Dossiê Teoria de Gênero - Crítica Espírita
Dossiê Teoria de Gênero - Crítica Espírita
Dossiê Teoria de Gênero - Crítica Espírita
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Apresentação
Eis a primeira novidade 2018… a Edição conhecer, eles não se encontrem em certos
Dossiê, onde reunimos alguns textos já pontos e que, quando se conhecerem, não
lançados sobre determinado tema. Em se dêem a mão para marchar em conjunto
nosso Ano IV, podemos ver o quanto já ao encontro de seus inimigos comuns: os
produzimos de importantes reflexões so- preconceitos sociais, a rotina, o fanatis-
bre o espiritismo e sua relação com a socie- mo, a intolerância e a ignorância”. Mas,
dade, que recolocamos ao seu dispor. diante do alinhamento de espíritas com o
Inaugurando esse espaço, vamos abordar a reacionarismo precisamos dizer que somos
temática de GÊNERO, que voltou à tona progressistas;
Editor
após recentes declarações de Divaldo 5) Divaldo é livre para expressar suas opi-
Raphael Faé Baptista Franco durante o 34º Congresso Espírita niões. Claro. Mas, homem público ou não,
Editoração: de Goiás, onde, dentre outras, abomina a deve estar aberto às críticas e, se embasa-
“ideologia de gênero” e faz considerações das, tem o dever, como prática de humil-
Felipe Sellin
desconexas sobre política, repetindo jar- dade, de rever seu posicionamento, como
Colaboram nessa Edição:
gões e senso comum fruto de notícias fal- qualquer outra pessoa de boa-fé e compro-
Felipe Sellin sas e desinformação. metida com o progresso das ideias e com a
Franklin Felix Com a participação dos editores do Jornal ética;
Raphael Faé Baptista Crítica Espírita – Raphael Faé e Felipe 6) O nível de alguns comentários em defe-
Mônica Lanes Sellin –, um grupo de espíritas lançou uma sa de Divaldo – com xingamentos e intole-
NOTA manifestando a nossa divergência rância – mostram a faceta perversa do
Tatiane Miranda Goldhar
sobre o que foi dito, nota que abre essa culto à personalidade, da atitude acrítica e
edição especial... do religiosismo alienante de parte do mo-
Diante do infeliz culto à personalidade de vimento espírita brasileiro.
Divaldo Franco (que tem o nosso respeito Na sequência, o leitor e a leitora encontra-
enquanto ser humano), queremos fazer rá os artigos:
breves comentários sobre assuntos que - Igualdade de Gênero à Luz da Dou-
surgiram em nossa página no Facebook: trina Espírita, de Tatiane Miranda Gol-
1) Não houve qualquer desrespeito à pes- dhar;
soa de Divaldo. Questionamos a fala dele, - Por que devemos conversar sobre
carente de base científica, deveras precon- gênero e patriarcado no movimento
ceituosa e politicamente rasa, perante um espírita, de Mônica Lanes;
auditório lotado de jovens; - Um olhar sobre o novo-velho movi-
2) Obras sociais não eximem qualquer mento espírita: por um movimento
pessoa de ser questionada quanto a certos mais diverso e menos heteronorma-
pontos; tivo, de Franklin Félix; e,
3) Não queremos dividir o movimento - Gênero e a miséria da política e da
espírita. Ele já é dividido (aliás, algo natu- religião, de Raphael Faé.
Edição n°37—Janeiro de 2018
ral em doutrinas filosóficas), pois reproduz Tudo isso mostrando que o Jornal Crítica
6.452 seguidores na página
2.785 pessoas alcançadas as diferenças já existentes na sociedade, e Espírita tem buscado levar essa discussão
94 curtidas em publicação essas questões só realçam cisões; ao público, espírita ou não, visando a for-
33 compartilhamentos
4) Seria desnecessário dizer que somos mação de uma massa crítica em torno do
espíritas “progressistas”, pois todo espírita espiritismo.
deveria sê-lo, como afirma Kardec na Re- Tenham uma excelente (re)leitura!
vista Espírita (Jun/1868), de que “O Espi-
Interaja conosco, sua opinião ritismo conduz precisamente ao fim que se Os editores,
é muito importante para nós: propõem todos os homens de progresso.
[email protected] É, pois, impossível que, mesmo sem se Raphael Faé e Felipe Sellin
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Espíritas progressistas respondem à entrevista
coletiva de Divaldo Franco e Haroldo Dutra
no congresso de Goiás:
Brasil. E a referência a um juiz federal de Gênero” se dedicam a procurar entender
Espíritas que somos, os abaixo-assinados,
tornamos pública a nossa desaprovação a primeiro grau como o Presidente desta como se constitui a feminilidade e a mas-
diversas opiniões que foram expostas no acintosa República é um grave desrespeito culinidade do ponto de vista social, se de-
ao Estado, à nação brasileira, atribuindo a bruçam sobre questões de orientação sexu-
vídeo que circulou essa semana nas redes
tal república poderes inexistentes em nossa al, hetero, homo, transsexualidade – ou
sociais, e que depois foi retirado do Youtu-
Constituição. Além dessa nociva postura seja, todos fenômenos humanos, que estão
be. Declaramos que elas não nos represen-
tam e não representam o espiritismo, pois marcadamente messiânica e de culto à diariamente diante de nossos olhos. Pode-
são apenas opiniões pessoais de seus auto- personalidade, pode dar a entender que o mos concordar com algumas dessas con-
res, e que, em nosso entender, carecem de restante do povo brasileiro não presta e clusões, discordar de outras, deixar em
que não há pessoas boas espalhadas pelo suspenso outras tantas. Esse olhar é muito
fundamento teórico e científico.
Brasil dando o melhor de si. recente na história e ainda estamos apal-
Aliás, médiuns e oradores não têm autori- pando questões profundas e complexas – e
dade para falar em nome do espiritismo. 2) Divaldo chama esse mesmo juiz de em nosso ponto de vista espírita, não é
Ninguém tem essa autoridade, nem mesmo “venerando” – o que é altamente questio- possível ter plena compreensão delas sem
instituições federativas. O espiritismo é nável, dadas as críticas de grandes juristas a chave da reencarnação. Uma abordagem
uma ideia livre, cuja maior referência é nacionais e internacionais à parcialidade puramente materialista jamais vai dar con-
desse juiz e a seus atos de ilegalidade, que
Kardec, mas cujos livros também não po- ta do pleno entendimento do psiquismo
feriram a Constituição, e às notícias que
dem ser citados como bíblia. Para manifes- humano. Mas estamos muito longe de ter
correm na mídia de seu conluio com deter-
tarmos ideias e posições do ponto de vista gente reencarnacionista competente, fa-
espírita, segundo a própria metodologia minados segmentos e partidos. zendo pesquisa séria, para dialogar com
proposta por Kardec, temos de dialogar
3) Divaldo assume uma postura claramen- pesquisadores com abordagens meramente
com a ciência de nosso tempo, usar argu-
te partidária, contrária ao PT – o que é de sociológicas ou psicológicas. Então, nós
mentos racionais e adotar de preferência seu pleno direito, mas nunca em nome do espíritas, não temos ainda melhores res-
posturas que estejam de acordo com os espiritismo – fazendo, porém, uma crítica postas que os outros e não podemos, por
princípios básicos da ética espírita, que são
rasa, com uma miscelânea conceitual, cha- cautela, seguir a cartilha dos setores con-
os da liberdade de consciência, amor ao
mando o governo desse partido de marxis- servadores mais radicais de generalizar
próximo, fraternidade, entre outros.
ta e assumindo um discurso próprio da esses estudos sob o termo, usado aqui pe-
polarização extremista, manipulada e sem jorativamente, de ideologia, para desquali-
O movimento espírita brasileiro está longe
consistência que invade nossas redes soci- ficá-los como “imoralidade ímpar”. Parece-
da unanimidade em todos os temas, sobre-
ais e nossa vida política, contribuindo para nos que uma dose de humildade científica,
tudo os que se referem a questões contem-
prudência filosófica e bom-senso faria bem
porâneas e, por isso, é importante delimi- os momentos de incertezas e de medos em
a todos nesse ponto, especialmente quando
tar as posições, para deixarmos claro que que vivemos.
o domínio sobre os corpos e a sexualidade
declarações como as que foram feitas neste
4) Há uma fala extremamente problemáti- sempre foi um ponto central para as religi-
vídeo não representam o espiritismo. ca que se refere à chamada “ideologia de ões ocidentais.
gênero”. Não existe “ideologia de gênero” –
Dessa forma, rebatemos alguns pontos da
este é um termo criado por setores funda- 5) Divaldo revela também completo desco-
referida entrevista:
mentalistas da Igreja Católica e depois nhecimento dessa área de estudos de gêne-
1) Divaldo referiu-se à República de Curiti- adotado pelas Igrejas Evangélicas. Existe ro, alinhando-a ao marxismo e ao comu-
ba e a seu suposto “presidente”, Sérgio sim uma área de pesquisa no mundo que nismo. As grandes lideranças desses estu-
Moro. Não existe uma República de Curiti- se chama “Estudos de Gênero” – que teve dos estão nos Estados Unidos e na Europa.
ba, pois segundo nossa Constituição só há influência de Michel Foucault, Simone de Aliás, os estudiosos desse tema encontram-
uma República a ser reconhecida em nosso Beauvoir e Judith Buttler. Os “Estudos de se em diversas correntes de pensamento,
território, e é a República Federativa do desde marxistas até pós-modernos de dife-
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rentes matizes e até liberais. Ao fazer isso, partidário e nem medidas punitivas contra Iracema Maria, PE
mais uma vez, mostra a adesão a um dis- quem quer que seja: nossa bandeira é a da Izaias Lobo Lannes, MG
curso pronto, midiático, que ressoa nos educação, da fraternidade entre todos e da João Carlos de Freitas, SP
setores evangélicos e católicos mais radi- paz, comprometidos com a democracia, a Jandyra Abranches, ES
cais, que primam por taxar qualquer ideia justiça social e a regeneração da sociedade. Juçara Silva Volpato, ES
ou debate que lhes desagrade com o termo Leandro Piazzon Correa, SP
“comunista” – um grande espantalho ge- Adriana Jaeger Santos, RS Litza Amorim, SP
neralizante, simplista e esvaziado de senti- Adriano Medeiros, RR Lorisani Marisa de Leão de Souza, RS
do, mas que tem sido eficaz, ao longo dos Agnes Vitória Cabral Rezende, MT Luciano Sérgio Ventin Bomfim, BA
tempos, para dar forma a medos sociais e, Luis Gustavo Carvalho Ruivo Andrade, SP
Alana de Andrade Santana, BA
assim, orientar o ódio e o ressentimento Luis Márcio Arnaut, SP
Alessandro Augusto Arruda Basso, SP
das pessoas contra certos alvos. Luziete Maria da Silva del Poggetto, SP
Alessandro Cesar Bigheto, SP
Alexandre Mota, SP Marcel Pordeus, CE
Por fim, deixamos aqui as seguintes afir-
Alexandro Chazan, SP Marcelo Henrique Pereira, SC
mações:
Álvaro Aleixo Martins Capute, MG Marcos Wilian Silva MT
• Nenhum médium ou orador pode falar Bernadete Faé, ES Maristela Viana França de Andrade de
do espiritismo. Isso é, por si só, desonesti- Carlos Augusto Pegurski, PR Maristela Viana França de Andrade, GO
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IGUALDADE ENTRE GÊNEROS À LUZ DA DOUTRINA ESPÍRITA
É de sabença comum que a sociedade Nesse contexto que grassa na sociedade um deles, sobretudo dos homens os seus
ocidental tem graves problemas na rela- dita pós-moderna, como a doutrina espí- maiores acusadores (Jo 8:3). Logo, após
ção entre homens e mulheres, marcada rita se posiciona acerca dessa desigualda- a pergunta escrita na areia no local do
que é por uma profunda cultura de culto de entre gêneros a qual revela ainda nú- escárnio coletivo, que marcou gerações
ao machismo em detrimento dos direitos meros retumbantes de violência contra a vindouras, Jesus a acolheu e a recomen-
femininos e das recentes conquistas que mulher, especificamente? dou não pecasse mais, compreendendo a
a mulher alcançou na sociedade moder- Há mais de dois mil anos, Jesus exempli- alma feminina, exemplificando a tolerân-
na, sobretudo após a era da industrializa- ficou o total respeito à condição femini- cia, compaixão e o perdão.
ção em torno do século XIX e XX. na, o que fora retratado em passagens Conclui-se, portanto, que em toda a pas-
A par da experiência ocidental, principal- bíblicas como a conversa com Marta e sagem de Jesus aqui na Terra não há
mente a brasileira, ainda temos graves Maria (Lc 10.40); o diálogo respeitoso sequer um exemplo de subjugação femi-
distorções em relação a igualdade mascu- com a mulher samaritana no poço (Jo 4:1 nina ou de desrespeito aos seus direitos.
lina e feminina em outras culturas, como -42); a cura de Talita e o incentivo à De modo que quando vemos organiza-
a do Islã, dentre outras que malferem transformação (Mar 5:41); a expulsão ções religiosas e as funções representati-
profundamente direitos femininos ao dos “sete demônios” em Maria Madalena vas ocupadas pelo sexo masculino, exclu-
relegarem a mulher à condição de aces- (Mar 16:9; Lc. 8:2). Além disso, teve a siva ou majoritariamente, dá-se tal fato
sório ou de escrava, subjugando assim defesa pública que Jesus fez da mulher por questões políticas e institucionais
condições básicas de direitos e de identi- pega em adultério e fez a turba refletir não extraídas do evangelho de Jesus,
dade feminina. sobre a condição de pecadores de cada assim como outras culturas interpretam
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equivocadamente a condição feminina orgulho deixarem de predominar” e a organização física do planeta terra no
como inferior por ausência de aprofunda- questão 817 deixa evidente que os direitos grau evolutivo atual (planeta de provas e
mento devido e reflexão sobre o papel da são iguais, embora cada um tenha funções expiações em trânsito para planeta de
mulher e a igualdade entre os espíritos, diferentes para a organização familiar e regeneração) no qual devemos aprender a
tão propalada pelo Espiritismo. social, esclarecendo, dessa maneira, qual- sentir e viver biológica e socialmente a
Na questão 803 do Livro dos Espíritos, quer dúvida que possa existir entre o condição feminina e masculina amando o
tem-se que DEUS criou, no princípio, equívoco de se perpetuar as desigualdades outro como a nós mesmo e respeitando-o
todos os espíritos de maneira IGUAL, ou entre os gêneros. nas suas caraterísticas e peculiaridades
seja, simples e ignorantes, de modo que as Na questão 822, os espíritos afirmaram enquanto espírito cuja essência é a de
diferenças de aptidões são produtos do que “o primeiro princípio de justiça é todos nós seres humanos.
livre-arbítrio e das aquisições e experiên- este: não façais aos outros o que não que- Enfim, agradecemos a Jesus pelas valio-
cias que cada ser humano acumula ao reríeis que vos fizessem”, reafirmando sas lições que nos legou, assim como pelas
longo de suas existências, segundo nos que os direitos são iguais e que é marca de luzes trazidas à humanidade em evolução
informa a questão 804. Kardec, ao questi- uma sociedade evoluída aquela que trata através da Doutrina Espírita. Estude Kar-
onar a espiritualidade sobre se a fraqueza homens e mulher de forma absolutamente dec. Compreenda Jesus e Evolua.
física feminina de algum modo é prova de igual e respeita as funções de cada um ao
sua dependência do homem, a espirituali- longo de sua jornada. Tatiane Miranda Goldhar é advogada
dade responde que a força masculina é “A emancipação da mulher acompanha o e presidente da Associação Jurídico Espí-
para proteção e não para escravização. progresso da civilização”, diz a espirituali- rita de Sergipe.
Além disso, na questão 806, os espíritos dade e, além disso, sabe-se que a questão
afirmam que a desigualdade entre gêne- do sexo masculino ou feminino é um atri-
ros “desaparecerá quando o egoísmo e o buto só pertinente e importante para a
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POR QUE CONVERSAR SOBRE GÊNERO
E PATRIARCADO NO MOVIMENTO ESPÍRITA?
Infelizmente, a violência contra a mulher mais perverso e marcante as mulheres que lá fosse espaço para construir/
ainda é uma realidade cotidiana, prova pobres e negras), a violência contra mu- reconstruir novas relações sociais, mas
disso são os altos índices de feminicídio e lher alcança a todas nós de uma forma ou não é! Mas isso é tema para outra conver-
de abusos sexuais. Mas esse não é um de outra. Em algum momento de nossas sa). Segundo, porquê assim como na soci-
fenômeno simples, tem várias formas de vidas, nós mulheres fomos, somos ou se- edade o movimento é composto eminen-
aparecer para além do uso da força física: remos agredidas, mesmo que não identifi- temente por mulheres, logo, há lá mulhe-
salários diferentes entre homens e mulhe- quemos a violência imediatamente. res que vivenciaram, vivenciam ou viven-
res no desempenho das mesmas ativida- Os casos envolvendo os famosos ganham ciarão situações de violência. Em terceiro
des; dupla ou tripla jornada de trabalho as manchetes dos jornais, causando polê- lugar, por que esse assunto não aparece
(considerando o trabalho doméstico e o micas e debates, mas a imensa maioria nas casas espíritas? Sabemos que há exce-
cuidado com os filhos e pais idosos); das mulheres vive um cotidiano violento, ções, mas o comum é que ele seja negli-
agressões verbais no ambiente doméstico silencioso e solitário, explicitando a natu- genciado ou descaracterizado, aparecendo
e local de trabalho; controle dos rendi- ralização da violência contra a mulher. Já apenas como resultado da lei do retorno,
mentos e bens das mulheres por parte de estamos tão acostumados com esses fenô- desconsiderando toda a complexidade da
seus companheiros; limitação da mobili- menos que não mais os identificamos questão.
dade, por considerar que há locais e horá- como violência. Esse texto tem por objetivo apresentar
rios apropriados para a circulação das Essa realidade não é diferente no movi- uma concepção sobre a temática e de pro-
mulheres. mento espírita. Primeiro, porque a casa blematizar sobre a insuficiência desse
Apesar de não ser um fenômeno simples, espírita é parte da sociedade, e como as debate no movimento espírita. O tema é
ele é “democrático”, pois mesmo atingin- demais instituições sociais, reproduz as complexo e extremamente polêmico, mas
do de formas distintas (de modo muito relações sociais dominantes (o ideal seria é igualmente necessário. Ressaltamos que
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não temos a pretensão de esgotar o deba- mais novos; e a manutenção dos papéis Para Saffioti (2011; 2015), ainda que não
te, nem tão pouco de assumir o lugar de sociais: ao homem fica incumbida a res- possamos aceitar a hipótese de sociedades
verdade absoluta, mas apenas de pautar o ponsabilidade da provisão material e a matriarcais, por falta de comprovação
debate. mulher pelos afetos e cuidados no lar. histórica, há evidências significativas de
Afinal, o que é gênero e patriarcado? Co- A violência contra a mulher, em suas di- que existiu outra ordem societária de gê-
mo a questão de gênero e patriarcado se versas expressões, é apenas a expressão nero distinta da mantida pela dominação
vincula com a questão da violência contra material do patriarcado. Por isso, parece masculina. Isso significa dizer que o patri-
a mulher? Qual a relação deles com o es- natural que estudantes de medicina façam arcado não é natural, não existiu sempre e
piritismo? São debates excludentes? pose que estimulam o abuso sexual. Por não precisa continuar existindo.
Partilho do entendimento da socióloga isso, a clássica pergunta do que a mulher Importante destacar que essa forma de
Helieteh Saffioti (2011; 2015), de que ho- fez quando é vítima de abuso sexual ou de organização social que subjuga e domina
mens e mulheres se constroem nas rela- violência doméstica soa como inofensiva. as mulheres é também uma prisão para os
ções sociais(1), ou seja, em sociedade. Por isso, homens, incluindo famosos, homens, pois os coloca em determinado
Para ela, patriarcado é a relação histórico- acharem que tem o direito de tocar o cor- papel na sociedade, que os ensina e impe-
social de dominação e opressão do ho- po de uma mulher simplesmente porque le a agir de modo machista, o que também
mem sobre a mulher, que se materializa ele quer, aparenta ser natural e é corri- é uma forma violência. Com isso quere-
não só nas relações de gênero(2), mas em queiro. Por isso, companheiros/maridos mos dizer que o fruto do patriarcado – o
todas as formas de produção e reprodução destruírem emocionalmente suas compa- machismo –, não é simplesmente uma
da vida social, ou seja, em bases materiais nheiras, seja através da humilhação, in- escolha de homens e mulheres, “[...] a
e simbólicas. Seus principais elementos sultos ou isolamento, mostra-se apenas máquina funciona até mesmo acionada
são: o controle da fidelidade feminina; a como uma questão de temperamento ou por mulheres. Aliás, imbuídas da ideolo-
conservação da ordem hierárquica com a coisas comuns nos relacionamentos. Nada gia que dá cobertura ao patriarcado,
autoridade do masculino sobre o femini- disso é natural! Mas o patriarcado faz mulheres desempenham, com maior ou
no, bem como dos mais velhos sobre os parecer que é. menor frequência e com mais ou menos
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rudeza, as funções do patriarca terial e simbolicamente. de sua decisão de permanecer casada com
[...]” (SAFFIOTI, 2015, p. 108). Uma importante expressão dessa repro- o marido agressor, ela respondeu: “A
Nós, mulheres e homens, reproduzimos o dução é a idealização de relacionamentos igreja não vai dizer nada, eu que tenho
machismo ao reproduzirmos as nossas abusivos e violentos, quando esses são que ver meus problemas e a Lei. A igre-
relações sociais, ou seja, precisamos travestidos em processos naturais, caben- ja ajuda a gente a ficar ali sofrendo
transformar as relações sociais para supe- do às mulheres o papel de “transformar” o – eles erram nisso”(4).
rar o machismo. Para isso, precisamos homem violento. No meio espírita essa A decisão dessa mulher (que é permeada
desnaturalizá-lo, o que requer reconhecer idealização tem cariz especial, pois ele por muitas ausências, incluindo o Estado,
que ele existe e buscar estratégias para aparece como se fora um caminho para e por uma cultura machista que conforma
transformar essas relações. Parece fácil, redenção espiritual, e a realidade violenta escolas, famílias, instituições religiosas,
mas não é. Nas palavras da autora, o pa- passa a ser vista apenas como uma ex- empresas/indústrias) caracteriza-se, na
triarcado “[...] enovelado com – classes pressão da lei do retorno, desconsideran- verdade, pela falta de escolha. Além das
sociais e racismos, apresenta não apenas do que ela também é produto das relações questões objetivas (ter um lugar seguro
uma hierarquia entre as categorias de sociais e que precisa ser combatida e pode para ir; ter condições econômicas para
sexo, mas traz também, em seu bojo, uma ser transformada. Essa apropriação sim- sustentar a si e aos seus filhos; assegurar
contradição de interesses plista e equivocada da Doutrina Espírita, a segurança física e emocional de si mes-
[...]” (SAFFIOTI, 2015, p. 113-114)(3). que muito se aproxima da visão punitiva ma e de seus filhos, dentre outros) e das
Logo não basta que uma parte das mulhe- das matrizes cristãs mais conservadoras, questões subjetivas (o envolvimento sen-
res ocupe posições econômicas, políticas e reforça o patriarcado, ampliando a subju- timental; os padrões sociais de sucesso/
religiosas tradicionalmente reservada aos gação das mulheres. fracasso embutidos em ser mulher soltei-
homens. É necessário a superação da soci- Se a proposta da Doutrina Espírita é con- ra, casada ou separada – uma mulher
abilidade que reproduz essa contradição, tribuir para a transformação da socieda- solteira ou separada, para esse padrão, é
demandando transformações radicais na de, que é um processo dialético (homens, uma mulher que ninguém quis ou que não
busca da preservação das diferenças e da mulheres e sociedade se transformam soube manter um relacionamento), há
eliminação das desigualdades. mutuamente) como ser conivente com também a questão com a sua espirituali-
A realidade vivida pelas mulheres à época essa realidade? Sim, somos coniventes! A dade, que em grande medida está relacio-
de Kardec o levou a questionar sobre a conivência começa ao não tratarmos do nada não só com a interpretação dos tex-
relação de igualdade entre homens e mu- assunto no meio espírita, ao fazermos de tos que orientam sua religiosidade, mas
lheres e o conteúdo aparece no Livro dos conta que essa questão não existe; passa sobretudo, com os espaços de partilha de
Espíritos na questão 822: “[...] A lei hu- por palestras e livros que fortalecem essa sua espiritualidade. Ou seja, em como
mana, para ser justa, deve consagrar construção social e esse lugar para a mu- essa comunidade conversa, lida e reage
a igualdade de direitos entre o homem e lher; e culmina com as saídas apontadas sobre o assunto. A pergunta que fica para
a mulher; todo privilégio concedido a um quando nos deparemos com situações de nós, espíritas, é: estamos contribuindo
ou a outro é contrário à justiça. violência, que responsabilizam as pró- para a permanência do sofrimento dessas
A emancipação da mulher segue o pro- prias mulheres, muitas vezes incentivan- mulheres? Fortalecer o sofrimento, é essa
gresso da civilização, sua escraviza- do que a mulher permaneça em uma rela- nossa missão? Quantas mulheres nessas
ção marcha com a barbá- ção abusiva. condições estão sentadas ao nosso lado
rie” (KARDEC, 2006, p. 275, grifos nos- O que estamos transformando de verda- estudando “O Livro dos Espíritos”?
sos), o que mostra que a relação entre de? Esse lugar subalternizado e de culpa- Não sejamos coniventes! A reencarnação
patriarcado e espiritismo não só já existe, bilização para as mulheres não é novida- é um processo educativo e não um proces-
como não é novo, não é um modismo, de. Ao reafirmar esse lugar, o movimento so punitivo. Falemos sobre o assunto para
surgiu junto com o Livro dos Espíritos. espírita nega a emancipação da mulher que possamos não só desnaturalizá-lo,
Mesmo diante dessa perspectiva emanci- contida na Doutrina e nega a proposta mas, sobretudo, para contribuir para a
padora da Doutrina Espírita, muitas mu- libertadora da doutrina pela via da educa- construção de outra sociabilidade que
lheres e homens estudiosos do espiritismo ção, pois estamos educando para a repro- respeite as diferenças, mas que elimine a
e atuantes no movimento reproduzem a dução das mesmas relações vigentes há exploração, a subjugação e a dominação
lógica do patriarcado. Isso acontece pri- muitos séculos. de um ser sobre o outro.
meiramente pela própria dinâmica das Uma mulher, de uma determinada deno-
relações sociais patriarcais que está im- minação religiosa, ao ser questionada Mônica Lanes é professora universitá-
pregnada no cotidiano de todos nós, ma- sobre a reação de sua congregação acerca ria.
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Um olhar sobre o novo-velho movimento espírita: por
um movimento mais diverso e menos heteronormativo
LE - 822. [Os seres humanos], sendo iguais perante a lei de Deus, devem sê-lo igualmente perante a lei humana?
— Este é o primeiro princípio de justiça: “Não façais aos [as] outros [outras] o que não quereis que os [as] outros
[outras] vos façam”.(1)
Você pode discordar de (quase) tudo que se representantes máximos do espiritis- aquilo que conta a nosso favor para ter-
irá ler neste texto, mas uma coisa há de mo, escrevendo ou dizendo um monte de mos condições de enfrentar e de vencer as
concordar comigo: é um contrassenso sandices, criando teorias apocalípticas, situações que temos pela frente. O modelo
acreditar que espiritismo e conservado- apoiando-se em espíritos mais perturba- do dano opera o paradigma da inércia, da
rismo possam caminhar lado a lado. Am- dos que o próprio escrevente, sem nenhu- lamentação e da desesperança.
bos se negam! ma base doutrinária, científica ou filosófi- O modelo do desafio é convite permanen-
A partir de um olhar dialógico, amoroso, ca, maculando (ainda mais) a imagem do te ao pensamento e à ação transformado-
diverso e progressista, abordo a cultura espiritismo, e, pior, prestando um desser- res diante da realidade, ou seja, é o modo
heteronormativa presente no Movimento viço para uma cultura de paz, de tolerân- de entender e agir que nos possibilita não
Espírita Brasileiro. cia religiosa e de justiça social. nos deixarmos abater pela adversidade e,
Portanto, gostaria de convidá-los/as a Uma das possíveis formas de olharmos até mesmo, de utilizá-la para crescer.
uma leitura flutuante(2) como forma de para o MEB – que tem se transformado O espiritismo nos convida permanente-
ampliarmos o debate em torno do novo- em algo bem aquém daquilo proposto por mente a olharmos pelo modelo do desafio,
velho Movimento Espírita Brasileiro, Kardec – é pelo modelo do desafio ao já que seus princípios são baseados na
MEB, e o que podemos fazer para (re) invés do modelo do dano(3), pelo copo pluralidade e no evolucionismo. Allan
tomá-lo a um caminho progressista, que meio cheio, pela abundância ao invés da Kardec, um educador visionário, tinha um
dialogue com os novos desafios da socie- escassez. olhar bastante progressista da justiça so-
dade. O modelo do dano ocorre quando opta- cial, defendendo uma educação gratuita
Mas é interessante lembrar: é o olhar de mos por nos deter nos aspectos negativos de qualidade e a luta pela emancipação
um espírita e não o olhar do espiritismo, de uma situação e neles nos fixamos de tal das mulheres, ideias bastante utópicas
como temos visto em vários vídeos, textos maneira, que fica muito difícil para nós para uma Europa machista.
e manifestações, em que pessoas, equivo- identificarmos os pontos positivos, ou Altruísta, dotado de poderoso senso críti-
cada ou propositalmente, autointitulam- seja, nossas vantagens comparativas, co e espírito investigativo, ele estava sin-
tonizado com os debates filosóficos de seu momentâneos (a ditadura militar durou solteiras), madrinhas que cuidam de afi-
tempo. Certamente, se Kardec vivesse nos 21 anos) para chegar à fase de prosperida- lhados/as, casais homoafetivos.
dias de hoje, teria cunhado “Fora da justi- de prometida pelos pregadores do Na contramão também do que as ciências
ça social não há salvação”. “espiritismo” brasileiro. pregavam (ciência, filosofia e religião?), já
O conservador, antagônico ao espiritismo, A postura da Federação Espírita Brasilei- que em 1973 a Associação Americana de
é guiado por um forte senso de certo e ra, FEB, presidida por Wantuil de Freitas, Psiquiatria retirou as orientações sexuais
errado, que são conceitos absolutos. Não foi apoiar a ditadura militar, marchando da lista de transtornos mentais, o MEB
há espaço para o relativismo moral: para ao lado de outras comunidades de fé, na edita livros que reforçavam o caráter pa-
o conservador, o fim jamais justifica os fatídica Marcha com Deus pela Família. tológico das homossexualidades (senão do
meios. Entre as principais características Como contrapartida pelo apoio, recebe- corpo, mas da alma), pregando que seri-
do pensamento conservador estão: atitu- ram do Estado subsídios para a constru- am provações, “espíritos em corpos troca-
de negativa em relação à mudança soci- ção da sede em Brasília. Há relatos de dos”, resgates de vidas anteriores, senten-
al, visão desesperançada e pessimista da companheiros/as, em especial jovens uni- ciando, como forma de fugir do
natureza humana e fé na correção moral “pecado” (ou acumular
e política de atitudes e crenças. débitos), a necessidade
Voltemos à afirmação acima: do celibato, da sublima-
espiritismo e conservadorismo ção pela arte, da não
não combinam. Mas, infeliz- “degeneração sexual”.
mente, não é isso o que temos No Brasil, por exemplo, por meio do
constatado em algumas casas Conselho Federal de Psicologia –
espíritas e seus dirigentes (em CFP –, as orientações sexuais dei-
sua esmagadora maioria ho- xam de ser consideradas desvios se-
mens, com idade entre 50 e 70 xuais ou doenças ainda em 1985. Em
anos). 1999, uma nova resolução do CFP esta-
Segundo o Censo do IBGE (2012) beleceu regras para a atuação dos psicólo-
(4), o espiritismo é uma das religiões gos/as do país: a orientação sexual dos
que mais tem crescido no Brasil, consi- pacientes não deveria ser considerada
derado uma doutrina branca, escolariza- doença, distúrbio ou perversão – muito
da, classe média e heterossexual. Sabendo menos, algo a ser “curado”.
dessas características, o MEB tem prota- Mas, voltemos ao espiritismo! Talvez a
gonizado um dos maiores retrocessos de mais grave condenação aos LGBTS esteja
sua história, aliançando-se com o que há versitários/ inserida no livro "Vampirismo" do filósofo
de mais conservador, dogmático, retró- as, que fo- ram delatados/as J. Herculano Pires:
grado, intolerante, machista e homo-lesbo por seus diri- gentes espíritas e “O [homossexualismo], nos dois
-transfóbico(5) da sociedade, da política e sofreram todas as atrocidades da ditadu- sexos, por sua intensidade nas
das religiões, mais fortemente, das religi- ra: espancamento, tortura, perda de direi- civilizações antigas e sua revives-
ões cristãs. tos civis e políticos, exílio e morte(6). cência brutal em nosso tempo, e a
Com isso, o MEB escolheu lado e, para mais grave dessas anormalidades
Mas onde será que o caldo entor- nossa tristeza, não foi o lado dos mais que hoje se pretende declarar nor-
nou, ou, para ser mais didático, frágeis, dos/as excluídos/as e dos/as mar- mais. E é precisamente nesse cam-
onde será que abandonaram o ginalizados/as, revelando-se aí seus inte- po, o mais visado pelo vampiris-
Evangelho? resses elitistas. Apropriando-se de aspec- mo - desde os íncubos e súcubos
tos de outras religiões, conservadoras e da Idade Media até os nossos dias
Por volta de 1964, quando houve um gol- patriarcais, o MEB, gradativamente, foi -, que incidem hoje os destemperos
pe civil-militar no Brasil, estabelecendo imprimindo no espiritismo uma hetenor- criminosos dos libertinos diploma-
um período ditatorial, dirigentes espíritas matividade, propagando os ideais de fa- dos”. (Paidéia, 3a edição, 1991,
alegaram que os militares iriam garantir mília “doriana” (a mesma defendida pelos capítulo IV, pág. 29)
uma “nova nação” descrita pelo livro militares), aquela composta por homem, Em sua explanação, Herculano Pires con-
“Brasil, Coração do Mundo, Pátria do mulher e filhos/as, desconsiderando os sidera LGBTS como pessoas sujeitas ao
Evangelho”. Segundo essa tese, caberia ao outros arranjos familiares: avós e seus fenômeno espiritual do vampirismo, em
povo brasileiro enfrentar “sacrifícios” netos/as, famílias monoparentais (mães que uma entidade trevosa liga-se, em sim-
biose, ao perispírito de um ser encarnado ta pela sociedade e por determinados gru- Jesus, Kardec e Chico apoiam isso! Faça
para compartilhar energias polarizadas pos religiosos, a população LGBT tem você também a sua parte: “ame o próxi-
negativamente, neste caso, as energias sido marginalizada e negado a ela o direi- mo, como a ti mesmo”, sem distinção.
sexuais. to a crer e a expressar sua fé, sua espiritu-
Após tratar do aspecto alidade. NOTAS:
“científico” (arcaico) de normalidade, Em alguns casos, para poder ter aceitação (1) LE - Livros dos Espíritos (na língua
Herculano Pires diz que “toda prática do grupo e continuidade no compartilha- francesa, Le Livre des Esprits) é o primei-
sexual que não corresponda a sua finali- mento do centro espírita, muitos/as ten- ro livro sobre a Doutrina Espírita, publi-
dade ao mesmo tempo equilibradora, dem a assumir uma identidade, compor- cado pelo educador francês Hippolyte
produtora e reprodutora do organismo tamentos e posturas não condizentes com Léon Denizard Rivail, sob o pseudônimo
humano é anormal, acusando disfunções seu modo de ser, potencializando assim Allan Kardec. É uma das obras básicas do
e desvios mórbidos no individuo e no quadros de adoecimento, como transtor- espiritismo.
grupo social. Qualquer justificativa des- nos psicológicos (quadros depressivos) e (2) Segundo Bardin, na leitura flutuante
sas anormalidades não passa de sofisma até mesmo a morte (assassinatos ou suicí- toma-se contato com os documentos a
atentatório da própria existência da es- dios). serem analisados, conhece-se o contexto e
pécie.” O movimento espírita progressista pode deixa-se fluir impressões e orientações.
É estranho constatar que boa parte das ter papel fundamental na superação das (3) O modelo do dano e do desafio foi
pessoas no Brasil defenda uma espiritua- intolerâncias, cumprindo sua missão de criado pelo educador mineiro Antônio
lidade autêntica, enquanto se contentam agente transformador, encampando dis- Carlos Gomes da Costa, que faleceu em 4
em admirar ideologias que só servem para cursos de aco- de fevereiro de 2011, em Belo Horizonte
atender a interesses materiais (MG). Foi um dos principais cola-
de uma minoria de pes- boradores e defensores do Es-
soas, conservar a exclu- tatuto da Criança e do Adoles-
são e condenar aque- cente (ECA) e do Protagonismo
les/as que são diferen- Juvenil.
tes dos padrões hetero- (4) http://
normativos da socieda- ultimosegun-
de. do.ig.com.br/brasil/2012
O movimento espírita -06-29/ibge-com-maior-
progressista precisa afir- rendimento-e-instrucao-
mar um profundo res- espiritas crescem-65-no-pais
peito e um necessário -em-10- anos.html - acessa-
compromisso em con- do em 16 de agosto de 2016.
tribuir para se assegu- (5) Homo-lesbo-transfobia é
rar a dignidade da um termo que vem sendo
população LGBT, em utilizado por militantes
especial, travestis, mu- dos direitos humanos e por
lheres e homens transexu- ativistas do movimento LGBT,
ais, por meio do reconheci- para designar a violência e o ódio
mento da identidade de gênero, da ocasionado pela orientação sexual e
despatologização das identidades trans e lhimento e amor, respeitando a diversida- identidade de gênero.
da garantia do seu acesso ao sagrado. de, respeitando as orientações sexuais e (6) Para saber mais, leiam o livro
O movimento espírita progressista deve identidade de gênero e apoiando aquelas ‘Movimento Universitário Espírita’, de
repudiar qualquer tipo de preconceito e (es) que o procurar. Sinuê Neckel Miguel, doutorando em Ci-
discriminação homo-lesbo-transfóbica Agindo assim, estabeleceremos uma soci- ências Sociais pela Unicamp.
dentro das casas espiritas, que se utiliza edade mais justa e mais diversa, uma casa
de argumentos pseudo-espirituais e pseu- comum onde todas as pessoas possam Franklin Felix é psicólogo humanista,
do-científicos para oprimir, violentar, viver bem e tendo acesso aos seus direi- educador e um dos idealizadores do cole-
excluir e estigmatizar a população LGBT. tos, livres de preconceitos e discrimina- tivo Espiritismo e Direitos Humanos.
Por não se enquadrarem na norma impos- ções.
GÊNERO E A MISÉRIA DA POLÍTICA E DA RELIGIÃO
Política e religião se discutem sim. São ES, Esmael Almeida (PMDB), publicada Em 20/02/2017, esse parlamentar apre-
dois grandes temas da filosofia e da socio- em 18/04/2017, cujo teor exprime bem o sentou o Projeto de Lei Estadual nº
logia e, mesmo internamente, política e que esses setores religiosos pensam sobre 50/2017, que, sob a ideia de dispor sobre
religião são matérias autônomas, que o assunto: o respeito dos serviços públicos à dignida-
contam com uma tradição secular de pen- de de crianças e adolescentes, tem a real
sadores, teorias e reflexões. Mesmos as “Tenho alertado com insistência que nos- intenção de fazer com que as convicções
correntes mais antagônicas podem ser sos filhos e netos podem estar recebendo religiosas ditem as regras do que a criança
compreendidas em seus pormenores, materiais didáticos com conteúdos em ou o adolescente deve aprender na escola.
podem dialogar e fornecer elementos para desacordo com as convicções familiares e As mitocôndrias, a fórmula de Bhaskara
lidarmos melhor com o mundo. religiosas que aprendem em casa. Temas ou as placas tectônicas estarão em perigo
O que não se discute é o fundamentalismo como diversidade sexual, gênero, mas- caso sejam consideradas um atentado à
religioso, vulgo fanatismo, e o fundamen- turbação e colocação de preservativos glória de Deus, assim como já ocorreu
talismo político, conhecido como totalita- estão sendo apresentados a crianças e com o movimento da Terra em torno do
rismo ou ditadura. E o que temos visto na adolescentes em salas de aula, o que con- Sol. Mas, o foco é a questão sexual. Nou-
política brasileira há décadas é a investida figura violação de direitos e até crime. tra postagem, de 21/04/2017, o parla-
ininterrupta de setores religiosos fanáti- O procurador da República Guilherme mentar afirma que:
cos contra a democracia, impondo as suas Schelb desenvolveu um modelo de notifi-
crenças e visões de mundo (válidas para cação extrajudicial que tem o objetivo de “Não é de hoje que ouvimos casos de dou-
eles) para todos os demais cidadãos por fazer com que pais possam proteger os trinação política e incentivo à sexualiza-
meio de leis e políticas públicas. filhos do ensino da Ideologia de Gênero ção precoce em escolas públicas e priva-
Essas investidas são variadas, mas se con- nas escolas. [...] Em algumas cidades, há das. Por isso, no período escolar, os pais
centram na questão da sexualidade, espe- familiares que criaram grupos de what- precisam estar atentos ao relacionamen-
cialmente quanto à mulher (como o abor- sapp para a troca de mensagens a res- to do filho com professores, alunos e fun-
to) e ao público LGBT (como o casamento peito de como tem sido a educação dos cionários, pois a convivência neste ambi-
homoafetivo, a população trans e a educa- filhos, aproveitando para vigiarem a ente pode ser bem diferente do que é ensi-
ção sexual em escolas públicas). Recente- doutrinação deles, principalmente sobre nado em casa. As instituições de ensino
mente, recebi uma postagem no facebook o tema sexualidade.” podem cooperar para formação de nos-
da página de um Deputado Estadual do sas crianças e adolescentes, mas os ex-
cessos precisam ser combatidos. Afinal, dores em salvar a alma do ímpio. Porém, de nós.
família educa e escola ensina.” é incrível o esforço de alguns religiosos Porém, essa “cruzada” estúpida de setores
fanáticos em querer tapar o Sol com a religiosos quer negar esse conhecimento
Por fim, em 03/05/2017, o parlamentar peneira e preferir a ignorância ao conheci- aos jovens. Para eles, o ideal talvez fosse
postou em sua página o seguinte: mento, e esse parlamentar representa um ensinar que o desejo sexual é demoníaco,
movimento significativo e pernicioso para que o homossexual é um ser deformado,
“A história se repetiu. A Comissão de qualquer democracia: o fundamentalismo que as crianças nascem da cegonha e ou-
Justiça do Senado aprovou, em votação cristão e seu uso político. tras pérolas que só uma compreensão
simbólica (sempre assim!), projeto de lei, Como toda discussão que em você tem fanatizada da religião proporciona.
de autoria da Senadora Marta Suplicy que falar o óbvio dificilmente leva a algum No fundo, o que vemos é o uso da religião
(sempre ela!), que permite o reconheci- lugar, vou pontuar apenas três questões como salvaguarda de preconceitos e o
mento legal da união estável entre pesso- para nossa reflexão. discurso de “defesa da família” esconden-
as do mesmo sexo e a intitula Casamento. do a necessidade de dominar corpos e
Sou contra esse casamento, que não é Primeiro ponto, de caráter prático: consciências, jogando questões sobre se-
natural. A família conjugal intacta é o a escola é um espaço para tratar cientifi- xualidade para debaixo do tapete. Para
melhor para as crianças, que precisam camente os temas naturais, humanos e isso, invocam partes do Antigo Testamen-
do pai e da mãe, da compreensão do pa- sociais, como a sexualidade. É certo que a to, uma narrativa antiquíssima de um
pel de cada um deles. Se aprovado for, sexualidade dos filhos é um tema que povo rude e machista, e partes de Paulo
haverá um aumento no uso da lingua- afeta os pais, os quais têm o dever de ori- de Tarso, igualmente intolerante e ma-
gem de gênero neutro como “parceiros” entá-los (ou doutriná-los?). Mas à escola chista. Jesus, que é bom mesmo, dificil-
e, mais pressão social e cultural para cabe apresentar ao jovem tudo o que a mente aparece, pois o que importa é sus-
castrar nosso pensamento e comporta- ciência – a psicologia, a biologia, a medi- tentar o farisaísmo das aparências, mes-
mento no casamento.” cina, a sociologia, etc. – sabe sobre esse mo que os jovens estejam em relações
fato: a descoberta do próprio corpo, as sexuais clandestinas ou sofrendo profun-
Ler coisas desse tipo dá uma espécie de funções dos órgãos sexuais, a reprodução dos conflitos de identidade.
náusea, como se estivéssemos retornando e o planejamento familiar, o desejo sexu- Para alguns desses religiosos fanáticos, é
no tempo, ao século XIV, quando religio- al, as doenças sexualmente transmissíveis até preferível o(a) filho(a) se matar a tor-
sos hipócritas e interesseiros buscavam e as formas de prevenção, as construções nar pública a sua homossexualidade. E
punir comportamentos diferentes da orto- sociais sobre o masculino e o feminino, e são esses fanáticos, pessoas doentes, que
doxia. as demais facetas dessa importante parte levam os desavisados de roldão, que com-
De um lado, é louvável pram esses comportamentos estapafúr-
o esforço do parla- dios como algo
mentar em in- positivo, como
centivar a partici- uma vitória
pação dos pais na vida dos “bons
escolar dos costumes”.
filhos, assim Logo, en-
como tam-
bém podemos
entender
louvável a
sincera
preo-
cupação
dos inquisi-
quanto sociedade, é muito melhor um Segundo ponto, de caráter teórico: a sicionando-se contra os desmandos e as
professor qualificado abordando esses relação entre política e religião existe, mas misérias que nos assolam. São casos em
temas em sala de aula, com método, pro- é extremamente complexa. Por isso, estu- que a religião vem relembrar e motivar a
gramação e fundamentação científica, do dar a fundo esses dois temas é essencial solidariedade e o comprometimento com
que crianças e adolescentes aprendendo para não ser vaquinha de presépio. o próximo.
sozinhos, pela internet, em ambientes Nesse sentido, é claro que a visão religiosa Portanto, um fenômeno religioso bem
familiares excessivamente castradores ou do crente não é separada de sua vida co- compreendido, capaz de dialogar e de
liberais, ou com os amigos, ou, ainda pior, mo cidadão. Os valores essenciais que a extrair o que há de melhor para a convi-
com a bíblia e os péssimos exemplos de religião coloca como indispensáveis para vência humana é bem-vinda e, em regra,
Abraão e suas mulheres, de Ló e suas fi- a salvação tornam-se a base ética e moral traz muitos benefícios.
lhas ou de Davi e suas peripécias. para a sua vida pública. Isso vale para Mas, de outro lado, a tendência é que essa
Os resultados práticos de discutir sexuali- todas as comunidades de fé. relação seja nefasta, basta ver a Inquisição
dade em sala de aula são inegáveis: tocam Com isso, de um lado, é possível que dis- e o Nazismo. Daí, quando setores religio-
em temas como a violência contra a mu- cursos religiosos sejam socialmente posi- sos contestam a educação sexual nas esco-
lher e às transexuais, o machismo, a gra- tivos. A luta de Martin Luther King a fa- las, eles impedem que questões naturais
videz na adolescência, o aborto, o estupro, vor dos direitos civis dos negros america- sejam entendidas adequadamente, man-
etc. Logo, quanto à sexualidade, partici- nos se deu numa reinterpretação bíblica tendo o povo na ignorância. E, o que é
par da vida dos filhos nos espaços públi- do Êxodo. Gandhi reuniu elementos do pior, ao se imaginarem lutando contra a
cos é válido. Mas é essencial saber o que hinduísmo para fazer frente à dominação “ideologia de gênero”, eles reafirmam
ocorre no espaço privado, respeitar o inglesa. Na América Latina, a teologia da outras ideologias que legitimam violên-
mundo afetivo de cada um, e dar à criança libertação procurou encontrar um sentido cias de vários tipos e que determinam os
e ao adolescente ferramentas adequadas concreto da caridade no domínio social e papeis sociais que homens e mulheres
(científicas e críticas) para se portar num político. O atual Papa Francisco está dan- devem continuar cumprindo.
mundo plural e democrático. do uma lição de engajamento religioso E é por isso que precisamos estar atentos
positivo no plano político e no social, po- a essas movimentações de religiosos que
tentam impor a toda a sociedade as suas tradições um espírita, que poderia conhe- homem e mulher, então só sobrou a sua
convicções íntimas, de fé, sem qualquer cer melhor as relações entre espírito preguiça mental e o seu preconceito que,
amparo científico, pois a história nos imortal e corpo físico, entrar na onda do por dever moral, você deve manter em
mostra os danos que isso costuma causar. fanatismo religioso e rejeitar a educação sua esfera privada.
A defesa de todo aquele que deseja o pro- sexual nas escolas por conta do discurso Afinal, não há torpeza maior em querer
gresso social deve ser de uma escola como de modinha da “doutrinação ideológica”. levar para a esfera pública as podridões
lugar para desenvolver o pensamento Esses desavisados também acham que a que habitam o “homem velho”. Seja cari-
científico e crítico, ainda que isso afete homossexualidade é doença, que as crian- doso, fique com elas para você e deixe os
convicções pessoais, por mais sinceras ças e adolescentes não podem descobrir seus irmãos de caminhada seguirem em
que sejam. seus próprios corpos, que a sociedade não paz, desfrutando dos avanços da ciência e
distribui papéis desiguais aos homens e se realizando do modo como entenderem
Terceiro ponto, de viés moral: haver às mulheres, etc. correto.
pessoas que defendam esse tipo de postu- Aliás, o próprio silêncio do movimento E para quem já venceu isso, para quem
ra fanática é possível de se entender. Há espírita federativo quanto a essas ques- tudo isso é óbvio, há ainda as questões de
quem sabe o que Deus quer, gosta, o que tões é sintomático, já que, se o Espiritis- nosso tempo, a que o espírita consciente
o deixa bravo, etc. E a sexualidade sempre mo é uma doutrina que defende a laicida- de suas responsabilidades deve estar
foi um ponto nodal para a dominação de do Estado, o pensamento científico e atento: a luta contra o fundamentalismo e
religiosa. Perder esse filão é um perigo, e uma moral tão arrojada como a de Jesus, o fanatismo, e a favor da democracia e de
por isso defender uma bandeira religiosa deveria haver um movimento para, no uma educação pública, de qualidade e
retrógrada quanto à sexualidade é tam- mínimo, problematizar os danos que o libertadora.
bém um exercício de poder sobre a vida uso político da religião e o fundamentalis- Por fim, todos nós defendemos a família,
alheia. mo cristão têm causado à sociedade brasi- especialmente a que surge das palavras de
Agora, surreal é saber que essa postura leira, como na educação. Jesus: “Quem é minha mãe e meus ir-
anacrônica é aprovada por muitos espíri- Se a ciência afirma que homossexualidade mãos? Todo aquele que cumpre a Lei de
tas, que aqueles que se dizem adeptos de não é doença, e você ainda acha que é Deus é meu irmão e minha mãe”, ou seja,
uma doutrina de caráter científico e filo- doença; se a ciência descobre métodos toda forma de família onde o amor irres-
sófico apreciem e fortaleçam o fundamen- contraceptivos e que evitam doenças, e trito e abrangente esteja presente. E você?
talismo religioso e a ignorância científica, você ainda acha que seus filhos não de-
e mesmo militem contra o aprendizado e vem saber disso; se a ciência discute as Raphael Faé é mestre em filosofia.
a felicidade de outros seres. relações ideológicas e de poder sobre os
Para nós, trata-se de um das maiores con- sexos, e você ainda acha que só existe