2012 - Dossie Terras Indigenas
2012 - Dossie Terras Indigenas
2012 - Dossie Terras Indigenas
Terras Indígenas
Ñanduty
Dourados, MS - Brasil
Dossiê:
Terras Indígenas
Ñanduty
Dourados, MS - Brasil
CORPO EDITORIAL
COMISSÃO EDITORIAL (2011-2013):
Editor: Mário Teixeira de Sá Júnior
Editora Discente: Carla Fabiana Costa Calarge
Editores adjuntos: Antônio Hilário Aguilera Urquiza e Rodrigo Luiz Simas de Aguiar.
CONSELHO EDITORIAL:
CONSELHO CONSULTIVO:
MISCELÂNEA
88 A FALA PÚBLICA E A PALAVRA ESCRITA: ASPECTOS DA INTERVENÇÃO
MILITAR EM TERRAS INDÍGENAS NO RIO IÇANA, NOROESTE
AMAzÔNICO
Fabiane Vinente dos Santos
101 TRADIÇÃO, IDENTIDADE E REGIÃO: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE
OS ASPECTOS TEÓRICOS DO PROjETO DE MAPEAMENTO ARqUEOLÓGICO
E CULTURAL DA zONA DA MATA MINEIRA
Ana Paula de Paula Loures de Oliveira
116 UMA VISÃO ARqUEOLÓGICA DA RELAÇÃO ENTRE CULTURA E
AMBIENTE: A INSERÇÃO AMBIENTAL DOS SÍTIOS ARqUEOLÓGICOS DO
MUNICÍPIO DE SÃO jOÃO DO CARIRI, PARAÍBA
Carlos Xavier de Azevedo Netto, Patrícia Duarte e Adriana Machado Pimentel de Oliveira
RESENHA
131 PEREIRA, Levi Marques. 2009. Os Terena de Buriti: formas organizacionais,
territorialização e representação da identidade étnica. Dourados, Editora UFGD, 170pp
Patrik Thames Franco
134 RUIBAL, Alfredo Gonzáles. La experiencia del otro: una introducción a la
etnoarqueologia. Madri: Ediciones Akal. 2003, 177p.
Luiz Carlos Medeiros da Rocha e Andréa Lourdes Monteiro Scabello
ENTREVISTA
137 “EU EVITO MUITO CRIAR COISAS qUE SEjAM MITOS, NAS CABEÇAS
DOS OUTROS E NA MINHA PRÓPRIA”: ENTREVISTA COM jOÃO PACHECO
DE OLIVEIRA
jorge Eremites de Oliveira e Mario Teixeira de Sá junior
DOCUMENTO
154 RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA INSPEÇÃO jUDICIAL EM áREAS
DAS FAzENDAS OURO PRETO, CRISTALINA E IPANEMA, E NA
COMUNIDADE INDÍGENA (ALDEIA) TAUNAy-IPEGUE, EM AqUIDAUANA,
MATO GROSSO DO SUL, BRASIL
Noêmia dos Santos Pereira Moura
Editorial
O lançamento de uma revista científica por um programa de Pós-Graduação jovem como
o PPGAnt é sempre uma responsabilidade que devemos abraçar com entusiasmo. Por um
lado, porque a oportunidade se mostra como um espaço de diálogo entre os pares, por outro,
porque oferece em si uma oportunidade de divulgação das pesquisas e conhecimentos
acumulados pelo corpo docente e discente.
Ñanduty, o nome escolhido para nossa Revista Eletrônica é uma palavra que pode adquirir
mais de um significado em língua guarani. O vocábulo ñandu pode ser substantivo, quando
empregado para designar aranha (aracnídeo), mas também pode servir como verbo, no
sentido de sentir, experimentar sensações, averiguar ou pressentir, além denotar ir, ver
ou visitar alguém por cortesia, solidariedade ou afeição. O sufixo ty, por sua vez, cuja
pronúncia é nasal, pode significar suco ou sumo, indicar coletivo, designar grandeza
de alguma coisa ou mesmo ser empregado como no sentido de jogar ou lançar algo em
alguma direção. Mais especificamente, a palavra é usada para significar “teia de aranha”,
também é empregada no sentido de grande rede de relações sociais. Por esses diversos
significados, e por significar essa ampla rede de relações, a Revista Ñanduty se apresenta
como um convite à interação.
O PPGAnt é o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD), que foi aprovado pela CAPES em 2010, em nível de Mestrado,
e que possui área de concentração em Antropologia Sociocultural. Suas três linhas
de pesquisa são: Etnicidade, diversidade e fronteiras, Etnologia, educação indígena e
interculturalidade e Arqueologia, etno-história e patrimônio cultural. O Programa de
Pós-Graduação foi pensado a partir da iniciativa de um grupo de profissionais ligados
às três universidades públicas existentes no Mato Grosso do Sul: UFGD – Universidade
Federal da Grande Dourados, UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e
UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Esses profissionais, pesquisadores
e pesquisadoras, estão voltados para as atuais demandas relacionadas aos contextos de
fronteira e diversidade étnica constituintes do cenário sulmatogrossense.
A periodicidade da revista é semestral, sendo orientada pelo Conselho Editorial que
é renovado a cada período de dois anos. A revista eletrônica Ñanduty tem por objetivo
maior contribuir para o desenvolvimento da Antropologia Sociocultural, Arqueologia,
Linguística Antropológica, Antropologia Física e seus campos afins. Sua política editorial,
portanto, tem a ver com uma proposta de (re)aproximação estratégica e inovadora de
campos clássicos da Antropologia no âmbito nacional e internacional.
O corpo da Revista Ñanduty é composto por cinco seções: Dossiê, Miscelânea, Resenhas,
Documentos e Entrevista. O Dossiê é temático, sendo alterado a cada número busca abordar
um tema de relevância atual para os profissionais atuantes na Antropologia, Arqueologia,
História, Direitos e demais campos relacionados, sempre organizado por pesquisadores
de contribuição reconhecida na área em pauta.
Nesse número, apresentamos o Dossiê “Terras Indígenas”, organizado por Jorge Eremites
de Oliveira e Levi Marques Pereira. Os artigos dedicam-se a discutir questões relacionadas
a presença marcante dos povos tradicionais em movimento de reivindicação de direitos.
A Seção Miscelânea, como o nome sugere, dedica-se a reunir obras sobre diversos assuntos,
que não estão relacionados com o tema do Dossiê daquela edição, mas que afinam-se com
as temáticas da atualidade e com a Política de Publicação proposta pela revista.
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POVO E ESTADO
E A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
MARCO ANTONIO BARBOSA*
RESUMO application of the right to self-determination,
Trata-se, com base nas análises críticas da an- set in the UN Charter, initially applied against
tropologia pós-evolucionista, dos temas Povo the cities overseas, but that currently is being
e Estado e suas dialéticas. Enfoca-se a diferen- applied even in situations of internal coloniza-
ça fundamental na gênese dos Estados Oci- tion, being the indigenous peoples of the Ear-
dentais centrais e dos Estados periféricos, em th the last ones to obtain recognition of that
razão de que a instituição, funcionamento e right, thanks to the Declaration on the Rights
estrutura destes últimos ocorreram por obra e of Indigenous Peoples of the United Nations,
para atender aos interesses dos primeiros, ou, 2007.
por mero mimetismo e tudo fortemente in-
fluenciado pela teoria do evolucionismo social Keywords: people, state, evolution, capitalism,
e do desenvolvimento transferido, ideologias self-determination.
francamente ao serviço do capitalismo. Anali-
sam-se o processo de desmonte do colonialis- RESUMEN
mo e o debate jurídico relativo à aplicação do Se basa en el análisis crítico de la evolución
direito de autodeterminação, fixado na Carta post-antropología, la gente y los temas Estado
da ONU, inicialmente aplicado contra as me- y de su dialéctica. Se centra la diferencia fun-
trópoles de ultramar, mas que, contemporane- damental en la génesis de los estados centrales
amente vem sendo aplicado também em situ- y occidentales de los Estados periféricos, por
ações de colonização interna, sendo os povos la institución, el funcionamiento y la estruc-
autóctones da Terra os últimos que obtiveram tura de este último eran para trabajar y servir
o reconhecimento para si desse mesmo direi- a los intereses de los primeros, o por simple
to por força da Declaração das Nações Unidas mimetismo y todo fuertemente influenciado
dos Direitos dos Povos Autóctones de 2007. por la teoría de la evolución social y el desar-
rollo trasladado ideologías francamente al ser-
Palavras chave: povo; estado; evolucionismo; vicio del capitalismo. Se analiza el proceso de
capitalismo; autodeterminação; desmantelamiento del colonialismo en el siglo
XX y el debate jurídico sobre la aplicación del
ABSTRACT derecho a la libre determinación, establecido
Based on critical analysis of post-evolutionist en la Carta de las Naciones Unidas, aplicada
anthropology, the current article discusses the inicialmente en contra de las metrópolis en el
concepts of People and State and its dialec- extranjero, pero que en la actualidad se está
tics. Primary focus is laid on the fundamental aplicando también en situaciones de coloniza-
difference in the genesis of the Western cen- ción interna y los pueblos indígenas de la tier-
tral states from that of peripheral states, since ra el pasado que el reconocimiento obtenido
the institution, operation and structure of the por sí mismo de ese derecho en virtud de la
latter occurred at work and to serve the inte- Declaración de las Naciones Unidas sobre los
rests of the first, or by mere mimicry and all Derechos de los Pueblos indígenas, 2007.
strongly influenced by theory of social evo-
lution and development, ideologies openly at Palavras-clave: personas; condición; evolucio-
service of capitalism. The process of disman- nismo, el capitalismo, la libre determinación;
tling of colonialism in the twentieth century
is analyzed, as well as the legal debate on the
* Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Estudou Antropologia Social na Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais de Paris. Professor do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Recebido de 17 de Novembro de 2011
Aprovado em 05 de Março de 2012
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OS INSTRUMENTOS DE BORDO
EXPECTATIVAS E POSSIBILIDADES DO TRABALHO DO ANTROPÓLOGO EM LAUDOS PERICIAIS*
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA FILHO
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* Esta versão é uma síntese do trabalho apresentado na 27ª Reunião Brasileira de Antropologia realizada entre os
dias 1 a 4 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil no GT 20 - Etnografias de Eventos Críticos e Conflitivos no Brasil
plural. Agradeço aos comentários dos participantes, que foram muito úteis para o aprimoramento do texto.
** Mestranda do PPGSCA da UFAM.
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Recebido de 30 de Agosto de 2011
Aprovado em 08 de Novembro de 2011
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Recebido de 29 de Setembro de 2011
Aprovado em 06 de Outubro de 2011
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Figura 3: Cronograma etno-histórico na Paraíba – 1944. Fonte: Oliveira (2009), baseado em IBGE (s/d) e Nimuendaju (1987).
Figura 5: Exemplo de um dos painéis de gravações picoteadas. Figura 9: Presença de polidor nos sítios.
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nário de Ciências Ambientais, Rio de Janeiro,
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PEREIRA, Levi Marques. 2009. Os Terena de Buriti: formas organizacionais, territorialização e representação da
identidade étnica. Dourados, Editora UFGD, 170 pp*
PATRIK THAMES FRANCO**
Falar e escrever sobre os Terena é recu- um trabalho de investigação pericial desen-
perar um importante capítulo da história da volvido na Terra Indígena Buriti em razão
antropologia brasileira, como certa vez pon- de litígio fundiário envolvendo um coletivo
derou Roberto Cardoso de Oliveira (2002). Terena. Trata-se de uma tentativa de revisão
Os Terena, representantes mais meridionais do produto etnográfico do autor que, em par-
dos povos de língua e cultura aruaque no ceria com o historiador jorge Eremites de
Brasil, aparecem na literatura antropológi- Oliveira, visitou aldeias Terena localizadas
ca especializada a partir do final dos anos nos municípios de Sidrolândia e Dois Irmão
40, embora os relatos de cronistas, literatos do Buriti, Mato Grosso do Sul. Dividido
e viajantes sejam anteriores a este período. em cinco capítulos, esse livro se inclui de
A primeira grande referência que se tem dos modo muito bem vindo a um “movimento
Terena, esta anterior ao século XX, dá con- de renovação na etnografia Terena” (Pereira
ta da sofisticação agrícola e da disposição à 2009:32).
convivialidade e ao associativismo com os No capítulo inicial, Pereira realiza uma
povos que lhes são estrangeiros, atributos breve revisão bibliográfica das principais
coextensivos à estrutura social indígena. etnografias sobre os Terena, enfatizando
A literatura e a própria oralidade in- os trabalhos de Kalervo Oberg e de Rober-
dígena sugerem que no passado os Terena to Cardoso de Oliveira. O autor aponta as
teriam se confederado aos aguerridos Guai- principais lacunas deixadas pelos clássicos,
curú, a fim de evitar as invasões inimigas às dentre elas a inclusão dos Terena na rede de
aldeias e o saque dos roçados. Em troca de povos de língua e cultura aruaque, e a des-
proteção militar os Terena, que se autodeno- crição adequada da organização social e da
minam Poké’e (gente da terra), abasteciam sociocosmologia indígena, tópicos ofusca-
os Guaicurú com mandioca, milho e outros dos pelos temas de aculturação e mudança
produtos da lavoura. Sensível a essas carac- cultural. Na segunda parte, realiza uma críti-
terísticas, que aliás são anteriores ao even- ca à hipótese sustentada pelos clássicos que
to do contato, é possível até mesmo avistar, inadmite a presença Terena na região como
ainda que a título de hipótese, o interesse dos fato anterior ao século XIX.
Terena pelo mundo dos brancos como uma O segundo capítulo se destaca pela crí-
transformação estrutural, embora não seja tica nativa ao conceito ocidental de aldeia,
esse o propósito de Os Terena de Buriti. cujo debate recai sobre o conceito Terena
O Livro Os Terena de Buriti, do etnólo- de tronco. Inspirado na crítica do material
go Levi M. Pereira, recupera as reflexões de melanésio ao problema geral dos conceitos
* Texto completo disponível em: http://www.ufgd.edu.br/editora/catalogo/os-terena-de-buriti
** Doutorando em Antropologia Social (Unicamp)
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
131
proposta por Strathern (1988), e auxiliado remete às redes de relações mantidas com os
pelo método genealógico de Rivers, Pereira Guaicurú no Chaco, para mostrar que a faci-
sugere que a aldeia aparece como uma con- lidade dos Terena em contrair boas relações
figuração de troncos. O tronco é uma clara com o exterior é anterior ao contato com os
expressão da chefia hereditária. O tronco, brancos, e que por isso não se explica apenas
ou kurú, se aplica a uma parentela bilateral por esta via.
reunida por relações de consangüinidade em O quinto capítulo atende a dois grandes
torno do Big Man, e cuja relação com outros debates: a construção da identidade em ce-
troncos configura uma aldeia. nário interétnico, e a sociocosmologia indí-
O terceiro capítulo, o mais importan- gena. A primeira parte fica por conta de uma
te do livro, ou pelo menos o mais citado, reflexão sobre o problema da tradição a par-
é apresentado pelo autor como um “ensaio tir do contexto da modernidade. Mas o pon-
exploratório” (Pereira 2009:85) sobre os to forte do capítulo se concentra na segunda
componentes essenciais do ethos Terena. parte, onde o autor recupera importantes ele-
Pereira sugere que os Terena possuem uma mentos da sociocosmologia Terena. O dis-
“feição típica, facilmente identificável pe- curso de Dona Senhorinha, uma especialista
los integrantes desse grupo étnico” (Pereira religiosa, revela uma sofisticada cosmologia
2009:83), cuja explicação se daria fora do povoada pelos Natiacha [naati: chefe; acha:
paradigma interétnico. A inclinação à flexi- mato], uma categoria de seres espirituais que
bilização e adaptação frente a outras sociali- gerenciam a caça e a relação com o animal,
dades e outros atributos relacionados a uma uma interessante teoria indígena da natureza
estética social do cotidiano, para lembrar jo- e da cultura infelizmente ainda pouco explo-
anna Overing (1999), explica a primazia da rada pelos etnólogos.
convivialidade e diplomacia sobre a preda- Os Terena de Buriti é antes de tudo sen-
ção e o conflito enquanto princípios básicos sível ao mundo vivido indígena. Sem dúvida
de ordenamento da vida social. um importante incentivo para a nova etno-
A inspiração para a formulação do con- logia Terena, cujo foco tem se voltado cada
ceito de ethos curiosamente não procede de vez mais para temas pouco explorados pe-
Gregory Bateson (1958), mas do sociólogo los clássicos, tais como a noção de pessoa,
Norbert Elias e seus estudos sobre a socie- a onomástica, o parentesco e a produção dos
dade de corte francesa. Pereira sugere que a corpos e das substâncias. À guisa de conclu-
“formação social” dos Terena (hospitalida- são, entretanto sem a pretensão de esgotar o
de, cordialidade, fino trato, maneira amena assunto, saliento que além de contribuição à
de falar) se aproxima, enquanto tipologia, etnologia sul americana, Os Terena de Buriti
da sociedade de corte (Pereira 2009:96). O é também boa literatura. O leitor encontrará
conjunto desses componentes daria forma ao não apenas importantes insights, mas tam-
ethos, cujo lócus estaria no plano do gesto e bém o rigor e a sensibilidade do trabalho de
da etiqueta (Pereira 2009:103). um etnólogo bem (in) formado.
O quarto capítulo também explora ou-
tro tema de fundamental importância: a re- BiBliografia Citada
lação com a exterioridade. Os Terena nunca
negaram o interesse por uma vida integrada BATESON, Gregory. 1958. Naven. Califor-
ao mundo dos brancos, fato que chamou a nia, Stanford University Press.
atenção de muitos antropólogos interessados
nos paradigmas de aculturação. Mais uma OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 2002. Os
vez Pereira se afasta dessas formulações, Diários e suas Margens: viagem aos terri-
buscando possíveis respostas não na nação, tórios Terêna e Tükúna. Brasília, Ed. UnB.
mas no mundo vivido indígena. O autor nos
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
132
OVERING, joanna. 1999. “Elogio do Coti-
diano: a confiança e a arte da vida social em
uma comunidade amazônica”. Mana, Rio de
janeiro, 5(1).
____________
Recebido de 30 de Agosto de 2011
Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados
Dourados - MS - Brasil
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PPGAnt - UFGD
RESENHA
RUIBAL, Alfredo Gonzáles. La experiencia del otro: una introducción a la etnoarqueologia. Madri: Ediciones Akal.
2003, 177p.
LUIZ CARLOS MEDEIROS DA ROCHA*
ANDRÉA LOURDES MONTEIRO SCABELLO**
O livro “La experiencia del otro: una muitas vezes, leituras prévias.
introducción a la etnoarqueologia”, de au- O primeiro capítulo, “Teoría y Méto-
toria de Alfredo Gonzáles Ruibal, apresen- do”, além de trazer um panorama sucinto da
ta muito mais do que o título propõe, tendo etnoarqueologia, apresenta também a função
em vista a amplitude das abordagens e dis- deste subcampo de pesquisa, que tradicional-
cussões a respeito da etnoarqueologia. Essa mente dedicou-se a estudar grupos étnicos
obra apresenta uma linguagem clara e didá- prestes ao desaparecimento, investigando
tica, dedicada aos profissionais que buscam a produção da cultura material desses gru-
conhecer melhor o objeto de estudo deste pos. Esse olhar para a produção da cultura
subcampo da Arqueologia. Embora o autor material – da origem à morte – auxiliará os
tenha se dedicado a estudar a Idade do Ferro, arqueólogos no entendimento dos processos
na Península Ibérica (pesquisa de doutora- de formação dos registros arqueológicos.
do), atualmente preocupa-se com a arqueo- Ruibal, ainda nesse capítulo, apresenta
logia contemporânea e com temas como: as algumas das tendências teórico-metodológi-
guerras, as migrações em massa, entre ou- cas pelas quais a etnoarqueologia passou e
tros, realizando pesquisas na Espanha, Etió- vem passando, sobretudo na perspectiva da
pia, Guiné Equatorial e Brasil. arqueologia processual e a pós-processu-
Ao longo das 177 páginas, divididas em al, citando os seus maiores representantes
quatro capítulos, são apresentadas questões (Lewis Binford e Ian Hodder, respectiva-
de cunho teórico-metodológico e reflexões mente), e as pesquisas etnoarqueológicas re-
sobre o futuro da etnoarqueologia. Mesmo alizadas por eles. Cita, também, os trabalhos
de forma modesta, o autor ressalta as interfa- teóricos de etnoarqueologia de autoria de
ces entre a etnoarqueologia e outros campos Gustavo Politis, Nicholas David e a Susan
da arqueologia, como a arqueologia histó- Kramer. No entanto, o autor não se prende
rica, a arqueologia experimental etc., mos- às pesquisas do chamado mundo anglo-sa-
trando uma ampliação das pesquisas. xônico, mas aborda igualmente aquelas de
O tema central do livro abrange as autoria de pesquisadores franceses (dando
perspectivas do pensar e fazer etnoarqueoló- um pequeno destaque a estas), belgas, su-
gico. Por se tratar de uma obra em espanhol íços, alemães e latino-americanos. Segundo
e ainda não traduzida, o leitor poderá encon- ele, nesses últimos anos a investigação et-
trar dificuldade de compreensão requerendo, noarqueológica mostrou-se promissora, es-
* Mestrando – PPGAArq - Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia (PPGAArq) Universi-
dade Federal do Piauí – Bolsista CAPES
** Bacharel em Arqueologia e Conservação de Arte Rupestre - Universidade Federal do Piauí
Ñanduty
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“EU EVITO MUITO CRIAR COISAS qUE SEjAM MITOS, NAS CABEÇAS DOS
OUTROS E NA MINHA PRÓPRIA”
ENTREVISTA COM jOÃO PACHECO DE OLIVEIRA*
JORGE EREMITES DE OLIVEIRA**
MARIO TEIXEIRA DE SÁ JUNIOR***
No final da tarde do dia 8 de dezembro de 2011, Suas experiências como etnógrafo dos
após prévio agendamento, realizamos uma Ticuna do Alto Solimões, na Amazônia,
entrevista com o antropólogo joão Pacheco extrapolam a conclusão de uma dissertação
de Oliveira em seu gabinete de trabalho, de mestrado e de uma tese de doutorado
no Museu Nacional, órgão da Universidade em Antropologia Social, respectivamente
Federal do Rio de janeiro. Desde 1988 defendidas na Universidade de Brasília
ele ali atua como professor e pesquisador (1977) e na Universidade Federal do Rio
vinculado ao Programa de Pós-Graduação de janeiro (1986). Exemplo disso é o fato
em Antropologia Social, o mais antigo do de ter sido um dos fundadores do Museu
país, criado em 1968. Também atuou como Magüta, localizado em Benjamim Constant,
professor visitante em várias instituições Amazonas, com passagens pela sua direção
sediadas no Brasil e em alguns outros países, nas décadas de 1980 e meados da de 1990,
como Argentina, Itália e França. o qual no momento está sob a administração
direta do Conselho Geral da Tribo Ticuna.
Longe de querermos aqui apresentar uma
biografia exaustiva sobre o antropólogo, A entrevista ora divulgada faz parte do dossiê
cumpre registrar que no Museu Nacional “Terras Indígenas”, cuja publicação inaugura
joão Pacheco de Oliveira foi chefe do o número 1 da revista eletrônica Ñanduty,
Departamento de Antropologia (1988-1990), periódico oficial do Programa de Pós-
coordenador do Programa de Pós-Graduação Graduação em Antropologia da Universidade
em Antropologia Social (1990-1992) e Federal da Grande Dourados, criado em
chegou ao cargo de professor titular em 1997. fins de 2010. Ao planejarmos previamente
A partir dali tem coordenado vários estudos a entrevista, tomamos o cuidado de fazê-la
sobre povos indígenas no Brasil e é bolsista o menos formal possível, mais próxima das
de produtividade em pesquisa do CNPq. No interlocuções abertas e descontraídas que
momento também responde pela curadoria por vezes realizamos em nossos trabalhos
das coleções etnológicas do Museu Nacional, de campo. A ideia foi tratar da história
onde tem desenvolvido estudos sobre museus, de vida de um dos maiores antropólogos
expedições científicas, patrimônio cultural e brasileiros da atualidade, ao mesmo tempo
memória indígena, dentre outros temas. em que questões relativas a sua trajetória
acadêmica e à atual realidade dos povos
Em seu currículo consta ainda a orientação indígenas e da Antropologia no Brasil
de dezenas de dissertações de mestrado e pudessem ter certo destaque. Por isso na
teses de doutorado, bem como a supervisão entrevista aqui apresentada constam apenas
de vários estágios de pós-doutoramento, as perguntas feitas por um de nós, embora
a maioria tratando de povos indígenas na seu planejamento tenha sido resultado de
Amazônia e no Nordeste do Brasil. Foi um trabalho a quatro mãos. Trata-se, em
presidente da ABA - Associação Brasileira última instância, de um documento sobre o
de Antropologia (gestão 1994-1996) e nela indigenismo, o trabalho do antropólogo e a
por várias vezes tem coordenado a CAI - própria história da Antropologia Brasileira
Comissão de Assuntos Indígenas. sob o olhar de um dos seus protagonistas.
* Transcrição de Jorge Eremites de Oliveira e Rafael Allen Gonçalves Barboza.
** Universidade Federal de Pelotas/CNPq.
*** Universidade Federal da Grande Dourados.
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138
Feita a gravação da entrevista, muito longo, eu faço. Eu recupero um pouco
providenciamos sua transcrição o mais esse contexto político etc. Agora, é claro que
próxima possível das falas registradas no indo mais direto eu até me surpreenda um
gravador digital. Além disso, ao longo do
texto incluímos notas explicativas que pouco com essa constatação. Mas é, eu não
auxiliam o leitor não iniciado no assunto imagino que seria. Talvez eu não praticasse
a melhor conhecer certas questões e a um romance tão grande ao dizer que já ao
se interar de referências bibliográficas e nascer eu pretendia estudar índios ou que eu
autores citados pelo entrevistado. sentia um fascino nato pela Amazônia, ou
Esperamos, enfim, que este trabalho seja um qualquer coisa do tipo. Não seria verdade.
marco na trajetória de um novo periódico Eu acho que isso foi sendo construído. Eu
brasileiro dedicado à Antropologia e seus acho que o fascínio pelas culturas indígenas
campos afins. foi sendo construído através da bibliografia
antropológica e conhecer essas sociedades,
Boa leitura!
através da pluralidade de soluções que elas
jORGE EREMITES DE OLIVEIRA (jEO) tinham, e depois a vivência nas aldeias,
– A gente queria começar esta entrevista, contato direto com as pessoas, com
joão, se você pudesse explicar primeiro por bibliografias, com as vidas, com as lutas. E
quais caminhos decidiu ser antropólogo? eu acho que foi uma trajetória bem diferente.
Foi de certo modo interessado na temática
jOÃO PACHECO DE OLIVEIRA (jPO) – social e não no sentido de produzir mudança
Bom, eu acho que um pouco pelo contexto. social. Uma temática sociológica. Interessava
Às vezes as decisões são muito conjunturais. os problemas sociológicos. Eu achava que
Eu estudei Ciências Sociais e estava me era importante compreender a sociedade,
formando no período militar, no período de também pensando em transformar, evidente.
repressão muito forte. Então eu acho que havia Mas eu acho que era importante compreender.
uma série de motivações para fazer estudos E eu acho que dentro do contexto
sociais. Mas, em certo momento, me pareceu universitário isso tem sido comentado por
que um dos estudos que seria possível fazer vários professores daqui. A Antropologia
seria o estudo talvez daquilo que não estava nos anos 70 era uma espécie de “ilha de
sendo mais diretamente observado pelo segurança” para você fazer os estudos na
Estado e pelo poder. quer dizer, trabalhar um concepção dos militares. Eles perseguiam os
pouco nas margens, produzir conhecimento sociólogos, cientistas políticos, mantinham
sobre o que é considerado irrelevante, sem sob suspensão historiadores e eles achavam
significação. Então foi isso. Eu acho que que os antropólogos faziam outros trabalhos.
não via muita condição, ou não via muita Então, curiosamente, eu me lembro como
utilidade, se eu fosse me dedicar a outros num dos períodos que voltei a campo, tive
estudos de assuntos que eram altamente que passar por um coronel da FUNAI. Um
políticos na sua natureza. Então eu acho coronel de triste memória chamado zanoni
que isso me levou a trabalhar em situações [...]2. Mas é, enfim, e ele em certo momento
bem recuadas no Brasil. Ir para Amazônia, perguntou: “O que eu vou fazer em campo?”
trabalhar com índios, uma temática que Eu falei: “Vou fazer pesquisa antropológica”.
aparentemente não seria política, mas que Ele disse: “Sim, o que exatamente?” Aí eu
permitiria assim um grau de compreensão, comecei a explicar, mas acho que expliquei
um grau de continuidade em relação aos alguma coisa um pouco abstrata demais que
estudos. Eu acho que talvez até eu vendo
2 Ivan zanoni Hausen, coronel da Aeronáutica e espe-
isso hoje me surpreenda um pouco. Eu já cialista em Estratégia, já falecido, participou da direção da
disse isso até em meu memorial de professor, FUNAI (Fundação Nacional do Índio) durante a presidência
num concurso para professor titular, que do também coronel joão Carlos Nobre da Veiga, cuja ges-
depois foi publicado no livro Ensaios em tão foi no período de novembro de 1979 a outubro de 1981.
À época ele foi diretor do então DGPC – Departamento Ge-
Antropologia Histórica1. Num memorial
ral de Planejamento Comunitário do órgão indigenista (cf.
1 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1999. Uma trajetória
em antropologia (depoimento). In: PACHECO DE OLI- http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/
VEIRA, João. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de orgao-indigenista-oficial/galeria-dos-presidentes-da-funai
Janeiro, Editora UFRJ, pp.211-263. [acesso em 24/01/2012]).
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ele não entendeu. Ele disse: “Sim, vai estudar três fazendo pesquisa e um dos professores
os potes, os artesanatos, essas coisas que indígenas chegou e veio me abraçar de
eles vão fazer, né?” Fiquei meio surpreso, manhã, e estava muito triste. E ele disse
mas antes que eu dissesse alguma coisa, ele que tinha sonhado que nós tínhamos sido
arrematou: “Não, nada de você trabalhar com presos, levados presos por uma comissão
terra e nem com a ação da FUNAI dentro da do Exército, que tinha entrado lá e tinha
área. Isso não faz parte do seu objeto!”. quer prendido etc. é engraçado. A preocupação
dizer, exatamente o meu projeto de pesquisa dele com a coisa. Claro que nós tínhamos
era esse. é claro que era esse porque aqui a mesma preocupação. Sabia que corria o
dentro a gente trabalhava com essas questões, risco real de ser qualificado como elemento
dentro do Museu. Então não houve muita... perigoso, um insuflador dentro da área. Eu
Acho que a idéia socialmente vigia em estive presente no momento em 88, quando
relação à Antropologia ajudava exatamente houve um massacre dos índios Ticuna5.
a que se pudesse fazer estudos sem que esses Eu tive lá. Eu tive, estava em Benjamin
estudos estivessem tão ameaçados assim, Constant. Não fui à área exatamente por
como considerada coisas tão perigosas. saber dos riscos envolvidos, como depois
Isso não quer dizer que a gente não fizesse fui ameaçado por coronéis, que se diziam
estudos fora de uma redoma de cristal, ao do Conselho da Segurança Nacional, que
contrário. A gente sempre. Na prática, os foram lá investigar o assunto. Enfim, são
estudos eram muito difíceis. Uma parte da situações extremamente complexas, que a
minha pesquisa com os Ticuna, que durou gente vive junto com índios, mas que, enfim,
muito tempo, foi realizada sem permissão é delicado. Mas eu acho que se a gente não
da FUNAI. é, uma parte do período foi feito preservar um pouco da continuidade do
durante o período Calha Norte3, lá dentro, nosso trabalho, pelo menos do ponto de vista
e era proibida a presença dos militares lá do objeto do conhecimento, nós estamos
dentro. Eu nunca pedi autorização a não perdendo um lado aí nosso, profissional,
ser uma autorização. Essa vez que estive e acabamos sendo objeto das pressões
com esse coronel, foi um pedido formal via políticas. Eu nunca fiz isso. Eu sempre
CNPq, Ministério da Ciência e Tecnologia, mantive em qualquer situação que seja. Eu
porque a FUNAI não dava resposta aos posso atuar politicamente, mas eu tenho um
nossos pedidos. Então, foi a única vez que compromisso de produzir teorias, produzir
eu pedi autorização. Depois disso, sempre Antropologia, de fazer etnografia. Eu sempre
pedi autorização e acatei o que o “capitão” me ocupo das duas coisas e sempre produzo
da aldeia me dizia. Ele era autoridade e eu das duas coisas. Então, eu acho que o Museu,
tinha que respeitar a autoridade dele, e agir voltando à coisa e fechando, terminando
de acordo com aquela autoridade. Mas eu
Oliveira era graduado, mestre e doutorando em Geografia
nunca voltei a pedir autorização à FUNAI. pela Universidade Federal do Rio de janeiro. Realizava es-
Sempre trabalhei com a autorização dos tudos no campo da Geografia Humana, precisamente sobre
índios. E isso levava a situações complexas. identidades étnicas e territorialidades na região Nordeste,
Eu me lembro durante o período Calha Norte. e modernização dos sertões e suas relações com a história
[...] Estava com a minha mulher lá dentro, da Geografia.
5 Segundo consta no sítio eletrônico do Instituto So-
criança, meu filho Tomas4. Estávamos lá os cioambiental, o massacre dos Ticuna, também conhecido
3 O Projeto Calha Norte se refere a um programa de de- como massacre da Boca do Capacete, local onde ocorreu,
fesa da região Norte do país, inicialmente dirigido à faixa de foi feito por madeireiros em 28 de março de 1988, durante
fronteira, contando com quatorze bases militares e concebi- uma reunião dos Ticuna das comunidades de Bom Pastor,
do a partir de 1985, na época do governo José Sarney (1985- São Leopoldo, Porto Espiritual e Novo Porto Lima, em Ben-
1990) (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Calha_Nor- jamin Constant, estado do Amazonas. Foram assassinados
te [acesso em 24/01/2012]). Desde 1999 o programa está quatro indígenas, dezenove sofreram lesões corporais e
subordinado ao Ministério da Defesa e sobre o assunto há nove desapareceram. Em 2001, treze dos quatorze acusados
uma publicação oficial, intitulada Calha Norte 25 anos: a foram condenados por crime de genocídio, com penas que
Amazônia desenvolvida e segura, disponível na Internet variavam de 15 a 25 anos de prisão, com direito a recorrer
(cf. https://www.defesa.gov.br/index.php/publicacoes/ca- da sentença. O massacre teria sido ordenado pelo madeirei-
lha-norte-25-anos-a-amazonia-desenvolvida-e-segura.html ro Oscar Castelo Branco, que à época da entrevista se en-
[acesso em 24/01/2012]). contrava em prisão domiciliar (cf. http://pib.socioambien-
4 À época da entrevista, Tomas Paoliello Pacheco de tal.org/pt/noticias?id=2977 [acesso em 24/01/2012]).
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essa questão, eu acho que o Museu era um mais da Antropologia do que do próprio
ambiente bastante propício para isso. Era Lévi-Strauss, porque ela me parecia mais
um ambiente um pouco de estudos sérios, interessante. Então, quando durante os cursos
de estudos condensados, dirigidos. Então foi que eu fiz: Evans-Pritchard, Malinowski,
uma coisa muito propícia. Acho que o Museu Gluckman, Forde etc. Foram, sobretudo,
neste sentido. Brasília também com Roberto os ingleses. Foram leituras fundamentais
Cardoso de Oliveira era o mesmo circuito. para mim, muito interessantes. Leach...
Na verdade, eram lugares diferentes, mas Foram leituras que fizeram a minha cabeça,
havia uma conexão de pessoas. me mobilizaram profissionalmente a ir a
investigar. Então, eu acho que sempre essa
JEO – Quais foram suas principais influências etnografia foi muito interessante. Depois,
em termos intelectuais desde a graduação? O em certa medida, quando dentro dessa
que você leu, enfim, o que lhe influenciou? tradição, eu acabei definindo meu projeto de
Autores? pesquisa na área de sociedades indígenas. Aí
comecei a fazer uma virada no sentido das
JPO – Jorge, a minha influência foi muito
leituras, das monografias sobre o Brasil. E
variada. Eu, em certo momento, quis estudar
aí eu acho que a figura do Curt Nimuendaju,
também Filosofia. Eu fiz várias incursões em
uma figura muito importante de ler e seguir
vários lugares. Então eu acho que influências
e acompanhar a trajetória dele7. David
assim, para chegar à Sociologia, poderia ser
Maybury-Lewis... Eu acho que é uma grande
Marx, sem dúvida, weber, Nietzsche – que
influência. Roberto Cardoso8, claro, foi meu
pra mim foi uma leitura muito importante.
professor, foi meu orientador na pesquisa
Antes de ter lido Durkheim, eu era um leitor
sobre Ticuna e quem, de certa forma, insistiu
muito interessado em Nietzsche. Então, eu
para que eu trabalhasse com os Ticuna.
acho que talvez foram essas, assim, as leituras
Embora ele não tivesse continuado a ter
mais fortes para levar para Antropologia.
pesquisa com os Ticuna, mas os contatos dele
Depois, dentro da Antropologia, no curso
com a FUNAI propiciaram que eu fosse até
de Sociologia, influência grande foi aqui
a área, e fizesse o trabalho mais fácil. Enfim,
do professor Luiz Costa Lima6, que era de
foram esses os contatos, assim. Mas talvez
pensamento muito ligado ao estruturalismo.
numa direção, chegando aqui no Museu
Profundo conhecedor de Lévi-Strauss.
Nacional, sobretudo, a referência maior seria
Então, na época, eu li muita coisa com ele.
o professor Otávio Velho, com os trabalhos
Fui monitor da cadeira dele lá na PUC do
dele sobre fronteira. Campesinato: Moacir
Rio de janeiro, onde eu estudei. E, de certo
Palmeira, Lygia9 também. Mas, enfim.
modo, quando eu vim para cá, para o Museu,
eu já conhecia quase toda a obra de Lévi- 7 O teuto-brasileiro Curt Unkel Nimuendaju (1883-
Strauss, pelo menos até aquele momento a 1945) foi um dos maiores etnógrafos que trabalharam no
que eu já tinha discutido. Porque o Costa Brasil. Dentre as suas publicações consta o livro As lendas
Lima, ele escrevia, ele produzia isso. Ele da criação e destruição do mundo como fundamentos da
religião dos Apapocuva-Guarani, escrito originalmente em
deu cursos na PUC só sobre o Mitologie. 1914, sob título Die Sagen von der Erschaffung und Ver-
Então, ele era um leitor, ele utilizava a nichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apa-
categoria do método estrutural para a pocúva-Guaraní, resultado de pesquisas realizadas a partir
análise literária. Então era uma discussão de 1906 (cf. http://biblio.etnolinguistica.org/autor:curt-ni-
muendaju [acesso em 24/01/2012]). Sobre o assunto, ver
profunda, envolvendo semiólogos etc. Eu ainda: PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1999. Fazendo
acho que se isso me aproximou de certa etnologia com os caboclos do Quirino: Curt Nimuendaju
maneira da Antropologia, pela bibliografia. e a história Ticuna. In: PACHECO DE OLIVEIRA, João.
Mas ao mesmo tempo à medida que eu Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro, Editora
começava a estudar teoria antropológica, UFRJ, pp.60-96.
8 Sobre a vida e a obra de Roberto Cardoso de Olivei-
essa teoria me fascinava muito mais do que ra (1928-2006), acessar o link http://pt.wikipedia.org/wiki/
o estruturalismo. Descobri que eu gostava Roberto_Cardoso_de_Oliveira e ver, dentre outras publi-
cações, o seguinte livro: AMORIM, Maria Stella. 2001.
6 Ver relação de obras do autor em http://pt.shvoong. Roberto Cardoso de Oliveira: um artífice da antropologia.
com/books/biography/1659987-luiz-costa-lima-vida-obra/ Brasília, Paralelo 15 Editores.
(acesso em 24/01/2012). 9 Lygia Sigaud (1945-2009) foi da primeira turma de
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
141
Lygia foi minha professora na PUC. Então ouvir o que eles queriam me contar. Eu não
eu conto isso, sempre. Eu a conheci antes podia invadir outras áreas. Então, foi essa a
de conhecer os antropólogos. Li, sobretudo, minha relação. Eu acho que o meu projeto
uma influência grande aqui no Museu, de pesquisa foi redesenhado no campo, quer
também de certa forma o decano, o Luiz dizer, eu comecei a estudar Antropologia
de Castro Faria10, que era o professor mais Política voltando do campo! Eu tinha ido
antigo da casa. Foi tudo: foi arqueólogo, foi com uma bibliografia de outra natureza. E aí
antropólogo físico. Ele fazia de todas. Tocava eu disse: “Não, eu vou refazer o meu objeto
todos os instrumentos dentro desse Museu. de estudos porque eles querem falar sobre
Foi uma influência muito grande a discussão isso”. E a minha dissertação do mestrado
com ele sobre pensamento social brasileiro. teve como tema mais ou menos a questão do
Infelizmente não tem continuidade muito faccionalismo, dos conflitos internos à aldeia
essa linha de pesquisa aqui no Museu. Ele e coisa11. Era isso o que aparecia porque
não deixou muitos continuadores dessa era esse o grande desafio. Quem visitava
linha. as aldeias diziam que elas eram como se
fossem favelas, sem qualquer ordem. Os
jEO – E como que foi o seu encontro com os índios brigando entre si, enfim. E eu acho
Ticuna e a influência deles na sua formação que trabalhar um pouco com essa ideia das
de antropólogo? unidades políticas, das facções, dos grupos
familiares, a influência das religiões etc., foi
jPO – Ah, eu acho que eu fui rebatizado
um instrumento fundamental, muito difícil.
no campo, quer dizer, eu defini um projeto
Mas foi a pesquisa do mestrado, enfim, foi o
de pesquisa sobre os Ticuna a partir da
que me moveu. Nessa altura o meu orientador
bibliografia, sobretudo de trabalhos na época
do mestrado foi o Roberto Cardoso. Eu fiz o
muito formados pelo chamado totemismo,
mestrado em Brasília. Depois no doutorado
pelo sistema de classificação. Meu projeto de
já foi a uma outra direção12. quando eu voltei
pesquisa era sobre isso. Envolvia um pouco
à área, o movimento messiânico estava mais
o parentesco também. É, mas, enfim, a ida
fraco e eu pude me mexer mais também
ao campo foi outra coisa. Os Ticuna queriam
em outras direções. Então, as experiências
falar de política, de terra, de conquista de
foram um pouco diferentes. Pude encontrar
terras. Eles queriam falar sobre religião
mais a história dos grupos, a mitologia,
também, mas não a religião do yo’i e do Ipi,
ouvir muitos mitos, participar de alguns
mas queriam falar, no momento, da Santa
rituais. Enfim, foi uma outra condição que eu
Cruz, que era um movimento messiânico
encontrei dentro deste retorno. Mas também
que estava muito forte. Então, eu tive que
– eu acho que entre uma coisa e outra estou
mestrandos do PPGAS – Programa de Pós-Graduação em falando do acadêmico. Mas também teve
Antropologia Social, do Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, criado em 1968 (cf. http://www.
uma ação política porque mesmo enquanto
ppgasmuseu.etc.br/museu/pages/homenagem-lygiasigaud. investigador do mestrado, eu também, quer
html [acesso em 24/01/2012]). Sobre sua obra, ver ainda o dizer, na realidade o convite feito ao Roberto
seguinte artigo: LOPES, José Sérgio Leite. 2009. Lygia Si- Cardoso não era só para fazer uma equipe
gaud (1945-2009). Revista Brasileira de Ciências Sociais, de estudantes que fizesse um levantamento
24(71): 5-8. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0102-69092009000300001&script=sci_arttext sobre os Ticuna. Era para que agendasse
(acesso em 24/01/2012). um programa de desenvolvimento lá dentro.
10 Luiz de Castro Faria (1913-2004) foi um antropólo-
go de formação holística que chegou a presidir a Associa- 11 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1977. As facções e
ção Brasileira de Antropologia nos períodos de 1955-1957 a ordem política em uma Reserva Tükuna. Dissertação de
e 1978-1980 (cf. http://castrofaria.mast.br/trajetoria.htm Mestrado em Antropologia Social. Brasília, PPGAS/UnB.
[acesso em 24/01/2012]). Ele participou, na condição de Orientador: Roberto Cardoso de Oliveira.
brasileiro e representante do Museu Nacional, da missão 12 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1986. “O Nosso Go-
científica Vellard/Lévi-Strauss, em atendimento às exigên- verno”. Os Ticuna e o Regime Tutelar. Tese de Doutorado
cias do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísti- em Antropologia Social. Rio de Janeiro, PPGAS/MN/UFRJ.
cas e Científicas, criado desde 1933. Sobre o assunto, ver, Orientação de Otávio Guilherme Alves Velho. Este trabalho
dentre outras publicações, o seguinte artigo: PEIXOTO, foi publicado sob forma de livro: PACHECO DE OLIVEI-
Fernanda. 1998. Lévi-Strauss no Brasil: a formação do et- RA, João. 1989. O Nosso Governo: Os Ticuna e O Regime
nólogo. Mana, Rio de janeiro, 4(1): 79-107. Tutelar. São Paulo, Marco Zero/CNPq.
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142
Na época eram aquelas grandes coisas da ele foi trabalhar nas frentes de atração, se
Perimetral Norte13, aquelas estradas que tornou o segundo homem das frentes de
seriam construídas em todo o Brasil. E a atração, colaborador do Sidney Ponsuelo,
FUNAI achava que iria capturar recursos, uma figura notável. Mas eu acho que foi
talvez até internacionais, para criar uma uma ação extremamente importante porque
estrutura na área. Então foram grandes o posto indígena é colocado a cem metros
projetos que foram feitos. quer dizer, da casa do barracão do patrão. Era um com
feitos nem tanto, mas foram elaborados por a bandeira nacional, era uma manifestação
professores, sobretudo da Universidade de de que aquilo ali fazia parte do Brasil, não
Brasília: David Price, lá com Nambiquara; era uma propriedade privada. Então, eu
o meu, com Ticuna; o do Peter Silverwood, acho que foi um período muito... Foram
no Rio Negro; e o com yanomami, com resultados importantes nessa coisa. Claro
Kennedy Taylor, que é marido da Oscila, que eu não participei de todos os momentos.
escocês que era professor da UnB. Eram Eu acho que... Eu evito muito criar coisas
esses. Todos doutores, estrangeiros, bem que sejam mitos, nas cabeças dos outros e
mais velhos e, eu, jovem brasileiro sem na minha própria. Então, muitas horas eu
doutorado, ainda, mas brigando dentro de acho que estava distante, mas eu acho que
uma situação complexa lá que a gente teve. o trabalho foi fundamental, e o projeto todo
Mas, enfim, conseguimos fazer um pouco fomos nós que assinamos, nós que criamos e
da coisa. A FUNAI imaginou programas viabilizamos para que existisse. Não existiria
rocambolescos, sempre para capturar sem o wellington, sem dúvida. Também não
verbas, durante planos gigantescos, por existiria sem os líderes indígenas, que foram
cinco anos. Foi um sacrifício enorme, para buscar o apoio da gente em outros lugares para
nós, todos, mas eu acho que acabou tendo pedir a ação lá dentro. Na verdade, a gente
alguns resultados, porque saiu um projetinho pensou nesse projeto não só como um ato
emergencial, que nós aplicamos na área. Eu assim, mas como alguma coisa que também
descrevo isso num texto também, chamado respondia a demanda deles. Eles queriam
“Projeto Piloto Vendaval”14. E aí eu boto isso. Nessa época eles queriam. Depois
como foi a implantação do posto indígena eles passaram à reivindicação, na década
na área e que foi a nossa experiência, quer a seguir. Na década de 70, a reivindicação
dizer, dentro da implantação do posto eram postos indígenas. Eles queriam afastar
indígena no meio da área Ticuna, no que os patrões e ter área de liberdade. Nos anos
era o seringal mais forte. De certa forma a 80 mudou. Eles queriam ter áreas indígenas
gente acha que, enfim, libertou os Ticuna definidas, as terras indígenas. Então,
da relação patronal que eles tinham. Tinha houve uma mudança radical e aí para isso
um excelente chefe de posto. Foi conosco, precisavam organizações indígenas para
era um colaborador etc. Um jovem técnico mobilização. E eu acho que nós também
indigenista, wellington Figueiredo15. Depois tivemos um outro perfil de intervenção, aí
13 A Perimetral Norte, isto é, a rodovia federal BR-210, através de uma ONG. Isso criada em 85,
foi concebida durante o apogeu econômico do regime mili- chamada Magüita, que é a autodenominação
tar (1964-1985) e fez parte do Plano de Integração Nacional. deles: Centro de Documentação e Pesquisa
A ideia era cortar toda a região amazônica, desde o Amapá
até a fronteira com a Colômbia, no estado do Amazonas, do Alto Solimões16. Era uma ONG que nós
o que causou uma série de impactos negativos a diversas criamos. Como a que nós estudantes... Eu,
comunidades indígenas estabelecidas em sua área de influ- professor, era o único, e alguns estudantes,
ência direta e indireta (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/BR- nós que trabalhávamos lá, criamos essa
210 [acesso em 24/01/2012]).
14 PACHECO DE OLIVEIRA, João & ROCHA FREI-
ONG e fomos criando uma espécie de apoio
RE, Carlos Augusto da. 2006. A presença indígena na possível aos indígenas dentro da região. Na
formação do Brasil. Brasília, MEC/UNESCO/LACED- época, quando começamos, não tinha nem
-Museu Nacional. Disponível em http://unesdoc.unes- CIMI atuando lá dentro. Depois teve, teve
co.org/images/0015/001545/154566por.pdf (acesso em
24/01/2012). indigenista oficial.
15 O sertanista/indigenista Wellington Figueiredo, atual- 16 Maiores informações sobre o Museu Magüta cons-
mente aposentado pelo Ministério da Justiça/FUNAI, che- tam em http://www.museumaguta.com.br/ (acesso em
gou a dirigir o Departamento de Índios Isolados do órgão 24/01/2012).
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uma atuação importante. Então, a ONG foi mais que você fizesse uma avaliação da
fundamental. Essa ONG evoluiu. Hoje é o Constituição passadas várias décadas.
Museu Magüita.
jPO – é, a movimentação para a Constituinte.
jEO – Primeiro museu indígena? Ela foi uma coisa de várias mãos, de várias
entidades, várias coisas. O CIMI teve presente,
jPO – Museu indígena, exatamente. Mas muito, nessas atuações. O CIMI organizou
tem, ele tem uma história bem diferente. As várias caravanas, organizou pressões. Atuou
pessoas ficam às vezes falando: “É, primeiro nas comissões parlamentares, levou bispos lá.
museu indígena etc.” Não é a questão Foram organizadas muitíssimas comissões
de ser indígena. Ele é o museu do povo indígenas indo ao Congresso Nacional.
indígena! Ele é o museu de afirmação da Acho que várias ONGs também colaboraram
cultura Ticuna, dos direitos Ticuna à terra, nisso. Os Kaiapó eram fregueses de lá, dos
à língua, à assistência diferenciada. Então corredores do Congresso. Enfim, foi uma
ele tem um papel político primordial. Não coisa muito bonita o período da Constituinte,
é um museu estético, de fazer pelos artistas porque de certa forma para parlamentares que
indígenas, pelos museólogos indígenas. só pensavam, talvez em fazer – os melhores,
Isso foi uma coisa. Foi uma ficção criada né? –, em fazer acabar com os resíduos do
em certo momento por uma assessora que, autoritarismo militar, eles mostraram um
vamos dizer, “aparelizou” um indígena lá Brasil diversificado, um Brasil colorido, um
dentro para virar um museólogo indígena. E Brasil indígena que a maior parte não tinha
o cara não tinha nenhuma... Na verdade não a menor idéia do que aquilo era. Então, eu
era liderança política, não estava sintonizado acho que o capítulo da Constituição reflete
com isso e era vendido nos contextos como também isso, uma surpresa. O Congresso
o indígena que é o museólogo e que está Nacional foi meio “tomado de assalto” pelos
organizando o museu. Até o momento que os índios. Não era uma ocupação violenta. Era
“capitães” se reuniram e botaram essa turma uma ocupação alegre e exótica, que deixava
para fora. O museu era deles. O museu não as pessoas surpresas. E eu acho que isso foi
era de artistas, nem de assessores. O museu muito importante. Não é que tivesse grandes
era do movimento político que tinha como lobes. Era questão de convencimento mesmo
aquela finalidade. Então foi um processo dos parlamentares e até dos funcionários que
bastante complexo. Agora, isso foi em apoiavam e achavam interessante aquela
momentos muitos diferentes a essa minha coisa. Muitos índios iam lá, nem sequer
trajetória de atuação política. quer dizer, em falavam o português. Estavam ali como
certo momento coordenando esse projeto da autômatos levados pelos chefes. Mas era
FUNAI, fornecendo planos para a atuação uma coisa interessante. Não era uma coisa
da FUNAI. E até esses planos, quer dizer, artificial, orquestrada, entendeu? Eu acho
muitos não foram executados no momento que isso foi interessante. Naturalmente
que a FUNAI tinha vínculo comigo, depois houve idas e vindas etc., e coisas muito
já não tinha nenhum vínculo, ao contrário. complexas em relação a isso. Não dá para
Eu e outros antropólogos estávamos na avaliar dentro de um pedacinho de uma
lista negra dos coronéis da FUNAI. éramos conversa. Mas eu acho que a ABA teve uma
considerados os inimigos da política presença muito importante nesse processo.
indigenista, que falam mal etc. e tal. Havia Enfim, foi uma luta grande que acabou sendo
uma lista negra. Depois é que eu pude vitoriosa porque o texto constitucional em
encontrar essa lista negra fazendo estudos relação aos índios é bom. Não é bom em
sobre a FUNAI no período de 84 a 85, relação à reforma agrária, por exemplo.
período da transição, da entrada de Tancredo Então, na parte fundiária o texto é um
Neves. retrocesso, mas a Constituição teve esse lado
assim positivo em relação aos indígenas,
jEO – E você teve uma participação na época,
e ela é uma marca muito importante. E
ao lado de lideranças indígenas, movimentos
essas marcas são até atualizadas pelo povo
indígenas, na Constituinte de 88? Gostaria
brasileiro, por segmentos do povo brasileiro,
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sobretudo do povo rural, para abrir espaço quantificar. Eu acho que até o artigo Uma
dentro da sociedade. Então hoje não há etnologia dos “índios misturados?”, como ele
dúvida que uma das válvulas para você foi uma conferência de professor titular feita
obter terra no Brasil é a condição étnica. é aqui no Museu, e como na época os editores
você ser indígena ou você ser descendente da Mana me procuraram e falaram assim:
de quilombo e ou você ser população “Você quer? quer publicar na Mana?” E eu
tradicional. Então essa luta na medida em logo encaminhei para eles; eles publicaram.
que as alianças, o conjunto de alianças Então aqui a gente tem através do SciELO19
existentes pelas forças progressistas, nunca e pode fazer contagem. Efetivamente é um
tomou de... Nunca foi contra os interesses dos artigos mais acessados. Até a última
rurais e contra o latifúndio. é isso que a vez que eu vi, ele tinha mais que trinta
gente está vendo na continuidade histórica e quatro mil acessos, o que é uma coisa
dos governos do PMDB, PSDB, PT hoje. impressionante considerando o que são os
quer dizer, sempre a grande propriedade no acessos, inclusive da própria revista. quer
Brasil, o grande capital, estão preservado da dizer, é o artigo mais... Dos docentes daqui
mudança democrática. E então dentro desse do Museu é o artigo que foi mais acessado.
quadro, obter terra é uma via, via étnica. é, é coisa que eu coloco delicadamente para
às vezes os recursos não saem através dos não criar vaidades. Então, mas realmente
ministérios adequados, mas saem através ele é um trabalho muito acessado em função
da Fundação Palmares, através de... São dessa bibliografia. Agora, o outro eu acho
lutas por... Em outros contextos poderiam que talvez seja o trabalho... que eu não teria
ser reforma agrária, o que não anula, em como dizer qual foi. Mas eu acho que todas
nenhuma medida, a condição étnica dessas as pessoas que fizeram laudos deste de 91,
pessoas. é questão de qual é a janela que o que foi a época do artigo, utilizaram aquilo
Estado abre pra eles. Não quer dizer que a como espécie de roteiro. Pelo menos as
identidade verdadeira deles. Não se coloca preocupações ou corrigiram. Então eu acho
a identidade verdadeira, deles. Identidades inclusive o pessoal da FUNAI. Foi uma
são sempre coisas que podem ser puxadas de coisa, uma referência muito importante.
acordo com o contexto. Eu acho que um outro trabalho também
foi muito importante, para a coisa, foi [...]
[...] o livro Indigenismo e territorialização20.
Esse trabalho, ensaio sobre a FUNAI, é
jEO – Bom, feito isso, eu queria que você
um trabalho que foi muito lido, inclusive
falasse um pouco de como é que você avalia
dentro da FUNAI. Ele foi concebido dentro
o impacto do seu artigo Uma etnologia
da FUNAI. Nós fomos convidados numa
dos “índios misturados?”17, porque me
época, por um presidente da FUNAI, que
parece ser de todos os seus trabalhos o mais
entrou lá muito rapidamente, a fazer tipo uma
citado, talvez o que mais marcou, impactou
consultoria. Ele, não sei por que. Ele tinha
positivamente a Antropologia Brasileira.
muito pouco tempo. Ele não era uma pessoa
jPO – é, não sei. O ponto de vista do autor da área indigenista; convidou para fazer uma
talvez seja um pouco diferente. Eu acho pesquisa dando subsídios para modificar
que talvez é para a Etnologia. é, tenha sido, a FUNAI. E a gente fez uma proposta,
talvez sim, mas eu acho que não é o trabalho mentos de bordo: expectativas e possibilidades do trabalho
mais citado. Eu acho que talvez o trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SAMPAIO SILVA,
Orlando et al. (Org.). A perícia antropológica em processos
mais citado que eu tenha, é um trabalho judiciais. Florianópolis, Editora da UFSC/ABA/Comissão
sobre laudos, chamado Os Instrumentos de Pró-Índio de São Paulo, pp.115-139. Com a devida auto-
Bordo18. Eu acho que sim, eu não saberia rização do autor e da ABA, a revista Ñanduty trás em seu
primeiro número uma publicação fac simile desse trabalho.
17 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1988. Uma etnolo- 19 Scientific Electronic Library Online (http://www.scie-
gia dos “índios misturados”? Situação colonial, territoriali- lo.br/).
zação e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, 4(1): 47-77. 20 PACHECO DE OLIVEIRA, joão (Org.). 1998. Indi-
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426. genismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes co-
pdf (acesso em 19/03/2012). loniais no Brasil contemporâneo. Rio de janeiro, Contra
18 PACHECO DE OLIVEIRA, João. 1994. Os instru- Capa Livraria.
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então, que eu não queria consultoria. Não Indígena no Brasil?
queria ganhar dinheiro. Eu queria fazer
uma pesquisa sobre a FUNAI. E acesso aos jPO – Olha, eu acho que a Antropologia
arquivos e acesso livre a conversar com as Brasileira, a Etnologia, são muito boas
pessoas. E ele concordou. Então, realmente em termos internacionais. Elas têm uma
a gente... Eu na época chamei para me produção muito respeitada, muita conhecida.
ajudar, porque nós tínhamos pouquíssimo Eu acho que as várias vezes que eu saí... é,
tempo para fazer isso. Ele entrou e ia – embora eu acho que eu não sou... Existem
estava acabando o governo, né? –, ele ia sair. alguns antropólogos que vivem mais tempo
Então, o Alfredo wagner. Trabalhamos os fora do que aqui. Eu acho que as minhas
dois juntos e alguns dos artigos foram feitos ações estão muito direcionadas ao Brasil:
em conjunto e esse material... Reproduzimos ensino, pesquisa no Brasil e ação também
uma pilha de coisas. Trouxemos material dentro do Brasil. Mas é eu acho que há muito
aos montes da FUNAI e isso foi a origem conhecimento em relação à Antropologia
do projeto de estudo “Terras Indígenas”, Brasileira, inclusive em relação a essa
que a gente fez aqui no Museu com o Antropologia mais histórica ligada ao
financiamento da Fundação Ford. Então, contato e eu acho que há um reconhecimento
aquele foi um outro trabalho também que eu interessante em relação a isso. A gente tem
acho que teve um impacto enorme dentro da visto aqui no Museu Nacional aparecerem
área indigenista. Talvez até hoje o pessoal... muitos estudantes de todos os países do
Criou muitas simpatias, muitas antipatias mundo, inclusive da Europa: Itália, França,
também, a idéia de que um crítico sempre Inglaterra... Assume coisas para finlandeses,
muito forte da FUNAI. Mas ao mesmo para americanos, para... Agora mesmo
tempo, curiosamente várias pessoas da quando você chegou tinha um estudante aqui
FUNAI chamaram para que nós fossemos lá peruano conversando. Enfim, eu acho que é
discutir com eles o livro, o relatório. é, essa uma referencia importante. A Antropologia
coisa. Porque eles achavam que era muito Brasileira é boa! Ela teve uma contribuição.
duro na crítica, mas que era exatamente Não é boa agora. Ela foi boa na origem, com
aquilo mesmo. E eles citam até hoje isso, Darcy, com Roberto Cardoso. Ela foi boa.
desde Apoena Meirelles, Isa Rogedo, enfim, Ela teve contribuições significativas. Ela
Pacheco [Isa Maria Pacheco Rogedo] e coisa. continuou no sentido de ter alguns resultados
Uma série de pessoas – André Vilas-Bôas –, inovadores. Eu acho que, eu não consigo
todos chegaram e: “é, isso mesmo! Você fez muito... Não caberia fazer uma avaliação de
é o retrato duro e real do que é a FUNAI!”. uma outra área de trabalho, dessa qual é a,
Pode-se discordar um pouco das soluções, vamos dizer, a contundência, a eficácia de
do ponto de vista. Vocês adotam o ponto de uma outra área de trabalho. Agora, eu acho
vista das organizações indígenas, que é o que pelo menos dentro desses estudos sobre
índio quem vai criar uma outra organização. situação colonial, situações históricas, sobre
A gente pensa dessa maneira, mas o problema Antropologia Histórica. A Antropologia
é esse. Então foi um trabalho realmente Brasileira vem, os antropólogos brasileiros
muito lido e muito estudado. Eu acho que foi vêm produzindo uma série de coisas
uma síntese. Eu me envolvo com assuntos muito interessantes, muito originais. E,
meio polêmicos, então às vezes isso ajuda francamente, é o contrário, quando a gente
a que as coisas sejam lidas [risos]. Eu acho compara os materiais, as elaborações etc.
que no caso da Etnologia também não foi Aqui as coisas estão muito mais avançadas.
diferente, porque eu acho que na época era Realmente uma dissertação de mestrado,
essa Etnologia do Nordeste. As outras áreas um trabalho de doutorado para ele passar e
eram consideradas muito menores, então o ele ser considerado um bom trabalho dentro
artigo tentou redefinir as coisas. dessa área, é preciso suar. Em outros lugares
você vê trabalhos serem aprovados, as
jEO – E como é que você, pela sua pessoas serem consideradas especialistas, e
experiência longa, como é que você avalia os trabalhos seria muito mais preliminares
hoje, digamos, o estado da arte da Etnologia em termos de informação, em termos de
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146
conclusões. Então, eu acho que os nossos de GT, porque a FUNAI nunca nos pediu
padrões de exigências são altos e a nossa que indicasse ninguém, com exceção do
contribuição é grande. é, acho que é isso. caso dali porque era uma arapuca que eles
Naturalmente há uma limitação aqui dentro armaram pra ABA. Com exceção daquele
do canal pela... Em relação aos nossos caso, a FUNAI jamais pediu. E a resposta
vizinhos, que é o uso da língua portuguesa, que a ABA deu para eles foi ainda usada
enquanto os outros já estão todos unificados de modo absolutamente ilegítimo, como
através do espanhol. Eu acho que é um se ABA tivesse feito uma fofoca, como
problema que está se tornando menor. Eu se... Porque houve circulação nas redes da
sempre me incorporo à língua do lugar. Internet, dizendo que a ABA não indicou os
Então, eu logo me adaptei nas idas à antropólogos que estavam lá. Então, era uma
Argentina e à Bolívia [...] a falar o espanhol. coisa. Realmente a ABA não indicou e fez
Então não é uma coisa que me limite e que uma carta dizendo que não poderia indicar
eu tenha necessidade de fazer isso. Mas eu porque não existia um convênio como existe
vejo nos congressos, até que alguns colegas com a Procuradoria, no sentido de indicação
nossos que vão, fazem as apresentações em regular. Então, nós estranhávamos que a
português. Elas são seguidas com muita FUNAI tivesse pedindo uma indicação,
atenção e são compreendidas! Então, eu porque não existe um instrumento de relação
acho que há uma tendência crescente a e não houve pedidos anteriores. Então é de
valorizar o português, a entender. Porque a se estranhar, não é? Mas nós dissemos que
produção brasileira é importante. Eles têm todos os nomes elencados eram qualificados
que ler o livro porque eles querem teorias. etc., para o período. Nada a indicar. Então,
Depois essa revista Mana, eu tenho ouvido nossa resposta foi legítima. [...] E até... Só
em todos os lugares pedidos mesmo que a que quem leu o negócio... [...] Nós estamos
revista fosse circulada por via eletrônica, dizendo que se for estabelecido um termo
versão espanhola etc. Têm tido muito pedido de articulação, nós podemos colaborar e
nessa direção. E eu acho que é uma coisa indicar pessoas, sim. A ABA não tem medo
para a gente estar considerando até. Porque de indicar antropólogos, porque ela indica
eu sou o editor ainda dela e aí seria uma coisa pessoas boas. Então, não se indica uma
interessante. Mas ainda não temos recurso pessoa, [...], não se indica uma pessoa com
para fazer isso. Então, eu acho que é por aí. problemas. Você vê, cada vez uma indicação,
né? Até se o cara não trabalhou com aquela
jEO – E em relação ao papel da CAI, área, a preocupação que tem, mas ele vai ter
sobretudo nos inúmeros casos de violação capacidade. Ou se é um pesquisador novo. Se
de direitos dos povos indígenas? ele resiste a pressões etc. Então, a ABA tem
um maior critério ao indicar pessoas e teria,
jPO – Pois é, a CAI. A ABA é uma associação
também, a indicar coordenadores de grupo
cientifica. Não é uma ONG, não é um
de trabalho. Acontece que nunca houve esse
organismo do governo, não é um sindicato.
pedido. Então, na conversa com o Márcio
Então isso a gente tem que dizer a cada
[Meira], o Márcio achou ótimo: “Pô, mas
momento. No momento, nessa reunião com
seria maravilhoso se a FUNAI fizesse. Se a
a FUNAI, que eles resolveram desancar os
FUNAI tivesse essa cooperação da ABA”.
antropólogos, e falar mal dos antropólogos
Talvez isso seja só conversa formal. Na
que receberam e entregaram o material,
realidade, eles queriam continuar a escolher
a nossa decisão foi o seguinte: “Olha, a
de outra maneira, através de outros processos.
ABA não é um sindicato. Nós estamos aqui
Agora [...], lá dentro pegaram aquilo só pra
representando os nossos associados. Nós
fofocar e dizer que a ABA, então, não tava...
estamos aqui discutindo política indigenista
Nem nas redes sociais; rede que correu era
e a ação que a FUNAI está fazendo junto
isso. Era coisa [...] dizendo: “Não, a gente
com a um dos grupos, Guarani. é isso que
não entende porque a ABA não indicou as
nós estamos fazendo! Então vocês estão
pessoas. E depois a ABA avalizou o relatório,
equivocados em relação à isso!” Quer
dizendo que o relatório estava consistente.
dizer, nós não indicamos os coordenadores
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Defendeu o relatório.” Entendeu? Para de outras áreas, com umas posições absurdas
mostrar a contradição. Não tinha contradição em relação à ABA, entendeu? Assim, tipo,
nenhuma, não é? Não houve contradição. como se nós tivéssemos uma infraestrutura.
Acontece que a ABA não... É, bom, enfim, Saiu uma manifestação, sei lá. D..., não sei o
voltando: a ABA é uma associação científica. que. Escreve artigos idiotas.
A finalidade dela é – vamos dizer – ter efeitos
importantes sobre a difusão da Antropologia jEO – Lá do Rio Grande do Sul?
dentro da sociedade, a melhora do ensino
jPO – Não é? Aí, a gente tem que
da Antropologia, a melhora da pesquisa
responder a cada um artigo daquele. A uma
e contribuir também para a sociedade
imbecilidade que foi produzida por aquele
democrática, igualitária etc. Então, eu acho
sujeito, ou por outros que têm. “A ABA
que entre essas atribuições que o antropólogo
tem que responder!” Então, eu vou fazer o
enxerga como parte do seu métier, está
que? Ao invés de produzir o meu trabalho
também o bem-estar, o reconhecimento dos
de antropólogo, vou estar respondendo a
direitos dos índios. E isso já vem de 30 anos
um cretino, um vendido, uma coisa sem
que a ABA tem feito isso. Aliás, tem feito
maior... Não é a função da ABA. Então, a
desde sua fundação. Nas manifestações com
ABA é importante. Os presidentes da ABA
Darcy, com Roberto, com Galvão etc. Eles
sempre tiveram essa consciência. Nós não
já estavam preocupados com a preservação
estamos para aquele dia-a-dia político, nem
dos índios, do bem-estar dos índios, e não
para uma questão de rebater ou discutir, ou
só com a pesquisa no sentido isolado. Então,
fazer denúncias, coisas assim. A gente faz
ela tem essa linha de continuidade. Agora,
algumas vezes, e encaminha as denúncias
é claro que ela não pode ter nem eficácia,
lá para o Ministério, à Secretaria de Direitos
nem time, nem a capacidade, a continuidade
Humanos. Até – e no caso de Belo Monte
de ações que tem uma ONG. Nós não temos
– a instâncias internacionais. No caso
quadro pra isso. quer dizer, eu recebo
Guarani também vai nessa direção. Agora,
uma informação dessa natureza – eu como
a gente não tem instrumentos de ação, não
coordenador, com as centenas de atividades
temos advogados, por exemplo. No caso da
que eu tenho como professor titular do
Veja21, fui eu. Recomendei que houvesse
Museu e em outros lugares etc. –, eu tenho
uma ação contra a Veja, no sentido de
que preparar notas. Eu tenho que sair para
qualificar. Pelo meu artigo, ele desmonta
as redes para fazer uma coisa que é absurda.
tudo aquilo. A nota que foi feita. é uma
Não tem nenhuma estrutura. Ela não é uma
quadrilha realmente envolvida, envolvendo
ONG. Um diretor de uma ONG é um pós.
comunicadores, advogados etc. São caras
Realmente, ele tem gente lá: advogados,
profissionais que agem e recebem para fazer
antropólogos, sociólogos que escrevem etc.
essas coisas contra os índios, não é? Então,
Não! Eu tenho que pegar o telefone, e se eu
a gente tem que acionar judicialmente essas
preciso indicar alguém, falar com o jorge
pessoas. Mas a ABA não tem estrutura pra
[Eremites de Oliveira], vendo que o jorge
tenha ido assistir o jogo do Vasco não sei 21 Trata-se da matéria intitulada “A farra da antropo-
em que cidade distante e ninguém consiga logia oportunista”, publicada em Veja, ano 43, nº. 18, de
05/05/2010, disponível em http://veja.abril.com.br/050510/
localizar ele, né? [risos]. Mas eu tenho que farra-antropologia-oportunista-p-154.shtml (acesso em
ligar para o jorge, eu tenho que ligar para a 20/03/2012). Em resposta ao conteúdo da reportagem, a
Alexandra [Barbosa da Silva], tenho que ligar CAI/ABA produziu nota exigindo dos editores da revista
para o Levi [Marques Pereira] etc. Para saber que publicassem matéria em desagravo pelo desrespeito
generalizado aos profissionais e acadêmicos da área. A res-
alguma coisa, entendeu? Porque, não tem. posta foi intitulada “Nota da Diretoria da ABA sobre maté-
quer dizer, usar a rede dos colegas. Agora, ria publicada pela revista Veja”, disponível em http://www.
tudo isso é uma coisa que têm horas que a abant.org.br/conteudo/005COMISSOESGTS/quilombos/
gente consegue, têm outras que não consegue NotaDiretoriaABAMatPublicadaRevVeja.pdf (acesso em
no mesmo ritmo. Então, a eficácia da ABA, 20/03/2012). A nota foi divulgada em vários meios de co-
municação, como no Jornal da Ciência, órgão da Socieda-
ela tem que ser um pouco otimizada. E às de Brasileira para o Progresso da Ciência, disponível em
vezes a gente vê uns colegas, principalmente http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=70689
(acesso em 20/03/2012).
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
148
isso. Pagar um advogado é muito caro, não A gente pagou o deslocamento do Tonico
é? Em outros momentos até entramos uma [Benites] para a área, com os recursos da
vez, não sei como, em ação, combinado ABA, com os recursos dos associados. é
com a OAB, porque você pega um nome uma passagem, não é uma coisa. Então,
da OAB que vai indicar. Mas não podemos eu acho que é uma sensibilidade a tentar
entrar em um escritório, dentro do cara, e mobilizar. No caso de Belo Monte, sentimos
contratar. Com que dinheiro? Com dinheiro uma reação quase como uma parede na nossa
dos associados? Não tem verba para isso. frente. Uma dificuldade muito grande de...
Então é uma coisa incrível. A situação é Até alguns interlocutores para ouvir podiam
de fragilidade muito grande. A entidade aparecer, mas responder não, porque parece
consegue fazer grandes “estragos” e, na que a posição do governo era totalmente
realidade, a estrutura é deste tamaninho. é fechada. Eu acho que quanto ao caso
uma pessoa que tem uma responsabilidade Guarani, foi o resultado dessa ida lá, que eu
e que atua ligado ao presidente. E sei lá, um estou para fazer uma nota aí sobre isso para
secretário que tem como função fazer, sei ir para o site da ABA, mas eu vou ter que
lá, coisa com dois mil, três mil associados. acondicionar o meu tempo em defesas de
é uma situação muito precária. Não é uma tese, de aula e de não sei o que. Porque eu
estrutura. E a ideia também não é também não posso fazer agora, que estou te dizendo.
de criar uma profissionalização como ONG, Estamos conversando. Foi o resultado bem
entendeu? A idéia é manter essa coisa. é diferente e mais interessante. Eu acho que
uma coordenação de antropólogos, uma não é a mesma postura do governo em relação
articulação de antropólogos. quer dizer, o a Belo Monte, em relação ao caso Guarani.
quão o antropólogo vai dizer, o que eu posso Eu acho que há mais sensibilidade. Há uma
dizer como presidente da ABA é o que eu vou pressão enorme do outro lado etc. Mas há
pegar com você, com o jorge, com o Levi, dentro desse governo gente que tem uma
com o Fabio [Mura], com não sei o que. é história de um envolvimento com causas
isso, entendeu? Nós não podemos fazer populares, com movimentos populares, e que
nada. As nossas observações vêm dali. Se for se mobilizam mais facilmente em relação a
o caso de Ticuna, eu posso falar. Agora, em isso do que eu acho que em relação ao caso
outras não. quer dizer, em um caso eu posso de Belo Monte.
falar, em outros eu dependo que os colegas
me mandem. E às vezes as reações são muito jEO. E como é que você avalia a situação
lentas também. Às vezes você sente isso, das terras indígenas no Brasil? Tivemos a
porque naturalmente quem está agindo até decisão do STF para a Raposa Serra do Sol
a ordem de eficácia é um pouco diferente. e agora parece que Mato Grosso do Sul é o
Você vai investir, sei lá, numa ação de... estado em que há o maior foco de tensões
Com outros meios ou numa ação só da ABA. por conta dessa questão, especialmente para
Então eu acho que têm essas limitações. A os Kaiowá e Guarani?
gente faz um pouco das notas de protestos,
jPO – é, eu acho que hoje a situação variou
as notas vão para as autoridades, vão para
muito no correr dos anos, das décadas. Eu acho
o site etc. é um pouco inócuo? é, mas é um
que partir de 92 e até o final do ano 2000, as
registro que a gente pode fazer, entendeu?
grandes áreas indígenas foram demarcadas.
jEO – Esse foi o caso de Belo Monte? De alguma forma foram protegidas. Então,
eu acho que em termos de números,
jPO – é o caso de Belo Monte. Eu acho que vamos dizer, a ação indigenista chegou
esta gestão atual da ABA, com a professora_ muito próxima do universo das demandas
Bela Bianco [2010-2012], ela tem uma indígenas. Agora, existem nessa diferença
visão bem mais proativa que outras gestões que ainda existe, existem coisas muitíssimas
anteriores. Nos dois casos mais graves importantes, como o caso Guarani, como
existentes, caso do Belo Monte e esse caso muitos outros casos ainda. Mato Grosso até
Guarani, que são os dois que eu reputo. tem caso Xavante lá: Maraiwatsede, uma
Houve uma mobilização direta da diretoria. área terrível, com conflito enorme. Existem
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149
as áreas do Nordeste, as áreas do Sul do muitos empreendimentos: portos, turismo,
Brasil, que ainda estão sem resolução. Não condomínios, principalmente essas áreas
são áreas talvez com... quer dizer, isso de litoral. E quase todo lugar no litoral do
não vai mexer muito com a estatística em Nordeste tem índio ou quilombola. E essas
termos do número de terras indígenas. Você populações estão sendo expulsas por grandes
não vai ter nenhuma área como yanomami empreendimentos, por governos que não
ou Parque do Javari, com oito milhões necessariamente são de direita. Aliás, têm
de hectares, para mexer com essa conta. poucos governos de direita, manifesto aqui.
Mas em termos de atendimento real, de O DEM só tem no Rio Grande do Norte e
instrumentalização de uma assistência e de Santa Catarina. Os outros são PT, PSB e
uma vida correta para essas populações, outras soluções aí. Mas a política prossegue
essas ações são fundamentais. E passam de abrir para grandes empreendimentos,
pela terra em todos esses casos, inclusive no e não têm muita sensibilidade para os
Nordeste com coisas de uma dramaticidade produtores de recursos, os ocupantes diretos.
impressionante. Então, essas ações precisam
ser executadas e estão cada dia mais difícil. jEO. Isso passa também pelas demandas que
Eu acho que está tramitando no Congresso existam aí para as comunidades indígenas
Nacional uma PEC 215, que é para e mesmo quilombolas, mas vivem em
transferir as responsabilidades do processo contextos urbanos ou mais próximos?
demarcatório da União, da FUNAI, para o
jPO – é, acho que sim. Mas a questão
Congresso Nacional22. Então, significaria
urbana é muito complexa. Eu acho que ela
que nenhuma área indígena se demarca
ainda é uma questão a ser abordada. Eu acho
sem a aprovação do Congresso, como se
que, digamos, o indigenismo brasileiro...
fosse um projeto de lei. quer dizer, então
Nós ainda estamos em um universo de
é o que... Não passa a ser um problema de
tentar romper com a tutela. E esse é o nosso
viabilização de direitos dos índios. Passa a
universo. Eu acho que chegar a pensar o
ser uma negociação em relação aos direitos
índio até em contexto urbano, talvez já seja
dos índios. Vai depender das bancadas,
um outro contexto, não é? O momento em
dos órgãos etc. Do que os índios conseguir
que você chega e você quer, simplesmente,
fazer junto à mídia a seu favor, enfim. Vai
dizer que você... Sei lá? é descendente de
ser enquanto o processo atual envolve
Bororo! Você quer marcar isso. é importante
isso também, mas tem um lado técnico
para você. Você quer botar ao lado do seu
fundamental, que é o trabalho antropológico,
nome. Você quer botar mato-grossense
a identificação das áreas reconhecidas, enfim.
etc., casado, não sei o que. E Bororo, ou
Eu acho que seria um avanço, assim, jogado
descendente, enfim. Este tipo de liberdade
no lixo. E o risco enorme em relação a isso,
precisa ser criada em algum momento.
eu acho. O motivador pelo que eu ouvi em
Agora, por esse momento, que é da historia
Brasília é o Mato Grosso do Sul, mais do que
brasileira, eu ainda imagino que tudo passa
o Nordeste, porque os interesses lá são mais
pela questão da terra. Ainda o centro é a
visceralmente contra. Mas não é só, também,
questão da terra. E o centro é romper com
isso. Não pensem que é só o Mato Grosso do
a condição de marginalização que o Estado
Sul. As áreas do Nordeste estão envolvendo
criou. Essa ideia de que... é como que de
22 A proposta da PEC – Proposta de Emenda à Consti-
tuição nº. 215/2000 é a seguinte: “Acrescenta o inciso XVIII
certa maneira – você vê, né? –, o Estado
ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no sempre excluiu o povo. Sempre o considerou
art. 231, da Constituição Federal”. Está assim explicada: nessa margem. quer dizer, o Estado
“Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso representa a civilização branca, católica. E
Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicional- depois também não é só católica. Começa a
mente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarca-
ções já homologadas; estabelecendo que os critérios e pro-
ser evangélica, presbiteriana, filhos budistas
cedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”. etc. Mas é uma civilização branca, e que
Maiores informações sobre sua tramitação no Congresso não tem nada haver com a “escória”, com o
Federal estão disponíveis em http://www.camara.gov.br/ povo, com aquela coisa. é como se algumas
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562
(acesso em 20/03/2012).
lutas sociais nos últimos trinta anos – a
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
150
Constituição, alguns avanços importantes –, mais adiante esse processo, ele vai acabar
criassem um pouco uma área de respiração criando uma coisa de grandíssima dimensão.
para esses “condenados da terra”, essa E eu acho que, quer dizer, são aí os desafios
população. E os índios entram dentro disso, para o futuro, para coisas, para aqueles
os quilombos, as populações tradicionais, políticos futuros. Mas eu acho que agora,
para ver como que é que eles conseguem para a questão indígena é essa PEC aí que
escapar desse mecanismo repressor de está sendo colocada como o terror, a ameaça.
dominação, de marginalização etc. Eu acho Inclusive porque nada garante, por exemplo,
que em certa medida têm escapado. Então, que o entendimento do Supremo, do não sei
é um pouco o rumo da sociedade em que o que, não venha fazer coisas retrospectivas.
a gente vive. O ideal, o desafio, também, Avaliar que precisa se repensar processos.
não vai ter limites possíveis para resolver O próprio processo Guarani, eu cheguei a
os problemas da população brasileira, da perguntar explicitamente para o presidente
reforma agrária, da marginalização, através da FUNAI: “Se essa PEC for aprovada, vai
de mecanismos étnicos ou mecanismos de ter que começar o processo de novo?” Acho
outra natureza. Em algum momento precisa que vai porque se a FUNAI não é o lugar para
ter políticas voltadas para aquelas pessoas, fazer isso, se os antropólogos não são os que
independente da cor, da etnia etc. Precisa têm que fazer a definição de terra indígena...
ter. Então eu acho que é o momento que Se é o Congresso? Até o Congresso criar uma
precisa ser vencido, mas enquanto esse competência, uma assessoria antropológica,
momento não aparece... Enquanto não botando sabe lá quem lá dentro. Até ele
aparece alguém que bote uma plataforma ter capacidade operacional para fazer
eleitoral – “Vou fazer reforma agrária!” – e demarcação, muito tempo vai passar. E aí,
se eleja. As pessoas que assumem, assumem será que eles vão refazer tudo isso? Então, a
com outros compromissos, com ruralistas, situação é de uma ameaça muito grande. As
com outros interesses. Então, a única coisa expectativas de algumas pessoas na área do
são as migalhas, as coisas paralelas dadas Congresso são as piores possíveis.
para essas populações que se mobilizam. Eu
acho que é o retrato que a gente tem desse jEO – Você poderia falar para nós sobre os
sistema, assim. quer dizer, é um sistema seus projetos, trabalhos mais recentes, como
pior do que existia? Não. Eu acho que não é o caso do seu livro A presença indígena no
porque tem algumas brechas. Agora, acho Nordeste?23
que ele não tem viabilidade. Ninguém vai
jPO – Olha, eu estou envolvido desde
segurar essa “bomba” aos limites. As áreas
alguns anos nesse trabalho, vamos dizer,
indígenas – tá legal! – já estão relativamente
de publicização da questão indígena no
contempladas. Mato Grosso do Sul
Nordeste. quer dizer, de derrubar alguns
provavelmente vai mexer um pouco com a
preconceitos, derrubar uma visão de que o
contabilidade das terras indígenas, talvez.
índio na medida em que absolva qualquer
São áreas mais extensas. No Nordeste não
padrão da língua portuguesa, da cultura
vai mexer muito. Se resolver não vai. Outras
branca, ele deixa de ser índio. Então, esse
áreas também não. Mas de qualquer maneira
tipo de situação, que é muito forte dentro do
é uma solução. Agora, os quilombos, por
Nordeste – e que é forte dentro da agência
exemplo, são uma coisa enorme dentro do
indigenista também –, explica um pouco
Brasil. Em qualquer lugar – você vê – onde
da morosidade em relação às demandas do
se fala de quinhentos, se fala de cinco mil,
Nordeste dentro das áreas, dentro do trafegar
se fala de dois mil, não é? quer dizer, é
na FUNAI. Eu acho que isso tem sido objeto
uma coisa muito mais difícil. Em termos
de preocupação minha, dos estudantes daqui
de Amazônia, as populações tradicionais.
do Museu, de teses feitas. O primeiro livro,
Dentro do rótulo população tradicional,
A viagem de volta24, reunia uns dez artigos,
eventualmente pode ter que colocar quase
23 PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). 2011. A pre-
tudo dentro dessas populações. Então como sença indígena no Nordeste. Rio de Janeiro, Conta Capa.
é que vai ser? Eu acho que se for levado 24 PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). 1999. A via-
gem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
151
a maioria deles de teses ou dissertações de que é esse o desafio que se tem: sair de uma
mestrado daqui do Museu. Eu acho que visão muito polarizada de Brasil, com ideias
depois disso se ampliou bastante. Acho que de índios, quer dizer, uma ideia pobre como
hoje não é mais assim. Têm uns poucos esse mapa aí da FUNAI: os índios estão ali,
estudantes aqui trabalhando com o Nordeste. naquelas ilhas. Eu acho que o mapa do Brasil
A maior parte dos que estão estudando o não é isso. O mapa do Brasil teria que ter os
Nordeste, já estão nas unidades regionais, índios que aparecem em todos os municípios,
já estão em Campina Grande, Natal, em todos os lugares que vão espocar aí,
Pernambuco, Bahia, enfim, já trabalham que vão reclamar da terra, ou vão reclamar
lá, dentro dessas áreas. E eu acho que, de assistência, ou vão reclamar a identidade.
certa forma, a nossa mobilização foi um Enfim, o Brasil não foi objeto. Isso aí é uma
pouco para dar, através do livro, subsídios visão militar da conquista, quer dizer, como
para, vamos dizer, novos enfoques, novas se você fosse conquistando com o exército
formas de pensar o indígena e inserindo alguma coisa. A ocupação do Brasil não
esse indígena na história. Então, por isso foi feita por um exército. Ela foi feita por
que este livro tão complicado, tão difícil de bandeirantes, por mamelucos, por gente que
fazer, com mais de vinte autores, procura infiltrou nas famílias, capturou os índios,
dar conta aí, da presença indígena dentro do envolveu as lideranças. Então, a história é
Nordeste. Eu acho que esse, de certa forma completamente... Não é um exército que vai
esse desafio, poderia ser aplicado a outras empurrando para a faixa de floresta, onde
regiões do Brasil, porque acho que a história eles permanecem. é o caso do Xingu. Um
do Brasil tem sido muito mal contada, caso natural, pelos formadores do rio Xingu
principalmente a partir do preconceito que etc. Lá não é o caso das outras regiões.
os pesquisadores têm. E naturalmente têm Então, você tem... Os índios não estão
porque o pesquisador não é alguém imune aos apenas nas terras indígenas, os índios estão
preconceitos de classe, de idade, de região em muitos outros lugares. Em que forma de
etc., mas enfim. E a historia do Brasil precisa presença, em que forma de atendimento você
ser contada na perspectiva mais próxima dos vai dar a essas populações, que têm nomes
índios. quer dizer, os índios precisam ser diferentes, têm características diferentes
considerados como atores sociais, locais, de acordo com a região, têm propostas de
que ajudaram a construir o Brasil, ocuparam cidadania diferente. Enfim, o Brasil não
o interior. Eles foram os que construíram os pode ser pensado em modelo único, não. Eu
fortes, as igrejas, as cidades, os que andaram acho que o antropólogo historiador tem uma
nas trilhas abrindo o país, os que fizeram tarefa enorme a cumprir, das muitas caras do
os campos de gado, os que ganharam a Brasil, e recuperar um pouco dessas muitas
Guerra do Paraguai contra outros índios. E caras do Brasil.
os índios estão em todo o lugar, mas eles
estão sempre recusados dentro da história. JEO – Eu queria que você finalizasse a nossa
E se está sempre se trabalhando com coisas entrevista. O que você deixaria de mensagem
genéricas, identidades genéricas que seriam para os colegas antropólogos, principalmente
supostamente portugueses ou africanos etc. os mais novos, e historiadores também, que
Enquanto, de fato, os índios são dissolventes acompanham a sua produção intelectual e se
de tudo isso, dentro da sociedade nacional. posicionam em defesa dos direitos de povos
Eles são aquela parte das famílias que se e comunidades tradicionais, tanto no Brasil
desaparecem. E você só vai ter origem, ter como em outros países da América Latina?
conhecimento, quando você vai empreender
jPO – Olha, eu acho que há um terreno
uma busca específica. Elem deixam de existir.
muito grande a ser conquistado do ponto de
Então, é uma forma muito mais suave e, ao
vista de conhecimento. Eu acho que se vive
mesmo tempo, muito mais perigosa para, do
um momento muito importante dentro da
ponto de vista da formação do Brasil, para se
Antropologia, dentro da História, dentro de
recuperar. Mais difícil de recuperar. Eu acho
várias outras áreas do conhecimento. Acho
no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.
que os anos 80 não foram revolucionários
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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somente na Antropologia. Foram em a nova geração assuma posições. E isso vai
várias outras disciplinas. Eu acho que hoje ser cobrado por cada vez mais, mais cuidado.
se pensa na Arqueologia, inclusive, em Eu acho que não há caminho de volta. Eu
que se descolonizaram muitas práticas e acho que tem que ir ao caminho, seguindo.
se procura pensar em outras formas de E é claro que até os desafios são muito
produção científica. Outros compromissos grandes e muito interessantes para quem
do pesquisador com os objetos pesquisados, está dentro, iniciando a vida profissional,
outras atenções em relação ao uso dos nossos ou quem está buscando objetos de pesquisa,
produtos, que não nossos no sentido de: “Eu objetos de trabalho, objetos para dar direção
fiz isso. Ele é meu, eu estudei. Sou dono à vida. Eu acho que há tanta coisa aí dentro
disso, posso vender do jeito que quiser”. que a questão é se sintonizar um pouco com
Não, não entendo assim. Nossos produtos esses problemas em vários lugares. E são
não são assim. Nós não podemos vender. muitíssimos em cada área indígena, em cada
Eles são produtos que foram produzidos área do Brasil, que pode ser refletido e pode
em conjunto com os índios. Eles são donos ser objeto de uma ação intelectual bastante
daquilo. Há uma co-propriedade em relação importante e inovadora. é isso aí!
àquilo. Não pode ser utilizada contra eles.
Então, eu acho que há um continente novo jEO – joão, a gente agradece a entrevista.
em relação ao fazer da ciência. Vai ser uma Vamos fazer a transcrição dela.
outra ciência, uma outra Antropologia,
uma outra História, uma outra Geografia.
E vão produzir elementos novos, talvez até
vão operar mais sintonizadas. Vão operar
mais articuladas enquanto ciências e não
tão díspares, e tão competitivas e isoladas.
Eu acho que esse é um desafio importante.
E eu acho – como eu acredito muito nas
exortações, mas eu acho que também é
bom no sentido de realidade –, eu termino
da mesma forma que como eu disse ontem.
quer dizer, para os jovens eles terem ideia
de que talvez alguns ganhos eles podem
fazer adotando essas posturas tradicionais,
coloniais etc. Talvez eles podem conseguir
algum reconhecimento em certos lugares, em
certos nichos etc., mas o movimento caminha
nessa direção. E se eles não seguirem por
essa linha nova que está sendo aberta. Se
eles não quiserem fazer uma ciência nova,
uma ciência dialógica, uma ciência de outra
natureza, pensada sobre moldes diferentes,
eu acho que eles vão ser atropelados pelos
índios, pelos intelectuais indígenas, pelo
movimento da sociedade e pelas demandas
sociais. Eu acho que atrás de nós existem,
atrás de cada um de nós, e da nossa lealdade
com os indígenas, existem pessoas que nos
ensinaram coisas. Pessoas mesmo, famílias.
São essas pessoas a que nós devemos, na
qualidade de gênero humano, iguais a eles,
lealdade. Eu acho que essas pessoas, seus
filhos, seus netos, estão empurrando aí, a que
Ñanduty
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados
Dourados - MS - Brasil
http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/nanduty
PPGAnt - UFGD
DOCUMENTO
Relatório antropológico da Inspeção judicial em áreas das fazendas Ouro Preto, Cristalina e Ipanema, e na
comunidade indígena (aldeia) Taunay-Ipegue, em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, Brasil*
NOÊMIA DOS SANTOS PEREIRA MOURA**
resumo resumen
O presente trabalho corresponde a um relatório El presente trabajo es un informe antropológico
antropológico de inspeção judicial, produzido de inspección judicial, producido en 2010
em 2010 para a justiça Federal na cidade de a la justicia Federal en la ciudad de Campo
Campo Grande. O estudo incide sobre a área Grande. El estudio queda centrado en un
reivindicada por uma comunidade terena para área reclamada por una comunidad indígena
a ampliação dos limites da Terra Indígena Terena para ampliación de los límites de la
Taunay-Ipegue, localizada no município de Tierra Indígena Taunay-Ipegue, ubicada en
Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul, Aquidauana, estado de Mato Grosso do Sul,
Brasil. Brasil.
Palavras-chave: Laudos antropológicos,
Índios Terena, Terra Indígena Taunay-Ipegue. Palabras clave: Informes antropológicos
judiciales, Indios Terena, Tierra Indígena
aBstraCt Taunay-Ipegue.
* O presente trabalho foi elaborado em 2010, sob forma de parecer para Justiça Federal em Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, na condição de assistente técnica da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), referente à Ação
Ordinária nº. 3009-41.2010.403.6000, na qual Nilton Lippi e outros são Autores e a FUNAI ré. Os trabalhos de
campo foram realizados no período de 20 e 23/09/2010 no município de Aquidauana, estado de Mato Grosso do
Sul.
** Professora Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados, onde atua nos cursos de graduação em
Ciências Sociais e Licenciatura Indígena, e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt). Email:
[email protected].
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
155
Primeira Parte e muito mais tempo para ser desenvolvido.
Considerações gerais sobre a inspeção “Índios, assim, tão pouco indígenas”, como
Judicial diria Darcy Ribeiro, precisam de uma
atenção maior dos etnólogos, historiadores
[...] quem viaja pela Estrada de
Ferro Noroeste do Brasil que corta a e arqueólogos, para desnudarem as
região, pode vê-los de enxada à mão singularidades de sua cultura e demonstrar
trabalhando nos roçados, montados
a cavalo cuidando do gado de
porque os Terena reivindicam a ampliação
algum fazendeiro, nas turmas de de seu território para continuar reproduzindo
conservação da própria estrada ou, seu modo de ser e de existir.
mais raramente, vendendo abanicos
de palha de carandá nas estações. Neste sentido, a Inspeção judicial apresenta-
O difícil é identificá-los como
se como um instrumento jurídico importante,
índios, uma vez que se vestem, se
penteiam, trabalham e vivem como porém a tensão e a ansiedade produzidas
os sertanejos pobres da região. nessa situação, principalmente para os
[...] Para saber que são indígenas
é preciso falar-lhes ou ouvir a
indígenas, é muito intensa. Além do mais,
gente da região, sempre pronta a os caciques que acompanharam os trabalhos
identificá-los e a apontar múltiplas são relativamente jovens e, por isso, a todo
singularidades negativas que, a
seus olhos, os fazem apartados [...]. o momento nos remetiam aos mais velhos
(Darcy Ribeiro, julho de 1959 in de suas aldeias, como aqueles que guardam
Cardoso de Oliveira, 1976) o conhecimento mais profundo sobre a
A situação de Inspeção judicial possibilitou cultura, a composição e a organização de seu
um breve olhar sobre as Fazendas Ouro território tradicional e de sua territorialidade.
Preto e Cristalina, bem como a respeito da A territorialidade é concebida aqui como
Terra Indígena Taunay/Ipegue, localizada a forma de configuração da espacialidade
no município sul-mato-grossense de destinada à reserva e ao seu entorno, e o
Aquidauana. Na ocasião, a juíza substituta relacionamento dos Terena com o território,
Raquel Domingues do Amaral Corniglion o qual para eles não foram recortados por
e os seus acompanhantes puderam falar fronteiras tal como os concebe os não
aos Terena, ver como se vestem, se indígenas. Feita essa breve consideração
penteiam, trabalham e vivem, tal como diz da situação produzida por esse instrumento
ser necessário o autor da epígrafe acima judicial, traçarei uma visão panorâmica do
destacada, escrita na década de 1950. que foi feito nos dois dias de campo e em
Contudo, apesar de tamanho esforço para seguida passarei a responder cada um dos
falar e ouvir ambas as partes – autores e réus quesitos elaborados pela referida juíza
–, esta situação é rasa em comparação com federal e pela Procuradoria da FUNAI.
um estudo mais aprofundado de estudo para No primeiro dia, 20/09/2010, segunda-feira,
a produção de relatório de identificação de todo o grupo se reuniu no Posto Pioneiro,
uma terra indígena, onde haveria um grupo ponto mais próximo do local de Inspeção,
técnico composto por diferentes estudiosos próximo à cidade de Aquidauana. Fomos
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
156
orientados que primeiro seriam visitadas as Lagoinha – Alsery Marques Gabriel; Aldeia
fazendas e, posteriormente, a terra indígena. água Branca – Isaias Francisco; Aldeia
Os dois primeiros dias seriam para as Morrinho – Agostinho Francisco; Aldeia
fazendas Ouro Preto, Cristalina e Ipanema, Bananal – Carlos Hortêncio; Aldeia Ipegue
e o terceiro para Terra Indígena Taunay/ – Alvisuri Gonçalves; Aldeia Colônia Nova
Ipegue. Fomos para a sede da Fazenda – Oto.
Ouro Preto. A juíza federal substituta Em seguida, iniciamos a verificação da
Raquel Domingues do Amaral Corniglion, infraestrutura da fazenda Ouro Preto (sede:
responsável pela Inspeção judicial, reuniu
casas, mangueiros, cercas, galpões, pasto
a todos e deu liberdade para falar, gravar,
formado). Esses locais foram fotografados e
filmar e fotografar o que fosse do interesse
filmados, enquanto os diálogos se davam entre
de cada um. Solicitou que, ao final dos os presentes, sob o acompanhamento da juíza
trabalhos, todo o material produzido fosse federal substituta. Nessa primeira fazenda
entregue a sua assistente para ser anexado ao
percebe-se que o mangueiro é bem recente
Processo. Acompanhando a juíza estavam
e foi construído pelos atuais proprietários
dois assistentes técnicos, Prof. Dr. Andrey e Autores da Ação. A juíza foi informada
Cordeiro Ferreira (antropólogo) e Prof. pelo cacique jurandir Lemes, 40, da Aldeia
Hidelbrando Campestrini (historiador).
Imbirussú, que o mesmo acompanhara seu
Da parte dos Autores, estiveram presentes pai, quando tinha aproximadamente uns
o advogado Guilhermo Ramão Salazar, o doze anos (mais ou menos 28 anos atrás),
Prof. MSc. Hilário Rosa, que se apresenta quando foi construída aquela cerca para o
como mestre em História e Antropologia, atual proprietário josé Lippi. A informação
josé Lippi, Nilton Lippi, bem como um foi confirmada pelo fazendeiro. Outra
casal da família Lippi representando os lembrança do cacique Terena foi que antes
atuais titulares das terras. Da parte da Ré de construir o mangueiro novo era usado
estavam os procuradores federais Adriana um antigo mangueiro (apontou o local onde
Rocha e Tiago josé Figueiredo Silva, a se situava a construção), feito pelos Terena
assistente técnica Profa. Dra. Noêmia na época do gaúcho Antônio Bueno, casado
dos Santos Pereira Moura, o engenheiro com a Terena Paulina jatobá, cuja família
Ricardo Hadadd, o Coordenador Técnico morava e ainda mora na T.I. Taunay/Ipegue.
local Reinaldo Martinez e o funcionário da O senhor José Lippi também confirmou esta
FUNAI jornalista Geraldo Duarte Ferreira. outra informação.
Pelo Ministério Público Federal estavam Essas informações demonstram que,
presentes o procurador da república Emerson possivelmente, quando a fazenda Ouro Preto
Kalif Siqueira e o assistente técnico Dr.
pertencia ao proprietário anterior aos Lippi,
jankley (antropólogo). Representando as
as divisas existentes não eram demarcadas
comunidades estavam os sete caciques:
por obstáculos físicos, ou seja, as cercas. As
Aldeia Imbirussú – jurandir Lemes; Aldeia
incursões dos Terena entre a reserva indígena
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e as fazendas eram constantes. Segundo o reserva de mata na fazenda Cristalina na
cacique jurandir, os Terena se banhavam em parte que limita com a Aldeia Imbirussú e
uma vazante que passava no meio do pasto a fazenda Esperança 2. Acompanhando as
da fazenda Ouro Preto e interligava as aldeias cercas que limitam as fazendas Ouro Preto e
Imbirussú e água Branca. No momento da Cristalina, seguimos até a divisa das fazendas
Inspeção judicial, o fazendeiro josé Lippi Cristalina, Esperança 2 e a Aldeia Lagoinha,
informou que fora mantida a mata no entorno onde está localizado mais um marco de
da vazante, mas a mesma desaparece na Rondon, na margem da vazante Tumiku,
época da seca. O cacique Alvisuri, da aldeia segundo informou o Cacique Alsery da
Ipegue, informou que a vazante recebia o Aldeia Lagoinha. A vazante está localizada
nome de água Branca quando passava por na área da Fazenda Cristalina. Tumiku em
aquela aldeia. A juíza questionou se tinha um português significa domingo. Corresponde
nome Terena para a vazante, mas nenhum também ao nome de uma das aldeias Terena
dos presentes soube responder a pergunta. descritas pelo antropólogo Altenfelder Silva,
Outra pergunta feita pela juíza ao cacique em sua obra Mudanças Culturais Terena,
jurandir foi sobre uma cerca que separa publicada pelo Museu Paulista em 1949. Em
uma área da aldeia de outra, na divisa com seu texto o autor destaca:
a fazenda Ouro Preto. Essa referida área está Pouco após a campanha do
na posse do Terena Evandir jatobá, porém Paraguai, habitavam os Terena,
segundo eles próprios informam,
pertence à T.I. Taunay/Ipegue. É dividida, as seguintes aldeias: Ipegue (em
segundo jurandir Lemes informou, para área compreendida entre as atuais
evitar que o gado passe para o outro lado aldeias de Ipegue e Bananal);
Imokovookoti (nas imediações
e estrague a lavoura de feijão ou de milho, da atual aldeia de Cachoeirinha);
conforme o período. Sobre a diferença Tuminiku (nas proximidades da
atual aldeia de Bananal); Coxi
entre a cerca indígena e a não indígena, o
(próxima ao córrego de Taquarí);
cacique jurandir explicou que os Terena não Naxe-Daxe (nas proximidades
possuem as máquinas para industrializar os do córrego do mesmo nome);
Háokoé (nome Terena para a fruta
postes e por isso os utilizam tal como são do pindó; situava-se a aldeia a uma
encontrados na natureza (sem lapinar e por légua de Tuminiku); Moreira e
vezes um pouco tortos). O arame ainda é Akuleá (ambas nas proximidades
de Miranda); Kamakuê (próxima
farpado, pois o liso é mais caro. à atual aldeia de Duque Estrada);
Brejão (próxima a Nioaque); Limão
Em boa parte da divisa entre a Aldeia
Verde (próxima a Aquidauana);
Imbirussú e as fazendas Ouro Preto e Cerradinho (na área do atual
Cristalina, observa-se do lado da aldeia Município de Campo Grande).
Nessa época estimavam-se os
a conservação de mata de cerrado, que
Terena entre 3 e 4 mil. (Altenfelder
apresenta vestígios de fogo na forma de Silva, 1949: 281)
incêndio, enquanto do lado das fazendas o
A área da Aldeia Imbirussú, anteriormente
solo é coberto por pasto. Há uma pequena
a sua fundação, pertencia a Aldeia Bananal.
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A Aldeia Tuminiku recebia o nome do benfeitorias da fazenda (sede, mangueiros,
córrego ou vazante, que hoje é lembrado cercas, galpões) que foram documentadas
como Tumiku pelos anciãos Terena. pelos presentes em fotografias e filmagens.
Possivelmente, Altenfelder Silva tenha O cacique jurandir, pedindo a atenção da
registrado incorretamente o nome da aldeia. juíza, informou que o mangal – plantação
Essa informação nos leva a deduzir que a de mangueiras – (apontou na direção do
Aldeia citada pelo autor esteja em terras da mesmo) por todos vistos, fora plantado por
fazenda Cristalina. Cristalina é conhecida Aparício Bueno, um dos filhos de Antônio
pelos Terena como Pokoó, segundo Evandir Bueno, que continuou na fazenda após a
da Silva, 58, e Ignêz Jatobá Bueno, 70 (filha venda do comodato para outro fazendeiro.
registrada em cartório por Antônio Bueno e A juíza questionou o que o cacique entendia
Maria jatobá). Pokoó e Mangava pertenciam por comodato. jurandir respondeu que era a
a Antônio Bueno. área que segundo Ignez venda da posse pelo Aparício Bueno daquele
Bueno e Evandir da Silva era toda povoada lugar. jurandir lembrou também do cemitério,
pelos Terena de sua família. Os Terena o qual citamos anteriormente na fala de Ignêz
supracitados se lembraram do cemitério que jatobá Bueno (depoimento de Ignês Bueno
havia em Pokoó. Nesse cemitério estavam Castro, arquivo 27, 23/09/2010) e seu meio
enterrados seus parentes: josé jatobá e irmão Evandir Silva (Aldeia Imbirussú). josé
Poekcho (pai e mãe de Paulina e Maria Lippi reconheceu a existência de algumas
jatobá); Andrelina jatobá (irmã de Paulina cruzes no pátio da fazenda, mas afirmou não
jatobá e tia de Ignêz jatobá Bueno) e seu se lembrar de nenhum Cruzeiro. Admitiu
marido Totó; as crianças Bruno e Carlos da ter gradeado todo o pátio, afirmando que os
Silva (irmãos do ex-cacique de Imbirussú Terena não visitavam o referido local. A juíza
Evandir da Silva). Afirmaram ir cultuar questionou aos caciques sobre a lembrança
seus familiares mortos a cada ano no Dia de de algum ritual de culto aos mortos naquele
Finados. Iam acender velas naquele local, local. Os presentes não se recordaram,
mas há uns cinco anos atrás o cemitério foi mas afirmaram que os anciãos das suas
destruído pelo fazendeiro josé Lippi e tudo aldeias possivelmente se lembrariam. O
virou pasto. O ex-cacique Evandir diz saber cacique jurandir lembrou que o Dourival
a localização exata do referido cemitério Bueno, filho de Antônio Bueno, residente
(depoimento de Evandir Silva, Arquivo 21, no Distrito de Taunay, poderia confirmar
22/09/2010). o relato, bem como o Terena Luiz Bueno,
filho de Aparício Bueno. A juíza manifestou
Concluída a vistoria dos marcos de divisa
interesse em conversar com Dourival Bueno
entre as fazendas dos Autores e a Terra
no dia seguinte, quando fossem na Terra
Indígena Taunay/Ipegue o grupo foi
Indígena Taunay/Ipegue e pediu para ser
conduzido pelos fazendeiros até a sede da
conduzida ao local do referido cemitério.
fazenda Cristalina, que para os Terena é a
Nenhum dos presentes soube identificar com
antiga Pokoó. O Autor josé Lippi mostrou as
exatidão o local, mas apontou-se o entorno
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da localização. Ao final da tarde, nos reunimos novamente
Naquele momento o advogado Salazar, no Posto Pioneiro para que fosse lavrada
representante dos Autores, solicitou ouvir e aprovada a ata daquele primeiro dia de
trabalho. Ficou registrado em Ata a retirada
dos assessores técnicos informações sobre
da Fazenda Ipanema da Ação movida pelos
a presença Terena na atual área de Taunay/
Autores e o acatamento da solicitação pela
Ipegue. A juíza abriu espaço para algumas
falas. Hilário Rosa fez um longo discurso, Procuradora representante da FUNAI,
seguido pelo antropólogo Andrey Cordeiro Adriana Rocha. O Ministério Público Federal,
representado pelo procurador Emerson Kalif,
Ferreira e pela assistente técnica da FUNAI,
também acatou a solicitação de retirada. A
Noêmia dos Santos Pereira Moura. Foi dada
juíza ficou de encaminhar o assunto para a
a palavra aos caciques, porém somente um
deles reafirmou em linhas gerais que toda a União, que não estava ali representada por
extensão reivindicada pertence aos Terena seu Procurador. Todos os presentes ouviram
a leitura da ata, procederam às correções e a
desde antes da Guerra do Paraguai (1864-
assinaram reconhecendo seu conteúdo.
1870). Afirmou ser tudo aquilo que está no
relatório do antropólogo Gilberto Azanha, O segundo dia, 21/09/2010, foi destinado a
produzido para a FUNAI. Inspeção judicial na Terra Indígena Taunay/
Após a inspeção das benfeitorias realizadas Ipegue. Foram visitadas apenas quatro
pelos proprietários, anteriores e atuais, das sete aldeias atualmente reconhecidas
foram anotados em ata os dados referentes pela FUNAI e pela FUNASA (Fundação
Nacional de Saúde). Salientamos que a
ao período em que foram construídas as
mesmas, que tipo de material foi usado, Terra Indígena Taunay/Ipegue no início do
entre outras informações. Os fazendeiros século XX, 1905, era denominada Reserva.
apresentaram ao grupo os limites das fazendas Naquele contexto de primeira República o
com a terra indígena. Os limites foram sul do estado de Mato Grosso era povoado
por várias etnias – Guató, Guaikuru, Terena,
identificados como “marcos de Rondon”
Kinikinao, Bororo e Xamacoco, entre outras
(aqueles confeccionados em madeira do tipo
aroeira) e “marcos recentes” (aqueles de (Sganzerla, 1992) e por bem poucos nãos
indígenas. A partir da territorialização Terena
concreto que foram aviventados na década
nas primeiras reservas – Cachoeirinha e
de 1990). O percurso foi realizado de carro
Ipegue – as lideranças indígenas começaram
e em cada parada abria-se o diálogo entre a
a se reorganizar no novo território. As
juíza e os fazendeiros, a juíza e os indígenas
e os demais presentes entre si e com os aldeias foram fundadas à medida que
demais. Dessa forma, foram vistoriadas as os indígenas sentiam a necessidade de
consolidar um outro assentamento dentro
duas fazendas no primeiro dia. As fazendas
da reserva. Geralmente as aldeias nasceram
Ouro Preto e Cristalina fazem divisa com a
no local onde algumas famílias destacadas
Aldeia Imbirussú e a Aldeia água Branca,
socialmente (troncos velhos) plantavam
pelo que pudemos constatar em campo.
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suas roças. Com o tempo o tronco velho se Posto Indígena de Taunay e o Posto Indígena
mudava para mais perto de suas roças e ali de Ipegue. Sob o controle e estrutura do
ia aglutinando seus filhos e demais parentes. Posto Indígena de Taunay estão as aldeias
O antropólogo Levi Marques Pereira (2009) Bananal, Lagoinha, água Branca, Morrinho
aprofunda mais o estudo de formação de e Imbirussú, enquanto o Posto Indígena de
aldeias Terena na Terra Indígena Buriti, Ipegue atende as aldeias Ipegue e Colônia
conforme consta em Os Terena de Buriti: Nova.
formas organizacionais, territorialização Retornando à Inspeção, após o fechamento
e representação da identidade étnica, desse parênteses, os caciques nos conduziram
publicado pela Editora da UFGD. até a Terra Indígena de Taunay/Ipegue.
Segundo Pereira, a denominação aldeia para A primeira aldeia visitada foi Imbirussú
os agrupamentos Terena, possivelmente, que limita com as fazendas Ouro Preto e
surgiu de uma necessidade dos não indígenas Cristalina. Em seguida, visitamos as aldeias
(governantes e fazendeiros), uma vez que Lagoinha, Bananal e Ipegue. As demais
as lideranças indígenas se referem aos seus aldeias água Branca, Morrinho e Colônia
territórios como setores ou ainda por um Nova não foram objeto dessa Inspeção.
nome na língua terena (Pokoó, Tuminiku, Duas situações foram marcadas pelos
Naxe-Daxe), sem nenhum outro adendo. caciques: 1) a falta de água corrente na Terra
A categoria aldeia é usada pelos caciques Indígena Taunay/Ipegue e o abastecimento de
somente na comunicação com os não água feito totalmente pela FUNASA, através
indígenas. Para o autor, “O mais provável de poços artesianos, que não cobrem mais as
é que várias dessas localidades nomeadas necessidades da população de cada aldeia;
como aldeias fossem ocupações de grupos 2) a falta de espaço para reproduzir o modo
locais, que os Terena denominam de tronco, de ser e existir Terena. A juíza concentrou
ou em certos casos reunissem um grupo sua atenção e suas perguntas em duas
de troncos aproximados por relações de situações: 1) o que se produz e o que pode
parentesco e aliança política” (Pereira, 2009: ser produzido dentro da área atual da Terra
52-53). Dessa feita, em 1915 o Serviço de Indígena Taunay/Ipegue; 2) o que os Terena
Proteção ao Índio (SPI) se estabelece na fariam com a Terra Indígena ampliada. Na
Terra Indígena Taunay/Ipegue através do Aldeia Imbirussú, o cacique jurandir Lemes
Posto Indígena Taunay, na Aldeia Bananal. apresentou a Escola Indígena, na qual leciona
As lideranças da Aldeia Ipegue também professores Terena e funciona um posto de
reivindicaram um Posto Indígena para sua saúde. A juíza perguntou quantos alunos e
comunidade. turmas têm na escola e qual é a população
Naquele contexto, os cargos de capitão e da Aldeia. O cacique remeteu as perguntas
de chefe de posto eram fontes de prestígio ao professor, pois o agente de saúde estava
para os Terena. Internamente, os Terena ausente. São duas turmas, uma em cada
constituíram as fronteiras entre o território do turno, com aproximadamente 37 alunos,
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161
pelas informações prestadas pelo professor. algum órgão. Respondeu negativamente.
Segundo os dados da FUNASA, pesquisados O procurador da República, Emerson,
pela assessoria técnica da FUNAI, a informou a juíza federal que o governo
população atual da Terra Indígena Taunay/ do estado entregou ao município 8 (oito)
Ipegue é de 4.161 habitantes, sendo que a tratores destinados às aldeias de Bananal:
Aldeia Imbirussú possui 207 habitantes; Bananal, água Branca, Morrinho, Imbirussú,
A Aldeia Lagoinha possui 634 habitantes; Lagoinha e às aldeias de Ipegue (Ipegue e
Aldeia Bananal possui 1.145 habitantes; a Colônia Nova) e para a Terra Indígena de
Aldeia Morrinho possui 288 habitantes; a Limão Verde, e que nenhum deles estaria
Aldeia água Branca possui 714 habitantes; nas respectivas aldeias. O cacique Alsery
a Aldeia Ipegue possui 944 habitantes; a informou à juíza que na Aldeia Lagoinha
Aldeia Colônia Nova possui 189 habitantes encontra-se um trator que está servindo
(FUNASA, set./2010). As mais habitadas àquela população. Todavia, os outros seis
são também os assentamentos mais antigos, tratores não se encontram na T.I. Taunay/
como, por exemplo, Ipegue e Bananal. Ipegue. Nosso coletivo deslocou-se para
Todas as aldeias possuem um núcleo urbano um mangal próximo à divisa com a fazenda
composto por escolas, igrejas, posto de Cristalina (Pokoó), dentro da Terra Indígena
saúde e habitações. e da Aldeia Imbirussú, no qual morou a
Os caciques foram questionados pela juíza: família Terena de josé jatobá e Poekcho, pais
sobre a técnica das queimadas para limpar de Paulina jatobá, que havia estabelecido
relações de parentesco consanguíneo com o
o solo para o plantio; sobre a técnica de
construção das cercas indígenas; sobre as fazendeiro Antônio Bueno e por muito tempo
da Silva, relatou que o cemitério de Pokoó é atrás, quando tinha uns 12 anos de idade e
trabalhou também na fazenda Cristalina, para
indígena e que lá estão enterrados alguns de
seus familiares. Ignêz e Evandir afirmaram o mesmo fazendeiro, por volta de seus 18 a
que seus parentes continuaram cultuando 19 anos, catando raiz e plantando semente
seus mortos em Pokoó enquanto existia o de braquiária. Ambas as informações foram
as cruzes das covas. Ali foram enterrados os Ignêz Bueno de Castro mostrou duas
Terena josé jatobá, Poekcho (pais de Paulina fotografias tiradas na fazenda Ouro Preto
jatobá e sogros do fazendeiro Antônio em 1982 [a data se encontra na própria
Bueno), Mikilino jatobá, apelidado de fotografia] de seu rancho. Permaneceram na
Mikimbá, Andrelina jatobá (irmã de Paulina fazenda plantando roça ela, o marido e os
jatobá) e seu marido Totó, dois outros irmãos três filhos. O cacique Isaías Francisco disse
de Evandir da Silva e Ignêz Bueno de Castro à juíza que quando era criança tomava banho
ainda crianças – Bruno e Carlos da Silva. na vazante que ligava as aldeias Imbirussú
Evandir salienta: “Todo ano nós ia lá acender e água Branca, que atualmente está seca
velas [...] acabou cemitério. O fazendeiro e interrompida no campo da fazenda Ouro
patrolou tudo lá.” (depoimentos de Evandir Preto. O fazendeiro josé Lippi argumentou
da Silva e Ignêz Bueno de Castro, nº 21 e 27, que mantém as árvores em torno da vazante.
22 e 23/09/2010). Todavia, o desmatamento que transformou
o entorno da vazante em pastagem para o
De acordo com a informação que obtivemos
gado contribuiu para o desaparecimento da
na Inspeção judicial, do cacique jurandir
vazante, segundo observamos in loco.
Lemes e do fazendeiro josé Lippi, o
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Os depoimentos recolhidos durante a A partir da venda da fazenda, os Terena
Inspeção judicial e o trabalho de campo da agregados tiveram que se estabelecer na
assistente técnica da FUNAI, comprovam área da Terra Indígena de Taunay/Ipegue, na
que as relações do fazendeiro Antônio região do mangal (plantação de mangueiras),
Bueno com a família de josé jatobá e que pôde ser avistado da cerca que limita as
Poekcho iam além das relações trabalhistas fazendas Ouro Preto e Cristalina da Aldeia
e de afinidade. Foram estabelecidas entre os Imbirussú: “Os que são mais espertos vão
Terena e o fazendeiro relações de parentesco fechando e os mais medrosos vão recuando. E
consanguíneo. Antônio Bueno desposou nós fomos recuando” (conforme depoimento
Paulina Bueno com quem teve os seguintes de Evandir da Silva, nº 21, 22/09/2010).
filhos: Aparício Bueno, Aluisio Bueno, Todavia, o relacionamento com as áreas das
Altivo Bueno, João Santana, Antônio filho, fazendas dos Autores continuou por parte dos
Dourival Bueno, Durval Bueno, Leonídia Terena através de empreitas, arrendamentos,
Bueno, Darci Bueno e Filhinha Bueno. visitas ao cemitério da Cristalina no dia de
Trouxe toda a sua família para agregar-se Finados e a pescaria no tanque da Cristalina.
em suas terras e estabeleceu uma relação O fato é que os Terena de Taunay/
de parentesco por afinidade com todos os Ipegue vêm ao longo dos séculos XIX
demais Terena da Terra Indígena Taunay/
e XX convivendo com vários contextos
Ipegue, os quais tinham total mobilidade nas sócio-políticos-econômicos-culturais e a
áreas de suas fazendas. constante mudança das paisagens interna
Antônio Bueno teve uma filha com Maria e externamente a sua Terra Indígena. No
josé jatobá – Ignêz jatobá Bueno, que momento da demarcação da reserva Ipegue,
após se casar passou a assinar Ignêz Bueno em 1905 a população Terena era de mais
de Castro. Uma filha com a cunhada que ou menos 5.000; hoje somente em Taunay/
foi recolhida na família do fazendeiro por Ipegue a população totaliza 4.161 habitantes.
Paulina jatobá, a qual foi por nós ouvida no Enquanto naquela época puderam continuar
dia 23/09/2010, na cidade de Aquidauana- se relacionando com a natureza do entorno
MS. Portanto, concluímos que enquanto o de sua reserva caçando, pescando, coletando
fazendeiro Antônio Bueno esteve à frente frutos silvestres, plantas medicinais, lenha,
das fazendas Pokoó (atual Cristalina) e madeira para suas habitações, hoje se
Mangava, para os Terena não havia nenhum vêm pressionados pelos fazendeiros para
obstáculo para a sua mobilidade naquelas permanecer nas terras da União, tendo
áreas, o que permitia a continuidade de seu para sobreviver que enviar seus filhos para
modo de existir. Os obstáculos à mobilidade trabalhar e estudar nas cidades ou em fazendas
dos Terena passaram a ser constituídos a de outras localidades da região, receber
partir do momento que outros não indígenas cesta básica e outras ajudas provenientes de
compraram os títulos de propriedade de políticas públicas governamentais.
espólio de Antônio Bueno à Paulina Jatobá.
Os Terena de hoje vivem em pequenas
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ilhas, pois são rodeados por cercas e por in loco. Relação de vestígios:
pastos formados para pastagem de gados
1) Cemitério na sede da
dos fazendeiros. No caso de Taunay/Ipegue,
fazenda Cristalina:
até a década de 1965 os Terena conviveram
com a paisagem quase intocada da margem De acordo com o texto do
esquerda da cidade de Aquidauana, hoje primeiro quesito, os Terena
município de Anastácio. A urbanização do afirmam a existência de um
município de Anastácio ocorreu da década cemitério indígena no qual se
de 1970 para cá, após sua emancipação em encontram os restos mortais
1965. A luta Terena por terra é histórica: 1) de parentes seus. Os corpos
lutaram por seu território tradicional após enterrados ali seriam: 1) josé
a Guerra do Paraguai (1864-1870), pois jatobá (Terena, pai de Paulina
quando voltaram de seus abrigos na Serra de jatobá); 2) Poekcho (Terena,
Maracaju encontraram suas terras invadidas; esposa de josé jatobá); 3)
2) lutaram pela demarcação e homologação Mikelino Jatobá (filho de
das áreas das reservas, nas quais foram josé jatobá); 4) Andrelina
territorializados, na primeira metade do Jatobá (Terena, filha de José
século XX; 3) lutaram pelos seus direitos jatobá); 5) Totó (Terena,
civis, sociais, políticos, resguardados pela esposo de Andrelina jatobá);
Constituição Federal de 1988; 4) lutam para 6) Bruno da Silva (Terena,
ampliar suas “ilhas”, rodeadas por cercas e filho de Maria Jatobá); 7)
pastos. Carlos da Silva (Terena, filho
de Maria jatobá). No local
havia um cruzeiro de aroeira
B) No local há vestígios antropológicos e cruzes em cada uma das
idôneos de ocupação dessas terras pelos sepulturas, segundo o ex-
índios da etnia terena? sendo positiva a cacique Evandir da Silva, 58.
resposta, é possível datar estes vestígios?
2) Vazantes:
Há continuidade de vestígios de ocupação
das fazendas Ouro Preto, Cristalina e - Vazante Água Branca:
Ipanema até o marco objetivo de 05 de Cacique Isaias Francisco,
outubro de 1988? da Aldeia água Branca,
registrou durante a Inspeção
B.1) No local há vestígios antropológicos
que ele e outras crianças
idôneos de ocupação dessas terras pelos
Terena tomavam banho
índios da etnia terena?
naquele lugar. Após o
Há vestígios antropológicos e arqueológicos desmatamento do entorno da
nas fazendas dos Autores, marcados na vazante, que ligava as aldeias
memória dos Terena e por eles identificados Imbirussú e água Branca,
estreito que esse povo manteve com a pois os usurpadores de seus territórios se
sociedade brasileira. O Terena, mesmo tendo constituiriam nos fazendeiros do Sul do
seu modo próprio de organizar seu espaço, antigo Mato Grosso. Dessa forma, a mão-
de-obra Terena está presente em vários
de organizar sua rede familiar, de organizar
suas roças e de criar seu gado, seu modo empreendimentos dessa região, tais como:
de realizar seus rituais, festas e danças, seu as Linhas Telegráficas, a Estrada de Ferro
modo próprio de organizar suas crenças, Noroeste do Brasil (NOB), as fazendas de
gado, o extrativismo vegetal, as “changas”,
também tem que dominar os códigos da
sociedade brasileira: os códigos políticos, as empreitas, entre outros (Vargas, 2003;
Moura, 2009).
sociais, jurídicos, econômicos, aos quais está
interligado. Os povos indígenas no Brasil e Na primeira metade do século XX,
no mundo não vivem mais isolados faz muito até a década de 1970, estava colocado
tempo. O movimento indígena está cada para o Estado brasileiro o paulatino
vez mais amplo, interligando os indígenas desaparecimento dos povos indígenas do
internacionalmente. A globalização, bem país. Aos poucos os indígenas iriam se
como todos os seus efeitos também produz integrando e desapareciam suas diferenças e,
riscos para os povos indígenas. portanto, sua identidade étnica. Essa crença
perdeu veracidade quando o Estado percebeu
Tomando como pressuposto o conceito
o crescimento populacional e a organização
de cultura de Roque Laraia (2009), em
Revista Ñanduty | Vol. 1 - N. 1 | julho a dezembro de 2012
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política desses povos. A partir da década de pontos de vista ambiental, cosmológico
1970, os Terena, bem como vários outros e para a reprodução física e cultural da
povos indígenas, começaram a se fortalecer comunidade de taunay-ipegue? tais
politicamente, através do movimento áreas integram o conjunto da ocupação
indígena, bem como das associações originária sobre identificação no processo
internas e externas, com indígenas e não- administrativo iniciado em 1985?
indígenas. Um outro paradigma se estabelece A.1) Em 05.10.1988, os indígenas da
a partir de então e os indígenas erguem as etnia terena da comunidade taunay/
bandeiras da terra, da educação, da saúde ipegue detinham que tipo de apropriação
e da previdência. O governo brasileiro os espacial, de reprodução física e cultural,
reconhece e garante direitos específicos cosmológica e ambiental com as áreas
para os mesmos na Constituição Federal de litigiosas (atuais fazendas Ouro Preto,
1988. é a partir desse reconhecimento que Cristalina e ipanema)?
os povos indígenas planejam suas ações e
Respondida no quesito A do juízo
fazem suas reivindicações. Segundo o ancião
Silvério Francisco, 92, a preocupação com a
necessidade de ampliação começou quando A.2) Qual ou quais as relações foi ou é
a família foi crescendo e não tinha lugar afetada pela ocupação não-indígena?
para pescar e caçar (conforme depoimento
Respondida no quesito A do juízo.
de Silvério Francisco, nº. 25, 22/09/2010).
territórios indígenas de uma forma geral, Após o fim da Guerra em 1870, o governo
bem como dos mencionados Terena. imperial buscava informações acerca das
Em cumprimento do que foi terras do Sul do Mato Grosso e as respostas
exigido por V. Ex.ª em officio n.º recebidas eram que havia extensas áreas de
13 de 30 do mês proximo passado,
tenho a honra de apresentar a V. terras devolutas, pois nenhum aldeamento
Ex.ª os dous inclusos mappas, que ali existia. No entanto, algumas lideranças
contêm as informações de que trata
Terena continuavam pleiteando junto ao
o mesmo officio, cumprindo-me
accrescentar; 1º que são devolutas governo brasileiro suas terras. Foi o caso do
as terras em que existem os capitão Vitorino, no ano de 1871 e do capitão
índios mencionados nos ditos
mappas não se podendo por isso josé Caetano:
calcular sua extensão; 2º que não Em 1871, o Capitão Vitorino foi,
havendo aldeamentos propriamente vestido de alferes, juntamente com
ditos creados com a regularidade e outros índios Terena, até Cuiabá,
pessoal de que trata o Regulamento solicitar da Diretoria dos Índios,
de 24 de julho de 1845 não é possível órgão responsável para garantir
saber se nem aproximadamente o e proteger os seus direitos, que
numero de indios que os habitão; tomasse providência diante da
3º que com excepção dos índios situação em que se encontrava o
laianas e terenas do distrito de território que compunha a referida
Miranda e dos Caiapós de S. Ana aldeia, invadido por não índios
do Paranahyba e de Herculania, que não permitiam que os mesmos
os quais prestão algum serviço ali permanecessem, resultando
ajustando-se como camaradas na sua desterritorialização. E
toda as mais nações vivem no três anos depois, esse índio e os
estado barbaro, posto que de demais Terena mudaram-se para
vez em quando tenhão comnosco outra região próxima dali, no lugar
alguma communicação; 4º que denominado Brejão, dando início ao
nenhuma industria exercem e seu processo de territorialização,
por isso é nullo o producto da que se estendeu até meados do
mesma industria; 5º finalmente século XX. (apud Vargas, 2003:
que nenhum Missionario ou Padre 130)
existe na Provincia empregado na
catechese A medida mais urgente Requerimento pessoal do Terena Capitão
que exige a catechese é a remessa josé Caetano:
de bons Missionarios de zelo
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[...] A cerca do indio da tribu Terena, de sua tribu, formou uma pequena
de nome josé Caetano [...] é que o colonia, para a qual mais esta vez
dito índio com mais alguns da sua peço toda a proteção, attendendo
tribo, em numero de 17, procurou- [...] vantagens que d’ella resulta ao
me para representar que era filho Distrito de Miranda, não só quanto
do fallecido Pedro Tavares, capitão ao augmento de população, como
da aldêa do Ipégue, no districto na civilização dos mesmos índios.
de Miranda, e seo substituto, que (Lata, 1878 A, doc. Avulso, APMT
por ocasião da invasão paraguaya apud Vargas, 2003: 71)
não só a sua tribu, como todas
as outras e mais habitantes do Apesar das táticas de negociação dos
districto abandonarão os seos lares capitães Terena, os anos que se seguiram
e retirarão-se para os montes e
foram difíceis para seu povo. Entre os anos
bosques, onde permanecerão por 6
annos, que ultimamente voltando de 1891 e 1904 a política global de Estado
os moradores a reocuparem os na região do Pantanal vai praticamente
seos domicilios, elles Terenas
encontrarão a sua aldêa do Ipégue suprimir a política de catequese, vigorando
ocupada por Simplicio Tavares, o choque frontal entre índios, fazendeiros e
por Antonio Maria Piche, o qual colonos, do que resulta a expropriação quase
lhes obsta a repovoarem e labrarem
suas antigas terras e de seos total das terras indígenas e um verdadeiro
antepassados; pelo que vinhão etnocídio (Ferreira, 2007). No sul de Mato
pedir providencias para não serem
Grosso nesse período títulos de propriedade
esbulhados de suas propriedades
das quais não podião desprender- foram expedidos pelo Estado do Mato
se um outro índio da mesma tribu Grosso para militares e civis. Naquele
de nome Victorino, que farda-
contexto, que a segurança da região era feita
se como Alferes, e pertence a
aldêa do Nachedache, distante da pelos próprios fazendeiros-coronéis e que o
Ipegue uma legoa, fez-me igual próprio Governador desconhecia os direitos
reclamação. (Doc. 1871, p. 79v 80
– Livro n.º 191, 1860-1873, APMT) indígenas, os Terena não tinham a quem
(apud Vargas, 2003: 89) recorrer.
(as quatro primeiras séries do antigo ensino nascimentos, autorizações para abertura e
funcionamento de igrejas, autorizações para
fundamental) são indígenas e desenvolvem,
os deslocamentos Terena das aldeias e toda
da maneira que podem, uma educação
bilíngue. Os professores das demais séries a documentação recebida e enviada fica ali
arquivada. Segundo os caciques, o chefe
são na sua maioria não-índios. Os últimos
é um funcionário do governo, enquanto a
deslocam-se da cidade de Aquidauana ainda
liderança de fato e de direito é exercida por
de madrugada para cumprir o expediente, ou
eles em cada uma das suas aldeias. Essas
seja, a partir das sete horas da manhã (7h).
Tomam a Kombi por volta de 04h30min. aldeias são construções terena e nascem a
para chegarem no horário. Voltam ao final partir da vontade política de suas lideranças.
do expediente do turno vespertino. Os Os caciques são eleitos para um mandato
professores indígenas ressaltaram que a de quatro anos através de eleição direta.
situação só mudará quando alunos indígenas Os eleitores são todos os Terena aptos às
passarem no vestibular, conseguirem eleições da sociedade brasileira. Um dos
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documentos apresentados é a Carteira garanti-los, desde os anos de 1970. Através de
Indígena da FUNAI. Nas últimas eleições suas associações, constituídas para adquirir
em Bananal a disputa foi acirrada e o conhecimento e controle sobre as doenças e
cacique eleito – Arilson Cândido – ganhou agravos de maior impacto sobre sua saúde
por um voto de diferença de seus opositores. deram origem a processos locais e regionais
Essa disputa, pelo que observamos, divide de capacitação de agentes indígenas de saúde
muito a aldeia, uma vez que ao se finalizar e/ ou valorização da medicina tradicional
o pleito os candidatos perdedores continuam indígena, com a participação das diversas
fazendo oposição ao cacique eleito. Por sua instituições envolvidas com a assistência da
vez, a liderança tem que aglutinar forças em saúde indígena.
torno de si para desenvolver sua plataforma
A população de Bananal contou com o
política. conhecimento e auxílio para assistência à
O Posto de Saúde (PS) é uma unidade saúde das Irmãs Lauritas, na década de 1990.
administrativa subvencionada pela Essa Congregação ligada à Igreja Católica
FUNASA/Missão Evangélica Caiuá. A ainda hoje é lembrada pelas lideranças. De
estrutura do serviço de saúde da Aldeia acordo com Pires (2005), o cacique Enedino
Bananal hoje conta com 01 posto de saúde da Silva e o chefe do posto joãozinho da
em prédio improvisado onde são realizados Silva ressaltam, em agosto/1996, através de
os atendimentos médicos e odontológicos, documentos, a grande importância daquela
conta ainda com um aparelho de rádio instituição na área social de evangelização
transmissor integrando-a com o Pólo Base e e saúde, principalmente nos atendimentos
as demais aldeias do município. A estrutura como parturientes. As Irmãs resgataram
de saneamento da Aldeia Bananal conta juntamente com as antigas parteiras e
com dois postos artesianos. No primeiro benzedores (as) o tratamento através das
a vazão é de três mil litros/hora; e o outro ervas medicinais. A principal incentivadora
de sete mil litros/hora. Possui uma rede de era a Irmã Laurita Lucila, atualmente
abastecimento de água de aproximadamente residente em Miranda-MS, autora de dois
cinco mil metros (Pires, 2003). livros sobre medicina natural. A medicina
natural era um recurso amplamente usado
O atendimento à saúde indígena terena nem
pelos xamãs Terena (koixomuneti), portanto
sempre foi assim. Nas décadas anteriores à
havia uma estreita ligação entre o catolicismo
de 1990, muitos indígenas morreram pela
e o xamanismo.
ausência de uma política pública de saúde
para essas populações marginalizadas. A Após muitas discussões em torno da saúde
descontinuidade das ações e a carência indígena brasileira, com ampla participação
de profissionais fizeram com que muitas de várias etnias indígenas, em fevereiro de
comunidades até então alheias ao processo 1991 o Decreto Presidencial nº 23 transferia
de reivindicação de seus direitos se para o Ministério da Saúde a Coordenação
mobilizassem de diversas maneiras para de Saúde do Índio (COSAI), subordinada ao
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Departamento de Operações da Fundação presente na memória do curandeiro Terena
Nacional de Saúde (DEOPE), com Eloy Pereira4:
atribuição de programar um novo modelo Antigamente a aldeia Bananal era
de saúde indígena no país. No mesmo bem abandonado, negócio de saúde,
não existia nenhuma assistência
ano o Conselho Nacional de Saúde (CNS) médica, na época do Serviço de
criou a Comissão Intersetorial de Saúde Proteção ao Índios (S.P.I) Ministério
do Índio (CISI) para assessorar o CNS na da Agricultura. Primeiro médico
que chegou aqui foi a turma do
elaboração de princípios e diretrizes de SUSA, é, que tira chapa do pulmão,
políticas governamentais no campo da saúde né. Aí naquela época do Bananal
já tinha morrido muita gente, não
indígena, inicialmente sem representação
chegava quatrocentos habitantes,
indígena, sendo posteriormente reformulado eu que fazia o levantamento.
e aberto aos indígenas, que ocuparam quatro Como chama? Ah, censo, eu que
fazia; não chegava 400 porque
das onze vagas existentes (Pires, 2003). morria muita gente, quase metade
Desde então a FUNASA e a FUNAI tapera. Assim não tinha mais
gente morador, chegou e achou 78
dividiram a responsabilidade acerca da tuberculoso, o que matava o índio
saúde indígena, executando, cada uma, era Tuberculose, aí procuravam
um voluntário para trabalhar, como
parte das ações de forma fragmentada e
já gostava; porque em 1953 eu fiz
conflituosa. Ambas estabeleceram parcerias curso em Aquidauana, enfermagem.
com os municípios, as organizações Um cursinho, né. Aí como tinha
vontade apresentei voluntário,
indígenas, organizações governamentais trabalhei. Cada tuberculose 90
e não-governamentais (ONGs), as injeções, não me lembro quantos,
universidades e as missões religiosas. Os mais eu sei que 12 comprimidos
dia em 90 dias; aí aqueles 78 índios
convênios celebrados, no entanto, tinham não morreu nenhum, recuperaram
pouca definição de objetivos e metas a serem saúde tudinho. (Igreja UNIEDAS
alcançados e de indicadores de impactos de Bananal, Depoimento de Eloy
Pereira, em 28/01/03, apud Moura,
sobre a saúde da população indígena. Em 2001).
algumas regiões, onde a população indígena
Atualmente, a FUNASA continua fazendo
tem um relacionamento mais estreito com a
a assistência aos Terena. E toda a equipe
população regional, caso dos Terena de Mato
de agentes de saúde é formada por índios
Grosso do Sul, nota-se o aparecimento de
moradores das aldeias. Isso, segundo os
novos problemas de saúde relacionados às
próprios habitantes, facilita o contato que é
mudanças introduzidas no seu modo de vida,
feito por rádio amador com as outras aldeias
especialmente, na alimentação: hipertensão
e com a central em Aquidauana. qualquer
arterial, diabetes, câncer, alcoolismo e a
depressão são problemas frequentes em
4 Eloy Pereira foi auxiliar de enfermagem e atualmente
diversas comunidades (Pires, 2003). está aposentado pela FUNASA. Foi um dos participantes do
grupo de saúde das Irmãs Lauritas e fala em patentear alguns
remédios homeopáticos desenvolvidos juntamente com sua
A lembrança de um passado difícil e de esposa. Terena e evangélico da UNIEDAS, nem por isso deixou
precária assistência à saúde indígena estava de acreditar na eficácia da sabedoria dos antigos no trato com
as plantas curativas.
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emergência “a gente passa rádio para Igreja da União das Igrejas Evangélicas
Aquidauana e vem a ambulância buscar o da América do Sul, Igreja Independente
paciente”, nos informou a atendente Rose Indígena Renovada, Igreja Assembléia de
Luiz, do Posto de Saúde da Aldeia Bananal. Deus e a Igreja Pentecostal Redenção Eterna.
Cada uma dessas Igrejas tem um responsável
Nas aldeias sedes foram implantadas duas
que interage com a comunidade indígena e a
rádios comunitárias, através das quais os
sociedade brasileira.
Terena se informam dos acontecimentos
internos e externos. Nas duas últimas etapas
de trabalho de campo falamos aos ouvintes aldeia ipegue
Terena nas rádios de Bananal e Ipegue. Esse
Ipegue (Ipeakaxoti) é uma das primeiras
contato foi interessante porque ao chegarmos
aldeias que têm sua área demarcada pelo
às casas das lideranças religiosas elas sabiam
engenheiro militar Nicolau Horta Barbosa,
quem nós éramos e alguns dos objetivos de
sob ordens do general Cândido Mariano
nossa pesquisa. Esse é mais um dos recursos
Rondon, em 1905. Seu nome significa “ninhal
não-indígenas apropriados e adequados às
onde as aves estão trocando suas penas”,
necessidades das aldeias. Um dos objetivos
segundo o Professor jonas Gomes (Itatane
das rádios é servir como instrumento de
Vapeyea, 1990:27). A aldeia encontra-se
potencialização das vozes Terena, desde
circundada pelas fazendas vizinhas ao leste,
o cacique ao ouvinte que mora no final
norte e oeste. Ao sul, faz divisa com a aldeia
da aldeia, distante do centro. Segundo os
Bananal. Documentalmente, toda a área
indígenas, a programação da rádio vem ao
demarcada, no início do século passado,
encontro dos anseios da comunidade e é
denominava-se Ipegue. Todavia, a criação de
uma forma de ampliar a interação entre os
novos espaços geográficos e administrativos
moradores. No entanto, se cada aldeia tiver
é uma constante entre os Terena.
a sua rádio comunitária, ela deixará de ser
uma ferramenta para integrar as aldeias dessa Pelo exposto, poderíamos deduzir que a
área indígena, pois cada uma vai ter a sua Aldeia Bananal não existia. Entretanto,
programação específica acessível somente nos relatos Terena, Bananal existiu desde
para aquela localidade. Percebemos que há o século XIX. O fato é que os habitantes
uma concorrência entre as aldeias no sentido indígenas de Bananal só reivindicaram o
de aparelhar-se para oferecer o melhor para status de aldeia quando o SPI começou a
sua comunidade. Isto é interessante porque política de instalação dos Postos Indígenas
fomenta a ampliação de benefícios, mas em 1918. Até então não achavam necessário
ao mesmo tempo, obstrui a comunicação e elevar uma administração à parte de Ipegue,
integração do povo Terena. conforme ouvimos deles mesmos. Só no
século XX tomaram essa medida, exigindo
Cada aldeia Terena tem o seu conjunto
inclusive um Posto Indígena na Aldeia
de igrejas cristãs. Em Bananal são cinco
Bananal. Ipegue, sob a administração
igrejas: Igreja Católica do Sagrado Coração,
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do Capitão Tavares5, fora reconhecida no Centro, na Rua Principal. Tal como em
por Rondon como a sede da Reserva. Bananal, a Escola Municipal Feliciano Pio
Atualmente essa posição é ocupada por oferece a Educação Básica e a Educação
Bananal, que se tornou a aldeia referência. Infantil.
Os que desconhecem as denominações A disposição das igrejas cristãs protestantes
oficiais se atrapalham na localização da é a mesma da Aldeia Bananal. Os templos
Terra Indígena Visconde de Taunay/ Ipegue. ficam localizados no terreno doado por
Na visão oficial da FUNAI existe apenas um de seus fundadores, como é o caso da
uma Terra Indígena, mas para os Terena Igreja Filadélfia, Igreja Presbiteriana, Igreja
existem duas. Fomos corrigidos pelo cacique Assembléia de Deus, enquanto a Igreja
de Bananal em 2007, Arilson Candido, que Católica localiza-se no Centro, na Rua
nos advertiu serem duas terras: a de Taunay Principal, desde 1932. Possui os mesmos
e a de Ipegue. A princípio, levantamos a locais públicos e uma população menor. Uma
hipótese que os conflitos religiosos levaram diferença talvez mais acentuada estivesse na
os Terena crentes de Bananal a exigir a menor influência do protestantismo entre os
separação dos católicos de Ipegue, mas ao habitantes dessa última aldeia. Talvez seja
final da pesquisa tendemos a acreditar nas esse um dos motivos da demora ao acesso
disputas estabelecidas entre troncos velhos. à educação escolar de ensino médio em
Ou seja, é uma prerrogativa da organização Ipegue. Os crentes de Bananal frequentavam
social Terena a fundação de novas aldeias e a Escola Evangélica Lourenço Buckman
o surgimento de novas lideranças (Vargas, que, segundo famílias católicas, atendia
2003; Eremites de Oliveira & Pereira, 2003; aos não-crentes que pudessem custeá-la.
Azanha, 2004; Isaac, 2004). Essa instituição era privada e, portanto,
A Aldeia Ipegue não difere muito da Aldeia alguns católicos que se habilitassem a
Bananal. Possui duzentas e nove residências pagar pelo estudo de seus filhos podiam
distribuídas entre as Vilas Baixadão, São acessá-la. Hoje, a Escola Evangélica, cuja
domingos, Carandá, Flores e Centro, sede continua sendo no Distrito de Taunay,
totalizando 944 habitantes (FUNASA, atende somente famílias evangélicas e está
set./2010). Geralmente, as famílias se infra-estruturando para formar os pastores
constituem um núcleo de parentela centrado indígenas de todas as etnias evangelizadas
em torno de um tronco velho aglutinador. Os pelos missionários Terena.
prédios institucionais como a escola, o Posto O protestantismo de missão, cuja
de Saúde e o Posto da FUNAI localizam-se preocupação central é o aprendizado da
leitura e da escrita para melhor aprendizagem
5 José Caetano Tavares era Cacique Geral,
ou seja, comandava toda a Reserva de Ipegue. da Bíblia, não prosperou em Ipegue.
A divisão de dois Caciques, um para Ipegue Atualmente, os protestantes da UNIEDAS
e outro para Bananal, ocorreu após a criação afirmam que o Evangelho está impedido
dos Postos Indígenas Taunay (Bananal) e
pela forte presença de espíritos naquela área.
Ipegue.
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Ou seja, a atuação de purungueiros (as) e os não índios brasileiros desde a criação das
benzedores (as) é muito presente na Aldeia. Reservas Federais no antigo Mato Grosso.
Isso dificulta, segundo os evangélicos, a As disputas eleitorais internas às Aldeias
entrada do Cristianismo não-católico que
Terena são termômetros para as disputas
sempre fora contrário às manifestações
municipais. Pelas informações obtidas
da religiosidade Terena – o Xamanismo.
na Aldeia de Ipegue, os cinco candidatos
Perpetua-se o catolicismo dirigido pelos receberam apoio do então Prefeito de
próprios Terena. Apesar de em Bananal Aquidauana. Da mesma forma, em relação
continuar existindo xamãs e rituais, o culto
às disputas externas tornam-se visíveis
ao Evangelho é hegemônico. Essa temática
os cartazes de candidatos políticos que
será mais explorada nos capítulos sobre o
disputaram as últimas eleições estaduais
campo religioso no Mato Grosso e Mato dispostos nas paredes das residências.
Grosso do Sul. Por enquanto, cabe-nos dizer Fernanda Carvalho (1996: 34) destacou a
que, apesar de protestantismo e catolicismo
política partidária como um dos “muitos
serem originários do Cristianismo, ambos
problemas referentes à política interna
dialogam diferentemente com o Xamanismo nas aldeias do PI Taunay”, na década de
Terena, nas Aldeias de Bananal e Ipegue. 1980. Afirmou que grupos adversários se
Entre o xamanismo e o protestantismo de
chocavam frequentemente devido à dupla
missão não havia diálogo inter-religioso. chefia existente na Aldeia de Bananal.
Voltaremos mais adiante a este assunto. Assinalou o ano de 1986, como exemplo
Na última eleição para cacique em Ipegue, dessa contradição, no qual a FUNAI
cinco candidatos concorreram ao pleito. Os reconheceu dois chefes de posto para aquela
quatro candidatos perdedores formaram seus aldeia.
grupos ao invés de comporem com a atual Os Terena atuais, pelo que pudemos perceber,
liderança. São no entendimento do cacique foram paulatinamente tomando consciência
eleito seus opositores cotidianos. A disputa
de seu lugar social na sociedade brasileira.
política com base na eleição para cacique foi
A partir desse movimento foram traçando
recentemente institucionalizada pelos Terena. novas estratégias políticas para ocupar novos
Foram eles que optaram por tê-la como forma
espaços sócio-políticos. Foi dessa forma que
de escolha do representante do povo de cada
se apropriaram do Cristianismo.
aldeia Terena. é uma adaptação criativa da
disputa partidária nos âmbitos municipal,
estadual e federal da sociedade brasileira. C.3) A reprodução física e cultural dos
Um desdobramento da participação efetiva indígenas da Comunidade taunay-
dos Terena, com candidaturas próprias, nas Ipegue sofreu influência do modo de
disputas realizadas na sociedade brasileira. produção regional?
é um exemplo do processo de politização da
Tal como os Terena foram influenciados pelos
população Terena em contato contínuo com
regionais os segundos foram influenciados
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pelos indígenas. A convivência estreita de Por estar em constante contato com a cidade
grupos culturais diferentes produz trocas e os povos indígenas apresentam traços
apropriações de ambos os lados. Os Terena, de influência da cultura nacional, porém
com sua comercialização de legumes permanecem fazendo o uso de suas próprias
(maxixe, quiabo, abóboras, feijão de corda ou manifestações culturais. Os Terena adquirem
feijão miúdo), de frutas (guavira, jabuticaba, bens domésticos e tecnológicos, tais como
manga), raízes (mandioca, batata-doce, celular, rádios, aparelhos de som, televisão,
cará), artesanato (utensílios domésticos computador, entre outros produtos; vestem e
e enfeites para casa, feitos de cerâmica; calçam os mesmos produtos que os regionais
abanicos da palmeira carandá, colares e ao mesmo tempo que vestem suas roupas
pulseiras de sementes variadas) e milho tradicionais, bem como seus ornamentos em
verde imprimiram nos demais habitantes suas festas; participam de cultos e missas
indígenas e não indígenas novos gostos nas igrejas de suas comunidades ao mesmo
alimentares e decorativos. A paciência e a tempo que participam de rituais xamânicos
diplomacia terena também são exemplos com purungueiros, benzedores, curandeiros,
políticos interessantes. fazedores de simpatias, levantam bandeiras