Romance Da Urbanizacao PDF
Romance Da Urbanizacao PDF
Romance Da Urbanizacao PDF
Theodor W. Adorno
SUMÁRIO
Apresentação....................................................................................................
Nota explicativa ................................................................................................
Uma história sem futuro: o romance da urbanização e o modernismo
brasileiro...........................................................................................................
O amanuense Belmiro: lirismo, cotidiano e imobilidade...................................
Angústia: dissolução, emparedamento e circularidade....................................
Os ratos: mobilidade, esvaziamento e repetição..............................................
A modernidade do atraso: teoria estética e teoria social no romance
da urbanização.................................................................................................
Referências ......................................................................................................
APRESENTAÇÃO
Nota explicativa
1
Ver, neste sentido, por exemplo, a noção de “bifurcação sentimental” de Agrippino Grieco (1947)
em Evolução da prosa brasileira, ou a ideia de “linhas divisórias litoral/sertão, Norte/Sul”, de Alceu
Amoroso Lima (1956), em Introdução à literatura brasileira, e também “as duas correntes” que
Afrânio Coutinho (1970) aponta como formadoras de nossa tradição ficcional em A literatura no
Brasil.
complexo técnico-formal que talvez implique uma mudança da forma do romance
dentro da tradição da prosa ficcional brasileira. 2
Acredito, de outra parte, que o romance da urbanização constitua
uma experiência histórico-literária fundada no contexto do modernismo brasileiro,
ainda que transborde o ideário dominante do nosso modernismo, por exemplo, ao
colocar sob suspeita, no interior da estrutura formal de composição de seus
romances, as noções de modernidade e de projeto nacional.
Veja-se, portanto, que o termo romance da urbanização se quer
uma categoria que articule um nexo entre expressão estética e experiência
histórica, na tentativa de definir e situar um novo campo de problema.
Os três romances que serão analisados, O amanuense Belmiro,
Angústia e Os ratos, estabelecem, no plano das formas concretas, a diversidade
de aspectos que dá feição às questões aqui discutidas. Entretanto, como se
buscará mostrar, esta diversidade compõe uma unidade, uma vez que a
diferenciação se assenta numa mesma relação estrutural entre princípio formal e
problema histórico de base.
Apesar da boa dose de solidão que geralmente envolve todo o
trabalho de reflexão por estas plagas, não posso deixar de agradecer ao pessoal
do Cerrado brasileiro, Anselmo, Oto, Mário, Mônica e Rosane, que deram a
retaguarda, digamos afetiva, para a realização deste trabalho; a Lúcia, que não
foi menos generosa nesse ponto.
2
É Marisa Lajolo (1994), no ensaio “Literatura e história da literatura: senhoras muito intrigantes”,
que aponta as instâncias extra e intraliterária – não necessariamente interligadas – como nexos
operadores de sentido para a história literária.
Uma história sem futuro:
o romance da urbanização e o modernismo brasileiro
Candido diz ainda que, enquanto essa dualidade cultural não for
resolvida, não poderemos falar em civilização brasileira. Entretanto, para o autor,
essa dualidade tende a ser solucionada econômica e socialmente, com “a
integração de grandes massas da nossa população à vida moderna” (p. 45).
Na diferença de ânimo e de esperança com que cada um dos
autores empreende a sua visão do presente, ou do passado literário não muito
distante, talvez possam existir coisas muito mais comuns do que se pode
imaginar à primeira vista. A maneira desencantada com que Mário de Andrade
percebe a vida intelectual e, o que nos interessa mais de perto, a produção
literária dos anos trinta-quarenta não embota a sua sensibilidade com relação ao
presente. A ideia do herói fracassado não só é um belo achado literário, um
insight de quem ainda olha as coisas com os olhos de ver, como também
expressa, ao mesmo tempo e significativamente, o sentimento do nosso
modernista da primeira hora. Que, quem sabe, porque não mais
macunaimicamente heroico, agora se acha cansado e desiludido. Mas de que
desilusão? Se formos desentranhar as razões profundas desse sentimento, talvez
não nos depararemos apenas com “os imperativos econômicos” que subjugam o
espírito de independência de nossos escritores. O desencanto mário-andradiano
e o herói fracassado, faces diferentes de uma mesma moeda, encontram o seu
leito comum, muito provavelmente, na dualidade cultural apontada por Candido.
Dualidade essa que se afigura, à compreensão de muitos escritores, como
obstáculo, a princípio, à formação de um ethos nacional (a civilização brasileira).
No tique-taque descompassado de nossa vida cultural e histórica, entre o
moderno e o arcaico, o novo e o antigo, a civilização e a barbárie, os nossos
modernistas jogaram todas as suas fichas ora no primeiro elemento de cada par,
ora na demonstração eufórica da compatibilidade cultural de ambos.
Neste sentido, a emergência de uma figura como a do
personagem fracassado, na literatura brasileira, somente pode ser vista com mal-
estar por quem havia figurado o país como um “mito enorme, proteico”, 3 extensão
de um sonho polimorfo, com potencialidades múltiplas e inesgotáveis. Pois para o
modernismo heroico de 22, o salto para trás, em direção ao passado pré-
industrial e pré-urbano, somente faz sentido porque desse retorno se pode fixar
certa imagem do país no presente, que aponta em direção a um futuro
positivamente investido. A busca das raízes primordiais, e supostamente mais
originais de nossa cultura, significava “o remonte às origens históricas de nossa
nacionalidade, ao momento mítico do encontro do índio com o europeu” (Paes,
1990, p. 66), o que por sua vez corresponderia “a um banho lustral daquele
‘estado de inocência’ do primitivo e da criança que um dos incisos do Manifesto
da poesia Pau-Brasil de 1924 aproximava do estado de graça”. A crença e o culto
às origens nacionais colocam sob suspeita o passado mais próximo (o nosso lado
doutor, a retórica bacharelesca, a nossa vocação acadêmica), ao mesmo tempo
que engendram o olhar e o caminho para o futuro,
3
A expressão é de Alfredo Bosi (1988, p. 119) no ensaio “Moderno e modernista na literatura
brasileira”.
“o futuro no presente, o adiantar-se no curso da história”. Por consequência, os
escritores da primeira hora do modernismo brasileiro tomaram
4
Embora a observação da autora se refira à vanguarda brasileira dos anos de 1954-1969, e sem,
portanto, querer levar para o âmbito de nossa análise todas as implicações e conclusões do
estudo, acredito que o argumento permaneça válido também para as vanguardas de 22. Já para a
questão da tradição empenhada na literatura brasileira, ver Candido (1975) em Formação da
literatura brasileira.
5
Parece mais ou menos claro que, naquela altura da sua vida (1941), em plena maturidade
intelectual, Mário de Andrade tivesse pouca ilusão em relação ao que significou o modernismo
não for por demais exagerada –, uma espécie de retorno do reprimido, de nossa
inferioridade, de nosso conformismo, de nosso provincianismo, numa palavra, do
atraso em “estado puro”, sem o charme do “bárbaro tecnizado” ou o glamour de
“um tupi tangendo um alaúde”.
Se a tradição empenhada da geração de 22 expressou a busca
da remissão de nosso arcaísmo a partir da ideia de que ele continha algo de
nossa originalidade civilizacional, cujas energias viriam à tona por meio das novas
formas de expressão, 6 não há como deixar de notar que o estudo de Candido,
acima citado, reflete ainda o desdobramento posterior desse mesmo processo.
Apesar dos mais de vinte anos que separam seu texto da época do primeiro
modernismo e dos cerca de quinze em relação à Revolução de 1930, as
proposições iniciais de Candido já contêm traços daquilo que o próprio autor, em
trabalho posterior, iria formular como uma das características centrais da vida
intelectual brasileira dos anos trinta: a pré-consciência social do
subdesenvolvimento (Candido, 1987b). Assim, pensar o país como dualidade
real, bem como a ideia de que a integração das grandes massas à vida moderna
é a saída para nossos disparates histórico-culturais, indiciam uma mudança de
ótica de nossos escritores e intelectuais na maneira de ver, compreender e
interpretar a realidade nacional. Quero dizer com isso que esta atitude significa
um deslocamento de uma visão estetizada do país para uma visão politizada de
seus problemas.
Como bem observou João Luiz Lafetá (1974, p. 19, grifo no
original), esse deslocamento não representou “uma mudança radical no corpo de
doutrinas do Modernismo; da consciência otimista e anarquista dos anos vinte à
pré-consciência do subdesenvolvimento há principalmente uma mudança de
ênfase”. Em consequência dessa politização dos anos trinta,
para si e sua geração, o que vai se evidenciar com todas as letras na famosa conferência
“Movimento modernista”, no ano seguinte. Entretanto, Andrade nunca imaginou abrir mão da
vitalidade literária conquistada por sua geração para a literatura brasileira, ante a qual personagens
desfibrados como Luís da Silva, de Angústia, somente poderão significar um “retrocesso”, em que,
“se o complexo de inferioridade sempre foi uma das grandes falhas de nossa inteligência nacional,
não sei se as angústias do tempo de agora e suas ferozes mudanças vieram segredar aos ouvidos
passivos dessa mania de inferioridade o convite à desistência e a noção de fracasso total”
(Andrade, 1974, p. 191).
6
Ou na já clássica e precisa equação de Candido (1976a, p. 121), em parte já referida,
“desrecalque localista; assimilação da vanguarda européia”.
de reformar ou revolucionar essa realidade, de modificá-
la profundamente, para além (ou para aquém...) da
proposição burguesa. (Lafetá, 1974, p. 18-19).
7
Os romances que compõem este ciclo são Menino de engenho, Doidinho, Bangüê, O moleque
Ricardo, Usina e – embora tratando da mesma temática mas com uma autonomia estrutural maior
em relação aos anteriores – Fogo morto.
8
Nessa mesma quadra da literatura de José Lins do Rego, mas guardando a sua especificidade,
acredito situar-se também o chamado movimento regionalista-tradicionalista do Nordeste, com o
qual o próprio autor de Doidinho manteve relações estreitas e cujo principal representante é
Gilberto Freyre. Baseado na valorização do regionalismo e do tradicionalismo, em cujas noções se
buscam recuperar o velho brilho do “império dos plantadores de cana”, o movimento regionalista
não se distancia das premissas básicas que temos em vista: ele “ (a) não ocorre necessariamente
em detrimento ou em contraposição a projeto nacional. Afinal, as diversas oligarquias propunham,
e propõem, na luta política, uma perspectiva nacional. E nesse sentido não será de se estranhar
que seus filhos produzissem, e ainda produzem, obras em que se aprimora a noção de ‘cultura
nacional’” (Mota, 1985, p. 73) e criou-se, nas palavras de um entusiasta da fundação do Centro
Regionalista do Nordeste (1924), na perspectiva de que “fosse (b) um auxílio dos governos nas
medidas de progresso e engrandecimento da região” (D’Andrea, 1992, p. 64, grifo nosso). Sobre o
movimento regionalista, ver ainda o trabalho de Neroaldo Pontes de Azevêdo (1984), Modernismo
e regionalismo, e de José Maurício Gomes de Almeida (1980), A tradição regionalista no romance
brasileiro. Há ainda um interessante estudo de José Horta Nunes (1993), “Manifestos modernistas:
a identidade nacional no discurso e na língua”, no qual o autor faz uma análise comparativa,
demonstrando que o Manifesto de Gilberto Freyre e o Manifesto antropofágico de Oswald de
lógica reconhece em si, “explícita ou implicitamente, alguma noção de progresso
como componente da lei histórica” (Meyerhoff, 1976, p. 84). Essa ideia de
progresso, de que a História caminha irreversível, contínua e linearmente para
estágios mais avançados e modernos de desenvolvimento da sociedade, configura
uma compreensão teleológica da própria História.9 Em face de nosso atraso
histórico e secular, não há outro caminho nacional a ser seguido senão o do
progresso, o do desenvolvimento e o da modernidade sociais. Essas ideias podem
contemplar projetos políticos variados e matrizes sociais diferentes, bem como
formas de consecução diversas – do estatismo intervencionista autoritário à la
Getúlio à revolução de Prestes e sua Coluna. Entretanto, o seu empuxo, em
qualquer uma das vertentes, é determinado pela ideia de que o futuro se abre
como horizonte inexaurível de possibilidades sociais e históricas para o país.10
II
Andrade, embora por caminhos diversos, articulam discursos sobre a fundação de identidades
brasileiras.
9
Trata-se – sublinhe-se – de uma noção de progresso diferente daquela que permeava o
cientificismo da segunda metade do século XIX e que serviu de premissa para o romance
naturalista. Nesse, a existência dos indivíduos e da sociedade estava previamente estabelecida em
razão, sobretudo, das condições do meio e da raça. A concepção organicista da sociedade que as
teses cientificistas imprimiam à textura social fez com que o material literário fosse ordenado a
partir dessa ótica, numa espécie de experimento comprobatório desses pressupostos. No
deslocamento transatlântico do evolucionismo e do positivismo deterministas, aquilo que eram
índices justificadores e legitimadores civilizacionais do lado de lá serão, aqui, com nossa
“sensualidade tropical e mestiça” – e mestiça em todos os sentidos –, elementos que buscarão
explicar nosso atraso. Não que a ideia de progresso se desfaça ao aportar desse lado, mas ela
toma as tinturas de um pessimismo desabonador em face de nossa interdição ao progresso. Para
um quadro histórico amplo dessas ideias no Brasil, ver Contribuição à história das idéias no Brasil,
de João Cruz Costa (1967). Já para o naturalismo e em claves diferentes: O naturalismo no Brasil,
de Nelson Werneck Sodré (1965); o ensaio “De cortiço a cortiço”, de Antonio Candido (1993), e
ainda Tal Brasil, qual romance?, de Flora Süssekind (1984).
10
Acredito que também a chamada literatura católico-espiritualista dos anos 30 é centrada numa
visão teleológica do mundo e da sociedade, seja no que ela tem de reação à modernidade, seja
pelo que possui de afirmação teológica e transcendental em sua visão de mundo. Daniel Pécaut
(1990, p. 51) nos sugere essa ideia: “Os espiritualistas mostravam-se dispostos a reconhecer nos
positivistas o mérito de darem primazia ao conjunto orgânico da sociedade. Tanto Jackson de
Figueiredo quanto Alceu Amoroso Lima fizeram do positivismo um ‘catolicismo sem Deus’. Uns e
outros foram solidários em rejeitar a ‘onipotência do indivíduo’, bem como a aceitação de ‘maiorias
ocasionais’. O fato de que poder representasse a unidade do social podia provir de fundamentos
programas a problemática da identidade nacional, que foi formulada
destacadamente de dois modos.
No primeiro, a recuperação de nossas origens culturais, pré-
burguesas e, em certos momentos, pré-cabralianas potenciariam, juntamente com
os ganhos da ciência técnica da sociedade industrial, as energias necessárias
para o salto à frente da nacionalidade no concerto das nações ocidentais definidas
pela modernidade capitalista – ainda que no plano ideológico a intenção dos
escritores modernistas, na maioria das vezes expressa de modo contraditório,
fosse romper com a “pura lógica da sociedade capitalista”, do “burguês-níquel”, do
“burguês-burguês”. Na quadra das vanguardas de 22, então, “o Brasil pré-burguês,
quase virgem de puritanismo e cálculo econômico, assimila de forma sábia e
poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-burguesa,
desrecalcada e fraterna; além do que oferece uma plataforma positiva de onde
objetar a sociedade contemporânea”11 (Schwarz, 1987, p. 13, grifo no original).
Desta maneira, a formulação estética do “modernismo heroico” levou a uma
síntese que alçou a dualidade estrutural do país – arcaísmo e progresso – a
atributo positivo da nacionalidade, entendendo essa dualidade como a própria
natureza e especificidade dessa nacionalidade, o que pressupunha ainda um
desatrelamento da linguagem literária das formas de expressão tradicionais,
originárias da poesia parnaso-simbolista e da ficção real-naturalista.
No segundo modo, os impasses da nacionalidade serão filtrados
pela ótica da consciência social e política, o que exigirá e configurará uma
temporalidade histórica bastante acentuada no plano da criação literária. A
formulação de grandes ciclos no romance de 30 remete justamente à
representação, no nível simbólico, das transformações histórico-sociais pelas
quais diferentes regiões do país passaram do final do século XIX até os anos
trinta-quarenta, quando não mais, conforme ocorre em O tempo e o vento, de
Érico Veríssimo. Agora, o atraso é visto como resultado das forças históricas em
jogo e tende a cessar no próprio movimento interno de superação e avanço
dessas mesmas forças, ainda que na criação dessa tensão o mundo passado
possa ser descortinado com o olhar melancólico da nostalgia. Entretanto, se assim
tão diversos quanto a saber, a transcendência, o direito natural ou a vontade nacional expressa
pelas elites”.
11
A observação do autor se refere à poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade; entretanto, acredito
que não se correm grandes riscos de equívocos ao se generalizar tal colocação.
é, essa atitude decorre mais do desenvolvimento de “uma ‘lógica histórica’
desdobrando-se a si mesma inexorável e aparentemente além do alcance dos
desejos e propósitos humanos” (Meyerhoff, 1976, p. 85) do que da privação de
movimento das coisas e do mundo. A consecução da nacionalidade, neste lado,
está associada à ideia de que tal fato somente se tornará viável a partir de um
desenvolvimento geral e homogêneo das forças produtivas, pois só com “a
integração de grandes massas à vida moderna” é que se poderá falar em
“civilização brasileira”.
Desse ponto de vista, esses dois momentos diferentes do
modernismo brasileiro não se excluem, mas seguem uma linha de continuidade e
de complementaridade entre si. A visão encantada e a visão realista do Brasil, não
obstante responderem a contextos e momentos diferentes da realidade social e
cultural do país, guardam em si marcas de um mesmo processo histórico mais
geral e complexo, cujas premissas se encontram em nossa própria formação
histórico-social. Octavio Paz (1972), no ensaio “Literatura de fundação”, talvez nos
dê algumas pistas para se compreender esse último ponto. Diz o ensaísta
mexicano:
12
É nesse sentido que Carlos Eduardo Berriel (1987) analisa e compreende, sugestivamente, o
ideário modernista de Mário de Andrade em Dimensões de Macunaíma: filosofia, gênero e época.
No caso de Oswald de Andrade, ver o ensaio de Schwarz (1987).
13
Não há como deixar de salientar nesse ponto, ao menos como um dos fatores determinantes da
ambiguidade desse pensamento, a origem rural-oligárquica de muitos dos nossos escritores
modernistas. Sobre isso e sobre a relação dos escritores modernistas com a oligarquia e o Estado
brasileiro, ver Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), de Sérgio Miceli (1979).
14
São ilustrativos, no primeiro caso, as seguintes palavras de Mário de Andrade (apud Berriel,
1987, p. 8): “Nós já temos o passado guaçú e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é
conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente”.
No segundo caso, toda a obra do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego, já mencionado, é
um bom exemplo.
particularidade nacional redimensionaria o caráter universal da cultura e da nação,
ao poder fazer frente ao mundo moderno e civilizado. Sendo assim, em nenhum
dos casos as diversas estações do atraso (ou, dependendo da ótica, da tradição)
são apreendidas como forma específica – e ao mesmo tempo problemática – de a
modernidade se instalar na dinâmica do nosso processo social.
III
15
Num depoimento esclarecedor, Mário de Andrade (apud Berriel, 1987, p. 7-8) diz que “todo o
segredo da nossa revolta estava em dar uma realidade eficiente e um valor humano para a nossa
construção. Ora, o maior problema atual do Brasil consiste no acomodamento da nossa
sensibilidade nacional com a realidade brasileira, realidade que não é só feita de ambiente físico e
dos enxertos de civilização que grelam nele, porém comportando também a nossa função histórica
para conosco e social para com a humanidade. Nós só seremos deveras uma Raça o dia em que
nos tradicionalizarmos integralmente e só seremos uma Nação quando enriquecermos a
humanidade com um contingente original e nacional de cultura. O Modernismo brasileiro está
ajudando a conquista deste dia. E muito, juro pra você”. A criação e o sentimento dessa dialética
específica do particular ao universal – expressão última de nossa “função histórica” e de nossa
“razão social de ser” em face do resto da humanidade – e a profissão de fé que o autor modernista
faz nela estão carregadas de uma aura de positividade histórica que faz com que o aparecimento
de algo como o personagem fracassado somente possa ser sentido e compreendido como uma
“aberração”, uma “anomalia” histórica para Mário de Andrade.
16
Diz o poema de Drummond (1977, p. 94): “Manhã cedo passa à minha porta um boi./ De onde
vem ele/ se não há fazendas?// Vem cheirando o tempo entre noite e rosa./ Pára à minha porta sua
lenta máquina.// Alheio à polícia anterior ao tráfego/ ó boi, me conquistas/ para outro, teu reino”.
jornal; porém, o seu olhar é lançado, volta e meia, para trás, redesenhando em
tons desbotados o passado, o boi. Este, todavia, nunca se mostra pela memória
nem por qualquer outro meio em sua inteireza; é apenas entrevisto.
Há nessa atitude algo semelhante à do Angelus Novus, de Klee,
mencionada por Walter Benjamin em “Sobre o conceito da história”. Como o anjo
da História, o nosso personagem tem o rosto voltado para o passado e gostaria de
se deter para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas, diferentemente da
maneira como se abate sobre o anjo da História, a quem a tempestade do
progresso impele irresistivelmente para a frente, para o futuro, impedindo-o de
fixar-se em qualquer ponto, o tempo histórico para o personagem fracassado
perdeu o prumo. Já não significa transformação radical que o possa colocar em
conflito consigo e com o mundo. O tempo é mera configuração circular do
presente em decomposição, no qual o passado agrário ressurge em instantâneos,
como uma fotografia velha e esmaecida. Em consequência, como propõe Schwarz
(1992a, p. 20), no romance da urbanização
17
Ver sobre o assunto meu trabalho A poética da destrutividade: texto e contexto em Rubem
Fonseca (1991).
18
O autor esclarece que a expressão “pobre diabo” foi vista por ele, pela primeira vez, tendo então
o objetivo de caracterizar determinado tipo de herói literário, no ensaio “Dyonélio Machado, do
conto ao romance”, de Moysés Vellinho (1944), em Letras da província.
ensaio de Paes e este livro são aparentemente próximos. Entretanto, como já se
viu acima, começamos por apontar diferenças entre ambos, o que representa um
outro modo também de definir melhor a nossa trilha. Sigamos por ela, então.
Depois da análise dos quatro romances, o autor propõe situar o
romance do pobre diabo “no quadro geral do romance como forma”. Para tanto,
utiliza-se de conceitos da Teoria do romance, de Georg Lukács ([19–]), a partir dos
quais assinala que, no mundo burguês do romance,
A matização que Paes faz das ideias lukacsianas para o seu ponto
de vista é brilhante. A noção de processo de dissolução ou de apagamento ao
grau zero da interioridade dos personagens desse tipo de romance é inatacável e
merece ser levada adiante, como procurarei fazer nas análises de Angústia e Os
ratos. Entretanto, a dúvida que se pode levantar é até que ponto a teoria
lukacsiana do romance – aparente e sedutoramente bastante abstrata e, portanto,
com um alto teor sugestivo de generalização – é capaz de dar conta do que creio
ser certa especificidade dessa ficção, na medida em que o autor húngaro formula
a noção de herói problemático a partir de um paradigma ficcional e de um contexto
histórico particulares, qual seja, o romance burguês “clássico” gestado no interior
da sociedade capitalista europeia. Ainda que se argumente a favor do caráter
internacional do capital e da natureza intrínseca deste último no processo de
fetichização da vida social – o que é corretíssimo –, penso todavia que “o
rompimento da tensão mínima capaz de manter a interioridade reconhecível em
face do real hostil [que] conduz a do pobre diabo à demonização ou reificação”,
sugerido por Paes, não é o mesmo aqui e no outro lado do Atlântico.
No centro do problema está justamente a forma de reprodução
“combinada e desigual” do capital que faz com que o atraso não seja considerado
arcaísmo residual, mas “parte integrante da reprodução da sociedade moderna, ou
seja, indicativo de uma forma perversa de progresso” (Schwarz, 1990, p. 12-13).
Nessa perspectiva, o romance do pobre diabo ou o romance da urbanização,
como passei a determinar, formaliza em seu discurso ficcional um momento
específico e decisivo dessa “forma perversa de progresso”, no qual a própria
noção de progresso, categoria-chave da modernidade ocidental como um todo e
dos projetos estético-ideológicos do modernismo brasileiro em particular, é posta
em suspensão. Nos diferentes níveis de sua estruturação e com diferentes
perspectivas ficcionais, o romance da urbanização põe entre parênteses uma
forma de concepção histórico-civilizacional construtiva, intrínseca à noção de
progresso.
Assim, a interioridade do personagem que se torna irreconhecível
em face da realidade hostil apresenta-se como resultado, no romance da
urbanização, não de um processo qualquer de reificação ou de um caráter geral e
abstrato desse processo, mas das condições históricas específicas de
estruturação da subjetividade do sujeito, num contexto em que o atraso é ainda
um dos componentes estruturantes das diferentes esferas da vida social. Num
certo sentido, estamos aqui nos antípodas daquilo que vai derivar do romance
europeu do herói problemático, ou seja, o romance europeu modernista.
Voltaremos a esse ponto no capítulo final deste livro. Adiantemos apenas que, no
caso da ficção dos países centrais do capitalismo, a um aprofundamento do
caráter reificado da sociedade europeia correspondeu, até certo ponto, um
acirramento da noção de profundidade interior. Uma preocupação artística maior
na dialética entre mundo interior e mundo exterior como forma de refletir e
assegurar ao eu uma consciência de continuidade de sua identidade, num
contexto crescente de fragmentação da experiência e do tempo.
Movimento contrário passa-se com o romance da urbanização.
Como se observou acima, se aqui o estreitamento do tempo também se faz
presente, a sua consequência não será uma prosa analítica e refletida correlata a
um mergulho no espaço interior, mas sim a rarefação desse espaço, ainda que,
paradoxalmente, ele se mostre impregnado, muitas vezes, de subjetividade e de
um forte tom confessional. No entanto, trata-se de uma voz que, ao falar de si e do
mundo, articula um entrecruzamento temporal, entre passado rural e presente
urbano, cuja resultante é a nulificação de qualquer horizonte de expectativa
existencial e social.
Em consequência, os procedimentos técnicos narrativos utilizados
pelo romance da urbanização desempenharão um papel particular e diferente
nessa quadra do romance ocidental moderno. No caso do romance europeu
moderno, o aparecimento de novas técnicas narrativas (como, por exemplo, o
fluxo de consciência e o discurso indireto livre) refletiu um aspecto ambíguo e
contraditório da experiência moderna, uma vez que essas técnicas se
transformaram, de um lado, em modo de produção de sentido que engendrou a
“desintegração total do conceito tradicional de individualidade, no sentido de que a
noção do eu, como entidade sólida, substancial, tornou-se insustentável”
(Meyerhoff, 1976, p. 35); de outro, foram recursos ainda capazes de “transmitir um
sentido de continuidade e unidade do eu a despeito da crescente fragmentação do
tempo e da experiência”. Uma linguagem que recupera a queda da experiência na
cintilação do próprio processo de desfazimento desta. Já no romance da
urbanização parece não haver um lastro de experiência a ser repensado, um
passado capaz de colocar sob perspectiva o presente, ou um presente que reflita
sobre a impossibilidade do futuro. É como se ficássemos apenas com o silêncio
seco da queda, sem a consciência analítica de seu significado e de sua dimensão,
o que ao menos potencialmente os procedimentos técnicos utilizados poderiam
fornecer.
Um último ponto, neste instante, merece pelo menos ser
assinalado. Significativamente, o romance da urbanização é produzido e
ambientado ficcionalmente fora do eixo econômico, político e cultural dominante
do país, isto é, as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. O seu espaço, no
duplo sentido apontado, serão cidades que estão e/ou ficaram a meio passo entre
o desenvolvimento e a modernização urbana e o peso do passado e do atraso
rurais. Entre o bonde e a carroça, digamos assim, para nos valermos de uma feliz
imagem oswaldiana.
E indissociavelmente relacionado a esse deslocamento talvez
esteja um outro tipo de movimento que se processa em relação à posição social
dos nossos autores na estrutura social na época. É Sérgio Miceli (1979, p. 92) que
nos suscita essa relação ao dizer que
os escritores que investiram nesse gênero [o romance]
desde o começo de suas carreiras eram, em sua maioria,
letrados de província que estavam afastados dos centros
da vida intelectual e literária, autodidatas fundamente
marcados pelas novas formas narrativas e em voga no
mercado internacional [...].
Inimigo morto.
19
Isto entendendo-se a noção de ação seja num sentido mais tradicional, em que ela é “construída
em função de uma procura e da resolução de certos problemas” (Reis; Lopes, 1988, p. 190, grifo
no original), seja no sentido da interação de pelo menos três componentes: “um (ou mais)
sujeito(s) diversamente empenhado(s) na ação, um tempo determinado em que ela se desenrola e
as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados”. É sobretudo
essa “passagem de certos estados a outros estados” que se torna problemático em O amanuense
Belmiro, pois se mostra praticamente inexistente aqui, e isso tanto no nível objetivamente factual
da narração quanto no plano psicológico do personagem.
desdobramento é o encontro com Carmélia, que se torna um amor platônico do
qual ele nunca sequer se aproxima e que ao mesmo tempo o remete ao passado,
à Arabela/Camila, mito e amor de infância, simultânea e respectivamente.
Carmélia, assim, não se efetiva como objeto concreto, alvo e móvel de seu
investimento afetivo. Ela é apenas a imagem evanescente de uma fantasia cuja
natureza é ser e fazer-se mesmo inatingível na medida em que aos olhos de
Belmiro significa não projeção para diante, e sim lance de recuo. Mas uma vez
que o recuo, como passado e memória – conforme se mostrou –, nunca se
descortina em imagem presentificada, o sentido geral, por consequência, será
mesmo de imobilidade: “A possível esposa” – diz Belmiro – “morreu em 1925, e
está num cemiteriozinho branco, no Largo do Cruzeiro, em Vila Caraíbas. Por que
te deixei, Camila? Na verdade, eu te amava. O que amo nessa Carmélia, que não
atinjo, é, talvez, apenas a tua imagem” (Anjos, 1980, p. 91).
De outra parte, o baile na casa do senador deixa o nosso
burocrata “miserável, pela sensação de aposentadoria” em face da juventude
faceira e reluzente que se movimenta, conversa e dança à sua frente. A sua
atitude não é de confronto, de repulsa a novas gerações que surgem e lhe
disputam espaço, mesmo que simplesmente no nível da reflexão. O que lhe é
diferente suscita apenas sua resignação e recolhimento:
20
Sobre a relação entre técnica narrativa e gênero literário no romance da urbanização, ver o
capítulo final deste livro.
Voltando-se mais especificamente ao trecho acima, que tem
como tema a questão do tempo, nota-se que ele não produz nada com relação ao
que é tematizado; o tempo não se torna mais interiorizado, modificando a nossa
experiência de leitura de até então, nem aprofunda sua relação com a
“subjetividade reflexiva”, ainda que seja uma obsessão para o personagem.
Dessa maneira, pode-se dizer que a consciência de Belmiro apenas “se abre a
objetos e a impressões que são recebidas passivamente – isto é, registrando-os,
sem agir sobre eles” (Karl, 1988, p. 336).
Portanto, como observou Candido, assim como Belmiro se
entrega ao presente mas não o vive, pode-se dizer também, correlata a essa
atitude, que Belmiro reflete mas – paradoxalmente – não critica; pensa, mas
suspende o juízo crítico do pensamento. Os dois planos do presente, assim, se
fecham em estado de paralisia: por um lado, os acontecimentos narrados e
descritos do mundo social “não formam, embora esbocem, um sistema
autônomo” (Schwarz, 1992a, p. 17), e, de outro, o gesto reflexivo no presente é
muito tímido para questionar seja a existência atual, seja a passada.
II
21
Neste mesmo espectro de análise, mas com perspectivas diferenciadas, podem ainda ser
inclusos, por exemplo, os ensaios fundamentais de Candido (1992b), “Ficção e confissão” e “Os
bichos do subterrâneo”, em Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos, e o trabalho de
Rui Mourão (1969), Estruturas: ensaios sobre os romances de Graciliano Ramos. Detenho-me na
interpretação de Coutinho por acreditar que ele tenha dado um desdobramento mais amplo, em
obra “abarca o inteiro processo de formação da sociedade brasileira em suas
íntimas e essenciais determinações” (p. 79). Para tanto, vai buscar na fórmula
lukacsiana, herói problemático-mundo alienado, a chave de leitura explicativa,
diferentes níveis de sua análise, a certas questões do que se pode chamar de sociologia da
literatura, e que nos interessam discutir mais de perto.
Entretanto, Coutinho sublinha que não será esse o caminho do
livro de Graciliano Ramos. Ao se aprofundar a análise e ao se superar “o nível
imediato dos processos técnicos”, encontrar-se-á em Angústia o respeito pelas
leis “da grande arte épica”, que se fundamenta num “realismo crítico”, pois a sua
estrutura formal está assentada na “dialética do herói (problemático) e do mundo
(alienado)” (Coutinho, 1978, p. 102). As técnicas de vanguarda, nesse romance,
“são englobadas pela narrativa épica tradicional, que representa as ações
humanas como uma dialética de sujeito e objeto, de consciência e realidade” (p.
102).
A partir, portanto, de suas técnicas experimentais, Angústia
configura um novo conteúdo que se “expressa por uma acentuação dramática
das paredes do ‘pequeno mundo’, do cárcere da solidão e impotência em que
está encerrado o homem brasileiro” (Coutinho, 1978, p. 94). Em consequência, as
ações do protagonista Luís da Silva vão manifestar o seu constante caráter
ambíguo ao se fazerem num mesmo tempo degradadas e autênticas. Centrando-
se na passagem do assassinato de Julião Tavares por Luís da Silva, o autor nota
que, num mundo em que “inexistem o valor objetivo, a comunidade autêntica”,
toda a pesquisa de valores será
22
Nessa mesma clave, mas com outra perspectiva e outras preocupações, pode ser lido o trabalho
“Angústia, em Angústia, de Graciliano Ramos”, de Adélia Bezerra de Meneses (1991).
modo de operacionalização da produção e da recepção textuais, de maneira que
se torna visível aos seus olhos a invisível trama do texto.
Nesse sentido, o sistema de representação em Angústia, diz a
autora, oferece-se
23
Na verdade, “princípio estrutural” vai por minha conta, já que, como boa desconstrutivista que é,
para Carvalho não há origem, não há princípio, uma vez que a interpretação do texto é uma tarefa
infindável.
esteticamente regido pelos princípios lógicos, o qual privilegia o sujeito cartesiano
e a simetria em relação ao real.
***
24
Sigo aqui o raciocínio de Walter Benjamin (1985, p. 122, grifo no original) em “O autor como
produtor”: “Antes, pois, de perguntar como uma obra se situa no tocante às relações de produção
da época, gostaria de perguntar: como ela se situa dentro dessas relações? Essa pergunta visa
imediatamente a função exercida pela obra no interior das relações literárias de produção de uma
época. Em outras palavras, ela visa de modo imediato a técnica literária das obras. Designei com o
conceito de técnica aquele conceito que torna os produtos acessíveis a uma análise
imediatamente social, e portanto a uma análise materialista. Ao mesmo tempo, o conceito de
conteúdo manifesto e latente, recalcamento etc. Nesse acirrado hermetismo
teórico, não há espaço para se historicizar as categorias de análise em questão
tampouco os problemas suscitados por elas, isto é, o caráter autoevidente com
que se investem essas categorias silencia-se totalmente no que diz respeito às
próprias condições histórias de seu surgimento e, por extensão, da própria
interpretação que recobre a obra de Graciliano Ramos.
De qualquer maneira, vale a pena salientar, para encerrar esta
parte, que, mesmo a partir do investimento em posturas teóricas diferenciadas,
ambos os autores assinalam o, digamos, caráter “progressista” e “avançado” do
romance de Graciliano Ramos, ainda que com direções diferentes. Num caso,
revela-se pelo seu aspecto crítico em face da “sociedade alienada e reificada”;
noutro, pela sua feição “transgressora da lógica” e do “sujeito cartesiano” e, por
consequência, liberadora do eu. O que demonstra que sujeição aos cânones,
esta sim, não requer exclusividade teórica.
II
técnica representa o ponto de partida para uma superação do contraste infecundo entre forma e
parte, provar ser a elisão profunda da distância tradicional do narrador com
relação ao material narrado e, por extensão, do “mandamento épico da
objetualidade” (Adorno, 1983, p. 269).
A dissolução desses fatores, que compunham a plasticidade e a
objetividade da ficção realista tradicional, tem, como contrapartida no nível geral
da composição de Angústia, uma profunda subjetivização do discurso ficcional,
determinada pela utilização da técnica do monólogo interior. Na altura da
publicação do livro, 1936, o recurso do monólogo interior já se encontrava
bastante utilizado e difundido na literatura ocidental. Proust, Joyce e Woolf, para
citar apenas alguns dos escritores que fizeram uso desse recurso, já o haviam
levado às últimas consequências como procedimento narrativo. Em face da
literatura europeia e mesmo norte-americana, se formos considerar como dado
positivo, por si, o caráter experimental de Angústia, veremos que se trata, mais
uma vez, de uma “vanguarda” retardatária, com pouco valor de inovação estético-
formal. Entretanto, no quadro rarefeito da literatura brasileira, e num contexto
literário em que o neorrealismo predominava, a utilização desse processo formal
de composição, em Angústia, nos coloca um quadro novo e complexo de
problemas, não por simplesmente se situar em alguma ponta de lança literária,25
mas por sua particularidade e especificidade históricas que estão ainda para
serem formuladas, no contexto da prosa ficcional brasileira modernista.
Então voltemos ao problema da subjetivização em Angústia. Por
meio da técnica do monólogo interior, a consciência da personagem “passa a
manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu
que ocupa totalmente a tela imaginária do romance” (Rosenfeld, 1969, p. 82, grifo
nosso). A presença desse eu não só interioriza os elementos do mundo exterior,
mas ao mesmo tempo reduz e achata o enfoque e o campo de percepção das
coisas. Por consequência desse processo de interiorização e redução, o mundo
narrado movimenta-se sob um outro influxo que não aquele em que as categorias
de tempo, espaço e causalidade guardam em si um senso de ordem,
continuidade, objetividade e lógica das relações humanas e dos acontecimentos.
conteúdo”.
25
Sobre esse ponto Schwarz (1992b, p. 43) já alertava: “Sabe-se que progresso técnico e
conteúdo social reacionário podem andar juntos. Esta combinação, que é uma das marcas do
nosso tempo, em economia, ciência e arte, torna ambígua a noção de progresso. Também a
noção próxima, de vanguarda, presta-se à confusão. O vanguardista está na ponta de qual
corrida?”.
Tempo e espaço fragmentam-se, e sua razão não está na onipotência do
personagem em submeter à sua vontade pessoal normas e regras do mundo
objetivo; ao contrário, o que se coloca no centro do problema é justamente o
colapso da experiência e da desintegração da identidade do sujeito.
A noção de identidade pressupõe “a vida articulada e contínua
em si mesma” (Adorno, 1983, p. 267), quer dizer, um princípio de continuidade do
eu e de durabilidade26 das coisas. Por conseguinte, em face da mudança e da
sucessão temporal e, portanto, da percepção das coisas como um fluxo, algo
permanece: “a qualidade da duração sobrepõe-se, por assim dizer, à mudança
contínua” (Meyerhoff, 1976, p. 16). Essa consciência do eu como indiviso,
constante e contínuo, que implica ao mesmo tempo a distinção representativa do
outro e do mundo em face da ficção27 que o sujeito cria de si mesmo, formula um
senso de “representação objetiva” do próprio eu, do outro e do mundo.
Em Angústia, tal representação objetiva está rompida, se não
totalmente, ao menos até o ponto em que o esgarçamento dos elementos de
composição impede que estes sejam reconhecidos em sua clave realista
tradicional. Antes de analisar com um pouco mais de detalhe as consequências
desse processo no plano da estruturação da obra, uma pergunta, nesse ponto, se
faz importante: afinal, quais as razões que levaram à dissolução da forma do
romance realista em nosso contexto literário? Ou, melhor dizendo, que condições
permitiram o surgimento, na literatura brasileira, de um paradigma ficcional
fundado num processo de subjetivização e que, muito provavelmente, significa
mudança histórica da forma do romance em nossa literatura?
26
Com relação à ideia de durabilidade, Hannah Arendt (1987, p. 150, grifo nosso) observa: “É esta
durabilidade que empresta às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as
produziram e as utilizam, a ‘objetividade’ que as faz resistir, ‘obstar’ e suportar, pelo menos durante
algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as
coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana; sua objetividade reside no fato de que
– contrariando Heráclito, que disse que o mesmo homem jamais pode cruzar o mesmo rio – os
homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver a sua invariabilidade, isto é, sua
identidade no contato com os objetos que não variam, como a mesma cadeira e a mesma mesa.
Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito
pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja devastadora força
elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo de seu próprio movimento biológico,
em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da natureza. Somente nós, que erigimos a
objetividade de um mundo que nos é próprio a partir do que a natureza nos oferece, que
construímos no ambiente natural para nos proteger contra ele, podemos ver a natureza como algo
‘objetivo’. Sem um mundo interposto entre os homens e a natureza, haveria eterno movimento,
mas não objetividade”.
27
“Bem entendido, falamos de ficção no sentido psicanalítico do termo, ou seja, como categoria
adstrita à ordem da realidade psíquica. Ficção deve ser compreendida como representação
Essa é uma questão que pretendo discutir com mais
profundidade no capítulo final deste livro. Por ora, é importante destacar o
seguinte: a minha hipótese é a de que o que está em jogo em Angústia de modo
particular, e no romance da urbanização de modo geral, é o conflito de dois
tempos históricos distintos que correspondem a espaços e valores sociais e
culturais também diversos e que, até certo ponto, formalizam-se no nível estético
como irreconciliáveis para a vida do nosso protagonista. De um lado, tem-se o
tempo presente da cidade, da vida urbana; de outro, o passado do campo, da
vida rural. A meu ver, são as contradições e os conflitos dessa diferença histórico-
temporal que dão feição particular à narrativa de Angústia. Nesse sentido, a
linguagem desse romance se constrói como uma espécie de fratura histórica que
fende de modo profundo o sujeito-narrador e o seu mundo. O seu discurso
somente pode ser articulado como exposição dessas duas pontas que, todavia,
não podem ser unidas. Essa tensão histórica surge como uma consciência de
emparedamento do sujeito e do mundo que, captada e formalizada
esteticamente, achará a sua feição própria no discurso subjetivo e em técnicas
literárias que lhe dão uma formatação específica. Assim, na base do
aprofundamento da subjetivização do romance como forma literária no Brasil
estaria, por assim dizer, essa espécie de trauma original de nossa formação
social.
Nesse sentido, é interessante ao menos anotar, aqui, que as
razões históricas do processo de subjetivização do romance brasileiro são
diferentes das do europeu. Com relação a este último, Erich Auerbach (1987, p.
496) nota o seguinte:
verdadeira e eficiente para o psiquismo do sujeito. Ela não é uma formação supérflua e nada tem
em comum com a mentira, erro dos sentidos ou falsa consciência (Costa, 1986b, p. 85).
fundamentos válidos para a sua atividade, e a tendência
mais tarde crescente no sentido das perspectivas
impiedosamente subjetivas é mais um sintoma. Durante
e após a Primeira Grande Guerra, numa Europa
demasiado rica em massas de pensamento e em formas
de vida descompensadas, insegura e grávida de
desastre, escritores distinguidos pelo instinto e pela
inteligência encontram um processo mediante o qual a
realidade é dissolvida em múltiplos e multívocos reflexos
da consciência.
28
Penso nas noções de história e enredo da mesma maneira simples de Edward Forster (1970, p.
69): “Definíramos a história como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua seqüência
no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a
causalidade. ‘O rei morreu e depois a rainha’ – isto é uma história. ‘Morreu o rei, e depois a rainha
morreu de pesar’ é um enredo. A seqüência no tempo é preservada, mas o sentido de causalidade
obscurece-a”. Nesse sentido, ver também a noção de intriga em Reis e Lopes (1988, p. 211).
fazer dominante em Angústia, na medida em que a realidade se produz como
objeto da consciência do personagem. Lembrado ou imaginado, o material
narrado “torna-se parte integrante do próprio processo, isto é, daquela
consciência que só conhecemos como fluxo em constante movimento” (Arendt,
1987, p. 295). Só que movimento não significa, aqui, como se pode deduzir,
mudança na sequência de acontecimentos em que estão engastadas as ações
do personagem e a partir da qual se configuram pontos de vista diferentes com
relação a ele; tampouco pode ser entendido como transformação de perspectiva
da consciência do personagem em face de si e do mundo e, por extensão, no
interior da narrativa como um todo. Na verdade, o movimento que se desencadeia
em Angústia elabora-se, em boa parte, como dissolução da “realidade objetiva”
em estados mentais subjetivos do personagem Luís da Silva.
Desse modo, a construção discursiva de Angústia – e, por
consequência, a construção do próprio protagonista, já que o relato do romance é
a narrativa da vida de Luís da Silva – funda-se num paradoxo aparente: os
processos mentais que põem “em um torvelinho de ocorrências atômicas” os
objetos e os acontecimentos não têm a função de desdobrar e dar configuração e
inteligibilidade a movimentos interiores, tampouco preparam e fundamentam os
acontecimentos exteriores. A interiorização discursiva, ao se processar na
consciência do personagem, figura a profunda condição de imobilidade de Luís
da Silva e sua relação com o mundo, a que se associa um sentimento
permanente de aviltamento e impotência.
Assim, a desarticulação espaço-temporal contínua da linguagem
em Angústia, ao se dar no espaço interior do personagem-protagonista, formula-
se simultaneamente como a sua própria desestruturação histórica e pessoal.
Disso decorre uma estrutura temporal complexa em que, de fato, uma
determinada situação “projeta na cena textual diferentes personagens, de tempos
distintos, criando um sistema especular” (Carvalho, 1983, p. 25) que, no nível da
composição, se desdobra fundamentalmente nos seguintes planos temporal-
narrativos: 1º) a narração de Luís da Silva (tempo da enunciação), 2º) o relato da
relação com Marina, do crime e do cotidiano do personagem (enunciado 1), 3º) o
relato de lembranças e reminiscências do passado (enunciado 2), 4º) as alusões
e visões alucinatórias e deformadoras (enunciado 3). Esses diferentes planos
temporais compõem a tessitura textual a partir de um processo que tanto pode
originar-se da constituição de um plano primeiro que servirá como uma espécie
de núcleo do qual se derivará e se subordinará um segundo ou mesmo um
terceiro, assim como pode compor-se por simples justaposição de instantes
diferentes, sem uma aparente relação direta.
Essa característica fragmentária do tempo terá implicações
profundas no andamento da prosa ao impedir que esta tome rumo definido,
fazendo, ao mesmo tempo, com que se constitua de marchas e contramarchas,
de idas e vindas, como se a sua natureza prismática tivesse o efeito único de
gerar imobilidade em todas as direções e sentidos que o protagonista pudesse
querer imprimir à sua vida. Dessa maneira, o narrador, ao fundar um espaço
interior, ao “puxar o mundo para este espaço interior” (Adorno, 1983, p. 271), não
consegue impedir que este lhe poupe “o passo errado no mundo estranho”; essa
interioridade não se arma como proteção à refutação da ordem espaço-temporal
objetiva, mas sim como fantasmagoria de seu próprio ser que se esfacela diante
do mundo e de si mesmo.
Desse ponto de vista, interioridade e temporalidade estão
indissociavelmente ligadas em Angústia, ainda que a ligação que elas
estabelecem entre si não seja de uma ordem complementar, substitutiva e/ou
compensatória (em face, por exemplo, do mundo externo e concreto que é algo
ameaçador). Numa espécie de via de mão dupla, mas sem pontos de partida e de
chegada, a interioridade de Luís da Silva gira em torno de temporalidades
fracionadas e irreconstituíveis em sua totalidade articulada, no mesmo passo em
que é no espaço dessa mesma temporalidade atomizada e em função dela que a
interioridade opaca e dissolvida se mostra e se define como discurso narrativo
interiorizado.
De outra parte, pode-se dizer que a relação entre passado e
presente, ou a irrupção do passado no presente, é o eixo dominante a partir do
qual se estrutura a paralisia narrativa de Angústia. O passado, como articulação
da memória de Luís da Silva, não se elabora como espaço narrativo autônomo
em que personagens, situações e ambientes ganham vida própria. Não me refiro,
está claro, a um simples recurso de flashback, mas à experiência passada
sentida e refletida como parte integrante de um continuum da vida do
personagem, via memória. O passado, como o próprio presente, esgarça-se
formando apenas uma “coleção de fragmentos” (Candido, 1992c, p. 85) no qual
figuram, predominantemente, signos de morte e de decadência rural.
Por consequência, se o espaço interior não é um refúgio possível,
também o passado, extensão dessa interioridade, não poderá sê-lo em face do
presente urbano, como nota o próprio personagem-narrador:
29
O mesmo ensaio pode sugerir uma leitura interessante para explicitar, sob a perspectiva da
psicanálise, alguns pontos da questão que estamos discutindo. Note: “O corpo ou a imagem
corporal eroticamente investida é um dos componentes fundamentais na construção da identidade
do indivíduo. A identidade do sujeito depende, em grande medida, da relação que ele cria com o
corpo. A imagem ou enunciado identificatório que o sujeito tem de si estão baseados na
experiência de dor, prazer ou desprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e a pensar. Para que o
sujeito construa enunciados sobre a sua identidade, de modo a criar uma estrutura psíquica
harmoniosa, é necessário que o corpo seja predominantemente vivido e pensado como local e
fonte de vida e prazer. As inevitáveis situações de sofrimento que o corpo impõe ao sujeito têm
que ser ‘esquecidas’, imputadas ao acaso ou a agentes externos ao corpo. Só assim o sujeito
pode continuar a amar e cuidar daquilo que é, por excelência, a condição de sua sobrevida. [...] o
futuro identificatório do sujeito depende desta possibilidade de ‘inocentar’ o corpo. Um corpo que
não consegue ser absolvido do sofrimento que inflige ao sujeito torna-se um corpo perseguidor,
odiado, visto como foco permanente de ameaça de morte e dor” (Costa, 1986a, p. 107).
estilhaçamento do objeto – no caso, Marina – e de sua forma de representação
expressa, ao mesmo tempo, a ruptura das formas de sentido e de percepção do
próprio sujeito que o enuncia.
Esse aspecto liga-se direta e intrinsecamente a um outro
problema: o do ponto de vista narrativo. Pode-se dizer que a narrativa do
romance, no tempo presente, compõe-se a partir do que chamaria de imobilidade
flutuante. Assim como o corpo é visto em retalhos e como algo deformado,
também as situações no presente são, predominantemente, apresentadas em
desarticulação, numa profunda falta de continuidade entre si. O ponto de vista
narrativo transita por sons e visões da rua e do interior da casa, por vozes e por
rápidas lembranças de pessoas e cenas do passado, sem se deter fixamente em
nenhum deles, como mostra a passagem seguinte:
30
É Schwarz (1992a, p. 19), no ensaio “Sobre O Amanuense Belmiro”, que aponta a burocracia
como uma espécie de extensão da “regularidade natural” da vida rural, embora no caso de Belmiro
Entretanto, a burocracia é lenitivo apenas momentâneo e
passageiro para a sua inadaptação à vida urbana cuja dinâmica está além da
possibilidade de uma postura racional por parte de Luís da Silva. Nesse sentido,
por mais paradoxal que possa parecer, a sua inserção na pequena burocracia
não se traduz em qualquer tipo de racionalidade. Digamos mesmo que a
incapacidade de o protagonista formular uma perspectiva lógico-racional da vida,
mesmo que desencantada e fragmentária, é a um só tempo causa e
consequência de sua posição temporalmente fraturada entre passado e
presente, entre mundo rural e mundo urbano. Por consequência, a fragmentação
e a interiorização do espaço discursivo, em Angústia, não repõe a individualidade
do personagem, mas opera justamente um incessante movimento de dissolução
e achatamento da consciência de Luís da Silva e da sua experiência de vida,
cujo efeito maior é um sentido de paralisação em todos os planos.
Nessa visão de impotência geral, a morte desdobra-se e figura
como um signo e um tema constante que atravessa toda a obra. Todavia, pode-
se dizer que é na morte, ou mais especificamente no gesto destrutivo de Luís da
Silva sobre Julião Tavares (sempre visto por aquele com um sentimento ambíguo
de ódio ressentido e admiração recalcada), que a impotência é levada ao
paroxismo extremo. Nesse instante, o passado funde-se no presente do mesmo
modo que o presente transmuda-se em passado, de maneira que Luís da Silva
se percebe como o cangaceiro sertanejo José Baía, figura da sua infância rural, e
vice-versa. Trata-se de um trecho longo que, no entanto, merece ser transcrito:
esta se ligue ainda ao problema da sinecura. Sobre o estatuto social dos personagens do romance
da urbanização na ficção brasileira, ver o capítulo final deste livro.
aquela segurança? Eu era um homem. Ali era um
homem. [...]
– José Baía, meu irmão... [...]
Retirei a corda do bolso e em alguns saltos,
silenciosos como os das onças de José Baía, estava
no pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é
incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda
enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos
apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um
gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu
imaginava. [...] Tive um deslumbramento. O
homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta
convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma
alegria enorme encheu-me. Pessoas que
aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes,
todos os moradores da cidade eram figurinhas
insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e
cinco anos haviam-me convencido de que só me podia
mexer pela vontade dos outros. [...] Julião Tavares
estrebuchava. Tanta empáfia, tanta lorota, tanto
adjetivo besta em discurso – estava ali, amunhecando,
vencido pelo próprio peso, esmorecendo,
escorregando para o chão coberto de folhas secas,
amortalhado na neblina. (Ramos, [19–], p. 157-160).
31
Nesse ponto, o registro narrativo de Angústia já soa como a dicção brutalista que irá ser um
traço marcante da ficção contemporânea. A fala raivosa de Luís da Silva, não só nesse momento
mas também em outros, vai se projetar como a voz de outros personagens mais próximos de nós
no tempo, como, por exemplo, o Cobrador de Rubem Fonseca. Note-se: “Digo, dentro da minha
cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta,
cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo” (Fonseca, 1994, p. 492).
Sobre a noção de destrutividade na ficção brasileira contemporânea, ver Gil (1991).
circularidade temporal-narrativa que demonstra nada ter saído do lugar desde o
começo, nem linguagem, nem sujeito, nem objetos.
Os ratos: mobilidade, esvaziamento e repetição
32
As expressões em destaque são de Georges Poulet (1992, p. 135) em O espaço proustiano.
indivíduos, próprios do presente. É esse estado de atenção obrigatória à vida –
atenção produzida pelo que esta última subtrai ao personagem –, são essas
marcas do presente imediato no passado que parecem operar como elemento
estrutural entre esses dois níveis, no sentido de que a visão achatada e opaca do
passado somente é ativada e conectada à condição rarefeita das coisas (e das
necessidades) no presente. E a condição de achatamento e de opacidade do
passado é resultado, ela também, da impossibilidade do presente de abrir-se
para o passado.
A interdependência estrutural que liga realidade objetiva (exterior)
e realidade subjetiva (interior), subordinando o estado desta última às condições
da primeira, configura um processo de recorrência e repetição de signos que
recobrem o seu estado de privação no presente; esses signos acabam por se
introduzir na narrativa como estado de consciência subjetiva, vinculado,
diretamente ou não, ao passado. É o que ocorre, com destaque, quase no final
do segundo capítulo, em que o entrelaçamento dos dois níveis de realidade é
levado ao paroxismo, embora orbite sempre em torno de uma espécie de núcleo
comum, a imagem recorrente do leiteiro, como se dela tudo partisse e a ela tudo
retornasse, constituindo simbolicamente talvez o “ponto doloroso de
convergência”. Observe-se:
33
É interessante notar, nesse ponto, a persistência do tempo presente até mesmo nas rápidas
cenas do passado lembradas por Naziazeno, as quais são narradas com as desinências do
presente.
II
34
As incursões sucessivas de Naziazeno articuladas ao objetivo de obter algum dinheiro podem
ser assim esquematizadas: a) o pedido fracassado de empréstimo ao diretor da repartição, b) a
cobrança a Andrade da suposta dívida deste para com Alcides e, em seguida, a procura do alto
funcionário bancário mister Reis para a mesma questão, c) a procura do advogado Otávio Conti e
o encontro casual com Costa Miranda, com quem obtém cinco mil-réis, d) a tentativa no jogo, e)
uma nova investida para obtenção de empréstimo, desta vez pedido ao comerciante atacadista, f)
e, finalmente, a operação entre Alcides, Duque e Anacleto Mondina que permite ao personagem
conseguir os cinquenta e três mil-réis, operação essa também feita de marchas e contramarchas.
Há que se considerar, ainda, outras situações que giram em torno do problema de Naziazeno,
Duque. Este representa, para o personagem, o máximo do espírito
empreendedor num mundo mercantilizado; ao passo que o apelo de Naziazeno é
sempre o do “recurso amigo, a solidariedade”, a superioridade do Duque consiste
em investir-se de “agente, corretor da miséria”, conduzindo “o negócio
serenamente” e tendo “a propriedade de despersonalizar a coisa” (p. 22, grifo no
original). A capacidade do Duque de criar e lidar com pequenos expedientes de
sobrevivência, com o intuito de conseguir algum ganho, passa, aos olhos de
Naziazeno, como genialidade e espírito de empreendimento e de autonomia
individual. O peso dessa admiração do protagonista talvez somente possa ser
medido em face da sua impotência de transformar ações em gestos concretos de
significação, o que, por sua vez, faz com que a competência de Duque para
sobreviver de pequenas negociatas e cavações à margem da economia formal
seja vista sob o signo de admiração. Vale frisar que essa admiração traduz a
incompreensão de Naziazeno, que não percebe como Duque se inscreve nas
frinchas do sistema.
Não se trata, no entanto, de avaliação positiva de nenhum tipo de
35
malandragem, tampouco de se ver na atitude amiga e de solidariedade
pretendida pelo personagem um espírito seu repositário figurado da vontade de
uma fraternidade e comunhão humanas. Portanto, nem visão (auto)complacente
da marginalidade, nem consciência reativa que aciona atitudes qualitativas não
reificadas (no que se poderia incluir, dependendo do caso, a própria noção de
malandragem). A figura e a consciência subjetiva do personagem não se
investem de tais marcas definidas e definitivas, pois fazê-lo seria atribuir-lhe um
caráter específico que lhe é inexistente; seria dotá-lo de algum princípio de
necessidade interior, o qual, ao mesmo tempo, poderia configurar as linhas de
uma certa subjetividade.
embora não o envolvam diretamente, como, por exemplo, a intervenção de Alcides perante alguns
agiotas, a pedido do Duque.
35
Ainda que a condição de excluídos de personagens como Alcides e Duque possa situá-los numa
esfera social muito próxima daquela por onde circulam as figuras do malandro ou do cafajeste,
estamos um tanto distante de personagens como, por exemplo, os caracterizados pela ficção de
João Antônio ou de Dalton Trevisan. Isso porque o centro da ficção de Os ratos é a realidade de
um pequeno funcionário público que, mantendo relações estreitas com esse mundo, não se
confunde com ele. O olhar de Naziazeno lançado sobre Duque traduz em si as diferenças desses
universos, muito embora suas respectivas posições sociais, situadas nos estratos inferiores da
vida social, os aproximem. Sobre os personagens de ficção dos autores mencionados, ver “A
medida do cafajeste”, de Berta Waldman, e “João Antônio e a ciranda da malandragem”, de Jesus
Antônio Durigan (Schwarz, 1983), e ainda Gil (1991), em especial o capítulo “Da malandragem à
marginalidade”.
Como se observou anteriormente, na medida em que a
subjetividade se mostra barrada pela situação exterior ou, por outro lado, na
medida em que as ações individuais se mostram incapazes de definir e dar forma
à biografia do personagem, este acaba por se definir não pelos seus atos, que
não são substanciais, mas por suas pulsões, por imagens e impressões que se
constituem, a cada instante, no próprio vácuo de sua movimentação. A
consciência subjetiva de Naziazeno se elabora e se reduz, portanto, a uma
espécie de reflexo de imagens precárias e insubstanciais, entre tantas existentes.
Assim, se voltarmos à ideia de que o empenho para obter a
quantia necessária para o pagamento da sua dívida teria se tornado “o ponto
único, exclusivo, o tudo concentrado da sua vida”, vê-se que esse esforço
adquire outra conotação, já que as ações do protagonista não chegam jamais a
configurar um esforço coeso, que se reflita numa maior unidade de organização
dos fatos narrados. Deslocando-se a perspectiva com que o personagem
percebe o seu próprio problema, o que indicia sua inconsciência, pode-se dizer,
de outra maneira, que esse “tudo concentrado”, esse “ponto único” é toda a vida
de Naziazeno, é tudo o que ele consegue viver. O problema com a conta do
leiteiro não é um momento de exceção, mas representa “todo e qualquer dia” de
Naziazeno, o que dá um certo caráter de exemplaridade (Zilberman, 1992, p. 95).
A resolução de sua dívida com o leiteiro será seu endividamento com Duque e
com Costa Miranda, que deverá ser quitado no dia seguinte; ele, que já se
encontra em débito com agiotas, que anteriormente já havia pedido dinheiro
emprestado ao chefe de repartição a fim de tratar o seu filho doente cujo médico
ainda também não tinha sido pago, ad infinitum...
Mas o cunho exemplar dessa situação articulará uma
temporalidade específica na qual a temporalidade humana, determinada pelas
ações desorientadas do personagem, engasta-se em outra, a do tempo
mecânico, o tempo regular, quantificado e quantificador, ora mensurado
objetivamente por algum relógio (de algum café ou o da prefeitura) ora indiciado
através de períodos do dia ou de elementos da natureza (a tarde, o sol etc.). A
presença desse tempo do relógio é obsessiva, manifestando-se desde o instante
em que Naziazeno chega ao centro da cidade: “Mas espera: que horas serão?”;
“O relógio da Prefeitura marca pouco mais de oito horas” (Machado, 1994, p. 21).
A preocupação com a mensuração do tempo cronológico impõe-se de forma
imediata a Naziazeno à medida que o seu “negócio” – ele crê – deva ser
resolvido, como qualquer outro, no horário comercial das atividades financeiras
normais. A essa urgência liga-se a outra, a do prazo de vinte e quatro horas dado
pelo leiteiro. Assim, o tempo objetivo é um tempo regular e impessoal em cujo
fluxo se inscrevem as atividades uniformes e cotidianas dos indivíduos no centro
da cidade e do qual, num certo sentido, Naziazeno situa-se à margem. Mas no
momento em que o personagem se encontra no centro da cidade, essa
mensuração do tempo objetivo é mediada pelo valor engendrado pelo espaço
mercantilizado no qual transita Naziazeno. Essa onipresença do valor parece
traduzir-se em diferentes níveis da representação: determinará, por exemplo, o
ritmo da cidade, onde, pela manhã,
36
É claro que, também aqui, se está falando em dominância de ritmos, pois a presença de um ao
menos indicia a do outro.
Os pios das buzinas chegam já, meio veladamente,
aos ouvidos de Naziazeno.
Atinge a esquina da rua Santa Catarina, por onde
entrou o auto... É larga, bonita. Diminui o passo, até
quase parar: fica olhando ao longo da rua... No fundo,
passando a avenida, estacionam alguns automóveis...
Uma limousine mesmo vai nesse momento fazendo a
manobra pra sair. Naziazeno pára. A limousine toma
impulso, aproxima-se da esquina onde começa uma
ladeira forte; buzina. Ele distingue a figura do inspetor
do tráfego quadrando-se todo, dando passagem. – A
limousine desaparece numa curva.
Levantou um pouco de vento do lado do rio. Bate na
nuca de Naziazeno. Ele olha nessa direção.
Emergindo de sobre a linha de areia, lá está,
encostada no cais em construção, uma draga. –
Naziazeno se põe outra vez a andar.
Atravessa a rua, alcança o passeio e continua sempre
em frente.
O canto do mercado, através das pérgulas e dos
arbustos da praça, avança na meia penumbra como
uma aresta. (Machado, 1994, p. 74-76).
37
Observe-se, bem entendido, que maior ênfase na representação material e concreta do mundo,
e em especial do espaço urbano, não significa, aqui, uma caracterização mais definida desse
espaço. Ao contrário, a materialização e objetivação do conteúdo engendram-se no quadro de um
processo de desreferencialização da cidade, como tudo o mais. Está-se, portanto, muito aquém de
qualquer “caráter de universalidade” do espaço urbano representado, como já se procurou
argumentar. Com relação a essa última perspectiva, ver Cruz (1994, p. 98).
III
38
Na verdade, se formos descer ao detalhe do processo composicional, veremos que a coisa é um
pouco mais intricada, pois na realidade se está diante de uma, digamos, lembrança de segundo
grau, já que a situação em que se circunscreve a retomada dos acontecimentos do capítulo vinte e
um é a do personagem na cama, em estado de insônia, recordando o seu retorno para casa, de
bonde, e já que é no interior do veículo que ele relembra o que havia ocorrido há poucos minutos.
aguarda o leiteiro esteja em segurança para este encontrá-lo sem problema, pela
manhã, ao lado da leiteira na mesa da cozinha. Mas, como se percebe,
Naziazeno é todo receio e hesitação:
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajosamente o seu cântico de certezas. (Bandeira, 1966,
p. 156).
Os ruídos vão, aos poucos, reverberando por toda a casa, e Naziazeno pensa
conseguir diferenciar o barulho em diferentes cômodos:
39
Identidade, no caso, não é sinônimo de consciência. Aquela não pressupõe esta nem vice-versa.
Identidade tem de ser entendida aqui nos limites específicos da aproximação, de contornos
imprecisos e vacilantes, da consciência do personagem ao surgimento dos estranhos ruídos,
posteriormente vinculados à presença dos ratos.
cena, a imagem, implícita ou explicitamente, recorrente durante toda a trajetória
de Naziazeno: a do dinheiro, na forma dos “pequenos retalhozinhos verdes”,
“escuros”, “dum verde graxento, meio brilhante”. Entretanto, esses “pequenos
retalhozinhos” são apreendidos, sutil e significativamente, como sinais de
destroços, o que redunda num duplo deslocamento de perspectiva. Ou seja, não
só o personagem não se reconhece na sua visão, mas também, ao projetá-la, o
não reconhecimento é levado a tal ponto que acaba por substituir sujeito e objeto
pelo fator quantitativo mediador de toda vida social, o dinheiro. Isso equivale a
dizer que a noção de destroço não consegue ser situada e localizada pelo
personagem no âmbito da sua própria experiência – não é esta que se apresenta
destroçada –, mas é transferida à ideia do dinheiro.
Segundo esse ponto de vista, com relação ao todo da narrativa,
parece precisa a observação de que os ratos e o dinheiro
40
O móvel da ação em Os ratos parece ser a obtenção do dinheiro, ao passo que em Angústia ele
é muito mais difuso, na medida em que nem a relação com Marina nem suas consequências, com
a morte de Julião Tavares, desdobram-se em ação concreta. Já em O amanuense Belmiro, pode-
se dizer que praticamente não existe qualquer condicionante da ação.
41
A expressão é utilizada por Schwarz (1990, p. 69) na análise que faz de Memórias póstumas de
Brás Cubas em Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.
impessoal, intrínseco ao mundo moderno capitalista e à vida urbana. Dessa
forma, como valor que medeia a experiência moderna, o tempo mensurável e
impessoal indicia a sua presença, mas não engendra força para definir a
especificidade e a totalidade da experiência como uma experiência de tempo
moderna problematizada. Isso porque a história da vida social dos nossos
personagens é recortada, ao mesmo tempo, por uma outra experiência de tempo
diversa daquela: o tempo balizado pela referência tradicional, rural e patriarcal.
Só que também a experiência decantada por esse tempo não se transforma em
vetor dominante da vida dos personagens. A formulação paradoxal, nesse nível,
encontra-se justamente no fato de essa experiência temporal tirar a sua força de
uma espécie de presença na ausência, enquanto a inserção da vivência de
tempo moderna assinala, ao contrário, a sua fraqueza por uma ausência na
presença. Longe de ser mero jogo de palavras, trata-se de explicitar uma forma
bifronte da experiência do tempo na qual um padrão de percepção e sentimento
não burguês subsiste em condições e contextos relativamente modernos, cuja
resultante é o efeito de imobilidade e paralisia constatado no nível da trama,
ainda que não somente nele.
O choque dessas temporalidades díspares não é pronunciado,
não é formulado objetivamente pela consciência ou pela fala dos personagens ou
dos narradores. O desajuste da temporalidade é experienciado pelos
personagens como subjetivização da experiência objetiva e, por extensão, do
tempo, e, no mesmo passo, como objetivação da experiência subjetiva. O
descompasso é vivido ou percebido, de um lado, como experiência da
subjetividade e se torna expressão mesma da consciência interior dos
personagens. Nesse nível, não só o presente – em que predominam as cenas
miúdas, “os incidentes medíocres em si mesmos” do cotidiano do pequeno
funcionário – é focalizado por uma dicção no mínimo intimista, quando não
altamente interiorizada, como também o passado, com imagens e evocações de
uma vida rural e/ou interiorana, ressurge nessa mesma cadência. De outro lado,
essa temporalidade subjetivamente vivida e expressa traça, no andamento da
prosa, uma contraface, que é sua e ao mesmo tempo não é: semelhante a um
palimpsesto, é como se outro tempo se desdobrasse de dentro desse tempo
interior, determinando a direção que a experiência subjetiva figura na realidade
ficcional do romance da urbanização como um todo. Talvez fosse até mais
pertinente falar-se de uma não direção, porque a experiência subjetivada, aqui,
irá objetivar uma estrutura temporal que levará, em última instância, a duas
situações: (a) a pura e simples nulidificação de todo o gesto humano (no caso de
O amanuense Belmiro, o papel em branco que se tornou a vida do personagem)
ou (b) a circularidade opressiva e sem saída (em Angústia, o retorno da narração
a seu ponto de partida como se nada tivesse saído do lugar desde o início; em Os
ratos, a transformação de toda ação numa inação porque repetição de si mesma).
Ambas as estruturas, assim, dão expressão ao esvaziamento e à
impotência da experiência de uma classe algo amorfa, mas no centro da qual o
tempo objetivado pela experiência subjetiva acaba por configurar, no nível da
estruturação da narrativa, a forma e o sentido social específicos dessa
subjetividade. Nesse sentido, o tempo que se objetiva é figuração mesma do
tempo social, ainda que estéril e improdutivo, porquanto balizado e permeado por
uma subjetividade que não consegue articular-se.
É na inarticulação da subjetividade que se situa uma outra
contradição do romance da urbanização, que se mostra ainda indissociavelmente
relacionada com o que foi dito acima. Apesar de as obras examinadas neste
trabalho normalmente serem consideradas pela crítica como romances
“intimistas”, “psicológicos” ou qualquer outra expressão que o valha, e apesar de
a linguagem narrativa de fato orientar-se predominantemente, como se viu, por
uma focalização interna, o que resulta, todavia, não é uma imagem complexa da
interioridade dos personagens – mas justamente a impossibilidade de reter da
subjetividade algum nível de profundidade. Estranhamente, é como se no
romance da urbanização a subjetividade elaborada apontasse permanentemente
a sua impossibilidade de estar ali na condição de subjetividade, de princípio
organizador e definidor de uma imagem psicológica, de uma identidade interior
individualizada que se processa e se ordena no plano da narrativa. Dessa
maneira, a escavação que não deixa de se processar como voz interior não se
efetiva, entretanto, como força subjetiva, capaz de modificar-se a si e ao mundo
que a cerca. Trata-se, portanto, de uma voz que não se apreende como razão de
ser e, por consequência, não apreende o movido – ou não movido – de seu
próprio movimento. No andamento cego que perfaz sobre si mesma, a
consciência não se define como potência efetiva, ainda que o ato de mostrar-se
seja o gesto narrativo predominante no romance da urbanização.
Por consequência, tem-se o paradoxo dos paradoxos. Os
recursos e procedimentos técnicos narrativos que enformam o romance da
urbanização – monólogo interior, fluxo de consciência, discurso indireto livre,
associação de ideias etc. – e, todos eles, via de regra, de natureza a descortinar
a consciência individual e interior na narrativa moderna ocidental, mesmo que
seja para configurar o lado problemático dessa mesma interioridade e
consciência, mostram-se, nessa quadra, incapazes de efetuar tal operação no
interior do discurso narrativo. Pode-se dizer que toda a técnica narrativa no
romance da urbanização define um duplo e contraditório movimento: sendo
procedimentos narrativos que se caracterizam por dar forma e ritmo,
dominantemente, à consciência e experiência interiores, o relato que é feito na
primeira pessoa (ou que ao menos toma a feição de uma primeira pessoa) torna-
se, de um lado, a objetivação de si mesma (dessa mesma “pessoa”), e, de outro,
não conduz diretamente à consciência do personagem, no sentido de seu caráter
investigativo, reflexivo e analítico. Num certo sentido, é como se o movimento e a
cadência da consciência estivessem presentes, mas sem que ela se desdobrasse
em algum tipo de autoconsciência e apreensão interior exigidas pelos próprios
recursos narrativos acionados.
Desse ponto de vista, de alguma maneira as técnicas narrativas
do romance da urbanização põem no centro da cena a consciência, que, no
entanto, se movimenta numa espécie de gesticulação muda e cega. E um dos
aspectos que põem em evidência o que se está procurando mostrar é o papel
que a memória desempenha aqui. Sempre indiciada de algum modo, a memória
ressurge, volta e meia, na narrativa como lastro de lembranças do passado. Ora
lírica e sentimentalmente evocado, ora ambivalentemente sentido como
expressão de poder pessoal e de decadência, ou ainda inscrito num espaço
bastante desreferencializado, o passado é presença constante e determinante no
romance da urbanização, só que, como conteúdo da consciência, ele se
apresenta fechado sobre si mesmo. Isto é, em todos os níveis e em planos
diferentes, o passado que se esboça, ligado explicitamente à experiência rural-
oligárquica ou apenas entrevisto como experiência não urbana, é a um só tempo
elemento de imobilidade e expressão dessa mesma imobilidade: elemento de
imobilidade porque se assenta num contexto de referência histórico-social não
mais em vigência e, portanto, sem valor histórico-prático para os personagens;
expressão de imobilidade porque, como constituinte da experiência dos
personagens, não tem força nem como elemento de ação dramática nem como
condicionante capaz de imprimir andamento reflexivo à prosa. Assim, a sua força
determina-se pela permanente presença residual que nada produz em face do
presente, fazendo com que também a memória deixe de se constituir como
experiência interior da consciência.
Observe-se que, nesse ponto, o romance da urbanização pode
nos revelar, quem sabe, uma faceta algo diferente e peculiar perante a tradição
ficcional ocidental moderna, pois, no mesmo instante em que nossos autores
adotam técnicas e formas discursivas contemporâneas, mostrando nesse nível
certa atualidade com o relógio literário da época, a sua produção artística aponta
certos limites formais objetivos na utilização desses procedimentos, “cujo
fundamento é social” (Schwarz, 1990, p. 161).
Ainda que correndo o risco da simplificação e da generalização
em razão da diversidade e da complexidade do que está em questão, pode-se
dizer que na ficção moderna, em especial a europeia, muito semelhante ao
romance que temos analisado, “quase tudo o que é dito aparece como reflexo na
consciência dos personagens do romance” (Auerbach, 1987, p. 481). Auerbach
ensina-nos que, na prosa moderna, não se trata mais da simples reprodução das
representações subjetivas dos personagens, como no romance realista
oitocentista, no qual “o conteúdo consciente indicado limitava-se racionalmente
àquilo que se referia ao acontecimento narrado em cada caso ou à situação
descrita” (p. 483). A partir da importância que os processos da consciência
adquiriram na estruturação da narrativa moderna,
Portanto,
42
Segundo os autores, há uma inter-relação que faz com que um elemento contraditório brote do
outro na “preocupação em objetivar o subjetivo, tornar audíveis ou perceptíveis as inaudíveis
conversas mentais, deter o fluxo, irracionalizar o racional, desfamiliarizar e desumanizar o
esperado, convencionalizar o extraordinário e o excêntrico, definir a psicopatologia da vida
cotidiana, intelectualizar o emocional, secularizar o espiritual” (Bradbury; McFarlane, 1989, p. 37,
grifo no original).
43
A expressão é de Steven Connor (1993, p. 105) em Cultura pós-moderna.
menos determinadas, em que a história da economia mundial e, em particular, a
dos países centrais do sistema capitalista,
44
O autor chama de Era da Catástrofe o período histórico que corresponde ao início da Primeira
Guerra Mundial (1914) até o término da Segunda (1945).
No plano propriamente literário, voltando ao nosso raciocínio
central, a fragmentação e a desintegração que se descortinarão na narrativa
moderna – que, por consequência, representa a implosão do romance realista-
naturalista tradicional – não obstaculizam o gesto de vontade de apreensão de
transcendência num contexto de descontinuidade e de ruptura da individualidade.
Fluxo de consciência, associação livre, numa palavra, a técnica, que formaliza e
medeia a representação de um mundo ficcional algo desolador, com “sensação
de fim de mundo”, é ainda no modernismo dos países avançados, de qualquer
maneira, “um modo sutil e engenhoso de transmitir um sentido de continuidade e
unidade do eu ‘a despeito’ da crescente fragmentação do tempo e da
experiência”45 (Meyerhoff, 1976, p. 35).
Se o nosso raciocínio até aqui tem de fato alguma validade,
podemos considerar então que as técnicas literárias de produção de sentido que
para cá migraram, durante o período de maturação do modernismo brasileiro,
mostram-se, por assim dizer, impedidas de se efetivar integralmente ou, quando o
fazem, fazem-no apenas parcialmente. Uma vez que o romance da urbanização
tem como substrato histórico da sua representação ficcional o caráter bifronte de
nossa experiência histórica (ou, se se quiser, e carregando na expressão, a não
problematização da norma burguesa; ou quem sabe ainda se poderia falar, na
verdade, de uma impossibilidade objetiva de figurar a crise da norma burguesa no
plano literário), a experiência individual ficcionalizada resulta, vá lá a expressão,
não de um niilismo transcendente, mas de um esvaziamento completo em
direção ao “nada”. Nada esse que, no nosso contexto, não pode ser visto com
qualquer conotação metafísica, já que ele se configura como uma experiência
individual que não consegue estabelecer qualquer tipo de significação pessoal e
social, seja no âmbito prático da vida, seja no âmbito, digamos, reflexivo.
Parece relativamente claro, a essa altura, que nossa discussão
corre paralelamente à questão do gênero romanesco no contexto da produção
45
Nesse mesmo sentido argumenta Karl (1988, p. 339), ao dizer que “as pressões da vida
moderna que podiam levar à perda do ego ou à desumanização do ego, na frase de Ortega,
resultaram no protesto do ego. Isso significava não a sua aniquilação, mas sua expressão, em
formas entre as quais o fluxo seja talvez a mais pura”. De modo mais pontual, a mesma visão é
expressa por Connor (1993, p. 99, grifo nosso): “Os ‘momentos de visão’ de Virginia Woolf e as
‘epifanias’ de Joyce são exemplos de destilação do tempo em significação espacial; o tempo
produz o seu sentido ao ser suspenso”.
literária brasileira nos anos trinta.46 E, nesse sentido, o romance da urbanização
afigura-se, quem sabe, como mais um capítulo a respeito da peculiaridade que a
forma romanesca tem adquirido entre nós. Assim, vale ainda ao menos assinalar
dois aspectos indissociáveis entre si e também diretamente relacionados à
estruturação do romance da urbanização como um todo. Da inarticulação
profunda para a qual tende o romance da urbanização decorre algo como um
processo, ao mesmo tempo, de hipostenia e de hipertrofia do discurso narrativo,
processo esse que vai dar feição ao surgimento de uma espécie de subgêneros
no interior da prosa ficcional.
Inscreve-se no primeiro caso o que ocorre, por exemplo, com o
caráter ensaístico que o romance da urbanização tenta imprimir ao seu
andamento em alguns instantes, que, todavia, não chega a se definir inteiramente
como tal. Barrado pela experiência da rarefação social e cultural, o pensamento
não consegue direcionar a prosa e dar-lhe um sentido mais abstrato-conceitual,
por assim dizer. Daí deriva também o fato curioso e não menos contraditório de
que, circunscrito à tradição modernista da autoconsciência do artista em face de
seu material e de procedimentos técnicos e, além do mais, utilizando-se de certos
recursos que dariam expressão a essa visão estética autotélica, o romance da
urbanização muito rara e precariamente transforma o espaço narrativo em
metalinguagem.
No que se chamou de hipertrofia situa-se a relação estreita que o
romance da urbanização mantém com a lírica. Na medida em que a estrutura
narrativa não consegue dar uma feição autônoma ao mundo social, na medida
em que, no interior dessa mesma estrutura, as ações dos personagens não se
transfiguram em “experiências que contam”, e, como se observou acima, na
medida ainda em que a narrativa quer converter-se em reflexão, mas sem
possibilidade de viabilizar-se, a prosa ficcional passa, em alguns momentos, a
tangenciar a “enunciação lírica”.47 Transforma-se na expressão mesma de uma
consciência que se deixa entrever apenas pelas frestas de suas vibrações
emocionais, de suas oscilações de ritmo anímicas que vão da intensidade à
inércia, de evocações que constituem apenas o caráter dispersivo e divagador da
memória. Não é para menos que diversas vezes chamou-se a atenção para
46
Digo paralelamente porque, como estou procurando demonstrar, o problema da forma é
sobretudo um problema histórico-prático objetivo.
47
A expressão é de Wolfgang Kayser (1961), adaptada a meus propósitos.
pontos de contato do romance da urbanização com um certo tipo de poesia, em
particular a lírica bandeiriana e drummondiana. Nessa relação opera-se um duplo
movimento simétrico e oposto: o lastro histórico semelhante que enforma certa
vertente da poesia de Bandeira e de Drummond, e também o romance da
urbanização, aciona perspectivas diferenciadas, ainda que apontando e
convergindo para um mesmo tipo de dicção. Digamos que, no caso dos poetas
modernistas, a experiência subjetiva do eu lírico traduz o aspecto bifronte da
formação social brasileira como conflito, o que faz com que a linguagem poética
se torne a expressão objetiva de uma contradição subjetivamente percebida.
Já no romance da urbanização, a prosa procede a uma frequente,
parcial e oscilante desobjetualização, desmaterialização do mundo social, mas
também a uma espécie de apagamento dos “móveis” da consciência, ou seja, da
“razão objetiva” que dá conta da razão de ser e estar do sujeito (da subjetividade)
no mundo, em todos os planos e níveis, seja no da pretensão reflexiva (no caso
do amanuense Belmiro), seja no das necessidades mais imediatas e comezinhas
do cotidiano (e aqui penso sobretudo em Naziazeno). Mas, na verdade, trata-se
de duas situações de um único e mesmo processo no interior do qual nem a
realidade social ficcionalmente representada nem a consciência individual dos
personagens tomam formas definidas e potenciam força ativa, capaz de articular
a dialética entre sociedade e indivíduo. Sem contradição nem transformação
processadas no plano da estruturação, a narrativa imobiliza-se, fazendo com que
o vazio poetize – e muitas vezes liricize – o andamento da prosa. Só que, bem
entendido, a prosa que se poetiza não cumpre o papel de elevar nada, de
poetizar o mundo, o cotidiano e seus personagens (ainda que ela o queira às
vezes), como se poderia pensar; ao contrário, a sua aparição ocorre por uma
espécie de presença negativa, por aquilo que a narrativa não consegue produzir.
Diferentemente, portanto, da poesia bandeiriana e drummondiana, no romance
da urbanização a poesia surge da impossibilidade de nomear e dar forma ao
conflito: ela é resultado e expressão, também, da estaticidade e do esvaziamento
dos elementos em jogo.
***
O romance da urbanização, como se pode observar, mantém
muitos pontos de contato com a figura do “fazendeiro do ar”,48 conquanto, no
caso da narrativa em questão, a unidade diversificada e multifacetada que ela
compõe não pode ser apreendida nos limites da experiência de tal figura. É
possível até dizer que a experiência social do “fazendeiro do ar” talvez esteja
contida e abrangida no romance da urbanização, mas este, por sua vez, não se
esgota naquela, tendo em vista que o conjunto de obras que analisamos aponta
para dimensões e perspectivas outras em face do problema histórico de base.
Apenas num certo sentido os nossos personagens podem falar
como Drummond (1977, p. 45), quando este diz: “Tive ouro, tive gado, tive
fazendas./ Hoje sou funcionário público”. Digo “apenas num certo sentido”
porque, se esta é por definição a trajetória social do “fazendeiro do ar”, nem
sempre se pode precisar que, no geral, também seja a dos personagens do
romance da urbanização. O primeiro verso contempla, parece certo, a origem
social tanto de Belmiro quanto de Luís da Silva, mas, mesmo assim, mais
daquele do que deste, que pouco viu do ouro e do gado. No caso de Naziazeno,
os indícios dispersos e sobretudo difusos que se tem do seu passado pouco nos
elucidam a procedência social do personagem, o que, se por um lado, como se
observou, já é um problema a exigir atenção do crítico, por outro não nos deixa
de sugerir uma extração social diferente, provavelmente inferior com relação aos
outros personagens, mas de qualquer maneira não menos pré-urbana e ainda
49
ligada a relações sociais tradicionais.
Assim, embora percorra referências sociais matizadamente
diferenciadas, o mundo social originário dos três personagens possui as mesmas
coordenadas: pré-burguês, não urbano, ligado à experiência de vida de setores
tradicionais e não modernos. Mas não só: todos se encontram afastados
definitivamente desse mundo, que não possui mais vigência concreta para eles,
só que, em contrapartida, esse afastamento os situará num mesmo ponto no
presente: o de pequenos funcionários públicos na cidade. Aqui sim, o verso
drummondiano poderia ser pronunciado por qualquer dos personagens.
48
Schwarz (1992a, 1992c) já havia chamado a atenção para a figura do “fazendeiro do ar” como
“uma personagem freqüente e central na literatura brasileira”, no ensaio “Sobre O amanuense
Belmiro” e, logo a seguir, em “Cultura e política, 1964-69”.
49
O que pode ser uma observação muito genérica, ainda que não menos significativa, a ponto de
nos impedir de definir uma configuração de experiência social semelhante para os três
personagens, resguardando a importância de suas diferenças nos diversos planos.
A absorção pela burocracia pública desses personagens,
provenientes de uma classe social em crise ou decaída mas com alguma
educação formal, define a posição social do personagem do romance da
urbanização, que, como tudo o mais, não poderia ser mais ambígua. Pois mesmo
que o ingresso na atividade pública possa dar-se por meio da sinecura, isso não
desfaz o fato, este histórico, de que essa integração corresponde ao crescimento
das funções do Estado na sociedade brasileira após os vinte-trinta e, por
extensão, de que se trata de “uma função mais estrita da diferenciação da divisão
social do trabalho ao nível da economia e da sociedade como um todo” (Oliveira,
1987, p. 20).
Essa diferenciação da divisão social do trabalho representa,
portanto, grau maior de complexidade da sociedade e das relações sociais, e,
nesse sentido, o deslocamento que ocorre com os nossos personagens de
esferas sociais “tradicionais”, pouco urbanizadas, para espaços sociais
supostamente mais modernos deveria ou poderia significar sua capacidade de
posturas e gestos inseridos em um modo de ser, pensar e sentir mais
estreitamente relacionado a um padrão e norma da sociedade urbano-industrial.
Mas isso não ocorre. E, mais especificamente, a lógica da razão do Estado
burocrático não atinge o personagem do romance da urbanização. Tampouco o
serviço público vai ser, para os personagens do romance da urbanização, que
possuem fumos de escritor, “o lugar ideal de trabalho para conciliar emprego com
atividade de criação” (Lajolo; Zilberman, 1996, p. 71), como comumente ocorre no
país, à falta de uma infraestrutura à produção literária, uma vez que qualquer
projeto literário, também ele, não se concretiza.
O escritório de trabalho do pequeno funcionário torna-se, na
realidade, refúgio ao ritmo da cidade e das pessoas que a habitam.50 Refúgio
50
Para Belmiro (Anjos, 1980, p. 169), a Seção do Fomento Animal é o seu “destino lógico”, lugar
“onde os homens esperam pachorrentamente a aposentadoria e a morte”. Já para Luís da Silva
(Ramos, [19–], p. 132), “o que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo não tem aqui [no escritório]
nenhuma significação. [...] Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas
velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem
valor cá dentro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maquinismo parasse, não daríamos por
isso: continuaríamos com o bico da pena sobre a folha machucada e rota, o cigarro apagado entre
os dedos amarelos. Deixaríamos de pestanejar, mas ignoraríamos a extinção dos movimentos
escassos. Os rumores externos chegam-nos amortecidos. Que barulho, que revolução será capaz
de perturbar esta serenidade? Era, pois, na repartição que eu obtinha algum sossego. As imagens
que me atordoavam na rua surgiam desbotadas, espaçadas e incompletas. O ambiente era
impróprio à vida intensa que elas tinham lá fora”. Por fim, em Os ratos (Machado, 1994, p. 27), “o
trabalho de Naziazeno é monótono: consiste em copiar num grande livro cheio de ‘grades’ certos
papéis, em forma de faturas. É preciso antes submetê-los a uma conferência, ver se as operações
esse que tem a força de extinguir todo o movimento, acentuando, sob outro
prisma, o permanente desejo de paralisia dos personagens. Dessa forma,
também a função social dos personagens do romance da urbanização, que talvez
pudesse romper a corda do impasse, ao se constituir o lado mais moderno e
avançado da sua experiência urbana, acaba inexoravelmente presa às mesmas
contradições forjadas no interior de nossa formação bifronte ou dual, como a
temos chamado.
É a partir do conjunto articulado desses diferentes níveis que
penso poder considerar que a forma literária do romance da urbanização é
engendrada por – ao mesmo tempo que torna explícita, de modo particular, no
plano da expressão artística – uma espécie de fratura histórica. Esta fende a
história de vida de nossos personagens e o mundo que os constitui, não deixando
intocados ainda os procedimentos técnico-formais que lhe dão feição própria.
Essa fratura histórica repõe constantemente, de alguma maneira,
explícita ou implicitamente, “o passado que se esconde, e às vezes se esconde
mal, por trás da aparência do moderno” (Martins, 1994, p. 11). Mas não se trata
de temporalidades históricas simplesmente justapostas que não se relacionam ou
que estabelecem uma relação causal mecânica entre si; ao contrário, “o processo
real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em
que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atraso’”
(Oliveira, 1987, p. 12).51 Por consequência, no nosso contexto de país periférico,
a nossa ligação com o novo, com o moderno, “se faz através do atraso, que
assim se torna estrutural, e em lugar de se extinguir se reproduz” (Arantes, 1992,
p. 37), fazendo com que o tradicional, o arcaico, ou que nome se queira dar,
de cálculos estão certas. São ‘notas’ de consumo de materiais, há sempre multiplicações e adições
a fazer. O serviço, porém, não exige pressa, não necessita ‘estar em dia’. Naziazeno ‘leva um
atraso’ de uns bons dez meses. [...] Ele já se ‘refugiou’ nesse trabalho em outras ocasiões”.
51
Oliveira (1987, p. 36) ainda esclarece nossa formação social dual: “A evidente desigualdade de
que se reveste que, para usar a expressão famosa de Trotsky, é não somente desigual mas
combinada, é produto antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para
sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós-anos 30, que da existência de
setores ‘atrasado’ e ‘moderno’. Essa combinação de desigualdades não é original; em qualquer
câmbio de sistemas ou de ciclos, ela é, antes, uma presença constante. A originalidade consistiria
talvez em dizer que – sem abusar do gosto pelo paradoxo – a expansão do capitalismo no Brasil
se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo
de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera
força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações
arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para fins de
expansão do próprio novo”.
torne-se “pura e simplesmente uma das figuras do moderno”.52 É essa presença
estrutural do arcaico, do tradicional, do passado,
52
Remeto à mesma obra para uma discussão atualizada sobre a noção de dualidade na
experiência intelectual brasileira, sobretudo de corte uspiano.
53
O autor refere-se à sociedade brasileira, assim como outras de origem colonial, como
“sociedade de história lenta”, no sentido de que “estruturas, instituições, concepções e valores
enraizados em relações sociais que tinham pleno sentido no passado, de certo modo, e só de
certo modo, ganharam vida própria”. Vale salientar ainda que, um pouco diferentemente de Oliveira
(1987), que se detém mais especificamente no plano econômico ao examinar as contradições do
desenvolvimento do nosso capitalismo, Martins busca sublinhar, sobretudo, o caráter de
dominação oligárquico-patrimonialista do aparelho do Estado brasileiro como um dos pontos
centrais por constituirmos uma sociedade de história lenta.
54
Com relação a esse aspecto de nossa literatura, que Candido chama de “interessada” ou
“empenhada”, o crítico ainda explica: “não quero dizer que seja ‘social’, nem que deseje tomar
partido ideologicamente. Mas apenas que é toda voltada, no intuito dos escritores ou na opinião
dos críticos, para a construção de uma cultura válida no país. Quem escreve, contribui e se
inscreve num processo histórico de elaboração nacional” (p. 18). É dessa atitude, no plano
estético-formal, que penso estar distante o romance da urbanização.
romance brasileiro surge com o romantismo e também toma acento no
modernismo55 – como também, ainda nos antípodas da ideologia dominante dos
mais diferentes matizes do modernismo, deixe de ser vista como “a história da
espera do progresso” (Martins, 1994, p. 11). Aqui, a persistente presença do
relógio histórico do tempo aponta apenas a impossibilidade de este se deslocar,
fazendo com que todo o movimento no seu interior configure, no conjunto, ainda
um efeito de imobilidade, de paralisia.
55
O que não significa dizer, por um lado, que os nossos autores não tinham no horizonte de suas
preocupações literárias e políticas a questão da nacionalidade, bastando para tanto lembrar a
militância de Graciliano Ramos e Dyonélio Machado no Partido Comunista Brasileiro, nem, por
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nacionalidade, compreendida como figurações de nossas contradições e impasses históricos.
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