Abrindo A Roda Conhecimentos Que Gingam - Rosângela Costa Araújo - Mestra Janja
Abrindo A Roda Conhecimentos Que Gingam - Rosângela Costa Araújo - Mestra Janja
Abrindo A Roda Conhecimentos Que Gingam - Rosângela Costa Araújo - Mestra Janja
Os(as) que se permitem a essa iniciação, afirmam estar em busca da “filosofia de vida”.
E, neste estágio, embora não compreendam todos os elementos que compõem a
capoeira, já a reconhecem através da comunidade (grupo de capoeira) escolhida para o
seu (des)envolvimento. Para além da filosofia da capoeira, a escolha do(a) mestre(a) e
do grupo está atrelada tanto aos rigores disciplinares inerentes a sua prática, quanto aos
aspectos relativos ao posicionamento social abrangente, seja na esfera individual, seja
na coletiva.
Tendo em foco a relação mestre(a)-discípulo(a), pode-se dizer que nela são encontradas
grandes e importantes proposições no campo da educação. Nesse sentido, sai da roda o
conhecimento seriado e modular, em face de um processo que prima pelo conhecimento
através do autoconhecimento. Compartilhando do pensamento junguiano de que
“compreender é compreender-se diante do texto”, a capoeira estabelece e revela
relações baseadas na construção e gestão coletiva do conhecimento e na ruptura com
conceitos de temporalidade como requisito para sua compreensão.
Sobre essa questão, podemos afirmar que, por se tratar de um espaço de construções
coletivas, o processo de aprendizagem de capoeira é permeado por distintas marcações
do tempo, muito por conta do aspecto corporal que a compõe. Nele, tem-se consciência
de que a relação de troca e de crescimento estabelecida é para a vida toda, não existindo
etapa ou graduação que defina o seu término. Assim, em um grupo de capoeira todos
aprendem, objetiva e subjetivamente, com um(a) mestre(a) que também ensina
aprendendo: “cada qual é cada qual”, diz Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha
(1988-1981).
Os estudos sobre capoeira vêm ganhando cada vez mais espaços nas pesquisas
independentes e acadêmicas, em diversos países. Essa ampliação acompanha o
surgimento e o desenvolvimento de uma “comunidade internacional da capoeira”, que
também se manifesta através do que se conceitua como uma economia da capoeiragem,
através da qual são ofertados e consumidos livros, revistas, filmes, discos, shows,
instrumentos, moda-vestuário, calçados, dietas, adornos, tatuagens e, sobretudo,
eventos. A economia da capoeira possibilita e colabora com o trânsito da capoeira no
cenário internacional, agora em dimensões transcontinentais.
Através de uma razão marginal, projetada nas interfaces das relações de poder, aberta e
não contraditória (não isto ou aquilo, mas isto e aquilo), a capoeira institui uma lógica
polivalente (ou polilógica) potencializada e inclusiva (Galeffi, 2011), rompendo com a
razão fechada, contraditória à própria escolha do gingar.
Como a atuação na pequena roda e na grande roda é orientada pela cosmovisão africana,
ou seja, pelo fundamento do dendê, o compartilhamento do espaço de criação coletiva
rompe com a lógica da competitividade produtivista, em benefício da celebração da
vadiagem. Nesse sentido, a roda não deve ser compreendida tão somente como um
espaço de decisões, mas também de riscos, testes e improvisos. E o jogo de capoeira
também deve ser compreendido como um jogo infinito, que não acaba. Por se tratar de
um “diálogo de corpos”, muitas vezes uma “resposta” a uma “pergunta” corpórea
realizada pode levar anos para se concretizar.
Ousar um projeto político que integre qualidade de vida: este é o fio condutor das
escolhas das pessoas que optaram pela Capoeira Angola e suas práticas de resistência e
filosofia ladina[5].
Muitas das linguagens com as quais se tece o cotidiano da capoeira são marcadas por
um alto grau de organicidade e hierarquização, os quais caracterizam seus
ensinamentos. Na busca das conexões entre o figurado e o real, percebe-se uma
obscuridade que ainda envolve o próprio tema, na medida em que se aproxima do
caráter iniciático dessa tradição, sobretudo na relação que se estabelece entre mestre(a)
e discípulo(a).
Por não existir um consenso sobre o uso dado ao termo capoeira, somente ao
desbanalizá-lo é que se torna possível percebê-la como uma potência, enquanto um
espaço de poder. Seus fundamentos indicam que, tanto a rotina, quanto os
acontecimentos são essenciais para a sua criação.
Dessa forma, por trás da recusa por tratá-la através de “outras” epistemologias, busca-se
reafirmar saberes como os da capoeira que, ao serem reconhecidos no mundo em que
foram formulados, exigem, minimamente, a descolonização das ideologias que incidem
sobre a hierarquização destes saberes. A ação dos grupos sociais (a exemplo das
organizações de Capoeira Angola) e os debates no interior da Universidade colaboram
com esse propósito e necessitam ser ampliados. Carecem, ainda, de uma cumplicidade
política em torno do entendimento desses campos formativos que, de acordo com o
ensinamento de Paula Carvalho (1990), organizam o real e se constituem em práticas
educativas; e, na medida em que a educação aparece como prática basal, promovem a
sua interação com as demais práticas simbólicas. É assim que a Capoeira Angola, a
partir dos seus elementos histórico-filosóficos, tem o desafio de repensar suas práticas
simbólicas pelo prisma do antirracismo e, mais recentemente, também pelo não
sexismo.
Nas canções, também estão presentes os meios pelos quais os(as) mestres(as) orientam e
apresentam os requisitos para a continuidade da relação com aquele que deseja
aprender. No processo, mostra-se fundamental que o(a) discípulo(a) perceba as várias
fases do aprendizado e o tempo de cada uma delas, as quais possuem um caráter
individualizado, subjetivo, subversivo, misterioso:
Queba la mi cumugê
Ê macá…
Os versos dessa canção espelham como a compreensão acerca da Capoeira Angola e
seus enredos somente pode ser perfeitamente alcançada pelos “de dentro” da roda. Nos
versos reside uma das estratégias de sustentação do mistério em torno do conhecimento
angoleiro: o uso abreviado de palavras da língua portuguesa como forma própria de
comunicação. No exemplo, a tradução da letra é “quebra milho como gente, ê
macaco…”.
Mais que afirmar ou negar, ser mestre(a) significa a própria aventura do aprender,
transportando as linguagens da pequena roda para a grande roda. Daí, reforça-se uma
pré-compreensão ontológica do imaginário, através da percepção da ima(r)ginalidade.
Nesse sentido, autoidentificar-se (e também autodistinguir-se) aguça e dá sustentação às
diversas oposições constitutivas do(a) capoeirista.
Sobre essa questão, é importante considerar que os modelos de resistência dos povos
negros no Brasil, os quais primaram pelo estabelecimento de planos de “negociação”,
deram às organizações de caráter artístico e/ou religioso papeis de destaque na luta
antirracista, alcançando, em sua relação com a sociedade abrangente, aceitação e
repulsa. Os sujeitos e as coletividades envolvidos nesses modelos de sociabilidade
obtiveram êxito em suas estratégias e conseguiram, a seu modo, desmistificar a
existência de uma democracia racial, além de evidenciarem a precariedade da
democracia política e a inexistência de uma democracia social no Brasil.
Como um campo de conhecimento, a Capoeira Angola aparece como uma das formas
de resistência negra, caracterizada por uma prática inovadora de organização dos
grupos, bem como por modelos diferenciados de atração e de garantia da permanência
dos indivíduos[8] no processo de “iniciação”. O compartilhamento das tradições que a
integram (seja no campo da espiritualidade ou no dos elementos corporais/musicais da
sua prática), bem como as reflexões promovidas acerca delas, acentua a importância de
se estabelecerem pontes com as inovações da modernidade. “Dendê” e “internet”
mostram-se igualmente sedutores e essenciais, constituindo-se como elementos que
contribuem com as estratégias de continuidade do sujeito-capoeirista e do próprio
grupo, promovendo o fortalecimento de ambos.
Através da capoeira e do seu jogo ainda é possível uma metamorfose do ego, através do
processo de individuação (sujeito-capoeirista), acentuado pela sensibilidade mito-
poética. Nesse sentido, ao se optar pela Capoeira Angola para os fins desta análise, além
da apresentação de seus aspectos sociopolíticos, é demonstrado o seu potencial de
esclarecer um mito coletivo que flui e é revelado no imaginário enquanto conjunto das
imagens simbólicas, orientadoras da sociabilidade dos grupos.
[1] Dados estimados a partir dos números produzidos pelo Ministério dos Esportes
quando da realização do Congresso Nacional Unitário da Capoeira, São Paulo, 2000.
[4] Criada pelo baiano Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba), por volta de 1932.
[5] Termo muito comum na historiografia sobre a escravidão para se referir aos negros
libertos, tidos como boçais e espertos.
[7] Griôs (do francês griot) e griôas (feminino aportugesado do griô) faz referência a
antigos(as) mestres e mestras das tradições africanas e afro-brasileiras que pela
oralidade garantem a existência de muitos conhecimentos e práticas desses saberes
(Niane, 1982).
[8] Importante considerar que a vivência da capoeira não é mais uma exclusividade de
homens e de negros.
Referências:
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Edição revista e modificada pelo autor. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
MORIN, Edgar. A cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Trad. Agenor
Soares Santos. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1986.
NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a epopeia mandinga. Trad. Oswaldo Brito. São
Paulo: Ática, 1982.
REIS, João J., et. al. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Disponível em:
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/abrindo-a-roda-conhecimentos-que-gingam/