As Razoes de Aristoteles - Enrico Berti Edit

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LEITURAS

ENRICO
BERTI

ns RnzôES de
RRI5T0TELES
LEITURAS 0 0 F IL O S Ó F IC A S

1. A ordem do discurso
Michel Foucault
2. Sete lições sobre o ser
Jacques Maritain
3. Aristóteles no século XX
Enrico Bcrti
4. As razões de Aristóteles
Enrico Berti
E N R IC O B E R T I

As razões de
Aristoteles
Tradução
Dion Davi Macedo

Edições Lo yo la
Título original:
Le ragioni di Aristotele
© 1989, Gius. Laterza & Figli
ISBN: 88-420-3358-8

Edição de texto
Marcos Marcionilo
Consultores
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento
Eliane Christina de Souza
Preparação
Maurício Balthazar Leal
Revisão
Renato Rocha Carlos

Edições Loyola
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da Editora.
ISBN: 85-15-01676-1
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1998
umârio

Prem issa.....................................................................................VII

Capítulo Io — Apodíctica e dialética


A ciência apodíctica...................................................................... 3
A ciência não-apodíctica, ou a inteligência............................. 11
A dialética................................................................................... 18
Os diversos usos da dialética..................................................... 31
1) O uso “em relação ao exercício” .............................. 32
2) O uso “em relação aos encontros...............................34
3) O uso “em relação às ciências filosóficas” ...............34
A análise semântica como instrumento da dialética...............41

Capítulo 2" — O método da física


O "primado” da física e sua “fraqueza” ................................... 43
A dialética como método da física.............................................52
A determinação dialética dos princípios e das causas............. 60
As demonstrações mais "científicas” ........................................70

Capítulo 3" — O método da metafísica


O procedimento diaporético...................................................... 75
A semântica ontológica............................................................... 86
A demonstração elenkríca...........................................................93
A teologia “dialética” ............................................................... 104

Capítulo 4o — O método da filosofia prática


A intenção tipológica............................................................... 115
O procedimento diaporético.....................................................128
A phrónesis e o silogismo prático......................................... 143

Capítulo 5®— A retórica


A racionalidade da “arte” .......................................................... 157
Poética e retórica..................................................................... 164
Relação entre retórica, dialética e filosofia...........................171
Relação entre retórica, dialética e política...............................177
índice de autores.....................................................................189
,remissa

/
costume, ou deveria sê-lo, que ao publicar um novo livro
E o autor procure justificá-lo — o que pode ser oportuno
especialmente hoje, quando os livros não constituem mais uma
mercadoria rara — e também dizer o que exatamente propõe-
-se a fazer por meio dele, a fim de não suscitar expectativas que
venham a ser posteriormente frustrada^. Esta última precaução
é oportuna sobretudo da parte de quem, como o autor, já publi­
cou vários livros sobre Aristóteles. Eu poderia defender-me
rapidamente declarando que o livro contém, e é verdade, cinco
aulas ministradas sobre o tema no Instituto Italiano de Estudos
Filosóficos de Nápoles em junho de 1988, o que já seria, por
si só, uma ótima justificação, mas com isso teria somente trans­
ferido o problema, visto que me restaria explicar por que esco­
lhi para elas este tema.
Começando, então, pelo ponto mais delicado, tenho de dizer
que este novo livro, mesmo sendo, também ele, inegavelmente
sobre Aristóteles, não quer ser uma contribuição original ao
conhecimento do filósofo antigo (ainda que nem todas as coi­
sas que direi a propósito dele sejam de domínio comum), por­
que não se confronta continuamente, como seria exigido de um
intento similar, com a literatura crítica precedente. Ele quer
enfatizar, ao contrário — por mais estranho que isso possa

VII
As razões de Aristóteles

parecer a alguns — , a contribuição de Aristóteles ao debate


atual sobre a racionalidade, isto é, sobre a presumida crise da
razão, seu valor e seus limites, e sobretudo sobre a possibilida­
de de reconhecer diversas “formas” de racionalidade. Por este
último termo entendo não tanto a razão como faculdade quanto
seu uso e seus produtos, isto é, os discursos que se fazem ou
os argumentos que se desenvolvem por meio dela. Nisso con­
siste também a justificação do próprio livro, dado que,
indubitavelmente, a questão da racionalidade está no centro do
debate filosófico contemporâneo, e Aristóteles talvez seja o
filósofo que mais ampla e sistematicamente contribuiu para
explorar os diversos usos possíveis da razão.
Na discussão ocorrida há uma década, especialmente na
Itália, sobre a “crise da razão”, sempre me impressionou o fato
de que se limitassem a contrapor, sob a denominação "razão
clássica”, a filosofia e a ciência da idade moderna à reflexão,
racional ou não, da idade contemporânea, não se levando qua­
se em conta o fato de que o exercício sistemático e desenvol­
vido da razão iniciara-se, no Ocidente, havia dois mil e qui­
nhentos anos e que, a cada vez que se introduzia no quadro
uma forma diversa de racionalidade, por exemplo a assim
chamada “razão dialética”, pensava-se exclusivamente na
acepção que esta expressão assumira nos últimos duzentos anos,
sem considerar minimamente a utilização de um conceito de
origem essencialmente grega'. Devo dizer que, ao menos sob
o primeiro ponto, as coisas, sempre na Itália, não parecem ter
melhorado, visto que as tentativas, sempre mais freqüentes, a
que assistimos de tornar a propor o valor da racionalidade,
sobretudo na ética, fazem a memória — sempre útil para situar1

1. Refiro-me, naturalmente, ao volume de AA.VV.. Crisi delia


ragione (org. A. Gargani. Torino, Einaudi, 1979). e ao debate que
suscitou, do qual me ocupei no volume Le vie delia ragione, Bologna,
II Mulino. 1987.

VIII
Premissa

historicamente uma proposta e conferir-lhe determinação —


recuar no máximo até o Iluminismo do século XVIII, reduzin­
do, com isso, de modo notável o valor da própria proposta2.
Diversa parece-me a situação em outros países, por exem­
plo na Alemanha, onde nunca se falou de uma verdadeira “crise
da razão”, mas se discutiu muito sobre a “racionalidade”,
redescobrindo-se a contribuição que a filosofia antiga, a
aristotélica em particular, podia oferecer ao tema, especial­
mente no que se refere à reflexão ética e política3; ou na região
anglo-saxônica, onde nunca se discutiu sobre racionalidade,
mas ao mesmo tempo nunca se interrompeu a continuidade da
relação com o pensamento aristotélico (por isso jamais houve
ali um verdadeiro “renascimento” de Aristóteles)4. Ao contrá­
rio, na Itália e nos países francófonos, talvez graças à persis­
tência de uma tradição de filosofia escolástica ligada à Igreja
católica, grande parte da cultura “laica” manteve em baixa
consideração a racionalidade antiga, ou a considerou irremedia­
velmente datada, talvez porque sempre a tenha vinculado à
tradição e própria cultura “católica” (mas como soam provin­
cianas estas etiquetas no panorama mundial!). Quando fala de
“razão”, pensa logo na relação com a fé e torna a propor o
eterno problem a de tal relação, por vezes acusando de
“racionalismo” quem defende o valor da razão, sem dar-se
minimamente conta do significado histórico desta expressão,
que não foi inventada por Popper, mas designa uma bem de­
terminada corrente filosófica moderna, compreendida entre

2. Aqui a referência é, evidentemente, a obras como S. Veca, Una


filosofia pubblica, Milano, Feltrinelli, 1986.
3. Basta citar, a este propósito, o volume de AA.VV., Rationaliiàt
(org. H. Schnadelbach, Frankfurt a. M., Suhrkamp. 1984).
4. Pense-se em autores como G. E. M. Anscombe, P. F. Strawson,
G. E. L. Owen, D. Wiggins, para a região inglesa, e J. Rawls, R.
Nozik, A. McIntyre, para a norte-americana.

IX
A s razões de Aristóteles

Descartes e Leibniz, a qual não tem nenhuma relação com o


atual discurso sobre a racionalidade.
De resto, a tendência a associar a racionalidade filosófica
antiga e medieval à racionalidade científica moderna e à
racionalidade dialética do século XIX, confundindo tudo, é tí­
pica de certa moda nietzschiano-heideggeriana, disseminada
sobretudo na França e na Itália, que faz amplo uso de catego­
rias “epocais”, abraçando em uma única avaliação não somente
vários séculos, mas vários milênios, e não contribuindo, certa­
mente, para uma descrição precisa e para uma conseqüente
compreensão efetiva dos objetos considerados. Contra seme­
lhante tendência, julgo ser útil considerar as múltiplas articula­
ções que a racionalidade ocidental assumiu no momento de seu
primeiro desenvolvimento completo e que foram transmitidas
aos séculos posteriores, continuando a ser aplicadas, se não na
filosofia estritamente entendida ou no saber de tipo especializa­
do, certamente na linguagem comum e nos nada vulgares tipos
de experiência que são o debate judiciário ou o político. Isto
poderá servir ao menos para evitar mudar, por novas descober­
tas, como ocorreu recentemente, procedimentos como a refuta­
ção do maior número possível de conjeturas e o assim chamado
método indiciário, que exatamente em Aristóteles encontraram
sua primeira e quase definitiva teorização.
Tudo somado, é necessário reconhecer, por outro lado,
que uma cultura de origem fortemente historicista como a ita- *
liana (no sentido preciso do historicismo neo-idealista) encon­
tra enormes dificuldades para utilizar toda a gama das formas
de racionalidade descritas por Aristóteles, pelo fato de que não
pode não ser condicionada pela imagem plurissecular que a
filosofia moderna em geral, e a hegeliana em particular, deu
desse autor. A única forma de racionalidade atribuída a
Aristóteles pela cultura moderna, a partir de Francis Bacon, é

X
Premissa

a de tipo silogístico-dedutivo, especificada em um Organon


praticamente reduzido só aos Analíticos, à qual o próprio Bacon
contrapôs, julgando-a estéril do ponto de vista da informação
científica, o seu Novum Organum. E é necessário reconhecer
também que Bacon não estava completamente errado, visto que
os aristotélicos a ele contemporâneos — o primeiro de todos o
grande paduano Jacopo Zabarella, que influenciou profunda­
mente a cultura lógica européia de seu tempo — a isto efetiva­
mente reduziam, eles em primeiro lugar, a lógica de Aristóteles.
Mesmo quando se tinha presente que Aristóteles admitira, ao
lado da dedução, a importância da indução, considerava-se esta
última um procedimento privado de regras, incompleto e
inconclusivo, de modo a justificar a contraposição a ele das
“experiências sensatas”, isto é, dos experimentos, por parte de
um Galileu, ou de um “método” rigoroso, isto é, da análise
matemática, por parte de um Descartes.
Mesmo Hegel, o único que na idade moderna compreen­
deu a fundo, e não por acaso, a grandeza do Aristóteles
metafísico, “filósofo da natureza” e “filósofo do espírito” —
seja o subjetivo, seja o objetivo ou absoluto — , de modo al­
gum compreendeu a múltipla articulação que Aristóteles dera
à racionalidade, tanto que relegou a exposição da lógica
aristotélica ao quarto parágrafo de um capítulo de suas Lições
sobre a História da Filosofia que deveria ser naturalmente
tripartido, como se se tratasse de um apêndice supérfluo, sobre
o qual teria sido melhor calar. Hegel julgou, com efeito, a
lógica aristotélica sobre a base dos manuais escolásticos, como,
de resto, ele explicitamente admitiu, uma “ciência do pensa­
mento abstrato”, isto é, do “intelecto” (o que, em sua lingua­
gem, significa uma lógica racionalista), ainda que tenha com­
preendido, e não podia não compreendê-lo, que esta última
não era a lógica com a qual Aristóteles construíra sua filosofia,

XI
A s razões de Aristóteles

pois, de outro modo, “não teria sido aquele filósofo especulativo


que reconhecemos”5.
Hoje o juízo dos estudiosos está profundamente mudado,
seja entre os especialistas no pensamento aristotélico, o que é
bastante natural, seja entre os filósofos militantes, o que é menos
natural e por isso mais significativo. No que se refere aos pri­
meiros, a mudança tornou-se nitidamente perceptível a partir
do início dos anos 60, no momento em que se verificou um
fenômeno que teria sido de todo inconcebível algumas décadas
antes, isto é, a percepção de que Aristóteles teorizara e também
praticara toda uma série de procedimentos racionais, ou seja, de
“formas de racionalidade”, não-redutíveis à lógica dedutiva, e
que aqueles, não esta, constituíam seu verdadeiro “método”.
Já em 1939 Jean Marie Le Blond sustentara a existência,
em Aristóteles, de uma profunda diferença entre lógica e mé­
todo, mas foi bruscamente levado a calar-se por dom Augustin
Mansion, da Universidade Católica de Louvain, considerado
então uma das autoridades máximas no campo dos estudos
aristotélicos6*. Em 1960, ao contrário, no segundo encontro da
prestigiosa série dos Symposia Aristotelica organizados por
Ingemar Diiring e inaugurada três anos antes em Oxford com
a participação do próprio Augustin Mansion, além de Werner
Jaeger e de sir David Ross (os maiores aristotélicos do século
XX), enfrentou-se, exatamente em Louvain, o tema “Aristóteles
e os problemas de método”, com exposições tornadas célebres
como a de Pierre Aubenque sobre a noção de aporia e a de G.

5. G. W. F. Hegel. Lezioni sulla storia della filosofia, trad. it. E.


Codignola e G. Sanna, Firenze, La Nuova Italia, 1964, vol. II, pp. 373,
387.
6. Cf. J. M. Le Blond, Logique et méthode chez Aristote. Paris,
J. Vrin, 1939, e o juízo dado deste livro em A. Mansion, Introduction
à la physique aristotélicienne, Louvain, Institute Supérieur de
Philosophie, 1945.

XII
Premissa

E. L. Owen sobre o significado da expressão “estabelecer os


fenômenos” (tithénai ta phainómena). Ali praticamente reabili­
tou-se a tese de Le Blond e descobriu-se a quantidade inume­
rável de métodos teorizados e praticados por Aristóteles em
suas diversas investigações7.
A importância do fenômeno foi confirmada e acrescida
pela publicação, nos anos imediatamente posteriores, de alguns
grandes livros sobre Aristóteles, que contribuíram para desfazer
quase totalmente o estereótipo consagrado pela tradição
escolástica (e moderna), redescobrindo nele um pensador es­
sencialmente problemático, dedicado ao emprego de instrumen­
tos de investigação considerados descobertas recentes, como a
análise da linguagem ou a dialética entendida no antigo sentido
do termo, e por isso sem dúvida mais atual — exatamente pelos
métodos por ele praticados — do que nunca. Refiro-me sobre­
tudo ao livro de Wolfgang Wieland, estudioso próximo à filo­
sofia analítica, sobre a física aristotélica, e ao de Pierre
Aubenque, estudioso de tendências heideggerianas, sobre a
metafísica8. Pareceu, por isso, quase óbvio que o Symposium
Aristotelicum internacional posterior, que teve lugar em Oxford
em 1963 por iniciativa de G. E. L. Owen, tivesse por tema “a
dialética de Aristóteles”, isto é, os Tópicos9, finalmente reva­
lorizados após décadas de desprezo (pelo que fora em grande
parte responsável, exatamente na Inglaterra, sir David Ross,

7. AA.VV. Arístote et le problémes de méthode (org. Suzanne


^Mansion — sobrinha de Augustin —, Louvain, Institut Supérieur de
Philosophie, 1961).
8. W. Wieland, Die aristotelische Physik, Göttingen, Vandenhoek
& Ruprecht, 1961, e P. Aubenque, Le problème de l'etre chez Aristote,
Paris, PUF, 1962. A estes também poderia ser acrescentado o livro de
L. Lugarini, Aristotele e I’idea della fdosofia, Firenze, La Nuova Italia,
1961, que, no entanto, teve menos sucesso, como freqüentemente
acontece com os livros italianos.
9. G. E. L. Owen (org.), Aristotle on Dialectic. The “Topics”,
Oxford, Clarendon Press, 1968.

XIII
A s razões de Aristóteles

com o juízo que deles dera em seu Aristotle de 1923). Desde


então as publicações sobre o método, ou melhor, sobre os
métodos de Aristóteles, multiplicaram-se101.
Nos mesmos anos, ocorria a redescoberta das diversas
formas de racionalidade praticadas por Aristóteles por parte de
alguns grandes filósofos contemporâneos. O primeiro foi Chaim
Perelman, que, da insatisfação com o formalismo lógico, por
ele antes cultivado, foi levado a entrever na retórica de
Aristóteles a lógica do discurso não-formalizável, isto é, ético,
político e jurídico, que virá a ser o discurso concernente à vida
dos homens; e que formulou, em 1958, sua “teoria da argumen­
tação”, conhecida também como “nova retórica”, que é apenas
uma retomada, mais que da retórica, da dialética de Aristóteles11.
A dois anos de distância, Hans Georg Gadamer, o maior expo­
ente da nova filosofia hermenêutica, na primeira edição do seu
Verdade e método, indicou na phrónesis teorizada por Aristóteles,
por ele interpretada como a forma mais elevada de saber prá­
tico, o modelo epistemológico da hermenêutica, isto é, de sua
própria filosofia12. Desde então, houve uma série inumerável de
retomadas, renascimentos ou “reabilitações” de Aristóteles, quase
todos voltados sobretudo à sua metodologia, isto é, às diversas
formas de racionalidade por ele teorizadas. Penso, por exem­
plo, na “reabilitação da filosofia prática” aristotélica ocorrida
na Alemanha nos anos 60 e 70 por obra de autores como o

10. Limito-me a mencionar, por sua particular riqueza, o número


especial — organizado por L. Couloubaritsis — dedicado a “La
méthodologie d’Aristote” pela Révue Internationale de Philosophie, órgão
da Universidade Livre de Bruxelas, em 1980, vol. 34, nn. 133-134.
11. Ch. Perelman e L. Ollbrechts Tyteka, Traité de 1'argumentation,
Paris, PUF, 1958. Trad. it. org. por N. Bobbio, Torino, Einaudi, 1966.
[Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina
Galvão G. Pereira, São Paulo, Martins Fontes, 1996. N. do T]
12. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen, Mohr (trad,
it. org. por G. Vattimo, Milano, Fabri, 1972].

XIV
Premissa

próprio Gadamer e seu discípulo Rüdiger Bubner, pelo hegeliano


Joachim Ritter e seu discípulo Günther Bien, ou enfim pelo
aristotélico Wilhelm Hennis13. Penso em seguida na “nova
epistemologia” de Paul Feyerabend, que se serve de Aristóteles
certamente para além das intenções deste último, em sua inces­
sante polêmica contra Galileu14; no grupo de norte-americanos
que se autodenominam “neo-aristotélicos”, os quais sustentam
a necessidade de aplicar às investigações métodos críticos di­
versos (R. S. Crane, Richard P. McKeon, Elder Olson, da
Universidade de Chicago); no wittgensteiniano G. H. von Wright,
o qual, contrapondo à “explicação” mecanicista a “compreen­
são” teleológica, se reporta também ele à física, além de à
ética, de Aristóteles15. Enfim, vale a pena notar que até na
França, país em que principalmente prosperou a nova moda de
Nietzsche e Heidegger, caracterizada pela recusa de qualquer
forma de racionalidade, filósofos como Jacques Derrida e Jean
François Lyotard, os maiores porta-vozes do “pós-modemo”,
não desdenham de reportar-se a Aristóteles, justamente pelo
motivo da “polissemia do ser” que está na base do pluralismo
metodológico e epistemológico do filósofo grego16.
Por todos esses motivos creio que valha a pena reexaminar
rapidamente, mas em contínua referência aos textos originais,
as principais formas de racionalidade analisadas e postas em

13. Veja-se, a propósito, o famoso volume AA.VV., Rehabilitierung


der praktischen Philosophie (org. M. Riedel, Freiburg, B. Rombach,
1972-1974).
14. P. Feyerabend. “Eine Lanze für Aristoteles”, in G. Radnitzky,
G. Andersson (orgs.), Fortschritt und Rationalität der Wissenschaft,
Tübingen, Mohr, 1980 (trad. it. F. Voltaggio, Roma, Armando, 1984).
15. G. H. von Wright, Spiegazione e comprensione. Trad. it. G.
Di Bernardo, Bologna, II Mulino, 1977.
16. Cf. W. Welsch. “Postmodeme und Postmetaphysik. Eine
Konfrontation von Lyotard und Heidegger”, in Philosophisches
Jahrbuch, 92: 116-122, 1985.

XV
A s razões de Aristóteles

obra por Aristóteles. Tal reexame, ainda que não acresça nada
de novo a quanto já se sabe a respeito do filósofo, pode ser útil
para esclarecer os termos do debate hodierno, mostrando, por
exemplo, que há muitos modos racionais de ser, ou de fazer
discursos racionais, nem todos redutíveis ao “cálculo lógico”
ou aos métodos das ciências, exatas, naturais ou “humanas”,
nem todos dotados do mesmo grau de rigor, isto é, de concisão,
conclusividade. Não obstante, eles são todos igualmente váli­
dos, isto é, universalizáveis, comunicáveis, controláveis: mo­
dos que se aproximam, em diversas medidas, do âmbito do
não-racionalizável, seja para “cima” (isto é, para o âmbito da
arte, da religião, da mística), seja para “baixo” (isto é, para o
campo do instinto, da paixão, da animalidade), ainda que per­
manecendo na esfera da racionalidade; modos que atingem até
mesmo o nível de uma racionalidade intuitiva, ou, de qualquer
modo, não mais discursiva (como a intuição intelectual, ou a
intuição prática, ou a criativa), ou que se elevam um pouco
sobre o nível da conversação cotidiana, ou até da tagarelice.

XVI
s razões de
Aristóteles
(?iTpítub TSrimcav

podíctica e dialética

A ciência apodíctica

forma de racionalidade da qual Aristóteles é tradicional­


A mente considerado o primeiro teórico, aliás aquela que
muitos, de Zabarella e Bacon em diante, consideram a única,
ou a única verdadeira, forma de racionalidade por ele teorizada,
é indubitavelmente a ciência apodíctica, isto é, demonstrativa.
Esta expressão poderia parecer pleonástica — dado que
Aristóteles define, sem dúvida, a ciência (epistéme) como “há­
bito demonstrativo” (hexis apodeiktikc) (Ética a Nicômaco' VI
3, 1139 b 31-32) — se ele mesmo não acenasse taqjbém para
uma “ciência não-demonstrativa" (epistéme anapódeiktos) (Se­
gundos analíticos I 3, 72 b 18-20), da qual nos ocuparemos em
seguida.
À teorização da ciência apodíctica é dedicado todo um
tratado celebérrimo, os Segundos analíticos, em que Aristóteles
oferece-nos, antes de tudo, a definição de ciência: “Pensamos
ter ciência de qualquer coisa em sentido próprio — vale dizer.1

1. Ética a Nicômaco, trad. Leonel Vallandro e Gerd Bomheim.


São Paulo. Abril Cultural. 1984 (Os Pensadores). [N. do T.]

3
A s razões de Aristóteles

não de modo sofístico, isto é, por acidente — no caso de pen­


sarmos conhecer a causa pela qual a coisa é [aquilo que é], que
ela é causa daquela coisa e que não é possível que esta seja
diversamente” (I 2, 71 b 9-12). Duas, portanto, são as caracte­
rísticas da ciência que resultam de tal definição: 1) o conheci­
mento da causa, que deve ser entendida em sentido lato, isto é,
como a razão, a explicação de um fato, de um comportamento
ou de uma propriedade (para Aristóteles, como é conhecido, há
quatro tipos de causa — material, formal, motora e final — ,
todas suscetíveis de ser objeto de ciência); 2) a necessidade de
suas conclusões, isto é, a impossibilidade de que, quando se
tem ciência de um certo estado de coisas, as coisas sejam di­
versamente de como se sabe que são.
Ter ciência, isto é, saber, significa, em suma, conhecer não
somente o “quê”, mas também o “porquê” de certo estado de
coisas, e saber que não é um simples estado de fato, mas uma
verdadeira necessidade. Naturalmente essas duas características
estão vinculadas entre si, pois a necessidade do efeito é depen­
dente da existência da causa, pela qual o estado de coisas do
qual se tem ciência não é necessário por si mesmo, mas se e
somente se subsiste uma causa suficiente sua, precisamente
aquela cujo conhecimento constitui sua ciência. Como se vê,
estamos diante de um conceito de ciência profundamente dife­
rente do hodierno, caracterizado principalmente por seu caráter
hipotético e pela probabilidade.
O caráter de necessidade, exatamente da ciência entendida
em sentido aristotélico, é freqüentemente indicado por Aristóteles
mediante a afirmação de que a ciência é conhecimento de coi­
sas que existem “sempre”: isso não significa que todos os objetos
da ciência sejam substâncias eternas, como eram para Platão os
objetos da matemática e para Aristóteles os astros e seus mo­
tores, mas que são eternos os nexos entre certos objetos e certas
propriedades suas, das quais se tem ciência. Por exemplo, o

4
Apodíctica e dialética

nexo entre o triângulo e a propriedade de ter a soma dos ângu­


los internos igual a dois ângulos retos é eterno, enquanto o
triângulo tem “sempre” essa propriedade, isto é, qualquer triân­
gulo em qualquer condição a tem. Aristóteles admite, no entan­
to, também uma atenuação desse caráter de necessidade, que
não prejudica a natureza da ciência, atenuação por ele expressa
mediante a afirmação de que é possível ter ciência não só das
coisas que existem sempre, mas também daquelas que existem
“quase sempre” (hos epí to poly) (I 30, 87 b 19-22). Veremos
posteriormente o que isso significa.
No caso da ciência apodíctica, as duas características há
pouco mencionadas, isto é, o conhecimento da causa e a neces­
sidade, são asseguradas pela “demonstração” (apódeixis), por
isso chamada por Aristóteles de “silogismo científico”. Ao
“silogism o”, literalm ente conjunto de discursos, isto é,
concatenação, seqüência e, portanto, raciocínio, argumentação
ou, mais propriamente, dedução, Aristóteles dedicou o tratado
que precede os Segundos analíticos, isto é, os Primeiros ana­
líticos: estes tratam, com efeito, do silogismo em geral, aqueles
de um silogismo particular, exatamente o científico ou demons­
trativo. O silogismo em geral é definido por Aristóteles como
um discurso, isto é, um raciocínio, uma argumentação na qual,
postas algumas “premissas” (ao menos duas, denominadas res­
pectivamente “maior” e “menor”), alguma coisa de diverso delas
(denominada “conclusão”) resulta necessariamente, somente pelo
fato de existirem (Segundos analíticos I 1, 24 b 18-20). As
premissas, portanto, são a causa necessária e ao mesmo tempo
suficiente da conclusão, por isso a conclusão resulta necessaria­
mente delas.
A demonstração, isto é, o silogismo científico, tem lugar
quando as premissas são “verdadeiras, primeiras, imediatas, mais
conhecidas, anteriores e causas da conclusão”. Elas devem ser
verdadeiras, isto é, exprimir como efetivamente são as coisas,
não sendo possível haver ciência de um estado de coisas que

5
A s razões de Aristóteles

não existe; devem ser primeiras e imediatas, isto é, indemons-


tráveis, ou devem derivar de premissas por sua vez inde-
monstráveis, na medida em que, se as premissas devessem ser
sempre demonstradas, isto é, se derivassem sempre de outras,
ao infinito, não se teria nunca ciência; devem ser causas da
conclusão, porque ter ciência significa, como vimos, conhecer
a causa; devem ser anteriores, para poder ser causa da conclusão;
devem, enfim, ser mais conhecidas que esta, visto que devem
ser conhecidas anteriormente a ela, ou independentemente dela.
Contudo, a expressão “mais conhecidas” — observa
Aristóteles — pode ser entendida em dois sentidos, a saber,
como mais conhecidas para nós, e nesse caso se trata de rea­
lidades próximas à sensação, isto é, de premissas particulares,
ou como mais conhecidas por natureza, e nesse caso se trata de
realidades distantes da sensação, isto é, de premissas universais
(Segundos analíticos I 2, 71 b 19-72 a 5). A demonstração
entendida no sentido mais próprio é aquela que procede de
premissas universais para conclusões particulares, isto é, a
dedução; ela, portanto, é o que confere à ciência o caráter de
conhecimento da causa e o caráter de conhecimento dotado de
necessidade.
As premissas que têm todos esses requisitos são denomi­
nadas também “princípios próprios”, isto é, princípios que é
necessário possuir para poder ter certa ciência, mas que são
necessárias somente para ela e não para outras. Eles podem ser
de dois tipos, isto é, podem ser “definições”, vale dizer, discur­
sos que dizem “o que é” certa coisa, ou seja, exprimem sua
essência; ou podem ser “pressuposições” (Aristóteles diz
hypóthesis), discursos que dizem se uma coisa é ou não é, ou
seja, assumem a existência ou a não-existência de certa coisa,
ou de certo nexo entre sujeito e predicado. Um exemplo de
definições, para a aritmética, é a definição de unidade como o
que é indivisível segundo a quantidade; um exemplo de pres-

6
Apodíctica e dialética

suposições é a apreensão que se tem das unidades (12 ,7 2 a 14-


-24). Como se vê, os princípios próprios são premissas que
devem ser postas explicitamente e são exatamente aquilo a partir
do que se deduz, isto é, se extrai a conclusão. Isso é evidente
sobretudo no caso da geometria, em que as demonstrações, isto
é, o que Euclides denominará os teoremas, derivam precisa­
mente da apreensão de certas figuras e de sua definição.
Se os princípios próprios são aquilo a partir do que se
demonstra, aquilo que, ao contrário, propriamente se demonstra
são as propriedades universais e necessárias, isto é, “por si”,
dos objetos aos quais se referem os princípios (I 4-6). Por exem­
plo, se o objeto é um triângulo, o que se demonstra é sua propri­
edade de ter a soma dos ângulos internos iguais a dois ângulos
retos. É evidente que ela se demonstra a partir da definição de
triângulo, de ângulo reto etc., e da apreensão das figuras neces­
sárias à demonstração (por exemplo, o prolongamento de um
lado), o que, segundo Aristóteles, é uma pressuposição.
Mas, além dos princípios próprios, para se ter ciência é
necessário possuir também outros princípios, não necessários
somente para uma ciência particular, mas para mais ciências ou
mesmo para todas, e por isso denominados “princípios comuns”
ou também, com um termo matemático, “axiomas” (literalmen­
te “dignidade”, isto é, proposições dignas de ser admitidas por
causa de sua evidência intrínseca). Como exemplo de princípios
comuns somente para algumas ciências, Aristóteles cita a pro­
posição “subtraindo iguais de iguais, obtêm-se iguais”, que é
comum a todas as ciências matemáticas (aritmética, geometria
etc.); como exemplos, ao contrário, de princípios comuns a todas
as ciências, ele cita o princípio de não-contradição (“é impos­
sível simultaneamente afirmar e negar um mesmo predicado de
um mesmo sujeito”), e o princípio do terceiro excluído (“é
necessário ou afirmar ou negar certo predicado de certo sujei­
to”) (I 11, 77 a 30-31). Estas não são propriamente premissas
das quais se deduza, isto é, se extraia, uma conclusão, mas são

7
A s razões de Aristóteles

muito mais regras gerais, leis que devem ser observadas se se


quer assegurar a correção da demonstração2.
O que mais nos interessa, e que Aristóteles não deixa de
enfatizar, é que a necessidade de princípios próprios implica
uma rigorosa distinção entre as ciências demonstrativas e uma
absoluta independência de cada uma em relação às outras. Toda
ciência, com efeito, tem necessidade de princípios próprios,
que não podem ser inferidos das outras ciências, e não pode,
por sua vez, demonstrar os princípios próprios das outras ciên­
cias; ou melhor, o fato de que os princípios próprios de certa
ciência pertençam a ela e só a ela, isto é, que exprimam somen­
te as definições e apreensões dos objetos próprios a ela, implica
que nenhuma demonstração possa passar de certo gênero de
objetos, próprios de certa ciência, a outro gênero de objetos,
próprios de uma ciência diversa. E interditada, em suma, na
demonstração, a “passagem a outro gênero” (metábasis eis alio
genos) (17, 75 b 8-14). A única exceção admitida por Aristóteles
a essa regra é a das matemáticas aplicadas (astronomia, ótica,
harmônica), que, porém, não são ciências independentes mas
subalternas às matemáticas verdadeiras (a ótica à geometria, a
harmônica à aritmética etc.) (75 b 14-17). Isso implica a impos­
sibilidade de uma ciência universal, a partir da qual se possam
demonstrar os princípios próprios de todas as outras ciências
(I 9, 76 a 16-25), como também a impossibilidade de uma
ciência capaz de demonstrar os princípios comuns a todas as

2. Para esclarecimentos posteriores sobre este ponto, sou cons­


trangido a indicar meu livro sobre Uunità del sapere in Aristotele,
Padova, Cedam, 1965, mas também o de M. Mignucci, La teoria
aristotelica della scienza, Firenze, Sansoni, 1965. Sobre a teoria da
ciência em Aristóteles, veja-se também E. Berti (org.). Aristotle on
Science. The “Posterior Analytics". Proceedings of the Eighth
Symposium Aristotelicum held in Padua from September 7 to 15,1978,
Padova, Antenore, 1981.

8
Apodíctica e dialética

outras (I 11, 77 a 26-35): nem os princípios próprios, com


efeito, nem os comuns, enquanto princípios, são demonstráveis3.
As ciências demonstrativas são todas, portanto, sempre e so­
mente ciências particulares.
Uma ciência demonstrativa universal fora provavelmente
desejada na Academia platônica pelos primeiros discípulos de
Platão (sobretudo Xenocrates) e talvez pelo próprio Platão em
suas famosas “doutrinas não-escritas”; mas Aristóteles reagiu
com clareza a tal desígnio, exatamente sobre a base da própria
teoria da demonstração, e afirmou com vigor a multiplicidade
e a autonomia das diversas ciências, inclusive em relação à
metafísica. A tal reação refere-se provavelmente um fragmento
muito belo do tratado perdido Do bem, no qual ele expunha, e
criticava, a doutrina platónico-acadêmica da derivação de todas
as coisas de dois princípios opostos, o Uno-Bem e a Díade
indefinida, e, portanto, o ideal de uma única ciência, capaz de
demonstrar tudo: “Deve-se recordar que é homem não só aque­
le que tem a fortuna consigo, mas também aquele que se dedica
às demonstrações”4. Sabe-se que o chamado à consciência de

3. Quem acreditou na possibilidade de tal ciência universal,


identificável na metafísica, foram, na Antiguidade tardia e no Medievo,
os comentadores neoplatonizantes de Aristóteles (Temístio, Filipono,
Averróis, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Egídio Romano) e, na
Idade Moderna, Jacopo Zabarella, do qual derivou o ideal cartesiano
de uma metafísica como raiz de uma árvore da qual se ramificam
todas as outras ciências. Tratei deste tema no ensaio “Metaphysic and
Dialectic in Giacomo Zabarella’s Commentary on the ‘Posterior
Analytics’”, in Ph. L. Drew (org.), Aristotle in Padua: Essays
Commemorating the 400th Anniversary of the Death of Giacomo
Zabarella (1533-1589), Leiden, Brill.
4. O fragmento está contido na Vita Aristotelis Marciana, p. 433,
10-15 v. Rose, onde é citada a prova da “moderação” de Aristóteles,
e constitui o número 1 da coletânea de W. D. Ross (Aristotelis frag­
menta selecta, Oxford, Clarendon Press, 1955), e o número 86, 1, da

9
A s razões de Aristóteles

que eram homens significava, para os gregos, um convite para


que não se superestimassem, isto é, para que não acreditassem
ser deuses, tentação à qual poderia ser exposto quem acreditas­
se possuir uma ciência capaz de demonstrar tudo. Aristóteles,
portanto, estava bem consciente dos limites da ciência demons­
trativa, mesmo tendo sido seu primeiro teórico.
Aliás, o leitor dos Segundos analíticos, nos quais tal tipo
de ciência é teorizado, notará que a maior parte dos exemplos
e termos dos quais Aristóteles se serve são extraídos da geome­
tria, o que significa que o modelo dessa ciência é a geometria,
a primeira ciência descoberta pelos gregos e também a única
que atingiu, no tempo de Aristóteles, aquilo que hoje denomi­
naríamos um estatuto epistemológico quase definitivo, graças
ao impulso que recebera sobretudo no seio da Academia platô­
nica por obra de matemáticos como Eudoxo, Teeteto e o pró­
prio Platão. Ou melhor, Aristóteles nem sequer a descreve no
processo de seu constituir-se, isto é, em seus procedimentos de
invenção, ou construtivos, mas a considera em sua estrutura já
constituída, elaborada com objetivo essencialmente didático*
5. Ele,
em suma, apenas descreve o estatuto epistemológico da geome­
tria grega. Além disso, não é casual que a realização plena das
indicações contidas nos Segundos analíticos encontre-se nos Ele­
mentos de Euclides, não porque Euclides dependa de Aristóteles,
ao qual é mesmo posterior em alguns anos, mas porque tam-

coletânea de O. Gigon (Aristotelis Opera, vol. III, Librorum


deperditorum fragmenta, Berlim, de Gruyter, 1987). Não concordo
com a tradução que dele deu G. Giannantoni (Aristóteles, Opera, Roma-
-Bari, Laterza, 1973, vol. 11, p. 235), a saber: “não deve esquecer-se
de que é um homem não somente aquele que atinge os seus objetivos,
mas também aquele que enfrenta uma prova”, porque me parece que
não alcance suficientemente o significado de apodeiknynta.
5. Isso foi demonstrado persuasivamente sobretudo por J. Bames,
“Aristotle’s Theory of Demonstration”, in J. Bames, M. Schofield, R.
Sorabji (orgs.), Articles on Aristotle, London, 1975, vol. 1, pp. 69-73.

10
Apodíctica e dialética

bém ele apenas sistematiza uma geometria já existente no tem­


po de Aristóteles e elaborada, em grande parte, por Eudoxo.
A situação concreta na qual pensa Aristóteles, ao teorizar
a ciência apodíctica, é aquela constituída por um cientista, por
exemplo um cultor de geometria que, já estando de posse da
ciência em questão, se propõe a expô-la a outros, isto é, a
ensiná-la. O discurso de tal cientista é, na essência, um monó­
logo, ainda que se volte aos ouvintes, porque estes últimos não
têm nada a dizer e devem somente aprender, isto é, ser ajuda­
dos a ver com clareza o que lhes é ainda obscuro, por exemplo
a verdade de determinado teorema. Demonstrar significa, com
efeito, essencialmente mostrar a verdade de alguma coisa a
quem a ignora, a partir da premissa segundo a qual a verdade
é, ao contrário, já conhecida a quem escuta; isto é, significa
ensinar, no sentido mais rigoroso do termo.
Em conclusão, a primeira forma de racionalidade descrita
por Aristóteles, aquela que hoje poderíamos considerar a mais
“forte”, isto é, a mais convincente, do ponto de vista episte-
mológico, é justamente a racionalidade da geometria, uma
racionalidade que ele encontrava já realizada diante de si, que
praticamente não praticou e não contribuiu de nenhum modo para
desenvolver, pela qual deveria nutrir um grande respeito — como,
em geral, ocorre com aquilo sobre o que não se é muito com­
petente — , mas da qual percebia também claramente os limites,
inerentes à finitude da própria demonstração. Como logo vere­
mos, com efeito, ele procurou fundar tal forma de racionalidade
sobre uma base diversa, isto é, sobre outra forma de conheci­
mento, não mais demonstrativo, ou seja, a “inteligência”.

A ciência não-apodíctica, ou a inteligência

Já nos Segundos analíticos, logo depois de ter delineado as


características da ciência apodíctica, Aristóteles observa que

11
A s razões de Aristóteles

não é possível dar demonstração dos princípios, porque de­


monstrar significa mostrar a necessidade de uma conclusão a
partir de alguns princípios, e se também estes fossem demons­
tráveis então já não seriam princípios, mas em seguida exigiriam
outros princípios a partir dos quais pudessem ser demonstra­
dos, produzindo, desse modo, um processo ao infinito que ja­
mais levaria aos princípios autênticos e, por isso, destruiria
toda demonstração possível. Portanto, deve-se admitir que, se
a ciência existe, isto é, se existem as demonstrações, deve ha­
ver um saber dos princípios, que não é de tipo demonstrativo
mas — como Aristóteles diz explicitamente — uma “ciência
an-apodíctica”, mais propriamente “princípio da ciência” e que
tem por objeto os princípios indemonstráveis, em particular as
definições (I 3, 72 b 18-25).
Alguns acreditavam, já no tempo de Aristóteles, que tam­
bém fosse possível demonstrar os princípios não mediante um
regresso ao infinito em busca de outros princípios, mas por
meio de uma espécie de demonstração circular, isto é, conduzida
a partir das conclusões às quais chega a demonstração. Mas
Aristóteles recusa tal possibilidade, que claramente daria lugar
a um círculo vicioso, recordando que os princípios da demons­
tração devem ser anteriores às conclusões e que, por isso, não
há sentido em procurar demonstrar os princípios partindo-se
delas. Nem vale aduzir, a esse propósito, um tipo particular de
demonstração, do qual Aristóteles também admite a possibili­
dade, isto é, aquela que se desenvolve a partir dos princípios
mais conhecidos não por natureza, mas por nós, ou seja, obti­
dos pelo conhecimento sensível. A propósito dela, Aristóteles
observa, com efeito, que não é demonstração em sentido pró­
prio, isto é, demonstração do “porquê”, da causa, mas demons­
tração somente do “quê”, isto é, de um fato (I 3, 72 a 25-36).
O conhecimento dos princípios da ciência, isto é, essencial­
mente das definições, a rigor não pode sequer ser denominado
ciência, visto que — diz Aristóteles — toda ciência é acom-

12
Apodíctica e dialética

panhada por raciocínio, ou seja, por demonstração, ao passo


que, como vimos, os princípios não são demonstráveis. Esse
conhecimento é, portanto, chamado por Aristóteles de noüs,
termo quase intraduzível, visto que seu correspondente latino,
usado a partir de Boécio, a saber, intellectus, foi traduzido para
o alemão pelo monge beneditino Notker (que viveu na abadia
de Saint Gall entre os séculos X e XI) por Vernunft67,termo que,
ao contrário, a partir de Kant, ou melhor, de Baumgarten, foi
usado para traduzir o latino ratio e que, portanto, por causa da
enorme influência que teve na filosofia alemã, de Kant em
diante, é normalmente traduzido por razão1. A fim de evitar
todos os equívocos que possam nascer a propósito da relação
razão-intelecto, dado que até Espinosa a faculdade mais eleva­
da foi considerada o intelecto, enquanto a partir de Kant e
sobretudo com Hegel a faculdade mais elevada foi identificada
com a razão, adotamos para o grego noüs a tradução “inteligên­
cia”, sem, todavia, entender este termo no sentido preciso que
ele tem na psicologia experimental e na disciplina denominada
“inteligência artificial”8.

6. Cf. o manuscrito Sangallensis Monasterii 818, que contém a


tradução latina de Boécio das Categorias e do De interpretatione, mas
também a tradução do latim para o alemão de Notker. Na edição desse
manuscrito, publicada em Notker, Werke, org. King, Tübingen,
Niemeyer, 1975, a De interpretatione 3, 16 b 20 (onde, aliás, o texto
grego traz diánoiá), é referido vernumist, mas a consulta direta do
manuscrito permite-nos ler vernunft, ou vemumft.
7. Veja-se, a este respeito, o meu texto sobre “Un problema di
terminologia filosófica: il significato di ‘ragione’ e ‘intelletto’ nella
filosofia immediatamente precedente a Kant”, in Atti e memorie
dell'Accademia Patavina di Scienze, Lettere ed Arti, 86, parte III, pp.
129-137, 1973-1974 (republicado em E. Berti. Ragione filosofica e
ragione scientifica nel pensiero moderno, Roma, La Goliardica, 1977,
pp. 203-214).
8. E esta a proposta exposta por M. Gentile em seu Trattato di
filosofia, Napoli, E.S.I., 1987.

13
A s razões de Aristóteles

O que mais interessa, para além de toda consideração


terminológica, é o significado do noüs aristotélico. Ele foi
freqüentemente confundido com uma espécie de intuição, isto
é, com um conhecimento imediato, não-discursivo, do tipo da
intuição bergsoniana ou da visão eidética husserliana. Tal inter­
pretação surge, para dar somente dois exemplos ilustres, em um
neo-escolástico como Maritain, notoriamente influenciado por
Bergson, mas também — e talvez não por acaso — em um
profundo conhecedor de Aristóteles como foi Heidegger, discí­
pulo de Husserl mas também muito familiarizado com a
escolástica. Para nos limitarmos somente a este último autor,
hoje em voga depois da publicação de muitos cursos inéditos
seus, é interessante notar que o texto a que ele continuamente
se refere a propósito do noüs é o capítulo 10 do livro IX da
Metafísica, no qual Aristóteles compara o ato do noüs a um
“atingir” (thigéin ou thingánein), o qual se subtrai à alternativa
entre verdadeiro e falso, mas pode somente ocorrer ou não: se
ocorre, é sempre verdadeiro, e se não ocorre não se pode dizer
que se tenha um erro, mas somente que se tem ignorância
(1051 b 17-1052 a 2 f.
Deve-se recordar, todavia, que nesse capítulo Aristóteles
declara, sim, que, “em torno das coisas que são o ser exatamen­
te alguma coisa e são em ato [isto é, as essências], não é pos­
sível enganar-se, mas ou aprendê-las ou não (noéin e me)",
porém logo depois especifica: “mas o que é [a definição] é
objeto de investigação em tomo delas, isto é [é objeto de inves­
tigação] se são assim ou não (allá to ti esti zetéitai perí autón,9

9. M. Heidegger, Lettera sull’umanesimo, org. de A. Bixio e G.


Vattimo, Torino, S.E.I, 1978, p. 96, e Logica. II problema delia verità,
trad. U. M. Ugazio, Milano, Mursia, 1986, pp. 114-122. Veja-se tam­
bém, mais em geral, M. Heidegger, Domande fondamentali delia filoso­
fia. Selezione di “problemi” delia “logica", trad. U. M. Ugazio, Milano,
Mursia, 1988. [Sobre o “humanismo", trad. Emildo Stein, São Paulo,
Abril Cultural, 2a ed., 1983, p. 158 (Os Pensadores). N. do T.]

14
Apodíctica e dialética

ei toiáuta estin e me)", o que significa que a definição de


essência, a saber, o princípio da ciência, em que consiste pro­
priamente o noüs, é o resultado de uma investigação, vale di­
zer, de um processo, caracterizado pela alternativa entre certa
determinação e sua negação10.
Como se conciliam as duas afirmações? Provavelmente
supondo que a apreensão imediata dos princípios, que tem como
única alternativa a ignorância, seja aquela que tem lugar em
uma situação de ensino, na qual o docente fornece aos discípu­
los uma definição já bela e feita, e eles devem apenas “entendê-
-la”: se a entendem, estão no verdadeiro, se não, ignoram-na.
Essa imediatez da apreensão, todavia, não exclui que o docen­
te, para dar a definição, anteriormente a tenha investigado, por
meio de um processo que não é, absolutamente, uma apreensão
imediata.
Isso é confirmado pelo que diz Aristóteles a respeito do
noüs nos Segundos analíticos, isto é, na obra dedicada a expor,
como vimos, a ciência que se ensina. Ali ele apresenta o noüs
como resultado de uma epagogé, isto é, de um processo que
significa não só “indução”, como geralmente se o entende, mas
também “guia para alguma coisa” (de ago, conduzir, guiar, e
epí, para, ou na direção), ou seja, “introdução”. Trata-se do
processo pelo qual o docente guia, ou conduz, os discípulos à
apreensão dos princípios. Ele se move, como se sabe, da sen­
sação, por exemplo da visão de uma figura desenhada, passa
pela recordação, isto é, por sua fixação na mente, pela experiên­
cia, isto é, pela repetição deste último ato, e chega ao universal,
ou seja, à definição da figura em geral, do qual a figura dese­
nhada é somente um caso particular (II 19).

10. Procurei ilustrar mais amplamente esta tese em “The


intellection of ‘indivisibles’ according to Aristotle. De anima III 6”, in
G. E. R. Loyd & G. E. L. Owen, Aristotle on mind and the senses,
Cambridge, University Press, 1978, pp. 141-164.

15
A s razões de Aristóteles

Que também a propósito dos princípios Aristóteles pense


em uma situação de ensino, é confirmado pelo fato de que, ao
lado dos princípios verdadeiros (definições, pressuposições e
axiomas), freqüentemente ele enumera, entre as premissas das
demonstrações, também os “postulados” 0aitémata), termo que
significa literalmente “pedidos” (de aitéo, pedir), visto que o
docente deve pedir aos discípulos que os admitam, para poder
proceder à demonstração. Ao contrário dos princípios, com
efeito, que são necessários, isto é, evidentes, os postulados não
o são (II 13, 97 a 21-23).
De tudo isso resulta, parece-me, que o noüs, fora do ensi­
no, não é uma intuição imediata, isto é, uma espécie de
fulguração gratuita, ou devida à habilidade do docente, mas
fruto de um processo que pode ser também longo e laborioso,
uma verdadeira investigação, ainda que tal fruto nunca seja
assegurado pelo próprio processo, ainda que não seja uma con­
clusão necessária, como o é a conclusão da demonstração cien­
tífica; ele pode ocorrer ou não, porque, quando se investiga,
nunca se está seguro de encontrá-lo, e só no fim da investiga­
ção pode-se saber se se encontrou ou não o que se procurava.
Somente o noüs divino, especifica Aristóteles, já está desde
sempre na condição na qual o noüs humano se encontra só em
certo momento, isto é, no fim do processo, quando abraça todas
as etapas em um só olhar e no todo encontra sua condição
ótima: o noüs divino, efetivamente, não tem necessidade de
procurar, mas já está desde sempre todo em ato (Metafísica XII
9, 1075 a 5-10). Nesse sentido também o noüs, o humano, é
uma forma de racionalidade, ou melhor, a mais elevada ao
alcance do homem. Veremos melhor a seguir qual tipo de pro­
cesso conduz a este cume.
Evidentemente, o noüs que passa, desse modo, a fazer parte
da filosofia propriamente dita não é o que está na base de cada
ciência particular, ou seja, o conhecimento dos princípios pró­
prios de cada uma delas (por exemplo, da definição de ponto,

16
Apodíctica e dialética

linha, triângulo etc.)· A filosofia primeira na verdade não tem


por objeto as realidades que são objeto das ciências particula­
res, por isso não sabe o que fazer com sua definição. Ela tem
por objeto, diz Aristóteles, o ser enquanto ser, isto é, o ser em
sua totalidade, e é dele, e somente dele, que ela procura os
princípios, ou seja, o “que é”, pelo que é ao percebê-los medi­
ante o noüs, isto a constitui, por assim dizer, a partir de dentro,
fazendo-a ser não simples ciência, mas verdadeira sabedoria. À
filosofia, em suma, não interessam as essências dos objetos
particulares, o objeto de cada ciência, mas só as essências mais
gerais, isto é, os múltiplos significados do ser e suas proprie­
dades universais.
A esse noüs constitutivo da filosofia primeira Aristóteles
alude no livro VI da Metafísica, quando, após ter definido a
filosofia primeira como ciência do ser enquanto ser, afirma que
ela deve procurar seus princípios, isto é, o “que é”, ou seja, a
essência, e o “se é”, ou seja, a existência. Evidentemente, já
que o ser, para Aristóteles, diz-se em muitos sentidos, trata-se
de descobrir quais são eles e qual é o primeiro entre eles, isto
é, a substância, para ver em seguida o que é esta última em
geral e quantos e quais tipos de substância existem (se somente
a sensível, ou também a supra sensível). Pois bem, todas essas
operações, diz Aristóteles, não podem ser realizadas por meio das
apreensões e das demonstrações próprias das outras ciências, mas
exigem “algum outro tipo de clarificação (tis allos tropos tes
delóseos)”, “porque é próprio da própria forma de racionalidade
[assim creio ser legítimo traduzir tes autés dianóias] tomar
claro tanto o que é como se é” (1025 b 14-18). Que se trate do
noüs, quer dizer, do conhecimento dos princípios, não há dúvi­
da, porque o “que é” e o “se é” são princípios; mas também é
indubitável que não se trata de uma intuição, mas de um pro­
cesso, de uma clarificação, não de uma demonstração em sen­
tido próprio, mas, por assim dizer, de uma “mostração” (este é,
de resto, o significado de délosis), isto é, de uma exposição
progressiva.

17
A s razões de Aristóteles

Provavelmente Aristóteles alude ao mesmo processo no


fim do livro VII, sempre da Metafísica, ou seja, na conclusão
da indagação sobre a substância em geral, no qual diz que
sobre as substâncias simples, isto é, sobre as formas (que não
o verdadeiro “que é” da substância), não é possível investiga­
ção no sentido de ensino, de demonstração verdadeira — a
qual, como vimos, tem uma função essencialmente didática — ,
mas é necessário “um tipo de investigação diferente Qiéteros
tropos zetéseos)” (VII 17, 1041 b 9-11). Sobre tudo isso, toda­
via, retomaremos ao falar do método da metafísica.

A dialética

Além da ciência apodíctica, à qual Aristóteles dedicou no


Organon uma exposição explícita (os Segundos analíticos, em
dois livros), e da inteligência, à qual dedicou somente poucos
acenos, a outra grande forma de racionalidade explicitamente
teorizada por Aristóteles em suas obras de lógica, com uma
amplitude muito maior que a da própria ciência apodíctica, é a
dialética, à qual são dedicados os oito livros dos Tópicos e o
livro Refutações sofísticas, que dos primeiros constitui a con­
tinuação natural e, por isso, foi também considerado o livro IX
dos Tópicos. A importância que o filósofo grego atribuiu a esta
exposição é atestada, além de por sua amplitude, pelo orgulho
com o qual, no fim deste último tratado mencionado, ele afirma
ter sido o primeiro a realizar tarefa similar, afirmação provavel­
mente imputável a todo o complexo Analíticos-Tópicos, mas,
em todo caso, que também compreende a segunda parte do
conjunto. Aqui, com efeito, ele declara que, enquanto para outras
disciplinas, por exemplo a retórica, já existia uma tratadística
mais ou menos válida, que remontava a autores precedentes,
para a silogística, isto é, para a arte de argumentar em geral,
seja ela apodíctica ou dialética, não existia absolutamente nada,
não no sentido de que nunca tivesse sido praticada (Aristóteles

18
__________________________________ Apodíctica e dialética

faz o exercício da dialética, em particular, remontar igualmen­


te a Zenão de Eléia11), mas no sentido de que ninguém antes a
teorizara.
A primeira caracterização, extremamente densa de signifi­
cado, que Aristóteles nos oferece da dialética é exatamente o
exórdio dos Tópicos‫׳‬.
nosso tratado se propõe encontrar um método
(méthodos) de investigação graças ao qual possamos
raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas
(éndoxa), sobre qualquer problema que nos seja
proposto, e sejamos também capazes, quando replica­
mos a algum argumento, de evitar dizer alguma coisa
que nos causa embaraços (I 1, 100 a 18-21).
Nesses poucos princípios faz-se, antes de tudo, referência
a uma situação concreta de diálogo, ou de discussão, entre, ao
menos, dois interlocutores, um dos quais sustenta certa tese,
enquanto o outro a contesta: dialética vem, com efeito, de
dialégesthai, dialogar, mas não no sentido de conversar, por
exemplo, para entretenimento recíproco ou para passar o tem­
po, mas no sentido de discutir, com intervenções de ambas as
partes, contrastantes uma em relação à outra. Esta é uma pri­
meira diferença fundamental entre a apodíctica e a dialética:
enquanto a primeira refere-se a um monólogo, o ensino, a se­
gunda refere-se a um diálogo. Obviamente se trata de uma
práxis tão antiga quanto a condição humana, ou melhor, da
mais típica práxis humana, que aqui, porém, quer-se disciplina,
não só no sentido de exercitá-la de modo técnico, isto é, segun­
do regras, mas também no sentido de teorizar tais regras. A isso

11. Cf. o fragmento 1de Ross do diálogo perdido Sofista (Diógenes


Laércio, VIII, 2, 63; Sexto Empírico, Adv. Math. VII, 6-7; fragmento
39 Gigon). [Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, trad., introd. e
notas de Mário da Gama Kury, Brasília, Ed. da UnB, 1988. N. do T.]

19
A s razões de Aristóteles

alude a expressão méthodos, que em grego indica, antes de


tudo, a via que de fato se percorre, isto é, o procedimento
efetivo que se segue, mas também a exposição teórica, isto é,
científica, que dela se realiza.
O instrumento que se usa em tal práxis é a argumentação,
ou silogismo, ou dedução, isto é, a inferência das premissas
para as conclusões, que já encontramos a propósito da demons­
tração propriamente científica. O objeto ao qual tal demonstra­
ção se aplica é, ao contrário, o problema, que Aristóteles, no
decorrer do tratado, define tecnicamente como uma alternativa
de tipo interrogativo entre duas proposições (concernentes, por
exemplo, a uma definição), da qual uma é a negação da outra.
O exemplo de problema que ele oferece é: “animal terrestre
bípede é definição de homem ou não?” (I 4, 101 b 32-34).
Note-se como a alternativa é construída de tal modo a exaurir
toda possibilidade, ou seja, é uma alternativa entre proposições
entre si contraditórias (a afirmação, exatamente, e sua nega­
ção). Já nos Segundos analíticos, falando da demonstração, ele,
com efeito, considerara típica da dialética a contradição
(antíphasis), formada exatamente pela oposição entre uma afir­
mação (katáphasis) e uma negação (apóphasis), e caracterizada
pelo fato de não admitir entre elas nenhuma possibilidade in­
termediária (I 2, 72 a 8-14).
A discussão tem início mediante a formulação do proble­
ma (de qualquer problema, como diz o texto, por isso a carac­
terística da dialética é a universalidade, ao contrário da particu­
laridade das ciências apodícticas), isto é, de uma pergunta, a
típica pergunta dialética, quando se discute sobre a essência de
alguma coisa (no exemplo citado, o homem), e aberta à possi­
bilidade de duas respostas entre si contraditórias. Note-se como
tal pergunta não delimita minimamente o âmbito da investiga­
ção, porque não exclui nenhuma possibilidade: ela praticamen­
te equivale à simples pergunta pela essência, por exemplo, “o
que é o homem?”, e ainda mais à apresentação de uma possibi-

20
Apodíctica, e dialética

lidade determinada, isto é, de uma hipótese, a fim de suscitar


a discussão. E claro que, caso essa possibilidade, no decorrer da
discussão, seja eliminada, se tomará em consideração uma outra,
e assim por diante. Em todo caso, a discussão será possível só a
propósito de possibilidades, ou seja, de hipóteses determinadas.
À pergunta inicial um dos dois interlocutores, se há que
presuma saber — suponhamos, o interlocutor A — , dará logo
uma resposta e desse modo dispor-se-á a sustentar uma tese,
por exemplo que “animal terrestre bípede” é a definição de
homem. Neste ponto, o interlocutor B, o qual não presume
saber, procurará contestar a resposta dada, e o fará propondo ao
primeiro uma série de perguntas, de tal modo que se obtenham
outras tantas respostas, cujo teor é, em geral, bastante previsí­
vel, mas sem nunca o ser de modo seguro. Por que fazer estas
outras perguntas? Para obter do interlocutor A as premissas
com as quais esteja de acordo e procurar deduzir delas uma
conclusão sustentada pelo primeiro, isto é, para poder levar o
interlocutor A à contradição consigo mesmo. E claro que, se
aquele que pergunta, isto é, aquele que não presume saber,
conseguir induzir seu interlocutor à contradição consigo mes­
mo, a tese sustentada por este deverá ser abandonada; se, ao
contrário, aquele que responde, isto é, aquele que presume saber,
conseguir evitar ser induzido à contradição consigo mesmo,
não haverá motivo para que a tese sustentada por ele deva ser
abandonada.
Como se vê, nesta práxis vários elementos desempenham
papel fundamental: antes de tudo o perguntar, seja a pergunta
inicial, que é a pergunta pela essência e também pode ter um
fim cognitivo, seja as perguntas sucessivas, que são feitas uni­
camente para obter-se premissas com as quais argumentar, e
por isso têm um fim exclusivamente atinente à discussão, isto
é, dialético; em seguida o argumentar, que é um verdadeiro
deduzir conclusões das premissas, ou seja, um fazer silogismos,
segundo as regras teorizadas nos Primeiros analíticos; enfim, a

21
A s razões de Aristóteles

contradição, que é a consequência à qual um dos dois


interlocutores procura conduzir o outro e que esse outro procu­
ra evitar. A argumentação que conclui em uma contradição é
denominada por Aristóteles, com um termo comumente em uso
na língua grega, élenkhos, isto é, refutação, ou, mais raramente,
apórema: o primeiro é por ele definido simplesmente como
“silogismo da contradição” (por exemplo, Primeiros analíticos
II 20, 66 b 11; Refutações sofísticas I, 165 a 2-3), o segundo
como “silogismo dialético da contradição” (Tópicos VIII 11,
162 a 17-18). Para dizer a verdade élenkhos, antes ainda que
refutação, significa exame, pôr à prova, como o inglês test, e
é equivalente a termos como péira e exétasis. Mas as duas
coisas estão estreitamente ligadas, porque o modo mais seguro
para examinar uma tese, isto é, para pô-la à prova, para ensaiar
sua “capacidade”, é procurar refutá-la: se ela resiste à refutação,
isso significa que “é capaz”, que pode ser mantida; se, ao contrá­
rio, sucumbe, deixa-se refutar, deve ser abandonada.
Como faz aquele que pergunta para refutar, e aquele que
responde para evitar ser refutado? O primeiro, obviamente, faz
perguntas que induzam o interlocutor a dar respostas das quais
se possa deduzir uma contradição com a tese por ele sustenta­
da, e o segundo evita dar tais respostas. Mas, se tudo se redu­
zisse a isso, a discussão arriscar-se-ia a nem sequer nascer,
porque os dois nunca se encontrariam de acordo sobre nada e,
por isso, nunca conseguiriam argumentar conjuntamente. Há,
ao contrário, uma regra que ambos devem respeitar (além da­
quela, naturalmente, de considerar a contradição como signo de
falsidade ou, de qualquer modo, de insustentabilidade de uma
tese), a qual os obriga a concordar sobre algumas premissas;
portanto, consentindo eles em argumentar conjuntamente, abre-
-se a possibilidade de uma discussão efetiva, que esteja além da
simples e estéril justaposição entre duas posições opostas. Essa
regra é aquela que Aristóteles introduz fazendo referência às
“premissas que são conhecidas” (éndoxa): ambos os inter-

22
Apodíctica e dialética

locutores devem, com efeito, respeitá-las, isto é, não podem


não concedê-las, porque aquele dos dois que não as concedes­
se, ou que sustentasse alguma coisa de contrastante com elas,
tomar-se-ia ridículo diante dos ouvintes, e teria, portanto, per­
dido a partida já ao partir.
A discussão dialética supõe, portanto, que os dois
interlocutores discutam na presença de um público (de ouvin­
tes, mas hoje dir-se-ia leitores), o qual, em certo sentido, faz as
vezes de árbitro, e decide qual dos dois teve sucesso, isto é,
conseguiu refutar o outro ou não fazer-se refutar pelo outro. As
premissas “conhecidas”, que de agora em diante denominare­
mos, por brevidade, pelo nome grego éndoxa, são partilhadas
por todos os ouvintes, por isso servem como ponto de referên­
cia comum para a discussão. Do mesmo modo é partilhada
pelos ouvintes a regra segundo a qual a contradição é signo da
falsidade de uma tese, e, portanto, aquele que nela incorre deve
ser considerado perdedor. Aquele que pergunta, por conseguin­
te, caso queira obter de seu interlocutor certa resposta, que lhe
permita refutá-lo, deverá formular sua pergunta de modo que o
outro seja quase obrigado a dar-lhe certa resposta, e isso acon­
tecerá se a resposta for conforme a alguma coisa “conhecida”,
isto é, éndoxon. A habilidade de cada um consistirá em chegar
ao resultado por ele desejado, e temido pelo outro, mesmo
atendo-se aos éndoxa, isto é, não se pondo em contradição com
o público, que é o árbitro. Para o público, com efeito, o que é
éndoxon deve ser aceito, enquanto o que é contraditório deve
ser refutado.
O significado preciso dos éndoxa é esclarecido por Aris­
tóteles logo após a definição de dialética, quando ele distingue
o silogismo dialético do científico, isto é, demonstrativo. Vale
a pena mencionar toda a passagem, ainda que ela repita quanto
já vimos a propósito da demonstração (o que mostra o que há
em comum e simultaneamente o que há de diferente entre as
duas formas de racionalidade, a apodíctica e a dialética).

23
A s razões de Aristóteles

O raciocínio é uma “demonstração” quando as pre­


missas das quais parte são verdadeiras e primeiras,
ou quando o conhecimento que delas temos provém
originariamente de premissas primeiras e verdadei­
ras: e, por outro lado, o raciocínio é “dialético”
quando parte de opiniões geralmente aceitas (éndoxa).
São “verdadeiras” e “primeiras” aquelas coisas nas
quais acreditamos (pistinj em virtude de nenhuma outra
coisa que não seja elas próprias; pois, no tocante aos
primeiros princípios da ciência, é descabido buscar
mais além o porquê e as razões dos mesmos; cada um
dos primeiros princípios deve impor a convicção da
sua verdade em si mesmo e por si mesmo. São, por
outro lado, opiniões “geralmente aceitas” (éndoxa)
aquelas que todo mundo admite (ta dokoúnta), ou a
maioria das pessoas, ou os filósofos — em outras
palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e
eminentes (éndoxoi) (100 a 27-b 23).
Note-se que a diferença entre premissas verdadeiras e pre­
missas éndoxa, de acordo com essa passagem, consiste total e
somente no fato de que as primeiras valem por força de si
mesmas, isto é, independentemente de qualquer reconhecimen­
to exterior, por exemplo do consenso do auditório (o qual, no
ensino, não tem direito à interlocução, porque não está no mesmo
nível de quem ensina, mas deve somente aprender), enquanto
as segundas valem por força do reconhecimento que lhe é atri­
buído da parte de todos, ou da maioria, ou dos sábios. Não se
trata, por isso, de uma diferença de grau, como fazem pensar
aqueles que traduzem éndoxa por “premissas prováveis”, dan­
do a impressão de que se trata de uma aproximação à verdade
de tipo estatístico (isto é, de premissas com um grau de verda­
de superior a 50%), nem se trata da diferença entre realidade e
aparência, como fazem pensar aqueles que traduzem éndoxa
por “premissas verossímeis”, dando a impressão de que não são

24
Apodíctica e dialética

verdadeiras: Aristóteles admite, com efeito, como veremos,


também os éndoxa aparentes, diversos dos éndoxa autênticos,
o que, caso fosse válida a identificação de éndoxon com “ve­
rossímil”, isto é, com “aparências”, daria lugar à distinção
absurda entre aparentes aparentes e aparentes não-aparentes.
No adjetivo éndoxos certamente está presente uma referên­
cia a dóxa (éndoxos. de fato, é o que é “em dóxa”), mas não
entendida no sentido de uma opinião qualquer, contraposta à
verdade, mas no sentido da “fama”, da “reputação”, da “gló­
ria”, como se prova pelo fato de que, na mesma passagem em
que Aristóteles usa esse adjetivo para caracterizar as premissas
do silogismo dialético, ele o usa também para caracterizar os
sábios mais notáveis e “eminentes”. Os éndoxa são, portanto,
premissas ou, caso se queira, também opiniões, mas autoriza­
das, importantes, às quais se deve, em todo caso, dar crédito e
das quais não se pode afastar. Certamente Aristóteles julgava
que também fossem verdadeiras, mas queria fazer notar que,
nos fins da dialética, o que conta não é que as premissas sejam
verdadeiras, mas que sejam partilhadas, reconhecidas, aceitas
por todos, portanto também pelo público-árbitro e por ambos
os interlocutores. Não serviria para nada, com efeito, em uma
discussão, remeter-se a uma premissa verdadeira mas não reco­
nhecida pelo público e pelo próprio interlocutor: ela não seria,
na verdade, concedida e, portanto, não poderia fazer as funções
de premissa para nenhuma refutação. O fato de partir da éndoxa,
então, não significa, para a dialética, renunciar à verdade ou
contentar-se com um grau de verdade inferior ao da ciência,
porque a dialética simplesmente não se preocupa com a verda­
de, mas apenas com a discussão, isto é, com a refutação e,
portanto, com o consenso que a esta é indispensável. Na ver­
dade, nenhum interlocutor admitirá nunca ter sido refutado se
aquele que quer refutá-lo argumentar a partir de premissas que
ele mesmo não tenha concedido, independentemente do fato de
serem verdadeiras ou falsas. E é evidente que o modo mais

25
A s razões de Aristóteles

seguro, da parte de quem quer refutar, para que se faça conce­


der do interlocutor certas premissas, é pedir-lhe as respostas
conformes aos éndoxa, porque este último não poderá recusar-
-se a dá-las, para não tomar-se ridículo diante do auditório.
A distinção entre éndoxa autênticos, isto é, reais, efetivos,
e éndoxa aparentes é introduzida por Aristóteles logo depois,
com a menção de um terceiro tipo de silogismo, diverso tanto
do apodíctico como do dialético, o silogismo erístico, definido
como o silogismo que se move, exatamente, de éndoxa somente
aparentes (phainómena), isto é, não-reais (onta), ou como o silo­
gismo que, movendo-se de éndoxa reais ou aparentes, é um
silogismo somente aparente, ou seja, não é um autêntico silo­
gismo. Sobre a diferença entre éndoxa reais e éndoxa aparen­
tes, Aristóteles insiste, dizendo:
Pois nem toda opinião que parece ser geralmente aceita
(éndoxon) o é na realidade. Com efeito, em nenhuma
das opiniões que chamamos geralmente aceitas (éndoxa)
a ilusão é claramente visível, como acontece com os
princípios dos argumentos contenciosos, nos quais a
natureza da falácia é de uma evidência imediata, e em
geral até mesmo para as pessoas de pouco entendimen­
to (100 b 26-101 a 1).
Aqui, como se vê, Aristóteles considera que todos quantos
são dotados de um mínimo de perspicácia apercebam-se logo
do caráter somente aparente das premissas do silogismo erístico,
e não hesita em qualificar esse caráter de aparência como “na­
tureza do falso”, revelando implicitamente considerar os éndoxa
reais como dotados de verdade. O silogismo erístico, portanto,
é apenas uma imitação ruim, uma contrafação do silogismo
dialético, e em geral a erística, ou seja, a prática do puro con­
testar (de eris, contestação, litígio), não é uma verdadeira for­
ma de racionalidade, mas muito mais uma deformação da for-

26
Apodíctica e dialética

ma autêntica de racionalidade que é a dialética. Ela, efetiva­


mente, não tem em mira o exame crítico de uma tese, mas
apenas o sucesso na discussão, obtido por qualquer meio, ainda
que o mais desleal, isto é, com o engano (visto que é a tentativa
de fazer passar por realidade a aparência, o falso).
Além do silogismo apodíctico, dialético e erístico (que é
realmente um silogismo apenas quando conserva, ao menos, a
estrutura correta), Aristóteles menciona também, sempre no
início dos Tópicos, o paralogismo: um raciocínio incorreto,
portanto não um autêntico silogismo, mas todavia baseado nos
princípios próprios de uma ciência particular; por exemplo, no
caso da geometria, um paralogismo pode nascer de um erro na
construção de uma figura. Em tal caso, portanto, não há qual­
quer relação com a erística, isto é, com o engano, mas simples­
mente com o erro; por isso não é o caso de falar de contrafação
ou de deformação da racionalidade.
Quanto à diferença entre filosofia e dialética, não devemos
nos deixar enganar por uma famosa passagem do início dos
Tópicos na qual Aristóteles afirma que “para os fins da filosofia
devemos tratar dessas coisas de acordo com sua verdade, mas
para a dialética basta que tenhamos em vista a opinião geral”
(I 14, 105 b 30-31). Aqui, realmente, ele não diz que a opinião,
e portanto a dialética, seja o oposto da verdade, mas que, caso
se queira fazer dialética, discutir com outros, é necessário preo­
cupar-se não tanto com que as premissas sejam verdadeiras,
quanto com que sejam opinadas, isto é, partilhadas, aceitas (o
que não exclui, naturalmente, que possam ser verdadeiras). Isso
fica claro por exemplos dados algumas linhas antes, quando se
mencionam como interessantes para a dialética premissas opi­
nadas por alguém, desde que famoso, como Empédocles.
A mesma diferença é ilustrada, de modo talvez mais claro,
no início do livro VIII, onde Aristóteles afirma:

27
A s razões de Aristóteles

Ora, no que toca à escolha do terreno (tópos) e ponto


de apoio, o problema é o mesmo para o filósofo e o
dialético; mas a maneira de estruturar seus argumen­
tos e formular suas perguntas pertence exclusivamen­
te ao dialético: pois em todo problema dessa classe
está implicada uma referência à outra pessoa. Com o
filósofo e o homem que investiga por si mesmo, é
diferente: as premissas do seu raciocínio, embora
verdadeiras e familiares, podem ser rebatidas pelo que
responde porque estão demasiado próximas da afir­
mação originária, de modo que o outro prevê o que se
seguirá se as admitir; mas isso é indiferente ao filó­
sofo (155 b 7 1 2 ‫)־‬.
Como se vê, não se trata de uma diferença entre verdade
e não-verdade, ou entre diversos graus de verdade, mas de
intenções diversas, uma a do fdósofo, isto é, do cientista, des­
preocupada com o outro, com eventuais interlocutores, e a outra
a do dialético, voltada essencialmente para a discussão com o
outro.
Perto do fim da obra, Aristóteles retoma a classificação
entre os vários tipos de silogismo, propondo chamar “filosofema”
ao silogismo apodíctico, “epiquereima” (discussão voltada con­
tra um outro) ao silogismo dialético (em geral, ou seja, caso se
conclua ou não em uma contradição), “sofisma” ao silogismo
erístico, e “aporema” ao silogismo dialético que conclua em
uma contradição, a refutação (VIII 11, 162 a 12-18). Disso
resulta uma primeira distinção entre filosofia, dialética e sofística,
sobre a qual teremos ocasião de retornar, e a identificação da
erística, antes apresentada como contrafação da dialética, com
a sofística, que em seguida será apresentada como contrafação
da filosofia.
A diferença entre silogismo dialético em geral e silogismo
erístico — como vimos, fundamentalmente uma diferença entre

28
Apodíctica e dialética

realidade e aparência — , seja em termos de premissas ou de


estrutura, volta a se propor a propósito daquele tipo particular
de silogismo dialético que é a refutação (élenkhos), ou seja, o
silogismo que leva à contradição. Também ela pode ser refuta­
ção real, e nesse caso é dialética, ou refutação não-real, mas
aparente, e nesse caso é sofística (Refutações sofisticas 1, 164
a 20-165 a 4). Às refutações sofísticas Aristóteles dedica exa­
tamente o último livro dos Tópicos, isto é, as Refutações
sofisticas. Nele define a sofística não apenas como imitação
ruim da dialética, mas também como imitação ruim da filoso­
fia, ou melhor, também da sabedoria:
A sofistica, com efeito, é sabedoria aparente (phainoméne
sophía), mas não real, e o sofista é aquele que tira
riqueza de uma sabedoria aparente, mas não real (165
a 21-23).
Por isso a classificação geral dos silogismos pode ser
reexposta do seguinte modo:
há quatro gêneros de discursos que se usam nas dis­
cussões: há os didascálicos, os dialéticos, os peirás-
ticos e os erísticos. São didascálicos aqueles que ar­
gumentam a partir dos princípios próprios de cada
disciplina e não das opiniões daquele que responde (é
necessário, com efeito, que aquele que aprende con­
fie); são dialéticos aqueles que argumentam a contradi­
ção a partir das éndoxa; são peirásticos aqueles que
argumentam a partir das opiniões daquele que respon­
de e que é necessário conhecer por quem pretenda ter
ciência (em qual modo, é definido alhures); são erísticos
aqueles que argumentam a partir de éndoxa aparentes,
mas não reais, sendo autênticos silogismos ou silogismos
aparentes (2, 165 b 38-b 8).
Aqui se têm algumas importantes confirmações e algumas
novidades interessantes. Antes de tudo, confirma-se o caráter

29
A s razoes de Aristóteles

didascálico, isto é, essencialmente didático, dos silogismos


apodícticos, os quais, mesmo quando se põem em uma situação
de possível diálogo, como é exatamente o ensino, constituem
essencialmente um monólogo, porque o discente deve confiar
no docente. Em seguida introduz-se essa interessante categoria
de discursos peirásticos, isto é, examinativos, voltados contra
quem presume saber e que se movem essencialmente de pre­
missas concedidas por estes: trata-se de um caso particular de
discursos dialéticos, ou seja, daqueles historicamente praticados
por Sócrates. Sua característica consiste em tomar em exame as
opiniões de alguns, mesmo famosos (não se deve confundir com
os éndoxa, que nunca são submetidos a exame), com o objetivo
de ensaiar sua validez, deduzindo suas conseqüências e procu­
rando pô-las em contradição com algum éndoxon.
O mesmo conceito é retomado mais adiante, quando
Aristóteles diz:
A peirástica é uma espécie de dialética, e indaga não
aquele que sabe, mas aquele que ignora e presume
saber. Aquele, portanto, que estuda os lugares-comuns
segundo a realidade (katá to pragma) é dialético,
enquanto aquele parece fazer isto é sofistico, e o
silogismo erístico e sofistico é aquele que parece ar­
gumentar sobre as coisas das quais a dialética é
peirástica (11, 171 b 4-9).
Ora, confirma-se que a peirástica, isto é, a técnica do exa­
minar (péira), do pôr à prova, de testar a validez, é uma parte
da dialética, e que a sofística e a erística, de novo identificadas,
são dela uma imitação ruim. Mas logo Aristóteles introduz uma
diferença também entre erística e sofística, afirmando que a
primeira tem por fim somente a vitória na discussão, seja qual
for o modo como venha a ser obtida, enquanto a sofística tem
por fim o ganho que deriva da fama de sábio; por isso, enquan­
to a primeira é uma imitação da dialética, a segunda é mais

30
Apodíctica e dialética

propriamente uma imitação da sabedoria (171 b 22-34). Por


fim, ele conclui especificando que nem a dialética nem a
peirástica são propriamente ciências, isto é, fazem verdadeiras
demonstrações, porque se ocupam de tudo e procedem por meio
de perguntas, ambas coisas incompatíveis com o demonstrar
(171 a 11-b 1). Constituem, portanto, uma forma de racionalidade
específica, em tudo independente daquela constituída pela ciên­
cia apodíctica (o que justifica a longa exposição que lhe dedi­
camos). Isso não exclui, todavia, como logo veremos, que a
dialética possa ser usada também pela ciência, o que a toma
particularmente interessante do ponto de vista filosófico.

Os diversos usos da dialética

No capítulo I 2 dos Tópicos, logo após ter definido a


dialética e distinguido o silogismo empregado por ela dos ou­
tros tipos de silogismo (apodíctico e erístico), mas também do
paralogismo, Aristóteles, conformando-se provavelmente a um
costume da tratadística da época (seguido por elé próprio, como
veremos, também no início da Retórica), indica “em relação a
quantas e quais coisas a exposição [da dialética] é útil”, ou
seja, poderíamos dizer, as “utilidades” ou os “usos” da dialética,
declarando logo que são três. A exposição, com efeito, é útil:
1) em relação ao exercício (pros gymnasían), isto é, ao preparo
da própria práxis dialética; 2) em relação aos encontros (pros
tas entéuxeis), ou seja, às discussões que venham a acontecer
com os outros; 3) em relação às ciências propriamente ditas,
porque, para Aristóteles, “ciência” e “filosofia” são sinônimos.
Vejamos separadamente cada um desses três usos, examinemos
passo a passo todo o capítulo, o qual, mesmo sendo freqüen­
temente citado, ainda não foi adequadamente compreendido, na
medida em que contém a chave para entender a verdadeira
relação entre dialética e filosofia, e por isso também a verda­
deira natureza da dialética de Aristóteles.

31
As razões de Aristóteles

1 ) 0 uso “em relação ao exercício”

Que [a exposição] seja útil em relação ao exercício


[à própria dialética], resulta claro das coisas mes­
mas, visto que, caso disponhamos de um método, es­
taremos em condições de argumentar mais facilmente
contra qualquer um em torno do problema proposto
(101 a 28-30).
Esta primeira utilidade é quase óbvia, por isso resulta “das
coisas mesmas”: sua menção por Aristóteles objetiva provavel­
mente ressaltar o caráter “técnico” — isto é, de método, no
sentido de disciplina, de arte — próprio de sua exposição da
dialética, e que o induzirá a dizer, no termo da obra:
todos recusam, visto que participam sem arte (atékhnos)
disso de que a dialética se ocupa com arte (entékhnos),
enquanto que aquele examina com arte silogística é
dialético (Refutações sofísticas 11, 172 a 34-36).
Pode-se dizer que este primeiro uso da dialética tem cará­
ter pessoal, ou privado, isto é, de estudo, de preparo, de ades­
tramento em uma prática largamente disseminada e todavia não
ainda adequadamente disciplinada, a fim de que se a pratique
com mais facilidade, mais eficazmente.
Vale a pena notar, a esse respeito, que Aristóteles caracte­
riza tal uso da dialética fazendo recurso ao próprio termo “exer­
cício” (gymnasia), do qual Platão no Parmênides servira-se para
indicar a técnica argumentativa praticada por Zenão de Eléia —
exatamente por aquele que em seguida o próprio Aristóteles con­
siderou o “inventor” da dialética. Assim, de fato Platão fazia dizer
pelo velho Parmênides ao jovem Sócrates, desorientado pelas crí­
ticas movidas pelo primeiro à doutrina das idéias:
“Pois fica sabendo que é belo e divino o entusiasmo
com que te atiras a essas discussões. Enquanto és

32
Apodictica e dialética

moço, exercita-te (gymnasia,) mais de espaço nessas


práticas consideradas inúteis pelo vulgo e que dele
receberam o nome de parolagem. De outra forma, a
verdade te escapará”.
“Em que consiste, Parmenides”, teria perguntado, “se­
melhante exercício?”
“O que ouviste agora mesmo de Zenão”,fo i sua res­
posta (Parmênides 135 d)12.
É impossível que, no momento em que se preparava para
ilustrar a utilidade da dialética, Aristóteles não se recordasse
dessa passagem, na qual se defende a própria dialética contra
“a maioria” que a considera inútil, e se a apresenta como o
“exercício” inaugurado por Zenão. De resto, conclui-se, por
vários indícios, que Aristóteles tinha bem presente o Parmênides
— a partir dele, aliás, Aristóteles atingira o famoso argumento -
do “terceiro homem” — e não podia ignorar, tendo dedicado
pela primeira vez à dialética todo um tratado, o elogio que
neste diálogo faz a ela Platão, apresentando-a como condição
indispensável para que a “verdade” não escape. Mas, se se
recordava dele, não podia sequer escapar-lhe o fato de que aqui
a personagem de Parmênides, isto é, o próprio Platão, propunha
a Sócrates uma dialética como a praticada por Zenão, quase
subentendendo que a dialética de Sócrates não era ainda sufi­
ciente para defender a doutrina das idéias, e antes reformulava
ele mesmo a dialética zenoniana em uma versão mais comple­
ta, na qual não se limitava a deduzir dela as consequências de
uma hipótese, como fizera Zenão, mas fazia a mesma operação
também em relação à hipótese oposta à primeira (cf. Parmênides
135 e-136 a).

12. Trad. A. Zadro, Roma-Bari, Laterza, 19864. [Parmênides, trad.


Carlos Alberto Nunes, Belém, Ed. da Universidade Federal do Pará,
1974. N. do T.]

33
A s razões de Aristóteles

2) O uso “em relação aos encontros’’

[A exposição] é, em seguida, útil em relação aos en­


contros, porque, após ter enumerado as opiniões de
muitos, discutiremos com eles não a partir de convic­
ções estranhas, mas daquelas que são as suas próprias,
corrigindo o que eventualmente nos pareça não ex­
pressar muito bem (101 a 3 0 3 4 ‫)־‬.
Aqui se trata daquilo que poderíamos denominar o uso
público da dialética, isto é, o uso mais próprio, mais natural a
ela, no qual entram, por exemplo, as discussões políticas, de­
senvolvidas nas assembléias deliberativas ou consultivas, e os
debates judiciários, que se realizam nos tribunais. Trata-se, como
teriam dito em seguida os escolásticos, de discussões ad
hominem, onde importa sobretudo prevalecer sobre o próprio
interlocutor, obtendo o reconhecimento de quantos assistam à
discussão. É evidente, para esse objetivo, a utilidade da dialética,
que ensina a argumentar sobre a base das opiniões partilhadas
por muitos, isto é, pelos ouvintes e pelos próprios interlocutores.
No interior deste uso se põe a maior parte das argumentações
dialéticas normalmente praticadas, e é essencialmente a este
uso que Aristóteles pensa todas as vezes comparar a dialética
a outras formas de racionalidade, por exemplo à ciência
apodíctica ou, como veremos, à retórica.

3 ) 0 uso “em relação às ciências filosóficas”

Quanto ao terceiro uso da dialética, aquele que tem relação


com as ciências em geral, e por isso também com a que deno­
minamos filosofia em sentido estrito, Aristóteles subdivide-o
em dois aspectos, do qual o primeiro é o seguinte:
[a exposição], enfim, é útil em relação às ciências
filosóficas, porque, se formos capazes de desenvolver

34
Apodíctica, e dialética

as aporias em ambas as direções, distinguiremos mais


facilmente em cada uma o verdadeiro e o falso (101
a 34-36).
Para compreender este terceiro uso, de valor decisivo, sobre
o qual até agora não se refletiu bastante, tenha-se presente,
antes de tudo, que ele se põe no interior de uma ciência filo­
sófica, isto é, tem por fim o conhecer, em segundo lugar, que
tem a ver com as “aporias” — como diz o próprio Aristóteles,
com as situações de bloco produzidas pela “igualdade de racio­
cínios opostos” (Tópicos VI 6, 145 b 2); vale dizer, com os
dilemas nos quais argumentos igualmente fortes militam a fa­
vor de uma ou outra solução; em terceiro lugar, que o “desen­
volver as aporias em ambas as direções” (pros amphótera
diaporésai) consiste em deduzir até o fundo as conseqüências
que derivam da cada uma das alternativas do dilema, para ver
a quais conclusões se chega, isto é, se se chega ou não a con­
clusões contraditórias consigo mesmas ou com outras posições
precedentemente admitidas13. Pois bem, segundo Aristóteles
afirma, tal procedimento permite ver mais facilmente “em cada
uma das duas direções” o verdadeiro e o falso, ou seja, permite
ver qual das duas soluções é verdadeira e qual é falsa, ou quais
elementos do verdadeiro e quais elementos do falso estão con­
tidos em cada uma delas (freqüentemente, aliás, como veremos
em seguida, Aristóteles não escolhe somente uma das duas
alternativas do dilema, mas observa que cada uma, sob certos
aspectos, diz o verdadeiro e, sob outros, diz o falso). Ora, não
há dúvida de que distinguir o verdadeiro e o falso é de grande
utilidade para as ciências filosóficas, porque isto é exatamente
o que elas se propõem.

13. Esta explicação se deduz de H. Bonitz, Index aristotelicus,


187 b 30-31, onde se liga o sentido próprio do verbo em questão
(diaporéin) a “ex quaestione in utramque partem instituta explorare”
[“explorar nos dois sentidos a partir da questão posta”. N. do T.]

35
A s razões de Aristóteles

A confirmação da leitura aqui feita vem de outra passagem


dos Tópicos, onde Aristóteles declara:
em relação ao conhecimento e à inteligência filosófi­
ca, o poder abraçar com um olhar de conjunto as
conseqiiências que derivam de cada uma de suas hi­
póteses é um instrumento (órganon) não pequeno; o
que permanece, com efeito [para fazer], é o escolher
retamente uma das suas (VIII 14, 163 b 9-12).
Como já se notou, este modo de proceder é exatamente
aquele posto em prática por Platão na últim a parte do
Parmênides, isto é, o “exercício” inaugurado por Zenão e inte­
grado com o desdobramento da hipótese oposta à primeira14. O
que, a meu ver, nunca foi suficientemente ressaltado é que este
uso da dialética é “cognitivo”, permite conhecer o verdadeiro
e o falso, e, portanto, faz da dialética um “instrumento”
(órganon), vale dizer, um método da própria filosofia, sobre as
inegáveis diferenças que permanecem entre as duas.
A referência ao Parmênides de Platão, aliás, é a chave que
permite explicar outra famosa passagem de Aristóteles sobre a
dialética, a meu ver estreitamente ligada àquela que examina­
mos há pouco: a indicação da diferença entre a dialética prati­
cada por Sócrates e outra dialética, mais “forte”, contida no
livro XIII da Metafísica. Aqui Aristóteles afirma textualmente:
aquele [isto é, Sócrates] justamente procurava a es­
sência, visto que procurava silogizar [cientificamen­
te] e o princípio dos silogismos [científicos] é a es-

14. Um aceno a esta convergência com Platão já está em A.


Zadro, Commento a Aristotele. I Topici, Napoli, Loffredo, 1974, p.
541. Eu mesmo procurei desenvolver mais amplamente a relação com
Platão em “Aristote et la méthode dialectique du Parménide de Platon”,
in Revue Internationale de Philosophie, 34: 341-358, 1980.

36
Apodíctica e dialética

sência; naquele tempo, com efeito, não havia ainda


uma força dialética tal que pudesse investigar os
opostos também independentemente da essência, e se
[isto é, em quais casos] a ciência dos opostos é a
mesma {Metafísica XIII 4, 1078 b 23-27)15.
A “força dialética” {dialektiké iskhys) aqui mencionada,
que não existia ainda no tempo de Sócrates, e que estava em
condição de investigar os opostos independentemente da essên­
cia, só pode ser a dialética praticada por Platão no Parmênides
e retomada posteriormente por Aristóteles no uso “cognitivo”
de sua dialética. “Investigar os opostos” significa, com efeito,
estabelecer o valor, de verdade ou de falsidade, das duas solu­
ções opostas de uma mesma aporia, o que Platão faz deduzindo
as conseqüências que derivam de ambas, para ver quais levam
a conclusões impossíveis e quais, ao contrário, não. Tudo isso
pode ser feito “independentemente da essência”, isto é, sem
pressupor o conhecimento dos princípios, porque não se trata
de uma racionalidade apodíctica, mas de uma racionalidade
dialética, mesmo em seu uso cognitivo.
Quanto a investigar “se a ciência dos opostos é a mesma”,
não pode consistir na simples referência ao lugar-comum da
Academia platônica, segundo o qual a ciência dos contrários é,
exatamente, a mesma, mas alude a uma investigação capaz de
estabelecer em quais condições a ciência dos opostos é a mes-

15. Para uma resenha das discussões, mas também uma interes­
sante interpretação desta passagem, veja-se C. Rossitto, “La dialettica
platónica in Aristotele, Metafísica A 6 e M 4”, in Verifiche. 7: 487-508,
1978. Para uma mais ampla justificação da interpretação por mim
proposta, compreendidas as explicações acrescidas em colchetes, veja-
-se o meu ensaio “Differenza tra la dialettica socratica e quella platónica
secondo Aristotele, Metaph. M 4”, in AA.VV. Energeia. Études
aristotéliciennes ojfertes à Mgr Antonio Jannonne, Paris, Vrin, 1986,
pp. 50-65.

37
A s razões de Aristóteles

ma e em quais não. Uma menção clara e explícita de tal inves­


tigação encontra-se em um fragmento do tratado perdido de
Aristóteles Dos opostos, citado por Simplício, que diz:
Eu mesmo, Aristóteles, no livro Dos opostos, procurei
se alguém, tendo rejeitado um dos dois [opostos], não
deva necessariamente acolher o outro, pelo que [se
perguntou]: há alguma coisa entre estas ou absoluta­
mente nada? Aquele, com efeito, que rejeitou a opi­
nião verdadeira não acolhe necessariamente a opi­
nião falsa, nem aquele [que rejeitou] a falsa [acolhe] a
verdadeira, mas em certos casos desta opinião [isto é,
da falsa] passa ou a não supor absolutamente nada, ou
a ciência, e entre a opinião verdadeira e a falsa não há
nada no meio, senão ignorância, e não ciência16.
Os diversos casos aqui distinguidos são, evidentemente, o
da oposição entre opiniões simplesmente contrárias, que podem
ser ambas falsas, e o da oposição entre opiniões propriamente
contraditórias uma em relação à outra, as quais, pelo princípio
do terceiro excluído, são necessariamente uma verdadeira e a
outra falsa. E claro que no primeiro caso o conhecimento da
falsidade de uma não implica o conhecimento de qual é a ver­
dade, enquanto, no segundo caso, o conhecimento de qual é a
opinião falsa coincide imediatamente com o conhecimento de
qual é a verdadeira, por isso “a ciência dos opostos é a mes­
ma”. Em tal caso, a dialética é verdadeiramente “forte”, porque
permite “distinguir mais facilmente em cada uma [das duas
opiniões] o verdadeiro e o falso”.
Mas há também um segundo motivo pelo qual a dialética
é útil às ciências filosóficas, que Aristóteles ilustra, sempre no
capítulo 2 dos Tópicos, do seguinte modo:

16. Cf. Simplício. In Cat. 390, 19-25. A passagem é referida por


W. D. Ross como fragmento 4 do Perí enantíon, e por O. Gigon como
fragmento 625 de sua coletânea (referida, porém, ao Perí antikeiménon).

38
Apodíctica e dialética

além [da exposição] é útil em relação às primeiras


entre as proposições concernentes a cada ciência. A
partir, com efeito, dos princípios próprios à ciência
em questão, é impossível dizer alguma coisa sobre
ela, visto que os princípios são primeiros entre todas
as proposições, mas é, ao contrário, necessário pro­
ceder a propósito deles por meio dos éndoxa con­
cernentes a cada coisa. Isso é peculiar à dialética ou
é próprio sobretudo dela; sendo, com efeito, inter­
rogativa, ela possui o caminho para os princípios de
todas as exposições científicas (101 a 36-b 4).
Nesta passagem, toma a ser proposto o problema do co­
nhecimento dos princípios de cada ciência, que vimos emergir
da descrição da ciência apodíctica; confirma-se, além disso, a
impossibilidade de demonstrá-los, porque a demonstração su­
põe que derivem de outro, ao passo que os princípios são já por
si mesmos primeiros; enfim, afirma-se que só resta um proce­
dimento aplicável a eles, o que se serve dos éndoxa, isto é, a
dialética. Esta última, sendo “interrogativa” (exetastiké), exa-
minativa, investigativa (exétasis, como sabemos, é sinônimo de
péira), possui o caminho que conduz aos princípios de todas as
disciplinas, ou seja, serve para chegar ao conhecimento destes.
Provavelmente aqui Aristóteles alude ao processo que conduz
ao conhecimento dos princípios, do qual falamos a propósito da
inteligência: a ciência an-apodíctica, o noüs. Se isso é verda­
deiro, pode-se dizer que a dialética é o processo que se conclui
com o noüs, isto é, com o conhecimento dos princípios. Ela não
é, por si mesma, tal conhecimento, mas é a investigação, o
percurso (o “caminho”) que se realiza para chegar a ele, o qual,
ao contrário, é constituído pelo noüs.
Então se compreende quão grande é a utilidade da dialética
para Aristóteles: não apenas serve ela às ciências filosóficas para
distinguir o verdadeiro e o falso “independentemente da essên­
cia”, isto é, lá onde não há princípios, e por isso não se podem

39
A s razões de Aristóteles

fazer verdadeiras demonstrações; mas ela serve a essas mes­


mas ciências também para chegar à descoberta de seus princí­
pios, para instituir aquela forma de conhecimento superior à
própria ciência e “princípio da ciência” que Aristóteles iden­
tifica à inteligência. Na falta de outros indícios, deve-se supor
que o procedimento do qual a dialética se serve para chegar ao
conhecimento dos princípios é o mesmo que lhe permite dis­
tinguir mais facilmente o verdadeiro e o falso nas opiniões
opostas; ela demonstra-se “forte” quando em relação com
oposições não de simples contraditoriedade, mas de verdadeira
contradição.
Essas afirmações não contrastam com a diferença entre
dialética e ciência, outras vezes confirmada. A dialética, com
efeito, por si mesma não conhece, mas permite apenas discutir,
examinar, criticar. Eis por que, quando ela se quer substituir à
ciência, por exemplo ao dar uma definição, não tem nenhum
valor, e o proceder dialeticamente (dialektikós) equivale a um
falar “no vazio” (kenós) (De anima I 1, 403 a 2), isto é, de
maneira puramente verbal (logikós) (Ética a Eudemo 18, 1217
b 21). Talvez com essas expressões Aristóteles aluda a certos
usos que da dialética faziam os próprios platônicos, demasiada­
mente ligados, para ele, às idéias puras, isto é, aos universais,
que, em todo caso, são somente palavras vazias (por exemplo,
quando querem substituir as causas reais, físicas, ativas). Isso
não exclui, porém, o fato de que a dialética possa servir à
ciência, quando as críticas que ela opera, e, mais precisamente,
as refutações que realiza de certa tese, mediante sua redução à
autocontradição, aconteçam no interior de um dilema, ou seja,
de uma alternativa formada por proposições contraditórias en­
tre si. E claro, com efeito, que, em tal caso, a refutação de uma
proposição, isto é, sua falsificação, equivale à demonstração da
proposição a ela oposta. Nem sempre, portanto, mas, em certos
casos, a dialética pode fazer conhecer, isto é, ser instrumento
ou método da ciência.

40
Apodíctica e dialética

A análise semântica como instrum ento da dialética

Além dos “usos” ou das “utilidades” da dialética para as


ciências, é importante assinalar, enfim, de quais operações a
própria dialética faz uso, ou seja, o que é “útil” a ela, porque
essas mesmas operações, por meio da dialética, serão posteri­
ormente úteis também à ciência. A mais importante delas, como
Aristóteles mesmo afirma, seja nos Tópicos, seja nas Refuta­
ções sofísticas, é a distinção entre os diversos significados de
uma mesma palavra, o que poderíamos denominar análise se­
mântica, parte essencial da análise da linguagem. Além das
premissas, com efeito, que são proposições, nas argumentações
são importantes os termos, isto é, as palavras, que devem ser
usadas sempre no mesmo sentido; de outro modo dariam lugar
a equívocos. De onde a necessidade, para a dialética, que quer
argumentar corretamente e controlar a correção das argumenta­
ções alheias, de ver quantos significados tem cada uma das
palavras empregadas, ou seja, em quantos sentidos (posakhós)
ela se diz, se em um apenas (monakhós) ou em muitos
(pollakhós) (Tópicos I 15). Daí a necessidade de examinar as
diferenças e semelhanças entre as várias coisas, para saber se
algumas são espécie do mesmo gênero, em cujo caso não há
diferença de significado nos usos do termo a este correspon­
dente, ou se, ao contrário, pertencem a gêneros diversos, em
cujo caso há diferença de significado (I 16-17).
Tudo isso é útil — afirma Aristóteles — não apenas para
a clareza, mas também para ser seguro de que se está falando
de coisas, e não apenas de palavras, e para evitar cometer para­
logismos, ou para distinguir se os comete um outro (1 18). Mas,
sobretudo, a análise semântica é útil para desmascarar as falsas
refutações, isto é, as refutações sofísticas, que se baseiam exa­
tamente em equívocos. O tópos, o esquema de argumentação
mais eficaz que se pode usar contra os sofistas, é, com efeito,
observa Aristóteles, aquele por meio dos nomes.

41
As razões de Aristóteles

Visto que. com efeito, não é possível discutir apresen­


tando as próprias coisas, mas usando seus nomes no
lugar das palavras como símbolos, consideramos que
o que acontece aos nomes aconteça também às pala­
vras, como acontece com aqueles que fazem cálculos
ser\’indo-se de pedrinhas. Mas as duas situações não
são idênticas, visto que os nomes e a quantidade de
palavras são limitadas, enquanto as coisas são cm
número ilimitado. É necessário, portanto, que a mes­
ma palavra e o nome único signifiquem a mesma coisa.
Como. portanto, também naquele caso os que não são
hábeis em apresentar as pedrinhas são enganados por
aqueles que sabem, do mesmo modo também a propó­
sito das palavras aqueles que não estão familiariza­
dos com os significados dos nomes fazem paralogismos
seja discutindo eles próprios, seja escutando outros
{Refutações sofísticas 1, 165 a 6-17).
A distinção dos significados das palavras, isto é. a análise
semântica, é, portanto, instrumento indispensável para a dialética.
Veremos nos próximos capítulos como se dá essa análise, seja
o submeter a exame as opiniões alheias, seja o desenvolver as
aporias em suas direções opostas, sejam todos os procedimen­
tos usados pelas principais ciências filosóficas.

42
(?apitub Q$òe<jwdfí

método da física

O “ prim ado” da física e sua “ fraqueza”

ntes de proceder à exposição do método da física.


A com o objetivo de ver qual forma de racionalidade ele
configura, é necessário justificar o "primado” assinalado a
essa ciência em relação a todas as outras “ciências filosó­
ficas” cultivadas por Aristóteles, explicando por que. logo
após ter falado das formas de racionalidade em geral, con­
sideramos dever examinar em primeiro lugar a da física.
Para dizer a verdade, para os cultores da filosofia aristotélica
esse “primado” é totalmente óbvio e foi consagrado pela
própria ordem na qual os tratados científicos de Aristóteles
foram dispostos na primeira edição complexiva que tive­
ram. realizada por Andrônico de Rodes no século I a.C.
Aqui, com efeito, às obras de lógica, que abriam a série
formando a coletânea denominada Organon, seguiam-se ime­
diatamente as de física, a Física propriamente dita e várias
outras, relativas à cosmologia, à psicologia, à biologia, à
zoologia, a todas as “ciências naturais”, e somente então
encontrava-se a Metafísica, assim denominada exatamente
por sua posição: "depois” {meta) da física. Esta é a ordem.

43
A s razões de Aristóteles

aliás, ainda hoje seguida, inclusive nas modernas edições crí­


ticas de Aristóteles1.
Ao contrário, a maior parte dos manuais de história da
filosofia, e também muitas monografias dedicadas a Aristóteles,
põem habitualmente, logo após a lógica, antes de tudo a
metafísica e em seguida a física, assinalando, desse modo, à
física uma posição subalterna em relação à metafísica e fazen­
do desta última uma espécie de fundamento geral de todo o
sistema aristotélico. Tal plano geral tem uma origem ilustre,
remonta nada menos que a Hegel, o qual, em suas Lições sobre
a história da filosofia, primeira história da filosofia escrita na
idade moderna com critérios propriamente filosóficos e ao
mesmo tempo com fortíssimo senso histórico, dividiu o capítu­
lo sobre Aristóteles em quatro grandes parágrafos, dedicados
respectivamente à metafísica, à “filosofia da natureza”, à “filo­
sofia do Espírito” e à lógica. Caso se prescinda deste último
parágrafo — que, como já vimos, constitui para Hegel uma
anomalia no que se refere à lógica nele exposta (segundo o
filósofo alemão, não é aquela efetivamente seguida por
Aristóteles na construção de seu sistema, mas apenas aquela
por ele teorizada) — , os três parágrafos remanescentes
correspondem exatamente, como todos vêem, à tripartição do
próprio sistema hegeliano. A única diferença é que a metafísica
ocupa, na exposição do pensamento de Aristóteles, o lugar que
no sistema hegeliano é ocupado pela lógica, porque Hegel re­
conhecia na metafísica de Aristóteles o mesmo tipo de discurso
que ele mesmo desenvolvera na própria lógica, ou seja, uma

1. A primeira delas, muito famosa, foi organizada por I. Bekker,


para a Academia de Ciências de Berlim (Aristotelis Opera, 2 vols,
Berolini, 1830-1831), e a ela se refere a numeração das páginas e das
colunas ainda hoje citada. Foi republicada e organizada por O. Gigon,
pela editora de Gruyter, sempre de Berlim, em 1960, em dois volumes,
à qual se seguiu em 1987 o III, ciL, que continha os fragmentos.

44
O método da física

lógica não-formal, mas “material”, isto é, que exprimia a pró­


pria estrutura da realidade.
A interpretação hegeliana influenciou profundamente a
maior história da filosofia antiga escrita no século XIX, A f i ­
losofia dos gregos de Eduard Zeller, porque este, no tempo em
que publicou a primeira edição de sua obra, ainda seguia a
concepção histórico-filosófica própria de Hegel. Zeller limitou-
-se, com efeito, a restabelecer no primeiro lugar do sistema
aristotélico a lógica, mas conservou, para todo o resto, a ordem
estabelecida por Hegel, pondo a metafísica antes da física. Sua
autoridade foi tão determinante sobre todos os estudiosos pos­
teriores de filosofia antiga que grande parte deles continuou
a seguir a mesma ordem e, desse modo, a física veio a encon-
trar-se quase sempre posposta à metafísica. Se essa ordem, po­
rém, podia ter alguma justificação para Hegel, à luz de seu
sistema filosófico, não tem nenhuma para aqueles que não pro­
fessam sua filosofia, a começar do próprio Zeller, que, a partir
da segunda edição de sua obra maior, deixou de ser hegeliano
e, todavia, continuou a manter a ordem indicada por Hegel.
Mas, sobretudo essa ordem não tem nenhuma justificação para
Aristóteles, sendo que também ele impediu uma compreensão
direta tanto da física como da metafísica.
Para Aristóteles, sem sombra de dúvida, a física deve pre­
ceder a metafísica, porque é o conhecimento dos princípios e
das causas primeiras (isto é, a “ciência”) da natureza, vale di­
zer, daquela realidade (que compreende também o homem, o
qual, segundo Aristóteles, faz parte da natureza) que primeira­
mente se apresenta à nossa investigação, ou seja, é a mais
conhecida “por nós”, e que, até o momento em que não seja
descoberta outra realidade, transcendente, isto é, posterior em
relação a ela, constitui com toda razão para nós a totalidade do
real. Apenas após ter levado a termo a física e descoberto, por*
meio da própria física, a existência de uma realidade diferente
da natureza, Aristóteles admitiu uma ciência diferente e poste-

45
A s razões de Aristóteles

rior em relação à física, dedicada ao estudo desta nova realida­


de: a metafísica. Mas esta só podia vir “depois” da física, por­
que sua própria razão de ser, sua legitimação, é dada somente
pela física.
Não é exatamente verdade que a física de Aristóteles de­
penda de sua metafísica, como muitos acreditam, mas é verda­
deiro o contrário, porque a metafísica é justamente o êxito
extremo da física, e no âmbito desta última Aristóteles formula
suas mais importantes doutrinas, aquelas que regem toda a sua
visão de realidade, antes de todas a famosa doutrina das quatro
causas, segundo a qual para toda realidade natural é necessário
procurar as causas formal, material, motora e final. Esta era
indubitavelmente considerada por Aristóteles a mais importante
de todas as suas doutrinas, sua principal contribuição para a
história da filosofia, como se prova pelo fato de — lá onde ele
delineia a primeira história da filosofia que tenha sido escrita,
isto é, no livro I da Metafísica — ele julgar todos os seus
predecessores, de Tales a Platão, à luz da doutrina das quatro
causas, elogiando-os ou criticandQ-os conforme eles tenham se
aproximado dele ou não; e, para a fundação desta doutrina, que
ele considera descoberta sua, limita-se simplesmente a remeter
à sua Física. Por este motivo um dos maiores estudiosos con­
temporâneos da filosofia aristotélica, Wolfgang Wieland, falou
justamente de um “primado” da física em Aristóteles.
Estabelecido, portanto, que o primeiro âmbito no qual
examinar na obra as diversas formas de racionalidade teorizadas
por Aristóteles deve ser a física, vejamos, antes de tudo, se e
em qual medida ela realiza o tipo de racionalidade que, enquan­
to “ciência”, mais lhe compete, isto é, a racionalidade apodíctica,
ou demonstrativa, como teorizada por Aristóteles nos Segundos
analíticos. Ali, como vimos, Aristóteles parece convencido de
que o “estatuto” por ele estabelecido para a ciência — isto é,
a demonstração das propriedades de determinado objeto a par­
tir dos princípios próprios a ele, ou seja, a apreensão de sua

46
O método da física

existência e a definição de sua essência — valha para todas as


ciências propriamente ditas: em primeiro lugar, para as ciências
matemáticas (aritmética e geometria), das quais são extraídos
quase todos os exemplos que servem para ilustrar os objetos da
ciência, seus princípios e propriedades; mas também para a
física, da qual são extraídos alguns exemplos de definições,
como a definição de eclipse (tema astronômico) e a de trovão
(tema meteorológico).
Parece, todavia, que já nos Segundos analíticos Aristóteles
admitia uma diferença entre os princípios próprios das matemá­
ticas e os próprios da física, em particular no que concerne às
definições dos respectivos objetos. A melhor definição — diz
Aristóteles — , isto é, aquela que permite a demonstração mais
completa das propriedades de um objeto, é a definição causal,
aquela que indica a causa primeira pela qual o objeto é o que
é (II 10). Por exemplo, no caso do eclipse, sua verdadeira
definição científica é “privação da luz da Lua por causa da
interposição da Terra” (II 2), e, no caso do trovão, sua verda­
deira definição científica é “barulho causado pela extinção do
fogo em uma nuvem” (II 8). Aqui logo se vê a diferença entre
as definições usadas pelas matemáticas e as usadas pela física:
enquanto as primeiras, com efeito, recorrem exclusivamente
àquela que, segundo a distinção aristotélica dos quatro tipos de
causa, é a causa formal, isto é, a essência, as segundas, ao
contrário, devem recorrer a todos os diversos tipos de causa;
não apenas à formal, mas também à motora, à material e à
final. Todos os quatro tipos de causalidade, de resto, são men­
cionados nos Segundos analíticos (II 11).
Isso parece implicar que o conhecimento dos princípios
próprios, que Aristóteles confia, como vimos, a uma faculdade
diferente da ciência propriamente dita, isto é, à inteligência —
e que ele considera o resultado de um processo que parte da
sensação — , complique-se um pouco mais no caso da física do
que no caso das matemáticas. Efetivamente, enquanto parece

47
A s razões de Aristóteles

não haver muita dificuldade para a inteligência em entender a


definição de ponto, linha ou triângulo, parece, ao contrário,
haver um pouco mais de dificuldade em encontrar a causa
formal, ou a causa motora, de um objeto físico como o eclipse
ou o trovão. No que se refere, em suma, ao conhecimento dos
princípios, a tarefa da física parece ser um pouco mais comple­
xa em relação à das matemáticas.
Esta impressão é confirmada pelo que afirma Aristóteles,
a propósito da física e das matemáticas, no livro VI da Meta­
física, onde estabelece sua célebre classificação das ciências
teoréticas. Aqui ele aplica tanto à física como à matemática
(considerada em seu conjunto) a teoria exposta nos Segundos
analíticos, admitindo, porém, entre essas duas ciências uma
diferença no modo como põem os respectivos princípios e no
grau de rigor com o qual formulam as respectivas demonstrações:
Toda ciência racional (dianoetiké) ou partícipe em
alguma medida da racionalidade (diánoia) [primeira
alusão à diferença entre matemática e física] tem suas
causas e princípios ou mais rigorosos ou mais simples
[isto é, menos rigorosos: segundo alusão à mesma
diferença]. Mas todas essas ciências, após ter cir­
cunscrito algum ente e algum gênero, tratam deste,
não do ser simplesmente nem enquanto ser, nem fo r­
necem alguma explicação da essência, mas, a partir
desta, algumas, tendo-a tomado clara por meio da
sensação, outras tendo assumido a essência como hi­
pótese, assim demonstram ou de modo mais necessá­
rio ou de modo mais maleável (malakóteron) as coi­
sas que pertencem por si ao gênero do qual têm parte
(1025 b 6-13).
Evidentemente, a ciência que toma clara a essência de seu
objeto por meio da sensação é a física, enquanto aquela que a
põe como hipótese é a matemática; esta última, além disso,

48
O método da física

demonstra “de modo mais necessário”, enquanto a primeira


demonstra “de modo mais maleável”. Vimos que a necessidade
das conclusões era, para Aristóteles, um dos caracteres essen­
ciais da ciência apodíctica; o fato de que a física se distancie
da matemática exatamente a propósito de tal caráter significa
que ela, mesmo sendo uma ciência em sentido próprio, e ciên­
cia de algum modo demonstrativa, possui uma forma diferente
de racionalidade, caracterizada exatamente pela “maleabilidade”,
a qual não é um grau menor de necessidade, porque a neces­
sidade não tem graus, mas é realmente um caráter diferente.
Caso se quisesse aplicar a essas formas de racionalidade uma
terminologia vinda de moda recente, poder-se-ia dizer que a
racionalidade da matemática é mais “forte” e a da física é mais
“fraca”, sem, todavia, que isto tire algum valor cognitivo da
física, porque essa sua “fraqueza”, como logo veremos, deve-
se à natureza de seu objeto e lhe permite ser mais aderente a
este último, isto é, conhecê-lo melhor.
Sempre no livro VI da Metafísica, Aristóteles diz qual é o
objeto da física, ou seja, “qual gênero de substância possui em
si mesma o princípio do movimento e do repouso” (1025 b 19-
21), “qual gênero de ente é suscetível de mover-se”, isto é, a
natureza ou as substâncias naturais; mas em seguida acrescenta
que ele é “a substância que geralmente (hos epí to poly) é
segundo a forma, apenas não é separada” (b 2 6 2 8 ‫ ;)־‬o que
significa que é um objeto não somente material, mas também
determinado por certa forma (sem, porém, ser totalmente sepa­
rado da matéria como os objetos da matemática), e, todavia,
nem “sempre” é determinado por ela, como os objetos da
matemática, mas apenas “geralmente”.
Vimos, nos Segundos analíticos, que a ciência demonstra­
tiva pode demonstrar que as coisas “sempre” estão de certo
modo, isto é, necessariamente, ou “geralmente”, quer dizer, na
maior parte dos casos. Pois bem, não há dúvida de que o modo
“mais maleável”, com o qual a física demonstra as proprieda-

49
A s razões de Aristóteles

des de seus objetos, está ligado a esse caráter de “geralmente”


a elas atribuído na passagem recém-citada. Esta, portanto, é a
razão da diferença entre o modo de demonstrar próprio da ma­
temática e o modo próprio da física: a relação do objeto com
a matéria e o movimento, que introduz nele uma margem de
indeterminação, pelos quais as demonstrações que se fazem a
propósito dele valem não sempre, mas geralmente, na maior
parte dos casos, no geral segundo uma regra que, como todas
as regras, admite alguma exceção. Um exemplo de tal regra,
freqüentemente citado por Aristóteles, é o que diz que “o ho­
mem gera o homem”, do qual pode haver alguma exceção,
quando, por causas imprevisíveis, seja como for dependente da
matéria e não da forma, o homem gera um monstro. Também
a física, portanto, é uma ciência demonstrativa, mas dotada de
uma racionalidade diferente daquela da matemática, isto é, “mais
maleável”, válida não sempre, mas “geralmente”.
Há outra importante diferença ressaltada por Aristóteles,
sempre no livro VI da Metafísica, no qual ele declara que não
se deve nunca perder de vista a essência e a forma, porque sem
elas toda investigação toma-se vã (1025 b 28-30). Aqui ele
parece atribuir muita importância, para a física, à investigação
da essência, mais precisamente da causa formal, para o seu
objeto. E, após ter distinguido as essências com as quais se
ocupa a física daquelas com as quais se ocupa a matemática,
por meio do célebre exemplo da forma de “chato” (inseparável
da matéria, isto é, do nariz) e da forma de “curvo” (separável
dela), e ter dito que as realidades naturais — isto é, as plantas,
os animais e suas partes — têm as essências semelhantes à
forma de chato, Aristóteles conclui:
é claro o modo pelo qual, nas realidades naturais, se
deve procurar a essência e defini-la, e por qual razão
é próprio do físico investigar inclusive alguns tipos de
alma, isto é, aqueles que não são sem matéria (1026
a 4-6).

50
O método da física

Isso confirma que o “procurar a essência” (to ti esti zetéin),


ou seja, a forma (a alma vegetativa, no caso das plantas, e a
alma sensitiva, no caso dos animais), é uma importante tarefa
da física. Em suma, malgrado a afirmação de que a física,
como a matemática, é essencialmente uma ciência demonstra­
tiva, que pressupõe a existência e a essência do seu objeto, e
deriva somente de suas propriedades, Aristóteles parece atribuir
a ela a tarefa de investigar a essência, ou seja, a causa, ou os
diversos tipos de causa, de um modo complexo, menos imedi­
ato do que aquele pelo qual o faz a matemática.
Isso é confirmado também pelo livro “a minúsculo” da
Metafísica, isto é, o II, o qual, como indica o seu nome, foi
introduzido na série depois dela já completa; livro que, prova­
velmente, não pertencia originariamente a essa obra, mas servia
como introdução a uma exposição ainda não distinta em uma
parte física e uma metafísica2. Seu capítulo terceiro, com efeito,
é explicitamente dedicado à ilustração do método da física, a
propósito do qual afirma:
alguns não aceitam se algum dos oradores não fala
de modo matemático, outros se não fala servindo-se
de exemplos, outros também exigem que se apresente
o testemunho de um poeta. Além disso, alguns exigem
que tudo seja dito de modo rigoroso (akrikós), outros,
ao contrário, sentem-se aborrecidos pelo rigor, ou
porque não são capazes de compreender as relações
ou por aversão às sutilezas. Com efeito, o rigor tem
alguma coisa desse gênero, de maneira que, como nos
negócios, também nos discursos a alguns pareça
mesquinho (995 a 6-12).

2. Para uma demonstração mais ampla desta tese, permito-me


remeter ao meu ensaio “La fonction de Metaph. Alpha Elatton dans la
philosophie d’Aristote”, in P. Moraux e J. Wiesner (orgs.), Zweifelhaftes
im Corpus Aristotelicum, Berlim, de Gruyter, 1983, pp. 260-294.

51
A s razões de Aristóteles

Nesta passagem Aristóteles contrapõe dois tipos opostos


de discurso, o matemático, caracterizado por um rigor total, e
outro, facilmente identificável com aquele da retórica, privado
de rigor e caracterizado, ao contrário, pelo uso de exemplos e
testemunhos poéticos. Nenhum deles corresponde à física, como
se deduz pelo que segue:
o discurso rigoroso da matemática não deve ser rei­
vindicado para todas as coisas, mas apenas para
aquelas que não têm matéria. Por isso, este modo
(tropos) não é físico, enquanto toda a natureza tem
certamente matéria (995 a 14-17).
A física, portanto, não pode ter o rigor total próprio da
matemática, por causa da materialidade do seu objeto, mas
também não o simples nível de exemplos e testemunhos poé­
ticos, que parece ser próprio da retórica: a física também tem,
com efeito, um “modo” seu, ou tropos, uma forma sua de
racionalidade, um método seu: algumas linhas antes Aristóteles
dissera que é absurdo procurar simultaneamente a ciência e o
modo da ciência (tropos epistémes), admitindo claramente que
a física é uma ciência. Pode-se dizer, em suma, que a física
põe-se em um nível de rigor intermédio entre o da matemática
e o da retórica.

A dialética como método da física

Considerando a complexidade do estatuto epistemológico


da física, não deve causar espanto ler, no início da obra homô­
nima, que “é próprio da ciência da natureza procurar definir,
antes de tudo, o que se refere aos princípios” (Física I 1, 184
a 14-16). Essa afirmação programática e sobretudo sua realiza­
ção no curso de toda a obra foram consideradas em contradição
com a teoria da ciência exposta nos Segundos analíticos (por
exemplo, por J. M. Le Blond). Mas, na realidade, esta última

52
O método da física

já era, no que se refere à física, suficientemente elástica para


conter os desdobramentos contidos na Física (o que justifica,
em parte, a reação de A. Mansion), ainda que não se possa
negar que, nesta obra, a investigação dos princípios prevaleça
nitidamente sobre a demonstração a partir deles.
O método a ser seguido nessa investigação, como é
teorizado no capítulo primeiro do livro I, não contrasta com o
que Aristóteles dissera no fim dos Analíticos. Com efeito, o
célebre “caminho” (hodós) que vai das coisas mais conhecidas
para nós àquelas mais claras por natureza, isto é, da experiência
aos princípios, tem como ponto de partida “as realidades mais
compostas”, ou seja, o todo, precisamente pela razão de que “o
todo é mais conhecido segundo a sensação” (184 a 24-25).
Ainda uma vez, portanto, o conhecimento dos princípios, para
a física, deriva do conhecimento sensível. Certamente, o proce­
dimento desse conhecimento é muito complexo e bem longe de
ser imediato. No capítulo primeiro, Aristóteles o considera uma
espécie de análise, ou de divisão, isto é, de diferenciação de um
todo em suas partes: ele diz que os princípios “dividem” as
realidades compostas. Os exemplos que dá deles, além disso,
parecem referir-se sobretudo a uma espécie de análise lingüís-
tica: do simples nome do círculo à sua verdadeira definição, ou
do nome de papá e mamã que as crianças dão inicialmente a
todos os homens e, respectivamente, a todas as mulheres à
distinção mais precisa que fazem mais tarde.
Por isso se pôde falar de uma “diferenciação de um pré-
-saber indiferenciado”, que seria a linguagem (Wieland). Nem
sequer isso está em contraste com os Analíticos, na medida em
que, para Aristóteles, provavelmente a linguagem fosse uma
espécie de reflexo, ou de pré-compreensão da experiência, isto
é, das sensações. Mas, em todo caso, a distinção entre os muitos
significados de uma mesma palavra, à qual Aristóteles recorre
muito freqüentemente na física, é um típico procedimento
dialético: é a dialética, com efeito, que, sobretudo na tentativa

53
A s razões de Aristóteles

de desmascarar as refutações sofísticas baseadas em equívoco,


isto é, na confusão entre diferentes significados da mesma
palavra, tem como tarefa específica operar tais distinções.
Essa aproximação entre o método da física e a dialética
não deve, todavia, induzir-nos a acreditar que os procedimentos
da física sejam as argumentações simplesmente verbais, isto é,
vazias, desprovidas de verdade e, portanto, de valor científico,
como são, segundo certos intérpretes, os procedimentos da
dialética. Já vimos, na verdade, que a própria dialética é susce­
tível de um uso propriamente “científico” e logo veremos como
os procedimentos da física, ainda que tipicamente dialéticos,
conseguem ser, do ponto de vista de Aristóteles, bastante rigo­
rosos e, em alguns casos, chegam a ser verdadeiras demonstra­
ções, e mesmo também, exatamente, dialéticos.
Certamente dialético — no sentido agora diretamente
refutatorio — é o procedimento com o qual Aristóteles passa
concretamente à determinação dos princípios da física. Ele abre,
com efeito, o capítulo segundo do livro I do seguinte modo:
é necessário que o princípio seja ou um só ou mais de
um, e se é um só que seja ou imóvel, como dizem
Parmênides e Melisso, ou em movimento, como dizem
os físicos [...]; se, ao contrário, são muitos, é neces­
sário que sejam ou em número limitado ou em número
ilimitado; se são mais de um em número limitado, é
necessário que sejam dois, três ou quatro ou algum
outro número, e se são em número ilimitado é neces­
sário que sejam ou, como diz Demócrito, de um só
gênero, mas diferentes na figura, ou de espécie dife­
rente ou também contrária (184 b 15-11).
Estamos na presença de uma perfeita divisão por dicotomia, ‫־‬
que não descuida de nenhuma possibilidade, mas as enuncia
todas. Sua origem dialética e, mais precisamente, sua derivação
da dialética platônica (isto é, do Parmênides) estão fora de

54
O método da física

dúvida. Mas o que geralmente não se nota é que, caso se con­


siga refutar todas essas possibilidades com exceção de uma,
esta última vem a ser demonstrada de maneira incontestável:
eis, portanto, um caso no qual um procedimento dialético pode
dar lugar a uma verdadeira demonstração. Isto, com efeito, é o
que Aristóteles propõe-se a fazer no I livro da Física.
Ele refuta, antes de tudo, a primeira possibilidade, ou seja,
que o princípio seja um só e imóvel — o que corresponde à
doutrina dos eleatas — , ainda que essa refutação não seja, na
realidade, necessária, na medida em que, como ressalta o pró­
prio Aristóteles, aqueles que pensam desse modo não só negam
a existência dos princípios em geral, mas negam em particular
os princípios da física: ora, não cabe a uma ciência discutir
com aqueles que negam seus princípios.
Os eleatas negam a existência dos princípios em geral
porque admitem somente uma coisa, enquanto “o princípio é
princípio de alguma ou de algumas coisas” (184 b 26-185 a 5):
a existência do princípio implica, pelo menos, a distinção entre
ele e aquilo do qual é princípio, portanto uma multiplicidade.
Mas eles negam em particular os princípios da física, porque
negam o movimento, que é essencial à natureza, a qual é de­
finida por Aristóteles, como vimos, princípio de movimento.
Ora, a existência do movimento, segundo o que ele diz, resulta
“clara a partir da indução” (185 a 13-14), isto é, a partir da
experiência, das sensações: por isso ela é princípio da física.
Aristóteles, portanto, não se esquece da epistemologia dos
Analíticos, ao contrário a retoma, ressaltando que a física não
deve discutir os próprios princípios, mas atingi-los pela sensa­
ção. Pode-se notar, a esse propósito, que ele fala de “princí­
pios” em dois sentidos diferentes: a existência do movimento é
um princípio sobre o qual a física não deve discutir; mas desse
mesmo movimento a física deve investigar os princípios, isto é,
as causas, as condições que o tomam possível.

55
A s razões de Aristóteles

Em todo caso, falando dos eleatas, Aristóteles acrescenta:


mas, visto que a eles acontece propor, mesmo não falan­
do da natureza, aporias que são de ordem física (physikás
de aporias), talvez seja bom que se discuta (dialekhthénai)
um pouco com eles, na medida em que a investigação
tem interesse filosófico (185 a 19-20).
A doutrina dos eleatas, portanto, mesmo não sendo uma
física, na medida em que nega a existência do próprio objeto da
física, isto é, do movimento, cria dificuldades, aporias, para a
física, das quais é preciso desembaraçar-se para tomar possível
esta última. Aqui estamos na presença de um programa de in­
vestigação que não coincide com a física, mas a precede, espé­
cie de fundação da física, de investigação sobre suas condições
de possibilidade. Esse programa ocupa os capítulos segundo e
terceiro do livro I, que contêm a refutação do eleatismo, em
particular do monismo eleata. Os procedimentos empregados
por Aristóteles nessa refutação pertencem também eles à
dialética, porque consistem na distinção entre os diversos sig­
nificados dos termos “ser” e “uno”, e na análise da estrutura
predicativa da linguagem, a qual implica uma multiplicidade.
Isso não impede que, do ponto de vista de Aristóteles — e,
acredito, também do outro ponto de vista — , a refutação seja
rigorosa e perfeitamente válida.
De resto, que o método da física consista no procedimento
tipicamente dialético de propor aporias e resolvê-las desenvol­
vendo suas consequências, isto é, excluindo as soluções que se
deixam refutar, ou seja, reduzir a contradição, é explicitamente
afirmado por Aristóteles em duas passagens de outras obras
físicas, a Física propriamente dita e o De caelo. A primeira
concerne à definição de lugar e diz:
é necessário procurar conduzir a investigação de tal
modo que seja fornecida a essência, desse modo as
aporias serão resolvidas (ta aporoúmena lyesthai), e

56
O método da■ física

as coisas que são consideradas pertencer ao lugar


resultarão pertencer-lhe [realmente], e, além disso,
será manifesta a causa da dificuldade e das discus­
sões em tomo disso [ton perí autón aporemáton/; deste
modo, com efeito, cada coisa será mostrada (deiknyoito)
do melhor modo {Física IV 4, 211 a 7-11).
É clara, nesta passagem, a equivalência perfeita estabelecida
por Aristóteles entre a descoberta da definição, isto é, da essên­
cia, e a solução das aporias, ou seja, a validação de uma hipó­
tese (“as coisas que são consideradas pertencer-lhe”), por meio
da remoção da hipótese oposta (“a causa da dificuldade”): esse
procedimento, que coincide com o terceiro uso da dialética
teorizado nos Tópicos (em seu primeiro aspecto, aquele que
consiste em desenvolver as aporias a fim de distinguir mais
facilmente o verdadeiro e o falso), é aqui definido como “o
melhor modo de mostrar cada coisa” e, portanto, assume o
valor de uma espécie de demonstração, ainda que não se trate
da demonstração por excelência, a demonstração matemática.
O mesmo conceito é reforçado no De caelo, no qual
Aristóteles, a propósito da natureza do céu, diz:
após ter definido estas coisas, enunciemos se o céu fo i
gerado ou não, se incorruptível ou corruptível, per­
correndo, antes de tudo, as opiniões dos outros: com
efeito, quando se tem a ver com teses opostas, as
demonstrações de uma são constituídas pelas aporias
concernentes à outra. Ao mesmo tempo, as coisas que
estamos para dizer serão ainda mais críveis para aque­
les que tenham anteriormente escutado as justificações
dos discursos entre seus contendores. Com efeito, dare­
mos menos a impressão de condenar um ausente, visto
que é necessário que quantos queiram distinguir ade­
quadamente o verdadeiro sejam árbitros, e não partes
em causa (I 9, 279 a 4-12).

57
A s razões de Aristóteles

Note-se, nesta passagem, antes de tudo as alternativas for­


muladas entre hipóteses opostas (se o céu foi gerado ou não, se
incorruptível ou corruptível); em seguida a indicação para que
se considerem em primeiro lugar todas as opiniões possíveis
existentes em relação a elas; daí a afirmação de que a aporia,
que aqui está para objeção, no limite para refutação, de uma
tese, constitui a demonstração (é usado justamente o termo
apódcixis) da tese a ela oposta (sempre que, naturalmente, se
trate de uma oposição entre teses reciprocamente contraditórias);
enfim, a comparação com a situação dos debates judiciários,
nos quais o juiz, após ter ouvido as argumentações de ambas as
partes contrapostas, decide qual das duas diz a verdade. Esta
última comparação não apenas, como veremos, retomará em
Aristóteles, mas reaparecerá até em Kant, justamente no mo­
mento em que este propõe-se a expor a doutrina das antinomias
da razão e a exercitar seu “método cético”, isto é, sua dialética
entendida como “crítica da aparência”3.
O método da física não consiste, portanto, somente em
partir das sensações, isto é, dos dados da experiência ou da
observação sensível, mas também em partir das opiniões dos
outros filósofos: sejam uns, isto é, os dados da experiência,
sejam outros, isto é, as opiniões dos filósofos, são designados
por Aristóteles pelo termo “fenômenos” (phainómena), por isso,
em todo caso, a física parte dos fenômenos, mas não se deve
esquecer os dois significados diversos agora indicados. O pri­
meiro deles é claramente mencionado em uma passagem dos
Primeiros analíticos, que diz:

3. E. Kant, Critica delia ragion pura, trad. G. Gentile e G.


Lombardo Radice (revista por V. Mathieu), Bari, Laterza, 1958, p.
363, onde se fala, na verdade, de um duelo cavalheiresco, mas pres­
crevendo igualmente ao filósofo a função de juiz imparcial. [Crítica
da razão pura, trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger, São
Paulo, Abril Cultural, 2a ed., 1983, “Dialética transcendental”,
“Antitética da razão pura”, pp. 220-222. (Os Pensadores). N. do T.]

58
__________________________________________ O método da física

por isso cabe à experiência fornecer os princípios


próprios de cada coisa, e pretendo dizer, por exemplo,
que cabe à experiência astronômica fornecer os prin­
cípios próprios da ciência astronômica, porque, uma
vez adquiridos suficientemente os fenômenos assim
entendidos, foram descobertas as demonstrações as­
tronômicas, e as coisas ocorrem do mesmo modo a
propósito de qualquer outra arte e ciência (I 30, 46 a
17-22).
O outro significado do termo fenômeno está na Ética a
Nicômaco, onde, a propósito da incontinência, Aristóteles afirma:
é necessário, como nos outros casos, após ter posto os
fenômenos ftithéntas ta phainómena) e ter, antes de
tudo, desenvolvido as aporias, em tal modo mostrar
como é possível todos os éndoxa em torno dessas
paixões, e, se isso não é possível, ao menos a maior
parte e os mais importantes; como, com efeito, se
resolvem as dificuldades e firmam-se os éndoxa, mos­
trar-se-á de modo suficiente (VII 1, 1145 b 2-7).
Sobre esta passagem teremos condição de retomar ao falar
do método da filosofia prática: por ora, basta-nos registrar nela
o significado de opiniões alheias atribuído ao termo “fenôme-,
nos”, para ressaltar ainda uma vez como a física, partindo deles,
admite tanto as observações sensíveis como as opiniões mais
acreditadas. Não se pode negar que se trata de duas concepções
diferentes de “fenômeno”, mas deve-se reconhecer, ao mesmo
tempo, que não são incompatíveis entre si, sendo ambas funda­
das no significado literal do verbo pháinomai, que quer dizer
tanto aparecer aos nossos sentidos como parecer a alguém,
estando ambas presentes, como vimos, no livro I da Física.
Indubitavelmente a discussão das opiniões alheias tem um ca­
ráter mais dialético: ela corresponde, na verdade, àquela parte
da dialética que, nas Refutações sofísticas, foi denominada

59
A s razões de Aristoteles

“peirástica”, isto é, técnica de ensaiar, de pôr à prova, de cri­


ticar as opiniões do próprio interlocutor, pela qual a física vem
a ser, ainda uma vez, uma disciplina construída com método
dialético. Mas ainda uma vez dialética não quer dizer discussão
vazia, simplesmente verbal, incapaz de obter conhecimento ver­
dadeiro. Ao contrário, por meio de tal método Aristóteles chega
a formular toda uma série de doutrinas por ele consideradas,
sem dúvida, científicas. Ou melhor, poder-se-ia dizer que as
demonstrações aristotélicas fundadas sobre pretensas observa­
ções empíricas, como as concernentes aos famosos “lugares
naturais”, são menos válidas que as fundadas sobre simples
raciocínios dialéticos.
Enfim, é interessante notar como, entre as opiniões alheias
que Aristóteles discute na Física a propósito do lugar, do con­
tínuo, do tempo e do instante, há sobretudo as expostas por
Platão no Parmênides*, o que confirma quanto ele tinha presen­
te este diálogo e como considerava perfeitamente natural discu­
tir suas doutrinas, em parte acolhendo-as e em parte modifican­
do-as, mas sobretudo considerando-as positivas, isto é, expri­
mindo o efetivo pensamento de Platão, e perfeitamente em
continuidade com a própria física.

A determinação dialética dos princípios e das causas

Mas vejamos como Aristóteles aplicou concretamente o


método dialético na elaboração de algumas dentre as mais
importantes doutrinas de sua física. Após a refutação prelimi-

4. Isso foi demonstrado de modo documentado por G. E. L. Owen,


“Tithènai ta phainòmena”, in Aristote et les problèmes de méthode.
Communications présentées au Symposium Aristotelicum tenu à Louvain
du 24 aoüt au ler septembre I960, Louvain, Institut Supérieur de
Philosophie, 2a ed., 1980, pp. 83-103.

60
O método da física

nar dos eleatas, contida nos capítulos segundo e terceiro do


livro I da obra homônima, a investigação propriamente física
tem início no capítulo quarto, onde Aristóteles, prosseguindo
no exame das diversas possibilidades concernentes ao número
dos princípios, toma em consideração as opiniões dos “físicos”
propriamente ditos, ou seja, daqueles que, tendo admitido a
existência da natureza, dela investigaram os princípios. Aqui,
portanto, a física apresenta-se como investigação dos princípios
da natureza. Os físicos considerados são os jónicos — que
admitiam um único princípio, mas móvel — , Empédocles —
que admitia muitos, mas em número limitado — e Anaxágoras
— que igualmente admitia muitos, mas em número ilimitado.
Aristóteles discute tais doutrinas usando ainda uma vez um
procedimento de tipo dialético, a dedução das conseqüências
que derivam das premissas admitidas por seus interlocutores:
algumas de tais conseqüências são aceitas por ele, enquanto ou­
tras são recusadas. Entre estas últimas, Aristóteles indica a admis­
são, por parte de Anaxágoras, de um infinito em ato (cap. 4);
entre as primeiras, indica a admissão, por parte de quase todos
os físicos, de uma contrariedade entre os princípios (cap. 5). A
primeira conclusão a que se deve chegar é que os princípios
são muitos, mas em número limitado, e Aristóteles parece
considerá-la uma verdadeira aquisição científica.
Sucessivamente, ele põe o problema de se esses princípios
são somente dois, isto é, os contrários, ou três, isto é, os con­
trários e seu substrato. O que o faz inclinar-se para esta última
solução é sua doutrina das categorias, exposta no tratado de
mesmo nome, a qual distingue as categorias, isto é, os gêneros
supremos do ser, em substância e acidentes, e afirma a priori­
dade da primeira sobre os segundos. Visto que os contrários
não são substâncias, já que a Substância não tem contrário, eles
devem pressupor uma substância, que é seu substrato (cap. 6).
Não diria que esta seja uma doutrina metafísica, porque ela
precede a metafísica e pertence ao âmbito da análise da lingua-

61
A s razões de Aristóteles

gem, em particular da distinção entre os muitos significados do


ser, portanto sempre a dialética. Mas não há dúvida, com efeito,
de que a distinção ontológica entre a substância e os acidentes
derive da distinção lógica entre o sujeito e o predicado da pro­
posição. Mas é também claro que esta doutrina é destinada a
desempenhar um papel fundamental inclusive na metafísica de
Aristóteles.
Em todo caso, no fim do capítulo sexto, Aristóteles con­
clui:
é claro que o elemento [isto é, o princípio] não é um
só, nem eles são mais de dois ou três; mas qual destes
dois números eles sejam, como vimos, é uma grande
aporia (189 b 27-29).
Estamos, assim, de novo na presença de uma aporia, aporia
física, que exige ser resolvida. Sua solução é dada no decorrer
do capítulo seguinte (cap. 7), por meio, como foi muitas vezes
acentuado, de uma verdadeira análise lingüística. A atenção de
Aristóteles não deriva, com efeito, diretamente do fenômeno da
geração, do qual se devem estabelecer os princípios, mas do
modo, correto ou incorreto, pelo qual a linguagem comum
exprime esse fenômeno. O objeto direto da análise de Aristóteles
são as expressões lingüísticas, e ele o ressalta continuamente,
sempre recorrendo aos verba dicendi, “dizemos”, “diz-se” e
similares, ou a expressões como “isso significa” ou “o que
significa isto?” etc. Estamos, portanto, na presença de um pro­
cedimento que é dialético por algumas razões: em primeiro
lugar, é imposto pela distinção dicotômica entre as diversas
possibilidades concernentes aos princípios; em segundo, tem
como objeto as opiniões dos outros físicos, isto é, dos
interlocutores de Aristóteles, com os quais ele imagina ter tra­
vado uma espécie de grande discussão; em terceiro lugar, ser-
ve-se de um instrumento tipicamente dialético, a análise da
linguagem comum.

62
O método da física

Todavia, Aristóteles está perfeitamente convicto do valor


científico de sua argumentação: isso resulta não somente da
conclusão desta — uma das mais célebres doutrinas aristotélicas:
a distinção entre a privação, a forma e a matéria — , mas tam­
bém de suas últimas palavras:
que os princípios são três, e de que modo são três, e
qual é o tipo deles, é claro. Quantos, portanto, e quais
são os princípios, do que fo i dito, está teorizado (I 7,
191 a 20-22).
Ele chegou a essa conclusão eliminando todas as outras pos­
sibilidades, portanto trata-se de uma verdadeira demonstração.
De preferência, a doutrina em questão permite a Aristóteles
resolver outra dificuldade, na qual caíram os eleatas em razão
da carência das necessárias distinções dialéticas: eles, com efei­
to, não somente negaram a multiplicidade, reduzindo todas as
coisas a uma só, mas também negaram a geração, isto é, o
devir; em sua opinião,
o que é gerado deve sê-lo necessariamente pelo ser
ou pelo não-ser, mas tanto um como outro destes são
impossíveis; nem, com efeito, o ser pode gerar-se,
porque já existe, nem alguma coisa pode gerar-se do
não-ser, porque alguma coisa deve sujeitar-se à gera­
ção (I 8, 191 a 28-31).
Aqui assistimos, ao menos em aparência, a um conflito
entre a experiência, que nos atesta a existência do devir, e o
princípio de não-contradição, que parece excluir sua possibili­
dade. Os eleatas, acreditando poder escolher, escolheram o
princípio contra a experiência: também por isso, talvez,
Aristóteles os acuse de apeiría (literalmente: falta de experiên­
cia). Em suma, a doutrina dos eleatas considerava a experiência
contraditória em si mesma e, assim, negava desde o primeiro
momento a própria possibilidade da física.

63
A s razões de Aristóteles

Graças, ao contrário, à distinção entre ser (e não-ser) por


si e ser (e não-ser) por acidente, ou também graças à distinção
entre ser (e não-ser) em ato e ser (e não-ser) em potência,
Aristóteles resolve a aporia, salvando ao mesmo tempo a expe­
riência e o princípio de não-contradição. Ele o diz explicita­
mente: “nós não impedimos o princípio de que cada coisa ou
é ou não é” (191 b 26-27).
As doutrinas às quais ele recorre, mesmo de grande impor­
tância para sua metafísica, são ainda uma vez presas da dialética,
isto é, da análise dos diferentes significados das palavras. A
propósito da distinção entre potência e ato, o próprio Aristóteles
remete a outro texto seu — “alhures foi definida com maior
rigor” (b 29) —, o qual, também por razões cronológicas, só
pode ser o livro V da Metafísica, dedicado, como se sabe, aos
diferentes significados das palavras, onde também a distinção
entre “por si” e “por acidente” retoma continuamente: pois
bem, esse livro só pode ser considerado uma obra de dialética.
Todavia, a conclusão à qual chega Aristóteles é dotada de ele­
vado valor científico, de maneira que ele pode dizer: “neste
modo, como dizíamos, resolvem-se as aporias, por causa dos
quais [os eleatas] foram constrangidos a impedir algumas das
coisas ditas [isto é, a experiência]” (b 30-31).
Temos, portanto, uma verdadeira refutação do eleatismo, a
qual faz parte de uma investigação física: trata-se, evidente­
mente, de uma física capaz de estabelecer as condições da
própria possibilidade, isto é, de fundar-se a si mesma, ou seja,
de uma ciência que compreende sua própria fundação, o que
está bem além da epistemologia dos Segundos analíticos, mes­
mo não a recusando explicitamente.
Ao mesmo âmbito pertence o último capítulo, onde
Aristóteles discute a doutrina de Platão, o qual, sob a influência
de Parmênides, admitia como princípios da geração o ser e o
não-ser, ou seja, o Uno e o “grande e pequeno”, confundindo

64
_______________________________ O método da física,

neste último a matéria e a privação. A introdução de tal distin­


ção, isto é, a descoberta do substrato — uma das glórias de
Aristóteles (veja-se o que pensam disso Feuerbach, Marx e
Kierkegaard, que se servem dele para criticar Hegel, retoman­
do-a dos estudos aristotélicos de Trendelenburg) — , pertence,
portanto, à física, que Aristóteles distingue muito nitidamente
da “filosofia primeira”, isto é, da metafísica, confiando a esta
última o estudo do “princípio no sentido da forma”, imóvel e
incorruptível (I 9, 192 a 34-36).
Por essa razão Wieland falou justamente de um “primado”,
em Aristóteles, da física, enquanto verdadeira ciência dos prin­
cípios, que não pressupõe a metafísica mas, ao contrário, é
pressuposta por elá. Por outro lado, essa definição de física
como ciência dos princípios é a mesma que, no livro I da
Metafísica, Aristóteles aplica à sabedoria, isto é, à ciência ex­
posta naquela obra, e é conhecido que em todas as suas obras
mais antigas (Protréptico, Tópicos e, eu acrescentaria, também
a Metafísica II) ele parece identificar tout court física e
metafísica. No livro I da Física, em suma, Aristóteles estabe­
lece os princípios, entendidos como condição de possibilidade,
da natureza e da própria física, atribuindo a esta ciência um
papel que transcende claramente seu estatuto epistemológico
ilustrado nos Segundos analíticos e reafirmado mais tarde no
livro VI da Metafísica.
A mesma oscilação entre o estatuto dos Segundos analíti­
cos e sua ampliação, que chega a incluir na ciência a investi­
gação dos princípios, está presente no livro II da Física. Aqui
Aristóteles dá, em primeiro lugar, a definição do objeto da
física, isto é, a definição de natureza, a qual compreende todas
as “realidades naturais”: animais, plantas e “corpos simples”,
como terra, fogo, água e ar:
cada uma destas realidades, com efeito, tem em si
mesma o princípio do seu movimento e do seu repou-

65
A s razões de Aristóteles

so, algumas segundo o lugar, outras segundo o cres­


cimento e a diminuição, outras segundo a alteração...
[Por consequência] a natureza é um princípio e uma
causa do ser em movimento e do ser em repouso, na
coisa à qual ela pertence primariamente por si e não
por acidente (II 1, 192 b 13-14, 21-23).
Reencontramos nestas palavras a definição do objeto da
física dada no livro VI da Metafísica. Ela, além disso, é con­
siderada evidente: “todas estas realidades” [isto é, as realidades
naturais] — afirma com efeito Aristóteles — “parecem
(pháinetai) diferentes em relação àquelas não constituídas por
natureza”. O pháinetai, entendido não como a aparência con­
traposta à realidade, mas como a evidência, seja no sentido de
observação sensível, seja no sentido de opinião geral, é o fun­
damento da definição de natureza: quem não se aperceberia,
com efeito, da diferença — ao menos no tempo de Aristóteles
— entre uma realidade natural e uma realidade, por exemplo,
artificial?
Mas também a existência da natureza é considerada evi­
dente por Aristóteles:
procurar mostrar que a natureza existe é ridículo; é
claro, com efeito, que tais entes [isto é, os entes na­
turais] existem em grande número. De outra parte,
mostrar as coisas claras por meio das obscuras é
próprio de quem não é capaz de distinguir o que é
conhecido em virtude de si mesmo e o que o é não em
virtude de si mesmo (193 a 3-6).
Vejamos aqui os dois princípios da física, a definição de
seu objeto e a admissão de sua existência, ambos fundados no
fenômeno entendido como dado imediato da experiência, o que
corresponde exatamente à epistemologia dos Segundos analíticos:
aliás, notamos que isso ocorria também no início no livro I.

66
O método da física

Todavia, justamente após ter estabelecido tais princípios,


Aristóteles põe um problema que surge das opiniões dos filó­
sofos precedentes: segundo alguns deles, a natureza é a maté­
ria, porque, como notou o sofista Antifonte, caso se enterrasse
uma cama e caso a putrefação tivesse a força de produzir um
gérmen, não nascería uma cama, mas madeira, o que significa
que a capacidade de reproduzir-se, o princípio do movimento,
pertence somente à matéria. A esse argumento, do qual não
nega a força e ao qual concede ser uma prova de que a natureza
é, em certo sentido, matéria, Aristóteles opõe outro: se é ver­
dadeiro que de uma cama, a qual tem forma artificial, se gera
somente madeira, não é menos verdadeiro que de um homem,
o qual tem uma forma natural, gera-se sempre (ou “geralmen­
te”) um homem, e não outro animal. Portanto, a natureza é
também forma, ou melhor, é mais forma que matéria (193 a 10-
-b 18).
Vê-se, assim, que a definição de natureza é um pouco mais
complexa e um pouco mais controversa do que poderia parecer
à primeira vista. Mas, tudo somado, permanecemos ainda nos
limites fixados pelo livro VI da Metafísica, porque também ali
Aristóteles dizia que a física tem por objeto sobretudo a forma
das substâncias naturais. Também o exemplo de forma física,
que ele dá na Física para distingui-la da forma que é objeto da
matemática, é o mesmo que encontramos no livro VI da
Metafísica, isto é, o “chato” em oposição ao “curvo” (Física II
2, 194 a 6-7). ~ -------
Ulteriormente, as coisas se complicarão, a partir do mo­
mento em que Aristóteles observa que a natureza não é somen­
te matéria e forma, mas também causa final, visto que “as
coisas das quais, sendo contínuo o movimento, há um termo,
este é o extremo e também o fim” (194 a 29-30). Evidentemen­
te ele pensa em fins como o completo desenvolvimento de um
indivíduo pelo crescimento, ou o nascimento de um novo indi­
víduo pela reprodução. Assim, as definições de natureza toma-
A s razões de Aristóteles

ram-se três e, caso se dê conta de que a natureza é, antes de


tudo, princípio de movimento, isto é, causa motora, elas são
quatro. Por isso, imediatamente a seguir, no mesmo livro II,
Aristóteles introduz a famosa distinção dos quatro gêneros de
causa.
Definidas estas coisas — ele afirma, com efeito —, é
necessário investigar as causas, quais e quantas em
número elas são. Visto que, com efeito, nossa exposi­
ção tem por objetivo o saber, e não consideramos
saber cada coisa antes de ter aprendido o porquê de
cada uma (o que significa aprender sua causa primei­
ra), é claro que também nós devemos fazer isto seja
a propósito da geração e corrupção, seja a propósito
de qualquer mudança física, para que, sabendo os
princípios deles, procuremos reconduzir a estes cada
uma das coisas procuradas (3, 194 b 16-23).
Depois disso ele expõe as quatro noções de causa, isto é,
a causa material, a formal, a causa motora e a final. Essa dis­
tinção, como se notou, não recebeu de Aristóteles uma verda­
deira justificação racional: em outras palavras, não se demons­
tra por ser resultado de uma análise da linguagem, isto é, da
análise das possíveis respostas à pergunta “por quê?”, como
resulta do fato de que ela é reproduzida literalmente no livro V
da Metafísica, dedicado à distinção entre os diferentes signifi­
cados das palavras. Isso, todavia, não se deve ao acaso, visto
que a distinção em questão não indica as causas determinadas,
mas é somente um instrumento para a investigação de relações
causais concretas. Trata-se, em suma, de uma tipificação muito
universal, ou seja, como disse Wieland, de “pontos de referên­
cia para a classificação” (Einteilungsgesichpunkte). O próprio
Aristóteles admite
que há causas e que elas em número sejam tantas
quantas dissemos, é claro, visto que tantas em número
contêm seu porquê; com efeito, o porquê último ou

68
O método da física

leva ao que é, como acontece na realidade imóvel


(por exemplo, nas matemáticas vai-se por último à
definição de reto, ou de comensuração, ou de qual­
quer outra coisa), ou a isso que primeiramente movi­
mentou (por exemplo, por que entraram em guerra?
porque foram depredados), ou, nas realidades gera­
das, à matéria... [E acrescenta]: visto que as causas
são quatro, cabe ao físico ter ciência de todas, e ele
fornecerá o porquê de modo físico levando-o a todas
(II 7, 198 a 14-23).
Voltamos, assim, à concepção de física desenvolvida no
livro I, isto é, à física como investigação dos princípios e das
causas das substâncias naturais: para cada uma delas, com efei­
to, o físico deverá investigar qual é sua forma, sua matéria, seu
fim etc., ou seja, determinar concretamente o que entra em cada
um dos quatro tipos, ou gêneros, de causalidade (por exemplo,
a alma como causa formal, a carne como causa material, a
reprodução como causa final etc.). Tudo isso não se assemelha
à concepção de uma física essencialmente demonstrativa, que
deduz de seus princípios, isto é, da definição e da existência de
seu objeto, as suas propriedades essenciais. Em suma, na con­
cepção ampliada da tarefa da física, exposta nos livros I e II da
obra homônima, Aristóteles concebe os princípios da ciência
em um modo mais complexo do que na concepção exposta nos
Segundos analíticos e no livro VI da Metafísica: eles não são
somente a definição da essência e a admissão da existência,
fundadas na experiência sensível, mas as condições de
inteligibilidade, de possibilidade (isto é, capazes de evitar a
contradição), no caso do livro I, e dos verdadeiros princípios
explicativos, dos diversos tipos de causa, no livro II.
Segundo a concepção ampliada, a física não deve simples­
mente pressupor seus princípios e limitar-se a deles deduzir as
propriedades de seu objeto, mas deve sobretudo investigar os
princípios e as causas, ou seja, determinar quais coisas desem-
A s razoes de Aristóteles

penham a cada vez o papel de causa formal, material, final etc.


Deste modo a investigação dos princípios não é apenas uma
introdução preliminar à ciência propriamente dita, mas sua parte
integrante; ou melhor, parece recobri-la quase por inteiro.

As demonstrações mais “científicas”

Ao lado dos procedimentos “dialéticos” que já considera­


mos, e que consistem substancialmente na análise da lingua­
gem comum e na discussão das opiniões dos filósofos prece­
dentes, Aristóteles fornece, na Física, especialmente nos últi­
mos livros, algumas verdadeiras demonstrações científicas, que
têm como escopo a tese culminante de toda a obra, ou seja, a
existência de um primeiro motor imóvel. Também neste caso,
porém, não se trata de deduções das propriedades de um objeto
de seus princípios próprios, mas de procedimentos de natureza
dialética, que dão lugar a algumas demonstrações que parecem
estar entre as mais científicas compreendidas na obra. Por pro­
cedimentos dialéticos, neste caso, entendo as argumentações
que assumem como premissa a opinião de algum interlocutor
ou adversário, e dela deduzem algumas conseqüências contra­
ditórias em relação a essa mesma opinião, ou entre elas, ou em
relação a outra opinião universalmente admitida. Eles dão lu­
gar a algumas demonstrações científicas, no sentido de que a
tese oposta àquela que foi refutada, se sua oposição é uma
verdadeira contradição, é necessariamente verdadeira, em vir­
tude do princípio do terceiro excluído. Este diz, com efeito,
que entre duas posições contraditórias, como são a afirmação
e a negação da mesma tese, é necessário que uma seja verda­
deira e a outra falsá (De interpretatione 7, 17 b 26-27). Veja­
mos alguns exemplos.
Em primeiro lugar, poder-se-ia mencionar a demonstração da
existência do movimento, que Aristóteles apresenta malgrado sua
afirm&ção de que não é tarefa da física demonstrar os próprios

70
O método da física.

princípios (na Física I 2-3, refutando os eleatas, ele demonstra­


ra apenas a existência da multiplicidade).
Que não é possível que todas as coisas estejam em
repouso, também fo i dito anteriormente, mas digamo-
-lo também agora. Se também segundo a verdade, com
efeito, as coisas estão assim como dizem alguns [de
novo os eleatas, em particular Melisso], ou seja, que
o ser é infinito e imóvel, isso, todavia, não parece
(pháinetai) justo, ao menos segundo a sensação, mas
parece que muitos dos entes se movem. E, se também
esta última é uma opinião falsa ou inteiramente uma
opinião, há igualmente movimento, ainda que seja
apenas imaginação (phantasia), e ainda que se agora
parece assim e agora diversamente, visto que a ima­
ginação e a opinião são consideradas ser da espécie
de movimento (VIII 3, 254 a 23-30).
Aqui, como se vê, Aristóteles parte da opinião dos eleatas
(o movimento não existe, porque é simples imaginação) e não
se limita a opor-lhes o testemunho dos sentidos, isto é, a apa­
rência, porque esta foi, pelos próprios eleatas, precedentemente
esvaziada de qualquer valor, mas deduz de sua própria tese
uma conseqüência que a contradiz (também a imaginação é
movimento): portanto, disso resulta demonstrada a tese oposta
(o movimento existe).
Em segundo lugar, pode-se citar a demonstração da eterni­
dade do movimento. Aqui a opinião da qual Aristóteles parte é
aquela segundo a qual toda realidade móvel é gerada (provavel­
mente é a doutrina do Timeu5 de Platão).5

5. Timeu, trad. Carlos Alberto Nunes, Belém, Ed. da Universida­


de Federal do Pará, 1986, 28 a. [N. do T.]

71
As razões de Aristóteles

Se, portanto — argumenta Aristóteles — , cada uma das


realidades móveis tivesse sido gerada, seria necessário que antes
do considerado tivesse ocorrido outra mutação e movimento,
em virtude do qual tivesse sido gerado o que pode ser movido e
mover... de maneira que antes da primeira mutação terá havido
uma mutação a ela precedente (VIII 1, 251 a 16-28).
Observação análoga pode ser feita a propósito da opinião
segundo a qual cada realidade móvel deve corromper-se: a
conseqüência é que terá havido sempre um movimento antes
do movimento e, analogamente, um movimento depois do
movimento, pelo que o movimento resultará ser eterno. O mesmo
raciocínio vale para o tempo.
Em terceiro, pode-se citar a demonstração da necessidade
de um primeiro motor,' obtida mediante a refutação da doutrina
platônica segundo a qual o primeiro motor do universo é uma
alma cósmica semovente6. Em seu momento decisivo, com efei­
to, ela consiste em mostrar que a admissão de um princípio
semovente é autocontraditória, porque esse princípio deveria
estar, ao mesmo tempo, em potência e em ato em relação ao
próprio movimento, o que equivale a ser, para uma mesma
coisa, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, por exemplo
quente e não-quente (Física VIII 5, 257 b 2-12). Mas a refuta­
ção dessa tese, da qual resulta sua impossibilidade, implica a
verdade da tese a ela oposta (oposta por contradição), isto é, da
tese segundo a qual o princípio último do movimento deve ser
imóvel.

6. Veja-se, a este respeito, F. Solmsen, Aristotle’s System of the


Physical World, Ithaca, Cornell University Press, 1960; S. Waterlow,
Nature, Change, and Agency in Aristotle's Physics, Oxford, Clarendon
Press, 1982; e meu ensaio “La Suprematie du mouvement local selon
Aristote: ses conséquences et ses apories”, in J. Wiesner (org.),
Aristoteles Werk un Wirkung (Paul Moraux gewidmet), I, Berlim, de
Gruyter, 1985, pp. 123-150.

72
O método da física

Em todo caso, qualquer que seja o valor da demonstração


mencionada, ela tem um alcance que vai bem além do âmbito
particular da física, visto que chega à existência de uma subs­
tância imóvel, que deveria ser objeto de outra ciência, isto é, da
metafísica. Ela entra muito bem no gênero de discussões que
vimos caracterizar toda a obra intitulada Física, o qual não é
nem a dedução das propriedades das substâncias naturais por
sua definição e por sua existência, nem a indicação dos princí­
pios e das causas particulares de cada substância natural, mas,
ao contrário, a determinação mais geral das próprias noções de
princípio e de causa, e daquelas ligadas ao objeto da física. Em
relação aos tratados mais particulares que constituem as outras
obras de física, De caelo, De generatione et corruptione,
Meteorologica, e a todas as obras sobre os animais (do De
anima à Historia animalium, ao De partibus animalium e ao
De generatione animalium), a Física propriamente dita pode
parecer uma simples introdução. Mas, segundo a concepção'
aristotélica de física como investigação dos princípios e das
causas primeiras (que apenas no Idade Média foi desclassificada
para ciência das causas segundas, porque todos os tipos de causa
primeira foram reunidos na única causa transcendente, o Deus
criador), ela já é uma parte integrante dessa ciência, e é também
a sua parte mais interessante, do ponto de vista filosófico.
Os procedimentos dos quais ela se serve são, na maior
parte dos casos, as argumentações dialéticas, isto é, as análises
da linguagem ou as discussões de opiniões alheias, o que não
impede que eles possam ser também verdadeiras demonstra­
ções científicas, dotadas de necessidade e capazes de forçar o
assentimento. Isso acontece, no caso das análises lingüísticas,
quando certas distinções revelam-se necessárias a fim de evitar
as contradições e, no caso das discussões dialéticas, quando
estas últimas dão lugar às verdadeiras refutações de uma opi­
nião qualquer (isto é, à sua redução a contradição), o que im­
plica a verdade da opinião oposta àquela que foi refutada. Não

73
As razões de Aristoteles

se trata, certamente, de demonstrações “físicas” no sentido


moderno do termo, mas antes de demonstrações “lógicas”: to­
davia. seu valor de verdade não é, por essa razão, absolutamen­
te diminuído.
Não é este o lugar para analisar também os métodos postos
em ato por Aristóteles nos outros setores mais particulares de
sua física, na cosmologia, na psicologia, na biologia e na zoo­
logia. para os quais remeto as excelentes comunicações que
tiveram lugar por ocasião do II Symposium Aristoielicum res­
pectivamente por P. Moraux, H. Dõrrie. I. Düring e D. M.
Balme: limito-me simplesmente a destacar como também a ·
propósito das classificações biológicas, consideradas por mui­
tos o aspecto mais “científico”, no sentido moderno do termo,
da física aristotélica, nota-se um contínuo emprego de concei­
tos fundamentais que derivam da dialética da Academia platô­
nica. pelo que se pode falar, ainda uma vez. de método dialético7.

7. Isso foi mostrado em um ensaio de fundamental importância


por H. J. Krämer, "Grundbegriffe akademischer Dialektik in den
biologischen Schriften von Aristoteles und Theophrast", in Rheinisches
Museum Jur Philologie, 111: 293-333, 1968.

74
& apituíô TSercâira

método da metafísica

O procedimento diaporético

a obra intitulada pelos editores Metafísica, encontramos


N exposta aquela que Aristóteles denominava “filosofia pri­
meira“. a ciência mais elevada, superior a qualquer outra, tanto
por causa da universalidade como pela dignidade de seu objeto.
No início desta obra, todavia, a saber, no livro I, o autor declara
querer procurar a "sabedoria” (sophía), entendendo igualmente
por esse nome, muito tradicional, a forma suprema de conhe­
cimento. e portanto também a mais elevada entre as ciências
(cap. 1). Devendo, em seguida, caracterizar a sabedoria em
relação às outras ciências, ele a define como “ciência dos prin­
cípios e das causas primeiras".
Vimos que já a física fora por ele entendida desse modo:
é legítimo, por isso, perguntar-se por que tal definição é agora
aplicada à metafísica. A resposta está. provavelmente, no fato
de Aristóteles, no momento em que expõe essa nova ciência, já
ter levado a termo a física e já ter constatado que esta exige o
motor imóvel do céu, o qual é comumente identificado com
Deus. Por esse motivo uma ciência das causas primeiras deve
ocupar-se também de Deus, e isto a física não pode fazer, uma

75
A s razões de Aristóteles

vez que seu objeto é constituído somente, como vimos, pelas


realidades naturais e móveis. Eis, então, que a categoria de
ciência suprema, isto é, de sabedoria, cabe a uma nova ciência,
justam ente a m etafísica, que, como diz explicitam ente
Aristóteles, tem por objeto também Deus, porque Deus é uma
entre as causas primeiras (cap. 2, 982 a 8-9).
A metafísica, todavia, situa-se em uma relação de estreita
continuidade com a física. Efetivamente, no momento em que
define as causas primeiras, ou seja, os gêneros de causas no
interior dos quais devem ser investigadas as causas primeiras,
Aristóteles remete explicitamente à Física, declarando que lá
tais causas já foram teorizadas suficientemente, e limita-se a
acrescentar àquela sua teorização uma espécie de confirmação
histórica, ou seja, a célebre exposição das doutrinas dos filóso­
fos precedentes (dos pré-socráticos a Platão e aos outros aca­
dêmicos), que constitui a primeira história da filosofia já escrita
(caps. 3-10). Como todos sabem, trata-se de uma história da
filosofia conduzida com intenção filosófica mais do que histó­
rica, isto é, com o objetivo declarado de encontrar uma confir­
mação à distinção entre os quatro gêneros de causas, o que não
impede que também seja uma fonte preciosa de informações
históricas sobre os autores expostos, e sobretudo um primeiro
enquadramento deles em um discurso unitário e, ao mesmo
tempo, específico, destinado a tomar-se a “história da filosofia”
reconhecida por quase todos os autores sucessivos.
Não igualmente reconhecido é, ao contrário, o caráter
dialético daquela exposição, que, porém, pode ser claramente
deduzido do seu estruturar-se em um verdadeiro exame crítico
das opiniões alheias, segundo aquela que vimos ser a parte
“peirástica” da dialética, que não está em contraste com o
objetivo também filosófico, isto é, construtivo da exposição,
dado que, como igualmente vimos, a própria peirástica pode
ser usada para distinguir mais facilmente quanto há de verda-

76
O método da metafísica

deiro e de falso em cada uma das posições examinadas1. Em


uma primeira parte, com efeito, Aristóteles mostra que cada um
dos quatro gêneros de causas por ele especificados foi, de al­
gum modo, reconhecido por alguns dos fdósofos precedentes:
a causa material pelos jónicos, a motora por Empédocles, a
formal pelos pitagóricos e, sobretudo, por Platão, a final por
Anaxágoras, e mostra que nenhum deles especificava outras, o
que soa como uma confirmação da validez de sua doutrina
(caps. 3-6). Na segunda parte, ao contrário, passa a criticar
cada uma das filosofias precedentes, mostrando que nenhuma
entendeu adequadamente o tipo de causa descoberto por ela e,
sobretudo, que nenhuma especificou todas as quatro simultanea­
mente (caps. 7-10).
Contudo, o livro permanece ainda substancialmente ex­
trínseco e introdutório à verdadeira investigação metafísica,
porque só faz confirmar uma doutrina já estabelecida no âmbi­
to da física. O mesmo se pode dizer do livro II, o famoso “a
minúsculo”, que, como já vimos, não pertencia originariamente
à série constitutiva da obra, mas servia mais como uma intro­
dução metodológica à física ou a uma ciência ainda não divi­
dida em física e metafísica. A verdadeira exposição metafísica
tem início somente com o livro III, no qual Aristóteles ilustra
imediatamente o método que pretende seguir como o mais apto
à “ciência investigada”, isto é, à ciência em questão. Uma pri­
meira fase desse método é ilustrada nos seguintes termos:
é necessário, em relação à ciência investigada, que
examinemos, antes de tudo, as coisas que devem estar
em aporia (aporéisai): estas são todas aquelas em torno
das quais houve opiniões diferentes, mas também

1. Sobre isso chamo a atenção no texto “Sul carattere ‘dialettico’


delia storiografia filosófica di Aristotele”, in G. Cambiano (org.),
Storiografia e dossografia nella filosofia antica, Torino, Tirrenia, 1986,
pp. 101-126.

77
A s razões de Aristóteles

aquelas que eventualmente tiverem sido esquecidas


além destas (III 1, 995 a 24-27).
Duas observações merecem ser feitas a propósito deste
preâmbulo: antes de tudo, Aristóteles diz que se deve partir das
aporias, ou seja, das questões a propósito das quais existem
divergências de opiniões, o que põe imediatamente a metafísica
no terreno da discussão das diferentes opiniões; em seguida
afirma que não basta considerar apenas as aporias e as respec­
tivas opiniões já expressas, isto é, historicamente configuradas,
mas que é necessário expor também outras aporias e opiniões,
eventualmente esquecidas, de modo a exaurir toda a gama das
soluções possíveis. Apenas essa completude, com efeito, pode
garantir a validez dos resultados obtidos mediante a refutação
progressiva, isto é, eliminação, das várias aporias consideradas.
Logo em seguida Aristóteles ilustra o motivo pelo qual
indicou como primeiro passo o exame das aporias:
para aqueles que querem investigar bem (euporésai),
é preciso que desenvolvam bem as aporias (to
diaporésai kalós), porque o êxito posterior (euporía) é
a solução das aporias anteriores; mas não é possível
que dissolvam uma cadeia aqueles que a ignoram, e
a aporia do pensamento revela essa situação a propó­
sito da realidade. Pois à medida que se sente a aporia,
com efeito, surge uma situação similar à dos prisio­
neiros, visto que, em ambos os casos, é impossível ir
adiante na direção que se propõe (995 a 27-33).
Aqui Aristóteles distingue claramente três momentos: 1) a
“aporia”, que literalmente significa falta de caminho, de dire­
ção ao longo da qual prosseguir, isto é, impasse, bloqueio com
o qual se depara quando se está diante de uma encruzilhada, ou
seja, alternativa entre duas soluções opostas, aparentemente
dotadas do mesmo valor; 2) o “desenvolver a aporia”, do qual
se declara a utilidade, ou melhor, a necessidade, para aqueles

78
O método da metafísica

que querem investigar bem (e a cujo significado deste segundo


momento retomaremos em breve); 3) a “euporia”, literalmente
o bom caminho, a direção justa, identificada com a solução da
aporia. A aporia é comparada a uma cadeia que impede de
caminhar, a condição de quem se encontra nela é comparada à
dos prisioneiros amarrados, com clara reminiscência da alego­
ria da caverna platônica.
O segundo momento é indicado por meio da mesma ex­
pressão com a qual, nos Tópicos, se ilustrava o terceiro “uso”
da dialética, aquele relativo às “ciências filosóficas”: diaporésai.
Permanecendo na atmosfera da encruzilhada, pode-se dizer que
desenvolver a aporia consiste em procurar prever para onde
levam ambas as direções que aparecem diante de nós, por exem­
plo alcançando certa altura de modo a distinguir se uma delas
leva a lugares inacessíveis ou a um beco sem saída. E exata­
mente a operação que, a propósito dos Tópicos, caracterizamos
como dedução das conseqüências extremas de cada uma das
duas hipóteses opostas, que conduz ao objetivo de ver qual
delas leva a uma contradição e qual, ao contrário, não. O método,
portanto, que aqui Aristóteles propõe para a metafísica coincide
com o terceiro uso da dialética, o “científico”, isto é, ainda uma
vez um método dialético, que denominaremos, por comodida­
de, procedimento “diaporético”.
Contudo, a ilustração do método em questão prossegue:
por isso, é necessário estudar todas as dificuldades,
seja pelas razões ditas, seja porque aqueles que inves­
tigam sem ter anteriormente examinado as aporias
são semelhantes àqueles que ignoram em qual dire­
ção devem caminhar, e, além disso, porque não sabem
se encontraram ou não o que procuravam; para estes,
com efeito, o fim não é claro, enquanto o é para quem
examinou anteriormente as aporias (995 a 33-b 2).

79
A s razoes de Aristóteles

Note-se a insistência na necessidade de examinar “todas”


as dificuldades, as objeções, as argumentações opostas, as pos­
síveis soluções, para que o método por eliminação possa dar
resultados seguros; em seguida, a recomendação renovada de
examinar as aporias; enfim, a solução original que esse método
fornece ao problema posto por Platão no Menon1: para encon-
trar-se o que se procura, é necessário, de um lado, não o conhe­
cer ainda, do contrário não se o procuraria, e, de outro, já conhecê-
-lo, para poder reconhecer se, enfim, se encontrou justamente o
que se procurava. Platão resolvia o problema mediante sua teoria
da reminiscência (conhecer significa reconhecer o que já se co­
nhecia, e que posteriormente foi esquecido), mas Aristóteles o
resolve mediante a aporia, que indica a alternativa entre duas
direções opostas, das quais já se sabe que a boa evita a contra­
dição, enquanto a ruim depara com ela; e, sobretudo, mediante
o procedimento diaporético, que permite ver qual das duas
hipóteses conduz à contradição e qual, ao contrário, não.
Enfim, ele recorre também aqui, como já no De caelo, à
comparação com o debate judiciário:
além disso, encontra-se necessariamente em uma con­
dição melhor em relação ao julgar aquele que ouviu,
como em um tribunal, todos os argumentos das partes
contrapostas e dos contendores (995 b 2-4).
Ainda uma vez Aristóteles ressalta a necessidade de ouvir
“todos” os argumentos opostos, e compara o filósofo àquele
que, posteriormente, julga quais são válidos e quais, ao contrá­
rio, não.
O resto do livro III é dedicado primeiramente à enumera­
ção de quinze aporias concernentes ao objeto da metafísica, ou
seja, àquilo do que ela procura os princípios, mas também à2

2. Menon, trad. Jorge Paleikat, Porto Alegre, Editora Globo, 3“


ed., 1945. [N. do T.]

80
O método da metafísica

natureza dos princípios investigados, isto é, às causas primeiras


(cap. 1), e em seguida ao “desdobramento” de cada aporia, que
é precisamente o procedimento diaporético anunciado no início
do livro (caps. 2-6). Como se pode ver na continuação, tal
procedimento consiste, antes de tudo, em propor, para cada
aporia, duas possíveis soluções opostas, isto é, duas hipóteses
(denominadas comumente pelos comentadores hodiernos “tese”
e “antítese”), as quais, por vezes, coincidem com posições his­
toricamente assumidas por algum filósofo precedente, e por
vezes não; donde deduzir-se de cada uma dessas duas hipóteses
as consequências que delas derivam, assinalando as dificulda­
des, isto é, as conseqüências inaceitáveis, de uma e de outra.
Em geral no livro III Aristóteles não indica explicitamente
a solução das aporias, ainda que com freqüência permita clara­
mente compreender para qual hipótese ele tende. Por vezes
trata-se de soluções mistas, ou intermediárias, que consistem
em reconhecer como em cada uma das duas hipóteses opostas
há aspectos aceitáveis e aspectos inaceitáveis, que podem ser
diferenciados uns dos outros mediante distinções oportunas; ou
que consistem em aceitar uma terceira hipótese, espécie de
síntese ou via intermediária entre as duas hipóteses iniciais
(que, em tal caso, revelam ser não contraditórias entre si, mas
somente contrárias).
A solução das aporias no livro III é apresentada por
Aristóteles nos livros posteriores da M etafísica, todos
reconduzidos a uma unidade justamente pela referência às
aporias: isso vale para os mais importantes: o IV, o VI, o grupo
unitário VII-VIII-IX, e o grupo dos três últimos, XII-XIII-XIV.
Permanecem fora da série apenas o livro V — que, como vi­
mos, contém a exposição dos muitos significados de alguns
termos e que, como veremos, justamente por isso foi inserido
no conjunto, ainda que seguramente na origem não fizesse parte
dele — e o livro XI, que é um resumo, provavelmente
inautêntico, dos livros III-IV-VI, e de uma parte da Física,
portanto certamente estranho ao conjunto. Em todo caso, o li-

81
A s razões de Aristóteles

vro III realiza o procedimento diaporético exatamente do mes­


mo modo pelo qual Platão, no Parmênides, esboçara integrar a
dialética de Zenão e dela fornecera um exemplo: apresentar
hipóteses opostas entre si e deduzir delas as conseqüências.
Vale a pena assinalar, na exposição das aporias, um aceno
que Aristóteles faz aos “dialéticos”, útil para compreender a
relação por ele estabelecida entre dialética e filosofia:
além disso, sobre o idêntico e o diferente, o semelhan­
te e o dessemelhante, e a oposição, e sobre o anterior
e o posterior e todos os outros objetos deste tipo,
sobre os quais os dialéticos se submetem à prova
(peiróntai) de investigar realizando sua investigação
a partir de cada éndoxa, [deve-se discutir] sobre qual
ciência tem a tarefa de tratar de todos eles; e, além
disso, [tratar] de todas as propriedades que lhes per­
tencem por si, e não apenas o que é cada um destes,
mas também se uma única coisa é oposta a uma só (1,
995 b 20-27).
Os “dialéticos” aqui mencionados só podem ser os que
têm a “força dialética” mencionada na Metafísica XIII 4, 1078
b 25-27. Tanto uns quanto os outros, com efeito, investigam os
opostos; estes, pois, investigam se a um oposto há um único
oposto, isto é, em quais casos a um oposto há um único opos­
to, enquanto aqueles investigam em quais casos a ciência dos
opostos é a mesma, o que é, no fundo, a mesma coisa (pois a
ciência dos opostos é a mesma, quando a um oposto há um
único oposto, isto é, quando os opostos são contraditórios)3;

3. Traduzo enantíon por “oposto” e não por “contrário”, porque


não há sentido em investigar se a um contrário há um único contrário,
na medida em que isso faz parte da própria noção de contrário, assim
como não tinha sentido, na Metafísica XIII 4, atribuir à dialética pla­
tônica a tarefa de investigar se a ciência dos contrários é a mesma,
porque na Academia este era um lugar-comum.

82
O método dtt metafísica

estes, enfim, realizam sua investigação sobre os opostos “a


partir de cada éndoxa", enquanto aqueles investigavam os opos­
tos a partir não de princípios e, por isso, também neste caso,
de cada éndoxa.
Ora, como vimos, os que têm a “força dialética”, aquela
que, segundo o que Aristóteles afirma na Metafísica XIII 4, no
tempo de Sócrates ainda não existia, eram os platônicos, isto é,
o próprio Platão e os outros acadêmicos; e também os
“dialéticos” dos quais Aristóteles fala na Metafísica III 1, os
quais investigam o idêntico e o diferente, o semelhante e o
dessemelhante, o anterior e o posterior, são ainda uma vez Platão
e os acadêmicos, que tinham tratado desses argumentos respec­
tivamente no Parmênides e no Sofista4, mas também nas “dou­
trinas orais”, então uma espécie de patrimônio comum da Aca­
demia antiga5. A alusão a “cada éndoxa” não contrasta com a
referência a Platão, pois nos diálogos platônicos parte-se sem­
pre e apenas de éndoxa, enquanto as respostas afirmativas da­
queles que respondem são, justamente, os éndoxa.
Contudo, ao mesmo tempo Aristóteles refere-se também à
dialética por ele mesmo descrita nos Tópicos, que, como sabe­
mos, desenvolve as aporias na direção oposta e investiga até os
princípios partindo justamente dos éndoxa: entre as duas
dialéticas, a descrita por Aristóteles e a praticada por Platão,
não há nenhuma diferença quanto à estrutura argumentativa e
ao conteúdo: a única diferença está na avaliação que lhe davam
Platão e Aristóteles. Para Platão, com efeito, a dialética era já

4. Sofista, trad, e notas Jorge Paleikat e João Cruz Costa, São


Paulo, Nova Cultural, 3a ed., 1987 (Os Pensadores). [N. do T.]
5. Isso foi visto com clareza, pela primeira vez, por C. Rossito.
“La possibilita di un’indagine scientifíca sugli oggetti delia dialettica
nella Metafísica di Aristotele”, in Atti dell'Istituto Veneto di Scienze,
Lettere edArti. 136: 75-87, 1977-1978, o qual, porém, não estabeleceu
relação entre a passagem em questão e a de Metafísica XIII 4.

83
A s razões de Aristóteles

nor si mesma ciência, ou melhor, a única verdadeira ciência,


enquanto para Aristóteles ela é somente crítica, “peirástica”,
isto é, não é de per si uma ciência, mas apenas um método, um
procedimento argumentativo, que pode ser usado pelas ciências
filosóficas para conhecer a verdade, mas não coincide neces­
sariamente com ela, porque pode ser usado também com ou­
tros objetivos. A isso alude a expressão “submetem-se à pro­
va”, que não significa simplesmente “tentam” ou “esforçam-
se”, como se não conseguissem isso, mas indica a atitude crí­
tica própria da dialética, isto é, a disponibilidade para subme­
ter-se a exame, para arriscar-se com um contraditor. Os prin­
cípios aos quais chegava a dialética platônica, como veremos,
eram o Uno e o Múltiplo, ou seja, o Uno e a Díade indefinida,
os quais não são, segundo Aristóteles, os verdadeiros princípios,
porque não consideram os muitos significados nos quais se diz
o ser.
A resposta que Aristóteles dará a esta aporia no livro IV
será, como veremos, que a tarefa de tratar cientificamente —
estabelecendo a verdade sobre os objetos dos quais se ocupava
a dialética platônica — cabe à filosofia primeira, ou seja, à
metafísica: esta, portanto, colhe os melhores frutos da dialética
platônica, não apenas sob o aspecto da estrutura argumentativa,
mas também sob aquele, mais importante, de conseguir conhe­
cer os verdadeiros princípios. Em relação à dialética platônica,
todavia, a metafísica aristotélica chega a seu resultado graças
a outro procedimento dialético, não praticado suficientemente
por Platão: a análise semântica, a distinção entre os múltiplos
significados do ser, que permite descobrir os autênticos prin­
cípios do ser, em vez daqueles postos por Platão. Também a
metafísica aristotélica, porém, como a dialética platônica, não
parte da essência, isto é, de princípios pressupostos, mas em
sua investigação dos princípios somente de éndoxa: por isso se
serve, como vimos, de um procedimento de tipo diaporético.

84
O método da metafísica

Poder-se-ia dizer, por essa razão, também da metafísica


aristotélica o que Hegel diz da filosofia em geral no início de
sua Enciclopédia das ciências filosóficas:
A filosofia não tem a vantagem, de que gozam as
outras ciências, de poder pressupor seus objetos como
imediatamente dados pela representação; e também
como já admitido o método do conhecer — para co­
meçar e para ir adiante.
Hegel, com efeito, acrescenta logo depois:
o espírito pensante só por meio do representar e vol-
tando-se para ele [é que] avança até o conhecer e o
conceber pensantes. Mas no considerar pensante logo
se constata que isso inclui em si a exigência de mos­
trar a necessidade do seu conteúdo, de provar tanto o
ser como as determinações do seu objeto. A familia­
ridade, acima aludida, com os objetos aparece assim
como insuficiente; e como inadmissível para fazer ou
legitimar pressuposições e asseverações. Mas a difi­
culdade de instituir um começo apresenta-se ao mes­
mo tempo, porque um começo, como algo imediato,
faz sua pressuposição; ou melhor, ele mesmo é uma
pressuposição6.
Também para Hegel, portanto, a filosofia deve passar pelas
representações, quer dizer, pelos éndoxa, para chegar ao conceito,
ou seja, à ciência, e este, e não outro, é o seu método, isto é, a
sua própria investigação, que também Hegel, mesmo que o enten­
da em um sentido diferente de Aristóteles, denomina dialética.

6. Trad. B. Croce, Bari, Laterza, 1951, § 1. [Enciclopédia das


ciências filosóficas em compêndio. Vol. I, A ciência da lógica. Texto
completo, com os adendos orais, trad. Paulo Meneses, colabor. José
Machado, São Paulo, Edições Loyola, 1995 (O Pensamento Ociden­
tal). N. do T.]

85
A s razões de Aristóteles

A semântica ontológica

A parte central da Metafísica, seu núcleo mais consistente,


é dedicada à análise semântica do que constitui o objeto de tal
disciplina, “o ser enquanto ser e as propriedades que lhe per­
tencem por si”. Aristóteles especificou esse objeto como o único
capaz de tomar a compreender em si a totalidade do real para
o qual a natureza, objeto da física, se revelara inadequada por
causa da existência de uma realidade imóvel. Desse novo ob­
jeto, portanto, devem ser procurados os princípios e as causas
primeiras (livro IV, cap. 1), e a ciência à qual cabe esse dever,
a metafísica, resultará a mais universal e simultaneamente a
mais elevada, por isso terá o direito de ser denominada “filo­
sofia primeira”.
O método com o qual são procuradas as causas primeiras
do ser enquanto ser e das “propriedades que lhe pertencem por
si” — expressão, como se vê, conforme às indicações dos
Segundos analíticos — não é, no entanto, a demonstração, o
que seria impossível, dada, pelo menos, a inicial indisponi-
bilidade de princípios dos quais partir, mas, como já notamos
a propósito da física, a análise dos significados do ser e de suas
propriedades, que podemos denominar “análise semântica”. Esse
método, no entanto, é significativamente especificado e enri­
quecido justamente no livro IV da Metafísica:
após ter distinguido em quantos sentidos se diz cada
um [destes objetos], deve-se mostrar, em relação ao
primeiro, como em cada predicação [o objeto] se diz
em relação àquele (2, 1004 a 28-31).
Aqui são distinguidas, parece-me, três operações sucessi­
vas: 1) antes de tudo, a distinção entre os muitos significados
de um mesmo termo, isto é, aquela que denominamos “análise
semântica”, e que vimos ser um dos instrumentos do qual se
serve a dialética; 2) em segundo lugar, a distinção do “primei-

86
O método da metafísica

ro” entre ele, ou seja, daquele do qual os outros dependem, o


qual, no caso de termos não simplesmente equívocos mas do­
tados de alguma unidade, é precisamente o que confere unidade
ao conjunto; 3) a determinação da relação intercorrente entre
cada um dos muitos significados e o primeiro, isto é, do tipo de
dependência que eles têm em suas relações. Enquanto a primei­
ra operação está entre as praticadas também pela dialética, a
segunda e a terceira configuram-se como verdadeira investiga­
ção de princípios e causas (o primeiro significado, com efeito,
é princípio e causa dos outros) e, respectivamente, como uma
espécie de demonstração, isto é, de ilustração da dependência,
dos significados secundários a partir do primeiro. Não há dú­
vida de que, se a primeira operação está entre as praticadas pela
dialética, a segunda e a terceira configuram-se como propria­
mente científicas, ou seja, cognitivas. Mas também não há dúvida
de que elas mantêm o caráter de análise fundamentalmente
semântica, o que as aparenta notavelmente com as operações
próprias da dialética.
A distinção entre os muitos significados do ser já fora
realizada por Aristóteles nas obras “dialéticas”, isto é, lógicas,
com as Categorias, os Tópicos e o livro V da Metafísica, mas
também em uma obra “científica” como a Física, e mostrara
que tais significados correspondem às dez categorias. No livro
IV da Metafísica, Aristóteles realiza a operação posterior, mos­
tra que o primeiro entre eles é a substância (ousía) e que a
relação intercorrente entre a substância e as outras categorias é
a assim chamada “homonímia em relação a um”: as realidades
pertencentes às outras categorias são denominadas entes — e
por isso constituem, da mesma maneira, significados do ser —
na medida em que todas contêm, na própria definição, uma rela­
ção com a substância (no sentido, por exemplo, de que a
quantificam, qualificam ou localizam no espaço e no tempo etc.).
A substância, portanto, é princípio e causa de todas as catego­
rias, ou seja, do ser enquanto ser. Isso constitui uma primeira

87
A s razões de Aristóteles

e importante determinação dos princípios e das causas primei­


ras: sua investigação posterior terá, por isso, por objeto os
princípios e as causas da substância (cap. 2).
Contudo, a própria operação, acrescenta Aristóteles, deve­
rá ser feita também para as propriedades por si do ser: 1) para
o uno, o qual, por sua vez, resultará dizer-se em muitos senti­
dos, correspondentes às categorias do ser, ou seja, o idêntico (uno
na substância), o igual (uno na quantidade), o semelhante (uno
na qualidade) etc.; 2) para os seus opostos, o múltiplo, o dife­
rente, o desigual, o dessemelhante etc.; 3) para os vários tipos
de oposição, a contradição, a privação, a contrariedade em
sentido estrito; 4) enfim, para outros tipos de relação, como
aquelas entre anterior e posterior, todo e parte etc. Também
neste caso resultará que o significado primeiro é aquele cons­
tituído pela substância e que todos os outros dependem dela
segundo a “homonímia em relação a um”. Desse modo, será
resolvida a aporia mencionada no livro III a propósito dos
“dialéticos”, isto é, dos platônicos, no sentido de que caberá à
filosofia primeira tratar dos objetos dos quais se ocupam estes
últimos, e estabelecer, por exemplo, “se Sócrates e Sócrates
sentando são um só, se a um oposto há um único oposto, ou o
que é o oposto e em quantos sentidos se diz”. A esse respeito,
Aristóteles esclarece a diferença entre o modo de tratar próprio
da filosofia primeira e aquele próprio da dialética nos seguintes
termos:
aqueles que investigam estes objetos não erram por
este motivo, isto é, porque não fazem filosofia, mas
pelo fato de que antes está a substância, da qual não
dizem nada (2, 1004 b 8-10).
Para Aristóteles, portanto, aqueles que se ocupam do idên­
tico, do diferente etc. fazem filosofia, são “filósofos”, mesmo
tendo sidos anteriormente (a saber, no livro III) por ele chama­
dos de “dialéticos”, o que demonstra que as duas caracteriza-

88
O método da metafísica

ções não se excluem, ou melhor, em certa medida coincidem,


e indica-se a posterior confirmação de que se trata dos platô­
nicos, que usavam também eles a dialética com intenções filo­
sóficas. O que neles critica Aristóteles é somente a falta de
reconhecimento do primado da substância e, implicitamente, da
distinção entre os muitos sentidos no quais se dizem os objetos
em questão. Mas isso significa, a seus olhos, que os platônicos
se impedem um verdadeiro conhecimento de tais objetos, ou
seja, que sua posição permanece a de simples dialéticos, críti­
cos das opiniões alheias e privados da verdadeira filosofia.
Por isso, Aristóteles conclui:
estes objetos também fazem parte disso que cabe ao
filósofo investigar: a verdade. E disto há um signo:
com efeito, os dialéticos e os sofistas assumem a mesma
aparência do filósofo, visto que a sofística é uma sa­
bedoria apenas aparente, e os dialéticos discutem
sobre todas as coisas, mas a todas é comum o ser, e
é claro que eles discutem sobre estes objetos, porque
estes são próprios da filosofia. Com efeito, a sofistica
e a dialética derivam do mesmo gênero de coisas do
qual deriva a filosofia, mas esta difere da segunda
pelo tipo de capacidade [em que ela consiste], e da
primeira pela escolha do modo de viver [que se lhe
acompanha]: a dialética é examinativa (peirastiké) das
coisas das quais a filosofia é cognitiva ('gnoristikéj,
enquanto a sofistica é [sabedoria] aparente, não real
(1004 b 16-26).
Os dialéticos que discutem o idêntico, o diferente etc.,
“porque estes são próprios da filosofia”, são os dialéticos que
têm uma intenção filosófica, não os simples amantes da discus­
são, portanto só podem ser os platônicos. Mas eles não conse­
guem, segundo Aristóteles, fazer boa filosofia, isto é, conhecer,
porque se limitam a discutir as opiniões, ou seja, a criticar, sem

89
A s razões de Aristóteles

dizer nada da substância, isto é, sem praticar a análise semân­


tica e procurar o verdadeiro princípio do ser e também dos
objetos em questão, aos quais o ser é comum. Bem diferente é
o caso dos sofistas, o quais querem parecer sábios sem o ser
realmente, porque escolheram um modo de viver caracterizado
pelo amor à riqueza, não pelo amor à verdade.
Uma confirmação posterior de que as personagens em
questão são os platônicos, depreende-se do fato de que
Aristóteles, para acrescer um argumento a mais a favor da tese
de que a filosofia deve ocupar-se dos objetos supra-expostos,
cita o fato de que todos esses objetos são reconduzidos por
“quase todos” os filósofos a dois princípios opostos, ou seja, o
uno e os muitos, ou o ser e o não-ser, os quais, enquanto con­
traditórios entre si, são justamente objeto de uma única ciência
(1004 b 27-1005 a 6). Ora, é conhecido que estes são precisa­
mente os princípios aos quais Platão reconduzia o idêntico, o
diferente etc., respectivamente no Parmênides e no Sofista, e
aqueles aos quais reconduziam tais objetos aqueles que aderiam
a suas “doutrinas não-escritas”, por exemplo seus discípulos
Espeusipo e Xenócrates (mesmo que com alguns diferenças).
É contra tal doutrina que agora se volta explicitamente a
crítica de Aristóteles:
mas, contudo, se também o uno se diz em muitos sen­
tidos, em relação ao primeiro [destes] dir-se-ão os
outros, e ao mesmo tempo os opostos, se é verdadeiro
que o ser ou o uno não é universal e idêntico para
todas as coisas, ou separado, como certamente não é,
mas alguns significados seus se dizem em relação a um
e a outros consecutivamente (1005 a 6-11).
Os platônicos faziam, com efeito, do ser e do uno um
princípio separado, sem distinguir seus muitos sentidos e sem,
portanto, diferenciar o primeiro deles, isto é, o verdadeiro prin­
cípio, que para alguns deles, a saber, para as várias categorias,

90
O método da metafísica

é a substância em geral, da qual as outras categorias dependem


todas diretamente na base da “homonímia em relação a um”,
e para outros, isto é, como veremos, para os diferentes senti­
dos da substância, ele é um tipo particular de substância, a
“substância primeira”, da qual os outros tipos de substância
dependem “consecutivamente”, quer dizer, em série. Isso con­
firma ainda uma vez que o método da metafísica é, para
Aristóteles, a análise semântica e a distinção do significado
primeiro.
Este é o motivo pelo qual os editores da Metafísica nela
inseriram, depois do livro IV, aquele que agora é conhecido
como o livro V, o tratado que distingue os muitos significados
de alguns entre os mais importantes termos filosóficos: princí­
pio, causa, elemento, natureza, uno, ser, substância, idêntico,
diferente, opostos etc. Nele merece atenção particular o capítu­
lo sobre os muitos significados do ser (cap. 7), porque enume­
ra, ao lado do ser que compreende as várias categorias, também
outros significados, como “o ser por acidente”, o ser em potên­
cia e em ato, o ser como verdadeiro (e respectivamente o não-
-ser como falso). Do ser por acidente e do ser como verdadeiro
Aristóteles trata no livro VI, enquanto do primeiro entre os
significados correspondentes às categorias ele trata nos livros
VII e VIII, que estão, por essa razão, entre os mais importantes
de toda a obra.
No livro VII, Aristóteles mostra, antes de tudo, que a subs­
tância é primeira, em relação às outras categorias, seja do ponto
de vista da noção, por ser contida em sua definição, seja do
ponto de vista do conhecimento, pelo fato de o seu conheci­
mento ser pressuposto pelo conhecimento das outras categorias,
seja do ponto de vista do tempo, enquanto ela só pode existir
separada, isto é, em si, enquanto as outras categorias, para existir,
devem ser sempre nela. A substância, portanto, é “princípio” ou
“causa primeira” das outras categorias, seja do ponto de vista
lógico-epistemológico, seja do ponto de vista ontológico. Isso

91
A s razões de Aristóteles

demonstra como um procedimento dialético, como a análise


semântica, é capaz de estabelecer também a dependência não
apenas das palavras, mas das coisas mesmas.
Contudo, a parte mais importante do livro VII é dedicada
a estabelecer a “primeira” entre as substâncias, isto é, o primei­
ro entre os diversos sentidos nos quais se diz a substância.
Aristóteles toma em exame, para esse propósito, quatro “can­
didatos” ao título de substância, o substrato, o composto, a
forma e o universal, e chega a concluir, pela análise de cada um
deles, que a “substância primeira” é a forma, a causa formal,
não entendida como forma separada, mas como forma de um
composto material (“todo”)7, por exemplo a alma como forma
do animal. São, ao contrário, substância em sentido derivado o
composto mesmo, em relação ao qual a forma é “causa do ser”,
isto é, causa formal, e substrato a causa material. Não são
substâncias de nenhum modo os universais, ou seja, os gêneros
e as espécies, que, mesmo nas Categorias, eram denominados
“substâncias segundas”.
No livro VIII, Aristóteles aperfeiçoa o discurso já feito,
assimilando respectivamente a matéria ao ser em potência e a
forma ao ser em ato, e mostrando que a passagem de uma
substância da potência ao ato requer uma causa motora. No
livro IX, ele analisa estes últimos dois significados, isto é, a
potência e o ato, estabelecendo, ainda uma vez, qual é o “pri­
meiro” deles. Este, como se sabe, é o ato, anterior à potência
seja do ponto de vista da noção, seja do ponto de vista da
substância ou do ponto de vista do tempo (ao menos em espé­
cie, onde o genitor precede o gerado posto que é sua causa
motora, enquanto a potência é anterior ao ato do ponto de vista
do tempo no indivíduo singular). Também em tal caso, portan-

7. No original italiano foi usada a palavra sinolo, uma transliteração


do grego syn-olon, que significa, literalmente, com-junto, o todo. [n.
do T.]

92
O método da metafísica

to, a análise semântica conduz à descoberta de uma verdadeira


anterioridade ontológica, isto é, de uma causalidade real. No
fim no livro IX, Aristóteles, além disso, aperfeiçoa a análise do
verdadeiro e do falso, distinguindo a verdade das proposições,
à qual se opõe a falsidade, da verdade das intuições, à qual se
opõe somente a ignorância.
Enfim, no livro X, o autor analisa os significados do uno
e do múltiplo, do idêntico e do diferente, do semelhante e do
dessemelhante, mas também dos opostos em geral, estabele­
cendo em cada caso qual deles é o primeiro: trata-se sempre da
análise semântica anunciada no livro IV e aplicada, desta vez,
justamente aos objetos dos quais se ocupam os “dialéticos”,
isto é, os platônicos. Este, portanto, é o modo no qual Aristóteles,
na parte central da Metafísica, estabelece os princípios e as
causas primeiras do ser enquanto ser.

A dem onstração elenktica

Entre as propriedades por si do ser enquanto ser, mencio­


nadas no livro IV, não estavam apenas as categorias e os opos­
tos, mas também os dois “axiomas” comuns a todas as ciências,
o princípio de não-contradição e o do terceiro excluído. Visto
que valem, justamente, para todos os seres, a investigação so­
bre eles não cabe a nenhuma ciência particular, nem sequer à
física, mas apenas à “filosofia primeira”, à metafísica, e consis­
te em estabelecer “se são verdadeiros ou não” (IV 3, 1005 a
30). Note-se a esse propósito como, segundo Aristóteles, todos
os homens possuem certamente um conhecimento intuitivo
desses princípios, isto é, um conhecimento imediato, porque ao
menos o primeiro deles, o de não-contradição, é por ele defi­
nido como “o mais conhecido entre todos os princípios”, aque­
le “sobre o qual é impossível cair em erro”, e por isso também
como “o mais seguro”. Isso, no entanto, não exclui que tam-

93
A s razões de Aristóteles

bém a propósito deles seja necessária uma investigação para


estabelecer se são verdadeiros ou falsos, e tal investigação, ao
contrário do conhecimento intuitivo, próprio de todos, perten­
ce apenas ao filósofo. Além do conhecimento imediato, por­
tanto, há também um conhecimento mediato, isto é, cientí­
fico, dos princípios em questão, e apenas este é propriamente
filosófico.
Ressalto isto para mostrar como, inclusive para os princí­
pios mais conhecidos, Aristóteles admite uma verdadeira inves­
tigação, aberta à alternativa entre o verdadeiro e o falso. Quan­
do, portanto, no livro IX, compara a inteligência a um “tocar”,
que pode somente ser verdadeiro ou não ser de fato, ele não
pensa, certamente, na filosofia, mas em uma apreensão imedia­
ta, que se pode ter espontaneamente, como no caso dos princí­
pios em questão, ou em seguida do ensino, como no caso, por
exemplo, das definições matemáticas. Em todo caso, não são
estas as verdades das quais se ocupa a filosofia. A verdade à
qual a filosofia aspira, ao contrário, é uma verdade que chega
à vitória sobre o seu oposto, isto é, sobre o falso, por um
confronto com ele, uma verdadeira alternativa, a qual só pode
ser resultado de uma discussão, de um procedimento dialético.
A propósito dos princípios em questão, o método da filosofia
não será mais, como logo veremos, a análise semântica mas a
discussão dialética, pela qual se verificarão não apenas as con­
dições da verdade, mas também as condições do valor das pa­
lavras, ou seja, da própria análise semântica.
Aristóteles principia com a investigação sobre o princípio
de não-contradição e, preliminarmente a ela, faz uma conside­
ração de caráter metodológico, que logo esclarece o procedi­
mento que ele se propõe a adotar. O princípio em questão,
como se sabe, não pode ser demonstrado no sentido próprio do
termo, porque é a condição de todas as demonstrações, segun­
do o que foi explicado nos Segundos analíticos. No entanto,
Aristóteles acrescenta:
O método da metafísica

é possível demonstrar elenkticamente (apodeíxai


elenktikós, isto é, demonstrar por meio de refutação)
também a propósito do que é impossível [contradi­
zer], com a condição de que aquele que o contradiz
fale somente alguma coisa. Se, ao contrário, não diz
nada, é ridículo procurar um argumento contra quem
não sustenta nenhuma tese, na medida em que não
afirma nada. Com efeito, quem assume tal atitude,
fazendo assim, é semelhante a uma planta. Quanto a
demonstrar elenkticamente, digo que ele difere do
demonstrar [puro e simples] porque aquele que qui­
sesse demonstrar [o princípio em questão] seria, con­
sidero, responsável de uma petição de princípio, ao
passo que, se o responsável de tal erro fo r o outro
[isto é, aquele que o contradiz], ter-se-á refutação
/elenkhosj e não demonstração (4, 1006 a 11-18).
Estamos diante de um procedimento singular, que é deno­
minado “demonstração” e, no entanto, é distinguido do “de­
monstrar” puro e simples, isto é, da demonstração de tipo
matemático, que, como sabemos, pressupõe os princípios. Esta
última não é aplicável ao princípio de não-contradição porque
daria lugar a uma petição de princípio, deveria pressupor jus­
tamente o que pretende demonstrar. Pelo contrário, o “demons­
trar elenkticamente” deixa, por assim dizer, que esse erro lógi­
co seja cometido por quem pretende contradizer o princípio:
quando essa pessoa comete o erro, basta ressaltar isso, e com
isso se o terá refutado. Contudo, a refutação de quem nega
equivalerá à demonstração do princípio, porque mostrará que é
impossível negá-lo, que é impossível que as coisas sejam dife­
rentemente de como ele diz, o que dá lugar àquela necessidade
característica das conclusões de toda demonstração.
Não há necessidade de salientar como a situação aqui
apresentada por Aristóteles seja claramente de tipo dialético:
enquanto, com efeito, para chegar a uma demonstração pura e

95
As razões de Aristóteles

simples pode-se estar também só, para salientar a petição de


princípio na qual caiu quem contradiz o princípio é necessário
— ao menos idealmente — estar em dois, isto é, é necessário
que se confrontem duas teses opostas, a de quem nega é a de
quem afirma o princípio em questão. A alusão à situação dialética
é explícita em expressões como “procurar um argumento” (zetéin
lógon) e “sustentar uma tese” (ékhein lógon), próprias da lin­
guagem dos Tópicos, como na exigência de que quem contra­
diz fale e não seja “semelhante a uma planta”. Inclusive a
refutação, como sabemos é um típico procedimento dialético.
Todavia, no caso em questão, a refutação consegue dar lugar a
uma verdadeira demonstração, mesmo que a uma demonstra­
ção sui generis, isto é, diferente daquelas da matemática.
Vejamos quais as condições para que isto ocorra. Antes de
tudo, que haja quem contradiga o princípio; em seguida que
quem contradiga fale, isto é, que se instaure uma situação de
tipo dialético; enfim, que diga alguma coisa. Aristóteles espe­
cifica esta última condição do seguinte modo:
o princípio do qual se deve partir em relação a todas
as posições deste tipo não é o de pedir [a quem con­
tradiz] que diga que alguma coisa é ou não é (posto
que alguém logo suporia que isto é fazer uma petição
de princípio), mas [pedir] ao menos que signifique
alguma coisa seja para si seja para outros; isto, com
efeito, é necessário, que diga alguma coisa. Se, ao
contrário, não [isto é, se não significa nada], quem
está em tal condição não fará nenhum discurso, nem
para si mesmo nem para os outros. Quando, porém,
alguém conceder isto, haverá demonstração, posto que
já haverá alguma coisa de definido. Contudo, o res­
ponsável não é aquele que demonstra [deste modo,
isto é, elenkticamente, o princípio], mas aquele que
sustenta a tese [da sua negação], porque sustenta a
sua tese destruindo a sua tese (1006 a 18-26).

96
O método da metafísica

É supérfluo salientar ainda uma vez o caráter dialético da


situação: fala-se, com efeito, em “pedir” e “conceder” alguma
coisa, que são os papéis respectivamente daquele que pergunta,
para refutar uma tese, e daquele que responde, para defendê-la.
O que é necessário pedir a quem contradiz o princípio não é
que diga que uma coisa é ou não é, ou seja, que pronuncie um
juízo qualquer, afirmativo ou negativo, porque, em tal caso, ele
logo perceberia ter pressuposto o princípio em questão, isto é,
ter cometido uma petição de princípio, e recusar-se-ia a fazê-
-lo: todo juízo, com efeito, na medida em que é afirmativo ou
negativo, é uma caracterização particular da oposição entre
afirmação e negação em que consiste o princípio de não-con-
tradição.
É necessário pedir a quem contradiz somente que “signi­
fique alguma coisa”, que diga uma única palavra, contanto que
dotada de significado. Isto ele não poderá recusar-se a fazer,
porque tal recusa equivaleria à recusa de qualquer discussão,
ou melhor, de qualquer discurso, inclusive daquele que ele
pretende sustentar. O valor dos termos é, portanto, a condição
do discurso, isto é, da comunicação, não apenas com os outros,
mas também consigo mesmo, ou seja, do próprio pensamento:
quem não significa alguma coisa não fala e não pensa, é de
novo semelhante a uma planta. Mais uma vez a semântica
emerge como método da metafísica, mas no interior de uma
situação dialética específica, isto é, de discussão.
Se quem contradiz concede isto, ou seja, diz uma única
palavra e admite que ela tenha um significado, “haverá alguma
coisa de definido”, ele significará aquela coisa e não outra,
admitindo com isso que aquela coisa não é outra, quer dizer,
admitirá a oposição entre ser e não ser certa coisa, expressa
pela oposição entre afirmação e negação, em que consiste o
princípio de não-contradição. Desse modo, no momento mes­
mo em que se chega a defender sua tese, vale dizer, a negação
do princípio de não-contradição, quem contradiz não nega, mas

97
A s razões de Aristóteles

admite o princípio de não-contradição, isto é, sustenta sua tese


(a negação) destruindo-a (porque admitir o princípio equivale a
destruir sua negação). Em tudo isto há, inegavelmente, uma
petição de princípio, mas nela cai aquele que sustenta a tese,
isto é, quem contradiz o princípio, que, portanto, se pode con­
siderar refutado. Pois bem, sua refutação equivale à demonstra­
ção do princípio, a uma demonstração, exatamente, “por meio
de refutação”.
Temos, assim, um caso de verdadeira demonstração
dialética, demonstração que tem todo o caráter de necessidade
próprio das demonstrações matemáticas e que se desdobra em
um procedimento incontestavelmente dialético. É este um exem­
plo de como também a dialética pode produzir autêntica ciên­
cia, um exemplo de uso científico da dialética. Trata-se, contu­
do, de um caso-limite, porque nele a refutação não consiste em
reduzir à contradição a tese do adversário, na medida em que
isso teria um sentido apenas depois que se tivesse admitido o
princípio de não-contradição, o qual declara a falsidade de uma
tese, justamente, contraditória. O que confere ao caso em ques­
tão um caráter de absoluta unicidade e irrepetibilidade é justa­
mente o fato de que, nele, se trata de demonstrar o princípio de
não-contradição, o qual, em todas as outras demonstrações é,
ao contrário, pressuposto. Este também é, indubitavelmente, o
caso no qual a dialética exprime o máximo de sua força.
Contudo, Aristóteles não se limita a enunciar a fórmula
geral desta demonstração, mas a desdobra articuladamente,
tomando em exame as posições concretas de quantos negavam,
direta (alguns sofistas) ou indiretamente (alguns filósofos pré-
socráticos, ou “físicos”), o princípio de não-contradição, e re­
futando-as uma a uma com argumentações inclusive de tipo
“pragmático”, isto é, que consistem em salientar uma diferença
entre a tese sustentada pelos que negam o princípio e o seu
comportamento prático (eles “vão a Megara, em vez de ir para
sua casa”, ou “tomam cuidado para não cair em um poço, em vez

98
O método da metafísica

de ir imediatamente para lá”). Com isso, ele confirma, uma vez


mais, o caráter dialético de seu procedimento, mais precisa­
mente seu caráter “peirástico”, ou seja, crítico das opiniões
alheias (caps. 5-7).
Aristóteles realiza operação análoga a propósito do princí­
pio do terceiro excluído, no qual, no entanto, a situação já é
diferente, porque permite pressupor o princípio de não-contra­
dição, não mais em questão, e portanto refutar os que negam o
princípio do terceiro excluído, reduzindo à contradição a sua
tese (caps. 7, 8). Particularmente interessantes, entre os argu­
mentos em defesa do princípio do terceiro excluído, são aque­
les contidos no último capítulo do livro IV, no qual Aristóteles
especifica duas negações entre si contrárias deste mesmo prin­
cípio e refuta ambas, reduzindo-as à contradição, mas com isso
termina por demonstrar a tese contraditória em relação a ambas
as teses refutadas. Vejamo-las de perto, porque configuram uma
situação exatamente idêntica àquela que reaparecerá na doutri­
na kantiana da razão.
Uma primeira formulação das duas negações em questão,
que são também negações do princípio de não-contradição, é
aquela pela qual elas se configuram respectivamente como a
tese de que “todas as proposições são verdadeiras”, e a tese de
que “todas as proposições são falsas”. Aristóteles denomina-as
“enunciações de sentido único e a respeito de todas as coisas”
(ta monakhós legómena kai katá panton), ou seja — podería­
mos dizer — , teorias unilaterais, totalizantes, “fortes”, no pior
sentido do termo. Elas negam o princípio de não-contradição e
o do terceiro excluído, porque negam a própria oposição entre
verdadeiro e falso, ou seja, admitem que duas posições entre si
contraditórias podem ser ambas verdadeiras (negação do prin­
cípio de não-contradição) ou ambas falsas (negação do princí­
pio do terceiro excluído).
A essas duas* teses Aristóteles apresenta duas refutações,
uma baseada na exigência de dar um significado às palavras

99
A s razões Ae Aristóteles

“verdadeiro” e “falso”, a qual mostra que isso é possível ape­


nas com a condição de estabelecer entre elas uma oposição e,
por isso, de renunciar às “enunciações de sentido único”; a
outra baseada na observação de que tais enunciações se
autodestroem. Vejamos esta última, a mais famosa:
quem, com efeito, diz que são verdadeiros todos os
discursos, torna verdadeiro também o discurso oposto
ao seu, e por isso não-verdadeiro o seu (visto que o
discurso oposto diz que seu discurso não é verdadei­
ro), enquanto quem diz que são todos falsos diz ele
mesmo que também o seu próprio [é falso], E há
algumas exceções, alguns dizendo que apenas o dis­
curso oposto ao seu não é verdadeiro, outros dizendo
que apenas o seu não é falso; apesar de tudo, segue-
s e a eles dever postular infinitos discursos verdadei­
ros e falsos, visto que o discurso que diz que o discur­
so verdadeiro é verdadeiro é, ele mesmo, verdadeiro,
e assim ao infinito (8, 1012 b 15-22).
É esta a famosa refutação do ceticismo absoluto — e res­
pectivamente do absoluto dogmatismo — , que Heidegger de­
clarou “simplista”, decorrente unicamente da necessidade de
“segurança”, pelo fato de que pressupõe um conceito
“proposicional” de verdade, antes de perguntar-se o que é a
verdade e o que significa seu “dar-se”8. Essa observação atinge,
se muito, Husserl, do qual o próprio Heidegger cita logo depois
as Investigações lógicas9*, certamente não Aristóteles, o qual,
como Heidegger bem o sabe, explorou a fundo o que é a ver­
dade e admitiu uma verdade proposicional e também uma ver­
dade não-proposicional (aquela conhecida pelo noüs entendido

8. M. Heidegger, Lógica, cit., pp. 1617‫־‬.


9. Sexta Investigação das Investigações lógicas, seleção e trad.
Zeljko Loparic e Andréa Loparic, São Paulo, Abril Cultural, 1980 (Os
Pensadores). [N. do T.]

100
O método da metafísica

como “tocar”), mas também reconheceu que, se à filosofia cabe


dizer “o que é a verdade”, ela não pode limitar-se a isto, mas
deve também procurar ao menos algumas verdades, por exem­
plo em tomo do ser e de suas propriedades por si, as quais
podem ser apenas verdades preposicionais e, por isso, alterna­
tivas ao erro.
Que a supramencionada refutação, pois, seja tudo menos
formalista, é provado por sua imediatamente sucessiva aplica­
ção a duas teses de enorme densidade metafísica, aquela que
afirma “tudo está em repouso”, ou seja, o eleatismo, e aquela
que afirma “tudo está em movimento”, ou seja, o heraclitianismo.
Diz, com efeito, Aristóteles no fim do livro IV da Metafísica·.
é claro, pois, que não dizem o verdadeiro nem os que
afirmam que todas as coisas estão em repouso, nem
os que afirmam que todas as coisas se movem. Se,
com efeito, todas as coisas estão em repouso, as pró­
prias proposições seriam sempre verdadeiras e sem­
pre falsas, enquanto é evidente que esta situação muda
(aquele, com efeito, que fala, ele próprio há um tempo
não existia e [em outro tempo] de novo não existirá);
se, ao contrário, todas as coisas se movem, nada será
nunca verdadeiro e, por isso, todos os discursos serão
falsos; mas se demonstrou que isso é impossível (1012
b 22-28).
A reivindicação, contra o eleatismo, da experiência “exis­
tencial” do nascer e do morrer da própria pessoa que fala, isto
é, do parm enidiano, é, talvez, um pouco amarga, mas
indubitavelmente eficaz, como o é a redução do absoluto
m obilism o (em term os m odernos, poder-se-ia dizer
“historicismo”) ao absoluto ceticismo (em termos modernos,
“relativismo”), baseada na observação de que ao menos alguma
verdade deve permanecer, sob pena da autodestruição da pró­
pria teoria. Contudo, o resultado desta dupla refutação, isto é,

101
A s razões de Aristóteles

desta refutação dos dois extremos opostos — que se revelam,


assim, ser contrários entre si, e não contraditórios — , é a de­
monstração da tese contraditória a ambos, isto é, oposta às
“enunciações de sentido único”, aquela pela qual algumas pro­
posições são verdadeiras e outras falsas, ou algumas coisas
estão em repouso e outras em movimento.
Enquanto a primeira dessas duas conseqüências é bastante
“neutra” e aceitável por todos (quase todos, com efeito, admi­
tem a existência de algumas verdades e de alguns erros), a
segunda é, ao contrário, excessivamente comprometedora, por­
que consiste nada menos do que no âmago mais “duro” e difícil
de aceitar da metafísica aristotélica, a existência de uma reali­
dade imóvel, separada das realidades móveis. Disso Aristóteles
é perfeitamente consciente, e, com efeito, prossegue (e conclui
o livro dedicado à defesa do princípio do terceiro excluído)
com esta afirmação:
mas também não é possível que as coisas em certo
momento estejam todas em repouso ou todas em mo­
vimento, pois há alguma coisa que sempre move as
coisas movidas, e isso é o primeiro motor imóvel (1012
b 29-31)10.
A impossibilidade de que as coisas estejam ora todas em
repouso e ora todas em movimento segue-se da refutação das
hipóteses precedentes: ela é, com efeito, por assim dizer, a
soma de duas impossibilidades. Contudo, sua conseqüência é
que alguma coisa é sempre imóvel (o ato puro, isto é, Deus) e
alguma coisa é sempre movimento (o céu, isto é, o universo em
seu complexo, que, segundo Aristóteles, é etemo e gira inces­
santemente sobre si mesmo), ou seja, uma metafísica da
transcendência.

10. Creio poder traduzir com “pois”, como a lógica do texto


exige, o gàr da linha 30, pelas razões gramaticais expostas por R.
Vitali. “Note aristoteliche”, in II pensiero, 17: 1 7 3 1 9 7 2 ,177‫־‬.

102
O método da metafisica

Poderia vir à mente, a este respeito, o que Kant diz da


dialética, entendida como parte da lógica geral, ou seja, que ela
consiste em usar a lógica, simplesmente um cânon de avalia­
ção, “como órgão de efetiva produção ao menos da aparência
de afirmações objetivas”. Nas argumentações reportadas ante­
riormente, na verdade, usam-se simplesmente os princípios de
não-contradição e do terceiro excluído, os quais, para Kant,
devem servir apenas para controlar a coerência das proposi­
ções, para demonstrar as proposições de densidade metafísica.
Isto, como se sabe, é, para Kant, um uso abusivo da lógica,
uma simples “lógica da aparência”11.
Contudo, o próprio Kant aplica esta estratégia ao refutar as
teses opostas que formam as “antinomias” da razão, a propósito
da idéia de mundo, por exemplo as teses “o mundo é infinito
com respeito ao espaço” e “o mundo é, quanto ao espaço, en­
cerrado dentro de limites”112, observando que não são contradi­
tórias entre si, mas apenas contrárias, porque têm em comum
um mesmo pressuposto, ou seja, que o mundo existe como
coisa em si; então, se são ambas falsas, na medida em que os
argumentos a favor de uma são exatamente equivalentes aos
argumentos a favor da outra, é verdadeira a sua contra-
ditoriedade, ou seja, que o mundo não existe nem como um
todo em si infinito nem como um todo em si finito, ou seja, não
é cognoscível como coisa em si13. Este não é, portanto, o uso
abusivo da dialética, a “lógica da aparência”, aquela que o
próprio Kant faz remontar a Zenão de Eléia, considerado por
Aristóteles o descobridor de sua dialética14. Deve-se, portanto,

11. I. Kant. Critica, cit, pp. 102-103.


12. Primeiro conflito das idéias transcendentais, p. 223 da edição
brasileira, cit. [N. do T.]
13. Ibidem, pp. 420-424.
14. Ilustrei mais amplamente esta temática no volume Contraddizione
e dialettica negli antichi e nei moderni, Palermo, L’Epos Società
Editrice, 1987.

103
A s razões de Aristóteles

supor que a dialética criticada por Kant como “lógica da apa­


rência” não é a praticada por Aristóteles.

A teologia “dialética”

Já no fim do livro IV da Metafísica, encontramos uma


alusão à parte “teológica” desta ciência, a que trata de Deus.
Ela constitui o desenvolvimento posterior da parte propriamen­
te “ontológica”, da teoria do ser enquanto ser, de seus múltiplos
significados e de suas propriedades por si, e é exposta
detalhadamente nos últimos livros da obra, os de número XII-
XIII-XIV. Para dizer a verdade, a ordem na qual tais livros
foram transmitidos não parece corresponder à intenção de
Aristóteles, como se pode inferir por seu conteúdo e por algu­
mas afirmações explícitas suas. Aquele que se liga, com efeito,
diretamente ao livro X (o último da parte “ontológica”, pois o
livro XI, como dissemos, é um resumo talvez nem sequer au­
têntico) não é o livro XII, mas o XIII, o qual inicia declarando
que já se tratou da substância sensível, isto é, móvel (nos livros
VII-VIII-IX), e que, portanto, resta saber se existe também uma
imóvel, como alguns filósofos (os platônicos) pretendem. Tanto
o livro XIII como o XIV são, com efeito, dedicados ao exame
das doutrinas dos platônicos sobre as substâncias imóveis e
sobre os seus princípios: no livro XIV, ao contrário, Aristóteles
expõe a própria doutrina a respeito, pressupondo já ter criticado
as doutrinas dos platônicos. A ordem lógica autêntica dos três
últimos livros é, portanto, XIII-XIV-XII.
O motivo da nova exposição é claro: a tarefa da filosofia
primeira é, efetivamente, procurar os princípios, isto é, o “pri­
meiro” entre os sentidos do ser, que é a substância, e o primeiro
entre os sentidos da substância, a “substância primeira”, que —
como vimos — é a forma, enquanto causa (formal, isto é,
imanente) das substâncias sensíveis. Se, porém, existe também

104
O método da metafísica

uma substância imóvel, esta será “primeira” com mais forte


razão, porque anterior às substâncias móveis tomadas em seu
complexo, enquanto causa, como veremos, motora e, por isso,
transcendente. A esse novo significado de “substância primeira”
Aristóteles alude já no livro IV, no qual distingue tal substância
da natureza (3, 1005 a 35), e posteriormente sobretudo no livro
VI, no qual indica em seu estudo o motivo pelo qual a ciência
do ser enquanto ser pode ser denominada também “ciência
teológica” (isto é, teologia científica, ou filosófica, e não teo­
logia mítica, como a dos poetas, a de Homero e de Hesiodo) e
“filosofia primeira”, ciência suprema (1, 1026 a 18-32).
É claro que essa nova “substância primeira” não é primeira
em relação às substâncias sensíveis, do ponto de vista lógico-
-epistemológico, como o eram a substância em relação aos ou­
tros significados do ser e a forma em relação aos outros signi­
ficados da substância, pois nem a noção nem o conhecimento
dela são pressupostos pela noção e pelo conhecimento das
substâncias sensíveis. Ou melhor, se ela é primeira, o é apenas
“por si”, isto é, por natureza, vale dizer, na ordem do ser, não
“para nós”, isto é, na ordem do conhecimento, ou antes porque
deste último ponto de vista são primeiras as substâncias sensí­
veis, enquanto “mais próximas às sensações”. Por isso o méto­
do para investigá-la não poderá ser mais a análise semântica,
como o era na parte “ontológica” da metafísica, mas outro
método, que agora examinaremos.
A primeira coisa a fazer (proton) — diz Aristóteles no
início do livro X lll — é investigar as coisas ditas
pelos outros, para que, se falam alguma coisa não-
-boa, não estejamos sujeitos a eles, e se há alguma
doutrina comum a nós e a eles não nos lamentaremos
por nossa conta conosco mesmo; deve-se desejar, com
efeito, dizer alguma coisa melhor e outras não pior.
Mas duas são as opiniões sobre estas coisas etc. (1,
1076 a 12-17).

105
A s razoes de Aristóteles

Eis, portanto, o método proposto por Aristóteles: antes de


tudo, discutir as opiniões alheias, mas com o objetivo de ver o
que há de verdadeiro e de falso nelas, exatamente segundo o
“uso filosófico” da dialética (o terceiro mencionado nos Tópi­
cos), em particular da peirástica (isto é, do exame crítico das
opiniões alheias). A esse exame crítico são inteiramente dedica­
dos os livros XIII e XIV, dois entre os três livros “teológicos”.
Os "candidatos” ao posto de substância imóvel, segundo
as opiniões dos platônicos, são os entes matemáticos (números
e grandezas) e as Idéias: mas Aristóteles demonstra que nem
uns nem as outras estão à altura desse papel, não porque não
sejam imóveis, mas porque não são substâncias (livro XIII,
caps. 2-5). Pela mesma razão, os números não podem ser prin­
cípios e substâncias (isto é, causas formais) das coisas, nem na
versão de Platão (números ideais para além das Idéias), nem na
de Espeusipo (números matemáticos no lugar das Idéias), nem
na de Xenócrates (números coincidentes com as Idéias) (caps.
6-9). Todo o livro XIII é dedicado, por isso, à refutação das
doutrinas dos platônicos, explicitamente mencionados e critica­
dos à luz sobretudo da doutrina aristotélica das categorias, a
qual, como sabemos, é fruto de uma análise semântica. Tam­
bém dele, portanto, pode-se dizer que se trata de um livro
“dialético”, e por isso que a “teologia”, isto é, a teoria da subs­
tância imóvel nele exposta, é, fundamentalmente, uma crítica
de tipo dialético à “teologia” platónico-acadêmica, ou seja, uma
“teologia dialética”, na qual a análise semântica é empregada
ao menos em sentido crítico.
O discurso continua no livro XIV, no qual Aristóteles ex­
põe e critica as doutrinas dos platônicos sobre os princípios de
todas as coisas: também este é um discurso teológico, porque
os princípios admitidos pelos platônicos para todas as coisas
só podem ser os princípios por eles admitidos para as substân­
cias imóveis, isto é, divinas, as quais são, para eles, as subs­
tâncias primeiras. Estes princípios são, como se sabe, o Uno e
O método da metafísica

o “grande-pequeno”, ou Díade indefinida, no caso de Platão, o


Uno e o Múltiplo, no caso de Espeusipo, e o Uno e o Desigual
(que também é o mesmo “grande-pequeno”, ou Díade indefini­
da) no caso de Xenócrates, isto é, os princípios dos números
(XIV, cap. 1). Aristóteles critica-os todos, acusando os platôni­
cos de “ter posto o problema de modo arcaico” (aporésai
arkhaikós), ao modo de Parmênides, sem distinguir os muitos
significados do ser e, sobretudo, sem ter em conta a diferença
entre a substância e as outras categorias (quantidade e relação)
(cap. 2, especialmente 1089 a 1-2). Os princípios mencionados
anteriormente, com efeito, enquanto contrários, não podem ser
substâncias, mas apenas quantidades ou relações, e, portanto,
não podem ser princípios das substâncias, nem como causa
formal nem como causa final, nem, muito menos, como causa
motora (caps. 3-6). Também o livro XIV, portanto, é essencial­
mente uma refutação do platonismo à luz da doutrina das ca­
tegorias, ou seja, uma “teologia dialética” que usa a análise
semântica com objetivo crítico.
Para quem tiver alguma dúvida sobre a legitimidade de
considerar “teológica” uma exposição que fala somente do Uno,
da Díade e dos números, basta reler o capítulo do livro XIV no
qual Aristóteles discute se o princípio supremo, isto é, o Uno,
é também o bem supremo, comparando a posição de Espeusipo,
que negava tal tese, à dos “teólogos”, isto é, dos antigos poetas
(Orfeu, Hesiodo e Homero), os quais sustentavam que “reinam
e governam o universo não as primeiras divindades, a saber,
Noite, Urano, Caos ou Oceano, mas Zeus”. A eles Aristóteles
contrapõe os poetas que “não dizem tudo de modo mítico”, por
exemplo Ferécides ou os Magos, e alguns dos “sábios” poste­
riores, Empédocles e Anaxágoras, os quais, ao contrário, pu­
nham o bem como princípio. Com esta última posição, com a
qual Aristóteles partilha, está também Platão, cuja doutrina é
criticada não porque identifique o princípio supremo ao bem,
mas porque o identifica também ao Uno, fazendo, desse modo,

107
A s razões de Aristoteles

de todas as unidades e de todos os números um bem, e do


princípio a ele oposto um mal (4, 1091 a 33-1092 a 5). Dificil­
mente se poderia imaginar um discurso mais teológico que este,
no mundo grego! Contudo, trata-se de uma teologia dialética,
isto é, crítica.
Para julgar, pois, também o significado que esse discurso
pode ter em relação com a história da filosofia posterior, basta
pensar na sorte que a “teologia” do Uno e dos números teve
depois de Platão, com Xenócrates — autor inclusive de uma
demonologia — , Plutarco, o neopitagorismo, o neoplatonismo,
a mística dos números do Medievo e o pitagorismo astronômi­
co de um cientista como Kepler, na idade moderna. Aristóteles
recusou nitidamente esse modo de fazer teologia, pondo mes­
mo em ridículo a mística dos números com a afirmação, con­
tida justamente no livro XIV da Metafísica, de que, se as vo­
gais são sete, sete as notas da escala musical, sete as Plêiades,
sete os reis que combateram contra Tebas e sete os anos nos
quais alguns animais perdem os dentes, isso não se deve à
natureza do número sete, mas a alguma outra razão (6, 1093 a
13-18). Esta é crítica de certa teologia, isto é, teologia crítica,
ou dialética.
Contudo, na teologia aristotélica não existe apenas a parte
crítica, mas também uma parte positiva, contida no livro XII,
cujo vínculo com o XIII e, especialmente, com o XIV foi re­
conhecido por vários estudiosos desde o século XIX (K. L.
Michelet, J.-G.-E Ravaisson, P. Natorp) e definitivamente con­
firmado pelo maior aristotelista do nosso século, Wemer Jaeger15.
Aqui Aristóteles, retomando à investigação sobre a substância,
antes de tudo expõe três possíveis tipos de substância, a móvel
corruptível (as substâncias terrestres), a móvel incorruptível (as

15. W. Jaeger, Aristotele. Prime linee di una storia della sua


evoluzione spirituale, trad. it. org. por G. Calogero, Firenze, La Nuova
Italia, 1947, pp. 299-305.

108
O método da metafisica

substâncias celestes) e a imóvel, observando que a existência


das duas primeiras é admitida por todos, porque atestada pelas
sensações, enquanto a da terceira é admitida apenas por alguns
(os platônicos), mas — evidentemente por insuficiência dos
argumentos adotados por eles — requer uma investigação pos­
terior (XII, cap. 1).
A existência da substância imóvel é demonstrada por
Aristóteles no célebre capítulo sexto do livro XII, no qual ele,
antes de tudo, recorda a prioridade da substância sobre as ou­
tras realidades, compreendido o movimento, mas também a
eternidade deste último (e do tempo), o que o leva a admitir a
necessidade de uma substância que faça as vezes de substrato
para o movimento eterno: trata-se do céu, que gira etemamente
sobre si mesmo (1071 b 3-11). Esta primeira fase da demons­
tração foi desprezada por muitos, mas é essencial para entender
sua estrutura argumentativa como um todo16. Neste ponto, na
verdade, Aristóteles observa que é necessário admitir um prin­
cípio capaz de mover o céu, o que não podem fazer as Idéias
ou outras substâncias a ela semelhantes: é clara, aqui, a polê­
mica contra os platônicos, que consiste em declarar a insuficiên­
cia das causas puramente formais, como as Idéias podem ser ao
máximo, e a necessidade, para explicar o movimento, de uma
causa motora. Daí ele acrescenta que esse princípio deve ser
em ato, isto é, deve estar efetivamente movendo pois, se fosse
apenas em potência, poderia também não mover, e então o
movimento poderia também não existir, o que contradiz sua
eternidade (1071 b 12-17).
Até este ponto, contudo, o papel de princípio do movimen­
to poderia também ser deduzido da alma do mundo, como
sustentava Platão no Timeu e, sobretudo, nas Leis. A alma do

16. Sobre ela chamou a atenção K. Oehler, “Der Beweis für den
unbewegen Beweger bei Aristotelis (Metaph. L 6, 1071 b 3-20)”, in
Philologus. 99: 70-92, 1955, seguido por H. G. Gadamer.

109
A s razões de Aristóteles

mundo, com efeito, é, para Platão, causa de todos os movimen­


tos, mas também ela se move, enquanto é imanente ao próprio
mundo, isto é, ao céu, como as almas dos animais são imanentes
a estes últimos: ela é, portanto, princípio semovente. Aqui se
põe em ação a refutação de Aristóteles, que é, ainda uma vez,
polêmica contra Platão, mas também demonstração de uma tese
oposta à platônica:
além disso [não será suficiente] nem mesmo se fo r em
ato, mas sua substância será potência, visto que o
movimento não será eterno: com efeito, é possível que
isso que é em potência não seja. E necessário, então,
que haja um princípio tal que sua substância seja ato
(1071 b 17-20).
A eternidade do movimento do céu exige, portanto, um
princípio cuja substância seja o ato, isto é, que seja puro ato,
porque, se não fosse assim, graças ao aspecto pelo qual ele é
também em potência, ele poderia não passar a ato e, portanto,
não mover. Assim não é, evidentemente, a alma do mundo
platônica, porque, estando ela própria em movimento, está, sob
algum aspecto, em potência (o movimento, com efeito, é, para
Aristóteles, “o ato disso que é em potência enquanto é em
potência”). Portanto, o princípio que move etemamente o céu
só pode ser um princípio imóvel (o que é puro ato não pode
absolutamente mover-se) e imaterial (o que é puro ato é pura
forma, porque a matéria é potência) (1071 b 20-22). A demons­
tração, como se vê, é uma refutação da tese platônica segundo
a qual o princípio motor é semovente, baseada, por um lado, na
eternidade do movimento celeste e, por outro, na distinção entre
potência e ato: seu resultado é a necessidade de um princípio
imóvel. Pode-se dizer, em certo sentido, que também esta é
uma demonstração dialética, um demonstrar por meio de refu­
tação (“elenkticamente”), ainda que não tenha a mesma força
de defesa do princípio de não-contradição (porque contém muitos
pressupostos).

110
O método da metafísica

Um caráter ainda mais marcadamente dialético tem a de­


monstração posterior do movente imóvel contida no capítulo
sétimo, no qual Aristóteles expõe quatro possíveis combinações
dos termos “movente” e “movido”, isto é, “movido não-
-movente”, “movido movente”, “movente não-movido” e “não-
-movente não-movido”. A quarta combinação não corresponde
nada de real (a ela poderiam corresponder as Idéias de Platão,
mas elas, para Aristóteles, não existem). Ao contrário, à primei­
ra correspondem as substâncias terrestres, à segunda, que vem
a ser desse modo intermediária, corresponde o céu, portanto —
conclui Aristóteles — , sendo real o termo intermediário, deverá
haver também alguma coisa que corresponda à terceira combi­
nação, um movente não-movido, que é puro ato (1072 a 19-
-26). O papel-chave nessa argumentação é desempenhado ain­
da uma vez pelo movente movido, isto é, pelo céu. Apenas a
necessidade da terceira combinação não é extraída de uma re­
futação, mas simplesmente de uma classificação de todas as
possibilidades de combinação entre dois termos e da elimina­
ção de um entre elas, ou seja, ela é estabelecida por meio de
uma dialética puramente lógica, ou verbal, como, segundo
Aristóteles, deveria ser a dialética dos platônicos, baseada em
puras idéias (aquela que Kant denominava “lógica da aparên­
cia”). Provavelmente, trata-se de um argumento meramente ad
hominem, que, no entanto, confirma o contexto dialético e
polêmico no qual o discurso de Aristóteles está situado.
Os desdobramentos posteriores do discurso são conheci­
dos, e são menos interessantes do ponto de vista do método,
ainda que o sejam do ponto de vista do conteúdo “teológico”.
Aristóteles, com efeito, mostra que o princípio imóvel é a “subs­
tância primeira”, enquanto simples e em ato (não porque seja
o Uno — outro tema polêmico contra Platão) — , que move
enquanto objeto de inteligência e de amor, que é ato de pensa­
mento porque este é o único ato realmente imaterial (argumen­
to extraído da analogia com o pensamento humano), que é,

111
A s razões de Aristóteles

portanto, vida, que sua vida é eterna e feliz e que, por conse­
guinte, é um deus (eternidade e beatitude eram, com efeito,
para os gregos, as prerrogativas da divindade; como tal, ele é
absolutamente pessoal, ou seja, “capaz de entender e de que­
rer”, malgrado quanto se costuma dizer da impessoalidade do
deus aristotélico); enfim, que é dotado de “potência infinita”
(no sentido de potência ativa, não de potencialidade) (cap. 7).
Tudo isso é demonstrado com procedimentos rigorosamente
racionais, baseados ora na implicação dos conceitos (ato, pen­
samento, vida), ora na analogia com o homem (analogia que,
no entanto, reconhece as profundas diferenças), mas não mais
no mito ou em qualquer revelação: neste sentido, trata-se de
uma teologia “científica” ou filosófica, a mais rigorosa jamais
formulada, porque de todo imune à influência das grandes reli­
giões do “Livro”.
No capítulo oitavo, pois, Aristóteles permite-se também
uma crítica da religião tradicional, isto é, da teologia mítica.
Depois de ter demonstrado que os princípios imóveis são mui­
tos, precisamente tantos quantas são as esferas celestes que
giram etemamente sobre si mesmas, ele acrescenta:
transmite-se em form a de mito dos primitivos e
antiquíssimos aos pósteros a tradição de que estes
são deuses e de que o divino envolve toda a natureza.
A s coisas rem anescentes fo ra m acrescentadas
miticamente a fim de persuadir muitos e para usá-las
em vista das leis e da utilidade. Dizem alguns, com
efeito, que estes [deuses] têm forma humana e que
são semelhantes a alguns outros animais, e a isso
acrescentam outras coisas consequentes e semelhan­
tes a estas ditas. Se, após tê-la separado destas últi­
mas, alguém tomasse apenas a primeira afirmação,
isto é, que consideravam as substâncias primeiras ser
deuses, seria considerado falar divinamente (1074 a
38-b 10).

112
O método da metafísica

Aqui há uma verdadeira crítica, no sentido literal de


discernimento, da tradição religiosa, visto que parte dela, aque­
la demonstrável racionalmente, é acolhida, enquanto outra, a
mais mítica e ditada por objetivos práticos (hoje diríamos a
mais “ideológica”), é deixada de lado. A muitos ainda impres­
siona esse “politeísmo” de Aristóteles, porque se esquecem de
que ele era de fato um grego antigo. Contudo, não obstante tal
politeísmo, Aristóteles não hesita em afirmar, e com bons argu­
mentos, que entre os muitos motores imóveis há um que é
“primeiro”, isto é, o motor da primeira esfera celeste (1074 a
31-38): este, portanto, pode ser denominado “Deus” com a inicial
maiuscula (acredite-se ou não em sua existência, como se faz
com “Zeus”).
É somente desse Deus, desse primeiro motor imóvel, que
Aristóteles diz, em seguida (cap. 9), que é “pensamento de
pensamento” (porque não há nada mais elevado que ele em que
pensar), suscitando o entusiasmo de Hegel (que reproduz toda
a página em grego no fim de sua Enciclopédia)·, como também
somente desse Deus diz que é o bem supremo e transcendente,
causa do bem imanente, isto é, da ordem do universo (cap. 10).
Contudo, é significativo que o livro XII encerre-se com a
enésima discussão contra os outros filósofos:
mas de quantas conseqüências impossíveis e absurdas
derivam das afirmações daqueles que falam diferente­
mente [de nós], de quais afirmações fazem aqueles
que falam com um pouco de graça, e em quais afir­
mações estão as menores aporias, não se deve fugir
(1075 a 25-27).
Como se vê, o método aqui reivindicado é ainda uma vez
o dialético de desdobrar as aporias, isto é, o terceiro uso da
dialética teorizado nos Tópicos, que consiste em deduzir as
conseqüências das afirmações opostas, para ver quais são ab­
surdas e quais, ao contrário, aceitáveis. Também no livro XII

113
As razões de Aristóteles

da Metafísica, portanto, dedicado à exposição positiva de sua


teologia, Aristóteles não sabe renunciar à discussão e. com efeito,
no breve movimento deste último capítulo consegue opor-se a
todas as ■‘teologias” dos filósofos a ele precedentes, para criticá-
-las todas. No final, igualmente, não sabe renunciar nem sequer
a um expediente retórico, e termina com a famosa citação de
Homero: “É mau que muitos comandem; um só tenha o posto
supremo"1' (citação que redimensiona notavelmente o seu
“politeísmo”).

17. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo. Ediouro,


sem data; II, 204. [N. do T.]

114
(Papitula (SU/arfa

método da filosofia
pratica

A intenção tipológica

física e a metafísica são as duas “ciências teoréticas”


A analisadas por Aristóteles, aquelas que disputam o prima­
do e o título de “sabedoria” (que cabe, como vimos, inicial­
mente à física e conclusivamente à metafísica): a terceira ciên­
cia teorética por ele reconhecida, a matemática, não foi. é ver­
dade, analisada diretamente, ainda que tivesse sido objeto de
sua reflexão como modelo do método rigorosamente apodíctico.
Do ponto de vista do método, a física e a metafísica não dife­
rem substancialmente entre si, na medida em que praticam
procedimentos de tipo prioritariamente dialético, isto é,
dialógico, atingindo níveis mais ou menos elevados de demons-
tratividade, enquanto se distinguem bastante nitidamente da ma­
temática, a qual, ao contrário, segundo Aristóteles, segue pro­
cedimentos demonstrativos de tipo exclusivamente monológico.
Uma reflexão atenta merece agora, do ponto de vista
metodológico, a assim chamada filosofia prática, pois foi
especificada recentemente, justamente em sua formulação

115
A s razões Ae Aristóteles

aristotélica, como expressão de uma forma de racionalidade


diferente em relação à científica1.
A locução “filosofia prática” foi adotada pela primeira vez
justamente por Aristóteles, que no livro II da Metafísica — o
famoso “a minúsculo”, que alguns não consideram autêntico,
mas que, na realidade, é apenas estranho à série originária —
declara:
é justo também denominar a filosofia ciência da ver­
dade. Com efeito, da filosofia teorética é fim a verda­
de, da prática a obra, visto que os [filósofos] práti­
cos, ainda que investiguem de que modo são as coi­
sas, não estudam a causa por si mesma, mas em re­
lação a alguma outra coisa (1, 993 b 19-23).
A filosofia prática, portanto, tem em comum com a teorética
o fato de procurar a verdade, ou seja, o conhecimento de como
são efetivamente as coisas, e também a causa de como são, ou
seja, o fato de ser ciência. Sua diferença em relação à filosofia
teorética é que, para esta última, a verdade é fim para si mes­
ma, enquanto para a filosofia prática a verdade não é o fim,
mas apenas um meio em vista de outro, ou seja, da ação, sem­
pre situada no tempo presente: não alguma coisa já existente,
mas que deve ser feita agora. Enquanto, em suma, a filosofia
teorética deixa, por assim dizer, as coisas como estão, aspiran­
do apenas conhecer o porquê de estarem em certo modo, a
filosofia prática, ao contrário, procura instaurar um novo estado
de coisas, e procura conhecer o porquê do seu modo de ser
apenas para transformá-lo.
Essa relação é posteriormente ilustrada na famosa classifi­
cação das ciências contida no livro VI, sempre da Metafísica.

1. Refiro-me, naturalmente, ao debate ocorrido na Alemanha nos


anos 60 e 70 deste século, para o qual se veja o volume organizado
por M. Riedel, Rehabilitierung der praktischen Philosophie, cit.
_________________________________ O método da filosofia prática

Aqui Aristóteles, depois de ter dito que a física, tendo por


objeto a natureza, que tem em si mesma o princípio do movi­
mento e do repouso, não é uma ciência nem prática nem poiética,
acrescenta:
com efeito, das coisas produtíveis (poietón), o princí­
pio está naquele que produz, isto é, a inteligência ou
a arte ou outra capacidade qualquer, enquanto das
coisas praticáveis (praktón) ele está naquele que age,
ou seja, a escolha, visto que o que é objeto de ação
coincide com o que é objeto de escolha. De modo que,
se toda racionalidade (diánoia) é ou prática ou poiética
ou teorética, a física será uma [racionalidade]
teorética, mas teorética sobre um ente tal que é capaz
de mover-se, sobre a substância que é segundo a for­
ma geral, não aquela que é apenas separada (1, 1026
a 22-27).
A denominação de “prática” deriva do objeto desta ciên­
cia, constituído pelas coisas “praticáveis”, isto é, pelas ações,
pela “práxis", que têm princípio na escolha, na iniciativa do
homem, por isso não são independentes como as substâncias
naturais, objeto da física, ainda que estas últimas sejam tam­
bém elas segundo a forma, isto é, conforme a regra, sobretudo
na “forma geral” (isto é, não “sempre”, como as realidades
separadas, ou imateriais, objeto da matemática), exatamente
como veremos ser o objeto da filosofia prática. A ação, em
suma, caracteriza a filosofia prática seja como objetivo seja
como objeto, no sentido de que a única região da realidade na
qual é possível, segundo Aristóteles, transformar o estado de
coisas é a esfera constituída pelas ações humanas.
Esta intenção prática é o que contradistingue a filosofia
prática, no sentido aristotélico do termo, não apenas da filoso­
fia teorética, que em Aristóteles envolve tanto o que denomina­
mos filosofia como o que chamamos ciência, mas também da

117
A s razões de Aristóteles

ciência no sentido moderno do termo, que envolve tanto as


ciências naturais como as assim chamadas ciências humanas,
sociais ou políticas. Em virtude desta intenção, com efeito, a
filosofia prática é tudo menos “neutra”, “calculadora”, nas re­
lações com a realidade (humana), mas, ao contrário, julga o
valor desta última, avalia o que nela é bom e o que é mau, a
fim de melhorá-la. Ao fazê-lo, no entanto, não renuncia a co­
nhecer a verdade, isto é, a ser ciência, a verificar não apenas
como estão as coisas, mas também quais são suas causas.
Vejamos, então, qual é o método desta ciência, isto é, em
qual medida a peculiaridade de seu objetivo e de seu objeto
influenciam seu modo de proceder. Para esclarecer isto, é ne­
cessário fazer referência às obras nas quais tal filosofia é sis­
tematicamente exposta, isto é, às Éticas e à Política2. No início
da Ética a Nicômaco, Aristóteles não hesita em declarar que o
objeto da “ciência política” — este, com efeito, é o novo nome
da filosofia prática, por razões que logo veremos — é o bem
supremo do homem, isto é, seu fim último, aquele em vista do
qual são investigados todos os outros. Falar de “bem”, enten­
dido como fim do homem, significa falar de algo que é objeto
de desejo, de tendência, por parte do homem, isto é, de algo
que ainda não se realizou, mas que justamente por isso quer
realizar-se e deve poder ser realizado, ou seja, é “praticável” e
“deve praticar-se”. Ele, para Aristóteles, não é somente o bem
de cada indivíduo, mas é o bem de toda a cidade (pólis), pois
o singular é parte dela; por isso a ciência que dele se ocupa é
a ciência da cidade, ou a ciência “política”. Esta é também
chamada por Aristóteles “ciência arquitetônica” em relação a
todas as outras artes ou ciências práticas (arte das construções
navais, estratégia, economia), porque desempenha uma função
diretiva nas relações entre todas, na medida em que se ocupa
do fim último (I 2).

2. Política, trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo, Martins Fon­


tes, 1991. [N. do T.]
_________________________________ O método da filosofia prática

A ciência política não tem somente o objetivo de conhecer


o que é o bem supremo, mas propõe-se também a realizá-lo;
ou melhor, diz Aristóteles, o conhecimento dele tem grande
importância justamente porque, mirando-o como a um alvo,
como fazem os arqueiros, “conseguiremos realizar melhor o
que deve ser”: portanto o bem não é apenas um ser que se
deve conhecer, mas também um “dever ser” que se deve rea­
lizar. A ciência política, com efeito, é “legisladora”, prescreve
“o que se deve fazer e de quais ações se abster”. Justamente
por isso, a propósito do bem supremo do homem, ela se con­
tenta em “delinear ao menos em geral o que ele é” (typo ge
perilabéin ti p o festi) (1094 a 25), isto é, contenta-se em
conhecê-lo, por assim dizer, no “tipo”, no esquema geral, nas
linhas fundamentais, sem considerar detalhadamente suas im­
plicações particulares.
Esta última expressão, que retoma inúmeras vezes tanto na
Ética a Nicômaco (1101 a 27, 1104 a 1, 1107 b 14, 1113 a 13,
1114b 27, 1117b 21, 1129 a 11, 1176 a 31, 1179 a 34) como
na Política (1276 b 19, 1302 a 19, 1323 a 10, 1335 b 5, 1341
b 31), aparece pela primeira vez em Aristóteles nos Tópicos, a
propósito da classificação das diversas espécies de silogismo
(apodíctico, dialético, eristico), para dizer que ela é sumária,
isto é, não é um discurso “exato” (akribés), ou seja, detalhado,
preciso, exaustivo — como aquele que, por exemplo, é feito
nos Analíticos a propósito das diferentes figuras de silogismo
— , mas, no entanto, é “suficiente para a exposição proposta”
(I 1, 101 a 19-24). Isso significa que o resultado em questão
não é o mais exato que se possa desejar, mesmo sem ser errado
ou falso: ele tem o grau de exatidão que se requer de uma
exposição que não tem como objetivo exclusivo um conheci­
mento perfeito de certo objeto, mas quer servir-se do conheci­
mento dele em vista de um fim posterior. Em suma, o caráter

119
A s razões de Aristóteles

“geral” ou “tipológico” d a ciência política é estritamente vin­


culado à sua intenção prática3.
Deve-se reconhecer, contudo, que não apenas a filosofia
prática propõe-se uma intenção filosófica, mas esta é comum,
em certos momentos, também às ciências teoréticas, por exem­
plo à psicologia (De anima II 1, 413 a 9; II 4, 416 b 30) e à
zoologia (De partibus animalium I 1, 487 a 12; Historia
animalium 1 6, 491 a 8), como também à física e até à metafísica
(cf. Metafísica V II3,1029 a 7), isto é, apresenta-se sempre que
não é necessário exaurir o argumento até os detalhes, pois a
exposição não é um fim em si mesma, mas é em vista de outro.
A proclamação explícita do caráter tipológico da ciência
política está contida no capítulo I da Ética a Nicômaco, intei­
ramente dedicado à ilustração do método, no qual Aristóteles,
justamente a propósito da “exposição política” (iméthodos...
politiké), declara:
Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza
quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a
precisão em todos os raciocínios por igual, assim como
não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes
mecânicas. Ora, as ações belas e justas, que a ciência
política investiga, admitem grande variedade e
flutuações de opinião, deforma que se pode considerá-
las como existindo por convenção apenas, e não por
natureza■ E em torno dos bens há uma flutuação se­
melhante, pelo fato de serem prejudiciais a muitos:
houve, por exemplo, quem perecesse devido à sua
riqueza, e outros por causa de sua coragem (I 3, 1094
b 11-19).

3. A expressão “método tipológico”, a propósito da filosofia prá­


tica de Aristóteles, foi usada, no âmbitb do debate contemporâneo na
Alemanha, por O. Höffe, Praktische 'Philosophie. Das Modell des
Aristoteles, München e Salzburg, Pustet, 1971, pp. 187-192.

120
O método da filosofia prática

Aqui Aristóteles descreve com muita clareza aquilo que


denominamos a intenção tipológica própria da ciência política:
ela se ocupa das ações belas, isto é, nobres e justas, como
também dos bens, que são objetos um tanto diversos e variá­
veis, no sentido de que o que é justo em determinadas circuns­
tâncias pode não o ser em outras, e o que é bom para alguns
pode não o ser para outros. A ciência política não pode, porém,
descer aos detalhes, isto é, determinar com absoluta precisão,
exatidão ou rigor (akribés) o que é belo, justo e bom em qual­
quer circunstância ou em qualquer caso particular, mas deve
limitar-se a indicar o que é belo, justo e bom em geral. Também
aqui, portanto, como nos Tópicos, a intenção tipológica é con­
traposta à exatidão, ao rigor. Recorde-se que, no livro II da
Metafísica, Aristóteles dissera a mesma coisa também a propó­
sito da física, quando afirmara que não se deve pretender a
exatidão da matemática também nas ciências de realidades
materiais.
Contudo, o paralelismo, do ponto de vista metodológico,
entre a ciência política e a física é por ele posteriormente de­
senvolvido:
Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais
premissas, devemos contentar-nos em indicar a verda­
de aproximadamente e em linhas gerais (pakhylós kai
typo); e, ao falar de coisas que são geralmente (Tios
epí to poly) verdadeiras e com base em premissas da
mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da
mesma natureza (1094 b 19-22).
Aqui, de um lado, é reforçada a intenção tipológica própria
da ciência política, enquanto, de outro, também é aplicada a ela
a figura da demonstração válida não “sempre”, mas “geralmen­
te”, isto é, na maior parte dos casos, regra (com algumas exce­
ções) que vimos ser própria da física e que, em relação aos
Segundos analíticos, não tira o caráter de ciência verdadeira do

121
A s razões de Aristóteles

discurso em questão. Deve-se supor que “geralmente” são os


bens: por exemplo, a riqueza geralmente é um bem, ainda que
em alguns casos produza danos. As “muitas diferenças e varia­
ções” que caracterizam os bens, mencionadas anteriormente,
não excedem, portanto, a margem de indeterminação própria
do “geralmente” e, de qualquer modo, não impedem de “mos­
trar o verdadeiro” e de concluir, mesmo que “geralmente”, a
partir de premissas, isto é, de fazer verdadeiros silogismos.
O paralelo com a física toma-se, em seguida, verdadeiro
paralelismo com o capítulo da Metafísica II no qual seu método
é exposto. Prossegue Aristóteles:
E é dentro do mesmo espírito que cada proposição
deverá ser recebida, pois é próprio do homem instruí­
do (pepaideuménou) buscar a precisão, em cada gê­
nero de coisas, apenas na medida em que a admite a
natureza do assunto. Evidentemente, não seria menos
insensato aceitar um raciocínio provável da parte de
um matemático do que exigir provas científicas de um
retórico. Ora, cada qual julga bem as coisas que
conhece, e dessas coisas é ele bom juiz. Assim, o
homem que fo i instruído a respeito de um assunto é
bom juiz nesse assunto, e o homem que recebeu ins­
trução sobre todas as coisas é bom juiz em geral (1094
b 22-1095 a2).
Voltamos a encontrar aqui a idéia, já afirmada na Metafísica
II (995 a 13), de que é necessário ser instruído (pepaidéusthai)
no método de cada ciência antes de começar a ouvir sua expo­
sição, e reencontramos também a contraposição entre a mate­
mática, concebida como dotada de rigor máximo, na medida
em que é estruturada por verdadeiras demonstrações, e a retó­
rica, concebida como privada de rigor e dotad^, ao contrário, de
capacidade persuasiva, na medida em que é baseada em exem­
plos e testemunhos de poetas: como a física efa situada em um

122
O método da filosofia prática

nível intermediário entre as duas, assim se deve pensar a loca­


lização da filosofia prática, por isso mais “fraca” ou “maleável”
que a primeira e mais “forte” ou “rigorosa” que a segunda.
Há, enfim, outro motivo de afinidade entre a filosofia prá­
tica, ou ciência política, e a física: ambas necessitam da expe­
riência. Continua Aristóteles:
Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções
sobre a ciência política. Com efeito, ele não tem ex­
periência /ápeiros, isto é, sem experiência] dos fatos
da vida, e é em torno destes que giram nossas discus­
sões (1095 a 2-4).
E claro, no entanto, que aqui por experiência não se enten­
de simplesmente o conhecimento sensível, isto é, as “sensa­
ções”, mas a experiência da vida, isto é, o conhecimento repe­
tido de certas situações devido ao fato de tê-las vivido. A ne­
cessidade dessa experiência confere ao partidário da filosofia
prática certo caráter que veremos ser recorrente também no
“sábio”, isto é, naquele que, mesmo não sendo filósofo, sabe
como deve comportar-se em cada caso.
Típica da filosofia prática, não da teorética — mesmo sendo,
ainda uma vez, comum também à “sabedoria” — , é, ao contrá­
rio, a última característica indicada por Aristóteles:
Além disso [o jovem], como tende a seguir suas pai­
xões, tal estudo lhe será vão e improfícuo, pois o fim
que se tem em vista não é o conhecimento, mas a
ação. E não fa z diferença que seja jovem em anos ou
no caráter; o defeito não depende da idade, mas do
modo de viver e de seguir um após outro cada obje­
tivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como
aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum;
mas aos que desejam e agem de acordo com um prin­
cípio racional o conhecimento desses assuntos trará
grande vantagem (1095 a 4-11).

123
A s razões de Aristóteles

O requisito aqui indicado para seguir com proveito um


curso de filosofia prática é certa capacidade de dominar as
paixões, em geral ausente nos jovens ou nos imaturos. Ele é
tomado necessário pela intenção prática dessa ciência, que não
é apenas a de fazer conhecer o bem, mas de ajudar a praticá-
lo, isto é, de tomar melhores. De nada serviria, com efeito,
conhecer o bem se em seguida não existisse a força para praticá-
lo. Note-se como Aristóteles mostra-se aqui perfeitamente cons­
ciente da insuficiência de apenas conhecer em vista do agir,
provavelmente em polêmica com Sócrates, para o qual só o
conhecimento do bem era, ao contrário, de todo suficiente para
fazê-lo praticar.
Indicações metodológicas posteriores sobre a ciência polí­
tica, que, no fundo, tomam a entrar na aproximação tipológica,
estão contidas em outras passagens do livro I da Ética a
Nicômaco.
Não percamos de vista — diz Aristóteles —, porém,
que há uma diferença entre os argumentos que proce­
dem dos primeiros princípios e os que se voltam para
eles. O próprio Platão havia levantado esta questão,
perguntando, como costuma fazer: “Nosso caminho
(hodósj parte dos primeiros princípios ou se dirige a
eles?” Há aí uma diferença, como há, num estádio,
entre a reta que vai dos juízes ao ponto de retomo e
o caminho de volta. Com efeito, embora devamos
começar pelo que é conhecido, os objetos de conhe­
cimento o são em dois sentidos diferentes: alguns para
nós, outros na acepção absoluta da palavra. E de
presumir, pois, que devamos começar pelas coisas que
nos são conhecidas, a nós. Eis por que, a fim de ouvir
inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e
justo, e em geral sobre temas de ciência política, é preciso
ter sido educado nos bons hábitos, porquanto o fato é
o ponto de partida, e se fo r suficientemente claro para

124
O método da filosofia prática

o ouvinte não haverá necessidade de explicar por que


é assim; e o homem quefo i bem educado já possui esses
pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade.
Quanto àquele que nem os possui, nem é capaz de
adquiri-los, que ouça as palavras de Hesiodo (14,1095
a 30-b 9).
A analogia aqui estabelecida é ainda uma vez entre a filo­
sofia prática e a física, pois é próprio da física partir das coisas
mais conhecidas a nós, isto é, do “quê”, do dado de fato, para
remontar na direção daquelas mais conhecidas em absoluto,
isto é, mais inteligíveis, que são os princípios, ou o “porquê”.
Contudo, bem diferente é o significado que, na filosofia práti­
ca, têm o “quê” e o “porquê”. O primeiro, com efeito, parece
consistir na norma, ou seja, na indicação de “que” certa coisa
é boa, ou de “que” se deve fazer certa coisa; enquanto o segun­
do parece ser a justificação da norma, sua fundação racional.
O primeiro, portanto, é princípio para nós, ou coisa mais co­
nhecida para nós, enquanto o segundo é princípio por si, ou
coisa mais conhecida em absoluto. Aristóteles, com seu habi­
tual realismo, isto é, com a consciência já manifestada acerca
da insuficiência de só conhecer a fim de agir bem, considera
mais necessária, para esse fim, uma boa educação, atualizada
por meio de bons hábitos, do que um conhecimento exato do
porquê.
Ou melhor, segundo Aristóteles, também em relação ao
conhecimento, uma vez que se possuam, por meio de uma boa
educação, os princípios mais conhecidos a nós, isto é, o quê, a
norma, é mais fácil remontar ao porquê, à justificação racional
da norma. O método, portanto, é sempre o de proceder das
coisas mais conhecidas a nós, isto é, da experiência, àquelas
mais conhecidas em si, isto é, aos princípios, mas ainda uma
vez por experiência entende-se um hábito moral adquirido, não
um mero conhecimento exterior. Salvas essas diferenças, a fi­
losofia prática apresenta-se, sob o aspecto metodológico, não

125
A s razões de Aristóteles

dessemelhante da física, no sentido em que também ela inves­


tiga a fundação racional da experiência e, por isso, vai do caso
particular para a lei geral, ainda que se contente em determinar
esta última de maneira sumária e genérica, pois o que lhe in­
teressa não é tanto sua formulação rigorosa quanto sua apli­
cação prática.
Enfim, depois de ter fornecido uma primeira definição do
objeto da ciência política, isto é, do bem supremo, ou da feli­
cidade como exercício da função própria (oikéion ergon) do
homem — doutrina importante e famosa que caracteriza toda a
sua ética — , Aristóteles apresenta o resultado adquirido desse
modo, como exemplo de aproximação tipológica, nos seguintes
termos:
Que isto sirva como um delineamento geral do bem,
pois presumivelmente é necessário esboçar primeiro o
esquema (Tiypotypósaij, para mais tarde precisar os
detalhes. Mas, a bem dizer, qualquer um é capaz de
preencher e articular o que em princípio fo i bem
delineado; e também o tempo parece ser um bom
descobridor e colaborador nessa espécie de trabalho.
A tal fato se devem os progressos das artes, pois
qualquer um pode acrescentar o que falta. Devemos
igualmente recordar o que se disse antes e não buscar
a precisão (akríbeian) em todas as coisas, apenas a
precisão que o assunto comportar e que fo r apropria­
da à investigação (I 7, 1098 a 20-29).
De novo aqui Aristóteles opõe a intenção tipológica à pre­
cisão, isto é, ao rigor, mesmo referindo-se a uma importante
doutrina como a da função própria do homem, o que demonstra
que a relativa falta de rigor, ou melhor, de definibilidade, não
implica nenhuma renúncia à fundação racional, ao discurso
propriamente filosófico. A seus olhos, provavelmente as mate­
máticas forneciam o exemplo de um saber completo e, por isso,

126
O método da filosofia prática

não mais suscetível de qualquer progresso, enquanto a filoso­


fia, isto é, a física, a metafísica e a filosofia prática, eram antes
semelhantes às outras artes, isto é, às técnicas (entendidas no
sentido antigo do termo), nas quais é possível um contínuo
progresso, não porém no sentido de transformação radical, mas
no de aperfeiçoamento, de acabamento de um esboço já traçado
em suas grandes linhas.
O discurso prossegue com o exemplo dos dois modos di­
versos nos quais o ângulo reto é estudado pelo construtor e
pelo estudioso de geometria — exemplo que recorda muito de
perto o da diferença entre a forma de chato, objeto da física, e
a de curvo, objeto da matemática — e conclui-se assim:
Devemos proceder do mesmo modo em todos os ou­
tros assuntos, para que nossa tarefa principal não
fique subordinada a questões de menor monta. E
tampouco devemos reclamar a causa em todos os
assuntos por igual. Em alguns casos basta que o fato
esteja bem estabelecido, como sucede com os primei­
ros princípios: o fato é a coisa primária ou primeiro
princípio. Ora, dos primeiros princípios descobrimos
alguns pela indução (epagogé), outros pela sensação,
outros como que por hábito, e outros ainda de dife­
rentes maneiras. Mas a cada conjunto de princípios
devemos investigar da maneira natural e esforçar-nos
para expressá-los com precisão, pois que eles têm
grande influência sobre o que se segue. Diz-se, com
efeito, que o começo é mais que metade do todo, e
muitas das questões que formulamos são aclaradas
por ele (1098 a 33-b 9).
Aristóteles, aqui, distingue claramente três tipos de princí­
pios: aqueles aprendidos por meio da indução, aqueles desco­
bertos por meio da sensação e aqueles aprendidos por meio de
hábitos. Os primeiros só podem ser os da matemática, pois os

127
A s razões de Aristóteles

segundos são os da física. Enquanto esta, com efeito, chega aos


princípios partindo da sensação (cf. Metafísica VI 1, 1025 b
11), isto é, do conhecimento sensível, aquela chega a eles por
meio da indução (cf. Segundos analíticos II 19), ou seja, por
meio de um professor — vimos que o termo “indução” pode ter
também este sentido, equivalente a “introdução” — , o qual se
serve de exemplos particulares (por exemplo, de figuras dese­
nhadas) para fazer entender as apreensões da existência e as
definições universais (das figuras imateriais).
O terceiro tipo de princípios, aqueles que se aprendem por
meio de hábitos, são os princípios da filosofia prática. Apenas
para eles vale a afirmação de que o princípio e o primeiro é o
“quê”: como já vimos, eles consistem no estabelecimento de
uma norma, na indicação de que certa ação é boa (ou ruim) e,
portanto, deve ser feita (ou evitada). Neste caso, portanto, o
“quê” não significa uma mera situação de fato, mas indica em
geral uma proposição, um juízo, uma avaliação, apresentada
sem um “porquê”, sem uma fundação racional. Contudo, é
claro que a tarefa da filosofia prática é fundar este tipo de
princípios, procurar seu porquê, a causa, a razão, mesmo
que de modo sumário e geral, ou seja, por meio da aproxi­
mação tipológica, na medida em que seu interesse funda­
mental não é cognitivo, isto é, teorético, mas prático. Com
a filosofia prática, portanto, estamos na presença de uma
forma de racionalidade original, específica, nitidamente dife­
rente da matemática como estrutura e grau de rigor, mais afim
à física sob este último aspecto, mas também diferente dela
por sua intenção.

O procedimento diaporético

Se aquela que denominamos intenção tipológica indica o


tipo de conhecimento ao qual a ciência política aspira, dado seu
O método da filosofia prática

caráter fundamentalmente prático, o modo para obter tal conhe­


cimento, o verdadeiro percurso a seguir, é descrito por Aristóteles
nos termos, já conhecidos, do procedimento diaporético. Já no
início da Ética a Nicômaco, logo depois de ter enunciado a
intenção tipológica, Aristóteles propõe-se determinar o que é o
bem supremo do homem, aquele que todos chamam felicidade,
salientando que ele é entendido de modo diferente pelos “mui­
tos” e pelos “sábios”. Por meio da primeira expressão, ele alu­
de a concepções que identificam a felicidade com o prazer,
com a riqueza ou com o poder, enquanto por meio da segunda
alude fundamentalmente à concepção de Platão, que identifica
o bem supremo com a própria Idéia de bem. E eis o primeiro
aceno de tipo metodológico:
seria talvez infrutífero examinar (exetázein) todas as
opiniões que têm sido sustentadas a esse respeito; basta
considerar as mais difundidas ou aquelas que pare­
cem ser defensáveis (I 4, 1095 a 28-30).
Como lembramos, “examinar” (exetázein) é a atividade
própria da dialética, a qual — como é dito nos Tópicos a pro­
pósito de seu terceiro “uso”, isto é, de sua utilidade para as
ciências filosóficas, e justamente pelo fato de ser “examinado­
ra” — possui o caminho que conduz aos princípios de todas as
disciplinas (Tópicos 12, 101 b 3-4). Examinar significa avaliar,
provar o valor, submeter à prova (exétasis é, com efeito, sinô­
nimo de peírd): todas operações que, no curso da discussão
dialética, são realizadas por aquele que interroga. O que é exa­
minado são as opiniões, neste caso específico as diversas con­
cepções de bem ou de felicidade, das quais se quer justamente
verificar o valor, a capacidade, a consistência. Contudo, não
vale a pena — esta é a tese proposta aqui por Aristóteles —
examinar todas as opiniões já expressas sobre o bem, isto é,
inclusive aquelas que nunca tiveram nenhum crédito e, portan­
to, são quase seguramente desprovidas de valor. E necessário
examinar apenas as mais disseminadas ou as professas pelos

129
A s razões de Aristóteles

mais sábios, porque estas têm mais probabilidade de possuir


alguma razão.
Não se confundam, no entanto, essas opiniões, que devem
ser examinadas, com os éndoxa, que são aquilo à luz do que as
opiniões são examinadas. Os éndoxa, com efeito, são as pre­
missas a partir das quais se movem os silogismos dialéticos,
não o que se procura refutar por meio destes últimos. Aristóteles,
em geral, não põe em discussão os éndoxa, mas serve-se deles
para pôr em discussão as opiniões. Inclusive quando, como no
caso da filosofia prática, ele reputa dignas de ser examinadas
somente algumas opiniões, isto é, as opiniões importantes, par­
tilhadas, autorizadas, nem por isso pretende pôr em discussão
os éndoxa. É, com efeito, a partir deles, isto é, de premissas
que não podem não ser concedidas, que se discutirá o valor da
opinião da multidão ou da de Platão.
Nem se deve acreditar que o método aqui exposto contras­
te com o proposto para a física ou para a metafísica, no qual
se recomendava apresentar “todas” as opiniões relativas a certo
problema: o importante, com efeito, não é acumular quantita­
tivamente o maior número possível de opiniões, pois isso não
tem nenhuma influência sobre a validez do exame, mas envol­
ver todas as soluções possíveis de um problema a fim de espe­
cificar a justa por meio de uma eliminação progressiva de todas
as outras. Ora, para apresentar todas as soluções é necessário
criar algumas alternativas entre proposições reciprocamente
contraditórias, nas quais possam entrar todas as opiniões pos­
síveis, sem que seja necessário examiná-las uma a uma. Para
não dizer, posteriormente, que na filosofia prática a completude
do exame é menos necessária que na física e na metafísica,
dada a aproximação tipológica que contradistingue a primeira,
isto é, sua intenção fundamentalmente prática. Em substância,
portanto, Aristóteles vem a propor também para a filpsefia
prática o mesmo método dialético que já propusera para a física
e para a metafísica.

130
______________________ O método da filosofia prática

Ele ilustra esse método posteriormente, sempre na Ética a


Nicômaco, logo depois de ter observado que a definição de
felicidade como exercício da função própria do homem repre­
senta um primeiro esboço que requer ser ulteriormente especi­
ficado, e de ter recordado os diversos modos (indução, sensa­
ção, hábito) pelos quais se chega ao princípios.
Devemos considerá-lo [isto é, o princípio] — ele pros­
segue —, no entanto, não só à luz de nossa conclusão
e de nossas premissas, mas também do que a seu
respeito se costuma dizer (ek ton legoménon); pois
com uma opinião verdadeira todos os dados se har­
monizam, mas com uma opinião falsa os fatos não
tardam a entrar em conflito (I 8, 1098 b 9-12).
Aristóteles, aqui, antes de tudo alude aos dois modos fun­
damentais nos quais um princípio (por esta expressão, no caso
específico, ele entende a definição de felicidade) pode ser, em
geral, descoberto, o procedimento de baixo para cima e o pro­
cedimento de cima para baixo, praticados respectivamente pela
física e pela matemática (o primeiro é o que parte das conclu­
sões, isto é, dos efeitos, o segundo o que parte das premissas
anteriores, ou seja, das causas ainda mais universais e originá­
rias). Contudo, a esses dois modos ele acrescenta um terceiro,
o mais interessante aqui, que consiste em partir das “coisas
ditas”, das sentenças, vale dizer, das opiniões. Trata-se, portan­
to, ainda uma vez, do método dialético antes mencionado.
Contudo, na última passagem está contida uma importante
observação acerca do valor de tal método, aquela pela qual as
opiniões verdadeiras são todas concordes ou compatíveis entre
si, enquanto entre as opiniões verdadeiras e as falsas há, inevi­
tavelmente, discórdia, incompatibilidade. Em outros termos,
quando há discórdia entre duas opiniões, é impossível que se­
jam ambas verdadeiras, mas uma delas será verdadeira e a
outra falsa, enquanto quando há perfeita concórdia entre algu-

131
A s razões de Aristóteles

mas opiniões elas podem muito bem ser todas verdadeiras. A


discórdia, portanto, é signo — não necessário mas suficiente —
do falso, enquanto a concórdia é signo — necessário, ainda que
não suficiente — do verdadeiro. A observação baseia-se, como
se vê, nada mais nada menos que no princípio de não-contra-
dição, pelo qual a realidade é seguramente incontraditória, e no
do terceiro excluído, pelo qual uma das duas alternativas da
contradição é verdadeira, enquanto a outra é falsa.
Mas ela é justamente uma alusão ao método dialético da
refutação: como vimos a propósito dos Tópicos, na discussão
dialética aquele que pergunta, isto é, que submete a exame uma
opinião, procura deduzir dela uma contradição com algum
éndoxon ou, de qualquer modo, com alguma premissa concedi­
da pelo adversário, visto que a contradição, a incoerência inter­
na a um discurso, é considerada o signo mais seguro de sua
falsidade; enquanto aquele que responde procura evitar de to­
dos os modos a contradição, pois a incontraditoriedade, a coe­
rência interna ao discurso, é indispensável para sua verdade.
Esse mesmo método, de resto, é praticado ainda hoje nos de­
bates judiciários, no qual um testemunho que se contradiz é
considerado indigno de fé, enquanto uma série de testemunhos
entre si coerentes são considerados dignos de fé.
Aristóteles aplica esse método a propósito de sua definição
de felicidade e encontra confirmação à sua verdade no fato de
que as opiniões mais disseminadas ou mais autorizadas acerca
da felicidade, por exemplo aquelas que a identificam com os
bens da alma, com a virtude ou com a sabedoria, são, substan­
cialmente, concordes com sua própria definição. Inclusive opi­
niões como a que identifica a felicidade com o prazer ou a que
a identifica com os bens exteriores, segundo Aristóteles, não
são incompatíveis com sua definição, porque o exercício da
função própria do homem implica seguramente o prazer, e por­
que os bens exteriores sempre são também condição necessária
para tal exercício.

132
O método da filosofia prática

Mas a passagem talvez mais famosa acerca do método da


filosofia prática é a contida no início do livro VII, na qual
Aristóteles explica como se deve proceder a propósito da in­
continência.
A exemplo do que fizemos em todos os outros casos,
passaremos em revista os fenômenos (phainómena) e,
após discutir as aporias (diaporésantas), trataremos
de provar, se possível, a verdade de todos os éndoxa
a respeito dessas paixões — ou, se não de todas, pelo
menos do maior número e das mais autorizadas; por­
que, se refutarmos as objeções e deixarmos intactos
os éndoxa, teremos provado suficientemente a tese (VII
1, 1145 b 2-7).
Todos os intérpretes, enfim, concordam em reconhecer que
os “fenômenos” aqui mencionados não são os dados da obser­
vação sensível, significado que justamente alhures o termo
possui, mas “o que parece às pessoas” e, por isso, os juízos, as
opiniões4. A primeira coisa a fazer, portanto, segundo Aristóteles,
é tomar em consideração as opiniões expressas pelos outros a
propósito do argumento tratado: no caso, as opiniões concer­
nentes à incontinência. Essas opiniões, contudo, devem ser
submetidas a exame, isto é, investigadas, postas à prova. Isso
é feito por meio do procedimento bem conhecido denominado
diaporésai, o qual consiste, como explicado nos Tópicos I 2 e
na Metafísica III 1, em desdobrar as aporias em duas direções
opostas. A propósito de cada opinião, portanto, deve-se apre­
sentar diante dela a opinião oposta, ou então todas as opiniões
concernentes a certo problema em duplas ou alternativas entre
si opostas; donde, de cada uma das duas opiniões entre si opos­
tas, deve-se deduzir todas as conseqüências que dela derivam.
A este ponto, devem-se confrontar tais conseqüências com os

4. Isso foi demonstrado, como se sabe, por G. E. L. Owen, Tithènai


ta phainómena, cit.

133
A s razões de Aristóteles

éndoxa relativos ao problema em questão, procurando ver se


concordam ou não com todos os éndoxa, ou ao menos com sua
maior parte, ou com os mais importantes. Os éndoxa, note-se
bem, não são postos em discussão, apenas apresentados como
termos de confronto, isto é, como premissas fora de discussão,
à luz das quais se avaliam as opiniões em questão ou suas
consequências.
Caso se consiga mostrar que as consequências de uma
opinião concordem com os éndoxa apresentados, então ter-se-
-ão “resolvido as dificuldades” (descartando, evidentemente, a
opinião oposta), e esta deverá ser considerada uma demonstra­
ção suficiente da validade de uma hipótese. Ou, caso não se
consiga fazê-lo, porque as consequências de uma opinião não
concordam com os éndoxa apresentados, então as dificuldades
não terão sido resolvidas e a opinião não terá sido demonstra­
da, ou melhor, terá sido demonstrada de modo suficiente a sua
falsidade. Em todo caso, o que deve permanecer intacto são os
éndoxa.
Como se vê, este é justamente o procedimento diaporético
muitas vezes teorizado por Aristóteles, também a propósito da
física e da metafísica. Ele não é absolutamente, portanto, espe­
cífico da filosofia prática e não consiste, como alguém acredi­
tou, em procurar salvar os éndoxa, mas em pôr à prova os
phainómena, isto é, as opiniões, à luz dos éndoxa. Quando,
com efeito, Aristóteles prescreve como condição para demons­
trar de modo suficiente que sejam deixados intactos os éndoxa,
não pretende dizer que o objetivo da demonstração seja mostrar
a validez desses éndoxa, mas que, para resolver as dificuldades
concernentes a uma opinião, isto é, para refutar a opinião a ela
oposta, é necessário mostrar que a primeira opinião não con­
trasta com os éndoxa e que, ao contrário, a segundo, a oposta,
contrasta com eles. Desse modo, caso se deixem intactos, não
se ponham em discussão os éndoxa, ter-se-á mostrado suficien­
temente a validade de uma opinião e a falsidade da opinião a

134
O método da filosofia prática

ela oposta. O objetivo da demonstração, em suma, não é salvar


ou demonstrar os éndoxa, mas demonstrar, isto é, salvar ou
refutar certa opinião5.
Enfim, há uma última passagem da Ética a Nicômaco,
relativa ao procedimento diaporético, que merece ser assinala­
da. Sempre a propósito da incontinência, Aristóteles declara:
De uma das espécies enumeradas são as aporias que
surgem. Alguns destes pontos podem ser refutados,
enquanto outros serão conservados; porque a aporia
encontra sua solução (lysis) quando se descobre
(éuresis) a verdade (1146 b 6-8).
É claro, aqui, que cada aporia é constituída por duas opi­
niões entre si opostas, das quais, ao cabo, uma é eliminada,
pois refutada, e outra conservada, porque demonstrada verda­
deira. A solução da aporia equivale, portanto, à descoberta de
qual é, entre as duas opiniões opostas, a verdadeira.
Detalhamentos e confirmações posteriores acerca do em­
prego do procedimento diaporético por parte da filosofia práti­
ca encontram-se nas passagens da Ética a Eudemo paralelas às
já consideradas pela Ética a Nicômaco. Nesta obra menor não
se encontra tudo o que está na maior, por exemplo os acenos
à intenção tipológica, enquanto nela está claramente expresso o
caráter prático da exposição, que se propõe não apenas a exa­
minar em que consiste a felicidade, mas também como se a
pode conquistar. No que se refere ao método a seguir, o cap. 3

5. Portanto, o método dialético não pode ser invocado para fazer


de Aristóteles um filósofo do senso comum, como bem mostrou J.
Bames em “Aristotle and the Method of Ethics”, in Revue Internationale
de Philosophie. 34: 490-511, 1980, ainda que nem sempre tenha dis­
tinguido adequadamente, a meu ver, os éndoxa, que funcionam sempre
como premissas, das opiniões, mesmo que autorizadas, que são postas
em questão.

135
A s razões de Aristóteles

do livro I fornece indicações perfeitamente paralelas às que


encontramos no cap. 4 do livro I da Ética a Nicômaco:
É supérfluo investigar todas as opiniões que alguns
têm sobre ela [isto é, a felicidade]. Muitas coisas,
com efeito, parecem também às crianças, aos doentes
e àqueles que têm uma mentalidade perversa, e sobre
elas ninguém que seja dotado de inteligência desen­
volveria as aporias (diaporéseien). Aqueles, com efei­
to, não têm necessidade de discursos, mas alguns de
uma idade na qual possam tomar-se maduros, outros
de uma correção médica ou política, visto que a te­
rapia das punições corporais não é uma correção
sem importância. Do mesmo modo destas, também
não se deve investigar as opiniões da multidão, visto
que ela fala com quase absoluta leviandade, e sobre­
tudo deste argumento; com efeito, é absurdo aduzir
uma razão para aqueles que não têm nenhuma neces­
sidade de razão, mas de paixão (Etica a Eudemo I 3,
1214 b 28-1215 a 3).
Note-se, nesta passagem, não apenas a afirmação de que é
necessário moderar o número de opiniões a ser submetida à in­
vestigação, mas também a indicação do modo no qual tal inves­
tigação deve ser desdobrada, e até o famoso desdobramento das
aporias, isto é, a dedução das conseqüências que derivam de
opiniões opostas.
Justamente esta última indicação é retomada na continua­
ção da passagem:
visto que há aporias próprias de cada exposição, é
claro que há delas também a propósito do gênero de
vida superior e da vida melhor. Estas opiniões, portan­
to, é bom examinar (exetázein), visto que as refutações
(elenkhoij dos que respondem são demonstrações
(apodéixeisj dos discursos a eles opostos (1215 a 3-7).

136
O método da filosofia, prática

Três observações merecem ser feitas a propósito desta


passagem, de fundamental importância do ponto de vista
metodológico: 1) antes de tudo, a aporia concernente a certo
argumento é constituída pelas opiniões opostas existentes em
tomo dele; 2) em segundo lugar, o desdobramento da aporia,
isto é, a dedução das conseqüências das opiniões opostas, coin­
cide com o exame (exetázein), com o pôr à prova de cada
opinião; 3) enfim, a refutação de uma opinião, isto é, a dedução
a partir dela de conseqüências contrastantes com algum éndoxon
ou com alguma premissa concedida por aquele que a sustenta,
equivale à demonstração da opinião a ela oposta (sempre que,
obviamente, se trate de uma oposição entre opiniões reciproca­
mente contraditórias, e não simplesmente contrárias).
Os primeiros dois momentos coincidem com aqueles ilus­
trados no livro III da Metafísica respectivamente como “aporia”
e “desdobramento da aporia” (diaporésai); o terceiro, que coin­
cide com a “euporia”, é aqui apresentado como verdadeira
demonstração de uma tese, obtida pela refutação da tese opos­
ta, exatamente como fora dito no De Caelo I 10, 279 b 4-76.
Aqui, portanto, a solução da aporia não é apenas uma “desco­
berta”, como se dizia na Etica a Nicôrmco, mas verdadeira
demonstração, isto é, conclusão dotada de necessidade, de va­
lor científico. Também na filosofia prática, portanto, como na
física e na metafísica, o procedimento diaporético pode levar,
em alguns casos — a saber, na presença de alternativas entre
opiniões reciprocamente opostas — a demonstrações “científi­
cas”, isto é, ao grau máximo de força demonstrativa.

6. Na passagem da Ética a Eudemo, antes, Aristóteles é ainda


mais claro que na passagem do De caelo, pois, enquanto este último
pode ser lido também no sentido inverso (isto é: “entre duas teses
opostas, as demonstrações de uma são aporia de outra”), o primeiro
diz inequivocamente que as refutações convertem-se em demonstra­
ções. A passagem da Ética a Eudemo, portanto, a meu ver, pode servir
como indicação do sentido a ser dado à do De caelo.

137
A s razões de Aristóteles

Mas inclusive os acenos aos “fenômenos”, à concordância


ou não entre as opiniões e à diferença entre o “quê” e o “por­
quê”, já encontrados na Ética a Nicômaco, encontram precisa
correspondência na Ética a Eudemo. Há ali todo um capítulo,
0 sexto do livro I, dedicado ao método da exposição:
é necessário nos empenhar, sobre todas estas coisas,
em procurar a adesão (pistin) por meio dos raciocí­
nios, usando os fenômenos como testemunhos e exem­
plos. O máximo, com efeito, é que todos os homens
cheguem a concordar com as coisas ditas; igualmen­
te, que [concordem] todos ao menos de algum modo,
ou seja, que o façam tendo sido movidos por elas,
visto que cada um possui algo de apropriado em rela­
ção à verdade, a partir da qual é necessário mostrar,
de algum modo, a propósito delas. Para aqueles, com
efeito, que procedem a partir das coisas ditas com
verdade mas não com clareza, será possível obter
também a clareza, pondo sempre as coisas mais co­
nhecidas no lugar daquelas que costumam ser ditas
de modo confuso (1216 b 26-35).
Também aqui, como na Ética a Nicômaco VII 1, os “fe­
nômenos” são, evidentemente, os juízos, isto é, as opiniões
dos outros, e também aqui a concórdia é considerada condição
da verdade. Ou melhor, Aristóteles acrescenta que cada ho­
mem tem uma espécie de disposição natural à verdade (tese
por ele sustentada também alhures, por exemplo na Metafísica
II 1, 993 a 30-b 8); graças a isso a concórdia é não apenas
condição necessária mas também indício quase suficiente da
verdade. Justamente essa disposição de cada um à verdade
permite descobrir progressivamente “as coisas mais conheci­
das”, isto é, os princípios, partindo daquelas habitualmente
confusas, mais próximas de nós (observação já feita na Física
1 1, 184 a 21-22).

138
O método da filosofia prática

O contexto, em tudo semelhante ao início da Física e ao


análogo livro II da Metafísica, induz Aristóteles a introduzir
também a distinção entre o “quê” e o “porquê”, conforme o
fizera na Ética a Nicômaco. Ele prossegue:
nos discursos concernentes a cada exposição há dife­
rença entre aqueles desenvolvidos de modo científico
(philosophos) e aqueles desenvolvidos de modo não-
científico. Por isso, também ao tratar de coisas polí­
ticas não se deve acreditar que seja supérflua uma
investigação feita de tal modo, pela qual não apenas
resulte claro o quê, mas também o porquê: deste tipo,
com efeito, é o modo científico de proceder em cada
exposição. [...] E é bom também analisar separada­
mente o discurso que indica a causa e aquele que é
demonstrado, seja pelo que fo i dito há pouco, isto é,
que não é necessário ocupar-se de tudo na base dos
raciocínios, mas freqüentemente antes na base dos
fenômenos (ora, ao contrário, [aqueles que discutem]
quase não estão em condição de resolvê-los, e são
forçados a acreditar nos discursos feitos [por seus
adversários]), seja porque o que se considera ter sido
demonstrado pelo raciocínio pode ser verdadeiro, mas
não o ser, contudo, em virtude desta causa pela qual
o diz o raciocínio. E possível, com feito, demonstrar
o verdadeiro por meio do falso, como resulta claro
pelos Analíticos (1216 b 35-1217 a 17).
Aristóteles, aqui, por um lado afirma a necessidade, tam­
bém na ciência política, de procurar o “porquê”, isto é, as cau­
sas, os princípios, porque se trata sempre também de uma ciên­
cia, e a ciência deve procurar as causas; por outro, recorda a
importância dos fenômenos, ou seja, das opiniões que expri­
mem o “quê”, seja porque o acordo entre elas, na falta de uma
refutação, é suficiente para garantir a verdade de uma tese, seja

139
A s razões de Aristóteles

porque nem sempre a causa por meio da qual se demonstra uma


tese verdadeira é ela própria verdadeira (cf. Primeiros analíti­
cos II 2, 53 b 7 ss.; Segundos analíticos I 32, 88 a 20). É
importante, em suma, não apenas a demonstração, a indicação
do “porquê”, mas também a verdade efetiva disso que se de­
monstra, isto é, do “quê”, a qual pode ser verificável indepen­
dentemente da demonstração, ou seja, por meio do procedi­
mento diaporético.
Enfim, uma últim a passagem que ilustra o método
diaporético da filosofia prática é apresentada por Aristóteles a
propósito da definição de amizade:
é necessário adotar um discurso [ou um modo de
dizer, ou uma definição, segundo as diversas lições
do texto], o qual nos restitua o melhor possível as
opiniões sobre estas coisas e, ao mesmo tempo, resol­
va as aporias e as oposições. Isso ocorrerá se as
opiniões opostas [a estas últimas] parecerem racio­
nais, visto que um discurso deste gênero será o mais
possível concordante com os fenômenos. Sucede, ao
contrário, que permanecem as oposições se o que é
dito em um sentido é verdadeiro em outro (VII 2,
1235 b 13-18).
Ainda uma vez a situação ideal à qual aspirar é apresen­
tada como aquela na qual se pode obter a concórdia da maior
parte das opiniões (condição necessária, mas isolada não o su­
ficiente para assegurar a verdade) e também se consegue refu­
tar suas objeções (condição que vem reforçar a precedente).
Ainda uma vez, além disso, o termo “fenômenos” é usado para
indicar o que parece a alguém, ou seja, as opiniões. Enfim,
Aristóteles apresenta como aceitável, de modo subordinado,
inclusive a eventualidade de que se venha a adotar uma posição
intermediária, mista ou, de qualquer modo, que se respeitem
também opiniões entre si opostas, contanto que não entendidas

140
O m étodo da filosofia prática

no mesmo sentido — o que daria lugar a uma contradição


inaceitável — , mas em sentidos diferentes, que as tomem com­
patíveis entre si. Como se vê, ele procura sempre fazer todo o
possível para estar de acordo com todos, tão grande é sua con­
fiança na discussão, isto é, tão “dialógica” — como se diria
hoje — é sua atitude.
O caráter fundamentalmente dialético da filosofia prática
de Aristóteles foi ressaltado há muito tempo: os “liberais” in­
gleses, como Alexander Grant e John Bumet, já o tinham feito
entre o fim do século XIX e o início deste, interpretando, con­
tudo, esse caráter dialético como falta de cientificidade, o que
— como vimos — não é verdadeiro. Mais recentemente alguns
expoentes da “reabilitação da filosofia prática” que teve lugar
na Alemanha, considerados os neo-aristotélicos de orientação
conservadora, a saber Wilhelm Hennis e Günther Bien, inter­
pretaram o caráter dialético da filosofia prática como expressão
de um grau de cientificidade inferior ao das ciências teoréticas,
o que, igualmente, não é verdadeiro. Um filósofo de orientação
católico-tradicional como Helmut Kuhn atribuiu, ao contrário,
à dialética, seja na filosofia prática, seja nas outras ciências,
uma função apenas propedêutica, relegando-a ao plano do “ve­
rossímil” entendido no sentido subjetivo do termo (“o que parece
a alguém”), e admitindo que, diversamente, a filosofia prática,
pela contingência de seu objeto, é uma verdadeira ciência do
“provável” no sentido objetivo do termo (ou seja, aquilo que se
aproxima do verdadeiro, que tem alta probabilidade de sê-lo).
Uma avaliação mais positiva da dialética foi dada por um
especialista em Hegel como Otto Põggeler, o qual, contudo,
mesmo negando que ela permaneça no plano da simples veros­
sim ilhança subjetiva, continua a considerá-la somente
introdutória à ciência propriamente dita. Ao contrário, um
“kantiano” como Offried Hõffe mostrou que o procedimento
dialético não permanece exterior à ciência propriamente dita,
mas dela constitui precisamente o momento heurístico, isto é,

141
A s razões de Aristóteles

inventivo, tanto no caso da filosofia prática como no da física


e da metafísica, enquanto o procedimento apodíctico dela cons­
titui o momento expositivo e didático. Como se vê, portanto,
quase todas as principais correntes do pensamento contemporâ­
neo reconheceram a presença de uma racionalidade de tipo
dialético — no sentido clássico do termo — na filosofia prática
de Aristóteles, mesmo avaliando-a de modos diversos7*I,.
Parece-me que a interpretação de Hõffe é a mais conforme
aos textos de Aristóteles, e que, em conseqüência, a filosofia
prática pode ser considerada uma verdadeira ciência, do mesmo
tipo da física e da metafísica, mesmo permanecendo diferente,
quanto ao método, da matemática, e mesmo conservando seu
caráter propriamente prático, isto é, orientado para a ação, e,
portanto, sua capacidade de guiar esta última, dando as diretri­
zes e as indicações de como se deve agir. O que caracteriza a
filosofia prática, ou ciência política, no fundo, não é nem o
método dialético enquanto tal, nem sequer a intenção tipológica,

7. Cf. A. Grant, The Ethics of Aristotle, London, 1885, vol. 1, p.


425, e vol. II, pp. 144-145, 391-396; J. Bumet, The Ethics of Aristotle,
London, 1900, pp. XXXI-XLVI; W. Hennis, Politik und praktische
Philosophie, Ia ed. Neuwied, Luchterland, 1963,2a ed. Stuttgart, Klett-
Cotta, 1977; G. Bien, Die Grundlegung der politischen Philosophie
bei Aristoteles, Freiburg-München, Alber, 1973; H. Kuhn, “Aristoteles
und die Methode der politischen Wissenschaft”, in ZeitschriftJur Politik,
12: 1 0 1 1 9 6 5 ,120‫( ־‬republicado em Riedel, Rehabilitierung, cit., vol.
II, pp. 261-290); O. Pöggeler, “Dialektik und Topik”, in R. Bubner, K.
Cramer e R. Wihel (orgs.), Hermeneutik und Dialektik, Tübingen, Mohr,
1970, vol. II, pp. 273-310; O. Höffe, Praktische Philosophie, cit., pp.
28-29, e Ethik und Politik. Grundmodelle und -probleme der praktischen
Philosophie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1979, p. 64. Naturalmente
não falta também quem negue o caráter dialético da filosofia prática
aristotélica, entre os quais se enumeram J. A. Stewart, F. Susemihl, H.
H. Joachim, O. Gigon e W. F. R. Hardie (vejam-se as respectivas
citações em O. K. Höffe. Praktische Philosophie, ciL, pp. 11-31).

142
O método da filosofia prática

que examinamos anteriormente, mas precisamente a união dos


dois, a qual faz, sim, que o método dialético na filosofia prática
seja ainda mais adequado ao seu objetivo do que o é nas ciên­
cias teoréticas, justamente porque tal objetivo não é constituído
por um conhecimento exaustivo e detalhado, mas por aquele
tanto de conhecimento que pode servir para orientar a práxis.

A phrónesis e o silogismo prático

Além da filosofia prática, ou ciência política, Aristóteles


descreveu outra forma de racionalidade, igualmente prática, mas
não filosófica ou científica (no sentido antigo): trata-se da
phrónesis, termo traduzível por “sabedoria” ou “prudência”,
mas que, enfim, por ter alcançado na cultura contemporânea
certa notoriedade em sua forma original, talvez seja melhor
conservar inalterado. Justamente no debate atual sobre as for­
mas de racionalidade não-científica a phrónesis foi freqüen­
temente indicada como a principal e, por vezes, a única forma
de racionalidade prática admitida por Aristóteles e, por isso,
como o modelo de filosofia não-científica que alguns autores
hoje contrapõem às ciências. Essa advertência foi enunciada
pela primeira vez por Hans Georg Gadamer, seguido de seu
discípulos Rüdiger Bubner8. Na realidade, para Aristóteles, entre
filosofia prática e phrónesis há uma diferença precisa, ainda
que as duas formas de racionalidade apresentem inegavelmente

8. Cf. H. G. Gadamer, Verità e método, Ia ed. orig. 1960. Org. G.


Vattimo, Milano, Fabbri, 1972, pp. 363-375, e R. Bubner. Azione,
linguaggio e ragione, Ia ed. orig. 1976. Bologna, II Mulino, 1985, pp.
240-242. Posteriormente Gadamer atenuou sua posição, admitindo uma
distinção entre filosofia prática e phrónesis: cf. H. G. Gadamer,
“L’ermeneutica como filosofia pratica” (Ia ed. orig. 1972, in M. Riedel,
Rehabilitierung, cit.), in Gadamer, La ragione nell’etä delia scienza.
Org. G. Vattimo, Gênova, II Melangolo, 1982, pp. 69-90.
A s mzões de Aristóteles

algumas afinidades: ou melhor, esta distinção é justamente uma


conquista de Aristóteles em relação à indistinção entre elas
ainda presente em Platão.
O lugar clássico no qual Aristóteles descreve a phrónesis
é o livro VI da Etica a Nicômaco (um dos três livros comuns
também à Ética a Eudemo), dedicado à famosa ilustração das
“virtudes dianoéticas” e objeto de inúmeros comentários por
parte dos filósofos modernos e contemporâneos. Nele Aristóteles
recorda, antes de tudo, que a parte racional da alma ou “razão”
(diánoia) compreende, por sua vez, duas partes, uma que tem
por objeto as realidades “cujos princípios não podem ser dife­
rentemente”, isto é, necessários, outra que tem por objeto os
princípios que podem ser diferentemente, isto é, contingentes.
A primeira parte é dita “científica” (epistemonikón), enquanto
a segunda, “calculadora” (logistikón). E evidente que na pri­
meira entram todas as ciências teoréticas, seja a matemática,
cujos objetos são necessários, seja a física e a metafísica, cujos
objetos têm ao menos princípios necessários; mas nela entram
também as ciências práticas — cujos objetos, isto é, os bens,
têm princípios, como vimos, ao menos “geralmente” necessá­
rios — , que, portanto, do ponto de vista epistemológico, são
equiparáveis àquelas que têm princípios necessários. Na segun­
da entram, ao contrário, todas as atividades que têm por objeto
realidades independentes da “deliberação” humana, porque —
diz Aristóteles — deliberar e calcular são a mesma coisa, e
ninguém delibera sobre as coisas que não podem ser diferente­
mente (cap. 1).
Ambas as partes da alma racional, ou seja, da razão, pros­
segue Aristóteles, têm como “obra” a verdade: a científica tem
como obra a verdade pura e simples, isto é, o simples conhe­
cimento de como são as coisas, enquanto a calculadora tem
como obra a “verdade prática”, isto é, “a verdade de acordo
com o desejo reto”. A propósito desta última, Aristóteles expli­
ca que a ação {práxis) tem como princípio a “escolha”

144
O método da filosofia prática

(proháiresis), a qual é o resultado do encontro entre o desejo de


chegar a certo fim e o cálculo dos meios necessários para
alcançá-lo, ou “deliberação”. Quando o desejo é reto, isto é, é
voltado a um fim bom, e o cálculo verdadeiro, quer dizer, quando
indica os meios realmente necessários, tem-se a “verdade prá­
tica”. Enquanto a primeira parte da razão, a científica, pode ser
denominada também teorética, a segunda, a calculadora, pode
ser denominada também prática, mas ambas — insiste Aristóteles
— têm como obra a verdade (cap. 2). Note-se a originalidade
do conceito de “verdade prática”, de todo estranho tanto à ciên­
cia como à ética modernas e contemporâneas.
A intenção do livro é, como dissemos, ilustrar as “virtudes
dianoéticas”, isto é, as capacidades mais elevadas, os resulta­
dos mais excelerítes, de ambas as mencionadas partes da razão.
As virtudes daparte científica, enumeradas por Aristóteles por
uma espécie de indução completa, são três: a “ciência”
(epistéme), definida como capacidade demonstrativa, isto é, ca­
pacidade de demonstrar; a “inteligência” (noüs), definida como
capacidade pelos princípios, isto é, capacidade de conhecer os
princípios da ciência; e a “sabedoria”, definida como unidade
entre ciência e inteligência, ou seja, capacidade tanto de conhe­
cer os princípios como de demonstrar a partir deles: esta últi­
ma, obviamente, é a virtude mais elevada da razão científica ou
teorética, e tem por objeto as realidades mais elevadas, as rea­
lidades divinas (caps. 3, 6 e 7). Não há dúvida de que a “sabe­
doria” coincide com a “filosofia primeira” ou metafísica, en­
quanto na “ciência” entram todas as outras ciências, tanto
teoréticas (matemática e física) como práticas (filosofia prática
ou ciência política), e na “inteligência” entram os conhecimen­
tos dos princípios de todas as outras ciências. Por isso, à luz da
classificação do livro VI, pode-se afirmar — quão possa isso
parecer paradoxal — que a filosofia prática, ou ciência política,
não obstante sua intenção prática, é uma virtude da razão
teorética, pelo fato de ser sempre uma ciência.

145
A s razões de Aristóteles

Bem diferente é o estatuto da phrónesis, que para Aristóteles


é uma virtude, ou melhor, a mais elevada virtude da parte cal­
culadora da alma racional, isto é, da razão prática. Ela, com
efeito, é por ele concebida como a capacidade de deliberar
bem, ou seja, de calcular exatamente os meios necessários para
alcançar um fim bom. Ora, visto que ninguém delibera sobre as
coisas que não podem ser diferentemente, a phrónesis perten­
cerá àquela parte da razão que tem por objeto as realidades que
podem ser diferentemente, que não são nem “sempre” nem
“geralmente”: por este motivo ela não é, certamente, uma ciên­
cia e, portanto, difere profundamente da filosofia prática, que,
ao contrário, é uma ciência e tem por objeto realidades cujos
princípios são, pelo menos, geralmente. Há uma notável dife­
rença, com efeito, entre a contingência que caracteriza o objeto
da phrónesis, constituído, como veremos, pelos meios, sempre
particulares e mutáveis, e a relativa variabilidade que caracte­
riza o objeto da filosofia prática, constituído, como vimos, pelos
bens, isto é, pelos fins, que são universais e, se não exatamente
imutáveis, ao menos “geralmente” válidos. Isso não impede
que também a phrónesis possua uma verdade sua, a verdade —
justamente — prática, por isso Aristóteles define-a como “ca­
pacidade verdadeira, dotada de razão e prática, concernentes ao
que é bem ou mal para o homem” (5, 1140 b 5-6).
Como modelo de phrónimos (quem possui a phrónesis),
isto é, de “sábio” ou “prudente”, Aristóteles indica Péricles
(1140 b 8), o grande líder político que governara Atenas, cer­
tamente não um filósofo de profissão; enquanto como filósofo
prático, com o qual discutir de igual para igual, talvez para
dissentir, Aristóteles indica Sócrates (13, 1144 b 18, 28), certa­
mente não um líder político, nem nunca governador de sua
cidade: também daí resulta a diferença por ele estabelecida
entre a phrónesis e a filosofia prática.
Com mais forte razão a phrónesis difere da sabedoria: a
primeira, efetivamente, ocupa-se do homem, isto é, das rea-

146
O método da. filosofia prática

lidades humanas, enquanto a segunda, como vimos, ocupa-se


de realidades mais elevadas que o homem, das realidades di­
vinas. Se o modelo da phrónesis, como vimos, é Péricles, os
modelos de sabedoria indicados por Aristóteles são Tales e
Anaxágoras, alhures considerados físicos, mas aqui apresenta­
dos como investigadores de realidades divinas (os princípios
supremos) (cap. 7).
A phrónesis também, contudo, é política (como já
sugere o exemplo de Péricles), pelo mesmo motivo
pelo qual o é a filosofia prática, isto é, porque o ver­
dadeiro bem do homem, segundo Aristóteles, não é o
bem do indivíduo singular, mas o da pólis: ou melhor,
conforme se considere o bem do indivíduo o bem da
família, da qual o indivíduo é parte, ou o bem da
cidade, da \>ual a fam ília é parte, ter-se-á uma
phrónesis purá e simples (assim é entendido, com efei­
to, comumente o termo), uma phrónesis “econômica”
e uma phrónesis “política”. Esta última, segundo
Aristóteles, é a mais “arquitetônica", aquela que pre­
side todas (como a ciência política era a mais
arquitetônica das ciências práticas), e distingue-se,
por sua vez, em legislativa, administrativa e judiciá­
ria (cap. 8). Em nenhum caso, contudo, é confundida
com a ciência política.
Além das mencionadas diferenças, Aristóteles indica tam­
bém algumas afinidades precisas entre a phrónesis e a filosofia
prática: como esta última, segundo o que vimos, exige, para ser
aprendida com proveito, certo domínio das paixões, também a
phrónesis, para poder subsistir, supõe a temperança, denomina­
da — observa Aristóteles — sophrosyne, pois “salva (em grego
sózei) a p h r ó n e s i s Com efeito, se é verdadeiro que o prazer
e a dor não influenciam qualquer tipo de juízo — e por isso não
é necessário dominá-los para poder pronunciar juízos corretos,
por exemplo no caso da matemática — , é verdadeiro, porém,

147
A s razões de Aristóteles

que o prazer pode corromper os juízos que se referem às ações,


justamente por poder induzir a escolher as ações que levem a
ele (5, 1140 b 11-16).
Por este motivo, sendo não apenas capacidade racional,
como, por exemplo, a ciência, ou, conforme o que veremos, a
arte, mas também virtude moral, a phrónesis não admite que
haja uma virtude dela, isto é, o seu aperfeiçoamento, na medida
em que já é perfeição ela mesma; nem, entre aqueles que a
possuem, é preferível aquele que erra voluntariamente como,
ao contrário, acontece com aqueles que possuem a ciência ou
a arte (nas quais saber errar pode ser signo de habilidade, ao
passo que errar inconscientemente é signo de ignorância); nem,
enfim, uma vez adquirida, pode ser esquecida, como pode ocor­
rer no caso da ciência ou da arte (1140 b 21-30). Tudo isso
mostra, como se vê, que na phrónesis o momento cognitivo e
o prático estão íntima e reciprocamente vinculados.
Outra afinidade entre a phrónesis e a filosofia prática re­
pousa no fato de que ambas requerem certa experiência de vida
e que, por isso, dificilmente podem ser possuídas pelos jovens.
A passagem relativa a este conceito é densa de significado, por
isso merece ser citada integralmente.
A phrónesis — diz Aristóteles — não se ocupa apenas
com o conhecimento universal, mas deve também
conhecer os casos individuais, pois ela é prática, e a
ação concerne sobre os casos individuais. É por isso
que alguns que não sabem são mais práticos do que
outros que sabem, e também em outros campos o são
os experientes (émpeiroi). Se, com efeito, um homem
soubesse que as carnes leves são digeríveis e saudá­
veis, mas ignorasse quais carnes são leves, esse ho­
mem não seria capaz de produzir a saúde; poderia,
pelo contrário, produzi-la o que sabe ser saudável a
carne de galinha. Ora, a phrónesis diz respeito à ação.

148
O método da filosofia prática

Portanto, deveríamos possuir ambas as espécies de


conhecimento, ou a segunda de preferência à primei­
ra. Mas também neste campo haverá uma [capacida­
de] arquitetônica (7, 1141 b 15-23).
O caráter prático, isto é, concernente à ação, próprio da
phrónesis exige, portanto, que ela possua o conhecimento dos
casos individuais, pois a ação se produz sempre em situações
individuais: por isso a phrónesis requer certa experiência, que
é justamente conhecimento dos particulares. A phrónesis, con­
tudo, inclui, em alguma medida, também o conhecimento do
universal, no sentido de que deve saber aplicar ao caso indivi-
dual uma característica geral, como mostra o exemplo dado por
Aristóteles. Não basta, para produzir a saúde (ação), saber que
as carnes leves são saudáveis (característica universal), caso
não se saiba que a carne de galinha é leve (caso individual ou
particular) e, portanto, que a carne de galinha é saudável (apli­
cação do universal ao particular).
De outra parte, ainda que a phrónesis inclua o conheci­
mento do universal, sua peculiaridade não é esta, mas o conhe­
cimento do individual. O primeiro, isto é, o conhecimento do
universal, é, pelo contrário, a peculiaridade de outra capacida­
de, dita arquitetônica, quer dizer, apta a fornecer as diretrizes
mais gerais, que só pode ser a filosofia prática, ou seja, a ciên­
cia política, da qual falamos anteriormente. Aqui, portanto,
Aristóteles deixa bem clara a relação entre filosofia prática e
phrónesis: a primeira conhece o universal, por isso dá as dire­
trizes mais gerais, enquanto a segunda conhece o particular, por
isso aplica as diretrizes gerais ao caso particular, ou igualmente
individual.
Contudo, a posse da experiência toma comum a phrónesis
não apenas à filosofia prática, mas também à física e à “sabe­
doria”, isto é, à metafísica: já salientamos, aliás, que esta carac-

149
A s razões de Aristóteles

terística é comum à filosofia prática e à física. Diz, com efeito,


Aristóteles:
É signo do que fo i dito e confirmado também pelo
fato de que, embora os jovens possam tornar-se
geometras e matemáticos, admite-se que um jovem
não possa tornar-se sábio (phrónimos). A razão é que
a phrónesis é também conhecimento dos casos indivi­
duais, os quais se tornam conhecidos a partir da ex­
periência, enquanto o jovem não é experiente, visto
que, para se ter experiência, é necessário muito tem­
po. Além disso, alguém poderia investigar também isto,
isto é, por que um menino pode tornar-se matemático,
porém não sábio nem físico? Não é, talvez, porque os
objetos da matemática se obtêm por abstração, en­
quanto os princípios da física e da sabedoria provêm
da experiência? E sobre estes últimos os jovens não
têm convicções, mas apenas falam a respeito, enquan­
to sobre aqueles têm claro o que é (8, 1142 a 11-20).
Como se vê, a phrónesis, ao lado da filosofia prática, di­
ferencia-se sobretudo da matemática, e muito menos, ao con­
trário, da física e da metafísica. Em todo caso, prossegue
Aristóteles, ela não é ciência, porque se refere ao último termo
da deliberação, ou seja, ao que pode ser praticado, sempre algo
particular. Pela mesma razão não é sequer inteligência, porque
a inteligência tem por objeto as definições universais, não os
casos individuais. Quando muito assemelha-se à sensação, não,
porém, à sensação dos próprios sentidos, isto é, à visão, à au­
dição etc., mas à sensação com a qual, em matemática, se
percebe que um objeto singular é um triângulo (1142 a 23-30).
Trata-se, portanto, como já dissemos, da capacidade de aplicar
a regra geral ao caso particular. Por esse motivo alguns filóso­
fos contemporâneos compararam a phrónesis de que fala

150
O método da filosofia prática

Aristóteles à “faculdade do juízo” estético e teleológico


(Urteilskraft) de que fala Kant9: também esta última, com efei­
to, é a capacidade de reconduzir um particular já dado a um
universal somente procurado10.
Também a esse respeito Aristóteles recorre a um exemplo,
que mostra como a phrónesis envolve tanto o universal como
o particular.
Além disso, o erro — afirma ele, efetivamente — na
deliberação [isto é, na operação da qual a phrónesis
é a virtude] pode referir-se ou ao universal ou ao
individual: tanto é possível errar, com efeito, ao pensar
que todas as águas pesadas são nocivas, como ao pen­
sar que esta determinada água é pesada (1142 a 2023).
Seja neste exemplo, seja no anterior, concernente à came
de galinha, Aristóteles apresenta o raciocínio realizado pela
phrónesis como uma espécie de silogismo, posteriormente de­
nominado “silogismo prático”. Nele se pode distinguir, com
efeito, uma premissa universal ou maior (“todas as carnes leves
são saudáveis”, ou “todas as águas pesadas são nocivas”), uma
premissa particular ou menor (“a came de galinha é leve” ou
“esta determinada água é pesada”), e uma conclusão, constituí­
da pela “escolha” ou pela ação (comer came de galinha ou
evitar esta determinada água).
Que se trate de um silogismo, de resto, é resultado do fato
de a sua forma errada ser apresentada por Aristóteles como um

9. Crítica da faculdade do juízo, trad. Valerio Rohden e Antonio


Marques, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993. [N. do T.]
10. Esta aproximação foi feita por H. Arendt, La vita della mente,
Bologna, II Mulino, 1988, e por E. K. Vollrath, Die Rekonstruktion der
politischen Urteilskraft, Stuttgart, Klett, 1977. [A vida do espírito: o
pensar, o querer, o julgar, trad. Antônio Abranches, Cesar Augusto R.
de Almeida e Helena Martins, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2a ed.,
1993. N. do T.]

151
A s razoes de Aristóteles

“silogismo falso” (9, 1142 b 22-23), e do fato de o próprio


Aristóteles falar em “silogism os das coisas praticáveis”
(syllogismói ton praktón) (12, 1144 a 31-32). Também a
phrónesis, portanto, silogiza, mesmo que a seu modo, no sen­
tido de que argumenta, faz raciocínios com muitos momentos
concatenados entre si e é, por isso, também ela uma forma de
racionalidade, bem diferente, no entanto, da racionalidade da
ciência, seja teorética ou prática. Seu silogizar foi denominado
“prático” na medida em que resulta em uma ação e por ter sido
reconhecido como uma forma em tudo peculiar de racionalidade,
sobretudo na escola do último Wittgenstein".
A análise do silogismo prático permite esclarecer posterior-
mente a relação entre a phrónesis e a filosofia prática. Aristóteles
apresenta, com efeito, o silogismo prático como se exprimisse
na premissa maior o fim ao qual se tende, e na premissa menor
o meio necessário para realizá-lo. A seu propósito, afirma:
Os silogismos em torno do que se deve fazer começam
assim: “visto que o fim, isto é, o que é melhor, é de
tal e tal natureza...”. Admitamos, no interesse do
argumento, que ela seja qual for, mas só o homem
bom a conhece verdadeiramente, porquanto a malda­
de nos perverte e nos leva a enganar-nos a respeito
dos princípios da ação. Donde ser claramente impos­
sível que um homem seja sábio (phrónimon) sem ser
bom (12, 1144 a 31-36).
Disso resulta não apenas que a premissa maior indica o
fim, isto é, o bem supremo, e por isso constitui o “princípio”1

11. Refiro-me aos volumes de G. E. M. Anscombe, Intention,


Oxford, Blackwell, 1957, e G. H. von Wright, Spiegazione e
comprensione, trad. it. org. por G. Di Bernardo, Bologna, II Mulino,
1977.

152
O método da filosofia prática

prático, mas também que requer a bondade, isto é, a virtude


moral, e que esta última é pressuposta pela phrónesis. Parece,
portanto, que a phrónesis, dando por pressuposta a indicação
do fim, fornecida pela virtude, tenha como seu resultado pecu­
liar a indicação do meio, ou seja, a premissa menor. Isso é
confirmado também por outras passagens em Aristóteles: “a
virtude toma reto o objetivo, a phrónesis com que se escolha
os meios devidos” (1144 a 7-9); ou: “não se terá uma escolha
correta sem a phrónesis ou a virtude, pois esta indica o fim e
aquela faz realizar as ações que estão relacionadas com o fim”
(13, 1145 a 3-6).
A este respeito houve uma célebre discussão entre quem
sustentasse que a phrónesis, em Aristóteles, compreende o
conhecimento do fim, e quem, ao contrário, sustentasse que é
essencialmente conhecimento dos meios. Tal discussão é com­
plicada pela ambigüidade desta passagem de Aristóteles:
se é próprio dos sábios deliberar bem, a boa delibe­
ração será a correção no que diz respeito àquilo que
conduz ao fim de que a phrónesis é a apreensão ver­
dadeira (9, 1142 b 31-33).
Aqui a expressão “de que” pode ser referida tanto ao “fim”
como “àquilo que conduz ao fim”, ou seja, ao meio, por isso
não é claro se a phrónesis é apreensão verdadeira do fim ou do
meio12. Segundo meu modo de ver, no entanto, a phrónesis é,
essencialmente, conhecimento dos meios, pois Aristóteles a
define precisamente como “capacidade de deliberar bem sobre
o que é bom e proveitoso para si mesmo, não sob um aspecto

12. As interpretações opostas foram sustentadas respectivamente


por R.-A. Gauthier no comentário a Aristóteles, Ethique à Nicomaque,
Louvain-Paris, 1958-1959, e em La morale d'A ristote, Paris, 1958, pp.
82-96, e por P. Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris, PUF,
1963, pp. 7-30, e “La prudence aristotélicienne porte-t‫־‬elle sur la fin
ou sur les moyens?”, in Revue des Études Grecques, 78: 4 0 1 9 6 5 ,51‫־‬.

153
A s razões de Aristóteles

particular, por exemplo sobre quais coisas contribuem para a


saúde e o vigor, mas sobre aquelas que contribuem para o viver
bem em geral” (5, 1140 a 26-28). Ora, o bem em sentido geral
não pode ser objeto de deliberação, porque não é uma realidade
particular e contingente, mas é válido sempre ou pelo menos
geralmente; apenas os meios podem ser objeto de deliberação,
porque são particulares e contingentes. Sobre eles, portanto,
versa propriamente a phrónesis. Aliás, o próprio Aristóteles
logo depois acrescenta: “é signo disso o fato de denominarmos
sábios também aqueles que se ocupam de alguma coisa parti­
cular, quando calculam bem em vista de um fim válido” (1140
a 28-30). Alhures Aristóteles afirma explicitamente: “não deli­
beramos sobre os fms, mas sobre as coisas que estão em rela­
ção com os fins” (III 3, 1112 b 11-12), isto é, sobre os meios,
e compara o cálculo em que consiste a deliberação igualmente
com a análise geométrica (1112 b 20-24).
Por outro lado, é mesmo verdadeiro que a phrónesis inclui,
como vimos, também o conhecimento do universal e, por isso,
do fim, para poder reconduzir a ele o caso particular, isto é, o
meio: a relação entre esses dois conhecimentos é que os dois
são premissas, respectivamente maior e menor, do silogismo
prático. O conhecimento do fim que a phrónesis inclui, contu­
do, não é um conhecimento científico, que pode ser dado ape­
nas pela filosofia prática e de preferência constitua sua tarefa
específica, mas a orientação a ela dada pela virtude, isto é, por
um bom caráter ou por uma boa educação. Com efeito, para
que haja phrónesis, isto é, para ser sábio, não é necessário ser
filósofo, nem sequer filósofo prático, mas é necessário, como
vimos, ser temperante, isto é, bom de caráter. E necessário,
com efeito, que a capacidade de deliberar retamente sobre os
meios seja orientada por um fim bom, de outro modo não é
phrónesis, mas simples habilidade ou astúcia (assim, de resto,
ainda que erroneamente, foi entendida a “prudência” por Kant,
que lhe negou, porém, o valor moral).

154
O método da filosofia prática

Esta doutrina poderia dar a impressão de um círculo vicio­


so: de um lado, com efeito, a phrónesis é necessária para de­
liberar bem, portanto para agir bem, isto é, para ser virtuoso,
e, de outro, pressupõe, para orientar-se para o fim bom, a posse
da virtude. Aristóteles evita o círculo distinguindo duas espécies
de virtude: uma virtude “natural”, isto é, inata, da qual não se
tem mérito, porque provém de um bom nascimento ou de uma
boa educação, e uma “virtude propriamente dita”, da qual se
tem mérito, porque se a adquire por meio do hábito e do agir
bem. A primeira é pressuposta pela phrónesis, enquanto a se­
gunda é produzida por ela (12, 1144 b 14-17)13.
Enfim, Aristóteles esclarece que também a phrónesis é
“prescritiva” (epitaktiké) (10, 1143 a 8), como o é a filosofia
prática, ou melhor, com mais forte razão ainda que a filosofia
prática, porque, justamente, é ainda mais “prática” que ela, na
medida em que é diretamente voltada para a ação. Também
neste caso, portanto, encontramo-nos diante de uma forma de
racionalidade que pode ser “verdadeira” e ao mesmo tempo
“prescritiva”, isto é, prática, coisa totalmente anômala do ponto
de vista da ética moderna de orientação analítica14. É interes­
sante ver do que a phrónesis é prescritiva, porque desse modo
se esclarece definitivamente sua relação com a sabedoria
{sophía). A este respeito, justamente como conclusão do livro
VI da Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma:
[a phrónesis/ não domina a sophía nem a parte me­
lhor [da alma, isto é, da razão teorética], como nem

13. Atraiu minha atenção para esta passagem C. Natali, La filo ­


sofia pratica di Aristotele, Napoli, Bibliopolis.
14. Refiro-me, obviamente, aos que sustentam a assim chamada
“lei de Hume”, de G. E. Moore, Principia ethica, trad. it. G. Vattimo,
Milano, Bompiani, 1964, a R. M. Hare, II linguaggio della morale,
Roma, Ubaldini, 1961, os quais, contudo, à diferença dos já citados G.
E. M. Anscombe e G. H. von Wright, não tomaram em consideração
a posição aristotélica.

155
A s razões de Aristóteles

sequer a medicina domina a saúde, pois não se ser\>e


dela, mas fornece os meios de produzi-la; ela [a
phrónesis/ governa, portanto, em vista daquela [isto
é, a sophia/, mas não a governa. Além disso, equiva­
leria a dizer que a política governa os deuses porque
esta faz prescrições a respeito de todos os assuntos da
cidade (13, 1145 a 6-11).
O fim último da phrónesis, portanto, é constituído pe­
la sabedoria, como o fim último da medicina é constituído pela
saúde, e quem governa não é o senhor supremo, mas é alguém
que é útil para o fim.
O mesmo conceito encontra-se no termo da Ética a Eudemo,
no qual Aristóteles diz:
Do mesmo modo as coisas são a respeito da faculda­
de teorética. Deus. com efeito, não domina ao modo
de quem governa, mas é aquele em vista do qual a
phrónesis governa [...] pois ele não tem necessidade
de nada. A escolha e aquisição, portanto, de bens
naturais que produzirá na máxima medida possível a
contemplação de Deus — seja ela de bens do corpo,
riquezas, amigos ou de outros bens — , esta será a
melhor, e este critério será o mais belo. Se, ao contrá­
rio, uma escolha, ou por carência ou por excesso,
impede de ser\‫׳‬ir e contemplar a Deus, esta será ruim
(VIII 3, 1149 b 13-21).
A conclusão da filosofia prática vincula-se. assim, à con­
clusão “teológica” — no sentido esclarecido anteriormente —
da filosofia teorética. pois a “contemplação de Deus” à qual se
alude nesta passagem é justamente a “sabedoria", isto é. a ciên­
cia das causas primeiras, a metafísica. As diferentes formas de
racionalidade, mesmo sendo claramente distintas, estão, assim,
organicamente articuladas.

156
A racionalidade da “arte”

o livro VI da Ética a Nicômaco. Aristóteles enumera entre


N as virtudes dianoéticas. isto é, entre as formas de
racionalidade, também a “arte” (tékhne), entendida no sentido
grego do termo, que compreende inclusive nosso conceito de
“técnica”. Ela concerne a objetos que podem ser diferentemen­
te do que são, ou seja, contingentes, por isso está entre as
virtudes da parte “calculadora" da razão, a mesma que compreen­
de a phrónesis. A diferença entre arte e phrónesis repousa no
fato de que esta última ocupa-se, como vimos, do que pode ser
“praticado” (to praktón), das ações, enquanto a arte se ocupa da
produção de objetos. A distinção entre “ação” (práxis) e “pro­
dução” (poíesis) é dada por Aristóteles quase sempre por evi­
dente, e consiste no fato de que a ação não produz nenhum
objeto diferente dela mesma, isto é. termina em si. enquanto a
produção dá lugar a um objeto diferente de si, que é o produto
(cf. Ética a Nicômaco VI 5, 114() b 6-7). Seja em relação à
ação ou à produção, existe um hábito, quer dizer, uma dispo­
sição, uma capacidade, “acompanhado pelo lógos": tal hábito é
— deve-se supor — a phrónesis, enquanto a arte é "hábito
produtivo acompanhado pelo lógos". ou melhor — especifica

157
A s razões de Aristóteles

Aristóteles — , pelo “lógos verdadeiro” (hexis metá logou


alethoús poietiké) (Ética a Nicômaco VI 4, 1140 a 10).
Hábito produtivo significa claramente capacidade de pro­
duzir, ao passo que não está claro o significado de “acompa­
nhado pelo lógos verdadeiro”. Em todo o corpus aristotelicum,
contudo, há elementos para esclarecer o significado da expres­
são como um todo. Vejamos, antes de mais nada, qual a relação
da arte com o produzir. O texto da Ética explica que
a arte concerne ao vir a s e r e é o inventar (to tekhnázein),
isto é, o estudar (theoréinj de qual modo vêm a ser
algumas das coisas que podem ser e não ser, mas cujo
princípio está naquele que produz e não no produto
(1140 a 10-14).
Aristóteles, aqui, ocupa-se essencialmente em distinguir a
arte da “natureza”, que, ao contrário, é o princípio da geração
interno às próprias coisas que se geram; por isso, observa que
ela se refere às próprias coisas que são submetidas à “fortuna”
(tykhe). Ora, tanto a arte como a fortuna, que é, por assim dizer,
seu desvio ou sua ausência, referem-se às coisas que dependem
do homem, enquanto a natureza e o “acaso” (to autòmaton),
que é, analogamente, seu desvio, referem-se às coisas que não
dependem dele (cf. Física II 5-6).
Mas o que mais nos interessa é o caráter de racionalidade
da arte, constituído pelo “inventar”, isto é, pelo “estudar de
qual modo vem a ser alguma coisa”. Também a arte, como
qualquer outra forma de racionalidade, tem uma “verdade” sua.
Aristóteles o ressalta dizendo que, enquanto a arte, como vi­
mos, é hábito produtivo acompanhado pelo lógos verdadeiro, a
falta de arte (atekhníd), por outro lado, é também hábito pro­
dutivo, mas “acompanhado pelo lógos falso” (1140 a 20-23).
Nem sequer aqui é ainda claro qual é esse “lógos verdadeiro”
que a acompanha. Ou melhor, na Ética a Nicômaco não se
encontram outros elementos úteis para esclarecê-lo. Antes de

158
A retórica

passar, porém, ao exame de outras obras, terminemos de reco­


lher nesta as indicações fornecidas por Aristóteles, isto é, na
exposição da arte como virtude dianoética.
Ele especifica, efetivamente, que a arte, à diferença da
phrónesis, possui, por sua vez, uma virtude, isto é, uma exce­
lência, no sentido em que o artista pode ser um artista excelente
ou mesmo um péssimo artista, como é demonstrado pelo fato
de que na arte, como na ciência, errar voluntariamente é prefe­
rível a errar involuntariamente, enquanto na phrónesis, como
nas outras virtudes, ocorre o contrário. Quem erra voluntaria­
mente, com efeito, sabe como deveria operar, por isso é um
bom artista, ao passo que quem erra involuntariamente erra
porque não sabe, portanto é um péssimo artista (5, 1140 b 21-
25). Isso demonstra que na arte o momento do saber é separá­
vel do procedimento efetivo, e tem, portanto, maior indepen­
dência do que na phrónesis: é prova disso o fato de que a arte,
como a ciência, pode ser esquecida, ao passo que a phrónesis
não, o que significa que a arte é apenas um saber e que, por­
tanto, se pode perdê-la, enquanto a phrónesis é algo que não se
pode perder, isto é, um modo de ser, uma virtude inclusive em
sentido moral.
Esta característica de saber, que aproxima a arte da ciên­
cia, opondo-a à phrónesis, a qual se aproxima, ao contrário, da
virtude moral, fornece-nos uma primeira indicação sobre o
significado do “lógos verdadeiro” próprio da arte, diferente do
“lógos verdadeiro” próprio da phrónesis. Enquanto este últi­
mo, como vimos, consiste essencialmente no cálculo exato dos
meios necessários para alcançar um fim bom, por isso ligado
ao particular, ou melhor, ao individual, o mesmo não se pode
dizer do “lógos verdadeiro” que acompanha a arte. Em uma
célebre passagem da Metafísica, aliás confirmada por passa­
gens de outras obras, Aristóteles diz que a arte, como a ciên­
cia, sobrevém para os homens pela experiência, e mais preci­
samente que

159
A s razoes de Aristóteles

a arte se gera quando, de muitas observações da ex­


periência, nasce uma noção única concernente aos
casos semelhantes; com efeito, possuir a noção de
que a Cálias, acometido por esta doença, fo i provei­
toso este remédio particular, e que também o fo i a
Sócrates, e do mesmo modo a muitos indivíduos, é
próprio da experiência; ao contrário, possuir a noção
de que fo i proveitoso a todos os indivíduos semelhan­
tes, definidos segundo uma única característica (por
exemplo, aos fleumáticos ou aos biliosos ou àqueles
que ardem em febre), é próprio da arte (Metafísica I
1, 981 a 5-12).
Daí se segue com clareza que a arte, diferentemente da
phrónesis, liga-se de modo específico ao universal, isto é, à
espécie ou à forma, não ao indivíduo. Portanto, o “lógos ver­
dadeiro”, que na arte acompanha a capacidade de produzir, não
consiste no raciocínio capaz de reconduzir um caso individual
ao universal, mas de preferência na descoberta de um nexo
universal entre uma certa causa, por exemplo a característica de
ser fleumático ou bilioso, e um certo efeito, por exemplo o fato
de um certo remédio ser proveitoso. O exemplo dado por
Aristóteles, tomado da medicina, vale, com efeito, tanto para a
arte como para a ciência, e tanto isso é verdade que ele introduz
todo esse discurso sobre a arte com o objetivo de explicar o que
é a ciência.
Naturalmente, essa diferença em relação à phrónesis refle­
te-se também em relação à ação. Prossegue Aristóteles:
em relação ao agir, a experiência não parece diferir
em nada da arte, ou melhor, vemos que os experientes
têm mais sucesso do que aqueles que possuem o lógos
sem a experiência. A razão é que a experiência é
conhecimento de casos individuais, enquanto a arte o
é dos universais, e as ações e as gerações referem-se

160
A retórica

todas aos casos individuais. O médico, com efeito,


não cura o homem senão por acidente, mas cura Cálias
ou Sócrates ou algum outro daqueles aqui nomeados,
ao qual aconteceu de ser homem. Se, portanto, al­
guém tivesse o lógos sem a experiência, e conhecesse
o universal mas ignorasse o caso individual nele con­
tido, freqüentemente erraria a cura, pois se deve cu­
rar o indivíduo (981 a 12-24).
O lógos que aqui caracteriza a arte é claramente indicado
como conhecimento do universal, ou seja, é aquele que deno­
minamos “conceito”, e a arte, como conhecimento do univer­
sal, é claramente contraposta à experiência, que é conhecimen­
to do individual, ainda que o bom artista, por exemplo o bom
médico, deva possuir uma ou outra. Ao passo que, portanto, a
phrónesis contém ela mesma em si a experiência, isto é, o
conhecimento dos casos individuais, a arte, por ser excelente,
deve ser acompanhada pela experiência, mas por si mesma dela
permanece distinta.
Mas Aristóteles acrescenta ainda:
contudo, consideramos que o saber e o entender per­
tençam mais à arte que à experiência, e julgamos os
artistas mais sábios que ós experientes, na medida em
que a sabedoria pertence a todos em maior medida
segundo o grau de saber. Isto porque alguns conhe­
cem a causa e os outros não: os experientes, com
efeito, conhecem o quê, mas não conhecem o porquê;
os outros, ao contrário, conhecem o porquê e a causa.
Por isso, consideramos os arquitetos, em todo caso,
mais dignos de honra e dotados de mais saber e mais
sábios que os pedreiros, porque conhecem as causas
do que é feito. Estes últimos, ao contrário, como tam­
bém algumas das realidades inanimadas, fazem, mas
fazem sem saber o que fazem, como, por exemplo,

161
A s razões de Aristóteles

queima o fogo; as realidades inanimadas fazem cada


uma dessas coisas por certa natureza sua, os pedrei­
ros por hábito. Por isso, consideramos que os primei­
ros são mais sábios não porque sejam práticos, mas
porque possuem o lógos e conhecem as causas (981 a
24-b 6).
Portanto, o lógos que caracteriza a arte é o conhecimento
do porquê, ou seja, o conhecim ento científico. Alhures
Aristóteles especifica posteriormente o objeto da arte: ele é a
forma do produto que deve ser realizado, existente sem a ma­
téria na mente do artista: por exemplo, a forma da casa que está
na mente do arquiteto (Metafísica VII 9, a 24, mas cf. também
VII 7, 1032 a 32; XII 3, 1070 a 15), ou a forma da saúde que
está na mente do médico (VII 7, 1032 b 11, XII 3, 1070 a 30;
4, 1070 b 33; De generatione animalium II 4, 740 b 28). Ou
melhor, em uma passagem ele diz explicitamente que a arte é
“o lógos da obra produzida, tomado sem a matéria” (De partibus
animalium I 1, 640 a 31).
Destas expressões parece se seguir que é específico da
arte, para Aristóteles, o momento da concepção da forma, isto
é, de sua representação mental, independentemente da matéria,
ou seja, aquilo que, em termos modernos, denominamos “pro­
jeto”. A ele se acrescenta, posteriormente, o momento da ver­
dadeira produção, a realização do projeto na matéria, o que,
porém, parece ser um momento secundário, uma simples exe­
cução, que pode ser realizada mesmo por um pedreiro. Do
ponto de vista do conhecimento, portanto, a arte não difere
substancialmente da ciência. A única diferença entre arte e ciên­
cia é que a primeira se ocupa das realidades contingentes, aque­
las feitas pelo homem, enquanto a segunda se ocupa das reali­
dades necessárias ou, de qualquer modo, independentes do
homem (cf. Segundos analíticos II 19, 100 a 8).
Alguns intérpretes compararam a racionalidade da arte,
assim como concebida por Aristóteles, com a da técnica enten-

162
A retórica

dida no sentido moderno do termo: também ela justamente faz


realizar um projeto concebido de antemão, precisamente um
projeto elaborado pela ciência. A técnica, com efeito, não passa
de conhecimento científico aplicado à produção1. Contudo, há
uma diferença profunda entre a concepção aristotélica de arte
e a concepção moderna de técnica. Como se sabe, para
Aristóteles “a arte imita a natureza” (Física II 2, 194 a 21), ou
melhor, por vezes também “permite realizar-se isso que a na­
tureza não é capaz de realizar plenamente” ( I I 8, 199 a 15). Isso
revela que a arte não formula projetos arbitrários, mas deve
conhecer as formas naturais e procurar adaptar-se-lhes; portan­
to, não é expressão de uma atitude de domínio, como se diria
hoje de uma “vontade de poder”, ao contrário é submetida à
natureza, adapta-se-lhe, procura, quando muito, aperfeiçoá-la,
não submetê-la ao homem. Não deve ser esquecido, além disso,
que a natureza, para Aristóteles, é sempre orientada por um
fim, por isso imitá-la, ou aperfeiçoá-la, significa perseguir por
meio da arte os mesmos fins próprios dela. E emblemático, a
esse respeito, o caso da medicina, a qual se propõe a restituir
a saúde, lá onde ela se perdera. O sentido do “lógos verdadei­
ro”, que acompanha na arte a capacidade de produzir, é, portan­
to, o de ser fiel intérprete da natureza e dos seus fins.
A consequência desta concepção é que não apenas o termo
“arte” freqüentemente é, para Aristóteles, sinônimo de “ciên­
cia”, mas também que a arte coincide exatamente com certo
tipo de ciência, as assim chamadas “ciências poiéticas”, ou
produtivas. Estas fazem parte, juntamente com as “ciências
teoréticas” e as “ciências práticas”, da famosa tripartição
aristotélica das ciências (Tópicos VIII 1, 157 a 10-11) ou das
formas de “racionalidade” (Metafísica VI 1, 1025 b 25). Elas
são claramente identificadas com a arte, sob a definição de

1. Desta opinião parece partilhar também H. G. Gadamer no


capítulo citado de Verdade e método.

163
A s razões de Aristóteles

“capacidades acompanhadas de raciocínio” (dynámeis metá


logou), ou “princípios de transformação em outra coisa”, e pre­
cisamente de dois efeitos opostos {Metafísica IX 2, 1046 b 2-
5); são exemplificadas mediante a medicina e a ginástica, alhu­
res consideradas artes {Metafísica XI 7, 1064 a 1); são opostas
às ciências teoréticas pelo fato de terem por objeto a forma de
um produto, mesmo que sem matéria, em vez de um puro
conceito ou de um puro pensamento {Metafísica XII 9, 1075 a
1); enfim, são consideradas inferiores, quanto ao grau de “sabe­
doria” que possuem, às ciências teoréticas, pelo fato de que não
investigam as “causas primeiras” {Metafísica I 1, 982 a 1-3).

Poética e retórica

Entre as “artes” ou “ciências poiéticas”, Aristóteles tomou


objeto de análise específica, dedicando a cada uma toda uma
obra sua, apenas duas, ambas tendo em comum uma caracterís­
tica que as distingue de todas as outras, isto é, o fato de ter por
objeto não “coisas”, mas “palavras”: a “arte retórica” {tékhne
rhetoriké) e a “arte poética” {tékhne poietiké). A primeira é por
ele explicitamente definida como “arte dos discursos” {Retóri­
ca2 I 1, 1354 a 12), isto é, arte de produzir discursos, mais
precisamente “discursos persuasivos” (pisteis), ou seja, argu­
mentações; a segunda, ao contrário, é por ele sem dúvida
identificada com a poesia {poíesis) que, do ponto de vista
terminológico, significaria “produção” por antonomásia, mas
na realidade indica a arte de compor “enredos” {mythoi)3, isto

2. Arte retórica, trad. Antonio Pinto de Carvalho, São Paulo,


Difusão Européia do Livro, 1959. [N. do T.]
3. Embora E. Berti traduza mythes por “mito”, optei traduzir o
termo grego por enredo, que significa, literalmente, intriga de uma
trama, pois o mythes tende a assumir a potencialidade das outras par­
tes da tragédia (éthos, léxis, diánoia, hopsis, melopoiá). Ao optar por

164
A retórica

é, “narrativas” em sentido lato, que incluem a epopéia, a tragé­


dia, a comédia, o ditirambo e outras composições destinadas a
ser recitadas com o acompanhamento da flauta ou da cítara
(Poética 1, 1447 a 1-15* 4).
Também a poética tem, em certo sentido, uma “racio­
nalidade” própria, na medida em que Aristóteles, em célebre
passagem da obra homônima, julga-a “mais filosófica”
(philosophóteron), isto é, mais científica (de acordo com a
conhecida equivalência entre philosophia e epistéme) que a
“história” (historia), quer dizer, que a pura descrição, pelo fato
de que muito dela tem por objeto o universal, enquanto a his­
tória tem por objeto apenas casos particulares. Contudo, o
universal que é objeto da poesia é somente o possível, não o real,
por isso ela não deve procurar o verdadeiro, mas somente o ve­
rossímil (9, 1451 a 36-b 11). Também nisso, por outro lado, ela
pode servir-se de argumentações: uma verdadeira forma de argu­
mentação é, com efeito, a analogia, pressuposta por uma das mais
importantes formas de expressão poética, a “metáfora”.
Na Poética Aristóteles define a metáfora como “a transpo­
sição para uma coisa do nome de outra, ou do gênero para a
espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma
para o gênero de outra, ou por analogia” (21, 1457 b 6-9). A
mais importante entre essas espécies de metáfora é a baseada
na analogia. Esta última, com efeito, diz Aristóteles, tem lugar
quando, entre quatro termos, o segundo está para o primeiro na
mesma relação em que o quarto está para o terceiro (1457 b 16-
19). Ela permite, na base de regra matemática precisa, trocar os

essa solução, não acompanhei a tradução de Eudoro de Souza, que ora


traduz por “mito” ora por “trama”. [N. do T.]
4. Poética, trad., comentários e índices analítico e onomástico de
Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984 (Os Pensadores);
Arte poética, trad. Jaime Bruna, in Aristóteles, Horário, Longino, A
poética clássica, São Paulo, Cultrix-Edusp, 1981. [N. do T.]

165
A s razões de Aristóteles

termos entre si, isto é, o primeiro com o terceiro, ou o segundo


com o quarto, sem que se mude sua relação. Por exemplo, se
taça está para Dioniso como o escudo está para Ares, pode-se
dizer que a taça é o “escudo de Dioniso” ou que o escudo é a
“taça de Ares”. Ou, se a velhice está para a vida como a tarde
para o dia, poder-se-á denominar a velhice “tarde da vida” ou
a tarde “velhice do dia”. Desse modo, passou-se da analogia à
metáfora, o que por vezes permite aos poetas indubitável eficá­
cia expressiva.
Ou melhor, em certos casos, a metáfora permite igualmen­
te exprimir conceitos para os quais não existe um nome. Por
exemplo, lançar a semente se chama semear, enquanto lançar a
luz própria do Sol não tem nome. Ora, visto que entre semear
e semente há a mesma relação que entre lançar a luz e o Sol,
pode-se dizer — como um poeta citado por Aristóteles, mas
que nos é desconhecido — “semeando uma chama criada pelo
deus” (1457 b 19-30). Para uma investigação sobre este tipo de
racionalidade, contudo, seria necessária uma análise por si mais
complexa e aprofundada do que o permite a presente obra5.
Apontaremos, ao contrário, um pouco mais amplamente
para a retórica, porque esta se serve, na concepção que dela tem
Aristóteles, de argumentações explícitas e, por isso, representa

5. Uma excelente e recente análise do assunto pode-se encontrar


em A. Cazzullo, La verità delia parola. Ricerca sui fondam enti filosofici
della metafora in Aristotele e nei contemporanei, Milano, Jaca Book,
1987, que, contado, acentua talvez demasiado a oposição entre metá­
fora e ciência, considerando que Aristpteles privilegia exclusivamente,
como forma de racionalidade, esta última. Importantes ilustrações do
uso, inclusive científico, que o pensamento grego, em geral, e
Aristóteles, em particular, fazem da analogia e da metáfora pode-se
encontrar em G. E. R. Lloyd: P olarity and Analogy, Cambridge,
Cambridge University Press, 1966, e id., Magia, ragione, esperienza.
Nascita e form e della scienza greca, Torino, Boringhieri, 1982.

166
A retórica

uma verdadeira forma de racionalidade. Aristóteles opôs-se,


como se sabe, à retórica puramente “encantatória” da tradição
que remontava a Górgias, personalizada, também, a seus solhos,
por Isócrates, com o qual ele polemiza sem cessar e por vezes
também duramente. Procuraremos, em particular, ilustrar a es­
treita relação que, segundo Aristóteles, a retórica mantém, por
um lado, com a dialética e, por meio desta última, com a filo­
sofia, isto é, com a ciência, e, por outro, com a própria ciência
política, como vimos ciência verdadeira, ainda que constitua
uma forma de racionalidade totalmente peculiar.
Górgias, que a tradição apresentava como aluno de
Empédocles, daquele que Aristóteles mesmo indica como o
descobridor da retórica, levou a efeito, de forma que se tomou
emblemática, um certo modo de entender a retórica que Platão,
primeiro, e o próprio Aristóteles em seguida reputaram dever
ser totalmente rechaçado. Esse modo de entender a retórica era
baseado na própria filosofia de Górgias, na “inversão”, por
assim dizer, do eleatismo por ele efetuada, segundo a qual: 1)
o ser não é; 2) ainda que fosse, não seria cognoscível; 3) ainda
que fosse cognoscível, não seria comunicável. A conseqüência
dessas três teses era que o lógos, ou seja, o discurso, não tem
mais a função de tomar possível a comunicação, transmitindo
de uma pessoa a outra o conhecimento e significando, por meio
do conhecimento, a realidade. Ele, ao contrário, se substitui à
realidade, a instaura, por assim dizer, ele mesmo, cria-a e, em
vez de comunicar pensamentos, produz diretamente os efeitos,
isto é, causa as paixões, dominando assim completamente a
pessoa. Por isso Górgias, no Elogio de Helena6, define o lógos
como um “grande senhor”, espécie de encantador, de mago ao
qual ninguém pode resistir.

6. Elogio de Helena, trad. Maria Cecília Coelho, in id., Górgias:


verdade e construção discursiva, dissertação de mestrado em filosofia,
São Paulo, USP, 1997, pp. 83-89. [N. do T.]

167
A s razões de Aristóteles

Já Platão recusou vivamente essa concepção de retórica no


diálogo justamente intitulado Górgias1. Nele nega até mesmo
que a retórica seja uma arte, isto é, um discurso fundado num
conhecimento científico, e apresenta-a como simples prática
empírica, que tem em vista exclusivamente a persuasão dos
outros, fora de qualquer conhecimento. O objetivo dessa retó­
rica, segundo Platão, não é o bem, mas somente o prazer; por
isso ele a define como uma forma de adulação e a compara
com práticas como a culinária e a cosmética, que se preocupam
somente em obter o prazer do corpo, e que são imitações ruins
da medicina e da ginástica, preocupadas, ao contrário, com seu
verdadeiro bem. Esta retórica, diz Platão, é um simulacro
(eídolon), isto é, uma imagem feia, uma contrafação, de uma
parte da política, isto é, da arte de obter o bem da alma (Górgias
464 d-e). Trata-se, evidentemente, da retórica de Górgias, ou da
de alguns sofistas, por exemplo Eutidemo e Dionisiodoro, que
Platão considerava adeptos de Górgias.
No Fedro78, contudo, Platão apresenta outra concepção de
retórica, que não desmente a precedente, porque, é claro, se
refere a outro tipo de retórica, talvez praticado por alguns retores
a ele contemporâneos, como Teódotos e Anaximenes de
Lampsaco. Esta retórica, diversamente da de Górgias, é consi­
derada por Platão uma verdadeira arte. Ela tem, igualmente, o
objetivo de persuadir, isto é, de guiar a alma por meio da pa­
lavra, mas se funda em um conhecimento científico da alma, e
mesmo quando é empregada para persuadir sobre o falso pres­
supõe o conhecimento do verdadeiro. Platão afirma explicita-

7. Górgias, introd., trad, e notas Manuel de Oliveira Pulquério,


Lisboa-São Paulo, Verbo, 1973; Górgias, trad. Jaime Bruna, São Pau­
lo, Difusão Européia do Livro, 1970. [N. do T.]
8. Fedro, trad. José Ribeiro Ferreira, Lisboa-São Paulo, Verbo,
1973; Fedro, trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro-Porto Alegre-São
Paulo, Editora Globo, 5a ed., 1962; Fedro, trad. Carlos Alberto Nunes,
Belém, Ed. da Universidade Federal do Pará, 1975. [N. do T.]

168
A retórica.

mente que esta retórica se serve dos procedimentos da dialética,


que são a synagogé e a dihaíresis, isto é, a recondução de casos
particulares a idéias universais e a divisão de idéias mais uni­
versais em idéias menos universais (Fedro 265 c-266 b). Não
é claro em qual desses dois tipos de retórica Platão pusesse
Isócrates, o grande orador a ele contemporâneo: em outros
diálogos, com efeito, ele parece combatê-lo (e Isócrates, por
sua vez, ataca Platão em várias obras suas), aqui ele atribui a
Isócrates “alguma filosofia” (297 a).
Aristóteles logo se ocupou da retórica, isto é, apenas cinco
anos depois de seu ingresso na Academia de Platão, quando
contava pouco mais de 22 anos. Na época escreveu, com efeito,
seu primeiro diálogo (perdido para nós), intitulado Grilo, no
qual, por ocasião da morte do jovem filho de Xenofonte, cha­
mado justamente Grilo, muitos retores atenienses, entre os quais
Isócrates, lhe dedicaram muitos elogios, baseados num tipo de
retórica voltado unicamente para o movimento dos afetos. Nesse
diálogo o jovem Aristóteles discutia se a retórica é ou não uma
arte, provavelmente negando esse caráter à retórica de tipo
gorgiano que, para ele, era ainda praticada por Isócrates (este,
com efeito, tinha fama de ter sido aluno de Górgias), e atribuin­
do-lhe, ao contrário, uma retórica baseada na dialética, como a
descrita por Platão no Fedro.
Um documento posterior do interesse de Aristóteles pela
retórica é constituído pela informação, referida pelo epicurista
Filodemo, de que ele teria tido um curso de retórica — prova­
velmente já no interior da Academia — , por ocasião do qual
teria principiado dizendo que “é torpe calar e deixar que Isócrates
fale”, e durante o qual, além disso, teria estabelecido um vín­
culo estreito entre a retórica e a política. Isso significa que
considerava a retórica verdadeira arte, digna de ser ensinada,
mas que, ao mesmo tempo, recusava aquela praticada por
Isócrates, isto é, a retórica de tipo gorgiano, substituindo a ela

169
A s razões de Aristóteles

uma nova, do tipo desejado por Platão no Fedro, isto é, uma


retórica baseada na dialética e articulada com a política. Deste
antigo curso acadêmico, segundo alguns estudiosos, ter-se-iam
conservado traços nas partes mais antigas da Retórica que nos
foi transmitida. Em todo caso, segue-se que Aristóteles fez
também uma coletânea de tratados de retórica que circulavam
em seu tempo, a assim chamada Coletânea das artes, e que,
em particular, expôs o tratado do retor Teódotos em uma obra
intitulada A arte de Teódotos9. Como se vê por esses títulos, e
também por seu próprio tratado intitulado literalmente Arte
retórica, Aristóteles usava, a propósito da retórica, o termo
“arte” para indicar não apenas a atividade praticada pelos
retores, mas também seu ensino, aquele que hoje se diria em
alemão Kunstlehre e que já os romanos denominaram institutio
oratoria.
O que mais interessa na polêmica de Aristóteles contra
Isócrates e, portanto, contra a retórica de tipo gorgiano é a
nova concepção de retórica como arte da comunicação, não
mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva: por
esse motivo a retórica de Aristóteles atraiu o interesse dos
filósofos contemporâneos, seja como possível lógica do dis­
curso político ou judiciário, seja como ocasião de recuperação
da dimensão comunicativa da linguagem, para além daquela
dimensão puramente instrumental própria da ciência e da téc­
nica modernas10.

9. A documentação mais aprofundada e atualizada de tudo isto


encontra-se na nova edição, com tradução e comentário, de Aristóteles
Frammenti dei dialoghi. Vol. I org. por R. Laurenti, Napoli, Loffredo,
1987.
10. Refiro-me respectivamente à posição de Perelman, exposta
no Tratado da argumentação, cit., e à expressa mais recentemente por
J. Habermas, Discorso filosofico delia modernità, Roma-Bari, Laterza,
1987.

170
A retórica

Relação entre retórica, dialética e filosofia

Existe um estrito paralelismo entre o início do tratado de


Aristóteles sobre a retórica — Retórica I I — e o início de seu
tratado sobre a dialética — Tópicos I 1-2. Ele salta aos olhos
e é, de resto, justificado pela analogia estrutural feita explici­
tamente por Aristóteles entre as duas disciplinas, mediante a
afirmação de que a retórica é “especular” (antístrophos, literal­
mente “convertível”, correspondente, paralela, análoga) à
dialética (1354 a 1), ou “imagem” (homóioma) dela (1354 a
31), ou ainda “semelhante” (homóia) a ela (1359 b 11). Retó­
rica e dialética têm a mesma estrutura lógica, isto é, a mesma
forma, o mesmo modo de argumentar, aplicados a situações e
a conteúdos diversos. Isso resulta do fato de que ambas se
ocupam de procedimentos praticáveis por todos, e não somente
pelos que se dedicam a determinada ciência, e, além disso, pelo
fato de que os procedimentos dos quais se servem são análo­
gos: “examinar” (exetázein, interrogar, pôr à prova, pedir razão
a alguém de alguma coisa); “sustentar uma tese” (hypékhein
logon, submeter a exame um discurso, dar razão a alguém de
alguma coisa), no caso da dialética; e enfim acusar (kategoréin)
e defender-se (apologéisthai), no caso da retórica (1354 a 5-6).
O paralelismo entre os inícios dos dois tratados resulta,
antes de mais, da apresentação das respectivas disciplinas como
métodos (Tópicos I 1, 100 a 18: méthodos; Retórica I 1, 1354
a 8: hódos) para produzir uma arte, isto é, “tecnicamente”
(jRetórica I 1, 1354 a 11: tékhne; cf. Tópicos IX 11, 172 a 35:
entékhnos), isso que todos já fazem sem arte, e posteriormente
da ilustração da utilidade de cada uma (uma quádrupla utilida­
de, como veremos, em ambos os casos). Vejamos, antes de
tudo, em que consiste o caráter “técnico” de ambas. No caso da
retórica, é constituído por saber usar bem as pisteis (meios de
persuasão, modos de causar crença) (1354 a 13; 1355 a 4) e, no
caso da dialética, por saber usar bem as argumentações

171
A s razões de Aristóteles

(syllogismói) (100 a 21). Contudo, a pistis — diz Aristóteles —


não passa de “uma espécie de demonstração” (apódeixis tis),
mais precisamente uma “demonstração retórica”, da qual a forma
principal é o entimema, por sua vez “uma espécie de silogismo”,
ainda que haja diferença entre o entimema e os “silogismos
lógicos”, isto é, dialéticos. Por isso, quem conhecer melhor os
silogismos, vale dizer, conhecer melhor a dialética, conhecerá
bem os entimemas, isto é, conhecerá bem a retórica (1355 a 3-
14). Nisso consiste aquilo que denominei analogia estrutural
entre retórica e dialética.
Contudo, tal analogia parece ser estendida por Aristóteles,
de certo modo, também à verdadeira ciência, isto é, àquela que
poderíamos denominar filosofia (sabe-se que para ele tpistéme
e philosophia são sinônimos, por isso as epistémai katá
philosophían são as ciências propriamente ditas), não apenas
pelo fato de que esta se serve de demonstrações, e a pistis é
“uma espécie de dem onstração”, mas também pelo que
Aristóteles afirma na passagem imediatamente seguinte à já
citada:
Com efeito, distinguir o verdadeiro e o que é seme­
lhante ao verdadeiro (to hómoin to alethéi) é próprio
da própria capacidade e, ao mesmo tempo, os homens
são, por natureza, suficientemente dotados em relação
ao verdadeiro e, na maior parte dos casos, procuram
a verdade, pelo que ter uma boa mira (stokhastikós
ekhein) em relação aos éndoxa é próprio de quem
está disposto do mesmo modo para a verdade (1355
a 14-18).
Confirma-se aqui não apenas uma analogia entre a capa­
cidade de apreender o verdadeiro, própria da ciência ou da
filosofia, e a capacidade de apreender “o que é semelhante ao
verdadeiro”, própria — deve-se supor — da retórica, mas
também uma analogia entre a disposição para o verdadeiro,

172
A retórica

também própria da filosofia, e a disposição para os éndoxa, isto é,


para as premissas “conhecidas” — como se segue dos Tópicos —,
aquelas a partir das quais argumenta a dialética (100 b 21 ss.). É
interessante notar que, em ambos os casos, tal disposição é
“acidental”, que significa não apenas tendencial, mas também
capaz de sucesso. Pode-se, portanto, afirmar que a retórica,
sendo estruturalmente análoga à dialética, é indiretamente, isto
é, por meio desta última, análoga também à ciência, ou seja, à
filosofia.
Porém, vamos às “utilidades da retórica”, ou seja, aos
motivos pelos quais a retórica é “útil” (khrésimos), que são
quatro. Em primeiro lugar, a retórica é útil porque permite evitar
uma coisa reprovável, isto é, perder uma causa justa por infe­
rioridade própria, dado que, “por natureza”, por si mesmas, “as
coisas verdadeiras e justas são mais fortes que seus contrários”
(1355 a 21-24). É evidente a analogia entre esta utilidade e a
primeira das quatro utilidades da dialética expostas nos Tópicos
I 1, aquela relativa ao “exercício” mental (pros gymnasían),
que nos dá condições de argumentar mais facilmente (101 a 28-
30). Em segundo lugar, a retórica é útil porque, para alguns,
não basta recorrer à “ciência mais exata”, que é apropriada para
o ensino, na medida em que é necessário usar argumentos
baseados nos lugares-comuns (diá ton koinóri). E aqui é o pró­
prio Aristóteles que cita a segunda utilidade da dialética ilustra­
da nos Tópicos, aquela relativa às “discussões com a multi­
dão”, nas quais convém partir das opiniões que lhes são pró­
prias, isto é, justamente “comuns” (1355 a 24-29, cf. Tópicos 1 1,
101 a 30-34).
Em terceiro lugar, é útil porque está em condição de per­
suadir de coisas contrárias, o que serve não para que se façam
ações contrárias entre si (não se deve, com efeito, persuadir
para que se façam ações ruins), mas “para que não se desviem
de como as coisas são” (pos ékhei), e “para que tenhamos nós

173
A s razões de Aristóteles

mesmos a possibilidade de refutar (lyein) se um outro faz um


uso injusto dos argumentos”; apenas a retórica e a dialética,
com efeito — prossegue Aristóteles — , estão em condição de
argumentar os contrários, porque são (capazes) ambas do mes­
mo modo, ainda que as ações que correspondem a eles não
sejam do mesmo modo, mas aquelas verdadeiras e melhores
por natureza sempre “mais fáceis de argumentar e mais persua­
sivas” (eusyllogistótera kai pithanótera) (1355 a 29-38). Isso
corresponde perfeitamente à terceira utilidade da dialética, re­
lativa às “verdadeiras ciências” (pros tas katá philosophían
epistémas), devido ao fato de que, “se estivermos em condição
de desenvolver uma aporia em ambas as direções {pros
amphótera diaporésai), distinguiremos mais facilmente em cada
uma o verdadeiro e o falso” (Tópicos I 1, 100 a 34-36). Aqui,
como se vê, a retórica e a dialética não apenas ensinam, respec­
tivamente, a persuadir e a argumentar, mas também fazem ver
àquele que as usa “como são as coisas”, isto é, “o verdadeiro
e o falso”, o que é, indubitavelmente, uma utilidade cognitiva,
ou seja, científica. Aliás, ele mesmo diz que esta é a utilidade
“científica” ou “filosófica” (pros tas katá philosophían
epistémas) da dialética. Ainda por esse caminho, portanto, a
analogia estrutural entre retórica e dialética é estendida, por
meio desta última, à filosofia.
Em quarto lugar, ela é útil porque saber usar justamente
“tal capacidade de fazer discursos” (toiáute dynamis ton logon)
pode ser extremamente proveitoso, enquanto saber usá-la injus­
tamente pode ser extremamente danoso, o que é próprio dos
bens mais úteis, como o vigor, a saúde, a riqueza e a estratégia
(apenas que a virtude não admite outro uso, apenas o justo)
(1355 a 38-b 7). Aqui a analogia com a quarta utilidade da
dialética — conduzir aos princípios de todas as ciências — é
menos evidente, mas talvez consista no fato de que ambas, a
retórica e a dialética, sabem levar ao que é máximo, o máximo
do bem e do mal a primeira, o máximo do conhecimento, isto

174
A retórica

é, o dos princípios, a segunda. A ambigüidade da retórica, diga-


se, é típica de todas as “potências racionais”, que são todas
potências dos contrários, das quais fazem parte as artes e as
ciências, por exemplo a medicina, que sabe curar, mas sabe
também envenenar (cf. Metafísica IX 2), o que constitui uma
analogia estrutural posterior entre a retórica e a ciência em
geral.
Enfim, a última prova de analogia entre a retórica e a
filosofia, sempre mediada pela dialética, segue-se da distinção
entre capacidade e escolha. A passagem a respeito é de tal
interesse que merece ser traduzida integralmente.
Além disso — diz Aristóteles — [é claro] que é pró­
prio desta [capacidade] distinguir seja o persuasivo
(to pithanón), seja o p ersuasivo aparente (to
phainómenon pithanón), como também no caso da
dialética [distinguir] seja o silogismo seja o silogismo
aparente; com efeito, a sofística [consiste] não na
capacidade (dynamis,), mas na escolha (prohaíresis),
salvo aqui um será retor pela ciência e o outro pela
escolha, enquanto lá um, pela escolha, será sofista, e
o outro será dialético não pela escolha, mas pela
capacidade (1355 b 1521).
Isso significa que quem possui a capacidade de distinguir
seja o silogismo seja o silogismo aparente é dialético, e quem
faz a escolha de usar o silogismo aparente no lugar do autên­
tico não é dialético, mas sofista; ao contrário, quem possui a
capacidade de distinguir seja o persuasivo seja o persuasivo
aparente é retor, mas o é também aquele que faz escolha de
usar o persuasivo aparente no lugar do autêntico. Denomina-se
retor, em suma, tanto o análogo do dialético como o análogo do
sofista. Com isso, a analogia entre retórica e dialética, que
consiste na capacidade de distinguir o autêntico e o aparente, é
confirmada, com a diferença de que, em relação à dialética, a

175
A s razões de Aristóteles

escolha de usar o aparente toma o nome de sofística, enquanto


em relação à retórica a mesma escolha toma o nome de retó­
rica. Em outras palavras, enquanto a dialética, do ponto de
vista moral, é apenas “boa”, a retórica poder ser tanto “boa”
como “má”.
Essa distinção entre o persuasivo autêntico e o persuasivo
aparente é perfeitamente paralela àquela entre o silogismo e o
silogismo aparente feita no início dos Tópicos, precisamente
onde Aristóteles distingue do silogismo demonstrativp, que parte
de premissas verdadeiras e primeiras, e do silogismo dialético,
que parte de éndoxa, o silogismo erístico ou sofístico, que parte
de éndoxa aparentes ou é um silogismo aparente, isto é, um
silogismo que parece concluir mas na realidade não conclui,
um silogismo incorreto (100 a 25-101 4).
Mais interessante, contudo, é o fato de que o entrelaça­
mento entre essa distinção e aquela entre capacidade e escolha
é recorrente também na Metafísica, na qual, à relação entre
dialética e sofística, acrescenta-se aquela entre ambas e a filo­
sofia. Aqui Aristóteles diz, como já vimos, que a filosofia
distingue-se da dialética pelo “tipo de capacidade” empregada
(tropos tes dynámeos), e da sofística pela “escolha do gênero
de vida” (tou biou prohaíresis), isto é, pela escolha moral; e
explica que a capacidade da dialética é “exam inativa”
(peirastiké), ou seja, puramente argumentativa, enquanto a da
filosofia é “cognitiva” (gnoristiké), e que a escolha da sofística
é ser uma “sabedoria apenas aparente” (phainoméne monon
sophia), enquanto a da filosofia é ser uma sabedoria real
(ousa) (Metafísica IV 2, 1004 b 18-26). Caso associemos
esta distinção exposta na Metafísica, que é o tratado sobre
a filosofia, àquela exposta na Retórica, que é o tratado, justa­
mente, sobre a retórica, e àquela outra exposta nos Tópicos,
que são o tratado sobre a dialética, obteremos o seguinte es­
quema (esquema 1):

176
A retórica

capacidade escolha boa escolha má


cognitiva filosofia sofistica
(sabedoria real) (sabedoria
aparente)

argumentativa dialética erística


(argumentação (argumentação
autêntica) aparente)

persuasiva boa retórica m á retórica


(persuasão (persuasão
autêntica) aparente)

Por esse esquema parece que a retórica, no plano da capa­


cidade persuasiva, é o análogo do que são, no plano da ca­
pacidade argumentativa, a dialética e a erística consideradas
conjuntamente, isto é, independentemente da escolha moral; e,
além disso, por meio delas, no plano da capacidade cognitiva,
do que são a filosofia e a sofística consideradas conjuntamente,
isto é, sempre independentemente da escolha moral. Por isso
falei de analogia estrutural entre retórica, dialética e filosofia.
Mais precisamente, deve-se dizer que a analogia subsiste entre
a “boa” retórica, a dialética e a filosofia, ou entre a “má” re­
tórica, a erística e a sofística, e consiste na presença, em capa­
cidade diferente, da mesma distinção entre escolha moralmente
boa e escolha moralmente tná.

Relação entre retórica, dialética e política

Além da analogia estrutural entre retórica e dialética, ilus­


trada na Retórica I 1, Aristóteles sustenta explicitamente, na
Retórica I 2, uma identidade parcial de conteúdo entre retórica
e política. Ele divide, com efeito, as pisteis em duas grandes
categorias, as “não-técnicas” (átekhnoi), que não são realizadas

177
A s razões de Aristóteles

pelo retor, e as “técnicas” (éntekhnoi) que, ao contrário, depen­


dem da habilidade do retor; as primeiras compreendem os tes­
temunhos, as confissões extraídas com tortura, os documentos
escritos e coisas do gênero, enquanto as segundas são constituí­
das essencialmente por discursos aprofundados do próprio retor.
Estes últimos, por sua vez, dividem-se em três espécies: a pri­
meira compreende os discursos que manifestam o caráter (éthos)
do orador, em particular aqueles que o fazem ser signo de fé;
a segunda compreende aqueles que predispõem de certo modo
o ouvinte, isto é, que suscitam nele determinada paixão (páthos),
alegria, dor, amizade, ódio; a terceira, enfim, compreende os
discursos que demonstram ou parecem demonstrar (deikhnynai)
o verdadeiro ou aparente a partir de premissas persuasivas (1355
b 35-1356 a 20).
Com base nesta classificação, Aristóteles prossegue:
Visto que as pisteis são constituídas por estas coisas,
é claro que pode aprendê-las aquele que é capaz de
argumentar e de investigar (syllogísasthai... kai...
theorésai) os caracteres e as virtudes e, terceiro, as
paixões, seja o que é cada uma das paixões ou que
qualidade tem, seja de quais coisas se gera ou de qual
modo, de maneira que disso se segue que a retórica
é como uma espécie de ramo (paraphyés ti) da dialética
e da análise dos caracteres, que é justo denominar
política. Por isso, também assumem a aparência da
política (hypodyetai hypó to skhema to tes politikés)
a retórica e quantos se arrogam praticá-la, por igno­
rância, arrogância ou outras causas antropológicas;
[a retórica], com efeito, é uma parte e uma similitude
da dialética (mórion ti tes dialektikés kai homóioma),
como também dissemos no início, pois nenhuma das
duas é ciência de como são as coisas de modo deter­
minado, mas [ambas] são uma espécie de capacidade
de fazer discursos (dynámeis tinés tou porísai logous)
(1356 a 20-33).

178
A retórica

Este trecho se presta a várias considerações. A classifica­


ção das pisteis técnicas (isto é, constituídas por argumentos)
em argumentos concernentes aos caracteres (e, por isso, às
virtudes), argumentos relativos às paixões e argumentos atinentes
às demonstrações induz Aristóteles a afirmar que a retórica
abarca em parte, isto é, para os dois primeiros tipos de argu­
mentos, o âmbito da “análise dos caracteres”, isto é, literalmen­
te, da “ética” (da éthos), mas mais propriamente da “política”
(assim denominada pelos conhecidos motivos expostos em Ética
a Nicômaco I 1); e, em parte, ou seja, para o terceiro tipo de
argumentos, ela abarca o âmbito da dialética, de modo a ser
“ramo”, parte de ambas essas disciplinas. É claro porém que,
em relação à política, se trata de uma identidade parcial de
conteúdo (o estudo, justamente, dos caracteres e das paixões),
enquanto em relação à dialética, como já vimos, trata-se, mais
do que no outro, de uma analogia de estrutura: as “demonstra­
ções”, com efeito, não são conteúdos, mas procedimentos. Por
isso Aristóteles especifica que, em relação à dialética, a retórica
é, em certo sentido, “parte”, mas mais propriamente “similitude”
(o kai tem, talvez, o valor de uma especificação), porque ne­
nhuma das duas é realmente ciência, mas ambas são apenas a
capacidade de fazer discursos. Portanto, a retórica vincula-se
não apenas à dialética, mas, mesmo que em sentido diferente,
também à política, ocupando-se dos mesmos conteúdos dos
quais a política faz verdadeira ciência, isto é, dos caracteres e
das paixões, mas somente a fim de predispor pisteis, discursos
persuasivos.
Interessante é, em seguida, a expressão “assumem a apa­
rência da política”, quase idêntica à contida na passagem já
referida da Metafísica, na qual se diz que “os dialéticos e os
sofistas assumem a mesma aparência (to autó men hypodyontai
skhema) do filósofo, porque a sofística é sabedoria apenas
aparente, e os dialéticos discutem sobre todas as coisas” (1004
b 17-20). Em ambas as passagens, a da Metafísica e a já citada
A s razões de Aristóteles

da Retórica, “assumir a aparência”, que exprime uma relação


de semelhança, tem dois significados: um, por assim dizer,
neutro, equivalente a “assemelhar-se”, e próprio da dialética no
que se refere à filosofia, e da retórica no que se refere à polí­
tica, devido, como vimos, à identidade de conteúdo (“todas as
coisas”, isto é, o ser, entre as primeiras duas, e caracteres e
paixões entre as outras duas); o outro, ao contrário, negativo,
equivalente a “disfarçar-se de” ou “camuflar-se de”, com clara
intenção de enganar (devido a uma “má escolha” moral), é
próprio da sofística no que se refere à filosofia, e de “quantos
se arrogam praticar” a retórica no que se refere à política. Quem
são, com efeito, estes últimos? Eles compreendem, certamente,
os “maus” retores, isto é, aqueles que, por “má escolha” moral,
por exemplo por arrogância, não usam a persuasão autêntica,
mas a “persuasão aparente”, e são igualmente denominados
retores, pois a retórica é competente sobre ambas. Contudo,
com eles estão também aqueles que usam a “persuasão aparen­
te” por outras razões, isto é, “por ignorância” ou por outras
misteriosas “causas antropológicas”: talvez também estes pos­
sam ser denominados “maus retores”, mesmo que não em sen­
tido moral. Estes, mas especialmente aqueles “maus” retores
por arrogância, são, em relação à política, o análogo dos sofis­
tas em relação à filosofia: não somente assemelham-se aos
políticos, como os “bons” retores, mas se disfarçam, camu-
flam-se de políticos, com o objetivo de enganar. Podemos,
portanto, propor um esquema também para ilustrar a analogia
das relações entre retórica e política e aquelas entre dialética,
sofística e filosofia, distinguindo o plano da “boa” semelhança,
o da “má” semelhança e o da realidade que faz as vezes de
modelo (esquema 2):

realidade-modelo filosofia política


boa semelhança dialética boa retórica
má semelhança sofística má retórica

180
A retórica

Contudo, independentemente do problema das semelhan­


ças, se tivermos em conta tanto as analogias estruturais, salien­
tadas na Retórica I 1, como as identidades de conteúdo, sali­
entadas na Retórica I 2, descobriremos que a retórica é vincu­
lada à filosofia por dois motivos diferentes: do ponto de vista
estrutural, pela mediação da dialética; do ponto de vista do
conteúdo, pela mediação da política. Também a política, com
efeito, é parte da filosofia, precisamente a parte “prática”, isto
é, aquela que tem por objeto “o bem e o justo” (Ética a
Nicômaco I 1). A retórica, portanto, sendo um “ramo”, uma
parte da política, por sua vez uma parte da filosofia, vem a ser,
do ponto de vista do conteúdo, parte de uma parte da filosofia.
E se a analogia estrutural, assim como a identidade parcial de
conteúdo, produz semelhança pode-se dizer que a retórica as-
semelha-se duas vezes à filosofia, uma graças à dialética e a
outra graças à política. O nexo filosofia-política-retórica, ilus­
trado nos primeiros dois capítulos da Retórica, é, portanto, como
se vê, um tanto complexo.
Sempre na Retórica I 1, depois de ter ilustrado as primei­
ras duas espécies de piteis técnicas, a propósito das quais emeigiu
o vínculo entre a retórica e a política, Aristóteles se detém
sobre a terceira espécie, sobre os discursos que demonstram ou
parecem demonstrar, o que o induz a retomar às relações entre
retórica e dialética e, indiretamente, entre retórica e ciência.
Aqui ele estabelece a célebre analogia entre os dois tipos fun­
damentais de argumentação retórica, ou seja, o entimema e o
exemplo, e os dois tipos fundamentais de argumentação dialética,
isto é, respectivamente o silogismo e a indução, acrescentando-
lhes a analogia entre o entimema aparente e o silogismo apa­
rente (1356 a 34 — b 27). A analogia entre entimema e silogismo
deve-se, antes de tudo, às respectivas premissas, ou seja, ao
pithánon e ao éndoxon, que são não aquilo que persuade al­
guém sobre o que se opinou de alguém, mas o que persuade
aqueles que devem deliberar, ou seja, os membros de uma

181
A s razões de Aristóteles

assembléia ou de um júri, e respectivamente o que é comentado


pelos que argumentam, ou seja, pelas pessoas razoáveis (1356
b 27-1357 a 1). Sua diferença repousa no fato de que o silogismo
pode partir de coisas distantes, de premissas já extraídas de
argumentações anteriores ou que tenham, por sua vez, necessi­
dade de ser extraídas e, portanto, supõem, de qualquer modo,
uma série de argumentações concatenadas entre si, enquanto o
entimema é voltado para os ouvintes, que não estão em condi­
ções de envolver com um único olhar muitas passagens e, por
isso, de raciocinar a partir de coisas distantes; por isso, o
entimema deve ter menos premissas que o silogismo; por exem­
plo deve evitar assumir como premissas coisas já conhecidas
(1357 a 1-21).
Entre as premissas dos entimemas há, pois, algumas, pou­
cas na verdade, das quais a conclusão se segue necessariamen­
te, e outras, a maior parte, das quais a conclusão se segue
apenas geralmente. As primeiras são os “signos” (seméia), as
segundas são os “prováveis” (eikóta); mas, a rigor, a conclusão
não se segue de todos os signos, mas apenas de alguns, que
tomam o nome de “provas” (tekméria): por exemplo, o fato de
que alguém tenha febre é um signo do qual se segue necessa­
riamente que está doente, ou o fato de que uma mulher tenha
leite é um signo do qual se segue necessariamente que ela deu
à luz. Ao contrário, os signos dos quais a conclusão não se
segue necessariamente não têm um nome particular, mas divi­
dem-se naqueles que vão do particular ao universal (por exem­
plo, o fato de que Sócrates era sábio e também justo é um signo
do qual não se segue necessariamente que todos os sábios são
justos). As provas são irrefutáveis (ályta), enquanto os outros
signos são refutáveis (lytá), inclusive no caso de a conclusão
que se extrai delas ser verdadeira (1357 a 22 — b 25). Os
exemplos, em seguida, vão do particular ao particular, isto é, do
semelhante ao semelhante, no qual o primeiro é mais conheci­
do que o segundo: por exemplo, do fato de Pisistrato ter pedido

182
A retórica

uma escolta para tomar-se tirano infere-se que também Dionísio,


tendo pedido uma escolta, aspira a tomar-se tirano, mas não é
dito que isso seja verdadeiro (1357 b 26-36). Como se vê, na
maior parte dos casos as argumentações retóricas não têm ca­
ráter de ciência, ou seja, de verdade necessária, porém em al­
guns casos o têm, precisamente no caso das provas.
Ao lado deste caso de aparente coincidência entre retórica
e ciência, Aristóteles imediatamente salienta sua diferença,
análoga àquela entre ciência e dialética: os entimemas, com
efeito, nem sempre pertencem à dialética, mas há entimemas e,
respectivamente, silogismos, que pertencem a outras artes e
faculdades, que podem ser também verdadeiras ciências. Os
entimemas retóricos e os silogismos dialéticos são aqueles que
tratam de coisas a propósito das quais se fala em “lugares”
(topoi), isto é, em esquemas de argumentação comuns (koinói)
a várias ciências (física, ética, política), como, por exemplo, “o
lugar do mais e do menos” (o que vale para o menos com mais
razão vale para o mais). São, ao contrário, próprios (tdia) das
disciplinas particulares os entimemas e silogismos que partem
de premissas que pertencem a um único gênero de objetos, por
exemplo os objetos da física ou os da ética (1358 a 1-21)11.
Neste ponto, Aristóteles acrescenta:
Aqueles [isto é, os entimemas e os silogismos basea­
dos nos lugares-comuns] não tornaram ninguém sá­
bio sobre nenhum gênero, pois não tratam de nenhum
objeto; graças a estes, ao contrário [isto é, os
entimemas e os silogismos próprios de cada discipli­
na], quanto melhor alguém os escolha, fará, sem que
se aperceba disso, uma ciência diferente da dialética

11. Não me parece possível interpretar os “próprios” como luga­


res, segundo a tradução de A. Plebe (Aristóteles, Retórica, Bari, Laterza,
1961, p. 13), porque o texto menciona ídia no neutro.

183
A s razões de Aristóteles

e da retórica; no caso de ter, com efeito, deparado


com os princípios, ela não será mais a dialética nem
a retórica, mas aquela ciência da qual ele possui os
princípios (1358 a 21-26).
Donde se segue a evidente diferença entre dialética e retó­
rica, por um lado, e ciências ou artes particulares, por outro: as
primeiras se servem de lugares-comuns, as segundas de verda­
deiros princípios; por isso, se um retor escolhe tão bem as
premissas dos seus entimemas de modo a deparar com verda­
deiros princípios, ele, sem aperceber-se disso, não faz mais
retórica, mas ciência. Qualquer superposição entre retórica e
ciência, de um ponto de vista objetivo, é desse modo evitada:
ela pode ter lugar apenas subjetivamente, mas por ignorância.
Enfim, na Retórica I 4, Aristóteles volta às relações entre
retórica e política. Nela ele iniciou a análise do primeiro género
de discursos retóricos distinguido na Retórica I 3, isto é, o
“deliberativo”. Ele diz respeito a indicar ou não o bem e o mal
que dependem de nós, a propósito dos quais Aristóteles afirma:
Enumerar exatamente um a um e distribuir em espé­
cie aqueles [isto é, o bem e o mal] sobre os quais é
hábito discutir, e, além disso, defini-los quanto possí­
vel por meio da verdade, não se deve procurar na
presente ocasião, porque não é próprio da arte retó­
rica, mas de uma mais sábia e verdadeira, e porque
muito mais coisas também hoje são atribuídas a ela
em relação às análises que lhe são próprias; isso,
com efeito, que também anteriormente procurou-se
dizer, é verdadeiro, ou seja, que a retórica, por um
lado, é composta tanto pela ciência analítica (analytiké
epistém e) como pela política concernente aos
caracteres, e, por outro, é semelhante tanto à dialética
como aos discursos sofísticos. Contudo, quanto mais
alguém se esforce para construir a dialética ou esta
[a retórica] não como capacidades (dynámeis) mas

184
A retórica

como ciências (epistémas), destruirá, sem que se aper­


ceba disso, sua natureza ao passar a construir ciên­
cias que têm por objeto coisas reais (prágmata), em
vez de apenas discursos. No entanto, aquelas coisas
que é útil distinguir, e que posteriormente deixam
possibilidade de investigação para a ciência política
(politiké epistéme), falemos sobre elas ainda (1359 b
2-18).
Aristóteles, aqui, antes de tudo confirma a identidade par­
cial de conteúdo, por um lado, entre a retórica e a política
(porque as primeiras duas espécies de pisteis referem-se aos
caracteres do orador e às paixões dos ouvintes), e, por outro,
entre a retórica e a dialética (porque a terceira espécie de pisteis
refere-se à verdadeira demonstração e à demonstração aparen­
te) (veja-se esquema 2), indicando, porém, a dialética com a
expressão “ciência analítica”, talvez porque se trate da teoria
dos silogismos em geral, isto é, seja dos demonstrativos, seja
dos propriamente dialéticos, seja dos erísticos. Confirma ainda
aquela que denominamos analogia estrutural entre a retórica,
por um lado, e a dialética e a sofística, por outro, mais preci­
samente entre a “boa” retórica e a dialética, e entre a “má”
retórica e a sofística (veja-se esquema 1). Mas em seguida
acrescenta uma nítida distinção entre a retórica e a dialética,
por um lado, e as verdadeiras ciências, inclusive a política, por
outro: as primeiras são simples “capacidades”, mais precisa­
mente capacidades de fazer discursos, enquanto as ciências são
conhecimentos de coisas reais. Aqui se manifesta aquilo que foi
denominado caráter “poiético”, isto é, produtivo, que pertence
à categoria do “fazer”, próprio da retórica12 e, acrescentaria,

12. Cf. J. Croissant-Goedert, “La classification des sciences et la


place de la rhetorique dans l’oeuvre d’Aristote”, in Actes du X I Congris
International de Philosophie, Amsterdam-Louvain, 1954, XIV, pp. 269-
275.

185
A s razões de Aristóteles

também da dialética13. Ao mesmo tempo, manifesta-se o caráter


propriamente “científico” da política, que é “ciência” em todos
os sentidos, malgrado seus limites quanto à exatidão assinala­
dos por Aristóteles na Ética a Nicômaco I 1, que não se deve
confundir, de nenhum modo, com a “sabedoria” (phrónesis),
sobre a qual Aristóteles, na Ética a Nicômaco VI 5 e 8, afirma
explicitamente que não é ciência.
Concluindo, por meio das passagens que citamos fica claro
como a retórica, mesmo sendo uma forma de racionalidade
especificamente diferente da ciência, é, contudo, estruturada
também ela por argumentações, em particular por argumenta­
ções dialéticas, o que não apenas lhe confere um caráter “téc­
nico” preciso, mas permite-lhe, em alguma medida, aproximar-
-se da verdade e, por isso, a faz ser algo profundamente dife­
rente seja do puro ornamento exterior do discurso, seja da vã
tagarelice, à qual foi reduzida, respectivamente no melhor e no
pior dos casos, por uma mentalidade moderna que assumiu a
matemática como único parâmetro com o qual medir a validade
dos discursos.
No complexo da teorização aristotélica, ciência e inteli­
gência, sapiência e sabedoria, arte, dialética e retórica, resul­
tam, assim, ser uma série extremamente rica de formas de
racionalidade (à qual corresponde toda uma série de “deforma­
ções”: sofística, erística, falta de arte, má retórica), dotadas de
diferentes graus de exatidão, de rigor ou de “precisão”, mas
todas igualmente caracterizadas pelo argumentar. Esta é a ati­
tude própria daquele que está disposto a dar razão do que afir­
ma, estabelecendo, desse modo, uma comunicação com os outros
e submetendo-se, por isso, à avaliação, ao exame crítico por

13. Isso, aliás, já foi notado por F. Ravaisson, Essai sur la


Métaphysique d ’Aristote, I, Paris, 1837, pp. 241-242, e por E. Weil,
“La place de la logique dans la pensée aristotélicienne”, in Revue de
M étaphysique et de M orale, 56: 283-315, 1951.

186
A retórica

parte dos outros. Ela parece ser o traço comum a todas as


formas de racionalidade anteriormente consideradas e, por isso,
a característica distintiva da própria racionalidade, isto é, do
lógos, que, por sua vez, é a característica distintiva da huma­
nidade. O fato de que tais formas ou “caminhos da razão”
sejam ainda hoje amplamente praticados (na ciência, na filoso­
fia, na política, nos debates judiciários etc.), como se poderia
facilmente documentar, deveria, ao menos, servir de obstáculo
para as demasiado rápidas generalizações ou reduções, hoje em
voga, da racionalidade, por um lado, ao cálculo lógico exclu­
sivo e, por outro, ao “pensamento fraco”.
f■

ndice de autores

A Dionísio 183
Dionisiodoro 168
Anaxagoras 61, 77, 107, 147 Dioniso 166
Antifonte 67 Dome, H. 74
Ares 166 Düring, Ingemar XII, •74
Aubenque, Pierre XII, XIII, 153

B
Eléia, Zenão de 19, 32, 33, 36,
Bacon, Francis X, XI, 3 82, 103
Balme, D. M. 74 Empédodes 27,61, 77, 107,167
Baumgarten 13 Espeusipo 90, 106, 107
Bergson, H. 14 Espinosa, B. 13
Bien, Gunther XV, 141, 142 Eudides 7, 10
Boécio 13 Eudoxo 10, 11
Bubner, Rüdiger XV, 142, 143 Eutidemo 168
Burnet, John 141, 142

C
Feréddes 107
Cálias 160, 161 Feuerbach 65
Crane, R. S. XV Feyerabend, Paul XV
Filodemo 169
D
Demócrito 54
Derrida, Jacques XV Gadamer, Hans Georg XIV, XV,
Descartes, R. X, XI 109, 143, 163

189
A s razões de Aristóteles

Galilei, G. XI, XV Maritain, J. 14


Görgias 167, 168, 169 Marx, K. 65
Grant, Alexander 141, 142 McKeon, Richard P. XV
Grilo 169 Melisso 54, 71
Michelet, K. L. 108
H Moraux, P. 51, 72, 74
Hegel, W. F. XI, XII, 13, 44, 45,
65, 85, 113, 141, N
Heidegger, M. XV, 14, 100
Hennis, Wilhelm XV, 141, 142 Natorp, P. 108
Hesiodo 105, 107, 125 Nietzsche, F. XV
Höffe, Offried 120, 141, 142 Notker 13
Homero 105, 107, 114
Husserl 14, 100 O

I Olson, Eider XV
Orfeu 107
Isocrates 167, 169, 170 Owen, G. E. L. IX, XIII, 15, 60,
133
J
Jaeger, Werner XII, 108 P
Parmênides 32, 33, 36, 37, 54,
K 60, 64, 82, 83, 90, 107
Kant, I. 13, 58, 103, 104, 111, Perelman, Chai'm XIV, 170
151, 154 Péricles 146, 147
Kepler 108 Pisistrato 182
Kierkegaard, S. 65 Platão 4, 9, 10, 32, 33, 36, 37,
Kuhn, Helmut 141, 142 46, 60, 64, 71, 76, 77, 80, 82,
83,84,90,106,107,108,109,
L 110, 111,124,129,130, 144,
Lampsaco, Anaximenes de 168 167, 168, 169, 170
Le Blond, Jean Marie XII, XIII, 52 Plutarco 108
Leibniz X Pöggeler, Otto 141, 142
Lyotard, Jean Francois XV Popper, K. IX

M R
Magos 107 Ravaisson, J.-G.-F. 108, 186
Mansion, dom Augustin XII, Ritter, Joachim XV
XIII, 53 Rodes, Andronico de 43

190
Indice de autores

Ross, sir David XII, XIII, 9, 19, W


38
Wieland, Wolfgang XIII, 46, 53,
65, 68
S Wright, G. H. von XV, 152, 155
Simplicio 38 Wittgenstein, L. 152
Socrates 30, 32, 33, 36, 37, 83,
88, 124, 146, 160, 161, 182 X
Xenocrates 9, 90, 106, 107, 108
T Xenofonte 169
Tales 46, 147
Teeteto 10
Z
Teödotos 168, 170 Zabarella, Jacopo XI, 3, 9
Trendelenburg 65 Zeller, Eduard 45

191

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