Janaina Cardoso de Mello - Museus Afros No Brasil (Texto)
Janaina Cardoso de Mello - Museus Afros No Brasil (Texto)
Janaina Cardoso de Mello - Museus Afros No Brasil (Texto)
Mas quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres,
depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém, mais vivazes,
mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem
ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre
as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas
quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações.
(Marcel Proust)
A agenda pública pleiteada pela sociedade civil enfoca, de forma cada vez mais
contundente, a luta pelo reconhecimento e pelo espaço de diversas memórias. Assim, a noção de
“museu”, assim como seus valores e narrativas, é questionada em prol de uma maior pluralidade
e maior democratização.
Os museus têm assumido lugar de destaque nos debates que envolvem a problematização
das relações com o presente e com o passado. Mais do que nunca, questiona-se o tradicional
entendimento de que as narrativas construídas com os objetos históricos são expressões naturais
de um passado nacional uniforme e essencializado. Por outro lado, aprofunda-se a idéia de que o
1
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
discurso museológico é produto de uma seleção feita com objetivos políticos e estéticos
específicos.1
Ao nos remetermos ao conceito de “Lugares de Memória” de Pierre Nora, percebemos a
configuração dessa noção em:...museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações [...]. Pois, os lugares de
memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar
arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres,
notariar atas, porque essas operações não são naturais.2
Tradicionalmente, os museus, como lugares de memória e esquecimento, forjaram
projetos educativos para os cidadãos, quaisquer que sejam as definições de educação e/ ou
cidadania. Os museus da modernidade foram marcados pelo caráter disciplinador, explícito na
organização do tempo e dos espaços, na vigilância do patrimônio e na sacralização de objetos e
culturas. Os principais objetivos dessas instituições seriam educar o indivíduo, estimular seu
senso estético e afirmar o nacional.3
Cultuar a memória através de referenciais externos e coletivos, constituindo-os enquanto
patrimônio afetivo de um grupo faz parte do próprio conceito de identidade quando da formação
e do processo de consolidação dos Estados Nacionais modernos. Nesta direção, a noção de
patrimônio assumia o status de instrumento que cumpria inúmeras funções simbólicas, tais como:
... reforçar a noção de cidadania na medida em que são identificados, no espaço público,
bens [...] a serem utilizados em nome do interesse público. Nesse caso, o Estado atua como
guardião e gestor desses bens; ao partir da identificação, nos limites do Estado nacional, de
bens representativos da nação [...] a noção de patrimônio contribui para objetivar, tornar
visível e real, essa entidade ideal que é a nação [...]. A necessidade de proteger esse
patrimônio comum reforça a coesão nacional; os bens patrimoniais [...] funcionam como
documento das versões oficiais da história nacional, que constrói o mito de origem da nação
1
PIO, Leopoldo Guilherme. Musealização e cultura contemporânea. In: Musas: Revista Brasileira de Museus e
Museologia, Rio de Janeiro, ano 2 n. 2, p. 48-57, IPHAN, 2006.
2
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto História. São Paulo:
Departamento de História de Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / PUC-SP, nº.10, 1993, p.13.
3
CHAGAS, Mário. Memória e poder: focalizando as instituições museais. In: Interseções. Rio de Janeiro, UERJ,
ano 3, n. 2, p.5-23. jul./dez. 2001.
2
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
3
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
Brasil, Raymundo Nina Rodrigues inaugurou o campo de estudos sobre arte negra. Publicado
inicialmente na Revista Kosmos do Rio de Janeiro (1904) este artigo sintetiza as diligências de
Nina Rodrigues sobre arte negra. Fruto de um trabalho de campo e análises bibliográficas sobre
arte africana, trata-se de um texto seminal, que sob vários aspectos analisados a seguir,
estabeleceu as bases sobre as quais o assunto seria tratado no próximo meio século. A primeira
alteração ocorrerá apenas em 1956, quando Arthur Ramos ampliou o leque de obras a serem
abordadas no interior da arte afro-brasileira, incluindo artistas populares e que produziam obras
laicas. Até então, o que se denominava arte afro-brasileira era a produção ritualística e de origem
iorubana e fon, tal como conceituou Nina Rodrigues.7
Ao selecionar as peças que iria abordar em seu artigo, o Nina Rodrigues elegeu apenas
obras destinadas ao culto religioso, deixando de fora as obras populares e mesmo as eruditas
produzidas por negros aqui mesmo, em Salvador, na Escola de Belas Artes da Bahia e Liceu de
Artes e Ofícios, tais como Antonio Firmino Monteiro e Antônio Rafael Pinto Bandeira. Com esta
seleção criou um paradoxo que perpassa toda a história da arte afro-brasileira, a da relação
exclusiva entre arte negra e religião. Somente com a exposição de 1997, A mão afro-brasileira,
artistas negros que realizaram obras eruditas no século XIX foram historicizados, com a
introdução destes na mostra, como artistas afro-brasileiros, muitos dos quais contemporâneos de
Nina, considerando para a inclusão nesta categoria apenas o fato de serem negros e não a
temática presente nas suas obras.8
Nina Rodrigues não compreendeu inteiramente a gramática formal da arte negra
produzida na Bahia, mas é preciso que se diga que apesar de afirmações que hoje podemos
apontar como resultantes de limitações relacionadas ao conhecimento da arte negra de então,
reforçadas pelas teorias racistas vigentes, o seu mérito foi trazer à cena da época uma obra capital
que iniciou uma tradição de estudos sobre a temática, permitindo que na atualidade seja possível
uma visão do quadro da produção de cultura material afro-brasileira na virada do século XIX ao
7
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed. da Universidade
de Brasília, 1988.
8
ARAÚJO, E. (org). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenengue, 1988.
4
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
XX, dando visibilidade à presença negra na cultura e na arte brasileira de então e suas
continuidades contemporâneas.
Logo, a abordagem da escravidão nos museus necessita estabelecer um diálogo sobre os
sentidos e as marcas legadas pela escravidão na sociedade brasileira, bem como as formas de
representação social e material que estas adquirem ao longo do tempo. Dessa forma, torna-se
possível, desvelar os corpos dos seres humanos, em sua multiplicidade de cores, tipos de cabelos,
lábios, narizes e outros atributos físicos, traduzidos em valores sociais; a associação entre estes
seres humanos e experiências históricas de seus semelhantes físicos e/ ou culturais; diferentes
aproximações, em múltiplas experiências históricas, entre cor, raça, direitos e poderes.
Ao pensar a cultura material de matriz africana no Brasil, Kátia Mattoso9 ao estudar a
Bahia no século XVIII, realça a complexidade das relações entre senhores e escravos, citando o
refinamento das roupas e dos adereços de alguns cativos, que chegavam a incluir jóias de alto
valor. Estes ornamentos caros foram representados por artistas que estiveram no Brasil na época.
Todavia, não costumam ser encontrados em museus e instituições similares, na condição de
objetos de alto preço, usados pelo escravo X ou pela escrava Y. Em contrapartida, jóias e roupas
de luxo, que pertenceram a pessoas ricas da mesma época (a baronesa K, o ministro L – algumas
delas proprietárias de escravos semelhantes àqueles), fazem parte do acervo de importantes
museus históricos brasileiros. Porque esta diferença de destino?
Uma primeira questão diz respeito à própria relação de propriedade: as jóias não
pertenciam aos escravos, eles mesmos eram propriedades de outras pessoas. Jóias e roupas que
chegaram aos museus, freqüentemente, foram doadas por herdeiros de seus proprietários
originais, que demonstraram espírito público (poderiam ganhar muito dinheiro se as vendessem
no mercado de antiguidades) e vontade de ter reconhecida uma imagem de origem nobre (não é
qualquer um que possui objetos tão preciosos, herança de família, e pode abrir mão de seu valor
comercial para ser nobilitado no acervo de uma instituição respeitável: é melhor que árvore
9
MATTOSO, Katia M. de Queirós. A opulência na província da Bahia In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.).
História da Vida Privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo, Companhia das Letras,
1997, p. 143-179.
5
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
12
ARAÚJO, E. Para nunca esquecer. Negras Memórias, memórias de negros. Brasília: Ministério da Cultura,
2001.
13
LODY, R.G. da Mota. O negro no museu brasileiro: construindo identidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2004.
7
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
Muitos museus, como o caso de Aracajú, têm adotado como organização de seu acervo
um fio condutor temático capaz de agregar conjuntos de uma mesma origem, não peças dispersas,
mas objetos que foram recuperados num contexto definido, representando o mundo rural ou
urbano, as formas de trabalho e economia, os elementos culturais e políticos presentes em
8
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
distintos grupos sociais e étnicos, dentro de sua própria historicidade, permitindo a construção de
um olhar etnográfico.
Museus como territórios contestados: debates sobre as novas perspectivas nas exposições
sobre a cultura afro-brasileira.
14
Importantes trabalhos têm apontado as estratégias de construção de uma interpretação
da História e do Brasil por meio da pesquisa documental sobre as coleções, a história
institucional e os discursos museográficos. Da mesma forma, as pesquisas relativas à educação
não-formal nesses espaços crescem em número e qualidade. A produção concentra-se, em larga
medida, em análises de processos comunicativos, estudos quantitativos de público e descrições de
atividades pedagógicas.
É importante salientar que o museu educa por meio da tridimensionalidade e, nesse
sentido, a exposição e todas as linguagens que a compõem educam não somente o olhar, mas
também sobre a História. Assim: a Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização
cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à
compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido.
Este processo leva ao reforço da auto-estima dos indivíduos e comunidades e à valorização da
cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural.15
O autor Fernando Catroga16 conduz a uma reflexão importante ao analisar a relação
dialética entre memória e história. De acordo com o autor, uma produz a outra, não há hierarquia.
Ambas operam com a seletividade, a verossimilhança, a representação e a tridimensionalidade do
tempo, ou seja, com a inclusão do projeto de futuro.
14
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco: Lapa, 1996; BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória
nacional. São Paulo: Editora Unesp, 2005; SANTOS, Myriam Sepúlveda. A escrita do passado em museus
históricos. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
15
HORTA, Maria de Lourdes; GRUNBERG, Eveline; MONTEIRO. Guia básico de educação patrimonial.
Petrópolis: Museu Imperial: IPHAN, 1999, p. 6.
16
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto Edições, 2001.
9
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
17
SANTOS, Myriam Sepúlveda. Op. cit., p. 56.
18
ALENCAR, Vera Maria Abreu de. Museu-educação: se faz caminho ao andar... Dissertação (Mestrado em
Educação). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.
19
BARBERO, Jesus-Martin. Cambios en la percepción de la temporalidad. In: MINISTÉRIO DA CULTURA.
Museo y memória nacional. Colômbia, 1999.
10
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
das memórias. É necessário prever, incluir e expor formas diferentes de perceber o tempo e a
história.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas:
ALENCAR, Vera Maria Abreu de. Museu-educação: se faz caminho ao andar... Dissertação
(Mestrado em Educação). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1987.
20
ARANTES, Antonio Augusto. Documentos históricos, documentos de cultura. In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: SPHAN, nº 22, pp. 48-55. 1987.
11
ANAIS ELETRÔNICOS
II Encontro de História – Historiografia Brasileira: Problemas, Debates e Perspectivas
25 a 27 de Outubro de 2010
ISSN 2176-784X
________. Para nunca esquecer. Negras Memórias, memórias de negros. Brasília: Ministério da
Cultura, 2001.
BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional.
São Paulo: Editora Unesp, 2005.
CHAGAS, Mário. Memória e poder: focalizando as instituições museais. In: Interseções. Rio de
Janeiro, UERJ, ano 3, n. 2, p.5-23. jul./dez. 2001.
COSTA, Carina Martins. A escrita de clio nos temp(l)os da mnemósime: olhares sobre materiais
pedagógicos produzidos pelos museus. In: Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 47, p. 217-
240, jun. 2008.
LODY, R.G. da Mota. O negro no museu brasileiro: construindo identidades. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2004.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto
História. São Paulo: Departamento de História de Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
/ PUC-SP, no.10, 1993, pp. 07-28.
PIO, Leopoldo Guilherme. Musealização e cultura contemporânea. In: Musas: Revista Brasileira
de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, ano 2 n. 2, p. 48-57, IPHAN, 2006.
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed.
da Universidade de Brasília, 1988.
SILVA, Marcos A. Além das coisas e do imediato: cultura material, história imediata e ensino de
história. In: Revista Tempo. Nº 21, pp. 82-96, Niterói: UFF, 2007. pp. 82-96.
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! África encoberta e descoberta no Brasil. Museu
Nacional da Escravatura, INPC, Ministério da Cultura. 1995.
13