiros, é o desenvolvi-
mento das comunicações, seja pela navegação fluvial, seja
pelas estradas de ferro. Acreditou-se muito mais no
Império do que hoje na navegação fluvial e no papel
que certos rios representariam para a unidade e o adian-
tamento regional. Houve sempre no Brasil os enamorados
dos nossos rios, caminhos fluviais, fontes de energia,
irrigadores de zonas mais áridas. O Rio São Francisco,
que mereceu o título de rio da unidade nacional, foi,
com o Araguaia e o Tocantins, dos mais estudados. Dêle

36 Criado pela Lei n•2 976, de 28 de novemb:·o de 1957.


Pràticamente, ainda não funciona.
37 Vide Franklin de OLIVEIRA: Rio Grande do Sul: Um
Nôvo Nordeste, Rio de Janeiro, 1960.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 93

se esperava um milagre, a possibilidade de povoamento


do Noroeste, com a conseqüente colonização da Bacia do
Amazonas.38 A navegação do Araguaia foi considerada,
pelo General Couto de Magalhães, preferível à do To-
cantins, porque, colocando Goiás em contato com Mato
Grosso, o Pará e o Maranhão, ligaria a foz do Amazonas
à do Prata, e daria, não a Goiás, mas a todo o interior
do Brasil, <mma costa tão considerável como a que êle
tem no Oceano Atlântico». Ainda hoje limita-se a nave-
gação fluvial do Brasil a 44 000 km, dos quais 25 000
pertencem à bacia amazônica.39
A política de livre navegação fluvial, que teve um
defensor tão ardoroso em Tavares Bastos4o, marchou até
a vitória final em 1866, quando se abriram, à navegação
dos navios mercantes de tôdas as nações, o Amazonas, o
Tocantins, o Madeira, o Negro e o São Francisco.41 A
realidade, porém, não correspondeu às esperanças do mo-
mento, e os males existentes não foram corrigidos pela
ação política proposta. Continuou tudo em lenta evolução.
O destino do Amazonas, que no famoso discurso de
Getúlio Vargas, de 9 de outubro de 1940, se prometia
conquistar, encontra hoje na Rodovia Belém-Brasília, ape-
nas aberta, outra fonte de inimagináveis promessas.
No Império, como na primeira República, a estrada
de ferro era a solução ideal. Já em 1835 promulgava-se
a primeira lei autorizando o Govêrno a conceder, a uma
ou mais companhias, que fizessem estradas de ferro da
Capital do Império para as províncias de Minas, Rio
Grande do Sul e Bahia, o privilégio exclusivo por espaço
de 40 anos.42 Malogradas esta e outras iniciativas, só

38 A bibliografia sôbre o São Francisco é numerosa. Veja-se


especialmente Teodoro SAMPAIO: O Rio São Francisco e a Chapada
Diamantina, Coleção Estudos Brasileiros, Bahia, 1938 ( 1• edição, in
Revista Santa Cruz, S. Paulo, 1906), e Luís Flores de MORAIS RÊ-
GO: O Vale do São Francisco, Sociedade Capistrano de Abreu,
Rio de Janeiro, 1936.
39 Ceçary AMAZONAS: "Navegação Fluvial do Brasil", in Re-
vista Brasileira de Geografia, out.-dez. 1959, 499-5-15.
40 O Vale do Amc1zonas, Companhia Editôra Nacional, São
Paulo, 1937, 14-27. ( 1• edição, Rio, 1866).
41 Decreto n• 3 749, de 7 de dezembro de 1866.
42 Decreto n• 101, de 31 de outubro de 1835. Originado de
um projeto de autoria de Bernardo Pereira de VASCONCELOS.
94 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

a 30 de abril de 1854 inaugurou-se a primeira «estra-


dinha» de apenas 14 km e 500 metros. Em 1861 pos-
suíamos 667 km, e em 1862 Ferreira da Veiga reclamava
na tribuna da Câmara dos Deputados que Minas Gerais,
apesar de abastecer o Rio, de pagar a terceira parte da
renda arrecadada na Alfândega e de conter a sexta parte
do Império em população e representação nacional, não
possuía uma única via férrea.43 O Império não conseguiu
facilitar os meios de comunicação, pelas estradas, e coube
à República, depois da consolidação financeira de Campos
Sales, dar um maior impulso, embora insatisfatório, a fim
de atender às necessidades do país.
O desenvolvimento da viação férrea é fator primor-
dial no progresso de qualquer nação, dizia Afonso Pena
ao Congresso em 1907, e já em 1908 atingia-se a 18 000
km. Em 1910 Nilo Peçanha comunicava ao Congresso
que a Central do Brasil alcançara a margem do Rio São
Francisco, ponto visado pelos nossos estrategistas quando
decretaram o grandioso tratado.44 De 1910 a 1930,
duplicamos a extensão da rêde ferroviária em tráfego, mas
desde então as rodovias passaram à dianteira no plano
oficial, e seu incremento se acentuou nos programas de
Getúlio Vargas e, especialmente, nos de Juscelino Kubits-
chek. O transporte aéreo, iniciado em 1927, foi, na
verdade, o que mais atendeu à velha aspiração de uni-
dade, pela facilidade de comunicação, e hoje cobre todo
o território nacional.

8. INTEGRAÇÃO PSICO-SOCIAL

Se a grande tarefa de consolidar a União e fortalecer


os laços de solidariedade nacional não se realizara, com-
pletamente, pelo descumprimento da aspiração de comuni-
cações fáceis, se concretizava pela integração psico-social,
pela miscigenação e pelo abrasileiramento dos imigrantes.
Os vários grupos étnicos tiveram que se ajustar aos poucos,

43 Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Deputados,


Rio de Janeiro, 1862, T. II, 135.
44 Anctis da Cânwra dos Dep11tados 1 Rio de Janei:·o, Imprensa
Nacional, 1910, 407 e 431.
ASP!llAÇÕES NACIONAIS 95

uns aos outros, numa verdadeira caminhada progressista


de convivência e harmonia e de luta contra a intolerância
racial ou a discriminação de côr. As divergências foram,
no comêço, profundas, e separavam todos, mazombos e
reinóis, brancos e indígenas, colonos e escravos, brancos
e negros. As três raças, oriundas de continentes diversos,
pareciam irredutíveis, e nada favorecia a difusão de sen-
timentos de benevolência. Ao lado dos fatôres dispersivos
de natureza etnográfica influíam outros, de natureza psi-
cológica. Distinguiam-se os nascidos na Metrópole e os
nascidos aqui, reinóis e mazombos; distinguiam-se os afri-
canos de lá e os de cá: moleques eram os de aquém-mar;
distinguiam-se os índios convertidos ou selvagens: cabo-
clos, primitivamente, eram os catequizados.45 Foi obra
do povo vencer essas diferenças: a minoria de além-mar
ainda impunha distinções jurídicas e evitava o cruzamento
ou desprezava o índio selvagem e o negro, todo negro.
Se os jesuítas procuraram amansar os indígenas, con-
vertê-los - o que significa dominá-los e «acaboclá-los» -
os colonos foram impiedosos na sua luta contra os mais
bravos e indomáveis. A guerra aos bárbaros, entre 1688
e 1691, e a conseqüente pacificação dos cariri é apenas
um episódio na cadeia de extermínio dos recalcitrantes,
iniciada desde as primeiras horas, contra tamoios e outros
grupos tupi, e que culmina na Carta Régia de 13 de
maio de 1808, quando se manda fazer guerra, em Mato
Grosso, aos botocudos. Êste foi o caminho extraordinário,
proibido desde 183146, usado mais ordinàriamente por
tôda a América Espanhola. Tanto que, antes da guerra
ofensiva de 1808, novos métodos eram empregados; li-
bertava-se o indígena da escravidão em 1755; concediam-
se privilégios aos que se casassem com índios ( 175 5 ) ;
impunha-se em São Paulo e no Maranhão (Amazonas,
Pará e Maranhão) o uso obrigatório do português (1755),
e uma nova palavra, surgida em 177 5, sintetizava todo
o esfôrço de harmonia: civilização.47 Enquanto se operava
esta mudança de métodos oficiais, a miscigenação fazia

45 Vide "Introdução", de Capistrano de ABREU aos Diálogos


das Grandezas do Brasil, Rio de Janeiro, 1930, 18.
46 Lei de 27 de outubro de 1831.
47 José Honório RODRIGUES: "Civilização, Palavra e Conceito",
in Diário de Notícias de 24/5/1953.
JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

sua obra, juntamente com o sentimento de solidariedade


que se desenvolvia sob a pressão das ameaças externas.
O resultado foi não só a pacificação e incorporação, mas
a derrota do biligüismo que tanto ameaçou, em São Paulo
e no Amazonas, a unidade de nossa língua.

9. MISCIGENAÇÃO E TOLERÃNCIA RACIAL

A miscigenação foi, a princípio, uma floração deli-


cada, um fenômeno nôvo e estranho, que provocava re-
quintes de observação, atiçava os sentidos, e se media e
pesava com prec1sao que desconhecemos, acostumados
como estamos hoje às variedades de peles e de sangues.48
O alvorôço para abrasar as paixões começou com os dois
grumetes da frota de Cabral; desde então foi todo o
Brasil povoado com enxêrto de homens. Apesar dos
preconcdtos, por necessidades biológicas, pela influência
do sistema econômico de senhor e escravo e pela decan-
tada predileção portuguêsa pela mulher morena, a misci-
genação desenfreada foi o caminho do povo brasileiro.
A mestiçagem, acompanhada de transformações sócio-
culturais, foi um fator de ascensão, um caminho para
o afrouxamento dos preconceitos e para a tolerância final,
ao contrário da escravidão, que era um obstáculo à
integração social.
Tivemos discriminação racial no Brasil, manifestada
na segregação na tropa, na exclusão do sacerdócio e da
burocracia. A gradação da côr da criança, nascida da
união entre o senhor e a escrava, decidia seu destino
social: aceita na classe «alta», admitida como livre na
categoria da gente baixa, ou deixada na escravidão.49
Os preconceitos foram, aos poucos, se concentrando sôbre
os negros, aos quais se impedia, ainda em 1809, a pro-
priedade de terras. A escravidão, que foi o sustentáculo
dos senhores, criou, possivelmente, vários complexos, entre
os quais a objeção pelo trabalho manual. Nem porque
exercitam ofícios mecânicos perdem a presunção de alvos

48 Vide "Introdução" ( cit.) de Capistrano de ABREU, 17.


49 Harry William HUTCHINSON: Vil/age and Plantation Life
in Northeastern Brazil, University of Washington Press, Seattle,
1957,99 e 117.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 91

ou nobres,. dizia em 1757 Frei Domingos do Loreto


Couto.50 É por tudo isto que a abolição representa um
objetivo momentâneo que atende a uma aspiração per-
manente de convivência harmônica entre as várias raças.
Já em 1855 a opinião pública brasileira não se dividia
entre liberais e conservadores, mas entre os partidários da
abolição imediata ou da manutenção do cativeiro, e em
1872 Tavares Bastos declarava que entre as três necessi-
dades capitais do Brasil estava a aceleração do movimento
emancipador. 51
A abolição foi uma das aspiracões mais profundas
da consciência nacional, mas não nos livrou dos precon-
ceitos de côr ·que subsistiram apenas mais suavizados.
Há quem acredite, como Oliveira Viana52, na arianização
progressiva do povo brasileiro, e quem, como Gilberto
Freyre, apesar de tão crítico ao primeiro, afirme que «os
negros estão agora desaparecendo ràpidamente do Brasil,
fundindo-se com os brancos. Em algumas regiões, a
tendência, ao que parece, é para a estabilização dos mesmos
em um nôvo tipo étnico, semelhante ao da Polinésia.»53
O que levou um historiador norte-americano a dizer que
os brasileiros consideram o progressivo embranquecimento
da população como um ideal nacional, suposição larga-
mente confirmada pelas observações feitas neste século, e
que os brasileiros procuram, assim, evitar uma minoria
racial que perturbe sua paz interna.54 A pequena into-
lerância racial ou a discriminação de côr tem base econô-
mica e social, e os que vencem pela educação encontram
abertas as portas da sociedade. Homens de côr, espe-

50 "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco", in Anais


da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Vol. XXIV, 1904, 227.
51 "A Situação e o Partido Liberal'', in Males do Presente
e Esperança do Futuro, Companhia Editôra Nacional, Rio de Janei-
ro, 1939, 151.
52 Evolução do Povo Brasilei1"o, Companhia Editôra Nacional,
Rio de J:meiro, 2• edição, 1933, 191-194.
53 Bra.úl. An Interpretation, New York, A. Knopf, 19'15,
96-97. Trad. brasileiu, Editôra José Olímpio, 1947, 187.
54 William Lyttle SCHURZ: This New World. The Civili-
zation of Latin America, New '(ork, Dutton & Co., 1954, 172. A
mesma idéia em H. W. HUTCHINSON: Village and Plantalion
Life in Northeastern Brazil, Univ. of Washington Press, Seattle,
1957' 101.

j
98 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

cialmente mulatos, conseguiram e conseguem fama e altas


posições, como o nosso maior escritor, Machado de Assis,
como Gonçalves Dias, André Rebouças, Teodoro Sampaio,
Cotegipe, Nilo Peçanha.

10. ACULTURAÇÃO E NACIONALIZAÇÃO DOS IMIGRANTES

Se os processos de aculturação e integração de indí-


genas (hoje entre 68000 e 99000, ou seja, 0,2% da
população) e de negros (hoje cêrca de 6 milhões) realiza-
ram-se ao correr de tôda nossa história55, foi somente a
partir de 1818 que se inaugurou uma fase mais intensa
de intercruzamento étnico e cultural, com novos grupos
étnicos. Não cabe aqui relembrar a história dessa imi-
gração, ora recrutada, ora espontânea, aberta ou limitada,
livre de direitos ou oprimida de restrições.56 O fato é
que as correntes imigratórias, limitadas a europeus, alemães
e suíços, a princípio, e depois a italianos, espanhóis e
portuguêses, e diversificadas com japonêses, sírios e liba-
neses, totalizando, de 1850 a 1950, cinco milhões, par-
ticipam do processo de relações de cultura, e, com raras
exceções, se cruzam etnicamente. De modo geral se
pode dizer que nenhum outro país recebeu tantos imi-
grantes japonêses, e somente os Estados Unidos admitiram
maior contingente de alemães; só a Argentina e o México
possuem maior número de espanhóis; e poucos países
acolheram tantos italianos e eslavos. Mas, ainda assim,
constituíam os imigrantes, em 1950, no conjunto, menos
de 3 % da população total, quando em 1920 a proporção
dos imigrados era de 5,11 %. A assimilação tem-se pro-
cessado sem maiores problemas e a economia brasileira
deve aos vários grupos étnicos importantes contribuições.
Na agricultura, especialmente na cultura da uva, do trigo,

55 Vide Manuel DIEGUES JÚNIOR: Etnias e Culttwas no


Brm;/, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1956; e
Darci RmEIIlO: Línguas e Culturas Indígenas do B1·asil, Centro Bra-
sileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, s. d.
56 Vide J. Fernandes CARNEIIlO: Imigração e Colonização no
Brasil, Universidade do B··asil, Rio de Janeiro, 1950; e Artur HEHL
NEIVA: "A Imig~·açfo e Colonizaçêio no Govêrno Vargas", in C11l-
tma Política, Rio de Janeiro, n• 21, novembro 1942.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 99

do café e dos cereais, distinguem-se os italianos e alemães;


na indústria, italianos, alemães e sírios-libaneses.57 Em
sua maioria têm procurado o Brasil Meridional, e hoje
constituem, com nordestinos e mineiros, as fôrças de
trabalho das zonas pioneiras.
Dois grupos, especialmente, se isolaram, ou pelo dis-
tanciamento étnico do elemento luso-brasileiro, ou pela
sua formação cultural diferente, ou ainda por complexos
de superioridade, evitando, assim, a integração: os japo-
nêses e os alemães.
Existiam êles em grupos endogâmicos, sem oferecer
perigo imediato para a segurança nacional, até que o
expansionismo germânico e japonês tornou-os ameaçado-
res. A integração alemã foi sempre difícil, pois, às idéias
de fusão e conformidade com os costumes brasileiros,
chamavam de veleidades nativistas de que tínhamos de
desistir. Teriam os brasileiros, escrevia Handelmann em
1860, de «dar garantias de estarem resolvidos a acatar
e proteger a nacionalidade alemã do imigrado; terão,
para êsse fim, que facilitar o mais possível aos imigrantes
o estabelecimento de comunas próprias independentes e,
em vez de lhes dar a tutela de diretores, deixar-lhes a
administração própria, por funcionários por êles esco-
lhidos».58 A persistência dessas idéias, especialmente nos
grupos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, trans-
formou-os em verdadeiros quistos, alguns com atividades
políticas antinacionais, como a Federação 25 de Julho.59
O isolamento dos núcleos retardou a acumulação, mas os

57 Vide Manuel DIEGUES JÚNIOR, ob cit.; O:·lando VALVERDE:


A Velha Imigração Italiana e sua ln/ luência na Agricttltura e na
Economia do Brasil, Serviço Social da Indústria, Rio de Janeiro,
1959; Lou.des Magalhies de MATOS STR,\UCH: "Atividades Eco-
nômicas ela Região Sul", in Boletim Geográfico, Rio de Janeiro,
1958, n 9 1-15, 507-515; e Clark S. KNOWLTON: Síi'ios e Libmze-
ses, São Paulo, 1960.
58 H. HANDELMANN: História do Brnsil, 1° ed., Berlim,
1860; trad. bras,, Revista do lnstit11to Histórico e Geográfico Bra-
sileiro, T. esp. 1931, 971-1000.
59 Aristóteles de LIMA CÂMARA e Artur HEHL NEIVA: "Co-
lonização Nipônica e Germânica no Sul do Brasil". in Revista de
Imigração e Colonização, janeiro de 1941, 39-119. Vide Dornments
on German Foreign Polhy, 1918-1945, Department of State, 1953,
859.
100 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

processos de urbanização e industrialização têm facilitado


a assimilação e integração de cêrca de duzentos mil imi-
grantes teutos entrados no Brasil em oitenta anos, dos
quais o censo de 1950 registrava mais de 65 000, con-
centrados quase totalmente ( 96,2%) nos Estados do
Sul.60
Quanto aos japonêses, não contaram sempre com a
simpatia oficial. No século passado, fôra muito criticada
a proposta da importação de chins e asiáticos61, e em
1934 Miguel Couto lutou na Constituinte contra a mu-
gração de japonêses, daí resultando o sistema de quotas
que a dificultou.62
Apesar dêstes obstáculos, de 1908 aos nossos dias,
com exceção do período da guerra, a imigração japonêsa
no Brasil atingiu a cêrca de 450 mil, correspondendo a
0,6 por cento da população do Brasil, e localizando-se o
grupo dominante em São Paulo ( 78,8%) e Paraná
( 19, 1 % ) . A guerra mundial e algumas organizações ter-
roristas e nacionalistas, como a Shindõ Remmei (Liga do
Caminho dos Súditos), dificultaram o processo de assi-
milação racial e cultural. A adaptação aos costumes bra-
sileiros no vestuário e na moradia, o abandono do culto
budista e assistência à missa católica, a ocorrência de
inter-casamentos, a participação na política com a eleição
de deputados japonêses, mostram que o processo de acul-
turação se vem manifestando positivamente. A industria-
lização, a urbanização, a influência religiosa e o serviço
militar compulsório apressaram êste processo. A aceitação
da imigração japonêsa e o último acôrdo de 1960 mos-
tram que um mútuo respeito desfez os preconceitos e as
discriminações passadas. As contribuições de uns e outros
à cultura brasileira, ao desenvolvimento econômico e in-
dustrial e à agricultura têm sido evidenciadas. Basta
dizer que se deve ao braço nipônico 100% da produção

60 A rsimilação e Populações Marginais no Brasil, Rio de Ja-


neiro, 1940; vide especialmente Emílio WILLEMS: Ac11lt11ração dos
Alemães no Brasil, Rio de Janeiro, 1946.
61 Vide Importação de Trabalhadores Chins, Rio de Janeiro,
1869, e ainda Salvador de MENDONÇA: Trabalhcrdores Asiáticos, New
York, 1872, e Imigração Chinesa, Rio de Janeiro, 1882.
62 Vide Jcsé Honório RODRIGUES: Brcrsil e Áfricct: Outro
li oi-izo nt e, Rio de Janeiro, 1961, 8 6-90 .
ASPIRAÇÕES NACION.\IS 101

de chá prêto e de pimenta do reino, 91,3% de hortelã-


pimenta, 39,1 % de amendoim, 27% de batata e 11,6%
do algodão cultivados no Brasil.63
Em 1938 criou-se o Conselho de Imigração e Colo-
nização, transformado em 1954 em Instituto Nacional de
Imigração e Colonização. Ao Conselho coube acelerar o
processo de adaptação, aculturação e integração, isto é, de
abrasileiramento. A política de nacionalização baseou-se
na quebra do isolamento geográfico e social, no evitar a
formação de novos núcleos homogêneos, no incentivo à
inclusão de famílias brasileiras nos núcleos já existentes e
em multiplicar os demais fatôres ambientes (escolas etc.)
nacionalizadores, tentando conciliá-los com os interêsses
do desenvolvimento econômico que a imigração repre-
senta.64 A predominância do interêsse nacional na imi-
gração, expressa na Constituição de 1934, foi reforçada
na de 1946. Desde então os quistos desapareceram.
A imigração está hoje reduzida, pela perda dos imi-
grantes da Europa Oriental, e especialmente dos italianos;
a única que se mantém é a japonêsa. Surgem, agora, pers-
pectivas da vinda de colonos brancos da Asia e Africa;
holandeses da Indonésia, belgas do Congo, inglêses do
Quênia, franceses da Argélia, cujas vantagens são contro-
vertidas em face dos possíveis complexos raciais. Ainda
assim, por vários fatôres, ocupa o Brasil o quinto ou
sexto lugar na escala preferencial de países emigratórios.
Os imigrantes não alteraram a personalidade básica
do caráter brasileiro, pois no Sul, onde se notam brasi-
leiros de primeira e segunda gerações, êles estão integrados
na nossa cultura e na nossa tradição histórica. Ainda no
govêrno passado o Brasil era dirigido por descendentes
de imigrantes de origem não portuguêsa, como o seu
Presidente, o Presidente da Câmara dos Deputados, o
Vice-Presidente do Senado, o Presidente do Tribunal Su-

63 Sôbre 'aponêses vide Antônio Rubio MULLER e Hi ·oshi


SAITO: Mem6,.ias do l Painel Nipo-Brasileiro, Escola de Sociolcgia
e Política de São Paulo, 1956, 2 tomos; James L. TIGNER: "Shin-
dü Remmei, Japanese Nationalism in Brazil", in Hispanic Americcm
Historical Re11iew, nov. 1961, 515-532; Hiroshi SAITO: O Japo-
nês no Brasil, São Paulo, 1961.
64 Ribeiro COUTO: "O Problema da Nacionalização", in Re-
vista de Imigração e Colonização, Rio de Janeiro, 1941, 18-34.
102 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

perior Eleitoral e varias deputados, senadores, juízes, mi-


nistros e altos funcionários.
Dêste modo, os problemas mais graves de nossa
integração psico-social vêm sendo solucionados. A Lei
Afonso Arinos ( n.º 1 390, de 1951), que transfere para
o campo das infrações penais, com processo rápido, a
prática de ato resultante de preconceitos raciais, e a
criação do Serviço de Proteção aos índios, em 20 de
junho de 191 O, para protegê-los, educá-los e assimilá-los
à economia e cultura do Brasil, completam o quadro do
nosso caminho para uma democracia étnica de respeito à
pessoa humana, independente de suas origens, e de ajuda
à obra de integração nacional. Ainda assim, muito resta
a fazer, e em janeiro de 1961 o Deputado Abel Rafael
apelava para a concessão de títulos de terra aos índios,
especialmente no Amazonas e no Pará, onde é maior sua
população e de onde vêm sendo expulsos por aventu-
reiros.65
A questão dos direitos dos naturalizados apresenta
aspectos mais graves, pois leis ordinárias criaram mais
de cinqüenta proibições ao livre exercício de várias ati-
vidades. De modo geral exige-se, para a naturalização,
um ano de residência, se se trata de português, três anos
para o agricultor ou industrial e cinco para qualquer
estrangeiro. Obtida a naturalização, o naturalizado en-
frenta inúmeras restrições à sua participação na vida bra··
silcira, impostas pela Constituição e pelas leis ordinárias.
Há restrições tão exageradas, como as de proibir ao
naturalizado a direção de escola rural, ser professor pri-
mário e ensinar português, geografia e história, que se
chegou recentecente, em contrapartida, ao projeto de
Emenda Constitucional número 11, proposta pelo Depu-
tado Castilho Cabral, que revoga dispositivos constitu-
cionais e dá ao brasileiro naturalizado, depois de cinco
anos de aquisição da cidadania, o gôzo de todos os
direitos do brasileiro nato, exceto o de ser eleito Presi-
dente ou Vice-Presidente da República, Governador ou
Vice-Governador de Estado. A concessão de quase todos
os direitos políticos provoca, como é natural, grandes
controvérsias, e os nacionalistas exigem, na Câmara, tôda
a cautela. Como acentuou o Deputado Nelson Carneiro,

65 Diário do Congresso Nacional, 17/1/1961, 201.


ASPIRAÇÕES NACIONAIS 103

no debate sôbre a matéria na Câmara, deve haver um


limite entre os direitos dos nacionais e os direitos dos
naturalizados, sem que isso importe em negar facilidades
à naturalização ou em revogar os excessos de vários dis-
positivos. O limite é o interêsse nacional.66
O Brasil Moderno é muito mais homogêneo, em
têrmos de cultura, de linguagem e de etapas históricas,
do que outras áreas de tamanho comparável. A índia,
a China e a União Soviética contêm povos de culturas
muito diferentes e que falam línguas diversas.67

11. CLASSES E JUSTIÇA SOCIAL

Os processos de integração e aculturação das varias


etnias à sociedade devem ser completados pela harmonia
e a possível cooperação das várias classes sociais. O
Brasil foi, no comêço de sua história, uma sociedade de
duas castas, os senhores e os escravos. Os estratos sociais
intermediários surgiram desde a época colonial, consti-
tuídos de homens livres, mas sem terras, e de uma grande
variedade de mestiços. O sistema rígido de castas durou
pouco, pois a mestiçagem tendia à dissolução das mesmas
e conduzia à nivelação. Não havia propriamente lutas
de classes no Brasil, não porque sejam raríssimos os con-
flitos ou apresentem caráter efêmero, descontínuo e local,
como escreveu Oliveira Viana, mas porque só há lutas
entre senhores e escravos, e os livres, mas sem terras,
são tão poucos que não ousam agrupar-se ou enfrentar
as imposições senhoriais. Os exemplos comumente ci-
tados têm caráter social, pelas reivindicações populares
e pela atuação de fatôres econômicos, mas falta-lhes a
rígida linha de classes, a menos que Senhores e Escravos
pudessem ser caracterizados como classes, e não como
castas sociais. O mesmo se pode dizer dos movimentos
do campo, do cangaço, onde se mesclam aspirações sociais
e misticismo religioso.

66 Discurso aos 17 de janeiro de 1961, in Diário do Con-


g1·esso Nctcional, 208-210.
67 Rctce and Culture 111 Rural Brazil, edit. por Charles V"IA-
GLEY, UNESCO, 1952, 10.
104 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Ao findar a escravidão, os mestiços eram numerica-


mente superiores aos senhores brancos, e os negros cons-
tituíam a parte mais baixa da hierarquia social. Os co-
lonos livres dos séculos XIX e XX reforçaram os grupos
inferiores e intermediários; a classe dominante continuou
sendo o senhoriato rural, os proprietários de terras, se-
nhores de engenho, fazendeiros de café. Aos descendentes
da velha aristocracia rural, que até recentemente dominou
sàzinha o Brasil, reúnem-se hoje os novos ricos da indús-
tria e do alto comércio, formando uma pequena classe
poderosa que mantém o predomínio na sociedade. A ins-
tabilidade e a mobilidade sociais impedem a rigidez das
linhas de classe. A abolição da escravidão deu nasci-
mento às classes operária e lavradora. Ê certo que
antes havia operários e camponeses não escravos, mas sem
maior significação social, pois êles mesmos usavam, logo
que podiam, da mão escrava para seus trabalhos. A
urbanização e a industrialização é que promoveram, neste
século, a formação do operariado das cidades, embora,
como classe, os trabalhadores do campo, em condições
mais primitivas de vida, representem ainda pouco mais
da metade da massa popular no Brasil, com 55,24%
do total.68
Uns e outros ficaram sempre imobilizados pela igno-
rância e pelo paternalismo ou coronelismo, assegurando
as vitórias da oligarquia. A inércia política caracterizava
o operariado das cidades, pelo menos até 1930, e os
trabalhadores do campo encontravam no cangaço a ma-
nifestação de sua revolta. A Revolução de 1930, embora
não oferecesse inicialmente uma séria ameaça ao statu
quo, representou um avanço com a entrada dos traba-
lhadores na vida política. Getúlio Vargas soube apreciar
o valor potencial do apoio político dos trabalhadores,
que até então tinham sido impossibilitados de associar-se
e de iniciarem, com os sindicatos, seus movimentos rei-
vindicatórios. Por isso as normas de proteção ao trabalho

68 As primeiras apurações do Censo de 1960 demonstram


grande índice de aumento da "urbanização". No conjunto da po-
pulação brasileira, a Lação proporcional dos rurais caiu, de 68,76%
em 1940 e de 63,84% em 1950, a .iproximadamente 5 5,24 % cm
1960. Desenvolvimento & Conj1mturc1, março 1962, 9.
ASl'IRAÇOES NACIONAIS 105

ou de melhoria de suas condições não foram verdadei-


ramente conquistadas, mas outorgadas pelo Estado.
Hoje, com mais de dois milhões de operários, o
Brasil começa a deixar de ser um país rural, apesar de
sua estrutura agrária e da pequena predominância da
população rural. Esta, em condições de vida primitiva,
começa a ter voz e audiência. Ao lado da urbanização
cm incremento acentuado, a participação do setor indus-
trial na renda interna da economia nacional, que em 1939
correspondia a 17 ,9% do total, evoluía em 1959 para
25 ,3 % ; os estabelecimentos fabris, de 40 983 naquele
ano, passavam em 1958 para 128 769.69
Mas, apesar de todos êstes sinais, os donos do Poder70
continuam a ser os representantes da oligarquia rural, com
o apoio de fortes camadas do comércio e da indústria
tradicionalistas.
Estas últimas não constituem um grupo sólido, pois
seus interêsses as dividem. As primeiras, mais conser-
vadoras e mais identificadas com os seus próprios inte-
rêsses do que com os interêsses nacionais, agem mais
nos bastidores, enquanto as segundas, constituídas mais
de estrangeiros, naturalizados ou nacionais de primeira e
segunda geração, são mais progressistas e agem mais na
estrada livre dos debates públicos, incentivando, pela
coincidência de interêsses, o nacionalismo econômico. A
indústria, pelos seus líderes, tem sido, por tôda parte,
uma fôrça revolucionária, agressiva, versátil, não dou-
trinária, que vale mais do que muitas bibliotecas cons-
tituídas de obras revolucionárias ou do que uma Faculdade
repleta de professôres liberais. No Brasil ela ainda não
é uma fôrça totalmente progressista, pois hesita, apóia e
teme reformas de base, avança e recua nas posições po-
líticas, internas ou internacionais, e luta pela posse osten-
siva de postos do Executivo. Os líderes do comércio,
que se denominam classe «produtora», têm assumido uma
franca posição conservadora. Alguns setores comerciais
~e têm mancomunado com as especulações dos gêneros
em épocas de crise, pondo muitas vêzes seus interêsses

69 "Retrospecto Parcial da Economia Brasileiraº', in Desen-


vo!Fimento & Conjuntura, julho 1961.
70 Vide o excelente estudo, de Raimundo FAORO: Os Donos
ao Poder, Editô_a Globo, 1958.
106 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

pessoais acima dos interêsses nacionais. A liderança co-


mercial tem sido também acusada de conspiração e ligação
com setores retrógrados do país. Grupos comerciais e
industriais exercem fortes pressões sôbre o Govêrno atra-
vés da opinião, nos bastidores, e da influência econômica.
Mas Executivo e Legislativo não se atemorizam - a
não ser aquêles que ouvem as opiniões dos líderes con-
servadores - mas não toleram as manifestações operárias
ou de homens do campo, pois as consideram sempre como
pré-revolucionárias. A opinião do poder econômico ou
das classes populares é um termômetro para medir a
fôrça do Govêrno, que vive em estado mercurial.
Entre elas sobra a classe média, que se expandiu
também com a urbanização, mas que não tem repre-
sentado entre nós o elemento básico e decisivo que equi-
librou a Europa, especialmente a Grã-Bretanha e os Esta-
dos Unidos; ela tem mais se indignado que influído. A
indignação do moralizador é não só um ingrediente, como,
também, um instrumento de luta pelo poder. É neste
último aspecto que a luta contra a corrupção lhe serve;
serve também de pretexto para abafar os tolerantes nas lutas
ideológicas e de pensamento. É um caminho normal, no
desvio histórico, que os indignados acabem indignos. São
êles os que mais ameaçam as liberdades públicas nos
Estados Unidos, como os tolerantes são os que mais
facilitam a corrupção. A classe média teve como pro-
grama o que se chamou, no auge de sua indignação, a
recuperação moral do país. Aí ela agiu como um grupo
independente, embora servisse aos vários grupos con-
servadores. Não foi um elemento estabilizador, segundo
o papel que desde Aristóteles se lhe atribuiu. Ela queria,
pela sua liderança, assaltar o Poder, sem alianças popu-
lares, que a conspurcavam, mas ajudada pelas fôrças cons-
pícuas, antinacionalistas, e sem nenhum entusiasmo pelo
desenvolvimento econômico. Sua posição no Brasil em
1954-55 era, portanto, inversa à da classe média européia,
que foi e é uma das chaves da democracia e do indus-
trialismo, e à dos próprios setores médios afro-asiáticos
que ajudaram a independência e o nacionalismo.
Jacques Lambert, que estudou o papel da classe
média no Brasil, observou que sua posição estratégica nas
cidades dava-lhe uma autoridade que não tinha relação
com sua importância numérica no país, especialmente em
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 107

relação às massas rurais. Como estas e o próprio proleta-


riado possuíam níveis de cultura e padrão de vida baixos,
as classes médias poderiam representar um papel de van-
guarda. Mas sua liderança retirou-lhes o conteúdo polí-
tico que elas tiveram na Europa e nos Estados Unidos,
para fazer, da indignação, seu objetivo, explorando a
tendência de infligir punição, característica da baixa classe
média, que vive em estado de permanentes restrições e
frustrações. A extrema indignação moral é uma espécie
de ressentimento de que se utilizaram os nazistas, en-
quanto as classes médias anglo-americanas despiram-se de
indignação e exigiram a moralidade como uma disciplina
normal, exercendo um importante papel estabilizador. Não
alcançaram êsse resultado as nossas classes médias pela
má liderança de 1954-55. Hoje, esmagados pela inflação,
não há perspectiva para o papel político e a influência
que poderiam ter exercido, numa hora que lhes foi propícia.
Do choque das aspirações atuais de umas e outras
classes, anima-se e se rejuvenesce o país, e de suas antí-
teses nascem os interêsses nacionais. As imagens momen-
tâneas de cada grupo não constituem as aspirações nacio-
nais, embora na imagem majoritária se retrate a essência
dos objetivos do elemento fundamental da nação, que
é seu povo. Como êste era desprotegido, algumas aspi-
rações de justiça social foram acolhidas na Constituição
de 1934, que procurou nacionalizar e democratizar a
economia e favorecer o trabalhador. Foi com a Cons-
tituição de 1946 que se criaram os Juízes e os Tribunais
do Trabalho.

12. REGIME REPRESENTATIVO.


PODÊRES DIVIDIDOS E HARMÔNICOS.

Desde a Independência, quando se teve de escolher


a forma de Govêrno, coexistiam as mais variadas ten-
dências, desde o republicanismo radical ao monárquico
absoluto. Mas logo ficou evidenciado que a aspiração
essencial da maioria era o govêrno representativo, com
podêres divididos e harmônicos. D. Pedro I dizia à As-
sembléia Constituinte, no dia 3 de maio de 1823, que
esperava uma constituição sábia, que tivesse em vista
108 JOSE HONÓRIO RODRIGUES

tão-somente a felicidade geral. Para isso ela devia ter


«bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha
mostrado que são verdadeiras, para darem uma justa li-
berdade aos povos e tôda a fôrça necessária ao poder
executivo. Uma Constituição em que os três podêres
sejam bem divididos de forma que não possam arrogar
direitos que lhes não compitam, mas que sejam de tal
modo organizados e harmonizados, que se lhes torne im-
possível, ainda pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos,
e cada vez mais concorram de mãos dadas para a feli-
cidade geral do Estado.»71 Antônio Carlos Ribeiro de
Anclrada diria, um pouco adiante, a 16 de maio, que «a
nação já assentou certas bases, escolheu a dinastia, aclamou
seu Imperador, que é também protetor e defensor per-
pétuo do Brasil, e declarou, portanto, a forma de govêrno
que preferiu, isto é, a Monarquia constitucional, em que é
essencial a divisão de podêres, a harmonia dêles e a inge-
rência do poder executivo no legislativo».72 Em ambos
predomina a idéia da divisão e harmonia dos podêres, com
o executivo forte.
A Monarquia hereditária, constitucional e represen-
tativa geriu-nos de 1824 a 1889, quando se adotou como
forma de govêrno, sob o regime representativo, a Repú-
blica Federativa, que nos regeu até há pouco tempo, com
os intervalos da ditadura de 1891 a 1894, de 1930 a
1934, e de 1937 a 1945. A Constituição de 1824, apesar
de declarar os ministros imperiais responsáveis perante
o Parlamento, não previu um sistema parlamentar. Os
ministros eram escolhidos pessoalmente pelo Soberano, que
os nomeava ou demitia a seu gôsto. A Constituição não
deu supremacia a uma das casas do Parlamento, embora
a Câmara fôsse temporária e o Senado, vitalício. Somente
em 184773 criou-se, por decreto, o cargo de Presidente
do Conselho de Ministros, que passou a escolher, em
consulta com o Soberano, os seus colegas de Gabinete.
A novidade estava nesta escolha, antes entregue inteira-
mente ao arbítrio do Imperador, e não nas moções de
confiança ou desconfiança. Nenhum Gabinete caía sem

71 Anais do Padamento Brasileiro. Assembléia Constituinte,


1823, Rio de Janeiro, 1876, 41.
72 Ibid, 90.
73 Decreto n• 523, de 20 de Julho de 1847.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 109

esta manifestação parlamentar, e nenhum deixava não só


de apresentar seu programa, como de justificar sua queda.
Todo Presidente do Conselho exercia um Ministério; de
regra, o da Fazenda, «para que êste Ministério, onde se
regulariza e examina por fim tôda a despesa, tenha mais
prestígio em relação aos outrcs Ministérios», como dizia
D. Pedro II. Quando não se acumulava a Presidência
do Conselho com o Ministério da Fazenda, acumulava-se com
o do Império, embora isso fôsse menos freqüente, contra
a tradição britânica, seguida pelo parlamentarismo re-
publicano.
Os Gabinetes deviam ter base parlamentar para so-
breviver. Feijó, apesar da grandeza de suas proporções,
da dignidade e elevação de seu caráter, por falta de apoio
parlamentar, teve de renunciar; Bernardo Pereira de Vas-
concelos, em 1837, porque constituiu Gabinete parla-
mentar, teve fôrça para lutar contra a desordem e a
anarquia que ameaçavam o país. Não foi o que mais
subsistiu - houve Gabinetes de 6 dias, como o 17 .º
dirigido por Zacarias de Góis e Vasconcelos - pois o
do Visconde do Rio Branco (25.º), constituído também
em base inteiramente parlamentar, durou mais de quatro
anos (7 de março de 1871 a 24 de junho de 1875).
Sustentou o Marquês de Olinda na Câmara, porém, em
resposta a Martinho de Campos, que o Imperador tinha
o direito de escolher livremente seus ministros.74
O regime parlamentar deu sempre menor estabilidade
ao Poder Executivo, pois entre 1826 e 1889 - descon-
tada a Assembléia Constituinte de 1822 e o fechamento
do Legislativo - tivemos a média de 1,1 Gabinete por
ano. Mesmo que se considerem apenas os 49 anos do
segundo Reinado ( 1840-1889), tivemos 36 Gabinetes,
com a média de 1,3 por ano.
O remédio constitucional da dissolução da Câmara,
atributo do Soberano, retirado dos Regentes, não foi
usado com freqüência por D. Pedro II, pois em seus
<~Conselhos» à Princesa Isabel, em 1871, êle o conside-
rava como um apêlo à nação, que só deveria ser usado

74 Discurso de 28 de junho de 1862, in Anais do Pe1rlC1mento


Brmileiro, Rio de Janeiro, 1862, T. 2, 254-256, t:·anscrito in José
Honório RODRIGUES: "O Parlamentarismo e o Conselho de Minis-
tros", Jonu1! do Brmil de 15/7/62.
110 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

nos casos mais graves. E assim o fêz. Dos 36 Gabinetes


de sua época, 27 foram derrubados pela Câmara, e nove
vêzes esta foi dissolvida pelo Imperador.
Era do estilo parlamentar que se discutisse a política
geral por ocasião do debate do orçamento do Ministério
do Império, bem como as políticas especiais, quando da
discussão de cada orçamento ministerial. O regime par-
lamentar - que exige sempre uma independência com-
pleta do Soberano ou Presidente em relação aos partidos
- deu maior unidade aos Gabinetes, maior responsabili-
dade aos partidos e líderes, maior estabilidade e coerência
ao Govêrno, e permitiu que o sistema funcionasse com
maior regularidade. A minoria dominante - com ou
sem apoio popular - sempre considerou a forma monár-
quica como aspiração permanente. Saraiva, em discurso
na Câmara, disse, sob prolongados aplausos, que, «desde
o primeiro deputado da maioria até o último deputado da
oposição, todos reconhecem que no Brasil não é possível
senão a Monarquia constitucional; desde o primeiro de-
putado da maioria até o último deputado da oposição,
repito, todos reconhecem que a Coroa é o melhor abrigo
das nossas instituições, a maior e a mais segura garantia
de nossos direitos».75 Mas a crise ministerial de 1868
- extraparlamentar, porque o Gabinete não se demitira
por uma moção de desconfiança e possuía ao seu lado a
quase unanimidade da Câmara - revelou que a chefia
do Executivo, exercida pelos Ministros de Estado e pelo
Imperador, era a fôrça dominante. Data daí a «descrença
nas virtudes do sistema monárquico-parlamentar e uma
crescente aspiração por um nôvo regime, uma nova ordem
de coisas».76
Com a volta do sistema parlamentar, a queda do
Gabinete em 1962 foi também extraparlamentar, pois foi
feita para a desincompatibilização dos seus membros, can-
didatos à eleição. Nesse caso resultava do casamento
policial de uma Constituição presidencialista com um
sistema parlamentar.

75 Discurso de 27 /5/1862, in Anais do Parlamento B1'a.ri-


leiro, Rio de Janeiro, 1862, T. 1, 64-65.
76 Oli\'cira VIANA: O Ocaso· do Império, São Paulo, Com-
panhia Melhoramentos, s. d., 2• ed., 24.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 111

Se a Monarquia não foi uma aspiração permanente,


se o Parlamentarismo não foi uma forma de vigor dura-
douro, se a República Federativa começou como aspiração
cm 1869-70 e só se concretizou em 1889, parece-nos
lógico concluir que a essência política, afirmada em 1823,
confirmada em 1824, vigente até 1889, reafirmada em
1891 e até hoje atual, era a representação e a harmonia
dos podêres, embora sempre, também, se aceitasse o
predomínio do Executivo.
Com ou sem Monarquia, com ou sem República,
com ou sem Federação, com ou sem Presidencialismo ou
Parlamentarismo, a aspiração permanente sempre foi a
de um regime democrático, de forma representativa, com
podêres divididos e harmônicos. Nunca foram essenciais
para minorias ou maiorias os problemas ideológicos e os
próprios Partidos se interpenetravam. Paranhos, em dis-
curso na Câmara, exprimiu a tendência fluida dos Partidos
ao dizer: «Somos conservadores, porque queremos con-
servar e defender as instituições juradas; todos reconhe-
cemos que a Monarquia é a mais preciosa herança de
nossos maiores; que a integridade do Império é a condição
essencial para o futuro grande e glorioso que desejamos
ao nosso país. Também somos liberais, porque queremos
a Monarquia, mas a Monarquia no mais perfeito consórcio
com as liberdades públicas; é esta a exigência do século
em que vivemos, é esta a aspiração bem manifestada no
país.» 77
Por isso mesmo a política de conciliação e as ligas
satisfaziam tanto os interêsses pessoais em jôgo, sobretudo
os da minoria dominante, apesar das críticas veementes
com que se acusavam. Um dos dogmas da conciliação,
dizia Tôrres Homem, em discurso na Câmara, era o olvido
das ofensas recíprocas. Para êle - vindo do campo
liberal e acusado de ser um «elemento heterogêneo entre
seus novos aliados vermelhos» - foram os conservadores
«que fizeram mais, em prol das reformas e princípios
liberais, do que os seus genuínos pregoeiros».78 Funda-
mentalmente suas políticas eram idênticas, possuíam uma

77 Discurso de 28/6/1862, in Anais do Parlamento Brasi-


leifo, Rio de Janei o, 1862,. T. II, 258 ._
78 Discurso de 25 de junho de 1862, in Anais do Pc111amrnto
Bt·asi!eiro, Rio de Janeiro, 1862, T. II, 216.
1J 2 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

ampla área de acôrdo nas questões básicas que eram for-


muladas para apelar para o mesmo campo de eleitores.
Com raras exceções, eram todos muito versáteis, o que
levou Francisco Otaviano a dizer, citando Séneca: «Ficai
na certeza que é coisa difícil ser sempre o mesmo homem.»
A prática dos vários regimes provou o realismo de
Pedro I e de Antônio Carlos, não só da ingerência do
Executivo no Legislativo, mas, também, da subordinação
disfarçada ou ostensiva do Legislativo e do Judiciário ao
Executivo. Tanto assim que o Parlamentarismo nunca
foi entre nós o predomínio do Legislativo, já que o Sobe-
rano dava ao Executivo uma natural preeminência. Seja
ou não a Balança dos Podêres viciada, pela importância
de uns, ou pela fôrça de outro, a verdade é que, sem
a parceria de todos nas responsabilidades nacionais, não
teria sido possível preservar o Estado, do mesmo modo
que, sem a Balança dos Podêres, no Mundo, os Estados
teriam caído em guerras ininterruptas e na anarquia.

13. OLIGARQUIA E DEMOCRACIA

A grande aspiração democrática que doutrinàriamente


se contém no regime representativo vem sendo muito len-
tamente realizada. Primeiro, porque a representação era
fraudulenta e ainda é restrita, e segundo, porque, embora
no Império se houvesse gozado de muitas liberdades pú-
blicas, como reconhece Tavares Bastos, um dos seus maiores
críticos, o Código de Processo Penal de 1841 e a Re-
forma de 1871 implantaram limitações, ainda assim me-
nores do que as restrições experimentadas no retrocesso
de Floriano e na ditadura de Vargas, que pràticamente
as aboliram. Desde o Império o nosso Govêrno é oli-
gárquico, baseado nos senhores rurais da grande lavoura,
nos interêsses dos grupos econômicos do açúcar e do
café, nos escravocratas, nas fôrças tradicionais que não
gloriam só, como escrevia Nabuco, mas governam também.
O conservantismo nacional tem sua origem nos grupos
familiares que, desde a Colônia, dominam as terras, e
desde a Independência, comandam a política. A Inde-
pendência foi feita pelos intelectuais e os moços da terra,
ajudados como sempre por alguns cegos de boa vontade,
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 113

aliados portuguêses. Êles puderam escrever a Consti-


tuição e discuti-la dentro de certos limites. Mas o poder
real estava nas mãos dos latifundiários, e D. Pedro 1
cortou-lhes as asas e outorgou ao país uma Constituição
que mantinha intata a já obsoleta e estática estrutura
sócio-econômica colonial portuguêsa, que tem impedido o
progresso nacional ou amortecido os seus impulsos iniciais.
Todo o radicalismo brasileiro representou sempre um
esfôrço frustrado contra as poderosas oligarquias econô-
micas, senhoras do poder político, e tôda a ação conser-
vadora ajudada pelo Poder Moderador consistiu em evitar
o choque decisivo, a batalha que faria ruir os restos do
colonialismo português no Brasil.
Tôdas as oligarquias são atuantes, mas já se notou
que a direção nacional sempre contou com a colaboração
mineira, tivesse esta ou não maior participação econômica
na renda nacional. A assistência nordestina nesse comando
dependeu sempre de seu concurso à vida econômica do
país. O mesmo não se pode dizer da minoria baiana,
que não foi tão indispensável quanto a mineira, nem tão
dispensável quanto as demais; sua fôrça não estêve tam-
bém em relação com seus recursos econômicos, nem os
dispensou tanto como a mineira.
O conservantismo nacional tem sua principal fonte
nos grupos familiares mineiros e baianos, mais naqueles
que nestes, que desde a Colônia exercitam as sutilezas
políticas. A oligarquia mineira, constituída de 174 tron-
cos familiares - dos quais 135 de gente campesina
lusitana e só 39 de origem bandeirante79 - é, como as
demais oligarquias, latifundiária, tradicionalista e conser-
vadora. Ela forma <;> grosso da população branca do
Estado, com a maior população negra do país, o que
reforça sua atitude em defesa do statu quo. Isso pode
explicar - junto com sua fácil adaptação, anotada, desde
Saint Hilaire, pelos melhores viajantes - o apuro da
arte política que exibe a classe dominante mineira. «Não
se fie V.A.R. - escrevia José BonifácioSO - em tudo

79 Cid REBÊLO HORTA: Famílias Governamenf{{is de Minm


Gerais, Separata do II Seminário de Estudos Mineiros, Belo Ho:·i-
zonte, 195 7.
80 Tobias MONTEIRO: História do Império. A Elaboração da
fodependência, Rio de Janeiro, 1927, 473.
114 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

o qúe lhe disserem os mineiros, pois passam no Brasil


pelos mais finos e trapaceiros do Universo, fazem do
branco, prêto, e do préto, branco.»
Sem o apoio mineiro nunca teve êxito qualquer
movimento político brasileiro, e sua exch1são do comando
significa o malôgro - enquanto perdurar a estrutura
agrária em que êle se baseia. Êsse comando foi também
assegurado pela predominância mineira, seguida da baiana,
na representação nacional da Câmara dos Deputados, desde
as primeiras eleições, até 1875.
Na República mais se acentuou êsse aspecto. De
1889 a 1930 o Estado de Minas foi dominado por um
partido único - o P.R.M. -- e apesar das lutas familiares
locais, mantinha-se unido nas reivindicações nacionais.
Com os grupos oligárquicos baianos - gente branca cer-
cada também pela multidão negra e mestiça - e auxiliados
pelos caiados, tem constituído a maior parte das minorias
dirigentes brasileiras. Mineiros e baianos, mais os pri-
meiros do que os segundos, praticam a chamada política
do «cochicho», são a expressão mais finória do chamado
jeito brasileiro, do espírito de moderação e conciliação.
A habilidade desta minoria dominadora nasce da per-
manente vigília na defesa dos seus privilégios e do cui-
dado em amansar as multidões capadas e sangradas.
No campo nacional a mesma divergência antagônica
sócio-econômica exige a mesma habilidade e daí a extraor-
dinária vocação para o comando nacional que, sem maiores
contestações, exercem. A conciliação, como teoria polí-
tica, teve em Honório Hermeto Carneiro Leão, o futuro
Marquês do Paraná, o símbolo dêste espírito que acomoda
as diferenças entre os dominantes e ajusta as concessões
aos dominados. A moderação atendia às aspirações da
oligarquia e buscava a conformação dos oprimidos. O
domínio étnico-minoritário deu às oligarquias mineiras
e baianas o faro para as grandes manobras pelo comando
nacional, onde se exige, em cena maior, a mesma capaci-
dade de autodefesa. Daí o predomínio mineiro-baiano
na chefia nacional, contestado, mas invencível, sem expres-
são econômica correspondente e sem maior vantagem
para seus próprios Estados e povos.
A preeminência dêstes grupos significou, como bene-
fício geral, uma história relativamente incruenta, mas
representou também, como malefício, a influência dura-
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 115

doura da estrutura de pré-independência, da oligarquia


dos latifúndios. Feições inescapáveis dêste sistema eco-
nômico são a solidariedade social e psicológica da família
e a relação patrão-cliente, como a denominou Arnold
Toynbee. Nesta última, um laço ético e emotivo se
combina incompativelmente com a mais crua exploração
econômica e a injustiça social. Estas instituições produ-
zidas por um passado socialmente estático - a socie-
dade colonial luso-brasileira - ainda influem na nossa
estrutura social, tão cheia de restos coloniais, alguns à
flor da pele, como as feiras, outros sobrevivendo em
formas camufladas, e outros, ainda, deixando os vácuos
psicológicos, os traços arcaicos que os trabalhadores do
campo exibem quando imigram para as cidades e reforçam
os quadros proletários. A relação patrão-clientela é expres-
são da «gens» oligárquica, da minoria dominante que
ainda não foi domada, que se recusa a morrer em face
do desenvolvimento econômico que só será possível com
seu abatimento.
O baixo rendimento da estrutura agrária de Minas
Gerais e o movimento populacional em demanda de áreas
urbanas81, a diminuição da área destinada à lavoura ( cêrca
de 500 mil hectares) e o enorme crescimento das terras
incultas ( 10,2 milhões de hectares em 1940 e 15,4 milhões
de hectares em 1950) na região nordestina (nove Estados,
do Maranhão à Bahia) 82 revelam que seu fim se aproxima.
Além disso, estudos recentes mostram em Minas Gerais a
desarticulação das oligarquias e o declínio dos partidos
centristas, acompanhando a diminuição da população rural,
que caiu, de 68,8 % em 1940, para 63,8% em 1950.83
Assim, antes mesmo da reforma agrária - sôbre a
qual as oligarquias encasteladas no Congresso iludem o
povo, com 212 projetos - a tradicional e iníqua estrutura
agrária brasileira, responsável pelas perdas de ímpeto das

81 Domício de Figueiredo MURTA: Nota Prévia Sôb e a fü.-


trutura Agrária de Minas Gerais", in Revista Brasileira de Ciências
Sociais, Vol. I, n• 1. nov. 1961, 62-78.
82 "Agricultura no No.deste", m Flagrantes Brasileiros,
I.JJ.G.E., n• 16, 1960, 28.
83 O:lando M. CARVALHO: "Os Partidos Políticos em }.fms
Ger;iis", in Segíntdo Se:iÚntírjo de flstttdos /\1i te)rr:s, Eelo I :,.,rizon~c,
1956, 23-41. Em 1960 a população rural caiu para 55,24%.
116 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

horas criadoras do Brasil, mostra já os sinais de um processo


de dissolução. Ela é o ingrediante ativo que cria o fer-
mento atual, cozinhado pelas fôrças demagógicas. O trn·
dicional monopólio do poder pela oligarquia não poderá
ter um fim se suas bases econômicas não forem destruídas.
É por isso que o desmantelamento do latifúndio é um
problema central, como o é a reforma tributária, pois o
atual regime fiscal no Brasil representa o domínio das
oligarquias, que possuem o Estado, mas não o custeiam,
recaindo 80 % de sua manutenção sôbre os que não o
podem sustentar.84 A isso se devem somar o persona-
lismo e o analfabetismo, sérios obstáculos ao avanço po-
lítico.
Fôrças novas que atuam a favor da eliminação da
oligarquia são as classes médias urbanas, a nova classe
industrial e comercial, as organizações trabalhistas, os
intelectuais, o populismo demagógico, a politização das
massas e a nacionalização partidária, que derrotam o voto
secional ou regional, pelo da consciência nacional. Por
isso a participação pelo voto secreto, garantida pela
Justiça Eleitoral criada em 1934, é cada vez maior, na
escolha da liderança nacional, na votação presidencial. Dos
276 583 votos dados a Prudente de Morais chegamos, em
1955, aos 3 077 411 dados ao Presidente Juscelino Kubits-
chek e a mais de 5 600 000 dados ao Presidente Jânio
Quadros. De regra, só 2% da população votaram na
República até a eleição de Eurico Dutra, quando subiu
a 13%, atingindo a 19,14% com Jânio Quadros. O
caminho para a democracia consiste na maior participação
eleitoral, dificultada pela exigência constituicional que nega
o direito de voto ao analfabeto. Para que o sistema repre-
sentativo possa sobreviver, como expressão legítima e
autêntica do povo, e enfrente os desafios do presente, é
preciso estabelecer uma efetiva maioria, uma votação na-
cional, livre das imposições do poder econômico, e uma
representação fidedigna, que exprima tôdas as áreas da
opinião nacional, e não sàmente as minorias dominantes.

84 No Brasil os impostos diretos rep··esentam 20% da carga


fiscal, enquanto nos Estados Unidos representam 75% e, no Canadá
e no Japão, 50%. Os impostos indiretos representam a viga mes-
tra do sistema tributário brasileiro, atingindo especialmente o povo.
Os diretos estão sujeitos a muitas isenções e fraudes.
ASPil\AÇÕES NACIONAIS 117

O poder econômico, através dos grupos de pressão


instituições poderosas ou interêsses organizados -
procura influir, conjugando esforços, nas eleições e nas
diretrizes governamentais. Mobilizando os meios de pres-
são da opinião pública, reunindo recursos abundantes,
exige compromissos dos futuros eleitos e pretende des-
viar o atual processo de desenvolvimento econômico e
de justiça social - pois esta ainda é um favor paternal ou
patronal. Amortecendo a consciência cívica, pretende con-
tinuar o enriquecimento rápido pela especulação, pela
corrupção da máquina administrativa que êle promove e,
de braço dado com o Estado, associado a êle. mas em nome
da emprêsa livre, isto é, para o bôlso privado, procura
defender o deliberado prejuízo de algumas classes em bene-
fício seu, fraudando as aspirações populares. Os grupos
econômicos mais retardatários não querem a democrati-
zação do capital das emprêsas, única arma eficiente contra
a concentração excessiva do poder econom1co.
Não é privativo do Brasil que os benefícios da civi-
lização tenham sido monopolizados por pequenas oligar-
quias ou grupos econômicos. Mas não será também
privativo do Brasil que o poder oligárquico, ou de grupos,
seja quebrado, e os benefícios se estendam à maioria dos
membros da sociedade, elevando a capacidade produtiva
de tôda a comunidade. A História não chegará a um
fim se a maioria fôr beneficiada e, como disse recente-
mente Arnold Toynbee, o movimento pela justiça social
não é inimigo da produtividade econômica; ambos se
complementam. Todos os que insistem em defender
a intangibilidade do sistema arcaico, obsoleto, tradicional
e estático da sociedade são os perseguidores públicos do
sistema representativo e das liberdades civis, pois cana-
lizam para os extremismos os povos infortunados.

14. CENTRALIZAÇÃO E FEDERAÇÃO

Aspirações mutáveis, como a Monarquia ou a Re-


pública, que atendem a objetivos da atualidade presente,
são também a Centralização ou a Federação. Basta exa-
minar a nossa história para ver que o legado colonial é
difuso, contraditório, descuidado, sem coerência e seqüên-
cia. A unidade que dêle resulta procede muito mais de
118 JOSE HONÓRIO RODRIGUES

um comportamento variado, por isso mesmo capaz de


atender às divergências regionais, do que de uma aspiração
uniforme e simétrica de integração, como foi o caso do
Império Espanhol, desunido pelos próprios particularismos
espanhóis, e mais tarde dividido pela imposição unitária.
Quando, em 1549, se criou o Govêrno central, o que se
desejava era estabelecer um princípio superior, que pairasse
acima dos donatários, fôsse acatado por todos, compu-
sesse as questões e impedisse os conflitos. O princípio
unitário começou nesse momento, mas não se impôs e
nunca foi inteiramente aceito e adotado; as divisões e
unidades que se estabeleciam e se restabeleciam demons-
tram o realismo prático, que atendia às condições momen-
tâneas. Em 1621, em pleno domínio espanhol no Brasil,
a divisão que se estabeleceu entre o Estado do Brasil e
o Estado do Maranhão, inteiramente independentes e
ligados diretamente à Metrópole, ofereceu um grave risco
de desintegração e separação. Por tudo isso a cidade do
Salvador nunca foi realmente Capital do Brasil. O Vice-
Reinado, investido de plenos podêres na Guerra e com
autoridade sôbre alguns governadores e capitães ao sul,
reforçava o espírito centrípeto, não sem impedir a dis-
persão centrífuga, que trabalhava contra os interêsses gerais.
Contra a acentuada autonomia das capitanias se con-
trapunhil.m, como fôrças centrípetas, a uniformidade do
caráter português, que superava as divisões mais tensas,
o espírito de acomodação, as incoerências de compor-
tamento, que variavam para unir, e, sobretudo, com o
tempo, a fôrça unificadora do entusiasmo pela terra.
Nenhum movimento colonial teve, por isso mesmo, caráter
nacional, excetuadas, de certo modo, a expulsão dos
holandeses e, mais tarde, a Independência, que não obteve,
como sabemos, unanimidade. Coube a D. João, nos treze
anos que aqui permaneceu, centralizar o govêrno, unificar
as capitanias, esvaecer as prevenções e, com a convivência,
peparar a convergência. Foi o Rio de Janeiro, desde
cntfia, a verdadeira Capital do Brasil, donde se impôs a
ordem, se evitou a secessão e se comandou o triunfo do
poder central. O realismo dos conservadores, apoiados
no campo e identificados com as aspirações de ordem,
tranqüilidade e unidade, gerou o sentimento da impro-
ficuidade da anarquia. Os excessos dos liberais e dos
conservadores eram coibidos pelo Poder Moderador, que
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 119

se identificava, por sua vez, com duas das mais autên-


ticas expressões do espírito brasileiro, a conciliação e a
acomodação.
O Poder Moderador, exercido privativamente pelo
Imperador, era a chave de tôda a organização política.
Pode-se dizer que ainda hoje êle é discretamente exercido
pelas Fôrças Armadas, que moderam, em defesa do inte-
rêsse nacional, os excessos partidários. Ao seu lado,
desarmado, o poder originário do Povo se exerce muitas
vêzes fora da representação, pela opinião e pelo com-
portamento, com ou sem pressão cívica, ora persuasivo,
ora compreensivo.
A descrença na Monarquia começou a manifestar-se
por volta de 1868, por ocasião da crise entre os liberais
e o Imperador. Finda a Guerra do Paraguai, surgiu a
aspiração por um nôvo regime, republicano e federativo.
A idéia federativa parecia atender aos interêsses regionais
que compunham a nação, sem representar mais, como
parecera antes, especialmente com a Revolução Farrou-
pilha ( 1835-45), a ameaça de desmembramento. A partir
do Manifesto de 3 de dezembro de 1870, os Republicanos
passaram a sustentar ser impossível conciliar a Monarquia
com a Federação.
Em 1889, com a República, vieram a Federação, a
intranqüilidade revolucionária, o mandonismo, o predo-
mínio dos grandes Estados sôbre os pequenos, e o mili-
tarismo. Havia um desencontro marcado entre os interês-
ses nacionais e os dos Estados, ou dêstes com os dos
municípios, e a ausência de qualquer princípio organi-
zador que presidisse ao desenvolvimento nacional. Os
Estados, especialmente São Paulo e Minas, passaram a
primar sôbre os interêsses da União. Em 1902 Campos
Sales dizia ao Congresso: «Neste regime, é minha convicção
inabalável, a verdadeira fôrça política, que no apertado
unitarismo do Império residia no poder central, deslo-
cou-se para os Estados. A política dos Estados, isto é, a
política que fortifica os vínculos de harmonia entre os
Estados e a União, é, pois, na sua essência, a política
n<!cional.»85 Mas, como observou Pontes de Miranda, o
país ficara dividido em porções subordinadas umas às

85 Mensagem ao Congresso, in Anais dct Câmara dos Deput<1-


dos, Rio de Janeiro, 1902, Vol. IV, 4.
120 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

outras, em Estados senhores e Estados escravos, em metró-


pole e colônias.86 O regime federativo não funcionou
com a Constituição de 1891, embora mantivesse, desde
Prudente de Morais ( 1894-1898), compostura nas relações
políticas, evitando o abandono das fórmulas legais e fu-
gindo às tumultuárias mutações de govêrno. Não havia
partidos nacionais; as bancadas estaduais e as eleições
continuavam a oferecer o mesmo espetáculo do falsea-
mento representativo existente na Monarquia.
O Movimento de 1930 surgiu contra tudo isso e,
se trouxe vantagens para a emancipação econômica e para
a Justiça Eleitoral, trouxe também a ditadura e o arremêdo
de centralização monárquica. Desde 1946 nôvo Fede-
ralismo preside a Nação. Como aspiração atual, êle pode,
com mais da metade dos recursos da União, projetar e
executar grandiosos programas de modernização e desen-
volvimento nacionais, corrigir as insuficiências regionais,
e concorrer, assim, para que as aspirações permanentes de
unidade e de democracia se consolidem.
Mas, pràticamente, o Govêrno Federal é pobre, e
em 1959 contava com apenas 900 milhões de dólares
para administrar uma nação de 65 milhões de habitantes,
menos da metade dos recursos de que dispõe o govêrno de
Nova Iorque para administrar uma cidade de 9 milhões
de habitantes. Em 1962, o orçamento da República cal-
culava a receita, para uma população de 70 milhões, em
439 bilhões de cruzeiros (439 016 079 00), dos quais
apenas 17 bilhões ( 17 130 272 366), eram aplicados nas
obras de assistência regional87, enquanto se noticiava que
grandes capitais brasileiros fugiam do país.88 Êste nôvo
Federalismo é, assim, apenas uma expectativa, que muito
promete mas ainda realiza pouco, em relação às necessi-
dades do país.

86 "Preliminares Para a Revisão Constitucional", in À M.11"-


gem da Históritt da ReplÍb/ica, Rio de Janeiro, 1924, 174.
87 SUDENE: 3 875 979,000; Comissão do Vale do São Fran-
ci5co: 4 993 500,000; Superintendência do Plano de Valorização Eco-
nômica do Amazonas: 7 500 993,326; e Superintendência do Plano
d~ Valorização Econômica da Fronteira do Sudoeste: 760 000,000.
88 A primeira denúncia partiu do Sr. Santiago Dantas, ava-
liando que "o volume dos capitais brasileüos empregados nos Es-
tados Unidos, Suíça e outros p:iíscs é uma vez e meia maior do
que o máximo que o Govêrno b:·asileiro espera obter em todo o
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 121

Com ou sem Federalismo, o compromisso tem sido a


mais fácil solução política. A conciliação, sempre pro-
curada e encontrada, inspira-se na conjuntura, é emocional,
acredita que o real vai além do possível e traz vantagens
únicas para as oligarquias e minorias, fraudando o povo,
esgotando a paciência de esperar e anulando a fé na
solução próxima. Penso que, na atual circunstância,· não
se pode mais «tapear», não digo o povo, mas o próprio
processo histórico. Não haverá paz nem sossêgo, se a
minoria dominante não se dispuser a fazer as concessões
indispensáveis e a atender as exigências de reformas essen-
ciais. A balança das fôrças pende para o lado popular,
que é mais a nação que as minorias oligárquicas.

15 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E BEM-ESTAR

A idéia de desenvolvimento não é nova, mas filia-se,


naturalmente, à de prosperidade, inscrita na nossa Cons-
tituição de 1824, ao atribuir ao Legislativo a tarefa da
promover o bem geral da nação. Era uma aspiração tão
vaga, que o Congresso e o Executivo podiam abster-se
de perfilhá-la. Além disso, como fomentá-la se nascemos
com ó pecado original da subordinação à Grã-Bretanha,
através das tarifas protecionistas concedidas desde 1810,
e renovadas em 1827, que transformaram o Brasil no gran-
de mercado inglês? Basta lembrar que, em 1825, as
exportações inglêsas para o Brasil haviam atingido quase
a metade das embarcadas para os Estados Unidos e qua~e

progrnma da Aliança para o Progresso (foma! do Brasil, 14/7/62).


O economista Glycon de PAIVA declarou, em oposição, que os va-
lores depositados ou aplicados no exterior, segundo avaliações es-
trangeiras, seriam de cifras variáveis entre 3 50 a 5 50 milhões de
dób:es, enquanto a aplicação média anual da Aliança seria de 800
milhões de dólares. (O Globo, 17/7/62.) Notícias posteriores in-
formaram que durante a crise de junho-julho dêste ano, capitalistas
brasileiros depositaram na Suíça 100 milhões de dólares (última
Hora, 26/7/62), enquanto o Governador de Minas Gerais e ban-
queiro Magalhães PINTO afirmava que cêrca de 2 bilhões de dá-
lares estão depositados no estrangeiro, e só na última c-ise cêrca de
100 milhões de dólares foram enviados para fo:·a do país. (]ornai
do Brasil, 27/7/62.)
122 JOSÉ HONÓ:uo RODRIGUES

o total dos bens exportados para tôda a América do


Sul e o México combinados, enquanto que a Inglaterra
comprava pouco do Impfrio.89
O monopólio virtual do nosso comércio, pela Grã-
Bretanha, que durou até 1844, a apertada crise financeira
da lpdependência, com a dívida do Tesouro calculada em
18 milhões de cruzados90, o pagamento da dívida portu-
guêsa que assumíramos, os empréstimos negociados em
Londres em 1824-25 e 28, mostram a nossa dependência
da finança inglêsa. A cessação do tratado comercial em
1844 não alterou a posição preeminente da Grã-Bretanha
no comércio e no investimento, mas libertou nosso tesouro
e permitiu o avanço que se observa no desenvolvimento
econômico a partir de 1850.
Nestas condições, ainda que a aspiração de prospe-
ridade tivesse inspirado os construtores da nacionalidade,
como se vê nos apelos do Manifesto de· 6 de agôsto
de 1822 aos empreendimentos europeus, ou na Consti-
tuição de 1824, a verdade é que somente depois de 1850
pôde o Imperador pensar em prosperidade. Desde então
essa idéia é manifesta e freqüente nas Falas Imperiais.
«Agrndeço-vos - dirá o Imperador, em 1850, à Assembléia
- a coadjuvação que tendes prestado ao meu govêrno e
conto com a eficácia dela para reunir a grande família
brasileira no pensamento comum de promover a conso-
lidação da ordem pública e da prosperidade nacional.»91
Apesar dos esforços de alguns e das· aspirações de
muitos, o atraso do Brasil era manifesto. Tavares Bastos
com razão acusava o Govêrno de «indiferença e desleixo
no fomento do progresso nacional».92 A lentidão nas
reformas, a teimosa rotina e a timidez sonolenta impediam
o crescimento. Os programas ministeriais só propunham
medidas rotineiras; limitavam-se a garantir a defesa da
Constituição e das leis e a estabelecer o equilíbrio orça-

89 A. K. MANCHESTER: British Preeminence in Br({zil, The


University of North Carolina Press, 1933, 207.
90 "A Co:Tespondência do Barão de Wenzel de Mareschal", in
Revista do Instituto Histórico e Geogrcíf ico Brasileiro, Vol. 80, 36.
91 Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Deput:idos,
I'io de J1nciro, 1879, T. I, 7.
92 A Província, ob. cit., 296.
/'.SPlllAÇÕES NACIONAIS 123

mentário; cuidavam das questões momentâneas e urgentes,


conjunturais, e pouco das reformas de base.
Por isso, dizia Martinho de Campos, depois de chamar
o chefe dos Saquaremas, ou conservadores, Euzébio de
Queiroz, de «Governador-Geral e permanente do Brasil»,
«que o govêrno, se não o atual, o govêrno dos proprie-
tários legítimos do poder, precisa fazer reformas.»
A Constituição republicana, também um produto «eli-
tista», deixou de atribuir ao Legislativo a promoção do
bem-estar nacional e reduziu a União, nas palavras de
João Barbalho, «ao estritamente necessário para viver».
Nos governos de Rodrigues Alves e Afonso Pena é evi-
dente a aspiração pelo desenvolvimento. «Nem esmo-
reci - dizia o primeiro referindo-se aos grandes ser-
viços - no empenho de desenvolvê-los conveniente-
mente, nem por um instante pude nutrir dúvidas sôbre
sua eficácia como elementos necessários para impulsionar
o progresso do país.»93 O programa de reformas e
melhoramentos empreendido pelo segundo exigia o em-
prêgo de avultadas somas. «Pretender que a despesa
pública não cresça - dizia Afonso Pena ao Congresso
- principalmente em país nôvo como o Brasil, carecedor
de forte impulso part>. o aproveitamento de suas inesti-
máveis riquezas naturais, é aconselhar a parada no caminho
do progresso.»94
A Constituição de 1934 incorporou os antigos ideais
de estímulo ao desenvolvimento econômico e de defesa
dos nossos interêsses como país subdesenvolvido. A
idéia de crescimento acelerado é moderna e nasceu prà-
ticamcnte com a segunda Guerra Mundial. Vigorosos
movimentos nacionalistas deram nascimento, em áreas sub-
desenvolvidas, a nações independentes, que logo identi-
ficaram a miséria em que viviam com as explorações dos
Podêres Coloniais. A revolução das expectativas de cres-
cimento é um fenômeno universal, variando em inten-
sidade e nas prioridades. Nenhuma sociedade permaneceu
intocada, pequena ou grande, complexa ou simples, capi-
talista ou socialista, estável ou instável.

93 Mensagem Presidencial, in Anais da Câmcl.fd dos De/mia-


dos, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1905, 10.
94 Mensagem Presidencial, in Anais da Câmara dos Deputa-
dos, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909, 376.
124 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

As novas esperanças têm alimentado novils e cres-


centes formas de cooperação internacional, mas seria im-
prudente supor que o desenvolvimento econômico está
necessàriamente ligado aos processos pacíficos. A revolu-
ção das esperanças de crescimento marcha mais acelera-
damente do que as possibilidades reais de satisfação rá-
pida e substancial. Ora, se êsse fenômeno é universal,
e anima povos asiáticos e africanos até há pouco subju-
gados, encoraja o Brasil que, libertado há mais de um
século, acredita num fim próximo de suas aflições. Alguns
ganhos líquidos, como Volta Redonda ( 1946), a Com-
panhia do Vale do Rio Doce (194 2 ) , a Hidrelétrica de
São Francisco ( 1945), a construção de Três Marias e
Furnas, a Petrobrás ( 1953) e a indústria automobilística,
aumentam e nutrem as esperanças do futuro.
Volta Redonda nasceu da iniciativa oficial, em face
da necessidade de implantar e desenvolver a indústria
siderúrgica no Brasil. Em 1930 produzíamos apenas 36 000
toneladas de ferro gusa em 11 altos fornos de carvão de
madeira, e as maiores emprêsas eram a Companhia Side-
rúrgica Mineira e a Usina Esperança. Em 4 de março de
1940 foi instituída a Comissão Executiva do Plano Side-
rúrgico, e em janeiro de 1941 constituíu-se a Companhia
Siderúrgica Nacional, que, com empréstimo de 25 milhões
de dólares, mais tarde elevado para 45 milhões, fornecido
pelo Export-Import Bank, para aquisição de equipamen-
tos, e com 1,4 bilhões de cruzeiros, concretizava a grande
aspiração nacional da indústria de aço. Em 1946 corria
gusa pela primeira vez em Volta Redonda, e em 1945
seu segundo alto forno começou a primeira corrida; em
1955 Volta Redonda produzia 646 mil toneladas de aço
em lingotes e, em 1960, 986 mil toneladas. No decênio
de 1940 a 1950 a indústria siderúrgica passou a contar
com 14 novas emprêsas e, em 1962, com 45 emprêsas,
usando vários processos, algumas com produção planejada
para 1965, mas com um total geral de 2,321 milhares
de toneladas de aço em lingotes. Depois da Companhia
Siderúrgica Nacional, foi a Belga-Mineira (fundada em
1917, com o nome de Companhia Siderúrgica Mineira, e
transformada, em 1921, em Companhia Siderúrgica Belgo-
Mineira, tendo como principal acionista o Banco de Bru-
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 125

xelas) a que mais produziu ( 250 000 toneladas de aço


em lingotes ) .9 5
A Companhia do Vale do Rio Doce liga-se à história
da exploração dêsse Vale96, um corredor natural das
jazidas de minérios de Itabira para o mar. Desde o fim
da Monarquia se tentou, através de concessões, ligá-lo
ao mar, mas somente por volta de 1907-1908 os minérios
de Itabira foram avaliados devidamente. Grupos inglêses
não obtiveram êxito, embora houvessem constituído, em
1911, a I tabira Iron Ore Company. Depois da primeira
Guerra Mundial, Percival Farquhar97, norte-americano li-
gado à finança internacional e intermediário, em seus
anos de atividade no Brasil, do investimento de mais
de duzentos milhões de dólares em nosso país, procurou
apoio financeiro para a Itabira. A aventura de Farquhar
foi dificultada pela oposição nacionalista de Arthur Ber-
nardes, que achava que os seus projetos não se harmo-
nizavam com os nossos interêsses e deixavam a nação
tributária da indústria estrangeira, em relação a produtos
já em uso no Brasil. Somente em 1928-1929, já eliminada
a oposição de Bernardes, no govêrno simpático ao capital
estrangeiro de Washington Luís, iniciou Farquhar, com
o contrato assegurado e os projetos preparados, sua
execução, obstruída pela depressão econômica dos Estados
Unidos. O não cumprimento das obrigações contratuais
permitiu a Getúlio Vargas declarar nulo, em maio de
1931, o contrato de 1920. Durante oito anos, através
de uma grande luta, com o auxílio de poderosos grupos
brasileiros, procurou-se rever a decisão de Vargas, mas
êste, em 11 de agôsto de 1939, decretou irrevogável seu
ato de 1931.
Constituiu-se, então, em 1939, a Companhia Bra-
sileira de Mineração e Siderurgia, formada por um grupo

95 Vide Armando SOARES: "Da Pequena Para a Grande Si·


deru~·gia'',in Co1'1'eio da Manhã, 15/6/1951; Conjuntura Econômica,
dezembro de 1961 e março de 1962.
96 Sôbre o Vale, vide Luciano Jacques de MORAIS: "Os Re-
cursos N:iturais do Vale do Rio Doce", in Boletim da Sociedade
Brc1sileira de Geo.~rafia, nov .-dez. 1950; e Ney STRAUCH: Zona
Metalúrgica de Minas Gerais e Vale do Rio Doce, Conselho Na-
cioml de Geog:·afia, 1958.
97 Excelente documentação sôbre as atividades de Percifal
FARQUHAR encontra·se na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional.
126 JOSÉ HONÓRIO RODHIGUES

de brasileiros, com a partlopação de Farquhar, e um


capitd de 2 miihões de cruzeiros, que adquiriu não so-
mente a propriedade da Estrada de Ferro Vitória-Minas,
controlada pelos inglêses, como, também, os estudos e
projetos de Farquhar, e obteve a concessão para a cons-
trução da estrada até Itabira. Farquhar e seu grupo
continuavam controlando 48% das ações da Companhia,
dirigida por grupos brasileiros, com o objetivo de amo-
lecer a campanha nacionalista, que, porém, crescia, à
medida que se comprovava que fôra o Tesouro Nacional
que realmente financiara a própria construção da Estrada
Vitória-Minas, incorporada à nova Companhia Brasileira
de Mineração e Siderurgia. O capital desta era pequeno
para realizar os compromissos assumidos no contrato de
1939; não obtinha, por outro lado, assistência financeira
nos Estados Unidos, cujos capitalistas exigiam a garantia
do Govêrno Federal, que lhes era recusada. O Govêrno
brasileiro, decidido a resolver o problema da exportação
do minério de ferro, especialmente em face da ameaça
de guerra e impulsionado pela campanha nacionalista,
resolveu criar a Companhia do Vale do Rio Doce. Pelo
Acôrdo de Washington, assinado em 3 de março de 1942,
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos concordaram em
cooperar para a execução do plano de criação, não só
de Volta Redonda, como da Companhia do Vale do Rio
Doce, esta destinada a valorizar uma rica área de minérios
e os grandes recursos hidráulicos da região.
Com um empréstimo de 14 milhões de dólares do
Export-Import Bank e a contribuição oficial de 200 milhões
de cruzeiros, a Companhia do Vale do Rio Doce comprou
os direitos da antiga Companhia de Mineração e obteve a
garantia de compra, pelos Estados Unidos e Grã-Bre-
tanha, de 750 000 toneladas por ano, durante três anos.
A princípio as dificuldades foram grandes, agravadas no
fim da guerra pelo desinterêsse norte-americano; mas a
guerra fria facilitou nôvo empréstimo, em 1945, do Export-
Import Bank, de 5 milhões de dólares; em 1948, de um
terceiro, de 7 milhões e meio; e em 1955, de um quarto,
de 3 milhões e 900 mil dólares. Das 34 849 toneladas
de minérios exportados em 1942, chegava-se, em 1952,
a mais de um milhão e meio, tendo os Estados Unidos
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 127

como maior comprador98; em 1959, a 3.3 milhões de


toneladas, no valor de 35.8 milhões de dólares; e, em
1960, a 5 milhões.99
País privilegiado em recursos de energia hidráulica,
o Brasil tem vivido em estado crônico de falta de energia
elétrica, pois sua produção era caracterizada pela disper-
são e multiplicidade de pequenos sistemas produtores e
pelo poder de dois grupos de capitais estrangeiros, o
grupo Brazilian Traction, filial da Light canadense, e o
grupo das Emprêsas Elétricas Brasileiras, filial da Ame-
rican and Foreign Power Company. Somente a metade
de sua população é servida de eletricidade, e, para manter
sua taxa de consumo industrial de eletricidade, tem sido
obrigado a usar alta proporção de potência geradora
privada, inclusive pequenos geradores Diesel, alguns com
capacidade inferior a 1 000 kw. A Segunda Guerra
Mundial impossibilitou a importação de equipamento e
a expansão do parque de geração elétrica, exatamente
quando iniciávamos o surto de desenvolvimento econô-
mico. Um passo importante para o abastecimento de
energia elétrica foi a autorização, em 194 5, pelo Presi-
dente Getúlio Vargas, da organização da Companhia Hi-
drelétrica de São Francisco, estabelecida em 1948. A
usina instalou 180 000 kw mas comporta, sem nenhuma
regularização do São Francisco, a instalação de mais de
600 000 kw e, logo após a construção da barragem de
Três Marias, um aumento para 1 000 000 kw.

98 Resumo baseado em Edward J. RoGERS: "Brazil's Rio


Doce Valley Project", in Jottrnal of Inter-American Studies, abj!,
1959, 123-140.
99 Êste dado é extraído da Mensagem do Presidente Jusce-
lino KVBITSCHEK DE OLIVEIRA, a mais bem feita das últimas p.e-
sidências ( 1960, 127); na Mensagem de Jânio QUADROS, aprcscn-
tad.i em !llarço de 1961, o capítulo relativo ao Desequilíb.io Regio-
nal não trata do Vale do Rio Doce, e se escreve, no capítulo sôbre
InJfo,ria, que a exportação atingir.i, em 1960, a 5 milhões de to-
neladas. Já as Bases do Ptesidente do Conselho, Sr. Tanc edo NE-
VES, também omitem a matéria, enquanto a Mensagem do Presi-
d::nte João GOULART afi ma que o programa de expansão da Compa-
nhia prevê a venda, a partir de 1965, de 20 milhões de toneladas.
A expo tação brasilei,-a de 1960 foi de 5 160 266, e em 1961, entre
janeiro e setembro, atingiu a 5 676 milhões de toneladas. ( Conjun-
tura Econômica, fevereiro 1962, 36.)
128 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Data daí a intervenção cada vez mais ativa dos go-


vernos federal e estaduais no equipamento elétrico do país,
especialmente nas regiões subdesenvolvidas, quer através
da nacionalização de certas emprêsas, quer através da
participação na montagem de outras, como Furnas, quer,
ainda, promovendo a interligação indispensável. Um dos
maiores empreendimentos é Furnas, barragem gigantesca
que cria um reservatório de quase 400 kw de extensão,
regula a vazão do Rio Grande, instala cêrca de 1 milhão
de kw e permite aumentar 70% da capacidade da usina
Peixoto, que as Emprêsas Elétricas constroem abaixo.
Pela regularização do rio e sua excepcional situação geo-
gráfica, eqüidistante de Belo Horizonte-São Paulo-Rio, a
barragem de Furnas é obra excepcional. A barragem de
Três Marias, no Alto São Francisco e ao sul de Pirapora,
é o grande reservatório de regularização do São Francisco.
Sua realização se deve a CEMIG (Centrais Elétricas de
Minas) e à Comissão do Vale do São Francisco, com
dispêndio de 60% de moeda nacional e o financiamento
para fornecimentos . por norte-americanos e alemães. A
inauguração, em 25 de julho de 1962, de duas das pri-
meiras unidades da Usina Hidrelétrica Bernardo Masca-
renhas aumentou 132 mil kw do potencial hidrelétrico,
em futuro de 520 mil kw, e regulariza o São Francisco,
garantindo a navegação de barcas de 900 toneladas e um
percurso de 1 300 km, de Pirapora a Juazeiro. O fun-
cionamento em plena capacidade das duas usinas, ambas
em Minas Gerais, aumentará a potência geradora do
Brasil, em 1 780 milhões de quilowatts.
A capacidade hidrelétrica total do país cresceu, de
1 106 517 kw em 1940, para 3 993 100 kw em 1958 e
para 4 800 082 em 1960. Ainda assim o consumo per
capita do Brasil continua extremamente baixo ( 423 kw)
- embora seja dos mais altos na América Latina (só
Costa Rica está acima, com 695 kw) - comparado aos
padrões norte-americanos, canadenses, japonêses, austra-
lianos, neozelandeses, sul-africanos e europeus.100 O in-
cremento do consumo industrial de energia elétrica, cêrca
de 10% na área Rio-São Paulo, de 1960 a 1961, reflete
a expansão da produção industrial.

100 Vide Yves LELOUP: "A Produção de Energia Elétrica no


füasil", in Boletim Geográfico, julho-agôsto 1961, 469-482; e "Ener-
ASPIR:\ÇÕES NACIONAIS 129

A Comissão do Vale do São Francisco, afora a cons-


trução da barragem de Três Marias, vem construindo
rodovias, r.ecuperando terras das várzeas do baixo São
Francisco, promovendo a regularização fluvial, construindo
usinas hidrelétricas, dando assistência médico-sanitária às
populações, numa obra admirável de superação do sub-
desenvolvimento dessa importante concentração fluvial, in-
teiramente compreendida dentro do nosso território, com
cêrca de 630 000 km2 e mais de 4 milhões de habitantes,101
Outro resultado positivo é a Petrobrás, que iniciou
suas c:tividades em 1953, embora a descoberta do pri-
meiro poço petrolífero no Recôncavo date de 21 de janeiro
de 1939.102 Já em 1959 o Brasil ocupava, num grupo
de 34 países produtores, o 19.º lugar e o 25.º quanto
à capacidade de refinação,103 A continuidade do progresso
se revela nos números: em 1955 produzia-se mais de
2 milhões de barris; em 1959, cêrca de 24 milhões; em
1960 mais de 29 milhões; e em 1961 mais de 43 milhões,
sendo que 43,5% do petróleo bruto consumido no país
era de origem nacional. Do ponto de vista industrial o
petróleo refin(!do representava 65% do total do consumo
nacio!1al, contra 39% em 1955, sendo que só duas refi-
nafr,s da Petrobrás (Presidente Bernardes e Landulfo
Alves) produziam . 57% do total nacional, cabendo os
restantes 4 3 % às oito refinarias particulares. Apesar do
aumento do consumo, caminhamos para a auto-suficiência,
inclusive nos derivados do petróleo,104 A indústria pe-
t~".Jlífera tem trazido alterações sociais na zona do Recôn-
cavo, perturbando o equilíbrio relativo dos sexos, com
aumento de número de homens, redistribuindo índices de
status, de prestígio e poder, formando novas classes médias

gia Elétrica na América do Sul'', in Conjuntura Econômica, dezembro


1961, 83-90.
101 Recuperação de Um Vale, Comissão do Vale do São Fran-
cisco, Documentário n•3. Reprodução de O Observador Econômico e
Fmanceiro, fev. -março 1956.
102 Gerson FERNANDES: "História da Descoberta de Petróleo
nu Recôncavo Baiano'', in Boletim Geográfico, maio-junho 1958,
390-393.
l 03 "Aspectos da Lavra do Petróleo no Brasil", in Desenvol-
vimento Econômico, dezembro 1959, 37-50.
104 "Indústria de Petróleo", in Conjuntura Econômica, outu-
bro 1961 .• 73-81.

9
130 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

urbanas, criando problemas sociais e econômicos e abrindo


uma frente pioneira de prosperidade.~05
Uma das maiores vitórias brasileiras foi, finalmente,
a implantação da indústria automobilística, iniciada em
1956 e consolidada em 1961, quando se produziram
145 674 veículos, caminhões pesados, médios, ônibus, uti-
litários, jipes e automóveis. Nesse ano ela integrou-se no
parque industrial brasileiro, prescindindo das importações
maciças, realizadas nos três anos anteriores, e deixou de
beneficiar-se da maioria dos favores oficiais que acom-
panharam sua iniciação.
A nova indústria naval, com três estaleiros, repre-
senta também mais um fator de integração do nosso
parque industrial. Funcionando pràticamente a partir
<le 1961, já lançou mais de 30 000 tdw, com elevado
índice de nacionalização.
Com o crescimento das indústrias siderúrgica e me-
talúrgica e de fabricação de equipamentos de base, con-
centrada na indústria mecânica pesada, especialmente nos
equipamentos para a geração de energia elétrica, dos quais
fornece 93% das necessidades totais; e com a grande
expansão da indústria petrolífera e automobilística, a in-
dustrialização no Brasil apresenta um saldo positivo, realiza
uma das maiores aspirações do povo brasileiro e conquista,
para o nosso país, a liderança da América Latina, com
quase um quarto do valor líquido da produção manufa-
tureira latino-americana ( 23 ,3 % ) .
A aspiração de autonomia econômica vai-se reali-
zando aceleradamente através do robustecimento da estru-
tura industrial, que visa a assegurar, com base nos recursos
naturais do país, um grau satisfatório de auto-suficiência,
capaz de escudar o exercício efetivo da soberania nacional,
embora apresente desajustamentos graves nas relações
agricultura-indústria.

16 EDUCAÇÃO

Um dos maiores benefícios da Independência, escreveu


Capistrano de Abreu, foi impedir que, como nos tempos
coloniais, os nossos compatriotas fôssem além-mar pro-

105 Tales de AZEVEDO: Pruhlemas Sociais da Exploração do


Petróleo na Bahia, Imprensa Oficial, Bahia, 1959.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 131

curar um centro mais vasto de ação, em que pudessem


realizar suas aspirações; outro foi a liberdade de imprensa,
e outro, ainda, a esperança de que a instrução fôsse
acessível a maior número. Esta não foi atendida, nem
pelo Império, nem pela República, ambos elitistas. Apesar
de ter sido pequeno e reduzido o esfôrço brasileiro pela
instrução, desde o início foi superior ao dos portuguêses.
O aspecto mais negativo da colonização portuguêsa
especialmente comparado aos esforços espanhóis - foi
o abandono e o próprio desprêzo pela divulgação da
cultura, fôsse ou não, como na América Espanhola, dog-
mática e censurada, limitada à teologia, à filosofia e ao
direito.
Nos primeiros tempos o auto-sacro e a comédia eram
a única literatura para quem não sabia ler. E não sabiam
ler quase todos, com exceção dos senhores, alguns dêles
também analfabetos. Os primeiros colégios fundados pelos
jesuítas e por outras ordens religiosas foram, durante
muito tempo, os únicos do Brasil. As aulas públicas
mantidas pela Metrópole reduziam-se ao ensino do latim,
do grego, da retórica, da gramática, matemática, filosofia
e teologia, preparando os filhos dos senhores para conti-
nuarem a ser senhores. Foi sàmente em 1759, isto é,
259 anos depois de iniciada a colonização, naquele com-
passo moroso e lento que caracteriza o domínio português,
que se reformou o ensino, a fim de evitar que caísse na
«total ruína». Criaram-se, então, duas escolas régias
menores no Rio, quatro na Bahia, quatro em Pernambuco,
e duas em Mariana, em São Paulo, em Vila Rica, em
São João del Rei, no Pará e no Maranhão. Estas escolas
menores tinh~m por fim preparar os que seguiriam a
Universidade, na Metrópole. Em 1772 nova reforma
reforçou as bases seletivas do ensino elementar, destinado
aos filhos dos senhores. Todo o ensino estava subor-
dinado à Mesa Censória, tribunal encarregado também
da censura dos livros, e se mantinha à custa de um
impôsto único, um real em cada arrátel de carne que se
cortasse nos açougues e dez réis em cada canada de aguar-
dente de cana. Em 1786 o Vice-Rei D. Luís de Vas-
concelos escrevia que «era lamentável o estado das escolas
de primeiras letras em tôdas as capitanias do Brasil». O
legado colonial era uma calamidade.
132 JOSÉ HONÓRIO JlODillGUES

A vinda de D. João trouxe pequenas melhorias: ini-


ciaram-se o ensino médico-cirúrgico e o militar, e cursos
de agricultura, desenho, economia e comércio. Como
sempre, a preocupação principal era o preparo dos filhos
das minorias dominantes. Só depois de 300 anos, eram
inaugurados alguns estudos maiores. Não se criara um
único centro onde se formasse e crescesse a personalidade
de nossa «elite». Quem quisesse adquirir cultura superior
tinha que buscá-la em Coimbra, para onde continuaram
a afluir os filhos do senhoriato rural, pois os cursos de
cirurgia do Rio ( 1813) e da Bahia ( 1815) não seduziam
·a maioria dos jovens, que deveriam buscar, no Direito,
as bases do exercício político.
Desde cedo perceberam os construtores da naciona-
lidade as nossas insuficiências. Já nas Lembranças e
Apontamentos de José Bonifácio, redigidos em 1821, não
se omite a instrução pública, das escolas primárias às
Universidades. Convencido de que o govêrno constitu-
cional era inviável sem «maior instrução e moralidade do
povo», sugeria o Patriarca a criação, em tôdas as cidades,
vilas e freguesias, de escolas de primeiras letras; em cada
Província, de um ginásio ou colégio em que se estudassem
as «ciências úteis», e, ainda, de uma Universidade do
Brasil, com quatro faculdades, de Filosofia, Medicina, Ju-
risprudência, e Economia e Govêrno.106
Coube, porém, a José Feliciano Fernandes Pinheiro,
mais tarde Visconde de São Leopoldo, propor à Assembléia
Constituinte a criação de uma Universidade em São Paulo.
Era uma indicação de grande importância, que visava a
atender às aspirações da mocidade brasileira, incerta de
continuar seus estudos em Coimbra e ansiosa por rema-
tá-los aqui.107 E coube a Martim Francisco apresentar
uma Memória sôbre a reforma dos estudos menores, sôbre
a instrução geral, a comum, a profissional e a científica.
Para êle, a instrução pública tinha por fim a prosperi-

106 Otávio TAilQUÍNIO DE SousA: José Bonifácio, 1763-1838,


Rio de Janeiro, José Olímpio, 1945, 114-115.
107 Anais do Parlamento Brasileiro. Assembléia Constituinte,
1823. Rio de Janeiro, 1877, T. II, 63. É preciso não esquecer que
se deve ao Gabinete presidido pelo Visconde a criação, em 11 de
agôsto de 1827, das duas Faculdades de Direito, de São Paulo e
Olinda.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 133

dade nacional.108 A Constituinte não acolheu apenas


êstes votos. Incluiu no projeto de lei sôbre a forma dos
governos provinciais «a promoção da educação da mo-
cida<le)>l09, e examinou um projeto de lei que considerava
benemérito da pátria o cidadão que até o fim daquele
ano apresentasse à Assembléia o melhor tratado de edu-
cação física, moral e intelectual para a mocidade bra-
sileira.11 o
As primeiras iniciativas nacionais são, assim, além
da criação dos cursos jurídicos, um em São Paulo e outro
em Olinda, e afora a manutenção das academias médico-
cirúrgicas, uma no Rio e outra na Bahia, a Lei de 15
de outubro de 1827, que mandava criar escolas de pri-
meiras letras em tôdas as cidades, vilas e lugares mais
populosos do Império, e a Lei de 11 de novembro de
1831, que criava cadeiras de ensino secundário na capital
e na vila mais populosa de cada uma das comarcas das
Províncias do Brasil. São começos muito modestos, espe-
cialmente em face da herança portuguêsa, mas revelam
que a minoria dominante, oligárquica e elitista não tinha
por objetivo a educação popular.
Os relatórios ministeriais e dos Presidentes de Pro-
vínciasl 11 revelam sempre o estado lastimável do ensino
público, especialmente do primário. A situação de desa-
lento e abandono não era apenas provincial, era também
do próprio município da Côrte. Basta dizer que em
1840 havia apenas 1 503 alunos nas aulas públicas me-
nores da Côrte, em 1850, 1 517, e em 1860, 4 022112;
em todo o Império havia, em 1851, 43 732 alunos pri-
mários e, em 1860, 115 953; no curso secundário, em
1851, em todo o Império, 3 749 alunos e, em 1860,
10 911. Em 1869, para uma população de mais de

108 Publicado pela primei;·a vez por Primitivo MoACYR, A


Instrução e o Império, Companhia Editôra Nacional, São Paulo, 1936,
1• Vol., 119-147.
109 Anais, ob. cit., 1876, T. 1, 69.
110 Anais, ob. cit., 1877, T. II, 80.
111 Sumariados em Primitivo MoACYR> ob. cit. , 3 vols.,
1936-1938. Vide também A Instrução e as Províncias, Companhia
Editôra Nacional, São Paulo, 1939-1940.
112 Relatório do Ministério do Império, Rio de Janeiro, 1840,
1851 e 1860.
134 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

8 milhões, havia, em todo o Império, 3 962 estabele-


cimentos de instrução e 126 846 alunos113, o que equivale
a um estabelecimento por 2 019 habitantes, sendo que a
freqüência estava na razão de 1 para 63.
Gastavam-se com o ensino em todo o Império
3 030:929$301 réis, e como a receita geral e das pro-
víncias era de 103 000:000$000, a percentagem era de
3 % , ou seja, segundo o relatório da época, 348 réis por
habitante. O próprio Ministro Paulino José Soares de
Sousa, que mandara compilar êstes algarismos, compa-
rava-os com os dados americanos para mostrar o pouco
que fazíamos. Nos Estados Unidos eram 7 milhões de
alunos, duzentas mil escolas, 180 mil contos de despesas
e 350 mil professôres. Avaliando-se a população ameri-
cana de então em 3 7 milhões, a despesa com o ensino
público estava na proporção de 4$864 por habitante.
Diante dessa comparação desalentadora, Paulino José
Soares de Sousa escrevia palavras que não foram ouvidas
mas que hoje merecem ser rememoradas: «Façamos porém
quanto estiver ao nosso alcance para não sermos os últimos
no caminho que vão trilhando as nações cultas . . . As
somas que destinardes ao desenvolvimento da educação
popular dentro em breve serão compensadas pela dimi-
nuição das despesas de repressão, entrarão multiplicadas
nos cofres, sob diferentes títulos de renda, frutificando
por mil modos diversos nos resultados que delas colhe
a sociedade, sob aspectos tão variados quão importantes.
As escolas públicas, consideradas como instrumentos de
civilização, obram como as grandes fôrças da natureza pri-
mitiva empregadas na elaboração dos elementos que devem
entrar na composição de nosso globo: criam o presente
preparando o futuro. Alavanca poderosa para remover
muitas causas de atraso político, o ensino público é o
primeiro elemento de moralização, abrandando os costumes,
confirmando pelo esclarecimento da razão os bons sen-
timentos que Deus lançou em germe no coração do
homem. Dispenso-me de outras considerações para de-
monstrar que não podeis inaugurar mais digna e nobre-

113 3 156 escolas primárias e 115 939 alunos; 467 secundá-


rias e 10 911. Vide Relatório do Império, Rio de Janeiro, 1870, 29.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 135

mente a nova era de paz do que dando alentado impulso


ao ensino público em todo o Brasil.»114
Apesar dêsse apêlo, o progresso continuou lento; em
1876 o número de escolas primárias passava para 6 000,
freqüentadas por perto de 200 000 alunos, e em 1882,
se as escolas subiam para 6 350, o número de alunos per-
manecia estacionário; em 1889 as escolas atingiam a 7 500
e os alunos, a 300 000115; os planos, as sugestões, os
projetos e debates na Câmara, as reformas se sucediam,
mas nada de prático conseguia resolver a deplorável si-
tuação do ensino básico e profissional, nas Províncias e
no Município Neutro, neste mais cuidado que naquelas.
Durante o Império pode-se calcular que só um quarto
da população em idade escolar recebeu instrução. A obra
imperial foi superior à da colonização portuguêsa, mas
ficou muito abaixo das aspirações nacionais. Só um ou
outro espírito mais sério e alerta, sentindo as insuficiências
da realidade, não alienado, expunha o estado lastimável
da instrução popular e do ensino comum, desprezado em
relação ao secundário e ao superior, de padrão inferior,
mas preferido porque atendia às exigências da oligarquia
dominante. Já em 1852 Gonçalves Dias sentia o pro-
blema ao escrever que «o grande inconveniente de nossa
instrução secundária é de não se ocupar de outra coisa
senão de preparar moços para a carreira médica ou jurí-
dica. Os nossos liceus são escolas preparatórias das Aca-
demias, e escolas más.»116 E em 1865 o Presidente da
Província de Minas Gerais, Desembargador Pedro de Al-
cântara Cerqueira Leite, observava à Assembléia: «Nós,
os mineiros, pisamos um solo essencialmente metálico e
não existe na Província uma só cadeira de mineralogia.»117
Mas o maior deficit do Império constituiu, como
aliás observou Gonçalves Dias, em deixar de lado a
grande massa da população, os escravos e os índios, que
não recebiam nenhuma instrução, apesar de serem, os
primeiros, o esteio do trabalho nacional. O Brasil, escrevia

114 Relatório do Ministfrio do Império, ( cit.), 29-30.


115 M. Santa-Anna NERY: "Instruction Publique", in Le
Brésil en 1889, Paris, 1889, 564-565.
116 "Relatório Sôbre a Instrução Pública", in Publicações do
Arquivo Nacional, Vol. XXXIX, 1957, 345.
117 Primitivo MoACYR: A Instrução e as Províncias, ( cit.), 149.
136 ;ost HONÓRIO RODRIGUES

Rui. Barbosa em 1882, consagrava à instrução apenas


1,99% do orçamento geral, enquanto as despesas militares
devoravam 20,86% da despesa geral.118
Em 1890 as escolas mantinham apenas 250 mil alu-
nos, com uma taxa de 79% de analfabetos. A estrutura
econômica e social, latifundiária, escravocrata, de mono-
cultura, e a superestrutura política oligárquica não se con-
formavam com o desenvolvimento educacional. O Império
não rompera com o passado colonial, o que o tornava
incompatível com o progresso. Apesar de D. Pedro, nos
seus Conselhos Políticos à Princesa Regente, em 1871,
reconhecer que a educação pública «é a principal neces-
sidade do Povo Brasileiro»119 e de seu adversário Tavares
Bastos escrever que «O mais digno objeto da cogitação
dos brasileiros é, depois da emancipação do trabalho, a
emancipação do espírito cativo da ignorância»120, a ver-
dade era, como dizia ainda Tavares Bastos, que «a oli-
garquia dos proprietários, ou seus representantes nas As-
sembléias e no poder, não tomam interêsse algum, em
países tais [de trabalho forçado], pelo ensino popular» .121
Veio a República e o analfabeto continuou como
chaga social, garantindo as vitórias da oligarquia pelas
restrições constitucionais ao direito de voto. A Consti-
tuição de 1891 não incluiu, na Declaração de Direitos,
o da instrução primária gratuita; atribuiu ao Congresso, não
privativamente, a criação de instituições de ensino superior
e secundário nos Estados. Logo de comêço era fácil
afirmar, como se fêz no Relatóri~ ~e 1891, que o antigo
regime monárquico descuidara de modo sensível da ins-
trução pública, a tal ponto que se podia «asseverar que,
longe de progredir, em certo sentido temos retrograda-

118 Reforma do Ensino Primá1·io, Vol. X, 1883, T. I das


Obreis Completeis de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1947, 163-164.
119 Reprodução fotográfica do manuscrito atualmente na posse
de D. Pedro de ÜRLEANS E BRAGANÇA. Edição particular limita-
da, sem fôlha de rosto.
120 Província, (cit. ), 239-240. Revela o autor que, em
1870, havia um aluno por 90 habitantes, no Império, sendo um
por 42 no Município Neutro e em 7 das 20 províncias,
a média era de um por cem, e no Piauí, de um por 200. Nos Es-
tados Unidos, a média, e!·a de um por sete habitantes. (Pág. 216.)
121 Província, ( cit.), 238.
ASPIRAÇÕES N;\CIONAIS 137

do».122 Passou, então, a ser comum, nas Mensagens ou


nos Relatórios ministeriais, escrever-se que no ramo da
instrução pública não houvera alteração notável, ou dedi-
car-lhe apenas umas poucas linhas.
As reformas do ensino não trouxeram ganhos signi-
ficativos, quer à expansão da instrução popular, quer à
melhoria da educação. Os poucos avanços foram descom-
passados pelo aumento da população e pela maior procura
pelo ensino. Em novembro de 1930, a criação do Minis-
tério da Educação e Saúde, e em 1934 e 1946, a pro-
clamação de que a educação é um direito de todos e que
10% da renda da União e 20% da renda dos Estados
e Municípios seriam aplicados à manutenção e desenvol-
vimento do ensino, faziam crer que chegara finalmente
a hora de atender-se a uma das mais legítimas e mais
profundas aspirações nacionais. Os dados estatísticos,
embora revelem expansão sem precedentes, não confirmam
a esperança.
A não ser em alguns Estados, diz Lourenço Filho,
«não se notou sensível progresso educativo nos primeiros
anos da República; em média, para todo o país, o pro-
gresso continuou a ser lento, até 1930. Se em 1889 o
número de alunos, em todo o país, era de 18 por mil
habitantes, vinte anos depois ainda era de 29; no ano
de 1920, de 41; e em 1929 alcançava 50»123; em 1930,
65; em 1940, 80; e em 1958, 94 por mil.
Parecia um progresso considerável, mas a verdade é
que em 1958 o deficit era de 30%; um têrço da popu-
lação em idade escolar não freqüentava escolas. Com a
explosão demográfica e a insuficiência escolar, o analfa-
betismo não diminuía na proporção que se poderia almejar.
Em 1948, ao observar que de 1890 a 1932 a taxa de
analfabetos caíra de 79% para 52%, Lourenço Filho
nutria a esperança de que o censo de 1940 apresentasse
taxa menor que 40%.124 Era uma ilusão, pois em 1940
a taxa de alfabetização era apenas de 43,04 e em 1950,
de 48,35%, isto se considerarmos os que têm mais de

122 Relatório do Ministério da Instrução Pública, Correios e


Telé.~rafos, Rio de Janeiro, 1891, 11.
123 Lourenço FILHO: "Educação, 1889-1941 ", in Manual Bi-
bliogi·áfico de Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, 1949, 159-166.
124 Lou:ençfl FILHO, ob. cit., 163.
138 JOSÉ HONÓ!l!O RODRIGUES

10 anos de idade, porque, se tomarmos por base a popu-


lação de 5 anos e mais, as quotas de alfabetização são
de 38,20% em 1940 e 42,66% em 1950.
A alfabetização nas diversas unidades da Federação,
entre 1940 e 1950, mostra quotas muito baixas. Os seis
Estados com maiores percentagens de alfabetização, em
1950, eram: 1) Distrito Federal (hoje Guanabara),
84,56%; 2) Rio Grande do Sul, 65,83%; 3) São Paulo,
65,37%; 4) Santa Catarina, 64,20%; 5) Paraná, 52,68%;
6) Mato Grosso, 51 ,25%; e os seis com menores quotas,
em 1950, eram: 1) Alagoas, 23,65%; 2) Maranhão,
25,22%; 3) Piauí, 25,59%; 4) Paraíba, 29,18%; 5)
Ceará, 31,19%; 6) Bahia, 31,55%.125
Como o Brasil é um país com 51,85% ( 1955) de
população entre zero a 19 anos de idade, o crescimento
da rêde escolar não corresponde às exigências da escolari-
zação; comparando-se a população escolarizável com a po-
pulação escolarizada, verifica-se que a taxa de escolarização
passou, de 45,1 % em 1954, para 54,3% em 1958, signi-
ficando, mesmo assim, que 46% das crianças entre 7 e
15 anos não havia freqüentado a escola primária.126
Se a composição por idade da população brasileira se
caracteriza pela elevada quota de crianças, de econômica-
mente passivos, as quotas de escolarização e de alfabeti-
zação são incompatíveis com o potencial econômico, e
estorvam os índices de produtividade. Ainda em 1960,
numa população de 14 milhões e 200 mil crianças entre
7 e 14 anos de idade, só 7 milhões e meio estavam matri-
culados em escolas.
O ensino médio não apresenta melhores resultados.
Em 1933 havia nas escolas médias do Brasil cêrca de
150 000 alunos; em 1950 a matrícula ascendia a 620 000;
em 1958, a 990 000 e em 1961, a 1 308 000 estudantes.
O aumento parece representar um enorme progresso, mas
alcança apenas uma fração dos grupos da popnlação -
pois, para cada 100 alunos da escola primária, existem
somente 16 de ensino médio - sendo o ensino secundário

125 "A Alfabetização no Brasil Segundo o Censo de 1950",


in Contribuições Pai·a o Est1tdo da Demografia no Brasil, I.B.G.E.,
Conselho Nacional de Estatística, 1961, 387-437.
126 Comentários, Ministério da Educação e Cultura, Rio de
Janei:·o, 1961, 10-11.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 139

dominante ( 7 3, 4 % em 1961 ) , em relação ao agrícola,


industrial, comercial e normal. Com seu caráter acadêmico,
e dominado pelo espírito de escola preparatória, o ensino
secundário realiza apenas as aspirações das classes domi-
nantes e médias superiores em busca das carreiras liberais.
Os cursos agrícolas e industriais apresentam dados
inexpressivos em face de nossas necessidades reais de tra-
balho: há 960 489 jovens matriculados no curso secundário,
apenas 6 694, no agrícola, e 30 759, ·no industrial.127 A
formação profissional, a política de melhoria dos padrões
qualitativos da mão-de-obra no seu nível baixo e médic,
não se conjuga com os afazeres do desenvolvimento eco-
nom1co. Para reformá-la, para dar-lhe sentido nôvo, para
criar um sistema adequado às exigências atuais, vão cola-
borar, nas lutas amargas que virão, industriais e traba-
lhadores, uns e outros com maior participação na arena
política.
O ensino superior apresenta, estatisticamente, grande
progresso. De 20 mil alunos em 1933, passamos em 1950
para 43 958, em 1958 para 77 mil, em 1960 para 93 202
e em 1961, para 98 892_ Mas a distribuiÇ~ dos alunos
pelos cursos continua a mostrar o domínio daqueles que
não atendem às exigências de mudança da sociedade, nem
às pressões para o suprimento de uma economia em
expansão. Uma minoria tradicionalista persiste em manter,
contra um povo semi-soberano, uma educação inadequada,
que não o ensina a participar na formação da riqueza em
expansão; que não é contemporânea, mas ilustrativa; que
não se relaciona com a amplitude e a complexidade das
tarefas da nova organização social e econômica. Basta
dizer que as maiores parcelas da matrícula são constituídas
pelos que se dedicam ao bacharelato de Direito ( 23,8%)
e de Filosofia, Ciências e Letras ( 22,6%), ocupando a
Engenharia ( 11,6 % ) , a Medicina ( 10 ,5 % ) e as Ciências
Econômicas, Contábeis e Atuariais ( 9,1 % ) as quotas
seguintes.
Se os cursos das Faculdades de Filosofia, Ciências
e Letras atendem às necessidades da formação do pro-
fessorado secundário, e se o ensino de Engenharia creSC)

127 Sinopse Estatística do Ensino Médio, Ministério da Edu-


cação e Cultura, Serviço de Estatística da Educação e Cultura, Rio
ele Janeiro, 1961.
110 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

mais nos cursos especializados do que no civil, para


atender aos mercados de trabalho das indústrias de pe-
tróleo, siderúrgica, naval, automobilística e mecânica, con-
tinuam tão baixos seus resultados como os dos cursos
de Medicina, Agronomia e Química. Os primeiros per-
manecem estacionários: enquanto a população cresceu, de
1952 a 1961, em 25%, o efetivo das matrículas cresceu
apenas em 10,5 % , a mais baixa taxa de todos m ramos
do ensino. Dos 16 893 alunos que concluíram os cursos
c111 ! 960, fonrn:mim-sc apenas 163 em Engenharia Mecânica,
121 em Engenharia de Eletricidade, 34 em Engenharia
Metalúrgica, 11 em Engenharia Naval e somente 36 gra-
duaram-se ou se licenciaram em Química Industrial; m1s,
em Direito, formaram-se 3 274, em Línguas Neolatinas
713 e em Línguas Clássicas 256.128
As despesas públicas com o ensino superior são
cada vez maiores, absorvendo mais de 50%, enquanto
decrescem as do ensino primário. O ensino superior está
custando quatro vêzes mais do que o ensino médio e
pouco mais de trinta vêzes o elementar, despendendo-se
em 1961, 15,8% dos recursos orçamentários com o ensino
elementar, 22,5% com o médio e 44,3% com o superior.
O analfabetismo continua sem solução imediata, re-
mediado apenas pelos novos instrumentos extra-educa-
cionais, o cinema, o rádio e a televisão que, na falta de
escolas, guiam a ignorância como uma Via-Láctea, na
descoberta e no julgamento de valores. Seu lado positivo
consiste em acompanhar as mudanças do gôsto e do con-
sumo da cultura popular, especialmente na música e rl<ls
diversões. A Rádio ( cêrca de 920 emissoras) e d Te-
levisão (quase 30 emissoras) representam apenas o comêço
de uma produção em massa, à procura de novidade, da
cultura popular. A educação informal que estimulam
e uniformizam não é ativa, antes promove a conformac;âo
em massa, aliena pela não participação e não prcmove
diferenciação, mesmo marginal. A quase total comercia-
lização do rádio e da televisão foi um crime, que ameaça
de barbarização todo um povo com 50% de analfabetos,

128 Sinopse Estatística do Ensino Superior, Ministério da Edu-


cação e Cultura, Serviço de Estatística da Educação e Cultura, Rio
de Janeiro, 1961.
ASPIRAÇÕES NACION1\IS 141

pela debilitação do juízo, ou seja, o abandono dos princípios


intelectuais pelos irracionais, e pelo puerilismo, isto é, a
confusão entre a coisa séria e o jôgo. Uma superprodução
de palavras e imagens lançadas ao ar, sem contrôle crítico
e educativo, leva cada vez mais a um horizonte espiritual
demasiado amplo para quem está desprovido de conhe-
cimentos. Mas leva também a um conhecimento variado
e superficial, a uma educação informal que, na falta da
outra, serve como um ajustamento à sociedade.
O analfabeto de hoje não é, então. o mesmo de
há 30 anos; êle aprende informalmente muito mais, e
está também muito mais sujeito às pressões dos prod .1- 1

tores e promotores, servindo às grandes fôrças econô-


micas, interessadas na sua sujeição, na sua aiienaçiio, na
sua equivocação. A relação íntima entre o deser. vol-
vimento dos meios de informação e o ..Jesenvolvime11to
econômico e social levou o Conselho Econômico e Social
das Nações Unidas a recomendar que os países subde-
senvolvidos considerassem a possibilidade de formular
programas nacionais de informação, que servissem a fins
educativos e às necessidades e interêsses das popuLtções
rurais, como parte de seus planos de desenvolvimento
econom1co. Em face das potencialidades da televisão
como um instrumento de ensino, os programas educativos
deveriam ter prioridade.129 Nada disso se fêz no Brasil.
O Ministério da Educação e o Congresso não se in tetes-
saram pelo problema, permitindo que a cupidez comercial
decidisse barbarizar o povo.
Continua-se, assim, a formar apenas os quadros diri-
gentes, no interêsse da minoria dominadora, apesar da
declaração do direito à educação ou do reconhecimento
da oferta de iguais oportunidades para todos. Os que
sobem vencem sem as facilidades que o Estado deveria
criar, porque a mobilidade permite a ascensão.
Não é só porque o analfabetismo impede uma vota-
ção nacional, restringindo o exercício democrático, ou por.-
que a rápida industrialização exige a formação de quadros

129 Development of Inforination Media in Underdeveloped


Countries: Report by the Director-General of the United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization, United Nations,
Economic and Social Council. 31 • Sessão, New York, 19 janeiro
de 1961.
142 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

técnicos e profissionais, que devemos ampliar o sistema


público de educação. Ê sobretudo porque a educação é
o fator básico de mais longa duração da segurança na-
cional e é uma das exigências básicas da estratégia nacional.
Os norte-americanos, com um dos melhores sistemas edu-
cacionais do mundo e uma percentagem de 2,7% de
analfabetismo, consideram indispensável para sua segurança
rever todo o seu sistema educacional, especialmente em
face dos progressos soviéticos. Não só, como se pens?.,
para ter mais cientistas e engenheiros, mas também para
ter mais cientistas sociais e mais homens treinados nas
humanidades, a fim de prover a nação de recursos humanos
básicos .13 o
Com um ensino elementar extremamente insuficiente,
com o ensino médio preparando os privilegiados, com uni-
versidades dominadas pela defesa do statu quo, voltadas
para as excelências euro-americanas e de costas para a
realidade brasileira, conservando conceitos aristocráticos
e tradições coloniais, os problemas de educação agravam-se
dia a dia. A falta de escolas primárias, a futura falta
de lugares no ensino médio e universitário, em face da
taxa de crescimento demográfico de 3,12%, a desespe-
rada deficiência de técnicos e de mão-de-obra que possam
satisfazer à indústria em expansão, põem em relêvo o
espectro que ameaça o Brasil. A pobreza e a falta de
educação caminham juntas e caracterizam os povos sub-
desenvolvidos. O desafio às nações pobres, disse Anísio
Teixeira, é o de saber se elas podem organizar a educação
antes de serem ricas, ou, pelo menos, simultâneamente
com o processo de enriquecimento.131
Qualquer que seja o caminho, não podemos desa-
tender a aspirações desta natureza: a educação comum
para a formação do cidadão, e a superior seletiva, para
os que tenham capacidade de merecê-la. A nação espera
um estadista educador.

130 National St1·ategy, in an Age of Revolutions, G. B. de


Huszar editor, New York, Praeger, 1959, 226-227.
131 Resposta ao º'Inquérito Sôbre Diretrizes e Bases'', in Diá-
rio de Notícias, 13/5/1962. Sôbre êsse p;:oblema vide F. BE-
NHAM: "EJucation and Economic Development in the Underdeve-
J<,peJ Countries", in lntenU1tio11al Aff(lirs, abril 1959, 180-187.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 143

n. SAÚDE

Mais ainda que a educação, a saúde pública foi


sempre uma enjeitada dos governos dalém ou daquém-mar.
Doenças epidêmicas não existiam no Brasil; vieram com
os colonizadores e os imigrantes. «A água e os esgotos
estavam entregues à iniciativa particular, e os cadáveres
eram enterrados nas igrejas. Da higiene pública incum-
biam-se as águas das chuvas, os raios do sol e os diligentes
urubus.»132 Sàmente em 1797 tivemos o primeiro re-
gulamento de higiene. Passamos, assim, três séculos des-
prevenidos. Com a chegada de D. João, cria-se o lugar
de provedor-mor da Saúde da Côrte e do Estado do
Brasil, com o fim de cuidar da conservação da saúde
pública, mas a abertura dos portos e a chegada de colonos
trazem as epidemias que ceifaram tantos brasileiros.
Desde então nasce a consciência de que não se podia
«deixar a saúde dos Povos à discrição da Natureza, prin-
cipalmente no Brasil, que, rico em vastos portos e seguros
surgidouros, entretém uma extensa comunicação com os
estrangeiros, que muitas vêzes acarretam, por via do co-
mércio, funestíssimos presentes.» Escrevia-se assim em
1832, depois de se dizer que «o Brasil pela bondade
do Céu e do Solo é, sem exageração alguma, um dos
países mais sadios do mundo», onde apenas nos lugares
pantanosos eram endêmicas as febres intermitentes e só
conhecia doenças esporádicas iguais às que afligiam a
humanidade em qualquer parte do mundo. A não ser
a lepra, e a recriminação pela falta de educação física
dos meninos, o Govêrno considerava bom o estado sani-
tário do país.133 Desconheciam-se a bouba, o tracoma
e a hidatidose, que parecem existir desde a época colonial.
Já em 1850 o flagelo da bexiga grassava pelo Império e
a febre amarela e a cólera-morbo começavam sua obra
mortífera. O estado da saúde pública era, desde então,

132 Capistrano de ABREU: Capítulos de História Colonial,


(cit. ), 335.
133 Relatório do Ministhio do Império, Rio de Janeiro, 1832,
1-2.
144 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

mclancólico134, pois as epidemias ceifavam milhares de


vi<la. Apesar disso, só em 1850 fundaram-se os cemitérios
públicos e os serviços de entêrro, e criou-se a Junta da
Higiene Pública, reformada em 1886, reorganizada na
República em 1890, e entregue, em 1903, a Osvaldo Cruz,
que além de exterminar a febre amarela e sanear o Rio
e o país, despertou a consciência nacional para os pro-
blemas de higiene e saúde. Em 1920 criou-se o Depar-
tamento Nacional de Saúde Pública e em 1930, o Minis-
tério, mais da Educação que da Saúde, estabelecido êste
em 1953.
Várias vitórias podem, então, ser assinaladas: a der-
rota da peste, a erradicação da febre amarela e da malária,
com a ajuda da Fundação Rockefeller e da Organização
Sanitária Pan-Americana; a luta contra a bouba, o tracoma,
o bócio endêmico, a doença de Chagas, a esquistossomose,
que afeta de 3 a 4 milhões de pessoas, a ancilostomose,
que ataca a mais de 23 milhões de pessoas, sendo a metade
<le doentes135, representam apenas um dos aspectos da
intensa atividade sanitária brasileira em prol de uma popu-
lação que tem sua situação agravada pela subalimentação,
pela falta das mais elementares condições de higiene, de
hospitais, de assistência médica, e com uma indústria far-
macêutica controlada por cartéis internacionais. Por tudo
isso a taxa de mortalidade infantil, embora decrescente,
ainda é elevadíssima, e a geral, do decênio de 1940 a
l 950, foi de 20,60 por mil habitantes, alcançando a
vida média apenas 43,7 anos, o que é uma insignificância,
comparada com os 68 anos nos Estados Unidos e os 70
a 71 na Suécia.136
Não creio que o ideal de saúde pública tenha sido
uma aspiração nacional; era mais um cuidado particular
do que público. Da sua desatenção sofriam todos, povo
e elite. Sabemos como as minorias dirigentes e a inte-

134 Rclcttório do Ministério do Imf>ério, Rio de Janeiro, 1850,


41-46.
135 Mário PINOTTI: Vida e Morte do Brnsileiro, Editôra
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1959.
136 "Mortalidade da População Natural do Brasil" e "Nota
Séibre a Vida Média Brasileira nos Diversos Estados do Brasil", in
Co11trib11ições Parei o Est11do da Demografia do Brasil, I.B.G.E., Con-
selho Nacional de Estatística, 1961, 81-90, especialmente 89 e
97-98-102.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 145

lectual sofreram grandes perdas, dos meados do século


passado aos começos dêste. Em 1882, dirigindo-se ao
Parlamento, dizia Martinho Campos: «Infelizmente para
a pátria, a vida dos Senadores cada vez é mais curta.
Uma fatalidade tem perseguido a todos os nossos partidos,
nossos homens mais iminentes têm desaparecido ràpida-
mente. »137 Por isso não nos surpreende a omissão cons-
titucional pelo bem-estar da saúde pública. A Constituição
de 1824 limita-se a assegurar (Art. 24) que «nenhum
gênero de trabalho, de cultura, indústria ou comércio
pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos cos-
tumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos»; a
de 1891 não defendeu nada; já a de 1934 e, depois, a
de 1946, sob o impacto dos sucessos das campanhas ante-
riores, a começar de Osvaldo Cruz, atribuíram à União
(a primeira também aos Estados) competência para legis-
lar sôbre as normas gerais de defesa e proteção da saúde
( Art. 5, XV, b), embora não determinassem, como no
caso da educação, recursos específicos.
Não creio que as Constituições sejam o único espelho
onde se refletem tôdas as aspirações minoritárias e majo-
ritárias, mas a omissão em tantos diplomas e a simples
atribuição de competência legislativa nos dois últimos não
revelará que o ideal de saúde pública é de formação
recente? Nem se pode argumentar que ela serviria apenas
aos objetivos do povo, e por isso dela se desinteressasse
a elite. Na verdade, a razão está com Antônio Vieira,
quando escreveu: «Não sei qual lhe fêz sempre maior
mal ao Brasil, se a enfermidade, se as trevas».138
Embora a saúde pública seja um problema existencial,
prioritário, foi preciso a obra da educação, por menor
que tenha sido, para que a consciência nacional desper-
tasse e a transformasse em aspiração, como creio ser hoje.
Muitos ideais atuais se transformam em permanentes, e
êste é um dêles; especialmente depois da Segunda Guerra
Mundial. As aspirações do desenvolvimento econômico

137 "Discurso Programa do 29• Gabinete de 21 de janeiro de


1882", in Organizações e Programas Ministeriais, Rio de Janeiro,
1889. 192.
138 "Sermão da Visitação de Nossa Senhora'', 5 de junho de
1640, in Padre Antônio Vieira. Sermões Pregados no Brasil, ed. por
Hernani Cidade, Lisboa, 1940, 202.

10
146 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

surgidas na América Latina, na Ásia e na África reve-


laram as várias razões que fizeram com que êsses povos
permanecessem atrasados na produtividade e nos padrões
de vida: doença, pobreza e analfabetismo parecem ser
as feições inescapáveis de seu atraso. Indissolllvelmente
ligadas, a educação e a saúde passaram a ser instrumentos
de aquisição de eficiência, indispensável à elaboração do
Poder. Arnold Toynbee vaticinou, em 1934, que o pe-
queno Mundo Europeu se veria cercado por gigantes do
Poder quando, entre outros (índia e China), o Brasil
houvesse adquirido o dom da eficiência.139

18. DIALliTICA DO PERMANENTE E DO ATUAL

Na análise histórico-política das aspirações nacionais


notou-se, a princípio, a interação das aspirações perma-
nentes e das transitórias; a seguir, que, das primeiras,
algumas não se efetivaram até hoje e, finalmente, que,
das segundas, algumas se convertem em permanentes. Se
a independência e a soberania sofreram grandes obstáculos
à sua plena afirmação, a verdade é que o Brasil, apesar
de tôdas as pressões políticas e econômicas estrangeiras
ou das limitações resultantes de compromissos interna-
cionais, é um país de posição solidamente protegida por
títulos jurídicos, tem livre disposição de sua área terri-
torial, uma população étnica e culturalmente homogênea
e muito consciente de sua integração nacional.
O sentimento de que a independência não se com-
pletara em 1822 levou-nos à Abdicação, em 1831, e à
não renovação do Tratado com a Grã-Bretanha, em 1844.
A linha permanente e vigilante, pela consolidação da
emancipação política, foi sempre una e única, embora seja
mais afirmativa ou mais submissa conforme as condições
de resistência à agressão potencial, ou conforme a capa-
cidade da liderança.
Na forma de resistir ou avançar é que se dividiram
os movimentos e os homens: uns nascidos nas fontes da
sociedade colonial, tradicionalistas e conservadores, prefe-

139 Arnold TOYNBEE: A Study of History, Oxford Univer-


sity Press, ( 1• edição, 1934), 2'' impressão, 1945, 303.
..
2/3 do território e
1/ 4 da população

1/3 do território e
13/14 da população

O contraste entre o con;unto das regtoes Norte e Centro-Oeste e o


conjunto das regiões Nordeste, Leste e Sul qu11nto às respectivas áreas
e populações

147
148 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

riram resistir, mantendo o statu quo, deformando o pro-


cesso histórico, ludibriando o povo, mais deuteragonista
que protagonista da cena política; outros, originários das
correntes mamelucas, como as denominou João Ribeiro,
formam o grosso ào autêntico radicalismo nacional, pre-
sente desde as primeiras lutas no século XVIII até os
nossos dias. Para êstes a independência ainda não foi
completada.
Se a integridade territorial não foi realmente lesa-
da, apesar de têrmos sido um país potencialmente agre-
dido - só durante a Guerra do Paraguai nossa fôrça
naval se colocou entre as maiores do mundo - a verdade
é que a ocupação efetiva continua um sonho. Ainda em
1950 persistia «O contraste entre a densidade extrema-
mente baixa da população, nas regiões do Norte e do
Centro-Oeste, e a densidade relativamente elevada, no
quadro nacional (embora ainda baixa, no quadro inter-
nacional), nas regiões Nordeste, do Leste e do Sul.» 140
O Norte e o Centro-Oeste, em conjunto, abrangiam 64,10%
da superfície e apenas 6,86% da população, enquanto o
Nordeste, o Leste e o Sul, abrangendo 35,90% da super-
fície, continham 93,11 % da população. Em 1957 o
Centro-Oeste e o Norte permaneciam com as baixíssimas
percentagens de 3,57% e 3,52%, o Leste com 35,38%,
o Sul com 33,67% e o Nordeste com 23,86% da po-
pulação,141
Dêste modo o crescimento populacional não tem cor-
respondido a uma melhor distribuição territorial, nem
ampliado a área de ocupação efetiva. Torna-se, assim, um
imperativo nacional encaminhar para o Norte e o Centro
Oeste a população nacional, em crescimento explosivo.
É neste sentido que a construção de Brasília é uma rea-
lização positiva, porque serve como uma Via-Láctea da
ocupação territorial. Seu custo e o preço de sua manu-
tenção representam um dos mais formidáveis programas
de caráter integrativo, objetivando encerrar a obra de
delimitação das fronteiras. Seu papel histórico significa a
prevalência do otimismo; sua função consiste em enfrentar,

140 Giorgio MoRTARA: "A Distribuição Territorial da Po-


pulação", in Contribuições Para o Estudo da Demografia do Brasil,
I.B.G.E., Conselho Nacional de Estatística, 1961, 53 e 56.
141 Art. cit., 58.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 149

com audácia, o desafio de uma situação que relembra a


distribuição de Tordesilhas, desrespeitada pelos bandei-
rantes e mamelucos, integrada juridicamente, mas não
efetivada pelas gerações sucessivas. Ata-se, com seu obje-
tivo, uma linha fundamente nacional, e desata-se o con-
servadorismo das minorias alienadas, voltadas para a
Europa.
O crescimento populacional e a abertura da nova
fronteira de ocupação humana no Oeste brasileiro sacodem
a inércia da nossa História, e ampliam a confiança no
encontro com o futuro. As estimativas condicionais pre-
vêem para 1980, de 98 a 113 milhões de habitantes;
ainda assim, teremos apenas 12,4 habitantes por km 2 142;
no ano 2000, de 149 a 168 milhões.143 Se com êste
crescimento a ocupação efetiva começa a se realizar, com
êle se alargam os problemas sociais e culturais que afligem
o povo, inquietam a nação e embaraçam sua possibilidade
de desenvolvimento global. As tendências atuais nega-
tivas no campo social e cultural podem constituir-se num
impasse para o processo histórico. Problemas de saúde, de
assistência médica e de produção alimentar, de carestia,
de escassez de casas, de educação têm que ser resolvidos
em compasso com o crescimento da população e do pro-
duto nacional líquido.
A inter-relação entre o desenvolvimento social e eco-
nômico exige a atenção para as conseqüências da indus-
trialização e da urbanização, para as dificuldades da tran-
sição de um centro rural para o urbano, para a ruptura
de velhas formas sociais e arcaicas por outras, que sujeitam
todos aos ventos da demagogia, do populismo, da desin-
tegração e da delinqüência. As resistências ao desenvol-
vimento econômico podem advir do desequilíbrio entre o
crescimento da produção e o da população, cuja interação
se faz por meios ainda hoje obscuros e controvertidos.
Não há mudança institucional mais recomendada do que
a reforma agrária, e no entanto, o Congresso engaveta
212 projetos dessa reforma.

142 The Population of South America, United Nations, New


York, 1955, 15.
143 Giorgio MoRTARA: "Previsões Sôbre o Desenvolvimento
da População do Brasil na Segunda Metade do Século XX", in
Contribuições Para o Estudo da Demog1'afia do Brasil, ( cit.), 46.
DO JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

A educação representa um papel capital tanto na


defesa das aspirações permanentes, como na realização
das aspirações e, no entanto, no Brasil continua a predo-
minar uma educação para elites, que visa ao enriqueci-
mento cultural pelas humanidades, pela arte, pela lite-
ratura, sem maior atenção àquela que visa a formar uma
fôrça de trabalho hábil e eficiente. A educação formal
que inculca os valores tradicionais não ajuda o desen-
volvimento, nem promove o crescimento, que sempre
exige inovação. Nem forma, também, um espírito próprio
e indispensável ao desenvolvimento.
Mesmo que se conteste a tese de Max Weber sôbre
a influência do ascetismo secular no desenvolvimento do
capitalismo dos povos protestantesl44 - já que, nas últimas
décadas, rápidos crescimentos econômicos se efetuaram
com valores de outras denominações religiosas, como na
Itália, na França e no Japão, ou até mesmo com motiva-
ções anti-religiosas, como na União Soviética e na China
- seria incorreto negar a complexidade dos fatôres psico-
lógicos que afetam o desenvolvimento. Capitalismo e
espírito de capitalismo, socialismo e espírito do socialismo
revelam relações tão complexas e íntimas, como o desen-
volvimento e o espírito do desenvolvimento. O quin-
qüênio de Juscelino Kubitschek teve a fraqueza de não
correlacionar os fatôres não econômicos com o desenvol-
vimento, pois a poupança não foi estimulada, antes do-
minou, nas rodas que o cercavam, o espírito do consumo
conspícuo.
A educação dirigida para o consumo, e não para a
produção, tem suas raízes nas tradições da sociedade colo-
nial, na aversão ao negócio, no amor ao ócio, na repulsa
ao trabalho manual, que caracterizava o sistema escravo-
crata. Tôda esta motivação, orginada da sociedade arcaica
- que nossos antecessores portuguêses revelam ainda
hoje em grau mais agudo - persiste na nossa economia
em desenvolvimento e resulta numa hierarquia de carreiras,
de acôrdo com o status social, e numa educação dirigida
para sua perpetuação ou sua conservação. Esta educação
acadêmica age então como um obstáculo ao crescimento

144 José Honóno RODRIGUES: "Capitalismo e Protestantismo",


in Digesto Econômico, nov. 1946; e Notícia de Vária História, Rio
de Janeiro, 1951, 9-42.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 151

econom1co, pois a maioria dos recursos econorn1cos são


conduzidos para a satisfação dêstes interêsses e não para
o treinamento vocacional e outros programas de formação
e aperfeiçoamento da mão-de-obra média e superior.
Mas, c0mo pensar em tudo isto, se ocupávamos
em 1950, na América Latina, o décimo lugar entre os
países com os maiores índices de alfabetização? O Brasil
possuía apenas 42,7% de alfabetizados em sua população,
enquanto a Argentina tinha 86,1 % ; Costa Rica, 78,8%;
Cuba, 76,4%; Chile, 74,8%; Panamá, 71,7%; Paraguai,
68,2%; Colômbia, 57,5%; Equador, 56,3%; México,
55,9%; abaixo do Brasil se situavam El Salvador, 39,1%;
Honduras, 35,2%; Nicarágua, 34,5%; Bolívia, 31,1%;
Guatemaia. 28,1 % , e o Haiti, 8,4% ,145
O desenvolvimento balançado, em face da multidão
de aspirações sociais, culturais e econômicas e das inter-
dependências mútuas, é uma exigência fundamental. As
Nações Unidas e seu Conselho Econômico e Social têm
recomendado sua adoção e consideram, como um objetivo
quantitativo, o índice mínimo anual de crescimento do
produto nacional de 5%.146 E foi ao ritmo de 4,9%
o crescimento anual brasileiro nos seus últimos vinte
anos,147 A velocidade do crescimento da região latino-
americana, entre 1950-58, foi superior ao do resto do
mundo ocidental em conjunto, sendo que o Brasil se
coloca, juntamente com a Venezuela, Nicaragua, México,
Equador e El Salvador, como um dos que mais se desen-
volveram, crescendo o produto interno bruto a mais de
5 % ao ano, em conjunto.
O exame do crescimento nos últimos vinte anos mos-
tra que a área cultivada no país aumentou de 32% entre
1939 e 1959148 e que, entre 1945 e 1958, a produção
física cresceu 45%, ou numa taxa anual de 3,9%. As
novas áreas de agricultura incorporadas entre 1945 e 1958
somavam cêrca de 8 milhões de hectares, quase tôdas

145 La Estructura Demográfica de las Naciones American~,


Union Panamericana, Washington, julho 1960, 5.
146 The Uni/ed Nations Development Decade, United Na-
tíons, New York, 1962, 8.
147 "Retrospecto Parcial da Economia Brasileira nos últimos
Vinte Anos", in Desenvolvimento & Conjuntura, julho 1961.
148 "Retrospecto", (cit. ), 4 a 11.
152 JOSÉ HONÓllIO RODRIGUES

localizadas no Centro e no Sul do país149, mas nos últimos


vinte anos o total da área cultivada crescera, de 18,8
milhões de hectares, para 24,9 milhões em 1959.150
Do ponto de vista industrial os números são ainda
mais expressivos, pois o Brasil colocou-se à frente de
todos os demais países latino-americanos, numa taxa de
crescimento de 9,2% ao ano; na distribuição percentual,
a posição da indústria para a formação da renda nacional
saltou, de 17,9% em 1939, para 30% em 1958.151
Se o aproveitamento de novas fronteiras agrícolas
revela a ocupação, não só efetiva como aproveitada, a
verdade é que a proporção de área cultivada em relação
à área total dos estabelecimentos agrícolas é ainda bas-
tante reduzida ( cêrca de 10 % ) , em relação aos Estados
Unidos, Canadá e Argentina ( cêrca de 30% ).152
Desenvolvimento desordenado, não integrativo, os
fatôres econômicos e sociais não se apóiam ou se com-
pletam, e o crescimento econômico brasileiro, que alcançou
um dos ritmos mais elevados naqueles anos - decres-
cendo em 1960153 - apresentava já aspectos negativos.
Assim, por exemplo, 17 % da população detinha 63 %
da renda nacional154, e pelo nível de renda nacional per
capita em 1956-58 o Brasil se classificava ao lado da
Albânia, Portugal e Romênia, os mais atrasados da Eu-
ropa; da Colômbia, República Dominicana, Equador, Hon-
duras, Nicaragua, Paraguai e Peru, na América; de Gana,
na África; e do Ceilão e Filipinas, na Ásia; em consumo
per capita de energia, entre 1956 e 1958, o Brasil se
classificava ao lado daqueles mesmos países, com a Tur-

149 Jorge AHUMUQA: "Economic Development and Problems


of Social Change in Latin America", UNESCO, dezembro 1961. ~ste
estudo, preparado por um Grupo de Trabalho de Peritos em Aspec-
tos Sociais do Desenvolvimento Econômico da Amética Latina, foi
sumariado e analisado em Desenvolvimento & Conjuntura, agôsto
de 1961, 70.
150 "Retrospecto", (cit. ), 15.
151 Jorge AHUMUDA: artigo citado, 70-71. "Retrospecto",
( cit.), 5 e 27-28.
152 "Retrospecto", (cit. ), 15.
153 Estudio Económico de América Latina, 1960, Comisión
Económica Para la América Latina, Mimeografado, 1• de março de
1961, 16.
154 Jorge AHUMUDA: art. cit" 74.
• RENDA NACIONAL PER CAPITA D 1NDICE DE ESCOLARIZAÇÃO
l2ffi CONSUMO DE ENERGIA PER CAPITA § ÍNDICE DE MORTALIDADE INFANTIL

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154 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

quia, em lugar da Romênia, e a índia, no lugar do Ceilão;


pelo índice da mortalidade infantil nossa classificação se
abaixa, e pela escolarização ainda mais se rebaixa ao
lado de Burma, fodia, Indonésia, Laos e o Paquistão.1''
A vastidão do território, o atraso da população, a
complexidade dos problemas podem explicar, como outros
fatôres, êsses níveis baixos que retardam o desenvol-
vimento e obstruem a satisfação das aspirações nacionais.
Na estratégia desenvolvimentista do Presidente Juscelino
Kubitschek, a meta da educação era a última e não existia
a da saúde. '
Muitos economistas põem em dúvida o valor da
mensuração per capita, pois temem as distorções que ela
esconde. Se a atividade econômica brasileira cresceu muito
mais que sua população, o padrão de vida desta também
teria melhorado. A média per capita continua ao nível de
230 dólares, e as perspectivas para 1970 estimam o
aumento apenas para 300 dólares. Mas a verdade é que
não só aumentaram os desequilíbrios regionais, com a
concentração do progresso em certas zonas, como certos
setores das atividades - o café, por exemplo - receberam
tratamento mais favorável.
A descoordenação provocou, então, graves ameaças
à unidade nacional, não atentou para os fins sociais, e,
pior ainda, tem mantido a concentração da riqueza nas
mãos de uns poucos representantes do poder econômico.
São Paulo - mais Marta que Maria na História do
Brasil - distancia-se dia a dia do resto do Brasil; formar
uma União perfeita é uma aspiração irrealizada, que o
caminho atual, apesar dos obstáculos presentes, parece
tornar mais possível que o foi ontem, quando a Nação
era um ou dois Partidos Estaduais; o «negócio» do
Estado não é só o negócio, como parecem fazer crer os
sócios do empreendimento privado, na sua ânsia pelo
enriquecimento próprio.
Os programas econômicos com fins sociais e os
programas sociais com objetivos econômicos equilibram
o crescimento econômico que tem por fim atender a tôdas
as aspirações conjuntas, aos interêsses e princípios da
nação e aos interêsses e objetivos do seu povo. Mas o

155 Repor: on the TFl'or/d Social Sfruation, United Nation, New


York, 1961, 48-49.
ASPIRAÇÕES NACIONAIS 155

desequilíbrio do planejamento e a letargia na façanha das


aspirações resultam das contradições da estrutura, ainda
agrária, com as tarefas do desenvolvimento, das lutas na
área da decisão entre as oligarquias tradicionalistas, as
fôrças econômicas privativistas, mais interessadas nos seus
interêsses do que nos nacionais, e as econômicas progres-
sistas, e, finalmente, na semi-soberania do povo. «Quem
julgará entre nós e vós? Quem será o juiz entre con-
servadores e progressistas? Respondo: a Nação. A
Nação não é um Partido», dizia na Câmara, em 1864,
Zacarias de Góis e Vasconcelos.156
Só com a real soberania popular o govêrno se na-
cionalizará e os interêsses nacionais serão prioritários, para
benefício do povo e não de poderosos grupos econômicos.
A libertação do Govêrno das minorias alienadas e de seus
agregados, os caiados, que já em 1817 se colocavam ao
lado da antiindependência, apenas se inicia. Os males da
nossa História advêm da oligarquia, das minorias domi-
nadoras que querem evitar a opção pelo progresso, a
libertação do povo e da nação, de tôdas as servidões.
Ela quer impedir o fim de seus privilégios e o comêço
imediato da História como futuro. As minorias domi-
nadoras são alienadas, detestam nossa realidade e vivem
no mundo europeu, ou euro-americano, sob padrões aliení-
genas; jamais reconhecem, como o poeta:

«Quem me fêz assim foi minha gente e minha terra


E eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de tôdas as burrices, a maior é suspirar
[pela Europa.»157

Porque suspiram pela Europa - e amam todos os


Poderes maiores - aspiram as nossas minorias a manter
o statu quo, evitando a reforma e a sua urgência.
Incapazes de distinguir com clareza os interêsses na-
cionais permanentes, buscando nas fórmulas jurídicas as
soluções imediatistas e transitórias, persistem em coexistir,
no temor e no êrro, com o povo. Nossa história, de

156 Discurso de 26 de janeirc de 1864, in Anais do Parla-


mento Brasileiro, Rio de Janeiro, 1864, 404.
157 Carlos DRUMMOND DE ANDRADE: "Explicação", in Algu-
i/i(i Poesia, Belo Horizonte, 1930.
156 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

evolução muito lenta até recentemente, se compõe de


pequenos sucessos, fruto mais da paciência, da persistência,
do otimismo, do estoicismo do povo, que do jeito ou
habilidade da minoria dominante. Esta encontra no com-
promisso político um meio de ludibriar o povo e de des-
viar o processo histórico de progresso e de justiça social.
Por isso as vitórias populares são lentas, pequenas
e sofridas. A conseqüência é a ameaça de lançar o autên-
tico radicalismo brasileiro nos braços de outra forma de
alienação que é o marxismo, pondo em risco o processo
democrático brasileiro.
As legítimas aspirações do povo brasileiro são tam-
bém as legítimas aspirações do Brasil, e sua interpretação
deve inspirar-se não nos interêsses dos poucos privilegiados
do statu quo, que escamoteiam o processo histórico, nem
dos reformistas demagógicos que, sob a pressão dos fatos,
barganham concessões, nem dos antinacionalistas, nem dos
alienados, quer os que não vêem nunca o Brasil, quer os
que só o vêem com lentes emprestadas, dogmàticamente
pré-fabricadas fora do país. Estas lentes podem e devem
ajudar-nos, como um instrumento de análise, mas a palavra
final surge dos próprios brasileiros, inspirados no nacio-
nalismo, nos interêsses e objetivos nacionais, no bem
público comum.
BIBLIOGRAFIA

1. CARACTERISTICAS NACIONAIS

1.1. BIBLIOGRAFIA DOS AUTORES BRASILEIROS*

José BONIFÁCIO: «Caráter Geral dos Brasileiros». Ma-


nuscrito do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro, publicado por Alberto RANGEL, in No Rolar
do Tempo, Rio de Janeiro, José Olímpio, 1937.
Sílvio ROMERO: «0 Caráter Nacional e as Origens do
Povo Brasileiro», in Etnologia Selvagem, Recife,
1875; História da Literatura Brasileira, P ed., 1888;
4::i ed., 1949. Capítulo sôbre a psicologia nacional.
Capistrano de ABREU: «0 Caráter Nacional e as Origens
do Povo Brasileiro», in O Globo, 29-7-1876 e 9-3-
1876; Capítulos de História Colont'al, F ed., 1907;
4" ed., Rio de Janeiro, 1954; Ensaios e Estudos, J'!
Série, Rio de Janeiro, 1931; e 3'-' Série, Rio de Janei-
ro, 1938.
João RIBEIRO: História do Brasil, F ed., 1900; 16" ed.,
Rio de Janeiro, 1957.
Joaquim NABUCO: Discursos e Confc·rências, Rio de Ja-
neiro, s. d., especialmente «0 Espírito da Nacionali-
dade na História do Brasil» .
Afonso CELSO: Porque me Ufano do Meu País, 1" ed.,
1901; 12" ed., Rio de Janeiro, 1943.
Alfredo de CARVALHO: Frase'S e Palavras, Recife, 1906.
F. J. Oliveira VIANA: PopulaçõeJ Meridionais do Bra-
sil . F ed., 1918; 3" ed., Brasiliana, São Paulo, 1933;
«0 Tipo Brasileiro; Seus Elementos Formadores», in
Dicionário Histórico e Geográfico Brasileiro., Rio de
Janeiro, 1922, 277-279; Evolução do Povo Brasilei-
ro, l"- ed., 1923; 2" ed., Brasiliana, São Paulo, 1933;
Pequenos Estudos de Psicologia Social, P ed., 1921;
3" ed., Brasiliana, São Paulo, 1942.

* Em ordem cronológica.

157
158 JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

Gilberto AMADO: Grão de Areia, Rio de Janeiro, 1919,


especialmente «As Instituições Políticas e o Meio
Social no Brasil»; A Chave de Salomão, Rio de Ja-
neiro, Je>sé Olímpio, 1947 (artigos de 1910-1913,
especialmente «Psicologia Brasileira do Caráter» e
«0 Espírito Brasileiro») .
Ronald de CARVALHO: Pequena História da Literatura
Bi..isileira, P ed., 1919; 2~ ed., 1922; «A Psique Bra-
sileira», in Estudos Brasileiros, P Série, 1924.
Paulo PRADO: Refrato do Brasil, São Paulo, 1928; Pau-
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Alcântara MACHADO: Vida e Morte do Bandeirante, 2~
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Manuel BONFIM: O Brasil na História, Rio de Janeiro,
1931.
Eduardo FRIEIRO: O Brasileiro Não é Triste, Belo Hori-
zonte, 1931; 2:) ed., Rio de Janeiro, 1957.
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2. ASPIRAÇÕES NACIONAIS

2.1. FONTES E REFER~NCIA

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1962, N/\S OF!CIN/\S D/\ EDITÓ-
R/\ OBELISCO LTDA. - R. /\NHAN-
GUERA, 66 - S. PAULO - BRASii.

l'/\H/\ PEDIDOS TELEGRÁFICOS CÓDIGO ]. H. R. 0104

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