#Eu Empregada Doméstica
#Eu Empregada Doméstica
#Eu Empregada Doméstica
#EuEmpregadaDomestica:
enquadramentos, luta por reconhecimento e protagonismo
político nas redes sociais
Niterói
2016
ANA BEATRIZ BRÊTAS DE ARAÚJO
#EuEmpregadaDomestica
enquadramentos, luta por reconhecimento e protagonismo
político nas redes sociais
Orientador Acadêmico
Prof. Dr. Viktor Henrique Carneiro de Souza Chagas
Niterói
2016/1
3
ANA BEATRIZ BRÊTAS DE ARAÚJO
#EuEmpregadaDomestica:
enquadramentos, luta por reconhecimento e protagonismo
político nas redes sociais
BANCA EXAMINADORA
4
Aos meus companheiros de cela: Fábio, Leandro,
Linike, Rafael e Roberta. Nos encontramos aqui fora.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu amigo e namorado, Leon Navarro, sem você eu passaria sede.
As minhas tias Lenyr e Lelita, que acreditam e tem carinho.
À minha amiga e irmã, Rebeca Sauwen, que não se interessa por nada disso
mas leria todo o trabalho porque fui eu que escrevi.
À minha mãe, que ensinou a questionar.
Ao meu pai, que ensinou a suportar.
À Monique, Rodrigo e Leonardo que ainda andarão tantos caminhos ao meu
lado.
Ao meu orientador Viktor Chagas e sua caneta vermelha, carregada de amor.
À UFF e seu quintal.
À todos os docentes de Estudos de Mídia.
Deus, obrigada também.
6
The caged bird sings
with a fearful trill
of things unknown
but longed for still
and his tune is heard
on the distant hill
for the caged bird
sings of freedom.
7
RESUMO
8
ABSTRACT
9
LISTA DE TABELAS
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................... 12
1– LUTA POR RECONHECIMENTO, AÇÃO POLÍTICA E
ENQUADRAMENTOS .......................................................... 16
1.1 – Teoria do Reconhecimento ................................................... 18
1.2 – Ação conectiva e conversa informal....................................... 21
1.3 – Enquadramento e representação........................................... 22
1.4 – Referencial teórico e objeto.................................................... 24
2– EMPREGADAS PROTAGONISTAS .................................... 25
2.1 – Empregadas negras ..............................................................
2.2 – Empregadas mulheres ..........................................................
30
2.3 – Empregadas organizadas ..................................................... 31
3– METODOLOGIA ................................................................... 33
3.1 – Dados dos relatos.................................................................. 42
3.2 – Dados dos comentários......................................................... 43
4– ANÁLISE DE RESULTADOS.............................................. 41
4.1 – Análise dos relatos................................................................
4.1.1– Restrições a alimentação......................................................
11
INTRODUÇÃO
12
comunicação digitais. Nem sempre trabalham com reivindicações concretas,
mas chamam o público para a discussão pública de questões políticas e
propagam novas gramáticas morais (CAL, GARCEZ, 2016). Como explica
Jane Mansbridge (1996), “para politizar uma (...) escolha coletiva, deve-se
atrair a atenção do público para ela, como algo que o público deveria discutir”
(Mansbridge, 1996, p. 212) e esse processo “não precisa envolver o Estado.
Podemos trazer para a atenção pública não uma decisão produzida de modo
coordenado, mas sim uma que emerja de processos altamente informais,
inconsistentes e agregativos” (ibid).
Esta pesquisa pretende explorar alguns aspectos deste tipo de
manifestação e toma como objeto a página do Facebook
#EuEmpregadaDomestica. O movimento começou no final de julho de 2016,
quando a ex-empregada doméstica Joyce Fernandes fez algumas postagens
em seu perfil pessoal denunciando relações de trabalho abusivas vivenciadas
quando exercia a função. Os depoimentos eram finalizados com a hashtag
#EuEmpregadaDomestica.
Os posts publicados por Joyce ganharam destaque em sua rede de
amigos. Receberam diversos comentários e compartilhamentos, tornando-se
virais. Em pouco tempo, outras empregadas fizeram seus próprios relatos
utilizando a hashtag ou enviaram suas histórias para a caixa de mensagens
de Joyce. Essa mobilização a impulsionou a criar a página
#EuEmpregadaDomestica, com a proposta de reunir narrativas sobre as
agressões que as empregadas vivenciam em seu trabalho. Hoje elas podem
ser enviados para a caixa de mensagens da fanpage e são publicados todos
os dias, anonimamente.
Quem as lê em sequência logo se depara com a repetição de
determinadas situações: a patroa que não permite que a empregada coma na
mesa, as acusações de roubo, a exigência de que a doméstica use talheres
diferentes dos da empregadora, entre outras. Começam então a se delinear
os traços culturais da discriminação racial e social dentro do trabalho
doméstico, onde o assédio moral e o preconceito não são deslizes morais
(GARCEZ, CAL, 2016), mas o comportamento comum, considerado
aceitável.
A classe das empregadas está submetida a diversos tipos de
13
preconceito. No Brasil, a grande maioria são negras, (79,8%)1 e mulheres
(93%) 2 . Pesquisas sobre a organização do trabalho em nosso país
(ABRAMO, 2006; IPEA) demonstram que justamente as mulheres negras são
a fatia da população que recebe os mais baixos salários e está quase sempre
empregada sob condições informais e precárias. No serviço doméstico
apenas 27% das trabalhadoras tem sua carteira assinada. (OLIVEIRA, 2016).
Como já apontado, o trabalho doméstico é comumente associado ao sexo
feminino, além de ser considerado um trabalho desimportante, que não exige
grandes habilidades. Além disso, muitos são os casos de meninas que
entram no serviço doméstico ainda crianças ou são pegas para criar por
famílias e se tornam criadas da casa (CAL, 2016). Estas e outras condições
expõe estas trabalhadoras aos mais diversos tipos de exploração.
Dentro disto, este trabalho possui dois objetivos principais: (1)
Identificar como as manifestantes relatam coletivamente a exploração no
trabalho doméstico. (2) Identificar como os seguidores da página se
posicionam sobre os relatos.
Para isso, foi feita uma análise (a) dos relatos publicados na página
num período de dois meses a partir de sua criação (b) dos comentários mais
curtidos encontrados nestes relatos. A escolha do recorte temporal levou em
conta que os meses iniciais foram o momento em que a página obteve maior
destaque nas mídias, neste período de efervescência as postagens
chegaram a acontecer uma vez a cada meia hora. A opção pelos
comentários mais curtidos, por sua vez, permite observar quais deles
receberam mais apoio dos seguidores e, portanto, representam a opinião da
maioria.
No capítulo inicial explicitarei os princípios teóricos que norteiam o
trabalho. Primeiro, o conceito de “quadros sociais” de Erving Goffman (1974),
a partir do qual será possível criar categorias para classificar os relatos e
comentários na página, considerando os diferentes pontos de vista acerca do
trabalho doméstico. Depois, a “Teoria do reconhecimento”, empregada por
Honneth (2003) para explicar os movimentos sociais. Ela é importante porque
propõe que a luta por reconhecimento, ou a luta por ser respeitado pela
1 DIEESE (2013)
2 In: Trabalhadoras domésticas: nossas conquistas, nossas histórias, OLIVEIRA, Creuza
14
sociedade, é a base dos conflitos sociais. Por último, os conceitos de ação
conectiva e personalização, de Bennet e Sergerberg (2012) e de “conversa
informal” proposta por Jane Mansbridge (1996) porque sua argumentação
possibilita que se encare a ação realizada na página como um movimento
político. Bennet e Sergerberg (2012) apontam para o aparecimento de novas
formas de ação política, baseadas na experiência pessoal e Mansbridge
(1996) salienta a importância de se considerar como forma de deliberação
política a conversa informal.
O segundo capítulo apresenta o objeto de forma mais detalhada e
propõe uma discussão sobre as questões específicas do trabalho doméstico,
passando pelo histórico de discriminação social e racial no Brasil e sua
influência na divisão do trabalho, além de abordar a questão do trabalho
feminino.
No terceiro capítulo explico a metodologia empregada para a análise
de conteúdo e de enquadramento e discorro sobre as categorias utilizadas
para compreender o material estudado. Por fim, encerro o trabalho
apresentando a análise e os resultados da pesquisa.
A partir disso pretendo levantar algumas questões importantes sobre a
exploração do trabalho doméstico no Brasil e a forma como as empregadas
criam enquadramentos sobre si mesmas e sobre as opressões que
vivenciam. As leis que regulamentam este tipo de trabalho já são antigas em
nosso país e, entretanto, os relatos da página mostram que as domésticas
continuam relegadas a condições de trabalho exploratórias e precárias.
15
CAPÍTULO 1: LUTA POR RECONHECIMENTO, AÇÃO POLÍTICA E
ENQUADRAMENTOS
16
tradicional de ação política tem uma estrutura vertical, centrada em
organizações, com bandeiras e identidade definidas a priori.
Eles explicam que novas mobilizações em todo o mundo estão
alcançando ampla adesão social graças à horizontalização deste processo. A
partir do uso de tecnologias da comunicação o lugar central das organizações
está sendo deslocado para os indivíduos, que constroem coletivamente a
identidade e bandeiras dos movimentos a partir do compartilhamento em
rede de certos conteúdos personalizados, como narrativas sobre suas vidas
privadas.
Esses movimentos, por isso, não se baseiam sobre reivindicações
concretas mas sobre a troca de informações em larga escala afim de
identificar e divulgar de que maneira as pessoas se relacionam no seu dia-a-
dia com determinadas questões políticas. São, portanto, uma experiência de
reconhecimento dos desrespeitos vividos coletivamente.
Para estudar a construção simbólica deste reconhecimento, nos
apoiaremos na análise de quadros de Erving Goffman (1974) e Entman
(1993). Os autores procuram compreender de que maneira os sujeitos
organizam suas experiências sociais a partir dos conceitos e saberes aos
quais têm acesso. Assim, procurarei compreender a partir de quais
enquadramentos as mulheres que se manifestam na página
#EuEmpregadaDoméstica atribuem significado a experiência do trabalho
doméstico, quais são as possíveis chaves que formam estes
enquadramentos e como a interação na página produz um intercâmbio de
perspectivas entre essas mulheres. Neste capítulo empreenderei uma
explanação detalhada destes conceitos.
17
cotidianas, que volta a atenção para o papel do conflito no processo de auto-
valoração dos sujeitos. O filósofo parte da premissa de que a percepção de si
dos indivíduos é formulada tendo como base as expectativas normativas de
seu meio. Por isso, estes sujeitos estão submetidos a uma constante luta
para que sua individualidade seja reconhecida e valorizada dentro da
normatividade em que estão inseridos.
O termo “reconhecimento” aqui representa, portanto, a percepção do
outro e de si mesmo como sendo socialmente dignos de respeito. Ele
encontra sua origem nas formulações de Hegel, que propõe a correlação
conflito-reconhecimento como uma oposição ao estado natural hobbesiano.
Para Hobbes o estado da natureza, aquele que antecede o surgimento das
leis, caracteriza-se por uma guerra de todos contra todos. Nele a totalidade
dos homens lutam entre si para obter seus interesses próprios e vencer a
disputa por recursos de sobrevivência escassos. O contrato social surge
como um instrumento do Leviatã para mediar os indivíduos de forma a livrá-
los da insegurança de um estado de guerra. Assim, eles delegam sua
liberdade a uma autoridade que passará a regular suas relações, direitos e
deveres.
Hegel, por sua vez, acredita que a motivação dos conflitos é a busca
por reconhecimento. Ele propõe que o indivíduo no estado natural não está
sozinho, mas agrupado em famílias. Nelas, começa a compreender a
existência de individualidades diferentes das suas e, portanto, desenvolve as
primeiras noções de eu e outro. No interior dessas famílias os sujeitos atuam
em conjunto por sua sobrevivência, buscando obter domínio sobre territórios
e recursos. Durante este processo, eventualmente se defrontam com
indivíduos fora daquele núcleo que tentam utilizar-se destes recursos,
causando conflito. Hegel argumenta que este conflito não se da
simplesmente pelo medo de que os bens se esgotem. Aquele grupamento
que tem seu espaço invadido entra em conflito porque foi ignorado pelo
invasor, que agiu sem levar em conta sua existência. O invasor, por sua vez,
age tendo em vista apenas seu próprio contexto e a partir do choque com o
outro ganha a percepção de que seu ato, que a princípio ligava-se apenas a
uma necessidade particular, atingiu indiretamente outros sujeitos. Adquire,
portanto, um conhecimento mais amplo de suas próprias ações.
18
Hegel acredita que é no seio destes conflitos por reconhecimento
recíproco que os contratos sociais começam a se estabelecer, não como uma
solução exterior à luta entre os homens, mas como consequência do
aprendizado sobre as relações sociais que estas lutas propiciam.
Honneth, por sua vez, aprofunda esta noção à luz dos estudos sobre
psicologia social formulados por Mead. Ele propõe três tipos de
reconhecimento: o amor, o direito e a solidariedade. Juntos, eles constituem
a identidade do indivíduo, que é sempre formulada em relação ao outro. O
amor é a primeira experiência de reconhecimento e aprovação social do
sujeito, provendo-o de autoconfiança para participar da vida em sociedade.
Contudo, ele não é suficiente para capacitar este sujeito a se posicionar
politicamente: é necessário que ele seja reconhecido também como alguém
que possui direitos. Além disso, deve experimentar a solidariedade – a estima
social para além dos afetos e da esfera jurídica. Esta última só é possível a
partir do compartilhamento de valores comuns entre os indivíduos e está,
portanto, profundamente ligada à vida cultural daquela sociedade.
A cada uma delas estaria ligada uma forma específica de não-
reconhecimento, respectivamente: os maus tratos, a privação de direitos e a
degradação. O conflito social surge, segundo Honneth, quando o indivíduo
vivencia alguma destas experiências. Todavia, para que ele saia do âmbito
da luta individual e se constitua como movimento social é preciso que os
lesados compartilhem suas experiências de forma que seja possível enxergá-
las como uma vivência comum a determinado grupo identitário do qual fazem
parte.
19
1.2 AÇÃO CONECTIVA E CONVERSA INFORMAL
20
a-dia, um não-ativista age para mudar as ações ou crenças de outras
pessoas a respeito de uma questão pública.
Por isso, ao convidarem diferentes pessoas a se expressarem sobre
um mesmo assunto essas campanhas de engajamento político
personalizadas se constituem como plataforma para mobilização da agenda
pública. Elas potencializam a capacidade de grupos minoritários se fazerem
reconhecidos pela sociedade. Ao mesmo tempo, permitem que pessoas que
sofrem experiências de não-reconhecimento similares se identifiquem e
troquem percepções sobre suas vivências. São, portanto, um mecanismo
potente para a formação da semântica coletiva apontada por Honneth (2003)
como uma das bases para propulsão da experiência individual de não-
reconhecimento em um luta social coletiva.
21
atravessadas por relações de poder. Além disso, a formulação de
significados é geralmente uma construção coletiva entre interlocutores e
muitas vezes tem como base noções culturais pré-concebidas. Assim, ao
interpretar o que vivenciam, os sujeitos estão menos criando sentidos sobre a
realidade do que tentando encontrar a forma “correta” de avaliá-la, dentro de
um paradigma em que algumas definições possuem mais legitimidade do que
outras. Por isso, a análise que o autor propõe é a da construção de
significados dentro das relações sociais.
Para desenvolvê-la, Goffman (1974) propõe algumas caracterizações
para os quadros de entendimento como esquemas primários e laminações.
Os esquemas primários são aqueles a partir dos quais os indivíduos atribuem
os primeiros significados a realidade, sem eles as situações estão destituídas
de sentido. Eles podem ser divididos em naturais e sociais. Os naturais dizem
respeito a fenômenos da natureza e os sociais a construções culturais
estabelecidas por aquela sociedade.
As laminações, por sua vez, são novas camadas de significado que
eventualmente se sobrepõem aos esquemas primários. Essa sobreposição
pode acontecer com o conhecimento dos que interagem com a situação
(como, por exemplo, quando se encena uma peça) ou sem que estes o
saibam (como quando se conta uma mentira). Goffman (1974, página) chama
o primeiro caso de tonalização e o segundo caso de maquinação. Assim, em
um palco onde se encena uma luta o esquema primário nos permite perceber
que aquilo que estamos vendo é uma luta e a tonalização diz que esta luta é,
na verdade, uma encenação. Caso um dos atores engane o público fingindo
que a encenação desta luta é, na verdade, algo real estamos em contato com
uma maquinação.
A noção de enquadramento foi abordada por diversos outros autores.
(BATESON, 1942; ENTMAN, 1993) Entre eles, Robert Entman explora o viés
político deste conceito para trabalhar a análise do discurso. Segundo o autor,
enquadrar é selecionar e colocar em destaque determinados aspectos da
realidade dentro de um texto comunicativo (MENDONÇA e SIMÕES, 2012).
Ele identifica quatro funções nos enquadramentos: definir problemas,
diagnosticar causas, fazer julgamentos morais e sugerir soluções. Fala
também sobre quatro instâncias: o comunicador, o texto, o receptor e a
22
cultura. O comunicador é aquele que produz enquadramentos ao, consciente
ou inconscientemente, escolher aquilo que irá dizer. O texto é o local onde os
enquadramentos se imprimem e se apresentam através de palavras-chaves,
estereótipos, fontes de informação, etc. O receptor é quem recebe o texto e o
interpreta segundo seus próprios enquadramentos, esta interpretação pode
ou não casar com os enquadramentos do texto. A cultura é o pano de fundo
das outras instâncias citadas, a partir dela se formam o conjunto de
enquadramentos comuns a determinado grupo social (GONÇALVES, 2005).
A partir da aplicação de Entman, iremos desenvolver categorias que
expliquem (a) como as mulheres da página #EuEmpregadaDomestica criam
enquadramentos sobre as explorações vivenciadas em seu trabalho e (b)
como o público da página recebe e interpreta essas informações. Na
metodologia estas categorias serão explicitadas em mais detalhes.
Por hora, importa abordar o que cada uma dessas teorias nos diz
sobre o estudo de caso. Da teoria do reconhecimento (Honneth, 2003) trago
a ideia de que os conflitos intersubjetivos são meios a partir dos quais os
sujeitos negociam seu valor social e criam laços identitários com outros que
sofrem experiências de não-reconhecimento semelhantes. Mais importante:
que é na criação desta semântica coletiva que reside o cimento para que esta
experiência se torne um movimento social.
A partir da teoria da ação conectiva (Bennett & Segerberg, 2013),
somo a possibilidade de que o uso das mídias digitais para organização de
ações políticas esteja favorecendo a criação deste cimento, na medida em
que os novos tipos de manifestação chamam os indivíduos a se expressarem
politicamente em rede a partir do compartilhamento de experiências
pessoais. Embora grande parte das manifestações online não tenham uma
reivindicação concreta, elas criam discussões públicas sobre o não-
reconhecimento de grupos minoritários. Este é um passo importante para que
pautas mais objetivas pré-estabelecidas por movimentos tradicionais sejam
23
conquistadas, uma vez que – como argumenta Honneth (2003) – as leis são
apenas a formalização de direitos já negociados nas relações intersubjetivas.
Por fim, a análise de quadros de Goffman (1974) e Entman (1993)
permite observar quais estruturas de entendimento entram em jogo na
construção desta semântica coletiva e quais outras sustentam a validação de
práticas sociais que implicam no não-reconhecimento dos sujeitos. Se as
domésticas têm dificuldade em fazer com que direitos trabalhistas já
estabelecidos vigorem, é porque a instância cultural dos grupos sociais
dominantes em nosso país marginaliza negros, mulheres e pobres. Para as
empregadas, os enquadramentos sobre o serviço doméstico se constroem
majoritariamente junto aos seus patrões. Em posição subalterna, elas têm
pouca ou nenhuma possibilidade de negociar as regras que permeiam estas
relações. Isto leva a banalização de agressões e abusos trabalhistas.
Quanto interagem na página, as empregadas põem em prática
justamente as funções de enquadramento citadas por Entman: definem
problemas, diagnosticam causas, propõem julgamentos morais, sugerem
soluções. As narrativas que produzem impulsionam a percepção das
privações de direitos e dignidade vivenciadas por elas. Constroem, ainda que
sem esta consciência, uma nova gramática moral (CAL, GARCEZ, 2016)
sobre o trabalho doméstico.
24
2. EMPREGADAS PROTAGONISTAS
25
trabalho diárias sem folgas, assédio sexual e estupro, agressão física e
psicológica, sem mencionar os quase sempre baixos salários e o não
cumprimento de direitos determinados por lei.
As questões das empregadas domésticas já foram abordadas em
diversos produtos culturais. Enquanto algumas novelas e minisséries como
“Cheias de charme” (Filipe Miguez, Ricardo Linhares, Paula Amaral) e “A
diarista” (Glória Perez) dão mais destaque às personagens, de maneira geral
as empregadas ocupam papel secundário nas tramas. Muitas vezes as
representações reforçam estereótipos preconceituosos, como em “Anjo mau”
(Maria Adelaide Amaral) que conta a história da babá que quer roubar o lugar
da patroa, ou em “Viver a vida” (Manoel Carlos), onde a empregada Cida
seduzia seu patrão. O tema foi abordado por um ponto de vista mais crítico
nos documentário “Doméstica” (Gabriel Mascaro) e no filme de ficção “Que
horas elas volta?” (Anna Muylaert), que problematizam os lugares comuns no
trabalho doméstico, como por exemplo o discurso de que a empregada é “da
família”.
Na academia, o serviço doméstico foi problematizado em trabalhos
como o de Carla Barros (2006) que estuda como as empregadas,
caracterizadas geralmente por suas carências, constroem significados de
consumo junto a suas empregadoras. Jurema Brites (2007) trata da
ambiguidade afetiva entre patrões e domésticas e a manutenção das
relações de exploração nas “tarefas reprodutivas” (aquelas que envolvem o
cuidado de crianças e idosos). Danila Cal (2016), por sua vez, produz um
estudo sobre o trabalho infantil doméstico (TID) no Pará, onde compara a
perspectiva das afetadas e dos media acerca do TID.
O diferencial de #EuEmpregadaDomestica é permitir que as histórias
dessas mulheres sejam contadas por elas mesmas. A página as propicia o
acesso a seu lugar de fala e elas passam a ser as protagonistas de suas
narrativas. A partir do anonimato, suas vozes espalhadas se misturam e
contam juntas um só relato.
26
Segundo dados de 2013 do DIEESE, 79,8% das empregadas
domésticas brasileiras são negras. Portanto, problematizar essas relações
implica em compreender que o abuso vivido por essas trabalhadoras é
legitimado, entre outros motivos, pela discriminação racial. Inúmeros são os
reflexos do racismo no Brasil atual: o genocídio de jovens negros, 77%3 das
vítimas de homicídios em nosso país em 2012; a baixa representatividade em
cargos públicos eleitorais, apenas 29% dos eleitos em 2016 se consideram
negros contra 70,1% 4 brancos sendo os negros maioria populacional
(53,6%); a dificuldade no acesso ao ensino superior, em 2004 apenas 16,7%5
dos jovens negros brasileiros cursavam a faculdade ainda com a reserva de
vagas, além dos incontáveis casos de injúria racial relatados diariamente nas
mídias.
Essas desigualdades afetam, é claro, o mundo do trabalho. As
mulheres negras correspondiam, em 2006, a “18% da população
economicamente ativa e segundo estatísticas do PNAD sofrem desvantagem
na maior parte dos indicadores do mercado de trabalho” (ABRAMO, 2005). A
taxa de desemprego entre estas mulheres, por exemplo, é quase o dobro da
dos homens brancos.
Os trabalhadores negros como um todo recebem em média 50% do
que ganham os brancos e em relação às mulheres negras o número cai para
32%. Alguns poderiam argumentar que nestas estatísticas estão implícitos
graus preparatórios diferentes, que justificariam o contraste. Porém, os dados
também mostram que em níveis iguais de escolaridade, negros recebem
aproximadamente 30% a menos do que brancos. A comparação entre os
salários de homens brancos e mulheres negras, ambos na faixa de 11 anos
ou mais de estudo, apontam que elas recebem apenas 46% do salário médio
deles (id.).
Cerca de 65,3% dos negros exercem ocupações consideradas
precárias, informais e de baixa renda. A taxa de mulheres ocupada com o
serviço doméstico é de 18%. 76,2% das negras domésticas exercem a
função sem carteira assinada. (id.).
3
Fonte: https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/ (acesso em 20/10/2016)
4
Fonte: http://nesp.pucminas.br/index.php/2016/10/09/eleitos-em-2016-mulheres-e-
negrossao-minoria/ (acesso em 20/10/2016
Fontes: Síntese de Indicadores Sociais 2004, IBGE
5
27
Relatos sobre racismo e o uso de termos que se referem diretamente
à escravidão são comuns no movimento “Eu, empregada doméstica”, além
das menções ao abuso sexual. Como aponta González (1984), o que parece
é que, muitas vezes, a função da empregada doméstica guarda os traços do
que outrora foram as mucamas. Estas negras escravas que auxiliavam nos
serviços de casa, tornando mais fácil a vida das mulheres brancas, muito
comumente eram objeto sexual dos senhores – o que confere às negras um
duplo estigma.
28
condições precárias sempre esteve integrado a sociedade. (BIROLI,
MIGUEL, 2014)
Na metade do século XX, a média de escolaridade entre mulheres
começa a superar a dos homens. No ano de 2001, 17,9% das mulheres
possuíam mais de 10 anos de estudo contra 14,3% dos homens e em 2009,
cerca de 60% das matrículas no ensino superior eram femininas. Porém, no
mesmo período a taxa de mulheres negras no ensino superior permanecia
em 10% (id.).
Apesar do aumento parcial da escolarização feminina, o rendimento
mensal médio dos homens em 2012 era quase o dobro do das mulheres. As
negras, por sua vez, têm renda média cerca de 44% menor do que a das
brancas. (id.) As mulheres negras sofrem com um duplo estigma, que afeta
diretamente seu rendimento salarial. Mas a questão vai além pois, como
aponta Angelo Soares (2016), as relações profissionais femininas carregam
também a marca da invisibilidade. Mulheres, especialmente domésticas,
sofrem com o não-reconhecimento de seus atributos profissionais e da
utilidade dos serviços por elas prestados.
29
A baixa representatividade feminina nas esferas políticas institucionais
é uma das pautas centrais do movimento de mulheres no mundo. O direito a
voto foi uma das principais reivindicações da luta feminista da metade do
século XIX até as primeiras décadas do século XX, porém anos após a
conquista do sufrágio feminino, os cargos públicos ainda são
majoritariamente ocupados por homens. (MIGUEL, 2016) Uma pesquisa
(Inter-Parliament Union, 2013) feita em 187 países apontou que em apenas
26 as mulheres ocupavam um terço ou mais das vagas em parlamentos
nacionais e o único país onde são mais numerosas que os homens nestes
espaços é Ruanda. No Brasil, as mulheres ocupam menos de 9% da Câmara
dos Deputados, o que nos coloca atrás de 154 países neste quesito.
(MIGUEL, 2016)
A teoria feminista atual se esforça para desenhar os motivos e
possíveis soluções para este esvaziamento político. (id) Um dos pontos a
serem considerados é a dupla jornada, entre as tarefas de casa e o trabalho,
que diminui o tempo hábil a ser investido na esfera pública. A questão é
especialmente problemática no caso das empregadas domésticas, que além
de terem que cumprir com as tarefas do lar em que trabalham e de seu
próprio, são diversas vezes submetidas a jornadas de trabalho exaustivas e
ilegais.
Além disso devemos considerar que, no caso do Brasil, espaço político
é historicamente dominado por uma elite masculina, sendo marcado por
práticas, costumes e construções identitárias que inibem, ou até mesmo
intimidam, a participação das mulheres. (id.) No caso das empregadas, a
baixa escolaridade é um agravante, uma vez que boa parte das notícias e
deliberações políticas pedem uma compreensão do “juridiquês” e do
“economiquês”, o que faz com que pessoas que detêm menos educação
formal não se sintam aptas a tomar parte nestas decisões.
Apesar disso, o Brasil é o país com mais sindicatos de domésticas e
com a categoria mais organizada do mundo (OLIVEIRA, 2016). Esta
organização política não torna mais fácil a obtenção de direitos trabalhistas
para a classe. A luta das domésticas em nosso país inicia em 1936, com a
fundação da primeira Associação das Trabalhadoras Domésticas em Santos
(SP) e é liderada por Laudelina de Campos Melo. Apenas em 1972, 36 anos
30
depois, aparece a primeira lei que reconhece o trabalho doméstico
(OLIVEIRA, 2016). Já então, a emenda 5.782/72 garantia a obrigatoriedade
da carteira assinada, férias remuneradas de 20 dias e recolhimento para a
previdência social. Posteriormente, em 1988, as empregadas conquistaram o
direito a décimo terceiro salário, aviso prévio, licença maternidade, folga aos
domingos e organização sindical. (id.)
Hoje, no ano de 2016, estima-se que apenas 30% das empregadas
trabalhem com carteira assinada, ainda que a lei mais recente (de 2015)
preveja multas aos empregadores que não concedam os devidos benefícios
a doméstica. A PEC das domésticas, promulgada no ano passado, garante a
jornada de até 44 horas semanais, proíbe os descontos salariais relativos a
alimentação, higiene, vestuário e moradia, dá direito ao FGTS, entre outros.
Muitos dos direitos divulgados na mídia como inovações desta PEC, na
verdade já eram garantidos a anos porém sem fiscalização. (id.)
No artigo “Trabalhadoras domésticas: nossas conquistas, nossas
histórias”, Creuza Oliveira aponta os entraves sofridos pelas domésticas na
tentativa de garantir que suas reivindicações fossem pautadas nesta PEC. A
Comissão Mista de Regulamentação, composta por deputados e senadores,
propôs diversas modificações no texto original. Um ponto importante, por
exemplo, foi a tentativa de permitir que houvessem Menores Aprendizes no
serviço doméstico, em um cenário em que a luta contra o trabalho infantil
doméstico é uma das principais pautas do movimento e uma constante na
exploração da mão-de-obra infantil no Brasil. (id.) Houve também a proposta
de que as empregadas poderiam acompanhar os patrões em viagem sem
receber hora extra. Graças às interferências do sindicato, junto a OAB, a OIT
e o Ministério Público, as duas proposições não passaram. Porém, as
empregadas não conquistaram o direito a contribuição sindical, o que
prejudica a organização da categoria, e a questão das diaristas ainda é uma
polêmica. (id.) O vínculo empregatício só passa a ser considerado por lei, se
a doméstica trabalhar mais de 3 vezes por semana na mesma casa (caso
contrário, ela é diarista). Porém, algumas empregadas trabalham, por
exemplo, uma vez por semana no mesmo local durante anos - o que poderia
configurar vínculo, como acontece no caso de ocupações como a de
professor e médico. (id.)
31
Assim, apesar da organização política, as empregadas ainda
encontram problemas ao dialogar com uma esfera institucional constituída
majoritariamente por homens brancos de classe alta. Seguindo a Teoria do
Reconhecimento (HONNETH, 2013), trazer a discussão pública o debate
sobre as condições das empregadas pode ser o primeiro passo para a
efetivação de direitos. O mais importante aqui é que a agenda de discussões
é pautada pelas próprias domésticas, que ao contarem suas experiências
decidem quais aspectos da exploração de seu trabalho devem ser
publicizados.
O movimento online pode representar para as empregadas uma forma
mais acessível de contato com a política – uma vez que possibilita que se
manifestem narrando histórias pessoais. Ao mesmo tempo, ao ler os relatos
de outras trabalhadoras e compará-los com os seus podem identificar com
mais clareza quais são os principais símbolos utilizados para reforçar a
condição de submissão da mulher negra no trabalho doméstico.
32
3. METODOLOGIA
33
que estão inseridos, criam coletivamente enquadramentos sobre o
movimento. Analisar os comentários mais curtidos nos permite observar tanto
a expressão verbal (comentário) quanto a expressão simbólica (curtida) dos
usuários, de forma que se possa identificar quais opiniões representam a
maioria. Foram analisados os 140 comentários mais curtidos na página.
A coleta foi feita a partir do aplicativo Netvizz, criado para extrair dados
de páginas do facebook. Os dados foram exportados em uma tabela do
Excel. Em seguida foi apagado todo o conteúdo que não se referia aos
relatos. A partir disso, foram criadas classificações que permitissem
quantificar a incidência de determinados conteúdos nos posts e comentários.
A análise observou (A) A autoria do relato: se foi feito em primeira ou
terceira pessoa, pela própria empregada ou por seus parentes/conhecidos;
(B) O posicionamento: como as relatantes narram seu posicionamento diante
dos abusos vividos; (C) O conteúdo dos relatos: quais aspectos da
exploração são selecionadas e destacados nas narrativas. Em relação ao
item (C) foram eles: o trabalho infantil, a discriminação social, a violação de
direitos trabalhistas, a escravidão, a violência sexual e as restrições sobre a
alimentação.
Identificar de quem é a autoria dos relatos é um caminho para
problematizar o acesso das trabalhadoras domésticas a página. Pesquisas
indicam que entre as classes D e E, o acesso à internet ainda alcança
apenas 14%. Na classe C, o número sobe para 48% (Comitê Gestor da
Internet)6. Se eles são enviados por terceiros, como parentes e amigos, de
que maneira isso infere na relação das protagonistas com a publicização de
suas histórias?
O item que observa o posicionamento das empregadas nos relatos,
permite dizer em que medida elas se colocam como resistentes aos abusos
vivenciados e quais são essas resistências. As categorias referentes aos
conteúdos oferecem dados sobre quais são as formas de abusos mais eleitas
para a denúncia e foram criadas com base nas principais pautas do
movimento de empregadas e na repetição de determinados temas nos
depoimentos.
6 Fonte: http://www.cartacapital.com.br/especiais/infraestrutura/O-desafio-da-inclusao-digital
(acesso em 12/10/2016)
34
O trabalho infantil, a discriminação social, a violência sexual e a
violação de direitos trabalhistas são algumas das principais lutas políticas em
relação ao trabalho doméstico identificadas durante a pesquisa (CREUZA,
2009, CAL, 2016). Todas essas pautas foram encontrados nos relatos. Ao
analisar aqueles que falavam sobre violação de direitos trabalhistas
observou-se que haviam graus diferentes de exploração em jogo nos
discursos, por isso foi criada a categoria “trabalho escravo”. Por fim,
houveram muitas ocorrências de relatos a respeito de questões ligadas a
restrições a alimentação das domésticas. Foi criada uma categoria para que
fosse possível quantificar e refletir sobre esses casos. Segue abaixo uma
descrição detalhada do conteúdo de cada uma dessas subcategorias.
35
escravidão, foram
chamadas de escravas ou
passaram por situações
que configuram “trabalho
escravo” segundo o artigo
149 do código penal ou
foram impedidas de
frequentar a escola.
36
página. Os itens B, C e D partem das categorias de Entman e são
destrinchados em subitens aplicados de acordo com a repetição de
determinados temas nos comentários. A tabela abaixo fornece mais detalhes:
37
domésticas devem buscar
educação como solução para
acabar os abusos relatados
APOIO EMOCIONAL Comentários que apontam que as
domésticas devem buscar apoio
emocional como solução para
saberem lidar com os abusos
relatados
OUTROS Comentários que apontam que
outras soluções para acabar com
os abusos relatados
Fonte: A autora.
38
sobre abusos ligados a alimentação representaram 37% (N=52) do total. Este
foi o enquadramento mais escolhido pelas empregadas para narrar as
agressões vivenciadas. Ao cruzar os dados, identificou-se que 60% (N= 21)
dos casos de trabalho escravo e 41% (N= 8) dos de violência sexual, eram
também de trabalho infantil. É importante mencionar que as categorias não
são excludentes entre si.
39
majoritariamente por empregadas (N=7). Processar os patrões é a segunda
solução mais comum (N=6), porém não foi mencionada por nenhuma
doméstica. A segunda solução mais mencionada por domésticas foi buscar
os estudos (N=3). Também foram citados por pessoas que não se
identificavam como empregadas a busca de auxílio emocional (N=4), a
valorização do trabalho doméstico pela sociedade (N=1), mudança na
conduta moral dos patrões (N=1) e mudança na conduta das doméstivas
(N=1).
Alguns dos comentários não se encaixaram em nenhuma destas
classificações. 12,8% (N=18) eram críticas aos patrões ou lamentações
acerca dos conteúdo dos relatos. 5% dos comentários mais curtidos eram de
patroas que contavam histórias nas quais eram “boas” com suas
empregadas.
No próximo capítulo, todos estes dados serão expostos com mais
detalhes e analisados junto aos textos dos comentários.
40
CAPÍTULO 4: ANÁLISE DE RESULTADOS
41
4.1.1 RESTRIÇÕES A ALIMENTAÇÃO
7 Todo o conteúdo foi retirado da página do Facebook #EuEmpregadaDoméstica. A
transcrição optou por manter eventuais erros de grafia.
42
“ (...) Certa vez fui tomar um pouco d refrigerante q tinha
sobrado na geladeira quando eles voltaram na semana seguinte
queriam saber onde estava o refri eu disse q tinha tomado e essas
foram as palavras da Patroa *da próxima vez q eu deixar alguma
coisa na geladeira não é pra comer pode deixar estragar mas não é
pra comer ou beber nada (...)” Empregada 2, 09 de agosto de 2016.
43
estava la por comida. Já passei cada uma no Natal. (...)”
Empregada 7, 10 de agosto de 2016
I- cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo
no local de trabalho;
44
“(...) Hoje tenho 30 anos e trabalho numa empresa e sim ainda
conheço algumas pessoas que se acham mais que os outros mas
nada se compara as humilhações que passei como doméstica. Por
vezes eles acham que vc é um escravo. (...)” Empregada 9, 20 de
setembro de 2016
“(...) filhos sem educação que faziam de mim gato e sapato a filha
dessa minha patroa tinha minha idade 14 anos a época e ela até
me batia mas isso eu não deixava revidava então era uma
brigaiada mas como eles não podiam perder a escravinha não me
mandavam embora só ameaçavam!” Empregada 10, 20 de
setembro de 2016
“(...) Sinto justiça quando você expõe esse esgoto que vem da
classe média em forma de atitudes escravagistas. (...)” Empregada
11, 09 de setembro de 2016
45
“(...) A princípio o trabalho era de cuidar da casa e olhar as crianças
(que eram 4 de 4 5 7 e 8 anos. sendo que o de 4 ainda usava
fraldas de pano). Mas na primeira semana de trabalho a senhora
dispensou a lavadeira e a passadeira e passou a obrigar a minha
mãe a cuidar das roupas de toda a famíliia (incluindo as fraldas).
Além disso minha mãe dormia na casa mas não tinha cama ela
tinha que aguardar o esposo da patroa acabar de assistir tv por
volta das 23:30 da noite para dormir no sofá. E deveria acordar as
5:30 para comprar o pão e fazer o café para as crianças e o marido
da patroa. (...)” Empregada 14, 19 de setembro de 2016
4.1.3 RESISTÊNCIAS
46
com a qual se deve tratar as empregadas. A medida mais comum de
resistência (N=16) foi o pedido de demissão.
“(...) daí um outro dia saiu pra o escritório e mas tarde ela ligou em
casa daí eu atendi o telefone ela falou quem é? Eu disse meu
nome ela disse: ninguém quer saber quem é você, você não é
ninguém quando eu ligar aí você tem que falar o meu nome achei
que ela foi muito grossa e mal educada se ela queira que fosse
assim acho que deveria explicar pra mim com educação pois lá no
norte já tinha trabalhado e muitas casas e de pessoas que
trabalhavam na educação e sempre fui tratada com muito
respeito então achei que ela não merecia que eu continuasse a
trabalhar com ela e que eu mas ainda não merecia passar por
essas humilhações no outro dia acordei cedo peguei minhas
coisas falei com o marido dela e ele mim deu dez reais pra pagar a
passagem e fui embora perdi uma semana de trabalho e nunca
mais voltei lá (...)” Empregada 19, 05 de agosto de 2016
47
pimenta oferecia para os convidados dela usava a rodo. (...)”
Empregada 21, 29 de setembro de 2016
“(...) Por isso prefiro contar que ela superou tudo isso p
criar 4 filhos sozinha voltar a estudar aos 45 anos cursar
gastronomia pós tecnologia em alimentos e nutrição e hj se
tornar uma grande gastrônoma e Chef de
Cozinha independente respeitada e que não precisa mais se
submeter a situações humilhantes. Uma guerreira uma vencedora
que espero sirva de inspiração a muitas mulheres que passam por
isso ainda hj p que não percam a fé em si e na vida. (...)”
Empregada 24, 21 de agosto de 2016
48
4. 2 ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS
4.2.1 PROBLEMATIZAÇÕES
49
TABELA 4.1: PROBLEMÁTIZAÇÕES DO TRABALHO DOMÉSTICO NOS
COMENTÁRIOS DE #EUEMPREGADADOMÉSTICA
EMPREGADAS NÃO-IDENTIFICADOS
Relações de afeto Problematizações sobre a conjuntura
no trabalho política dos país (N=8)
doméstico (N=1)
Relações de Relações de
discriminação no restrição alimentar
trabalho doméstico no trabalho
(N=1) doméstico (N=7)
Relações de
discriminação no
trabalho doméstico
(N=3)
Fonte: A autora.
50
casa de gente ruim q jogava fora ou mandava embalar p levar pra
casa de São Paulo (moramos no litoral) (...)” Seguidora empregada
1, 26 de julho 2016
4.2.2 DIAGNÓSTICOS
51
aspecto, como por exemplo a empregada não ter os privilégios que tem um
cidadão de classe média.
EMPREGADAS NÃO-IDENTIFICADOS
Diagnosticam os valores morais Diagnosticam a discriminação racial, social e
dos patrões como causa dos de gênero como causa dos abusos (N=14)
abusos (N=2)
Diagnosticam a ausência de políticas públicas
que auxiliem pessoas pobres como causas dos
abusos (N=5)
Diagnosticam a atuação específica de um
governo como causa dos abusos (N=3)
Diagnosticam os valores morais dos patrões
como causa dos abusos (N=5)
Fonte: A autora
“(...) Não porque não seja num emprego digno mas vendo
esses relatos vejo o que elas passam nos confortos desses lares
de classe média. O Brasil tem uma cultura escravista e
52
desumanizada para quem trabalha com conservação. (...)”
Seguidor não-identificado 7, 02 de agosto
4.2.3 SOLUÇÕES
53
responderam a situações similares. Um terço (N=10) deles foram feitos por
pessoas que se identificavam como empregadas.
EMPREGADAS NÃO-IDENTIFICADOS
Propõe a resistência como solução Propõe a resistência como solução aos
aos abusos (N=7) abusos (N=5)
Propõe o investimento em estudos como
solução aos abusos (N=3)
Propõe buscar auxílio emocional como
solução aos abusos (N=4)
Propõe o investimento em estudos
Propõe buscar auxílio da lei como solução
como solução aos abusos (N=3)
aos abusos (N=6)
Propõe a valorização do trabalho doméstico
como solução (N=1)
Propõe que as domésticas revejam seu
posicionamento como solução aos abusos
(N=1)
Propõe que os patrões revejam sua conduta
moral como solução aos abusos (N=1)
Fonte: A autora
54
“(...) Longe de querer tirar a culpa do absurdo da postura
dessa "patroa". Mas porque Joana nao disse nada? Ja passei por
situçoes e eventos onde um chefe efetuou uma pratica parecida, e
eu botei a boca no trombone. Nao trabalho sem comer. E já tive que
falar essa frase em várias ocasioes. A hora da minha refeiçao é
sagrada. Direito básico de qualquer trabalhador. (...)” Seguidora
empregada 7, 27 de julho
“ (...) Tenho fama de ser boa babá, mas mal criada. Afirmo que
sou, isso é que dá ser criada sozinha na casa de patrão. Se sua
boca não for grande suficiente, vc é reduzida a um rato. (...)”
Seguidora empregada 9, 28 de julho
55
4.3 OBSERVAÇÕES
56
CAPÍTULO 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS
57
domésticas tem sua carteira assinada e que o trabalho infantil nos lares ainda
é muito comum. (OLIVEIRA, 2016)
Na pesquisa sobre as causas da exploração no serviço doméstico,
observou-se que no Brasil pessoas que sofrem discriminação de gênero e
raça estão relegadas às piores condições de trabalho. Mulheres negras têm
os piores salários entre a população e mais da metade dos brasileiros
trabalham em condições consideradas precárias ou informais. (ABRAMO,
2006) Além disso, culturalmente há uma desvalorização de trabalhos
considerados femininos que são vistos como mais fáceis de exercer e de
menor importância. (SOARES, 2016)
A análise de dados, foi feita sobre os posts da página que continham
relatos e os comentários mais curtidos. Para isso, eles foram classificados de
acordo com categorias pré-estabelecidas. Para categorizar os relatos, levou-
se em conta as principais pautas do movimento sindical e os temas mais
recorrentes na página. Também houve a preocupação em perceber se as
empregadas se posicionavam como vítimas ou resistentes em relação aos
abusos vivenciados. Para classificar os comentários, foi utilizada uma
categorização proposta por Entman (1993), na qual o autor define quatro
funções dos enquadramentos discursivos: definir problemas, diagnosticar
causas, fazer julgamentos morais e sugerir soluções que foram empregadas
neste trabalho. O trabalho empregou três: definir problemas, diagnosticar
causas e sugerir soluções. Os comentários também foram divididos entre
aqueles tecidos por pessoas que se identificavam como empregadas e os
que vinham de pessoas não-identificadas.
Nos relatos o tema escolhido mais recorrentemente para narrar a
exploração no trabalho doméstico foram as restrições alimentares. Houve
ênfase nos casos em que as domésticas são proibidas de consumir
determinados tipos de comida. As empregadas fazem o esforço de deixar
claro que as causas destas restrições não são a economia, uma vez que os
patrões preferem jogar comida no lixo a oferecer a elas. Para elas, este tipo
de comportamento é uma forma de humilhação e agressão. Também são
encaradas assim, atitudes de patroas que oferecem restos de comida por
acreditarem que as domésticas são muito pobres. Diante disso demonstrar
58
que não precisam do assistencialismo das empregadoras e que tem
condições de comprar alimentos de qualidade.
Outro problema bastante apontado foi o trabalho escravo. Algumas
das relatantes usavam o termo como forma de denunciar que o serviço
doméstico é uma escravidão disfarçada. Porém, a maior parte das mulheres
narraram situações em que foram submetidas a condições análogas à
escravidão, sem mencionarem que a prática de seus patrões era criminosa.
Também não foram relatados casos de processo jurídico ou de denúncia à
polícia. Sobre isto, a hipótese desta pesquisa é a de que as domésticas
desconhecem a lei ou não acreditam que seus empregadores serão punidos.
Em um terço dos relatos as domésticas se enquadravam como
resistentes aos abusos. A principal medida que narram adotar é o pedido de
demissão. Ao contarem que se demitiram, as empregadas apontam quais
comportamentos dos patrões consideram intoleráveis: não poderem usar os
mesmos talheres, ofensas, serem proibida de estudar, entre outros. Ao
fazerem isso, estão dialogando com outras domésticas, dando exemplos
sobre como lidar com os abusos no trabalho. Algumas narram que
conseguiram um emprego em um lugar melhor após agirem dessa maneira.
Estes depoimentos são formas de apoio a pessoas que passam por
situações similares. Outra forma de resistência comum nos relatos é
demonstrar as patroas que podem consumir determinados bens que estas
associam a status, como frequentar uma universidade pública ou comer um
alimento de preço mais caro. As domésticas contam que os empregadores as
agridem insinuando que elas não são dignas de produtos de qualidade,
estudo ou de melhores empregos.
A respeito dos comentários mais curtidos, a maior parte deles procura
apontar problemas nas relações do trabalho doméstico. O tema mais
abordado foram as restrições alimentares, tanto por empregadas como por
pessoas não-identificadas. Como analisamos apenas os comentários dos
posts contendo relatos, isto é consequência da alta incidência desta questão
na página. Os comentários vindos de empregadas se diferem dos não-
identificados. Elas geralmente comentam narrando suas próprias vivencias
de exploração no trabalho doméstico. Demonstração identificação com os
relatos e procuram reafirmá-los. Os comentários não-identificados, por sua
59
vez, estão mais focados em criticar a atitude dos patrões e evidenciar as
contradições nas ações destes.
Quase nenhum empregada optou por tecer comentários que
diagnosticassem as causas dos abusos no trabalho doméstico. As que
fizeram, apontaram desvios morais como a principal motivação. Segundo
narram já tiveram patrões bons e ruins de forma que a exploração é
consequência do caráter de cada pessoa. A maior parte dos diagnósticos
vindos de pessoas não-identificadas apontam a discriminação racial, social e
de gênero como a razão das relações de trabalho abusivas. Os comentários
vinham diversas vezes de pessoas que se denominavam como brancas de
classe média.
Nos comentários que sugeriam soluções para os abusos, o principal
recurso apontado por pessoas não-identificadas foi que as empregadas
buscassem auxílio da lei. Já as próprias empregadas, acham que a melhor
solução é lutarem elas mesmas por respeito e negociarem as relações de
trabalho com os patrões. Nenhuma empregada apontou buscar a lei como
forma de resolver a questão.
De maneira geral foi identificado que os comentários das empregadas
estão mais preocupados em interagir com as outras domésticas – uma vez
que procuram propor soluções ou validar os relatos. Os comentários não-
identificados por sua vez, embora também interajam com as empregadas,
muitas vezes intentam apenas tecer críticas sobre questões sociais.
Percebemos o engajamento das domésticas em apoiarem umas às outras e
fazerem com que o movimento da página funcione.
Dentro dessas análises, percebe-se que as domésticas têm uma visão
crítica acerca das humilhações vivenciadas no trabalho. Portanto, se
reconhecem como dignas de estima social ainda que nem sempre sejam
capazes de adotar uma posição de resistência às agressões vivenciadas. A
condição de submissão não é internalizada, mas está em disputa. Entretanto,
tanto nos relatos quanto nos comentários, poucas são as que diagnosticam
causas para os abusos. As domésticas também trazem pouco a discussão
as questões da lei. Poucos são os relatos em que mencionam direitos
trabalhistas, como carteira assinada, férias ou décimo terceiro salário.
Também não são citados casos de processos por este tipo de violação. As
60
pautas do movimento sindical: luta contra o trabalho infantil doméstico e
garantia dos direitos assegurados por lei tem relação direta com estas
questões. 60% (N=21) das narrativas que mencionam trabalho infantil,
também relatam condições análogas à escravidão. A violação de direitos
trabalhistas afasta as empregadas do conhecimento da lei e da crença na
sua eficácia.
Neste sentido, é importante que hajam avanços em relação às
políticas públicas contra o trabalho doméstico em condições informais e
ilegais, tanto a partir da fiscalização quanto do debate público sobre o tema.
No site oficial do governo sobre combate ao trabalho escravo 10 , não há
menção ao serviço doméstico. A campanha associa este tipo de prática às
áreas rurais e a trabalhadores do sexo masculino. Em reportagem no portal
do senado11, as imagens ilustrativas são também de homens. Assim, não são
apenas as empregadas mas os orgãos oficiais não relacionam o serviço
doméstico ao crime de trabalho escravo.
Acredito que a principal contribuição desta pesquisa é analisar
conteúdos textuais produzidos inteiramente pelas domésticas. Como este
material não surgiu a partir de entrevistas, as falas analisadas foram criadas
sem a interferência do pesquisador. A exploração do trabalho doméstico é
um tema pouco discutido e que não é devidamente alcançado pelo estado. O
estudo dos relatos da página oferece perspectivas sobre a dimensão do
problema, assim como sobre o posicionamento das empregadas.
Por considerar a própria riqueza do material, acredito que a análise
precisa ser aprofundada. O tema é complexo, os conteúdos podem ser
abordados de diversas maneiras e uma boa observação exige uma
maturação que me parece ainda não ter sido alcançada. Julgo como parciais
os resultados obtidos. É preciso ampliar a investigação sobre a literatura que
trata de questões específicas do trabalho doméstico. Outro ponto importante
é que, apesar de os relatos terem sido escritos pelas próprias domésticas,
10
Fonte: http://mtps.gov.br/trabalhoescravonao/ (acesso em 15/11/2016)
11
Fonte: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/trabalho-escravo/trabalho-
escravo-atualmente.aspx
61
sua publicação é mediada pela criadora da página. Contactá-la é também um
caminho para aprimorar os resultados desta pesquisa.
62
REFERÊNCIAS
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