A Gênese Da Nação Brasileira Na Iconografia Do Século Xixverediana

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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

A GÊNESE DA NAÇÃO BRASILEIRA NA ICONOGRAFIA DO


SÉCULO XIX

VEREDIANA CAROLINA DA SILVA

Londrina

2013
A GÊNESE DA NAÇÃO BRASILEIRA NA ICONOGRAFIA DO
SÉCULO XIX

VEREDIANA CAROLINA DA SILVA

Orientador: DR. ANDRÉ LUIZ JOANILHO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História,


do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de
Londrina, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em
História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

Londrina, junho, 2013


VEREDIANA CAROLINA DA SILVA

A GÊNESE DA NAÇÃO BRASILEIRA NA ICONOGRAFIA DO


SÉCULO XIX

Avaliado em 28/06/2013 com conceito aprovado.

Banca examinadora da Dissertação de Mestrado

Prof.Dr. André Luiz Joanilho


Orientador

Prof. Dr. Magnus Roberto de Mello Pereira


Examinador externo

Profª Drª Sílvia Cristina Martins de Souza


Examinador interno
Dedico este trabalho a Deus, meu protetor de
todas as horas, à minha família e aos amigos,
pessoas que eu amo de todo o meu coração.
Existem duas maneiras de ver os objetos,
uma vendo-os simplesmente,
outra considerando-os com atenção.

Poussin
8

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por tudo, pelo sustento, saúde, determinação, capacitação e pela
conquista no término desta caminhada.
À minha família, que constitui o alicerce de minha formação. Às minhas irmãs,
Viviani, Vania e Vanessa, cada qual contribuindo de forma distinta e marcante para cada
passo de minha jornada. Tantas vezes socorrida por Vanessa, que prontamente se
disponibilizou a entregar meus livros e documentos quando a longa jornada de trabalho me
impossibilitava, assim como a eficácia do suporte técnico dado pelos meus sobrinhos. Aos
meus amados pais, José Ranulfo da Silva e Marina Vitorelli da Silva, sendo minha mãe a
razão de minha conquista, não apenas pelo amor incondicional que lhe rendeu noites mal
dormidas, dispensando-me seus cuidados, carinhos, suporte e apoio, mas também por sua
simplicidade e perseverança, que a tornam para mim o exemplo mais vívido de luta e
dedicação.
Às minhas queridas amigas de vida acadêmica que me acompanham desde os
primeiros passos na graduação, Tatiana Pilon e Karen Cristina Leandro, sendo essa a
precursora e principal incentivadora desta empreita, motivando-me e me encorajando.
Um agradecimento especial para Eliane Candotti, que me incentivou com suas
palavras e atitudes, fazendo-se presente nos momentos finais da escrita desse trabalho,
cedendo seu tempo de descanso para ler meus escritos, assim como a amiga Andréia
Almeida Scatolin.
Meu profundo agradecimento ao admirável orientador Prof. Dr. André Luiz Joanilho,
que contribuiu desde minha formação na graduação, acreditou nesse projeto de mestrado e
caminhou comigo, esclareceu minhas dúvidas, acompanhou todo o desenvolvimento desse
trabalho, transmitindo seus conhecimentos, suas experiências, contribuindo com essa
pesquisa e tornando meus anseios em realidade.
9

SILVA, Verediana C. da. A GÊNESE DA NAÇÃO BRASILEIRA NA ICONOGRAFIA DO


SÉCULO XIX. 2013. 99 páginas. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, junho, 2013.

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é compreender uma gênese da ideia de nação brasileira


através da iconografia do século XIX, produzida no período de 1838 até 1893. As imagens a
serem analisadas: Engenho da cachoeira. Corte de cana-de-açúcar de Hércule Florence,
Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles, O Grito do Ipiranga de Pedro Américo e
Evangelho das Selvas de Benedito Calixto, bem como relatos de viagens, enquanto texto-
imagem, o surgimento do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), da Academia
Imperial de Belas Artes (AIBA), e o papel da elite intelectual ligada ao IHGB no contexto da
gênese da nação. Delimitando seu território, demonstrando sua organização, sua
genealogia, informando acontecimentos nas diferentes regiões do Brasil na busca de uma
homogeneidade da promissora nação brasileira, estimulando os mais profundos
sentimentos em prol dessa unidade nacional.

Palavras-chave: Nação brasileira, Iconografia, IHGB e História Cultural.

ABSTRACT

The goal of this research is to understand a genesis of the idea of brazilian nation
trough the iconography of the XIX century, produced in the period of 1838 to 1893. The
images to be analized: Engenho da cachoeira. Corte de cana-de-açúcar of Hércule Florence,
Primeira Missa no Brasil of Victor Meirelles, O Grito do Ipiranga of Pedro Américo, and
Evangelho das Selvas of Benedito Calixto, as well as the travelogues, whilst text-image, the
emerge of the Brazilian Geographic Historic Institute (IHGB), the Imperial Academy of Fine
Arts (AIBA), and the paper of the intellectual elite conected to IHGB in context of nation
genesis. Delimiting its territory, demonstrating its organization, its genealogy, informing the
events of different regions of Brazil in seeking of an homogeneity of the promissing brazilian
nation, stimulating the deepest feelings for this national unity.

Key-word: Brazilian nation, iconography, IHGB and Cultural History.


10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................... Erro! Indicador não definido.1


1. A GÊNESE DA IDEIA NACIONAL .................................................................................. 19
1.1 O contexto da gênese da ideia nacional ..................................................................... 21
1.2 O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e a ideia de nação .................................... 23
2. ICONOGRAFIA NA CONSTRUÇÃO DA IDEIA NACIONAL ........................................... 37
2.1 Academia Imperial de Belas Artes e a iconografia do século XIX ............................... 41
2.3 Relatos de viagem e suas contribuições..................................................................... 45
3. A GÊNESE NACIONAL NA PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO SÉCULO XIX .............. 51
3.1 Hércule Florence ........................................................................................................ 57
3.2 Victor Meirelles ........................................................................................................... 62
3.3 Pedro Américo............................................................................................................ 69
3.4 Benedito Calixto ......................................................................................................... 76
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 81
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 84
ANEXOS ............................................................................................................................. 88
11

INTRODUÇÃO

Esse trabalho tem o objetivo de compreender a gênese da nação no Brasil, através


de instrumentos e estratégias produzidas pela iconografia do século XIX.
Nossos estudos têm início na criação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro –
IHGB, em 1838, até por volta de 1893, quando o país já estava em pleno regime
republicano.
O IHGB, que analisaremos no primeiro capítulo, é a instituição que reúne a elite
intelectual em prol da construção da história nacional através de pesquisas, levantamento
documental e viagens ao interior do país, para conhecer, além de nossa história, também a
geografia, fauna, flora, povos, costumes e práticas regionais da nação.
O legado desse Instituto perdura além do Império, tendo desempenhado seu
importante papel no contexto da gênese nacional, mantendo-se ao que se propôs, e ainda
colaborando com a manutenção da nacionalidade até os dias atuais, pois ainda realiza
estudos, preserva seu acervo documental, disponibiliza biblioteca e outros espaços que
estimulam discussões e reflexões nas diversas áreas do conhecimento.
Nos primeiros anos do Instituto, o Brasil pós-independência precisava consolidar sua
identidade enquanto nação, necessidade advinda da elite intelectual brasileira e estimulada
por ela, despertando em cada um de seus cidadãos o sentimento de pertencimento que
garantiria sua continuidade de forma mais homogênea.
As diferenças, desigualdades e diversidades sempre existiram e existirão. Por se
tratar de um país com um grande território que é o caso brasileiro, a elite intelectual ligada
ao IHGB refletirá sobre esses aspectos, buscando estimular a identidade nacional dos
habitantes, das diferentes regiões do país, para alcançar sua unidade nacional.
Para refletir sobre a gênese da nação, esta pesquisa se volta, além de outros
aspectos, para a iconografia que alcança um público mais amplo, pois vai além das letras,
atingindo através do que retrata tanto a elite cultural que a produz como os demais
habitantes que lançam seus olhares para essas imagens.
Essa apropriação, por vezes involuntária à maior parte da população, pouco a pouco,
homogeneíza o povo do grande território brasileiro. Nesse sentido, o importante papel do
IHGB e da produção iconográfica realizada ao longo do século XIX nos leva a
aprofundarmos na iconografia produzida nesse contexto e nas produções historiográficas
dessa elite cultural ligada ao Instituto, ao mesmo tempo em que atentamos para estudos de
autores que fornecem elementos norteadores quanto ao trato de nossas fontes e objetos de
pesquisa.
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Atentando para o homem, em seu espaço e durante um tempo delimitado, ainda que
pareça um clichê, é um processo necessário para a produção do historiador. Essa ideia nos
remete aos estudos de Jorge Coli sobre o historiador, no contexto do estudo da arte no
período oitocentista, onde o autor afirma que “os historiadores costumam encontrar apenas
aquilo que procuram” (COLI, 2005, p. 25).
Essa afirmação sobre o papel do historiador, bem como a escrita da história da
nação, leva-nos a refletir sobre relações, para compreendermos melhor nossos objetos de
estudos, como foram produzidos e o contexto dessa produção, além do “uso” e da finalidade
de cada imagem.
Nos estudos de Michel de Certeau, apresentados em “A escrita da história”, dentre
outros aspectos seus, traz escritos sobre as instâncias da operação historiográfica, o “lugar
social”, a prática, a escrita, o paradoxo da realidade e discurso, dando sentido ao “outro”. O
outro que nos inspira e instiga enquanto historiadores, buscando cada um destes aspectos
para concluirmos as operações que nossas hipóteses, coloca-nos fazendo uma “triagem”.

No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o que pode ser
"compreendido" e o que deve ser esquecido para obter a representação de uma
inteligibilidade presente. Porém, aquilo que esta nova compreensão do passado
considera como não pertinente – dejeto criado pela seleção dos materiais,
permanece negligenciado por uma explicação – apesar de tudo retorna nas franjas
do discurso ou nas suas falhas: "resistências”; "sobrevivências" ou atrasos
perturbam, discretamente, a perfeita ordenação de um "progresso" ou de um sistema
de interpretação (CERTEAU, 1982, p.16).

Nesse contexto de triagem, quanto ao que pode ser compreendido através de


nossas fontes, vamos de encontro com as mentalidades, com a interdisciplinaridade,
antropologia, arte, psicologia, entre outras áreas que a Nova História traz com a
abrangência dos campos de pesquisa para objetos, tais como: sentimentos, ideias,
conceitos e a imaginação que permeiam a história das sociedades.
Essa historiografia é a base de nossos estudos ao longo dessa pesquisa, a qual
trouxe a proposta de ampliação de temas e diferentes abordagens, inspirando-nos a esse
mergulho no contexto da gênese nacional brasileira, que visa a trabalhar além dos textos,
das produções historiográficas e relatos de viagens publicados na revista do IHGB, o uso de
imagens.
As pesquisas utilizando a iconografia como fonte vêm ganhando um espaço cada
vez maior entre os historiadores da atualidade. Ao trabalharmos com a imagem, abordamos
aspectos mais amplos que apenas valores estéticos; sendo assim, podemos materializar
costumes, atitudes, características de grupos e da sociedade de forma geral, como afirma
Hans Belting (apud SCHIMITT, 2002), em seus estudos sobre a história das imagens, onde
o autor tem a imagem como um vocábulo mais amplo.Essa amplitude de abordagens da
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imagem se fez presente em nossa pesquisa sobre imagens produzidas ao longo do século
XIX.
De acordo com Benjamin West, “a mesma verdade que guia a pena do historiador
deve governar o pincel do artista” (apud BURKE, 2005, p.20) e, partindo da produção do
mesmo, temos a transmissão dos “conhecimentos” pertinentes ao contexto da produção
imagética.
Meneses, em seus estudos sobre identidade relacionada à arte, atenta para
identidade com “seus compromissos com a imagem, campo fértil para a mobilização
ideológica e as funções de legitimação em que determinadas práticas obtêm aceitação
social” (MENESES, 1993, p. 210).
Assim, a imagem transmite informações de maneira direcionadas, como percebemos
nos estudos de Aumont ao discorrer sobre o espectador, quando afirma que os olhos “são
postos avançados do encontro do cérebro com o mundo” (AUMONT,1993, p.77). Afinal,
partindo da ideia que ver é o mecanismo dos olhos e o olhar é algo mais amplo, construído
histórica e socialmente, cabe ao artista incitar que sua obra seja olhada.
Autores como Louis Marin e Carlo Ginzburg contribuem com nossa pesquisa através
de seus estudos sobre as imagens, bem como Roger Chartier que nos instiga através da:

identificação das diferenças entre os tipos de percepção em funcionamento, que


deve evitar qualquer deslize indevido e não controlado do léxico. Entretanto, as
estreitas relações estabelecidas na tradição ocidental entre textos e imagens, leitura
do escrito e “leitura” do quadro, incitam colocar como centrais as relações entre as
duas formas de representação, que sempre se excedem uma a outra, mas que
também, como testemunha Poussin, sempre articulam o visível sobre o legível
(CHARTIER, 2011, p.22).

Atentamos para o contexto do período de nossos estudos e a produção


historiográfica dos intelectuais ligados ao IHGB na construção da ideia de gênese nacional
brasileira, que não mediram esforços para a criação e consolidação do Instituto, bem como
o levantamento documental, as reuniões, discussões e produções publicadas na Revista.
Como afirma Chauí, “tanto mais quando consideramos as várias formas tomadas pela
ideologia dos grupos dirigentes do país, desde o início deste século, e nas quais a ideia de
Nação, como resultado da ação do Estado sobre a sociedade sempre foi fundamental”
(CHAUÍ, 1989, p. 99).

A classe dominante brasileira para servir-lhe de suporte e de auto-imagem


celebrativa, enfatizando o lado “bom selvagem tropical” que constituiria o caráter
nacional brasileiro na perspectiva das oligarquias agrárias, embevecidas com o mito
do brasileiro cordial, ordeiro e pacífico (Idem, 1989, p.96).

A nossa hipótese principal de compreender que as imagens a serem analisadas,


bem como textos produzidos ao longo do século XIX, principalmente pela elite ligada ao
14

IHGB sobre a égide de D. Pedro II, buscaram construir uma nação, delimitando seu
território, demonstrando sua organização, sua genealogia, informando acontecimentos nas
diferentes regiões do Brasil na busca de uma homogeneidade da promissora nação
brasileira, estimulando os mais profundos sentimentos em prol dessa unidade nacional.
Como apresenta Chauí em seus estudos sobre nação,

Todavia, visto ser possível falar em “sentimento nacional” e em “consciência


nacional” como fundadores de uma “identidade nacional”, assim como é possível
falar em “soberania popular”, materializada em instituições políticas visíveis, e na
materialidade do “espírito do povo”, presente nos mores e na língua, é preciso
admitir que a exterioridade – o nacional – comporta interioridade – o popular –
comporta exterioridade (CHAUÍ, 1989, p. 96).

A elite intelectual concentrou esforços colocando de lado o popular de cada região


em prol da interiorização do que caracterizaria o nacional, por isso evitar segmentações ao
longo do vasto território, buscando uma história do Brasil, reconhecendo-se enquanto
nação, que tem a mesma origem, compartilham o mesmo passado, usufruindo do mesmo
presente, e como discorre Chauí, devem falar a “mesma língua” com o foco no futuro
nacional.

Por isso, dois fenômenos podem ser percebidos na referência da língua à Nação.
Por um lado, o fato de que no interior da Nação as pessoas, ainda que falem a
mesma língua, não falam a mesma linguagem, de tal modo que a ideia de língua
nacional pode ser apenas uma abstração (um elemento da ideologia e do discurso
do poder); a língua nacional pode ser mera abstração quando considerada pelo
ângulo da diferença interna de classes e da diversidade regional (Idem, 1989, p.
112).

Para alcançar todas as classes e regiões citadas por Chauí, remetemo-nos aos
estudos de Peter Burke, ao escrever sua obra Testemunha Ocular (2004), quando salienta o
auxílio da imagem na compreensão dos processos históricos e instiga as pesquisas, como a
nossa, que se utiliza das fontes imagéticas, sejam elas pinturas, fotos, gravuras, entre
outras, pois para o autor as “imagens como textos e testemunhos orais constituem-se numa
forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunha ocular” (BURKE,
2004, p.17).
Essa veracidade do testemunho ocular sobre a imagem colaborou principalmente no
que se refere a duas obras, dentre as quatro imagens que analisaremos ao longo dessa
pesquisa, afinal são imagens que dão maior veracidade para esses acontecimentos e
suscitam sentimentos dignos de quem está vendo o fato com seus próprios olhos,
transportando as descrições ao alcance do olhar, através de traços dos artistas: Hércule
Florence, Victor Meirelles, Pedro Américo e Benedito Calixto.
Todos esses artistas são responsáveis por obras que suscitam sentimentos tão
almejados para a efetivação do projeto nacional; ainda que os pintores não tenham
15

presenciado todos esses eventos, muitos estudos foram necessários para realizá-los com tal
veracidade digna de suscitar e sustentar o sentimento nacional.
Ao longo do processo emancipatório do Brasil, a colônia portuguesa, então
independente, tem a constituição da nação como mais uma etapa a superar. Pensar na
gênese da nação brasileira é pensar na gênese do IHGB, um subsiste pelo outro e para o
outro, afinal, o “IHGB como centro de estudos e pesquisa congregará, nesse contexto, não
apenas a elite econômica, mais também a artística e literária” (SCHLICHTA, 2006, p.81).
Na obra “Mitos, emblemas e sinais”, Carlo Ginzburg (1989, p. 92) salienta em seus
estudos que “seja como for, é claro que o artista cria sua elite, e a elite cria seus artistas”, e
a elite cultural que dará início à produção histórica brasileira, seja com letras ou pinceladas,
reunir-se-á no IHGB, como afirma José Honório Rodrigues, quanto ao papel norteador do
IHGB, apresentando em seus estudos:

a pesquisa histórica no Brasil nasceu com a fundação do Instituto Histórico


Geográfico Brasileiro. Antes existe apenas a pesquisa individual, o trabalho de um
ou outro estudioso, que tenta encontrar, em arquivos nacionais ou estrangeiros,
peças novas que fundamentem os temas a desenvolver (RODRIGUES, 1969, p.37).

Dentre os temas, a gênese nacional não é tratada dessa maneira, mas através de
conceitos intrínsecos, como a questão da identidade. Meneses, em seus estudos, afirma
que a identidade “se fundamenta no presente, nas necessidades presentes, ainda que faça
apelo ao passado – mas é um passado também ele construído e reconstruído no presente,
para atender aos reclames do presente. Por isso é que um historiador como Hobsbauwm
(1984) tanto insistiu na invenção das tradições” (MENESES, 1993, p.210).

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido.
Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente
institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num
período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas -
e se estabeleceram com enorme rapidez” (HOBSBAWM, 1997, p.9).

Dividindo nossos estudos em três capítulos, o primeiro aborda o contexto da gênese


da ideia de nação e o surgimento do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, sua
composição e funcionamento, abordando a gênese da ideia nacional, a partir do vasto
território que vinha abrindo precedentes para histórias regionais. Isso porque cada região
possuía características e costumes próprios, o sul com seu ponto de vista, a região norte
resistia à liderança do Rio de Janeiro e o nordeste se encontrava dividido. Seriam as
diferenças regionais que se acirravam, ao mesmo tempo em que se buscava um
reconhecimento da emancipação do Brasil como um todo.
Na ânsia de evitar essas segmentações, a necessidade de suscitar um passado
único e coerente para a nação brasileira como um todo é o primeiro passo, pois pensar na
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origem, no povo e nos rumos a serem tomados pela nação são aspectos pertinentes,
principalmente para que sentimentos como o nacionalismo fosse estimulado.
Neste contexto, torna-se pertinente falarmos sobre tradições inventadas:

Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: a) aquelas que


estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um
grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou
legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c) aqueles cujo propósito
principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de
comportamento. Embora as tradições do tipos b) e c) tenham sido certamente
inventadas, pode-se partir do pressuposto de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo
as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de
identificação com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam,
expressam ou simbolizam, tais como a “nação” (HOBSBAWM, 1997, p.17).

Guimarães em seus estudos salienta que, para esses estímulos surgirem, a jovem
nação necessitaria de sua história, pautada em fontes racionais, então a necessidade dos
levantamentos documentais e da busca da civilidade de nossa origem europeia, valorizando
o povo e despertando assim o patriotismo (GUIMARÃES, 2007, p.105).
Essa busca leva os intelectuais do Instituto a indagações, afinal a nação necessita de
tudo que a elite intelectual julga pertinente, tais questionamentos como o que é história e
como deveria ser escrita nossa história. Ambas as questões estão presentes na Revista do
IHGB, (R. IHGB 1863, p.137 e 138) e motivam inúmeros estudos publicados em suas
edições.
As “tradições inventadas” podem ter de um modo ou de outro, para os estudiosos da
história moderna e contemporânea. Elas são altamente aplicáveis no caso de uma
inovação histórica comparativamente recente, a “nação”, e seus fenômenos
associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as
interpretações históricas, e daí por diante. Todos esses elementos baseiam-se em
exercícios de engenharia sociais muitas vezes deliberados e sempre inovadores,
pelo menos porque a originalidade histórica implica inovação (HOBSBAWM, 1997,
p.22).

No capítulo dois abordaremos a iconografia no processo da construção da ideia de


nação brasileira, o papel da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) ao longo do século
XIX e os relatos de viagens que eram publicados na Revista do IHGB, sendo estes,
inovações em prol da gênese nacional e resultantes de expedições ao interior do país, a fim
de realizar levantamentos necessários para a escrita da história do Brasil e papel da
iconografia. Afinal o “IHGB, como centro de estudos e pesquisa, congregará, nesse
contexto, não apenas a elite econômica, mas também a artística e literária” (SCHLICHTA,
2006, p.81).
A elite se dedica a essa busca transitando dentro e fora do país, realizando
levantamentos documentais e produções escritas. No caso das artes, dedica-se a cursos na
Academia Imperial de Belas Artes e em estudos no exterior com gênios da pintura. Ambos
17

buscam diferentes formas sem medir esforços para que nossa nação garantisse suas
próprias produções.
No capítulo três vamos abordar a constituição da gênese de nação, mais
especificamente na produção iconográfica do século XIX, analisando quatro obras,
atentando para quais aspectos eram retratados do povo, costumes e locais que eram
exibidos nas obras. Neste contexto, torna-se pertinente incluirmos a questão de nação,
nacionalidade e nacionalismo.
Deste modo, voltamo-nos para conhecer aspectos relevantes sobre a vida de cada
um dos pintores, analisando suas respectivas obras e o contexto da produção de cada uma
delas, bem como a formação, as aspirações e inspirações de cada um dos artistas, que
permitiram a realização das obras. São elas: Engenho da cachoeira. Corte de cana-de-
açúcar, 1848 (Anexo I) de Hércule Florence; Primeira Missa no Brasil, 1860 (Anexo II) de
Victor Meirelles; OGrito do Ipiranga, 1888 (Anexo III), de Pedro Américo; e por fim a obra
Evangelho das Selvas, 1893 (Anexo IV) de Benedito Calixto.
A opção por essas obras não se dá de forma aleatória. As temáticas se entrelaçam
e, ainda nos aspectos que se distanciam, de alguma forma dialogam entre si. Assim,
optamos por essas obras que disponibilizam alguns pontos de vista sobre diferentes
momentos de nossa nação e marcando alguns atos inaugurais.
Partindo de seu “descobrimento”, através da missa que simboliza um marco de
nossa nação (Primeira Missa no Brasil), aos primeiros momentos de sua existência, desde o
momento em que a terra inóspita, desconhecedora do evangelho que os europeus trazem
encarando todas as dificuldades e superando-as em prol do promissor Império (Evangelho
das Selvas). O ato heróico que mudou o rumo da colônia em império (O Grito do Ipiranga) e
a domesticação da natureza atentando a uma fazenda no interior do país através dos traços
de quem adentrou o território em expedições (Engenho da cachoeira. Corte de cana-de-
açúcar).
Os motivos para a escolha desses artistas em detrimento de outros, que poderíamos
abordar nesse contexto da gênese nacional, gira em torno da sua interação quanto à
consolidação de nossa identidade. Américo e Meirelles e seus estreitos laços com o Instituto
e com a AIBA, onde foram beneficiados com os incentivos disponíveis ao longo deste
período. Florence integrou expedições ao interior do país e posteriormente tornou-se
membro do IHGB, enquanto Calixto, ainda que mais próximo da elite paulista, dialogava
com a capital do Império, mantinha contato com Victor Meirelles, e em sua obra aborda
nossa terra com um olhar ao “selvagem” e com a “civilidade” através da fé ao seu alcance.
Assim, refletiremos sobre o contexto da produção dessas obras iconográficas, os
aspectos presentes, como elas aparecem na historiografia e como a historiografia discute
18

dessa produção do século XIX, bem como algumas dessas imagens são tomadas como
documento da história nacional. Atentaremos ainda para as obras na atualidade, se estão
expostas, se contribuíram com a gênese e ainda contribuem com a manutenção da ideia de
nação brasileira.
19

1. A GÊNESE DA IDEIA NACIONAL

A origem da palavra “nação” é tratada por Marilena Chauí (2007, p. 14) em seus
estudos, apontando a origem no verbo latino, “nascor (nascer) e de um substantivo derivado
desse verbo, natio ou nação, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada”. No
entanto, a palavra natio/nação passou a significar algo além dos animais de uma ninhada,
sendo estendida aos indivíduos nascidos em um mesmo lugar. Assim, “a palavra “nação”
significava apenas um grupo de descendência comum” (Idem, 2007, p.15).
Já Anderson, em seus estudos, afirma que “desse modo, sou levado à conclusão de
que não se pode estabelecer nenhuma ‘definição científica’ de nação; contudo, o fenômeno
tem existido e continua a existir” (apud ANDERSON, 1989, p.11).
Nessa vertente, Marilena Chauí vai além e trata da temporalidade, apresentando
quão recente se deu a invenção histórica da nação, sendo essa entendida como um
Estado-Nação, utilizando-se para sua definição o processo de independência, ou soberania
política (CHAUÌ, 2007, p.16).
Ao refletir sobre o conceito de nação, não se pode deixar de falar sobre pátria, pois
são termos que remetem um ao outro. Pátria deriva do vocábulo pater, significa pai e “se
refere, portanto, ao poder patriarcal, e pátria é o que pertence ao pai e está sob seu poder”
(Idem, 2007, p.15). Por conseguinte, é a partir do século XVIII que pátria passa a significar
território.
De acordo com a autora, essa referência de pátria ligada ao território foi muito
utilizada no período das

revoltas de independência, ocorridas no Brasil nos finais do século XVIII e início do


século XIX, os revoltosos falavam em “pátria mineira”, “pátria pernambucana”, “pátria
americana”; finalmente, com o patriarca da independência, José Bonifácio, passou-
se a falar em “pátria brasileira”. Durante todo esse tempo, “nação” continuava usada
apenas para os índios, os negros e os judeus” (Ibidem, 2007, p.16).

Esses estudos demonstram, mais uma vez, a busca da unidade territorial no que diz
respeito ao uso da palavra pátria, terra que pertencemos, seja a natal ou a que nos
apropriamos de coração, através de um sentimento mútuo de pertencimento, e demonstra
ainda a ampliação do uso do termo “nação”, não restrita apenas a um determinado grupo,
mas sim englobando todos os habitantes do Brasil em prol de sua unidade nacional.
Por fim, Chauí nos chama a atenção para o termo pátria, comungando das mesmas
intenções do termo nação, que é o despertar dos mais fortes e intensos sentimentos neste
contexto de gênese da ideia nacional brasileira, utilizando todos os atributos para essa
concretização, porque “não se deve amar a pátria somente por ser a pátria, mas também
20

pelos motivos reais que ela nos dá para amá-la e para que dela nos orgulhemos” (CHAUÍ,
2007, p.15).
No Brasil oitocentista, em meados do segundo reinado, surge a necessidade de se
pensar sobre a ideia nacional, com a responsabilidade de suscitar pensamentos e
sentimentos que caracterizam a nação. “Era preciso criar a ideia de homem brasileiro, de
povo brasileiro, no interior de um projeto de nação brasileira. Sobretudo: era preciso
perceber a nação como diferença e continuidade colonial e como continuidade da diferença
colonial” (REIS, 2002, p.31).
Reconhecer que éramos uma colônia portuguesa nos rendeu a genealogia europeia
e um marco nacional, porém o deixar de ser colônia vai além, transformou-nos em Império.
Assim, o amplo território, a variedade de costumes e hábitos das diferentes regiões do
Brasil, bem como dos grupos que as habitavam, emanava possibilidades de vários pontos
de vista e histórias regionais sobre seus primeiros habitantes e seus “descobridores”. O que
não se queria eram informações descentralizadas, ora deslocadas do contexto da nação,
exprimindo o que não se pretendia para a antiga colônia portuguesa e promissor Império.
Afinal, o que caracteriza uma nação além do idioma, costumes, leis, religião, entre
outros aspectos em comum, é a unidade existente em determinado grupo. Esta ideia de
buscar a unidade serve como um elemento importante para garantir sua continuidade. Em
se tratando do imenso território brasileiro podemos deduzir esforços diretamente
proporcionais.
No anseio de consolidar a unidade imperial, com certa uniformidade cultural evitando
as fragmentações, ideias como o pertencimento, onde ao se sentir como parte integrante do
todo, identificamo-nos e, consequentemente, temos a valorização e o cuidado. Sentimentos
necessários no contexto da construção da identidade nacional. Indagações como “quem
somos?”, “de onde viemos?”, além de pré-requisito para essa reflexão, ainda nos remete a
pretensões futuras, para “aonde vamos?” ou até “onde almejamos chegar”.
Nesse sentido, no Brasil, a missão de levantamento documental, pesquisas, viagens
ao interior do país para conhecer além de nossa história, também a geografia, fauna, flora,
povos, costumes e práticas regionais da nação foi atribuída ao Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro – IHGB. De acordo com os estudos de Ricupero:

O passado, reconstruído intelectualmente, é, de maneira geral, uma importante fonte


de legitimação para o poder e a ordem social existente. Basicamente seleciona-se
entre os acontecimentos e as estruturas do passado aquilo que pode dar suporte a
uma narrativa que dote de significado a experiência da comunidade nacional
(RICUPERO, 2004, p. 114).
21

Ainda neste contexto das produções advindas dos levantamentos realizados pelos
membros do Instituto, a iconografia desempenha importantíssimo papel na construção da
gênese brasileira, ao apresentar através da linguagem visual as imagens que ilustram
aspectos do povo, as paisagens e suas formas, os costumes e práticas locais.

1.1 O CONTEXTO DA GÊNESE DA IDEIA NACIONAL

O Império, anteriormente colônia de Portugal, com seus poucos séculos de


“existência”, buscava entre outros aspectos salientar sua origem europeia para, através
desta, incentivar o futuro imperial promitente. Esta genealogia data de aproximadamente
1500, quando através do Oceano Atlântico, a expedição portuguesa, chefiada por Pedro
Álvares Cabral aporta neste solo e encontra o vasto território, à primeira vista considerada
como ilha, logo denominada Terra de Vera Cruz e transformada em colônia portuguesa.
Desbravar a colônia, conhecer suas capacidades minerais, de fauna, flora,
especiarias, madeira, fertilidade da terra, ocupa o momento inicial da chegada lusitana, que
logo divide esforços com a necessidade de “civilizar” os indivíduos que aqui encontraram, os
indígenas, e catequizá-los. Atitudes comumente propostas na relação conquistador e
conquistado.
Nessa relação, a unidade cultural entre metrópole e colônia é importante para que se
componham esses novos indivíduos a partir de seus referenciais, práticas e costumes,
evitando o desconhecido e as consequências desfavoráveis que isso pode trazer para seus
colonizadores.
Após o período inicial da colonização, estreitos laços entre metrópole e colônia
ocorrem ainda no período colonial, quando o Brasil torna-se residência da família real
portuguesa, que em meio ao conflito Inglaterra versus França, acaba sofrendo em 1806 o
Bloqueio Continental, por meio do qual Napoleão impedia países europeus de
comercializarem com a Inglaterra. Portugal se manteve por algum tempo fornecendo
produtos para os ingleses, até o momento em que Napoleão com o apoio da Espanha
ameaça invadir Portugal.
Assim, “estimulada” pelas ameaças das tropas napoleônicas, prestes a invadi-los, os
monarcas lusitanos batem em retirada da Europa para sua principal e mais rica colônia. Em
1808 desembarcam no litoral nordeste, em Salvador na Bahia. Sem nos aprofundarmos
neste período, anterior ao referente à nossa pesquisa, retomamos alguns aspectos para
contextualizar o que antecede a ideia nacional, uma vez que esses acontecimentos
culminam no período referente aos nossos estudos.
22

Tempos depois deste desembarque em solo brasileiro D. João vai com a família real
para o Rio de Janeiro, onde realiza mudanças estruturais importantes para a colônia tornar-
se a sede do governo. Foram criadas instituições que tornavam possível o funcionamento do
aparelho governamental e ainda decretada a Abertura dos Portos para nações com que
mantinham estreitos laços, como é o caso da Inglaterra.
A decretação da Abertura dos Portos (1808) liberou o comércio externo que, até
então, era monopolizado pelos portugueses e agora permitia ao Brasil comercializar
diretamente com outros países, possibilitando a manutenção da produção manufatureira
agrícola.
Já em 1822, D. Pedro, príncipe herdeiro do trono da metrópole, proclamou a
emancipação política da antiga colônia, rompendo oficialmente os laços com Portugal,
proclamando nossa independência e assumindo seu governo com o título de Imperador do
Brasil. Permanece no Brasil até meados de 1831 e D. Pedro II torna-se o Imperador.
Neste contexto, D. Pedro II passa a refletir sobre algumas necessidades para se
legitimar um futuro tão promissor quanto o do Velho Mundo ao jovem e amplo Império:
delimitar seu espaço, definir sua gênese, a identidade nacional, buscando, ao mesmo tempo
em que se distancia de histórias particulares, registros dispersos, voltar seu olhar para a
escrita de uma história “única” e comum para seu vasto território.
O Brasil independente de Portugal necessitava de um perfil próprio e a elite realiza a
“tarefa de pensar no Brasil segundo seus postulados próprios de uma história comprometida
com o desvendamento do processo da gênese da Nação” (GUIMARÃES, 1988, p.6).
Esse processo da gênese nos remete aos estudos de Chauí sobre nação, que nos
aprofundaremos no próximo capítulo, porém ressalta a importância da elite,

o Estado-nação precisou contar com a elite cultural que lhe fornecesse não só a
unidade linguística, mas lhe desse os elementos para afirmar que o desenvolvimento
da nação era o ponto final do processo, que começava na família e terminava no
Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso (CHAUÍ, 2007, p.18).

A assimilação deste processo e a incorporação de saberes indispensáveis para


despertar sentimentos pela nação requerem um aprendizado, possível de ser alcançado
através de pesquisas, levantamento documental, entre outras práticas que nossa elite se
dispõe fazer, pois de acordo com Thiesse “o sentimento nacional só é espontâneo quando já
totalmente interiorizado”; contudo, implica em um processo de ensino-aprendizagem (Apud
SCHLICHTA, 2006, p.61).
Na intenção de atingir o ensino e alcançar a homogeneidade, remetemo-nos à
afirmação de Marilena Chauí:
23

A proliferação de discursos diversos e diferentes sobre a Nação faz com que


existam muitas “nações” na Nação – no caso do Brasil, as “nações” se diversificam
com o discurso positivista, o romântico, o ilustrado, o integralista, o populista, o
tecnocrático. Cada uma dessas “nações” determina um modo diferente de conceber
a sociedade e a política, cada qual combate e exclui as demais, e cada qual
pretende oferecer-se como discurso da “verdadeira Nação” (CHAUÍ, 1989, p.113).

Esse aprendizado estimula a interiorização do sentimento nacional, que solidifica a


nação e a prepara para lidar com discursos que pudessem surgir, sem abalar os alicerces e
a unidade da nação.

1.2 O INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO BRASILEIRO – IHGB E AS IDEIAS DE


NAÇÃO

Para que o aprendizado e interiorização do sentimento nacional de pertencimento


acontecessem, nesse contexto de gênese da nação brasileira surge o Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, o IHGB, criado em 21 de outubro de 1838, uma instituição nos
moldes de academia, de acordo com “as academias literárias provinciais francesas do
século XIII” (GUIMARÃES, 1988, p.6) e inspirado no Institut Historique de Paris (fundado
em 1834, e com estreito contato principalmente nos primeiros anos de nosso Instituto e
através de membros em comum).
De acordo com este modelo acadêmico, o IHGB mantém a tradição da centralização
de informações das diferentes regiões do país, remetidas para o Rio de Janeiro, ponto de
unificação no que diz respeito a se pensar em histórias regionais em prol da história do
Brasil.
Em 25 de novembro de 1839, o primeiro secretário do Instituto, Januário da Cunha
Barbosa, apresenta em discurso as principais diretrizes do IHGB; de acordo com
Guimarães, estabelece “para o desenvolvimento dos trabalhos: a coleta e publicação de
documentos relevantes para história do Brasil e o ensino público, de estudos de natureza
histórica” (Idem, 1988, p.8).
O primeiro artigo do estatuto já deixa claros seus objetivos: “o IHGB tem por fim
coligir, metodizar, publicar ou arquivar os arquivos necessários para a história e geografia do
Império do Brasil” (apud RICUPERO, 2004, p.114). O Instituto teria a missão não apenas de
escrever a história nacional, mas acumulava a incumbência do levantamento documental
em prol da escrita da história oficial brasileira.
O Instituto tinha uma importante incumbência, “em suas mãos estava a
responsabilidade de criar uma história para a nação, inventar uma história para um país que
deveria separar, a partir de então, seus destinos dos da antiga metrópole europeia”
(SCHLICHTA, 2006, p.67).
24

Administrativamente o Instituto define o número de cinquenta membros ordinários


(25 na seção de História e 25 na seção de Geografia), possuindo número ilimitado de sócios
correspondentes nacionais, estrangeiros e sócios de honra, além da proteção do Imperador
D. Pedro II. Apreciador das artes e das letras, o Imperador, além de apoiar financeiramente,
era frequentador assíduo das sessões do Instituto, acompanhando de perto a escrita da
história nacional, ao contrário de sua participação na Câmara, restrita a aberturas e
encerramento das atividades no início e fim do ano1.
Ao observarmos os sócios do Instituto, que no geral possuíam formação jurídica,
nota-se que eram servidores públicos, magistrados, professores, militares, parlamentares,
conselheiros, grande parte deles engajados no aparelho do Estado, enfim, pessoas ilustres
da sociedade.
Quanto à predominância da formação jurídica, remetemo-nos aos estudos de
Stephen Bann que ao relacionar a história com suas irmãs, medicina, teologia, “o direito está
mais intrinsecamente envolvido na auto-realização da profissão histórica: ele partilha com a
história o método controverso e a questão do julgamento, de modo que os historiadores
tiveram de lutar muito para se dissociarem de seu braço institucional” (BANN, 1994, p.49).
Além dessas características intelectuais e profissionais, quem era essa elite?
Carvalho (1981, p.51) afirma que “era uma ilha de letrados num mar de analfabetos”, afinal
grande parte da população não lia e de acordo com Schwarcz, ao mesmo tempo em que
essa elite “se perguntava incessantemente sobre sua identidade, sobre sua verdadeira
singularidade” (SCHWARCZ, 1998, p.148).
Desta forma, essa elite intelectual, que pensa na gênese no período de nossos
estudos, advém da elite econômica, que subsidia os estudos de seus filhos na Europa, e
retornando se empenham para que a história brasileira seja escrita por um grupo, de acordo
com Schwarcz:

composto em sua maior parte da “boa elite” da Corte e de alguns literatos


selecionados, que se encontravam sempre aos domingos e debatiam temas
previamente escolhidos, o IHGB pretendia fundar a história do Brasil, tomando como
modelo uma história de vultos e grandes personagens sempre exaltados, tal qual,
heróis nacionais (Idem, 1998, p.127).

1
Em prol de uma memória nacional D. Pedro II mantém e cria instituições importantes para a sua própria
legitimação, como é o caso do Colégio D. Pedro II criado em 02/12/1837, o Arquivo Público em 09/01/1838
com função mais voltada ao administrativo do que função histórica e o IHGB. Essas instituições são
importantes para o período, uma vez que na primeira metade do século XIX a formação acadêmica era
privilégio de poucos. Aqui percebemos como se consolidou nossa elite cultural, afinal muitos realizavam seus
estudos no exterior, de acordo com Carvalho, até 1850 a maioria dos membros da elite foi educada em
Coimbra e outra característica relevante é que “a educação superior se concentrava na formação jurídica e
fornecia em consequência um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades.” (CARVALHO, 1981, p. 51).
25

Nas publicações da revista nos deparamos com exemplos dessa exaltação, na


biografia de muitos destes brasileiros, já denominados no titulo destes textos: “Biographia
dos Brazileiros distinctos por letras, armas, virtudes, etc”, palavras que antecediam o nome
completo dos personagens a serem descritos em suas áreas de atuação específicas, pois a
história “deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esquecimento os
nomes dos seus melhores filhos.” (REIS, 2002, p.26).
Além das biografias, discursos e homenagens fúnebres, muitos trabalhos publicados
na Revista do IHGB utilizavam a história e geografia do território brasileiro para definir a
nação. Visando “produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior das elites
brasileiras” (GUIMARÃES, 1988, p.6), em um primeiro momento para a posteriori difundir ao
restante da sociedade.
Essa homogeneização já estava presente de certa forma nesta elite intelectual, de
maneira até mais intensa que na metrópole, e se utilizará dos estudos realizados para a
produção dos textos apresentados no IHGB, escritos após pesquisas, levantamento de
documentação no interior e exterior do país, viagens e expedições ao interior do território,
registrando povos, costumes e práticas, relevo, limites e fronteiras, vegetação, rios,
elaboração de mapas, estudos sobre clima, fauna, biografias de personagens relevantes,
nossos ”brasileiros distintos” para serem publicados na Revista do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, trimestralmente, sendo a primeira edição datada de 1839.
Atentando para a afirmação de Schwarcz que “tudo colabora para a construção de
uma identidade feita de muitos empréstimos e várias incorporações” (SCHWARCZ, 1998, p.
141), percebemos que a exaltação de nossos atributos externos e internos, sendo os
principais a natureza rica e o território amplo, com variedades e belezas quase incontáveis,
descritos em muitos dos estudos geográficos e também nos históricos.
O despertar oriundo das letras de nossa elite reforça o importante papel de cada um
dos estudos publicados para a escrita de nossa história, e a necessidade de obter essas
produções faz com que o Imperador incentive de novas formas os membros e sócios,
através de premiações das produções mais instrutivas, com medalhas e prêmios em
dinheiro.
Em 1840 o primeiro secretário Januário da Cunha Barbosa, ao afirmar “que o
Instituto deveria ser a luz a retirar a história brasileira de seu escuro caos, superando uma
época percebida e vivida como necessitada de luz e ordem’” (Idem, 2001, p.69), decide
oferecer um prêmio de cem mil réis para quem apresentasse:

o melhor plano de se escrever a história antiga e moderna do Brasil organizada com


tal sistema que nela se compreendam as suas partes, política, civil, eclesiástica e
literária. Os demais sócios, sensibilizados com a proposta, decidem assumi-la como
própria oferecendo adicionais 100$000 rs (RICUPERO, 2004, p.124).
26

Vencedor de um desses prêmios, Karl Friedrich Von Martius2 disputou com Henrique
Julio de Wallenstein3, de origem germânica, que teve seu plano4 julgado pela comissão
como pouco filosófico, e propunha a periodização do passado “de acordo com o método das
décadas, seguido por Tito Lívio, concentrando preferencialmente em assuntos políticos e
deixando a história civil, eclesiástica e literária para artigos em separado” (RICUPERO,
2004, p.124).
Apresentando a proposta vitoriosa, refletindo a concordância do Instituto com seu
plano de como se produzir da melhor forma a história do Brasil, o bávaro Von Martius5, que
se mostra consciente de ser um estrangeiro propondo a escrita da história brasileira, e
reflete sobre o impacto ou desconforto que poderia ser gerado por sua nacionalidade ser
outra, explicitado no momento de apresentar sua produção Como se deve escrever a
história do Brasil.
Von Martius afirma “muito longe estou eu de me julgar do número dos ilustres
literatos brasileiros habilitados para preencherem as vistas do Instituto” (apud Idem, 2004
p.87). Comedimento a parte, o pontapé inicial de seu trabalho cerceou muitos outros
estudos por parte de intelectuais do IHGB.
Afinal, mesmo sendo estrangeiro, Martius não era um estranho, já era sócio do
Instituto desde os primeiros tempos e superou o plano de Wallenstein considerado por
alguns integrantes da comissão julgadora como “lacônico e impiedoso” (CEZAR, p.174,
2003).
O texto apresentado por Von Martius e premiado como proposta para como deveria
ser escrita nossa história “não se trata apenas de uma recusa de modelos antigos da
historiografia, mas da afirmação de uma nova abordagem histórica, a história filosófica”
(Idem, p.175, 2003).

2
Martius (1794-1868) era botânico e foi escolhido pela Academia de Ciências de Munique, juntamente com o
zoologista Johann Baptist von Spix, para integrarem uma missão científica para conhecer a América,
resultando na publicação de Viagem para o Brasil em três volumes entre 1823 e 1831. (CEZAR, p. 176, 2003)
3
Wallestein (1790 - 1843), membro do IHGB desde sua fundação, de acordo com Januário da Cunha Barbosa,
nasceu em Hogue cidade da Silesia Prussiana, aos 20 anos parte para Espanha e torna-se membro da
Academia de História e outras Sociedades Literárias da Espanha, morou em outros países da Europa, dedicou-
se por algum tempo aos estudos e observações astronômicas, mudou para os Estados Unidos onde residiu até
1832, quando aceitou ser cônsul e desembarcou no Rio de Janeiro. Em pouco tempo se casou com uma
brasileira, teve dois filhos e declarava seu amor por nosso país. Suicidou-se pouco tempo após se demitir do
cargo de Cônsul Geral, queimar a maior parte seus papéis e mergulhar em melancolia. Sua demissão não foi
aceita porém a resposta só chegou três meses após sua morte. (R. IHGB, 1844, p.111-117)
4
Publicado apenas em 1882 na Revista do IHGB.
5
Após expedição pela América em torno de 1820, Martius retorna para Munique, recebe do Monarca
Maximiliano José I o título de Von e passa a ter uma pensão vitalícia. Ainda que sua área de estudos seja a das
ciências da natureza, trazia a cultura iluminista, interessando-se pela etnologia, aspectos sociais e históricos
dos lugares de onde passava de acordo com Cesar (p. 177, 2003), por isso a afinidade de Martius com o tema
de sua dissertação campeã.
27

Esse plano, tendo início com a exaltação da natureza muito diversa do imenso
território nacional, discorre sobre as três raças: cor de “cobre americana, caucasiana e preta
ou etiópica”, recomenda o estudo sobre o indígena, devido a sua história compor parte da
história do Brasil, dedica um trecho maior aos portugueses e discorre sobre sua parte em
nossa história e por fim aos negros em suas relações para com a história brasileira.
Apresenta o português enquanto provedor de condições e garantias morais e físicas
importantes para formação nacional, sem ignorar o papel do indígena e do negro, que
miscigenados deram origem aos brasileiros. Para Von Martius não se deve excluir a relação
entre as raças.
Escrito em 1843, ele propõe que a história indígena merece atenção, pois integra a
história do Brasil, então se deve superar a obscuridade ao redor do passado indígena antes
da chegada portuguesa; para que se compreendam melhor nossos alicerces, uma sugestão
seria a elaboração de um dicionário da língua indígena, principalmente o Tupi, por parte de
linguistas integrantes do Instituto, tratando o idioma enquanto documento a ser conhecido e
pesquisado.
Além da língua, as atividades espirituais devem ser buscadas nos documentos, pois
muito poderiam acrescentar seus ritos, costumes e práticas. Von Martius estimula ainda
outro intento que poderia trazer resultados surpreendentes: a investigação arqueológica,
pois tão próximo de nós viveram outras civilizações que deixaram um legado de
monumentos como os existentes no Peru; possivelmente procurando, poderia se encontrar
em nosso território vestígios como de nossos vizinhos.
Em contrapartida às várias ideias de aprofundamento nas pesquisas sobre o
indígena, Von Martius propõe quanto aos negros que é importante atentar aos mitos
populares, suas superstições, conhecer suas opiniões, atentar a muitos de seus costumes,
os defeitos e também suas virtudes.
Propõe buscar esses dados e conhecer a necessidade de mão-de-obra em nossas
terras que estimulou o tráfico negreiro, sem deixar de lado a influência desse tráfico e suas
relações para com a história do Brasil, pois nos faltava esclarecimentos sobre como ocorreu
o manejo dos negros, como esses lidavam com esse evento e qual a influência do tráfico em
Portugal e na sua grande colônia.
Von Martius afirma que o Brasil seria diferente sem os negros, mas deixa uma lacuna
a ser avaliada pelo historiador que se propor efetivamente a escrever a história do Brasil,
para após ponderar toda influência dos negros para nossa nação, então concluir se a
diferença seria para melhor ou pior.
Quanto aos caucasianos, que recebem o mérito da descoberta destas terras por
suas façanhas marítimas, comerciais e guerreira, a proposta é que os portugueses não
28

sejam restritos a este evento desbravador, mas Von Martius chama atenção para a
necessidade do aprofundamento das pesquisas do historiador para se compor um quadro
do século XV.
Esse quadro seria útil para se conhecer o homem que saiu de Portugal para chegar
ao novo território, e já nas novas terras se organizar e se relacionar com quem
encontrariam. Outro ponto seria pensar nas milícias aqui formadas, como ocorreu seu
recrutamento, se foram suas armas ou apenas sua astúcia que articulava as ações com os
indígenas que aqui encontraram.
É importante pensar sobre o português que veio para o Brasil, para refletirmos sobre
como ele foi formado e de que maneira ele formou e estabeleceu as relações no novo
território, uma vez que a colônia não é uma reprodução fiel da metrópole.
Ainda que Portugal mantinha-se vigilante sobre a influência das ordens eclesiásticas
no interior da colônia e, em se tratando destas ordens, principalmente a Jesuítica, Von
Martius chama atenção para a riqueza de informações sobre nossa história que podem ser
adquiridas no acervo documental da ordem. Segundo ele, os jesuítas estabeleceram
estreitos laços com os indígenas, mais do que qualquer outra ordem. Esses importantes
registros oriundos desta relação podem acrescentar sobre a história do Brasil, dos indígenas
e também sobre os bandeirantes (que entre outras atividades, capturavam índios para
escravizá-los).
Em Como se deve escrever a história do Brasil, o autor apresenta ainda a
necessidade de se conhecer o leitor dessa história que será produzida, o seu grau de
instrução, sua contemporaneidade, que pode contribuir para escrita, e sugere alguns
aspectos que podem ser observados para isso, como as casas dos colonos, muitas de suas
características, como se residiam nas províncias em áreas rurais ou na cidade, se trabalham
relacionados com lavouras ou comércio, e observar atentamente qual tem sido a história
escrita nas diferentes regiões do Império.
Pois Von Martius elogia apenas parcialmente essa história produzida nas províncias,
que tem relevância e importância por ser parte no contexto geral, uma vez que o olhar
próximo pode acrescentar muitas especificidades importantes de um dado local no contexto
do todo, mas afirma que a grande maioria delas não satisfaz a historiografia, uma vez que
incluem muitos fatos cotidianos sem relevância histórica, como simples ações dos prefeitos
de liberar ou proibir ações cotidianas.
Essa abordagem enfatiza a importância e chama atenção para cuidados com as
produções regionais e reforça que a história pode despertar o sentimento do Brasil como um
todo, identificando o passado comum para alimentar um futuro também comum, ainda que
cada qual tenha suas particularidades, mas uma parte deve se tornar integrante de outra
29

parte, com a reciprocidade, um caráter capaz de reanimar o sentimento nacional, despertar


amor pela nação e ainda é capaz de suscitar virtudes cívicas.
Von Martius conclui sua proposta de escrita da história, chamando atenção para
particularidades locais, que não devem ser rejeitadas; quanto o historiador se propõe a
escrever à distância e por vezes são desconhecidas, são elas: clima, vegetação, costumes,
entre outras características que serão superadas através de expedições ao interior do país.
Atenta ainda para a forma da escrita, para que o escritor da história pense-a nos
parâmetros de “um estilo popular posto que nobre e deverá satisfazer não menos o coração
do que a inteligência” (...) e ainda que “imprima a sua obra todo o seu amor e todo zelo
patriótico” (MARTIUS, 1982, p.55).
Ricupero em seus estudos reconhece que a publicação de Von Martius tornou-se
inspiração para trabalhos futuros sobre nossa história e afirma que “seu único defeito seria,
inclusive, de ser boa demais” (RICUPERO, 2004, p.124). Também Manoel Salgado
Guimarães chama nossa atenção quanto a esse texto enquanto instrumento “que parece
fornecer as pistas que permitirão a elaboração de uma narrativa datada de um enredo,
delineando com isso uma fisionomia própria para a nação” (apud CEZAR, 2003, p. 178).
Por conseguinte, nota-se a história do Brasil pela primeira vez feita por um brasileiro
em meados de 1850 que “desenhará o perfil do Brasil independente, oferecerá à nova
nação um passado, a partir do qual elaborará o futuro” (REIS, 2002, p. 24).
Dos historiadores ligados ao IHGB dispostos a abraçar o desafio da escrita de nossa
história, de levantar os dados e conhecimentos necessários para despertar os sentimentos
essenciais para consolidar a nação brasileira, citamos o membro do Instituto “que viria a ser
considerado o “pai da história brasileira” (GUIMARÃES, 1988, p. 23). Francisco Adolfo
Varnhagen6, o Visconde de Porto seguro, brasileiro, filho de europeus, que mergulha em
arquivos da Europa na busca de documentos para escrever A História Geral do Brasil, pois
“considera como tarefa principal de sua geração a criação de uma nação brasileira e a
superação do estatuto colonial” (RICUPERO, 2004, p. 133).
Marilena Chauí em poucas palavras exprime a efetivação desta tarefa,

como Instituto Histórico, cabia-lhe imortalizar os feitos memoráveis de seus grandes


homens, coletar e publicar documentos relevantes, incentivar os estudos históricos
no Brasil e manter relações com seus congêneres internacionais. Num dos
concursos promovidos sobre a tarefa do historiador brasileiro, o vencedor foi o
naturalista alemão Von Martius, cuja monografia, Como se deve escrever a história
do Brasil, publicada em 1845, definiu o modo de se fazer história no país. Cabia ao
historiador brasileiro redigir uma história que incorporasse as três raças, dando

6
Varnhagen (1816-1878) Brasileiro, filho de um alemão e mãe portuguesa, nasce em Sorocaba. Aos oito anos
parte para Portugal onde realiza seus estudos, apresenta grande interesse em literatura e história. Torna-se
sócio correspondente do IHGB já em 1939. Destacou-se por produzir a mais importante obra do século XIX
sobre nossa história.
30

predominância ao português, conquistador e senhor que assegurou o território e


imprimiu suas marcas morais no Brasil. Cabia-lhe também dar atenção a
particularidades regionais, escrevendo suas histórias de maneira a fazê-las
convergir rumo ao centro comum ou à unidade de uma história nacional. Era de sua
responsabilidade demonstrar a vasta extensão do território e suas diferenças
regionais exigiam como regime político a monarquia constitucional, tendo a unidade
figurada no imperador. E era tarefa sua prover a história com elementos que
garantiriam um destino glorioso à nação. A realidade dessa história luso-brasileira e
imperial coube aquele que é considerado o fundador da historiografia brasileira.
Francisco Adolpho de Varnhagen, com a História Geral do Brasil, publicada entre
1854 e 1857.” (CHAUÍ, 2007, p. 50)

Quanto à tarefa deste historiador “para A. Canabrava, a sua obra é o monumento da


história brasileira do século XIX.” (REIS, 2002, p. 29) Enquanto Temístocles Cezar
apresenta os estudos de José Honório Rodrigues que reduz História Geral do Brasil a “um
mero plano traçado por Martius” e afirma que seu método de trabalho “foi quase que
exclusivamente o de realizar investigações materiais dos fatos apontados por Martius como
importantes e significativos, sem a capacidade maior de generalização que lhe possibilitasse
apresentá-los dentro do esquema de uma classificação original” (CEZAR, 2003, p. 179).
Já Arno Wehling relativiza a situação, “para ele a influência de Martius sobre
Varnhagen não teria sido direta, mas uma orientação mediada por outros textos, tais como
aqueles de Januário da Cunha Barbosa e do Visconde de São Leopoldo” (apud. Idem, 2003,
p. 180).
Seja o “mero plano” pontuado por Rodrigues ou a obra monumental de acordo com
Canabrava, Varnhagen inicia seus estudos com a descrição da nossa natureza, ainda que,
por vezes, descrevendo com certa depreciação do meio, comentando o aspecto sombrio
das matas virgens. Exalta o passado português, o período colonial e sustenta um
mutualismo metrópole/colônia, onde “o Brasil não se esquecerá jamais do seu tutor na
infância, e Portugal não se esquecerá jamais dos socorros que o Brasil lhe prestou. Nenhum
deles é devedor do outro, ambos devem gratidão e louvores um ao outro” (REIS, 2002, p.
44).
Além disso, atribui grande importância ao Estado, percebe na colônia uma mescla de
características feudais, como a organização em capitanias hereditárias, com os objetivos
mercantis que refletem até no nome atribuído à colônia que de Terra de Santa Cruz torna-se
Brasil, mostrando que “o nome do lenho lucrativo suplantasse o lenho sagrado” (apud
RICUPERO, 2004, p. 133).
Varnhagen defende a necessidade de se povoar o território nacional de forma que
ocorresse maior homogeneização e, para isso, ele pensa que o fim da escravidão seria
indispensável. Sugere estimular o patriotismo para superarmos o egoísmo, a redução das
distâncias principalmente com o uso dos meios de transporte fluvial e ferroviário, pois
defende arduamente a unidade, inclusive repudia algumas rebeliões regionais que
31

pusessem em risco a unidade. Afinal, a união facilita em vários aspectos, por exemplo, na
defesa de possíveis invasões territoriais.
Nesse contexto da unidade, adentra a questão das raças, ainda que devido ao
saudosismo colonial, caracteriza o indígena de forma negativista, acreditando que “o
cruzamento entre raças como que diluiria sangue índio e negro em branco e deveria tornar
esse Império mais homogêneo e similar às nações da civilizada Europa” (RICUPERO, 2004,
p. 137).
De acordo com Ricupero, Varnhagen não deixa de reconhecer a influência do
indígena na construção de nossa nação, ao mesmo tempo em que vê a influência jesuítica
de forma negativa, pois ao proibir a exploração do trabalho dos índios, o jesuíta se torna co-
responsável da escravidão africana, demonstrando o repúdio à escravidão dos negros por
parte do autor.
Varnhagen enfatiza positivamente a colonização portuguesa, como um feito
promissor para colônia, que vai além da herança da civilidade europeia, da religião cristã e
deste vasto território, garante para Brasil nobres sentimentos à “nação recém-independente
que precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar
com confiança para o futuro” (Idem, 2002, p. 25).
Seus estudos e levantamentos documentais, tão importantes para a gênese de
nossa nação, contou com a proteção de D. Pedro ll, que disponibilizou incentivo e recursos
para sua obra, porque como afirma Reis “O jovem Imperador, aliás, precisava muito da
história e dos historiadores” (Ibidem, 2002, p. 25).
Os recursos do Imperador não se restringiam ao IHGB, pois o “mecenas” das artes
estimulava e subsidiava outras áreas e instituições, como por exemplo, financiava estudos
de medicina, reinaugurou em 1838 o colégio Pedro ll, implementou a Academia Imperial de
Belas Artes criada em 1826, e criou em 1857 a Imperial Academia de Música e a Ópera
Nacional.

Parece claro que a Academia Imperial de Belas Artes e o Instituto histórico


Geográfico Brasileiro fazem parte de um jogo de instituições nacionais moldado em
torno de objetivos comuns. É por isso que ao tentarmos compreender a contribuição
da Academia Imperial de Belas artes na “invenção” de uma “estética brasileira”
procuramos evidenciar os laços entre estética e política. Ora muitas vezes oculto por
um discurso homogeneizador (...) (SCHILICHTA, 2006, p. 78).

Dentre o discurso homogeneizador e esses incentivos, as viagens para pesquisas,


levantamentos territoriais e de povos no Brasil permitem integrar a historiografia do IHGB, os
relatos de viagem “coerente com o objetivo a que se propôs, de esboçar o quadro na Nação,
o IHGB incentivará ainda viagens e excursões pelo interior do Brasil, na expectativa de que
32

venha a ser coletado material que subsidie a escrita da história nacional” (GUIMARÃES,
1988, p. 19).
Essas viagens ao mesmo tempo em que eram úteis para delimitar nosso território,
conhecer sua geografia, relevo, fertilidade do solo, hidrografia, fauna, flora, também eram
utilizadas com a finalidade de registrar povos e costumes, presentes no interior de nosso
vasto território, permitindo aos integrantes dessas expedições produzirem estudos
geográficos, científicos e sobre história regional e dos indígenas.
Esses temas são fundamentais para muitas das produções realizadas pelos
intelectuais do Instituto. Essas viagens permitem uma produção rica em detalhes, pela
proximidade como os objetos; abrange interesses do Instituto, Estado e contribui para a
unidade nacional.
A contribuição ainda é mais ampla, no sentido em que além de possibilitar a
produção historiográfica, sobre as origens de nosso país, os estudos das características
regionais em prol do todo da nação, permite ainda subsídio para a produção iconográfica,
tanto por parte de desenhistas que integravam essas expedições como para os demais
artistas que se propunham a pintar nossa nação nesse período.
Esses aspectos, abordaremos nas páginas seguintes, ao aprofundarmos na
iconografia produzida neste contexto da gênese nacional, onde os estudos históricos e
geográficos são produzidos, e inclusive os literários.
Como afirma Ricupero, “a história tem, contudo, como gênero narrativo, pontos de
aproximação significativos com a literatura. Ambas ordenam, elaboram quadros inteligíveis,
no que não deixa de ser uma operação essencialmente política, de seleção de fatos e
valores” (RICUPERO, 2004, p. 141).
O papel da história na gênese de nossa nação é imprescindível e o da literatura
também merece seu destaque, tanto no que se propõe a fazer nas suas áreas específicas, e
nos momentos que se fundir e interagir, em situações como “a literatura por sua vez pode
intervir na história, estabelecendo muitos de seus temas e problemas, o que é
particularmente verdadeiro quando os dois campos não estão bem definidos” (Idem, 2004,
p. 141).
Bem definidas ou não, ao longo das pesquisas históricas e geográficas no processo
de formação e consolidação de nossa nação, temos também a formação da literatura
brasileira “ao mesmo tempo em que a historiografia literária, impregnada pela mesma
ideologia com a qual a historiografia nacional apoiava a nascente monarquia, criou a
literatura dando origem à identidade brasileira que a legitimava” (apud RICUPERO, 2004,
p.85).
33

De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, “entre literatura e a realidade, a verdadeira


história nacional e a ficção, os limites pareciam tênues. No caso da história estava a serviço
de uma literatura mítica que, junto com ela, “selecionava origens” para nova nação”
(SCHWARCZ, 1998, p.136).
Essa linha tênue dá espaço ao projeto estético do Romantismo, ligado ao
nacionalismo que é a exaltação “dos sentimentos do povo e as tradições, que lhe foram
marcando o destino” como “afirmação de interesses da nova comunidade, em face dos
interesses da metrópole” (LIMA SOBRINHO, 1995, p.7/10).
Alguns aspectos abordados e exaltados desde o início na escrita de nossa história
são exaltados também no contexto do Romantismo, enquanto outros inicialmente
marginalizados historicamente, na literatura são exaltados.São os de maior destaque a
natureza elogiada historicamente por sua vastidão, riqueza, diversidade, ao mesmo tempo
em que o indígena é marginalizado após a chegada dos portugueses civilizados, enquanto
no Romantismo a natureza é também exaltada por sua grandeza e exuberância, e o
indígena ganha uma nova abordagem.
Esse movimento romântico que predominou na primeira metade do século XIX
“reflete uma nova concepção de vida e do mundo, e cria, sobretudo, uma nova interpretação
da ideia de liberdade artística” (apud SCHLICHTA, 2006, p. 79).
O Romantismo transforma o indígena em um importante símbolo nacional. O Brasil
possuía a ciência de sua diversidade, das três raças que Von Martius denominou como cor
de cobre americana, caucasiana e preta, e nesse contexto, o “negro lembrava a escravidão,
o indígena permitia indicar uma origem mítica e unificadora” (SCHWARCZ, 1998, p. 140).
Essa característica mítica, nobre e mais autêntica que será dada pelos românticos ao
índio, considera que a particularidade da nossa nação estaria na mestiçagem; as três raças
que formaria uma raça “nova”, os brasileiros, exaltados, porém, sem deixar de lado a
monarquia, que manteria a unidade do país. Isso demonstra que o Brasil poderia realizar
uma mescla cultural entre as diferentes raças que a formam.
Nossa identidade é formada historicamente à custa de muitos estudos e esforços da
“elite intelectual do segundo reinado, impregnada das ideias românticas, que considera que
para existir nação é preciso que haja literatura e historiografia brasileira” (RICUPERO, 2004,
p. 86).
Assim como na historiografia do IHGB, onde tivemos Von Martius que elaborou o
projeto de escrita da história, e depois os historiadores que se propuseram a escrever a
história do Brasil, tanto estrangeiros como brasileiros, na literatura também encontramos
algumas especificidades, como o romantismo, que dá espaço a outro projeto cultural, que
partido da elite vai se ampliando.
34

Esse projeto é o indianismo, que obscurece a escravidão, permite afirmações


nacionais e estimula produções literárias com a temática do indígena. Essas produções não
se restringem à literatura apenas, mas alcança também a iconografia política, onde imagens
são produzidas, assim como textos com inspiração nos índios, por exemplo, “junto a
alegorias clássicas surgem indígenas quase brancos e idealizados em ambiente tropical”
(SCHWARCZ, 1998, p. 142).
No contexto da atenção aos acontecimentos e consolidação dos suportes, voltamo-
nos ao IHGB, sobre suas produções e qual deveria ser a concepção de história que se
exprima na Revista de abril de 1847:

Deve o historiador, se não quiser que sobre ele carregue grave e dolorosa
responsabilidade, pôr a mira em satisfazer aos fins políticos e moral da história. Com
os sucessos do passado ensinará à geração presente em que consiste a sua
verdadeira felicidade, chamando-a a um nexo comum, inspirando-lhe o mais nobre
patriotismo, o amor às instituições monárquico-constitucionais, o sentimento
religioso, e a inclinação aos bons costumes (apud GUIMARÃES, 1988, p. 16).

É o próprio historiador o responsável por legitimar os fatos e acontecimentos que


contribuíram e culminaram na gênese da nação brasileira, bem como na criação de nosso
panteão.
E pensando nos heróis de nossa nação, responsáveis desde seus primórdios,
atentamos a D. Pedro II, a proximidade entre IHGB e este o monarca que não garantia um
distanciamento histórico suficiente para se avaliar o reinado do Imperador, um dos motivos
aparece nos estudos de Ricupero:

se o IHGB não funcionasse na casa do monarca, mas tivesse sede própria, não
dependesse da boa vontade dos governantes, atuando verdadeiramente como uma
instituição autônoma, talvez tivesse garantido uma existência menos precária, mas
neste caso, o instituto Histórico Geográfico Brasileiro não seria o Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, nem o Brasil do século XIX seria o Brasil do século XIX
(RICUPERO, 2004, p. 129)

As precariedades das instalações foram sendo superadas ao longo dos anos,


enquanto a estreita relação entre o monarca e o Instituto permanece e permea o período de
nossos estudos. Refletir sobre essa questão de espaço físico versus dependência nos
remete ao trabalho com imagens através de um olhar ampliado, no que diz respeito à
relação como local onde estão expostos nossas obras ou para onde elas deveriam ir, com a
“intenção” de alcançar seu respectivo espectador, discussão que retomaremos nos
próximos capítulos.
35

A princípio atentaremos quanto ao espaço físico do IHGB, qual prédio o abrigou no


início e qual o abriga, conhecer a trajetória do Instituto em relação ao espaço físico ocupado
por essa instituição, tão importante no processo de consolidação da nossa nação.
No início os primeiros membros reúnem-se na SAIN (Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional) criada em 1827, com espírito iluminista, comungando a integração das
regiões, para alcançar um todo. Apesar do pensamento semelhante, as instituições seguem
independentes uma da outra.
Logo em 1839, aos cuidados de D. Pedro ll, reúnem-se em uma sala no Paço
Imperial, no Convento do Carmo, que apresentava dificuldades estruturais em uma parte do
prédio e inicialmente abrigava vários silogeus, que pouco a pouco conquistam suas sedes;
assim o prédio do Silogeu abrigou apenas o Instituto, e na inauguração das novas
instalações em 15 de dezembro de 1849, o discurso foi feito por D. Pedro ll:

Sem dúvidas, senhores, que a vossa publicação trimestral tem prestado valiosos
serviços, mostrando ao velho mundo o apresso, que também no novo merecem as
aplicações da inteligência; mas para que esse alvo se atinja perfeitamente, é de
mister que não só reunais os trabalhos das gerações passadas, ao que vós tendes
dedicado quase que unicamente, como também, pelos vossos próprios, torneis
aquela a que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade: não dividi, pois
as vossas forças, o amor da ciência é exclusivo, e concorrendo todos unidos para
tão nobre, útil, e já difícil empresa, erijamos assim um padrão de gloria à civilização
da nossa pátria (...) (apud GUIMARÃES, 1988, p. 11).

O prédio do antigo Silogeu (Anexo V), no paço Imperial, após a demolição de parte
deste prédio, teve o novo e atual prédio da sede própria do Instituto construído logo ao seu
lado, sobrevive até a década de 1970 quando foi demolido (Anexo VI) para o alargamento
da Rua Teixeira de Freitas, região da Glória na cidade do Rio de Janeiro.
Diferente de outras academias, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro subsiste até
os dias atuais, sendo que a Revista ainda é publicada trimestralmente, disponibilizando
reimpressão de todas as suas edições. Um amplo acervo de importantes títulos está
disponível em sua biblioteca, auditórios e um rico museu, apresentando objetos, fotos,
manuscritos e documentos da nação.
Hoje contamos ainda com o site oficial do Instituto7, que mantém os princípios
presentes logo após as boas vindas, onde nos deparamos com a breve apresentação e
finalidade assim apresentada: “preservar a cultura nacional, estimular os estudos históricos,
geográficos e de outras ciências sociais sobre o Brasil e reunir e divulgar documentos
relativos à sua formação e identidade, com vistas à preservação da memória nacional”
(IHGB).

7
http://www.ihgb.org.br
36

Assim, a maior prova do sucesso do IHGB é que hoje, mais de 150 anos depois de
sua fundação, ideias como o papel benévolo da unidade e da relação das três raças
no que somos, são para nós tão óbvias que praticamente não conseguimos imaginar
como podem ser questionadas (RICUPERO, 2004, p. 151).

A foto do atual prédio do IHGB (Anexo VII) e as palavras de Ricupero refletem o que
os nossos olhos podem ver em nossos dias, na cidade do Rio de Janeiro e em nosso país.
Mostra ainda que 175 anos se passaram, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro foi
criado para que documentos, pesquisas e estudos, históricos e geográficos, fossem
realizados e organizados em prol da gênese nacional do Brasil, com a busca do passado
concomitantemente aguçando expectativas para o nosso futuro.
37

2. ICONOGRAFIA NA CONSTRUÇÃO DA IDEIA NACIONAL

Neste capítulo, além das tintas presentes nas pinceladas de Benedito Calixto, Pedro
Américo, Hércule Florence e Victor Meirelles, que analisaremos no capítulo a seguir,
atentaremos para a tinta das letras impressas na Revista do IHGB, trazendo o conhecimento
prático adquirido em viagens ao interior do Brasil.
As imagens e os texto-imagens, aqui representados pelos relatos de viagens,
merecem destaque ao longo do processo da gênese nacional brasileira, enquanto
produções realizadas através das pesquisas teóricas e práticas que ocorriam em cada
viagem dentro do nosso território, resultando em texto-imagem.
Dentre as muitas obras iconográficas produzidas durante o século XIX, com a
intenção de registrar atos da gênese nacional brasileira, optamos por quatro obras de
quatro diferentes pintores já citadas anteriormente, aqui apresentadas em ordem
cronológica de sua produção, sendo elas: 1848 – Engenho da cachoeira. Corte de cana-de-
açúcar de Hércule Florence, o segundo desenhista da expedição Langsdorff; 1860 – A
Primeira missa no Brasil de Victor Meirelles; 1888 – O Grito do Ipiranga de Pedro Américo e
de 1893 – Evangelho das Selvas de Benedito Calixto.
Ao refletirmos sobre o papel da iconografia neste processo da gênese da ideia
nacional, remetemo-nos à Marilena Chauí e seus estudos em relação ao mito fundador
onde afirma que este

oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da


formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de
sua hierarquia interna (isto é, qual é o elemento principal que comanda os outros)
como da ampliação do seu sentido (isto é, novos elementos vem se acrescentar ao
significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o
movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela
fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente
por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente (CHAUÍ,
2007, p. 10).

Pensar sobre mito fundador, ainda que sem aprofundarmos na questão, remetemo-
nos à gênese nacional brasileira, nossa genética europeia, pois o “português é o
desbravador corajoso e aventureiro que vai criando o solo nacional” (Idem, 2007, p. 51),
nosso território com sua extensão e valorização, a necessidade da escrita de nossa história,
os esforços e os estudos da elite intelectual disseminando seus escritos e estimulando a
produção iconográfica advinda neste contexto e para este contexto, utilizando o
conhecimento prévio e vivencia do brasileiro em prol da consolidação da ideia de nação e
seu pertencimento.
38

Seria como realizar o movimento presente nos estudos de Carlo Ginzburg,

Ler a imagem criada pelo artista significa mobilizar nossas lembranças e nossas
experiências do mundo visível e testar essa imagem mediante projeções tentativas.
Para ler o mundo visível em termos de arte, temos de fazer o contrário. Devemos
mobilizar as nossas lembranças e nossas experiências de quadros vistos e testar o
motivo projetando, também nesse caso por tentativas sucessivas, lembranças e
experiências, dentro de um quadro delimitado (GINZBURG, 1989, p. 85).

Incentivar a produção de imagens que levassem o espectador a sentir-se integrante


ao que seria retratado, ou melhor, que ele reconhecesse o que estava sendo retratado, ou
ainda que passasse a conhecer o que estava sendo retratado para que após essa primeira
etapa ele pudesse apropriar esse conhecimento e despertasse por fim sentimento com
relação à sua nação.
Pode parecer um pouco confuso a priori, mas no caso das obras iconográficas que
abordaremos podemos atentar desde uma aquarela feita para retratar uma cena corriqueira
no interior do país em dado período, até cenas que visam apresentar um momento de marco
inicial através da primeira missa celebrada em nosso solo, o choque de temporalidade da
chegada do evangelho na “selva”, sem deixar de lado os “entes da Natureza, introduz a
noção de história como memória” (CHAUÍ, 2007, p. 70). E, por fim, a apresentação de um
grande herói da nação que brada heroicamente por nossa independência.
A figura heróica nos remete aos estudos de José Murilo de Carvalho, pois os

heróis são símbolos poderosos, encarnados de ideias e aspirações, pontos de


referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para
atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua o
seu panteão cívico (CARVALHO, 1990, p. 55).

Neste processo encabeçado pela elite, em prol da constituição do que é o nacional,


podemos verificar que não é exclusivo do Brasil. Hobsbawm aponta a existência “de uma
elite cultural longamente estabelecida, que possuísse um vernáculo administrativo e literário
escrito,” (HOBSBAWM, 1990, p.49) na criação da ideia de Estado Nacional em outros
países, a qual não se difere de nossa realidade nacional.
Para isso, esses aspectos relacionados à língua, território, religião e nação são
aspectos visivelmente presentes na iconografia produzidas ao longo do século XIX,
presentes em nossa pesquisa, permeadas por essa finalidade de “enfatizar” a consciência
nacional cultivada ao longo do processo da gênese nacional que emana da nossa elite
intelectual.
39

Afinal a nação é entendida como o conjunto de habitantes que comungam da mesma


língua e origem, submetidos ou centralizados através de um determinado poder, onde

território, densidade demográfica, expansão de fronteiras, língua, raça, crenças


religiosas, usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do
“caráter nacional”, entendido como disposição natural de um povo e sua expressão
cultural. Como observa Perry Anderson, “o conceito de caráter é um princípio
compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é
autossuficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é
mutável, permitindo modificações parciais ou gerais” (CHAUÍ, 2007, p. 21).

Unir a sociedade em torno de uma ideia única, trazer a referência externa para
interiorizá-la, e o mais difícil, realmente apropriá-la, exigirá esforços, pois a nação é
composta por diferentes grupos sociais, os que produzirão, e os que terão conhecimento
através dessas produções, seriam as concepções distintas, no caso do nosso amplo
território as diferenças regionais, sendo combatidas em prol da unidade, seria a gênese
nacional sendo estimulada quase de uma maneira natural, ainda que intencional, ocorre de
maneira sutil, como se

a nação passasse a ser vista como algo que sempre teria existido, desde tempos
imemoriais, porque suas raízes deitam-se no próprio povo que a constitui. Dessa
maneira, aparece um poderoso elemento de identificação social e política, facilmente
reconhecível por todos (pois a nação está nos usos, costumes, tradições, crenças da
vida cotidiana) e com a capacidade para incorporar numa única crença as crenças
rivais (...) (Idem, 2007, p. 19)

Rivalidades à parte, o que une é muito mais expressivo; como apresenta Benedict
Anderson, “a nação é imaginada como comunidade porque, sem considerar a desigualdade
e exploração que atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como
um companheirismo profundo e horizontal” (ANDERSON, 1989, p. 16) e imaginada ainda
como “limitada, porque até mesmo a maior delas, (...), possui fronteiras finitas, ainda que
elásticas, para além das quais se encontram outras nações. Nenhuma nação se imagina
coextensiva com a humanidade” (Idem, 1989, p. 15) e imaginada ainda como implicitamente
limitada e soberana (...). Para Gellner o nacionalismo não é o despertador das nações para
a autoconsciência: ele inventa nações onde elas não existem” (apud. Ibidem, 1989, p. 14).
O pensamento holístico, abrangendo a totalidade, estimulado através de todo um
processo, dentro da nação, torna pertinente refletirmos sobre o que é nacional, abrangendo
o conceito de nacionalidade, onde

o processo histórico de invenção da nação nos auxilia a compreender um fenômeno


significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da ideia de “caráter nacional” para a
de “ideia nacional”. O primeiro corresponde, grosso modo, aos períodos de vigência
40

do “princípio da nacionalidade” (1830-1880) e da “ideia nacional” (1880-1918),


enquanto a segunda aparece no período da “questão nacional” (1918-1960)”
(CHAUÍ, 2007, p. 21).

Os dois primeiros períodos abrangem nossa pesquisa, e apenas retomando, a nação


engloba, entre outros aspectos um grupo de pessoas com uma descendência comum, já a
nacionalidade relaciona-se mais a condições dos cidadãos, associados a noções
relacionadas aos fatores sociais e espaciais.
Nos estudos de Marilena Chauí, quanto aos fatores sociais, ela aborda o “requisito
do “princípio da nacionalidade” qual seja, que só é uma nação o agrupamento humano que
possuir uma elite cultural solidamente estabelecida” (Idem, 2007, p. 54).
Como vimos anteriormente a elite cultural brasileira não mede esforços em prol da
escrita da nossa história, bem como suscitar os sentimentos necessários para consolidar a
nação, e incitar o sentimento referente à nacionalidade integra esse processo, e para
compreendermos melhor torna-se pertinente conhecer a origem do princípio de
nacionalidade que “veio de economistas alemães a ideia do “princípio de nacionalidade”,
isto é, um princípio que definia quando poderia ou não haver uma nação ou um Estado-
nação” (Ibidem, 2007, p. 17), afinal este princípio é “definido pela extensão territorial. Assim
ao fazer a grandeza do território o primeiro motivo de ufanismo, Afonso Celso está
afirmando que preenchemos o requisito da nacionalidade e somos, de fato e de direito, uma
nação” (Ibidem, 2007, p. 52).
O Brasil neste requisito realmente não deixou a desejar. Os intelectuais do IHGB e
as viagens ao interior do nosso vasto território cuidaram de conhecer e descrever nosso
relevo, flora, fauna, clima, nossa natureza de forma geral, digna das exaltações, inclusive
pelo fato de que “não registra flagelos, catástrofes como ciclones, terremotos, vulcões,
correntes traiçoeiras, furacões. Em resumo, o brasileiro pode confiar na Natureza, pois ela
não o trai, não o surpreende nem o amedronta, não o maltrata e não o aflige” (Ibidem, 2007,
p. 52).
Benedict Anderson, em seus estudos sobre o tema afirma:

parto de que nacionalidade, ou, como talvez se prefira dizer, devido às múltiplas
significações dessa palavra, nation-ness, bem como nacionalismo, são artefatos
culturais de um tipo peculiar. Para compreendê-los adequadamente é preciso que
consideremos com cuidado como se tornaram entidades históricas, de que modo
seus significados se alteraram no correr do tempo, e por que, hoje em dia, inspiram
uma legitimidade emocional tão profunda” (ANDERSON, 1989, p. 12).

Foi em busca dessa legitimidade que esses sentimentos foram estimulados em


meados do século XIX, essa ideia nacional, a nacionalidade e, por fim, o nacionalismo,
41

como afirma Jorge Coli que “o século XIX inventou uma história brasileira. Ela ergueu-se
dentro de um clima cultural nacionalista, que teve configurações diferentes, mas que
permaneceu até o século XX, reforçando o Estado Novo” (COLI, 2005, p. 21).
Para contextualizarmos o nacionalismo, que leva os indivíduos a optarem e
exaltarem tudo que está relacionado à sua própria nação, atentamos ao fato de que
“diversamente da maioria dos outros “ismos”, o nacionalismo jamais produziu grandes
pensadores próprios” (ANDERSON, 1989, p. 13), e

não por acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco


de proletarização, que transformaram o patriotismo em nacionalismo, quando deram
ao “espírito do povo”, encarnado na língua, nas tradições populares ou folclore e na
raça (conceito central das ciências sociais do século XIX), os critérios da definição
da nacionalidade. (CHAUÍ, 2007, p. 18)

2.1 ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES

A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) foi fundada no Rio de Janeiro, criada em
1826, ao contrário do que se acreditou por muito tempo, pois a historiografia caracterizou
desta forma, teria sido resultado “da Missão Francesa que chegara ao Brasil em 26 de
março de 1816 com o intuito de aqui fundar uma academia de artes que só passaria a
funcionar 10 anos depois” (SCHWARCZ, 1998, p. 145) a convite de D. João VI.
O que ocorreu realmente de acordo com SCHWARCZ (2008), foi a iniciativa dos
próprios pintores que enfrentaram algumas dificuldades na França, devastada pela guerra,
com aliados de Bonaparte sofrendo represálias, e desembarcam no Brasil em 1816. Debret
trabalhava para o irmão de Napoleão e havia perdido o emprego e seu filho; Taunay
também perdera o emprego e seu filho fora preso. Grandjean de Montigny e Lebreton
também enfrentavam dificuldades em suas carreiras, assim a viagem para o Brasil tornou-se
viável para os artistas.
Pertinente para os artistas e de certa forma para o Brasil também, esses pintores
realizaram pinturas para a coroa, realizaram vários retratos para corte, o que gerava
dinheiro ao artista e realizava o anseio de ser retratado, e ainda desempenham um papel
relevante enquanto professores da Academia.
A AIBA, instituição de ensino superior na área das artes, criada para sistematização
do ensino artístico, passou por alguns períodos difíceis de ordem econômica, até que
durante o Segundo Reinado usufruiu de estabilidade devido ao auxílio público e também
privado. Assim, a instituição ganha corpo ao integrar e desempenhar um papel fundamental
no programa cultural nacionalista, subsidiado e apoiado pelo Imperador, afinal, “D. Pedro II é
mais e mais um sinônimo da nacionalidade.” (Idem, 1998, p. 153).
42

Assim, a história da Imperial Academia de Belas Artes e a produção dos seus alunos
não podem ser dissociadas das significações maiores do Império. Esta história ainda
está por ser mais bem contada, principalmente no que diz respeito à existência de
um projeto civilizatório associado à construção do Estado e da nação (FRANZ,
2007).

Ao longo do período de nossos estudos, esse projeto civilizatório trata da gênese


nacional, de acordo com D. Pedro II, ciências e artes são importantes para construção da
ideia nacional, e integram o processo construtivo do imaginário nacional, afinal pela sua
formação europeia o Imperador valorizava a arte, bem como o papel da mesma ao longo
desse processo.
O País se firmava como nação independente. Pensava-se em criar uma identidade
nacional, e a arte era considerada um lugar privilegiado para pensar a sociedade e
para inventar uma nova identidade. As Belas Artes eram instrumento de civilização e
glória, tendo o poder de contribuir na educação dos povos, com capacidade de
interferir diretamente na realidade. A ideia de arte ligada à pedagogia e à civilização
estava bem de acordo com o projeto civilizatório da jovem nação, independente
desde 1822 (FRANZ, 2007).

Assim a AIBA, semelhante ao IHGB, estimulava produções e distribuía premiações.


A Academia distribuiu medalhas, prêmios, bolsas de estudos para o exterior e
financiamentos. Por volta de 1845 D. Pedro II concedia o Prêmio Viagem, anual que
financiava o aluno durante três anos em pensionato na Europa e muitas vezes subsidiava-o
com recursos próprios.
Academia Imperial de Belas-Artes ganhou impulso e, sob a égide da laica estética
neoclássica, recebeu vasto volume de encomendas de pinturas oficiais do império,
sobretudo retratos do mecenas e cenas de exaltação cívica do Brasil, objetivando
representar a nação da mesma maneira que a literatura do IHGB o fizera
(BISCARDI; ROCHA, 2006).

Dentre as instituições que se destacaram no contexto da gênese, como


apresentamos no primeiro capítulo, o IHGB, e não podemos deixar de lado o importante
papel da Academia Imperial de Belas Artes, como afirma Franco:

às duas instituições coube por pôr em prática o projeto nacional da elite cortesã,
construindo, em conjunto, uma memória nacional – um, em tinta impressa, o outro a
pinceladas. Sem contar com os membros que dividiam seu tempo entre os dois
órgãos, a academia se estruturou de maneira semelhante ao Instituto. Sob tutela
imperial, sobretudo no segundo reinado, a academia desenvolveu uma rede de
membros correspondentes com diversas instituições e artistas da Europa (FRANCO,
2008, p. 111).

Na busca de consolidar nossa nação, além dos estreitos laços com o monarca a
Academia se destaca enquanto uma

produtora, a partir de então, de todas as imagens oficiais do Império, a Academia


ditará não só estilos como temas: o motivo nobre, o retrato, a paisagem, a pintura
histórica estarão em voga, trazendo para as telas representações do império
43

próximas da produção literária do IHGB. Em boa parte realizada no exterior


(SCHWARCZ, 1998, p. 147).

Quanto ao seu papel acrescentamos ainda a pesquisa de Pablo Endrigo Franco,


apresentando em sua dissertação de mestrado os estudos de Schlichta e acrescenta que
“os artistas não ocuparam papel de coadjuvantes na construção da memória nacional, e sim
foram atores centrais, juntamente com historiadores e geógrafos, para a tessitura do
passado brasileiro” (FRANCO, 2008, p. 115) e cita uma afirmação da autora sobre o papel
dos artistas na construção de:

repertório de monumentos em espaços públicos, de paisagens emblemáticas ou


pitorescas, cenas históricas, relíquias em museus, amarrado a um calendário de
festas e datas memoráveis, projetou uma memória nacional para o devir a fim de ser
cultuada (SCHLICHTA, 2006, p. 203).

Assim, surgiram inspirações para retratar a primeira missa celebrada no território


brasileiro, bem como o marco da independência através do brado as margens do Ipiranga,
realizados por artistas preparados pouco a pouco até o momento certo de colocar em
prática seus conhecimentos.

O imperador conheceu Pedro Américo quando este era aluno do Colégio Pedro II e
pintava as escondidas um retrato seu. Tal ato só podia ser respondido por outro: o
monarca matriculou-o na Academia de Belas-Artes e financiou seus estudos. Mas
essa não foi uma exceção: Victor Meirelles também foi estudar na Europa.
(SCHWARCZ, 1998, p. 145)

Esses artistas exemplificam os conhecidos como “pensionistas do imperador”, que


de acordo com Schwarcz eram os protegidos, beneficiados além dos demais que recebiam
as premiações citadas anteriormente. Afinal, D. Pedro tinha um afeto especial pelas artes,
assim como por línguas, astronomia, geologia, entre outras áreas, porém através de seus
diários e os traços de seu lápis mostrou-se além de admirador, um retratista, ainda que
amador.
Paixões reais à parte, um dos objetivos claros da Academia foi:

de forma contrastiva mudar padrões, estilos e técnicas. O centro inauguraria todo o


didatismo, uma nova pedagogia, com exigências de nível de escolaridade, currículos
mínimos e cursos de anatomia. Nesse universo acadêmico predominava a pintura
histórica, sobretudo de inspiração bíblica, cenas de gênero, alegorias e retratos,
quinada essa que trazia para a pintura a mesma intenção, já manifestada na
literatura, de ruptura. (Idem, 1998, p. 146)

Para aperfeiçoar as produções nacionais, além das viagens para a Europa, o contato
com grandes gênios da pintura, a AIBA estimulava a prática de cópias para aproximar
alunos de seus mestres, de acordo com Leite:
44

para isso servia a cópia; preparar o aluno não somente para a estruturação de um
quadro, como também para incitar futuros artistas, alimentando-os de variegadas
demonstrações de recursos para resolver e atender às necessidades e aos
problemas temáticos. Assim, a cópia não enclausurava o pintor na tradição do
passado, ela nutria o artista com a riqueza de informações que a tradição foi capaz
de propagar, difundir e de que os museus e as igrejas da Europa se achavam
abarrotados. (…) Ela continua vigorando durante toda a existência da Academia
Imperial mas com a implantação do Novo Estatuto para o surgimento da Escola
Nacional de Belas Artes em 18/11/1890, pelo Decreto nº 983. (LEITE, 2010).

A proximidade com os grandes mestres e importantes locais referentes às artes fora


de nosso país inspira que o Brasil crie uma tradição de salões artísticos que foi iniciado por
Debret em 1926 na AIBA. As obras de acordo com Fernandes eram de jovens iniciados
pelos mestres franceses e a juventude era como que um mérito coletivo:

Eram ambos jovens, o Imperador e a Academia, mas a ambos estavam delegadas


tarefas de grande relevância, cabendo a um prover os meios para o
desenvolvimento das artes e a formação de especialistas nessa área e a outro a
elaboração dos símbolos da Nação, comemorando os fatos da história, os registros
da natureza brasileira, os seus recursos, a sua gente. (…) A representação
simbólica da sociedade brasileira ia sendo elaborada, não só pelas regras da
Academia, mas também fora de seu âmbito e dos limites da representação plástica.
A criação literária, a música, o teatro, a imagem do Brasil que se ia constituindo, sob
o esforço do desenvolvimento do projeto historiográfico do IHGB, tudo convergia
para a elaboração dos símbolos que identificassem a Nação (FERNANDES, 2007).

Assim como o IHGB garantia as pesquisas e produções para impressão de suas


letras, a AIBA dedicava-se às suas atribuições no quesito artes, capacitando seus artistas,
estimulando suas produções em prol de nossa identidade nacional. De acordo com Ortiz:

Toda a identidade é uma construção simbólica (a meu ver necessária), o que elimina
portanto as dúvidas sobre a veracidade ou falsidade do que é produzido. Dito de
outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de
identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos
históricos (ORTIZ, 2005, p. 8).

Como vimos no capítulo anterior, a elite cultural não mede esforços no contexto da
gênese nacional e consolidação da unidade de nossa nação e a AIBA enquanto integrante
desse processo, de acordo com os estudos de Fernandes:

monopolizou o movimento artístico, seja através do ensino e produção de obras de


arte, seja como órgão do governo, consultor ou executivo, de projetos artísticos que
consagravam como oficiais o gosto e as tendências da arte brasileira.(…) A Reforma
de 1855, além de estruturar as bases do ensino, como um instrumento a serviço do
projeto nacionalista do governo, determinou os parâmetros da produção artística da
Academia durante o Segundo Reinado. A filosofia que a dirigiu, sob o nacionalismo
romântico de Porto-alegre, deu ênfase aos temas históricos do passado distante ou
recente, aos episódios heróicos, a uma interpretação mais dramática. (…) Também
a retratística, integrada ou não em um tema celebrativo, era o gênero mais
divulgado, em especial, utilizando a iconografia do Imperador e da família real, que
povoara as galerias dos edifícios públicos, religiosos e os Salões das Exposições
Gerais. As tendências, que observamos na pintura, seja nas grandes batalhas de
45

Victor Meirelles ou de Pedro Américo, ou nos demais gêneros representados,


desses e de outros artistas, revelam esse academismo de tendência romântica, que
serve à narrativa dos temas nacionais, de inspiração nativista ou, mais raramente,
mais para o final do período, à inspiração de tendência realista, encontrada, por
exemplo, na originalidade dos temas de Almeida Júnior, enfocando cenas simples
interioranas do Brasil, compostas ainda na tradição acadêmica. No Brasil é
importante não desprezar o fato de que eram as instituições culturais que
ordenavam as realizações. Assim, no caso da obra de arte, a Academia
representava esse campo de poder e as Exposições Gerais o seu verdadeiro campo
de consagração (FERNANDES, 2007).

Com tantas características em comum com o Instituto, não seria diferente quanto a
suas sedes, como no caso do IHGB a estrutura física alterou-se ao longo do tempo,
inicialmente o edifício8 que abrigou a AIBA, foi projetado por Grandjean de Montigny (Anexo
VIII), inaugurado em 1826;

após cerca de 60 anos de uso, reformas e de uma ocupação desastrosa, tornou-se


alvo de inúmeras reclamações por parte de professores e alunos. As queixas mais
constantes eram: salas com iluminação inadequada para o ensino de artes e
instalações precárias para abrigar a pinacoteca e para realizar as Exposições Gerais
(RICCI, 2011).

O edifício ainda abrigou o Tesouro Nacional, mas os inúmeros problemas de


manutenção culminaram na construção do edifício da Escola Nacional de Belas Artes9,
construído nos anos de 1906-1908 na Avenida Central (Anexo IX), Rio de Janeiro, pelo
arquiteto espanhol Adolfo Morales de Los Rios.
Seja quanto sua estrutura física, normativa e prática, a AIBA contribuiu para a
formação de alguns artistas que integram nossa pesquisa, bem como, os mesmos também
contribuíram e desenvolveram atividades relevantes tanto na Academia quanto ao longo do
processo de nossa gênese nacional a partir de suas produções iconográficas.

2.2 RELATOS DE VIAGEM E SUAS CONTRIBUIÇÕES

Os relatos de viagens ao interior do Brasil, além de uma rica de fonte de pesquisa,


contribuem com nossos estudos enquanto texto-imagem, afinal muitas descrições
presentes nesses relatos contribuíram e motivaram inúmeras pesquisas realizadas pelos
intelectuais do IHGB.

Ana Rosa Cloclet, ao discorrer sobre a importância dessas viagens, ao mesmo


tempo em que apresenta seus estudos sobre José Bonifácio, o “patriarca da

8
Após a demolição do prédio, o portal central da fronte deste edifício foi desmontado e reconstruído no
Jardim Botanico- RJ.
9
Com o início da República, a AIBA passa a se chamar Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), instituição
autônoma até 1931, quanto passa a integrar a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
46

independência”, salienta no contexto desse período a relevância das “viagens e


experiências que marcaram profundamente o pensamento político e sua ideia de nação.”
(SILVA, 1999, p. 83). As viagens eram realizadas ao interior de nosso país, na busca de se
conhecer o clima, relevo, flora, fauna, costumes e práticas dos habitantes de cada região,
registrados por escrito através dos relatos que eram realizados no dia a dia, e capitados em
traços também, utilizados na confecção de mapas, e nos desenhos que eram realizados
para salientar especificidades vistas pelos viajantes e registradas para exposição aos
demais.
Martius em Como se deve escrever a história do Brasil apresenta observações
teórico-metodológicas sobre crônicas e relatos de viagem, que podem ser considerados
obras históricas e passíveis de serem convertidos em fontes. No caso dos relatos de
viagens abordados enquanto importante fonte histórica, como apresenta Cezar em seus
estudos:
a recuperação desses relatos, por meio de uma pesquisa rigorosa, é importante para
a história da nação na medida em que reforçam uma figura de herói, e funcionam
como um incentivo aos produtores dessa figuração, pois de tratam de “aventuras
dignas de inspirar tanto a fantasia do poeta épico, como a musa mais tranquila do
historiador” (CEZAR, 2003, p. 201).

Estes textos e desenhos produzidos ao longo das viagens permitiam as pessoas,


que tinham a oportunidade de entrar em contato com esses materiais, construírem uma
imagem sobre as várias regiões do nosso grande país e passarem a conhecer as
características próprias de cada uma delas e também valorizar o que se possui em comum.
“Ao viajar, o historiador conhece o específico e entende o geral; ele tem desta maneira uma
compreensão completa da nação” (Idem, 2003, p. 205).
Por isso a relevância dessas viagens, que suscitam sentimentos nos viajantes e
através da transmissão de suas experiências em loco disponibilizam através de seus relatos
para os demais que tem a possibilidade de fruir dos mesmos.
Muitos destes relatos de viagens eram publicados na Revista do IHGB. Ao longo do
levantamento que realizamos na Revista do IHGB, sobre os relatos de viagens publicados
entre o início da revista em 1838 até 1889, encontramos mais de setenta publicações,
intituladas de diferentes formas, por exemplo: Viagem para são José do Rio Negro - 1774 e
1775 (R. IHGB, tomo I, 1839, p. 85), Memória ou informação sobre a Capitania do Mato
Grosso (R. IHGB, tomo II, 1840, p. 18), Descrição do Rio Paraná (R. IHGB, tomo II, 1840, p.
315), Voyage pitoresque au Bresil - Debret (R. IHGB, tomo III, 1841, p. 95), Roteiro de
Viagem (R. IHGB, tomo V, 1843, p. 476), Relação da viagem do Conde Azambuya (R.
IHGB, tomo VII, 1845, p. 469), Diário de viagem ao Pará (R. IHGB, tomo VIII, 1846, p. 1),
Simples narração de viagem ao Rio Paraná (R. IHGB, tomo XIV, 1851, p. 165), Itinerário Rio
Grande do Sul a São Paulo (R. IHGB, tomo XV, 1858, p. 309), Roteiro Corographico do
47

Mato Grosso (R. IHGB, tomo XXII, 1859, p. 390), Manuscritos limites do Brasil (R. IHGB,
tomo XXIV, 1861, p. 113).
Esses diferentes títulos, viagem, descrição, itinerário, relação, simples narração,
roteiro corographico (geográfico), entre outros, permitem-nos observar os diferentes
enfoques que podiam ser dados para os registros produzidos através das viagens.
Ao realizarmos este levantamento das viagens optamos por nos aprofundarmos aos
relatos advindos da Expedição Langsdorff de 1824 até 1829, impressa na Revista do IHGB
no tomo XXXVIII, que além da grande contribuição para registrar nossa fauna, flora,
geografia, clima, entre outros aspectos, temos um dos pintores que integra nossa pesquisa,
participando da expedição como segundo desenhista, afinal, “é inegável a importância dos
documentos iconográficos produzidos pela expedição” (HERCULE, 2009, p. 10).
Essa expedição foi organizada por Georg Heinrich Von Langsdorff, o Barão
Langsdorff (1774-1852), naturalista alemão, e custeada pelo czar da Alemanha, Alexandre I.
Integraram essa expedição o Barão Langsdorff, o pintor francês Adrien Taunay (1803-
1828), o astrônomo russo Nester Rubtsov (1799-1874), os alemães Christian Hasse,
zoólogo e o botânico Ludwig Riedel (1791-1861) e Hércule Florence, segundo desenhista da
expedição ao interior do Brasil, uma vez que não contariam com a companhia de Johan
Moritz Rugendas, que no início da expedição realizou alguns desenhos, porém teve alguns
desentendimentos, optando por deixar de integrá-la e seguir outros caminhos.
O grupo inicia por Minas Gerais e algumas cidades do interior de São Paulo, porém
optam por realizar uma segunda etapa da expedição viajando pelos rios, assim partem do
porto em Santos de navio e segue para a Amazônia pelo interior do país. De 1826 a 1829
percorre os atuais Estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia,
Amazonas e Pará.
Nestes quase cinco anos de expedição, muitos levantamentos e estudos foram
realizados, amostras foram coletadas, registros e desenhos importantes foram feitos, sendo
criada uma coleção russa predominantemente composta por desenhos botânicos, de insetos
e de peixes. Porém, o que marcou essa expedição foram acontecimentos trágicos e
sombrios, que custaram a sanidade mental do Barão Langsdorff, vitimado pelas febres
tropicais, e a vida do jovem desenhista Adrien Taunay que morre afogado tentando
completar a travessia do Rio Guaporé em 1828.
Florence em 1849 retoma suas anotações deste período e começa a escrever o
diário completo sobre a viagem científica da expedição Langsdorff; atualmente o diário
original está em posse de seus descendentes. Porém,em 1977 foi publicado com o título
Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato
Grosso e Grão-Pará (1825-1829), e na Revista do IHGB foi publicado em 1865, no tomo
48

XXXVIII, O esboço de viagem feita pelo Sr. de Langsdorff, no interior do Brasil, desde
setembro de 1825 até março de 1829, escrita no original francês por Hercule Florence.
No esboço da viagem descrita por Florence e traduzida por Alfredo D’Esgragnolle
Tunay, o relato inicia assim:

n’uma sumaca chamada Aurora, que fazia viagens de cabotagem, partimos da


cidade do Rio de Janeiro em 3 de setembro de 1825. O tempo mostrava-se
favorável para depressa alcançarmos Santos, 40 léguas a S. O.; não estamos
contudo, a commodo n’esse acanhado barco, tanto mais quando, além das cargas e
da bagagem nossa que levava, transportava 65 escravos, negros e negras,
recentemente introduzidos d’África e todos cobertos d’uma sarna, adquirida na
viagem, que, exbalando grande fétido, poderia ter sido nociva, caso durasse mais o
contacto (...)(R. IHGB, tomo XXXVIII, v.I, p. 355).

A riqueza dos detalhes descritos por Florence abrange todos os aspectos que ele
aborda no decorrer deste relato da expedição Langsdorff; a natureza, as pessoas, lugares,
tudo é descrito, incluindo seus desenhos que além dos traços sempre trazia algumas
anotações em torno deste, como na seguinte descrição:

Em Santos há uma única rua ao longo do rio e travessas que da praia vão ter ao alto
das colinas a cavaleiro sobre a cidade. Bem que se note muito pouca atividade na
resumida população, é este ponto o mais importante de toda província e o
entreposto exclusivo do comercio de importação e exportação que busca a parte
setentrional de S.Paulo (R. IHGB, tomo XXXVIII, v.I, p. 356).

Essas descrições, fruto das viagens ao interior do país, eram discutidas e


apresentadas nas reuniões do Instituto, levando o conhecimento para os demais sócios e
posteriormente incentivando produções escritas e iconográficas, que alcançariam os demais
letrados ou aos que tivessem acesso de outras maneiras, leituras em grupo, ou mesmo a
exposição das imagens em locais públicos.
Voltando nosso olhar para alguns trechos de outros relatos, apenas a título de
conhecimento de diferentes abordagens presentes na revista do Instituto, sem nos
aprofundar para não desviarmos o foco de nossa pesquisa, temos alguns exemplos, como
Manuscritos sobre os limites do Brasil de S. M. o Imperador:

Estado do Brasil é uma região amplíssima que está na América meridional, e


antigamente se chamou Provincia de Santa Cruz. Principia o mesmo Estado em
quatro grãos da latitude septentrional do Rio de Vicente Pinson e por outro nome de
Iapoca. E supposto segundo a opinião do insignes piloto Américo Vespúcio (que
eternizou seu nome dando-o a esta quarta parte do mundo), acaba na Bahia de S.
Vicente ou de S. Mathias donde sai o Rio Desaguadouro, cujo nome depois
mudaram os Castelhanos em Bahia sem fundo com uma malícia conhecida, pois
obliterando este nome dos mapas, por conseguinte se não havia de saber para o
futuro, d’onde havia o dito Américo fincado o marco dos limites portuguezes, ainda
em tempo que nenhum Castelhano havia abordado essas terras austraes (…) (R.
IHGB, tomo XXIV, 1861, p. 113).
49

Outra publicação que citaremos presente na revista é Descrição do Rio Paraná por
Manoel de Campos Silva, copiada de um manuscrito ofertado ao IHGB pelo membro Sr. J.
D. de A. Moncorvo:

As principais entradas do rio Paraná são a boca do Guaçú e o Paraná das Palmas:
por esta entrada não podem navegar embargações que demandem mais de seis
palmos de água senão quando está o rio crescido, que geralmente cresce com
ventos E.,ESE.,SE.,SSE, e S e tambem com a crescente de cima, que não tem
tempo certo, mas são geralmente pelos mezes de janeiro, fevereiro e março e assim
mesmo as embracações que vem de cima carregadas não passão os barcos que
estão de fronte do arroyo de Antequeira e das Conxas e das ilhas do Dorasmo e Pay
Caraby, as quaes formão a entrada dos Corações sem alijar na Cruz Colorada a
embarcação de pouca água e também fazem a travessia dos ditos corações para a
bocca do Guaçu. (1) Esta entrada mais frequentada e menos dificultosa de navegar,
e se junta com a do Paraná das Palmas um pouco mais abaixo de S. Pedro e então
segue um só canal até mais acima de S. Lourenço, não obstante que também
estando o rio crescido podem passar embracações pequenas por traz das ilhas que
estão anexas e não ficam alagadas (…) (R. IHGB, tomo II, 1840, p. 315).

Por fim, um Roteiro de Viagem do Desembargador Henrique da Silva, e do Major de


Engenheiros Manoel Cardoso Saldanha, a Serra dos Montes Altos para instalação de uma
fábrica de salitre (…), texto oferecido da Bahia para o IHGB pelo sócio Sr. Ignácio Accioli de
Cerqueira e Silva:

Maio: 22 de Moritiba ao sítio Aporá - caminho bom 5 léguas; 23 do Aporá termo da


cachoeira ao Genipapo, caminho bom para carros 5 léguas; 24 de Genipapo, termo
da Vila de Maragogipe ao Curralinho, caminho povoado e bom 2 léguas; 25 do
Curralinho ao Boqueirão, caminho povoado e capaz de carros 4 léguas; 26 do
Boqueirão, termo da Cachoeira, ao sítio da Pedra-Redonda, caminho povoado e
capaz de carros 5 léguas; 27 da Pedra-Redonda ao Sítio da Boa-Vista, caminho
povoado e capaz de carros 7 léguas (…) (R. IHGB, tomo V, 1843, p. 476).

Esses trechos de publicações apresentados em diferentes edições da revista nos


permitem observar a escrita dos textos, suas diferentes formas de organização e estudos
que eram produzidos, apresentados, discutidos e por fim publicados trimestralmente. Afinal,
viajar é uma tarefa importante e cabe e a produção advinda das viagens “se ao viajante
cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista caberia classificar, ordenar, organizar
em mapas e coleções o que se encontra no caminho” (SUSSEKIND, 1990, p. 45).
Muitas expedições, assim como a Langsdorff, formaram coleções ricas, envolvendo
flora e fauna, principalmente, relevantes dentro e fora de nosso país. Outras foram
importantes para conhecermos características geográficas, pertinentes ao relevo, limites dos
estados e principalmente do país, colaborando no processo da gênese da nação.

Miriam Moreira Leite, em A documentação da Literatura de Viagem chama a atenção


para essa diferença de interesses entre os muitos viajantes que percorreram o país
no século passado. Diferença que propiciaria certa variedade de pontos de vista nos
relatos de viagens produzidos então (apud. Idem, 1990, p. 114)
50

Seja através das diferentes intenções ou pontos de vista, Lima apresenta em seus
estudos a produção iconográfica associada às experiências de viagem, dividida em dois
conjuntos:

um deles reuniria imagens cujo destino seria o de ilustrar, exemplificar e


acompanhar textos também originados da experiência do deslocamento; o outro, por
sua vez, agruparia as imagens que manteriam sua autonomia em relação a registros
não visuais. O que definiria a destinação de cada um dos trabalhos seria,
justamente, a intenção de quem os produzia ou demandava, conforme a finalidade
que se desejava imprimir às representações elaboradas por desenhistas, artistas
amadores e profissionais, bem como por indivíduos sem formação artística. No
longo trajeto de sua fortuna crítica, esse grande conjunto a que se denomina
iconografia de viagem, viu construir-se ao redor de si, de uma maneira
indiscriminada e generalista, o atributo do registro documental. Reconhecer seu
papel documental, capaz de traduzir, aos olhos de quem não esteve diante da
realidade “reapresentada”, o essencial do que ali se havia instituído em termos
naturais e humanos, remete para um aspecto da arte desde os seus primórdios e
que diz respeito à sua capacidade mimética. Remete, de resto, à capacidade
atribuída a toda imagem, de ser a “presença de uma ausência” (BELTING, 2004:
13). É justamente desta capacidade e das possibilidades que dela derivam que a
iconografia de viajantes retira seu poder de instituir-se enquanto discurso que
autoriza a História. (…) Belting afirma que as imagens só existem porque existem
meios que as veiculam e corpos/olhares que as admiram. O que condiciona sua
existência é, portanto, externo a ela. Para ele, se temos dificuldade em compreender
tal argumento é porque nos distanciamos das imagens, ou melhor, isolamos as
imagens como entidades simbólicas, afastadas das condições históricas e materiais
de sua existência. Estas reflexões parecem adequadas para pensar a iconografia
dos chamados “artistas-viajantes”, uma vez que seus trabalhos materializam
imagens mentais (impregnadas de sentidos simbólicos), associadas com elementos
da realidade local, gerando interpretações/sentidos (também imagens, se assim as
quisermos nomear) relacionadas ao contexto e à história local (LIMA, 2008).

Os textos-imagens produzidos por esses viajantes que adentram nosso país permite
aos mesmos uma bagagem de vivências, produções e relatos que transmitem
conhecimentos e experiências aos que usufruem de seus escritos, e desenhos. Como nos
estudos de Flora Sussekind:

Mas informam-se igualmente, nessa quase frase feita, a repercussão do gênero e o


modo como se encaravam os relatos de viagens, e as viagens em geral, na
sociedade brasileira em meados do século XIX. Não apenas como divertimento,
mas, sobretudo como meio de conhecimento, educação e acesso a informações
históricas e geográficas e sobre usos e costumes, de outros povos; de outro modo
inacessível a um público que “não há de ir ver as coisas com os próprios olhos”
(SUSSEKIND, 1990, p. 77).

Assim, os relatos de viagem contribuem com a produção iconográfica, uma vez que
disponibilizam a visualidade de lugares inóspitos, acontecimentos, pessoas, disponibilizam
amostras de vegetações e solos, relatam sobre topografias e costumes das diferentes
regiões do nosso grande país; enfim, descrevem e produzem informações penitentes para a
consolidação da identidade nacional.
51

3. A GÊNESE NACIONAL NA PRODUÇÃO ICONOGRÁFICA DO SÉCULO XIX

Neste capítulo abordaremos a constituição da gênese de nação na produção


Iconográfica do século XIX. Aprofundando-nos em quais aspectos eram retratados do povo,
e para o povo, quais paisagens eram apresentadas e de que forma, quais costumes e
práticas locais eram exibidos, com qual finalidade, em que espaço seriam expostos e se até
os dias atuais essas obras ainda estão expostas.
Para analisarmos as respectivas obras e formação de Hércule Florence, Victor
Meirelles, Pedro Américo e Benedito Calixto, seus mentores, suas aspirações e inspirações,
partiremos de reflexões, tais como: o que pensar sobre uma imagem? Um espectador vê
apenas o que está visível, ou um contexto mais amplo subtendido no invisível? Um
espectador enxerga o que deseja ou o que o artista quer mostrar?
Estas e outras indagações incitam a reflexão sobre o caráter de uma obra, seja ela
escrita através das palavras ou em meio às pinceladas com seus vários planos e efeitos,
“são os poderes da arte fabricando a História.” (COLI, 2005, p. 43).
Louis Marin em seus estudos questiona como é “ler um desenho ou quadro?” A
utilização do termo leitura de imagem abre um leque de posições favoráveis e contrárias a
esse termo, nos estudos sobre imagens de Ginszburg, em que afirma:

que a leitura de uma imagem nunca é obvia, na medida em que o observador se


depara sempre com uma mensagem ambígua – “a ambiguidade”, escreve ele a
certo ponto, “é evidentemente a chave de todo problema da leitura da imagem – e é
forçado a escolher entre várias a interpretação correta (GINZBURG, 1989, p. 84).

Assim como Ginzburg, Louis Marin utiliza o termo e o trata enquanto forma de
expressão como “simples figura de linguagem ou abuso do termo, em todo caso, uma
página escrita é, de um lado uma leitura, de outro lado, quadro e visão; o legível e o visível
têm fronteiras e lugares em comum” (MARIN, 2011, p. 117).
Para Marin a expressão “leitura de um quadro” tem características que enunciam um
caráter operatório, ultrapassando a própria leitura através de elementos e efeitos de
iconização, aborda o que seria legível e visível, estabelecendo pontos pertinentes de um
discurso, e por fim o legível e visível ligando e se opondo diferentemente, no quadro em
relação aos livros.
O autor exemplifica que para Port. Royal, o olhar imediato sobre o quadro é “leitura e
isso considerando-se uma dupla definição pressuposta e implícita 1) da ideia de signo como
representação e 2) do quadro pintado como sendo ideia de alguma coisa” (Idem, 2011, p.
118).
52

Os livros, bem como os relatos de viagens que atentamos no capítulo anterior,


trazem-nos os discursos escritos, assim como, o discurso das imagens, construídos a partir
de pinceladas, que assim como as letras, podem transportar significados e enunciados
passíveis de interpretação. Por mais que não queiramos, por hora, dissociar essas “leituras”,
pelo contrário, estamos refletindo ao longo de nossa pesquisa sobre a fusão entre as tintas
dos impressos e dos pincéis, de forma que possamos percebê-las de mãos dadas.
Como nos aponta Marin,

deveríamos dizer que o próprio artista, para pintar seu quadro, leu um texto e que o
seu espectador, para ver o quadro “realmente”, deve ler o quadro como se fosse
esse texto. Se o artista teve de ler um livro, um texto, palavras, frases, para pintar,
para fazer ver, o espectador deve “ler” o quadro para ver aquilo de que fala o texto
(que o quadro traduz e ao qual remete ou se refere) (MARIN, 2011, p. 119).

Diariamente o ser humano é um espectador, vivencia e vê cores, formas, ações e


situações. Refletindo sobre o espectador do século XIX, que em sua grande maioria não
teria contato com as letras, pelo analfabetismo que era muito comum no período, ou apenas
pela falta de oportunidade desse contato, temos a imagem passível de transmitir
acontecimentos, fatos, heróis nacionais, entre outros aspectos reproduzidos ao alcance do
olhar.
As obras fazem saltar aos olhos eventos e fatos relevantes para a construção da
identidade nacional brasileira; atentamos ao período de formação dos autores e a produção
das imagens, bem como o papel de cada uma no processo de consolidação da nação e
também de manutenção da nacionalidade até os dias atuais.
Ginzburg ao analisar os circuitos icônicos da Itália do século XVI em seus estudos os
diferencia como privado “circunscrito e socialmente elevado” e público “amplo e socialmente
indiferenciado e acessível a todos, constituído por estátuas, afrescos, telas e quadros de
grandes dimensões – objetos expostos em igrejas, e palácios públicos, acessíveis a todos”
(GINZBURG, 1989, p. 122). Da mesma forma, podemos refletir sobre as quatro obras que
integram nossa pesquisa, advinda do privado e socialmente elevado, utilizando os termos
adotados por Ginzburg, e expostos em ambientes públicos, até nossos dias para suscitar e
manter os sentimentos intencionados desde a criação de cada obra.
O olhar sobre a obra, seja nos primórdios delas até a contemporaneidade, remete-
nos a Marin; em seus estudos nos chama atenção, para que o instante de “olhar um quadro
não é perceber um objeto. Não é tão simplesmente ver” (MARIN, 2001, p. 126). Além do
olhar que apenas vê, é mergulhar no que está dentro e fora das suas molduras, é a
proposição de nossa pesquisa, que vai além desse simples olhar, propõe-se ver a imagem
53

com atenção, decifrando a “trama deste tecido” produzido em meados do século XIX e
utilizado até os dias atuais.
Para atentarmos às obras que selecionamos, realizadas ao longo do século XIX,
estabelecemos uma ordem cronológica de acordo com a confecção de cada uma delas, pois
retrataram diferentes aspectos dentro do contexto da gênese da nação brasileira.
Através dessas obras analisadas, é possível atentar a alguns pontos de vista de
diferentes momentos de nossa nação, partindo de seu “descobrimento” até aos primeiros
momentos de sua existência, desde o momento em que a terra inóspita, desconhecedora do
evangelho que os europeus trazem encarando todas as dificuldades e superando-as em prol
do promissor Império.
Afinal, de acordo com os estudos de Coli,

A descoberta do Brasil foi uma invenção do século XIX. Ela resultou das solicitações
feitas pelo romantismo nascente e pelo projeto de construção nacional que se
combinavam então. Como ato fundador, instaurou uma continuidade necessária,
inscrita no vetor dos acontecimentos. Os responsáveis essenciais encontravam-se,
de um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentava cientificamente uma
“verdade” desejada; e, de outro, na atividade dos artistas, criadora de crenças que
se encarnavam num corpo de convicções coletivas (COLI, 2005, p. 23).

Esses primeiros contaram com a elite cultural, discutindo, pesquisando e


incentivando os historiadores para que nossa história fosse escrita. O IHGB e seus
membros dedicados em busca desta causa disponibilizaram material teórico e prático para
que nossos artistas realizassem suas obras, onde “a ciência e a arte, dentro de um processo
intrincado, fabricavam “realidades” mitológicas que tiveram, e ainda têm, vida prolongada e
persistente” (Idem, 2005, p. 23).
E em se tratando de quem escreve a história, “o historiador do século XIX possuía
considerável força criativa, moldando seu discurso segundo determinadas restrições, para
produzir um tipo único de textos literários” (BANN, 1994, p. 129).
Como apresenta Carvalho em suas pesquisas, “todo sistema de dominação, para
sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade ainda que seja a apatia
dos cidadãos” (CARVALHO, 1987, p. 11). No caso das obras de arte, atentamos para um
despertar da simpatia dos cidadãos, incitando os mais profundos e motivadores sentimentos
pela nação, valorizando sua natureza, fauna e flora, povo e nossos heróis.

O impacto de uma obra, sua força interna, a capacidade de agir sobre outros
criadores, que multiplicarão, de maneira muitas vezes indireta e não explícita, a
força dos protótipos, é impossível de medir de número ou pelas formas simplificadas
daquilo que se imagina ser uma compreensão ideológica. Quando muito, alguns
desses estudos “cientificamente” sociológicos podem servir como apoio, secundário
para a compreensão das obras (COLI, 2005, p. 20).
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Essas palavras de Coli nos leva a pensar em outro aspecto que abrange essas
imagens produzidas ao longo do século XIX; elas também se tornaram inspiração para
produções iconográficas, inspirando outros artistas a produzirem imagens de nosso país,
além de modelar condutas, como afirma Carvalho:

Símbolos e mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada,
tornar-se elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos
coletivos. Na medida em que tenham êxito em atingir o imaginário, podem também
plantar visões de mundo e modelar condutas. (CARVALHO, 1990, p. 10)

As visões de mundo advindas dessas obras contribuíram em vários aspectos, na


construção e reconhecimento de atos heróicos e de nossos próprios heróis, bem como
exaltar nossa natureza, nossa origem, fé e religião, entre outros aspectos estimulados no
período da produção das mesmas, utilizado ainda em nossos dias para a manutenção da
nação.
Além das imagens, os relatos de viagens publicados na Revista do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, abordados no segundo capítulo, acumulam no contexto de nossa
pesquisa o papel de texto que funciona de modo imagético pelo seu próprio caráter de
demonstração, explicação, análise de paisagens, cidades, culturas e povos, o que
disponibilizará suporte e inspirará a produção iconográfica, suscitando por sua vez
sentimentos necessários para a construção da ideia de Nação. Portanto, levamos em conta
que as “memórias construídas sobre os espaços geográficos possuem grande influência nas
constituições dos sentimentos de identidade nacionais ou regionais, no pensamento político
e no próprio processo de transformação dos espaços geográficos” (ARRUDA, 1997, p. 219).
Ao longo desta construção, a elite intelectual mantinha-se discutindo temas
pertinentes, publicando os estudos e levando ao restante da sociedade, que possuía acesso
às Revistas, ao mesmo tempo em que disponibilizavam suporte para as produções
iconográficas, pois a imagem adota, de certa forma, características pedagógicas, uma vez
que alcança até mesmo o iletrado, que sem acesso à cultura escrita pode visualizar os
aspectos que lhe são apresentados de acordo com os anseios e desejos desta elite cultural,
que buscava construir a história nacional auxiliando a consolidar a identidade brasileira,
onde “há o “bom povo” e a “boa Nação”, obras de Deus e da Natureza, mas adormecidos,
cabendo aos artistas, intelectuais e políticas desperta-los para obra conjunta de
consolidação, modernização e integração nacionais.” (CHAUÍ, 1989, p.118).
Letras e imagens nos instigam e nos permitem estabelecer uma espécie de
comparação entre o historiador e o pintor, de forma que temos um historiador fazendo-se
compreender por um arranjo de palavras e uma sequência de discursos que formam uma
imagem das coisas que quer dizer e representam sucessivamente a ação que lhe agrada.
55

Mas o pintor, de acordo com Marin (2001, p. 124) tendo apenas um instante no qual deve
tomar a coisa que quer figurar, para representar o que se passou naquele exato momento, é
necessário, por vezes, que reúna muitos incidentes que precederam, a fim de tornar
compreensível o tema que expõe.
Nossa principal fonte é o “instante figurado pelo pintor” a produção iconográfica,
principalmente nas obras que analisaremos a seguir, dos artistas, Hércules Florence, Victor
Meireles, Pedro Américo e Benetido Calixto, compreendendo o período do Segundo
Reinado, e tornando visíveis os aspectos necessários para suscitar todos os sentimentos
abordados anteriormente, de pertencimento, reconhecimento e o nacionalismo.
Assim, sem deixarmos de lado a historiografia do século XIX, imprescindível em
nossa pesquisa nos remetemos a Marin que afirma através de seus estudos: “leia a história
e o quadro”, pois no “texto do quadro, em sua tela de representação, legível e visível
comunicam-se, em todos os níveis, num tecido onde a trama, seriam os percursos do olhar
e onde a corrente, seriam os discursos do quadro” (MARIN, p. 139, 2001).
Discursos presentes nos quadros e transmitidos através dos olhares sobre as obras
foram importantes ao longo do século XIX e na atualidade ainda desempenham um papel
relevante, atuando em prol da manutenção de muitos destes sentimentos, os quais
pontuamos principalmente nas obras de Victor Meirelles e Pedro Américo.
A primeira obra apresenta um herói da nossa nação que, sobre seu cavalo, brada
por nossa independência, e a segunda retrata o momento da primeira missa celebrada em
nosso solo, conhecida até a confecção da obra apenas na descrição de Caminha, e na tela
faz às vezes de marco inicial, um “pontapé” para a pátria infante firmada na fé cristã.
São duas obras que, apesar de retratarem eventos específicos e datados, desde
seus primórdios tempos até os dias de hoje, despertam e estimulam os mesmos
sentimentos propostos através delas, disponibilizando uma memória visual que se engloba
a cultura nacional, “dessa maneira, a continuidade temporal da história ressurge na
continuidade temporal da cultura: o passado preservado pela Cultura Popular e o futuro
garantido pela Cultura instruída” (CHAUÍ, 1989, p. 120).
Os intelectuais foram responsáveis pelo ponto de partida, de encomendar, refletir
sobre quais eventos deveriam ser retratados, de que forma, com qual intenção, afinal essas
obras são tomadas como documentos nacionais e têm lugar de destaque desde meados do
século XIX, no contexto de gênese e consolidação da nação brasileira até os dias atuais,
reforçando constantemente.
Se pensarmos que as imagens nos possibilitam inicialmente o ver para conhecer, e
posteriormente se responsabilizam através da manutenção, do ver para não se esquecer,
atentamos que isso pode ocorrer enfaticamente quando olhamos para essas telas que nos
56

encantam, não apenas pelo o que retratam, mas por seu tamanho que nos encanta e nos
retira suspiros, pelo menos é o que O Grito do Ipiranga despertou-nos ao colocarmos os
olhos diante da obra pessoalmente.
A manutenção através do ver também se dá nos traços de Hércule Florence e
Benedito Calixto, com dimensões menores mais não menos importantes, retratando um
momento que presenciou no interior de nosso país e Florence eternizou em sua aquarela, e
Benedito Calixto que traz o padre jesuíta na ativa, em meio ao território ainda selvagem dos
primeiros anos de nossa nação.
Seja através dos pincéis dos pintores ou da “caneta” do historiador e suas palavras,
que pouco a pouco vão tecendo as narrativas e unem os fatos em uma determinada ordem,
como vimos em um primeiro momento através da proposta de como se escrever a história
do Brasil e posteriormente a escrita, efetiva enquanto o pintor tem os acontecimentos que a
história disponibiliza e podem ser vistos nas pinceladas integrando algo maior, além das
molduras, e retratado de acordo com a intenção do pintor.
Por tudo que apresentamos anteriormente, no século XIX foi necessário consolidar
essa identidade nacional, despertando o pertencimento do indivíduo na grande nação ainda
jovem, a qual ele já fazia parte e precisam se reconhecer nela.

Numa época em que pertencer a um povo, a uma nação parecia ser condições tão
necessárias ao trabalho intelectual como o saber ler e escrever, a escolha pela
nação brasileira não aparece como expressão de um patriotismo atávico e familiar,
mas como condição limite e determinante de um modo de ser intelectual. Foi uma
opção romântica, num mundo romântico” (VARNHAGEN, 1979, p. 9).

A manutenção deste reconhecimento em nossos dias permite-nos voltar o olhar para


o período das séries iniciais do ensino fundamental, onde o clichê “uma imagem vale mais
do que mil palavras” é fato, pois as crianças que ainda não dominam o sistema de escrita
têm o período de atenção e concentração curtíssimo quanto ao que o adulto fala, enquanto
as imagens são mais significativas, atraentes e uma maneira mais concreta de transmissão
do conhecimento histórico e composição da identidade social desses indivíduos.
Nossas crianças hoje conhecem sua identidade de maneira holística, quem eles são,
em qual família nasceram, o grupo que frequentam, suas comunidades, seus bairros,
cidades, estado e país, utilizando como exemplo, se questionarmos um pequenino sobre o
que vem à sua cabeça quando perguntamos sobre independência do Brasil, mesmo que ele
não saiba ainda o significado do termo, ainda sim eles descrevem a obra de Pedro Américo,
o que ocorre com muitos adultos também, como observamos em nossa prática diária em
sala de aula nos anos iniciais do ensino fundamental e no ensino médio.
57

Mais um fator instigante para a nossa pesquisa que almeja compreender a gênese
da nação brasileira através desta iconografia oitocentista, tão significante ainda no século
XXI.
Por isso cada um dos artistas e obras apresentadas ao longo de nossos estudos
abordaram a história, acontecimentos, personagens, sentimentos pela nação, a geografia,
nosso vasto território, a natureza, fauna e flora, entre outros aspectos que combinados de
acordo com a intenção de cada tela permitiram desempenhar um importante papel da
iconografia na história nacional, e na nossa circunvizinhança também, como afirma Jorge
“com essas imagens, o Brasil afirmava sua preeminência na América Latina” (COLI, 2005, p.
84).

3.1 HÉRCULE FLORENCE

Dentre os artistas que abordaremos partimos de Hércule Florence, nascido em Nice,


no dia 29 de fevereiro de 1804 e faleceu em 1879. Chega ao Rio de Janeiro, em 1824, como
tripulante de um navio francês. Desde cedo demonstra interesse por ciências, pelas
famosas expedições dos viajantes europeus ao Novo Mundo e desenho, sobre isso afirmava
“eu aprendi [desenho] sem outro mestre senão os modelos que tinha diante dos olhos”
(HERCULE, 2009, p. 145).
O desenhista autodidata, filho de médico com uma nobre francesa, ao se instalar no
Rio de Janeiro emprega-se em uma loja e depois em uma livraria, até o dia em que, atraído
por um anúncio em setembro de 1825, decide partir com a Expedição Langsdorff, como
segundo desenhista da viagem científica liderada pelo próprio Langsdorff e descrita no
capítulo anterior.
Lembrando que a oportunidade de tornar-se o segundo desenhista dessa expedição
ocorre a partir do sério desentendimento de Johann Moritz Rugendas10, que era o primeiro
desenhista, com o Barão Langsdorff. Adrian Taunay, que era o segundo desenhista, tornou-
se o primeiro e então Florence embarca na expedição.
A obra deste pintor que analisaremos é uma aquarela produzida em 1848, Engenho
da cachoeira. Corte de cana-de-açúcar (Anexo I), aquarela e nanquim sobre o papel,
medindo 23,4 x 37,9 cm.
Hércule Florence viajou muito por nosso território produzindo seus desenhos e
contribuindo com o processo de identidade nacional e consolidação de nossa história. Essas

10
Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Pintor alemão que transitou por três anos no Brasil realizando viagens,
coletando e registrando aspectos de fauna, flora e características das pessoas.
58

viagens iniciam quando Florence aos 21 anos integra a expedição de Langsdorff, vai para
Santos de navio e segue para a Amazônia pelo interior do país.
De 1826 a 1829 percorre os atuais Estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Rondônia, Amazonas e Pará. Florence realiza uma série de seus desenhos
aquarelas, retratando a fauna, a flora, a paisagem e a população dos locais visitados,
juntamente com desenhista francês Adrien Taunay, que formam a documentação visual
dessa expedição que custou a sanidade de Langsdorff e a vida de Taunay que se afogou no
Rio Guaporé.
Com espírito aventureiro, curioso e minucioso, o artista se dedica a representar a
natureza. O meticuloso artista assinala as condições de observação de cada registro feito
com a data e local da coleta, dimensões do exemplar documentado, as proporções entre o
tamanho do referente e da referência, se são imagens elaboradas com plantas secas ou
animais empalhados etc. Sua visão analítica apreende o objeto em seu todo e nos detalhes,
elaborando uma descrição que transcende traços e palavras.
Buscando dar conta sempre de um detalhe á mais, como apresenta Sussekind em
seu estudos:

por isso, aliás as paisagens de Johann Moritz Rugendas, Hércule Florence, Tomaz
Ender, algumas vezes chegam a parecer cheias demais. Como se numa estampa se
devesse dar conta de uma multiplicidade de espécies existentes ou atividades
possíveis naquele exato local. Ou singular simultaneamente diversos elementos que,
a rigor, poderiam estar dispersos, imersos numa vista geral, num grande plano.
(SUSSEKIND, 1990, p .118)

Tanto plantas como animais retratados por Florence são mostrados de diversos
pontos de vista, por dentro e por fora, com ênfase nas características de cada gênero. No
caso dos retratos etnográficos, apresenta as figuras de frente e perfil, esforçando-se em
reproduzir suas particularidades ao mesmo tempo em que procura individualizar as
fisionomias e afirmar a diversidade, sem recorrer a padronizações.
Nas paisagens, além da topografia de cada região, interessa-se em registrar a
luminosidade do céu e das nuvens, que foram objeto de um longo estudo realizado pelo
pintor ilustrando todos os gêneros, desde as nuvens com forma de carneirinhos até aquelas
carregadas de chuva.
O manuscrito intitulado Esboço da Viagem de Langsdorff ao interior do Brasil desde
setembro de 1825 até março de 1829 é traduzido e publicado por Alfredo d´Escragnolle
Taunay11, com o consentimento do autor, entre 1875 e 1876, na Revista do Instituto

11
Alfredo d’ Escragnolle Taunay (1843-1899) Visconde de Taunay, um dos fundadores da Academia Brasileira
de Letras, era escritor, professor, músico, artista plástico, historiador, sociólogo e lutou na Guerra do Paraguai
na qualidade de engenheiro militar.
59

Histórico Geográfico Brasileiro (R. IHGB, Tomo XXXVIII Parte I e II, 1875) que atentamos
parcialmente no segundo capítulo de nossa pesquisa.
Somente em 1849 Florence retoma suas anotações e começa a escrever o diário
completo sobre a viagem científica. Esse diário, atualmente em posse de seus
descendentes, foi publicado em 1977 sob o título Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas
pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará (1825-1829).
Após os términos dos trabalhos na expedição como desenhista, instala-se em São
Carlos, atual Campinas no estado de São Paulo, onde constitui família e se torna
fazendeiro, mas sem deixar a arte e as questões científicas de lado. Continua registrando a
paisagem e as transformações pelas quais passa a região no decorrer do século XIX.
Documenta o incremento da lavoura de cana-de-açúcar e café, o trabalho escravo
nos engenhos, as queimadas e derrubada das matas para plantio e, em menor número, até
a capital paulista.
A obra de Florence o Engenho da Cachoeira. Corte da cana-de-açúcar, é uma
aquarela que reproduz um canavial em 1848, trazendo o trabalho escravo nas plantações,
retratando ao fundo certa domesticação da natureza com os espaços bem definidos, entre o
que já estava plantado, de onde se estava plantando e por fim o local em que ainda se
preparava a terra. O desenho mostra ainda as condições de vida dos escravos negros no
Brasil.
Essa obra pertence ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo; no momento
não está exposta, porém sua exposição mais recente ocorreu entre 2009 e 2010, intitulada
como Hércule Florence e o Brasil: o percurso de um artista inventor. Nela foram expostos
desenhos do artista na própria Pinacoteca de São Paulo, tendo por curadora a bisneta de
Florence.
Sua criatividade e desenvoltura com as tintas faziam com que o autor, por vezes
“semelhante ao desses prosadores de ficção da segunda metade do século passado: a
fixação de um ponto de vista “histórico” que não demonstrasse “paisagens paradisíacas” ou
“mapas coesos” (SUSSEKIND, 1990, p. 198), mas que registrasse com a maior riqueza de
detalhes possíveis, permitindo enxergarmos o que o artista viu e que desejava que também
víssemos.
E ainda busca nos instigar despertando outras sensações como para descrever uma
queda de água: “Não é à toa, aliás, que Florence as define em analogia a outra paisagem
possível: ‘imagine uma grande escavação no meio de uma planície, que fosse de repente
inundada; eis a catarata. Paisagem para ver e não para colecionar’” (Idem, 1990, p. 121).
Com suas inúmeras aptidões, Florence encarou a arte como uma forma de ciência
para contribuir com a humanidade. Desempenhou outras profissões para prover o sustento
60

de sua família e seus vinte filhos, trabalhou como caixeiro, dono de loja de tecidos, tipógrafo
e ainda é precursor no campo dos processos químicos de reprodução de imagens.
E nesta empreita em busca de simplificação da reprodução de imagens, desenvolve
diferentes procedimentos dos comuns na época (como a litografia e a xilogravura) e inventa,
em 1830, o que chama de poligrafia (impressão em cores semelhante ao atual mimeógrafo)
e em 1832 começa a investigar as possibilidades de fixação da imagem utilizando nitrato de
prata e câmera escura com a ajuda do boticário Joaquim Correa de Mello, que realiza
experiências fotoquímicas dando origem a imagens batizadas de fotografia em 1833, onde
produz cópias fotográficas de desenhos em Campinas – ainda que não tenha sido
reconhecido como inventor da fotografia e da poligrafia, pois no mesmo período na França
Joseph Nicéphore Niépce e Louis Jacques Mandé Daguerre, e na Inglaterra William Henry
Fox Talbot, desenvolviam o mesmo processo.
Em 1877 é declarado membro correspondente do Instituto Histórico e é reconhecido
como um dos pioneiros da iconografia paulista, pois é de Florence alguns poucos desenhos
do interior da antiga Igreja da Sé de São Paulo, retratou fazendas em formação e o período
de transição da produção do açúcar para café.
Além de artista, foi o dono do primeiro jornal de Campinas, porém Florence é
conhecido por suas muitas invenções. Seus dons como inventor, pesquisador de novas
técnicas de fotografia e reprodução de imagens, merecem destaque por seus traços firmes
ao longo das viagens ao interior como pintor das expedições que registravam a história e
geografia do nosso país, bem como a riqueza de detalhes da fauna e flora deste amplo
território.
Ela retrata muitas cenas, esboços, locais específicos como fazendas, ainda em
formação, substituindo as culturas de plantio, entre outras. Mas no caso específico da nossa
aquarela se torna visível uma cena cotidiana no interior do Brasil, em uma fazenda que
plantava a cana, apresentando nosso país enquanto sociedade escravista, e com uma
população expressiva de escravos que de acordo com os estudos de Schwarcz sobre a
capital do Império,
longe das luxuosas cortes europeias, a capital da monarquia brasileira, em 1838,
possui cerca de 37 mil escravos, numa população de 97 mil habitantes. Além disso,
75% dos escravos em média, eram africanos, dado que sinaliza a importância da
população de cor na cidade do Rio de Janeiro (SCHWARCZ, 2001, p. 11).

A expressividade da presença do negro em nosso país de certa forma é apresentada


nesta fazenda, ainda que, ao longo de nossa gênese nacional, como vimos no primeiro
capítulo, as três raças bem definidas, ainda que suprimida no caso dos negros, aqui é
retratada. Florence mostra a etapa da colheita, o papel do escravo nesse trabalho, como e
onde ele trabalhava, quem coordenava, mostra também a geografia através da topografia,
61

vegetação nativa, nosso céu, nuvens, advindas de muitos estudos que o artista realizava
sobre elas, e através de registros pertencentes à família. Sua bisneta transmite alguns dos
sentimentos de Florence quando realizou o desenho através da descrição abaixo:

Em visita à fazenda Engenho da Cachoeira (denominada sítio nos desenhos), do


senador Nicolau de Campos Vergueiro, Florence produziu, em 1848, uma aquarela
que retrata trinta escravos trabalhando no corte de cana-de-açúcar. Sob o olhar de
Florence, o feitor castiga um deles, aparentemente só para mostrar sua autoridade.
Florence considera-se a causa do castigo, sente aversão ao seu trabalho naquele
momento. No quadro em primeiro plano, vemos troncos de jequitibás, dos quais o
maior tem altura estimada em sessenta metros. Sobre essa experiência, além da
indignação com o trato dos homens, registrou também sua ansiedade com o
tratamento dado à natureza:
O machado dos derrubadores passou sobre o terreno onde estamos; o fogo devorou
o resto. A enorme dimensão dos jequitibás, sem dúvida deriva do respeito dos
derrubadores, mas essa é uma exceção ao hábito deles. O que sobreviverá das
árvores gigantes? O brasileiro não as poupa; o colono mais ativo só tem em vista
seu interesse material. Se nossas belas florestas devem desaparecer, se todos os
nossos campos se entapetam de cafeeiros alinhados, a monotonia subsistirá a
majestade da natureza. O sentimento do belo será diluído? Esperamos não atingir
esse ponto de decadência. (HERCULE, 2009, p. 21)

Essas palavras do artista que demonstram a indignação quanto ao trato do negro,


sem nos aprofundarmos nesta questão amplamente discutida na historiografia, mas
voltando nossa atenção quanto ao que essas palavras figuram, pois o seu olhar sobre o
objeto da cena como o todo a ser retratado na fazenda foi turvado por sentimentos advindos
da falta de respeito com o negro que trabalhava neste contexto e, ainda que o artista tenha
se apressado em retratá-los para não tornar-se motivo de maiores açoites, que o
indignaram, ainda assim o artista os desenha, embora as pessoas sejam pequeninas em
referência às imensas árvores, que levamos a um pensamento distinto, uma vez que se
torna um indício da superioridade da natureza.
De acordo com os estudos de Biscardi e Rocha:

As convenções neoclássicas persistentes nas telas românticas impossibilitaram a


expressão fidedigna da multifacetada realidade brasileira, resultando numa produção
artística distante do nosso universo e suas possibilidades de representação. Isto
explica a irrisória verossimilhança com que o negro foi tratado na pintura, uma vez
que os raríssimos negros nas telas eram semelhantes aos escravos gregos, seus
traços foram relegados em função da ótica idealizadora. De acordo com o crítico de
arte Carlos Cavalcanti, no texto “O Predomínio do Academismo Neoclássico”.
(BISCARDI; ROCHA, 2006)

Os traços de Florence eram traços de alguém que conhecia muito de nosso país,
inclusive lugares que pouquíssimas pessoas tiveram a oportunidade de fitar os olhos ao
longo no período de nossos estudos.
Acrescentamos ainda as palavras de Carlos Martins que afirma “se hoje a
contribuição para o progresso da ciência pode ser questionável, é inegável a importância
62

dos documentos iconográficos produzidos pela expedição” (in HERCULE, 2009, p. 10). A
expedição citada é a de Langsdorff e os documentos iconográficos têm muito de nosso
artista.
A relevância dessa obra é ter sido produzida no contexto efervescente da
necessidade do Brasil de se consolidar enquanto nação, conhecer-se e tornar-se conhecida
para a construção da identidade e valorização do nosso vasto território. Tornando visível a
nós não um evento inaugural heróico ou ligado à fé mas um evento de certa forma inaugural
que crescia no interior do nosso país, como se disponibilizasse um ângulo de visão
diferente, outro foco.
Ainda que o artista tenha se tornado membro do Instituto anos depois, ele já
transitava em meio a elite cultural que se dedicava às discussões em prol dessa gênese, e
foi um pioneiro na produção iconográfica paulista.

3.2 VICTOR MEIRELLES

Victor Meirelles, pintor, desenhista e professor, nasceu em Nossa Senhora do


Desterro, atual Florianópolis, em 1832. Faleceu no Rio de Janeiro em 22 de fevereiro de
1903. “Conta-nos Carlos Rubens (1945) que Victor Meirelles morrera pobre, solitário e
desencantado da vida, aos 70 anos de idade, no Rio de Janeiro” (FRANZ, 2007). Filho de
um casal de comerciantes portugueses teve uma infância simples, porém seus pais não
hesitaram em custear cursos de aperfeiçoamento da sua grande paixão, o desenho.
Começou realizando desenhos das paisagens da cidade. Frequentou a Academia
Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e aos vinte anos, conquistou um prêmio especial,
uma viagem à Europa. Viveu cerca de oito anos entre a Itália e a França, de 1853 a 1861,
aperfeiçoando-se na Escola Superior de Belas Artes de Paris.
Quando Victor Meireles estudou na AIBA teve, entre outros, professores franceses;
em Roma, estudou com Nicola Consoni, discípulo de Minard. Lá teve contato com a arte
purista, aonde o desenho é mais delicado e tênue. “Meireles chega a Paris em 1856,
momento em que o romantismo só sobrevivia residualmente, em pleno apogeu do realismo
de Coubet” (COLI, 2005, p. 68). Lembrando que antes de Paris, ele estuda em Roma onde
afirmou sua arte, afinou sua formação neoclássica com o Purismo romano.
Durante o período na capital francesa, Meirelles trocou correspondências com seu
mentor que o incentivou em diversos projetos, Manuel de Araújo Porto Alegre, influenciando,
trocando experiências e direcionando o foco de estudos para a realização dos trabalhos de
nosso artista.
63

Embora estudando com os mestres do Primeiro Mundo, permanecia sob a tutela e


os comandos da Academia no Brasil, portanto, sujeito também às idéias que esta
articulava com a elite política e cultural do País, entre eles o Imperador Pedro
Segundo e o grupo do IHGB. Sendo assim, compreendemos que é principalmente a
cultura de seu país de origem que determina sua maneira de pensar e,
consequentemente, de pintar (FRANZ, 2007).

De volta ao Brasil, Victor Meirelles tornou-se professor de pintura histórica na


Academia Imperial de Belas Artes. De acordo com os estudos de Fernandes:

A Reforma de 1855, além de estruturar as bases do ensino, como um instrumento a


serviço do projeto nacionalista do governo, determinou os parâmetros da produção
artística da Academia durante o Segundo Reinado. A filosofia que a dirigiu, sob o
nacionalismo romântico de Porto-alegre, deu ênfase aos temas históricos do
passado distante ou recente, aos episódios heróicos, a uma interpretação mais
dramática. Os temas nacionalistas despertaram grande interesse e absorveram a
figura do índio, comprometida com as representações simbólicas e alegóricas mais
diversas, voltadas para a temática nacional (FERNANDES, 2007).

Foi precursor na utilização da arte como fator educativo, saudado pelo Império, pela
crítica conservadora, e negado pelos adeptos da arte moderna; o artista teve seu trabalho
marcado por não ter assimilado as novas tendências do século XIX. Foi autor de quadros
históricos, retratos e panoramas. Ele deixou um extraordinário acervo, minuciosos esboços,
estudos em papel e óleos sobre tela.
Algumas de suas principais obras são: São João Batista no Cárcere, Passagem de
Humaitá, Combate Naval de Riachuelo, Batalha de Guararapes, Moema e A Primeira missa
no Brasil (anexo II), sendo a última a obra que analisaremos.
A tela retratando a imagem da primeira missa realizada no Brasil é a obra mais
conhecida de Victor Meirelles, retratando a primeira celebração realizada pelo frei Henrique
de Coimbra12 no domingo, dia 26 de abril de 1500, descrita por Pero Vaz de Caminha na
carta para D. Manoel I, onde em torno do grande crucifixo concentram-se os europeus,
praticamente emoldurado pelos indígenas que circulam a cena e observam com surpresa e
atenção a missa, de acordo com Caminha:

Ali estiveram conosco assistindo a ela cerca de cinquenta ou sessenta deles,


assentados todos sobre os joelhos, assim como nós.
E quando veio o Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos
levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim até ter
acabado; e então tornaram-se a assentar como nós.
E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
todos, como nós estávamos, com as mãos levantadas, e de tal maneira sossegados,
que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até
acabada a comunhão [...] “(apud COLI, 2005, p. 28).

12
Frei Henrique Soares de Coimbra (1465-1532) Viajou na frota de Pedro Alvares Cabral e rezou a primeira
missa no território do Brasil.
64

Essa pintura foi realizada quando Meirelles estava na França, estudando na Escola
Superior de Belas Artes de Paris e trabalhava sob a orientação de Andrea Gastaldi. O óleo
sobre tela foi a primeira obra de um brasileiro aceita para exposição em um Salão Francês,
em 1861. A obra ficou aberta à visitação na Exposição Geral de Belas Artes de 1862, na
Academia Imperial e 14 anos depois, em 1876, representou o Brasil na Exposição Universal
da Filadélfia. Nos mais de cem anos seguintes, o quadro não saiu do Rio de Janeiro, onde
primeiro fez parte do Acervo da Escola Nacional de Belas Artes, e em 1937 foi transferido
para a Coleção do Museu Nacional de Belas Artes - MNBA.
Essa obra de grandes dimensões tem 2,70 x 3,57 metros sem o conjunto das
molduras, pois montado chega a atingir 3,35 metros de altura por 4,22 de comprimento. A
concepção do quadro iniciou em 1859, quando Victor Meirelles recebeu uma
correspondência de Manuel de Araújo Porto Alegre. Nesta carta, ele solicitava que, para o
próximo projeto, o aluno estudasse temas ligados ao sentimento de brasilidade e lesse a
carta de Caminha para o rei de Portugal D. Manoel I.
Nos estudos de Coli são apresentadas as palavras de Araújo Porto Alegre para seu
pupilo, onde o autor discorre sobre uma carta de Porto Alegre para Meirelles de 04/02/1859:
“‘Leia cinco vezes o Caminha, que fará uma coisa digna de si e do país’. Insistia também
para que reproduzisse uma natureza tropical, inserindo na paisagem embaíbas, coqueiros,
palmeiras. Preparava-se um ícone da história nacional.” (COLI, 2005, p. 30)
Essa instrução nos remete a estudos que afirmam “somadas à interferência oficial da
figura arquetípica de D. Pedro II às condições sociais, culturais e políticas da época, ficara
ainda mais evidente a dificuldade de nossos artistas em se rebelar contra ordem vigente”
(FUNART, 1986, p. 15).
O papel de Meirelles foi muito significativo, uma vez que

ele tornou a verdade visual do episódio narrado na carta. Como diria, em 1888, o
crítico Gonzaga Duque: “A primeira missa não poderia ser senão aquilo que ali está”.
Isto é, Caminha não encontrara apenas um tradutor visual moderno. Era outra coisa,
mais forte, mais profunda: o espectador moderno assistia a primeira missa no Brasil.
Quem o assegurava era, de um lado, o documento e, de outro, o poder demiúrgico
da arte (COLI, 2005, p. 39).

Em meio aos estudos e produções historiográficas, literárias e iconográficas,


realizados ao longo do século XIX, o resultado das indicações de Porto Alegre foi uma bela
obra que abrange preceitos acadêmicos, unindo fato histórico a figuras humanas e
paisagem, impregnado de cores e formas épicas, além do grande crucifixo, os europeus
figurados logo aos seus pés e ao redor, muitos indígenas observando a missa em meio ao
verde da natureza da Terra de Vera Cruz.
65

Assim carta e obra, utilizadas em prol da construção da ideia de nação brasileira,


afinal
o caráter documental, por si só, conferiria a essa Carta de achamento do Brasil um
alto valor. Mas ela adquire um caráter mítico de “ato fundador” do país a partir de
duas qualidades que Caminha possuía largamente: legitimo e elevado talento
literário vinculado à capacidade aguda de observação (COLI, 2005, p. 24).

Caminha com sua rica descrição transmitiu material de “nossos ancestrais legítimos
para a recente nação: os índios e os portugueses” (COLI, 2005, p. 28) e adicionados ao
talento de Meirelles resultam na tão impressionante obra como ressalta Coli, “a pintura será
encarregada de fixar e imprimir nas mentes esse instante inaugural através do pincel de
Victor Meireles, então jovem e promissor talento” (Idem, 2005, p. 29).
Quanto à questão da construção de um quadro Rodrigues apresenta em seus
estudos:

Para compreendermos como se dá o processo de construção de um quadro é


necessária a manipulação consciente de uma série de códigos que no caso da
pintura podem ser resumidos na articulação de cinco elementos básicos:
a) A linha, que poderíamos chamar de a estrutura ou arcabouço do quadro;
b) O claro-escuro, que articulado a escala tonal se conjuga em uma harmonia de
valores, ou seja, os diversos intervalos tonais possíveis a serem integrados no
quadro;
c) A cor, que integrada à linha e ao valor ajuda a discriminar melhor os elementos
importantes, mas que também funciona com seu poderoso instrumental na
instituição do significado;
d) A composição, a organização dos conjuntos, em suma, o todo da obra;
e) Os elementos simbólicos e significativos não só para o pintor em questão mas
também para a comunidade que o envolve (RODRIGUES, 2007).

Em redor da Primeira Missa pairam elogios e louvores tanto pela obra como por seu
valor histórico no contexto da questão nacional de nosso de país, porém não são apenas
esses comentários que ecoaram em torno dessa obra. Na contramão dos elogios, suspeitas
de plágio pairaram sobre a obra, porém as pesquisas de Coli sobre Como se estudar arte
brasileira no século XIX afirmam que “a incorporação, na obra brasileira, do achado do
mestre francês não significou cópia, plágio ou pasticho” (COLI, 2005, p. 35).
Após a tão veemente afirmação o autor pontua sua justificativa

Cimentada a solidariedade entre o documento e a pintura, poderíamos imaginar que


a Carta, com sua descrição minuciosa, bastasse para a gênese da obra. Há mais no
entanto, e algo bastante surpreendente. É que Meireles inspirava-se para seu grupo
principal, na Première messe em Kabilie, obra pintada por Horace Vernet e
apresentada em 1855 no Salon, de Paris (Idem, 2005, p. 31/32).

A obra de Vernet também retrata um episódio, uma cerimônia de fiéis em “terra de


infiéis”, porém esta missa ocorreu em meados de 1850, no período contemporâneo ao
66

nosso artista, com muitos outros aspectos em comum, como podemos observar em seguida.
“Desta forma, o quadro de Vernet (Anexo X) tornava-se paradigma enquanto resultado de
um testemunho ocular” (COLI, 2005, p. 32).

O jovem Meireles, em Paris, devia fazer um quadro significativo para cultura


nacional. Ele tinha diante dos olhos, como referência obrigatória, a tela que Horace
Vernet, mestre então indiscutível, expusera poucos anos antes, cujo título e o
essencial do tema estavam muito próximos do projeto brasileiro. Tratava-se para
Vernet, de misturar cabilas e soldados franceses, criando uma barreira de
personagens entre a cerimônia e o espectador, tal como Meireles devia dispor
portugueses enquadrados por uma guirlanda de índios, diante da celebração que se
passa, nos dois quadros, à frente de um altar improvisado ao ar livre (Idem, 2005, p.
35).

Se pontuarmos as semelhanças entre os quadros, realmente encontraremos muitos


aspectos em comum: a centralidade do olhar no altar, a moldura de pessoas em torno da
cerimônia, os padres que estão perante a cruz com seus olhos para o céu, enfim, o grupo
central de ambos os quadros é evidentemente o mesmo, disposto de modo invertido.
Entretanto, “a ideia de plágio, que surge imediatamente ao espírito, deve ser tomada com
precaução” (Ibidem, 2005, p. 34).
Uma inspiração somada à descrição da carta de Caminha resulta em nossa missa
inaugural, além das muitas semelhanças, traz também diferenças: na missa brasileira, sol,
céu azul, a cruz no altar à esquerda e iluminada, enquanto a cruz à direita de Vernet está
recebendo claridade em meio a nuvens, e ao fundo as montanhas, a distância dos
espectadores ao altar. Outro importante aspecto que diferenciam as obras são suas
posições, pois Vernet retratou a cena vertical e Meirelles horizontal.
Retratando um instante contemplativo, sem grandes movimentos como é o caso do
Grito do Ipiranga de Pedro Américo, as pinceladas de Meirelles apresentam cores de
maneira vibrante saltando aos nossos olhos, nosso sol escaldante, nosso verde das árvores,
ao fundo o azul do céu e mar, a pele dourada dos indígenas que admiram a missa.
Os estudos de Coli nos fazem refletir quanto à situação de que “há alguma coisa de
profundamente original na pintura de Meireles (...), ela surge de uma fidelidade a si próprio.
Uma vez o caminho traçado, o pintor não se afastou dele; isso não quer dizer que repetiu
fórmulas ou caiu num ramerrão estéril” (Ibidem, 2005, p. 83), e ainda afirma

Meireles possui muito a natureza de um Poussin e, como ele, não se deixa aprender
imediatamente. Em ambos os casos, é preciso nos despojar do gosto pelo brilho e
pela virtuosidade e acostumar-nos a uma pintura silenciosa e secreta, que concebe
a visualidade como intermediário para um universo além dos sentidos, além dos
sentidos, além do tempo. São pintores da meditação, amam o equilíbrio, as relações
serenas de tons e de formas, a discrição nos sentimentos: são clássicos, na
acepção mais alta, mais nobre, mais universal (Ibidem, 2005, p. 84).
67

Victor Meirelles, capacitado e orientado em nosso país e também na Europa,


aprofundou-se em seus estudos na área das artes e ainda que distante de sua terra natal
não deixou de manter contato com seu mentor Araújo Porto Alegre, que exerceu um papel
fundamental no processo produtivo especialmente da Primeira Missa do Brasil que “para
Porto Alegre, a construção de uma natureza nacional era importante, e como
obedientemente, Meireles vai pôr em prática essas sugestões” (COLI, 2005, p. 37).
O Brasil, de origem colonial e escravista, com sua monarquia advinda de Portugal,
nossa genealogia europeia, um Império infante ainda sem seu próprio povo e um espírito
nacional ainda por se constituir e consolidar, foi o pano de fundo inspirador para essa
produção que faz às vezes de ponto de partida dessa nação.
Pensando essa obra nos dias atuais, a Primeira Missa destaca-se por retratar a
presença do cristianismo em nossa origem, traz a presença europeia e a nativa lado a lado;
essa que é a obra mais importante e conhecida de Victor Meirelles, amplamente divulgada e
na atualidade. Assim como a obra de Pedro Américo, ela é uma imagem presente nos livros
didáticos retratando os primórdios do Brasil, a chegada dos europeus, a celebração e
bênção inicial, observados pelos indígenas.
Essa obra atualmente apresenta uma mobilidade e se faz presente fisicamente, uma
vez que não é uma tela fixa ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, porém viaja em
nosso país e é exposta em diferentes localidades do território nacional, e também
representa a arte brasileira em exposições no exterior.
Em uma tarde de domingo, em frente ao televisor, foi muito interessante deparar com
essa obra de Meirelles na TV Câmara, informando sobre a exposição dessa tela no Distrito
Federal em 03 de julho até 16 de setembro de 2012, onde A Primeira missa no Brasil foi
exposta, na Câmara dos Deputados em comemoração aos 180 anos do pintor.
A matéria em questão informava desde o processo de transporte da tela, que é
analisada antes de sair do museu, através de um laudo minucioso, depois são retiradas
cuidadosamente as quatro partes de sua moldura, a tela é embalada, colocada em uma
caixa de madeira e transportada em um caminhão climatizado e devidamente escoltado.
A própria reportagem salienta o valor incalculável de uma obra de arte no porte
desta, retratando o início de nosso país, e salienta que não existe indenização possível que
supra uma obra com a importância desta que retrata a primeira missa descrita por Caminha
em sua carta para D. Manuel I.
Ao entrevistarem espectadores frente a essa tela, percebemos o ponto de vista de
um funcionário da câmara elogiando a obra em si, e sua presença naquele local, reforçando
que os ideais cristãos estão presentes desde nossa origem. Uma adolescente elogia além
desses aspectos e salienta a riquezas de detalhes que podem ser percebidas na expressão
68

de cada nativo figurado em torno da missa, traços de surpresa, expectativa, admiração,


descritos por Caminha e fielmente figurados nas pinceladas de Victor Meirelles para
permanecer registrado não apenas no processo da gênese nacional mais também na
manutenção da nossa nacionalidade até hoje.
O contato com esta reportagem disponibiliza-nos pontos de vista atuais, desde o
adolescente ao adulto, que não hesita em oralizar os sentimentos que as pinceladas de
Meirelles suscitam quanto à memória de nossa nação, séculos após o acontecimento como
é instigante se deparar com ele, tornando interessante refletir: qual foi a emoção dos
primeiros espectadores da obra?
Essas duas obras dos artistas Américo, que analisaremos a seguir, e Meirelles,
produzidas em prol da gênese nacional brasileira, como demonstramos ao longo de nossas
pesquisas, tiveram e ainda têm lugar de destaque na memória dos brasileiros, e ao longo da
construção dessa memória e escrita de nossa história. Sem deixar de lado a aquarela de
Hércule Florence que analisamos a pouco e a tela de Benedito Calixto.
Percebemos que em comum as obras de Meirelles e Américo, além da suntuosidade,
do tamanho de suas molduras e locais expostos, ambas destacam eventos inaugurais na
construção de nossa identidade nacional, A Primeira Missa13 com e O Grito do Ipiranga14.
Ainda que as obras possuam características em comum, torna-se pertinente ressaltar que a
relação entre esses dois pintores não eram das mais amigáveis, uma vez que ocorria uma
competição bastante acirrada, que como veremos custará a cadeira na área da Pintura
Histórica da AIBA.
A obra retratada por Victor Meirelles traz um marco inicial através da primeira
celebração neste solo, “assim sobre a égide católica, associam-se, numa cena de elevação
espiritual, as duas culturas” (COLI, 2005, p. 29). Apresenta a religião como pedra angular da
nação, apresentando a primeira missa na terra recém-descoberta pelos europeus que
chegam para transformá-la no que é, confeccionada mais de trezentos anos depois no
período da pintura do quadro. Claramente um alicerce motivador para inspirar admiração e
incitar sentimentos “patrióticos”.

O quadro de Vitor Meireles, retratando a primeira missa no Brasil tal como foi
descrita na Carta de Pero Vaz de Caminha, é um episódio muito expressivo dentro
desses processos. Ele fez, em grande parte, com que o Descobrimento tomasse
corpo e se instalasse de modo definitivo no interior de nossa cultura (Idem, 2005, p.
23).

13
Medindo 2,70 x 3,57 metros sem o conjunto das molduras, e montado chega a atingir 3,35 x 4,22 metros.
14
Medindo 7,60 x 4,15 metros
69

Essa instalação definitiva que Coli salienta vem de encontro com nossos estudos que
demonstram a articulação da elite cultural, bem como das instituições criadas (IHGB, AIBA)
em prol da efetivação da interiorização da nacionalidade.
Tantos esforços e estudos em prol desse projeto transparecem na obra de Meirelles
que, através do texto-imagem, a carta, escrita por quem presenciou o fato, e inspirou a
sensibilidade e conhecimentos do artista em prol da construção da obra que valorizou a fé,
sua simbologia, sua hierarquia no sentido de crucifixo com os religiosos aos pés,
portugueses, e um pouco mais distante observando com admiração os indígenas. Sem
deixar de lado nossos atributos referentes ao céu e nossa paisagem local brasileira.
Meirelles atualmente dá seu nome para a rua que abriga o museu Victor Meirelles,
em Florianópolis, Santa Catarina, sua terra natal. A casa que abriga este museu desde 1946
também foi o local do nascimento do artista. As atividades iniciaram em 1946, a casa foi
tombada em 1950 como patrimônio nacional, e está disponível para visitação até os dias
atuais.

3.3 PEDRO AMÉRICO

Pedro Américo, nascido na Paraíba em 29 de abril de 1843, falece em Florença na


Itália, em 7 de outubro de 1905. Pintor, romancista, violinista e político, foi deputado por
Pernambuco e poeta brasileiro da caneta ao pincel.
Advindo de uma família simples e ligada às artes, esposo de Carlota, filha de seu
mentor Araújo Porto Alegre15, tem dentre o rol de suas várias obras o Tiradentes
esquartejado, Honra e Pátria, e Paz e Concórdia que foi seu último trabalho. Porém, nossa
análise se restringe ao Grito do Ipiranga (Anexo III).
Tendo conhecido o Imperador ainda na infância como citamos no capítulo anterior,
ingressou na AIBA em 1855 e realizou estudos na École de Beaux-Arts, foi para Europa com
apadrinhamento de D. Pedro II, aonde acompanhou o embate entre realistas e idealistas ao
longo do século XIX, e sempre se posicionando de maneira a preservar a pintura histórica.
Com sua formação fora de nosso país, teve oportunidade de se aperfeiçoar com os
importantes mestres das artes e o resultado foi o destaque que este artista alcançou. “Sem
dúvida, é somente a partir de Pedro Américo que a independência e o local onde ocorrera
ganha notoriedade no imaginário nacional” (FRANCO, 2008, p. 118).

15
Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879) O Barão de Santo Ângelo era pintor, caricaturista, arquiteto,
crítico, diplomata brasileiro, escritor do romantismo, jornalista, foi vereador no Rio de Janeiro, membro do IHGB,
professor, historiador da arte, diretor da AIBA ente 1854 até 1857, mentor e sogro de Pedro Américo. Além de
“ardoroso defensor das estreitas relações entre monarquia e intelectuais”. (GUIMARÃES, 1988, p. 12)
70

Américo integrou a primeira geração de artistas formados com a nova filosofia da


AIBA, período de transitoriedade dos modelos alegóricos, os aspectos exóticos do nosso
país, para o narrativo, valorizando nossos atributos, substituindo as telas que figuravam
apenas o monarca, para uma estrutura narrativa.
Isso ocorre a partir da Guerra do Paraguai, como apresenta Oliveira em seus
estudos:
No momento em que os grandes feitos ligados à Guerra do Paraguai passaram a
substituir a figura do Imperador e de seus atributos como substrato para a
elaboração de um imaginário nacional, foi necessário recorrer a um tipo diferente de
imagem capaz de dar expressão a esses feitos que, por sua própria natureza,
exigiam uma estrutura narrativa. Este novo modelo foi encontrado, novamente, na
pintura acadêmica francesa, porém não mais na tradição do rei absolutista, mas na
iconografia associada à figura de Napoleão Bonaparte. (…) Tal ampliação, ou,
melhor dizendo, transformação do conceito de pintura histórica, forneceu os moldes
para a construção de imagens adaptadas a uma “história de grandes vultos”, tal
como ela aparece também na historiografia do mesmo período (OLIVEIRA;
MATTOS, 1999, p. 88).

Neste contexto, Victor Meirelles com a Primeira Missa no Brasil e Pedro Américo
com o Grito do Ipiranga caminham no mesmo sentido, valorizando os sentimentos
patrióticos e atributos específicos da paisagem paulista; por exemplo, através das figuras do
casebre, as pessoas da região presentes na tela, topografia e vegetação.
O Grito do Ipiranga trouxe a imagem do evento para nação, imprimindo o fato na
memória do povo brasileiro, e ainda hoje se responsabiliza pela manutenção. Durante a
década de 20 já se observava a repercussão “popular” da obra de acordo com Alfredo
d’Escragnolle Taunay:

Atribuía-se a obra de Pedro Américo não o estatuto de produção simbólica e


imaginária, dotada de linguagem e historicidade próprias, mas o de “visualização”
verossímil e fidedigna da história, como se o artista, em lance de inigualável
inspiração, sensibilizasse o espectador a experimentar a “realidade”. (Idem, 1999, p.
76)

De acordo com os estudos de Oliveira sobre as circunstâncias desde a confecção, o


evento da inauguração em Florença no dia 08/04/1888, quando no momento dos
agradecimentos Pedro Américo se dirige para D. Pedro II e afirma que essa obra permitia-
lhe dar uma nova prova de seu patriotismo. O local desta inauguração foi a academia Real
de Belas artes de Florença. Esse local de sua exposição garante “até hoje que o quadro
seja interpretado não como representação, mas como registro fidedigno e indelével da
fundação nacional” (Ibidem, 1999, p. 76). Inclui ainda um pequeno livro sobre a obra que
Pedro Américo realiza enquanto sugestão de contexto interpretativo.
Ocupando fisicamente o mesmo local para o qual foi encomendado, o Salão de
Honra do prédio construído para delimitar o lugar do grito, o edifício-monumento do Ipiranga,
mantendo seu lugar de destaque até os dias atuais, onde ocupa a parede principal da sala
71

central, no piso superior do “Museu do Ipiranga”, atual Museu Paulista. Assim “o caráter do
edifício-monumento construído para delimitar o lugar do grito e que, desde os últimos anos
do século passado, abriga o Museu e suas coleções” (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 9).
Esta obra de Américo retrata um acontecimento primordial no contexto da gênese
nacional, onde deixamos de ser colônia portuguesa nos tornando independentes após o
“grito de Independência ou Morte!”.
De acordo com Oliveira, D. Pedro dirigia-se à praça de Santos aos cinco dias do mês
de setembro e já retornando no dia sete, em torno das dezesseis horas chegava; estava no
topo da colina do Ipiranga quando o Major Antonio Ramos Cordeiro, guarda de honra e o
oficial da secretaria do Supremo Tribunal Militar e Paulo Bregaro encontram D. Pedro no alto
da colina próximo as margens do Riacho do Ipiranga e de um casebre camponês,
entregaram documentos contendo quatro decretos, acompanhado de uma carta de D. João
VI, uma da Imperatriz Leopoldina e um ofício de José Bonifácio. Após a leitura, D. Pedro
pensou, depois olhou para seus companheiros de viagem, e disse comovido:

Tantos sacrifícios pelo Brasil… entretanto não cessam de cavar a nossa ruína.
Então expande a fisionomia, acende o brilho quandos olhos, e, como se houvera
descoberto o talismã da futura grandeza da sua pátria adotiva, puxa pela espada e
grita resolutamente: Independência ou Morte! (Idem, 1999, p. 17)

Os guardas de honra que estavam mais próximos ao casebre, ao avistarem D.


Pedro, dirigem-se rapidamente ao topo da montanha; têm a informação sobre o ocorrido e
presenciam o momento da retirada do chapéu e um novo comando: “Laços Fora!” em
referência ao laço presente no braço esquerdo dos oficiais, e logo todos arrancaram e
atiram para longe de si.

De hoje em diante traremos um laço verde e amarelo, e estas serão sendo as cores
brasileiras. Depois elevando a espada, bradou solenemente: Independência ou
Morte! Grito sublime, que foi muitas vezes repetido e entusiasticamente saudado
assim pelos guardas de honra, que com as espadas desempanhadas reproduziam o
gesto marcial do Afinador da nossa independência, como por todos os circunstantes,
eletrizados pela grandiosidade daquele tão importante quão inesperado evento
(Ibidem, 1999, p. 17-18).

Américo valorizou esse acontecimento e o apresentou tão magnífica e heroicamente,


com os bravos soldados em seus belos cavalos às margens do Ipiranga, levando para o
espectador a bravura e intrepidez de D. Pedro I, no dia 07 de setembro de 1822. Imagem
essa reproduzida inúmeras vezes ao longo de todos esses anos incluindo os livros didáticos
da atualidade e encanta os olhos dos espectadores que visitam o museu, entrando em
contato com a história da nossa nação.
Além de figurar um importante acontecimento nacional, é um “ícone fundador da
história brasileira: O grito do Ipiranga, celebrando a independência do Brasil” (COLI, 2005, p.
72

42), as pinceladas de Américo retratam o momento do grito do Ipiranga, porém a tela é


confeccionada em um período efervescente, às vésperas da abolição da escravatura e
proclamação da República (1889).
A produção da tela ocorre entre 1886 e 1888. Após firmado contrato em cartório no
dia 14/01/1886, entre Pedro Américo e Joaquim Inácio de Ramalho16, Barão Ramalho,
acertando um prazo máximo de três anos, a um preço de 30 contos de réis, tendo recebido
6 contos no ato da assinatura para iniciar os estudos e o restante na entrega.
O artista se comprometeu a entregá-lo “colocado” com moldura, e ele teria que estar
exposto no ato da inauguração17 do edifício-monumento. O quadro foi entregue em
14/07/1888 por Pedro Américo para o Barão Ramalho; como o edifício ainda não estava
pronto, o quadro ficou embalado e encaixotado na Faculdade de Direito.
Até a inauguração do edifício-monumento, a obra havia sido apresentada na
exposição inaugural em Florença, depois em 1893 foi exposto no Pavilhão Brasileiro da
Exposição Universal de Chicago. E ainda neste ano o governo de São Paulo transformou o
edifício em sede do Museu Paulista, “instituição pública criada na mesma ocasião e voltada
para a ‘instrução do povo’ e para a ‘investigação científica’ no campo da história natural”
(OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 68).
De acordo com Oliveira imagens como, por exemplo, o Grito do Ipiranga,
“universalizou-se e ainda hoje encontra respaldo, mas o solo político e cultural no qual se
delineou remete ao século passado e aos procedimentos que ensejaram a feitura do painel
e definiram o lugar de sua pública e permanente exposição” (Idem, 1999, p. 68). Assim,
quanto mais vista, maior foi se tornado sua magnitude histórica.
Ideia que nos leva a refletir sobre sua exposição permanente, reprodução e a noção
transmitida através dos estudos de Hobsbawm de que “é natural que qualquer prática social
que tenha de ser muito repetida tendo por conveniência e para maior eficiência, a gerar
certo número de convenções e rotinas, formalizadas de direito ou de fato, com o fim de
facilitar a transmissão de costume” (HOBSBAWM, 1993, p. 11).
A valorização através dos heróis da nação integra o processo de gênese e O Grito do
Ipiranga, além do que transmite; encanta por sua magnitude com 7,60 x 4,15 metros
aproximadamente. Essa grande obra exposta no edifício-monumento do Ipiranga, que se
tornou no Museu Paulista, como se a grandiosidade de sua obra refletisse que “Pedro
Américo possuía uma percepção elevada de seu próprio destino como artista” (COLI, 2005,
p. 89).

16
Joaquim Inácio de Ramalho (1809-1902) Presidente da Comissão do Monumento ente 1840 e 1890, tornou-
se Barão em 1887, era advogado e professor da Academia de Direito.
17
As obras foram concluídas em 15/11/1890, três anos depois o edifício-monumento tornou-se sede do
Museu, porém a inauguração ocorreu apenas em 07/09/1895.
73

Destino traçado pelo próprio artista que ao contrário do que se imagina, não foi
convidado para realizar a obra, mas se ofereceu para fazê-lo, em 1885 entra em contato
com a comissão, que alegava falta de fundos, dificuldades quanto ao término da planta do
edifício, mas “Pedro Américo não se deu por vencido e buscou em relações pessoais e de
favor o respaldo para garantir a encomenda” (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 70).
Vencida essa etapa a pintura não ocorre por simples inspiração; muitos estudos
foram realizados sobre postura dos homens, cavalos desenhados a partir de estudos sobre
as raças árabe, inglês e cavalo do Rio Grande do Sul, afinal ainda que fosse comum o
trânsito com muares, para retratar o momento do grito a representação em cavalos
imponentes traria uma postura mais heróica ao fato. Sem deixar de lado estudos mais
específicos sobre os cavalos que também foram realizados, pois havia diferentes raças
equinas, com características bem específicas quanto à forma de mover as patas, bem como
as características do terreno que também influenciam no trote desses cavalos.
Estudou capacetes, em diferentes ângulos, frontais e laterais, recuperou
testemunhos, vasculhou bibliotecas, coletou gravuras, retratos, os quais Américo tinha
contato com rostos em fase posterior ao “grito” que demandou maiores esforços para
compor os rostos, teve contato com uniformes, pois dentre as fardas havia as mais comuns
mas optou por melhor retratar com as mais belas e foi até a colina do Ipiranga para observar
a topografia do local.
Os esforços não se resumem ao período de estudos, ocorria também diálogo entre o
artista e o Barão Ramalho, responsável pela comissão de construção do monumento, em
prol da realização da tela que ocuparia lugar de destaque no Salão de Honra. Esse diálogo
ocorria através de correspondências18. “Pedro Américo apontou, em seu relato, as
dificuldades do artista/historiador na busca dos elementos que pudessem revestir das
aparências materiais do real todas as particularidades de um acontecimento que passou-se
a mais de meio século” (Idem, 1999, p. 75)
Ainda que atualmente esta obra seja amplamente divulgada nos meios de
comunicação, principalmente próximo a data comemorativa de 07 de setembro, durante as
comemorações da semana da Pátria e é veiculada ainda corriqueiramente nas diferentes
fontes escritas, jornais, revistas, e está comumente presente nos livros didáticos desde as
séries iniciais do ensino fundamental.
Essa imagem, dentre as apresentadas em nossos estudos, acreditamos ser a mais
conhecida, pois é comum depararmos com a mesma nesses livros didáticos, figurando o
importante momento da declaração da independência, de uma forma heróica, em grande

18
Oliveira, 1999 apresenta algumas correspondências trocadas entre Américo e o Barão Ramalho.
74

estilo e suntuosidade. As pinceladas de Pedro Américo em prol da construção e


manutenção da ideia nacional do Brasil.
Com nosso olhar voltado para o Grito do Ipiranga, atentamos que o tamanho da tela
tem sua importância, quanto ao impacto que causa, assim “Pedro Américo, e, como ele,
Victor Meireles, tinham a consciência do papel que sua arte significava para o país: não
eram obras “a mais”, num conjunto opulento, eram obras de imenso destaque e definitivas,
dentro das artes brasileiras” (COLI, 2005, p. 88).
Assim essas imagens analisadas, feitas no período de nossos estudos, retratam
aspectos importantes no processo de gênese e consolidação da antiga colônia e aspirante
nação brasileira,

desaprendemos que os pressupostos culturais sobre os quais repousam as telas de


Meireles e Américo – ou de outro pintor da época – são tão construtivos da imagem
quanto as cores e as pinceladas. Um dos pontos importantes é que a pintura do
século passado – e não apenas a dita “oficial” – mantinha um diálogo denso com a
história da arte, mais antiga ou mais recente. (Idem, 2005, p. 14)

Impregnadas de história e em prol da construção dessa história da nacional, cientes


do poder de suas pinceladas neste contexto da construção e consolidação da ideia nacional,
temos os “pintores jovens que se inspiravam, citavam os mestres que o precederam. Mesmo
aqueles que parecem romper de modo radical (Ibidem, 2005, p. 14) com estilos vigentes,
neoclássicos, românticos, entre outros, que por fim resultaram nas obras que analisamos.
E como na tela de Meirelles, Pedro Américo também passa por situação semelhante
no que diz respeito à outra obra de aspectos semelhantes, que Coli apresenta em seus
estudos:
retoma-se, por exemplo, a velha história de O grito do Ipiranga, do Museu Paulista,
ter sido uma cópia de A batalha de Friedland, de Meissonnier, do Metropolitan
Museum de Nova York, quadros que não possuem relação evidente entre si, que se
referem muito mais a um modo prototípico de tratar a questão e para os quais, em
todo caso, a noção de cópia ou imitação servil é inteiramente descabida (Ibidem,
2005, p. 17).

Apresentamos em anexo as telas questionadas para que possamos observá-las e


compararmos as mesmas, A batalha de Friedland (anexo XI) e também Napoleão III na
Batalha de Solferino (anexo XII), ambas de Meissonnier, para que, como tratamos
anteriormente, as suspeitas em torno de plágios sejam descartadas através de estudos
sobre a arte ao longo do século.
Estudos que nos propusemos ao aprofundamento através das produções
oitocentista, Jorge Coliem suas pesquisas reforça o contexto dos estudos realizados por
esses artistas que conviviam com esses estilos que, somados às suas inspirações ou
75

encomendas, contribuíram para o resultado final de cada uma de suas obras voltadas ao
anseio da consolidação na ideia nacional brasileira.
Podemos atentar para essas obras, enquanto inspiração, como afirma Oliveira
quanto “as referências constantes a imagem de Napoleão, encontradas na pintura oficial
francesa do século XIX, também contribuíram para reforçar a imagem heróica de D. Pedro I
construída por Pedro Américo na tela” (OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 97).
Ainda que possível inspiração, as obras desses pintores apresentam diferenças
notáveis entre as composições de Pedro Américo e Meissonier:

Nosso artista faria menos concessões do que este último à descrição detalhada do
fato histórico, tal como ele vinha sendo popularizado na França após o início da
monarquia liberal de Luis Felipe. Sua composição é equacionada em cada detalhe,
denotando a busca de um equilíbrio estável entre os diversos elementos da obra, a
fim de gerar uma forte impressão de unidade.(Idem, 1999, p. 99)

No estudo detalhado que Oliveira realiza sobre a tela de Pedro Américo, além de
apresentá-la enquanto integrante do rol das “imagens que servirão de substrato para a
construção do imaginário social” e ressaltar o “caráter de divisor de águas e poder de
instaurar a nação e nacionalidade” (Ibidem, 1999, p. 75 e 87). As organizadoras chama a
nossa atenção para a organização geométrica de dois semicírculos no quadro que partem
do centro para as laterais direita e esquerda, reencontrando-se no centro, definindo a
posição dos demais elementos presentes no quadro. Em segundo plano o ato simbólico de
D. Pedro I, rompendo com Portugal, rodeado de seus cavaleiros e companheiros que
saudavam com lenços e chapéus ao alto. Esse heroísmo de D. Pedro se dá não apenas
pelo ponto de destaque que ocupa, mas por toda narrativa da obra que o define pela ação
heróica.
Por isso, a escolha da obra ao longo de nossos estudos sobre a gênese da nação
brasileira, por tudo que ela incita, desperta e estimula. A figura heróica, cada detalhe, as
pessoas comuns, o casebre, as rochas, o simulacro do riacho do Ipiranga na parte inferior
do quadro, dando-nos a alusão da presença do mesmo, uma vez que de acordo com a
topografia retratada ele estaria nas costas do espectador na obra, os cavalos, a noção do
movimento a ação do fato, sua grandiosidade e a delicadeza das pincelas que colorem todo
o céu e cada um dos detalhes.
Estar frente a frente com O Grito do Ipiranga emociona, inspira, empolga o
expectador, quanto mais incita ao historiador a aprofundar-se em meio às tintas,
mergulhando dentre vários sentimentos que procuram nos arrebatar ao presenciar uma obra
de arte, que vai além dessa visão tornando-se um olhar sobre nossa fonte.
E quanto ao autor desta fonte, nem tudo era belo como O Grito do Ipiranga na
carreira de Pedro Américo; nosso artista não era bem visto por muitos de seus colegas,
76

assim como Victor Meirelles, gozaram de várias licenças de seus deveres na AIBA.
Também Pedro Américo contava com o agravante de usar seus estreitos laços com o
Monarca para conquistar a cadeira de Pintura Histórica, antes pertencente a Victor
Meirelles.

3.4 BENEDITO CALIXTO

Benedito Calixto de Jesus, pintor, professor, historiador e ensaísta, nascido em


Itanhaém em 14 de outubro de 1853. Filho de João Pedro de Jesus e Anna Gertrudes
Soares, possuía sete irmãos.
No início de sua juventude mudou-se para Brotas, onde adquiriu noções de pintura
com o seu tio Joaquim, e o ajudou na restauração de imagens sacras de uma igreja local.
Regressou à sua terra natal e casou-se com Antonia Leopoldina de Araújo, sua prima,
tiveram três filhas e anos depois retornou para Brotas.
Aos 28 anos realizou a sua primeira exposição em São Paulo no saguão do Correio
Paulistano. Tempos depois se muda para Santos, trabalha na oficina de Tomás Antônio de
Azevedo, e é incumbido da decoração do teto do Teatro Guarany, através de um dos seus
trabalhos, atraiu a atenção do Visconde de Vergueiro, que o encaminhou para estudar na
Europa.
Em 1883, viaja a Paris para estudar desenho e pintura, com recursos concedidos
pelo Visconde Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Frequenta o ateliê de Jean François
Raffaelli e por indicação de Meirelles19 frequenta a Académie Julian, e convive com vários
pintores.
Retornando ao Brasil em 1884, apenas um ano longe de nosso país, chega trazendo
uma câmera fotográfica; passou a utilizá-la para elaborar suas composições, ação inovadora
para o período. Realiza inúmeras imagens de marinhas20, em que representa o litoral
paulista, realiza diversos painéis de temas religiosos para igrejas tanto na capital como no
interior de São Paulo. Porém as paisagens sempre foram a temática preferida do artista,
inclusive realizava obras baseadas em desenhos de Hércule Florence.
Inovador é mais uma característica desse artista, além da pintura, onde priorizava
temas de paisagens rurais, urbanas e praias, bem como cenas históricas e religiosas.
Realizou muitos trabalhos em projetos em igrejas paulistas, trabalhou ainda como professor
e desenvolveu alguns trabalhos como historiador, morrendo em São Paulo, aos 31 dias de
maio de 1927.

19
Neste período Victor Meirelles estava na França.
20
Obras com paisagens referentes ao mar.
77

Além da produção de imagens dedica-se também aos estudos históricos da região


paulista e à preservação de seu patrimônio. Praticou a escrita publicando os livros A Vila de
Itanhaém, em 1895, e Capitanias Paulistas, em 1924. Destacamos ainda:

A faceta do historiador de Calixto é bem conhecida. Através de suas várias


publicações sobre a história do passado paulista, suas pesquisas como astrônomo,
e etnólogo amador, sua amizade com estudiosos, como Capistrano de Abreu e
Alfredo Taunay, sua inserção no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, lhe
trouxeram a fama como historiador e ele utilizava muitos dessas pesquisas para
realizar uma pintura a mais próxima possível da “verdade histórica”. (POLETINE,
2003, p. 21)

Neste contexto de produção imagética, conhecimentos históricos e “instinto” de


preservação do patrimônio, o artista realiza suas obras. Mesmo estando mais ligado ao
estado de São Paulo, o Rio de Janeiro como depreendemos ao longo de nossos estudos é a
capital nacional principal responsável pela disseminação do projeto nacionalista.
Ainda que não tenha sido aluno na AIBA, praticamente um autodidata, que é mais
um motivo para considerá-lo inovador, “recebe medalha de ouro de 3ª classe 5ª Exposição
Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro com o quadro Panorama do Porto de Santos e Novo
Cais” (Idem, 2003, p. 9).
Dentre algumas das obras de Calixto estão: Praia do Itararé, Fundação de Santos,
Partida de Estácio de Sá, Domingos Jorge Velho, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, e no
contexto de nossa pesquisa optamos por sua obra o Evangelho das Selvas, que traz a fé à
tona, com o Padre José Anchieta21 figurado com símbolos de fé empunhados, o crucifixo, a
Bíblia como a apresentação da fé na busca da domesticação do até então selvagem,
retratado na onça em meio à mata fechada, a penumbra da floresta desconhecida e
selvagem que através da presença européia e da fé, novos tempos seriam inaugurados,
dados pertinentes para o contexto da gênese nacional.
Calixto, muito mais envolvido com aspectos paulistas do que propriamente nacionais,
tem contato com a obra de Américo e seu destaque no edifício monumento. Para definirmos
o estilo deste artista, como vimos, somente aos 30 anos embarca para realizar seus estudos
em Paris, na Académie Julian, ou seja, já havia produzido muitas obras, afinal seu principal
sustento era sua arte. Então somando seu didatismo ao único ano que esteve na França, o
estilo de nosso artista, de acordo com os estudos de Calebe Alves Farias (2000), estava
associado ao academicismo, realismo e até com alguns traços do impressionismo, porém,
antes de tudo com o naturalismo, afinal o pintor brasileiro estava muito ligado com a
natureza de seu entorno.
Nosso artista, praticamente um autodidata, dedicou-se em retratar nosso país,
principalmente através de paisagens paulistas, o que de certa forma o aproxima de Pedro

21
Padre José de Anchieta (1534-1597)
78

Américo, que como apresentamos realizou vários estudos: topográficos, do clima, e entre
outros, da vegetação paulista, para retratá-la no Grito do Ipiranga, uma vez que a afinidade
com a paisagem de São de Paulo esteve muito presente na obra de Calixto. Como
percebemos através dos estudos de Caleb Farias Alves:

Calixto pinta, justamente, nesse meio caminho entre Araújo Porto Alegre e o
movimento modernista. Não que seja possível pensar Calixto a partir da composição
de elementos da arte modernista e da arte acadêmica. A sua pintura não é uma
bricolagem de tendências artísticas diversas, mas uma solução particular a tensões
específicas do campo artístico. A morte de Araújo Porto Alegre, em 1879, deixa a
Calixto duas heranças: arte como um dos principais elementos através dos quais o
povo brasileiro educar-se-ia para adentrar o rol das nações civilizadas e o Rio de
Janeiro como motivo privilegiado para a construção da paisagem nacional. Calixto
sujeito a esse passado da arte brasileira, espremido entre a academia e a
modernidade, entre a natureza e a escola, entre seu desejo de ser artista e as
condições terrivelmente desanimadoras que enfrentou na sua formação, forjou, aos
poucos, uma arte que buscava solucionar esses dilemas todos, e que foi ao
encontro da sensibilidade paulista (In. POLETINE, 2003, p. 18).

A obra o Evangelho das Selvas, de 1893, pertencente ao acervo da Pinacoteca do


Estado de São Paulo, com dimensão de 59 x 70 cm, retrata o padre jesuíta José de
Anchieta em meio à mata selvagem, em companhia de uma onça para quem apresenta a fé
através do crucifixo no alto da mão direita e a Bíblia aberta na mão esquerda, ainda que
onça olhe na direção do padre, seu corpo voltado para outra direção nos da uma noção de
retirada.
O padre José de Anchieta, nascido em 19 de março de 1534, numa ilha no
arquipélago das Canárias, aos quatorze anos muda-se para cidade de Coimbra em Portugal
e falece em Iriritiba no dia 9 de junho de 1597.
Ao longo de seus 63 anos, Anchieta viveu a maior parte de seus anos em nosso
país, ele chegou ao Brasil em 13 de junho de 1553, quando tinha menos de vinte anos de
idade, veio na armada de Duarte Góis. Tempos depois conheceu Manuel da Nóbrega,
tornaram-se amigos e o padre recebeu a tarefa de continuar a construção de um colégio,
onde acabou aprendendo a língua tupi e compondo a primeira gramática desta língua,
dando sequência à sua ação missionária.
O padre jesuíta, um dos mais importantes que estiveram em nosso país, teve um
papel significativa ao longo da fundação de São de Paulo, onde se localizava essa escola.
Anchieta sofria de uma doença chamada de Lumbago22, caracterizada por fortes dores, que
se alastravam nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que acomete o indivíduo
ao submeter-se a esforço físico, que no caso desse padre não o impossibilitava de atuar no
nosso país.

22
Dores que acometem a região lombar, comumente conhecida como espinhela caída.
79

Nas pinceladas de Benedito Calixto em sua obra realizada na década de 1890,


período de recente proclamação da República (1889), traz o Evangelho das selvas,
retratando de certa forma a “domesticação” da natureza do que nos primórdios era o nosso
país quase em sua totalidade, a mata fechada, animais selvagens, e por que não aludirmos
o que é selvagem ao que poderia civilizar-se, através dos instrumentos da fé, ou que
simbolizam a fé, figurados pela Bíblia e o crucifixo, ambos presentes na mão de José de
Anchieta.
Esses instrumentos, como muitos apresentados no interior das obras que analisamos
aqui, demonstram que “a manipulação do imaginário social é particularmente importante em
momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades
coletivas” (CARVALHO, 1990, p. 11).
E esses momentos de definição e redefinição é que permeiam o século XIX, onde
percebemos a necessidade do Brasil de ter sua história, construir a nação, consolidando sua
nacionalidade, como temos percebido ao longo de nossa pesquisa através das letras e das
imagens.
Abordando um ato inaugural, no sentido de ter-se um ambiente ainda selvagem,
inóspito, por desbravar, e quem encara a empreita, chegando destemido e de braços
abertos é o homem temente a Deus. Desbravando e erigindo símbolos cristãos, por
disponibilizar esses atributos cruz e palavra divina, para sugerir que a fé pode mudar o
destino dessa nação.
Nação figurada na obra através do animal que observe o que ocorre, ao mesmo
tempo em que se projeta para o outro sentido, como se estivesse caminhando para um lado,
porém volta seu olhar para outro que está o jesuíta.
A figura do jesuíta traz aspectos mais amplos, afinal representa uma ordem
caracterizada pelos ensinamentos que dispensavam, pelo seu caráter missionário e
pedagógico. O padre figurado não se trata de um padre sem identificação, mas do padre
Anchieta, que como vimos anteriormente destacou-se ao longo do início da cidade paulista,
e, consequentemente, marca de certa forma nossa gênese.

As telas de Anchieta são as que mais natureza participa da composição, uma


natureza sombria, inóspita, representando as dificuldades dos primeiros
desbravadores, a figura franzina de Anchieta só conta com as forças divinas para se
defender, e assim o faz. É Calixto contribuindo para a construção do imaginário
paulista. Nestas telas é difícil denotar onde o aspecto historiográfico, mítico e sagro
se delimita. São obras de reconstituição do passado paulista, com um claro objetivo
de simbolizar a existência de ações sobrenaturais, milagres e que pelo seu
afastamento no tempo, as ações se passaram no século XVI, nos remetem à uma
mitologia fundadora do espírito paulista, à floresta densa, escura, com seus perigos,
ajudam a reforçar este espaço atemporal. (POLETINE, 2003, p. 22)
80

Quanto à exposição desta obra de Calixto, de acordo com Moisés Poletine após a
produção desta tela, ela permaneceu em São Vicente no seu ateliê até sua morte. Seus
familiares então,

Em 1753, ano do centenário do nascimento do pintor, sua filha Pedrina Calixto de


Jesus Henriques propõe à Pinacoteca do Estado que adquira a obra, já que esta
pretendia dar, a uma de suas salas, o nome de Calixto, mas só possuía três telas de
sua autoria. Após avaliação da proposta por uma comissão instaurada para este fim,
adquiriu-se a obra por cinquenta mil cruzeiros. Segundo Pedrina “o motivo (do
quadro) foi inspirado numa poesia de Castro Alves, “Os Jesuítas”, cujo trecho se
acha inserto (sic) na parte inferior da moldura, e que diz:
“Depois as solidões surpreses vião
Esses homens inermes que surgirão
Pela primeira vez
E a onça recuando s’esqueirava
Julgando o crucifixo alguma clava
Invencível… talvez” ( POLETINE, 2003, p. 23)

Integrando o acervo da Pinacoteca, encontramos ainda nos estudos de Moisés


Poletine, que a obra passou por restauração em 1975. Permaneceu exposta entre janeiro e
fevereiro de 1977 na exposição “Fundação da cidade de São Paulo” no Metrô São Bento em
São Paulo, em agosto de 1984 com o tema “Benedito Calixto: trabalhos sobre tela e papel” e
em 1995 de março a maio, “O acervo e obra de Benedito Calixto”, ambas as exposições na
Pinacoteca do Estado.
Ao atentarmos para esses estudos sobre Benedito Calixto, mais uma vez retoma
essa ideia de gênese que a obra dele também explicita. Mesmo não estando exposto hoje o
Evangelho das Selvas contribuiu e ainda contribui significativamente para a manutenção de
nossa identidade nacional.
Os paulistas para os quais muitas obras foram realizadas, principalmente nas igrejas
de várias regiões do estado, dispensaram para Benedito Calixto uma singela homenagem,
dando seu nome para uma praça no jardim Pinheiros na cidade de São Paulo.
81

Considerações Finais

Nossa pesquisa sobre a gênese nacional, atentando para representações como


instrumentos de construção da “nação”, reflete desde nossa afinidade com o estudo da
imagem ao longo de nossa trajetória acadêmica, até o instinto da pesquisa histórica,
partindo da hipótese de que existiu uma gênese da nação brasileira na iconografia do século
XIX, além de transitar nos estudos de importantes autores da historiografia referente ao
nosso objeto de pesquisa, no caso, as imagens, contemplando também diferentes
abordagens de acordo com os referenciais a serem adotados.
Partir de uma hipótese e indagar quanto à existência de uma gênese nacional na
iconografia oitocentista permeou nossa pesquisa e centralizou nosso olhar quanto a esta
temática. Durante o primeiro olhar cada obra pareceu corresponder às nossas expectativas
e ao longo de nossos estudos superaram cada uma delas.
Transitando entre diferentes autores ao longo do século XIX, desde suas formações,
famílias, áreas de atuação dentro e fora do país e suas diferentes obras produzidas, cada
qual em seus contextos específicos, como acompanhamos ao longo de nossos estudos,
contribuiu significativamente para a comprovação da minha hipótese.
Afinal, olhar um quadro é mais do que apenas apreciar o que ele apresenta, é refletir
sobre quem o produziu, qual foi seu contexto de produção, em que local e para qual local.
Por isso, essa pesquisa é tão instigante, por dedicar-se ao aprofundamento desses
aspectos no momento da gênese nacional e a relevância de sua atuação nesse contexto.
Aumont afirma em seus estudos sobre imagem “que em todas as sociedades, a maioria das
imagens foi produzida para certos fins (de propaganda, de informação, religiosos,
ideológicos em geral)” (AUMONT, 1993, p. 78).
Necessitamos registrar nossos anseios, sonhos, frustrações, aspirações e situações
que nos acometem, assim foi o homem que fez os primeiros registros nas rochas e cavernas
é o homem ao longo da história e na evolução das possibilidades de registros e
armazenamento de informações que culminaram nas produções humanas.
Assim, partimos da afirmação que “a imagem é, pois, tanto do ponto de vista de um
autor quanto de seu espectador, um fenômeno ligado também à imaginação” (Idem, 1993, p.
90).
Cada vez que olhamos uma imagem a enxergamos a partir de tudo que conhecemos
e dos conhecimentos que possuímos sobre o tema abordado; por isso o primeiro olhar para
cada uma das obras analisadas nessa pesquisa com certeza não é o mesmo olhar que
dispensamos hoje, e provavelmente não será o mesmo se nos aprofundarmos ainda mais a
analisá-las.
82

As imagens não são realizadas em vão, nem se trata de um instante de inspiração e


epifania. Como pudemos perceber, cada autor trazia em sua bagagem muitas experiências
e as transmitiram para suas obras, assim como nós historiadores que transmitimos nossas
marcas e experiências, por vezes involuntariamente, mas são os caminhos que traçamos e
percorremos em função de nossos anseios, que nos desafiam e nos movem e não nos
permitem parar.
Os artistas, como apresentamos na introdução, produziram obras que suscitaram
sentimentos tão almejados ao longo do período de nossos estudos, voltados para a
efetivação do projeto nacional.
Hércule Florence, com seus vários atributos, pintor, inventor, vendedor, escritor,
membro do IHGB, viajante, expedicionário, dentre os quais se destaca a sensibilidade para
o olhar e para desenhar, chega em nosso país e já adentra o território, visualiza, registra na
escrita e em seus desenhos o que encontra. Em sua aquarela possibilita que o espectador
entre em contato com uma fazenda do interior do país, natureza e paisagem, homem e
trabalho, derrubada e plantio, destruição e construção, mudanças registradas em um
período de mudanças também. Novos inícios permeados pela gênese da nação.
Victor Meirelles, uma referência das artes ao longo do século XIX, morreu
desamparado, mas deixou seu nome, ou melhor, sua Primeira Missa gravada dentre os
marcos da nação. Sua pesquisa e a comunicação com seus mentores e grandes artistas
incentivaram e nortearam a produção de sua obra. Muitos estudos foram realizados, o
contato direto com a carta de Caminha, utilizada enquanto texto-imagem que apontou o
acontecimento tão significativo para reforçar a fé do novo território. E se o evento não
recebia o significado que “deveria”, a partir da obra de Meirelles novos significados foram
somados ao momento dessa missa.
E não foi diferente com Pedro Américo que correu atrás e não mediu esforços.
Primeiro para ser o artista que realizaria a obra O Grito do Ipiranga e em segundo lugar para
figurar o herói, bem como o ato heróico da independência, tornando-o acessível aos olhos
da nação, com lugar garantido no Salão Nobre do edifício-monumento. A obra não é isenta
de críticas, como nenhuma é, mas através dos estudos que acompanhamos no capítulo
anterior o artista conduziu da forma mais atrativa do que fidedigna, de aperfeiçoar o que não
estava à altura do evento, desde o cavalo, farda até a postura e o semblante do rosto de D.
Pedro.
Benedito Calixto abordou a gênese “duplamente”, com o foco em nossa nação como
analisamos anteriormente e também enquanto um ato inaugural da cidade de São Paulo,
através do padre José de Anchieta que teve um papel significativo ao longo deste processo.
A natureza figurada através da mata fechada e obscura, o padre apresentando a fé para o
83

receptor que o observava e já se voltava em outra direção, deixando no ar a impressão de


estar se dirigindo para a direção contrária e voltar o olhar para o padre ou se estava voltada
para o padre e opta por esquivar-se. Indo ou voltando seu olhar o que fica claro é o erigir
das mãos de Anchieta lhe apresentando a fé.
Todas as obras têm seu destaque, seu contexto de produção e exposição, mas nem
tudo é tão colorido como as tintas de uma aquarela. Temos um projeto nacionalista, e
artistas que competem entre si com todas as armas que possuíam, sejam seus pincéis ou
seus engajamentos políticos e sociais.
Como apresentamos na introdução, algumas características aproximam as obras
como a gênese nacional, os atos inaugurais, e mesmo nos momentos que as obras se
distanciariam. Ainda assim elas se aproximam, seja por divergências entre os artistas no
caso Américo e Meirelles ou por afinidades como a inspiração que Calixto retirava de alguns
desenhos de Florence.
É a gênese da nação na iconografia do século XIX.
84

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88

Anexo I
89

Anexo II
90

Anexo III
91

Anexo IV
92

Anexo V

Prédio do Silogeu (http://www.rioquepassou.com.br/2006/01/04/silogeu-inicio-dos-anos70.


Acesso em 20/06/11).
93

Anexo VI

Prédio do Silogeu na década de 1970 (http://www.itaucultural.org.br. Acesso em 26/10/12).


94

Anexo VII

Atual prédio do IHGB (http://www.ihgb.org.br. Acesso em 05/06/11).


95

Anexo VIII

Portal AIBA (Jardim Botânico – RJ) www.skyscrapercity.com – Acesso em 14/05/2013


96

Anexo IX
97

ANEXO X

Vernet, Première messe em Kabilie -1855 (Salon de Paris)


98

Anexo XI

Meissonnier, A batalha de Friedland - 1875 (Metropolitan Museum, Nova York)


99

Anexo XII

Messonier,Napoleão III na Batalha de Solferino – 1863 (Museu Nacional do Parque de


Compiègne, Paris, França)

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