Visão História - Julho 2016 PDF
Visão História - Julho 2016 PDF
Visão História - Julho 2016 PDF
A NEM
CI
RE A
VO E N
LU A
ÇÃ MÚ
O SIC
A
Os
loucos
Anos
20
PERIODICIDADE BIMESTRAL
IMAGENS 4
CRONOLOGIA A década louca 12
INTRODUÇÃO O tempo das ilusões 16
INFOGRAFIA As grandes
cidades do mundo 20
MODA As mulheres preferem o ‘chic’ 22
CINEMA Os anos loucos tinham
filmes nos olhos 28
BELEZA A primeira Miss Portugal 34
VEVA DE LIMA A anfitriã de Lisboa 37
ESTILO No coração do Art Déco 38
ALMADA NEGREIROS A Década louca 44
MÚSICA A revolução do jazz 46
DANÇA Os passos do charleston 50
CLUBS O som das noites de Lisboa 52
DROGAS Os anos da ‘maldita’ 58
GETTY
ANTÓNIO FERRO Cronista Produção de moda para a Vogue, 1928
dos tempos modernos 61
FRAUDE A gigantesca burla
de Alves dos Reis 64
CRISE Quando as câmaras
D
epois de uma edição (a nº 35, de maio) dedicada à situa- já firmes – passos. Os anúncios que reproduzimos em muitas
ção política que pôs fim à I República em Portugal e à páginas são retirados da revista semanal ABC, o magazine
instauração da ditadura, a VISÃO História regressa aos português mais representativo da época.
Anos 20, desta vez para prolongar noutras áreas – da moda Mas a festa que se seguia ao pesadelo da Grande Guerra du-
aos costumes e ao fait-divers – a força inovadora de uma década raria, pouco tempo. No horizonte divisavam-se já as sombras
prodigiosa. A arquitetura ganhou linhas retas, a música e a dança de novas tormentas.
«enlouqueceram», as saias subiram, os cabelos encurtaram,
os aviões banalizaram-se, a literatura reinventou-se, o futebol Os títulos e destaques são da responsabilidade da redação.
entrou no dia-a-dia, o cinema começou a falar… Foto da capa: Getty images
VISÃO H I S T Ó R I A 3
Anos 20 || ????????
DELIUS/LEEMAGE/FOTOBANCO
4 VISÃO H I S T Ó R I A
Nova Iorque, 1925
Para preencher um momento
de ócio, dois casais de
americanos endinheirados
disputam uma partida de
deck-tennis no terraço
de um prédio rodeado de
arranha-céus
VISÃO H I S T Ó R I A 5
Anos 20 || ????????
DELIUS/LEEMAGE / FOTOBANCO
6 VISÃO H I S T Ó R I A
14 de Julho
Bailarico em em plena
rua, junto da esplanada
de um bistrot parisiense,
comemorando a festa
nacional francesa. Nesta
foto não datada com rigor,
mas seguramente de
meados dos anos 20, é de
notar a atenção com que
um público predominante-
mente masculino segue as
evoluções das duas jovens
que formam o par central
da imagem
VISÃO H I S T Ó R I A 7
Anos 20 || ????????
Josephine Baker
Natural de St. Louis, no
estado norte-americano do
Missouri, foi nos palcos de
variedades de Paris que,
a partir de 1925, a «Vénus
Negra» triunfou, vindo a
tornar-se fulgurantemente
num dos ícones estilísticos da
década. Conhecida também
como «Pérola Negra» e a
«Deusa Crioula», a cantora
e dançarina era considerada
pelo escritor Ernest
Hemingway «a mulher mais
bela do mundo». Adotaria
12 órfãos de várias etnias e
viria atuar por diversas vezes
GETTY
em Portugal
8 VISÃO H I S T Ó R I A
Louise Brooks
Imagem icónica do tipo de
beleza feminina dos Anos
20, foi uma das grandes
vedeta do cinema mudo e
inspiradora de arrebatadas
paixões. Acerca dela disse um
dia, já na década de 50, Henri
Langlois, o célebre «pai» da
Cinemateca de Paris: «Não
existe Garbo. Não existe
Dietrich. Existe apenas Louise
Brooks.» Viria a ser cultuada
noutras artes, entre as quais
a banda desenhada, quer
como interveniente na série
Corto Maltese, de Hugo Pratt,
quer através da personagem
GETTY
VISÃO H I S T Ó R I A 9
Anos 20 || ????????
Lisboa ‘à la page’
Organizado pela revista
Voga no salão da Sociedade
Nacional de Belas Artes, na
capital portuguesa, o I Salão
de Outono da Elegância
Feminina & Artes Decorativas
foi, durante os vinte dias
em que esteve patente ao
público, um dos principais
acontecimentos da saison
de 1928. No primeiro plano, a
artista de variedades Natacha
10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
11
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA DE ARTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Anos 20 || Cronologia
A década louca 1
1920 1921
to (pacifista) de Não-Cooperação com em marcha, na Rússia, a Nova Política consegue pôr termo à guerra civil
as autoridades coloniais Económica (NEP), que contempla alguns entre «vermelhos» e «brancos», bem
elementos da economia de mercado como vencer e anexar, em conflitos
ABR Pelo Tratado de Rapallo, a Alema- separados, a Polónia, a Ucrânia, a
nha derrotada na Grande Guerra (1914- MAI A Alemanha (transformada em 1919 Arménia e a Geórgia (aliás, partes do
-1918) e a nova Rússia soviética atacada em República embora mantendo antigo império czarista)
pelas potências ocidentais (a revolução a designação oficial de Deutsche Reich)
bolchevique triunfara em 1917) com- compromete-se a pagar 132 mil milhões OUT Num
prometem-se a colaborar, sobretudo no de marcos de indemnizações de guerra clima de insta-
campo militar; no futuro, os alemães, às potências vencedoras; avultados bilidade política
embora fortemente desmilitarizados empréstimos americanos e britânicos galopante,
por imposição do Tratado de Versalhes, agravarão ainda mais a situação interna, em Lisboa, na
farão exercícios de blindados na região favorecendo os extremismos «Noite San-
de Kazan grenta», são
JUN Começa a disputar-se o Cam- assassinados
MAI-NOV As Repúblicas Democráticas peonato de Portugal de Futebol, um em circunstân-
do Azerbaijão e da Arménia, criadas em antepassado do Campeonato Nacional cias nunca bem
1918 após a queda do império czarista e e da atual I Liga, então disputado por eli- esclarecidas,
que desde então se encontravam minatórias; o vencedor será o FC Porto entre outros,
em guerra entre si, são invadida o primeiro-mi-
pelo Exército Vermelho soviético; JUL Adolf Hitler nistro António
a Arménia saíra de um conflito assume a liderança Granjo, e os re-
armado com o Império Otomano do pequeno Partido publicanos históricos Machado Santos
Nacional-Socialista e Carlos da Maia
JUN Termina a Revolução dos Trabalhadores • Em Portugal, publica-se o primeiro
Mexicana, na verdade uma san- Alemães (NSDAP), número da revista
grenta guerra civil que durava fundado por Anton republicana de
desde 1910 e que nascera da Drexler e mais esquerda Seara Nova
rebelião contra a longa ditadura conhecido por
de Porfírio Díaz, e em que se Partido Nazi; a DEZ Albert Einstein
destacaram como líderes da hiperinflação irá recebe o Prémio
causa popular Emiliano depois propor- Nobel
Zapata e Pancho Villa cionar terreno da Física, pela
fértil ao seu descoberta
NOV Com a eleição do republicano desenvolvi- do efeito
Warren Harding para Presidente dos mento fotoelétrico
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1. Assinatura do Tratado
Naval de Washington
2. Descoberta do túmulo
do faraó Tutank-Amon
3. Mahatma Ghandhi dando
uma entrevista 4. Uma
parada militar na Praça
2 3 4 Vermelha, em Moscovo
1922 1923
JUN Principia a guerra civil na Irlanda, por Atatürk («Pai dos então vice-presidente Calvin Coolidge,
submetida à Grã-Bretanha desde o início Turcos») que prossegue uma política exterior
do séc. XIX, que levará à criação de um • É descoberto no semelhante
Estado Livre Irlandês (República da Vale dos Reis, por
Irlanda a partir de 1949) e, concomitan- Howard Carter, o SET Em Espanha, com a cobertura do
temente, de uma Irlanda do Norte ligada túmulo intacto rei Afonso XIII, o general Miguel Primo
a Londres do faraó egípcio de Rivera comanda um golpe, suspende
Tutank-Amon, a Constituição de 1876, instaura uma
SET O irlandês James Joyce publica em um das mais ditadura governada por um Diretório
Paris, pela mão da americana expatria- mediáticos Militar e funda o partido único Unión
da Syvia Beach, fundadora da livraria achados Patriotica
Shakespeare and Company, o romance arqueológicos de
modernista Ulysses, que revoluciona a sempre OUT Atatürk
literatura torna-se o
DEZ É fundada a União das Repúblicas primeiro
Socialistas Soviéticas (URSS), através Presidente da
da união inicial das repúblicas soviéticas República da
da Rússia, da Ucrânia, da Bielorrússia e Turquia e a
da Transcaucásia capital passa
de Istambul para
Ankara
1923
JAN Contrariando o ponto de vista da NOV Falha o «Putsch da Cervejaria»,
Inglaterra e dos EUA, a França, secun- uma tentativa de tomada de
dada pela Bélgica, ocupa militarmente poder na Alemanha pelos nazis;
a bacia do Ruhr, como retaliação à Hitler é condenado a uma pena de
Alemanha pelo não pagamento das re- prisão de cinco anos, mas cumprirá
parações de guerra segundo as normas apenas um, durante o qual escreverá
impostas; na Alemanha, mergulhada na o seu famoso livro Mein Kampf
hiperinflação, é criado, como moeda de (O Meu Combate)
transição, o Rentenmark, que permite
retirar 12 zeros ao marco corrente; no DEZ O primeiro tubo eletrónico de
ano seguinte surgirá o Reichsmark, televisão é patenteado pelo físico
OUT O ex-socialista Benito Mussolini, que circulará juntamente com o Ren- Vladimir K. Zworkyin, nascido na Rússia
fundador dos Fasci Italiani di Comba- tenmark até ao imediato pós-II Guerra mas radicado nos EUA na sequência da
ttimento, conduz, à frente dos seus Mundial revolução soviética
VISÃO H I S T Ó R I A 13
Anos 20 || Cronologia
1 2
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1. Exposição das Artes
Decorativas, em Paris
2. Golpe do 28 de Maio
em Portugal 3. Entrega
dos primeiros Oscars de
Hollywood 4. A «Quinta-
-feira Negra» de Wall Street
5. O Dornier X sobrevoando
3 4 5
Nova Iorque
VISÃO H I S T Ó R I A 15
Anos 20 || Introdução
O tempo
das ilusões
Saídos exaustos, em 1918, da absurda e traumática I Guerra Mundial,
os europeus e os norte-americanos mergulharam, na década de 1920, numa
euforia de notório progresso material, consumismo e inconsciência. Foram
os Roaring Twenties, as Années Folles – os «Loucos Anos 20»
por Luís Almeida Martins
UIG / BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A 17
Anos 20 || Introdução
E
m 1914, quando os homens ain-
da ostentavam fartos bigodes e
as mulheres usavam espartilho
e saia a rojar o chão, os mais
otimistas – sobretudo em Ingla-
terra – viviam na ilusão de que
a guerra que então principiava
estava destinada a acabar com
todas as guerras. A expressão «the war
to end the war», utilizada pela primeira
vez pelo pensador e pioneiro da ficção
científica moderna H.G. Wells, tornar-se-
-ia um bordão recorrente em discursos e
artigos de jornal. Com o passar dos anos
GETTY
18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY
Fumando na gárgula Operários fazem uma balançada pelo reconhecimento por parte grande escala, as perturbações políticas e
pausa na construção do Chrysler Building, dos governos de que os operários tinham o endurecimento das ditaduras (no caso
símbolo nova-iorquino da Art Déco, iniciada direito a um nível de vida minimamente americano, um simples reforço da inter-
em 1928 sobre o traço de Van Alen
digno, mas esse foi o corolário de uma venção estatal com o New Deal de Franklin
luta laboral, de raiz anarquista e depois D. Roosevelt) foram corolários dessa crise
modelo físico de beleza na tela é a atriz comunista, que nunca deixou de correr que viria a conferir o tom sombrio à década
Louise Brooks) puseram no entanto em em pista própria (até à década de 1990, seguinte, prenunciadora já de uma nova
destaque as desigualdades de um mundo sabemo-lo hoje…). guerra. Filmes de propaganda concebidos
onde se agravara o já de si larguíssimo Por todos estes motivos, a «loucura» dos segundo técnicas requintadas de controlo
fosso entre ricos e pobres. Para preencher Anos 20 era mais uma fuga em frente do das massas e apelativos cartazes de con-
o vácuo provocado pelo quase desapareci- que a celebração efetiva e consciente de um ceção modernista iam, já nos Anos 20,
mento da «sólida» classe média composta triunfo. Paradoxalmente, ou talvez não, o abrindo caminho à instalação de sistemas
pelo funcionalismo que dera o seu charme excesso de produtos manufaturados levou policiais tentaculares que aos poucos mi-
discreto à Belle Époque e cuja estrutura a uma crise de superprodução, ou seja, ao navam os cantos mais recônditos da vida
a Grande Guerra arruinara, surgiu de desemprego e à miséria. A crise bolsista de das nações.
rompante uma classe de novos-ricos que 1929, que rebentou nos EUA e se prolon- Definitivamente, o mundo das Années
acendiam charutos em notas de banco, os- gou na Europa, logo adquiriu as dimensões Folles nada teve já que ver com esse pro-
tentava «cachuchos» com grandes pedras de catástrofe mundial. O desemprego em longamento do século XIX que fora a
preciosas nos dedos das mãos e sustentava Belle Époque, sem no entanto ser ainda
os «caprichos» de mulheres afinal não tão assombrado pela tenebrosa escuridão da
emancipadas como hoje pensamos e elas
próprias se julgavam. O verbo governar,
O mundo dos década de 30.
Na sua luminosidade própria e irreve-
com efeito, continuava a ser conjugado ‘Loucos Anos rente, nos seus contornos retos e geomé-
no masculino, não obstante as brisas de
liberdade que sopravam nos bas-fonds.
20’ nada teve já tricos de Art Déco, no encanto das saias
curtas e dos colares longos, os Roaring
E com o advento dos novos-ricos, o do- que ver com esse Twenties ainda hoje rugem aos nossos ou-
mínio dos «patos-bravos», o poder cres- prolongamento do vidos como a mais inconsequente das mar-
cente da aristocracia do dinheiro foi-se
depreciando o valor do trabalho intelec-
séc. XIX que fora chas guerreiras: o hino a uma paz vivida
com intensidade mas irremediavelmente
tual. É certo que esta tendência foi contra- a ‘Belle Époque’ condenada à perdição.
VISÃO H I S T Ó R I A 19
Anos 20 || População
As grandes
metrópoles
Nova Iorque, Londres e Paris eram as megalópoles, num mundo
ainda decidamente centralizado no Ocidente. A localização de
todas as cidades que contavam mais de um milhão de habitantes
por volta de 1920
BOSTON
CHICAGO
NOVA IORQUE
FILADÉLFIA
LOS ANGELES
N O VA I O R Q U E TÓQUIO FILADÉLFIA
BUENOS AIRES
PA R I S CHICAGO OSAKA
FONTE in Growth of the world’s urban and rural population, 1920-1960, United Nations: New York, 1969
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mais de Mais de Mais de Mais de Mais de Mais de Mais de Mais de
1 1,5 2 3 4 5 6 7
Milhão Milhões Milhões Milhões Milhões Milhões Milhões Milhões
LONDRES MOSCOVO
BERLIM
PARIS
PEQUIM
OSAKA
TIANJIN TÓQUIO
CAIRO
XANGAI
CALCUTÁ
BOMBAIM
FONTE AR/VISÃO
VISÃO H I S T Ó R I A 21
Trabalho || Moda
ESTÚDIOS NOVAIS
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
As mulheres
preferem o
‘chic’ Ao mesmo tempo que cortava
o comprimento do cabelo, a altura das saias
e o tamanho das abas dos chapéus, a moda cortou
também as amarras às mulheres
por Cláudia Lobo
ANTÓNIO NOVAES
VISÃO H I S T Ó R I A 23
Trabalho || Moda
A
duas semanas do casa-
mento, a jovem parisiense
Monique Lerbier desco-
briu que o seu noivo, um
industrial que iria ser só-
cio do seu pai, a engana-
va. Estávamos no final da
primeira década do século
XX. Irritada com a hipocrisia da socie-
dade mundana em que vivia, a rapariga
rompeu o noivado e decidiu gozar os
mesmos prazeres da vida de que usu-
fruíam os rapazes. Tornou-se decoradora
e financeiramente independente. Passou
a amar como os homens, livremente.
A sua história chocou a França e o mun-
do – e nem o facto de Monique ser apenas
uma personagem de romance tornou o
GETTY
GETTY
Gatsby, explicava numa revista o que era pista de dança. Na proporção inversa ao
a mulher flapper: «A flapper acordou da comprimento dos cabelos, o rosto ma-
sua letargia, cortou o cabelo, escolheu um quilha-se. À medida que as saias sobem O fenómeno ganha força em países
par de brincos, pôs uma grande dose de até ao joelho e descobrem as pernas, as como a Inglaterra, que em 1918 concede
audácia e rouge e entrou na batalha. Ela mulheres descobrem-se sedutoras. Mor- o direito de voto às mulheres com mais
flirta porque é divertido flirtar e usa fato re a mulher vitoriana, definitivamente, de 30 anos (a universalidade do voto fe-
de banho de uma só peça porque tem boa e nasce a mulher moderna. Glamorosa, minino só chegaria dez anos depois), e
figura (…) Tem consciência de que as coisas frívola, coquette. os Estados Unidos, cuja 19ª emenda da
que faz são aquelas que sempre quis fazer. «A necessidade dura da vida lançou Constituição, em 1920, permite às mulhe-
As mães não aprovam que os seus filhos le- a mulher à conquista dos empregos até res irem às urnas. Além disso, a liberdade
vem as flappers a dançar e, sobretudo, não então exclusivos do homem», lê-se num de ação estende-se a outros campos da
aprovam que elas levem os seus corações.» artigo da revista portuguesa ABC de 1926, vida social: fazem desporto como os ho-
intitulado A mulher, rival do homem. mens, guiam como os homens, pilotam
Vão-se os corpetes, vêm os votos «Hoje há mulheres polícias, mulheres aviões como os homens, fumam como os
Garçonnes ou flappers, a nova moda barbeiros, mulheres pedreiros, mulheres homens, dançam como os homens.
não simbolizou apenas uma revolução chauffeurs. E a verdade é que, apesar dos «O progresso e a guerra mataram para
nas roupas – mas nos costumes. Com prognósticos pessimistas dos filósofos de sempre, quer-nos parecer, a deliciosa se-
a falta de mão-de-obra provocada pela calças, elas se desempenham maravilho- paração que distinguia os homens das
I Guerra Mundial (1914-1918), a mulher samente das suas novas profissões.» mulheres», lê-se no mesmo texto da ABC.
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Estilo Com as pernas à mostra nos
vestidos tubulares, ou tapadas pelas
calças que agora também usam, as
mulheres passam de seduzidas a
sedutoras
VISÃO H I S T Ó R I A 25
Trabalho || Moda
GETTY
com efeitos trompe l’oeil.
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VESTIDOS SAPATOS
A cintura descaída muda Até aí dentro de botas, os pés das mulheres
a silhueta da mulher, e o também deixam de estar escondidos. Com
corpete é substituído pelo uma tira passando pelo peito do pé, os
soutien. As saias sobem sapatos dos Anos 20 são «todo-o-terreno»,
até abaixo do joelho, pois tanto servem para o passeio matinal
mostrando, pela primeira como para o chá das 5 ou para ir ao dancing.
vez, as pernas. Com Varia a pele e a cor – «mas a mulher prática
vestidos de linha tubular e e económica foge sempre dos exibicionismo
de saia curta, pode esticar- espetáculos que denotam originalidade e
-se a perna ao dançar o ostentação, aproveitando a moda no aspeto
charleston. A liberdade de geral, compatível com os seus meios de
movimentos é enorme. fortuna e apropriada à moderna exigência,
sem desmedida ambição de ficar em foco»,
lê-se na revista ABC.
MEIAS
A produção industrial de
seda artificial, conhecida
como rayon, popularizou
as meias transparentes
(que podiam ter padrões
Art Déco). As flappers
usavam-nas não com ligas,
mas enroladas na zona do
joelho. Como o rayon era
muito brilhante, havia quem
pusesse pó nas pernas para
BIJUTERIA ficarem menos lustrosas.
Longos colares de pérolas,
para abanarem com o
corpo ao som da música;
muitas pulseiras e brincos
compridos.
CHAPÉUS
Desaparecem as capelines e os
chapéus com grandes abas e aparecem
os cloches, colados à cabeça, que
emolduram e fazem realçar o rosto. Há
vários modelos diferentes. Claro que só
os pode usar quem tem o cabelo curto.
CAPAS
De dia usam-se usa-se
manteaux (a palavra «casacos»
nunca é usada em Portugal)
com o traje de passeio; à noite,
para as festas, é obrigatória a
capa, debruada a veludo ou a
pele de animal. Prende-se com
as mãos, enrugando-a,
e é perfeita para dançar.
VISÃO H I S T Ó R I A 27
Anos 20 || Cinema
M
mais uma indústria, a ganhar, desde 1915,
eteu-se pelos olhos ociden- O cinema chegara, hesitante, no virar as conspícuas cores da arte. Um americano,
tais dentro e o olho do mundo do século. Ainda começou por ser coisa D. W. Griffith, agarra a epopeia pela gar-
nunca mais foi o mesmo. Há de voyeur, caixa de imagens numa colu- ganta e arrasta-a para dentro de um filme,
uma imagem de Un Chien nazinha para dentro da qual o espectador Birth of a Nation, fixando os princípios da
Andalou que resume exem- solitário espreitava por um óculo. Era a linguagem cinematográfica – plano, se-
plarmente tudo: dois dedos visão peeping tom de Thomas Edison, quência, montagem paralela –, habilitando
abrem bem as pálpebras do olho de uma americano arrivista, a fingir que nada sa- o filme a transformar-se na mais popular
mulher, uma mão segura uma navalha de bia da projeção em sala, convivial e france- e legível forma narrativa do século XX.
barbear. No plano seguinte, uma apres- sa, que os irmãos Lumière inauguraram, a E o primeiro filme de 1920 que escolho
sada nuvem passa pela gloriosa lua cheia, 28 de dezembro de 1895, no salão indiano é mesmo desse Griffith, desse americano
roubando-lhe luz, recortando-a de sinis- do Grand Café do hotel Scribe, no nº 14 que inventou o suspense cinematográfico,
tras sombras. Novo corte, novo plano, e do Boulevard des Capucines, em Paris. pondo a correr na tela duas ações para-
já vemos, num raccord arrepiante com a Nascia a inconfessável sala escura. Es- lelas e obrigando o rabo do espectador
nuvem lunar, a lâmina dilacerar impiedo- tavam lá 33 espectadores e o que viram a saltar na cadeira, ao mostrar primeiro
samente o globo ocular da mulher. Esse deixou-os em estupor e transe. Numa tela, a imagem de uma desprotegida heroína
plano cru e sangrento, que os espanhóis reproduzia-se o mundo e a luz do mundo, em fuga e na imagem seguinte um mons-
Luis Buñuel e Salvador Dalí conceberam o mundo e o movimento do mundo, o truoso perseguidor, o que cria no nosso
nas suas artísticas e retorcidas mentes espírito o temor de que a besta esteja cada
de 1928, é a melhor metáfora para o que vez mais perto de trucidar o anjo.
o cinema dos anos 20 fez aos olhos do Way Down East leva a fórmula melo-
mundo e do Ocidente em particular. Ras- dramática de Griffith ao sublime. Lilian
gou-lhes a inocência. Gish, figurinha tremente e frágil em que o
O mundo vinha de uma Grande Guer- corpo de mulher é só pura inocência, apai-
ra. Na Rússia, a revolução bolchevique xonou-se pelo filho do patrão e ele, como
criara a União das Repúblicas Socialistas todos nós, por ela. Amor indesejado que
Soviéticas, enquanto a Alemanha passava o patrão não aceita, expulsando-a da sua
pelo agónico esplendor da República de quinta, no meio de uma tempestade de
Weimar, em cujas catacumbas já o rato neve e fim do mundo. O amado, mal des-
nazi se alimentava do lixo que para lá cobre, parte para a salvar, lançando-se a
caísse. Uma vontade de crescer e mu- O plano de Luis Buñuel um rio que o monstruoso inverno encheu
dar bombeava o coração de um mundo e Salvador Dalí em de perigos e armadilhas, de gigantescos
a florir em contrários: eram os Roaring
Twenties, potentes na sua mecanização,
Un Chien Andalou blocos de gelo em convulsão, levados pela
loucura paroxística dos rápidos. Chega-
na explosão do automóvel, rádio, aviões, é a melhor metáfora rá o amado a salvar a coisinha amada?
eletricidade, telefone, crescimento das
bolsas, exponencial concentração urbana.
para o que o cinema É uma sequência pasmosa, tão épica
como a primeira estrofe de Os Lusíadas,
E essas cidades apocalípticas tinham o dos Anos 20 fez tão lírica como um soneto de alma gentil.
que estavam mesmo a pedir: a esfuziante aos olhos do mundo. O cinema americano, nesse começo dos
e sexualizada disseminação do espetáculo anos 20, instalara já as bases do que, de-
popular, da música e da dança, do teatro,
Rasgou-lhes pois, viria a ser a sua matriz hegemónica:
do café e do cabaret. a inocência empresas cinematográficas sólidas, a figura
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Greta Garbo A atriz
sueca que triunfou em
Hollywood numa foto
promocional do filme
GETTY
O Beijo, de 1929
VISÃO H I S T Ó R I A 29
Anos 20 || Cinema
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Venham e visitem comigo O Gabinete lidade contando-a só com luz e sombras
do Dr. Caligari, filme de Robert Wiene e dando primado às personagens, por
que inaugura essa gloriosa década ale- mais humildes que as personagens fos-
mã. É um filme de feira e hospício, de sem. É esse o caso do velho porteiro de
sonâmbula adivinhação e de loucura. O Último dos Homens, de Murnau, que
Nessa atmosfera de fundo sucedem-se o peso da idade afasta da esplendorosa e
os crimes, tão aleatórios como irracionais, nobre entrada do hotel onde pontificava,
características que reforçam o terror que para o mergulhar em servil limpeza nas
aquelas imagens nos inspiram. Este é um humilhantes latrinas de umas caves sem
terror como nunca se vira, projetado pelo glória. Ao estilo chamou-se Kammerspiel,
cinema, diferente do terror do romance mas essa música de câmara não deixava
gótico, que a literatura inventara no século de ser pessimista, tão pessimista como
XVIII. Começa antes da própria ação do o exuberante expressionismo. Era um
filme, no seu estranhíssimo estilo visual. pessimismo despojado, de uma violência
O mundo que O Gabinete do Dr. Caligari trágica, que submetia as personagens à
oferece não se parece com o nosso mundo. inexorável vontade do destino. Lembro
As casas e as ruas são de uma deformação A Morte Cansada, de Fritz Lang, filme
aterradora e porém bela, se pudermos cha- do alegórico diálogo de uma jovem noiva
mar belo ao que é sinistro e bizarro. São com a Morte. A maiúscula Morte roubou-
casas e ruas geométricas e curvadamente -lhe o amado e só o devolverá à vida se
ameaçadoras, tão curvadas como os retor- a noiva salvar do já certo fim um de três
cidos atores que emprestam, como Conrad seres humanos que, como três trémulas
Veidt empresta, o corpo às personagens. velas, estão em risco de se apagar.
É um prodigioso trabalho de estúdio, uma Falar do grandioso e arrepiante cinema
conceção arquitetónica que nos espeta alemão dos anos 20 é falar do fantasma
oblíquas agulhas de medo, mesmo antes de Nosferatu, do pacto com o diabo do
GETTY
de sabermos o que vai acontecer. A rea- Fausto, das sociedades secretas de As Ara-
lização é retrógrada, alguns passos atrás nhas, desse demoníaco e manipulador Dr.
Legenda Odio iusam nus, cupis da agilidade americana desses anos, mas Mabuse que corrompe, destrói e mata.
apicide lestem nosam volupta pa os cenários, puro design em estúdio, ge- São filmes negros, de uma escuridão de
conet volori ut aut aut mil mi
ram os ambientes que tornam ainda mais breu rasgada a raios de desesperada luz.
perturbante a história de um sonâmbulo Os espectadores enchiam as salas para os
a sair de um caixão, a história de crimes verem com um excitado frémito de horror.
inexplicáveis, doutores loucos ou de loucos E o que estavam a ver? A memória do
que chegamos a pensar serem doutores. homérico sofrimento das trincheiras, da
Devemos a Hermann Warm essa ino- carne para canhão, do passado ainda tão
vação. Era um artista ligado à revista recente da I Guerra? Há quem diga que
modernista Der Sturm e trouxe outros viam já o futuro próximo, tanto estes fil-
dois pintores, Walter Reimann e Walter mes parecem antecipar o mal e a barbárie
Röhrig, para o filme. O expressionismo nazis. Mas é sobretudo o presente que os
punha, assim, um pé na história do ci- inspira, esses anos da envenenada Repú-
nema, enchendo Caligari de desenhadas blica de Weimar, da Alemanha de joelhos
sombras e de gráficos augúrios de fatali- no pátio das nações, da maré vergonhosa
dade e dessa desordem física e mental que de desemprego, dos sórdidos bastidores
gera monstros, num forte contraste com políticos em que a violência comunista e
a luz californiana do cândido Grifitth. nazi era um tapete estendido só para ser
calcado pelas botas sujas do caos.
Já estamos a ver os nazis
que aí vêm? Matam-se os arcanjos, riem-se os anjos
Não era o único estilo do cinema alemão. Ia dizer que na América não era assim.
A par desta novíssima intervenção dos Mas há um filme que me desmente. Cha-
decoradores e dos seus dominantes ce- ma-se Greed. E não se sabe muito bem
nários pintados, um outro tipo de filmes, que filme é esse. É do tamanho de uma
quase intimistas, aproximava-se da rea- pirâmide plantada no meio da história do
VISÃO H I S T Ó R I A 31
Anos 20 || Cinema
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
‘O Cantor de Jazz’ A estreia do primeiro filmado no ano em que Hitler publicou filmes de sempre, e Fritz Lang, ainda em
filme sonoro ocorreu em Nova Iorque, no o Mein Kampf, a A Mãe e a Arsenal, os Berlim, assinou o futurístico Metropolis.
Warners Theatre, em outubro de 1927 soviéticos oferecem uma mais-valia ao E, no entanto, apareceu um filme a anun-
capitalista cinema mundial: um conceito ciar, sem nenhuma ponta de exagero, a
um corpo e uma sexualidade seguríssima revolucionário e dinâmico de montagem. morte do mudo. Um filme meio pedestre,
de si – e a deixar, inseguríssimos fosse do A França já tinha Renoir e extasiava-se O Cantor de Jazz, trouxe uma inovação
que fosse, todos os homens sentados na com o megalómano Napoléon, de Abel fatal: pôs um ator, Al Jolson, a cantar e
sala escura. Pabst roubou-a a Hollywood Gance, exibido em três imagens paralelas a falar. Os espectadores ouviram e já não
e fez dela a Lulu de A Boceta de Pandora. e simultâneas. E tinha os vanguardistas, quiseram outra coisa.
Tal como a Garbo, Miss Brooks ficou para como Germaine Dullac, Epstein, Delluc Haverá ainda dois anos de obras-pri-
o resto dos seus dias amarrada à perso- e Man Ray, a quererem fazer um cine- mas do cinema mudo. Escolho, para
nagem de mulher fatal, a essa persona- ma de puras formas, género que Marcel fechar, um filme francês, Passion de
gem de mulher ainda tão jovem, mas de L’Herbier leva ao acúmen no cínico e im- Jeanne d’Arc, do dinamarquês Dreyer,
intrincada psicologia, riquissimamente parável L’Argent, combinação prodigiosa com alguns cenários gigantescos e outros
sexualizada, de êxtase e ruína, de desejo, da montagem soviética com uma narra- miniaturizados, conforme a cena o exigia,
concupiscência e consumação. O rosto e tiva quase sinfónica, que dão uma visão o rosto dos atores, e sobretudo o da tão
os gestos de Lulu dizem o que dizem: ela obscenamente sexualizada do dinheiro. bela Falconetti, convertido em paisagem
quer, ela faz. E revelam que ela sabe que O cinema mudo estava no céu. Em dolorosa, como na cena de martírio em
o quer é complexo e não linear. O que 1927, já em Hollywood, o alemão Mur- que rapa todo o cabelo e chora um inteiro
ela quer é da ordem do quântico, como a nau filmou Sunrise, um dos mais belos vale de lágrimas. Diz-se que, no fim da
física que essa década então desenvolveu. cena, Dreyer veio ao pé dela, recolheu com
um dedo uma das lágrimas, levando-a
Revolução, lágrimas e um beijo aos lábios. Beijava nessa lágrima a última
Os anos 20 viram nascer o cinema revo- Os espectadores lágrima do cinema mudo.
lucionário soviético, de que Eisenstein, ouviram O Cantor
Dziga Vertov, Pudovkine e Dovjenko são
os expoentes. À extraordinária beleza de
de Jazz e já não Manuel S. Fonseca foi programador
da Cinemateca Portuguesa e é colunista
alguns filmes, de O Couraçado Potemkine, quiseram outra coisa de cinema
VISÃO H I S T Ó R I A 33
A primeira Mas o grande destaque da década nos
concursos de beleza ocorre em 1927.
Miss Portugal
Nesse ano organiza-se em Galveston, no
Texas, a eleição da primeira Miss Univer-
so. O comité americano contacta países
potencialmente interessados. Portugal
Chamava-se Margarida Bastos Ferreira confirma de imediato o convite e prepa-
e representou o País em 1927 no concurso de Miss Universo, ra a eleição de uma Miss Portugal que
em Galveston, no Texas. O júri americano não lhe deu possa representar o País. Entre março
e junho desse ano o País para e une-se
o prémio a que muitos a julgavam com direito
num entusiasmo coletivo de colossal pro-
por Liliana Lopes Monteiro porção. Desde o povo aos intelectuais e
F
aos artistas, dos estudantes aos políticos,
oi em 8 de setembro de 1921, todos acreditam numa vitória nacional.
em Atlantic City, Nova Jérsia,
EUA, que foi eleita a primeira Miss Portugal, um dever patriótico
Miss América. Mais do que uma «É necessário que as mulheres bonitas
celebração da beleza americana, da nossa terra se apresentem para a se-
o concurso, realizado na semana dutora e patriótica viagem à América do
do feriado do Labor Day, pretendia atrair Norte», lê-se no Diário de Notícias de 16
turistas e prolongar a sua estada. de março de 1927.
A celebração da beleza não era assunto O jornal apela assim às portuguesas
novo ou desconhecido dos portugueses. para que participem no primeiro concur-
Paris já elegia as suas «rainhas». Nesse so de Miss Portugal. Publica na primeira
mesmo ano, o Diário de Notícias promo- página o telegrama proveniente de Gal-
via uma iniciativa que pretendia encon- veston convidando o diário a encontrar a
trar a mulher mais bonita de Portugal. mais bela do País, que iria competir pelo
Um dos redatores do jornal viajara pelo título de «mais bela do mundo». O apelo
País munido de uma objetiva da Portu- é lançado a todas as jovens solteiras entre
galia-Film, preparado para retratar as os 16 e os 25 anos, convidadas a enviar
mais belas. os seus retratos para a sede do Diário de
Quatro anos mais tarde, é eleita a pri- Notícias. As concorrentes selecionadas
meira Miss Lisboa na Festa dos Mercados, «Cabelos negros serão convidadas a comparecer na se-
um concurso organizado pelo Diário de
Lisboa no qual as estrelas são as mais bo-
cortados. Escultural. gunda eliminatória, na capital.
Os apelos são constantes e diários,
nitas vendedeiras da cidade. Ilda Fernan- Distinta.» Assim sempre na primeira página, geralmente
des, da Praça da Figueira, foi a vencedora, descrevia o DN acompanhados por um dos muitos re-
coroada na Câmara Municipal perante a tratos já recebidos. «É preciso honrar
euforia do povo que a aguardava à porta
Margarida Bastos Portugal. Vencer, no mundo, pela Beleza,
e a aclamava. Ferreira é a maior vitória», titula-se.
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Galveston Na apresentação das
concorrentes em fato de banho, Margarida
é a 9.ª a contar da direita. À esquerda:
Uma multidão aguardava-a na estação
portuense de São Bento, quando ia a
caminho de Vigo para embarcar no Niagara
VISÃO H I S T Ó R I A 35
Anos 20 || ????????
Belezas portuguesas Os atrativos das laram no Boulevard Seawall em traje de não se entender não ter obtido qualquer
concorrentes a Miss Portugal colocaram desporto, traje de passeio, fato-de-banho qualificação. Ferro criticava a preferência
o júri perante o embaraço da escolha e vestido de baile. A Miss América e Miss do júri pelas concorrentes americanas.
(páginas da revista ABC)
Nova Iorque, Dorothy Brithon, foi eleita A própria Margarida confessou que, ape-
Miss Universo. Nos segundos e terceiros sar da insegurança inicial, no segundo dia
31 de março descreve a vencedora. Co- lugares ficaram a Miss Florida e a Miss Lu- das provas era tal o clamor da multidão
meça a jornada seguinte. Dias depois, xemburgo. No DN, o enviado especial An- que chegou a acreditar na vitória.
acompanhada pela irmã, a Miss parte tónio Ferro escreve que a Miss Portugal foi
para o Porto, para daí seguir para Vigo «aclamadíssima em todas as provas», e daí Desilusão e polémica
e apanhar o paquete para os EUA. Na Rapidamente a polémica se instalou –
estação do Rossio e nos vários apeadei- em Portugal e não só. Afinal, a primei-
ros da capital onde o comboio parou, a ra e segunda classificadas eram ambas
multidão aguardava entusiasticamente casadas, e o regulamento determinava
Margarida, tendo inclusive rasgado-lhe que as candidatas teriam de ser solteiras.
parte do vestido. Ao chegar ao Porto, a Adicionalmente, cada país deveria ter
jovem desmaiou. apenas uma representante, o que não
Ao fim da tarde seguiu para Vigo, onde aconteceu no caso dos EUA. Finalmente,
dormiria no Hotel Continental. Um jor- veio a descobrir-se que a Miss Luxembur-
nalista do DN perguntou-lhe então no que go era afinal parisiense.
pensava. «Estou com medo da América. Margarida Bastos Ferreira regressou à
Afinal, para quê esta viagem? Que vou lá Europa por Paris no início de junho onde,
fazer? No vapor chegam amanhã três lin- segundo o DN, um encontro casual com o
das raparigas que valem mais do que eu. Ao político republicano exilado Afonso Costa
pé delas, nada serei, nada conquistarei.» apenas lhe confirmou a admiração dos
Na manhã seguinte embarcou no Nia- seus conterrâneos, declarando-lhe o an-
gara, onde se juntou à Miss Luxemburgo, tigo chefe do Governo que os americanos
à Miss França e à Miss Itália. tinham sido muito injustos e que ela seria
Festa dos Mercados, 1925 Ilda
A 1 de maio, Margarida chegou aos Fernandes foi a vencedora deste sempre a “Rainha de Portugal”. Sem título,
EUA, e o concurso em Galveston decor- concurso alfacinha organizado pelo mas não sem glória, Margarida regressou
reu entre 21 e 23. As concorrentes desfi- Diário de Lisboa a Portugal na véspera de Santo António.
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Genoveva Lima Mayer
Numa das suas festas, recebeu os
convidados com uma chita aos pés
O
no entanto, o nome ligado à sua casa,
s convidados terão talvez pen- Déco. Mas não parece ter ficado particular- que foi centro de uma intensa atividade
sado que, naquele dia, a anfitriã mente adepta. São Art Déco algumas das mundana e cultural da cidade. Por lá pas-
excedera os limites. Já estavam peças, mas o grosso do mobiliário segue o saram António Ferro, Fernanda de Castro
habituados a que as festas no gosto do fim do século XIX, princípio do e consta que, ocasionalmente, Calouste
palacete dos Ulrich, no alto das XX. «Ela era muito ligada ao século XIX. Gulbenkian. «Ela era uma pessoa curio-
Amoreiras, em Lisboa, tivessem Não pode dizer-se que fosse propriamente sa, muito interessada em saber o que se
sempre o seu quê de exótico. Mas, dessa uma modernista», explica Alfredo de Ma- passava lá fora. E sentia-se muito ligada
vez, estava a aguardá-los Veva de Lima, galhães Ramalho, presidente da direção da aos artistas, empenhava-se na promoção
sentada na sala, com uma pequena chita Associação Casa Veva de Lima. de novos nomes», acrescenta Magalhães
aos pés, presa por uma trela. Pior ainda: A decoração, de que ela mesma se en- Ramalho.
a inquietante criatura estava para ficar. carregara, refletia todo um estilo de vida. Uma das festas memoráveis do palacete
Nascida em 1886, em Lisboa, Genoveva Muitos dos objetos eram trazidos das suas decorreu num jardim anexo, para onde
de Lima Mayer casara com Rui Ulrich, viagens. E Veva conhecia bastante da Eu- foram levados tendas e camelos. Nou-
um professor de Finanças, que foi tam- ropa, a que acrescentara, numa ocasião, tra ocasião, abria-se, a certa altura, uma
bém administrador do Banco de Portugal os EUA, de onde viera fascinada. Quase cortina na sala, para deixar aparecer a
e de empresas, além de embaixador em todas as obras que cobriam o palacete anfitriã, sentada num carrinho em forma
Londres. O casal alugara o palacete à casa eram de artistas estrangeiros e feitas, de cisne, puxado por Afonso Lopes Vieira.
de Anadia, em 1920. nalguns casos, por encomenda. E houve uma noite em que os convidados
A chita fora trazida de África por um Tanto ela como o marido eram origi- foram recebidos por supostos criados ne-
irmão de Veva. Mas ela própria tivera a nários de famílias da alta burguesia de gros, de cara engraxada, com peles sobre
sua experiência africana, que se saldara Lisboa. Os Lima Mayer descendiam de a libré e archotes na mão.
por um lote assinalável de peles com que um alsaciano que chegara com as Inva- Em 1963, Veva de Lima morria no pa-
forraria as escadarias do palacete. E que sões Francesas e por cá se casara com lacete. Por essa altura, o salão dos Ulrich
estavam longe de ser a única nota exótica uma senhora da sociedade. Quanto aos tinha há muito perdido a animação de
na decoração da casa, como prova um Ulrich, provinham de um alemão que outrora, sobretudo depois de que o filho,
gabinete de trabalho, todo ele decorado viera trabalhar na reconstrução da cidade Jorge, por volta dos 20 anos, se suicida-
ao estilo oriental. após o Terramoto. Nem num ramo nem ra, ali mesmo em casa, por desamores
Veva, que se gabava de ir a Paris renovar no outro da família havia sinais de no- com uma prima. Quanto à chita, cresce-
o guarda-roupa, ali visitara, em 1925, a breza, apesar das armas visíveis em duas ra e tornara-se tão assustadora para os
Exposição das Artes Decorativas, que foi cortinas do palacete: «São uma fantasia, convidados, que Veva se vira obrigada a
o momento definidor do novo gosto, a Art meramente decorativas.» oferecê-la ao Zoo de Lisboa.
VISÃO H I S T Ó R I A 37
Anos 20 || Artes
MUSEU CALOUSTE GULBENKIAN/COLEÇÃO MODERNA
38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
No coração
do Art Déco
Festivo, feito de linhas retas, a tender para o abstracionismo,
o estilo mundialmente lançado em Paris na Exposição
de Artes Decorativas e Industriais Modernas de 1925 deixou
marcas em Portugal
por Rui Afonso Santos
VISÃO H I S T Ó R I A 39
Anos 20 || Artes
E
m Portugal, a perpetuação das de Jorge Segurado, erguido na Rampa de filiação secessionista – exemplo a que
morosas estruturas mentais de Santos em reinvenção classicizante, até os tradicionalistas Rebelo de Andrade
oitocentistas na transição da anunciaram o novo gosto, que Pardal foram recetivos, no risco do Café Chiado,
Monarquia para a República, Monteiro praticaria com segurança na inaugurado em 1927, e também Cottinelli
associada à crise política e às Estação do Cais do Sodré (1928), numa Telmo, na Estação Fluvial do Sul e Sueste
dificuldades económicas vivi- requintada moradia nas Avenidas Novas, (1928-31).
das nos Anos 20, adiaram em Prémio Valmor em 1929, e no edifício Mas foi no Cine-Teatro Capitólio (1925-
grande parte para a década se- da Caixa Geral de Depósitos do Porto -31) que Cristino da Silva manifestou com
guinte a divulgação do Estilo Art Déco (1929-31), com requintados interiores maturidade o novo estilo, patente nos
– denominado segundo a Exposição de detalhes da sua prumada e pala exterior
Artes Decorativas e Industriais Moder- envidraçada e luminosa, com lettering
Grafismo inovador Fotomontagens,
nas, realizada em Paris em 1925. letterings e imagens em diagonal moderno, das suas paredes amovíveis
O novo estilo de raiz francesa – deco- revolucionaram, pelas mãos de Leitão de em vidro gravado e, até, na novidade
rativo, ortogonal (com predominância de Barros, o Notícias Ilustrado, em 1929 maquinista das suas escadas rolantes e
linhas e ângulos retos), festivo, assimila-
dor do fauvismo, cubismo expressionismo
e, até, do abstracionismo – fora, porém,
já anunciado por Raul Lino em interiores
que para si próprio concebeu, segundo
uma gramática de estilização secessio-
nista que estendeu à arquitetura, com
desenho integral dos interiores e equipa-
mentos, tal como sucede na Chapelaria
Gardénia (1917), no Chiado, primeira loja
moderna de Lisboa.
Outras obras de estilização moderna
erguidas em Lisboa, como o funcional
Edifício dos Telefones (1923), do constru-
tor René Touzet, a Agência Havas (1922)
do arquiteto Carlos Ramos ou o Edifí-
cio da Companhia dos Eléctricos (1927)
40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
mobiliário metálico – que culminaria na empresa Electro-Reclamo, introdutora A década do design Capas e cartazes
Casa Bellard da Fonseca (1930-31), com da publicidade luminosa em 1928), e de António Soares (1920), Jorge
interiores expressamente desenhados e a com stands desenhados por ele e pelos Barradas (1926), Luiz (1929), Emmerico
Nunes (1927) e Leitão de Barros (1929)
novidade absoluta de mobiliário metálico artistas Fred Kradolfer, Albert Jourdain
bauhausiano por Franz Torka. e Roberto Nobre.
Contudo, ninguém praticou melhor o Ruy Vaz, Guilherme Filipe) e esculturas e
De Paris às Caldas da Rainha Estilo Art Déco do que o arquiteto e de- baixos-relevos (Canto da Maya, Leopoldo
A Exposição parisiense, que divulgou uni- corador vienense Franz Torka, discípulo de Almeida) estilisticamente acertados,
versalmente o Estilo Art Déco, da Europa dileto e chefe do ateliê do grande Otto constituíram marcos do novo gosto, tam-
às suas colónias, dos EUA ao Japão (e Wagner, com larga colaboração na obra- bém praticado por Jorge Segurado no
que deslumbrou os arquitetos Marques -prima do mestre que é a Caixa-Postal de projeto do York Bar (1929), decorado
da Silva e Paulino Montês, e também o Viena, e estabelecido em Lisboa em 1920, por Soares.
pintor António Soares), repercutiu-se na como diretor artístico das Fábricas e Lo- No Porto, o arquitecto Manuel Mar-
V Exposição das Caldas da Rainha (1927), jas da Companhia Alcobia, no Chiado. ques praticou também o novo estilo em
desenhada por Montês. Ela foi a génese Arquiteturas e decorações de interiores, projetos de arquitetura particular (Casa
de uma estética ortogonal e luminista mobiliário, equipamentos, iluminação, Domingos Fernandes, 1927) e espaços
inspirada na magna Exposição de Paris tecidos, tapetes, papéis de parede, cená- comerciais (Pastelaria do Bolhão, 1929;
que noutras manifestações de arquitetura rios para cinema, tudo desenhou Torka Portobar, 1930), associando-se também
efémera, como as exposições Industrial integralmente, numa aspiração de «obra ao arquiteto Amoroso Lopes e desenhan-
Médico Cirúrgica (1928), onde se desta- total». Em 1925, os seus interiores do Tea- do, desde 1927, móveis e decorações Art
cou o suíço Fred Kradolfer; o Salão de tro do Ginásio apresentavam um singular Déco para os Armazéns Nascimento.
Elegância Feminina e Artes Decorativas gosto Art Déco de filiação vienense que, Certos vitrais de Ricardo Leone (Ou-
(SNBA, 1928), que reuniu numerosos por volta de 1930, estendeu a magníficos rivesaria Marques, 1926; Frontaria da
arquitetos, pintores, escultores modernos móveis e painéis decorativos, com embu- Papelaria da Moda, ao Rato, 1929, consti-
(Paulino Montês, António da Costa, Ruy tidos em madeiras exóticas e aplicações de tuem, aliás, marcos assinaláveis do Estilo
Gameiro, Martins Barata, Carlos Botelho, laca e latão – para reinterpretar igualmen- Art Déco em Portugal, numa via estilística
Roberto Nobre, Emanuel Altberg, Albert te as vanguardas europeias no desenho atenta aos exemplos de Gaétan Jeannin e
Jourdain, etc.) com destaque para Soa- de mobiliário em tubo metálico cromado. de Jacques Gruber, divulgados por álbuns
res; e a Exposição da Luz Electricidade Os interiores Art Déco do cabaret publicados quando da Exposição de 1925.
Aplicada ao Lar (SNBA, 1930), dirigida Bristol Club (Carlos Ramos, 1925-26), No desenho, na ilustração, na pintura e
artisticamente por António Soares, coad- com pinturas de Almada, Soares, Viana, no cartaz, a personalidade marcante em
juvado pelo engenheiro Carlos Santos (da Barradas, Lino António, Francis Smith, Portugal é a de José de Almada Negreiros
VISÃO H I S T Ó R I A 41
Anos 20 || Artes
42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
joias disponíveis, entre os anos 20 e 40,
nos ourives e joalheiros Leitão & Irmão em
Lisboa, ou na Casa José Rosas no Porto,
bem como as cerâmicas das Fábricas de
Sacavém, Coimbra, Lusitânia, Condal e
ElectroCerâmica, com moldes vindos do
estrangeiro, constituem outras marcas
relevantes neste breve inventário do Art
Déco em Portugal – e obra-prima absolu-
ta foi a Casa de Serralves, riscada para o
Conde de Vizela pelo francês Charles Siclis
em 1929, com jardins de Jacques Gréber,
e que levaria quase 20 anos a concluir-se,
constituindo a última grande encomenda
do Estilo Art Déco parisiense, que a II
Guerra Mundial eclipsaria.
VISÃO H I S T Ó R I A 43
Anos 20 || Artes
A década
louca
de Almada
Paris, Lisboa e Madrid são
as capitais onde José de
Almada Negreiros procura
a vanguarda essencial
a quem se diz «sempre
futuro». Escreve o seu único
romance, Nome de Guerra,
em 1925, um marco na
literatura portuguesa que é
uma porta de entrada para
a agitação da época
por Vânia Maia
N
o dia em que celebra 27 anos,
7 de abril de 1920, Almada Ne-
greiros regressa a Portugal ao fim
de um ano e meio em Paris, onde
retomou os estudos de pintura.
As primeiras impressões são es-
XXXXXXXXXXXXXXX
44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
manifesta-se ao longo dos anos 20 das mais variadas formas
1921 Dá a
conferência A
Invenção do Dia 1928 Vence o concurso
Claro, apresentada de cartazes para a
por António Ferro representação portuguesa
e editada por na Exposição Universal
Fernando Pessoa. de Sevilha
Colabora com o
Diário de Lisboa
era «ganhar o conhecimento da vida». clube a umas casas abertas toda a noite cena de pugilato entre ambos na Brasileira
Almada fazia assim um manifesto pela e nas quais a razão mais forte é o jogo», – revela António Valdemar em Almada,
autonomia pessoal, como revela o título escreve Almada no capítulo Às vezes o dia Os Painéis, a Geometria e Tudo (Assírio
de um dos capítulos da obra: A sociedade começa à noite. Adiante, acrescenta: «Es- & Alvim, 2015) – e seria mais um motivo
só tem que ver com todos, não tem nada tas raparigas tiveram todas a mesma vida para ele partir para Madrid em 1927.
que cheirar com cada um. José-Augusto mais ou menos fantasiada e uma única «Saí de Portugal muito arreliado, apesar
França escreveu a propósito do título do história absolutamente verídica e a qual de reconhecer que fui sempre um menino
romance que «o nome das pessoas se de- as levou todas a dançar na mesma sala. mimado nos meios em que vivi; saí des-
clara duplo para elas próprias e para a so- A história verídica é a única que vale e gostoso apenas com o panorama artístico»,
ciedade». A mesma revolução individual já pode-se contar: o primeiro homem que revelava num artigo da Ilustração com o
havia sido propalada na mítica conferência elas conheceram era um pulha!» título inequívoco: «José de Almada Ne-
A Invenção do Dia Claro (1921). greiros triunfa em Espanha». Na capital
O humor perpassa as aventuras de An- Pugilato na Brasileira espanhola encontra uma vida cultural
tunes e «é impossível ler Nome de Guerra O Bristol Club, situado no cruzamento da trepidante. A amizade com o modernis-
sem ver», garante a historiadora de arte Rua Jardim do Regedor com as Portas de ta Ramón Gómez de la Serna, que tinha
Sara Afonso Ferreira, 38 anos, estudiosa Santo Antão, em Lisboa, terá inspirado os vivido em Portugal, facilitou a sua entra-
da obra de Almada, referindo-se à escrita clubes de Nome de Guerra. É em 1926, o da nas tertúlias madrilenas. Frequenta
cinematográfica do autor. Outra das gran- ano seguinte a ter escrito o livro, que pinta os prestigiados cafés Pombo e Granja El
des inovações modernistas do romance é um sedutor nu feminino para o Bristol. Henar e o restaurante habitual de García
o «fluxo de consciência», ou seja, a forma Data também dessa altura uma das suas Lorca. Ao contrário do que acontecera em
como conduz o leitor através dos monó- conferências mais emblemáticas, Moder- Paris, não lhe falta trabalho na sua área.
logos interiores da personagem principal, nismo, proferida na festa de encerramen- No ano seguinte, em 1928, vence o
o que implica uma visão de Lisboa muito to do II Salão de Outono, na Sociedade concurso de cartazes para a Exposição
pessoal, por exemplo, quando se confronta Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. «É Universal de Sevilha e vai mantendo co-
com os ritmos da época: «Os músicos pare- muito marcante porque define o termo laborações artísticas em Portugal. Seria o
ciam cada um para seu lado. […] Logo de ‘modernismo’ com o sentido que usamos prenúncio da Guerra Civil (1936-1939) a
entrada aquilo tudo fazia-lhe um bocado hoje», afirma Fernando Cabral Martins. fazê-lo regressar a Lisboa, ao fim de cinco
de impressão. Nunca ouvira tanto barulho Ainda em 1926, a sua obsessão pelos anos, consagrado como o vulto artístico
nem no Carnaval. Mas gostava.» Painéis de São Vicente de Fora, do século que sempre acreditou ser. «A data mais
Sara Afonso Ferreira assinala a audácia XV, atinge uma conflitualidade ímpar: memorável da minha individualidade será
do livro quando mergulha em realidades Almada disputa com José de Bragança, por certo 1993, quando universalmente se
que habitualmente não eram retratadas, diretor do Museu Nacional de Arte Anti- festejar o centenário do meu nascimento»,
como a vida nos cabarés, a sedução da ga, a descoberta de juntar os painéis num havia escrito em 1913 com o atrevimento
cocaína ou a condição da mulher, em políptico, baseando-se na perspetiva dos dos seus 20 anos. Almada bastava-lhe
particular das prostitutas. «Chama-se ladrilhos. A rivalidade dará origem a uma como o mais certeiro nome de guerra.
VISÃO H I S T Ó R I A 45
Anos 20 || Música
A revolução
do jazz
Nascido nos bairros de má fama de Nova Orleães,
nada faria supor que o jazz viesse a ter impacto mundial,
elevando a música popular a um inédito patamar
de excelência. Os Anos 20 foram o ponto de charneira
GETTY
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Chicago, 1923
A King Oliver’s
Creole Jazz Band
e Louis Armstrong
VISÃO H I S T Ó R I A 47
Anos 20 || Música
H
erdeiro do legado cultural
africano, da tradição musi-
cal europeia e das primeiras
expressões de música afro-
-americana, o jazz começou
a ganhar forma nos encon-
tros sociais que os escravos
faziam por volta de 1860/80
na Congo Square. Era naquela praça de
Nova Orleães que, excecionalmente, se
fundiam, aos domingos, as várias tradi- Swing Duke
ções musicais e se ouviam as blue notes. Ellington (ao lado)
Na viragem para o século XX, encon- começou a tocar em
tramo-lo ainda indefinido, sem rótulo festas à noite em
próprio, subjacente ao ragtime, com o 1917 enquanto de
dia trabalhava como
seu ritmo sincopado tocado por pianistas pintor de tabuletas;
itinerantes que eram capazes de tradu- aos 11 anos, Louis
zir para o teclado a polirritmia africana. Armstrong (em
Canções como Maple leaf rag, de Scott baixo) tocava na rua
Joplin, ajudaram a popularizar o primeiro
BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
género musical negro criado nos EUA.
A junção do ragtime com os blues, cujas
origens remontam ao século XIX, propi-
ciou o aparecimento do jazz, que no final
dos anos 1910 era já o estilo dominante.
Essa e outras fusões deram-se no caldo
cultural de Nova Orleães, que fez aportar
ainda ao jazz as influência musicais fran-
cesa e caribenha. O termo em si terá sido
empregado pela primeira vez em 1913 –
curiosamente, na coluna de baseball de
um jornal de San Francisco –, tendo-se
tornado corrente a partir de 1917, graças a
um disco gravado nesse mesmo ano pela
Original Dixieland Jazz Band.
Entre os pioneiros do jazz encontra-
vam-se músicos como o trompetista
Buddy Bolden, que em 1895 formou a
sua banda, atuando, nomeadamente, nos
cabarets de Storyville, bairro conhecido
pelas casas de prostituição e por empregar
pianistas, entre os quais o célebre Jelly
Roll Morton. As jazz bands, que atua- O jazz terá
vam em salões de baile, nos parques, nas chegado
procissões fúnebres e também nos barcos
a vapor que sulcavam o rio Mississippi,
à Europa
eram então essencialmente constituídas através dos
por um trio de instrumentos de sopro –
tipicamente, trompete/cornetim, trom-
soldados negros
bone e clarinete – e por um triunvirato do Exército
rítmico formado por bateria, baixo/tuba e americano que
um instrumento de cordas (piano, banjo
ou guitarra). No final dos Anos 20 au-
vieram combater
mentou o número de elementos, tendo a partir de 1917
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Harlem, Nova Iorque, Anos 20
A multidão aguarda a chegada dos
músicos de uma banda de jazz ao
Teatro Lafayette
tuais prévias, o jazz terá chegado à Europa amadores dedicaram-lhe livros e revistas.
Ritmos esfrangalhados através dos soldados negros do Exército O jazz estava instituído como género
António Ferro estava precisamente em americano que a partir de 1917 vieram musical.
Nova Iorque quando o jazz «fervia» em po- combater para as trincheiras em nome
pularidade através de músicos como Fats de uma liberdade de que eles próprios João Moreira dos Santos é autor de
Waller, Louis Armstrong, Art Tatum ou não beneficiavam na sua pátria. Conta- vários livros sobre jazz em Portugal e do
Cab Calloway, e swingava já nas big bands va-se entre eles o icónico tenente James programa ‘Jazz A Dois’, na Antena 2
VISÃO H I S T Ó R I A 49
Anos 20 || Charleston
A dança da moda
«Nas boites de nuit, o número sensação
é um preto mais ou menos engraxado
dançando o Charleston, que a seguir os brancos
imitam, no mesmo ritmo alegre e sacudido.
O Charleston conquistou Paris. E como decerto
também vai ter entre nós os seus cultores,
o ABC apressa-se a dar aos seus amigos a
verdadeira teoria dos seus passos»
Revista ABC, 6 de maio de 1926
«É preciso não
esquecer de
conservar em
todos os passos
a execução do
movimento
especial de
flexão do joelho,
que representa
a característica
desta dança»
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
«O Charleston
compreende
quatro passos
principais, que
o cavalheiro liga
e repete à sua
vontade»
VISÃO H I S T Ó R I A 51
Anos 20 || Música
52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Loucura A primeira página da
revista Ilustração de 1 de março
de 1927 e o desenho da capa da
revista ABC de fevereiro de 1927,
ambos da autoria de Emmerico
VISÃO H I S T Ó R I A 53
Anos 20 || Música
O
s primeiros sinais do jazz
chegaram a Portugal quando
a implantação da República
ainda fumegava e Sidónio Pais
já surgia no horizonte político.
Tê-los-á transmitido pionei-
ramente o jornalista, escritor e diplo-
mata Alfredo de Mesquita (1871-1931).
No livro A América do Norte, publicado
em 1917, deixou expresso o contacto que
em 1904 tivera, nos EUA, com a música
sincopada, afirmando que os fonógrafos
repetiam «indefinidamente a mesma
romanza ou o mesmo rag-time [sic]».
Dois anos depois, o jornal A Capital
estava já em condições de apresentar
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA ARTE GULBENKIAN
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA ARTE GULBENKIAN
Clubs O Maxim's
ficava no Palácio
Foz (foto ao lado)
e o Bristol (em
baixo, à esquerda)
na Rua Jardim do
Regedor, não longe
do Regaleira, cuja
ficha de jogo se pode
também ver nesta
página (em baixo)
vértices os Restauradores/Avenida da Com efeito, a partir dos Anos 20, tais que pratica desporto e que frequenta os
Liberdade, a Rua das Portas de Santo clubs foram o espaço por excelência de dancings adotando uma expressão sexual
Antão e o Chiado. Se alguns se insta- todas as transgressões e experimentações mais liberal (incluindo as práticas ho-
laram em edifícios mais ou menos vul- associadas a um sentimento de moder- mossexuais e bissexuais), a prostituição,
gares, como sucedeu com o Bristol e o nidade. Testemunharam e propiciaram, através das papillons com os seus nomes
Olímpia, outros demandaram os palácios particularmente, a emancipação da mu- estrangeirados abreviados, e até o início
aristocráticos. Tal foi a opção do club lher personificada na garçonne, isto é, a do consumo de estupefacientes.
Restauradores/Maxim’s (Palácio Foz), mulher masculinizada, de cabelos curtos, Frequentavam-nos, sobretudo, as eli-
do Majestic/Monumental (Palácio Al- ativa, autónoma, que fuma, que conduz, tes políticas, diplomáticas e económi-
verca) e do Regaleira (Palácio Regaleira). cas, nomeadamente os novos-ricos, os
A sumptuosidade e o luxo destes últimos aristocratas e também artistas plásticos,
não escaparam ao olhar da Imprensa. atores, escritores e intelectuais, assim
Numa crónica para o Diário de Lisboa, Os clubs como cidadãos estrangeiros de passagem
publicada em 1927, Félix Correia (1901- por Lisboa. Ou, como escreveu Henrique
-1969) caracterizou-os por terem «ricas foram Roldão em crónica humorística publica-
escadarias de mármores caros, com bai- o espaço da em 1925 no semanário O Domingo
xos-relevos preciosos, colunas antigas,
quadros célebres de pintores como Co-
por excelência Ilustrado, aos clubs ia «o filho-família
que apanhou a distração dos pais para
lumbano, pátios à maneira mourisca, de todas as se escapulir com dez mil réis tirados do
espelhos, lindas talhas de artistas como
Leandro Braga, tetos de preço».
transgressões mealheiro da tia, o caixeiro da loja de
modas […], o burguês […], o velhote
Segundo o mesmo jornalista, sob uma e experimentações atiradiço e parvo e finalmente o rapaz
trindade formada pela «mulher, a dança e associadas fino dos bancos que não usa colete para
o ‘champanhe’» e alicerçada no jogo, por fingir de americano, que traz o cabelo
vezes ilícito, vivia-se nos clubs «a estúr-
a um sentimento curto para fingir que é inglês e que é
dia, a orgia, a loucura – o ‘jazz-band’». de modernidade estúpido para mostrar que é português».
VISÃO H I S T Ó R I A 55
Anos 20 || Música
Publicidade Várias das capas da sinalizam tão-só a presença do referido mancistas e novelistas, incluindo Alma-
revista ABC, com ilustrações de Jorge instrumento. da Negreiros, através do romance Nome
Barradas, que eram, na verdade, Conceitos à parte, o jazz fez-se ouvir de guerra (1938). Reinaldo Ferreira, o
anúncios ao Bristol Club
nos clubs lisboetas através de músicos e famoso Repórter X, referiu em A virgem
de grupos estrangeiros e nacionais. Dos do Bristol Club (1930) que «as marte-
primeiros pouco se sabe, já que a Imprensa ladas do jazz-band eram entrecortadas
Ao som do jazz-band olhava para o novo género musical como pelo estralejar das gargalhadas…». João
A sede de excentricidade e de origina- uma moda passageira e sem grande, ou Ameal, em Os noctívagos (1924), aludiu
lidade dos nightclubs dos Anos 20 foi nenhum, valor artístico, reduzindo os seus às «estridências doidas de jazz-band» e
alimentada pelos ritmos frenéticos do praticantes ao anonimato. Ainda assim, a um quinteto que praticava «um jazz
jazz. O casamento entre ambos era, aliás, são conhecidas as atuações de Argentina alacre, ruidoso, com grandes dissonân-
perfeito, pois como explicava em 1926 Triano e do «seu magnífico jazz-band ame- cias bárbaras, em girândola». Augusto
a revista ABC, «o jazz correspondeu a ricano», ocorrida no Bal Tabarin-Mon- Navarro, em Uma Rapariga Moderna
uma necessidade dos cabarets interna- tanha em 1925, do Jazz-Band Sul-Ame- (1927), viu o jazz como «música ultra-
cionais», ávidos «duma música canail- ricano de Romeu Silva, no Maxim’s e no modernista» e Carlos Valongo, perso-
le, bárbara, louca, que gritasse alegria e Monumental Club em 1926, da bailarina nagem de O preto do Charleston (1930),
desvairamento e que enchesse a noite negra Sadie Hopkins, que em 1927 (por- de Mário Domingues, percecionou «as
de tumulto folgazão». ventura acompanhada pela orquestra do mulheres, a intriga amorosa, o jazz-band,
O usufruto e o entendimento que se norte-americano Bubby Curry) causou o preto do charleston, os boémios» como
fazia então do jazz eram, porém, diferen- sensação no Bristol Club, e do jazz-band «elementos esplêndidos para uma novela
tes dos atuais. Desde logo, porque aquele do navio Ryndam, que em 1927 atuou no da nossa época», à qual pôs desde logo
género musical estava ainda longe de Maxim’s. Quanto aos músicos portugue- o título Ao som do jazz.
ser uma música de concerto ou sequer ses, destacaram-se o violinista Almeida
improvisada, servindo tão-só para em- Cruz, que fundou em 1926 a orquestra A ameaça negra
balar as sucessivas e exuberantes danças Cruz’s Dance, e Tavares Belo (1911-1993), Além dos clubs, nos Anos 20 o jazz da-
que os EUA desaguaram na Europa ao que em 1928 iniciou a sua carreira como va-se a ouvir nos bailes e bailaricos, na
longo da década, incluindo o fox-trot, pianista do Bal Tabarin Montanha. Havia novel rádio, nas estridentes grafonolas,
o shimmy, o black-bottom e o charles- também as orquestras dos clubs, nomeada- nos teatros, nas revistas à portuguesa,
ton. Depois, porque o termo utilizado mente o Bristol Setimino Jazz, do célebre nas leitarias e nos cafés, nomeadamente
era não o jazz, mas sim o jazz-band, o violinista Raul d’Oliveira, o Maxim’s Jazz no Chave d’Ouro, no Rossio, que servia
qual era popularmente utilizado como ou o Jazz-band Patos. mesmo torradas com sabor a charleston.
sinónimo da bateria. Tal significa que Globalmente, a prática jazzística nos Até o Palácio de Belém, sob a presidência
muitas das aparentes referências ao jazz nightclubs foi ilustrada por alguns ro- de Bernardino Machado, lhe abriu as
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
portas – ou a um seu sucedâneo – nas ou a escarumbocracia», chamou Mário
vésperas do golpe do 28 de Maio de 1926. Azenha em 1928, ao que Fernando de
Só o cinema escapou, porque era ainda Pamplona apelidou, nesse mesmo ano,
mudo. de «hora preta». Este último sentia, aliás,
O problema, dizia-se, era a «Invasão
americana», título do artigo que Félix
O jazz era uma «nos acordes estrídulos do «Jazz» […]
a voz das árvores e dos macacos, a voz
Correia publicou no Diário de Lisboa, «música bárbara, ébria, ruidosa, do sertão (…). Não foi,
em 1930, escassos anos antes de entre-
vistar Hitler em Berlim: «Nos bailes só
louca», que contudo, original, pois em 1924 já o es-
critor Ferreira de Castro se referira ao
se tocam charlestons, black-bottoms gritava «alegria jazz como «música de selvagens, donde
e tangos; tudo americano. E muitas e desvairamento» se levitam gritos de desbravadores de
das orquestras, brancas, negras ou café
com leite, também vieram da América
e enchia «a noite de selvas, onde há mãos que rufam tambo-
res como nos batuques africanos, mãos
[…]. E se damos um salto ao cabaret, tumulto folgazão» negras que tangem peles de veado dis-
lá está o jazz americano a ferir-nos os tendidas sobre troncos ocos».
ouvidos com o seu barulho infernal.» A decadência que os clubs conheceram
António Alves Martins, poeta e jorna- no final dos Anos 20 teve, porém, pouco
lista, não podia estar mais de acordo. a ver com a violência verbal das críticas.
No mesmo jornal, defendera em 1924 Contribuíram para tal a implantação de
que o jazz, com os «seus acordes infer- um regime ditatorial e conservador em
nais», não era senão «uma das muitas 1926 e a promulgação da lei do jogo,
invenções americanas, destinadas a em 1927, que proibiu os jogos de azar
dar cabo deste velho e cansadíssimo em Lisboa.
mundo europeu». Sobrinho de bispo, Assim se fecharam, uma a uma, as por-
estatuiu mesmo que «expulsar do seu tas das casas que nos Anos 20 alinharam
seio o jazz-band equivale a expulsar do – ainda que por breves momentos – os
seu corpo todos os pecados – da sua lisboetas com a modernidade que se vivia
alma todas as tentações». nas demais capitais da Europa. Quanto
A aludida profusão jazzística acabou ao jazz, migrou progressivamente dos
por ser demasiado intensa, sobretudo nightclubs para os teatros, passando a
a partir da implantação da ditadura. ser, a partir dos anos 40 e 50, uma mú-
Reagiram prontamente alguns cronis- sica para ver e ouvir em ambiente de
tas e jornalistas. O «triunfo dos negros concerto.
VISÃO H I S T Ó R I A 57
Anos 20 || Drogas
O
mas que nunca terá passado de uma en-
nome era Charlotte. Reinal- Nascido em 1897 em Lisboa, Reinaldo cenação. Noutra altura terá espalhado
do Ferreira descreve-a como Ferreira iniciou-se no jornalismo aos 17 sangue de galinha no quarto de uma pen-
«uma francesa extravagante, anos no diário A Capital e deixaria uma são, para a fotografia de uma sua história
antiga artista de circo, amante produção de dimensão invulgar para sobre uma estrangeira assassinada pelo
de um croupier», esquelética, quem só viveu 38 anos. De escrita fácil, marido numa pensão de Lisboa. E sempre
já de certa idade, cabelo curto, cedo considerado o maior repórter por- ficaram suspeitas de que a sua famosa
maquilhagem carregada, vestida de preto. tuguês, trabalhou em vários jornais, viveu série de reportagens sobre a Rússia dos
Terá sido ela a primeira vendedora de em Paris, Madrid, Barcelona, Bruxelas, ao Sovietes foi na realidade escrita em Paris.
cocaína em Lisboa. serviço da Agência Americana, escreveu O público reagia com alguma indulgên-
O já então popular Repórter X faz dela novelas, teatro, foi argumentista e realiza- cia a estes deslizes. Até porque a imagina-
um retrato minucioso, quer na revista ABC dor de cinema. A partir do Porto lançou o ção de Reinaldo Ferreira não era necessa-
quer em livros como Memórias de um semanário Repórter X, o seu pseudónimo, riamente um mal. Ajudou, por exemplo,
Ex-Morfinómano. Mas é difícil dizer até criado por lapso por um tipógrafo que não as autoridades a desvendar um caso que
onde vai a realidade e começa a ficção des- compreendera a assinatura. Ao longo de impressionou o País: o assassínio da atriz
te retrato, traçado por alguém que sempre Maria Alves, estrangulada num táxi e ati-
teve dificuldade em distinguir os limites rada para uma sargeta. Seguindo a lógica
de uma e de outra. São de sua autoria da literatura policial, ele concluiu que só
as últimas palavras atribuídas a Sidónio
Pais: «Morro bem. Salvem a Pátria!»
A extravagante podia ter sido o ex-empresário da vítima.
Mário Domingues, chefe de redacção
Mas parece seguro que o ex-Presidente francesa Charlotte do Repórter X, um velho amigo do liceu
terá sucumbido de imediato aos tiros com terá sido a primeira de quem havia de se afastar mais tar-
que foi alvejado, sem dizer nada. Como de, contaria, muito depois da morte de
parece igualmente seguro que o jornalista
vendedora de Reinaldo, que o início do seu descrédito
ainda nem tinha chegado ao local. cocaína em Lisboa começou com a reportagem sobre a sua
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
‘Prostitutas cheirando cocaína’ Esta
ilustração alemã, de Viktor Leyrer (1927),
restitui-nos o ambiente da época
VISÃO H I S T Ó R I A 59
Anos 20 || Drogas
des, com enorme efeito.» Surgem, assim, cana e dos missionários», escreve Carlos
os preparados psicoativos. Se a morfina Alberto Poiares em Análise Psicocrimi-
BRIDGEMAN IMAGES/FOTOBANCO
e a heroína são isoladas a partir do ópio, nal das Drogas, tese escrita para a Uni-
a cocaína é extraída das folhas de coca. versidade do Porto.
Sem que houvesse, durante algum tempo, Esse movimento seria em breve lidera-
qualquer problema legal com isso. Surgem do pelos EUA, que decidiram aproveitar
no mercado numerosas bebidas com al- a ocasião para voltar às boas graças da
gum teor de coca, como o vinho Mariani, China, já que tinham chegado a sus-
que contaria entre os seus apreciadores a pender durante uma década a entrada
rainha Vitória e o papa Leão XIII. ‘A droga que mata’ Assim titula uma de imigrantes daquele país. «Depois da
«Nos Anos 20 dá-se a mudança de pa- revista francesa, referindo-se à ‘coca’ adoção de medidas racistas no campo do
radigma. O consumidor de droga deixa de emprego, a droga funcionou, pois, como
ser visto como um dependente para ser moeda de troca», explica C. A. Poiares.
considerado um criminoso. Mas o movi- Lá longe, na China, o uso do ópio era Em 1909 reunia-se a Conferência de
mento proibicionista internacional surgiu tão generalizado que constituía um pro- Xangai, o primeiro encontro interna-
por causa dos opiáceos. A coca era a droga blema sanitário, a que as autoridades cional sobre droga, presidido pelo dele-
das festas e dos ricos. Não dava preocupa- queriam pôr fim. Levado da Índia pela gado dos EUA, o puritano bispo Brent.
ção de maior», diz ainda Luís Vasconcelos. Companhia das Índias Orientais, o ópio O alinhamento com a China permitia
Reinaldo Ferreira escreve sobre o ópio: dera lugar, entre 1839 e 1856, a duas guer- ainda aos norte-americanos «garantir o
«É, de todos os chaveiros dos tais paraísos ras entre a China e a Grã-Bretanha. Mas, domínio no Pacífico», já que tentavam fir-
artificiais, o mais antigo. Nasceu na deca- em ambos os casos, os ingleses saíram mar-se como primeira potência mundial.
dência da civilização chinesa.» Mas depois a ganhar, ficando até com Hong Kong. Entre os países menos entusiastas do
estendera-se ao Ocidente: «Aristocratas Portugal era parte no negócio devido proibicionismo estava Portugal. Daí que
degenerados criaram, nos seus palácios, a Macau. E algum do ópio que chegava nesta como nas conferências que se se-
recintos esconsos onde se fumava ópio. à China seria cultivado em Goa. guiram a sua posição tenha sido, segundo
E os amarelos que emigravam para Eu- aquele autor, «alvo de diversas críticas».
ropa traziam, entre outros planos de Os fumos proibidos No entanto, dada a pressão externa, Por-
negócios, o de montarem uma fumerie Os «amarelos» de que falava o Repórter tugal aprovaria, em 1923, a primeira lei
de ópio.» X eram os chineses que tinham emigrado de combate à droga. Publicada no ano se-
Em Paris não só surgiram numerosas para alguns países da Europa, mas sobre- guinte, era mesmo assim bastante branda:
fumeries, como seria criado, em 1844, o tudo para os EUA, onde foram trabalhar qualquer tipo de droga só podia ser ven-
Clube do Haxixe, que reunia la crème de na construção dos caminhos-de-ferro. dido às farmácias e a «estabelecimentos
la crème dos intelectuais: Baudelaire, que Alcunhados de coolies, um termo pejora- científicos».
escreveria sobre drogas, sobretudo em tivo de origem difícil de terminar, eram Bem mais restrita foi a legislação de
As Flores do Mal (1857), mas também mal vistos não só pelo hábito de fumarem agosto de 1926, que previa seis meses de
Alexandre Dumas, Alfred de Musset ou ópio, mas sobretudo por trabalharem prisão e multas de 3 mil a 5 mil escudos
Balzac. Também em Portugal, em 1915, por salários mais baixos do que os locais. para os importadores ou comerciantes de
Fernando Pessoa, através de Álvaro de «Um pouco por toda a Europa, por drogas que não tivessem autorização. As
Campos, publicava o Opiário. «Por isso vezes à revelia dos governos, começaram mesmas penas serão aplicadas aos consu-
eu tomo ópio/é um remédio.» No seu a manifestar-se movimentos de opinião midores e aos donos de «casas de reunião
caso, contra o tédio. contra a droga, partindo da Igreja Angli- ou divertimento, como clubes e cafés, ou de
casas de toleradas ou de passe», que per-
mitam estupefacientes. O estabelecimento
seria encerrado pelo mínimo de um ano.
Em 1935 morria Reinaldo Ferreira.
A pouco e pouco os leitores tinham-se
A imaginação de tornado menos indulgentes para com a
Reinaldo Ferreira não sua imaginação, que não conhecia limites.
E a sua fase de ex-morfinómano fora breve.
conhecia limites e é Mas até na sua morte o Repórter X foi
difícil saber quanto das símbolo de toda uma época. Cada vez mais
suas reportagens seria apertados pela nova legislação, os clubes
noturnos de Lisboa foram encerrando um
ficcionado a um. A festa tinha chegado ao fim.
60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS
modernos
ca como pretexto para traçar um re-
trato frenético da época que se vivia.
O conhecimento aprofundado sobre o
jazz, enquanto estilo musical, Ferro só
Antes de ser o mestre da propaganda do Estado Novo, o conquistaria «nas incursões furtivas
António Ferro deixou-se contaminar pela loucura aos caveaux parisienses» e «nos clubes
dos Anos 20, com o jazz e o cinema à cabeça, e ligou-se nova-iorquinos», escreve o investigador
Orlando Raimundo em António Ferro,
ao movimento modernista, produzindo textos que lhe
O Inventor do Salazarismo (D. Quixote,
valeram a censura da República 2015), antes de acrescentar que Ferro se
por Vânia Maia tornaria um «colecionador compulsivo de
‘O
discos». A neta Mafalda Ferro, 62 anos
jazz-band é o triunfo da disso- do pelas notas de uma orquestra de jazz (filha do poeta António Quadros), revela
nância, é a loucura instituída ao vivo e por bailarinas que irrompiam que o avô não era particularmente fã de
em juízo universal, essa calu- pelo palco. A façanha seria repetida em fado, apesar do uso propagandístico que
niada loucura que é a única várias cidades do Brasil, para deleite de dele fez. «Percebia que era a canção na-
renovação possível do velho uma burguesia perante a qual Ferro sur- cional, mas aquele lado sofrido não tinha
mundo… Ser louco é ser li- gia como representante do modernismo a ver com ele. Ele era mais jazz», afirma.
vre, é ser como a inteligência não sabe português, à boleia de ter figurado como À VISÃO História, Orlando Raimundo,
mas como a alma quer. Os loucos são editor dos dois números da mítica revista 67 anos, destaca a capacidade de dominar
os grandes triunfadores da criação.» A Orpheu, marca do modernismo luso, que a arte da retórica do futuro diretor do
irreverência destas palavras vociferadas juntara nomes como Fernando Pessoa, Secretariado de Propaganda Nacional
em 30 de julho de 1922 por António Fer- Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor (Secretariado Nacional de Informação
ro, então com 26 anos, deixaria a plateia ou Mário Sá-Carneiro. Ferro aparecera após a II Guerra Mundial), que Ferro
brasileira do prestigiado Teatro Trianon, na qualidade de editor, já que à data de liderou de 1933 a 1949: «Usava as pala-
no Rio de Janeiro, de cara à banda. Era a lançamento da revista, em 1915, tinha 19 vras como objetos e sabia como as colocar
primeira vez que António Ferro apresen- anos e, sendo menor de idade, era o edi- para chocar e dar nas vistas.» Efeitos lar-
tava a conferência A Idade do Jazz-Band. tor «irresponsável» de que os arrojados gamente atingidos durante a sua estada
A espaços, o seu discurso era interrompi- modernistas precisavam… de um ano no Brasil, entre 1922 e 1923.
VISÃO H I S T Ó R I A 61
Retrato de
Mussolini com
dedicatória para
António Ferro
O intrépido
entrevistador
«A porta abre-se com violência,
com irritação, como se fosse
aberta por um pé-de-vento, eu
tenho Hitler, finalmente, diante
de mim.» A descrição dramática
de António Ferro assinala um
momento alto da sua carreira
jornalística – manchete de 23
de novembro de 1930 do Diário
de Notícias. O encontro, em
Munique, com Adolf Hitler, à
época ainda na oposição ao
Governo alemão, era o culmi-
nar de uma década de grandes
entrevistas que havia começado
em 1920 com a sua entrada para
O Século. Em 1923, já ao serviço
do Diário de Notícias, encontra-
-se pela primeira vez com Benito
Mussolini, em Roma.
O Duce diz-lhe que a única ma-
neira «de julgar se uma ditadura
é um bem ou um mal é aguardar
pelos seus resultados». O seu
périplo dá origem ao livro Viagem
à Volta das Ditaduras (1927). A
sua simpatia por este tipo de
regimes era evidente. Já depois
da publicação do livro dá-se a
entrevista a Hitler que, como
descreve Margarida Acciaiuoli,
em António Ferro, A Vertigem da
Palavra (Bizâncio, 2013), se resu-
me a três perguntas em francês
previamente aprovadas. Ferro
pergunta-lhe se o seu partido é
da paz ou da guerra, e a resposta
do futuro Führer dá título ao ar-
tigo: «O meu partido é o partido
da paz, mas não da paz de Ver-
salhes.» António Ferro admitia
que, por vezes, era necessário
«maquilhar» o entrevistado para
o apresentar «com interesse,
com novidade, com espírito», o
que torna difícil avaliar até aonde
poderá ter ido a sua criatividade,
que nada tinha de jornalístico.
62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cortesão. Apesar de estes terem ganho a
causa, a peça não seria reposta.
A produção literária modernista de
António Ferro, concentrada até 1925,
andaria de mãos dadas com o choque e
a polémica: Teoria da Indiferença (onde
escreve que teve «a impressão de ter sido
plagiado» quando leu Oscar Wilde), Co-
lette (um perfil da arrojada romancista
francesa Colette Willy), o manifesto fu-
turista (fora de tempo) Nós, Leviana, que
traça o retrato de uma mulher frívola com
algum erotismo (ao estilo do modernista
espanhol Ramón Gómez de la Serna, seu
amigo), entre outros textos.
«Um velho sonho de Ferro era o de
tornar-se num protagonista da impor-
tação dessa nova cultura cosmopolita e
Família António Ferro com o filho -de-mel. Fernanda de Castro, com quem contribuir assim, patrioticamente, para
mais velho, António Quadros, em António Ferro teria dois filhos (António tornar Lisboa numa cidade à la page»,
1926 (à esq.), e a mulher, Fernanda de Quadros em 1923 e Fernando Quadros escreve o investigador José Barreto no
Castro com uma amiga (em cima)
Ferro em 1927), tem uma abundante ensaio António Ferro: Modernismo e
produção literária. «Se virmos as foto- Política (2011). A sua estratégia passava
A 1 de agosto de 1922 surpreende os grafias da época, o mundo artístico era pelas frequentes viagens a capitais eu-
amigos ao casar-se por procuração com masculino, mas a Fernanda de Castro ropeias, mas também pelas passagens
a namorada que tinha deixado em Lis- estava lá. Nunca passou pela cabeça do pelo Brasil e EUA, muitas vezes tendo
boa, a poetisa Fernanda de Castro. As meu avô que ela fosse apenas dona de como pretexto a sua carreira de repórter
suas testemunhas seriam a atriz Lucília casa», garante Mafalda Ferro. internacional (ver caixa). A expensas do
FOTOS: FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS
Simões, que o havia desafiado a fazer Diário de Notícias, que o autoriza a ficar
a viagem transatlântica, e o almiran- Vítima da censura dois meses nos EUA na primavera de
te Gago Coutinho, ainda a celebrar a Ainda no Brasil, Ferro dá a conferência 1927, dá largas à paixão pelo cinema e
sua travessia aérea do Atlântico Sul. Os A Arte de Bem Morrer, em que defende a visita Hollywood. Conhece Walt Disney
padrinhos brasileiros foram o escritor ideia perturbadora de que morrer é bom, e o produtor e ator Douglas Fairbanks,
Oswald de Andrade e a artista Tarsila alcançando grande impacto (o texto seria com quem partilhava a admiração por
do Amaral, que pintou o retrato da noiva editado com capa de Almada Negreiros, Mussolini. Na bagagem traz a ideia de
após a sua chegada ao Brasil para a lua- de quem era, na altura, próximo). Cau- seguir o exemplo norte-americano de usar
sa ainda grande sururu em São Paulo o cinema para promover ideais. Esteve
a estreia da sua peça Mar Alto, sobre próximo de várias tentativas de golpe con-
Literatura
As obras A Idade
uma história de adultério, incluída no tra a República, fruto da amizade com o
do Jazz-Band e reportório da Companhia de Teatro de comandante Filomeno da Câmara, com
Hollywood Capital Lucília Simões, fazendo parte do elenco o quem partilhava a nostalgia sidonista.
das Imagens, da próprio Ferro. Já de regresso a Portugal, Os ideais do golpe militar do 28 de
autoria de António a peça seria apresentada no Teatro de São Maio de 1926 obrigaram-no a trocar o
Ferro, mostram a
Carlos, em Lisboa, a 19 de junho de 1923. modernismo pelo «vanguardismo na-
sua paixão pela
música e pelo Sem meias medidas, o governador civil, cionalista», mais condizente com o re-
cinema. Os livros major Viriato Lobo, proíbe-a em nome gresso às tradições que o Estado Novo,
Leviana e Colette da ordem pública. Surge assim o Docu- a partir de 1933, defenderia. A Salazar,
seriam polémicos mento dos Homens de Letras contra a não agradava o seu passado irreverente,
devido ao seu
censura a Ferro, subscrito por autores o que levou Ferro a retratar-se: «A obra
pendor sensual
como Aquilino Ribeiro, Fernando Pes- que eu escrevi aos 20 anos não é minha,
soa e Raul Brandão, além de nomes que é dos meus 20 anos, é de alguém que
seriam mais tarde vítimas da censura morreu.» Uma obra hoje esquecida que
que o então jovem dramaturgo passaria ficou mesmo, para sempre, nos anos 20
a defender, como António Sérgio e Jaime dos seus 20 anos.
VISÃO H I S T Ó R I A 63
Anos 20 || Fraude
A grande burla
de Alves Reis
O maior falsificador de todos os tempos acreditava que só
havia uma maneira de enriquecer: emitindo dinheiro. Foi o que
fez. História de um burlão que enganou o Banco de Portugal e
que confiou quase até ao fim na sua «boa estrela»
por Clara Teixeira
A
rtur Virgílio Alves Reis começou moeda na metrópole – já não era obrigado
cedo a construir o mundo em a assegurar a contrapartida em ouro do di-
que queria viver. Aos 18 anos, nheiro que emitia. Alves Reis rodeou-se de
falsificou um diploma de Enge- abundante documentação e transformou a
nharia emitido por uma escola cela em «gabinete de trabalho». Aos pou-
politécnica de Oxford que nunca cos, «a simples curiosidade» que o movia
existiu. Perfecionista, deu-lhe existência transformou-se no «firme desejo de emitir
legal autenticando uma cópia do docu- notas», como conta Francisco Teixeira da
mento num cartório de Sintra e destruin- Mota, autor de Alves Reis – Uma História
do de seguida o «original». Como técnico
de Engenharia, emigrou em 1916 para
Angola com a jovem esposa, Maria Luísa
Jacobetti de Azevedo, que o acompanhará
na aventura colonial e em muitas outras
que o destino reservará ao casal.
Em poucos meses, alcançou um posto
de chefia na Companhia dos Caminhos
de Ferro de Moçâmedes. Não se ficou por
aí. As duvidosas reparações efetuadas
nas locomotivas não impediram a sua
nomeação para altos cargos técnicos na
antiga colónia, mas foi obrigado a recuar
já que o «diploma» de Oxford não o equi-
parava aos engenheiros saídos das escolas
portuguesas. Estreou-se nos negócios de
import-export e na exploração mineira,
mas as coisas não lhe correram bem. Em
1923 regressou de vez a Lisboa com a
mulher e dois filhos pequenos, sem ter
como pagar uma vida abastada. Recor-
reu a esquemas e comprou uma empresa Para eliminar o aspeto
ferroviária colonial com um cheque sem
provisão. As dívidas acumularam-se e
novo e o cheiro a tinta,
foi preso por burla no Aljube, no Porto. as notas foram passadas
E foi durante os dois meses passados na
prisão que gizou um crime quase perfeito.
por água com limão, mas
Em 1924, Portugal já tinha abandonado desbotaram e adquiriram
o padrão-ouro e as notas em circulação um tom avermelhado.
eram cada vez em maior número. O Banco
de Portugal (BdP) – uma instituição priva-
Ficaram conhecidas como
da que detinha o exclusivo da emissão de «camarões»
64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A encomenda foi entregue à casa in-
glesa Waterlow & Sons, fabricante ofi-
cial das notas do BdP. O presidente da
firma, Sir William Waterlow, acreditou
na narrativa e aceitou fabricar as notas
ao abrigo de um segredo de Estado para
auxiliar Angola. Ultrapassados alguns
episódios rocambolescos, a emissão
clandestina entrou em circulação em
fevereiro de 1925: uma primeira entrega
de 20 mil notas foi feita no dia 10 e uma
segunda, de 30 mil notas, no final do
mês. Seguiu-se uma terceira entrega de
150 mil notas em março. Os passapor-
tes diplomáticos de Marang e de José
Bandeira foram cruciais para que as
notas, acomodadas em pesadas malas,
viajassem entre Londres e Lisboa (depois
de uma escala na Holanda), sem serem
detetadas nas alfândegas.
Alves Reis confiava, como sempre, na
sua «boa estrela».
As notas ‘camarões’
As notas novas foram rapidamente trans-
formadas em «dinheiro lavado», ou seja,
Recolha de dinheiro As filas à porta do notas no estrangeiro. Faltava criar uma trocadas no mercado negro por divisas
Banco de Portugal para troca das notas narrativa para acabar com desconfianças, (libras, dólares) e cheques em moeda
de 500 escudos duraram vários dias
e nisso Alves Reis era mestre. estrangeira – até por licenças de impor-
tação. Outro estratagema consistia em
Portuguesa (Oficina do Livro). Ao ler um Empréstimo secreto fazer depósitos de notas novas em ban-
discurso do deputado Cunha Leal, profe- A pretexto de um imaginário empréstimo cos e, dias depois, levantar esses mesmos
rido em 29 de outubro de 1923, percebeu secreto de um milhão de libras (cerca de depósitos na íntegra, pagos em dinhei-
que as tentativas desesperadas do Governo cem mil contos) para resolver a delicada ro «velho». A compra de joias também
para controlar a inflação davam liberda- situação financeira de Angola, feito por um foi usada na conversão, especialmente
de ao Banco de Portugal para aumentar sindicato de empresas holandesas, Alves através de uma ourivesaria do Porto com
a quantidade de dinheiro em circulação Reis planeou uma emissão clandestina ligações à casa cambista que, mais tarde,
sem «dar conta disso» ao poder executivo. de notas de 500 escudos, com a efígie de viria a detetar a burla.
O BdP não só emitia notas à revelia do Go- Vasco da Gama, que seria usada para pa- Para eliminar o aspeto novo e o cheiro
verno e do Parlamento como nem sequer gar esse mesmo empréstimo aos credores. a tinta, Alves Reis, com a ajuda do grupo
controlava as que estavam em circulação. Redigiu contratos e cartas autorizando a de «colaboradores», mergulhou notas
Emitir dinheiro parecia ser uma boa emissão, falsificou as assinaturas do novo no valor de 1980 contos, uma a uma,
maneira de enriquecer. alto-comissário em Angola, Rego Cha- em água com sumo de limão deitada
Como o BdP detinha o exclusivo das ves, do delegado do Governo de Angola na banheira da casa de banho do es-
emissões, Alves Reis teria de atuar em e deputado da nação, Delfim Costa, do critório. Patrão e empregados saíram
nome da instituição. Com a ajuda de ministro das Finanças, Daniel Rodrigues, para jantar, mas quando voltaram ao
Adolph Hennies, um homem de negócios e do próprio governador do BdP, Inocêncio 1º andar da Rua de São Nicolau as no-
suíço de reputação duvidosa com inte- Camacho Rodrigues. Rodeou-se de todos tas tinham desbotado e adquirido um
resses em Angola, do seu sócio holandês os cuidados e estudou as notas em circu- tom avermelhado. O Banco de Portugal
Karel Marang, detentor de passaporte lação ao pormenor. As notas clandestinas conserva alguns destes espécimes, bati-
diplomático, e de José Bandeira, irmão tinham de ser iguais às que já circulavam, zados como «camarões», no espólio do
do ministro de Portugal em Haia, forjou obedecendo à mesma ordem numérica Museu do Dinheiro, em Lisboa.
um documento em que o BdP lhes dava e alfabética e aos critérios de sequência Imparável, o burlão não desistiu e ten-
poderes para encomendar o fabrico de das assinaturas dos responsáveis do BdP. tou nova experiência, mergulhando as
VISÃO H I S T Ó R I A 65
Anos 20 || Fraude
66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
viagem a Luanda. O mundo paciente-
mente construído à medida dos seus so-
nhos começava a desabar. O governador, o
gerente da filial do Porto e um diretor do
BdP e um alto funcionário público pas-
sam por cúmplices e também são presos
– eram suas as assinaturas nos contratos
enviados à Waterlow & Sons. A 7 de de-
zembro, o BdP iniciou a recolha de todas
as notas Vasco da Gama em circulação,
já que era impossível distinguir entre as
das diferentes emissões. Durante dias,
formaram-se filas à porta da instituição.
Na sequência das revelações, o ministro
do Comércio demitiu-se e a desconfiança
alastrou ao Governo, correndo rumores
sobre alegadas listas de políticos suborna-
dos pelo Angola & Metrópole. Mas con-
tinuava por apurar quem teria falseado
as assinaturas dos diretores e fornecido
a numeração das notas aos falsificadores.
Na noite de 23 para 24 de dezembro
de 1925, Alves Reis confessa finalmente
a burla. Cai na armadilha dos investiga-
dores, acreditando que a mulher estava
presa numa cela com ratos.
O julgamento
Burlão, falsário, mitómano, Alves Reis
vê a vida desabar, e a 31 de maio de 1928
tenta suicidar-se na cela. Abraça o cato-
licismo, depois o protestantismo e, aos
poucos, desiste de atribuir as emissões
clandestinas ao BdP. Começa a ser jul-
gado em maio de 1930, quatro anos e
meio depois da detenção. É acusado de
falsificação e uso de contratos e cartas
falsos, exercício ilegal de profissão e burla
por cheques. Comove o tribunal com um
relato de cinco horas sobre a sua tragédia
pessoal, que mais tarde publica em livro.
É condenado a oito anos de prisão, segui-
dos de 12 anos de degredo. Ao jornalista e
seu antigo colega de liceu António Ferro,
declarou, no final da leitura da sentença:
«Pode dizer que me resigno.»
O maior burlão que Portugal conheceu
foi libertado a 5 de maio de 1945. Tinha
47 anos e voltou a dedicar-se aos negócios.
Uns correram mal e conduziram-no de
novo à barra do tribunal. Morreria em
1955, de ataque cardíaco, quando a sua
«boa estrela» já o tinha abandonado para
sempre.
Anos 20 || Inflação
Dinheiro louco
Para combater a inflação, imprimia-se dinheiro de forma
descontrolada, à revelia dos governos e do Parlamento.
As «emissões surdas» de moeda e os talões e os vales de
trocos tomavam o País de assalto
por Clara Teixeira
D
epois da loucura da Grande controlo. Com custos para a economia, Dos vales à nota de
Guerra, a vida no Portugal como se verá. mil Para acompanhar
dos anos 20 fervilhava. Nem O escudo, criado em 1911 pelo regi- a subida dos preços, é
lançada a nota de mil
o dinheiro escapava. Sujeito a me republicano, desvalorizou-se tanto escudos em 1920. Mas
desvalorizações acentuadas e em 15 anos como o real em 500 anos, o dinheiro vale cada vez
a especulações desenfreadas, como notou o investigador Nuno Valério. menos e os municípios
ele era caro e escasso. A inflação subia Para comprar algo que custava 1 escu- começam a emitir
de forma vertiginosa e o câmbio do escu- do (1$00) em 1911, eram precisos 1$01 cédulas de 2, 5 e 10
centavos para substituir
do batia no fundo. Faziam-se apostas de em 1914, 2$96 em 1918, 5$86 em 1920 a moeda que escasseava
risco e construíam-se fortunas. Surgiam e 24$25 em 1924. Ou seja, o poder de
empresas e fábricas novas a um ritmo compra da moeda nacional era 24 vezes
nunca visto. Entre 1920 e 1926, seriam menor do que 13 anos antes, em 1911.
criados 18 novos bancos. O ambiente de O dinheiro valia cada vez menos. Para Moeda descontrolada
negócios era febril. tentar acompanhar a subida de preços, O Banco de Portugal (BdP) não ficava
«A vida», escreveu Raul Brandão, foi lançada a nota de mil escudos no final indiferente perante o descalabro da eco-
«modificou-se nos últimos vinte anos, de 1920. Ninguém poupava. Estima- nomia. De capitais privados, a instituição
primeiro com lentidão, e depois da -se que o valor dos depósitos bancários detinha o exclusivo da emissão de moeda
guerra, num tropel que mete medo.» tenha diminuído de 44 contos (44 mil no continente e ilhas. As suas emissões fi-
Os efeitos financeiros da I Guerra Mun- escudos, ou 44 000$00) em 1922 para duciárias (notas de banco) destinavam-se
dial (1914-18) não pouparam Portugal, menos de 29 contos em 1923. quase exclusivamente ao financiamento
que acumulou uma crise económica com A depreciação interna do escudo, re- da despesa e da dívida públicas. A in-
uma crise política. A espiral inflacionista sultante da inflação, era acompanhada vestigadora Maria Eugénia Mata anali-
só era comparável à dos países perde- na frente externa pela descida do câmbio. sou como os défices públicos forçavam
dores da guerra – Alemanha, Áustria e Em finais de 1918, a libra trocava-se a o Estado a contrair empréstimos junto
Hungria. Os bens essenciais aumenta- 7$12. Este valor foi superado em mais de do BdP. Este, obrigado a fabricar moeda
vam de um dia para o outro. Durante o 20 vezes em 1924, quando a divisa inglesa para satisfazer as necessidades do Estado,
conflito, os preços mais do que dupli- atingiu o valor máximo de 155$54, esta- alimentava, com as suas emissões, a forte
caram. Entre 1920 e 1924, cresceram bilizando em seguida perto dos 110$00. inflação do pós-guerra. Cerca de 90% das
quase três vezes, obrigando aqueles que
dependiam de rendimentos fixos – como
pensões, juros, títulos, até salários – a
deitar contas à vida.
O esforço de guerra fez crescer o défice Sem moedas
e também a dívida pública, que passou de
um milhão de contos em 1918 para 8 mi-
de trocos, o País
lhões em 1924. A crise nas finanças pú- funcionava
blicas foi agravada pela diminuição das
reexportações das matérias-primas das
à custa de vales
colónias, a escassez de bens essenciais, improvisados
a redução das remessas dos emigrantes em pequenos
e a fuga de capitais. Perante a pressão
inflacionista, a solução encontrada foi
pedaços de papel
o fabrico de dinheiro sem qualquer e cartão
68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
notas em circulação constituíam dívida do emissões também eram feitas através de Talões de trocos
Estado ao BdP, segundo assinala Manuel «portarias surdas» assentes em acordos Confrontado com a escassez de trocos, o
Mira Godinho. escritos entre o Governo e o BDP, de Governo autorizou a Santa Casa da Mi-
Em 1924, a oferta de moeda era já 15 portarias elaboradas mas não publica- sericórdia de Lisboa e a Casa da Moeda
vezes maior do que em 1914. A moeda em das, de acordos sem portaria elaborada a emitirem cédulas de 2,5 e 10 centavos.
circulação aumentou de 128 mil contos e de «um quinto processo que consiste Um total de 178 municípios foi também
em 1913 para 1,846 milhões de contos em em o Banco não dar cavaco ao Governo, autorizado a criar as suas próprias cédulas,
1925. A emissão de notas tentava acompa- aumentar a circulação fiduciária e o Go- válidas nas respetivas áreas geográficas.
nhar a subida dos preços, mas por detrás verno, a certa altura, dar conta disso e Mas não foi suficiente. À revelia do Mi-
estava a necessidade de imprimir dinheiro não se importar». nistério das Finanças, surgiram por todo
para o Estado poder pagar as suas pró- Com efeito, o BdP não só emitia notas o lado talões de trocos ou vales improvi-
prias despesas. sem autorização do Parlamento como sados em pequenos pedaços de papel e
Desesperados com a dívida e impo- também passou a fazê-lo sem o aval dos cartão, ostentando apenas o carimbo e
tentes perante o aumento dos preços, governos. A instituição nem sequer con- a assinatura do comerciante. O País fun-
os sucessivos governos começam a dar trolava os exemplares que já estavam em cionava à custa deste dinheiro informal.
luz verde ao Banco de Portugal para circulação. Ao perceber isto, um inspirado A desvalorização abrupta da moeda foi
aumentar a quantidade de dinheiro em Alves Reis começou a preparar a maior travada a partir de 1924, quando o primei-
circulação sem autorização legislativa. burla que Portugal conheceu no século ro-ministro (e simultaneamente ministro
São elaboradas portarias ilegais pelos XX (ler, nesta edição, o texto A Grande das Finanças) Álvaro de Castro proibiu as
governos, não publicadas no Diário do Burla de Alves Reis). emissões fiduciárias para alimentar défice
Governo (atual Diário da República), en- Mas o escudo continuava a desvalo- e dívida. A medida, a par de um forte
quadrando novas emissões de notas que rizar-se mais depressa do que o ritmo a aumento de impostos para equilibrar as
ficavam à espera de uma oportunidade que se fabricavam notas novas. A infla- contas públicas e do aumento das reservas
política para fazer passar no Parlamento ção anulou este aumento, provocando cambiais do BdP para travar a descida
as autorizações necessárias. uma redução efetiva do valor da moeda. do escudo, ainda tardará a produzir o
A 29 de outubro de 1923, o deputa- O dinheiro físico começou a escassear efeito desejado. O controlo da inflação,
do Cunha Leal desfere no Parlamento nas transações comerciais mais banais. a estabilização monetária e a disciplina
um ataque à política monetária do BdP, As moedas de prata e bronze rareavam, já orçamental foram alcançadas durante a
denunciando as «cinco maneiras» de que o metal era mais valioso do que o seu República, mas o regime liberal, deposto
aumentar a circulação de moeda em Por- valor facial. Cerca de 99% do dinheiro pela Ditadura Militar em 1926, já não be-
tugal. Para além das emissões legais, as em circulação era constituído por notas. neficiaria desse «milagre» económico.
VISÃO H I S T Ó R I A 69
Anos 20 || Estatísticas
Portugal
em números
Na década em que os casamentos diminuíram e os divórcios aumentaram,
ainda eram muito poucas as mulheres na universidade
9 283 Carruagens, landaus, caleches, coupés, mylords, vitórias, 1 515 Camiões, camionetas, automóveis, side-cars
dog-carts, phaetons, tilburys, char-à-bancs, ómnibus e semelhantes e semelhantes
8 912 AUTOMÓVEIS, motocicletas, side-cars e outros com motor 137 838 CARROÇAS, galeras,
carros para bois e semelhantes
468 Elétricos
4 190 Carroças ou carros de mão
15 375 Bicicletas, velocípedes e semelhantes
6 milhões
32 mil e 991
HABITANTES
CASAMENTOS em Portugal em 1920
E DIVÓRCIOS 1 milhão 755 mil e 650 ENSINO
53 024 sabiam ler (1920)
51 213
50 043 49 104 7 126
46 242 46 801 ESCOLAS OFICIAIS DE ENSINO
45 550 45 347
44 525 29 070
41 776
ESTRANGEIROS PRIMÁRIO elementar, em 1925-26
em Portugal em 1925
561 501 588 632 555 568 477 449
909
(17 813 espanhóis, 316 888
4 969 brasileiros e ALUNOS do ensino primário
n/d elementar, no mesmo ano
2 300 ingleses)
1920 1929
EM LISBOA 33
casamentos divórcios LICEUS em Portugal em 1927-28
529 524
232 HABITANTES
12 128
DIVÓRCIOS por adultério da mulher em 1925
e 174 POR ADULTÉRIO do marido, RAPAZES matriculados no liceu em
1927-28
em 1929 13 257
ELEMENTOS
69 da GNR, policia 3 808
RAPARIGAS matriculadas no liceu no
DIVÓRCIOS decretados por mútuo e guarda-fiscal
mesmo ano letivo
consentimento, em 1929 em Lisboa em 1925
269 4 117
185 321 ALUNOS matriculados nas
SENTENÇAS originadas por injúrias e LISBOETAS universidades de Lisboa, Coimbra e
sevícias, em 1929 dedicavam-se Porto, em 1925-26
exclusivamente a
trabalhos domésticos
SAÚDE em 1925 11
52 MULHERES frequentavam o curso de
POSTOS DE SOCORRO MÉDICOS 8 561 Direito na Universidade de Coimbra,
existentes em Portugal em 1929, pessoas em 1925-26
30 dos quais no distrito de Lisboa estavam registadas
em Lisboa como 1
10 mendigos, vagabundos MULHER concluiu a licenciatura e
MATERNIDADES em Portugal e meretrizes outra o doutoramento em Medicina
continental e ilhas, em 1929 na Universidade
13 884 de Coimbra, em 1925-26
38 ESTRANGEIROS
CRECHES em Portugal continental em Lisboa (8 866 1 MULHER
e ilhas em 1929 espanhóis, 1 783 concluiu a licenciatura em Ciências
brasileiros, 831 Físico-Químicas na Universidade de
147 franceses) Coimbra, em 1925-26
INSTITUIÇÕES SOCIAIS (asilos,
albergues…) NO PORTO 3 MULHERES
215 625 licenciaram-se em Farmácia
11 HABITANTES na Universidade de Coimbra, em
ORFANATOS, em 1929 em 1925 1925-26
FONTES: Censos de 1920 e anuários estatísticos do Instituto
Nacional de Estatística (INE)
Anos 20 || Aviação
SZPHOTOS/FOTOBANCO
72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Voar
era preciso
Foi na década de 1920 que a espécie humana adquiriu asas
como os pássaros, ou seja, começou a deslocar-se pelos ares
tanto quanto possível tranquilamente e de forma «natural»…
Até então, as experiências pioneiras mais não tinham sido
do que loucuras de alto risco
por Luís Almeida Martins
A bordo de um
Junkers G-31, em 1928
Uma passageira toma
o pequeno-almoço
enquanto sobrevoa
os telhados de Berlim
VISÃO H I S T Ó R I A 73
Anos 20 || Aviação
LEEMAGE/FOTOBANCO
1 2
G
osta das histórias de Agatha
Christie? Então, por muito 3
2
1
concentrado(a) que esteja
na tentativa de descobrir o 4 5
6
criminoso, é impossível que
não se aperceba de que o 1 Em Los Angeles, 1929, controlo
ambiente em que elas de- de passageiros da Western Air Express
correm é mais «estrangei- provenientes do México
ro» do que os países estrangeiros de hoje. 2 Jantar requintado a bordo de um
aparelho da Lufthansa 3 Em 17/3/29,
O fictício «Hercule Poirot» começou – passageiros aguardam, em Newark,
para nós, público – a pôr a funcionar as o embarque num Ford que dentro de
GETTY
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
LEEMAGE/FOTOBANCO
GETTY
10
GETTY
GETTY
as janelas eram tão grandes que mais comboio continuava a ser o rei dos meios e 1939. Neste último ano fundir-se-ia com
pareciam paredes envidraçadas. O pior, de transporte (e continuaria a reinar até a British Airways para dar lugar à BOAC,
tanto no caso do Goliath como no Cau- bastante depois da II Guerra Mundial), também já extinta há muito, mas isso são
dron, era o ensurdecedor ruído provocado mas é também verdade que a aviação ia contos mais largos. Em 1924, a Imperial
pelos motores e pelo próprio girar das entrando cada vez mais nos hábitos. colocou ao serviço o estranhamente belo
hélices, uma vez que a carcaça de madeira biplano Handley Page, com os dois enor-
dos aparelhos era apenas revestida de O sonho imperial mes motores alinhados na asa superior,
contraplacado e de tela. Uma das mais antigas e emblemáticas muito acima da fuselagem. A prioridade
Mas, com ou sem barulheira nos ou- companhias aéreas da idade heróica da da companhia era o transporte postal,
vidos, muitos homens de negócios cedo aviação comercial foi a britânica Imperial cuja relativa celeridade aproximava da
se habituaram a utilizar este meio de Airways, cujos aparelhos cheios de encan- metrópole albiónica os rincões perdidos
transporte rápido nas suas meteóricas to mas semelhantes a gafanhotos, hoje da Malásia ou as ilhas remotas dos Mares
deslocações, o que fez que, entrada a dé- tão romanticamente obsoletos, ligavam o do Sul onde as personagens de Somer-
cada de 20, rara fosse a semana em que relvado aeródromo de Croydon às pistas set Mangham viviam as suas histórias
não nascesse nos cartórios tabeliónicos de terra batida da Índia, da África, da Ma- passionais entre goladas de gin, mas os
uma nova companhia aérea. A criação lásia ou da Austrália. Resultou da decisão aparelhos tinham capacidade para 15 pas-
da IATA (International Air Traffic Asso- governamental tomada em 1923 de fundir sageiros, e partiam lotados. As hélices
ciation), ainda antes de os calendários as três pequenas companhias então exis- eram postas a funcionar manualmente
de 1919 serem substituídos nas paredes tentes na Grã-Bretanha, e transportaria e, com os seus dois motores de 440 CV,
pelos de 1920, foi apenas o mais eviden- senhoras perfumadas, cavalheiros de co- o Handley podia voar a 140 km/h, o que
te reflexo dessa realidade. É claro que o larinhos duros e alguma carga entre 1924 batia de longe a velocidade de qualquer
VISÃO H I S T Ó R I A 75
Anos 20 || Aviação
O holandês voador
Contudo, a Imperial não foi pioneira no
ramo. A mais antiga das companhias aéreas
permanece ainda hoje em atividade, e é
a holandesa KLM, uma feliz sigla para o
nome Koninklijke Luchtvaart Maatscha-
GETTY
Graf Zeppelin O carismático dirigível fez o seu primeiro voo em 1928 ppij (Real Companhia Aérea). Fundada
no final de 1919, o seu primeiro aparelho
saltou logo de Croydon para Amesterdão
Os elefantes brancos prateados com passageiros a bordo, para espanto e
A década de 1920 – e a seguinte – foi também o tempo dos grandes diri- gáudios gerais. Em 1924 levantaria voo
gíveis, esses «mais leves do que o ar» que desde o início do século vinham para Batávia (Jacarta), na Indonésia, então
travando uma guerra tecnológica e comercial de antemão perdida contra os Índias Orientais Holandesas – e a bem dizer
«mais pesados do que o ar», ou seja, os aviões. Verdadeiros navios voado- ainda não aterrou, apesar de um recente ca-
res, os dirigíveis ainda hoje fascinam a nossa imaginação. Também conheci-
dos por zepelins – do nome do seu inventor, o barão alemão Von Zeppelin –, samento de conveniência com a Air France.
eram uma espécie de bazófias, com o seu reservatório de gás enorme em O Fokker holandês, fosse ele da KLM
proporção com o reduzido habitáculo destinado aos passageiros. ou de outra companhia, era por volta de
Julio Verne, no romance Robur o Conquistador, apresenta aos leitores o di- 1925 o aparelho mais utilizado na Europa.
rigível Albatroz, na verdade um navio, com quilha e tudo, mantido no ar pela Monoplano de madeira revestida de tela,
ação de inúmeras hélices horizontais. A novidade era poder ser conduzido,
ou dirigido, para onde se quisesse (dai a palavra «dirigível»), o que não con- podia, com as suas asas colocadas sobre a
seguiam os já existentes balões de ar quente ou gás, que arrastavam os pas- fuselagem e o seu único motor espetado
sageiros segundo os caprichos das correntes de ar. No tempo da fantasia de no «nariz», atingir a velocidade eston-
Verne ainda não havia forma de dirigir um aparelho aéreo mais pesado do teante de 210 km/h. Uma das companhias
que o ar, e daí que, na prática, todos os dirigíveis fossem balões alongados não holandesas que adquiriram aviões
com um pequeno habitáculo junto da barriga. O problema é que os balões
de gás eram muito perigosos, uma vez que – já para não falar dos perigos de
Fokker foi a «lendária» embora hoje já
explosão – se a pressão diminuía, o aparelho deformava-se e caía.
Depois de muitas experiências pioneiras, anteriores à década de 1920,
entramos assim, após a Grande Guerra, na conceção do dirigível semirrígido
de grandes dimensões. Um exemplo deste tipo de geringonça foi o Norge, a
bordo do qual o italiano Umberto Nobile, o norueguês Roal Amundsen e uma
equipa de sete dezenas de tripulantes sobrevoaram o Polo Norte, em maio
de 1926. O pior foi daí a dois anos, quando uma tentativa de repetir o feito,
agora com o dirigível Italia, redundou na morte de Amundsen.
Os ingleses construíram nos Anos 20 uma série de dirigíveis rígidos rechea-
dos de hidrogénio, e um deles atravessou o Atlântico. Mas foram os alemães
que, na senda de Zeppelin, inauguraram as carreiras regulares destes apa-
relhos, entre Berlim e Friedrischsafen. Em agosto de 1927, o gigantesco Graf
Zeppelin deu a volta ao mundo a uma média de 114 km/h, passando por
Tóquio, Los Angeles e Nova Iorque, mas só na década seguinte as carreiras
dos dirigíveis germânicos, já com a suástica pintada na cauda, se abalança-
SMITHSOMIAN MUSEUM
76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Charles Lindberg Apelidado de
«Águia Solitária», o aviador americano
seria, em maio de 1927, o primeiro a
atravessar o Atlântico sem escala,
pilotando o seu Spirit of St. Louis
VISÃO H I S T Ó R I A 77
Anos 20 || Aviação
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA DE
ARTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Para malucos Em Alverca O diretor da Ilustração,
João de Sousa Fonseca, dá as boas-
-vindas ao jornalista espanhol Luis
N
do Grupo Independente de Aviação de
a década de 1920, poderiam os «Relativa» porque os tempos eram mes- Bombardeamento (GIAB) e das Oficinas
portugueses comuns, se assim o mo inseguros no Portugal de então, com Gerais de Material Aeronáutico (OGMA),
entendessem, viajar de avião a uma conjuntura político-social marcada em funcionamento desde 1919, fez-se com
partir do território nacional? Ou pela instauração da Ditadura Militar, em um aeroplano monomotor Junkers F-13 de
essa «aventura» estava apenas maio de 1926, e as desesperadas, embora asa baixa com lotação para oito passageiros,
reservada aos aviadores, que, mal sucedidas, tentativas para derrubá- batizado de Lisboa. As aeronaves utilizadas
como era voz corrente, não passavam -la pela força das armas, sobretudo em nos primeiros tempos seriam todas da Unión
de doidos varridos por cuja salvaguarda fevereiro do ano seguinte. Aerea Española, empresa sedeada em Ma-
mães, mulheres e namoradas murmura- E foi exatamente a 19 de maio de drid de que a casa Junkers Flugzeugwerk
vam orações?... A resposta é: sim, podiam, 1927 que se fundou uma empresa «de AG era acionista maioritária e que possuía
desde que tivessem dinheiro para pagar o malucos» denominada Serviços Aéreos uma frota de dois trimotores Junkers G-24
bilhete, o seu destino imediato não fosse Portugueses (SAP). Económica e estatu- e três monomototres Junkers F-13.
além de Madrid ou Sevilha e, evidente- tariamente subsidiária da alemã Junkers De início, nenhum destes aparelhos in-
mente, possuíssem também aquele grão- Luftverkehr, uma das pequenas compa- teiramente metálicos e revestidos de cha-
zinho de «loucura» indispensável a quem nhias germânicas que tinham ficado de pa ondulada era propriamente português,
abandona a relativa segurança do solo. fora da Lufthansa, fundada no ano an- mas em maio de 1929 a empresa acabaria
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Carreira Lisboa-
-Madrid Um dos
aparelhos que
asseguravam a ligação
proporcionou, em 1927,
‘batismos de voo’ sobre
a capital portuguesa,
conforme reportou na
altura o semanário ABC
VISÃO H I S T Ó R I A 79
Anos 20 || Aviação
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
da Aviação, com alguma ligação como
Portugal: o lançamento, pelos alemães,
do gigantesco hidroavião Dornier Do X,
com seis motores elevados sobre a fu-
selagem, que em 1929 bateu o recorde
de capacidade de transporte, levando a
bordo 169 pessoas. No ano seguinte (já
no dealbar da década de 30, é certo), a
enorme aeronave empreendeu um voo
transatlântico com escala em Lisboa. Com
tanto azar (ou «sorte» para os mirones
alfacinhas) que ficou retido três semanas
Aventuras Coutinho e
Cabral à partida de Belém
e uma notícia francesa do
afundamento do Lusitânia.
À esquerda: Em outubro
de 1927, um hidroavião
Junkers com rumo à
América, a bordo do qual
seguia a atriz austríaca Lilli
Dillenz, fez uma amaragem
de emergência na praia de
Santa Cruz (Torres Vedras)
VISÃO H I S T Ó R I A 81
Anos 20 || Automóveis
A cem
à hora
Na década de 1920,
o número de automóveis
em Portugal quase
quadruplicou. Com a
revolução nas comunicações
nasciam também um estilo
de vida e um estatuto novos
por Humberto Brito
A
‘
utomóvel contra um candeeiro.
O passageiro fica com o crânio
fraturado e o chauffeur também
ferido.» «Mortas por atrope-
lamento. Uma camionette dos
correios, que hoje seguia pela
Rua do Patrocínio, colheu ali um menor
de 6 anos. Também no Beato foi morta
uma criança, que aparenta ter 6 anos,
por um camion.» «Criança morta por
automóvel. Na morgue deu entrada um
menor de 10 anos atropelado por um au-
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA GULBENKIAN
82 V I S Ã O H I S T Ó R I A
que as pessoas já não querem apenas um rádio. Contudo, a partir de certa altura reacendem-se esforços para organizar
meio de transporte: passaram a dese- as inovações mecânicas vão perdendo Salões Automóvel.
jar um estilo de vida. Por exemplo, um terreno para as inovações estéticas. As
anúncio publicado na revista Ilustração, linhas arredondam-se e os automóveis Na pista do Coliseu
nº 59, garante que «o Buick é o carro de vão-se tornando gradualmente mais «Como organização, um fracasso; como
luxo aceite sem reserva pelos homens de baixos e aerodinâmicos. Torna-se mais decoração, uma vergonha», protesta o
mais destaque social». frequente veículos serem trocados antes Domingo Ilustrado acerca do IV Salão
Verifica-se, no entanto, uma estagnação de atingirem o fim de vida; as vendas a Automóvel, o primeiro realizado em Lis-
da tecnologia. É certo que o travão de mão crédito, por isso, disparam. boa, no Coliseu dos Recreios, em julho de
e a alavanca das mudanças passam a estar Reforçado pelo cinema, pela rádio e 1925. «O mais pífio, o mais rosinhas de
situados na zona central; que surgem os pela literatura, o automóvel torna-se um papel de arraial saloio que se possa ima-
travões às quatro rodas acionados por marcador de classe, um símbolo de poder. ginar, colchas apanhadas em estilo Rua
um pedal; que nasce a direção assistida; O automobilismo começa a surgir em da Palma, e tudo do mais pior, do mais
que se generaliza o uso de pneumáticos; Portugal como desporto de alta socie- reles de que há memória.» Lastimando a
que se introduz o aquecimento e o autor- dade e, mais ou menos em simultâneo, falta de diversões e motivos de interesse
VISÃO H I S T Ó R I A 83
Anos 20 || Automóveis
84 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ESTÚDIOS NOVAIS/BIBLIOTECA GULBENKIAN
Grandes
inovações
No dia-a-dia, muitos aspetos dos «tempos modernos»
começaram nos Anos 20. Apesar de algo estranhos,
estes aparelhos anunciavam uma autêntica revolução
no quotidiano das classes médias e altas
CÂMARA LEICA 1
Fabricada na Alemanha
entre 1925 e 1936, foi
uma das primeiras
máquinas fotográficas
de 35 milímetros
com lente fixa de 50
milímetros
86 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ERIKA S&N
Segundo um
folheto publicitário,
esta máquina de
escrever portátil
pesava quatro quilos,
tinha um estojo de
«couro legítimo»
e era facilmente
transportável
em viagem
ICONOSCÓPIO
Antecessor das
câmaras de TV e
verdadeira «lâmpada
mágica», permitiu
concretizar as
primeiras emissões
de imagens
televisivas, ainda em
fase experimental
RÁDIO PORTÁTIL
Embora transportável, o pequeno
aparelho de telefonia de J. M.
McGuire não possuía bateria, pelo
que tinha de estar ligado à corrente
para funcionar
CINÉGRAFO BOL
Pequena câmara de filmar e de
projetar, punha ao alcance de quem
podia adquiri-lo a capacidade de
tornar indeléveis as recordações
VISÃO H I S T Ó R I A 87
Anos 20 || Ciclismo
A estreia da
Volta a Portugal
em Bicicleta
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO
88 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Emoção Os ciclistas
dão, na Praça dos
Restauradores, em
Lisboa, as primeiras
pedaladas, que os
levarão até ao cacilheiro
VISÃO H I S T Ó R I A 89
Anos 20 || Ciclismo
90 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO DIÁRIO DE NOTICIAS
No Alentejo e na Beira Baixa Muitos que bebiam ao pequeno-almoço os ases o tal reconstituinte. Esta era uma das
curiosos iam ver passar os ciclistas, ao longo do pedal: «Esta manhã, os corredores dificuldades que os organizadores tinham
de uma prova onde abundaram os furos ciclistas da I Volta a Portugal partiram de ultrapassar «nestas terras pequenas
para Sines, tendo todos tomado antes o onde o leite mal chega para o consumo
Na Rua Augusta abriu-se passagem a poderoso reconstituinte Ovomaltine, que local». A propósito, por aqueles dias – e
custo, tanta era a gente. Um dos alvos de o Diário de Notícias adquiriu expressa- apesar da censura – a fome no Algarve
atenção foi, desde o início, Augusto dos mente.» Nas páginas de publicidade do era outro dos assuntos que iam marcando
Santos, «o Coxo dos Pneus», que teve mesmo jornal, lá estão os anúncios ao lugar nas páginas do jornal.
fotografias publicadas em vários jornais. reconstituinte. E aos combustíveis, ao
Apesar de não ter a perna direita, parti- automóvel e a várias marcas de bicicleta. Preparação e improviso
cipou na Volta como ciclista não inscrito, No final da Volta abundaram anúncios As dificuldades da organização devem
sendo dos poucos a chegar ao fim, a 15 em que fabricantes ou distribuidores de ter sido tantas que até a existência de
de maio. Pelo caminho, foi recebido com bicicletas chamavam a atenção para os comidas e bebidas no controlo de alimen-
emoção nas terras por onde passava a bons desempenhos nesta ou naquela eta- tação de Almodôvar mereceu os elogios
caravana. E o DN ia dando conta das suas pa, ou mesmo na classificação geral, omi- do jornalista que cobria a Volta para o
boas prestações, com destaque logo para tindo os nomes dos ciclistas vencedores. DN, Oldemiro César: «Excelente servi-
a 3ª etapa, Sines-Odemira, quando foi À partida de Beja, a dificuldade foi ar- ço. Cervejas, refrescos, águas minerais,
o primeiro ciclista a passar pelo Cercal. ranjar leite para todos os atletas beberem sanduíches de paio aos montões.» Pelo
Após a partida dos ciclistas, a maior caminho a regra ia sendo o improviso,
parte das publicações quase abandona- daí o espanto.
ram a Volta à sua sorte. A acompanhar o
pelotão seguiram apenas dois repórteres
Na década Foi preciso improvisar oficinas em
quartos de pensões, inventar pensões
dos jornais organizadores, a bordo de um de 1920 o ciclismo em teatros, plantar bandeirolas e pintar
«esplêndido carro Dodge», alimentado
por «gasolina e óleos Shell».
deixava de ser marcas no chão que indicassem o cami-
nho ao pelotão. Na etapa Castelo Branco
Sim, a publicidade a alguns produtos o desporto de elite -Guarda, o atleta que liderava teve de
será uma constante na cobertura jorna- de fins do século percorrer vários quilómetros sem selim,
lística feita ao longo dos 18 dias da Volta apoiado nos pedais e no guiador. O herói
nas páginas do DN. Por exemplo, à partida
XIX e começava foi Quirino de Oliveira, do Clube Atlético
da 2ª etapa os leitores ficaram a saber o a popularizar-se de Campo de Ourique, descrito no DN
VISÃO H I S T Ó R I A 91
Anos 20 || Ciclismo
como tendo «asas nos pés e a robustez rimónias com a presença das autoridades dessa primeira Volta os organizadores
física de um atleta completo». Foi ele o locais e prémios especiais criados em cima «não tinham muitos meios de averiguar
comandante do pelotão durante várias da hora para quem vencesse determi- das possibilidades dos estradistas, pois
etapas, mas devido a uma queda acabou nada etapa. E com presentes oferecidos só duas provas se realizavam então: os
por perder a liderança nos últimos dias, por particulares a serem entregues até 100 quilómetros e o Porto-Lisboa». Em
chegando em 3º à meta final, em Lisboa. dias depois do final da Volta, em nome prefácio ao mesmo guia, o administrador
Quem venceu a Volta foi Augusto de de determinados ciclistas – ficando em do DN Caetano Beirão da Veiga fala de
Carvalho, em parte graças à «pastelei- exposição em Lisboa, nas montras dos maledicências sofridas pela organização
ra» cedida por um popular, quando o Armazéns do Chiado. e justifica assim a pertinência da pri-
ciclista do Grupo Sportivo de Carcavelos Fosse ou não por motivos económicos, meira Volta a Portugal em Bicicleta, que
ficou com a bicicleta avariada na etapa a segunda edição só se realizaria passados faria falta «porque o Diário de Notícias,
Braga-Porto. Outra explicação para a quatro anos. Ainda houve uma tentativa preocupando-se sempre com o aperfei-
sua vitória final terá sido o facto de fazer de imitação daí a dois meses, com uma çoamento da raça, e, por consequência,
parte da única equipa que se preparou a Volta a ser promovida pelo jornal Spor- com a melhoria das suas condições físicas,
sério, dando-se ao trabalho de percorrer ting, do Porto. Mas foi um insucesso, já julgou oportuno organizar uma grande
previamente todo o percurso da Volta, competição atlética que, percorrendo o
em ritmo de treino. A preparação viria a País, o acordasse do pernicioso letargo em
render também ao Carcavelos o primeiro que havia caído». O letargo aqui são os
lugar por equipas. anos anteriores à revolução de 28 de Maio
A organização da Volta errou no cálculo de 1926, que viria a resultar na Ditadura
do tempo necessário para percorrer algu- Militar e depois Estado Novo.
mas das distâncias. Por exemplo na etapa Mas apesar de em 1935, neste guia da
Porto-Coimbra os ciclistas chegaram já de VI Volta, ficar melhor uma explicação
noite à meta, com os faróis dos carros de apenas épica e política, a génese da Volta
apoio a iluminarem a estrada. Mas pior foi em Portugal terá mais a ver com o impac-
o facto de muitas vezes não haver sequer to do Tour francês. Conta Gil Moreira,
estrada, sendo os campeões obrigados a em A História do Cliclismo Português,
carregar às costas as bicicletas – à época que terá sido grande o impacto em Raul
muito pesadas. de Oliveira, que combatera em França
A descrição do DN estará longe do na Grande Guerra e que por lá ficara co-
exagero: «O aspeto de ciclistas e auto- brindo a prova francesa como jornalista.
mobilistas à chegada a qualquer parte Regressou para a redação de Os Sports e
é, na verdade, arrepiante pela porcaria tentou convencer os administradores a
que cada um traz sobre si! Há rostos ir- organizarem com o DN uma Volta por cá,
reconhecíveis. A máscara de poeira nada à semelhança do que se fazia em França
Cobertura A 1.ª Volta teve eco noutros órgãos
tem de cómica. É trágica de repelência! de informação, para além do DN e de Os Sports por iniciativa de jornais desportivos. Sem
Há além disso a registar vários desastres. sucesso, pois parecia caro e arriscado.
Temos um corredor ferido pelo coice de Até que, ao ganhar dinheiro na lotaria,
uma muar, outro mordido por um cão, que foi recebida com menos entusiasmo Raul de Oliveira decidiu gastá-lo numa
dois forçados a desistir porque se lhes popular, em parte pela menor competiti- Volta a Lisboa, em 1923, organizada ofi-
partiram as máquinas no caminho.» vidade entre os ciclistas que concorreram. cialmente pelo DN. Correu bem e abriu
«Em 1927, quando o Diário de Notícias caminho para o início de uma competição
Em franca decadência e Os Sports lançaram a Volta a Portugal, à escala nacional, que parecia ter condi-
No Diário de Notícias proclamou-se des- o campo era sáfaro e mau. Perdera-se ções para angariar leitores fora de Lisboa
de o início o prognóstico de que «a sen- o prestígio dos Pessoas e dos Crespos, e anunciantes em geral.
sacional prova» iria «prender a atenção dos Mouras e o ciclismo mostrava-se Sobretudo depois do sucesso de uma
de todo o País». Mas não se cumpriu o em franca decadência, sem nomes no- volta ao País a cavalo também organizada
objetivo declarado pelos organizadores vos que o erguessem.» É o que escreve pelo DN, seguindo os passos da Ilustra-
de que se tornasse um acontecimento o jornalista Belo Redondo no Guia da ção Portuguesa, 20 anos antes. Portugal
desportivo anual. Isto apesar da grande Volta a Portugal em Bicicleta – História estava pronto para assistir a uma versão
atenção dada à primeira Volta em muitas da ‘Volta’, apresentado em 1935 como portuguesa do Tour. E mesmo sem selim
terras, onde passava o pelotão ou onde «o mais completo guia ilustrado da VI ou sem estrada, com mordidelas de cão
terminavam e começavam etapas, com Volta a Portugal, indispensável a todos ou coices de mula, a Volta a Portugal de
discursos, jantares comemorativos, ce- os desportistas». Segundo o autor, antes 1927 viria a ser a primeira de muitas.
92 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTT
S
Chamavam-lhe o «rapa, tira, põe e deixa»,
ortearam o futuro conforme os preendente vitória do Olhanense na final como se conta no livro A Paixão do Povo –
lugares que cada um ocupava no do Campeonato de Portugal. Voltaria para História do Futebol em Portugal, de João
comboio. A brincadeira servia o clube algarvio nesse ano. Nuno Coelho e Francisco Pinheiro.
para passar o tempo, mas resul- Seguia a bordo um avançado jovem,
tou num bom augúrio. Ditava baixo, franzino e talentoso, que um ano Desporto já de massas
um futuro brilhante ao grupo antes fora transportado em ombros pelos No campeonato de 1928, a média foi de
de futebolistas que iria defender as co- adeptos, depois uma vitória portuguesa quase seis golos por jogo. Eram comuns
res portuguesas nos Jogos Olímpicos de sobre a França por 4-0. Chamava-se José as goleadas. Embora disputando ainda
Amesterdão. A realidade não seria tão Manuel Soares, mas era conhecido por espaço regular nos jornais à tauromaquia
gloriosa como no recentíssimo Europeu «Pepe». Fora campeão pelo Belenenses ou ao boxe, foot-ball (como então e escre-
de 2016... mas quase. no ano anterior e voltaria a sê-lo no ano via) transformarva-se num desporto de
Seguia no comboio o guarda-redes do seguinte. Morreria em 1931, envenenado massas, abandonando a vertente elitista
Casa Pia António Roquete, «o Zamora por uma sande de chouriço, em circuns- praticado por sportsmen elegantes no
português», o rapaz que usara um nome tâncias nunca totalmente esclarecidas. final do século XIX.
falso para poder saltar para a baliza logo Entre os ídolos mais conhecidos, era ain- Neste contexto, embora a equipa por-
aos 16 anos, num jogo amigável contra o da passageiro do comboio o defesa direito tuguesa de esgrima viesse a conquistar
Belenenses, a contar para a Taça Vende- Carlos Alves, o primeiro «Luvas Pretas», nas Olimpíadas a Medalha de Bronze, o
dores de Jornais. avó do futuro craque homónimo, que aca- que apaixonou mais pessoas foi a chegada
Viajava também o médio Raul Figuei- bara de conquistar o título de campeão inesperada da geração de Amesterdão
redo «Tamanqueiro», à época no Benfica, nacional pelo Carcavelinhos, um pequeno aos quartos-de-final da competição de
mas que anos antes fora o obreiro da sur- clube de operários conhecido nessa altura futebol, ficando entre as oito primeiras.
VISÃO H I S T Ó R I A 93
Anos 20 || Futebol
94 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY
Amesterdão, 1928 Pepe ameaça as Fixe, onde se ironizava com as «grandes ternacionais, contando com os jogos de
redes do Chile. À esquerda: Um cartaz reportagens magras de um jornalista gor- preparação, como sublinharia Cândido
com a seleção olímpica portuguesa do, em Amesterdão». de Oliveira na crónica sobre o jogo. Tinha
Tal como a sorte ditara no comboio, o sido uma campanha brilhante.
Uruguai foi mesmo à final. E venceu-a, Mesmo sem chegarem à final, «Pepe»,
as da Áustria, Checoslováquia, Hungria contra a Argentina. Eram duas das sele- «Tamanqueiro» & Cª acabariam por en-
ou Inglaterra, onde os campeonatos já ções mais fortes do mundo. trar para a História do futebol português,
estavam profissionalizados. Portugal ultrapassou as expectativas e sendo recebidos no regresso por multi-
O debate entre os defensores do pro- chegou aos quartos-de-final. Apesar de dões. No editorial do Diário de Lisboa
fissionalismo e os do amadorismo foi um ter muito mais técnica do que físico, num de 11 de Junho conta-se que a chegada
dos temas que marcaram o congresso da futebol em que as substituições durante o foi apoteótica, com um trajeto triunfal a
FIFA, agendado também para Amester- jogo ainda não eram permitidas, perdeu ser feito da Estação de Entrecampos e os
dão e para as mesmas datas dos JO. Ali foi apenas no terceiro desafio, contra o Egi- Paços do Concelho de Lisboa. O impacto
discutida e aprovada a futura realização to. Logo no primeiro encontro, Portugal político foi grande, como ali se escreve: «A
de um Campeonato do Mundo aberto a jogou durante 12 minutos sem Armando propaganda do nosso país realizada pelos
profissionais e amadores. Martins (que se lesionou e teve de recu- simpáticos e modestos rapazes que da-
perar fora do campo) quando a seleção qui se deslocaram à Holanda valeu mais
Reportagens magras já perdia por 2-0 contra o Chile. Mas do que muitas platónicas manifestações
Longe dessas negociações sobre o futuro voltou e Portugal marcou dois golos num diplomáticas de problemático efeito.»
do futebol e logo à chegada a Amester- minuto, acabando por ganhar por 4-2. A guitarra que viajou com a equipa
dão, a comitiva lusa ficou desiludida com Seguiu-se a Jugoslávia, que Portugal recebeu no regresso uma placa de ouro
as condições em que ficou alojada, num também derrotou, por 2-1. Só depois aca- comemorativa, por ocasião de um jantar
hotel sobrelotado. Quase não havia adep- bou o sonho sorteado no comboio, quan- de homenagem no restaurante Ferro de
tos nem jornalistas nacionais. Ainda por do a seleção perdeu com o Egito, por 2-1. Engomar, em Benfica. Ainda na Holanda,
cima, o Diário de Notícias enviou António Nesse encontro, a geração de Amesterdão a dita guitarra tinha servido para acompa-
Ferro, que se confessava feliz na igno- terá sido prejudicada pela arbitragem. nhar o Hino Nacional. Nascera a geração
rância sobre o assunto, o que mereceu a Desde 1927 que Portugal não era der- de Amesterdão – e, como ela, a «loucura»
sátira ilustrada nas páginas do Sempre rotado, tendo disputado sete desafios in- pelo futebol.
VISÃO H I S T Ó R I A 95
Anos 20 || Literatura
Mortos,
feridos
e ‘glamour’
Guerra, crise, psicanálise e feminismo Ulisses
– a literatura dos Anos 20 adianta-se DE JAMES JOYCE (1922)
às contradições e emancipações A trama do livro – com
da época personagens da Odisseia
Para Além do Prazer de Homero a viverem
por Isabel Nery em Dublin – é complexa,
DE SIGMUND FREUD (1920)
mas os efeitos que
É
As baias sociais começam teve na altura da sua
tempo de jazz, pós-guerra, aparecimento a aligeirar-se e as teorias publicação fazem
de Freud vêm contribuir jus à originalidade
dos primeiros eletrodomésticos. E isso quer para essa mudança. A ideia da obra. Chocados
também dizer que é tempo de uma nova li- – então revolucionária – com as descrições
teratura. A escrita rebuscada do século XIX de que as mulheres tinham das vivências
dá lugar a textos que privilegiam a ação e os mesmos impulsos de Bloom, que se
os diálogos. Temas como a sexualidade e os sexuais e desejos que masturba enquanto
os homens questiona observa uma vizinha, os
direitos das mulheres entram pela ficção adentro e a forma como era americanos e os ingleses
dão origem a escândalos. encarada a sexualidade. decidem banir a obra.
Assim ia o mundo dos Anos 20: entre os horrores O neurologista, nascido na Seria necessária a
das memórias da Grande Guerra, de que Hemingway Morávia (atual República decisão de um juiz (um
se tornou um relator clássico em O Adeus às Armas, Checa, então pertencente precedente inédito
ao Império Austro- no que toca a uma
e a mudança de costumes, espelhada nos excessos de
-Húngaro) defende que obra considerada
Gatsby, uma personagem de Scott Fitzgerald. Entre os desejos sexuais são «pornográfica»)
uma economia americana que passa de 69 para 93 mil centrais para os humanos para, quase uma
milhões de produto interno bruto (PIB) e o culto das e entende que muitos década depois,
celebridades, ao mesmo tempo que se revitaliza o Ku problemas começam na ser permitida
repressão desses desejos. a venda do
Klux Klan e se faz sentir a «Lei Seca», banindo o álcool.
Este livro significaria romance nos
Deste lado do Atlântico, o francês André Gide, uma viragem nas Estados Unidos.
mais tarde fundador da editora Gallimard, publica teorias médicas, dando A história
Corydon, em 1920, com o objetivo assumido de de- origem às hoje comuns passa-se num
nunciar os preconceitos contra a homossexualidade. psicoterapias. único dia e
No mesmo ano, Agatha Christie lança o seu primeiro é um retrato
minucioso da
romance, O Misterioso Caso de Styles, introduzindo cidade de Dublin,
o detetive Hercule Poirot. capital da Irlanda
A literatura vai refletir toda a ebulição – e contra- que então acedia
dição – dos Anos 20. Umas vezes olhando para os à independência
costumes (Francis Scott Fitzegerald), outras para relativamente
ao reino Unido,
as evoluções da Medicina (Sigmund Freud) ou para
mas também
os traumas da guerra (Ernest Hemingway). Com da classe
Thomas Mann viaja-se no tempo e com James Joyce média baixa
vive-se o choque das cenas sexualizadas. europeia da
Embora tivessem um papel cada vez mais ati- época.
vo, as mulheres continuavam a ser discriminadas,
e mesmo excluídas. Disso mesmo trata o texto de
Virginia Woolf, ainda hoje, quase um século depois,
considerado um tratado do feminismo.
96 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A Montanha Mágica
DE THOMAS MANN (1924)
VISÃO H I S T Ó R I A 97
Anos 20 || Cartoon
Proprietária/Editora: MEDIPRESS – Sociedade
Jornalística e Editorial, Lda. NPC 501 919 023.
Rua Calvet de Magalhães, n.º 242, 2770-022 Paço
Os cabelos curtos
de Arcos. Tel.: 214 544 000 – Fax: 214 435 319.
email: [email protected]
Gerência da MEDIPRESS: Francisco Pinto Balsemão,
Francisco Maria Balsemão, Francisco Pedro Balsemão,
Paulo de Saldanha, José Freire, Raul Carvalho das Neves.
Composição do Capital da Entidade Proprietária
A moda dos penteados à garçonne gerou atritos familiares Capital Social €74.748,90; Impresa Publishing, SA – 100%
Direção Geral de informação Impresa: Ricardo Costa
(Diretor-Geral), Alcides Vieira (Diretor-Geral-Adjunto),
e forneceu o mote a Emmerico Nunes para uma curta banda Henrique Monteiro (Diretor-Geral-Adjunto)
desenhada publicada na ABC de 24 de março de 1927
www.visao.pt
Publisher: João Garcia
Assine a
Ligue já 707 200 350 ou vá a www.assineja.pt
98 V I S Ã O H I S T Ó R I A
* Suaves prestações mensais sem juros, TAEG 0%, mediante pagamento por cartão de crédito, débido direto ou multibanco. Campanha válida em Portugal até 30/12/2016, salvo erro tipográfico. Se desejar encomendar números avulso, a sua encomenda será entregue no prazo máximo de 15 dias úteis, após boa cobrança.
CONHECER O PASSADO
PARA COMPREENDER O PRESENTE
ASSINE JÁ!
2 Anos (12 edições) 8,99€ x 4* prestações ou 35,96€ | 39% Desconto
1 Ano (6 edições) 10,99€ x 2* prestações ou 21,98€ | 25% Desconto
EDIÇÕES AVULSO
4,90€* + Portes de envio (grátis para assinaturas)