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Hélio de Seixas Guimarães

VOLUME I

Os leitores de Machado de Assis


O romance machadiano c o público de literatura no século 19

Tese apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Teoria e
História Literária para obtenção
parcial do Título de Doutor em
Teoria e História Literária na
área de Literatura Brasileira
Orientadora: Profa. Dra. Berta
Waldman

IEL
UNICAMP
2001

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA IEL - UNICAMP
Guimarães, Hélio de Seixas
G947L Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o
público de literatura no século 19 I Hélio de Seixas Guimarãss. - -
Campinas, SP: [s.n.], 2001.
Acompanha anexo.

Orientador: Berta Waldman


Tese (doutorado) -Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Crítica e interpretação. 2.


Leitores- Reação crítica- Brasil. 3. Literatura brasileira- Sec. XIX-
História e crítica. 4. Crítica literária - Brasil - História e crítica. 5.
Romantismo (Literatura). I. Waldman, Berta. II. Universidade Estadual
de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Berta Waldman (orientadora)

Marlyse Meyer

Alcides Villaça

Sidney Chalhoub

Maria Helena Werneck

8
aprovada pela Comissão Julgaaorf:i ""r:

iii
As teses escolares dedicam-se a pais, a parentes, a amigos;
o amor é tese para uma só pessoa.
(Machado de Assis, Memorial de -tlires)

ABia.

v
Dedico também a meus pais, Silas e Euthália,
que além de tudo me ofereceram os livros.

vi
Agradecimentos
A minha orientadora, Berta Waldman, pela interlocução constante, franca e amiga.
A Bia, que rimou amor e rigor na leitura de todas as versões deste trabalho.
A Carlos Minchillo, César Braga-Pinto, Esther Hamburger, Heidi Strecker Gomes e
Ricardo F. Henrique, pelas leituras cuidadosas e observações generosas sobre as versões
preliminares.
A Cris Bierrenbach, que me ajudou no registro e reprodução das imagens.
A Rodrigo Bueno, que me ajudou a encontrar a imagem do escravo vendedor de
livros.
A Clélia Donovan e Fernanda Godoy, pelo apoio em Berkeley e no Rio.
A Alcione Abramo, pela dedicação, capricho e rigor na preparação do anexo, com
as resenhas e comentários sobre os romances de Machado de Assis.
A Rosemeire Marcelino, do IEL, pela solicitude e presteza na resolução de todos os
trâmites junto à Unicamp.
A Maria Angélica Brandão Varella, da Divisão de Periódicos, Clàudio de Carvalho
Xavier, do setor de Fotografia, e a Anna Naldi, Eliane Cunha e Eliane Perez, da Divisão de
Informação Documental, todos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pela colaboração
e agilização do trabalho.
A Cristina Antunes e a José Mindlin, pela acolhida na biblioteca Dnde pesquisei
revistas e vi as primeiras edições de todos os romances de Machado de Assis.
Ao Centro de Estudos Latino-Americanos e aos professores Linda Williams, Anton
Kaes e Thomas Elsaesser pela receptividade em seus cursos, na Universidade da Califórnia,
em Berkeley, que serviram de estimulo e inspiração a este trabalho.
Ao professor Luiz Roncari, pelas sugestões no exame de qualificação, e à
professora Marlyse Meyer, pelas observações e comentàrios generosos e copiosos.
A CAPES, pela concessão de uma bolsa que possibilitou a estada de um ano na
Universidade de Berkeley, Califórnia, onde apurei o gosto pela pesquisa.
A FAPESP, pela concessão da bolsa que me ofereceu condições ótimas para a
redação deste trabalho.
Espero que este trabalho corresponda pelo menos em parte à valiosa colaboração
de todos.

vii
Si los caracteres de uma ficción pueden ser lectores o espectadores,
nosotros, sus lectores o espectadores, podemos ser fictícios.
(Jorge Luis Borges, "Magias parciales de! Quijote")

ix
Sumário

Introdução ...... ... ....... .. ....... .... .... ... ...... .. .......... .. .... .. .. ........ ... .. .. ...... .. .... ..... .. ... .. .. ... 1
Em tomo de alguns conceitos de leitor .................................................................. 15
A critica brasileira e o público de literatura .......................................................... ,. 21

Primeira parte
A circulação e recepção da produção literária no Brasil oitocentista ...................... 31
Capítulo 1 -Um preto de balaio no braço a vender romances ................................. 33
Capítulo 2- A Guerra do Paraguai, o recenseamento e o 'bom ladrão' Gamier ..... 55
Capítulo 3 -Machado de Assis e os públicos ......................................................... 71

Segunda parte
A figuração do leitor nos romances de Machado de Assis ...................................... 85
Capítulo 4 - Ressurreição e A Mão e a Luva: o questionamento romântico ............ 87
Capítulo 5 - Helena e laiá Garcia: em busca do leitor popular ............................... 109
Capítulo 6 -Brás Cubas e a textualização do leitor ................................................ 133
Capítulo 7 - Quincas Borba e o leitor dissimulado ................................................. 149
Capítulo 8- Dom Casmurro e o leitor lacunar ........................................................ 167
Capítulo 9 - Esaú e Jacó e o leitor como duplo ...................................................... 189
Capítulo 1O - Memorial de Aires e o leitor de papel ............................................... 213
Considerações finais .............................................................................................. 229

Anexo
A critica coeva aos romances de Machado de Assis ............................................... 233
Sobre os críticos .................................................................................................... 425

Referências bibliográficas ...................................................................................... 429

xi
Resumo

A interpelação do leitor é uma constante no romance machadiano. Figurado como entidade ficcional, o leitor
ganha novos papéis e funções, sofrendo um processo de fragmentação e dissolução no desenrolar da obra.
Isso ocorre em simultaneidade com modificações profundas na percepção que os escritores oitocentistas
tinham dos públicos leitores, o que se deve a mudanças no processo de produção e difusão cultural e também
na disponibilização de informações mais precisas sobre o leitorado brasileiro e sobre o papel do romance na
construção da nacionalidade. Essas modificações estão indicadas por dados empíricos e também por
depoimentos dos principais escritores brasileiros oitocentistas, em que as noções positiva ou negativamente
idealizadas a respeito do público de literatura cedem lugar à configuração do leitor e da comunicação literária
como problema real e concreto.

A partir da leitura e análise dos nove romances, examinados pelo àngulo específico da figuração do leitor,
procura-se estabelecer conexões entre os binômios Machado de Assis/público e narrador/leitor e mostrar que,
de recurso retórico importado de romances romànticos europeus, a interpelação direta do leitor torna-se um
recurso de composição. A tese mostra como o conhecimento do público contemporàneo à produção da obra
de Machado de Assis - com suas limitações, gostos arraigados, hábitos de leitura etc.- serve como chave
para se compreender a transformação do escritor dos primeiros romances no autor de Dom Casmurro e
Memorial de Aires, entre outros.

Palavras-chave
Machado de Assis, romance, leitor, público, romantismo, história cultural, literatura brasileira - século 19,
história da recepção.

xiii
Summary

The narrator' s addressing the reader is a constant in Machado de Assis' noveis. As a fictional entity, the
reader acquires new roles and functions and undergoes a process of fragmentation and dissolution over the
course of his work. These transfonnations coincide with how writers of the 1800s radically changed their
perception of the reading public, which was due to changes in the production process and cultural
dissemination as well as the availability o f more specific infonnation on Brazilian readership and on the
novel's role in the construction ofnationality. These changes are shown by empirical data and by statements
made by the major Brazilian writers of the 1800s, in which lhe positively or negatively idealized notions
regarding the reading public give way to the fonnation of the reader and literary communication as a real and
concrete problem.

Through the reading and analysis of Machado's nine noveis, examined from the specific angle ofhow the
reader is shaped, this work aims to establish connections between the binomiais Machado de Assis/reading
public and narrator/reader and to show that the narrator's addressing the reader directly, a rhetorical device
imported from the European Romantic noveis, becomes a device for composing noveis. The dissertation
demonstrates how knowledge of the contemporary reading public of Machado de Assis' work with its
limitations, deep-rooted tastes, reading habits etc. is key to understanding the transfonnation from the writer
ofthe first noveis into the master of Posthumous Memoírs ofBras Cubas and Dom Casmurro, among others.

Keywords
Machado de Assis, novel, reader, reading public, romanticism, cultural history, Brazilian literature - 19th
century, reception-history.

xiv
Introdução
"Os leitores pensam com razão que são apenas filhos de Deus, pessoas,
indivíduos, meus irmãos (nas prédicas), almas (nas estatísticas), membros (nas
sociedades), praças (no exército), e nada mais. Pois são ainda uma certa cousa,- uma
cousa nova, metafórica, original." 1 Nessa crônica de 1888, o escritor conta que certo dia,
montado num bond em pleno Largo da Carioca, ouviu o condutor comentar que acabara
de fazer uma viagem do Largo do Machado até o centro da cidade transportando apenas
um passageiro. "Fiz uma viagem à toa; apenas pude apanhar um carapicu...", dizia o
condutor ao colega de outro bonde, que trafegava no sentido contrário. O cronista
encanta-se com a associação do passageiro ao carapicu e encontra ai uma bonita metáfora
para descrever o leitor: "Aí está o que é o leitor: um carapicu este se criado; carapicus os
nossos amigos e inimigos."
Peixe pequeno e de pouco valor comercial, designação da gíria para um tipo
desclassificado e, por extensão, para a gente miúda que não avulta nem em qualidade nem
em quantidade2 , o termo também servia para designar meia passagem de bonde 3 • Há
também conotações políticas na crônica enigmática, que comenta a derrota de Luís Murat
à vaga de deputado pelo distrito do Rio de Janeiro antes de passar às cogitações sobre o
estatuto do leitor e sua comparação com os carapicus. O fracasso do combativo Murat é
celebrado pelo cronista, para quem votar e poetar são atividades mutuamente excludentes,
vislumbrando na desgraça do político a sobrevivência do poeta. A ligação com o universo
da política ficam também sugerida pelo fato de carapicu ser o apelido dos sócios do Clube
dos Democráticos Carnavalescos, uma das três grandes sociedades carnavalescas que
apareceram no Rio de Janeiro na segunda metade do século 19 e cujo prestigio não se

1 Machado de Assis, "Bons Dias!", 29.7.1888, in Obra Completa, 3 vols., 9' reimpressão, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 1997, vol. 3, p. 499. As referências serão sempre a essa edição, abreviada como OC,
salvo indicação contrária.
2 Macedo Soares atribui essa acepção à palavra, exemplificando com a crônica de Machado de Assis. C f.
Antônio Joaquim de Macedo Soares, Dicionário Brasíleiro da Língua Portuguesa-Elucidário
Etimológico Crítico -das palavras e frases que, originárias do Brasil, ou aqui populares, se não
encontram nos dicionários da língua portuguêsa, ou nêles vêm com forma ou significação diferente (1875-
1888), Rio de Janeiro, INL, 1954.
3 Esta acepção foi encontrada no Dicionário geral de sinônimos e locuções da língua portuguesa, de
Agenor Costa. Rio de Janeiro, Biblioteca Luso-Brasileira, 1960.

1
devia apenas à participação no Carnaval, mas também a suas atividades sociais e
políticas. 4
A associação do passageiro do bonde com o leitor pode ser pensada a partir de
acontecimentos políticos importantes do período, como a Revolta do Vintém, que agitou
as ruas cariocas nos primeiros dias do ano de 1880 e teve como pivô o encarecimento das
tarifas dos bondes, e a reforma eleitoral de 1881, que excluía a recém quantificada massa
de analfabetos do processo eleitoral. O movimento popular golpeou a política exclusivista
e excludente praticada pelos grandes senhores desde a década de 1850 e deu a tônica para
os anos de 1880 que culminariam com o fim da escravidão e a instituíção da República.
Nesses anos, as idéias totalizadoras do pais que a elite senhorial construíra para consumo
próprio foram questionadas pela explicitação e questionamento de mecanismos de
exclusão social e pela circulação de novos atores pelo palco político, quem sabe a bordo
do próprio "bonde", veículo-simbolo da modernidade oitocentista e verdadeira obsessão
do cronista Machado de Assis. s
A imagem, no entanto, ganha mais nitidez com a leitura de outra crônica, esta de
1877, que trata dos bondes de Santa Teresa. Nela o cronista discorre sobre as vantagens
dessa linha em relação às congêneres por causa da impossibilidade da pescaria,
considerada a chaga das outras linhas. Os morros e as curvas de Santa Teresa favoreciam
a agilização do percurso por dificultarem a aborrecida cata de carapicus pelo caminho.6
O leitor, portanto, estaria para o escritor como o passageiro está para o condutor
frustrado com o resultado minguado de sua pescaria, numa comparação que se dá pelo
pouco valor e também pela raridade e dificuldade de serem apanhados, leitor e passageiros.

4 O Clube dos Democráticos, como passou a ser conhecido a partir de 1888, foi fundado em 1867 por
rapazes pobres que teriam levantado dinheiro para sua constituição a partir da compra de um bilhete de
loteria premiado. As sociedades carnavalescas tiveram participação intensa nos movimentos republicanos e
abolicionistas, arrecadando dinheiro para comprar escravos, libertá-los e apresentá-los ao povo em seus
desfiles. Nesses desfiles, havia os chamados carros de crítica, ou "carro das idéias" como chamou Machado
em outra crônica de 1888 (OC, vol. 3, p.515), que satirizavam os grandes problemas nacionais, os políticos
e o noticiário da época, protestando contra abusos e erros das autoridades ou a favor de questões em que a
coletividade estivesse empenhada. As sociedades também arrecadavam dinheiro para vitimas de catástrofes
e defendiam o direito de voto para as mulheres.
5 Para uma descrição e análise minuciosas da Revolta do Vintém, veja-se Sandra Lauderdale Graham, "The
Vintem Riot and Política! Culture: Rio de Janeiro, 1880", Hispanic American Historical Review, 60(3),
1980, pp. 431-439. Jornalista combativo, empenbou-se a fundo nas campanhas da Abolição e pelo advento
da República. Devo a sugestão de buscar as conotações políticas da metáfora do carapicu ao professor e
historiador Sidney Chalhoub.
6 Machado de Assis, "História de 15 dias", 15.3.!877, in OC, vol. 3, p. 364.

2
Ainda que se declare feliz com o achado, o escritor encerra a crônica relativizando a beleza
da metáfora e dizendo que "podia ser pior". O aspecto não-bonito da imagem talvez se
deva ao fato de ela se referir ao próprio cronista, que pode ser o passageiro solitário da
viagem inútil mencionada pelo condutor. Ao fazer segredo do seu destino, dizendo que ia
às "tantas horas da tarde para (não digo o lugar)", o narrador aguça a curiosidade do leitor
levando-o a conjecturar sobre as identificações possíveis entre ele - narrador-, o escritor
Machado de Assis, o passageiro solitário da anedota, o carapicu e finalmente o leitor que se
procura definir - todos unidos em tomo de atributos como vulgaridade, desclassificação,
raridade, solidão, isolamento, pouco apreço.
Que noções de leitor estariam compreendidas nessa metáfora? Indivíduo de carne e
osso? Entidade abstrata composta por traços comuns a indivíduos históricos? Entidade
coletiva formada pelo conjunto dos leitores reais e potenciais de um texto? Instância
puramente textual?
Ao definir o leitor como filho de Deus, pessoa, indivíduo, irmão, alma, membro e
praça, Machado de Assis chanta a atenção para a complexidade e o caráter escorregadio de
uma figura que, sob a identidade nominal de leitor, pode referir-se a seres de naturezas e
funções diversas. Em suas suposições estão incluídas desde noções do leitor como criação
divina até como categoria sociológica, num movimento que compreende gênese,
individuação e socialização. Aquí, o interesse maior está em flagrar o escritor às voltas com
uma definição de leitor que ultrapasse a empiria e aponte para uma figuração complexa
construída a partir de mediações entre seres, digamos, históricos e ficcionais. Essa procura
de um status para a figura do leitor constituí um dos esportes favoritos do narrador
machadiano, que se dedica a ele com assiduidade e afinco não só na crônica, mas também
na critica, no conto e no romance. Em versão masculina ou feminina, como critico,
bibliômano ou mesmo na condição de verme, ora pacato, ora impaciente, por vezes amigo
e por outras apontado como adversário do narrador no jogo ficcional, o leitor é figura
onipresente na obra de Machado de Assis.
Essa ubiqüidade já foi observada por Augusto Meyer, que aponta o leitor como
centro nervoso da produção do escritor:

Em Machado de Assis a matéria da obra não passa de um pretexto para atingir os pontos nevrálgicos
do leitor. Aparentemente está piruetando em tomo de Brás Cuba' ou espiando a figura lamentável do
Rubião, tapeado pela fmíssima Sofia, mas se prestarmos atenção ao pigarro escaminbo que acompanha

3
o texto, se fizermos a transposição do plano fictício para o plano real e propriamente psicológico de
toda obra literária, - o diálogo entre o autor e o seu leitor ideal, veremos como é fria nele a
necessidade de um assentimento da parte desse leitor. Escreve movido quase sempre pela fatalidade
sádica do seu gênio, gênio agudo e meticuloso na destruição. 7

A figura do leitor na produção ficcional de Machado de Assis, problematizada por


Meyer, é o assunto central deste trabalho, que procura mostrar como o tuteio do narrador
aponta para uma verdadeira teoria machadiana do leitor. A princípio figurado como um
romântico a ser dissuadido do romantismo, essa entidade ficcional ganha novos papéis e
funções, sofrendo um processo de fragmentação e dissolução no desenrolar da obra. Isso
ocorre em simultaneidade com a insistência cada vez maior em abordar, nas próprias
narrativas, a mecãnica do processo literário e com a afirmação cada vez mais veemente da
importância da participação do receptor na consumação da obra. Do alvo de conversão dos
primeiros romances, o leitor aparecerá como o preenchedor de lacunas de Dom Casmurro,
idéia que remete à concepção do texto como tecido composto de hiatos a serem
preenchidos pelo leitor defendida pela chamada estética da recepção, e, em Esaú e Jácó,
como peça de um jogo de xadrez, metáfora muito semelhante às empregadas por Roland
Barthes e Umberto Eco que comparam o texto literário ao lugar de um embate xadrezístico
entre escritor e leitor. 8
O objetivo é estabelecer conexões entre o freqüente e "inevitável tuteio"9 do
narrador com o leitor, que se estabelece no plano ficcional, e o embate histórico do escritor
com seu público. Suponho ser possível traçar relações entre a percepção que Machado de
Assis tinha do seu público, expressa na produção crítica, na crônica e na correspondência, e
a relação entre os narradores e as figurações do leitor nos romances. Dito de outra forma: as
mudanças da percepção e da expectativa do escritor em relação ao seu público tem
implicações no modo como os narradores se dirigem aos seus interlocutores nos romances.
Não se trata de postular relações causais e diretas entre o "plano fictício" e o "plano real" e

7 Augusto Meyer, Machado de Assis, 3' ed., Rio de Janeiro, Presença/Instituto Nacional do Livro, 1975.
8 Para Rarthes, o texto é algo "imutavelmente estmturado e no entanto infinitamente renovável: algo como
o jogo de xadrez", cujo sentido se realiza a partir da "fusão orgástica" entre escritor e leitor. Cf. Roland
Barthes, O prazer do texto, 4' edição. São Paulo, Editora Perspectiva, 1.996. Eco, por sua vez, afirma que
"o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecaulsmo gerativo",
comparando a sua escritura a uma estratégia militar ou xadrezística, na qual o leitor é projetado como um
modelo de adversário. C f. Umberto Eco, Lector in fabula -A cooperação interpretativa nos textos
narrativos., São Paulo, Pespectiva, 1986.

4
nem de se tentar estabelecer um paralelismo do tipo "o escritor está para o narrador assim
como o público está para o leitor". No entanto, acredito ser possível encontrar refratadas no
leitor ficcionalizado projeções do escritor acerca do seu interlocutor - seja ele real,
potencial ou ideal.
Ao focar no diálogo entre narrador e leitor, o objetivo é compreender melhor a obra
machadiana à luz de dados fundamentais para a literatura oitocentista, como a ampliação e
diversificação do público leitor e ~ complicação do aspecto comunicativo do texto literário,
que abandonava as formas fixas e tradicionais à medida em que deixava de contar com a
homogeneidade do repertório entre seus produtores e receptores/consumidores. Embora a
interpelação do leitor pelo texto e sua tematização dentro. do próprio universo ficcional
esteja na origem do gênero romanesco -já no início· do século 17, Cervantes ironizava os
crédulos leitores das novelas de cavalaria e dava início à segunda parte do D. Quixote com
um "Prólogo ao Leitor", fosse ele "ilustre, ou plebeu"10 - a figura polivalente e
multifacetada, "monstro de muitas cabeças", como definiu Dickens11 , tomar-se-ia
fundamental para a produção literária a partir do final do século 18, quando os textos
freqüentemente passam a tematizar o destinatário como problema, simultaneamente
querido e desprezível, "hipócrita" e "irmão", condição de existência e defeito capital de
uma obra. No século 19, o conflito aberto entre narradores e leitores chegam ao proscênio
das obras de Tackeray, Steme e Xavier de Maistre, referências fundamentais e explícitas
para a produção da segunda fase de Machado.Iz

9 Augusto Meyer, "O Romance Machadiano", in Textos Críticos- Augusto Meyer. São Paulo,
Perspectiva; Brasília, INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1986, p. 329.
IO Cervantes, D. Quixote de La Mancha (tradução de António Feliciano de Castilho), 2° volume. Rio de
Janeiro, Jackson Editores, 1949, pp. 3-5. Para informações históricas sobre a figura social do leitor, vide
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, A Formação da Leitura no Brasil, São Paulo, Ática, 1996, pp. 14-17 e
Garrett Stewart, The Conscripted Audience in Nineteenth-Century British Fiction, Baltimore, John Hopkins
University Press, 1996.
11 Em carta a John Forster datada de 21 de setembro de 1840 Dickens refere-se ao leitor como "many-
headed", in Madeline House e Graham Storey (ed.), The Letters ofCharles Dickens. Oxford, Clarendon
Press, 1965, p. 129, citado por Garrett Stewart, op. cit., p. 9.
12 Em Machado, o embate constante entre narradores e narratários constitui uma das principais, senão a
principal, fontes de tensão dramática das narrativas, o que o aproxima de autores britânicos e norte-
americanos, como Blake e Melville, cujas vozes narrativas estão em constante atrito com seus
interlocutores. Veja-se William G. Rowland Jr., Literature and the Marketplace- Romantic Writers and
their Audiences in Great Britain and the United States, Lincoln. London, University ofNebraska Press,
1996,p.3.

5
A questão aqui é estudar os sentidos que essa figura retórica, importada do romance
europeu, ganha no contexto brasileiro oitocentista e, mais especificamente, na produção
machadiana. Produzida num ambiente onde a possibilidade de comunicação entre escritor e
público era muito reduzida e em meio a "uma literatura que não existe ainda, que mal
poderá ir alvorecendo agora", como escreveu o próprio Machado de Assis em 1873 13, sua
obra está marcada por essa relação peculiar e problemática, o que é bastante perceptível nos
seus romances, que também podem ser lidos como dramatização da relação do escritor com
seu público.
Vale notar que não se pretende propor novas interpretações para cada um dos
romances de Machado de Assis, mas uma leitura do conjunto da obra pelo prisma da
relação problemática entre uarrador e leitor. Trata-se, portanto, de procurar traçar uma linha
na "emaranhada vegetação que caracteriza a sua forma narrativa", na definição de
Alexandre Eulalio.l 4 Ao tomar como objeto de análise uma série de obras, coloca-se a
possibilidade de investigar como a reação do público a um determinado texto,
documentada em artigos e resenhas, assim como na correspondência do escritor e em
outros textos de natureza documental, pode influir sobre o encaminhamento da produção
do autor.
Assim, o interesse recai menos sobre a interação entre leitor e texto no ato da
leitura, ou entre narrador e narratário no processo de narração, do que sobre o impacto das
condições materiais de circulação e recepção de uma obra sobre a sua composição. Note-se
que esse impacto não constitui uma operação mecânica, pois refere-se tanto a uma
circunstância anterior à existência do texto, na antecipação que o autor faz da recepção, ou
seja, na sua projeção de leitor, real ou ideal, quanto a uma circunstância posterior,
relacionada à recepção da obra, que pode variar entre a euforia e a indiferença, interferindo
nos futuros escritos do autor. Sem perder de vista que o trânsito entre o mundo empirico e
o ficcional está sempre mediado pela imaginação do autor, os elementos extraliterários
apontados acima ajudam a compreender a significação atribuida a um texto em dado

13 Machado de Assis, "Instinto de Nacionalidade", OC, vol. 3, p. 802.


14 Alexandre Eulalio, "O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens e o autor diante do
espelho", in Escritos [org. Berta W aldman e Luiz Dantas], Campinas, Editora da Unicamp; São Panio,
Editora Unesp, 1992, p. 355.

6
momento e revelam a percepção e o posicionamento do autor diante de fatores decisivos
para a consumação do processo literário.
Eis algumas perguntas colocadas por este trabalho: Quem eram os leitores
contemporâneos de Machado de Assis? Quais os seus gostos e hábitos de leitura? Que
dimensão tinha o leitorado que acompanhou a publicação dos romances do maior escritor
brasileiro do século 19? Quais as reações às obras no momento de sua publicação? De que
forma a repercussão de cada obra teria influenciado obras posteriores e produzido
modificações importantes na produção do escritor? Como se inscreve numa obra a
experiência de um escritor que vive e produz num tempo e espaço determinados, exposto a
um certo público e a condições específicas de produção e circulação de textos? Ou seja:
quais conexões podem existir entre a relação do escritor com seu público - e, no caso de
Machado de Assis, essa relação transforma-se muito ao longo do tempo - e a relação que
os narradores dos seus romances estabelecem com "ficções de leitor" a que eles
constantemente se dirigem?
Este trabalho, portanto, estuda a relação entre modificações do texto machadiano no
que conceme ao tratamento reservado ao leitor- entendido como figura ficcional e como
interlocutor privilegiado do narrador - e as modificações ocorridas ou percebidas pelo
escritor na sociedade brasileira oitocentista, em particular aquelas relativas à questão da
leitura e dos leitores. As respostas serão dadas ao longo dos capítulos, que se organizam em
tomo do leitor de e em Machado de Assis, e do estudo das mediações possíveis entre essas
entidades históricas e ficciouais.

*****

Esta tese compõe-se de duas partes. A primeira gira em tomo do leitor de Machado
de Assis, ou seja, dos destinatários empíricos de sua prosa ficcional; para isso lanço mão de
material de pesquisa e, por meio da análise de documentos, procuro delinear o contexto
intelectual e cultural da produção da obra de Machado de Assis. A segunda parte, que trata
do leitor enquanto construção ficcional no romance machadiano, concentra-se sobretudo na
análise de textos ficcionais, embora também faça referência a textos não-ficcionais (como
críticas e resenhas publicadas sobre os romances machadianos à época dos seus

7
aparecimentos em livro). O resultado é a adoção em cada uma dessas partes de métodos
diferentes de estudo, definidos por Antonio Candido em "Literatura e
Subdesenvolvimento" como uma sociologia da difusão, baseada em informações
quantitativas e estatísticas, e uma sociologia da criação literária, em que o instrumento de
conhecimento é a análise do texto.1 5 A divisão em tomo desses dois vetores - um
eminentemente histórico-sociológico e outro fundamentalmente literário - justifica-se
pela facilidade de organização e pela opção de deixar explícita a independência entre o
plano empírico/histórico e o plano ficcional que, no entanto, projetam sentidos um sobre o
outro.
Trocando em miúdos: os leitores a que os narradores se dírigem nos romances de
Machado de Assis não se constroem à imagem e semelhança dos seus leitores empíricos -
reais ou potenciais; mas também não se pode dizer que estejam completamente dissociados
do leitor empírico, que afinal constitui a finalidade de todo e qualquer texto.
A primeira parte está subdividida em três capítulos. O primeiro mostra como alguns
dos principais romancistas e criticos brasileiros trataram a questão do público de literatura
ao longo do século 19 e como a pouca repercussão da produção literária brasileira,
percebida desde cedo por escritores e criticos, recebeu diversas explicações ao longo do
século 19. Para quem os primeiros romancistas brasileiros imaginavam escrever? E para
quem de fato escreviam? Quais as condições de circulação do romance no Brasil
oitocentista? Quais as tiragens? Em que velocidade as edições se esgotavam? De que forma
a ampliação do conhecimento da realidade do país e o delineamento do público leitor
repercutiu nas obras e nos projetos literários dos escritores? Em tomo das respostas a essas
perguntas se organiza o capítulo, que procura mostrar a exigüidade do leitorado como
aspecto problemático para a aclimatação do romance, enquanto forma importada, à
realidade do Brasil oitocentista. Essa exploração de uma dimensão radicalmente
materialista do fato literário tem inspiração na sociologia da literatura de Robert Escarpit,
que postula ser relevante para a compreensão de uma obra literá.-ia o fato de ela ser
veiculada por meio do livro, produto que tem uma dimensão industrial e comercial.

15 Antonio Candido, "Literatura e Subdesenvolvimento", in Argumento -Revista Mensal de Cultura, ano


I, no I, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra.

8
Dimensão de que o escritor Machado de Assis estava muito consciente e diante da qual sua
obra sempre toma posição, como procurarei mostrar. 16
O segundo capítulo concentra-se na década de 1870, quando começam a ser
formuladas explicações mais concretas para a pouca repercussão da literatura. Nessa
década, a imprensa torna-se mais atuante, a atividade editorial ganha maior regularidade e
profissionalização e as condições reais do pais tornam-se mais conhecidas, tudo isso
contribuindo para deixar mais clara as proporções diminutas do público consumidor de
literatura no Brasil. Importante nesse período é a realização do primeiro recenseamento
geral do pais, cujos resultados, divulgados em 1876 (apesar de o censo ter começado a ser
realizado quatro anos antes, em 1872), provocaram reações de espanto em todo o pais. Foi
nesse ano que, pela primeira vez, vieram à luz números sobre o nível de instrução e
analfabetismo no Brasil, modificando a imagem extremamente idealizada e fluida que até
então se fazia do país e despertando a indignação de jornalistas e escritores, entre eles
Machado de Assis. A consciência da escassez de leitores colocava em dificuldades o
projeto de um romance nacional extensivo, formulado pelos românticos e desenvolvido por
José de Alencar. Projeto dificil, para não dizer inexequivel, num país em que até mesmo as
fronteiras permaneceram indeterminadas e incertas e onde a comunicação entre as regiões
era extremamente precária durante quase todo o século 19. A constatação de que não
existia no Brasil um público numeroso e anônimo com acesso ao jornal - e,
principalmente, ao livro - colocaria em xeque a eficácia e a relevância do romance como
veículo de síntese e divulgação da nacionalidade brasileira; eventualmente, colocaria em
dúvida até mesmo a possibilidade de existência de urna ficção nacional nos moldes
praticados na França e na Inglaterra.
O terceiro capítulo da primeira parte estuda como a questão do público é tratada por
Machado de Assis nas crônicas e na critica literária e teatral, textos em que formulou e
experimentou princípios e procedimentos estéticos a serem utilizados na sua produção
ficcional e nos quais o público da literatura freqüentemente comparece como assunto
problemático. Veremos os ecos do projeto alencariano de construção de um romance

16 Robert Escarpit, Sociologie de la Littérature, Paris, Presses Universitaires de France, 1958.

9
nacional que procure "formar a nova e grande nacionalidade brasileira" 17 nos textos críticos
das décadas de 1850 e 1860, nos quais Machado adota a retórica do artista missionário,
empenhado em ilustrar as massas. Esse discurso sofrerá sucessivos choques de realidade ao
longo da década de 1870 e estará reduzido a pó já em 1880, com as palavras de Brás Cubas
"Ao Leitor", que podem ser lidas como uma espécie de reescritura desencantada - e
ficcionalizada - do Instinto de Nacionalidade de 1873. Neste capítulo, os textos
analíticos e a crônica de Machado, veículos de declarações de princípios do escritor e
balões de ensaío do ficcionista 18, fornecerão subsídios importantes para o estudo da
figuração do leitor no romance rnachadiano, de que se ocupa a segunda parte.
A segunda parte dedica-se ao estudo da figura ficcional do leitor nos romances de
Machado de Assis. A figura convencional e idealizada do (a) leitor (a) querido (a) e
amável dos primeiros romances, que o narrador - também ele convencional e idealizado
- conduz educadarnente pelo espaço ficcional vaí sendo tragada e digerida pelo texto,
transformando-se em matéria essencial da narrativa. Enquanto nos primeiros romances os
narradores comportam-se como uma espécie de raisonneurs que, postados na boca de cena
e ofuscados pelas holofotes, parecem não distinguir as faces na platéia, mas dirigem-se a
ela como se o teatro estivesse lotado, nos romances da segunda fase os narradores passam a
impressão cada vez maís aguda de que a platéia é ilusão. 19
Veremos que a postura didática e pedagógica dos narradores de Ressurreição e A
Mão e a Luva, empenhados em transformar o gosto dos seus leitores, será substituída por

17 José de Alencar, "Benção Paterna", in Sonhos D'Ouro -Romance Brasileiro, Rio de Janeiro, Livraria
José Olympio Editora, 1953, p. 35.
18 Nas crônicas, as "antecipações" de procedimentos narrativos do romance machadiano da maturidade têm
sido apontadas pelos estudos mais recentes sobre Machado de Assis, como os de John Gledson e Roberto
Schwarz. Lúcia Granja, em "A Língua Engenhosa: O narrador de Machado de Assis, entre a invenção de
histórias e a citação da história", escreve que "O processo que se inicia com a escrita das crônicas estará
completamente formado à medida que o narrador de Machado transpõe para a ficção a finidez do texto do
jornal, ou seja, a estratégia montada, primeiro, na crônica, funcionará também nos escritos de puro ambiente
literàrio." Embora em linhas gerais concorde com a idéia de que há um trânsito importante entre a produção
jornalistica e a produção ficcional de Machado, tenho reservas quanto à atribuição, a posteriori, de uma
finalidade para a crônica machadiana, como se ela existisse em função da obra ficcional posterior. In Sidney
Chalhoub e Leonardo Affonso Pereira (org.), A História Contada - Capítulos de História Social da
Literatura do Brasil. Rio de Janeiro, 1998, pp. 67-91. J.C. Kinnear, em texto que compara a versão definitiva
de Quincas Borba com sua primeira versão, publicada na Estação, também considera que as atitudes do
segundo período da ficção machadiarta estão presentes nas crônicas e na critica literària. Cf. J. C. Kinnear,
"Machado de Assis: To Believe or Not to Believe?", Modem Language Review, vol. 71, Edimburgo, 1976,
pp. 54-65.

10
uma postura mais neutra em Helena e laiá Garcia, romances em que a relação do narrador
com seus interlocutores aparece bastante apaziguada, no sentido de que eles nem
questionam nem investem contra as expectativas dos seus leitores, como ocorre
sistematicamente nos dois primeiros livros. Particular atenção será dada a Helena, até hoje
interpretado, pelo recurso constante aos procedimentos do melodrama e do romance
popular, como o texto mais defeituoso e desviante na carreira de Machado de Assis. Com
um pé no realismo e outro no ultra-romantismo, trata-se de obra realmente fraturada, ainda
que notavelmente mais sintonizada com o gosto então predominante que os romances
anteriores de Machado. Minha suposição é que o recurso ao melodrama, exacerbado em
Helena, não pode ser explicado apenas pela inabilidade do escritor imaturo, ainda em busca
de dicção própria, mas consiste também numa tentativa de ampliar o público do incipiente
romance brasileiro, utilizando recursos dos romances populares produzidos na Europa e
que faziam sucesso entre o público brasileiro. Se pensarmos bem, Machado já praticava
com desenvoltura a prosa desabusada de Brás Cubas nas crônicas e nos contos do inicio
da década de 1870, e só passaria a adotá-la no romance na década seguinte. Por quê?
Parece-me significativo que o chamado romance machadiano da maturidade seja
inaugurado com Brás Cubas dirigindo-se ao leitor como figura improvável e
numericamente reduzida: "O que não admira, nem provavelmente constemará é se este
outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando
muito, dez. Dez? Talvez cinco."20 • Brás Cubas inaugura um modo de elocução inédito
para o romance brasileiro, colocado a léguas de distãncia do tom submisso de Macedo, que
no prefácio a' O Moço Loiro dirige-se "Às senhoras brazileiras" pedindo a elas que cubram
"com a egide de vosso patrocinio" o romance, o personagem e o autor- as três instãncias
confundidas na figura do "fraquinho infante, que medroso dos camaradas, corre a acolher-
se no matemo collo". Tom submisso e também mistificador, uma vez que as senhoras
brasileiras do titulo do prefácio são reduzidas, no segundo parágrafo, ao "público do Rio de
Janeiro", por sua vez limitado, como vem sugerido já na primeira página do romance, aos
cavalheiros e mocinhas "do grande tom" - o que é indicativo da desproporção entre a

19 Sobre a influência da expressão teatral sobre o romance de Machado de Assis veja-se Barreto Filho,
Introdução a Machado de Assis, Rio de Janeiro, Livraria Agir Editora, 1980.
20 Machado de Assis, OC, vol. 3, p. 513.

11
intenção do romance e sua modesta possibilidade de circulação junto ao público.21
Desproporção que estará também em Alencar, cujos romances parecem pressupor um
público numeroso e anônimo disperso pela vastidão do território nacional. Tanto os
narradores de Macedo quanto os de Alencar parecem projetar vozes demasiado intensas e
altas para a "acústica reduzida" do meio, provocando desconforto semelhante ao que por
vezes se experimenta diante do orador que imagina sua audiência maior do que é, ou de
quem, a despeito da distância em relação ao seu interlocutor, mantém imutável- e sempre
alto - o volume da voz.
Ao exacerbar, no nível do texto, o embate entre narrador e leitor, Brás Cubas
dramatiza a precariedade dessa relação e coloca em dúvida sua eficácia comunícativa,
produzindo uma diminuição do volume da narração. 22 Dessa maneira, o livro questiona
também a possibilidade de existência de um romance brasileiro ao fazer do romance uma
paródia de si mesmoZJ - o próprio escritor, no Prólogo à Terceira Edição, coloca em
dúvida se As Memórias Póstumas são de fato um romance, ecoando a indagação do
historiador e critico Capistrano de Abreu -, fosse no nível da representação do país, fosse
no da sua possibilidade comunícativa. O narrador, que aí comparece em primeira pessoa e
com um ângulo de visão bastante restringido em relação aos romances anteriores, vem
também com um sensível ajuste na sua intensidade vocal, o que o deixa mais de acordo
com sua pátria e com o seu século, qualidades que Machado de Assis defendia como
fundamentaís para o romance brasileiro e elogiava no seu grande mestre, "um dos maJores

21 Joaquim Manoel de Macedo, O Moço Loiro. Rio de Janeiro/Paris, Gamier, 1845, pp. V,VUI e 1.
22 O inexplicável da obra de Machado de Assis vem sempre associado a metáforas que comparam sua
escrita a processos vocais. Do estilo gago, na célebre definição de Sílvio Romero, à "postura e dicção que
não assentavam nas circunstâncias locais", conforme a interpretação de Roberto Schwarz, a estranheza
causada pela obra machadiana está sempre relacionada à voz. Lúcia Miguel-Pereira, na conclusão da sua
biografia, associa a orginalidade do escritor a "um tom diferente", que teria a ver com o falar brasileiro
[Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico}, 48 edição. São Paulo, Gràfica
Editôra Brasileira Ltda., 1949, p. 330]. José Maria Bello refere-se a uma mudança de tom na obra de
Machado, embora considere que "a differença de processos entre, por exemplo, Helena e Braz Cubas",
seja mais de superficie do que de ftmdo, pois o temperamento do escritor conserva-se o mesmo, sem
violências ou transições subitas [José Maria BeiJo, Novos Estudos Críticos- Machado de Assis, Joaquim
Nabuco e outros artigos. Rio de Janeiro, Typ. Revista dos Tribunaes, 1917, p. 15). Afrânio Peixoto, por
sua vez, acredita que suas pausas respiratórias teriam se refletido sobre o seu modo de escrever, que
substitui os períodos redondos e longos dos oradores pela língua direta e precisa de quem tem dificuldade
de falar. Mais recentemente, Alfredo Bosi conclui o capítuio "Uma hipótese sobre a situação de Machado
de Assis na Literatura Brasileira" definindo a situação por uma metáfora vocal que também tem a ver com
o volume da elocução: "uma voz inquietante que fala baixo mas provoca sempre" [BOSI, Alfredo.
Machado de Assis- O Enigma do Olhar. São Paulo, Ática, 1999, p. 163].

12
da língua, um dos primeiros do século", Garrett. 24 Essas modificações representavam uma
reorientação profunda no projeto do romance nacional em vigor nas décadas de 1840, 50 e
60 e fora encampado por Machado de Assis no inicio de sua carreira. 25
Da platéia lotada, pressuposta pelo narrador de Ressurreição, A mão e a Luva e
Helena, vamos para os cem ou cinco leitores de Brás Cubas e, para o não-leitor da
"História dos Subúrbios", que fica adiada para depois de terminada a narração de Dom
Casmurro e, finalmente, para o leitor único - ou o leitor-nenhum - do Memorial de
Aires. É notável o fato de ser o Memorial o único dos romances em que não há referências
diretas ao leitor, embora essa seja a grande presença negada pela narrativa, que trata o leitor
empírico como figura indesejada, transformando-o numa espécie de sombra, já que as
anotações íntimas do velho diplomata supostamente não se dírigem a ninguém, a não ser ao
próprio conselheiro Aires, simultaneamente autor, narrador e leitor do Memorial. Como
movimento geral, pode-se dizer que de romance a romance caminha-se em direção à
aniquilação do leitor empírico, representado como figura cada vez mais rara e incômoda e
também mais cúmplice do narrador, a ponto de finalmente confundir-se com ele. Ao
simular sua "exclusão" do jogo ficcional, o romance quer fazer crer que o leitor do livro é
pura ficção, o que é absurdo não só para o sujeito que tem o livro em mãos mas para
qualquer um, já que não há literatura sem leitor e sem público, entidades fundamentais para
a realização do processo literário.
Considerando essas hipóteses, a tese propriamente dita é de que o romance
machadiano em seu conjunto dramatiza a inviabilidade tanto do projeto de um romance
brasileiro extensivo quanto de um romance popular, no molde europeu, modelo perseguido
pelo escritor nos seus primeiros livros. A guinada da primeira para a segunda fase, até
agora explicada em termos da genialidade do escritor (o gênio que atinge a maturidade,
teoria dos 40 anos), em termos acidentais (a doença que afastou Machado da sua rotina e o
teria colocado diante da perspectiva da morte) ou até mesmo como uma espécie de milagre,

23Augusto Meyer, "O Romance Machadiano", in op. cit., p. 332.


24[Garrett], texto publicado na Gazeta de Notícias em 4 de fevereiro de 1899. in OC, vol. 3, p. 932.
25José Verissimo refere-se à generalização do projeto de constituição de uma "literatora verdadeiramente
nacional" como sintoma da enorme influência de Alencar no meio literário: "Este conceito parece ter sido,
com algmn exclusivismo, o de Alencar, de seus discípulos e admiradores e até de antagonistas seus, o que é
maior documento da impressão que ele fez no seu meio." in José Verissimo, História da Literatura
Brasileira: de Bento Teixeira, 1601, a Machado de Assis, 1908. Brasília, Editora Universidade de Brasília,
!961, p. 194.

13
a meu ver pode estar relacionada também à percepção aguda, por parte do escritor, da
inviabilidade de se fazer um romance extensivo, tanto no sentido da representação geral do
país quanto na possibilidade de circulação, o que derivaria da tomada de consciência do
alcance limitado do texto literário no ambiente brasileiro e dos seus leitores possíveis. Em
outras palavras, proponho que o conhecimento do público contemporâneo à produção da
obra de Machado de Assis - com suas limitações, gostos arraigados, hábitos de leitura
etc.- é uma chave para se compreender a transformação do bom escritor dos primeiros
romances no mestre autor de Dom Casmurro e Memorial de Aires, entre outras obras-
primas.
Ao transformar a frustração de expectativas e as dificuldades de atingir o público
em matéria de uma produção ficcional que a todo tempo questiona sua capacidade de
comunicação e até mesmo sua possibilidade de sua existência, Machado de Assis não
estava apenas colocando sua obra em pé de igualdade com a melhor produção de sua
época; ao procurar os sentidos dessa "cousa nova, metafórica, original", ele também
antecipava questões que seriam incorporadas aos estudos literários muitos anos depois que
o cronista, montado num bonde no Largo da Carioca, fazia cogitações sobre quem é o leitor
e qual sua participação no processo literário.
Mas vamos aos carapicus!

14
Em torno de alguns conceitos de leitor

"Todas as obras do espírito contêm em si a imagem do leitor a que se destinam."24


A frase de Sartre constitui o postulado fundamental deste trabalho, que supõe que as
marcas do público empírico respondem tanto a expectativas, mais ou menos infundadas,
que o escritor tenha desse público quanto a eventuais constrangimentos que esse público
coloque a sua obra. Isso significa entender a recepção do texto literário não como fim de
um processo, nem como algo externo ao texto e independente de sua produção, mas como
algo do mundo objetivo que participa do processo de realização da obra. Esta, por sua vez,
resulta de uma circunstância histórica, da qual participam escritor e leitor- aqui entendido
no sentido coletivo, de público. Dai a afirmação de Sartre sobre a impossibilidade de se
escrever "sem um determinado público criado pelas circunstâncias históricas, sem um
determinado mito do que seja a literatura"25 , o que se explícita no livro, objeto concreto
para onde convergem escritura e leitura, atividades entendidas como "duas faces de um
mesmo fato histórico". 26 Assim, a relação entre público e escritor não se dá num sentido
único nem se pressupõe ser este a causa/origem e aquele conseqüência/finalidade da obra
literária. Não há primazia temporal ou causal entre essas duas entidades históricas, que
compartilham, no texto, um mundo comum.
Mas de que forma a imagem do leitor empírico se manifesta no texto? Como
identificar aí as marcas do público real e virtual?
Para Sartre, a imagem concretiza-se nas referências que a obra faz a "instituições,
costumes, a certas formas de opressão e de conflito, à sabedoria ou à loucura do dia, a
paixões duráveis e obstinações passageiras, a superstições e conquistas recentes do bom
senso, a evidências e ignorâncias, a formas peculiares de raciocinar, que as ciências
puseram em moda e que aplicamos a todos os campos: a esperanças, temores, hábitos da
sensibilidade, da imaginação e até mesmo da percepção; enfim, aos costumes e valores
recebidos, a todo um mundo que o autor e o leitor têm em comum."27 Essa longa
enumeração, que termina por englobar "todo um mundo", parece pressupor que o escritor e

24 Jean-Paul Sartre, Que é a literatura?, São Paulo, Editora Ática, 1989, p. 58.
25 Idem, p. IJ3.
26 Ibidem, p. 57.
27 Ibidem, pp. 57-58.

15
o seu público compartilham um mesmo repertório político e cultural, o que teria
repercussão imediata sobre o tema e a forma das manifestações literárias. O fato de escritor
e leitor viverem num mesmo momento parece implicar, para Sartre, que eles sejam partes
perfeitamente complementares de uma figura conhecida, de modo que, traçado o contorno
de uma das partes, a outra imediatamente se configuraria, pressupondo-se uma
complementaridade quase perfeita entre escritor e público. Assim, para melhor
compreender uma obra tanto faria buscar subsídios na situação social, histórica e política
do escritor quanto na do seu leitorado, embora Sartre sempre concentre sua investigação
em tomo da figura do escritor.
É notável a desenvoltura com que Sartre traça os limites entre os campos
ideológícos, entre o eu e o Outro, entre escritor e leitor, o que certamente está relacionado
ao fato de escrever num mundo recém-convulsionado pela guerra, atividade humana em
que todos os limítes geográficos, ideológícos, existenciais etc. são passados em revista e as
oposições ganham nitidez - "toda guerra é um maniqueísmo"28 - , o que implica não só a
divisão clara entre Bem e Mal, mas também uma organização do mundo em tomo de linhas
f01jadas por situações e sentimentos extremos. Sartre é o primeiro a apontar os limítes e a
parcialidade de sua análise e pede ao leitor que compreenda o "espírito" com que se lançou
nesse trabalho, escrito em 1947, quando se iniciava o balanço dos horrores da Guerra.
A análise de Sartre esgota-se na definição da posição ideológíca do escritor, sem se
aprofundar no conhecimento das características do público. Em sua sociología do leitor,
Sartre também não se dedica à interpretação de textos, embora essa atividade esteja sempre
no horizonte do crítico, para quem o leitor não é elemento externo ao texto, mas está
inscrito nele, o que remete ao conceito de "leitor implícito", definido por Wolfgang Iser,
um dos principais teóricos da Estética da Recepção, como entidade textual que antecipa a
presença do interlocutor empírico.
Iser considera três dimensões no texto literário, a saber: uma dimensão funcional,
ou seja, a relação que estabelece com o contexto social e histórico em que aparece; uma
dimensão comunicativa, que possibilita a transmissão de experiências para o leitor; e
finalmente uma dimensão assimíladora/assimilativa, na qual se evidencia a 'prefiguração da
recepção' do texto, assim como as faculdades e competências do leitor estimuladas por essa

28 Ibidem, p. 59.

16
prefiguração."31 Do macrocontexto às micromarcas textuais, a preocupação de Iser gira em
tomo de vários momentos do processo complexo da leitura.
A principal diferença entre o leitor implícito e o leitor sartriano é que este último se
funda num substrato empírico e se define como um tipo - em função de sua classe social,
etnia, nível sócio-cultural etc. - enquanto a categoria de Iser tem uma dimensão
eminentemente textuai, o que ele chama de "estrutura do texto", referindo-se tanto à "pré-
estruturação do significado potencial do texto quanto a atualização que o leitor faz desse
potencial no processo de leitura". A noção de leitor implícito remete, portanto, "à natureza
ativa desse processo - que pode variar historicamente de uma época a outra - e não a
uma tipologia dos leitores possíveis"32 • Sua manifestação se dá por meio de estruturas
textuais que funcionam como uma espécie de guía de leitura, impedindo que esse ato seja
puramente subjetivo.
O interessante em Iser é o fato de ele estudar o leitor como entidade eminentemente
ficcional e entender o texto literário como um processo que abrange "desde a reação do
autor ao mundo até sua experiência pelo leitor"33 e procura investigar como esse leitor
contemporâneo ao momento de produção está prefigurado pelo texto literário. Para refutar
a acusação freqüente de que a estética da recepção funda-se sobre um profundo
relativismo/subjetivismo, Iser coloca balizas ao texto literário comparando-o a uma figura
de perspectiva que aponta tanto para a visão do autor quanto para as possibilidades de
compreensão que o próprio texto coloca para o seu receptor. O sucesso do ato da
interpretação dependeria, portanto, de um bom posicionamento do leitor em relação ao
texto, posição que por sua vez estaria sugerida pelo próprio texto.
Sem postular uma correspondência quase perfeita entre as intenções do autor e a
imaginação do receptor, a quem caberia simplesmente preencher os sentidos pressupostos
pela estrutura textual, Iser imprime dinamismo ao conceito de leitor implícito por meio da
noção de "estrutura do ato", que dá conta dos elementos que os leitores individuais trazem
para a leitura do texto a partir de suas experiências históricas e individuais. Essa
atualização "episódica" que cada indivíduo faz do texto não implica, para Iser, uma

3 1 Wolfgang Iser, The Imp/ied Reader - Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to
Beckett, Baltimore and London, The John Hopkins University Press, 1974, p. 14.
32 Idem, p. xü.
33 Ibidem, p. 13.

17
relativização absoluta da interpretação; pelo contrário, ela também representa o
preenchimento de uma estrutura pré-existente, prevista pelo texto. Se não fosse assim,
argumenta, a compreensão das interpretações individuais de um texto não seriam acessíveis
a outros sujeitos. Dai a funcionalidade do conceito de leitor implícito, "que proporciona o
quadro de referências para a diversidade de atualizações históricas e individuais do texto, a
fim de que se possa analisar sua peculiaridade".34
Para este trabalho interessam sobretudo as mediações que Iser propõe para o estudo
da relação entre o público real de um texto e suas figurações literárias. Iser distingue entre
"papel do leitor" e a noção de "ficção do leitor", esta última referindo-se a um repertório de
sinais por meio dos quais o narrador expõe o texto ao leitor imaginado. A ficção do leitor
manifesta-se na superficie do texto, ao passo que o papel do leitor é um dado estrutural,
profundo, resultante da interação das mais variadas perspectivas (personagens, enredo, a
própria ficção do leitor etc.) que, integradas, constituirão a figura de perspectiva que é o
texto literário. O leitor de Iser, portanto, é uma entidade principalmente mas não apenas
ficcional, uma vez que a "ficção do leitor" constituiria uma espécie de manifestação, no
texto, de suas expectativas de leitor empírico.
Assim, o leitor empírico está implicado no ato da escrita e participa da estrutura
interna do texto que, por definição, sempre tem uma intenção de estabelecer comunicação,
ainda quaodo afirma a precariedade ou a impossibilidade da comunicação ou quaodo
ironizao leitor, buscando antes sua reação e não necessariamente seu assentimento.
A concepção da obra como tecido cheio de lacunas, de hiatos a serem preenchidos
pelo leitor, a quem cabe atribuir sentidos ao texto é uma das grandes contribuições da
Estética da Recepção, que entende que o processo de significação não se esgota na escrita.
O sentido deixa de se localizar na mente do autor, como postulava a critica fenomenológica
de tradição husserliana, para se produzir no embate do leitor com o texto, no ato da leitura
para o qual o receptor traz suas crenças e expectativas, ou "pré-entendimentos", que podem
ser abandonados ou confirmados pela leitura. A leitura deixa de ser encarada como
movimento linear progressivo, como um mero acúmulo continuo de informações, já que
informações tardias podem alterar expectativas anteriormente formuladas, assim como

34 Wolfgang Iser, O Ato da Leitura- Uma Teoria do Efeito Estético (vol. 1), São Paulo, Editora 34, 1996, p.
78.

18
produzir reorganizações de entendimentos previamente formulados. Procedimentos em
nada estranhos ao universo ficcional de Machado:
Eu, quando leio algum desta outra casta não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fnn, é
cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéia fmas me acodem então! Que
de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me
aparecem agora com as suas águas, as suas átvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que
tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma
alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim, preencho as lacunas alheias; assim
podes também preencher as minhas. 33

Quando Bento Santiago convoca o leitor a fechar os olhos e completar os sentidos


da narração, ele coloca em prática a idéia de que a obra exista apenas como uma série de
schemata, termo usado por Roman Ingarden para designar as direções gerais de sentido a
serem concretizados na recepção. A observação arrojada do narrador machadiano, em
consonância com idéias que seriam desenvolvidas pela teoria da recepção, propõe um
deslocamento importante para o entendimento do fenômeno literário. 34
Finalmente, vale ressaltar outro conceito, formulado por outro teórico da Estética da
Recepção e que me parece particularmente útil para se compreender as mediações possíveis
entre leitor ficcional e leitor empírico. Trata-se do "leitor intencionado" (intendierte
Leser), formulado por Erwin Wolff. Referindo-se à reconstrução de uma imagem do leitor
que teria existido na mente do autor, o leitor intencionado consiste numa "ficção de leitor
no texto", que se manifesta por meio de exortações do narrador ao leitor, de sua postura
pedagógica, da manifestação de normas e valores etc., revelando "as disposições históricas
do público visadas pelo autor", seja para respeità-las ou afrontà-las. A definição do leitor
intencionado de um texto implica a realização de uma espécie de arqueologia não só da
percepção quanto das intenções do escritor em relação ao seu público, intenções que se
transformam ao longo do tempo, informadas por condições históricas específicas, e
manifestam-se por meio de um repertório de sinais com que o narrador expõe o texto ao
seu leitor imaginado. Isso não quer dizer que o leitor intencionado seja idêntico ao leitor
empírico, mas que esse trata de uma figura que contém traços tanto do leitor potencial
quanto do leitor desejado/imaginado pelo escritor.

33Dom Casmurro, OC, vol. I, pp. 870-1.


34Cf. Romau Ingarden, The Literary Work ofArt- An investigation on lhe borderlines ofonto/ogy, logic,
and theory ofliterature, Evanston, Northwestem University Press, 1973.

19
Este trabalho também se inspira em estudos relativamente recentes sobre o leitor e o
público na ficção oitocentista. Refiro-me especificamente a Dear Reader - The
Conscripted Audience in Nineteenth Century British Fiction, de Stewart Garrett, The
Hidden Reader - Stendhal, Balzac, Hugo, Baudelaire, Flaubert, de Victor Brombert, e
Literature and the Marketplace - Romantic Writers and their Audiences in Great Britain
and the United States, de William Rowland Jr. 35 Todos esses estudos fornecem subsídios
importantes para se compreender como as profundas mudanças do regime de comunicação
entre autores e públicos verificadas nos séculos 18 e 19 nas matrizes da vida intelectual
brasileira ecoaram na produção de autores cujas obras eram as principais referências para a
prosa de ficção praticada no Brasil do século 19. Particularmente útil é o estudo de
Rowland Jr. que, partindo do pressuposto de que a imagem que os escritores faziam de seu
público teve influência decisiva sobre a forma das obras do Romantismo britânico e norte-
americano, analisa a importação, por parte dos escritores norte-americanos, das
formulações britânicas sobre a posição e a função social do escritor, procurando indicar os
novos significados que lhe eram atribuídos do outro lado do Atlântico Norte.
Examinados alguns conceitos e proposições teóricas para a abordagem do leitor e
da leitura no processo literário, cabe definir os pontos de contato com as diversas linhas de
pesquisa mencionadas. Com a sociologia da literatura, compartilho o interesse pela
dimensão material do fato literário, manifesta nos modos de difusão do texto, condições de
distribuição e circulação de periódicos e livros, estrutura de organização do mercado
editorial e das edições, modos de divulgação da obra etc., procurando conjugar o tipo de
estudo proposto por Robert Escarpit com a análise e a interpretação do texto literário. Vale
notar que questões afins com a sociologia literária estão muito presentes na ficção
machadiana por meio de diversas referências, por exemplo, ao valor monetário do livro ("O
resto dêste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma
atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não
é tão feio como se pinta. Quero dizer..." 36), às suas características materiais, indicativas do
público potencial do romance ("Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo
papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a

35 Garrett Stewart, op. cit.; Victor Brombert, The Hidden Reader - Stendhal, Balzac, Hugo, Baude/aire,
Flaubert, Cambridge, Harvard University Press, 1988; William G. Rowland Jr., op. cit.

20
leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga
margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... Não, não
alonguemos o capítulo.'')3 7 ou até mesmo com referências à marca do querido e amigo
papel, a que Aires se dirige constantemente no seu memorial. Das formulações de Sartre e
Iser a respeito do leitor, interessa-me sobretudo a postulação de que é possível identificar
no próprio texto literàrio as marcas de apelo ao seu público real ou virtual.

A crítica brasileira e o público de literatura


A percepção do público como problema - seja pela indiferença, desprezo ou pela
simples constatação da ausência de leitores - é tão antiga quanto o início da produção
literària no Brasil, e a crítica não desconsiderou essa situação. Já no século 19, Sílvio
Romero indignava-se com o abismo que separava os homens de letras e o público e com a
extrema concentração da produção literária no Rio de Janeiro, situações que reproduziam
no universo das letras o isolamento e a centralização que também marcavam a esfera
política. José Veríssimo também tratou das condições de produção e circulação da
literatura no Brasil e talvez tenha sido o primeiro a tentar avaliar o impacto disso sobre a
produção brasileira. Em "Das Condições da Produção Literària no Brasil"38 , ele associa o
público limitado, a circulação restrita do texto literàrio e o imenso contingente de
analfabetos ao caráter áulico da produção do Brasil colônia, período em que a atividade
literària girava em tomo de academias amparadas por vice-reis, governadores, fidalgos e
bispos. Ao fazer considerações sobre os pequenos círculos produtores e leitores de
literatura, Veríssimo chama atenção para o pouco contato da produção literária com o
público, atribuindo essa situação à ausência de uma "sociedade" e também às enormes
distâncias e dificuldades de comunicação no país. Para relativizar a crença generalizada de
que havia um imenso leitorado feminino no Brasil, Veríssimo lembra que "nossas avós, na
máxima parte, não sabiam ler" e que, em 1890, apenas 16 ou 17 em cem habitantes do país
estavam aptos à leitura. A preocupação em identificar os círculos de produção e difusão da
literatura também se manifesta na sua História da Literatura Brasileira, embora isso não

36 Machado de Assis, Dom Casmurro, OC, p. 898.


37 Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, OC, p. 544.
38 José Verissimo, "Das Condições da Produção Literária no Brasil", in Estudos da Literatura Brasileira (3'
série), Belo Horizonte/São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1977, pp. 31-48.

21
seja feito de modo sistemático e não se procure investigar como as condições da atividade
literária no Brasil podem estar implicadas na fatura do texto.
Um estudo mais metódico das condições de produção da literatura no Brasil foi
empreendido na década de 1960 por Nelson Werneck Sodré que, empenhado em escrever
urna história da literatura articulada com a história sócio-econômica do pais, procura
mostrar como o aspecto problemático do público repercutiu sobre a literatura brasileira.
Não se trata apenas, como em linhas gerais fizeram Romero e Verissimo, de constatar-
com um certo tom de lamento - o apartamento entre escritores e leitores, mas de procurar
descrever de maneira sistemática os círculos sociais de produção e difusão da produção
literária num "meio dotado de acústica reduzida"39 • No entanto, como a sua interpretação
da produção literária é, em última análise, pautada por uma espécie de determinismo que
trata a produção literária como reflexo direto das conjunturas sócio-econômicas - por
mais que o autor critique os estudos baseados nas relações de causa e efeito entre a situação
material e as manifestações artísticas - , não se procura compreender os efeitos sobre os
textos produzidos nesse meio de acústica reduzida. O trecho que segue, em que Sodré traça
a relação entre o público da literatura e sua representação nos romances oitocentistas, é
exemplar da relação direta e unidirecional que o autor estabelece entre a produção literária
e a realidade social:

Estudantes e mulheres, no quadro urbano da sociedade imperial, constituem, pois, o público


literário, na sua maior parte. Figuram nos romances, também, como as personagens fundamentais.
Estudantes e mulheres da mesma classe, em regra, em que pese o caso isolado do moço de famHia
empobrecida, mas vinculado à classe que detém a riqueza: via de regra, nos romances, o autor, seguindo
os preceitos da época e do meio, lhe dá a esposa e lhe dá a riqueza. 40

A observação demonstra acuidade na percepção de como a produção literária está


intrinsecamente ligada à realidade social. Os primeiros romances brasileiros - de Joaquim
Manuel de Macedo, José de Alencar e do primeiro Machado de Assis - são de fato
povoados por mulheres e estudantes, personagens com os quais o público leitor de então,
em sua maioria composto desses estratos, tinha possibilidade de se identificar. No entanto,
a análise de Sodré esgota-se na verificação desse espelhamento entre a literatura e a

39 Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, 43 ed., Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1964, p. 360.
40 Idem, p. 206.

22
sociedade, pressupondo urna relação quase imediata entre o perfil do público leitor e os
personagens dos romances, como se estes últimos fossem construídos à imagem e
semelhança daqueles. Avesso a todo e qualquer tipo de análise formal, e francamente mais
interessado em sociologia do que em critica literària, Sodré não se debruça sobre o texto,
restringindo-se a procurar em sua superficie os reflexos de questões conjunturais.
A identificação de algwnas peculiaridades da produção brasileira em rúvel do
próprio texto literário foi feita na década de 1970 por Antonio Candido na Formação da
Literatura Brasileira, que postula a literatura como sistema formado pela tríade obra-autor-
público e procura estudar a coesão entre as formas, os temas e a sociedade. Ao
compreender a produção literária não mais como reflexo do social, mas como um
"processo comunicativo, que é integrador e bitransitivo por excelência'' 41, Candido chama
a atenção para marcas da produção brasileira vinculadas às condições de produção e
circulação da literatura no pais. Entre elas estaria a presença de um certo traço de oralidade
nos textos brasileiros, desenvolvido por força do costume da leitura de textos em voz alta,
em saraus e reuniões, o que constituía estratégia importante para aumentar o alcance da
produção literária numa sociedade de analfabetos. As condições peculiares de difusão da
literatura teria produzido, do ponto de vista formal, "um tom de crôrúca, de fácil
humorismo, de pieguice", que Candido identifica tanto em Macedo quanto em Alencar e
até Machado de Assis. Em outra de suas obras, Candido defende que "poucas literaturas
terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores rúveis, esta influência caseira e
dengosa, que leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar."42
Outro traço característico apontado por Antonio Candido é a acessibilidade da
produção literária, relativamente fácil e pouco hermética, apesar de produzida pela e para a
reduzida elite. Paradoxo aparente, explicável pela pobreza intelectual das elites nacionais, o
que é tratado pelo critico com a delicadeza que lhe é habitual:

Com efeito, o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com
a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstáncia, ligada à esmagadora
maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa,
ou com um público de leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estimulo das pequenas
elites. Ao mesmo tempo, a pobreza cultural desta nunca permitiu a formação de uma literatura

4 1 Antonio Candido, "A Literatura e a Vida Social", in Literatura e Sociedade- Estudos de Teoria e
História Literária, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976, 5' edição, p. 22.
42 Antonio Candido, "O Escritor e o Público", in op. cit., p. 85.

23
complexa, de qualidade rara, salvo as devidas exceções. ( ...)De onde se vê que o afastamento entre o
escritor e a massa veio da tàlta de públicos quantitativamente apreciáveis, não da qualidade pouco
acessível das obras.43

Em complemento à argumentação de Candido, é de se notar que a acessibilidade


das obras também está relaciortada ao fato de que o principal veículo de escoamento da
produção literária oitocentista era o jornal, sendo raro o romance publicado em volume sem
antes ter passado pelo rodapé dos diários cariocas. A observação de Machado Neto de que
"os literatos foram os iniciais olimpianos do primeiro 'mass media' usado no Brasil - o
jornal"44 aponta, descontados os eventuais exageros, para uma característica importante da
literatura brasileira: a convivência constante num mesmo veículo entre todos os tipos de
produção literária, que inclui todos os matizes que há entre o que hoje seria considerado
alta e baixa literatura. Característica que na obra machadiarta ficará evidenciada com a
assimilação ao romance, principalmente a partir de Brás Cubas, de técnicas da crônica
jornalística e do folhetim.
A proposta do estudo da literatura também como processo comunicativo, que está
rta Formação e também em Literatura e Sociedade, produziu menos efeito do que seria de
se esperar em relação a duas das obras mais influentes e prestigiadas produzidas no pais rta
segunda metade do século 20, o que novamente remete ao acanhamento do ambiente
intelectual brasileiro. Os estudos de recepção, realizados principalmente a partir da década
de 1980, parecem ter levado em conta menos as formulações de Antonio Candido do que
as de Wolfgang Iser e Robert Jauss, dois dos principais teóricos da Estética da Recepção.
Aqui, suas obras tiveram divulgação principalmente por traduções comentadas e ensaios
sobre esses e outros teóricos realizadas por Luiz Costa Lima45 e por Regina Zilberman46
que, num volume dedicado a apresentar as principais teses do grupo heterogêneo da Escola
de Constança, toma o romance Helena, de Machado de Assis, como caso para aplicação da
metodologia proposta por Robert Jauss.
Em co-autoria com Marisa Lajolo, Zilberman produziu obras pioneiras para uma
sociologia da leitura no Brasil, como A Leitura Rarefeita e A Formação da Leitura no

43 Idem, pp. 85-86.


44 A.L. Machado Neto, Estrutura Social da República das Letras (Sociologia da Vida Intelectual Brasileira
- 1870-1930), São Paulo, Grijalbo/Editora da Universidade de São Paulo, 1973, p. 231.
45 Luiz Costa Lima, A literatura e o leitor- textos de Estética da Recepção, Rio de Janeiro, Editora Paz e
Terra, 1979.

24
Brasi/ 47, em que o estudo da tematização da leitura e do leitor nos escritos de Machado de
Assis fornece subsídio importante para a compreensão do gosto e dos hábitos de leitura
prevalentes na segunda metade dos oitocentos.
Marisa Lajolo trata especificamente do leitor machadiano em "Machado de Assis:
um mestre de leitura" ao focalizar a produção inicial do escritor. O texto, que tem como
ponto de partida o conto "Miss Dollar"48 e contempla também textos de critica teatral e
literária das décadas de 1850 e 1860, indica o paralelismo entre a produção de Machado de
Assis e a história social da leitura na segunda metade do século 19:

Da cordialidade à impaciência dos piparotes, da solidariedade ao distanciamento irônico, à medida


que a obra de Machado amadurece literariamente, e semelhantemente às relações autor-público, as
relações narrador-leitor vão sofrendo alterações não de todo independentes das alterações por que
passava, no Brasil, o modo de produção dos bens da cnitura que, como a literatura, valiam-se da escrita
para sua circniação.49

Com necessária cautela, Marisa Lajolo sugere que a relação autor-público não seja
de todo independente da que se estabelece entre narrador e leitor e também que essa última
relação, eminentemente ficcional, conteria, de maneira cifrada, o projeto literário de
Machado de Assis, que incluía a formação de leitores empíricos capazes de receber sua
obra, produzida ao longo de cinco décadas em que se verificaram modificações
significativas no país e nos modos de produção, circulação e recepção de bens culturais.
Basta dizer que a publicação regular de ficção brasileira data da segunda metade da década
de 1860 e que um escritor como Alencar terá seu primeiro contrato com uma editora no
final da carreira e da vida. 5o
A análise inspiradora de Marisa Lajolo aponta para o dinamismo das relações autor-
público e narrador-leitor na segunda metade do século 19, ressaltando a postura pedagógica
do escritor, que de fato se aproxima da militância em prol da cultura nacional no inicio de
sua carreira. Essa postura, no entanto, não me parece generalizável para toda a obra. Como

46 Regina Zilberman, Estética da Recepção e História da Literatura, São Panio, Ática, 1989.
47 Marisa Lajolo e Regina Zilbennan, A Leitura Rarefeita- Livro e Literatura no Brasil, São Paulo, Editora
Brasiliense, 1991; A Formação da Leitura no Brasil, São Paulo, Editora Ática, 1996.
48 O conto está em Contos Fluminenses. que apareceu em fevereiro de 1870.

49 Marisa Lajolo, Do mundo da leitura para a leitura do mundo, São Paulo, Ática, 1994, pp. 77-85.
5o Cf. Laurence Hallewell, O livro no Brasil: sua história, São Paulo, T.A. Queiroz/Editora da Universidade
de São Paulo, !985, pp. 125-156.

25
procurarei mostrar, é justamente o abandono da postura pedagógica do narrador
machadiano que vai caracterizar a passagem do romance da primeira para a segunda fase.
O estudo As Tramas da Leitura, de Maria Conceição da Silva, 51 também trata da
posição do leitor na ficção brasileira. Tomando como referência romances de José de
Alencar (Lucíola, Diva, Senhora), Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás
Cubas), Jorge Amado (Tereza Batista Cansada de Guerra) e Osman Lins (A Rainha dos
Cárceres da Grécia), a autora propõe uma tipologia do leitor de ficção no Brasil, que teria
evoluído de uma situação de tutela, imposta pela escrita autoritária de José de Alencar, em
direção a uma crescente autonomização do leitor, cada vez mais convocado a participar,
questionar e completar a obra literária Segundo esse estudo, As Memórias Póstumas de
Brás Cubas marcariam o início, na literatura brasileira, da produção de "metatextos
ficcionais", ou seja, textos em que o leitor é explicitamente chamado a participar do
processo de composição da obra. O narratário das Memórias Póstumas seria uma espécie
de reflexo da volubilidade do narrador-personagem, um "narratário sem nenhum caráter",
como define a autora, referindo-se tanto à heterogeneidade quanto à fraqueza moral dos
leitores. Por abarcar quase um século e meio de produção ficcional, o trabalho não se
propõe estudar nuances da representação do leitor na obra de cada um dos autores.
O Circuito das Memórias em Machado de Assis,52 de Juracy Assman Saraiva,
estuda o processo de elaboração das narrativas machadianas, em particular os romances
definidos como autobiografias ficcionais (Memórias Póstumas, Dom Casmurro e
Memorial de Aires), por meio das relações que o narrador estabelece com elementos
específicos da narrativa, tais como a temporalidade, a focalização e o leitor. Para este
trabalho interessa sobretudo a atenção dedicada pela autora à relação entre os interlocutores
textuais, que são o narrador, enunciador do discurso, e o leitor, figura ficcional, definido
como "receptor interno do texto", a quem o narrador se dirige explícita ou implicitamente.
Embora suponha a existência de articulações entre o circuito interno da produção-
interpretação e o circuito externo, protagonizado por autor e leitor, afirmando que a
narração carrega consigo um apelo à "presentificação do real", Saraiva não aborda as

51 Maria Conceição da Silva, As tramas da leitura (.4 posição do leitor na ficção brasileira), Rio de Janeiro,
Livraria Editora Cátedra, 1989.
52 Juracy Assmann Saraiva, O Circuito das Memórias em Machado de Assis, São Paulo, Edusp; São
Leopoldo, Editora Unislnos, 1993.

26
possíveis conexões entre a relação ficcional narrador/leitor e a relação empírica
escritor/público. O estudo da transitividade do texto para o mundo, postulada pelo trabalho,
é tratada principalmente por meio de processos de intertextualização, ou seja, de
referências do texto machadiano a outros textos literários, sem levar em conta o contexto
histórico de sua produção. O trabalho de Saraiva é subsídio importante para os capítulos
que tratam dos romances em primeira pessoa
Também fundamentais para o presente trabalho são as obras de Roberto Schwarz e
as de John Gledson em tomo do romance machadiano. Os estudos de Schwarz sobre o
narrador, entidade na qual se concentra para melhor compreender a grandeza dos romances
da segunda fase, em especial Brás Cubas e Dom Casmurro, servem aqui de baliza para a
análise da relação dos narradores com seus interlocutores - ficcionais ou não - que se
traduz em modos de elocução e comunicação bastante transformados ao longo da obra.
Minha idéia é que essas transformações descrevem um sentido, tomando-se passíveis de
interpretação. Ao procurar transpor para sua escrita as idéias do seu país e do seu tempo,
papel que prescreve para o escritor no ensaio "Instinto de Nacionalidade"53, de 1873,
Machado incorporava a ela marcas de uma relação social muito cara e sensível a qualquer
escritor, em qualquer tempo ou país: a relação com seu público, seja ele real, imaginado ou
simplesmente desejado. Uma relação que devia ser especialmente cara a um escritor
consciente como Machado de Assis, imbuído da tarefa de refinar a representação do país,
afastando-se do pitoresco e da busca exclusiva da cor local.
Assim, interessa ver na reviravolta formal iniciada com Brás Cubas a adoção de
novas estratégias de endereçamento ao leitor, traduzindo os novos pactos que o escritor
busca estabelecer com seu público. Enquanto seus antecessores pareciam considerar o
leitor como extensão natural de si mesmos e de sua classe, Machado problematiza a figura
quase improvável do leitor de literatura procurando incorporá-la à forma do seu romance.
A inscrição, no texto, de questões do universo empírico da leitura e da literatura constitui a
meu ver uma dimensão do processo de "acumulação realista"54 estudado por Roberto
Schwarz nos romances machadianos, que lançam mão e testam os esquemas do

53 OC, vol. 3, p. 804.


54 Roberto Schwarz. op. cit., p. 210.

27
romantismo e da ideologia liberal concluindo pela não-aplicabilidade das idéias e
ideologias importadas a uma representação que aspirava ao realismo.
Com isso chego à obra de John Gledson, com a qual este trabalho compartilha a
idéia de que "as mudanças, as dúvidas, o próprio ceticismo de Machado são resultados, em
grande parte, de um ajustamento inteligente a um certo tipo de realidade - a brasileira,
para simplificar."55 Do ponto de vista mais específico das possibilidades comunicativas do
texto literário na realidade brasileira, assunto deste trabalho, esse ajustamento inteligente se
processa de maneira radícal a partir da experiência de Helena, como mostrarei. Nesse
sentido, a guinada em direção à incorporação da precariedade comunicativa na escrita do
romance, à manifestação da dúvida sobre a qualidade da interlocução e até mesmo da
incerteza sobre a existência de interlocução é a forma encontrada por Machado para
manter-se fiel a um projeto realista que fosse capaz de representar - e também de
comunicar- com propriedade uma sociedade onde a produção e a circulação da literatura
tinham muitas peculiaridades em relação ao que ocorria nos Estados Unidos e nos países
europeus que serviam de modelo aos escritores brasileiros oitocentistas.
A inclusão no romance de questões relativas à recepção é, a meu ver, resultado do
processo de acumulação realista que orienta o romance machadiano, para dizer como
Schwarz, e também de um ajuste inteligente e realista ao meio brasileiro por parte de um
escritor muito consciente de suas intenções e sempre lúcido em relação às condíções da
produção literária local e à inserção de sua obra nessa produção.

*****
Retomando a metáfora do carapicu, pode-se dizer que no romance de Machado ela
remete ao leitor empírico, ou real, postado diante do texto e que pode ou não ser
contemporâneo à sua escritura; ao leitor-personagem, que habita o ambiente ficcional e
aparece caracterizado como possuidor de livros ou realizando a mesma atividade do leitor
empirico em cenas de leitura; e ao leitor ficcional, projetado pelo texto, seja pela evocação
direta, seja pela pressuposição fundamental de que todo texto é escrito para ser lido por
alguém. Esse leitor ficcional pode ser entendido tanto como o leitor explícito, nomeado

55 John Gledson. op. cit., p. 75.

28
como "leitor" ou "leitora", quanto como o leitor implícito, entidade ficcional construída
retoricamente e por meio das seleções de repertório e do tom com que o narrador se dirige a
ele. 56 Para me referir à coletividade de leitores empiricos de uma obra, empregarei o termo
público.
Finalmente, é necessário esclarecer o sentido atribuído aos termos figura e
figuração. A definição mais generalizada de "figura" refere-se ao seu aspecto desviante em
relação a uma expressão natural, ordinária, simples, comum ou normativa. É a figura
enquanto caso de polissemia que privilegio neste trabalho, em que o leitor machadiano,
"cousa nova, metafórica, original", será compreendido como entidade híbrida, multiforme,
polissêmica, que carrega em si mesmo a ausência e a presença daquílo a que se refere. 57 Os
termos figura e figuração reforçam, assim, a natureza ficcional do leitor e a precariedade
dos seus contornos, muito menos definidos que os de uma personagem, em geral associada
a imagens "corpóreas" e tridimensionais raramente associadas ao leitor ficcional, delineado
por traços que não compõem uma personagem. Quando se escreve Capitu, o nome refere-se
a uma terceira pessoa, a um ser puramente ficcional; quando se escreve "leitor", quem tem
o livro nas mãos não deixa de se sentir interpelado pelo texto, mesmo que logo em seguida
ele vire o rosto, pelo menos mentalmente, para o narrador. Na morfologia narrativa, por
assim dizer, o leitor interpelado no fluxo ficcional é menos substantivo que pronome, no
sentido de que, assim como o pronome, ele aparece como instância relaciona!, como marca
gramatical cujo sentido e posição se transformam de acordo com a circunstância da
enunciação. Ao interpelar o "leitor", citado ipsis literis, a narração pode tanto chamar a
atenção de uma segunda pessoa que lê o texto quanto pode remeter a um leitor "em terceira
pessoa". O leitor empirico, portanto, participa ativamente da translação da segunda para a
terceira pessoa, e vice-versa, alterando a posição do "leitor" referido pelo texto de acordo
com sua conveniência. Quando é objeto das lisonjas do narrador, "o leitor" tende a ser

56 Embora ciente do conceito de narratário, proposto por Gerald Prince para designar aquele a quem se dirige
a narração literária, assim como das distinções entre narratário intradiegético (aquele que participa do texto
como personagem) e narratário extradiegético (aquele referido apenas como auditor/leitor), por questão de
clareza e simplicidade optei por manter a designação "leitor" para se referir a ambas as instãncias ficcionais.
57 Vide: M.H. Abrams,A Glossary ofLiterary Terms, 7th edition, Fort Worth, Harcourt Brace College
Publishers, 1999; J.A. Cuddon, Dictionary ofLiterary Terms and Literary Theory, 3rd. edition, London,
Penguin Books, 1992; Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das Ciências da Linguagem (Edição
portuguesa orientada por Eduardo Prado Coelho), 2' ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1974, pp. 329-
335; Gérard Genette, Figures I, Paris, Éditions du Seuil, 1966, pp. 205-221.

29
PRIMEIRA PARTE

Sobre as condições de circulação e recepção


da produção literária no Brasil oitocentista

31
Os mascates. muito comuns no Rio de
Janeiro. iam de casa em casa vendendo mercadorias
dos mais variados tipos. Eles raramente carregavam
seus produtos, e muitas vezes eram acompanhados
por escravos que carregavam uma bandeja com vários
artigos para vender. como chapéus. liYTos. tecidos etc.
Capítulo 1
Um preto de balaio uo braço a vender romances

A metáfora do leitor-carapicu, personagem raro, catado com dificuldade pelo


condutor-escritor nas ruas do Rio de Janeiro, tem seu antecedente na imagem registrada por
João do Rio. Ao elogiar a profissionalização da atividade literária, escrevia o cronista em
1908, ano da morte de Machado de Assis; "Hoje o escriptor trabalha para o editor e não
manda vender como José de Alencar e o Manuel de Macedo por um preto de balaio no
braço, as suas obras de porta em porta, como melancias ou tangerinas."58 A imagem, que
poderia ser atribuída à maledicência contra os fundadores do romance nacional, tem
fundamento histórico. Informa Manuela Carneiro da Cunha, ao relatar alguns hábitos
comerciais vigentes no Brasil em meados do século 19: "Por preceito, por decoro, para
evitarem o espetáculo tido por indecente que os negros seminus oferecem no centro da
cidade, as mulheres brancas pouco saem de casa. Em contrapartida, todo o comércio vem a
elas: vendedores de flores, de maçãs importadas dos Estados Unidos, de frutas e legumes,
de galinhas e perus, de livros edificantes ou de novelas, de tecidos, gorros de seda, sapatos,
facas, moringas, cristais, porcelanas."59 A associação de novelas e romances ao trabalho
escravo não foi expediente estranho ao francês Paul Martin, o filho, provavelmente o
primeiro editor que houve no Brasil. Rubens Borba de Moraes relata que, para fazer
circular pelo Rio de Janeiro, em 1822, o primeiro catálogo de livros feito no pais, Martin
mandou um moleque distribuí-lo ou pregá-lo nas paredes. 60
A imagem do preto de balaio no braço vem carregada das contradições que estamos
acostumados a reconhecer no Brasil, a começar pela contigüidade entre o romance, produto

58 João do Rio, O Momento Literário. Rio de Janeiro, Paris, H. Garnier, Livreiro-Editor, 1908, p. 326. João
do Rio volta ao assunto em "Os mercadores de livros e a leitura das ruas", texto publicado em 12.2.1906 no
diário carioca Gazeta de Notícias, que dá conta da prosperidade do negócio dos "camelôs de livros", que no
começo dos oitocentos vendiam principalmente as novelas de Carlos Magno: "Há algnns anos, esses
vendedores [de livros] não passavam de meia dúzia de africanos, espaçados preguiçosamente como o João
Brandão na praça do Mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maniacos aos
rapazolas indolentes e aos propagandistas da fé." in JOÃO, do Rio. A alma encantadora das ruas
(organização Raúl Antelo). São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 136-145.
59 Manuela Carneiro da Cunba, "Olhar Escravo, Ser Olhado", in Paulo Cesar de Azevedo; Mauricio
Lissovsky (org.). Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo, Ex Libris,
1988, pp. xxvi-xxvii,grifos meus.
60 Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 3• edição, Brasília : Briquet de Lemos.Livros : Rio de
Janeiro:CasadaPalavra, 1998,pp.l91-192.

33
industrial, manifestação recente e sofisticada da burguesia européia, e o cesto de palha,
produto artesanal fabricado pelo índio e pelo escravo. Escravo que por sua vez estabelece e
personaliza o vínculo entre o escritor - proprietário do mascate cativo e/ou mandante da
venda - e o seu potencial leitor, criando um tipo de íntermediação que ia no sentido
oposto da relação menos personalizada que o romance inaugurava entre escritores e leitores
na Europa. Enquanto aqui o íntermediário trabalhava sob as ordens do seu "dono" -
proprietário também do livro, como era o caso de Alencar - , nas matrizes da produção
romanesca a crescente profissionalização da atividade literária interpunha entre escritor e
leitor uma variedade de agentes, envolvidos com processos de edição, distribuição,
divulgação e comercialização do romance. A condição do negro, por sua vez, coloca em
dúvida a aplicabilidade dos valores burgueses, que são os do romance, à realidade local,
deixando em xeque a pretensa universalidade daqueles valores. A cena ainda provoca
estranheza ao enfiar o romance no mesmo balaio das melancias e tangerinas, associando-o
aos rebentos da exuberante natureza tropical, numa aproximação surpreendente que será
utilizada por Alencar como justificativa para a origínalidade de seu romance, como
veremos mais à frente. Finalmente, o trecho de João do Rio chama a atenção para as
profundas transformações por que passou a relação autor-obra-público entre o momento em
que ele escreve, 1908, e o momento a que se refere, a década de 1840, período que
compreende toda a vida e produção de Machado de Assis.
Retomando a imagem inicial dos carapicus, podemos pensar que ela guarda relação
estrutural com a do negro vendedor de romances, no sentido de estarem ambas marcadas
pelo contraste entre a modernidade dos veículos (o romance e o bonde) e a precariedade do
meio marcado pela escravidão e pela escassez de passageiros e leitores. Dois dos grandes
emblemas do progresso da civilização oitocentista- o romance e o bonde- circulam pelas
ruas da Corte em íncansável pescaria.
Este capítulo trata de como as peculiaridades da relação entre escritor e público, no
Brasil, serão compreendidas pelos escritores ao longo do século 19. Num primeiro
momento, eles atribuem a baixa ressonância dos seus escritos à índiferença e ao desapreço
geral pela literatura, assim como à concorrência desleal da produção estrangeira. Só aos
poucos os homens de letras tomam contato com as condições reais do país e as limitações
colocadas à produção íntelectual pela carência de freguesia. A tomada de consciência sobre

34
a precariedade comunicativa da literatura foi decisiva para o romance brasileiro, que
precisava ajustar o tom importado do romance europeu, voltado para uma massa leitora, às
condições acústicas locais, muito mais modestas.

*****

As incongruências e os resultados pífios das primeiras tentativas de aclimatação do


romance são assuntos de algumas das melhores páginas da crítica e da história literária
produzidas no Brasil. Desde o trabalho pioneiro de Sílvio Romero procura-se definir a
relação entre o romance transportado em balaios e aqueles produzidos nas matrizes
européias, que lhe serviam de inspiração e modelo, enfatizando-se ora o caráter imitativo,
ora a originalidade da ficção produzida no pais. A começar pela defesa da necessidade de
identificação e valorização dos temas nacionais, empreendida por Sílvio Romero, ao exame
da transformação dos assuntos locais em forma literária, feito por Roberto Schwarz em Ao
Vencedor as Batatas, no capítulo "A importação do romance e suas contradições em
Alencar", a constituição de um "romance brasileiro" há mais de um século é problema
recorrente da crítica. No entanto, muito pouco se refletiu sobre as condições peculiares de
circulação dos romances - de que a imagem evocada por João do Rio, com toda sua
estranheza e contradição, é emblemática- e suas conseqüências para a ficção oitocentista.
Sabemos que em suas origens o romance não era apenas o gênero que refletia de
maneira apologética ou crítica os mecanismos de funcionamento da sociedade burguesa e
do liberalismo econômico. Surgido em paises que viviam intensos processos de
urbanização e alfabetização, o romance era também uma forma literária dirigida para o
público burguês, condição da sua existência, sobrevivência e também o seu fim. Ian Watt,
no estudo sobre o surgimento do romance na Inglaterra oitocentista, associa o aparecimento
desse gênero literário ao interesse crescente pela leitura e à modificação da organização do
público leitor. A ampliação das classes médias, que se tornavam mais auto-confiantes e
poderosas, transformava radicalmente a posição social do escritor, que deixava de depender
do patronato da aristocracia para se relacionar com os interesses e capacidades de um
público numeroso e anônimo, comprador de livros e financiador da atividade literária Ao
dirigir-se a um público de amplitude e heterogeneidade até então inéditas, o romancista

35
precisava modular o tom para garantir a comunicação com essa audiência, em grande parte
neófita no mundo das letras e de quem sua sobrevivência dependia. Para Watt, as novas
condições de produção, circulação e consumo da literatura respondem, pelo menos em
parte, à maleabilidade peculiar do romance e a ruptura que ele representa em relação às
formas fixas, que dominavam a produção anterior e pressupunham a homogeneidade dos
repertórios do escritor e do seu leitor.6I Alterações semelhantes às verificadas na Inglaterra
ocorreram na França, principalmente a partir do início do século 19, quando a burguesia se
pôs a ler, criando um novo regime de comunicação entre escritor e público. Como observa
Sartre a respeito da posição social do escritor francês no século 19, mesmo que o escritor
postulasse sua independência e autonomia em relação a qualquer tipo de ideologia,
inclusive a burguesa, era essa a classe - por mais que o escritor a desprezasse - que
viabilizava sua atividade e lhe conferia reconheciment0.62 Além disso, o romance colocava
para a literatura questões de escala de produção e distribuição, que passavam a influir no
processo literário.
Nesse aspecto, a situação brasileira era muito diferente da norte-americana e da
européia. Enquanto em 1878 Inglaterra e França tinhani respectivamente 70% e 77% de
alfabetizados63 , em meados do século 19 os Estados Unidos já eram considerados uma
nação de leitores, com 90% da população branca alfabetizada e um leitorado de livros,
jornais e revistas que já superava o britânico. De 1850 a 1859, 32 titules registraram
vendagem igual ou superior a 225 mil exemplares64 • Já nas duas primeiras décadas do
século 19 escritores como Washington Irving e James Fenimore Cooper viviam

61 Cf. Ian Watt, lhe Rise ofthe Novel, Berl<eley/Los Angeles, University ofCalifomia Press, 1959, p. 35.
62 Erich Auerbach, em Mimesis, faz uma descrição sintética e breve do público francês de literatura na
segunda metade do século 19: "Consistia, em sua maior parte, na burguesia urbana, que havia crescido de
forma impressionante e se tornara, graças à maior divulgação da educação, capaz e sequiosa de ler. Era o
bourgeois, aquele ser cuja estupidez, preguiça mental, enfatuação, mendacidade e covardia foram
repetidamente motivo das mais violentas diatribes por parte dos poetas, escritores, artistas e críticos, desde o
Romantismo." lu Mimesis -A representação da realidade na literatura ocidental, 2' edição revisada, São
Paulo, Editora Perspectiva, 1987.
63 Em 1830, os índices de alfabetização na luglaterra e na França eram respectivavamente de 36% e 56%.
Para mais detalhes, veja-se Lawrence Cremin, American Education: lhe National Experience, 1783-1876,
New York, Harper andRow, 1980. Dados citados por William G. Rowland Jr., op.cit.
64 Incluem-se ai volumes de poenJaS de Robert Browning e Walt Whitman, romances de Dickens (David
Copperfield, Bleak House, Hard Times, Little Dorrit e A Ta/e ofTwo Cities), Hawthome (A Letra
Escarlate, A Casa das Sete Torres) Tbackeray (Pendennis, lhe Newcomes, lhe Virginians), Stowe (A
Cabana do Pai Tomás), Thoreau (Walden ou A Vida no Bosque) e Melville (Moby-Dick). Para mais

36
exclusivamente dos direitos obtidos sobre a vendagem dos seus livros. 65 Não por acaso a
norte-americana Elizabeth Agassiz registrou, em seu Viagem ao Brasil 1865-1866 que
"nada impressiona tanto o estrangeiro como essa ausência de livros nas casas brasileiras". 66
Vão no mesmo sentido as informações de José Veríssirno, que em 1883 refere-se a uma
espécie de fobia à "letra redonda" mesmo entre os segmentos instruídos da população:

Entre nós contam-se as casas, a não ser a de algum médico que tem os seus livros de medicina, e a
de algum advogado que tem os seus livros de direito, que possuam meia dúzia de volumes. E a respeito
de 'homens formados' direi de passagem que, segundo me tém comunicado os livreiros desta capital, são
eles os que menos livros compram. Os doutores parece têm horror à letra redonda. 67

A capital a que se refere V eríssirno é Belém do Pará, mas os dados de todo o país
confirmam a situação descrita. Ao longo de todo o século 19 os alfabetizados não
ultrapassaram os 30% da população brasileira, e não se verificaram alterações de perfil e
dimensão do leitorado semelhantes às que acompanharam a emergência do romance na
França, Inglaterra e Estados Unidos. Em 1872, apenas 18,6% da população livre e 15,7%
da população total, incluindo os escravos, sabiam ler e escrever, segundo dados do
recenseamento; entre a população em idade escolar (6 a 15 anos), que somava 1.902.454
meninos e meninas, apenas 320.749 freqüentavam escolas, ou seja, 16,9%. Já em 1890, a
porcentagem diminuiu: apenas 14,8% sabiam ler e escrever68 • Ainda segundo o censo de
1872, que apurou uma população de quase 10 milhões de habitantes, apenas 12 mil

detalhes, veja-se Frank Luther Mott, Golden multitudes - The story of best sellers in the United States.
New York, The Macmillan Company, 1947.
65 Um best se/ler em geral é definido como um livro cuja vendagem supera, num determinado período de
tempo, o número equivalente a 1% da população do país em que foi laoçado. Nos casos citados acima, o
período considerado é de 10 anos. Veja-se Frank Luther Mott, op. cit. Sobre o aumento do número de
jornais em circulação nos EUA no século 19, de 852 em 1828 para 4051 em 1860, vide Neal Gabler, Vida,
o filme- Como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 35.
66 Citado por Laurence Hallewell, op. cit., p. 601.
67 José Veríssimo, "Literatura e homens de letras no Brasil" (1883), in Estudos Brasileiros, I' série,
Belém, 1889, p. 133.
6 8 A população total apurada em 1890 era de 14.333.915. Dos 8.419.672 homens e mulheres livres, havia
1.012.097 homens que sabiam ler e escrever e 3.306.602 analfabetos; entre as mulheres eram 550.981
instruídas e 3.549.992 analfabetas; entre os escravos, que somavam 1.510.806 indivíduos, havia 958
homens e 445 mulheres que sabiam ler e escrever e 804.212 homens e 705.191 mulheres analfubetas. Os
dados do recenseamento de 1890 estão citados em José Veríssimo, "Das Condições da Produção Literàría
no Brasil", in Estudos da Literatura Brasileira (3' série), Belo Horizonte/São Paulo: Editora
Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1977, pp. 31-48 Os dados do censo de 1872 constam do
"Quadros Geraes - Recenseamento da população do lmperío do Brazil a que se procedeu no dia 1o de
agosto de 1872." Brazil, Directoría Geral de Estatistica, 1876.

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freqüentavam a educação secundária e havia 8 mil bacharéis no país. Esses dados indicam
o leitorado potencial, o que significa que o número de pessoas efetivamente capazes de ler
e escrever era certamente muito menor69.
Certamente muito menor era o número de leitores de literatura, o que fica indicado
pelas tiragens. Os livros saíam em edições de mil exemplares, e apenas os títulos muito
bem-sucedidos chegavam à segunda edição, que podia demorar dez, vinte ou trinta anos.
Entre eles constava as Memórias de um Sargento de Milícias, que teve três edições
esgotadas "num período de vinte e poucos anos", segundo o redator da Imprensa
Industrial, que em 1876 observava: "Em um país como o nosso onde poucos lêem e aínda
menos compram livros é a maís evidente prova do quanto esse belo romance é conhecido e
apreciado."70 Exceção das exceções nesse estado de coisas, vàlido até mesmo para
medalhões como José de Alencar e Machado de Assis71, parece ter sido A Moreninha, de
Macedo, que teve a primeira e a segunda edições lançadas em anos consecutivos.
As pequenas tiragens, a lentidão do consumo dos livros e as limitações do público
leitor não são exclusividade do século 19 e, em proporções diferentes, mantém-se aínda
hoje. Em 1980, Laurence Hallewell considera que um romance brasileiro que tenha dez mil
exemplares vendidos possa "pretender o status de best seller". 72

69 Os indicadores do potencial de leitura de uma população em geral são calculados a partir do índice de
alfabetização e grau de escolatização. Joim T. Guthrie; Mary Seifert, Measuring readership: rationale and
technique. Paris, Unesco, 1984.
70 Imprensa industrial, 10.12.1876, p. 650. O comentário foi feito a propósito do lançamento da edição de
Dias da Silva, que aparentemente era a quarta, e não a terceira como publicou o jornal.
71 Tomadas isoladamente, as edições de 1.000 exemplares não são suficientes para caracterizar a pouca
penetração de textos literários entre o público brasileiro. Como observa L. Hallewell, essas tiragens eram
maiores que as de outras nações latíno-americanas, como o México, onde as primeiras edições raramente
superavam os 500 exemplares e estavam dentro dos padrões europeus contemporâneos, já que em Paris as
edições de 500 exemplares eram comuns mesmo para os títulos dos melhores romancistas. No entanto, os
dados das tiragens combínados com a velocidade do consumo das prhneiras edições, o nínnero total de títulos
publicados anualmente no Brasil e os altos preços dos livros são índicadores da pouca popularidade do texto
literário no Brasil oitocentista. F. Conceição, no artigo "Os livros e a tarifa das alf'andegas", publicado em
1879, descreve assim a situação das edições de livros no Brasil: "Todos sabem que quanto maior elle [o
nínnero de exemplares] fôr, até certo ponto, menor será o preço do custo, e por consequência menos o
consmnidor pagará por cada exemplar. A estereotypia auxilia o editor estrangeiro naquellas obras, que tem de
ser reproduzidas em futuras edições, em tempos mais ou menos certos, visto que a grande exportação para
todos os paizes do globo lhe poporciona consumo imediato. Entre nós as causas se passam de modo
differente. As edições são ínsignificantes, raramente excedem a I 000 exemplares, o que torna o livro mais
caro 50 por cento. Com pequenas excepções esse mesmo limitado nínnero de exemplares só em um prazo
muito longo é consmnido, tendo acontecido que, obras importantíssimas, até de ínteresse local em I Oannos
estejam aínda em sua prhneira edição!" ín Revista Brasileira, Tomo I, 15.9.1879, pp. 607-610.
72 Laurence Hallewell. op. cit., p. 606.

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Voltando ao século 19, há de se considerar a divulgação pelas leituras em voz alta,
que atingiam numeroso público ouvinte certamente a ser considerado entre os destinatários
dos romances. Relatos da leitura coletiva para pequenos auditórios domésticos são muito
freqüentes na ficção oitocentista, incluídos os contos e romances de Machado de Assis. A
memória mais célebre dessas leituras caseiras deve-se a José de Alencar, que no ensaio
"Como e Porque Sou Romancista" relembra os serões em sua casa, onde novelas e
romances eram lidos em voz alta para um audítório participante. Embora essas sessões
literárias contribuissem para aumentar o alcance da "literatura nacional", é preciso cautela
para não superestimar seu poder de ampliação do público do romance. Vale lembrar que a
residência do Senador Alencar, pai do romancista e personagem insigne do império, era um
caso particularissimo entre os fogos (residências na nomenclatura utilizada pelo
recenseamento) do Brasil oitocentista. Muito mais provável de se generalizar sem erro é o
"horror à letra redonda" referido por Veríssimo. 73
Apesar de todas as condições adversas e dessemelhantes das verificadas nas
matrizes européias, o romance floresceu no Brasil. As publicações d'O Filho do Pescador,
em 1843, e d'A Moreninha, em 1844, deram início a uma produção que em menos de
quatro décadas já incluia uma respeitável quantidade de livros que traziam "Romance
Brasileiro" estampado sob seus títulos, além de algumas obras-primas de Machado de
Assis. 74 No entanto, isso não ocorria sem que os escritores manifestassem desconforto
diante do efeito quase nulo produzido por suas obras. Num pais onde a grande maioria era
iletrada, as referências culturais da elite estavam do outro lado do oceano e o acesso à
informação era dificultoso e restrito a muito poucos, não surpreende que os livros fossem
lançados ao público como pedras ao poço, fato de que os escritores desde cedo se
ressentiram.

73 Os textos de ficção têm um alto índice de circulação entre amigos e conhecidos, e calcula-se que os
números relativos à leitura de um livro de ficção podem ser quatro ou cínco vezes maiores do que o número
de exemplares vendidos somados aos empréstimos em biblioteca. Para mais detalhes, veja-se Jobn T.
Guthrie; Mary Seifert, op. cit.
74 A discussão sobre a origem do romance brasileiro ocupou muitas páginas e alimentou várias disputas entre
bistoriadores da literatura, bavendo quem a localizasse aínda no Brasil colônia. No entanto, mais
recentemente a primazia do romance tem se dividido entre as obras de Teixeira e Souza e Joaquim Manuel de
Macedo. Para uma exposição completa sobre o assunto ver o capitulo "O Problema das Origens do Romance

39
O isolamento do escritor
A dificuldade de atingir o público foi percebida e registrada já pelos primeiros
"escritores brasileiros", como observa José Veríssimo em sua História da Literatura
Brasileira:

Já em prosa, já em versos, todos eles lastimavam da pouca estima e mesquinha recompensa do gênio
que, parece, acreditavam ter e do desapreço do seu trabalho literário. Não tinham aliás razão. Era
inconsiderado pretender que um povo em suma inculto, e de mais a mais ocupado com a questão
política, a organização da monarquia, a manutenção da ordem, de 1817 a 1848 alterada por todo o país
cuidasse de seus poetas e literatos. Não é, todavia, exato que, apesar disso, os descurasse por completo.
O povo amava esses seus patrícios talentosos e sabidos, revia-se gostosamente nele, acatava
desvanecido os louvores que mereciam aos que acreditava mais capazes de os apreciar. Supria-lhe esta
capacidade o sentimento patriótico restante dos tempos ainda próximos da Independência, e a ingênua
vaidade nacional com ela nascida. ( ... )A descoriformidade entre aqueles nossos primeiros homens de
letras e o meio, essa, porém, era real, continuou e acaso tem aumentado com o tempo. 75

De fato, Gonçalves de Magalhães estréia em 1832 com o volume Poesias dirigindo-


se ao leitor para lamentar o desprezo a que está condenada a arte e eximir-se das possíveis
acusações de exagero "quando é manifesto o esquecimento em que estão sepultadas as
obras dos nosso melhores Poetas". Francisco de Sales Tôrres-Homem, num artigo
publicado em 1836 na "Revista Brasiliense" a propósito de Suspiros Poéticos e Saudades,
compara: "Entre nós quantos talentos passam incógnitos na vida, como êsses rios sem
nome nas suas solidões!"76 Ainda mais dramáticas são as palavras de Gonçalves Dias no
prólogo da primeira edição dos Primeiros Cantos, de 1847, em que oferece seus versos ao
julgamento do público, dizendo que "tauto melhor se êle o despreza, porque o Autor
interessa em acabar com essa vida desgraçada, que se diz de Poeta"77 • Num registro mais
doméstico, Fagundes Varelajustifica sua decisão de publicar Vozes da América, em 1864,

Brasileiro" e "Iniciadores Definitivos", in: José Aderaldo Castello,Aspectos do Romance Brasileiro. Rio de
Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação (coleção 'Vida Brasileira', 18), 1960.
75 José Verissimo, História da Literatura Brasileira, pp. 140-141. Grifo meu.
76 Domingos José Gonçalves de Magalhães, Poesias e Suspiros Poéticos e Saudades, in Frederico José
Silva Ramos (org.). Grandes Poetas Românticos do Brasil, São Paulo, Edições LEP Ltda., 1949, pp. 2 e
72.
77 Gonçalves Dias, Primeiros Cantos; in Frederico José Silva Ramos (org.), op. cit., pp. 347-388.

40
pelas instâncias dos amigos e também porque, segundo ele, dá no mesmo publicar os
poemas ou deixá-los se perder "ao correr da vassoura pela sala"78 •
O que Veríssimo a princípio atribui a choramingas de homens românticos,
acabrunhados com a indiferença dos seus patrícios às coisas literárias, e depois relativiza
pela desconforrnidade entre os escritores e o meio, resultava também de um
desconhecimento generalizado, na primeira metade do século 19, da situação do país e das
condições concretas para a produção e circulação de bens culturaís. Testemunho precioso
dessa ignorância, por parte até mesmo da intelligentsia, é o discurso proferido por Januário
da Cunha Barbosa em 1839 por ocasião da fundação do Instituto Historico e Geographico
do Brazil, instituição que tinha por objetivo principal "salvar da indigna obscuridade, em
que jaziam até hoje, muitas memorias da patria, e os nomes de seus melhores filhos" além
de assinalar "com a possível exactidão, o assento de suas cidades e villas maís notaveis, a
corrente de seus caudalosos rios, a área de seus campos, a direcção de suas serras, e a
capacidade de seus innumeraveis portos". 79 O texto de Cunha Barbosa revela muito da
noção do país dominante à época, marcada por um vago nacionalismo romântico, flagrante
no emprego abundante de substantivos abstratos, adjetivos hiperbólicos e uma profusão de
pronomes indefinidos.
Para a produção literária, o desconhecimento real e profundo, associado ao
idealismo romântico e aos sonhos de glória e prestigio importados da França, resultava no
que Sílvio Romero definiu em 1897 como "o peculiar e indefinível estado da alma dos
talentos sem meio adequado, das inteligências condenadas a labutar no vácuo, sem público,
sem o galardão condigno."80 Em outras palavras, uma enorme frustração, que transpira dos
textos de Alencar no final de sua carreira e será registrada por Machado de Assis na década
de 1860 quando, em carta a Alencar, atribui o descaso pela literatura à "conspiração da

78 Luís Nicolau Fagundes V areia, Vozes da América, in Frederico José Silva Ramos (org.), São Pauío, pp.
833-866.
79 "Discurso." (proferido por Januario da Cunha Barbosa, 1o secretário perpétuo do Instituto, por ocasião
de sua fundação em 1839) in Revista do Instituto Historico e Geographico do Brazil, 2' edição, tomo I. Rio
de Janeiro, Typographia Universal de Laemmert, 1856, pp. 10-21.
80 Silvio Romero. Machado de Assis- Estudo Comparativo de Literatura Brasileira. Campinas, Editora da
Unicamp, 1992, p. 188.

41
indiferença"81 , termo mais tarde reformado pelo autor d'O Guarani para "nova conspiração
do despeito que veio substituir a antiga conspiração do silêncio e da indiferença. "82
Reclamações sobre a negligência e o rebaixamento do gosto público não são
exclusividade dos escritores brasileiros oitocentistas e podem ser ouvidas ainda hoje, quase
nos mesmos termos, de um escritor de qualquer nacionalidade. No entanto, as queixas de
que tratamos aqui se referem a uma situação que então era completamente nova, tanto na
Europa quanto no Brasil, e que correspondia à constituição do público leitor como fato
social e como problema.&3
No Brasil, a frustração dos escritores produz declarações dramáticas ao longo de
todo o século 19, embora a explicação pela indiferença ou pelo despeito do público, tão
repetida na primeira metade dos oitocentos, já não se sustente nas duas últimas décadas.
Os desabafos de Aluísio Azevedo, datados das décadas de 1880 e 1890, quando o escritor
maranhense já estava afastado da vida literária, têm outro tom, e merecem leitura:

... E é isto a vida literária! Futuro! Que futuro pode ter uma obra escrita na areia da praia, como os
cânticos de Anchieta? Tivesse eu a certeza de que uma só de minhas páginas viveria e ficaria contente ...
Mas não se vive em túmulo e o português... Não vale a pena. Anchieta ao menos tinha um leitor- o
mar. E eu? 84

Escrever para quê? para quem? Não temos público. Uma edição de dois mil exemplares leva anos
para esgotar-se e o nosso pensamento, por mais original e ousado que seja, jamais se livrará no espaço
amplo: voeja entre as grades desta gaiola estreita, que é a celebrada língua dos nossos maiores. 85

As explicações para a falta de apelo comercial do livro não se referem mais ao


indiferentismo, e sim à carência de leitores e à exigüidade de público para língua
portuguesa, que não escapa às "pancadas de amor" de Azevedo, cuja obra está entre as de
maior penetração entre o público brasileiro no século 19. Vale lembrar que O Mulato foi

81Machado de Assis, em resposta a carta de José de Alencar de 1868. Obra Completa, vol. 3, p. 900.
82 José de Alencar. "Como e Porque Sou Romancista", prefácio a O Guarani, Rio de Janeiro, José Olympio,
1953, p. 71.
83 "O termo público leitor (reading public) foi empregado pela primeira vez no inicio do século 19 para
referir-se a várias mudanças sociais qoe então ocorriam: o aumento do número de leitores e de novos
formatos, tais como revistas e jornais, para atendê-los; o rápido aumento da produção anual de livros; e a
criação de novos métodos para citculação de obras reimpressas e do encalhe de novos títulos." William G.
RowlandJr., op.cit., p.l7. Tradução minha.
84 Citado por Brito Broca, Papéis de Alceste. Campínas, São Paulo; Editora da Unicamp, 1991, p. 164.
85 Cf. "Alnisio Azevedo", folbeto do Ministério da Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, !995, p. 61.

42
um dos raros casos de repercussão, na Corte, de um fato literário gerado na província;
publicado em São Luís em 1881, o romance anticlerical provocou maís reação e
escândalo no Rio de Janeiro do que as Memórias Póstumas de Brás Cubas, saídas em
livro no mesmo ano. A singularidade da situação de Azevedo foi notada por Valentim
Magalhães, que em 1896 o apontou como talvez o único escritor brasileiro "que ganha o
pão exclusivamente à custa da sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão: as letras no
Brasil aínda não dão para a manteiga". 86 Em realidade, a atividade literária não garantiu o
sustento nem de Azevedo nem de qualquer outro escritor brasileiro até pelo menos 1930,
conforme demonstra o estndo de Macbado Neto, que afirma não ter havido sequer um
escritor brasileiro que pudesse viver exclusivamente do seu ofício entre 1870 e 1930.
Todos foram obrigados a combinar a literatura com uma ou maís atividades. Azevedo
acabou abandonando completamente as letras por um posto diplomático. 87
A diferença maís notável entre as explicações de Azevedo, já no final dos
oitocentos, e aquelas formuladas tanto pelos primeiros escritores românticos, quanto por
Alencar e pelo Machado de Assis em início de carreira, é o abandono da reclamação de
indiferença e o reconhecimento do público minguado. A regularização da produção
editorial, a partir da década de 1870, contribuira para evidenciar a pequena demanda por
livros, e o que antes era atribuído à prevenções quase que pessoaís começa a receber novas
explicações. Aos poucos, percebe-se que além da modesta dimensão, o leitorado era
formado por grupos pequenos e homogêneos, que produziam quase que para consumo
próprio. Sílvio Romero, já às vésperas do século 20, descreve a situação: "uma pequena
elite intelectnal separou-se notavelmente do grosso da população(... ) e chegamos hoje ao
ponto de termos uma literatura e uma política exóticas, que vivem e procriam em uma
estufa, sem relações com o ambiente e a temperatura exterior''88 • O critico nota com
propriedade a relação frágil entre o "grupo minúsculo" dos literatos e o "povo em geral,
analfabeto e descrente", mas identifica o principal sintoma da situação que critica na
produção de Machado de Assis que, com seu "humorismo de almanaque" e seu
"pessimismo de fancaria", colocava-se na contramão do que Romero defendia: que a

86 Cf. Valentim Magalhães, A Literatura Brasileira 1870-1895: notícia crítica dos principaes escriptores,
documentada com escolhidas excerptos... Lisboa, Livraria de A.M. Pereita, 1896.
87 Cf. Machado Neto, op. cit., pp. 83-84.
88 Sílvio Romero, op. cit., p. 154.

43
literatura e a crítica refletissem a penúria do "estado espiritual da maioria de nossas
gentes"89 • Ataque injusto contra o escritor que tratou com profundidade do insulamento e
precariedade da produção literária no Brasil, como mostrarei à frente. Injustiça que não
surpreende, pois são conhecidos o destempero e a obnubilação da argúcia de Romero
quando se trata do autor das Memórias Póstumas.
José Verissimo, crítico de temperamento muito mais equilibrado, faz um
diagnóstico semelhante da produção literária no país:

Tem sido sempre aqui a literatura uma coisa à parte na vida nacional. Feita principal se não
exclusivamente por moços despreocupados da vida prática, que sacrificavam a ingênuas ambições de
glória ou à vaidade de nomeada, nunca assegurou aos seus cultores posições ou proveitos, como não
constituiu jamais profissão ou carreira.90

Escrevendo no início do século 20, num momento em que a atividade literária


ganha especialização e deixa de se confundir com a militância política, Veríssimo
reivindica a profissionalização das Letras, mas recorre à aritmética para mostrar a
dificulade da situação:

Essencialmente, o caso se resume em ser aqui, o comércio literário, a oferta extraordinàriamente


maior que a procura. Há quase tantos escritores como leitores, se não mais. Em pais de instrução
escassa e mofina e cultura sempre incipiente, onde 80% da população é analfabeto e o resto não lê ou lê
sómente jornais ou línguas estrangeiras, há nos vinte por cento restantes, pelo menos, dez que são
literatos, dos quais 6 112 ou 7 são poetas. Assim, não lhes sobram leitores, e êles se têm de ler a si
mesmos ou entre si. O que se chama o público, êsse não os lê. Passa-se então na alma dêsses
romancistas e poetas em potência uma sombria tragédia.91

O aparente exagero do crítico e historiador é relativizado por números curiosos sobre a


ocupação profissional dos habitantes do Rio de Janeiro em 1870. Os 235.381 habitantes,
compostos de 185.289 pessoas livres e 50.092 escravos, estavam divididos em 424
eclesiásticos, 7.646 militares, 3.066 empregados públicos, 2.806 indivíduos que seguiam
profissões literárias, 21.583 comerciantes, 245 capitalistas, 1.522 proprietários, 13.560
lavradores, 1.393 pescadores, 1.603 marítimos, 44.381 indivíduos empregados na indústria,
3.275 em serviços de agência, 53.160 domésticos e 80.717 habitantes cuja profissão não foi

89 Idem.
90 José Veríssimo, op. cit., p. 223.
91 José Verissimo, apud AL. Machado Neto, op. cit., p. 118.

44
possível determinar. 92 Ainda que as profissões literárias incluíssem jornalistas, escreventes,
secretários e toda a gente que escreve, 2.806 é um número alentado se considerarmos que
os livros, na melhor das hipóteses lançados em edições de mil e quinhentos exemplares,
demoravam anos para se esgotar. Isso faz supor que nem aqueles que escreviam
profissionalmente prestigiavam os colegas da pena com a compra de um exemplar. Ou que
talvez houvesse mais escritores que leitores, disparate não de todo inverossímil em se
tratando do Brasil.
O isolamento do escritor e a pouca repercussão da produção literária, constatadas
por Sílvio Romero e José Verissimo em observações esparsas, constituem uma das balizas
da História da Literatura Brasileira, de Nelson Werneck Sodré, que trata das condições de
produção e circulação da criação literária:

Está claro que eram grandes [na transição do século 19 para o 20] as dificuldades que se
apresentavam ao trabalho intelectual, e particularmente à criação literária. Tais dificuldades se
traduziam, inclusive, na ausência da indústria do livro. O mercado brasileiro era dominado pelo produto
francês, já que nesse idioma se difundia a cultura literária e por isso os movimentos ocorridos na França
encontravam aqui repercussão, com a rapidez que o tempo permitia, e com a penetração que o reduzido
número de iniciados possibilitava. O livro português, em seguida, eocontrou no Brasil o seu mercado
por excelência, sem excluir o primeiro. E foi a atividade editorial lusa que possibilitou aos brasileiros
um certo desafôgo, nesse campo. Mas há que firmar a idéia de que não existia atividade editorial porque
não havia público capaz de permitir a sua criação, e a divisão de trabalho, na sociedade brasileira, não
chegaria à etapa de criar e diferenciar tal atividade. O produtor estrangeiro atendia perfeitamente as
necessidades do mercado 93

A relação entre o livro estrangeiro e a pobreza da indústria editorial no Brasil


ganha explicação de Sodré, fundamentada em dados da produção da época, que mostram
que as tiragens de títulos estrangeiros não eram superiores às de obras nacionais. Ao longo
de todo o século 19, no entanto, a literatura estrangeira aparecia como uma das culpadas
pela queda da produção local no vácuo do indiferentismo. Assim, José de Alencar, na
polêmica que manteve no Jornal do Comércio sobre sua peça teatral O Jesuíta, vai
escrever em setembro de 1875: "( ... ) os brasileiros da corte não se comovem com essas
futilidades patrióticas; são positivos e sobretudo cosmopolitas, gostam do estrangeiro; do

92 "Resumo histôrico dos inquêritos censitários realizados no Brasil: Recenseamento do Brasil, 1920". São
Paulo, instituto de Pesquisas Econômicas, 1986, p. 197.
93 Nelson Werneck Sodré. op.cit., p. 433.

45
francês, do italiano, do espanhol, do árabe, de tudo, menos do que é nacional. " 94 Vinte anos
depois, em 1895, Adolpho Caminha baterá na mesma tecla ao se referir à fria acolhida aos
livros nacionais: "A mocidade brasileira não lê obras nacionaes; agarra-se no romance
estrangeiro com um entusiasmo verdadeiramente lamentàvel."95 Como se nota, o fantasma
da concorrência desleal do produto estrangeiro, que volta e meia ressurge no cenário
nacional, tem raízes profundas na cultura brasileira
A tendência ao superdimensionamento do público leitor brasileiro era
compartilhado do outro lado do Atlântico, como sugere José Feliciano de Castilho em texto
de 1848 que alertava seus conterrâneos portugueses para a mistificação em torno do
leitorado brasileiro. Castilho, no entanto, reconhece a importância desse leitorado para o
livro português:

A leitura neste lmperio não é tão extensa como nós ahi julgamos, nem pôde ser avaliada por prismas
enganadores. Todavia é para os nossos homens de letras um mercado importante, e que, por varias
causas, se pôde considerar, como estando de facto, ha muito fechado para elles.96

A julgar pelo catálogo da Livraria Acadêmica, de propriedade de Louis Garraux e


ponto de referência de um dos circules de leitura mais dinâmicos do país, composto pelos
estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, havia um certo equilíbrio entre os
lançamentos de ficção traduzida e a literatura em português. O catálogo de 1865 trazia 473
titu!os na seção "Obras de literatura, história, novellas, romaoces illustrados", dos quaís
215 eram traduções e 258 eram obras originalmente escritas em português. Em 1883, a
mesma firma publica um catàlogo em que 250 pàginas são dedicadas a material estrangeiro
e 192 a material em português. 97 Ainda que, entre as obras escritas em português, muitas
delas fossem de origem portuguesa, é preciso considerar que a produção de obras
brasileiras era consideravelmente menor que a de obras portuguesas, francesas ou inglesas,
fato aliàs apontado por Caminha: "O algarismo anual das nossas produções literárias é de
um cômico impagável. Enquanto Paris recebe por dia cem, duzentas obras de escritores

94 Afrânio Coutinho, A Polêmica Alencar-Nabuco, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965, p. 24


95 Adolpho Caminha, Cartas Litterarias, Rio de Janeiro, Aldina, 1895.
96 Trecho de carta de José F eliciano de Castilho enviada a Portugal em 30.3 .1848. Reproduzida na Revista
Brazi/eira, tomo VIII, 15.6.1881, p. 478.
97 Dados citados por LaurenceHaJiewell, op. cit., pp. 227-230.

46
franceses, das quais 20pc98 podem ser consideradas boas e SOpc excelentes, nós ...
produzimos anualmente 50 ou 100 das quais dez sofríveis e cinco boas..." 99 A
culpabilização da presença da literatura estrangeira e de uma suposta preferência do
público pelo que vinha de fora obscurecia a verdadeira raiz do problema, que é aquela
mencionada por Sodré. O que está por trás das queixas de Alencar e Caminha, que se
referem ao público como indolente, é o fato de as obras estrangeiras abocanharem parte
considerável do minguado público da literatura, diminuindo ainda ruais o mercado
potencial para a pequena produção nacional.
A preferência pelo livro estrangeiro de segunda linha, de autores como Paul de
Kock, Pérez Escrich e Ponson du Terrail, rendeu outros adjetivos pouco lisonjeiros aos
leitores, de gosto muitas vezes qualificado como anacrônico. Alencar, em 1875, declara-se
"de sobra convencido que a platéia fluminense estava em anacrouismo de um século com
as idéias do escritor"100 e defende que cabe ao escritor brasileiro atualizar o gosto dos seus
conterrâneos. As mesmas questões sobre o anacronismo do gosto do público são
levantadas, por uma ótica diferente, por Aluisio Azevedo num trecho do seu folhetim, Os
Mistérios da Tijuca, em 1891:

No Brasil [... ] os leitores estão em 1820, em pleno romantismo francês, querem o enredo, a ação, o
movimento; os críticos porém acompanham a evolução do romance moderno e exigem que o romancista
siga as pegadas de Zola e Daudet. Ponson du Terrail é o ideal daqueles; para estes Flaubert é o gtande
mestre. A qual dos dois grupos se deve atender? Ao de leitores ou ao de críticos?
Estes decretam, mas aqueles sustentam. Os romances não se escrevem para a critica, escrevem-se
para o público, para o grosso público, que é o que paga. 101

O grosso público, aliás, pagava caro por suas leituras ao longo de todo o século 19 e
continuaria a fazê-lo durante o século 20 até hoje, quando o preço do livro no Brasil se
mantém muito acima do praticado na França, lnglaterra, Portugal e Estados Unidos. No
mesmo catálogo da Livraria Acadêmica citado acima, os livros da seção de "Poesias,
theatro, poetas nacionais e estrangeiros", que incluia obras de Scott, Dumas, Sue e Paul de
Cock, custavam em 1865 entre 500 e cinco mil réis, quantias equivalentes a algo entre 27

98 '"Pc" é abreviatura para '"por cento".


99 Adolpho Caminha, op. cit.
100 Afrânio Coutinho, op. cit., pp. 27-28.
101 Aluísio Azevedo, Os Mistérios da Tijuca, cap. LXI. Citado por MEYER, Marlyse. Folhetim- Uma
história. São Pauío, Companhia das Letras, 1996, p. 306.

47
centavos de dólar e US$ 2, 75.1°2 Para efeito de comparação, nos EUA já a partir da década
de 1840 muitos livros novos eram comercializados a preços que variavam de 6 Y. centavos
de dólar a 37 Yz centavos de dólar, dependendo do número de páginas e do requinte da
edição.103
Retomando ao texto de Aluisio Azevedo, seus dilemas indicam modificações na
posição do escritor diante do público leitor. Uma novidade é a referência à produção
literária como atividade também comercial, e as cogitações sobre a necessidade de modular
a obra em função das expectativas do público, algo fora de cogitação para Alencar e outros
escritores românticos. Também aparece como novidade a especialização do leitorado,
dividido entre critica e público, grupos aos quais se atribuem abordagens específicas em
relação às obras. No primeiro caso, a noção de que o crítico não lê, mas "decreta", sugere
que esse grupo seja formado por uma minoria que detém muito poder e é apresentada como
potencial inimiga do artista, forçado a se adaptar ao gosto duvidoso do "homem comum"
que, embora também possa se revelar inimigo do escritor, é quem no final das contas
sustenta sua atividade pela compra do livro. O drama de Aluisio Azevedo, dividido entre a
"instrução" da critica e a "ignorância" do grosso público, é o do escritor que, em vias de
profissionalização e forçado a redefinir seu papel e sua atitude em relação ao leitorado
existente, coloca-se num lugar à parte.
É interessante notar que o escritor abre um parêntese num texto ficcional que por
meio do título faz referência aberta aos Mistérios de Paris, de Eugéne Sue- paradigma
das narrativas baseadas no emedo, na ação e no movimento - para criticar justamente
aquilo que ele está imitando. Sem qualquer cerimônia, entrega gato depois de anunciá-lo
como lebre, apresentando um folhetim aparentemente conformado às preferências do leitor-
comprador para escarnecer do seu gosto atrasado e inocular-lhe o gosto pelo romance
moderno:

É preciso ir dando a cousa em pequenas doses [... ] Um pouco de enredo de vez em quando, uma ou
outra situação dramática [... ] Depois, as doses de romantismo irão graduaimente diminuindo, enquanto
as de naturalismo irão se desenvolvendo; até que, um belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja
completamente habituado ao romance de pura observação e estudo de caracteres. 104

102 Cf. Laurence Hallewell, op. cit., pp. 226-230.


103 Cf. Frank Lutber Mott, op. cit. p. 77.
104 ApudMarlyseMeyer, op. cit., p. 307.

48
Embora consciente da discrepância entre a forma ficcional que adota e o conteúdo
que quer inserir nessa forma :ficcional, a atitude de Aluísio Azevedo é reveladora da
inde:fiuíção de fronteiras na produção cultural do século 19, em que o folhetim, veiculado
nos rodapés de jornais e revistas, abrigava desde a literatura artística até a produção mais
ligeira, inspirada na ficção popular européia. los A falta de público e a pouca especialização
do trabalho intelectual faziam com que o escritor brasileiro do século 19 desempenhasse
simultaneamente papéis que na matriz estavam distribuídos entre vários escritores. Assim,
o escritor brasileiro via de regra era também crítico e homem de teatro, e sua produção
englobava desde o panfletarismo até a pesquísa estilística. Como seu leitorado estava
dividido entre o "grosso público" e a crítica, e nenhum desses grupos era suficientemente
numeroso para sustentar uma produção literária, o escritor não podia se dar ao luxo de
descartar nem um nem outro, ainda que o trecho revele desprezo pela literatura de apelo
mais popular. O resultado é a postura desabusadamente cínica de Aluísio Azevedo ao
distribuir piscadelas a gregos e troianos. Por um lado, alicia os compradores de livros ao
adotar um formato ficcional que lhes é tão caro; por outro, em "pequenas dissertações"
como as do trecho acima, dirige-se ao leitor "qualificado", que compactua com ele dos
preceitos "modernos" do naturalismo, como a pedir-lhe desculpas pelo embuste. Tudo se
justifica pela posição que o escritor se arroga: a de reformador do gosto ficcional atrasado
de grande parte do público. O que parece indicar não só a insatisfação do escritor com a
degradação do gosto, mas também a dificuldade de se identificar e atender às preferências
de um público relativamente ampliado e desconhecido. O dado novo é a percepção da
existência de um grupo de leitores virtuais que extrapolava os círculos especializados e
semi-especializados da crítica e incluía o "grosso público" dos compradores de livros. Ou
seja, havia público, mas ele era diminuto e precisava ser disputado.
O público minguado criava outra situação peculiar para o romance brasileiro em
comparação com o que ocorria na Europa. Enquanto lá pela primeira vez se constituía um

105 Essa indefinição de fronteiras não é exclusividade brasileira. Como observa Marlyse Meyer, a corte
"iletrada" de Napoleão Ili colocava no mesmo plano Flaubert e Ponson du Terrail. Mas, por outro lado,
havia na França alguma distinção entre os campos, uma vez que havia um "grosso J?Úblico francês" para a
literatura ligeira, e os escritores famosos de folhetim, como Xavier de Montépin e Emile Richebourg,
sonhavam pertencer à Société des Gens de Lettre, da qual participavam os "verdadeiros escritores". Cf.
Marlyse Meyer, op. cit.

49
público heterogêneo para a produção literária, no Brasil a produção chegava a círculos
restritos e pequenos, compostos por gente próxima do escritor, criando uma forte
personalização da relação entre autor e público. A grande maioria dos intelecutais,
independentemente de sua origem, escrevia para os jornais ou revistas financiados pelas
oligarquias e publicavam livros "que se destinavam a um público leitor cujos limites não
ultrapassavam muito os da oligarquia ou dos grupos urbanos que compunham sua
clientela"106. Muitos livros eram financiados com recursos dos próprios escritores,
membros da elite, ou sob os auspícios diretos do Imperador, que "bafejava-os com o seu
aplauso e com o seu apoio, que era uma forma de disfarçar o desapreço geral".107
O isolamento do escritor em relação ao seu público e sua recusa às demandas e
peculiaridades do mercado faziam parte da concepção romântica de autoria. Sobre a
posição social do escritor francês no século 19, escreve Sartre:

É a burguesia que o lê, e só ela que o sustenta e que decide quanto à sua glória. É em vão que ele [o
escritor] fmge recuar para considerá-la em conjunto: para julgá-la, seria necessário em primeiro lugar
que ele saísse de dentro dela, e não há outra maneira de sair se não experimentando os interesses e a
maneira de viver de uma outra classe. Como ele não se decide a fazer isso, vive na contradição e na má-
fé, pois sabe, e ao mesmo tempo não quer saber, para quem escreve. De bom grado fala da sua solidão
e, em vez de assumir o público que escolheu dissimuladamente, inventa que o escritor escreve só para si
mesmo ou para Deus( ... ) 108

Essa postura solitária, segundo Sartre dissimulada pelos europeus, foi largamente
adotada pelos escritores brasileiros. Mas aqui a solidão do artista não servia para falsear a
relação que o escritor efetivamente estabelecia com um público burguês; pelo contrário,
mascarava a escassez desse público, uma vez que século 19 afora e século 20 adentro mal
havia quórurn, em qualquer segmento da sociedade brasileira, para dar autonomia à
produção literária. O que na Europa aparecia como artificio retórico - e na opinião de
Sartre escondia até intenções pouco nobres - , entre nós indicava, ainda que
inadvertidamente, o afastamento real entre escritor e público, e também o desconhecimento
generalizado, mesmo entre os escritores, da realidade circundante.

106 Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República: Momentos Decisivos, 7' edição, São Paulo,
Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 45.
107 Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 212.

50
*****

Recapitulando: a percepção do público leitor como questão problemática atravessa


o século 19 brasileiro, embora as explicações para a pequena circulação e repercussão da
literatura nacional se transformem muito nesse período. Embora os problemas
diagnosticados por Alencar, na década de 1860, e por Azevedo, na década de 1880, fossem
muito semelhantes, há diferença no modo como esses escritores, emblemáticos de suas
gerações, explicavam as dificuldades e se referiram ao público leitor. Num primeiro
momento, supõe-se a existência de um público numeroso, mas caprichoso e indolente,
como acreditavam Alencar e os primeiros românticos; num segundo momento, a pouca
repercussão da literatura é associada à exigüidade do público leitor; num terceiro momento,
esse público leitor passa a ser encarado como potencial consumidor de literatura, uma
mudança de percepção que tem a ver com a organização da produção e comercialização
dos livros.
O próximo capítulo estuda como a especialização e profissionalização da atividade
literária, verificadas sobretudo nas três últimas décadas do século 19, contribui para a
formulação de explicações maís concretas para a baíxa repercussão da produção literária
local, explicações baseadas na constatação da falta de um leitorado numeroso de panfletos,
quanto maís de romances. Isso colocava em dificuldades o projeto romântico e alencariano
de construção nacional pelo romance, que será modificado por Machado de Assis, como
veremos a seguir.

108 Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 95.

51
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fin~,~.ii!lllt:-~ ~~-~
:\-'Ut!'l't'-J14Wl ~

Biblioteca Nacional/Seção de Periódicos


RECEN"SE.A.JM:EN"TO
- Estê'ccnso me faz rodar q 'senso; eu, e~tudante,· solteiro~·-St:m mruS''ncn.l m1::;nos, t-enho •le
marcar as pessoas qm" pernoiúiram do 31 do passü.do á. 1 do corrente em minha. casa l Como
fazclMot Maria? hei de declarar que pernoitáste aqui ? ·
- - Pois não ha homens Com nomes de roulhet'e;;t por exemplo o Rio Branco, -chamR-se ~fosé
"Maria; escreve Maria Jos'é da Couceição-:l01'que assim 1):-io te- co;npromettcs, M~O n lista .;:i
çahir- nas mãos do te~- tio. ·

Biblíoteca Nacional/Seção de Periódicos

53
Capítulo 2
A Guerra do Paraguai, o primeiro recenseamento e o 'Bom Ladrão' Gamier

Os fatos aqui são rebeldes.


(Baptiste Louis Garniet, 1877)

As alterações de percepção do papel do escritor e das possibilidades


comunicativas da produção literária são um dos aspectos das profundas transformações
ocorridas na década de 1870, que podem ser sintetizadas por três acontecimentos
fundamentais: o final da Guerra do Paraguai, a realização do primeiro recenseamento
geral do Império, em 1872, e especificamente no campo das letras, o conhecimento e a
regularização da produção editorial, que tem sua figura máxima em B. L. Gamier, cuja
reputação de avarento lhe valeu o apelido de Bom Ladrão Gamier, brincadeira com as
iniciais de Baptiste Louis. As noções muito vagas do império imaginado pelos romãnticos
não resistem às trartSformações por que passa o país ao longo da década de 1870,
trartSformações para as quais a campanha do Paraguai tem papel decisivo, idéia
compartilhada por várias gerações de historiadores que atribuem à guerra o ineditismo de
promover o convívio próximo e prolongado de brasileiros das várias províncias e de
diversas origens sociais. Juntamente com a abolição progressiva da escravidão, a guerra e
o recenseamento constituíam uma nova realidade que, na expressão sintética de Eduardo
Silva, produziu "uma verdadeira revolução na auto-imagem e, portanto, na auto-estima
daquela jovem comunidade em formação", fazendo com que o indigenismo romântico se
transformasse em "moda literária do passado, longe do gosto e da cabeça nova dos
intelectuais dos anos 80" que se defrontavam com grandes e novos desafios. li!
José Veríssimo já havia notado, no inicio do século 20, que a Guerra do Paraguai
produzira um impacto razoável sobre o nacionalismo exclusivista foljado pelo
Romantismo, contribuindo para alterar a imagem do país e influindo diretamente nos
assuntos e no tom da produção literária:

111 Cf. Eduardo Silva, Dom Obá d'África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem
livre de cor. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 54 e 150.

55
Pela primeira vez depois da Independência (pois a guerra do Prata de 1851 mal durou um ano e não
chegou a interessar a nação) sentiu o povo brasileiro praticamente a responsabilidade que aos seus
membros impõem estas coletividades chamadas nações. Ele, que até então vivia segregado nas suas
províncias, ignorando-se mutuamente, encontta-se agora fora das estreitas preocupações bairristas do
campanário, num campo propicio para estreitar a conftaternidade de um povo, o campo de batalha. De
província a província trocam-se idéias e sentimentos; prolongam-se após a guerra as relações de
acampamento. Houve enflDl uma vasta comunicação interprovíncial do Norte para o Sul, um
intercâmbio nacional de emoções, cujos efeitos se fariam forçosamente sentir na mentalidade nacional.
A mocidade das escolas, cujos catedráticos se faziam soldados e marchavam para a guerra, alvoroçou-
se com o enrusiasmo próprio da idade. Os que não deixavam o livro pela espada, bombardeavam o
inimigo longínquo com estrofes inflamadas e discursos tonitrnantes, excitando o férvido enrusiasmo das
massas."112

O final da Guerra, coincidindo com o "ano climatérico" de 1870, inicia um


momento de crise que Sílvio Romero definiu como a tomada de consciência de um "estado
de penúria real", que levara os escritores e intelectuais brasileiros a se afastar "da mentira,
da falácia espiritual e política" da literatura romântica. Para Romero, a obra de Machado de
Assis da segunda fase, com seu tom desgostoso, pessimismo e humorismo pacato, seria um
documento desse momento de crise "pelo lado da impotência visionária". Nem é preciso
dizer que a reação positiva à crise serà dada, na opinião de Romero, por Tobias Barreto e
seus amigos da escola crítica do Recife. Sílvio Romero, conhecido tanto pela finura da
análise quanto pelo equívoco na distribuição dos valores, acerta ao considerar a obra da
segunda fase de Machado de Assis como documento da crise causada pela constatação do
estado de miséria intelectual do país, mas parece errar ao considerar a postura da
impotência como fato negativo e defender o engajamento pan:fletário da produção
intelectual nacional. A obra de Sílvio Romero está aliás profundamente impressionada pelo
contraste entre o imenso contingente de analfabetos e o confinamento da produção literária
ao "grupo minúsculo que neste país faz a Iiteratura" 113 , condição da produção literária
brasileira que o crítico sergipano acredita poder ser revertida com o empenho dos escritores
no esclarecimento do "povo". Trata-se de solução oposta à encontrada por Machado de
Assis para contiouar produzindo literatura sem correr o risco de ser acusado de mistificador
da realidade ou alienado do seu tempo e país - acusação que pesou sobre o escritor até o
final da década de 1950, quando Astrojildo Pereira começou a desmontar a imagem do
escritor absenteísta até então associada a Machado.

112José Verissimo, op. cit, p. 220.


113Silvio Romero, Machado de Assis -Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, Campinas, Editora
da Unicamp, 1992, pp. 155-158.

56
Tratemos por enquanto da estatística e suas classificações, que faziam parte do
instrumental científico moderno louvado por Sílvio Romero para o estudo do país. Embora
tenha havido tentativas anteriores de incluir o Brasil no "congresso estatístico das
nações" 11 4, isso só se deu em 1872, com o primeiro recenseamento geral que introduziu
categorias como grau de instrução e alfabetização, não aferidas nem mesmo em apurações
parciaís, como a realizada no Município Neutro do Rio de Janeiro em 1870, considerada a
maís perfeita entre todas as realizadas na capital do país durante o Império.l 15 Embora o
recenseamento geral tenha começado a ser realizado em 1o de agosto de 1872, os trabalhos
só foram concluídos em agosto de 1876, quando tiveram ampla divulgação na imprensa.
Há muito se sabia da restrição e precariedade da instrução no país, mas os dados do
recenseamento caíram como uma bomba sobre o Brasil letrado. Todos os principais jornais
da corte trouxeram na edição de 5 de agosto de 1876 o texto do oficio assinado por Manoel
Francisco Correia e dirigido ao ministro e secretário de estado dos negócios do império,
José Bento da Cunha e Figueiredo, com os dados coletados pelo censo. No dia 14 de agosto
de 1876, O Globo, o jornal mais progressista então em circulação e sem vinculação direta
com qualquer partido político, reproduziu em sua primeira página texto originalmente
publicado em A Província de S. Paulo, intitulado "Algarismos eloqüentes", que
apresentava alguns dados sobre o indice de analfabetismo seguidos da constatação

114 Essa é a finalidade da defesa que Joaquim Norberto de Souza e Silva faz da realização do primeiro
recenseamento geral da população do Brasil no documento Investigações sobre os recenseamentos da
população geral do Império e de cada província de per si tentados desde os tempos coloniais até hoje, de
2 de maio de 1870 e dirigido ao Conselheiro Paulino José Soares de Souza, Ministro e Secretário de Estado
dos Negócios do Império. Nessa monografia, encomendada pelo ministro ao historiador e escritor, Joaquim
Norberto relata duas tentativas fracassadas de apuração da população do país, uma em 1819 e outra em
1850. A primeira teve seus resultados publicados emA igreja do Brazil ou informação para servir de base
à divisão dos bispados, projectada no anno de I8J9, com a estatística da população do Brazil considerada
em todas as suas differentes classes, na conformidade dos mappas das respectivas províncias e numero de
seus habitantes. A segunda apuração, determinada pela lei de 6 de setembro de 1850, em que o Governo
ficou autorizado a dispender o que fosse necessário para realizar o censo geral do Império, não foi bem-
sucedida devido às resistências colocadas "pela parte da população menos sensata e illustrada" que,
segundo o Visconde de Monte-Alegre, "loucamente" acreditava que o registro "só tinba por fim escravizar
a gente de côr". Na provinda de Pernambuco, onde "o scisma e a prevenção contra o Regulamento attrahiu
maior numero de desvairados, que em frenetico delitio o apellidava lei do captiveiro", houve mortos e
feridos, e a execução do primeiro censo geral do Império foi suspensa por Decreto em janeiro de 1852.
Para mais detalhes sobre o assunto, ver Joaquim Norberto de Souza e Silva, Investigação sobre os
recenseamentos da população geral do Império e de cada província de per si tentados desde os tempos
coloniais até hoje. A identificação do recenseamento com a atividade censória tem testemunho no samba
de Assis Valente gravado por Carmen Miranda em 1940 cujos versos dizem o seguinte: "E o agente
recenseador/ esmiuçou a minha vida/ que foi um horror".

57
inexorável: "Somos wn povo de analfabetos!" O jornal, que duas semanas antes publicara
artigo definindo o Brasil como país onde não há um "cidadão popular" devido à "falta de
educação do povo em geral, instrução defeituosa e pouco amor ao estudo" 116, por vários
dias continuaria a se referir aos dados do censo.
A Imprensa Industrial: Revista de Litteratura, Sciencia, Artes e Industrias noticia
os dados apurados pelo recenseamento em sua edição de 10 de agosto. O impacto causado
pelos números, no entanto, só se fará sentir nwn longo artigo intitulado "Estatística do
Império", de 20 de agosto:

Por menos exato, entretanto, que seja o resultado a que chegou a repartição encarregada desse difícil
ramo de serviço, um fato ficou patente, provado a toda evidência e de dolorosa impressão para o pais: o
triste estado de iguorãncia, as profundas trevas em que ainda tateia, uma grande parte do povo.
[... )A população escolar de 6 a 15 annos eleva-se a 1.902.454, desta freqüentam escolas 320.749
crianças de ambos os sexos, e crescem nas trevas da iguorãncia 1.581.705!
É um fato constritador!
(... ) Educai o povo e tereis cidadãos, deixai-o na iguorãncia e toda idéia de nacionalidade será um
mito, nota suavíssima, porém perdida e sem eco nas vastidões de um deserto. 117

O texto deixa claro o impacto desmistificador dos algarismos sobre a idéia


abrangente de nacionalidade até então vigente, idéia agradabilíssima sem dúvida, mas
irreal. E termina bradando ao governo, às municipalidades, ao país inteiro : "Luz, luz, luz a
jorros!" A mesma reivindicação do derramamento de luzes sobre o Império aparecera em
alemão - "Licht! Licht! Licht!" - na epígrafe de um longo artigo publicado no jornal
humorístico O Mosquito de 12 de agosto de 1876 e assinado com o pseudônimo de Alfredo
Riancho 118 . Do artigo, dividido em oito capítulos de títulos jocosos como "São ou não,

11 5 Nesse censo, a população foi classificada em relação à condição civil (livres e escravos), sexo, idade,
estado civil, raça e profissão.
0
116 O Globo, 31.7 e I .8.1876, ano 3, no 206, p. I. Esse artigo, intitulado "A Opinião Pública no Brasil",
apareceu no Diário do Maranhão de 23.8.1876, que dois dias depois trouxe um resumo do recenseamento,
que inclui dados em relação a sexo, condição civil (livre ou escravo), estado civil, religião, nacionalidade,
"defeitos physicos e moraes", instroção, freqüência de escola.
11 7 Anônimo, "Estatística do Imperio", in A Imprensa Industrial, 20.8.1876, pp. 85-88.
11 8 É possível que seja uma variante do pseudônimo de Henriqoe Samuel de Nogueira Rodrigues, um dos
fundadores, com Bordalo Pinbeiro, de O Mosquito, que costumava assinar Riancho. Nascido em Lisboa,
veio para o Brasil em 1868, onde trabalhou também em O Besouro e no Jornal do Comércio. Cf.
Raimundo de Menezes, Dicionário Literário Brasileiro, 2' edição, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e
Científicos, 1978, p. 191.

58
mudos, todos os que não falam?" 119 e "Só?" (que se refere ao número de dementes
apurados pelo censo), vale reproduzir o capítulo sétimo, intitulado "Escolas! Escolas!
Escolas!":

Há apenas[ ... ] 550,981 mullieres que srubam ler.


Os pais das nossas compatriotas não hão de ter muito trabalho, para que suas filbas não escrevam
aos namorados!
As Stael e as George Sand não hão de abundat, com certeza, num país onde vão à escola apenas
165,098 meninas por 795,574 que ficam em casa a conversar na cozinha com a ctioula! 12°

Nas provindas, notícias com os dados do recenseamento foram publicadas com a


rapidez que os meios de transporte da época permitiam. N'A Província de São Paulo, o
oficio de Manoel Francisco Correia ao ministro do Império foi reproduzido na edição de
1O de agosto junto com o já mencionado artigo "Algarismo eloqüentes", que trata dos
números apurados pelo recenseamento.1 21 O mesmo artigo aparece dois meses mais tarde
no jornal maranhense O Paiz - Orgão Especial do Cornrnercio. Publicado com o mesmo
título, mas sem assinatura ou qualquer referência ao fato de ter sido anteriormente
publicado no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que aliás era prática comum na época. 122
Em Minas, um jornal de curiosa epígrafe - "Lemos no presente, soletramos no futuro"-
manífesta sua indignação com o fato de o recenseamento ter sido concluído sem a inclusão
dos dados relativos à população de 11 freguesias da provincia de Minas, queixa recorrente
num longo artigo publicado em 13 de agosto e dedicado aos resultados do censo publicado
em 13 de agosto. Os redatores d'O Monitor Sul-Mineiro - Sernanario de Litteratura,
Industria e Noticias da cidade de Campanha saem do torpor bairrista duas semanas mais
tarde, em artigo que se refere, com grifas, ao "espantoso número de analfabetos do

11 9O Jornal do Commercio de 6 de agosto publicara um artigo assioado pelo Instituto dos Surdo-Mudos
comentando os resultados do recenseamento que iodicavam a existência de 11.595 surdos-mudos no
Império, o que fazia do Brasil, segundo o mesmo artigo, o terceiro país com maior população de surdos-
mudos. O objetivo do artigo era consolidar a simpatia que o Instituto gozava junto ao governo imperial, que
sustentava a iostituição com verbas generosas e recebia atenção direta do Imperador.
120 O Mosquito, 10.8.1876, ano 8, n° 378, pp. 2 e 3.
121 A Província de São Paulo, 10.8.1876, ano li, n° 460.
122 É aliás notável a quantidade de reproduções que um texto origioalmente publicado no Rio de Janeiro
encontrava nas págioas da imprensa proviocial. O Paiz- Orgão Especial do Commercio, do Maranhão,
22.10.1876 (Ano XVI, no 172).

59
império" e se manifesta "contra o abandono em que os governos de todos os partidos têm
deixado a infância de nosso pais no meio das trevas de completa ignorância. 123
A necessidade de aprimorar e ampliar o acesso à instrução pública tomara-se
assunto freqüente na imprensa na década de 1870. Em outubro de 1872, a revista O Novo
Mundo, publicada em Nova York, trazia quadros mostrando o estado da instrução primária
e secundária nas 20 províncias do Brasil. Os dados, coligidos pela própria redação da
revista, foram retirados do Relatório do Ministro do Império, publicado três meses antes no
Diário Oficial, e não íncluíam os números do Rio de Janeiro, como explica o texto:

Os quadros que aqui se vêem não incluem o distrito do Município Neutro, sobre o qual o texto do
Relatório nos ministra dados muíto incompletos. Sabemos, todavia, que a instrução primária no Rio de
Janeiro apresenta-nos um aspecto realmente hediondo. Pareceria que na capital do Império, onde
residem os altos funcionários do Estado, onde se publicam de 70 a 80 periódicos diversos e há taoto
movimento literário, a educação estaria muíto adiantada. Mas talvez seja o ponto mais negro de todo o
Brasil. O Sr. Ministro do Império nos diz que no Rio de Janeiro só há uma escola para 1.046 habitantes
e, para chegar a este resultado, ele ainda abstraía a população escrava,- como se os escravos não
fossem homens e habitantes, não fosse realmente os principais produtores da riqueza do Estado! Desses
'habitantes livres' de que nos fala, acrescenta-nos ele, só 5 1/2 por cento estão matriculados em escolas,
ao passo que na velha e decrépita Espanha, e na escrava Itália, a proporção é de 7 por cento, e nos
Estados Unidos é de 24 por cento. Assim, os habitantes da capital do 'grande Império da Santa Cruz', do
'grande Cruzeiro do Sul', etc. etc., estão entre 30 e 40 por cento abaixo do nível intelectoal dos países
mais atrasados da Europa, isto ainda com exclusão dos seus habitantes escravos! Bem podem os nossos
fogosos oradores de Sete de Setembro transportarem-se de entusiasmo pelo que temos feito nestes
cinqüenta anos de vida nacional: a verdade fria está aquí chamando-nos aos sentidos de uma feia
realidade.124

Com a conclusão do recenseamento, foram divulgados dados mais precisos a


respeito da situação na corte. Na edição de 10 de agosto de 1876, a Imprensa Industrial
publicou o artigo "A Instrução Pública no Rio de Janeiro", informando que na corte, "onde
a classe operária é tão numerosa quanto analfabeta", havia apenas nove estabelecimentos
de ínstrução criados por associações filantrópicas, e dez cursos noturnos, dos quais nove
tinham sido criados depois de 1872 e somente um existia desde 1858. Em outro texto da
mesma edição, a revista volta ao assunto para concluir: "Freqüentam as escolas 155,651

123 O Monitor Sul-Mineiro- Semanario de Litteratura, Jndustria e Noticias. Campanba da Princeza


(MG), edições de 13 e 27 de agosto de 1876. A referência é o artigo publicado na primeira página do diário
carioca em 6.8.1876, e reproduzido na primeria página de O Globo de 7 e 8.8.1876, assim como em várias
outras publicações das provindas.
124 O Novo Mundo, 23.10.1872, vol. 3, p. 6.

60
'>98 meninas e deixam de freqüentá-las 786.131 meninos e 795.574 meninas
'JS de exclamação são da revista, e os dados referem-se a todo o Brasil.
"ria dos números novamente vem arranhar as imagens da nacionalidade
.--'o discurso oficial. A ironia com que O Novo Mundo se refere ao país como
I:rnpério" e "grande Cruzeiro" vem associada à percepção de quanto a nação
brasileira está fundada em mecanismos poderosos de exclusão: dos escravos pelas
estatísticas do governo, dos alunos pela escola, da população pelas numerosas publicações
jornalísticas e literárias, e finalmente do próprio país em relação aos padrões europeus -
ainda que o paradigma fosse fornecido pelos países maís atrasados da Europa.
A proclamação da necessidade de difundir a instrução e o clamor pelo
elhoraroento do ensino logo se transformam em artificios retóricos das publicações. O
111
assunto é muitas vezes invocado com destaque pelos jomaís e revistas, principalmente nos
seus números iniciaís, o que aparentemente servia para atribuir ao novo veículo missão e
relevãncia públicas, justificando sua criação por uma necessidade que transcendia os
interesses dos seus proprietários e de poucos leitores. À medida que fica evidente o estado
de ignorância generalizado e a abrangência do analfabetismo no país, torna-se cada vez

111
ais imperativo criar justificativas para a criação de um novo veículo de comunicação
escrita num ambiente que não comportava nem mesmo as publicações existentes. A
wvocação do caráter educativo da imprensa parece atingir o paroxismo no final da década
de 1870, quando um jornal dirigido a patinadores, o Skating-Rink- Jornal Humorisico e
Litterario dos Patinadores, traz no seu segundo número um editorial intitulado "Instrução
pública", procurando atribuir relevãncia social a um veículo cuja existência devia-se
e:x:clusivamente à frivolidade de um modismo.126
Voltando às reações ao censo, o brado erguido pela Gazeta de Notícias repercutiu
também na Bahia. Em O Monitor de 15 de agosto, a notícia dos resultados do censo
acompanha texto publicado com destaque no alto da primeira página: "Insuficiência da
illStrução pública". O jornal retoma um assunto que estava em pauta naqueles dias, utiliza a
estatistica como "prova maís evidente de nosso atraso em semelhante ramo do público
serviço" e, depois de citar os principaís números apurados pelo censo, conclui: "O triste

125 A Imprensa Industrial, 10.8.1876, pp. 13-16.

61
resultado destes algarismos é que setenta e nove por cento das crianças livres deste pa~
não freqüentam as escolas."l27
A impressão causada pela divulgação das estatísticas do Império não foi eremera.
Dois anos mais tarde, a Revista da Sociedade Phenix Litteraria voltava ao assunto. Ao
tratar das dificuldades enfrentadas pela revista para se manter em circulação apenas seis
meses depois do lançamento do seu primeiro número, o redator apelava para o
recenseamento: "por ele ver-se-há que no quadro do desenvolvimento intelectual do povo
brasileiro o que menos há é luz! Em compensação (triste compensação!) temos mais do que
sombra-temos trevas!"128
A Imprensa Industrial também voltou ao assunto, agora estabelecendo as pontes
entre a situação da imprensa e da literatura com a "triste verdade" revelada pelo
recenseamento num artigo do qual vale reproduzir este longo trecho:

O Brasil é terra dos periódicos; desde a capital até os mais remotos pontos do Império, trabalham os
prelos, surgem os jornais de toda pane. Uns vivem longa vida, muitos, se não a maior parte, nascem e
morrem (...) A razão por que morrem é clara; não há quem leia; triste verdade esta em um pais que diz
ser livre e onde tanto se fala em liberdade, como se em torno desse facbo lmuinoso pudessem subsistir
as trevas! (... )
Dizia-nos o Sr. Garnier, um dia em que lhe perguntávamos por que não barateava os seus livros:
-Porque tenho prejuízo com isso.
-Não é exato, lhe respondemos; se baratear o livro, ganba menos, é certo, mas como
necessariamente vende mais ganba por conseguinte o mesmo pelo menos.
- Nisto está o seu erro, nos respondeu ele, o preço não influi sobre o número dos meus freguezes,
digo-lh'o eu praticamente; tanto faz que eu venda uma obra por dez tostões como por dez mil réis, o
consumo de exemplares é sempre o mesmo, dai vem a base dos meus preços, porque antes de expor o
livro à venda já sei o número de exemplares que hei de vender, e como esse número é pouco avultado,
preciso fazer um preço que retribua os sacrificios do meu negócio e o emprego do meu capital.
- Mas isso é contrário a todos os princípios econômicos, tornamos nós, a regra é o aumento do
consumo na razão da barateza do mercado.
Isso é possível em princípio, replicou ele com um sorriso malicioso, mas os fatos aqui são
rebeldes, e na prática essa teoria não resiste à prova material.

•••

126 Skating-Rink- Jornal Humorisico e Litterario dos Patinadores. Rio de Janeiro, Typographia do
Diário do Rio, 1878.
1270 Monitor, 15.8.1876, Ano I, no 61, p. I, grifo do original. Assim como esse jornal baiano, administrado
por Agrippino José Lopes, vários outros periódicos da Corte referiram-se a 79% de crianças livres em
idade escolar que não freqüentavam escola; no entanto, de acordo com os dados do recenseamento, esse
percentual seria de 83%.
128 Revista da Sociedade Phenix Litteraria. Rio de Janeiro, Typographia do Imperial Instituto Artístico.
Revista mensal que circulou entre janeiro de 1878 e julho de 1879. Edição de julho de 1878, p. !50, texto
assinado pela redação, que era composta por Urbano Duarte, Antão Silvério, Lauro Sodré, Paulo Marques
e M. V alladão.

62
Esta singularidade deu-me que pensar muito tempo, e aquela risadinha do único editor das nossas
produções literárias, andou a mistificar-me por muito tempo.
Entretanto ele tem razão, carradas de razão. O fato explica-se naturalmente.
Quem compra livros é porque precisa deles, quem deles precisa é quem sabe ler, e os que sabem ler
são poucos.
Não é questão para se submeter a preceitos da ciência econômica; resolve-se pela estatística geral do
Império.
Em poucas palavras diz-se tudo:
Não sabemos ler:
A alma enluta-se perante esta triste verdade, as faces coram de vergonha, mas a realidade é essa. 129

É notável a atualidade dos termos da conversa entre o jornalista e o editor no final


da década de 1870, travada em termos ainda hoje muito utilizados para descrever, com
algumas modificações, o mercado de jornais, revistas e livros de literatura brasileira.
Notável também é a precocidade do diagnóstico de Baptiste Louis Gamier para um
mercado de literatura incipiente não só em termos de circulação e consumo, mas também
no volume de produção de obras literárias. Gamier foi figura fundamental para a definição
do mercado real das publicações brasileiras, por ter sido o primeiro editor a publicar
sistematicamente autores nacionais, tendo lançado 655 trabalhos de autores brasileiros no
período 1860-1890, além de muitas traduções de autores estrangeiros, como Dumas, Hugo,
Montepin, Feuillet etc. 130
O que se nota é que, ao longo da década de 1870, começam a se produzir novas
informações e sínteses sobre o país, sua população, leitores e eleitores. A própria
exclusão dos escravos, placidamente aceita até o inicio da década, começa a ser
questionada pelos movimentos abolicionistas. Tudo isso tem enorme impacto sobre a
idéia romântica de construção nacional, que se tomava insustentável, e coloca a
intelligentsia brasileira diante de um ambiente baseado na oralidade, de um "mundo pré-
literário de escravos, libertos e homens livres" tratado por Eduardo Silva em trabalho
importante para se compreender as décadas de 1870 e 1880 na capital do Império. 131
A função e as possibilidades da literatura ficavam bastante modificadas com a
nova imagem e auto-imagem do país que se desenhava. Ao escritor cabia inventar um

129 Imprensa Industrial, 25.6.1877, pp. 761-764. Rio de Janeiro, Imprensa Industrial, 1876-1877.
Proprietário: Lino de Almeida. Redatores: Lino de Almeida, Felix Ferreira e Velho da Silva. Grifas meus.
!30 Vide Paulo Berger, A tipografia no Rio de Janeiro: impressores bibliográficos 1808-1900. Rio de
Janeiro, Cia. Industrial de Papel Pirahy, 1984, p. 56. Laurence Hallewell, op. cit., p. 146.
131 Cf. Eduardo Silva, op. cit., p. 159

63
novo regime de comunicação com um público cuja dimensão fora sensivelmente reduzida
pelo melhor conhecimento da realidade do país.

O Guarani na Rua dos Ciganos e o impacto da realidade sobre o projeto romântico


A medida da discrepância entre o projeto de representação da nação pelo romance e
sua eficácia como veículo de projeção da nacionalidade é dada pelo caso emblemático d'O
Guarani. Freqüente e generalizadamente referido como o grande romance popular
brasileiro do século 19, esse talvez seja o melhor exemplo do modo como a crítica,
empenhada em definir a especificidade da produção brasileira e construir os mitos literários
nacionais- e os mitos da nacionalidade via literatura-, encampou e endossou o projeto
formulado pelos românticos de uma literatura extensiva, no sentido de uma literatura que
abarcasse e desse conta de representar o máximo possível da paisagem e da "realidade"
brasileira. José Veríssimo refere-se a ele como "o romance brasileiro por excelência, o
nosso epos"m. Raimundo Magalhães Júnior, biógrafo de Alencar, afirma que o romance
"representou um grande momento na acanhada vida literária brasileira do início do
primeiro quartel do século dezenove"m.
Sobre a publicação do romance em folhetins, diz o Visconde de Taunay em suas
Reminiscências:

Em 1857, talvez 56, publicou O Guarani em folbetim no Diário do Rio de Janeiro, e ainda
vivamente me recordo do entusiasmo que despertou, verdadeira novidade emocional, desconhecida
nesta cidade tão entregue às exclusivas preocupações do comércio e da bolsa, entusiasmo
particularmente acentuado nos círculos femininos da sociedade fma e no seio da mocidade, então muito
mais sujeita ao simples influxo da literatura, com exclusão das exaltações de caráter político.
Relembrando, sem grande exageração, o célebre verso: Tout Paris pour Chiméne a les yeus de
Rodrigue, o Rio de Janeiro em peso, para assim dizer, lia o Guarani e seguia comovido e enleado os
amores tão puros e discretos de Ceci e Peri [... ]Quando a S. Paulo chegava o correio, com muitos dias
de intervalos então, reuniam-se muito e muitos estudantes numa república, em que houvesse qualquer
feliz assinante do Diário do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de vez em quando, por elétrico
frêmito, a leitura feita em voz alta por algum deles, que tivesse órgão mais forte. E o jorual era depois
disputado com impaciência e pelas ruas se viam agrupamentos em tomo dos fumegantes lampiões da
iluminação pública de outrora- ainda ouvintes a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor. 134

!32José Verissimo, História da Literatura Brasileira, p. 193.


133 R.Magalhães Júnior, José de Alencar e sua época, São Paulo, Lisa- Livros Irradiantes, 1971, p. 69.
!34 Visconde de Taunay, Reminiscências, apudNelson Werneck Sodré, A História da Imprensa no Brasil,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 220. Raimundo Magalhães Júnior, em José de Alencar e sua
época, reproduz e endossa as paiavras de Taunay, afmnando que "tudo isso resultava de um interesse natural
e espontâneo de um fervor gerando entre os leitores"; cf. Magalhães Júnior, op. cit., p. 63.

64
As observações de Taunay, publicadas em 1903, sobre o sucesso eletrizante de O
Guarani no Rio e em São Paulo contém um certo exagero e lembra o hábito ainda hoje
vigente entre a elite brasileira de assumir que um pequeno grupo representa algo muito
maior do que apenas um pequeno grupo. A referência ao frisson causado pelo livTo nas
repúblicas de estudantes - dado plausível, uma vez que os estudantes da Faculdade de
Direito de São Paulo representavam parte significativa do leitorado brasileiro na segunda
metade do século 19 - logo em seguida é generalizado para toda a cidade. Operação
inversa - generalização e posterior relativização - está neste trecho de Câmara Cascudo,
em que ele se refere ao hábito de se decorar páginas inteiras dos romances de José de
Alencar como indício da popularidade de sua obra. O hábito, inicialmente generalizado
para o "Brasil inteiro", logo depois passa a se referir a "dezenas e dezenas de pessoas":

Um índice maravilhoso [do fato de sua obra ter apaixonado 'o Brasil ínteiro1 era o futo de decorar-
se páginas inteiras de Alencar não para declamá-las mas por um diário contágio, uma comunicação
ininterrupta, de autor a leitor. Ainda há poucos anos dezenas e dezenas de pessoas por êsse nordeste do
Brasil sabiam as páginas iniciais de Iracema, sem engano de uma só palavra.

Nelson Werneck Sodré interpreta a suposta receptividade ao folhetim e ao livro


como um sintoma da constituição de um público para a literatura brasileira: "O
aparecimento de O Guarani, primeiro em folhetim, depois em livro, encontra um ambiente
receptivo: o livro, como o folhetim, atendem, de maneira profunda, a solicitação do público
existente." 135 Antonio Candido aponta esse romance como o que concorreu para dar a
Alencar "glória junto aos leitores- certamente a mais sólida de nossa literatura" .136
Leia-se agora o que diz o próprio Alencar a respeito das edições em livro de O
Guarani:

Era essa edição de mil exemplares, porém, trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes
que se faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000.
Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais, nos belchiores que o
tínbam a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde os tirou o Xavier Pinto para a sua livraria
na rua dos Ciganos. A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da roda literária, o tínba
deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.
Durante todo êsse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer elogio, critica ou
simples noticia do romance, a não ser uma rolha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição

135 Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 280.


136 Antonio Candido, op. cit., vol. 2, p. 222.

65
dos folhetins. Reclamei contra êsse abuso, que cessou; mas posteriormente soube que aproveitou-se a
composição já adiantada para uma tiragem avulsa.B 7

O texto, de 1873, dá notícia de que O Guarani estava então em sexta edição,


incluil}do-se a edição clandestina publicada pelo jornal gaúcho. 138 Como _as edições
raramente ultrapassavam os mil exemplares, e da primeira só se aproveitaram setecentos,
num período de 16 anos circularam pelo país no máximo 5.700 exemplares de O Guarani.
Por um lado, essa era uma marca invejável, o que justifica a popularidade atribuida ao
romance por Verissimo, Taunay, Sodré e Candido; por outro, mostra o caráter relativo da
popularidade do romance, pois trata-se de número irrisório para um país então com mais de
9 milhões de habitantes e para uma obra ambiciosa como O Guarani, com intenções de
produzir uma síntese do passado nacional. É verdade, como observou Sílvio Romero, que
esse é um dos poucos romances a produzir personagens que efetivamente caíram em
domínio público, como é o caso de Peri e Ceci13 9 ; o mais provável, dado o pequeno número
de exemplares da obra em circulação, é que a fama obtida pelas personagens ainda no
século 19 se devesse mais à oitiva- pela versão operistica do romance e pelas leituras em
voz alta do folhetim- do que propriamente à leitura do livro. 140 A hipótese é corroborada
pelo próprio Alencar, que em 1875 escrevia sobre as diversas versões para o teatro .de O
Guarani:

Os leitores d'O Guarani, d'As Minas de Prata, d'O Gaúcho e de outros livros, não se encontram, satvo
poucas exceções, nos corredores e platéias do teatro. Acredito mesmo que muita gente fina que viu a

137 José de Alencar, "Como e Porque Sou Romancista", prefácio a O Guarani, Rio de Janeiro, José Olympio,
1953, p. 70.
138 Segundo a edição critica do romance organizada por Darcy Damasceno, as edições de O Guarani em
livro foram as seguintes: 1' edição, 1857; 2' edição, 1864; 3' edição, 1865; 4' edição, 1872; 5' edição
Garnier, 1883. Cf. O Guarani [edição critica por Darcy Damasceno], Rio de Janeiro, Ministério da
Educação e Cultura!INL, 1958.
139 Em observação maliciosa, mas que dá boa medida da não popularidade da produção literária brasileira,
Sílvio Romero observa que nenhum dos escritores mais famosos do século 19- incluindo Machado de
Assis, Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Franklin Távora, Taunay, Aluísio Azevedo e Bernardo
Guimarães- conseguiram criar um personagem que "tenha entrado na circulação com a assinatura da vida".
A exceção seria Alencar, que "conseguiu apenas criar três nomes, Iracema, Pery e Moacir, que se tornaram
populares; mas só os nomes", in Sílvio Romero, Machado de Assis -Estudo Comparativo de Literatura
Brasileira. Campinas, Editora da Unicamp, 1992, p. 307.
140 Luís da Cãmara Cascudo, "O Folclore na obra de José de Alencar", prefácio a Lucíola- Um Perfil de
Mulher, Diva- Um Perfil de Mulher, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1953, 2' edição, p. 12.

66
ópera e drama d' O Guarani, ignora absolutamente a existência do romance, e está na profunda crença
de que isso é algnma história africana plagiada para o nosso teatro.141

O caso de Alencar, além de ilustrar a discrepância entre a intenção de


representação/constituição da nação pelo romance e as possibilidades reais de alcance dessa
representação, parece reveladora do desejo de se estabelecer uma tradição literária
nacional, encampando em nome da pátria o ideal romântico da construção da nação pela
literatura, o que fica flagrante nas informações exageradas sobre a popularidade d'O
Guarani. Temos ai a contrapartida, desta vez em chave eufórica, da postura desanimada e
ressentida dos escritores com o suposto descaso do público por suas obras. O que está
subjacente tanto na postura queixosa dos escritores, de que tratei no primeiro capítulo,
quanto nas informações sobre a repercussão retumbante do livro, formuladas a posteriori
por críticos e memorialistas, é o desconhecimento e a mistificação da realidade do país e do
papel modesto que cabia à produção literária no Brasil oitocentista.
O projeto literário de representação nacional constituía-se, portanto, com uma boa
dose de miopia e mistificação e uma compreensão bastante restritiva do pais: no nível da
representação, excluía o escravo, segmento da população que constituía a força produtiva
local; no nível da comunicação, a exclusão era ainda maior, uma vez que a atividade
literária, extremamente concentrada, atingia na melhor das hipóteses poucos milhares de
leitores e auditores, reduzindo o público do romance nacional a uma pequena multidão. A
critica, por sua vez, ao considerar que os hábitos e interesses de grupos restritos possam ser
generalizados para toda a sociedade, encampa os mecanismos de exclusão implícitos no
projeto romântico, com o qual compartilha a crença na construção nacional pela literatura.
O disparate entre as expectativas associadas ao romance e sua real possibilidade de
comunicação passa a constituir problema a ser desembaraçado pelos escritores sob o risco
de ficarem falando sozinhos ou serem acusados de insensibilidade ao ambiente em que
estavam inseridos, algo certamente indesejado por romancistas que viam a criação de
representações literárias para o país como dever patriótico e se consideravam co-
fundadores da nação brasileira.l42 Da mesma forma como os românticos não percebiam

141 Cf. R. Magalbães Júnior, José de Alencar e sua época, Lisa-Livros Irradiantes, São Paulo, 1971, p.
316.
142 Situação que não é exclusiva do Brasil, mas de toda a América Latina, e que recebeu mais atenção nos
países de iingna espanhola, onde a pergnnta sobre o significado do fazer literário em sociedades onde a

67
como inverossímil a exclusão do escravo da representação da realidade brasileira, não lhes
parecia estranho investir a literatura do papel de construtora e difusora dos princípios da
nacionalidade num país de analfabetos e de elite inculta. Para além da profimda ignorância
a respeito das condições do país, as duas atitudes têm forte componente ideológico e
apontam para o mecanismo de dominação inerente à atitude de se falar em nome de quem
não tem voz- uma forma de negar a autonomia do outro.
O fato de ser escrito para poucos colocava dificuldades para o romance brasileiro,
uma vez que a missão de sintetizar e difimdir noções da nacionalidade não casava bem com
um veículo que de saída excluía a grande maíoria da população, marginal não só ao
universo do romance, da literatura e das letras, mas a tudo mais. A missão nacional e
patriótica decerto aumentava a frustração dos escritores, que tomavam para si o papel de
porta-vozes de um público pouco numeroso e muitas vezes amorfo diante das coisas
literárias. A impossibilidade concreta de fazer do romance um veículo eficiente de
divulgação de um imaginário nacional não será percebida pelos primeiros romancistas,
ocupados em criar representações literárias - devidamente idealizadas - para as
paisagens e costumes locais, o que será considerado suficiente para conferir originalidade à
produção nacional.
Machado de Assis não ficou insensível a nenhuma dessas questões. Na Semana
Ilustrada de 15 de agosto de 1876, ele começa uma crônica tratando da festa da Glória,
escorrega para as corridas de cavalo e proclama sua preferência pelo burro antes de tecer os
seguintes comentários sobre o resultado do recenseamento:

E por falar neste animal [o burro], publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se
colige que 70% da nossa população não sabem ler.
Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas
pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos,
ingênuos. As letras fiZeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica.
Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país, dirá:
- Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo
caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberaula nacional reside nas

autonomia da produção cultural é historicamente precária e onde a desigualdade social se reflete na


apropriação desigual dos chamados patrimônios culturais "nacionais" tem chamado a atenção de intelectuais
como Ernesto Sábato, Carlos Fuentes, Carlos Monsiváis e Ricardo Piglia, entre outros. Para Nestór Garcia
Canclini, "uma hipótese plausível para a sociologia da leitura que algum dia se fará na América Latina é
pensar que essas perguntas contribuem para organizar as relações desses escritores com seus públicos." Cf.
Néstor Garcia Canclini, Culturas Híbridas -Estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo,
Edusp, 1998, p. 75.

68
Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último,
o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de
Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito superior a todos os direitos.
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
-A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns
9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles
Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou
pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam
como vão à festa da Penha, - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente
desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado."
Replico eu:
-Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições ....
-As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo
politico. Não se deve dizer: "consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação"; mas-
"consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%". A opinião pública é uma metáfora sem
base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Càmara: 'Sr. Presidente, falo deste modo
porque os 30% nos ouvem.... ' dirá uma coisa extremamente sensata.
E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base
segnra para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento. 143

Não se sabe de onde o cronista tirou esses 70%, urna vez que os analfabetos
correspondiarn a 84% do total apurado pelo censo, que dava urna população de 9.930.478
pessoas, somando livres e escravos. Tampouco é verdade que toda a população tivesse o
direito de votar, como o texto dá a entender, pois havia restrições em relação à idade,
profissão e renda mínima. Ao se concentrar na significação e nas conseqüências políticas
do analfabetismo, eleitor e leitor, letras e política estão aproximadas pelo recurso à
palavra, ao discurso e à retórica, pela capacidade de formular meias-verdades e forjar
falsas totalidades: tudo isso colocado em oposição ao algarismo, que não é de meias-
verdades nem de metáforas. O questionamento das noções de representatividade que estão
subsurnidas tanto no processo político quanto na atividade intelectual, assim como a
sugestão de que o leitor, associado ao eleitor, tem um perfil sociopolítico, remetem àquela
crônica de 1888 que aproxima leitores e carapicus e na qual o bonde, veículo moderno
por excelência, serve a poucos, para grande frustração do condutor.
Apesar do tom de galhofa, é inevitável supor a angústia do escritor diante da
constatação do público minguado da literatura. A essa altura, Machado já publicara
Ressurreição e A Mão e a Luva, este último em folhetim antes de sair em livro. No exato
momento em que publica a crônica, Helena ia a público, também em folhetim, nas
páginas d'O Globo.

69
Machado, que alguns anos antes havia declarado sua crença no jornal, "hóstia social
da comunhão pública" cuja "primeira propriedade é o derramamento fácil em todos os
membros do corpo social" 144, por essa época começava a se dar conta da irrealidade e do
excesso retórico de suas formulações. Essa tomada de consciência, de que o artigo
reproduzido acima é a expressão mals aguda, foi se formando lentamente, como se
depreende da análise da produção critica ruachadiana que desde o final da década de 1850
refletia sobre as dificuldades de comunicação com o público e da representatividade social
da produção artística.
A precariedade do meio intelectual, objeto freqüente da indignação de artistas que
se colocavam numa esfera à parte, como vítimas do meio, deixará de ser percebida por
Machado como pura negatividade e/ou contingência exterua à atividade literária, passando
a ser tratada como condição inerente à produção literária no Brasil. A indiferença geral, a
carência de público e de opinião consistente, a sensação constante de queda no vazio
deixam de ser tratadas como acidentes lamentáveis ou frutos de conspirações, mas fatos de
uma sociedade fundada em poderosos procedimentos de exclusão sobre os quais a
produção literária deve refletir.

143 Machado de Assis, "História de 15 Dias", 15.8.1876, in Obra Completa, vo!. 3, pp. 344-345.
144 Machado de Assis, "A reforma pelo Jornal", publicado em O Espelho, 23.10.1859, in OC, vol. 3, pp.
963-965.

70
Capítulo 3
Machado de Assis e os públicos

A partir da década de 1870, o projeto nacionalista iniciado pelos românticos da


revista Niterói, que encontrara seu epígono em José de Alencar, começou a definhar diante
das possibilidades reais - e modestas - da literatura e do romance brasileiro. Machado de
Assis, que no início de sua carreira lançara mão dos ideais românticos principalmente ao
tratar do teatro, na década de 1870 manifestava percepção aguda da inviabilidade do
projeto de um romance nacional extensivo, ambicioso na abrangência da representação de
todo o Brasil e no cálculo de suas possibilidades de circulação pelas diversas regiões e
estratos do país. A mudança de percepção, importante para a reorientação de sua produção
ficcional, pode ser acompanhada na alteração de posturas e convicções acerca da relação
entre artista e público revelada em sua obra crítica. Este capítulo mostra como a noção
romântica do público de arte enquanto Povo, e do artista como educador das massas,
recorrente nos escritos das décadas de 1850 e 1860, sobretudo na crítica teatral, ganha
novos sentidos a partir da década de 1870. A figura vaga e vaporosa do leitor vai ganhando
contornos mais precisos e mais informados pela realidade objetiva até transformar-se em
figura fundamental para a arquitetura narrativa.
O pequeno leitorado e a indigência do ambiente cultural brasileiro são assuntos
recorrentes na produção crítica de Machado de Assis desde seu inicio em 1858. As
explicações para os males, assim como as soluções propostas para alterar tal estado de
coisas, variam bastante ao longo do tempo, mas é possível dividir a postura de Machado de
Assis em relação à penúria das artes no Brasil em dois momentos principais: num primeira
momento, o mal está associado à invasão das artes estrangeiras e a solução proposta é a
nacionalização da produção artística e o aperfeiçoamento do gosto do público, tarefas
atribuídas aos escritores; num segundo momento, que coincide com o inicio de sua
produção romanesca, no início da década de 1870, o crítico revela decepção generalizada
com a situação das artes no Brasil.
Nas décadas de 60 e 70, Machado de Assis vê no teatro e no jornal as tribunas
privilegiadas para a reforma do gosto do público. A postura do escritor fica bem sintetizada
nestes trechos de "Idéias sobre o Teatro", publicado em 1859, no qual Machado menciona

71
o prejuízo da arte estrangeira na constituição de uma teatro nacional e o retrocesso que ele
significa na educação das massas:

(...) fizeram crer às turbas que o teatro foi feito para passatempo. (... )Deste mundo sem iniciativa
nasceram o anacronismo, as anomalias, as contradições grotescas, as mascaradas, o marasmo. A musa
do tablado doidejou com os vestidos de arlequim,- no meio das apupadas de uma multidão ébria (...)
O teatro tomou-se uma escola de aclimatação intelectual para que se transplantaram as concepções de
estranhas atmosferas, de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu caminhar na
civilização; não tem cunho local; reflete as sociedades estranhas, vai a impulso de revoluções alheias à
sociedade que representa, presbita da arte que não enxerga o que se move debaixo das mãos.( ...) Uma
educação viciosa constitui o paladar das platéias. Fizeram desfilar em face das multidões uma procissão
de manjares esquisitos de um sabor estranbo (... )Habituaram a platéia nos boulevards; elas esqueceram
as distãncias e gravitam em um círcnio vicioso. Daqni o nascimento de uma entidade: o tradutor
dramático, espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha
estranba. (... ) As massas que necessitam de verdades, não as encontrarão no teatro destinado à
reprodução material e imProdutiva de concepções deslocadas da nossa civilização, - e que trazem em
si o cunho de sociedades afastadas.141

A nota nacionalista, localista, missionária e levemente xenófoba, tão típica do


romantismo brasileiro, perpassa todo o texto que, por outro lado, emprega termos como
turbas, multidões e massas, tão inadequados para descrever as platéias dos teatros do Rio
de Janeiro à época quanto deviam ser inadequadas à realidade local as idéias estrangeiras
contra as quais o crítico se insurge. São termos hiperbólicos para descrever a freqüência aos
teatros da corte, onde mesmo no auge de sua popularidade, na década de 1850, os
espetáculos teatrais eram passatempo de um público de elite e numericamente muito
restrito.142 Macltado aplicava ao teatro a mesma idéia corrente a respeito dos livros
estrangeiros que, conforme vimos no capítulo anterior, eram culpabilizados pelo estado
indigente da produção nacional. Subentendido está que o produto francês, "sem o mérito da
localidade"143, ocupava o espaço da produção nacional - que de fato não existia - ,
constituindo um desestímulo para o desenvolvimento de uma arte dramática nacional e
que, estancada a inundação do produto estrangeiro, a produção local floresceria.

141 Machado de Assis, "Idéias sobre o Teatro", O EspelhD, 25.9.1859, 2.10.1859 e 25.12.1859, in OC, vol.
3, pp. 792-794. Todos os outros textos citados neste capituio são de autoria de Machado de Assis, salvo
indicação em contrário.
142 Machado escrevia em março de 1860: "Estamos com dois teatros em ativo; uma nova companhia se
organiza para abrir em pouco o teatro Variedades; e essa completará a trindade dramática." Os dois teatros
então em fimcionamento na Corte eram o Ginásio Dramático e o S. Pedro. In [A Critica Teatral. José de
Alencar: Mãe], "Revista Dramática" (seção do Diário do Rio de Janeiro), 29.3.1860, in OC, vol. 3, p. 838.
Sobre o público de teatro do Brasil oitocentista, veja-se também Jean-Yves Mérian, Aluísio Azevedo-
Vida e Obra (1857-1913), pp. 351-358.

72
Se Machado engrossava o coro generalizado de protestos contra a invasão
estrangeira, ele se destacava de Alencar e de seus colegas de oficio por jamais atribuir ao
público a responsabilidade pela situação da cena brasileira Ele antes culpa as direções e as
empresas pelo mal, lembrando o sucesso de público das comédias de Martins Pena e de
Joaquim Manuel de Macedo e recomendando que se procure agradar ao povo, que ''não é
avaro em aplaudir e animar as vocações". 144 Em "O Teatro Nacional", o critico volta ao
assunto:

Deduzir de semelhante estado a culpa do público, seria transfonnar o efeito em causa. O público
não tem culpa nenhuma, nem do estado da arte, nem da sua indiferença por ela; uma prova disso é a
solicitode com que corre a ver a primeira representação das peças nacionais, e os aplausos com que
sempre recebe os autores e as obras, ainda as menos corretas. 145

Nesse mesmo texto, Machado defende a criação de um "teatro normal" brasileiro,


criado pelo Estado nos moldes da academia de pintura, arquitetura e estatuária e que
servisse para "a reforma necessária no gosto público". E também vaticinava: "Se, depois de
tantos anos de amarga experiência, e dolorosas decepções, não vier uma lei que ampare a
arte e a literatura, lance as bases de urna firme aliança entre o público e o poeta, e faça
renascer a já perdida noção do gosto, fechem-se as portas do templo, onde não há nem
sacerdotes nem fiéis."
Um mês antes, em janeiro de 1866, o escritor procura causas que expliquem o fato
de a temperatura literária estar "abaixo de zero":

A nosso ver, há duas razões principais desta situação: uma de ordem material, outra de ordem
intelectual. A primeira, que se refere à impressão dos livros, impressão cara, e de nenhum lucro
pecuniário, prende-se inteiramente à segunda que é a falta de gosto formado no espírito público. Com
efeito, quando aparece entre nós essa planta exótica chamada editor, se os escritores conseguem
encarregá-lo, por meio de um contrato, da impressão das suas obras, é claro que o editor não pode
oferecer vantagens aos poetas, pelas simples razão de que a venda do livro é problemática e difícil. A
opinião que devia sustentar o livro, dar-lhe voga, coroá-lo enf'un no Capitólio moderno, essa, como os
heróis de Tácito, brilha pela ausência. Há um círculo limitado de leitores; a concorrência é quase nula, e

143 Idem.
144 "O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura",A Marmota, 9 e 23.4.1858, in OC, vol. 3, p. 788.
145 [O Teatro Nacional], "Semana Literária", seção do Diário do Rio de Janeiro, 13.2.1866, in OC, vol. 3,
p. 861; os títulos entre colchetes não foram dados pelo autor e estão conforme os das Obras Completas da
Editora Nova Aguilar.

73
os livros aparecem e morrem nas livrarias. Não dizemos que isso aconteça com todos os livros, nem
com todos os autores, mas a regra geral é essa. I 50

A dificuldade de circulação e difusão da produção intelectual, novamente associada


ao gosto mal formado do público, recebe agora explicações mais concretas pela constatação
dos entraves colocados pelo círculo limitado dos leitores. Nesse mesmo texto, que serve de
declaração de princípios da coluna que começa a assinar no Diário do Rio de Janeiro, a
lucidez em relação aos limites da produção vem de par com a boa dose de otimismo -por
parte da publicação e também do escritor - que há em assumir o compromisso de uma
coluna semanal dedicada à produção brasileira. Ainda no primeiro mês, o colunista é
obrigado a fazer um primeiro ajuste à realidade ao declarar que "quando a semana ror nula
de publicações literárias, - e muitas o são, - recorreremos à estante nacional, onde não
faltam livros para folhear, em íntima conversa com os leitores". 151
O que no início foi previsto como exceção tomou-se recurso freqüente nos cinco
meses e pouco de existência da coluna, que incluiu vários textos dedicados à "estante
nacional", composta de obras publicadas há meses ou anos, como Inspirações do Claustro
(1855), de Fagundes Varela, e Lira do Vinte Anos (1853), de Álvares de Azevedo, além de
artigos gerais sobre o teatro de Gonçalves de Magalhães, Macedo, Alencar etc. A iniciativa
indica não apenas um erro de cálculo, mas também uma boa dose de idealismo sobre a
situação das letras nacionais. Situação que Machado estava empenhado em reverter ao
regularizar a opinião num ambiente onde a crítica era atividade diletante e exercida de
modo intermitente.
Dois anos mais tarde, num texto sobre o poeta estreante Castro Alves, Machado de
Assis escreve a José de Alencar, já com perspectiva histórica e indisfarçável decepção,
sobre a situação que encontrou no inicio de sua carreira de crítico literário:

Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de critica, fui movido pela idéia de
contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus
limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influéncia
irresistivel, o mal vinha de fora, e se impunba ao espírito literário do país, aínda mal formado e quase
sem consciéncia de si? Era dificil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombta de
literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que,

150 [Propósito], "Semana Literária", 9.l.l866, in OC, vol. 3, p. 841.


151 [Junqueira Freire: Inspirações do Claustro], "Semana Literária", 30.1.1866, in OC, vol. 3, p. 853.

74
como V. Exa., sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem
esses puderam opor um dique à torrente ínvasora.

É com um misto de desalento e o dever da esperança que Machado de Assis, aos 28


anos, e diante do talento de Castro Alves, conclui a carta ao mestre:

O fim é nobre, a necessidade é evidente. Mas o sucesso coroarà a obra? É um ponto de ínterrogação
que há de ter surgido no espírito de V. Exa. Contra esses íntuitos, tão santos quanto índispensáveis, eo
sei que há um obstáculo, e V. Exa. o sabe também: é a conspiração da índiferença. - Mas a
perseverança não pode vencê-la? Devemos esperar que sim.
Quanto a V. Exa., respirando nos degraus da nossa Tijuca o hausto puro e viviflcante da natureza,
vai meditando, sem dúvida, em outras obras-primas com que nos há de vir surpreender cá embaixo.
Deve fazê-lo sem temor. Contra a conspiração da índiferença, tem V. Exa. um aliado ínvencível: é a
conspiração da posteridade.l52

José de Alencar já fora incentivado por Machado, em sua crítica de Iracema, a não
esmorecer, "mesmo a despeito da indiferença pública" 153 com que o livro fora recebido.
Muitos anos antes Machado já lamentava a negligência com o talento em "O Passado, o
Presente e o Futuro da Literatura"154 , e esse tema seria recorrente na relação de Machado
com Alencar, sua grande referência nas letras nacionais. Em 1887, em prefácio para uma
nova edição d'O Guarani, Machado relembrava as palavras que escrevera a Alencar quase
vinte anos antes:

Um dia, respondendo a Alencar em carta pública, dizia-lhe eu, com referência a um tópico da sua,
-que ele tinha por si, contra a conspiração do silêncio, a conspiração da posteridade. Era fácil antevê-
lo: O Guarani e Iracema estavam publicados; muitos outros livros davam ao nosso autor o primeiro
lugar na literatura brasileira. Há dez anos apenas que morreu; ei-lo que renasce para as edições
monumentais, com a primeira daquelas obras, tão fresca e tão nova, como quando viu a luz, há trínta
anos, nas colunas do Diário do Rio. É a conspiração que começa. ISS

Essa edição monumental, provavelmente a terceira, a ser publicada em fascículos


em formato grande e gravuras, aparentemente nunca foi completada, tendo sido publicadas
apenas as primeiras partes.l56

152 [Castro Alves], "Semana Literária", 26.6.1866, ín OC, vol. 3, pp. 894-900.
153 [José de Alencar: Iracema], "Semana Literària", 23.1.1866, ín OC, vol. 3, p. 852.
!54 "O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura". op. cit., p. 787.
155 [José de Alencar: O Guaram], prefácio de 1887 para o romance de Alencar, ín OC, vol. 3, p. 922.
!56 São contraditórias as ínformações sobre a publicação dessa edição de O Guarani. Lúcia Miguel Pereira
afrrma que ela nunca chegou a sair; a Revista l/lustrada noticia o lançamento de 13 fascículos, aparecidos

75
Ao longo de toda a década de 60, o crítico atribui missão educativa e civilizadora ao
teatro, comparado ao coro grego em sua iniciativa de moral e civilização I 53 , e também ao
jornal, "literatura comum, universal, altamente democrática"154 com suas possibilidades de
"derramamento fácil em todos os membros do corpo social"15 5. O tom missionário,
militante, dramático e quase religioso é freqüente no período, como se nota nos trechos
seguintes, que valem reprodução pelo que têm de atípico e avesso à escrita sempre tão
contida, sóbria e descrente de Machado:

No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um desenvolvimento conveniente- as


caligens cairão aos olhos das massas; morrerá o privilégio, obra de noite e da sombra; e as castas
superiores da sociedade ou rasgarão os seus petgaminbos ou cairão abraçadas com eles, como em
sudários. 156

Eu o creio de coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é das inteligências proletárias,
das classes ínfimas; das superiores, não. 157

E crê: se há alguma coisa a esperar para a civilização é desses meios que estão em contato com os
grupos populares. Deus me absolva se há nesta convicção uma utopia de imaginação cálida.l5 8

Nos textos a que pertencem os trechos acima, temos o escritor aparentemente


inclinado a fugir da butguesia e optar pelo "povo" - termo usado pelo próprio Machado
- e que, impossibilitado de fazê-lo, procura mostrar-se isolado e estabelecer comunicação
direta com Deus, o que o escritor faz discretamente nas invocações e evocações ao mundo
divino. A postura lembra as considerações de Sartre sobre a posição social do escritor
francês do século 19, de que tratamos no primeiro capítulo. O caráter retórico dessas
considerações está perpassado por aquilo que Antonio Candido chamou de "mitos da
instrução redentora", em que o escritor, compartilhando da ideologia ilustrada, parece

entre julho de i 887 e julho de i 888. Cf. Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, no 5,
29.9.1960, pp. 15-24.
!53 "Idéias sobre o Teatro", ap. cit., p. 791.
154 "O Jornal e o Livro", Correio Mercantil, 10 e 12.1.1859, in OC, vol. 3, p. 945.
155 "A Reforma pelo Jornal", O Espelho, 23.10.1859, in OC, vol. 3, p. 964.
156 "Idéias sobre o Teatro", op. cit., pp. 793-794.
157 "A Reforma pelo Jornal", op. cit., p. 964.
158 [A Crítica Teatral. José de Alencar: Mãe], "Revista Dramática" (seção do Diário do Rio de Janeiro),
29.3.1860, in OC, vol. 3, p. 838.

76
acreditar que a instrução das "classe ínfimas" pelas classes esclarecidas automaticamente
produziria o progresso da sociedade.I59
Se a crença na instrução como panacéia para solução das iniqüidades sociaís
coincidia com a postura dos escritores românticos, ao contrário destes Machado nunca se
mostra horrorizado diante das exigências materiaís da arte ou revela desconforto com as
exigências comerciaís colocadas à atividade do escritor. Pelo contrário, ele rejubilava-se
com a relativa despersonalização da atividade literária e via no jornal, veículo por
excelência da literatura popular, a vantagem de conferir algunta autonomia ao homem de
letras, nos tempos passados subjugado pela existência parasita "em que a consciência
sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto". 160 Daí a saudação ao
folhetinista, entidade que ele passaria a encarnar em 1860 ao assumir a crítica de teatro no
Diário do Rio de Janeiro e definida por ele como a entidade maís feliz do mundo por ter "a
sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo" aínda que para isso passe o ridículo de
afetar o tom afrancesado instalado sobre "um mac-adam lamacento e com uma grossa
tenda lírica no meio de um deserto."I6I
Todos os textos deixam transparecer o descompasso entre a produção e o meio, e o
isolamento do artista num ambiente caracterizado ora como indiferente ora como hostil à
produção artistica. Se ao longo de toda a década de 1860 o tom geral da crítica é de
confiança no futuro das artes no Brasil e na correção do gosto corrompido, há momentos
em que Machado, também em postura tipica do romantismo, evadia-se para a posteridade,
como o vimos fazer em carta a José de Alencar e na conclusão deste outro texto, em que
critica O Culto do Dever, de Joaquint Manuel de Macedo:

Pelo que diz respeito às letras, o nosso intuito é ver cultivado, pelas musas brasileiras, o romance
literário, o romance que reúne o estudo das paixões humanas aos toques delicados e originais da poesia
( ... ) meio único de fazer com que uma obra de imaginação, zombando do açoite do tempo, chegue,
inalterável e pura, aos olhos severos da posteridade.I62

159 Antonio Candido, "Literatura e Subdesenvolvimento", in Argumento -Revista Mensal de Cultura,


ano 1, no I, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, p. 13.
160 "O Jornal e o Livro", in op. cit., p. 948.
161 "O Folhetinista", O Espelho, outubro de 1859, in OC, vol. 3, p. 960.
162 ([J.M. de Macedo: O Culto do Dever], "Semana Literária", 16.1.1866, in OC, vol. 3, p. 847.

77
Interessa na passagem a renovada confiança de Machado nos seus leitores, ainda
que na forma hipotética e figurada dos olhos severos da posteridade, e também o fato de
conter uma das primeiras opiniões do escritor a respeito do romance, gênero em que ele
ainda não estreara. A primeira observação de Machado sobre o romance encontrei no texto
de 1860, que trata da peça Mãe, de José de Alencar, já citado acima. Aí, ele lamenta que
"esse drama, essenciaimente nosso [o da escravídão], podia, se outro fosse o entusiasmo de
nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette Stowe- fundado no mesmo
teatro da escravidão." 163 Trata-se de uma referência à Cabana do Pai Tomás, o primeiro
grande best-seller norte-americano, publicado em 1852, e emblema máximo do romance
popular do século 19, tendo vendido bem mais de duzentos míl exemplares nos Estados
Unidos no ano de sua publicação e imedíatamente traduzido para mais de uma dezena de
línguas, incluindo o português. 164 A associação do romance a questões de recepção e
popularidade está presente num outro artigo, datado de 1864. Oito anos antes de
Ressurreição vir à luz e sob o pseudônimo Sileno, Machado escrevia sobre Diva, fazendo
conjecturas sobre a recepção e a popularidade do livro recém-lançado de José de Alencar:

É um romance do autor de Lucíola. Todos se lembram do barulho que fez Lucia/a. Terá este a
mesma fortuna? Ouso duvidar. Lucíola tinha mais condições de popularidade. Primeiramente, assentava
sobre o princípio da beleza moral no meio da perversão dos sentidos, princípio já gasto, mas que,
segundo suponho, ainda dará tema a muitos livros. Não entro na discussão dele. Lucíola tinha mais a
qualidade de ter uma ação complexa, movimentos dramáticos, mais profunda análise de sentimentos.
(... ) Mas eu eXPlico assim os meus receios acerca do efeito do livro. Não basta para o sucesso das
massas uma linguagem fluente e colorida.1 65

É justamente a busca desse tipo de peculiaridade que Machado questionará, na


década de 1870, como recurso eficiente para se atingir o público de literatura. Por essa
época, sua postura em relação ao público de literatura aparece bem transformada. Pode-se
dizer que ela se "desromantiza", no sentido de que desaparece o arrebatamento retórico do
crítico preocupado em ilustrar o povo e as massas e afirmar o caráter míssionário da arte e

163 [A Critica Teatral. José de Alencar: Mãe], op. cit, p. 840.


164 Embora não tenha conseguido obter dados exatos sobre a vendagem de A Cabana do Pai Tomás no
Estados Unidos, sabe-se que na década de 1850 eram considerados best-sellers livros com vendagens
superiores aos 225.000 exemplares. Cf. Frank Luther Mott, op. cit., pp. 307-8.
165 Sileno (pseudônimo), Imprensa Acadêmica, São Paulo, 17.4. 1864, citado em R. Magalhães Júnior, op.
cit., p. 144.

78
da literatura. Nesse período, a atividade do crítico perde regularidade, mas ganha fôlego
com a publicação de três ensaios fundamentais da crítica literária brasileira- "Notícias da
Atual Literatura Brasileira- Instinto de Nacionalidade" (1873), o polêmico texto sobre O
Primo Basílio (1878) e o ensaio "A Nova Geração" (1879).
Em "Instinto de Nacionalidade", escrito de encomenda para a revista O Novo
Mundo, publicada em português em Nova York, Machado opõe o impulso romântico de
revestir as diversas formas literárias com "as cores do país" à busca de um instinto de
nacionalidade que faria da literatura a expressão de um sentimento nacional profundo e
íntimo. No que conceme ao romance, ele sugeria a necessidade de se procurar a análise de
paixões e o contraste de caracteres - seu propósito declarado em Ressurreição - em
detrimento da descrição da natureza e costumes do país, procedimento até então
predomínante no romance brasileiro. Em relação à recepção das artes, Machado relata que
no teatro o gosto do público tocou o último grau da decadência e perversão, lamenta a
ínexistência de uma crítica doutrinária, ampla, elevada e regular, ausência considerada por
ele como "um dos maiores males de que padece a nossa literatura"166 e constata sem
reproche - mas também sem deixar de índicar o anacronismo - a permanência do gosto
romântico entre a nova geração:

Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico; os escritores
que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, - porque há aqui muito amor a essas
comparações- são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vitor Hugos, os Gautiers, os
Mussets, os Gozlans, os Nervals. 167

Posição mais branda em relação ao romantismo serà defendida por Machado em "A
Nova Geração", publicado em 1879:

A nova geração chasqueia às vezes do Romantismo. Não se pode exigir da extrema juventude a
exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo. De outra sorte, essa geração teria
advertido que a extinção de um grande movimento lherário não importa a condenação formal e absoluta
de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e flca no pecúlio do espírito humano. 168

A essa altura Machado já publicara Iaiá Garcia e estava às vésperas de imprimir

166 "instinto de Nacionalidade", O Novo Mundo, Nova York, 24.3.1873, in OC, vol. 3, p. 804.
167 Idem, p. 805.

79
uma guinada em sua carreira de romancista com Brás Cubas. Talvez por isso o tom
reconciliador- e autocrítico- do escritor em relação ao romantismo. Autocrítico porque
ele mesmo, como jovem romancista, investira pesadamente contra o romantismo nos seus
dois primeiros romances. Reconciliador porque com Iaiá Garcia extinguia-se a tensão com
o novelesco. Note-se que a frase final do trecho acima ecoa as últimas palavras de Jaiá
Garcia - "Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões" - o que talvez permita
interpretar ambas como expressão, em diferentes arenas, da liqüidação do romanesco na
obra machadiana, o que me parece ser o papel de Iaiá Garcia no percurso da obra
machadiana, como mostrarei mais à frente.
Essa mudança no modo de conceber a recepção da literatura e a atividade critica
fica ainda mais marcada na apreciação critica sobre O Primo Basílio, também de 1879. Até
então muito dedicado aos sobrevôos e à visão panorâmica da produção literária, em que o
leitorado aparecia corno entidade abstrata, Machado agora parte da grande aceitação do
romance por parte do público para assumir a posição de um leitor ideal - refinado,
minucioso, exigente, o "leitor perspicaz"169 evocado e caracterizado pelo texto como
alguém atento a incongruências mas que também quer ser atraído e envolvido pelo enredo.
A noção que Machado tem de si mesmo enquanto leitor aparece alterada nesse texto, e sua
nova divisa está sintetizada nestas palavras: "Nem basta ler; é preciso comparar, deduzir,
aferir a verdade do autor." 170 É a esse tipo de leitura que Machado se entrega nessa critica
bastante circunstanciada, atípica para o padrão da época, apontando os defeitos que via no
romance de Eça de Queirós e que em linhas gerais consistiam em exageros de Eça, por
quem Machado demonstrava muito apreço, na aplicação dos preceitos da escola Realista,
que Machado repudiava. Na resposta a dois artigos que discordavam de suas opiniões sobre
o romance português, ele afirma sua independência das escolas - enquanto critico e
enquanto leitor - e faz urna distinção importante entre duas posturas para a recepção de
um livro. Um dos contendores discorda da condenação à falta de decoro literário de
algumas expressões e passagens do romance, citando corno argumento o exemplo do
Cântico dos Cânticos que, apesar de ser um livro bíblico, trata o matrimônio e a vida

168 "A Nova Geração", Revista Brasileira, vol. II, 1.12.1879, in OC, vol. 3, p. 810.
169 [Eça de Queirós: O Primo Basílio], O Cruzeiro, 16 e 30.4.1878, in OC, vol. 3, p. 906.
170 Idem, p. 911.

80
sexual com realismo e erotismo, ao que Machado responde:

Ou recebeis o livro como deve fazer wn católico, isto é, em seu sentido místico e superior, e em tal
caso não podeis chamar-lhe erótico; ou só o recebeis no sentido literário, e então nem é poesia, nem é
de Salontão; é drama e de autor anônimo. Ainda, porém, que o aceiteis como tun simples produto
literário, o exemplo não serve de nada.171

Ao contrastar o "sentido místico e superior" e o "sentido literário", o escritor aponta


para a postura antidogmática que será uma das marcas de sua obra a partir de Brás Cubas,
assim como o será a noção arrojada e materialista do texto como produto de consumo,
conforme examinarei nos próximos capítulos.
A desmistificação da produção literária é marca distintiva de sua produção critica a
partir do final da década de 1870 e na seguinte, quando escritos dessa natureza são raros.
No prefácio de um livro de poemas, Machado declara que apresentar um poeta ao público é
a mais inútil das tarefas, pois "um livro é um livro; vale o que efetivamente é"172 ; e ele
mesmo se encarrega de desmistificar sua postura juvenil que via na instrução e na leitura a
panacéia para todos os males do pais e do mundo. Isso ocorre em "A Nova Geração", de
1879, no comentário sobre o poema "Dois Edificios", de Valentim Magalhães:

É quase meio-dia; encostado ao gradil de wna cadeia está um velho assassino, a olhar para fora; há
uma escola defronte. Ao bater a sineta da escola saem as crianças alegres e saltando confusamente; o
velho assassino contempla-se e murmura com voz amargurada: 'Eu nunca soube ler!' Quer o Sr.
Valentim Magalhães que lhe diga? Essa idéia, a que emprestou algrms belos versos, não tem por si nem
a verdade nem a verossimilhança; é um lugar-comum, que já a escola hugoista nos metrificava há
muitos anos. Hoje está bastante desacreditada. Não a aceita Littré, como panacéia infalível e universal;
Spencer reconhece na instrução um papel concomitante na moralidade, e nada mais. 173

Com a franqueza característica dos seus escritos críticos, Machado reduz a nada o
clichê, desautorizando-o com a autoridade da filosofia social de Spencer e de Littré e
denotando uma relação com a escrita já muito distante do caráter quase místico e
transformador que o jovem escritor lhe atribuía na década de 1850. Nesse mesmo texto,
Machado reconhece faltar ao ambiente cultural brasileiro força necessária à invenção de

171 Idem.
172 [Francisco de Castro: Harmonias Errantes], carta-prefácio ao livro publicado no Rio de Janeiro pela
Tipografia Moreira e datada de 4.8.1878, in OC, vol. 3, p. 914.
173 "A Nova Geração", op. cit., p. 825.

81
doutrinas novas, que é uma de suas verdades óbvias, e aconselha a nova geração a não
esquivar-se das condições do meioP4 lncorporar à escrita as condições precárias do
ambiente cultural é o que Machado fazia naquele exato momento, às vésperas da
publicação das Memórias Póstumas, que a partir de março de 1880 sairia uas páginas da
mesma Revista Brasileira que publicava o ensaio "A Nova Geração".
A partir da década de 1890, a preocupação com a recepção da obra se expressa
sobretudo na correspondência com o editor Gamier, que em 1899 se torna proprietário da
obra literária do escritor. Na correspondência endereçada a Paris, temos um escritor que
discute detalhes da composição dos seus livros, como ocorre numa carta datada de 8 de
setembro de 1902, endereçada ao gerente da Garnier em Paris, em que o escritor protesta
contra o aspecto da edição de Várias Histórias pela Gamier, que sairia com apeuas 230
páginas em contraste com as 310 páginas da edição anterior, da Laemmert, "c'est-à-dire
que l'ouvrage aura l'aspect et la valeur d'un petit livre, ce qui fera du mal à la vente",l75 Ou
então preocupado com o número de exemplares de Dom Casmurro que serão enviados de
Paris: "Je vous prie, dans notre interêt à tous, que !e premier envoi d' exemplaires soit assez
nombreux, car il peut s'epuiser vitement, et !e retard du second envoi fera mal à la
vente."I76 Essa correspondência revela uma faceta insuspeita de Machado de Assis, a de
administrador cuidadoso de sua produção literária, muito atento à venda e ao esgotamento
das edições de seus livros. Retomarei a essas cartas ao tratar dos romances.
Por ora, fiquemos na segunda verdade de La Palisse, que seria formulada em carta
escrita a José V erissimo em 1883, a propósito da Revista Brasileira:

Há alguns dias, escrevendo de um livro, e referindo-me à Revista Brasileira, tão malograda, disse
esta verdade de LaPalisse 'que não há revistas sem um público de revistas'. Tal é o caso do Brasil. Não
temos ainda a massa de leitores necessária para essa espécie de publicações. A Revista Trimestral do
Instituto Histórico vive por circunstãncias especiais, ainda assim irregularmente, e ignorada do grande
público177

Um corolário da formulação escrita a José V erissimo- "Não há romances sem um

174 Idem, p. 813.


175 Augusto Meyer (org.), Exposição Machado de Assis -Centenário do nascimento de Machado de
Assis, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1939.
176 Idem, p. 201.
177 Carta a José Veríssimo datada de 19.4.1883, in OC, vol. 3, p. 1038.

82
público de romances" -não passaria pela mente de Machado de Assis, sempre tão atento
ao público e a questões em tomo da popularidade do romance?
Do ponto de vista biográfico, é impossível saber se a palissada passou ou não pela
cabeça do escritor, que não a registrou nesses termos. Entretanto, por meio da análise e
interpretação dos romances e à luz do que foi estudado acerca da importância e recorrência
das questões relativas ao público leitor para os escritores brasileiros oitocentistas, e
particularmente para Machado, procurarei demonstrar não só que o truísmo foi debatido
por ele em todas as suas obras mas também que sua formulação, por muito tempo
obnubilada pelo idealismo romântico, teve importância e força suficientes para reorientar o
projeto do romancista, que a partir das Memórias Póstumas estará sempre questionando se
é ou não romance aquilo que ele está a escrever.

83
SEGUNDA PARTE

A figuração do leitor nos romances de Machado de Assis


Capítulo 4
Ressu"eição e A Mão e a Luva: o questionamento do leitor romântico

Machado de Assis começa sua carreira de romancista com um projeto anti-


romântico num momento em que o gosto pela literatura sentimental e imaginosa domina
o ambiente literário brasileiro. Sua tarefa consiste, portanto, não só em apontar e demolir
os anacronismos, mas também atrair um público capaz de compreender e fruir a
"literatura moderna" que pretende constituir. Por isso, a tensão entre o gosto vigente e
este projeto modernizador permeia os dois primeiros livros, nos quais personagens
formadas pela poesia de Lord Byron e educadas com a leitura do Werther são
sistematicamente ridicularizadas pelos narradores, que também desafiam a expectativa
dos seus interlocutores, apontando sempre para a necessidade não apenas de um novo
tipo de literatura, mas de um novo tipo de leitor.
Vale lembrar que essa busca de inovação está expressa já no marco zero da
produção romanesca de Machado de Assis, a "Advertência da primeira edição" de
Ressurreição. Nesse prólogo cheio de declarações de modéstia e cuidados com a opinião
alheia, a intenção de inovar e de se mover na contracorrente vem indiciada pela ênfase na
caracterização do livro como "ensaio" e na sua dessemelhança, já a partir do prólogo, em
relação a outros livros. Aí, sob a assinatura M. A., Machado de Assis confessa não saber
o que se deva pensar do livro e diz ignorar sobretudo "o que pensará dele o leitor". A
preocupação, atribuível a uma boa dose de retórica, também se explica pela consciência
de quanto a narrativa desafiava as expectativas do leitor do início da década de 1870,
acostumado a histórias de forte apelo sentimental e carregadas de cor local, das quais
Sonhos de Ouro, de Alencar, publicada no mesmo ano de 1872, serve de paradigma. O
afastamento consciente do padrão vigente está expresso na intenção confessa de não fazer
romance de costumes, mas tentar "o esboço de uma situação e o contraste de dous
caracteres" 1, o que está mais de acordo com a direção proposta para o prosa de ficção
brasileira em "Instinto de Nacionalidade", texto em que Machado defenderia a
superioridade da análise de paixões e caracteres à descrição dos quadros típicos da
paisagem e da vida brasileiras, motivos que até então dominavam a produção literária.

87
Esse novo interlocutor que Machado de Assis busca constituir nos seus dois
primeiros romances é o assunto deste capítulo, em que procuro esboçar os contornos
dessa "coisa nova" - ainda não tão metafórica ou original - por meio da análise das
diferentes e variadas estratégias adotadas pelos narradores de Ressurreição e A Mão e a
Luva no trato com seus interlocutores. Em comum, temos narradores que lançam mão dos
esquemas e preceitos dominantes para demonstrar sua artificialidade e impropriedade,
minando o romantismo desde dentro e procurando transformar o leitor, se não num anti-
romântico, pelo menos num receptor critico da literatura romântica.

A frustração das expectativas


A situação apresentada - a de um quadrilátero amoroso - é pouco original: o
advogado Meneses ama a jovem viúva Lívia, que ama o médico Félix, que corresponde
ao amor da viúva, mas esta reluta em confessar seu amor pelo médico porque sua grande
amiga, Raquel, por ele é perdidamente apaixonada. A consumação do amor entre o herói
desambicioso e enriquecido por uma inesperada herança e a bela viúva é procrastinada
pela lealdade de Lívia, que não quer fazer sofrer sua amiga RaqueL Quando o casamento
de Félix e Lívia é finalmente marcado, o impedimento para sua realização materializa-se
na figura do vilão Luís Batista, aparentemente autor da carta que Félix recebe às vésperas
do casamento, com revelações misteriosas que o levam a cancelar as bodas. A história
termina com a união feliz de Raquel e Meneses e com o sofrimento de Lívia e Félix,
isolados e solitários.
Estamos no entrecho romântico, com seus encontros e desencontros amorosos,
casamentos postergados e ao qual não falta nem mesmo o vilão dissimulado e insidioso.
No entanto, as expectativas geradas pelo enredo convencional são frustradas à medida
que a intriga se desenvolve, já que não há de fato um obstáculo externo para a realização
do amor entre os protagonistas, impossibilitado única e exclusivamente pelo ciúme
doentio de Félix - note-se o contraste entre o nome solar e positivo e a personalidade
sombria do protagonista-, o que o coloca em estado permanente de dúvida, privando-o
da felicidade que está ao alcance de suas mãos. Ressurreição contém todos os elementos

1
Machado de Assis, Ressurreição, in Obra Completa, vol. l, p. 116.
88
do romance romântico, mas o narrador imprime uma desaceleração ao andamento da
trama, reduzindo a movimentação dramática que seria de se esperar de uma narrativa
mais convencional e alocando-a na consciência atormentada de Félix. Longe de ser
involuntária, essa amortização do ritmo narrativo constitui elemento central da
organização da obra, que questiona abertamente as convenções do tipo de texto a que faz
referência.
A frustração está anunciada já no primeiro parágrafo, em que o narrador,
empenhado em desmistificar as ilusões do leitor, lança mão da primeira pessoa do plural
para denunciá-las e constrangê-lo a compartilhar de sua concepção desencantada da
passagem do tempo:

Tudo nos parece melhor e mais belo, - fruto da nossa ilusão, - e alegres com vermos o ano que
desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte.
Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a magnificência do céu e os
esplendores da luz?'

A advertência é clara: na história que ora se inicia, a passagem do tempo e, por


extensão, o próprio desemolar da narrativa, não aponta para a resolução dos conflitos
neste ou noutro mundo. Aqui, o tempo avança em direção ao nada. Esta é a percepção
desiludida que o narrador apresenta ao seu interlocutor para, em seguida, levá-lo a
questionar se essa seria também a percepção do personagem Félix. O narrador finge
compartilhar com seu interlocutor e com o protagonista as mesmas ilusões, indicando que
todos estão igualmente imersos num mundo de falsas aparências; mas logo em seguida
denuncia seu embuste ao afirmar que ele mesmo não se engana pela beleza e frescor do
ano novo e sugerir que o leitor e Félix talvez se deixem levar pelos falsos esplendores. A
primeira pessoa do plural, dessa forma, é artificio retórico para aproximar-se do leitor,
cujas expectativas o narrador constantemente enuncia para logo em seguida frustrá-las.
Veja-se um outro exemplo do mesmo recurso:

O desenlace desta situação desigual entre um homem frio [Félix] e uma mulher apaixonada [Livia]
parece que devera ser a queda da mulher: foi a queda do homem. (... ) Ironia da sorte chamará o leitor a
este desfecho de uma situação que, algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes

2
Idem. p. ll7.
89
lógica da natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era simplesmente da
nossa comum argila.'

Ao antecipar a expectativa do leitor para em seguida desmenti-la, o narrador


parece ter em mente um leitor acostumado a uma norma (romântica, neste caso) que não é
a que considera desejável; daí a postura de quem está o tempo todo corrigindo os
impulsos interpretativos do interlocutor. Para imprimir naturalidade e confiabilidade sem
parecer extravagante ou inverossímil, o narrador sugere que a "lógica da natureza" rege
esse mundo ficcional contraposto ao artificialismo dos romances antigos, em que
predominava a imaginação e aos quais seus interlocutores estariam habituados. Com isso,
ele chama a atenção para a originalidade do seu relato, que soluciona pelo bom senso (a
"lógica da natureza") as mesmas situações que a convenção romântica resolve por meio
de ardis fantasiosos e inverossímeis.
Caracterizado em linhas gerais como um iludido por convenções já superadas, o
leitor explicitado pela narração freqüentemente é alvo das desculpas do narrador pelas
infrações às normas, um artificio com múltiplas intenções: levar o leitor empírico a
identificar o anacronismo de alguns recursos narrativos repisados nos livros do seu
repertório, o que é uma forma de apontar o seu caráter não natural e não obrigatório;
indicar a impropriedade e a inadequação desses recursos; e, em última análise, reformar-
lhe o gosto. Para realizar a conversão, o narrador coloca-se na posição de autoridade que
formula perguntas e inocula dúvidas em seu interlocutor para imediatamente respondê-
las. Vejamos o mecanismo em funcionamento:

Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentaimente casando-se dous pares de corações
e indo desfrutar a sua lua-de-mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor
impaciente, era necessário que a filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam,
nem se dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos de Meneses era que
este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de amor? F oi de admiração primeiro, e depois foi
de amor; cousa de que nem ele, nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era fonnosa e moça,
ele era rapaz e amorável, e de mais a mais inexperiente ou cego, que não adivinhava a situação anterior
da viúva e do médico ainda por entre os véus com que lha ocultavam.'

Essa espécie de "procedimento de lago", empregado pelo vilão da história para


induzir Félix ao mergulho na ilusão, é utilizado pelo narrador com objetivo oposto: abrir

3
Ibidem, p. 143.
4
Ibidem, p. !59.
90
os olhos do leitor para as mistificações embutidas num certo tipo de literatura que o
narrador condena. Às expectativas do leitor familiarizado e afeito às narrativas em que o
amor é um dado da natureza a ser sacramentado pela religião assim que estiverem
superados os obstáculos materializados na figura do vilão, o narrador contrapõe outra
realidade ficcional, em que os impedimentos estão interiorizados e habitam regiões
recônditas do espírito dos personagens, mas podem ser perscrutados mediante a
observação atenta. Observar atentamente: é isso que o narrador procura ensinar ao seu
interlocutor, tão inexperiente ou cego como Meneses, mas que goza da vantagem de ter
alguém empenhado em revelar-lhe o que está sob as aparências. No trecho acima, é
notável como os sentimentos se revelam no jogo entre o visível e o invisível - na
correspondência/não-correspondência de olhares, na cegueira de Meneses, nos véus que
ocultam o envolvimento de Lívia e Félix - , um jogo cujas regras só o narrador parece
dominar completamente e no qual ele envolve o interlocutor por meio do emaranhado de
suposições, perguntas e dilemas.
O mecanismo de controle implícito nesse sestro de antecipar expectativas e prever
reações fica encoberto pela naturalidade que o narrador procura imprimir ao que está
sendo narrado, tanto pelo tom de conversa quanto pela simulada concordância do - e
com o - interlocutor, que muito provavelmente não pensou em nada daquilo e
rigorosamente não disse nada para ser alvo das inquirições - "Que quer?" - do
narrador. Ao adiantar as inferências e conclusões do leitor, corrigi-las e colocá-las nos
trilhos, o autor, por meio do narrador, simultaneamente delineia o leitor típico da segunda
metade do século 19, que ele recusa, e aponta para o perfil do público virtual e do público
ideal que procura atingir.

À procura do leitor moderno


Para delinear quem é o leitor projetado em Ressurreição, examinemos como o
texto lida com um expediente típico do romance romântico - o enriquecimento de um
personagem com inesperada herança. Quando, no início da história, Félix recebe um
legado que o lança da pobreza e da obscuridade diretamente para o mesmo patamar social
de Lívia, o narrador afirma não se tratar de clichê, mas de um lance da Providência, que

91
"possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro."5 Félix
recebe a herança porque Deus, ou o destino, assim o quis: essa é toda a explicação
fornecida, o que é, do ponto de vista racional, explicação nenhuma. Ao procurar imprimir
naturalidade ao seu relato, acaba desvelando os clichês, sem substituí-los por outros
supostamente mais naturais ou verdadeiros. Sob essa aparente contradição está delineada
uma postura do narrador: ao mesmo tempo em que denuncia a artificialidade e a mentira
de procedimentos narrativos tidos por normais, recusa-se a procurar outros, sublinhando
assim o fato de que o romance é um relato construído, no qual a verossimílhança importa
mais do que a verdade.
Esta é, aliás, uma das questões centrais que o livro coloca por meio de Félix, para
quem o sofrimento e o destino infeliz não têm qualquer lastro na realidade objetiva. Basta
lembrar que ele mesmo considera plausível a hipótese de que a carta que o levou a
desfazer o casamento com Lívia fosse um ardil de Luís Batista, e mesmo assim não faz
nada:

A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível,
mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luís Batista fora o autor da carta;
Félix não recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que,
suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do fato, e bastava ela pra lhe
dar razão.'

O narrador, que acaba por revelar ao leitor que Luís Batista era efetivamente o
autor da carta ("Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso
afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista."\ inclui a figura do vilão,
importada do figurino romântico, para dizer ao final que não é ele o responsável pela
infelicidade dos amantes. O mal não é uma força externa, mas está interiorizado em Félix
e constitui um dado de sua perturbação mental, da sua fragilidade, do seu caráter
pusilânime e do seu ciúme doentio. É a natureza psíquica do personagem que inviabiliza
sua felicidade, e não as artimanhas do vilão. Em oposição à forma como foi concebido
pelo romantismo, princípio ativo e força demolidora, o mal comparece aqui como
princípio passivo. O que importa a vilanía de Luís Batista diante da verossimilhança das

5
Ibidem, p. 117.
6
Ibidem, p. 195.
7
Ibidem, p. 19!.
92
alucinações produzidas pelo ciúme? Essa é a pergunta fundamental que Machado coloca
ao leitor por meio de Félix, personagem com matizes estranhos ao padrão corrente. A
estranheza fica mais evidente na comparação entre Félix, "cujo espírito só engendrava
receios e dúvidas", Meneses, "propenso às fantasias cor-de-rosa"\ contraste que o autor
define como objetivo principal do seu livro. 9
Esse contraste entre os personagens pode ser transposto para o plano da
interlocução, já que o narrador parece querer transformar o Ieitor-Meneses num leitor-
Félix, no sentido de induzir seu interlocutor a duvidar dos procedimentos e hábitos
tradicionais de leitura, contrastando as soluções de um outro tempo à modernidade do seu
relato:
No tempo em que os mosteiros andavam nos romances, -como refugio dos heróis, pelo menos,-
a viúva acabaria os seus dias no claustro.( ... ) Mas o romance é secular, e os heróis que precisam de
solidão são obrigados a buscá-la no meio do tumulto."

Ao proclamar o caráter retrógrado do romantismo de fundo católico, que empurra


a solução dos conflitos para a morte ou para o claustro, exilando-a da esfera humana, o
autor faz a verdade baixar à terra para afirmar que cá mais vale a aparência de verdade do
que a verdade em si - ou, por outra, que veracidade e verossimilhança são o que contam
para o romance, que é secular e pertence a este mundo. Tematizando o caráter literário da
obra dentro dela mesma, Machado aproxima sua narrativa do realismo, que usa esse
recurso para reivindicar para si o nível da realidade, opondo-a às soluções fantasiosas do
romance romântico. 11
Assim, o "contraste dos dous caracteres" proposto na "Advertência" sugere outras
dualidades: entre o velho e novo padrão ficcional, entre o romantismo e o realismo,
idealismo e materialismo, localismo e universalismo etc. Essas dualidades foram notadas
e registradas por leitores contemporâneos à primeira publicação de Ressurreição em
textos que examinarei a seguir.

8
Ibidem, p. !59.
9
Está prefigurada aí a questão central de Bentinho em Dom Casmurro, para quem "a verossimilhança ... é
muita vez toda a verdade", conforme observado por John Gledson em The Deceptive Realism of Machado
de Assis, Liverpool, Francis Caíms, 1984, p. 84. Félix também dá início à galeria de ciumentos
machadianos que incluirá o Estácio de Helena e cuhninará em Bentinho.
10
Idem, p. 194.
n Vide B. Tomachevski, "Temática", in Teoria do Literatura- Formalistas Russos, Porto Alegre, Editora
Globo, 1976, p. 190.
93
A recepção de Ressurreição
A distância que separava Ressurreição da prosa ficcional então em voga foi
assinalada por críticos contemporâneos. Em maio de 1872 escrevia Carlos Ferreira:

O Sr. Machado de Assis, cujo talento incontestável para as maviosidades do lyrismo e para
aperfeiçoamentos de estylo ninguem desconhecerá, é entretanto, julgo eu, dotado de nma imaginação
fria e positiva que, por assim dizer, embaraça-lhe a penna na descripção das paixões violentas e deixa
incompletos os qnadros das grandes tempestades do coração. Nota-se isto no seu bello romance
Resurreição (sic); pelo menos, notei-o eu de mim para mim."

Poucos dias depois, a Semana I/lustrada publicava texto sobre o livro, "excellente
- mas, não inexcedível, porque, seja dito de passagem, se é irreprehensivel na fórma, é
umas vezes frio na essencia e outras um pouco inverossímil na consubstanciação de
certos typos e no emperramento de indebitas desconfianças". Dr. Fausto, pseudônimo
com que o texto vinha assinado, também expressa sua frustração diante do caráter pouco
nacional da obra: "Sendo tão bem traçado, o romance Ressurreição poderia ser mais
nacional, porém n'esta idéa que avento talvez que eu seja o mais exigente dos
apreciadores, porque em verdade o espírito essencialmente brasileiro é tão pequenino ás
vezes, que desnortêa as mais profundas aspirações de um verdadeiro romancista." 13 O
crítico, que se ressente da frieza e do emperramento da ação, reivindica, ponto por ponto,
o retrato de costumes de feitio romântico descartado por Machado no intróito de
Ressurreição. ilustrativo da preferência e do gosto literário do Dr. Fausto é o trecho que
ele reproduz como exemplo de "forma irrepreensível":

Sentia-se que ela olhava com o espírito.


Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os
olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados
e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço
esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como
um fragmento de estátua sobre o musgo de uma mina. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e
estremeceu. Livia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o
leque da mão. Félix apressou-se a apanhar-lho."

12
C. Ferreira, "Sem Título", Correio do Brasil, Rio de Janeiro, 12.5.1872, p. I.
13
Dr. Fausto (pseudônimo), "Revista Bibliográfica", Semana lllustrado, Rio de Janeiro, n. 597, 19.5.1872,
en. 598, 26.5.1872.
14
Machado de Assis, Ressurreição, OC, vol. I, p. 130.
94
Aí, a atração física de Félix por Lívia vem completamente sublimada na sucessão
de acontecimentos silenciosos. As emoções e os desejos, inefáveis, são literalmente
constrangidos e represados pelos tecidos até finalmente encontrarem escape no gesto
físico involuntário - o estremecimento - e no barulho da queda do leque que tiram as
personagens do transe imobilizador. O elogio do autor do artigo é para o domínio pleno
de procedimentos do melodrama que, embora façam suas aparições em Ressurreição,
acabam obscurecidos, "esfriados" pela narrativa que marca passo - daí a impressão de
frieza citada e criticada por Ferreira e pelo Dr. Fausto.
Luís Guimarães Júnior, o "folhetinista elegante e jovial"15 amigo de Machado, fez
considerações interessantes sobre Félix e algumas previsões sobre as dificuldades de
recepção do livro entre o público contemporâneo à sua publicação:

O Dr. Félix no romance de Machado de Assis é um typo, senão possibilissimo, pelo menos
admiraveimente comprehensivel. Dá-nos o poeta [Machado] o seu perfil com aquelle cuidado e garbo
com que Feuillet em traços magistraes poz em relevo a figura do conde de Camors e do Marquez de
Champey. Os demais personagens da Ressurreição empallidecem ao pé do heróe; eis o motivo porque o
livro de Machado de Assis será muito estudado, mas por muito pouca gente. Não é um romance que
attraia o vulgo: é sim um quadro que chama o olhar dos entendidos e a attenção dos amigos da boa e
efficaz litteratura. O estylo é acurado, é trabalhado, é desenvolvido com uma solicitude as vezes
exagerada, o que em um ou outro ponto parece pertencer mais aos arabescos da arte do que á
espontaneidade do sentimento."

Nas três resenhas, a comparação implícita é com as histórias de Feuillet e Hugo, e


os críticos ressentem-se da falta das "paixões violentas", das "grandes tempestades do
coração" e da "espontaneidade do sentimento"; em outras palavras, dos ingredientes e do
tom da literatura sentimental, que aparentemente deliciava não só o ''vulgo", mas
também os "amigos da boa e efficaz litteratura", se considerarmos que os artigos são
assinados por alguns dos jornalistas e literatos mais respeitados e de gosto mais
sofisticado da época.
Por motivos diferentes, a obra também causou estranheza em José Carlos
Rodrigues, que publica na revista O Novo Mundo, em Nova York, resenha elogiosa sobre
o "romance fluminense" e seu autor, que embora não tenha o "gênio brilhante" do Sr.

15
Machado de Assis, "Instinto de Nacionalidade", in OC, vol. 3, p. 806.

95
Alencar e a "admirável fluência e naturalidade" do Sr. J. M. de Macedo, "não se deixa
sacrificar pelas extravagâncias do primeiro, nem pela monotonia do segundo". A certa
altura, porém, em meio aos elogios o resenhista pede licença para observar um demérito
da composição, que seria a aplicação inadequada ao personagem Félix destes versos de
Shakespeare - "Our doubts are traitors/ And make us Jose the good we oft might win,l
17
By fearing to attempt" • Para o editor d'O Novo Mundo, Félix é um personagem
desprovido de elevação espiritual e portanto de qualquer dúvida que mereça perdão ou
tentativa de explicação; trata-se de "um ente sem mola nenhuma na vida", indigno da
grandeza da dúvida shakespeariana, pois esta embora dirija-se à fraqueza do espírito
humano também acena à força de superá-la pela coragem e pela fé. Ao apontar a
inadequação, o resenhista propõe duas alternativas: ou que se atribuísse mais
grandiosidade ao personagem, no sentido de dotar-lhe de algum sentimento elevado, ou
então que Félix fosse tratado com mais severidade pelo autor, considerado indulgente por
Rodrigues. São reivindicações por narrativas mais convencionais, que explorassem
melhor as qualidades morais das personagens, punindo o vício, premiando a virtude, e
sobretudo que revelassem um posicionamento moral mais claro por parte do autor. 18
A preocupação moralizante fica clara também na censura ao autor de
Ressurreição por descrever "muíto ao vivo certas scenas em que figuram Cecilia, Felix e
Moreírinha" assim como certos ímpetos "horríveis" de Luís Viana, personagem
apresentado como um parasita por direito divino. 19 Rodrigues sugere a supressão da cena
em que Lívia é comparada a uma estátua, transcrita acima, e tacha de imperdoável o
trecho que sugere que Cecília talvez fosse "o altar em que o Moreirinha fazia os seus
sacrificios diários e pecuniários".20 O indesculpável certamente refere-se às sugestões ao
sexo e à velada prostituição. Vale notar que em carta dírigida ao editor d'O Novo Mundo
Machado agradece o artigo e as observações sobre Ressurreição, destaca o trecho com as

16
Diário do Rio de Janeiro, no. 130, 13.5.1872, p. 4; citado por Alfred J. Macadam, "Rereading
Resssurreição", in Luso-Brazilian Review, lhe University of Wisconsin Press, Madison, WI, vol. IX, no.
2, December 1972, pp. 47-57.
17
Na primeira edição do livro os versos vêm traduzidos, provavelmente pelo próprio Machado, wna vez
que não há outra indicação de autoria, da segninte forma: "São as nossas dúvidas uns traidores, que nos
fazem perder muita vez o bem que poderíamos obter, incutindo-nos o receio do tentar."
18
Veja-se José Carlos Rodrigues, "Um Romance Flmninense", in O Novo Mundo, vol. 3, Nova York,
23.12.1872, p. 46.
19
Ressurreição, in OC, vol. I, p. 120.

96
"censuras relativas a algwnas passagens menos recatadas", afirma não gostar da literatura
de escândalo e promete emendar-se na próxima composição.21 Dois anos mais tarde,
quando da publicação de A Mão e a Luva, a revista publica, artigo sobre o livro e volta à
discussão moral, como se verà mais à frente.
A estréia do romancista também foi comentada por outras revistas estrangeiras,
como a Artes e Letras, de Lisboa, e Echo Americano, de Londres, em artigos excessiva e
superficialmente lisonjeiros, nos quais o grande entusiasmo pela obra não está
fundamentado em qualquer argwnento - como aliás era freqüente na critica publicada
na imprensa de então- e o critico limita-se a manipular as palavras do prefácio do autor,
numa mostra da antigüidade do hábito de se criticar sem ler. Vale mencioná-los apenas
para apontar a notável repercussão do lançamento de Ressurreição na imprensa carioca e
estrangeira22 , fato raro na época e que voltaria a se repetir com intensidade semelhante
somente duas décadas mais tarde, por ocasião do lançamento em livro de Quincas Borba.
É de se notar que vários desses textos observam dissonâncias em relação aos padrões
dominantes, sobretudo porque a apresentação de senões não motivados por querelas
pessoais constituía também algo raro para a critica da época, bastante dada aos elogios e
lisonjas derramadas, como o escritor sugere na "Advertência" a Ressurreição ao
praticamente suplicar urna opinião isenta e justa.
O pedido de franqueza parece ter sido atendido pela critica que, em linhas gerais,
manifestou desagrado e estranheza com tudo aquilo que rompia com as convenções dos
"livros da imaginação"23 , modo como Lívia define a literatura romântica. Todos os
elementos desse tipo de literatura estão presentes, com o objetivo de serem denunciados
pelo narrador como artificiais e arbitrários. Com isso, o escritor manipula o repertório do
público real para apresentar-lhe outra possibilidade de lidar com esse universo de
referências. A operação revela crença no caráter pedagógico da criação literária,
responsável também pela formação do leitor.

20
Machado de Assis, Ressurreição, la. edição, Rio de Janeiro, Livaria Garnier, 1872, p. 47.
21
Carta a J.C. Rodrigues datada de 25.1.1873, in OC, vol. 3, p. 1032.
22
Além dos anigos citados, o lançamento foi noticiado por G. Planche no Jornal do Commercio, n'O
Mosquito e no Diário do Rio de Janeiro, em resenha de Luís Guimarães Júnior, somando pelo menos oito
resenhas sobre o romance.
23
Ressurreição, p. 137.
97
Embora denuncie a inverdade e a inverossimilhança do universo romântico, o
livro termina em nota edificante ao concluir que sem ilusão e confiança não há felicidade,
já que a razão última da infelicidade de Félix consiste no fato de seu coração ter
esquecido "na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões". 24
Pálido precursor das figuras vivazes das futuras obras, o leitor explícito do texto
aparece figurado como um leitor romântico, funcionando como uma espécie de baliza
para o escritor se posicionar em relação aos leitores virtuais imaginados para o seu texto
que, a despeito de todo o idealismo, projeta um leitor francamente anti-romântico, ou pelo
menos disposto a romper com as convenções das narrativas tradicionais.

A readequação de A mão e a Luva


A Mão e a Luva registra um sensível recuo na postura agressiva de Ressurreição,
o que se nota em estratégias bastante modificadas de comunicação do narrador com seu
interlocutor. A narração assume tom mais ligeiro e aparece despojada do clima algo
sombrio do romance anterior, o que combina com o fato de ser essa uma obra escrita para
folhetim, sujeita portanto "às urgências da publicação diária'"5 e às expectativas e
exigências do público de jornal, muito menos tolerante às afrontas aos seus gostos e
convicções do que o seleto público consumidor de livros. As mudanças na postura do
narrador sugerem também o acatamento dos senões colocados pela crítica em relação ao
livro anterior.
Novamente há quatro personagens no núcleo central. A protagonista é Guiomar,
nascida em berço pobre e elevada à opulência pela madrinha baronesa, que a adota
depois de perder a única filha. Em tomo de Guiomar giram três pretendentes: Estêvão,
pobre e sentimental; Jorge, herdeiro e insosso; e finalmente Luís Alves, rico e ambicioso.
Pelo sentimentalismo excessivo e o desapego às coisas materiais, Estêvão será logo
descartado pela herdeira. Restam Jorge, o preferido da baronesa, e Luis Alves, o

24
Ressurreição, p. 195.
25
"Advertência de 1874" de A Mão e a Luva, in OC, vol. I, p. 198. O romance foi publicado em folhetim
pelo jornal O Globo. Embora na advertência Machado diga que a publicação em capítulos estava fora dos
seus hábitos, esse expediente seria freqüente em sua carreira de romancista, na qual Ressurreição,
originalmente escrito para sair em volume, é a exceção entre os livros da primeira fase.
98
escolhido de Guiomar, por combinar "as afeições domésticas com o ruído exterior" 26 •
Corno fazer o seu desejo sobrepor-se ao da baronesa, a quem ela devia tudo? - eis o
conflito central de Guiornar e do livro. Por sorte, a rnatriarca é adepta do "paternalismo
esclarecido"27 , respeitadora da vontade individual dos seus beneficiados; além disso, a
protegida da baronesa é dotada de muito "tino e sagacidade" - e de urna boa dose de
cálculo - para resolver o impasse. Diante do sofrimento de Estêvão e da indiferença de
Jorge, realiza-se o casamento de Guiomar e Luís Alves, que constitui o encontro da mão e
da luva do título.
Como se nota, a paisagem social ganha relevo por meio da desigualdade material
entre os personagens, compondo um terreno muito mais acidentado que o de
Ressurreição, onde o nivelamento dos personagens os coloca num ambiente etéreo, do
qual as preocupações concretas da existência estão afastadas. Diante desse novo universo,
a postura do narrador aparece bastante alterada. Ele não se coloca mais em constante
oposição ao seu interlocutor, mas passa a narrativa buscando sua cumplicidade e tentando
entabular acordos. Em vez de se posicionar entre os fatos narrados e o leitor para dizer-
lhe que o que ele vê não é aquilo que imagina, corno no romance anterior, o narrador de A
Mão e a Luva parece perscrutar seu interlocutor em busca de afinidades. A entonação
enfática e quase teatral de Ressurreição, em que o narrador parece estar fixo na boca de
cena apresentando e comentando a ação, cede espaço a um tom mais conciliatório e
natural. A impressão é de que o narrador constantemente oferece o braço para nos
conduzir pelo espaço ficcional, ora convocando-nos a ir "escada acima, até a sala de
visitas"28 , ora convidando o amigo leitor a abandonar a cena:

A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três
almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e
tão singular( ...)"

São raros os momentos em que o leitor não é colocado na condição de testemunha


dos fatos narrados. Ainda quando o leitor não está "presente", o narrador trata de

26
Idem, p. 254.
27
Cf. Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos Inícios do
Romance Brasileiro, 4a. edição, São Paulo, Duas Cidades, 1992, pp. 75-76.
28
A Mão e a Luva, p. 199.

99
descrever as posições relativas entre os elementos do campo ficcional, numa
demonstração de extremo cuidado em localizar o leitor diante do narrado e buscar sua
aproximação:

Estêvão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas essas mlnúcias que aqui
30
lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias.

Em regra, o narrador (ou o romancista, como aparece no texto) divide com seu
interlocutor o privilégio de ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não
vêem ou não podem ver. 31 A frase lembra a formulação de Tackeray em Vanity Fair -
"novelists have the privilege of knowing everything" - , prerrogativa que o narrador
machadiano, pelo menos desta vez, educadamente compartilhará com seu leitor. Além de
situá-lo no espaço ficcional, o narrador procura guiar o leitor pelo tempo narrativo,
lembrando-o do que ele "viu", "ouviu" ou do que "ficou dito", simulando a fusão dos
seus sentidos com os do interlocutor, em mais uma tática para criar proximidade.
A atitude é muito diferente da adotada pelo narrador de Ressurreição. Não se trata
mais daquele mestre de cerimônias que, instalado entre o leitor e a cena, diz ter a honra de
apresentar ao leitor este ou aquele fato, fazendo questão de manifestar seu juizo. Desta
vez, o narrador pretende passar despercebido e invoca para si o papel de mero
instrumento de revelação dos "fatos", não mais utilizados para contrariar as expectativas
do leitor, mas talhados para corresponder a elas. Em A Mão e a Luva o narrador surge
mais conformado à superficie do papel, à natureza bidimensional da narração, digamos
assim. Dai a abundância de considerações como "do que ai fica dito, fàcilmente
32
compreenderá o leitor" ; "não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade"33 ,
"um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste livro, dispensa que eu
lhe conte'o.J4 ; "dirá a leitora (... ) e terá razão"35 ; "já o leitor ficou entendendo'o.J6 ; "os
leitores não terão dificuldade de admitir"37 ; "como facilmente acredita o leitor"38 ; etc.

29
Idem, p. 215.
30
Ibidem, p. 208.
31
Ibidem, p. 244
32
Ibidem, pp. 224 e 261.
33
Ibidem, p. 228.
34
Ibidem, p. 239.
35
Ibidem, p. 246.
100
Essas referências resultam num artificio retórico extremamente produtivo para a
verossimilhança do texto. Embora as freqüentes menções ao leitor explicitem o caráter
ficcional do relato, a atribuição de tantas qualidades a esse leitor serve para imprimir
"naturalidade" tanto aos fatos narrados quanto às interpretações desses fatos, com as
quais o leitor empírico é induzido a concordar justamente porque ele é arguto, perspicaz e
de boa vontade. A alternativa que lhe resta é recusar os adjetivos lisonjeiros, o que é
muito possível mas bem pouco humano. Dessa forma, ao dirigir o foco para o interlocutor
e entretê-lo com afagos, o narrador aproveita a distração - e quiçá o afrouxamento da
capacidade critica do leitor empírico, embevecido com os elogios - para otimizar sua
confiabilidade. Eis o recurso em funcionamento:

Suponho que o leitor está curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal. de quem as duas
[Guiomar e Mrs. Oswald] trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem
mais nem menos o sobrinho da baronesa, - aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas
escadas do Ginásio."

Primeiro, os holofotes são dirigidos para a curiosidade e a capacidade dedutiva do


leitor, que supõe coisas, para depois referir-se a Jorge, um dos principais personagens,
como "aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginàsio". A
afetada displicência sugere que a intriga ficcional não esteja determinada desde o
princípio, mas que ela está sendo elaborada simultaneamente ao desenrolar dos
acontecimentos "reais". As marcas da construção ficcional são cuidadosamente recobertas
pelas lisonjas e pelas informações apresentadas como óbvias e naturais, o que serve para
minimizar a impressão de interferência do narrador sobre os "fatos", reivindicação
expressa com todas as letras nas páginas finais:

Não falo eu, leitor; transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado [Estêvão]; fixo nesta
fôlha de papel os vôos que êle abria por êsse espaço fora, única ventura que lhe era permitida."'

36
Ibidem, p. 248.
37
Ibidem, p. 266.
38
Ibidem, p. 266.
39
Ibidem, p. 223.
"'Ibidem, p. 257.
101
No empenho de aproximar-se e estabelecer cumplicidade com o leitor, o narrador
a todo momento o induz a identificar-se com as personagens, positiva ou negativamente.
Assim, numa situação em que uma "interrogação imperiosa" surge nos olhos de Guiomar,
a dúvida da personagem logo em seguida é atribuida ao leitor41 ; noutra situação, ao supor
que a leitora julgue o sobrinho da baronesa como não merecedor dos cuidados da tia rica,
o narrador adverte sua interlocutora de que "os olhos da baronesa não são os da leitora"42 •
Embora sem fazer muito alarde de sua presença, o narrador está sempre procurando
aproximar seu interlocutor do ambiente ficcional pelo estabelecimento de empatia com as
personagens.
Embora o objetivo principal da obra seja traçar o perfil de Guiomar, conforme
declarado pelo autor43 , não é com ela, que aparece lendo para a madrinha um romance
francês "recentemente publicado em Paris e trazido pelo último paquete',.w, e nem com o
frio e resoluto Luis Alves que o leitor é convidado a se identificar. Ainda que esses dois,
por harmonizarem cálculo e bons sentimentos, sejam apresentados como modelares do
comportamento moderno, o páthos está todo concentrado no romanesco e retrógrado
Estêvão.
A identificação com esse personagem começa a ser construida já na página inicial,
em que o intervalo temporal que separa o tempo da ação e o da narração é descrito como
''uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e
deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e desconsolada experiência" .45 Logo
em seguida saberemos que as desilusões, assim como a triste, crua e desconsolada
experiência atribuidas ao leitor são as mesmas vividas por Estêvão, prestes a contar ao
amigo Luis Alves sobre seu amor não correspondido por Guiomar. No final, a
identificação do leitor com Estevão fica novamente sugerida; ambos estão aproximados
pela suposição do narrador de que, na situação deste, aquele adotaria a mesma atitude:

Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de
curiosos, atraídos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lájea que

41
Ibidem, p. 245.
42
Ibidem, p. 246.
43
Ibidem, p. 198.
44
Ibidem, p. 231.
45
Idem, p. 199.
102
acaso topara ali. Quem está afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o começo, supõe logo que
esse homem podia ser Estêvão. Era ele. Talvez o leitor, em lance idêntico, fosse refugiar-se em sítio tão
46
remoto, que mal pudesse acompanhá-lo a lembrança do passado.

Em contraste com o que ocorre em Ressurreição, a expectativa atribuída ao leitor


é confirmada pelo narrador- o vulto era de fato Estêvão! - e é pelos olbos do
personagem que o leitor assiste à vitória de Guiomar e Luís Alves, assim como é o seu
sofrimento que apela à simpatia do leitor, ainda que isso se dê pelo registro cômico. A
comicidade associada ao personagem tem um objetivo: despertar a identificação do leitor
com Estêvão para corrigir, pelo riso, as idéias que o leitor eventualmente compartilhe
com o personagem, caracterizado por Machado como quintessência do romantismo: seja
como leitor do Werther, em que projeta de maneira caricata a dor do seu amor "extático e
romanesco'"'', seja como autor de versos byronianos em que confessa "à cidade e ao
mundo a profunda incredulidade do seu espírito, e o seu fastio puramente literàrio'"''. As
referências, embora negativas e associadas a uma visão de mundo e a um gosto
manifestamente retrógrados, são apresentadas de modo bastante simpático, fazendo de
Estêvão o principal foco de identificação do leitor e quem sabe da própria critica que,
diante de Ressurreição, cobrara de Machado um romance mais ortodoxo.
Arriscando um pouco no terreno da biografia, a simpatia do escritor pelo
romantismo juvenil de Estêvão fica sugerida na coincidência da caracterização desse
personagem com a auto-análise do jovem Machado a respeito das "idéias muito
metafisicas e vaporosas" que o escritor confessa ter manifestado num texto de 1858.'9 A
formulação é quase idêntica à empregada para caracterizar as ambições políticas de
Estêvão - "aspirações vagas, intermitentes, vaporosas" 50 - assim como os "belos
hexâmetros"51 , forma escolhida por Machado para ventilar suas próprias idéias
"metafisicas e vaporosas", remetem à métrica do último suspiro poético de Estevão,
materializado em "sextilbas à sua juventude perdida "52 •

46
Idem, p. 269.
47
Idem, p. 267.
"Idem, p. 205.
49
O texto das idéias vaporosas é "O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura", e a confissão aparece
em "O Jornal e o Livro", OC, vol. 3, p. 947.
50
A Mão e a Luva, p. 205.
51 "O J
orna1 e o L'tvro ", op. czt.,
. p. 947 .
52
A Mão e a Luva, p. 205.
103
Recapitulando: em Ressurreição, o narrador está francamente empenhado em
contrariar as expectativas do leitor de romances românticos, o que também ocorre em A
Mão e a Luva embora com nova estratégia, já que desta vez o narrador não bate de frente
com seu interlocutor, fingindo compartilhar com ele o mesmo repertório. O procedimento
consiste em induzir o leitor a se identificar com Estevão para em seguida demonstrar a
inviabilidade, a artificialidade e o ridículo das convicções romanescas do personagem. Se
em Ressurreição o filtro que se interpunha entre o leitor e a matéria da narração era
flagrantemente anti-romântico, desta vez o narrador empresta ao leitor os "óculos cor-de-
rosa"53 de Estêvão para apontar as distorções do romantismo, que comparece como
afetação, como neste trecho:

Duas vezes viu ele [Estêvão] a formosa Guiomar, antes de seguir para São Paulo. Da primeira
sentiu-se ainda abalado, porque a ferida uão cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la sem
perturbação. Era melbor, -mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da academia, com
o desespero no coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lbe pedia a sua dignidade
de homem. Mas que lbe hei eu de fazer? Ele foi daqui com os olbos enxutos, distraindo-se dos tédios da
viagem com alguma pilhéria de rapaz, - rapaz outra vez, como dantes."

Como se observa, o narrador simula aplicar os procedimentos românticos à


narrativa (e, portanto, sugere que vai corresponder às expectativas do leitor) para dizer em
seguida que não é por sua culpa, e nem por falta de boa vontade, que tais procedimentos
são inaplicáveis. A prova definitiva é que nem mesmo Estêvão, que chegou a imprimir
versos "repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo"55 , consegue sustentá-
los. Enquanto no livro anterior os esquemas parecem aplicáveis, mas são indesejáveis,
aqui eles são apresentados como desejáveis ("Era melhor, - mais romântico pelo
menos"), mas inaplicáveis, aparecendo apenas como artificio, já que o natural - e
recomendável, porque mais conforme à realidade, como se quer afirmar, é agir como
Guiomar e Luis Alves, que também dançam conforme a música, mas sem jamais
despregar olhos e pés do chão. Embora permaneça o objetivo de reformar o gosto do
leitor, transformando-o num receptor mais adequado a um projeto modernizador, a

53
Idem, p. 200.
54
Ibidem, pp. 203-204.
55
Ibidem, p. 205.
104
estratégia é outra. Não se trata mais de combater os princípios antiquados por meio de
preleções, mas de miná-lo a partir de dentro.
Diante da tarefa de dirigir-se ao público de jornal, muito afeito à leitura dos
folhetins estrangeiros, e confrontado com as reações negativas da crítica que, a propósito
de Ressurreição, indicavam a inexistência de um público virtual anti-romântico, o
escritor produz uma narrativa mais conforme os hábitos de leitura correntes, dirigida a um
leitor implícito mais identificado com o idealismo de Estêvão do que com o materialismo
de Guiomar e Luis Alves, embora estes últimos tragam as marcas da modernidade que o
leitor deveria pelo menos ser capaz de reconhecer. O livro convida o leitor implícito a
desvencilhar-se da sensibilidade caduca para fruir a "realidade" e a "modernidade" da
narrativa que se lhe apresenta, um convite que não despertou o entusiasmo dos leitores de
1874, mais interessados nas reviravoltas das páginas de Feuillet e Montépin.

A recepção de A Mão e a Luva


Curiosamente, A Mão e a Luva foi o romance de Machado de Assis com menor
repercussão na imprensa do Rio de Janeiro. Além de um registro de lançamento na
Semana !Ilustrada, que declara não ter suficiente vulto para entrar em uma apreciação
mais longa do livro, a única resenha encontrada na imprensa da época foi publicada em
Nova York pela revista O Novo Mundo, a mesma que dois anos antes criticara a
frouxidão moral de Ressurreição. Eis o texto:

"A Mão e a Luva" tal é o titulo d'um romance do nosso sympathico Machado d'Assiz, que fe-lo
primitivamente apparecer no folhetim do "Globo" e para satisfazer o anhelo do publico fluminense,
tirou-o em separado constituindo o primeiro elo d'essa cadeia de romances que receberam o nome de
"Bibliotheca do Globo"
Applaudindo de todo o coração tão patriotica ideia, mui propria da illustre redacção do nosso
primeiro jornal, exponhamos com lisura o nosso juizo acerca do citado romance.
Mostrou-se ainda uma vez o illustre romancista esmerado cultor da forma, mantendo os fóros d'um
dos nossos primeiros estylistas; a substancia porém não condiz com esse primor externo; visto como
não parecem estar nas notas do seu diapasão thernas de longo folego. Fracos são os caracteres, a
urdidura despida de interesse commovente, a acção fria, e o desfecho intuitivo desde o primeiro acto.
Resgatam tais defeitos (si assim se podem denominar) a formosura das descripções que molduram o
quadro. Pelo que respeita á moralidade pertence á classe dos que como os de Thackeray podem os pais
darem ás suas filhas sem previa leitura."

56
Araucarius (pseudônimo), in O Novo Mundo, Nova York, vol. V, n.o 53, 22.2.1875, p. 127. A grafia,
incluindo a ausência de pontuação em alguns trechos, está conforme o original. Essa resenha também é a
105
A breve apreciação, publicada sob o pseudônimo de Araucarius, retoma o tema da
moralidade, em tomo do qual se concentravam as principais críticas à obra anterior. Desta
vez, no entanto, não há ressalvas. O que retoma é a observação sobre a frieza da narrativa,
a que faltaria movimentação e surpresa. Essa parece ser a expectativa do público leitor
imaginado pelo crítico que, na mesma coluna em que comenta A Mão e a Luva, noticia o
lançamento da Guerra dos Mascates, de Alencar, considerado um livro sem atrativos
"para leitores habituados ao movimento dramatico das novenas francesas e hespanholas, e
as scenas tranquillas do viver domestico, apanagio da eschola ingleza".
Em seu segundo romance, Machado novamente se defronta com a decepção da
crítica e a reivindicação de aproximação dos modelos vigentes, que eram os das narrativas
movimentadas e repletas de reviravoltas e lágrimas de Feuillet e Daudet, alguns dos
autores mais lidos e admirados na época. E é importante notar que a reivindicação era
feita e endossada por críticos qualificados como José Carlos Rodrigues e Salvador de
Mendonça, respectivamente diretor e colaborador de O Novo Mundo, ambos amigos de
Machado, que os tinha em alta conta Dai a suposição de que a recepção dos dois
primeiros livros tenha influído nos caminhos tomados por Machado de Assis em Helena e
Iaiá Garcia.

única citada por J.Galante de Sousa em Fontes para o Estudo de Machado de Assis, Rio de Janeiro,
Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1958.

106
~~·.•t~e ~···trinmelando
~orosame!l,te·umabeui.&sima
Helena no rodapé do •Globo .
O BESOURO. 32
LITTERALOGIA
fASAMENTO 00 E 01

1\o momento em que Yá . Yá Ga:rda e o Sr. }fott.'l. CoqueirQ re.crbem a voz~ dada _pelo· bojudo media.-
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ms das costa.."i n. bQrracha. do Par:i e diz:
Estava transviado i Estou confundido.- E~t{) Yá-Yá ó quem me vai dar 6CnMçVes novatO! Ola-rê!

Biblioteca Nacional/Seção de Periódicos


Capítulo 5
Helena e Iaiá Garcia: em busca do leitor popular?

Helena e Iaiá Garcia estabelecem um regime de comunicação bastante diferente


com seus leitores. Em ambos, a interpelação direta e explícita ao leitor escasseia e,
quando ocorre, ela se dá de maneira afável e cordial, sem demonstração, por parte do
narrador, da intenção de modificá-lo. É como se nesses dois livros Machado ajustasse sua
expectativa de público - seu público virtual - ao público de fato disponível no Brasil.
Com isso, a relação sempre ansiosa dos narradores machadianos com seus interlocutores
sofre uma significativa distensão, o que resulta em narradores apaziguados que, por meio
dos "como sabemos", "vejamos" e "como o leitor há de se lembrar" parecem pressupor
um acordo com seus interlocutores. A tensão, que em Ressurreição e A Mão e a Luva
aparecia muito concentrada na superficie da narração, desloca-se para o nível do enredo,
em ambos os casos marcados pela grande variedade de personagens, situações e
acontecimentos. Dito de outra forma, em Helena e Jaiá Garcia o apelo à atenção se faz de
modo mais velado e indireto, por meio de tramas turbulentas, cheias de reviravoltas, e
também da exacerbação da intensidade emocional dos dramas centrais.
Com isso, o escritor aproximava-se do gosto de grande parte do público leitor, que
tinha muito apreço pelas narrativas melodramáticas e sentimentais, cujos paradigmas
eram dados pelas obras de Paul de Kock, Escrich e Ponson du Terrail. As expectativas
desse público, no entanto, são apenas parcialmente correspondidas pelos livros, já que em
Helena os esquemas do melodrama não se completam e em Iaiá Garcia eles são
sistematicamente frustrados, como veremos. Os procedimentos dessas formas de narrativa
popular acabarão truncados pela incapacidade de dar conta, de forma mais ou menos
verossímil, das questões colocadas pelos enredos, fosse porque a realidade a ser
representada não se conformava ao tipo de polaridade pressuposta pelo melodrama, fosse
porque este não resistia aos testes de realidade.
No movimento da obra, os dois livros registram um quase desaparecimento de
marcas do narrador - e do leitor explícito - da superficie narrativa. Insistindo na
metáfora teatral, a impressão é de que os narradores, antes em cena aberta, agora se

109
recolhem aos bastidores, de onde passam a dirigir a movimentação dos personagens ao
mesmo tempo em que observam, de longe, as reações da platéia.

A ilusão da ficção popular


Em Helena, a intriga tem início com a morte do Conselheiro Vale, homem das
primeiras classes da sociedade do Segundo Império que deixa uma irmã, D. Úrsula, um
filho, Estácio, e um testamento no qual reconhece a existência de uma filha natural - a
Helena do título, supostamente nascida de uma aventura extraconjugal- e determina que
a moça receba sua parte da herança e passe a viver com os parentes numa chácara do
Andaraí, onde se concentra a ação.
O enredo contém todos os elementos do melodrama, com sua heroína órfã
submetida à arbitraríedade e crueldade de figuras paternas e convulsionada por crises
sucessivas que envolvem separação e perda, identidades trocadas, sedução, abandono,
extorsão, suicídio, vingança, ciúme, obsessão e compuisão.' Os sinais do melodrama
espalham-se pelo próprio ambiente ficcional, onde temos uma leitora contumaz do
"opúsculo moral" pré-romântico Saint-Clair das ilhas, e uma possível leitora do
romanticíssimo Paulo e Virgínia, que recua diante do Manon Lescaut, considerado por
ela como leitura imprópria até para "moças casadas".
Os diálogos entre Estácio e Helena são marcados por tal teatralidade que em
certos momentos dão a impressão de que as personagens estão num palco declamando
suas falas. O artificialismo é exacerbado pelo fato de Helena, obrigada a ocultar sua
verdadeira identidade, expressar sua condição por meio de metáforas, definindo-se como
"uma pobre alma lançada num turbilhão", protegida pelas "asas do favor" e ameaçada no
"sacrário de sua alma" pelo irmão que ama em silêncio. Tais frases, pronunciadas em alto
e bom som, produzem o efeito paradoxal que Peter Brooks menciona como típico do
modo melodramático - o desejo de dizer tudo numa narrativa baseada na mudez , onde
"as palavras, por mais livres e puras, por mais transparentes que sejam como veículos

1
Cf. Marcia Landy (ed.), Jmitations of Life: a Reader of Film and Television Melodrama, Detroit, Wayne
State University Press, 1991, p. !4.
110
para expressão das relações e verdades básicas, parecem não ser inteiramente adequadas
para a representação de significados"2 •
De fato, quando a crise se torna mais intensa e a verdade está prestes a ser
revelada, os significados parecem emanar diretamente do corpo das personagens. A cena
reproduzida abaixo é exemplar desse tipo de recurso: infortúnio, mau fado, destino,
felicidade, abandono e esperança são evocados, mas ao finai o que realmente importa não
pode ser expresso em palavras; o que precisa ser dito sequer pertence a este mundo:

-Há criaturas tão malfadadas que aqueles mesmos que as desejam fazer venturosas, não alcançam
mais do que preparar-lhe o infortúnio. Tal foi o meu destino. Seu pai e minha ntãe não tiveram outro
pensamento; meu próprio pai foi levado pelo mesmo impulso, quando me obrigou a ser cúmplice de
uma generosa mentira. Agora mesmo que ele me foge, com o fJID único de me não tolher a felicidade,
arranca-me o último recurso em que eu tinha posto a esperança...
- Helena! interrompeu Estácio.
- O último, repetiu a moça
Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tomara a ser opaco. Estácio teve medo daquela atonia e
concentração; travou-lhe do braço; a moça estremeceu toda e olhou para ele.
A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas, dentro de alguns instantes era alguma coisa
mais. Era a primeira revelação, tácita mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum deles
procurara esse contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que eles disseram um ao outro, com os
simples olhos, não se escreve no papel, não se pode repetir ao ouvido; confissão misteriosa e secreta,
feita de um a outro coração, que só ao Céu cabia ouvir, porque não eram vozes da Terra, nem para a
Terra as diziam eles?

A narrativa de Helena está carregada de momentos desse tipo, em que "os corpos
se comportam quase histericamente, se por histeria entendermos uma condição de escrita
corporal, uma condição em que aquilo que está reprimido é representado no corpo", e o
inefável se manifesta por meio de sinais corporais - o sorriso evanescente, o corpo
trêmulo, os olhares expressivos- ou então é projetado para esferas etéreas e intangíveis.'
Os procedimentos do melodrama, embora operantes em vários níveis, funcionam
apenas parcialmente nessa narrativa em que a tensão fica afrouxada pela fraca polarização
entre Bem e Mal, e a oposição à heroína não se corporifica em nenhuma personagem. A
vilania pulveriza-se em paternídades múltiplas a que a heroína é submetida: ela
subordina-se ás disposições do testamento do falso pai, ás determinações de seu pai

2
Peter Brooks, The Melodramatíc lmagínatíon- Balzac, Henry James, Melodrama and the Mode ofExcess, New
Haven, Yale University Press, 1995, p, 56, Minha tradução.
3
Helena, pp. 385-6.
4
Cf. Peter Brooks, op. cit., p, xi.
111
verdadeiro, e ao irmão, que toma lugar do patriarca e, movido pelo ciúme, põe-se a
aterrorizá-la. A heroína também está à mercê do "pai espiritual" da família Vaie, o padre
Melchior que, mesmo depois de esclarecida a origem de Helena, insiste em manter a farsa
criada pelo testamento. A pressão exercida por todos esses "pais" serve para fazer aflorar
a inocência e a virtude de Helena, o que vai bem com o melodrama, embora seja notável
que todas as figuras paternas estejam já desde o início absolvidas. O Conselheiro Vale,
responsável pela turbulência fundadora do enredo, jamais tem qualquer de seus atos
questionado pelos demais personagens ou mesmo pelo narrador, tão indiscutível é o seu
poder de patriarca. A mesma imunidade se aplica a Estácio, que se esforça para ocupar o
lugar do pai no circulo familiar, e ao padre Melchior, complacente com as injustiças e
violências a que a heroína é submetida.
O Dr. Camargo, com suas mãos peludas, o tique de morder as pontas do bigode, o
"olhar fixo e metálico dos gatos" e seu caráter frio, ambicioso, egoísta e dissimulado é o
principal depositário da maldade, condição atenuada pela sua qualidade de pai extremoso,
justificadamente empenhado num bom casamento para a filha. Único conhecedor da
verdadeira origem de Helena, sua maldade limita-se a chantageá-la, pedindo-lhe que
intervenha junto a Estácio para a pronta realização do casamento com Eugênia. O gesto,
no entanto, revela-se desnecessário e não tem conseqüência para o curso da narrativa, já
que antes mesmo da ameaça de Camargo a heroina fizera o "irmão" prometer-lhe o tal
casamento. Ou seja, o Dr. Camargo, que inícialmente parecia vir sendo construído como
um vilão, acaba não tendo participação direta em nenhuma das revelações, mudanças
abruptas e incidentes importantes da narrativa. Camargo só retomará ao primeiro plano da
narrativa quando o destino da heroina estiver selado - mais precisamente, na última
linha, no terceiro beijo de Camargo em sua filha Eugênia.
A polarização entre Bem e Mal, Vício e Virtude, fica enfraquecida à medida que
a história avança, e a heroina simplesmente caminha para o sacrificio sem a interferência
de um vilão identificável. Ao contrário do Bem, claramente personalizado em Helena, o
Mal está atribuído às normas de comportamento e à moralidade vigente, em relação às
quais ficam justificadas as atitudes pouco ortodoxas de todos os pais: as mentiras do
Conselheiro e de Salvador, a chantagem de Camargo, a defesa da sustentação da mentira
pelo padre Melchior e acatada por toda a família. Essa disseminação do mai compromete

112
a tensão do livro. Em determinado momento, a máquina melodramática gira em falso com
a entrada em ação de uma espécie de realismo desencantado, manifestado na nota amarga
do final do romance e nos vários sintomas de restabelecimento da ordem patriarcal: o
terceiro beijo de Camargo em sua filha, o retomo da família Vale à situação anterior à
chegada perturbadora da intrusa e também pela palavra "pai", significativamente a última
do livro.
Em resumo: uma jovem de bom coração, pobre mas com uma extensa lista de
predicados burgueses, perturba a ordem de uma família patriarcal. Seu direito legal à
herança não basta num ambiente em que o olhar severo da sociedade e os desejos
paternos sobrepõem-se à lei e onde a única possibilidade do pobre afirmar sua
individualidade é por meio da renúncia, e é isso que faz Helena. Numa sociedade
placidamente dividida entre proprietários e escravos e onde aqueles que não pertenciam a
nenhuma dessas categorias tinham de optar entre a miséria ou a cooptação, os recursos do
melodrama tout court, baseado na forte polarização de interesses, nos enfrentamentos
entre personagens de extratos sociais desiguais e na afirmação da autonomia do indivíduo
tomam-se inaplicáveis. Este é o beco sem salda em que está colocada Helena, a
personagem, e também o romance: afirmar a individualidade e a autonomia do pobre seria
uma falsificação; negá-la significava enfraquecer o melodrama. A solução conciliatória é
dada pela renúncia a tudo, que é a forma de Helena afirmar sua independência, embora
seu ato extremo indique justamente a impossibilidade de tal autonomia naquele ambiente.
A meio caminho entre o melodrama, que não se completa, e a representação
realista, sobrecarregada pelo sentimentalismo, Helena é de fato o livro fraturado a que a
crítica se refere, assunto de que tratarei mais adiante. Entre os leitores contemporâneos à
primeira publicação da obra, o apelo ao sentimentalismo importado da ficção popular
européia revelou-se um recurso eficiente para chamar a atenção, como fica sugerido pelo
relativo destaque que seu lançamento teve nas publicações da época.

A recepção de Helena e o padrão internacional


Publicado em folhetim e logo em seguida em livro pelo jornal O Globo, Helena,
ao contrário do que ocorreu com A Mão e a Luva, foi objeto de comentários e elogios em
várias publicações. No jornal A Reforma e na Imprensa Industrial, foi alçado à condição

113
de modelo do bom romance nacional e contra-exemplo do que Camilo Castelo Branco
criticava como livros "sonolentos", escritos numa "linguagem a suspirar mirnices de
sutaque", referências às obras de José de Alencar, em particular, e à literatura brasileira
em geral. A querela com o escritor português tivera origem com a publicação de O Cego
de Landim, história que o autor de Amor de Perdição ambientara parcialmente em
território brasileiro, fato que gerou animosidades por aqui. O motivo dos protestos era a
alegada falta de reciprocidade dos portugueses que, além de ignorar solenemente a
literatura produzida no Brasil, ainda se apossavam de ambientes e assuntos brasileiros
para escrever literatura de exportação, como se quisessem dar lições aos brasileiros de
como descrever as coisas pátrias. 5
O objetivo do artigo de A Reforma, que trata da obra de Camilo Castelo Branco e
do recém-lançado Helena, é provar a existência de romancistas e romances nacionais à
altura dos congêneres portugueses, então muito lidos no Brasil. Helena aparece como
exemplo de obra brasileira "sem saguis nem papagaios, producto de um talento brilhante,
de uma imaginação robusta, embora fabricada com tapioca e annanaz". Ao ressaltar o
"progresso" que representa em relação a Ressurreição, o resenhista atribui-lhe as
seguintes qualidades: "estudo sério do coração humano, urdidura simples mas vibrante de
interesse, situações novas e habilmente desenlaçadas, linguagem poética e nervosa,
sobriedade artistica". A comparação com o livro de Castelo Branco atribui um padrão
internacional à obra de Machado, caracterizado como "trabalho que pode competir com
os mais bem acabados no gênero". 6
Na Imprensa Industrial, a notícia de lançamento também vem impregnada de
indignação com as acusações de que a literatura brasileira corrompesse o idioma de
Camões e Lucena. Caracterizado como romance de entrecho "singelo", Helena
novamente é citado como "protesto contra o atrazo que nos imputam aquele que mais por
especulação do que em consciencia, no!-o attribuem, fabricando moeda falsa litteraria

5
O artigo d'A Reforma cita os casos de Pinheiro Chagas, Gomes de Amorim e do próprio Camilo Castelo
Branco em livros como A virgem Guaracyaba, Os Selvagens e O Cego de Landim. Este último conta a
história de um português velhaco, moedeiro falso, quadrilheiro de profissão e que acaba como espião de
policia no Rio de Janeiro. Cf. "A Propósito de Romances",A Reforma, Rio de Janeiro, 19.10.1876.
6
Jdem.
114
para circular entre nós", referência ao autor d'O Cego de Landim, acusado de preferir
histórias de "amores ruidosos e adubados de escândalos"7 •
Desta vez não há qualquer acusação de frieza, ausência de sentimentos ou
emperramento da ação; pelo contrário, elogia-se o livro por "correr bem", pelo "prazer em
lei-o", assim como pelo "sentimento elevado, inspiração ardente, e linguagem colorida,
opulenta". Tudo isso o aproximava do padrão estrangeiro, cujo paradigma era fornecido
pelos textos publicados nos folhetins de quase todos os diários cariocas, espaço que o
próprio Machado disputava, já que Helena saía n'O Globo no mesmo rodapé ocupado
imediatamente antes por A Feiticeira Vermelha, do popularissimo Xavier de Montépin. A
associação de Helena às narrativas estrangeiras de apelo popular também fica explícita
numa quadrinha bem-humorada de O Mosquito:

AO "GLOBO"
Por occasião de começar a publicar em folhetim
o romance "Helena", de Machado D'Assis

Tenham outros embora Escrich ou Rocambole,


Segredos do Doutor, Tragedias de Pariz....
Com Machado D'Assis que o gosto se console!. ..
Mas, ai! leitor, jamais terás assas assis.

Bob.

Nos versos de sentido um tanto dúbio, o livro de Machado de Assis aparece na


companhia de, em concorrência com e em superioridade aos pesos-pesados da ficção
popular internacional. Em comparação com os dois livros anteriores, Helena foi muito
bem recebido. A Illustração Brasileira saudou-o como "motivo de júbilo para as letras
pátrias" e o descreveu como "um estudo psicológico do melhor quilate, uma
delicadissima análise do coração humano, sem toques realistas e ao mesmo tempo sem
sutilezas fora da verdade; imagine-se uma série de episódios que promovem a curiosidade
sem, entretanto, um único lance da escola inverossímil e das surpresas melodramáticas". 8
Como se vê, o adjetivo "melodramático" já era uma pecha entre o público da prestigiosa e
efêmera ]Ilustração Brasileira.

7
"Bibliographia", Imprensa Industrial, 25.10.1876, pp. 487-8.
8
Aoônimo, "Boletim Bibliographico", Illustração Brasileira, 15.10.1876, p. 127.
115
O próprio autor, em mais de uma ocasião, revelou seu especial apreço por Helena.
Em carta a Salvador de Mendonça, informava ter-lhe remetido um exemplar para Nova
York e não escondia a satisfação com a recepção do livro ao acrescentar: "Dizem aqui
que dos meus livros é o menos mau; não sei, lá verás. Faço o que posso e quando posso."9
No prefácio à segunda edição do livro, de 1905, o já consagrado autor de Dom Casmurro,
Quincas Borba e Memórias Póstumas desculpa-se pelo que há de excessivamente
romanesco e ingênuo em Helena, diz ouvir nele um eco remoto da sua produção posterior
e declara: "dos que então fiz, este me era particularmente prezado"10 • De fato, em muitos
aspectos Helena prenuncia a obra posterior de Machado. A dicção do narrador em alguns
momentos lembra a de Brás Cubas, em trechos como este, que se refere ao Dr. Camargo:
"Ele ouvia já o rumor público; sentia-se maior- antegostava as delícias do notoriedade
-via-se como que sogro do Estado e pai das instituições."ll; a tortura psicológica a que
Estácio é submetido pelo ciúme inconsciente de Helena remete ao suplício do Bentinho
de Dom Casmurro; e a descrição da felicidade de Mendonça ao ouvir a promessa da mão
de Helena parece composta com as mesmas tintas do famoso delírio de Brás Cubas:

Quando Mendonça chegou à casa nessa noite, ia mais que nunca cheio de comoção e nadando
em plena glória. A cidade, apenas aí entrou, pareceu-lhe transfonnada por uma vara mágica; viu-a
povoada de seres fantásticos e rutilantes, que iam e vinham do céu à terra e da terra ao céu. A cor
deste era única entre todas as da palheta do divino coreógrafo. As estrelas, mais vivas que nunca,
pareciam saudá-lo de cima com ventarolas eléctricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e despeito.
Asas invisíveis lhe roçavam os cabelos, e umas vozes sem boca lhe falavam ao coração. Os pés
como que não pousavam no solo; ia extático e sem consciência de si. Era aquele o galhofeiro de há
12
pouco? O amor fizera esse milagre mais.

Considerado pelos contemporâneos como exemplo de grande romance nacional,


Helena alcançou relativa popularidade à época de seu lançamento. Segundo Gilberto
Freyre, a protagonista teria inspirando muitas mães, nos últimos decênios do Império e
primeiros anos da República, a batizarem suas filhas com o nome da infeliz personagem,
o que é um grande feito no Brasil onde, à exceção de Iracema, Peri e Ceci, poucos
caracteres literários do século 19 foram integrados ao imaginário popular. 13 Entre as obras

9
Machado de Assis, carta a Salvador de Mendonça datada de 13.11.1876, in OC, vol. 3, p. 1034.
10
"Advertência" a Helena, OC, vol. l, p. 272.
11
Helena, OC, vol. 1, p. 328.
12
Idem, p. 340.
13
Cf. Gilberto Freyre, Ordem e Progresso, lo. Tomo, Rio de Janeiro, José Olympio, !959, p. 280.
116
da primeira fase, Helena também foi a que produziu a impressão mais duradoura. Em
1908, ao noticiar a publicação do Memorial de Aires, o Diário Popular referia-se a
Machado de Assis como o "festejado romancista brazileiro" e autor de Helena. 14
Apesar dos muitos elogios anonimamente publicados nos jornais, o escritor não
recebeu, nem por meios dos jornais, nem por meio da correspondência a que temos
acesso, qualquer manifestação por parte dos seus críticos amigos, nem mesmo dos fiéis
José Carlos Rodrigues e Salvador de Mendonça, que haviam publicado apreciações sobre
obras anteriores.
Teriam o sentimentalismo e as viravoltas melodramáticas de Helena desagradado
aos leitores mais refinados? Impossível responder. À posteridade, Helena chegaria como
paradigma do anti-romance machadiano, opinião cuja gênese acredito poder ser melhor
compreendida à luz do que venho estudando sobre a recepção das obras da primeira fase.

O melodrama em Helena
A despeito da opinião dos contemporâneos e do próprio autor, Helena é
freqüentemente tratado como súmula dos defeitos da primeira fase do romancista. Talvez
por isso tenha se passado quase um século antes do aparecimento das primeiras
interpretações consistentes, o que ocorreria com os capítulos que Helen Caldwell e
Roberto Schwarz dedicaram ao romance respectivamente em Machado de Assis - The
Brazilian Master and his Novels 15 e Ao Vencedor as Batatas. 16 Diante do que veio depois,

14
L. F., "Memorial de Ayres", Diário Popular, 29.9.1908, p. 1.
15
Helen Caldwell, Machado de Assis - The Brazi/ian Master and his Noveis. Berkeley, University of
California Press, 1970.
16
No capítulo dedicado por Schwarz a Helena, esse romance é entendido, juntamente com os outros
romances da primeira fase, como tentativa - artisticamente não muito bem-sucedida - de representar a
convivência problemática entre os valores patriarcais vigentes no Brasil da segunda metade do sécuio 19 e
os valores liberais e burgueses emergentes, importados da Europa, que afirmavam a liberdade e a
autonomia do indivíduo em oposição à sua submissão às esferas tradicionais de poder - representados
principalmente pela Igreja, o Estado e a familia. Questão de fato central no romance, cuja protagonista é
apresentada como uma fina flor da burguesia - Helena fala ou compreende várias línguas, é exímia
pianista, desincumbe-se à perfeição de todas as tarefas domésticas e tem até mesmo a lei ao seu lado, uma
vez que é oficialmente reconhecida pelo Conselheiro Vale como sua fllha; no entanto, nada disso é
suficiente para sua inclusão na familia Vale, uma vez que a personagem traz consigo a marca indelével de
sua origem, pelo que é expurgada do universo social do romance, pautado pelas regras do paternalismo. A
análise traz ao primeiro plano uma questão convincentemente apresentada por Roberto Schwarz, e sob uma
perspectiva diferente por Joim Gledson, como fundamentais para o projeto romanesco de Macitado: a da
constituição de uma forma literária que dê conta de representar os mecanismos de funcionamento da
sociedade brasileira da segunda metade do sécuio 19, o que serà realizado com perfeição a partir das
117
é natural que as obras da primeira fase fossem relegadas à sombra das que seguiram e que
Helena, a mais sentimental e melodramática, caisse no ostracismo. Augusto Meyer, em
Machado de Assis, nem sequer menciona o livro. Astrojildo Pereira refere-se a ele apenas
para exemplificar como se dá a representação dos escravos na obra de Machado. Brito
Broca, apaixonado confesso de Quincas Borba e do Memorial de Aires, reserva exatas
três linhas a Helena, para qualificá-lo, ao lado de A Mão e a Luva, como história singela e
placidamente sentimental17 • Lúcia Miguel Pereira, em sua biografia de Machado de Assis,
é wn pouco mais generosa, embora não lhe dedique mais do que meia dúzia de
parágrafos. Alfredo Pujol foi dos poucos a demonstrar entusiasmo por Helena; ao
descrevê-lo como "o mais bello e o mais perfeito dos romances de Machado de Assis na
sua primeira fase", Pujol considera Helena como um ponto do percurso do autor em
direção à "perfeição estética" das Memórias Póstumas. 18 Em mais de uma ocasião o livro
foi apontado como antípoda da produção da maturidade literária de Machado. Essa a
opinião subliminar de Mário de Alencar ao perguntar ao escritor e grande amigo como ele
pôde escrever o Brás Cubas depois de ter escrito Helena, ao que Machado teria explicado
que "se modificara porque perdera todas as ilusões sobre os homens" 19•
A estranheza vem sempre associada ao sentimentalismo e ao melodrama. Lúcia
Miguel Pereira não usa exatamente esse último termo, mas tangencia a idéia ao escrever
que Machado "lançou mão de wn subterfúgio que condenou tantas vêzes: deixou que os
incidentes dominassem as situações psicológicas", transformando Helena em
"dramalhão".20 Agrippino Grieco o define como "ainda muito Feuillet", e aponta para as
"complicações algo melodramáticas, de roman-fehllleton" do final da história. 21 Helen
Caldwell descreve-o como "a story [that] was only an exciting series of events with no
implications beyond themselves - in short, a melodrama", o que ela considera ser o
propósito do autor que, para segurar a atenção e emoção do leitor, injeta urna forte carga

Memórias Póstumas. Cf. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas -forma literária e processo social
nos inícios d1J romance brasileiro, 4• ed., São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1992.
17
Brito Broca, Machado de Assis e a Política (Obras Reunidas 14), São Paulo, Livraria e Editora Polis,
1983, p. 195.
18
Alfredo Pujol, Machado de Assis, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1934, p. 79.
19
Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis (Estudn Crítico e Biográfico), 4a. ed., São Paulo, Gráfica
Editôra Brasileira Ltda., 1949, p. 145.
20
Idem, p. !20.
21
Agrippino Grieco, Machado de Assis, la. ed., Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1959, pp. 28-30.
118
emocional à história, comparável a uma página de Goethe com a cena da tempestade de
vento e chuva em que a figura do herói arquejante carrega nos braços o corpo moribundo
da heroína. 22 Até no prefácio à edição crítica elaborada pela Comissão Machado de
Assis23 , fala-se em uma fratura entre a "elaboração rigorosa, quase clássica" em sua
primeira metade e a posterior incursão "pela línha do melodrama( ... ) a partir do instante
em que a alma de Estácio, enamorado de Helena sem o saber, enche-se de suspeitas".
Mais recentemente, Regina Zilberman, num texto que aponta, a meu ver de modo muito
acertado, a tendência da crítica em compreender a "obra de Machado de Assis de frente
para trás", desvalorizando a produção da primeira fase, propõe uma releitura não-
teleológica de Helena, que tem seu final também caracterizado como "melodramático e
24
inverossirnil" • Roberto Schwarz, por sua vez, localiza o principal defeito do livro na
interferência produzida pela intriga "turbulenta e melodramática" sobre a moldura realista
- uma impropriedade literária que resultaria na fissura da narrativa.
Em linhas gerais o melodrama aparece sempre associado à falha, ao defeito e a
algum tipo de excesso, que compromete o "equilíbrio" da narrativa, desviando-a de um
caminho que seria o "normal", ou pelo menos mais de acordo com a produção posterior
de Machado. Sem deixar de reconhecer a irregularidade da composição de Helena, que
apontei acima em termos da não-continuidade e do não-cumprimento das expectativas
melodramáticas, e sem querer negar o inegável, que é a inferioridade da composição de
Helena em relação ás obras da segunda fase, parece-me que a utilização dos
procedimentos do melodrama e da ficção sentimental, em Helena, pode ajudar a
compreender melhor a trajetória descrita pelo conjunto da obra machadiana e, em última
instância, todo o projeto literário do escritor. Vimos pelas circunstâncias da publicação e
da recepção dos primeiros romances de Machado de Assis que o recurso ao melodrama
não pode ser explicado como acidente ou desvio de rota, nem como ato involuntário de
um escritor imaturo. Pelo contrário, trata-se de um registro não apenas reivindicado pelo
público leitor contemporâneo como buscado pelo escritor, que o utiliza como estratégia
para atingir o público leitor de folhetim, espaço para o qual a narrativa originalmente se

22
Cf. Helen Caldwell, op. cit., p. 58.
23
Helena, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
24
Regina Zilbennan, Estética da Recepção e História da Literatura, São Paulo, Ática, 1989.
119
destinava, e talvez ampliar o alcance do novo romance brasileiro que ele estava
empenhado em constituir.
Assim, o que ocorrerá em seguida, principalmente a partir de Brás Cubas, é que
deve ser entendido como um desvio de percurso, ou melhor, como resultado de uma
reorientação do projeto de Machado de Assis. É uma dupla percepção que produz essa
curva: 1) de que as fortes oposições, caracteristicas do melodrama e da ficção popular
européia de modo geral, não prestavam para descrever, com o minirno de
verossimilhança, as relações da sociedade brasileira da segunda metade do século 19; e 2)
da inexistência de público suficientemente numeroso para sustentar uma ficção popular
no Brasil, situação que, como vimos, ficava clara na década de 1870 com a regularização
da atividade editorial e com a revelação da exigüidade não só dos leitores reais, mas dos
leitores potenciais de literatura.
De fato, os valores burgueses, urbanos e democráticos, que eram os do melodrama
e da ficção popular inglesa e francesa do século 19, nos quais os escritores brasileiros se
espelhavam e com os quais procuravam concorrer, definitivamente não vigoram no Brasil
oitocentista, caracterizado por uma sociedade monárquica, patriarcal e extensivamente
rural, em que o acesso à produção cultural estava restrito a uma pequena elite urbana Os
valores europeus - modernos e desejáveis em abstrato - funcionavam bem nas
narrativas estrangeiras, mas não ornavam com as intenções realistas da produção local, a
não ser à custa de muita mistificação.
A composição falha de Helena, evocada com freqüência pela critica, atesta a
inviabilidade de aplicação de procedimentos dM narrativas populares européias ao
romance brasileiro, que parece ser o objetivo do escritor nesse livro. O silêncio dos pares
do escritor, seu confronto com a virtual inexistência de leitores no país, indicada pelos
números do censo, divulgados no momento em que Machado publicava o folhetim, tudo
isso há de ter contribuído para a perda das ilusões nos homens - e nos leitores? - a
que o escritor se referia na resposta a Mário de Alencar. Essas ilusões naufragarão em
definitivo com laiá Garcia, que vaí consumar a liquidação do romanesco na obra
machadiana.

120
. .

MAúflA:Ob DE ASSIS
Este formoso. roma.~~é., que tanta acceitaçã~ ?bteve dos
I leitores do •Cruzell'o ., sa.hiu agora á luz em um mtido volume
de mais de 300 paginas. · ·
Venda-se nestá. typogr~~hia., rua dos Ourives n. 51 e em
casa dos Srs. A. j; Gomes Brandão, rua da Quitanda n.' .90 ;
B. L. Ga.rnier, rua do Ouvidor' n. 65 ; É. · & ·H. L~miijert}
rua. do Ouvidor n. 66; Livraria Luso Brasileira, rua ·.da. Qlli·
ta.nda n. 24 ; Llyrarlâ. nlJPerlal, rua do Ouvidor n, Si ; .Li"" ··
' v:raria Economica., ru~ ~t~ de Se~mbro n. 63 ; Livra.rla Aca·
.deinica, rua. da ürugU'ayanâ. tÍ. 83. .·. . . ,• :.. :·
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Biblioteca Nacional/Seção de Periódicos


O naufrágio das ilusões
Os esquemas melodramáticos e a atmosfera sentimental continuam em operação
em Iaiá Garcia, embora se note um forte recuo na utilização dessas estratégias de apelo e
aliciamento do leitor. A profusão de peripécias desaparece, e a narrativa adquire uma
sobriedade e uma placidez que contrastam com a prosa lépida e exagerada de Helena.
Mais do que na obra anterior, laiá Garcia recusa-se a oferecer ao leitor uma gratificação
emocional por meio de soluções convencionais para os conflitos que desenha ao longo do
seu desenvolvimento. O leitor de folhetins é submetido à frustração quase completa de
suas expectativas à medida que o romanesco, caracterizado como pérfido25 e puerie6 , é
submetido a sucessivos choques de realidade.
A liqüidação do excessivamente imaginoso, implausível e sentimental se dá
principaimente por meio do personagem Jorge que, num impulso verdadeiramente
novelesco, decide lutar na Guerra do Paraguai. A decisão não é motivada por nenhum
heroísmo patriótico, mas pela paixão de Jorge por Estela, moça pobre, filha de um
escrevente arnígo da rica Valéria, mãe de Jorge. O jovem bacharel, uma vez rejeitado por
Estela e por insistência da mãe que não quer ver o filho unir-se a uma moça de plana
social mais baixa, decide lutar na guerra em parte vencido pelo cansaço de recusar os
pedidos insistentes da mãe, em parte pela idéia do sacrificio em nome do amor e em parte
pelo remorso que uma morte em combate causaria à amada e à mãe. O que à primeira
vista se apresenta como heroísmo ultra-romântico resulta numa atitude inútil e fútil, uma
vez que o amor carregado de traços fantasiosos acaba superado pelo tempo, chegando ao
final do livro reduzido a quase nada.
O sentimento que dá origem à trama só tem continuidade na firmeza do orgulho
de Estela, que se mantém inabalável na renúncia ao amor por Jorge e decide casar-se com
Luís Garcia, um homem por quem ela tem respeito. Jorge, por sua vez, casa-se com a
jovem Iaiá Garcia, filha de Luís e enteada de Estela. No final, já viúva de Luís Garcia,
Estela parte para o norte de São Paulo, onde vai dirigir um estabelecimento de ensino.
Assim como em Helena, a autonomia e a individualidade da heroína se afirmam por meio
da renúncia à felicidade, que é o preço da não-submissão à violência das relações

25
Jaiá Garcia, in OC, vol. 1, p. 480.
26
Idem, pp. 498 e 506.
122
profundamente assimétricas. A diferença em relação ao livro anterior, além da
sobrevivência da heroina, é que em Iaiá Garcia os desencontros e frustrações vão se
multiplicando no desenrolar da narrativa sem jamais atingir um climax e sem produzir
cenas de extravasamento emocional, como a que Estácio resgata Helena desfalecida em
meio a uma tempestade ou a cena das revelações junto ao leito de morte. Desta vez, tudo
é sensivelmente mais contido e o enredo se desenvolve muito mais lentamente.
O empecilho à realização do amor, que é o abismo social que separa Jorge e
Estela, coloca-se desde o inicio e não se move um milímetro ao longo de toda a história,
ao contrário do que ocorre em Helena, onde o jogo de aparências pelo menos cria a ilusão
da possibilidade de superação das diferenças que separam os amantes. Estela sabe o
quanto de sujeição implicaria a consumação do seu amor por Jorge, enquanto Helena
apenas sente e intui o nível de violência contido no amor ciumento de Estácio, o que torna
a renúncia de Estela mais dramática e menos melodramática do que a renúncia de Helena,
no sentido de que aquela tem mais consciência da sua situação do que Helena,
pressionada e manípulada por todos os lados. Assim, em Iaiá Garcia triunfam os
sentimentos domesticados pela razão e bem calçados na realidade objetiva, que são os
que escapam ao naufrágio das ilusões referido nas palavras finais do livro.
Vejamos como os recursos do melodrama são manípulados na cena que descreve
o reconhecimento do amor entre Jorge e Iaiá, muito semelhante à cena da revelação do
amor de Estácio e Helena, transcrita acima:

Jorge recebeu-as [as mãos de Iaiá] nas suas, e a linguagem que a alma não quis confiar do lábio de;>
homem, eles a disseram com os olhos, durante alguns minutos largos. Jorge perguntou fmalmente: - E
certo? ama-me? - Iaiá cingin-lbe o pescoço com os braços e inclinou a cabeça com um gesto de
submissão. Jorge inclinou-se também e nos cabelos, - nos fios de cabelo, que lbe pendiam na testa,
pousou o mais puro e fugitivo dos beijos. Ao contato daquele lábio, Iaiá enrubesceu e estremeceu toda;
mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e feliz."

Embora mais ousada nas referências ao contato físico, é por meio do olhar etéreo
e dos gestos fugidios que se dá a confissão amorosa, que também não ousa se expressar
na linguagem dos homens. A diferença fundamental é que desta vez o amor melífluo
aparece como substituto de um outro amor da mesma natureza projetado no início da

27
Ibidem, p. 487.
123
história - o amor de Jorge por Estela, que também se manifestara com os lábios
cerrados, "enquanto os olhos diziam a eloqüência da paixão mal contida e prestes a
irromper"28 • Ao caracterizar os sentimentos como provisórios, perecíveis, sujeitos às
ações do tempo, "esse químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas
29
as substâncias morais" , a narrativa desmente não só a eternidade do amor de Jorge, mas
contradiz a si própria e os postulados das narrativas que emula. Há uma inegável crítica e
uma boa dose de cinismo na representação de um amor sem fim que vem suplantar um
outro amor sem fim!
Assim, embora em Jaiá Garcia a intensidade dramática se mantenha sempre alta,
as emoções nunca transbordam e nem convergem para um desfecho dramático e
irreversível, como ocorre em Helena. Daí talvez a sensação de "livro abafado"30 referida
por Roberto Schwarz. Realmente, tudo aí parece cozido sob pressão e em fogo lento,
imagem bem exemplificada pela descrição do amor de EsteJa por Jorge no momento em
que ela descobre o interesse de sua enteada, Iaiá, pelo seu antigo amor:

Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como tnna cratera que acaso
fechasse uma abóbada de gelo; pior que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de
duas forças igualmente pujantes, indomáveis e cegas. O orgulho vencera tnna vez; agora era o amor,
que, durante os anos de jugo e compressão, criara músculos e saia a combater de novo. A vitória seria
tnna catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranqüilidade
doméstica; teria as lutas e as ptimeiras dissimulações; tnna vez subjugada, iria direito ao mal."

Estão aí todos os ingredientes do recalcamento melodramático, na contenção das


palavras e sentimentos, nas lágrimas trancadas sempre prestes a irromper em silêncio e
soluços sufocados, na profusão de metáforas, antíteses e jogos de contraste entre o latente
e o comprimido, a vitória e a catàstrofe, o calor da cratera e a abóbada de gelo etc. Tudo
isso contribui para a construção de um universo ao mesmo tempo marcado pelo excesso e
pela opressão, onde as paixões estão represadas por lábios cerrados e olhos em erupção
silenciosa sem jamais dizer seu nome:

28
Ibidem, p. 412.
29
Ibidem, p. 399.
30
Roberto Schwarz, op. cit, p.l22.
31
Iaiá Garcia, p. 475.
124
EsteJa ficou ainda mais pálida do que era: o sangue todo refluiu-lhe ao coração, donde lhe não saiu
uma só palavra; foi com um gesto negativo que ela respondeu. E se não podia empalidecer mais, podia
corar e corou de vergonha. Luis Garcia não viu nem a primeira, nem a segunda impressão de suas
palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos um dos cantos da carta. Natnralmente relembrava os
sucessos daqueles cinco anos, as confidências da mãe e do filho."

Em toda a cena, prevalece o silêncio acompanhado dos gestos convulsos e de


ações involtmtárias como o refluxo do sangue, a palidez, o enrubescimento e o manuseio
distraído da carta reveladora, sobre a qual os dedos de Luís Garcia exercem estratégica
pressão, chamando a atenção do leitor para a importãncia do seu conteúdo. É por meio
dessa carta que se dá a liquídação do romantismo. Nela Jorge confessa a Luís Garcia o
motivo que o levara ao Paraguai - um amor semelhante a urna fé religiosa que nem
mesmo ele sabia explicar, "alguma cousa nova, urna saudade sem esperança, mas também
sem desespero" 33 , que ele nutria por urna mulher cujo nome não menciona. Essa mulher é
Estela, atual esposa de Luís Garcia. Com "suas letras de fogo" 34, a carta é o atestado da
superação do amor de Jorge, descrita da maneira mais crua e anti-romãntica: "Ainda em
67 durava a tal paixão; afinal pareceu que só esperava o ftm da guerra para acabar
também. Morreu-lhe a paixão e ele engorda."35
É assim que o romance, em seu conjunto, trata o amor entre Jorge e Estela,
cabendo ao cético e desenganado Luís Garcia, que é o leitor ideal do livro, fazer o
diagnóstico duro e desmistiftcador. Como já observei, em laiá Garcia o leitor nunca é
ittterpelado direta e explicitamente; a palavra "leitor" só aparece uma vez ao longo do
livro, em terceira pessoa, para referir-se ao pai de Iaiá que, apesar da escassa cultura, era
"leitor de boa casta, dos que casam a reflexão à impressão, quando acabava a leitura,
recompunha o livro incrustava-o por assim dizer, no cérebro"36 • Luís Garcia destaca-se
nesse ambiente ftccionai povoado por leitores bissextos, que utilizam os livros para
aplacar o tédio ou como veículo de bilhetes confidenciais e amorosos, como faz o próprio
Jorge ao consultar Iaiá sobre sua disposição de desposá-lo. 37 Jorge, cujos livros Luís
Garcia lê de empréstimo, é o antípoda do sogro: é leitor desatento, ittcapaz de se

32
Idem, p. 451.
33
Ibidem, p. 421.
34
Ibidem, p. 457.
35
Ibidem, p. 451.
36
Ibidem, p. 445.
37
Ibidem, p. 486.
125
concentrar na leitura e de levar a cabo qualquer de seus vários projetos de escrita- uma
história da guerra, um opúsculo sobre questões juridicas, duas biografias de generais e
finalmente um romance, que contava sua própria história, também abandonado porque
"reconheceu que a execução não correspondia ao pensamento, e que não saia das efusões
líricas e das proporções da anedota". 38 Luís Garcia, em contraste, é o leitor refletido, que
retoma à carta depois de cinco anos para constatar a transitoriedade- e o ridiculo- dos
sentimentos derramados.
Luís Garcia, com seu desengano, ceticismo e contenção, funciona como espécie
de projeção, no enredo, da postura cética, desenganada e contida do narrador em relação
ao seu relato. Apesar da altíssima intensidade emocional da história, o narrador desde o
início deixa claro ter as rédeas da narração ao sugerir que seu livro tem um plano - há
um drama "que este livro pretende narrar"39 - , um centro- "Antes de irmos direito ao
centro da ação, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela"40
- e um fim- "Poucos legados deixara a viúva. Um deles interessa-nos, porque recaiu
em favor de Iaiá Garcia." 41 Os fatos estão sob controle e o caudal das emoções é regulado
a torniquete pelo narrador, escorrendo lentamente, o que impede que elas atinjam o
extravasamento catártico, frustrando o desejo de expansão romanesca que o livro também
provoca.
Nesse sentido, ocorre em laiá Garcia o oposto do que geralmente se dá na ficção
sentimental e no melodrama, onde as emoções se acumulam até o grande momento em
que irrompem junto com a revelação pública da virtude e da verdade. Aqui, o efeito das
revelações de EsteJa sobre sua ligação com Jorge está amortecido. No penúltimo capítulo,
ao contar a Iaiá sobre o seu passado, EsteJa faz uma confissão pela metade, evadindo-se
de responder a Iaiá se amou ou não o filho de Valéria, o que produziria o confronto mais
esperado, que nunca se realiza. Na conversa com o pai, já no último capítulo, EsteJa
revela o seu sentimento por Jorge e, em vez de ter reconhecida sua virtude por ter
resistido à relação desigual em nome do decoro, não é compreendida pelo próprio pai, que

38
Ibidem, p. 434.
39
Ibidem, p. 399.
40
Ibidem, p. 424.
41
Ibidem, p. 433.
126
lhe chama de ''fera". "Nem esse amparo lhe ficava na solidão' 42 , é o comentário do
narrador a respeito de Estela e que também se aplica ao leitor, já que o livro termina sem
lhe oferecer uma situação em tomo da qual ele, os personagens e o narrador possam se
identificar e, eventualmente, compartilhar sens sentimentos.
Roberto Schwarz já observou que o desencontro de motivos é um princípio formal
dessa narrativa em que o "enredo descontinuo e difuso não propicia a identificação
romanesca nem satisfaz a sonho algum'43 • De fato, o desencontro marca laiá Garcia em
vários níveis e não se refere apenas às relações amorosas. O desencontro está nas
expectativas mínimas que os personagens têm uns em relação aos outros, como fica
sugerido na cena em que Jorge pede um abraço a Luís Garcia, que lhe estende a mão, ou
quando Jorge dá a mão ao sr. Antunes, paí de Estela, que lhe reivindicava um abraço, ou
aínda num comentário de Procópio Dias a respeito de uma casa de Jorge que ele talvez
quisesse alugar. Eis o trecho, que contém uma lição muito concisa sobre o que é ponto de
vista e posição de classe:

Meu interesse é achá-la arruinada; o seu é dizer que apenas precisa de algum conserto. A realidade é
que a casa está entre a minha e a sua opinião. Olha, se está disposto a concordar sempre com os
inquilinos, é melhor vender as casas todas que possui.«

O desencontro também pauta a relação da narrativa com seus potenciais leitores,


ou leitoras, cujas expectativas começam a ser frustradas já no titulo, que não concorda
com a matéria do livro, criando a falsa ilusão de que Iaíá seja a heroína da história, papel
que a leitura revela ser de Estela. O mesmo aceno enganoso que o título dirige ao leitor
afeito aos romances sentimentais perpassa a narração. Apesar da atmosfera muito cordial
e da forte carga de emoções, o livro mostra-se refratário a esse tipo de leitor ao recusar-
lhe o extravasamento emocional, sistematicamente desacreditar os interesses supra-
individuais e brindá-lo com um desfecho anticlimático.
Desde as primeiras páginas o leitor é colocado em estado de alerta diante das
motivações coletivas e dos gestos magnânimos. Antes mesmo do inicio da ação, que
começa com a convocação de Valéria para que Luís Garcia fosse a sua casa, a viúva

42
Ibidem, p. 508.
43
Roberto Scbwarz, op. cit., p. 143.
44
Jaiá Garcia, p. 436.

127
tramava enviar o filho para a Guerra do Paraguai. Sob o discurso de quem sacrifica os
sentimentos íntimos em nome "da pátría, que está acima de nós"45 -palavras de Valéria
proferidas com urna animação que Luís Garcia considera mais dissimulada que sincera
- , o leitor é levado a descobrir um motivo puramente familiar, que na realidade se revela
motivo individual, já que a família de Jorge se resume à mãe, a maior e única interessada
em enviar o filho à guerra, afastando-o da paixão inconveniente.
Por ora, as desilusões se manifestam por meio de uma agressividade muda,
contida e recalcada do narrador, que com essa atitude revela pelo menos uma esperança:
provar ao seu interlocutor a falsidade do clichê que proclama que "a lei do coração é
anterior e superior às outras leis'o46.
Resumindo: no conjunto dos romances de Machado de Assis, Helena é o que tem
mais apelo ao leitor afeito à ficção popular, embora a certa altura, para não afrontar a
verossimilhança, a narrativa frustre as expectativas do leitorado cuja atenção procurou
atrair para si. Em laiá Garcia, por outro lado, o apelo ao público real é dissimulado desde
a origem, assim como é planejada a frustração dos procedimentos das narrativas
sentimentais, utilizados para chamar a atenção do leitorado com a finalidade de abalar
suas convicções. Nos dois casos, o recurso a procedimentos das narrativas populares é
deliberado, mas a verificação da inaplicabilidade desses procedimentos, acidental em
Helena, torna-se prograntática em Jaiá Garcia.
A liquidação do romantismo que se opera ao longo dos livros da primeira fase diz
respeito também aos leitores implícitos dessas obras e ao modo como o leitor aparece
figurado em cada uma delas. Inicialmente, a inconformidade com o público real resulta
numa forte idealização do leitor, figurado como negação do leitor empirico, que o
narrador se empenha em reformar- é o que ocorre em Ressurreição e A Mão e a Luva
onde, apesar da postura mais ou menos agressivamente anti-romântica, o leitor está
figurado, romanticamente, como ele devia ser. Os dois livros seguintes, mais
conformados às expectativas de um leitorado real, incorporam essas expectativas à
própria máquina narrativa para frustrá-las, resultando disso um leitor implícito mais
aproximado do leitorado real do romance.

45
Idem, p. 400.
46
Ibidem, p. 418.
128
A recepção de Iaiá Garcia
O lançamento de Iaiá Garcia foi registrado na imprensa por meio de dois artigos.
O primeiro deles consistia num longo texto repleto de anedotas, digressões e derramados
elogios à retidão moral de EsteJa e que considerava o livro exemplar de "como com um
fino talento, apurado gosto e elegante linguagem, se faz engolir ao povo até uma histeria
de amores, seixo duríssimo, que deu qnanto tinha a dar (perdão, sentimentalistas!)".
Apesar de se proclamar avesso às histórias de amor, o resenhista diz que o início do livro
se lia "sem grande abalo", mas a segunda metade "arrasta o leitor com um interesse
sempre crescente, até o desfeixo, que, bem ao revez d'esses torpes Basilios, é sem
mancha e sem reproche": 7 Rigoleto, que assina a critica, afirmava que nesse livro o
escritor conseguia "encantar o publico com os feitiços do seu estylo, e o publico entregou-
se-lhe vencido". A adesão do público não passava de mera suposição, já que logo em
seguida o próprio resenhista esclarecia que "o publico não nos honrou com as suas
confidencias, até porque não dispoe de commodos meios de communicaçao comnosco":8
Menos otimista se mostrava Urbano Duarte, futuro companheiro de Machado na
fundação da Academia Brasileira de Letras, que na Revista da Sociedade Phoenix
Litteraria noticiou com pouquíssimo entusiasmo a publicação do livro, dizendo que laiá
Garcia se foi "tão desenxabida como no dia em que nasceu". Depois de apontar como
qualidades do livro o estilo ameno e fácil, alguns estudos interessantes de psicologia e
uma ou outra "phosphorescencia de poesia domestica", o critico alertava e aconselhava o
autor:

Mas pode convencer-se de que não são as sufficientes para tomar uma obra d'arte viavel na
republica das lettras. O cantor das -Americanas- que acatamos e apreciamos, deve apimentar um
49
pouco mais o bico de sua penna afnn de que seus romances não morrão lymphaticos.

47
Iaiá Garcia saiu no mesmo ano do Primo Basílio, e sua publicação em livro ocorreu num momento em
que ainda estava fresca na memória a critica de Machado à artíficialidade e aos exageros de escola do
romance de Eça de Queirós.
48
Rigoleto (pseudônimo)," Fantasias- A Propósito de Iaiá Garcia", O Cruzeiro, 11.4.1878. O único
exemplar do jornal da coleção da Biblioteca Nacional tem partes mutiladas, não tendo sido possível acesso
ao texto integral. Das sete colunas do pé de página ocupado pela critica, uma estava completamente
estropiada.
49
Urbano Duarte, "Crônica", Revista da Sociedade Phoenú: Litteraria, maio de 1878, pp. 68-9.
129
De fato, apesar dos esforços do editor em anunciar nos jornais o "formoso
romance", Iaiá Garcia ganharia uma nova edição vinte anos mais tarde, em 1898. Por
ocasião do lançamento dessa segunda edição, José Veríssimo, com argúcia e precisão
características, definiu Iaiá Garcia como "não só o mais romanesco, mas talvez o mais
emotivo" entre os livros do autor, ressalvando em seguida ser essa uma emoção "sempre
contida e sobria, consoante o temperamento do artista". 50 Nesse mesmo artigo, em que se
refere à primeira e à segunda maneira do escritor, distinção que daria origem à consagrada
divisão da obra machadiana em duas fases, o crítico afirma que a segunda maneira "não é
sinão a primeira com o romanesco de menos e as tendencias criticas de mais". 51
Distinção similar à vivida pelo romanesco Jorge, que se lançou ao Paraguai com
sonhos confusos de cavaleiro medieval para chegar ao final da história bastante
modificado:

A diferença entre uma e outra dessas duas fases é que presentemente o desengano não o levaria à
52
guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia.

Assim como Jorge, a primeira fase do romance machadiano chega ao final


mostrando descrédito nos projetos e interesses verdadeiramente coletivos e concluindo
com o naufrágio das ilusões. Entre os náufragos certamente está o escritor, que escreve
um livro para afirmar sistematicamente o desencontro entre os personagens e o
descompasso entre seu projeto de escrita e as expectativas do leitor disponíveis- ou não
disponíveis - para ele. Iaiá Garcia liquida o romantismo na obra machadiana situando
sua ação na transição da década de 1860 para a de 1870, período decisivo para a
dissolução da imagem romãntica do pais entre intelectuais e escritores, como vimos no
segundo capítulo.
Essa desilusão, recalcada em Helena e Iaiá Garcia, vai se manifestar com todas as
letras e de modo francamente agressivo por Brás Cubas, que da superficie do texto
interpela o leitor:

50
José Veríssimo, "Blhliografia", Revista Brazileira, Rio de Janeiro, novembro de 1898, tomo XVI, pp.
249-255. Também a propósito do lançamento da segunda edição foi publicada uma ligeira apreciação sobre
o romance em A Notícia de 5.!1.1898. O texto, assinado por J. dos Santos (pseudônimo de Medeiros e
Albuquerque), não foi encontrado na coleção de periódicos da Biblioteca Nacional.
51
José Veríssimo, op. cit.
52
Jaiá Garcia, p. 485.

130
Quem não sabe que ao pé de cada baodeira grande pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras
baodeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes
lhe sobrevivem? 5'

O questionamento explícito da viabilidade dos projetos coletivos e da própria


comunicabilidade do texto literário são o principal assunto da mensagem "Ao Leitor",
que abre as Memórias Póstumas anunciando grandes alterações no modo de
endereçamento e figuração do leitor na obra de Machado de Assis.

53
Brás Cubas, OC, vol. l, p. 516.
131
Capítulo 6
Brás Cubas e a textualização do leitor

O terreno comum que os narradores machadianos procuram definir com seus


leitores até Jaiá Garcia aparece completamente minado em Brás Cubas, livro em que o
leitor passa a ser abertamente provocado, insultado, ultrajado, injuriado, desafiado,
escarnecido, inferiorizado, humilhado, transformado em objeto de chacota e forçado ao
embate constante com um narrador principalmente agressivo. Sem jamais chegar à ruptura,
o que inviabilizaria o livro, Brás Cubas comporta-se ora como um ser superior ora como
um vizinho malcriado que, postado do lado de lá de um muro imaginário, parece
incansável em sua tarefa de disparar desaforos contra o interlocutor que ele imagina existir
do lado de cá, num terreno contíguo ao seu. O relacionamento, no entanto, não se esgota na
afronta e na agressão. O leitor é também acumpliciado pela narração repleta de efeitos e
cortinas de manobra por trás das quais o narrador procura mover seu interlocutor da
posição inimiga para o papel de comparsa, e vice-versa.
Com isso, em Brás Cubas a narração abandona qualquer função didática ou
pedagógica para assumir uma função eminentemente estética, no sentido de que há
significativa diminuição no nível de redundància da narrativa, que se torna menos
reiterativa e muito mais independente das convenções romanescas que balizavam, ainda
que negativamente, os livros anteriores. 1 O objetivo principal agora é antes atrair e manter
a atenção do leitor do que convencê-lo do que quer que seja. O texto deixa de remeter para
um espaço ficcional, digamos, tridimensional, para voltar-se sobre si mesmo, sobre sua
própria materialidade e bidimensionalidade.
Essas novidades da figura do leitor em parte podem ser entendidas no contexto das
modificações que se operam na posição do escritor do romantismo ao realismo nos Estados
Unídos e também na Europa. Como definíu em 1855 o poeta norte-americano James
Russell Lowell, o escritor abandona o papel de visionário e mestre para o de entertainer
profissional, passando a atender as demandas de um público consurnídor de literatura em
vez de pregar verdades e sabedorias a um grupo passivo de fiéis. Como já foi notado, a

1 As noções de função didática e estética estão em Umberto Eco, Lector in fabu/a, São Paulo, Perspectiva,
1986, p. 37. Segundo Eco, a passagem de um função a outra implica um deslocamento da iniciativa
interpretativa para o leitor.

133
tensão entre o público desejado e idealizado pelo escritores e a relação real que eles
mantinham com seus públicos tomou-se central na produção literária a partir do século 18,
ganhando força ao longo de todo o século 19 não só nas matrizes da produção literária, mas
também nos países periféricos que procuravam modelos alternativos para a produção de
literatura. Não era mais possível dirigir-se a um homem universal, a uma natureza humana
pura, mas a um interlocutor concreto, cujo interesse precisava ser despertado de modo que
ele se sentisse impelido a comprar o livro e, assim, financiar a atividade do escritor. Isso
significava desfazer a concepção muito arraigada entre escritores e críticos românticos
sintetizada por um critico norte-americano a propósito dos poetas americanos e ingleses:
"Para Hawthome, assim como para Shelley, 'literatura' é o que ocorre na mente e no
espírito do escritor, não a obra publicada que ele oferece ao público. "2
Essa transição da posição pedagógica para a do entretenimento, assim como a
tematização cada vez mais constante do objeto livro como instância fundamental para o
processo literário, são características que distinguem as obras da primeira e da segunda fase.
O narrador do romance machadiano mais tardio, como procurei mostrar, está impregnado
dessa visão da literatura como algo que se dá por meio do livro, cuja materialidade é
abordada sob todos os ângulos possíveis, até mesmo do ponto de vista dos vermes
completamente indiferentes àquilo que róem- ou lêem. Nessa passagem da primeira para
a segunda fase, desaparece qualquer tentativa de converter os interlocutores ao que quer que
seja, e os narradores parecem empenhados sobretudo em manter seus interlocutores atentos
à narração. Essa mudança de postura soa consciente e programática na medida em que as
Memórias Póstumas já se apresentam como "mais do que passatempo e menos do que
apostolado." 3
Retomando a imagem da narrativa como espaço de um teatro, pode-se dizer que até
Brás Cubas os narradores, com aparições menos discretas nos dois primeiros romances do
que nos dois livros que o seguiram, procuram sempre atrair o olhar do espectador para o
que ocorre no palco. Com Brás Cubas, o foco muda de lugar: o narrador coloca-se na boca
de cena e no centro do palco e, com estardalhaço, chama a atenção para si mesmo e para a

2 Cf. Rowland Jr., op. cit., p. 114.


3 Brás Cubas, p. 418.

134
platéia, cujos comportamentos ele prevê, comenta, reflete e ridiculariza no curso do próprio
relato, em que o exercício de sua lábia parece importar mais do que o euredo.
O apelo ao envolvimento sentimental do leitor desaparece desse universo ficcional
em que as personagens já não estão mais separadas por suas virtudes, mas trazem todas elas
seu próprio quinhão de maldade, mesquinharia e sordidez. O foco de tensão desloca-se do
nível do enredo para o embate do narrador com o leitor, que deixa de ser tratado como
objeto de conversão para tomar-se objeto de diversão do narrador. O leitor é figurado como
alguém a ser divertido, tanto no sentido de entretido como no de distraido, por um
narrador-entertainer, cujas ações parecem não apontar mais para o mundo, mas apenas para
o próprio texto. Como resume o próprio Brás Cubas, sua obra torna-se "mais do que
passatempo e menos do que apostolado"4 •

A incorporação da recepção e a obsessão pela platéia


O livro começa com um prólogo que antecede a narração propriamente dita. O
personagem-narrador-autor Brás Cubas, que o subscreve, sugere ter o leitor em alta conta
ao colocá-lo literalmente no primeirissimo plano da narrativa. Vejamos:

AO LEITOR

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e
constema. O que não admira, nem provavelmente constemará é se este outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Steme, ou de um
Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de fmado.
Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse
conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a
gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor
dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo
explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos causas, ou o que as diz de um jeito obscuro
e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição
destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me
da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
BRÁS CUBAS.s

4Brás, p. 516.
5 Idem, p. 5!3.

135
O intróito incorpora à narrativa, em linguagem direta e com muita concreção, o
problema da recepção, expresso em termos da exigüidade numérica dos potenciais leitores,
das possíveis dificuldades de compreensão e fruição colocadas pela natureza pouco usual
do texto e também do descompasso que pode resultar entre essa natureza desviante e
contraditória e as supostas expectativas das colunas máximas da opinião, formada por
leitores graves e frívolos, o que lembra a polaridade entre a critica e o grosso público
traçada por Aluísio Azevedo no quase contemporâneo Os Mistérios da Tijuca, de 1882. As
duas categorias, no entanto, são importadas de prefácios antepostos a Do Amor, a obra de
Stendhal. Nesses prefácios, sob o disfarce de Stendhal o escritor Henry Beyle trata do
insucesso do livro que, publicado em 1822, foi considerado incompreensível e teve
circulação tão modesta a ponto de seu editor, ao ser consultado sobre a recepção do livro,
responder ao autor: "Pode-se dizer que ele é sagrado, pois ninguém toca nele." É no
segundo prefácio anteposto à obra que Stendhal afirma escrever para cem leitores; e é no
terceiro, datado de 1842, que ele confessa ter encontrado apenas dezessete leitores entre
1822 e 1833 e declara: "Depois de vinte anos de existência, o Ensaio sobre o amor foi
compreendido por apenas uma centena de curiosos". 6
A ousadia da comparação com a obra de Stendhal logo é atenuada pela humildade
do tom com que Brás Cubas aventa a possibilidade de seu livro ter menos de cem leitores.
Por trás da falsa modéstia, Brás supõe a pertinência de equiparar o interesse das memórias
de um homem obscuro e confessadarnente medíocre com um estudo sobre o mais
complexo dos sentimentos, escrito por um dos grandes nomes da literatura universal e
publicado na França, e não no Brasil.
Para quem acreditar na modéstia do narrador, o segundo parágrafo trata de desfazer
a crença, relativizando tudo o que foi dito anteriormente. Nele, Brás Cubas diz acalentar
esperanças de que seu livro, ao contrário do livro de Stendhal, seja sím acolhido pelo
público, ainda que por uma terceira coluna da opinião, caracterizada pela expectativa de
prólogos curtos e pouco explícitos e a cujo gosto o livro aparentemente atende com seus
capítulos breves, a mixórdia de referências, os raciocínios desconexos. Também
contrariando afirmação anterior, Brás sugere que a forma escolhida para contar suas
memórias não seja assim tão livre, o que se depreende da série de restrições que ele se

6 Stendhal, Do Amor [tradução Roberto Leal Ferreira], São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. LX.

136
impõe para despertar o interesse do leitor. Ao contrário do que faz supor a condição de
defunto imune aos embaraços terrenos, instalado num lugar onde "já não há vizinhos, nem
amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia'"~, o autor mostra-se
muito preocupado com a interlocução, enumerando procedimentos que evitará para não
desagradar ao leitor. Nenhum outro narrador machadiano necessita tanto de platéia e
disputa tanto a atenção do leitor quanto esse Cubas, que nunca descansa do olhar agudo e
judicial da opinião.
Afirmar para em seguida relativizar ou até mesmo desmentir é o procedimento
dominante no livro, e ele aparece sintetizado no último período do prólogo, dessa vez em
tom de desconversa. Imediatamente depois de afirmar que "a obra em si mesma é tudo",
Brás Cubas revela-se preocupado em agradar ao leitor, referido como finalidade da obra e
recompensa da tarefa da escrita. A obra, portanto, não é tudo, pois depende da aceitação do
leitor, embora Brás mais uma vez se contradiga, concluindo com uma nota de descaso
pelos maus destinatários do seu texto, aos quais promete o piparote. O que à primeira vista
se apresenta como deferência termina em tom de ameaça, e esse jogo entre o profundo
desdém e a extrema consideração, cujo objetivo principal é manter a atenção do público,
desenrola-se ao longo de todo o romance.
A afetada indiferença é desmentida pelo correr da narrativa, em que Brás Cubas se
mostra um obcecado pela platéia ao apostrofar não só para "pessoas", mas para o destino 8,
para o próprio nariz ou para as amáveis pernas, que surgem imortalizadas num capítulo9,
para Lucrécia Bórgia10 ou para a multidão anônima, que confessa ter cobiçado até a
morte 11 • Outra meia verdade, pois sabemos que ele carregou o desejo da fama para a
posteridade, de onde também se dirige aos críticos para pedir perdão por suas opiniões e
instar pela boa vontade e indulgência1 2 , ou então para declarar desaforadamente que a
critica não entende nada e que é preciso explicar-lhe tudo 13 •

7 Ibidem, p. 546.
8 Ibidem, p. 571.
9 Ibidem, p. 580.
10 Ibidem, p. 516.
11 Ibidem, p. 604.
12Jbidem, p. 612.
13 Ibidem, p. 627.

137
O tratamento do leitor como número e como opinião é uma das grandes novidades
anunciadas por esse prólogo, que também indica transformações no modo de elocução do
narrador, que adota um tom mais ligeiro e coloquial, produz uma significativa abreviação
das unidades ficcionais, o que resulta em capítulos substancialmente mais curtos que os dos
romances anteriores, e também na maneira de se encarar o texto literário, freqüentemente
referido por meio de dados bastante concretos. A extensão da narrativa e suas repercussões
sobre o tamanho do livro, o tempo de leitura, o uso de papel e o preço do exemplar -
todas questões próprias do universo do texto-mercadoria - são introduzidas na obra
rnachadiana a partir das Memórias Póstumas.
Essa nova perspectiva do literário, referido em seu estado material de livro,
enquanto objeto e como mercadoria, coincide com a introdução no ambiente ficcional
machadiano de leitores profissionais, que incluem o crítico, figura com que Brás Cubas se
debate várias vezes ao longo da narração; o editor, preocupado com a quantidade de papel,
o número de gravuras e o preço final do exemplar; e o bibliômano 14 , a quem o livro
interessa pela raridade e sobretudo pela singularidade do exemplar. A perspectiva
materialista do livro atinge o paroxismo na referência aos incansáveis bichos que roem os
livros - e a última edição de cada vida humana - completamente alheios e indiferentes
ao que possa haver ali de conteúdo, digamos, espiritual.
Essas referências ao livro como objeto servem de comentário sarcástico ao apego
do público leitor ás aparências e à ostentação materialista, apego compartilhado pelo
narrador, que jocosamente considera que os descuidos e barbarismos da "quarta edição" de
sua vida "achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que
era luxuosa" .15 O leitor projetado pelo narrador aparece caracterizado como alguém que
"prefere a anedota à reflexão", torcendo o nariz para as digressões e interessando-se mais
pelas ilustrações e gravuras vistosas do que pelo texto:

Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in.jolio, mas
in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas ... principalmente vinhetas...
Não, não alonguemos o capítulo.16

14 Brás, p. 584.
15 Brás, pp. 556-7.

138
O próprio narrador Brás Cubas, no capítulo em que narra seu delírio, aparece
transformado numa Suma Teológica de São Tomas de Aquíno, "encadernada em
marroquím, com fechos de prata e estampas (... ) sendo as minhas mãos os fechos do
livro"17•
À fixação na materialidade do livro corresponde uma representação bastante
concreta da narrativa, ora caracterizada como um espaço por onde Brás Cubas se move e
no qual procura dirigir os movimentos do leitor, sugerindo-lhe retornos, emendas, saltos
etc., ora como unidade composta de partes móveis e articuláveis, passíveis de serem
recombinadas. A certa altura, Brás pede que o leitor intercale um trecho entre uma oração e
outra do capítulo anterior, reforçando a idéia do romance como estrutura manípulável,
espécie de jogo a ser completado pelo leitor.
Os expedientes não são novos, uma vez que são comuns às narrativas que
'circulavam à larga nos jornais oitocentistas e estão presentes sobretudo em A Mão e a
Luva, Helena e laiá Garcia, originalmente publicados nos rodapés das folhas e gazetas.
Enquanto nesses romances os recursos estavam menos aparentes, camuflados ou diluídos
pela movimentação do enredo, desta vez eles se tomam muito visíveis já que o narrador
aponta para procedimentos característicos do texto-mercadoria por excelência, o folhetim,
explicitando sua natureza de "coisa" e imprimindo-lhe um caráter espetacular. 18 De
procedimentos da engrenagem narrativa, a explicitação das idas e vindas, assim como a
variedade e a fragmentação do relato tomam-se também assunto dessa narração conduzida
por um narrador que usa e abusa de um procedimento descrito por Machado de Assis como
típico do homem fatigado e esfalfado do século 19: "deitar todos os nomes no mesmo
cesto, misturá-los, tirá-los sem ordem e cosê-los sem escolha" .19

Os leitores de Brás Cubas


Brás Cubas começa, portanto, com o tema da recepção do texto literário. Cabe
notar que esse texto introdutório foi escrito e incorporado ao romance em algum momento

16 Idem, p. 544.
17 Ibidem, p. 520.
18 Helen Caldwell chama a atenção para a freqüência com que a palavra "espetáculo" aparece no romance
referindo-se a diversas formas de luta pela vida e pela sobrevivência. Cf Helen Caldwell, Machado de
Assis- The Brazi/ian Master and his Noveis, p. 110.
19 Macbado de Assis, "A Semana", 28 de fevereiro de 1897, in OC, vol. 3, p. 768.

139
entre os meses que separam a publicação do primeiro capítulo, que saiu na edição de 15 de
março de 1880 da Revista Brasileira e do qual o prólogo não constava, e sua primeira
edição em livro, lançada provavelmente em janeiro de 1881.
Qual o sentido desse prólogo no contexto geral da produção machadiana?
Em primeiro lugar, trata-se da expressão mais explícita e mais precoce do empenho
de Machado de Assis em organizar e dirigir a recepção de sua obra. O esforço manifesta-se
por meio dessa instância discursiva um tanto ambígua, calculadamente situada a meio
caminho entre o escritor Machado de Assis e seus narradores e que responde pelas
advertências que antecedem quase todos os romances, à exceção de Iaiá Garcia e Dom
Casmurro. Nesse prólogo ao leitor, assinado por Brás Cubas, Machado associa pela
primeira vez sua nova maneira às produções de Stendhal, Sterne e Xavier de Maistre,
sugerindo o caráter programático e consciente da mudança que estava imprimindo a sua
carreira com o Brás Cubas. Ao contrário de Alencar, acusado de construir a posteriori um
sentido para sua obra, ao escrever as Memórias Póstumas Machado de Assis já tinha um
projeto definido para seus futuros livros, um projeto bastante distinto do que vinha
realizando até então, como fica sugerido pelo prólogo de 1881.
De fato, todos os outros prólogos e advertências foram escritos depois de 1890. Os
textos que introduzem as edições definitivas dos livros da primeira fase foram acrescidos
quando da publicação das novas edições, que começaram a vir à luz a partir de 1905, seis
anos depois de o escritor vender os direitos de suas obras para a Garnier. 20
O "Prólogo à Terceira Edição" das Memórias Póstumas, incluído na edição de 1896
e assinado por Machado de Assis, retoma questões presentes no texto "Ao Leitor", escrito
15 anos antes: a filiação literária do romance às obras de Steme e Xavier de Maistre e
também o tema da recepção em Brás Cubas21 • Desta vez há referências explícitas às

20 As advertências de Helena e Ressurreição são de 1905, a de A Mão e a Luva data de 1907, e a de


Quincas Borba, de 1899. É de se notar que nos dois últimos romances, publicados em 1904 e 1908, os
prólogos ao leitor estão organicamente ligados às narrativas. Em Esaú e Jacó, a Advertência define as
circunstâncias em que teriam sido encontrados os cadernos do Conselheiro Aires que deram origem à
narrativa; no Memorial de Aires, o próprio romance é apresentado como espécie de prólogo de um romance
jamais escrito.
21 J. Galante de Sousa e Helen Caldwell explicam a confusão sobre as primeiras edições das Memórias
Póstumas. Galante de Sousa esclarece que a publicação na Revista Brasileira foi considerada como
primeira edição. Assim, a segunda edição em livro é, em realidade, a primeira; a terceira é a segunda e
assim por diante. Para complicar ainda mais, o "Prólogo à terceira edição" só foi publicado na chamada
qnarta edição, de 1899, que na realidade era a terceira edição em livro. Caldwell supõe que ela tenha sido

140
observações de Macedo Soares, Valentim Magalhães e Capistrano de Abreu acerca do
romance. Em julho de 1880, quando Brás Cubas ainda estava sendo publicado na Revista
Brasileira, o primeiro escrevera-lhe uma carta de Mar da Espanha, Minas Gerais, elogiando
o capítulo XLVI, intitulado "A Herança", em que trata das brigas entre Brás Cubas, a irmã
Sabina e o cunhado Cotrim pelo legado do pai. 22 O segundo manifestou perplexidade e
dificuldade de classificar o livro ao escrever a Capistrano e perguntar intrigado: "O que é
Brás Cubas em última análise? Romance? Dissertação moral? Desfastio humouristico
(sic)?" Essa pergunta estava no início do artigo que Capistrano de Abreu publicou na
Gazeta de Notícias no início de 1881, quando da primeira publicação de Brás Cubas em
livro. Quinze anos depois, Machado de Assis incorporava a dúvida de Magalhães ao tecido
ficcional, evadindo-se das respostas, que atribui ao finado narrador-personagem.
Ainda em relação às modificações sofridas pelo texto original, publicado na Revista
Brasileira, é de se notar que a versão da revista não incluía a dedicatória aos vermes e tinha
como epígrafe "I will chide no breather in the world but myself; against whom I know most
faults", versos de Shak:espeare traduzidos pelo escritor como "Não é meu intento criticar
nenhum folego vivo, mas a mim sómente, em que descubro muitos senões."23 Excluida de
todas as edições em livro, a epígrafe é indicativa do caráter autocrítico que Roberto
Schwarz estuda nesse romance em que os vícios da classe dominante, magníficamente
eufemizados na tradução como "senões", são expostos e ridicularizados a partir de dentro,
por um de seus membros. Por meio de Brás Cubas, o escritor constrangia o leitor empirico
à leitura em primeira pessoa da autocrítica de um bacharel estróina, que talvez lhe servisse
como uma luva. A julgar pelas primeiras reações, a crítica não era muito cifrada. Em sua
crônica na Revista Ilustrada, Raul Pompéia aconselhava: "leiam com atenção, com calma;
há crítica fina e frases tão bem subscritas que, mesmo pelo nosso correio, hão de chegar ao
seu destinatário."24 Sob o pseudônimo de D. Junio, um redator da Revista ilustrada
também tirava o corpo fora, desidentificando-se do destinatário das críticas ao declarar:

escrita para a edição de 1896, mas também é possível que o prólogo tenha sido escrito para a edição de
1899 que era de fato a terceira edição em livro. Para maís detalhes, cf. José Galante de Sousa, Bibliografia
de Machado de Assis,,Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1955;
Helen Caldwell, Machàzlo de Assis- The Brazilian Master and his Noveis, p. 239.
22 Vide R. Magalhães Júnior, Vida e obra de Machado de Assis (Voume 3: Maturidade), Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1981, p. 6.
23 Os versos são da cena ll do 3° ato de As you li/re it.
24 Raul Pompéia, "Revista Ilustrada", 3 de abril de 1880, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 3, p. I.

141
"Eu, com certeza, não apanho o piparote." 25 Capistrano de Abreu, intrigado, escreveu para
Machado logo depois de receber o texto, já em formato de livro: "Sei que há uma intenção
latente porém imanente a todos os devaneios, e eu não sei se conseguirei descobri-la."26

Narrador póstero, leitor anacrônico


A postura que Machado de Assis assume diante do seu leitor nas Memórias
Póstumas de Brás Cubas lembra a de Shelley que, diante da sua alienação em relação ao
público, que se mantinha indiferente à obra do poeta, confidenciou a um amigo em carta de
1812: "Eu não vou me dirigir mais aos iletrados. Procurarei fatos dos quais minha
participação seja impossível e farei de mim mesmo a causa de um efeito que só será sentido
muíto tempo depois de eu ter me desfeito em pó. "27 Em vez de projetar para a posteridade a
possibilidade de compreensão de sua obra, Machado faz troça da incompreensão dos seus
contemporâneos ao deslocar tudo para o além, transformando o narrador em póstero e
atribuíndo voz ao próprio pó.
O narrador faz graça disso no capítulo XXXVIll, intitulado "A Quarta Edição", em
que relembra sua teoria das edições humanas, que diz que cada fase da vida é uma edição,
que vai sendo corrigida e emendada até a edição definitiva, oferecida de graça aos vermes.
Naturalmente já em edição definitiva, Brás Cubas lembra-se de um episódio ocorrido
quando ele ainda se encontrava em "quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada
de descuídos e barbarismos". Por essa época, uma cadeia de incidentes e coincidências
colocou-o diante de uma mulher de alma decrépita e rosto amarelo e bexiguento, atrás do
balcão de uma loja de ourivesaria. Acaba que essa ruína era nada mais nada menos do que
um desatino da primeira edição de Brás Cubas que, surpreso, pergunta ao seu interlocutor:
Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.2&
A pergunta lança luz sobre a enormidade do absurdo proposto ao leitor. Como pode
o leitor ser póstero? Póstero em relação a quê? Diante da rigorosa impossibilidade de algo
posterior à eternidade, não podem existir, do ponto de vista de um autor defunto, leitores

25 Revista fl/ustrada. Rio de Janeiro, Typographia de J. Barbosa & C,no 235, ano 6(1881], p. 6.
26 Capistrano de Abreu, carta a Machado de Assis datada de I O de janeiro de 1881 e citada por R.
Magalhães Júnior, op. cit., vol. 3, p. 11.
27 Percy Bysshe Shelley, The Letters ofPercy Bysshe Shel/ey, 2 vols., Oxford, Clarendon, 1964, vol. I, p.
277, tradução minha.
28 Brás, p. 557, grifo meu.

142
que sobrevivam a ele. A denominação é aplicável apenas ao narrador, que já habita a
eternidade, futuro máximo e definitivo de qualquer cristão. O narrador retoma a esse
disparate que fundamenta a relação com seu interlocutor ao cogitar a supressão de um
capítulo por haver nele algo parecido com despropósito, "e eu não quero dar pasto à critica
do futuro"2 9 .
Machado de Assis afronta não apenas crenças religiosas, mas também a concepção
muito arraigada entre escritores oitocentistas de que a compreensão de suas obras só seria
possível na posteridade, o que significava adiar para o futuro a possibilidade de
interlocução, figurando os leitores ideais como pósteros. Em Brás Cubas, isso é
literalmente virado do avesso. Em vez de construir o leitor como entidade futura, Machado
cria um narrador póstero - de si mesmo e de todos os interlocutores possíveis - ,
colocando os leitores de qualquer tempo na condição de seres anacrônicos, retrógrados. A
idéia do artista como homem morto que fala à posteridade, tão em voga a partir do
romantismo, é tomada ao pé da letra por Machado de Assis, que sugere por meio de Brás
Cubas, e de maneira radical, o caráter precário e improvável da comunicação literária ao
narrar,já de saida, o "óbito do autor'', título do primeiro capítulo do romance.
A lembrança do célebre texto de Roland Barthes, intitulado "A morte do autor", é
inevitável. Nesse escrito de 1968, Barthes critica a tirania da figura do Autor na literatura e
na crítica contemporâneas, postura segundo a qual "a explicação da obra é sempre
procurada do lado de quem a produziu". Em linhas gerais e para o que interessa aqui, o
crítico opõe o scriptor moderno, que "nasce ao mesmo tempo que o seu texto", ao Autor,
"sempre concebido como o passado do seu próprio livro", no sentido de que este existe
sempre depois daquele, como conseqüência da atividade de uma pessoa. 30 Brás Cubas
perverte também essa noção, ao colocar-se no futuro em relação ao seu livro, e ao anunciar-
se como um "defunto autor, para quem a campa foi outro berço". A relação entre autor-
narrador e leitor que aparece ficcionalizada nas Memórias é de um absurdo escandaloso,
uma vez que postula o único tipo de comunicação considerado impossível em qualquer
nível de racionalidade: a comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. A
extravagância do primeiro capítulo alerta para o caráter puramente textual da narração, que

29 Brás, p. 584.
30 Cf. Roland Barthes, O Rumor da Língua, Lisboa, Edições 70, pp. 49-53.

143
parte da inverossimilhança absoluta- até segunda ordem os mortos não escrevem e nem
se comunicam com os vivos - e com isso acabam por explicitar a natureza lingüística
tanto das instâncias de autoria quanto das instãncias de recepção.
Essa sutil representação do autor e do leitor como entidades anacrônicas é reiterada
pela constante caracterização do leitor e da leitora como romãnticos, fato de que o narrador
escarnece em vários trechos, como neste que segue:

Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma cousa que não era dor nem prazer, uma cousa
ntista, alívio e saudade, tudo ntisturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu
bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar
algumas lágrimas, e não ahnoçar. Seria romanesco, mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu
almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembranças da ntinha aventuta, e ao
estômago com os acepipes de M. Prudhon... 31

Ao prever a irritação do interlocutor diante do que assume ser a expectativa desse


interlocutor- trata-se de uma conjetura sobre outra conjetura-, a postura de Brás Cubas
lembra a do narrador de A Mão e a Luva, com que Brás Cubas divide a veia cômica
praticamente ausente em Helena e Iaiá Garcia. Vale reproduzir um trecho daquele livro
que também trata da rápida convalescença de uma frustração amorosa, no qual a falsidade e
o exagero da retórica romãntica são ridicularizados e contrastados com o prosaísmo dos
fatos:

Duas vezes viu ele [Estêvão] a formosa Guiomar, antes de seguir para São Paulo. Da primeira
sentiu-se ainda abalado, porque a ferida não cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la sem
perturbação. Era melhor,- mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da acadentia, com
o desespero no coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lhe pedia a sua dignidade
de homem. Mas que lhe hei eu de fazer? Ele foi daqui com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da
viagem com alguma pilhéria de rapaz, -rapaz outra vez, como dantes. 32

Em ambos os casos, os narradores carregam na ironia para tratar da decepção que


porventura causem às expectativas da platéia, projetada como romanesca e romãntica. A
diferença é que Brás Cubas lança mão do argumento da autoridade biográfica para
imprimir veracidade ao relato e colocá-lo em oposição ao romanesco. O argumento tem pés
de barro, já que a adoção de práticas que contrariam princípios confessos não é nada
estranha a esse narrador que vive dizendo uma coisa para fazer outra; no campo literário,

31 Idem, p. 613.
32 A Mão e a Lm>a, in Obras Completas, vol. l, pp. 203-204.

144
sabemos que Brás traz no seu currículo uma passagem por Coimbra, onde fizera
"romantismo prático e liberalismo teórico" 33, o que faz duvidar de sua integridade moral e
intelectual e da autoridade que sua biografia lhe confere. Para o que interessa aqui, a
diferença fundamental está na maneira como os narradores se dirigem ao leitor. Brás
Cubas, mais desinibido, vai direto aos nervos do leitor, ao passo que o narrador de A Mão e
a Luva refere-se às expectativas do seu interlocutor por meio de um impalpável e
conceitual "romântico". Em A Mão e a Luva, a atribuição de um "era melhor" para os
esquemas românticos aos quais o narrador finge acatar funciona como um balizamento para
a relação com seus interlocutores, a serem convertidos para uma postura anti-romântica;
com Brás Cubas não há mais conversão possível, até porque nem mesmo o narrador
assume posição confiável- e nem mesmo fixa- para a qual converter o leitor.

Brás Cubas é acima de tudo um manifesto para os happy few, uma declaração de
princípios do romancista que finalmente aplica à sua obra as idéias formuladas no "Instinto
de Nacionalidade", escrito sete anos antes. O abandono do olhar tendencialmente externo
do narrador em terceira pessoa tira do horizonte qualquer intenção de se fazer "romance de
costumes" ou "romance brasileiro" - motivação comum a todos os antecessores do
escritor. Ao escolher um narrador em primeira pessoa, significativamente nomeado com
um pedaço do nome do pais (Brás/Brasil), o escritor marca posição sobre a natureza
sempre restritiva de todo e qualquer ponto de vista, seja ele individual ou de classe,
refutando agora a existência de urna verdade nacional, o que significava declarar a
impossibilidade de representação da nação pela literatura. 34
A agressão e o pessimismo do narrador apontam para duas motivações
aparentemente contraditórias: por um lado, a intenção de frisar a diferença e a
impossibilidade, ainda que momentânea, de estabelecer um chão comum com seu
interlocutor; por outro, a demonstração da inconformidade com esse estado de coisas, que

33 Brás, p. 542.
34 A titulo de curiosidade, em Do Amor, citado por Brás Cubas no seu prólogo ao leitor, Stendhal faz
declarações explícitas nessa mesma linha, ridicularizando a postulação da existência de verdades nacionais
e defendendo os sentimentos e opiniões "verdadeiras em toda parte". Stendhal, Do Amor [tradnção Roberto
Leal Ferreira], São Paulo, Martins Fontes, 1993. A motivação patriótica do nome Brás, que remete ao Braz
Cubas do século 16, fundador da cidade paulista de São Vicente, é tratada por Helen Caldwell, op.cit., p.
78.

145
faz supor um desejo de que fosse diferente. Além dos seus componentes mais óbvios de
negação do outro, a postura agressiva e pessimista também constitui estratégia para
chamar à ação e à modificação de um determinado estado de coisas. Em sua crônica de
despedida de "A Semana", em 1897, o escritor faz uma observação que ajuda a explicar a
sua própria atitude em relação à negatividade atribuída a Brás Cubas: "Se destes com
alguma coisa que se possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao
cepticismo. Achar que uma coisa é ruim, não é duvidar dela, mas afirmá-la."35 Negar
insistentemente, como faz Brás Cubas no derradeiro capítulo de suas memórias, é também
uma forma de afirmar alguma coisa. Por exemplo a existência do livro que o leitor tem em
mãos e que é de fato o que restou de sua vida.
O pessimismo do narrador em relação à interlocução se manifesta pela negação da
possibilidade de acordos consistentes, já que eles são feitos e desfeitos no calor das
situações e em função de interesses sempre voláteis e mesquínhos. Ao contrário do que
ocorre na ficção realista européia, que via de regra pressupõe uma realidade comum e
valores compartilhados, ou compartilháveis, resultando num regime de comunicação em
que o narrador pressupõe falar a mesma língua e ter um chão comum com o do seu leitor,
nas Memórias Póstumas Machado de Assis cria um narrador que a rigor não diz nada com
nada e preocupado principalmente com os efeitos de sua prosa.
A grande novidade de Brás Cubas está na problematização, desde suas primeiras
linhas, das possibilidades de comunicação do texto literário no ambiente brasileiro
oitocentista. A interlocução e a recepção, até então tratadas como questões externas à
esfera literária, são incorporadas ao texto como problema, a ponto de o leitor, razão de ser e
condição de existência do romance, ser apontado pelo narrador como único defeito do
livro. A narração, explicitamente dividida entre a consciência do narrador e as expectativas
do leitor, entre as intenções de sentido projetadas pelo primeiro e as possíveis atualizações
de sentido realizadas pelo segundo, sofre uma fratura que repercute por todo o terreno
ficcional. O próprio Brás está irreversivelmente cindido entre sua condição de autor-
narrador, situado num "presente póstumo", e a condição de personagem que teve um
passado no mundo dos homens, habitante de dois mundos em principio incomunicáveis. A
cisão do narrador tem correspondente também no leitor empírico, ora induzido a se

35 Machado de Assis, "A Semana", 28.2.1897, in Obras Completas, vol. 3, p. 769.

146
reconhecer no leitor evocado pelo texto, ora encorajado a fingir que nada tem a ver com
esse leitor que, pelo menos por razões de auto-estima, é melhor ser compreendido como
uma terceira pessoa, o que exige do leitor empírico manter-se em estado de alerta para se
prevenir e desviar das bordoadas do narrador. 36
O leitor, que nos livros anteriores parecia projetado para mais longe do narrador e
da narração, passa a integrar a "geologia" do texto, para utilizar uma imagem do próprio
Brás Cubas ao descrever a novidade do seu livro: "O que é novo neste livro é a geologia
moral do Lobo Neves, e provavelmente a do cavalheiro, que me está lendo. Sim, essas
camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve, conforme a resistência delas,
essas camadas mereceriam um capítulo, que eu não escrevo, por não alongar a narração."3 7
O que vai ocorrer a partir de agora é um aprofundamento da figuração do leitor em
camadas mais fundas do texto.

A recepção de Brás Cubas


O romance mais abusado produzido no Brasil oitocentista, marco da maturidade e
da modernidade das letras nacionais e de uma espécie de renascimento literário do
principal escritor brasileiro de todos os tempos teve recepção modesta na imprensa. Além
da já mencionada critica de Capistrano de Abreu publicada na Gazeta de Notícias, o livro
rendeu apenas mais um comentário alentado, o de Urbano Duarte, que nas páginas da
Gazetinha afirmava que "para romance falta-lhe entrecho", previa que "o leitor vulgar
pouco pasto achará para sua imaginação e curiosidade banaes" e resumia desta forma a
impressão causada:

A obra do Sr. Machado de Assis é deficiente, sinão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o
verdadeiro ,problema que se propoz a resolver e só philosophou sobre caracteres de uma vulgaridade
perfeita ; é deficiente na fórma, porque não ha nitidez, não ha desenho, mas bosquejos, não ha colorido,
ntas pinceladas ao acaso. 38

A manifesta surpresa dos dois críticos que se debruçaram sobre Brás Cubas,
ambos intrigados se era ou não romance o que tinham diante de si, permite cogitar que a

36 Sobre a cisão do narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas, veja-se Juracy Assmann Saraiva, op.
cit., pp. 43-92.
37 Brás, p. 595.
38 Urbano Duarte, "Bibliographia", Gazetinha, Rio de Janeiro, 2.2.1881.

147
acolhida fria se explique pelos embaraços que a novidade da obra criou para os seus
primeiros leitores. Apesar de lançar dúvida sobre o gênero do escrito e de fazer algumas
considerações sobre a filosofia social de Brás Cubas, o artigo de Capistrano de Abreu é
principalmente mn resumo dos principais acontecimentos do livro. Já Urbano Duarte
revela sua desorientação por meio de uma série de metáforas em tomo da dificuldade de
definir pontos fixos: "descobrir a bussola que dirige a penna do escriptor, tal é a missão
mais importante e difficultosa da critica", "pensamento cardeal", "um catavento que
impelle a briza caprichosa" etc.
O lançamento do livro foi registrado em duas notas publicadas ua Revista
Illustrada e também numa terceira, estampada ua Gazetinha. Dessas, a mais interessante
e opinativa é de autoria do jovem Raul D., abreviação de Raul d'Ávila Pompéia, então
com 17 anos, que percebeu por trás do estilo ligeiro, alegre e espirituoso "muita crítica
fina e phrases tão bem subscriptadas que, mesmo pelo nosso correio, hão de chegar ao seu
destinatario." 39
Em contraste com a baixa repercussão das Memórias Póstumas, o romance O
Mulato, de Aluísio Azevedo, provocaria mais escândalo e teria maior repercussão na
imprensa do Rio de Janeiro, onde, segundo Helen Caldwell, teria sido assnnto de mais de
cem artigos durante o ano de 1881.4° Caldwell acredita que Machado ficou deprimido
com a recepção de sua obra, dedução que a crítica norte-americana faz a partir da leitura
de uma carta que Miguel de Novais escreveu ao cunhado. Nela, Novais responde a
queixas do escritor sobre a falta de compreensão do público e procura incentivar
Machado a perseverar. Dessa carta tratarei no próximo capítulo.

39Raul Pompéia, "Livro da Porta", Revista l/lustrada, Rio de Janeiro, 3.4.1880, p. 2.


40Para uma comparação entre a repercussão de O Mulato e das Memórias Póstumas, veja-se Luciana
Stegagno Picchio, op. cit., p. 259 e Helen Caldwell, Machado de Assis- The Brazilían Master and His
Noveis, especialmente o capítulo "Publlc Opinion- The Wonns", pp. 116-126.

148
Capítulo 7
Quincas Borba e o leitor dissimulado

Os fatos raramente têm interpretação única e é preciso atentar para a discrepância


entre o que determinada coisa parece ser e aquilo que ela é. Essa é a advertência contida
nas linhas iniciais de Quincas Borba, que começa com Rubião a olhar a enseada de sua
casa em Botafogo: "Quem o visse, com os polegares metidos no cordão de chambre, à
janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água
quieta; mas em verdade, vos digo que pensava em outra cousa."38 O narrador em terceira
pessoa, além de apresentar a cena e comentá-la, rapidamente se coloca na posição de
intermediário entre o leitor e a verdade com o emprego da formulação bíblica - "em
verdade, vos digo". O expediente, ao mesmo tempo em que ajuda a atribuir confiabilidade
ao narrador, também coloca o leitor em estado de alerta para o caráter enganoso das
aparências, o que se aplica até mesmo para as esferas divinas, pois logo em seguida Rubião
faz cogitações sobre como Deus escreve direito por linhas tortas. As linhas tortas
correspondem à não-consumação do casamento da innã de Rubião com Quincas Borba e à
morte de ambos, fatos que fazem de Rubião herdeiro único e universal dos bens do
filósofo inventor do Humanitismo, "de modo que o que parecia uma desgraça..."39
O que parecia uma desgraça resultou na transformação de Rubião em capitalista,
sua mudança para o Rio, o cultivo da amizade com o casal Palha e Sofia iniciada no trem
que os levava de Minas à Corte, a paixão pela mulher do amigo e a exacerbação do seu
ciúme em relação a Sofia, que Rubião acreditava encontrar-se às escondidas com um
conhecido seu, Carlos Maria, nos arrabaldes da cidade.
No capítulo inicial, há dois descompassos entre as expectativas e a realidade. O
primeiro refere-se ao leitor, a quem o narrador atribui uma compreensão equivocada do que
se passava pela cabeça de Rubião, alertando-o para a necessidade de uma leitura que
vasculhe por trás das aparências, que desvende as motivações ocultas dos personagens; o
segundo diz respeito à surpresa de Rubião sobre o curso de sua vida, que tomou rumos
completamente diferentes do que até mesmo ele poderia imaginar um ano antes, quando

38 Machado de Assis, Quincas Borba, in Obras Completas, vol. 1, p. 643. A partir daqui, essa edição passa
a ser referida como QB.
39 QB. p. 643.

149
ainda era um pobre professor em Barbacena. As interpretações errôneas, os erros de cálculo
e o desacordo entre o aparente e o real são comuns à maneira como o personagem e os
leitores projetados pelo narrador lêem, o que representa uma das manobras sutis e
subterrâneas de aproximação e identificação do leitor com Rubião, manobras presentes ao
longo de todo o livro.
O primeiro capítulo, no entanto, é plácido como a água quieta da enseada de
Botafogo, e o efeito de sua leitura difere muito do impacto causado pela abertura de Brás
Cubas, ao qual este livro está explicitamente associado por meio de um personagem
comum, o Quincas Borba que foi colega de escola de Brás Cubas, e por referência direta do
narrador ("Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias Póstumas
de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência... " 40). Na superficie da narração, a
impressão de quietude se mantém, já que no decorrer do Quincas Borba não se regístra
nada parecido com os xingamentos, impropérios e palavras amargas usados pelo narrador
Brás Cubas para se dirigir a seus interlocutores. Pelo contrário, aqui estes são tratados por
meu rico senhor, senhora minha, leitora amada, amigo e senhor, entre outros salamaleques
para seduzir, quebrar a resistência, angariar confiança e produzir identificação do leitor
com aquilo que está sendo narrado.
Sob a superficie serena e cordial, contudo, há um mundo marcado pela
irracionalidade que se procura naturalizar aos olhos do leitor, cuja desrazão fica insinuada
pelos constantes paralelos com o ensandecido Rubião. Ao contrário do que ocorre em Brás
Cubas, onde o desencanto e a desesperança com o interlocutor sobem à tona do texto, desta
vez os mesmos sentimentos se expressam por meandros mais complexos, num nível mais
profundo, embora não de forma menos ofensiva. Em Quincas Borba a aspereza do narrador
é apenas mais sutil, insidiosa e metódica que a de Brás Cubas, e sua eficiência consiste em
estabelecer um terreno comum e bem fundado de confiabilidade com seu interlocutor para
repentinamente tirar-lhe o chão, levantando dúvidas sobre a boa-fé do narrador, que
desmente o que parecia certo, levando o leitor a se defrontar com o caráter forjado na
narração e encarar sua própria credulidade e ingenuidade, para dizer o mínimo.
O leitor mais atento percebe o início do funcionamento desse processo já no segundo
capítulo, que anuncia o "abismo" oculto sob as "águas tranqüilas", ou seja, a desintegração

40 QB, p. 644.

150
de Rubião sugerida na forma em que a narração apresenta aos cacos o fluxo dos
pensamentos do herdeiro de Barbacena, dividido entre o que vê e suas reflexões a respeito
dos acertos do destino:

Que abismo que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele
pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém,
deixou-se estar a bater de alegria. Que lbe importa a canoa nem o canoeiro, que os olbos de Rubião
acompanham, arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer,
foi bom que não casasse; podia vir um f!lbo ou uma f!lba... - Bonita canoa! - Antes assim! - Como
obedece bem aos remos do homem!- O certo é que eles estão no céu!

Sob a surperfície cordial instaura-se uma relação hostil e desrespeitosa com o leitor,
o que parece confirmar a afirmação de John Gledson de que os ataques ao leitor tornam-se
estruturais em Quincas Borba. Reconhecendo que tal postura está presente nas crônicas
anteriores a Brás Cubas e sobretudo neste livro, Gledson argumenta que nos escritos
anteriores a provocação seria algo episódico, diferente do que é inaugurado aqui - uma
técnica narrativa que estabelece com o leitor uma comunicação em dois níveis de
significados: um que se ajusta às convenções realistas, para uso do leitor comum, e outro
que os mais sagazes são desafiados a descobrir, que seria o nível oculto. do texto. 41 Embora
me pareça que Machado de Assis desde sempre opere em mais de um registro, projetando
pelo menos dois tipos de leitor conflitantes- o romântico e o anti-romântico, o crédulo e
o incrédulo, o estúpido e o perspicaz etc. - a observação de Gledson indica o
aprofundamento, no texto, do embate entre as instâncias da narração e da interlocução. É
por meio dessa idéia de "embate" que tavez possa ser descrito o movimento geral do
romance machadiano, em que a questão da recepção está cada vez mais interiorizada no
texto por meio da figura do leitor que, retomando a imagem de Brás Cubas, passa a integrar
a geologia do texto. Vejamos como isso se dá no processo de narração propriamente dito.

Aliciamento, agressão e embaralhamento de limites


O narrador procura aproximar-se e conquistar a confiança do leitor com palavras
lisonjeiras, afirmações sobre sua inteligência, referências a sua capacidade dedutiva e
pressuposições de bom entendimento; mas ao mesmo tempo em que profere elogios,

41 Cf. Joim Gledson, Machado de Assis:ficção e história, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 113.

151
sistemática e insidiosamente semeia dúvidas sobre tudo o que afirma. Embora pressuponha
a independência do interlocutor, sugerindo que ele seja capaz de deduzir ou de ver alguma
coisa por si mesmo, o narrador nega-lhe autonomia ao dirigir cuidadosa e rnilimetricamente
sua opinião, conformando-a ao seu ponto de vista. Nesse sentido, a metáfora da narração
como espaço de um teatro, a que vinha me referindo para tratar da relação do narrador com
a platéia, parece já não se aplicar neste caso, em que a maneira como o narrador conduz a
narração lembra bastante a imagem cinematográfica, com seu jogo de cortes,
distanciamentos e aproximações, bem exemplificado nesta cena da apresentação do
personagem Carlos Maria:

Examinai-o bem; é um galhardo rapaz de olhos grandes e plácidos, muito senhor de si, ainda mais
senhor dos outros. Olha de cima; não tem o riso jovial, mas escarninho. Agora, ao sentar-se à mesa, ao
pegar no talher, ao abrir o guardanapo, em tudo se vê que ele está fazendo um insigne favor ao dono da
casa,- talvez dons,- o de lhe comer o almoço, e o de lhe não chamar pascácio. 42

Por meio de imperativos, o olhar do leitor é conduzido por uma descrição baseada
na metonímia do gestos em que a suposta objetividade visual vem acompanhada do
julgamento implacável do caráter do personagem, juízo que no correr da frase parece
decorrência natural daquilo que se vê. Mas o que parece se apresentar naturalmente aos
olhos do leitor é resultado do que o narrador descreve e atribui à visão do leitor, colocado
simultaneamente na condição de testemunha ocular da cena e cúmplice do narrador em sua
opinião acerca do personagem. Ao longo de Quincas Borba essa cumplicidade é forçada
não só pela coincidência do olhar, mas pela tentativa constante de conduzir o interlocutor
corporalmente, digamos assim, pelo espaço e tempo da narração, o que se expressa em
convocações como- "Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do
Quincas Borba"43 .
O uso do plural majestático é outro recurso de aliciamento. Como em textos
anteriores, há o emprego puramente retórico e reiterativo dos "não esqueçamos", "assim os
vimos" e "podemos crer", que buscam aproximar o leitor do plano da narração. Peculiar a
Quincas Borba é o emprego da primeira pessoa do plural na designação de um

42 QB, p. 664. A aproximação de Quincas Borba com a técnica cinematográfica, especificamente em


relação ao uso do jlashback na versão do romance em livro é notada por R. Magalhães Júnior. Cf. Vida e
Obra de Machado de Assis, vol. 3, p. 192.
43 QB, p. 644.

152
relacionamento comum do narrador e do leitor com uma terceira pessoa, procedimento de
largo uso na fição oitocentista, povoada de "nossos heróis" e "nossas heroinas", mas
rarissimo na obra machadiana. Quincas Borba constitui exceção, já que o narrador
constantemente se refere a Rubião como "o nosso amigo", "nosso Rubião" ou, mais
raramente, como "o nosso homem", forçando a intimidade com um personagem com que
nenhum leitor em sã consciência, com o perdão do trocadilho, gostaria de se identificar. O
fato de a primeira pessoa do plural ser regularmente empregada, no ambiente ficcional,
principalmente pelos parasitas que orbitam em tomo da fortuna de Rubião para expressar
bajulação e falsa intimidade leva a pensar que o uso do possessivo "nosso" para se referir a
Rubião não é apenas recurso para o acumpliciarnento do leitor, mas subterfúgio para
igualá-lo à legião de interesseiros, chupins e imprestáveis que, de olho na herança, também
tratam o herdeiro de "nosso Rubião".
Embora à primeira vista procure mostrar-se distanciado da maluquice que impera
no universo ficcional- e mantenha seu interlocutor também à distância-, o que se vê é o
estabelecimento de uma gradativa intimidade entre narrador e leitor em tomo de um
sandeu, um gira com delirios imperiais, referido como "nosso herói" justamente no
momento em que ele se desprende do continente da razão. A referência, inédita no romance
machadiano, a um personagem como herói e o prenúncio da loucura de Rubião ocorrem na
cena em que este, sozinho com Sofia, pega-lhe a mão e, ao inclinar-se para beijá-la, é
surpreendido por uma presença indesejada. Eis como é descrita a reação de Rubião diante
do temor de que tivessem visto, ouvido ou adivinhado alguma coisa da cena, e a tomassem
pública:

Aqui temos o nosso herói como alguém que, depois de navegar cosido com a praia, longos anos,
acha-se um dia entre as ondas do alto mar; felizmente o medo também é oficial de idéias, e deu-lhe ali
Ulllll, lisonjear o interlocutor.44

A observação faz pensar no cálculo e nas motivações inconfessáveis que podem


estar escondidas sob os termos lisonjeiros com que o narrador - também ele temeroso de
despegar-se da racionalidade? - dirige-se ao interlocutor. Apesar de freqüentemente
elogiado pela capacidade de compreensão, talvez não seja assim tão perspicaz quem tem

44 QB, p. 674.

153
como herói Rubião, um homem apresentado como medroso, covarde, adulador etc. A
menos que o narrador esteja sugerindo estarmos todos irmanados em tomo de um patife!
O embaralharnento dos limites entre os discursos do narrador, do leitor e de Rubião
faz-se também pelo emprego do discurso indireto livre, que produz deslizes quase
imperceptíveis da voz do narrador para interferências atribuídas ao leitor, que intervém na
narração pedindo explicações e esclarecimentos. Isso ocorre sobretudo por meio de
perguntas que brotam da imaginação defensiva e paranóica do narrador e são sub-
repticiamente atribuídas ao leitor projetado por ele. Há momentos em que o narrador faz
conjecturas para em seguida imputá-las explicitamente ao leitor, que não pode se defender
e é instado a se demorar em tomo de afirmações enigmáticas e estapafürdias como esta,
feita logo depois que Rubião, a golpes de toallta, mata um punhado de formigas e em
seguida ouve uma cigarra chamar em seu canto "Sôôôô ... fia, fia, fia, fia, fia, fia ... Sôôôô ...
fia, fia, fia, fia, fia ...":

Oh! precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas
mortas, para compensá-las. Essa reflexão é do leitor.45

Depois de encampar o delírio auditivo de Rubião e compor um adágio de sentido


duvidoso, o narrador confere a autoria do pensamento ao leitor, dissolvendo as fronteiras
que separam o seu discurso, o do leitor e o de um personagem às vésperas da loucura. Essa
propositada confusão e sobreposição de discursos vai atingir o auge no capítulo CVI:

. . . ou, mais propriamente, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combioar as tristezas de
Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso: - Então a entrevista da Rua da Harmonia,
Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinqüentes é tudo calúnia? Calúnia do leitor e
do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota
verdadeira. É o que teria visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que era inverossímil
que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tílburi diante da casa pactuada. Seria pôr
uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia, -ruas
transversais, onde o tílburi podia ficar esperando.46

A motivação secreta dos procedimentos de aliciamento explicitam-se nesse trecho,


em que o narrador tira o corpo fora, atribuindo a Rubião e ao leitor a responsabilidade

45 QB, p. 720.
46 QB, p. 732.

154
pelos equívocos acerca dos supostos encontros entre Carlos Maria e Sofia, acobertados pela
costureira da Rua da Harmonia. É notável aí a profusão dos pontos de vista: o de Sofia, o
de Carlos Maria, o do cocheiro, o de Rubião, o da costureira, todos disparatados,
conformados a interesses muito particulares e orquestrados por um narrador que desde
sempre conhecia o infundado das suspeitas de adultério. Por maís de cem capítulos o
narrador oculta isso do leitor, para cinicamente acusá-lo de cúmplice de Rubião na calúnia.
Enquanto Rubião tem como atenuantes o amor, o ciúme e a loucura, a calúnia do leitor só
se explica por má-fé ou inépcia, uma vez que, apesar das advertências iniciais do narrador
sobre a necessidade de procurar o sentido oculto sob as aparências, o leitor foi afoito e
falhou ao não percorrer as vias transversais da interpretação. Completa-se assim o
procedimento básico do narrador de Quincas Borba: apresentar-se confiável e generoso nos
conselhos apenas para agravar a acusação de incompetência do seu interlocutor, incapaz até
mesmo de aplicar os procedimentos que lhe foram sugeridos. As acusações perdem a
ligeireza que tinham em Brás Cubas - onde sempre era possível fmgir que o leitor
evocado era uma terceira pessoa - e ganham em gravidade. Desta vez, não há dúvida de
que o leitor referido pelo narrador é o "eu" que tem o livro nas mãos, manipulável a ponto
de incorrer nos crimes de calúnia e falso testemunho, dos quais é expressamente acusado.
V ale notar que o capítulo CVI, ao qual pertence o trecho reproduzido acima, foi
inserido na versão do romance publicada em livro no final de 1891, constituindo a principal
diferença em relação ao texto publicado nas páginas da revista de variedades A Estação.47
A inclusão posterior do trecho denota a intenção do escritor não apenas de produzir uma
crise de confiabilidade em relação ao narrador, como defende John Kinnear em "Machado
de Assis: to believe or not to believe", mas também de problematizar e aprofundar na
narrativa a crise em relação à recepção do texto, que chegara ao primeiro plano em Brás
Cubas. 48

47Quincas Borba foi publicado aos pedaços, com algumas interrupções, entre 15.6.1886 e 15.9.1891.
48 John Kinnear, "Machado de Assis: to believe or not to believe", Modem Language Review, 71 (1976),
pp. 54-65. Nesse artigo, Kinnear faz uma comparação minuciosa do texto que saiu na hnprensa com o do
livro e localiza em Quincas Borba a adoção de uma nova postura do narrador para com o leitor; essa nova
postura, conseqüência de um momento de crise do escritor, consistiria numa propensão para desconfiar do
realismo e para questionar as atitodes ingenuamente realistas dos leitores perante a ficção. A meu ver, a
mudança de postora e a crise do narrador com o leitor é um processo continuo na obra machadiana, que
tem nessa relação um dos seus principais eixos temáticos e na problematização do embate entre narrador e
leitor uma das marcas de sua originalidade.

155

As mudanças do escritor
A aparente concordância em tomo de interesses que repentinamente se desfazem, a
variedade de pontos de vista e de possíveis explicações para um mesmo fato, as díssensões
e os conflitos de interesses, tudo isso que pauta as relações entre as personagens repercute
sobre a relação entre o narrador e o leitor em Quincas Borba. Os desacordos e não-
correspondências estão anunciados já pelo título que, à maneira do que ocorre em Iaiá
Garcia, cria falsas expectativas em relação à matéria do romance, efetivamente
protagonizado por Rubião e Sofia, e não pelo personagem-título, que não se sabe se é o
filósofo ou o seu cão. Muíto diferente é o fato de haver no livro de 1878 uma heroína
claramente configurada em Estela, cuja virtude consiste em sua integridade e constância, ao
passo que a obra 1891 conta com um elenco de homens e mulheres volúveis e divididos.
Entre todos, o melhor exemplo é Rubião, um homem cindido sob todos os aspectos: em sua
relação com o passado, já que ele é repentinamente transformado de professor em
capitalista; em suas referências cotidianas, completamente alteradas na mudança de
Barbacena para o Rio de Janeiro, onde passa a viver rodeado de falsos amigos;
moralmente, na inconciliabilidade entre sua amizade por Palha e seu amor pela mulher
dele; e ainda psicologicamente, no abismo crescente que se abre entre o que lhe vai no
espírito e no coração. A fissão anunciada já no segundo capítulo ("Que abismo que há entre
o espírito e o coração!"49) alarga-se no decorrer do texto, tomando-se imagem recorrente do
romance, servindo até mesmo para anunciar a iminente dissolução psíquica de Rubião, cujo
espírito "pairava sobre o abismo"50 •
Vale insistir um pouco na comparação com laiá Garcia, que também lança luz
sobre as transformações do escritor. A ação de Quincas Borba e a de Iaiá Garcia estão
situadas no mesmo tempo e lugar, o Rio de Janeiro do final da década de 1860 e inicio da
de 187051 , período de grandes transformações, como vimos no segundo capítulo, que
marcou o inicio do fim do Brasil irnperial52 e no qual a mobilidade social e as

tem nessa relação um dos seus principais eixos temáticos e na problematização do embate entre narrador e
leitor uma das marcas de sua originalidade.
49 QB, p. 643.
50 QB, p. 714.
51 Mais especificamente, em Qu!ncas Borba a ação se desenrola entremeados de 1867 e o início de 1872.
52 Cf. John Gledson, op. cit., p. 59.

156
possibilidades de ascensão tornam-se menos raras, como testemunham as trajetórias de
Rubião e de Sofia, cuja mudança de classe Machado descreve num parágrafo magistral:

Foi assim que nossa amiga, pouco a pouco, espanou a atmosfera. Cortou as relações antigas,
familiares, algumas tão íntimas que dificilmente se poderiam dissolver; mas a arte de receber sem calor,
ouvir sem interesse e despedir-se sem pesar, não era das suas menores prendas; e uma por uma, se
foram indo as pobres criaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de
pagodes caseiros, de hábitos singelos e sem elevação. Com os homens fazia exatamente o que o major
contara, quando eles a viam passar de carruagem, - que era sua, - entre parêntesis. A diferença é que
já nem os espreitava para saber se a viam. Acabara a lua-de-mel da grandeza; agora torcia os olhos
duramente para outro lado, conjurando, de um gesto defmitivo, o perigo de alguma hesitação. Punba
assim os velhos amigos na obrigação de lhe não tirarem o chapéu. 53

Num ambiente onde as relações sociais não estão mais engessadas em castas e
podem modificar-se várias vezes ao longo da vida, é necessário desenvolver estratégias
para o descarte do passado. Os gestos e comportamentos de Sofia descritos no trecho acima
são técnicas de sobrevivência nesse mundo onde a ascensão social é possível e a
desenvoltura na dissimulação passa a integrar a lista das prendas necessárias. Parece difícil
acreditar que Sofia e Estela sejam frutos do mesmo tempo e lugar, já que a mulher do Palha
é a antípoda de Estela, que chega ao final do livro orgulhosa de nunca ter visto uma porta
abrir-se a ela por obséquio e nem de ter seu nome servido "de pasto á natural curiosidade
dos amigos de meu marido"54.
O contraste entre os romances não se resume às diferenças marcantes entre Estela e
Sofia; todo o ambiente ficcional de Quincas Borba é muito mais diversificado, dinâmico e
arejado que o de laiá Garcia, passando a incluir o ambiente de província, com a Barbacena
de onde sai e para onde retoma Rubião, os subúrbios da corte onde vive a pobre costureira
suspeita de alcovitagem e até a intimidade das casas de figurões do Estado. Para o leitor
desavisado, tal dessemelhança pode causar a impressão de que as duas histórias ou não se
passam no mesmo tempo e lugar ou foram escritas por diferentes autores. Não sendo
verdadeira nenhuma das alternativas, é preciso reconhecer que a mudança radical refere-se
ao escritor. Este agora se move em águas francamente modernas, tanto no que se refere à
técnica narrativa e à percepção do universo a ser representado quanto na relação que a obra
pressupõe com seus possíveis interlocutores.

53 QB. p. 761.
54 Jaiá Garcia, OC, vol. l, p. 504.

157
Enquanto a narrativa de 1878 terminava afirmando a sinceridade e a piedade,
preservadas do naufrágio das ilusões juntamente com o caráter impoluto de EsteJa e de Luís
Garcia, nada há de puro neste ambiente em que tudo e todos trazem traços de
mesquinharia e pequenez. À exceção de D. Fernanda, que por motivos humanitários se
empenha no tratamento da saúde mental de Rubião, não há outra personagem cuja relação
com o herdeiro de Quincas Borba ultrapasse o mero interesse de mordíscar sua fortuna.
Focalizando o periodo que começa com o enriquecimento súbito de Rubião e termina com
o seu retomo à pobreza e o encontro da morte em Barbacena, a história trata de um mundo
em que os inescrupulosos, os cínicos e os dissimulados são os vencedores e merecedores
das batatas.
O leitor implícito de Quincas Borba também é muíto diferente do subsumido em
Iaiá Garcia onde, apesar da frustração dos princípios românticos, as categorias do Bem e
do Mal ainda estão operantes e onde o leitor é claramente induzido a se identificar com o
caráter de EsteJa e de Luís Garcia. Neste outro universo ficcional, onde "moralmente as
colchas inteiriças são tão raras", como diz o narrador ao descrever a alma do Palha55 , todas
as entidades ficcionais, incluído o leitor figurado pelo texto, têm como traço comum a falta
de integridade, não havendo para onde convergir a simpatia ou a identificação do leitor
empírico, também ele referido pelo narrador como um dissimulado, alguém que aparenta
ser o que não é - "deixai que vos diga que sois muíto indiscreta, e que eu não me quero
senão com dissimulados"56 •
A discrepância entre parecer e ser, como vimos, está presente desde as linhas
iniciais do livro e consiste num dos princípios que regem todos os elementos do jogo
ficcional em Quincas Borba. A distância, o desacordo e o desencontro não se dão mais
entre os personagens, ou apenas entre o narrador e o leitor, mas estão interiorizados em
cada uma dessas entidades ficcionais, elas próprias em dessintonia consigo mesmas,
divididas entre aquílo que parecem ser e aquílo que são, considerando-se que aquílo que
são talvez não passe de mera aparência.
A precariedade da comunicação do texto, encenada de modo histriônico e
espetaculoso em Brás Cubas, manifesta-se em Quincas Borba por meio de uma voz mais

55 QB, p. 689.
56 QB, p. 760.

158
arredia, discreta e desconfiada, que recalca sua animosidade contra o leitor em camadas
mais fundas da narrativa. A aparente tranqüilidade da superficie só é rompida
eventualmente, quando a movimentação nos subterrãoeos da narrativa atinge um nível de
turbulência que deixa entrever as fissuras de todos os elementos que a integram.
Esse processo de desintegração será aprofundado e exacerbado nos livros
seguintes, com o dilaceramento do narrador-protagonista em Dom Casmurro, a dualidade
estrutural de Esaú e Jacó e o polimorfismo do narrador do Memorial de Aires, figurado
simultaneamente como autor, narrador, leitor e crítico de uma obra calculada para não ser
lida por ninguém.

As referências disparatadas
Um dos aspectos que deixa clara a maior variedade do uníverso ficcional de
Quincas Borba em relação ao de laiá Garcia é o disparate das referências e preferências
literárias expressas nesse romance, em que os livros marcam presença ostensiva e os
jornais e revistas circulam com uma desenvoltura até então inédita na obra machadiana.
Entre as personagens, as preferências literárias são flagrantemente retrógradas, incluindo o
drama de lágrimas, citado por meio do Pobre das Ruínas, peça que Freitas, um dos
comensais de Rubião, disse que veria se um dia fosse a Atenas57 ; o indefectível Saint-Clair
das ilhas ou os Desterrados da Ilha da Barra, que é o único volume da biblioteca do velho
major Siqueira e sua filha Toníca58 ; e as figuras de Byron e Gonçalves Dias, emblemáticas
do gosto corrente, e que o finado Quincas Borba, leitor aplicado das Confissões de Santo
Agostinho, tanto admirava. 5 9 Há também os leitores de livros técnicos e jurídicos, como
Teófilo, o marido de D. Fernanda, que "amava tanto os livros que parecia amá-los mais que
a ela"60 , e o Dr. Camacho, que tinha em sua estante títulos de Lobão, Pereira de Sousa,
Dalloz e um exemplar das Ordenações do Reino.6l

57 QB, p. 664.
58 QB. p. 757.
59 QB. pp. 648 e 652.
60 QB. p. 793.
61 Os livros ocupam "quatro largas estantes" na casa do bacharel e deputado Teófilo, circulam pelas mãos
do advogado e jornalista Camacho, integram a herança de Quincas Borba, que "devia ter muitos livros,
citava muitos deles", e também marcam presença nas casas mais modestas, como a do major Siqueira, que
tem um único título em sua estante. Rubião é um protetor das letras, de modo que os "livros que lhe eram
dedicados entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos exemplares" (QB, p. 760), e assina

159
O padrão dominante, entretanto, é definido por Rubião, para quem a literatura tem
caráter principalmente ornamental, o que fica sugerido pela estátuas de bronze de
Mefistófeles e do Fausto que adornam a sala do ex-professor não pela evocação literária,
mas por serem feitas de "matéria de preço"62 • O novo-rico Rubião, leitor do almanaque de
Laemmert de onde decora os "nomes bonitos" de marqueses a barões63, tem seu gosto
sintetizado neste trecho:

Ultimamente, [Rubião] ocupava-se muito em ler; lia romances, mas só os históricos de Dumas pai,
ou os contemporâneos de Feuillet, estes com dificuidade, por não conhecer bem a língua original. Dos
primeiros sobravam traduções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma
sociedade fidalga e régia. Aquelas cenas da corte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os
seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, metidos em estufas ricas,
todos eles com palavras mui compostas, polidas, altivas, graciosas, faziam-lhe passar o tempo ãs
carreiras. Quase sempre, acaba com o livro caído e os olhos no ar, pensando. Talvez algum velho
marquês defunto lhe repetisse anedotas de outras eras. 64

Aí fica sintetizado também o gosto de Sofia e de grande parte do leitorado do Brasil


na segunda metade dos oitocentos, quando ao obras traduzidas de Dumas pai circularam
largamente, fascinando o público e fixando nele o gosto pela linguagem grandiloqüente,
pelos ambientes cheios de pompa e luxo e pela distração oferecida pelos grandes arrancos
do enredo. Já os livros de Feuillet, muitos vezes disponíveis apenas no original, é que
faziam do aprendizado do francês um item indispensável "para conversar, ir às lojas, para
ler um romance"65 , nessa ordem de importância.
Interessa notar sobretudo o descompasso marcado entre o gosto pela literatura
escapista e sentimental, atribuído aos personagens, e as preferências literárias muito mais
sofisticadas e eruditas do narrador, que freqüentemente cita a Bíblia, aprecia Steme e "o

jornais sem os ler, além de ser contribuinte da Atalaia, folha fundada pelo Dr. Camacho e que ia bem em
assinaturas, tinha anúncios, mas precisava de contribuições para "ampliar a matéria, pôr-lhe mais
noticiário, variedades, tradução de algum romance para o folhetim, movimento do porto, da praça, etc."
(QB. p. 694). Há também leitores das revistas de variedades, como uma das elegantes do tempo, esposa de
senador, que lia Feuillet na Revista dos Dous Mundos e por meio de quem Sofia veio a conhecer a revista,
hnediatamente pedindo ao marido que a assinasse, passando a ler os romances que lá saiam (QB, p. 778).
Há também o leitor de revista estrangeira Carlos Maria, que lê um "estudo de Sir Charles Little, M.P.,
sobre a famosa estatueta de Narciso, do Museu de Nápoles" publicado numa revista inglesa cujo nome não
é citado (QB, p. 788).
62 QB, p. 643.
63 QB, p. 713.
64 QB, p. 712.
65 QB, p. 697.

160
elegante Garrett"66, supõe compartilhar com o leitor o gosto por Álvares de Azevedo, ao
qual se refere como "nosso"67 , menciona obras de Shakespeare e sobretudo cita o Hamlet.
Mas é preciso cautela diante das citações de frases estropiadas de acordo com as
conveniências do narrador68 e das suas declaradas admirações por táticas narrativas a que
se refere apenas para impressionar o interlocutor, já que faz o contrário do que elas
prescrevem.
O narrador, por exemplo, elogia os títulos descritivos dos capítulos de Tom Jones e
cita um deles, intitulado Contendo cinco folhas de papel, para ressaltar a clareza, a
simplicidade e honestidade do recurso - "são cinco folhas, mais nada, quem não quer não
lê, e quem quer lê". 69 No entanto, seu procedimento é oposto ao de Fielding, já que dedica
muitas linhas para exaltar a capacidade de síntese. Ou seja, ele subverte diante dos olhos do
leitor a regra elogiada, já que o Capítulo CXII é reduzido à função de intróito ao seguinte,
dedicado a descartar a solução de Fielding. As virtudes dos velhos livros não se aplicam ao
seu, que não é claro nem simples e que engambela o leitor. Eis todo o Capítulo CXIII:
Se tal fosse o método deste livro, eis aqui um tituio que explicaria tudo: 'De como Rubião, satisfeito
da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que
lera'.
Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a análise da operação
mental do nosso homem, sem advertir que, pata tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de
Fielding. Há um abismo entre a primeira frase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as
obras lidas por ele; é certo que o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; -deste em diante
a carreira fez-se rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é
deixar sô isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.7°

Com todos esses ditos e desditos, o narrador enfatiza a contradição inerente à sua
declarada preferência pela narrativa sucinta e também o suposto desagrado que essa postura
causaria num certo tipo de leitor afeito a delongas e minúcias. Ele afrrma gostar do simples,
do direto e do honesto logo depois de escrever três capítulos que não são propriamente
capítulos, mas preâmblilos para um longo capítulo que ele diz não saber se poderia vir
resumido no título. No segundo parágrafo, em atitude característica o narrador projeta sua
confusão no interlocutor, deixando entrever o desvario de seu método - "Desvario

66 QB, p. 689.
67 QB. p. 736.
68 O narrador emenda Hamlet duas vezes: "Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas cousas mais do que
sonha a vossa vãfilantropia" e, logo em seguida, "mais do que sonha a vossa vã dialética".
69 QB. p. 738.

161
embora, lá tem seu método" é a frase do Hamlet recorrentemente citada por ele - ,
focalizando o abismo de Rubião e também o seu próprio, que não consegue concordar
consigo mesmo, oscilando entre as expectativas que seriam de seu interlocutor e seus
"princípios" narrativos, supostamente fundados na clareza e na síntese. O não-cumprimento
dos princípios declarados estabelece um desacordo entre a enunciação e a ação, desacordo
semelhante á discrepância entre a aparência dos fatos e os fatos, para a qual o narrador
alerta desde as línbas iniciais do livro.

A recepção de Quincas Borba


No mundo empírico, os fatos também divergiam das aparências, já que a recepção
do livro tratou de desmentir as expectativas negativas em relação à ínterlocução expressas
em Quincas Borba. Foi este o primeiro grande sucesso de critica e público de Machado de
Assis. O livro era assunto de resenhas em vários jornais, inclusive fora do Rio de Janeiro,
e sua publicação coíncidia com o momento em que a obra machadiana passava a catalisar a
atenção das principais facções da crítica literária de então representadas, de um lado, por
Sílvio Romero, Múcio Teixeira, Luis Murat e Agripíno Grieco e, do outro, pelo
Conselheiro Lafaiete (Labieno), Magalhães de Azeredo, José Veríssimo, Araripe Júnior e
Valentim Magalhães.
Apesar dos artigos numerosos sobre o livro, há entre o texto de Machado e a
linguagem das resenhas que trataram do seu lançamento, no final de 1891, um abismo
comparável ao que separa as referências e preferências literárias do narrador e as das
personagens de Quincas Borba. O redator d'O Tempo qualificou o livro de "um brilhante
demais engastado no diadema da literatura brasileira" e "um cálix de licor finíssimo que a
gente prova e sorve de um trago."71 Em O Estado de S. Paulo, Magalhães Azeredo, então
com 19 anos, publicou uma série de seis artigos elogiosos a Brás Cubas e a Quincas
Borba. Nesses textos, o futuro amigo e pupilo de Machado de Assis, que até o final da vida
teria nele um confidente, definia o humorismo do escritor como "flor doentia da
experiência e da desilusão, que semelha um goivo de sepulcro abrindo-se numa jarra de
porcelana de Sevres, sobre um piano donde se evolam acordes de polcas alegres, no

70 QB, pp. 738-9.


71 José Anastácio, "Quincas Borba", O Tempo, Rio de Janeiro, 25.!.!892, p. 1.

162
turbilhão doido de um baile de duendes."72 Até José Veríssimo, tão comedido com as
palavras e sempre tão sóbrio na linguagem, cede à pieguice e exorbita nos adjetivos ao
dizer que livros como os de Machado de Assis "confortam-nos algumas horas como o doce
perftune de uma flor rara ou a sombra fofa de uma copa de árvore em meio de longo
caminho árido"73 .
Entre as criticas contemporâneas ao lançamento do livro, a de observações mais
finas e mais livre de floreios é a de Araripe Júnior, que concluía assim o primeiro dos dois
artigos que dedicou ao romance em 1892:

Machado de Assis tem andado entre Octave Feuillet e Laurence Steme; duas naturezas
aparentemente diversas, uma de angorá, outro de urso filósofo. Eu preflro a última e por isso gosto mais
de Brás Cubas e de Quincas Borba do que da Jaiá Garcia e da Helena. 7<

Escrita muíto antes que a obra de Machado de Assis fosse dividida em duas fases, a
observação de Araripe Júnior é notável pelo reconhecimento de dessemelhanças e
semelhanças entre os livros, pelo apontamento das filiações literárias de cada um deles e
também por evidenciar o contraste de gosto que marca não só a distância entre o narrador e
os personagens, mas também o descompasso entre a obra e o ambiente literário em que ela
se inseria, o que também fica demonstrado nas diferenças entre a limpeza da dicção
machadiana e a linguagem retorcida empregada na maioria das resenhas dedicadas ao
Quincas Borba. Diante de alguns trechos dessas resenhas, é tentador imaginar a expressão
facial e os comentários silenciosos (ou não) do escritor com seus próprios botões diante das
comparações suscitadas por seu livro.
Desta vez Machado de Assis pelo menos tinha o consolo do relativo sucesso de
circulação do livro, que recebeu várias resenhas na imprensa e teve sua primeira edição
esgotada em período recorde, chegando à segunda edição em 1896 e à terceira em 1899.75
O fato inédito não passou despercebido pelo escritor, que no "Prólogo da 3• edição" fez um

72 Carlos Magalhães de Azeredo, "Quincas Borba", in O Estado de São Paulo, São Paulo, 19, 20, 21, 24,
26 e 27.4.1892.
73 José Veríssimo, "Às segundas-feiras- um novo livro do Sr. Machado de Assis", Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 11.1.1892, pp. 1-2.
74 Araripe Júnior, "Qulncas Borba", Gazeta de Notícias, 12.1.1892, p. 1.
75 A primeira edição em livro, publicada em 1891 pela Gamier, teve tiragem de 1.000 exemplares; a
segunda, de 1896, foi de 1.!00 exemplares; não há contrato para a terceira edição, já que quando do seu

163
dos registros mais francos do interesse pela recepção de sua obra. Depois de informar que
"a segunda edição deste livro acabou mais depressa que a primeira", Machado refere-se à
sugestão de um confrade para escrever um terceiro volume que formasse com Brás Cubas e
Quincas Borba uma trilogia, idéia que o escritor pondera e rejeita. Nesse mesmo prólogo,
ele também menciona a critica, dividida em duas facções: a primeira formada pelos que
tacharam sua obra de repetitiva - leia-se Sílvio Romero, que dois anos antes publicara o
estudo em que procura demonstrar a superioridade literária de Tobias Barreto em relação a
Machado de Assis; e a segunda, composta pelas "vozes generosas e fortes" que saíram em
defesa pública de Machado contra os ataques de Sílvio Romero - leia-se Lafaiete
Rodrigues Pereira que, sob o pseudônimo de Labieno, publicou uma série de artigos no
Jornal do Comércio para refutar as teses de Romero. 76
Ao escrever que Rubião "se desdobrava, sem público, diante de si mesmo"77,
Machado provavelmente aludia também à sua condição de escritor frustrado com os efeitos
ínfimos produzidos por seu Brás Cubas dez anos antes, o que o levou, num gesto muito
pouco característico seu, a se queixar ao cunhado Miguel de Novais, que lhe respondeu em
carta: "Parece que não tem razão para desanimar e bom é que continue a escrever sempre.
Que importa que a maioria do público lhe não compreendesse o último livro? Há livros que
são para todos e outros que são só para alguns- o seu último livro está no segundo caso e
sei que foi muito apreciado por quem o compreendeu- não são e o amigo sabe-o bem os
livros de mais voga os que têm mais mérito. Não pense nem se ocupe da opinião pública
quando escrever. A justiça mais tarde ou mais cedo se lhe fará esteja certo disso ... "78 •
Machado de Assis não quebrou a pena, mas também jamais deixou de se importar e
manifestar seu interesse e preocupação com a opinião pública e com a acolhida de sua obra,
o que fez em agradecimento público a José Verissimo79 e por carta a Magalhães de

lançamento, em 1899, o direito sobre as edições dessa obra já estavam vendidos para François-Hippolyte
Gamier, mas a tiragem deve ter sido em torno dos 1.000 exemplares, conforme costume da época.
76 O agradecimento em particular foi feito por meio de carta enviada a Lafaiete Rodrigues Pereira datada
de !9.2.1898 e reproduzida em OC, vo!. 3, p. 1043.
77 QB. p. 711.
78 Carta de Miguel Novais a Machado de Assis de 2!.7.1882, apud Luiz Viana Filho, A vida de Machado
de Assis, São Paulo, Livraria Martins Editora, !965, pp.IB-4.
79 A satisfação de Machado com a resenha de José Verissimo manifestou-se em artigo sobre o lançamento
do livro Estudos Brasileiros, que inclula o texto de Verissimo publicado no Jornal do Brasil; no artigo,
Machado fazia referéncia indireta à resenha ao falar que além da competência conhecida e reconhecida do

164
Azeredo, que a partir de então se tomariam amigos de vida inteira. Depois do
desapontamento com a recepção do romance anterior, Machado cria um narrador mais
retraído e menos estridente na sua relação com os leitores empíricos, aprofundando a
figuração do leitor no terreno ficcional por meio de um narrador dissimulado que fmge
proximidade para, a certa altura, passar mna descompostura e flagrar a inépcia e a
incompetência do leitor. A critica ao leitor empírico, explícita e direta em Brás Cubas,
desta vez está deslocada para camadas mais profundas do texto e se faz por meio da
figuração do leitor como alguém dissimulado, confuso e desorientado que, à semelhança do
novo-rico Rubião, aprecia Mefistófeles e Fausto pelo seu valor de troca. São os leitores das
estátuas de bronze que não devíam ser raros no tempo da publicação de Quincas Borba,
marcado pela euforia econômica, ilusão de riqueza, negócios mirabolantes e falcatruas do
Encilharnento.

critico, havia no livro "páginas que mostram que há nele também muita benevolência". Machado de Assis,
"A Semana", 2.12.1894, OC, p. 635.

165
Capítulo 8
Dom Casmurro e o leitor lacunar

Em Dom Casmurro, a figura do leitor passa a incluir também o risco da


interpretação inerente ao processo de leitura, e o lugar que lhe é prescrito toma-se mais
ambíguo do que em qualquer dos romances anteriores. Desta vez o leitor é explicitamente
convocado a participar do processo literário na condição de intérprete, completando
lacunas, tirando conclusões e fazendo julgamentos do que lhe é relatado. Enquanto em
Brás Cubas e Quincas Borba o tom jocoso da narração convida ao distanciamento em
relação aos fatos narrados, em Dom Casmurro a nostalgia melancólica apela à empatia. O
narrador Bento Santiago procura convencer da sua versão do ocorrido, ao mesmo tempo
em que vai deixando pelo caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes
das suas, constituindo-se em iscas para enredar o leitor no campo ficcional. Ao apelo por
uma identificação negativa com Brás Cubas e, em certa medida, com Rubião, sucede a
procura não de identificação, mas de um espécie de aderência do interlocutor ao processo
da narração; para isso, o narrador procura seduzi-lo de modo a tomá-lo não apenas
cúmplice, mas co-autor da narração. Nesse sentido, força-se a aproximação entre as
instãncias da narração e da interlocução, fazendo com que a figura do leitor ganhe maior
densidade.
Diferentemente do que ocorre nos dois romances anteriores, as objeções ao leitor
desta vez não se manifestam pelo confronto direto, mas aparecem incorporadas ao modo
ambíguo do relato. É como se a tessitura do texto se alargasse e as fissuras - contradições,
omissões, emendas, lacunas - construíssem um espaço, digamos, interno, capaz de abrigar
leituras discordantes. A oposição entre o leitor desejado pelo narrador e o leitor possível,
muito marcada na superficie da narração de Memórias Póstumas e aprofundada em
Quincas Borba, dissolve-se numa zona de incerteza capaz de conter uma maior variedade
de interlocutores.

Da audição ao silêncio
A questão da recepção, ou melhor, da interlocução no processo literário, é tratada já
no capítulo iuicial, em que o narrador trata das circunstãncias da origem do título. No trem

167
de volta para casa, Bento Santiago encontra um conhecido do bairro que se senta perto dele
e recita-lhe versos. Involuntariamente, o narrador é colocado na posição de ouvinte dos
versos alheios, posição que ele rejeita com veemência, não disfarçando o tédio, o enfado e
o sono. A recusa de um determinado tipo de recepção do texto - a do leitor-ouvinte -
está portanto na origem do apelido e do titulo do romance. Mas entre a cena do trem e a
definição do título do livro que o leitor empírico tem em mãos, há um longo processo de
sedimentação de significados, iniciada com o reconhecimento, pelos amigos de Bento
Santiago, da propriedade da alcunha. O que nasceu do ressentimento do poeta frustrado
com a indiferença silenciosa do interlocutor - situação cujas conseqüências poderiam não
ter ultrapassado os limites do comboio que levava Bento Santiago do centro para sua casa
no Engenho Novo - sofre um processo de assimilação por meio da escrita, que se inicia
com os vários bilhetes que os amigos de Bento Santiago lhe enviam chamando-o
"casmurro" até finalmente atingir a posição talvez mais destacada que um nome possa
ocupar: o título de um livro.
Do oral ao escrito, dos versos à narração de alcova, o primeiro capítulo sintetiza e
explícita o processo de formação das histórias, concluindo ao final haver autores que não
inventam nem mesmo o título das suas narrativas. A observação, interpretável como
primeira amostra da maledicência do autor-narrador, que insinua a regularidade da prática
do plágio e do roubo de histórias alheias, também pode ser lida como subterfiígio para
isentar-se de responsabilidade sobre o escrito. Ao assinalar o caráter coletivo dos nomes,
das reputações e das histórias, ele sugere que nada- ou muito pouco - do que é contado
deve-se apenas à imaginação do autor, resultando antes de um processo coletivo de
acumulação e depuração de sentidos no qual a interlocução é fundamental.
A insistência na importância dos interlocutores no processo de constituição das
histórias, assim como dos leitores na consumação do processo literário, é um dos
estratagemas do narrador para transferir ao outro a responsabilidade sobre a interpretação
dos fatos, o que ele fará explicitamente no trecho em que atribui ao leitor a tarefa de
preencher lacunas. Ao postular que o sentido de uma obra literária se completa no leitor e
explicitar isso na estrutura do romance, Machado de Assis coloca narrador e leitor em
posições ousadas, aprofundando a complexidade da relação entre autor, narrador e leitor,
que atingiria o paroxismo em Memorial de Aires e tornar-se-ia problema fundamental na

168
literatura moderna, em que a questão do sujeito- e da autoria- está sempre apresentada
como problema
A partir da cena do trem, quase imperceptivelmente o interlocutor vai sendo
instalado no texto por meio de referências as mais diversas. A primeira delas aparece ainda
no primeiro capítulo, quando o narrador refreia um impulso que imagina ser o do seu leitor:
recorrer a um dicionário para saber o sentido de casmurro. Aí, pela primeira vez o narrador
assegura que tudo que seu interlocutor precisa saber está no livro que ele tem em mãos,
enfatizando não só o seu aspecto material e sua presentificação temporal quanto para o fato
de que o sentido do livro se completa na sua relação com o leitor, sem necessidade da
intermediação de terceiros.
A manobra de desautorizar e desvalorizar as referências externas e os sentidos
solidificados das palavras coloca o leitor numa situação bastante vulnerável. Abrir um
dicionário, como observa Umberto Eco, significa aceitar uma série de postulados de
significado 1; ao tentar dissuadir seu interlocutor de fazê-lo, o narrador casmurro pretende
suspender a validade de todos esses postulados, deixando-o à sua mercê e anogando-se a
posição de único e suficiente árbitro dos sentidos coletivos, capaz de fornecer todos os
detalhes necessários para a compreensão da história. A auto-suficiência do relato e sua
independência dos significados externos são reiterados no fmal do segundo capítulo,
quando o narrador afirma que pela leitura o leitor entenderá o porquê de uma certa tarde de
novembro nunca ter desaparecido de sua memória, ainda que ele tivesse vívido muitas
outras tardes, melhores ou piores do que aquela. "É o que vais entender, lendo."
Ao mesmo tempo em que afirma a autonomia do leitor na produção de sentidos,
Bento Santiago procura minar suas referências, reivíndicando controle exclusivo sobre uma
figura que tem existência externa ao texto - o leitor - , como se procurasse atrai-lo,
cooptá-lo e circunscrevê-lo dentro dos limites ficcionais. O apelo é para que o leitor se
desvencilhe de referências externas e não apenas se entregue ao ato da leitura, mas integre
o núcleo narrativo, ao qual o narrador esforça-se por imprimir uma força centrípeta, capaz
de anebatar esse leitor, transformando-o em matéria nartativa. Vejamos como isso se
produz.

1 Cf. Umberto Eco, Lector in Fabula, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 36.

169
A leitura equivocada e redutora
As referências diretas ao leitor e à leitora, presentes ao longo do livro em registros
que oscilam da lisonja ao desprezo e à má-criação, vão fmjando a aproximação e a
intimidade entre o narrador e seus interlocutores. Há o leitor caro e amigo e também o
desgraçado e de cabeça perversa; as leitoras incluem as devotas e castíssimas assim como
as que perturbam a adolescência de seminaristas, caso de Capitu em relação a Bentinho. Ao
mesmo tempo em que o narrador conta com a sagacidade dos interlocutores para a
elaboração do relato, há entre eles os obtusos, que não preenchem lacuna alguma e "nada
entendem, se se lhes não relata tudo e o resto"2 ou só entendem alguns conceitos "à força
de repetição"3 • Esse leitor xucro, que o narrador inclui entres seus interlocutores, é sempre
apresentado como um terceiro, um outro indesejado com quem o leitor empírico não deve
se identificar. Esse artificio, presente em Brás Cubas, ajuda a estreitar os laços entre o
narrador e o leitor que está com o livro nas mãos, ambos bons entendedores, como o
primeiro quer fazer crer ao segundo. Ao referir-se a bons e maus interlocutores, o narrador
força a aproximação do leitor empírico, que dificilmente vai querer identificar-se com os
perversos, os obtusos, os excessivamente castos etc.
A aproximação do leitor empírico em relação ao núcleo ficcional também se
produz pela sua identificação/não-identificação com os tipos variados de leitores-
personagens que habitam o espaço da ficção. A divisão dos interlocutores em ouvintes e
leitores, presente na cena inicial do livro, aplica-se também ás personagens. Há tanto
auditores, representados por personagens da velha ordem, como D. Glória e a prima
Justina, que ouvem Walter Scott pela boca de José Dias, quanto os leitores solitários e
silenciosos de livros, dos quais Dom Casmurro é o principal representante e com o qual o
leitor mais refinado e culto é induzido a se identificar. Bento Santiago não é apenas o que
lê mais - ele também possui mais livros. É de sua biblioteca que saem exemplares tanto
para Escobar quanto para Capitu, que sabemos não possuir livros em casa e é uma leitora
de favor ("lia os nossos romances, folheava nossos livros de gravuras"4 ), o que marca,
também nesse terreno, as diferenças sociais entre ela e Bentinho. Apesar de ser o leitor
mais completo, conhecedor dos clássicos antigos e modernos, o que lhe confere

2 DC, p. 915.
3 DC, p. 841.

170
superioridade e autoridade diante dos outros personagens e também do seu interlocutor, há
muitos indícios de que Santiago seja um leitor muito limitado.
Seus equívocos e limitações parecem aplicar-se não só aos fatos da sua própria vida
-na interpretação do que dizem os retratos, o Panegírico de Santa Mônica, a expressão de
Capitu diante do corpo de Escobar - , mas também a autores que ele cita e dos quais faz
uma leitura arrevesada Bento apresenta-se como leitor de Homero, Shakespeare, Prévost e
Goethe, familiarizado com a literatura juridica (ele foi aluno da Faculdade de Direito em
São Paulo) e com as Sagradas Escrituras, conhecedor das Inspirações do Claustro, de
Junqueira Freire, publicadas em 1855, dos aforismos de Benjamin Franklin e Montaigne e
releitor da melhor produção do romantismo brasileiro em prosa e verso, representada pelas
obras de José de Alencar e Álvares de Azevedo. Todas as referências literárias têm relação
direta e imediata com os fatos narrados por Bento Santiago, deixando claro o intenso
subjetivismo deste leitor que enxerga sua própria história em tudo aquilo que lê.
As "inquietas sombras" do Fausto, por exemplo, citadas logo no início da narrativa,
remetem à fantasmagoria do passado de Bento Santiago corporificada nas estátuas e bustos
que enfeitam a casa do Engenho Novo, ela própria uma sombra da casa de Mata-cavalos. O
sofrimento do seminarista Bentinho, implicitamente comparado à tortura moral narrada por
Junqueira Freire no seu livro mais célebre, Inspirações do Claustro, só tem cabimento se
descontado o pendor do narrador pela exageração e supervalorização dos próprios
sentimentos. A triangulação em tomo do ciúme, formada por Bento, Capitu e Escobar, está
refletida no Otelo, referido mais de uma vez ao longo do livro; e também a forçada
identificação de Bentinho, no capítulo "O Penteado", com o inocente cavaleiro Des Grieux,
jovem de boa família levado à perdição pela bela e imoral Manon Lescaut no romance
setecentista de Antoine-François Prévost, que tematiza a paixão sexual e a intervenção do
dinheiro nas relações amorosas.
Ao reduzir essas leituras a ilustrações dos seus sentimentos e conflitos, distorcendo
fatos em função dos interesses do seu relato, Bento Santiago revela-se um mau leitor.
Disso, o melhor exemplo é a comparação flagrantemente tendenciosa que Bento Santiago
faz com Otelo, comparação da qual está excluída qualquer possibilidadade da inocência de
Capitu, cuja culpa ele só faz reafirmar. Depois de assistir a toda a peça e já voltando para

4 DC, p. 841.

171
casa, Santiago delicia-se ao imaginar as possíveis reações do público diante da punição de
Capitu: "Um travesseiro não bastaría; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto,
que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna
extinção ..." 5 • Ou seja, ele deturpa os fatos, ignorando que a peça e Otelo concluem pela
inocência de Desdêmona, para justificar a sua condenação de Capitu. 6 Com isso, os riscos
inerentes à leitura e à interpretação são tematizados pelo romance, que em mais de um
momento chama a atenção para o desastre implicado na leitura incorreta ou deturpada; com
isso, abrem-se brechas para que os leitores mais atentos desconfiem da leitura e da
interpretação que Bento Santiago faz dos acontecimentos de sua vida, supostamente
relatados com isenção.
Nessas constantes comparações de sua história com as dos livros, o narrador
também sugere que as histórias, de maneira geral, são apenas reedições de um número
reduzido de matrizes narrativas, o que é uma de suas idéias recorrentes. Ele parece crer -
ou tentar fazer com que seu leitor creia - que toda obra literária é manifestação de um
texto pré-existente, cujo autor seria Deus, ou a natureza, ou o destino, como se depreende
da afirmação de que "os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais
obras de arre, por uma razão de ordem metafisica"7 ; ou de que "há um texto pré-escrito, do
qual até Shakespeare é um plagiário, e esse texto consiste na luta do tenor com o barítono
pelo soprano em presença do baixo e dos comprimários; ou do soprano e contralto pelo
tenor, em presença dos mesmos baixo e comprimários. Tudo cabe na mesma ópera... " 8 A
afirmação de que todas as histórias se equivalem e estão escritas desde sempre é um dos
vários recursos do narrador para eximir-se da responsabilidade tanto sobre o acontecido
quanto em relação ao narrado; assim, personagem e narrador apenas desempenhariam a
função prescrita para eles no enredo de uma ópera universal, composta em tempos
imemoriais. O narrador Bento Santigo quer convencer o leitor de que o personagem

5 DC,p. 935
6 Sobre as leituras equivocadas dos clássicos em Dom Casmurro, Cf. Helen Caldwell, The Brazilian
Othello ofMachado de Assis: A Study ofDom Casmurro, Berkeley and Los Angeles, University of
California Press, 1960; Maria Manuel Lisboa, "Machado de Assis and lhe Beloved Reader", in Scarlet
Letters: Fictions ofAdultery from Antiquity to the 1990s, Houndmills, England, Macmillan Press, 1997, pp.
160-173; Lisboa refere-se também às leituras equivocadas que Bentinho faz de Platão, Sócrates e de
algumas passagens bíblicas.
7 DC, p. 867.
8 DC, p. 819.

172
Bentinho, assim como o Otelo e o lago de Shakespeare, apenas emprestou a tessitura
particular de sua voz a uma história pré-existente, que aguardava manifestação no mundo
sublunar. A história contada, apesar da parcialidade do ponto de vista, da violência e
gravidade das acusações, é naturalizada pela pressuposição de que o interlocutor já a
conheça, uma vez que ela é apenas a reedição de uma história-matriz.
Ao mesmo tempo em que insinua que sua interferência e responsabilidade sobre os
fatos uarrados tende a zero, a entidade narrador-autor-personagem também charua a
atenção do leitor mais atento para sua impossibilidade de recompor os fatos passados, seja
por meio de palavras ou... de tijolos. É o próprio uarrador que, logo de saída, confessa a
tentativa baldada de reconstruir no Engenho Novo a casa de Mata-cavalos, reconhecendo
que, apesar de "chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro( ... ) louça
velha e mobília velha" em comum, na nova casa adornada com os mesmos medalhões e
bustos de outrora "falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo"9 • Tanto na casa do Engenho Novo
como no livro - aproximados pelo vocabulário comum empregado para tratar desses dois
lugares fundamentais para a recomposição do passado de Bento Santiago - , há desvãos a
serem preenchidos. Cindido entre a vivência do passado, a memória e a tentativa de
representação do passado no presente, o narrador a todo tempo reitera sua incompletude e a
do seu relato. Enquanto na recriação da casa antiga falta uma dimensão de Bento Santiago
com a qual o narrador Casmurro não mais se identifica em função do avanço inexorável do
tempo, há no livro pelo menos a esperança de recomposição do sentido por intermédio da
participação do leitor: "É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim
preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas." 10 Ao incumbir um
outro de complementar sua história, Bentinho explícita - ainda que seja por pura
dissimulação - sua incompletude não só como narrador, mas, retrospectivamente, como
vivenciador das experiências relatadas. O leitor, portanto, aparece figurado como uma
espécie de extensão complementar do narrador, também incompleto, cindido.

9 oc, p. 810.
!O DC, p. 871.

173
O outro do narrador
O leitor aparece no romance como uma superfície refletora, espécie de espelho
distorcido que devolve para Bento Santiago uma imagem sempre deformada de si mesmo.
O narrador procura colocá-lo na posição que ele próprio, Bento, enquanto personagem,
freqüentemente esteve em sua vida: a de conhecer-se por meio do olhar e da voz do outro.
Isso fica sugerido numa das cenas fundamentais do romance, aquela em que Bentinho pela
primeira vez se dá conta do seu apego por Capitu ao ouvir, atrás da porta, José Dias
advertir a mãe do perigo de o filho "pegar de namoro", expressão do agregado, com a
vizinha pobre. Como ouvinte de uma narrativa construída no ambiente familiar, Bentinho
entra em contato com um eu que até aquele momento ele próprio desconhecia. Mais do que
delatá-lo à mãe, José Dias denuncia Bentinho a Bentinho, numa "revelação da consciência
a si própria" 11 •
Esse capítulo das revelações insidiosas do agregado à matriarca da família Santiago
poderia ser intitulado, por exemplo, "A Revelação", mas seu titulo é "A Denúncia",
sugerindo sua força negativa na memória do narrador. De fato, a impressão causada pela
entrevista de D. Glória com José Dias é tal que o narrador confessa que aquela tarde de
novembro nunca desapareceu de sua memória. A cena, indicada como "o princípio da
minha vida" 12, é o ponto-zero da memória de Bento Santiago, marcando também o
nascimento do narrador casmurro e o início da elaboração do relato, que representa um
esforço de explicação sobre a importáncia dessa tarde que, para outra pessoa qualquer,
poderia ser banal.
A cena da constituição do eu por meio de um outro é emblemática tanto da relação
de Bento Santigo consigo mesmo quanto da relação entre o narrador-autor Bento Santiago
e os leitores imaginados por ele. No plano do narrado, ao ouvir atrás da porta à conversa
em que José Dias conta a D. Glória do seu interesse pela vizinha, Bentinho assume a
posição de terceira pessoa no discurso delator para se constituir como primeira pessoa; e é
nessa situação em que o eu se constitui pela intervenção do outro que está a gênese da
transformação de Bento Santiago no futuro narrador em primeira pessoa do livro que o
leitor empírico tem em mãos.

11 DC, p. 821.
12 DC,p. 817.

174
No plano da enunciação, o leitor explícito é colocado nesse circuito de elaboração
de uma história que em última análise se refere a terceiras pessoas - Bentinho e Bento
Santiago são seres de um outro tempo aos quais o narrador Casmurro se refere como outros
de si mesmo- embora essas terceiras pessoas estejam associadas ao narrador que, isolado
do mundo, utiliza a interlocução do outro para reconstruir-se e imprimir credibilidade à sua
versão dos fatos.
No presente da narração, o papel do leitor, evocado como "leitor das minhas
entranhas", é subliminarmente associado ao do sagaz agregado. Tal adjetivação do leitor
ocorre justamente no único momento do livro em que o narrador confessa seu "puro
ciúme" de Capitu, num capítulo sugestivamente intitulado "Uma ponta de lago", que trata
de outro assalto de José Dias às emoções de Bentinho: a insinuação de que Capitu, com
Bentinho internado no seminário, procurava "pegar algum peralta da vizinhança" .13 O leitor
pode ler as entranhas do narrador assim como o agregado lia a intimidade de Bentinho,
enxergando nele a manifestação do puro ciúme.
Machado constrói um narrador que, embora procure convencer-nos de dizer tudo e
toda a verdade e de ter o controle absoluto sobre a narração, é explicitamente apresentado
como um sujeito falho, incompleto e dependente do outro para se constituir e para se
legitimar enquanto narrador. No processo da narração, esse outro é o leitor, figura que em
Dom Casmurro aparece integrada e entranhada no tecido ficcional, que a postula como
indissociada e indissociável da figura do narrador e fundamental para a consumação do
processo narrativo, de cujas entranhas o leitor deve participar.

A contabilidade narrativa
A integração do leitor à matéria da narração manifesta-se também de forma muito
concreta em Dom Casmurro, onde a materialidade do processo literário está representada
de maneira bastante explícita. Entre os romances de Machado de Assis, é neste que as
interações possíveis entre autor, narrador e leitor são exploradas de forma mais variada e
apresentadas em detalhes que incluem menções a aspectos editoriais e referências diretas
ao objeto que o leitor empírico tem em mãos - o livro. Da narração do momento em que
surgiu a idéia de se escrever a história à solicitação de que, se encontrar algum exagero, o

175
leitor avise "para que o emende na segunda edição"14, passando por considerações sobre o
número de páginas e o preço final do exemplar, tudo isso é tratado em suas páginas.
O procedimento metadiscursivo consiste em participar o leitor das escolhas
realizadas para a arquitetura do relato em função das implicações disso sobre o tamanho, a
apresentação e até o mesmo o preço que as palavras e os episódios narrados terão ao chegar
a sua forma final. O narrador casmurro, muito cioso das dimensões concretas de sua
narrativa e para quem "nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias
brevíssimas" 15, está sempre justificando a entrada em minúcias e detalhes, que ele tem o
cuidado de dizer não serem em vão, mas plenamente justificáveis para a rentabilidade
narrativa Essas ponderações não se fazem em tomo de questões estéticas ou morais, mas à
luz do número de páginas ou capítulos que a narração de um determinado fato viria a
ocupar. A quantificação do interesse reforça e dá literalidade para a capacidade de cálculo
do narrador-personagem, ao mesmo tempo em que evidencia a necessidade de pesar bem o
interesse de uma história em função do tempo que ela tomará do leitor. Assim, o narrador
está constantemente alertando para determinado fato, advertindo-o de que isso só tomará
um capítulo ou de que a anedota é curta, o que às vezes resulta em equações curiosas, como
as contidas na afirmação de que "as curiosidades de Capitu dão para um capítulo"16 ou de
que as confissões da infância valiam duas ou três páginas 17 ou de que "esta página vale por
meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim"I8,
Às vezes o narrador interrompe o relato para dizer que não vai contar em detalhes
sua passagem pelo seminário porque para isso não bastaria apenas um capítulol9; anuncia a
omissão da narração dos seus sonhos- "para não alongar esta parte do livro"20 ; revela que
sob o fluxo narrativo maquinava a altura em que dedicaria um capitulo a determinado
assunto21 ; e presta contas sobre a discrepância entre o plano de livro que ele tem em mente
e o resultado que está sendo apresentado ao leitor:

13 DC, p. 874.
14 DC, p. 880.
15 DC, p. 880.
16 DC, p. 841.
17 DC, p. 823.
18 DC, p. 905.
19 DC, p. 864.
20 DC, p. 875.
21 DC, pp. 888-889.

176
Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fnn do
papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capitulo
sobre capitulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. 22

A relação entre a matéria do relato e o espaço físico ocupado está sempre


tematizada, chegando-se a sugerir que a quantidade total de papel destinado ao manuscrito
esteja pré-definida, como no trecho acima e em outros, em que o narrador diz omitir tal o
qual fato para não tirar espaço ao resto_23 Ao mesmo tempo em que sugere um
planejamento rigoroso das partes e seções do livro, o narrador sugere seu descontrole e
falta de isenção ao emitir julgamentos sobre a qualidade da narração, ao afirmar que o
melhor ainda está por vir e revelar sua inexperiência e seu pendor ao excesso. Além das
questões espaço-temporais, o narrador também entra em cogitações monetárias, referindo-
se em mais de uma ocasião ao preço do livro, como se observa nestes trechos:

Justamente, quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou
fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às pernas do capítulo. Se depois jarretei o
capítulo, foi porque outro músico, a quem mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho
escrito nada que lhe acordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionais que
porventura me lerem, melhor é poupar o editor do livro o trabalho e a despesa da gravura. 24

O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção
mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se
pinta. 25

... Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido
poucas semanas antes, dous meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este,
antes de mandar o livro ao prelo, mas custa muito alterar o número das págirtas; vai assim mesmo,
depois a narração seguirá direita até o fim. Demais, é curto.26

A obsessão por quantidades está presente em vários aspectos do romance, em que


nem mesmo a relação com o divino escapa à sanha contábil de Bentinho. O valor das
promessas espirituais vem sempre quantificado no número de pais-nossos e aves-marias, e
as coisas da religião freqüentemente aparecem sob metáforas monetárias: "Jeová, posto que
divino, ou por isso mesmo, é um Rotschild muito mais humano"27 , o adiamento do envio

22 DC, p. 905.
23 DC, p. 868.
24 DC, p. 871.
25 DC, p. 898.
26 DC, p. 931.
27 DC, p. 881.

177
de Bentinho ao seminário é comparado à reforma de uma letra28 , e o purgatório aparece
como "uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo
curto"29. Incapaz de lidar diretamente com sua própria intimidade, o narrador refere-se a
suas emoções e sentimentos por meio de parâmetros materiais. O apego à dimensão do
livro, seu aspecto e preço servem para deixar na sombra seus sentimentos. O livro é
apresentado como estrutura pré-definida a ser preenchida pelo narrador-autor- e também
pelo leitor - , o que vem reiterado em outros níveis da narrativa. A atenção aos aspectos
concretos da história materializada no objeto livro faz parte da estratégia do narrador de
deslocar a atenção das motivações reais do relato - que é a de reviver e eventualmente
reformular a própria vida pela escrita. Esse apego ao aspecto concreto e "objetivo" das
histórias parece funcionar como contrapeso e lastro de verossimilhança para uma narrativa
em que a carga de subjetividade é extrema.
À abordagem materialista da dimensão editorial do processo literàrio corresponde
uma visão também materialista do leitor, cuja atenção não só e quaotificável mas também
passível de ser apreçada, o que o narrador faz em várias ocasiões ao se mostrar preocupado
com o tempo que sua narração tomará e o preço final do livro. Por outro lado, é preciso
notar a contradição que há na insistência nessa contabilidade narrativa. As explicações,
digressões, iterações e desculpas acabam "desperdiçando" muitas páginas, encarecendo o
livro e tomando o tempo do leitor, o que não deixa de ser uma forma de afronta e crítica ao
leitor implícito de Dom Casmurro, que talvez não seja assim tão exigente em relação à
brevidade e concisão da narrativa e cujo tempo talvez não seja assim tão valioso.
A intenção da afronta parece ter sido pescada pelo critico Frota Pessoa, que pouco
depois do lançamento escreveu:

O seu último livro, Dom Casmurro. é de concepção inferior. Expurgando-o das pequeninas
observações que o recheiam, pedacinhos de vida e pedacinhos de alma, vistos como através de um
buraco de fechadtlfa, ele resume-se em mostrar como uma criança, licenciosa por educação e talvez por
atavismo, dará uma mulher adúltera. - E esta moralidade explícita lá está no livro: - Uma estava
dentro da outra, como a fruta dentro da casca. - Parece exagerado quatrocentas páginas para tão
pouco 30

28 DC,p. 889
29 DC, p. 920.

178
A leitura pela cartilha do Naturalismo, que mandava arrancar de cada obra uma
tese, reduzia Dom Casmurro a quase nada, o que mais uma vez dá a medida da
discrepância entre os leitores implícitos dos romances machadianos e as expectativas dos
leitores empíricos agora já na virada para o século 20. Desta vez, no entanto, a discrepância
está embutida na narrativa, em que a figuração do leitor se alarga de modo a acolher os
mais variados tipos de leitores, até mesmo os leitores de outros livros, ou os não-leitores de
Dom Casmurro, como mostrarei a seguir.

O não-leitor do não-livro
O narrador, no segundo capítulo, desfia a lista dos livros que pensou em escrever
antes de se lançar à redação de Dom Casmurro. Relembrando, Bento Santiago cogitou uma
obra de jurisprudência, depois filosofia, política e finalmente uma "História dos
Subúrbios", embora só tivesse credenciais para escrever a respeito do primeiro assunto, já
que ele não era filósofo, político ou historiador, mas bacharel em Direito. Uma vez que a
decisão está tomada e o livro que se tem em mãos é Dom Casmurro, e não outro, o que
levaria um narrador tão empenhado na concisão e na economia de papel a rememorar suas
cogitações sobre outros livros antes de proceder ao relato do seu casamento desgraçado
comCapitu?
Reivindicação de sua posição de racionalidade, numa tentativa de convencer o leitor
de que ele, narrador, poderia se lançar à escrita de diversos livros com a mesma
desenvoltura e isenção? Disfarce para o fato de viver assombrado pelos fantasmas do
passado, invocados na citação do Fausto- "Aí vindes outra vez, inquietas sombras? ... "
- e personificados nos bustos de Nero, Augusto, Massiníssa e César- todas personagens
romanas, todas vítimas de traição - que o teriam persuadido a escrever sobre o amor de
sua vida e assim tentar se livrar de um passado fantasmagórico? Certamente há esses dois
impulsos na manobra retórica do narrador. Mas há mais.
Anteriormente, o leitor fora informado de que a decisão de escrever nascera da
solidão do narrador, da sua intenção de atar as duas pontas da vida e, finalmente, do desejo

30
Frota Pessoa, Critica e Polemica, Rio de Janeiro, Arthur Gurgulino, 1902, pp. 66-67, apud Josué
Montello, Os Inimigos de Machado de Assis, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1998, p. 40.

179
de distrair-se da monotonia e do tédio. 31 Tudo isso contribui para reforçar a idéia da origem
supostamente casual para o livro. Mas o próprio narrador confessa, de passagem e como se
fosse uma banalidade qualquer, a razão verdadeira de sua decisão quase desesperada de
escrever especificamente o Dom Casmurro: "Deste modo, viverei o que vivi."32 O primeiro
verbo poderia ser outro - escreverei, contarei, narrarei etc. Ao empregar "viver" o
narrador aproxima o escrever do viver, traindo o fato de que a tarefa desse livro específico
não é apenas ambiciosa, mas impossível: reviver o passado. A referência a outras obras
possíveis funciona como uma espécie de cortina de fumaça em tomo da gravidade do
assunto e do profundo interesse que o narrador tem sobre essa obra específica que ele, com
afetada displicência, sugere ser apenas uma entre outras possibilidades.
As referências aos livros não escritos também aponta para as expectativas de
interlocução por parte do narrador. A rigor, Dom Casmurro resulta da preterição e do
adiamento de um outro livro, a "obra de maior tomo"33 cuja consecução fica adiada até a
convocação final: "Vamos à 'História dos Subúrbios'".
Afinal, que obra é essa para a qual Dom Casmurro é mera preparação e cujos
leitores ele toma emprestado, procurando engambelá-los com a promessa sempre adiada?
O modelo, pelo que sugere o narrador, está nas Memórias para Servir à História do
Reino do Brasil, publicadas em 1825 em dois volumes, de autoria de Luiz Gonçalves dos
Santos (1767-1844), o Padre Perereca. 34 Trata-se, segundo o prefaciador Noronha Santos,
do "mais exato e minudente informe do Brasil de 1808 a 1821". Com efeito, é um texto
impregnado do estilo enciclopédico oitocentista, que se inicia com a descrição exata das
coordenadas geográficas da cidade do Rio de Janeiro, seguida da relação de cada uma das
principais ruas da Corte assim como de suas posições relativas, ao que se segue o relato
ano a ano dos principais fatos ocorridos durante a estada de D. João VI e sua corte no
Brasil. A referência abstrusa e aparentemente inexplicável mais uma vez serve para sugerir
a imparcialidade do narrador, que se apresenta capaz de contar com a mesma isenção tanto

31 DC, pp. 809-810.


32 DC, p. 811.
33 DC, p. 811.
34 Luiz Gonçalves dos Santos, Memórias para servir à História do Reino do Brasil (2 volumes, com
prefácio e notas de Noronha Santos). Rio de Janeiro, Editora Zélio Valverde, 1943. O padre Perereca foi
celebrizado por seu envolvimento em campanha contra a presença no Brasil de missionários protestantes e
pela polêmica travada com o Padre Diogo Antônio Feijó a respeito do celibato clerical.

180
uma história impessoal e pública quanto a história íntima e pessoalíssima da sua desgraça
conjugal. Serve também para mínimizar seu envolvimento e interesse em relação aos fatos
relatados no hiato entre a manifestação do desejo e o início da escrita da "História dos
Subúrbios", que ele sugere ser a obra principal em relação à qual Dom Casmurro, história
da ruína da sua vída, seria mera preparação!
A obra do Padre Perereca aparece principalmente como paradigma do apego à
minúcia e ao descritivismo detalhista, postura narrativa a que o narrador em vàrios
momentos se declara avesso. É por exigir documentos e datas, "tudo àrido e longo"35 , que
ele adia a "História dos Subúrbios" para depois da conclusão de Dom Casmurro. Enquanto
isso, ele afronta o descritivísmo e o apego à "reprodução fotográfica e servíl das coisas
mínímas e ignóbeis", características não só da prosa antiga do padre mas também do
realismo de inspiração naturalista, ainda em voga à época da publicação do romance e
duramente criticada por Machado nos célebres artigos sobre "O Primo Basílio" 36 . Daí a
promessa constante ao leitor, sempre com uma ponta de ironia, do respeito à economia e à
fluência narrativa: "Descansa, que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui
formas idôneas para tanto."37 A isso ele contrapõe uma narrativa cheia de elipses
exaustivamente indicadas e que compõem um livro anunciado como falho, incompleto e
cheio de lacunas a serem preenchidas pelo leitor, aínda que esse modelo venha carregado
de reminiscências dos "livros de imaginação" do romantismo:

Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando
leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca O que faço, em chegando ao fnn, é cerrar os olhos e
evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias fmas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com
as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na
bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma hnprevista. 38

A contraposição entre esses modelos narrativos - o dos livros detalhados e


confusos e o dos omissos e lacunares - também se dà entre o modelo do gosto do
narrador, que enuncia no presente, e o dos personagens dos fatos narrados, situados no
passado. É de se notar, no entanto, que o próprio narrador sugere não se tratar de territórios

35 DC, p. 810.
36 "O Primo Basilio", O Cruzeiro, 16 e 30 de abril de 1878, in OC, vol. 3, p. 904.
37 DC, p. 908.

181
perfeitamente distintos, com suas alusões à natureza grandiosa, aos generais e às espadas,
reminiscências de um gosto que também é seu. Em linhas gerais, o passado está associado
ao gosto e hábitos do leitor romântico, que tem seu paradigma na figura dramática e
hiperbólica de José Dias, habituado a ler em voz alta para D. Glória, mãe de Bentinho, e
para a prima Justina livros de Walter Scott e de cuja boca "os castelos e os parques saiam
maiores( ... ) os lagos tinham mais água e a 'abóbada celeste' contava alguns milhares mais
de estrelas centelhantes"39 • Apesar de ridicularizado, como é praxe nas obras de Machado
de Assis, também aqui o leitor romântico é representado como o mais perspicaz, capaz de
ler as entrelinhas do desejo de Bentinho e vaticinar seu futuro infeliz junto à
"desrniolada"40 Capitolina.
São resquícios de um tempo bastante recuado em relação ao presente da narração,
quando todos os leitores/ouvintes já estão mortos: D. Glória, a prima Justina, o tio Cosme,
José Dias. Os resquícios desse tempo, no entanto, permanecem na forma de anacronismos,
como atesta a tentativa de leitura coletiva e em voz alta da primeira cena do livro. Ali, é
justamente no trem, espaço privilegiado para a leitura silenciosa da prosa de ficção - pelo
menos na Europa - , que o poeta tentará ler em voz alta seus poemas. Com isso, o
narrador chama a atenção do leitor para a ocupação equivoca do espaço da prosa e da
leitura silenciosa pelo poema e pela leitura em voz alta. O apelido casmurro, que dá origem
ao romance, resultaria da reação do escritor anacrônico (o poeta do trem) à recusa firme de
um outro escritor, Bento Santiago, a compactuar do anacronismo. É esse mesmo tipo de
anacronismo que parece existir entre a figuração do leitor como alguém que espera a tal
"História dos Subúrbios" e o leitor implícito na narrativa moderna de Dom Casmurro,
fundada nas lacunas, nas incertezas e na exacerbação da ambigüidade.
O desencontro entre as expectativas projetadas para o leitorado empírico e as
expectativas de leitor por parte do narrador fica bem ilustrado pela declaração rispida do
narrador de que "a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória"41 , o que remete à
cena inicial e reafirma a recusa do narrador a um tipo de recepção anacrônica, calcado no
gosto pelo exagero, pelo fantasioso e pelo excesso.

38 DC, pp. 870-871.


39 DC, p. 833.
40 DC, p. 811.
4 1 DC, p. 874.

182
O texto lacunar
Referido como preenchedor de lacunas, o leitor de Dom Casmurro está diante de
um texto que também se apresenta como uma imensa lacuna, já que ocupa o intervalo entre
a manifestação da intenção e o anúncio da escrita da "verdadeira" obra, que é a "História
dos Subúrbios". O romance, assim, dirige-se a um leitor que supostamente é o leitor de um
livro que não existe e jamais vai existir. Ou seja, o romance coloca-se numa posição
radicalmente ambígua em relação ás expectativas dos seus leitores possíveis, que ele
manipula o tempo todo mas nunca satisfaz. Dito de outra forma, é um livro dirigido a um
leitor que não existe.
Essa ambigüidade e esse constante deslocamento que o Dom Casmurro parece
reivindicar em relação aos seus receptores certamente contribuem para explicar o fato de
ser esse o romance brasileiro que gerou a polêmica mais duradoura envolvendo
personagens ficcionais - em torno da traição ou não de Bentinho por Capitu - e, entre as
obras de Machado de Assis, a que deu matéria ao maior número de estudos críticos desde
sua publicação. Daí as interpretações divergentes, divididas entre as identificadas com a
versão do narrador enquanto homem da elite, patriarcal, que procura imprimir naturalidade
à sua violência em relação a Capitu, disfarçando-a e suavizando-a com o apelo ao
sentimentalismo e à prosa elegante, e aquelas que denunciam o narrador como um
embusteiro, um rnanipulador, de que a leitura de Helen Caldwell, publicada em 1960, foi
pioneira. 42 Filiado a essa segunda corrente, o estudo mais recente de Roberto Schwarz
sugere que até o texto seminal de Caldwell uma parcela importante do leitorado de Dom
Casmurro - a critica - teria se posicionado numa espécie de campo cego de visão,
incapacitada de enxergar a intenção do livro de denunciar o autoritarismo da classe
proprietária, a que pertence Bento Santiago, e o desembaraço com que ela faz sua vontade
prevalecer sobre tudo mais. 43 Nesse sentido, esse livro, de maneira muito mais insidiosa e
sutil que os anteriores, denunciaria parte do seu leitorado, reservando-lhe um lugar
confortável e "natural" à sombra do discurso de Bento Santiago, com quem o leitor, pelo
menos à primeira vista, é induzido a se identificar.

42 Helen Caldwell, The Brazilian Othello ofMachado de Assis: A Study of Dom Casmurro, Berkeley-Los
Angeles, University o f California Press, 1960.
43 Roberto Schwarz, "A Poesia Envenenada de Dom Casmurro", in Duas Meninas, São Paulo, Companhia
das LetraS, 1997, pp. 7-41.

183
Aqui importa atentar para a ambigüidade com que o relato é construido,
possibilitando que os leitores empíricos, baseados no que o próprio texto diz e distorcendo
o mínimo, projetem suas simpatias e visão de mundo neste ou naquele personagem,
acreditando mais ou menos no que diz o narrador e formulando até mesmo interpretações e
julgamentos opostos sobre as personagens e suas motivações. A narração se apresenta com
lacuuas suficientes de modo a permitir que os leitores, como faz o próprio Bento Santiago,
tenham espaço suficiente para projetar sua própria subjetividade, identificando-se e
desidentificando-se com personagens e diferentes interpretações dos fatos narrados.

A recepção de Dom Casmurro


A ambigüidade do relato passou despercebida nos comentários de Artur de
Azevedo, que em duas ocasiões elogiou muito o livro e dirigiu-se ao seu autor como aquele
"que nos dás [sic] o exemplo da força e da sobranceria da artes; que não esmoreces diante
da indi:fferença nem da inepcia, nem da maldade; que não fazes concessões á turba alvar
que t'as pede, e de quando em quando vais serenamente, magestosamente, com um livro
novo, elevando ainda mais a altura do monumento que a posteridade te reserva!"44 • Mas ela
foi notada pelos outros dois resenhistas que escreveram sobre o livro em março de 1900.
Ainda que tendam a endossar a visão do narrador e encampar sua condenação de
Capitu, ambos acabam demonstrando desconforto e chegam a suspeitar da autoproclamada
isenção do narrador em relação ao narrado. O crítico J. dos Santos, pseudônimo de
Medeiros de Albuquerque, parece acreditar completamente na versão do narrador. O
articulista de A Notícia explicita a concordância de sua visão com a de Bento Santiago ao
considerar "natural que, estando nós postos na mesma situação d' esse marido, porque elle é
o narrador, só attendamos bem para esse personagem [Escobar], na scena em que a
dissimulação d' elle e de Capitú, não foi mais possível. " 45 Apesar de encampar a visão do
narrador, ele chama a atenção para o fato de ser um "homem que chegou ao sceticismo
absoluto" quem tem a palavra do começo ao fim, sugerindo a necessidade de relativizar a

44 Artur Azevedo, "Palestra", O País, Rio de Janeiro, 18.3.1900, apudR. Magalhães Júnior, op., cit., vol.
4, p. 112. Azevedo voltou ao livro nas páginas de A Estação em 31 de março de 1900.
45 J. dos Santos, "Chronica litteraria [Machado de Assis -Dom Casmurro]",A Notícia, Rio de Janeiro,
24-25 de março de 1900, p. 1.

184
verdade dos fatos narrados. O que impressiona mesmo o resenhista é a expressão da
desilusão do escritor:

Em Dom Casmurro, Machado de Assis é mais do que nunca o ex-romantico desilludido que chegou
a um verdadeiro terror de qualquer pintura de emoções fortes. Sempre que a acção o leva a um episodio
sentimental, amoroso ou tragico, elle no!-o pinta escarnecendo-o um pouco, como para nos mostrar que
não está commovido, nem quer explorar nossa veia pathetica. Mesmo em quadros simples, quando, por
exemplo, Capitú abraça o marido, elle diz:
".. . depois estirou os braços e atirou-m' os sobre os hombros, tão cheios de graça que pareciam
(velha imagem!) um collar de flores."
Assim, até a menor figura de rhetorica, que lhe pareça trahir uma certa sensibilidade, elle a corrige
com um reparo, uma ironia. 46

Notável no trecho de Medeiros de Albuquerque é a expectativa implícita de


histórias com emoções fortes e sentimentalismo. A frustração dessa expectativa, expressa
de modo mais ou menos velado desde o tempo da publicação dos primeiros romances,
parece ser uma das marcas fortes produzidas por Machado sobre a critica contemporânea à
produção de sua obra, quase sempre pronta a oferecer sua "veia patética" aos livros.
Mesmo José Veríssimo, em sua crítica ao romance, observa que a Machado de
Assis "falece-lhe, ou esconde-a ciosamente" a emoção sentimental, depois de afirmar que a
obra de arte "se define pela emoção que deve provocar ou despertar em nós" e distinguir
entre emoção sentimental e intelectual. Em artigo publicado no Jornal do Commercio,
Veríssimo não deixa de revelar seu desconcerto com a interpretação e os julgamentos do
narrador-personagem. A princípio isentando-o de maldade e caracterizado-o como um
garoto "ingênuo, simples, cândido, confiante, canhestro" futuramente desasnado por
Capitu, "acoroçada pela ingênua e velhaca cumplicidade dos pais", ao longo da resenha o
crítico parece dar-se conta da insuficiência dessa interpretação, produzindo uma
interessante e engenhosa clivagem do narrador-personagem, tripartido em Bentinho, Bento
Santiago e Dom Casmurro, e deslocando para este último o papel de traidor dos dois
primeiros:

Dom Casmurro traiu e caluniou o Bentinho, o bom menino, o filho amante, o rapaz inocente e
respeitoso, o estudante aplicado, o jovem piedoso, o namorado ingênuo, o amigo devotado e confiante,
o marido amoroso e crédulo. A moral, os comentários de que acompanham os fatos e gestos de
Bentinho, são dele, mas depois que o espitito se lhe desabusou daqueles olhos de Capitu "que traziam
não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira
da praia, nos dias de ressaca", daqueles "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", como lhes chamava,

46 Idem.

185
com demasiado estilo, José Dias, e também dos "olhos dulcíssimos" de Escobar, como lhos achava o
mesmo José Dias, e da sua polidez, das suas boas maneiras, que a todos captavam. Sim, é de Dom
CasmUITo e não de Bentinho ou sequer do Bento Santiago, a parte que não é propriamente narrativa da
autobiografia, as reflexões morais, as explicações dos atos e sentimentos. 47

Ao final do texto, não é só o Dom Casmurro que está sob suspeita, mas tudo o que é
narrado, incluindo-se aí a maneira como o narrador se refere a Bentinho e a Bento
Santiago. Para Veríssirno, é o amor e o ódio que sente por Capitu, que o narrador tenta mas
não consegue esconder, que o tomariam suspeito diante dos olhos do leitor.
Como se vê, os questionamentos sobre as repercussões de um ponto de vista tão
particular sobre a narração dos fatos têm a mesma idade do romance, que desde suas
páginas iniciais apresenta a recepção como problema.
Extratextualmente, Machado de Assis deixou registrado seu entusiasmo com a
recepção de Dom Casmurro, expressando satisfação com todos os comentários publicados
a respeito de seu livro. Em 19 de março de 1900, mesmo dia da publicação do artigo de
José Veríssimo, ele escreveu ao amigo agradecendo a bondade da crítica48 • Também no dia
19 escreveu a Magalhães de Azeredo, dizendo-se satisfeito com a acolhida: "Falaram sobre
ele o Artur Azevedo, ontem, e o José Veríssimo, hoje, ambos com grande simpatia, mas o
Veríssirno com mais desenvolvida crítica, segundo costuma. Pelo correio, receberá um
volume. Leia-me logo, e diga-me não estarei chegando ao fim". 49 Por carta, Machado
também recebia elogios dos amigos Lúcio de Mendonça e Joaquim Nabuco.
Depois do relativo sucesso de Quincas Borba, Machado parecia nutrir grandes
expectativas em relação a Dom Casmurro, a ponto de escrever para seu editor, em Paris,
pedindo-lhe que reservasse para Dom Casmurro um papel da mesma qualidade concedida a
Brás Cubas e Quincas Borba50 e que enviasse para o Rio de Janeiro um reparte bastante
numeroso "car i1 peut s'epuiser vitement, et le retard du second envoi fera mal à la

47 José Verissimo, Estudos de Literatura Brasileira, 3" série, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia/ São Paulo,
Edusp, 1977." 'Um irmão de Brás Cubas'- O 'Dom CasmUITo' do Sr. Machado de Assis", p. 28. Outra
cisão interna do narrador-personagem seria proposta por Helen Caldwell, que vê em Bento Santiago a
combinação sinistra de Otelo e lago. Cf. He1en Caldwell, Machado de Assis - The Brazilian Master and
His Noveis, Berkeley, University ofCalifornia Press, 1970, p. 143.
48 OC, vol. 3, pp. 1051-2.
49 ApudR. Magalhães Júnior, op. cit., p. 114.
5o Essas observações foram feitas em carta de Machado de Assis a F. H. Garnier datada de 5 de setembro
de 1899 e respondida por este em 8 de outubro de 1899. Cf. Exposição Machado de Assis, op. cit., p. 200.

186
vente"51 • Os 2000 exemplares - tiragem inicial volumosa e até então inédita para os
romances do autor- chegaram ao Rio de Janeiro em janeiro de 1900 com atraso de um
mês em relação à data inicialmente prevista.
Maximiano de Carvalho, na introdução à sua edição crítica de Dom Casmurro,
pondera que a 2a edição da obra aparentemente é uma falsa 2. edição, por provavelmente
tratar-se de mera reimpressão, uma vez que "limita-se a reproduzi-lo [o texto base], com
apenas uma divergência e apresentando outros lapsos tipográficos". Assim, à luz das
tiragens das edições dos demais romances e da repercussão inicial de Dom Casmurro na
imprensa, é muito provável que a inclusão da informação "2• edição" na folha de rosto
fosse mais um ardil do editor Garnier e que os anunciados 2000 exemplares da tiragem
inicial incluessem também os exemplares da segunda edição, essa sim como várias
correções em relação à anterior. 52

51 Idem, p. 201.
52 Dom Casmurro, edição critica com apuração do texto, revisão e notas por Maximiano de Carvalho e
Silva. 2' edição, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1968.

187
Capítulo 9
Esaú e Jacó e o leitor como duplo

Num ensaio já clássico sobre Esaú e Jacó, Alexandre Eulalio considera essa a obra
mais complexa e ambígua entre todas da maturidade de Machado de Assis 1• A afirmação
tem a vantagem de rechaçar a impressão de esquematismo e excesso construtivo que as
constantes imagens de dualidade, duplicação e oposição simétrica podem causar à primeira
leitura. Empetecado talvez seja um bom adjetivo para esse livro que certamente teria tido
mais atenção se não estivesse situado entre a excelência de Dom Casmurro e o fascínio do
Memorial de Aires, obra derradeira e de muitas sugestões autobiográficas. Constituir-se
como um bordado no tempo, um nada em cima de invisível - definições que o próprio
romance oferece para o que seria um texto sublime- parece ser o objetivo dessa narrativa
extremamente elaborada, construída com uma infinidade de pontos falsos (ou invisíveis),
em que nada evolui e tudo parece esboroar-se mediante a mera enunciação.
O enredo central, que John Gledson define como "calculado para desapontar"2 , não
inclui nem casamento e nem adultério. Trata-se de uma história baseada na imobilidade de
dois gêmeos que se odeiam e amam a mesma mulher, Flora, também ela paralisada na
indecisão sobre qual dos irmãos escolher. Todos os personagens principais - Pedro,
Paulo, Flora, Natividade- são irresolutos e incapazes de agirem por si mesmos. Além dos
gêmeos, ninguém mais nasce no tempo ficcional do romance, que também não registra a
transmissão de qualquer legado ou herança que modifique o curso da narrativa. Dos golpes
e grandes transições da vida humana, só as mortes de Flora e Natividade, a despeito de seus
nomes primaveris. Os motivos clássicos do romantismo, do naturalismo e do realismo
estão descartados dessa história outonal, de águas paradas, antipoda da movimentação
desenfreada do enredo de Helena e da qual os leitores afeitos à literatura romântica e
naturalista são excluidos logo de início pelo narrador, que comunica a intenção de não
colocar lágrimas no livro, embora as coloque, e desculpa-se por insistir em minúcias, ainda
que o faça.

1 Alexandre Eulalio, "O Esaú e Jacó na obra de Machado de Assis: as personagens e o autor diante do
espelho", in Escritos. [org. Berta Waldrnan e Luiz Dantas], Campinas, Editora da Unicamp/São Paulo,
Editora Unesp, 1992, p. 355.
2 John G1edson. "Esaú e Jacó", in Machado de Assis:ficção e história. Rio de Janeiro, 1986, pp. 161-214.

189
À placidez da narração corresponde também a serenidade no trato do narrador com
o leitor, que aparece ainda mais emaranhado no texto do que em Dom Casmurro. Embora
os narradores dos dois romances insistam em forçar a identificação do leitor tanto com a
matéria narrada quanto com sua opinião sobre ela, desta vez a identificação e a
proximidade imaginadas pelo narrador são tamanhas que se pode dizer que o interlocutor já
nem parece mais projetado como entidade empírica, mas como entidade fantasmagórica,
espécie de duplo do narrador. Simultaneamente à busca quase obsessiva de assentimento,
nota-se, por meio de asserções ambíguas e constantes afirmações e negações em torno de
uma mesma proposição, a tentativa de desorientar o leitor diante do narrado como que para
imobilizá-lo. Não se trata de objetivo propriamente inédito numa obra tão ciosa dos seus
interlocutores, mas os meios de atingi-lo radicalizam-se neste caso em que o tumulto da
relação com o leitor se manifesta em camadas muito profundas do texto, emergindo à
superficie apenas por meio de figuras de pensamento ou de contradições lógicas.
Alexandre Eulalio escreveu que Machado de Assis em Esaú e Jacó parece
"pretender fazer-se acompanhar do leitor às raizes do escrever. Mostrando-lhe as
convenções e deficiências do meio expressivo, criticando a sua mesma técnica, referindo-se
com insistência aos capítulos anteriores e posteriores, deixando visível a arbitrariedade
criadora dele, denunciando, numa crítica joco-séria, as repetições e os enfados da narrativa
- estamos aqui diante de uma prematura tentativa para tomar visível ao público a
dinamicidade mesma da criação"3 . Muitos desses procedimentos, que poderíamos chamar
de desmistificadores do processo de construção ficcional, fazem-se notar desde
Ressurreição. A especificidade é que agora o narrador procura arrastar seu interlocutor às
profundezas da escrita, ou aos seus subterrâneos, para lembrar também a metáfora radical
de Augusto Meyer, insistindo nos ditos e desmentidos e na manipulação chocarreíra da
paciência do leitor.
Trata-se de um romance sui generis, que Eugênio Gomes qualificou como
testamento estético de Machado de Assis. De fato, Esaú e Jacó, cujo titulo original era
Último e por alguns anos imaginado pelo escritor como o fecho de sua obra, contém ecos e
retoma muitos procedimentos de livros anteriores. Em alguns momentos, considerações
sobre tais procedimentos ocupam longos trechos, que de fato podem ser lidos - sempre

190
pelas entrelinhas e com muita desconfiança de seus valores nominais - como cláusulas
desse testamento literário ou sínteses de uma possível teoria da composição machadiana.
Dada a freqüência com que o leitor é ínvocado e a ínsistência com que a recepção do texto
literário é tematizada, Esaú e Jacó síntetiza a teoria do leitor que no início deste trabalho
postulei existir na obra romanesca de Machado.
Como o leitor está figurado? Qual a sua especificidade em relação à figuração do
leitor nos livros anteriores? E que apelo a figura ficcional faz ao leitor empírico e
histórico? Afinal, qual é a configuração última- ou penúltima - da figura do leitor
machadiano? As respostas a essa perguntas constituem o assunto deste capítulo.

A construção da identidade com o leitor


A identificação com o leitor constrói-se por meio de um ínterlocutor temporal e
espacialmente muito próximo do narrador onisciente e, pelo menos em aparência, muito
afinado com seu modo de pensar e suas opiníões. Essas afinidades são extensivas ao
conselheiro Aires, autor das notas que deram origem à história organizada por este narrador
onisciente e que, em alguma medida, também narra o romance. É como se para revelar
tantos segredos sobre o processo de construção ficcional o narrador onisciente precisasse
construir um ínterlocutor de sua confiança, um semelhante, um irmão. A semelhança entre
esse narrador e o interlocutor projetado por ele não implica apaziguamento dessa relação,
assim como as semelhanças extremas entre Pedro e Paulo não significam que os gêmeos
estejam de acordo com o que quer que seja- muito pelo contrário, já que é do ódio entre
irmãos que o romance tira seu assunto. Da mesma forma, o narrador deixa escapar
respíngos de ironia sobre a capacidade de compreensão do seu interlocutor, mas
imediatamente se emenda justificando: "não que tenhas o entendimento curto ou escuro,
mas porque o homem varia do homem". 4 O que prevalece na superficie do texto é a
assunção de uma enorme capacidade de observação e ínterpretação do leitor, traduzida, por
exemplo, no uso freqüente de verbos que o colocam na condição de testemunha dos fatos
narrados. O uso reiterado de formas como "vês que"· "viste que", "acabas de ver como" e
"lembras-te" ajudam a aproximar leitor e narrador tanto fisica quanto intelectualmente. A

3 Alexandre Eulalio, op cit., pp. 350-351.


4 Esaú e Jacó, in OC, vol. 1, p. 956. A partir daqui essa edição será abreviadamente referida como E!.

191
mesma intenção aplica-se ao emprego insistente do verbo "saber", seja para rememorar um
fato já narrado, seja para comunicar alguma interpretação que o narrador espera coincidir
com a do leitor.
Mais que afinidade, o narrador supõe proximidade e familiaridade com o ambiente
e o tempo dos fatos narrados ao tratar seu interlocutor como habitante do Rio de Janeiro no
último quartel do século 19. Ele supõe que uma gazeta de 1869 com a notícia da missa em
intenção da alma de um certo João de Melo ainda esteja ao alcance fácil 5 e não divulga o
número do jazigo onde foi enterrada Flora para evitar "que algum curioso, se achar este
livro na dita Biblioteca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto". 6 Ele também
assume que o leitor de jornais e freqüentador de bibliotecas, "patrício da minha alma"7 ,
saiba que no Rio de Janeiro, no mês de novembro, já é dia claro às cinco e quarenta da
manhã8 e que "há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na
nossa terra"9• Embora não descarte explicitamente os leitores de outros tempos e lugares, o
narrador não esconde que o mais bem aparelhado para compreender sna narrativa é um
contemporãneo, que como ele viveu o encilhamento, tempo em que o dinheiro, se não
brotava do chão, caia do céu: "Quem não viu aquilo não viu nada." 10
Insidiosa e maliciosamente, o narrador procura sugerir identidades entre seu
interlocutor e o conselheiro Aires, cuja capacidade de compreensão e interpretação ele,
narrador, tem em altíssima conta. A associação só lhe traz vantagens: leitor e narrador
ficam aproximados pela identificação comum com um personagem refinado e equilibrado,
o que cria a ilusão de despersonalização da relação entre narrador e leitor, facilitando sua
adesão ao universo do romance. Aires funciona, assim, como um lugar ficcional onde as
imagens do narrador e do interlocutor se encontram, nunca se confundindo inteiramente,
mas jamais deixando de manter pontos de contato. Nesse sentido, Aires é também a
entidade que intermedeia a relação entre o escritor Machado de Assis e seu leitor empírico,
o que poderia ficar representado no seguinte esquema:

5 Idem, p. 953.
6 Ibidem, p. 1082.
7 Ibidem, p. 1042.
8fbidem, p. 1025.
9 Ibidem, p. 973.
lO Ibidem, p. I 041.

192
narrador

Machado- Aires- romance/texto

leitor

O jogo de projeções indica que ao final das contas há um ponto de vista dominante,
que é o do narrador- ou o do leitor-, por mais que o narrador procure atribuir a Aires a
narração e a interpretação dos fatos, como ocorre neste trecho:

Ao despedir-se, fez Aires uma reflexão, que ponho aqui, para o caso de que algum leitor a tenha feito
também. [ ... ]Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de
concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires; não o obriguei a acbar por si o que, de outras
vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente nnninante, tem quatro estômagos no cérebro,
e por eles faz passar e repassar os atos e fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar
escondida. 11

Há decerto uma nota de sarcasmo na comparação - sempre colocada em formas


condicionais - entre as conjecturas do leitor e as do conselheiro, cujas supostas
concordâncias são orquestradas e esperadas pelo narrador que, embora use sempre a
terceira pessoa, oscila entre a referência impessoal a "algum leitor" e a interpelação direta.
Com isso, ele revela seu temor de interpretações incorretas, induzindo a interpretações e
conclusões que faz questão de dizer não serem suas, mas do diplomata e do leitor. O
narrador assim procura neutralizar sua condição de intérprete, apresentando-se apenas
como facilitador de interpretações que ele quer fazer passar como inevitáveis e naturais. A
única comparação que não vem na forma condicional é entre o cérebro do leitor e o
estômago de um ruminante; imagem que, além de engraçada, é chave para se compreender
a teoria do leitor machadiana, como mostrarei mais à frente.
A expectativa de um interlocutor cuidadoso, atento, de excelente memória e
também espirituoso manifesta-se nos vários momentos em que o narrador se defende da
possível acusação de contradições no seu relato, atribuindo-as antes ao caráter instável e
mutável dos interesses e paixões humanas. Disso é exemplar o trecho do capítulo em que o
narrador relembra a cena em que Natividade e Perpétua, radiantes com as previsões da

11 Ibidem, p. 1019.

193
cabocla do Morro do Castelo, depositam uma nota de dois mil-réis no chapéu de um
andador, que acaba por surrupiá-la da missa das almas. Já quase no final do livro, o ex-
empregado da irmandade de S. José reaparece como o ricaço Nóbrega, explicando sua
fortuna não pela generosidade das mulheres talvez saídas de um caso extraconjugal, mas
pela intercessão generosa de Santa Rita de Cássia:

Não, leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que a princípio o andador das almas atribuiu a
nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: 'Aquelas duas
viram passarinho verde!' Mas se agora atribuia a nota à proteção da santa, não mentia então nem agora.
Era dificil atinar com a verdade. A única verdade certa eram os dous mil-réis. Nem se podia dizer que
era a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil-réis equivalia, pelo menos, a vinte
Oembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gmjeta de cocheiro.
Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada outrora. Era mais natural o
contrário, quando era maior a intimidade dele com a igreja. Mas, leitor dos meus pecados, amava-se
muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O
sécuio dirá o resto. 12

Note-se que o "leitor dos meus pecados" é uma versão menos orgânica e maís
religiosa do "leitor das minhas entranhas" de Dom Casmurro, formulação que desta vez
acompanha a suposição de um interlocutor atento a deslizes e falhas do narrador. Este,
embora afirme obediência a um método e apego à verdade, ainda que às vezes a verdade
soe pouco natural ou francamente contraditória, em alguns momentos admite suprimir
informações ou resumir um ou outro fato apenas por capricho. Arbitrariamente, dá saltos e
imprime rumos à narrativa que ele mesmo alerta não serem obrigatórios, indicando
possibilidades alternativas de escrita e de leitura: "Não tendo outro lugar em que fale delas
[das barbas de um capucho e das barbas de um maltrapilho], aproveito este capítulo, e o
leitor que volte a página, se prefere ir atrás da hístória." 13 Há aí, assim como na
consideração de que determinados estados de alma "davam matéria a um capítulo especial,
se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886" 14, ecos inconfundíveis da lepidez volitiva
do narrador Brás Cubas, o que indica a condição de romance-testamento atribuída a este
livro por Eugênio Gomes. Diferentemente daquele narrador caprichoso, que se apresentava
como desobrigado das regras do mundo dos vivos e obediente apenas aos seus gostos e
inclinações, o narrador de Esaú e Jacó explicita o seu compromisso com as expectativas de

12 Ibidem, pp. 1044-1045.


13 Ibidem, p. 977.
14 Ibidem, p. 976.

194
uma virtualidade concreta, que é o leitor. Mais que isso, ele se declara consciente de estar
escrevendo um livro que precisa obedecer a lógica e andamento próprios:

Se não fora o que aconteceu e se contará por essas páginas adiante, haveria matéria para não acabar
mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes pensaram e sentiram, e o que ela sentiu e
pensou, até que o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a história começada
ficaria sem fim. Não, não, não ... Força é continuá-la e acabá-lal 5

As considerações sobre a necessidade de adequar a história à forma livresca e aos


limites colocados pelo editor não indicam que o narrador vá de fato fazê-lo, servindo
principalmente para fustigar e desafiar a paciência do leitor, além de reafirmar o controle
do narrador. Afinal, parece ser esse o seu objetivo ao interromper o capítulo para dizer que
não vai truncar a narração com considerações menores sobre tabuletas- exatamente o que
ele está fazendo nas barbas do leitor. Ele chega a fazer troça não só do método de
composição do seu livro, que gira em falso na sucessão quase indefinida de negações e
afirmativas, mas também da paciência do leitor que chegou até ali acompanhando o
narrador alternar-se entre sins e nãos, num jogo que tende ao infinito. O abuso da paciência
e atenção do leitor fica explícito nas páginas finais, em que o narrador aproveita para
reafirmar o "método" peculiar adotado e aplacar - e provocar- a provável exasperação
do leitor diante dos não-acontecimentos:

Todas as histórias, se as cortam em fatias, acabam com um capítolo último e outro penúltimo, mas
nenhum autor os confessa tais; todos preferem dar-lhes um título próprio. Eu adoto o método oposto;
escrevo no alto de cada um dos capítolos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a matéria
particular de nenhum, indico o quilômetro em que estamos na linha. Isto supondo que a história seja um
trem de ferro. A tolnha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto águas e
ventos, mas tu viste que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que do chão.
Não é trem nem barco; é uma história simples, acontecida e por acontecer; o que poderás ver nos dous
capítolos que faltam e são curtos.l6

Em meio à profusão de imagens concretas - trem de ferro, canoa, carro, águas,


ventos - e delimitações de espaço e tempo - linha, quílômetro, último, penúltimo - o
narrador incluí a afirmação de que a história que ele conta não está inteiramente acontecida,
sugerindo duas possibilidades: ou os fatos que ele narra se desenvolvem simultaneamente

15 Ibidem, p. I 058.
16 Ibidem, pp. 1090-1091.

195
ao presente da escrita, o que o deixaria em posição de subordinação à realidade; ou os fatos
narrados só existem na sua imaginação e se definem à medida que vêm à sua mente, ainda
que ele tenha um esquema mental que lhe permite dividi-la previamente em fatias e
antecipar o que ainda está por vir.
Retoma-se assim a discussão sobre o método narrativo e o caráter auto-explicativo
dos títulos, levantada em Quincas Borba, para novamente se adotar o método contrário ao
referido. Ainda que de fato os dois últimos capítulos do livro sejam, conforme prometido,
intitulados "Último" e "Penúltimo", a narrativa não está organizada em linha reta, bastando
lembrar que a epígrafe aparece no capítulo Xlll, intitulado "A Epígrafe". Ao chamar
atenção para o caráter errático da narração e ficcionalizar o leitor como testemunha do
processo de produção da narrativa- "viste", "poderás ver"- Machado mais urna vez se
coloca em posição arrojada, fazendo do próprio ato da escrita um acontecimento, o que
prefigura as quebras da ordem cronológica caracteristicas das técnicas narrativas modernas,
como a escrita automática e o monólogo interior.
O narrador que vinha declarando empenho em não aborrecer o leitor e no capítulo
"Que voa" prometeu imprimir à história um ritmo comparável ao do trem que subia a serra
até Mauál 7, agora confessa que a comparação é imprópria e que sua história anda devagar.
O procedimento, portanto, serve tanto para denunciar o aborrecimento do leitor quanto para
provocá-lo. Não parece ser outro o objetivo de considerações como "Descansa, amigo, não
repito as páginas" 18, já que a repetição é método e matéria-prima desse romance desprovido
de surpresas e povoado de personagens sempre iguais a si mesmos: "Sei, sei, três vezes sei
que há muitas visões dessas nas páginas que lá ficam. Ulisses confessa a Alcinoos que lhe é
enfadonho contar as mesmas cousas. Também a mim. Sou, porém, obrigado a elas, porque
sem elas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. Conheci esta,
com as suas obsessões ou como quer que lhe chames." 19
Ainda no que diz respeito à forma livresca da narrativa, a preocupação com o tempo
que a leitura do livro exigirá do leitor dispersivo, cuja atenção precisa ser constantemente
disputada, vem sempre acompanhada de considerações sobre o espaço físico ocupado pela
história, como já ocorria em Dom Casmurro. O capítulo XVII, intitulado "Tudo o que

17Ibidem. p. 1082.
18Jbidem, p. 1090.

196
restrinjo", gira em tomo de quantas linhas ou páginas seriam gastas para contar a
transformação dos gêmeos de bebês em adultos - e acaba por não contá-la, alegando que
restrições se impõem "para não enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e
acabados". 20 Assim, é necessário calar sobre um assunto interessante, que daria "três ou
quatro páginas sólidas''2 1, ou então resumir uma explicação "que merecia ir em capítulo
seu, mas não vai, por economia"22 • O narrador dispõe-se a explicar uma contradição
contanto que o costume "não pegue", pois "explicações comem tempo e papel, demoram a
ação e acabam por enfadar". Dai recomendar-se ao leitor que "o melhor é ler com
atenção" 23 , nova formulação para o "é o que vais entender, lendo" do segundo capítulo de
Dom Casmurro, que aponta para a auto-suficiência do livro.
Assim como ocorre em Dom Casmurro, as considerações sobre economia ocupam
tempo e espaço, contrariando a intenção declarada pelo narrador e sugerindo que a atenção
do leitor e o papel gasto no livro, no final das contas, talvez não valham absolutamente
nada, tratando-se apenas de um estratagema do escritor para manter a atenção dos leitores
apressados, afoitos e impacientes a que Machado faz tanta referência, sugerindo ser essa
uma característica generalizada entre o leitorado no último quartel do século 19, cujas
características históricas parecem bem delineadas em Esaú e Jacó.

Projeções do leitor histórico


O leitor-ouvinte e de pendor romântico está praticamente descartado de Esaú e
Jacó, marcando presença residual em Gouveia, poeta bissexto que "citava Musset e
Casimiro de Abreu"24, rejeitado por Flora e ridicularizado pelo narrador, que se declara
tolerante com qualquer um, menos com aquele que atribuir significação romântica ao azul
da alma de Natividade. Essa personagem, aliás, pertence a outra linhagem descartada, a das
leitoras extravagantes e volúveis; freguesa das novelas francesas, inglesas e russas,
Natividade pensava em batizar os filhos a partir dessas leituras, chegando ao excesso de

19 Ibidem, p. 1074.
20 Ibidem, p. 970.
21fbidem, p. 970.
22 Ibidem, p. 974.
23 Ibidem, p. 955.
24Jbidem, p. 1067.

197
cogitar nomes eslavos para os gêmeos.ZS Mas os leitores de gosto duvidoso ou anacrônico
são raros neste universo ficcional dominado por edições luxuosas26 e pautado pelo gosto
clássico e refinado do conselheiro Aires, leitor de Horácio, Cervantes, Erasmo e também de
Xenofonte, que ele lê em grego, assim como recita de cor, em grego e em verso, trechos da
Odisséia e da Ilíada.21 O refinamento das leituras dos personagens marca também a
expectativa acerca do repertório do seu interlocutor, a quem o narrador sugere a leiturs das
Eumênides, de Ésquilo, e de quem supõe o conhecimento de Voltaire e Basílio da Gama, o
doce poeta que teve em comum com o filósofo o personagem Cacambo e contra si "o
assunto estreito e a língua escusa"28 em que escreveu o Uruguai, um dos poemas mais
admirados por Machado de Assis.
Peculiar a Esaú e Jacó são as freqüentes cogitações acerca do gênero do leitor. A
questão tem peso inédito para o narrador, que associa capacidades e habilidades de
ínterpretação diferentes para o interlocutor masculino e femínino e constantemente se
refere à sagacidade das leitoras:

Não sei quem me lê nesta ocasião. Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é mulher creio que
entenderá. Se nioguém entender, paciência ( ... )2 9

Até uma inédita nota de malícia sexual em tomo da ambivalência e ambigüidade


sexual do leitor comparece no esclarecimento que vem intercalado entre travessões no
trecho que segue:

Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, segundo for o sexo da pessoa que me lê, se não forem
duas, e os sexos ambos,- um casal de noivos, por exemplo,- curiosos de saber como é que Pedro e
Paulo puderam estar no mesmo credo ... 30

25 Ibidem, p. 959.
26 O leitor é informado de que os livros encontrados no gabinete de Batista, pai de Flora, são poucos e
bons, e que a biblioteca do ex-presidente de província inclui o Código Criminal e também um Relatório
ricamente encadernado, que Aires tira da estante de Batista. Vide E!, p. 1016.
27 EJ, p. 1002. A ínsistência nos gregos talvez seja uma sátira ao helenismo que, segundo Eugênio Gomes,
apoderou-se da literatura brasileira no começo do século 20, praticado por Coelho Neto, Olavo Bilac e
Alberto de Oliveira; vide Eugênio Gomes, "O Testamento Estético de Macltado de Assis", in OC, vol. 3,
pp. !097-1120.
28 E!, p. 1042.
29 Idem, p. 996.
30 Ibidem, p. I 082.

198
Embora à leitora em geral seja objeto de simpatia, também há manifestações de
impaciência com a ansiedade das leitoras pelas coisas do amor, a exemplo do que ocorre
em Memórias Póstumas e Dom Casmurro. Em alguns momentos, o narrador tangencia o
grosseiro, como neste trecho, que é longo mas saboroso e esclarecedor das expectativas em
relação ao leitor empírico da obra e da sua intenção em frustrá-las ao repisar os mesmos
fatos:

Eis aqui entra uma reflexão da leitora: 'mas se duas velhas gravuras os levam a mUlTo e sangue,
contentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e única mulher?'
O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capitulo do amor ou dos amores, que é o seu
interesse particular nos livros. Dai a habilidade da pergunta, como se dissesse: 'Olhe que o senhor ainda
nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser amadas ou pleiteadas por estes dous joveus inimigos.
Já estou cansada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que
assisto à blandícias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, às duas, se não é uma
só a pessoa.. .'
Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo
escrito com método. A insistência da leitora em falar de uma só mulher chega a ser hnpertinente.
Suponha que eles deveras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me
lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que sucedeu e pode ser confirmado por dezenas
de testemunhas? Não, senhora minha, não pus a pena na mão, à espreita do que me viessem sugerindo.
Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler
somente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre dous capítulos, mas
espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras. 31

Embora com freqüência solicite ajuda para compor a história, nesse ponto o
narrador suspende o convite e reafirma sua autoridade ao colocar a interlocutora em seu
devido lugar. A conversa delirante e a irritação resultam não só da suposição de que esta
adivinhe a disputa dos gêmeos pela mesma mulher; explicam-se também pelo temor de ser
acusado de empulhação ou concessão às expectativas da leitora. É para evitar isso que o
narrador lança mão do argumento das dezenas de testemunhas que atestariam a verdade dos
fatos, insiste na obediência a um método de composição e chega a propor, sempre em tom
de conversa corriqueira, o absurdo de trocar de posição com a leitora. O ataque do narrador
acaba servindo para chamar a atenção do leitor tanto para a possibilidade de estar sendo
empulhado quanto para a sagacidade das leitoras, cujos julgamentos afinal não se mostram
apressados ou incorretos, pois o desemolar da narrativa mostrará que elas tinham razão, já
que os gêmeos de fato vieram a desejar a mesma Flora

31 Ibidem. pp. 982-983.

199
Se por um lado a leitora está associada a uma maior desenvoltura e familiaridade
com o universo ficcional, por outro ela também está associada à precipitação. Ao tratar da
indecisão de Flora em relação aos gêmeos, o narrador supõe que a leitora depreenderá daí
que a personagem é namoradeira, embora se trate justamente do contrário32 . Num outro
momento, atribui-lhe a expectativa de um terceiro pretendente:

Mas donde viria o tédio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, não; este era, como sabes, um dos
dous que lbe queriam bem. Salvo se ela queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Conclusão
duvidosa, pois não é certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a ambos com a mesma
simpatia, o que fazia agora a Pedro na ausência de Paulo, e faria a Paulo na ausência de Pedro, não me
faltará leitora que presuma um terceiro ... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que não fosse ao
baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem
esse, leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quiuto, ulnguém mais. Uma esquisitona, como lbe
chamava a mãe.33

Mais adiante, no capítulo "O Terceiro", o leitor será informado da existência de


outro pretendente, o Gouveia; e depois será a vez de contar sobre a manifestação das
pretensões matrimonias do enriquecido Nóbrega no capítulo "0 Quarto". A intuição
atribuída à interlocutora curiosa não estava de todo equivocada, ainda que Flora rechace os
dois pretendentes e morra sem um terceiro amor que a resgate da indecisão entre os dois
gêmeos. No coração de Flora, mas só nele, inexiste o terceiro conjecturado, como fica
explicitado pelo verso do Fausto- Ai, duas almas no meu seio moram! -que resume o
seu drama e sintetiza a idéia de duaiidade - ou de unidade dividida - que perpassa o
livro, como veremos a seguir.

Dualidade, duplicação, desintegração


A noção de duaiidade é constante em Esaú e Jacó: está na figura dos gêmeos, na
ambivalência do amor de Flora, na duaiidade moral e mental de Batista, que tinha "o
temperamento oposto às suas idéias"34, e também no fato de o livro que o leitor tem diante
de si debruçar-se sobre outro texto - o do diário de lembranças do conselheiro José da
Costa Marcondes Aires-, cujos fatos e opiniões supostamente reflete. É certo que se trata
de duplicação imperfeita e parcial, só realizada plenamente nos raros momentos em que as

32 Ibidem. p. 1038.
33 Ibidem, p. l 008.
34 Ibidem, p. 1017.

200
palavras do conselheiro são reproduzidas ipsis verbis, aparecendo entre aspas. Mais
freqüentes são as ocasiões em que a narração dobra-se sobre si mesma para refletir sobre o
modo como ela se apropria dos cadernos do conselheiro, discutir procedimentos da
composição narrativa e fazer conjecturas sobre o que ocorre do lado de cá das páginas, na
relação do leitor com o texto.
A dualidade e a cisão também repercutem sobre o próprio narrar, que em muitos
momentos se apresenta como um diálogo que o narrador trava consigo mesmo por meio de
interlocutores habilmente instalados na narração. Nos dois trechos reproduzidos acima,
pode-se notar o tom íntimo e não-cerimoníoso do diálogo entabulado pelo narrador com
uma interlocutora imaginária. Trata-se na verdade de um solilóquio construído em torno de
muitas perguntas e do emprego do discurso indireto livre que cria passagens quase
imperceptíveis entre as cogitações do narrador e aquelas que ele projeta sobre sua
interlocutora, a quem se dirige num registro muito familiar, para não dizer próximo ao da
bisbilhotice. O narrador de Esaú e Jacó, assim como os outros narradores a partir de Brás
Cubas, dá vazão a vozes interiores que antecipam possíveis reações ao relato e simulam
transitar entre o lado de lá e o lado de cá das páginas do livro, fingindo colocar-se na
posição do leitor, ou da leitora. A especificidade neste caso talvez esteja no fato de o
interlocutor aparecer como parte de uma consciência divídida que, ao mesmo tempo em
que narra, vai relativizando e interpretando o contado. A princípio projetado como duplo
do narrador, o interlocutor ficcional é uma entidade interposta entre o narrador e o leitor
empirico, apontando para a consciência dividida e para o caráter fragmentário não apenas
do narrador, mas também do leitor a que ele faz apelo.
Esse jogo de duplicidades estende-se aos detalhes. No capítulo "Entre um ato e
outro", o narrador equipa o leitor com binóculos e sugestiona-o a se imaginar no teatro,
comparando o interregno teatral, com suas mudanças de figurino e cenário, à passagem do
tempo no livro:

Enquanto os meses passam, faze de conta que estás no teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá
dentro preparam a cena, e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria
com os seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fàzendo,
não te exponhas a vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é
que tem verdes e flores. Deixa-te estar cá fora no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; têm
ainda as lágrimas que lhe arrancou a dama da peça. Fala-lhe da peça e dos artistas. Que é obscura. Que
não sabem os papéis. Ou então que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binóculo,

201
distribui justiça, chama belas às belas, feias às feias, e não te esqueças de contar anedotas que desfeiem
as belas, e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e as anedotas engraçadas.
Também as há banais, mas a mesma banalidade na boca de um bom narradar faz-se rara e preciosa. E
verás como as lágrimas secam inteiramente, e a realidade substitui a ficção. Falo por imagem; sabes que
tudo aqui é verdade pura e sem choro. 35

Com a sugestão do uso de binóculo e o uso reiterado do modo imperativo, o


narrador deixa clara sua intenção de direcionar o olhar do interlocutor, de modo a fazer
com que esse olhar coincida e se confunda com a mirada que ele, narrador, lança sobre o
aspecto construído da ficção teatral. Ao supor familiaridade do seu interlocutor com o
ponto de vista dos bastidores, de onde se vê que é tudo lona velha sem pintura, e aconselhá-
lo a se manter do lado da platéia, onde tudo é maís boníto, ele novamente chama a atenção
para o aspecto figurado das suas alusões teatrais. A dissimulação, a possibilidade de
signíficar o contrário do que se diz ou de dizer sem nada significar, o poder do narrador de
transformar e injetar interesse numa história- o trecho é uma súmula dos procedimentos
da construção ficcional. A projeção da visão do narrador sobre a do leitor, e das supostas
visões e opiniões deste no fluxo da narração, agora se textualiza nas instruções sobre como
se converter num bom narrador, suficientemente hábil para enxugar dos olhos de uma
senhora as lágrimas arrancadas pela ficção.
A insistência na capacidade do interlocutor de compreender, interpretar, interferir e
até colaborar na narração acaba sendo maís um recurso do narrador para dirigir e controlar
sua interpretação, o que fica claro na liberalidade do emprego do modo imperativo,
sobretudo o imperativo negativo, ao longo do livro. O romance está pontilhado de "não
concluas" e "não creias", "não me peças a causa", "não atribuas" e "não cuides", todos
verbos referentes a atos de interpretação, como se o narrador precisasse refrear o impulso
interpretativo ou superinterpretativo- do leitor36 • Embora lhe ocorra a possibilidade de
interpretações dissidentes e ele aparentemente encoraje seu interlocutor a fazê-las, o
narrador não encampa as explicações divergentes das suas, como deixa claro no capítulo
"Fusão, difusão, confusão", em que compara o processo de fusão de Pedro e Paulo numa só

35Ibidem, p. 1003, grifo meu.


36O uso reiterado de formas verbais como o imperativo negativo e o imperfeito do subjuntivo, assim como
de figuras de linguagem como a litotes, que consiste em afrrmar por meio da negação do contrário, "se
pode parecer gratuito ou mero ornamento caprichoso para o leitor ingênuo, acompanha e reinterpreta, de
modo personalíssimo, o gosto eclético do tempo", como observa Alexandre Eulalio, op. cit., p. 352.

202
pessoa- uma alucinação de Flora- à fusão do liberalismo e do conservadorismo em sua
mãe, D. Cláudia, cuja posição oscila ao sabor dos ventos da política:

Se alguém quiser explicar este fenômeno pela lei da hereditariedade, supondo que ele era a forma
afetiva da variação politica da mãe de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguém. São
cousas diversas. 37

Embora lance mão de várias estratégias para construir um interlocutor identificado


com os personagens e com os procedimentos da narração, lisonjeando-o e conferindo-lhe
autonomia, o narrador vai minando a confiança dele em sua autonomia e habilidade
interpretativa. O procedimento básico consiste em produzir identificação para, em seguida,
tirar o corpo fora, desestabilizando seu interlocutor, numa postura agressiva que lembra
muito a do narrador em terceira pessoa de Quincas Borba.
Ao mesmo tempo em que escancara o caráter construido da ficção, o narrador
afirma dizer apenas a verdade ao longo de todo o romance. Ao contar que os gêmeos, na
véspera do aniversário da morte de Flora, tiveram separadamente a mesma idéia de
depositar flores no túmulo da amada, o narrador observa: "Não digo que fossem das
mesmas flores, não só para respeitar a verdade, senão também para afastar qualquer idéia
intencional de simetria na ação e no acaso. Uma era de miosótis, outra creio que de
perpétuas. Qual fosse a de um, qual a do outro, não se sabe nem interessa à narração.
Nenhuma rinha letreiro."38 Não é só o respeito à verdade que orienta o relato, mas também
o respeito à veracidade e à verossimilhança. Se as flores fossem as mesmas, o narrador
talvez sacrificasse a informação apenas para não parecer que adulterava os fatos de modo a
conformá-los à simetria. Se não interessa quem levou qual flor, como fica dito em seguida,
o que parece importar para esse narrador é afirmar seu poder de dar ou omitir informações,
de modo a manter o leitor constantemente inseguro sobre a confiabilidade do relato. A
garantia do respeito à verdade, portanto, está sempre contaminada pela dúvida. Esse
procedimento pode ser notado bem no início do romance, na cena da profecia da cabocla:
"Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fumo concorda
com o oficio."39 Ou no relato da morte de Natividade quando, em vez de se calar, o

37 Ibidem, p. 1049.
38Jbidem, p. 1083.
39 Ibidem, p. 949.

203
narrador diz que "podia torcer a pena" para poupar a personagem, mas com isso "cometeria
uma ação fácil e reles, além de mentirosa". 40
Ao lembrar a possibilidade da mentira, o narrador também se corrige, confessando
imprecisão e erro nas suposições e previsões anteriores. O recurso, que aparentemente
serve para imprimir confiabilidade ao relato, acaba tomando a narração um terreno cada
vez mais movediço, no qual o interlocutor deve pisar com cuidado, já que a afirmação de
agora pode ser relativizada ou desmentida a qualquer momento. Mesmo os mais açodados
podem perceber a artimanha, já que tudo poderia ser alterado antes de o relato chegar à
forma de livro, o que o próprio narrador encarrega-se de advertir:

Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que não ficariam mal, se as acabasse, mas recuo a tempo, e
risco-as. Não vale a pena ir à cata das palavras riscadas. Menos vale supri-las.4 1

O narrador chega a fazer alarde das falhas, omissões e emendas, retomando pontos
que ficaram obscuros, desculpando-se por formulações de gosto ou clareza duvidosa e
chamando a atenção para o seu papel de "organizador" dos fatos que narra, como ocorre
nos trechos seguintes:
Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis;
todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada. a fnn de ser
entendidas das pessoas que me lêem (... )42

Nada disso foi escrito como aqui vai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal à sua
prosa. Não, senhor; as palavras de Santos saíram de atropelo, umas sobre outras, embrulhadas, sem
princípio ou sem fnn.43

A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a forma clara que aqui lhe ponho, com escàndalo
do leitor.44

Os trechos dão conta de que o processo de transformação das anotações do


conselheiro em narrativa implica todo tipo de manipulação por parte do narrador, e não se
sabe mais que distância separa o texto publicado do manuscrito encontrado na secretária de
Aires, rijamente encapado em papelão. Se lembrarmos bem, o narrador já no terceiro

40 Ibidem, p. 1091.
41 Ibidem, p. 1032.
42 Ibidem, p. 952.
43 Ibidem, p. 962.
44 Ibidem, p. 1069.

204
capítulo colocara a possibilidade de não estar dizendo a verdade ao declarar- "Se minto,
não é de intenção."45
Ao embutir afirmações nas negativas e negações nas afirmativas do narrador,
instila-se uma gota de dúvida nas juras e levantam-se suspeitas sobre a retidão e a
imparcialidade do narrador. No seu monólogo constante com os interlocutores que projeta
dentro de si e com os quais mantém uma relação aparentemente cordata, o escritor vai
apontando as fissuras na integridade da voz narrativa, também ela unidade dividida, como
os gêmeos, como Flora, como o próprio Conselheiro Aires, treinado para se posicionar no
meio dos conflitos, um equilibrista que jamais se inclina completamente para qualquer um
dos lados, embora transite por campos opostos.
Todas essas idéias de duplicidade, dualidade e oposição simétrica que caracterizam
a relação do narrador com seu interlocutor e definem o estatuto ficcional do leitor no
romance machadiano da maturidade estão sintetizadas no seguinte trecho:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra.
Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um
par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o
autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos.
Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa
fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o
poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo.
Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagrama das
posições belas ou dificeis. Não havendo tabuleiro, é um grande auxilio este processo para acompanhar
os lances, mas também pode ser que teohas visão bastante para reproduzir na memória as situações
diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre
pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo 46

Nesse trecho, que corresponde a todo o texto do capítulo intitulado "A Epígrafe", a
referência à imagem do tabuleiro e aos diagramas está longe de apontar para qualquer tipo
de esquematismo. Enxadrista dedicado e de vida inteira, leitor de publicações sobre o jogo
e memorizador das posições belas e dificeis, Machado sabia muito bem das possibilidades
quase infinitas da combinação de 32 peças em movimento sobre os 64 quadrados de um

45 Ibidem, p. 952.
46 Ibidem, p. 966

205
tabuleiro. 47 Trata-se de uma metáfora sintética e complexa do jogo ficcional, em que
virtualmente qualquer situação pode ser construída com os mesmos personagens sobre um
mesmo chassi, numa depuração de uma imagem de Dom Casmurro - "Tudo cabe na
mesma ópera... " 48 - relembrada aliás por Olavo Bilac. Em sua crítica ao livro, escrita
durante viagem à Europa e publicada em A Notícia, o poeta elogiava e mostrava-se
surpreso com o talento de Machado de Assis de escrever "uma literatura originalíssima" a
partir de "urna cidade sem caráter próprio, uma cosmópolis imprecisa e vaga", a partir do
que concluía: "Com os mesmos cenários, porém, com os mesmos personagens, e com as
mesmas paixões, fazem-se cem mil dramas diversos. A literatura de Machado de Assis
realiza o milagre de criar, no Rio de Janeiro, conflitos morais, estados de alma, e aspectos
sociais absolutamente inéditos." Bilac elogiava no livro aquílo que Machado apontara em
"Instinto de Nacionalidade" como uma das características superiores do romance: a
capacidade de análise das paixões e dos caracteres a partir da observação, que é o que o
narrador de Esaú e Jacó está pedindo ao seu interlocutor em vários momentos, como no
trecho reproduzido acima.
As imagens de dualidade e duplicação estão na base das comparações, que
constituem o principal recurso retórico empregado por Machado para expor sua teoria da
composição. No capítulo do entreato, a narração era comparada ao espetáculo teatral; desta
vez o pedido é para que se aceite a dupla comparação entre enxadrista e autor e entre os
trebelhos e os personagens da narração, entre os quais está incluído o próprio leitor. As
comparações, uma vez aceitas, podem se desdobrar num jogo infernal de estabelecer
correspondências entre as diversas peças do xadrez e os personagens, atividade à qual o
narrador, aliás, convida.
A comparação com o tabuleiro de xadrez, construído pela oposição simétrica entre
peças pretas e brancas, esclarece muito da armação ficcional, já que o mesmo tipo de
simetria se aplica à cena do duelo metafórico entre os gêmeos, ambos amadrinhados por

47 Sobre Machado de Assis jogador, apreciador e fonnulador de problemas enxadrísticos, vide MATIDAS,
Herculano G. "Machado de Assis e o jogo de xadrez", Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
vol. 13, !952. Republicado em Luís Anselmo Maciel Filho, Rua Cosme Velho. 18: Relato do restauro do
mobiliário de Machodo de Assis. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1998, pp. 15-31. O texto
incluí também referências ao jogo de xadrez nas crôuícas, contos e correspondência de Machado de Assis.
48 Dom Casmurro, OC, vol. I, p. 819.

206
Flora, colocada em posição eqüidistante dos dois, reforçando a idéia de simetria. 49
Natividade também está no ponto médio entre os campos opostos definidos pelos gêmeos,
o que pode ser visualizado na cena imaginada pelo narrador para o beijo que Pedro e Paulo
teriam dado na mãe por ocasião de suas entradas na Câmara, como Deputados:

Não consta qual deles a beijou primeiro: não havendo regimento interno nesta outra câmara, pode
ser que fossem ambos a um tempo, metendo-lhes ela a cara entre as bocas, uma face para cada um. A
verdade é que o fizeram com igual ternura. 50

Além da simetria, a cena remete à permutabilidade entre os elementos - é


indiferente em que face cada um dos gêmeos está - , que também está implicada no
tabuleiro de xadrez, onde a oposição visível entre peças brancas e pretas "não tira o poder
da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida". Assim como
peças distintas podem desempenhar as mesmas funções e dispor do mesmo poder, a
história dos gêmeos Pedro e Paulo Santos - duplicação dos apóstolos irmanados pelo
cristianismo embora inimigos entre si - são estruturalmente intercambiáveis com as de
Castor e Pólux51 , filhos de Júpiter e Leda, e têm como matriz literária a lenda bíblica de
Esaú e Jacó52 , filhos de Isaac e Rebeca, que, ainda grávida, sente as crianças lutando dentro
dela e, ao consultar Iahweh, é informada: "Há duas nações em teu seio, dois povos saídos
de ti, se separarão"53 . A mesma idéia se duplica na epígrafe, retirada do Fausto, de Goethe
-"Ai, duas almas no meu seio moram."
A oposição de coisas que parecem unas, ou a aparente unidade de coisas opostas,
que é a história que o livro conta a propósito dos gêmeos, sugere a possibilidade da
diversidade na unidade e novamente remete à existência de uma história matriz- possível
de ser circunscrita a um tabuleiro, à estrutura narrativa de uma ópera- sempre igual a si
mesma: "Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado - Petrus,

49 Ibidem, p. 1085.
50 Ibidem, p. 1089
51 Ibidem, p. 1092.
52 Sobre as referências mitológicas, que sempre aparecem em dupla nesse romance, vide Affonso Romano
de Sant'Anna, "Esaú e Jacó", in Análise Estrutural de Romances Brasileiros, 4' ed., Petrópolis, Editora
Vozes, 1977, pp. 116-152.
53 Tiago Girando [direção editorial], A Biblia de Jerusalém, São Paulo, Sociedade Bíblica Católica
Internacional e Paulus, 2000, p. 65.

207
Paulus ... " 54 Se há alguma afirmação veemente nesse livro, ela se refere à imutabilidade:
nada muda. ninguém muda, tudo é sempre o mesmo. Essas idéias estão sintetizadas na
epígrafe que o livro teria se tivesse alguma- e o leitor sabe que tem, pois passou por ela
entre a "Advertência" e o "Capítulo I":- "Dico, che quando !'anima mal nata ... ". Os
versos truncados do meu Dante, segundo o narrador, constituem uma versão de um velho
adágio [note-se o emprego dos possessivos] nosso: "0 que o berço dá só a cova o tira."
Como se nota, a idéia de dualidade está em todos os níveis desse uníverso ficcional
em que tudo se manifesta aos pares e, paradoxalmente, tudo se reduz a um mesmo: os dois
conjuntos iguais das peças de xadrez dividem um único tabuleiro; os vários pares de
gêmeos são manifestações opostas de uma mesma natureza e disputam o mesmo ventre e o
amor das mesmas mulheres; o verso e o adágio são expressões de um mesmo sentido etc.
Voltando ao capítulo da epígrafe, o leitor aí é referido como intérprete, capaz de
perscrutar os sentidos que ficarem à sombra, atribuindo sentido ao narrado. Seu papel, no
entanto, já não se esgota mais no preenchimento das lacunas deixadas pelo autor/narrador.
O tuteio agora é com um leitor capaz de compreender e aceitar a comparação entre o
xadrez e o jogo ficcional. Ainda que haja ironía na figuração desse leitor inteligente e de
boa memória, o fundamental é a consideração, por parte do narrador, da possibilidade de
alguém capaz de considerar muitas variáveis, de fazer interpretações complexas e perceber
que as explicações nem sempre se reduzem a aparências - as peças brancas e pretas, por
exemplo, distinguem-se menos pela diferença visível do que pelas funções variadas e
complexas que desempenham. São necessários muitos níveis de observação e
interpretação: das peças individualmente (rei e rainha), das peças enquanto tipos (bispos,
cavalos, torres e peões) e de todo o conjunto, levando-se em conta suas posições relativas,
numa visão dinâmica e gestáltica do tabuleiro, indicativa da visão machadiana da
composição e da recepção do texto ficcional. Pode-se pensar nesses três níveis de
interpretação como os dominantes, respectivamente, entre o leitor romântico, aferrado a
individualidades irredutíveis, integras e sempre iguais a si mesmas, o leitor do realismo e
do naturalismo convencional, afeito às tipologias e categorias sociais, e, finalmente, o leitor
que Machado de Assis desenha para a sua obra- alguém que dispensa os esquemas, capaz
"de reproduzir na memória as situações diversas", leitor verdadeiramente ruminante, com

54 El, p. 1087.

208
quatro estômagos no cérebro. Esta aí a imagem do leitor ideal não só do Esaú e Jacó: um
leitor empenhado, que lê e relê muitas vezes, volta, compara, procura o que está oculto sob
as aparências e atinge a verdade, que precisa ser desentranhada do texto por meio de um
processo mental e baseado na dedução. Um leitor avesso ao sentimentalismo, aos apelos
sensoriaís, nem apressado e nem impaciente, pertencente à linhagem de Luís Garcia, "leitor
de boa casta, dos que casam a reflexão à impressão" e que, ao acabar o livro "incrustava-o
por assim dizer, no cérebro"55 • A caracterização da boa leitura como resultado de um
processo de análise, quebra, desintegração, tem semelhança com a imagem fo:rjada por
Machado para explicar as alterações de sua obra: "Aos vinte anos, começando a minha
jornada por esta vida pública que Deus me deu, recebi uma porção de idéias feitas para o
caminho [ ... ] e vivi assim até o dia em que por irreverência do espírito, ou por não ter maís
nada que fazer, peguei de um quebra-nozes e comecei a ver o que havia dentro delas". 56
O escritor que procurava desarraígar do seu espírito as idéias e clichês herdados das
gerações anteriores, reduzindo-os a nada, vírando-os do avesso, embaralhando as posições
estabelecidas buscava também um leitor que incrustasse seus livros no cérebro,
submetendo o discurso dos seus narradores à análise minuciosa. O paradigma desse leitor
ideal, várias vezes formulado pelo escritor nos agradecimentos a análises e comentários
sobre seus textos, parece estar em José Verissimo, critico de todas as obras da maturidade
de Machado de Assis, maís de uma vez elogiado por este pela combinação de competência,
rigor e benevolência.

A recepção de Esaú e Jacó


Esaú e Jacó, que chegou às livrarias do Rio de Janeiro no segundo semestre de
1904, provavelmente no mês de setembro, em meio à discussão sobre a vacina obrigatória,
como escreveu Artur Azevedo em nota sobre o lançamento do livro57 , recebeu maís
atenção da imprensa do que o romance anterior, tendo sido assunto de pelo menos oito
resenhas. Todas, sem exceção, fazem referência elogiosa à simplicidade da linguagem, o
que contrastava com os torneios verbaís e o cultivo do vocabulàrio raro, e às vezes bizarro,

55 Ibidem, p. 445.
56 Citado por Barreto Filho, "O Romancista", in OC, vol. 1, pp. 102-3.
57 Artur Azevedo, "Folha Nova", s/d, apud Josué Montello, O presidente Machado de Assis, São Paulo,
Livraria Martins Editora, 1961, p. 178

209
de Coelho Neto, Rui Barbosa e Euclides da Cunha. Mário de Alencar alerta o leitor de que
"podes lê-lo sem dificuldade, porque não há palavra ali que não uses na tua linguagem de
todo o dia. Não consultarás dicionário, e essa é outra virtude do livro"58 ; Oliveira Lima fala
em português limpo e castiço e falta de artificios e voluntária simplicidade59 ; José
V erissimo chama a atenção para "a língua admirável, a pura ciência da dicção com que é
escrito"60 .
Também recorrente é a atribuição das virtudes não ao enredo, mas ao próprio
processo de narração: "Não é, porém, no entrechoque está a sua real beleza: é na graça do
dizer as coisas, por mais importantes ou insignificantes que sejam", dizia Medeiros e
Albuquerque.61 A mesma idéia seria expressa de outra forma por Oliveira Lima, que
observava que "a sua ação carece de um enredo complicado e escabroso", acrescentando
que "a questão está, literariamente, no modo de tratá-la"62 , e ainda de outra maneira por
José Verissimo, para quem "a história é simples e, por isso mesmo, dificil de contar. Aliás,
as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu
principal encanto talvez esteja no contador."63
Sobre a posição ousada e moderna em que o livro colocava o seu leitor, as
observações mais sagazes vieram de Oliveira Lima e Walfrido Ribeiro. O primeiro,
contrastando a prosa de Machado com a dos românticos, chamava a atenção para "a
contradição dos atos, a vacilação das resoluções, a aparente descontinuação dos
pensamentos", elogiando no livro a afirmação da dúvida e da hesitação, "que são garantias
de verdade" e sugerindo "estar a própria ironia na retina" do escritor. 64 Observação
semelhante sobre o caráter nada assertivo da obra, construída com meios-tons e baseada na
proposição de incertezas para o leitor, foi registrada por Walfrido Ribeiro: "Não é

58 Mário de Alencar, Jornal do Commercio, 2.10.1904, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vo1. 4, p. 200.
59 Oliveira Lima, Gazeta de Notícias, 21.11.1904, apud R. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, p. 210;
Machado agradeceu o espírito benévolo do crítico em carta datada de 4.12.1904, apud Luiz Viana Filbo,
op. cit., p. 234.
60 José Verissimo, Kosmos, dezembro de 1904, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, pp. 213-4.
61 J. dos Santos [pseudônimo de Medeiros e Albuquerque], "Crônica Literária", A Notícia, 30.9.1904, apud
R. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, p. 200.
62 Oliveira Lima, Gazeta de Notícias, 2!.11.1904, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, p. 210.
63 José Verissimo, Kosmos, dezembro de 1904, apud R. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, pp. 213-4;
Machado agradeceu a crítica em carta de 4.10.1904, in OC, vol. 3, pp. 1069-1070.
64 Oliveira Lima, Gazeta de Notícias, 2l.ll.l904, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, p. 21!.

210
categórico, e parece desejar que a sua frase nunca encerre uma sentença. (... ) A sua arte
deixa que o leitor também trabalhe na leitura, e fá-lo pensar."65
As exigências e apelos colocados pelo romance, de modo até explícito, finalmente
chegavam ao leitor empírico, que pescava a incompletude da narrativa cujo sentido devia
ser complementado no processo de recepção. O dilaceramento do leitor figurado, mediador
dos apelos que o escritor faz ao seu leitor ideal, deixam o leitor empírico em situação de
desamparo cada vez maior. A indução a um estado constante de desconfiança e suspeita
facilita o seu aprisionamento no campo de força ficcional, gerado e alimentado pelo caráter
instável da narrativa Como observou John Gledson a respeito do complexo sitnbolismo e
das muitas sugestões de alegoria do livro, "o leitor fica preso, e acredito que isso seja
proposital, entre o ceticismo e o impulso de descobrir modelos de significado, incapaz de
se resolver, com alguma segurança, a tomar uma atitude única e estável". 66 A instabilidade
resulta de um processo complexo que, como se viu, inclui a sedução e o desarme do leitor
por meio de lisonjas, afirmações de afinidade e garantias de transparência seguidas de
súbitos recuos nas atitudes de simpatia.
Tudo isso existe em Dom Casmurro. Mas enquanto no livro anterior a incerteza
gira em tomo da veracidade de fatos relembrados por um narrador comprometido e
interessado naquilo que conta, desta vez a instabilidade se desloca para o próprio processo
narrativo, uma vez que a história propriamente importa muito pouco, até porque ela não
avança, "Dico, che quando !'anima mal nata ... " Tudo parece esgotar-se no próprio
processo narrativo que, com suas afirmações e negações, estabelece um jogo perverso
consigo mesmo e com o interlocutor. Envolvido pela elegância da dicção, pelos volteios e
pelo brilho desnorteador desse texto armado como um jogo de espelhos, o leitor aparece
figurado como entidade tragada por esse turbilhão de reflexos sem jamais conseguir lançar
um olhar distanciado sobre o narrado. Abusando um pouco da metáfora, é como se o fluxo
da narração procurasse mergulhar o leitor na tinta mesma que compõe o texto.
A propósito de tintas, elas aparecem com muita constância em Esaú e Jacó: no
episódio das tabuletas do Custódio, no tinteiro que teria pertencido ao jornalista Evaristo da
Veiga, na longa digressão sobre o frei e o maltrapilho que em mais de uma ocasião

65 Walfrido Ribeiro, "A Livraria", Os Annaes, Rio de Janeiro, 5.ll.l904, pp. 77-78.
66 John Gledson, op. cit., p. 187.

211
deitaram tinta à barba, na referência ao preto e braoco que cobrem as mesmas peças do
xadrez etc. As tintas talvez sejam metonimias dos atos responsáveis pelas grandes
traosições da vida pública mencionadas pelo livro, onde todas grandes mudanças e
traosformações são sarcasticamente reduzidas a canetadas e demãos de tinta: as constantes
renovações e quedas dos gabinetes; a Abolição da Escravatura; a alternância no poder entre
as facções conservadoras e liberais; a transição do Império para a República, ouvida por
Aires ao cocheiro do Largo da Carioca e reduzida ao prosaismo desnorteado do confeiteiro
Custódio do Catete, às voltas com a pintura das suas tabuletas.
Tudo isso soa como boa metáfora de um tempo e de um país que o redator do jornal
"The Rio News" definia como "a terra do imprevisto, uma Nação de contradições
inexplicáveis" e sobre o qual escreveu, três dias depois da insurreição que instalou a
República no Brasil: "we have no word of commendation for a people who change their
principies and institutions in a moment without protest or resistance." Passado o calor dos
fatos, publicava-se no mesmo jornal: "Brazil has merely put on new suit of clothes.'"' 7
Voltando ao romance, parece ser no turbilhão das tintas que o leitor figurado pelo
romance apela ao leitor empírico, também ele mergulhado numa "atmosfera de dúvida e
inseguraoça, misturada com ambiciosa especulação", de volatilidade e rápidas
transformações, que parecem marcar não só o tempo da ação do romance, como observa
John Gledson68 , mas as narrativas da modernidade.

67 The Rio News, 18 de novembro e 2 de dezembro de 1889, apud Delso Renault, O Dia-a-dia no Rio de
Janeiro: segundo os jornais, 1870-1889, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, !982, p.
236. Nisso tudo, o leitor há de reconhecer os procedimentos narrativos que vimos apontando, baseados nas
trocas de papéis, falsas oposições, opostos que se equivalem, equivalentes que se opõem, dissoluções e
restabelecimentos, mudanças para o mesmo.
68 Para um estudo detalhado das articuiações entre as incertezas do petiodo histórico focado por Esaú e
Jacó e o desnorteamento produzido pela expetiência de leitura do romance, veja-se Joim Gledson, op. cit.,
p. 161-214.

212
Capítulo 10
Memorial de Aires e o leitor de papel

A figuração do leitor simultaneamente como interlocutor e testemunha do


solilóquío do narrador não poderia encontrar expressão melhor do que em Memorial de
Aires, romance baseado no diário íntimo de um diplomata aposentado, que retoma ao
Brasil depois de muítos anos de serviço no exterior e compensa a solidão dedicando-se a
seus escritos. O formato escolhido para a apresentação da narrativa já define a situação
imaginada para o leitor que, no plano ficcional, é apresentado como um acidente, entidade
que só vai se configurar caso o texto não seja destruído antes da morte do autor/narrador, o
que ele várias vezes afirma ser sua intenção. A narrativa, portanto, já de saida considera seu
ínterlocutor como uma eventualidade, dúvida e acidente. Na melhor das hipóteses
aventadas pelo Conselheiro, suas notas terão apenas um leitor - ele próprio, que
constantemente declara reler suas anotações; no pior dos casos serão lidas por cinco
pessoas do seu círculo íntimo: sua irmã Rita, o casal Aguiar, Tristão e Fidélia.
A expectativa de ínterlocução, portanto, apresenta-se como mínima, já que é da
natureza do diário ser uma conversa íntima de alguém consigo mesmo, pressupondo
nenhum ou muíto poucos ínterlocutores, o que índica o fechamento do texto sobre si
mesmo. A circularidade e o isolamento que marcam esse universo ficcional ficam
sugeridos também pelo fato de Aires volta e meia referir-se à releitura de Goethe,
Thackeray e Shelley, de quem empresta o verso "I cannot give what men cal! love",
sempre repetido ao longo do texto e emendado com um fecho de sua composição: "Eu não
posso dar o que os homens chamam amor ... e é pena!"69 .
Apesar da enunciação de todos esses propósitos aparentemente circunscritos à
subjetividade do autor-narrador e da apresentação do relato como algo dirigido a nínguém,
sabe-se que até mesmo o registro mais íngênuo das próprias lembranças está sempre
assombrado por vozes que inscrevem no texto outras possibilidades de compreensão dos
fatos narrados. Mas a ingenuídade não faz parte do Memorial de Aires, onde as instâncias
de autoria, narração e ínterlocução aparecem propositadamente embaralhadas,

69 Memorial de Aires, OC, vol. J, p. 1102. A partir daqui, as referências a essa edição do romance serão
indicadas por MA.

213
estabelecendo relações complexas. Ao contrário do que se procura afirmar, as memórias e
reflexões do Conselheiro não se esgotam em si mesmas. Além de todas as razões internas,
puramente pessoais, aqui e ali outras motivações são associadas à elaboração do diário, que
também se apresenta como fonte de prazer e forma de colocar a subjetividade em
circulação no mundo, já que "dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da
cabeça, por via da memória ou da reflexão"70.
É dessa constante comutação entre a posição pretensamente objetiva do relato e sua
matéria estritamente subjetiva que o romance retira sua dinâmica e sua complexidade. No
que diz respeito ao leitor, isso se traduz num permanente movimento de exclusão e
inclusão da interlocução do processo narrativo, que é o assunto deste capítulo.

*****
No Memorial de Aires, o Conselheiro Aires é apontado como autor, narrador único
e também protagonista de uma história que se apresenta à maneira casual e circunstancial
dos diários, incluindo o registro das datas e às vezes do horário das anotações. Todas essas
informações chegam ao leitor empírico por meio do organizador e editor ficcional M. de
A., subscritor da "Advertência" que apresenta o livro como resultado da reunião das notas
relativas aos anos de 1888-1889 deixadas pelo diplomata aposentado José da Costa
Marcondes Aires e apenas "decotadas de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e
reflexões". Pelo texto introdutório, sabemos retrospectivamente que esse M. de A., dublê
do escritor Machado de Assis, ainda que também possa ser entendido como mais uma
entidade ficcional, também fora responsável pela organização do texto de Esaú e Jacó,
publicado quatro anos antes e organizado a partir das notas do último dos sete cadernos
deixados pelo Conselheiro Aires, como fica dito na "Advertência'' daquele livro, que não
traz assinatura. Mas diferentemente do que ocorre em Esaú e Jacó, no Memorial estão
pouco evidentes as marcas da interferência de um autor que organiza, suprime e acrescenta
informações às anotações deixadas por Aires, características que aproximam Esaú e Jacó
de um formato de romance mais tradicional.

70 MA, p. 114!.

214
Ao mesmo tempo em que reivindica fidedignidade e realismo para a narração que
introduz, a Advertência serve para levantar dúvida sobre tudo o que vem em seguida.
Quando se trata de um texto, "decotar", "desbastar" e conservar "só o que liga o mesmo
assunto" não são atitudes neutras, impessoais, como quer fazer crer M. de A. no prólogo.
Em função da triagem do que pertence e do que não pertence ao mesmo assunto- além da
prévia determinação de qual é o assunto - , pode-se alterar completamente o sentido
daquilo que o autor original talvez quisesse significar. Basta folhear Esaú e Jacó e o
Memorial de Aires, narrativas organizadas de maneiras tão diferentes -uma dividida em
capítulos, a outra, na forma de entradas de um diário - e apesar disso atribuidas a um
mesmo autor, para se começar a questionar quais as noções de autoria ai envolvidas. E
também, por extensão, para se pensar nas noções de interlocução implícitas nessas
narrativas, compostas de camadas conflitantes - uma atribuída ao editor, outra atribuída
ao autor-narrador - que fazem com que nem o autor e nem o interlocutor jamais estejam
numa posição fixa.
Apesar da declarada edição das notas originais, a manutenção da forma de um
diário produz a impressão de que tanto o escritor Machado de Assis quanto o editor M. de
A. e o autor Conselheiro Aires têm pouco controle sobre o desenrolar da história, que é
subordinado ao correr do tempo, imprevisível. A princípio, todas as entidades envolvidas
no jogo ficcional estão colocadas na mesma situação de impotência diante dos fatos,
impossibilitadas de saber se as conjeturas e cogitações do dia de hoje serão confirmadas ou
desmentidas pelo dia (ou pela página) seguinte, o que serve para aproximar o leitor em
relação ao autor, ao narrador e ao editor das notas. Por esse prisma, os leitores que têm o
romance em mãos estariam diante do máximo da representação realista, em que os fatos
são registrados de maneira bruta, supostamente com o mínimo de interferência tanto do
escritor Machado de Assis quanto do editor M. de A., eximidos da intenção de produzir
este ou aquele efeito sobre o interlocutor.
O interlocutor, aliás, é uma instância fundada sobre a contradição própria dos
diários íntimos, narrativas marcadas pelo equilíbrio instável entre o registro do
absolutamente privado e a possibilidade - e o desejo, ainda que muitas vezes negado - ,
de tornar-se público, possibilidade colocada pela própria materialização da intimidade na
escrita. No Memorial, esse conflito já está colocado na Advertência, que se dirige a um

215
grupo de leitores que talvez inclua até mesmo leitores do romance anterior ("Quem me leu
Esaú e Jacó ... "), o que choca com a matéria da narração propriamente dita, em que o
conselheiro insiste em não estar se dirigindo a ninguém- ou a quase ninguém.

Os balizamentos do texto
Aludir reiteradamente à não existência de alguma coisa é também uma forma de
cogitar sua existência. Insistindo na não-expectativa de leitores para o seu texto, Aires não
só vislumbra potenciais leitores, mas também se defende das possíveis acusações que estes
lhe possam fazer de manipulação dos fatos narrados. Não parece ser outro o motivo que o
leva a interromper a narração para dizer que releu suas anotações, mostrar-se preocupado
por ter-lhe imprimido algum tom poético ou romanesco e reiterar- afinal, para quem?-
que é "tudo prosa, como a realidade possível". A afirmação sobre a fidelidade da narração
aos fatos ocorridos e o contraste do seu texto com os textos de imaginação constituem mais
um dos sestros do autor-narrador, que em muitos momentos retoma formulações parecidas
com aquelas de Dom Casmurro e Esaú e Jacó:

Há na vida simetrias inesperadas. A moléstia do pai de Osório chamou o filho ao Recife, a do pai de
Fidélia chama a filha à Parruba do Sul. Se isto fosse novela algum critico tacharia de inverossímil o
acordo de fatos, mas já lá dizia o poeta que a verdade pode ser às vezes inverossímil.71

Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste mês. Uma
novela não permitiria aquela paridade de sucessos. Em ambos esses dias. - que eotão chamaria
capítulos, - eocontrei na rua a viúva Noronha, trocamos algumas palavras, vi-a eotrar no bonde ou no
carro, e partir; logo dei com dous sujeitos que pareciam admirá-la. Riscaria os dous capítulos, ou os
faria mui diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais útil
que na obra de imaginação.
Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia,
ambos com os pais doeotes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso
repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição dos termos. A vida,
eotretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meoeios, como nas recepções, comidas, visitas e
outros folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva,
saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.
Dou essas satisfações a mim mesmo, a fim de meocionar o meujoellio doeote [... ]12

Nos dois trechos, o comportamento é profundamente ambíguo. Ao opor a vida à


novela, reafirma-se a natureza do diário como escrita desinteressada e sem expectativa de

71 Idem, p. 1126.

216
interlocução; ao mesmo tempo, a referência a procedimentos literários e a comparação
entre as unidades textuais referentes a cada dia e os capítulos de uma novela chamam a
atenção para a armação da narrativa. Ao mesmo tempo em que servem para imprimír maior
verossimilhança ao texto, reforçando seu caráter casual e circunstancial, os mecanismos
dos trechos acima servem também para alertar o leitor sobre a possibilidade de
manipulação dos fatos narrados. Por isso, quando as reflexões começam a parecer muito
bem acabadas, o narrador sente a necessidade de justificar-se, dizendo estar falando
consigo mesmo. A certa altura, ele desvia o assunto para o próprio joelho, como se ele se
recolhesse para dentro de si mesmo diante da imagem fantasmagórica de um leitor que
porventura perguntasse- "Afinal, para que tantas satisfações e tanto cuidado na exposição
de um texto que não se destina a ninguém?" - e concluísse estar diante de um
autor/narrador dissimulado.
Isso tudo resulta num aumento do nível de incerteza do interlocutor diante da
confiabilidade do narrador e da verdade dos fatos narrados, de modo que o leitor que tem o
livro nas mãos está diante de uma narrativa que a todo momento coloca em dúvida a sua
existência. Mas não é apenas pela negação que o leitor empirico vai sendo instalado no
texto. Sua presença também fica sugerida pelo esforço do narrador em fornecer
localizações geográficas precisas, identificar pessoas com que seu interlocutor talvez não
esteja familiarizado e interromper o fluxo da narração para esclarecer alguma coisa que
porventura tenha ficado obscura ou acrescentar algo que ele deixou de dizer, e importava
Ao mesmo tempo em que levanta dúvida sobre a inteligibilidade de suas explicações e
justifica-se dizendo que isso não importa "porque me entendo assim mesmo, ainda que
pouco"73 ou que "basta que o sinta comigo"74, o narrador manifesta sua preocupação em
arranjar os fatos. Mesmo acreditando que Aires dirige essas observações apenas para si
mesmo, aos olhos do leitor empírico elas aparecem como uma proposta- ou tentativa de
indução- de um percurso de leitura coincidente com o do autor-narrador.
Dessa forma, a narrativa endógena e espontânea vai se revelando repleta de
balizamentos externos ao texto por meio dos quais o narrador-autor procura controlar a

72 Ibidem, pp. 1154-1155.


73 Ibidem, p. 1185.
74 Ibidem, p. 1190.

217
produção e a possível recepção do seu texto, reeditando procedimentos empregados por
narradores de rontances anteriores. O cuidado com a contabilidade narrativa está
novamente presente, e o narrador diz que seu relato está reduzido ao mínimo necessário
para a compreensão75 (de quem?), faz as contas de quantas páginas os sucessos de uma
determinada noite ocupariam e acaba desistindo de relatá-los 76 e promete (a si mesmo?)
que a reflexão que vai fazer é curta77. Desta vez, o motivo alegado não é o temor de enfadar
o leitor ou de descontentar o editor por estender demais o livro e encarecer a edição,
instâncias que não estão no horizonte do narrador, mas sim o pavor das narrativas
alongadas: "Nada há pior que gente vadia, - ou aposentada, que é a mesma cousa; o
tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste."78 Essa
obsessão pela brevidade, manifesta em quase todos os romances de Machado, atinge o
paroxismo no Memorial, onde o Conselheiro Aires a certa altura, diante da promessa da
irmã de que uma história seria contada em apenas cinco minutos, saca o relógio do bolso
para marcar o tempo da narração, ouve pacientemente todo o relato e arremata: "Rita
começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro."79
Apesar da impressão primeira de um diário escrito sem compromisso, logo se nota
que nada é espontâneo, natural ou realista nesse universo milimetricamente orquestrado por
Machado de Assis, que por meio do ficcional editor M. de A. rearranja as notas deixadas
pelo Conselheiro Aires. Nesse sentido, Juracy Assmann Saraiva tem razão ao afirmar que
nesse romance Machado de Assis desmistifica a crença na concepção realista da arte, que
aparentemente é o ponto de partida do seu relato:

as relações transtextuais, assim como as outras marcas de auto-referencialidade, salientam o artificio da


execução do texto memorialistico, dimensionando-o como testemunho do fazer literário. Ao acolher,
adaptar, reelaborar ou transgredir convenções, o Memorial de Aires não só sublinba o arbitrário de sua
esm~turação discursiva, como desmistifica a crença na concepção realista da arte. 80

De fato, a postulação de uma representação realista não se sustenta por muito tempo
nessa narrativa em que um diplomata sexagenário está constantemente apostrofando para o

75 Ibidem, p. 1107.
76 Ibidem, p. 1175.
77 Ibidem, p. !188.
78 Ibidem, p. llll.
79 Ibidem,pp.llll-1112.
80 Cf. Juracy Assmann Saraiva, op. cit., p. 191.

218
papel, ato que parece ser uma radicalização sobre as possibilidades comunicativas e as
possibilidades miméticas da literatura, que sofrem uma espécie de redução ao absurdo.

A radicalização da escrita
Ainda que comece anunciando que o destino dos seus escritos são as cinzas - "Não
sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas
folhas de solitário"81 - à medida que os dias avançam Aires não apenas revela
inquietação e um discreto desejo de interlocução para o texto, como chega a nomear
possíveis leitores caso seu projeto não saia como imaginado. A interlocutora mais
constante, porque também destinatária mais provável do espólio de um viúvo sem filhos, é
a única irmã, ao longo do livro referida nos três trechos que seguem:

Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e se eu morrer de
repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar dela que lhe não contei o que já escrevi
atrás.
Leia, e leia também esta outta confissão que faço das suas qualidades de senhora e de parenta. 82

Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final demasiado céptico. A mana
que me perdoe. 83

Não tendo casado outra vez, pareceu-lhe que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então
(releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora tais ou quais remorsos de
não havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar demais de pessoa tão excelente. 84

O autor desculpa-se por antecipação pelos eventuais excessos do que deixa escrito e
que talvez, ainda que contra sua vontade, chegue aos olhos da irmã. A única manifestação
de um desejo voluntário de interlocução está no primeiro dos trechos reproduzidos acima,
aquele em que a irmã é prefigurada como ouvinte de uma passagem específica do diário.
Também é na condição de ouvintes que os outros possíveis interlocutores de Aires - o
casal Aguiar e Tristão e Fidélia- são imaginados:

Se assim acontecer, lerei esta página aos dous velhos, com esta mesma lioha última. 85

81 .MA, p. 1104
82 Ibidem, p. 1181.
83 Ibidem, p. 1181.
84 Ibidem, p. 1184.
85 Ibidem, p. 1188.

219
Soubesse eu fazer versos e acabaria com um cântico ao deus do amor; não sabendo, vá mesmo em
prosa: 'Amor, partido grande entre os partidos, tu és o mais forte Partido da Terra.. .' Lerei esta outra
página aos dous moços, depois de casados. 86

Nos dois casos condicionada a fatores externos- no primeiro caso, à desistência


de uma candidatura política por parte de Tristão; no segundo, a realização do casamento de
Tristão e Fidélia - , a cogitação de interlocutores vem acompanhada de delimitações do
narrador, que mostra seu desejo de controlar exatamente o que ele vai ler, para quem e em
que condições.
Mas é na superfície inanimada do papel que Aires tem seu interlocutor mais
constante. É ele que toma o lugar do substantivo "leitor", que nos livros anteriores eram o
objeto do tuteio dos narradores. Mas se antes leitor e leitora podiam aparecer
acompanhados de toda sorte de adjetivos, dos mais lisonjeiros aos mais desrespeitosos, o
papel aparece como velho amigo 87, sábio, paciente e confidente confiabilíssimo "a quem
digo tudo o que penso e tudo o que não penso"88:

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabarás
desservindo-me, porque se acontecer que eu vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me
lerem depois da missa do sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio
cuidados de amor.
Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minba mesa, e foge. A janela
aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acbarás descanso. Comigo, o
mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que ele cbegue, virá a
troça dos malévolos ou simplesmente vadios.
Escuta, papel. O que naquela dama Fidélia me atrai é principalmente certa feição de espírito, algo
parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudá-la se tiver ocasião. Tempo
sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho
vagar e quê, - e pouco mais89

A insistência com que o narrador interpela e dialoga com o papel, chegando a lhe
desejar boa noite, remete à humanização de elementos não-humanos, animação de objetos
inanimados, assim como o rompimento das distinções entre elementos abstratos e
concretos, procedimentos que dão graça ao texto de Machado de Assis. Esse recurso bem
conhecido da obra machadiana està presente nos seus apólogos, assim como nos vermes e
nos algarismos falantes. Remete também a outro procedimento recorrente, embora menos

86 Ibidem, p. 1190.
87 Ibidem, p. 1117.
88 Ibidem, p. 1127.
89 Jbidem,pp.ll15-!116.

220
estudado da obra machadiana - a tematização da materialidade da escrita - , que aqui
atinge o paroxismo.
Veja-se como o recurso, que lembra o capítulo das reticências em Brás Cubas,
reaparece aqui:

A mim mesmo perguntei se ela não estaria destinada a passar dos gelos às flores pela ação daquele
bacharel Osório ... Ponho aqui a reticência que deixei então no meu espírito. 90

E ainda de modo mals sutil neste diálogo entre Aires e o afilhado de D. Carmo, já
recém-casado com a viúva Fidélia e em preparativos de mudança para Lisboa:

-Por que não vem dai, conselheiro? Perguntou-me Tristão.


-Depois de tanta viagem? Sou agora pouco para reconciliar-me com a nossa terra.
Sublinho este nossa porque disse a palavra meio sublinhada; mas ele creio que não a ouviu de
nenhuma espécie. 91

De elemento externo a que o narrador atribui vontade própria e chega a dirigir-se


com o cumprimento de boa noite, o papel passa a configurar-se como suporte e depositário
de manifestações da subjetividade do autor e narrador - suas lembranças, sua memória,
seus sentimentos, suas lágrimas que se fundem à própria tinta:

As lágrimas que verti então -pretas, porque a tinta era preta, -podiam encher este mundo, vale
delas. 92

A escrita é abordada no nível diminuto do contato da caneta com o papel, passando


por considerações microscópicas sobre marca, gramatura e textura e roçando o impalpável
e o imaterial na comparação de urna carta a um "documento psicológico, verdadeira página
da alma", escrito em quatro páginas "do antigo papel chamado de peso, marca Bath" 93 •
Na surpreendente fusão da página com a alma, o papel é o lugar onde sentimentos e
marcas da subjetividade manifestam-se materialmente, o que é reforçado por outras
imagens que aproximam as inquietações do espírito do narrador a elementos gráficos. Tudo

90 Ibidem, p. 1124.
91 Ibidem, p. 1195.
92 Ibidem, p. 1165.
93 Ibidem, p. 1130.

221
que há de etéreo em "documento psicológico, verdadeira página da alma" é imediatamente
concretizado nos qualificativos da página, que tem até uma marca comercial específica.
Partindo das imagens vaporosas, chega-se à reificação total dos sentimentos,
confundidos e às vezes contidos na dimensão mais concreta possível da escrita: lágrimas/
tinta; alma/página; ênfase vocal/sublinhado, dúvida/reticências etc. Essa confusão entre o
pouco palpável e o concreto atinge seu ápice da caracterização do interlocutor como papel,
e vice-versa, nessa narrativa à primeira vista tão delicada e sublime em que tudo,
paradoxalmente, aparece materializado.
No nível do narrado, a expressão dos afetos e dos sentimentos de Aires também se
dá preferenciairnente pelo papel, por meio de cartas que são a instância privilegiada para o
contato entre personagens e canal onde se manifesta o jogo de sedução. Assim, quando
Aires recebe uma carta de Tristão, supõe "que ele cedeu ao desejo de ser lido por mim e de
me ler também. Questão de simpatia, questão de arrastamento.'"'4 Como signos do passado,
das lembranças, elas constituem manifestações concretas e materiais da memória, como se
depreende das constantes menções e cogitações sobre o destino dos guardados:

Já aqui chegou o Tristão. Não o vi ainda; também não tenbo saído de casa estes três dias. Entre
outras cousas, estive a rasgar cartas velhas. As cartas velhas são boas, mas estando eu velho também, e
não tendo a quem deixar as que me restam, o melhor é rasgá-las. Fiquei só com oito ou dez para reler
algum dia e dar-lhes o mesmo fim. Nenbuma delas vale uma só das de Plínio, mas a todas posso aplicar
o que ele escrevia a Apolinário: 'teremos ambos o mesmo gosto, tu em ler o que digo, e eu em dizê-lo'.
Os meus Apolinários estão mortos ou velhos; as Apolinárias também.95

A comparação com Plínio, o Jovem (62-113), um dos mestres do estilo epistolar,


leva o narrador à conclusão de que seus possíveis interlocutores, homens e mulheres, já não
existem ou estão em vias de se extinguir. A não-interlocução não se deve apenas à questão
objetiva da faixa etária em que estão o narrador e as pessoas do seu círculo de relações,
mas à falta de quem compartilhe, no outro pólo da comunicação literária, o mesmo gosto e
o mesmo prazer que o autor tem em escrever. A negação do interlocutor, no entanto, não é
completa. Há na citação da frase a Apolinário um tuteio com o leitor empírico do livro, que
se a esta altura ainda o lê, certamente tem alguma afinidade com o que diz seu autor.
Vale notar que Gaius Plinius Caecilius Secundus, sobrinho de Plínio, o Velho, de
quem emprestou o nome e o epíteto, não só reuniu e publicou suas Epístolas em nove

94 Ibidem, p. ll39.

222
volumes (o mesmo número de romances publicados por Machado, sendo o Memorial o
nono) dedicados à correspondência pessoal, como teve um décimo volume, contendo sua
correspondência com o imperador Trajano, publicado postumamente. As cartas, além de
oferecem uma descrição valiosa da vida e dos costumes no primeiro século da era Cristã,
são também conhecidas pelas marcas indubitáveis de terem sido escritas, reescritas e
revisadas tendo em vista a publicação.
Embora afirme e reafirme a destruição das suas cartas, o que o narrador machadiano
positivamente faz é uma seleção, não descartando a possibilidade de elas, assim como seus
cadernos, um dia virem a público. Ainda que não explique seus critérios, as oito ou dez que
ficaram valem a releitura e são consideradas por ele suficientemente valiosas para justificar
o risco de sobreviverem a sua morte.
As cartas reproduzem, no âmbito interno da ficção, a mesma situação dos diários: a
afirmação da ausência de interlocutores vem acompanhada da sugestão de um possível
interlocutor, Tristão, com quem ele, Aires, sugere relação parecida com aquela de Plínio e
Apolinário, que ele menciona para negar.
Mais à frente, outras cartas encontradas pelo criado de Aires dentro de uma mala
velha são mandadas queimar, e as imagens do papel e da carta finalmente perdem sua
integridade material ao serem consumidos pelo fogo e se transformarem em memória:

Eram cartas, apontamentos, minutas, contas, um inferno de lembranças, que era melhor não se terem
achado. Que perdia eu sem elas? Já não curava delas; provavelmente não me fariam falta. Agora estou
entre estes dous extremos, ou lê-las primeiro, ou queimá-las já. Inclino-me ao segundo. (... ) Resolvo
mandar queimar os papéis, ainda que dê grande mágoa ao José que Imaginou haver achado recordações
grandes e saudades. Poderia dizer-lhe que a gente traz na cabeça outros papéis velhos que não ardem
nunca nem se perdem por malas antigas; não me entenderia. 96

Por meio do fogo, a escrita retoma seu sentido abstrato, simbólico, imaterial e
inapreensível. A destruição do papel não significa a destruição da memória, e por trás de
toda a concretude do papel e da tinta, das cartas e de seus suportes, o texto ressurge como
meio de conhecimento e depositário de sentidos presentes e passados. Isso é
magnificamente explicitado na descrição do envolvimento e da intimidade entre Tristão e
Fidélia, em que o texto, adverbializado, aparece agora como metáfora de aprofundamento e
intimidade:

95 Ibidem, p. 1133.

223
Sabiam tudo. Parece incrível como duas pessoas que se não viram nunca, ou só alguma vez de
passagem e sem maior interesse, parece incrível como agora se conhecem texrualmente e de cor. 97

A reiterada evocação do papel radicaliza a condição da narrativa memorialística,


baseada na divisão ficticia do eu, que ao mesmo tempo é escritor, personagem e leitor do
seu próprio relato. Mais uma vez, a materialidade implicada no textual vem contrastada
pela abstração do de cor (= de coração). A construção da intimidade pelo texto, bem-
sucedida no caso de Tristão e Fidélia, contrastando com o insucesso da relação pessoal de
Aires com a viúva, é a marca desse romance em que os papéis circulam em profusão. É
sobretudo pelas cattas que D. Catmo e Aguiar se relacionam com o afilhado e passam a se
relacionar com Fidélia; é pelas cattas que o conselheiro e a irmã Rita se relacionaram a
vida toda, é pelas cattas que o conselheiro se relacionou com o mundo durante sua vida
ativa, uma função que agora, retirado do serviço diplomático, está transferida para o seu
diário, por meio do qual ele se compõe para si mesmo e para os seus eventuais leitores.
O papel aparece, assim, como expressão material de algo ainda menos palpável, que
é a voz interior de um narrador que a certa altura atribui um pensamento espevitado "a
algum cão que latisse dentro do meu próprio cérebro", numa piada aparentemente cifrada
com Quinca Borba ("Pois eu terei engolido um cão filósofo, e o mérito do discurso será
todo dele.")98 O papel constitui o último lastro material de uma outra questão, existencial,
que fica explicitada neste trecho eloqüente da condição e do drama do narrador-autor:

Hoje, que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo, já que o não
posso fazer com outros; é o meu mai. A índole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A
diplomacia me ensinou a arurar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleràveis que este mundo
nutre para os seus propósitos secretos. A aposentação me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em
que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e, não podendo falar só, escrevo.99

Desta vez, o duelo não se dá entre personagens, nem entre o narrador e um


interlocutor explicitado no processo da narração, mas no interior de um narrador dividido
entre o amor por Fidélia e a impossibilidade da realização desse amor - "I cannot give

%Ibidem, pp. 1160-1161.


97 Ibidem, p. 1182, grifo meu.
98 Ibidem, p. 1153.
99 Ibidem, pp. 1168-9.

224
what men calllove"- e que faz disso o assunto principal do diálogo que entabula consigo
mesmo e resulta no seu diário íntimo, manifestação em papel do seu dilaceramento e de sua
solidão.
Enquanto em Brás Cubas e Dom Casmurro os narradores dirigem-se explicitamente
a diversos interlocutores, aínda que sejam apenas os cínco leitores calculados por Brás
Cubas ou os leitores de um outro livro projetado por Bento Santiago, o Memorial
pressupõe a identidade entre quem escreve e quem lê o próprio relato, uma identidade que
assim como a de Tristão e Fidélia é construída textualmente.
Nas páginas finais de sua vasta produção, não há de ser casual o fato de a relação
amorosa bem-sucedida se construír textualmente e de cor. E as palavras de espanto do
velho Aires acerca da relação de íntimidade de duas pessoas que mal se viram também hão
de servir para definir a relação entre escritor e leitor proposta por Machado de Assis:
desconhecidos íntimos, intimamente desconhecidos, cuja relação inscreve-se no texto.

A recepção do Memorial

Esta tem por flill dizer-lhe que ainda não morri, tanto que lhe remeto um livro novo. Chamei-lhe
Memorial de Aires. Mas este livro novo é deveras o último. Agora já não tenho forças nem disposição
para me sentar e começar outro; estou velho e acabado. Mande-me notícias suas, meu amigo (...) 100

Lá vai o meu Memorial de Aires. Você me dirá o que lhe parece. Insisto em dizer que é o meu
último livro; além de fraco e enfermo, vou adiantado em anos, entrei na casa dos setenta, meu querido
amigo.( ... ) Uma vez que o livro não desagradou, basta como ponto flnal. 101

Leia-me, e diga se não é lamparina de madrugada. O Mário, que escreveu um artigo no Jornal do
Comércio, diz que não é. Creio nele e na afeição que me tem; mas quero também a sua opinião. Como
já lhe disse este livro é o último; já não tenho forças para me sentar à mesa e começar outro. 102

Nos trechos acima, respectivamente tirados de cartas a Oliveira Lima, Joaquim


Nabuco e Magalhães de Azeredo, amigos a quem Machado enviara exemplares do
Memorial, ainda uma vez o escritor mostra-se preocupado com a opinião e a recepção de
sua obra. A insistência na afirmação de que o Memorial significava a conclusão da obra
romanesca explica-se pelo fato de Esaú e Jacó ter sido origínalmente pensado como fecho

100 Carta de Machado de Assis a Oliveira Lima, 1.8.1908, in Correspondência, edição Jackson, pp. 432-
433.
10! Carta de Machado de Assis a Joaquim Nabuco, 1.8.1908, in Correspondência, edição Jacksou, p. 137.
!02 Carta de Machado de Assis a Magalhães de Azeredo, apudR. Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, p. 344.

225
da obra, a ponto de ter sido nomeado Último em contrato com o editor Gamier. O título foi
modificado apenas depois de o livro ter sido concluído e pouco antes de sua publicaçãol 03,
talvez porque Machado tivesse vislumbrado a possibilidade de escrever ainda mais um
título, que resultaria no Memorial. A possibilidade de um novo título é levantada de modo
muíto oblíquo em outubro de 1904, em carta de agradecimento a Mário de Alencar pela sua
resenha de Esaú e Jacó:

Ontem li e reli o seu artigo acerca de Esaú e Jacó. Pela nossa conversação particular e pela sua
cartinha de 26 sabia já a impressão que lhe deu o meu último livro; o artigo publicado no Jornal do
Commercío veio mostrar que a sua boa amizade não me havia dito tudo. Creio na sinceridade da
impressão, por mais que ela esteja contada em termos altos e superiores ao meu esforço. Vi que
penetrou o sentido daquelas páginas, que as leu com amor e simpatia, e desta última parte nasceu dizer
tanta cousa bela, mais ainda para quem já vai em pleno inverno. Ainda bem que lhe não desmereci do
que sentia antes. -Se houvesse de compor um livro novo, não me esqueceria esta fortuna de amigo,
que aliás cá fica no coração. I 04

Quatro anos mais tarde, Machado de fato não esqueceu a promessa feita ao amigo,
único a receber as provas do livro novo, que era o Memorial, num gesto pouco usual para
um escritor que ao longo de toda a vida surpreendeu até os amigos mais íntimos com o
aparecimento de seus livros. Em carta, o filho de José de Alencar declarou ser sua
convicção "que o livro é bom demais para o meio, ainda meio bárbaro, incapaz de sentir a
simplicidade divina." 105 Na resposta, datada de dezembro de 1907, Machado dá a entender
que esperou a apreciação e as observações do amigo antes de enviar as provas ao editor:

Repito o que lhe disse verbalmente, meu querido Mario, creio que esse será o meu último livro;
faltam-me forças e olhos otaros; além disso o tempo é escasso e o trabalho é lento. Vou devolver as
provas ao editor e aguardar a publicação do meu Memorial de Aires. 106

A repercussão na imprensa foi relativamente ampla e até os últimos dias de sua vida
Machado se mostrou interessado na recepção de sua obra. No fmal de julho de 1908, ao
receber em correspondência de Mário de Alencar um artigo de Alcindo Guanabara sobre o

103 Em rasCWJho de carta ao editor Garnier datada de 9.ll.l903, Machado refere-se às provas corrigidas
de Último, fazendo recomendações sobre a divisão dos capítulos, entrelinhamento, papel etc. Cf. Exposição
Machado de Assis, p. 205.
104 Carta de Machado de Assis a Mário de Alencar datada de 3.10.1904, in Correspondência, edição
Jackson, pp. 246-247, grifo meu.
105 Carta de Mário de Alencar a Machado de Assis datada de 21.7.1908, apudR. Magalhães Júnior, op.
cit., vol. 4, p. 338.
106 Carta de Machado de Assis a Mario de Alencar, Rio, 22.12.1907, in OC, vol. 3, p. 1084.

226
Memorial, além de informação de que o jornalista Félix Pacheco lera com entusiasmo o
livro e planejava um artigo sobre toda a obra de Machado de Assis, e que João Luzo, um
dos redatores do Jornal também ficara bem impressionado com o Memorial, Machado
respondeu dois dias mais tarde:

Muito obrigado pelas boas novas. Vou ler o artigo do Alcindo e escrevo esta para não demorar a
resposta. Folgo de saber o que o Félix e o João Luzo lhe disseram, e ainda bem que o livro agrada.
Como é definitivamente o meu último, não quisera o declínio. O seu cuidado, porém, mandando uma
boa palavra a esta solidão é um realce mais e fala ao coração. 107

O artigo de Alcindo Guanabara, em linhas gerais muito elogioso ao livro, chama


atenção para o realismo e o naturalismo da prosa em contraposição com as tramas
intricadas geralmente associadas ao romance mais usual:

Não se procure nos romances de Macbado de Assis tramas intrincadas, nem paixões violentas: não
há neles nada mais que a vida, não a vida excepcional. que comporta tragédias, mas a vida ordinária, a
vida do comum dos homens, a vida de todos os dias, a vida banal... Referir-nos, dessa forma de
memórias, que é tão sua, em cerca de 200 páginas, episódios vulgares da vida ordinária e fazê-lo de
modo a prender a atenção e a interessar vivamente o leitor, já só por si bastaria para lhe salientar o
mérito. Mas não é só isso o que se encontra na sua obra. O episódio, a trama, a ficção, aí não é senão
mero pretexto para as observações simples e exatas, para o conceito original, para um humorismo à
inglesa, para a manifestação de um certo ceticismo, mordaz e antável, que traí um estado d' aima eivado
de um indiferentismo que se traduz, afinal, numa bondade infinita, que tudo explica e tudo perdoa.1°8

Mais de três décadas depois de Ressurreição e A Mão e a Luva, permanecia o


estranhamente em relação à frieza e à contenção sentimental e dramática da obra, ainda que
essas características desta vez sejam objeto de elogio.
A mesma estranheza também foi expressa por José Verissimo:

O Memorial de Aires tem, além dos outros méritos próprios do autor, a originalidade da forma do
romance. Estou que ainda não houve nenhum, com essa forma de diário, objetivo. Werther e os de seu
gênero são autobiografias, de composição relativamente fácil. Mas um diário de anotações da vida
alheia com a naturalidade de observações e comentários íntimos, com o interesse crescente de um
romance, e ao cabo um romance, é caso úoico.I09

107 Carta de Macbado de Assis a Mário de Alencar datada de 1.8.1908, in Correspondência, edição
Jackson,p.312.
!08 Pangloss, [pseudônimo de Alcindo Guanabara], A Imprensa, 29.7 .1908, p. 2, apud R. Magalhães
Júoior, op. cit., vol. 4, p. 341.
109 Carta de José Verissimo a Macbado, Rio, 16.12.1907, edição Jackson, p. 275.

227
Em 24 de julho de 1908 Machado recebia carta emocionada de Afrânio Peixoto
endossando as opiniões de Mário de Alencar sobre o Memorial e sobre Machado à qual
respondeu no mesmo dia, igualmente emocionado:

Deixe-me dizer-lhe: ao fim de uma vida de trabalho e certo amor da arte que sempre me animou,
vale muito sentir que encontro eco em espíritos ponderados e cultos. Vale por paga do esforço, e paga
rara. Receba com estas linhas o meu agradecimento ( ... )110

Três semanas antes da morte, Machado escrevia algo muito parecido a Salvador de
Mendonça depois de ler seu artigo sobre o Memorial de Aires escrito como uma carta
aberta e publicado no Jornal do Commercio 111 • Nele, o amigo de longa data que
acompanhara toda a carreira do escritor em meio século de amizade, considerava ser esta
sua obra-prima, chamava a atenção para a naturalidade da prosa, "selo da verdadeira obra
de arte", e rebatia a crítica que ouvira de alguém sobre a carência de enredo do livro: "eu
lhe respondi que o mister dos velhos não é fazer enredos, mas desenredà-los" 112 •
No dia seguinte, 7 de setembro de 1908, respondia-lhe Machado em
correspondência particular:
Chegando ao fim da carreira, é doce que a voz que me alente seja a mesma voz antiga que nem a
morte nem a vida fizeram calar.

Apesar da compreensão de José Veríssimo e da defesa de Salvador de Mendonça,


no mesmo dia da morte do escritor em 29 de setembro de 1908, o Diário Popular noticiava
o lançamento do novo livro do "festejado romancista brasileiro", observando que "na sua
expressão rigorosa não se trata de um romance nem de uma novella em que se descrevem
lances dramáticos e sentimentaes" mas de "uns interessantes episódios, observados com a
costumada nitidez". 113
No dia da morte do escritor, sua obra causava perplexidade, desafiando e
desestabilizando as certezas dos seus interlocutores, colocados diante do enigma de ser
romance, novela ou o quê aquilo que Machado lhes oferecia.
A morte, contudo, abria o pasto à crítica futura.

li O Carta de Machado de Assis a Afrânio Peixoto datada de 24.7.1908, in "Correspondência", edição


Jackson. p. 431.
111 O artigo saiu em 1.9.1908.
!12 Salvador de Mendonça, "Memorial de Aires", Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 6.9.1908, apud R.
Magalhães Júnior, op. cit., vol. 4, pp. 353-354.
113 Diário Popular, 29.9.1908, p. I.

228
Considerações finais

Primeiramente, uma consideração biográfica. Como procurei mostrar, há por parte


de Machado um interesse constante- e não seria exagero falar em tentativa de controle-
sobre a recepção de sua obra, o que se expressa de maneira mais visível na forma de
advertências, prefácios e notas ao leitor, e também na crítica a outros escritores e na
correspondência com amígos e com o edítor Garníer. Apesar dísso, há uma idéia muito
dífundída de uma espécie de indiferentismo de Machado em relação ao público leitor, da
qual o trecho que segue, de autoria de R. Magalhães Júnior, é exemplar:

O seu êxito não fôra avassalador, como o daqueles [Macedo, Alencar, Gonçalves Dias, Castro
Alves, Aluisio Azevedo, Júlio Ribeiro, Raimundo Correa e Olavo Bilac]. Era um êxito discreto, sem
galas de uma popularidade capaz de suscitar entusiasmos e mover rápidos os prelos em tiragens
sucessivas. Em vez de tentar ampliá-lo cort~ando o público, adotando as modas literárias do dia,
Joaquim Maria, ao contrário, timbrava em não fazer concessões, em tornar seus livros cada vez menos
populares e destinados, decerto, a grupo cada vez mais limitado de leitores. 114

Ainda que algumas dessas observações sejam aplicáveis à obra da maturidade,


parece-me problemática a generalização da idéia muito difundida de que Machado de Assis
não tenha feito a menor concessão ao gosto do público, expressa no começo do século por
José Veríssimo ("A este [o público] pode afirmar-se que não fez em toda a sua obra a
menor concessão) 115 e sustentada, entre outros, por Magalhães Júnior que também chegou a
afirmar que "pouco se lhe dá de que, em lugar do aplauso das multidões, do interesse das
turbas que enxameiam na rua do Ouvidor (... ) tenha apenas a admiração de um magote
escasso de pessoas".
Se não houve concessão no sentido de condescendência, violação de convicções
pessoais ou barateamento de idéias, parece-me inegável o fato de que Machado de Assis
concedeu ao gosto e expectativa do público leitor que ele imaginava e/ou desejava para sua
obra e que essa atenção e sensibilidade ao público seja um dos pilares da grandiosidade de
sua obra. Isso fica atestado não só pela publicação dos seus primeiros romances na
imprensa mas também pelas características temáticas e narrativas de obras como A Mão e a

114 R. Magalhães Junior, Machado de Assis Desconhecido, 3a. edição, Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1957, pp. 295-296.
115 José Verissimo, História da Literatura Brasileira. op. cit., p. 287.

229
Luva, Helena e laiá Garcia que, por mais que se debatam contra e procurem frustrar
expectativas, são narrativas construídas em torno das convenções do romance popular e das
narrativas sentimentais oitocentistas. Mesmo os livros da segunda fase trabalham
largamente com procedimentos das narrativas sentimentais voltadas para públicos
populares, ainda que seja para aviltá-los, tornando-os alvo de paródia ou de chacota.
Embora seus livros, a partir de Brás Cubas, de fato se tornem cada vez menos
palatáveis a um público popular e manifestamente se destinem a um grupo cada vez menor
de leitores, parece-me haver urna dose razoável de mistificação em torno dos motivos que
levaram o escritor a abandonar um determinado modelo de romance e perseguir outro.
Entre esses motivos destacam-se a doença e o conseqüente retiro a Nova Friburgo, que
teriam colocado o escritor diante da perspectiva da morte, e a teoria da crise dos 40 anos.
Sem desconsiderar os motivos biográficos tradicionalmente associados à passagem da
primeira para a segunda fase, a tomada de consciência da escassez de leitores, problema
que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator mais
convincente para ajudar a explicar a guinada que o escritor imprime a sua carreira.
De Brás Cubas ao Memorial, nota-se um aprofundamento da solidão e do
isolamento dos narradores e/ou protagonistas, sempre às voltas com as possibilidades de
compartilhamento do texto. Por meio de narradores cada vez mais voltados para si mesmo
e descrentes da possibilidade de se entabular um diálogo que não esteja baseado na indução
ao engano e na traição da confiança do interlocutor, o escritor Machado de Assis parece
voltar-se ao público corno quem se dirige a urna platéia que não o entende, um leitorado
incapaz de compreender e interpretar o sentido da história como os próprios protagonistas
dos romances que, principalmente a partir de Dom Casmurro, tornam-se leitores/intérpretes
equivocados em relação a suas próprias histórias. Esses equívocos e enganos, por sua vez,
estão metaforizados pelos enredos calcados na traição, corno observa John Gledson em sua
originalíssima interpretação do Memorial de Aires.ll6
O critico acredita que a singularidade de Machado de Assis na história do romance
oitocentista está no fato de que os escritores oitocentistas "por mais que manifestem horror
à realidade, escrevem, em última instãncia, com um senso de comunidade e nacionalidade",

116 Cf. John Gledson, Machado de Assis:ficção e história, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

230
ao passado que Machado '1amais assumiu a existência de ambos". 117 Dostoiévski, por
exemplo, não hesita em se referir a seus protagonistas como "nosso herói", expressão que
pressupõe um chão comum, a que Machado raramente se refere ao longo de sua obra, a não
ser de forma jocosa em Quincas Borba. Esse senso de comunidade e nacionalidade, traido
pelo uso da primeira pessoa do plural, existe e está em ação nos primeiros romances até
Helena, mais vai sendo minado a partir de Iaiá Garcia e desaparece por completo a partir
das Memórias Póstumas, em que narrador e interlocutor habitam planos incomunicáveis e
Brás Cubas fecha o relato celebrando a inexistência de legatários para o seu legado. A
figuração cada vez mais nitida da ausência de interlocução atinge o paroxismo no
Memorial de Aires, em que o narrador conversa com o cão filósofo instalado em seu
próprio cérebro, apontando para a precariedade de comunicação que é
humana/filosófica/existencial e também conjuntural de um pais - para onde o Aires
retoma depois de décadas de exílio - desprovido de acordos e de chão comum para a
entabulação de diálogos.
Paradoxalmente, é a construção ficcional desse isolamento do narrador em relação
às instáncias de recepção e também em relação a si mesmo, afirmando a precariedade e
instabilidade de toda comunicação assim como de qualquer forma de conhecimento, que
permitem que os cinco últimos romances de Machado de Assis atravessem seu século de
existência mantendo forte capacidade comunicativa e ainda hoje possam ser lidos com
muito poucos travos. O fato de a esta altura já terem resistido a todo o século 20 sem exigir
do leitor lentes grossas para corrigir a crescente distáncia temporal em relação ao mundo ali
representado é a grande prova de sua espantosa originalidade e atualidade.
Roberto Schwarz já escreveu que a obra de Machado sobrevive à passagem do
tempo "porque as circunstáncias que ela cala e frente às quais compôs a sua voz e
personagem continuam de pé" e "a despeito de toda a mudança havida, uma parte
substancial daqueles termos de dominação permanece em vigor cento e dez anos depois,
com o sentimento de normalidade correlato, o que talvez explique a obnubilação coletiva
dos leitores, que o romance machadiano, mais atual e oblíquo do que nunca, continua a

1!7 John Gledson. op.cit., p. 255.

231
derrotar." 118 Para além do feito de conseguir representar de maneira complexa um universo
social "em terceira pessoa", digamos assim, o que eu procurei mostrar é que parte
significativa da atualidade e do interesse que o romance machadiano ainda desperta em
leitores e críticos e uma das razões de sobrevivência e vigência desses textos têm a ver
também com a precariedade que ele postula para sua relação com as instâncias possíveis de
interlocução. O leitor contemporâneo - e não só o brasileiro - não tem dificuldade em
reconhecer-se no sujeito esfacelado, dissoluto, impotente para os grandes projetos e
acordos, subjugado pelo improviso dos arranjos feitos ao sabor dos interesses
momentâneos.
São os abismos intransponíveis da própria conformação social do pais, onde os
interesses públicos e coletivos parecem estar em constante processo de dissolução, que
informam a configuração dos leitores projetados pelo texto e passam a definír também a
relação entre os narradores e seus interlocutores, baseada em algo como um individualismo
acanalhado, seguindo ainda as pegadas da critica de Roberto Schwarz. A obra de Machado,
a meu ver, é também um testemunho dessa corrosão, que está ali flagrada e configurada no
leitor cada vez mais mínimo, mais esfacelado e menos íntegro.
Essa tematização da interlocução, sendo um aspecto fundamental do romance
machadiano, como procurei demonstrar ao longo deste trabalho, responde também em
grande parte pela modernídade dos procedimentos do romance, que parte da pressuposição
da virtual inexistência de interlocução e aponta para o caráter precário e incerto da
comunicação literária. Sob esse aspecto, no Memorial de Aires Machado ainda uma vez
vira o clichê do avesso ao apresentar a morte não como empecilho à construção da obra,
mas como empecilho à sua destruição, eventualidade que a constituirá como peça literária.

!18 Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, São Paulo, Duas
Cidades, 1990, pp. 11-12.

232
Hélio de Seixas Guimarães

VOLUMEll

Os leitores de Machado de Assis


O romance macbadiano e o público de literatura no século 19

Tese apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Teoria e
História Literária para obtenção
parcial do Título de Doutor em
Teoria e História Literária na
área de Literatura Brasileira
Orientadora: Profa. Dra. Berta
Waldman

IEL
UNICAMP
2001
ANEXO

Resenhas e comentários sobre os romances machadianos

Este anexo integra a tese Os leitores de Machado de Assis-


o romance machadiano e o público de literatura no século 19,
apresentada por Hélio de Seixas Guimarães ao Departamento
de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem,
da Universidade Estadual de Campinas, como requisito
para obtenção do título de Doutor em Teoria e História Literária,
na área de Literatura Brasileira, em setembro de 200 1.
Este anexo contém resenhas e comentários publicados na imprensa a respeito dos
romances de Machado de Assis à época dos seus aparecimentos e que serviram de subsídio
para a execução desta tese. Se não estão aqui todos os textos consagrados à produção
romanesca do escritor, seguramente estão aqui quase todos, levantados a partir de referências
de J. Galante de Sousa e de R Magalhães Júnior e também da pesquisa direta nos principais
periódicos dos períodos pesquisados na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, na Biblioteca
de José Mindlin, em São Paulo, além da Biblioteca da Universidade de Berkeley e da
Universidade de Stanford, ambas na Califórnia. Nesta última encontrei a coleção completa de
O Novo Mundo, poblicado por José Carlos Rodrigues em Nova Yorkentre 1870 e 1879, que
deu início à coleção destes artigos consagrados à obra de Machado.
A transcrição dos artigos procurou ser a mais fiel possível ao texto original, mantendo-
se a grafia original, os erros de tipografia e os espaçamentos. No caso de erros que julguei
dificultar a compreensão ou induzir à confusão, optei por indicá-los com um [sic] ou com
notas explicativas. A manutenção da grafia original, embora dificulte a leitura, pode oferecer
subsídios a eventuais estudos sobre a grafia do período ou pelo menos serve para indicar a
falta de padronização ortográfica nas principais publicações brasileiras entre 1872 e 1908.
A idéia inícial era reunir cópias fotográficas dos artigos, o que se mostrou inviável
devido ao mau estado de conservação de muitos deles, que dificultava ou tornava impossível a
leitura. Dai a decisão de digitá-los, tarefa para a qual contei com a colaboração preciosa de
Alcione Abramo, que não só transcreveu a maioria dos textos como é responsável pela
organização de grande parte deste anexo, sugerindo notas e observações e procurando tipos
que se assemelhassem à composição tipográfica original. Agradeço à Alcione pela dedicação,
capricho e rigor com que realizou este trabalho.
Também agradeço a Cristina Antunes e José Mindlin, da Biblioteca José Mindlin, a
Maria Angélica Brandão Varella, Rejaoe Briglia, Cláudio de Carvalho Xavier, Joaquim
Marçal Ferteira de Andrade, da Divisão de Iconografia, e a Anna Naldi, Eliane Cunha e Eliane
Perez, da Divisão de Informação Documental da Biblioteca Nacional pela colaboração e
agilização do trabalho.
Apesar dos esforços de decifração e da checagem dos microfilmes e originais nos
locais de pesquisa, alguns trechos estão mutilados ou ilegíveis, o que vem indicado por
[ilegível] ou [mutilado], conforme o caso.

235
Os textos estão organizados de acordo com os romances a que se referem e em ordem
cronológica de publicação.

236
SOBRE RESSURREIÇÃO

237
A Reforma, Rio de Janeiro, 24,4,!872, p,L 1

Romance. -O distincto escriptor fluminense Machado de Assis acaba de publicar um


romance que se intitula Resurreição.
Poeta de grande merecimento e prosador elegante, o Sr. Machado de Assis cada vez
conquista novos titules entre os escriptores nacionaes.
Daremos opportunamente mais larga noticia do romance com que enriqueceu as letras
patrias o illustre poeta das Phalenas:

1
O autor da nota, segundo R. Magalhães Júnior, provavelmente é Joaquim Serra, então em evidência com o
sucesso da peça O Remorso Vivo, escrita em co-autoria com Furtado Coelho.

238
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1.5.1872, p. 2.

A RESURREIÇÃO.
DE MACHADO DE ASSIS.

Estylo facil e correcto, vivacidade de colorido, sobriedade de descripções, caracteres


bem sustentados recommendão logo este livro a apreciação do critico imparcial.
Em sua leirura vai-se suave e agradavelmente caminhando de episodio em episodio e
com verdadeiro interesse seguindo o estudo que o autor fez de dous typos ;1 o Dr. Felix e
Livia.
Entretanto cumpre advertir : a idéa fundamental do romance não é original.
Ella já foi desenvolvida pelo exímio escriptor Victor Cherbuliez2 no seu bellissimo
romance Pau/e Meré.
Há situações identicas, o desenlace é quasi o mesmo ; os dous caracteres principaes
muito chegados aos do autor do Conde Kostia : a mesma duvida no coração do homem, a
mesma altivez de sentimentos, longanimidade e afmal firmeza de resolução em Livia e em
Paula.
Em nada, porém, fica diminuido o alto conceito em que collocamos a Resurreição;
julgamos tão sómente responder assim ao appello que fez o Sr. Machado de Assis na sua leal e
concisa introdução.

3
G. PLANCHE.

2
O romancista e crítico literário de origem suíça Victor Cberbuliez (1829-1899), foi colaborador da Revue
des Deus Mondes. Conde .Kostia (1863) e Paute Mére (1864) são duas de suas obras mais conhecidas, mas
não localizei traduções desses romances para o portugUês.
3
G de Gustave.

239
O Mosquito, Rio de Janeiro, 4.5.1872, p. 3. 4

RESURREIÇÃO
Romance de Machado de Assis.- EDITOR GARNIER

Corrida como anda a naturalidade da maior parte do que por ahi se escreve, a apparição
do romance de Machado de Assis póde servir de modelo a uma choram.igas, espíritos ôcos do
bom senso e da grammatica, que andam a asoinar os ouvidos dos poucos que ainda os lêem,
com as suas invocações á lua, ao sol e ás estrellas.
Não é raro ler-se um livro com a indifferença com que se passa os olhos pela ultima
pastoral do ultimo dos bispos ; ora se os bispos só escrevem para serem entendidos pelos
bispos, os escriptores sidereos e mellifl_uos deviam ter os seus editores na lua, á qual teem por
costume dirigir-se.
Não faliam a linguagem dos homens e chamam ao seculo « utilitario » e outros nomes
tão feios como este, não querendo comprehender que n'este mundo sublunar ha bons e maus,
virtudes e vicias e que aos espiritos superiores cabe estudar como philosophos a sociedade em
que convivem, esquecendo-se do seu eu, para concorrer pela lição moral para o
aperfeiçoamento de todos.
O romance assim encarado offerece leitura despretenciosa e sempre util ; querem-se
livros onde se encontre a verdade dos caracteres, porque d'esta fórma o leitor vê-se reflectido
no romance e insensivelmente entra a pensar nas fraquezas que tem em si.
Sem recorrer, pois, ás exagerações de uma phantasia mais ou menos extravagante, sem
precisar de fazer uso da erudição , chamada de livreiro, nem tão pouco cançando o leitor com
divagações extensas, ou dialogas que mais parecem discursos do que conversas, conseguiu
Machado de Assis desenhar com traços indeleveis o typo da irresolução e da dyvida na
personagem do dr. Felix, a mulher apaixonada e digna em Livia, o amor e a abnegação em
Rachei e Menezes.

4
O artigo não traz assinatura, mas escreviam no jornal Augusto de Castro e Ferreira de
AraUjo, entre outros.

240
Que admiravel estudo não indica a personificação d'aquelles caracteres? Vendo-os tão
verdadeiros, quem haverá que se não recorde de um ou outro seu conhecido das Larangeiras,
de Botafogo ou da rua do Ouvidor? Quantos não se verão reflectidos ao dr Felix?
O Sr. Machado de Assis, talento robusto, auxiliado por muito estudo e uma modestia que
só é condão de verdadeiro merito, escreve com muita correcção de linguagem, é sobrio de
figuras, o seu dialogo é natural e incisivo e finalmente o seu romance sem situações
imprevistas consegue demorar a attenção do leitor, sem que este dê por perdidas as trez ou
quatro horas que lhe consagra.
Os nossos parabens ao Sr Garnier a quem auguramos uma 2a edição do livro.

241
Correio do Brazil, Rio de Janeiro, 12.5.1872, p.l. 5

FOLHETIM

SEM TITULO

Rio, 11 de abril de 1872.

Cumpro uma promessa voltando a tratar do bello romance do Sr. Machado de Assis-
Resurreição.
6
Além deste livro e dos ldylios, do Dr. Caetano Filgueiras , appareceu tambem um outro
7
notavel romance - Lagrimas do coração, - fructo da elegante penna de Sylvio Dinarte
escriptor que vai, de dia em dia, ganhando uma bem merecida e legitima fama.
Meu intento neste lagar é dizer muito pela ramaii e sem o menor vislumbre de fatuidade
as impressões que senti ao terminar a leitura destes livros, que a imprensa recebeu com agrado
e que o publico julgará, como juiz severo que é.
Críticas não as farei eu, nem me abalançarei nunca a tomar ares de pedagogo, ao
expender minhas opiniões individuaes em assumptos literarios porque, mercê de Deus, estou
de perfeito accordo com a minha consciencia.
A critica é uma causa espinhosa e difficilima; sei que não digo uma novidade, mas
ninguem negará de certo que bem poucos comprehendem a soberania da missão do critico,
graças a um certo sentimento que nos faz muitas vezes transviar a razão, o qual sentimento
chama-se vaidade.
Eu por mim confesso, mas sem esses tolos arrebiques de falsa modestia, que não sei
fazer a critica exacta e rigororsa de uma obra litteraria, senão que apenas me atrevo a esboçar

5
O artigo, embora não assinado, é de autoria do poeta e dramaturgo Carlos Ferreira, então com 26 anos e
que acabara de lançar o livro de versosAlciones. Ferreira. nascido no Rio Grande do Sul em 1844 ou 1846,
foi pensionista de bolsa particular concedida a ele por D. Pedro II.
6
Caetano Filgueiras (1830-1882), poeta, romancista, teatrólogo, jornalista, advogado, presidente da
província de Goiás, deputado provincial, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em 1864
escreveu o prefácio para Crisálidas, de Machado de Assis. Entre suas obras estão Arremedos de Poesia
p851) eldilios (1872)..
Pseudônimo de Alfredo d'Esgragnolle Taunay, o Visconde de Taunay.

242
uma simples impressão de leitura. Criticar! ser imparcial, independente e sensato para
investigar a verdade e dizel-a com urbanidade, que cabedal immenso de instrução se torna
necessario para um tal commetimento!
Nada custa, de certo, vir á imprensa um critico, a fazer estylo mais ou menos pomposo e
sybilino á custa de um autor qualquer, sem se dar ao trabalho de dizer qual é a verdade e onde
está o erro, quando não se lembra de sustentar que aquella é este e este é aquella . Pois não é
certo que vemos ahi todos os dias confundidos o erro com a verdade, por espirito de orgulho
que se compraz em fazer periodos torneados, ou por insuflação da malevolencia que quer fazer
estylo bordalengo?
A questão é toda de sympathia ou de antipathia ; ou unta-se uma grande porção de mel
aos labias do escriptor, ou dá-se-lhe uma bordoada na cabeça, consoante o humor variavel do
intitulado critico.
Isto é prejudicial sobre ser escandaloso. Eu vejo ahi todos os dias atassalhadas as
grandes reputações sem que possa certificar-me da verdadeira causa que origina taes odios, a
menos que não tenham elles explicação nesse abominavel sentimento da inveja.
José de Alencar, o nosso eminente e laborioso romancista, o fecundo poeta do Guarany,
não tem tido porventura detratores cujo mtico intento é embaraçar-lhe o vôo, emquanto que o
poeta, conscio de sua missão, repelle os impornmos e trabalha ?
Castro Alves, aquelle vertiginoso poeta dos sonhos da liberdade, cabeça fadada para
accommodar em si todos os reflexos da gloria, não foi aqui nesta mesma côrte vilipendiado
um dia?
Foi. Chamaram-no louco em um folhetim, e compararam-no não sei a que idiotas que
por ahi andam pelo simples facto de o ter o Sr. Alencar apresentado ao publico, na mesma
occasião em que disse ser o Sr. Machado de Assis o nosso primeiro critico, o que mais
augmentou o vozerio dos invejosos.
Eis ahi como se pretende animar e como se respeita a quem trabalha, como se vai aos
poucos, e arguciosamente, intrigando as vocações legitimas, para dar lugar aos ineptos
invejosos, os chamados gansos do capitolio.
A critica, a verdadeira critica é uma sciencia que tem segredos subtilissimos, e que exige
dos seus apostolos primeiro que tudo serenidade de animo e o gosto formado por um estudo
profundo e consciencioso.

243
Ainda assim não é difficil ver nos maiores criticas as mais completas discordancias com
referencia a um prosador ou a um poeta, e não raro se nota quantas vezes a imparcialidade
desapparece para dar lagar a um mesquinho sentimento de vingança.
Veillot e Lerm.inier serão absolutamente imparciais tratando de V. Hugo como poeta?
Estarão estes dons criticas de accordo com Planche, Saint~Beuve, e outros? Certo que não ;
basta um pouco de fel da politica para tisnar uma reputaÇão litteraria.
Um conservador trata de destruir um republicano, e quando não tem onde atacai-o ataca-
o em seus meritos de escriptor, com a calu:mnia e com a mordacidade de uma critica toda de
prevenção e de fel.
Tudo isto veio a pello por querer eu dizer que não me sinto com sufficiencia para me
revestir com a soberania da critica, e nem pretendo para a minha opinião o imponente
caracteristico de dogma.
Deixo a outros a grande tarefa capaz de assoberbar-me ; prefiro isto a tomal-a sobre
meus hombros com uma requebrada faceirice de modestia , que confessa a propria ignorancia,
quando lhe está a consciencia a assoprar o contrario da confissão.
O romance Resurreição appareceu na semana passada, e a imprensa foi unanime em
saudações dignas do merecimento real da obra e do nome sympatbico do seu autor.
Machado de Assis goza de uma bella reputação litteraria no Brazil e em Portugal. Tem-
se dito, e eu não sei até que ponto é verdade, que o autor das Chrysalidas é um escriptor mais
portuguez que brazileiro. Sei só que o acho um estylista de grande força, mas de uma
imaginação pouco impetuosa e ardente.
O caracteristico principal dos talentos americanos, e com especialidade brazileiros, é a
impetuosidade de inspiração. Desde Alvares de Azevedo até Castro Alves, todas as notaveis
vocações poeticas desta terra tem exhuberantemente demonstrado esta verdade sendo que se
attribue uma tal circunstancia á grandiosa magestade da natureza do nosso paiz.
Em Alencar, Francisco Octaviano8, Pedro Luiz9, Varella10 e tantos outros, nota-se o quer
que é de certo ardor da imaginação, de um apaixonado sentimentallismo, que me parece ser
um dos predicados principaes dos filhos desta bella porção da America.

8
Francisco Otaviano (1825-1884). Advogado, jornalista, político, um dos primeiros tradutores brasileiros
de Shakespeare, traduziu Romeu e Julieta em 1843. Traduziu também versos de Byron na mocidade.
Colaborou na Sentinela da Monarquia, na Gazeta Qficial, no Jornal do Comércio e no Correio Mercantil.

244
O Sr. Machado de Assis, cujo talento incontestavel para as maviosidades do lyrismo e
para aperfeiçoamentos de estylo ninguem desconhecerá, é entretanto, julgo eu, dotado de uma
imaginação fria e positiva que, por assim dizer, embaraça-lhe a penna na descripção das
paixões violentas e deixa incompletos os quadros das grandes tempestades do coração. Nota-
se isto no seu bello romance ResUJ'reição ; pelo menos, notei-o eu de mim para mim.
Quer me parecer que a singeleza em litteratura não importa o anniquilamento completo
da inspiração alada e vertiginosa, sempre que é preciso photographar wn coração que
estremece á tempestade dos sentimentos.
Descrever wna luta de corações e de idéias onde o amor faz seus estragos ; tratar de
perto as indoles diversas, os pensamentos oppostos e os temperamentos variadíssimos onde se
agitam as febres todas do mal e todos os ridentes sonhos do bem ; tratar disto tudo em uma só
linguagem, em um só tom, debaixo das vistas constantes de uma orthodox.ia geometrica e fria,
parece-me não ser em realidade o quanto se deve exigir do talento para escrever os dramas
mysteriosos do coração humano.
O romance não é só uma simples narrativa, é alguma causa que deve primeiro que tudo
fallar á alma, e deixar nella uma impressão profunda da verdade da these que se propoz
desenvolver.
Porventura a Resurreição satisfaz plenamente essa anciedade da alma que procura no
livro a impressão sensibilisadora que lhe deve ser causada pelo desenlace de uma secção? Eu
por mim vacillo na resposta e digo-o, com toda a franqueza de que sou capaz, por isso mesmo
que voto ao Sr. M. de Assis a mais sincera admiração e o mais alto apreço.
Diz wn grande critico ftancez que ha duas especies de litteratura: uma toda de cabeça,
toda de coração a outra. Dahi duas especies de litteratos : uns que se limitam a produzir
sómente com o auxilio de reminiscencias, descrevendo paixões que não sentem e julgando das
lutas do coração pelo que estudaram nos livros ; outros que só produzem exclusivamente sob o
dominio da sua indole natural, consultando a todo o momento a propria alma, á feição do
genio e conforme lhes vai dictando o sentimento proprio.

9
Nas palavras do próprio Machado de Assis, em obituário publicado em 5.10.1884, Pedro Luís Pereira de
Sousa (1839-1883), ''jornalista, poeta, deputado, administrador, ministro e homem da mais fina sociedade
fhnninense, pertencia este moço à geração que começou por 1860". Iniciou vida de advogado no escritório
de Francisco Otaviano. É o patrono da Cadeira n. 31 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Luís
Guimarães Júnior.
10
O poeta Fagundes Vareia (1841-1875).

245
Não quero dizer que o Sr. Machado de Assis pertença ao numero dos primeiros
mencionados de que falia o critico francez, mas tenho para mim que o distincto escriptor
trabalha mais com a intelligencia do que com o coração, por isto que em suas obras as severas
prescripções da arte parecem querer a todo o momento asfixiar a impetuosidade da poesia e
do sentimento.
As paixões violentas pareceram-me frouxamente descriptas em seu livro, e todavia ha
naquellas paginas elementos para a construcção completa de um quadro onde poderiam
sobresahir todos os vivissimos coloridos das lutas apaixonadas.
O asswnpto do romance é o mais singelo que é possivel imaginar-se ; é um pequeno
episodio de amor perfumado de ternura e de divina suavidade ; nada póde haver de mais
simples.
O romance termina deixando triumphar a calumnia que paira sobre a heroina, pelo
menos na consciencia do heroe, que se contenta com qualquer accusação para fundamentar a
sua duvida.
Felix é um rapaz cheio de duvidas e de esquisitices, provavelmente de uma natureza
nervosa, homem meio visionario que quer e não quer, e em um bello dia dá de mão a todas as
felicidades sem saber por que.
Livia, que tem, a meu ver, sob o ponto de vista poetico (desculpe-me a leitora), o grave
senão da viuvez, é todavia um typo interessante e bello.
Os outros personagens estão ligeiramente traçados; o autor apresenta-os á meia luz, meio
encobertos, pouco visíveis a todos os respeitos.
Não é possível formar-se uma idéa exacta de todos elles, moral, e sobretudo
physicamente fallando.
Dir-se hia que o Sr. Machado de Assis teve em vista sómente narrar um singelo episodio
de amor entre duas almas, pouco lhe importando os accessorios do romance, que são de mór
valia, wna vez que não se tenha em menospreço as prescripções de esthetica.
Entretanto que dizer mimoso e que suavidade de pensamentos! Que elegancia e que
facilidade de estylo !
Como é lindo e repleto de intima poesia o capitulo denominado Ultimo golpe ! Para mim
é um dos mais bellos do livro, por ser um dos que mais faliam á alma.

246
Espero que não julguem nem de leve que estimo o romance cheio de peripecias
inverosimeis e capazes de abalar grosseiramente todas as fibras do coração humano, não: mas
tambem a demasiada singeleza corre risco de se tomar monotona, se não percocrre uma certa
gamrna de sentimentos vivos, com arte e moderação, como o podem fazer talentos da tempera
desse que traçou o bello romance que trato.
Octavio Feuillet, que é um modelo de singeleza, ahi está para corroborar o que digo.
Quando se termina a leitura de um livro deste autor, sente-se no coração o quer que seja de um
estremecimento vago, uma especie de combinação de contentamento e lagrimas, que deixa o
leitor mergulhado em profundas scismas.
Em conclusão : pelo facto do romance Resurreição não me ter deixado no espirito uma
impressão profunda por falta de um colorido vehemente no jogo das paixões, não se segue que
eu não o achasse magnifico. Quis me parecer porem que entre Livia e Rachei a luta de
sentimentos guiada pelo amor e pelo ciume pudera ser mais aproveitada pelo distinctissimo
escriptor.
Entretanto póde o defeito estar da parte do meu entendimento; e neste caso peço todas as
desculpas para elle. O Sr. M. de Assis é um talento brilhante e talhado para grandes
commetimentos.
Bem sei que não precisa que eu lhe diga isto, porque vozes mais autorizadas já o
disseram.
Quero só que não considere minhas palavras como critica, porque decididamente mmca
tive geito para Aristarcho.
São as minhas impressões apenas, impressões ligeiras, escriptas no sabbado, para verem
a luz domingo e morrerem no dia seguinte, como causa sem grande pretenção e mesmo
dispensavel.

247
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,13.5.1872, p. 2.

LITTERATURA
Bibliographia
PROSA E VERSOS
Rio, 1O de Maio.

O romance e a poesia teem sido ultimamente representados com toda a eloquencia pela
nossa brilhante mocidade litteraria. Além do «Til» assignado pela mais acreditada penna das
lettras nacionaes contemporaneas, tivemos os livros do Machado de Assis, <<Resurreição» ; do
Silvio Dinarte, «Lagrimas do Coração)); do Carlos Ferreira, «Alcyones», e do Dr. Caetano
Filgueiras, «ldylios».
O «Tih>, que há sido pela grande imprensa festejado e applaudido, veio, do folhetim da
«Republic~m para as folhas do livro, dar-nos ensejo de admirar em socego, na meditação do
gabinete e na leitura fluente o ftucto inspirado da intelligencia que creou o «Guarany>> e a
«<racema>), dous poemas da divina America.
No «Til» há um drama intenso, um drama apaixonado e cheio de peripecias, em que
compôs uma figura angelica, a tema figura de Bertha, como um astro a illuminar wna
borrasca. Estará completada, nos quatro pequenos volwnes dessa história a idéa que a
promoveu? Ou o poeta quiz, na sua maneira brilhante e larga, estylo de Rembrandt, pincel de
Delacroix, pintar-nos unicamente o perfil do amor caridoso, o typo da mulher celeste em luta
com os desvarios, com os tropeços e com as contrariedades da vida?
Aceitemo! a assim, a essa legitima irmã das heroinas de «Guarany)), «lraceiiliD), «Tronco
do Ipê)), «Gaúchm), e espalhemos o olhar ancioso sobre as folhas do livro em que a natureza e
o amor são tão magistralmente burilados.
A posteridade fará um dia uma galeria das mulheres dos romances de J.Alencar, como
fez das de Shakespeare, das de Murger, de Pope, de Milton e da Biblia.
Estudar-se-há então isoladamente, face por face, olhar por olhar, sorriso por sorriso e
l,mima por lagrima, a candida e tentadom phalange dessas creaturas geradas pela exuberante

248
serva do poeta e vestidas por aquelle estylo gracioso, vibrante, Iimpido, que fórma em redor
dos personagens esboçados como que uma aureola palpitante de luz e de ideal!
Estará ahi a Cecília, a suave e pura Cecy, arrebatada na correnteza de uma paixão
homerica, e iluminada como as martyres christãs pelo fogo de um incendio e os negros clarões
de um desastre!
Adiante elevar-se-há, ganida e simples, apaixonada e serena, um raio de lua e um raio de
sol, o perfil arrebatador de Alice, de cujas azas cahirão em estrellas vaporosas as lagrimas que
ella enxugou em vida, fascinada pelas palavras do céo, que ensinavam-lhe o bem, a ventura e o
sacrificio na terra!
Entre wna e outra pagina resplandecerá o vulto da amante do «Gaúchm), com os
cabellos soltos, a fronte abrasada, o seio offegante, a rolar no abysmo, amarrada nos braços do
seu destino, como mna folha que rola presa ás azas de um furacão implacavel!
E as miniaturas elegantes, correctas, cheias de luz, encherão o livro predestinado.
Carlota seguirá á Diva. Amelia hombreará com a Lucia, essa desventurada e pallida
peccadora, ardente como a Miranda de Shakespeare e tema e perdoada como a Magdalena do
catholicismo!
J. de Alencar é propriamente o escriptor da alma e o pintor da natureza.
Sente-se, lendo uma descripção, um painel de seus romances, da mesma forma porque se
agita o espirito, acompanhando as flores e os espinhos de uma existencia que o romancista e o
philosopho narram!
O estylo do autor do «Til>) é sempre uma harmonia, é a música da eloquencia; as mais
subtis e inuteis particularidades, os menos necessarios episodios, passando pelo crysol
daquella natureza artística e primorosa assumem uma atirude importantissima e fazem estacar
o observador, que ainda nestas causas crê sem paixão e sem estalidos sentimentos.
No «Tib>, já o disse um critico de nome, os quadros da natureza são traçados por palheta
invejavel. O estylo do escryptor é de uma onomatopéa admiravel; dulcissimo. quando agita
uma gase, uma flor, um ninho ; imponente e elevado, quando descreve as lutas da tempestade,
que açouta como colera divina a fronde das arvores e a alma do homem.
O typo de Bertha recorda o que há de mais contido e meigo nas paginas do Evangelho. É
uma consubstanciação divina, essa criança, que ampara um idiota e estende as invesiveis asas
sobre a cabeça do assassi.1o arrependido.

249
Bertha é o romance; é a alma desse livro que começa por um sorriso da mocidade e por
um raio do dia, terminando pela compassiva e regeneradora lagrima da caridade.
Depois do romance do conselheiro José de Alencar, veio-nos á mão o romance de
Machado de Assis «ResUITeiÇào)).
Há muito que se esperava com certa e louvavel ancia um livro em prosa do elegante
prosador dos «Contos fluminenses».
A «Resurreiçãm) flnnou os justos brazões desse moço de talento e de modestia, poeta
primoroso e folhetinista de uma expontaneidade rara. É o mesmo estylo dos «Contos>> com a
limpidez que o estudo proporciona e com mais valentia e firmeza de phrase. Como pureza de
estylo poucas obras teem sido ultimamente publicadas, capazes de entrar em luta de prim.asia
com a «Resurreição». Machado de Assis escreveu o seu romance como um pintor
consciencioso pinta uma tela, que pretende expor em galeria de mestres.
Eu não sou daquelles que amam o romance de peripecias, de enredos complicados, onde
a attenção do leitor vacila enleiada, á maneira de um insecto que se enrola em uma têa. Eis o
motivo porque prefiro a Sue e a Dumas, Octavio Feuillet e Gustavo Flaubert. O romancista
deve ser um pouco anatomista, e o typo principal de uma obra de coração e de intelligencia
precisa ser apresentado por todos os lados á observação como um corpo que se estuda, fibra
por fibra.
O Dr. Felix no romance de Machado de Assis é um typo, senão possibilissimo, pelo
menos admiravehnente comprehensivel. Dá-nos o poeta o seu perfil com aquelle cuidado e
garbo com que Feuillet em traços magistraes poz em relevo a figura do conde de Camors 11 e
do marquez de Champcey.

11
"Quem não conhece o livro em que Otãvio Feuillet glorificou sob o título de honra, as últimas hesitações
de uma alma profundamente corrompidaJ Seixas estava muito longe de ser wn Camors; mas já nele
começava o embotamento do senso moral, que o influxo de uma civilização adiantada, e no seio de uma
sociedade corroida como a de Paris, acaba por abortar aqueles monstros." Senhora. cap. 5. Aluísio Azevedo
também cita o mesmo livro ao se lembrar de wna reunião com Sizenando Nabuco, em que estavam
presentes também Valentim Magalhães, Filinto de Almeida, Urbano Duarte, Rallnundo Correia e Luiz
Murat: ''Trouxe wn manuscrito, assentou-se a uma mezinha ao centro da sala; assentamo-nos em tomo
dele, e começou a leitura. Sabeis de quê! De wn drama tirado do célebre romance Monsieur de Camors de
Otãvio Feuillet escrito em bom e nervoso francês, com estilo, com a naturalidade e a graça de quem escreve
na própria língua. Oh! como os seus olhos se acendiam. como a sua voz pujante se inflamava com aquelas
frases apaixonadas! Como a sua bela alma romântica acordava aquela música do passado! Uma quente
ressurreição de beijos da mocidade! Um delírio de amor e de mágoas sentimentais!" (Aluísio Azevedo,
"Sizenando Nabuco.., necrológio publicado em O Combate, 18 de março de 1892.)

250
Os demais personagens da «Resurreiçãm> empallidecem ao pé do heróe ; eis o motivo
porque o livro de Machado de Assis será muito estudado, mas por muito pouca gente. Não é
um romance que attraia o vulgo; é sim um quadro que chama o olhar dos entendidos e a
attenção dos amigos da boa e eficaz litteratura.
O estylo é acurado, é trabalhado, é desenvolvido com uma solicitude ás vezes exagerada,
o que em um ou em outro ponto parece pertencer mais aos arabescos da arte do que á
expontaneidade do sentimento.
Ha descripções brilhantes e concisas, das quaes lembro uma, genuino retrato, onde tudo
brilha como um modelo de Latour.
Eil a:
« Felix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga. A tez,
levemente amorenada, tinha aquelle macio, que os olhos percebem antes do contacto das
mãos. Na testa lisa e larga parecia que nunca se formara a ruga da reflexão, não obstante,
quem examinasse naquelle momento o rosto da moça veria que ella não era extranha ás lutas
interiores do pensamento ; os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez ; mas
naquella occasião não eram vivos, nem languidos : estavam parados. Sentia-se que ella, olhava
com o espírito .
Felix contemplou-lhe longo tempo aquelle rosto pensativo e grave, e involuntariamente
foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura.
O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do
busto. Via-se ondular ligeiramente o seio turgido, comprimido pelo setim ; o braço esquerdo,
atirado mollemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a côr sombria do vestido, como
wn fragmento de estatua sobre o musgo de uma ruina. Felix recompoz na imaginação a estatua
toda e estremeceu. Livia acordou da especie de lethargo em que estava. Como tambem
estremecesse, cahlu-lhe o leque da mão. Felix apressou-se a apanhai-o. ~~

Isso é um completo quadro, em que as tintas estão derramadas com uma precisão, um
carinho e wna delicadeza especiaes.
A «Resurreição» occupará o lagar de honra a que tem juz e que lhe foi assignalado pela
critica contemporanea. Não é livro que arraste; é um estudo que impressiona e força á
meditação prolongada.

251
O perfil de Livia não deve ser posto de parte, attendendo-se ao mimo com que o pincel
arredondou e illuminou aquelles encantadores contornos.
Depois disso, perguntará algum espirito caustico se o livro de Machado de Assis tem ou
não a menor macula, o mais leve defeito ?w
Deixo aos sensatos e aos mestres a resposta necessaria e peço ao poeta das «Phalenas)>,
ao primeiro prosador dos «Cantos fluminenses», que não abandone nunca essa litteratura
brasileira, que o considerará e hoje considera-o mais do que nunca um dos seus mais caros
ornamentos. O editor do «Til» e da «Resurreição>) é o Sr. B. L. Garnier, sempre solicito em
publicar as joias da litterarura brasileira.

(Continúa) 12

Luiz Guimarães Junior

12
Apesar da indicação, o artigo não teve continuação.

252
Semana lllustrada, Rio de Janeiro, 19.5.1872, pp. 4771 e 4774.

REVISTA BffiLIOGRAPHICA
RESURREIÇÃO
Romance de Machado de Assis.

Escrevo dominado pelas minhas impressões de leitura.


Longe de mim o pensamento de arvorar-me em critico.
Fique tanto á coragem dos homens como Gustave Planche, se é o que os há n'esta
abençoada terra das palmeiras e dos sabiás.
E, seja dito de passagem, se entre nós ainda não appareceu mna valentia critica egua.l a
que atacou as obras colossaes de Victor Hugo, é notaria a existencia de predestinados que
principiam por onde os outros acabam, isto é, apavonando-se de Aristarchos, censurando
acremente a obra alheia, sem que tenham experimentado, ao menos em garatujas, a
originalidade propria !
E assim vae o mundo!
Os que nada sabem censuram os que sabem pouco; e os que sabem muito, guardam a
sabedoria para si mesmos, quiçá porque não podem ser entendidos.
E' de mau gosto essa reserva!
Nem alardêem com sciencia infusa ou de outiva, nem façam da cabeça uma adega,
engarrafando para ahi o que há de mais generoso em sciencia liquida, de que só a morte se
aproveita, em quanto ficam por cá tantas creaturas á espera.... dos thesouros de pensamentos
engarrafados !
Fulano----<lizem uns- é um homem de saber profundo e de conhecimentos
varladissimos! Que illustração, Deus meu!
E o tão gabado sujeito, que lê todas as grandes producções velhas e novas, que terça ou
é capaz de terçar em todas as questões litterarias, que se desgosta de todos os poetas e que

253
encontra senões em todos os prosadores, termina a sua missão n' este valle de lagrimas sem ao
menos encher algumas paginas de qualquer prologo de folhinha !
Que supino egoismo !
Inda se fossem do bello sexo, poder-se-hia dizer que concebem na terra e vão dar á luz
em planetas mais commodos.
Portanto é o caso de se dizer que por ora tanto devemos contar com a efficacia da
critica litteraria quanto com a apparlção das suspiradas cebolas do Egypto.
Nem por isso deixarei de ir avante.
O titulo que tomei para este artigo indica, leitores meus, que pretendo occupar-me de
causa muito mais séria do que os criticas em expectação ou em realidade.
Eranoute ....
Acham exquisito o meio de reatar o fio do discurso, (phrase useira dos grandes
parlamentares) ou entendem que é refmadissima affectação ?
Nem uma, nem outra causa.
Repito--era noite, e eu não estava disposto a valsar no baile do Cassino e a ver o
príncipe Alexis.
Não obstante a sympathia inspirada pelo nome que tenho ás que se prezam de serem
edicções mais correctas e augmentadas do ideal feminino do Goethe, entendi não auctorisar
com a minha presença as tentações de tantos Mephistopheles nos fluxos e refluxos d'esse
oceano de luzes, de crystaes, de sedas, de harmonias, de sorrisos, de enlevos, de graças, de
bolinholos e de refrescos, etc., que outros chamrnam um baile.
Demais a minha idolatrada Margarida não illurninaria com seus placidos olhos a
fervida atmosphera d'aquelle humano torvelinho.
Se por acaso eu lá indo, me inebriasse, phantasioso como ás vezes sou, dos encantos
de algwnas sylphides d'esse baile, voltaria descontente para o meu leito, porque poderia dizer
como o poeta que, lembrado de sua bella Analia, só vira nas outras mulheres

" Os pedaços de wn retrato


" Que a natureza quebrou"

E para que expor-me a commetter uma infidelidade em parte, se guardo integralmente


na imaginação o teu deslumbrante retrato, minha tentadora Psyche ?

254
Isto posto não fui ao Cassino. Mas como empregar o meu tempo, longe d' e lia e no seio
tacito da noute ? Dizia comigo.
Resolvi-me a ler o que houvesse de mais novo e attrahente em casa, bem entendido,
producção nacional.
Tinha diante de mim as Lagrimas do coração de Silvio Dinarte e a Resurreição de
Machado de Assis.

Um livro de lágrimas e do coração, naquela noite convidativa de saudades e tristezas,


poderia servir-me de tremendo excitante, quando eu necessitava apenas de um brande
calmante. Guardei, pois, as lágrimas de Sílvio Dinarte 13 para melhor ocasião, e entreguei-me
em corpo e alma ao filho intelectual do simpático autor dos Contos Fluminenses.
Quem não conhece Machado de Assis? Na republica das lettras quem não se admira de
um homem todo espirito, cujo involucro terreno faz lembrar a Baptistina innan de Bemvindo
Miriel, a qual tinha um corpo que era um pretexto para uma alma viver na terra?
Fidalgo d'ahna, o mavioso poeta das Crysalidas e das Phalenas ha trabalhado tanto
que fez da obscuridade da sua origem o melhor titulo da sua grandeza actual.
Bernavenrurados os pobres que assim trabalham, porque é n'elles o melhor desforço
que a humanidade toma dos que se esquecem do nivelamento do twnulo nas distincções
ridiculas com que se destacam os brazões heraldicos!
Machado de Assis é um gigante do espírito a julgar pelas vantagens com que o seu
talento se tem sobreposto ás contingências da matéria.
Não é por ser trigueiro que a limpeza d'alma lhe sobresahe no rosto, mas, porque Deus
compraz-se em fazer de um rosto feio um límpido espelho de consciencia.
Não se zangue o autor dos Deuses de Casaca, porque o seu exterior vive tão
illwninado pelo seu privilegiado espírito, quanto um feio candelabro que despede raios de
vivissima e deshunbrante luz.
Mas, para que estou a occupar-me da pessoa do applaudido romancista, quando ella
não entra em discussão?
Se ele não fosse casado e eu fosse matrona rabiscadora, haveriam de cuidar que eu
suscitava, por despeito, as desvantagens do physico de Machado de Assis.

13
Referência a Lágrimas drJ Coração, livro de Sílvio Dinane contemporâneo a Ressurreição.

255
Afortunados os que participam da imperfeição hwnana apenas em tão transitórias
desvantagens!
Se o poeta da Resurreição não é bonito, melhor para as senhoras e para elle, porque
está livre de entrar em lucta por causa de um Paris de hoje que não ficaria isento de converter-
se amanhã em outro Menelau.
Pensem lá como pensaram as senhoras, acabemos com a disputa, porque o espaço não
offerece lagar para tantto.
Dizem que o meu poeta é imperfeito, porque é feio no corpo e bonito n'alma?
Pois bem eu direi d'elle o que disse do Laurindo Rabelllo o Dr. Alvares da Silva: "A
natureza para provar que é grande, creou-o ; para mostrar que é justa fel-o imperfeito"'
Agora as impressões de leitura.
Credite Pisones, devorei com um gosto inexprimivel essas duzentas e quarenta e oito
paginas, e por ellas tão destrahido fiquei que houve momentos em que perdi a lembrança do
meu divino e humanisado estimulo.
Perdôa, innocente Margarida, se ante a imagem voluptuosa de Livia, olvidei as graças
do teu angelica semblante!
O culpado foi o Machado de Assis que então tomou-se para mim um verdadeiro
Mephistopheles, suggerindo-me a idéa de que se na sociedade as virgens attrahem mais que as
viuvas, no romance uma viuva póde valer mais do que uma virgem.
DR.FAUSTO.
(Continúa)

Semana Il/ustrada, Rio de Janeiro, 26.5.1872, pp. 4782 e 4783.

256
REVISTA BillLIOGRAPIDCA
RESURREIÇÃO
Romance de Machado de Assis.
(Conclusão)

Convem notar que Livia não é uma viuva enlutada como Hécuba, ou chorosa como
Niobe.
Livia é a mulher que no tumulo de seu marido reconheceu que o primeiro amor nasce
apenas da necessidade de amar, e, portanto, cortejada em todos os salões pelos adoradores de
tão deslumbrante viuvez, mais fresca e seductora do que muita innocente virgindade, não teve
remedio senão entregar de novo o coração, para seu enlevo e castigo.
O protagonista do romance, Dr. Felix, é um homem que participa mais da indole
européa do que da americana; é um mixto de Werther, de Othelo, de Hamlet e de Romeu, sem
deixar de parecer, ás vezes, uma arremedo subtil de Lovelace.
Seja como fôr, e para não dar ao caracter da pessoa mais importante do enredo
concebido por Machado de Assis proporções de um capricho de fantasia, de uma anomalia, ou
cousa que o valha, fique desde já consignado que o Dr. Felix é o scepticismo humanisado
contra a viuvez que tenta despir o luto nos braços de segundo e confiante amor.
Desventurada Livia! Não houve argumentos que podessem desentranhar do
pensamento do teu amante a espinhosa duvida que ia cada vez mais germinando em terreno
tão cansado e secco.
Nem a tua belleza de Venus, nem a abnegação com que por elle abandonaste nos salões
o teu indisputavel throno, nem a sinceridade fervorosa e apaixonada com que no teu affecto
nivelaste esse orgulhoso adventício com o filho de tuas entranhas, nem os teus sorrisos de
perdão, nem as tuas lagrimas de Suzana, poderam de mna vez para sempre rasgar o véo da
incerteza que involvia tão singular espírito gasto pelas preoccupações sociaes !
O teu coração quiz ressucitar, mas não teve tempo; o coração d'esse medico, se é que
existiu, nem dava signaes de morto, porque é certo que Felix amou apenas com a fantasia.
A lucta acre-doce entre esses dous typos, entretida na maior familiaridade,é o que
constitue o enredo principal do romance.

257
Para essa lucta concorreu Vianna com a sua bonhomia de verdadeiro parasita e de
irmão pouco escrupuloso; Luiz Baptista com a intriga do seu despeito de galanteador; Rache!
com a ingenuidade propria da virgem que ama sem retribuição; o Dr. Menezes com o
desinteresse, mas tambem com os desazos de que é capaz uma indole pouco affeita ás
vicissitudes do amor.
Além d'estas personagens ha ainda algumas como Cecilia,que é verdugo feminino,
abandonado por Felix para ser o castigo de Moreirinha; e Luiz, fructo do primeiro amor de
Livia, e que, apezar de criança, não deixa de influir muito com uma pergunta no desfecho
importante de situação assaz pathetica.
Bem quizera eu narrar ás minhas leitoras todas as peripecias da Resurreição ; entendo,
porém, que é melhor deixai-as em sobresalto e quasi mortas de curiosidade, para que assim
tenha mais extracção o excellente livro de Machado de Assis em beneficio do editor.
- Excellente - disse eu? Pois bem - excellente - mas, não inexcedivel, porque,
seja dito de passagem, se é irreprehensivel na fórma, é umas vezes frio na essencia e outras um
pouco inverossimil na consubstanciação de certos typos e no emperramento de indebitas
desconfianças.
A verdade d'este asserto será mais tarde corroborada pelo proprio Machado de Assis,
quando, obreiro infatigavel como é, produza um romance de mais folego do que a
Resurreição.
Demais o titulo não satisfaz a nenhum dos prismas por que se encare o assumpto
capital do livro.
Em vez de Resurreição, o auctor poderia baptisar o seu filho intellectual com qualquer
outro nome que exprimisse a duvida arraigada de Felix e a confiança apaixonada de Livia.
Outros pensam que o titulo de uma obra, principalmente romanesca, pouco influirá na
importancia d'ella e nas sympathias que possa captar.
Pois, se assim é, não percam tempo em desparafusar da cabeça originalidades de
rotulo; exhibam a obra sem titulo.
Sendo tão bem traçado, o romance Resurreição poderia ser mais nacional, porém n'esta
idéa que avento talvez que eu seja o mais exigente dos apreciadores, porque em verdade o
espirito essencialmente brasileiro é tão pequenino ás vezes, que desnortêa as mais profundas
aspirações de um verdadeiro romancista.

258
Agora, para não sahir-me mal perante o publico, da franqueza das minhas impressões
de leitura, vou apadrinhar-me na indulgencia das leitoras, transcrevendo aqui um dos melhore
topicos do estylo em que está concebido o precioso livro de Machado de Assis.
Quem escreve taes linhas póde caminhar sobranceiro a criticas apaixonados.
"Sentia-se que ela (Livia) olhava com o espírito.
Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente
foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente
os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio turgido,
comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela
alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estatua sobre o musgo de uma
ruina. Felix recompoz na imaginação a estatua toda e estremeceu. Lívia acordou da especie de
lethargo em que estava. Como tambem estremecesse, cahiu-lhe o leque da mão.
Felix apressou-se em apanhai-."
Em que peze aos descontentes de tudo, no espaço abrangido pelos primores de tão
ligeira descripção encerra-se mais do que uma louçania de romance, porque resplandecem a
plastica e a esthetica resumidas por encanto no bellissimo trecho de mn poema lyrico em
prosa. E como esse topico ha tantos outros na Resurreição.
Antes de concluir, peço ao poeta das Phalenas que tambem applique o seu oumimodo
talento ás composições dramaticas. O nosso theatro carece tanto !
Agora um aperto de mão a Machado de Assis que acaba de ajuntar mais uma
delicadissima flor á sua imarcessivel grinalda, enriquecendo ao mesmo tempo os fastos
litterarios da patria.
14
DR. FAUST0.

14
R. Magalhães Júnior, citando Tancredo de Barros Paiva, infonna que o Dr. Fausto era
Augusto Fausto de Sousa, antigo colaborador da Revisfa Popular e dos Jornal das Famílias~
onde Machado também traballiara, e autor dos livros A Caça de um Baronato e Cenas da Vula
Republicana, publicados por Garnier.

259
Artes e Letras15, Lisboa,jwlho de 1872, p. 94.

Chronica do Mez

Recebi do Rio de Janeiro tres interessantes livros de que vou fallar com muito prazer.
Intitulam-se- Resurreição, romance pelo sr. Machado d'Assis; -Alcyones, poesia pelo sr.
Carlos Ferreira, e - Nevoas matutinas, versos do sr. Lucio de Mendonça.
Deseja o auctor do romance Resurreição, que a critica lhe diga se alguma qualidade o
chama para o genero de literatura que ensaia na sua nova nova publicação, ou se todas lhe
faltam, porque n'este caso volverá para outro campo em que já tem trabalhado com aprovação,
cuidados e esforços.
Não devo abalançar-me a satisfazer o desejo do sr. Machado d'Assis no tom solemne
de critico encartado, porque o não sou, nem desejo ser; entretanto, se o distincto literato
brazileiro se contenta com a opinião franca e sincera de um simples trabalhador, dir-lhe-ei que
continue a escrever romances, muitos romances, porque se estreou com um de grande
interesse e optimas condições literarias, que pode servir de lição e modelo a muitos escriptores
do genero.
De entre as qualidades boas que exomam a obra do sr. Machado d'Assis, sobresae uma
que mal se pode definir e que tão rara é de encontrar em grande numero das publicações
modernas: - a que nos prova, da primeira á ultima pagina, que o livro é escripto por um
literato.

15
Artes e Letras -Revista de Portugal e Brazil [circulou em Lisboa entre janeiro de 1872 e
1875]. Na edição de maio de 1872, à página 80, anWiciara a publicação de "Reswreição",
romance, pelo sr. Machado d'Assis. A proposito d'esta ultima obra vimos nos jomaes do Rio
criticas muito lisonjeiras para o illustre litterato, que é uma das glórias do Brazil." Nem a nota
nem esse anigo traziam assinatura.

260
Novo Mundo, Nova York, 23.12.1872, p. 46l6

UM ROMANCE FLUMINENSE

RESURREIÇÃO, Romance por Machado de Assis. -


Rio de Jaoeiro, B, L Garnier, 1872.- I vai. in
12mo., 244 pags.

UMA dos melhores amostras de ficção em prosa que nos tem dado ultimamente o Rio de
Janeiro é a Resurreição do Sr. MACHADO DE ASSIS. Sem o genio brilhante do Sr. ALENCAR e
sem a adrniravel fluencia e naturalidade do Sr. J. M. DE MACEDO, o Sr. MACHADO DE ASSIS,
todavia, não se deixa sacrificar pelas extravagancias do primeiro, nem pela monotonia do
segundo. Elle é mais artista do que qualquer delles, sem que comtudo se possa dizer que seja
de sua força.
A Resurreição pretende ser, não um romance de costwnes, mas somente o esboço de uma
situação. O livro, porém, não é sinão um romance de costumes. É na sociedade brazileira, ou
antes, na sociedade do Rio de Janeiro que o Sr. MACHADO DE ASSIS achou os elementos de sua
"situação", e dos seus contrastes. O Dr. Felix é um ente que vive, corpo e alma, no meio de
nós, e que, ai de nós! - ha de viver ainda por muito tempo. Quem conhece a compleição da
nossa sociedade não vê na Resurreição mais do que uma bôa photografia de um de seus
aspectos comnums.
O proposito do romance é offerecer-nos um comentaria da verdade que SHAKESPEARE
exarou no Measure for Measure, desta fórrna:

"'Our doubts are traitors,


And make us Jose the good we oft might win,
By fearing to attempt."

Presume~se que o autor desse artigo seja José Carlos Rodrigues.


16

261
A acção se concentra principalmente em dous typos, Felix e Livia. Era Felix um "rapaz
vadio e desambicioso" de 36 annos de edade "sympathico", vestindo~se com apurada
elegancia, e para quem o amôr era o "idylio de um semestre, mn episodio sem chammas nem
lagrymas". Faltando em nossa linguagem positiva, Felix era um "rapaz" devasso e corrupto,
incapaz de aspirações elevadas, e que nos lupanares do Rio de Janeiro aprendêra a duvidar do
amôr e da mulher, esbanjando assim a vida no que se nos diz ser "um composto de toda a
especie de occupações elegantes e intellectuaes."
Livia era uma viuva de 24 annos, extremamente formosa, sem o "amor-proprio,
geralmente inseparaveis das mulheres bonitas," e com "um ar de rainha, uma natural
magestade, que não era rigidez convencional e affectada, mas uma grandesa involuntaria e
sua."
Felix e Livia encontram-se n'um baile, e a moça produz impressão no Doctor em
Medicina, - não todavia, uma dessas impressões que nos elevam e purificam, - que disto era
incapaz Felix ; mas a impressão que faz a mulher bella nos olhos os mais moodanos.
Todavia, com o correr do tempo, a viuva conseguiu reanirn.al-o um pouco com o espirito
de vida. Felix não poderia ficar indifferente á forte paixão de que ella se deixou inspirar por
elle. Mas o seu amõr foi uma serie de dores : o grande phantasma da duvida, dos ciumes,
perseguia incessantemente o Dr. Felix. Um dia lhe confessa que, como ella, elle tivera tambem
generosos affectos ; mas que esses lhe foram arrancados do coração em pleno vigor, o seu
espirito ficando arido, a sua alma calejada e o seu coração morto. "É certo que me
resuscitaste" , continuou faltando á Livia: " si o futuro me guarda ainda algwiS dias de
felicidade sem mescla, a ti só os deverei. Mas ... a obra não está completa." E não estava.
Ainda seguiu-se muito luctar antes da noticia formal do casamento, a qual noticia
naturalmente espantou a todos que conheciam o Dr. Felix. O Dr. Baptista, um intrigante,
dirige uma carta anonyma a Felix ; e éra tal o estado de degradação e miseria a que este
chegara, que essas linhas de um estranho o levam a romper o contracto. Livia cáe doente,
perdôa a Felix pela centesima vez, mas chega á conclusão que seu casamento com esse
homem seria um infortunio ...Mais vale sonhar com a felicidade que poderiamos ter, do que
chorar aquella que tivessemos perdido," diz-lhe ella por fim. Tarde, já tarde lamenta Felix ter
perdido a acquisição de uma excellente mulher. Elle que tantas vezes parecêra ter resurgido,
outtras tantas recahira no abysmo de suas duvidas, de modo que não ha propriamente uma

262
Resurreição, como nos diz o titulo do livro. É elle mesmo que escreve que, depois do
rompimento, "o amôr extinguiu-se (em Felix) como lampada a que faltou oleo ... O amôr do
medico teve duvidas posthumas."
Sobre os meritos e demeritos desta composição, pedimos licença para observar :
1o A duvida traiçoeira de que tracta SHAKESPEARE e que já o Apostolo equiparava á onda
do mar que é levada pelos ventos daqui para ali, é a fraquesa dos espiritos timoratos que se
deixam apoucar perante considerações diversas, e se conservam neutralisados na escolha de
dous fins. A duvida é a fraqueza na mola real dos impulsos, - uma fraquesa que convém
sobrepujar com resolução e fé. O que o Dr. Felix soffria não eram duvidas desse genero, e que
são a partilha do genero humano, - "our doubts," como diz o poeta. O Dr. Felix não só não
duvidava, como não sentia. Era um bruto - elegante e intellectual, - ''si quizerem, mas era
simplesmente um ente sem mola nenhuma na vida, todo escaldado e gasto nos taes prazeres
"elegantes" de "rapaz" vadio, desambicioso e rico. A duvida nelle era a negação completa de
tudo, - era a falta da alma, que havia perdido. O auctor da Resurreição, pois, tracta-o com
excessiva indulgencia. Affigure-se-lhe só o grande e virtuoso SHAKESPEARE levantando-se do
tumulo e ouvindo repetir-se o seu lindo pensamento como a razão dos infortunios de um Dr.
Felix!
zo O auctor infelizmente descreve muito ao vivo certas scenas em que figuram Cecilia,
Felix, e Moreirinha, e nem vemos cores bastantes que neutralisem as que elle emprega em
pintai-as. O final da pag. 47 é imperdoavel ; a estatua do final da pag. 41 bem podia ser
omittida, e certos ''ímpetos" do Vianna são horríveis.
3° O que quer que se diga dos typos da Resurreição, são elles descriptos com rara
felicidade de expressão e cores vivas. O Sr. MACHADo DE ASSIS é um observador accurado e
conhece o segredo de achar palavras e phrases que exprimem justamente certas phases do
character, que muitos comprehendem, mas que mal podem desenhar. O papel de Livia é bem
sustentado até o frm, e sempre mais interessante, Rachei é wn typo encantador, - timida, casta
e amorosa ; e é pena que não se casasse com um mancebo ainda melhor do que Menezes, com
todas as suas experiências de vida. No fundo do quadro vemos Baptista e Vianna, descriptos
em poucas, mas vigorosas linhas.
Tudo, na Resurreição, até seus mesmos defeitos, anima-nos a pedir que o auctor prosiga
nos seus estudos de "contrastes," corno elle chama a estes, na sua modestia. Para realçar a

263
virtude, porém, é provavel que elle se convença que não é necessario pintar tão viva e
demoradamente certas scenas, que agora nos pesa vêr n'um livrinho tão excellente, como o
seu.

264
SOBRE A MÃO E A LUVA

265
Semana/lustrada, n. 731, Rio de Janeiro, 12.12.1874.

A mão e a luva
POR
MACHADO DE ASSIS

Com este interessante romance enceta o Globo uma bibliotheca que desde
já lhe agradecemos, dizendo-lhe com franqueza, que está fazendo um serviço
relevantissimo ás letras patrias.
O auctor deste romance, o Sr. Machado de Assis, deve ter conhecimento
da recepção da sua obra, embora pequena, mas nem por isso menos
brilhante,- quando esta foi publicada em folhetim no Globo. Será modestia,
prevenir-nos o auctor, na introducção, que o romance fôra escripto em
pedaços diarios?
Tanto maior é a honra para elle. Talvez não teria sabido tão feliz da
delicada penna, se não tivesse sido tal motivo de escrever assim por capitulas
os caracteres que nos traçou, e tão bem encadeado o enredo desta historia
amorosa, que nos foi contada com a simplicidade da conversa despretenciosa e
em estylo tão natural que ás vezes faz duvidar que nisto justamente está a
graça, a difficuldade e o primor da linguagem.
A Semana não é folha de tamanho vulto para entrar em uma apreciação
mais longa; tem só duas palavras, uma de estima e de consideração ao auctor e
outra de agradecimento ao Globo, que nos mimoseou com mais essa perola da
litteratura patria.

TYP. DO IMPERIAL INST. ARTISTICO- Rua Primeiro de Março n. 17.

266
O Novo Mundo, Nova York, 22.2.1875, p. 127

"A Mão e a Luva" tal é o título d'um romance do nosso sympathlco MACHADO D' Assrz,
que fe-Io primitivamente apparecer no folhetim do "Globo" e para satisfazer ao anbelo do
publico fluminense, tirou-o em separado constituindo o primeiro elo d'essa cadeia de
romances que receberam o nome de ~'Bibliotheca do Globo".
Applaudindo de todo o coração tão patriotica ideia, mui propria da illustre redacção do

nosso primeiro jornal, exponhamos com lisma onosso juizo acerca do citado romance.
Mostrou-se ainda uma vez o illustre romancista esmerado cultor da forma, mantendo os
fóros d'um dos nossos primeiros estylistas; a substancia porém não condiz com esse primor
externo; visto como não parecem estar nas notas do seu disposão themas de longo folego.
Fracos são os caracteres, a urdidura despida de interesse comrnovente, a acção fria, e o
desfecho intuitivo desde o primeiro acto. Resgatam taes defeitos (si assim se podem
denominar) a formosura das descripções que molduram o quadro. Pelo que respeita á
moralidade pertence á classe dos que como os de THACKERAY podem os pais darem ás suas

filhas sem previa leitura.

ARAUCARIUS.

267
SOBRE HELENA

269
A Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 7.8.1876, p. 2

O Globo encetou hontem a publicação de mn novo romance do nosso amigo Sr. Machado
d'Assis, intitulado Helena.
Escusado é recommendar sua leitura, o nome de Machado d'Assis é um dos que mais
sympathias gozam na nossa litteratura; do que nos não podemos eximir é de dar os nossos parabens aos
nossos illustres collegas da imprensa diaria.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8.8.1876, p. 2.

Notícia Litteraria- O Globo dá aos seus leitores a notícia de que brevemente começara a publicar em
folhetim um novo romance original do nosso illustre escriptor e poeta Machado de Assis.
Valiosissima promessa, para os que sabem que primores costuma dar-nos a pena que escreveu
A Mão e a Luva.

O Mosquito, ruo de Janeiro, 12.&.1&76, p. 6.

AO «GLOBO}}

POR OCCASIÃO DE COMEÇARA PUBLICAR EM FOLHETIM


O ROMANCE« HELENA,» DE MACHADO D'ASSIS

Tenham outros embora ESCRICH ou Rocambole,


Segredos do Doutor, Tragedias de Pariz...
CoM MACHADO D'ASIS que o gosto se console!. ..
Mas, ai! leitor,jamais terás assas ASSIS.
BOB.

270
O Mosquito, Rio de Janeiro, 12.8.1876, p. 6.

AO «GLOBO>>

POR OCCASIÃO DE COMEÇAR A PUBUCAR EM FOLHETIM


O ROMANCE« HELENA,» DE MACHADO D'ASSIS

Tenham outros embora ESCRICH ou Rocambo/e,


Segredos do Doutor, Tragedias de Pariz...
Com MACHADO D' ASIS que o gosto se console! ...
Mas, ai! leitor, jamais terás assas ASSIS.
BOB.

A Provincia de São Paulo, São Paulo, 13.8.1876, p. 3. 17

Romance de Machado de Assis- O Globo de 6 de corrente encetou no seu folhetim a publicação do


promettido romance desse nosso eximio escriptor.
Intitula-se- Helena.

17
Nota publicada na seção ''Noticiário".

271
lllustração Brasileira, Rio de Janeiro, 15.10.1876, p. 127.

Boletim bibliographico

Entre os bons livros, vindos à luz n'esta quinzena, ocupará primeiro lugar a Helena,

romance por Machado de Assis.

São entre nós tão raros os bons romances, que é motivo de júbilo para as letras pátrias a
notícia de algum volume nesse gênero firmado por Alencar, Macedo, Taunay ou Machado de

Assis.

Este último já nos havia dado, além de uma deliciosa coleção de contos, que são
primores de pequenos romancetes, duas obras de alento- Resurreição e depois A Mão e a

Luva.
Sem dúvida algwna o primeiro é superior ao segundo, mas Helena, o terceiro romance

de Machado de Assis, é muito superior ao primeiro.

Imagine-se um estudo psicológico do melhor quilate, uma delicadíssima análise do


coração humano, sem toques realistas e ao mesmo tempo sem sutilezas fora da verdade;

imagine-se uma série de episódios que promovem a curiosidade sem, entretanto, um único

lance da escola inverossímil e das surpresas melodramáticas; imagine-se o mais espirituoso de

todos os diálogos e as mais sentidas de todas as cenas apaixonadas, tudo isso em brihante,

colorido, cristalino estilo, e ter-se-á idéia do que seja o novo livro que nos dá o poderoso e

fecundo engenho a quem já devemos tantas páginas de boa poesia e de excelente prosa.

Não recomendaremos a bela, a formosa Helena, porque ela, como aquela que nos deu a

prisca Grécia, saberá seduzir a todos quantos dela se aproximem.

Demais, um livro assinado por Machado de Assis vem recomendado pela assinatura."

[continua com outro assunto]

272
A Reforma, Rio de Janeiro, 19.10.1876, p. 118

FOLHETIM

A proposito de romances

Acabo de ler um dos ultimes livros do Sr. Camillo Castelo Branco ; aquelle que se
intitula O Cego de Landim e que faz parte de uma serie que o illustre romancista portuguez dá
a estampa, sob a denominação de Nove/las do Minha.
Esse romance é a histeria de um portuguez velhaco, moedeiro falso, quadrilheiro de
profissão, e por fnn espião de policia no Rio de Janeiro.
De envolta com as observações picantes que o Sr. Camillo Castello Branco faz sobre a
industria de moeda falsa que, diz elle florir no Porto como planta indigena, distribue-nos o
romancista portuguez ironias d'este gosto:
« A tenninalogia [sic] das Ordenações era wna anomalia em um paiz jovem e que tem o
sabiá e o côco... O governo brazileiro com a subtileza propria dos cerebros formados com
tapioca e annaz [sic] etc, etc,etc.
« Este episodio poderia ser o esmalte do meu livro se em um chefe de policia coubessem
scenas de amor brasileiro morbidas e somnolentas como os derrete o Sr José de Alencar. Em
paiz de tanto passarinho, tantissimas flores a recenderem cheiros varios, cascatas e lagos, um
céo estrellado de bananas, uma linguagem a suspirar mim.ices de sutaque, e com uma rede a
bamboar-se entre dous coqueiros, um sabiá por cima, um papagaio de um lado, um sagui do
outro, e veriam que meigos moquenquices eu não estillava d'esta penna de ferro etc, etc.»
O Sr. Camillo Castello Branco não sómente acredita que a litteratura brazileira tem por
elementos um pateo de bichos, como acha que o nosso primeiro romancista, o Sr. Alencar, não
faz senão derreter scenas cheias de moquenquices, e mimices de sutaque, e mais outras
galanterias denunciadas em sua linguagem pictoresca.

18
Segtmdo R Magalhães Júnior, o autor do rodapé era Joaquim Serra. que era um faz-tudo no jornal.

273
Eu sei que em Portugal os nossos livros não são lidos ; que lá acredita-se muito na
escuridão d'esta terra, e tanto que já pretenderam alguns escriptores luzitanos, entre outros os
Srs. Pinheiro Chagas 19, Mendes Leal e Gomes de Amorio 20 [sic] escrever romances de
exportação, occupando-se de nossos indios, de nossa natrneza, e ensinando-nos como devem
ser tratados as causas patrias.
Não me admirou, portanto, a ironica tirada do Sr. Camillo Castello Branco.
José de Alencar é um romancista piegas, e isso já é muita honra que se nos faz.
Entretanto os livros do distincto brazileiro são, entre nós, n'esta terra do sabiá e do côco,
sob este céo estrellado de bananas, tão admirados como os livros do autor das Nove/las do
Minho, lá no paiz onde nasce o tomilho e onde a azeitona floresce e completa a histeria patria.
Ha, porém, uma singularidade á respeito dos que criticão e desdenham das obras do Sr.
José de Alencar, e é que, quando se mettem elles a tratar do Brazil, não fazem outra couza
senão arremedar aquillo que foi dito pelo desdenhado romancista brazileiro.
Os Srs. Pinheiro Chagas e Gomes de Amorim escrevendo A virgem Guaracyaba e Os
Selvagens 21 , não fazem sinão parodiar o que escreveu o poeta que nos deu o Guarany,
Iracema, Ubirajara e tantos outros romances dignos da penna de Cooper e da musa do cantor
Hyawatha.
Emquanto não temos um novo livro do Sr. José de Alencar para contrapor ao Cégo de
Landim, peço permissão ao Sr. Camillo Castello Branco para offerecer-lhe um romance
brazileiro, sem saguis nem papagaios, producto de um talento brilhante, de uma imaginação
robusta, embora fabricada com tapioca e annanaz.
O romance a que me refiro é a Helena do illustre fluminense o Sr. Machado de Assis.
Leia o Sr. Camillo Castello Branco a obra do jovem escriptor, e diga se realmente
estamos aqui tão atrasados, que seja necessario vir de tão longe o doutrinamento.
Helena é um trabalho que pode competir com os mais bem acabados no genero.

19
Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895), escritor,jomalista., político, dramaturgo e orador português.
Publicou várias traduções de obras de Octave Feuillet, Júlio Verne, Alexandre Dumas. Entre suas obras está
Fora da Terra (1878).
20
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891 ), escritor português, sócio da Academia Real das Ciências e de
várias sociedades literárias nacionais e estrangeiras. Publicou vários livros de poesia e algwnas peças de
teatro.
21
Esse romance de 1875 "evoca conflitos entre tribos índias do Brasil e problemas ligados à evangelização
e à busca de oiro e pedras preciosas por europeus". Cf. Biblos -Enciclopédia VERBO das Literaturas de
Língua Portuguesa. Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1995.

274
Já antes nos havia dado o Sr. Machado de Assis um outro romance, que, pela finura de
observações, desenho dos caracteres, estudo psychologico, e amenidade dos episodios,
annunciava a posição eminente que teria de occupar entre os romancistas nacionais o vigoroso
autor da Ressurreição [sic].
Helena, que se lhe seguiu, é um grande progresso.
Estudo seria do coração humano, urdidura simples mas vibrante de interesse, situações
novas e habilmente desenlaçadas, linguagem poetica e nervosa, sobriedade artística, e mil
outras particularidades attestam que o Sr. Machado de Assis pôde sem receio deixar que o seu
romance seja confrontado com os melhores que nos chegam de Portugal, e que são aqui lidos
com tanta sofreguidão quanto é o desdem com que lá acolhem as nossas mais bem acabadas
composições.
Se é certo que tomou-se hoje de grande tom, entre uma certa roda, amesquinhar a
capacidade litteraria do Sr. José de Alencar, não é menos certo que os proprios que o
depreciam, n'elle enchergam o chefe da escola que tomou a peito nacionalisar o romance.
Pois bem, tão ruim escola tem dado os melhores fructos, e, n'essa Helena que motiva as
linhas que traço, terá o juiz imparcial bem decisiva prova de como é possivel tratar de amores
nos somnolentos romances brazileiros sem derretel-os e nem fazer jus as ironias dos que
julgam esta terra um ninho de selvagens.
Chamando a attenção dos escriptores nacionaes para o Cégo de Landim, que nos chega
do Minha recommendo a leitwa da Helena do Sr. Machado de Assis.
Pela minha parte cumpro um dever recebendo como verdadeira preciosidade o ultimo
romance .... [ilegivel] que, não ha muitos mezes ... [ilegível] com o apparecimento de suas
Americanas.
Esse livro de versos e o volmne de proza que agora nos offerece Machado de Assis dão
testemunho de que, na litteratura brazileira. ha alguma causa mais do que aquelles cachos de
jaboticaba descriptos na Virgem Guaracyaba.
Ha n'essa litteratura sentimento elevado, inspiração ardente, e linguagem colorida,
opulenta.
Se esta não é moldada por Jacintho Freire ou Lucena, é sem duvida genuina filha de
limpido e juvenil idioma que fallou e escreveu Garret.

275
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22.10.1876, p. 3.

Helena- Recebemos em brochura este novo romance de Machado de Assis.


É publicado pelo sr. Garnier e faz parte da sua já extensa Bibliotheca Universal.
Agradecemos o exemplar recebido.

276
lmprema Industrial, Rio de Janeiro, 25.10.1876, pp. 487-488. 22

BffiLIOGRAPHIA

HELLENA. -É mais um mimoso romance do sr. Machado de Assis, publicado em


folhetins no Globo, e editado pelo sr. Garnier.
O elegante poeta das Crhysalidas é um dos poucos que vão lutando e resistindo á
indifferença publica, e resistindo e lutando com consciencia, pois o trabalho sáe-lhe sempre
das mãos acabado, polido, aprimorado na fórma, e meditado no assumpto.
O entrecho do romance é singelo, e ainda que não corresponda á predilecção do sr.
Camillo Castello Branco pelos amores ruidosos e adubados de escandalos, corre bem, e sente-
se prazer em lei-o ; isto é, sentimos nós e apreciamos esses livros que reputamos bons, com os
sotaques com que fallamos, e extravagancias de que nos accusam, e os preferimos assim
originaes, aos que nos vêm de além-mar plagiados dos nossos e fundidos em moldes
portuguezes, que lá são bem recebidos pelo amaneirado da phrase, e aqui são mal acceitos por
isso mesmo e por disparatados.
Accusem-nos muito embora de estarmos a corromper o bello idioma de Camões e
Lucena, mas é fatal que assim aconteça, como tem acontecido com outros povos ; e por maior
que seja a exportação de livros portuguezes que ao Brazil vêm procurar o consumo que não
encontram em Portugal, onde muito escriptor, aliás com prejuízo das lettras, definharia
devorado pelos [sic] traças, não conseguirão que o nosso fecundo e popularissimo litterato J.
de Alencar escreva o portuguez classico do sr. Camillo, nem que por isso valha elle menos
para nós, que o presamos assim, emancipado da litteratura portugueza, e prestando reaes
serviços á nacional.
Dir-nos-hão que não é possivel o ser e não ser, que não ha portuguez do Portugal e
portuguez do Brazil; mas em Portugal mesmo está o erudito sr. Latino Coelho, autoridade na
materia, que definio lucidamente a questão.

22
Segundo R. Magalhães Júnior, o responsável por essa seção da revista era Félix Ferreira.

277
Em ultima analyse : dirão que fallamos brazileiro e não portuguez? Não nos zangamos
por isso.
O livro do sr. Machado de Assis é um protesto contra o atrazo que nos imputam aquelles
que mais por especulação do que em consciencia, nol-o atttribuem, fabricando moeda falsa
litteraria para circular entre nós, como a moeda falsa do nosso thesouro, da mesma
procedencia e com o mesmo ftm ; segundo o testemunho do proprio romancista portuguez.
Se o fim do sr. Camillo Castello Branco mimoseando-nos com algumas pbrases de
espirito salobro, foi fazer annunciar o seu livrinho, pela nossa parte já lhe fizemos a vontade.
Agradecendo ao sr. Gamier a offerta que nos fez de um exemplar da Hellena apertamos
cordialmente a mão ao seu talentoso autor e congratulamo-nos com os que prezam as letras
patrias, por mais um livro digno dellas e de quem o produzia.
MIGUEL S1ROGOFF. - Acaba o sr.Garnier de editar mais este romance, o mais moderno
dos de Julio Veme, do qual recebemos o primeiro volume, vertido para o portuguez.
Julio Veme pertence ao numero dos autores que dispensam qualquer recommendação .
Ninguem ainda como elle possuio o segredo de instruir deleitando, qualquer que seja a
sciencia de que se proponha tratar : quer atravesse com os seus leitores os desertos da Africa,
viaje por baixo das ondas, percorra os espaços celestes, afronte os gelos do pólo, ou corra
atravez de mil perigos de Moscow ás tristes regiões da Siberia, é sempre um companheiro tão
amavel quanto erudito.
Miguel Strogoff é um romance digno do mesmo acolhimento que têm tido entre nós
todos os outros do mesmo autor.
lLLUSIRAÇÃO DO BRAZIL. - Sempre no firme e louvavel proposito de levar por deante a
sua excellente empresa, o sr. Vivaldi acaba de fazer sensiveis melhoramentos nessa
publicação, tomando-a semanal e empregando o mais superior papel que é possivel obter-se
em nosso mercado.
A mudança de quinzenal para semanal, hade-lhe trazer grande numero de assignantes.
O CABELLEmA. - Fômos obsequiados perlo Sr. Franklin Tavora com um exemplar deste
seu romance, que é o primeiro de uma serie com a qual o autor conta fundar a Litteratura do
Norte. No proximo numero de nossa Revista daremos, de um dos nossos mais autorisados
collegas de Redacção, uma analyse detida e circumstanciada da producção do sr. Franklin
Tavora, a quem desde já agradecemos a offerta que nos fez de seu livro.

278
SOBRE IAIÁ GARCIA

279
23
O Zigue-Zague, Rio de Janeiro, 12.1.1878, p. 3.

[... ]Pois para impingir ao leitor coisas insossas, chegam as que fabricamos cá por casa, como,
por exemplo, o Senhorio, romance importantissimo, que começamos tambem hoje de dar a

lume, propositalmente para fazer frente á languorosa Yayá Garcia, do Cruzeiro, e ao chorado

martyr Matta Coqueiro, da Gazeta de Noticias. [... ]

23
Esse periódico, subtitulado hebdomadario humorístico, critico, satyrico e illustrado, era impresso na
Tipographia Cosmopolyta. O texto reproduzido faz parte do editorial, intitulado "Ao Público".

280
Revista Phenix Litteraria, Rio de Janeiro, março de 1878, pp. 68-72. 24

"( ... )Foi-se também Yaya Garcia, e tão desenxabida como no dia em que nasceu. Inda

estamos por saber que these quiz o author desenvolver em seu livro, sendo fora de duvida que

ele quiz alli desenvolver qualquer these. Tratamos de descobrir o fito do pensador em meio

d'aquelle langoroso idyllio e chegamos á conclusão final de que a sua these era uma these

garcio logica.
Um estylo ameno e facil sem trivialidade, alguns interessantes estudos psychologicos

feitos ao correr da penna, uma ou outra phosphorescencia de poesia domestica, são qualidades

incontestaveis e valiosas ao livro do Sr. Machado de Assis. Mas pode convencer-se de que não

são as sufficientes para tornar uma obra d'arte viavel na republica das lettras. O cantor das -

Americanas - que acatamos e apreciamos, deve apimentar um pouco mais o bico de sua

penna alun de que seu romances não morrão lymphaticos. A' proposito, um admirador da
ortographia do Sr. Machado fazia a apologia d'essa com grande fogo : - ..Accusão-lhe de

escrever fallar com um 1; quantas linguas temos nós, uma ou duas? E a palavra--hynvemo !
que originalidade ! parece que està mesmo com frio ! Deve-se escrever as palavras com a

orthographia mais onomatopifica que fôr possivel !"


Este gramamtico [sic] está talhado para redigir os artigos de fundo da Patria ;

fundindo-se-o com o Sr. Carlos Bernardino (ou Bernardo) de Moura, teriamos em resultado a

celebridade mais ousada e mais analphabetica que porventura existisse no importante batalhão

dos que não sabem precisamente onde tem o nariz.

v l~'ló'"eo:k<iÍ.úblru:wbândiJ.r~~cr:-'1./!&.n.:!Jli];Ji.m'WP..'t'a;'l.:rtnusru;-ll.tta.Jnsnce:reao.f\trugrf,Jqae n··-
~ illJJiicrJítarz~ <:Gos:i..-bà~aam -piD.1à:a-a..mmf~qr.ic"~ ~~ 'Ulf1'lciuama:lsia&tieu\.'tie'Lara:.;b .!.o
de janeiro de 1897, é o fundador da Cadeira no. 12, que tem como patrono França Júnior.

281
O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 11.4.1878, p. 1

Fantasias -A Propósito de Y ayá Garcia

[início mutilado]
Assim o entendeu e fez o Sr. Machado de Assis, levando a imparcialidade até o ponto
de deslocar, por meio do titulo, o interesse do livro, para assim fazer uma experiencia
maliciosa sobre o publico, a ver se elle concentrava as suas sympathias na matreira Yayá
Garcia.

E' suave, depois de atravessar o charco onde coaxam os Antunes e os Procopios, os


Jorges e Garcias, respirar um pouco de puro ambiente moral juncto d'essa criatura, cuja vida
se concentrou em uma constante e virtuosa abnegação, e remata sollitaria no trabalho honesto,
esse consolador de todos os desastres, esse pacificador de todas as consciencias sans, esse
dever de todos os espiritos rectos que encontra no seu cumprimento a propria recompensa. A
essa não lhe cotTompeu a civilização o instincto.
Desde que o amor teve de luctar com a dignidade, foi o amor sacrificado. Foi rude o
combate, violento, tempestuoso provavelmente; adivinha-se. Surpreendeu-a uma vez a enteada
indiscretamente em um momento de desespero. Mas a sociedade encontrou-lhe sempre o rosto
sereno, e o proprio sacrificio passou despercebido, porque ninguem lhe pode perscrutar a
rudeza da lucta.
Na flor da vida e da belleza, na plena exuberancia do coração, aquelle espirito austero
comprouve-se em desfolhar firmemente, deliberadamente uma a uma todas as flores do
opulento jardim da sua imaginação sobre as cabeças dos dous noivos, que, cada um a seu
modo, a haviam ultrajado cruelmente, e depois se retirou com a divindidade de uma deusa
olympica, para a solidão, para o esrudo, para se consagrar à instrucção

[mutilado]

282
" ... se acha frente a frente com a sobredita Yayá, a quem o auctor, para armar uma cilada ao
espirito do publico, apresentou como heroina do seu romance.
Eu sei perfeitamente que não tenho o menor direito de perguntar ao auctor a razão por
que elle antes escreveu tun romance do que um tractado de phisiologia ou de chimica; ou por
que não preferiu compor um romance historico, como lvanhoe, pilosophico como Candide,
político como( ...) Handschrift, ou de costumes como I Promessi Sposi.
O auctor faz o que quer. O publico e o critico acceitam a obra como ella se apresenta; é
o seu dever. Critica-a conforme o seu merito: é o seu direito.
O merito de um romance de amores afere-se approx.imadamente como o sabor de uma
sopa de pedra.
Sabem o que isto é?
Eu Ih' o digo.
Um pobre zuavo, desgarrado por noite tempestuosa, foi bater á porta de uma pobre
choupana . Os camponezes acolheram-no com extrema desconfiança; em, com aquella
bonhomia propria do homo silvestris, esconderam toda a comida que tinham e declararam-lhe
que teriam todo o prazer em franquear-lhe a sua pobre choupana (e aqui não havia tropa nem
figura) para que ahi [truncado] rresse de fome.
[truncado] zuavo não se mostrou abalado e antes declarou emphaticamente que, depois
que aprendera [truncado] sopa de pedras, perdera o medo de morrer [truncado]
[...]
A' sua vista.
-E ... deixa-nos aprender a receita?
-Por que não?! Pedras não faltam. E eu gosto de fazer bem aos amigos.
O zuavo sahiu e voltou d'ahi a pouco com um calháu bem roliço (devia ser quartz),
lavou-o convenientemente, metteu-o dentro de uma panella, que attestou com agua, e pôl-a ao
fogo com a maior fleugma do mundo.
E d'abi [... ]conversa de causas varias, feitos e estreitezas de guerra, lazeres de milícia,
e sanha de inimigos, historias muito de prender entendimentos simples em longos serões de
inverno, como diria qualquer frade chronista dos bellos tempos.
A agua da panella fervia, o seixo muito naturalmente conservava-se duro e impassível,
como um ministro decahido ouvindo a narração das boas medidas de seus successores.

283
-Então a sopa fica boa?
- Escellente. Mas leva tempo. Se não levasse, então ninguem faria sopa de outra
qualidade.
-E o seixo póde comer-se?
- Tanto não digo eu; basta que dê bom gosto e substancia ao caldo. Se lhe
misturassemos algwnas couves, então ficaria magnifica.
A mulher desappeceu e dahl a pouco trazia na mão uma pouca de hortaliça que metteu
dentro da panella, ao lado do seixo.
-Mas eu não vejo d'onde há de sahir a gordura para o caldo.
-Pois eu disse-lhe que o caldo havia de ter gordura?
- Mas então é preciso, pelo menos, botar-lhe algum unto.
- Isso então é ouro sobre azul.
Junctou-se-lhe unto e sal, uns restos de um chouriço. A conversa trouxera a entente
cordiale, e quando o caldo ficou prompto, deitou-se fóra a pedra; cearam alegremente e deram
um feixe de palha ao pobre zuavo para dormir, que não lhe achou uma espinha, como elle
depois contou, e gostava de lembrar quando era velho.
Ora, isto em lettras, é assim mesmo muitas vezes. As sopas de pedras sabem
frequentemente as melhores quando o condimento é bom e perfumado; e eis ahi está como
com um fino talento, apurado gosto e elegante linguagem, se faz engolir ao povo até uma
historia de amores, seixo duríssimo, que deu quanto tinha a dar (perdão, sentimentalistas!); ou
antes se a não engole, põe-n'a de parte, mas saboreia o molho como ambrosia de deuses.
O Sr. Machado de Assis quis, pois, fazer um tour de force e conseguiu-o. Assentou o
que havia de encantar o publico com os feitiços do seu estylo, e o publico entregou-se-lhe
vencido. E' o seu direito; está acostumado a taes victorias.
Se a exposição, como frequentemente acontece, se le sem grande abalo, a segunda
metade do seu livro arrasta o leitor com um interesse sempre crescente, até o desfeixo, que,
bem ao revez d'esses torpes Basilios, é sem mancha e sem reproche.
O eminente auctor da Justiça na Revolução e na Egreja impacientava-se ao ler o
Raphael, de Lamarti.ne, por nunca ver apparecer um irmão d'aquelle joven effeminado, que
lhe assentasse meia duzia de bofetadas e o arrancasse da companhia da sua indigna amante, e o
levasse para a fazenda e lhe mettesse uma enxada na mão.

284
Mas, dizia elle, isso seria uma explosão de bom senso, e se nos romances de Mr. de
Lamartine o bom senso falasse, o romance acabaria no mesmo instante.
Outro tanto se póde dizer de quase todos os outros romances de amores; e entretanto
Proudhon não tinha razão. Um romancista deve descrever a hwnanidade como ella é, como
lh'a apresenta a sociedade, e não como ella deveria ou poderia ser. Nisso consiste a lição.
Um critico allemão definiu a comedia a representação /iteraria do eterno combate que
a toleima humana traz travado comsigo mesma.
Uma composição literaria de costwnes representa o livre jogo das forças da natureza; o
romancista nada pode, portanto, fazer melhor do que representar a verdadeira ethica, e
desenvolvel~a convenientemente.
Assim o entendeu e fez o Sr. Machado de Assis, levando a imparcialidade até o ponto
de deslocar, por meio do titulo, o interesse do livro, para assim fazer wna experiencia
maliciosa sobre o publico, a ver se elle concentrava as suas sympathias na matreira Yaya
Garcia.
O publico não nos honrou com as suas confidencias, até porque não dispoe de
commodos meios de communicaçao comnosco; mas é muito provavel que tenha feito plena
justiça àquella nervosa e infantil pescadora, a todo o transe, de um marido gentil e rico;
especie de Putiphar virgem, que não recúa nem ainda deante do expediente de o agarrar pela
aba do fraque, quando elle quer fugir a uma seducção obstinada.
Esta parte do romance, em que Yayá Garcia encontra na sua inspiração feminil, aliás
inexperiente, e porventura em uma copiosa litteratura de romances francezes um arsenal
completo de armas e recursos para fazer cerco ao imbecil Jorge, é verdadeiramente admiravel
e está escripta com fmo primor. Tanto a analyse psychologica como as manifestações
exteriores ahi estão traçadas por mão de mestre.
A's vezes o malicioso auctor compraz se em levantar a ponta do véu que encobre a sua
intençao.
Assim, ao sahir da visita á pobre enferma, que lhe pergunta pelo noivo e quando é o
casamento, Yayá responde confiadamente:
-O dia não sei; mas que se ha de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.
Yaya tinha medido a fundo as forças de seu antagonista (é o termo), homem sem fim
algum social, natureza inerte, que não sonhava com dever algum e que acreditava piamente ter

285
desempenhado a sua missão neste mundo dando lições de inglez e de xadrez ás crianças
travessas, despendendo ao mesmo tempo o rendimento de uma consideravel fortuna, que, sem
o menor esforço nem merito da sua parte, elle honrava com a sua posse.
Alguem disse que o amor era ••o instincto aperfeiçoado pela litteratura"; seria talvez
mais exacto affmnar que o amor é o instincto pervertido pela civilização.
Yayá não é por certo peior que muitas outras, mas vive em wna sociedade que ostenta
wn luxo cuja sêde a devora; ve desfilar á tarde os carros elegantes em que Lais, Phrines e
Aspasias modernas (estupidas e crassamente ignorantes, é a differença) pompeiam os seus
ricos vestuarios, suas joias deslumbrantes; sabe-lhes os nomes, as intrigas conhece-lhes os
amantes, computa-lhes os orçamentos, avalia-lhes as dadivas, mede-lhes o alcance dos
sorrisos, e subindo d'ali até a alta sociedade, apanha-lhe no ar os escandalos, estuda-lhe as
influencias, sonda-lhe as miserias, e com a maior innocencia do mundo vae atirando a sua
pedra com a consciencia pura de quem ainda não teve occasião de peccar.
Tudo isso se adivinha na fmura com que Yayá descobriu de longe, com wn faro que
lhe faz extremada honra, os vestigios d'aquelle beijo furtivo do pobre Jorge, beijo sincero e
ardente, que, apezar disso, não pode encher todo o espaço que no espirito delicadissimo e
nobilíssimo de Estella, a separava do homem a quem ella amava.
Estella! Chegamos enfim a um nome, a wn caracter, a um espirito, a urna organização
sympatltica e digna!
E' suave, depois de atravessar o charco onde coaxam os Antunes e os Procopios, os
Jorges e Garcias, respirar um pouco de puro ambiente moral jtmcto d'essa criatura, cuja vida
se concentrou em uma constante e virtuosa abnegação, e remata sollitaria no trabalho honesto,
esse consolador de todos os desastres, esse pacificador de todas as consciencias sans, esse
dever de todos os espiritos rectos que encontra no seu cmnprimento a propria recompensa. A
essa não lhe corrompeu a civilização o instincto.
Desde que o amor teve de luctar com a dignidade, foi o amor sacrificado. Foi rude o
combate, violento, tempestuoso provavelmente; adivinha-se. Surpreendeu-a mna vez a enteada
indiscretamente em um momento de desespero. Mas a sociedade encontrou-lhe sempre o rosto
sereno, e o proprio sacrificio passou despercebido, porque ninguem lhe pode perscrutar a
rudeza da lucta.

286
Na flor da vida e da belleza, na plena exuberancia do coração, aquelle espirito austero
comprouve-se em desfolhar firmemente, deliberadamente uma a uma todas as flores do
opulento jardim da sua imaginação sobre as cabeças dos dous noivos, que, cada um a seu
modo, a haviam ultrajado cruelmente, e depois se retirou com a divindidade de uma deusa
olympica, para a solidão, para o estudo, para se consagrar à instrucção do [ilegível]milhante.
[ilegível]
ruidoso da multidão, e se perde na recordação, ás vezes bem pouco duradoura, de
intimas amigos.
Acaso a penetração de Estela lhe deu claramente a entender o pouco que perdia em tal
noivo, e o muito que lucrava com o seu sacrificio.
Se, como tantas vezes acontece, o Sr. Machado de Assis tomou na vida real os typos do
seu romance, que depois ageitou a seu modo, Yayá Garcia deve ahi andar passeiando por essas
ruas em um grande carro, com quatro ou cinco filhos, muito gorda, fazendo numerosas
compras de bagatelas na rua do Ouvidor, riquissimamente vestida, com braceletes de ouro
macisso, falando em voz alta e estridente, queixando-se dos criados e escravos, que são todos
uma peste, emquanto o marido, absolutament annullado e egualmete pançudo, discute á porta
25
do Castellões a authenticidade das formas de certas figurantes do Alcazar ou do circo
equestre.
Estella raro passa na rua do Ouvidor. Quando a eu encontro com o seu nitido e singelo
vestido de flanella azul orlado de preto, o seu liso chapéu de palha com wna fita, as suas luvas
de fio da Escossia, as suas grossas e commodas botinas inglezas, pergunto-lhe sempre o que
leva naquelle seu cabazinho de fina esteira. São livros, gravuras, musicas para os seus
discipullos, pequenas encommendas de uso domestico, surprezas para uma criança,
lembranças para uma amiga.
Como ella é bem recebida e acatada em todas as casas conhecidas onde aparece, em
todas as occasiões em que é preciosa a consolação e o conforto! Como a acarinham as
crianças, a affagarn os hospedes, lhe sorriem e a servem os criados! Atraz de si deixa sempre
mna palavra, wn sentimento, uma recordação. Nada sabe do que é mau; atravessa a sociedade

25
Afamada confeitaria, que teve origem na casa de D. Francisca de Paula Cordeiro Castellões, onde se
vendiam "finissismos doces, peças frias e guizadas, pastelões folhados, chuvas de amor, biscoitos para chá
e doces". Instalada na Rua do Ouvidor, realizou banquetes célebres para festas da Sociedade Philarmonica e

287
na ponta dos pés sem enlamear·se. Sua belleza, serenando, santificou·se. Ate os parvos
comprehendem que não há ahi lugar para outro sentimento senão para o respeito.
Um aperto sincero de mão ao suavissimo poeta que creou tão bello e virtuoso exemplar
de mulher. Desculpe elle as excentricidades de um folhetinista de occasião, que, fazendo plena
justiça ao seu grande talento e excellente coração, julga sempre dever assinar·se o pobre
26
RIGOLET0

para a Assembléia Fluminense. Cf. Noronha Santos, Meios de transporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
T?,Pographia do Jornal do Commercio, 1934, p. 200.
2
Pseudônimo não identificado.

288
Revista Brazileira, Rio de Janeiro, novembro de 1898, pp. 249-255. 27

BIBLIOGRAPHIA

261.- Yayá Garcia, por Machado de Assis, Nova edição, H. Garnier, editor, Rio de
Janeiro, 320 pags.

O livro delicioso e honesto que tem este nome pertence á primeira maneira do autor.
Entendamo-nos, porém, quando falamos em primeira maneira do Sr. Machado de Assis. No
Sr. M. de A. justifica~se mais uma vez o conceito critico da Wlidade da obra dos grandes
escriptores. Todo o Sr. M. de A. está effectivamente nas suas primeiras obras ; de facto elle
não mudou, apenas evoluiu, para empregar uma expressão em voga. O mais individual, o mais
pessoal, o mais« elle »dos nossos escriptores, todo o germen dessa individualidade que devia
attingir em Braz Cubas, em Quincas Barbas [sic], nos Papeis Avulsos e em Varias Historias o
maximo de virtuosidade, acha-se nos seus primeiros poemas e nos seus primeiros contos. A
sua segunda maneira, pois, de que estes livros são a melhor amostra, não é sinão o
desenvolvimento logico, narural, expontaneo da primeira, ou antes não é sinão a primeira com
o romanesco de menos e as tendencias criticas de mais. Digo expressamente « de mais » e não
« a mais», porque receio que estas ultimas tendencias possam talvez ser um dos senões- e as
mais perfeitas obras os têm- da obra do Sr. M. de A. A caracteristica do Sr. M. de A. é que
elle é, em a nossa literatura de ficção, um artista forrado de um pensador, de um philopho. E
até pouco tempo foi o único nestas condições. Os que possam existir depois delle, derivam
consciente ou inconscientemente delle, sendo alguns méros imitadores sem valia E no genero,
si não uso mal a expressão, elle ficou sem par. Acrescente-se que esse philosopho é um
pessimista de temperamento e convicção, e ter-se-á a sua caracterização completa, quanto é
possivel desenhar uma figura forte e complexa como a sua em dois traços de penna.

27
Artigo publicado por ocasião do lançamento da segunda edição de laiá Garcia.

289
Yayá Garcia, como Resurreição, e Helena, é mn romance romanesco, talvez o mais
romanesco dos que escreveu o A. Não só o mais romanesco, mas talvez o mais emotivo. Nos
livros que se lhe seguiram é facil notar como a emoção é, dirieis, systematicamente refugada
pela ironia dolorosa do sentimento realista de um desabusado. Em Yayá Garcia, sem ter a
pieguice dos romanticos, as gracis sentimentalidades de Alencar, a emoção, sempre contida e
sobria, consoante o temperamento do artista, corre e anima todo o livro, e o romanesco
alliando-se a ella faz desta novella, como disse começando, mn delicioso livro, que Tolstoi,
com um ou outro córte, poderia porventura arrolar entre as obras da sua literatura humana. Isto
para a superficie. Porque no fundo, lá está a misanthropia do A. Misanthropia social e amavel,
curiosa de tudo, interessando-se por rudo - o que em ultima analyse ainda é uma maneim de
amar os homens, sem estimai-os embora. Uma porção de conceitos, desses conceitos
penetrantes e fmos como uma maxima de La Rochefoucauld, que é uma das superioridades do
Sr. M. de A., e nos quaes resume elle uma situação d'alma ou um caracter, diriam ao leitor
attento que eu não me engano e que nas paginas emocionaes de Yayá Garcia, como dos
Contos fluminenses, da Helena, e da Resurreição, e nos mesmos versos do Sr. M. de A. se faz
a gestação de Braz Cubas.
Pouco direi da fabuJ~cão do livro. ~ sil\l.oles. bem urdida e natural. Não me animo a
acrescentar, logica. Os dois caracteres femininos estudados, o são talvez com mais força que
acerto. Mas são inteiros e bem desenhados. Um dos psychologos da moda não teria deixado de
attribuir áquellas duas mulheres uma nevrose qualquer, e de pôr naquellas paginas de arte um
nome arrevesado, apanhado de outiva no consultoria de um medico ou mal percebido de uma
leitura indigesta. O Sr. M. de A., com seu apurado gosto e fino tacto, manteve-se no puro
dominio da arte. Viu as duas formosas creaturas do seu romance apenas com os seus olhos de
artista observador. Não quiz saber do estado dos seus orgãos e despresou a pathologia da
familia. Julgou-as e descreveu-as sem auscultai-as nem percutil-as, sem indagar das condições
physicas dos seus antepassados, mas só pelo que dellas viu e assistiu. Si errou no descrevel-as,
não houvera errado menos com aquellas precauções clirúcas e ridiculas. Prova de uma
superioridade artistica, pouco vulgar entre nós e alhures. Histericas ou não, Estella e Yayá são
dois interessantes perfis de mulher, para o meu prosaismo feminino talvez algum tanto
poetizadas, mas vivas, e como o Sr. M. de A. não quer ser um «naturalista» ou um« realista
)), no sentido escolastico destas qualificações, aceito-as quaes me apresentou. Luiz Garcia,

290
esse, é uma figura completa, e tanto mais difficil que é uma figura apagada e Valeria, se não
chega a ser um medalhão, é um forte esboço. O heroe de romance, e neste lhe cabe bem o
nome, Jorge, -até o nome é romanesco- é, ao meu ver, a figura menos perfeita, mais trivial
delle. Quando se estudar minuciosamente, como merece, a obra do Sr. Machado de Assis, se
verá que em toda ella ha uma porção de typos subalternos, admiravelmente descritos com
crueldade e amor, se posso juntar estes dois substantivos. Ha mna classe de individuas
profundamente antiphaticos ao Sr. Machado de Assis, para os quaes elle especialmente reserva
toda a sua capacidade de malquerença, são primeiro os tolos e depois, longe, muito longe dos
tolos, os velhacos sem talento, sem força, sem energia, abjectos, almas baixas e espiritos
tambem sandios. A essa galeria, onde figuram o Vianna da Resurreição, o Freitas do Quincas
Borba e outros muitos, pertence o Sr. Annmes de Yayá Garcia. O Sr. M. de A. não teria
jamais dado o reino do céu aos pobres de espirito, ou então lhe parecerá, como a Alvares de
Azevedo, preferivel o inferno.
A excellencia com que o autor de Yayá Garcia escreve a nossa lingua é proverbial. A
preeminencia com que a escreve não é talvez tanto, e essa me parece a mim util de verificar.
Nos dois povos que a falam ha escriptores tão correctos, tão puros e, direi mesmo, tão
elegantes ; alguns haverá mesmo mais copiosos; nenhum, porém, conheço que a use com igual
facilidade, nas mãos de quem seja ella tão ductil, tão leve, tão expressiva, tão significativa, tão
capaz, tão matizada e ao mesmo tempo tão sobria, galante e senhoril. A língua portugueza me
dava a impressão de não ser propria ao conceito, adequada ás finuras do aphorismo ou ás
graças e agudezas das sentenças e bons ditos. Experimentem traduzir uma maxima de
Larochefoucauld ou um pensamento de Amiel ou Renan e terão a minha inpressão, leiam o
Marquez de Maricá e que taes momlistas da nossa lingua e terão a confirmação dessa
impressão. Unico talvez entre os seus escriptores o Sr. Machado de Assis lhes dará impressão
contraria. Não lhes falo de frases como estas, lidas em Yayá Garcia:« R. olhava para ella,
bebendo a felicidade, que se lhe entornava dos olhos, como um jorro d'agua pura>> ou:« Yayá
derramava pela casa todas as sobras de vida; » ou« uma familiaridade enluvada, um ar de
visita de pouco tempo ; » ou « E. era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino; »
ou « nunca abria porém a porta do coração á curiosidade transeunte >> e mil outras, que são
bellas, originaes, imprevistas, raras, que entram por muito no feitio do escriptor, mas que
poderiam ser inquinadas de um abuso da metafora , algumas de mievrerie mesmo. Refiro-me

291
ao que fonna propriamente o conceito, o residuo verbal do pensamento. Da obra do Sr.
Machado de Assis se poderia extrair, como da dos verdadeiros pensadores, um livro de
aphorismos. Em Yayá Garcia esta feição do genio do Sr. M. de A reconhecivel desde os seus
primeiros ensaios, que se desenvolverá no Braz Cubas, no Quincas Borba, e nos contos da sua
segunda maneira já é mais manifesta que na Resurreição, ou na Helena. Ao acaso colhemos
estes:
«A vida conjugal é tão sómente uma chronica ; basta-lhe fidelidade e algum estylo )) - «
Ha uns amores aliás verdadeiros, a que precedem muitas contrafacções ; primeiro que a alma
os sinta, tem despendido a virgindade em sensações inflllUlS ». O que realça esta capacidade do
Sr. M. de A. é a sobriedade e a propriedade com que a usa, com o raro sentimento de bom
gosto e tacto, que tanto o distinguem entre os nossos melhores escriptores.
:âbido aue o ..Sr. M. de A. não é um vul2ar oLntor de costumes. não pretep.de. não _auer ~
sel-o. A arte descritiva, fôrma sem duvida inferior da arte, não o seduziu jamais, em um meio
em que só ella tinha cultores. É mais uma prova de personalidade, que faz delle, como já tive
occasião de dizer, um escriptor á parte na nossa literatura. Nunca elle escreveu por baixo de
uma novella sua o habitual« romance brazileiro)) . Nelle a moldura, a paizagem- pela qual
não tem nenhum gosto - são quando muito accessorios secundarias. As lacrima rerum acaso o
deixam indifferente, o que o preoccupa é o homem, as situações e os contrastes dos caracteres,
como já o deixou perceber algures. O homem não, os homens. Como seu Luiz Garcia, o pai de
Yayá, acaso elle amando a especie aborrece o individuo. Mas este, como parcella da especie, o
interessa sobretudo, e o seu grande prazer de artista é observai-o, estudai-o, fibra a fibra,
musculo por musculo, com uma grande curiosidade de suas paixões, dos seus tics, das causas
que o movem e agitam, nas suas relações sociaes e humanas. E o individuo, toma a sua
desforra pela propria intensa e completa maneira por que o preoccupa Mas esse homem, essa
mulher, Luiz ou Yayá Garcia, Jorge ou Estella-uma das figuras com mais carinho tratadas na
obra do Sr. M. de A. - não é especialmente brazileiro ou brazileira, mas universal. De
brazileiro tem apenas as feições geraes para não destoarem do meio a que pertencem, não
quebrarem a hannonia do ambiente da ficção, e não offenderem os sentimentos de realidade
do leitor. E é esta a mais aita distincção do genio do Sr. M. de A. na literatura brazilelra, que
elle é o único escriptor verdadeiramente geral que possuímos, sem deixar por isso de ser

292
brazileiro. Mas a demonstração deste asserto, alongaria de mais estas observações que não
pretendem ser mais que uma simples nota bibliographica.
J.V

Crepusculos.- por Pedro Vaz, Rio de Janeiro, 1898.

Nimbos.- por Luiz Edmundo, 28 edição, Rio de Janeiro, 1898.

Nas 64 pags. deste livrinho de versos não sabemos si ha propriamente um poeta ; mas si
dellas surgisse wn, não nos admirariarnos. Além da facilidade e geral correcção do verso, ha
no Sr. L. E. uma pontinha de emoção e de graça, -não a graça de fazer rir, -que lhes dá wn
certo relevo no meio da espantosa e mediocre producção dos numerosos poetas que povoam o
parnaso indigena.

Proféssos . -por Juvenal O. Miller, Porto Alegre, 1898.

Credito movei pelo penhor e o bilhete de mercadorias.- pelo Visconde de Ouro Preto, Laemmert & c.a editores,
!898, XII-540-!Vpags. XXIX-413 pags.
Titulos ao Portador no Direito Brazileiro. -por H. Inglez de Souza, Rio de Janeiro, Francisco Alves, editor, 1898,

in- 8 °.
Manoel de Soiza - Historia ligeira por Oscar Leal, Lisboa, 1898, 25 pags.

A morphéa - Extracto dos trabalhos da conferencia internacional de Berlim realizada em outubro de 1897, Bahia,

1892, 64 pags.

A Religião entre os condemnados da Bahia - Estudo de psychologia criminal, Amargosa, Bahia, 1898, 36 pags.

Annuario Medi;o Braziloiro - Fundado e dirigido pelo Dr. Carlos Costa, decimo primeiro anuo- 1896, Rio de

Janeiro, 1898, VIII -115 pags.

1° e 2'l Relatorios da Commissão ern;arregada... - Para comprovação das investigações do Sr. professor Domingos

Freire sobre a febre amarella, Rio de Janeiro, 1898, 64 pags.

293
1
A Notícia, Rio de Janeiro, 5.11.1898

Chronica litteraria

MACHADO DE ASSIS- Yayá Garcia. -MANUEL TAPAJÓs-Fronteira


sul do Amazonas: questão de limites- LUIZ EDMUNDO-Nimbos.

Yayá Garcia é um romance romantico de Machado de Assis.


O romantismo em Machado de Assis não podia tomar o caracter excessivo e fogoso,
lamuriento e piégas, que foi uma das suas notas dominantes. A serenidade risonha e ironica do
auctor de Braz Cubas tinha forçosamente de temperar os exageros da escola. Por pouco que os
seus personagens manifestem velleidades de entregar-se a grandes arrebatamentos lyricos,
percebe-se que o auctor está junto d'elles a contei-os, a chamai-os a uma realidade mais
comedida, mais discreta...
D'ahi, uma vantagem : é que, chegados a outros tempos, a outras modas litterarias, os
seus livros supportam perfeitamente o confronto com obras que se dizem do mais absoluto
naturalismo.
Yayá Garcia é um volumesito simples e delicioso. Há n'elle a histeria de uma filha que,
tendo suspeitado o amor da madrasta por um dos seus antigos namorados do tempo de solteira,
lembra-se de fazer amar por esse homem, para desviar do pae qualquer deshonra, qualquer
traição. O plano estava bem traçado ; exigia, porém um pouco menos de mocidade, quer da parte
de Yayá-Garcia, quer da parte de Jorge. A seductora não previo que seria seduzida. F oi,
entretanto, o que succedeu. Queria apenas ser amada ; não calculou que chegasse tambem a
amar.
Todo o romance passa-se entre duas mulheres, Yayá Garcia e Estella, e um homem,
Jorge ; os demais personagens são figuras accessorias. Estella é um nobilissimo caracter de
mulher, finnemente desenhado pelo auctor.

1 Artigo assinado por J. dos Santos, pseudônimo de Medeiros de Albuquerque.

294
O livro é bellissimo. Não tem uma pagina, já não digo impura, mas simplesmente
incorrecta. E' commovedor e simples. Dará, de certo, aos que o não tenham ainda lido (e
n'esse numero estava eu) algwnas horas de intenso prazer .

**

E agora, uma nuga...


Nas publicações theatraes de Arthur Azevedo e Valentim Magalhães, Os doutores e O
badejo, appareceu pela primeira vez, sob o nome dos auctores, a designação: ""Da Academia
Brazileira de Lettras".
Porque Machado de Assis, presidente d'aquella corporação, não faz inscrever a mesma
declaração na reedição dos seus livros? Certo, isto não lhe dará wn só leitor a mais. Quem tem
a lucrar não é o escriptor, é a Academia. Convem que o publico vá encontrando a cada passo
na grande maioria de livros de valor a menção de que os seus auctores fazem parte da
Academia de Letrras. Assim se dissipará o preconceito que contra ella nutrem tantos espiritos.
Que esse preconceito é tolamente importado de França- não ha duvida. Também,
verdade seja, não de outro legar foi importada a idéa da nossa academia e até a sua
organisação interna. Mas wn facto não auctorisa outro. Criticas, que são lá perfeitamente
justas, são aqui sem o menor fundamento.
Em primeiro legar, a censura feita á constituição de todas as academias por alguns, que
se dizem apaixonados pelo individualismo em materia de arte, parece absolutamente inepta.
Não se vê bem em que o valor individual, o temperamento, o modo de ser de cada escriptor,
fiquem alterados por fazer elle parte de uma associação composta de outros,cujo valor e
temperamento sejam diversos. Lado a lado, os escriptores mais profundamente antagonistas,
não é de crer que nenhum contagia o outro, quer com os seus processos litterarios, quer com as
suas convicções de outra ordem. Na Academia Francesa não consta que até hoje os escriptores
que a compõem tenham sacrificado ou modificado sua originalidade.
Depois (já se escreveu aqui, mas é bom repetil-o) não se comprehende por que a
associação que é a fónna mais aperfeiçoada da manifestação de todas as actividades hwnanas
só fallaria [faltaria] na literatura ? -a associação,precisamente instituida, não para crear
nivelamentos intellectuaes, mas para garantir e conservar originalidades individualissimas.

295
A critica mais justa feita á Academia Franceza é da exclusão de um grande numero de
escriptores de valor muito superior ao de alguns que d'ella fazem parte. Entre nós, critica
analoga difficilmente será acceitavel, não porque todos os academicos sejam o nec plus ultra
do talento nacional, mas porque, dada a nossa fraca producção litteraria, era fatal que em
quarenta nomes se comprehendessem quase todos os que trabalham, os que se deve presumir
que tenham algum merito. Pode talvez haver excepções, tendo sido incluido quem não o
devera ser, com exclusão de algum de mais valor. Nenhum, porém, dos mestres, dos chefes,
dos grandes nomes da nossa litteratura deixou de estar ahi figurando.
E' isto que incumbe a Machado de Assis e a outros nas suas condições fazer vêr
praticamente, escrevendo por baixo dos seus nomes, cada vez que produzam ou reproduzam
uma obra, a menção: "Da Academia Brazileira de Lettras."

[o artigo continua tratando dos outros livros indicados no início]

296
SOBRE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

297
Revista fllustrada, Rio de Janeiro, 3.4.1880, p. 2.

Revl~í·a lllu~trada

UVRO DA PORTA

.• '

O governo vai absorvendo os poetas.


O Sr. Pedro Luiz está ministro, o Sr. Machado de Assis official de
gabinete29 .....justamente quando encetou na Revista Brazileira a publicação do seu romance
Memorias de Braz Cubas, muito interessante para que todos desejem a sua continuação.
É ligeiro, alegre, espirituoso, é mesmo mais alguma cousa : leiam com attenção, com
calma; ha muita critica fma e phrases tão bem subscriptadas que, mesmo pelo nosso correio,
hão de chegar ao seu destinatario.
É portanto um romance mais nosso, uma resposta talvez, e de mestre uma e outra causa ;
e será um desastre se o official de gabinete absorver o litterato.
Esperemos que não.
30
RAULD.

29
Pedro Luís assumira a pasta dos negócios estrangeiros em 28 de março de 1880; na mesma data,
Machado fora nomeado oficial de gabinete do ministro da Agricultura, Manuel Buarque de Macedo. Cf.
Revista do Livro, no. 11, Ano m, Setembro 1958. Edição Comemorativa do Cinqüentenário da Morte de
Machado de Assis. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1958, p. 157.
30
Abreviação de Raul d'Âvila Pompéia.

298
Gazetinha, Rio de Janeiro, 12.1.1881, p. I.

[... ] Recebemos e agradecemos um exemplar do notavel romance de Machado de Assis,


Memorias Posthumas de Braz Cubas, sobre o qual daremos qualquer dia destes um folhetim.
O Leonardo,dando noticia do apparecimento deste livro, que vem accrescentar as
lettras nacionaes, limitou-se a estas simples palavras :
"0 Sr. Machado de Assis acaba de dar-nos em livro nitidamente impresso na
typographia nacional, as suas Memorias Posthumas de Braz Cubas, já publicadas nas paginas
da Revista Brazileira, onde encontraram a geral estimação que mereciam".
Decididamente, o Jornal do Commercio é um grande pandigo.
Si se tratasse da apreciação de algwn waudeville tolo, é provavel que lhe fossem
sacrificadas algumas das duzentas e vinte linhas de composição que hontem tomou o
Obituario.
Os redactores do Jornal não seriam convidados para a sociedade José de Alencar?

299
Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 15.1.1881, p. 6. 31

Bibliographia

Acabo agora mesmo de reler as Memórias Póstumas de Braz Cubas, cuja publicação

tinha acompanhado sempre com o máximo interesse.

Já uma vez me referi a esta obra, cujos primeiros capítulos eram uma valiosíssima
promessa que o autor hoje paga com uma generosidade de espírito e de bom humor
inapreciáveis. Machado de Assis, reconhecem-no todos aqueles que o tem acompanhado desde

as Phalenas, A Mão e a Luva, Resurreição, Contos Fluminenses ... até Jaiá Garcia e Tu só, tu,

puro amor ... , é uma organização essencialmente literária e, sobretudo, um talento


provadamente progressivo: vence-se constantemente.

As Memórias Póstumas, escritas com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, são


mais uma prova interessante do seu engenho e um valioso mimo de humorismo. A obra é tudo,

diz ele, esquivando-se a um prólogo: se te agradar, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-

te com um piparote.

Eu, com certeza, não apanho o piparote.

31
Assinado com o pseudônimo D. Junio, provavelmente pseudônimo de José Ribeiro Damas Júnior,
jornalista, redator da Revista lllustrada e colaborador em A Estação.

300
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 30.1.1881, p. 2. 32

LIVROS E LETTRAS

As Memorias posthumas de Braz Cubas serão um romance? Em todo o caso são mais
algwna causa. O romance aqui é simples accidente. O que é fundamental e organico é a
discripção dos costumes, a philosophia social que está implicita.
Esta philosophia define-se facilmente evocando os dois nomes de La R.ochefoucauld e
Sancho Pancha Com effeito vemos de um lado o scepticismo, perguntando si atraz de um
acto que desperta o enthusiasmo e desafia a critica e a malevolencia, não ha motivos
reconditos que o reduzem a proporções de um facto qualquer banal. De outro, ha a satisfacção,
ha o contentamento, que acha que rodo vai muito bem, no melhor dos mundos imaginaveis.
Segundo esta philosophia, nada existe de absoluto. O bem não existe; o mal não existe;
a virtude é uma burla ; o vicio é um palavrão. Tndo se reduz a uma evolução ; a passagem do
importuno para o opportuno, ou do opportuno para o importuno.
Os homens bem o sabem. Porque não reagem?
Primeiro, por causa das formalidades, a mais consistente de quantas argamassas
conservam preso o edificio da sociedade. Segundo, pelo interesse, que, si não encobre o
cantinho direito, leva a embicar para a direcção opposta. Depois a vaidade, a cobardia, a
cobardia principahnente...
Philosophia triste, não é? O auctor é o primeiro a reconhecei-o, e por isso põe-na nas
elocubrações de wn defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a ganhar, póde despejar até
as fezes tudo quanto se contém nas suas recordações.
A sua vida levou-o, aliás, a taes conclusões. Nasceu de pais ricos e complacentes, que o
amavam com ardor, mas de um amor antes especifico e animal do que esclarecido e elevador.
As suas inconveniencias e travessuras passavam como rasgos de espírito. As suas exigencias,

32
A artigo é de autoria de Capistrano de Abreu.

301
por mais esdruxulas, eram sempre satisfeitas. D'ahl a primeira tendencia- para a satisfacção,
para o optimismo, tendencia auxiliada pela fatuidade, que herdára do pai.
Veio a amar, -mas sensualmente« durante quinze mezes e onze contos de réis.» Foi a
este proposito que lhe sobrevieram as primeiras duvidas, e desgostos. Mas quem sabe? pensou
consigo. Si o meu amor fosse puro, seria outro o desenlace.
Viu, porém, que não seria. Encontrou no navio em que embarcara um par que se amava
legitimamente. A mulher morre, e é pretexto para versos, e no applauso por estes suscitado
afoga-se a dôr da perda que considerava irreparavel.
Na universidade em que estudou, a face dos objectos poderia modificar-se. Si o estudo o
arrastasse; si a sciencia com sua belleza muscula o attrahlsse ou uma idéa qualquer o
prendesse; poderia ter sido differente o resto de sua carreira.
Não succedeu assim. O que queria era a carta de bacharel ; esta obteve-a sem grandes
difficuldades. E, como o problema do bem nunca se desenhara em sua consciencia, o problema
da verdade nunca palpitou em seu espirito.
Volta para a patria e perde a mãi. Uma dor grande o possue. Aguilhada por ella, vai
procurar lenitivo na solidão. O pai visita-o, e em vez de encontrar n'elle a angustia e o
desconsolo, Braz Cubas só enxerga a vaidade por ter recebido uma carta do regente, ao mesmo
tempo que o desejo de o introduzir na politica.
Mostra-se agora um ensejo que poderia dar outra direcção á vida de Braz Cubas.
Encontra uma mulher nobre, digna, de uma virtude que não permittia duvidas, de um caracter
que não admitia transacções.
Amou-a, até que podia amar; porém, ella era pobre, filha natural e os calculas do pai
apontavam-lhe outra; que era uma apresentação para a deputação. Fez a côrte a esta; foi bem
recebido; tudo parecia encarrilhado da melhor maneira...quando um rival, que não lhe era
superior, seduziu a sua noiva acenando-lhe com a coroa de marqueza.
Si não fosse Braz Cubas, teria soffrido um choque terrivel ; mas o nosso heróe não era
homem de abalos. Sua vontade foi amarrotada, e muito mais a do pai, que não poude resisitir
ao golpe. Mas não passou disto; nem protestos, nem maldições contra as mulheres, nem causa
nenhuma. Já chegara á theoria das edições humanas, e vira que isto de amor, por maior que
seja a impressão causada no momento, difficilmente escapa ao ridiculo, quando passado o
extasia.

302
Viu mais tarde que a amizade de familia é um logro, pois sua irmã e seu cunhado por
causa da herança não hesitavam em quebrar os laços.
Então atirou-se á vida facil, ás polemicas de jomaes. Si tivesse de ganhar a vida ; si a
necessidade o obrigasse ao labor ; é provavel que diverso fosse o seu futuro ; mas nem no
exterior, nem no intimo encontrava incentivos para a actividade.
Não tardou muito que voltasse para o Rio Virgília, a mulher que por ambição lhe
preferira o outro. Encontraram-se os dois e não se sabe bem porque, - provavelmente porque
de importunos tinham passado a opportunos- começaram a se amar.
Amor cego, que chegou ás curniadas do sentimento, para depois ir baixando, baixando
até ficar rente com o solo. Braz Cubas a principio nada viu, enlevado no primeiro impeto ;
depois, porém, notou que a alma que elle julgava pertencer-lhe inteira era dominada por
muitas outras considerações : a vaidade, o gosto de ser admirada, o medo, uma certa
ingenuidade impudente ...
O marido desconfiou ; mas, embora caracter de rija tempera, apenas gretado por certos
preconceitos, não teve coragem de desaffrontar-se, porque viu que isto seria tomar publica a
mancha domestica.
D'abi a tempos, Virgilia teve de acompanhar o marido a uma provincia de que fora
nomeado presidente, após incidentes bastantes [sic] curiosos.
Nada prendia Braz Cubas a Virgilia; o amor fôra substituído pela saciedade em ambos;
o filho, que Virgilia a principio annWiciara, morrera antes de nascer. Por isso acabou cedendo
ás propostas de casamento que sua irmã lhe fazia. Mas estava escripto que elle nunca havia de
formar familia ; a noiva morre poucos dias antes do acto realisar-se.
Foi depois do fallecimento da noiva que Braz Cubas entrou na politica. Foi deputado;
escapou de ser ministro e não foi reeleito. Imagine-se a sua decepção !
Mas um anúgo o consolou, mn amigo de viver bastante agitado, que da ociosidade fôra
levado ao vicio, e do vicio ao crime. Este amigo a quem uma fortuna herdada
inexperadamente, afastara do caminho da corrécção, imaginou wn systema de philosophia : o
humanitismo.
Tudo é bom ; tudo é grande ; tudo é santo. A humanidade reside no todo, mas reside
igualmente no individuo. Como, por conseguinte, póde lesar-se a si própria!

303
Gazetinha, Rio de Janeiro, 2.2.1881.

BIBLIOGRAPHIA

MEMORJAS PHOSTUMAS DE BRAZ


CUBAS

As Memorias phostumas de Braz Cubas são um livro de philosophia mundana, sob


fónna de romance. Para romance falta-lhe entrecho e o leitor vulgar pouco pasto achará para
sua imaginação e curiosidade banaes.
O livro poder-se-ia intitular, sem muita falta de propriedade,- o Elogio do Egoísmo- tal
é a amarga philosophia que distilla, aliás muito contestavel, si bem que temperada por um
humorismo de bom gosto.
O eu, o eu sinistro, é o factor da vida que assoberba e nullifica todos os outros ; só ha no
livro um personagem com sentimentos altruistas, desprendido do eu, este personagem é um
louco - o Quincas Borba.
E neste mesmo, como o auctor dá a entender, o altruismo não é mais que uma simples
extensão do egoismo, inventada pela sandice.
Dirá o auctor que aquillo é o fructo de longa observação e experiencia, mas nós lhe
contestaremos que nos phenomenos da observação e da experiencia o ponto de vista é tudo. Os
effeitos de luz e sombra dependem do ponto em que, voluntaria ou involuntariamente, se
collocou o observador.
O auctor, sobrio como é, usando de anodynos a tudo, deixou transparecer uma ponta de
materialismo, que, máo grado seu, avulta e enche o espirito do leitor até chegar a este terrivel
theorema, - o bem e o mal não são principias, são resultados.
A virtude ou o vicio são o producto das circumstancias, e o homem é o escravo das
circwnstancias. Logo o homem é irresponsavel e innocente, como queriamos demostrar.
O Sr. Machado de Assis rebate, com visivel voluptuosidade de philosopho, ao chão da
banalidade e do commum, toda ordem de sentimentos e idéias que nos pareciam filhas de um

304
movel generoso, elevado, desinteressado, espontaneo, o qual deve residir no imo da naturesa
humana.
Si não disse isto positivamente, escreveu-o nas reticencias, um dos segredos do seu
estylo. Interpretar ou mesmo adivinhar a idéa-mãe da obra, descobrir a bussola que dirige a
penna do ecriptor, tal é a missão mais importante e di:ffi.cultosa da critica.
A nós, parece-nos que o seu pensamento cardeal foi o que acima exarámos ; e si assim é,
si quiz de facto fazer o elogio do eu, pondo em partes secundarias todas as outras forças cuja
resultante final é a acção humana, nós oppomos o nosso fraco voto a esta desoladora theoria.
Anniquilar a vontade humana, reduzi-la a um catavento que impelle a briza caprichosa,
quando justamente todo o drama da vida provém da grande luta empenhada entre a vontade e a
fatalidade, entre o homem e o mundo exterior!...Inutil é insistir na falsidade deste theorema.
Vejamos agora a feição litteraria do livro.
O estylo é sobrio, impeccavel, ataviado de expressões originaes e pinturescas que muito
o realçam ; ás vezes, porém, monotono e livrando-se da monotonia pelo abuzo das cabriolas.
No colorido geral poucas são as côres definidas, e estas mesmas desmaiadas e se succedendo
lldinuamente em infinitos matises. nara, !iUDDlicip~ do onz:am yj.sual. É um estvlo fiyta-côres.
aquelle.
Ha, no correr da obra, percepções singulares, conceitos de grande agudeza, certa veia
comica que faz rir para não fazer chorar, e umas tantas tendencias naturalistas assáz attenuadas
pela polidez natural do auctor.
Em summa, a nossa impressão final é a seguinte : -A obra do Sr. Machado de Assis é
deficiente, sinão falsa, no fundo, porque não enfrenta com o verdadeiro problema que se
propoz a resolver e só philosophou sobre caracteres de uma vulgaridade perfeita ; é deficiente
na fónna, porque não ha nitidez, não ha desenho, mas bosquejos, não ha colorido, mas
pinceladas ao acaso.
Appelamos para juizo mais competente.
U.D33

33
Iniciais de Urbano Duarte.

305
SOBRE QUINCAS BORBA

307
Jornal do Brazil, Rio de Janeiro, 11.1.1892, pp. 1-2

A's segundas-feiras

Um novo livro do Sr. Machado de Ass~

Machado de Assis- Quincas Borba- Rio de Ja-


neiro -B. L. Garnier, 1891

O novo livro do Sr. Machado de Assis, um romance com o titulo de Quincas Borba,
comquanto tenha na capa a data de 1891, só foi dado a publico nos primeiros dias do anno que
começa, de 1892. Por isso escapou á resenha que na ulthna segunda-feira fiz da nossa
producção litteraria.
O Sr. Machado de Assis tem o merito raro, e de nenhuma fórma alludo agora ao valor
litterario da sua obra, de ser perfeitamente um escriptor.
Eu creio que elle seja um excellente funccionario, estou certo, porém, que para elle, e,
talvez mais para elle que para outros, como para a maioria dos nossos homens de lettras, a
burocracia de que vivem é apenas uma necessidade imposta pelas circumstancias, praticada
com dedicação, com habilidade, com honradez, mas sem amor. Afora a sua qualidade de
funccionario publico, qualidade que eu quasi me inclino a chamar accidental não obstante ser a
essencial da sua existencia, o Sr. Machado de Assis é, sobretudo e principalmente, um homem
de lettras. Elle nunca foi jornalista, senão de passagem e sem sacrificio da sua personalidade
litteraria, nunca foi politico, nunca foi das fmanças ou do commercio, nunca foi em summa
outra causa senão um artista, poeta ou romancista, algumas vezes critico, occupado e
preoccupado de sua arte.
Direi mais que sob este aspecto elle é o homem de lettras segundo o meu coração,
vivendo senão das suas lettras, que lh'o não consente o meio, mas pelas suas lettras.

308
Desde longe e de muito, na doce e querida obscuridade da vida provinciana,
acompanhando com sympathia e interesse a vida litteraria brazileira, que quasi toda é aqui
completa se bem que pobremente vivida, eu reparava que se os seus livros se succedião com
mais ou menos espaço, nunca jamais lhe vi o nome nas polemicas e lutas com que os nossos
homens de lettras têm o habito quasi periodico, de se dar em espectaculo ao burguez pacato,
que se vinga do desprezo que lhes merece, desfructando-os. Não lhe vi tão pouco o nome nas
listas das directorias das companhias que fervilhárão por ahi quando a população desta cidade
ameaçava tornar-se inteiramente de banqueiros e capitalistas. De vez em quando, entretanto,
lia-o em outra parte que o frontispicio dos seus livros ou o fim dos seus artigos litterarios
n'alguma revista ou jornal ; era, de ordinario, n'algum periodo desdenhoso ou ferino da nova
geração. Para quem estava alheio ás pequenas ou grandes animosidades litterarias que por cá
andavão, quasi ficavão incomprehendidos o desprezo com o ataque a um escriptor que podia
julgar coro a mesma isenção com que apreciaria um estrangeiro e por um único documento :
os seus livros. Ora, esses livros, em que pese aos novos escriptores, entre os quaes muitos ha
que admiro e estimo, erão deliciosos. D'ahi o não participar eu de um certo prejuizo de seita
litteraria - e tenho horror a todas as seitas, politicas, litterarias, religiosas ou o que forem -
contra o poeta das Phalenas, o espirituoso novellista dos Contos Fluminenses, o mimosissimo
autor de Tu, só tu, puro amor, o romancista observador da Resurreição, o fino humorista dos
Papeis avulsos e das Memorias posthumas de Braz Cubas. E, para que hei de esconder?
independentemente do valor propriamente litterario da sua obra, eu não pude, apezar daquellas
criticas e daquelles desdens, furtar-me a admirar e estimar o escriptor que sem embargo do
meio, ficou sempre e antes de tudo um escriptor, conservando não só o amor da sua arte e do
trabalho litterario, mas a elevação e a dignidade que devião ser a norma, e quasi direi o
apanagio, da vida litteraria. As parcerias que desgraçadamente muitas vezes nessa vida se
formão não bastão para negar a obra de um escriptor de quinze livros.
Não é, entretanto, o sei, pelo numero senão pelo valor dos livros que se julga a obra
litteraria de um homem de lettras. Não são raros os que vivem apenas por um livro, e menos
raros são ainda os que não salva wna copiosa producção. Como, porém, o que faz a producção
litteraria é o livro, o valor de tal producção, quer de um paiz, quer de um homem, é, ao menos
á primeira vista, julgado pelo numero de livros, tanto mais que são poucos aquelles escriptores
a cujo renome basta um só.

309
No Brazil não são muitos os escriptores de numerosos livros. Não o permitte o meio que
forçosamente restringe a producção litteraria á escassez da procura, como tambem a
presumpção de fazer litteratura sem livros. Não são poucos os grandes escriptores ou pelo
menos os litteratos eminentes que temos possuido e possuímos, dos quaes se não conhece um
livro.
Em sciencia tambem, ha ahi - no passado e no presente- sabias e mestres, alguns com
M grande, cuja sciencia tem apenas o defeito de não poder ser scientificamente aquilatada por
falta de documentos.

*
* *
A obra litteraria do Sr. Machado de Assis, não póde ser julgada segundo o criterio que
eu peço licença para chamar nacionalistico. Esse criterio, que é o principio director daHistoria
da Litteratura·Brazileira e de toda a obra critica do Sr. Sylvio Roméro, consiste, reduzido a
sua expressão mais simples, em indagar o modo por que um escriptor contribuio para a
determinação do caracter nacional, ou, em outros termos, qual medida do seu concurso na
formação de uma litteratura, que por uma porção de caracteres differenciaes se pudesse
chamar conscientemente brazileira. Um tal criterio, applicado pelo citado critico e por outros á
obra do Sr. Machado de Assis, certo daria a esta uma posição inferior em nossa litteratura
Parece-me, porém, que legitimo de certo modo, é por demais estreito para formarmos
delle um principio exclusivo de critica. Se a base de uma litteratura qualquer é o sentimento
nacional, o que a faz grande e enriquece não é unicamente esse sentimento. Estreitariamos
demais o campo da actividade litteraria dos nosso escriptores se não quizessemos reconhecer
no talento com que uma obra é concebida e executada um criterio do seu valor,
independentemente de uma inspiração mais pegada á vida nacional. Por isso, a do Sr.
Machado de Assis deve ser encarada á outra luz e, sobrerudo, sem nenhum preconceito de
escolas e theorias litterarias. Se houvessemos, por exemplo, de julga-la conforme o criterio a
que chamei nacionalistico, ella seria nulla ou quasi nulla, o que basta, dado o seu valor
incontestavel, para mostrar quão injusta póde ser ás vezes o emprego systematico de formulas
criticas. Eu por mim cada vez acredito menos nellas.
O Sr. Machado de Assis, não é nem lUil romantico, nem um naturalista, nem lUil

nacionalis4t- nem um rea}ista. nem entra ~m qualauer dessas classi.ficacões em ismo ou is(a. É.

310
aliás, um humorista, mas o humorismo não é urna escola nem sequer uma tendencia litteraria,
é apenas um modo de ser do talento; ha humoristas ou póde have-los em todas as escolas.
Porisso, e até certo ponto, o Sr. Machado de Assis tem uma certa inferioridade que não quero
deixar em silencio. Á nossa litteratura, mesmo no seu sentido mais geral e mais lato, seria
sensível a falta da obra dos romanticos da primeira hora, a de Alencar, a de Bernardo
Guimarães e mesmo a de Macedo; não sei se o seria tanto a sua. E a razão é que a do Sr.
Machado de Assis é a obra eminentemente pessoal de um escriptor que pelo seu genero de
vida, pelas proprias circurnstancias da vida a que acima alludi, e talvez por condições
especiaes de temperamento e de caracter, ficou alheio ao conjuncto de factos de toda ordem
que eu chamaria a Vida brazileira.
Veria acaso superficialmente quem não visse, porém, que nem tudo foi nisso perda para
o escriptor e que a sua obra ganhou por isso mesmo urna distincção, no sentido exacto desta
palavra, e, talvez, em profundeza. O Sr. Machado de Assis não é simplesmente um escriptor, é
tambem um escriptor á parte. Na litteratura brazileira elle póde não occupar o primeiro lugar,
ou sequer um dos primeiros lugares, mas, se não me engano redondamente, occupará um lugar
especial.
Não pertencendo a escolas, elle não poderá ser classificado consoante á esthetica de cada
uma dellas. Escrevendo ao sabor da sua inspiração e do seu talento, sómente o modo porque
executou a sua obra lhe será levado em conta no juizo final da nossa histeria litteraria.
Outra feição especial que distinguirá o Sr. Machado de Assis é o seu hurnorismo. A não
ser Joaquim Serra, que eu aliás não sei se posso considerar um escriptor embora fosse um
poeta, e que antes foi um jornalista, eu não conheço na litteratura brazileira um humorista. O
primeiro é o Sr. Machado de Assis. Nós não somos um povo espirituoso - e muitos
acontecimentos recentes me autorisarão a dizer que nós somos um povo sem espírito. Não
conservamos a chalaça portugueza, nem chegamos a apanhar o espirito ftancez. O humour,
caracteristicamente gennanico, e por isso mesmo mais difficil de assimilar por povos como
nós, de outra origem, mais raro ainda é entre nós. Que nós não nos podemos ter por wn povo
espirituoso, prova-lo-hia wna indagação nesse sentido feita em os nossos escriptores. Alencar,
com um tão variado talento, não tem essa nota, como não a têm os poetas, nem os romancistas,
se exceptuarmos entre aquelles Bernardo Guimarães que accidentalmente a revela e entre estes
Macedo, que é talvez, senão o mais espirituoso, o mais engraçado dos nossos escriptores.

311
Humoristas propriamente, não conheço outro além do Sr. Machado de Assis, e esta feição do
seu talento litterario ajuda a dar-lhe o lugar á parte, de que fallei, em a nossa litteratura.

*
**
O novo livro do Sr. Machado de Assis não destróe, mas de algum modo attenua senão
diminue e reduz, o caracter que eu, em certo sentido, chamarei impessoal da sua obra,
querendo significar que elle a puzera acima da vulgar preoccupação de ser nacional, o que em
outro sentido a toma grandemente pessoal.
Em Quincas Borba, não ha tanto aquelle desinteresse e aquella indifferença pelo meio, e
o autor pudera por-lhe a epigraphe que Eça de Queiroz escreveu em frente da Reliquia : a
verdade destaca-se sob as roupagens da fantasia. Não é mais a fantasia recobrindo como nos
Papeis avulsos e mesmo no Braz Cubas situações mais ou menos veridicas, estados de espirito
ou entes de razão de um artista cujo pensamento nem sempre é claro e cujo humorismo furta-
se muitas vezes á nossa perspicacia. Não é tambem um «caso» ou um estudo de caracter como
na Resurreição. Quincas Borba é, sob a fónna que desde algum tempo compraz ao autor e
hoje tão sua, um romance completo, de caracter e de costumes. Essa fórma, creio eu, começou
com as Historias sem data, com os Papeis avulsos e com as Memorias de Braz Cubas e nella
ha, além do rompimento com os moldes vulgares do romance, disposição symetrica dos seus
elementos e capitulas, arranjo classico dos episodios, nnidade de narração e de tom, a ironia
brincalhona e o humorismo ligeiramente melancolico e um pouco obscuro (e é o seu defeito)
de um espirito que leu e conversou assiduamente os humoristas inglezes. Para dar um exemplo
material a quem não tenha ainda lido Quincas Borba: o livro tem 433 paginas em 8°, e 101
capitulas dos quaes os ha de meia duzia de linhas. Não é tão fácil dar assim como que
graphicamente uma idéa ao leitor que a não conheça dessa maneira especial do autor. Dou-lhe,
portanto, a ler um capitulo ao acaso, aquelle em que Rubião, o personagem principal do livro,
recebe dous commensaes :

« Rubião passou o resto da manhã alegremente. Era domingo ; dous amigos vierão
almoçar com elle, um rapaz de vinte e quatro annos, que roía as primeiras aparas dos bens da
mãi, e um homem de quarenta e quatro ou quarenta e seis, que já não tinha o que roer.

312
«Carlos Maria chamava-se o primeiro. Freitas o segundo. Rubião gostava de ambos, mas
differentemente ; não era só a idade, que o ligava ao Freitas, era tambem a indole deste
homem. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma phrase particular,
delicada, e sahia de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a
quaesquer outros. Tinha-lhe sido apresentado em certo annazem da rua Municipal, onde
jantarão uma vez juntos. Contarão-lhe alli a histeria do homem, a sua boa e má fortuna, mas
não entrarão em particularidades. Rubião torceu o nariz ; era naturalmente algum naufrago,
cuja convivencia não lhe traria nenhum prazer pessoal nem consideração publica. Mas o
Freitas attenuou logo essa primeira impressão; era vivo, interessante, anecdotico, alegre como
um homem que tivesse cincoenta contos de renda. Como Rubião fallasse das bonitas rosas que
possuía, elle pedio-lhe licença para ir ve-las : era doudo por flores. Poucos dias depois
appareceu lá, disse que ia ver as bellas rosas, erão poucos minutos, não se incommodasse o
Rubião, se tinha que fazer. Rubião, ao contrario, gostou de ver que o homem não se esquecera
da conversação, desceu ao jardim onde elle ficára esperando, e foi mostrar-lhe as rosas. Freitas
achou-as admiraveis; examinava-as com tal affrnco que era preciso arranca-lo de uma roseira
para leva-lo á outra. Sabia o nome de todas, e ia apontando muitas especies que o Rubião não
tinha nem conhecia, - apontando e descrevendo, assim e assim, deste tamanho (indicava o
tamanho abrindo e arredondando o dedo pollegar e o index), e depois nomeava as pessoas que
possuião bons exemplares. Mas as do Rubião erão das melhores especies ; esta, por exemplo,
era rara, e aquella tambem, etc. O jardineiro ouvia-o com espanto. Tudo examinado, disse
Rubião:
« - Venha tomar alguma cousa. Que ha de ser?
«Freitas contentou-se com qualquer cousa. Chegando acima, achou a casa muito bem
posta. Examinou os bronzes, os quadros, os moveis, olhou para o mar.
« • Sim, senhor ! disse elle, o senhor vive como um fidalgo.
« Rubião sorrio ; fidalgo, ainda por comparação, é palavra que se ouve bem. Veio o
criado hespanhol com a bandeija [sic] de prata, varies licores, e calices, e foi um bom
momento para o Rubião. Offereceu elle mesmo este ou aquelle licor: recommendou afinal um
que lhe derão como superior a tudo que, em tal ramo, poderia existir no mercado. O Freitas
sorrio incredulo.
« -Talvez seja encarecimento, disse elle.
«Tomou o primeiro trago, saboreou-o devagar, depois segundo, depois terceiro. No fim,
pasmado, confessou que era um primor. Onde é que comprára aquillo ? Rubião respondeu que
um amigo, dono de um grande annazem de vinhos, o presenteára com uma ganafa ; elle,
porém, gostou tanto que já encommendára tres duzias. Não tardou que se estreitassem as
relações. E o Freitas vai ahí almoçar ou jantar muitas vezes, -mais vezes ainda do que quer ou
34
póde, - porque é difficil resistir a um homem tão obsequiso, tão amigo de ver caras amigas. »

Nenhuma obra d'arte póde viver sem verdade, mas a verdade na arte não é a copia trivial
da realidade das cousas.

34
As alterações de entrelinhamento acompanham o original.

313
O Sr. Machado de Assis, cujo temperamento parece avesso á representação quasi
photographica, á photographia banal da vida, como diria esse desditoso Maupassant, não
obstante a fórma phantasiosa e velada, ironica e humorista do seu romance, fez nelle um
quadro excellente da nossa vida e dos nossos costumes. E fe-Io tanto melhor que talvez o
fizesse sem a preoccupação de faze-lo.
Se o leitor leu Braz Cubas, conhece aquelle Quincas Borba, o inventor de uma
philosophia. Quincas Borba morre logo ao começo do novo romance deixando ao seu amigo
Rubião, que o tratou como desvelado enfermeiro, a sua fortuna e o seu cão, ao qual por mania
de philosopho dera o seu proprio nome. Eu não sei se é o cão se o morto, quem dá o nome ao
livro do Sr. Machado de Assis. São talvez ambos ou mais propriamente o espirito do morto.
Quasi a morrer Quincas Borba qualifica o seu futuro herdeiro de «asno», e asno elle se mostra
dwante todo o romance, deixando-se sugar pelos parasitas que o frequentão, deixando-se
explorar pelo seu amigo Christiano Palha que á sua custa enriquece e, tenho medo aqui, de
trahir o pensamento do autor, deixando de seduzir a mulher de Palha. Eu não sei mesmo se
esta não seria a moralidade - e digo moralidade por me não acudir de prompto outro termo -
da fabula: que o pobre Rubião devia seduzir Sophia. Ele não teria então endoudecido, as
batatas, quero dizer Sophia seria para elle, e, sem desmentir a philosophia de Quincas Borba
elle teria provado que não era um asno. Mas não é asno quem não quer ser, e o bom mestre
escola de Barbacena bem merecia as orelhas de papelão com que os antigos mestre-escolas
adomavão os discípulos pouco applicados ou pouco atilados. Ao contrario de outros mestre-
escolas, o pobre Rubião achou-se abaixo de sua fortuna, e aquelle encontro no caminho de
ferro com Palha e a mulher de volta de Vassouras foi-lhe fatal. Quem lhe metteu na cabeça
que para alcançar a mulher do Palha, que lhe aceitava adereços de pessoa e ornatos de casa,
precisava seguir a linha que ia dos olhos de um aos olhos de outro, passando pelo Cruzeiro ?
Fatal ignorancia de geometria e de astronomia, que não via que o caminho mais curto entre
dous pontos é a linha recta e que o Cruzeiro fica a bilhões de leguas ... dos ollios de Sophia,
esses olhos que ao ingenuo matuto parecião que ella os comprava em alguma fabrica
mysteriosa, tanta era a maior e diversa belleza que cada dia tinhão.
Peço ao leitor que não me taxe de immoral ; apenas serei obtuso, se estou a tirar da
fabula do Sr. Machado de Assis uma moralidade ou irrunoralidade que ella não contém. Mas a
ironia e o humorismo do autor são, já tenho dito, por demais velados e não receio dizer

314
obscuros, para que o comprehendamos sem custo. Não sei se isto não prejudicará perante o
publico, que não se compõe de espiritos acostumados a subtilezas de estylo e de pensamento,
não só este livro, mas toda a obra delicada e distincta, talvez mesmo um pouco rebuscada, do
elegante escriptor.
Eu já conhecia o talento penetrante do Sr. Machado de Assis e sabia que sem
pretenciosas reclamações de escolas, de processos e todo um arsenal de termos em moda, era
elle um fino senão profimdo psychologo, para usar do termo querido dos falsos ou legitimas
filhos de Balzac.
Na Resurreição, romance de 1872, os dous caracteres principaes que o autor se propoz
estudar, se abstrahirmos do ambiente em que os poz, são tratados com um real talento de
observação. Nem Livia, nem Felix me parecem verdadeiros em o nosso meio social, um e
outro se me affigurão creações sem realidade; entretanto, ambos elles, a aceita~ los taes e quaes
no-los apresenta o autor, são dos mais bem estudados caracteres do nosso romance, e a
conclusão deste, fugindo da banalidade quasi desejada e quasi fatal do casamento daquelles
dous entes, revelava já no Sr. Machado de Assis um verdadeiro sentimento da logica dos
caracteres que imaginou.
Em Quincas Borba essas qualidades se destacão com maior relevo.
Esse livro, que, já o disse, é sob o aspecto da litteratura chamada nacional um progresso,
consciente ou não, tem uma porção de typos e siruações eminentemente nossas. E eu não
conheço na arte typos mais difficeis de reproduzir - e na arte reproduzir é crear - que os
caracteres corriqueiros, vulgares, communs. São como as physionomias sem expressão, sem
destaque, que nem a photographia póde apanhar e que fazem o desespero dos pintores.
Rubião é um desses typos, e é realmente admiravel o seu retrato durante todo o romance,
embora occasiões haja, mas essas poucas, em que os seus pensamentos nos parecem um
poucochinho demais alevantados para a sua ignorancia e o seu pouco espirito de matuto.
O typo do parasita Freitas, que lembra um pouco o Vianna da Resurreição, como os de
Carlos Maria e de Theopbilo, sem fallar nos do Palha, do Dr. Camacho, do major Siqueira,
vivem realmente, mas sobre todos prefiro os de Sophia e de Maria Bened.icta, apezar da
diferença da importancia dos seus papeis. Maria Benedicta é uma das melhores copias do
romance brazileiro e Sophia uma das suas melhores creações.

315
Nos tristes tempos que atravessamos -tristes para a vida litteraria ao menos- os livros
como o do Sr. Machado de Assis são um consolo e wna esperança. Confortão-nos algwnas
horas como o doce perfi.une de wna flôr rara ou a sombra fôfa de uma cópa d'arvore em meio
de um longo caminho arido, e alentão-nos com a idéa de que mais adiante toparemos com
outras flores ou com outras arvores.
Eu não indago se o Sr. Machado de Assis é um moderno ou wn antigo, um velho ou wn
novo, um romantico ou um naturalista ; acabando de ler o seu livro, acode-me, a mim que
tenho igual sympathia por todas as escolas e igual desprezo por todas as parcerias, acode-me a
idéa trivialissima que o melhor meio de servir uma litteratura é ainda fazer livros -
principalmente bons livros, como este.
José Verissimo.

316
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 12.1.1892, p. I

QUINCAS BORBA
[Parte!]

Os primeiros trabalhos de Machado de Assis que folheei foram as Phalenas e os Contos


Fluminenses.
Tinha eu então a meu cargo os folhetins de critica do Dezeseis de Julho, jornal politico
que se publicava n'esta capital em 1870.
Os dous livros chegavam de Pariz, nitidamente editados, se não me falha a memoria,
pela casa Gam.ier.
Sendo-me entregues, para os fins convenientes, atirei-me a elles corno gato a bofes, certo
de que alli encontraria onde afiar o gume do meu cutelo de critico incipiente.
N'essa época eu andava muito preoccupado com a idéa do romance nacional ; sabia de
cór o Brasil de Ferdinand Dénis e lêra pela oitava ou nona vez o Guarany de J. de Alencar. No
que respeita á litteratura, ignorava completamente a existencia de uma causa chamada
proporções ; pouco tinha observado, muito menos comparado, de modo que, segundo então
pensava, não havia senão urna craveira : - diante d'urna obra d'arte, ou tudo ou nada.
D'ahi uma consequencia - as Phalenas seriam toleraveis, mas os Contos mereciam
morte afrontosa e violenta Escrevi o folhetim indignado e descansei no fim da obra, certo
talvez de ter causado a ruina de um edificio colossal.
Como são agradaveis estas illusões e perversidades infantis !
O que é certo é que n'esses venturosos tempos, apadrinhado com as autoridades, entre
outros, de Marmontel, eu julgava facilimo soltar as velas em mar alto. Citava a proposito de
estylo o- soyez vif et pressé dans vos narrations -de Boileau; em materia de romance não via
nada que excedesse a Mery, nas suas, incontestavelmente deliciosas phantasias de Florida,
Héra, e Guerra do Nizan ; e como cada qual exige o vinho que apetece, entendia que Machado
de Assis devera ter fabricado contos iguaes aos de Boccacio e Lafontaine ou reproduzido á
brasileira as Noites do romancista marselhez. O futuro auctor das Me morias de Braz Cubas,
porém, não trahiria o seu temperamento ; e porque já, a este tempo, tinha descoberto o seu ca-
Oomal mutilado], [ilegível] escrevera as historias de Luiz

3!7
[ilegível]Miss Do/ar e os Segredos de
[ilegível] de interesse.
E tudo isso se dizia em um jornal dirigido por J. de Alencar, o mesmo J. de Alencar que,
poucos mezes antes, do seu ninho da Tijuca escrevera a Machado de Assis uma carta,
apresentando-lhe o poeta Castro Alves e brindando o auctor das Phalenas com o titulo de
principe da critica brasileira.
Talvez que isto mesmo fosse a causa principal e insconsciente da minha irritação. O
principado devia começar pelas obras de creação e não de eleição.
Este modo de pensar não agradou ao director da folha e, gerando duplo dissentimento,
terminou mais tarde, sob o pretexto que mais decente se me afigurou, pela minha sahida da
collaboração de wn jornal para o qual entrára como para o paraiso de Mahomet.
Correram os tempos e variada sorte tivemos depois d'isto.
Machado de Assis continuou sua vida com a pertinacia de que são capazes os Narcisos
litterarios. Apaixonado do proprio espirito, procurando em toda parte o reflexo de si mesmo,
nos livros, nas bibliothecas, nos museus, nas collecções, nos jomaes, nos theatros, nos salões,
nas reuniões de amigos, na rua do Ouvidor ; nuninando a originalidade de suas obras, entre a
preoccupação do applauso popular e o horror á vulgaridade ; tlagellado continuamente pela
obsessão do novo e pela imposição dos classicos, Machado de Assis fortaleceu-se na idéa e
aprimorou-se na fónna; mas hoje, como hontem, como em 1870, posso affirmal-o, não mudou
wna linha do seu primitivo eixo. Subiu, subiu muito alto ; porém a linha ou as linhas que
prendem o seu papagaio multicor, são as mesmas com que ele o empinava quando menino,
isto é, na época em que surgiam os seus primeiros livros.
Vem de molde, pois, dizer de que natureza são estas linhas, e se por alguma d'ellas pôde
o auctor fazer descer a scentelha de Franklin.
Duas ; duas são as tendencias que encontro no espírito litterario de Machado de Assis :
uma symbolizada nas Phalenas, outra nos Contos Fluminenses, o que, em termos babeis, quer
dizer que o escriptor de 1870, até esta data, não tem feito outra cousa senão desenvolver ou
aggravar os dous traços com que desde logo estygmatizou a sua esthetica.
Phalenas significam na sua biographia o mesmo que amor á correcção, ao modulo
helenico, ao compasso; cuidado, e vaidade na roupagem poetica; gosto pela erudição; paixão
litteraria!

318
Delas brotaram naturalmente as obras em que Machado de Assis mais se approxima da
mulher - Yayá Garcia, Helena, Resurreição, e todas as paginas dos seus livros em que se
falia de relações sexuaes, do eterno feminino, e da vida fluminense. Não ha nessa linha, nem
observação, nem psychologia, embora o auctor se proponha estudar caracteres d'aprês nature.
A percepção dos factos é sempre tenue e superficial, a analyse das causas determinantes
amarrada ao a priori. Tudo se resolve numa collecta de traços geraes; tudo se transforma em
um dilectantismo mystico, dentro do qual o espirito do poeta gira sem maldade, sempre
distrahydo do travo real das causas, envolvendo os seus personagens, as suas paizagens em
um nevoeiro dourado de sol poente.
Composições assim dispostas agradam ás moças e poem n'alma de quem as lê, umas
notas suaves, se bem que ponteadas de vez em quando pelas invasões de um outtro Machado
de Assis, que se esforça por não perturbar a harmonia do livro actual.
Isto não quer dizer que o psychologo allemão não busque ser penetrante e mesmo
inexoravel. Nos trabalhos a que alludo encontra-se, ao envéz disso, um constante esforço para
convencer-nos de que os caracteres por ele exhibidos são complicados e extraordinarios. O
estylo aponta-se em reticencias venenosas ; as pbrases empinam-se, de vez em quando
annunciando que vai apparecer algum monstro como Y ago em Gloucester ; mas chega-se ao
fim do capitulo ou do livro e com swpreza reconhece-se que a complicação não passava de
susto do auctor a quem o pequeno desvio da burgueza já se affigurava o prodromo de inauditas
atrocidades.
Não pôde exprimir as atrocidades irregulares dos tempos modernos o temperamento que,
espontaneo, se affeiçoou ao modulo dos gregos ; e se esse temperamento não tem força para a
contemplação objectiva, acaba por arrojar-se para dentro de si mesmo, transfonnando os seus
tics, as suas pequenas excentricidades, os accidentes de sua imaginação enclausurada na
expectaÇão interior, nos curiosos typos do romance.
Machado de Assis tem andado entre Octave Feuillet e Laurence Steme; duas naturezas
apparentemente diversas, uma de angora, outra de urso philosopho. Eu preftro a ultima e por
isso gosto mais de Braz Cubas e de Quincas Borba, do que da Yayá Garcia e da Helena .
ARARIPE JUNIOR

319
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 16.1.1892

QUINCAS BORBA.
!I

As mulheres do auctor de Quincas Borba são em regra incolores, sem expresão.


O motivo d'esta fraqueza acha-se na estructura do talento de quem as imaginou. Os
grandes pintores do genero foram sempre emeritos conquistadores, como Shakespeare,
Boccacio, Byron e Dumas, pai, ou insignes mexeriqueiros, como Brantôme, Saint Simon e
Balzac. Para bem retratar mulheres, é indispensavel sentil-as ao pé de si e cheirar-lhes o
pescoço, ou brigar com ellas, intervindo e perturbando os seus negocias.
Machado de Assis, asceta dos livros e retrahido ao gabinete, não as invadiu por
nenhum d'estes aspectos ; e por isso as suas heroinas não despedem de si esse odôr de
femina, que se aspira ainda nos typos mais angelicos de Shakespeare, como por exemplo,
Desdemona.
Outro tanto não succede relativamente aos typos masculinos. É certo que estes
distanciam-se muito da verdade, encarados como reflexos do mundo objectivo ; mas,
attendendo a que o auctor tira os elementos com que os constróe, em grande parte, da
observação de si mesmo, esses typos ganham em excentricidade o que perdem em
exactidão, e por tal motivo tomam-se de um interesse palpitante para o leitor desprevenido,
apenas preoccupado com o desejo de entreter-se, através do livro, com o espirito do
escriptor.
Sob este ponto de vista, folgo de poder hoje repetir o que em 1883 dizia a respeito
das Memorias posthumas de Braz Cubas : « O livro mais exquisito de quantos se têm
publicado em lingua portugueza. »
De facto, o Quincas Borba confmna, em plena floração, as qualidades excentricas,
que, n'aquella primeira parte da da [sic] obra, se affirmavam de um módo categorico.
N'esses dois livros, Machado de Assis entrega-se francamente a toda fuga do seu
genio paradoxal ; e se alguma vez decai, deve-o a ter por descuido deixado abrir a porta
por onde entram de vez em quando WlS idyllios, quero dizer, umas paginas perdidas dos
romances amorosos anteriores.

320
Dir-se-hia que o humorista tem receio de ficar completamente a sós com o seu
humor, e por cautela, á maneira de certos dilettantes que se entregam ao auto-hypnotismo,
deixa a entrada do gabinete entre-aberta, afun de que possa receber socorros das pessoas de
fora, quando porventura os macaquinhos azues, de envolta com os bons espiritos
invocados, venham perturbar-lhe a imaginação e a tranquilidade d'aquella gymmastica [sic]
litteraria.
E quem sabe se n'estas plrrases não estou eu traduzindo a exacta situação do animo
do escriptor ?
É preciso conhecer Machado pela sua feição mais curiosa : a do causeur.
Nós brasileiros, de ordinario, preferimos cultivar a conversa de estylo pornographico.
Noventa por cento das phrases diariamente emittidas na rua do Ouvidor, ou são claramente
bocagianas, ou sublinhadas pelo vermelhão da lubricidade, clima, ociosidade, ou educação
; qualquer explicação póde ser acceita ; mas o que está verificado, é que nós raramente
estamos dispostos para fazer diante de um copo de cerveja allemã um duetto sobre
philosophia, ou uma o/a podrida llitteraria.
Se o sensualismo não nos invade, cahimos na politica pessoal e nas conspirações que
todos escutam, todos sabem, todo mundo annuncia.
Machado de Assis faz clamorosa excepção a esta regra. A mulher para ele constitue
uma das formulas cabalisticas das sciencias occultas. Nas suas praticas a companheira de
Adão passa como uma sombra; os desesperos da carne, os transportes da luxuria, os
segredos de Poppéa, os filtros de Canídia, não lhe provocam curiosidades indiscretas, nem
referendas que ultrapassem o puro goso litterario.
Ovídio pensava assim nas suas Metamorjhoses ; Catullo foi um grande cultor da
arte feminina; Balzac disse taes e taes paradoxos sobre a mulher, e preceituou o modo pelo
qual os maridos deviam entrar em casa l
Fóra do circulo de observações comedidas como estas, é impossivel obter do auctor
de Quincas Borba uma audacia, urna phrase equivoca. Quando muito, póde-se obrigai-o a
expôr uma theoria sobre o amor. mas sem sentenças certas e em estylo annuviado.
D'ahi a razão pela qual, no seu ultimo livro, Sophia nos apparece, entre Rubião e
Carlos Maria, em uma eterna vacillação, que a muito custo se comprehende. Encarada,
substanciahnente. essa mulher é uma deshonesta, senão uma descarada ; admitte que o
marido especule e enriqueça através de sua formosura e á custa do amigo, de quem ella
recebe presentes de joias custosíssimas ; acceita a cõrte de Carlos Maria e adultéra em
espirito com ele, esse indifferente ; tem ciumes de Maria Benedicta, só porque se falia em

321
casal-a com Rubião ; chafurda-se no sensualismo do luxo ; sonha grandezas orientaes ; e
atira coquettemente convites impossíveis á virilidade indisposta do idiota do herdeiro de
Quincas Borba ; entretanto, esse idiota, no primeiro accesso de loucura, encerra-se com
ella no fundo de uma carruagem, e a depravada, tendo bastante espirito para não arrecear-
se do louco, hesita em satisfazer o hausto febricitante do seu erotismo vulgar e
complacente.
Tudo isto, porém, encontra explicação nas repugnancias do auctor da obra. Machado
de Assis é incapaz de entregar urna heroina sua á logica brutal da respectiva organisação.
Onde E. Zola forçosamente collocaria uma scena do carulibalismo amoroso e o desespero
da burgueza que não soube conter os arrancos da luxuria, elle põe um grito de nobreza e
um pudor illogico de mulher perversa e mal casada, cujos transportes domesticas se
traduzem ordinariamente em permittir que o esposo erga-lhe o roupão e oscule a perna, no
proprio Jogar em que a meia de seda incide com a carne rósea e assetinada.
Um timido - eis o que é nestes assumptos o creador das bellas Memorias de Braz
Cubas. Falta-lhe a afouteza para cheirar o pescoço de Messalina; ferocidade para dilacerar
amantes a dentadas, como o poeta Bilac ; desprezo á vida para arrostar os perigos dos
amores de Cleopatra. Causam-lhe vertigens as fogueiras voluptuosas do rei Sardanapalo ;
não o seduzem as noites de Tigellino, os banquetes de [" rimalci o", ilegível]; provocam-
lhe vomitas as orgias de Nero e as tragedias realistas do Colliseu.
Provoquem-o, porém, para a arena do paradoxo languido do deliquescente do fim do
seculo XIX, e vel-o-hão rejuvenescer na verve de um causeur incomparavel.
É possivel que se encontre quem exprima-se com mais vivacidade e elegancia, quem
apimente uma anecdota de modo mais dramatico do que ele ; todavia, duvido que um [sic]
apresente no Brasil artista mais desvelado no aprumo da conversação e que a tome tão a
seria.
Machado de Assis palestrando não galopa no corcel da fantasia doida, como dizem
que o fazia o nunca assaz lembrado Dumas pai. Faz causa mais apreciavel quanto a mim;
sonha labyrinthos , embrulha-se n'elles ; agarra-se a teias de aranhas, dá-lhes consistencia,
doura-as ; pendura-se em raios de sol e começa n 1estes trapezios delicados a executar uns
jogos japonezes que deleitam e prendem a gente por longas horas de recreio.
Estas bizarrices são toda a sua ahna de artista, exposta á luz meridiana ... dos amigos ;
d'ellas, isto é, d'esse deposito de verve excentrica, timida, nervosa, ás vezes assombradas, é
que tal prosador extrahe os personagens, as descripções, e a feição humoristica dos seus
melhores livros.

322
O Tempo, ruo de Janeiro, 25.1.1892, p.!.

QUINCAS BORBA

É tão raro o aparecimento de um livro nas letras patrias, é tão rara uma emissão de
belas lettras desde que nesta terra começou a emittir-se as hypothecarias e as[sic]
debentures em edições tão collossaes, que quando a gente logra ver surgir um bom fructo
na arvore da litteratura indigena, sente-se ufana, bate no peito e altivamente declara :
Anch'io sono rabiscador!
O novo livro de Machado de Assis, sempre joven, sempre primaveril, é um brilhante
de mais engastado no diadema da litteratura brazileira, e o seu elevado quilate, a sua
pureza d'agua e o seu grandioso valor já foram apreciados pelos Rezendes e Faranis da
nossa joalheria critica.
Eu não venho, pois, analysar o livro delicioso de Machado de Assis ; quem sou eu
para acompanhar nosso pai fóra de horas ? eu venho simplesmente referir as suaves
impressões que me ficaram dessa deleitosa leitura.
O Quincas Borba lê-se quasi de uma assentada ; é como um calix de licor finissimo
que a gente prova e sorve de um trago.
Não se parece com um romance de Ohnet, porque não se observa nelle o cuidado do
enredo, nem o modo por que a acção se encaminha para o desfecho ; não é tão pouco um
romance de Zola, em que as minudencias são fiel e longamente observadas, mesmo as mais
somenos, onde se descreve o trivial e o extraordinario com igual e assombrosa justeza de
observador e com a mais arrojada naturalidade.
Poder-se-hia dizer que é um livro de Guy de Maupassant, se o infeliz escriptor
francez, ao seu primoroso estylo mesclasse, como o auctor brazileiro, o que ha de mais fmo
atticismo, o que ha de mais metaphorico, o que ha de mais subtil, de mais ironico e de mais
suave e melifluo na linguagem escripta.
No Quincas Borba ha Ohnet, ha Zola, ha Maupassant, ha tudo isso; mas em escala
reduzida e por um modo tão natural, tão philosophico, tão profimdo, tão harmonico e tão
suave que encanta.

323
Quem conhece a sociedade fluminense, vê synthetizados em Rubião muitas
nullidades improvisadas millionarias pelo acaso, alguns zangões Christianos Palhas, que se
encheram no encosto da parvoice, que é sempre velhaca, muitos marisqueiros politicos
como o Dr. Camacho, muitos Carlos Marias e muitas Sophias.
Não basta conhecer o livro por trechos isolados, é necessario lêl-o de fio a pavio ;
mas para dar uma idéa do estylo primoroso, como só o sympathico escriptor brazileiro o
sabe burilar, não me posso furtar á tentação de extractar algumas passagens, o que, aliás, já
tem sido feito por outros admiradores do sempre festejado escriptor.
Como ele descreve a lucta pela ex.istencia, e a manutenção do equilibrio, Humanitas,
principio, e Humanitas, remate das causas :
« Não ha morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas fórmas, póde
determinar a suppressão de uma dellas ; mas, rigorosamente, não ha morte, havida, porque
a suppressão de uma é a condição da sobrevivencia da outra, e a destruição não attinge o
principio universal e commum. Dahi o caracter conservador e benefico da guerra. Suppõe
tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar
uma das tribus, que assim adquire forças para transpôr a montanha e ir á outra vertente,
onde ha batatas em abundancia ; mas, se as duas tribus dividirem em paz as batatas do
campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição.
A paz nesse caso é a destruição : a guerra é a conservação. Uma das tribus extennina
a outra e recolhe os despojos. Dahi a alegria da victoria, os hymnos, as acclamações,
recompensas publicas e todos os demais effeitos das acções bellicas. Se a guerra não fosse
isso, taes demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só
commemora e ama o que lhe é aprazível e vantajoso, e pelo motivo racional de que
nenhuma pessôa canonisa uma acção que virtualmente a destróe. Ao vencido, odio ou
compaixão; ao vencedor, as batatas>>.
E a conclusão daquelle artigo de fundo do jornal politico A Atalaia, escripto pelo
redactor Dr. Camacho,lido ao ricaço Rubião? ...
« Os partidos devem ser unidos e disciplinados.
Ha quem pretenda (mirabile dictu _f) que essa disciplina e união não pódem ir ao
ponto de regeitar os beneficios que cahem das mãos dos adversarios. Risum teneatis !
Quem póde proferir tal blasphemia sem que lhe tremam as carnes? Mas supponhamos que
assim seja, que a opposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do
governo, á postergação das leis, aos excessos da auctoridade, á perversidade e aos

324
sophismas. Quid inde ? Taes casos - aliás raros - só podiam ser admitidos quando
favorecessem os elementos bons, não os máos.
Cada partido tem os seus discolos e sycophantas. É interesse dos nossos adversarios
ver-nos afrouxar, a troco da animação dada á parte corrupta do partido. Esta é a verdade;
negai-a é provocar-nos á guerra intestina, isto é (horresco referem!) á dilaceração da ahna
nacional... Mas, não, as idéas não morrem ; ellas são o lábaro da justiça. Os vendilliões
serão expulsos do templo ; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses
mesquinhos, locaes e passageiros, a victoria indefectível dos princípios. Tudo que não for
isso ter-nos ha contra si. Aleajacta est. ))
Vejamos a ousada declaração de amor do audaz galanteador de mulheres casadas,
Carlos Maria, á mulher do Palha, do mesmo que se casa mais tarde com Maria Benedicta :
« ......A noite era clara ; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora
aposto que nem sonhava comigo ? Entretanto, eu quasi que ouvia a sua respiração ...
Sophia tentou sorrir e elle continuou :
- O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; -
com esta differença, que o mar é estupido, bate sem saber porque, e o meu coração sabe
que batia pela senhora. ))
O capitulo CXXXV descreve perfeitamente a philantropia dos ricos de improviso na
praça do Rio de Janeiro:
\\ Rubião protegia largamente as lettras. Livros que The eram dedicados, entravam
para o prélo com garantia de dusentos e tresentos exemplares. Tinha diplomas e diplomas
de sociedades litterarias, choreographicas, pias, e era juntamente sacio de wna
Congregação Catholica e de um Gremio Protestante, não se tendo lembrado de um quando
lhe faltaram do outro ; o que fazia era pagar regularmente as mensalidades de ambos.
Assignava jomaes, sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam
mandado, é que soube, pelo cobrador, que era do partido do governo; mandou o cobrador
ao diabO.))
Quincas Borba é um livro para se ler inteirinho, assim como a delicada iguaria é para
se comer sem nada deixar, é livro para não se conhecer por excerptos, assim como a
delicada iguaria não é para ser provada por migalhas.
Era no dia de S. Sebastião, que, creio, continúa a ser o padroeiro da cidade, porque as
deposições não foram ainda até a folhinha ecclesiastica. Eu lia o livro de Machado de Assis
e ouvia troar os canhões na barra, e pensei :

325
- Quando uma pleiade de egoistas incita sorrateira, covarde e perversamente um
bando de infelizes a matar e a morrer, pela sustentação dos seus palacetes, das suas
carruagens e das suas amantes, consola ter uma brochura destas na mão e pensar que ha
ainda nesta boa terra quem trabalha, quem ganha e augmenta a fortuna de boa reputação -
a única que se póde gozar livremente, publicamente, que é solida e que vai além da vida.
E o ribombar da artilharia cessou. Eram os miserandos instrumentos da cobiça, eram
os revoltosos de Santa Cruz que se rendiam.
Lembrei-me então das theorias daquelle maniaco de Barbacena, lembrei-me do
proloquio : - Nem sempre os lirios florescem, e cheguei tambem á conclusão de que nem
sempre se apanham as batatas cobiçadas.

35
JOSÉ ANASTACI0

35Talvez esse seja wn dos vários pseudônimos adotados por Teófilo Guimarães (Campos, RJ, 1872; ?,
1927), poeta, contista, novelista, teatrólogo, jornalista, funcionário público. Entre seus pseudônimos
constam Sílvio Montpelier, Rubino de Alencastro, Rõmulo, Berotau, Jota, Bráulio, DeU' Acqua, Alpha,
Kean, Ego, Ubirajara, Ary, Aladino Hermston, Gotts, Anastácio, Pero de Góes.

326
O Estado de S.Paulo, São Paulo, 19.4.1892, p.l.

QUINCASBORBA
1

Não menos de tres volumes notaveis, sabidos de prelos brasileiros, tenho eu aqui
sobre a mesa, para d'elles escrever algwna cousa.
É o Quincas Borba, do insigne mestre de todos nós, Machado de Assis ; é o caderno
de viajante Entre Mares e Lares, de que devo um exemplar á bondade obsequiosa do meu
eminente amigo, o padre Senna Freitas ; é, por fim, o livro das Alleluias, com que o
festejado Raymundo Corrêa acaba de fazer uma nova apparição no mWldo das lettras,
conftrmando ainda uma vez esta verdade já tão provada : que a poesia no Brasil tem, e terá
sempre, enquanto a nossa raça fôr o que é, solidas garantias de grandeza e vitalidade.
Todas essas obras, annunciadas de ante-mão pela imprensa, eram esperadas por
muita gente com impaciencia ; o que demonstra que, entre nós, vae dia a dia ganhando
terreno a convicção de que um bom livro é algo mais do que um objecto convencional,
proprio para empoeirar-se perpetuamente nas estantes de uma bibliotheca.
Por Jupiter! não é sem razão que somos chegados ao ultimo decennio do seculo 19.
Mesmo neste infortunado paiz da jovem America, entregue de mãos e pés atados á
politicagem e á especulação bancaria, alguma significação ha de ter por força semelhante
facto.
A civilização intellectual, como de ordinario a influencia de todos os principies
essencialmente expansivos, é, si me pennittem a ousadia da comparação, como essa garôa
subtil e tenuissima que tão frequente vemos em S.Paulo ; parece cousinha de nada, e o
transeunte nem se dá o incommodo de abrir o guarda-chuva para defender-se della: mas,
cem passos adiante, sente a roupa toda embebida em humidade, e resfriado o corpo pelo
seu tenaz infiltramento.
Façamos o mesmo com o progresso que tem, alem de tudo, a vantagem de não trazer
constipações : não é mister mais do que uma docilidade negativa : não abrir o guarda-
chuva...

327
Victor Hugo qualificava o fumo- um veneno lento, mas seguro.- Consolemo-nos os
que nos afanamos por obter algum resultado em prol das boas idéias. É tambem lenta, mas
segura a acção do nosso trabalho.
Quanto é de folgarmos que se tõrma em nossa sociedade um publico menos
indifferente aos esforços do talento litterario e artistico, um publico de apreciadores
judiciosos, que comprehendam haver na leitura de um bello livro, e na contemplação de
um quadro de mestre, delicia superior á de devorar ás pressas um noticiário e saborear gole
a gole uma tabella de cambio, á de assistir no theatro a comedias soezes e pessimas, e no
hippodromo a disputas entre cavallos de meio-sangue e de puro-sangue !
Perguntar-me-ão d'onde trago eu hoje esse optimismo a respeito do meio em que
vivemos, e que tantos acham deficientissimo. Que sei eu ? em parte, de observações
pessoaes, em parte, sem duvida, da boa impressão causada em meu espirito pelos tres
volumes a que me referi.
Considerando nelles, e considerando em outros muitos que, de ha annos para cá, têm
apparecido, custa-me a crêr que se possa fazer tanto em uma sociedade boçal e
estupidificada completamente, onde a iniciativa de organisações mesmo excepcionaes não
encontre a minima repercussão e o minimo auxilio.
O meio é deficiente, de accôrdo ; mas não é nullo ; e isso já quer dizer muito, e
auctorisa os homens de boa vontade a esperar muito mais ...

11

Machado d' Assis é talvez, entre os nossos escriptores já de longa data consagrados
(isto é, já não moços), o que mais concorreu para lançar as bases do periodo Iitterario, em
que actualmente nos achamos.
Tendo estreado, mui jovem ainda, em 1864, com os formosos versos das
Chrysalidas, que de prompto obtiveram decidido favor entre os contemporaneos, tomou
d'esse triumpho alentos novos, estudou, poliu ainda mais a sua forma poetica tão elegante
por natureza, e deu-nos nas Phalenas e nas Americanas os primeiros moldes do
parnasianismo romantico, continuando, no ultimo d'esses livros, as tradições nacionaes de
Gonçalves Dias e Magalhães, despidas, porém, dos primitivos exageros, incompativeis
com o gosto moderno.

328
Elle foi, pois, na nova esthetica, o precursor que abriu caminho a esse grupo de
poetas illustres, que tanto honram as nossas lettras, como Olavo Bilac, Raymundo Corrêa,
Filinto d'Almeida, Alberto de Oliveira, e outros.
Ainda em nossos dias tem o mesmo encanto e o mesmo vigor essa poesia, que não
envelhece; a quem não é deleite suavissimo reler aquellas estrophes tão verdadeiras da
Musa Consolatrix, gostar os arroubos amorosos dos Versos a Corinna, a matinal e
perfumada graça da Menina e Moça, a correcção toda grega d'aquelle trecho olympico-
Uma ode de Anacreonte ?
Prosador, adquiriu logo elevado posto entre os nossos prosadores de melhor nota.
Desde os seus primeiros trabalhos -as Historias da Meia Noute, os Contos Fluminenses, e
Helena, si me não engano - o seu estylo foi dia a dia ganhando em pureza, brilho e
perfeição, até attingir no admiravel <<.Braz Cubas)) o apogéo das suas peregrinas qualidades.
É iimegavelmente o melhor dos contistas brasileiros; nenhum outro lhe iguala a delicadeza,
o natural, a insinuante simplicidade, com que sabe pintar e commover nas suas narrativas.
Compulsador assíduo e quotidiano dos classicos, adversario irreconciliavel dos
barbarismos parasitas, que deturpam tanto producto de aproveitaveis engenhos, fez timbre
sempre em guardar e defender ciosamente a castidade vemacula da linguagem - arca-
sancta que houvemos de nossos maiores, e nos cumpre legar sem mancha a nossos filhos; e
esse não é, entre mil outros, o seu menor merito, para os que presamos, com o devido
cuidado, a honra e a nobreza secular do nosso idioma.
Machado de Assis não póde queixar-se de sua sorte ; a gloria não foi ingrata para
com elle. Creio que esse lettrado amavel e bom nunca teve de soffrer com as perversidades
grosseiras de um povo que o desconhecesse, e não quizesse dar echo á sua voz; não é um
incomprehendido. Si o fundo da sua alma é cheio de melancholia e desalento, não provém
isso, por certo, sinão da disparidade e da antinomia, que hão de existir sempre, apesar de
tudo, entre o homem de pensamento e de coração e o commum dos mortaes.
Os seus creditas na litterarura firmaram-se bem cedo ; attesta-o a famosa carta de
José de Alencar, aspresentando-lhe Castro Alves. carta escripta muito antes de 1870.
Presentemente, acha-se Machado de Assis investido em um verdadeiro pontificado
intellectual ; todos á uma o acatam e respeitam, e ouvem a sua palavra como um oraculo. A
sua estrella não declinou um apice com o decurso dos annos; subiu rapida ao zenith, e ahi
se conserva immovel.

329
A tantos dotes reune elle uma austeridade de caracter que lhe dá duplo direito á nossa
veneração, e uma affabilidade despretenciosa de maneiras, que o torna perfeito e
distinctissimo cavalheiro.
Devo-lhe uma das primeiras animações que em bem me fadaram ainda na meninice,
estimulando-me a proseguir com ardor e enthusiasmo na encetada carreira das lettras.
Sobre os meus timidos ensaios de collegio dirigiu-me Machado de Assis ha tres annos
algumas linhas de applauso e de conselhos, e tanto mais me penhoraram quanto elle então
não me conhecia pessoahnente, e eu o sei incapaz de transigir, por nenhum respeito, com a
sua consciencia de homem e de escriptor.
D'ahi começaram as nossas relações de amizade, com que muito me ufano e
desvaneço.
Dados, assim, uns poucos traços sobre essa individualidade tão sympathica e
preponderante entre nós, passemos a uma obra com que nos brindou- e que esperamos não
será a ultima, porque o auctor de Resurreição, o ignora o que é dormir á sombra dos lemos
já conquistados.
MAGALHÃESDEAzEVEDO[SIC]

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20.4.1892, p. 2.

QUINCASBORBA
li!

« Quincas Borba }} ! para entender a fundo este romance, é preciso, ou, pelo menos, é
de conveniencia conhecer o «Braz Cubas» . O proprio auctor parece indicai-o no capitulo
IV : «Este Quincas Borba, si acaso me fizeste o favor de ler as Memorias Posthumas de
Braz Cubas, é aquelle mesmo naufrago da existencia... Lá é que vem por extenso a
narração d'essa existencia tão accidentada, e a longa serie de naufragios, porque teve de
passar aquelle maníaco desabusado e original, desde a escadaria da egreja de S.Francisco
até a estação policial, desde o furto de um relogio até as premissas e conclusões do
Humanitismo. Aqui presenciamos apenas os dous naufragios ultimes : o da loucura total, e
o da morte, que poz termo a todos os mais. Cada livro é inseparável do outro ; diríamos

330
quasi wna obra em dous tomos. Aliás seria dubio até o titulo: teriamos razão para
perguntar, si é o cachorro ou o seu defuncto, homonymo que dá o titulo ao livro - como se
vê na derradeira pagina.
Com effeito : é o philosopho ou o cão ? mas o philosopho quasi só apparece alli para
fallecer e o cão vive até ás primeiras linhas do ultimo capítulo.
Quem dos dous é, po~to, o «Quincas Borba» ? Estou a ver o auctor sorrindo com
benevola malignidade (não se espantem d'estes dous termos que parecem brigar, mas se
conciliam muito bem), e respondendo que, naturalmente, ambos. Pois não iria a alma do
finado visionario, do velho Humanitista aninhar-se, parte sob o couro felpudo do seu
melhor amigo, do seu fiel rafeiro, parte em algum esconso recanto do cerebro já fraco de
Rubião ?
Assim, a tres personagens cabe a parte principal na acção do romance : Braz Cubas e
Rubião de Alvarenga, e, entre elles, como vinculo que os une, Quincas Borba - para não
fallar por emquanto dos deliciosos typos femininos que de vez em quando deixam
naquellas paginas um tão penetrante pe.rfume de formosura, de serenidade e de
perversidade ...
Cubas e Rubião são dous homens medíocres ; Quincas é uma figura perfeitamente
accentuada, que tem certo cunho de grandeza, embora desordenada e phantastica, dando a
impressão como de um gigante mutilado e grotesco ...
Braz Cubas e Rubião gozan1 a plenos haustos a felicidade espessa e vulgar, que o
acaso lhes trouxe - a um o acaso do nascimento, ao outro o acaso da herança.
Aquelle, porém, é uma pessoa acostumada desde o berço á abundancia, e desfructa-a
por isso com certa naturalidade, com certa distincção ; o professor de Barbacena viveu até
a idade viril na mediocridade da fortuna, não na aurea mediocritas de que falia Horacio,
mas na mediocridade ferrea e aspera, que lucta com a sorte para garantir um pão e um
leito. Nessa diferença de dous caracteres, aliás proximos e congeneres, mas formados em
meios diversos, ha um bello estudo de Machado de Assis, um notavel parallelo entre o
parvenu e o rico filho de rico. Observe-se que o subito e enorme lucro de Rubião nem
siquer foi resultado do seu trabalho, obra do seu engenho e do seu esforço : foi uma cousa
inesperada, uma surpreza cahida do céo ; foi como a sorte grande de uma lotérica confusa.
Os que conhecem um pouco a sociedade sabem que esse é para o pobre, sobretudo para o
pobre sem [ilegível ], o meio mais perigoso de enriquecer ; torna-o fatuo, infla-o com
sopros de presumpção ridícula, colloca-o na posição um tanto desageitada do rustico, que
se veste nos domingos com a roupa do patrão.

331
Rubião não tinha a cabeça bastante forte, e a índole bastante fidalga para resistir a
esse enervamento de um luxo novo e prodigioso; a prosperidade embriagava-o, entontecia-
o o contraste sublime entre a sua modesta casinhola de Barbacena, com a aula aborrecida e
a meninada impertinente, e o soberbo palacete de Botafogo, cheio de moveis surnptuosos,
objectos de arte, e baixelas de prata lavrada ; tudo isso fazia d'ella uma especie de bolha de
sabão, que quizesse subir até bem alto, bem alto, até as nuvens e até os astros reflectindo
todos os cambiantes do sol e todos os matizes do firmamento.-Eis ahi o germen latente da
«megalomania» que o victimou porfun [sic], e que Machado de Assis analysa e descreve
com a fmura, o tacto, a minuciosidade de um genuíno pathologista. Com Braz Cubas não
se daria tal, por Deus! Levava ele decidida vantagem ao outro num ponto: era dotado de
extraordinario senso pratico ; qualidade predominante que suppria a superioridade moral e
intellectual que lhe faltava. Braz Cubas suppor-se jamais Napoleão ill ! não ; Braz Cubas
sabe que é Braz Cubas, e mais nada. O Nosce te ipsum do sabio grego está alli feito carne e
osso.
De resto, naquelle homem sem talento e sem ideal, surge de quando em quando, e
mesmo com habitual frequencia, a agudeza de um espirotosinho voltaireano, mas, menos
amargo que o do cynico de Femey, gostando de rir-se dos outros, e, um pouco tambem de
si proprio...
Nascido de família burgueza, opulenta, mas despida inteiramente de illustração e de
graciosidade, começa, como todos mais ou menos, por ser uma creança travessa e vivaz.
Nessa edade feliz, a intelligencia, virgem ainda de leituras e de theorias, abre-se á luz das
causas, como as flores se abrem na aurora ao orvalho e ao sol - phenomenos de
physiologia inconsciente. Depois, a admiração babosa dos paes, dos avós, dos tios, da
parentela toda, puxa muito por nós, dando-nos sempre como uns Sant'Antoninhos da casa,
e uns genios mais ou menos em embryão, só porque batemos palmas diante de uma
te[ilegível], ou perguntamos si as estrellas são os brinquedos dos anjinhos. Um traço
característico na infancia de Braz Cubas, um traço por onde se vê que «o menino é o pae
do homem» , é o de preoccupar-se ele mais com o seu espadim de latão do que com a
espada de Bonaparte ; eis a formula synthetica do egoísmo universal ; e, si em algo se
notabilizou em Braz Cubas, foi, sem duvida, no egoísmo.
Entrado na adolescencia, tem, como muito rapazinho perdido de mimos, urna
aventura banal com uma prostituta. - Ignorando o valor do dinheiro, porque não teve de o
ganhar, achou-o já prompto e ao seu dispor, gasta-o ás mão rotas, até que o pae lhe

332
descobre as tramoias, agarra-o á força, e manda-o cursar as aulas de direito em Coimbra.
Lá na bohemia independente, longe de qualquer vigilancia, que podia elle ser ? primeiro
um cabula [cábula], depois um bacharel.
Limita-se a isto a bagagem que elle traz comsigo, regressando á patria: uma carta-
diploma, urna dose soffrivel de pedantismo, outra maior de ignorancia, e um pouco de
presumpção por contra-pêso.
Chega; o pae tenta casal-o; por circumstancias fortuitas, o projecto gora, mas não se
elimina, transforma-se, vindo mais tarde a exercer profunda influencia no seu destino;
desfeitas as nupcias (caso commum na política de todas as epochas !) desfaz-se o plano de
elegei-o deputado, que d'aquellas dependia.
Principia aqui para Braz Cubas um período de transição, em que não se sabe ao certo
o que faz ele; vive; vegeta. Até que um dia em conversação ligeira, dão-lhe esta noticia:
Virgilia, casada com o Lobo Neves, chegou de S.Paulo...
(Continúa) .
MAGALHÃES DE AZEREDO

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21.4.1892, p.l.

QUINCAS BORBA
v

Virgilia chegou de S. Paulo ...


Ora, esta Virgilia fôra precisamente a noiva de Braz Cubas nos famosos esponsaes
tractados e desmanchados. Já veem que era um trecho, e talvez o mais interessante, da sua
mocidade, o que se lhe ia apresentar diante dos olhos. Encontraram-se - é claro;
encontraram-se, e sobreveio-lhes a tentação de continuarem clandestinamente os seus
interrompidos amores, os seus amores gostados outrora com calma, com honesta singeleza,
sob a proteção da lei, e o augusto consenso da sociedade.
Effeitos da musica, das luzes, do calor, do delirio de um baile - scenario arriscado,
em que se prendem tantas almas e se constroem ou se estragam, tantos futuros.

333
Aqui se toca na questão melindrosa das mulheres, que teem um namorado a serio, e,
depois, abandonando-os por qualquer causa, ou capricho, ou volubilidade, ou obediencia a
imposições alheias, acabam por se ligar em matrirnonio com outro homem. Triste sorte a
d'este si sabe do facto, e é precavido, que se vê na contingencia de estar sempre de atalaia
para que não venha o outro reivindicar um coração que lhe pertence, e um corpo que devia
pertencer-lhe.
Si o porvir é cheio de ciladas, o passado não o é menos - Vinho bom, uma vez
provado, deixa saudades nos labias; e que muito é que não resistam elles a saboreai-o de
novo, quando a taça transbordante os atrahe e os convida ?
É historia de todos os dias estas moças que se casam, e vão vivendo admiravelmente
com os respectivos maridos e de subito, ao cruzarem seus olhos, com os de alguem que
amaram ou julgaram amar, por acaso, na esquina de uma rua ou na platéa de um theatro,
eil-as, vencidas, arrastadas irremissivelmente a todas as vehemencias e vicissitudes de uma
paixão renovada - e prohibida...
Diga-se isto de passagem, e prosigamos. Vamos ver o Braz Cubas ás voltas com o
Amor - o aeternus Amor, a força maxima, o maximo encanto da vida, o velho thema
sempre novo e sempre inexgotavel de todos os romances e poemas, o maravilhoso
transformador dos seres, que toma fracos os heroes, e heroes os fracos.
Porque Braz Cubas amou - seja dito em sua honra ; amou um tanto a seu modo, que
querem? mas amou deveras. Teve coragem, teve dedicação bastante para se arrojar
cegamente ao torvelinho de incertezas, de angustias, de receios pungentes, de gosos
infinitos, de acerbos remorsos, de esperanças, de tedios, de desalentos, em que se debate
desde os primeiros instantes um sentimento d'aquelles.
Meus amigos, Virgília era uma mulher soberba, jovem esplendida, e, demais,
resoluta como poucas. Valia bem a pena arrostar por ella alguns perigos, e até a morte...não
chego tanto ; porque Braz Cubas, organisação positiva e sensata, não o esqueçam, havia de
ter em alto gráu o instincto de conservação...
Não me cabe desenrolar neste estudo, peça por peç.a, todo o mechanismo d'aquelle
adulterio romanesco, a que nada falta, nada do que ordinariamente, e necesariamente, o
constitue. O certo é que a elle ficou ligado, póde-se dizer, todo o resto da existencia de
nosso Cubas, e, como epilogo digno da chronica, Virgília, após dous annos de ausencia,
assiste-lhe ao passamento, e fecha-lhe os olhos. Tudo fõra descoberto, houveram de
separar-se, mas, nesse momento supremo, as suas almas uniram-se de novo, e a que partia

334
para regiões ignotas pôde dizer o adeus derradeiro á que ficava, melancholica, abatida,
avelhantada e fria. ..
Fallecido, encerrado no esquife, dado á terra o cadaver d'esse solteirão de 65 annos,
reconstruamos-lhe o caracter: tipo practico, muito, como dissemos - sensibilidade media,
mas equivoca e desigual - consciencia condescendente e elastica; hajam vista o caso da
moeda e o do embrulho mysterioso - intelligencia, pouca, futil, improductiva, e vaidosa ;
quem na camara pronuncia wn longo discurso para ser modificado o feitio dos barretins do
exercito : - resumo ; um medíocre.
Prevejo a objecção do leitor ; mas o Braz Cubas era um grande pbilosopho. Escreveu
as Memorias Posthumas! Attente, porém, leitor benigno, a que, por serem posthumas é que
ellas valem o que valem ; olha que se tracta, conforme o prosador de além-tumulo
egregiamente observa, não de «um auctor defunctm> mas de <<um defuncto auctor». Que
pretendes tu que seja, sinão sabio e genial, um filho de Eva, que penetrou já nos temerosos
mysterios do outro mundo, e, entre elles pensa, e compõe livros ? Lá brilha a luz ampla da
verdade absoluta, que faz ver o fundo das cousas; lá perecem as falsas apparencias, as
illusões, os preconceitos ; não descobres um vestígio frisante dessa serenidade e desse
desprendimento superior, nas linhas funebres da dedicatoria :Ao verme que primeiro roeu
as frias carnes do meu cadaver...?

VI

Rubião residia de longa data em Barbacena ; era mestre-escóla.


Ensinava o que sabia - não sabia mais do que ensinava; pouquisimo, com certeza.
Sem aspirações, sem talento, sem gosto esthetico, sem tendencias e aptidões scientificas,
habitos abaixo de modestos e escassissima pecunia, devia aborrecer-se mortalmente -
sobre tudo porqueguardava [sic] nos refolhos mais ignotos do seu organismo certas gulas
de sybarita e certas pretenções ingenuas de viveur.
Uma vez apparece por alli o Quincas Borba, vindo do Rio, já com todo o seu systema
do Hwnanitismo condensado em um grosso volume, e uns grãos de sandice a dansarem-lhe
no encephalo.

335
Apaixona-se por uma irmã de Rubião, intenta recebei-a por esposa, mas, antes de o
conseguir, uma pleuria a leva. Temos os dous - o irmão e o noivo sem ventura - ligados
por este lance, feitos amigos, como cunhados hypotheticos.
Borba adoece ; Rubião tracta-o com solicitude e carinho, é-lhe enfermeiro assíduo e
devotado, sempre á cabeceira do leito, administrando-lhe tisanas e velando-lhe o somno,
bastando-lhe a paciencia até para ouvir com religiosa attenção, nas horas quietas da
convalescença, a exposição das chi.meras phantasmagoricas do Humanitismo.
Borba morre, e, aberto o testamento, vê-se Rubião herdeiro universal de solida
fortuna. É simples e é logico. Também é logico e simples que este, senhor de tamanho
capital, dê ao diabo Barbacena e a escóla, e mude-se para a Corte, objecto dos seus sonhos
dourados, onde o conforto é o maior, o luxo mais fácil, a existencia mais varia e mais
complicada.
Na viagem, succede-lhe o que é de uso succeder em viagens ; trava relações com um
casal, aboletado no mesmo wagon que ele, um rapaz distincto, de trato ameno, de maneiras
affaveis, e sua senhora, urna moça bonita, de contornos suaves e olhos scismadores. Sem
que ele o perceba, os acontecimentos se precipitam; no espaço de poucos dias junctam-se
dous elementos poderosos, que lhe modificaram radicalmente a vida : uma herança que o
arranca da miséria, e o transporta sem intervallo para a plena opulencia e o encontro casual
de uma mulher que pouco a pouco, sem proposito deliberado, sem premeditação, se vai
apoderar d'elle, e exercer dominio tyrannico sobre as suas idéas e as suas faculdades.
No Rio, chegado de pouco, Rubião tem por força de fazer a aprendizagem do roceiro,
que se perde e confunde no labyrintho de uma cidade populosa e culta. Em summa, com
umas tantas licções, o verniz pega facilmente, embora apenas na superficie.
E depois, quem tem dinheiro, muito dinheiro, está mesmo talhado para amphytrião;
e, para o ser de optima estofa, não são necessarios dotes excepcionnaes ; mesmo um tal
qual acanhamento não fica mal, tem até graça, é de bom tom, revela a modestia de um
dono de casa lhanno e tractavel. Está, pois, descoberta a sua profissão de ora avante, e sem
custos será amphytrião. De facto, nunca foi outtra cousa ; quando deixou de o ser, por falta
de meios (o thesouro esvahira-se ate o ultimo real, e a razão se lhe enchera de trevas),
todos lhe fugiram, todos o renegaram ; e é tambem isto logico e simples, porque nelle não
era o homem que festejavam , era o amphytrião.
Elevado officio, meritorio e caritativo, esse ! Dar de comer e beber aos outros,
divertir os outros, pagar dividas, contas de hotel, bilhetes de espectaculos aos outros, rir-se
do chiste dos outros, encampar as ambições monetarias e políticas dos outros, quereis mais

336
perfeito e consummado altruísmo ? Não mereceria elle estatuas em todas as praças
publicas, e a immortalidade na histeria ? E, não obstante - reverso [sic] imprevisto
d'aquella fulgente medalha! - só lhe retribuem os favores e os sacrifícios com
esquecimento e despreso.
O proprio Palha, que Rubião tanto auxiliara na carreira commercia~ foi-lhe ingrato ;
a propria Sophia, a doce, a meiga, a honesta Sophia, que elle adorara até o desvario, e que
tinha parte bem real, embora inconsciente, na alienação mental que o empolgou !
Rubião a amara - ridiculamente, porque não era correspondido, e, aldeão louco,
primitivo que permanecia sob o fraque correcto e a gravata de seda, não tinha arte
sufficiente para disfarçar a chaga que o devorava por dentro. O amor amesquinhava-o
concorrendo para a decomposição irreparavel do seu debil espirito.
Elle não era da raça dos conquistadores altivos, que se impõem aos desejos
femininos, com inteira certeza do seu poder de fascinação ; nem pertencia ao numero dos
fortes, ainda mais raros, que concentram em si, sem uma queixa, a vehemencia de um
afecto esmagador, transformam-no em um culto delicado e pudico, e, a despeito do
aguilhão da dor moral que os punge de continuo, prosseguem corajosos na sua missão
humana, em prol da consciencia, e em prol do dever.
Rubião, coitado ! não passava de urna boa alma incaracterística e passiva.
No meio dos seus banquetes e prodigalidades, urna utopia anormal entra a
desarranjar-lhe o cerebro.
Principia a pensar muito em Napoleão I e Napoleão m; compra os bustos dos dous
imperadores, e colloca-os no seu gabinete, bem á vista ; um dia, manda chamar o barbeiro
para dar-lhe nos bigodes e á pera o feitio dos de Luiz Bonaparte e mais tarde, a monomania
progride ; sempre que se falia em ceremonias da corte ou em batalhas, eil-o a delirar,
dizendo-se Napoleão, nomeando duques, generais, ministros os seus interlocutores ; uma
ocasião, tomando legar no carro de Sophia, ao seu lado, o tresloucamento chega ao auge ;
elle é o imperador .francez; ella é a imperatriz Eugenia; e, dentro em pouco, os accessos de
sandice que eram intermittentes, tomam-se habituaes, e é forçoso encerrai-o numa casa de
saude.
Apura-se-lhe a fortuna ; fora-se toda ; restam miseraveis migalhas que nem dão para
lhe pagar as despezas.
Assim acaba, na total mina, esse desditoso, cuja maior inferioridade, foi não saber
ser feliz.

337
Vae dar o ultimo suspiro, em Barbacena, onde entra sob uma chuva torrencial,
desvairado, febricitante, acompanhando-o somente o velho cão, unico que o não
abandonara, como não abandonara nunca o extincto Quincas Borba ; e, da mesma forma
que este expirou na convicção de que era Santo Agostinho em pessoa, também o
infortunado Rubião, synthetisando no derradeiro instante os seus delírios de grandeza,
«poz a coroa na cabeça - uma coroa que não era, ao menos, um chapeu velho ou uma
bacia.. ..Não senhor ; ele pegou era nada , levantou nada e cingiu nada...»

(Continúa)
MAGALHÃES DE AZEREDO

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24.4.1892, p. I.

QUINCASBORBA
VII

É entre as duas figuras que acabo de reconstruir - com cuidado e escrupulo, um


pouco como si se tractasse de imagens historicas - que se nos mostra o perfil exotico,
mephistophelico de Quincas Borba.
Podemos evocar com interesse e curiosidade essa especie de dr. Fausto maluco, que
não foi buscar nas abstracções da metaphysica ou nas experiencias da chimica o segredo
dos seres, mas remexeu assiduamente a escoria humana, em todos os seus exgottos, desde
as astucias da gatunagem até a infecção do catre rôto da enxovia ; e a quem todo o ocio de
uma mendicidade aventureira deparou amplos lazeres para a creação de uma philosophia,
entre ironica a serie [sic], que aliás pôde com vantagem soffrer o confronto de outras
muitas, mais ou menos em voga por esse orbe alem.
Soberbo contraste é aquelle, e dá um realce extranho ao quadro.
Quincas Borba e o humanitismo são duas cousas que se confundem; um é a relaidade
[sic], outro é o symbolo ; um é o sacerdote, outro é o dogma.

338
Ora, o ponto de partida para a analyse de ambos é a sorpresa [sic] dolorosa de Braz
Cubas, vendo uma bella manhã no Passeio Publico, pobre, esfarrapado, sordido, abjecto
aquelle mesmo que fôra tão gentil menino, tão garboso collegial, fazendo de imperador nas
festas, e escolhendo sempre para si um papel que significasse domínio e preeminencia
sobre os outros.
Parece que o futuro philosopho tinha sido uma d'essas mil victimas do ideal, que
acotovelamos tantas vezes pela rua. sem siquer attentar-mos nellas quasi nunca. É como
um D. Quixote de outro genero. O que o perdeu foi justamente haver posto os olhos em
miras altas demais ; novo !caro, o sol da crua realidade derreteu-lhe a cêra das azas - e de
resto tão feliz como o outro, teve a boa sorte de encontrar quem lhe abrisse logar distincto
em selecta galeria litteraria.
Naturalmente, criança amimada, rapazinho crescido emte o carinho e a submissão de
todos os seus proximos, desde a mãe até os criados, acceito sem contestação pelos
companheiros como general ou rei nos seus brincos e comedias, sahiu da escóla com
ingenua convicção de que seria neste mundo tudo o que ambicionasse- sem outro esforço
que o de querer.
O mundo, porem, sahiu-lhe bem ás avesas do que cuidava; em quanto [sic] não lhe
faltou dinheiro, a vida foi fácil; mas, acabado elle... Si sob essa pelle até então acostumada
ao comacto macio do luxo, houvesse um caracter de luctador sadio e forte, a adversidade,
longe de o entibiar, ser-lhe-ia incentivo para o combate; mas, vadio por habito, vadio por
índole, em vez de dar de si um trabalhador honrado, sahiu-nos um mendigo ladrão. A
queda foi fatal, segundo o velho aphorismo escolastico -corruptio optimi pessima - e a
despeito de lermos, entre os axiomas do Braz Cubas, improvisado La Bruyére [sic] por
momentos: «Antes cahir das nuvens que de wn terceiro andar.»
Taes circumstancias só ao de leve as vemos acenadas no romance; mas
deprehendem-se sem custo do entrecho, e concorrem para fazer do Quincas Borba um dos
typos melhor apanhados em flagrante de humanidade, que ainda creou Machado de Assis.
É, de facto, perfeitamente um d'esses desgraçados sem numero, a quem a miseria
callejou a alma,« a ponto de lhe tirar a sensação da lama ». Quem os não conhece? quem
os não tem visto a cada esquina que dobra, parados de mão estendida, olhos turgidos e
avermelhados de alcoolismo, com um aspecto tão merencorio, e tão cynico a um tempo,
que produz « um sentimento mixto de nojo e lastima » ?

339
Ante a inopia torpe e desbriada, que nos procura, que nos persegue com lamurias
falsas, a gente chega a hesitar, quando tira do bolso uma moeda, entre o impulso caritativo
de socorrer o infortunio, e o receio honesto de estimular o vicio.
Eis a personificação acabada e completa de semelhante casta de parias: « Deixa-me
agradecer-lhe de mais perto?» - pergunta o Quincas a Braz Cubas, que lhe dera uma nota
de cinco mil reis.
« E, dizendo isto, abraçou-me com tal impeto, que não pude evital-o ...Metto a mão
no collete, e não acho o relogio.
Ultima desillusão ! o Borba furtara-m'o no abraço ».
Mas naquella degradação moral tão repellente não andava só um effeito da pobreza
desoccupada e indigna ; andava tambem um systema, um modo especial de encarar as
cousas. Astucia de tractante, que inventa theorias accintemente para sobredourar com ellas
os seus maus costumes ? tendencia de zombador sem preconceitos, intelligente e um pouco
doido, a englobar num plano geral, mais ou menos coordenado, as suas opiniões
desrespeitosas e revolucionarias, sobre os pbenomenos que observa, e os princípios que
d'elles deduz ? Talvez urna e outra cousa ; ou antes, nada d'isso ; mera diversão de quem
não tem nada melhor a fazer.
Quando vemos alguem, que costuma ficar-se callado horas e horas, sentado em urna
cadeira de balanço ou encostado a uma janella, com a vista perdida no tecto ou no
horisonte, todo absorvido num extasi de fakir ou de budhista, o primeiro commentario que
nos acode á mente é este : Que profundo pensador deve ser este homem !
Considerem agora o Quincas Borba, que consumiu longos e arrastados annos na mais
absoluta inacção ; inventivo como era, prescrutador, com urna pontinha de genio falho, é
de suppor que conversasse muito com os seus botões, e, á força de argumentações
monologadas, conseguisse edificar o que ele chamou a principio a « sua pbilosophia da
miseria» , e mais tarde chrismou com a denominação technica de Humanitismo, tendo-o
modificado já com certas emendas optimistas, que lhe inspirou a sua abastança, restaurada
por um sucesso imprevisto.
Sim, morrera-lhe uma tia, lá para os lados de Minas, e tocara-lhe o legado inteiro,
sem quebra de um real. Vendo-se rico de novo, forçosamente o seu primeiro cuidado foi
reenvernisar o rosto com uma boa provisão de vergonha - não digo muita, mas quantum
salis, para as despezas jomaleiras da comedia social.

340
Temos d' isso um documento de alto valor ; a carta que escreve ao Braz Cubas,
remettendo-lhe um relogio d'ouro, em substituição do que lhe espalmara, e pedindo-lhe
venia para ir expor-lhe as suas doutrinas de reforma philosophica.
(Continúa).
MAGALHÃES DE AZEREDO

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26.4.1892, p. 1.

QUINCAS BORBA
VIII
O Humanitismo, como quasi todas as philosophias novas e velhas, parte da
concepção do universo para o estabelecimento e a applicação de certas leis, destinadas a
reger a actividade individual e conectiva. O principio essencial, a origem, o meio, o fim de
tudo é Humanitas ; pantheismo espiritual, que eleva o homem á cathegoria de deus, e
conclue que elle «deve adorar-se a si proprio». De accordo com esta formula, ha tres
phases em Humanitas, todas dirigidas ao bem e á supremacia do grande ser : a statica,
anterior a toda creação ; a expansiva, começo das cousas ; a dispersiva, apparecimento do
homem ; e, por uma falta de logica que trahe um principio de enfermidade mental, ainda
haverá uma quarta, inexplicavel, a contractiva, absorpção do homem e das cousas ; por
quem ?
Visto isso, todos os actos são bons ; ponto de contacto entre o Humanitismo e a
Escolástica, por exemplo ; nesta, como manifestação de um factor, e o mais nobre, entre os
seres contingentes ; naquelle, como desenvolvimento da mesma força fecunda e eterna, e
volvendo atravez das idades.

341
A Escolastica, porem, admitte que um acto possa ser mao, moralmente, pela falta de
uma perfeição intrinseca : a sua conformidade com as normas impostas pelo Creador ; no
Hwnanitismo não ha essa restricção : todos os actos são bons, porque todos são
necessarios; d'onde, nem direitos nem deveres ; apenas um fatalismo incontrastavel.
Todas as ambições, por mais desmesuradas, todos os sentimentos, por mais baixos,
são inteiramnete licitos. «Assim o algoz que mata o condemnado, póde excitar o vão
clamor dos poetas ; mas, substancialmente, é Humanitas que corrige em Humanitas uma
infracção de Humanitas.» A inveja. o odio, a cubiça [sic], a avareza, a prodigalidade, tudo
isso é justo, porque a lei unica é « a lucta pela existencia », e, para entrar nella, qualquer
arma é permittida. Todas as complicações se resolvem pela regra de Hobbes : o mais forte
devora o mais fraco ; logo, a maior felicidade é ser forte, descender do peito ou dos rins de
Humanitas ; a única desgraça é não ter nascido.
A consequencia ultima do systema. tirou-a a Quincas Borba em Barbacena, em uma
prelecção dogmatica ao seu fiel enfermeiro Rubião, discorrendo, ás bordas do sepulchro,
sobre a morte, como Socrates, com a taça de cicuta na mão, discorreu sobre a
immortalidade:
« Não ha morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode
determinar a suppressão de uma d'ellas ; mas, rigorosamnete, não ha morte, havida, porque
a suppressão de uma é a condição da sobrevivencia da outra, e a destruição não attinge o
principio universal e commum. D'ahi o caracter benefico e conservador da guerra.>>
Descreve-lhe então duas tribus famintas, acampadas , numa plantação de batatas, que
são insuficientes para alimentai-as a ambas. « A paz, neste caso, é a destruição ; a guerra é
a conservação. Uma das tribus extermina a outra. e recolhe os despojos.>>
E Quincas Borba, enthusiasmado, põe o extremo remate ao Humanitismo, nesta
clausula synthetica, e sublime :
« Ao vencido, odio ou compaixão ; ao vencedor, as batatas !»
Vêm que a doutrina é interessante, e, explorada a geito, poderia fazer a nomeada de
mais de um pensador- sem embargo de algumas pequenas incoherencias; mas corre quasi
como proverbio a comparação : « incoherente como um philosopho...»

IX
Conhecidos os tres personagens principaes que esbocei, está implicitamente exposta
a acção do romance, que é, aliás, muitíssimo simples; nem preciso deter-me em traçar o

342
retrato mysterioso do cachorro Quincas Borba 2, cuja sombra paira sobre todos os
capitulas, como o de uma sorte de genio familiar, vagamente satanico.
Com verdadeira maestria e firmeza de pulso, delineou tambem Machado d'Assis os
perfis das mulheres,- Virgilia e Sophia que já são para nós relações antigas; Marcella, a
amante semi-publica, a concubina venal de Braz Cubas; a flor da moita, Eugenia, com
traços rapidos; Eulalia, a flor do valle, igualmente debuxada de passagem; d. Placida, a
alcoviteira ancian, triste filha das hervas, fructo pêco dos amores de um sacristão e de uma
doceira; d. Tonica, a dos olhos de trinta annos, « cansados de esperar>> sempre á cata de um
noivo, sempre desilludida e sempre animada a novos projectos; d. Fernanda, a distincta e
generosa senhora, que é a phisionomia mais sympathica da galeria; Maria Benedicta, a
bella e romantica enamorada, a esposa feliz, a mãe extremosa; assim como os typos
masculinos, entre os quaes notaremos : o pae de Braz Cubas; o Cotrim, cunhado do
mesmo; o desembargador Villaça, glosador emerito, rival verdadeiro ou supposto de
Bocage nas ceias bohemias do restaurante Nicola; Lobo Neves e Theophilo, entregues de
alma e corpo á febre da política; Carlos Maria, o elegante, o dandy de gosto fmo, educado
no respeito de si mesmo, e um pouco tambem no desprezo dos outros; o alegre e galhofeiro
Freitas, conviva quotidiano de Rubião; o major Segueira36, tagarella inexgotavel; e outros,
que no enredo representam papel mais ou menos secundaria e accidental.
Após tão extensa enumeração, o mais acertado é fazer ponto por hoje, deixando para
outro artigo algumas breves considerações sobre a maneira, a composição, o estylo, a
psychologia, e, sobretudo, o humorismo extraordinariamente característico do auctor. Não
terminarei, entretanto, sem me explicar com os que, porventura ( e não serão poucos )
acharem nimiamente prolixa esta minha apreciação acerca de dous livros de mera
litteratura; convenho no reproche de prolixidade, mas digo-lhes que não ha outro remedio
sinão incorrer nelle; com effeito, ha duas especies de critica: uma para os que leram a obra
de que se tracta; outra para os que a não leram.
Ora, entre nós, a presumpção é que a mór parte dos que vão ler a apreciação no
jornal, não leram a obra, que é mais longa e mais cara ; do que se segue que a critica, em
ultima analyse, é um convite e um estimulo para que o publico compre e leia a obra.
De que modo obter tal resultado, sinão dando wna idéa geral do livro, dizendo umas
causas e callando outras, para que a curiosidade se excite, e queira saber tudo, como foi
isto, como foi aquillo, e como nasceu aquelle typo, e como morreu aquell'outro ?

36
Siqueira

343
Mas isso é rudimentar de mais, e os leitores me perdoarão o atrevimento de lhes dar
esta licção de abecedario critico.
(Continúa).
MAGALHÃES DE AZEREDO.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27.4.1892, p.l.

QUINCAS BORBA
( Conclusão )
X
Ao classificar estes dois volumes, como nos sentimos longe d'aquelles
emmaranhados romances de intriga tenebrosa, tramada, desenvolvida, levada a cabo por
um cento de personagens, que em cada lance nos reservam um enigma e em cada pagina
uma sorpresa ! São nossos antipodas os Montepins, os Sues, os Ponsons, cujos prodígios
de funambulismo imaginativo ainda acham quem os admire nas agoas-furtadas dos
proletarios, e nos gabinetes de leitura barata, com immenso gaudio dos editores, e serio
detrimento das intelligencias debeis.
Nós, quando attentamos nas suas creações incongruentes, nos seus Marquezs [sic] de
***, Duques de *** e Damas de luva preta, e galans alambicados, e filhos bastardos, e
faccinoras de catadura tremenda, exclamamos instinctivamente : que fantoches de páo
sarapintado !
E, como no scenario dos theatros réles, em que as télas mal remendadas deixam a nú
os machinismos de madeira para mutações imprevistas, descobrimos sem custo, por sob
aquelles ouropéis de baixa litteratura, o plano pueril de produzir effeitos faceis nas
phantasias incultas, sem grande dispendio de talento e de trabalho, só com as falsas
scintillações de uma inverosimilhança desmarcada !
Quanto ao Braz Cubas e ao Quincas Borba, perguntaríeis até si são realmente
romances, tão extranha lhes é toda a pretensão de armar ao assombro e a bôa fé dos
leitores. Eu responderia assás justamente ; Isto não é um romance, é a Vida.

344
Nada ha postiço, artificial nos episodios, que se desenrolam com perfeita
naturalidade, e com a logica, por vezes inopinada, dos factos quotidianos. Bem cabido é o
reparo de Machado de Assis no prologo do Braz Cubas :
« A gente grave achará no livro umas apparencias de puro romance, ao passo que a
gente frívola não achará nele o seu romance usual.»
Zola, em confabulação familiar com De Amicis, disse-lhe que <<elle não faz os seus
romances, deixa que estes se façam de per si.»
Escolhe dous ou tres factos fundarnentaes, e dados os costumes, o temperamento, as
idéas dos protagonistas e comparsas, o meio em que se formaram, a educação que tiveram,
tudo quanto lhes pode influir na indole e no proceder, tira d'esses dous ou tres factos
escolhidos as conclusões mais obvias. Pelo mesmo methodo se regulam as cousas nos
livros a que nos vamos referindo; Braz Cubas e Virgília fizeram isto: walsaram [sic]
junctos e abraçaram-se um pouco demais, e, beijaram-se depois ; mas Braz Cubas e
Virgílio [sic] são taes e taes : que se segue d'ahi? Isto. Pois será isto, e mais nada.
Não contesto que haja romances de entrecho mais variado, mais rico ; não os ha,
porém, melhor estudados e desenvolvidos. E ainda o que, a meu ver, enaltece o merito do
auctor é ter sabido, com elementos relativamente restrictos, attrahir tão bem, de principio a
fim, a attenção e o interesse de quem o lê.
Disse eu : não é um romance, é a vida. E, de feito, não ha relação mais fiel e
minuciosa da vida do Rio de Janeiro que Machado d'Assis conhece a fundo ha muitos
annos.
Liga-se a esta circumstancia o seu modo peculiar de descrever. Não gasta elle, em
quadros interminaveis, paginas e paginas, como fazem de ordinario Balzac e Zola; não é
raro que consagre poucas linhas á pintura de um logar ou de uma physionomia ; mas linhas
são essas tão artisticamente traçadas, que nos dão, inteira, a impressão do que ele quer que
veJamos.
Comtudo não escasseiam, sobretudo no Braz Cubas, largos trechos descriptivos de
extraordinario relevo ; por exemplo, o capitulo VII, em que soberbamente narra o delirio
da febre com um mixto exquisito de generosidade bíblica e de facecia molieresca ; o XII,
em que reconta por miudo o gracioso «Episodio de 1814»; o XVII - «do trapezio e outras
cousas» - em que ha um notavel retrato de Marcella; o XIX, <<A bordo», tão repassado de
nostalgia e de emoção ; o LXXIV «Historia de d. Placida>>; o CXXI «Morro abaixo», e
innumeros outros.

345
Mais uma particularidade: pondo-nos em face de um caracter, bom ou máo, elevado
ou rasteiro, valioso ou futil não nol-o apresenta de um só golpe, fazendo no mesmo ponto a
lista das qualidades, que o exornam, ou que lhe faltam : deixa que estas se revelem a tempo
e horas, quando as condições internas ou externas o determinarem ; não é tal processo o
mais racional, o mais consentaneo com a realidade ?
Que referencias farei ao seu estylo ? quem desconhece neste Brasil o estylo de
Machado d'Assis ?
«Quel bello stile che m'ha fatto onore», pode elle dizer com Dante.
A dupla superioridade, substancial d'essa linguagem perfeita, é guardar ella
zelosamente - neste fim de seculo - toda a pureza e correcção dos classicos, alliando-a
com sapiente equilíbrio aos beneficios do progresso.
Machado de Assis comprehende bem que um idioma é o refluxo de uma época e de
uma civilisação, e, portanto, não se póde mumificar, eternamente estacionaria nos mesmos
moldes ; é mister que viva com o povo que o faz vehiculo das suas idéas e dos seus
sentimentos, e passe, como ele, por todas as modalidades, que importa cada phase da sua
existencia conectiva ; mas comprehende tarnbem, por outro lado, que essas modalidades
não lhe podem influir na essencia, não lhe podem alterar sinão a forma ; comprehende que
- quem é rico não precisa viver de emprestirnos - e por isso proscreve dos seus escriptos
toda a locução extrangeirada e desnecessária ; comprehende que não devemos atirar por
cima dos moinhos as joias mais preciosas do thesouro vernaculo, e por isso reintegra em
seus foros de cidade genuínas phrases e construcções, ineptamente relegadas na valia
cornrnum dos arcbaismos obsoletos.
Outra primazia innegavel de Machado de Assis consiste na sua sciencia de
psychologo, e no seu humorismo personalíssimo, que revestem de um encanto novo e
ignoto aquelles capítulos, na maioria tão curtos, que a gente os devora, e sente que findem
tão depressa.
As suas analyses psychologicas rivalisarn com as dos mais auctorisados mestres na
materia. A subtileza com que ele analysa as mínimas nuanças dos desejos, dos
pensamentos, das resoluções, dos sonhos humanos faz crer que exista, com effeito, a
verdadeira «anatomia da alma» e que seja possível penetrar com segurança nos escaninhos
do coração, para dissecar á luz do dia as suas fibras reconditas e mysteriosas.
Não quero citar exemplos, porque não acabaria mais; ha-os a cada pagina, que nos
espantam pela argucia e pela excentricidade. E, de resto, não os cito, muito de proposito :

346
quem se sentir curioso de os apreciar, abra o livro, e não terá difficuldade em encontrai-os ;
affianço-lhe que não se saciará d'elles, antes de chegar á palavra - Fim.
Não terminarei sem me occupar do seu humorismo, uma das qualidades principaes
que lhe assignalei. É predicado quasi absolutamente novo e desconhecido nas nossas
letras. Em geral, entendemos por humorismo o habito de encarar as cousas pelo seu lado
comico, provocando com remoques joviaes, a gargalhada das turbas.
Não se parece nada com esse impropriamente denominado humorismo, o de
Machado de Assis ; é um humorismo mais fino, mais aristocratico, mais acerbo. É, com
pequenas modificações, o que Ramalho Ortigão nos define nas Farpas:
«Não, não sois humoristas ...Não o sois porque vos falta a faculdade de crear as
grandes violencias de que se tiram os grandes contrastes. Porque não sabeis pôr a tinta que
ri ao pé da tinta que chora. Não sabeis dar as grandes gargalhadas convulsas, que soluçam,
como quem vae morrer ; não sabeis fazer a sorte difficil, que é a de polichinello pintado a
alvaiade, com uma enorme bocca de vermelhão, com urna corcunda e uma pansa, que se
acocora, que guincha, que se rebola no chão, e de repente vos faz urna visagem - que é a
tragedia- que vos supita o riso, e vos gela o sangue nas veias».
É isso, com um pouco menos de revolta e um pouco mais de melancolia serena o
humorismo de Machado de Assis ; é o humorismo de um desenganado ; é o humorismo de
Moliére no Mysanthropo, de Shakespeare em algumas scenas do Hamleto e do Othello.
É essa flor doentia da experiencia e da desillusão, que semelha um goivo de
sepulchro abrindo-se numas jarra de porcellana de Sévres, sobre um piano d'onde se
evolam accordes de polkas alegres, no turbilhão doido de um baile de duendes...
Assim se fecha, numa expressão de desesperança resignada, o Quincas Borba:
«Chora os dous recentes mortos, si tens lagrimas. Si só tens riso, ri-te ! É a mesma
cousa. O Cruzeiro, que a linda Sophia não quiz fitar, como lhe pedia Rubião, está assás
alto para não discernir os risos e as lagrimas dos homens.>>

E aqui me despeço eu d'estes dous livros, amaveis companheiros dos meus


lazeres, e a cuja convivencia ainda muitas vezes hei de tornar a recorrer, sempre com
o mesmo gosto e a mesma solicitude.
MAGALHÃES DE AZEREOO

347
O Álbum, Rio de Janeiro, janeiro de 1893, pp. 9-11.

MACHADO DE ASSIS
[ilegível] periódico ephemero, profundo e luminoso artigo sobre a personalidade de
Machado de Assis. Hoje, que o Album se honra publicando o retrato do Mestre, transcreve
para as suas colunas esse artigo quase inedito, rendendo assim uma dupla homenagem ao
glorioso autor das Memorias posthumas do Braz Cubas, e ao illustre moço cuja morte
prematura foi uma perda sensível para as lettras nacionaes.
Eis as palavras de Arthur Barreiros, -nós não poderíamos dizer mais, nem melhor:
" Machado de Assis não se elevou pelo empenho, nem pelo fortuito dom do
nascimento, nem pelas inexplicaveis combinações do acaso ou da politica. Para se tornar
illustre e amado, não precisou de trepar para o carro de dentista em pleno vento e fixar
sobre si a curiosidade das ruas, ao som estridente dos cornetins de feira, ao desalmado
rufar das caixas e tambores. Deem-me um Atheniense, que em troca eu vos darei cem
Beocios ! póde elle insculpir como divisa na frontaria da sua obra. Filho de artista, elle
apenas quiz ser artista maior, n' outra esphera mais alta e mais vasta.
A' volta do seu berço não lhe sorriram as boas fadas da lenda, que lhe
outhorgassem bens transitorios e de sua natureza injustos; o Talento e o Trabalho, em
compensação, estenderam-lhe as mãos,e da humildade do seu nascimento o trouxeram ao
combate homerico da vida, e o armaram cavalheiro, certos de que os seus triumphos seriam
sem conta e as victorias gloriosas.
A sua vida litteraria, que se estende, como um golfo grego e azulado, de aguas
travessas e risonhas, das Crysalidas aos Papeis Avulsos, e fórma um opulento fio de
perolas, raro será o homem de gosto que não a conheça no todo ou em parte.
Relêde-me as Crysalidas, que consorciam as rosas [ilegível] as suas rimas [ilegível]
as explosões ruidosas do genio, todo esse mundo irradiante e impalpavel de sentimentos e
idéas que [ilegível] e nos quadros divinos da natureza, e que se pode conter no espaço
abrangido por uma janella que deita para o campo, ou no espaço-muito maior e muito mais
pequeno! -do adorado olhar feminino; relêde-me esses versos, e dizei-me se não descobris
em germen o embryã~omo se distingue no botão toda a flor e nas graças da menina toda
a seducção da mulher--a nota poderosa, a nota pessoal, moderna e sincera que domina este
singular, este grande, este admiravel livro das Memorias posthumas de Braz Cubas.

348
E ' a sua obra prima, a mais trabalhada e a mais saborosa, a que o defmio inteiro e
vivo, philosopho adoravel, de um scepticismo, nem brutal nem deshumano, - gotta a
gotta adquirido como um veneno irresistivel, - indocil, religioso á sua maneira; e o vinco
pessimista que d'esse volume para cá marca todas as suas paginas poderia ser tomado
como um arrebique mais, se elle não fosse um convencido.
Estylista impecc.avel, estylista desde que pela primeira vez se vio armado de uma
penna e com algum papel branco diante de si (porque ha escriptores de nascença),
Machado de Assis burilou no mais bello marmore, com um sagrado respeito á Forma, com
uma noção nítida e poderosa do Bello, esssa longa e original serie de contos, de romances,
de folhetins, de phantasias delicadas, imprevistas, deliciosamente ironicas, sintillantes de
graça, que se chamam---citando ao acaso-Miss Do/lar, A mão e a luva, O cão de lata ao
rabo, A chinella rurca, A Serenissima Repub/ica, As Academias de Sião, Um capitulo
inedito de Fernão Mendes Pinto ...
O critico não desmerece do phantasista ; a penna que zombeteia e sabe rir, sabe
tambem, sem clamores e com perfeita exempção, partir o pão da justiça entre os que
arroteiam e lavram a mesma geira de terra, os que consomem o melhor e o mais puro do
seu sangue insuflando vida ás creações do espírito, os eternos descontentes de si mesmos,
os que veem sempre recuar e fugir os horisontes da terra promettida.
Há disto um exemplo frisante no magnífico estudo sobre a Nova Geração, que
triumphatmente [síc] fez a volta á imprensa do paiz: desprende-se d' aquellas paginas
enthusiasticas e justas "opportunas e amigas", tal serenidade de animo, uma tal
comprehensão da confratemidade litteraria, tão ponderados são os seus juizos, tão
rectilineos, tão inilludiveis, que não houve revoltados, e, se os houve, não se atreveram a
apellar do julgamento.
E no meio de todos nós, que lhe quizemos bem muito antes de saber o que pensava
o Mestre dos nossos grandes ou pequenos predicados de espírito, elle é simplesmente um
vivo e alegre camarada, que se faz rapaz com os rapazes, que não nos dá o [ilegível], mas
que nos adverte e estimula, para nos ver triumphar em toda a linha nobremente [ilegível].
Disse Jorge [sic] Sand que o auctor dramatico deve deixar o auditorio fora de ponas
se quizer impressionar, não um publico, mas o coração humano ; Machado de Assis dá
maior amplitude á maxima do escriptor feminino: evita e execra a galeria, por
temperamento, por um augusto e elevado sentimento de independencia e liberdade.

349
Nestes tempos de vozeria e fumarada, em que os mais bem dotados de pulmões se
julgam os triumphadores e os heróes, quando quasi todos se sentem mordidos pelo
demonio da publicidade e da gloriola, elle vive a serena e luminosa vida da Arte,
egualmente repartido entre a obra divina e a obra humana, egualmente deslumbrado pela
valsa phantastica das borboletas e por um tercetto genial de Dante, por uma apostrophe
despedaçadora de Shakespeare e pelo manso derivar da agua sonora.
No trato intimo, benevolo, discrito, polido, admirador e seguidor das praticas
britanicas, gent/eman, em uma palavra ; na palestra é ainda um escriptor de raça,
deleitavel, copioso em ditos, penetrante, arguto, com um reparo para cada facto, com um
remoque para toda a dissonancia, como nos mais bellos dias dos seus vinte annos, que não
querem acabar, que se lhe metteram em casa e o acompanham para toda a parte.
E' um Mestre; não o procura ser, não se impõe, não arma ás acclamações, não
disputa proeminencias; e todavia é um Mestre pelos honrados exemplos da sua vida, pelas
primorosas concepções da sua penna. O artista n·ene é um prolongamento do homem; no
livro e fóra do livro, os limpos de coração sentirão a luz e o calor do astro, respirarão certa
grandeza sincera, um não sei que de immaculado e magnanimo, que é como o ar ambiente
dos espíritos verdadeiramente superiores.
ARTHUR BARREIROS"
Accrescentaremos alguns apontamentos biographicos:
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de Junho de
1839, e é filho legitimo do operaria Francisco José de Assis e de D. Maria Leopoldina
Machado de Assis.
Os seus estudos foram muito irregulares. Ao deixar a escola de primeiras lettras,
sabendo apenas ler e escrever, tratou de instruir-se a si mesmo, sem professores nem
conselheiros, e assim adquirio todos os conhecimentos indispensaveis á carreira com que
devia illustrar o seu nome. Para dar uma idéa da força de vontade que elle possuia- como
ainda possue - em se tratando de enriquecer o espírito, basta dizer que tinha perto de
cincoenta annos quando aprendeu a lingua allemã.
[ilegível] Mas no anno seguinte abandonou-a para ser revisor de provas da famosa
casa do Paula Brito [ilegível].
Em 25 de Março de 1860 encetou Machado de Assis a sua vida jornalística, ao lado
de Saldanha Marinho, Quintino Bocayuva e Cezar Muzio, no Diario do Rio de Janeiro.

3.50
Demorou-se na redacção d 'essa folha até o começo de 1867. Em Março d 'esse anno foi
nomeado ajudante do director do Diario Official, cargo que exerceu até 1878.
Entretanto, desde 31 de Dezembro de 1873, estava nomeado I o official da
Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, sendo promovido a chefe de
secção em 7 de Dezembro de 1876, e a director em 1 de Abril de 1889, cargo que ainda
occupa na Secretaria da Industria, Viação e Obras Publicas, transformação d 'aquella.
Releva dizer que Machado de Assis, comquanto o seu grande temperamento
artístico devesse naturalmente indispol-o contra vida burocratica, é um funccionario
publico modelo.
Accrescentaremos que Machado de Assis foi membro do Cosnservatorio Dramatico
Brasileiro ; fez parte das conferencias de historia e geographia como membro da secção de
historia litteraria e das artes; servio, em 1872, na commissão do Diccionario Technologo
da Marinha, e em 1878 na commissão incumbida de organisar um projecto de reforma de
legislação de terras ; foi official de gabinete do Conselheiro Buarque de Macedo, ministro
da Agricultura.
Em 1867, o governo imperial agraciou-o com o gráo de cavalheiro da Ordem da
Rosa, por serviços prestados ás lettras brasileiras. Em 1888 a princeza D. Isabel elevou-o a
officiaJ da mesma Ordem.
Em 12 de Novembro de 1869 casou-se com a Ex.ma. Sra. D. Carolina Augusta
Xavier de Novaes, irmã de Faustino Xavier de Novaes. Nunca tiveram filhos.

*
Eis a lista, por ordem alphabetica, dos volumes publicados por Machado de Assis:
Americanas, poesias ; o Caminho da porta, comedia ; Crysalidas, poesias;
Desencantos, comedia ; os Deuses de casaca, comedia ; Helena, romance ; Historias da
meia noite ; Historias sem data ; a Mão e a luva, romance ; Memorias posthumas de Braz
Cubas ; Papeis avulsos, contos ; Phalenas, poesias ; o Protocol/o, comedia ; Quincas
Borba, romance; Ressureição, romance ; Tu só, tu, puro amor... , comedia; Yayá Garcia,
romance.
Talvez escapasse algum.
Accrescente-se a essa lista um grande numero de contos, publicados aqui e alli, que
dariam cinco ou seis grossos volumes ; tres ou quatro comedias [ilegível] phantasias, etc.,
que representam, talvez, cem volume; um poema inedito [ilegível], de saudosa memoria;
muitas traducções para o theatro, entre elas a do Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais,

351
representada em 1870; uma primorosa traducção inedita, em versos alexandrinos, de Les
plaideurs, de Racine, etc. Actualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na
Gazeta de Noticias, uns artigos intitulados A Semana, que n' outro paiz mais litterario que o
nosso teriam produzido grande sensação artística.

A. A.37

37
Iniciais de Artur Azevedo.

352
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 5.2.1893, p. 1

IDÊAS E SANDICES
DO
IGNARO RUBIÃO

« Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o principio da vida e reside em


toda parte, existe tambem no cão, e este póde assim receber um nome de gente, seja
christão ou musulmano ...»
Estas palavras de Quincas Borba, lançadas na obra d'esse titulo, constituem o eixo de
toda a philosophia excentrica que Machado de Assis procurou desenvolver através dos
personagens do seu ultimo romance.
Quincas Borba escrevera um livro, no qual, segundo esperava, viveria eternamente.
Ha todavia n'esse livro, e sem embargo da larga synthese que faz sobre o mundo, uma
grande preoccupação de metempsychose. Quincas Borba não buscava associar á sua
grande obra um collega humano, como o fizeram tantos philosophos da antiguidade e dos
tempos modernos. Parece-me, portanto, que o romancista andou revolvendo
intencionalmente os carvões da satyra, para bolir com as respeitabilíssimas manias de
alguns d'estes philosophos.
Não teve Socrates como collega em suas conversações a Alcibíades ? Christo não se
associou a S. João? Mahomet , ao Anjo Gabriel? Dante, á Beatriz? A. Comte, por ultimo,
não instituiu o culto de Clotilde de Vaux, a quem dava o titulo de sua eminente collega.
Que muito era que Quincas Borba se desse ao luxo de imitar aquellas sumidades de
talento! ?
Pouco; não era nada. Como, porém, os bipedes não lhe inspiraram confiança,
escolheu para socio de sua doutrina e transmissor inconsciente das suas vesanias a um
quadrupede, o qual, de accordo com a respectiva verba testamentaria, deveria guardar o
nome do seu dono, e obrigar os posteros a pronunciar o nome do phillosopho, quando
[ilegível]itassem pelo cachorro.
Houve acaso philosopho que tivesse tanta fmura, e que fosse tão subtil?
-Para bem entender-se o que é a morte e a vida, bastava ouvil-o contar como morrera
a sua avó.

353
A avó do philosopho perecera victima de um desastre, no antigo largo do Paço, ao
sahir da igreja para tomar uma cadeirinha. Esmagou-a um carro, cujas bestas dispararam; e
d'esse facto insignificante nasceu toda uma philosophia.
Soube Quincas Borba que o tal carro, ou traquitanda, como chamavam a esse
vehiculo ao tempo do fallecimento da sobredita sua avó, disparára, porque Humanitas
estava com fome, isto é, o proprietario da traquitanda, fazendo fustigar as mulas, afim de
alcançar depressa o hotel onde se lhe augurava um optimo almoço, fora obrigado, no
concurso vital, a passar por cima dos obstaculos que se antepunham á satisfação do
appetite; e a avó de Quincas Borba, porque se transformou em obstaculo a um forte e «a
uma série de actos de conservação», foi derribada, espatifada e reduzida a cacos, como um
pote velho, pisado a patas de cavallos.
Não parou ahi, porem, o arrojo mental de Quincas Borba.
« Humanitas» é o principio», exclamava elle. E, mostrando em como nas cousas
todas existia «certa substancia recondita e identica, um principio unico e universal, eterno,
commum, indivisível e indestrutível», e que esta cousa era o universo e que o universo era
o homem, Quincas Borba ascendia, sem querer, ao transcendentalismo da religião da
humanidade.
Immediatamente, porem, o philosopho marinhava nos plainos interminos da
meditação, e quando menos se pensava, lá ia o homem em busca de uma outra lei universal
: o struggle for life.
A theoria de Quincas Borba acerca das BATATAS, sob o ponto de vista da luta pela
existencia, vale bem os paradoxos de Xenophanis, de Parmenides, de Gorgias, de
Leontium e tantos outros celebres sophistas da antiguidade grega.
« Rigorosamente fallando, não ha morte, ha vida, porque a suppressão de uma é a
condição da sobrevivencia da outra, e a destruição não attinge o principio universal e
commum.»
Nada mais acceitavel do que isto ; tão coetanea é a doutrina com a natureza e
interesses da especie humana.
Mas Quincas Borba não era homem para impingir a sua theoria em grosso e de
sorpreza. Fazia-o por partes.
«D'ahi», acrescentava elle « o caracter conservador e benefico da guerra. Supponha-
se um campo de batatas e duas tribus famintas. As batatas apenas chegam para alimentar
uma das tribus, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir á outra vertente,
onde ha batatas em abundancia ; mas se as duas tribus dividirem em paz as batatas do

354
campo, não chegam a nutrir-se sufficientemente, e morrem de inanição. A paz n'este caso
é a destruição, a guerra é a conservação. Uma das tribus extermina a outra e recolhe os
despojos. D'ahi a alegria da victoria, os hymnos etc. Ao vencido, odio ou compaixão; ao
vencedor, as batatas.»
Aqui temos, portanto, a philosophia de Barbacena sustentando do mesmo modo as
duas philosophias do seculo XIX, que mais se têm hostilisado.
Augusto Comte de um lado ; de outro Carlos Darwin. E elle pretendeu que se
abraçassem, que se beijassem.
Verdade é que Borba, tal qual o pinta Machado de Assis, era um simples, que não
conhecia, ou quasi não conhecia auctores e tratados; mas tinha fundo proprio, grande stock
de idéas adquiridas por uma especie de endosmose intellectual, e intuição de todas as
theorias inventadas e por inventar.
Com um pouco mais de industrialismo e americanismo, elle teria abeno á rua do
Ouvidor uma botica philosophica, onde combinasse, dosasse e vendesse as triagas á
vontade do freguez.
Outro destino, porém, pretendeu dar-lhe o autor das Chrysa/idas.
Fez de Quincas Borba um instrumento epigrammatico contra as duas grandes
theorias do seculo.
Neste ponto Machado e Assis foi crudelisssimo com o pobre Rubião. Quem nos diz
que este personagem não seja o Brasil?
De um lado temos Quincas Borba.
Machado de Assis elevou-o nas azas de urna immensa philosophia ; fez desse louco
sublime um rival de todos os rivaes.
Quincas Borba prevê o futuro. Riquíssimo de dinheiro, lega toda a sua fortuna a um
homem de espírito estreito e incapaz de comprehendel-o, um ignaro como elle mesmo o
chamava ; e, não contente com isto, instititue-o [sic], apezar de ignaro, seu herdeiro
universal e executor das suas ultimas vontades, debaixo da condição apenas de guardar o
cachorro, cuidai-o como se fosse pessoa humana ou o proprio testador, enterrai-o em caso
de morte com todas as honras, exhumal-o e depositar as suas cinzas em uma apropriada,
instituindo por esta guiza o culto dos cachorros mortos.
Embora contumeliosa a instituição e irrisoria a condição, parece que os juizes do
romance não encontraram difficuldade em manter a vontade e a ex.travagancia de Borba ; e
quem perdeu com o negocio foi o ignaro Rubião, o qual, acceitando a grande fortuna do

355
amigo e as obrigações impostas em testamento, collocou-se na posição mais extraordinaria
que já se afigurou a um brazileiro.
Machado de Assis não declarou no livro, se Quincas Borba, instituindo essa especie
de tutela ao cachorro, o fez levado por impulso consciente de perversidade, por ironia
philosophica, ou por maldade de caracter morbido.
Tenho como certo, entretanto, que o auctor da obra quiz divertir-se á custa de cousas
muito sérias, taes como devem ser consideradas as affecções mentaes, e, para não perder
todo o effeito da sua concepção, escolheu esse cachorro e principalmente este ignaro
Rubião para cabeça de turco das suas coleras de philosopho buissonier.

ARAIUPEJUNIOR.

356
SOBRE DOM CASMURRO

357
O Paiz, Rio de Janeiro, 18.3.1900, p. L

PALESTRA

A casa Garnier acaba de publicar mais um livro inedito do Machado de Assis ; é um


romance ; intitula-se Dom Casmurro .
O volume surgiu ha tres dias sans tambour ni trompette, inesperadamente. Por via de
regra, os nossos litteratos annunciam obras que jamais são publicadas, e alguns delles não
as produzem senão por esse systema Impressos, ou, pelo menos escriptos todos os livros
aqui annunciados sob a conhecida formula « no prélo », a litteratura brazileira, se não fosse
a melhor das litteraturas, seria com certeza, a mais numeroza.
Machado de Assis, o primeiro dos nossos escriptores mortos e vivos, não anda a
badalar aos quatro ventos que vai publicar este ou aquelle volume. Tem horror ao annuncio
-e ao espalhafato. Faz como as senhoras pudicas e discretas que, se concebem, ficam em
casa para não dar em espectaculo a sua gravidez.
Dom Casmurro foi para mim uma surpresa e uma consolação : uma surpresa porque
eu suppunha o mestre totalmente absorvido pelas suas lides de funccionario, que o é
solicito e operoso ; uma consolação, porque o seu livro afastou o meu espírito da
melancolia dominante nos tempos tristes que atravessamos.
Romance propriamente dito quasi o não ha nestas paginas. Trata-se de um moço que
desde a infancia gosta de uma vizinha, e por isso mesmo não sente a menor vocação para a
vida ecclesiastica, a que o destinam em virtude de uma promessa feita a Deus.
No seminario, onde passou dois annos, dando á igreja, no fim desse tempo, homem
por si, adquiriu um amigo intimo, que mais intimo se tomou depois do seu casamento com
a vizinha.
Esse amigo morre, e o marido, que tem um filho, repara, quando este vai crescendo,
que é o retrato vivo do morto.
Convencido da sua desgraça, quer a principio matar-se; depois matar-se e matar o
intruso; afinal, resolve viver, mas com a mulher na Europa.
E como se mette n'uma casinha do Engenho Novo, e não se importa com os vizinhos
nem com as vizinhas (et pour cause), chamam-lhe D. Casmurro.

358
Eis ahi a summa do romance, contada em traços ligeiros, ligeiros de mais, talvez,
tratando-se, como se trata, de um livro de Machado de Assis ; mas o romance pouco tem
que ver nestas paginas cheias de estylo, de graça, de observação e de analyse.
O livro é menos amargo que o immortal Bras Cubas, mas está escripto no mesmo
genero, em pequeninos capítulos, cada um dos quaes é por si só uma pagina lineraria de
primeira ordem, impregnada dessa deliciosa ironia em que muitos encontram o maior
atrractivo dos escriptos do mestre.
Em volta dos quatro ou cinco personagens capitaes do romance, movem-se algumas
figuras desenhadas com extraordinario vigor; um typo de parasita, por exemplo, o José
Dias, é de uma originalidade absoluta, de um admiravel relevo.
Ha no livro imagens peregrinas, phrases felicíssimas de fundo conceito e de
philosophia risonha, phrases que impressionam, que se relêm duas e tres vezes, que se
decoram.
Parabens ao publico, e parabens á casa Garn.ier, benernerita das letras brazileiras.
Salve, Machado de Assis, que nos dás [sic] o exemplo da força e da sobranceria da
arte ; que não esmoreces diante da indifferença, nem da inepcia, nem da maldade ; que não
fazes concessões á turba alvar que t'as pede, e de quando em quando vais serenamente,
magestosa.mente, com um livro novo, elevando ainda mais a altura do monumento que a
posteridade te reserva !

38
InicJais de Artur Azevedo.

359
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 19.3.1900, p. 1

REVISfA LfiTERARIA

DOM CASMURRO, por Machado de Assis, H.


Garnin, Rio de Janeiro, 1900

Dom Casmurro é irmão gemeo, posto que com grandes differenças de feições, se não
de indole, de Braz Cubas. Eu preferia, e commigo estarão porventura os devotos do
escriptor, que a este raro e distincto livro, e a Quincas Borba, que o seguio, differenciando-
se por uma humanidade maior e uma realidade mais viva, succedesse uma obra que
mostrasse um novo aspecto da imaginação e do pensamento do autor. Relativamente a
Braz Cubas, Quincas Borba, derivado, embora, da mesma inspiração, era novo : filho do
mesmo sangue, tinha, entretanto, outra phylosophia e outro caracter. Sem ser uma
reproducção de Braz Cubas, Dom Casmurro tem com elle mais que o ar da família dos
filhos do mesmo pai, semelhanças do irmão gemeo. São semelhanças, entretanto, que não
deixão lugar á confusão. Parecem-se mas não são os mesmos nem se podem confundir. Se
Braz Cubas e Dom Casmurro contão ambos os dous a sua historia, cada um tem o seu
estylo, a sua língua, a sua maneira de contar. No que mais se assemelhão é no fundo da sua
philosophia e no modo de considerar as cousas. Mas ainda assim ha no homem do primeiro
reinado e da regencia, que era Braz Cubas e no homem do segundo imperio, que foi Dom
Casmurro, sensivel differenças de épocas, de civilização, de costumes.
Basta comparar-lhes a linguagem. Certo o estylo é o mesmo. Pois é o estylo de um
escriptor feito, e se não muda de estylo como de penna. Só o trocão os que de facto não o
têm, e menos poderia reforma-lo um escriptor completo, como o Sr. Machado de Assis, e
que o possue com urna individualidade como nenhum outro dos nossos. Mas se não é
possivel mudar de estylo sem mudar de personalidade, não é impossivel varia-lo,
consoante as condições, os generos, os personagens, a índole, a natureza da acção ou da
composição da obra litteraria. E esta variação, feita com intelligencia, do Braz Cubas para
o Dom Casmurro, bastou para differença-los. Não faltaria quem inquinasse aquelle de urna
linguagem, comquanto de raro sabor artístico e inexcedível pureza e elegancia, quasi

360
antiquada, com os seus boleios classicos, o uso, embora discreto, de expressões archaicas,
a construcção intencionalmente invertida. Não vião esses que era um homem, para nós do
tempo antigo, espirituoso e douto em letras, que nos recontava a sua historia com a lingua
do seu tempo e da sua classe, accrescentada de preoccupações litterarias. Quem falia em
Dom Casmurro é outro homem, já do nosso tempo e das nossas idéas, que se formou em S.
Paulo e não em Coimbra, e, comquanto pelo espírito, pelo temperamento, apezar da sua
casmurrice ulterior e pela concepção da vida, parecido com o outro muito differente delle
pelas fórmas e modos com que sentia e se exprimia. Porque na vida, como na arte, que a
representa, define ou idealisa, são as fórmas e modos de sentir e de exprimir o que
sentimos, mais que o mesmo sentir, que produzem as variedades e differenças da
existencia em todos os seus multiplos aspectos. E Dom Casmurro, sentindo talvez, como
Braz Cubas, exprime o seu sentimento de outra maneira, que basta para renova-lo e
distingui-lo. Braz Cubas, em summa, não dispensa Dom Casmurro, antes de alguma sorte o
completa. Mas, e aqui venho ao flm do meu reparo, se a critica tem o direito de formular
um desejo, eu quizera que, mesmo sem inteirar a trilogia que alguns esperão de Braz
Cubas e Quincas Borba, o escriptor consummasse a evolução, que porventura neste ultimo
se prennunciava, para um modo mais piedoso, se não mais humano, de conceber a vida e
nos désse, como com aquelles dous admiraveis livros, uma obra inteiramente nova. Sabe o
Sr. Machado de Assis que taes pedidos se não fazem senão aos opulentos.
A obra litteraria, a obra d' arte, se defme pela emoção que deve provocar ou despertar
em nós. Essa emoção póde ser sentimental ou intellectual.Mesmo de uma emoção
puramente sentimental não é possível excluir, ou sequer abstrahir, a intelligencia, que tem
nella a sua funcção propria ; mas ha emoções que, sem necessidade dos conceitos da
psychologia, cada um de nós sente que nellas predominão já a intelligencia, já o
sentimento. E esta predominancia as distingue para nós. Theoricos da esthetica quizerão
que o sentimento predominasse sempre nas emoções artísticas e litterarias. A concepção é,
talvez, estreita e acanhadamente comprehensiva, pois uma emoção intellectual, de ordem
esthetica, tende necessariamente a transformar-se em emoção sentimental, e satisfazer
assim os fins que á arte assignão os seus theoristas.
Na obra do Sr. Machado de Assis, a emoção é por via de regra, não sei se não
poderia dizer sempre, de ordem intellectual. Fallece-lhe ou esconde-a ciosamente - e,
talvez, seja esta a hypothese verdadeira - a emoção sentimental. Advirto que não quero
fazer a psychologia do Sr. Machado de Assis; e os meus conceitos, certos ou falsos, de
escriptor deriva-se apenas do estudo da sua obra. É notavel que vindo do romantismo, nada

361
lhe haja ficado do seu sentimentalismo romantico, e que, ao contrario, toda a
sentimentalidade, talvez com horror da pieguice em que ella descambou finalmente
naquella escola, lhe repugne profundamente. Mas, quando em um escriptor como elle, de
uma tão alta honestidade litteraria, sentimos esta especie de repugnancia organica de um
tão humano e legitimo sentimento, esta falta desnatural do amor, ao qual devem a arte e a
litteratura mais que as suas mais bellas obras, a sua mesma existencia, desperta-se-nos
tambem a curiosidade de indagar da sua mesma obra até que ponto será qual se nos figura .
Dessa obra resumbra uma philosophia amarga, sceptica, pessimista, uma concepção
desencantada da vida, uma desillusão completa dos moveis humanos. E com isto, em vez
das imprecações e raivas dos pessimistas profissionais, como os prophetas bíblicos, ou seus
imitadores hodiernos, a quem uma fé, uma esperança desesperada, uma forte convicção
alça a colera ou exaspera a paixão, uma ironia fina, brincalhosa, cortezã de homem bom,
mas seguro, como o Eclesiaste, de que tudo é vão neste mundo e resolvido por isso a se
não illudir com nenhuma apparencia. Neste ultimo rasgo, sente-se no escriptor, se não o
esforço, o proposito, como que o timbre, de se não deixar tomar por nescio e ludibriar por
cousas que elle assenta fallaciosas. Tudo é vaidade, vão é quanto ha sob o sol. Mas, não
sera tambem vã a ironia, vão o scepticismo, vã a nossa tenção de escaparmos a todas as
illusões? Como quer que seja, não escapamos ao encanto amargo desta philosophia
desenganada. Se Cohelet buscou palavras deliciosas com que ensina magistralmente as
maximas da sua verdade!
Não me é possível rezumir a autobiographia de Dom Casmurro. Se elle não nasceu
homem calado e mettido comsigo a vida acabou por faze-lo tal. Sómente aquella
philosophia desabusada, que estava nelle, não consentia que com elle entrasse a maldade,
permittindo-lhe apenas a malicia. Quem foi que disse que a bondade dos scepticos é a mais
solida?
Não sei se acerto, attribuindo malícia no pobre Bento Santiago, antes que se fizesse
Dom Casmurro. Não, elle era antes ingenuo, simples, candido, confiante, canhestro. O seu
mestre - tortuoso e irresistivel mestre!- de desillusões e de enganos, o seu professor, não
de melancolia, como outro que inventou o autor de um certo Apologo, mas de alegria e
viveza, foi Capitú, a deliciosa Capitú. Foi ella, como dizião as nossas avós, quem o
desamou, e, encantadora Eva, quem ensinou a malícia a este novo Adão. Somente haveria
nelle adequadas disposições para receber a agradavel doutrina. Tambem eu duvido que
delle sejão as reflexões, as considerações, a luz a que vê as cousas do seu passado. Dom
Casmurro trahio e calwnniou o Bentinho, o bom menino, o filho amante, o rapaz inocente

362
e respeitoso, o estudante applicado, o jovem piedoso, o namorado ingenuo, o amigo
devotado e confiante, o marido amoroso e credulo. A moral, os commentarios de que
acompanha os factos e gestos de Bentinho, são delle, depois que o espírito se lhe
desabusou daquelles olhos de Capitú « que trazião não sei que fluido mysterioso e
energico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias
de ressaca», daquelles « olhos de cigana oblíqua e dissimulada >> como lhes chamava, com
demasiado estylo, José Dias, e tambem dos« olhos dulcíssimos » de Escobar, como lh' os
achava mesmo José Dias, e da sua polidez, das suas boas maneiras, que a todos captavão.
Sim, é do Dom Casmurro e não de Bentinho ou sequer de Bento Santiago, o poeta que não
é propriamente narrativa da auto-biographia, as reflexões moraes, as explicações dos actos
e sentimentos. A única verdadeira e certa das qualidades que se attribuem á mocidade é a
illusão com a emoção correspondente. Decididamente Dom Casmurro, de boa ou má fé,
calumniou a Bentinho, isto é, a si proprio. Sómente, ditosa culpa, se não o houvesse feito,
talvez a sua obra, promessa auspiciosa da Historia dos Suburbios, que tanta falta está
fazendo á nossa historiographia, não tivesse este picante sabor de malícia, nem a novidade
com que renovou, difficuldade só dada a vencer aos grandes artistas, um velho thema.
Mas tambem, apezar das prevenções de José Dias, quem houvera com quinze annos a
innocencia de Bentinho, e mesmo sem isso, resistido á curiosa e solerte Capitú, acoroçoada
pela ingenua e velhaca cumplicidade de seus pais ? Lê-de-me aquelle delicioso capitulo do
«penteado», ó vós que já tivestes quinze annos, e dizei-me quem houvera capaz de resistir
á Capitú ? Bentinho acabára, por um jogo de crianças intimas, de pentear-lhe os cabellos, e
exclama, a obra concluída :
-Prompto!
- Estará bom ?
- Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensas que fez Capitú ? Não vos esqueçais que estava
sentada de costas para mim. Capitú derreou a cabeça a tal ponto, que me foi preciso acudir
com as mãos e ampara-la ; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ella,
rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da boca do outro. Pedi-lhe que
levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava
feia ; mas nem esta razão a moveu.
- Levanta, Capitú !
« Não quiz, não levantou a cabeça, e ficámos assim a olhar um para o outro, até que
ella abrochou os labios, eu desci os meus, e ...»

363
Que excellente, e penetrante, e fino estudo de mulher nos deu, como a brincar,
recobrindo-o de riso e de ironia, o Sr. Machado de Assis, nesta sua Capitú ! E ao demais,
nova, original, bem nossa, como aliás são, sem embargo da sua real generalidade humana,
as creações do Sr. Machado de Assis. Porque, e é seguramente um raro e alto merito, sendo
o autor de Dom Casmurro o único talvez dos escriptores brazileiros que na ficção se eleva
até o geral, o simplesmente humano, sem preoccupação de representações ethnographicas e
locaes, nenhum, emtanto, é mais verdadeiro e exacto do que elle quanto [sic] as faz. A
extrema flexibilidade do seu talento pennitte-lhe casar perfeitamente a verdade geral e
superior da natureza humana, com a verdade particular do temperamento nacional. E esta
é, se não me engano, uma das condições da grande arte, do realismo na sua fórma mais
elevada e mais pura. A sua litteratura não é de intenção descriptiva ; no mundo só lhe
interessa de facto o homem com os seus sentimentos, as suas paixões, os seus moveis de
acção ; na sua terra, o puro drama, ou comedia, talvez elle preferisse dizer, humano, sem
lhe dar da decoração, da paizagem. dos costumes, do que apenas se servirá para crear aos
seus personagens e aos seus feitos o ambiente indispensavel, porque sendo entes vivos não
podem viver sem elle.
Entretanto, raros terão, com toda a sua intenção de scenographia, de pintura de
costumes, de representação da vida material nos seus aspectos familiares, dado da nossa
vida quadros tão acabados, tão vivos. Ainda Dom Casmu"o é um testemunho de que não
erro ou exaggero.
É. talye~ que na obra do Sr. Machado de Assis a. represeptacão dos. aspectos
màtenaes C1à •v1<1ã não provem óa áéscrlpção ou áa enumeração áas partes que os
compõem, senão, como nos pintores das novas escolas - e não me refiro ás chamadas
decadentes - da impressão geral, e por assim dizer animadas, e quasi espiritual das causas.
Nesse sentido elle é um ruskiniano : a paizagem, que elle, aliás, não ama, e da qual, que me
lembre, jámais se occupou - não será para elle um conjuncto de arvores, montes, aguas,
pedras, com este ou aquelle aspecto particular, senão a impressão moral e esthetica que ella
produz no artista.
Se esta é, como creio, a característica da sua representaÇão litteraria, tanto nos
romances como nos contos, a da sua psychologia é identica a esta, mostrando assim que os
seus processos litterarios, como proprios e pessoaes que são, derivão do seu mesmo
temperamento de escriptor e procedem de um fundo commum de idéas e sentimentos. Elle
não faz a psychologia, nem á moda de Balzac, nem á moda de Burget; sobretudo não a faz
á moda deste e de seus imitadores, essa psychologia meticulosa, minuciosa, rebuscada,

364
preciosa como a lingua das sabichonas, e , no fundo falsas. Não a faz, como elles,
procurando decompôr uma alma, como se decompõe um corpo em seus elementos
constituintes, ou analysar os seus sentimentos como se analysa uma substancia chimica, e
explicar os seus moveis como um physiologista explicaria o jogo das funcções do nosso
organismo. Sobretudo, elle não a faz com qualquer preoccupação estranha á pura
litteratura, ou com os retraços das pretensas psychologias scientificas apanhadas de
atropello em leitura desordenada e mal feitas. A sua, certa ou errada, vem de uma
observaçã.o longa, acurada, e aguda. Não é no geral sympathica, o que póde bem ser lhe
vicie a visão mas sente-se que é sua. Não a expõe em capítulos didacticos; explica-a quanto
baste para completar a representação que da sua dão os mesmos personagens, mesmas
falias, nos seus gestos, nas suas acções. E ao cabo os seus livros são galerias de gente viva,
como este Dom Casmurro, com Capitú, José Dias, Escobar, e as figuras secundarias, os
pais de Capitú, D. Gloria, Justina, o tio Cosme. Capitú, a dissimulada, a perfida, é deliciosa
de affectuosidade felina, de reflexão e de inconciencia ou displante [sic], de animalidade
intelligente e perspicacia feminil, do geito, feitiçaria e graça, e, com isto tudo, viva, real,
exacta. Dom Casmurro a descreve, aliás, com amor e com odio, o que póde torna-lo
suspeito. Elle procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo
de todo. Ao cabo das suas memorias sente-se-lhe uma emoção que elle se empenha em
refugar. E só. A sua conclusão, que não é talvez aquella que elle confessa, seria acaso que
não ha escapar á malícia das mulheres e á má fé dos homens. Mas vejo que é no fundo, a
mesma que elle nos dá. Perco-me decididamente em explicações. Lêde a fabula, e tirai-lhe
vós mesmos a moralidade.
J. Veríssímo.

365
A NOTÍCIA. RIO DE JANEIRO, 24 E25 .3.1900, P.2

Chronica litteraria
MACHAOO DEAsSIS . - Dom Casm~~rro

Aos dous grandes livros que, a par do resto da sua obra, deram a Machado de Assis o
primeiro logar na litteratura brasileira, vem agora juntar-se Dom Casmurro.
Dom Casmurro não revela qualidades novas de estylista ou psychologo no escriptor
que fez o Quincas Borba e o Braz Cubas. Mostra, porém, todos os seus meritos no mais
alto gráo, no mais puro requinte de perfeição. Das tres obras é, como romance,
incomparavelmente superior ás outras duas. N'ellas a acção era mais frouxa. Todo o valor
dos livros estava na analyse do personagem principal. Os episodios não se ligavam tão
fortemente que dessem a impressão de um entrecho, desenvolvido com regularidade.
É o que ha em Dom Casmurro . Se Machado faz bem viva a personalidade do heróe.
não esquece os accessorios e todos convergem para a acção capital do livro, cujo enredo se
desenrola natural e seguidamente.
Chega-se mesmo a outro resultado. Quando se termina o romance, tem-se uma idéa
mais nítida de Capitú, que do proprio Dom Casmurro. O caso provém talvez de que a
adorada amiga e esposa de Bentinho nos é não só mostrada, como explicada. Mas sendo
Dom Casmurro que tem a palavra de principio a fim, embora elle nos conte as scenas em
que foi protagonista, não se detem a dar-nos em resumo apreciações sobre a sua propria
pessoa. O typo de Capitú já nos é apresentado com os respectivos commentarios. O de
Bentinho temos nós de induzil-o das tresentas e tantas paginas do livro. Capitú é um typo
de dissimulação, perfeitamente accentuado. Dom Casmurro é uma figura mais incerta,
menos definida.
Desde principio, duas bôas scenas nos dizem o que vale a moça. A melhor d'ellas é a
do segundo beijo que os dous namorados trocam. Precisamente quando estavam no melhor
da emoção, o pai interrompe-os. Nem um momento, porém, ella se perturba. Bem pelo
contrario, trava immediatamente a mais natural das conversas. E o auctor commenta:

366
«Agora é que o lance é o mesmo ; mas se conto aqui taes quaes, os dous lancos de ha
quarenta annos, é para mostrar que Capitú não se dominava só em presença da mãi ;o pai
não lhe metteu mais medo.»

Por isso que nós temos Bentinho para estudai-a e contar-nos o resultado já feito dos
seus pacientes estudos, o trabalho de a recompôr é-nos muito mais faciL
Ha no romance um personagem capital que parece, entretanto, pouco analysado: o de
Escobar. Não se dá o caso de ter elle a minima inverosimilhança Todos os episodios em
que figura são da mais extrema naturalidade. Sentimol-o mais ou menos com o mesmo
caracter de Capitú. Mas o seu todo não nos apparece bem claro.
Comprehende-se aliás o facto. Quem narra o romance inteiro de principio a flm, é
Dom Casmurro . Toda a sua existencia resumia-se em amar Capitú. As occurrencias de
sua vida só tinham para elle valor no que a ella interessavam . Precisamente, porém, todo o
empenho da moça consistia em occultar a um marido naturalmente confiante e um pouco
ingenuo o que havia de máo nas suas relações com o amigo. É natural que, estando nós
postos na mesma situação d'esse marido, porque elle é o narrador, só attendamos bem para
esse personagem, na scena em que a dissimulação d' elle e de Capitú, não foi mais possíveL
A revelação terrível para Dom Casmurro é longa e maravilhosamente bem
preparada. A expressão de olhos do menino, a semelhança crescente com o amigo do pae ;
antes d' isso, a frieza da sogra, mãe de Dom Casmu"o, com a nóra e principalmente o neto
; a volta inesperada do theatro, com a surpreza de encontrar Escobar em casa e Capitú boa ;
aquella noite das dez libras esterlinas; a irritação excessiva da moça, quando José Dias,
fallando de modo bíblico, chamava o pequeno Ezequiel «o fllho do homem»: tudo são
indícios, semeados aqui e alli, com a naturalidade que devem ter na vida, e que, quando
vem o momento do desfecho, fazem com que este nos appareça perfeitamente logico. No
nosso espirito, como no do narrador - sem que este, entretanto, nos chame para ahi a
attenção - esses antecedentes se concatenam.
Em Dom Casmurro, Machado de Assis é mais do que nunca o ex-romantico
desilludido que chegou a um verdadeiro terror de qualquer pintura de emoções fortes.
Sempre que a acção o leva a um episodio sentimental, amoroso ou tragjco, elle nol-o pinta
escarnecendo-o um pouco, como para nos mostrar que não está commovido, nem quer
explorar a nossa veia pathetica. Mesmo em quadros simples, quando, por exemplo, Capitú
abraça o marido, elle diz:

367
«...depois esticou os braços e atirou-m'os sobre os hombros, tão cheios de graça que
pareciam (velha imagem !) um collar de flores.»
Assim, até a menor figura de rhetorica, que lhe pareça trahir uma certa sensibilidade,
elle a corrige com um reparo, uma ironia. Em nenhum Jogar isso apparece melhor do que
na scena em que Ezequiel interrompe o suicídio de seu supposto pae. O conjuncto de
circumstancias difficilmente podia ser mais comovedor ! Mas Machado de Assis , que tem
uma especie de pudor de recorrer a qualquer scena d'esse genero para nos abalar, corrige-a
logo:

«Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente
esquecido ; mas crê que foi bello e tragico.»

A nota levemente ironica quebra um pouco o enternecimento do leitor.


Note-se, todavia, que em Dom Casmurro, essa propensão de Machado de Assis
affigura-se a única razoavel.
N'um romance contado impessoalmente, o escriptor deve pintar as scenas de modo a
que vamos assistindo a ellas ao passo que se desenrolam. O que elle tem a fazer é dizer o
que houve, deixando a cada um o direito de impressionar-se como quizer. Aqui, porém,
quem tem a palavra é um homem que chegou ao scepticismo absoluto. Quando elle relata
qualquer d'esses velhos episodios em que tomou parte, não póde deixar de pensar que
n'esse momento estava sendo illudido e ridículo. A narração tem forçosamente de
ressentir-se d' essa analyse intima Qualquer pessoa contando um lance em que figurou
commovidissima, mas no qual sabe depois que representou um papel grotesco, por estar
sendo n'esse momento comicamente enganada, não póde mais reviver o enternecimento
primitivo, logo contrabalançado pela consciencia de que era n' essa occasião victima de um
engano visível. Assim, a tendencia ironica do escriptor, achou n 'este livro o Jogar mais
proprio para expandir-se.
Não obstante, ha quadros de uma intensidade de sentimento incomparavel. Todo o
capitulo Segundo impulso é excelente. O mesmo succede ao segundo dos que tem o mesmo
titulo : Olhos de ressaca. Esta expressão vem aliás desde o principio, como um leit-motiv
para nos preparar esse quadro admiravel. E admiravel é, de facto, a arte de um escriptor
que nos dá, como que defendendo-se d'isso, impressões tão fortes.

368
Seria vão e, sobretudo, impertinente empenho do rabiscador d'estas linhas pretender
sublinhar todas as bellezas do livro de Machado, que se póde dizer (como dizia de certo o
José Dias) um livro perfeitíssimo.
Perfeito na idéa, no desenho dos personagens e, mais que tudo, na limpidez de um
estylo (lá vai de novo o José Dias!) de um estylo purissimo.
Sente-se que a suprema aspiração de Machado, em materia de «escripta artistica» é
chegar á simplicidade absoluta á magna virtude que fez em todos os tempos todos os
grandes prosadores e poder dizer como Dom Casmurro .

«Pelo tempo adiante escrevi algumas paginas em prosa e agora estou compondo esta
narração não achando maior difficuldade que de escrever, bem ou maL»
Os verdadeiros artistas sabem como essa ideal simplicidade, que parece tão simples,
demanda apenas esta bagatella tambem simplíssima : ter genio.
Nada mais se requer ... 0 que Machado de Assis tem é apenas esse merito ...
J. dos Santos.39

39
Pseudônimo de Medeiros de Albuquerque?

369
40
A Estação, Rio de Janeiro, 31.3.1900.

CHRONIQUETA
....

Mas deixem de lado a política (se isso é política) para saudar nesta columna o
aparecimento de Dom Casmurro, o novo livro de Machado de Assis, editado pela casa
Garnier.
Provavelmente a leitora já mandou buscar um volume desse romance, que é o digno
pendanJ das gloriosas Memorias posthumas de Braz Cubas, e o mais bello fecho que
poderia ter o nosso seculo litterario.
Toda a graça, toda a ironia, toda a conceituosa e risonha philosophia, todo o talento
de observação e analyse psychologica, e ainda mais, toda a elegancia de linguagem e
primor de estylo do mestre estão nessas paginas lidas com avidez e delicias.

40
Esta nota consta da seção "Chroniqueta'", assinada por Eloy, o heroe, pseudônimo de Artur Azevedo.

370
SOBRE ESAÚ E JACÓ

371
A Noticia, Rio de Janeiro, 30.9.1904 e 1.10.1904, p. 3.

Chronica litteraria

MACHADO DE ASSIS. -Esaú e Jacob (Garnier, editor.)

A tout seigneur, tout honneur... E' evidentemente pelo livro recente de Machado de
Assis que deve começar esta chronica. Não se trata, no emtanto, de analysal-o longamente,
porque a bellesa e a seducção dos livros do autor do Dom CaSmurro (que é, para mim, a
melhor das suas obras), está principabnente na graça do estylo. Leve, ironico, subtil,
disfarçando as observações mais profundas sob phrases breves e despretencisosas,
Machado de Assis é, no Esaú e Jacob, o mesmo escriptor de Braz CubaS, de QuincaS
Borba, de todos os seus grandes livros anteriores.
O romance é a histeria de dois gemeos, sempre em desintelligencia. Parece mesmo,
si foi exacta a observação materna, provocada pela pergunta de um pythonisa de baixa
estofa, que mesmo antes de nascerem já haviam brigado ! E brigando passaram a vida.
Uma fatalidade tão evidente os levava para essa desintelligencia que varias vezes
fizeram os mais notaveis e sinceros esforços para corrigil-a; mas sempre em vão.
Amaram a mesma moça. A mesma moça tambem amou a ambos. Amou os tão
irmarnente ou, si preferem, tão gemearnente, que não se soube decidir por nenhum dos
dois.
Salvou-a do embaraço da escolha, quando ella ia ter que tomar a decisão final, o
facto decisivo que melhor sabe resolver casos complicados: a morte. A' sabida do
cemiterio, quando os dois gemeos lhe foram acompanhar o esquife juraram deixar as
perpetuas rivalidades e passar a ser amigos.
As intenções eram as melhores. Mas o temperamento os levava á fatalidade dos
constantes desaccordos. A elles chegaram promptamente.
Um bello dia, foram ambos eleitos deputados e deputados por dois partidos
oppostos. Tomaram posse na mesma occasião. Pouco tempo depois, sobreveio a morte da
mãe, que era quem fazia o maior empenho para approximal-os. Ainda uma vez, no seu

372
leito de morte, ella conseguia fazer com que promettessem viver em harmonia. Mas si a
promessa era facil, o cumprimento era impossível. Tentaram por alguns mezes; mas
acabaram logo após por chegar ao período mais agudo da sua perenne desintelligencia.
O entrecho do livro é este.
Não é, porém, no entrecho que está a sua real belleza: é na graça do dizer as coisas,
por mais importantes ou mais insignificantes que sejam.
O entrecho - todos o terão notado - pecca por um excesso de symetria Dois
gemeos que gostem da mesma moça, não é talvez difficil encontrar. Que, porém, acertem
em uma rapariga, a qual tambem, ao mesmo tempo, goste dos dois já é mais inverossímil.
Não seria tambem impossível que dois irmãos gemeos fossem eleitos no mesmo dia
e, ou pelo mesmo, ou por partidos opostos. Mas seria uma coincidencia tão espantosa, que,
segundo parece, nunca teve lagar.
Ahi nem ao menos se pôde appellar para o archi-chapico verso de Boileau:

Le vrai peut quelquefois n 'etre pas vraisemblable.

No caso, nem há verosimilhança, nem foi jámais verdadeiro.


Mas o que, de certo, seduzia Machado de Assis, na historia dos amores dos dois
gemeos, foi o thema psychologico que elle queria tratar : por um lado, analysar dois
affectos dissemelbantes pela mesma pessoa ; por outro lado, figurar a mesma pessoa
amando simultaneamente duas outras, em que as semelhanças e dissemelhanças se
completavam tão maravilhosamente, que a cada uma faltava exactamente o que a outra
possuía.
Qualquer das duas bypotbeses é interessante. Ambas já foram tratadas, embora por
fôrma e com affabulação inteiramente diversa, por outros autores, entre os quaes, para só
citar o mais celebre, Alfredo de Musset, que estudou a possibilidade da mesma pessoa,
amar simultaneamente duas outras. Sua novela, Les deus maitresses, começa por esta
fôrma typica:
"Croyez-vous, madame, qu'il soit possible d'être amoureux de deux personnes à la
fois? Si pareille question m'etait faite, je repondrais que je n'en crois rien. C'est pourtant
ce qui est arrivé à un de mes amis, dont je vous raconterai I'bistoire, afm que vous en
jugiez vous-même.

373
En général, lorsqu' il s'agit de justifier un double amour, on a d'abord recours aux
contrastes. L' une était grande, l' autre petite ; l'une avait quinze ans, l'autre en avait trente.
Bref, on tente de prouver que deux femmes, qui ne se ressemblent ni d'âge, ni de figure, ni
de caractere, peuvent inspirer en même temps deux passions différentes. Je n'ai pas ce
pretexte pour m'aider ici, car les deux femmes dont il s'agit ici se ressemblaient au
contraire un peu."
Os dois rapazes de que Flora gostava, no livro de Machado de Assis, se pareciam,
não um pouco, mas muitíssimo. E' verdade que tambem contrastavam não menos. O que o
autor quiz foi juntar o estudo psychologico de todos estes casos extremos.
A's vezes, nas exposições de pinturas ou nos livros, cujas gravuras lhes reproduzem
os principaes quadros, acham-se algumas em que figuram homens e mulheres nas posições
as mais extravagantes. São, ás vezes, aquelles de que os entendidos mais gostam, porque
sem attenderem á incommodidade das posições e â composição das telas, dos ponto de
vista do assumpto escolhido, veem apenas a difficuldade technica de colorido, de desenho
ou de perspectiva, que o pintor conseguio vencer.
E' talvez o que se póde dizer do livro de Machado de Assis, em que elle cogitou
menos da verossimilhança do entrecho, que de mostrar as suas qualidades de analysta,
estudando simultaneamente tres casos raros,- tomados mais raros pela sua approximação.
Mas, ainda uma vez : o essencial de uma obra de Machado de Assis não é a
affabulação: é o estylo; é cada capitulo de per si; é a graça, a leveza, a graciosidade da
phrase, encobrindo a observação profunda, mas discreta. Nunca, como certos autores, dos
quaes Bourget é talvez o mais característico,- nunca o autor de Dom CaSmurro nos
annunciará que vae tentar a analyse psychologica de ninguem, fazendo um prearnbulo, que
excite a attenção do leitor, afim de que este lhe applauda a agudez e a sagacidade. Ao
contrario, elle fingirá ser o primeiro a não ligar importancia ás observações mais exactas e
profundas.
A proposito do seu estylo, cabe aqui uma pequena observação.
Ha um modo de dizer que tem o dom de exacerbar os nervos dos nossos
grammaticos: é a forma interrogativa: ..0 que?" Não querem que se diga "O que ha de
novo: O que ha de bom: O que veio fazer aqui?"
E' ~erto que, durante os primeiros seculos da língua portugueza, os escriptores não
empregavam essa locução. Depois, ella começou a apparecer, quer no povo, quer nos
melhores autores. Herculano, Castello Branco, Oliveira Martins e outros muitos, todos

374
usaram a negregada expressão. Mas os grammaticos, que não se dicidem a capacitar-se de
que a sua missão não é a de fazer a língua, mas de verificar como ela é feita, decretaram
que aquella fórma era errada.
Todos os bons prosadores e poetas, continuam, entretanto, a empregai-a. O caso,
neste genero, mais engraçado foi, creio eu, o que occorreu com João Ribeiro. E João
Ribeiro se pode justamente citar, porque é um escriptor de pulso, um largo e lucido
espírito, com preoccupações mais altas, que a de viver formulando regrinhas de tico-tico.
Na sua grammatica, elle condemnou em uma pagina a expressão execranda; mas
pouco adeante, sem dar por isso, veio a empregai-a!
E aqui está Machado de Assis:
"Mas, Baptista, você o que é que espera mais dos conservadores?" (pag. 141)
"O que é que não é certo, José?" (pag. 191)
"D. Claudia ainda appellava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem
e o que é que vira..." (pag. 215)
Proposito ou descuido ? Si proposito, tanto melhor. Si descuido, melhor ainda,
porque prova que a corrente da língua é tão irresistivel, que um burilador de phrases, que
só vive para isso e não cogita de nenhuma outra coisa, ainda assim não evita o que os
grammatiqueiros dão como errado. E é preferível errar com o escriptor admiravel de Esaú
e Jacob que acertar com elles ...
41
J. dos Santos.

41
Pseudônimo de Medeiros de Albuquerque?.

375
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2.10.1904, p. 2.

,
ESAUEJACOB
De um livro de Machado de Assis não se deve dizer apenas que é bom, porque fôra
ser superfluo; nem dizer que é banal ou ruim, para se não negar a luz do sol. Que hei de
affirmar então deste ultimo livro, Esaú e Jacob ? Direi que é melhor do que Dom
Casmurro, como este é melhor do que QuincaS Borba, e Quincas Borba é melhor do que
Braz CubaS. Accrescentando que Braz CubaS é admiravel e optimo, terei dito de certo
modo, incompletamente e por circumloquio, a impressão que tive de Esaú e Jacob. A
lingua não me ajuda a traduzir o meu pensamento sobre a feitura e as idéias do livro;
menos ainda as sensações que me produziram no correr das paginas. Lembro-me e
confesso que ri tres vezes, com um gosto tão fone, que a risada me sorprendeu e espantou;
.e que duas vezes tive os olhos cheios de lagrimas e o coração apertado, com [sic] se eu
estivesse, no livro ou na realidade, vendo morrer aquellas duas senhoras que morrem nel1e,
uma formosa e moça, amada e amante inexplicavel de dous formosos gemeos, outra já não
moça, mas ainda formosa, boa e pura que era a mãi delles. As outras sensações são agora
co~. m_!lltiplas e varias. inte115as, mas confusas como as se!lsacões da vida. É
parltcularmente por esüi feição que ·o l.lvro nie domma: ·pela supenor, ·pelá absoluta
reproducção ou idealização da vida humana, a ponto que, lendo-o, eu não estava lendo,
mas vivendo entre os personagens delle, no passado e no presente, desde um tempo eu não
conheci, entre costumes que se foram, até os dias de agora, com todos os nossos usos, as
nossas cousas e pessoas, com os seus feitios proprios, que eu não tinha notado antes porque
não possuo os olhos agudos e perspicazes do autor. Quando fechei o livro, foi como se
sahisse da realidade, do mundo em que moro, e tive pena de que ella não continuasse
sempre ou por muito tempo ainda, até a consummação dos meus dias. Não que ella fosse
mais alegre do que esta ou menos triste. Ao contrario, alli a tristeza é viva, os contrastes
mais profundos, como acontece nos quadros, em que o crepusculo não corre tanto como na
natureza, e ha de se perpetuar com as suas sombras e luzes pela força e pela mesma
condição da arte humana. Sem sahir da verossimilhança e da verdade, o autor pôde juntar
no livro o que anda espalhado na edade e no tempo, ou apagado e indistincto no turbilhão

376
das causas e dos factos. Disse já que ri e chorei e tive outras sensações, confusas, de
curiosidade, de espanto, de desgosto, de amor, de pena, de socego e de tumulto; mas duas
ficaram sobre a confusão das outras: a de admiração pelo autor e a da antiga descreça [sic]
da vida, scepticismo brando e doce, porque a curiosidade do espectaculo ampliou a visão
de mim para o mundo; mas ao mesmo tempo scepticismo forte, porque a visão do autor
mais intensa que a minha desvendou novas impiedades da natureza, mãi e madrasta nossa;
nossa eterna inimiga e consoladora única.
Mas ainda não lhes contei o enredo do livro. Como lhes hei de contar? Nada ha de
extraordinário nelle, como mortes e crimes ; nem ha nada banal, como o adulterio. Quasi
todos os personagens são boa gente, alguns optimos, um superiormente sagaz e lettrado, o
Conselheiro Ayres, diplomata aposentado, sempre cordato, cheio de bom senso, capaz de
affeição, olhando a vida com o interesse moderado, para não se deixar arrastar pelos
outros, mas bastante para entreter as horas vadias com as observações do mundo, que elle
ia registrando, entre virgulas de fina philosophia, num diario de lembranças. Foi desse
diario, a que o Conselhiro chamára Memorial, que o autor depois da morte delle foi buscar
a materia, gente e actos, com que fez Esaú e Jacob. O tempo do livro vem de 1889 até
1901, mais de um quartel do seculo e já inicio do outro. Começa com uma consulta de
Natividade, formosa mãi de dous gemeos, Pedro e Paulo, a wna cabocla do Castello, que
era famosa nos seus dias, 1871, pelas muitas prophecias que fazia na linguagem dobrada
dos oraculos, que como o da Pythia contentava sempre á verdade do futuro, pelo incerto e
vago das palavras. Natividade, mãi recente e carinhosa, deseja conhecer a sorte dos filhos.
A cabocla prediz que serão grandes : em que ? não sabe, cousas futuras ; grandes, embora
brigassem antes de nascer ; mas haviam de ser grandes, grandes - co usas futuraS ... (Lê ou
relê esse capitulo: a arte do escripto [sic] não o produzia melhor no genero.)
Comprehende-se a duvida, os receios, mas por fun o enthusiasmo matemo, pelo futuro
daquelles dous filhos que vão ser grandes, que ella vai criar para serem gloriosos, com a
sua solicitude infinita, com os seus mil cuidados multiplicados, quer vel-os victoriosos na
vida, sem a emulação entre si, numa harmonia e amizade fraternal, e não só fraternal, mas
de gemeos, filhos do mesmo amor, da mesma concepção, do mesmo parto, da mesma
benção e saudados pela mesma prophecia_ Mas a allusão da cabocla á briga uterina era a
sombra dessa esperança e foi a palavra verdadeira da prophecia. Os dous gemeos, Pedro e
Paulo, aprenderam a falar para contrariar-se: eram contrastes vivos Esaú e Jacob. Não
havia a ambição da primogenitura, porque o amor da mãi era igual e a fortuna do pai era
tambem igual para os dous. O cajado de Isaac e os seus rebanhos eram aqui acções de

377
companhias divisíveis e subdivisiveis. Não havia que pensar em prato de lentilhas. Os
genios é que eram desiguaes e insubmissos : na meninice os murros, na adolescencia a
contrariedade de opiniões políticas - um republicano, outro monarchista : e em todas as
idades, todos os dias, a natureza, com a sua força invencível, resistente aos conselhos e á
educação, e a sua perversa ironia de indifferente e eterna. O único sentimento accorde e
irmão que houve entre os gemeos, a natureza o creou justamente para separal-os mais, para
que elles se desinnanassem e se odiassem : foi o amor de Flora, filha única, moça formosa
e boa, mas inexplicavel, no parecer do Conselheiro Ayres. Pedro e Paulo amam Flora, e
Flora ama os dous. Sua preferencia, porque ambos são um só no physico, e as proprias
diferenças moraes agradam a ella igualmente. Em presença de um, tem saudades do outro e
não ama menos o que está presente. Pedro é estudante de Medicina aqui no Rio, Paulo é
estudante de direito em S.Paulo ; as ausencias deste não dão vantagem a Pedro, nem as
impressões da volta de Paulo, fazem minguar o valor da perrnanencia de Pedro.
Inexplicavel este duplo amor ; duplo ou único ? lnexplicave4 affirmava o Conselheiro
Ayres. Tão inexplicavel, que não diminuio, não pendeu nem para um nem para outro, e
levou a dona delle ao cemiterio. Os gemeos continuavam a amai-a através do marmore,
com o mesmo egoísmo, que se tomou motivo de odio, apesar do ajuste feito no dia da
mone de Flora. Ella que fora a causa de discussão, emquanto viva, devia unil-os pela sua
memoria, depois de morta.
Mas o culto dessa memoria é que os apartava um do outros mais e mais, até que o
tempo... O tempo fez que mudasse a política delles ; Pedro, o monarchista, depois da
Republica, era republicano conservador, satisfeito com a Constituição e com tudo mais ;
Paulo, o republicano historico, pensava que esta não era a republica dos seus sonhos.
O que não impedia que elle como Pedro fosse eleito deputado. Natividade teve antes
de morrer a confirmação do oraculo da cabocla : vio-os a ambos no mesmo dia tomar
assento na Camara, embora eleitos por partidos contraries.
A morte não permittio que ella os visse maiores no futuro, mas foi pretexto para a
reconciliação temperaria dos dous, pedido instado por ella no leito mortuario, e jurada por
elles, entre lagrimas de ternura e de dor. A natureza que os vio chorar foi ironica: concedeo
a tregoa e os fez segunda vez gemeos, no gosto, nos habites, na companhia, em tudo, para
se rir depois, irmanando-os na repugnancia e no odio, quando passou a lembrança do
juramento e da morte de Natividade. Tudo passa com o tempo; mas aquella briga uterina
continuou na adolescencia e na madureza, e perduraria na velhice, se o autor não fechasse
o livro de Esaú e Jacob...Fechou-o com um commentario sobre a desavença dos irmãos,

378
depois daquella fraternidade ephemera, fructo daquelle juramento feito junto ao leito de
Natividade e que os extranhos ignoravam. O que era a propria esencia delles parecia aos
outros um accidente de ultima hora, e um deputado que o havia notado, queria conhecer-
lhe a causa e perguntava ao Conselheiro Ayres :
«- O senhor, que se dá com elles, diga-me o que é que os fez mudar.
-Mudar? Não mudaram nada : são os mesmos.
- Os mesmos?
- Sim, são os mesmos.
- Não é possível.
Tinham acabado o almoço. O deputado subio ao quarto para se compôr de todo.
Ayres foi esperai-o á porta da rua. Quando o deputado desceu, vinha com um achado nos
olhos.
- Ora, espere, não será...Quem sabe se não será a herança da mãi que os mudou?
Pôde ter sido a herança, questões de inventario ...
Ayres sabia que não era a herança, mas não quiz repetir que elles eram os mesmos,
desde o utero. Preferia aceitar a hypothese, para evitar debate, e sahio apalpando a
botoeira, onde viçava a mesma flôr eterna.»
Assim acaba o livro, no espaço ; no tempo não acabará nunca, porque elle é como
essa flôr eterna, que o fez a elle e aos outros, filhos todos de um grande e subtil engenho;
que não envelheceu nem envelhecerá jamais na lembrança dos homens.
Contei-lhes o enredo do livro ; mas receio não lhes ter contado quasi nada. Nem
poderia. Fôra precizo repetir-lhes as paginas uma por um [sic], as linhas uma por uma ;
porque nada se pôde perder nelle, nada é nelle banal. Ha muitos episodios, mas nenhum
que não tenha a sua significação profunda, desde a nota de dous mil réis que o andador tira
ás almas do purgatorio até a taboleta da confeitaria do imperio. Desisto de citar : quem se
não poupou de ler-me, vá gozar o livro, lendo ou relendo-o, que elle não é desses que
fatiguem ou satisfaçam no primeiro conhecimento. É precizo conversar mais vezes com a
làmclá Hárbãra; com o mestre .Placião, éóm o lOJtsfa ·da Cãnôca; com o opportuntsmo" do
Dr. Baptista e a irrequieta ambição de D. Claudia, e a mansa e boa D. Rita, e o capitalista
Nobrega, que começou irmão das almas. São elles que fazem a cidade do livro, o caracter
do tempo, e apezar disso a universalidade da obra, porque lhe dão o cunho
verdadeiramente humano, que é o mesmo aqui como em Roma e em Pariz e em Maricá.
Nessa feição superior Esaú e Jacob não variou dos outros livros de Machado de
Assis: elle é a característica de todos elles e do proprio temperamento do escriptor. A razão

379
e a intenção de sua obra póde-se dizer, como em outro sentido da philosophia de Socrates,
que é a maientica [sic] das almas. No philosopho grego tudo era motivo para especulação
em busca da verdade divina e derradeira : neste escriptor brazileiro tudo é pretexto para
desvendar a verdade intima dos homens, velada pelas apparencias do mundo.
Pretexto, mas não causa única ou principal ; a causa principal e o proprio engenho
delle, o gosto, o talento eximio de narrador perfeito. E este, que já o era nos livros
anteriores, e parecia ter chegado á culrninancia do seu desenvolvimento, continuou a
crescer e veio em Esaú e Jacob mostrar-se superior a si mesmo : dahi a differença do livro
na sua feitura, que representa o equilíbrio consciente a que deve aspirar toda obra de arte.
A critica no estudo deste escriptor tem procurado firmar a filiação do seu espírito dando-o
como um producto legitimo ou expurio da influencia dos humoristas inglezes. Não serei eu
que o conteste, porque não sou critico nem tenho gosto para genealogias intellectuaes. Mas
se é força comparar para esclarecer o pensamento, eu prefiro confrontai-o quanto ao estylo
com os escriptores gregos. Não direi que é attico para não repetir o que está deturpado pelo
abuso da qualificação. Prezo-me de haver lido e ler ainda um poucochinho dos escriptos
gregos, e á minha memoria não occorre outro parallelo para o estylo e feitura de Esaú e
Jacob. Ponham-lhe a differença da língua e dos seculos, e haverá paginas que podiam ter
sido concebidos por Homero, pelos tragicos e particularmente por aquelle ultimo glorioso
da decadencia, que foi Luciano. Equilibrio consciente e perfeito. Lessing, no estudo
celebre sobre Laocoonte, cita para exemplo da perfeição da poesia e ao mesmo tempo da
sua differença da pintura alguns versos em que Homero descreve a belleza de Helena :
<<Priamo, Panthhoo, Thymoités, Lampo, Klytio e Hiketaón, da estirpe de Ares, o
Oukelegón e Antenor, sapientissimos ambos, estavam sentados, velhos veneraveis, em
cima das portas Skaias. Pela velheice [sic] já se abstinham da guerra ; mas eram bons
oradores, e eram semelhantes a cigarras que, dentro da mata, pousada nas arvores, elevam
a voz melodiosa. Taes eram elles, os príncipes dos Troyanos, sentados alli sobre a torre. E
quando avistaram Helena que para a torre se dirigia, elles brandamente entre si
murmuravam estas palavras aladas ;
- Em verdade, não é de indignar que por tal mulher os Troyanos e os Acheus das
bellas enemides soffram tanto, e desde tanto tempo, porque ella se assemelha muito pelo
aspecto ás deusas immortaes. Mas mesmo assim, bonita como ella é, que se vá embora nos
navios delles e que não nos deixe a nós e nos nossos filhos uma lembrança dolorosa.
Nos livros de Machado de Assis eu respigaria [sic] varias paginas equivalentes
áquelles versos pelo effeito e pela sabedoria da feitura ; em Esaú e Jacob , mais que nos

380
outros ; e não me privo de exemplificar ; é do Capitulo CVI, a que o autor chamou ambos
quaes ? Descreve-se a morte de Flora.
«...Flora ainda vivia.
-Mamãi, a senhora está mais triste hoje que estes dias.
Não falles tanto, minha filha, acudio D. Claudia. Triste estou sempre que
adoeces. Fica boa e verás.
- Fico, fico boa, interveio Natividade. Eu, em moça, tive uma doença igual que me
prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando já ninguem esperava.
Então já não esperam que me levante?
Natividade quiz rir da conclusão tão prompta, com o fun de a animar. A doente
fechou os olhos, abrio-os dahi a pouco e pedio que vissem se estava com febre. Viram ;
tinha, tinha muita.
-Abram-me a janella toda.
- Não sei se fará bem, ponderou D. Rita.
-Mal não faz, disse Natividade.
E foi abrir, não toda, mas metade da janella. Flora, posto que já mui cabida, fez
esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição ficou sem dar de si ; os olhos, a
principio vagos, entraram a parar, até que ficaram fixos. A gente entrava no quarto
devagar, e abafando os passos, trazendo recados e levando-os, fóra espreitavam o medico.
- Demora-se ; já devia cá estar, dizia Baptista.
Pedro era medico, propoz-se a ir ver a enferma ; Paulo, não podendo entrar tambem,
ponderou que seria desagradavel ao medico assistente ; além disso, faltava-lhe pratica. Um
e outro queriam assistir ao passamento de Flora, se tinha de vir. A mãi, que os ouvio, sahio
á sala, e, sabendo o que era, respondeu negativamente. Não podiam entrar ; era melhor que
fossem chamar o medico.
- Quem é ? perguntou Flora, ao vel-a tomar ao quarto.
- São os meus filhos que queriam entrar ambos.
- Ambos quaes ? perguntou Flora.
Esta palavra fez crer que era o delírio que começava, se não é que acabava, porque
em verdade, Flora não proferio mais nada. Natividade ia pelo delírio. Ayres, quando lhe
repetiram o dialogo, rejeitou o delírio.
A morte não tardou. Veio mais depressa do que se receiava agora. Todos e o pai
acudiram a rodear o leito, onde os signaes da agonia se precipitavam. Flora acabou como
uma dessas tardes rapidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia ; acabou

381
tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos era menos de
defunta que de esculptura. As janellas escancaradas, deixavam entrar o sol e o céo.»
Quando acabei de ler esse capitulo, tinha os olhos marejados de lagrimas, a que
entretanto não ha nenhuma referenda nelle, nem chôro, nem gritos. Ridiculas, as minhas
lagrimas ? Eu não acho ; acho sim que a arte é divina, que me fez chorar por Flora que eu
não conheci, nem existio. Flora era filha única; sabes como o autor conta a dor do pai ?
Nesta phrase curta ao sahir do cemiterio :
« Tudo feito, vieram sahindo: o pai, entre Ayres e Santos, que lhe davam o braço,
cambaleava.»
Não entendo de cousa nenhuma se esta phrase não corresponde áquelles versos de
Homero, e se o autor della não é um poeta acabado e grande. Podia transcrever outros
muitos trechos identicos no valor, mas ia reproduzir a obra sem a continuidade e os outros
encantos do livro. Para não sahir dos Gregos digo ainda que é como o delles o processo
mental de Machado de Assis . Da primeira á ultima pagina do livro encontrareis aqui e allli
uma metaphora, não rebuscada, mas espontanea e pura, que revela como no cerebro do
autor as abstracções se concretizam, se corporificam e nascem plasticamente, e por isso
poeticamente, no bom sentido da palavra. E o que ha mais neste livro admiravel ? Além da
perfeição ha a eterna flor viçosa que Machado de Assis tirou de si para pôr na botoeira do
Conselheiro Ayres. É flor que sorri sobre as tristezas e as alegrias da vida e faz que a gente
vá passando através dellas, enlevada pelo seu perfume que consola, pelo seu sorriso
enigmatico que é a ironia da natureza : e em Esaú e Jacob o espírito fino e brilhante de
Machado de Assis .
Leitor meu, vai ler o livro delle ; e eu não quero despedir-me de ti antes de te dizer
que pódes lel-o sem difficuldade, porque não ha palavra alli que não uses na tua linguagem
de todo o dia.
Não consultarás diccionario, e essa é outra virtude do livro. Anda ; vai lel-o.
Mario de Alencar.
27 de Agosto de 1904.

382
MAmADO DE ASSIS

Nos paizes latinos, cuja literatura possue a tradição brilhante de Cervantes,


Rabelais, Moliére, Lafontaine, Sylvio Pellico, De Maistre... a satira é repassada de
jovialidade; na Inglaterra ella reveste uma feição estranhamente dolorosa, quase macabra,
contradictoria e delirante.
Para Swift, por exemplo, a analyse era como um frasco de vitriolo atirado com furia
á face do publico.
A defonnação monstruosa e proposital da natureza e do sentimento deliciava-o,
provocando-lhe um riso morbido, cruel e dissolvente, de vingança.
Outros, como CarJyJe, são combatentes activos pela idéa.
Quem os lê adivinha aqui e ali, sob os escombros que espalham, um alicerce de
crença e percebe entre os desconchavos e as incongruencias um criterio seguro que procura
desorientar por calculo, faz do paradoxo um instrumento de critica e exaggera
intencionalmente os defeitos ambientes.
O creador, triste, porém amavel, do QuincaS Borba, do D. Casmurro e do Braz
Cubas dá uma fórma esthetica differente ao espírito de duvida e á percepção de ridículo
que lhe assinalam todos os trabalhos, quer se trate de um romance quer de uma novella,
quer de uma simples fantasia.
Elle não exaggera por odio o traço caricatura! dos seus personagens: como
observador, é um imparcial, um delicado como artista e como philosopho, um sceptico
benevolente.
Se não desfigura em excesso, pelo grotesco, se não maldiz por tédio, tambem não
procura corrigir, nunca doutrina, escreve sem fins de proselytismo, de aperfeiçoamento
alheio, de condemnação social.
Annota, estuda, commenta, sorri e convida o leitor a sorrir, com melancolia ás
vezes, ás vezes com alacridade, sempre com discreção.

383
Contempla o mundo, examina a vida e trata os homens com uma serenidade
ironicamente bondosa: lendo-o, lembramo-nos daquelle typo de Zola, na Rome, que dizia
ser impossível ao Senhor, na sua infinita misericordia, separar dos bons os máos, para
punir a uns e recompensar a outros, tão generalizado está, na maSsa do sangue, o principio
do crime ...
As suas paginas têm em geral um sentido duplo : podem ser lidas com innocencia e
simplicidade ou meditadas com amargura, segundo o temperamento e a faculdade
assimiladora de cada um.
Os iniciados na sua satira, os que demoram mais nas reticencias mentaes que lhe
pontilham frequentemente a prosa castiça e ductil do que no texto, meio grave, meio
jocoso, simples e bonachão, sabem que ella encerra uma certeza terrivel e impressionante :
a de que os males que alveja são naturaes e irreparaveis.
Bem pesadas as causas, eis a lição das entrelinhas de Machado de Assis, a nossa
responsabilidade, pobres de nós ! é quase nenhuma, erramos por fraqueza congenial, por
vulgaridade intrinseca, por mil resistencias ao bem, por mil suggestões invencíveis para a
falta.
Sobrasse-nos tempo e espaço para um estudo completo de toda a obra do autor de
Esaú e Jacob e transcreveríamos, às centenas, documentos comprobatorios dessa
disposição de animo, essencial, do mestre.
Pelas situações diversas dos seus personagens, homens e mulheres, velhos e moços,
em entrechos onde se encontram hombro a hombro o amante apaixonado com o político
frio, o preconizador de virtudes com os dissipados e viciosos, o seu mundo inteiro de
creações, surprehendidos em flagrante, vê-se bem que para Machado de Assis a vida não
passa de uma comedia trivial em certos lances, divertida em outros, em todos instructiva e
digna de registro...
No fundo, bem no intimo, elle não acredita no amor, nem na religiosidade, nem no
patriotismo, nem no desinteresse, nem na sympathia, nem na bondade; crê,
disfarçadamente, no egoísmo todo poderoso, força incontrastavel que inspira e domina
todos os actos, todos os projectos, todas as conquistas e todas as fundações humanas.
A revolta seria, pois, tão absurda e vã, como qualquer tentativa de castigo ou
qualquer sonho de correcção.
O humorismo de Machado de Assis deriva d'ahi, desse escuso e profundo veio de
amarga philosophia pessimista.

384
A resignação zombeteira de D. Casmurro e a duvida elegante do Conselheiro
Ayres, o diplomata das meias palavras, das phrases ambíguas, das definições
estramboticas, dos gestos de dois sexos e dos pensamentos mysteriosos, que á proclamação
da Republica deu ao Custodio o conselho da taboleta e à ultima pagina do Esaú e Jacob
prefere aceitar uma hypothese infamante, acariciando docemente a eterna flor que lhe
viçava na botoeira, a aceitar um debate inutil, são as duas expressões mais perfeitas e
suggestivas do genio de doce mysantrhopo theorico do escriptor brazileiro.
Não pretendemos submetter á critica esthetica o seu recente volume, já
resu[ilegível] Mario de Alencar.
Do estylo diremos apenas, pelo valor [ilegível] da affirmação, que elle é igual,
[ilegível] sempre puro em seu [ilegível], sempre encantador na sua harmonia, sempre
sereno ainda quando escaminho.
Phenomeno natural em um psychologo do feitio de Machado de Assis [ilegível].
Não se verificam nos períodos risonhos [ilegível] constrastes violentos, imprevisas
quedas de humour.
A syntaxe de alguns humoristas mostra subitas transformações como a letra dos
nevropathas.
A pagina principia firme e correcta, alinham-se os caracteres em ordem, o traço sae
regular, modesto e amoravel.
Depois, de repente, um pensamento inesperado e irritante abala o impulsivo. Logo a
mão treme, a quebra dos signaes [ilegível] carrega-se de tinta a escripta, nas folhas da
correspondencia desapparece a pauta e, mercê da commoção momentanea, tudo se
confunde numa hieratica de colera e de dor.
Taes variações marcam arniudarnente o estylo humorístico : do enthusiasmo ao
desdem, da fé ardente á suprema negação, da apotheose dos vultos [ilegível] ao excessivo
rebaixamento dos inferiores a eloquencia e o sarcasmo alternam, imprimindo às sentenças,
já breves, fulgurantes, incisivas, já longas e magestaticas, agora solemnes e minutos após
[pungitivas? llegível] e acerbas, uma feitura singular e antagonica.
Ha phrases que expluem numa tonalidade interjectiva de gargalhada ao lado de
outras hymnicas de victoria [ilegível]
[dois últimos parágrafos estão ilegíveis]
Alcides Maya

385
Os Annaes 42, Rio de Janeiro, 5.11.1904, pp. 77-78.

A LIVRARIA

ESAU' E JACOB -MACHADO DE ASSIS-


H. GARNIER- EDITOR

Em primeiro Jogar, desculpa... meus senhores. A desculpa, a pecinha amavel e gasta


no uso, ou no realejo dos officiaes deste officio.
Mas, aqui, a meu serviço, é sincéra, explica-se, e mais eu a desejo, com fervor e
com fé, á maneira de quem, devendo alta homenagem, apenas faz uma deferencia. Já
sabem vocês que de não escrever vastamente do mestre prosador Machado, a desculpa,
sobre outras, é o- espaço-angustiado nesta columna curta, esguia, em sérios apêrtos,
uma columna simples que se não quer estender para além das suas cunas intenções de
noticiar só : que appareceu um livro, uma brochura, original ou roubada, que tem auctor,
ou auctores, cada qual o melhor, cada qual o peior. Digo que Esaú e Jacob é de Machado
de Assis. Digo uma doidejante novidade e, sobretudo, um dos mais maravilhosos trechos
do logar commum, em materia de... critica.
Porém, ás vezes, como agora, esse cliché é uma salvação, uma providencia que
resume, num idéal de criterio, o que eu, com ancia, com pressa com todo o meu amor á
obra de Machado, viria a pensar, neste lúcido momento do Esaú e Jacob. O trabalhador do
Quincas Borba resplandece no romance dos gemeos, como no Braz Cubas. Sobre isso, não
é veneravelmente velho notar que o puro Artista não envelheceu. A primavéra alenta
naquelle espírito, todo um cyclo de activo esplendor. Cada livro seu, mesmo uma pagina,
um periodo, é uma ressurreição da mocidade.
E me bastaria como melhor phrase, querendo dar a melhor idéa. O essencial
encantador num trabalho delle, o que mais irresistivelmente desafia a todas as seducções
do grande bello, não é o entrecho, não é a intriga. Aliás, ella excelle a de todos os
romancistas da nossa língua.
Nenhum, aqui e além, lançaria a factura maJerial de um livro de Machado,
contando tão bem a historio através de um processo tão difficil, tão trabalhoso e, ao mesmo

42
Essa publicação, que tinha como subtítulo Semanario de Lineratura, ane, sciencia e
industria, começou a circular em 8.10.1904 e tinha como secretário WaJfrido Ribeiro e

386
tempo, tão apprehensivo d' acção. Por vezes, no andar da narrativa, parte-se a linha,
quebra-se a urdidura, as coisas, que hão de apparecer, alternam-se, trocam-se, transpôem-
se, e os capitulas se revésam, não ligam a mesma idéa de sorte que, como no Esaú, a um
capitulo que o vulgar impessoal daria o n. I, elle dá o n. 8, ou o n. 13, ou traça a visita do
palacio, embora seja uma divagação, uma inutilidade para o enrêdo, mas uma necessidade
primaz para a sua maneira de construir.
E logo emmaranha num claro, num aberto embaraçado de episodios, que se
distanciam, que se alongam, que se esvahem, esvahindo a curiosidade devorante do leitor,
que se subdividem em muitos outros, vários e estranhos, com o poder do mesmo interesse,
da mesma arte, que o seu genio, sempre alli, transmitte e revigóra. Um romance de
Machado não tem vertigens tempestuosas, não é dramatico, é uma semelhança de mosaico,
é um romance de episodios que, parece, se chocam, se repellem, se alheiam. (A esmola da
felicidade, A epigraphe, A missa do coupé, Há contradições explicaveis, etc.) Mas, afmal,
o facto é que se entendem, se communicam e se apuram e se enlaçam, e, ao cabo, nós
verificamos, maravilhosamente, uma perfeição de unidade e de trama. Depois, esses
episodios que assim rebentam e se cólam, assim dão, deliciosamente, a expressão
magnífica da sua graça amoravel. "Perpetua compartia as alegrias da irmã, as pedras
tambem, o muro do lado do mar, as camisas penduradas ás janellas, as cascas de banana no
chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da rua da
Misericordia para a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de
cançasso. Natividade estava tão fóra de si que, ao ouvir-lhe pedir : "Para a missa das
almas!" tirou da bolsa uma nota de dous mil reis, nova em folha, e deitou-a á bacia. A irmã
chamou-lhe a attenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatorio.
(Cap. 11)
"Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de
sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita, ao
domingo, missas de tamancos." (Cap. IV)
Não exálam emoção, nesse esbraseado sentido meridional, que solicita o estrépito,
o ardor, o mesmo fogo dos deslumbramentos. Nem arrebatam, nem estremecem, nem
atiçam convulsões de nervos. Fazem resurgencias de alegria, borbulham delicadezas,
fascinam calmamente pelo exquesito das suas situações, pelo recorte plastico da sua
suavidade, pelo jeito leve da sua ironia. No episodio, Machado espraia as subtilezas, o seu

como diretor Domingos Olympio.

387
dom superior, super fino, de recato, de timidez, de pudor; a discreção, a medida o contém;
e surge, vacillante e alegre, o divertido da sua duvida, o mais pittoresco dos seus aspectos
litterarios.
Eu me sinto á vontade, somo simplesmente; ninguem se irritará deante della, a
bolir comnosco; antes, oscilará, desconfiará, também, sentindo-a, penetrando-a, com a
mesma volupia, numas brandas claridades de goso. "Era um mysterio, talvez um caso
amo... Único ! Um caso ! A singulaúdade do caso fel-o agarr~-se mais á ideia ou a ideia
a elle; não posso explicar melhor este phenomeno intimo, passado lá onde não entra olho
de homem, nem bastam reflexões ou conjecturas." (Cap. XI)
Dessa timidez, dessa duvida - e dahi os excessos de sensibilidade, os seus
trocadilhos, os jogos de palavras, as incertezas, os contrastes, as apparencias de respeito ao
publico, os disfarces, as renuncias de opinião, os "possíveis" - desse pudor, que organisa
o mais original, o mais homogeneo. ou, antes, o único temperamento litterario do Brasil,
írradía, lindamente, o seu humorismo, que, nelle tendo o melhor artista, nem é amargo,
nem desesperado, nem furioso; mas, tão fmamente sceptico, é tolerante, contemplativo,
bemfazejo.
E', pois, exacto, logico, inteiriço, o processo do creador do Dom Casmurro, um
processo que effectúa a perfeição do humorismo, o que é bastante para julgar a um
humorista, tanto quanto, como ninguem, elle o é soberbamente. Ha gente, qualquer bocado
de gente illustre que não toléra o methodo do sr. Machado de Assis. Um homem que
escreve bem já me disse, com impunidade, que essa coisa do sr. Machado metter o pé pelas
mãos, essa licença dos episodios, dos capítulos em branco, das reticencias, é um despreso
ao publico. Esse homem que escreve bem só farejava nos romances do sr. Machado, o
drama, a vil banalidade do entrêcho. E não entendia, por isso, que notando no sr. Machado,
despreso ao publico, signalava, precisamente, um dos fortes caracteristicos do seu typo de
humorista. E porque tem juizo e jeito, o esperto homem só devia considerar o escriptor
como elle é, de facto,-dentro do seu temperamento.
Mas, eu ia mettendo pela discussão, ou, talvez, tentativa de estudo do romancista.
Estaria fóra de logar e do dever actual... que é fechar a noticia com a delícia de falar no
estylo do sr. Machado. O Esaú, deitado á luz sem barulho, com calma e com paz, rebrilha o
amado estylo, a sobriedade, sem egual, a doçura, os furta-côres da graça, a iris scintillante.
Esse feitio da sua litteratura é ainda sem par, não tem gemeo, (vê-se bem que dou
noticia do Esaú e Jacob) não tem outro na língua que elle lapida e amansa. A sua fórma

388
compléta a idéa pegando-lhe os matizes; e, portanto, o estylo de Machado ha de ser subtiL
Não tendo violencias de briho, nem lances a deslumbrarem, é na ironia que lhe está a
maneira. Não é descriptivo ; menos, opulento ; menos, fragoroso. Os exteriores d'um
quadro, d' uma paysagem não o preoccupam; naturalmente despontam. De tantos, um
exemplo precioso: "Não é que sentissem alguma coisa opposta, á vista da praia e do céo,
que estavam deliciosos. Lua cheia, agua quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilbury a
passo ou a trote, segundo ia vasio ou com gente. Tal ou qual brisa." (Cap. XXXVI).
Mas, onde eu vejo em Machado a maior virtude de arte, é em dizer o pensamento.
Não é cathegorico, e parece desejar que a sua phrase nunca enfeixe uma sentença. A ironia
nelle, como no Eça ou no Fialho, traz o pensamento, e atalha o exaggero. A sua arte deixa
que o leitor tambem trabalhe na leitura, e fal-o pensar. O Esaú transborda de phrases. Daria
um lindo livro de pensamentos leves, encantadores, sem presumpção, sem pó, sem
solemnidade. (Bôa lembrança a Mello Moraes, bôa inspiração a Laudelino Freire). Mais
que nunca, a respeito desse mestre, a gente sente profundamente a perfeição da idéa
visionando o toque extremo, o acabado, a perfeição do estylo. Pela subtileza dos seus
recursos, das suas cambiantes, pelo imprevisto do seu movimento, pela finura e pela
plastica, pela tinta e pela propriedade, o estylo, no Esaú, arranca deste idioma o que elle,
em verdade, ainda póde recoher de attico, de fino, de suave e de espirituaL De resto,
considerem a seriedade, a inteireza e a cohesão da sua obra ; obra que, por ser pensada e
sentida, faz de Machado a única, a indiscutível gloria liquida das lettras brazileiras.
Quando elle nos dér o seu ultimo livro, será, emfun, o primeirio, por tudo isso.
Os ultimes serão os primeiros ...
[Seguem quatro parágrafos sobre Novos Poemas, de Annibal Amorim]
WALFRIDO

389
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21.11.1904, p.l.

OULTIMO ROMANCE
DE

É Esaú e Jacob o ultimo na data : não será de certo o ultimo da série. Appareceu ha
algumas semanas, mas nunca é tarde para se tratar de um livro de Machado de Assis. São
livros os seus que todos ficarão na nossa litteratura, isto é, que continuarão a ser
procurados e lidos, e dos quaes os futuros organisadores de anthologias transcreverão com
afan largos trechos nas suas collectaneas. De mais a mais, serão excerptos de auctor
brasileiro único no seu genero.
Poderiamos fazer wna escolha entre dezenas de historiadores mais ou menos eruditos
ou rethoricos, entre centenares de prégadores mais emphaticos do que sobrios, entre
milhares de lyricos dulcifluos ou satanicos. Elle só se não parece com nenhum outro: é
singular, talvez como poeta, provavelmente como chronista, certamente como novellista.
As suas producções é que se assemelham entre si pelo conjuncto dos predicados litterarios
que as distingue, constituindo uma mesma obra na sua variedade. Esaú e Jacob, parece-se
pois, prolonga as creações anteriores.
É o mesmo portuguez limpo e castiço, sem sombra de pedanteria nem esforços de
purismos, tão pouco crivado de neologismos, uma lingua corrente e correcta, cuja falta de
artificios e voluntaria simplicidade lembram immediatamente Garret, sendo em ambos o
resultado de muita pratica e muito trabalho. É a mesma feição de narrativa mais
conceituosa do que descriptiva, mais espirituosa do que colorida, mais graciosa do que
vibrante.
Os romances de Machado de Assis repousam sempre sobre uma intriga leve, os seus
personagens praticam actos communs, a sua acção carece de um enredo complicado e
escabroso.
Mas por acaso será a vida constantemente tempestuosa? Apresentará ella
invariavelmente a fatal idade da tragedia ou a agitação do drama ? Não são os factos
ordinarios de natureza a fornecer-lhe interesse, enchei-a de actividade, dotal-a de emoção ?

390
A trivialidade é viva e attrahente ; a quetão está, litterariamente, no modo de tratai-a. E não
é possível tratai-a com mais arte do que o auctor de Braz Cubas.
A sua delicadeza já passou a logar commum da critica e, na ancia de explicai-a,
recorrem certos a interpretações fadigosas e filiam-na muitos nos humoristas inglezes.
Porque os inglezes escrevem livros que podem andar nas mãos de toda a gente. Porque são
comedidos no expôr, discretos no contar, bem educados no gracejar.
É possível que Machado de Assis tenha experimentado a influencia de Sterne ou de
Swift. Elle admira os bons modelos e presa os antigos como todo homem dado ás lettras,
mas a rasão da sua delicadeza parece-me antes estar em que o seu temperamento
corresponde ao dos citados auctores do seculo XVIII, em que a sua característica
urbanidade, tão pessoal e immudavel, condiz com aquella ironia flagellada mais do que
flagelladora, com aquella zombaria que se não era ainda dolorosa, já era humana e tinha a
refreai-a o respeito das normas, que o romantismo se aprouve e destroçar.
Machado de Assis não é um escriptor da ultima data. É um escriptor de sempre
porque, em vez de seguir as modas e mudar de trajo de accordo com ellas, creou uma moda
sua. Esta moda, porém, que não podia nascer espontanea, origina-se nas duas grandes
escolas, uma que o precedeu, a classica, e que lhe deixou a tradição da medida e da
distincção; a outra, com a qual cresceu e se formou, a romantica, desta derivando o
sentimento e o poder de sympathia, sem que ficasse a sua obra eivada de tristeza e
proselytismo. Melancholia, a offerece, a melancholia inseparavel da vida, mas sempre
moderada, como a que se desprende da marcha regular delta, sem quedas sombrias, nem
accidentes horríveis.
Vindo assim, espiritualmente de outras eras, mais differente parece ainda dos que o
rodeiam. Nunca poderia no emtanto ficar isolado na sua sobrevivencia ou tornar-se
enfadonho na sua particularidade, porque, além da superioridade da forma, expurgada dos
defeitos da escola, existe em Machado de Assis o que distingue os escriptores de merito,
destinados á perpetuidade intellectual : o fundo humano e synthetico.
Os seus caracteres podem não desenvolver, cada um separadamente sob a luz intensa
de rigorosa critica subjectiva, uma linha de conducta preconcebida e logica; podem mesmo
não apresentar, movendo-se por ai ao sabor das ponderações do chronista de seus feitos,
traços tão pronunciados que os tornem, na sua exacta delineação, typicos ou proverbiaes.
Não deixam por isso de ser animados e indeleveis, na penumbra em que os colloca a
phrase que lhes envolve a personalidade, lhes surprehende os gestos, lhes define as
attitudes, lhes pinta a evolução - phrase que corre com alacridade, que zumbe sem ferir,

391
que serpenteia sem assustar, que se enrosca e adhere ao assumpto, de tudo motejando sem
grosseria e colhendo na faculdade de observação e no talento de exposição verdadeiros
achados de expressão.
Estes achados referem-se sempre ao contraste das apparencias, ou á incon.sistencia
das opiniões, ou a mendicidade das promessas, ou á inanidade das previsões e traduzem
modalidades de visão, porquanto pela technica adoptada nos seus romances, o auctor
acompanha pari passu o caminhar da acção, polvilhando-a de reflexões que juntas formam,
no seu desenfado e na sua peneiração, não direi uma concepção philosophica porque seria
fazê-las abraçar assumptos e attingir alturas a que não querem guindar-se, mas uma
apreciação larga e até completa da vida. Dir-se-ia mesmo que personagens e acção não são
mais do que pretextos para esse tratado da ironia das cousas, os elementos concretos dessa
téla humorística do mundo com seus ridículos e vaidades.
A preoccupação dos seres em suas relações sociaes faz até esquecer os aspectos do
meio, faltando neste romance, como nos anteriores, evocações de paizagens, posto que
sobrando fugitivas e quasi graphicas notações no scenario, verdadeiros instantaneos em
correlação com os estados psychologicos examinados. Outro tanto acontece a escriptores
estrangeiros com quem Machado de Assis offerece pontos de contacto, filiados na
identidade das naturezas ou na harmonia dos modos de ver, Alphonse Karr por exemplo,
cujo espírito se exercia, sem maldade mas com infmita malícia, sobre os fracos de toda a
gente e as miserias de todo o mundo, numa expansão impessoal que toma a critica menos
cruel, porém mais certeira, fazendo das victimas do pamphletario como das creações do
romancista symbolos mais do que entidades.
Com effeito, para entidades escasseia-lhes relevo; para symbolos, porém, sobra-lhes
consistencia. De pessoal têm comtudo a contradicção dos actos, a vacillação das
resoluções, a apparente descontinuação dos pensamentos, dos quaes cada um é comentado
pelo auctor sem a affinnação categorica que, em face da fluidez do mundo espiritual, seria
uma arrogancia e um engano, antes com a duvida e a hesitação que são garantias da
verdade, porquanto cada estado da alma é constituído por elementos tão variados, tão
complexa é cada transformação sua, que qualquer explicação precipitada e peremptoria
nem seria razoavel nem humana.
Nem elle tal a poderia jamais formular a menos de modificar-se por completo a sua
maneira litteraria, de alterar-se o seu proprio temperamento, que anda habituado a encarar
tudo com sympathica curiosidade e a tudo apreciar com passageira ironia, parecendo estar

392
a propria ironia na retina delle, como na do seu bondoso, fino e discreto conselheiro
Ayres.
OLIVEIRA LIMA

Pernambuco, novembro 1904.

393
A Notícia, Rio de Janeiro, 26 e 27.11.1904, p. 2.

REGISTRO

Relendo esta noite Esaú e Jacob, do meu querido mestre Machado de Assis, fiquei
algum tempo evocando a concepção, o assumpto e a fórma de todos os romances, contos e
novellas que elle tem publicado, e meditando sobre este ponto : como, graças ao talento do
escriptor, a vida carioca, sendo uma vida cosmopolita e sem originalidade, serve de base
para a creação de uma litteratura originalíssima...
Em todo o Brasil, no Norte como no Sul, o Rio de Janeiro não é muito amado : na
opinião de todos os provincianos, o Rio de Janeiro não é Brasil : é um ponto de reunião
commercial, uma vasta Bolsa em que todas as raças e todas as nacionalidades se
confundem. uma cidade sem caracter proprio, uma cosmopolis imprecisa e vaga... Não
contesto isso ; apenas contesto que um escriptor carioca, descrevendo a vida do Rio de
Janeiro, seja fatalmente forçado a escrever livros sem originalidade. A vida do Rio é, na
essencia, egual á vida de todas as outras cidades, - um tecido de ambições, de interesses,
de vícios, de virtudes, de prazeres, de soffrimentos, de trabalho, de inquietação moral. Não
se póde exigir que um escriptor, mudando de sangue e de nervos, annulle a influencia do
meio em que vive, e narre coisas que nunca vio, costumes que nunca observou, paixões
que não póde comprehender. Tal escriptor do Maranhão, do Ceará, ou de Minas, como
Coelho Netto, Domingos Olympio ou Affonso Arinos, vos dará um romance em que a vida
'-vaqueana" do sertão maranhense se espelhe, ou onde o Ceará palpite, com as suas seccas
e os seus martyrios, ou onde se fixem a bravura, as superstições, a simplicidade da gente
mineira. Que vos hade dar um escriptor do Rio de Janeiro, senão a vida da rua do Ouvidor,
do Theatro Lyrico, e de Botafogo?
Mas, si esse escriptor tem talento original e potente, os seus romances, como os de
Machado de Assis, desvendarão na vida cosmopolita da cidade aspectos materiaes e
moraes que ninguem descortinaria na vida de Roma, de Lisboa ou de Paris. O amor é um
só, uma só é a tolice humana, e as ruas, as casas e as almas têm afinal a mesma natureza
em todas as cidades do mundo. Com os mesmo scenarios, porém, com os mesmos
personagens, e com as mesmas paixões, fazem-se cem mil dramas diversos.
A litteratura de Machado de Assis realisa o milagre de crear, no Rio de Janeiro,
conflictos moraes, "estados de alma," aspectos sociaes absolutamente ineditos. E isso
prova mais uma vez que a mesma paixão é sentida por cem homens, de cem fórmas
differentes, ~rque cada homem traz dentro de si uma humanidade propria, que nunca é
perfeitamente egual á humanidade dos outros...
- B.43
43
O B. é de Bilac, Olavo.

394
Diário Popular, São Paulo, 5.12.1 904, p. 1.

Romance Fluminense

O qualificativo Romance Fluminense é que entendemos mais adequado ao bello


livro de Machado de Assis: -Esaú e Jacob.
Escrevendo uma das chronicas diarias d' A Noticia, com acerto, o estylista Olavo
Bilac, disse: " Fiquei algum tempo evocando a concepção , o assumpto e a fónna de todos
os romances, contos e novellas que elle tem publicado, e meditando sobre este ponto :
como graças ao talento do escriptor, a vida carioca, sendo uma vida cosmopolita e sem
originalidade, serve de base para a c reação de uma literatura originalíssima ... "
E' , pois, o romance da vida carioca, em alguns dos seus aspectos diversos, que o
talento e a maestria de Machado de Assis nos offerecem com as buriladas paginas de Esaú
e Jacob.
A palpitação do sentimento da grande cidade ahi se encontra admiravelmente num
"tecido de ambições, de interesses, de soffrimentos, de trabalho, de inquietação moral ".
O escriptor carioca, que nos tem dado tantas manifestações do seu fecundo engenho
literario, nas creações que se denominam Braz Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, em
novellas, contos e narrativas, de uma delícia encantadora, quanto á elegancia da fórma e a
ironia da concepção, produziu agora mais uma dessas joias de finíssimo cinzelamento.
A esthetica do novo romance de Machado de Assis consiste, como a dos que o
antecederam, em ser primorosa pela satyra leve e fugitiva, o que perfeitamente traduz a
linha do seu temperamento de prosador.
Eis porque o criticista José Verissimo já escreveu notando que, da obra !iteraria do
prezado mestre: "Resumbra uma philosophia amarga, sceptica, pessimista, uma concepção
desencantada da vida, uma desillusão completa dos moveis humanos. E, com isto, em vez
das imprecações e raivas dos pessimistas profissionaes, como os prophetas bíblicos, ou os
seus imitadores hodiernos, a quem uma fé, uma esperança desesperada, uma forte
convicção, alça a colera ou exaspera a paixão- uma ironia fma, bricalhona, cortezan, de
homem bom, mas seguro como os Ecclesiaste, de que tudo é vão neste mundo e resolvido
por isto a se não illudir com alguma apparencia. "
Dahi deriva o seu humorismo.

395
Sem excessos de pessimista Shopenhauriano, Machado de Assis nos apresenta
espiritualmente a narração do scenario da existencia dos gemeos Pedro e Paulo que
nasceram com tendencias inteiramente antagonistas.
Cresceram e nunca poderam ser amigos fratemaes. Divergiam em opinião, em
amor, em política, e se não discutiam era attendendo a um carinhoso pedido que lhes ftzera
a boa mãesinha.
O romance Esau ' e Jacob decorre nos ultimos annos do imperio brazileiro, refere
scenas, episodios, aspectos magníficos analysados suavemente. As figuras que se
movimentam têm muita correcção e realidade ; assim é que realçam os typos do
intelligente diplomata Ayres, o homem d'O Memorial, meticuloso, elegante e
discretissimo; o conselheiro Baptista, d. Claudia, o confeiteiro Custodio preoccupado com
os dizeres da taboleta para a confeitaria, pintada justamente no dia da acclamação da
Republica ; a graça ingenua de Flora, gentil senhorita que inspirou amor aos gemeos e - a
quem a morte não tardou...
" Flora acabou uma dessas tardes rapidas, não tanto que não façam ir doendo as
saudades do dia ; acabou tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam
os olhos, era menos de defunta que de escultura. As janellas, escancaradas, deixavam
entrar o sol e o céo. "
Mas, no tecido de todo este agradavel romance de caracteres e sentimentos, ha um
typo de relevo. E' esse Ayres --que no dizer sagaz do illustre escriptor: " trazia o callo do

officio, o sorriso approvador, a fala branda e cautelosa, o ar da occasião, a expressão


adequada, tudo tão bem distribuído, que era um gosto ouvil-o e vêl-o."
Esau ' e Jacob póde ser lido de principio ao fim deliciosamente; não fatiga, só
seduz. Os capítulos têm pequenas proporções, passam, succedem-se rapidamente. A
belleza da fórma é, como sempre, incomparavel ; tem a pureza do legitimo e precioso
vemaculo que brilha em todas as producções do festejado presidente da nossa Academia de
Letras.
-Ao sr. Pedro de Magalhães, livreiro nesta capital e representante dos editores H.
Gamier, agradecemos o exemplar com que nos brindou.
44
L. F.

44
Iniciais de Leopoldo de Freitas?

396
Kosmos, Rio de Janeiro, dezembro de 1904, pp. 28 e 29.

"ESA:Í IE lACOi3l" O IUilli'l M:IO: liV~O 00


S r, ~JAC~,OO DIE ASSIS

ALÉM dos indefectíveis folhetos de versos e livrinhos em prosa, sem nenhum interesse,

apenas reveladores do cacoête de escrever, tenho aqui um bom numero de volumes aos
quaes devo noticia e analyse : a interessante narrativa O navio jlibusteiro do Sr. Virgílio
Varzea ; os deliciosos e encantadores poemas do Sr. Antonio Corrêa d'Oliveira Raiz, Ara,
Auto de Junho ; os contos Alma Dorida (H. Gamier) do Sr. Cyro d'Azevedo; o Theatro
Brasileiro (H. Garnier) do Sr. Henrique Marinho ; uma traducção de Gil Braz de
Santilhana (H. Garnier) os Artistas do meu tempo do Sr. Mello Moraes Filho (H. Garnier)
os conceituosos estudos do Sr. Heraclito Graça Factos da linguagem (Viuva Azevedo &
C!); os novos e formosos poemas dos Srs. Magalhães de Azeredo Odes e Elegias (Roma)
e Luiz Guimarães Filho Pedras Preciosas (Montevidéo) e, por flm Esaú e Jacob o ultimo
romance do Sr. Machado de Assis, publicado pela casa H. Garnier.
Como à tout seigneur tout honneur, segundo o velho preceito da civilidade franceza,
os autores d' aquelles livros, entre os quaes alguns ha verdadeiramente estirnaveis, me não
levarão a mal que dê a primazia da minha noticia a este, que por todos os títulos a tem, sem
duvida, entre elles.
Na série dos romances da segunda - e agora, parece, definitiva maneira - do Sr.
Machado de Assis, Esaú e Jacob mantem o primado adquirido ao autor pelas Me morias de
Braz Cubas, Quincas Borba e D. Casmurro. Pódem alguns desadorar o modo de escripta e
composição d'esses romances, a maneira do autor, o seu estylo, e achar-lhe ao cabo
alguma repetição e monotonia ; a critica, porém, não tem o direito de prescrever ao artista,
nem os seus assumptos, nem como os deve tratar. Como a inspiração, a composição ha de
ser livre. Á critica só assiste o direito de examinar si, escolhendo este ou aquele assumpto e
tal ou tal fórma de o conceber e tratar, o escriptor o realizou segundo um criterio de
belleza, que podendo soffrer variações infinitas se conserva no fundo sempre o mesmo .
.Á obra do Sr. Machado de Assis, a de mais perfeita unidade em a nossa literatura, é
tanto mais preciso applicar esta regra de critica quanto a sua maneira !iteraria, o seu estylo
que, como em raros é elle proprio, são por assim dizer o seu mesmo temperamento

397
individual. Ora, tudo em summa se poderá talvez exigir de um escriptor, menos que elle
mude ou esconda o seu temperamento, o que só por si lhe diminuiria, si não aniquilasse, a
personalidade que acaso tivesse. E é essa diversidade de temperamentos que, na unidade de
uma literatura, lhe faz a variedade e o encanto. Ora, apezar de enganadoras apparencias,
em todo caso mais pessoaes que !iterarias, em contrario é grande e forte a personalidade do
autor de Esaú e Jacob. É escriptor que nunca de todo cedeu a influencias de meios, de
parcerias ou de escolas. Passou por diversas, que a todos aqui avassalaram, sem se deixar
dominar completamente por nenhuma d' e lias, conservando sinão intacta, independente a
sua personalidade !iteraria.
Neste romance principalmente ella se desenvolve em inteira posse de si propria,
numa opulencia de pensamentos, de idéias, de conceitos manifestamente superior a dos
seus outros livros de igual genero. A historia é simples, e por isso mesmo difficil de contar.
Aliás as historias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros.
O seu principal encanto talvez esteja no contador.
Cada livro d' elle, de parte o estylo, traz uma novidade. A de Esaú e Jacob é a do
assumpto, que tem, do modo porque é exposto, toda a figura de um facto novo. Eu não sei
si no seu atilado pessimismo o Sr. Machado de Assis não quiz representar o caso
communissimo da desaffeição, e até da hostilidade dos innãos, e com o seu gosto, filho da
sua philosophia, de contestar as banalidades correntes como verdades, mostrar a falsidade
do corriqueiro e mentiroso "amigos como irmãos". Para isso, observar-me-iam, não
precisava fazer dos seus innãos gemeos ; mas fazendo-os dava mais força á sua
demonstração, si alguma tinha em vista. Neste livro ao humor, de que o Sr. Machado de
Assis parece tem o privilegio entre os nossos escriptores, junta-se por vezes a graça, como
em nenhum outro sinão nos seus contos, onde facilmente a encontramos, dos seus
romances da mesma feição.
O caso é, como já indiquei, o da reciproca hostilidade de dous irmãos gemeos, mas
profundamente differentes e desiguaes de genios e de temperamentos. Esta differença
profunda dos dous, acompanhada da animosidade espontanea de um pelo outro, em
manifesta opposição com a igualdade ou simultaneidade de tendencias e inclinações em
geral notadas nos gemeos forma o que chamarei a trama psychologica do romance. Sobre
essa trama corre, como um fio de delicadeza peregrina, num bordado de rara formosura, a
figura encantadora de uma mulher. Não é de esposa, nem de amante, ou de amada, mas de
mãi. E não a da classica mãi velha e veneravel por um passado de angustias, de dedicação
maternal, de devotamentos de esposa, mas uma mãi relativamente ainda bella e fresca e

398
com isso inteiramente mãi, sem deixar de ser mulher, com as graças que a sua idade, o seu
estado, o seu decoro lhe permittem. Uma creação felicíssima, essa Natividade, em que se
reunem com rara perfeição de factura os encantos da mulher, as gentilezas da senhora e a
indizível ternura das mãis. Quasi igualando-a, e talvez por certos traços levando-lhe
vantagem, porém de mais fácil execução, é o Conselheiro Ayres, que da mesma familia do
Conselheiro Acacio, fica inteiramente, absolutamente differente d'elle, como uma creação
á parte e diversa, e entrará para a humanidade creada pelo Sr. Machado de Assis ao lado de
Braz Cubas, de Palha, do Conego Dias e de outras não menos conhecidas personagens que
a constituem, todas talvez excepcionaes, mas todas vivas, de uma verdade intensa, apezar
da especie da risonha e descuidada ironia com que são apresentadas. Por que, ao contrario
da maior parte dos romancistas, elle não as descreve minuciosamente, salientando as suas
quilidades e defeitos, não lhes enumera as virtudes e os vícios, nem lhes diz por miudo os
habitos e costumes, não as pinta em summa por dentro e por fora; apenas fal-os falar e
obrar, o mais discretamente que pode, e limita-se a completar-lhes o retrato com uma
palavra, um dito ou um acto da personagem ou uma rapida apreciação sua, que são como o
coup de pouce, a que se referia Rüskin, com que o mestre concluído o quadro dá-lhe a
pincelada final que o illuminará todo.
Naquella idade dos trinta annos, cara aos balzacistas, Natividade, grande dama do
Rio de Janeiro, formosa, opulenta de fortuna e gentileza, deu á luz, sem nenhum
entbusiasmo, ou sequer essa alegria especial das mãis moças ou pobres, dous filhos
gemeos. O nascimento de algum modo tardio d'essas crianças foi antecedido e seguido de
circumstancias pouco ordinarias, e de sentimentos diversos e contradictorios, de
aborrecimento e alegria, de descontentamento e amor no casal. Em primeiro lugar,
Natividade sentira que elles lhe brigavam no ventre, como os dous irmãos Esaú e Jacob no
de Rebecca, mulher de Isaac, segundo a lenda bíblica. Já vê o leitor donde vem o nome do
livro. Natividade e o marido, um banqueiro meio apagado, passada a primeira e rapida
contrariedade do nascimento dos dous meninos, põem-se a amai-os com grandes extremos.
E elles crescem numa quasi excepcional atmosfera de amor e de carinhos. Mas
parecidissimos quanto ao physico, o que é muito cornmurn nos gemeos, divergem
grandemente no moral, nos gostos, na índole, nas propensões e tendencias, o que é mais
raro. Os nomes que se lhes havia de dar faziam objecto de questão e discussões na família.
Afmal, um motivo fortuito, fez resolvei-a pelos dos dous apostolos apparenternente socios
e camaradas, mas de facto inimigos, Pedro e Paulo. Aquella differença entre a índole dos
dous foi desde a meninice d'elles, motivo de desgosto para Natividade, que em vão pregou

399
todos os recursos da sua ternura maternal em combatel-a. Nesse empenho falharam-lhe
todos os seus mais engenhosos meios e Pedro e Paulo cresceram e fizeram-se homens,
como Esaú e Jacob, adversarios, sinão inimigos - é preciso estabelecer o matiz -.
Gorada - o que é tão commum - esta obra de educação maternal, cada um delles
escolhe carreira e partido differente. Só em uma cousa concordam e coincidem, na eleição
da mulher amada, que será a mesma, Flora. Eis outro delicioso typo de mulher, criado pelo
Sr. Machado de Assis. Este é o de uma donzella, com todos os encantos e seducções da
idade e do estado, e com alguma cousa de ideal, que si a embelleza nada lhe tira de
realidade vivaz e humana.
Natividade morre, um pouco talvez da reciproca animosidade dos filhos. Ha nessa
morte uma conunoçào a que não nos tinha habituado o autor de Braz Cubas. Já moribunda,
Natividade tentou um derradeiro esforço para reconcilial-os. Não logra sinão apparencias.
O amor de Flora ou antes por Flora, que ambos sentiam sem animo de se declararem, por
que cada um sabia tambem o outro apaixonado, e julgava-o o amado, augmentava
naturalmente aquella separação, que Flora indecisa entre os dous sem querer, antes não
querendo, augmentava. O caso de Flora é singular. Entre dous rapazes esbeltos e amaveis
que, - não ha enganarem-se mulheres nestas cousas - evidentemente a amavam, ella ama,
sem saber qual d' elles, mas ama, sem objecto certo, indefinidamente. Ella tambem morre
sem se ter decifrado o enigma cruel. E Pedro e Paulo continuam "os mesmos", que vinham
desde o ventre materno como verifica a philosophia pessimista e percuciente do
Conselheiro Ayres.
Contado assim, eu estou que este romance não tem interesse, nem graça, por que o
que principalmente lhe dá estas qualidades, é, primeiro, a lingua admiravel, a rara sciencia
de dicção com que é escripto e depois a arte peregrina e toda pessoal da composição, os
mesmos tics e cacoêtes do autor, o engenhosos artiflcio da apresentação, uma psychologia
subtil, por vezes talvez e infelizmente rebuscada, mas sempre intelligente e com aquelle sal
de malicia caro aos paladares mais sãos. Não será talvez uma literatura fone, uma arte
intensa capaz de conunover-nos com emoções superiores ; mas é, como raras, intelligente,
original, distincta e deliciosa.
Não lhes parece que é muitíssimo ?

JOSÉ VERISSIMO.

Da Academis Brasileira

400
SOBRE MEMORIAL DE AIRES

401
A Imprensa, Rio de Janeiro, 29.7.1908, p. 2.

ODIA
A noite passada, tomei do Memorial de Ayres, o ultimo livro de Machado de Assis, e
li-o de uma assentada. Das obras desse mestre, pode-se dizer que são quasi perfeitas. Não
se dirá perfeitas, porque a perfeição não é deste mundo. São trabalhos feitos com amor,
com cuidado, com vagar, com paciencia; são lavores em que o tempo teve uma grande
parte. Polidos, limados, uma, duas, dez, cem vezes, tantas quantas fôram precisas para que
ficassem impeccaveis. Não se procure nos romances de Machado de de [sic] Assis, tramas
intrincados, nem paixões violentas: não ha nelles nada mais do que a vida, não a vida
excepcional, que comporta tragedias, mas a vida ordinaria, a vida do commum dos
homens, a vida de todos os dias, a vida banal... Referir-nos, nessa forma de memorias, que
etão sua, em cerca de 200 paginas, episodios vulgares da vida ordinaria e fazel-o de modo
a prender a attenção e a interessar vivamente o leitor, já só por si bastaria para lhe salientar
o merito. Mas não é só isso o que se encontra na obra de Machado de Assis . Ou melhor:
não é isso o que se encontra na sua obra. O episodio, o trama, a ficção, ahi não é sinão
mero pretexto para as observações exactas, para o conceito original, para a sentença
curiosa, para um humorismo á ingleza, para a manifestação de um certo scepticismo
mordaz e arnavel, que trae um estado d'alma eivado de um indifferentismo que se traduz,
afinal, numa bondade infinita., que tudo explica e tudo perdôa.

*
* •
Este Memorial de Ayres é apenas a collectanea de observações de um velho
diplomata. aposentado que, depois de girar 30 annos pelas legações do Brasil, vem terminar
a vida na patria, e passa os dias entre uma irmã viuva e um casal muito unido que, por
nunca ter tido filhos, adoptou dois, um rapaz e uma rapariga, que acabam, como é de regra,
por se casar. Pouca coisa como se vê. Pois é esta ausencia de trama que lhe fornece ensejo
para encher 300 paginas de observações grandes e pequenas, de reflexões altas e baixas,
entremeadas de modos de dizer, que não serão profundos, muitas vezes, mas que são
sempre novos ou graciosos.

402
Umas crianças encontram o conselheiro Ayres e, apezar de seus cabellos brancos,
tratam-no de «moço>> . O conselheiro observa que «a idade dá o mesmo aspecto ás coisas:
a infancia vê, naturalmente, verde.» Depara-se-lhe á porta da casa o seu criado José, que
lhe diz estar ali á sua espera.
«- Para que?
-Para nada; vim esperar v.ex. cá em baixo.
É meq.tira; veio distrair. as pernas á rua. ou yêr passar criadas vizil}has. tambem
necessitadas 'de distfacção; mas, como erá "flabil, engenhoso, cortez, grave; rumgo do seu
dever - todos os talentos e virtudes - preferiu mentir nobremente a confessar a verdade.»
Falando de uma viuvinha que estava prestes a se consolar, diz que viu a dôr da perda
de um e o prazer da conservação de outro, combinadas em uma só e única expressão
«especie de meio luto.»
Interesados dois amigos no assumpto de que conversava [sic], iam pegar um bonde,
mas não pegaram nada. «A conversação foi o melhor vehiculo; é desses que têm as rodas
surdas e rapidas e fazem andar sem solavancos.»
Querendo dar a impressão da fusão das almas de dois namorados, fala deste geito.
«Sabiam tudo. Parece incrível como duas pessoas que se não viram nunca ou só alguma
vez, de passagem e sem maior interesse, parece incrível como agora se conhecem
textualmente de cór. Conheciam-se integralmente. Si alguma cellula ou desvão lhes faltava
descobrir, elles iam logo e prompto e penetravam um no outro, com uma luz viva, que
ninguem accendeu. Isto que digo pode ser obscuro, mas não é fa11tasia; foi o que vi com
estes olhos.» Todo o livro, ou melhor, toda a obra de Machado de Assis é isto ; original,
inesperado e brilhante. O tempo não exerce nenhuma acção sobre elle: é um espírito
sempre moço. E, não o digo porque o veja com o aspecto que a idade dá ás coisas. Ai de
mim ! há já muito tempo que não vejo tudo verde.
*
* •

Para não dizer só bem dessa nova obra do nosso grande e incontestado mestre, direi
que ella é escripta na tal orthographia da Academia, com a qual, definitivamente não me
conformo. O que resultou desse proposito ou dessa obrigação, em que se achou o
presidente da Academia, de honrar a sua deliberação, escrevendo a primeira obra que
publicou na orthographia decretada por ella, foi que nessa obra não ha orthografia

403
nenhuma. Quero crêr que a revisão traisse a intenção do autor, mas o certo é que na mesma
pagina encontram-se palavras graphadas pelo antigo e pelo moderno.
Pelo moderno, não ha consoante dobrada, não ha consoante muda, não ha o H médio
: pois, á pagina 105, ha graphadas como se seguem, as seguintes palavras: annos, exacto e
chrisma. As palavras affecto, affectação, aspecto são sempre escriptas com o C, que não
sôa; signal é escripto com G ; nem sempre o S entre duas vogaes é substituído pelo Z ; a
palavra presente é escripta com S. Sahir é escripto sem o H ; mas ahi é escripto com H.
Emfim, uma barafunda, que só o Medeiros e Albuquerque seria capaz de entender.
Si fosse, porém, preciso dar uma prova da excellencia da obra de Machado de Assis,
essa seria das melhores ; é, realmente, preciso que um livro seja de primeira ordem para
que a gente o leia, quando escripto com essa orthographia, que nos desfigura as palavras
familiares.
Pangoss.45

4
s Pangloss, e não Pangoss como saiu publicado, era o pseudônimo de Alcindo Guanabara.

404
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3.8.1908, p.l.

Semana literaria

Machado de Assis, da Academia Brasileira- «Memorial de Ayres»- H Garnier,


livreiro-editor, 71 rua do Ouvidor, Rio de Janeiro.

Tão abundantemente se tem escripto e tanto bem se tem dito do sr. Machado de
Assis, que fugir á [sic] repetições é difficuldade quasi insuperavel para quem pretenda
rabiscar impressões deixadas pela leitura de qualquer dos seus livros.
Temos deante de nós o Memorial de Ayres. Lemol-o e relemol-o com prazer
crescente, saboreando demoradamente o fmo gozo determinado pela verdade e pelo
imprevisto da sua observação. pela delicia da sua simplicidade, pelo vigor admiravel da
sua phrase.
Memorial de Ayres é um livro triste, sem ser piégas ; é um livro empolgante, que
devera ser enfadonho. É o registro, na apparencia insignificante, das magoas de alguns
velhos, urdidas pelas desillusões da vida, frechando cruel e friamente sobre a requintada
sensibilidade de almas tão simples e tão boas, que chegam a parecer arrancadas a época
remotissima.
O casal de moços que atravessa o livro, tendo, pelo amor, todos os elementos de
felicidade, não se esquiva á cinza de melancolia dispersa por todas as paginas, como um
crepusculo que desce lentamente e que por fim em sombras se resolve.
A fórma da narrativa, em notas escriptas ao sabor do acaso e das impressões, devia
ser fastidiosa e certo o seria sem o talento do mestre que tem sempre um traço original de
observação, uma nota scintillante no dizer, um primor no dialogo, uma feição particular de
psychologia.
Sem urdidura complicada, apresentando essa simplicidade extrema que parece
natural e expontanea, sendo entretanto o resultado de um esforço que só os mestres
desenvolvem com efficacia, o livro é encantador e ao chegar á derradeira pagina, tem se
derramada pelo espírito uma tristeza nobre e serena, muito serena e humana.
Sente-se que ali está a vida real, supremamente dominada pelo soffrimento,
afugentando as alegrias no nascedouro, ferindo cruelmente os mais queridos affectos,

405
intercalando-se na tranquillidade da existencia, insensivelmente, pela força das
circumstancias, pelo dominio dos factos.
Ancias recalcadas, lagrimas contidas, saudades allanceadoras, lutas intimas entre o
coração e o dever, despeitos instillados em perfidias venenosas, isolamentos de velhices
que perderam um doce amparo, nostalgias de terras não vistas e talvez inexistentes,
cruzam-se pelas seductoras paginas formando o conjunto da narração, dourada por um
scepticismo fmo, malancolizada [sic] por incommensuravel desalento, doloroso e
pungente.
Ayres, o diplomata aposentado, profundo psychologo servido por 30 annos de
diplomacia, atraz de cuja figura parece que se esconde a personalidade do auctor,já na casa
dos sessenta e dois, ao encontrar a «saborosa>> viuva Fidelia, murmura de si para si o verso
de Schelley[sic] :
« I cannot give what men call 1ove » verso profundamente triste, onde chora a
saudade de passados dias gloriosos.
De outra vez exclama : «a vida, mormente nos velhos, é um officio cansativo ».
Mais tarde escreve :
<<.Já acho mais quem me aborreça do que quem me agrade e creio que esta proporção
não é obra dos outros e só minha exclusivamente. Velhice esfalfa».
Viajando para Petropolis com um velho collega de academia tem esta dorida
expressão:
«A viagem por mar e por terra, eram de sobra para avivar alguma coisa da vida
escolar.
Bastante foi: acabamos lavados da velhice».
Quem traçou o perfil de Ayres parece sentir que já viveu demais, esquecido de que
ha velhices glorificadas e refloridas pelos primores da arte, que é eterna.
O casal Aguiar, almas de eleição profundamente amorosa, enleiadas e fortalecidas
pelo mutuo affecto inquebrantavel, formam o centro da narrativa, téla de magoas fidalgas,
veladas pela educação e pelas exigencias do meio. Um completa o outro, numa
cornmunhão absoluta de sentimentos e de pensamentos. « A alma delle era de pedras soltas
; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que os uniram naquelles dias de crise».
Residem á praia do Flamengo, «ao fundo de um pequeno jardim, casa velha mas
solida».

406
Francos recursos de fortuna lhes amparam o viver; ennoita-lhes, porém, a paz do lar
a dor lancinante de não ter um filho. «Deus lh' os negara para que se amassem melhor entre
si>>, diz um conviva, ao festejar o casal as bodas de prata.
« Ouvindo aquella referencia, os dois fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir e
sornram.>>
Sorriram; não tiveram forças para rir...
Trazendo-lhes o conforto do convívio amigo á desolação daquella pungitiva
amargura. frequenta-os roda escolhida e dilecta.
Fidelia, viuva ha dois annos, heroína de amor, que arrostara as iras paternas para
realizar o anciado enlace ; o desembargador Campos ; o conselheiro Ayres, diplomata
aposentado, que volta de vez, depois de 30 annos de ausencia «á sua terra, ao seu Cattete, á
sua língua» ; Ritta, irmã de A)'Tes, creatura boa e curiosa, que incita os 62 janeiros do
irmão a doce aquecimento junto á mocidade de Fidelia e de quem diz Ayres, depois de lhe
ler, a proposito, o prologo do Fausto. «Ritta não tem cultura, mas tem fmura e naquella
occasião tinha principalmente fome» ; Luiza Guimarães, que tem um filho de nome Tristão
a quem o casal Aguiar distribue a superabundancia dos seus affectos incontentados d.
Cesaria ; [sic] que não acha recreação nas cartas ; confessa (rindo) que é muito melhor
dizer mal da vida alheia e não o faz sem graça» e outras figuras de somenos importancia.
D. Canno Aguiar adora Tristão:
«Quando veio o tempo de baptisar o pequeno, Luiza Guimarães convidou a amiga
para madrinha delle.
Era justamente o que a outra queria ; acceitou com alvoroço, o marido com prazer, e
o baptisado se fez como uma festa da família Aguiar.»
«Nas duas ou tres molestias que o pequeno teve, a affiicção de d. Carmo foi
enorme.»
Tristão aos 13 annos abandona com desamor o padrinho e a madrinha, segue com os
paes para Lisboa, forma-se em medicina e volta ao Brasil alguns annos depois.
O lar dos Agulares entra em festa, como um folha! que o vento agita. Tristão
apaixona-se por Fidelia, que reluta e cede ; o casamento se realisa com inteira
acquiescencia do casal Aguiar, mas pouco depois entra-lhes a morte n' alma : a política
arrasta a Lisboa os recemcasados [sic], que levam comsigo toda a ventura dos doces
velhos, orphãos dos seus carinhos, viuvos dos seus affectos.
O livro fecha com uma pagina deliciosa, ultima que Ayres registra no seu memorial.

407
« Ha seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora á tarde lembrou-me de lá
passar antes de vir para casa. Fui a pé ; achei aberta a porta do jardim, entrei e parei logo.
-Lá estão elles, disse commigo.
Ao ftmdo, á entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um para o
outro.
Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D. Carmo, á
esquerda, tinha os braços cruzados á cinta. Hesitei entre ir adeante ou desandar o caminho ;
continuei parado alguns segundos, até que recuei pé ante pé. Ao transpôr a porta para a rua,
vi-lhes no rosto e na attitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro ; digo o
que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade
de si mesmo. »
Consolava-os a saudade de si mesmo ! Penna que tal escreveu póde quebrar-se, que
já cumpriu o seu officio !
Para maior gloria das letras patrias, porém, praza aos céos que só muito tarde se
immobilize ...
Ora esse pallido resumo que ahi ficou esboçado, si o desenvolvesse em livro penna
medíocre, seria a mais chorosa das estopadas imaginaveis.
O sr. Machado de Assis com isso fez um livro delicioso.
Os perfis são destacados com um vigor que os faz viver vida real, movendo-se nesses
dois annos de existencia annotados pela mão de Ayres.
O barão de Santa-Pia, pae de Fidelia, querendo, ao approximar-se a abolição,
alforriar por despeito os seus escravos, responde ao irmão que o procura disssuadir desse
passo:
« Quero deixar provado que julgo o acto do governo uma expoliação, por intervir no
exercício de um direito que só pertence ao proprietário e do qual uso com perda minha,
porque assim o quero e posso.»
O diplomata aposentado, achando-se em falso, certa vez, com o casal Aguiar por não
saber a causa da alegria que os anima, diz :
«Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já, para os
felicitar, si não era o facto publico?
Chamei o melhor dos meus sorrisos de accordo e complacencia, elle veiu, espraiou-
se, esperei. Velho e velha disseram-me então, etc.»
Voltando de bordo do navio que devia levar para Lisboa Tristão e Fidelia, casados, o
mesmo Ayres escreve :

408
«praia a fóra viemos falando daquella orphandade ás avessas, em que os dois velhos
ficavam e eu accrescentei, lembrando-me do marido defunto :
- Desembargador, si os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que
os mortos... Viva a mocidade ! »
Impeccavel o Memorial de Ayres ? Sim, para o nosso alcance ; talvez não, para
críticos de largo descortino. Os insignificantes senões que notamos parecem menos
descuidos do mestre que propositos de mostrar que escreve sem preoccupações de
perfeição.
Assim á pag. 28 ha este período sem elegancia pela repetição de palavras assonantes
«Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com supprimentos á escassez dos
vencimentos.» Á pag. 39: « quando souberam quem eram etc. »
Á pag. 17, o auctor, descrevendo Fidelia, a viuva que não deixara completamente o
luto e que se absorvia com frequencia deante da campa do consorte, põe-lhe «ás orelhas
dois coraes. »
Tudo isto, porém, é tão insignificante que citai-o foi de certo perder tempo, como o
foi sem duvida traçar esta pallida noticia, que nem siquer terá o meríto de dar ao leitor
desejos de ler o Memorial de Ayres. Já não valem, porém, arrependimentos.
***
Ainda do mesmo autor descansa sobre a nossa mesa A mão e a luva. É uma nova
edição, sob o mesmo titulo, do livro publicado em 1874, que ha muito não existia no
mercado.
O autor <<não lhe alterou nada ; apenas emendou erros typographicos, fez correcções
de orthographia e eliminou cerca de quinze linhas», segundo aftinna na advertencia inicial.
Dispensamo-nos de dizer sobre essa obra ; toda a gente demasiadamente a conhece e
admira com certeza.
Candido 46

46
Pseudônimo de José Verissimo.

409
O Commercio de São Paulo, São Paulo, 9.8.1908.

O meu diario

Corno urna grande arvore fecunda que annualmente abotoa, floresce e carrega de
fructos os seus galhos inexgottaveis, Machado de Assis, todos os annos, regularmente,
infallivelmente, atira á publicidade um novo livro.
Poeta, romancista, «conteur», cornediographo, chronista, folhetinista, critico-
Machado de Assis é, antes de tudo, um pensador, um moralista, cujas obras irnpeccaveis-
irnpeccaveis pelo fmo lavor do estylo sobrio - não têm eguaes ou superiores na literatura
brasileira.
Ernbalde o mal disfarçado despeito de Sylvio Rornéro desferiu sobre elle as settas
envenenadas de uma critica desleal: as idéas extravagantes e ridículas do infatigavel
glorificador de Tobias Barreto, não tiveram a gloria de um [ap-]plauso, um siquer, em todo
este vasto Brasil. Como sementes que o vento arrasta, passaram as palavras do famoso
critico, sem deixar vestígios.
E Machado de Assis, a despeito de todas as investidas sylvioromerianas, continúa a
ser ainda o melhor rnanejador da penna no Brasil. Eu, por mim, não conheço outro que se
llie avantaje.
E é com incornparavel deleite que me atiro á leitura de um novo livro do Mestre,
escripto com esse cuidadoso capricho que elle põe em todas as suas obras.
«Memorial de Aires», o ultimo livro de Machado de Assis, li-o hontem de urna
assentada, com a voracidade de quem toma gulosamente de um copo de agua, cristallina e
fresca, para saciar uma grande sêde.
Neste, como nos outros romances de Machado de Assis, não se vá procurar urna
longa e intrincada historia em que ha explosões incoercíveis de paixões violentas, ou
scenas theatralmente dramaticas. Escripto em fónna de memorias, este livro refere-nos nas
suas trezentas paginas, episodios da vida banal, da vida ordinaria, da vida de todos os dias.

410
E é narrando esses lances vulgares da vida que Machado de Assis, verte para o papel
todo o seu grande e fino «humor>>, todo o seu mordaz scepticismo, que mal encobre a
bondade inalteravel da sua alma.
Mas neste livro de Machado de Assis houve uma coisa que me desagradou : foi a
ortographia. O livro é escripto naquella horrenda cacographia idealisada pelo Medeiros e
_ approvªda pela Academi~. É pena... Enfim. é tão boa esta obra do Mestre immqrtal, como
·-·cllssé Aicmôo Uúarat>ara, que mesnio~ Cletorinaaa· pelas exqthsttlces ortographtcãS eua
47
consegue agradar grandemente!- V.

~7 Valentim Magalhães?

411
O Commercio de São Paulo, São Paulo, 16.8.1908

MACHAOODE~

Capital Federal - agosto, 11

O livro com que Machado de Assis mimoseia agora, o publico, Memorial de Ayres,
t:ilàinda editado pela s:asa Garnier. É o classico oitavo francez. de çapa axp.arella. po$til.
elegante. É uma edição que, a meu ver, possue, pelo menos, um grande merito : não é
pretenciosa.
Dizer de um livro de Machado de Assis é muito difficil, monneme num rapido artigo
de jornal, onde tudo se resume. Mesmo, não seriam algumas notas lançadas á la diable,
que iriam estudar sufficientemente a poderosa personalidade artistica do mestre.
Sim, mestre ! É preciso, de uma vez por todas, - ao menos nesta época em que o
naturalismo ainda predomina na Arte - que se conceda a Machado de Assis o titulo que
reclama o seu extraordinario genio literario. É preciso que se deixem de assacar perfidias
contra um talento tão fonnoso, cujo traço inconfundível, luminoso e profundo, na nossa
literatura scintillará eternamente.
Eu sei que cenos homens de letras - alguns dos quaes, precoces talentos da geração
que surge - costumam negar o valor de Machado, ou, pelo menos apontar-lhe graves
defeitos. O veneno de uma critica desleal fonnulada por Sylvio Roméro contra o autor do
Braz Cubas, parece ter despertado essa gente que por ahi anda a dizer mal do grande
escriptor e da sua obra.
Não ha, porem, mais clamorosa injustiça.
Não resta duvida que um despeito atroz, urna parcialidade lamentavel, levou Sylvio
Roméro, a defender tão perigosas idéias, - ponanto, é impossível que um espírito superior,
como é o do critico brasileiro, possa negar o merito do escriptor que se vê hoje
universalmente acclamado como um dos maiores do mundo.
Affonso Celso, ha pouco, criticando o ultimo livro de versos de Alberto de Oliveira,
escreveu que o poeta era actualmente «um dos primeiros do mundo». De Machado de

412
Assis, sem rebuços e sem medo de errar, poder-se-ia escrever: «No romance é um dos
maiores do Universo».
Machado de Assis é uma dessas entidades que honram, ennobrecem e dão nome á
patria a que pertencem.
A sua arte, de tão perfei~ toma-se immorredoura, e o seu nome magnificamente,
numa aureola radiante de luz, formada pelo Genio, atravessa continentes, mares, e vae
brilhar em terras extranhas com todo o prestigio de sua immensa grandeza.

*
* *
Em que consistem afi.nal os apregoados meritos de Machado de Assis?
O mestre, no Brasil, comprehendeu, como ninguem, o grande papel da literatura
moderna. A sua superior visão esthetica, rasgou-lhe horisontes esplendidos num céo
embaçado para muitos : e, possuidor de uma fma intuição artística, apoiou quasi toda a sua
immensa obra na realidade absoluta da Vida, livrando-se de fOfos enchimentos romanticos,
despindo-se dessa phantasia intoleravel que enche ordinariamente os livros dos eunucos.
Na complexidades mysteriosa da alma humana, jamais no Brasil, como um escalpello, uma
outra penna marcou mais vasta, mais subtil, mais penetrante analyse.
Os seus magistraes estudos do Quincas Borba, do Braz Cubas, do D. Casmurro
ficarão, indeleveis e soberbos, vivendo na imaginação de todos que os leram como typos
profundamente humanos e por isso mesmo profundamente bellos, eternamente perfeitos.
Já não se fala aqui da originalidade do seu estylo, da correcção de sua linguagem, da
<ar~sa extrema dos seus peqodos, cipzelados com tanto carinho e com tanto amor. É uma
qualidade do escriptor que, felizmente, ninguem se lembrou ainda de negar e a qual, só por
si- mesmo que lhe faltassem outros predicados - bastaria para assegurar-lhe a gloria.
É nos livros de Machado de Assis que se encontra, em toda a sua extraordinaria
bellesa, a nossa língua, tão sonora, tão malleavel, tão energica, livre dos estrepes
implicantes dos neologismos que tanto a adulteram, tirando-lhe a sua tão encantadora
puresa. E toda a obra do mestre é escripta nessa linguagem suave e sã, delicada e ironica,
de que sómente elle tem o segredo. Assim, os seus livros são um vasto repositorio classico
da língua, onde os estudiosos encontrarão um terreno fecundo para meditações.
Depois que se livrou de certas influencias romanticas que o acompanharam nos
primeiros passos literarios, - Machado de Assis produziu uma obra extensa e homogenea.
Não se póde destacar um livro e dizer :« Este é o melhon>. Não. Tudo quanto escreveu é
egualmente bom. E si não se póde destacar um livro, nem tão pouco se me afigura

413
justificavel destacarem-se períodos como fez um critico, ha dias, num dos diarios desta
capital. Emile Zola escreveu uma vez :
<<.T'apaniens â un groupe de critiques qui acceptent un écrivain tout entier, sans
chercher à trier les mots dans son oeuvre. Un écrivain est un tempérament particulier, qui a
ses façons d'étre, et dont ou ne saurait modifier le moindre élément sans détruire aussitôt
tout l'ensemble».
*
* *
Machado de Assis é, pois, o príncipe incontestavel da nossa literatura.
As considerações que a sua obra suggerem são muitas e não podem ser ligeiramente
esplanadas. Ficarão para mais grata occasião.
Para terminar, digo que o seu ultimo livro, Memorial de Ayres, deve ser lido por
todos aquelles que neste paiz amam as letras patrias.
BAPTISTA JUNIOR.

414
Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 6.9.1908, p. 1.

MEMORIAL DE AYRES

Temos conhecimento da seguinte carta que o Sr. Dr. Salvador de Mendonça dirigio
ao Sr. Dr. Machado de Assis:
" Meu querido Machado de Assis - Contaram-me de uma velha da minha boa terra
itaborahyense que, eximia na feitura de rendas e bordados, ao entrar na dezena que o teu
Ayres só designou com o primeiro algarismo, - dezena em que nós ambos. tu e eu, não só
entramos, mas de que tratamos de sahir airosamente, com mais ou menos versos de
Shelley, - e ao reconhecer que já lhe iam faltando os olhos, resolveu deixar de si melhor
cópia em alguma obra de primor que désse aos vindouros testemunho de seu merito.
Escolheu o linho mais alvo e poz-se a desfiai-o e a torcei-o no fio mais delicado que
jamais torceu roca humana. Era tão fmo que melhor o via o tacto que o sentia a vista.
Afinal, cheia delle uma boceta de sandalo, preparou a velha a almofada, pondo-lhe téla
nova e depois de pregar-lhe o debuxo, encerrou-se, e de sua presença na casa só se sabia
pelo cantar dos bilros que, sob seus dedos, soltavam suspiros e gemidos como se alguem os
estivera obrigando algum esforço sobrenatural.
O tempo que a velha gastou nessa obra, horas, mezes ou annos, ninguem o soube ;
nem sequer foi desde logo conhecido o porque se encerrara. Só alguns annos depois, no
enxoval de uma netinha, que se casara aos quinze annos, já phtisica, appareceu a
maravilha. Era wn lencinho de linho de fórma redonda, no qual se combinavam a mais fina
renda de almofada e o mais excellente lavor de agulha. O lencinho tinha um palmo de
diametro, mas era tão fino, tão fino que a dona o fechava todo na palminha da mão e não
lhe excedia dos dedos um só fio. A tradição diz que cabia dentro de um dedal.
48
A composição tinha originalidade, posto não encerrasse co usa alguma que fosse
nova. O fundo ou textura do lenço compunha-se de uma espiral fonnada de arabescos
delicados, que apareciam e se desenvolviam do centro para as bordas.
Sobre este fundo estavam lavradas á agulha figuras belíssimas e de rara perfeição
artística. Bem no centro da espiral uma lebre mettia-se pela terra a dentro. Após ella,

43
No texto do jornal, a partir dessa linha até o final , o entrelinhamento é menor, provavelmente para efeito de
economia de espaço.

4 15
seguia-se wna longa matilha de lebreus e atrás da matilha, uma longa fila de caçadores,
donas e cavalheiros montados em ginetes com cabeças e pescoços tão distendidos que dir-
5e-hia voarem para a frente, emquanto as plumas dos chapéus voavam para trás. Nos
quatro quadrantes do circulo em que a aspirai se alargava havia outras figuras e maiores ;
no prlmeiro·quadrante um casal de cavaUeiros, jovens, seguia em fogosos ginetes, eUe com
uma bêsta ao hombro, ella com um açor no punho, e ambos a olharem para cima, como
quem andava á caça de aves do céo. No segundo quadrante o mesmo casal, em ginetes
ricamente ajaezados, elle com longa barba e sceptro e ella com uma corôa de rainha, iam
seu caminho com os olhos para frente. No terceiro quadrante, o cavalleiro era um só, e o
mesmo das barbas grandes, já sem o sceptro, vestido de burel e olhando ambos, elle e o
ginete, para o chão. No ultimo quadrante, a figura da Morte, mettida no burel do cavalleiro,
empunhava uma trompa de caça, cuja volta era formada pelo arabesco que servia de borda
ao lenço todo, como se chamara, por lhe pertencerem todos, a caça e os caçadores. O
debuxo do lenço fõra evidentemente copiado de alguma velha gravura Rhenana composta
por algum discípulo de Durer a que os dedos inspirados da velha haviam resuscitado numa
obra prima de arte.
A admiração foi tamanha como foi a inveja. O lenço andou de mão em mão. Foi
parar á côrte do Rei velho e attribue a tradição, com igual numero de vozes, dous destinos
diversos ao lencinho da velha artista : dizem uns que o trabalho primoroso foi posto sobre
o rosto de uma princeza que foi sepultada no Brasil ; dizem outros que foi simplesmente
levado para uma côrte européa. Não será cousa extranha que ainda swja entre as riquezas
desse genero que possue o South Kensington, idas de Portugal, ou em alguma collecç-ão de
arte de Vienna da Áustria. Obras dessas não morrem.
Ao ouvir a leitura do seu formoso Memorial de Ayres, que me trouxe por cima do
titulo as suas expressões de boa e velha amizade, o que ao meio do livro e depois de
concJuida a leitura começou a desenhar-se-me na memoria foi o lencinho de renda da velha
Itaborahyense. Sim, fizeste tambem a sua obra prima. Sobre a textura fina do Memorial
desenhaste figuras do mais puro lavor.
A obra, porém, é tão simples, tão fácil, tão natural, que haverá por ahi muita gente
que a julgue obra ao alcance de qualquer penna. Esta facillidade apparente de feitura é
realmente o sello da verdadeira obra de arte.
A velhice desdenhosa, a inexperiencia presumida, algum critico madraço ou
escrevinhador furabolos são bem capazes de suppôr que o seu tentamen pôde ser repetido
ao bel prazer de qualquer delles. Pois experimentem e hão de v er como "simplesmente
simples" toma-se simplesmente impossível para quem em língua portuguesa quizer hoje
fazer obra respondente á tua.
Duas grandes difficuldades venceste, como quem se apraz em suscitai-as para, ao
combatel-as em caminho, dar prova de extrema destreza, certo sempre da victoria. A fórma
do teu estylo, teus períodos curtos tiveram de se encurtar ainda mais pelas exigencias de
quem escrevia um memorial ou diario, e dahi succedeu que algumas paginas sahiram
verdadeiras miniaturas. Outras são aquarellas pintadas todas de um jacto de expressões
felizes. A segunda difficuldade vencida consiste em que, tendo de coar todas as suas
personagens através da meia ironia e meia descrença de Ayres, nenhuma dellas se resente
dessas qualidades ou defeitos. Sahira.m todas humanas, como a gente as encontra no
Flamengo ou na barca de Petropolis, ou as acotovella na Avenida.
Da Praia da Saudade a Retiro Saudoso, da Gavea á Tijuca, ha muitos casaes Aguiar,
muita Fidelia e muito Tristão e mais de um diplomata encostado, mas quem os ponha por
obra, e obra immorredoura, digo-te que até agora só conheço certo morador do Cosme
Velho. D. CaSmurro ha de ser sempre a sua obra melhor, a mais forte; mas a sua obra mais
acabada, a que em mais alto gráo ha de revelar os tons delicados de sua penna ha de ser

416
este Memorial de Ayres. Alguem já me disse que o livro não tinha enredo, e eu lhe
respondi que o mister dos velhos não é fazer enredos, mas desenredal-os. É essa maneira
_ Jluente..C{UU aue .corr.e..a .histori[LO aue.J1lais.nella.rye.aew:Ia .nounelhor.me. r.e.velar...a mão
~st.w...oue ~a.ffeic.n.O~\- .......... ~.
Á beira da estrada uma teia de aranha recamada de perolas de orvalho, irizadas com a
luz da manhã, é por certo uma cousa bella, mas quasi vulgar para olhos que não a sabem
ver. Quem, porém, se imaginará capaz de duplicar tal be1leza? Para isso quer-se primeiro a
aranha que possue o monopolio da materia prima, privilegio de familia com que a natureza
a dotou, sem exigir que archivasse a formula da composição e a dosagem dos ingredientes.
Depois requer-se o orvalho, lagrimas que a noite recolhe de todos os soffrimentos
ignorados.
Afinal é ainda indispensavel a collaboração do sol, esse grande centro da vida, que a
cada palpitação expede onda de luz e de calor que são a alma das cousas creadas.
Quem procurar na sua obra os sulcos fundos de aguaforte de Rembrandt com os seus
prodígios de claro-escuro, terá errado o caminho. Saia da floresta umbrosa para a floresta
amena e ahi, á luz branda e diffusa de uma belta tarde de Outomno, leia em repouso o
Memorial de Ayres como quem contempla uma das gravuras, firme, nitida, mas leve com
que Boticelli illurninou a primeira edição da Divina Comedia.
Isto verá quem tiver olhos para vêr e para admirar. Para aquelles, porém, que por
meio seculo e mais um anno tem acompanhado de peno a sua obra litteraria e, por que não
dizel-o?- os teus estados de alma, desde a noite da vigília das armas, na vespera de seres
armado cavalleiro, até a noite da vigília do coração quando sentiste que t'o arrancavam do
peito para esse o Memorial de Ayres encerra ainda mais. Desde o começo sente-lhe o
perfume da tristeza. Folheando-o mais adiante vê desprenderem-se de suas paginas as
·borboletas azues da saudade. No fmal, sob o adejar de grandes azas brancas, ouve um
chamado vindo de muito longe, a que responde do fundo da cantiga do rei trovador, e,
discreto como Ayres, para não perturbar o mudo colloqnio de dous corações amantíssimos,
retira-se sem rumor de passos, porque quem te chama é a tua Musa companheira, a mais
consoladora, a Esperança. Sempre teu do coração, Sâlvador de Mendonça.
Gavea, 1 de Setembro de 1908

417
A Noticia, Rio de Janeiro, 16.9.1908, p. 1.

Cronica litararia
MACHADO DE ASSIS- A mão e a luva -Memorial de Ayres

Machado de Assis acaba de publicar um novo volume- Memorial de Ayres, e de


reeditar um antigo - A mão e a Luva. Num prefacio, a este ultimo, elle chama a atenção
. _para a data.em Qu~ foi primitivam~nte publicado. É uma cautela desneces_s~a,- porque do
propno ehtrécno·na algunia cou:a ·qué mcllca bem claramente a epoca em quê os tatos se
passam - ·e essa epoca nos aparece nos tempos do Telegrafo e do Telefone sem fios - como
prehistorica: o herói do livro é um deputado, que só por carta vem a saber da sua eleição.
Não havia nessa época o Telegrafo. Era, portanto, um período muito proximo da idade da
pedra ...
Lendo, porém, a seguir os dois volumes se vê bem a unidade de concepção dos
trabalhos de Machado de Assis. E alguma coiza mais : a pureza, a frescura, a candura de
sua inspiração.
Quando se insiste em gabar muito a candura de alguem, não se está lonje de chamai-o
tolo. Não é, porém. disso que se trata, falando do autor de duas ou tres obras primas de nossa
literatura. O que ha nelle de curioso é a mistura do ironista sagaz e penetrante e do romantico
incuravel, para quem o amor é o sentimento essencial da vida -tão essencia~ que não é precizo
condimentai-o com perversões e imoralidades para tornai-o digno de interesse.
O analista se compraz em desmontar peças de almas como um relojoeiro desmontaria
as de um relojio cheio de mecanismos complicados. O romantico nos dá a simples
conquista de uma noiva por meios puros e honestos, como assunto que lhe parece
infinitamente digno de apreço.
Os dois livros estão neste cazo.
No mais velho - A Mão e a Luva - trata-se de tnn embaixador que trái o seu
mandato. Trái involuntariamente - ou melhor: irrezistivelmente. Incumbido de ir sondar
para outrem o coração de uma moça muito requestada, elle transforma essa missão em
conquista para si mesmo.
Que o cazo nada tem de inverossímil bastaria para prova-lo aqui na França, de onde
são escritas estas linhas, a aventura recente e espalhafatoza do Príncipe de Sagan. Tambem
o primo delle, o conde de Boni de Castellane, o tinha incumbido de reconcilia-lo com a

418
espoza divorciada. Mas o Principe de Sagan preferiu, em vez de reconcilia-la com o antigo
marido, concilia-la com o titulo de Princeza... E foi assim que o cazo acabou, ha algumas
semanas, em uma igreja de Londres.
~- possi~el que es!e epizodio não tenha nada com o an;tor _; o prjncipe ~omprou o uso
e gozo" éle uma tortt.fua tôfimcilivel! e a ex-éonctessa comprou uin tltu{o ãmcta ·mais etêvacto
que o por ella uzado até então.
Mas emfun, seja qual fôr a razão, o que Machado de Assis nos conta na Mão e a
Luva e o que os jornais de aqui contaram ha pouco, são dois fatos que provam que para
certas negociações não é bom empregar intermedarios ...
O Memorial de Ayres é tambem a conquista de uma noiva. Aqui a noiva era viuva.
Naturalmente, como todas as viuvas que se prezam, ella se tinha declarado inconsolavel -
apezar da sua mocidade, da sua beleza e da sua fortuna. Mas tambem - souvent femme
varie!- como todas as viuvas nesses cazos, acabou por se deixar consolar.
Consolar honestamente, honradissi.mamente, fazendo um segundo cazamento...
A única nota triste no livro é que esse cazamento é feito entre duas pessoas que um
velho cazal amava extraordinariamente e com cuja companhia para a velhice tinha acabado
por contar. E, de repente, os dois velhos que tinham aproximado os noivos se vêem sós no
mundo, sem as unicas-afeições com que esperavam.
O entrecho de Memorial de Ayres dezenrola-se, por assim dizer, linearmente, em
linha reta. Vai de principio a fim sem epizodios que lhe perturbem a marcha. É claro,
simples, meigo e bom.
Ha na compozição da obra uma inverosi.milhança fundamental. Ella é dada como o
diario de um velho diplomata apozentado , que se diverte a escrever as suas memorias. É
uma forma de que o autor de Braz CubaS gosta e que, de fato, lhe convém muito, porque
permite as pequenas observações minuciozas e fmas. Cada um diz a si mesmo coizas que
não diria a outrem em cazo nenhum. Assim, um diario intimo, pode conter observações
muito mais penetrantes do que seria verosimel encontrar em uma conversa.
Mas o Memorial de Ayres tem a singularidade de tratar quazi excluzivamente do que
se passa com uma família amiga. Fala pouco de si mesmo, pouquíssimo de outros
epizodios que, por força, se deviam suceder freqüentemente, todos os dias, na sua vida.
Não é natural!.
Sem duvida, os que gostam de escrever as proprias memorias escrevem, sobretudo,
as dos outros ... Mas escrevem, sempre constituindo-se o centro do mundo, o ponto de vista
do qual tudo é analizado. Não se compreende quazi que um escritor de memorias se

419
dedique a esse trabalho, si elle não julga que a sua vida tem uma certa curiozidade, um
certo valor.
Avres escrevia o seu memorjal para contar. o que com elle ocorria.. É pelo menos o
que expressamente nós êteclarã. No emtanto, durante"todo o· volume só se occupa a nos
narrar o que se passa em casa de dois amigos, que elle vizita com frequencia, mas com os
quais não estã constantemente.
Para que o caso se tomasse natural seria bastante que entre cada um dos capítulos e o
seguinte do Memorial, o autor tivesse metido diversos hors d'oeuvre: fatos, descripções,
observações, que Ayres tivesse visto ou feito. Quanto mais perspicacia e finura, Machado
pôs no seu personajem, mais toma absurdo que elle só as empregue e.m examinar o que
ocorre em um pequeno ponto, onde afinal de contas o que se dá não é nada de excepcional.
Mas a maioria dos leitores não será sensível a este reparo - mesmo que, por acazo,
elle tenha cabimento. O essencial para elles será o ver dezenrolar-se esse idilio sereno e
honesto : e ficarão talvez a discutir si os dois recem-cazados foram ou não um pouco
ingratos, abandonando a velha amiga dedicada, que a ambos tinha servido de mãi. Não é,
porém, isso o que estã previsto, desde o segundo capitulo do Genezis ? Pois, si pelo amor
se abandonam pais e mãis verdadeiros, quanto mais os que são apenas « postiços » !...
J. dos Santos49

49
Pseudõnimo de Medeiros de Albuquerque.

420
Diário Popular, São Paulo, 29.9.1908, p. 1.

Memorial de Ayres

O festejado romancista brazileiro sr. Machado de Assis deu o nome de Memorial de


Ayres ao seu novo livro de literatura, publicado em edição da casa H. Garnier.
Na sua expressão rigorosa não se trata de um romance nem de uma novella em que
se descrevam lances dramáticos e sentimentaes ; porém, o autor de Helena deu-nos, em
paginas delicadas e subtis, uns interessantes episodios, observados com a costumada
nitidez do seu espírito.
Machado de Assis, em advertencia, explica aos leitores a razão de ser deste
Memorial, pertencendo ao conselheiro Ayres, que apparece no bello romance da vida de
dois gemeos e que é uma outra história dos bíblicos Esaú e Jacob. Estes episodios não são
mais do que as mpressões [sic] quotidianas da existencia tranquilla e singela que um velho
diplomata aposentado passava no Rio de Janeiro, na convivencia de uma irmane de uma
familia de sua amizade.
O conselheiro Ayres começou o seu diario em Janeiro de 1888, quando voltou
definitivamente da Europa, depois de trinta e tantos annos de actividade na diplomacia.
Pensava que lhe fosse custoso acostumar-se novamente á vida de cá ; entretanto,
conseguiu adaptar-se e dizer com segurança:" aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei".
Um dia, elle foi ao cemiterio de São João Baptista, com a sua irman d. Rita, em
visita ao jazigo da família e lá, ao pé de outra sepultura, viu uma senhora de bello e
distincto porte ; moça, vestida de preto, com as mãos pendentes em attitude de oração.
Esta senhora era a viuva Noronha e que devia preoccupar muito o correcto
conselheiro Ayres, pois esteve ao ponto de influir para que mudasse o seu estado de
solteiro.
D. Fidelia Noronha era filha do barão de Santa Pia, abastado fazendeiro na
Parahyba do Sul ; ficou vi uva em plena juventude e tivera grande felicidade conjugal.
Por uma inspiração de momento, o conselheiro disse a d. Rita: "Não quer dizer
que não venha a casar outra vez."
Aquella não casa... Quem lhe diz que não ?

421
- Não casa. Basta saber as circumstancias do casamento, a vida que tiveram e a
dôr que ella sentia quando enviuvou.
- Não quer dizer nada, póde casar; para casar basta estar viuva."
O conselheiro Ayres acertava com as suas reflexões. A viuva d. Fidelia Noronha
não casou com elle, velho sagaz que sabia comedir-se; não casou com o advogado dr.
Osorio, mas aceitou um noivo recem vindo de Portugal, o dr. Tristão, aftlhado e hospede
da família Aguiar.
E' no lar desta boa gente Aguiar que se desenvolve a affeição e a intimidade das
personagens de que trata o Memorial.
O sr. Aguiar, gerente do Banco do Sul, sua esposa d. Carmo, dotada de extrema
bondade, crearam o menino Tristão até a edade em que seu pae o levou á Europa, e lá
proseguiu os seus estudos de medicina.
O conselheiro Ayres, convidado para o jantar das bodas de prata, fallava deste
modo á sua irman:
" -Haverá muita gente ao jantar ?
- Não, creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Elles são
modestos, o jantar é só dos mais íntimos, e por isso o convite que fizeram a você mostra
grande sympathia pessoal.
- Já senti isso quando me apresentaram a elles, há sete annos, mas então suppuz
que era mais por causa do ministro que do homem.
Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou
não haja Fidelia. "
Foi, e resumiu as impressões da noite comes a [sic] naturalidade :
" Não podiam ser melhores. A primeira dellas foi a união do casal. Sei que não é
seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas pessoas.
Naturalmente, a occasião aviva a memoria dos tempos passados, e a affeição dos
outros como que ajuda a duplicar a propria. Mas, não é isso. Há nelles alguma causa
superior á opportunidade e diversa da alegria alheia.
Senti que os annos tinham alli reforçado e apurado a natureza, e que as duas
pessoas eram ao cabo uma só e única.
Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite."

422
A viuva frequentava assiduamente a familia Aguiar e d. Carmo estimava-a como
filha, por isto a alegria do casal foi immensa quando a inclinação affectiva do afilhado se
manifestou pela formosa Fidelia.
Tristão estava a voltar a Lisboa, onde ia pleitear as eleições para deputado ás
Cortes, mas ficou, ate casar, no Rio de Janeiro.
Nmn almoço na residencia do conselheiro, o dr. Tristão -entendeu-se bastante sobre a
marcha das causas publicas, confiou-llie as suas idéas e ambições de homem de Estado.-A
política parece ser grande necessidade para este moç~njecturou o arguto ancião.
Tratando da belleza e da amenidade do Rio de Janeiro, o moço político declarou :
A gente não esquece nunca a terra em que nasceu...
Mas o conselheiro achava natural e facil que Tristão trocasse uma terra por outra :
" Eu fui ao diante delle, affinnando que a adopção de uma nacionalidade é acto
político e muita vez póde ser dever humano que não faz perder o sentimento de origem
nem a mernoria do berço. Usei taes palavras que o encantaram."
Neste estylo conciso e cuja pureza tem o brilho attico, o romancista Machado de
Assis conta suavemente os episodios da existencia de cada uma das pessoas que se
movimentam na scena das impressões quotidianas do conselheiro Ayres, observando
mesmo, com meticulosidade, os seus temperamentos.
A linguagem castiça, a forma singela, a clareza das idéas, dão ás paginas deste livro
um encanto suggestivo, uma verdadeira seducção esthetica.
E' realmente digna de nota aquella confissão do velho Ayres, que fõra sempre
inclinado á Musica ; entretant(}- ''Não me quiz dar a ella, por causa do oficio diplomatico,
e foi um erro.
A diplomacia que exerci em minha vida era antes uma funcção decorativa que outra
causa ; não fiz tratados de commercio nem de limites, não celebrei alianças de guerra ;
podia acomodar-me ás melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos
outros.''
Isto lhe accudia á mente porque talvez a essa hora Fidelia estivesse em
casa-deante do piano aberto, a começar alguma causa que não toca há muito .
Machado de Assis adaptou no Memorial de Ayres a orthographia da Academia
Brazileira, associação intellectual de que é digno presidente.
L. F.so

~ Iniciais de Leopoldo de Freitas.

423
SOBRE OS CRÍTICOS

As breves biografias dos autores das resenhas que constam deste anexo destacam a relação com a
Academia Brasileira de Letras, fundada e presidida por Machado de Assis, assim como a atuação dos
resenhistas na imprensa. Os seguintes nomes e/ou pseudônimos não foram identificados: G. Planche,
Araucarius, José Anastácio, Rigoleto e Walfrido Ribeiro.

Alcides Castilho Maya (São Gabriel, RS, 1878; Rio de Janeiro, RJ, 1944), jornalista, político, contista,
romancista e ensaísta. Eleito para a Cadeira número 4, na sucessão de Aluísio Azevedo, em 6 de setembro
de 1913. Iniciou carreira em A Reforma; a partir de 1897, passou a integrar a redação de A República,
órgão da dissidência republicana, e chegou a ocupar a direção do jornal. A partir de 1905, passou a militar
na imprensa carioca, colaborando em O País, O Imparcial, Correio da Manhã e Jornal do Commercio.
Assinava artigos também com o pseudônimo Guys.

Alcindo Guanabara, (Majé, RJ. 1865: Rio de Janeiro, RJ, 1918), jornalista e político. Fundou a Cadeira
número 19, que tem como patrono Joaquim Caetano. Colaborou em O Dia, onde publicou com o
pseudônimo Pangloss. Foi nomeado redator-chefe de O Paiz, e ali ficou até 1905. Obras: Amor, romance
(1886); História da revolta de 6 de setembro de 1893 (1894); A presidéncia Campos Sales 1898-1902
(1 902); A dor, conferência ( 1905); Jornal de Commercio A tradição, discurso (1908); Discursos fora da
Câmara (19 11); Pela infância abandonada e delinquente no Distrito Federal (1917).

Tristão de Alencar Araripe Júnior (Fortaleza, CE. 1848; Rio de Janeiro, RJ, 1911), jornalista, advogado,
critico literário, político, magistrado, contista e romancista. Fundou a Cadeira número 16 da ABL, que tem
como patrono Gregório de Matos. Formou com Sílvio Romero e José Verissimo a trindade critica da época
positivista e naturalista. Deixou numerosos artigos e ensaios em jornais e revistas, entre os quais A Gazeta
da Tarde, a Gazeta de Noticias e A semana. Obras: Contos brasileiros, contos (1868); Cartas sobre a
. llterarura brasileira, ensaio (1869); José de Alencar. ensaio (1882); Gregório de Matos, ensaio ( 1893);
Movimento literário de 1893, ensaio (1896).

Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (São Luís, MA. 1855; Rio de Janeiro, RJ, 1908), jornalista,
poeta, contista e teatrólogo. Figurou, ao lado do irmão Aluisio, no grupo fundador da ABL, onde criou a
cadeira número 29, que tem como patrono Martins Pena. Fundou publicações literárias, como A G~etinha,
Vida Moderna e O Album. Colaborou em A Estação, ao lado de Machado de Assis, e no jornal Novidades,
onde seus companheiros eram Alcindo Guanabara, Moreira Sampaio, Olavo Bilac e Coelho Neto.
Escreveu principalmente sobre teatro em O País, no Diário de Notícias, em A Notícia. Multiplicava-se em
pseudônimos: Elói o herói, Gavroche, Petrônio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e
outros.

Baptista Junior colaborou no Jornal do Brasil juntamente com Afonso Celso, Carlos de Laet e Severino
Rezende.

João Capistrano de Abreu (Maranguape, CE, 1853; Rio de Janeiro, RJ, 1927), historiador, professor,
critico literário. Obras: A Língua dos Caxinauás ( 1914), Capítulos de história colonial (1928), O
descobrimento do Brasil ( 1929), Caminhos Antigos e povoamento do Brasil (1930).

José Ribeiro Dantas Júnior, jornalista, redator da Revista lllustrada e colaborador em A Estação.

Carlos Augusto Ferreira (Pono Alegre, RS, 1844; Rio de Janeiro, RJ, 1913), poeta, romancista, contista,
teatrólogo, jornalista, tabelião. membro da Sociedade Partenon Literário. Trabalhou nas redações do
Correio Paulistano. em São Paulo. e na Gazeta de Campinas. entre outras. Obras: Cânticos Juvenis, poesia
(1 867); Rosas Loucas. poesia ( 1868); A/cíones, poesia ( 1872); Calúnia, drama (1873), Histórias
cambiantes, contos (1874); O marido da doida, drama (1874); A esposa, drama (1881); Redivivas, poesia
(1881 ); A Primeira Culpa, romance (1889); Feituras e feições, ensaio (1905); Plumas ao vento, poesia
(1908).

425
Augusto Fausto de Sousa (Rio de Janeiro, RJ, 1835; Rio de Janeiro, RJ, 1890), contista, biógrafo, militar,
professor, membro de Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cavaleiro da ordem de São Bento de Aviz
e da de Cristo. Colaborou na Revista Popular e no Jornal das Famílias, onde Machado também trabalhou.
Obras: Um casamento de tirar o chapéu, contos (1873), A Caça de um Baronato e Cenas da Vida
Republicana, publicados pela Gamier.

Félix Ferreira (Rio de Janeiro, RJ, 1848; Rio de Janeiro, RJ, 1898), romancista, teatrólogo, jornalista,
funcionário da Biblioteca Nacional, teve livraria na Rua S. José, no Rio de Janeiro. Escreveu para Cruzeiro
do Brasil, Arquivo Literário, O Contemporâneo, O Guarani. Obras: As deusas de balão, comédia (1867);
Rimas inocentes de dois poetas ingênuos, poesia ( 1869); A má estrela, romance, ( 1879) ..

José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (Recife, PE, 1867; Rio de Janeiro, RJ,
1934), funcionário público, poeta e jornalista.. É o fundador da Cadeira número 22 da ABL, que tem como
patrono José Bonifácio, o Moço. Durante o período florianista, dirigiu O Figaro. Na imprensa, escreveu
também sob os pseudônimos Armando Quevedo, Atásius Noll, J. dos Santos, Max. Rifiúfio Singapwa

Joaquim Maria Serra Sobrinho (São Luis, MA, 1838; Rio de Janeiro, RJ. 1888), poeta, jornalista,
teatrólogo. Patrono da cadeira número 21 da ABL. Foi apresentado literariamente à Corte por Machado de
Assis numa crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro em 24.10.1864.

José Carlos Rodrigues (Cantagalo. RJ, 1844; Paris, França. 1923), jornalista, diplomado em Direito. Foi
redator e diretor de O Novo Mundo, Nova York. 1870-1879, da Revista Industrial Ilustrada, Nova York,
1877-1879, e do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, cuja propriedade adquiriu em 1890.

José Veríssimo Dias de Matos (Óbidos, PA. 1857; Rio de Janeiro, RJ, 1916), jornalista, professor,
educador, critico e historiador literário. Escolheu por patrono João Francisco Lisboa. e é o fundador da
Cadeira número 18 da Academia Brasileira de Letras. José Verissimo dirigiu a terceira fase da Revista
Brasileira, que começou em 1895 e foi até 1889, completando vinte volumes em cinco anos. Veríssimo
teve o dom de agremiar toda a literatura nacional na Revista, que congregou os grandes valores brasileiros
da época. Na redação da revista nasceu a Academia Brasileira, prestigiada pelos mais eminentes amigos de
José Verissimo: Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Lúcio de Mendonça, entre
outros.

Leopoldo de Freitas Cruz (Porto Alegre, RS. 1865; São Paulo, SP, 1940), ensaísta, jornalista, diplomado
em Direito, jurista, diplomata, professor, biógrafo, autor didático, historiador. conferencista. Obras:
Literatura Nacional, ensaio (1919); Romantismo brasileiro, conferência, 1904; O embaixador Joaquim
Nabuco, conferência ( 1912); O escritor Afonso Arinos, biografia. 1918.

Luís Caetano Guimarães Júnior (Rio de Janeiro, RJ. 1845: Lisboa, Portugal, I 898). diplomata. poeta.
romancista e teatrólogo. Foi um dos dez membros eleitos para se completar o quadro de fundadores da
Academia Brasileira de Letras. onde criou a Cadeira número 31 , que tem como patrono o poeta Pedro Luis.
Obras: Lirio branco. romance (1862); Uma cena contemporânea, teatrO ( 1862); Carimbos, poesia ( 1866); A
f amilia agulha, romance (I 870); Noturnos, poesia (1872); Filigranas, ficção (1872); Sonetos e rimas,
poesia (1880); Contos sem pretensão (1872); e várias peças de teatro.

Carlos Magalhães de Auredo (Rio de Janeiro, RJ. 1872; Roma, Itália, 1963), diplomado em Direito,
diplomata. poeta, critico, fundador da Academia Brasileira de Letras. Obra: José de Alencar, çritica (1895);
Procelárias, poesia (1898); Homens e livros, critica ( 1902); Horas sagradas, poesia (1903). Alvaro, poesia
(1903); Odes e elegias, poesia (1904); O hino de púrpura, poesia (1906); Vida e sonho. poesia (1914);
Sinfonia evangélica, poesia (1925); Verão e outono, poesia (1950).

Mário Cochrane de Alencar (Rio de Janeiro, RJ. 1872; Rio de Janeiro, RJ. 1925), poeta, jornalista,
contista e romancista. Foi eleito para a Cadeira número 21 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão
de José do Patrocinio. Era filho de José de Alencar. Manteve colaborações nos seguintes órgãos da
imprensa: Almanaque Brasileiro Garnier, Brasilea (1917), Correio do Povo ( 1890); Gazeta de Noticias
( 1894); O Imparcial e A Imprensa ( 1900), Jornal do Commercio. O Mundo Literário. Renascença, Revista

426
Brasileira (1895-1899), Revista da ABL e Revista da Língua Portuguesa, todos do Rio de Janeiro, e
também em alguns periódicos paulistas. Pseudônimos: Deina e John Alone.

Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac (Rio de Janeiro, RJ, 1865; Rio de Janeiro, RJ 1918), jornalista.
poeta. inspetor de ensino. Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, criou a Cadeira número
15, que tem como patrono Gonçalves Dias. Dedicou-se desde cedo ao jornalismo e à literatura. Fundou
vários jornais, de vida mais ou menos efêmera, como A Cigarra, O Meio, A Rua. Na seção "Semana" da
Gazeta de Notícias, substituiu Machado de Assis, traballiando ali durante anos.

Manuel de Oliveira Lima (Boa-Vista. PE, 1867; Washington, EUA, 1928), diplomata, lústoriador,
bibliófilo, foi um dos mais notáveis lústoriadores brasileiros. Membro fundador da Academia Brasileira de
Letras, foi educado em Lisboa desde a mocidade. A atividade literária de Oliveira Lima se estendia à
colaboração em jornais de Pernambuco e de São Paulo, dando margem à publicação de "Pan-
Americanismo" e "Coisas Diplomáticas".

Raul d'Ávila Pompéia, (Jacuecanga, RJ, 1863; Rio de Janeiro, RJ, 1895), jornalista, contista, cronista,
novelista e romancista. É o patrono da Cadeira número 33, por escolha do fundador Domício da Gama.
Escreveu em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, freqüentemente sob o pseudônimo "Rapp", um
dentre os muitos que depois adotaria: Pompeu Stell, Um moço do povo, Y, Niomey e Hygdard, R, ?,
Lauro, Fabricius, Raul D., Raulino Palma. Ainda em São Paulo publicou, no Jornal do Commercio, as
"Canções sem metro", poemas em prosa, parte das quais foi reunida em volume, de edição póstuma.
Também, em folhetins da Gazeta de Noticias, publicou a novela As jóias da Coroa. Dedicou-se ao
jornalismo, escrevendo crônicas, folhetins, artigos, contos e participando da vida boêmia das rodas
intelectuais.

Salvador de Meneses Drummond Furtado de Mendonça (Itaboraí, RJ, 1841; Rio de Janeiro, RJ, 1913),
poeta, romancista, contista, teatrólogo, tradutor. Um dos fundadores da ABL, criou a Cadeira número 20,
que tem como patrono Joaquim Manuel de Macedo. Colaborou na Revista Mensal do Ensaio Filosófico
Paulistano. Fundou, com Teófilo Ononi Filho, o jornal A Legenda. Trabalhou para o Diário do Rio de
Janeiro, de Saldanha Marinho, fez critica teatral no Jornal do Commercio e escreveu a "Semana Lírica" no
Correio Mercantil. Em São Paulo, dirigiu O lpiranga, órgão do Centro Liberal de São Paulo, e participou
da propaganda republicana no Brasil. Fundou também o jornal A República, em cuja redação se
congregavam Quintino Bocaiúva, Salvador, Aristides Lobo, Lafayene. Pedro Soares de Meireles e Flávio
Farnese. Nos últimos anos de vida, já cego, escreveu artigos para O Imparcial e O Século, comentando a
diplomacia brasileira e recapitulando a sua própria carreira em Washington.

Urbano Duarte (U. D. de Oliveira), jornalista, cronista. humorista e teatrólogo, nasceu em Lençóis, BA,
em 2 de janeiro de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro em lO de fevereiro de 1902. Convidado para a última
sessão preparatória da Academia Brasileira de Letras, em 28 de janeiro de 1897, é o fundador da Cadeira
número 12, que tem como patrono França Júnior. Durante mais de 20 anos colaborou em órgãos da
imprensa: Gazeta Literária, O Paiz, Revista Musical e de Belas Artes (semanário fluminense), Correio do
Povo (com Alcindo Guanabara, Artur Azevedo e Alfredo Madureira), Gazetinha e Jornal do Commercio,
onde mantinha a seção "Sem rumo".

Antônio Valentim da Costa Magalhães (Rio de Janeiro. RJ. 1859; Rio de Janeiro, RJ, 1903), jornaliSta,
contista, romancista e poeta. Membro fundador da Academia, criou a Cadeira número 7, escolhendo Castro
Alves como seu patrono. Dírigiu A Semana, que se tornou o baluarte literário dos jovens de então. Além de
literatura. esse periódico fazia propaganda da Abolição e da República. Quase todos os que, mais tarde,
teriam algum papel nas letras brasileiras - e que emào começavam - colaboraram em A Semana.
Dedicou-se também à poesia, ao conto, à crônica, ao romance, ao teatro.

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A Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro. 7.8.1876.
A Imprensa Industrial, Rio de Janeiro, 10.8.1876 e 20.8.1876.
A Imprensa, Rio de Janeiro, 29.7.1908.
A Luz- Jornallitterano e instructivo publicado todos os domingos. Rio de Janeiro, Typographia e Redacção da
Luz. 1870-1873.
A Notícia. Rio de Janeiro, 5.11.1898, 24 e 25.3.1900, 16 e 17.9.1904 , 30.9 e 1.10.1904. 26 e 27.1 1.1904,
16.9.1908.
A Opinião - Jornallitterario e recreativo, Fortaleza, Ceará, 11.8.1872
A Província de São Paulo. I0.8.1876. Ano Il. n° 460.
A Reforma, Rio de Janeiro, 28.4.1872 e 19.10.1876.
Artes e Letras- Revista de Portugal e Brazi/, Lisboa, janeiro de 1872 a 1875.
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3.8.1908.
Correio do Brasil. Rio de Janeiro. 12.5.1872.
Diário do Maranhão, São Luis, 23.8.1876.
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 13.5.1872.
Diário Popular, São Paulo, 5.12.1904 e 29.9.1908.
Echo Amencano - Periodico i/lustrado, Londres. 9.5.1871 a 31.12.1872.
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro. 30.1.1881 , 1.2.1881, 12.1.1892, 16.1.1892, 21.1.1892, 5.2.1893, 21.11.1904.
Gazetinha. Rio de Janeiro, 12.1 .1881, 2.2.1881.
Jllustração Brasileira, Rio de Janeiro. 15.10.1876.
Imprensa Acadêmica. São Paulo. 17.4.1864.
Imprensa Industrial, Rio de Janeiro, 25.10.1876 e 25.6.1877.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 11.1.1892.
Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 1.5.1872. 6.8.1876, 19.3.1900, 2.10.1904, 6.9.1 908.
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Referências das imagens

P. 32 -Imagens de Views and Costumes ofthe City and Neighbourhood ofRio de Janeiro, Brazil. from Drawings Taken
by Lieutenant Cbamber1ain, Royal Artillery, During tbe Years 1819 and 1820. with Descriptive Explanations.
London, Printed for Thomas M'lean, No. 26, Haymarket, by Howlett and Brimmer, Columbian Press, No. 1O,
Fritb Street, Soho Square. 1822.
As imagens são acompanhadas dos seguintes textos descritivos:

A PEDLAR AND HIS SLA VE


Pedlars are very common at Rio de Janeiro; 'going about from house to house, and vísiting tbe
Neighbourhoods to tbe distance o f severalleauges with Wares o f various descriptions for sale.
'They are rarely tbe Carríers o f tbeir Goods, but, furnished with an Umbrella to protect themselves from the
rays ofthe Sun, walk their accustomed rounds, followed by a Slave bearing a Tray, and sometimes a Glass case.
comaining the variou articles tbey have for sale.
Formerly theTradesman oftbis description were Brazilians. or Natives ofthe Nortbern Provinces ofPortugal;
but lanely French and Italians have taken up the calling, and being more industrious, have nearly engrossed the
who1e oftbe Trade.
The Figure in tbe back-ground, with a Pot on his Head, having na lron round his neck, is known by this
appendage to be in the habit ofrunning away from his Owner and living in the Woods. This lnstrument is not one
ofpunishment, but ofprevention, and is intended to render it difficult for him to make his way amongst lhe
Bushes. The other Figureis afflicted \\<;th the Leprosy. a common disease ofthe country, and the leafofthe
Banana being considered a good remedy for reducing the swelling, he has fastened one round the part affected.

435
LARGO DA GLÓRIA
The various personages here depicted are supposed to be in a part ofthe Suburbs called the Largo da Glória,
one ofthe great Thoroughfares.
The Negro on the left. bearing a load ofWood, is amusing himselfalong the Road with his favourite
Madimba de Btsché, a Congo Musical Instrument; formed o f a number o f narrow thin flat pieces o f Iron. a little
bent at the end where struck, securely fastened to a square piece o f Board, on the under side o f which is a
Calabasb, or Gourd, omamented with a string o f coloured Beads, or gaudy coloured Worsted. The pieces o f Iron
are o f various lenghts, and are played upon by both thumbs. The notes produced are agreeable and harmonious,
and in the hands of some ofthe Performers the Musick is by no means despicable.
The Negress, next in the fore-ground, is a Quitandeira, or Female Pedlar. vending a variety ofWares, such as
Hats, Books, Trays, Cottons, Muslins, &c. &c. and ber with the Pyramid ofBaskets is selling Milho, or Indian
Com, with Feijão or Beans.
The man in the fore-ground to the right, carries in a glass case, suspended round his neck, either a small figure
of our Saviour, called a Bom Jezus, orof the Virgin, Nossa Seubora (sic), - for the truly pious to kiss: and for
which act o f devotion he expectS them to pay five or ten Reas (sic), por Amor de Deos and bis own advantage;
though he generally pretends that he collects these Alms for more holy purposes.
The Negress near him whom he is persuading to bestow her cbarity and save her soul, is a seller o f Sugar
Cane, and ofa Liquor made ofRice, called Alhoà. The Figure behind is a seller ofOld Mats, Brooms, &c.

P. 52- Retratos de José de Alencar e Machado de Assis publicados na capa do Archivo Contemporâneo -Periodico
Illusrrado, Rio de Janeiro, 30.1.1873 .
P. 53- Ilustração faz referência ao recenseamento, que acabara de se realizar no Rio de Janeiro. Semana Jllustrada, Ano
xn, no. 609, 11.8.1872, p. 4869.
P. 107 -Caricatura de Bordaio Pinheiro sobre fatos importantes da semana que incluem a publicação de Helena como
folhetim nos rodapés de O Globo.
P. 108- Ilustração mostra laiá Garcia e Mota Coqueiro, personagem do romance Mola Coqueiro ou a Pena de Morte, de
José do Patrocínio, publicado em folhetim pela Gazeia de Notícias simultaneamente à publicação de Iaiá Garcia
em O Cruzeiro.
P. 121-Anúncio de laiá Garcia publicado em O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 3.7.1878.
P. 134 -Anúncio de Memórias Póstumas de Brás Cubas publicado no Jornal do Commercio. Rio de Janeiro. 14.1.1881.
P. 166 - Machado de Assis em litografia publicada na capa de O Mequetrefe em outubro de 1886 a propósito do 22•
aniversário de publicação das Crisálidas.
P. 234- Reprodução da primeira página mutilada do jornal O Cruzeiro de 11.4.1878 que penence ao acervo da
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. No rodapé da página, pane do texto "Fantasias- A Propósito de Iaiá
Garcia", assinado por Rigoleto.

UNlCAMP
BIBLIOTECA CENTRAL
SEÇÃO CiRCULANTE

436

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