Entrevista Com João Adolfo Hansen

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ENTREVISTA DE JOÃO ADOLFO HANSEN CONCEDIDA

A JAIME GINZBURG, EM 29 DE ABRIL DE 2016.

Em seu ensaio “Mimesis: figura, retórica e imagem”,1 você explica que, no livro
Mimesis, de Erich Auerbach,2 a racionalidade é postulada como “resistência à bar-
bárie”. Em seguida, comenta o empenho em “reconhecer os monumentos da cul-
tura como ruínas antes mesmo de serem derrubados, para buscar neles seu valor
de possível, mas muito improvável, salvação para o tempo”. Gostaria de pedir que
desenvolvesse suas ideias expostas nessa passagem. A partir de Mimesis, como
poderíamos pensar o campo dos estudos de literatura como um horizonte de resis-
tência à barbárie? Levando em conta Walter Benjamin, como pesquisadores da
área de Letras poderiam elaborar reflexões sobre literatura, considerando relações
entre ruínas e tempo?

Digamos que as obras de cultura afirmam a liberdade da invenção de mundos pos-


síveis, liberdade que nega a falta de liberdade do mundo real. Obviamente, como
tudo na ordem do tempo, as obras de cultura são totalmente contingentes. Já na par-
ticularidade da situação contraditória em que são inventadas, elas incluem a ruína
futura que serão nas parcialidades da sua forma e nas contradições da sua recepção.
A liberdade que afirmam é frágil. Sartre lembrou que a primeira coisa que pega fogo
numa explosão atômica é o papel em que se escreve o poema contra a guerra nuclear.
E sempre há, obviamente, o trabalho contínuo do tempo. Os homens morrem e pouco
sobra das suas obras também necessariamente votadas à destruição e ao desapareci-
mento. Sobra pouco delas ou porque o possível que afirmam se torna atual e deixam
de ser necessárias, o que é raríssimo de acontecer; ou, porque, como ocorre na maior
parte das vezes, a liberdade que afirmam não se realiza e, quando são destruídas pelo
tempo, são esquecidas ou lembradas como ruínas de uma história morta de esperan-

1.  Hansen, João Adolfo. “Mimesis: figura, retórica e imagem”. V Colóquio Uerj – Erich Auerbach. Rio
de Janeiro: Imago, 1994, pp. 45-69 (Série Diversos).
2.  Auerbach, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspec-
tiva, 1971.

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ças mortas e violências mortas. Num museu, vi o olhar de uma múmia, um morto
de Fayum, atrás de um vidro. Exposto, ali, à curiosidade displicente dos visitantes do
museu. A melancolia que vi no olhar que me via testemunhava o que não se realizou
na vida da múmia anônima. A melancolia do olhar do morto me fez pensar na minha
vida, eu que também vou morrer.
Não sei se em tempos medíocres, tempos tucanos em que a ralé de direita conti-
nua arrotando fatuamente a estupidez da sua insignificância, os pesquisadores da área
de Letras ainda se interessam por essas questões. Pode ser que sim, afinal também vão
morrer, não é? Talvez pudessem, não sei, pensar sobre ficção tratando dos regimes de
verdade que ela põe em cena para demonstrar como os mundos verossímeis que a fic-
ção inventa através dos tempos históricos ou só reproduzem e reiteram tais verdades,
estando a serviço delas, ou as negam, afirmando outras coisas, coisas que criticam e
estranham e negam a normalidade do hábito. Os poucos bons escritores brasileiros que
há são os que negam. Os que não negam não têm nenhum interesse e são dispensáveis.
A gente conta os que negam nos dedos – lembro alguns, todos mortos, deixando que os
vivos se lembrem a si mesmos – Machado de Assis, Lima Barreto, Oswald de Andrade,
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Cornélio Penna, Hilda Hilst,
Drummond, Murilo Mendes, todos negam o hábito, por isso estranham os regimes de
verdade de seu tempo. Como naquele soneto de Rilke sobre o torso arcaico de Apolo,
a boa arte que fazem nos diz que é urgente mudarmos de vida, porque vamos morrer
e a nossa não presta.

Você poderia falar sobre as relações entre guerra, colonização e catequese, no con-
texto do século XVI? Em seu ensaio “A servidão natural do selvagem e a guerra justa
contra o bárbaro”,3 você explica a doutrina da catequese e da guerra, observando
que, para santo Agostinho, fazer a guerra não é um delito. De que maneira ideias de
santo Agostinho, santo Tomás e são Jerônimo podem ser associadas à destruição de
indígenas, no período colonial?

3.  Hansen, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”. In: Novaes,
Adauto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Minc-Funarte/Companhia das Letras,
1998, pp. 347-73.

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A política portuguesa que se ocupou das populações indígenas no Brasil do século
xvi e também a política espanhola que se ocupou delas no Rio da Prata, no Peru, no
Caribe, na Nova Espanha etc. continuaram a guerra contra elas em tempos de paz.
Quero dizer, ao invés de pensar que a doutrina do direito aplicada pelos missionários,
cronistas, viajantes, teólogos e juristas portugueses e espanhóis à discussão da natureza
dos habitantes da América foi um limite pacífico que especificou o legal e o legítimo
das medidas que foram adotadas quanto a eles, eu diria, com Foucault, que o direito foi
efetivamente um instrumento de sujeição também quando estabeleceu a legitimidade
das medidas. Evidentemente, em muitas situações particulares o direito serviu à defesa
dos indígenas, caso de Bartolomé de Las Casas e de Manuel da Nóbrega, no século xvi,
e Antônio Vieira, no xvii. Assim mesmo, não penso o direito pelo viés da legalidade e
da legitimidade que ele fundamentou e regulou, mas pelos mecanismos de sujeição que
ele pôs em prática. Nos séculos xvi e xvii, as discussões espanholas e portuguesas sobre
os indígenas da América não foram antropológicas, mas teológicas. Ou seja: o Deus
católico foi o fundamento metafísico do direito, da política e da ética que regularam
a invasão e a conquista das novas terras da América Portuguesa e Espanhola. Assim,
os discursos espanhóis e portugueses afirmam que o Deus da sua Igreja aliada ao seu
Estado é universal, o único deus universal, por isso mesmo neles sempre foi impensado
e impensável o pensamento que libera e autonomiza a história do fundamento divi-
no, pensamento que é condição do relativismo cultural inaugurado criticamente pelo
Iluminismo desde o século xviii. Nos discursos espanhóis e portugueses, o indígena
da América não é representado pela perspectiva do que a antropologia chamou de
“pensamento selvagem”, ou seja, segundo as próprias razões da razão selvagem, razões
que necessariamente implicam a relativização das razões do observador. A universa-
lidade do Deus da religião católica na base do direito português e espanhol incluía e
subordinava a priori todas as razões da razão selvagem, classificando-as como falta
de Bem, selvageria e barbárie. Em todos os casos, sempre se tratou de um modo de
pensar fundado metafisicamente como analogia escolástica, quero dizer, um modo
de pensar que estabelecia relações de semelhança entre as práticas indígenas e o prin-
cípio metafísico que o fundamentava e regulava. Ele era, por isso mesmo, o princípio
doutrinário do sentido da ação colonizadora e um limite teórico dela. Não há, tanto no
caso português quanto no espanhol, nenhuma formulação sobre o indígena que não seja
teologicamente determinada por esse princípio metafísico. Tanto a legalidade quanto a
ilegalidade das medidas adotadas pela Coroa portuguesa e pela Coroa espanhola, pelos
padres e pelos colonos pressupunham a universalidade do Deus de Roma. E mesmo

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na versão católica aparentemente mais branda, a do projeto jesuítico que reconhecia a
humanidade dos povos invadidos e que muitas vezes intervinha na defesa deles contra
a expropriação colonialista, a mesma humanidade não era tida como diferença cultural,
mas como identidade degradada de uma mesma substância espiritual criada por Deus,
a alma. A religião católica afirma que a alma participa na substância metafísica de Deus
como efeito criado e signo reflexo Dele; por isso, a alma foi o núcleo teórico, digamos
assim, das classificações do indígena como “animal” e como “humano”. A atribuição ou
a produção de uma alma para o indígena, como aconteceu nas práticas dos jesuítas,
pressupunham logicamente que ele era um “próximo”, como no mandamento “Amar o
próximo”, da Bíblia; no caso, porém, um próximo metafísica e politicamente muito dis-
tanciado da lei eterna de Deus, porque, segundo o mesmo catolicismo, tinha uma alma
boçal e bruta, embotada e corrompida e emporcalhada pela bestialidade dos pecados.
Era preciso salvá-la, propunham os padres, e a caridade católica, que tinha a teologia e
a metafísica cristãs por fundamento e limite, significava a extinção das culturas indíge-
nas, efetuada muitas vezes como a “destribalização” acusada por Florestan Fernandes.
A legitimidade da chamada “guerra justa” contra os bárbaros do Brasil pressu-
punha Deus. A “guerra justa” foi tratada por Santo Agostinho e, depois, até os séculos
xvi e xvii e ainda na primeira metade do xviii, doutrinada e regrada com tópicos
medievais, escolásticos, do Direito Canônico. Ela era definida como uma situação de
exceção relativamente à centralidade do poder monárquico, tido pelos agentes coloni-
zadores como poder natural, legítimo e pacífico, porque o pacto de sujeição ao rei que
o estabelecia estava fundado na ética e na metafísica cristãs. Obviamente – não sei se
isso é óbvio – a caracterização da guerra contra os bárbaros como situação de exceção
ocultava e deslocava o fato de que o próprio poder central, que se afirmava natural,
legítimo e pacífico, também era poder de exceção, uma vez que não há nenhum poder
naturalmente instituído. A partir de 1517, data das teses polêmicas e heréticas de Lutero,
as versões católicas do poder reafirmaram que ele só é legítimo quando a normalida-
de que institui é uma evidência da presença da luz natural da Graça na natureza e na
história. Mas essa normalidade também aparece como exceção, quando lembramos
os processos pelos quais ela era estabelecida como a paz do “bem comum” dos reinos
governados por príncipes católicos. Como se sabe, a política das monarquias ibéricas do
século xvi era definida cristãmente como uma arte de manter a unidade e a segurança
do reino contra inimigos internos e externos. Contra a hipótese maquiavélica de que o
poder é um artifício desvinculado da ética visando ao triunfo nas competições da cida-
de, a doutrina católica adaptou tópicas testamentárias à redefinição da política no novo

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estado de coisas decorrente das Descobertas e da Reforma protestante, reafirmando a
ética medieval como espelho ou modelo da ação dos príncipes. Visando à unidade e à
segurança do reino, a política católica pressupunha a necessidade da concórdia de cada
um consigo mesmo, como autocontrole dos apetites prescrito pela ética aristotélica
relida em chave escolástica, e a amizade de todos os indivíduos e estamentos, como
concórdia do todo do corpo político do Estado. Segundo a doutrina católica do poder
adotada em Portugal e na Espanha, da concórdia individual e da amizade do todo nascia
a paz. Para assegurá-la, a Coroa portuguesa e a Coroa espanhola aplicavam medidas
de várias espécies, como o monopólio da violência fiscal, judiciária e militar; a guerra;
o combate às heresias; a censura intelectual; a tortura, os castigos exemplares, açoites,
fogueira, forca, garrote vil, degola e degredo. O “bem comum” do reino era definido,
então, como um estado de equilíbrio dos interesses e conflitos particulares obtido pela
subordinação voluntária do todo do corpo místico da comunidade à cabeça do Império,
o rei, num pacto de sujeição pelo qual os indivíduos, os estamentos e as ordens sociais
se alienavam do poder. Abrindo mão dos direitos e declarando-se súditos, recebiam os
privilégios que os hierarquizavam. Nessa hierarquia, que descia da cabeça real até as
plantas dos pés escravos, os indígenas americanos tinham a liberdade de integrar-se
como membros subordinados, pois então a liberdade dos indivíduos e do todo do reino
era entendida paradoxalmente como subordinação hierárquica à cabeça mandante, o rei.
Com Foucault, lembro que o fato brutal da invasão e da ocupação dos territórios
habitados pelos povos classificados como “selvagens” e “bárbaros” – invasão e ocupação
sempre acompanhadas dos massacres e da espantosa variedade de atrocidades prati-
cadas pelos espanhóis e portugueses em nome de seu Deus em todas as partes onde
estiveram, do México à Patagônia, do litoral do Brasil aos Andes, antecede lógica e cro-
nologicamente toda e qualquer discussão jurídica sobre a escravização deles ou sobre a
“guerra justa” contra eles. As discussões de Vitoria, Molina, Oviedo, Acosta, Gómara, Las
Casas, Sepúlveda, na área espanhola, e de Nóbrega, Anchieta, Cardim e Vieira, na portu-
guesa, adaptam-se objetivamente aos acontecimentos, quero dizer, são produzidas pelos
acontecimentos ou pela mediação deles, não importa a intenção particular dos agentes,
que muitas vezes foi admiravelmente justa. Por isso, elas tinham necessariamente que
também incluir como determinação do seu sentido o dado bruto e objetivo da invasão.
Assim, as adaptações pretendiam regular o direito de guerra contra os indígenas fixando
as condições e os momentos em que ela seria “guerra justa” ou situação de exceção. Mas
as adaptações eram objetivamente uma doutrina da guerra aplicada como a “política
católica” da monarquia portuguesa e da espanhola na conquista territorial, obtenção

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de mão de obra escrava, lucros e competição comercial, religiosa e política com outras
potências europeias. A carência do Bem católico que era produzida quando a perspectiva
da verdade cristã constituía uma alma para o indígena, que era classificado, no ato, como
“animal”, “gentio”, “selvagem” e “bárbaro”, era simultaneamente suplementada por duas
espécies básicas e complementares de intervenção. Ambas eram violentas pelo mero fato
de serem intervenções, embora tivessem graus ou intensidades diversas. Genericamente
falando, a intervenção dos que afirmavam que o indígena era “cão” ou “porco” bestial,
bárbaro e “escravo por natureza”, e a intervenção dos que afirmavam que era “humano”,
mas selvagem, e que devia ser salvo para Deus por meio da verdadeira fé, que o integrava
como subordinado, plebeu e, quase sempre, escravo. Falei demais e espero ter sido claro.

Em seu livro A sátira e o engenho,4 você explica que “a sátira encontra a realidade
não na empiria, mas nas convenções de recepção, pautadas ora pelo juízo, ora pelo
gosto, ou seja, na concordância da imagem caricatural que elabora, ao mesmo
tempo em que mantém em circulação o estereótipo de grupos, pessoas e situa-
ções que critica” (p. 229). Em uma nota de rodapé, na página 472, você afirma que
estereótipos assumem “configuração prática, de intervenção”. Em que medida as
convenções de recepção da sátira poderiam estar associadas à legitimação de prá-
ticas violentas contra negros, mulheres ou sodomitas, tendo em vista a circulação
de imagens caricaturais e estereótipos?

Como se sabe com Aristóteles, a matéria geral do cômico é a feiura, física e moral.
A feiura é uma desproporção caracterizada pela falta de medida. Fisicamente, é falta de
justeza e proporção – o nariz torto, a boca grande, a barriga inchada; moralmente, falta
de justiça, com os vícios associados. No Antigo Estado Português, feio era o não aris-
tocrata, não católico, não branco, não masculino. Ou seja, o plebeu e o pobre; o judeu,
o muçulmano, o protestante, o maquiavélico, o selvagem, o bárbaro; o negro, o índio,
o mestiço, o mulato, o cafuzo, o mameluco; o não masculino, o feminino, o sodomita
etc. Havia um ou mais estereótipos de cada tipo partilhados e reproduzidos pela popu-
lação, desde a mais alta aristocracia até à ralé. Como se sabe, a ideologia é dominante.

4.  Hansen, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras/SEC, 1989.

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Como subgênero cômico, a sátira põe em cena os estereótipos, vituperando indivíduos
e grupos para pô-los e mantê-los no lugar e concorrendo, assim, para a publicação, a
circulação, o reforço e a legitimação dos estereótipos.

No mesmo livro, em nota de rodapé, na página 474, você comenta o terror inten-
so, por parte do Santo Ofício, com relação a judeus, que não poderiam assumir
funções públicas. Cita um relato referente a Antonio Ferreira, em 1671, em que se
lê: “cortaram-lhe as mãos, queimaram-lhe os olhos e em seguida enforcaram-no
num poste alto”. De acordo com seus estudos, como o Santo Ofício documentava
e narrava práticas de crueldade como essa? Como podemos avaliar, hoje, as justi-
ficativas utilizadas pelo Santo Ofício na época para legitimar essas práticas?

O Santo Ofício agia ad maiorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus. O Deus da
Igreja é obviamente, segundo a mesma Igreja, único, universal, verdadeiro. A confissão
de culpas obtida por meio de torturas era autorizada pela Igreja em nome de Deus.
Simultaneamente, a Igreja agia como Pilatos: lavava as mãos, não executava as penas
de morte a que o Santo Ofício condenava os torturados, entregando-os ao poder tem-
poral. As pessoas presas e torturadas eram consideradas inimigas da Fé católica e do
Estado, por isso mesmo podiam ser objeto de práticas como as de humilhar, castigar,
cortar mãos, queimar olhos, açoitar, garrotear, enforcar etc. As justificativas utilizadas
pelo Santo Ofício não justificam absolutamente nada e só evidenciam a estupidez, a
crueldade, a hipocrisia e a violentíssima autorrepressão sexual dos agentes. A gente
deve supor que, quando tortura, o torturador goza. E que, quando Deus existe, tudo
é permitido. Desde que Ele morreu na Revolução Francesa, as práticas inquisitoriais
causam horror. Foram substituídas por outras, não menos atrozes, violentas e porcas.
A ideia de progresso dos homens é mais uma tolice entre outras contadas pra boi
dormir. Quando Deus existe, tudo é permitido, como disse. É óbvio que Ele proíbe que
seus fiéis façam X ou Y. Só à custa de muita repressão uma casta sacerdotal consegue
impor ordem ao rebanho de bestas. A ordem começa pela autocastração da casta
sacerdotal, com suas inevitáveis deformações e deformidades, e continua imposta
como castração do rebanho, com os resultados muito evidentes, que sabemos. Se
Deus existe e se Ele é verdadeiro para mim – eu que sou cabrão escolado, bode velho,
cabra experiente, cabrita promissora, cabritinho ingênuo etc. –, seu ditado imposto a
mim e a outros como eu produz e mantém domesticados a mim e ao rebanho de que

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faço parte. Eu obedeço porque creio. Crer é obedecer. Obviamente, se creio no meu
deus, o deus dos outros não existe e não pode existir. Se pretender existir, obviamente
é falso e tem que ser destruído, junto com os que acreditam nele. É o que vemos no
Jeová hebraico, que é um deus exclusivista, malvado, ciumento e vingativo: sempre
há um outro a ser expelido e destruído pelos homens e pelo povo escolhidos – por
exemplo, Moisés e o bezerro de ouro egípcio, Moisés e os egípcios de faraó, os hebreus
e os deuses de Moab e Canaã, os romanos e os cristãos, os cristãos e os muçulmanos e
os judeus, os protestantes e os católicos, os católicos e os protestantes, os protestantes
e os católicos e os judeus nos séculos xvi e xvii etc. etc. Alguns homens irônicos saca-
ram isso bem. O imperador do Império do Meio, a China, disse aos primeiros jesuítas
que visitaram sua corte que pensava em mandar a Roma uma comitiva de monges
budistas e seguidores de Confúcio para converter o papa. Os jesuítas se escandali-
zaram com o bárbaro chinês. Por quê? Porque só o Deus de Roma era (e para seus
fiéis ainda é) universal. Por isso mesmo, justificava toda a violência que se praticava
contra os que não o conheciam ou não seguiam. Enquanto durou a ação do Santo
Ofício, para os católicos portugueses dos séculos xvi, xvii, xviii e ainda do início
do século xix, o Deus católico era universal, e, supondo a verdade dele, supunham
também que estavam autorizados a constituir os judeus como deicidas e eliminá-los.
Também autorizados a constituir pessoas não judias como judias por meio de tortura
e morte. A partir do século xvi, em Portugal, os comerciantes e banqueiros judeus
enriquecidos com os negócios da Índia, da África e do Brasil tornaram-se uma amea-
ça para a aristocracia velha, principalmente quando seus filhos começaram a estudar
na Universidade de Coimbra e, conseguindo lugares na burocracia do Estado, depois
de formados, foram subindo na vida, chegando mais e mais perto dos órgãos cen-
trais. Para impedir a ascensão, os motivos alegados eram muito graves e invocavam a
ortodoxia católica. Os motivos eram obviamente fúteis, evidenciando a competição,
a mentira, a estupidez, a deslealdade, a simples maldade. Nas delações feitas na visi-
tação do Santo Ofício à Bahia, no começo do século xvii, mulheres foram denunciar
outras dizendo que em Lisboa, vinte anos antes, tinham visto alguém fritando a carne
só depois de tirar a gordura. Ou que alguém era judeu porque tinha uma Bíblia em
casa. Ou porque, passando pela porta de uma casa, tinham ouvido alguém dizer, lá
dentro, Gayas, Gayas, que evidentemente é palavra de judeu etc.

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No livro Para que todos entendais: Poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra.
Letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos xvii e
xviii, escrito por você e por Marcello Moreira,5 há uma parte dedicada ao estudo
de Libro de Açedrex, de Afonso x. São comentadas relações entre guerra, jogo e,
especificamente, movimentos do jogo de xadrez. A movimentação limitada do rei,
no tabuleiro, poderia expressar uma “condição de seu louvor” (p. 258). Poderias
desenvolver esse tópico, elaborando as maneiras como a ideia de jogo pode se
associar a condições de interpretação da violência da guerra?

O tabuleiro de xadrez, as peças (peão, cavalo, torre, bispo, dama, rei), a posição delas
no tabuleiro e os movimentos que devem fazer etc. alegorizam os três estados – plebe,
clero, nobreza – das sociedades medievais e modernas de Antigo Estado, os valores
estamentais delas, a guerra e seus princípios estratégicos e suas operações táticas. Assim,
por exemplo, o rei se move limitadamente, avançando de casa em casa. Essa limitação
não é defeito, mas virtude, segundo as convenções antigas: assim como os peões ficam
na frente do exército que avança pelo campo inimigo, o rei é “senhor da hoste”, como
diz Afonso x em seu livro Libro de Açedrex, por isso deve se movimentar pouco, ficando
isolado e protegido. Existe monarquia com a morte de bispos, cavalos, peões etc. ou a
perda de castelos ou torres, mas não monarquia sem rei, cujo fim põe fim à linhagem
e ao reino.
Logo, a limitação do movimento não é desabono, mas louvor: ao rei não cabe o
ímpeto dos outros combatentes, porque ele pondera cada movimento, conduz o exército
como dux, chefe, e pauta a sua ação com temperança e fortaleza e justiça e prudência etc.
etc. O rei do xadrez pode combater, claro, mas antes de tudo deve manter-se prudente,
no comando do reino e da tropa. Nesse sentido, o jogo de xadrez é um tratado político,
funcionando como alegoria que condensa e expõe a estrutura e as formas da sociedade
monárquica antiga.

5.  Hansen, João Adolfo; Moreira, Marcello. Gregório de Matos: poemas atribuídos; Códice Asensio-
Cunha. Vol. 5: Para que todos entendais: poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra: letrados, manus-
critura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

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Em seu ensaio “Pra falar das flores”,6 examinando o Tropicalismo, você se refere à
modernização brasileira e menciona “os arcaísmos que a modernização do país pro-
duzia e mantinha à força da repressão e das mortes” (p. 73). Poderias desenvolver
mais esse tópico, elaborando as relações entre a violência e a modernização, no con-
texto da ditadura militar brasileira?

Os militares brasileiros fizeram o jogo porco dos Estados Unidos e da direita nacional,
interrompendo brutalmente os processos contraditórios da difícil democratização do
país do governo Goulart. A modernização forçada que eles impuseram, extraindo mais-
valia do trabalho por meio da repressão, efetuou tudo quanto de mais regressivo se pode
imaginar do belo trinômio “tradição, família, propriedade” que aí está de novo em suas
versões bala-boi-Bíblia: o neocolonialismo, a regressão religiosa e sexual, os valores do
macho patriarcal, a expropriação e a rapina, a confusão programática de público e pri-
vado, o classismo, o racismo, a arrogância burguesa, a ignorância e a estupidez etc. etc.
E a violência policial e militar da repressão das liberdades civis, das prisões, da tortura
e das mortes.

Como você avalia o momento atual do país, em termos políticos e sociais? Qual sua
opinião sobre as perspectivas das universidades públicas, com relação às transfor-
mações políticas recentes?
Como você tem observado as perspectivas atuais, quanto a pesquisas em
estudos literários desenvolvidas em instituições brasileiras de ensino superior, com
relação à formação de pesquisadores qualificados, capazes de desenvolver, nas pró-
ximas décadas, reflexões sobre o passado brasileiro? Em que medida os problemas
referentes às condições acadêmicas de estudo de textos do período colonial, no
Brasil atual, podem ser interpretados como expressões de valores intelectualmente
conservadores?

O momento atual é o da afirmação explícita do que existe de mais regressivamente


lúmpen no país. O lúmpen é universal, ralé transclasse, tem pra todos, não importa

6.  Hansen, João Adolfo. “Pra falar das flores”. In: Risério, Antonio et al. Anos 70: trajetórias. São Paulo:
Iluminuras, 2006, pp. 71-6.

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onde, juiz de Tietê, senadores e deputados de Brasília, burguesia e classe média de
São Paulo em Miami e Paris. Um velho senhor ressentido que bem podia morrer
com a dignidade anterior sem essa, um jurista tucano de direita e uma professora
histérica buscando autopromoção escrevem juntos um processo de impedimento da
Presidente fundamentado em firulas coimbrãs e casuísticas do Direito. Esse é um país
de advogados e isso é barra pesadíssima. O processo é aceito e encaminhado por um
gângster presidente da Câmara dos Deputados. O gângster está acusado no Supremo
Tribunal Federal. No Supremo Tribunal Federal, juízes e juízas falam um subdialeto
parnasiano incompreensível em que debatem as flores silvestres do Direito. Os juízes
e juízas não o julgam. A Justiça é cega porque hoje a direita não precisa mais ser verde
-oliva marchando em passo de ganso, agora é só muito morosa, muito morosamente,
togada, negra. O processo é aprovado na Câmara por mais de 360 elementos que, ao
votá-lo, lembram a vaca e a mãe, a égua e a esposa, mais os 2 milhões da Fiesp. Vai
para o Senado, onde varões de Plutarco, principalmente as Marias Antonietas aias
do Príncipe da Sociologia do Butantã, e mais outros feirantes do pmdb e criadinhos
e criadinhas da Folha, do Estadão, da Veja, da Globo etc. falam de Educação Moral
& Cívica. O que fazer com uma porcaria colonial dessas? Desejar que seja extinta o
quanto antes. E o que dizer? Antes de vomitar, talvez lembrar Drummond, um poeta
brasileiro esquecido e absolutamente inatual no Brasil de hoje: “O mais é barro, sem
esperança de escultura”.
Não sei se os pesquisadores vão desenvolver pesquisas sobre o passado brasi-
leiro. As redefinições neoliberais da cultura seguidas e impostas sem mais pela Capes,
cnpq e agências de fomento que hoje se evidenciaram totalmente vazias de qualquer
sentido cultural não preveem que os estudos literários tenham valor de uso, mas só
de troca. Logo, pra que literatura numa terra de banqueiros e deputados e senadores
e governadores e ex-presidentes do pmdb e psdb? E, mais ainda, os estudos colo-
niais? Na usp, por exemplo, que dizem ser o principal centro de estudos do país, os
estudos coloniais foram abolidos na área de Letras por inércia, inépcia, ignorância e
ideologia. Não sei se vai haver gente qualificada pra estudar o passado. Mas pra que
estudar o passado? Esses pesquisadores vão ser, como agora diz um grande intelectual
tucano, o governador do Estado, pesquisadores não práticos, vivendo numa bolha
artificial. O governador tem razão porque, muito evidentemente, está envolvido com
coisas práticas mais substantivas, como a merenda escolar. Na Universidade, hoje
se estudam os autores caudatários do projeto nacionalista romântico que deu nisso
que se vê: a burguesia de S. Paulo, modelo para as outras burguesias das províncias

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brasileiras. Não é um primor? O estado intelectual dela ainda é o de 1530, quando o
Martim Afonso começou a plantar cana, índios foram exterminados e escravizados,
negros começaram a ser trazidos como escravos e se passou a chamar a terra de
“esse nosso vasto empório”. Felizmente, ainda pensando nessa longa duração, é uma
burguesia suicida, porque limitada ao aqui-agora do lucro. Basta pensar rapidamente
na estupidez do que ela vem fazendo com a educação desde a Primeira República.
Burguesias mais espertas, como a norte-americana, a alemã, a coreana, a japonesa,
investiram pesado na educação. Não, evidentemente, por amor das grandes obras do
espírito, como era o amor do imperador Pedro ii, que vestia um manto de tucano real
nas ocasiões de gala recitando Victor Hugo para os barões de Inho e de Mirim, mas
para a formação de quadros técnicos garantidores da sua reprodução no poder etc.
Aqui, não. Aqui, os rastaqueras da Fiesp e seus partidos políticos de direita ainda são
coloniais, extrativistas, e Victor Hugo ainda é um futuro porque a Revolução Francesa
ainda não cortou as cabeças necessárias.
Mas estou velho, logo vou morrer e não vamos ser tão pessimistas. A miséria
sempre admite um degrau abaixo e ainda não descemos todos. Vamos lá, sem esperança
nem medo.

João Adolfo Hansen é Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.

250 • Entrevista de João Adolfo Hansen

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