Análise Crítica Das Teorias e Práticas Organizacionais
Análise Crítica Das Teorias e Práticas Organizacionais
Análise Crítica Das Teorias e Práticas Organizacionais
DAS TEORIAS E
PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS
1
2
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
(Organizador)
ANÁLISE CRÍTICA
DAS TEORIAS E
PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS
3
SÃO PAULO
EDITORA ATLAS S.A. – 2007
Copyright © 2007 by Editora Atlas S.A.
Análise crítica das teorias e práticas organizacionais / José Henrique de Faria, (organizador). – São
Paulo: Atlas, 2007.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-224-4848-7
0 7 - 5 8 5 1 C D D - 6 5 8 . 0 0 1
1.
Análise crítica: Teorias e práticas organizacionais: Administração 658.001
2.
Teorias e práticas organizacionais: Análise crítica: Administração 658.001
4
Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto nº 1.825, de 20 de dezembro de 1907.
O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está.
B. Brecht
6
Sumário
1
INDIVÍDUO, VÍNCULO E SUBJETIVIDADE (José Henrique de Faria e Elaine
Cristina
Schmitt), 23
Introdução, 23
1 Gama: a organização analisada, 24
2
Indivíduo, trabalho, subjetividade e controle social na organização Gama, 25
3
Vínculo e subjetividade: alicerces do controle social na organização Gama,
32
3.1 O vínculo formal e a subjetividade humana, 36
3.2 O vínculo psicológico na organização, 39
7
4
Análise psicossociológica dos vínculos estabelecidos entre indivíduos e
organização: por uma conclusão, 42
Questões para reflexão, 44
2
O SEQÜESTRO DA SUBJETIVIDADE (José Henrique de Faria e Francis
Kanashiro Meneghetti), 45
Introdução, 45
1
Subjetividade do trabalhador, poder condicionado e sequestro da
subjetividade, 46
2 Controle psicológico nas relações de trabalho, 52
3 Toyotismo (produção enxuta) e o sequestro da subjetividade, 56
3.1 Sequestro da subjetividade pela identificação, 57
3.2 Sequestro da subjetividade pela essencialidade valorizada, 58
3.3 Sequestro da subjetividade pela colaboração solidária, 59
3.4 Sequestro da subjetividade pela eficácia produtiva, 61
3.5 Sequestro da subjetividade pelo envolvimento total, 63
4
Sistema cultural toyotista ou nova forma de organização do processo de
trabalho?, 65
5 Conclusão, 66
Questões para reflexão, 67
3
O IMAGINÁRIO VIGIADO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO (José Henrique de
Faria, Elaine Cristina Schmitt e Francis Kanashiro Meneghetti), 68
Introdução, 68
1 A formação do imaginário, 69
2 Imaginário compartilhado e dinâmica da transformação, 73
2.1 Imaginário individual e transformação dos esforços contínuos, 74
2.2
Imaginário organizacional, transformação da valorização do colaborador:
orgulho e dedicação à empresa, 76
8
2.3
Imaginário social, transformação do reconhecimento social e do voluntariado,
80
3
Arqueologia da vigilância do imaginário nas relações de trabalho: por uma
conclusão, 85
Questões para reflexão, 91
4
COMPROMETIMENTO: UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA SOBRE A PRÁXIS
ORGANIZACIONAL (José Henrique de Faria e Solange de Lima Barbosa), 92
Introdução, 92
1 Comprometimento: uma discussão conceitual, 93
2 Comprometimento: uma avaliação crítica, 102
2.1 Allen e Meyer e os três componentes do comprometimento, 102
2.2 Kanter e o conceito de controle social, 104
2.3 Stebbins e a avaliação entre penalidades e recompensas, 105
2.4 Congruência de valores e interesses: aproximando-se do sentido,
106
2.5 Os pesquisadores brasileiros: os problemas subsistem, 106
3
Comprometimento: uma proposição à análise da práxis organizacional, 109
4 Conclusão, 114
Questões para reflexão, 114
Parte II –
Discursos, Competências, Gestão Corporativa e da Qualidade, 117
5
DISCURSOS ORGANIZACIONAIS (José Henrique de Faria e Francis Kanashiro
Meneghetti), 119
Introdução, 119
1 Conceitos contemporâneos do discurso, 120
2 A ideologia na constituição do discurso, 125
3 Discursos organizacionais, 128
9
3.1 O discurso permitido, 129
3.2 A ética das palavras, 131
3.3 A construção de si mesmo e do outro pelo discurso, 133
3.4 Tempo e local do discurso, 134
4 As formas discursivas nas organizações, 136
4.1 O discurso social comum, 136
4.2 O discurso ideológico propriamente dito, 136
4.3 O discurso democrático reflexivo, 137
4.4 O discurso mítico, 137
4.5 O discurso teleológico, 138
5 Conclusão, 138
Questões para reflexão, 140
6
A GESTÃO POR COMPETÊNCIAS NO QUADRO DA HEGEMONIA (José Henrique
de Faria e Anne Pinheiro Leal), 142
Introdução, 142
1 Gestão por competências, 143
2 A gestão por competências no quadro da hegemonia, 145
3 Gestão por competências: o caso da empresa Nital, 149
3.1 Avaliação de desempenho por competências, 151
4 Considerações finais, 165
Questões para reflexão, 166
7
DO TREINAMENTO À UNIVERSIDADE CORPORATIVA: IDEOLOGIA,
DOMINAÇÃO E CONTROLE (José Henrique de Faria e Anne Pinheiro Leal),
167
Introdução, 167
1 Treinamento e desenvolvimento, 168
2 Universidades corporativas, 173
3 Ideologia, dominação e controle, 181
4 Conclusão, 188
Questões para reflexão, 189
10
8
GESTÃO DA QUALIDADE, SUBJETIVIDADE E DESEMPENHO
ORGANIZACIONAL (José Henrique de Faria e Sidney Nilton de Oliveira), 190
Introdução, 190
1 Qualidade: um breve resgate do termo, 191
2 Qualidade e conhecimento no trabalho organizado, 192
3 O trabalho produtivo na industrialização, 193
4
O controle comportamental nas organizações: origens e desdobramentos,
194
5 O controle da qualidade: o início da gestão da qualidade, 195
6 A qualidade como produção enxuta, 196
7 As contradições dos programas de qualidade, 199
8 Conclusão, 201
Questões para reflexão, 202
9
A FASE DO COLABORACIONISMO: A NOVA PRÁTICA SINDICAL (José Henrique
de Faria), 205
Introdução, 205
1 O controle sobre os processos de trabalho, 208
2
O capitalismo global e a produção enxuta (lean production): a sofisticação
do controle, 211
3 A fase do colaboracionismo? 230
4 Considerações finais, 237
Questões para reflexão, 239
10
AS ORGANIZAÇÕES E A SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL (José Henrique de
Faria e Francis Kanashiro Meneghetti), 241
Introdução, 241
1 A sociedade repressiva, 242
11
2 A perda do pensamento crítico, 244
3 Controle social e perda da autonomia, 252
4 A teoria das organizações e a sociedade unidimensional, 255
5
Reflexão crítica e organização unidimensional: por uma conclusão, 256
Questões para reflexão, 258
11
O CONTROLE POLÍTICO-IDEOLÓGICO E A EXPLORAÇÃO DOS
TRABALHADORES EM UM HOSPITAL: “CONTRATAR ‘BURRO’ PARA PAGAR
POUCO” (José Henrique de Faria e Lis Andréa Pereira Soboll), 261
Introdução, 261
1 Exploração e controle no modelo de gestão autoritário, 262
2
Estratégias de recursos humanos como instrumentos de controle e
exploração, 267
2.1 O processo de seleção: a escolha dos excluídos, 268
2.2 A definição de cargos, 271
3 Considerações finais, 274
Questões para reflexão, 276
12
A INSTITUIÇÃO DA VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO (José
Henrique de Faria e Francis Kanashiro Meneghetti), 278
Introdução, 278
1 A racionalidade e as relações de trabalho, 279
2 A violência, 281
2.1
As origens da violência no contexto das relações capitalistas de produção,
284
2.2 As formas da violência, 287
3 A institucionalização da violência, 291
3.1 O processo da “banalização do mal”, 292
12
3.2 O controle psicológico no trabalho, 292
3.3 O pensamento unidimensional, 293
3.4 O totalitarismo, 294
4 O modo de organização das relações de reprodução da violência, 294
5 A condição humana nas relações de trabalho: por uma conclusão, 297
Questões para reflexão, 298
13
CONTROLE, ORGANIZAÇÃO E TRABALHO (José Henrique de Faria e Raquel
Dorigan de Matos), 300
Introdução, 300
1 O controle e a produção capitalista, 301
2 Organizações e controle, 303
3 Economia Política do Poder: teoria crítica do controle, 305
3.1 O controle psicossocial, 308
3.2 O controle psicossocial na organização em análise, 310
4 Considerações finais, 315
Questões para reflexão, 316
13
Sobre os Autores
16
Resumo dos Capítulos
17
Os Fundamentos da Teoria Crítica: uma Introdução (José Henrique de Faria)
A Teoria Crítica pretende expressar a emancipação dos indivíduos e
promover a conscientização crescente da necessidade de uma sociedade em
que os interesses coletivos prevaleçam sobre os individuais, em que os
indivíduos sejam sujeitos de sua própria história, escrevendo-a
coletivamente. Tratar criticamente o real é questionar se as ações sociais
não são meras atitudes remediadoras, é indagar sobre os atos dos sujeitos
que têm como objetivo atender a interesses de grupos específicos na
estruturação do poder. Assim, é condição essencial para construir uma
sociedade detentora da sua própria história, consciente das suas
responsabilidades e das suas atribuições coletivas. Cabe à Teoria Crítica
desenvolver formulações que expliquem o real em sua forma e em sua
substância, que permitam compreender para além do que pode ser visto e
imediatamente entendido pela sociedade. Por não servir aos interesses
dominantes no campo teórico da análise organizacional, a Teoria Crítica tem
sido classificada como radical, em seu sentido pejorativo, com a finalidade
de desqualificá-la. A Teoria Crítica é de fato radical, no sentido de que
pretende ir à raiz dos problemas, de que não se satisfaz com o que é dado
pelas constatações resultantes das pesquisas, de que não lhe basta
compreender a forma sem o conteúdo e a aparência sem a essência.
Capítulo 1.
Indivíduo, Vínculo e Subjetividade (José Henrique de Faria e Elaine Cristina
Schmitt)
Esse capítulo investiga como o vínculo entre indivíduo e organização se
caracteriza como uma forma de controle social. O vínculo é um processo
psicológico e subjetivo e a organização atua nesse nível para estabelecer e
manter uma relação estável com o indivíduo, submetendo-o a sua ordem.
Em contrapartida, o indivíduo se submete para que possa, através da relação
e da vinculação que estabelece com a organização, satisfazer a algumas de
suas necessidades e obter algum grau de satisfação. Os vínculos instituídos
entre indivíduo e organização são vínculos formais e psicológicos. O controle
social exercido através do vínculo demonstra como a gestão da organização-
empresa está voltada para apreender a subjetividade dos indivíduos.
Capítulo 2.
18
O Sequestro da Subjetividade (José Henrique de Faria e Francis Kanashiro
Meneghetti)
Esse capítulo procura analisar como o atual modelo toyotista de
produção é capaz de sequestrar a subjetividade do trabalhador e estabelecer
mecanismos de controle psicológico. Procura-se, através de análises das
técnicas de produção – just in time, team work, kaizen, controle da qualidade
–, verificar se o toyotismo é um típico “sistema cultural organizacional” ou
uma cultura de gestão e produção do sistema de capital. Foram identificadas
cinco formas que a organização utiliza para promover o sequestro da
subjetividade. Estas formas correspondem a valores intrínsecos da chamada
produção enxuta, que caracteriza o toyotismo.
Capítulo 3.
O Imaginário Vigiado nas Relações de Trabalho (José Henrique de Faria, Elaine
Cristina Schmitt e Francis Kanashiro Meneghetti)
O imaginário nas organizações e, consequentemente, nas relações de
trabalho não é um espaço totalmente protegido de que se valem os sujeitos
como resposta aos mecanismos e às formas de controle. Ao mesmo tempo, é
também o lugar do esconderijo, no qual as emoções e os afetos encontram
guarida. Para entender de que forma isto ocorre, esse capítulo, que se baseia
em um estudo de caso em uma multinacional de grande porte, analisará os
imaginários presentes nas organizações, distinguindo-os em uma
classificação que permite identificar sua origem e seu lugar de manifestação.
As organizações, para realizar seus objetivos, precisam investir
constantemente no domínio do simbólico com a finalidade de impor aos
indivíduos a sua própria lógica, pois esta não é dada ao sujeito como a única
possível.
Capítulo 4.
Comprometimento: uma Avaliação Crítica sobre a Práxis Organizacional (José
Henrique de Faria e Solange de Lima Barbosa)
O estudo sobre comprometimento vem se tornando cada vez mais
frequente pelos interesses que seu conteúdo desperta para as organizações.
No entanto, esta área de estudo vem sendo marcada por uma clara dispersão
conceitual e analítica, reconhecida por parte significativa dos pesquisadores.
19
No intuito de contribuir para com a análise do comprometimento nas
organizações, esse capítulo apresenta uma avaliação crítica da práxis
organizacional e procura sugerir maior precisão conceitual, melhor
definição das bases além de indicar as condições possíveis em que o
comprometimento pode ser mais bem investigado e o que deve ser levado
em conta nas pesquisas empíricas.
Capítulo 5.
Discursos Organizacionais (José Henrique de Faria e Francis Kanashiro
Meneghetti)
O discurso é uma fonte indispensável na criação de uma realidade social.
No ambiente organizacional, apresenta-se como importante fonte geradora
de poder. Esse capítulo analisa o discurso organizacional como instrumento
de manutenção e de disseminação da ideologia dominante. São identificadas
cinco formas de discursos: social comum; ideológico propriamente dito;
democrático reflexivo; mítico; teleológico. A formulação e a aceitação, total
ou parcial-suportada, dos discursos dependem das relações de poder e,
neste sentido, são classificadas nas organizações em uma perspectiva
maniqueísta: nocivas e benéficas. A leitura correta dos discursos, desta
forma, é um instrumento valioso na análise organizacional, seja este
discurso dito (falado, escrito), seja não-dito (subentendido, imaginário,
simbólico).
Capítulo 6.
A Gestão por Competências no Quadro da Hegemonia (José Henrique de Faria
e Anne Pinheiro Leal)
O objetivo desse capítulo é caracterizar os programas de gestão por
competências como instrumento da hegemonia do sistema de capital nas
organizações. Para tanto, realizou-se um estudo de caso descritivo-
qualitativo numa empresa multinacional. Os resultados mostram que a
gestão por competências apresenta-se como um elemento essencial na
formação da vontade coletiva dos trabalhadores na realização dos objetivos
da empresa, fornecendo um conjunto de comportamentos aceitáveis para as
pessoas. De uma forma concreta, a gestão por competências orienta as ações
de gestão de pessoas no sentido de valorizar os comportamentos desejáveis
e punir os “não-talentos”, atuando de forma intensa e sutil como
20
instrumento de hegemonia.
Capítulo 7.
Do Treinamento à Universidade Corporativa: Ideologia, Dominação e
Controle (José Henrique de Faria e Anne Pinheiro Leal)
As Universidades Corporativas têm sido apresentadas como uma nova
forma de qualificação dos empregados de organizações, tendo como
argumento que se trata não apenas de treinamentos, mas também de
desenvolvimento e de integração e inserção dos indivíduos nos objetivos
organizacionais. O objetivo desse capítulo é, a partir da análise das
modificações introduzidas nos processos de qualificação, verificar quais
elementos se alteram e quais se mantêm ao longo desta trajetória. Será
possível notar que um conjunto de elementos permanece, em essência,
inalterado, sugerindo a tese de que o que evolui, efetivamente, são as formas
de disseminação da ideologia abraçada pela organização e dos artifícios de
que se vale a administração para garantir sua função de dominação e
controle nas relações de poder.
Capítulo 8.
Gestão da Qualidade, Subjetividade e Desempenho Organizacional (José
Henrique de Faria e Sidney Nilton de Oliveira)
Nesse capítulo, pretende-se fazer uma breve reflexão sobre a gestão da
qualidade a partir da análise histórica do desenvolvimento das relações de
trabalho sob o capitalismo. Trata-se de uma análise crítica, tomando por
base as dimensões político-cognitivo-afetivas implicadas na construção
conceitual e na prática da gestão da qualidade, tendo em vista o
entendimento da dinâmica inerente ao desempenho organizacional.
Entende-se, aqui, qualidade como uma concepção gerencial-
comportamental que extrapola o aspecto técnico, convertendo-se em uma
estratégia de controle psicossocial dos indivíduos. Assim, a tese defendida
nesse capítulo é a de que o objetivo estratégico da gestão da qualidade é
viabilizar um controle político, cognitivo e afetivo do desempenho da força
de trabalho, para o que a concepção de qualidade serve como continente
para o estabelecimento de vínculos emocionais e intelectuais entre as
pessoas e as organizações.
21
Capítulo 9.
A Fase do Colaboracionismo: a Nova Prática Sindical (José Henrique de Faria)
O United Auto Workers (UAW), organização sindical do setor
automobilístico de âmbito nacional nos Estados Unidos, representou,
historicamente, o exemplo de um sindicato combativo, especialmente em
Detroit, nas negociações com as “Big Three” (Ford, General Motors e
DaimlerChrysler), desde o início da indústria automobilística. No acordo
firmado em 2003 entre as “Big Three” e o UAW, entretanto, os termos
sugerem que o modelo de resistência pode ter se transformado em um
modelo de adesão do sindicato aos objetivos da empresa. Nesse capítulo,
procura-se mostrar que se está entrando em uma fase de colaboracionismo
na relação formal entre capital e trabalho.
Capítulo 10.
As Organizações e a Sociedade Unidimensional (José Henrique de Faria e
Francis Kanashiro Meneghetti)
Nesse capítulo, procura-se mostrar o conteúdo de alguns elementos
constitutivos da sociedade unidimensional, a saber, repressão social,
aniquilamento do pensamento de protesto, tolerância repressiva, introjeção
das normas sociais, formas de controle, supressão do individualismo,
alienação, instrumentalização do homem, incorporação da competição,
relação entre ciência e interesse, advento das necessidades falsas e perda da
autonomia, relacionando-os à formação do pensamento democrático, crítico
e reflexivo, enquanto contribuição à análise das organizações. A tese aqui
defendida é a de que, apesar de a sociedade industrial e pós-industrial
caminhar em direção à unidimensionalidade e à perda da dimensão da
autonomia, suas próprias contradições apontam para a possibilidade da
emancipação e do processo auto-reflexivo, permitindo que a organização
possa ser um local privilegiado para estudar não só a dominação, mas,
igualmente, seu enfrentamento.
22
Capítulo 11.
O Controle Político-ideológico e a Exploração dos Trabalhadores em um
Hospital: “Contratar ‘Burro’ para Pagar Pouco” (José Henrique de Faria e Lis
Andréa Pereira Soboll)
A partir da perspectiva de análise da Teoria Crítica, esse capítulo aborda
o controle político-ideológico, infiltrado no modelo de gestão e nas
estratégias de recursos humanos, e sua relação com a exploração do
trabalhador na área hospitalar. O controle político-ideológico exercido na
organização estudada concretiza-se nas estratégias de gestão de natureza
autoritária e repressora, as quais possibilitam a exploração do trabalhador
ao reprimir os comportamentos desviantes, impedindo o surgimento de
questionamentos e confrontos, tornando-os apáticos e dóceis. Esta estrutura
de gestão encontra sua legitimidade por estar sustentada em estratégias de
recursos humanos instauradoras da submissão, da aceitação das regras sem
questionamento e das ações de exploração como algo natural e inerente ao
trabalho.
Capítulo 12.
A Instituição da Violência nas Relações de Trabalho (José Henrique de Faria e
Francis Kanashiro Meneghetti)
Esse capítulo mostra que a racionalização, quando se prevalece do
sentido estrito da razão instrumental, afeta as relações de trabalho,
interferindo com os processos objetivos (linhas de produção, processos,
etapas, novos materiais etc.) e subjetivos, especialmente no plano do
imaginário individual e coletivo, porquanto tal racionalização não atinge a
todos equitativamente e nem sempre se apresenta como expressão do
interesse coletivo. Esta situação resulta em ações específicas de violência
que, enquanto uma das formas de manifestação das relações de poder,
reforça as estruturas autoritárias da organização e coloca os indivíduos em
segundo plano.
Capítulo 13.
Controle, Organização e Trabalho (José Henrique de Faria e Raquel Dorigan
de Matos)
Esse capítulo mostra que as organizações são permeadas por relações
complexas e contraditórias desencadeadas por, entre outros sujeitos,
23
mecanismos de controle psicossocial e pela organização do trabalho. O nível
de controle psicossocial é aqui analisado em seus processos objetivos e
subjetivos e em suas sete formas. Os resultados revelam essas contradições
e também que diversas formas de controle psicossocial são utilizadas em
seus processos objetivos e subjetivos para que haja uma acomodação das
pulsões causadoras dessas contradições.
Considerações Iniciais
26
abordagens. Não concentra, no entanto, todas as abordagens de natureza
crítica que podem aparecer nas outras áreas temáticas da Divisão.
Nesta área temática, as organizações são entendidas como instâncias de
mediação de natureza econômica, jurídico-política e ideológica e como
campo de dominação, de resistência e de conflito em que se desenrolam
complexas e contraditórias relações de poder e de trabalho, desenvolvem-
se mecanismos de controle, de disciplina e de regras, estruturam-se formas
de gestão (autogestão, organizações solidárias de produção, cooperativas de
trabalho, heterogestão, cogestão, burocracias) e se constituem aparelhos
psíquicos grupais nos quais operam as relações objetivas e subjetivas dos
sujeitos individuais e coletivos. Não adota, contudo, uma postura antigestão,
em seu sentido estrito (já que admite a autogestão), e a perspectiva
visualizada é a de criar sociedades e organizações livres da dominação, em
que todos possam contribuir e desenvolver-se, participando da construção
de um projeto político de reorganização da sociedade, de modo a superar os
elementos de conformidade e de manutenção do status quo, propondo, em
seu lugar, uma reflexão sobre esta racionalidade.1
Esta condição de desestruturação das práticas associativas certamente
tem provocado e continuará provocando maior flexibilidade nos projetos
pedagógicos dos cursos de graduação e de pós-graduação em Ciências
Sociais Aplicadas e em Ciências Humanas. Há uma renovação a caminho. Nos
congressos e encontros já se discutem trabalhos como os de Maurício
Tragtenberg e Fernando Prestes Motta. Para os que estavam, de certa forma,
isolados nesta linha de pesquisa, trata-se de um grande avanço poder agora
compartilhar as pesquisas e as indagações com outros grupos que trabalham
com propostas parecidas. Este é o primeiro livro que apresenta os
resultados coletivos das pesquisas realizadas no Grupo de Pesquisa
Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais.
Este livro é, portanto, uma contribuição do Grupo de Pesquisa ao debate
e à reflexão. É um livro que se destina aos gestores que não estão em busca
de receitas simples para problemas complexos; aos professores de
graduação e pós-graduação (dos cursos de Administração, Sociologia,
Psicologia, Educação, Economia, Serviço Social, Turismo, entre outros) que
desejam discutir com seus alunos situações reais que os mesmos
27
enfrentarão no mundo do trabalho; aos estudantes de graduação e pós-
graduação que não se contentam apenas com manuais (por mais necessários
que possam vir a ser) e desejam ir além.
Os autores agradecem indistintamente a todos os que colaboraram para
que este trabalho pudesse ser realizado. Às empresas e organizações que
aquiesceram em receber cada um dos pesquisadores e colaborar com as
pesquisas. Aos entrevistados que pacientemente cooperaram com as
investigações científicas. Aos professores avaliadores e aos debatedores que
criticaram os trabalhos e permitiram melhorá-los (como de praxe, eles não
são responsáveis pelos equívocos que eventualmente ainda se possa
continuar a cometer). Aos que amamos, aos companheiros, aos amigos e
familiares, a quem desejamos expressar um agradecimento especial por
todas aquelas horas em que cada um sacrificou sua convivência com eles
para colocar o pé nesta estrada.
Se este livro revela o que pretende revelar, não é porque a realidade não
existia antes dele. Ela estava lá onde sempre esteve. O que os autores fizeram
foi colocá-la em evidência. Como ensina o grande poeta Mario Quintana:
Qualquer ideia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez do que vestir a verdade
Que dentro em ti se achava inteiramente nua...
28
Os Fundamentos da Teoria Crítica: uma
Introdução
José Henrique de Faria
2 Este conceito de “tecnologia de gestão”, hoje de uso comum, foi proposto por Faria (1989; 1992),
conforme assinala Catani (1997).
30
referentes aos estudos críticos representam cerca de 2% do total publicado
no Brasil nos últimos dez anos. Entretanto, o conceito de estudos críticos
utilizado dá lugar, por exemplo, a concepções pós-modernas, à teoria
institucional ou à redução sociológica de Guerreiro Ramos. Há uma nítida
diferença entre estudos críticos e Teoria Crítica. Estudos críticos são aqueles
que rompem com a tradição gerencialista, afirmando novos modos de
interpretação da realidade, incluindo novos elementos nas análises,
recusando o pragmatismo como finalidade e os métodos quantitativos como
os únicos com caráter científico. Teoria Crítica é uma escola de pensamento
derivada do marxismo, também conhecida como marxismo ocidental, com
um corpo conceitual definido (e suas divergências internas), com suas linhas
de investigação, que também realiza estudos críticos. Teoria Crítica não é
teoria pós-moderna.
Se, no âmbito da pós-modernidade, pode-se incluir Frederick Jameson
(1991) como herdeiro da Teoria Crítica, o mesmo não se pode fazer com as
noções de desconstrução, de espetacularização e de rejeição das grandes
“narrativas”, para usar a expressão de Lyotard (1979). Também não se
podem incluir, no âmbito da Teoria Crítica, as chamadas críticas
neofuncionalistas encontradas na teoria institucional. Isto significa que os
trabalhos e as pesquisas em Teoria Crítica são rigorosamente bem menores
na área dos estudos organizacionais do que sugere Alcadipani.
Ao denunciar o eclipse da razão, Horkheimer (2000) afirma que por
detrás da pura lei econômica, da lei do mercado e do lucro, encontra-se a
pura lei do poder de uma minoria, baseada na posse dos instrumentos
materiais de produção, de forma que a tendência ao lucro acaba sendo o que
sempre foi, ou seja, a tendência ao poder social. No âmbito do Estado não
Capitalista do tipo Socialismo Real, o lucro foi substituído pelo plano, mas as
pessoas continuaram sendo objetos de uma administração centralizada e
burocrática: tanto os controles sobre o lucro como os controles sobre o
plano geraram formas cada vez mais agudas de repressão, cujo exemplo
mais bem acabado foi o estalinismo. A Teoria Crítica, desta maneira,
constitui-se em uma teoria não apenas da economia, mas também do poder:
uma Economia Política do Poder (FARIA, 2004a).
Neste sentido, os estudos atuais sobre a vida nas organizações vêm
sugerir que é preciso investigar mais do que as racionalidades
instrumentais, que as estratégias, que as instituições, que os
31
comportamentos e que as políticas. A análise das organizações necessita
desvendar o mundo do poder e as formas de controle que o mesmo impetra
para se sentir autorizada a compreender essas organizações e suas
finalidades. A Teoria Crítica, nos estudos organizacionais, indica que a
compreensão da vida nas organizações e sua dinâmica exigem um esquema
teórico-metodológico dialético, que seja capaz de responder às questões que
afetam a vida cotidiana dos sujeitos das mais variadas formas e que
valorizem o sujeito coletivo mais do que as organizações em que trabalham.
As organizações são, de fato, construções sociais e históricas que adquirem
autonomia relativa em relação aos sujeitos que as constituíram e que se
consolidam como instâncias de mediação entre os interesses dos sujeitos a
elas vinculados e os objetivos para os quais foram criadas.3 As organizações
não são entes abstratos, sujeitos absolutos, entidades plenamente
autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas construções
sociais dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas formais e
subjetivas, manifestas e ocultas, concretas e imaginárias.
3 Usa-se aqui a palavra sujeito quando se quer expressar um ser social individual (mas não
indivisível) ou coletivo, consciente de seu papel político e histórico, ativo na construção social,
inserido criticamente nas relações de produção. Usa-se a palavra indivíduo quando se quer expressar
uma pessoa que pode, mas não se encontra em processos humanos relacionais, ou seja, uma
individualidade que pode, mas não está em relações interindividuais, que pertence ou não a grupos,
que se filia ou não a organizações, mas que se encontra isolada, afastada, apartada ou monoliticamente
constituída no mundo. É preciso marcar que o conceito de sujeito, portanto, não se confunde com o
de indivíduo, pois, enquanto este remete à noção de unidade, aquele remete à noção de constante
divisão. Como definem Jorge e Ferreira (2005, p. 46), “sujeito é o que está sempre deslizando em uma
cadeia de significantes” e, sem que se dê conta, “está sendo comandado pelo significante”.
32
ser manifesto às claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de
racionalidades (de regras, objetivos, políticas, processos produtivos, planos,
estratégias etc.) e de subjetividades (símbolos, ritos, imaginários e mitos),
com seus paradoxos e contradições.
A distinção fundamental a ser feita, quando se discorre sobre a Teoria
Crítica, refere-se aos seus vários sentidos. A crítica é muitas vezes
considerada a partir de uma concepção destrutiva, como um “denuncismo”,
e quando a mesma é pronunciada é porque tem o propósito de
desqualificar, diminuir, prejudicar ou combater.
A exigência de uma “crítica positiva”, em lugar de uma “negativa”, indica,
desde logo, que a crítica também deve pronunciar a solução. Este “equívoco”
de aparência inocente que habita o senso comum não apenas comete o
equívoco
de supor que a crítica já contém implicitamente uma solução pronta,
qualquer que seja, como também desconsidera que sua formulação, por si
só, já se constitui em um avanço.
No primeiro caso, não obstante a crítica possa apontar soluções, é
fundamental entender que:
a) qualquer proposição formulada intervém sobre o real e o modifica,
exigindo nova avaliação crítica;
b) a solução esperada a partir da crítica, por vários motivos objetivos
e subjetivos, pode não corresponder necessariamente à
expectativa do receptor, o que indica, finalmente, que a solução
não terá significado;
c) do crítico não se pode esperar que seja detentor de soluções, que
componha o estrito grupo de iluminados pelo saber utilitário, que
seja um interventor – no mais das vezes autoritário –, ou que
possua uma sabedoria incomum e sobre-humana;
d) se a condição de identificar os problemas criticamente,
normalmente, está mais próxima dos que não estão diretamente
envolvidos (objetiva e subjetivamente) com os mesmos, as
soluções geralmente estão mais próximas dos que vivenciam os
problemas do que dos que o estudam.
No segundo caso, a denúncia, no curso da história da humanidade,
33
sempre teve um papel relevante e muitas vezes decisivo, como se pode
comprovar no Holocausto, nas ditaduras, nas ações de tortura física, nos
processos de exclusão política, nos recentes casos de corrupção, apenas para
citar alguns exemplos.
A simples crítica fundamentada já se constitui em um grande avanço em
diversas situações, porque coloca o problema para o qual uma ação coletiva
é convocada a se organizar. A solução para a denunciada ditadura franquista
na Espanha, por exemplo, foi construída coletivamente, resultando em “Los
Pactos de La Moncloa” (1977).
Crítica construtiva, crítica destrutiva, crítica inteligente, crítica
equivocada, crítica coerente, crítica incoerente, crítica consistente, crítica
inconsistente, crítica radical, crítica vazia, crítica persuasiva, crítica limitada.
Estes são apenas alguns pares possíveis para tratar a crítica. Cada um se
apresenta como resultante de entendimentos diferenciados, muitas vezes
ligados à convicção do intérprete. Desta forma, pode ser possível que uma
mesma crítica promova várias qualificações, o que impõe a delimitação do
conceito. Ser crítico, em muitas ocasiões, não pressupõe usar a razão,
buscar a verdade, questionar a realidade, ir além do visível, mas estes são
imperativos a serem utilizados para qualificar o pensamento crítico. A
Teoria Crítica não é completa e definitiva; tampouco a expressão crítica é
um adjetivo utilizado para caracterizar pesquisadores inconformados com
a sociedade.
A Teoria Crítica pretende denunciar a repressão e o controle social a
partir da constatação de que uma sociedade sem exploração é a única
alternativa para que se estabeleçam os fundamentos da justiça, da liberdade
e da democracia. Neste sentido, os teóricos da Escola de Frankfurt
investiram tanto contra o nazismo, de que foram vítimas, quanto contra o
totalitarismo que se introduziu na União Soviética, sob Stalin.
A Teoria Crítica tem como característica principal fundamentar-se em
critérios específicos para análise social. Assim, seu atributo é o de questionar
e transformar a realidade social, amparada em fundamentações teóricas que
procuram entender tanto as relações sociais quanto os sujeitos e sua
inserção nestas relações e nos grupos e organizações. Como já tratado em
outro texto (FARIA, 2004a), a Teoria Crítica é constituída (i) do pensamento
radical, em seu sentido filosófico de raiz, (ii) da fuga à subversão da razão e
(iii) da busca do humanismo. Não é um conjunto de regras a serem seguidas
34
e tampouco se vale de esquemas rígidos e imutáveis, pois sua característica
fundamental é ser questionadora da ordem existente, procurando não
apenas entender a realidade, mas, sobretudo, modificá-la em benefício do
desenvolvimento coletivo.
Esta concepção da Teoria Crítica tem sido relacionada diretamente à
Escola de Frankfurt (BOTTOMORE, 1984; 1998), enquanto compreensão
totalizante e dialética, capaz de fazer emergir as contradições da sociedade
capitalista. Assim, ao mesmo tempo em que se vinculam ao pensamento
marxista, esses teóricos não abdicam da crítica a determinados marxismos
(os mecanicistas, os naturalistas, as versões fisicalistas da história, entre
outros), retomando a dialética hegeliana em sua versão materialista e
dialogando com Freud, Weber e outros pensadores não marxistas. Tais
diálogos abriram espaços para a ampliação das análises de fundamento
marxista, entre outras, nas áreas da estética, da cultura, do conhecimento,
da linguística, da psicologia social e das organizações. O Instituto de
Pesquisa Social foi fundado no interior desse confronto entre diversas
disciplinas, dos dogmas em que se tornaram algumas teorias e das
diferentes análises da teoria marxista, cada qual avocando para si a primazia
da verdadeira interpretação. O marxismo passava a conviver com a
fragmentação, de modo que o objetivo inicial dos fundadores do Instituto e
de toda a primeira geração era apresentar um modelo de marxismo como
alternativa às concepções que dividiam o marxismo. Tratava-se, neste
momento, de resolver o problema da crise e da fragmentação, de retomar a
tradição do marxismo para restabelecer sua identidade.
No campo dos estudos organizacionais a Teoria Crítica tem sido, às
vezes, identificada como crítica teórica, como abordagem crítica ou como
estudos críticos (Critical Management Studies), ou seja, como formulação
que articula uma crítica à teoria das organizações, embora permaneça
prisioneira dos fundamentos epistêmicos desta. Esta inadequação tem
permitido classificar como sendo Teoria Crítica textos que não se
enquadram em seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, o que
sugere ser necessário demarcar o alcance desta teoria nos estudos
organizacionais, desvinculando-a da crítica teórica. Para Horkheimer (1990;
1991), trata-se de encorajar uma teoria da sociedade em sua totalidade, que
seja precisamente crítica e dialética de forma a fazer emergir as
contradições da sociedade capitalista. Cabe à Teoria Crítica, como sugere
Adorno (1993; 1994), investir contra as imagens deformadas da realidade
35
que desenvolvem a função de servir ao poder, não dando voz à realidade
desordenada do capitalismo.
Para compreender melhor as bases da teoria crítica, é necessário
entender pelo menos as seis categorias analíticas gerais que a caracterizam
(FARIA; MENEGHETTI, 2004):
a) contradições: os fatos se transformam. As aparências nem sempre
denunciam as mudanças das essências. Cada contexto histórico
apresenta ou esconde o que há por trás de determinadas ações
humanas, organizações econômicas, políticas ou sociais. A
realidade “nega-se” com o passar do tempo. Mesmo as teorias não
são suficientes para explicar determinados contextos ou situações.
A história encarrega-se de corroborar ou questionar a sua
validade. É possível, portanto, compreender que as contradições
são consequências naturais de uma sociedade que se constrói e se
destrói, não à deriva, mas conforme as condições materiais de
existência;
b) ideologia dominante : a ideologia torna parcial a consciência dos
indivíduos em relação ao todo social. Além disso, a deformação
imaginária da realidade é outro elemento que caracteriza a
ideologia como fragmentadora da compreensão da totalidade. A
consciência dos indivíduos enxerga uma outra realidade que não
corresponde ao fato real. O conjunto das representações de
determinada realidade, na maioria das vezes, beneficia alguns
grupos ou classes. As ideologias quase sempre são consequências
naturais de uma “prisão social” que impossibilita ao conjunto dos
indivíduos compreender sua própria existência histórica;
c) racionalidades dominantes: as racionalizações são capazes de
convencer que práticas exploradoras, opressivas e
preconceituosas sejam utilizadas quase que livremente. As
racionalidades são criadas para legitimar as idéias e os valores
morais de grupos sociais que tentam manter seus privilégios. Para
isso, necessitam mascarar a realidade e diminuir as racionalidades
que venham a colocar em risco as relações de poder. Como
estratégia para demonstrar “mudanças” na forma de pensar e de
ver a realidade, novas racionalidades são criadas para substituir as
que estão se tornando ineficientes na manutenção da estrutura de
36
controle. A força de legitimidade de uma racionalidade não requer
somente o uso da razão. As correspondências emocionais,
individuais ou coletivas devem ser recíprocas;
d) contexto social histórico: cada contexto implica um conjunto de
elementos singulares a sua época: (i) condições materiais, (ii)
graus de consciência distintos, (iii) conhecimentos específicos
sobre determinados assuntos, (iv) concepções morais
diferenciadas, entre outros. Neste sentido, não é possível entender
o desenvolvimento de um determinado fato social sem entender
sua trajetória histórica. Um mesmo fato histórico pode ser
entendido de diversas formas, de acordo com as informações que
se tem sobre ele e as técnicas científicas que possam ajudar a
desvendá-lo, mas isto não significa que os fatos mudam de acordo
com as perspectivas que dele se têm, pois os fatos não dependem
da perspectiva dos sujeitos. Novas teorias surgem e formam um
conjunto de racionalidades que pretendem apreender o real pela
via do pensamento. O grau de consciência e de entendimento sobre
os fatos se transforma, promovendo, assim, novos
questionamentos sobre a validade das teorias até então aceitas;
e) emancipação: por emancipação entende-se a busca incessante da
autonomia do indivíduo e da sociedade, alimentada na capacidade
de criar sua própria história, desempenhando papel ativo sobre os
problemas relevantes de interesse coletivo. Uma sociedade
emancipada é, antes de tudo, consciente da sua existência. Assim,
a emancipação é o oposto da alienação, da reificação, da opressão
social, da dominação do homem pelo homem, da prevalência dos
interesses individuais em detrimento dos coletivos. Promover a
emancipação é uma tarefa que visa identificar as ilusões que
aprisionam os indivíduos no pensamento supersticioso, inerte,
preconceituoso, ideológico, ou seja, de todos os elementos que
tornam os homens escravos das suas ambições ou das formas de
opressão. Para tal feito, a necessidade de ir além do visível é um
atributo óbvio, e para isso o conhecimento científico pode ajudar.
Emancipar é, antes de tudo, esclarecer (ADORNO; HORKHEIMER,
1985), é proporcionar aos indivíduos os elementos necessários
para compor o pensamento. A consciência reclama a apreensão do
real, mas para isso também a razão deve ser questionada
37
(HORKHEIMER, 2000), para que não seja um instrumento de
manipulação e ilusão. Assim, a razão que promove o
esclarecimento é a engrenagem para romper os limites do
conhecimento existente;
f) conscientização individual e coletiva: consciência significa estar
ciente de si mesmo, das próprias percepções, sentimentos,
emoções. Damásio (2000) afirma que a constituição da consciência
individual não se dá somente pela razão. Os sentimentos e as
emoções que “amparam” o agir a partir da razão são fundamentais
para dar sustentação à consciência que o indivíduo tem de si e dos
outros. Compreender a realidade é um fator preponderante para a
formação da consciência, pois os limites da compreensão estão
relacionados à capacidade dos indivíduos ou de uma coletividade
de conhecerem a si mesmos. Devido ao fato de que os mesmos
elementos que promovem o conhecimento e o saber promovem
também o imaginário e a ilusão, os indivíduos não podem
compreender totalmente sua realidade. Desta forma, a via coletiva
é a melhor forma de apropriar-se do real e desenvolver uma
consciência para si, pois o esforço coletivo, a capacidade coletiva de
pensar, aliada ao debate democrático e à abertura ao diálogo,
incrementam as condições de compreensão da realidade. Em uma
sociedade hedonista, o indivíduo é instrumentalizado por sua
própria existência. Sua consciência é parcial e constitui-se,
basicamente, na satisfação através da aquisição das posses
materiais. A consciência individual fragmentada impossibilita o
advento da consciência coletiva emancipada (FROMM, 1979).
39
racionalidade técnica como a predominante,4 oferece suporte prático e
ideológico para a aceitação não questionadora do fato de que qualquer
forma de barbárie implica em subversão da razão.
De fato, a organização das relações de produção constitui-se na
engrenagem das mudanças. As ciências cada vez mais se submetem à lógica
do capital, tornam-se forças produtivas deste, ou seja, o conhecimento passa
a ser balizado pelos interesses do capital (HABERMAS, 1982) e a ciência
torna-se ela própria ideologia (HABERMAS, 1997). Os avanços científicos,
que deveriam atender a todos, passam a atender a poucos, mais
especificamente, àqueles que podem pagar pelo acesso aos novos
conhecimentos (TRAGTENBERG, 1982; GORZ, 2005). Assim, o coletivo,
enquanto a supremacia do social sobre as esferas econômicas, políticas e
ideológicas, cada vez mais cede lugar ao individual, marcado por ações que
procuram remediar as disparidades decorrentes das atitudes em que o
econômico, o político e o ideológico servem a poucos.
Por isso, a Teoria Crítica pretende expressar a emancipação dos
indivíduos e promover a conscientização crescente da necessidade de uma
sociedade em que os interesses coletivos prevaleçam sobre os individuais,
em que os indivíduos sejam sujeitos de sua própria história, escrevendo-a
coletivamente. Tratar criticamente o real é questionar se as ações sociais
não são meras atitudes remediadoras, é indagar sobre os atos dos sujeitos
que têm como objetivo atender a interesses de grupos específicos na
estruturação do poder. Assim, é condição essencial para construir uma
sociedade detentora da sua própria história, consciente das suas
responsabilidades e das suas atribuições coletivas. A primazia do real, com
ênfase no sujeito trabalhador, na centralidade do trabalho como elemento
concreto da emancipação, é o que legitima a Teoria Crítica na consolidação
da consciência coletiva e é por esta razão que esta teoria se apresenta
fundamentada no materialismo histórico e dialético, e não no idealismo
fenomenológico, na práxis dos sujeitos e não nas determinações das
estruturas, no processo coletivamente construído e não na natureza da
4 Assim, a sociedade, ao mesmo tempo em que admira os avanços nas áreas de desenvolvimento de
alimentos geneticamente modificados, tolera que um terço da população mundial padeça de fome. Ao
tempo em que saúda os novos modelos de veículos, tolera o desalojamento de ocupações nas
montadoras em nome da incorporação de tecnologias de base microeletrônica no processo de
produção.
40
existência humana, na interação do sujeito com o real e não na prevalência
do pensamento ou no empirismo, na dinâmica dos acontecimentos e não nos
cortes estáticos.
Cabe à Teoria Crítica desenvolver formulações que expliquem o real em
sua forma e em sua substância, que permitam compreender para além do
que pode ser visto e imediatamente entendido pela sociedade. Constitui-se,
portanto, a partir das análises do materialismo histórico e dialético, para
apreender os processos de transformação da sociedade, e das contribuições
da psicossociologia, para estabelecer as relações entre os sujeitos da ação e
a própria ação. Deste modo, esta teoria não se contenta com as análises que
se encerram no plano da macrossociedade e tampouco com as que
pretendem explicar o mundo a partir do indivíduo, reclamando a construção
de uma epistemologia que possa tratar de ambas as representações.
5 Esta concepção foi criticada na Semana Alberto Guerreiro Ramos – gestão social para o
desenvolvimento. Salvador: CIAGS – UFBA, 17 de outubro de 2005 (FARIA, 2005). Em direção oposta,
defendeu-se a tese de que Guerreiro Ramos não se vinculava à Teoria Crítica, mas que se tratava de
um adepto da fenomenologia husserliana.
43
estão em toda a parte, ainda que não se pretenda reconhecê-las, que entram
pelos olhos, ainda que não se queira vê-las, que estão presentes nos
discursos, ainda que não se queira falar delas. No entanto, não se pode fazer
do poder o centro monolítico das relações sociais, pois, deste modo, ainda
que ele esteja em toda a parte, acabar-se-ia por colocá-lo em parte alguma”
(FARIA, 2004a). Por isso, é preciso compreender, além dos aspectos
objetivos e subjetivos, também o caráter simbólico do poder, esta forma
invisível de seu exercício que somente pode ser exercida com a parceria e a
cumplicidade dos que não desejam saber que estão submetidos ao poder ou
mesmo que o exercem (BOURDIEU, 1998).
Uma questão que sempre se coloca para os que se vinculam à Teoria
Crítica é: por que os empregados, submetidos à gestão autoritária explícita
ou sutil, a aceitam? Em primeiro lugar, não é verdade que os empregados
aceitem a gestão autoritária. A história das lutas sociais mostra o quanto as
relações de trabalho evoluíram por conta da resistência dos trabalhadores.
Em segundo lugar, é preciso considerar as estratégias adotadas pelas
organizações. Neste sentido, do ponto de vista das organizações produtivas
sob o comando do capital, é importante analisar questões que não são
pacíficas, penetrando no mundo obscuro das mesmas para entender, por
exemplo, o fato de que para intensificar o trabalho, incrementando a
exploração e submetendo os empregados a constante estresse e
adoecimento de natureza psicossomática, a organização passa a adotar
programas gerenciais anestésicos, aplicados em doses cada vez mais fortes,
porque a resistência vai tornando os anestésicos cada vez mais ineficazes. É
necessário, assim, conhecer melhor as técnicas de gestão contemporâneas,
as novas políticas de administração de pessoas, as novas tecnologias de
controle psicossocial e político, os estratagemas da linguagem cobertura
(“nossos colaboradores”; “nossos associados”), os programas de
aprisionamento e sedução, enfim, tudo o que transmite duplas mensagens:
oprime, ameaça, exige, cobra e age com violência ao mesmo tempo em que
elogia, agrada, age com simpatia e preocupação.
Outra questão que está ganhando espaço nos estudos vinculados à
Teoria Crítica refere-se ao novo trabalhador das organizações sob o
comando do capital. Trata-se de um trabalhador do conhecimento,
altamente qualificado, que trabalha no nível do “chão de fábrica”. Este
trabalhador compõe uma nova categoria, que aqui se denominará de
cognitariado, cuja mercadoria força de trabalho vendida no mercado de
44
trabalho é formada principalmente pelo conjunto dos processos mentais
úteis para o capital, assim entendidos o desenvolvimento, a organização e o
uso de conhecimentos aplicados ao processo de trabalho, bem como o
emprego do pensamento e da percepção na classificação e no
reconhecimento de procedimentos relativos à execução do trabalho. Trata-
se de um trabalhador que também produz valor excedente, ainda que o
produto do seu trabalho possa ser imaterial. O cognitariado não substitui o
proletariado enquanto classe social, mas constitui uma categoria nova de
trabalhadores, os quais ocupam um lugar específico no processo de
produção decorrente do desalojamento das ocupações tradicionais e de sua
troca por outras cujas exigências de habilidades e competências estejam
diretamente vinculadas ao conhecimento.
O proletariado, como se sabe, é uma expressão utilizada para identificar
uma classe social, a dos operários, aqueles que não possuem qualquer
riqueza que não a sua prole e que nada têm a vender que não a sua força de
trabalho. Não possuindo a propriedade dos meios de produção, o
proletariado se vê obrigado a vender sua força de trabalho para obter os
meios de subsistência. Com a crise de acumulação do início da década de
1970, há uma alteração importante nos mecanismos de controle
empregados pelas organizações sob o comando do capital sobre o processo
de trabalho, em que a dimensão tempo de trabalho deixa de ter uma base
taylorista-fordista para ser substituída por um novo modelo, chamado
toyotismo. Este novo sistema, que verdadeiramente é um sistema
neotaylorista-fordista de base eletrônica, é marcado pela produção flexível,
enxuta, com uma organização industrial multidimensional, que, a partir de
estratégias tais como gestão participativa e team work, estabelece uma
relação nova entre a concepção-execução e o tempo de trabalho (FARIA,
2004b; 2004c).
Nesta esteira, um novo tipo de trabalhador passa a ser requerido. Não
basta mais que seja um trabalhador que tenha vencido a separação entre as
atividades mentais e manuais do período taylorista. Precisa ser um
trabalhador que integra pensamento e ação, mas que também possa criar,
produzir conhecimentos úteis para a organização capitalista. Este é,
portanto, o cognitariado. Esta categoria não se constitui de operários que
executam tarefas repetitivas ou que trabalham em equipes, mas de
trabalhadores do conhecimento, cuja função é agregar um outro tipo de
valor aos produtos ou aos processos de produção e gestão. Pode-se, então,
45
afirmar que atualmente existem três grandes categorias de trabalhadores:
o lumpemproletariado (categoria social que não possui consciência de
classe, constituída por trabalhadores que vivem em condições de extrema
miséria e por indivíduos direta ou indiretamente desvinculados da
produção social e que se dedicam a atividades marginais ou socialmente
excluídas), o proletariado, o cognitariado.
5 Sobre o método
47
não é preexistente e imutável;
v. forma e conteúdo interagem, mas são as contradições internas do
conteúdo que podem modificar a forma nos limites das relações
entre ambas: a matéria tem seu próprio movimento;
vi. a consciência, tanto quanto a matéria, é real, mas não se confunde
com esta (o sujeito é diferente do objeto);
vii. matéria e consciência não são estáticos. O pensamento é uma
abstração da matéria quando com ela interage;
viii. o mundo é material e os múltiplos fenômenos, que se relacionam
e se condicionam reciprocamente, são diferentes aspectos da
matéria em movimento. A matéria (realidade objetiva) é anterior
à consciência, pois é a fonte das representações;
ix. não há diferença entre a propriedade de uma coisa e a própria
coisa. O conhecimento não é uma operação pela qual o
pensamento interpreta os dados dos sentidos, mas um processo
complexo de interação entre o sujeito e o objeto;
x. toda a pesquisa precisa garantir a coerência epistemológica;
xi. uma vez escolhido o paradigma, escolhem-se os limites da
investigação;
xii. a teoria está contida no paradigma;
xiii. o método de investigação depende do objeto, conforma-se à
teoria e segue a direção paradigmática;
xiv. quanto mais instrumentos de coleta de dados puderem ser
utilizados em uma pesquisa, melhor será a forma de apreender o
real;
xv. instrumentos de coleta de dados (entrevistas, questionários,
dados estatísticos secundários, documentos, observação,
pesquisa-ação, entre outros) não são, em tese, incompatíveis
entre si. Dependendo do objeto, podem ser supérfluos,
desnecessários ou não efetivos;
xvi. instrumentos de coleta de dados e técnicas de análise constituem
apenas uma parte da metodologia, pois esta é o conjunto dos
procedimentos que englobam a epistemologia, a teoria e a
interação com o real.
48
Enquanto para o idealismo é o pensamento que cria a realidade, sendo
esta a manifestação exterior da Ideia, para o materialismo histórico e
dialético, que guia os estudos aqui apresentados, o objeto é o mundo
material e a contradição é histórica e social: é o mundo material que é
dialético, que está em constante movimento, sendo que historicamente as
mudanças ocorrem das contradições surgidas a partir do processo de
produção social. Neste sentido, portanto, é que se pode dizer que existem
categorias, leis e características do materialismo histórico e dialético.
As características são:
i. materialidade do mundo (fenômenos, objetos, processos etc. são
aspectos da matéria em movimento);
ii. a matéria é anterior à consciência (a consciência é um reflexo da
matéria);
iii. o mundo é (relativamente) cognoscível (tudo pode ser conhecido
com o tempo).6
6 Não há como deixar de observar que esta característica encerra, originalmente, uma crença
religiosa na ciência, sendo esta capaz de desvendar o mundo com o tempo. Ao contrário, para a
Economia Política do Poder a ciência, produzida pelos sujeitos, é limitada às condições dos sujeitos e
dos objetos, daí por que se entende que o mundo á relativamente cognoscível.
49
ii. lei da interpenetração dos contrários (lei da unidade e da luta dos
contrários);
iii. lei da negação da negação.
Os aspectos destas leis podem ser resumidos em quatro pontos:
i. tudo se relaciona. Na natureza, na economia, na sociedade, nas
organizações, os objetos não são amontoados acidentais de
fenômenos separados, independentes, isolados, mas uma
totalidade coerente, orgânica, em que tudo se relaciona com um ou
vários sentidos, em que cada fenômeno condiciona outros e é por
eles condicionado. Nada pode ser compreendido fora dos seus
fenômenos circundantes. A conexão entre os fatos não é um
detalhe destes, mas uma condição de sua totalidade, não uma
particularidade, mas uma universalidade. A pesquisa dialética
precisa, sempre, avaliar seu objeto do ponto de vista das condições
que o condicionam e explicam, da interação entre os fatos e entre
estes e o cientista, pois este é o ponto de partida de toda a teoria
científica dialética;
ii. tudo se movimenta. Como se sabe, não há matéria sem movimento,
pois isto seria tão inconcebível como o movimento sem matéria. A
realidade, como já observado, não é estática. Por isto, a pesquisa
dialética não se contenta em ser descritiva, em esgotar sua
investigação no momento da análise sem considerar seu
desenvolvimento. A descrição serve de base para a formulação de
conceitos. Reduzir a realidade a um de seus aspectos, reduzir o
processo a um de seus momentos, acreditando que o que é será, é
desconhecer a dialética. Os conceitos exercem o papel de leis que
explicam o movimento e não que o descrevem;
iii. tudo muda. Existem duas espécies de mudança. As mudanças
quantitativas, que são transformações simples que não interferem
na natureza essencial do objeto/fato; as mudanças qualitativas,
que são passagens de um estado a outro. A segunda não acontece
sem a primeira: mudanças mínimas (quantitativas) vão se
acrescentando e provocam, em determinado momento, um salto
ou mudança de qualidade. Isto explica por que as pequenas
mudanças podem levar a uma ruptura de uma determinada
50
estrutura. Esta passagem também permite distinguir evolução (ou
reforma) de revolução, crescimento de desenvolvimento,
contingente de necessário. O salto de qualidade (passagem do
inferior para o superior), quando se opera, é resultado de um
acúmulo às vezes imperceptível de pequenas mudanças. Para a
pesquisa dialética, cabe sempre observar como pequenas
mudanças (quantitativas) levam a mudanças radicais
(qualitativas); como a qualidade se transforma em quantidade, já
que ambos os movimentos são inseparáveis, a partir do novo
estado de qualidade que entra em movimento. Muitas vezes, o
pesquisador não pode observar a mudança qualitativa, pois a
mesma se encontra em processo;
iv. tudo resulta do choque (da luta) dos contrários. Da interação das
forças contraditórias, em que uma nega a outra, e de sua
superação, surge uma terceira, que é a negação da negação, a
síntese, o novo. A síntese contém elementos dos contrários de onde
surgiu (da tese e da antítese), mas não se confunde mais com os
mesmos. Ao se concretizar, a síntese se transforma em nova tese,
com seu contrário, sua antítese. O choque dos contrários é o motor
de toda a mudança na natureza e o motor do pensamento, mas
nada se realiza na história social dos homens que não seja
decorrente de sua práxis. Cada tese, sendo a síntese de um
processo anterior, traz consigo sua antítese, e desta contradição,
nova síntese se produz. Também aqui nem sempre o pesquisador
pode observar a síntese, pois esta ainda não surgiu, pois não foi
gerada pela interação e superação das forças contraditórias.
53
Parte I
VÍNCULO, IDENTIDADE, IMAGINÁRIO
E SUBJETIVIDADE
1
Indivíduo, Vínculo e Subjetividade7
54
José Henrique de Faria
Elaine Cristina Schmitt
Introdução
55
Este capítulo empreende uma análise da dinâmica organizacional que
vai além do racional, do objetivo e do que pode ser observado pela aparência
dos fenômenos, estando de acordo com os pressupostos da Economia
Política do Poder, que pretende “mostrar as formas como as organizações
definem e implementam seus mecanismos de controle social a partir da
interação de instâncias ocultas e manifestas que se operam em seu interior”
(FARIA, 2003, p. 3). Os resultados desse trabalho têm por objetivo revelar
algumas práticas de controle que envolvem o vínculo dos indivíduos com a
organização.
Como foi realizada a pesquisa?
Foi através de estudo de caso em uma indústria multinacional do setor
metalúrgico. Para garantir o sigilo da empresa e dos indivíduos
entrevistados, a organização será aqui chamada de “Gama”. Foram utilizadas
formas diferenciadas de coleta de dados, por meio de fontes primárias e
secundárias, tais como entrevista semiestruturada e não estruturada,
observação não participante, consulta a documentos, arquivos, site e
intranet da empresa. No total foram realizadas 37 entrevistas com
trabalhadores de todos os níveis hierárquicos da organização. As
observações não participantes contemplam observações das práticas
organizacionais, da dinâmica dos indivíduos e dos grupos no local de
trabalho. Ainda foram realizadas conversas informais, participação em
reuniões, almoços e lanches de funcionários.
Objetivos Programas
57
Treinamento e Catálogo de treinamento (treinamentos comportamentais, de
desenvolvimento conhecimentos e os específicos para as funções); Avaliação de
desempenho (programa de treinamento e desenvolvimento
específico); Parcerias com universidades; Educação continua-
da; Treinamento para aprendizes; Idiomas; Multiplicadores
internos; Biblioteca; Auxílio a material escolar.
2
Indivíduo, trabalho, subjetividade e controle social
na Organização Gama
58
Para a organização é fundamental que os indivíduos-trabalhadores estejam
engajados a ela, principalmente que estabeleçam com ela laços afetivos. Assim,
ela poderá mediar as contradições existentes no seio organizacional e exercer
o controle social de maneira mais eficaz.
Para Enriquez (1994), Motta (1993) e Faria (2003b), o vínculo é uma das
formas de controle social exercido pela organização. Segundo Motta (1993,
p. 86), “a lógica da produção capitalista obriga o desenvolvimento das forças
produtivas. A competição econômica força as organizações a buscarem uma
performance superior, renovando permanentemente o trabalho, a técnica e
os produtos, dando origem a uma espiral de mudanças infinita e
vertiginosa”.
O método de gestão, baseado na excelência (ou na qualidade total),
defende a noção de produzir melhor que os concorrentes, com a primazia
do êxito, da supervalorização da ação, da obrigação de ser forte, da
adaptação permanente, da canalização de energia individual em ações
coletivas e do desafio constante. Também defende uma maior autonomia
no trabalho, por meio do compartilhamento de responsabilidades,
associadas a recompensas materiais e simbólicas individualizadas,
permeadas por relações hierárquicas mais igualitárias, pela flexibilidade e
pela polivalência da mão-de-obra. Esse método de gestão induz à
mobilização total do indivíduo a serviço da organização, o que acaba por
canalizar a energia física, afetiva e psíquica de seus colaboradores. A
organização se torna, então, o local de todas as superações, da identificação
e de todas as projeções individuais. O método exige um comprometimento
total e uma adesão passional, encarando o ser humano como uma pessoa
consagrada aos desafios e à superação de si mesma (CHANLAT, 1996).
O capitalismo modificou a lógica de ação da produção ao abduzir dos
trabalhadores o controle sobre o trabalho e a produção, alterando as
relações econômicas, políticas, ideológicas e psicológicas no interior do
sistema e deixando mais visível a contradição social que tende a eclodir em
conflitos.
59
O valor do trabalho não é apenas abstrato e representado na forma dinheiro,
mas subordina os valores individuais e coletivos ao sistema de capital e é uma
das formas de estabelecer relações e trocas afetivas e sociais entre os
indivíduos.
62
As formas que atuam no nível subjetivo, ou seja, no subjetivo propriamente dito
(intersubjetivo e inconsciente), são aquelas que decorrem do que não pode ser
expresso, do lado sombrio, enigmático, obscuro e tenebroso das organizações e
das relações que as constituem e que nela se reproduzem nos bastidores e no
que não pode ser compartilhado.
63
A empresa é incansável ao querer enfatizar a importância da
participação do “colaborador” para o sucesso da mesma. Nas palavras
oficiais, “a Gama, assim como todas as empresas do grupo Gama no Brasil e
no exterior, foi construída com a participação de todos os Colaboradores, em
uma grande união de dedicação, constante atividade, planejamento, exatidão
e profissionalismo. Com seu sucesso, honra a memória e os princípios
humanistas” do fundador. Ao salientar os ideais do fundador (percebido
como uma figura mitológica), esses se tornam importantes para as pessoas,
que passam a incorporá-los. Os ideais de participação, colaboração,
dedicação, sentimento de humanidade, atividade constante, profissionalismo
e excelência são internalizados pelos indivíduos-trabalhadores da Gama.
Esses passam, então, a agir em conformidade com os ideais da empresa.
A necessidade de promover mudanças para alcançar a excelência e os
objetivos da empresa também é acompanhada por outras ações
denominadas “responsabilidade social”, que visam à realização e à
satisfação de necessidades de outros (empregados e sociedade). Além de
promover obras de cunho social, a empresa indica que também tem uma
preocupação ecológica, pois todas as implantações de novas formas
produtivas e de gestão são acompanhadas por idéias que remetem à
qualidade de vida, ao desenvolvimento do indivíduo-trabalhador e ao
cuidado com o meio ambiente. Além de veicular a ideia de prezar pelo bem-
estar do trabalhador, a Gama também procura ampliar essa condição aos
seus familiares, ou seja, tornar-se um ideal que permeie a vida do
trabalhador como um todo. A família torna-se um elemento importante a ser
conquistado, como por outros motivos já sabia Henry Ford (FARIA, 2003b),
pois ela certamente auxilia na construção do ideal: “a empresa boa, a
empresa-mãe”.
Segundo Pagès et al. (1987, p. 37), ocorre nas organizações “a troca de
um sistema inconsciente do tipo paternal por um sistema do tipo maternal.
A organização, como vemos, está associada a uma imagem inconsciente
feminina”. A dominação psicológica se dá pela oferta e retirada de amor, bem
mais do que pela coerção, a interdição e a castração, representadas pela
relação com o pai, pelo temor do pai e da ameaça de castração.
64
prática suas iniciativas, criatividade e sua vontade de inovação. No entanto, só
o faz porque tem para si as regras, os valores e a filosofia da organização.
3
Vínculo e subjetividade: alicerces do controle social na Organização Gama
8 Não é propósito aqui fazer uma psicanálise, para a qual os autores não são competentes. Trata-se
apenas de indicar em que áreas do conhecimento se podem buscar explicações para entender melhor
determinados fatos.
70
Salário
Autonomia no trabalho
Investimento no funcionário
Fama da empresa
Valorização social
Respeito no trabalho
Relacionamentos no trabalho
Reconhecimento da empresa
Amor à empresa
Sentimento de família
Medo do mercado
71
3.1 O vínculo formal e a subjetividade humana
São vários fatores que fazem com que o funcionário permaneça na Gama.
E eu até vou te contar isso porque essa é a minha história, a minha
experiência de eu estar aqui há 17 anos. A Gama é uma empresa que está em
constante evolução. Não tem um ano que você não tenha uma coisa nova, um
desafio, não há aquela coisa de pensar que aqui não está desafiador ou que
está desmotivador. Outro ponto é que é uma empresa que dá muito recurso
para você trabalhar. Se você quer fazer uma coisa nova e precisa de um
recurso material ou aumentar a sua equipe, você tem isso. Outro fator é que
é uma empresa que paga bem em relação ao mercado. Profissionalmente,
para um engenheiro, um técnico, um analista, o que tem de tecnologia aqui
dentro é de ponta, de última geração. Dificilmente ele encontrará no
mercado esse contato com a tecnologia de ponta. Tecnologicamente falando,
ela está sempre na frente. Cada vez está ficando mais difícil você
hierarquicamente subir na organização. Contudo, você tem muitas
oportunidades.
72
candidatar em duas empresas e, quando chegava o quesito salário, as duas
foram unânimes em dizer que eu deveria ficar quieto onde estava, porque já
tinha um bom salário. Eu acho que a empresa pratica uma política de
benefícios muito sólida. Se não é a top, também não está na média, está
sempre acima da média, dentro da sua realidade, muitas vezes abrindo mão
do seu resultado, operando um resultado negativo para manter as políticas,
mas sempre visando a um resultado positivo em curto prazo. Então, acho
que esse também é um vínculo muito importante. Claro, também tem coisas
para serem melhoradas. Por exemplo, o pessoal reclama muito das políticas
de subsídio para graduação, mas, em contrapartida, os subsídios para
mestrado, pós-graduação, idiomas são excelentes. E assim vai: sempre tem
prós e contras. Mas em minha opinião é uma política muito sólida de
benefícios e remuneração e que as pessoas também se vinculam à empresa
por esse motivo. Você tem que fechar o circuito, senão não funciona. A
empresa agora está partindo para o estudo da remuneração variada, sempre
procurando acompanhar o mercado e muitas vezes sair na frente. Acho que
esse vínculo é estratégico e fundamental.
74
ligação entre os indivíduos e a empresa.
76
comportar, a pensar e se relacionar de acordo com os padrões e as estruturas
estabelecidas por ela.
Dois dos aspectos que chamam a atenção dos novos empregados da Gama é o
ambiente e o clima de trabalho. Eles dizem que se sentem acolhidos e respeitados
pelos colegas. Também percebem um ambiente agradável, em que todos se
cumprimentam, se conhecem e se demonstram solícitos em caso de necessidade.
Quando eu entrei, foi muito interessante, vi uma grande empresa com
móveis não tão novos, máquinas relativamente novas, enfim não é uma
fábrica moderna. Mas confesso a você que tudo isso fica em segundo plano
diante da forma como você é recebida no teu ambiente de trabalho e a
educação das pessoas. Ela não tem um sistema de integração formal, como
eu estava acostumada; apenas preenchi vários documentos e fui fazendo
microestágios com pessoas para saber um pouquinho o que elas faziam e
como elas faziam os seus trabalhos. Foi essa minha integração. Tinha uma
agenda preparada para mim e a minha amiga, que trabalha aqui, me deixou
sozinha algumas vezes neste início para eu me virar. As pessoas foram muito
receptivas, atenciosas. Sempre que eu preciso de alguma coisa, eu tenho
retorno, fato que, aliás, eu estava desacostumada. Eu me sinto muito à
vontade aqui, parece que trabalho aqui há muito tempo e com tão pouco
tempo de empresa me sinto bem integrada.
78
O medo do mercado é outro sentimento que aparece constantemente
entre os empregados da Gama. Eles se vinculam e mantêm um forte elo com
a empresa porque temem o que pode acontecer com eles no mercado, frente
às dificuldades e à escassez de trabalho. Assim, o medo de mercado também
faz com que os indivíduos trabalhem e se esforcem para demonstrar que
estão engajados na empresa. O medo de ser substituído, trocado, deixado de
lado, desvalorizado, de não ter mais o lugar de pertença, onde possa realizar
seus desejos e suas necessidades, entre outros, faz com que o indivíduo se
interesse cada vez mais em se mostrar ligado e comprometido com seus
objetivos em relação à empresa.
Para os indivíduos-trabalhadores da Gama, estar ligado à empresa, ter
um lugar “protegido” e ainda realizar seus desejos e necessidades na
empresa são fatores que devem ser amplamente valorizados e cuidados.
Percebe-se que esses indivíduos lutam diariamente contra seus medos e
angústias que têm origem no início de suas vidas. Eles necessitam de filiação,
precisam sentir-se pertencentes a um lugar, ser desejados e reconhecidos
por outros. É em prol disso que se vinculam à Gama.
4
Análise psicossociológica dos vínculos estabelecidos entre indivíduos e
organização: por uma conclusão
79
mobiliza funções e processos psíquicos em seus indivíduos, ou seja, canaliza-
os, domina-os e os domestica. Essas mobilizações cumprem um efeito
organizador da realidade psíquica e da organização.
A Gama trabalha com a subjetividade dos indivíduos através da ação
disfarçada de elementos racionais e ideológicos: a política da empresa e seu
sistema de valores são alguns exemplos. Assim, a organização flagra o desejo
de conquista dos indivíduos, seu medo da morte, seu desejo de dominação e
onipotência e a crueldade para consigo e com os outros, oferecendo um
sistema em que é possível realizar todos esses elementos de ordem
psicológica. Ao mesmo tempo em que o vínculo se apresenta como condição
fundamental da possibilidade de relação e de troca entre indivíduos e
organização, ele também se torna, pela dinâmica estabelecida na relação, um
meio eficaz de submeter e alienar o indivíduo à organização. O indivíduo
reconhece os elementos importantes para a sua vinculação à empresa
(salário, benefícios, integração etc.), no entanto, ele não tem plena
consciência dos elementos subjetivos que se relacionam à sua história de
vida, sua forma de satisfação e suas angústias fundamentais e que o
vinculam à organização-empresa. Ele apresenta esses elementos em seu
discurso, mas não reconhece a sua importância na dinâmica da vinculação.
Assim, juntamente com os elementos objetivos que o ligam à empresa,
existem os elementos subjetivos, que necessariamente se relacionam às
questões inconscientes e subjetivas de cada um.
A atuação e o controle da organização sobre a subjetividade dos
trabalhadores possuem um limite: ela não consegue controlar o indivíduo
pela sua subjetividade se o sistema que a organização oferece é percebido
como injusto e imoral. A partir do momento em que o indivíduo percebe que
o vínculo estabelecido gera certos conflitos com outros interesses seus, que
o “preço” de se vincular e estabelecer relações está em confronto com seus
valores, sua moral e sua ética, o indivíduo tende a se desvincular da
organização. A consciência e certo saber sobre as situações vinculares, que
impede o indivíduo de realizar prazeres importantes, além da divergência de
valores morais e éticos, podem fazer com que um indivíduo se desligue, se
desvincule do objeto (organização) proporcionador de prazer.
O controle que a organização exerce sobre os indivíduos, tenha ele a
forma que for (físico, normativo, finalístico, político, simbólico-imaginário,
por sedução ou por vínculo), nunca será total. Isto é, os indivíduos gozam de
80
satisfação e espaços de liberdade para agir, atuando, inclusive, para a
construção e a reprodução das formas de controle organizacional. No
entanto, eles também sofrem as consequências do controle sobre o seu
corpo, seus comportamentos e sua subjetividade. O controle, o poder e as
estruturas de dominação da organização atuam no sentido de provocar a
repressão e o recalcamento nos indivíduos. Assim, eles ficam impedidos de
expressar e realizar algumas de suas manifestações psíquicas mais
fundamentais para seu desenvolvimento, quais sejam, seus desejos, suas
fantasias, suas vontades e necessidades.
A vinculação do indivíduo à organização constitui-se como um processo
contraditório. Ao mesmo tempo em que a organização promove o controle,
utilizando, entre outros, o processo vincular para garantir a produção, ela
perde em produtividade e possibilidade de criação, pois tolhe os indivíduos
no que lhes é mais fundamental: a possibilidade de inovar, agir e
transformar o meio em que vivem. Já os indivíduos se vinculam à
organização para obter a satisfação de suas necessidades, nem sempre
percebendo o quanto são controlados, e deixam de obter sua realização
exatamente por manterem essa ligação com a empresa. A subjetividade dos
indivíduos é transformada e, muitas vezes, eles perdem sua essência: seu
modo característico de ser, de se relacionar e de obter prazer.
A vinculação do indivíduo à organização pode lhe trazer sérias
consequências, sendo o sofrimento psíquico e os transtornos mentais os
mais comumente encontrados. Mas não se pode negar que, através da
relação com a organização, o indivíduo também obtém satisfações. Cabe a
ele, então, a condição de avaliar essa relação e fazer suas escolhas, bem como
cabe à organização propor-se uma reflexão com relação a sua atuação sobre
a subjetividade dos indivíduos e suas repercussões sociais.
1.
O que mantém uma organização coesa é o estabelecimento de um vínculo
social comum entre os sujeitos que a compõem, o que não significa que estes
sujeitos não possam ter seus próprios interesses, desejos e projetos. Os
sujeitos vinculam-se a um projeto, um desafio, um objetivo. Entretanto, em
qualquer organização ocorrem relações de poder e conflitos intergrupais e
81
interpessoais, que não raro mobilizam muita energia dos sujeitos, colocando
em risco os processos vinculares. Como a organização deve ocupar-se ao
mesmo tempo com a construção e a manutenção de um vínculo social
comum e com as relações de poder e com os conflitos?
2.
A empresa pesquisada, a Gama, é considerada pela maioria de seus
empregados como uma organização “boa de se trabalhar”, devido às suas
políticas. Os empregados têm orgulho da empresa. No entanto, a empresa
adota mecanismos de atuam sobre a subjetividade dos seus empregados
para criar um ambiente de vínculo com a mesma, mecanismos estes que se
tornam mais eficazes quanto mais os empregados se sentem ameaçados e
inseguros com relação ao que seria sua vida profissional fora dela
(desemprego, menores salários e benefícios etc.). Neste sentido, o vínculo
estabelecido seria falso ou, pelo menos, frágil? Por quê?
82
O Sequestro da Subjetividade9
José Henrique de Faria
Francis Kanashiro Meneghetti
Introdução
10 “A palavra dekassegui está sendo empregada para designar os trabalhadores brasileiros de origem
japonesa e também japoneses radicados no Brasil, que trabalham no Japão durante um tempo,
realizando tarefas desqualificadas. Estes dekasseguis brasileiros começaram a chegar ao Japão a partir
de 1985, com um grande aumento do seu fluxo a partir de 1989” (KATO; MIYAZAKI; SUGO, 1992).
83
Japão, mais especificamente na cidade de Shimada, Estado de Shizuoka, que
trabalham em indústrias ou empresas que adotam o modelo toyotista de produção.
Trata-se, portanto, de um estudo de caso, para o qual foi considerada a existência
de empresas que adotam o “modelo toyotista” e que empregam dekasséguis. Foram
selecionados 100 trabalhadores, sendo que 31 participaram da pesquisa. A escolha
dos trabalhadores dekasséguis deveu-se às condições diferenciadas de trabalho
vividas por estes “estrangeiros aceitos por descendência”, inseridos no processo de
produção como força de trabalho temporária e submetidos a processos de
intensificação do trabalho. Assim, se o modelo toyotista não é dependente de
cultura local, seria de se esperar que qualquer trabalhador a ele submetido
experimentaria seus resultados, estaria sujeito ao seu sistema de controle e seria
apanhado nas armadilhas do envolvimento psicológico.
1
Subjetividade do trabalhador, poder condicionado e sequestro
da subjetividade
11 No estudo que deu origem a este capítulo, “sequestro da subjetividade” foi utilizado apenas como
uma expressão. Os debates e os questionamentos que se seguiram acabaram por exigir um conceito.
A exposição deste conceito é realizada primeiramente durante um debate sobre The Critical Theory
of Labor Process Control Under Capitalists Organizations, no Institute of Labor and Industrial
Relations, na University of Michigan, do qual resultou um working paper, denominado The kidnapping
of subjectivity: the new capitalist strategy of labor process control (FARIA, 2003). Parte desta reflexão
aparecerá também em outro trabalho (FARIA, 2004c. p. 116-117). Estes conceitos e reflexões foram
acrescidos ao presente texto e se encontram devidamente destacados.
84
Nas organizações, a subjetividade é em sua essência controlada pela
consciência do sujeito individual ou coletivo quanto à sua conduta no local de
trabalho e na rede social a que se submete.
85
Seria, assim, impossível o sujeito entender sua subjetividade e controlá-
la numa direção que evitasse um processo de alienação, já que não há
indivíduo que possua total compreensão de suas manifestações emocionais
e mesmo racionais. Para que houvesse a possibilidade de um indivíduo
chegar próximo a um estado ideal da consciência, este deveria inferir
julgamentos corretos sobre toda a lógica coletiva da sua realidade, podendo
distinguir pontos tendenciosos e errôneos da realidade social, comuns nas
relações de poder na sociedade.
A subjetividade é, assim, “inferida a partir de práticas de ordem
individual, grupal [social] ou institucional, sendo que ela não se inscreve
num campo puramente racional, mas numa cadeia de significações
imperceptíveis (ou seja, reprimidas) para o indivíduo ou para a organização
à qual pertence” (VOLNOVICH, 1996, p. 61). A subjetividade do indivíduo
não está apenas em sua consciência, mas também no círculo em que
participam a mente, os afetos, o corpo, os vínculos, o trabalho, a casa e os
outros (VOLNOVICH, 1996). O papel do contexto ambiental da sua atuação
e o seu relacionamento com o mesmo enquanto sujeito social têm espaço
fundamental na formação da sua subjetividade, sendo assim importante
destacar a importância de um imaginário coletivo, dos vínculos grupais que
o sujeito estabelece, dos processos de produção a que o sujeito se submete
e a ideologia que o influencia.
O conflito que se desenvolve em cada uma destas dimensões, adicionado
às repressões originais do ser social para a formação de uma civilização
passível de civilidade (MARCUSE, 1975), obrigou o sujeito a submeter-se a
compreensões “prontas” da sua realidade, que englobam da submissão a
situações espúrias de um vínculo social à criação de um mito aceito pela
sociedade e alimentado por um imaginário coletivo. Essa aceitabilidade só se
torna possível na medida em que o indivíduo é um ser social que, para
realizar seus desejos, deve ser reconhecido como um membro legítimo de
determinado grupo social (ENRIQUEZ, 1997).
O indivíduo passa a estabelecer padrões de conduta para ser aceito em seu meio
e para aliviar a tensão estabelecida com a sociedade. É sobre esta perspectiva
que nas relações de trabalho, que também são relações de poder e não só de
86
produção, há uma busca por produzir um modo moral de ser, apto a
corresponder à expectativa de uma aceitação social e aliviar as repreensões
originais.
Isto equivale a dizer que “as relações de trabalho produzem esta relação
e o modo de ser moral – a subjetividade – do trabalhador profissional: o seu
ser profissional” (ROSA, 1994, p. 155). O indivíduo busca, portanto, várias
maneiras de estabelecer relações sociais, mesmo que seja um conflito
narcísico. “Dessa forma ele transcende a separação de uma existência
individual por tornar-se parte de alguém ou de algo maior do que ele
próprio, experimentando a identidade por intermédio do poder a que se
tenha submetido” (FROMM, 1979, p. 43). Nesta submissão, o indivíduo “doa”
sua subjetividade, para que possa se tornar parte deste algo maior, criando
uma nova relação de poder simbiótica em que as forças de dominação e
submissão estão na sutileza do relacionamento.
O indivíduo investe na realização de seus desejos e na satisfação do que
de início foi reprimido (MARCUSE, 1975), ao mesmo tempo em que se
submete a regras estabelecidas, procurando construir sua subjetividade em
uma totalidade, embora vá fragmentá-la por imposição de sua própria
limitação do conhecimento da totalidade e do todo de sua consciência. Cada
indivíduo se vê obrigado a abrir mão de parte de sua autonomia em prol do
coletivo e, assim, acaba criando o que se pode chamar de subjetividade
fragmentada.
87
Esta subjetividade fragmentada é valorizada e reproduzida através da
ideologia, tornando-se a forma mais direta e menos “dispendiosa” para a
organização conseguir resultados para os objetivos propostos pelas
pressões narcísicas individuais ou de uma minoria grupal de objetivos
comuns. Apesar de a subjetividade fragmentada ser incentivada pela
organização, torna-se necessário haver um padrão de conduta social para
evitar que ocorra uma desordem e um prejuízo total. Neste contexto, pode-
se verificar que o melhor local em que esta dinâmica ocorre é o próprio
ambiente de trabalho, no qual se estabelecem relações sociais com certa
intensidade e comprometimento.
Isto se dá em razão da existência do que Galbraith (1999) chama de
poder condicionado.
89
O sequestro da subjetividade por parte da organização consiste no fato desta
apropriar-se, planejadamente, através de programas na área de gestão de
pessoas, e de forma sub-reptícia, furtiva, às ocultas, da concepção de realidade
que integra o domínio das atividades psíquicas, emocionais e afetivas dos
sujeitos individuais ou coletivos que a compõem (trabalhadores, empregados).
Estas atividades formam a base da percepção e da representação que permite
aos sujeitos interpretar o concreto pela via do pensamento e tomar atitudes
(agir). O sequestro da percepção e da elaboração subjetiva priva os sujeitos de
sua liberdade de se apropriar da realidade e de elaborar, organizar e
sistematizar seu próprio saber, ficando à mercê dos saberes e valores
produzidos e alimentados pela organização sequestradora (FARIA, 2003b).
14 Sequestro da subjetividade não tem as mesmas características que assédio moral. Embora seja
um tipo de violência psicológica, seus procedimentos são de outra natureza. Segundo a
psicoterapeuta francesa Marie-France Hirigoyen (1998), assédio moral é todo tipo de ação, gesto ou
palavra que atinja, pela repetição, a autoestima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de
si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução da carreira
profissional ou à estabilidade do vínculo empregatício do funcionário, tais como: marcar tarefas com
prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar
crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele através de
terceiros; sonegar informações de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com
persistência; e subestimar esforços . Ver, também, sobre isto
<http://www.partes.com.br/assedio_moral.htm>; Barreto (2003) e Heloani (2003).
90
coletiva representativa do sujeito (por exemplo, o sindicato), quando o
sequestrado percebe que se encontra em cativeiro6 e consegue contatar um
negociador institucional ou (iii) pelo sequestrador e uma instância de mediação
(por exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho). O valor do resgate, ou seja, do
regresso à liberdade, é equivalente ao preço da pactuação voluntária (acordo
entre as partes), da punição (demissão, desligamento, não-recomendação a
outras organizações ou, em casos ou fases críticas no mercado de trabalho,
desemprego e humilhação), da transgressão ou da extinção das regras que
permitem à organização agir como sequestradora da subjetividade dos sujeitos
que com ela mantêm relações de trabalho (FARIA, 2003b).
15 A expressão captura da subjetividade e seu conceito são expressos por Alves (2000). Para efeitos
do estudo realizado aqui, preferiu-se adotar outro conceito, o de sequestro, embora se reconheça a
pertinência da proposta de Alves.
91
autônoma do sujeito através da inculcação, da fixação e da permanente gravação
de um sistema de valores, de uma ideologia que atinge o domínio de suas
atividades psíquicas, emocionais, afetivas e sociais” (FARIA, 2003b).
16 “O controle intensifica-se não apenas sobre o tempo de trabalho, mas igualmente sobre o tempo
livre, seja sob a forma de ‘atividades culturais’ (de lazer, esportivas, religiosas, de responsabilidade
social), realizadas na organização, seja sob a forma de ‘ligações comunicacionais diretas’ (celular,
correio eletrônico). O que mais assusta a organização é perder o controle sobre o processo e as
relações de trabalho e de poder” (FARIA, 2004c).
93
“O essencial é destacar o jogo de compromissos ‘institucionais’ –
explicitamente negociados ou não – instaurados entre o capital e o trabalho
assalariado, materializados no sistema de relações industriais. São
inovações ‘institucionais’ voltadas à obtenção do envolvimento dos
assalariados por meio de um controle social de novo tipo. No caso do Japão,
eles eram baseados em três aspectos principais: o emprego vitalício, o
salário por antiguidade e o sindicalismo ‘de empresa’” (ALVES, 2000, p. 51).
O envolvimento do trabalhador não é obtido, contudo, somente através
das ações diretas das recompensas nas organizações. A sociedade impõe
padrões que devem ser seguidos para que o indivíduo possa ser reconhecido
como um exemplo social. “Para garantir sua legitimidade, o modo capitalista
de produção necessita de uma coleção de fetiches que fortifique as razões de
sua dominação social. [...] Construir um fetiche, ou elevar um processo ou
fenômeno em nível de fetiche, significa cristalizá-lo em sua essência e
colocá-lo como objeto intocável, isto é, abstraí-lo das condições reais de sua
produção” (GUARESCHI, 1987, p. 18), ou seja, retirar-lhe seu caráter
histórico.
Um dos exemplos de condutas a serem perseguidos é o do indivíduo
vitorioso, que consegue realizar todas as aspirações almejadas por ele
mesmo e por sua família, podendo ser de ordem financeira, profissional,
intelectual ou outras que a sociedade valoriza. Para atingir tal patamar, é
comum encontrar indivíduos que adotam uma conduta ética que não é a que
os mesmos aceitam como adequadas, mas que é a esperada dentro das
organizações, encobrindo o verdadeiro paradoxo entre o seu discurso e a
práxis (FARIA, 2000). Encobrir os “pequenos ajustes” torna-se prática
comum, já que se acredita ser por uma boa causa que estas atitudes devem
ser tomadas.17
Na sociedade capitalista contemporânea, o individualismo e o
utilitarismo estão presentes no modo de pensar, ser e agir, manifestados
através das atitudes e impregnados nas instituições que compõem a
sociedade. O mundo ideológico criado em decorrência das relações
estabelecidas a partir do confronto entre o capital e o trabalhado produz
17 Nas organizações brasileiras estas práticas já vêm de uma longa tradição. Em O jeitinho brasileiro,
Lívia Barbosa (1992) mostra a dificuldade do brasileiro em lidar com as leis, com a imprevisibilidade
das situações conflituosas e com as dificuldades.
94
uma nova dinâmica de relacionamento, baseada na coisificação dos vínculos
interpessoais, capazes de estabelecer valores de utilidade entre o aceitar ou
não as imposições sociais pelos grupos dominantes da sociedade. Para evitar
o fracasso, proposto por uma composição imaginária coletiva, o sujeito
submete-se a mais uma forma de dominação e condescendência com os
valores capitalistas: o fracasso como tabu moderno (SENNETT, 1999, p.
141).
18 Para mais detalhes, consultar o Capítulo 9 deste livro, bem como ver a análise de Faria (2004b).
96
e a continuidade do modo de produção capitalista e, consequentemente, a
lógica da acumulação ampliada do capital. Contudo, a necessidade cada vez
maior de ganhos de produtividade, imposta tanto pelo aumento da
competitividade intercapitalista e pelas crises de acumulação quanto pela
organização da resistência dos trabalhadores, fez com que os mecanismos
de controle do processo de trabalho fossem afetados. A racionalização
taylorista-fordista do processo produtivo não atingia o nível do sequestro
da subjetividade de forma a impedir o afastamento consciente das reais
condições precárias em que se encontravam os trabalhadores. Através dos
novos processos produtivos e do novo modelo de gestão toyotista, tornou-
se possível atribuir ritmos intensos e precários de trabalho sem a total
consciência do trabalhador da sua condição de trabalho. Seria, portanto,
uma nova fase do fordismo,19 ou seja, um “neofordismo” (AGLIETTA, 1979;
FARIA, 2004b), incrementado pela capacidade de, valendo-se de novos
conhecimentos das “ciências do comportamento”, sequestrar a
subjetividade do trabalhador, fazendo com que este ignore uma parte
importante de suas condições de trabalho através do afastamento da
consciência da realidade pelo aprimoramento das situações existentes no
fordismo, na produção e na gestão do trabalho.
O toyotismo é um “fordismo de base microeletrônica”, um “fordismo
flexível”, em que grandes linhas de produção são substituídas por pequenas
linhas, chamadas “ilhas” ou “células” de produção. Assim, do ponto de vista
operacional, trata-se de uma adaptação às condições impostas pelo emprego
de tecnologias físicas de base microeletrônica. Adaptações necessárias para
fortalecer os mecanismos de controle, garantir a eficácia gerencial, a
produtividade do trabalho e a competitividade do mercado (FARIA, 1992).
Do ponto de vista das relações de trabalho e da gestão do processo de
trabalho, afirma-se o sequestro da subjetividade do trabalhador, agora com
mecanismos mais sutis.
De fato, ao analisar a percepção dos trabalhadores decasséguis de uma
fábrica que adota o chamado modelo toyotista de produção e gestão, sobre
19 “O fordismo ainda era uma forma de ‘racionalização inconclusa’, pois, apesar de instaurar uma
sociedade ‘racionalizada’, não conseguiu incorporar à racionalidade capitalista na produção as
variáveis psicológicas do comportamento operário, que o toyotismo desenvolve por meio dos
mecanismos de comprometimento operários, que aprimoram o controle do capital na dimensão
subjetiva” (ALVES, 2000, p. 40).
97
as relações de trabalho em que estão inseridos, foi possível identificar cinco
formas de sequestro da subjetividade.
99
destino. Para estes trabalhadores, a empresa sempre valoriza a competência
técnica. Eles acreditam que há maior estabilidade de emprego na empresa
em comparação com outras, que o empregado é essencial para a empresa,
que é valorizado o trabalho de equipe na empresa e que problemas que
surgem no trabalho acabam sempre se resolvendo com a intervenção dos
empregados.
O toyotismo foi capaz de criar um novo entendimento do trabalho em
grupo, em que a equipe, quando no desempenho das tarefas em grupo, é
dotada de “poder”, segundo um processo de “empoderamento”
(empowerment). Cria-se uma autoimagem capaz de estabelecer um
imaginário de poder coletivo, que seria impossível, no entanto, na
singularidade. Todas as diferenças que podem ocorrer dentro do ambiente
de trabalho devem ser superadas em detrimento de um objetivo comum e
“grandioso” a ser atingido. Todos devem estar em consonância com tais
objetivos para serem aceitos pela coletividade, ou seja, todos devem
estabelecer um vínculo grupal diante de um objetivo comum. Assim, o
trabalho em grupo torna-se um valor que deve ser internalizado para que os
objetivos não sejam prejudicados com as aspirações particulares de cada
indivíduo.
101
Questões Concordância Discordância
3.
65,22
Os colegas de trabalho são cooperativos e solidários.
4.
Há boa convivência do empregado com seus colegas de 86,96
trabalho.
5.
O empregado acredita que seus colegas de trabalho
72,73
recebem mais (salário, reconhecimento profissional) do
que deveriam.
6.
O empregado procura expressar objetivamente sua 77,27
vontade de mudar.
102
indesejadas. Com estes atributos sendo valorizados nas organizações
toyotistas, há um conflito de ordem pessoal de natureza narcísica para cada
indivíduo. As capacidades humanas, sejam elas quais forem, físicas ou
intelectuais, diferenciam-se de indivíduo para indivíduo, e fazem com que
cada um se torne mais propenso a esta ou aquela atividade específica.
Contudo, estas diferenças entre as capacidades singulares não são
respeitadas pelas organizações e muitos são os fatores que agravam tais
problemas.
Os níveis de desemprego, a desvalorização do saber de ofício em
detrimento da qualificação instrumental,20 a crescente necessidade de
redução de custos são alguns exemplos que levam os departamentos de
recrutamento de mão-de-obra a optar por não escolher os indivíduos mais
aptos para o exercício da tarefa a ser executada, mas os mais “baratos e
eficientes”. O toyotismo vem contribuindo de forma intensa para que esta
situação se agrave, já que a própria lógica do sistema toyotista de produção
está baseada na intensificação do trabalho e na redução de custos de toda
natureza.
20 “Entende-se por (i) saber de ofício ou saber profissional o conjunto de conhecimentos que o
trabalhador detém, inerentes às suas condições cognitivas internas e desenvolvidas a partir de suas
relações sociais e de produção e por (ii) saber instrumental aquele que o trabalhador adquire,
desenvolve e dele se apropria na efetivação do processo de trabalho e no manuseio de seus
instrumentos de trabalho. O primeiro possui um caráter coletivo, na medida em que decorre de uma
práxis social, e o segundo possui um caráter individual, na medida em que decorre de uma atividade
particular. Não se trata, no entanto, de saberes excludentes, pois um interfere no desenvolvimento do
outro e o constitui e vice-versa” (FARIA, 1993). Observa-se que “as novas tecnologias, ao mesmo
tempo em que qualificam o trabalhador em termos de saber instrumental, desqualificam-no em
conhecimento do ofício, o qual vem sendo transferido paulatinamente para as novas máquinas,
destituindo o trabalhador de sua posse” (FARIA, 1993). “Para operar as máquinas automatizadas, as
antigas habilidades tornam-se então dispensáveis frente ao aumento da capacidade e das
especificações do novo maquinário: com efeito, a automação promove com maior eficiência a
apropriação do saber operário, utilizando-o de modo a reafirmar a hegemonia do capital sobre a força
de trabalho” (FARIA, 1992).
103
produção de mercadorias, que permitem “superar” os limites postos pelo
taylorismo-fordismo. É um novo tipo de ofensiva do capital na produção que
reconstitui as práticas tayloristas e fordistas na perspectiva do que
poderíamos denominar uma captura da subjetividade operária pela
produção do capital (ALVES, 2000, p. 38).
21 “Se o controle na clássica gestão taylorista-fordista do trabalho se dava sobre o corpo e os gestos
dos trabalhadores, agora estaria ocorrendo um controle sobre o próprio modo de ser e de pensar
daqueles que trabalham” (COUTINHO, 2000, p. 1-2).
104
tensão” que a produtividade deve ser obtida (ALVES, 2000, p. 49). O tempo
de não-produção no decorrer do processo produtivo é reduzido ao máximo.
Onde o tempo de descanso, físico ou mental, no processo de trabalho
taylorista-fordista era uma forma de aliviar a jornada árdua e rotineira, sob
o toyotismo é custo e precisa ser retirado da prática social. O que ocorre,
assim, é que aqueles que não acompanham o ritmo de trabalho tornam-se
alvo de repreensão do grupo, já que o trabalho do próximo depende dos
indivíduos que o antecedem. Com o trabalho sequencial fica mais fácil,
também, o controle sobre a qualidade do produto transferido ao próximo.
Assim, pode-se controlar a qualidade do trabalho dos seus companheiros,
sendo, portanto, um eficaz sistema de controle da qualidade em troca do
constrangimento implícito na subjetividade dos trabalhadores (FARIA,
2004c).
Torna-se evidente que o controle de qualidade é uma tarefa
desempenhada pelo autocontrole embutido na subjetividade do
trabalhador, na qual o seu trabalho torna-se o reflexo da sua integridade
moral perante os demais, sendo as atividades ligadas ao trabalho, assim, a
manifestação mais fiel do seu valor enquanto indivíduo. O que ocorre, no
entanto, é que o trabalhador intensifica sua carga psíquica negativa
(DEJOURS, 1994), em que o trabalho torna-se perigoso para o aparelho
psíquico quando ele se opõe à sua livre atividade, além de intensificar, ainda,
o aumento da carga física do trabalho.
O kaizen é um mecanismo capaz de apropriar-se do conhecimento do
trabalhador no processo produtivo (ALVES, 2000). A utilização do
conhecimento operário torna-se uma forma de intensificar o trabalho e
reduzir os custos em troca de um “elogio” aos indivíduos como pessoas
dotadas de senso coletivo e de colaboração com trabalho em grupo. O
“elogio” torna-se fonte de satisfação narcísica individual, criando nos demais
indivíduos envolvidos com a organização, fonte de inveja e cobiça a ser
atingida pelo desejo do reconhecimento. Daí que “produzir mais que o
previsto”, “ser eficaz” e, além disso, “ser produtivo” encerram uma
subjetividade sequestrada no interior da própria lógica competitiva na qual
os trabalhadores se envolvem.
105
3.5 Sequestro da subjetividade pelo envolvimento total
Outra característica do toyotismo é a “introdução do team work que foi
concebida como fundamental para que a ‘nova cultura empresarial’ fosse
implantada, reduzindo-se os níveis de supervisão existentes. A divulgação
dos resultados da produção mostrando a performance dos times tinha como
objetivo criar o clima de competição entre eles no interior da fábrica”
(ANTUNES, 2000). O Quadro 2.2 mostra como a ideia de equipe é assimilada
pelos trabalhadores e como a mesma desemboca em um conceito de ação
coletiva de responsabilidade compartilhada, tendo como finalidade os
objetivos da produção e não os dos trabalhadores.
Em uma sociedade com valores capitalistas, a competição é uma
oportunidade de diferenciar-se do outro, embutindo uma ideia de valor pela
capacidade produtiva individual ou coletiva. Entretanto, como se pode
observar, a preservação do individual no modelo toyotista depende do
processo de trabalho em equipe (team work). Aqueles que se destacam são
um exemplo a ser seguido pelo grupo e, em realidade, prescrevem de uma
forma neotaylorista o trabalho do grupo. Cria-se, com isto, um clima de
emulação (rivalização) pelo melhor desempenho que, uma vez instalado no
ambiente organizacional, aguça o sentido competitivo valorizado pelo
toyotismo e implícito no sentimento de realizações narcísicas ou de origens
instintivas de sobrevivência dos sujeitos. A competição encerra um
sentimento de total envolvimento com os valores organizacionais,
ensejando uma disposição afetiva de entrega, de se deixar possuir pela
sedução e pelos encantamentos proporcionados por tais valores, os quais
atuam como verdadeiros aliciantes do comprometimento.22 É desta maneira
que a subjetividade é sequestrada.
1.
83,33
A qualidade é um processo de contribuição coletiva.
106
2. 65,63
O empregado é a garantia de qualidade do seu trabalho.
3.
Quando o empregado está em casa, fica pensando o que 56,52
pode fazer para melhorar a qualidade do seu trabalho na
empresa.
4.
79,17
O empregado deve produzir apenas peças boas e fazer
bem-feito da primeira vez.
5.
É tolerado que uma pessoa cometa alguns erros na 87,50
qualidade das suas peças durante o exercício da sua
função.
6. 100,00
Os erros devem ser corrigidos na origem.
7.
Se alguém percebe que uma peça passou com defeito, 95,83
logo vai informar o erro, mesmo que esta peça já esteja
numa fase bem adiantada da produção.
8.
70,83
As pessoas não ficam magoadas quando é apontada uma
falha na qualidade das peças confeccionadas.
9.
91,30
O produto da qualidade do seu trabalho de certa forma
expressa que o empregado é uma pessoa de qualidade.
10. 73,91
As falhas são justificadas em função de erros dos outros.
11.
Cada empregado está sempre cuidando e 78,26
supervisionando o trabalho dos seus colegas para que o
erro deles não influencie na qualidade do seu trabalho.
12.
82,61
O empregado procura sempre soluções para reduzir o
desperdício de matéria-prima.
107
13.
73,91
Saber que alguém está desperdiçando (mottainai) deixa
o empregado profundamente preocupado.
14.
95,65
Eliminar o desperdício é uma tarefa essencial no
trabalho.
15. 87,50
O retrabalho é considerado uma forma de desperdício.
23 “É preciso ressaltar que utilizar o incentivo salarial como modo de gerenciar o comportamento
operário e elevar a produtividade não é criação do toyotismo. Mais uma vez, o toyotismo apenas
desenvolveu, com seus protocolos de emulação individual, notadamente pelos novos sistemas de
pagamentos e, até mesmo, pelo trabalho em equipe, um ‘meio refinado e civilizado’ de exploração da
força de trabalho, denunciado por Marx desde o século passado” (ALVES, 2000, p. 52).
108
guiar as condutas individuais e coletivas. O que ocorre, assim, é uma
dominação subjetiva, alicerçada pelo aprisionamento psicológico do
trabalhador a uma rede real e imaginária de relações de trabalho.
4
Sistema cultural toyotista ou nova forma de organização do processo de
trabalho?
5 Conclusão
A subjetividade do trabalhador deve ser buscada nas práticas
individuais, grupais e institucionais e não se limita ao campo da
racionalidade. As significações imperceptíveis, para os indivíduos e para as
organizações, são fontes importantes para criações de cadeias de
relacionamentos. Estas significações se desenvolvem no interior das
relações sociais, na produção das condições materiais de existência, no
contexto ambiental imediato, na presença de um imaginário coletivo, na
dinâmica dos relacionamentos nos grupos e dos vínculos grupais e no pacto
consciente ou não com uma ideologia específica. Tais significações estão na
base da elaboração, da produção e do desenvolvimento das condições
propícias ao sequestro da subjetividade do trabalhador.
A subjetividade do trabalhador, uma vez fragmentada pela organização,
aciona uma prática que se torna tolerada pelo mesmo. Deste modo, ocorre
110
uma cessão de parte da autonomia do trabalhador em prol de um coletivo
criado artificialmente, em que a recompensa é o reconhecimento formal e o
sentimento do pertencer ao “social”. Sequestrar a subjetividade é submeter
os indivíduos a um sistema em que se devem aceitar regras impostas como
sendo construção coletiva; é submeter os indivíduos a um ambiente de
trabalho que opera em prol de realizações particulares, mas que as mascara
com objetivos narcísicos. Estas relações de poder e de controle por parte das
organizações tornam-se fontes de sequestro da subjetividade dos indivíduos
com o propósito de anular as práticas de questionamento em temas
relacionados exatamente às próprias relações de poder e de controle
(FARIA, 2004c).
O sequestro da subjetividade do trabalhador passou a se intensificar com
os novos modelos de controles psicológicos viabilizados por uma
reorganização dos modelos de produção e gestão, representados,
atualmente, pelo toyotismo ou produção enxuta (gestão flexível). Técnicas
como o team work, kaizen, just in time, CCQ e TQC são capazes de facilitar o
sequestro da subjetividade do trabalhador, intensificando o ritmo de
trabalho e precarizando as condições físicas e psicológicas do ambiente de
trabalho, não apenas submetendo o trabalhador à lógica da acumulação
ampliada do capital, mas fazendo com que o trabalhador se sinta parte do
capital, ou seja, que o sequestrado identifique-se com o sequestrador.
1.
As organizações cada vez mais estão desenvolvendo e aplicando técnicas
gerenciais que visam convencer seus empregados de que elas oferecem o
melhor ambiente de trabalho, a melhor remuneração, as melhores
vantagens materiais e imateriais. Com isto, as organizações vão
sequestrando a subjetividade dos empregados, atingindo-os no plano
afetivo, dos sentimentos, da identificação, do reconhecimento, e não apenas
da razão. Para garantir sua autonomia, o empregado precisa conquistar sua
liberdade, escapando deste cativeiro. Quais as formas possíveis de fuga?
Pode haver, com a organização, uma “negociação do resgate”? Qual o “preço”
deste “resgate”?
2.
111
As organizações insistem em que, com o nível de competitividade atual,
qualquer iniciativa bem-sucedida faz diferença. Para tanto, incentivam a
criatividade, a flexibilidade e a autonomia. Ao mesmo tempo, as
organizações investem no sequestro da subjetividade, que tem como efeitos
a baixa criatividade, a rigidez e a heteronomia, ou seja, a sujeição a valores,
normas, crenças, símbolos e regras produzidos pelas próprias organizações
e patrocinados pela cúpula dirigente. As organizações desejam, ao mesmo
tempo, controlar para produzir (e por isto sequestram a subjetividade) e
produzir para competir (e por isto incentivam a iniciativa e a criatividade).
Como resolver este paradoxo? De que forma os empregados e as gerências
fazem a leitura desta dupla mensagem? E como agem em função desta
leitura?
3
O Imaginário Vigiado nas
Relações de Trabalho
112
José Henrique de Faria
Elaine Cristina Schmitt
Francis Kanashiro Meneghetti
Introdução
1 A formação do imaginário
24 De forma bastante simplificada, tomando por base o trabalho de Freud de 1923 ( O ego e o id),
pode-se dizer que ego é organização e consciência, está em contato com a realidade e procura
submetê-la a seus fins; superego é consciência moral, é o conjunto das proibições instiladas,
introduzidas homeopaticamente, aos indivíduos desde seus primeiros anos de vida, acompanhando-
os depois, mesmo que de forma inconsciente; id é constituído por impulsos múltiplos da libido,
sempre voltados ao prazer, à satisfação. Libido é entendida como instinto, como desejo, enfim, como
a energia ou a força que põe em movimento a vida, e não apenas como desejo sexual.
115
de racionalidades. Os desejos, os processos inconscientes e a subjetividade
são elementos centrais nas formações imaginárias dos indivíduos. Deste
modo, um imaginário que está no plano da racionalidade percebida é
manifestação que integraliza os elementos constitutivos do inconsciente. O
ego atua na mediação do que é aceito como pertinente para a convivência
em sociedade. Por isso, Freud (1997, p. 26) afirma que “o ego tem o hábito
de transformar em ação a vontade do id, como se fosse sua própria”. As
vontades do id, desta forma, são satisfeitas na busca das realizações
concretas e, sobretudo, nas realizações imaginárias. Na impossibilidade da
concretização das vontades do id, o imaginário objetiva-se em favor das
possíveis satisfações provenientes do mundo abstrato, isto porque nem
sempre as vontades do id podem ser satisfeitas de maneira “crua”, ou seja,
do modo como se apresentam, demandando, assim, um sistema em que por
vias “secundárias” irá satisfazer suas vontades.
Como terceiro elemento na vida psíquica dos indivíduos, o superego
“representa as características mais importantes do desenvolvimento tanto
do indivíduo quanto da espécie” (FREUD, 1997, p. 37). É pela formação da
instância psíquica superego e por sua atuação que o indivíduo poderá se
adequar às exigências que lhe são feitas pelo mundo, ou seja, que terá
capacidade de “controlar” suas pulsões, seus desejos e vontades, em prol da
vivência social. Assim, “enquanto o ego é essencialmente o representante
do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com
ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e
o id, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise
refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo
externo e o mundo interno” (FREUD, 1997, p. 38). É possível afirmar que o
ego se submete aos imperativos categóricos do superego. Assim, o ego está
em relação de dependência tanto com as reivindicações do id quanto com
as exigências imperativas do superego e as exigências da realidade. A
autonomia do ego, portanto, é sempre relativa. Quando relacionado à
capacidade imaginária dos indivíduos, às projeções mentais ou mesmo aos
desejos, é racionalizado (são racionalizados) a tal ponto que garante(m) o
conforto necessário para suportar a realidade.
Laplanche e Pontalis (1997, p. 497) afirmam que o papel do superego é
semelhante ao de um juiz, na medida em que é responsável pelo firmamento
da consciência moral, da autopreservação, da formação de idéias. Apesar de
o imaginário e de a simbologia serem diferentes para cada indivíduo, é
116
possível falar em “códigos” e “padrões” sociais aceitos na sociedade.
Exemplo claro disto são os imaginários coletivos compartilhados nos
diversos grupos que compõem a totalidade da sociedade (ANZIEU, 1993).
De forma objetiva, o superego, no indivíduo, tem atributos ligados à
confirmação da ordem social compartilhada. Sua natureza exige a
adequação ao que é permitido. É fácil falar sobre superego individual;
todavia, justificar e explicar as dimensões do que é permitido pensar ou
imaginar é uma tarefa difícil que necessita, muitas vezes, de atitudes que
requerem animosidade e engessamento do imaginário coletivo. Assim, a
autonomia cede mediante as amarras da realidade.
Um dos elementos centrais do mundo exterior aos indivíduos é a
aceitação social. A identidade de um sujeito é afirmada ou negada conforme
sua legitimidade ante o coletivo. Conforme Enriquez (1997) afirma, todo
indivíduo necessita ter o reconhecimento do seu desejo e ter seus desejos
reconhecidos. Para cumprir tais exigências intrínsecas, os indivíduos
aceitam as “existências de estágios no desenvolvimento moral ou ético,
quais sejam, o da obediência às regras (evitando castigos), o da submissão
ao grupo (obtendo recompensa e trocando favores), o do bom
comportamento (evitando rejeição), o do cumprimento do dever (evitando
censura, subversão da ordem e culpa), o da orientação legalista (mantendo
o bem comum) e o de consciência ou de princípios (valorizando a fidelidade
às escolhas antes que as normas)” (FARIA, 2000, p. 3).
As cobranças do id, que tendem a ser hegemônicas no cumprimento dos
seus desejos, cedem espaços para as exigências do superego, frente às quais
o ego torna-se um mediador ao articular os aspectos internos e subjetivos
dos indivíduos com seu mundo exterior.
A autonomia das atitudes e das ações humanas, bem como das cenas
imaginárias, acaba por se moldar às formas “estipuladas”, tanto
conscientemente como inconscientemente, pelo coletivo, isto porque o
indivíduo tende a querer ser aceito e legitimado.
117
O sujeito passa a estabelecer padrões de condutas para ser aceito no seu
meio e para aliviar a tensão estabelecida com a sociedade. É sobre esta
perspectiva que nas relações de trabalho, que também são relações de poder
e não só de produção, há uma busca por produzir um modo de ser moral apto
a corresponder à expectativa de uma aceitação social e aliviar as
repreensões originais (FARIA; MENEGHETTI, 2001, p. 2).
118
‘inventada’ – quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (‘uma história
imaginada em todas as partes’), ou de um deslizamento, de deslocamento de
sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações
que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’” (CASTORIADIS, 1985, p.
154).
As significações imaginárias estão presentes tanto no indivíduo isolado,
como na coletividade à qual se inserem. Suas constituições não ocorrem
meramente por instituições de racionalidades. Os processos inconscientes
são fundamentais para sua formação. Para tanto, as razões que justificam a
presença de imaginários específicos são decorrentes de convicções íntimas,
individuais e coletivas. Vale observar que as racionalidades que procuram
explicar e legitimar a realidade criada e vivenciada não são meras
consequências das idéias e imagens fomentadas na mente dos indivíduos.
120
2.1 Imaginário individual e transformação dos esforços contínuos
O imaginário individual é composto de valores, de normas e de regras,
explícitas ou implícitas, que norteiam a conduta dos indivíduos e que se
manifestam por convicções íntimas. Está ligado às atitudes de sobrevivência
dos sujeitos na sociedade e, em qualquer situação, é condição fundamental
para a manutenção da vida. As organizações utilizam-se das mais variadas
formas de comunicação para incrementar esses comportamentos
relacionados às manifestações instintivas em seu próprio benefício.
Dentre as manifestações que se destacam nos informativos da Fontal,
nos folders, nas comunicações internas e nos manuais da empresa
pesquisada, os esforços contínuos expressam bem esta lógica da
manutenção da sobrevivência. Para continuar com seu emprego, forma
condicional de sobrevivência socialmente aceita para a maioria dos
empregados, o esforço no trabalho, mesmo que mínimo, deve garantir a
sobrevivência. A intensa precarização do trabalho, sobretudo pelo excesso
de mão-de-obra no mercado e a crescente mercantilização do mundo do
trabalho (concomitantemente), favorece a passividade dos indivíduos em
relação à crescente tensão dos esforços exigidos dos trabalhadores. A
simples sobrevivência, ainda, provoca a vitória do medo sobre as ações de
protestos por melhores condições de trabalho.
Para suportar essas subversões, o discurso deve maquiar o aumento
gradativo dos esforços contínuos em níveis insuportáveis. Para isso, a
organização, normalmente na palavra de seus líderes, deve corroborar essa
prática. Nas palavras do fundador da empresa Fontal: “Sempre se deve
procurar melhorar a situação existente; ninguém deve se conformar com o
que já conseguiu, mas sim se esforçar continuamente para realizar ainda
melhor o seu trabalho.” A figura de fundador da empresa, corriqueiramente
associada ao mito da criação, tem significativo peso na elaboração
imaginária daqueles que ouvem. Tornando-se referência e sinônimo de
sucesso e superação das dificuldades, os indivíduos prendem-se na
concepção de que, para sobreviverem e superarem esta condição, todos
devem agir de forma a ir além do que é pedido. Só assim existe a
possibilidade de permanência no mercado de trabalho e,
consequentemente, na organização. O conformismo é intolerável e passa a
ser ameaça constante para aqueles que desejam se manter trabalhando.
Apesar de o discurso fomentar a vitória para todos os que se esforçarem
121
continuamente, a realidade não confirma esta hipótese. Nas palavras de
alguns indivíduos, é possível reconhecer outra interpretação:
Eu vi uma pessoa que saiu da produção para trabalhar aqui [na área
administrativa da Fontal] e depois de um tempo sentiu-se incapaz e voltou
para a produção. Eu fiquei muito chateado, porque tinha certeza de que ele
conseguiria crescer, mas se intimidou diante do desafio e deixou passar
talvez uma grande oportunidade de crescimento e desenvolvimento
profissional; com certeza, a atitude correta não é essa. Se você fracassar,
saiba que você tentou, que você lutou; desistir no meio da luta é inaceitável.
Você tem direito de deixar as pessoas fracassarem.
122
2.2
Imaginário organizacional, transformação da valorização do colaborador:
orgulho e dedicação à empresa
Dentre os discursos que melhor servem à lógica da organização,
destacam-se os que se relacionam ao colaboracionismo, ao orgulho e à
dedicação à empresa. A composição destes sentimentos que fundamentam
os discursos que valorizam as potencialidades da organização é necessária
para sequestrar a subjetividade dos empregados com graus de requinte e
sutileza. Reduzir e/ou minimizar as formas de questionamentos e de
reflexões são condições indispensáveis para que a organização atinja seus
objetivos. Para tanto, a valorização das potencialidades dos trabalhadores e
os discursos positivos funcionam como fragmentadores de uma consciência
mais crítica sobre a realidade. Neste sentido, qualificar o trabalhador como
colaborador e não como um assalariado que vende sua força de trabalho no
mercado e que pode ser descartado se não atender às exigências do trabalho
não é apenas uma menção hipócrita da realidade, mas também uma
estratégia de ampliação das bases do comprometimento do sujeito com a
organização que vem apresentando os resultados por ela desejados.
Abarcando a satisfação pessoal, esses discursos transformam-se em
ferramentas de subsunção real de caráter subjetivo do trabalho ao capital
(FARIA, 2004a).
Essas concepções são disseminadas nas propagandas das empresas.
Sutilmente, junto às cobranças, elas aparecem com a finalidade de “adocicar”
a tensão que possa gerar desconforto nas comunicações que denotam
valores, normas e regras que precisam ser compartilhados e seguidos.
Assim, os folders e os manuais de integração são carregados de tentativas de
normatização, de acordo com os interesses da organização. Desta forma, é
comum encontrar comunicados que expressem o seguinte conteúdo: “A
Fontal, assim como todas as empresas do grupo no Brasil e no Exterior, foi
construída com a participação de todos os colaboradores, em uma grande
união de dedicação, constante atividade, planejamento, exatidão e
profissionalismo. Com o seu sucesso, honra a memória e os princípios
humanistas.”
Quanto mais e melhor a organização utilizar as práticas socialmente
aceitas, maior a submissão em relação às normas. Quando a organização
atinge um grau específico de comodidade e sujeição, as frases tendem a ser
123
mais diretas e objetivas: “Visando ao bem-estar de seus colaboradores no
ambiente de trabalho, não é permitido: patrocinar e participar de atividades
de natureza política, eleitoral ou ideológica em suas dependências; valer-se
do cargo para conseguir proveito pessoal...”, apenas para mencionar dois
exemplos da Fontal. Mesmo nos momentos de adversidade, as justificativas
para uma decisão desfavorável para o trabalhador são aceitas, tornando-se
plausíveis mesmo que as reais motivações não estejam tão claras, conforme
expressa uma funcionária da direção da Fontal:
A empresa preserva muito a estabilidade dos colaboradores, isto é um
comprometimento. Aconteceu algumas vezes da empresa ter que fazer uma
redução no seu quadro de funcionários, mas antes de se tomar a decisão final
sempre eram avaliadas todas as possibilidades de se manter o funcionário,
fazendo um remanejamento interno ou outra coisa.
Esta consciência sobre a lógica econômica, que tem como fim último o
resultado, consolida-se como o indagador dos valores, das normas e das
regras.
Todavia, nenhum indivíduo consegue ser crítico o tempo todo. Para
suportar as dificuldades do cotidiano e atender aos desejos internos, os
indivíduos vinculam-se a discursos que apontam para a busca de um
ambiente mais harmonioso, ou seja, menos conflituoso, que possibilite
alimentar o imaginário das realizações, materiais ou não, que se deseja
atingir. Destarte, conforme as palavras de um trabalhador,
[os relacionamentos que tenho na empresa] são muito importantes. Eu gosto
de trabalhar de forma feliz, de forma entusiasmada. Eu tenho orgulho do que
eu faço, tenho orgulho da empresa, tenho certeza que a verba que eu
administro, que é muito dinheiro, de alguma forma está sendo transformada
em valor que a empresa recebe de cada colaborador aqui dentro.
2.3
Imaginário social, transformação do reconhecimento social
e do voluntariado
A organização procura criar uma imagem positiva que denote o
reconhecimento social de sua existência. As formas como é criado o
reconhecimento social e o seu processo de transformação no imaginário
social diferem caso a caso. Apesar das particularidades, o sentimento
positivo, normalmente ligado à admiração e, em alguns casos, à idolatria, é
uma manifestação comum da sociedade humana. De tempos em tempos,
alguns indivíduos e algumas organizações tornam-se referências e modelos
que devem ser seguidos. Esta admiração configura-se como uma prisão
128
imaginária, da qual os indivíduos em geral e os empregados em particular
não conseguem se desvencilhar. Outro empregado que também aspirava a
trabalhar na empresa afirma:
Era um sonho trabalhar na Fontal. Eu tinha colegas que trabalhavam aqui e
por isso eu sabia [do reconhecimento social da empresa]. E outra: a fama da
Fontal! Antigamente, você falava: “ah, eu trabalho na Fontal!” A Fontal era a
Santa Fontal e a questão salarial era importante, porque ela pagava bem e
ela tinha uma política salarial boa!
130
executadas na empresa, no trabalho formal, realizam-se no trabalho
voluntário: é este que sublima aquele. Com esta transferência, institui-se a
instrumentalização dos sentimentos, corroborados por um discurso de
conteúdo religioso que apela para os sentimentos de culpa dos sujeitos, já
que as ações são em prol do benefício coletivo:
[é importante] desenvolver o voluntariado através da mobilização interna
das pessoas para que elas doem tempo e talento em prol do desenvolvimento
da comunidade ou de uma instituição social. Aqui existe todo um trabalho
para a mobilização do voluntariado, que é a ONG Fontal.
25 As declarações do “Principles for Business”, “The Caux Round Table”, mesa-redonda criada por
lideranças econômicas da Europa, Japão e EUA, e “Interfaith”, código de ética sobre o comércio
internacional para cristãos, muçulmanos e judeus, consideram a importância de, paralelamente aos
lucros para os shareholders (acionistas), haver responsabilidade para com todos os stakeholders
(agentes ou participantes, que investem seu “empenho” ou stake na empresa). E ambas
circunscrevem seções detalhadas sobre as obrigações das empresas em relação a todos os seus
sujeitos: empregados, clientes, fornecedores, financiadores, comunidade (governos locais e
nacionais), além das obrigações relacionadas aos proprietários.
26 Ver, por exemplo: CARROL; BUCHHOLTZ (1999), GONELLA (1998), INSTITUTE OF SOCIAL AND
ETHICAL ACCOUNTABILITY: <www.accountability.org.uk>. Ver também: INSTITUTO ETHOS. Guia de
Elaboração do Balanço Social (modelo Ethos e Modelo Ibase): <www.ethos.org.br>.
131
profissionais e pessoais, vinculando cada vez mais a empresa e seus
colaboradores com a comunidade.
132
O clima de competição gerado entre os trabalhadores incrementa-se
como benefício para a organização, isto porque, ao mesmo tempo em que os
indivíduos engajam-se nas ações de reforçar a imagem positiva da
organização diante da comunidade, a competição travada serve como um
treinamento para intensificar a produção e manter os sentimentos positivos
(colaboração, participação, engajamento etc.), que a organização necessita
para obter seus resultados. Todo investimento psicossocial feito pela
empresa sobre o voluntariado tem como meta gerar o máximo de satisfação
para os trabalhadores. Todavia, o descontentamento e a decepção emergem.
A empresa fala muito no trabalho voluntariado, mas ela não dá a devida
importância quando ela fala. A Fontal tem trabalhos de voluntariado muito
bons, mas eu não a vejo valorizar quem faz esse trabalho. Eles não dão
incentivos suficientes, mas eu acho que ela poderia dar um incentivo maior
na questão do voluntariado, apesar de ser uma empresa como qualquer
outra que visa lucros.
3
Arqueologia da vigilância do imaginário nas relações
133
de trabalho: por uma conclusão
134
O ego age no sentido de promover a satisfação do id, ou seja, de realizar
o desejo de ser reconhecido, de ser valorizado, de pertencer ao grupo e à
organização, mas também está mediando as intenções do superego de
incluir este indivíduo-trabalhador nas ordens, nos ideais e na moral da
organização. Para ser aceito na organização, é preciso que antes o indivíduo-
trabalhador corrobore suas regras, seus esquemas de pensamento, suas
ideologias, seus valores, sua moral. Os valores e a moral que estão em
questão são os de que o indivíduo necessita sempre se esforçar no seu
trabalho, produzir sempre mais e atingir as metas organizacionais, para
então ser reconhecido.
O imaginário organizacional do orgulho da empresa, discurso que deve
ser praticado pelos trabalhadores, está relacionado ao imaginário social do
reconhecimento social: quanto maior o orgulho da empresa, maior a
devoção e o reconhecimento social. As organizações, destarte, apresentam
imaginários comuns, muito em função dos indivíduos e de determinadas
características da sociedade na qual se inserem, ao mesmo tempo em que
possuem imaginários específicos, isto é, advindos de características
próprias da organização.
Entretanto, as transformações imaginárias não se encaixam em fórmulas
mágicas. Identifica-se que a contradição e a aceitação dos valores, das
normas e das regras que procuram regular as relações de trabalho são
questionadas pelos próprios trabalhadores da empresa. Eles percebem que
em muitos momentos não estão sendo atendidos como gostariam no que se
refere às exigências do id: o alto custo de aceitar as regras e as normas da
organização promove uma espécie de “consciência” com relação à satisfação
real e a como estão se satisfazendo nesta relação organizacional. Esta
consciência pode provocar uma reação negativa relativamente à
organização. Assim, a organização, temporariamente, cria novos métodos,
normalmente expressos em campanhas internas e comunicações que têm
por finalidade afirmar seu controle sobre os sujeitos.
Uma arqueologia da vigilância do imaginário constitui-se na
identificação de atitudes e de ações, de racionalidades objetivas e de
135
subjetividade dos indivíduos e dos grupos, normalmente expressas pelo
simbólico. É possível perceber quando uma regra se forma e doutrina um
sujeito no seu ambiente de trabalho, quando se verifica quais os rituais, os
discursos, as ações e os costumes que se tornam comuns. A equidade de
pensamento e da uniformização dos atos da fala caracteriza a forma como
os preceitos, as normas e as regras são creditadas pelos sujeitos na sua
aceitação e reprodução social. Assim, entender os elementos constitutivos
dos desejos humanos, a maneira como se dá a identificação coletiva, a forma
como as normas e as regras são compartilhadas e reproduzidas é condição
primordial para traçar uma arqueologia da vigilância do imaginário.
Desta forma, a pesquisa permitiu concluir que a vigília do imaginário nas
relações de trabalho se dá pelo controle efetivo do(a):
i. Medo constrangedor: fatores que impedem que algumas atitudes
sejam tomadas pelo simples fato de denunciar o constrangimento
que uma pessoa possa vir a sofrer. São eles:
(i)
ser demitido: o grau de banalização da injustiça social (DEJOURS,
2000) faz com que os indivíduos pensem que é melhor não
reclamar porque pelo menos estão empregados;
(ii)
desagradar os superiores e, consequentemente, impor uma forma
de frustração: o medo do fracasso tornou-se um tabu (SENNET,
1999), de maneira que quase sempre as “derrotas” são imputadas
à ineficiência ou à incompetência dos indivíduos;
(iii)
não satisfazer seus desejos pessoais, ou seja, não conseguir
realizar todos os “sonhos” que estipulou para si mesmo: o passar
dos anos impõe um sentido de progresso que precisa ser
correspondido. As não-promoções são tidas como uma estagnação
profissional, quase sempre mais relacionadas à incapacidade dos
indivíduos do que propriamente à falta de oportunidades
disponibilizadas pela organização.
ii. Temor doutrinador: está relacionado ao poder que pode ser usado
(pelo grupo, pela organização, pela sociedade) para coagir
indivíduos ou grupos de trabalho a agir de determinadas formas. O
136
temor doutrinador manifesta-se de diversas formas, dentre as
quais se destacam:
(i)
autoridade hierárquica ou poder racional-legal: apresenta papéis
sociais definidos para cada indivíduo na organização, os quais
devem ser respeitados para manter a ordem e a coesão da
organização. É legitimada pela sociedade e está relacionada ao
status social;
(ii)
poder econômico da empresa: a grandiosidade da empresa,
sobretudo em termos econômicos, deve ser anunciada para impor
sua supremacia sobre os indivíduos. A relação de dependência que
uma determinada comunidade estabelece com a organização é
utilizada para amenizar e, muitas vezes, apaziguar as
manifestações individuais. A dependência econômica, desta forma,
é uma doutrinadora das reivindicações e dos protestos;
(iii)
exclusão grupal e social: os indivíduos, para se engajarem nos
projetos da organização, devem consolidar o desejo do
reconhecimento e o reconhecimento do desejo (ENRIQUEZ, 1997).
A organização, sutilmente, cria e apresenta os projetos que devem
ser perseguidos. A incorporação e a aceitação destes projetos são
alicerçadas pelas racionalidades que fazem com que os
trabalhadores considerem que a troca do engajamento seja
percebida como justa. A dissuasão dos objetivos organizacionais é
tida como um rompimento e um motivo para a exclusão grupal e
social.
iii. Negligência não intencional: omissão não intencional que impede
os questionamentos e a reflexão crítica sobre a realidade. A
negligência passa, em alguns casos, a atuar como uma estratégia de
defesa, na tentativa de preservação das condições físicas e
psicológicas dos indivíduos nas relações de trabalho. Dentre as
formas de negligências não intencionais, destacam-se:
(i)
tolerância repressiva: relaciona-se à passagem da postura
137
questionadora proativa para a prática da simples omissão. A
tolerância, que deveria ser um fim em si mesmo, torna-se um meio
de controle social do desejo de manifestação. “Dentro do contexto
de tal estrutura social, pode-se seguramente praticar e proclamar
a tolerância” (MARCUSE, 1970, p. 91). As práticas de
reivindicações são aquelas que não prejudiquem os objetivos
organizacionais ou coloquem em risco as estruturas de poder nas
relações de trabalho já definidas. Os protestos são permitidos, mas
controlados;
(ii)
uniformização da crítica: está relacionada à transformação do
pensamento autônomo e independente em discursos únicos e
uniformes, quase sempre de pouco conteúdo reflexivo. Na
uniformização da crítica, os discursos são previsíveis. Destarte, é
possível saber o que será dito e, deste modo, antecipar-se aos
questionamentos. Em determinadas ocasiões, as críticas são
direcionadas de forma a se enquadrarem no controle das idéias e
dos valores da organização.
iv. Delinquência permitida: o delinquente é o sujeito que comete
infrações. Estas estão relacionadas às leis e às normas elaboradas
e entendidas como corretas pela coletividade. Algumas delas não
são toleradas; entretanto, outras, devido à sua não-adequação à
realidade social ou à intangibilidade, são aceitas. Existe, ainda, a
atitude de não-cumprimento devido à natureza transgressora,
própria da condição humana. As formas de delinquência permitida
são:
(i)
relativismo moral: nem sempre o dito é o feito. É assim que as
normas morais modificam-se ao longo do tempo. As transgressões
das normas, sejam elas por parte dos indivíduos ou de grupos, são
aceitas e, muitas vezes, encobertas por outros que as percebem. A
aceitação dessas transgressões ocorre, dentre vários motivos,
porque cada um reconhece em si um transgressor. A identificação
cria possibilidades de tolerância com as infrações alheias. Esta
postura intensifica-se quando os interesses são compartilhados de
comum acordo. Nas organizações, apesar de a honestidade ser
138
valorizada como valor moral, a prática denuncia o inverso. Para
sobreviverem no mercado competitivo e predatório, os indivíduos,
no exercício da sua profissão, tomam atitudes que transgridem o
valor moral da honestidade (FARIA, 2002). Todavia, as infrações
permitidas estão dentro de ações imaginariamente estipuladas;
(ii)
reciprocidade e compensação: as trocas de favores, mesmo que
ilícitas, são formas contratuais que os indivíduos estabelecem uns
com os outros. As compensações são instrumentos de “trocas” nas
organizações. A reciprocidade vale-se, desta forma, não de uma
postura democrática, mas de “moedas” para serem utilizadas nos
momentos oportunos. Um exemplo é a tolerância com os horários
de entrada no trabalho. As regras não são para todos, e os
privilégios, quase sempre, são despendidos para aqueles que
correspondem à produtividade estipulada. A compensação está no
fornecimento de regalias que possam ser trocadas pela obediência
maior do trabalhador em relação aos objetivos e às normas
organizacionais.
v. Regras ideologicamente formuladas: a organização funciona como
um aparelho ideológico (ALTHUSSER, 1999), transmitindo valores
e distorcendo a realidade de forma a invertê-la. As regras
ideologicamente formuladas são vistas como conjunto de “leis”
baseadas no bom-senso e no consenso que beneficiam a todos de
forma indistinta. Entretanto, não é esta a realidade. A inversão da
realidade e incorporação das regras ocorre nas formas de:
(i)
imposição pseudodemocrática: é a elaboração de regras que regem
a conduta dos indivíduos nas relações de trabalho de forma
coletiva. Todavia, a ideologia dominante, incorporada na maneira
de pensar e agir dos sujeitos, os faz elaborar regras carregadas de
preceitos e interesses do grupo dominante da organização;
(ii)
colaboração solidária: é o monitoramento das atitudes dos
indivíduos, sempre com o propósito de alertar os “infratores” que
não se sujeitam a agir de forma colaborativa. Contudo, a
colaboração é direcionada aos interesses da organização. As
139
atitudes não colaborativas são repreendidas porque não se
enquadram no padrão vigente;
(iii)
ilusão coletiva: em O futuro de uma ilusão, Freud (1999) descreve
o aparecimento das religiões e o seu papel na psique humana por
meio das ilusões compartilhadas. A organização também tem como
característica a incorporação de ilusões que são compartilhadas
pelos seus funcionários (PAGÈS et al., 1987) e que são alimentadas
por princípios ideológicos. A catarse social é condição fundamental
para manter os trabalhadores ligados a estas ilusões e, como
método para assegurá-la, as organizações criam mitos, crendices e
projeções utópicas por meio dos seus costumes e das suas
tradições.
140
• Reciprocidade e compensação
1.
As organizações têm procurado adotar, na área de gestão de pessoas,
programas e/ou promover atitudes que possam despertar e/ou incentivar o
sentimento de orgulho que os empregados devem ter com relação a elas.
Cria-se, com isto, um imaginário organizacional, ou seja, um sentimento de
valorização do colaborador, orgulho e dedicação à empresa; projetos de
trabalho em equipe, educação continuada e qualidade; adoção de
comportamento aceitável, segurança no trabalho, grandiosidade da
organização e investimento financeiro em avanços tecnológicos. Mas, para
ter direito a todas estas ofertas, o empregado deve enquadrar-se nas
determinações da empresa, de modo que seu imaginário só possa ser o que
for permitido, ou pode ousar enfrentar a política da mesma? Se o empregado
141
somente pode se submeter às determinações, como fazer para que o
imaginário seja contido, pois o mesmo não é “visível”? Se o empregado puder
ousar romper e der vazão ao seu imaginário, como a organização trabalha
com este imaginário, como ela pretende fazer deste um imaginário vigiado?
2.
Como foi visto neste capítulo, as “derrotas” das pessoas servem como alerta
e, no imaginário dos indivíduos, estas derrotas funcionam como uma
sentença que aponta para a incapacidade destes que foram derrotados. As
condições que produziram a impossibilidade de “aproveitar as
oportunidades” oferecidas são descartadas e os indivíduos são julgados
pelas oportunidades desperdiçadas sem que se analisem as reais condições
de trabalho a que eles são submetidos. As “incapacidades” servem como
justificativas para futuras demissões ou desligamentos dos indivíduos dos
seus postos de trabalho. As dificuldades às quais foram submetidos esses
indivíduos, muitas delas ligadas à ineficiência da empresa, aos seus
programas, à sua tecnologia, ao seu processo decisório ou de gestão, são
apagadas frente às distorções e às ilusões que se criam das reais condições
de trabalho às quais tais indivíduos são submetidos. Como é possível
destacar o fracasso dos indivíduos devido às suas próprias ações daquele
decorrente das ações da organização, se esta sempre encontra explicações
convincentes para que os indivíduos “derrotados” se sintam culpados pelos
fracassos e para que os outros indivíduos sintam que os derrotados não
foram merecedores do lugar que ocupavam?
4
Comprometimento: uma Avaliação Crítica
sobre a Práxis Organizacional27
José Henrique de Faria
142
Solange de Lima Barbosa
Introdução
145
dispersão de modelos teóricos leva ao desenvolvimento de diversas
análises, nas quais pelo menos dois conjuntos de fatores tendem a ocorrer:
(i) antecedentes e consequentes do comprometimento se mostram
indefinidos e ambíguos; (ii) as bases do comprometimento são confundidas
com o próprio comprometimento.
A dispersão conceitual pode também provocar certa confusão entre as
bases do comprometimento e seus focos. Morrow (1983) examinou a
diversidade conceitual e metodológica sobre o que seria considerado como
comprometimento no trabalho, fixando cinco grandes focos de
comprometimento utilizados pelos trabalhadores: a organização, o trabalho,
os valores, a profissão ou carreira e o sindicato. Em outro estudo, Morrow
(1983, p. 107) considera “como formas universais de comprometimento a
ética no trabalho, o comprometimento com a carreira ou profissão, o
envolvimento com o trabalho e o comprometimento organizacional”, o qual
posteriormente divide em duas vertentes: uma atitudinal (afetiva) e a outra
relacionada à continuação do indivíduo na organização (instrumental).
Além destes pontos, Morrow (1983, p. 107) organiza sua análise de forma a
distinguir os elementos que representam a natureza do vínculo individual
ou, como usualmente se denomina na literatura, as bases do
comprometimento: “identificação, apego, envolvimento, comprometimento,
saliência, centralidade, entre outros”.
Alguns estudos ampliaram o escopo de análise acerca do
comprometimento, introduzindo, por exemplo, reflexões sobre o sindicato e
a carreira. Todavia, a maioria desses trabalhos insiste em abordar a
organização como foco do comprometimento (ALLEN; MEYER, 1990;
BORGES-ANDRADE, 1994; MOWDAY; PORTER; STEERS, 1982; BECKER,
1992). Além disto, os estudos que se debruçam sobre a organização
demonstram a predominância do comprometimento sob o enfoque afetivo.
Isso ocorre pelo fato de ser o comprometimento afetivo o mais desejado nas
organizações, sem considerar o fato de que trabalhos multidimensionais
sobre o comprometimento são ainda muito recentes (ANTUNES; PINHEIRO,
1999). Entretanto, como alertam Meyer e Allen (1997), todos os esforços
gerados no sentido de angariar uma forma de comprometimento
inevitavelmente impulsionam o desenvolvimento de outras formas.
No que se refere às bases de comprometimento, as propostas nas
pesquisas têm-se proliferado pelas razões já referidas, mas pode-se
observar certo consenso em pelo menos três delas: (i) afetiva, (ii)
146
instrumental e (iii) normativa. A concordância com relação a estas três
bases parece estar relacionada à existência e à influência de componentes
tidos como motivadores do vínculo indivíduo-trabalho.
152
A partir desse ponto é possível entender que, para se identificarem as
bases do comprometimento, a direção deve ser dada pelos valores e
motivações dos sujeitos e não pelas condições externas oferecidas pela
organização ou grupo, pois, uma vez identificadas as bases, o foco do
comprometimento será facilmente determinado pelas próprias atitudes
indicadoras de comprometimento e/ou pelas condições externas
congruentes com a base identificada. Como afirma Mottaz (1988, p. 470),
“comprometimento organizacional representa uma adequação indivíduo-
ambiente”.
De acordo com as análises mencionadas, constata-se que os conceitos
que a literatura oferece a respeito do comprometimento com a organização
indicam, em geral, muito mais o atendimento a interesses próprios de
indivíduos ou grupos do que aos organizacionais. Desse modo, analisar o
comprometimento organizacional torna-se menos importante que o
comprometimento localizado que o sujeito desenvolve em seu cotidiano.
Considerando as análises até aqui efetuadas, chega-se a um conceito de
comprometimento que sintetiza o que diz a literatura.
153
secundários, avaliados como realizáveis na relação. Neste caso, o sujeito
pode se engajar na ação sem comprometer-se com ela ou com a organização
onde a mesma se efetiva.
A respeito disso Senge (1998) aponta as possíveis atitudes que um
indivíduo pode assumir diante de uma meta ou visão:
i. comprometimento: sentimento total de responsabilidade na
transformação da meta em realidade, o que implica a livre escolha
do sujeito em participar;
ii. aceitação genuína: o sujeito compreende os benefícios da meta e
participa, mas não a toma como sua;
iii. aceitação formal: o sujeito compreende os benefícios e faz o que se
espera dele;
iv. aceitação hostil: o sujeito faz o que se espera dele porque tem algo
a perder, deixando claro que está contra;
v. não-aceitação: o sujeito não vê benefícios e não faz o que se espera
dele.
As observações listadas sugerem que se torna importante analisar o
comprometimento a partir de múltiplos ângulos, relacionando-o com
diferentes partes e processos organizacionais: (i) relações de trabalho; (ii)
níveis hierárquicos e de responsabilidade; (iii) graus de envolvimento com
a definição e a implementação de objetivos e estratégias; (iv) relações
interpessoais e grupais; (v) posturas, atitudes, comportamentos, entre
outros. Além disto, é preciso considerar que, se o comprometimento
relaciona-se com afeto, códigos, vínculos e interesses, a existência de uns
não necessariamente implica a existência de outros, o que confere ao
comprometimento um caráter adverbial e contextual, de forma que seu
conceito deve ser reavaliado, apresentando elementos próprios que o
diferenciem não só de afeto, código, vínculo e interesse, mas igualmente de
aceitação ou envolvimento, que são os intercâmbios mais comuns na
literatura.
155
fato de ser seu membro. Neste caso, o comprometimento se manifesta pela
observação de que o indivíduo não deixa a organização por estar
afetivamente ligado a ela. O comprometimento de permanência (chamado
por alguns de instrumental) caracteriza uma relação mais racional do
indivíduo com a organização, indicando que a sua permanência na mesma
se dá pelo reconhecimento dos custos associados a deixá-la. E o
comprometimento normativo pressupõe uma ligação moral ou de
concordância normativa que indica a permanência do indivíduo na
organização pela obrigação que este sente pelo fato de, uma vez
internalizadas as metas e as regras organizacionais, acreditar ser certo ou
moral fazê-lo.
Como sugerem os fundamentos dessa tipologia, Allen e Meyer (1990)
entendem que o sujeito se compromete quando permanece na organização,
o que significa que o conceito de comprometimento é utilizado com o mesmo
sentido dos de ligação e permanência. De fato, segundo os autores, e como
já foi observado anteriormente, na avaliação de alternativas presentes o
indivíduo decide permanecer na organização: (i) porque incorrerá em
custos e prejuízos se deixá-la, ou (ii) porque se sente na obrigação de ficar,
ou ainda (iii) porque está afetivamente ligado à organização. Entretanto, é
preciso insistir na observação de que permanecer na organização com base
em escolha entre alternativas não significa necessariamente comprometer-
se com a mesma, já que o sujeito pode estar comprometido com seus
interesses, seus objetivos ou necessidades. Assim, se ele permanece na
organização porque ali possui condições de trabalho, de satisfação pessoal e
porque os custos associados à sua saída são altos demais, não se pode dizer
categoricamente que está comprometido com a organização, mas que esta
pode ser o melhor lugar para que ele realize os interesses com os quais
efetivamente está comprometido.
Uma segunda crítica a este estudo está relacionada aos componentes do
construto, mais propriamente com as bases do comprometimento. A base
afetiva pode, de fato, ser considerada como um dos fatores que levam os
indivíduos a se comprometer. Todavia, a base instrumental do componente
de permanência, tal como proposta, não pode ser utilizada para explicar o
comprometimento, pois é preciso considerar que, se o indivíduo pode fazer
uma avaliação racional entre alternativas para escolher a que melhor
represente suas expectativas, também pode decidir pela permanência não
porque esteja realmente comprometido, mas em troca de benefícios que
156
deseja obter. A questão é que o comprometimento pode, muitas vezes,
independer de alternativas presentes na escolha.
No que tange ao componente normativo, entende-se que é possível que
o indivíduo se comprometa quando internaliza as normas e os padrões
adotados pela organização, pois haverá então a congruência entre valores
pessoais e organizacionais, entre os desejos inconscientes e imaginários dos
sujeitos e aqueles representados na e pela organização. Contudo, no que se
refere à lealdade (o sentimento de obrigação moral aludido pelos autores
concernente ao investimento percebido sobre si), é necessário, como foi
exposto, considerá-lo antes como parte do componente afetivo do que do
componente normativo.
A terceira crítica ao trabalho de Allen e Meyer (1990) está relacionada
ao foco do comprometimento. Os autores, em toda a sua análise, referem-se
ao comprometimento com a organização enquanto totalidade, ignorando a
possibilidade de haver comprometimento com partes da mesma, com
grupos de interesse ou de trabalho, com projetos ou tarefas, ou ainda de
haver a ocorrência de comprometimentos múltiplos e simultâneos.
Ademais, está presente no estudo uma concepção de que o
comprometimento é uma atitude permanente, ou seja, uma vez
comprometido, o indivíduo permanecerá assim até que alternativas
melhores lhe apareçam. Esse tipo de raciocínio deixa antever a própria
inexistência de comprometimento, podendo ser mais bem caracterizado
como envolvimento e aceitação.
157
observadas em seu estudo seriam a cognitiva, a avaliativo-normativa e a
gratificação emocional (cathectic orientations). Através das bases, Kanter
identificou três tipos de comprometimento, conforme mostra o Quadro 4.1.
160
2.5 Os pesquisadores brasileiros: os problemas subsistem
As pesquisas no Brasil, no geral, têm tomado por base o modelo de Allen
e Meyer (1990), o qual, como já foi visto, apresenta as dimensões Afetiva,
Normativa e Instrumental como componentes do construto
comprometimento organizacional. Entretanto, alguns estudos procuram ir
além destes fatores, incluindo, a partir de pesquisas empíricas, outros
elementos analíticos. É o caso de Rego (2003), que sugere a existência de um
fator denominado Ausência Psicológica, o qual é caracterizado por “alguma
aversão à organização, uma espécie de anticomprometimento” (REGO,
2003, p. 29). Esta proposta é deveras interessante, pois inclui nas análises
uma dimensão que até então não se levava em conta. Entretanto, mesmo que
esta dimensão seja real e correta, rigorosamente a mesma ainda se refere à
relação efetiva entre indivíduo e organização, neste caso, uma relação de
repulsa.
Lauer-Leite (2006) utilizou uma Escala do Comprometimento
Organizacional Integrada na qual aparecem cinco fatores do
comprometimento e concluiu, em resumo, que o “comprometimento de
natureza Afetiva predominou em todos os setores, demonstrando que os
trabalhadores pesquisados, de forma geral, permanecem na Organização à
qual pertencem porque desejam permanecer” e que ainda é necessário que
se aprofunde mais o tema estudado para poder fazer afirmações mais
contundentes.
Borges-Andrade e Pillati (1999) tentaram identificar a influência de
suporte e imagem organizacional sobre o comprometimento atitudinal e
comportamental. Definem o conceito de comprometimento como um
vínculo afetivo no qual o indivíduo compartilha valores, defende e oferece
lealdade e interesse para a organização que lhe confere suporte (atende às
suas necessidades materiais e psicológicas). O foco analítico é estritamente
organizacional e a base exclusivamente afetiva, de forma que a análise não
leva em conta outras condições presentes no âmbito organizacional, como
as relações pessoais e de trabalho, as tarefas locais, os envolvimentos
grupais, o inconsciente e o imaginário dos sujeitos e outros fenômenos aos
quais os mesmos estão submetidos e/ou comprometidos. Uma análise que
considera apenas o foco organizacional, amplo e indefinido, dificulta as
conclusões que se podem obter a respeito do comprometimento, o que pode
ser agravado pela ausência de uma definição clara e completa do que é estar
161
comprometido. O comprometimento pode ser muito mais que um vínculo
afetivo e, em alguns casos, pode sequer sê-lo.
Medeiros et al. (1999), baseados no trabalho de Allen e Meyer (1990) e
de Meyer, Allen e Smith (1993), afirmam ter encontrado um quarto
componente para o comprometimento, o qual denominam de componente
afiliativo. Este fator ou dimensão sugere que o comprometimento é
resultante das interações sociais que acontecem na organização, ou seja, do
fazer parte do grupo. No entanto, essa suposta quarta dimensão encontra-
se inclusa na base afetiva, pois se relaciona com o sentimento de pertença e
a necessidade de identificação, que é uma característica do afeto (desde que
o conceito deste não seja também reduzido a uma parte apenas de sua
manifestação). Em outro estudo, Medeiros, Albuquerque, Siqueira e
Marques (2003) voltam ao tema, tratando o comprometimento com o
sentido de permanência ou vínculo afetivo e recorrendo mais uma vez no
mesmo problema já mencionado de que o conceito do fenômeno é tomado
pela sua base.
Bastos, Brandão e Pinho (1997) desenvolveram um trabalho com vistas
a construir uma definição do conceito através dos próprios sujeitos
envolvidos. Realizaram uma pesquisa com servidores universitários,
buscando determinar, de acordo com o foco, quais eram os indicadores de
comprometimento. Alguns dos indicadores, porém, não logram atingir os
objetivos propostos pelos autores, na medida em que não indicam
exatamente o comprometimento, mas diferentes reações do sujeito diante de
situações, tais como aceitação, consentimento, interesses pessoais e
subordinação consentida, como se pode ver nos exemplos a seguir:
i. quando o trabalho é o foco do comprometimento: os autores
consideram aqui ações como cumprir as obrigações e deveres,
realizando tarefas; fazer o que lhe é solicitado; ser pontual e
assíduo como indicadores de comprometimento. Observando o
exposto pelos autores, percebe-se que há certa confusão entre
comprometimento e consentimento, concordância com regras
gerais, necessidade de ser reconhecido no grupo como seu
membro ou mesmo receio ou medo de sanções punitivas;
ii. quando a organização é o foco do comprometimento: os autores
incluem neste item respeitar a hierarquia, normas e procedimentos
institucionais e obedecer à chefia; buscar crescer profissional e
162
pessoalmente; ter um contrato de trabalho. Nesta abordagem o
comprometimento é confundido com obediência, obrigação
contratual e interesse pessoal;
iii. quando o grupo é o foco do comprometimento: os autores
consideram como indicadores de comprometimento o bom
relacionamento com os colegas, o que sugere uma confusão entre
características pessoais ou de personalidade e, ainda, de
comportamento social com comprometimento.
O problema central neste tipo de análise é de caráter teórico e
metodológico. É questionável que se possa construir uma referência teórica
ou conceitual a partir da percepção que os sujeitos têm de sua ação sem que
se tenha pelo menos penetrado na análise do discurso e de suas motivações
inconscientes. Tampouco é recomendável que o que se deseja avaliar seja
estabelecido após a avaliação. Em ambos os casos, os riscos são o de reduzir
o real à sua percepção consciente por parte de determinados sujeitos e o de
confundir as medidas do fenômeno com o próprio fenômeno, riscos estes
cuja consequência mais evidente é a de imprecisão analítica.
Já o estudo de Antunes e Pinheiro (1999) incorre no mencionado
equívoco de considerar o comprometimento como tendo o mesmo
significado que envolvimento – outro conceito de múltiplos significados.
Além disto, os autores adotam o sentimento de obrigação como uma
definição da base normativa de comprometimento. Na afirmação de que os
“empregados mais atentos com as despesas de treinamento ou os que
apreciam as habilidades que adquiriram poderiam desenvolver uma
sensação de obrigação” (p. 4) para com a organização, pode-se perceber
mais um elemento de gratidão, pelo sentimento de apreço, agradecimento
ou lealdade, ou seja, valores relativos ao afeto, que uma ligação de base
normativa.
Além das imprecisões conceituais observadas nas diferentes posições
adotadas por pesquisadores no Brasil e no exterior, o fato mais discutível,
encontrado de forma menos explícita em alguns trabalhos que em outros,
está na tentativa de demonstrar que as organizações podem desenvolver
políticas e práticas de envolvimento para comprometer os trabalhadores.
Esta conclusão, presente no trabalho de Antunes e Pinheiro (1999), merece
pelo menos duas ordens de reparos:
163
i. a primeira refere-se ao fato de que todos os esforços analíticos na
área, como reconhece a quase totalidade dos autores, não foram
capazes de definir com certa precisão o que de fato é estar
comprometido e quais são definitivamente as bases e princípios do
comprometimento, o que, sem sombra de dúvida, constitui um
sério impedimento para a adoção de estratégias para provocá-lo;
ii. a segunda e principal razão refere-se à suposição de que políticas
e práticas de envolvimento possam ser adotadas com efetividade
quando a literatura já tem farta e felizmente demonstrado que os
efeitos das relações reais, simbólicas e imaginárias sobre o ego e o
id não geram padrões comportamentais definidos e homogêneos
(DAMÁSIO, 1998 e 1999).
Como se pode deduzir destas observações, o estudo sobre o
comprometimento nas organizações é ainda um processo em construção
que deve estar aberto a outras contribuições.
3
Comprometimento: uma proposição à análise da
práxis organizacional
28 Alguns autores colocam ênfase sobre o trabalho e não sobre os indivíduos. Mas esta diferença não
prejudica a análise que se faz aqui.
164
ou avaliar o grau de comprometimento. Como se pode deduzir das pesquisas
e dos desenvolvimentos teóricos, os graus de comprometimento podem ser,
em seus extremos, pleno (arrebatamento) e nenhum (aversão). Entretanto,
um indivíduo ou um grupo não se compromete totalmente com a
organização a não ser que se aliene inteiramente a ela. Portanto, o
comprometimento não pode ser pleno, total, absoluto, mas sempre relativo.
De outro modo, um indivíduo ou um grupo não permanece em uma
organização sem nenhum comprometimento, pois esta é uma forma
insuportável de relação, o que somente seria possível em casos de
esquizofrenia.
Sendo correta a concepção de que não pode haver uma situação de
comprometimento total e de nenhum comprometimento, convém
estabelecer as situações extremas entre comprometimento intenso e fraco
comprometimento ou anticomprometimento, para usar o conceito já
referido proposto por Rego (2003). Entre estes extremos, podem-se inserir
várias condições do comprometimento. Contudo, e ainda para efeito de
argumentação, admitam-se apenas três condições intermediárias: (1)
adequada, que expressa uma boa condição de comprometimento entre os
sujeitos e as organizações ou seus projetos, (2) aceitável, que expressa uma
condição apenas regular de comprometimento, e (3) crítica, que expressa
uma condição mínima de comprometimento e que sinaliza para um “nível
de alerta”. Podem-se operacionalizar estas condições em que o
comprometimento ocorre de forma qualitativa ou quantitativa, dependendo
da forma de avaliação e dos instrumentos de avaliação (ou de medida). Do
ponto de vista dos argumentos aqui desenvolvidos, a perspectiva
quantitativa, embora possível, não parece ser a de melhor eficácia.29
Considerando as questões decorrentes das análises conceituais e críticas
efetuadas, admite-se que:
29 A rigor, apenas um teste com as duas metodologias poderia permitir uma afirmação categórica
sobre isto. Baseado na experiência do Grupo de Pesquisa com o trabalho com as variáveis (categorias
de análise) sugeridas, parece que a proposição qualitativa é a que melhor responde às necessidades
de uma investigação mais profunda. Seria leviano, contudo, afirmar de forma inquestionável sua
supremacia ou descartar a opção quantitativa.
165
Do ponto de vista das relações organizacionais, estar comprometido significa
que o sujeito (individual e coletivo) desta ação deve partilhar dos valores
objeto da mesma, estar motivado a participar da definição e da realização dos
objetivos e das estratégias de sua consecução e sentir-se responsável pelo
sucesso das ações que permitam o alcance dos objetivos, engajando-se, criando
e inovando para a conclusão das ações conforme os padrões esperados ou além
deles.
167
forma não excludente, ao afeto, aos códigos (valores), aos vínculos e aos
interesses subjetivos e objetivos, ao poder e à ideologia, desde que, em
todos os casos, o que esteja em pauta sejam os objetivos e as finalidade da
ação e o envolvimento do sujeito com a ação e com seus resultados. O
Quadro 4.2 resume estas considerações.
Condições de Comprometimento
Bases do
Comprometimento
Inexistente ou
Intensa Adequada Aceitável Crítica
Muito Fraca
Relações de afeto
Conjugação de interesses
ou vínculos objetivos
Vínculos subjetivos
Relações de poder
Compartilhamento
ideológico
168
Entretanto, estas considerações por si só nem esgotam o tema nem são
satisfatórias. É fundamental, ainda, considerar que os estudos sobre
comprometimento devem levar em conta pelo menos quatro aspectos:
i. a organização é um sistema vivo, ao mesmo tempo cultural,
simbólico e imaginário, no qual desejos, projetos e fantasias se
entrecruzam de forma dinâmica e contraditória (ENRIQUEZ,
1997);
ii. os sujeitos não são seres abstratos movidos por interesses e
desejos perceptíveis apenas nas aparências, na medida em que o
jogo entre pulsões existentes na dinâmica inconsciente também
ocorre nos grupos/organizações (KAËS, 1997; KERNBERG, 1970;
1974; 2000);
iii. as relações entre os sujeitos e os grupos/organizações variam
conforme os movimentos de ambos (ZIMERMAN; OSORIO, 1997);
iv. fatores ambientais, concretos ou imaginários, muitas vezes
incontroláveis, são capazes de alterar, inclusive completamente, as
relações dos sujeitos entre si e com os grupos/organizações
(ANZIEU, 1993; CASTORIADIS, 1985).
A proposta apresentada assume que o conceito de comprometimento
não pode ser intercambiável com outros conceitos correlatos ou com os
derivados de suas bases e enfatiza dois elementos inseparáveis de um
mesmo processo: (i) os referentes às relações em si e para si mesmas (as
situações ou bases) e (ii) os referentes aos aspectos relacionais presentes na
manifestação destas relações (as condições). As bases e as condições de
manifestação são, portanto, os elementos constitutivos do
comprometimento, de forma que a ausência dos mesmos nas investigações
diminui a capacidade explicativa do fenômeno estudado. Estes elementos
constitutivos são dinâmicos e sua evidência às vezes é contraditória e
paradoxal, já que, ainda que se refiram ao mesmo fenômeno e a ele estejam
vinculados, movem-se muitas vezes independentemente uns dos outros, o
que permite sugerir que os estudos acerca do comprometimento
organizacional serão necessariamente prejudicados caso estes elementos
sejam considerados de forma estática e/ou desintegrada nas análises e nas
investigações empíricas.
169
Como se pode perceber, as relações que se podem estabelecer entre as
bases e as condições em que se dá o comprometimento indicam uma
variedade de possibilidades, o que impede uma classificação definitiva. Este
é o propósito. Entende-se que uma classificação é sempre arriscada, pois a
realidade concreta não se submete a modelos abstratos. Cada uma das bases
pode se relacionar de diferentes formas com as condições em que o
comprometimento ocorre, cumprindo, portanto, analisar cada uma das
situações para avaliá-las e proceder às intervenções psicossociais.
Adicionalmente, sem desconsiderar as possibilidades de avaliação
exclusivamente quantitativa dos graus de comprometimento por parte de
correntes behavioristas ou neo-behavioristas, que aqui foram criticadas,
admite-se que avaliações qualitativas são mais úteis para o estudo deste
fenômeno sem prejuízo para a identificação dos graus desde que estes sejam
precisamente circunscritos, com limites determinados, como se mostrou
acima.
4 Conclusão
1.
Em qualquer organização sempre existe algum grau de insatisfação, seja de
indivíduos isoladamente, seja de grupos. Isto ocorre porque uma
organização é um local de vários interesses, em que subsistem diferentes
objetivos ou diferentes formas de alcançar objetivos comuns. Neste sentido,
considerando que do ponto de vista das relações organizacionais estar
comprometido significa que o sujeito (individual e coletivo) da ação deve
partilhar dos valores, dos projetos, das metas, como é possível estar
motivado a participar da definição e da realização dos objetivos e das
estratégias de sua consecução e sentir-se responsável pelo sucesso das
ações que permitam o alcance dos objetivos, engajando-se, criando e
inovando para a conclusão das ações conforme os padrões esperados ou
além deles, se os interesses não são os mesmos?
2.
Levando-se em conta o Quadro 4.2 e supondo que cada condição tenha uma
pontuação, conforme sugerido, pode-se inferir que a condição mais intensa
(que alcança 30 pontos) corresponde a um comprometimento total e a
171
muito fraca ou inexistente (6 pontos) corresponde a um comprometimento
apenas residual. Comparando-se alguns casos, seja entre grupos, seja entre
organizações, é possível afirmar que existe comprometimento total ou
residual? Quais os motivos? Além disto, o que faz com que determinados
grupos ou organizações apresentem maiores condições de
comprometimento que outros?
Condições de Comprometimento
Bases do
Comprometimento
Inexistente ou
Intensa Adequada Aceitável Crítica
Muito Fraca
Relações de afeto 5 4 3 2 1
Conjugação de interesses ou 5 4 3 2 1
vínculos objetivos
Vínculos subjetivos 5 4 3 2 1
Relações de poder 5 4 3 2 1
172
Compartilhamento ideológico 5 4 3 2 1
3.
A noção de comprometimento detida por gestores não raro remete ao
comprometimento de base afetiva e revela uma expectativa de aceitação
incondicional, o que significa dizer que, quando afetivamente
comprometidos, os indivíduos tenderiam à ação sugerida pela organização,
independentemente dos riscos e custos que poderiam estar sendo
assumidos por eles com essas ações. Contudo, a experiência cotidiana revela
que o comprometimento pode se manifestar em diferentes níveis da
organização, sob bases concomitantes diversas e, principalmente, em
diferentes níveis de intensidade. Diante disso, é realmente possível esperar
que investimentos em criação de envolvimento afetivo entre organização e
indivíduos possam de fato resultar nessa aceitação incondicional? Até que
ponto a existência de diferentes bases de comprometimento pautando o
conjunto variado de relações que o indivíduo experimenta no espaço
organizacional poderia entrar em conflito ou passar a um estado de
influência mútua que pudesse reduzir os níveis de comprometimento?
4.
Considerando que as relações no espaço de trabalho promovem interações
simbólicas e sociais que culminam em condutas padronizadas ou, pelo
menos, sujeitas a semelhanças significativas, seria possível esperar que o
tempo e a intensidade dessas relações pudessem desenvolver padrões de
comprometimento coletivos nas organizações?
173
Parte II
DISCURSOS, COMPETÊNCIAS,
GESTÃO CORPORATIVA
E DA QUALIDADE
174
5
Discursos Organizacionais30
José Henrique de Faria
Francis Kanashiro Meneghetti
30 Texto originalmente apresentado no XXV ENANPAD, em 2001, e publicado, também em sua forma
original, na REO, v. 2, nº 2, 2001.
175
Introdução
176
idéias se reproduzem no mundo da formação educacional,31 nas ciências ou
nas atividades mercantis, como mostra Bourdieu (1983; 1987; 1996; 2001).
Trata-se, tão-somente, de verificar como esta questão é abordada, do ponto
de vista dos estudos organizacionais, contemporaneamente.
Para Foucault (1997), o discurso cria dimensões específicas capazes de
estabelecer regras de comportamento. Há, de certa forma, a contribuição da
subjetividade na construção de normas comportamentais que devem ser
seguidas. Para Foucault, o discurso está permeado de sutilezas, não só no
aspecto direto como também nas “palavras não ditas”. O autor evoca todos
os processos conscientes do homem sem, contudo, esquecer o inconsciente
como fator de geração dos atos humanos e, consequentemente, do ato
discursivo. Para Foucault, ao se adotar uma análise dos conjuntos
discursivos, pode-se, através de uma observação detalhada e técnica,
encontrar o real sentido e as motivações que levam à adoção de um
determinado discurso, perfeitamente possível de ser classificado de acordo
com ideologias específicas de interesse comum de alguns grupos ou com
particularidades convenientes para o emissor atingir de seus objetivos.
Em As palavras e as coisas (FOUCAULT, 1966) e em A ordem do discurso
(FOUCAULT, 1971), Foucault não ignora o caráter desconhecido do homem,
de um universo inexplicável à racionalidade, no qual o que leva o indivíduo
a expressar-se não é somente um cálculo utilitarista de benefícios possíveis,
mas também os processos inconscientes que movem os desejos humanos, as
pulsões de vida e de morte e dos mecanismos de defesa criados como forma
de proteção do homem moderno. O que guia o discurso não é uma
racionalidade que atinge moldes matemáticos e cartesianos, em que as
palavras podem ser medidas como matérias que se compõem como peso
numérico na avaliação do receptor, mas a manifestação do estado despojado
da censura do id freudiano, liberto na sua moralidade humana e em busca
da realização dos desejos inconscientes.
Cada época histórica, na perspectiva foucaultiana, possui seu próprio
conjunto de conhecimentos que permitem explicar os seus
condicionamentos técnicos, históricos, ou sociais, ou seja, sua episteme. É
neste terreno que brotam os saberes que, ao mesmo tempo em que se
constroem segundo estes conhecimentos, são por eles limitados por se
177
conformarem aos mesmos. Os discursos que explicitam os saberes de cada
época revelam a ordem intrínseca desta época, sua lógica interna e,
portanto, sua Epistéme. Mas Epistéme não é saber, pois é anterior a este e é
a condição da possibilidade deste saber. Epistéme é a forma de ordenação
histórica dos saberes e independe da ordem dos discursos. Aliás, a Epistéme
é a própria condição da ordem do discurso, de tal forma que a compreensão
do discurso somente pode ser feita no interior de uma Epistéme. Como a
cada época histórica corresponde uma ordenação e saberes, estes são,
portanto, historicamente produzidos com base em um campo que é limitado
pela Epistéme, de tal modo que o discurso não pode ser pronunciado senão
neste ordenamento.
Assim, para alcançar a compreensão discursiva, o indivíduo deve estar
atento a todas as palavras e atos que o motivam nas ações cotidianas no
interior de uma Epistéme. A compreensão do discurso não se deve limitar
apenas ao ato isolado da análise do discurso pontual em determinada
situação presenciada. Deve haver uma análise longitudinal, no tempo
(histórica) e no conteúdo conceitual do vocabulário utilizado ( Epistéme e
ordenamento dos saberes). O que importa não é a mera soma das palavras
em um determinado momento, mas ir além da análise simplista e
reducionista do imediatismo, abstrair-se do ambiente impregnado de
valores sociais que podem estar influenciando uma análise tendenciosa e
contaminada.
Vê-se igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história do
pensamento. Aí, também, não se pode reconstituir um sistema de
pensamento a partir de um conjunto definido de discursos. Mas esse
conjunto é tratado de tal maneira que se tenta encontrar, além dos próprios
enunciados, a intenção do sujeito falante, sua atividade consciente, o que ele
quis dizer, ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do
que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas; de
qualquer forma, trata-se de reconstituir um outro discurso, de descobrir a
palavra muda, murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que
escutamos, de restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o
interstício das linhas escritas e, às vezes, as desarruma (FOUCAULT, 1997, p.
31).
178
agrupamento,32 um grupo social ou à sociedade em geral, aceita por todos e
legitimado como padrão de conduta a ser adotado pela maioria, com a
finalidade de os sujeitos sociais evitarem o conflito entre si. Há, no discurso,
a possibilidade da materialização das palavras que pode estabelecer
padrões e criar moldes que devem ser adotados pelos sujeitos sociais na
tentativa de se enquadrar socialmente, evitando situações conflituosas.
É possível ver na acepção de Foucault os discursos enquanto “sistemas
de pensamento contingentes, bem como informativos dos métodos
materiais, os quais, não só linguisticamente, mas também na prática, por
meio de técnicas de poder particulares (claramente visíveis em prisões,
hospitais psiquiátricos, escolas, fábricas, e assim sucessivamente),
produzem formas particulares de subjetividade” (ALVESSON; DEETZ, 1998,
p. 249).
Para os pós-modernos, o ambiente é o ponto central, destituindo, assim,
a expressividade interior. A concepção pós-moderna credita ao ambiente a
fonte de todas as modulações discursivas que um homem pode expressar.
O mundo é o grande palco das transformações, cabendo ao meio induzir e
reger os padrões comportamentais dos indivíduos. O homem é reduzido a
um componente social, que só possui força e expressão na coletividade. Há
um processo em que o discurso reflete as experiências da sociedade e é
através da dinâmica coletiva que este discurso modifica-se ao longo do
tempo. Não deixa de haver, portanto, assim como no pensamento
foucaultiano, o reconhecimento da subjetividade, embora através de um
processo diferenciado em que o que ordena a subjetividade está no
ambiente social e não em sua expressividade interior. É através da lógica da
análise pós-moderna recente – a de identidade fragmentada, por exemplo
(ALVESSON; DEETZ, 1998) – que se abriu a possibilidade de ver o indivíduo
ser tornado parcial, deixando de buscar respostas para suas aspirações
existenciais e aceitando as respostas “prontas” que o mundo atual procura
32 Há diferenças entre agrupamento e grupo: o primeiro pode ser entendido como “um conjunto de
pessoas que convive partilhando de um mesmo espaço e que guardam entre si certa valência de inter-
relacionamento e uma potencialidade em virem a se constituir como um grupo propriamente dito”
(ZIMERMAN; OSÓRIO, 1997, p. 27). Um grupo é um conjunto de pessoas com um projeto comum em
que estão todos os sentimentos envolvidos entre os seus membros, e que são capazes de estabelecer
regras, explícitas ou implícitas, que regulam as relações sociais estabelecidas internamente ou
externamente (ENRIQUEZ, 1994).
179
desenvolver como forma compensatória e ilusória.
Para que se observe a primazia do discurso, é sugerido que cada pessoa
nasce dentro de discursos correntes, que têm uma presença continuada e
material. A experiência do mundo é estruturada por meio das maneiras
como os discursos conduzem a pessoa a assistir o mundo e provêm unidades
e divisões particulares. À medida que a pessoa aprende a falar, esses
discursos disponíveis posicionam o indivíduo no mundo de modo particular,
antes do indivíduo ter qualquer possibilidade de escolha. Visto que os
discursos estruturam o mundo, eles ao mesmo tempo estruturam a
subjetividade da pessoa, provendo-a com uma identidade social particular e
um modo de ser no mundo (ALVESSON; DEETZ, 1998, p. 249).
33 Utiliza-se o termo disputa como sinônimo de contestação, rixa, contenda e discussão, em que o
sentido mais presente na atualidade configura certa proximidade com os padrões capitalistas. Neste
sistema de disputa, está inserida a necessidade de haver um vencedor a qualquer custo, não sendo
permitido perder (SENNETT, 1999); o ganhador é aquele que quase sempre controla as bases do
poder. Nem sempre nas disputas capitalistas – econômicas, jurídico-políticas e ideológicas – há uma
ética condizente com a necessidade de disputa franca, honesta e aberta. O que prevalece é o
utilitarismo como forma de medida das relações pessoais.
182
relações estabelecidas. Na utilização da linguagem, aparece sua ideal
utilização, a qual cria mecanismos favoráveis para o entendimento mútuo,
atingindo a compreensão máxima possível a todos. A ação comunicativa é,
portanto, aspecto importante da interação social na sociedade, em
instituições sociais na sociedade e na vida diária (ALVESSON; DEETZ, 1998,
p. 245).
Como se pode perceber, a concepção de Habermas pretende levar
adiante a possibilidade de que o discurso, enquanto ato comunicativo, seja
capaz de promover uma interação compartilhada entre os sujeitos, a qual
deveria produzir, se não um consenso, uma troca compartilhada.
35 A tradição marxista propõe duas concepções da ideologia: a ideologia como imaginário social e a
ideologia como relação de poder. A ideologia seria a forma mistificada pela qual os homens vivem
184
segunda, a prática ideológica e a prática filosófica perdem sua autonomia e
passam a ser vistas numa relação íntima com a política; e na última fase
Althusser revê os conceitos a partir de Marx e elabora uma nova
racionalidade sobre a ideologia, refugiando-se da concepção de verdade e
erro. Na relação ideologia e imaginário, a deformação imaginária propicia
não as relações de produção existentes, mas, antes de qualquer coisa, as
relações derivadas delas. A ideologia apresenta-se, assim, não como sistema
de relações reais que governam os indivíduos, mas de relações imaginárias
dos indivíduos com aquelas relações reais em que os indivíduos vivem
(ALTHUSSER, 1999).
Para Castoriadis (1985), ao contrário, a ideologia não seria o produto da
sociedade, determinada pelas relações de produção e pelo resultado das
relações de poder que permitem ao dominante garantir sua dominação. A
sociedade, esta sim, seria produto de uma instituição imaginária, capaz de
abrigar todas as manifestações simbólicas interpeladas no plano individual
e institucional. Dessa forma, a ideologia e os Aparelhos Ideológicos de
Estado poderiam ser considerados como criação das manifestações
imaginárias sociais, capaz de utilizar o simbólico e todo o processo racional
para estabelecer uma relação de dominação,36 seja entre os indivíduos, seja
entre os Aparelhos Ideológicos de Estado. Assim, enquanto para Althusser
são as relações de produção que fundam a ideologia, para Castoriadis é a
instituição imaginária que produz a sociedade e suas relações.
O estudo de Kernberg (2000, p. 274), sobre grupos e organizações,
sugere a existência de um sistema ideológico que inclui “uma visão de
mundo que, por definição, exclua todos aqueles que dela não compartilhem,
declare os excluídos inimigos que precisam ser controlados ou eliminados e
aspire a dominar todos os aspectos do comportamento social”. Além disso,
também é possível observar a transformação das ideologias em “clichês
sociais, políticos e religiosos que mantêm sua função de socialização dentro
da comunidade, mas têm pouco efeito sobre a vida diária dos indivíduos, dos
suas relações reais, no primeiro conceito. Na segunda concepção, é vista como força material,
ocupando um lugar definido no sistema das instâncias, e investida em relações de poder, a serviço da
classe dominante (MARX; ENGELS, 1976).
185
casais e da comunidade”.
Nesta mesma direção, Pagès (1987, p. 87) afirma a existência de um
processo de “cerco ideológico”, pelo qual o indivíduo “colabora para a sua
própria doutrinação” resolvendo seus “conflitos ideológicos” e reformando
a “ideologia dominante sempre com a impressão de pensar livremente”.
Assim, tanto os estudos de Kernberg quanto os de Pagès apontam para a
existência de relações que confirmam a teoria de Althusser sobre a
capacidade da ideologia de desempenhar papel de dominação, enquanto
para Castoriadis a ideologia é, ela mesma, a dominação.
Assim, pode-se verificar que, dos papéis desempenhados pela ideologia,
o mais recorrente refere-se à sua contribuição em definir identidade a seus
adeptos. “Nenhum indivíduo escapa do cerco ideológico, porque não há
indivíduo que não ocupe posições sociais, e em consequência, não defenda
interesses” (SROUR, 1998, p. 179).
186
3 Discursos organizacionais
187
organizada da linguagem, entendida aqui em seu sentido mais amplo. Deste
modo, é conveniente tratar não apenas do discurso nas organizações, mas
também do discurso permitido, da ética das palavras, de como o sujeito
constrói a si e ao outro através do discurso, do espaço e do tempo das falas.
Para que o discurso possa ser legitimado, é preciso que o seu locutor
carregue toda a carga simbólica aceita pelo grupo ao qual pertence. O
conteúdo informacional e ideológico deve ser condizente com a postura do
indivíduo: sua palavra não vale mais do que o homem que a utiliza, pois o
homem de palavra não empenha palavras, empenha sua pessoa (BOURDIEU,
1996). A linguagem da autoridade só pode ser empregada quando os
governados por ela aceitam as condições impostas e colaboram para com
seu cumprimento enquanto regra, de forma que os mecanismos sociais
decorrentes sejam capazes de produzir colaboração e cumplicidade dos
indivíduos. “A eficácia simbólica das palavras se exerce apenas na medida em
que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exercê-la de
direito, ou, então, o que dá no mesmo, quando se esquece de si mesma ou se
ignora, sujeitando-se a tal eficácia, como se estivesse contribuindo para
fundá-la por conta do reconhecimento de quem lê e concede” (BOURDIEU,
189
1996, p. 95). Assim, as palavras só podem ser aceitas quando o locutor é
entendido por todos como legítimo no seu posto social ou, em termos
organizacionais, pode ser entendido como merecedor do nível hierárquico
que ocupa, ter reconhecido seu discurso como condizente com a sua conduta
como indivíduo.
Mas o discurso, apresentado como sendo o retrato da práxis
organizacional, pode ser contraditório em vários aspectos em relação ao real
uso das palavras. Uma das utilidades das palavras é a de permitir ao
indivíduo expressar como ele realmente é, suas crenças e seus valores, seu
afeto, seus desejos e suas emoções. No campo das organizações, contudo, a
estrutura formal da racionalidade instrumental e do cálculo utilitário de
consequências, para usar uma concepção de Hobbes (1974), não permite
expressar ou admitir, por exemplo, a culpa, o fracasso, a incompetência ou a
inveja; não permite sequer mencioná-los como sentimentos mais presentes
na concorrência entre os indivíduos dentro das organizações. Existem
procedimentos, atos e sentimentos humanos, que não podem ser expressos
no plano formal, mas que constituem a “vida psíquica” nas organizações
(MOTTA; FREITAS, 2000). Assim, o discurso permitido é aquele que não
coloca em risco a manutenção da unidade coesa das organizações, é aquele
que não abala as crenças, os valores e os dogmas (a “cultura”), é aquele que
não quebra os vínculos, enfim, que não faz questionamentos ao
comprometimento pretendido dos “colaboradores” nas organizações.
191
O não-uso da palavra pode ser, também, uma atitude não ética. Quando
se permite, por exemplo, que alguém seja caluniado ou desqualificado por
um indivíduo ou um grupo, sem que a pessoa alvo da discussão esteja
presente, ou, ainda, quando o objeto da discussão seja duvidoso, favorece-se
o uso do discurso de forma inapropriada. A omissão, nestas condições, é
igualmente prejudicial para com o estabelecimento de um ambiente
democrático e franco de discussão dos assuntos do interesse comum.
Podem-se encontrar nas organizações, do mesmo modo, atos de
descrédito do outro. É comum encontrar indivíduos que tentam
desqualificar outros, o que pode ser observado em expressões do tipo “ele
não sabe o que está falando...”, “acho que ele não fala nada com nada...”, “você
acredita no que ele te falou?”. Assim, nestas manifestações está embutida a
intenção de desqualificar palavras, idéias ou opinião de outros. A
inteligência do outro é posta em dúvida e suas colocações, que poderiam ser
úteis a todos, é banalizada. O que está por trás desta atitude é muito mais do
que uma simples guerra egocêntrica, é uma forma de desacreditar o outro e
transferir a capacidade de gerar novas idéias, de estabelecer uma visão
restritiva das potencialidades alheias e de transferir o poder das palavras,
fazendo colocações inapropriadas, indevidas e muitas vezes não
verdadeiras. O homem tenta estabelecer uma relação de poder através do
uso dos símbolos linguísticos, alerta Bourdieu (1996), tenta estabelecer
uma relação de dependência dos que procuram por um indivíduo
“inteligente”, que tenta se apresentar como o cérebro de um grupo.
192
3.3 A construção de si mesmo e do outro pelo discurso
É através do discurso que o indivíduo torna-se capaz de conhecer e de
construir a si e ao outro, de reconhecer o outro como si mesmo, de colocar-
se no mundo das trocas materiais e simbólicas, de realizar e transacionar os
afetos e os desejos. Mas é também no uso do discurso que o indivíduo se
nega como sujeito, cria uma imagem destituída de sua realidade, perjura
seus conceitos e diminui-se como ser capaz de tomar suas próprias decisões.
Neste movimento contraditório, o indivíduo cria mecanismos cada vez mais
sofisticados para que as organizações o dominem e guiem os seus destinos
enquanto ser humano e enquanto profissional que vende sua força de
trabalho. Uma das maneiras mais sutis que propiciam ao indivíduo abrir
mão da sua autonomia, enquanto responsável pela sua integridade e destino,
é através do discurso que faz sobre si mesmo aos outros. Cada vez que uma
pessoa toma a palavra, ela procura exprimir e comunicar uma imagem de si
mesma; ela procura fazer reconhecer essa imagem por outra pessoa, a qual
se torna assim um recurso indispensável ao reconhecimento de sua própria
identidade (CHANLAT; BÉRDARD, 1996). Para não passar a imagem de fraco
e impotente enquanto profissional, o indivíduo discursa de forma a
promover supervalorizações de suas capacidades intelectuais e emocionais,
engana com sutileza em relação às suas habilidades, tentando criar uma
membrana capaz de estabelecer uma figura mítica, forte e capaz do exercício
das suas funções. Este discurso, agravado quanto maior o número de
pretendentes ao cargo, permite negar dificuldades com veemência,
tornando o indivíduo apto a infligir a outros regras implícitas e explícitas
que estabelecem uma relação direta com o sofrimento psíquico ou mesmo
com as doenças mentais (DEJOURS, 1999).
Neste sentido, o indivíduo vai desenvolvendo um processo de
psicopatia, que se caracteriza pela capacidade de mentir deliberadamente
(e, às vezes, de forma compulsória), de não sentir culpa ou remorso pelas
atitudes que toma, de manipular fatos e comportamentos para transformá-
los em vantagem ou em confirmações de seus desejos ou interpretações.
Este indivíduo adota comportamentos irritadiços e impacientes, que
precisam ser preenchidos por um acúmulo de muitas e diferentes atividades
e tarefas, as quais criam uma imagem de um profissional competente e
escondem a realidade de uma pessoa doente.
O mecanismo do discurso que recorre à utilização do imaginário para o
193
processo de construção da figura de si mesmo vem preencher não apenas as
necessidades do indivíduo, mas igualmente da organização que dele se vale.
As organizações assumem voluntariamente o papel de fornecedoras de
identidade tanto social quanto individual, contaminando o espaço do
privado e buscando estabelecer com o indivíduo uma relação de referência
total (PAGÈS et al., 1987). É frequente encontrar discursos nos quais o
indivíduo identifica o seu nome com o da organização em que trabalha – “sou
o Fulano da empresa X” – ou, ainda, que perde sua identidade pessoal e se
transforma em uma propriedade da organização em que trabalha – “sou um
funcionário (colaborador) X” – significando não só um amálgama
identitário, mas também um vínculo psíquico.
O discurso, portanto, se é um meio utilizado para permitir ao sujeito
integrar-se no mundo reconhecendo a si e ao outro, é também uma forma de
criar uma camada simbólica que habita o imaginário de outras pessoas,
estabelecendo uma relação social calcada na segurança contra o
questionamento, em mecanismos de negação social e psicológico de defeitos
e fragilidades, na criação de uma imagem na qual a supervalorização do
trabalho é fundamental para a continuidade na organização.
Sem embargo, como sugere Mintzberg (1973), o executivo moderno
tornou-se perito em criar um imaginário favorável para o desenvolvimento
de suas atividades. Em essência, as funções do executivo estão vinculadas
com os intercâmbios verbais: com seus superiores, pares, subordinados e
com todos os que estabeleçam relações profissionais com ele. Estes
indivíduos se veem imersos em um oceano de palavras todos os dias,
tentando criar um imaginário favorável para sua empresa e para si mesmos.
Mas, ao mesmo tempo em que cria um imaginário desejado, o executivo sabe
que grande parte das palavras utilizadas não passa de mera criação
simbólica para estabelecer relações de poder.
194
Há, assim, locais apropriados para determinadas afirmações, em que são
impostos padrões de conduta aceitos por todos, criando um processo de
racionalização e legitimação que estabelece padrões de condutas que devem
ser obedecidos e aceitos, sem a possibilidade de se questionar sua validade.
Assim, os indivíduos estão aprisionados por regras estabelecidas e
reproduzidas por eles mesmos (PAGÈS et al., 1987).
Cria-se uma ordem hierárquica e de importância que o indivíduo tem
para com a organização, de acordo com o espaço que ela ocupa quanto à
realização do seu trabalho. Os participantes de reuniões, os frequentadores
de almoços e jantares de negócios são vistos com maior importância que os
indivíduos que realizam seu trabalho em um espaço limitado, sempre no
mesmo local, sem possibilidade de mobilidades periódicas. Também assim
o alcance dos discursos dos que se movem é maior do que o dos que são
aprisionados em seus locais de trabalho.
O discurso deve também estar em conformidade com o tempo a que é
pertinente. Raramente há uma regra que estabeleça de forma clara e direta
o tempo que se deve utilizar para uma exposição em uma reunião, ou para
colocações dentro de tema de interesse comum. Contudo, existe um tempo
imaginário conveniente e tolerável pelos participantes do diálogo. A
dominação do espaço, dos lugares e do tempo é um símbolo muito utilizado
para criar um imaginário nos indivíduos, reforçando relações de ordem
hierárquica.
O tempo é muitas vezes concebido pelos que se postulam donos do
discurso e portadores da verdade como bastante elástico para seus
pronunciamentos e muito inelástico para os posicionamentos contrários aos
seus ou aos que pretendem representar. Tempo de discurso e poder
caminham juntos na ordem política organizacional, pois maior tempo de
exposição pode significar maior condição de convencimento. Esta relação
pode ser questionada de duas formas: (i) há, como se sabe, um tempo em
que a exposição do tema tem, em geral, a atenção total dos presentes. Além
deste tempo, a atenção começa a se dispersar, as pessoas se distraem com
pequenas interrupções ou fatos banais, não mais se concentrando nos
argumentos, a não ser que o detentor do discurso detenha igualmente uma
grande habilidade e capacidade didática. Não sendo este o caso, uma
exposição de cerca de 20 minutos pode ser mais efetiva do que uma de 50
minutos; (ii) muito tempo com pouco conteúdo pode ser menos efetivo que
195
pouco tempo com muito conteúdo. Para os que pretendem exercitar seu
papel na estrutura de dominação, fazendo valer suas estratégias e seus
objetivos, o uso do tempo é um instrumento importantíssimo.
A relação entre tempo e local também passa a ser muito valorizada nas
organizações. A maior disponibilidade de tempo é sempre perseguida em
locais e espaços políticos com maior repercussão ou com maior potencial de
reprodução do conteúdo dos discursos. A equação política tempo-local-
impacto na disseminação dos discursos é merecedora de análises
estratégicas e, não raro, em organizações complexas e contemporâneas
demanda profissionais das comunicações.
Das análises feitas até aqui, tendo por base as lógicas dos discursos e as
ideologias, é possível sugerir a existência de cinco formas básicas de
discursos nas organizações. São formas que levam em conta tanto um saber
ideológico, que “se compõe de evidências doutrinárias, mensagens ou
discursos especulativos que
formulam problemas” e que enunciam soluções ou respostas prontas, como
que reconhecem o mundo e, no mesmo ato, o desconhecem, impedindo que se
tenha acesso aos mecanismos efetivos que explicam a situação (SROUR, 1998,
p. 169).
198
que para todos os fatos encontra uma causa que lhe deu origem, de forma a
afastar dos indivíduos qualquer atitude que venha a colocar em questão os
processos políticos do sistema decisório, transferindo para essa causa,
geralmente externa (do ambiente), a origem do problema.
Aqui é preciso estar atento para o nível de envolvimento dos membros
da organização para com seus desígnios, que este discurso pode estabelecer,
incitando-os a colaborar na solução das causas ou a partilhar da posição
crítica às tais causas justificadoras dos procedimentos. Colocando a
responsabilidade fora do seu lugar, o discurso teleológico estabelece, assim,
uma rede de finalidades e de justificativas.
5 Conclusão
200
dada diretamente no próprio discurso, pois em uma organização não existe
uma única forma discursiva e tampouco se podem encontrar estas formas
claramente delimitadas. Em um mesmo discurso, podem-se identificar
diferentes formas, dependendo da dinâmica do próprio discurso e dos
movimentos contraditórios da realidade de que pretende dar conta. É
fundamental, a partir desse sentido, insistir no fato de que algumas formas
discursivas são permitidas dentro do ambiente organizacional (as que o
promovem), enquanto outras são suportadas (as que oferecem algum
desconforto) ou então são proibidas (as que oferecem risco real de
desintegração da unidade organizacional). Assim, o discurso pode ser, do
ponto de vista da organização, genericamente classificado de:
i. nocivo, se possui capacidade de gerar instabilidade para os grupos
dominantes ou para o equilíbrio da lógica econômica, política e
social a que pertence;
ii. benéfico, se reforça as relações de poder e os valores instituídos;
iii. suportável, se questiona o lugar do instituído, mas não se constitui
em uma ameaça real, podendo inclusive, se tratado
adequadamente, aperfeiçoá-lo.
Já o lugar do discurso deve ser localizado no fato de que:
i. manter o modelo implica em certa acomodação, conforto e
submissão;
ii. questionar o modelo implica em disposição para aperfeiçoá-lo;
iii. quebrar os paradigmas requer grande empenho e coragem e alta
disposição para a transformação.
Assim, nem todo discurso é necessariamente totalmente nocivo,
suportável ou benéfico, como nem todo discurso refere-se totalmente à
acomodação, ao aperfeiçoamento ou à transformação. Um discurso,
portanto, pode ter uma ou mais formas discursivas, sendo total ou
parcialmente encarado pelas organizações como nocivo/benéfico ou
suportável, referindo-se no todo ou em parte a uma
acomodação/transformação ou aperfeiçoamento. Para desvendar seus
significados e seus significantes, seus ditos e não-ditos, suas formas e
objetivos, não basta ouvi-lo ou perceber sua construção. É necessário, mais
do que isto, identificar suas formas, seus impactos e intenções, colocá-lo em
201
seu contexto, em seu espaço e em seu tempo, desembaraçar aquilo que é o
conteúdo manifesto de sua aparência daquilo que é o conteúdo nem sempre
manifesto de sua essência, definir suas contradições e sua complexidade
dinâmica, os efeitos que pode vir a provocar e os elementos contidos nestes
efeitos.
1.
“Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o
germe de uma resposta [...]. Compreender a enunciação de outrem significa
orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto
correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de
compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas,
formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais
profunda e real é a nossa compreensão [...]. Compreender é opor à palavra
do locutor uma contrapalavra” (BAKHTIN, 1992, p. 131-132). Considerando
a concepção de Bakhtin, de que forma é possível articular uma contrapalavra
em um ambiente geralmente hostil no qual impera uma “única palavra”, a
palavra organizacional, um “único discurso”, que é o discurso oficial da
organização e de seus dirigentes?
2.
Independentemente das várias formas de discurso, sabe-se que a linguagem
não é uma forma neutra de expressão, mas uma forma carregada de
sentidos, de história, de ideologia, de sentimentos não manifestos, de
inconsciente, e que todos estes elementos compõem o discurso na
construção da vida social. Quando, na vida organizacional, os indivíduos se
deparam com os discursos (nas falas, nos documentos, nos folders, nas
apostilas de treinamento, nos jornais internos, nos avisos e comunicações,
há uma tentativa de traduzi-los e este processo de análise discursiva tem a
pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos nestas diversas formas de
produção, verbais e não verbais. Para que os indivíduos compreendam o
teor e o significado do discurso, é fundamental que a materialidade do
mesmo produza sentidos para a interpretação. Como se pode saber se o
sentido é aquele que o indivíduo dá ao discurso a partir de suas convicções
ou se o sentido já está lá e o indivíduo apenas o toma como seu?
202
3.
Em um brainstorming realizado com profissionais da área de gestão de
pessoas – psicólogos, assistentes sociais e gestores (administradores) –,
surgiram as seguintes manifestações: (i) os discursos da organização e dos
sujeitos se confundem; (ii) o nível de alienação do sujeito condiciona sua
interpretação do discurso da organização; (iii) o grau de aderência do
sujeito ao discurso da organização define sua posição na estrutura; (iv) os
sujeitos interpretam o discurso da organização conforme suas
conveniências; (v) o sentido do discurso pode estar no emissor, nas
convenções, no intérprete ou no coletivo; (vi) o discurso é uma convenção
social e organizacional e já vem pronto; (vii) a interpretação do discurso
exige que o sujeito conheça a si mesmo e ao outro. Como você avalia estas
manifestações? Quais aquelas com que você concorda e quais aquelas com
que discorda e por quê?
203
6
A Gestão por Competências no
Quadro da Hegemonia39
José Henrique de Faria
Anne Pinheiro Leal
Introdução
39 Texto originalmente apresentado no XXIX ENANPAD, em 2005. Premiado como o melhor trabalho
na área de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho no mesmo Encontro. Apresentado também no II
Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo (EBEM), em 2006.
204
organizações.
Os dados apresentados neste estudo resultaram da análise de um caso
emblemático em uma organização multinacional de capital nacional na área
de logística, aqui denominada Nital.40 Os dados foram coletados por meio de
(i) 15 entrevistas com integrantes da empresa (de nível estratégico e tático),
com duração média de 45 minutos cada, (ii) observação e (iii) análise de
documentos, os quais foram tratados através de análise de conteúdo,
utilizando-se como técnica a categorização temática, conforme orientação
de Bardin (2002). Os pesquisadores acompanharam a implantação de um
programa de Gestão por Competências orientada pela MRG, uma das
principais empresas de consultoria no assunto atuando no Brasil, desde as
primeiras reuniões com a diretoria da empresa até a implantação do Banco
Interno de Talentos (BIT). Os dados foram coletados entre os anos de 2002
e 2003 diretamente na empresa, sendo que, posteriormente, foi realizado
um acompanhamento à distância através de informações e documentos
obtidos sobre a mesma.
205
Em um contexto organizacional mais amplo, o trabalho de Prahalad e
Hamel (1996) sobre as core competencies,41 no início dos anos 90, amplia o
conceito de competência para o campo de ação da estratégia. Segundos os
autores, a organização de sucesso deve voltar seus recursos para as suas
competências essenciais, que podem ser definidas basicamente por três
critérios: (i) oferecem valor real aos clientes; (ii) são difíceis de imitar; (iii)
podem ser úteis em novas oportunidades de mercado. As competências
essenciais referem-se a conhecimentos, habilidades, tecnologias, sistemas
físicos e gerenciais. As competências essenciais compõem uma linha da
Teoria de Recursos da Firma (Resource-based Management Theory),
segundo a qual certos recursos organizacionais são condicionantes do seu
sucesso perante a concorrência, de maneira que a posse de certos atributos
raros e valiosos outorga à organização vantagem competitiva.
Paralelamente, no que se refere à gestão de recursos humanos, a noção
de competência desloca-se do foco na tarefa para a noção de suporte à
estratégia organizacional. Tendo em vista que o trabalho não é mais
composto por um conjunto de atividades estáveis e bem definidas, a
competência deve refletir aquilo que o trabalhador precisa mobilizar em face
de uma situação profissional cada vez mais mutável. É nesse ponto que o
atual conceito de competência adquire sentido.
206
ou saber fazer, buscando estabelecer, no processo de formação, a relação
entre saber e aptidão (SILVA, 2003; ROPÉ; TANGUY, 2003). O Ministério da
Educação no Brasil, por exemplo, utiliza claramente como critério para as
diretrizes curriculares educacionais (especialmente em nível superior) o
conceito de competência.42
Scott Parry, fundador da Training House, Inc., desenvolveu um sistema
de competência para analisar os resultados de uma série de importante
estudos sobre competência conduzidos por grandes corporações
americanas.43 Esses estudos foram conduzidos para determinar quais
competências são mais altamente efetivas para que gerentes e supervisores
alcancem resultados melhores do que um desempenho apenas médio. Parry,
que propõe uma estratégia de gerenciamento para obter distinção
(Managing to Excel), desenvolvendo uma fundação de gestão de
competências (Foundation of Managerial Competencies), define
competência como “um grupo de conhecimentos, habilidades e atitudes
relacionados entre si que possuem uma correlação com o sucesso no
trabalho de uma pessoa e que podem ser aperfeiçoados por meio de
treinamento”.44 Excel é uma coleção de 12 agrupamentos de competências
reunidos em quatro grupos (clusters): (i) Grupo Administrativo
(Administrative Cluster): gerencia o trabalho do indivíduo; (ii) Grupo
Comunicacional (Communication Cluster): relativo aos outros; (iii) Grupo
Fiscalizador (Supervisory Cluster): construindo a equipe; (iv) Grupo
Cognitivo (Cognitive Cluster): pensando claramente.
Já em seu modelo conceitual, Robert Katz (1955) propunha que a
competência é avaliada baseada em três grupos de habilidades básicas:
técnicas, humanas e conceituais. Katz também sugere que estes grupos de
habilidades não necessitam ser inatos, mas podem ser desenvolvidos com o
42 Como exemplo, cita-se trecho contido nas diretrizes curriculares para cursos de graduação em
licenciatura, que diz “objetivo de fortalecer a efetiva profissionalização do professor por meio de um
eixo comum, representado pelo desenvolvimento de competências básicas que abranjam a
especificidade do trabalho de professores”.
44 No original, “competencies are a group of related skills, knowledge, and attitudes that correlate
with success in one’s job and can be improved through training”.
207
tempo. Entretanto, vários autores (BRANDÃO; GUIMARÃES, 2001;
GRAMIGNA, 2002; BARBOSA et al., 2002) concordam que o conceito de
competência envolve três dimensões distintas: conhecimentos, habilidades
e atitudes. Os conhecimentos relacionam-se com o conjunto de informações
e teorias que o indivíduo possui (provenientes da sua formação e
experiências) e que permitem a ele posicionar-se ativamente frente às
situações de trabalho. As habilidades referem-se à aptidão técnica para
realizar determinado trabalho. As atitudes correspondem ao conjunto de
valores, crenças e predisposições que o indivíduo apresenta, que são, em
grande parte, fruto do seu processo de socialização primária. Para estes
autores, as habilidades correspondem às aptidões técnicas, enquanto para
Katz as aptidões técnicas, conceituais e humanas são, todas elas, habilidades.
Segundo Boam e Sparrow (1992), uma competência é um conjunto de
padrões de comportamento que o trabalhador necessita para obter um bom
desempenho no trabalho. Essa definição implica que competências são
comportamentos que algumas pessoas possuem mais do que outras e que
são relevantes para o trabalho. Novamente, observa-se uma relação entre
competência e desempenho implícita no próprio conceito. Contudo, o
conceito de Boam e Sparrow inclui outro elemento que se encontra também
presente no conceito de Levy-Leboyer (1996), o qual sugere que
competências são “repertórios de comportamentos e capacitações” que
certos indivíduos ou organizações dominam melhor que outros, tornando-
os “eficazes em uma determinada situação”.
Neste sentido, a competência não é uma medida absoluta, mas relativa a
um desempenho melhor em relação a um pior. Tal ideia encontra-se
profundamente relacionada à noção de vantagem competitiva. Recorrendo-
se à própria etimologia da palavra, que segundo Houaiss (2001) provém do
latim “competentia,ae ‘proporção, simetria; aspecto, posição relativa dos
astros’, de competère ‘competir, concorrer, buscar a mesma coisa que outro,
atacar, hostilizar’”, pode-se observar que a expressão em si já encerra a ideia
de competição. Portanto, não é à toa que a expressão é escolhida pelos
autores para designar, no âmbito da gestão capitalista, um parâmetro a ser
seguido de comportamento humano e organizacional. Implícito, então, no
conceito de competência, está o sentido político e ideológico da competição
como parâmetro de excelência, sentido esse que desemboca na apologia do
individualismo e, consequentemente, da desmobilização para a luta coletiva
dos interesses dos trabalhadores.
208
2 A gestão por competências no quadro da hegemonia
213
Nital: nessa etapa, os funcionários passam por um seminário
vivencial, no qual, por meio de uma série de testes de
conhecimento, psicométricos e de personalidade, são avaliados
em termos das competências49 definidas pela empresa como
válidas. Para cada competência, cada trabalhador recebe uma
pontuação e o resultado dessa avaliação é repassado aos
trabalhadores individualmente ao fim da etapa de avaliação de
potencial;
iii. banco de identificação de talentos (BIT): após esquadrinhar os
perfis de cada funcionário, de acordo com os comportamentos
valorizados, as informações sobre os mesmos são armazenadas
em um banco de dados que permite visualizar o desempenho de
cada trabalhador ou equipe com relação às competências. A
visualização dessas informações é feita através de gráficos que
comparam a pontuação esperada com a alcançada. Os
funcionários são, posteriormente, classificados de acordo com sua
pontuação em: talentos, futuros talentos, mantenedores (pessoas
com um desempenho satisfatório, mas com um baixo potencial de
crescimento) e área crítica. Os talentos devem ser retidos,
valorizados e receber investimentos; os futuros talentos serão
capacitados, acompanhados e avaliados; os mantenedores devem
ser mantidos e desenvolvidos; e os que pertencem à área crítica,
se forem remanejados e não tiverem sucesso, em um futuro
próximo serão dispensados (ver Figura 6.1);
iv. plano individual de desenvolvimento das competências (PIDC): a
área de recursos humanos, em reuniões individuais com cada
funcionário, traça para cada um o seu plano individual de
desenvolvimento, ou seja, as ações de capacitação tanto formal
quanto informal que serão tomadas para corrigir as deficiências do
seu perfil. Algumas ações a empresa se dispõe a oferecer e outras
o próprio funcionário terá que buscar. É o que a empresa chama de
autodesenvolvimento e autogerenciamento da carreira;
v. remuneração por competências: a empresa elabora um plano de
49 Essa avaliação é feita com base em técnicas psicológicas: uma entrevista-pesquisa, inventários de
avaliação e um seminário vivencial.
214
remuneração variável recompensando os trabalhadores conforme
o potencial e o desempenho que apresentarem com relação às
competências da empresa. A Nital já investe agressivamente em
remuneração variável, pagando salários fixos um pouco abaixo do
mercado e reservando boa parte da remuneração de seus
funcionários a incentivos ligados a desempenho. Nesse quadro, a
remuneração por competências compõe importante parte dos
incentivos financeiros.
FUTUROS TALENTOS:
TALENTOS: Investir;
Capacitar; Valorizar;
Acompanhar; Reter.
Avaliar.
DESENVOLVIMENTO
POTENCIAL
DESEMPENHO
216
autogerenciamento de carreira” (D4); “Estimular a cultura do
autodesenvolvimento como responsabilidade pessoal” (D1).
Observa-se que a UniNital legitima essa adequação por uma inversão
tipicamente ideológica: não é a empresa que arbitrariamente determina o
perfil de capacitação que o funcionário deve ter, já que a situação é colocada
de forma que o mesmo se sinta responsável por não estar à altura da
empresa como se devesse isso à organização. Além disso, o discurso de
consideração pela pessoa é utilizado quando a empresa se coloca no lugar
de quem dá a capacitação para o funcionário que está em dívida.
Então nós vamos sentar e vamos [conversar], a consultaria vai dar um
feedback para ele, individual, de como ele está e aí a gente vai trabalhar ações
para o desenvolvimento dele dentro dessa competência. Algumas ações a
empresa vai dar para ele e outras ele vai ter que correr atrás (E1).
217
(E1).
218
• Toma iniciativa, é proativo, • Estabelece objetivos e • Básicos de planejamento
busca informações. metas realistas e e negociação.
• Demonstra possuir clareza oportunas. • Ferramentas de tomada
de propósitos. • Consegue exceder de decisão compartilhada e
• Cria oportunidade para a padrões de excelência de resolução de problemas.
ação. (desafios). • Informações estratégicas
• Apresenta iniciativa própria • Percebe as da empresa e/ou do
para estabelecer parcerias e oportunidades de ação. negócio.
negociações com vistas ao • Toma iniciativa. • Cenários e tendências de
alcance de resultados. • Age de forma criativa. mercado (no Brasil e em
• Usa estratégias assertivas de outros países).
• Sabe criar alternativas
planejamento. novas e eficazes de
• Canaliza energia para soluções aos problemas
implementar os planos detectados.
elaborados e as idéias • Cria oportunidades para
sugeridas. agir (propõe ações,
• Assume riscos calculados. soluções, alternativas etc.).
• Demonstra interesse. • Obtém a adesão do grupo
• Demonstra energia e aos planos.
entusiasmo. • Energiza as pessoas para
• Não desanima quando algo a ação.
dá errado (persistência). • Obtém resultados pela
• É capaz de encontrar novas ação.
soluções (flexibilidade). • Demonstra possuir
• Demonstra gostar de vencer, clareza de propósitos.
superar metas (desafios) e • Apresenta iniciativa
obter resultados (dinamismo). própria para estabelecer
• Demonstra um propósito parcerias e negociações,
frente às metas e projetos, com vistas ao alcance de
conseguindo estabelecer um resultados.
significado pessoal. • Planeja e implementa os
planos com sucesso.
220
Quadro 6.2 Descrição da competência “capacidade de trabalhar sob pressão”.
222
• Mantém seu grupo argumentos, fatos e dados • Tecnologias de
atualizado, informando coerentes. informação da empresa.
fatos novos. • Apresenta a • Técnicas de feedback.
• Demonstra atenção aos comunicação falada, escrita • Língua portuguesa.
outros em sua postura ou gráfica de forma
corporal (olhar direto, organizada.
sorriso, gestos). • Sabe ouvir, dar e receber
• Busca informações e feedback de forma educada
pergunta quando tem e cortês.
dúvidas. • Estabelece contatos com
• Esclarece seus pontos de facilidade, sendo objetivo
vista quando os outros (a) e claro (a) em suas
necessitam. colocações.
• Reage de forma natural • Quando se comunica, os
ao feedback que inclui outros entendem.
críticas. • Tem tom de voz
• Oferece feedback com agradável.
propriedade, cortesia e • Usa termos adequados ao
respeito com a outra parte contexto (evita gírias e
(mesmo quando este palavras desconhecidas ou
incluir uma crítica). estrangeiras).
• Interpreta a comunicação
com propriedade.
• Escreve e/ou fala com
facilidade e sem erros.
• Tem um estilo agradável
de comunicação.
• Consegue prender a
atenção das pessoas pela
fala.
• Não é prolixo (subjetivo e
cansativo).
Fonte: Mapeamento de Competências (D1).
224
• Receptividade a novas • Convive com paradoxos de • Contextos da atua-
proposições. forma natural. lidade, fatos e
• Facilidade para mudar • Posiciona-se de acordo com seus informações gerais.
de opiniões (rever princípios e valores, respeitando o
paradigmas). outro.
• Desprendimento. • Convive e enfrenta as mudanças
• Adapta-se a situações (mudar sem quebrar).
adversas e demonstra • Capacidade para mudar
aceitação a paradoxos posicionamentos frente a novos
(liderar e ser liderado). argumentos ou variáveis.
• Demonstra respeito a • Sabe ouvir com empatia.
idéias contrárias. • Discute ouvindo as posições do
outro e colocando as suas de forma
assertiva.
Fonte: Mapeamento de Competências (D1).
226
Quadro 6.5 Descrição da competência liderança.
229
trabalho. dados. compreendendo a
• Interessa-se em • Chama a atenção das pessoas inter-relação e
conhecer todo o contexto para os resultados coletivos. interdependência das
(lendo, perguntando ou • Analisa a situação antes de partes.
ouvindo os outros com tomar decisões e agir.
atenção). • Percebe e informa as conexões
• Respeita a opinião dos necessárias para o bom
outros evitando se colocar desenvolvimento dos trabalhos.
como o “dono da verdade”; • Apresenta conclusões com
pondera e conclui com objetividade e propriedade,
base em dados e fatos. dentro dos contextos solicitados.
• Demonstra facilidade
em atuar nos contextos
aparentemente ambíguos:
liderar e ser liderado, falar
e ouvir, ensinar e
aprender.
Fonte: Mapeamento de Competências (D1).
4 Considerações finais
1.
As organizações em geral possuem uma noção hierárquica baseada no
desenho de uma estrutura organizacional, composta de departamentos e
cargos, bem como nas relações de responsabilidade e subordinação.
Segundo o modelo de orientação da gestão por competências (Figura 6.1),
as pessoas, além de participarem da estrutura hierárquica baseada nos
cargos que ocupam, o que já as insere numa configuração de poder pela via
da autoridade, recebem uma classificação conforme o seu nível de
competências, que vai de talentos à área crítica. Essas duas noções de
“hierarquização” – por cargo e por nível de competência – induzem a uma
lógica de competição interna na qual o objetivo é ser sempre o melhor para
alcançar melhores posições e um melhor tratamento, o que reproduz a
lógica de competição do próprio mercado. Ao mesmo tempo, as
organizações exigem que as pessoas desenvolvam a capacidade de trabalhar
em equipe e as noções de ética e responsabilidade social, dentro da noção de
232
solidariedade. Como essa contradição, então, se resolve na prática: de um
lado, a necessidade de competir dentro da empresa para ser o melhor e de
outro a capacidade de colaborar e ser solidário?
2.
Um dos objetivos do programa de gestão por competências implantado na
Nital é promover o autodesenvolvimento das pessoas, o que remete a uma
noção de autonomia do indivíduo com relação ao seu crescimento como
pessoa. No entanto, todas as ações previstas e acompanhadas no PIDC
(Plano Individual de Desenvolvimento de Competências) são direcionadas
pelos déficits que o trabalhador possui com relação às competências
definidas pela empresa. Como se pode, a partir dessa contradição, explicar o
sentido ideológico da noção de autodesenvolvimento no contexto da gestão
por competências?
7
Do Treinamento à Universidade
Corporativa: Ideologia,
233
Dominação e Controle
José Henrique de Faria
Anne Pinheiro Leal
Introdução
1 Treinamento e desenvolvimento
239
progredir, aumentar a produção e suas condições de desempenho, melhorar
sua performance.
Relevância
Tipo de
Abordagem Período Foco Técnica organiza-
Capacitação
cional
240
Habilidades;
Traços de
personalidade
2 Universidades corporativas
244
organização, como os funcionários, clientes, fornecedores em
geral e instituições de educação fornecedoras;
v. passar do treinamento conduzido pelo instrutor para vários
formatos de apresentação da aprendizagem: as universidades
corporativas, nesse sentido, têm se apresentado como
verdadeiros “laboratórios de aprendizagem”, buscando explorar,
sobretudo com o auxílio da tecnologia da informação, várias
alternativas de aprendizagem. O objetivo desses novos formatos
é permitir que o funcionário ou parceiro maximize a sua
capacidade de aprendizado, em tempo real, ou seja, a qualquer
hora e em qualquer lugar. São também comuns as práticas de
seminários entre diferentes organizações ou entre a organização
e seus parceiros para a troca de experiências bem-sucedidas;
vi. encorajar e facilitar o envolvimento dos líderes com o
aprendizado, inclusive como facilitadores: como já foi observado
anteriormente, o comprometimento da cúpula da organização
com as universidades corporativas é elemento crítico de sucesso
para o empreendimento. As melhores práticas demonstram que
a participação dos executivos seniores nas experiências de
aprendizagem está sendo usada para inspirar e motivar os
funcionários, constituindo uma das principais fontes de
inculcação dos valores e da “filosofia” da organização. Em muitos
casos, é o principal executivo da organização que apresenta ou
conduz os primeiros módulos dos programas, com a finalidade de
legitimar todo o conhecimento em questão com a sua própria
“experiência de sucesso”;
vii. passar do modelo de financiamento corporativo por alocação
para o autofinanciamento pelas unidades de negócio: a maioria
das organizações com uma experiência já amadurecida de
universidade corporativa busca seguir a estratégia de
financiamento via pagamento por serviços, que requer das
unidades de negócio a quem o serviço em educação foi prestado
a sua respectiva remuneração, em lugar de alocar esse valor entre
as despesas indiretas da corporação. Esse modelo implica que a
universidade corporativa implemente e mantenha apenas
aqueles programas e cursos que solucionem problemas reais,
245
reduzindo sua oferta de cursos àqueles vitais às necessidades de
negócio. Algumas universidades corporativas já de renome no
mercado pretendem inclusive operar como centros de lucro,
oferecendo ao público externo soluções em tecnologia de gestão
e de aprendizagem;
viii. assumir um foco global no desenvolvimento de soluções de
aprendizagem: como a maioria das organizações que
empreendem uma universidade corporativa atua em nível global,
o foco da universidade deve corresponder a essa realidade. Tanto
o conteúdo como o alcance dos programas deve ser
dimensionado para abranger os mercados atuais e potenciais em
que atuam essas organizações;
ix. criar um sistema de avaliação dos resultados e também dos
investimentos: de acordo com Meister (1999), um dos principais
fatores de eficiência das universidades corporativas é a
centralização das operações como projeto, desenvolvimento,
registro, gerenciamento de fornecedores e avaliação. Dessa forma,
torna-se mais fácil verificar o impacto provocado nos funcionários,
clientes e nas metas da organização;
x. utilizar as universidades corporativas para obter vantagem
competitiva e entrar em novos mercados: em primeiro lugar, as
universidades corporativas se propõem a ser os “olhos e ouvidos”
do que acontece no mundo, como um catalisador de informações
para a organização. Além disso, elas podem influenciar de forma
mais eficaz a cadeia de valor, transformando-se a si próprias em
consultoras, aconselhando clientes e fornecedores em variadas
áreas, abrangendo desde qualidade e educação de funcionários
até produtividade e inovação.
Conforme já exposto anteriormente, os programas são estruturados em
torno dos chamados “3 Cs”, ou seja, cidadania corporativa, estrutura
contextual e competências básicas. Os conteúdos trabalhados com base no
conceito de cidadania corporativa incutem em todos os níveis de
funcionários e parceiros a cultura, os valores, as tradições e a visão da
organização. Está implícita uma forte identificação com a organização e seus
valores centrais. A metáfora da cidadania visa mostrar ao empregado que
ele deve agir como um bom cidadão, atuando como se ele fosse o dono da
246
empresa (ou seja, o maior responsável pelo sucesso das operações),
desejando a satisfação do cliente, sabendo que essa satisfação vem do modo
como o trabalho é realizado e assumindo a responsabilidade de lutar
continuamente para melhorar o seu trabalho.51 Segundo Rego (2002),
algumas das dimensões do comportamento de cidadania organizacional são
o comportamento de ajuda, o levar na esportiva (senso de humor), 52 a
lealdade e obediência organizacionais, iniciativa individual, virtude cívica53
e autodesenvolvimento. Esse novo modelo de aculturação no treinamento
prepara o terreno para a autonomia do funcionário e a realização da visão
de qualidade total da empresa. Além de trabalhar aspectos culturais, como
valores, cultura, tradições e história da organização, os programas baseados
na cidadania corporativa visam atingir a dimensão afetiva do empregado,
buscando certo grau de identificação do mesmo com a organização,
reforçando a noção de vínculo e orgulho por estar fazendo parte desta
“grande nação”. Os aspectos comportamentais também são cobertos, já que,
como declara Meister (1999, p. 95-96), as universidades corporativas estão
treinando seus funcionários “nos comportamentos específicos que eles
precisam demonstrar para ‘viver de acordo com aqueles valores’ no
emprego”. Para tanto, utiliza-se intensivamente metáforas para o
aprendizado, já que “elas são poderosas porque as pessoas as usam para
representar pensamentos implícitos e subentendidos”. Meister (1999, p. 98)
resume esse esforço da seguinte forma:
As empresas que possuem universidades corporativas fazem um esforço
deliberado, por meio de cursos formais sobre valores, cultura e história da
organização, assim como de ferramentas tecnológicas, para desenvolver um
51 Ver a esse respeito o depoimento “Tell me a Story...” de Judy L. Schueler, Chief Learning Officer,
UCH Academy. The University of Chicago Hospitals, June 2003. Disponível em:
<http://appreciativeinquiry.case.edu>.
52 De acordo com Podsakoff et al. (2000), o levar na esportiva (sense of humor) refere-se à
tolerância sem queixas aos inconvenientes e imposições do trabalho, bem como à capacidade de ter
uma atitude positiva frente às dificuldades.
53 Um indivíduo, neste conceito, apresenta virtude cívica quando participa ativamente na gestão da
organização, monitora o ambiente tendo em vista detectar ameaças e oportunidades e preocupa-se
com os melhores interesses da empresa, mesmo quando isso lhe seja pessoalmente inconveniente.
Ver, sobre isto, Fahr et al. (1990), MacKenzie et al. (1991), Podsakoff et al. (1990) e Podsakoff et al.
(1997) e Podsakoff and MacKenzie (1997).
247
forte sentimento de cidadania corporativa entre todos os membros da força
de trabalho. Em vez de deixar que os funcionários conheçam a empresa por
conta própria, às vezes até mesmo ao acaso, as empresas descritas aqui
consideram o processo de assimilação uma etapa crucial do processo de
formação de uma força de trabalho de primeira qualidade. De muitas
maneiras, esse treinamento é semelhante às práticas de treinamento e
desenvolvimento usadas pelas empresas japonesas, em que treinamento é
amplamente definido como uma maneira de incutir na mente dos
funcionários os princípios da organização.
248
network tais como a Internet e intranets.54 Através desses recursos
tecnológicos, as organizações podem padronizar certos programas, ampliar
a sua área de abrangência, inclusive para pessoas de vários países diferentes,
fornecer conhecimento em tempo real e em qualquer lugar. O que acontece
em decorrência disso é que os profissionais dedicam mais do seu próprio
tempo, seja nos finais de semana, seja à noite em casa ou no hotel, ao
aprendizado de novas qualificações. A aprendizagem passa a ser incorporada
como parte rotineira do dia, esteja o funcionário no escritório ou em
deslocamento.
Também a formação de parcerias, aspecto determinante de vantagem
competitiva na sociedade em rede contemporânea, tem sido uma das
estratégias das universidades corporativas para desenvolver seus
programas. Segundo Meister (1999, p. 170), “várias universidades
corporativas estão provando ser um local eficaz para a formação do tipo
exato de parcerias com fornecedores, clientes, revendedores e atacadistas
necessárias para melhorar a competitividade em geral”. Assim, elas
constituem um veículo eficaz para desenvolver relacionamentos que
“tragam à organização maiores condições de envolver determinados alvos
externos em uma busca conjunta”. Um parceiro importante nesse sentido
são as organizações de ensino superior, cada vez mais envolvidas nos
projetos de universidades corporativas nos países em que essa prática já se
encontra relativamente estabelecida. De acordo com pesquisas sobre
universidades corporativas,55 as organizações buscam universidades
tradicionais que sejam, sobretudo, flexíveis e receptivas em oferecer
programas “sob medida” para as necessidades mais urgentes dessas
organizações. Esses programas são, normalmente, oferecidos em horários
ou em mídias adaptadas aos alunos-alvo, profissionais adultos de tais
organizações. Outras, ainda, associam-se a escolas e universidades
tradicionais financiando as operações em troca do oferecimento de
programas de seu interesse. O que se busca com essa parceria é a
legitimidade dos programas ofertados pelas universidades corporativas
decorrente da participação das universidades tradicionais (ou de alguns de
55 No caso, a Annual Survey of Corporate University Future Directions, realizada anualmente pela
Corporate University Exchange, em 1997.
249
seus membros) nestes programas.
Finalmente, uma das principais preocupações no sentido de definir o
domínio da universidade corporativa é diferenciá-la dos antigos
departamentos de treinamento e desenvolvimento – T&D (MARCONDES;
PAIVA, 2001; ALPERSTEDT, 2001; VITELLI, 2000; VERGARA, 2000).
Embora haja diferenças substanciais entre eles, Alperstedt (2001) admite
que as universidades corporativas podem ser entendidas como evolução
direta da função ou processo de treinamento e desenvolvimento, o que se
considera extremamente evidente. Contudo, um departamento de
treinamento e desenvolvimento tende a ser reativo, descentralizado e serve
a uma ampla audiência, enquanto a universidade corporativa tem
orientação proativa e centralizadora para o encaminhamento de soluções de
aprendizagem para cada negócio dentro da organização. Em outras palavras,
departamentos de treinamento em geral propõem programas de
treinamento na medida em que estes se tornam necessários, sendo muitas
vezes identificada a sua necessidade no contexto de um departamento
específico e cujos tópicos são, na maior parte das vezes, genéricos. Já nas
universidades corporativas, os programas de educação e treinamento são
permanentes e orientados com visão de futuro, antecipando e gerando
necessidade de melhoria, privilegiando os objetivos organizacionais, ainda
que orientado para cada negócio dentro da empresa. Neste sentido, as
universidades corporativas têm um escopo mais estratégico, enquanto que
os departamentos de treinamento são mais táticos (ALPERSTEDT, 2001).
Uma outra diferença que Eboli (1999) destaca é que os tradicionais
departamentos de treinamento voltam-se mais para as habilidades técnicas
imediatamente necessárias ao trabalho, enquanto que as universidades
corporativas não se restringem às habilidades técnicas, envolvendo também
o conhecimento de valores e cultura da corporação, da indústria em que a
empresa opera – fornecedores, clientes e concorrentes, e das competências
básicas do negócio. O Quadro 7.2 resume os principais aspectos que
diferenciam as universidades corporativas dos centros de treinamento
tradicionais.
250
Desenvolver habilidades Objetivo Desenvolver competências
críticas
56 Esta busca da essência é realizada sem a pretensão de se fazer uma análise fenomenológica do
processo, ou seja, evitando certa redução eidética.
(FARIA, 1993 e 2004b, p. 208-209). A tese, neste caso, é a de que as tecnologias introduzidas no
processo de produção, ao mesmo tempo em que qualificam o trabalhador em termos de saber
instrumental o desqualificam em relação ao saber de ofício. Ver, também, nota 12 do Capítulo 2.
253
também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo
é um sistema de poder muitas vezes ilegível (SENNETT, 1999, p. 9-10).
58 Apenas nas últimas reuniões do ENANPAD e em periódicos conhecidos têm aparecido diversas
análises empíricas sobre este tema que confirmam a tese aqui defendida.
254
novas técnicas e novas concepções, foram-se modificando as estratégias de
poder e controle (FARIA, 1985; 2004b; 2004c) e ao adestramento do corpo
foram sendo agregados formas de adestramento da alma, de sequestro da
subjetividade, conforme se encontra demonstrado no Capítulo 2 deste livro.
256
O termo universidade, empregado nestes eventos, é uma depreciação ao
conceito histórico de universidade na constituição da humanidade, ainda que
muitos dos processos de qualificação sejam desenvolvidos tendo por suporte a
mera mercantilização do conhecimento viabilizada pelo ensino realizado por
instituições universitárias. Já a expressão “corporativa” revela que o interesse
da corporação é que se impõe contra os interesses coletivos, que não se trata
de uma construção, mas de uma assimilação, não se trata de questionamento,
mas de aceitação. A prática das universidades corporativas indica que o que se
tem, de fato, é um treinamento corporativo com ares de um simbólico
universitário.
4 Conclusão
260
iniciativa dos membros ou que podem ser planejadas, organizadas, dirigidas
e controladas pela direção. Os processos de qualificação e de aprendizagem
se constituem em uma das formas de exercício da gestão e seu
aperfeiçoamento responde às complexidades do mundo e das próprias
organizações. Treinamento, desenvolvimento e cidadania corporativa são
expressões da evolução do adestramento simples, centrado na tarefa (no
corpo), para uma forma de adestramento complexo, centrado
principalmente nas operações intersubjetivas (na alma).
Não se pode creditar às organizações uma efetividade sem limites, um
domínio sem oposição, uma realidade sem contradições. Mas não se pode
permitir uma ingenuidade tal que não se perceba que se está, nas
organizações, diante de relações de poder e que é apenas neste âmbito que
se pode postular uma pulsão de vida. Crer que os espetáculos dos
adestramentos do corpo e da alma são processos libertários, promotores de
um desenvolvimento que tem como seu objeto o sujeito, é crer em uma
identidade de interesses, em um compartilhamento de desejos, em uma
possibilidade típica das utopias.
Respondendo às questões formuladas no início, pode-se afirmar que ao
examinar os três modelos é possível notar que um conjunto de elementos
permanece, em essência, inalterado, sugerindo a tese de que o que evolui,
efetivamente, são as formas de disseminação da ideologia abraçada pela
organização e os artifícios de que se vale a administração para garantir sua
função de dominação e controle nas relações de poder. Também é possível
afirmar que os programas de capacitação e/ou de formação dos empregados
e dos gestores são estratégias de poder que se modificam e se aperfeiçoam
na medida em que não conseguem mais responder às expectativas da
administração, em que não se constituem em estratégias confiáveis para a
realização dos interesses dos dirigentes.
Os processos aqui examinados sugerem que os três modelos se
apresentam em seu discurso cobertura, em sua aparência conciliadora e
desinteressada, escondendo seus aspectos contraditórios e sua utilidade
como forma de dominação, de controle e de transmissão ideológica. O
sucesso nos círculos acadêmicos e nas organizações de cada um destes
modelos, à sua época, confirmam que, de um modo ou outro, os tempos estão
evoluindo, as formas explicitamente autoritárias de adestramento estão
sendo substituídas pelas modernas formas de sedução, de envolvimento, de
261
adestramento da alma, de valorização de aparências, pois que, como mostra
Enriquez (2000b, p. 31), a sociedade também caminha por este curso e é,
cada vez mais, “uma sociedade onde a aparência triunfa”.
8
Gestão da Qualidade, Subjetividade
262
e Desempenho Organizacional59
José Henrique de Faria
Sidney Nilton de Oliveira
Introdução
263
busque, de alguma forma, desenvolver processos de qualidade em suas
atividades, tanto quanto raramente serão encontrados indivíduos
indiferentes à qualidade de bens e de serviços de que se utilizam, sejam
públicos ou privados. Se a qualidade é um fator indispensável à vida de uma
coletividade, em termos de produção de bens e serviços e de vida e relações
sociais, isto significa que os programas de qualidade, especialmente os de
gestão, são isentos de contradições? Não seria conveniente investigar o lado
encoberto da qualidade, especialmente os programas desenvolvidos para a
gestão de e em organizações?
O objetivo deste capítulo é exatamente o de verificar este outro lado dos
programas de qualidade. Isto não significa dizer que se está postulando uma
vida sem qualidade, produtos e serviços sem qualidade, ensino sem
qualidade, mas que se está buscando encontrar o que não está dito nos
programas que visam alcançar “padrões de qualidade”.
264
Como um valor atribuído por um observador em determinadas condições, o
termo refere-se à avaliação que este observador elabora do objeto, baseada em
critérios culturais, intelectuais, afetivos, ideológicos, dentre outros.
267
média e a alta gerência, que se formam os consultores organizacionais e os que
desenvolvem programas de gestão, normalmente financiados por entidades ou
agências cujos fundos provêm dos diferentes capitais. É também aí que foram e
continuam sendo concebidos e desenvolvidos programas de gestão de
organizações, entre os quais os de qualidade implantados nos setores
produtivos.
268
principalmente, dos próprios conflitos fundamentais (das relações entre as
classes sociais).
A Escola de Relações Humanas guarda-se também na aparente
neutralidade do seu humanismo e acredita que a organização é capaz de
saber o que pode ser bom e o que pode ser ruim. Imaginariamente, a
organização assume uma conotação materna que determina de modo
afetuoso e decisivo o caminho que seu filho deve seguir, ou seja, o que é bom,
natural e verdadeiro para seguir e obedecer. A gestão organizacional é
exercida segundo esses princípios, acreditando-se capaz de viabilizar uma
colaboração construtiva e espontânea dos trabalhadores, por meio de
estímulos psicológicos e sociais (OLIVEIRA, 1998).
O controle psicológico do desempenho do trabalhador passou a ser – a
partir da década de sessenta – um fator importante para as concepções
gerenciais modernas. As práticas gerenciais procuraram, na maioria das
vezes, desenvolver análises mais críticas à direção taylorista, mas a maioria
delas insistia no controle do comportamento como fundamental para a
produtividade desejada.
269
produção em massa. A evolução do conceito inicia-se com a verificação da
qualidade de produtos e serviços até atingir o status de concepção gerencial.
Em toda essa trajetória percorrida pela qualidade uma preocupação sempre
a acompanhou: o desenvolvimento da produção e da competitividade tendo
como referência as leis de mercado, visando à sobrevivência da própria
organização, a obtenção do lucro e a manutenção dos valores hegemônicos
do capital.
O marco inicial da era da qualidade se dá com o surgimento do controle
de qualidade, proposto por Shewhart na Inglaterra durante a década de
1930. A concepção inicial de qualidade mostrou-se predominantemente
positivista. O principal instrumento utilizado por Shewhart (ISHIKAWA,
1993) era uma escala de análise de erros e desvios no desempenho do
padrão preestabelecido. Essa escala media a frequência dos erros e desvios
existentes, para posterior investigação causal.
Como se pode notar em toda a literatura sobre o tema, desde seu início
a qualidade, no contexto industrial, tem claro seu objetivo maior: aumentar
a produtividade por meio do controle do processo produtivo. Até a metade
deste século, pode-se dizer que a qualidade constituía-se em um
instrumento que o administrador poderia utilizar para melhorar o seu
produto e, ao mesmo tempo, aumentar a produtividade de sua indústria. A
afirmação de Shewhart foi elaborada nessa direção, ao instrumentalizar,
estatisticamente, a dinâmica industrial.
Na década de 1950, os EUA lideravam a crescente industrialização,
principalmente nas indústrias automobilísticas, das primeiras a superar a
crise de 1929. Nessa época, atinge-se o auge da produção de massa, o que
significava a necessidade de gerir grandes empresas, com grande número de
trabalhadores. Com a complexidade industrial e a necessidade de
crescimento global do capitalismo, foi se percebendo cada vez mais a
inoperância das bases administrativas constantes da Organização Científica
do Trabalho (FARIA, 1992).
O desenvolvimento industrial ampliou consideravelmente a
necessidade de uma política de recursos humanos cada vez mais eficiente. A
gestão dos recursos humanos na indústria acompanhou essas modificações,
abandonando as teses mais mecanicistas e positivistas e desenvolvendo ou
apropriando-se de teorias que dessem conta da subjetividade do
comportamento humano no trabalho, como por exemplo, a motivação, a
270
liderança e as relações humanas, dentre outros fatores.
A gestão pela qualidade, antes de ser um modelo japonês, como alguns analistas
mais afoitos supunham, é tão-somente um sistema de trabalho cooperativo,
com decisões descentralizadas e delegação de responsabilidade. Os grupos de
controle de qualidade são autônomos em relação às suas tarefas e, algumas
vezes, decidem coletivamente os destinos da produção imediata.
276
resultado o estabelecimento da onipotência imaginária, da denegação da
morte e da legitimidade da vida como estruturas estáveis da existência
humana nas organizações, não dando mais lugar nem para o sonho, nem
para o desejo.
8 Conclusão
1.
Não há quem não deseje adquirir um produto com a melhor qualidade
possível. Não se pode pensar que o elevador que se usa não passou por um
277
controle de qualidade. O mesmo vale para um automóvel, um ônibus ou um
avião. É normal que uma pessoa tenha receio de fazer uma viagem aérea se
souber que o processo ou os equipamentos de controle de voo não oferecem
100% de qualidade na prestação deste serviço. Como enfrentar, então, a
contradição entre a necessária produção com qualidade e o uso de
programas de qualidade para fins de competição, aumento de
produtividade, incremento do controle, estabelecimento de
comportamentos padronizados, aumento nos lucros? Como resolver a
questão das exigências coletivas de qualidade versus interesses
particulares de obter ganhos com programas de qualidade em que o aspecto
coletivo é apenas um “mercado” e não o lado humano do processo?
2.
Uma gestão de qualidade pressupõe que sejam atingidos determinados
objetivos, os quais são avaliados através de indicadores. Estes programas
cobrem o conjunto das atividades das organizações e todos os
“colaboradores”, como o nome está dizendo, devem colaborar. Mas quem
define quais são os padrões de qualidade? Por que os padrões são aqueles e
não outros? Como os empregados participam (ou não) da definição dos
padrões de qualidade, ou seja, até que nível da hierarquia eles podem
participar e influenciar?
278
Parte III
O NOVO SINDICALISMO E A
SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL
9
A Fase do Colaboracionismo:
279
a Nova Prática Sindical60
José Henrique de Faria
Introdução
60 Texto originalmente apresentado no XXIV ENANPAD, em 2005. O autor agradece a CAPES pelo
apoio durante a realização do Programa de Pós-Doutorado na University of Michigan, no qual, a partir
da pesquisa lá efetuada (FARIA, 2003), este capítulo foi produzido.
280
o conteúdo do trabalho. É neste contexto que surge o taylorismo e sua
conhecida proposta de divisão entre o trabalho mental, que é próprio dos
gestores e especialistas, e o trabalho manual, que é próprio dos operários e
que deve ser realizado segundo orientações que lhes são hierarquicamente
determinadas. O conhecimento, dos gerentes e técnicos especializados, deve
ser realizado segundo procedimentos “científicos”, o que somente se torna
viável na medida em que o mesmo é expropriado do trabalhador por meio
de estudos específicos. Em outros termos, através desta estrutura gerencial,
os capitalistas reforçam o sistema de controle sobre o processo de trabalho
e sobre os trabalhadores, pois ampliam o domínio sobre as relações de
posse, particularmente sobre o conteúdo do trabalho: o saber operário é
apropriado “cientificamente” pelo capital. O taylorismo, em sua versão
primeira de estudo de tempos e movimentos, é intensamente utilizado na
produção caracterizada por trabalho repetitivo e na produção em massa nas
linhas de montagem que caracterizam o fordismo.
Ao mesmo tempo em que o taylorismo-fordismo, em seu sentido
gerencial, se aperfeiçoa e as organizações crescem, a acumulação ampliada
do capital, resultante de sua capacidade de geração de valor excedente,
atravessa períodos de crise. Nestas crises de acumulação o capital produtivo
deixa de ser a exclusiva fonte de investimento produtivo para dar lugar a
outros capitais (capitais de terceiros), especialmente o financeiro
(empréstimos) e o do mercado de ações. Juntamente com estes capitais vem
a especulação e os juros e, deste modo, o capitalismo industrial assiste à
criação de novas relações de propriedade: propriedade pela posse de ações
com e sem direito a voto. Dito de outro modo, o capitalismo entra em um
estágio em que a propriedade legal dos meios de produção não significa
necessariamente sua propriedade real. Como a propriedade legal e a efetiva
(real) podem se encontrar sob controle de diferentes grupos, é possível que
a direção executiva da organização (que detém a propriedade real), sequer
seja proprietária legal, mas composta por profissionais do mercado.
Seja na fase do capitalismo monopolista, seja na fase do neoliberalismo,
enquanto mecanismo regulador da acumulação global, e de sua
reestruturação produtiva, o elemento mais importante para a compreensão
das relações de poder e das formas de controle nas organizações e que afeta
diretamente as relações de trabalho e de gestão dos processos de trabalho,
é o desenvolvimento das forças produtivas. De fato, o exame da evolução e
expansão das forças produtivas é fundamental para compreender as
281
modificações que se operam nas relações de
produção e no modo de produção, na medida em que a determinado nível
de desenvolvimento das forças produtivas correspondem determinadas
relações de
produção.
Os instrumentos de trabalho têm sofrido modificações importantes,
especialmente com a introdução de tecnologias de base microeletrônica no
processo produtivo. Tais modificações têm afetado o processo de trabalho e
de produção bem como as tecnologias de gestão e de produto (FARIA, 1992;
KATZ; BRAGA, 1995; TEIXEIRA; OLIVEIRA, 1998; ANTUNES, 1999,
GORENDER, 1999), inclusive do ponto de vista da subjetividade operária
(LEITE, 1994), da saúde, do sofrimento e das relações psicossociais que se
operam nas unidades produtivas (CODO et al., 1998; DEJOURS et al., 1994;
DEJOURS, 1996; 1999; SENNET, 1999; MOTTA, 2000). Isto não significa que
tais tecnologias sejam determinantes dessas transformações, pois elas
compõem o desenvolvimento das forças produtivas, mas não há dúvida que
as mesmas representam um aspecto importantíssimo nas modificações que
ocorrem no processo de trabalho industrial.
O aparecimento das novas tecnologias, como já mencionado, é
consequência de dois fatores conjugados: o primeiro é o esgotamento dos
métodos tayloristas e fordistas originais da organização do trabalho,
enquanto formas de viabilização da acumulação ampliada do capital; o
segundo, é a mudança nos padrões da concorrência decorrente das crises
econômicas que se opera em nível mundial. De fato, as novas tecnologias
surgiram no final da década de 1970 em uma época marcada pela crise
econômica que assolou as economias dos países capitalistas avançados, as
quais experimentaram redução da produtividade gerada pelos limites da
eficácia dos métodos da organização do trabalho baseados no taylorismo e
no fordismo. Esse “paradigma”, segundo Coriat (1988), entra em crise
quando se depara com dois fatos novos: (i) a instabilidade social
engendrada pela própria Organização Científica do Trabalho (decorrente da
desqualificação em massa do trabalhador, associada à grande intensificação
do ritmo do trabalho e, muitas vezes, das más condições deste); (ii) o grau
de sofisticação alcançado pela técnica para o qual a linha taylorista-fordista
tornou-se contraproducente devido ao excesso de tempos mortos e de
tempos improdutivos despendidos em técnicas complexas de
balanceamento das cadeias de produção.
282
O controle sobre o processo de trabalho no capitalismo assume, portanto, três
fases cumulativas: (i) simples, cuja ênfase é principalmente, mas não
exclusivamente, sobre a divisão técnica do trabalho, a jornada de trabalho e a
quantidade produzida; (ii) expandida, cuja ênfase é principalmente, mas não
exclusivamente, sobre a função da produção (relação tempo e movimento),
caracterizada pela divisão entre trabalho manual e trabalho mental e pela
centralização da autoridade em uma cadeia de comando burocrática. Esta fase
é conhecida como taylorismo-fordismo; (iii) sofisticada, cuja ênfase é
principalmente, mas não exclusivamente, sobre a subjetividade dos
trabalhadores pela atribuição de responsabilidades e criação de equipes
participativas de trabalho, caracterizada pela diminuição na cadeia de comando
e pela centralização da autoridade nas gerências. Esta fase é conhecida como
toyotismo, produção enxuta, produção flexível (FARIA, 2004b).
61 O autor agradece à pesquisadora Jane Slaughter, Diretora do Labor Notes, em Detroit, pelo acesso
aos documentos completos (apenas parte do acordo foi tornado público) e pelas informações
repassadas nos diversos encontros de discussão e entrevistas, que permitiram que este estudo
pudesse ser realizado. Agradece, igualmente, a Mike Parker, pesquisador e membro da UAW, pelas
informações sobre o processo que resultou no acordo mencionado, repassadas também em
entrevistas e encontros de discussão, e ao Prof. Steve Babson, da University of Wayne, em Detroit,
pelas indicações acerca dos resultados do acordo. Agradece também ao Prof. Ian E. Robinson, do
Institute of Labor and Industrial Relations, da University of Michigan, pela orientação e pelos contatos
com os demais pesquisadores, bem como aos trabalhadores que, em vários encontros e
oportunidades, se dispuseram a conceder entrevistas.
62 Para maiores detalhes sobre esta análise, ver Faria (2004, Vol. 2).
284
um equívoco supor que se tratam de três paradigmas distintos e
especialmente é um equívoco atribuir à fase contemporânea de acumulação
o conceito de pós-fordista, pós-industrial ou pós-moderna. São formas
diferentes de expressão que caracterizam fases de um mesmo processo
capitalista de acumulação e estratégias de controle sobre a organização do
trabalho e sobre os trabalhadores.
Na primeira fase, devido ao conhecimento dos trabalhadores e à sua
qualificação para realizar o trabalho, a conclusão da montagem dos produtos
dependia quase que inteiramente deles. Os trabalhadores não podiam ser
imediatamente substituídos e, ainda que existissem imperfeições e
necessidade de ajustes, o trabalho não podia ser dividido, tendo que
permanecer unitário. Os trabalhadores, necessariamente, tinham que
conhecer cada parte do trabalho e ajustavam-nas de acordo com os
procedimentos que eles entendiam procedentes, o que lhes permitia o
controle sobre o processo e o ritmo de trabalho, sendo praticamente
impossível ao capitalista ou ao capataz dar comandos específicos sobre o
que devia ser feito, como devia ser feito e em que velocidade devia ser feito.
Como os trabalhadores conheciam, igualmente, detalhes de operação dos
objetos de trabalho (máquinas, equipamentos, ferramentas), o controle pelo
capitalista era discricionário, especialmente sobre o tempo e os
movimentos, e a supervisão era difícil. O conhecimento do trabalho dava, aos
trabalhadores, condições de resistência e de enfrentamento com os
capitalistas que, enfim, apenas podiam controlar efetivamente a divisão
técnica do trabalho, extensão da jornada de trabalho e a quantidade final a
ser produzida (GARTMAN, 2002).
Na segunda fase, entra em cena a Organização Científica do Trabalho
(OCT). O taylorismo é o primeiro método que identifica as atividades da
manufatura discreta e as integra em um sistema de produção organizado.
Tal sistema permite, pela decomposição das tarefas em tempos e
movimentos, não apenas definir a “melhor maneira de produzir”, mas
subsidiar as gerências com um padrão de avaliação e controle do trabalho e
dos trabalhadores. Os capitalistas deslocam as informações obtidas na
produção, a partir do saber operário, para os escritórios de engenharia,
planejamento e métodos, nos quais as regras da organização do trabalho são
desenvolvidas. Os gerentes passam a ser encarregados de implementar as
285
regras e de assegurar que os trabalhadores as cumpram.
O taylorismo alcança sua configuração mais avançada quando aplicado
à linha de montagem fordista, pois neste estágio, a que corresponde o
taylorismo-fordismo (a base da OCT), o controle não apenas encontra-se nas
gerências, mas é centralizado em toda a cadeia de comando constituída para
garantir o funcionamento do conjunto das atividades parcelares e, o que é
mais importante, o saber operário é transferido para as máquinas. Cria-se,
nesta fase, uma estrutura hierárquica de diversos níveis e o sistema de
controle vai dos escritórios para a imensa cadeia burocrática (PRECHEL,
2002; CLAWSON, 1980). Do mesmo modo, a mecanização do processo de
produção se dá pela incorporação das diversas tarefas na linha de montagem
e pela especialização das atividades, reforçando a exigência de uma extensa
estrutura hierárquica.
A terceira fase, chamada de toyotismo, é de fato uma fase neo-taylorista-
fordista, pois continua tendo sua base nos princípios da OCT e, com mais
eficácia, apropria-se do saber operário e o transfere para os softwares das
máquinas (robô industrial, máquina ferramenta de controle numérico
computadorizado, CAD/CAE, Auto CAD). Trata-se de um taylorismo-
fordismo na era da globalização (FARIA, 1992; PRECHEL, 2002b). A
produção enxuta (neo-taylorismo-fordismo) computadoriza o fluxo de
informações do chão de fábrica com o objetivo de reforçar o sistema de
controle, tornando possível eliminar diversos níveis gerenciais e reduzir a
autoridade no processo de decisão dos gerentes de primeira linha e da
média gerência. Para efetivar a apropriação do saber operário e reduzir os
níveis da cadeia de comando, a organização capitalista do trabalho em sua
fase contemporânea vai implementar estratégias de participação, através de
equipes de trabalho e de atribuição de responsabilidades aos trabalhadores
(sem a correspondente atribuição de autoridade) pela melhoria das tarefas
(Kaizen). As sugestões individuais e coletivas dos trabalhadores e a
competição entre as equipes, sustentadas objetiva e subjetivamente em
programas de envolvimento, comprometimento e identificação com a
empresa, colocam o conhecimento específico do operário ao alcance da alta
gerência.
A mudança de cada uma das fases não se dá ao acaso, mas decorre ao
mesmo tempo de uma crise de acumulação e do desenvolvimento de formas
mais eficazes de resistência operária aos mecanismos de controle e
286
exploração. Sobre a resistência, ao longo de cada fase, de fato, desenvolvem-
se mecanismos mais efetivos de controle por parte do capital e, para estes,
movimentos mais efetivos de resistência, os quais requerem, dos capitalistas
e seus gestores, outros mecanismos de controle e assim sucessivamente, em
um processo histórico contínuo e dialético. A capacidade acumulada da
classe trabalhadora e seu potencial de luta também enfrentam estratégias
do capital que se operam politicamente, pelo fracionamento de classe
(jogando um sindicato contra o outro e/ou trabalhadores de um país/região
contra outro), e economicamente, pela dispersão da instalação de plantas
fabris, pela nova divisão internacional do trabalho e pela
transnacionalização do capital (BINA; DAVIS, 2002). Este processo de luta
constitui o motor do desenvolvimento das forças produtivas.
Com efeito, pesquisas recentes têm demonstrado que as mudanças
globais configuradas em um modelo neoliberal que estruturam os novos
arranjos decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas,
constituindo a atual face da globalização, derivam não apenas de uma
reestruturação da produção e de uma
mudança dos processos tornando-os mais flexíveis, mas principalmente de
uma nova composição de forças ou, mais propriamente, de novas relações
de poder que afetam tanto o trabalho realizado, em termos de condições e
de procedimentos, como as expectativas de emprego (BERBEROGLU,
2002a). Historicamente, a força de trabalho, como se sabe (MÉSZÀROS,
2002), interage dinâmica e contraditoriamente com o desenvolvimento das
forças produtivas, na medida em que se constitui em um de seus
componentes. Tal interação não se dá simplesmente como decorrente da
inserção de unidades de força de trabalho na produção, mas como relação,
mais apropriadamente, como relação social de trabalho. Este é o motivo pelo
qual, ao se analisar as práticas de controle no capitalismo contemporâneo,
de produção flexível e de sistemas ou tecnologias de gestão mais
sofisticados, torna-se necessário considerar diversos fatores, de natureza
objetiva e subjetiva. Esta forma contemporânea do capitalismo, em sua
versão flexível, se dá no âmbito do recente processo de globalização, como
já anunciara Marx (1946) ao referir-se ao capital social total e à totalidade
de trabalho, pois o sistema de capital somente pode ser global, dado que sua
natureza não é compatível com qualquer restrição à sua expansão.
Mas nem toda a prática de controle cabe nos discursos, razão pela qual
as mesmas utilizar-se-ão de mecanismos não-ditos, que não podem ser
287
pronunciados às claras. Mesmo as teorias que autorizam o controle nas
organizações e que o legitima, servem como esconderijos conceituais63 das
estratégias de poder que se instituem nas relações de trabalho. É
exatamente aí que se deve fazer as leituras sobre as formas e processos de
controle no capitalismo contemporâneo, particularmente nas organizações
que se encontram no núcleo do desenvolvimento tecnológico (físico e de
gestão).
2
O capitalismo global e a produção enxuta (lean production):
a sofisticação do controle
288
de uma alegada neutralidade, as tecnologias do início do capitalismo
moderno e a burocracia nas fábricas foram instrumentos usados pelo
capitalismo para assegurar o processo de controle sobre o trabalho. Sua
conclusão é reforçada pela forma como a ideologia do capital se coloca sobre
as relações de trabalho. Com efeito, em um estudo considerado clássico
chamado “Trabalho e Autoridade na Indústria”, Bendix (1963), que apesar
do título de seu livro não trata nem de trabalho e nem de autoridade, dedica
sete capítulos ao tema da ideologia gerencialista ou, em suas palavras, às
idéias e interesses daqueles que gerenciam a força de trabalho e os negócios
das empresas desde a Revolução Industrial. Só por aí se pode perceber a
importância do tema para a formação da intelligentsia do sistema de capital.
O novo cenário das linhas de produção enxuta, considerado o caminho
mais adequado e promissor para o capitalismo contemporâneo (WOMACK;
JONES; ROSS, 1990), de saída afeta objetivamente o emprego industrial
mesmo em economias desenvolvidas. De acordo com o Bureau of Labor
Statistics de 2003, entre os anos de 2001 e 2003 houve uma redução de cerca
de 3 milhões de postos de trabalho na indústria americana.64 Em Michigan,
Estado em que 25% da força de trabalho encontra-se no setor industrial e em
que se concentram as maiores indústrias automobilísticas, foram perdidos
380 mil empregos no período, sendo 82 mil apenas em 2003. As empresas
automobilísticas de Michigan, antes chamadas de “As Três Gigantes”
(General Motors Corp.; Ford Motor Co.; DaimlerChrysler AG), estão
perdendo mercado para as concorrentes asiáticas e europeias. Somente a
General Motors, que já chegou a dominar, com suas subsidiárias, cerca de
50% do mercado mundial de veículos, detinha 28% em 2003 (índice que se
manteve estável nos anos considerados). Os fabricantes estrangeiros, por
seu turno, controlavam mais da metade do mercado de veículos de passeio
e 25% do de caminhões e ônibus dos EUA no mesmo ano. A Toyota Motor
Co. encaminhava-se, já em 2003, para se tornar a segunda maior empresa
fabricante de veículos automotivos do mundo, superando a Ford. Ao mesmo
tempo, Toyota, Hyundai, Mercedes Benz e outras empresas da mesma área
64 Esta tendência também pode ser percebida nos dados do Handbook of U.S. Labor Statistics, de
2003. A título de ilustração, levantamento conduzido pelo Grupo de Indústria e Competitividade do
Instituto de Economia da UFRJ, em 2003, mostra que a introdução de tecnologia no processo
produtivo, especialmente nos setores agropecuário e industrial (manufatura), eliminou cerca de 10,8
milhões de empregos entre 1990 e 2001.
289
de atividades estavam construindo novas fábricas no sul dos EUA, baseadas
no sistema de Lean Production. Isto significa que, em função da exigência do
just in time e em função da competitividade entre os fornecedores de peças
e componentes, os fabricantes de peças já tendiam a deslocar-se para
regiões mais próximas da produção de veículos, pois no preço de suas
mercadorias o transporte não podia ser um fator de perda de mercado. Com
estas empresas seguiu a força de trabalho qualificada, em uma migração
interna de trabalhadores (HAGLUND, 2003).
Como já foi indicado, o modelo de produção flexível, também chamado
de neo-fordismo “humanizado”, passa a se expandir na segunda metade de
década de 1970, baseado nas idéias de enriquecimento e alargamento do
trabalho e
reestruturação da linha de produção. Tal modelo tem como princípios o
aumento: (i) da participação dos trabalhadores na decisão; (ii) da variedade
do trabalho (cujo objetivo é diminuir a monotonia típica da linha de
produção em massa); (iii) do uso efetivo dos potenciais dos trabalhadores.
A ideia, segundo pesquisa realizada por Graham (1995), é dar significado e
propósito às funções individuais no trabalho, induzir o senso de pertença e
de vinculação como membro de uma comunidade de trabalho, o senso de
controle sobre o trabalho alheio (controle sobre os próprios trabalhadores)
e a oportunidade de autoqualificarão. A viabilização deste novo modelo de
produção demanda a renovação de tecnologias de gestão e a adoção de
programas específicos, tais como Qualidade de Vida no Trabalho, Controle
Total de Qualidade, Universidade Corporativa, Desenvolvimento de
Competências, entre outros.65
De acordo com Babson (1999, p. 47-50), a produção enxuta ou flexível
adotada nas três maiores indústrias automobilísticas americanas (GM, Ford
e DaimlerChrysler), possui um cardápio de elementos que compõem a
organização técnica e a organização social, os quais são entrelaçados e
interdependentes (Quadro 9.1). Ainda que todas as atividades estejam, de
alguma forma, presentes no processo, há uma correlação entre aquelas que
possuem maior grau de dependência. A ênfase na Qualidade do Posto de
Trabalho, por exemplo, é fortemente realçada no Projeto de Simplificação de
Manufatura, imperativo técnico que, por seu turno, incorpora a avaliação
290
dos trabalhadores a partir do Desenvolvimento Contínuo das Tarefas, a qual
é acentuada pelo Controle Visual que é enfatizado pelo uso de Símbolos de
Solidariedade com a Empresa. Mas, se uma parte do processo requer a
utilização de Linhas de Montagem, é realçado o Processo Estatístico de
Controle.
291
(reparos, manutenção e inclusive descanso)
Descentralização de estoques
Fonte: Babson (1999). Elaboração de JHF.
66 Conforme pode ser encontrado em reportagens publicadas pelo Labor Notes nas pesquisas
referidas ao longo deste capítulo.
294
vídeos institucionais e em quadros que explicitam a missão e que
superestimam a organização;
ii. promoção de seminários, treinamentos e programas que visam
estabelecer uma integração entre o trabalhador e a empresa,
através de sistema de benefícios vinculados a atitudes
reconhecidas como adequadas, torneios esportivos, interação da
família com a empresa (visitas etc.) e clubes recreativos;
iii. promoção e divulgação da imagem e do percurso histórico da
empresa;
iv. unificação da “história oficialmente aceita”, para que todos falem
a mesma linguagem e desenvolvam um sentimento positivo por
fazer parte de tal trajetória;
v. divulgação permanente dos valores, da missão, dos objetivos e
do modo de ser da organização;
vi. introjeção e reprodução dos valores da empresa;
vii. um sistema formal de divulgação das concepções (modo de ser)
da organização;
viii. envolvimento dos trabalhadores em programas e projetos que
permitam assimilar e reproduzir as concepções da organização;
ix. utilização de mecanismos específicos formais gerais e diretos
(inclusive personalizados) de divulgação, assimilação e
reprodução do modo de ser da organização;
x. adoção de um discurso padrão da organização (palavras de
ordem, lemas, formas de exaltação, formas de descrição),
geralmente idealizado;
xi. adoção de estratégias de proteção contra as ameaças da
realidade;
xii. elaboração de cenários hostis, de forma a garantir que a
organização faz o que pode diante das circunstâncias e que,
apesar de tudo, é o lugar mais seguro para os trabalhadores que
se submetam aos seus desígnios.
Neste sentido, a “etapa da socialização baseia-se num esforço intenso
de inculcação da ideologia da empresa, sobretudo, pela exploração de
295
elementos simbólicos como missão, marca, hino, personagens (e também)
empreendem um alinhamento de valores nos novos membros” (LEAL,
2003). A introdução do novo modelo de produção gera uma percepção
complexa e ambivalente dos empregados. Com efeito, ao estudar a alteração
do modelo fordista tradicional para a produção enxuta em uma empresa
automobilística americana, Milkman (1997) mostra que os trabalhadores,
enquanto reconhecem que o novo modelo oferece melhores condições de
trabalho se comparado com o anterior, percebem que são vítimas do
mesmo quando avaliam a perda de sua força política coletiva. Do mesmo
modo, percebem que, com o tempo, o novo modelo passa a ser igualmente
aborrecido e rotinizado, o que cria uma reserva de ressentimentos,
frustrações e desapontamentos. A introdução da nova tecnologia física e de
gestão no processo de produção, portanto, elimina muitos tipos de tarefas
perigosas, mas, ao mesmo tempo, muitos tipos de tarefas desejadas pelos
trabalhadores (MILKMAN, 1997, p. 138).
A alienação, na produção enxuta, implica em que a apropriação dos
novos resultados pela organização produtiva continua sendo percebida
como processo natural, em que se mantém a afirmação de que a posse e a
propriedade dos produtos pertencem à empresa como um direito natural e
em que ao trabalhador cabe a cessão do trabalho competente e a adoção do
comportamento adequado.
296
programas de premiação por produtividade, (vi) destituição material dos
resultados individuais de produção, (vii) apropriação cada vez mais
significativa de resultados pela empresa, (viii) criação de incentivo ao melhor
desempenho (eficiência, eficácia, produtividade) devido a ameaças reais
(flexibilidade da jornada, terceirização, subcontratação).
67 Expressão devida à Bourdieu. Ver, especialmente, Bourdieu (1998, cap. 3) em que o autor trata
da gênese do conceito.
298
Esta forma de atuação não é uma característica do modelo taylorista-
fordista e tampouco do modelo flexível, mas da organização capitalista do
trabalho. Com efeito, ao examinar a experiência da indústria
automobilística sueca em comparação com o modelo japonês de produção
enxuta, Berggen (1992, p. 29) afirma que o toyotismo não é uma versão
democrática do taylorismo, mas sua completa extensão. Em sua análise, o
modelo sueco representaria a produção pós-enxuta e estaria mais próximo
da “humanização”. Ao verificar os elementos que compõe tal diferença,
contudo, não é difícil perceber que, em termos de controle pela gerência
sobre o processo de trabalho, as questões de fundo permanecem e que, de
novo, trata-se apenas de uma distinção aparente, como se pode observar no
Quadro 9.2.
299
radicalmente na montagem completa.
68 É importante considerar que a resistência operária também se aperfeiçoa, embora ainda não
300
mudanças identificadas pelos otimistas podem significar muitas coisas,
inclusive a continuidade e o aperfeiçoamento do fordismo (TOMANEY,
1994). Os trabalhadores, por seu turno, percebem o processo como
estressante e desenvolvem diversos mecanismos individuais e coletivos
explícitos (protestos, reuniões, cartas) e ocultos (sabotagem) (MILKMAN,
1997; GRAHAM, 1995).
É neste sentido que, quando interessa à empresa em termos de
resultados, a mesma pode adotar ou modelos mais flexíveis ou mais formais.
Nas negociações trabalhistas com os operários, por exemplo, a comunicação
não é realizada de acordo com os pressupostos da democratização, mas é
expressa em linguagem técnica e jurídica, o que dificulta a participação e as
discussões (GRENIER, 1988, p. 119). Para viabilizar o controle, do ponto de
vista gerencial, é necessária a aceitação das normas como parte da vida da
empresa (“sempre foi assim, desde a fundação”), uma determinada
obediência às “leis naturais” elaboradas desde a fundação, a qual é baseada
na crença na infalibilidade das normas. Através da aceitação da estrutura
das normas como prática do sistema social, a organização espera obter a
regulação das condutas em suas estruturas, tratando o estatuto social como
sistema de leis.
Desde que se defina a neutralidade do sistema de regramento (estatuto),
pode-se esperar o condicionamento de atitudes ao permitido nas normas a
partir de procedimentos de caráter individual ou coletivo, a crença na
capacidade formal da regra como garantia de estabilidade e certeza, a
manutenção de um sistema de regras tipicamente genéticas (que se
acumulam desde sua gênese) e a crença nas regras como mandamento do
amor divino (histórico). A estrutura normativa do controle permite a
definição das unidades e equipes de trabalho como o lugar preferencial do
afeto, a assimilação de valores pelos sujeitos como parte de si e a
interiorização de um conjunto de códigos não formais, mas que exigem um
trabalho eficiente de acordo com as normas. Tal estrutura tem, igualmente,
a tendência a abarcar os grupos na estrutura formal para vigiar seus
movimentos. Desta maneira, o caráter normativo do controle procura agir
no plano formal e no subjetivo, deve tratar do que é individual e do que é
coletivo, deve garantir o que já se encontra instituído e rever as regras de
301
manutenção e transformação de acordo com os padrões de competitividade.
Este mesmo caráter, que se assenta em uma relação diferenciada e desigual
entre capital e trabalho, afeta os termos dos contratos de trabalho, os quais
dependem mais de um processo histórico e de uma estrutura cultural, do
que de questões imediatas como qualidade e eficiência (TILLY; TILLY,
1998).
Garantida por um sistema normativo, a empresa pode se propor uma
participação. A participação, contudo, é uma forma de controle, tanto que
estes programas estão entre as mais altas prioridades gerenciais
(TRAGTENBERG, 1980). Como aponta Grenier (1988, p. 126-131) em sua
pesquisa, trata-se de uma concepção tradicional de participação, através de
equipes e grupos de trabalho, cujas finalidades são: (i) conter o ímpeto de
reivindicação dos trabalhadores e manter as prerrogativas gerenciais; (ii)
aumentar a eficiência produtiva da empresa: (iii) permitir a cooptação das
lideranças dos trabalhadores na fábrica, incrementando o controle
gerencial. Em linhas gerais, o modelo participativo exige sofisticação,
eficiência e sutileza e é atrelado ao modelo flexível de controle.
Embora submetida a diversas inovações, a estrutura do trabalho
industrial ainda depende da qualificação e da posição na hierarquia do
supervisor de ofício ou do líder escolhido, qualquer que seja o critério de
escolha. Deste modo, as políticas gerenciais, em longa medida, se direcionam
à redução do poder dos trabalhadores sobre suas condições dentro e fora da
fábrica. A capacidade da gerência em degradar e racionalizar o processo de
trabalho depende de sua habilidade em dividir, desmoralizar e cooptar os
trabalhadores (BRECHER, 1979, p. 227), para o que a estratégia
participativa cumpre um importante papel.
As dimensões do controle ajudam a criar uma submissão às normas e
objetivos da empresa. Porém, cada dimensão contradiz a ideia de igualdade
apregoada no modelo de produção enxuta: (i) o controle direto do líder do
grupo provoca ressentimentos entre os membros do mesmo; (ii) o uso
intencional de pressão dos pares potencialmente enfraquece a
solidariedade; (iii) o sistema kaizen não resulta necessariamente em maior
eficiência; (iv) a crença em um fordismo tecnicamente mais avançado de
organização do trabalho, em que a linha de montagem é controlada por
computador e adota produção just in time, constitui-se em uma barreira à
cooperação, igualdade e honestidade (GRAHAM, 1995, p. 114).
302
As empresas, contudo, adotam o modelo participativo não porque se
trata de humanizar o trabalho, mas porque esta pode ser uma forma de
melhorar seus resultados (FARIA, 1992). O objetivo do controle, neste
sentido é a constituição de um sistema de avaliação do resultado como
medida de eficiência, de valorização de metas alcançadas. Para tanto, serão
enfatizados mecanismos objetivos e subjetivos, tais como: (i)
reconhecimento pelo sucesso (premiações etc.); (ii) relação entre
produtividade e recompensa; (iii) estímulo à competição interna
regulamentada; (iv) flexibilidade na organização da produção; (v) definição
e estabelecimento de metas individuais e/ou por grupos/equipes de
trabalho; (vi) intensificação do trabalho (stress); (vii) adoção de programas
de inovação tecnológica e de aumento da produtividade; (viii) subordinação
às exigências e determinações externas (“variáveis ambientais”, mercado,
governo etc.); (ix) assimilação dos valores competitivos; (x) valorização da
imagem competitiva; (xi) disseminação da ideologia do sucesso e da
“partilha” do sucesso; (xii) elaboração da competência como valor amoroso;
(xiii) identificação entre regras sociais e ilusões (fantasias e crenças); (xiv)
medo de atitudes vacilantes e ao mesmo tempo de atitudes inovadoras; (xv)
incorporação, pelo grupo, dos valores competitivos estimulados por
treinamentos e exercícios; (xvi) cumplicidade com as metas estabelecidas e
aceitação de compromissos por parte do trabalhador. Este processo de
controle de resultados inicia-se já no processo de seleção dos trabalhadores.
Seleção, orientação e treinamento, conceito de equipe, filosofia kaizen e
igualdade, enfatizam os traços do controle social do “modelo japonês”. A
estes, agregam-se o controle técnico do trabalho, o qual se efetiva pela linha
de montagem computadorizada e pelo sistema just in time. Controles sociais
e técnicos associam-se para “acorrentar” psicologicamente os trabalhadores
na linha e obter deles melhores resultados (GRAHAM, 1995, p. 112-113).
O objetivo da participação dos trabalhadores é precisamente aumentar a
produtividade e a qualidade mobilizando o próprio conhecimento dos
trabalhadores sobre o processo de trabalho e aumentando sua motivação e
seu comprometimento com o trabalho. Ao contrário de oferecer uma
alternativa “humana” ao taylorismo, o novo modelo é uma forma de
supertaylorismo (PARKER; SLAUGHTER, 1988, p. 19).
O conceito de time (team) passa a ser a base da estrutura do sistema
hegemônico de controle (BURAWOY, 1985). No nível individual, implica em
303
autodisciplina, em internalização das responsabilidades como membro de
um grupo de trabalho. No nível de interação, se a autodisciplina falha, inicia-
se um processo de pressão dos pares ou de ajuda mútua. Se a autodisciplina
e a pressão social forem insuficientes, o líder do grupo deve controlar
diretamente a situação (GRAHAM, 1995, p. 98).
O processo de transição da linha de produção fordista tradicional para a
nova linha automatizada demanda, de acordo com pesquisa realizada por
Milkman (1997, p. 7-9), Grupos de Envolvimento de Empregados, formados
para discutir problemas de qualidade e para melhorar a comunicação entre
trabalhadores e gerência. Entretanto, tal programa não funciona como se
apregoa, devido à discrepância entre retórica e realidade. A rigor, o conceito
de equipe participativa de trabalho intensifica a exploração, mobilizando o
conhecimento detalhado do processo de trabalho pelo trabalhador, para
auxiliar a gerência a aumentar a velocidade da produção e eliminar os
tempos mortos. O conceito de equipe participativa de trabalho, enquanto
uma forma dúbia de participação nas decisões gerenciais, não é senão um
sistema de gerência por estresse (PARKER; SLAUGHTER, 1988).
A instalação da participação e do compartilhamento tem como objetivo
reforçar o sistema de controle, para o qual se vale de mecanismos como (i)
participação nas decisões ao nível das tarefas como parte da relação de
pertença, (ii) ênfase do mito do “colaborador”, (iii) crença na essencialidade
de si e no valor de sua contribuição, (iv) idealização da empresa como uma
família, (iv) corresponsabilidade entre gestores e trabalhadores como a
chave da eficiência historicamente oficializada, (v) sentimento de
colaboração na edificação da organização, (vi) crença no conflito como
desestruturante do amor, (vii) participação orientada por níveis externos de
exigência, (viii) aumento da produtividade como garantia de manutenção do
emprego, (ix) idealização da empresa como valor social, (x) crença na
sobreposição das regras sociais e na colaboração com o desenvolvimento da
sociedade, (xi) sistemas e programas de integração, (xii) instalação de
Equipes Participativas de Trabalho, (xiii) estímulo à criatividade vigiada,
(xiv) adoção de variadas tecnologias de gestão, (xv) incentivo aos team
work, (xvi) utilização de programas de palavra livre vigiada
(brainstorming), (xvii) participação nas decisões no nível imediato de
trabalho através do procedimento kaizen, cujo epíteto é sempre procurar a
melhor maneira de fazer as tarefas (GRAHAM, 1995), (xviii) sentimento de
auto valorização por envolvimento com o projeto da organização, (xix)
304
participação relativa nas decisões, (xx) participação nos resultados ou
prêmios (bônus) de produção (GRAHAM, 1995, p. 49), (xxi)
comprometimento e envolvimento, (xxii) criação de grupos participativos e
relativamente criativos de trabalho voltados à projeção de cenários
vitoriosos, (xxiii) estímulo vigiado à colaboração e a sugestões inovadoras,
(xxiv) crença na ideia do “ganha-ganha” na relação entre os empregados e a
gerência (WOMACK; JONES; ROSS, 1990).
Para tornar efetivo o controle pela via da participação, a empresa adota
programas específicos. Nos programas denominados de
“autodesenvolvimento”, por exemplo, que ocorrem sob o controle direto da
organização, o sujeito é levado a “correr atrás” da empresa se pretende nela
permanecer. “O autodesenvolvimento equivale, na realidade, a um processo
de autorregulação, no qual o indivíduo ‘corre atrás’ porque se não alcançar
o patamar definido pela empresa será descartado.” Trata-se de uma
inversão tipicamente ideológica: “não é a empresa que arbitrariamente
determina o perfil de capacitação que o funcionário deve ter, já que a
situação é colocada de forma que o mesmo se sinta responsável por não
estar à altura da empresa como se devesse isso à organização”. Além do
mais, a empresa, ao fornecer a qualificação baseada no discurso da
consideração pela pessoa, estabelece, com o empregado, um sentimento no
qual este se sente em dívida (LEAL, 2003).
Se a empresa apropria-se da solidariedade e do apoio dos empregados,
estes se identificarão com os interesses da empresa. Este conceito, através
de intensa campanha, é levado ao nível de toda a organização. A “cultura da
cooperação” é criada através de linguagem especializada, ideologia, rituais e
símbolos igualitários, os quais são relativos às formas e experiências
conscientemente manipuladas pela gerência (uniforme, estacionamento
para todos, lanchonetes e restaurantes de uso comum, salas de escritórios
sem paredes etc.) (GRAHAM, 1995, p. 106-111). Desta maneira, o controle
se dá por: (i) identificação com os mitos da empresa; (ii) aceitação dos mitos
como modelos de comportamento; (iii) recompensa por dedicação; (iv)
elaboração de fantasias sobre o mito fundador; (v) suposições inconscientes
sobre o desempenho; (vi) idealização da organização; (vii) valorização
socializada da Marca e do Nome da organização; (viii) atrelamento do modo
de ser da organização à função desempenhada; (ix) programas de recepção,
adaptação, integração e desenvolvimento; (x) estímulo do imaginário de
uma relação social igualitária, discurso da certeza, da unidade e do sucesso;
305
(xi) participação em atividades esportivas e culturais; (xii) realização de
“exercícios ao ar livre”; (xiii) adoção de modelos de ação que valorizam o
reconhecimento e o prestígio; (xiv) suposições de desempenho de acordo
com os padrões esperados; (xv) reconhecimento do desempenho e
demonstração de sinais de prestígio; (xvi) projeções inconscientes; (xvii)
elaboração de fantasias; valorização da imagem de sucesso; (xviii) projeção
otimista do futuro.
“No seio do imaginário, no reino das intenções e promessas, as pessoas
na organização constroem suas relações de trabalho, distantes do mundo
da produção do trabalho propriamente dito e criam arremedos de relações
familiares, construindo seu dia-a-dia sob o sentimento de amparo, proteção
e pertencimento, sob o feitiço de relações quase amorosas, estáveis e
eternas” (SCHIRATO, 2000). O objetivo dos rituais e das cerimônias é criar
uma sensação de pertença. Os rituais permitem a partilha de experiências
(exercícios matinais, reuniões diárias de grupos, grupos de
“responsabilidade social” etc.). A mistura dos diversos rituais, com
mensagens inspiradoras, apertos de mão, abraços e sorrisos, converte-se
em sentimento de pertença, fazendo todos se sentirem física e
emocionalmente como uma equipe. As cerimônias servem para celebrar os
resultados, as metas alcançadas e a fixação da imagem (GRAHAM, 1995). É
por esta razão que a empresa pode oferecer um sistema imaginário a que
corresponde estratégias de controle.
O imaginário permite que se estabeleça uma forma de incentivo à
motivação. De fato, os “incentivos”, tais como comprometimento,
compensações e/ou coerção, têm um importante papel na motivação para o
trabalho (TILLY; TILLY, 1998). Em sua pesquisa, Milkman (1997, p. 163-
164) mostra que o treinamento mais memorável para os trabalhadores
tratava da psicologia da motivação. O treinamento inclui habilidades de
relacionamento interpessoais, em um programa chamado “Investindo em
Excelência”, cujo lema é que o comportamento humano tem um potencial
ilimitado para crescer. Tal programa é composto de temas como
“relaxamento e redução de estresse”, “permanecendo na linha” e
“motivando você mesmo e os outros”. Investindo em Excelência é um
programa que visa melhorar a autoestima individual através de jogos de
papéis e outras técnicas, incluindo unidades como: pensando possibilidades;
sua autoimagem; ajustando atitudes para alcançar objetivos; como a auto-
expressão constrói a autoimagem; mudando sem estresse; autoestima e
306
performance (desempenho); elevando a autoestima; motivação construtiva
e restritiva. O programa, continua Milkman (1997, p. 174 e 180), esgotou-se
quando os operários, após três anos, entenderam que a gerência não era
confiável e que o sindicato estava mais fraco do que nunca.
Não é sem motivo, portanto, que as empresas investirão no
estabelecimento de vínculos com os trabalhadores, pois esta é uma forma de
controlá-los. Comprometimento, participação, envolvimento, satisfação no
trabalho, otimismo, em realidade constituem-se em uma sutil combinação
entre coerção e consentimento (BURAWOY, 1985). Neste sentido, a empresa
vai agir no condicionamento a atitudes eficientes, na sua supervalorização,
na definição de Planos de Carreira, no atendimento de necessidades
pessoais objetivas (planos de saúde, auxílio escolar etc.), na criação de
projetos grupais baseados em interesses comuns, na identificação do
trabalhador com o seu trabalho e na formulação de contratos formais e
psicológicos (compromissos) como a expressão de um termo de vinculação
mítica. Ao mesmo tempo, no plano da subjetividade, a empresa atuará sobre
o sentimento de pertença (como a identificação com os mitos, por exemplo),
sobre os processos sutis de integração, as identificações inconscientes com
valores e crenças, a manipulação das relações afetivas, o estímulo ao
desenvolvimento de sentimentos de pertença, a oferta de abrigo “maternal”,
as transferências egóicas ou do aparelho psíquico do grupo (o inconsciente
do grupo), a identificação e idealização (com a organização), o desejo de
reconhecimento e o estímulo à doação. Este processo é complementado pela
expansão dos discursos amorosos (“grande família”, “colaboradores”,
parceiros corporativos), que se iniciam antes mesmo do sujeito entrar na
empresa.
Com efeito, o propósito da orientação e do treinamento não é apenas
ensinar o trabalho, o que, aliás, é a atividade mais simples, mas criar uma
força de trabalho cooperativa para conformá-la às demandas da empresa,
educando-a para uma atitude mental compatível com o conceito de equipe
de trabalho. Todos devem ser iguais e devem cooperar para a construção de
uma grande família (GRAHAM, 1995, p. 58). De acordo com Schmitt (2003),
o vínculo psicológico entre o indivíduo e a organização ocorre “porque
elementos como a fama da empresa, o status, o respeito no trabalho e, entre
outros, o sentimento de família, proporcionam satisfações e prazeres ao
indivíduo. Ele se identifica com a empresa, percebe que através dela poderá
realizar suas fantasias, suas necessidades e sente-se fascinado e seduzido
307
por ela”. A carreira na organização percorre esse caminho institucional,
segundo pesquisa realizada por Schmitt (2003). “O indivíduo se conforma
com o modelo de carreira proposto pela empresa, aceita suas regras e
normas, seu sistema de valores, reproduz esse sistema.” O indivíduo
introjeta em si a organização e passa a vivê-la e agir de acordo com o padrão
e a ordem instituídas.69
O controle por vínculos conhece outras formas de sequestro da
subjetividade que apenas a inventividade de consultores e a necessidade de
pertença e identificação dos sujeitos podem criar. Empresas, para despertar
os valores corporativos, a integração e os laços de lealdade, apelam para
treinamentos de sobrevivência, exercícios em contato com a natureza, entre
outros. Os empregados enfrentam desafios, cooperam, competem consigo
mesmos e voltam ao trabalho mais dispostos, sentindo-se diferentes e, ao
mesmo tempo, mais submissos, mais cordatos, mais seduzidos e mais
vinculados à organização.70
“Ao permitir que o espaço de trabalho seja palco de relações informais,
as organizações possibilitam o desenvolvimento de uma aliança afetiva
entre os trabalhadores, de tal forma que esta se transforma em um elemento
de manutenção dos profissionais nos postos de trabalho, além de ter a
capacidade de, em alguns casos, aumentar a cooperação, reforçar a
submissão e permitir a exploração” (SOBOLL, 2003).
A dominação psicológica se dá pela oferta reiterada de amor, bem mais do
que pela coerção, a interdição e a castração, representadas pela relação com
o pai, pelo temor do pai e da ameaça de castração. O trabalhador é livre para
se movimentar na organização, para colocar em prática suas iniciativas,
69 Esta situação é confirmada nas palavras de um empregado na pesquisa realizada por Hopfer
(2002): “O meu trabalho eu controlo baseado nas minhas obrigações. Eu sigo as instruções da
legislação”.
308
criatividade e sua vontade de inovação. No entanto, só o faz porque tem para
si as regras, os valores e a filosofia da organização. Existe uma dependência
do trabalhador com relação à organização-mãe, uma demanda de amor
insatisfeito com relação à mãe e também um temor de perder este amor.
Essas situações são amplamente disseminadas pela organização. A lógica de
todos esses processos é assegurar o controle da organização sobre seus
trabalhadores e também da autonomia como seu princípio motor (SCHMITT,
2003).
3 A fase do colaboracionismo?
Trabalhadores Pensionistas
Empresa Aposentados Total
Ativos (cônjuges)
312
Ford 72.570 77.460 24.220 174.250
1992 21,64
313
1993 21,79
1994 21,93
1995 21,78
1996 21,60
1997 21,73
1998 22,46
1999 22,93
2000 23,25
2001 23,95
2002 24,58
2003 25,63
* Valores ajustados pelos índices da inflação dos EUA.
Fonte: UAW (2003).
Na defesa do índice de reajuste real dos salários, o UAW argumenta que
o ganho efetivo é insignificante diante do que as empresas pagam para os
altos executivos. Considerando apenas os incrementos salariais, os bônus e
outras compensações, a Delphi, a Ford, a General Motors e a Visteon
gastaram em média mais de US$ 1,5 milhão em 2002 com seus executivos.
Somente a Delphi pagou US$ 5 milhões em bônus aos seus cinco maiores
executivos em 2002. Neste sentido, o UAW (2003, p. 12) sugere
Enquanto nossos contratos oferecem proteções fortes para trabalhadores e
incentivos para empregadores manter a produção, as empresas devem ainda
responder por fatores que vão além do controle dos acordos de trabalho. Um
destes fatores é o declínio contínuo nas ações no mercado das Big Three. A
redução das despesas nos escritórios centrais das Big Three, Delphi e Visteon
reflete este declínio, como também um declínio global em vendas das
indústrias. O incremento da produtividade e a introdução de novas
tecnologias também jogam um papel em termos de perda de emprego.
Quadro 9.5
Idade, tempo de serviço e perspectivas de aposentadoria até 2008 (2003).
Trabalhadores em
Idade Média Média de
Empresa Condições de
dos Trabalhadores tempo de Serviço
aposentadoria
316
da gestão participativa” (E).71
Quando o UAW negociou um salário de US$ 16,21 a hora (cheia) para os
empregados da DaimlerChrysler/Metaldyne’s Fremont, em New Castle
(Indiana), a mesma rompeu uma prática que era a de não reduzir os salários
(que eram de US$ 17,01, em 2000, nesta fábrica) e adotar a base salarial
negociada com as Big Three como referência dos acordos. Para Dan Hublle,
presidente do UAW local,
Ninguém aqui está feliz com isto. A maioria das pessoas deixou seu emprego
para vir para cá. Eles pensaram que aqui era o futuro. Ninguém quer se
arriscar. Agora eles estão furiosos com todo mundo. Eles estão furiosos com
o UAW por fazer isto com eles e com o UAW local por não interromper o
acordo, mas o UAW usou o estudo de benchmarking na negociação em New
Castle (E).
71 Daqui em diante será utilizado o símbolo (E) para indicar que se trata de uma manifestação
constante de uma entrevista.
317
montadoras, os trabalhadores presentes no Labor Notes Conference,
realizado em Detroit em 2003, previram seu discurso. Para Jane Slaughter,
Eles vão se concentrar na redução do custo dos planos de saúde e vão falar
sobre os grandes objetivos. Nada mais do que isto. Eles vão divulgar nos seus
informativos a vitória nas negociações e a grande imprensa vai se admirar
sobre como as empresas podem pagar os planos de saúde e atribuir à
habilidade de Gettelfinger o sucesso no acordo (E).
72 Esta avaliação foi realizada durante uma discussão em um grupo de trabalho durante o Labor
Notes Conference. O GT deliberou por propor uma manifestação tendo como lemas “No Concessions
Nowhere” e “Vote No Untill You Know”.
318
Para o acordo de 2003, o UAW não mobilizou seus associados para lutar.
Os associados não tomaram parte em nenhuma discussão dos assuntos
tratados no acordo, não foi realizada nenhuma preparação de greve,
nenhum membro da comunidade externa participou das negociações.
Adicionalmente, Gettelfinger deixou claro que não tinha nenhuma intenção
de propor uma paralisação.
Historicamente, as Big Three possuíam montadoras e fábrica de autopeças,
com salários comparáveis [...]. Na década de 1980, quando as Big Three
instalam fábricas de autopeças no México e adquirem mais autopeças de
empresas não sindicalizadas dos EUA, o UAW a princípio pareceu
complacente, porque pareciam ver as compras feitas junto aos fornecedores
como a solução que abaixaria o custo das empresas e manteria
trabalhadores das montadoras trabalhando. Atualmente, líderes do UAW
têm mudado enormemente sua melodia [cantilena]. Eles têm um plano
mestre para organizar os trabalhadores das autopeças. O plano parte da
ideia de que trabalhadores de autopeças devem receber substancialmente
menos que trabalhadores de montadoras. “A realidade da competição torna
isto necessário”, diz o Vice-presidente do UAW (Labor Notes nº 294.
Setembro de 2003, p. 10).
320
4 Considerações finais
321
força de trabalho, das matérias-primas e componentes e dos impostos e taxas.
Entretanto, as empresas fabricantes de autopeças localizadas no México não
eram senão subsidiárias ou filiais das mesmas empresas americanas. Algumas
plantas industriais foram instaladas no México, mas as mesmas funcionavam
como simples montadoras, já que a concepção do produto e o controle sobre
todo o processo produtivo continuam sob o domínio das empresas matrizes
(BABSON; NÚÑES, 1999).
322
Além disto, o sindicato atuou estrategicamente pelas indústrias ao
perceber que estas estavam perdendo sua competitividade em relação às
asiáticas e europeias. Identificando a perda de competitividade na forma
ultrapassada de gestão do processo de trabalho, que era tipicamente
taylorista-fordista, o UAW procura auxiliar as empresas a implementar um
modo mais dinâmico e atual de “fazer rodar o modelo”, colaborando para a
introdução da produção enxuta (lean production) nas fábricas e se dispondo
a ser parceiro na implantação deste processo.
Os depoimentos, as entrevistas, as análises e os documentos consultados
evidenciam que o discurso vitorioso da UAW esconde uma realidade na qual
se institui a fase do colaboracionismo de um sindicato que foi conhecido por
sua combatividade na defesa dos trabalhadores com as empresas da
indústria automotiva, tendo por base os novos patamares da competição
intercapitalista do mundo globalizado. Esta estratégia amigavelmente
gerencial não irá fortalecer uma significativa mudança de consciência entre
os trabalhadores, necessária para organizar os operários das fábricas ainda
não sindicalizadas na construção da resistência na defesa de seus direitos
historicamente conquistados.
Em um panfleto distribuído na fábrica Rouge da Ford, em Dearburn,
Michigan, o especialista em vendas de veículos Ron Lare escreveu: “a
concessão de salários mais baixos aos novos trabalhadores sinaliza para a
nova geração da qual todos nós vamos depender. Depois que nos
aposentarmos, a nova geração vai perguntar: ‘por que nós devemos
defender suas pensões? Vocês não defenderam nosso pagamento quando
éramos jovens!’ [...] Não são apenas nossos vizinhos que estão sendo
despedidos, nossos filhos estão sendo levados para o mesmo rumo”. Este
depoimento talvez seja a mais fiel avaliação do colaboracionismo sindical
impetrado pela UAW no acordo trabalhista de 2003.
1.
323
Nota-se que alguns sindicatos parecem orientados para uma lógica ainda
fordista, não percebendo que a organização do trabalho mudou, que o
processo de trabalho encontra-se integrado entre organizações, que as
novas tecnologias têm desalojado algumas ocupações tradicionais (por
exemplo, o torneiro mecânico, que foi substituído pelo operador de Máquina
Ferramenta de Controle Numérico Computadorizado – MFCNC) e que,
fundamentalmente, a gestão e os mecanismos de controle sobre o trabalho
se sofisticaram. Desta forma, estes sindicatos atuam com base em um
modelo que já se encontra superado. Que possibilidades de sucesso possuem
estes sindicatos na representação de seus associados nas negociações se
estão desatualizados? Como podem renovar suas estratégias se não
compreendem as formas de resistência necessárias ao novo mundo do
trabalho?
2.
Enquanto alguns sindicatos atuam sobre um modelo superado, outros, como
se mostra neste capítulo, colaboram inteiramente com a empresa. Notando
que a empresa é pouco competitiva, que não se renova tecnologicamente,
que há uma perda de associados devida ao desemprego, estes sindicatos da
era do colaboracionismo agem no lugar da empresa, a favor dela, ainda que
justifiquem suas ações como sendo a favor dos empregados. De que forma é
possível analisar a atuação do UAW que concordou inclusive em baixar os
salários de seus associados, em abrir mão do piso da categoria, em implantar
o sistema toyotista na fábrica (aconselhando a empresa a fazê-lo)?
10
324
As Organizações e a
Sociedade Unidimensional73
José Henrique de Faria
Francis Kanashiro Meneghetti
Introdução
325
Portanto, através de temas específicos incorporados nas contribuições
mais expressivas de Marcuse – a repressão social, o aniquilamento do
pensamento de protesto, a tolerância repressiva, a introjeção das normas
sociais, as formas de controles, a supressão do individualismo, a alienação, a
instrumentalização do homem, a incorporação da competição, a relação
entre ciência e interesse, o advento das necessidades falsas e a perda da
autonomia – procurar-se-á fazer uma análise voltada às organizações, de
forma a verificar suas inserções e contribuições no processo de formação do
pensamento democrático e reflexivo. O objetivo específico é permitir uma
análise que seja capaz de ampliar o campo de ação dos estudos
organizacionais, contribuindo para com o debate sobre se a Teoria das
Organizações dirige seu foco para a emancipação dos indivíduos ou para a
perpetuação de uma sociedade unidimensional.
1 A sociedade repressiva
327
No princípio de desempenho, a crescente racionalização faz com que os
controles sejam introjetados pelos indivíduos, possibilitando, assim, que o
trabalho social se reproduza em escala ampliada e progressiva.
330
subjetividade. De fato, o sequestro da subjetividade do trabalhador passou
a se intensificar com os novos modelos de controles psicológicos
viabilizados por uma reorganização dos modelos de produção e gestão,
representados, atualmente, pelo toyotismo. Técnicas como o team work,
kaizen, just in time, CCQs, TQC, são capazes de propiciar o sequestro da
subjetividade do trabalhador, intensificando o ritmo de trabalho e
precarizando as condições físicas e psicológicas do ambiente de trabalho,
submetendo o trabalhador à lógica da acumulação ampliada do capital.74
A aceitação dos indivíduos se dá pelo autocontrole e pelo controle da
dinâmica do grupo. Há, portanto, uma descentralização do controle
coercitivo direto, de moldes tayloristas (que, no entanto, continua em vigor,
mesmo como última instância), para o autogerenciamento, responsável pela
manutenção das taxas de produtividade. Assim, evidencia-se como são
articuladas novas formas para manutenção das relações sociais no trabalho,
na qual o controle do imaginário torna-se um fator importante na subsunção
do trabalho ao capital. Estas novas formas de controle, diferente das
anteriores que eram principalmente de natureza direta e que envolviam um
agente coercitivo direto, são percebidas como natural. Isto só é possível
devido a três elementos:
331
vitória são constantemente afirmadas como o caminho mais curto,
se os indivíduos estiverem dispostos a incorporar os valores
ideológicos. Na relação ideologia e imaginário, a deformação
imaginária propicia não as relações de produção existentes, mas
antes de qualquer coisa, as relações derivadas delas. A ideologia
apresenta-se, assim, não como sistema de relações reais que
governam os indivíduos, mas de relações imaginárias dos
indivíduos com as relações reais em que vivem (ALTHUSSER,
1999);
ii. o enquadramento dos comportamentos sociais: trata-se da
limitação de comportamentos concreta ou imaginariamente
aceitos pela sociedade. Convém observar que existem normas
comportamentais “implícitas” permitidas, que devem ser
obedecidas pelos indivíduos e que não podem ser transgredidas
para não colocar em risco o controle das relações sociais entre os
diversos sujeitos sociais. Os enquadramentos sociais têm sua
correspondência nas relações materiais que permeiam na
sociedade. Desta forma, é possível afirmar a existência de
estratificação das classes sociais levando-se em consideração as
funções que cada indivíduo desempenha na sociedade;
iii. o fornecimento de identidades e papéis sociais: têm certa
correspondência com os enquadramentos sociais. Uma identidade
criada a partir de uma posição relacionada com o trabalho
possibilita a identificação do indivíduo com o seu enquadramento
social. O discurso ocorre de forma coordenada atendendo ao
pressuposto de que a profissão requer esta forma de conduta. As
normas de condutas comuns e compartilhadas pelos indivíduos de
uma mesma profissão são responsáveis por criar um vínculo
identificatório que limita e ordena um controle implícito nos
indivíduos. O fornecimento de identidades e de papéis sociais
específicos ocorre sutilmente. Os valores ideológicos são
incorporados pelos indivíduos sem a percepção de que se
configuram como uma “violência simbólica” imposta
silenciosamente e sem dor. Destarte, não é difícil encontrar uma
categoria de profissionais que compartilham de um mesmo
discurso, possuem o mesmo vocabulário e as mesmas
argumentações, configurando uma “sinfonia muito bem ensaiada”;
332
II – Derrota do pensamento de protesto
Na sociedade contemporânea, o pensamento de protesto tem sido
tratado como inapropriado, promovido por “radicais de esquerda”,
“inconformados” e sem condições de adaptação social. Afirmar que as
manifestações de protesto foram derrotadas é um exagero, como o
demonstram os fatos, entretanto é preciso reconhecer que se deu uma
transformação qualitativa e quantitativa nas formas de protesto, o que tem
acentuado a precarização do trabalho, a perda da identidade coletiva e a
redução do pensamento crítico das práticas sociais. Os elementos mais
importantes que contribuíram para esta modificação foram o avanço da
racionalidade tecnológica, a afirmação do protesto como sinônimo de
desordem, o discurso ilusório da negociação democrática e a expansão do
individualismo. É verdade que o avanço da racionalidade tecnológica trouxe
contribuições significativas para a qualidade de vida dos indivíduos. O
desenvolvimento das engenharias, da física, da química, da biotecnologia,
etc. contribuíram significativamente para o domínio da natureza.
Entretanto, as ciências sociais e humanas não tiveram, nos seus avanços, o
mesmo reconhecimento, na medida em que se desenvolveu uma associação
entre progresso e racionalidade tecnológica, pois na nova sociedade, como
alerta Marcuse (1999, p. 125), o universo totalitário da racionalidade
tecnológica é a mais recente transmutação da ideia de razão.
Segundo Rouanet (1987) é uma ilusão que se alimenta nas esperanças,
desde o iluminismo, de uma sociedade que tende à igualdade. A crença de
que apenas as ciências baseadas na racionalidade tecnológica venham
resolver os problemas de ordens humanas da sociedade, promove a perda da
elevação do pensamento crítico voltado para os interesses coletivos. Como se
sabe, os crescentes avanços das engenharias na formulação de novos
processos produtivos não trouxeram o progresso prometido em termos de
qualidade no trabalho: a precarização (ALVES, 2000), a intensificação
(FARIA, 1992, 2001, 2004b, 2004c; FARIA; MENEGHETTI, 2000a), o
sofrimento (DEJOURS, 1988, 1994) são elementos que permeiam o ambiente
de trabalho, não obstante os avanços das tecnologias físicas e de processo.
Os protestos em prol de melhores condições de trabalho têm sido alvos
de mecanismos que visam atribuir a esta prática a conotação de desordem.
Protestar por melhores salários, ambiente físico de trabalho, qualidade de
vida, segurança, são ações amplamente apoiadas nos manuais
333
administrativos voltados aos “colaboradores”, especialmente na chamada
área de “gestão de pessoas”, mas a prática gerencial aponta em outra
direção, especialmente quando os protestos atingem a assim dita
“individualidade”. O culto ao individualismo tornou-se uma regra que não
deve ser ferida. “A partir do individualismo pode-se demonstrar a
necessidade de nenhum sistema particular de valores. O indivíduo adequa-
se a qualquer sistema de moral e valores. A impossibilidade de mostrar no
interior da visão racionalista a necessidade de valores, quaisquer que sejam,
é a base epistemológica do niilismo” (TRAGTENBERG, 1977, p.182-3).
Assim, quando há uma paralisação dos meios de transporte de uma cidade,
ou de uma instituição de ensino, as manifestações mais frequentes
divulgadas pela mídia são as afirmações e indagações que se baseiam em
perdas de interesses individuais: “como é que eu vou me locomover agora?”;
“ninguém tem nada a ver com os problemas deles, não é justo que eu pague
por um problema que não é meu!”; “vou perder a minha formatura”; “levei
um ano preparando-me para o vestibular e quem é que vai me reembolsar
por isto?”. A paralisação é associada imediatamente ao caos. Cria-se uma
falsa sensação de desordem, de irresponsabilidade por prejuízos à
sociedade, sem que se faça qualquer esforço empático. O primeiro
pensamento é centrado nas próprias dificuldades. Os motivos que levaram
à paralisação configuram-se como secundários. É a elevação dos valores do
imediatismo e do utilitarismo, em que não há o reconhecimento da
dificuldade do outro como sendo possível, em algum momento, ser o seu.
334
Delas, faz parte, por exemplo – e aqui evidentemente trata-se apenas dos
países desenvolvidos, pois a situação é essencialmente diferente no Terceiro
Mundo – a necessidade, que já se tornou imperiosa, de, a cada ano, adquirir
um aparelho de televisão maior ou mais sofisticado, um modelo mais atual
de note book, o último lançamento em aparelho de telefonia celular cuja
função acessória é telefonar, enfim, a necessidade de consumir todas as
mercadorias que hoje são vistas como símbolos de status. São necessidades
que satisfazem de fato necessidades que se tornaram reais, mas que não são
fundamentais, de forma que ao satisfazê-las os indivíduos retardam sua
emancipação do trabalho alienado; do trabalho baseado no produzir por
produzir sem ter a dimensão da utilidade do que se produz e dos impactos
ambientais diretos e indiretos, imediatos e futuros, que esta produção possa
estar causando; retardam sua emancipação de todo o sistema de valores
imposto pelo consumismo, tornando-se cada vez mais seus prisioneiros.
Mais do que isto, os indivíduos trabalham contra essa emancipação
(MARCUSE, 1969, 1997, 1998).
O que ocorre, na visão marcuseana, é a destituição dos indivíduos de um
pensamento unificador em prol dos interesses coletivos e em detrimento
das realizações das necessidades agora consideradas como essenciais. Este
fato é um dos componentes que potencializam o advento de uma sociedade
cada dia mais individualista, reforçando a concepção, muito em voga
inclusive em círculos que se denominam mais esclarecidos, de que qualquer
forma de protesto, torna-se um perigo à segurança das conquistas na
manutenção das necessidades. O pensamento que perdura é de que não se
pode colocar em risco o projeto individual em favor do coletivo.
Os protestos passaram a ser interpretados de forma pejorativa quando
se criou a falsa sensação de que o mundo do trabalho contemporâneo
possibilita a negociação democrática. São constantes as situações em que
dirigentes públicos ou privados se recusam a discutir reivindicações de
empregados, dificultando o diálogo, promovendo o desencontro de
informações, omitindo-se, faltando publicamente com a verdade, adotando
posturas preenchidas de despotismo e de desqualificação dos mesmos.
Várias são as estratégias gerenciais e políticas para se evitar que a discussão
ampla e democrática se consolide. Além das ações formais, tem livre curso o
imaginário da punição possível. As ameaças “nas entrelinhas” de demissão,
335
de transferências indesejadas, de intensificação do nível de stress no
trabalho, de desgaste perante a sociedade apoiado por uma mídia muitas
vezes conivente, são alguns exemplos da sociedade repressiva e da perda do
pensamento crítico, cujos efeitos na práxis organizacional são diretos.
336
Na tolerância ativa, os sujeitos sociais desempenham o papel de articuladores
da crítica social. Seus comportamentos são reivindicatórios sem, contudo,
constituir atos de violência explícita. Suas manifestações partem de
pressupostos da existência da violência contra os interesses da grande maioria.
Suas preocupações não são centradas nos fundamentos ideológicos,
econômicos e políticos, mas nos interesses de igualdade e justiça. Na tolerância
ativa, os preceitos maiores são a prática democrática, o diálogo, a reflexão, a
razão articulatória e os interesses coletivos. Deste modo, não há tolerância ativa
quando há tentativa de dominação do homem pelo homem.
75 Certamente, em termos de violência contra a humanidade nos tempos recentes nada se compara
ao Holocausto promovido pelo nazismo com relação aos judeus, na Segunda Guerra Mundial. Mas,
há outros exemplos: a chamada Santa Inquisição; a “revolução cultural” de Mao Tse-tung na China
etc.
337
consigna-se que este fato causou indignação no mundo, resultando em ações
militares e políticas. As formas como as autoridades e os formadores de
opinião referiram-se à violência estavam fixadas em um tipo de ação. A ação
de violência de 11 de Setembro de 2001 é condenável e nada há que a
justifique, sejam os motivos
de ordem política, econômica, cultural ou religiosa. Entretanto, também
constitui ações de violência aquelas decorrentes de políticas econômicas e
sociais adotadas pelos países desenvolvidos e que provocam a morte
cotidiana de milhares de inocentes, especialmente na parte do mundo
considerada não desenvolvida, e que provocam a fome, as doenças
endêmicas, o desespero com a falta de segurança e o pavor diante do
desemprego e das condições subumanas de vida. Este tipo de violência,
contudo, não provoca iguais reações de indignação, iguais investimentos em
seu aniquilamento, iguais disposições de combate e tampouco ocupa iguais
espaços na mídia. Qual o grau de tolerância para com a violência? Por que
um tipo de violência parece ser mais importante que outro? A violência que
aniquila aos poucos parece chocar menos as pessoas do que aquelas que
provocam comoções e indignações coletivas, mas muitas vezes estas
resultam daquelas.
Após um ato de violência algumas autoridades políticas fazem
pronunciamentos em que afirmam que o mesmo ultrapassou todos os
limites, como se houvesse um grau de tolerância para a violência que seria
aceitável pelo Governo e pela Sociedade; afirmam que desejam que os
praticantes da violência “vão para a cadeia”, como se o problema da violência
se esgotasse com esta atitude, como se a violência cotidiana pudesse
conviver com a impunidade desde que o mais visível fosse punido. Pode-se
avaliar o tema da violência pelo tempo que os jornais televisivos ocupam
com notícias desta natureza: assassinatos, sequestros, assaltos, guerras,
conflitos urbanos e rurais, desemprego, falta de atendimento à saúde,
abandono de crianças e jovens, maus-tratos em famílias etc. Pode-se
também avaliar a perda do pensamento crítico pelo tempo que é destinado
ao debate, às denúncias e às críticas sobre as condições de vida da sociedade
e às ações públicas promotoras da justiça social, da distribuição de renda, da
geração de empregos, do atendimento às necessidades humanas
fundamentais. A comparação mostra, com clareza, que a escalada da
violência tomou conta da vida cotidiana. Mostra que os horários nobres da
televisão são ocupados por programas do tipo reality show, com rostos
338
bonitos, cenas sensuais e cenários maravilhosos: é quando a violência é
combatida pela farsa; é quando a cruel realidade é enfrentada pela
promoção de um imaginário social da beleza estética sem ética; é quando a
ação é substituída pelo discurso que de tudo dá conta; é quando o lado
desumano é escondido e as imagens velam pelo disfarce.
339
avaliações que lhe são “vendidas nas bancas”, desconhecendo os critérios
com que foram realizados, os interesses não explícitos que estão embutidos
no processo, as influências políticas e econômicas que subjazem às
competições.
Além das competições, a criação das necessidades falsas, como sugere
Marcuse, é também responsável por promover o controle e a perda da
autonomia do indivíduo. Sendo as necessidades falsas aquelas de interesses
sociais particulares que levam o indivíduo para sua repressão, relativas aos
esforços que perpetuam o empenho demasiado no trabalho, a absorção das
agressividades cotidianas, a aceitação das misérias e da injustiça, as
questões sobre as quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só
pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última
análise; isto é, se e quando eles tiverem livres para dar a sua própria
resposta. Enquanto eles forem mantidos incapazes de ser autônomos,
enquanto forem doutrinados e manipulados (até os próprios instintos) a
resposta que derem a essa questão não poderá ser tomada por sua
(MARCUSE, 1999).
Para Marcuse, os indivíduos não são capazes de definir quais são as suas
necessidades falsas e, consequentemente, as verdadeiras, sem que haja a
prática democrática da reflexão. Mesmo que estas reflexões sejam
influenciadas pela ideologia dominante, é somente pela prática livre do
diálogo, do debate aberto e democrático que os indivíduos chegarão a uma
opinião alicerçada no pressuposto coletivo e emancipado. Não há autonomia
sem sua origem na mesma, pois é o próprio exercício da autonomia que a
eleva a graus superiores.
340
As necessidades humanas, principalmente as referentes à sobrevivência,
são impulsionadoras dos atos não reflexivos. Na manutenção da vida, o
indivíduo submete-se à intensificação do trabalho, aos trabalhos insalubres,
às mandos coercitivos dos seus superiores. Contudo, não são somente estes
indivíduos que são submetidos. As promessas imaginárias de sucesso
financeiro, status social, reconhecimento social etc., para os indivíduos
dispostos a enquadrar-se no controle social, são outros elementos implícitos
capazes de subordiná-los. Tais indivíduos, sujeitos econômicos livres,
tornam-se objeto de organização e coordenação em larga escala, em que o
avanço individual transformou em eficiência padronizada. O indivíduo
eficiente é aquele cujo desempenho consiste numa ação somente enquanto
seja a reação adequada às demandas objetivas do aparato (MARCUSE, 1999,
2001).
A lógica da dominação econômica impõe sobre os indivíduos padrões
comportamentais baseados na ética do desempenho, ou seja, a mensuração
através do utilitarismo. Esta concepção está de acordo com o a afirmação de
Marx segundo a qual as relações de produção das condições materiais de
existência constituem-se no suporte das relações sociais. Ao analisar o
materialismo histórico e a existência, Marcuse sugere que como decorrência
da sociedade industrial, a competição torna-se um valor (MARCUSE, 1969).
Vários são os teóricos que creditam à competição o motor propulsor do
progresso da sociedade. Os que afirmam que as competições – individuais,
grupais, organizacionais e entre nações – são as engrenagens para o sucesso,
são quase sempre os mesmos que afirmam que os protestos e as
manifestações são atos radicais, prejudiciais à coesão social.
“A competição livre confronta os indivíduos entre si como compradores
e vendedores de força de trabalho. A abstração pura a que os homens são
reduzidos em suas relações sociais se estende ao relacionamento com os
bens reais” (MARCUSE, 2001, p. 15). O engajamento do indivíduo para
vencer as competições sociais, desloca-o de uma posição mais reflexiva para
uma mais passiva. Toda sua energia é direcionada a tarefas e funções que
proporcionem ganhos instrumentais para obtenção do seu sucesso. Assim,
às vezes sem perceber, o indivíduo torna-se meio na realização dos
interesses de uma minoria, ganhando, em troca, algumas realizações
individuais e promessas imaginárias de sucesso. Para Marcuse, a sociedade,
em grande medida, vende ilusões.
341
A ética na sociedade industrial é aquela que incorpora o indivíduo como
instrumento, reduzindo as relações humanas a poucas brechas do cotidiano. As
racionalidades possíveis são as que justificam o uso das técnicas científicas para
o progresso da sociedade, que, em última instância, são desprovidas do
pensamento crítico. Desta forma, um cientista é capaz de ajudar a projetar uma
arma nuclear ou um coração artificial.
5
Reflexão crítica e organização unidimensional:
por uma conclusão
Há duas grandes hipóteses excludentes para o destino histórico da
sociedade: ou esta será capaz de impedir as transformações, impondo-se a
repressão de uma vez por todas, ou um “contra movimento internacional e
global” levará a sociedade a explodir para se transformar. Este é o
pensamento de Marcuse, que fez eco no movimento de maio de 1968 na
França e que, por mais problemático que fosse seu caráter reducionista, deu
aos intelectuais novos embasamentos teóricos para lutar contra as formas
“autoritárias” da sociedade. “Marcuse pôs a sociedade industrial avançada
diante de um espelho, desafiou sua noção de progresso e trouxe a busca da
felicidade de volta para o vocabulário político. Sua obra tem um
compromisso duradouro com os impulsos mais radicais e concretos da
teoria crítica” (BRONNER, 1997, p. 286).
Marcuse sempre lutou contra qualquer forma de totalitarismo,
autoritarismo, alienação ou controle social. Desta forma, é natural que seu
pensamento deva ser analisado com cuidado. Apesar de relativamente
antigos seus escritos são ainda contemporâneos e suas teorias e conceitos
continuam valendo para os acontecimentos da atualidade. A forma como o
capitalismo industrial e mais recentemente global tenta impor-se como
forma hegemônica na vida dos indivíduos e estados, é totalitária, excluindo
qualquer outro modelo que não se encaixe nos ditames desta lógica
345
econômico-comercial. Portanto, nada mais coerente do que atribuir à
Marcuse o status de pensador crítico da sociedade.
1.
Conforme está descrito no capítulo, temas relacionados à repressão e ao
sofrimento dos indivíduos nas organizações são considerados tabus ou
secundários, porque questionam os elementos centrais da dominação.
Algumas pessoas chegam mesmo a afirmar que, caso se deseje encontrar
sofrimento em uma organização, certamente se encontrará. O que a
princípio é uma posição sarcástica revela, na verdade, uma realidade cruel.
Longe de parecer uma simples existência em si mesmo, o sofrimento possui
matizes que exige muito empenho para se desvendar. Não basta saber que
existe sofrimento. O desafio é identificar quais são os tipos de sofrimento?
Que consequências psicossomáticas produzem? Como afetam as relações
interpessoais? Como estes diversos tipos de sofrimento afetam a percepção,
a concepção, a avaliação que os sujeitos podem fazer?
2.
Pode-se avaliar o tema da violência pelo tempo que os jornais televisivos
ocupam com notícias desta natureza: assassinatos, sequestros, assaltos,
guerras, conflitos urbanos e rurais, desemprego, falta de atendimento à
saúde, abandono de crianças e jovens, maus-tratos em famílias etc. Pode-se
também avaliar a perda do pensamento crítico pelo tempo que é destinado
ao debate, às denúncias e às críticas sobre as condições de vida da sociedade
e às ações públicas promotoras da justiça social, da distribuição de renda, da
geração de empregos, do atendimento às necessidades humanas
fundamentais. A comparação mostra, com clareza, que a escalada da
violência tomou conta da vida cotidiana. Mostra que os horários nobres da
televisão são ocupados por programas de do tipo reality show, com rostos
bonitos, cenas sensuais e cenários maravilhosos. A sociedade está sendo
apaziguada em sua revolta? Qual o grau de tolerância para com a violência?
Por que um tipo de violência parece ser mais importante que outro? A
347
violência que aniquila aos poucos (fome, dor psicológica, doenças, falta de
acesso à água tratada, desemprego) é menos chocante do que as que
provocam comoções e indignações coletivas?
348
Parte IV
CONTROLE, VIOLÊNCIA E PODER
11
O Controle Político-Ideológico e a
Exploração dos Trabalhadores
em um Hospital: “Contratar ‘Burro’
349
para Pagar Pouco”
José Henrique de Faria
Lis Andréa Pereira Soboll
Introdução
76 Apesar de a pesquisa ter abordado diversas estratégias de controle organizacional, este capítulo
restringe-se a apresentar apenas os dados e as discussões relativas ao controle do tipo político-
ideológico.
351
1 Exploração e controle no modelo de gestão autoritário
352
proporciona ao Departamento de RH a determinação das regras, elaborada
sem participação dos trabalhadores e impostas independentemente da
opinião destes. Muitas vezes estas regulamentações se mostram
incompatíveis com a natureza e o cotidiano do trabalho de enfermagem e
dificultam o cumprimento da finalidade de assistência à saúde. Estas
regulamentações podem ser exemplificadas pelas regras de funcionamento
do cartão-ponto. Os funcionários que esquecem o cartão individual, que
regula o relógio-ponto, devem voltar para casa, pois não recebem o salário
referente àquele dia de trabalho e nem têm sua entrada autorizada no
refeitório da organização. Regras como estas confrontam diretamente com
o bom funcionamento dos setores, sobrecarrega os demais profissionais e
dificulta o cumprimento da finalidade de assistência à saúde. Se a
pontualidade é uma exigência do trabalho, seja do ponto de vista formal ou
da assistência aos pacientes, a gestão do cumprimento desta regra pode
recorrer a outras formas que demandem comprometimento e participação.
A não-participação dos trabalhadores nas decisões que regulam o
processo e as relações de trabalho subordina totalmente o trabalhador ao
domínio do capital e transforma as regras e as normas que regem a ordem
social em “código autoritário’ (MARX, 1978; FARIA, 1987), fundado na
repressão. A repressão consiste na utilização de estratégias que visam
prevenir e inibir possíveis mobilizações passíveis de abalar a estrutura de
exploração presente na organização (HOPFER, 2002). A repressão,
disfarçada nos discursos de manutenção da ordem e do bem-estar,
possibilita a exploração e leva à inibição do afeto (ENRIQUEZ, 1974, p. 89).
O código autoritário é justificado como necessário para a regulamentação
social, mas sua função é antecipar os conflitos potenciais entre os
trabalhadores e os representantes do capital, sufocando e capturando o
sujeito antes mesmo que este perceba a exploração, as contradições e
paradoxos impostos pela organização (FARIA, 1987).
As regras e normas do Departamento de RH são racionalmente
justificadas como necessárias para a ordem social dentro do Hospital, mas
sua função é a instalação de técnicas racionais de repressão dos conflitos e
questionamentos fundados na coerção, no medo e na ameaça. A repressão
das mobilizações e a antecipação dos conflitos podem ser percebidas pelas
ações do Departamento de RH diante de reivindicações individuais dos
trabalhadores. Os questionamentos dos trabalhadores são desmobilizados
pelas ameaças de desemprego (sustentadas pelo “exército de reserva”), por
353
discursos manipulatórios (que banalizam ou adiam as reivindicações) ou
ideológicos (que convencem e legitimam as ações organizacionais),
conforme descrito pelos trabalhadores:
Algumas pessoas até reclamavam no Departamento de RH, mas quando
chegam lá o (funcionário do Departamento de RH) fala, fala, fala e você acaba
saindo de lá com mais dúvida ainda. (Técnico de Enfermagem).
355
As pessoas têm medo de mudanças, de ir atrás e serem prejudicadas. Entre
nós (empregados), nós comentamos, mas ninguém toma uma atitude,
porque uns têm medo de ser mandado embora, outros não estão preparados
para enfrentar. Aqui é um lugar que não se tem força para reivindicar nada
mesmo, tem que dançar conforme a música. Ou você se adapta a ela ou você
cai fora. Aqui você deve se adaptar às regras ou porque você gosta da casa
ou porque você precisa da casa.
356
transformam-se em reclamações particulares, sem efeitos na realidade de seu
dia-a-dia. A insatisfação é generalizada, mas, considerando que o próprio
coletivo não se reconhece como tal, somente aos confidentes é possível falar o
que se pensa sobre o trabalho.
2
357
Estratégias de recursos humanos como instrumentos de
controle e exploração
360
estabelecer comparações e fazer questionamentos e também não têm
conhecimento das leis trabalhistas, dos direitos e dos processos legais de
reivindicações. Ao encontrar uma organização ameaçadora, o coletivo vê a
submissão como algo natural e como a melhor alternativa. O trabalhador
geralmente adere a este modelo e o aceita como natural, pois não conhece outro
e tem medo de perder o que conseguiu.
364
crer que suas finalidades têm cunho social e não meramente lucrativo. Desta
forma, garantem-se altos lucros camuflados no discurso assistencialista,
conforme explicado pelo representante do Departamento de RH:
Aqui você investe visando o lucro. Obviamente, aqui se tem lucro. É uma
empresa, é uma empresa que visa lucro e muito bom lucro [...] O lucro daqui
é muito bom, apesar do balancete oficial indicar que o hospital está dando
prejuízo.
3 Considerações finais
CONTROLE
EVIDÊNCIAS NO
POLÍTICO/ CARACTERÍSTICAS EXPLORAÇÃO
HOSPITAL
IDEOLÓGICO
366
participação.
Políticas e práticas Buscam introjetar nos Fornece respostas às Definição de cargos por
de Recursos trabalhadores valores contradições inerentes critérios pessoais, com
Humanos fundamentais básicos à organização. utilização de mão-de-
que colaboram para a Legitima o poder obra subqualificada.
realização dos absoluto do capitalista, Critérios de seleção de
interesses capitalistas. reforçando a RH direcionadores da
São capazes de dominação, levando a formação de um
legitimar as práticas alienação e a aceitação exército de reserva e de
organizacionais, da exploração como um grupo de
envolver os algo natural. trabalhadores
participantes e ocultar Envolve os facilmente
os objetivos de lucro e participantes e leva-os manipuláveis e
de dominação a colaborarem com os reprimíveis,
capitalista. objetivos predispostos à
organizacionais. submissão e a aceitação
das regras sem
questionamentos,
“mansos” para serem
explorados.
Aceitação e
internalização das
justificativas
assistencialistas
oferecidas pela
organização.
Pouca percepção das
367
finalidades capitalistas
da organização.
368
Questões para reflexão
1.
As estratégias de gestão de RH utilizadas no caso descrito neste capítulo
fornecem os resultados de produtividade e de lucro para a organização.
Entretanto, estes mecanismos que favorecem o alcance dos resultados
econômicos são os mesmos que se aproveitam da precariedade da sociedade
marcada pelo desemprego, pela desigualdade social e pela exploração
desregrada no trabalho. A Constituição Federal brasileira80 explicita a
primazia da pessoa humana em relação ao lucro. É possível obter resultados
econômicos e financeiros respeitando valores da pessoa humana? Quais os
desafios e contradições que se impõem?
2.
Os enfermeiros que trabalham no hospital ficam, por vezes, sobrecarregados
e esgotados frente às demandas geradas pela falta de profissionais
capacitados para o exercício de supervisão na área de enfermagem. Ao
mesmo tempo, as reivindicações feitas aos supervisores não encontram via
de escoamento, uma vez que estes não têm espaços de participação na
elaboração das normas gerais, definidas pela diretoria de enfermagem ou
pelas demais diretorias. Como é possível que profissionais que tratam com
a vida humana trabalhem descontentes? Pode haver um risco de que o
atendimento ao paciente seja prejudicado? Qual poderia ser a “missão” deste
hospital: obter resultados econômicos ou atender com qualidade seus
pacientes? Como a missão está relacionada à forma de gestão? O que fazer
diante da situação descrita?
369
370
12
A Instituição da Violência nas
Relações de Trabalho81
José Henrique de Faria
Francis Kanashiro Meneghetti
Introdução
371
seu uso também desencadeiam práticas que fortalecem as relações objetivas
e subjetivas de exploração e violência.
Este capítulo tem como objetivo indicar as formas de violência mais
comuns nas relações de trabalho que se articulam no sociometabolismo do
capital e suas implicações, tendo como foco o que Arendt (2000) chama de
“a condição humana”. Para tal finalidade, buscar-se-á compreender os
mecanismos da racionalização, a forma como a violência se encontra
expressa nas relações de poder e a institucionalização e a reprodução da
violência nas dimensões individuais e coletivas, tanto no ambiente de
trabalho, como nas práticas sociais, de maneira que se possa, ao final, falar
de certa estrutura da violência nas relações de trabalho.82
Ao mesmo tempo, é preciso ser direto: não passa o enfrentamento da
violência decorrente da racionalização das relações de trabalho pela
necessidade de uma ação transformadora que tenha como suporte uma
outra racionalidade? Se a violência nem sempre é empregada às claras, mas
é dissimulada e se utiliza de mecanismos de sedução, que alternativas
restam para enfrentá-la? Apenas estas duas questões já são suficientes para
colocar o problema em seus termos: o fenômeno da violência deve ser
tratado politicamente e não moralmente, ainda que as ações decorrentes de
sua prática interfiram decisivamente sobre a moral e a ética. Para tanto, é
necessário que se desenvolva, desde logo, uma consciência trágica da
existência humana capaz de colocar os indivíduos frente a frente com as
diversas psicopatologias do trabalho, com o refinamento dos meios de
tortura, com os modelos de comportamento e de consumo convertidos em
ideal da cultura, com as formas subordinadas e passivas da inserção do
sujeito trabalhador no mundo do trabalho.
372
1 A racionalização e as relações de trabalho
373
conhecer, organizar e sistematizar os conhecimentos adquiridos, ou seja, de
teorizar sobre a realidade do mundo do trabalho, quanto desenvolver
métodos utilitários e pragmáticos de execução de tarefas. Habermas (1997)
chama a atenção para a tendência à instrumentalização das ciências em
moldes cartesianos de análises. Também o faz Horkheimer (2000, p. 15),
que via na sociedade a mesma tendência: “a racionalização cada vez mais
avançada, do modo como é entendida e praticada em nossa civilização,
parece-me tender à destruição da própria substância da razão em nome da
qual se adere ao progresso”.
Na disposição da racionalização dos processos de trabalho,
recentemente sustentada por uma cobertura institucional, uma concepção
se torna comum e corriqueira: considerar o indivíduo como um meio e a
organização como uma instituição, de forma que se pode institucionalizar a
desumanização das relações de trabalho. Quando o processo de
racionalização considera os indivíduos como “engrenagens do sistema”,
como “peças da estrutura funcional do sistema produtivo”, ele os está
também considerando agentes passivos na transformação do trabalho.
Diferentemente da concepção de Lukács (1979), para quem o indivíduo
deve ser sempre o agente transformador da sua realidade – e faz isto através
da consciência que adquire dentro do trabalho –, o crescente processo de
racionalização acaba por destituir de sentido o trabalho e o sujeito do
trabalho.
O fato de a racionalização do trabalho ter se tornado o principal agente
transformador da sua divisão e do seu desdobramento econômico e social
gera uma situação que desfavorece a maioria dos indivíduos, na medida em
que generaliza a racionalização e coloca os indivíduos na marginalidade do
processo de transformação. Os responsáveis pela criação, implementação e
utilização dos procedimentos racionais buscam beneficiar-se do mesmo,
definindo as bases da gestão das relações de trabalho, estabelecendo
relações desiguais regulamentadas; mas, ao mesmo tempo, são vítimas do
processo que criam, pois o que limita as ações dos outros também limita as
suas. A desigualdade que se estabelece provoca a ruptura dos indivíduos
como agentes dominantes da sua realidade e da formação das suas relações
de trabalho.
374
A racionalização, através do uso de técnicas, da burocratização, do incremento
dos ideais da organização e do gerenciamento e controle dos recursos, é
responsável pela formação da desigualdade nos processos de transformação
das relações de trabalho, na medida em que intervém nos aspectos
psicológicos e nos imaginários individuais e coletivos. Sua ação não se limita à
esfera do visível. Pela modificação das estruturas objetivas (linhas de
produção, hierarquia, divisão do trabalho etc.), novas expectativas subjetivas
são criadas e refeitas.
2 A violência
A violência é um tema recorrente nas ciências sociais. Várias têm sido as
tentativas de explicar as origens da violência na sociedade: estaria a
violência contida nos pressupostos que argumentam que a violência é
determinada pela forma de ser da sociedade? Seria correto afirmar que a
violência é fruto das características genéticas de um indivíduo, ou seja, fruto
do determinismo genético? Pode-se explicá-la como manifestação
psicológica do ser, afirmando a validade do psicologismo ético, reduzindo a
compreensão da violência aos modelos psicológicos individuais ou a
características de personalidade? As várias tentativas de encontrar nas
teorias biológicas (genética), psicológicas e sociais as causas da violência
decorrem do fato de que sua manifestação é evidenciada de diferentes
maneiras nas relações sociais.
Não são incomuns argumentos que postulam que o uso da razão seria
suficiente para excluir da sociedade a violência, ou que defendem a tese de
que uma postura institucional seria capaz de reduzir ou mesmo eliminar a
violência da prática social e organizacional. Entretanto, o que se observa é
375
que a própria violência se encontra institucionalizada nas sociedades
organizadas, nas práticas cotidianas das relações de trabalho e nas
concepções mesmo das teorias gerenciais (FARIA, 1985). Como argumenta
Barreiro (1978, p. 105) “la violencia institucionalizada es la irracionalidad
social en su punto más alto”. Ao mesmo tempo, verifica-se que os avanços
tecnológicos que proporcionam maior domínio sobre a natureza parecem
estar provocando a uma crescente desigualdade econômica, gerando
maiores níveis de exclusão social e proporcionando maiores privilégios
políticos a uma minoria. O avanço dos diagnósticos de doenças pelas novas
técnicas da genética, por exemplo, ainda está restrito a uma diminuta
parcela da população mundial, confirmando o que Habermas (1982) define
como subordinação da ciência aos interesses econômicos.
Como sugere Arendt (1994, p. 47), “o uso da razão é que nos torna
perigosamente ‘irracionais’”. Assim, a racionalidade, enquanto é capaz de
estabelecer o uso da lógica e da utilização de princípios científicos é também
incapaz de direcionar toda a sua potencialidade em benefício coletivo. A
ausência da reflexão crítica, como já alertava Bourdieu (1983), pode fazer
com que o conhecimento desencadeie uma ruptura com sua utilização
democrática. Para assegurar o benefício coletivo e, consequentemente,
evitar a violência da apropriação privada do conhecimento, necessita-se de
organização política para reivindicar direitos e fazer prevalecer deveres.
Considerando-se que poder é “a capacidade que tem uma classe social
(uma sua fração ou segmento), uma categoria social ou um grupo (social ou
politicamente organizado) de definir e realizar seus interesses objetivos e
subjetivos específicos, mesmo contra a resistência ao exercício desta
capacidade e independentemente do nível estrutural em que tal capacidade
esteja principalmente fundamentada” (FARIA, 2004a), pode-se afirmar,
então, que, no limite, “a violência aparece onde o poder está em risco, mas,
deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder. Isto implica
ser incorreto pensar o oposto da violência como a não-violência; não falar
de um poder não violento é, de fato, redundante. A violência pode destruir o
poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo” (ARENDT, 1994, p. 44).
Convém insistir, resumindo e complementando ambos os conceitos:
Sendo o poder a capacidade que tem um grupo social de definir e realizar seus
376
interesses objetivos e subjetivos específicos, a violência aparece quando esta
capacidade está em risco. Deixada à própria sorte, a violência faz desaparecer o
poder (a capacidade de definir e realizar interesses coletivos). A violência,
assim, é capaz de destruir o poder, mas não é capaz de criá-lo.
377
intuito de reproduzi-la, voltadas para preservar interesses específicos através
de instrumentos coercitivos explícitos ou sutis de qualquer natureza, em
contraposição aos mais legítimos interesses e direitos coletivos,
desqualificando a práxis democrática, crítica e reflexiva e instituindo, com a
finalidade de perpetuar, fatos e situações intensas de força e que são
desproporcionais à utilidade considerada política, econômica, social e
psicologicamente tolerável de aceitação da dominação como fruto das relações
de poder (FARIA, 2003b).
2.1
As origens da violência no contexto das
relações capitalistas de produção
A violência nas relações de trabalho é bem anterior à ascensão do
capitalismo como modo de produção dominante. Na Idade Média, as
relações de trabalho entre senhores feudais e servos já apresentavam, de
forma explícita, a violência como decorrência da dominação de um sobre o
outro. A autonomia não existia para o servo e a vida pública era incumbência
apenas dos detentores da terra. O surgimento das cidades (dos burgos) e a
intensificação do comércio possibilitaram o aparecimento de novos
378
personagens econômicos. A burguesia comercial se fortalece econômica e
politicamente; as relações de trabalho se alteram. Desenvolve-se uma nova
forma de exploração, menos vinculada à violência direta e mais composta de
sutilezas. É o que Galbraith chama de poder condicionado, pois o indivíduo
age sem questionar a história e a moral da sociedade, intensificando sua
própria exploração de forma imperceptível. A aceitação destas condições
“não ofende e nem é percebida pelo indivíduo sujeito a ela. [...] Não sendo
um ato consciente, não é humilhante ou doloroso” (GALBRAITH, 1999, p.
62).
A sujeição a estas formas de dominação está ligada às necessidades
originais dos indivíduos: sobrevivência, previsibilidade, aceitação social.
Mesmo na atualidade, estes sujeitos têm grande influência na aceitação do
poder condicionado. Com o advento do capitalismo, o processo de trabalho
se modifica e ganha novas formas, fazendo prevalecer as mediações de
segunda ordem (MÉSZÁROS, 2002). A racionalização ganha espaço frente
aos métodos tradicionais de produção e comercialização dos produtos. O
que antes era fabricado para subsistência passa a ser produto
comercializável, o que era trabalho humano passa a ser força de trabalho
vendida no mercado. Produtos e força de trabalho transformam-se em
mercadorias portadoras de valor. O avanço da racionalização dos processos,
da utilização dos recursos naturais e da ciência transformou os indivíduos
em um “recurso humano” disponível para a produção de mercadorias.83 O
trabalhador passa a vender sua força de trabalho como mercadoria. O
indivíduo, separado do produto que faz, é reificado. O capital o
instrumentaliza para a produção de valores excedentes que serão
apropriados para constituírem as bases da acumulação simples e ampliada.
As novas condições passam a ser aceitas como naturais por se
constituírem em práticas comuns da sociedade. A alienação invade o
mundo da produção, tornando-se necessário que seja “compreendida em
termos do movimento interno e contraditório da própria produção
capitalista, incorporada na transformação da força de trabalho em
mercadoria. A alienação é condição histórica, específica, do trabalho
379
subsumido ao capital e é neste sentido que se deve compreendê-la e à sua
negação através da prática das classes” (FARIA, 1987, p. 8). A alienação, da
qual os indivíduos fazem parte, é a garantia da reprodução do sistema e da
manutenção da falta de consciência dos trabalhadores em relação à sua
própria exploração.
A violência não é originária da falta de consciência dos trabalhadores em
função do condicionamento que os leva a serem explorados; é o sistema de
produção que faz dos indivíduos produtores e consumidores da sua
produção, porém alienados do seu objeto de criação ao venderem sua força
de trabalho, proporcionando ao seu comprador (detentor dos meios de
produção) a apropriação do excedente gerado.
Com a crescente alienação, expande-se a ideologia do capital, este
conjunto de idéias, simbologias, signos e imagens que é expresso em termos
de concepções objetivas e subjetivas da sociedade com o intuito de justificar
determinadas práticas, influenciando a forma como o mundo é percebido e
aceito. Sendo a realidade a ser concebida inacessível na sua totalidade pelos
detentores da força de trabalho, as formações de imagens tornam-se o
melhor mecanismo para conceber o todo. A ideologia produz seu próprio
esquema de interpretação, de dissimulação, de justificação e de renovação.
Este paradoxo, como sugere Ricouer (1990), ao mesmo tempo em que a
preserva, a limita.
Assim, evidencia-se que a aceitação da violência, seja ela na forma de
dominação econômica, política e ideológica, seja na forma de exclusão social
ou de apropriação de valor excedente pela exploração do trabalho, está
relacionada com a reprodução das condições de produção e com a
permanência de um poder condicionado que possibilita a submissão. Os
valores reais e imaginários e a parcialidade na forma de conceber o mundo
são mitificados pela divulgação de “idéias disfarces”. O consumismo e o
individualismo (muitas vezes possessivo) são considerados como valores
sociais que devem ser praticados naturalmente; a coação moral, as ameaças,
o assédio, são confundidos e tratados como conflitos no trabalho;84 as
situações de miséria e de sofrimento são encaradas como decorrentes da
falta de empenho ou de iniciativa dos indivíduos, pois se acredita que, “para
84 O assédio moral difere do conflito, das divergências, por seu caráter de perenidade, entre outras
características.
380
quem quiser trabalhar, existe trabalho”. Os discursos que criticam estas
práticas são considerados “clichês” ultrapassados, “denuncismo”, análises
fora de moda.
381
A violência ganha, assim, contornos na cultura, favorecida pela privação
de recursos para o ensino popular; pela política de sucateamento das
universidades públicas, reduzindo sua vocação crítica para torná-la
colaboradora da reprodução do modelo que irá subsidiá-la privadamente;
pelo oligopólio dos meios de comunicação de massa que de forma direta ou
sub-reptícia veiculam concepções que desestimulam enfrentamentos
políticos. Estes fatores, ao mesmo tempo em que se constituem sobre a
prática da violência, estimulam a sua manutenção, seja na vida social, seja
nas relações de trabalho, em uma dinâmica perversa que somente pode ser
quebrada com a formação de uma nova consciência política, baseada na
discussão democrática, reflexiva e crítica.
382
administração, o modelo emblemático desta forma de violência é o
taylorismo. Na atualidade, apesar dos anúncios proféticos dos
novos modelos de produção, o toyotismo é o principal exemplo
desta forma de violência, na medida em que sua manifestação é
incrementada por técnicas que impedem seu reconhecimento
imediato. Os estudos relacionados à violência física no trabalho
ganham reconhecimento de proporções importantes a partir de
dados irrefutáveis;
ii. violência psíquica: é a exploração dos aspectos psicológicos do
sujeito trabalhador em favor da organização. Um exemplo corrente
no trabalho é a utilização do medo da demissão, da angústia para
ser o melhor funcionário, do sofrimento em realizar bem as tarefas,
da ansiedade de ver o seu trabalho ser reconhecido ou pelo menos
não questionado, da frustração de não ser valorizado pelo trabalho
desenvolvido (DEJOURS, 2000). Todos estes fatores são
provenientes do psiquismo humano e surgem como elementos
naturais no processo de regulação da vida do indivíduo.
Entretanto, nas relações de trabalho, eles potencializam-se e são
explorados como forma de aumentar a produtividade.
Geralmente, estas formas de violência são perceptíveis quando os
trabalhadores adquirem doenças psicossomáticas, tais como
estresse,
depressão, neuroses e obsessões diversas, que resultam, como tem
demonstrado a ciência médica, em doenças físicas de diversas
ordens, tais como as úlceras causadas pelo nervosismo, as
enxaquecas ocasionadas pelos momentos de ansiedade ou
problemas cardiovasculares. Esta forma de violência é impossível
de ser associada diretamente com a tarefa que o indivíduo está
desempenhando.
A difícil mensuração quantitativa e qualitativa das doenças
decorrentes da violência psíquica não permite afirmar
categoricamente que a responsabilidade é da organização. A
alegação é sempre fundada na tentativa de desvio da
responsabilidade para a esfera particular da vida do indivíduo.
Outra forma de violência psíquica é referente ao controle
psicológico nas relações de trabalho (FARIA; MENEGHETTI,
383
2001a, p. 4-6), através do qual o indivíduo se sujeita aos fetiches
das recompensas da organização, ou projeta sua grandiosidade na
grandiosidade idealizada da organização em que trabalha;
iii. violência social: refere-se à reprodução dos meios sem os devidos
questionamentos das finalidades das práticas sociais nas relações
de trabalho. É a visão comum da sociedade expressa nos valores
morais, nos costumes, nos enquadramentos e nos
compartilhamentos sociais. Em conformidade com tal ideia,
encontra-se a aceitação da derrota como tabu moderno (SENNET,
1999, p. 141), o cumprimento das ações estabelecidas pelo
imaginário enquanto papel social da profissão (FARIA;
MENEGHETTI, 2002b, p. 4), o não-questionamento do
consumismo e do individualismo como incorporação do valor
moral compartilhado, o costume do jeitinho, o sucesso como
sinônimo de posses materiais.
Na violência social, a derrota do protesto é o principal fator que faz
com que as esperanças de mudanças sejam engessadas em um
futuro breve. A ideologia, pressionando a reprodução das relações
sociais e de trabalho, é uma das engrenagens que possibilita o
movimento contínuo e irredutível na prática da violência. A
ausência do coletivo em modificar sua realidade intensifica todas
as formas de violência existentes. Por este motivo é que a violência
social tem seu relacionamento direto com todas as outras formas
de violência;
iv. violência estrutural: baseia-se na ação racional-legal, instituída e
aceita na sociedade. São as instrumentalidades formadas pela
“razão” corrente. Sua aceitação ocorre porque os indivíduos e a
sociedade entendem que sua utilidade incorpora as explicações e
justificativas necessárias para manter a coesão social, impedindo o
rompimento das instituições e das leis necessárias para a
convivência em sociedade. Nas organizações, a racionalização e o
império das regras é o exemplo mais visível. A burocracia, que se
utiliza deste artifício, é a mudança estrutural que possibilita a
passagem das organizações simples às complexas, fixando uma
nova forma de dominação (TRAGTENBERG, 1977). De fato, tal
como argumenta Arendt (1994, p. 33), a este respeito, “hoje
384
poderíamos acrescentar a última e talvez a mais formidável forma
de tal dominação: a burocracia, ou o domínio de um sistema
intricado de departamentos no qual nenhum homem, nem um
único nem os melhores, nem a minoria nem a maioria, pode ser
tomado como responsável, e que deveria mais propriamente
chamar-se domínio de ninguém”. Hanna Arendt (1994, p. 59)
insiste: “Quanto maior é a burocratização da vida pública, maior
será a atração pela violência. Em uma burocracia plenamente
desenvolvida, não há ninguém a quem se possa inquirir, a quem se
possam apresentar queixas, sobre quem se exercem as pressões do
poder. A burocracia é a forma de governo na qual todas as pessoas
estão privadas da liberdade política, do poder de agir, pois o
domínio de ninguém não é um não-domínio; onde todos são
igualmente impotentes, temos uma tirania sem tiranos”.
Outra forma de violência estrutural é a incorporação dos
conhecimentos científicos (sistemas de produção, formas de
gerenciamentos, técnicas que qualificam os indivíduos como
recursos humanos etc.) sem questionamento. A transmissão do
conhecimento sem os devidos questionamentos, ou seja, o
consumo passivo pela transmissão apologética de soluções para os
problemas administrativos é uma prática educacional estruturada
no modelo pedagógico vigente (ITANI, 1998). Este fato impõe aos
indivíduos a função de serem meros consumidores das novas
técnicas, impossibilitados de questionar e de criticar as técnicas
que os estão aprisionando. Esta mesma razão, que formula estas
técnicas, é a razão que enaltece a globalização como processo
naturalmente benéfico a todos, sustentada por pressupostos que,
quando questionados, são insuficientes para formar o pensamento
crítico e emancipador;
v. violência simbólica e imaginária: é a violência pela manipulação do
simbólico em favorecimentos particulares nas relações entre os
sujeitos trabalhadores. São os benefícios e garantias formulados
nas expectativas internas dos indivíduos. No ambiente de trabalho
são expressos pelos favorecimentos individuais para ganhar o
“apoio” dos funcionários. Como exemplos desta forma de violência
podem-se citar os quadros que indicam os “funcionários do mês”.
385
Estes, na medida em que são apontados como os melhores
funcionários, declaram aos demais quais as normas de condutas
que eles devem seguir. Entretanto, raramente um mesmo
funcionário consegue repetir o desempenho esperado por mais de
três vezes, e isto ocorre não em função da perda de capacidade de
fazer as tarefas bem-feitas, mas de uma política gerencial de
estímulo à competição entre pares. A rotatividade nestes quadros,
de fato, tem o objetivo último de motivar o trabalhador, mesmo
que ilusoriamente, a intensificar seu trabalho na esperança
imaginária de ser reconhecido como o melhor e sentir-se, desta
forma, o diferente na organização. Esta forma de violência
simbólica pode ser identificada em várias outras práticas nas
organizações: na promessa do benefício extra para o “melhor”
trabalhador, na “intimidade” com o superior hierárquico, na
transferência dos termos da grandiosidade da empresa para a
grandiosidade do indivíduo que com ele identifica-se, nos prêmios
tornados armadilhas de captura dos afetos;
vi. violência econômica: caracteriza-se pela sujeição às retribuições
salariais incompatíveis com a natureza e as condições de trabalho,
com a qualificação exigida, com as necessidades mínimas de
reprodução da força de trabalho, acompanhada ou não de
exigências de trabalhos adicionais não remunerados ou
remunerados com valores inferiores às horas normais.
Simultaneamente, a violência econômica remete ao desemprego,
ao subemprego e ao subtrabalho, à informalidade, à terceirização,
ao desamparo previdenciário e de saúde, às condições desumanas
de vida no ambiente social urbano ou social (moradia, acesso à
água potável e ao saneamento urbano, energia).
As diversas formas de manifestação da violência não se apresentam
isoladas, hierarquizadas e tampouco excludentes. A violência estrutural, por
exemplo, pode ser acompanhada da violência física, psíquica, econômica e
social. Saber em qual delas se encontra a origem dos problemas seria
fundamental para evitar que a violência se manifeste e se torne banalizada,
mas tal não é o que ocorre na realidade das organizações. Nas relações de
trabalho, várias são as possibilidades do aparecimento das formas de
violência. Por ser a organização o local da mediação dos interesses, da
386
socialização dos indivíduos, da formação da identidade, da competição, do
prazer e do sofrimento, das realizações individuais e coletivas, é natural que
surjam sentimentos ambivalentes e racionalidades substantivas a fim de
regular as relações sociais.
A corrupção, por exemplo, é uma das situações que envolve todas as
formas de violência, especialmente no plano da ética (FARIA, 2000). Quando
há uma situação em que está em curso a corrupção, inevitavelmente haverá
violência física (escassez gerada pelo desvio de verbas), psíquica (decepção
e revolta em acreditar na honestidade de quem praticou o ato), social (danos
morais decorrentes da prática ilícita), estrutural (a ineficiência da
administração em evitá-la) e econômica (não-aplicação de recursos em
infraestrutura urbana).
Não se pode deixar de observar, contudo, que, mesmo quando os
indivíduos não são coniventes com a violência, nem por isto devem ser
inocentados de suas práticas, na medida em que se mostram não eficientes
em sua organização coletiva. É a organização política dos grupos sociais que
pode desencadear enfrentamentos no ambiente social e de trabalho e que
pode permitir repensar todas as dimensões das relações de trabalho: (i)
identificar as formas de violências físicas no processo de trabalho; (ii) tomar
consciência das formas de violência psíquica; (iii) reconhecer de que forma
a violência social está instituída; (iv) identificar se a razão utilizada é capaz
de abolir a violência estrutural.
Desta forma, o pensamento crítico e reflexivo sobre as condições de
trabalho só se torna efetivo como prática democrática coletiva. Entretanto,
em primeiro lugar, é necessário que a prática coletiva se imponha contra as
dificuldades e estratégias promovidas pelas organizações em sua efetivação,
pois a violência também se encontra presente nos impedimentos da
organização coletiva do trabalho.
3 A institucionalização da violência
Mesmo a dominação mais despótica que conhecemos, o domínio do senhor
sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não se amparava
em meios superiores de coerção como tais, mas em uma organização
superior do poder, isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens
sozinhos, sem outros para apoiá-los, nunca tiveram poder suficiente para
387
usar a violência com sucesso (ARENDT, 1994, p. 40).
390
como “coisas de quem não tem o que fazer”. O pensamento unidimensional
vale-se da tolerância repressiva, da passagem da postura questionadora
proativa para a prática da simples omissão.
Enquadram-se neste exemplo as omissões quanto às injustiças
cometidas no ambiente de trabalho: humilhação dos funcionários,
desqualificação das capacidades técnicas, calúnias que percorrem os
bastidores das organizações etc. A tolerância repressiva faz com que não só
a violência torne-se normal, como também se promova sua domesticação.
3.4 O totalitarismo
É a homogeneização da forma de um coletivo pensar. Não há a
possibilidade da multiplicidade das visões de mundo. É a alienação de
qualquer modelo de pensamento diferenciado. O totalitarismo tem
correspondência na legitimação da barbárie. Como sugere Horkheimer
(1991), o capitalismo configura-se como uma forma totalitária de produção
que impõe sutilmente aos indivíduos seus valores ideológicos, instituindo
sua dominação e sua inevitabilidade, de forma que qualquer pessoa que o
questione é vista como transgressor da ordem e da razão. No ambiente de
trabalho, aqueles que questionam a estrutura da organização do trabalho, a
remuneração, a forma de pensar são vistos como interventores da
manutenção da ordem. Assim, o totalitarismo se reproduz pela promessa
constante de exclusão econômica e social daqueles que criticam as práticas
sociais.
391
4 O modo de organização das relações de reprodução da violência
394
social do capital, e não das mediações primárias. “Graças às mediações de
segunda ordem do capital cada uma das formas primárias é alterada de
modo a se tornar irreconhecível, para adequar-se às necessidades
expansionistas de um sistema fetichista e alienante de controle
sociometabólico, que subordina absolutamente tudo ao imperativo da
acumulação do capital” (MÉSZÁROS, 2002, p. 213).
A alternativa a estas formas de violência impostas pelo metabolismo
social do capital devem ser definidas a partir de “um conjunto de práticas
que cumprem as funções mediadoras primárias de reprodução
sociometabólica em base racionalmente constituída e (conforme as
necessidades humanas que mudam historicamente) alterável em sua
estrutura, ou seja, sem subjugar os indivíduos ao ‘poder das coisas’”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 215).
395
A igualdade enquanto princípio individual é uma impossibilidade. Mas a
igualdade como princípio do direito é uma exigência da democracia,
especialmente a que não se adjetiva. Mas um sistema democrático não pode
legitimar a igualdade formal e ao mesmo tempo afirmar a desigualdade
substantiva. Neste sentido, é preciso investir contra qualquer forma de
dominação, de
coerção, de desigualdade, de autoridade despótica, enfim, de violência.
1.
A derrota do pensamento de protesto é um fator importante que está
presente nas relações de trabalho. As pessoas têm medo da demissão e de
ser “vistas com maus olhos” pela organização ou pelos colegas de trabalho,
o que impede o advento de qualquer forma de protesto (melhores salários,
396
melhor qualidade de trabalho, melhor comunicação etc.). O pensamento de
protesto geralmente é visto como ação de “baderneiros”, como atividades do
“baixo clero”, como “desvios de conduta”, como “coisas de quem não tem o
que fazer”. Os protestos normalmente são condenados pelos indivíduos nas
organizações. No entanto, quando os protestos geram benefícios, como
aumento de salários e melhores condições de trabalho, aqueles que eram
contrários aos mesmos não abrem mão de receber os benefícios alcançados.
É justo que os que nada fazem e, o que é pior, ainda criticam enfaticamente
os que fazem e se arriscam recebam os benefícios das ações? Pode-se dizer
que há uma acomodação nas organizações, pois sempre aparecerá alguém
que “arrisque o pescoço” pelos omissos? Neste caso, o pensamento
unidimensional, que se vale da tolerância repressiva, da passagem da
postura questionadora proativa para a prática da simples omissão, é o
pensamento dominante nas organizações?
2.
Atualmente, existem vários exemplos da banalização do mal na sociedade.
Basta ver a forma como a violência é tratada em boa parte da mídia. Para
chamar a atenção dos ouvintes, dos leitores e dos telespectadores, para
obter bons índices de vendagem e de audiência, não basta apenas noticiar
um assassinato: é necessário mostrar a cena do corpo baleado ou perfurado
pela faca, relatar com detalhes a ação cruel dos assassinos. É preciso
explorar o sofrimento da família da vítima, enfim, é necessário seguir a
lógica da espetacularização da sociedade associada à banalização da
violência. Se isso não ocorre, a notícia passa a ser mais uma informação e os
veículos de comunicação não conseguem vender o seu produto. Nas relações
de trabalho, a situação, guardadas as proporções, não é tão diferente. As
“pequenas” violências (intensificação do trabalho, rotinização dos
processos, salários baixos) passam a ser toleradas em nome do emprego,
dos resultados, dos sentimentos de grupo. Uma demissão é apenas uma
demissão. Ninguém parece estar incomodado com a situação do demitido,
de sua família, de sua dor e sofrimento. Trabalhar mais do que se prevê na
jornada é uma demonstração de amor e dedicação à empresa e quem não
colabora passa a ser visto como não merecedor de qualquer consideração.
Como enfrentar esta situação de banalização do mal e do sofrimento nas
organizações? Como é possível ter pessoas motivadas e comprometidas
trabalhando em um ambiente em que o mal se esconde em cada pedaço dele,
em cada departamento, em cada sessão, em cada área?
397
13
Controle, Organização e Trabalho
José Henrique de Faria
Raquel Dorigan de Matos
Introdução
400
agradável, integrando seus elementos que se encontram separados. Para tal, a
organização vai emprestar a estas relações de trabalho recursos do plano do
afeto. Mas estes somente se materializam como programas de gestão.
2 Organizações e controle
401
entre os indivíduos e grupos, exerce o papel de controle social. Enquanto, no
passado, os indivíduos identificavam-se por meio dos costumes, da religião,
da família, nas sociedades modernas a manutenção da integração social é
obtida em bases diferenciadas, posto que fundamentadas pela crescente
especialização gerada na divisão do trabalho (CAIADO, 2003). O controle
permeia toda a vida organizacional, da estrutura às formas de gestão. A
funcionalidade da organização depende do controle.
Nos estudos desenvolvidos sobre organizações, a temática do controle
assume diversos fundamentos que incluem desde o poder, a conformidade,
o disciplinamento e a vigilância, até a eficácia organizacional. Para Faria
(1987), o controle é entendido como mecanismo de poder. De acordo com
Etizioni (1967), o êxito organizacional depende da capacidade de manter o
controle dos participantes. Logo, o controle assume centralidade na relação
das necessidades organizacionais com as necessidades individuais. O
consentimento é parte da fundamentação do controle, visto que o indivíduo
assume um comportamento de aquiescência às normas estabelecidas pelo
poder superior, seja esta derivada da autoridade ou da coação. Nesta
direção, o controle passa a ser sustentado por mecanismos de punição e
recompensa.
Já Tannenbaum (1975) afirma que o controle nivela os comportamentos
na organização, tornando-se responsável pelo estabelecimento da
conformidade, garantindo o sucesso dos objetivos dela. Todos, na
organização, assumem comportamentos semelhantes e desejáveis,
colocando a liberdade em posição de adormecimento.
Merton (1966) salienta que as organizações burocráticas desejam a
precisão, a confiança e a eficiência; para tanto, o controle é fundamental. O
funcionário recebe pressão para que seu comportamento seja metódico,
prudente e disciplinado. Para que se atinja a eficácia na organização
burocrática, deve haver a inculcação de sentimentos e atitudes apropriados
a seu funcionamento, desencadeando, por consequência, um processo de
conformismo e conservadorismo nos trabalhadores.
Em seus estudos, Gouldner (1966) salienta que as técnicas de controle
são destinadas a manter o equilíbrio da organização. A adoção de diretrizes
gerais e impessoais como forma de solução para o controle, em subsistemas,
exigido pela cúpula organizacional, dá origem às perturbações do equilíbrio
da organização como um sistema maior.
402
A concepção que Braverman (1977) apresenta sobre o controle é de
outra natureza. Sua preocupação acerca do controle não estabelece as bases
na funcionalidade do controle, porém, nas consequências e condições da
existência e da operacionalidade do controle no contexto organizacional. A
gerência organizacional, no contexto capitalista, está voltada para o
controle, sendo este fundamental para os sistemas gerenciais. O controle
representa-se por funções de fiscalização responsáveis pelo ajustamento do
sujeito trabalhador à máquina organizacional, determinando o seu fazer e o
seu pensar.
Enriquez (1996) já apresenta uma perspectiva freudiana do
fundamento social e da cultura, centrada na psicologia das massas e na
pulsão de morte, em que a sociedade, a exemplo do indivíduo, move-se
dentro de um jogo constante entre os impulsos e as proibições; entre os
desejos e o recalcamento. O controle relaciona-se com a manutenção do
domínio exercido pelo Estado sobre o corpo social; aquilo que, em última
instância, garante a ordem, a manutenção das relações de poder e a execução
dos objetivos do Estado. Seguindo a mesma lógica do Estado, as
organizações procuram estabelecer o domínio sobre o seu mundo interno, a
fim de lutar contra as angústias que lhe atravessam e de realizar os objetivos
definidos. Para tanto, desenvolvem uma estrutura de funcionamento, ou
seja, uma estrutura de poder, que viabiliza condutas coletivas e certas
pulsões que proporcionam a obediência às normas e à conformidade. As
organizações estabelecem o domínio sobre o inconsciente dos indivíduos,
fazendo com que se calem e não se manifestem de forma autêntica
(ENRIQUEZ, 2000). As organizações buscam garantir a estabilidade
mediante a submissão de seus membros aos seus ideais. Para tanto,
estabelecem formas de proteção às angústias dos indivíduos, sendo
legitimadoras do controle.
Os estudos sobre Economia Política do Poder (FARIA 2004a, p. 86)
permitem mostrar que o “controle traduz-se na vigilância permanente do
trabalhador, no seu ritmo de trabalho, nos gestos, na postura, no
cumprimento estrito das especificações do trabalho, na máxima utilidade do
tempo, enfim, no adestramento do corpo e das emoções”. O controle permeia
o processo de trabalho capitalista, sendo que o trabalhador é desprovido de
tal ação. A divisão do trabalho, seguindo o modelo taylorista, é um dos
fatores que viabilizam os mecanismos de controle, juntamente com a
inclusão das máquinas no processo de trabalho, sendo estas responsáveis
403
pelo controle do ritmo e da intensidade, bem como da forma de organização
do trabalho (BRAVERMAN, 1977). Neste sentido, Faria (1987, p. 50) afirma:
“Sua utilização é mais intensa, na verdade, ao nível da gestão do processo de
trabalho, porque a gerência capitalista sabe que é aí o lugar central de sua
sobrevivência: origem (fonte) da reprodução simples e ampliada do capital.”
406
Os elementos político-ideológicos centrais da gestão capitalista
são: (i) despotismo: organização opressiva do trabalho, impondo
os interesses do capital aparecendo como a afirmação de uma
função política que consiste em perpetuar a dependência e a
subordinação dos trabalhadores ao capital; (ii) estrutura
hierárquica e burocrática: a estrutura hierárquica opera a divisão
do trabalho, determinada pela eficiência do processo produtivo.
Subtrai ao controle dos trabalhadores as condições e as
modalidades do funcionamento das máquinas, tornando o controle
uma função separada, estabelecendo um confronto direto entre os
que geram e os que são geridos; (iii) disciplina: tem como função
punir e reprimir através de micropenalidades que atuam em todas
as dimensões das organizações, objetivando o aumento da
produtividade dos corpos e, através da obediência, a docilização
desses mesmos corpos; (iv) transmissão ideológica: ocorre
inicialmente para fora da organização produtiva através dos
aparelhos do Estado. “Reproduzir a força de trabalho não é
reproduzir a sua qualificação, mas é reproduzir, ao mesmo tempo,
sua submissão à ordem estabelecida, isto é, reproduzir sua
submissão à ideologia dominante” (FARIA, 2004c, p. 108); (v)
alienação: “A essência da alienação encontra-se não na consciência
do trabalhador, mas nas condições objetivas da organização
capitalista de produção que transformam o trabalho do homem
numa forma externa estranha” (FARIA, 2004c, p. 115). A alienação
do trabalhador se dá em duplo sentido: econômico (alheamento
em relação ao produto de seu trabalho) e psicológico (alheamento
em relação ao processo de trabalho e ao próprio pensar). Aqui, o
foco é atribuído ao nível psicológico da alienação e relaciona-se ao
“sequestro da subjetividade”, à apropriação do pensar do
trabalhador.86
iii. O controle psicossocial: engloba relações entre sujeitos
(individuais ou coletivos) inseridos nos processos produtivos. O
controle psicossocial nas organizações capitalistas está inserido
nas relações de poder, as quais permitem operar as diversas
407
formas desse controle. O controle pode ser observado nas
dimensões individual, grupal, organizacional e social. A prática do
controle e os efeitos sobre os indivíduos, grupos, organizações e a
sociedade são interações, de dupla determinação e não de uma
relação causa-efeito: “A ideologia da gestão capitalista cumpre o
papel de continuar a manter a concepção segundo a qual o controle
cabe ao capital/gestor em detrimento de uma gestão democrática
dos trabalhadores sobre seu trabalho” (FARIA, 2004c, p. 143).
Este estudo concentra-se sobre este último nível de controle, o
psicossocial.
409
opinar. Além disto, a palavra deve ser traduzida em textos formais
(atas de reuniões, ofícios, relatórios, regulamentos), de maneira
que, uma vez pronunciada, não mais poderá ser renegada, dando
coerência à postura de quem se exprime. Cada um modela seu
discurso e seus argumentos em função do discurso do outro, de tal
forma que, se um indivíduo muda de opinião, é logo apanhado na
armadilha da palavra antiga (ENRIQUEZ, 1974).
A sociedade atual propaga a ideia de reificação, em que o que está posto
é natural, passível, portanto, de aceitação. A estrutura se mantém
sustentada pela racionalidade instrumental. Porém, não se pode falar na
existência única da racionalidade. Esta é atravessada por subjetividade(s).
O que se valoriza nos dias atuais é a razão, buscando reprimir e esconder o
afeto e os sentimentos. A aceitação e a reprodução da lógica da
racionalidade instrumental são fundamentais para a sobrevivência. “É por
reconhecer a existência e a importância da subjetividade, que as
organizações investem no controle psicossocial” (FARIA, 2004c, p. 124).
A mediação dos interesses que compõem a natureza do controle
psicossocial é realizada pela organização mediante a racionalidade
instrumental e a representação de posturas e comportamentos desejados e
esperados. A organização desenvolve mecanismos de controle da produção
mediante processos, linhas de produção, distribuição para garantir o
desenvolvimento ou a manutenção dos padrões exigidos pela competição ou
demanda social. Porém, desenvolve, também, mecanismos de controle
direto e indireto, objetivo e subjetivo dos comportamentos e atitudes dos
sujeitos.
411
preciso do meu ganho, eu estou aqui para trabalhar e se eu não fizer aquela
escala outro vai fazer, então [...] se veio para mim, vamos embora. Eu brinco
com os caras quando eles perguntam da minha escala e eu digo: – A minha
escala veio duas escalas que eu gosto e se Deus quiser daqui uns dias vêm
três e eu vou fazer.
414
organizações são espaços de comportamento controlado, e todo o controle
social passa necessariamente pelo controle da identidade” (FREITAS, 2000,
p. 53). Logo, o controle simbólico-imaginário é exercido sobre a identidade
do sujeito trabalhador. O sujeito submete o seu trabalho à crítica social em
busca de reconhecimento, sendo o mesmo fundamental para a conquista da
identidade (DEJOURS, 1992).
Eu gosto muito dos chefes. Aqui não tem nenhum chefe que eu tenha um “mal
visto” com ele. Eu quero bem a todos e acho que eles também querem o meu
bem... São alguns sujeitos que cativam a gente aqui. O pagamento é sempre
em dia. Tem algumas vantagens que as outras não têm. Aqui você sempre
leva um elogio, ganha um presentinho, não custa nada, mas é uma lembrança
que você vai guardar para toda a vida. Eu mesmo tenho um monte de
lembranças. São coisas que meus filhos olham, meus netos. Tudo isso influi
na estadia da gente aqui. Eu tenho, na minha mente, que eu não vou sair
daqui sem antes me aposentar. Estou esperando, já dei entrada nos papéis.
4 Considerações finais
416
medo de não saber para onde ir ou o que fazer. Esta crença é alimentada pela
organização.
Os mecanismos de controle da organização estudada buscam a
manutenção da ordem mediante o recalque das pulsões dos trabalhadores.
A despeito do transporte coletivo da cidade estudada (que possui em sua
Região Metropolitana cerca de três milhões de habitantes, de acordo com o
último levantamento do IBGE) ser considerado equivalente aos melhores
modelos mundiais, as condições de trabalho, a organização do trabalho e as
relações de trabalho da categoria dos motoristas ainda são sensivelmente
precárias.
A pesquisa realizada mostrou que a organização utiliza mecanismos de
controle para efetivar o “sequestro da subjetividade” dos seus
trabalhadores, em busca da manutenção do sistema de trabalho. Porém, esse
controle não se faz sem resistências. O trabalhador, independentemente de
sua formação, percebe as contradições próprias deste sistema e busca o seu
espaço de luta. Exemplo desta luta foi a paralisação, liderada pelos
motoristas do transporte coletivo, por melhores salários e melhores
condições de trabalho, durante dois dias, cujo resultado foi um acordo
trabalhista melhor do que o anteriormente vigente. Esta paralisação, que
aconteceu durante a fase final deste estudo, mostrou que, quando os limites
do que é suportável são ultrapassados, não funciona a prática daquela chefia
que telefonava aos motoristas do comando da polícia.
Como resultado do trabalho de pesquisa, novas dúvidas surgiram.
Temas como o sistema sindical brasileiro e as novas práticas sindicais, o
transporte coletivo como sistema integrado, questões de gênero no
transporte coletivo, são investigações que precisam ser feitas de forma a
possibilitar uma apreensão mais detalhada das manifestações dos
mecanismos de controle nas organizações e que estão abertas a novas
pesquisas.
1.
A natureza contraditória das relações capitalistas de produção dá-se à
medida que a força de trabalho passa a ser categorizada como mercadoria e,
portanto, propriedade do capital, sendo que a divisão dos sujeitos em
417
proprietários dos meios de produção (capitalistas) e em vendedores da
força de trabalho (proletários) determina a contradição primeva. Deste
modo, a mercadoria força de trabalho, ao realizar o seu valor de troca,
possibilita a alienação do seu valor de uso (MARX, 1985). Assim, a compra
da força de trabalho determina que essa pertence ao comprador
(capitalista). Diante do exposto, de que forma o capitalista procura
minimizar os conflitos e resistências oriundos da contradição das relações
capitalistas de produção?
2.
As organizações capitalistas, em busca de seu objetivo principal
(acumulação), usam métodos de controle que propiciem a
manutenção/reprodução de seu modelo de relações de poder, em um
esforço de dominação física e subjetiva. Não somente as ações dos sujeitos
são controladas pelas estruturas capitalistas, como também o sentir e o
pensar são esferas que muito interessam às formas de controle; assim, os
sujeitos não mais buscarão a emancipação, mas apenas reproduzirão a
“verdade” que lhes foi imposta. Os métodos de controle privilegiam a
letargia mental e inibem a pulsão de vida, favorecendo, deste modo, a
rotinização e a manutenção do estabelecido. Diante deste cenário é possível
o trabalhador criar o seu espaço de luta na tentativa de transpor esse
isolamento? E de que forma essa ação se dá?
418
Os Predadores Organizacionais:
Considerações Finais
José Henrique de Faria
87 Afinal, os indivíduos não tramam contra si mesmos, não se boicotam? Não é raro indivíduos dando
“um tiro no próprio pé”, “cavando sua própria sepultura”.
421
Predação organizacional é o hábito desenvolvido principalmente entre
gestores e refere-se ao processo no qual eles procuram ativamente as suas
presas, que podem ser outros gestores, subordinados ou concorrentes, os
perseguem e capturam através de ataques diretos ou de armadilhas
astuciosamente construídas para a inclusão dos mesmos em sua cadeia
alimentar do poder.
A estes gestores dá-se aqui o nome de predadores organizacionais, que
são normalmente pessoas que ocupam funções com alguma dimensão de
poder relativo ao cargo em relação às suas presas. Não são raros os
predadores que utilizam como presas outros gestores de mesmo nível, ou
que atacam seus descendentes organizacionais, seus herdeiros (biológicos
ou legais), em um fenômeno que pode ser denominado de “canibalismo
genético” nas organizações. O alimento do predador organizacional, a
motivação, o objetivo ao qual dedica boa parte de suas energias, é atacar e
destruir a presa.
A presa é a vítima objeto da atenção do predador, escolhida por seus
atributos, tais como: autonomia, competência, recusa à submissão,
iniciativa, ética. Enfim, a presa é escolhida por se constituir em um
empecilho ao projeto de destruição e poder do predador que, assim, vai
montando uma equipe de súditos, indivíduos que prestam vassalagem, em
um ambiente de dupla confiança e terror, de crise e conluio.
O predador organizacional pode ser direto e objetivo, atacando a presa
e destruindo-a, ou sádico, quando brinca com a presa, soltando-a para ter o
prazer de caçá-la novamente até que esta, sem mais resistência, deixe de
lutar pela vida e se entregue silenciosamente ao apetite do predador.
O predador costuma perseguir a presa incansável e implacavelmente. Se
a presa se dá conta, a mesma se defende e pode escapar do predador ou
impor-lhe uma derrota, sem que isto seja uma garantia de que não haverá
outra investida. Na natureza, predador e presa perseguem e fogem desde o
início dos tempos, em uma espécie de dança primitiva que determina o
equilíbrio contraditório dos ecossistemas naturais, sendo que muitas vezes
são as presas pequenas e inferiores que escapam de seus adversários. Este
drama básico gera sofisticadas e complicadíssimas táticas e estratégias de
predação e defesa, que mostram a complexidade da natureza. Mas, na vida
organizacional não é esta a lógica que impera. Aqui, trata-se de uma luta
incessante de poder no espaço da microfísica; trata-se da destruição dos
422
oponentes reais ou imaginários. Nas organizações, o predador pretende ter
o máximo controle sobre a estrutura, sobre os recursos, sobre a esfera das
decisões. O único equilíbrio que lhe interessa não é funcional ou sistêmico,
mas o da dominação, da vigilância, do disciplinamento (no sentido da
autoflagelação moral do sujeito submetido ao poder) e da docilidade.
A variedade de recursos de que dispõem desde a mais insignificante das
presas ao mais poderoso dos predadores para conseguir alimento, defender-
se de seus inimigos e sobreviver às condições ambientais, cuidando de seus
companheiros e sua descendência, é infinita e assombrosa. Há, na natureza,
quatro aspectos da relação presa-predador que, trazidos para a prática
organizacional, podem ser assim descritos:
i. a forma com que se usa a rapidez das ações para capturar as presas
ou escapar dos predadores;
ii. a maneira com que se usa a guerra simbólica para ameaçar ou
agredir os predadores ou as presas;
iii. as extraordinárias habilidades de alguns seres em perceber um
mundo sensorial ao qual os seres vivos em geral não têm acesso;
iv. a capacidade que alguns seres possuem de ficar invisíveis para
seus adversários, seja enquanto articulam ou se preparam para a
caça, seja quando não são notados pelo predador (mimetismo).
No primeiro caso, o predador age com rapidez para atacar sua vítima de
forma que esta não tenha nenhuma possibilidade de fuga, de resistência ou
de combate. Trata-se de um ataque direto e fatal e a presa é devorada ainda
viva. A vítima, por seu turno, utiliza a velocidade para escapar do predador
assim que a mesma percebe seu movimento, suas intenções não explícitas,
esgueirando-se por entre as estruturas organizacionais ou os bastidores
para armar seu bote. A vítima pressente o predador e rapidamente escapa
de seu alcance, mas sabe que ele continua sendo um predador e ela uma
vítima em potencial.
No segundo caso, o predador organizacional utiliza símbolos de poder,
ameaça com punições e sanções para hipnotizar e enfraquecer a vítima.
Trata-se de uma ação insidiosa, traiçoeira, cheia de disfarces, pérfida, que
a partir de críticas permanentes ao desempenho, de falta de
reconhecimento pelos trabalhos realizados, de indução ao erro, de omissão
de providências de maneira a poder imputar à vítima a responsabilidade
423
pelo fracasso, vai armando emboscadas e ciladas com as quais espera
atacar e destruir a presa. Por seu lado, a vítima também se utiliza da guerra
dos símbolos, desdenhando aqueles obtidos pelo predador, ironizando
seus significados, diminuindo sua importância, ridicularizando o predador
nos bastidores, ou expondo-o publicamente a situações constrangedoras.
A vítima age desta forma para não apenas desqualificar o predador, mas
também para desestimular suas ações com relação a ela, pois torna
explícitos os motivos que poderiam levar o predador a agir com ela, presa.
No terceiro caso, o predador possui habilidades sensoriais com relação
aos sentimentos de sua presa, identifica suas fragilidades com facilidade,
sente no ar o “odor exalado pelo medo”, reconhece e estuda seus pontos
fracos, antecipa seus movimentos, sabe quando a vítima encontra-se
enfraquecida para atacar sem riscos. A vítima, por seu lado, defende-se ao
perceber com antecedência a intenção do predador, atacando nele o que o
sensibiliza e desarma, induzindo-o a desistir da caça ou a escolher outra
presa.
No quarto caso, o predador organizacional é aquele indivíduo que
ninguém percebe, ninguém nota, ninguém imagina que ele está em processo
de caça. Simpático, falante, amigo de todas as pessoas, incapaz de discutir
com quem quer que seja, este predador é um dos mais perigosos, porque é
totalmente dissimulado. A vítima, por seu turno, utiliza a capacidade de não
ser vista escondendo-se do que pode ser um predador. Não ameaça
ninguém, não incomoda, faz o que lhe mandam, não pleiteia cargo, submete-
se, fica em seu canto, não reclama, não fala mal e nem bem de ninguém, não
toma partido.
A relação entre o predador organizacional e a presa ultrapassa a disputa
das relações hegemônicas, pois, mais do que o poder, o que está em causa é
a destruição, é o que Baudrillard (2005) chama de Poder Canibal. Não se
trata de uma relação simbólica, ainda que símbolos façam parte da ação, e
tampouco de uma simples dominação, mas de um ataque mascarado (i) pela
obscenidade institucionalizada no paradigma da competitividade e da
gestão por resultados, (ii) por uma ausência da ética das relações entre
pessoas pois o que prevalece é a ética do capital e esta só tem um projeto,
que é o lucro (FARIA, 2004a), (iii) pela liquidação do humano no mundo em
que pessoas são ao mesmo tempo coisas e mercadorias, ambas descartáveis.
A canibalização nas organizações consiste não apenas em predadores
424
devorar indivíduos da mesma espécie (diretores destruindo diretores,
gerentes destruindo gerentes), mas em retirar pessoas de áreas
(departamentos, seções) sem qualquer tipo de critério para utilizá-las como
sobressalentes de outras áreas da mesma espécie, ou seja, consiste no
reaproveitamento e na reutilização de pessoas como peças de uma máquina.
Este ambiente de canibalismo organizacional favorece a sobrevivência dos
predadores organizacionais, pois aumenta sua área de caça ao criar e
proliferar o número de vítimas em potencial.
Entretanto, no mesmo ambiente dos horrores, existem lugares para as
lutas, nos lugares do poder existem espaços para o contrapoder, nos lugares
da predação existem lugares de resistência, porque, como sugere Vygotsky
(1991), o mundo é percebido pelos indivíduos não apenas em seu aspecto
externo, em sua forma, mas igualmente como um mundo com sentido e
significado. As percepções humanas, além do mais, não são isoladas, mas
categorizadas. Isto permite aos indivíduos, diante de processos de escolha,
usuais em momentos de definição política, de enfrentamentos, de lutas, de
resistência, reconstruir tais processos, dinamicamente, em bases totalmente
novas.
Nesse sentido, é necessário considerar que, como as funções simbólicas
incluídas nas escolhas influem no comportamento do indivíduo, há, em vista
disso, um investimento importante de lideranças de grupos sociais na
construção de símbolos capazes de dar sua direção política às escolhas que
devem ser realizadas por membros desse grupo, escolhas que no plano
coletivo têm o intuito de legitimá-las para conferir sustentação e coesão ao
mesmo, pois é somente no plano coletivo que se podem construir
resistências, que se materializam estruturas de poder, que se articulam
relações de poder.
O grupo social não escolhe ou decide apenas baseado em fatos
imediatos, ao contrário dos indivíduos que podem se deixar levar pelos
impulsos. Há um processo de construção que lhe antecede, uma memória
que torna disponíveis fragmentos do passado e transforma-se em um novo
método de amalgamar as experiências com os fatos presentes. Entretanto, é
preciso não deixar de ficar alerta para o fato de que esta memória, desde que
não pertença originalmente aos indivíduos, pode ser “recomposta” ou
reconstruída por conveniência através de discursos que contam a história
não exatamente como ela de fato foi, mas como determinadas lideranças
425
teriam preferido que a mesma tivesse sido, especialmente se elas estão em
confronto com outras lideranças, ou se desejam ampliar seu espaço político
no interior do grupo social: isto torna os fatos e os discursos tão importantes
quanto seu registro fiel, de forma não só a preservar a memória, mas
também a permitir que a mesma seja apropriada pelo grupo como sua.
Na medida em que o grupo se desenvolve, contudo, ocorre uma mudança
não tanto na estrutura da função isolada da memória, mas igualmente, como
observa Vygotsky (1991, p. 56 e 58), “no caráter daquelas funções com a
ajuda das quais ocorre o processo de lembrança”, alterando as relações
interfuncionais, de maneira que a memória favoreça o ato de pensar e de
agir sobre o ambiente: “a característica básica do comportamento humano
em geral é que os próprios homens influenciam sua relação com o ambiente
e, através desse ambiente, pessoalmente modificam seu comportamento,
colocando-o sob seu controle”.
Para Vygotsky, o indivíduo, em sua relação com o ambiente, reconstrói
seu comportamento ou, para ser mais preciso, o indivíduo, quando realiza a
reconstrução interna de uma operação externa, procede a uma
internalização, de maneira que suas atitudes somente são verdadeiras
quando manifestam objetivamente para outros indivíduos todas as funções
que tais atitudes contêm, sendo também entendidas pelos outros como tal.
O processo de internalização consiste, assim, em uma série de
transformações, resumidas por Vygotsky (1991, p. 64):
i. “uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é
reconstruída e começa a ocorrer internamente”;
ii. “um processo interpessoal é transformado num processo
intrapessoal”: as funções aparecem primeiramente no nível social
e depois no individual (sendo particularmente importante na
formação de conceitos e de memória lógica), dado que “as funções
superiores originam-se das relações reais entre indivíduos
humanos”;88
iii. “a transformação de um processo interpessoal num processo
88 Não é demais observar que tais funções somente se transformam de interpessoal em intrapessoal
se o indivíduo possui uma condição interna anterior que permita tal transformação, a qual, em um
primeiro momento, é de natureza genética, como sustenta Piaget (1976), ou que decorre da pré-
história, das raízes biológicas, dos arranjos orgânicos, como defende Vygotsky (1991).
426
intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos
ao longo do desenvolvimento”: antes de internalizar
definitivamente, o processo vai sendo transformado
continuamente até ser incorporado (em um novo sistema de
comportamento) e culturalmente reconstituído e desenvolvido.
Por esse motivo, é importante observar como, no âmbito de um grupo
social, o indivíduo pode transformar-se a si mesmo e transformar os demais
e como este processo pode ser revelador do comportamento do grupo, de
sua coesão ou de sua dispersão, de sua unidade e coerência ideológica ou de
seus conflitos, de seu desenvolvimento político ou de sua falência, da firmeza
de seus princípios ou de sua flexibilização, de sua capacidade de definir e
realizar seus interesses objetivos específicos ou de seu desmantelamento,
de sua condição de estabelecer estratégias e prioridades de ação ou de sua
desorganização.
Isto porque, quando em ação no grupo, o indivíduo usa a fala para
transpor para o âmbito coletivo o que de fato é seu sistema, resultado de seu
processo, o qual será expresso de forma impessoal e não como vontade
individual, já que esta é, de pronto, destituída de legitimidade para si, a qual
só pode ser obtida com a aprovação do grupo.
A estrutura formal de autoridade, uma das bases das relações de poder
nas organizações, alimenta no imaginário dos grupos em confronto a
necessidade de “estar bem com o poder”, receber seus benefícios, ser seus
filhos prediletos. Como a leitura desta relação simbólica perpassa o
inconsciente grupal, cada grupo buscará seu lugar ao lado do Pai.
Nesta incessante luta que quase nunca se desenrola nas estruturas
formais, embora possa ter também aí sua expressão, habitam os predadores
organizacionais. É no sistema de tramas, de bastidores, de armadilhas, que
os predadores se sentem à vontade em suas ações. Neste terreno em que o
predador encontra-se camuflado, em que a vítima é apartada do grupo para
ser devorada sem opor resistência ou com pouca e quase inútil resistência,
que se impõe a organização dos grupos sociais, sua unidade, sua ação
coletiva, pois, onde há poder, deve haver contrapoder; onde há opressão,
deve haver resistência; onde há autoritarismo, deve haver democratização;
onde há predador, deve haver caçador.
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