FOUCAULT Michel. Nietzsche Freud e Marx

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO — UFOP

INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

O CORPO EM NIETZSCHE A PARTIR DE UMA


LEITURA DA “GENEALOGIA DA MORAL”

Verônica Pacheco de Oliveira Azeredo

Ouro Preto
2008
VERÔNICA PACHECO DE OLIVEIRA AZEREDO

O CORPO EM NIETZSCHE
A PARTIR E UMA LEITURA DA
“GENEALOGIA DA MORAL”
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Ouro Preto para obtenção do grau de Mestre
em Filosofia.
Orientador: Profº Dr. Olímpio José Pimenta Neto

Ouro Preto
2008
A993c Azeredo, Verônica Pacheco de Oliveira.

O corpo em Nietzsche a partir de uma leitura da “genealogia da moral”


[manuscrito] / Verônica Pacheco de Oliveira Azeredo. - 2008.
143f.

Orientador: Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto.


Instituto de Filosofia Artes e Cultura.

Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.

1. Corpo - Teses. 2. Criação - Teses. 3. Estética - Teses. 4. Homem -


Teses I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título.

Catalogação: [email protected]
BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________
Profº. Dr. Hélio Lopes
Doutor em Filosofia. Professor Adjunto da UFOP

_____________________________________________________________
Profº. Miguel Angel de Barrenechea
Doutor em Filosofia. Professor Associado da UNIRIO

______________________________________________________________
Profº. Dr. Olímpio José Pimenta Neto (Orientador)
Doutor em Filosofia. Professor Adjunto da UFOP
AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, aos meus pais que, infelizmente, não se encontram mais
presentes em minha caminhada, mas foram essenciais para que eu pudesse caminhar.
Agradeço, em particular, ao meu pai por ter comprado livros e permitido que eu me
aproximasse deles. À minha mãe por nunca ter desistido de mim e que, com sua sabedoria,
me ensinou a não desistir da vida.

Agradeço às minhas irmãs que torceram, rezaram e acompanharam todo o processo


e que sempre me acolheram. Sem vocês, com certeza, tudo seria muito mais difícil. À
minha amiga Simone, pela presença constante, por, incansavelmente, desejar e contribuir
para o sucesso dessa pesquisa e por todos os cuidados demonstrados durante esses anos. À
Graça Pinho, pela revisão desse trabalho e por todas as orientações.

Ao professor Dr. Rodrigo Duarte que, além das lições de estética, também
contribuiu, substancialmente, para o meu projeto e, com profissionalismo e generosidade,
acompanhou-me até a porta do mestrado. Á professora Iracema Macedo, por suas críticas e
sugestões que proporcionaram um maior amadurecimento e melhoria do projeto.

Sou profundamente grata ao Professor Dr. Olímpio Pimenta, primeiramente, pela


sua admiração visível por Nietzsche e pela sua contribuição para que eu me interessasse por
conhecer com maior profundidade esse grande pensador. Por seus ensinamentos, por não
ter me assustado em momento algum, pelo contrário, por ter me incentivado a cada
orientação. Pela sua orientação competente, criteriosa, crítica e, ao mesmo tempo, generosa
que, com maestria, conduziu essa inquietante e prazerosa pesquisa.

Antecipadamente, quero agradecer aos Professores Dr. Miguel Angel de


Barrenechea e Professor Dr. Hélio Lopes por aceitarem o convite para participarem da
banca.
Aos meus filhos quero me desculpar por toda a minha ausência, meu recolhimento e
impaciência. Quero muito agradecê-los por terem me incentivado, por perguntarem como
andava o mestrado e a escrita. Por ouvirem meus comentários que talvez não fossem tão
interessantes para eles, mas, como sabiam que era para mim, ouviram.

Ao Eduardo, pelo incentivo permanente, pela sua demonstração de amor,


companheirismo e por não medir forças para que eu pudesse realizar mais essa etapa.
Quero dizer-lhe que serei, permanentemente, grata e que sua presença em minha vida faz
com que os meus dias tenham mais significados.
DEDICATÓRIA

Aos meus pais e meu irmão por deixarem marcas indeléveis em minha vida.

Ao Guilherme, Gustavo e Ive por me ensinarem a ser mãe e contribuírem para meu
crescimento e encantamento pela vida.

Ao Eduardo, meu amor, pelo carinho, companheirismo e demonstração permanente de


amor e confiança.
Notas Preliminares

Os títulos dos livros de Nietzsche serão abreviados da seguinte maneira:

A Gaia Ciência – GC

Aurora – A

Assim Falou Zaratustra – AFZ

Cinco Prefácios Para Cinco Livros Não Escritos – CPCL

Genealogia da Moral – GM

O Nascimento da Tragédia – NT

Segunda consideração intempestiva – SCI

Vontade de Potência - VP
RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo analisar a perspectiva nietzschiana sobre


o corpo, para compreender a relação do homem contemporâneo com seu corpo, buscando
esclarecer o entendimento estético do corpo hoje. A pesquisa tem como ponto de partida a
Genealogia da Moral. Inicialmente, é apresentada a reflexão socrático-platônico, que
perpassa o pensamento ocidental e se fundamenta nas concepções dualistas, que
privilegiam a alma e desvaloriza o corpo, que é considerado como parte inferior. Em um
segundo momento, investiga-se a interpretação de Nietzsche acerca do corpo, que se
contrapõe a essa interpretação, afirmando que as análises dualistas possuíam interesses
religiosos e morais, além de contribuírem para a negação do corpo. Para o filósofo, o corpo
é considerado o fio condutor para a análise de quaisquer questões filosóficas e o erro da
filosofia tradicional foi a exclusão do corpo. Portanto, o corpo deve ser afirmado, pois se
apresenta como uma vivência. Finalmente, é focalizada a arte em Nietzsche, sua relação
com o corpo, a existência e o processo de criação. Nietzsche afirma que o corpo revela os
instintos fundamentais da natureza, qualquer pensamento ou doutrina que negue,
desqualifique ou desconsidere a relação intrínseca entre os instintos, a natureza, a força, a
saúde e a vida, são consideradas antinaturais e decadentes. É, portanto, necessário
reconhecer o corpo, pois é nele e com ele que o ser humano se relaciona, interpreta, cria e
vive no mundo. Analisou-se o conceito de corpo na contemporaneidade com o intuito de
demonstrar que, embora exista um apelo pelo belo, esse corpo é tratado como coisa, como
mercadoria. Por trás de um discurso favorável à beleza, à saúde e ao cuidado,
permanentemente, estão ocultos interesses, principalmente o econômico. No culto ao corpo,
se revelam ideologias políticas, econômicas, éticas e estéticas. Daí, inferimos que o corpo
do homem contemporâneo recebe um tratamento ambíguo, pois é valorizado e mostrado,
mas termina por ser explorado, violentado e banalizado. Conclui-se, portanto, que a estética
e a ética não são desvinculadas da sociedade e, em cada época, a cultura educa os corpos,
adaptando-os para empregos distintos, comprovando, pois, o pensamento de Nietzsche.

Palavras-chave: corpo, criação, vida, estética, homem contemporâneo.


ABSTRACT

This thesis aims to analyze the prospect nietzschiana on the body, to understand the
relationship of contemporary man with his body, seeking to clarify the aesthetic
understanding of the body today.

The research has as the starting point Moral Philosophy. Initially, there is a reflection
socrático-platônico, which contains western thought and is based on dualistic concept,
which favors the soul and weakens the body, which is considered as the bottom.

In a second moment, research is the interpretation of Nietzsche on the body, which is


opposed to that interpretation, saying that the dualistic analyses had moral and religious
interests, and contribute to the denial of the body.

For the philosopher, the body is considered the guiding principle for the analysis of any
philosophical questions and the traditional philosophy error was the exclusion of the body.
Therefore, the body must be said, because presents itself as an experience.

Finally, is focused the art on Nietzsche, it relationship with the body, the existence and
creation process. Nietzsche says that the body shows the basic instincts of nature, any
thought or doctrine that denies, disqualifies or disregard the intrinsic relationship among the
instincts, nature, strength, health and life, are considered unnatural and decadent.

It is, therefore, necessary to recognize the body, because is into it and with it that the human
being is relates, interpret, create and live in the world. Your analysis is the concept of the
body in contemporaneity in order to demonstrate that, although there is an appeal by the
beautiful, the body is treated as something as good.

Behind a speech in favor of beauty, health and care, permanently, are hidden interests,
mainly the economic. In the cult of the body, it is reveal political ideologies, economic,
ethical and aesthetic. Hence, infer that the body of contemporary man receives a treatment
ambiguous, as it is valued and shown, but ends up being exploited, violated and
commonplace.

It follows, therefore, that the aesthetics and ethics are not unlinked of society and, in each
era, culture educates the bodies, adapting them to different jobs, showing therefore the
thought of Nietzsche.

KEYWORDS: body, creation, life, aesthetics, contemporary man


SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................................... 12
Capítulo I
1. OS NEGADORES DO CORPO...................................................................................................... 18

1.1. As bases do dualismo corpo-alma no “Fédon” de Platão............................................................ 18


1.2. A história da má compreensão do corpo....................................................................................... 27

1.2.1. O procedimento genealógico e a investigação sobre o corpo................................................... 29


1.2.2 – Os ideais ascéticos e os negadores do corpo........................................................................... 45
Capítulo II
2. A AFIRMAÇÃO DO CORPO....................................................................................................... 54
2.1 – Fidelidade à terra, a grande saúde, amor fati e coisas afins...................................................... 58
2.1.1. Fidelidade à Terra....................................................................................................... 60

2.1.2 – A Grande Saúde...................................................................................................................... 68


2.1.3 – Amor fati .......................................................................................................................... 80

Capítulo III
3. O CORPO HOJE................................................................................................................................ 89
3.1. Nietzsche e a justificação estética do mundo.................................................................................. 90
3.2. O culto ao corpo.............................................................................................................................. 97
3.2.1. A banalização do corpo ou: a modificabilidade do corpo......................................................... 98
3.2.2. O sujeito e o corpo........................................................................................................................ 104
3.2.3. O corpo e a lógica do consumo.................................................................................................... 107
3.2.4. O corpo idealizado na contemporaneidade.................................................................................. 111
3.3. Nietzsche, idealização e niilismo............................................................................................... 124
4. Conclusão...................................................................................................................................... 128
5.Referências.......................................................................................................................................... 136
12

INTRODUÇÃO

A definição dos horizontes de nossa pesquisa se deu em função da convicção de que


uma análise da reflexão sobre o corpo em Nietzsche, tendo por ponto de partida a
Genealogia da Moral, é importante para entendermos como o corpo foi conceituado pela
tradição filosófica e como a cultura ocidental adotou uma perspectiva tributária dessa
conceituação, passando a vivenciá-lo de uma maneira que, a pretexto de sua valorização,
termina por depreciá-lo. Ainda em nossos dias, um entendimento idealizado do corpo
parece contribuir para que o julgamento estético acabe funcionando como base para o
controle e a submissão. Existe um apelo a respeito do corpo que sugere que ele tenha uma
disponibilidade permanente para a fluidez e para a modificabilidade. A publicidade o
explora através da sedução, do prazer sensorial, cultuando-o em nome do lucro e a ciência
também busca seduzi-lo através da promessa de intervenções que o tornariam perfeito.

Por sua vez, Nietzsche entende que todo valor e sentido são doados ao mundo por
nossas interpretações. Segundo ele, uma filosofia afirmativa não se esquiva da procura por
tudo que é estrangeiro e problemático na existência, deixando de lado as elaborações
dogmáticas que simplificam nosso entendimento acerca de nós mesmos. Dessa forma sua
filosofia permite investigar o que se esconde por trás das pretensas verdades eternas e
absolutas, refratárias à pluralidade do mundo e aos seus desafios mais difíceis. Ao analisar
o corpo a partir de Nietzsche, consideramos ser possível explicitar os signos e os valores
criados desde o advento do dualismo corpo-alma, dissociando nossa relação com ele das
idealizações de cunho metafísico, que inclusive parecem implícitas nas apreciações estética
e científica já aludidas.

Para Nietzsche, a filosofia não foi até agora mais do que uma má interpretação do
corpo e um mal-entendido sobre o corpo. Diz o filósofo: “Por trás dos mais altos juízos de
valor, pelos quais até agora a história do pensamento foi guiada, estão escondidos mal-
entendidos sobre a índole corporal, seja de indivíduos, seja de classe, ou de raças inteiras.”
13

(NIETSZCHE, GG, 2001:11) No entendimento nietzschiano é necessário deslocar a


tradição filosófica centrada num eixo racional metafísico, propondo um novo sentido para a
experiência do corpo.

A má compreensão do corpo foi produzida pelo discurso moral travestido de


metafísica, religião e ciência que, por sua vez, constituem-se como detratores do corpo.
Segundo Nietzsche, a moral que cultua os valores ditos superiores sempre defendeu a
existência de uma realidade transcendente absoluta, capaz de trazer consigo uma “verdade
em si”, o “bem em si” e o “mal em si”. Os conceitos metafísicos oriundos do platonismo
influenciaram substancialmente a cultura e os comportamentos do homem no ocidente. E
com a superioridade da razão que eles veiculam criou-se a ilusão de que o homem se
salvaria das realidades temporais, múltiplas e não racionais fundadas em um princípio
primeiro, imutável, racional e verdadeiro. Desse modo foi criado o conceito de Deus, como
o verdadeiro, o absoluto e tudo que é vida e força no mundo e no homem passou a ser
desvalorizado.

Na terceira dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche afirma que o ideal


ascético construiu ilusoriamente um além mundo dotado de uma verdade em si e, em
contrapartida, a vida, o corpo e o “pathos” foram negados. No mundo ideal, projeta-se a
garantia de vida eterna, portanto há a esperança de preservação da vida, mas, no mundo
em que vivemos, a vida é negada. Para Nietzsche, a vida é vontade de potência, é luta
permanente, é combate entre forças e, portanto, só pode se expandir através do exercício
das forças. Ao negar o corpo e os instintos, o ideal ascético está negando o combate,
negando a vida enquanto vontade de potência.

Em Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche afirma que “viver é essencialmente,


apropriação, violação, domínio de tudo que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza,
incorporação e pelo menos o mais elementar de todos os casos de exploração”. Referencia
o filósofo, a vontade de potência predomina na existência e toda interpretação é sempre a
imposição de uma perspectiva. É o embate entre as forças que introduz na experiência
todas as estimativas de valor.
14

É o desprezo pelo corpo e pelo mundo que Nietzsche encontra na raiz do ideal
ascético, componente principal daquilo que impregna os “homens do conhecimento”.
Nietzsche considera que não só a religião é alimentada pelos ideais ascéticos, mas também
a filosofia e a ciência, no que elas têm de devoção à verdade. Segundo ele, esse ideal, com
o objetivo de curar o sofredor através da promessa metafísica de outros mundos melhores
do que este, de preservar a vida já como anti-vida ou como deslocamento da vida para um
ideal alheio às verdadeiras condições de existência, é o que une o filósofo, o sacerdote e o
cientista.

Nietzsche afirma que nos ideais ascéticos a existência é negada, o corpo e os


instintos são desvalorizados e a pretensa instauração de um conceito objetivo de verdade,
apoiado sobre o desvelamento das essências, contribui para a valorização de um mundo
transcendente. Segundo ele, o mais grave problema para a vitalidade da cultura teria
surgido aí: a sobrevalorização do espírito em detrimento do corpo.

O pensamento em torno do qual se peleja, é a valoração de nossa vida por parte


dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence,
“natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles
colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual se opõe, a
menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso
de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra
existência.(NIETZSCHE, GM, 1998: 106)

Diversamente da proposta do ideal ascético, admitimos com Nietzsche que a


plenitude da vida moral pode ocorrer a partir da perspectiva da existência imanente, desta
vida, de um fluir permanente, ao contrário da virtude na transcendência, no imutável, na
verdade. Segundo o filósofo, existir é responsabilidade do homem, não há justificativas de
cunho transcendente dignas de interesse. Não há nada, nenhuma questão ou nenhuma
produção, que não esteja vinculada às potências criadoras da natureza. Portanto, não existe
qualquer criação, idéia ou representação que não seja produto do corpo. Assim, o corpo não
pode ser entendido de forma isolada, independente do mundo ou como um objeto em meio
a outros objetos, mas deve ser compreendido como doador de sentido à realidade.
15

Nietzsche considera que o conhecimento pretendido pela filosofia tradicional está


voltado para o privilégio da razão em detrimento dos sentidos e da subjetividade. Na busca
dos filósofos para atingir suas condições ideais de existência e expandir plenamente seu
poder—seu “optimum”—, foi necessário que se repudiassem o corpo, a sensualidade, e o
conjunto da vida efetiva. O corpo é excluído da dimensão da racionalidade, como se não
participasse de modo algum do processo de pensar. A filosofia em sua história amarra-se a
uma concepção de razão separada da sensibilidade, como se temesse perder-se de seu
caminho até a verdade. O filósofo alemão afirma que pensar é antes de tudo uma função do
corpo, conseqüentemente não é possível, desincorporar-se para poder pensar.

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga,


perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento,
isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de
conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”,
conhecimento em si”; _tudo isso pede que se imagine um olho que não pode
absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as
forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem
estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem
sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer”
perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto
mais olhos diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”.(NIETZSCHE, GM,
1998: 109)

A crítica do filósofo a respeito da valorização excessiva do ideal de objetividade


implica que a dimensão corporal é fundamental para que a vida e o pensamento iluminem
reciprocamente sua condição múltipla, plural. Cada experiência ou afecção configura, faz
vir a ser um corpo, ou seja, define um possível e real campo de relacionamentos. Por outro
lado, cada corpo é um modo próprio de ser e de aparecer de uma possível afecção. É este
corpo, esta afecção, que organiza, que estrutura, que aponta a direção de uma existência
mais rica. Segundo Nietzsche, não há vontade livre do sujeito, essa vontade é apenas uma
crença errônea, que já está sendo transmitida há tanto tempo, que acabou por ser admitida
16

sem a devida cautela. A conceituação de um “eu pensante” e do livre arbítrio permitiu o


entendimento do sujeito, da racionalidade desvinculada do corpo e do espaço social.

Ao analisar o livro Para Além do Bem e do Mal, Giacóia (2005) sustenta que, no
aforismo 19, Nietzsche destitui a unidade do sujeito fundada na unidade da consciência,
recorrendo à critica da linguagem. Nessa investigação, Giacóia considera que Nietzsche
comprova a essencialidade do corpo e a impossibilidade de fragmentá-lo. O corpo é
movimento, consciente ou não, é vontade, é desejo, é impulso em direção à procura do
prazer e à fuga da dor. A vivência do corpo, enquanto movimento volitivo, enquanto
desejo permanente, enquanto vontade, enquanto insatisfação, que se reproduz ao infinito,
não é algo que representamos, mas algo que somos. E toda essa gama de movimentos que
constitui o nosso corpo e que se expressa nele, não passa necessariamente pela esfera da
consciência; passa, por exemplo, pelo domínio intracelular, pela relação dos diferentes
órgãos entre si, pelos movimentos involuntários e por todos aqueles outros investimentos
pulsionais, impulsivos.

Assim, para compreender como a corporeidade é manipulada e explorada cultural e


socialmente, contribuindo para que os “belos e perfeitos” corpos se tornem instrumentos de
controle e obediência, apostamos que é oportuno analisar as obras de Nietzsche, de modo a
que também uma abordagem alternativa do corpo mostre todas as suas possibilidades.

Em um primeiro momento, apresentaremos a reflexão socrático-platônico, marco


constituinte do pensamento ocidental, em que o corpo é considerado como uma parte
inferior do homem em relação à alma. Essa interpretação perpassa todo o pensamento
ocidental e encontra seu fundamento nas concepções dualistas, em que o homem é separado
em corpo e alma. Esse dualismo privilegia a alma; o corpo é desvalorizado e vinculado a
tudo que seria falho no homem, servindo, dessa forma, para o fundamento da
desvalorização e coisificação do corpo.
17

Nietzsche se contrapõe a essa interpretação, afirmando que as análises dualistas


foram permeadas por interesses religiosos e morais, além de contribuírem para a negação
do corpo e impedir que as forças exprimissem a vontade da natureza que,
conseqüentemente, despotencializaram o corpo. Nietzsche considera que o corpo é o fio
condutor para a análise das questões filosóficas. A filosofia nietzschiana concebe o corpo
como relação de forças em conflito e não separa corpo e alma. Para o filósofo, o erro da
filosofia tradicional foi a exclusão do corpo.

No segundo momento, procuraremos investigar a afirmação do corpo e a conquista


da grande saúde. Nietzsche considera que o corpo é o próprio do homem, seu lugar, sua
modalidade essencial. Para a compreensão dessa abordagem vamos analisar a fidelidade à
terra, a grande saúde, o amor fati e coisas afins, e as suas implicações valorativas para a
afirmação do corpo. Na ótica nietzschiana, a filosofia apresenta-se, fundamentalmente,
como uma vivência.

Finalmente, no terceiro capítulo, faremos uma análise sucinta sobre a arte em


Nietzsche, sua relação com o corpo e a existência. Investigaremos a valorização do corpo
no pensamento nietzschiano, o processo de criação e o desprezo pelos instintos que é de
natureza inconsciente, portanto instintiva e o desprezo pelos instintos. Posteriormente,
trataremos da relação do homem contemporâneo com seu corpo, enfatizando o conceito
estabelecido de belo e seu comportamento com o corpo.
18

CAPÍTULO I

1. OS NEGADORES DO CORPO

“[...] freqüentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de


modo geral não teria, sido apenas uma interpretação do
corpo e uma má compreensão do corpo”.
(NIETZSCHE, GC, 12)

1.1 - As bases do dualismo corpo-alma no “Fédon” de Platão

A compreensão do corpo no Ocidente passa por uma conceituação cuja origem está
no pensamento socrático-platônico, segundo o qual o corpo é considerado parte inferior do
homem em relação à alma. No diálogo Fédon 1 é discutida a relação entre o corpo e alma.
Para Sócrates2, o corpo é um meio pelo qual a alma se materializa, uma vez que esta
depende dele para se expressar. Após a morte o corpo fenece e a alma permanece, pois é
imortal, é libertada e continua sua existência. O corpo, ao contrário, é totalmente
dependente da alma, sua existência só é possível porque ela existe.

1
As obras de Platão podem ser classificadas seguindo a periodização seguinte: Juventude- Apologia
de Sócrates — defesa de Sócrates; Críton; Cármides; Crátilo; Eutidemo; Eutifron; Górgias; Hípias menor;
Hípias maior; Ion; Laques; Lisis; Menexeno; Mênon; Protágoras.
Maturidade- Banquete; Fédon; Fedro; A República; Parmênides; Teeteto.
Velhice: Crítias; Filebo; Leis; Político; Timeu.
São também consideradas como pertencentes ao corpus platônico três cartas: a Terceira, a Sétima e a
Oitava. Diálogos como Alcibíades I e II, Anterestai, Clítofon, Hiparco, O filósofo, Mino e Teages, bem como
outras dez cartas que permanecem como obras de autenticidade duvidosa.
E Fédon foi escrito no século IV, e como ateniense, Platão encontrava-se decepcionado com sua
cidade.
2
A questão das relações entre Sócrates e Nietzsche pode ser estabelecida a partir de suas respectivas
conceituações do corpo. Sócrates sustenta uma concepção dualista: corpo e alma. Nietzsche interpreta o corpo
como o próprio homem, seu lugar, sua modalidade essencial,e assim corpo e alma não se separam.
19

De acordo com o personagem Sócrates no diálogo referido, o homem é pensado a


partir das seguintes dicotomias: corpo-alma, sentimento-razão, cópia-realidade,
esquecimento-memória, mortalidade-imortalidade. O que é verdadeiro está vinculado à
alma e tudo que é falho, vincula-se ao corpo. Esse dualismo privilegia a alma na qual,
segundo Platão estão contidas a razão, a imortalidade, a memória e a realidade. O corpo é
desvalorizado, pois é nele que se encontram a mortalidade, a sensibilidade, o
esquecimento, a cópia.

A conversação relatada no livro em estudo ocorre horas antes da morte de Sócrates,


que fora condenado e aguardava sua execução, efetivada através da ingestão de cicuta.
Durante o intervalo entre a sentença e a execução de sua pena, Sócrates e seus discípulos se
ocupam em refletir sobre a morte, a imortalidade da alma, a separação do corpo e da alma,
a pré-existência da alma em relação ao corpo, a Filosofia como preparação para a morte, o
destino da alma no cosmo, a diferença entre mundo sensível e mundo inteligível. O
narrador era Fédon, discípulo de Sócrates.

Para o filósofo grego, o corpo é considerado como a parte inferior do homem. Por
seu caráter material, é apenas instrumento de prazer e entrave para a aquisição do
conhecimento. Ele é conhecimento aparente do mundo e, portanto, não é verdadeiro. Os
sentidos constituem obstáculos para a alma alcançar o conhecimento plenamente e para que
possa atingí-lo é necessário o afastamento dos sentidos:

_Não é principalmente pelo raciocínio que a alma chega a ver, se chega a ver,
claramente manifesto algo do que os seres são na realidade?

_Sim.

_E não raciocina melhor quando não é perturbada pela vista, nem pela audição,
nem pela dor, nem pela volúpia e, encerrada em sim mesma, deixa que o corpo
lide com elas sozinho sem ter relação alguma com ela, dentro do possível, e se
dedica ao que é, para conhecê-la? (PLATÃO, 2004:126)
20

As coisas sensíveis são cópias (sombras) das idéias3 que a alma contemplou no
mundo inteligível. Quando esta reencarna num corpo, traz consigo recordações destas
formas (idéias inatas), transformando deste modo toda a aprendizagem em uma recordação.
O verdadeiro conhecimento ultrapassa o domínio das aparências sensíveis, devendo,
portanto afastar a alma dos sentidos e concentrar-se em si própria para descobrir o Ser,
aquilo que é.

_Ao contrário, recordai-vos, quando está em si mesma e analisa as coisas por si


mesma, sem se valer do corpo, encaminha-se para o que é puro, eterno, imortal,
imutável e, por ser da mesma natureza, mantém-se unida a ele tanto quanto lhe é
possível. Aqueles descaminhos se interrompem, ela é sempre a mesma, porque
está ligada ao que não muda e participa de sua natureza, preservando assim
sempre sua identidade e sua maneira de ser. (PLATÃO, 2004: 145)

Platão defende a superioridade da alma em relação ao corpo, uma vez que somente
ela pode atingir a verdade — quando se isola e se separa do corpo, que carrega em si o
erro, pois é cópia, é incompletude. Ele afirma que através do corpo não é possível
apreender as realidades essenciais e sim por meio do raciocínio e do pensamento puro, sem
recorrer aos sentidos:

— Assim, de todas essas coisas que acabamos de falar — disse Sócrates —, é


evidente que o trabalho do filósofo consiste em se ocupar mais particularmente
que os demais homens em afastar sua alma do contato com o corpo [...] Mas o
que diremos das aquisições da inteligência? O corpo é ou não é um obstáculo,
quando se associa com esta análise? [...] Quando, então — prosseguiu Sócrates
—, a alma encontra a verdade? Vimos que enquanto a procura com o corpo é
enganada por ele, que a induz ao erro. [...] E não raciocina melhor quando não é
perturbada pela vista, nem pela audição, nem pela dor, nem pela volúpia e,
encerrada em si mesma, deixa que o corpo lide com elas sozinho e sem ter
relação alguma com ela, dentro do possível, e se dedica ao que é, para conhecê-
la? (PLATÃO, 2004: 123)

3
Segundo FERRO e TAVARES, as Idéias em Platão, não são apenas princípios ontológicos, mas
também princípios lógicos, modelos de conhecimento da multiplicidade e causas da existência dessa
pluralidade. Não são imagens das coisas sensíveis, mas a verdade autêntica, existem em si. Dessa forma, o
Belo, o Bom, a Grandeza, a Proporcionalidade existem em si. FERRERO, Mário e TAVARES, Manuel.
Análise das obras Górgias e Fédon de Platão. 2ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999.
21

Nessa concepção, o corpo confunde a alma impossibilitando seu acesso à verdade,


pois, além de ser um instrumento do prazer, ocupado com paixões, frivolidades, riquezas,
trazem outras perturbações como a dor e as doenças. Ele é intruso na atividade de reflexão,
desconcerta, torna-nos incapazes de distinguir a verdade.

[...] Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não
ser afastando-nos do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente
necessário, sem deixar que nos atinja com sua corrupção natural, e conservando-
nos puros de todas as suas imundícies até que o deus venha nos liberar. Dessa
forma, livres da loucura do corpo, conversaremos, como é correto, com homens
que usufruirão a mesma liberdade e conheceremos por nós mesmos a essência
das coisas, e talvez a verdade não seja mais do que isso. (PLATÃO. 2004: 128)

O diálogo tem início no momento em que Sócrates refere-se ao suicídio como algo
não permitido, pois para ele, “os deuses cuidam dos homens”(PLATÃO, 2004:122), dos
quais detém, em última análise, a posse. Se os homens pertencem aos deuses e estão sob
sua tutela não é dada a eles a escolha entre viver ou morrer. O suicídio representa um ato
violento cometido contra si, já que a vida pertence aos deuses e apenas a eles cabe conceder
a morte aos homens; caso contrário, haverá punição para quem cometer tal violência. “O
suicídio é, portanto um ato condenável porque ninguém pode destruir o que lhe não
pertence.”(FERRO e TAVARES, 1999:104-105)

Cebes, então, intervém e se dirige a Sócrates questionando o fato de que, se a morte


naquelas circunstâncias, era algo não permitido, por que o filósofo deveria facilmente
consentir em morrer, conforme demonstrava seu comportamento? Se somos propriedade
dos deuses, por que não nos sentimos contrariados ao sair da tutela divina e ficarmos a
mercê de nós mesmos? “De onde concluo, Sócrates, exatamente o contrário do que dizias e
creio que os sábios se atormentariam ao morrer, ao passo que os loucos ficariam
contentes”.(PLATÃO, 2004:123) Símias, em acordo com as palavras de Cebes, questiona
como um homem plenamente sábio poderia empregar-se nisso, pois ao morrer deixaria de
estar sob a tutela de seus deuses.

Sócrates então realiza o elogio da morte, alegando ser esta uma maneira de estar
mais próximo dos deuses e dos homens bons: “[...] morrerei tendo a esperança de que existe
alguma coisa depois desta vida e de que, de acordo com a antiga tradição, os bons serão
mais bem tratados que os maus”. (PLATÃO, 2004:123)
22

Ainda no “Fédon”, Sócrates argumenta em relação à morte, defendendo-a como


uma espécie de libertação para a aquisição do conhecimento essencial e, provando a
imortalidade da alma:

Os homens não sabem que os verdadeiros filósofos trabalham durante toda sua
vida na preparação de sua morte e para estar mortos; por ser assim, seria ridículo
que, depois de ter perseguido este único fim, sem descanso, recuassem e
tremesse diante da morte. (PLATÃO,2004: 124)

Com isso Platão afirma que o filósofo deve afastar-se do corpo, dos desejos, dos
prazeres físicos, pois seu verdadeiro objetivo é ocupar-se da alma. Essa separação deve
ocorrer para que a aquisição do conhecimento seja plena, uma vez que o corpo é obstáculo
para se chegar à verdade. E como a alma é imortal, segundo o filósofo, o conhecimento
permanecerá, não há, portanto, o que temer sobre a morte:

_E o conseguirá mais claramente quem examinar as coisas apenas com o


pensamento, sem pretender aumentar sua meditação com a vista, nem sustentar seu
raciocínio por nenhum outro sentido corporal; aquele que se servir do pensamento
sem nenhuma mistura procurará encontrar a essência pura e verdadeira sem o
auxílio dos olhos ou dos ouvidos e, por assim dizê-lo, completamente isolado do
corpo, que apenas transtorna a alma e impede que encontre a verdade. Se alguém
pode conhecer as essências das coisas, não é precisamente este de que acabo de
falar?

-Tens razão, Sócrates, e falas admiralvelmente.

_Deste princípio _prosseguiu Sócrates _ não se segue que os filósofos precisam


pensar e dizer: a razão deve seguir apenas um caminho em suas investigações,
enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais
possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade.[...] Está demonstrado, ao
contrário, que , se desejamos saber realmente alguma coisa, é preciso que
abandonemos o corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer.
Somente então usufruiremos da sabedoria pela qual estamos apaixonados, isto é,
depois de nossa morte de maneira alguma no decorrer da vida. (PLATÃO,
2004:127-128)

O primeiro argumento levantado por Sócrates para demonstrar a tese da


imortalidade da alma é que o devir faz-se através da sucessão cíclica de coisas contrárias.
23

Assim, os contrários sucedem-se alternadamente: do pequeno se faz o grande, do grande o


pequeno; do sono sucede à vigília, a decomposição à composição, como a morte se sucede
à vida e esta àquela:

_E entre esses dois contrários não existe sempre um nexo, gerações de um ao


outro e do outro ao um? Entre uma coisa grande e outra menor, o nexo ou
relação é o crescimento e a diminuição. Chamamos a uma coisa crescer e à
outra, diminuir.

_De fato.

_Isso é suficiente. Obtivemos assim o princípio geral da geração, segundo o qual


das coisas contrárias nascem aquelas que lhes são opostas.
(PLATÃO,2004.:133)

De acordo com o exposto, a existência terrena seria precedida de uma vida anterior
oposta à morte (teoria da metempsicose)4. Neste processo é, contudo, necessário que algo
permaneça através dos ciclos de vida e da morte: a alma é o princípio da vida, ela renasce.
“_Renascer, se existe um regresso da morte à vida _disse Sócrates _, é realizar o regresso”.
(PLATÃO, 2004:134) A alma é princípio de vida, e a alma dos mortos regressa à vida.

O segundo argumento de Sócrates envolve a consideração da memória e da


lembrança. Segundo Platão, a alma teve acesso à essência de todas as coisas antes de
encarnar é nela que está a verdade em si: “Este processo de recordação implica uma
metodologia que permita a descoberta da verdade tal como ela é em si. Tal seria impossível
se o saber não estivesse inscrito na alma, isto é, para alguém se lembrar de alguma coisa, é
necessário que a tivesse sabido no passado.” (FERRO e TAVARES, 1999: 106). E para
alguém se lembrar de alguma coisa, é necessário que já soubesse anteriormente. Portanto, o
que aprendemos e o que podemos saber é a recordação do que contemplamos nesta pré-
existência terrestre, na condição de almas puras. Dessa maneira, aprender é apenas recordar

4
A crença na metempsicose é partilhada por órficos e pitagóricos e Platão procura demonstrá-la no
plano racional. Em Fédon, o filósofo argumenta que todo contrário surge do seu contrário. Assim a morte
nasce da vida e esta da morte. Se a morte é contrário da vida, após a morte a alma renasce.
24

o que a alma teve acesso em outro lugar antes de unir-se a um corpo e ganhar forma
humana:

_E concordamos também que, quando o conhecimento chega de certa maneira, é


uma recordação. Ao dizer de certa maneira, quero dizer, por exemplo, que
quando um homem, ao ver ou ouvir alguma coisa, ou percebendo-a por qualquer
um de seus outros sentidos, não conhece apenas a coisa que chama a sua
atenção, mas, ao mesmo tempo, pensa em outra que não depende de sua maneira
de conhecer, mas de uma diferente. Não afirmamos que esse homem lembra o
que surgiu em sua imaginação? (PLATÃO, 2004: 136)

Destarte, para que alguém recorde algo, é necessário que antes tenha aprendido.
Então, a alma pré-existe ao corpo e sobrevive à sua morte. “_Portanto, Símias, nossas
almas existiam antes que surgissem sob a forma humana e, mesmo quando não possuíam
corpo já tinham o conhecimento”. (PLATÃO, 2004:141) A reminiscência seria
“recordar”, durante a vida corpórea o que teríamos contemplado antes do nascimento. A
alma teria “esquecido” toda a verdade e essência das coisas ao unir-se ao corpo. Perdemos,
pois, o puro pensamento, a pura verdade e a realidade essencial, ao nascermos. Sócrates
afirma que a idéia é sempre anterior e não se origina dos objetos, a percepção sensível
nunca é a idéia pura.

No terceiro argumento, Sócrates discorre sobre a simplicidade da alma e sua


afinidade com as Idéias. Para ele, as coisas simples - as Idéias -, distinguem-se das
compostas que são os corpos -, por serem as primeiras eternas, indivisíveis e imutáveis:

_As coisas que sempre estão na identidade e se comportam do mesmo modo em


quaisquer circunstâncias são as não compostas, ao passo que as que nunca estão
na identidade e que se comportam ora de uma maneira ora de outra são as
compostas.

_Concordo contigo, Sócrates.

_Analisemos essas coisas a respeito das quais falávamos, sob o aspecto de sua
existência verdadeira. Essas coisas são sempre as mesmas ou às vezes mudam?
A igualdade, a bondade, a beleza e toda a existência essencial, sofrem alguma
mudança, por diminuta que seja, ou cada uma delas, por ser pura e simples,
mantém-se igual, sem apresentar a mínima alteração nem mudança? (PLATÃO,
2004: 143)
25

As coisas que são apreendidas pelos sentidos são compostas, já que são passíveis de
mudanças e as que são imutáveis são as simples. Em um homem pode-se distinguir a alma
que é simples e é compreendida pela inteligência; ao passo que o corpo é composto, sendo
entendido pelos sentidos que percebem os objetos de forma incorreta, instável. Platão
também assegura que existe uma realidade invisível e nela é conservada a identidade,
enquanto na realidade visível a identidade não se conserva. A realidade visível é o corpo e
a invisível é a alma. Todas as características que são próprias das idéias pertencem à alma
que, portanto, é imortal.

Finalmente, Sócrates argumenta sobre a incompatibilidade dos opostos, pois as


coisas particulares do mundo sensível têm existência e realidade quando participam nas
idéias. Porém, uma coisa não pode participar da Idéia que lhe é oposta, como o par no
ímpar, o calor no frio, o bom no mau:

_Eis aqui, portanto, o que queríamos demonstrar: que existem coisas que, não
sendo contrárias a outras, mesmo assim as excluem como se fossem, como os
três que, embora não seja contrário ao número par, não o admite, como o dois,
que sempre traz consigo algo contrário ao número ímpar, como o calor ao frio, e
muitas outras coisas. Por conseguinte, não só o contrário não admite a seu
contrário, como tampouco a tudo o que o relaciona a seu contrário. (PLATÃO,
2004: 174)

A vida e a morte são opostos: a alma participa na idéia de vida, logo exclui a sua

idéia contrária, a morte. Logo, a alma ao aproximar-se da morte (o seu contrário) afasta-se,

libertando-se. “_Portanto, o que é imortal é indestrutível, e a alma, tendo sido demonstrado

que é indestrutível, não é apenas imortal, mas também indestrutível. Do contrário, temos de

encontrar outra prova”. (PLATÃO, 2004:176) Platão conclui que se a alma não possui a

idéia contrária de morte, ela é imortal.


26

O diálogo prossegue deixando clara a postura dicotômica platônica a respeito do


corpo. Tal postura determina a compreensão dualista do homem, que sustenta que o corpo é
a parte desqualificada e inferior dessa dualidade. Para Platão, antes das almas unirem-se
aos corpos, elas habitam a Cidade das almas, onde têm acesso às idéias puras, à essência
das coisas, à verdade do mundo, o que faz com que sua natureza seja metafísica.

Através dos atos de ver, tocar, ouvir, obtém sensações que se assemelham àquelas
de outrora que nos possibilitaram apreender o real quando nos encontrávamos na forma de
alma pura, mas esses atos, na nossa vida terrena, pertencem ao corpo, ou seja, a nossa parte
inferior, confusa e falha. Logo, as sensações não oferecem um conhecimento confiável.
Segundo Platão, o igual, o belo e toda a realidade em si só foram apreendidos antes do
nascimento, pois apenas após nascermos dispomos dos sentidos corporais, através dos quais
somos, continuamente, enganados.

É oportuno destacar no “Fédon”, além da dicotomia entre corpo e alma, a função


que Platão atribui ao filósofo: o distanciamento do corpo para que a alma seja beneficiada.
O distanciamento do corpo significa o afastamento das paixões para que a alma possa
alcançar a “beleza em si”, o “conhecimento em si”, a “verdade em si”:

_Parece-te, portanto _replicou Sócrates _, que os desejos de um filósofo não têm


por objeto o corpo e que, ao contrário, trabalha para afastar-se dele dentro do
possível, a fim de se ocupar apenas de sua alma?

_Com certeza.

_Assim, de todas essas coisas que acabamos de falar _ disse Sócrates _, é


evidente que o trabalho do filósofo consiste em se ocupar mais particularmente
que os demais homens em afastar sua alma do contato com o corpo. (PLATÃO,
2004:125)

Platão assegura que, para que a inteligência possa se desenvolver é necessário o


afastamento do corpo, pois pelas razões já examinadas ele é um obstáculo para o
conhecimento. E para que se possa raciocinar melhor, é fundamental o distanciamento do
27

corpo, das emoções, dos prazeres da vida para que o filósofo possa se aproximar cada vez
mais da razão e seguir o caminho da investigação: “[...] enquanto tivermos corpo e nossa
alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, a
verdade”. (PLATÃO, 2004:127)

1.2. A história da má compreensão do corpo

De acordo com a reflexão socrático-platônico, marco constituinte do pensamento


ocidental, o corpo é considerado como uma parte inferior do homem em relação à alma,
entendida esta como a parte superior e qualificada. O homem é separado em aspectos
aparentemente contraditórios como corpo-alma, sentido-razão, esquecimento-memória,
falsidade-verdade. O dualismo privilegia um dos termos da dicotomia: alma, razão,
memória, verdade; enquanto o corpo, por sua vez, é desprestigiado vinculando-se a tudo o
que é falho no homem.

Essas interpretações dualistas serviram como fundamento para a desvalorização,


coisificação e objetivação da corporeidade, nutrindo interesses — notadamente religiosos e
morais — que visavam a cercear, despotencializar e estagnar as forças que exprimem a
vontade de vida da natureza e, conseqüentemente, dos corpos.

Contrapondo-se inteiramente a essas concepções dualistas, Nietzsche atribui ao


corpo o papel de fio condutor para a análise de quaisquer questões filosóficas. Segundo ele,
o corpo é o próprio homem, seu lugar, sua modalidade essencial. A filosofia nietzschiana
concebe o corpo como relação de forças em conflito e não separa corpo e alma. Para o
filósofo, a filosofia tradicional tem sido a história de uma má interpretação do corpo:

[...] _ e freqüentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não


teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo.
Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do
pensamento se escondem más –compreensões da constituição física, seja de
indivíduos, sejam de classes ou raças inteiras. (NIETZSCHE, GC, 2001:12)
28

Para Nietzsche, a filosofia tradicional está vinculada a uma concepção de razão


separada da sensibilidade, como se temesse perder-se de seu caminho até a verdade. E o
corpo foi excluído da dimensão da racionalidade, como se não participasse do processo de
pensar e fosse oposição à alma, ao espírito, à mente.5 Segundo esse filósofo, é preciso
investigar esse mal-entendido sobre o corpo, indagar: a quem serve esse mal-entendido?
De onde se originou esse entendimento?

No pensamento nietzschiano, o corpo deve ser compreendido como algo dinâmico,


um resultado plural de movimentos decorrentes de forças em embate, em conflito.
Contrariamente à tradição filosófica socrático-platônica que impõe o ocultamento, o
esquecimento e a depreciação do corpo,6 Nietzsche assevera que o mundo é pluralidade de
forças, cada qual com sua perspectiva.

Cabe, pois, ao filósofo questionar os princípios últimos e definitivos com o intuito


de encontrar o que está oculto nas verdades eternas e absolutas7. Contestando o
entendimento da metafísica de Sócrates e Platão, em que há uma valorização do mundo
supra-sensível, Nietzsche garante que é no mundo sensível que o homem deve se orientar:

5
Feitosa afirma que para Nietzsche não há vontade livre do sujeito, essa vontade é apenas uma crença
errônea, mas que já está sendo transmitida há tanto tempo, que entrementes foi praticamente in-corporada. O
incômodo de Nietzsche é contra esses erros que são assimilados pela cultura, como se fossem parte da
natureza humana. O autor procura demonstrar que não há vontade sem corpo, que os sentimentos de prazer
de dor são decisivos nas atividades ditas mentais, mesmo quando o pensamento almeja uma eliminação
desses sentimentos. FEITOSA, Charles. A paixão segundo Nietzsche. In: Revista Tempo Brasileiro nº143. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
6
Maria Cristina Amorim Vieira considera que o homem do esquecimento é inapto para o perdão e a
culpa. Como o infortúnio não o paralisa ele pode experimentar o amor fati. No tema do esquecimento
Nietzsche inaugura um verdadeiro pensamento do corpo e sugere, igualmente novas maneiras de viver e de se
lidar com a temporalidade, com a memória e de se reconciliar com o presente e sua intensa felicidade.
VIEIRA, Maria Cristina Amorim Vieira. Alguns comentários sobre o Prólogo de Assim Falou Zaratustra. In:
Revista Tempo Brasileiro nº143. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
7
Para Deleuze o projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir em filosofia os conceitos de
sentido e de valor, com o intuito de crítica. Para Nietzsche, não houve mudança a verdadeira crítica, uma vez
que as questões de filosofia não foram colocadas em termos de valores. DELEUZE, Gilles. A filosofia de
Nietzsche. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
29

O Eu aprende a falar mais realmente de cada vez, e quanto mais


aprende, mais palavras acha para honrar o corpo e terra.

O meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não


ocultar a cabeça nas nuvens celestes, mas levá-la descoberta; sustentar
erguida uma cabeça terrestre que creia no sentido da terra.
(NIETZSCHE, AFZ,1985:45)

É na valorização da vida e não de um mundo supra-sensível que transcorre uma


existência digna. Negar a existência é negar a vida, pois é no existir mundano que a vida
acontece. Valorizar a vida é permitir ao homem colocar-se diante do mundo, dando sentido
a sua experiência efetiva, terrena.8

1.2.1. O procedimento genealógico e a investigação sobre o corpo

Na Genealogia da Moral, Nietzsche propõe como necessária uma crítica dos


valores morais, que deve começar por levantar a questão sobre a origem desses valores e o
valor mesmo desses valores. E para fazer esta crítica é preciso conhecer as condições e
circunstâncias de seu nascimento, de seu desenvolvimento e sua transformação.

Por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não mais
busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação história e
filológica, juntamente com um inato senso seletivo em questão psicológicas, em
breve transformou meu problema em outro: sob que condições o homem
inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles?
Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de
miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles
a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro?
(NIETZSCHE, GM, 2004:09)

8
Marton afirma que Nietzsche ao combater a metafísica ataca a distinção entre mundo sensível e
inteligível. Para Nietzsche o mundo é pluralidade de forças, cada qual com a sua perspectiva. “Se a metafísica
postula a existência de um mundo verdadeiro, é por desprezar o que ocorre aqui e agora; se opõe aparência e
realidade, é por ignorar que esta nada mais é do que um feixe de perspectiva. MARTON, Scarlett. Nietzsche:
das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000:223.
30

O filósofo alemão coloca os valores em questão e inaugura o chamado


procedimento genealógico, entendido por ele como uma espécie de instrumento de
diagnóstico. O procedimento genealógico consiste, grosso modo, em dois movimentos
inseparáveis: trata-se, no primeiro momento, de relacionar os valores com a circunstância
em que foram criados; e relacionar os valores como bem e mal, por exemplo, com a
perspectiva avaliadora que os engendra. Eles foram criados em uma situação dada a partir
de uma perspectiva. No segundo momento, trata-se de relacionar essas perspectivas
avaliadoras, essas avaliações elas mesmas, com os valores.9

Conforme Marton (2000), a noção nietzschiana de valor apresenta duas faces: de um


lado “os valores supõem avaliações, que lhes dão origem e conferem valor; estas, por sua
vez, ao criá-los, supõem valores a partir dos quais avaliam.”10 Portanto, o valor dos valores
está em relação com a perspectiva segundo a qual ganharam existência. Relacioná-los
apenas com os pontos de vista de apreciação que os produziram não é suficiente; é
necessário investigar de que valor se partiu para criá-los.

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica de valores


morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão _ para
isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais
nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificam (moral como
conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas
também como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno) um
conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. (NIETZSCHE,
GM, 2004:12)

Nietzsche desenvolve sua genealogia afirmando que nunca houve um


questionamento do valor dos valores morais e acrescenta que a exclusão do questionamento
11
acerca do valor retira a possibilidade de uma investigação idônea do que quer que seja.

9
Segundo Marton (2000), ao introduzir a noção de valores Nietzsche vai dizer que os valores são
humanos, demasiado humanos. Ou seja, em algum momento e em algum lugar eles foram criados. Portanto,
podem ser questionados, eles surgem, se transformam, desaparecem e dão lugar a outros. Eles surgem na
história e não no mundo transcendente e não na metafísica.
10
MARTON, Scarlett. Das forças cósmicas aos valores humanos. 2ª ed. Belo Horizonte: UFMG,
2000. p. 79.
11
Barrenechea enfatiza que Nietzsche aborda os problemas morais olhando para as condições
concretas de seu nascimento. E que na análise do filósofo alemão, o erro dos conceitos morais está por afastar
31

Isso porque ao escamotear o questionamento sobre os valores morais, ignoram-se também


os grupos que produziram e afirmaram os conceitos morais e ao mesmo tempo, a forma
como esses grupos se expressaram. Para o filósofo alemão, a moral, bem como os valores
sempre foram considerados como existentes e portadores da “verdade em si”, “o bem em
si”, “o mal em si”. Esse entendimento é mantido desde a Idade Antiga até a Idade Moderna.
Nietzsche busca derrubar os ídolos da metafísica tradicional, incluindo não só os sistemas
metafísicos construídos pelos filósofos ao longo da história, mas também as idéias e os
valores do cristianismo, hegemônicos na cultura ocidental. Para ele, com a atribuição de
uma superioridade cultural, criou-se a ilusão de que o homem se salvaria das realidades
temporais, múltiplas e não racionais, que seriam apenas cópias imperfeitas de um princípio
primeiro, imutável, racional e verdadeiro. Deste modo foi criado o conceito de Deus, como
o lugar do verdadeiro e do absoluto e a conseqüência da depreciação de tudo que é vida e
força no mundo e no homem.

Na primeira dissertação da Genealogia da Moral, a investigação nietzschiana


procura a origem do “bom e mau” e do “bom e ruim”. Para Nietzsche, os psicólogos
ingleses foram os únicos que até aquele momento haviam tentado reconstruir a gênese da
moral. Mas suas investigações são permeadas pelos valores da própria cultura a que eles
pertenciam, e lhes falta o espírito histórico para um entendimento aprofundado sobre a
origem dos valores e sobre as condições de sua criação e avaliação. “Esses psicólogos
ingleses, aos quais até agora devemos as únicas tentativas de reconstituir a gênese da moral.
Não formularam a pergunta: quem busca esse conhecimento? O que quer aquele que
procura esse conhecimento?” (NIETZSCHE, GM, 2001:17)

do mundo sua origem e adotar hipóteses que “se perdem no azul”. Sendo que a cor azul simboliza o celestial,
o divino, transcendente, como foram tratados os fenômenos morais pela tradição. E que sua análise dos
conceitos morais evidencia o “erro”dos filósofos, historiadores e religiosos por faltarem a eles o conceito do
real, a distinção entre o real e o imaginário. É preciso que se dê enfoque na história desses eventos. E “a tarefa
genealógica será caracterizada pela cor cinza, pois ela aprofunda nos documentos [...] Nietzsche assinala a
unidade entre a indagação da origem dos valores e o modo como eles são transmitidos.”. (BARRECHENEA,
2000:22).
32

A filosofia nietzschiana concebe os valores como algo estritamente humano, assim


surgido em algum momento e em algum lugar.12 Examinando as civilizações passadas,
esse filósofo conclui que existem duas perspectivas avaliadoras: uma dos nobres e fortes, e
outra dos ressentidos e fracos. Essas duas avaliações, tanto nas diferentes civilizações,
como nos diversos indivíduos, aparecem por vezes nitidamente distintas, por vezes
mescladas. É importante lembrar que a palavra moral, para Nietzsche, não significa um
manual de conduta, mas possui o sentido da perspectiva avaliadora. Além disso, esse
pensador afirma que há dois valores distintos na moral, dois modos diversos de
comportamentos ou duas perspectivas avaliadoras diferentes uma da outra.

Para Nietzsche, foram os nobres que criaram o valor “bom” e não foram eles que
criaram o valor “bem”. O valor “bom” foi criado por homens que se avaliam como bons,
poderosos, superiores, cheios de vida, corajosos e capazes de governar.

Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do
conceito”bom” no lugar errado: o juízo “bom” não provém daqueles que aos
quais se fez o “bem”! Foram os “bons”mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus
atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo,
de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância e que eles
tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que
lhes importava a utilidade![...] O pathos da nobreza e da distância, como já disse,
o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial eu
sua relação com uma estipe baixa, com um “sob _ eis a origem da oposição
“bom” e “ruim”. (NIETZSCHE, GM, 2001:19)

Nessa concepção o nobre começa criando o valor “bom” que atribui a si mesmo:
“Nós bons, nós nobres, nós felizes”. E depois de algum tempo, como uma “pálida
imagem”, em contraste, os nobres inventam o valor “ruim”, que atribuíram aos fracos, aos
desprezíveis incapazes de lutar. Nobre para Nietzsche é a aristocracia guerreira, e não a

12
Para Deleuze, o ponto central na Genealogia da Moral, está no valor dos valores, na avaliação de
onde origina-se os valores, portanto é em sua criação. E as avaliações estão ligadas ao modo de ser de quem
avalia.
33

nobreza como classe social que vai aparecer bem mais tarde. O tipo nobre é aquele que não
se exime de ir à luta, não se exime do combate, é um forte.

[...] que significam exatamente, do ponto de vista etimológico, as designações


para “bom” cunhadas pelas diversas línguas? Descobri então que todas elas
remetem à mesma transformação conceitual _ que, em toda parte “nobre”,
“aristocrático” no sentido social, é o conceito básico a partir do qual
necessariamente se desenvolveu “bom”, no sentido de “espiritualmente nobre”,
“aristocrático”, de “espiritualmente bem nascido”, “espiritualmente
privilegiado”: um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que
faz “plebeu”, “comum”, “baixo transmutar-se finalmente em “ruim.
(NIETZSCHE, GM, 2001:19)

Enquanto a origem do conceito “bom” está vinculada ao significado de “nobre”, a


origem do conceito “ruim” está vinculada ao significado de “simples”, “comum”.13 É por
meio da investigação da “Moral dos Ressentidos” que se encontram os conceitos de
“bom” e “mal”. A questão é a seguinte: e os fracos como procedem? Para Nietzsche, os
fracos começam por inventar o valor “mal” com que eles designam justamente seus
oponentes, os fortes. Seu raciocínio funciona da seguinte maneira: se ele que tem poder
sobre nós é mal, então eu sou bom. Esclarece-se desse modo como os valores estão
relacionados com as avaliações, com as perspectivas avaliadoras: “bom e ruim” são
engendrados pela maneira nobre de avaliar e “bom e mal” são colocados pela perspectiva
do ressentimento. O valor “bom” dos nobres surgiu pelo movimento de auto-afirmação e
não pode ser idêntico ao valor “bom” da moral do ressentimento, porque ele surgiu de um
movimento da negação e oposição. E o valor mal, colocado pelos ressentidos, na verdade
designa apenas o bom da moral dos nobres. Dessa forma, a perspectiva avaliadora do
ressentimento, ou seja, a moral dos ressentidos surge de uma oposição dos valores.14 Ela

13
Azeredo afirma que é na dualidade de significação que se expressa como constituição de tipos: um
homem nobre, homem veraz, distinto de um comum, homem mendaz. E o traço de caráter é o que
fundamentalmente interessa a Nietzsche, pois é esse ponto que indica o modo de ser de quem avalia.
AZEREDO,Vânia Dutra. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo, Jundiaí: GEN/Discurso Editorial,
2000.
14
Deleuze na análise do ressentimento e da má consciência em Nietzsche afirma que
o tipo ativo exprime a relação “normal” entre uma reação que retarda a ação e uma ação que
precipita a reação. O tipo ativo exprime uma relação entre as forças ativas e as forças reativas, de modo tal
que estas últimas são elas próprias agidas. E no ressentimento, as forças reativas imperam sobra as forças
34

surge de uma inversão dos valores, na medida em que o ressentimento se limita a inverter
os valores já postos pelos nobres. Ao conceituar os nobres como mal, eles definem então
que são bons, confirmando sua incapacidade para uma autêntica criação de valores.

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a


moral escrava diz Não a um “fora, um “outro, um “não-eu” _ e este Não é seu
ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores _ este necessário
dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si _ é algo próprio do
ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e
exterior, para poder agir em absoluto _ sua ação é no fundo reação. O contrário
sucede no modo de valoração nobre, ele age e cresce espontaneamente, busca
seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo como ainda maior júbilo e gratidão
[...].(NIETZSCHE, GM, 1998:28)

Portanto, se os escravos se restringem a inverter os valores dos nobres, a maneira


ressentida de avaliar é posterior, lógica e cronologicamente, à moral dos nobres. Para tanto
foi decisivo que a casta sacerdotal tenha convertido em preeminência espiritual o que era
preeminência política. Se o valor aristocrático bom identificava o nobre, belo e feliz, ao
tornar-se valor religioso “bom” passa a equivaler a pobre, miserável, impotente, sofredor,
piedoso, necessitado, enfermo. Mostra-se então, o suporte da crítica nietzschiana à religião
e à moral cristã:

Eles se denominam, por exemplo, "os verazes"; primeiramente a nobreza grega,


cujo porta-voz é o poeta Teógnis de Megara. A palavra cunhada para este fim,
[bom, nobre], significa, segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é
real, verdadeiro; depois, numa mudança subjetiva, significa o verdadeiro
enquanto veraz: nesta fase da transformação conceitual ela se torna lema e
distintivo da nobreza, e assume inteiramente o sentido de "nobre", para
diferenciação perante o homem comum mentiroso, tal como Teógnis o vê e
descreve - até que finalmente, com o declínio da nobreza, a palavra resta para
designar a aristocracia espiritual, tornando-se como que doce e madura.
NIETZSCHE, GM, 1998:22)

ativas, deixando de ser agidas. O homem do ressentimento não reage, a reação deixa de ser agida para tornar-
se qualquer coisa de sentido. DELEUZE, Gilles. A filosofia de Nietzsche. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
35

Ao desvelar a origem dos valores, Nietzsche, também propõe que a diferença


fundamental entre o tipo do ressentimento, do escravo e o tipo ativo está na vontade de
potência 15 que se distingue pela afirmação e negação:

Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-
dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,
resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que expresse sua
força. Um quantun de força equivale a um mesmo quantun de impulso, vontade,
atividade _ melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e
atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão
que nela se petrificam), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é
determinado por um atuante, um “sujeito” que pode ser diferente.
(NIETZSCHE, GM,1998:36)

Observa-se que a manifestação da força está condicionada à existência de um sujeito


livre que poderia ou não ter agido de determinada forma. O homem impotente, ao contrário,
utiliza-se da sedução da linguagem para sustentar que o forte é o fraco. Se a força não
consiste em querer ser forte, mas em ser forte, a ação é fundamental para reconhecê-la
pois, comprova a força ou a fraqueza que encontram sua determinação no jogo agonístico.
Desse modo, a força será dominante ou dominada, não havendo, para Nietzsche, separação
entre força e manifestação, pois a força só pode ser reduzida à força e toda realidade é
manifestação de força.

15
Deleuze ao analisar as características do ressentimento, e o que é bom e mal enfatiza que Nietzsche
define duas fórmulas: Eu sou bom, portanto tu és mau (Senhor) e Tu és mau, portanto eu sou bom (Escravo).
Para Nietzsche o senhor não espera ser dito bom, ele se nomeia e dia assim na medida em que age. O senhor
honra tudo o que encontra em si e se glorifica. O conceito bom qualifica a atividade, a afirmação. Dessa
forma aquela que afirma e que age é aquele que é.
O senhor possui o sentimento de plenitude, do poder que quer transbordar, o bem estar de uma alta
tensão interna. E para ele, o mau é todo aquele que não age, não afirma. Portanto, mau é conseqüência por
não ser bom. Assim, bom é o senhor e mau é o escravo.
O escravo parte do negativo ao passo que o senhor parte da positividade:”eu sou bom”. O homem do
ressentimento tem necessidade de conceber um não-eu, depois, de se opor a esse não-eu para se colocar, como
eu: “Tu és mau, portanto eu sou bom.” Deste modo, o bom passa a significar aquele que não age, que não
exerce violência sobre ninguém, que não ofende, não ataca, não usa de represálias e deixa para Deus o
trabalho da vingança. Que evita o encontro com o mal e se liga pouco às coisas da vida, como os pacientes,
os humildes, os justos. DELEUZE, Gilles. A filosofia de Nietzsche. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
36

O passo seguinte é crucial para os propósitos da nossa dissertação. Como


conseqüência de seu argumento, Nietzsche afirma que a metafísica sempre encobriu o
valor dos valores por meio do mascaramento das relações de forças, presentes em todo e
qualquer existente, por meio da inclusão de um sujeito fundante do ser, do conhecer e do
agir. Mas, segundo o filósofo, esse sujeito é uma ilusão que disfarça a vontade de potência
como determinante de toda ação e esse encobrimento é sustentado por meio da linguagem.

Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira


costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito”
indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a
alma) foi ate o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver
possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda
espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza
como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. (NIETZSCHE, GM, 1998:37)

Portanto, a construção de um mundo supra-sensível, do sujeito puro capaz da


liberdade de escolha, de um mundo ideal, enfim é uma ilusão, uma mentira. Como a moral
dos ressentidos passou a dominar, esses valores imperaram, houve a negação e a
desvalorização da vida, e a fraqueza, passou a ser mérito; o não poder vingar-se se
transformou em perdão; a resignação passou a ser uma virtude e a recompensa por viver de
forma abnegada, vivendo na “fé”, no “amor” e na “esperança” era promessa da vida eterna
em um outro mundo, um mundo eterno.

Conclui-se que para o filósofo, a construção dos valores “bom e ruim”, “bom e
mau” travaram uma luta milenar. A luta de toda a história humana é “Roma contra Judéia,
Judéia contra Roma: _ não houve, até agora, acontecimento maior que essa luta, essa
questão, essa oposição moral.” (NIETZSCHE, GM, 1998:36) Os romanos são os fortes, os
nobres e os judeus são os ressentidos.

Na segunda dissertação da Genealogia da Moral Nietzsche analisa as condições


que transformam o homem em um animal apto a fazer promessas. Para ele, a promessa leva
à valorização da memória em detrimento do esquecimento, embora o esquecimento seja
saudável e, por meio dele o homem consiga agir, criar e se organizar psiquicamente.
37

Esquecer não é uma simples vis invertiae [força inercial], como crêem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido,
graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não
penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos
chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa
nutrição corporal ou “assimilação física”. (NIETZSCHE, GM, 1998:47)

O homem tem necessidade de não absorver e guardar todas as informações e


vivências a que está exposto. A consciência precisa de “silêncio e calmaria” para que possa
novamente dar lugar para a esperança, a felicidade e o acolhimento de situações novas.
Com isso, o esquecimento é entendido não como pura passividade, mas com uma força
plástica, modeladora, com uma faculdade inibidora e, nesse sentido, como atividade
primordial. Vieira (2000) considera que o esquecimento para Nietzsche, não apaga as
marcas produzidas pela memória: ele a antecede ao mesmo tempo que impede e inibe sua
fixação no vivente. Nesse sentido, a memória passa a ser pensada como uma ‘contra-
faculdade”, pois é ela que viria se superpor ao esquecimento, suspendendo-o impedindo
sua atividade salutar. À atividade do esquecimento, Nietzsche associa na Genealogia da
Moral o processo de digestão que possui a idéia de um movimento para dentro (ein), de
transformação (ver), do substantivo corpo (leib) e de um sufixo que indica a substantivação
de um processo (ung). Essa palavra inventada por Nietzsche pode ser traduzida como
“assimilação psíquica.” Tal digestão e o processo digestivo é denominado pelo filósofo,
como alma, no lugar de corpo. Dessa forma ele demonstra como o corpo desde Platão e
especialmente em Descartes foi excluído da esfera do pensamento para ser absorvido pela
esfera da ciência.

Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força,
uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma
memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos _
nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-
se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão das palavras uma vez
empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-
querer livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória
da vontade. (NIETZSCHE, GM, 1998:48)
38

Conseqüentemente, o esquecimento é fundamental para a definição e manutenção


da plenitude da força do homem. Em contrapartida, o nascimento da responsabilidade está
relacionado com a moralidade dos costumes que cria condições propícias para isso. É por
meio da responsabilidade que os homens se tornam confiáveis e essa confiabilidade é
produzida pela ação da comunidade que molda suas consciências. Nietzsche assegura que,
para que a consciência seja moldada é necessária a submissão, ou seja, o homem torna-se
submisso às imposições da comunidade.

Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal


capaz de fazer promessas, já percebemos, traz consigo, como condição e
preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto necessário,
uniforme, igual entre iguais, constante, e, portanto confiável. O imenso trabalho
daquilo que denominei “moralidade do costume. (NIETZSCHE, GM, 1998:48-49)

O movimento da cultura é denominado por Nietzsche como a “Moralidade dos


Costumes” cuja função é adestramento das pessoas da comunidade, impondo-lhes a
obediência aos costumes admitidos como bons. Esse adestramento ocorre inclusive por
meio da tortura e é investigado pelo filósofo a partir da distinção de dois elementos, que são
citados por Deleuze:

1º Aquilo a que se obedece, num povo, uma raça ou uma classe, é sempre
histórico, arbitrário, grotesco, estúpido e limitado; isso representa
freqüentemente as piores forças reativas; 2º Mas no fato de se obedecer a
qualquer coisa, pouco importa a quê, aparece um princípio que ultrapassa os
povos, as raças e as classes. Obedecer à lei, porque é a lei: a forma da lei
significa que uma certa atividade, uma certa força ativa se exerce sobre o homem
e se dá como tarefa adestrá-lo. Mesmo inseparáveis na história, estes dois
aspectos não devem ser confundidos: por um lado, a pressão histórica de um
estado, de uma Igreja etc., sobre os indivíduos que se pretende assimilar, por
outro lado, a atividade do homem como ser genérico, a atividade da espécie
humana enquanto se exerce sobre o indivíduo como tal. (DELEUZE, 1985:199-200)
39

O homem inserido na cultura que precede a história exerceu o verdadeiro trabalho


que é de adestrar para a obediência às leis. Por essa via, as forças reativas impõem modelos
e hábitos que as tornam coercitivas. A cultura tem a função de reforçar a memória, a
consciência. Ela forma o homem capaz de prometer e, assim, dispor do futuro. O homem
que pode prometer é o produto da cultura como atividade genérica. A memória foi imposta
por meio da dor, sendo o papel fundamental desta moralidade a de inscrever o homem no
meio social, contendo-lhe os instintos:

Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a


necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e
penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes
mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos
religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de
crueldade) _ tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais
poderoso auxiliar da mnemônica. (NIETZSCHE, GM, 1998:51)

Nietzsche defende que por meio de ações que causaram dor e sofrimento a
memória dos costumes foi instalada na comunidade. Desse modo, o comportamento do
homem foi domesticado através das leis e essas imposições lhe garantiram poder viver os
“benefícios da sociedade”. Ao vencer o esquecimento por meio dessas ações, o homem se
apoiou na memória e acabou por desenvolver a razão. Essas ações que provocam dor e
mutilações iniciaram-se na pré-história: ainda assim, estão presentes até hoje.

Tendo desvendado a origem da memória e do esquecimento, Nietzsche passa a


investigar a origem da consciência de culpa, a chamada “má consciência”. Esse filósofo
assevera que os genealogistas da moral não foram até a “origem”, portanto não puderam
compreender que a origem da culpa está na dívida: “Já revelei: na relação contratual entre
credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de ‘pessoas jurídicas’, e que por sua
vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico”. (NIETZSCHE,
GM, 1998:53)
40

Para que o estabelecimento da confiança do devedor em relação ao credor fosse


firmado, o primeiro prometeu ao segundo, forneceu garantias para que no caso do não
pagamento da dívida:

Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações


e torturas, por exemplo, cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da
dívida _ e com base nisso, bem cedo e em toda parte houve avaliações precisas,
terríveis em suas minúcias, avaliações legais de membros e partes do corpo.
(NIETZSCHE, GM, 1998:54)

Nessa concepção, o adestramento dos instintos do homem foi conseguido por meio
do auxílio de ações dolorosas: o laço entre dor e memória é antigo. Sabe-se que a mais
duradoura psicologia se utilizou da dor como recurso da mnemônica. Destarte, quanto mais
o esquecimento impede a fixação dos valores, mais se torna necessária a prática dolorosa:
“Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse mundo de conceitos
morais: ‘culpa’, ‘má consciência’, ‘dever’, ‘sacralidade do dever’ _ o seu início, como o
início de tudo grande na terra, foi largamente banhado de sangue.” (NIETZSCHE, GM,
1998:55)

Desse modo, está na esfera das obrigações a origem da culpa, da má consciência e


da sacralidade do dever. A crueldade, segundo Nietzsche, constitui o “grande prazer festivo
da humanidade antiga, como era o ingrediente de quase todas as suas alegrias”
(NIETZSCHE,GM,1998:55). Mesmo que esse prazer na crueldade seja um comportamento
remoto, ele não está extinto. Através de modificação, ele adquiriu uma nova roupagem,
passando a ser perceptível na sublimação e nas sutilezas. A compaixão trágica, por
exemplo, que surge no plano psíquico e inclusive as “nostalgias da cruz” são sofrimentos
que se instalam de forma sutil, mas esse sofrimento é recompensado e garante ao sofredor
suportar a dor em troca da salvação.
41

Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar _ isso ocupou


de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido
constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia
situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia diante
dos outros animais. (NIETZSCHE, GM,1998:59)

A noção de justiça possui sua origem na possibilidade de os homens diferenciarem


pessoas que têm mais potência ou menos potência, e estabelecerem os direitos e deveres
entre os iguais. A justiça está ligada à afirmação, conseqüentemente, a ação e nunca a
reação, ao ressentimento. Ela se estabelece por meio de um poder mais forte que busca
meios de fazer com que seus subordinados se submetam às leis. Nietzsche então conclui
que o conceito de justo e injusto está intimamente determinado pela instituição da lei e não
a partir do ato ofensivo, não sendo possível o justo e o injusto em si:

Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender,


violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo “injusto”, na medida
em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo,
violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse
caráter. É preciso mesmo admitir algo ainda mias grave: que, do mais alto ponto
de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estado de exceção,
enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, cujos fins gerias
se subordinam enquanto meio particulares: a saber, como meio para criar maiores
unidades de poder. (NIETZSCHE, GM, 1998:65)

Ainda sobre o investigar a origem da “má consciência”,16 Nietzsche evidencia que


ela está no castigo e que ele possui várias utilidades, mas o essencial é entender que “ o
castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro
instrumento dessa reação psíquica chamada ‘má consciência’,‘remorso’.” (NIETZSCHE,

16
Refletindo sobre as origens da responsabilidade, o filósofo mostra que a “culpa”, conceito
fundamental da moral, remonta ao conceito de “dívida”, uma vez que a justiça apareceu com a idéia de que
“tudo pode ser pago, tudo deve ser pago” e se associou o castigo à dívida. A “má consciência” surgiu com a
interiorização da “hostilidade, da crueldade, do gosto pela perseguição, pelo assalto, pela mudança, pela
destruição”; nos fortes, esses “instintos”, não podendo manifestar-se numa coletividade organizada, a partir de
relações contratuais, voltaram-se para dentro, originando a má consciência. Nietzsche analisa ainda as noções
de “dívida” e “dever”, tal como aparecem na religião cristã, e termina exortando a que se busque a “grande
saúde”, a que se opere nova inversão dos valores. MARTON, Scarlett. Nietzsche das forças cósmicas aos
valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p.92.
42

GM,1998:70) A má consciência aparece como uma doença que retira do homem a


manifestação da reação em detrimento de uma adaptação involuntária que se processa
quando os instintos são dominados para que o homem possa viver na sociedade. Assim,
todos os instintos que não são expandidos acabam por serem aprisionados dentro do próprio
homem:

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro _ isto
é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado,
como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. (...) A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no
assalto, na mudança, na destruição _ tudo isso se voltando contra os possuidores
de tais instintos: esta é a origem da má consciência. (NIETZSCHE, GM, 2001:48)

Nietzsche afirma que o sofrimento do homem ocorre pela impossibilidade de


externar os instintos, pela separação do seu lado animal e da valorização excessiva da
racionalidade. Viver em sociedade acabou por causar o sofrimento, pois foi exigido do
homem o sacrifício de si mesmo, de renúncia de seus instintos e tudo que não se pode
expressar termina voltando para a sua interioridade:

[...] no “labirinto do peito”, como diz Goethe, cria a má consciência e constrói


ideais negativos, e aquele mesmo instinto de liberdade (da minha linguagem: a
vontade de poder): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho Eu
animal _ e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro homem,
outros homens. (NIETZSCHE, GM, 2001:76)

Conseqüentemente, a má consciência é originada na impossibilidade da


demonstração das emoções, do aprisionamento dos instintos, e da falta de liberdade. O
impedimento de se expressar por meio dos instintos resultou no surgimento da alma. A
interiorização da força que deveria ser exteriorizada, por fim, engendra a vida psíquica. O
43

homem que, inicialmente, desenvolvia plenamente seus instintos e que, aliás, era o guia de
suas ações, agora se vê tolhido de expressá-los para inserir-se na sociedade. A
desvalorização dos instintos é também a desvalorização da vida e desde então, os homens
foram para melhor e para pior convertidos em seres dotados de consciência. Na
interpretação nietzschiana “a consciência (Bewusstsein) é a última e a mais tardia evolução
da vida orgânica e, conseqüentemente, aquilo que há de menos acabado e de mais frágil
nela.” (NIETZSCHE, GG,2001: 62) Nesse sentido afirma Azeredo:

Daí a sua consideração acerca da infelicidade humana, uma vez que o homem é
reduzido a um sistema cuja fraqueza interna demanda dificuldades em sua
determinação como guia e ação.[...] Não obstante a impossibilidade de liberação
dos impulsos, estes continuaram a existir e, mais ainda, permaneceram como
algo latente que necessita extravasar. (AZEREDO, 2000:125)

A má consciência além de ser resultado da falta de liberdade, da interiorização das


emoções é, também fruto da “dívida” que o homem tem com a divindade: “O advento do
Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado trouxe também ao mundo o máximo de
sentimento de culpa.”(NIETZSCHE, GM, 1998:76) Como Nietzsche já havia denunciado, a
responsabilidade está relacionada à dívida, fazendo do homem um devedor, responsável
pela sua própria dor uma vez que é culpado. Assim a má consciência transforma-se em
consciência de culpa:

[...] até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no
qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe
de gênio do cristianismo, o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens,
o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o
homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível - o credor se
sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu
devedor! (NIETZSCHE, GM, 1998:80)
44

Segundo Azeredo (2000), à medida que Deus se oferece em sacrifício para pagar as
dívidas do homem, o resgate torna-se impossível e o homem se torna responsável pela
falta, portanto é culpado. A culpa que estava relacionada à dívida passa agora a ser
relacionada à culpa/falta. A culpa, no sentido de falta demonstra o predomínio das forças
reativas sobre as ativas: a culpa/dívida corresponde à qualidade afirmativa da vontade de
potência e a culpa/falta corresponde à qualidade negativa da vontade de potência.

O filósofo afirma que a concepção de um Deus universal como o Deus cristão leva
à negação de tudo aquilo que é eminentemente humano, nega a vida, o corpo, o mundo em
benefício de uma alma, de uma verdade em si, um mundo supra-sensível. Vale lembrar que
este entendimento do cristianismo aproxima-se de Platão e sua valorização da alma e
desvalorização do corpo, conforme vimos anteriormente. Entretanto, Nietzsche argumenta
que essa não é a única forma de manifestação de um Deus e os gregos pré-platônicos, por
exemplo, possuem outra concepção:

Havia maneiras mais nobres de se servir da invenção de deuses do que aquela de


autocrucificação e de autoprofanação do homem _ que foi a mais elevada na
Europa nos últimos milênios. Bastaria, para se convencer disso, um olhar aos
deuses gregos, reflexos de homens nobres e soberanos, nos quais o animal no
homem se sentia divinizado e não se dilacerava a si mesmo e nem se enraivecia
contra si mesmo. Durante muito tempo, os gregos se serviram de seus deuses
para descartar a “má consciência”, para poder se deleitar com a liberdade de sua
alma. (NIETZSCHE, GM, 1998:82) 17

Os nobres não experimentam uma relação com o mundo atravessada pela “má
consciência”, pois eles projetam em seus deuses todas as qualidades que são suas. Ainda

17
Ibidem,II, § 23 , p.82.
45

que os fracos também tenham projetado seu Deus universal houve a propagação da doença
por meio da negação de tudo aquilo que é eminentemente humano. Os gregos sentiam-se
orgulhosos e divinizados em relação aos seus deuses, pois cabia aos deuses afastar qualquer
possibilidade da “má consciência” de produzir dor. Os deuses olímpicos não pensavam mal
dos homens e por isso não desenvolveram a noção de culpa.

Não obstante, Nietzsche indaga: quem quer os deuses gregos? São os nobres que
projetam neles as suas qualidades, podendo expressar sua força sua vontade de potência. E
quem quer o Deus cristão? Os ressentidos, os escravos. O escravo que, em função de sua
doença, sua negação, não pode se afirmar, termina por negar a existência como um todo. O
que está por trás do escravo é a vontade de triunfar e, por meio de um mundo supra sensível
ele afirma a vida: seu desejo íntimo é afirmar a vida e negar a morte. No ressentimento
aparece a figura do sacerdote judeu e na “má consciência” aparece a figura do padre cristão,
mas a vontade em ambos manifesta a negação e o culto do nada _numa palavra: o niilismo.

1.2.2 –Os ideais ascéticos e os negadores do corpo

A terceira dissertação da “Genealogia da Moral” apresenta os ideais ascéticos


como suportes metafísicos da religião, da moral, da filosofia e da ciência. Para o filósofo,
os ideais ascéticos procuram pela plenitude da vida moral que partiu do entendimento de
um mundo transcendente como referencial de todos os valores para além desta vida e, no
mundo no qual vivemos, nega a vida, o corpo, o pathos. É esse desprezo pelo corpo e pelo
mundo que o filósofo alemão traduz como o ideal ascético que impregna até mesmo os
“homens do conhecimento”. Nietzsche considera não só a religião alimentada pelos ideais
ascéticos, mas também a filosofia, a arte e a ciência. Esse ideal, com o objetivo de curar o
sofredor através da promessa metafísica de outros mundos melhores do que este, de
46

preservar a vida já como anti-vida, ou como deslocamento da vida para um ideal alheio às
verdadeiras condições de existência, é o que une o filósofo, o artista, o sacerdote e o
cientista:

Kant imaginava prestar honras à arte, ao dar preferência e proeminência, entre os


predicados do belo, àqueles que constituem a honra do conhecimento:
impessoalidade e universalidade. Este não é o lugar de discutir se isto não foi
essencialmente um erro; quero apenas sublinhar que Kant, como todos os
filósofos, em vez de encarar o problema estético a partir da experiência do artista
(como criador), refletiu sobre a arte e o belo apenas do ponto de vista do
“espectador”, e assim incluiu, sem perceber, o próprio “espectador” no conceito
de belo. [...] O fato é bem curioso: ele interpretou a expressão "sem interesse" da
maneira mais pessoal, a partir de uma experiência que para ele devia ser das
mais regulares. Sobre poucas coisas Schopenhauer fala de modo tão seguro
como sobre o efeito da contemplação estética: para ele, ela age precisamente
contra o interesse sexual, assim como lupulina e cânfora; e nunca se cansou de
exaltar esta libertação da "vontade" como a grande vantagem e utilidade do
estado estético. Seríamos mesmo tentados a perguntar se a sua concepção básica
de "vontade e representação", o pensamento de que uma salvação da "vontade" é
possível somente através da "representação", não teve origem numa
generalização dessa experiência sexual. (NIETZSCHE, GM,1998: 93-94)

O que está velado na busca de entendimento da ciência e da filosofia é sua


subordinação a um ideal de verdade, a uma “independência em si”, sendo que esses
conceitos são reproduções de uma metafísica que se origina dos ideais ascéticos tal como
aquela preconizada no “Fedon”. Nietzsche assegura que, para Kant e Schopenhauer, por
trás do elogio da neutralidade, há interesses e, que na busca de uma universalização dos
seus conceitos, o corpo e a subjetividade são retirados na tentativa de se privilegiar a razão.
Dessa forma, percebe-se a presença dos ideais ascéticos na valorização de um ideal, de uma
metafísica negadora da vida, do mundo efetivo que exclui a possibilidade do conhecimento
“acompanhado” do corpo. Para o pensamento nietzschiano, o filósofo no ideal ascético quer
livrar-se da tortura que compõe a lida com os seus próprios instintos. “E, para voltar à nossa
primeira questão, ‘que significa um filósofo render homenagem ao ideal ascético?’, eis aqui
ao menos uma primeira indicação: ele quer livrar-se de uma tortura.” (NIETZSCHE,
GM,1998:94)
47

Nessa concepção, a vida é vontade de potência, é luta permanente, é combate entre


forças, portanto, quanto mais intenso o exercício das forças, mais a vida se expande. E ao
negar o corpo, os instintos, o ideal ascético está negando o combate, negando a vida, a
vontade de potência. Em Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche assevera que viver é
essencialmente, apropriação, violação, domínio de tudo que é estrangeiro e mais fraco,
opressão, dureza, incorporação e, pelo menos no mais elementar de todos os casos,
exploração. Para ele, a vontade de potência predomina na existência e a interpretação é
sempre a imposição de uma perspectiva. É o embate entre as forças e a vontade de potência
que, ao interpretarem e avaliarem, introduzem estimativas de valor.

Nietzsche assegura que até aquele momento, o conhecimento na filosofia estava


voltado para o privilégio da razão em detrimento dos sentidos, da subjetividade. E os
filósofos, para atingirem suas condições ideais, em “optimum”, para alcançarem
inteiramente o poder, a capacidade de expandir plenamente seus horizontes repudiaram o
corpo e a sensualidade. O corpo foi excluído da dimensão da racionalidade, como se não
participasse de modo algum do processo de pensar. A filosofia, desde Platão, amarra-se a
uma concepção de razão separada da sensibilidade, como se temesse perder-se de seus
caminhos até a verdade. Se, como quer Nietzsche, pensar é antes de tudo uma função do
corpo, não é possível desincorporar-se para poder pensar.

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga,


perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento,
isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de
conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”,
conhecimento em si”; _tudo isso pede que se imagine um olho que não pode
absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as
forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem
estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem
sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer”
perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto
mais olhos diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. (NIETZSCHE, GM,1998: 96)

Nietzsche critica a valorização excessiva da objetividade, demonstrando que o corpo


é o essencial, o fundamental, o corpo é uma multiplicidade. Cada experiência ou afecção
48

configura, faz vir a ser um corpo, ou seja, define um possível e real campo de
relacionamentos. Por outro lado, cada corpo é um modo próprio de ser e de aparecer de
uma determinada afecção. É essa afecção que organiza, que estrutura, que aponta a direção
de ser:

Supondo que essa vontade encarnada de contradição e antinatureza seja levada a


filosofar onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo que é
experimentado do modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro
precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a
verdade. Fará, por exemplo, como os ascetas da filosofia vedanta, rebaixando a
corporalidade a uma ilusão, assim como a dor, a multiplicidade, toda a oposição
conceitual de “sujeito” e “objeto” _erros, nada senão erros! Recusar a crença em
seu Eu, negar a si mesmo sua “realidade _ que triunfo! (NIETZSCHE,
GM,1998:96)

Portanto, a vontade não está desvinculada do sujeito e a crença na vontade livre é


apenas uma crença errônea que está sendo transmitida há tanto tempo que acabou por ser
incorporada. A má compreensão do corpo divide o homem em corpo e alma, privilegiando
a razão e menosprezando o corpo, descorporificando o homem por meio do controle das
paixões sob o domínio do intelecto. Nessa direção lemos em “Aurora”

[...]_Portanto: evitar as ocasiões, implantar regularidade no impulso, produzir


saciedade e nojo dele, estabelecer associação com um pensamento doloroso
(como o da vergonha, das conseqüências ruins, do orgulho ofendido), o
deslocamento de energias e, enfim, o enfraquecimento e esgotamento geral
_estes são os seis métodos; mas querer combater a veemência de um impulso
não está em nosso poder, nem a escolha do método, e tampouco o sucesso ou
fracasso desse método. (NIETZSCHE, A, 2004:80-81)

Na interpretação nietzschiana, o controle do corpo não ocorre pelo poder do


intelecto, mas do corpo sobre si mesmo. Essa má compreensão surge do próprio corpo, só
que um corpo doente, anêmico e fraco. “[...] nosso intelecto é antes o instrumento cego de
um outro impulso, rival daquele que nos atormenta com sua impetuosidade: seja o impulso
por sossego, ou o temor da vergonha e de outras más conseqüências, ou o amor.”
49

(NIETZSCHE, A, 2004:81) Portanto, não existe luta entre alma e corpo, mas entre
diferentes forças (ativas ou reativas) no próprio corpo.

O erro de avaliação, segundo o filósofo está ao postular um “eu“ desvinculado do


corpo. Uma vez que a chamada razão é apenas um instrumento ou um brinquedo do corpo:
“Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior _coisa que tu não queres crer _ é
o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.” (NIETZSCHE,
AFZ, 1985: 48) Aqui as condições de possibilidade do pensamento são fisiológicas, isto é,
por trás da consciência encontra-se o poder desconhecido dos sentidos, das paixões, das
pulsões. Nietzsche afirma que a consciência se dá na relação não auto-consciente e não
auto-dominadora de um eu e um corpo.

Giacóia (2005) considera que Nietzsche no fundo quer dizer o seguinte: se você
observa a fisiologia e a zoologia verá que o problema da consciência é, na verdade, um
problema simplesmente superficial. Ou seja, aquilo que define o essencial do sujeito não é,
como pretendia a tradição filosófica, a sua capacidade de tomar-consciência-de-si, mas a
consciência precisamente é um fenômeno secundário. O problema do ter-consciência é
precisamente aquilo que se constitui como problema. Ou seja, por que é que nós tomamos
consciência de nós mesmos, em que medida isto é importante, tanto mais quanto nós
podemos perfeitamente bem passar sem isso. Então, a fisiologia e a zoologia aqui, na
verdade, simplesmente comprovam aquilo que Leibniz já tinha dito. Ou seja, que a
consciência não é o essencial do sujeito, da subjetividade; mas a consciência é, na verdade,
uma ínfima porção da subjetividade. Você pode ter vida, tanto animal quanto humana, sem
que necessariamente o fenômeno da consciência-de-si tenha que se apresentar. Somente a
conceituação de um “eu pensante” e do “livre arbítrio” permitiu que se imaginasse o sujeito
e a racionalidade desvinculados do corpo e do espaço social.

O pensamento em torno do qual se peleja, é a valoração de nossa vida por parte


dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence,
“natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles
colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual se opõe, a
menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso
de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência.
(NIETZSCHE, GM, 1998:106)
50

Decorre daí que a plenitude da vida moral só tem lugar a partir da perspectiva da
vida, desta vida, de um fluir permanente, ao contrário da virtude na transcendência, no
imutável, na verdade. Existir é para o filósofo, responsabilidade do homem, não há um
mundo transcendente. E para a filosofia, não há nada, nenhuma questão ou nenhuma
produção que não esteja intimamente vinculada às potências criadoras da natureza.
Portanto, não há nenhuma criação, idéia ou representação que não seja produto do corpo.
Assim, o corpo não pode ser entendido de forma isolada, independente do mundo ou como
um objeto em meio a outros objetos, mas deve ser tomado como constituinte do mundo,
como doador de sentido à realidade.

O ideal ascético nasce do instinto de proteção e cura de uma vida em


degeneração, que por todos os meios procura manter-se e combate por sua
existência, é o indício de uma parcial obstrução fisiológica e cansaço, contra os
quais os mais profundos instintos da vida, que permanecem intactos, combatem
sem descanso com novos meios e invenções. O ideal ascético é um tal meio: é,
pois precisamente o inverso do que pensamos que veneram esse ideal _ a vida
luta nele e por ele com a morte e contra a morte, o ideal ascético é um artifício
da conservação da vida. (NIETZSCHE, GM, 1998:109-110)

O ideal ascético possui o objetivo de evitar o processo degenerativo da vida. O que

está oculto nele é a luta pela existência, _ e a ausência de plenitude e afirmação da vida leva

à procura da conservação e proteção. Essa ausência de plenitude de vida leva os instintos

de vida mais profundos a atuarem visando à sua preservação. A valoração da vida aparece

no ideal ascético por meio da transposição do valor ao plano imaginário, pois a filosofia,

desde Platão, nada mais fez do que desprezar esta vida tal como nós a vivemos no aqui e

agora, em nome de uma outra vida, de um outro mundo. O mundo no qual estamos seria

um mundo ilusório, efêmero, transitório e o outro, transcendente que, no entender de

Nietzsche é fictício, é valorizado, já que nele a vida não se acaba, pelo contrário,

permanece eterna. Então, a crença na vida após a morte, no além-mundo e no Deus


51

universal está baseada na exclusão da transitoriedade e da degenerescência da vida. O

mundo passa a ser apenas uma passagem para atingir o mundo verdadeiro e a vida eterna.

Não obstante, Nietzsche afirma que o ideal ascético surge como um mecanismo para

que o homem ressentido, culpado, possa suportar sua existência. O sacerdote ascético, que

é o representante mais evidente desse ideal, que é também doente, cria condições para que a

vida torne-se suportável e com esse entendimento reúne o seu rebanho.

Ele traz ungüento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro ferir, para ser
médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a
ferida - pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e domador de
animais de rapina, em volta do qual tudo o que é são torna-se necessariamente
doente, e tudo doente necessariamente manso. De fato, ele defende muito bem o
seu rebanho enfermo, esse estranho pastor - ele o defende também de si mesmo,
da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as cinzas, e
do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo sagaz,
duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo o momento ameaçam o
rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento é
continuamente acumulado. (NIETZSCHE, GM, 1998:166)

Esse rebanho é formado por pessoas doentes, fracas, sofredoras, humildes, e o


sacerdote ascético usa a sua vontade de poder para que seu rebanho tenha confiança e
temor, pois é preciso defendê-lo dos sãos e da própria inveja que o grupo tem dos sãos.
Para exercer o controle sobre os ressentidos, sobre sua dor que, habitualmente, é atribuída a
um culpado externo ou às condições fisiológicas, o sacerdote transfere o ônus para o
próprio ressentido. “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado” _ “assim pensa toda ovelha
doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: “Isso mesmo minha ovelha! Alguém
deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém _ somente você é culpada de si!...”
(NIETZSCHE, GM, 1998:117)
52

Como a responsabilidade refere-se à dívida, o ressentido torna-se um devedor,


responsável pela sua própria dor, pois ele é culpado.18 A má consciência transforma-se em
consciência de culpa e, à medida que Deus se oferece em sacrifício para pagar as dívidas
do homem, o resgate torna-se impossível e o homem sente-se responsável pela falta,
portanto é o culpado.

A organização e concentração dos doentes, favorecem a domesticação pela qual o


rebanho é ensinado a se autodisciplinar para controlar os “instintos ruins”. O agrupamento
dos doentes freqüentemente numa igreja19, _é necessário e frutífero, pois propicia ao fraco
o sentimento de força e a chance de desvencilhar-se da imagem de impotência que possui
de si, pela construção de uma nova imagem. Na comunidade o homem fraco desenvolve
uma nova identidade:

No desejo de desembaraçar do seu desprazer surdo e do seu sentimento de


fraqueza, todos os doentes, todos os doentios, tendem instintivamente a se
organizar em rebanho: o padre ascético intui esse instinto e o encoraja; em todos
os lugares onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis e a sabedoria do
padre que o organizou. (NIETZSCHE, GM, 1998:125)

18
Segundo Deleuze, na formação de rebanhos a má consciência encontra espaço para atuar. A dívida
então passa a ser de um devedor que não pagará nunca, com um credor que nunca deixará de extrair os lucros
da dívida. DELEUZE, Gilles. A filosofia de Nietzsche. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
19
Deleuze ressalta que a religião para Nietzsche, não está essencialmente ligada à ma consciência ou
ao ressentimento. Dioniso é um Deus. Demonstra que na Vontade de Potência, Nietzsche afirma: “Não
poderia duvidar de modo algum que existam numerosas variedades de deuses. É certo que parecem
inseparáveis de um certo alcionismo, de uma certa negligência. Os pés ligeiros fazem talvez parte dos
atributos da divindade.” VP, IV.
Deleuze afirma que para Nietzsche, existe uma pluralidade de sentidos na religião, assim como existe
uma religião dos fortes, cujo sentido é educativo. De tal modo, ele distingue Cristo do cristianismo, onde o
primeiro está isento do ressentimento, da má consciência; definiu-se por uma boa nova, apresentando uma
vida que não é a do cristianismo. Da mesma forma que o cristianismo é uma religião que não é a de Cristo. E
o inventor do cristianismo não foi Cristo, mas São Paulo, ele é o homem da má consciência, do ressentimento.
Portanto, a pergunta “Quem”, aplica-se ao cristianismo. DELEUZE, Gilles. A filosofia de Nietzsche. Rio de
Janeiro: Ed. Rio, 1976.
53

Para Nietzsche, na organização em rebanho, ocorre um maior encorajamento entre


os fracos. A união de uma comunidade propicia o afeto fundamental, dessa forma, o
desespero é amortecido, a angústia diante do mundo e a dor individual são amenizadas e a
alegria prospera no grupo. Cabe ao sacerdote selecionar os meios que aliviem o sofrimento,
mas que não acabem definitivamente com a dor e que permitam o controle da vontade para
que a comunidade permaneça em rebanho. Desse modo, o sacerdote ascético combate o
desprazer do sofredor, mas não a sua doença. Por meio do ideal ascético, o homem encontra
uma finalidade para a sua existência, uma razão de ser. Consegue desenvolver uma
vontade, mesmo que seja uma vontade do nada:

Simplesmente não é possível esconder o que propriamente exprime esse querer


inteiro, que recebeu do ideal ascético sua orientação: esse ódio contra o
humano, mais ainda contra o animal, mais ainda contra o material, essa repulsa
aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, esse anseio por
afastar-se de toda aparência, mudança, vir-a-ser, morte, desejo, anseio mesmo _
tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma má-
vontade contra a vida, uma rebelião contra os mais fundamentais pressupostos
da vida, mas é e permanece uma vontade!... E, para ainda em conclusão dizer
aquilo que eu dizia no início: o homem prefere ainda o nada, a não querer...
(NIETZSCHE, GM, 1998:149)

O ideal ascético apresenta-se, portanto, como o preenchimento do vazio existencial


e ao mesmo tempo, impede a negação da vontade. Esse niilismo inerente ao ideal ascético
deprecia a vida, opõe um mundo supra-sensível ao sensível, estabelece conceitos universais
como o bem, o ser, o verdadeiro, Deus universal. Segundo Nietzsche, toda essa
transposição para o ideal trouxe como conseqüência a negação deste mundo, negação da
vida, negação da afetividade, negação do corpo. Os ideais ascéticos negaram o corpo
sustentando a existência de uma alma que se perpetua em um outro mundo e como
decorrência, a vida passou a fazer parte de um segundo plano e o corpo foi desvalorizado.

É contra esses “erros” que são assimilados pela cultura, como se fossem partes da
natureza humana que Nietzsche encaminha sua crítica. Esse pensador procura demonstrar
que não há vontade sem corpo, que os sentimentos de prazer e de dor são decisivos nas
atividades ditas mentais, mesmo quando o pensamento deseja uma eliminação desses
sentimentos.
54

CAPÍTULO II

2. A AFIRMAÇÃO DO CORPO

“Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si,


para poder dar à luz uma estrela dançarina. Eu vos
digo: há ainda caos dentro de vós.” (NIETZSCHE,
AFZ,1985: p.27)

Neste capítulo, por meio das obras de Nietzsche e de seus comentadores


procuraremos investigar a afirmação do corpo e a conquista da grande saúde. Vamos
abordar o corpo como afirmação segundo o pensamento nietzschiano, mostrando uma
alternativa para a desvalorização do corpo gerada pela tradição filosófica que examinamos
acima. Nossa análise focalizará a fidelidade à terra, a grande saúde e o amor fati, com
todas as suas implicações valorativas para a afirmação do corpo.

Como foi visto anteriormente, Nietzsche afirma que os filósofos até então negaram
a vida, o corpo e o mundo no qual vivemos, em benefício de outro mundo, de uma vida
ilusória, transcendente. Seu pensamento alega que o corpo é o próprio do homem, seu
lugar, sua modalidade essencial. Nietzsche rebate os filósofos que visam ao essencial, ao
imutável e investiga as circunstâncias que deram origem à procura por verdades eternas e
absolutas. Na ótica nietzschiana, a filosofia apresenta-se fundamentalmente como algo
vivido, experimentado. “[...]_filosofia, tal como até agora a entendi e vivi , é a vida
voluntária em gelo e nos cumes _ a busca de tudo o que é estrangeiro e questionável no
existir, de tudo o que a moral até agora baniu.” (NIETZSCHE, EH, 1995:18)

Sendo assim, é necessário ser forte para suportar sua própria escrita e sua escavação
na busca por tudo que é “estrangeiro”. É preciso dureza e coragem para conhecer, para
55

desvelar o que permaneceu oculto na filosofia. Além do que ficou camuflado na psicologia,
pois a crença em ideais acabou por contaminar também essa ciência. A crença na “verdade
em si” se apresenta para ele como inadvertência ou covardia, mobilizadas para que não haja
um enfrentamento honesto do problema da verdade: para que não seja necessário
descortinar e questionar o que é estranho no existir.

O menosprezo pela vida é denunciado por Nietzsche e sua defesa é feita com
veemência. Há uma evidente aversão a todas as aspirações humanas hostis à vida e uma
valorização às propensões em sintonia com os sentidos, os impulsos, os afetos. “Amo os
que não procuraram por detrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em
sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem.”
(NIETZSCHE, AFZ, 1985: 25)

Zaratustra busca os homens e sua procura é pela terra. Nietzsche empreende sua
crítica ao “céu”, ao âmbito metafísico e evidencia que é necessário menosprezar tudo o que
até então se venerou e, no mesmo movimento, afirmar tudo o que até então se negou. Será
preciso desvelar as artimanhas que contribuíram para que a vida se conservasse doente e
enfraquecida. “Noutros tempos a alma olhava o corpo com desdém, e então nada havia
superior a esse desdém; queria a alma um corpo fraco, horrível, consumido de fome!
Julgava desse modo, libertar-se dele e da terra.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985:123)

É importante esclarecer que os atributos do mundo sensível e a valorização do corpo


não devem ser entendidos segundo a dicotomia tradicional, mas como uma experiência
simultânea de percepção sensorial, intelectiva, afetiva e de sentido20. Para o filósofo
alemão, não pode haver nenhum tipo de pensar que não esteja vinculado de alguma maneira
pela sensibilidade.

20
“O espírito, o eu, a alma, são instrumentos e brinquedos criados pelo corpo para servir à sua vontade.
Enquanto o homem se ilude envaidecendo-se de que seus pensamentos e sua razão lhe guiam, na verdade é
seu corpo, é o “ser próprio”, é seu todo, é esse múltiplo de forças que domina e que governa os pensamentos é
a “razão pequena”: a consciência.” SANTANA, Leila Navarro. O Corpo e a Produção da Memória Social na
Perspectiva Nietzschiana. Dissertação de Mestrado, Unirio, 2006.
56

Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguete; por detrás deles se encontra o


nosso próprio ser. Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os
olhos do espírito.
Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e
constrói.
Reina, e é também soberano do Eu.
Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais
poderoso, um guia desconhecido. Chama-se “eu sou”. Havita no teu corpo; é o
teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para
que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?
(NIETZSCHE, AFZ, 1985:46)

Na ótica nietzschiana, o corpo não é dominado pela razão e nem tampouco cabe

atribuir à razão qualquer autonomia ou superioridade, em relação a ele. O corpo é um todo,

é “uma multiplicidade com um único sentido.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985: 47). Nessa

totalidade, a consciência é a “pequena razão”, parte da “grande razão”: o corpo.

Por ser uma unidade múltipla, todo o corpo é uma razão. É todo o corpo que faz

pensar, que experimenta os sentidos, que cria o conhecimento e que age quando a razão tem

de criar um pensamento. O pensamento não pode funcionar de outra forma, mesmo quando

ele estiver voltado contra a sensibilidade. Um pensar que resgata o sensível é, de certa

forma, uma resposta e uma crítica à filosofia ocidental que durante séculos desvinculou o

sensível e o racional, conforme já vimos.

Nietzsche concebe o corpo como uma totalidade de instintos e de forças agindo para

a expansão e afirmação da vida. As manifestações dessas forças corporais atuam em

contínuos embates entre si, com o que se criam novas possibilidades, rompem-se limites.

Em alguns momentos, certas forças dominam, em outros, essas forças obedecem, cedendo

espaço à manifestação de outras vontades e afetos. É no interior dessa dinâmica que os

eventos devem ser encarados, através de perspectivas que consideram o mundo, o homem e
57

suas produções como criações decorrentes dessas relações de forças. “Tomar o corpo como

ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito

mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor

estabelecida do que a crença no espírito.” (MACHADO, 1999:93)

Tomando como ponto de partida o pensamento de Nietzsche, analisaremos, nesta

pesquisa, os embates e conflitos que ocorrem no corpo, tais como a “fuga do corpo” e a

importância de reconhecê-lo, de entender que é nele que o homem se relaciona, interpreta,

cria e vive no mundo. Para o filósofo alemão, o corpo exprime os instintos fundamentais

da natureza, é a natureza em plena manifestação. Nesse sentido, qualquer pensamento ou

doutrina que negue, desqualifique ou desconsidere a relação intrínseca entre os instintos, a

natureza, a força, a saúde e a vida são considerados antinaturais e decadentes.

Deve ser uma necessidade de primeira ordem, a que faz sempre crescer e medrar
essa espécie hostil à vida _ deve ser interesse da vida mesma, que um tipo tão
contraditório não se extinga. Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui
domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de
poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas
condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar
a força para estancar a fonte da força, aqui o olhar de volta, rancoroso e pérfido,
contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a
beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, da
desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si,
autoflagelação e auto-sacrifício. Tudo isso é paradoxal no mais auto grau:
estamos aqui diante de uma desarmonia que se quer desarmônica, que frui a si
mesma neste sofrimento [...](NIETZSCHE, GM, 1998:107)

A atitude de negação da vida deve ser entendida como impotência, fraqueza,

decadência decorrente de um estado fisiológico doentio. Esse estado reflete o medo de

encarar a realidade intempestiva e conflituosa da natureza.


58

2.1 – Fidelidade à terra, a grande saúde e amor fati

Nietzsche afirma que o corpo é o responsável pela geração de todo o pensamento


filosófico e que mesmo as filosofias metafísicas e idealistas, que condenam o corpo, os
instintos e a vida são, justamente, produtos corporais, embora, sejam oriundos de estados
fisiológicos doentios. A vida é identificada como impulso criador, energia e princípio
dinâmico de unidade de todas as funções orgânicas fundamentais, é um jogo de forças, é
vontade de potência. Este impulso vital é exatamente o incremento da própria vida. Na sua
expressão mais acabada de vontade de viver, está a criação de um horizonte de sentido para
essa mesma vida. Marques (2003) afirma que a vontade de potência embora tenha sua raiz
na biologia, não pode ser entendida apenas como sobrevivência.

[...] apenas uma vontade de se auto-preservar, uma vontade que se exerce com
vista à sobrevivência. Umas das grandes intuições de sua filosofia consiste em
considerar a vontade como algo que excede a subsistência, e é esse excesso,
aquilo que se joga em afirmação de si, em criações imaginárias, expressividade
simbólica etc., que deve merecer plenamente a atenção da filosofia. (MARQUES,
2003:11).

A crítica nietzschiana da desvalorização da vida detém-se particularmente sobre a


moral cristã que, segundo o filósofo alemão, é uma moral de desvalorização da vida, uma
moral de empobrecimento da vida21. O cristianismo adoeceu o corpo, retirou-lhe a energia
vital, negou a vida; manteve e cultuou o corpo doente. Atacou-o através das atitudes de
esvaziamento, do empobrecimento dessa energia vital. E essa desrealização da existência,

21
Na Genealogia da Moral, na Terceira Dissertação, Nietzsche assinala que a vida ascética é
contraditória, pois ela nega a vida e a domina com ressentimento fazendo estancar a força da vida, da alegria
da beleza. A vida ascética busca a autoflagelação, a negação de si, o feio, a perda de vontade. O triunfo está
na agonia.
59

do ponto de vista de Nietzsche, é uma moral doentia, pois reduz o potencial da vida. Para o
filósofo, o que condiciona essas formas vitais é a vontade de potência. Essa vontade de
potência que é intrínseca à realização histórica do cristianismo, ao qual o “tu deves”, oculta
a vontade de poder do “eu quero”.

Na ótica nietzschiana, essa desvitalização, essa perda da afirmação plena de vida


não é um exercício arbitrário da vontade. Marton (2000) destaca que para Nietzsche, os
conceitos de vida e valor estão intimamente ligados e partindo desse entendimento o
filósofo conclui que a moral cristã nega a vida. Afirma que a vida do ponto de vista moral
resulta enfraquecida, atacando dessa forma o altruísmo, a renúncia de si, o amor ao
próximo e todas as virtudes cristãs. Em outro sentido, Nietzsche considera a crueldade, o
egoísmo, o ódio, a inveja, a cupidez como impulsos vitais saudáveis. Portanto, na ótica
nietzschiana ao fazer qualquer apreciação sobre a vida equivale a perguntar se contribui
para favorecê-la ou obstruí-la. Assim, na ótica genealógica nietzschiana que avalia o valor
dos valores, entendidos como sintomas vitais.

[...] submeter idéias ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se


não são signos de plenitude de vida ou de sua degeneração; avaliar uma
avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente ou
declinante.[...]no entender do filósofo, entre físico e psíquico não existe traço
distintivo fundamental. (MARTON, 2000: 97-98)

Nietzsche faz uma nova leitura dessa vida, reinterpretando-a como outra forma de
afirmação que não esteja marcada pela negação, pela restrição, pelo rebaixamento do
humano. A vontade de potência é insistentemente apresentada como posição, como decisão,
como a confirmação da própria existência. Nietzsche, com ironia apresenta uma “nova
moral”: uma moral do super-homem, a moral do sentido da terra, a moral da fidelidade à
terra, a moral do sim.
60

2.1.1. Fidelidade à Terra

Em Ecce Homo, Nietzsche empreende dentre outras questões relevantes, sua crítica
à virtude conforme a visão judaico-cristã, e aprecia Dioniso pela sua sátira e alegria. Sua
intenção é derrubar os ídolos que até então foram cultuados. Segundo esse pensador, o
filósofo tem como ofício derrubar ídolos:

A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida em
que se forjou um mundo ideal... O “mundo verdadeiro” e “o mundo aparente” _
leia-se o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a
maldição sobre a realidade [...] (NIETZSCHE, EH, 1995: 18)

Para Barrenechea, na ótica nietzschiana, “terra” possui o seguinte significado:


“’terra e vontade de potência’ estão profundamente interligadas. Há uma convergência
significativa entre as noções de terra, mundo, vida e vontade de potência. Todas elas
aludem ao jogo de forças, às pulsões intramundanas que permeiam os movimentos do
universo. (BARRENECHEA, 2000:92) Nietzsche, ao sustentar a “fidelidade à terra”
propõe a fidelidade ao mundo no qual estamos inseridos, a esta vida. Essencialmente,
indica a superação de si e a disponibilidade para enfrentar os desafios vitais sem falsificá-
los. Trata-se de esvaziar as ilusões de uma divindade absoluta, de um mundo ideal, de uma
verdade definitiva e de um fim último, concentrando-nos no homem e em suas relações
com o mundo e no mundo. Propondo para si mesmo a tarefa de recuperar a vida e
transmutar todos os valores do cristianismo. O filósofo afirma que o homem deve criar a
própria vida, que o “homem criador se submete ao jogo vital”,22 concretizando por meio da
criação o que há de mais íntimo em si mesmo, desvinculado dos valores morais e
metafísicos. “A criação nasce na escuta de instintos viscerais, de impulsos fisiológicos que

22
Barrenechea sustenta que essa submissão ao jogo vital não significa submissão ao mundo, pois o
homem sairia da submissão ao transcendente e do livre-arbítrio, para ser escravo da terra. Sendo, portanto, a
liberdade para criar, procriar e se concretizar no mundo o que se leva no mais íntimo.
61

permeiam a presença do mundo no que há de mais íntimo. Assim, criar é dar à luz, abrindo
as profundezas, ‘grávidas’ pelas pulsões terrestres.” (BARRENECHEA, 2000:89)

O ato de criar do homem manifesta-se ao produzir a partir das forças internas que o
estimulam, seguindo os impulsos de seu corpo, em vista de seu enraizamento na terra. A
criação não é um ato externo ao homem, não é originada do exterior, mas é própria do
homem, do homem capaz de se superar:

O homem é superável. Que fizestes para o superar?


[...] Eu anuncio-vos o Super-Homem!
O Super-Homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-
Homem, o sentido da terra.
Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles
que vos falam de esperanças supra-terrestres. (NIETZSCHE, 1985:22-23)

Vieira (2000) assinala que o sentido da terra, para Nietzsche, parece sugerir a busca
de transformação da própria vida, e que a dinâmica da existência ficou esquecida em prol
de uma “outra vida”. “Falar em terra implica falarmos em vida; ao homem foi dada a terra,
mas ele perdeu este elã com a vida quando da terra se afastou.” (VIEIRA, 2000:168) Esse
distanciamento sobreveio em decorrência de um “culto ao céu”, “culto a Deus”, “culto ao
transcendente” e, como conseqüência, os homens esqueceram o corpo, desprezaram a vida.
A fidelidade à terra é uma recusa a todo ideal de outra vida, de esperanças ultra-terrenas.
Pois a vinculação à terra é essencial para que ela seja cultivada, fertilizada de
possibilidades, de diversidades. O super-homem é aquele que surge para concretizar a
ligação com a terra, com os valores terrenos, com a vida, com o corpo.

Com efeito, super-homem é o tipo que supera as oposições entre o físico e o


metafísico, o sensível e o espiritual, o corpo e a alma; supera a ilusão de um mundo
transcendente e se volta para a terra, valorizando-a. Neste sentido, ele é superação,
62

ultrapassagem do homem do passado e sua crença em Deus para vivenciar uma nova forma
de pensar; sentir; avaliar; viver.23 Machado (1985) considera que Nietzsche não está
interessado em provar a não existência de Deus, mas em demonstrar como surgiu essa
crença e como ela desapareceu. E a “morte de Deus” que está tão presente em Zaratustra
ocorre com a constatação do niilismo na modernidade.

A expressão “morte de deus” é a constatação da ruptura que a modernidade


introduz na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos, das
essências, do fundamento divino. Significa, portanto, a substituição da autoridade
de Deus e da Igreja pela autoridade do homem considerado como consciência ou
razão; a substituição pelo desejo da eternidade pelos projetos do futuro, de
progresso histórico[...]. (HEIDEGGER apud MACHADO, 1999:48 )

A morte de Deus é o ponto de partida para Zaratustra, pois se Deus não existe, o
homem pode ser fiel à terra e não haverá mais o pecado ou a infidelidade contra Deus. Mas
o reconhecimento sobre a morte de Deus poderia causar uma desvalorização de valores e
Nietzsche, em sua obra Assim Falou Zaratustra propõe uma saída positiva que é o super-
homem com sentido da terra. É importante salientar que o super-homem é o sentido da
terra, ou “o sentido do ser do homem”, portanto, possui um sentido de alvo a ser atingido.

O homem é corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sob o


abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso
tremer e parar.
O grande no homem é ele ser uma ponte e não uma meta; o que se pode amar no
homem é ele ser uma passagem e um ocaso. (NIETZSCHE, AFZ,1985:25)

23 Machado afirma que o super-homem é para Nietzsche uma necessidade. Esse imperativo origina-se
da morte de Deus. Que inicialmente surge na publicação de “A gaia ciência” § 125, embora no aforismo 84
de “O andarilho e sua sombra” já havia a denúncia desse tema. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia
nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
63

Nietzsche sustenta a superação permanente da vida, pois até então os homens não
criaram algo acima deles e com isso renegaram a si mesmos. Depositaram toda confiança
em algo pretensamente desvinculado de si mesmos e passaram a não acreditar em suas
capacidades, em suas potencialidades. Isso impediu, também, o reconhecimento da
transitoriedade do jogo, da existência e a adoção de uma atitude aberta e destemida diante
dele, assim como o ocaso do sol quando se põe, como afirma Zaratustra.

Amo os que não sabem viver senão no ocaso, porque estão a caminho do outro
lado.
Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do
anseio pela outra margem.
24
Amo aqueles que, para seu ocaso e sacrifício , não procuram, primeiro, um
motivo atrás das estrelas, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se
torne do super-homem. (NIETZSCHE, AFZ, 1985:25)

O estar a caminho do outro lado é entregar-se à passagem, à probabilidade do fluxo


da própria vida, acreditando nas possibilidades que ela oferece, sem se apegar a nenhuma
garantia de segurança acima de tudo. Para Nietzsche, a plenitude está na entrega de si
mesmo, no risco permanente, na possibilidade do encontro com o desconhecido, mesmo
sem saber o que há do outro lado, de se colocar no desconhecido e na transitoriedade da
vida. Zaratustra continua afirmando o homem e seu sentido na terra e declarando os
motivos para gostar do homem.

Amo aquele que vive para adquirir o conhecimento e quer o conhecimento para
que algum dia, o super-homem viva. E quer assim, seu próprio ocaso.
Amo aquele que trabalha e faz inventos para construir a casa do super-homem e
preparar para ele a terra, os animais e as plantas: porque assim quer o seu próprio
ocaso. (NIETZSCHE, AFZ, 1985: 25)

24
Maria Cristina afirma que o ocaso oferece a idéia de estar a caminho do outro lado e que o sacrifício
implica desapego. Portanto a transformação e o sacrifício ocorrem sem promessas e sem prêmios. FERRAZ,
Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche nº 07. São Paulo:
Discurso Editorial, 1999, p. 27 a 40.
64

Desse modo, o conhecimento precisa estar a serviço da vida e não em sua negação.
A sintonia com a terra e com a existência é a busca pelo conhecimento que produz vida,
que constrói possibilidades e se coloca nessa dinâmica, na contingência. Esse movimento
consiste na proximidade entre o homem, a planta e o animal e, portanto, recupera a ligação
com os valores da terra. Conhecer é, conseqüentemente, estar em sintonia com a terra.

Embora o fundamental seja a vida do super-homem, Nietzsche se refere ao último


homem como aquele que permaneceu, que não que esforço, que recusa a visão. Evitando se
arriscar, o último homem assim se apura e se desenvolve na direção da conservação e com
esse intuito já nem mesmo reconhece em si mesmo o que é desprezível, porque cada vez
mais foi se distanciando da humanidade. “Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é
estrela? Assim pergunta o último homem, piscando o olho.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985: 25)

Amor, criação, anseio, estrela, são palavras que nele não mais encontram eco. São
meros ornamentos dos quais se utiliza sua vaidade. O último homem pisca o olho
como quem tudo olha, tudo percebe, tudo conhece. Nada parece lhe escapar.
Contudo, nada vê. Ele quer ser distraído, por isso pisca; ele quer olhar tudo sem
se transformar. Julga-se o mais sagaz, porque foi aquele que restou, que
sobreviveu. Sua instrução é seu orgulho e assim, povoado de conhecimentos, o
último homem se arroga de seu saber. Contudo insensível à bússola sinalizadora
da vida, busca conhecer para melhor controlar, dominar, menos sofrer. Tudo o
atrai porque tudo pode se tornar conhecido. (VIEIRA, 2000:171)

Vieira (2000) concebe o “último homem” nietzschiano como aquele que vive em
uma terra cujo solo é desertificado e os frutos são escassos. Não obstante, o último homem
não percebe a aridez do solo, pois acredita que seja um vencedor por ter sobrevivido, e os
desafios já não são mais interessantes, encontram-se amortecidos e ele se sente nutrido pela
sua esperteza em se conservar. Seu desejo é nutrido pela busca de igualdade que é evitar o
confronto, o risco, o desconhecido, o acaso. Basta a ele evitar o excesso, o sofrimento. Esse
estado quase letárgico, em que a vida, é apenas, vivenciada com superficialidade é
denominado, por Nietzsche como felicidade. Entretanto o filósofo afirma: “Eu vos digo: é
preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançarina. Eu voz digo:
há ainda caos dentro de vós.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985: 27)
65

Giacóia (2000) entende o último homem como o símbolo da modernidade que


considera a si mesmo o ponto culminante do desenvolvimento histórico da humanidade.
“Orgulhoso de sua cultura e formação, que o elevaria acima de todo passado, o último
homem crê na onipotência de seu saber e de seu agir.” (GIACÓIA, 2000:56) Para esse
autor, Nietzsche, em Zaratustra, assinala que o último homem representa o preocupante
rebaixamento de valor do ser humano, “a transformação do homem numa massa impessoal
de seres uniformes.” (GIACÓIA, 2000:56) E a busca do bem supremo que seria a felicidade
é, essencialmente, a união da mediocridade, conforto e ausência de sofrimento e grandeza.

Nietzsche desvela a mediocridade e o jogo de interesses que estão ocultos nos


valores morais e, também, na busca da verdade. A ficção do além-mundo retira do “homem
do conhecimento” o que é principal: o conhecimento da terra e da vida. Vale acrescentar
que a terra não representa uma massa material, mas “uma dinâmica imanente de auto-
exposição. A terra é um conceito que se opõe categoricamente ao de ‘além’. O além é uma
ficção que instigava outrora a renúncia ao mundo, a rejeição à vida [...].”
(BARRENECHEA, 2000:92) Ao convocar o homem à fidelidade à terra, o filósofo alemão
promove o encontro entre o criador e sua casa terrestre. A terra passa a ser o seu limite e
não o mundo metafísico.

Compreende-se dessa forma que a devoção ao transcendente é caracterizada por


Nietzsche como infidelidade à terra, pois enfraquece a relação do homem com seu espaço e
cria a ilusão de outra existência. Ao contrário de Platão, Nietzsche afirma que o mundo
25
transcendente é ilusório, é nele que seria a “Caverna” . Essa ilusão é considerada pelo
filósofo alemão como infidelidade na medida em que retira do homem a coragem para
criar, para entrar no jogo da vida e se oferecer à terra. “Mas a vossa maldição, espíritos
imaculados, puros, contempladores, é que nunca haveis de dar à luz, por mais avultados,
por mais prenhes que apareçais no horizonte.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985:149)

25
No livro VII de A República, Platão apresenta o mito da caverna. No mito, o filósofo imaginou
todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que o atavam
a olharem sempre a parede em frente. Os habitantes daquele lugar só enxergavam sombras. Era assim que
viviam os homens, acreditando que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos eram
verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. Para o filósofo todos nós estamos condenados a ver sombras a
nossa frente e tomá-las como verdadeiras.
66

É na adesão à terra que o homem vivencia seus impulsos viscerais, a força que age
no ventre26, pois o processo da criação necessita de um homem fiel ao mundo, que busca
em suas entranhas, que acredita na terra, nas manifestações do corpo. Barrenechea (2000)
esclarece que a figura do ventre está relacionada com os aspectos fisiológico-espirituais que
são a digestão e a procriação: na digestão ocorre o processo de incorporação do mundo; e,
na procriação, a partir dos impulsos germinais a vida é gerada e regenerada. Dessa forma, o
homem se torna criador quando segue as disposições da terra que ecoam em seu ventre, que
repercutem em seu corpo.

O Eu aprende a falar mais realmente de cada vez, e quanto mais aprende, mais
palavras acha para honrar o corpo e a terra.
O meu Eu ensinou-me um novo orgulho que eu ensino aos homens: não ocultar a
cabeça nas nuvens celestes, mas levá-la descoberta; sustentar erguida uma cabeça
terrestre que creia no sentido da terra.
(...) Enfermos e decrépitos foram os que menosprezaram o corpo e a terra, os que
inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; mas até esses doces e
lúgubres venenos foram buscar no corpo e na terra! (NIETZSCHE, AFZ,
1985:27)

Portanto a fidelidade à terra decorre de que o homem assume totalmente sua


pertença do mundo. Ao afirmar que “O corpo é uma razão em ponto grande, uma
multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”,
(NIETZSCHE, AFZ, 1985: 27) o filósofo propõe a não existência do domínio da razão e
que não existe um interesse autônomo, uma supremacia em relação ao corpo. O corpo é um
todo e, por ser uma unidade múltipla, é uma razão. É todo o corpo que faz pensar, que
experimenta, que cria o conhecimento e que age quando a razão tem de criar um
pensamento. “Instrumento de seu corpo é, também, a tua pequena razão, brinquedo da tua
grande razão. ‘Eu’, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres

26
“A figura do ventre explicita a intimidade que temos com elementos que vêm do exterior. Nas
entranhas acolhemos e processamos os frutos da terra. Ventre e entranhas metaforizam a fusão do íntimo e do
externo, no ato criativo. Nas nossas entranhas incorporamos, digerimos e eliminamos os alimentos que
tomamos do mundo; já que o ventre não age metabolizando os seus próprios elementos, ele não cria do nada,
mas absorve o que toma da terra.” BARRENECHEA, Miguel Angel. Nietzsche e a liberdade, 2000, p. 93.
67

acreditar — é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.”
(NIETZSCHE, AFZ, 1985: 27)

Por necessidade, o corpo cria a razão como instrumento de pensamento, de


avaliação, de classificação, de comparação e de reflexão. A função do pensamento tem o
mesmo valor que qualquer outra função corporal, não há nenhum privilégio na consciência.
Todas as funções corporais são igualmente importantes. Marton (2000) assegura que para
Nietzsche é todo o corpo que quer, pensa e sente. E mais ainda, no querer já se acha
embutido o querer, o sentir e o pensar. Portanto, querer é um afeto primário, esse afeto
primário que decorre da vontade de potência. Destarte, o eu quero não é uma simples
escolha como no livre arbítrio, é algo que se dá ao nível do organismo.

O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. “Que são, para mim,
esses pulos e vôos do pensamento?”, diz de si para si. “Um simples rodeio para
chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus
conceitos.
O ser próprio diz ao eu: “Agora, sente dor!” E, então, o eu sofre e reflete em
como poderá não sofrer mais — e para isto, justamente deve pensar. O ser
próprio diz ao eu: “Agora sente prazer!” E então, o eu regozija e reflete em como
poderá ainda regozijar-se muitas vezes _e para isso, justamente deve pensar.
(NIETZSCHE, AFZ, 1985:27)

A Vontade de Potência age em toda célula que quer expandir-se até onde pode. O
mesmo acontece com os tecidos e com os órgãos. Cada ser microscópico que constitui o
organismo quer mais potência. Isso faz com que se deflagre uma luta entre todos os seres
vivos microscópicos que constituem o organismo por mais potência. Essa luta se manifesta
em cada um desses seres vivos microscópicos, entretanto só se exerce à medida que
encontra resistência. O obstáculo converte-se em estímulo e propicia o embate de forças.

No pensamento nietzschiano é o corpo, o “ser próprio” quem “decide”, quem


orienta, quem dita qual a função tem a prioridade de servi-lo em decorrência de seu estado,
condição, necessidade ou vontade. “O corpo criador criou o espírito como mão da sua
vontade”. (NIETZSCHE, AFZ, 1985:27) O corpo precisa, pois, ser compreendido dentro
de sua multiplicidade. A fidelidade à terra é, portanto, o caminho necessário para a
fidelidade ao corpo.
68

2.1.2 –A Grande Saúde

Para Nietzsche, toda interpretação que objetive acalmar, disfarçar, impedir e

desqualificar os confrontos corporais pelos quais a natureza se expande e se afirma,

representa uma distorção da dinâmica fundamental do fenômeno vital. Em relação a esses

impulsos, naturalmente violentos e cruéis, não cabe nenhum tipo de julgamento de valor

baseado em concepções dicotômicas. Para esse pensador não há “mau” nem “bom”, uma

vez que esse impulsos resultam da vida seguindo sua dinâmica: procurar a intensidade e a

dominação.

A vida é vontade de potência e o corpo é combate entre forças vitais. Marton (op.

cit.) explica o modo como Nietzsche pensa a vida, isto é, a vontade de potência: “Ela só

pode manifestar-se em face de resistências”, “procura pois, o que lhe resiste: tendência

original do protoplasma, quando estende seus pseudópodes e tateia à sua volta.”

(MARTON, 2000:41) O combate ocorre exatamente, porque as forças encontram

resistência e a luta se torna inevitável. Para o filósofo alemão, o aparecimento das funções

orgânicas surge das hierarquias que decorrem dessa luta. Em Além do Bem e do Mal, o

filósofo escreve:

Desse modo o querente junta as sensações de prazer dos instrumentos executivos


bem-sucedidos, as “subvontades” ou sub-almas _ pois nosso corpo é apenas uma
estrutura de muitas almas _à sua sensação de prazer como aquela que ordena.
[...]ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem construída e feliz.
(NIETZSCHE, ABM, 1998:24)

Os obstáculos são estímulos, conseqüentemente as células combatem-se entre si e,


nesse combate, “(...) uma célula passa obedecer à outra mais forte, um tecido submete-se a
69

outro que predomina, uma parte do organismo torna-se função de outra que vence _ durante
muito tempo.” (Marton, 2000:42)

Nietzsche entende o indivíduo também como combate em outros registros, que vão
desde a alimentação e a luta por uma situação vantajosa em um espaço até a representação
social. Assim, o duelo não ocorre somente no âmbito físico, mas também nas relações
sociais, afetivas, cognitivas e de sobrevivência.

Não cansamos de maravilhar-nos com a idéia de como o corpo humano se


tornou possível, como essa coletividade inaudita de seres vivos, todos
dependentes e subordinados, mas num outro sentido, dominantes e
dotados de atividade voluntária, pode viver e crescer enquanto um todo e
subsistir algum tempo. (NIETZSCHE apud MARTON, 2000:43)

Nietzsche indica que o corpo humano é constituído por numerosos seres


microscópicos que lutam entre si: uns vencem; outros perdem. Os embates, para o filósofo
são próprios da textura vital. É por meio deles que ocorrem as superações, as conquistas, as
criações. Retirar a luta do cenário da vida é estagnar o espaço de expansão da própria
existência. Onde não há possibilidade de luta entre forças corporais surge a fraqueza dos
corpos, ou seja, o enfraquecimento e a repressão dos instintos.27 A vida fica estagnada e se
degenera se não é impelida por um movimento contínuo que lhe é próprio. Esse processo
imanente é promovido por várias funções corporais que também se confrontam com o
objetivo de manter saudáveis as condições vitais:

27
Marques, demonstra que Nietzsche alude a uma composição do corpo com outros corpos ou seres
vivos que estão entre eles, em constante relação de poder. “O fio condutor do corpo conduz assim à
descoberta de relações de poder entre seres vivos, e não à descoberta de uma natureza sistematizada como
expressão da relação recíproca entre o todo e suas partes, como unidade mediante a unificação das partes a ela
co-pertencentes”. (MARQUES, 2003, p.167).
70

Agora, a vida não rege mais sozinha e nem o conhecimento domestica o


passado: todos os marcos foram derrubados e tudo o que foi um dia se abate
sobre os homens.[...] Um espetáculo tão inabarcável não foi visto por nenhuma
geração, tal como agora a ciência do vir a ser universal, a história, mostra: mas,
sem dúvida, o mostra com a audácia perigosa do lema: fiat veritas pereat vita
[“Que se faça a verdade e que pereça a vida!”]. (NIETZSCHE, 1995:32)

Nietzsche, insistentemente, defende a valorização dos instintos, do corpo e seus


ritmos naturais como os únicos capazes de se orientarem em direção a uma vida potente e
vigorosa. A tentativa de atribuir sentido à vida, contrariando e negando sua natureza
trágica, caótica e desprovida de certezas e de segurança, promove a degeneração das forças
vitais, uma vez que essa tentativa pressupõe o esquecimento de tudo que em nós se
caracteriza pela imprecisão, pela indeterminação, pelo movimento. A guerra contra os
instintos, contra o corpóreo provoca o enfraquecimento do homem, posto que o combate, o
jogo de forças são, justamente, os elementos fundamentais para a saúde do homem.

No pensamento nietzschiano, dominar é suportar o contrapeso da força mais fraca:


conseqüentemente, é continuação da luta. Nesse sentido, é possível entender que a paz
nunca é instaurada e as hierarquias não são permanentes. Como cada ser vivo quer
prevalecer sobre o outro, Nietzsche afirma que o querer não está centralizado no aparelho
cerebral, que seria o responsável pelo “querer”, nem tampouco há responsabilidade desse
aparelho de produzir o pensar, a vontade e o sentir: “Pressupõe aqui que todo o organismo
pensa, todas as formas orgânicas tomam parte no pensar, no sentir, no querer _ por
conseguinte, o cérebro é apenas um enorme aparelho de centralização.” (NIETZSCHE
apud MARTON,2000:43) O querer, o sentir e o pensar estão disseminados em todo o
organismo, estão ligados entre si e não há como dissociá-los. Em Para Além do Bem e do
Mal o filósofo escreve:

É preciso reconhecer um sentir e mesmo todas as espécies de sentir como


ingredientes da vontade e, do mesmo modo, em segundo lugar, também o
pensamento que manda _ e não se deve crer que se possa separar este pensamento
do “querer”, como se depois ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade
não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas, acima de tudo, um afeto; e
este, afeto de mando. (NIETZSCHE, ABM,1998:23)
71

Na concepção nietzschiana, ao homem não é facultado o direito de exercer ou não a


vontade, ela não apresenta um caráter intencional. A liberdade da vontade só é permitida
quando se chega a enfrentá-la como afeto de mando, pois, segundo Nietzsche:

Querer é mandar, mas mandar é um afeto particular (esse afeto é uma repentina
explosão de força), tenso, claro, uma coisa excluindo as outras em vista,
convicção íntima da superioridade, certeza de ser obedecido; a liberdade é um
sentimento de superioridade de quem manda e em relação a quem obedece: “eu
sou livre é preciso que ele obedeça”. (NIETZSCHE apud MARTON:2000:45)

Conseqüentemente, a vontade é livre porque implica um sentimento de


superioridade e não porque lhe é dado o direito de escolher. A vontade é uma reação
individual, atua em todo organismo, possuindo adeptos e opositores. É também resultado de
uma multidão de estímulos, em parte, contraditórios e, em parte, concordantes. Não existe,
dessa forma, uma única vontade, mas pontuações de vontade que podem aumentar ou
diminuir sua potência. Nietzsche afirma que a vontade é orgânica e não há qualquer
transcendência nela, por conseguinte, vida e vontade de potência não existem fora do ser
vivo.

Como viver é estar em permanente combate, a aniquilação de conflitos e de embates


não condiz com as possibilidades afirmativas da vida, em sintonia com sua feição
dinâmica, imprevisível, incerta, trágica. O médico filósofo entende os pensamentos como
sintomas de estados corporais, detectando quando uma filosofia é sadia ou uma
manifestação de doença.

Eu espero ainda que um médico filosófico, no sentido excepcional do termo —


alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma
raça, da humanidade —, tenha futuramente a coragem de levar ao cúmulo a
minha suspeita e de arriscar a seguinte afirmação: em todo o filosofar, até o
momento, a questão não foi absolutamente a “verdade”, mas algo diferente,
como saúde, futuro, poder, crescimento, vida... (NIETZSCHE, GC, 2001:2)
72

Nietzsche levanta a suspeita de que o corpo, nas filosofias que desprezam e rejeitam
os processos naturais da vida, valorizando os aspectos transcendentes, está doente, e a
preocupação com a busca da paz, do alívio e da proteção demonstram esses sintomas. Se a
vida possui como traço fundamental o combate, o jogo de forças, as ameaças naturais de
sofrimento e de dor, esses fatores não podem ser interpretados como se fossem isolados da
saúde, da alegria, da felicidade. A necessidade de um consolo em “outro mundo”, que
propiciou a crença em um mundo idealizado é, por sua vez, completamente oposta à vida
terrestre. Tal crença é forjada, a partir de uma concepção dicotômica, consolidando-se,
apenas, a partir da valorização das enfermidades, perdas e fraquezas.

Toda a filosofia que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende
negativamente o conceito de felicidade, toda a metafísica e física que conhece
um final, um estado final de qualquer espécie, todo anseio predominantemente
estético ou religioso por um Além, Ao-lado,conferir Acima, Fora, permitem
perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo. O inconsciente disfarce de
necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da idéia, da pura
espiritualidade, vai tão longe que assusta — e freqüentemente me perguntei se
até hoje a filosofia, de modo geral não teria, sido apenas uma interpretação do
corpo e uma má compreensão do corpo. (NIETZSCHE, GC, 2001:2)

A interpretação do mundo deve direcionar-se para a leitura das aparências que,


como uma espécie de configuração artística, dão voz aos instintos mais fundamentais e
subterrâneos, porque são eles que impulsionam à expressão de todas as coisas que existem,
mas que foram negados e esquecidos pelo discurso moral, metafísico e pela religião.
Nietzsche afirma que o fundamental para a afirmação da vida são os instintos. O filósofo
investiga o “subterrâneo”, sua investigação está voltada para o que está oculto, o que se
esconde por baixo dos alicerces corporais e não sobre as invenções que se colocam acima,
no ideal e, que, por sua vez, mascaram o elementar e vital. As aparências enganam, pois são
integradas sem dissociação ao jogo pulsional de todo vivente.
73

Em Aurora, Nietzsche demonstra seis estratégias ascéticas utilizadas para que os


instintos sejam relegados ao esquecimento na tentativa de impedir a expansão da vida. Os
métodos de autodomínio e moderação são os seguintes: impedir situações para satisfazer o
impulso; fixar uma regularidade na sua satisfação; entregar-se deliberadamente à satisfação
selvagem e irrefreada de um impulso para vir a ter nojo; ligar, com firmeza, à satisfação a
um pensamento doloroso; desviar a energia para um trabalho duro e doloroso ou sujeitar-se
a um novo tipo de prazer e, por fim, enfraquecer um impulso por meio da opressão física e
psíquica.

Esses métodos atuam por meio da consciência e da memória, visando a combater a


intensidade dos impulsos vitais e enfraquecê-los totalmente. Entretanto Nietzsche assegura
que mesmo quando essas estratégias de controle das paixões são bem sucedidas, não
estamos diante de uma manifestação da superioridade do intelecto sobre a carne, mas de
uma imposição da carne sobre si mesma.

(...) mas querer combater a veemência de um impulso não está em nosso poder,
nem a escolha do método, e tampouco o sucesso ou o fracasso desse método. Em
todo este processo, claramente, nosso intelecto é antes o instrumento cego de
outro impulso, rival daquele que nos tormenta com sua impetuosidade: seja o
impulso por sossego, ou o temor da vergonha e de outras más conseqüências
Enquanto ‘nós’ acreditamos nos queixar da impetuosidade de um impulso, é, no
fundo, um impulso que se queixa do outro [...](NIETZSCHE, A,2004:81)

Nesse sentido, não existe luta entre alma e corpo, mas entre diferentes forças
agindo, forças ativas e reativas, atuando no próprio corpo.28 Promover o esquecimento dos
instintos fundamentais e fazer da consciência a única mediadora para as experiências
constitui uma inversão extremamente prejudicial para a saúde do homem. Isso ocorre a
partir do momento em que uma função secundária como a consciência começa a medir e
conduzir a vida, quando deveria, apenas, obedecer ao corpo, às suas demandas instintivas,
essenciais do processo vital.

28
Feitosa assinala que Nietzsche concebe que as condições de possibilidade do pensamento são
fisiológicas, isso significa que por trás da consciência, existe o poder desconhecido dos sentidos, das paixões,
das pulsões. FEITOSA, Charles. A paixão segundo Nietzsche.P. 158.
74

O orgulho do homem, que se opõe à teoria da sua descendência de animais e


situa um grande hiato entre natureza e homem — esse orgulho tem seu
fundamento num preconceito quanto ao que é espírito: e tal preconceito é
relativamente jovem. Na longa pré-história da humanidade pressupunha-se o
espírito em toda a parte e não se pensava em honrá-lo como privilégio do
homem.[...] não se sentia vergonha em descender de animais ou árvores (as
linhas nobres viam-se honradas por essas fábulas) e enxergava-se no espírito
aquilo que nos une à natureza e não o que nos separa dela. (NIETZSCHE, A, 2004:33)

Em A Gaia Ciência, Nietzsche explica que a consciência institui-se como a mais


nova e mais inacabada função orgânica e que, por isso, ainda representa a mais fraca
criação do nosso corpo. Os instintos, o inconsciente, os impulsos considerados como
insensatos, irracionais e até maus são, ao contrário do que se pensa, aquilo que está a
serviço da vida e da espécie desde sempre. Nietzsche afirma que esses “sins” são os mais
antigos, mais fortes, profundos e essenciais. Se até hoje a humanidade resiste e se expande
é, o ponto de vista do filósofo, porque os instintos, não obstante toda a consciência, razão e
ordem que os contrariam e tentam adormecê-los, continuam em combate, na luta incansável
em favor da vida.

Não fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no
conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e
seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma,
por sua consciência; ou melhor: sem aquele, há muito tempo ela já teria
desaparecido! (NIETZSCHE, GC, 2001:62)

O filósofo entende que, inicialmente, a consciência surgiu em meio às atividades


corporais para favorecer sua expansão. Nesse sentido, ela surge como uma de suas forças
que impulsionam as atividades de conservação e expansão da vida. Importa salientar, então,
que o filósofo alemão não despreza a consciência a favor da inconsciência, mas procura
reposicioná-la no conjunto corporal. Assim, a consciência deslocada deve ser analisada
como uma função nova, em fase inicial de desenvolvimento. A consciência, longe de ser
primordial, superior e mais valorosa do que qualquer outra função orgânica, está
verdadeiramente a serviço do instinto gregário, das necessidades sociais que visam à paz e
75

à segurança. Todas as outras atividades de nosso corpo, como a digestão, o sono e as trocas
celulares são mais antigas, aprimoradas, precisas e, portanto, menos restritivas que a
consciência.

Nietzsche empreende sua crítica à valorização da consciência em detrimento dos


impulsos, demonstrando que, ao negar os impulsos e tentar domesticá-los, no fundo, o que
se promove é o adoecimento. Conforme se pode observar nas análises, acima, a vida é
força, é dominação, é vontade de potência. É preciso voltar-se para a sua afirmação, para a
expansão da vida.

No pensamento nietzschiano, a grande saúde representa um estado de disposição


plena para a vida, condição sine qua non para a destruição de valores estagnados e,
conseqüentemente, para que se criem novos sentidos e avaliações afirmativas para a vida,
pois viver é avaliar.29 No pathos da grande saúde também se revela uma memória. Para
afirmar a vida é preciso libertar-se e assumi-la da forma que é, sem carregar o peso dos
valores que até então recebemos. Para isso, é preciso criar valores novos que sejam os da
vida, que a tornem mais leve e ativa.

Poderíeis imaginar um Deus? Signifique para vós outros, a vontade de verdade,


que tudo se transforme no que o homem pode pensar, ver e sentir! Deveis cuidar
até o último os vossos sentidos.
E aquilo que vós chamais mundo, é necessário começar por criar: a vossa razão, a
vossa imaginação, a vossa vontade, o vosso amor devem tornar-se o vosso
próprio mundo. E verdadeiramente será para ventura vossa! (NIETZSCHE,AFZ
1985:105)

A vida precisa ser afirmativa e criativa para combater as apreciações valorativas que
se opõem a ela. Isso implica a criação de novas formas de viver capazes de uma certa
independência das normas de conduta gregária. Para criá-la e afirmá-la, é necessário que o
homem se afaste das leis alheias que, se por um lado mantêm o homem prisioneiro, por

29
Deleuze afirma que Nietzsche concebe a vida como interpretação e avaliação. Dessa forma viver é
avaliar e não existe verdade e realidade no mundo, tudo é avaliação. O ser, o verdadeiro e o real só valem
como avaliações. DELEUZE, Gilles. A filosofia de Nietzsche. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976.
76

outro também lhe oferecem proteção. Tal proteção é paga com a negação da vida.
Nietzsche assegura que é preciso dizer não a tudo que até então se disse sim, pois esse sim
está a serviço do poder de negar. Esse “não” é a afirmação da vida, é a superação do
niilismo. A afirmação é fruição e jogo da sua própria diferença, como a negação, dor e
trabalho da oposição, é o devir e o acaso. “A afirmação é postulada uma primeira vez como
o múltiplo, o devir e o acaso. Porque o múltiplo constitui a diferença de um e do outro, o
devir constitui a diferença em relação a si, o acaso constitui a diferença em relação ‘entre
todos’ ou distributiva” (DELEUZE, 1985:281) O devir30 expressa o ser, o múltiplo e o
acaso significam a necessidade. Portanto, a confiança no futuro decorrente da grande saúde
não se refere a um amanhã idealizado que deveria ser e que, por isso, se decepciona caso
não sejam satisfeitas as expectativas atreladas a um desejo ideal. “[...] do repentino
sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de mares novamente
abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas.” (NIETZSCHE. GC, 2001:
13) Isso se refere à confiança em um futuro previamente acolhido, desejado e admitido
independentemente de qualquer consciência, antes de saber e sem poder nada prever. Trata-
se de dizer sim, de querer o acaso: “[...] Eu amo a ignorância a respeito do futuro e não
quero perecer de impaciência e do antegozo de coisas prometidas.” (NIETZSCHE, GG,
2001:287) O futuro está desvinculado da necessidade de previsão, mas fiel ao sentimento e
ao desejo pelo amanhã.

A grande saúde, defendida por Nietzsche pressupõe uma constante recriação que
deve ser abandonada e esquecida. Deste modo não há uma universalização da saúde, um
modelo a ser seguido por todos. O bem-estar é um estado singular do corpo de cada um, em
meio a uma dor, uma derrota, uma perda. Após um desses estados, a saúde retorna como
um renovado desejo pela vida, admitindo os conflitos e a dor como estimulante para a ação,
compreendendo o que é melhor para si.

30
Deleuze demonstra que Dioniso representa o sim, o devir. Para o autor, Nietzsche dá uma grande
importância à arte porque ela afirma e cria e é representada pela afirmação dionisíaca. É uma afirmação que
sabe dizer não, que cria a vida. Diz sim à vida não suportando-a, mas criando-a permanentemente e
assumindo-a em sua plenitude. Dioniso expressa o devir, o múltiplo e Ariadne alude a afirmação da
afirmação. “A afirmação primeira é Dioníso, o devir. A afirmação segunda é Ariadne , o espelho, a noiva, a
reflexão. Mas o segundo poder da afirmação primeira é o eterno retorno ou o ser do devir. E a vontade de
poder como elemento diferencial que produz e desenvolve a diferença na afirmação, que reflete a diferença na
afirmação da afirmação, que a faz retornar na afirmação ela própria afirmada.” (DELEUZE, 1985:282)
77

Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso _
qualquer fisiólogo admitirá _ é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido
não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente
são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um energético estimulante ao
viver, ao mais viver. (NIETZSCHE, EH 1995:25)

Não obstante, a saúde só é novamente adquirida quando é acolhida em sua nova


forma e singularidade, incomparável com qualquer estado corporal prévio. É a permanente
disposição para a ação, interessada pelo conflito entre ofensa e defesa. A alegria e o vigor
estão presentes mesmo na fraqueza fisiológica, na dor. A grande saúde oferece disposição
para criar novas metas, novas formas e novos valores para um futuro com sede de infinitas
e imprevistas configurações.

Convém reiterar que o esquecimento é para Nietzsche, uma força plástica,


modeladora, com uma faculdade inibidora e, nesse sentido, aparece como atividade
primordial. Assim sendo, o esquecimento não apaga as marcas produzidas pela memória,
antecede a memória: ele impede e inibe que sejam fixadas informações nas lembranças. A
memória passa a ser pensada como uma “contra-faculdade”, pois é ela que se superpõe ao
esquecimento, suspendendo-o, impedindo sua atividade salutar. A grande saúde é possível a
partir de uma memória que esquece (FERRAZ,1999:31)31 e, deixa ir o que passou e cria
continuamente novos valores exatamente por habitar no instante presente, desocupando-se
assim do que passou.

31
“Para descrever a importância e a utilidade do esquecimento Nietzsche enfatiza a metáfora da
guardiã apta a fechar, temporariamente as portas e janelas da consciência, protegendo-nos das acirradas e
barulhentas lutas travadas por nosso submundo de órgãos serviçais” garantido certa tranqüilidade, um pouco
de tabula rasa da consciência e possibilitando assim, o surgimento do novo e o reinado, o domínio (Regien) de
“funções e funcionários mais nobres”. Tal guardiã de porta mantém ‘a ordem da alma, a paz, a etiqueta”. A
“ordem” para Nietzsche refere-se às regras estabelecidas por certa aristocracia e a hierarquisação do trabalho
que, nesse caso, seriam os órgãos. O autor faz referências do fisiológico e administrativo: funções,
funcionários, órgãos. No parágrafo 19 de Além do Bem e do Mal, Nietzsche faz alusão à subordinação e
hierarquização.
78

[...] nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de
uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até
agora. Aquele cuja alma anseia haver experimentado o inteiro compasso dos
valores e desejos até hoje existentes e haver navegado as praias todas desse
“Mediterrâneo” ideal, aquele que quer, mediante as aventuras da vivência mais
sua, saber como se sente um descobridor do ideal, e também um artista, um santo,
um legislador, um sábio, um erudito, um devoto, um adivinho, um divino
excêntrico de outrora: para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a
grande saúde — tal que não apenas se tem, mas que constantemente se adquire e
é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso
abandonar...(NIETZSCHE, GC,2001:287)

Logo, para que a memória seja uma promotora da vida, temos que, ao mesmo
tempo, viver intensamente sem nos opormos à vida, sem desejarmos nos vingar dela, sem
entendê-la como se, em seus movimentos, alheios a qualquer sentido humano, houvesse
uma tentativa de trapaça ou provocação contra nós. Após tematizar o esquecimento como
atividade, como digestão, como uma força, uma forma de saúde, em uma referência de pé
da página Nietzsche acrescenta o conceito de uma memória da vontade, de uma memória
do futuro. A memória não será entendida como a prisão das marcas do passado implacável,
não transformável, não corresponderá à indigestão de uma palavra anteriormente
empenhada, da qual não se consegue livrar. Passará a ser “um ativo não-mais querer-livrar-
se”. Em outras palavras: lembrar é um continuar querendo o já querido: trata-se, portanto,
de uma verdadeira memória de vontade. “Esse conceito de memória, em que se enfatiza seu
aspecto ativo, se vincula a um conceito de vontade ligado à palavra que se empenha à
promessa deliberadamente mantida” (FERRAZ,1999:31). Não se trata de uma
intencionalidade da consciência do agir, mas, antes, de um “querer-querer” de um lembrar-
se que se quis, de um seguir querendo.

Nietzsche afirma que se o homem coloca em risco sua própria saúde, sua própria
felicidade é em nome de outra potência, para inventar o futuro para si, para projetar-se no
futuro. O comprometimento da memória não aprisiona o homem ao passado indigesto, mas
o lança na possibilidade inédita de projetar-se em um futuro desejado.
79

O tema do esquecimento articula-se à elaboração nietzschiana do conceito de


“grande-saúde”, bem como à sua investigação acerca dos riscos que a produção
violenta e cruel da memória –os procedimentos embrutecedores daquilo que
chamou de “moralidade dos costumes”. –representam, no sentido da debilitação
das forças vitais do homem, de sua aptidão a esquecer e a instalar-se plenamente
na alegria e na inocência presente. (FERRAZ,1999:31).

A grande saúde é, portanto, a capacidade de amar a efetividade até mesmo em


nossos momentos de doença. A filosofia para Nietzsche não deve ter o propósito da
erudição, o objetivo das verdades que são ilusões, mas deve ser usada para a saúde: “aquele
que quiser justificá-la terá que mostrar a que fim os povos saudáveis utilizam e utilizaram a
filosofia.”(NIETZSCHE apud FERRAZ, 1999:31) Modelo de povo saudável são os
gregos, que utilizavam do conhecimento em benefício da vida: “como eles nós deveríamos
aprender (...) colocando o saber adquirido a serviço da vida, enquanto suporte, e não a
serviço do conhecimento erudito” (NIETZSCHE apud FERRAZ, 1999:32) A filosofia deve
propor sentidos novos para se pensar a vida, criar novos sentidos, propiciar novos
significados à existência.

A grande saúde deve se contrapor aos conceitos que despotencializam e estagnam as


forças que exprimem a vontade de vida da natureza e, conseqüentemente, dos corpos. Para
Nietzsche, a filosofia, assim como a arte, deve dar significado à vida, mesmo que para isso,
seja necessário ressignificar o conhecimento. Portanto, é preciso que o homem seja
permanentemente estimulado a recriar valores que o instiguem para o futuro, nutrindo a
vida, o prazer, os sentimentos, os impulsos vitais. A criação é da natureza do impulso,
portanto, apenas acontece quando se vive em completa integração com a existência, em
uma relação de entusiasmo pleno com o viver. A filosofia é, por conseguinte, condição para
a vida, para proporcionar significados capazes de desenvolver uma força no olhar para
encarar um futuro que exige coragem e postura de guerreiro.
80

2.1.3 –Amor fati

Em Ecce Homo (1995), Nietzsche escreve sua autobiografia levando em conta sua
concepção de vida que considera como ponto crucial a arte, que serve como modelo de sua
própria inteligibilidade. Para o filósofo, a vida pode ser compreendida por meio da arte32,
porque a existência não repousa sobre nenhum fundamento, mas sobre a aparência, a ilusão,
o acaso, o inventado.
Nietzsche concebe a vida como uma obra de arte, porque esta é criação do próprio
homem que revela sua força interpretativa da própria existência. Mendonça (1998) acredita
que o objetivo do filósofo alemão, ao escrever Ecce Homo consiste em afirmar a vida por
meio de suas criação permanente e, também, para reinterpretar sua própria vida como
forma de embelezá-la. Não tem importância definir a fronteira entre a existência e a arte, a
realidade e ficção, pois “Nietzsche ao ultrapassar os limites entre arte e vida, pretende que
nos tornemos poetas de nossa própria existência." (MENDONÇA, 1998:56) A arte figura às
atividades como tarefa interpretativa da vida, como um meio de tornar as coisas belas,
atraentes e desejáveis, mesmo quando isto é difícil, afastando dessa forma a expectativa de
que a verdade seja imprescindível para a vida.

Afastar-se das coisas até que tenhamos delas uma visão parcial e falha e ajuntar
muito por nós mesmos para continuar a vê-las ainda; ou contemplar as coisas a
partir de um ângulo para vê-las parcialmente; ainda dar-lhes uma superfície e
uma pele que não possua uma transparência completa: tudo isso precisamos
aprender com os artistas. (NIETZSCHE, GC, 2001:202)

Se para o filósofo não existem verdades absolutas a arte pode ser valorizada sob
vários aspectos, mas principalmente, por se tratar de uma criação que se afirma no próprio

32
Mendonça afirma que Nietzsche embora faça uma crítica à obra de arte institucionalizada, pois a
mesma fica presa a limites e conseqüentemente, a separa da vida. Há uma valorização da arte para além de
tais limites. A arte, é para Nietzsche, possui a tarefa primeira de embelezar a vida. “A arte aliada à vida
serviria como uma arma para se vencer o pessimismo, inventando um sentido para as paixões, as dores e as
angústias da alma”. (MENDONÇA, 1998:54)
81

movimento do criar, possibilitando a produção de um sentido afirmativo para a existência,


mesmo com os dissabores que são inerentes ao existir. A arte é um pensamento capaz de
afirmar o artifício, a ilusão como instância constitutiva da vida, uma vez que não existem
verdades absolutas, mas interpretações. Em Ecce Homo, o filósofo afirma a primazia das
interpretações sobre um comprometimento com a veracidade para além das perspectivas
vitais.

Não há nenhuma pretensão de Nietzsche em melhorar a humanidade. Suas


indagações não têm o objetivo de aprimorar o homem, mas em desvelar o que está oculto
nas verdades até então defendidas. O filósofo questiona a capacidade das pessoas em
suportar, em ousar a verdade, contrapondo-se à modernidade típica do Iluminismo, na qual
havia certa “garantia” de que a veracidade poderia ser compartilhada por todos,
indistintamente. O filósofo indaga sobre o real desejo de desvelar a verdade:

Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar


forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar.
O gelo está próximo, a solidão é monstruosa _ mas quão tranqüilas banham-se as
coisas na luz! Com que liberdade se respira! Quantas coisas sente-se abaixo de
voluntária no gelo e nos cumes _ a busca de tudo o que é estranho e questionável
no existir, de tudo o que a moral até agora baniu. Uma longa experiência, trazida
por tais andanças pelo proibido ensinou-me a considerar de modo bem diferente
do desejável as razões pelas quais até agora se moralizou e se idealizou: a história
oculta dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes surgiu-me às claras.
Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? (NIETZSCHE, EH,
1995:64)

Para suportar seus escritos, é preciso ser forte, pois sua busca está em escavar tudo
aquilo que é estrangeiro, distante e, para isso, é preciso dureza e coragem para conhecer,
para suportar o desvelado, o conhecido. Para Nietzsche, até aquele momento, a verdade33
era proibida, e, daí, decorrem a defesa de um mundo forjado e a recusa da realidade.
Fornazari (2004) afirma que em Ecce Homo, percebe-se um homem profundamente

33
Nietzsche considera que não existem verdades, mas interpretações e o seu pensamento é uma
confrontação com o pensamento metafísico religioso e filosófico, este como fundamento da ciência moderna.
O filósofo alemão considera que a superação do pensamento metafísico, está na perspectivação, ou
multiperspectivação, do mundo como uma condição do conhecer, o que implica a aceitação da verdade como
uma interpretação, assim: “Não há fatos; somente interpretações!”.
82

“afinado com seus ‘estados internos’, que se sente e se pensa a partir deles que, na verdade,
como pretendemos observar, se sabe a si mesmo como uma multiplicidade de estados
internos[...]" (FORNAZARI,2004:20) Ao se caracterizar a partir dos estados internos de
tensão ou multiplicidade, o filósofo desvincula-se do entendimento da subjetividade tão
presente e defendido pela modernidade filosófica. Subjetividade entendida como caráter
dos fenômenos psíquicos: idéias, lembranças, percepções, pensamentos que são
apreendidas como se fossem apropriação do sujeito. Nietzsche procurará desvendar esse
princípio, afirmando que a subjetividade é produzida a partir do corpo e da vida, mais
propriamente, a partir das vivências. Abre-se, dessa maneira, o caminho para a verdade34
até, então, bloqueado.

Ao se sentir grato à vida pelo trimestre produtivo, conseqüência de uma trégua da


enfermidade, Nietzsche estender sua gratidão à totalidade de sua existência, dirige um olhar
à sua vida como afirmação incondicional do eterno retorno35 e do amor fati.

A partir desse pressuposto percebe-se que Nietzsche nega a idéia judaico-cristã de


um mundo marcado pela criação e um transcurso linear visando ao juízo final. Ao mesmo
tempo, o filósofo alemão, também, rejeita a idéia moderna do progresso em permanente
estado de evolução. A concepção nietzschiana de universo “[...] se constitui como uma
multiplicidade finita, embora gigantesca, de forças que incessantemente e inexoravelmente
se articulam e tornam a articular-se em configurações que nunca se consolidam como ser,
permanecendo em eterno vir-a-ser.”(FORNAZARI,2004:33) O homem, segundo Nietzsche
está inserido nesse contexto sem nenhuma responsabilidade por estar nessa circunstância,
por fazer parte da fatalidade do mundo e de tudo o que foi e será. Portanto, não há propósito

34
É oportuno ressaltar que Nietzsche também usa “mentira” e “verdade” de outra forma nos seus
escritos finais. Em que sentido, ele acusaria o cristianismo de “mentir”, “falsificar” a realidade, se sempre
valorizou a “mentira”, a “ficção”? No sentido de que haveria duas mentiras, uma que deturpa a vida da
religião, da metafísica, da moral -, “mentira sagrada” e outra que potencializa a vida – da arte: “mentira
artística”. BLONDEL, Eric. As aspas de Nietzsche: filosofia e genealogia. In. MARTON, Scarlett (org).
Nietzsche Hoje? São Paulo: Brasiliense, 1986:110-139.
35
Segundo FORNAZARI, o eterno retorno “apóia-se no amor incondicional ao fatum, que se define
como uma fatalidade inexorável, aparentemente dependente, pra ter alguma significação para o homem, de
uma determinação humana, ou seja, depende que ele queira viver de novo um número infinito de vezes cada
instante de sua vida.” (FORNAZARI, 2004, 32)
83

no existir: “É-se necessariamente, é-se um pedaço de fatalidade (verhängniss), pertence-se


ao todo, é-se no todo _ não há nada que pudesse julgar, medir, comparar, condenar o todo...
Mas não há nada fora do todo!” (NIETZSCHE, CI,1992:55)

Portanto, o homem está indissociavelmente ligado ao acaso do mundo e não cabe a


idéia de livre-arbítrio ou de vontade livre. Este é parte do todo e suas virtudes bem como
imperfeições fazem parte do mesmo aspecto da existência não permanecendo a
possibilidade de mudança. O homem deve ser capaz de afirmar a existência na sua
totalidade. E em Ecce Homo, Nietzsche assume a si próprio como alguém que é capaz de
afirmar, incondicionalmente, a vida e desejar que ela retorne sempre, do mesmo jeito, sem
nada tira nem por.

No primeiro capítulo da referida obra, Nietzsche já evidencia o amor fati36 ao


afirmar a felicidade da fatalidade de sua existência: “A fortuna de minha existência, sua
singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai
já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço.”(NIETZSCHE, EH, 1995:23) O
filósofo demonstra a fatalidade da existência e a sua diversidade, ao considerar que há um
lado da existência que é morte, decadência e outro que é vida, saúde. Viver é uma
fatalidade, um acaso, um enigma. No mesmo ano em que seu pai morreu, o filósofo
também passava por um momento de declínio físico, de decadência que o levou a afastar-se
da cátedra na Basiléia, passando a viver em St. Moritz como uma sombra por causa do
inverno e da ausência do sol. É nesse período, que escreve O andarilho e sua sombra.
Nietzsche conhecia profundamente a sombra. No inverno seguinte o filósofo alemão vai
para Gênova e, embora sentisse sua saúde abalada, com dores de cabeça intensa, escreveu
Aurora. O filósofo afirma que, nesse período, havia uma “perfeita luz e alegria, mesmo
uma exuberância e espírito que a obra reflete, harmoniza-se em mim não só com a mais
profunda fraqueza fisiológica.” (NIETZSCHE, EH,1995:24) Tal afirmação nos leva a
entender que o adoecimento físico não é impedimento para que sua força vital estivesse
presente e possibilitasse a exuberância de espírito.

36
Amor fati é uma expressão latina utilizada por Nietzsche para definir o amor ao destino da forma
como ele se apresenta, do amor incondicional ao destino.
84

“[...] e o que mais me seja próprio, tudo foi então aprendido, é a verdadeira
dádiva daquele tempo em que tudo em mim se refinava, tanto a observação
mesma como os órgãos da observação. Da ótica do doente ver conceitos e valores
mais são, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao
secreto lavor dos instintos de décadense _ este foi o meu mais longo exercício,
minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso.”
(NIETZSCHE, EH, 1995:24)

Percebe-se, então, que, para o autor, o fundamental é se conhecer fisicamente para


tornar-se sadio. Conviver com a doença não o impediu de ser capaz de procurar estabelecer
valores sãos e também o contrário, a plenitude da vida não foi empecilho para se chegar a
decadência. Essa vivência entre a saúde e a doença forneceu condições para o exercício do
deslocamento de perspectivas que prepara a possibilidade de estabelecer novos valores.

Nietzsche afirma que ser sadio é conhecer o corpo e fazer escolhas de remédios
corretos para os estados ruins; ao contrário, os “decadentes em si” realizam escolhas que
lhes causam mais malefícios. Deste modo, o filósofo afirma que, na perspectiva de sua
totalidade, é sadio e, em sua especificidade se reconhece decadente. “Tomei a mim mesmo
em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso _qualquer fisiólogo admitirá _ é ser no
fundo sadio.” (NIETZSCHE, EH, 1995:24) Na concepção nietzschiana, o homem sadio é
aquele que valoriza a vida, o querer viver. A doença pode ser até uma forma de estímulo, de
desafio para a vida: um energizante, uma provocação, um convite à vida, um querer viver.
Assim se comportou o filósofo, saboreando a existência, valorizando as pequeninas coisas
do cotidiano. São os detalhes de sua experiência que evidenciam a realidade e não as
abstrações como “Deus”, “alma”, “virtude” que, segundo ele, não passariam de
antinaturais.

[...] fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia. Pois atente-se para
isso: foi durante os anos de minha menor vitalidade que deixei de ser um
pessimista: o instinto de auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia de
pobreza e do desânimo (NIETZSCHE, EH, 1995:24-25)
85

Na ótica nietzschiana, o homem que deu certo é aquele que busca o que lhe é
salutar, que supera a doença, as injúrias e que tira proveito dos acasos ruins e sabe reagir,
lentamente, aos estímulos. O resgate das coisas que, tradicionalmente, são relegadas ao
esquecimento como alimentação, clima, a forma de se relacionar com a cultura precisa ser
efetuado. O homem que deu certo é aquele que não quer nada diferente do modo em que as
coisas apresentam: “Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada
de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente
suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo, mas amá-lo [...]”(NIETZSCHE, EH,
1995:24-25) A grandeza do homem está em sua capacidade de afirmar o mundo em seu vir-
a-ser necessário e circular, de amar a fatalidade37 da existência.

É importante ressaltar, que embora fatalidade para Nietzsche seja entendida como
necessidade, há ainda um significado importante que é o da fatalidade inexorável de forças
do universo. Dessa forma, qualquer existência está inserida nessa fatalidade. E Nietzsche
ama o seu destino como decadente e sadio, se reconhecendo e se afirmando de forma
irrestrita da forma que é. “[...] Nietzsche mesmo procura mostrar que a felicidade da sua
existência está em ela ser aquilo que é: um pedaço de fatalidade que, em sua
inexorabilidade, comporta em si, inclusive, o trágico, o calamitoso, o fatídico.”
(FORNAZARI, 2004:45)

O homem é entendido como parte integrante do universo e sua própria afirmação da


necessidade é uma auto-afirmação do mundo. Conseqüentemente, o homem afirmativo é
aquele que possui forças capazes de se auto-afirmarem, sendo o eterno retorno expresso em

37 Fornazari afirma que a fatalidade em Nietzsche significa necessidade e calamidade. Também pode
se entendido como o trágico de um acontecimento como o transbordamento de um rio ou uma fatalidade
como um acontecimento inevitável. FORNAZARI, Sandro Kobel. Sobre o suposto autor da autobiografia de
Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Unijuí, 2004.
86

sua própria necessidade e pela fatalidade. Assim, a grandeza do homem está em tomar para
si como bom e necessário cada acontecimento. Cada instante torna-se fundamental:

A questão fundamental não é absolutamente saber se estamos satisfeitos conosco


mesmos, mas se estamos em definitivo satisfeitos com o que quer que seja.
Supondo que disséssemos sim a um único instante, não teríamos com isso
somente dito sim a nós mesmos, mas a toda a existência. Pois nada subsiste por
si, nem em nós mesmos, nem nas coisas: e se nossa alma tremer e vibrar de
felicidade como uma lira não o fará senão uma única vez, então todas as
eternidades serão necessárias para determinar este único acontecimento _ e toda a
eternidade terá sido salva, justificada e afirmada neste único instante de nosso
dizer-sim. (FORNAZARI, 2004:49)

Nietzsche parece afiançar que a auto-afirmação é a plenitude das forças que


compõem o universo que é, também o instante inevitável do amor fati. Assim sendo, toda a
ação do homem influencia o futuro:

Demonstrar o caráter descomunal de todas as combinações: a partir disso resulta


que toda ação de um homem tem uma ilimitada e grande influência sobre todo o
vindouro. O mesmo respeito que, vendo retroativamente, consagra ao destino
inteiro tem ele de consagrar para si próprio. Ego fatum. (FORNAZARI, 2004:50)

O amor fati é a inserção do homem no mundo e o ego fatum é a eliminação da


dicotomia entre o sujeito e o objeto. O caráter conflituoso e necessário do universo é o que
caracteriza a interpretação trágica do mundo. Para o filósofo alemão, se o mundo se
constitui de uma totalidade de forças que estão concatenadas e que, eternamente, fluem e o
homem está inserido como participante ativo e inevitável do processo, então, liberdade e
necessidade não são antagônicas, mas complementares.
87

Nada do que é deve ser excluído, nada é dispensável [...].para compreender isso é
preciso coragem e, como sua condição um excedente de forças: pois é
precisamente até onde a coragem pode ousar avançar, precisamente na medida da
força, que nos aproximamos da verdade. O conhecimento, o dizer sim à realidade,
é para os fortes uma necessidade, tal como para os fracos, sob a inspiração da
fraqueza, a covardia e fuga frente à realidade _ o ideal. (NIETZSCHE, EH,
1995:63)

Afirmar a realidade só é possível ao homem forte, aquele que afirma a vida, que se
entrega ao destino. Para Nietzsche, o homem tem que ser dono de si mesmo, enfrentar o
acaso, encarar a vida com todas as suas dores e alegria. “Tomar a si mesmo como um fado,
não se querer “diferente” _ em tais condições isso e a grande sensatez mesma.”
(NIETZSCHE, EH, 1995:31) O homem é, em si mesmo, o fado e a leveza, não há que
responsabilizar a vida e buscar em outro lugar, no mundo transcendente para viver. Viver
ocorre no aqui e no agora e é necessário se enfrentar, encarar a vida.

É essencial ser um guerreiro, possuir a natureza forte, que necessita obstáculos para
ir à procura da resistência, para afirmar o inevitável combate de forças. “[...] o pathos
agressivo está ligado à força quanto aos sentimentos de vingança e rancor à fraqueza.[...]
todo crescimento se revela na procura de um poderoso adversário _ ou problema: pois um
filósofo guerreiro provoca também os problemas ao duelo.” (NIETZSCHE, EH, 1995:32)
Nietzsche reivindica que a existência seja vivida por inteiro, dizendo sim à vida de forma
plena e abandonando o processo da metafísica.

O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade
de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais
elevados tipos _a isto chamei dionisíaco, isto é, entendi como a ponte para
psicologia do poeta trágico. [...] neste sentido tenho o direito do considerar-me o
primeiro filósofo trágico _ ou seja, o extremo oposto e antípoda de um filósofo
pessimista. Antes de mim não há essa transposição do dionisíaco em um pathos
filosófico: falta a sabedoria trágica. (NIETZSCHE, 1983:18)
88

O dizer sim à vida é o âmago da postura dionisíaca que é a entrega ao amor fati. Em
Assim Falou Zaratustra, Zaratustra está doente e convalescente, o eterno retorno que, no
primeiro momento, causa medo mas desaparece no momento da cura. No símbolo de
Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são a expressão do outro lado da alegria.
Portanto, os homens não devem fugir da vida, mas afirmá-la, compreendendo que a tristeza
é, apenas, o outro lado da alegria.
89

CAPÍTULO III

3. O CORPO HOJE

O homem é corda estendida entre o animal e o super-


homem: uma corda sob o abismo; perigosa travessia,
perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso
tremer e parar.
O grande no homem é ele ser uma ponte e não uma
meta[...]. (NIETZSCHE, AFZ, 1985:25)

Nos capítulos anteriores, focamos a questão do corpo na tradição filosófica Greco-


cristã. Vimos que esta rejeita o corpo em benefício da alma, que valoriza um mundo
transcendente e menospreza o mundo efetivo. Nessa visão transcendente, a problemática da
corporeidade38 foi reduzida à união entre o corpo e a alma e à relação entre o sensível e o
inteligível. Como conseqüência, a corporalidade foi pensada em um plano ideal, distante da
realidade concreta do homem, qual vive com seu corpo.

Do mesmo modo, foi analisada a afirmação do corpo, segundo o pensamento de


Nietzsche. Propusemo-nos esclarecer a denúncia feita pelo filósofo da negação do corpo e
o que isso encobria: os interesses e “desvios” de interpretação que escondiam o corpo e
não permitiam incluí-lo nas discussões sobre o pensamento e a situação do homem no
mundo. Ao mesmo tempo, mencionou-se que Nietzsche advertia que a necessidade de
criar valores metafísicos é oriundo dos seguidores do ideal, pois esses negam a terra e o
corpo enquanto natureza e origem de todas as forças.

38 No livro Sentir, Pensar e a Agir a autora analisa a relação do homem e sua corporeidade no
pensamento filosófico, demonstrando a evolução desse pensamento e as interferências de cada época para o
entendimento do corpo. Sua trajetória inicia-se em Platão e finaliza em Merleau Ponty, enfatizando que este
considerava a ambigüidade do ser humano como intencionalidade. “Como consciência e corpo, desvelando
sua unidade a partir da raiz sensível, corpórea, e da experiência original do ser-no-mundo”. GONÇALVES,
Maria Augusta Salin. Sentir Pensar e Agir: Coporeidade e educação. São Paulo, 1994: 39-64.
90

Nietzsche, ao contrário, valoriza o corpo e considera que o processo de criação é de


natureza inconsciente, portanto instintiva e o desprezo pelos instintos, impede a invenção.
O rancor dirigido contra a vida e o desejo do além-mundo faz com que as forças criativas
sejam despotencializadas. Quando o homem segue a moral que condena o corpo, os
instintos, ele amortece suas forças. Pelo afastamento dos instintos vitais o corpo se
angustia por não ser capaz de construir novos sentidos e novas avaliações, em decorrência
dos movimentos próprios da vida.

Neste capítulo será feita uma breve análise nietzschiana sobre a arte e sua relação
com o corpo e a existência. Posteriormente, abordaremos a postura do homem
contemporâneo com seu corpo, enfatizando o conceito estabelecido de belo e seu
comportamento com o corpo. Nosso objetivo principal agora é tomar posição diante da
questão: o corpo hoje é valorizado ou negado?

Para responder a esta pergunta, busca-se relacionar e entender a negação do corpo


promovida pela tradição grega e judaica, o corpo em Nietzsche e a interpretação estética
do corpo do homem contemporâneo.

3.1. Nietzsche e a justificação estética do mundo

Através de seus estudos sobre a Grécia, Nietzsche propôs uma transformação dos
valores modernos e uma visão diferente do mundo, denominada por ele de concepção
trágica ou de justificação estética do mundo. “Nos fragmentos de 1871, Nietzsche
menciona que as miragens são meios de conhecimento e que o objetivo do conhecimento
é também um objetivo estético”. (MACEDO, 2006:133) O filósofo busca não restringir a
existência, apenas, aos aspectos cognitivos e apresenta a filosofia como obra de arte,
como perspectiva, como criação e não, somente, como atividade cognoscitiva.

Nietzsche, em A Gaia Ciência, ressalta sua valorização da bela aparência e declara


sua admiração pelos gregos, em relação à atitude valente e saudável de viver sem querer
91

desvendar, descobrir e desnudar a vida em busca de seu lado oculto e indecifrável: “[...] é,
para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender
e ‘saber’ tudo. Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás
de enigmas e de coloridas incertezas.” (NIETZSCHE, GG, 2001:15)

Se a vida necessita da arte, da aparência para que seja afirmada integralmente, como
é especialmente defendido em O Nascimento da Tragédia,39 procurar uma verdade
absoluta, implica em negar a vida como pura aparência estética. Nietzsche considera que a
ciência se constitui na promessa de proporcionar ao homem o máximo de prazer com o
mínimo de desprazer. Essa atitude provoca um desencantamento e desinteresse pela
existência. O fundamental seria afirmar a vida por meio das imagens, das miragens
estéticas que estimulam a alegria de viver.

Em O Nascimento da Tragédia40, Nietzsche analisa a existência de dois instintos


estéticos da natureza: o apolíneo e o dionisíaco41. O filósofo considera que esses dois
instintos são fundamentais, porque se a arte exprime o devir da vida e se a vida se afirma na
aparência, de forma artística, os instintos estéticos são responsáveis por tudo o que há no

39
Esta obra corresponde à primeira fase de pensamento nietzschiano. Nietzsche está mais voltado para
o destino da arte e da cultura. É influenciado por Schopenhauer e Wagner, e busca uma forma de arte livre da
erudição e burocracia das artes do período, restaurando um senso trágico de arte, como uma tragédia grega,
com uma postura ativa diante da existência. Posteriormente, Nietzsche rompe com a metafísica, distanciando-
se de Schopenhauer e Wagner desiludindo quanto a obra de arte total. Na segunda fase começando por
Humano Demasiado Humano, percebe-se a valorização do conhecimento cientifico como maneira de resolver
os problemas que tanto lhe atormentavam. Nietzsche refina sua habilidade de filólogo e de psicólogo,
construindo seu método genealógico, como um método de explicação que dissolve o absoluto, o imutável. Em
Assim Falou Zaratustra, inicia a terceira fase do pensamento nietzscheano, que é marcado pelo aparecimento
de conceitos, como além-do-homem, vontade de potência e o eterno retorno, noções fundamentais para o
entendimento de sua obra.
40
“(...) a tragédia seria na concepção nietzschiana, um modo coletivo de lidar com o absurdo da
existência e de suportá-lo, a arte funcionaria como proteção, como um sono reparador, um véu sobre o caos.”
MACEDO, Iracema. Nietzsche, Wagner E A Época Trágica dos Gregos. São Paulo: Anablume, 2006, p.136.
41
Dioniso simboliza a natureza, o excesso e o irracional. O culto a Dioniso, na antiga Grécia, aparece
ligado a orgias e festividades onde eram cometidos todo o tipo de excessos. As festas em honra de Dioniso
são inseparáveis também da música e da dança onde os participantes se fundem com o todo envolvente ( o
Uno Primordial, a energia vital ).
Apolo é o contraponto de Dioniso. É o símbolo da ordem, medida, proporção, forma. Identifica-se
com o sonho, as imagens e as formas individualizadas. As suas artes são a epopéia (Homero) e a escultura.
NIETZSCHE, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Cia das Letras, 1992.
92

mundo, pois, somente por intermédio destes, a vida desenvolve sua atividade criativa.
Nesse sentido, o corpo e os instintos são a base para se compreender seu pensamento
estético. Esses instintos são expressões estéticas da natureza em busca de expansão.

Na interpretação nietzschiana, Apolo e Dioniso simbolizam dois aspectos diferentes


de uma mesma fonte, que é a própria Natureza. Isto é, a natureza se exprime através dos
instintos artísticos: Dioniso revela as forças misteriosas e irracionais que surgem da
natureza e Apolo a ordem e moderação que lhes é dada.

Nietzsche aprecia a tragédia, nesse período inicial de seu pensamento. Se a


tragédia não pode ser julgada simplesmente pela noção de beleza, é porque ela dá
um salto além da aparência, além do fenômeno, além da representação. A noção
de beleza, nesse momento para Nietzsche, está estreitamente vinculada ao mundo
visível, ao mundo da sensibilidade plástica e a noção de sublime é metafísica.
(MACEDO, 2006:133)

No pensamento nietzschiano, a arte é o resultado dessa tensão entre os dois


impulsos, cuja finalidade é proporcionar consolo metafísico. Aqui, é importante ressaltar
que, embora tenha sido mencionado nos capítulos anteriores, o combate de Nietzsche
contra a metafísica não significa que tal postura seja apresentada desde o princípio de sua
filosofia. Macedo (2006) pondera que, no início da trajetória intelectual de Nietzsche, não
havia uma separação radical das categorias da filosofia tradicional. Em vários aspectos, o
filósofo compactua com a tradição, embora tenha apresentado uma versão nova:

[...] Nietzsche não se separa radicalmente do curso tradicional da filosofia, ao


contrário, sob muitos aspectos, compactua com a tradição, trazendo-lhe, no
entanto, uma abordagem nova, uma visão estética do mundo contraposta à
identidade entre o ser e o pensamento, divergindo nesse sentido da metafísica
tradicional sem, no entanto, negá-la. (MACEDO, 2006:133)
93

No primeiro período, Nietzsche está convencido da força transformadora que a


Grécia poderia representar para a modernidade. A arte42 é a afirmação da vida diante da
crueldade e do horror, colocando-se para além do bem e do mal. A vida é provocada pelas
aparências, pelas formas e são os instintos criadores, artísticos por excelência, que a
afirmam. Nietzsche afirma que a representação artística do real, da essência, da natureza é a
estratégia, o artifício que a vida criou para se afirmar por meio da ilusão estética.

Não obstante, a Grécia antiga é elogiada como uma civilização saudável e forte o
bastante para fazer da arte uma terapêutica contra o desânimo e capaz de tornar a existência
mais bela e mais digna de ser vivida. O destaque outorgado pelo filósofo aos gregos está
em sua capacidade de enfrentar a vida, de experienciar os horrores da existência, encarando
o pessimismo como componente do existir. O filósofo afirma que a arte salva o homem
grego, ameaçado diante do extremo perigo do pessimismo e do aniquilamento.

A afirmação da vida ocorre por meio da valorização dos impulsos estéticos naturais
e se apóia nas criações artísticas decorrentes deles, sustentando o desejo de vida. Por meio
dos seus poderes criativos, os gregos puderam tornar a existência novamente digna de ser
vivida. A estratégia estética utilizada pelo filósofo não tem como objetivo de dominar o
instinto dionisíaco através de sua repressão e negação. Ao contrário, é por meio de sua
consideração estética e embelezamento que é permitido o equilíbrio entre a força dionisíaca
natural responsável pela destruição desmedida e o apossar-se de sua potência para as
criações das aparências, através das quais a vida se expande.

[...] A característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o


elemento dionisíaco transformando o próprio sentimento de desgosto causado
pelo horror e pelo absurdo da existência em representação capaz de tornar a vida
possível. [...] É evidente, portanto, a distinção assinalada por Nietzsche entre as
duas manifestações dionisíacas. Está claro também que o dionisíaco artístico não
se opõe ao apolíneo, mas supera esta oposição justamente por ser artístico e
implicar necessariamente aparência. E, finalmente, também o dionisíaco
celebrado por ele não é o do culto orgiástico, mas o do artista trágico.[...]
(MACHADO, 1985:28)

42
Nietzsche, nesse período considera a arte como a atividade essencialmente metafísica do homem.
Esse entendimento sobre a arte resulta da profunda influência do artista Richard Wagner e de Schopenhauer.
94

A partir da arte trágica, foi possível a união dos instintos dionisíaco e apolíneo, o
grego teve condições de desejar e celebrar a vida, não obstante sua essência dolorosa.
Nietzsche considera que essa é a importância salutar da existência de estados que
promovem a ilusão artística através da qual a vida pode ser experienciada.

Após romper com Wagner e Schopenhauer, o filósofo rompe com a visão metafísica
da arte e da vida. A arte passa a ser entendida sob um ponto de vista somente sensível, a
beleza passa a enfocar a temática da obra de arte trágica e de seu sentido para homem e a
cultura, agora sob a fórmula de "grande estilo".

Eu quero aprender cada vez mais a considerar as necessidades das coisas como
beleza _ assim eu serei um daqueles que tomam as coisas como beleza, amor fati:
que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra contra o
feio eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acusadores.
Suspender olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu não quero, a partir
desse momento ser outra coisa senão pura afirmação. (NIETZSCHE, GC,
2001:187-188)

A beleza é percebida como afirmação da efemeridade, da finitude, da corporeidade.


É a inevitabilidade que passa a ser afirmada, a beleza abrange o caos, o monstruoso. A
criação pressupõe uma profunda conciliação com as forças naturais, com a terra, com o
corpo. O amor fati está em ver a beleza na necessidade das coisas, torná-las belas através da
afirmação e da criação e admirar-se pela própria vida. É oportuno ressaltar a distinção entre
a primeira fase, na qual Nietzsche enfatizava a transcendência da arte e a segunda na qual a
perspectiva está em amar a existência sem fugir da dor, da alegria, do acaso. “A nova
abordagem de Nietzsche sobre os gregos, um povo que teria aprendido como nenhum outro
a transformar a fatalidade em beleza, um povo amoroso e pleno de gratidão pela
existência.”(MACEDO,2006:189) O apolíneo e o dionisíaco e seus respectivos
correspondentes estados fisiológicos, o sonho e a embriaguez, articulados com os processos
de lembrança e esquecimento configuram as aparências e as produções culturais.
95

A arte e o impulso artístico na obra de Nietzsche remetem invariavelmente, ao nome


de Dioniso. E isso serve tanto para sua primeira obra sobre a tragédia grega quanto para as
reflexões tardias. Embora na primeira fase Dioniso estivesse associado à metafísica e à
noção do sublime, posteriormente, ele passa a ser associado à beleza e à fisiologia. Macedo
(2006) considera fundamental no pensamento nietzschiano a idéia da arte que busca
combater a decadência, “[...] a principal arma contra o nihilismo e o modo mais
transparente de expressão da vida que, para o Nietzsche maduro, significa dizer: a arte é o
modo mais transparente de vontade de potência, o princípio antinihilista por excelência.”
(MACEDO,2006:151)

Frente à medonha comprovação da efemeridade da vida humana, os gregos


construíram as representações dos deuses do Olimpo, deuses com características
semelhantes aos homens, porém, imortais. Os gregos ultrapassaram suas tristezas e não se
deixaram abater, imortalizando-se através da arte que, celebrando os deuses olímpicos, ao
mesmo tempo os tornavam belos e semelhantes às divindades. Refletidos na figura dos
deuses imortais, os gregos puderam esquecer-se de suas inseguranças e, assim, se
entregaram confiantes à vida, esquecendo o pessimismo: “[...] Oh, esses gregos! Eles
entendiam do viver! Para isso é necessário permanecer valentemente na superfície, na
dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o
Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais — por profundidade!” (NIETZSCHE,
GC, 2001:15)

A destruição que tanto nos causa dor e sofrimento é imprescindível para que o
fluxo vital não se estagne e para que a vida continue sendo afirmada na sua novidade e
imprevisibilidade. Criação e destruição são duas fases do processo vital. A necessidade e
a possibilidade de criar dependem da destruição e da provisoriedade das formas. Se tudo
fosse eterno, não haveria necessidade criativa. Nesse sentido, Roberto Machado (2001)
comenta que “[...] só pode haver criação se os valores são temporais; só pode haver
criação no tempo.” (MACHADO,2001:104)

Nietzsche demonstrou que não é apenas o equilíbrio, mas também a tensão que
estão presentes na existência de cada homem em sua plasticidade, em sua aparência, e em
96

sua cadência, seu movimento, seu fluir como música. Uma plasticidade que, ao aprender a
andar, pretendeu, daí em diante, a correr e, aprendendo a correr, quis voar.

Com o intuito de incentivar o homem a estar mais atento às suas “entranhas”, na


profundeza de toda a força criadora e potencializadora é que Nietzsche, no prólogo de
Assim falou Zaratustra, alertou para que não desprezassem a terra, a vida, os instintos, o
corpo, em detrimento das alucinações metafísicas do além-mundo. A terra representa o
próprio corpo, a natureza como fonte de toda vontade de afirmar e expandir a vida através
da criação de novas avaliações.

O criador não produz a partir do nada [...] ele age em sintonia com as forças que o
convocam de dentro, seguindo os impulsos que o ecoam de dentro, seguindo os
impulsos que ecoam no seu corpo, profundamente enraizados na terra. A criação
nasce na escuta dos instintos viscerais, de impulsos fisiológicos que permeiam a
presença no mundo do que há de mais íntimo [...] para criar é preciso ser
fecundado pelas forças do mundo. (BARRENECHEA, 2000:90-91)

Nietzsche valoriza a música, a dança e o riso por serem estados que acenam a uma

intensa disposição para a vida. O estar leve, sem entraves e normas que afastem o homem

de suas mais profundas forças, leva à criação e à alegria. Nietzsche valorizou a capacidade

dos gregos pela intensidade com que desejavam a vida. Não obstante, eles encontraram nas

criações artísticas uma forma de esquecimento, de conforto saudável para viver a realidade.

Os gregos arcaicos são exemplo de um povo que não desistiu da vida pela constatação de

sua frágil condição humana.

Nietzsche atribui ao corpo multiplicidade de forças que impulsiona o homem para

criações artísticas que doam sentido à sua existência. A beleza, essencialmente, é a

afirmação da vida sensível. Desse modo, a reflexão filosófica nietzschiana deixa de se ater,
97

apenas, aos limites de uma teoria do conhecimento e dissemina-se como arte em tudo que a

vida é e em tudo que há de enigmático e misterioso.

3.2. O culto ao corpo

A mídia, a ciência e a tecnologia têm propiciado o culto ao corpo e a disposição


para modificá-lo, moldá-lo por meio de dieta, musculação, piercing, tatuagem, cosmético,
prótese e cirurgia plástica. Dados publicados pela “Folha de São Paulo” do dia 16 de março
de 2006 revelam que o Brasil está em segundo lugar na realização de cirurgias plásticas no
mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Os números mostram a constante
obsessão dos brasileiros pela beleza. Na maioria das vezes, eles estão mais preocupados em
obter um corpo perfeito do que com a própria saúde.

Segundo a Sociedade Brasileira43 de Cirurgia Plástica, em 2004 foram realizadas


617 mil cirurgias plásticas, 60% delas para fins estéticos. As mulheres fizeram 70% das
intervenções, sendo que os adolescentes respondem hoje por 15% da clientela. A
lipoaspiração é o procedimento mais procurado no País, seguido das intervenções nas
mamas e das modificações na face (olhos, nariz, lábios e outros).

Os questionamentos surgem: o que leva a pessoa a modificar seu corpo? O que se


esconde nesse corpo idealizado? Esse comportamento está desvinculado dos valores
vigentes da sociedade ou segue uma lógica estabelecida pelo grupo? O que se revela no
culto ao corpo? O que se esconde no corpo conceituado belo? Por que as pessoas expõem

43
Informações recolhidas do trabalho de Givanildes Xavier dos Santos: Na sala de espelhos, a mídia
reflete as doenças da beleza: análise de discurso nas revistas “Veja” e “Época” sobre os transtornos
alimentares anorexia e bulimia. Disponível em< www.comunicasaude.com.br/Artigo acessado em 05
de fev. de 2008.
98

seu corpo? O que existe entre o estético, ético e o econômico?A questão estética
corresponde ao meio social? A modificabilidade do corpo é uma forma de aceitação ou
negação?

Para respondermos aos questionamentos é necessário seguir algumas pistas, como


investigar o corpo e o espaço no qual está inserido. Do mesmo modo, é preciso entender
as questões éticas, estéticas e a relação estabelecida pelo homem contemporâneo com seu
espaço cultural. Não obstante, é importante esclarecer que não é plausível uma
investigação linear pela impossibilidade de apreender o corpo em sua totalidade. O corpo
possui uma realidade multifacetada e, sobretudo, é um “objeto” histórico. Mas os limites
não impedem a tentativa de buscar a compreensão do processo constituinte do corpo
eficaz, belo, jovem e saudável, no sentido de descortinar o culto contemporâneo ao corpo
e fazer emergir as relações e as oposições entre os corpos.

3.2.1. A banalização do corpo ou: a modificabilidade do corpo

É no corpo que se vai gravando a história da cultura a que ele pertence. Desde o
momento de seu nascimento, o homem é moldado para pertencer a um grupo, com regras
éticas e estéticas estabelecidas. Em um dado espaço-tempo histórico, a cultura exige que
as mulheres de um determinado grupo social sejam gordas, em outro momento, que sejam
muito magras, estabelece-se um ideal de lábios enormes, seios grandes, cinturas finas e
outras inúmeras e variáveis regras a serem seguidas pelos componentes do grupo. A
construção da identidade passa, fundamentalmente, pelo corpo. A concepção de sujeito,
está intimamente relacionada à presença do Outro (inicialmente representado pela mãe,
depois pelo pai, familiares, grupo social, grupo religioso e pela cultura). Desse modo, o
corpo na sua individualidade, reflete a identidade que viu nascer nas entrelinhas do
99

discurso do Outro, no reflexo do olhar alheio. A formação da identidade reflete a


introjeção do Outro como máscara que foi apropriada. O corpo é, ao mesmo tempo, aquilo
que o Outro vê de mim e aquilo que estou mostrando a ele.

Pode-se perceber que a maneira de lidar com a corporalidade, os regulamentos e o


controle do comportamento corporal, decorrem de uma construção social, como resultado
do processo histórico. Desde os povos primitivos, o homem se utiliza das máscaras em
seus rituais, e o homem ocidental contemporâneo, com a intervenção das tecnologias e os
apelos midiáticos também se utiliza das dissimulações. As intervenções atuais deixam a
impressão de que os corpos não têm mais a obrigatoriedade de seguirem as origens
culturais, morais, religiosas e genéticas. Paradoxalmente, na liberdade da
modificabilidade existe o controle do corpo, na medida em que ocorre a possibilidade de
intervir e transformá-lo naquilo que se deseja, desobrigando-o de permanecer conforme a
natureza.

Percebe-se que o corpo do homem ocidental contemporâneo se utiliza de máscaras

que seguem um parâmetro estabelecido. Assim, as máscaras “obedecem” ao gênero,

classe social, profissão e idade. Podemos destacar que principalmente a idade, é cada vez

mais dissimulada por meio da cor dos cabelos, plásticas, cosméticos, atividades físicas, na

busca de retardar o envelhecimento e seguir um padrão de juventude e beleza

estabelecido. É possível que a procura pela “pedra filosofal” para se obter o elixir da

longa vida tenha se transformado em novas “alquimias” midiáticas e econômicas

permitindo, novamente, revelar as marcas de um tempo que nos deixa a impressão de que

se é proibido envelhecer e, conseqüentemente, morrer.

Campelo (1997) avalia que o rosto do homem ocidental é a parte do corpo mais

visada e, ao mesmo tempo, consentida pela cultura. Embora a face seja a parte do corpo
100

que mais facilmente demonstra as emoções, há também um estranhamento e a

multiplicidade escondida na pretensa identidade no rosto de cada um.

Para os homens ocidentais, o rosto é a parte do corpo mais permitida para ser
mostrada; sendo sobre o rosto que as interdições aparentemente atuam menos, no
sentido de que é uma área para ser exibida, e por isso mesmo o rosto é uma área
absolutamente demarcada pela cultura. Há tipos de olhares, assim como
movimentos da boca ao sorrir, proibidos em determinadas ocasiões. Há um jeito
apropriado para o rosto se comportar em cada situação: não se ri, não se derruba
lágrimas, não se boceja impunemente.44

Com a atual capacidade técnica e a disposição para a transformação, o rosto pode


ser mais manipulado e dificultando cada vez mais o reconhecimento da identidade. A
família, a cultura, o grupo profissional, possivelmente, revelam mais facilmente a
identificação do que o próprio corpo. Esses fatores ampliam a compreensão do
autoconhecimento do corpo, mais que o próprio rosto. Do mesmo modo, a expressão de
cada um, que é vista pelos outros, constitui uma máscara com que se camufla.
Paradoxalmente, nos escondemos no corpo e é, justamente nele que estão inscritos os textos
de nossa história que nos revelam.

Sant’Anna (2001) afirma que o corpo é um território biológico e simbólico onde se


instaura o campo de forças que, permanentemente, inquieta, conforta e se confronta. O
corpo guarda em si o traço da memória de vida: “Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável
fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços
de sua subjetividade e de sua fisiologia, mas ao mesmo tempo, escondê-lo.”
(SANT’ANNA, 2001:3) Decorre daí que o corpo é familiar e concreto em determinado
momento e, em outros, desconhecido e abstrato.

Se possuímos marcas culturais, se nos revelamos e escondemos no corpo, qual é o


motivo que leva o homem contemporâneo à busca da transformação? O que o leva a liberar

44
O livro Cal(e)indoscorpos é resultado de uma dissertação de mestrado em que a escritora utiliza o
corpo como texto.CAMPELO, Cleide Riva. Cal (e) indoscorpos: um estudo semiótico do corpo e seus
códigos. São Paulo: Anablume 1997: 69.
101

seus vínculos com o passado? Seria conseqüência do mecanismo de comunicação que traz
consigo um apelo permanente ao novo? Seria uma tentativa de independência religiosa,
estética, ética e genética? Tais comportamentos e intervenções escondem a fluidez das
relações e valores?

A tentativa de conhecer o corpo e a ambição de controlá-lo estão presentes no


interesse humano. Talvez seja uma investigação da própria superação do conhecimento,
mas a ciência e a tecnologia sempre acabam se deparando com os limites, sejam técnicos,
científicos, morais e estéticos. Sant’Anna (2001) levanta hipóteses sobre possíveis
movimentos e ações em torno do corpo. Entre elas estaria o corpo como o último território
a ser explorado, tendo em vista que o homem já explorou oceanos, montanhas, florestas e
realizou viagens espaciais. Se existe o sonho de ser o “mestre e o possuidor” da natureza, o
corpo e seu interior, segundo a autora, seria o “[...]último território a ser explorado. É
quando decodificar o genoma humano adquire ares de uma grande aventura de
descobrimento.”(SANT’ANNA,2001:18)

A união entre a genética e a técnica é analisada pela autora sob vários aspectos,
entre eles o prolongamento e a melhoria de qualidade de vida. A autora, do mesmo modo,
ressalta que tal desenvolvimento propiciou interesses comerciais “[...] e quanto mais partes
do corpo tornam-se ‘materiais de exploração e investigação’, menos o corpo é preservado
dos interesses e ações comerciais.” (SANT’ANNA, 2001:19) O corpo seria então um objeto
de estudo e de superação do conhecimento e, ao mesmo tempo, uma área que se abre para
a exploração comercial. Novas questões surgem: os limites do certo e do errado, natural e
artificial, tornaram-se mais flexíveis com o avanço midiático, científico e tecnológico?

Outra hipótese apresentada por Sant'Anna (2001) é a de que o corpo é a única posse
e o território do homem, sendo portanto, o lugar de exercício da liberdade individual. Sendo
assim, o corpo é escolhido como espaço de explorações e experiências, pois é a última
posse que lhe resta. Se vivemos em uma cultura na qual as pessoas são reconhecidas por
aquilo que possuem e que conseguem acessar, seria, uma riqueza invejável, dominar o
corpo e suas senhas. “É preciso acreditar que o corpo que ‘se tem’ é de fato totalmente
102

possuído por seu proprietário, completamente disponível diante de suas vontades e sonhos.”
(SANT’ANNA, 2001:19) O controle, ou a idéia de posse do corpo, levanta uma
inquietação, pois a distância entre o que se quer do corpo e o que ele, realmente, é pode
levar o homem ao descontrole e sofrimento.

Além das conjecturas levantadas, há outra possibilidade que mencionada por


Sant’Anna (2001): é pelo corpo que se mostra o melhor de si. É interessante e oportuna esta
referência, pois, com muita freqüência, assistimos a programas45 e propagandas televisivas
que exploraram essa idéia. Ao mesmo tempo, revistas, folhetos e outdoors reforçam esta
opinião. A tendência atual, ao contrário da imagem construída por Platão46, é de aproximar
o corpo como o mais próximo da identidade de um ser. Nesse caso, a alma perde espaço, o
corpo torna-se um ente superior à alma.

Sant’Anna (op. cit.) ressalta que a modificação da aparência pode apagar traços das
origens sociais e da idade, tornando-se difícil resistir aos apelos da indústria cosmética e
das cirurgias plásticas. Estar em harmonia com a moda, ou se sentir bem e consentir que o
corpo continue a corresponder ao que cada um deseja mostrar de si, representa uma
garantia de participação e respeito no espaço social. Além do mais, quando o corpo é
considerado não mais como morada da alma, mas como a expressão mais autêntica e real, é
nele que se investem todas as forças.

45
No livro Cal (e) idoscorpos, Campelo por meio de suas pesquisas demonstra os corpos “produzidos”
pela televisão. A autora relata as diferenças encontradas pelos apresentadores e o público a ser atingido.
Assim desde a postura corporal até as roupas são estudas para serem apresentados ao público. “O corpo da
publicidade na TV e o corpo da telenovela são semelhantes nos diferentes canais e horários: é o corpo dos
deuses dos Olimpo. Deuses gregos mesmo: nada dos orixás do Candomblé (nenhuma sensual Iansã, nenhum
Ogum viril, nenhuma Oxum-princesa, nada de teogonia tupi; quem reina quase absoluto é o ideário do
Olimpo grego (...) As mulheres são quase que descorporificada de matéria-corpo: não é o músculo que
importa, não é a força sensual, não é a ginga. A atração é o cabelo loiro, os olhos claros, a imaterialidade
física que os contos de fadas europeus registram como sendo atributos de delicadeza, da bondade
(...).”CAMPELO, Cleide Riva. Cal(e)indoscorpos: um estudo semiótico do corpo e seus códigos. São Paulo:
anablume. 1997: 83.
46
No primeiro capítulo foi investigada a relação corpo e alma segundo Platão. Demonstrando que este
menospreza o corpo e valoriza a alma.
103

Finalmente, Sant’Anna (op.cit.) suspeita que o corpo pode ser utilizado como forma
de protesto e se torna a tela da arte. Essas intervenções iniciaram-se com maior evidência a
partir da década de 1960 e alteraram-se nas décadas seguintes. O homem, por meio de
diversas experiências artísticas contemporâneas, protestou, buscou o refúgio da verdade, da
autenticidade.

Da denúncia de um corpo alienado migra-se para a revelação de um corpo


obsoleto. Turbiná-lo, aumentar seus níveis performáticos, adaptá-lo ao uso das
novas tecnologias é, desse modo, proporcional ao sonho comum na década de
1960 de retirá-lo da alienação, tornando-o mais verdadeiro e livre. Como se hoje
fosse necessário sintonizar os corpos com os objetos tecnológicos e de consumo,
enquanto para inúmeras sociedades antigas, era preciso sintonizar o corpo com o
cosmo ou com as forças sobrenaturais. (SANT’ANNA, 2001:21)

As metamorfoses do corpo não ocorrem apenas na arte, mas na ciência e na


tecnologia. O corpo, ao mesmo tempo em que é valorizado e mostrado, é explorado,
violentado e banalizado. É usado como se possuísse disponibilidade permanente à
intervenção e ao consumo.

Ao nascer, o homem traz as marcas de seu corpo biológico que se revela através da
nudez. O que é comungado com todos os animais, mas rapidamente é apagado pela cultura.
As roupas, ornamentos e intervenções realizadas por meio da religião, da ciência, da
técnica, da ética e da estética vão conferindo ao homem sua identidade social e cultural.
Cicatrizes, vacinas, cirurgias, escarificações, tatuagens, bronzeamentos, maquiagem,
próteses vão delineando, demarcando e registrando a história no homem, no tempo e no
espaço. Seria então o corpo do homem contemporâneo a denúncia da transitoriedade e
fluidez do tempo?
104

3.2.2. O sujeito e o corpo

No primeiro momento, o corpo nos parece real, visível. Cada um de nós é um corpo:
experimentamos a dor, o prazer, a fome, a fadiga. Olhamos para nós mesmos e para as
outras pessoas e vemos um corpo. Entretanto, essas certezas não são tão definitivas, pois
muito do que percebemos e experienciamos é construído socialmente. Vivemos a
ambigüidade de um corpo biológico e um corpo social.

Somos nosso corpo pelo modo como a fenomenologia47 nos vê, como um ser que se
emociona, que percebe e se move, como fundante na relação homem-mundo. Ao mesmo
tempo, somos corpo no sentido social e cultural, porque experienciamos por meio dos
valores construídos culturalmente. Complementando a união fenomenológica e cultural, o
corpo, também, está inserido nas tecnologias. Tudo isso retira a certeza da auto-imagem e
coloca a inquietação diante da multiplicidade de ângulos e de transformações.

No cartesianismo, a noção de sujeito e subjetividade, isto é, a existência do sujeito é


originada no pensamento48. Descartes separa o sujeito e o objeto: o corpo é um objeto da
natureza como qualquer outro e a substância imaterial da mente pensante é a consciência, a
alma definidora do eu. A identidade do sujeito reflexivo, racional e senhor do pensamento
e da ação foi fundamental na modernidade filosófica.49 O sujeito cartesiano supõe uma
universalização e indivisibilidade: o sujeito é substância pensante. E paradoxalmente, o
corpo é retirado desse sujeito:

47
Segundo Merleau-Ponty, o homem é um ser no mundo e só pode ser compreendido dessa forma. O
homem é ambigüidade; nele estão presentes o mundo do corpo e o mundo do espírito, sendo ao mesmo tempo
interioridade e exterioridade, sujeito e objeto, corpo e espírito, natureza e cultura. “(...) tenho consciência do
meu corpo através do mundo (...) tenho consciência do mundo devido ao meu corpo (...).” MERLEAU-
PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção, 1971, p.95
48
Descartes cria um dualismo entre mente e corpo entendidos por ele como substâncias. Por mente
podemos entender pensamento, espírito, alma, chamado pelo filósofo de res cogitans, que formaria um
mundo distinto do da res extensa que seria o corpo. Para Descartes, o homem passa a assumir um lugar
privilegiado, pois a verdade estaria em seu “interior”, ele seria a substância pensante, logo, seria o agente que
anuncia uma verdade universal. DESCARTES, Renê. As paixões da alma. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
49
Esta discussão foi levantada nos dois primeiros capítulos desta dissertação. Inclusive Nietzsche
denuncia a má compreensão que os filósofos até então possuíam do corpo, excluindo-o das discussões e
investigações filosóficas.
105

O sujeito é também uma figura de individualização na medida em que só pode se


expressar por meio de corpos e rostos. O sujeito só existe em seus efeitos, na
subtração de seus efeitos; sem um corpo ou um rosto através dos quais passar, o
sujeito não pode cumprir sua função universalizante. Daí a complementariedade e
o paradoxo: o sujeito exige a individualização a fim de expressar a
universalização; mas existe sempre o risco de que o olhar e o re-conhecimento se
apeguem ao corpo, se alijem na carne, se fixem no rosto e submerjam no fluido.
Em suma, o tecido material do corpo pode frustrar a passagem em direção ao
lugar do sujeito universal e abstrato. (DOEL, 2001:92)

A contradição entre sujeito e corpo demonstra que o corpo era compreendido como
um fantasma do sujeito e os corpos serviam apenas como individualização. Mas no final do
século XIX tal conceito e entendimento começam a ruir e a crise da subjetividade, do
sujeito universal, estável, instala-se. Santarella (2004) considera que o sujeito cartesiano
está em questão, no lugar do “sujeito” e do “eu”, multiplicam-se novas imagens de
subjetividade. “Fala-se de subjetividade distribuída, socialmente construída, dialógica,
descentrada, múltipla, nômade, situada, fala-se de subjetividade inscrita na superfície do
corpo, produzida pela linguagem etc.” (SANTARELLA, 2004:32)

Nos capítulos anteriores, foi mencionada a rejeição de Nietzsche a suposta unidade


do sujeito fundada na unidade da consciência. O filósofo questiona a concepção de
linguagem como adequação, caracterizando-a como um hábito, uma tendência a imaginar e
criar semelhanças, formada pelo uso constante e repetido das mesmas designações. A
linguagem surge em decorrência da necessidade que o homem teve de se comunicar.
Linguagem e consciência ocorrem juntas. O pensamento consciente se transformou em
palavras, em signos de comunicação.

Segundo Nietzsche, esse “eu” de que falamos é uma ficção, uma ficção lingüística,
ao falar "eu", operamos uma síntese, dessa forma é o conceito sintético que gera a ilusão de
uma unidade. Quando dizemos "eu penso", não verificamos nenhum fato, o que estamos
fazendo é uma interpretação, tomamos um processo mental que descrevemos como
pensamento e atribuímos esse estado mental a um sujeito como se esse pensamento fosse
predicado desse sujeito. Isto é, dizemos que o sujeito “eu” é autor e causa do pensamento.
A proposição "eu penso", não é um fato, não é expressão de um fato, sobretudo, não é uma
"certeza imediata", mas uma interpretação de um processo psíquico. Assim sendo, o “eu
106

penso” não é a simples descrição de um fato objetivo, puro, não é nenhuma certeza
imediata, mas é o resultado de uma interpretação que procura pelo sujeito da ação verbal.

O filósofo alemão considera que não possuímos uma percepção diferenciada de nós
mesmos, conseqüentemente, essa experiência é como a apreendemos e não é o nosso “eu”
a “coisa em si”. No lugar do “eu” universal é evidenciada a multiplicidade, em que os
processos do ser humano ultrapassam a pele, sem necessidade de se recorrer à imagem de
um sujeito autônomo. Para Santarella (2006), o problema passa a ser a cadeia de conexões
entre humanos, artefatos técnicos e os dispositivos de ação e pensamento. Os sujeitos se
transformam à medida que expandem suas conexões, não existindo uma universalização do
“eu” e a garantia da identidade originada desse eu. É na corporeidade que se busca a base
para uma teoria da subjetivação, afinal, os seres humanos passam a ser entendidos como
corporificados e não, apenas, criaturas da razão.

O homem, como ser corporificado, passa a ser livre e com maior autonomia para
intervir e modificar esse corpo, mas essa liberdade possui conseqüências sobre as quais
Sant”Anna (2005) adverte: “Pois as liberdades adquiridas pelo corpo implicam
necessariamente em novas responsabilidades assumidas. As formas de controle sobre o
corpo, criadas com o apoio técnico e científico, ocorrem de modo paralelo à descoberta de
novas coações a serem vividas”. (SANT’ANNA, 2005:15)

Essa consideração é um alerta para as intervenções que o corpo recebe, como se não
houvesse interferências e conseqüências éticas, estéticas e físicas. É importante não
perdermos de vista que a construção da imagem do corpo passa também pela esfera
psíquica. A identidade necessita de um corpo não apenas físico, mas repleto de afetos e
significados que propiciem uma “garantia” emocional a cada indivíduo.

A falta de definição do homem e os procedimentos centrados no corpo e não no ser


humano, podem romper com as fronteiras simbólicas. A condição do homem é corporal e
retirar ou acrescentar alguma coisa nesse corpo é ao mesmo tempo modificar a sua
compreensão ética e estética, uma vez que a passagem para outro tipo de humanidade
107

permite novos julgamentos de valores e um olhar distinto para esse corpo. Ao mesmo
tempo, o corpo é um símbolo social e sua transformação afeta o vínculo com o grupo.
Pensar o corpo é pensar na própria relação estabelecida entre o homem e o mundo.

3.2.3. O corpo e a lógica do consumo

O corpo inevitavelmente é apropriado e adestrado pela cultura, concebido


socialmente e alterado conforme as crenças e ideais coletivos. Desse modo, o corpo
simboliza a sociedade: a coragem, o medo, o proibido e o permitido se instalam e se
reproduzem no espaço social. Além de possuir um sistema biológico, o corpo sofre a
influência da religião, da família, da estrutura de classes, da profissão e de outros fatores
sociais como idade, gênero que não são apenas dados biológicos, mas sofrem interferência
direta da cultura.

A educação imprime os dados da tradição, moldando o corpo, adestrando-o,


adaptando-o para a as exigências sociais, seja para o trabalho, para o consumo, para a
aceitação do grupo, para os aspectos morais e estéticos. O indivíduo com o próprio corpo
não é tão consciente de que suas ações e escolhas estão profundamente vinculadas ao meio.

A mídia e o mercado exploram exaustivamente o corpo. Rostos, seios, nádegas,


bocas, olhos, pernas são expostos em jornais, revistas, televisão, cinema. Nesses meios são
exploradas conforme a imagem de um ideal estético subordinado à idéia do consumo do
corpo. A revista Época50, de outubro de 2006, em sua capa cujo título “Beleza Brasileira:

50
SEGATTO, Cristiane & FRUTUOSO, Suzane. Beleza brasileira. Época, nº 440, p.71-77, 23 out.
2006.
108

como o Brasil se tornou uma referência mundial em cirurgia plástica”, faz uma análise do
padrão estabelecido e dos significados que se escondem por trás do culto à beleza.

A poucos meses do verão, as clínicas brasileiras especializadas em cirurgia


plástica estão cheias de Saras e Ewaldos. Segundo o Ministério do Turismo, no
ano passado 48 mil estrangeiros vieram ao país para tratamento de saúde. O
volume é 70% superior ao registrado em 2004. As cirurgias plásticas explicam
boa parte desse movimento, embora nem o governo nem a Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica tenham dados exatos. Quinze médicos entrevistados por
Época confirmam que o movimento de estrangeiros aumentou. (ÉPOCA,2006:72)

A matéria demonstra alguns fatores importantes que contribuíram para o aumento


das cirurgias. Estão destacadas a capacidade do cirurgião brasileiro que possui fama
internacional; a mudança cultural provocada pela comunicação de massa e finalmente o
custo, que para os estrangeiros são muito atrativos. Na Grécia, a beleza corporal estava
representada nas esculturas, mas o modelo e a beleza era relacionado ao modelo ideal. As
pessoas entendiam que os corpos esculpidos eram a representação do vigor artístico no
grau ideal. Além disso, o culto ao corpo estava intimamente ligado ao desenvolvimento
intelectual. “Hoje, as pessoas buscam a beleza física a qualquer custo. É uma espécie de
senha para receber favores amorosos, e não apenas sexuais. É o mercado dos afetos afirma
Rodrigues.” (SEGATO & FRUTUOSO,ÉPOCA,2006, Nº 440:72)

Hoje as atrizes e atores da televisão, do cinema e os padrões na passarela e na


publicidade definem os parâmetros padrão de beleza e conduta. A representação simbólica
do poder, fama e afeto é explorada excessivamente. O “corpo ideal” é construído com o
bisturi, o desejo e a possibilidade de se chegar ao corpo criado e exposto na mídia é
estimulado.

Nos Estados Unidos, é comum as pacientes chegarem ao consultório com uma


revista de celebridades embaixo do braço. Querem o bumbum de Jennifer Lopes
ou os seios de Pamela Anderson. No Brasil, as coxas da Sheila Carvalho ou os
seios da Taís de Araújo. Acham que é fácil como copiar o penteado da heroína da
novela. (SEGATO & FRUTUOSO,ÉPOCA,2006, Nº 440:72)
109

O culto ao corpo, promovido pela mídia, pelo mercado e pela ciência provoca uma
inversão de valores. As cirurgias exploram uma imagem da alegria e segurança, os riscos
de hemorragia, infecção hospitalar, embolia pulmonar, trombose não são evidenciados,
deixando a impressão de sucesso e contentamento permanente. Do outro lado se
escondem os lucros e interesses empresariais51. Há pacotes de turismo em que estão
incluídas cirurgias plásticas. O corpo é consumido como um objeto qualquer, invertendo
a lógica, inclusive, médica. O cliente compra um serviço sem saber com antecedência se
tal procedimento tem indicação médica.

A cultura da beleza transmite a idéia de que as pessoas não serão mais amadas se
não melhorarem o corpo. Principalmente, para as mulheres, que sempre “correm o risco”
de perderem o namorado ou marido, por não cuidarem do corpo. O julgamento estético do
corpo contemporâneo leva à diminuição da auto-estima. A necessidade de ser emoldurado
dentro de um modelo estético estabelecido, principalmente para as mulheres, leva a casos
patológicos.

À medida que a beleza assume tal importância para as mulheres, seria pertinente
ressaltar que a insatisfação de uma mulher neste domínio pode ter impacto
negativo sobre a sua auto-estima. Sendo o corpo fundamental para a atratividade
feminina e como esta é elemento essencial da sua auto-imagem, é possível prever
que o peso e a satisfação com respeito a ele sejam determinantes para a satisfação
integral da mulher. É comum que elas se vejam acima do peso, mesmo quando
efetivamente tal percepção não corresponde à realidade. (QUEIROZ, 2000:57)

A identidade e a expectativa da beleza, vinculada a uma ascensão social ou sucesso


profissional reforçam a busca pela perfeição ou o empenho para se atingir a beleza física. A
percepção e as expectativas que as pessoas têm uma das outras condicionam os

51
Na mesma matéria da revista Época consta que existem empresas que financiam cirurgias plásticas
em até 30 vezes. Pacotes de turismo incluem cirurgias.
110

comportamentos. Assim, a aparência, forma de se vestir, gestos desempenham um papel


importante, não obstante, a aparência não significar necessariamente, saúde. Com certa
freqüência, podemos encontrar matérias que abordam casos de bulimia, anorexia, uso
indevido de remédios e abusos de medicamentos, todos relacionados à busca da beleza, do
culto à magreza. No jornal Diário do Aço52 de 24/05/2007, foi veiculada uma matéria cujo
título é: “Fórmula do emagrecimento e da morte”. Nela consta a foto de uma farmácia
interditada, acusada de manipular e vender um determinado medicamento emagrecedor sem
receita médica e a denúncia de duas vítimas fatais, que, no caso, eram mulheres.: “Na caça
às fórmulas ‘milagrosas’ para emagrecer, foram fechadas, na quinta-feira (24/05/07),
farmácias nas cidades de Lagoa Santa e Coronel Fabriciano e, em Ipatinga, mais um
estabelecimento foi interditado por manipular o emagrecedor com os componentes
suspeitos de provocarem a morte53.” A busca por essa identidade construída e idealizada
provoca vítimas variadas:

Um distúrbio característico de muitas mulheres é a bulimia. Essa patologia leva a


pessoa a ingerir em uma refeição enormes quantidades de alimento para depois,
sentido-se culpada, vomitar ou fazer uso de diuréticos ou laxantes, o que pode
resultar em desequilíbrios fisiológicos e conduzir, em alguns casos, até ao óbito.
Para que se tenha uma noção da gravidade do problema, estima-se que 30% das
estudantes universitárias sofrem deste distúrbio em algum grau. Patologia
igualmente séria é a anorexia nervosa, distúrbio alimentar característico de
mulheres, que respondem por 90 a 95% dos casos registrados.
(QUEIROZ,2000:58)

As manifestações das formas de agir, pensar e sentir estão, fundamentalmente,


relacionadas com a cultura. Os comportamentos estéticos, acompanham as normas
estabelecidas pelo grupo. A moda da magreza, além dos adereços, roupas e maquiagens que
modificam o corpo, exige ao mesmo tempo uma atitude, isto é, um comportamento que
submeta a estrutura física do indivíduo a um estilo dominante. Pode-se perceber que a

52
A notícia teve repercussão nacional, veiculou na internet, televisão e no jornal Estado de Minas, de
Belo Horizonte-MG. Fórmula do Emagrecimento e da Morte. Jornal Diário do Aço. Ipatinga. 24 maio 2007,
p. 07.
53
Ibidem.
111

identidade construída de forma idealizada, que busca igualar as pessoas, sem nenhum
respeito pelas diferenças individuais, sejam físicas, simbólicas ou sociais, nos deixa a
impressão de que o corpo pode ser concebido “como máquinas caça-níqueis que dancem ao
ritmo do ruído das maquininhas de cartão de crédito.” (SOUZA NETO, 2006:65)

3.2.4. O corpo idealizado na contemporaneidade

O corpo humano que, antes era considerado como obra da natureza,


conseqüentemente, intocável, passa agora, a representar a união entre o inato e o adquirido
com a contribuição do avanço tecnológico e científico. Pires (2005) considera que a
sociedade globalizada dificulta as características próprias, sejam individuais ou sociais, e
“[...] em que tudo é descartável e mutável, o indivíduo adquire a opção de construir seu
corpo conforme seu desejo.” (PIRES, 2005:13)

A disponibilidade da (cosméticos, dietas, cirurgias plásticas, academias e outras)


técnica de intervenção permitiu ao homem modificar os contornos e acrescentar elementos
à sua silhueta, possibilitando a criação de novas dimensões estéticas, propiciando ao corpo
a não obrigatoriedade da estabilidade. Essas transformações não estão desvinculadas da
história humana. Atualmente existem grupos como os “body modification”54, os “body-
building55” entre outros, que demonstram essas modificações no corpo. Courtine (2005)

54
A body modification, conceito usado para designar as modificações corporais executadas das mais
diversas formas _usando-se desde produtos químicos até intervenções cirúrgicas, nos apresenta uma nova
realidade em que as definições de natureza e cultura se interpenetram, causando na maioria das vezes um
desconforto, um estranhamento. O corpo, que em quase todas as sociedades tem sido matéria de interferências
culturais, passa agora, no período histórico em que nos encontramos, por radicais transformações. PIRES,
Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte. São Paulo, 2005: 20.
55
“O termo “body-bulding” coloca, sem nenhuma dúvida, um problema de tradução. Pois a atividade
conhecida nos Estados Unidos sob o nome de body-building excede, em suas formas recentes, a noção
daquilo que se entende na França, por “culturime” (e que no Brasil era chamado de “cultura física”, e a um
ideal de desenvolvimento relativamente harmonioso do corpo, não me parece mais corresponder à hipérbole
muscular sem precedente que se apoderou do body-building, mais recente. Além disso, há na noção de
“culturisme”, a idéias de que convém construir suas formas corporais, que faz do “body-builder” o artesão, o
escultor de seu próprio corpo. É por isso que utilizei, na falta de melhor opção, os termos “body-building” e
“body-builder” neste texto, termos cujo uso, aliás, tende a se difundir em francês.”
112

aborda o fisiculturismo e sua prática nos Estados Unidos, afirmando que esse espetáculo
está nas ruas, que entre a multidão é visível a presença desses corpos com o aumento
expressivo dos músculos:

Antes de tudo, o espetáculo está nas ruas. Entre a multidão de passantes, os body-
builders destacam-se por sua forma de andar: braços afastados, cabeça enfiada no
pescoço, peito abaulado, rigidez, balanço mecânico. O body-builder não anda; ele
conduz seu corpo exibindo-o como um objeto imponente. Não ao modo do obeso,
este outro indígena das multidões americanas, que arrasta sua anatomia como um
fardo que o entrava e o estigmatiza. O corpo do body-builder pretende, ao
contrário, tirar todo o benefício do peso no campo do olhar, saturá-lo de massa
muscular. ‘Impor-se’ pesar no olhar alheio [...]. (COURTINE, 2005:82)

Percebe-se que as transformações do corpo não ocorrem apenas para uma realização
individual, mas também para que ele seja mostrado e apreciado pelo Outro, além de
demarcar os espaços e denunciar determinada presença. O músculo retira o anonimato e
dá visibilidade a esse homem. A própria televisão, o cinema, revistas de fisiculturismo
propiciam e exploram esse corpo esculpido pelos músculos. “Insólitas massas musculares,
puramente decorativas, que não servem para correr, nem para arremessar, e que rompem
assim com tudo aquilo que, dentro da lógica esportiva, associa músculo a movimento”56.

Por trás da necessidade de visibilidade, da cultura visual do músculo, também se


escondem cifras extraordinárias, como no caso do ex-ator e atual governador do estado da
Califórnia, nos EUA, Arnold Schwarzenegger. No filme “O Exterminador do Futuro II”57
foram investidos 90 milhões de dólares. O cachê do ator foi de 12 milhões e só nos
Estados Unidos, o filme rendeu 203,3 milhões de dólares. Portanto o “body-building”
além de constituir uma das manifestações da cultura da aparência, é sustentado pela
indústria e por um conjunto de práticas de massa. O mercado do músculo e do consumo

Nota do tradutor do texto Os Stakhanovistas no Narcisismo: Body-bulding e puritanismo ostentatório


na cultura americana do corpo. In; Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade. 2005: 106.
56
COURTINE, Jean-jacques. Os Stakhanovistas no Narcisismo: Body-bulding e puritanismo
ostentatório na cultura americana do corpo.In; Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade. 2005: 83.
57
Dados retirados do livro: Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade. 2005: 110.
113

de bens e serviços destinados à manutenção do corpo se expande: vitaminas, academias,


suplementos nutricionais, revistas especializadas de boa forma, de saúde, regime
alimentar ganham espaços.

A sofisticação eletrônica dos equipamentos “hith-tech” criou o entendimento de que


é preciso “sofrer, se distraindo”. O músculo passou a ser integrado como modo de vida.
“A cultura de massa do corpo, da qual o body-building profissional constitui a parte mais
à vista: a do consumo, e da necessidade do gasto numa sociedade de consumo.”
(COURTINE, 2005:86) O corpo, conseqüentemente, não está desvinculado do seu espaço
histórico. Sant’anna (2005) afirma que as cidades revelam os corpos de seus moradores:

Mais do que isso, elas afetam os corpos, que as constroem e guardam, em seu
modo de ser e de aparecer, os traços dessa afecção. Há um trânsito ininterrupto
entre os corpos e o gesto humano e a marca “em concreto” de suas ambições e de
seus receios, e há um parentesco evidente entre um estilo arquitetônico e o
espírito de uma época. (SANT’ANNA, 2005:17)

A investigação sobre o corpo nos leva a perceber que é preciso abordar o que se
passa ao seu redor, pois o homem não está imune ao seu espaço e o espaço não é imune à
sua presença. Há uma íntima relação entre o corpo, o espaço e o tempo. As práticas e as
representações na sociedade de consumo de massa desenvolveram a idéia de que cada
indivíduo é administrador de seu corpo. Já na década de 1920, nos Estados Unidos, o
estímulo ao desenvolvimento corporal era vinculado pela publicidade: “Seja 100%
homem’, sublinhava a publicidade das revistas, distinga-se dos que estão ‘vivos pela
metade’, ‘A fraqueza é um crime! ’ _ bradava ‘Body Love’ Mac Fadden num editorial que
se tornou célebre.” (COURTINE,2005:97) Essa valorização moral e estética do volume
muscular propiciava ao homem norte americano acreditar numa suposta superioridade do
sexo viril.
114

O body-building e a constelação de práticas que desenvolveram no mesmo


período e que se parecem com ele de perto ou de longe _ jogging, aeróbica,
regimes de baixas calorias, ou ainda o desenvolvimento sem precedentes de
cirurgia plástica... _, todas essas técnicas de gerenciamento do corpo que
floresceram no decorrer dos anos 80, são sustentadas por uma obsessão dos
invólucros corporais: o desejo de obter uma tensão máxima da pele; o amor pelo
liso, pelo polido, pelo fresco, pelo esbelto, pelo jovem; ansiedade frente a tudo o
que na aparência pareça relaxado, franzido, machucado, amarrotado [...] uma
contestação ativa das marcas do envelhecimento no organismo. Uma negação
laboriosa de sua morte próxima. (COURTINE, 2005:86)

O medo irracional da velhice e da morte está intimamente ligado ao narcisismo que


é muito evidenciado na sociedade contemporânea. O envelhecimento passa a ser quase uma
“proibição” moral. Paradoxalmente, a morte é estabelecida como tabu. Não se fala sobre a
morte, distancia-se dela, mantendo as pessoas em hospitais e, após o óbito, o velório
acontece em locais apropriados, não mais em casa. O envelhecimento e a morte foram
silenciados e em seu lugar, o corpo, a nudez que era inapropriada à discussão, passa a
ocupar a televisão, a sala das residências, a via pública por meio da publicidade e nas
conversas informais. O prazer é “permitido”: envelhecer e morrer é “proibido”, por isso é
silenciado e afastado do cotidiano. O que importa é viver o presente. O “estar em forma”
ganha o sentido.

Segundo Courtine (2005) na década de 1960, nos Estados Unidos, a busca hedonista
pelo espetáculo do esporte também está atrelada ao desenvolvimento de uma abundante
literatura psicológica influenciada pela difusão da psicanálise. Isto permitiu que o corpo
fosse pensado como elemento da personalidade. Courtine (op. cit.) considera que durante
muito tempo, estreitamente controlado, o corpo torna-se fonte de prazer e, ainda, meio de
contato e de relação com os outros. Começa-se então a distinguir as formas de uma body-
language58.

A busca pelo prazer pessoal por meio das práticas esportivas vinculou-se ao desejo
de vencer. O bem-estar da atividade física passa a ser um dever moral. A cultura

58
Body-language é uma expressão que se tornou habitual entre 1925 e 1930 para designar um modo de
comunicação não verbal, inconsciente na maioria das vezes, utilizando as posturas, os gestos, a expressão
facial.
115

profissional e esportiva “(...) a exigência de disciplina passou a ser associada menos à


ordem do que ao sucesso, menos à moral do que à promoção pessoal.” (COURTINE,
2005:102) Dessa forma, o sentimento de responsabilidade individual, tanto nas vitórias
quanto nas derrotas, nas competições esportivas, foi acentuado na sociedade norte
americana. Courtine(op.cit.) assegura, ainda, que o culto da eficácia, pelo bem estar
material e a competitividade instalaram-se nos Estados Unidos da América do Norte. Não
obstante, esse autor enfatiza que o que se esconde por trás das imagens dos corpos é um
caráter gerenciado pela sociedade:

[...]os body-builders se submetem, antes de tudo, um caráter persecutório. E, de


modo mais geral, o momento narcísico da cultura do corpo nos Estados Unidos
corresponde, não a um laisser-adler hedonista, mas a um reforço disciplinar, a
uma identificação dos controles. Ele não corresponde a uma dispersão da herança
puritana, mas antes a uma repuritanização dos comportamentos, cujos signos, de
modo mais ou menos explícito, multiplicam-se hoje. (COURTINE, 2005:105)

Segundo Courtine (2005), o culto ao corpo nos Estados Unidos da América do


Norte, aflorou o narcisismo, mas não apenas segundo uma motivação hedonista. A inibição
do prazer, por meio da disciplina, e a pressuposição de que o esforço individual é gerador
de alegria são acompanhados pelo estímulo e a perseguição pelo ganho. Há nisso tudo, uma
face escondida: o olhar voltado para o narcisismo e o hedonismo oculta outros interesses. É
oportuna a análise do autor, por nos fornecer novos elementos para entendermos a
construção e a imagem do corpo na contemporaneidade e para reafirmar que o corpo é um
símbolo da sociedade. Além disso, o estudo serve para lançar novos questionamentos, entre
eles: o que está oculto no culto ao corpo? Quem se beneficia com essa imagem do belo? O
que se revela em um corpo idealizado?

Existem outros dados que podem contribuir com nossa reflexão e ampliar o
entendimento sobre o corpo. Na análise sobre o body modification, Pires (2005) considera
que as intervenções feitas no corpo e o seu real significado só são verdadeiramente
“conhecido pelo indivíduo que as possui, cria, assim como nos sonhos, uma linguagem
codificada.” (PIRES, 2005:61) Portanto, é possível seguir pistas e analisá-las, compará-las,
116

mas a totalidade do entendimento da relação entre o corpo e seu culto, escapa de nosso
controle.

Mais alguns códigos são decifrados, como a autora demonstra em sua obra.
Segundo Pires (2005), alguns indivíduos pertencentes ao grupo “body modification”,
sentem a necessidade de deixarem, em seus corpos, marcas de acontecimentos vividos..
Para eles, ao deixarem o registro de momentos especiais, as emoções que despertam devem
ser visíveis. O grande apelo visual no qual vivemos, as diferenças precisam ser vistas e não
apenas sentidas, parece corresponder às necessidades desse grupo que precisam da imagem
para garantir os significados.

A marca é escolhida e determinada segundo o gosto estético pessoal, a ligação


emocional que certa imagem exerce sobre o indivíduo, e o controle que este tem
sobre o corpo. A marca aqui, independentemente da técnica com que foi
executada, funciona como um sinal de inclusão.(PIRES, 2005:61)

Em locais públicos, como estádios de futebol, foram reconhecidas pessoas tatuadas

com a marca do seu time, nome de pessoas, flores, caveiras, dragões etc. Dessa forma, as

imagens garantem a presença do Outro, restabelecem as emoções e denunciam uma

história. Além da marca estética, a tatuagem representa um prolongamento de uma

vivência. A lembrança que antes habitava a memória instala-se na pele.

Pires (2005) avalia que o adorno aplicado sobre a pele permite a diferenciação. A

região onde somos semelhantes passa a ser diferenciada e a parte do corpo de quem a

recebe, é modificado na sua forma natural. Outro ponto importante enfatizado pela autora é

o fato de que a tatuagem se perpetua algo na pele, deixando a sensação de constância e de

imortalidade.
117

Para Nietzsche, a beleza é percebida como afirmação da efemeridade. A

necessidade de se garantir a imortalidade não seria a negação da vida, do corpo? O corpo

do homem contemporâneo estaria revelando o amortecimento das forças pelo afastamento

dos instintos vitais? As intervenções no corpo seriam uma forma de desespero, que,

segundo Nietzsche, ocorre pela incapacidade do homem de poder construir novos sentidos

e novas avaliações que levem aos movimentos próprios da vida?

O senso comum parece possuir a noção de que a beleza está intimamente

relacionada à feminilidade e, ao homem, é atribuída à força. Apropriando-se dessa noção o

corpo feminino é exposto com maior interesse tanto nas relações sociais, técnicas, estéticas

e econômicas. A moda representa com clareza o jogo estabelecido pelo capitalismo, o da

mudança permanente. Aliás, sua evolução está, intimamente, relacionada à revolução

industrial e à reprodutividade técnica de seus produtos. Na moda não há permanência, é a

volubilidade que permite sua ascensão:

Fascinado diante da miríade de estímulos, diante do espetáculo volátil das luzes


das imagens, dos cenários e das coisas, nas grandes cidades, o olhar moderno
aprendeu a desejar, o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela
publicidade ficam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das vitrines.
(SANTAELA, 2004:116)

O fetiche da moda aumentou o consumo e pela sua característica passageira, propicia


gastos permanentes, seduzindo o consumidor, estimulando os sentidos, afetando-os,
passando a idéia de prazer e concretude. O corpo feminino na contemporaneidade está
entrelaçado à moda, às regras de elegância. E, na crescente valorização dos produtos e seu
consumo esconde-se o medo de exclusão do grupo, da civilidade, da fuga do padrão
estético estabelecido.
118

Sant’Anna (2005) analisa a história do cuidado e a beleza feminina, no Brasil, no


século XX e demonstra que a relação entre saúde, beleza e prazer no início do século não
permanece a mesma durante todo o período. Na década de 1960 o conceito de beleza e de
saúde é alterado em decorrência de vários aspectos, entre eles a intervenção da moda, a
mídia, a tecnologia, a economia e a ciência. Curiosamente, da primeira década do século até
meados da década de 1940, a feiúra era considerada uma doença que poderia ser tratada
com medicamentos. Os tratamentos para sardas, manchas, rugas, pêlos eram feitos com
medicamentos, não havia o entendimento de cosméticos, nem tratamentos médicos. Nesse
período, a beleza das mulheres brasileiras possuía um entendimento de dom de Deus.
Maquiagens e pinturas para os cabelos não consistiam em estímulos, pois os usos desses
produtos estavam relacionados às mulheres excessivamente vaidosas ou libertinas. Dessa
forma, as mulheres belas deveriam aceitar o dom de Deus, usar luvas, chapéus, roupas
adequadas às exigências da época e no máximo, óculos escuros, enquanto as feias deveriam
usar os remédios indicados pelo médico.

Nesses tempos em que o uso de fotografia em publicidade ainda é raro, diversos


desenhos ilustram as expressões de dor e de desânimo das mulheres ao mesmo
tempo doentes e desprovidas de beleza: as imagens publicitárias dos inúmeros
remédios para a saúde e a beleza da mulher exibem, sem pudor, uma galeria de
aparências distorcidas, tomadas pelos mais variados tipos de doença. A alma da
beleza está no aparelho reprodutor feminino, insistem os conselhos e o discurso
publicitário. A feiúra é descrita longamente e as queixas das mulheres tidas como
deselegantes são freqüentes.
Aliados às preocupações higiênicas, inúmeros cuidados com o corpo tendem a ser
tratados, unicamente, sob o prisma medicinal. (SANT’ANNA, 2005:123-124)

O discurso da beleza, nesse período, era austero e, além das prescrições médicas
havia as regras de uma moral católica presentes nos manuais e nas revistas femininas. Outra
informação importante, levantada pela autora é que os conselheiros de beleza até meados
da década de 1950, eram sobretudo, homens médicos e escritores moralistas A beleza
feminina considerada, nesse contexto, era a espiritual. A mulher deveria ter a alma pura e,
119

para isso, o corpo deveria ser mantido limpo, belo e fecundo. O entendimento estético
permanecia, portanto, plenamente aliado aos valores morais e religiosos vigentes. A
ciência, também, não se encontrava desvinculada desses valores:

Deus em seus milagrosos laboratórios celestes preparou um pó misterioso que a


mais infinitesimal de suas partículas era bastante para dotar de uma grande
formosura a mulher que a obtivesse: a quantidade desse preparado, era, porém,
tão insignificante, que teve por depósito um pequenino dedal de ouro. Ordenou
então o senhor, a um dos anjos de sua divina corte, que descesse à Terra com o
minúsculo recipiente e distribuísse o seu conteúdo com as mulheres deste mundo.
O seraphico mensageiro varou as nuvens em cumprimento de sua agradável
missão e apezar de ter regrado o mais que poude o precioso pó, o dedalzinho
depressa esvasiou-se ficando milhares de moças desherdadeas de tão pré-ciosa
dádiva; compadecido, porém, dessas creaturas, deu-lhes então o Divino Mestre
virtude ao espírito e bondade ao coração. Na sua santa sabedoria não quis
vulgarizar a belleza. Dahi surgiu entre os homens a suspeita do Inferno estar
cheio de mulheres bonitas. (UCHOA apud SANT’ANNA, 2005:126)

O dualismo entre corpo e alma é explícito, corroborando o entendimento nietzschiano


de que a valorização da alma e a desvalorização do corpo iniciam-se no platonismo e são
reafirmadas no cristianismo, permeando a ciência, a arte e a história da filosofia, ocultos
pelos valores metafísicos. Por isso, para Nietzsche, cabe ao filósofo investigar
historicamente o corpo no intuito de encontrar o que está oculto nas verdades eternas e
absolutas, independentemente da área de averiguação.

Na primeira metade do século XX, a beleza era entendida com um cunho


profundamente religioso. A autonomia feminina era limitada pelos valores morais vigentes,
confirmados pela ciência. Portanto, a liberdade sobre o corpo era limitada e pouco
estimulada. O corpo feminino, nesse período, não se percebia ainda como um grande
mercado para o consumo.

Na segunda metade do século XX, ocorrem mudanças perceptíveis e a liberdade


feminina para agir sobre o corpo, em nome da beleza é estimulada com intensidade. O
corpo passa a ser visto com mais evidência: ciência, economia, arte, técnica o colocam em
evidência. O pudor inicial é considerado como excessivo ou fora de propósito. Beleza,
120

saúde e prazer fazem parte de um mesmo grupo e a feiúra pode ser disfarçada ou eliminada,
depende da mulher e não mais do médico ou da religião, pois a mulher feia passa a ser
divulgada pela propaganda59 e é inserido nas discussões femininas o entendimento de que
mulher feia é aquela que não se ama. Conseqüentemente, a idéia transmitida é a de que a
mulher que se ama cuida, age e interfere em seu corpo.

Sant’Anna (2005) considera que o desenvolvimento da fotografia e a crescente


influência norte-americana na publicidade brasileira, notadamente nas revistas femininas,
cujo modelo é fornecido pelas estrelas do cinema, contribuiu, expressivamente, para a
formação de normas de comportamentos e as definições estéticas.

As longas e dramáticas descrições dos males físicos parecem não se adaptar mais
a estes anos embalados pela fama internacional de nossas misses, pelo vertiginoso
crescimento da indústria de cosméticos e pela intimidades através da qual as
artistas de Hollywood ou da Rádio Nacional aconselham as mulheres em suas
vidas amorosas e nos cuidados com o corpo.[...]No final da década de 50, a
beleza parece ter se tornado um “direito” inalienável de toda mulher, algo que
depende unicamente dela: “hoje só é feia somente quem quer”, por conseguinte,
recusar o embelezamento denota uma negligência feminina que deve ser
combatida. (SANT’ANNA, 2005:129)

A aparência passa a ser compreendida não mais como natural, mas como escolha e
responsabilidade individual, que pode estar ligada às frustrações secretas e negligência
feminina. A imagem da velhice, associada às doenças naturais da idade, ganha um novo
entendimento: ser velha é estado de espírito, passível de correção. Os produtos de beleza
são com maior freqüência, integrados ao cotidiano da mulher. A idéia apresentada é a de
que não há mais momento especial para se embelezar, a beleza deve ser mantida
permanentemente e a feiúra combatida constantemente. É oportuno ressaltar que a imagem

59
É importante ressaltar que a propaganda divulga uma idéia que foi paga, portanto, há interesses
comerciais ou ideológicos que sustentam os anúncios. O que se percebe atualmente que por trás dos
discursos científicos, morais, estéticos, religiosos existem uma sustentação ideológica e comercial. Não são
falas desinteressantes, como se procura demonstrar no primeiro momento.
121

da beleza passa a ser entendida como uma ação individual e não coletiva. Cada mulher,
isoladamente, é responsável por sua aparência.

A beleza e a higiene tanto da casa como do corpo são fortemente incentivadas,


visando à manutenção dos laços conjugais. “Trata-se de ‘agarrar seu homem’, como afirma
Dengel, de não deixá-lo escapar, mesmo após estar casada, confirmando a relevância do
amor conjugal alcançada nesta época. A higiene serve para manter acessa a chama do amor
conjugal.” (SANT’ANNA, 2005:132) Higiene transforma-se em sinônimo de beleza e
sedução.

As propagandas voltadas para a beleza da casa passam a imagem de prazer e a


impressão de diversão, não mais de trabalho60. O esforço pela beleza é sutilmente trocado
pelo prazer de se embelezar, sem esforço e sem dor. Sant’Anna (2005) afirma que a
liberação do corpo sedutor, do cuidar de si mesma são acompanhados pelos movimentos
de liberação “[...] ocorridos na década de 60, à contracultura, passando pelo importante
desenvolvimento da publicidade, da cosmetologia e da indústria da beleza em diversos
países.”(SANT’ANNA, 2005:134) O receio moral de se assemelhar a uma mulher libertina
passa agora pelo receio de não saber se cuidar e se embelezar. Os profissionais de beleza se
diversificam:

Os manuais de beleza começam a ser escritos casa vez pelos novos profissionais
de beleza: modelos, esteticistas, esportistas, etc. Eles se preocupam menos em
reforçar os laços entre a dignidade moral e a beleza e, cada vez mais, em detalhar
as regras de embelezamento. Ao invés de fazer o elogio dos antigos modelos de
beleza, eles preferem visar o potencial das leitoras, apreendidas a partir de suas
especificidades físicas e psíquicas. Emancipados do domínio médico e higienista,
os cuidados da beleza se tornam tão sedutores quanto a bela aparência das
modelos e artistas que os recomendam. (SANT’ANNA, 2005:135)

60
Curiosamente, encontrei no Shopping de Ipatinga, uma loja de produtos vendidos pela shoptime ,
um aspirador de pó com formato de uma vaca. No anúncio estava escrito: “Enquanto você trabalha, você se
diverte”. O aspirador além do formato de uma vaca “meiga” emite um som do animal.
122

O amor próprio fica em evidência e o corpo se transforma na principal finalidade do


embelezamento. A mulher bela, além de garantir um bom casamento passa a desenvolver o
prazer de gostar de si mesma. As imagens estampadas na publicidade são de modelos
magras, descontraídas, sorridentes deixando a impressão de leveza, magia e de uma vida
plena de felicidade.

A pedagogia das condutas expressa pelos métodos de beleza se afina e se


interioriza: cada método de beleza tende a ser considerado repressivo se ele não
traz satisfações físicas, superficial se ele não responde aos desejos íntimos,
pouco credível se ele não evoca a verdade singular de cada mulher.[...]A própria
aparência autêntica e natural valorizada nesta época exige, imediatamente, o
conhecimento e o uso de diversos produtos. (SANT’ANNA, 2005:136)

No discurso de aparente liberdade e autonomia está velado o interesse econômico e


ideológico. Modelos de comportamentos são apresentados e impostos, embora deixando a
impressão de escolha da mulher. A conduta moral e estética imposta e seguida nos remete
ao comportamento de rebanho. Nietzsche assegura que o corpo não pode ser entendido de
forma isolada, independente do mundo como um objeto, não obstante, deve ser tomado
como constituinte do mundo e doador de sentido à realidade.

O constante apelo e consumo do “belo” pela mulher brasileira seria uma


demonstração de enfraquecimento do corpo e despotencialização da vida? Ficamos com a
impressão de que o sentido de realidade desse corpo feminino contemporâneo está afastado
dos instintos vitais e da falta de capacidade de construir novos sentidos e novas avaliações
sobre os movimentos próprios da vida. Para Nietzsche (1998), conforme já foi examinado,
a organização em rebanho demonstra uma fraqueza, uma despotencialização da vida. Seria
esse o caso da beleza “produzida em série” pela sociedade capitalista atual? A busca pela
beleza, também,, nos deixa a idéia de ser um artifício e uma busca da moral do tipo
conservador.

O corpo da mulher brasileira é explorado pela mídia. Por meio dele se vende de
tudo, desde chinelos, carros, viagens, enfim, vende-se de tudo, desde que a propaganda
123

saiba como explorá-lo. Entre as propagandas que já nos acostumamos a ver, não nos
espanta mais a exposição dos corpos. Um exemplo esclarecedor: Na época da escolha do
local onde seria implantada a fábrica de automóveis da Mercedes-Benz, o então ex-
secretário de Planejamento do governo de Minas relatou a um jornal local as estratégias que
seriam usadas com o objetivo de que a montadora fosse estabelecida em Juiz de Fora. Entre
elas há uma que configura a manipulação do corpo e as diversas utilidades que um corpo
feminino possui:

Nas visitas à cidade, os representantes da montadora alemã foram bem recebidos.


Pestana contou que os mineiros chegaram a contratar uma agência de modelos
para andarem naturalmente nas ruas de Juiz de Fora, próximo aos locais por onde
transitavam os alemães. “Assim tinham a impressão de que o povo da cidade era
ainda mais bonito do que é”, explicou o ex-secretário. (QUEIROZ, 2000:18)

O corpo apresentado acima além de servir como mercadoria e fator de decisão para

os negócios da indústria, também está permeado pelos juízos estéticos. Aqui a questão

estética contribui para os investimentos financeiros além de melhorar a “higienização

estética” da cidade. O corpo da mulher mulata é explorado no carnaval e nas propagandas

de turismo internacional, no futebol, na música. Nos programas de televisão, no cinema e

no teatro e nas propagandas, a loira é, especialmente, mais valorizada e explorada pela

mídia.

Mais do que isso, existe um consumo alargado de uma estética branca, que inclui
a venda de lentes azuis, reflexos nos cabelos e descolorações. No mínimo, são
dois “Brasis”: um Brasil branco que se quer europeu, um Brasil negro que evoca
sua proximidade com a África. São também duas estéticas que, por vezes, se
excluem, por hora, se atraem. (QUEIROZ, 2000:124)

A loira é um tipo estético que está na moda e, de certa forma, ela usurpa a autêntica

característica brasileira. A produção da “beleza em série”, com o uso de cosméticos,


124

tecnologia, próteses e intervenções cirúrgicas garante, também, a “mulher loira em série”.

O discurso que transmite a idéia de que a mulher é independente, permite a livre escolha

para intervir no corpo, mas esses discursos de autonomia, inúmeras vezes vêm

acompanhado de enunciados de persuasão tais como: “Mulher inteligente usa determinado

produto.” “Mulheres independentes e de bom gosto decidem por tal intervenção.” Portanto,

a liberdade está condicionada aos valores estéticos impostos e as escolhas são estabelecidas

por grupos que impõem a beleza em série e o padrão a ser seguido.

A estética e a ética não estão desvinculadas da sociedade, em cada época a cultura

educa os corpos, adaptando-os para empregos distintos. O corpo é um instrumento passível

de uma educação cultural e de aprendizagem social. O corpo nos nossos dias está cada vez

mais distante da natureza e mais próximo das manipulações culturais. Mas não podemos

perder de vista que são os homens que se encarregam de dar sentido à sua existência e cabe

a eles as intervenções e a valorização ou desvalorização da vida.

3.3. Nietzsche, idealização e niilismo

Os temas levantados neste capítulo demonstram algumas vias pelas quais o corpo do

homem contemporâneo é compreendido e, ao mesmo tempo, vem trilhando sua história.

Além disso, foi apresentado o entendimento de Nietzsche sobre a vida e a arte, como a

beleza está profundamente relacionada à vontade de potência e a importância da estética

para a valorização da vida.

Ao levantar os questionamentos sobre o corpo do homem contemporâneo paira um

entendimento de banalização do corpo, de desapego e de certa forma de distanciamento ou


125

incompreensão dele. Os apelos da mídia, da ciência, da técnica e da própria cultura têm

privilegiado o prazer insaciável, o consumo alienado.

Nietzsche denuncia que a história ocidental foi marcada pela intervenção decisiva

da vontade de verdade, alimentada pela fé na racionalidade e pela expectativa não realizada

da obtenção de um mundo controlável e previsível. A impossibilidade de controle sobre o

mundo e do conhecimento absoluto provocou no homem a sensação de impotência, de

insegurança, de angústia, de aborrecimento. Como conseqüência, foram desenvolvidos o

desprezo e o ressentimento por tudo que estivesse associado ao mutável e ao sensível, tal

como o corpo, suas paixões e afetos.

Podemos articular o pensamento nietzschiano sobre o homem contemporâneo e sua

relação com o corpo, principalmente, nos âmbitos contíguos da ética e da estética.

Nietzsche conceituará o niilismo61 como essa recusa radical de valores e de verdades

absolutas. Com a falta de controle sobre o mundo, a existência passa a ser vista como uma

punição, os valores superiores se deterioram, falta um sentido para as coisas, faltam

respostas para as perguntas. A modernidade, ao sacralizar a razão esclarecida, a

autodeterminação, aparentemente distanciou-se de Deus e, em Seu lugar cultuou a verdade

e a razão. A supervalorização do corpo, da aparência e dos prazeres imediatos em

61
O niilismo (ou nihilismo), do latim nihil (nada), é uma corrente filosófica que, em princípio, concebe
a existência humana como desprovida de qualquer sentido. Nietzsche com a morte de Deus, divulga a
profunda crise da razão na modernidade e, com sua reflexão sobre o niilismo, denuncia o esgotamento, a
perda de sentido e contingência por parte dos supremos valores que até agora determinaram o curso do
processo civilizatório no Ocidente. E a partir da constatação do niilismo, das categorias que promoviam valor
ao mundo são colocadas em xeque, denunciando sua ineficácia, o homem é levado a experimentar a ausência
de valor concedida ao mundo, O que leva Nietzsche a afirmar que “o fracasso de uma determinada
interpretação de mundo equivale e confunde-se com o fracasso do próprio mundo” (AS § 408). O niilismo
esbarraria na condenação da própria vida, mas no próprio horizonte de onde brotou o niilismo podemos
encontrar a força para superá-lo, posto que, o niilismo deixa a vida nua e o mundo se abre ao homem
revelando sua inesgotabilidade.
126

detrimento dos valores éticos ou das atividades intelectuais não seria uma advertência de

que o niilismo62 ganha outra aparência em nosso tempo?

Giacóia (2006)63 considera que a contemporaneidade tem sido marcada pela

sacralização da sociedade de consumo, do hedonismo e, ininterruptamente, cria-se a

necessidade de mais consumo e mais diversão. Conforme Nietzsche já havia alertado:

“Perigo de nossa cultura – pertencemos a um tempo em que a cultura corre o perigo de ser

destruída pelos meios pelos quais essa cultura se produz.” (NIETZSCHE, HDM, 2001,326)

Essa necessidade de possuir uma referência suprema leva o homem contemporâneo à

mesma busca de representação. O nosso tempo é permeado pela referência de felicidade,

lazer, padrões de consumo. Vivemos um momento de pura aparência, de uma vivência

inautêntica64. Sofremos toda forma de tutelagem possível, iniciando pela opinião pública, a

mídia. As idéias e os gostos pré-formatados pelos formadores de opinião reafirmam o

comportamento de rebanho.

No entendimento nietzschiano, a tragédia grega é a possibilidade da interpretação

mais autêntica da vida. Nietzsche destaca, principalmente, Dioniso como uma força de

afirmação da vida. Nem a razão e nem a consciência, que foram colocadas no lugar de Deus

conseguiram retirar a angústia da finitude, não resolvendo o nosso estado de desamparo

originário. Entretanto para o filósofo, ao matarmos Deus, sentimos necessidade de uma

verdade e elegemos novos ídolos, nos rendemos a projetos de vida que nos prometem a

62 Nietzsche na “Vontade de Potência”, §28 considerava que a tentativa do homem de fugir do


niilismo, sem realizar uma transvaloração de todos os valores poderia desencadear outros problemas mais
difíceis de serem solucionados. Portanto, a desvalorização generalizada do corpo e dos valores terrenos como
ao contrário, a supervalorização reativa do prazer imediato sobre qualquer forma de esforço, são ambos
semelhantes e indicadores do niilismo europeu. NIETZSCHE,(s/d) Vontade de potência. Trad. Pref. Mário D.
Ferreira Santos. Rio de Janeiro: Tecnoprint (Col. Universidade de bolso).
63
Palestra proferida no Centro Cultura CPFL, São Paulo co-produção Cultura Marcas. “Balanço do
Século XX: o impacto de Nietzsche no século XX”.
64
A filosofia existencialista costuma distinguir entre a “atitude autêntica”, daquele que assume a
responsabilidade da sua escolha, e a “atitude inautêntica”, daquele que delega inconscientemente a
responsabilidade das suas opções para os outros.
127

felicidade. Esse artifício seria como uma válvula de escape para fugirmos da angústia, do

vazio a qualquer preço. Na contemporaneidade as fantasias que encobrem essa angústia

podem ser vistas por meio do consumo, do culto à felicidade, do culto ao corpo, dos

prozacs, dos livros de auto-ajuda, das drogas, das plásticas, medicamentos e cosméticos

como fuga do envelhecimento e busca de longevidade.

O convite nietzschiano feito ao homem contemporâneo é o de que ele seja o

responsável pela sua existência, que seja o doador de sentido para si mesmo, para a vida e

para o mundo no qual está inserido. Para Nietzsche, o homem, assim como Dioniso, deve

aprender a dançar a melodia trágica da existência, para que não corra o risco da banalidade,

na impessoalidade, no homem de rebanho. O ser humano deve se perceber como aquele que

absorve em si mesmo as forças que possibilitam criar a vida, pois a morte de Deus é

invenção do homem, então as forças que produziram esse Deus devem ser preservadas no

próprio homem. Junto às suas experimentações no contato com a vida, os homens

desencadeiam as forças criadoras que os possibilitam gerar novos valores, crer em si e

superar a si mesmos.

Viver, ao modo nietzschiano, seria viver no plano da efetividade e na afirmação da

vida. “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas

(...)Eu não vou fazer guerra contra o feio eu não o acusarei mais (...) Eu não quero, a partir

desse momento ser outra coisa senão pura afirmação.” (NIETZSCHE, GC, 2001:187) A

espécie humana deve, permanentemente, estar propensa para a vida, para sua afirmação e

não, apenas, buscar a sua preservação. Fundamentalmente, homem deve procurar superar a

si próprio, por meio da transvaloração de todos os valores e pensar o além-do-homem

(übermensch), como um projeto lançado. Cabe ao homem encontrar a beleza no efêmero,

no corpo e na própria necessidade das coisas, afirmando assim a existência sem fugir da

dor, da alegria, do acaso, da finitude.


128

CONCLUSÃO

Como sublinhado ao longo do trabalho, o valor do mundo, para Nietzsche, está em


nossa interpretação: como não podemos esgotar seu sentido através de uma explicação
definitiva, inserirmo-nos nele a partir de vários enfoques. Uma vez que todo conhecimento
é interpretação e não há acesso possível a uma verdade absoluta e imutável, tanto o
conhecimento quanto a produção artística são interpretações, formas distintas da poiesis
humana. Decorre daí que a investigação nietzschiana busca elucidar o que se esconde por
trás das pretensas verdades eternas, refratárias à pluralidade do mundo e aos seus desafios.
Uma filosofia afirmativa, tal como a que ele pratica, não se esquiva da procura pelo que é
estrangeiro e problemático na existência.

A fim de explicitarmos a presença central do corpo com base no pensamento


estudado, desenvolvemos nossa pesquisa conforme se segue. No primeiro capítulo,
destacamos o mal entendimento sobre o corpo e sua conseqüente negação, denunciados por
Nietzsche. Ao privilegiar o cultivo da alma, Platão considera que a razão pode aspirar à
imortalidade e ao conhecimento da verdadeira realidade. Isso implica uma desvalorização
completa do corpo, porque é nele que se encontram a mortalidade, a sensibilidade e seu
estatuto é o de mera cópia. Com isso, institui-se o dualismo entre o corpo e a alma, tão
influente na história filosófica posterior. O corpo é tomado, então, como aspecto inferior do
homem, por possuir um caráter material que funcionaria como entrave para a aquisição do
conhecimento, pois a sensibilidade que lhe é inerente visaria exclusivamente à obtenção do
prazer. Assim, o mundo no qual os sentidos atuam seria uma fonte perpétua de enganos e,
conseqüentemente, o homem encarnado seria incapaz de adquirir o conhecimento pleno,
estando constantemente ludibriado por seus sentidos. Em suma, em Fédon, a argumentação
a favor da imortalidade da alma gera, como contrapartida necessária, a negação do corpo e
a imagem da condição humana que resulta daí é, decisivamente, marcada pelo dualismo
entre corpo e alma.
129

A par disso, ainda no primeiro capítulo, foi demonstrado que Nietzsche se opõe,
inteiramente, às concepções dualistas, atribuindo ao corpo o papel de fio condutor do nosso
entendimento e inserção na realidade, quaisquer que sejam eles. No pensamento
nietzschiano, o corpo é a característica primordial do homem, é o palco em que se dá a
permanente relação de forças em conflito, não havendo sentido em pensar uma separação
sua em relação à alma. O tradicional equívoco de se desvincular razão e sensibilidade afasta
a racionalidade da corporeidade, como se os corpos não participassem do processo de
pensar e fossem antagônicos à alma, ao espírito, à mente. Adversário do entendimento da
metafísica de Sócrates e Platão, na qual prepondera a valorização do mundo supra-sensível,
Nietzsche garante que é no mundo sensível que o homem deve se situar. Nessa direção, ele
questiona a idéia da verdade absoluta e propõe uma investigação meticulosa sobre sua
origem, tendo por parâmetros os conceitos de sentido e de valor, de modo que as questões
filosóficas passem a ser colocadas em tais termos.

Nossa análise da Genealogia da Moral evidenciou que Nietzsche propõe como


indispensável a crítica dos valores morais, colocando-os em questão através do
procedimento genealógico, entendido pelo filósofo como um método, uma espécie de
instrumento de diagnóstico. Por serem concebidos como algo estritamente humano,
surgidos em algum momento e em algum lugar, os valores também podem ser modificados
em qualquer tempo e em qualquer lugar.

Ao pesquisar a origem dos valores, Nietzsche compreende que, historicamente, os


conceitos “bom e ruim” e “bom e mau” dependem do ponto de partida existencial de onde
procedem as avaliações que os criaram. “Bom e ruim” são gerados pela maneira nobre de
avaliar, sendo frutos de sua autonomia, enquanto que “bom e mau” são colocados pela
perspectiva do ressentimento. Dessa forma, a perspectiva avaliadora do ressentimento, ou
seja, a moral dos ressentidos, surge de uma oposição aos valores nobres. No ressentimento,
as forças reativas prevalecem sobre as forças ativas, deixando de externar-se. Com isso, o
filósofo estabelece a diferença basilar entre o tipo ressentido, o escravo e o tipo ativo,
situado na vertente afirmativa da vontade de potência, o senhor. O senhor se nomeia bom
130

na medida em que age, honrando tudo o que se encontra em si mesmo. O conceito bom é a
própria afirmação da sua ação. O senhor possui o sentimento de plenitude, do poder que
transborda. Para este, o ruim é todo aquele que não age. Contrapondo-se ao senhor, o
escravo, homem do ressentimento, conceitua como bom aquele que não age, que não ataca,
que não exerce violência contra ninguém, deixando para um Deus imaginário sua vingança
e chamando de mau aquele que tem poder sobre ele.

Nesta altura foi crucial entender o enfoque fornecido por Nietzsche, ao evidenciar que
a manifestação da força está condicionada à existência de um sujeito livre, que poderia ou
não ter agido de determinada forma. O homem impotente, ao contrário, utiliza-se da
sedução da linguagem para sustentar que o forte é, no fundo, um fraco. Portanto, se a força
não consiste em querer ser forte, mas em ser forte, a ação é fundamental para reconhecê-la,
pois comprova a força ou a fraqueza que encontram sua determinação no jogo da luta pela
vida. O argumento fundamental é que a força pode ser dominante ou dominada, não
havendo para o filósofo, separação entre força e manifestação, pois a força é irredutível a
algo que não seja força, e toda realidade é revelação de força.

Nietzsche, então, afirma que a metafísica mascarou a relação de forças presentes em


todo e qualquer vivente, inventando um sujeito do ser, do conhecer e do agir. Mas, segundo
o filósofo, esse sujeito é uma ilusão que disfarça a vontade de potência como determinante
de toda ação e esse encobrimento é alimentado por meio da linguagem. A construção de um
mundo supra-sensível, do sujeito puro, capaz da liberdade de escolha, de um mundo ideal,
enfim, é uma ilusão, uma mentira. Com o domínio da moral dos ressentidos, seus valores
prevaleceram e, como conseqüência, houve a negação e a desvalorização da vida e do
corpo, passando a fraqueza a ser considerada como mérito, a vida eterna e o mundo
transcendente passaram a ser os valores primordiais. A resignação foi considerada como
virtude e a recompensa por viver de forma abdicada é a vida eterna em outro mundo.

Os ideais ascéticos apresentam-se, por fim, como suporte metafísico da religião, da


moral, da filosofia e da ciência. E na busca pela plenitude da vida moral, o mundo
131

transcendente passou a ser a referência de todos os valores para além desta vida e, no
mundo em que vivemos, foram negadas a vida, o corpo, o pathos. É esse desprezo pelo
corpo e pelo mundo que Nietzsche traduz como o ideal ascético que impregna até mesmo
as aspirações à objetividade próprias dos “homens do conhecimento”.

No segundo capítulo, procuramos analisar o corpo como afirmação e conquista da


grande saúde, tal como propõe o pensamento nietzschiano. Nietzsche denuncia o
menosprezo pela vida e com veemência procura defendê-la, incluindo, aí, a valorização
dos sentidos, dos impulsos, dos afetos. “Amo os que não procuraram por detrás das estrelas
uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a
terra pertença um dia ao Super-homem.” (NIETZSCHE, AFZ, 1985: 25)

Sob tal perspectiva, os atributos do mundo sensível e a valorização do corpo não


podem ser entendidos como na dicotomia tradicional, mas como uma experiência
simultânea de percepção sensorial, intelectiva, afetiva e de sentido, pois no pensamento
nietzschiano tudo ocorre por meio do corpo. Para o filósofo alemão, não pode haver
nenhum tipo de pensar que não esteja vinculado, de alguma maneira, à sensibilidade. É o
corpo que governa os pensamentos. O espírito, o eu, a alma, são instrumentos e criações do
próprio corpo. Portanto, o pensamento não pode funcionar de outra forma, mesmo quando
estiver voltado em oposição à sensibilidade.

Nietzsche afirma que o corpo revela os instintos fundamentais da natureza, é a


natureza em plena manifestação. Nesse sentido, qualquer pensamento ou doutrina que
negue, desqualifique ou desconsidere a relação intrínseca entre os instintos, a natureza, a
força, a saúde e a vida, são consideradas antinaturais e decadentes. É, portanto, necessário
reconhecer o corpo, pois é nele e com ele que o ser humano se relaciona, interpreta, cria e
vive no mundo.

Os instintos, a natureza, a força, a vida e a saúde devem ser afirmados e valorizados


e as doutrinas que neguem esses aspectos devem ser postas sob suspeita e avaliadas como
antinaturais e decadentes, pois negam, antes de tudo, a própria existência. A atitude de
132

negação da vida é entendida por Nietzsche como impotência, fraqueza, decadência


originada de um estado fisiológico doentio. Esse estado reflete o medo de encarar a
realidade intempestiva e conflituosa da natureza.

A vida, identificada como impulso de criação, energia e princípio dinâmico de


unidade de todas as funções orgânicas, é jogo de forças, é vontade de poder, é disposição
para ultrapassar desafios. A crítica nietzschiana da desvalorização da vida detém-se
particularmente sobre a moral cristã que, segundo ele, é uma moral de desvalorização da
vida, de adoecimento do corpo, que lhe retira a energia vital e cultua, nele, a doença.
Nietzsche defende a superação de tudo isso, pois até agora os homens criaram algo acima
deles e renegaram a si mesmos, deixando de acreditar em suas potencialidades e de
reconhecer a transitoriedade do jogo e da existência como algo estimulante. A confiança em
algo desvinculado de nós mesmos aumentou a desconfiança em nossas forças e inibiu uma
atitude destemida diante do mundo.

O homem nietzschiano quer entregar-se à passagem e ao fluxo da própria vida,


acreditando nas possibilidades que ela oferece, sem se apegar a nenhuma garantia de
segurança. Aliás, a plenitude, segundo Nietzsche, está na entrega, mesmo sem as garantias
do que existe do outro lado. “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder
dar à luz uma estrela dançarina. Eu voz digo: há ainda caos dentro de vós.” (NIETZSCHE,
AFZ, 1985:27) Portanto, a grande saúde representa um estado de disposição plena para a
vida, para a criação plena de sentidos e avaliações afirmativas para a vida. É preciso criar
valores novos, que sejam os da vida, que a tornem mais leve, criativa, afirmativa e ativa.

Nesse contexto, a filosofia, assim como a arte, deve dar significado à vida, mesmo
que para isso, seja necessário ressignificar a verdade. O homem deve ser estimulado a criar
valores que o instiguem para o futuro, nutrindo a vida, o prazer, os sentimentos, os
impulsos vitais. O homem deve ser entendido como parte constituinte do universo e sua
própria afirmação da necessidade é uma auto-afirmação do mundo. Sua afirmação está na
capacidade de se entregar à fatalidade do mundo. Na filosofia nietzschiana, viver é uma
133

fatalidade, um acaso, um enigma e cada instante se torna fundamental. O dizer sim à vida é
a entrega plena ao “amor fati”.

Finalmente, no terceiro capítulo, foi abordado o pensamento nietzschiano sobre a


arte em sua relação com o corpo e a existência. Isso abriu, para nós, a oportunidade de
pensar a relação do homem contemporâneo com seu corpo, buscando esclarecer se o
entendimento estetizado do corpo hoje implica sua valorização ou, ao contrário, sua
depreciação.

Nietzsche considera que os instintos estéticos da natureza são o apolíneo, que


simboliza a ordem e a racionalidade, e o dionisíaco, que simboliza o excesso e o irracional
na natureza. Dioníso traz à tona as forças misteriosas e irracionais que surgem no seio dela
e Apolo, a ordem e moderação que lhes podem ser impostas. Não obstante sua oposição, os
dois instintos são vitais, pois, se a arte se alimenta do devir, sua expressão se dá por meio
da bela forma aparente, donde os instintos estéticos passam a ser responsáveis por tudo que
existe de desejável no mundo. Portanto, o corpo e os instintos formam a base para se
compreender o pensamento estético nietzschiano.

Nietzsche considera que a ciência retirou o encantamento do mundo e da existência


ao se constituir como a promessa de proporcionar ao homem o máximo de prazer com o
mínimo de desprazer na existência. Contrariando o entendimento da ciência, extensivo ao
homem moderno típico, o filósofo considera que o essencial seria afirmar a vida por meio
das imagens, das fantasias estéticas que instigam a alegria de viver. É na valorização dos
impulsos estéticos naturais que se manifestam as criações artísticas decorrentes deles, que
se afirma a vida. Ainda, segundo o filósofo, os gregos, por meio dos poderes criativos,
tornaram a existência digna de ser vivida.

A beleza para Nietzsche é apreendida como afirmação da fugacidade, da finitude, da


corporeidade. O caos, o monstruoso e a inevitabilidade passam a ser afirmadas como
beleza. Criar pressupõe uma intensa aliança com as forças naturais, com a terra, com o
corpo. O “amor fati” está em ver a beleza na necessidade das coisas, torná-las belas através
134

da afirmação e da criação e da admiração pela existência, mesmo com toda sua


imprevisibilidade.

Na seqüência dessas considerações, procuramos oferecer uma breve discussão da


questão do corpo, hoje, a partir do referencial teórico firmado. Observamos que, por trás de
um discurso favorável à beleza, à saúde e ao cuidado, permanentemente, estão ocultos
interesses, principalmente o econômico. No culto ao corpo, se revelam ideologias políticas,
econômicas, éticas e estéticas.

É no corpo que armazenamos a história da cultura, pois desde o nascimento as


pessoas são moldadas e integradas à história do grupo que passa a ser sua própria história,
carregando as marcas genéticas e as regras éticas e estéticas estabelecidas. Dessa forma,
constroem-se as identidades. Uma vez que o modo como lidamos com nossos corpos não
está desvinculado do nosso meio, os regulamentos e o controle do comportamento
corporal e de sua identidade ocorrem através de uma construção social, como resultado de
um processo histórico.

Ao mesmo tempo, deparamos com informações intrigantes, entre elas, a de que as


intervenções têm proporcionado um distanciamento das origens culturais, morais,
religiosas e genéticas. Daí, inferimos que o corpo do homem contemporâneo recebe um
tratamento ambíguo, pois é valorizado e mostrado, mas termina por ser explorado,
violentado e banalizado. É tratado como se possuísse disponibilidade permanente à
intervenção e ao consumo. Com o desenvolvimento da técnica, da ciência e dos
cosméticos, aumenta a liberdade para as intervenções, embora essa liberdade provoque
novas responsabilidades e conseqüências éticas, estéticas e físicas, ainda, bastante
indeterminadas. A construção da imagem do corpo passa, também, pela esfera psíquica.
A identidade necessita de um corpo, não apenas físico, mas capaz de afetos e significados
que garantam a estabilidade emocional: interferências que idealizam o corpo e não
contemplam uma vida integrada em todas as suas esferas podem romper com as fronteiras
simbólicas e provocarem instabilidades psíquicas.
135

A pesquisa também possibilitou a compreensão de que o culto ao corpo promovido


pela mídia, pelo mercado e pela ciência, provoca uma espécie de inversão de valores: as
modificações no corpo são associadas com a imagem de satisfação e felicidade permanente
para quem as recebe. Além da fantasia de auto-contentamento, a cultura da beleza imprime
a idéia de que a felicidade está intimamente relacionada à circunstância de que as pessoas
não serão mais amadas se não melhorarem o corpo, levando dessa forma à diminuição da
alegria de viver do homem contemporâneo, continuamente insatisfeito com a imperfeição.
Além disso, a identidade e a expectativa da beleza passam a ser vinculadas ao entendimento
de que a ascensão social ou sucesso profissional dependem da busca pela perfeição ou o
empenho para se atingir a beleza física.

Após essas diversas reflexões e olhares sobre o corpo, ficou claro que a estética e a
ética não são desvinculadas da sociedade e, em cada época, a cultura educa os corpos,
adaptando-os para empregos distintos. Ficamos com a impressão de que o conceito do
corpo belo do homem contemporâneo oculta uma certa banalização e o sentido da
existência que é conferido pelo próprio homem demonstra o distanciamento e a
incompreensão do próprio corpo.

Nietzsche já havia alertado sobre o perigo de uma cultura ser destruída se não
ficarmos atentos aos meios pelas quais ela se produz. O hedonismo artificial e sem
refinamento, a sacralização do consumo, a necessidade de possuir ininterruptamente —
como se essas ações e buscas nos levassem a saciar o desejo e nos impedissem de sofrer —
inspiram cautela sobre o sentido que estamos atribuindo à nossa existência.

Para Nietzsche nada possui valor em si mesmo, tudo é interpretação. Portanto, a


vida, o mundo e o corpo ganham sentido na medida em que avaliamos. Entendendo a
existência como carente de sentido prévio e admitindo que não há criação definitiva, cabe
ao homem viver, criar e experienciar os acontecimentos para dar sentido à sua existência,
ao corpo, ao mundo — no melhor dos casos, o sentido da afirmação.
136

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