Prosa de 30 - Trechos
Prosa de 30 - Trechos
Prosa de 30 - Trechos
[...]
Estavam na limpa do partido da várzea. O eito bem pertinho do engenho. Da
calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de
chapéu de palha velho subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada:
uns oitenta homens comandados pelo feitor José Felismino, de cacete na mão,
reparando no serviço deles. Pegava com o sol das seis, até a boca da noite. Às
vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras. Trabalhavam
conversando, bulindo uns com os outros, os mais moços com pabulagem de
mulheres. Outros bem calados, olhando para o chão, tirando a sua tarefa com
a cara fechada. Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dos partidos
contando histórias e soltando ditos.
— Deixa de conversa, gente! — gritava seu José Felismino. — Bota pra diante
o serviço. Com pouquinho o coronel está aqui gritando.
E a enxada tinia no barro duro, e eles espalhando com os pés o mato que
ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas; corria suor em bica dos lombos
encharcados.
Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um baliza. Era o mais ligeiro. De
cabeça enterrada, a enxada nas suas mãos raspava como uma máquina a
terra que aparecesse na frente. Sempre na dianteira, deixando na bagagem os
companheiros. O moleque Zé Passarinho remanchando, o último do eito. Não
havia grito que animasse aquele preguiça alcoolizada. Também, ganhava dois
cruzados, davam-lhe a mesma diária das mulheres na apanha do algodão.
REGO, José Lins do. Menino de engenho. 66. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 58-59. (Fragmento).
1
O quinze, Rachel de Queiroz
[...]
Agora ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.
Sem legume, sem serviço, não havia de ficar morrendo de fome enquanto a
seca durasse.
– Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente
vai viver, por esse mundão de meu Deus?
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. p. 44-45. (Fragmento).
[...]
Agora, sozinha o marido longe - Chico Bento saíra de manhãzinha a ver se
descobria alguém que ensinasse um remédio – de cócoras junto à criança
moribunda, Cordulina chorava sem consolo.
2
Um dos outros pequenos, chupando o dedo, olhava o irmão. E o Pedro, o mais
velho, de vez em quando tangia uma mosca que tentava pousar no rosto do
doentinho. A criança era só osso e pele. O ventre inchado, o couro seco de
defunto, empretecido e malcheiroso.
Quando o pai chegou com uma negra velha rezadeira, Josias, inconsciente, já
com o cirro da morte, mal podia respirar.
Cordulina ergueu a cabeça, fitou a velha e redobrou o choro. Chico Bento fitava
dolorosamente a agonia do filho. E a criança ia se acabando devagar. Lá se
tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois
paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de
fome, estrada afora.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971. p. 71. (Fragmento).
3
Capitães da Areia, Jorge Amado
[...] E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no
velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na
frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim. Ao longe, o mar que
arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e
saíam. Pelo teto viam o céu de estrelas, a lua que os iluminava.
Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho
do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram então para o trapiche.
Não mais estranhas, porém, que aqueles meninos, moleques de todas as cores
e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos, que à noite se
estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao
vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas
vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os
ouvidos presos às canções que vinham das embarcações...
Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais
ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e
na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi
puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto
da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a
ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando
Raimundo quis surrar
Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais
sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto
e mais velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no
rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não
só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos
depois num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que
a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas
que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que
assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas
ruínas do velho trapiche.
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 117. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 20-12. (Fragmento).
4
São Bernardo, Graciliano Ramos.
[...]
– A senhora, pelo que mostra e pelas informações que peguei, é sisuda,
econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de família.
Madalena foi à janela e esteve algum tempo debruçada, olhando a rua. Quando
se voltou, eu passeava pela sala, enchendo o cachimbo.
— Vinte e sete? Ninguém lhe dá mais de vinte. Pois está aí. Já nos
aproximamos. Com um bocado de boa vontade, em uma semana estamos na
igreja.
— Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada?
Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio supimpa
sou eu.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 101-102. (Fragmento).
5
[...] Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia
bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e
muitos bichos pra o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se
escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os
bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os
mandamentos da lei de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo à esquerda,
volvendo à direita, fazendo sentinela. Outros buscaram pastos diferentes.
Se eu povoasse os currais, teria boas safras, depositaria dinheiro nos bancos,
compraria mais terra e construiria novos currais.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 217. (Fragmento).
[...]
Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes
disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou
convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais
necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em
momentos de otimismo suponho que há nela pedaços melhores que a literatura
do Gondim. Sou, pois, superior a Mestre Caetano e a outros semelhantes.
Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos
de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que
a superioridade que me envaidece é bem mesquinha.
6
com o buranhém, de alpercatas, chapéu de curicuri, alguns níqueis na
capanga, beberia um gole de cachaça para espantar o frio e cantaria por estes
caminhos, alegre como um desgraçado.
Hoje não nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos
olhos me descontentam.
Penso no povoado onde Seu Ribeiro morou, há meio século. Seu Ribeiro,
acumulava, sem dúvida, mas não acumulava para ele. Tinha uma casa grande,
sempre cheia, o jerimum caboclo apodrecia na roça – e por aquelas beiradas
ninguém tinha fome. Imagino-me vivendo no tempo da monarquia, à sombra de
Seu Ribeiro. Não sei ler, não conheço iluminação elétrica nem telefone. Para
me exprimir recorro a muita perífrase e muita gesticulação. Tenho, como todo
mundo, uma candeia de azeite, que não serve para nada, porque à noite a
gente dorme. Podem rebentar centenas de revoluções. Não receberei notícias
delas. Provavelmente sou um sujeito feliz.
Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono.
Deitar-me, rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar
sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
De longe em longe sento-me, fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
A agitação diminui.
7
A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A
Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no
campo, e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os
moradores que me restam são os cambembes como ele.
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo
a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou
além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta
desgraçada profissão nos distanciou.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração
miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E
um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 81. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 218-221. (Fragmento).