Expressão Lírica de Um Mundo em Colapso (Gustavo Ribeiro) PDF
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RESUMO:
Este artigo propõe uma leitura dos livros Claro enigma, de Carlos
Drummond de Andrade, e Monodrama, de Carlito Azevedo, a partir de dois
eixos comuns: por um lado, a representação que ambos fazem de
contextos históricos e sociais mergulhados em crise e, por outro, a
melancolia que os atravessa, constituindo-se como seu elemento
fundamental.
Palavras-chave: Poesia brasileira moderna e contemporânea. Crise.
Melancolia.
1. A relação que se pode estabelecer entre Claro enigma (1951), do poeta Carlos
Drummond de Andrade, e Monodrama (2009), do escritor e tradutor carioca Carlito Azevedo,
não é evidente. Em que pese o diálogo que Carlito mantém com o poeta mineiro em toda a
sua obra – dedicando a ele, inclusive, um comovente poema em seu último livro (no qual
Drummond, feito personagem, passeia, desolado e pensativo, por um Rio de Janeiro
indiferente à morte que ele traz na alma) – uma comparação entre tais livros, especificamente,
pode parecer, à primeira vista, um gesto crítico arriscado, um pequeno salto no escuro: o
território palmilhado e conhecido de Claro enigma, marcado por alguns dos poemas mais
significativos produzidos no e pelo idioma, dá a impressão de estar muito distante do terreno
até aqui pouco conhecido de Monodrama, cujos significados e referências fundamentais
aparecem ainda como mistério e obstáculo – especialmente se se procura ler contextualmente
o livro de Carlito Azevedo na panorama amplo, e desconhecido em toda a sua extensão, da
poesia brasileira contemporânea. Sob determinado ponto de vista, inclusive, os livros são o
oposto um do outro, pelo menos numa leitura superficial: enquanto Claro enigma assinalaria,
na trajetória de seu autor, o abandono de uma dicção engajada e da elaboração poética do
presente histórico (tendência muito marcante em livros anteriores, cujo auge se encontraria
em A rosa do povo, de 1945), Monodrama, por sua vez, estaria delimitando o momento de maior
politização da poesia de Carlito (que contava antes quatro livros de inéditos), até então mais
próxima de outras demandas estéticas, ligadas preferencialmente a uma releitura das tradições
modernas da poesia no Brasil. Apesar de apoiar-se em elementos parcialmente verdadeiros,
muitos dos quais já até desenvolvidos pela crítica especializada, uma leitura que apresentasse
os livros como antípodas deixaria de lado questões decisivas da feitura dos textos que, talvez,
só uma leitura paralela deles seria capaz de pôr a nu em toda a sua extensão.
2. Em ambos os livros se desenha uma mesma questão, um problema que aqui
gostaríamos de chamar poética da catástrofe, o que, em breves termos, talvez fosse melhor
definido como a expressão lírica de um mundo em colapso. Se aceitarmos tal afirmação, que
ainda será posta à prova na elaboração do argumento que aqui se insinua, poderemos notar
que as duas partes dessa equação (de um lado, expressão lírica; de outro, mundo em colapso) estão
presentes em cada um dos livros com uma feição distinta, mas comparável; são feições
próprias e muito particulares que dizem das circunstâncias e maneiras de cada autor, ainda
que, segundo quer nos parecer, persista uma mesma tensão entre elas. Este é o ponto da
articulação: a diferença com que cada poeta lida com um problema (estético, histórico, político)
comum, a experiência do luto e a representação da catástrofe – na medida em que, pelo
menos de um ponto de vista amplo, o universo circunscrito pelas promessas1 do gênero, os
autores se encontram num mesmo ponto. A perspectiva de ambos frente à mimesis (frente
ao mundo-referente e às técnicas da representação) é indubitavelmente próxima: prefere
sempre o elemento subjetivo e fragmentário, atenta antes ao particular e ao menor do que ao
geral e ao inespecífico. Os resíduos são a sua matéria favorita, as ruínas o espaço privilegiado
em que transitam.
3. Tomemos alguns trechos, por exemplo, a ambos os poetas. De Drummond, os
versos iniciais de “Dissolução”, abertura de Claro enigma: neles é possível perceber com
clareza o índice da negatividade que marca o livro e pauta a meditação sobre a finitude e a
destruição que nele tem lugar: “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada./ Pois
que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.// E com ela aceito que brote/ uma ordem outra
de seres/ e coisas não figuradas./ Braços cruzados. (ANDRADE, 2012, p. 15). De Carlito
Azevedo, por sua vez, ouçamos o início de “Pálido céu abissal”, um dos poemas chave de
Monodrama, espécie de síntese temática (a desolação do espaço, a impotência do eu) de seu
projeto: “[Pálido céu abissal] que não nos protege/é antes cúmplice, ou mentor/ intelectual
dessas ruínas,/ de nossas mentes estropiadas” (AZEVEDO, 2009, p. 55). Nesse texto, como
também no de Drummond, comparece o céu, a figura de um céu que se fecha soturno e
indiferente ao destino humano, fundamentalmente cobrindo um mundo paralisado,
paralisante, no qual as ruínas parecem ser o elemento decisivo. A melancolia é o afeto comum
aos poemas, visível no ensimesmamento do sujeitos poéticos, em franca desconexão com o
mundo circundante; no desencanto pós-utópico que manifestam, algo próximo do niilismo,
quem sabe; e, por fim, também e principalmente na imagem do céu vazio que se repete, com
alguns deslocamentos, nos dois textos – signo da perda de qualquer conexão transcendente
possível. Tanto a aceitação da noite escura, irremediável, em Drummond, quanto a
contemplação da cidade degradada, vista através da luz crua e não redentora em Carlito
Azevedo serão, nessa perspectiva, passagens de um duro aprendizado, a partir do qual os
livros, as complexas questões que propõem, vão crescer e se adensar.
4. A fim de aprofundar a leitura contrastiva propugnada, abordemos em separado os
dois autores, para voltar a reuni-los mais adiante. Comecemos por Drummond. O poeta de
Itabira, como se sabe, transformou em verdadeiro elemento de drama a contradição entre a
linguagem e a realidade evocada por ela: ao mesmo tempo em que a dicção era solene e
meditativa, o vocabulário sofisticado e os ritmos precisos, isto é, circunscrevendo um
panorama formal próximo dos ideais de objetividade e harmonia clássicos (retomados por
ele, entretanto, com distância e discernimento), a realidade apresentada, por sua vez,
semelhava o contrário, indicando a desorganização, a decadência e a desilusão que vão marcar
as relações amorosas, o devir histórico e o funcionamento do corpo social. Poemas tão
distintos uns dos outros como “Oficina irritada” e “Estampas de Vila Rica”, por exemplo,
deixam a dimensão do dilema que aqui se coloca: enquanto no primeiro, um soneto de corte
e feição rigorosa, a ironia corrói a linguagem, trazendo à luz do dia as suas entranhas
emperradas e negativas “Quero que meu soneto, no futuro/ não desperte em ninguém
nenhum prazer./ E que, no seu maligno ar imaturo,/ ao mesmo tempo saiba ser, não ser.”
(ANDRADE, 2012, p. 38), alheias, em certo sentido, à clareza e à comunicação, no segundo,
por seu turno, o poeta arma um passeio poético por sítios importantes da cidade de Ouro
Preto, antiga capital de Minas e centro da vida nacional durante o ciclo econômico da
mineração, apresentando cada um deles, focalizados desde dentro, como espaço da
corrupção e da morte, longe da glória do passado e da nobreza que parecia emanar da sua
simples existência, e que o estilo elevado do qual o poeta busca se aproximar aqui não deixa
de tentar resgatar; o verso final oferecerá a chave de compreensão do problema: “Toda
história é remorso” (ANDRADE, 2012, p. 68), postulação de um sombrio saber, consciência
de que habita o coração das narrativas do passado o desejo de não ter sido, índice da
devastadora vacuidade que se esconde em meio ao fausto e à opulência. Pode ser também,
O motivo geral da fuga, similar, mas não idêntico em toda a sua extensão, ao da
recusa, se coloca no poema como expressão de cansaço e necessidade de recolhimento diante
da realidade dolorosa e incompreensível. Os retalhos de cenas, as memórias desencontradas
que aparecem no texto, organizadas a partir da repetição anafórica de frases de mesma
estrutura, sempre iniciadas por “quando”, indicando a recorrência, no tempo dilatado da
experiência, de eventos estranhos e traumáticos, em meio aos quais a morte e a indiferença
ao sofrimento do outro se insinuam. Diante desse cenário, o fechamento do anjo no “quarto
exíguo”, sua provisória casa, e mais ainda, em si mesmo, ao isolar-se do mundo exterior pelo
isolamento acústico propiciado pelo walkman, é expressão da melancolia que o habita,
constelação afetiva na qual se pode ler também, é certo, uma atitude de radical crítica ao
entorno e ao presente: o sujeito poético se abstém de tomar parte num mundo caótico,
povoado de lamentos e desencantos, voltando-se para dentro, não para fantasias
compensatórias ou narrativas do ressentimento, mas para uma análise ainda mais detida,
ainda mais difícil, da catástrofe histórica e subjetiva entrevista no cipoal de citações e vozes
que as “fitas cassetes” vão descortinando aos ouvidos e à imaginação da persona poética.
15. Decisivos em seu tempo, Claro enigma e Monodrama são abismos fascinantes, nos
quais a vertigem da altura alcançada e o risco da queda (da aderência e da emulação) se
projetam como convite e desafio ao analista (e também, quem sabe, a outros poetas), que
deve lidar com os livros sem se deixar enredar demasiadamente na teia espessa que armam.
O olhar comparativo/contrastivo lançado a ambos, para além das minudências críticas que
a leitura pode trazer à tona, revela, entretanto, algo mais importante: a permanência na poesia
brasileira da complexa tarefa – ética, estética, política – da “inspeção/ contínua e dolorosa
do deserto” (ANDRADE, 2012, p. 105).
This article would like to read the books Claro Enigma, by Carlos
Drummond de Andrade and Monodrama by Carlito Azevedo taking two
common points as guide lines: on one hand, the representation that both
books make of historical and social contexts imbibed in crisis; and, on the
other hand, the feeling of melancholy that trespass the two books and that
constitutes a fundamental element of their structure.
KEYWORDS: Modern and Contemporary Brazilian Poetry. Crises.
Melancholy.
Notas Explicativas
*Membro dos Grupos de Pesquisa (registrados pelo CNPq): Núcleo Walter Benjamin (UFMG) e Cultura e
violência (USP). É autor dos livros Abertura entre as nuvens: uma leitura de Infância, de Graciliano Ramos
(Annablume/2012); Por uma literatura pensante: ensaios de filosofia e literatura (Fino Traço/2012). Publicou, nos
últimos anos, os artigos: “A experiência da destruição na poesia de Carlito Azevedo” (O Eixo e a
Roda/UFMG/ 2014); “Shoah: tempo, arquivo, canção” (Eutomia/UFPE/ 2013); “O arquivo e a testemunha:
Memórias do cárcere” (Fronteiraz/PUC-SP/ 2013); “Repertório de incêndios: variações sobre a poesia recente de
Fabiano Calixto” (Estudos Linguísticos e Literários/UFBA/ 2015).
1A associação entre gênero e promessa foi desenvolvida por Jacques Derrida em “La loi du genre” (1980), a
partir da proposição de que o gênero, qualquer gênero (literário e artístico, mas não só) se apresenta como uma
matriz, uma perspectiva a ser buscada, mas que jamais se cumpre na sua totalidade, restando como paradoxo:
promessa impossível de ser alcançada que, no entanto, motiva infinitas tentativas de aproximação. A questão
fundamental do gênero, a pureza – a lei originária que o define, ainda segundo Derrida, funcionaria, desse modo,
como centro do desejo e motor da busca fadada, de antemão, ao fracasso, uma vez que habita, no interior
mesmo da lei do gênero, uma outra lei, negação e contraparte da primeira (DERRIDA, 1986): todo gênero está
assentado também, e principalmente, em sua impureza, na possibilidade da transgressão de suas fronteiras, na
contaminação que resulta do contato com outros gêneros.
2 Para uma leitura minuciosa do tema da culpa na poesia de Drummond, e em Claro enigma especificamente, ver:
também escritor) Nuno Ramos – cuja obra está tão profundamente marcada pela dualidade existente entre a
forma e o disforme, entre criação e destruição – localizou na obra do poeta mineiro, precisamente em Claro
enigma, essa urgência ao mesmo tempo ética e estética (a centralidade da catástrofe), transformando-a em motivo
recorrente de alguns de seus mais importantes trabalhos, relativos todos à onipresença da morte e à resistência
da memória. Referimo-nos aqui às instalações de grandes proporções “Morte das casas” (2004) e “Ai, pareciam
eternas! (3 lamas)” (2012), além do livro de poemas e fotografias Junco (2011). Em cada um deles, o artista,
partindo de um mesmo conjunto de ideias e temas, transforma a obra de Drummond ao fazer dela plataforma
para a invenção de outros discursos e linguagens. Na “Morte das casas” Nuno Ramos funde o som da chuva,
artificialmente bombeada dentro de um museu, a fim de parcialmente inunda-lo, com a gravação da leitura da
primeira estrofe de “Morte das casas de Ouro Preto”, reproduzida ininterruptamente durante a exposição. Em
“Ai, pareciam eternas! (3 lamas)”, por sua vez, o multiartista propõe um acerto de contas curioso com o seu
passado, submergindo, literalmente, réplicas de três casas em que ele viveu, enterrando com elas parte das
lembranças que as habitavam; novamente, o título do trabalho remete ao mesmo poema de Drummond,
resgatando, entretanto, a questão da memória familiar e afetiva, dimensão obscurecida na peça/performance
anterior. Por fim, em Junco – uma complexa teia de imagens e significantes ligada ao par finitude-metamorfose
– o artista recupera e desfaz, no poema de número 43, alguns versos de “A máquina do mundo”, lamentando
com eles o fim da harmonia breve da vida, interrompida violentamente por um grito de “Basta” vindo, quem
sabe?, da própria Natureza, soando terrível como o apito “de um guarda num campo/ de prisioneiros”
(RAMOS, 2011, p. 108).
4 A crítica da noção de progresso e sua relação com a história, a economia e a moralidade é um dos elementos
centrais do pensamento moderno, mesmo que nem sempre tenha sido hegemônica. Pelo menos desde o
Nietzsche das Considerações intempestivas, é um ponto comum a várias correntes críticas. A associação mais clara
entre progresso e catástrofe, no entanto, só receberá formulação decisiva em Walter Benjamin, em especial no
caderno ‘N’ das Passagens, onde se pode ler, por exemplo: “O conceito de progresso deve ser fundamentado
IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.19, n.2, p. 30-41, jul./dez. 2015
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na ideia de catástrofe. Que ‘as coisas continuam assim’ – eis a catástrofe” (BENJAMIN, 2006, p. 515; grifo do
autor). Ali o ensaísta vai propor que um dos móveis principais da destruição e do imobilismo conservador tem
sido, na era do capital, a ideologia do progresso, uma vez que ela pressupõe a realização teleológica de si mesma,
isto é, o progresso é visto como continuidade infinita e reprodução total das mesmas estruturas atuais, não
admitindo, ou admitindo apenas na aparência, qualquer ruptura, desvio, diferença ou transformação.
5 Período de profunda agitação social no Brasil, a década de 1950 é o momento em que se consolidam no país
recuperar a estrutura dos “monólogos dramáticos”, forma poética pouco frequente na literatura brasileira
moderna e contemporânea.
7 Cf. PAIXÂO, 2014, p. 59-115.
8 Cf. BISCHOF, 2005, p. 103-146.
Referências
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BISCHOF, Betina. Razão da recusa. Um estudo da poesia de Carlos Drummond de
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