Saberes Situados, Feminismo e Pós-Colonialidade
Saberes Situados, Feminismo e Pós-Colonialidade
Saberes Situados, Feminismo e Pós-Colonialidade
Larissa Pelúcio
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mulheres”. (Stepan, 1994). “Aqueles que têm o poder de representar e descrever os outros
claramente controlam como esses outros serão vistos”. (Bahri, 2013, p. 666).
A relação entre gênero, sexualidade e colonialismo é, portanto, tão antiga quanto
a própria colonização moderna. Relação bem sintetizada no corpo de Sarah Baartman, a
Vênus de Hotetonte, exibida publicamente como uma espécie de elo perdido entre o homo
sapiens e seus antepassados. O colonialismo imperialista encontrava sua perfeita metáfora
naquele corpo exibido na, então, embrionária indústria do entretenimento.
Espetacularização da ciência, capitalismo, raça e gênero se implicam. “Sarah Baartman
deu um corpo à teoria racista”. (Damasceno, 2008, p. 02). Revelou ainda a centralidade
da categoria de gênero para o projeto colonial. Atualmente podemos traçar uma
genealogia de sua formação e utilização como um mecanismo fundamental pelo qual o
capitalismo colonial global estruturou as assimetrias de poder no mundo contemporâneo.
Até o final dos anos de 1970, a colonização foi narrada como uma espécie de
“subenredo” local ou marginal de uma história maior. Porém, com a virada epistêmica
pós-colonial evidenciou-se que “os Outros geograficamente distantes sempre tiveram
uma presença constitutiva nas relações históricas e práticas “materiais” e no imaginário
ocidental, como um estímulo à produção de discursos filosóficos, antropológicos,
literários e cinematográficos” (Adelman, p.205). Vide o caso da Vênus de Hotentote.
Mais do que uma linha de inflexão histórica, associada a fenômenos políticos
específicos, “a virada pós-colonial é uma mudança discursiva” (Shohat, 2013, p. 708) e é
esta torção que a aproxima dos feminismos enquanto teorias críticas que falam de
ausências, apagamentos e de produção de saberes que não se desassociam de relações de
poder.
A perspectiva pós-colonial coloca sua cunha na reconstrução das interpretações
da história. O feminismo pós-colonial tem procurado trabalhar em uma dupla chave de
virada epistemológica: sublinhar o gênero como categoria tão central quanto classe e raça
para a análise dos processos colonizadores e suas consequências; bem como tornar o
próprio feminismo menos branco e eurocêntrico. Mais do que uma mudança na geografia
de produção de conhecimento, trata-se de inquerir como este tem sido produzido. Nas
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palavras de Sandra Almeida, referindo-se à proposta crítica de Gayatri Spivak, referência
incontornável nas discussões sobre pós-colonialismo e feminismo,
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El Colonialismo es obviamente más antiguo, en tanto que la Colonialidad
ha probado ser, en los últimos 500 años, más profunda y duradera que el
Colonialismo. Pero sin duda fue engendrada dentro de éste y, más aún,
sin él no habría podido ser impuesta en la intersubjetividad del mundo de
modo tan enraizado y prolongado (Quijano. 2000: 381, nota de fim de
texto, 1).
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Américas, como, por exemplo, Rigobert Menchu da Guatemala ou
Domitilia da Bolívia? Não tenho a pretensão de defender ou representar
a perspectiva destas mulheres indígenas. O que pretendo fazer é deslocar
o lugar a partir do qual estes paradigmas são pensados. (2008, 122)
Saberes situados
Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido,
oculto, apagado da análise. A ‘egopolítica do conhecimento’ da filosofia
ocidental sempre privilegiou o mito de um ‘Ego’ não situado. O lugar epistêmico
étnicorracial/sexual/de gênero e o sujeito enunciador encontram-se, sempre,
desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar
epistêmico étnicorracial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais
conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal Verdadeiro que
encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar
epistêmico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento
colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia.
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A voz miúda e paradoxalmente potente de Gabriela Leite, vai me conduzindo para
o final desta breve discussão. Feminista, prostituta, ativista, deleuziana, recentemente
falecida, Gabriela, em entrevista a um programa de TV contou uma história ilustrativa de
como certos espaços insuspeitos podem, de repente, ser tornar fóruns para o uso de
“inseticidas” metafóricos contra a autonomia política dos saberes cucarachas, como
experimento chamar as produções decoloniais. Diz ela:
Gabriela não estava autorizada a ser feminista. Putas não são feministas, tentavam
ensinar a ela aquelas “senhoras antiguinhas” de sutiãs queimados. Porque uma feminista
não fala de sexualidade, prazer, corpo, homens, direitos sexuais. Não fala desde o Sul
Global e muito menos das esquinas do mundo. Gabriela reivindicava o termo “puta” como
um termo político. Por tudo isso, algumas feministas acham que Gabriela não pode ser
feminista. Dizem a essa mulher que foi acima de tudo libertária, que ela não tem essa
liberdade. Esse feminismo autoritário, salvacionista e moralista é muito mais forte do
gostaríamos que fosse. Sente-se, assim, autorizado em falar em nome de nós, mulheres.
Entrincheira-se em valas de supostas verdades e volta suas armas contra as margens. Faz
do “nós” um espaço asséptico e vigiado.
O “nós feministas” tornou-se uma marca autoritária. Você não pode falar
porque é homem; você não é feminista porque é puta; você não é
feminista porque defende os homens; você não é feminista porque quer
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desestabilizar a luta feminista com a presença de mulheres de pênis. Eis
algumas das interdições recorrentes (Bento, 2011, p. 95).
Estas interdições, assinaladas por Berenice Bento, têm motivado o debate dentro
do campo de produção e luta dos feminismos. Muitas vezes, como já pontuado acima,
entre os próprios feminismos. Não nos esqueçamos que as periferias também têm seus
centros, assim como os centros têm suas margens. A colonialidade do poder habita-nos,
por vezes. Descolonizar o pensamento não é ação que se faça sem cruzar fronteiras
bastante vigiadas.
Quem pode falar a partir do Sul Global e dos feminismos periféricos? Talvez, a
pergunta esteja mal formulada e devamos perguntar porque desautorizam-se certas vozes
e certos saberes, arrogando-se o direito de dizer ao outro o que ele é, mesmo depois de
décadas de lutas e produções teóricas potentes.
Mesmo agora que os leões aprenderam a ler, parece que o fato de os caçadores
serem aqueles que andam armados, ainda tem feito que estes últimos sejam o que creem
que podem escrever as melhores histórias, aquelas dos vencedores. Porém, a verdade é
que os leões sempre foram mais interessantes, mesmo e talvez principalmente, para que
os desejam captura-los.
Referências Bibliográficas
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QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificacion social. Journal of
Worldsystems Research. Special Issue: Festchrift for Immanuel Wallerstein.vi /2, pp.
342- 386. 2000.
VALE DE ALMEIDA, Miguel. Antropologia e Sexualidade - Consensos e
Conflitos Teóricos em Perspectiva Histórica. In A Sexologia, Perspectiva
Multidisciplinar, org. Lígia Fonseca, C. Soares e Júlio Machado Vaz, Coimbra: Quarteto,
vol II, pp 53-72.
Nas duas grandes vagas colonizadoras as questões sexuais estiveram presentes nas
mais diversas e, por vezes, cruéis formas. Como processo generificado, empreendido por
homens portadores de signos de universos androcêntricos, a história que nos foi contada
sobre “descobertas” (primeira onda colonial europeia, séculos XV e XVI) e “processos
civilizadores” (imperialismo do século XIX) pouco ou nada falou sobre os dominados.
Nestes discursos esteve implicada a generificação dos processos coloniais,
desenhando-se toda uma geografia na qual o Norte/Ocidente masculino encontra, domina
e “civiliza” o Sul/Oriente feminino.
O ideal civilizacional colonialista apostou no controle dos instintos (associados
aos colonizados que assim eram também feminilizados). “E o instinto rei era o sexo”
(Vale de Almeida, 2003, p. 57). Controlar os encontros sexuais, a procriação e, assim,
domesticar o desejo era, sobretudo vigiar e controlar a sexualidade feminina nos países
colonizadores e perscrutar o sexo dos “primitivos”. As questões de sexo e gênero são,
desse modo, inseparáveis do projeto da crítica pós-colonial, a qual aponta como gênero,
enquanto categoria de organização das relações, marca profunda, ainda que
silenciosamente (ou silenciadamente) as percepções contemporâneas sobre
masculino/feminino; cultura/natureza; eu/outro; moderno/arcaico; razão/emoção.
O esquema binário de organização do mundo e, portanto, das relações sociais, é
para Rita Segato (2012) o instrumento de poder mais eficaz da colonização e que se
perpetua com a colonialidade. O binário difere-se dos esquemas duais que marcam, o
mundo-aldeia, as organizações tribais contemporâneas, que operam com outras
representações de gênero e de generificação de coisas e espaços. As díades são, segundo
a autora, todos completos em si e necessariamente complementares. Distinguem-se,
portanto dos esquemas binários que orientaram muitas análises sobre as relações de
gênero e sexualidade na antropologia, mesmo em tempos mais recentes. Muitas vezes,
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teorias e ativistas feministas, incluindo-se nessa chave as antropólogas, tem enfrentado o
desafio de pensar a alteridade fora e para além das categorias que organizam as
perspectivas ocidentais/ocidentalizadas sobre relações entre homens e mulheres, destas
entre si e de homens entre eles.