8-WHITE, Hayden O Fardo Da Historia
8-WHITE, Hayden O Fardo Da Historia
8-WHITE, Hayden O Fardo Da Historia
Não deveria ser preciso seguir de novo as linhas gerais da querela en-
tre a ciência social e a história que envolveu os profissionais que as exerce-
ram de maneira filosófica e autoconsciente durante este século. Trata-se de
uma velha controvérsia que remonta ao começo do século XIX. Mas talvez
seja útil lembrar que a disputa chegou a um tipo de solução que não foi pos-
sível no século XIX, e que, do modo como prossegue atualmente, a querela
transcende os limites de uma simples discussão metodológica.
Em primeiro lugar, durante o século XIX a ciência não havia alcança-
do a posição hegemônica entre as disciplinas eruditas de que hoje desfruta.
Os filósofos da ciência contemporâneos são mais claros no tocante à nature-
za das explicações científicas, e os próprios cientistas lograram obter aquele
domínio sobre o mundo físico com que somente podiam sonhar durante a
maior parte do século passado. Assim, em nossa época, uma afirmação,
como a do falecido lirnst Cassirer, de que "não há um segundo poder no
nosso mundo moderno que se possa comparar ao pensamento científico",
deve ser aceita como simples fato; não se pode descartá-la por mera retórica
na disputa pela primazia entre as disciplinas eruditas, como talvez fosse o
caso no século XIX. Atualmente, a ciência é reconhecida, ainda nas palavras
de Cassirer, como "o ponto culminante e a consumação de todas as nossas
atividades humanas, o último capítulo da história da humanidade e o tópico
mais importante de uma filosofia do homem... Talvez discordemos no que
tange aos resultados da ciência ou aos seus princípios primeiros, mas sua
função geral parece inquestionável. H a ciência que nos dá a garantia de um
mundo comum".
Os fascinantes triunfos tia ciência em nosso tempo não apenas incenti-
varam os investigadores dos processos sociais em seu empenho de elaborar
uma ciência da sociedade semelhante à ciência da natureza; também acirra-
ram a sua hostilidade para com a história. O traço mais surpreendente do
pensamento aluai acerca da história, da parte de muitos profissionais das ci-
ências sociais, é a implicação subjacente de que as concepções de história
do historiador convencional são a um só tempo o sintoma e a causa de uma
moléstia cultural potencialmente fatal. Daí que a crítica da história feita por
cientistas sociais responsáveis se revista de uma dimensão moral. Para mui-
tos deles, a destruição da concepção convencional de história é um estágio
necessário na elaboração de uma verdadeira ciência da sociedade e um com-
ponente essencial da terapia que eles proporão, em última análise, como
meio de reconduzir uma sociedade enferma à senda da iluminação e do pro-
wgresso.
Na sua depreciação da abordagem que o historiador convencional faz
dos problemas históricos, os cientistas sociais contemporâneos são ampara-
dos pelo curso que tomou o debate atual que os filósofos promovem sobre a
natureza da investigação histórica e o staíus epistemológico das explicações
históricas. Contribuições significativas para esse debate foram dadas por
pensadores da Europa Continental, mas ele foi desenvolvido com extraordi-
nária intensidade no mundo de língua inglesa a partir de 1942, quando Carl
Hempel publicou seu ensaio "A Função das Leis Gerais na História".
Seria incorreto supor que os participantes desse debate chegaram a al-
gum tipo de consenso acerca da natureza da explicação histórica. Todavia, é
preciso admitir que o curso do debate até aqui só pode parecer desconcer-
tante para quem compartilha a avaliação de Cassirer acerca do papel hege-
mônico das ciências físicas entre as disciplinas eruditas e, ao mesmo tempo,
quem valoriza o estudo da história. Pois um número significativo de filóso-
fos parece ter chegado à conclusão de que a história ou é uma forma de ci-
ência de terceira categoria, ligada às ciências sociais do mesmo modo que a
história natural era outrora ligada às ciências físicas, ou é uma forma de arte
de segunda categoria, de valor epistemológico questionável e valor estético
incerto. Esses filósofos parecem ter concluído que, se existe essa coisa de
hierarquia das ciências, a história se situa em algum lugar entre a física
aristotélica e a biologia Iineana - vale dizer, tem talvez um certo interesse
para colecionadores de visões exóticas do mundo e de mitologias degrada-
das, mas não muito para a criação daquele "mundo comum" que, segundo
Cassirer, encontra a sua confirmação diária na ciência.
Ora, excluir a história da primeira categoria das ciências não seria de-
certo tão desalentador se boa parte da literatura do século XX não manifes-
tasse uma hostilidade para com a consciência histórica ainda mais exacerba-
da do que qualquer coisa encontrada no pensamento científico da nossa épo-
ca. Poder-se-ia até afirmar que um dos traços distintivos da literatura con-
temporânea é a sua convicção subjacente de que a consciência histórica será
obliterada se o escritor tiver de examinar com a devida seriedade aquelas ca-
madas da experiência humana cuja descoberta é o propósito peculiar da arte
moderna. Esta convicção se acha tão difundida que a reivindicação do his-
toriador de ser um artista parece patética, quando não meramente ridícula.
A hostilidade do escritor moderno à história se evidencia de modo
mais claro na prática de usar o historiador para representar no romance e no
teatro o exemplo extremo da sensibilidade reprimida. Os escritores que se
utilizaram dos historiadores dessa maneira são, entre outros, Gide, Ibsen,
Malraux, Aldous Huxley, Hermann Broch, Wyndham Lewis, Thomas Mann,
Jean-Paul Sartre, Camus, Pirandello, Kingsley Amis, Angus Wilson, Elias
Canetti e Edward Albee - para mencionar apenas os principais ou os que es-
tão em moda. A lista poderia ser consideravelmente ampliada se se incluís-
sem os nomes de autores que condenaram implicitamente a consciência his-
tórica ao afirmar a contemporancidade essencial de toda experiência humana
significativa, Virginia Woolf, Proust, Robcrt Musil, ítalo Svevo, Gottfried
Benn, Ernst Jünger, Valéry, Yeats, Kafka e D. H. Lawrence - todos refletem
a voga da convicção expressa pelo Stephen Dedalus de Joyce, segundo a
qual a história é o "pesadelo" do qual o homem ocidental precisa despertar
se quiser servir e salvar a humanidade.
Na verdade, em muitos romances e peças modernos o cientista figura
como o antítipo do artista com uma freqüência ainda maior do que o histori-
ador. Mas o escritor não raro demonstra alguma afeição e até uma certa boa
vontade para perdoar que não se estende às personagens de historiador. En-
quanto o cientista é apresentado, na maioria das vezes, como alguém que
trai o espírito devido a um comprometimento positivo com outra coisa qual-
quer, tal como o desejo faustiano de controlar o mundo, ou uma necessidade
de sondar os segredos do mero processo material, o historiador, em contra-
partida, é comumente retratado como o inimigo dentro das muralhas, como
alguém que simula atitudes pias de respeito pelo espírito apenas para minar
com mais eficácia as reivindicações do espírito sobre o indivíduo criativo.
Em resumo, o golpe desferido contra o historiador por parte dos escritores
modernos c também um golpe moral; mas, enquanto o cientista o acusa ape-
nas de uma falha metodológica ou intelectual, o artista o indicia por uma
falta de sensibilidade ou de vontade.
As especificações do indiciamento c as táticas pelas quais é instaurado
não mudaram muito desde que Nietzsche estabeleceu o seu padrão, quase
um século atrás. Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche opôs a
arte a todas as formas de inteligência abstrativa assim como opôs a vida à
morte pela humanidade. Ele incluía a história entre as muitas perversões
possíveis das faculdades apolíneas do homem e em particular a acusava de
ter contribuído para a destruição dos fundamentos míticos tanto da persona-
lidade individual quanto da personalidade comunal. Dois anos depois, em O
Uso e o Abuso da História (1874), Nietzsche aprimorou sua concepção da
oposição entre a imaginação artística e a imaginação histórica c afirmou
que, sempre que floresciam os "eunucos" no "harém da história", a arte de-
via necessariamente perecer. "O senso histórico exagerado", escreveu ele,
"levado ao seu extremo lógico, erradica o futuro porque destrói as ilusões c
priva as coisas existentes da única atmosfera em que podem viver".
Nietzsche odiava a história ainda mais do que à religião. A história
promoveu nos homens um voyeurismo debilitante, fê-los sentir que eram fo-
rasteiros num mundo onde todas as coisas dignas de fazer já haviam sido
feitas e desse modo solapou aos poucos aquele impulso ao esforço heróico
que poderia conferir um sentido peculiarmente humano, ainda que transitó-
rio, a um mundo absurdo. O senso da história era o produto de uma faculda-
de que distinguia o homem do animal, ou seja, a memória, também fonte da
consciência. A história devia ser "seriamente 'odiada'", concluía Nietzsche,
"como um luxo caro e supérfluo do entendimento", para que a própria vida
humana não perecesse no culto insensato daqueles vícios que uma falsa
moralidade, baseada na memória, induz nos homens.
Não importa o que, por bem ou por mal, a geração seguinte aprendeu
de Nietzsche, ela absorveu a sua hostilidade à história na maneira como foi
violentamente posta em prática pelos historiadores acadêmicos no final do
século XIX. Mas Nietzsche não foi o único responsável pelo declínio da au-
toridade da história entre os artistas fin de siècle. Acusações semelhantes,
mais ou menos explícitas, podem ser encontradas em escritores tão diferen-
tes cm temperamento e propósito quanto George Eliot, Ibsen e Gide.
Em Middlemarch, publicado no mesmo ano que O Nascimento da
Tragédia, Eliot utilizou o encontro entre Dorthea Brooke e o sr. Casaubon
para formular uma acusação convenientemente inglesa contra os perigos do
gosto pelas antigualhas. A srta, Brooke, donzela vitoriana de rendimentos
garantidos, que só deseja fazer uma coisa transcendente em sua vida, vê no
sr. Casaubon, vinte e cinco anos mais velho que ela, "um Bossuet vivo, cuja
obra reconciliaria o conhecimento total com a devoção cxtremosa". E, mal-
grado a diferença de idade, resolve casar-se com ele e dedicar sua vida a ser-
viço do estudo histórico dos sistemas religiosos do mundo que ele propu-
nha. Mas, durante sua lua-de-mel em Roma, dissipam-se-lhcs as ilusões. Lá,
Casaubon revela sua incapacidade de reagir ao passado que vive à sua volta
nos monumentos da cidade, e também sua incapacidade de levar a termo os
seus próprios esforços intelectuais. "Com o círio à sua frente", diz a autora a
respeito de Casaubon, "ele se esqueceu de que não havia janelas e, em amar-
gas observações manuscritas sobre as idéias de outros homens acerca das di-
vindades solares, tornou-se indiferente ao brilho do sol". No final, Dorthea
renega as suas obrigações para com Casaubon, o erudito, e se casa com o jo-
vem Ladislaw, o artista, consumando assim sua fuga do incubo da história.
George Eliot não se preocupa com a questão, mas a essência do seu pensa-
mento é clara: a visão artística e o estudo histórico são opostos, e as qualida-
des das respostas à vida que eles respectivamente evocam são mutuamente
exclusivas.
Ibsen, escrevendo na década seguinte, está caracteristicamente mais
preocupado com as limitações de uma cultura que valoriza mais o passado
que o presente e é mais explícito quanto às limitações dessa cultura. Hedda
Gabler carrega o mesmo fardo de Dorthea Brooke: o incubo do passado, um
excesso de história - formado por um medo difuso do futuro, ou refletido
nesse medo. Na volta de sua lua-de-mel, Hedda e o marido, George Tcsman,
recebem as boas-vindas da tia de Tesman, que faz uma insinuação quanto
aos prazeres que a sua viagem de núpeias lhes deve ter proporcionado. Ao
que George responde: "Bem, para mim foi também um tipo de viagem de
pesquisa. Tive de pesquisar muito entre velhas inscrições - e também preci-
sei ler inúmeros livros, tia".
Tesman, é claro, é um historiador, um sr. Casaubon mais jovem, empe-
nhado em escrever a história definitiva das indústrias domésticas no
Brabante durante a Idade Média. Seus árduos esforços consomem o seu es-
treito suprimento de afeição humana; tanto que se pode dizer que grande
parte da inquietação de Hedda tem origem na devoção de George às indús-
trias domésticas do passado, quando ele poderia demonstrar mais indústria
doméstica no presente. "Você tinha que tentar, só isso", grita Hedda a certa
altura: "Não ouvir falar de outra coisa senão da história da civilização, de
manhã, à tarde e à noite!"
Não que a causa das complexas insatisfações de Hedda possa ser loca-
lizada nessa esfera tão limitada quanto a meramente sexual. Ela é a vítima
de toda uma rede de repressões que são endêmicas na sociedade burguesa,
uma das quais é representada pelo uso que Tesman faz do passado para evi-
tar os problemas do presente. Não obstante, o crescente desprezo de Hedda
pelo marido se concentra na sua devoção ascética à história, o domínio dos
mortos e moribundos, que reflete e aumenta o medo de Hcdda ante um futu-
ro desconhecido, simbolizado pelo filho que se desenvolve no interior de
seu corpo.
O rival de Tesman é Eilert Lovberg, também historiador, porém no es-
tilo hegeliano, mais grandioso, li um filósofo da história, cujo livro — que se
"ocupa da marcha da civilização, em linhas gerais bem definidas, por assim
dizer" - desperta em Hedda a esperança de que a visão dele possa proporci-
onar uma possível liberação do estreito mundo circunscrito pela imaginação
fraturada de Tesman. Ibsen tenciona mostrar-nos Lovberg como um homem
de talento e de empenho criativo potencial. Ele está elaborando um livro so-
bre a civilização que solapará, em vez de sustentar, a moralidade convencio-
nal, um livro que contará uma verdade mais nobre do que a conveniente
meia-verdade em que se baseavam o seu primeiro livro e a sua reputação ju-
venil. Mas, à proporção que se desenrola a peça, Hedda passa a odiá-lo; apo-
dera-se do seu manuscrito e o destrói, provocando o suicídio de Lovberg. A
destruição do manuscrito é, de um lado, um ato de vingança pessoal contra
Lovberg pelo seu romance com a rival de Hedda, a sra. Glvsted. Mas, de ou-
tro, é um repúdio simbólico a essa "civilização" da qual tanto Tesman quan-
to Lovberg, cada qual a seu modo, são devotos desavisados. No final, Hedda
é ameaçada com a sujeição ao juiz Brack, outro depositário da tradição, o
que a leva finalmente ao suicídio. E, na última cena, Tesman e a sra. Elvsted,
que sobreviveram à tragédia, dedicam-se à tarefa vitalícia de editar o
Nachlciss de Lovberg, revelando assim que nenhum dos dois aprendeu coisa
alguma com os trágicos acontecimentos de que poderiam ter prestado teste-
munho córico. Tesman escreve o próprio epitáfio ao dizer: "Arrumar os do-
cumentos de outras pessoas é o trabalho certo para mim". O propósito de
Ibsen é fazer-nos ver que isso representava o equivalente erudito do comen-
tário filisteu do juiz Brack sobre o suicídio de Hedda: "Isso não se faz".
Em O Imoralista de Gide (1902), a revolta contra a consciência histó-
rica é ainda mais explícita, e a oposição entre a resposta da arte ao presente
vivo e o culto da história do passado morto é delineada mais brutalmente. O
protagonista da obra, Michel, sofre de uma doença que combina todos os
sintomas atribuídos por Ibsen aos vários personagens de Heddci Gabler.
Michel é ao mesmo tempo um filisteu, um historiador e, à medida que o ro-
mance se desenvolve, um filósofo da história. Porém o seu papel de filósofo
só se configura depois de ter ele passado por seus papéis de filisteu e de his-
toriador. E trata-se de um papel puramente temporário, porque traz consigo
a compreensão de que a história, assim como a própria civilização, deve ser
transcendida, caso se pretenda atender às necessidades da vida.
A tuberculose de Michel é apenas uma manifestação de um medo
difuso dc viver que se manifesta psicologicamente à maneira de uma preo-
cupação obsessiva com as culturas mortas e com as formas mortas de vida.
Assim, uma vez iniciada a cura da sua doença física, Michel descobre que
perdeu todo o interesse pelo passado. Diz ele:
Quando... eu quis reiniciar o meu trabalho e absorver-me uma vez mais num estudo ri-
goroso do passado, descobri que alguma coisa havia, se não destruído, pelo menos modifica-
do o que ele me proporcionava... e essa coisa era o sentimento do presente. A história do pas-
sado assumira para mim a imobilidade, a fixidez terriPicante das sombras noturnas do peque-
no átrio de Biskra - a imobilidade da morte. Em dias passados, agradara-me essa fixidez, que
permitia à minha mente trabalhar com precisão; todos os fatos da história apareciam-me como
espécimes num museu, ou, melhor, como plantas num herbário, permanentemente secas, de
modo que era fácil esquecer que um dia elas haviam estado cheias de seiva e de sol. ... Acabei
evitando as ruínas... Acabei desprezando a erudição que a princípio fora o meu orgulho... Na
medida em que era um especialista, eu me via como um tolo; na medida cm que era um ho-
mem, porventura me conhecia?
E assim, quando volta a Paris para pronunciar conferências sobre cultura la-
tina tardia, Michel opõe a sua percepção do presente a essa consciência dé-
bil itante do passado:
Descrevi a cultura artística como algo que se derrama sobre todo um povo, como uma
secrcção, que a princípio é um sinal de plelora, de uma superabundância de saúde, mas que
depois se endurece, se enrijece, impede o pleno contato da mente com a natureza, esconde sob
a constante aparência de vida uma diminuição da vida, transforma-se num invólucro exterior
no qual a mente confinada entanguesce e definha, na qual ela finalmente morre. Enfim, levan-
do o meu pensamento às suas conclusões lógicas, mostrei que a cultura, nascida da vida, c a
destruidora da vida.
Logo, porém, mesmo esse uso lõvbergiano do passado para destruir o passa-
do perde a sua atração para Michel, c cie renuncia à carreira acadêmica para
buscar a comunhão com aquelas forças sombrias que a história obscureeeu e
a cultura debilitou em sua pessoa. A conclusão problemática do livro sugere
que Gide nos quer mostrar Michel como alguém permanentemente mutilado
por sua precoce devoção a uma cultura historicizada, uma conformação viva
da máxima nietzschiana segundo a qual a história bane o instinto e transfor-
ma os homens em "sombras e abstrações".
5.
Como fazê-lo? Antes de mais nada, os historiadores precisam admitir a
justificativa da revolta atual contra o passado. O homem ocidental contem-
porâneo tem bons motivos para estar obcecado pela consciência da singula-
ridade dos seus problemas e está justificadamente convencido de que o re-
gistro histórico, tal como é feito atualmente, pouca ajuda oferece na busca
de soluções adequadas para aqueles problemas. Para quem quer que seja
sensível à diferença radical do nosso presente relativamente a todas as situa-
ções passadas, o estudo do passado "como um fim em si" só pode afigurar-
se uma forma de obstrucionismo insensato, uma oposição intencional à ten-
tativa de entrar cm contato com o mundo atual em toda a sua estranheza e
mistério. No mundo em que vivemos diariamente, quem quer que estude o
passado como um fim em si deve parecer ou um antiquário, que foge dos
problemas do presente para consagrar-se a um passado puramente pessoal,
ou uma espécie de necrófilo cultural, isto é, alguém que encontra nos mortos
e moribundos um valor que jamais pode encontrar nos vivos. O historiador
contemporâneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado, não como
um fim em si, mas como um meio de fornecer perspectivas sobre o presente
que contribuam para a solução dos problemas peculiares ao nosso tempo.
Como o historiador não reivindica um meio de conhecer unicamente a
sua própria época, isto implica uma disposição, da parte do historiador con-
temporâneo, de chegar a um acordo com as técnicas de análise e representa-
ção que a ciência moderna e a arte moderna têm oferecido para a compreen-
são das operações da consciência e do processo social. Em resumo, o que o
historiador pode reivindicar é ser uma voz no diálogo cultural contemporâ-
neo na medida em que considera seriamente o tipo de pergunta que a arte e a
ciência da sua própria época o obrigam a fazer quanto à matéria que ele de-
cidiu estudar.
Os historiadores consideram amiúde o começo do século XIX como o
período clássico da sua disciplina, não porque então a história surgiu como
um modo distinto de ver o mundo, mas também porque houve uma estreita
relação de trabalho e intercâmbio entre a história, a arte, a ciência e a filoso-
fia. Os artistas românticos se voltaram para a história em busca de seus te-
mas e apelaram para a "consciência histórica" como uma justificativa de
suas tentativas de palingenesia cultural, suas tentativas no sentido de tornar
o passado uma presença viva para os seus contemporâneos. E certas ciênci-
as - particularmente a geologia e a biologia - se valeram de idéias e concei-
tos que comumente haviam sido usados apenas na história até aquela época.
A categoria do histórico dominou a filosofia entre os idealistas pós-
kantianos e posteriormente serviu de categoria organizadora entre os
hegelianos, tanto de esquerda como de direita. Para o historiador moderno
que reflete sobre os progressos daquela época em todos os campos do pen-
samento e da expressão, parece óbvia a importância fundamental do senso
da história e aflgura-se manifesta a função do historiador de mediador entre
as artes e as ciências da época.
Entretanto, seria mais correto reconhecer que o início do século XIX
foi uma época em que a arte, a ciência, a filosofia e a história se encontra-
vam unidas num esforço comum para compreender as experiências da Revo-
lução Francesa. O que mais impressiona nas realizações dessa época não é
"o senso da história" como tal, mas a boa vontade dos intelectuais de todos
os campos para ultrapassar os limites que separavam uma disciplina da ou-
tra e decidir-se ao uso de metáforas iluminadoras para a organização tia rea-
lidade, quaisquer que fossem as suas origens em disciplinas ou visões de
mundo específicas. Homens como Michelet e Tocqueville só são apropria-
damente designados como historiadores pelo assunto de que tratam, e não
pelos seus métodos. Na medida em que nos referimos apenas ao seu méto-
do, podemos igualmente designá-los cientistas, artistas ou filósofos. O mes-
mo se pode dizer de "historiadores" como Ranke e Niebuhr, de "romancis-
tas" como Stendhal e Balzac, de "filósofos" como Hegel e Marx e de "poe-
tas" como Heine e Lamartine.
Mas num dado momento do século XIX tudo isso mudou - não porque
os artistas, os cientistas c os filósofos deixaram de se interessar pelas ques-
tões históricas, mas porque muitos historiadores se vincularam a certas con-
cepções do começo do século XIX a respeito do que devem ser a arte, a ciên-
cia e a filosofia. E, enquanto os historiadores da segunda metade do século
XIX continuaram considerando o seu trabalho uma combinação de arte e ci-
ência, viam nele uma combinação da arte romântica, de um lado, c da ciên-
cia positivista, de outro. Em suma, em meados do século XIX os historiado-
res, por uma razão qualquer, se tornaram prisioneiros de concepções da arte
e da ciência que artistas e cientistas teriam de abandonar progressivamente
se quisessem compreender o mundo de mudanças de percepções interiores e
exteriores que lhe era oferecido pelo próprio processo histórico. Uma das
razões, então, por que o artista moderno, diferentemente do seu congênere
do início do século XIX, se recusa a admitir uma causa comum com o histo-
riador moderno é que ele vê corretamente no historiador um depositário de
uma concepção antiquada do que é a arte.
De fato, quando muitos historiadores contemporâneos falam da "arte"
da história, parecem ter em mente uma concepção da arte que admitiria
como paradigma um pouco mais do que o romance do século XIX. E, quan-
do se dizem artistas, parecem querer dizer que são artistas à maneira de
Scott ou de Thackeray. Decerto, não querem dizer que se identificam com
pintores gestuais, escultores cinéticos, romancistas existencialistas, poetas
imaginistas ou cineastas de nouvelle vague. Embora exibam por vezes em
suas paredes e em suas estantes as obras dos modernos artistas abstraeionis-
tas, os historiadores continuam a agir como se acreditassem que o propósito
principal, para não dizer o único, da arte é contar uma história. Assim, por
exemplo, H. Stuart Hughes afirma em recente trabalho sobre a relação da
história com a ciência e a arte que "o supremo virtuosismo técnico do histo-
riador repousa na fusão do novo método de análise social e psicológica com
a sua tradicional função de contar uma história". E evidentemente verdade
que o propósito do artista pode ser favorecido pelo recurso de contar uma
história, mas esse é apenas um dos modos possíveis de representação que se
lhe oferecem nos dias de hoje, e mesmo assim trata-se de um modo cada vez
menos importante, como o demonstrou de modo incontestável o nouveau
roman francês.
Crítica semelhante pode ser dirigida à reivindicação, por parte do his-
toriador, de um lugar entre os cientistas. Quando os historiadores falam de si
próprios como cientistas, parecem estar invocando uma concepção de ciên-
cia que era perfeitamente apropriada para o mundo em que viveu e traba-
lhou Hcrbert Spencer, mas que tem muito pouco a ver com as ciências físi-
cas na forma como se desenvolveram a partir de Einstein e com as ciências
sociais tal como se desenvolveram a partir de Weber. Uma vez mais, quan-
do Hughes fala do "novo método de análise social c psicológica", parece ter
em mente os métodos oferecidos por Weber e Freud - métodos que alguns
cientistas sociais contemporâneos consideram, na melhor das hipóteses, as
raízes primitivas, e não o fruto maduro, das suas disciplinas.
Em suma, quando os historiadores asseveram que a história é uma
combinação de ciência e arte, em geral estão querendo dizer que ela é uma
combinação da ciência social do fim do século XIX e da arte de meados do
século XIX. Ou seja, parecem aspirar a pouco mais que uma síntese dos mo-
dos de análise e expressão, que só têm a antigüidade para recomendá-los. Sc
tal é o caso, então os artistas e também os cientistas encontram uma justifica-
tiva para criticar os historiadores, não por terem eles estudado o passado,
mas por o estarem estudando como uma ciência e uma arte de má qualidade.
A "má qualidade" dessas antigas concepções da ciência e da arte está
contida sobretudo nas ultrapassadas concepções de objetividade que as ca-
racterizam. Muitos historiadores continuam a tratar os seus "fatos" como se
fossem "dados" e se recusam a reconhecer, diferentemente da maioria dos
cientistas, que os fatos, mais do que descobertos, são elaborados pelos tipos
de pergunta que o pesquisador faz acerca dos fenômenos que tem diante de
si. E a mesma noção de objetividade que vincula os historiadores a um uso
não-crítico da estrutura cronológica para as suas narrativas. Os historiado-
res, quando tentam relatar as suas "descobertas" sobre os "fatos" de uma
maneira que chamam "artística", evitam uniformemente as técnicas de re-
presentação literária com que Joyce, Yeats e Ibsen enriqueceram a cultura
moderna. Não houve nenhum esforço significativo na historiografia surrea-
lista, expressionista ou existencialista deste século (a não ser da parte dos
próprios romancistas e poetas), em que pêse ao tão alardeado "talento artís-
tico" dos historiadores dos tempos modernos. E quase como se os historia-
dores acreditassem que a única forma possível de narração histórica era a
utilizada no romance inglês tal como se desenvolveu no final do século XIX.
E a conseqüência disso foi o progressivo envelhecimento da "arte" da pró-
pria historiografia.
Burckhardt, a despeito de todo o seu pessimismo schopenhaueriano
(ou talvez por causa dele), estava inclinado a fazer experiências com as mais
avançadas técnicas artísticas do seu tempo. Sua obra, A Civilização da Re-
nascença, pode ser considerada um exercício da historiografia impressionis-
ta, constituindo, à sua própria maneira, um afastamento tão radical da histo-
riografia convencional do século XIX quanto o dos pintores impressionistas,
ou o de Baudelaire na poesia. Os estudantes que se iniciam na história - e
não poucos profissionais - enfrentam problemas com Burckhardt por ele ter
rompido com o dogma segundo o qual um relato histórico precisa "contar
uma história" pelo menos da maneira usual, cronologicamente ordenada.
Para explicar a singularidade da obra de Burckhardt, os historiadores moder-
nos da escrita histórica o têm considerado um tipo de cientista social embrio-
nário que tratou de tipos ideais e, portanto, antecipou Weber. A generaliza-
ção seria verdadeira se fosse inserida apenas no contexto de uma percepção
da medida com que Burckhardt e Weber partilharam de uma concepção pe-
culiarmente estética da ciência. Tanto quanto os seus contemporâneos na
arte, Burckhardt interfere no registro histórico em pontos diferentes e esta-
belece a respeito dele perspectivas diferentes, omitindo-o, ignorando-o ou
distorcendo-o conforme as exigências dos seus propósitos artísticos. Não era
sua intenção contar toda a verdade sobre o Renascimento italiano, mas uma
verdade sobre ele, exatamente da mesma maneira que Cézanne renunciou a
qualquer tentativa de expressar toda a verdade sobre uma paisagem. Ele
abandonara o sonho de contar a verdade sobre o passado pelo ato de contar
uma história, porque havia muito renunciara à crença de que a história apre-
sentava algum sentido ou significação inerente. A única "verdade" que
Burckhardt reconheceu foi a que aprendera de Schopenhauer - a saber, que
toda tentativa de dar forma ao mundo, toda afirmação humana, estava tragi-
camente fadada ao fracasso, mas que a afirmação individual alcançava o seu
valor quando conseguia impor ao caos do mundo uma forma transitória.
Desse modo, na obra de Burckhardt o conceito de "individualismo"
serve primeiramente de metáfora focalizadora que, precisamente por divul-
gar certos tipos de informação e intensificar a percepção de outros tipos,
lhe permite ver o que ele quer ver com especial clareza. A estrutura crono-
lógica usual teria impedido essa tentativa de estabelecer uma perpectiva es-
pecífica acerca de seu problema, e assim Burckhardt a abandonou. E, uma
vez liberto das limitações da técnica de "contar uma história", ele se livrou
da necessidade de construir um "enredo" com heróis, vilões e coro, como o
historiador convencional é sempre impelido a fazer. Por ter a coragem de
utilizar uma metáfora elaborada a partir da sua própria experiência imedia-
ta, Burckhardt foi capaz de ver coisas, na vida do século XV, que ninguém
vira com tanta clareza antes dele. Mesmo os historiadores convencionais
que o julgam equivocado quanto aos fatos conferem à sua obra o estatuto
de um clássico. O que a maioria deles não percebe, contudo, é que, ao elo-
giar Burckhardt, muitas vezes estão condenando o seu próprio comprometi-
mento rígido com concepções da ciência e da arte que o próprio Burckhardt
havia transcendido.
Muitos historiadores atualmente demonstram interesse pelos mais re-
centes avanços técnicos c metodológicos verificados nas ciências sociais.
Alguns deles tentam utilizar a econometria, a teoria dos jogos, a teoria da
solução de conflitos, a análise funcional e tudo o mais, sempre que perce-
bem que podem servir aos seus objetivos historiográficos convencionais.
Mas pouquíssimos historiadores tentaram lançar mão das modernas técnicas
artísticas de um modo significativo. Um dos poucos a arriscar-se nessa em-
presa foi Norman O. Brown.
Em Life Against Death, Brown oferece o equivalente historiografia)
do anti-romance; pois o que ele escreve é anti-história. Os historiadores que
se deram ao trabalho de compulsar o livro de Brown o classificaram de
freudiano e o puseram de parte. Mas o verdadeiro significado de Brown re-
pousa na boa vontade em praticar uma linha de pesquisas sugerida por
Nietzsche e desenvolvida por Klages, Heidegger e fenomenologistas con-
temporâneos de orientação existencialista. Ele começa por nada admitir
acerca da validade da história, quer como modo de existência, quer como
forma de conhecimento. Embora utilize matéria histórica, ele o faz exata-
mente da mesma forma que se poderia usar a experiência contemporânea.
Brown reduz todos os dados da consciência, tanto os do passado quanto os
do presente, ao mesmo nível ontológico, e então, por uma série de justaposi-
ções, involuções, reduções c distorções brilhantes e surpreendentes, obriga
o leitor a ver sob nova luz elementos que ele esqueceu mediante uma associ-
ação constante, ou que ele reprimiu em virtude de imperativos sociais. Em
resumo, na sua história, Brown obtém os mesmos efeitos visados por um ar-
tista pop ou por John Cage em um dos seus happenings.
Haverá algo intrínseco à nossa abordagem do passado que nos permi-
ta julgar Brown tão indigno de consideração quanto um historiador sério?
Certamente, não poderemos fazer isso se mantivermos o mito de que os his-
toriadores são tão artistas quanto cientistas. Pois no livro de Brown vemo-
nos obrigados a nos confrontar com o problema do estilo que ele escolheu
para a sua obra enquanto historiador, antes de podermos passar à questão
ulterior de saber se a sua história constitui ou não um retrato "adequado" do
passado.
Mas onde encontrar o critério para determinar quando, de um lado, o
"relato" é adequado aos "fatos" e se, de outro, o "estilo" escolhido pelo his-
toriador é ou não apropriado ao "relato"? Os historiadores que dão crédito à
suposição de que a história é uma combinação de arte e ciência devem re-
portar-se ao outro problema "interno" da equação, ou seja, o problema da
escolha de um estilo artístico entre os muitos oferecidos pelo legado literário
com que o historiador trabalha. Pois já não é evidente que podemos usar os
termos artista e contador de histórias como sinônimos. Se queremos questi-
onar o direito que um historiador tem de usar uma concepção da ciência so-
cial vigente no século XIX, devemos também estar preparados para questio-
nar o uso que ele faz de uma concepção da arte vigente no século XIX.