Entrevista Com João Adolfo Hansen
Entrevista Com João Adolfo Hansen
Entrevista Com João Adolfo Hansen
Em seu ensaio “Mimesis: figura, retórica e imagem”,1 você explica que, no livro
Mimesis, de Erich Auerbach,2 a racionalidade é postulada como “resistência à bar-
bárie”. Em seguida, comenta o empenho em “reconhecer os monumentos da cul-
tura como ruínas antes mesmo de serem derrubados, para buscar neles seu valor
de possível, mas muito improvável, salvação para o tempo”. Gostaria de pedir que
desenvolvesse suas ideias expostas nessa passagem. A partir de Mimesis, como
poderíamos pensar o campo dos estudos de literatura como um horizonte de resis-
tência à barbárie? Levando em conta Walter Benjamin, como pesquisadores da
área de Letras poderiam elaborar reflexões sobre literatura, considerando relações
entre ruínas e tempo?
1. Hansen, João Adolfo. “Mimesis: figura, retórica e imagem”. V Colóquio Uerj – Erich Auerbach. Rio
de Janeiro: Imago, 1994, pp. 45-69 (Série Diversos).
2. Auerbach, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspec-
tiva, 1971.
Você poderia falar sobre as relações entre guerra, colonização e catequese, no con-
texto do século XVI? Em seu ensaio “A servidão natural do selvagem e a guerra justa
contra o bárbaro”,3 você explica a doutrina da catequese e da guerra, observando
que, para santo Agostinho, fazer a guerra não é um delito. De que maneira ideias de
santo Agostinho, santo Tomás e são Jerônimo podem ser associadas à destruição de
indígenas, no período colonial?
3. Hansen, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”. In: Novaes,
Adauto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Minc-Funarte/Companhia das Letras,
1998, pp. 347-73.
Em seu livro A sátira e o engenho,4 você explica que “a sátira encontra a realidade
não na empiria, mas nas convenções de recepção, pautadas ora pelo juízo, ora pelo
gosto, ou seja, na concordância da imagem caricatural que elabora, ao mesmo
tempo em que mantém em circulação o estereótipo de grupos, pessoas e situa-
ções que critica” (p. 229). Em uma nota de rodapé, na página 472, você afirma que
estereótipos assumem “configuração prática, de intervenção”. Em que medida as
convenções de recepção da sátira poderiam estar associadas à legitimação de prá-
ticas violentas contra negros, mulheres ou sodomitas, tendo em vista a circulação
de imagens caricaturais e estereótipos?
Como se sabe com Aristóteles, a matéria geral do cômico é a feiura, física e moral.
A feiura é uma desproporção caracterizada pela falta de medida. Fisicamente, é falta de
justeza e proporção – o nariz torto, a boca grande, a barriga inchada; moralmente, falta
de justiça, com os vícios associados. No Antigo Estado Português, feio era o não aris-
tocrata, não católico, não branco, não masculino. Ou seja, o plebeu e o pobre; o judeu,
o muçulmano, o protestante, o maquiavélico, o selvagem, o bárbaro; o negro, o índio,
o mestiço, o mulato, o cafuzo, o mameluco; o não masculino, o feminino, o sodomita
etc. Havia um ou mais estereótipos de cada tipo partilhados e reproduzidos pela popu-
lação, desde a mais alta aristocracia até à ralé. Como se sabe, a ideologia é dominante.
4. Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras/SEC, 1989.
No mesmo livro, em nota de rodapé, na página 474, você comenta o terror inten-
so, por parte do Santo Ofício, com relação a judeus, que não poderiam assumir
funções públicas. Cita um relato referente a Antonio Ferreira, em 1671, em que se
lê: “cortaram-lhe as mãos, queimaram-lhe os olhos e em seguida enforcaram-no
num poste alto”. De acordo com seus estudos, como o Santo Ofício documentava
e narrava práticas de crueldade como essa? Como podemos avaliar, hoje, as justi-
ficativas utilizadas pelo Santo Ofício na época para legitimar essas práticas?
O Santo Ofício agia ad maiorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus. O Deus da
Igreja é obviamente, segundo a mesma Igreja, único, universal, verdadeiro. A confissão
de culpas obtida por meio de torturas era autorizada pela Igreja em nome de Deus.
Simultaneamente, a Igreja agia como Pilatos: lavava as mãos, não executava as penas
de morte a que o Santo Ofício condenava os torturados, entregando-os ao poder tem-
poral. As pessoas presas e torturadas eram consideradas inimigas da Fé católica e do
Estado, por isso mesmo podiam ser objeto de práticas como as de humilhar, castigar,
cortar mãos, queimar olhos, açoitar, garrotear, enforcar etc. As justificativas utilizadas
pelo Santo Ofício não justificam absolutamente nada e só evidenciam a estupidez, a
crueldade, a hipocrisia e a violentíssima autorrepressão sexual dos agentes. A gente
deve supor que, quando tortura, o torturador goza. E que, quando Deus existe, tudo
é permitido. Desde que Ele morreu na Revolução Francesa, as práticas inquisitoriais
causam horror. Foram substituídas por outras, não menos atrozes, violentas e porcas.
A ideia de progresso dos homens é mais uma tolice entre outras contadas pra boi
dormir. Quando Deus existe, tudo é permitido, como disse. É óbvio que Ele proíbe que
seus fiéis façam X ou Y. Só à custa de muita repressão uma casta sacerdotal consegue
impor ordem ao rebanho de bestas. A ordem começa pela autocastração da casta
sacerdotal, com suas inevitáveis deformações e deformidades, e continua imposta
como castração do rebanho, com os resultados muito evidentes, que sabemos. Se
Deus existe e se Ele é verdadeiro para mim – eu que sou cabrão escolado, bode velho,
cabra experiente, cabrita promissora, cabritinho ingênuo etc. –, seu ditado imposto a
mim e a outros como eu produz e mantém domesticados a mim e ao rebanho de que
O tabuleiro de xadrez, as peças (peão, cavalo, torre, bispo, dama, rei), a posição delas
no tabuleiro e os movimentos que devem fazer etc. alegorizam os três estados – plebe,
clero, nobreza – das sociedades medievais e modernas de Antigo Estado, os valores
estamentais delas, a guerra e seus princípios estratégicos e suas operações táticas. Assim,
por exemplo, o rei se move limitadamente, avançando de casa em casa. Essa limitação
não é defeito, mas virtude, segundo as convenções antigas: assim como os peões ficam
na frente do exército que avança pelo campo inimigo, o rei é “senhor da hoste”, como
diz Afonso x em seu livro Libro de Açedrex, por isso deve se movimentar pouco, ficando
isolado e protegido. Existe monarquia com a morte de bispos, cavalos, peões etc. ou a
perda de castelos ou torres, mas não monarquia sem rei, cujo fim põe fim à linhagem
e ao reino.
Logo, a limitação do movimento não é desabono, mas louvor: ao rei não cabe o
ímpeto dos outros combatentes, porque ele pondera cada movimento, conduz o exército
como dux, chefe, e pauta a sua ação com temperança e fortaleza e justiça e prudência etc.
etc. O rei do xadrez pode combater, claro, mas antes de tudo deve manter-se prudente,
no comando do reino e da tropa. Nesse sentido, o jogo de xadrez é um tratado político,
funcionando como alegoria que condensa e expõe a estrutura e as formas da sociedade
monárquica antiga.
5. Hansen, João Adolfo; Moreira, Marcello. Gregório de Matos: poemas atribuídos; Códice Asensio-
Cunha. Vol. 5: Para que todos entendais: poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra: letrados, manus-
critura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
Os militares brasileiros fizeram o jogo porco dos Estados Unidos e da direita nacional,
interrompendo brutalmente os processos contraditórios da difícil democratização do
país do governo Goulart. A modernização forçada que eles impuseram, extraindo mais-
valia do trabalho por meio da repressão, efetuou tudo quanto de mais regressivo se pode
imaginar do belo trinômio “tradição, família, propriedade” que aí está de novo em suas
versões bala-boi-Bíblia: o neocolonialismo, a regressão religiosa e sexual, os valores do
macho patriarcal, a expropriação e a rapina, a confusão programática de público e pri-
vado, o classismo, o racismo, a arrogância burguesa, a ignorância e a estupidez etc. etc.
E a violência policial e militar da repressão das liberdades civis, das prisões, da tortura
e das mortes.
Como você avalia o momento atual do país, em termos políticos e sociais? Qual sua
opinião sobre as perspectivas das universidades públicas, com relação às transfor-
mações políticas recentes?
Como você tem observado as perspectivas atuais, quanto a pesquisas em
estudos literários desenvolvidas em instituições brasileiras de ensino superior, com
relação à formação de pesquisadores qualificados, capazes de desenvolver, nas pró-
ximas décadas, reflexões sobre o passado brasileiro? Em que medida os problemas
referentes às condições acadêmicas de estudo de textos do período colonial, no
Brasil atual, podem ser interpretados como expressões de valores intelectualmente
conservadores?
6. Hansen, João Adolfo. “Pra falar das flores”. In: Risério, Antonio et al. Anos 70: trajetórias. São Paulo:
Iluminuras, 2006, pp. 71-6.
João Adolfo Hansen é Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.