Aimé-Adrien Taunay e Os Registros Dos Índios Bororo - Maria de Fátima Da Costa PDF
Aimé-Adrien Taunay e Os Registros Dos Índios Bororo - Maria de Fátima Da Costa PDF
Aimé-Adrien Taunay e Os Registros Dos Índios Bororo - Maria de Fátima Da Costa PDF
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MÜLLER, Regina Polo. Tayngava a noção de representação na arte gráfica Asurini do Xingu. In: VIDAL, Luz (Org.). Grafismo
indígena. São Paulo: Edusp, 1992. p. 231.
3
RIBEIRO, Berta. Arteindigena – linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. p. 121.
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sobre o papel os códigos étnicos e culturais que os Bororo apresentavam nos seus
corpos e fisionomias. E se é possível que o artista fosse ciente do significado dos
símbolos Bororo, ao fazer suas representações.
Aimé-Adrien e os Bororo
FIGURA 1. Autorretrato, Aimé-Adrien Taunay, c. 1826, Lápis sobre papel. Acervo da Academia das
Ciências de São Petersburgo.
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Os representados
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Estas e as demais referências sobre a sociedade Bororo foram extraídas de ALBISETTI, César, VENTURELLI, Angelo Jayme.
Enciclopédia Bororo. 3 vols. Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco, 1962, 1969, 1976; CAIUBY NOVAES, Sylvia. Jogos de
espelhos. São Paulo: Edusp, 1993; VIERTLER, Renate B. A refeição das almas. Uma representação etnológica do funeral dos índios
Bororo – Mato Grosso. São Paulo: Edusp, 1991; CAIUBY NOVAES, Sylvia. Funerais entre os Bororos. Imagens da refiguração do
mundo. Revista de Antropologia, n. 49, 283-315; e LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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A obra que traz esse título apresenta, em verdade, três indivíduos; o citado
casal e mais uma menina de pouca idade. Para registrá-los, Taunay tomou
como cenário um muro de meia altura, interpondo-o entre os seus persona-
gens. Reservou o primeiro plano, à direita da folha, para a figura da mulher.
Esta aparece quase de corpo inteiro, com a exceção da parte inferior de uma
das suas pernas. Trata-se de uma jovem de cabeça rapada e que traz no rosto
uma expressão pensativa e distante. Seu cotovelo direito está apoiado sobre o
muro, permitindo que o braço flexionado se mantenha junto à fronte, o que
fornece dados sobre o estado de espírito da personagem. O outro braço, tam-
bém flexionado, possibilita que a mão esquerda da retratada alcance o fio que
leva no pescoço, à moda de colar. Sua única vestimenta, além do colar, é o largo
cinto que envolve o abdômen e que sustenta uma peça íntima. O corpo, à exce-
ção de braços e rosto, está coberto de pequenos traços horizontais. No conjunto
dessa figura chama atenção o jogo gestual, acentuado pela flexão dos braços, de
maneira a destacar a expressão da sua face.
Contrastando com a falta de ornamentos da jovem, a menina de pouca idade
que ela carrega sobre o ombro se apresenta coberta de adereços: colares, brincos
e cordões que se amarram nos seus braços e pernas, daí a sua presença viva e
muito graciosa.
Quanto à figura masculina, Taunay a colocou detrás do muro, à esquerda da
composição, de maneira que o seu corpo aparecesse parcialmente coberto. Esse
artifício permitiu ao artista valorizar a cabeça, destacando a riqueza ornamental
contida no rosto do jovem índio e no toucado de plumas que a coroa. A face está
parcialmente pintada em vermelho e tem o contorno da boca realçado com um
círculo de cor preta. As orelhas, o nariz e os lábios aparecem perfurados por
diversos objetos.
Trata-se, sem dúvida, de uma bela e muito elaborada composição.
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FIGURA 2. Homem e mulher Bororo, Aimé-Adrien Taunay, 1827. Lápis e aquarela sobre papel.
Acervo da Academia das Ciências de São Petersburgo.
Registros
Desde meados do século XX, esta obra de Taunay tem sido objeto de estudos
e recebido vários comentários. Em 1948, por exemplo, a folha “Homem e mulher
Bororo” foi descrita pelo etnólogo russo G. G. Manizer, quando tornou público
o acervo da expedição Langsdorff guardado na, então, União Soviética. Em sua
avaliação, Manizer chamou atenção sobre a “estranha postura das pernas” da
figura feminina, registrando que se tratava de uma posição comum entre os indí-
genas. Observou também que a mulher tinha todo o peito e a superfície das coxas
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“cobertos de linhas horizontais”, sendo que essas linhas, na sua opinião, eram
“provavelmente pintadas e não tatuadas”; e informa, ainda, que havia “pintas
vermelho-vivas na cabeça rapada, nas mãos e no peito, etc.”.
Sobre a figura masculina, o mesmo autor observou que o índio está “dese-
nhado com um toucado de dança e as armas na mão” e que traz, nas orelhas e
no nariz, “brincos e varinhas [...]. Em torno da boca, um traço largo preto”, que,
em sua opinião, tratava-se de “um processo de pintar o rosto, digno de atenção
por seu primitivismo”. Completando, informa que esse índio traz no inserto no
lábio inferior, “um longo ossinho ou varinha”.5
Anos depois, em 1975, a antropóloga Thekla Hartmann também descreveu
essa composição. Sem poder conhecer os originais do acervo iconográfico da
Expedição Langsdorff – coisa bastante difícil à época –, a investigadora baseou
sua análise nas ilustrações e observações oferecidas por Manizer e em reproduções
que foram veiculadas pela imprensa. Entretanto, diferente do etnólogo russo,
buscou sustentar o seu estudo com informações oferecidas pela Enciclopédia
Bororo e em sua própria experiência. Com base nesses dados, Hartmann elabo-
rou comentários bastante interessantes. Observou, por exemplo, que “os Bororo
de Taunay são singularmente desprovidos dos adornos considerados peculiares
àqueles índios”, ajuizando, também que “tais adornos existiam, mas que o pin-
tor não os viu em uso”. Chamou atenção, igualmente, que, no seu conjunto, esta
série dos registros dos Bororo traz muitos dos elementos próprios de sua socie-
dade, tais como: a característica cinta larga que circunda as ancas das mulheres,
os brincos em forma de lua crescente, os adornos masculinos de cabeça, os pen-
dentes labiais, o estojo peniano. Afirma ainda que “as meninas usam nos torno-
zelos e abaixo dos joelhos ataduras comuns aos Borôros Orientais”.6
Mais de uma década depois, em 1988, Salvador Monteiro e Leonel Kaz
deram a conhecer todo o acervo iconográfico da Expedição Langsdorff e tam-
bém ofereceram comentários pontuais sobre cada uma das folhas.7 Contudo,
5
MANIZER, G. G. A expedição do acadêmico G. I. Langsdorff ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
p. 130-131.
6
HARTMANN, Thekla. A contribuição da iconografia para o conhecimento de índios brasileiros do século XIX. São Paulo:
Museu Paulista, 1975. p. 108.
7
MONTEIRO, Salvador: KAZ, Leonel (Ed.). Expedição Langsdorff ao Brasil 1821-1829. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1988.
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TURNER, Terence. The social skin. In: CHEFAS, J.: LEWIN, R. (Ed.). No work alone. Survey of activities superfluous to survival.
Londres: Temple Smith, 1980. p. 112-142.
9
ALBISETTI, César; VENTURELLI, Angelo Jayme. Enciclopédia Bororo.v. I, p. 624-625.
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informações, o seu rosto deixa evidente, ainda, que é pai de um menino. Isso
está explicitado no adorno que traz transpassado no seu septo nasal.
E a figura da mulher? Da mesma maneira, o corpo feminino que Taunay
reteve à aquarela sobre o papel, guarda mensagens de profunda significância
dentro dos códigos étnico-culturais Bororo. Isso se manifesta por diversos sig-
nos que se distribuem desde a cabeça até os pés. Vemo-la vestida com o traje
cotidiano da sua gente, o Kógu – o cinto feminino, a peça íntima confeccionada
em casca de embira ou pau-jangada –, adereço sem o qual, entre os Bororo,
mulher alguma aparece em público.
É com esse cinto e sem qualquer outra vestimenta ou ornamentação, à exce-
ção do fino cordão em volta do seu pescoço, que essa moça de olhar distante
conta-nos que acabou de perder um parente ou um amigo querido. Narra que
esteve presente e participou ativamente dos comovedores ritos do funeral. Que
no curso dessa cerimônia escarificou o corpo, cortou, sem piedade, o seu peito,
pernas, coxas, e deixou que o sangue caísse abundantemente sobre o cadáver
estendido no solo.
Completando seu relato de dor, informa que arrancou seus cabelos, retirou
todos os adornos e se limpou com a pasta vermelha de urucum, cujos restos
ainda são visíveis na representação do artista francês.10
Portanto, o que se vê em todo o seu corpo são emblemas de luto. Os peque-
nos traços que Manizer classificou como “provavelmente pintados e não tatua-
dos”, são, de fato, cicatrizes dos cortes recentes feitos durante as escarificações
no rito do funeral. A cabeça raspada e pintada de vermelho, a falta de enfeites e
as marcas abertas em todo seu corpo são os signos de uma linguagem corporal
que expressam o luto.
A ausência de adornos e pinturas corporais e faciais documenta, efetiva-
mente, a perda de um ente querido. Esse dado – o não uso de adereços – que
Hartmann qualificou de singular na aquarela de Taunay, atesta a arguta per-
cepção do artista, que com sensibilidade impar conseguiu apreender e nuançar
os motivos que documentou.
Ali não há invenções. O corpo dessa mulher, representada por Taunay com
um olhar distante e melancólico, põe em evidência que é uma pessoa enlutada.
10
As informações sobre o rito estão baseadas em ALBISETTI, César: VENTURELLI, Angelo Jayme. Enciclopédia Bororo, p. 521 e 651.
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Sim, essa índia demonstra que fez parte de um dos momentos mais signifi-
cativos da cultura Bororo. O funeral. “Momento de recriação, de reafirmação
estética, de conhecimento. [...]. Conhecimento em que o corpo é memória, em
que a experiência sensível implica corpos, ações sobre o corpo, manipulações sim-
bólicas e literais (as escarificações) sobre os corpos, fabricação de novos corpos”,11
tal como os Bororo ainda celebram nas suas aldeias.
Pinturas, adereços, colares e gestos constituem signos de uma linguagem
ritual que só ganham significado quando se conhecem as convenções culturais
que traduzem esses códigos. A mensagem que lemos aqui nos fala do cotidiano
vivido por um grupo – os Bororo Ocidentais da aldeia de Pau Seco; um lugar que
já não existe. Ela teria sido perdida, tal como se perderam tantas outras, se o saber
ilustrado de um artista-viajante não a houvesse fixado sobre uma folha de papel,
aplicando a destreza de seus pincéis e pondo em jogo o rigor exigido aos que se
dedicavam ao oficio de documentador científico.
Estamos, pois, diante de uma reconfiguração do passado que o artista reali-
zou, tudo indica, de forma intuitiva, no exercício da sua função de documenta-
dor visual. Essa pequena aquarela de A-A. Taunay é um riquíssimo documento
sobre o universo cultural de uma etnia do interior do Brasil Central. Uma página
escrita pela parceria tácita entre a cultura indígena e a sensibilidade do viajante.
Taunay, mesmo sendo um artista de traços românticos, conseguiu transcrever
com destreza os signos que os Bororo expressaram em seus corpos.12
Foi essa conjugação dos saberes, o indígena e o ilustrado, que, como num
passe de mágica, rompeu um espaço no tempo, fazendo-nos aproximar um pouco
da vida desses anônimos personagens do século XIX, e recuperar alguns dados
da sua história.13
11
CAIUBY NOVAES, Sylvia. Funerais entre os Bororos. Imagens da refiguração do mundo. Revista de Antropologia, p. 312.
12
Sobre o romantismo de Taunay ver COSTA, Maria de Fátima. Aimé-Adrien Taunay: um artista romântico no interior de uma expe-
dição científica. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, n. 4, 2007. Núcleo de Estudo em História Social da Arte e da Cultura
– NEHAC. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF13/DOSSIE_%20ARTIGO_03-Maria_de_Fatima_Costa.pdf>.
13
Deixo aqui registrada minha dívida com o salesiano Mestre Mário Bordignon, quem primeiro me chamou a atenção sobre
os signos étnicos contidos nas representações de Bororo feitas por Aimé-Adrien Taunay.
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