Fenomenologia Da Experiência Religiosa

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

Antônio Gôuvea Mendonça"

Sinopse

Esta reflexão é uma tentativa de estabelecer a base para uma discussão a respeito da
possibilidade epistemológica de uma ciência da religião. A fim de escapar da
multiplicidade de métodos que impossibilita essa discussão em termos de sua
singularidade, propõe-se um recuo básico à fenomenologia, buscando um apoio
anterior às diversas ciências que se preocupam com a religião, inclusive a própria
teologia. É reconhecida a busca do absoluto religioso que perpassa o pensamento
de filósofos, teólogos e, mais recentemente, o dos próprios sociólogos da religião.
Tenta-se ent::io, através das pistas metodológicas apontadas, buscar na experiência
religiosa os fundamentos necessários para uma discuss::io da ciência da religião.
Palavras-chave: ciência da religião; fenomenologia; experiência religiosa

Abstract

This article is an attempt to establish the basis for a discussion about the very
epistemological possibility of a science of religion.ln order to avoid the multiplicity of
methods which prevents such a discussion in its singularity, a basic stepping back to
phenomenology is proposed. In this way, a theoretical backing previous to the several
sciences concerned with religion, including theology, is looked for. The search for the
religious absolute which pervades the thinking of philosophers, theologians and, more
recently, even that of sociologists of religion, is recognized. The attempt is then made,
through some of the methodological clues hinted at, to seek in religious experience for
the necessary grounding leading to a discussion of the sCience of religion.
Key words: science of religion; phenomenology; religious experience

Doutor em Ciências Humanas pela USP; professor e pesquisador do


programa de Ciências da Religião da UMESP.
An(ônio Gôuvea Mendonça

1 - Introdução

L..) no fundo somos arremessados de volta aos princípios


gerais pelos quais a filosofia empírica sempre sustentou
que devemos ser guiados na busca da verdade.
(William JAMES, The Varieties af Re/igiaus Experience,
1960. 1 )

Faz já algum tempo que os estudos da religião abandonaram


as tentativas de definir a religião ou mesmo de buscar suas
origens na história. Seriam as causas dessa renúncia os fracassos
dessa tentativa ou simplesmente a atitude pós-moderna de ver
nas coisas, nos eventos, acóntecimentos singulares e efêmeros?
Em meados deste século a religião foi considerada por muitos
como coisa do passado, pois que o mundo, explicado pela
ciência e controlado pelas técnicas, não mais necessitava de
deuses. A essa atitude corresponderam duas formas de pensar
e agir: a explicação do mundo e seu controle tecnológico
dispensaram a busca de sentido do mesmo, assim como a
ação 110 mundo passou a ser regulada por previsões superadoras
da própria ética. No primeiro caso tivemos a secularização, e
no segundo o secularismo. Quem melhor descreveu a secu­
larização foi Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) numa de suas
cartas da prisão, em 1944:
um movimento em direção da autonomia do homem em
que eu incluiria a descoberta das leis pelas quais o mundo
vive e lida por si mesmo na ciência, questões políticas e
sociais, arte, ética e religião. 2
Bonhoeffer referia-se a um mundo que saíra da infância para a
idade adulta. Tornara-se emancipado, como um filho que não
mais depende do pai. Secularismo seria, portanto, a conduta, a

Cf. a tradução ao português: William JAMES, As variedades da


experiência religiosa. [N. do E.: Para referências bibliográficas completas
deste e dos outros títulos, cf. as Referências Bibliográficas abaixo.]
2 Dietrich BONHOEFFER, Letters and Papers from Príson.

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

ética, tendo como substrato mental a ideologia da secularização,


esta como um processo gradativo de libertação dos indivíduos
de forças sobrenaturais fora do seu controle, assim como de
peias dogmáticas religiosas institucionalizadas.
Entretanto, não foi necessário que o século se findasse
para que os teóricos da secularização - menos Bonhoeffer
que morreu antes de sair da prisão onde escrevera suas cartas ­
se dessem conta do equívoco da secularização, ao menos
como teoria a respeito da morte da religião, por ter-se
tornado desnecessária. O equívoco originou-se com certeza
pela junção de dois fatores já indicados e trabalhados na
tradição filosófica, e mesmo teológica dos séculos XVIII,
XIX e primeiras décadas deste: primeiro, o esquecimento
de que a religião tem, como fundamento, absolutos a priori
que escapam às injunções históricas; e, segundo, que aquilo
c que sofre as variações das formas de vida faz flutuar ou
submergir as formas da religião. 3 Isto quer dizer que, embora
essas formas sejam passageiras, guardam em si mesmas
aqueles traços essenciais que apontam para um tipo de
sub specie aeternitatis spinoziana.
A leitura unilateral dessa junção de fatores, isto é, o
desconhecimento ou subestimação do ponto de vista
fenomenológico de que os dois fatores, isto é, as essências e
as formas, são inseparáveis, levou os periódicos desajustes
entre as formas de vida e os a priori religiosos a serem vistos
como superação da religião. Por isso, o que surpreende hoje ­
e a prova disso é a multiplicação de trabalhos sobre
religião como produtos de pesquisas dispendiosas feitas
por pesquisadores reconhecidos - é a multiplicação de
formas de religião que aguça o interesse das ciências
humanas em geral, especialmente das ciências sociais.
O que aconteceu? O que aconteceu não foi o desapa­
recimento ou a superação da religião por maneiras
dessacralizadas de organizar a vida e dominar a natureza,
mas o renascimento do sagrado sob novas formas que
3 Cf. Eduard SPENGLER, Lebensformen.

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AntOnio GOuvea Mendonça

possam ordenar o mundo dos que estão à margem dele


mas sujeitos às suas reordenações. Isto não significa,
entretanto, que os dominadores e os letrados estejam neces­
sariamente fora do espaço religioso. Os dominadores, sejam
os do mundo do poder econômico ou do poder do Estado,
apóiam de longe as novas práticas religiosas por serem
apaziguadoras dos desejos das massas; e os letrados
voltam-se para o consumo da avalanche de literatura
mística que inundou o mercado, e que absorveu também
o promissor comércio dos adivinhos e. mágicos da mídia.
Os cientistas, estes sim, às veies nos limites do conhe­
cimento, voltam-se para uma religião cósmica descom­
promissada com a prática, isto é, sem necessidade de que
ela assuma esta ou aquela forma.
O excesso de empirismo das ciências humanas e,
especificamente, das ciências sociais atualmente 110 Brasil,
levam-nas a privilegiar de modo quase exclusivo as formas
de religião de massa, deixando em segundo plano o
misticismo e ignorando as formas refinadas e científicas da
religião. De fato, estas últimas escapam das ciências sociais,
ou ao menos do seu interesse, enquanto, ao situarem-se nos
limites do conhecimento científico, constituem-se em desafios
filosóficos e teológicos que não se comprometem com formas
visíveis de religião, embora influam no modo de existir.
O escopo desta reflexão é avançar tanto quanto possível
no terreno pedregoso e minado da área de conhecimento
chamada de ciência ou ciências da religião, que está nos
desafiando neste momento em que a religião ganha cada vez
maior espaço na pesquisa científica. Nosso fio condutor será
a fenomenologia, primeiro como possibilidade de funda-.
mentação do religioso, depois como método para a
compreensão das formas de religião e sua unidade com os a
priori religiosos. Cremos, neste sentido, ser útil começar (1)
por um breve histórico dos passos da fenomenologia que
julgamos importantes para o nosso escopo; em seguida (2)
fazer uma tentativa de análise da experiência religiosa com a
ajuda do método fenomenológico; e depois (3) encerrar com

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

algumas propostas de encaminhamento dos debates em torno


da ciência ou ciências da religião.

2 - Fenomenologia

De várias maneiras a fenomenologia sempre esteve presente na


filosofia, mas é a partir de fins do século XIX que ela ganha
corpo, não somente como instrumento de análise da realidade
mas, principalmente, como método filosófico e científico.
Para alguns dos seus seguidores a fenomenologia é a própria
filo·sofia quando vista como ciência rigorosa. Dentro do
escopo relativo deste trabalho teremos de abordar, embora
de maneira sucinta, a fenomenologia como teoria do conhe­
cimento, como método e, principalmente, como forma privile­
giada de análise e compreensão da religião. Será útil também,
desde logo, estabelecer alguns marcos da história da fenome­
nologia e pontuar neles o interesse que possam ter para a
análise da religião.
Gerhardus van der Leeuw (1890-1950), em sua
conhecida obra Fenomenologia da Religião,4 publicada em
1933, destaca o filósofo e político francês Benjamin Constant
(1767-1830) como sendo um dos importantes precursores
da fenomenologia da religião. Entre 1824 e 1831, Benjamin
Constant publicou seu extenso trabalho intitulado De la
religion considerée dans sa source, ses formes et ses
developments, em cinco volumes, em que expõe romanti­
camente suas idéias a respeito da religião. Representante do
iluminismo e do romantismo, Benjamin Constant, ao lado
de sua intensa atividade política, manteve sua paixão pelo
estudo da religião a vida inteira, embora, como bom filho do
iluminismo, não professasse crença religiosa a[guma. Para ele,
a religião era um apaixonante objeto de estudo.

4 Gerhardus van der LEEUW, PhJnomenologie der Religion; em espanhol:


Fenomenologia de la religión.

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Antônio Gôuvea Mendonça

Em De la Religion, Benjamin Constant expõe duas teses


<

sobre a religião que serão recorrentes posteriormente nas


cátedras e em obras escritas, sem que seu autor seja lembrado.
A primeira tese é a de que a religião é um sentimento. Até
hoje, diz ele, só se escreveu a respeito do que é exterior na
religião. A história da religião como sentimento ainda não
foi escrita. Dogmas, doutrinas da fé, exercícios cúlticos, práticas
eclesiásticas, não passam de formas que o sentimento interior
adota para romper com elas posteriormente. Romântico pela
sua concepção do sentimento religioso e iluminista ao
considerar as formas históricas como relativas, Benjamin
Constant era um adepto da Ureligião natural". O iluminismo,
como se sabe, só reconhecia três verdades religiosas: Deus, a
liberdade ou virtude e a imortalidade, porque são óbvias à
razão natural e são comuns a todas religiões. A essa postura
estritamente racional, Benjamin Constant adicionava o
componente romântico do sentimento, aliás, sua importante
contribuição para a futura fenomenologia da religião.
A segunda tese de Benjamin Constant constitutiva para a
fenomenologia da religião é que o sentimento religioso não é
um acidente ou uma circunstância, mas uma lei fundamental
da natureza humana. O homem é um animal religioso. Ser
religioso é sua essência. Constant percebeu com muita clareza
coisas que hoje às vezes nos confundem, como, por exemplo,
não distinguir em nossas pesquisas o que é contingente do
que é essencialmente religioso. Usamos, por vezes, conceitos
de natureza religiosa como salvação, sacrifício, pecado, etc.,
no interior de conceitos não religiosos como economia, política,
sociedade e outros, sem que saiamos daí para a área da natureza
religiosa essencial do homem. Permanecemos com freqüência
na tentativa de explicação sem que a compreensão seja
alcançada. Benjamin Constant insiste que, por mais importantes
que sejam os fatores não-religiosos para o desenvolvimento
histórico da religião - econômicos, históricos, sociais, políticos,
etc. - a religião nunca poderá reduzir-se a outra coisa que
não pertencer à natureza essencial do homem.

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Sem que nos afastemos muito dos nossos objetivos e a


título de exemplo, podemos nos recordar dos velhos, e talvez
ainda não superados, debates sobre a relação entre o
puritanismo e o capitalismo moderno. Embora seja claro em
Max Weber e seus seguidores de que há uma relação entre a
crença puritana da predestinação e a nova ordenação do
capitalismo concomitante à revolução industrial, assim como,
para outros, a conseqüente relação do protestantismo
missionário do século XIX com a expansão capitalista e colo­
nialista das nações protestantes, fica sem resposta uma questão
crucial. Esta questão crucial é a seguinte: como entender a
renúncia dos puritanos ao gozo material dos bens que acu­
mulavam? Como entender a renúncia dos missionários
protestantes ao conforto da civilização para sofrer nas selvas
africanas ou morrer de febre amarela no Brasil? Quando
levantamos questões como essas, é impossível não pressentir
que por trás das intenções econômicas e políticas dos povos
colonialistas havia fatores de outra ordem sem os quais seria
impossível levar avante tais intenções. Por outras palavras, sem
levar em conta os fatores de natureza essencialmente religiosa
seria difícil entender o sacrifício pessoal dos missionários. É bom
não esquecer, embora de passagem, que a vocação missionária
era quase sempre resultante de uma experiência religiosa. 5
Benjamin Constant foi contemporâneo de Schleiermacher
com quem, pelo exposto, concorda. Segundo entende van
der Leeuw, Benjamin Constant teria ido além de Schleiermacher
ao pressentir algo que hoje chamamos de elemento existencial
na religião, na medida em que ela é vivida e, por isso,
limitadora de sua própria essência, O vivido é parcial e às
vezes muito distante em suas formas daquilo que é, de fato, a
religião. É claro que isto está em Schleiermacher, mas não
com a aproximação existencial, visto que ele se esforçava
5 Cf., p. ex., a experiência de Ashbel G. Simonton (1833-1867), primeiro
missionário presbiteriano a vir para o Brasil (1859). Morreu, em São
Paulo, de febre amarela, aos 34 anos. Ashbel G. SIMONTON, Diário
(l852-/867J, entradas de 13 de março a 6 de maio de 1855.

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I
AntOnIO GOlNea Mendonça

por quebrar os falsos laços entre a verdadeira religião e as


práticas que com ela nada tinham a ver. A visão existencial
de Benjamin Constant, entretanto, lhe permitia vislumbrar,
mesmo nas maiores aberrações da religião, o existir da
essência. É por isso que ele não se escandalizava com os
vitupérios de Volta ire contra a religião, pois o que causava
ira n'ele não era a religião, mas suas formas imperfeitas.
Dentro~ do mesmo universo de movimentos e idéias de
Benjamin Constant situa-s~, portanto, Friedrich Schleiermacher
(1768-1834). O romantismo de Schleiermacher fez com que
ele deixasse para trás o racion'alismo iluminista e, como diz
Gerhardus van der Leeuw, pusesse no desvão os postulados
da "religião natural". Schleiermacher, no seu famoso livro Sobre
a Religião (Dber die Religion: Reden andie Gebildeten unter
ihren vera-chtern 1799), afirma que os desprezadores da
religião viam nela somente as coisas externas e não alcan­
çavam sua essência. No seu segundo discurso, partindo da
psicologia, Schleiermacher insiste no que entendia pela
verdadeira natureza da religião. Dizia ele que a psicologia
nos ensina que a vida mental possui três elementos essenciais:
percepção (que produz conhecimento), sentimento (faculdade
peculiar da vida religiosa) e atividade (conduta da vida moral).
Religião é essencialmente sentimento.
O termo sentimento, básico em Schleiermacher, segundo
seus estudiosos, não é muito feliz e tem, por isso, favorecido
certo enfraquecimento do que ele realmente queria dizer.
É certo que ele não estava se referindo a sentimento
como emoção puramente psicológica. Paul Tillich,6 por
exemplo, procura recuperar o verdadeiro sentido do conceito
de sentimento em Schleiermacher, afastando desde logo a
idéia de subjetividade pára afirmar que sentimento significa
o impacto do universo sobre nós. E o universo não é
subjetivo, mas está -aí à nossa frente. Para Schleiermacher,
sentimento é, antes de qualquer coisa, uma autoconsciência

6 'Paul TILLlCH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e


~p,104ss.

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

imediata, Lima intuição do infinito pelo finito. Mais tarde,


Schleiermacher escreve que a essência da piedade é a
consciência de "ser dependente em relação a Deus" (Der
christliche Glaube, J821; 1830).
Apesar da quase generalizada incompreensão do sentido
do conceito de sentimento em Schleiermacher, sem dúvida
seus leitores mais atentos apontam, como seu verdadeiro
sentido, para Lima consciência absolutamente a priori como
objeto desse sentimento: a infinitude do universo e a finitude
humana. Algo que se situa antes de qualquer moral ou ato
externo. Não importando aqui o fato de que Schleiermacher,
à semelhança de Benjamin Constant, desvalorize os atos
externos da religião, sua posição é válida para a feno­
menologia porque coloca a essência da religião como um
absoluto a priori.
Tanto Benjamin Constant como Schleiermacher ocupam­
se da religião sob o ponto de vista fenomenológico, embora
não tratem explicitamente desta disciplina. Max Scheler e
Edmund Husserl, porém, já se acham em pleno domínio da
fenomenologia. São contemporâneos, mas a obra de Husserl
destacou-se mais, e em torno dela gira propriamente a
fenomenologia, tanto como filosofia no sentido mais geral,
tanto como método. Edmund Husserl (1859-1938), formado
na escola do pós-aristotélico e pós-escolástico Franz Brentano
(1838-1917), publicou no primeiro passo do século 20 sua
obra Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen, 1900)
,que veio a ser o ponto de partida da escola fenomenológica,
dominante em vários sentidos na filosofia deste século.
Grande crítico do empirismo e do psicologismo, Husserl
promoveu uma volta aos conceitos universais.
Husserl busca a independência da lógica em relação à
psicologia afirmando seu caráter apriorístico, independente dos
fatos, da realidade. A lógica tem de pôr em relevo a essência e
as formas universais que dizem respeito a toda ciê'ncia teórica.
Para Husserl, a lógica se confunde com a teoria do conhe­
cimento e é o pressuposto absoluto de toda ciência, isto é, é •
uma teoria de toda teoria científica. É exclusivamente formal

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e antecede a toda "realidade" ou "mundo externo". Todo


pensamento, conceito ou juízo constituem uma "intenção",
uma "significação". O grande esforço de Husserl é a elevação
da filosofia à dignidade de ciência rigorosa, cujo fundamento
é a fenomenologia. A fenomenologia é, portanto, uma "ciência
eidética" e seu método é a "intuição eidética". Husserl trata
de afastar qualquer forma de intuição mística; trata-se de
uma imediata apreensão da essência nos fenômenos.
As essências apreendidas pela intuição eidética não são
demonstráveis e nem necessitam de demonstração; são
evidentes por si mesmas. Mas, como o mundo existe, está aí,
ao lado das ciências eidéticas há também a ciência dos
fatos. Estas compreendem verdades contingentes e aquelas
verdades necessárias. As ciências eidéticas valem a priori,
independentemente da experiência, ainda de que dela partam.
O conhecimento das essências não é independente da
experiência; as ciências eidéticas têm íntima relação com as
ciências dos fatos. Toda experiência concreta, do fato concreto,
contém. uma essência, mas não ao contrário.
Como se chega a essas essências, como opera a intuição
eidética? Esta questão conduz ao método fenomenológico.
Nossa intenção é reduzir este ponto ao instrumental mínimo
a fim de tentar aplicá-lo à análise da experiência religiosa.
O método que Husserl usa, como é sabido, é o da "redução
fenomenológica" ou epochê, que consiste em pôr entre
parênteses a "tese natural do mundo", isto é, a atitude cotidiana,
as coisas exteriores como se as vê, em que espontânea e
naturalmente põe-se o mundo. Ver a realidade do cotidiano
como ele é impede o exercício científico por causa de sua
contingencialidade. É necessário, portanto, pô-lo entre
parênteses ou suspender o juízo sobre ele.
Husserl divide a redução em dois níveis: (1) buscar o
significado ideal e não empírico dos elementos empíricos,
isto é, discernir a essência ou significado: toda ciência pura
ou empírica deve ser precedida de uma investigação eidética;
(2) fazer uma redução transcendental, porque visa a essência

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

da própria consciência enquanto constituidora ou produtora


das essências ideais: nesse nível, noeses e noemas 7 revelam­
se como absolutamente a priori
As coisas, para Husserl, caracterizam-se pelo seu inaca­
bamento e pela possibilidade permanente de rearranjos e
enriquecimentos. O mundo exterior está sempre disponível
para noeses novas, para outras possibilidades que fogem às
estruturas vigentes. É por isso que a ciência 'e a tecnologia
não se esgotam, o mesmo ocorrendo com as propostas
religiosas. As religiões novas, assim como as antigas, podem
representar novos arranjos mais plausíveis 8 de uma mesma
realidade empírica. Essa nova plausibilidade, que decorre
de novos arranjos na realidade empírica, possibilita que os
fiéis se reinstalem de maneira mais confortável do que no
arranjo anterior.
Em resumo, a redução eidética nos mostra que a coisa ­
campo empírico ou região - é transcendental porque é infinita
em significados mas que, para o meu objetivo posso reduzi­
la em unidade imanente de significados com o objetivo
instrumental de conhecimento válido. Contudo, em todo esse
processo o eu (consciência) não se esgota no todo vivido
(experimentado), mas conserva sua transcendental idade e
identidade absolutas. Em cada vivido o "eu" lhe dirige apenas
um olhar. O "eu" não é parte do vivido e nem com ele se
confunde. O "eu" é anterior a todo vivido. Talvez isto possa
ajudar a compreender e explicar as variações possíveis da
consciência diante de novas experiências religiosas produtoras
de esquemas plausíveis de ajuste a realidades cambiantes.
Max Scheler (1874-1928), cuja obra mais significativa
. para a compreensão da sua "fenomenologia do sagrado" é
Fenomenologia e Teoria do Conhecimento (Phanomenologie
und Erkenntnistheorie, 1933), representa importante derivação
7 Noema:objeto pensado; noese:ato de conhecimento, voltado para o
objeto.
S Seria o caso da plausibilidade das teodicéias na concepção de Peter
BERGER, EI dosei sagrado.

Numen: revista de estudos e pesquisa da religiJo. Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 65-89


Antônio Góuvea Mendonça

da escola de Husserl. Para Scheler, a essência da religião é


apreendida através de uma "intuição" essencial, técnica mística
que põe entre parênteses os impulsos vitais utilitaristas e
permite contemplar os puros dados objetivos. Scheler estende
ao mundo dos valores a intuição eidética que Husserl adotara
em relação à lógica e ao mundo da vida. Scheler visa um
apriorismo do emocional; a intuição axiológica é livre de
qualquer pressuposto. Assim, em todo vivido posso distinguir
a priori suas qualidades, como bom-mau, feio-belo, e assim
por diante. Isto porque a intuição do absoluto a priori, que é
o sagrado, coloca-me no campo dos valores, os quais
pertencem à sua natureza absoluta. No que se refere, portanto,
à religião, Scheler vai além de Husserl; porque, às essências
puras e em si mesmas neutras, Scheler acrescenta um conteúdo
emocional que induz valores também a priori.
Analisamos, até agora, de maneira bastante sucinta,
algumas formas fenomenológicas de pensar a relação entre
sujeito e objeto, isto é, diretrizes filosóficas ligadas à teoria do
conhecimento e que contêm elementos significativos para a
discussão da religião enquanto tal e, de maneira especial, a
fenomenologia da experiência religiosa. Em seguida, após
algumas reflexões sobre o campo mais específico da feno­
menologia da religião, sua natureza e suas tendências, toma­
remos, c9mo exemplo e instrumento de análise da experiência
religiosa, quatro dos mais conhecidos fenomenólogos da
religião: Rudolf OUo, Gerhardus van der Leeuw, Mircea Eliade
e Joachim Wach.

3 - Fenomenologia da Religião

A fenomenologia da religião que, por vezes se identifica como


ciência da religião por causa do seu recuo ao a priori absoluto
do religioso, tomando como fundamento último a filosofia
como ciência rigorosa (Husserl), é uma disciplina que se
construiu na primeira metade do século XX. Sua história é
contemporânea ao desenvolvimento da escola fenomenológica

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Fenomenologia da Experiência Religiosa

de Husserl. Seus nomes mais conhecidos são Rudolf Ouo,


Gerhardus van der Leeuw, Mircea Eliade e Joachim Wach.
Considerando que os pressupostos da fenomenologia já foram
alinhavados, inclusive a proposta de Scheler, que normalmente
se incl ui entre os mencionados acima, vamos considerar
somente suas idéias sobre a experiência religiosa.
Antes de tentar penetrar na relação existente entre
fenomenologia e experiência religiosa, é necessário dizer
de que trata mesmo a fenomenologia da religião. Arnaldo
Nesti 9 salienta quatro aspectos do conceito muito
abrangente de Fenomenologia da Religião que podem situar­
nos 'melhor no quadro de referências desta disciplina ou
ciência, como já se propõe. Trata-se primeiro, diz Nesti, de
um método analítico que tende a uma explicação da
morfologia religiosa; segundo, de uma escola tipológica
que tende a investigar os diversos tipos de formas religiosas;
terceiro, de uma escola que, em sentido estrito, se ocupa da
essência do sentido e da estrutura do fenômeno religioso; e,
em quarto lugar, de uma orientação de natureza filosófica que
se origina do sentido estreito da contribuição de Husserl e,
em particular, de Scheler.
Assim, a fenomenologia da religião situa-se naquele
ambiente de revisão das estruturas epistemológicas com que o
século XX se inicia. O ambiente da fenomenologia leva os
estudiosos da religião a superar as velhas idéias a respeito da
origem e da história da religião, às vezes dentro dos quadros do
evolucionismo positivista. A questão da religião coloca-se agora
no esquema da essência e da forma e pretende partir da filosofia
como ciência rigorosa com seu respectivo método e, assim, situa­
se num absoluto a priori em relação às demais disciplinas como
a história, II antropologia e a sociologia. A fenomenologia da
religião passa a ser, portanto, uma disciplina filosófica e, no quadro
mais estrito de Husserl, o núcleo em torno do qual poder-se-ia
erigir uma ciência da religião. As demais disciplinas religiosas,

9 Arnaldo NE5TI, A perspectiva fenomenológica.

Numen: revista de estudos e pesquisa da religi30. Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 65-89


Antônio Gôuvea Mendonça

trabalhando sob o prisma do sentido do fenômeno religioso,


constituir-se-iam em auxiliares dedicadas ao estudo das formas.
Em suma, a fenomenologia da religião pode ser vista num
duplo sentido: uma ciência independente, com suas pesquisas
e publicações, mas também como um método que faz uso de
princípios próprios, como a epochê e a "redução eidética". Nesta '
ótica, são fenomenólogos, ou cientistas da religião, aqueles
estudiosos que se ocupam das estruturas e dos significados dos
fenômenos religiosos sublinhando a base essencial, descre­
vendo e sistematizando suas estruturas basilares.
O teólogo luterano alemão Rudolf Otto (1869-1937),
no seu clássico O Sagrado (Das Hei/ige 1917 1°), segue os
passos de Lutero, de Schleiermacher e, naturalmente, nutre-se
da atmosfera da viragem fenomenológica do século. Otto
bebe em Lutero, além do rnisticismo do· reformador, suas
idéias expressas com calor em De Servo Arbítrio, aliás
considerado pelo próprio Lutero como sua obra mais pessoal,
como testemunha Otto.
Dos reformadores, talvez seja Lutero o que mais evidencia
em sua bi.ografia a influência da experiência religiosa objetiva.
Além do seu relacionamento muito íntimo com os místicos,
Lutero teve, em sua juventude, uma experiência que, sem dúvida,
marcou-o pelo resto da vida. Trata-se da tempestade que
enfrentou na floresta perto de Erfurt, quando regressava de
Mansfeld. Prostrado por um raio que caiu aos seus pés, Lutero
teria, após invocar Santa Ana, padroeira dos mineiros, prometido
a ela, se salvo, tornar-se monge. 11 Nesse acidente teria morrido
seu amigo Aleixo, fato não confirmado por seus contem­
porâneos. Mas a experiência teria sido terrível para Lutero e,
possivelmente, influenciado bastante sua concepção de Deus.
O conceito de Deus em Lutero não é teórico, doutrinário,
não podendo ser apreendido intelectualmente; trata-se, ao contrário,

la Tradução em português por Prócoro Velasques Filho: Rudolf OTTO, O


sagrado.
11 Vicente Themudo LESSA, Lutero, p. 28-9.

Numen: revista de estudos e pesquisa da reljgi~o. Juiz de Fora, v. 2, n, 2, p. 65-89


Fenomenologia da Experiência Religiosa

"do elemento existencial de que toda pessoa tem em seu viver


concreto algum valor fundamental pelo qual se norteia, algum
alvo que persegue, algum desejo de que se alimente". Trata-se "de
um relacionamento vital entre o ser humano e seu Deus".'2. Está
presente em Lutero aconvicção de que atoda experiência existencial
antecede um poder absolutamente apriori, cujo sentimento consiste
na fé. Daí a centralidade absoluta da fé na reforma de Lutero. Este
mesmo sentimento do sagrado como anterior a qualquer forma
ou expressão religiosa vai aparecer em Schleiermacher, embora
sem os contornos místicos como em Lutero.
Rudolf Otto acaba chegando na .tese da absoluta
irracionalidade da religião. O sagrado - ou o "santo", numa
melhor tradução 13 - constitui-se em realidade última e objetiva
que a si mesma se dá a conhecer. Está fora e acima de
qualquer forma de raciocínio, é absolutamente outro. Inspira
amor e temor ao mesmo tempo. É sujeito e nunca predicado,
sendo estes, quando aplicados a ele, meras metáforas ligadas
ao vivido, experimentado. Talvez seja, por esta razão - isto é,
da sua convicção - que Rudolf Otto veio a ser importante
no movimento de renovação litúrgica, cuja base mais segura
está relatada em Isaías 6, 1-8, na versão da Vulgata:
Sanctus, sanctus, sanctus Dominus
exercituum: plena est omnis terra gloria eius.
Não seria fora de propósito sugerir que em Rudolf Ouo,
a fenomenologia do sagrado ou do "santo", carregada de
elementos emocionais e, portanto, não .racionais, esteja muito
ligada ao movimento litúrgico. Isso porque é nela, na liturgia ­
talvez melhor dizendo no culto - que o crente tem, embora
dentro de certa racionalidade, a plena experiência do sagrado.
Nesse perrodo pleno de agitação filosófica os pensa­
dores, filósofos e teólogos, entrecruzam-se, influenciam-se
mutuamente. Reconhece-se que Rudolf Otto exerceu influência

12 Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 46.


13 Discute-se a tradução porque "santo·, melhor do que "sagrado', veicula
melhor a idéia de "absolutamente separado, outro".

Numen: revista de estudos e pesquisa da religilo. Juiz de Fora. v. 2. n. 2. p. 65-89


AntOnio GOuvea Mendonça

sobre Paul Tillich (1886-1965) na questão crucial de sua


teologia, que é o absoluto a priori do ser na sua relação
com nossa experiência, anterior a "qualquer inteligência da
realidade".14 No interior do intenso labor filosófico e teológico
que foi a primeira metade do século XX, caminham lado a
lado fenomenólogos e existencialistas e, entre eles, Paul Tillich,
buscando intensamente a experiência absolutamente anterior
do ser (Deus) e sua expressão existencial. À experiência
inefável do ser ontológico corresponde a coragem de existir
nas situações-limite.
Sob o ponto de vista mais amplo que nos oferece a
fenomenologia da experiência religiosa, a questão da
liberdade, ou princípio protestante em Tillich, situa o
protestantismo entre Cila e Caribdes. A gloriosa liberdade que
se identifica com o ser ontológico exige do homem religioso
a constante coragem de ir construindo seu existir. O constante
exercício da liberdade de escolha que constrói sua história
está aquém dos dogmas e doutrinas que lhe possam servir de
apoio que não a sua fé e os instrumentos de culto que, por
sua natureza essencial deveria, pela intensificação da experiência
com Deus, ajudar a construir sua participação no ser. Mas o
culto se perdeu em dogmas, doutrinas e pedagogias. É por
isso que o protestante, que um dia teve a experiência religiosa,
um sentimento imediato do divino que o levou à conversão,
vive entre a alegre segurança da liberdade, isto é, de que sua
salvação independe agora de regras externas a ser cumpridas,
e a solidão na ausência desse mesmo apoio externo.
A fim de aplicar de maneira apropriada a metáfora rnftica
.de Cila e Caribdes, poderíamos ver no protestantismo ideal a
figura de Cila antes do seu castigo, irresistivelmente bela, e a
angústia de, como navegante solitário, ter de passar entre
Cíla hedionda e Caribdes abismal. Q protestantismo, coerente
com seu princípio, retirou do culto todos os apoios religiosos
e preservou e cultivou só a música que, pela sua natureza

14 Rui de Souza JOSGRILBERG, Ser e Deus - como Deus é recebido por


revelação, em nossa experiência?

Num~n: reVista de estudos e pesquisa da religiao.luiz de Fora, v. 2, n, 2, p. 65-89


Fenomenologia da Experiência Religiosa

não material, pode conduzir o crente a uma experiência pura


e imediata de Deus. Cultivou também a arte da retórica. Palavra
e música vieram a ser os únicos instrumentos de renovação
da experiência com Deus. A música pelo duplo sentimento
que produz ao colocar o fiel em comunhão imediata com
Deus: alegria e temor ao mesmo tempo, como dizia OUo.
A palavra, exposta com toda a arte da retórica, ao mostrar
ao fiel como transformar sua liberdade em existência digna.
Aqui o fenômeno religioso fecha o círculo do ser/existir.
Toda crítica - aqui tomada no seu sentido original ­
feita ao protestantismo, inclusive por parte de Tillich, parece
nos levar à desconfortável situação de que o protestantismo
é um ideal que só é possível de se realizar mais ou menos
nos indivíduos. Embora fenomenologicamente possamos nos
remeter à universalidade do sentimento do sagrado e a
experiência do sagrado possa dar-se coletivamente no culto,
a construção do existir é individual em sua liberdade. Neste
ponto, ergue-se mais um problema crucial para o protestante:
a construção da existência leva-o a uma ética nem sempre
compatível com a vigente na sociedade em que vive e, por
isso, ele é sempre um ser bipartido e estranho. O protestante
tem de viver num mundo estreito com sua fé e num mais
amplo amparado por outros valores que o obrigam a
concessões ou conflitos. Alguém disse que· o protestantismo
só se mantém mais ou menos bem em sociedades cuja ética
ele ajudou a construir. Contudo, mesmo assim o protes­
tantismo, pela sua natureza essencial, não pode ser religião
de massa, ou de determinada classe social, embora alguns o
identifiquem com a burguesia histórica no que diz respeito
aos seus valores.
Gerhardus van der Leeuw (1909-1950), teólogo holandês,
tornou-se, ao escrever sua fenomenologia da Religião,l5 no mais
expressivo nome da fenomenologia da religião nos anos que
precederam sua morte. Van der Leeuw situa o poder como objeto

15 Cf. nota 4 acima.

Numen: revist.1 de estudos e pesquisa da religiao. Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 65-89


/
Antônio Gôuvea Mendonça

da religião e a fenomenologia como busca por captar e


descrever o homem no seu comportamento em relação ao
.poder. Ele começa sua obra afirmando que o que a ciência
da religião chama de objeto da religião é, para a religião
mesma, sujeito. O homem religioso sempre vê aquilo de que
trata sua religião como o primário, o causante. "Na religião,
Deus é agente na relação com o homem; a ciência só pode
falar da atividade do homem em relação com Deus, mas
nada pode dizer da atividade de Déus."16
Toda afirmação de que Deus é o objeto da experiência
religiosa tem de levar em conta que o conceito Deus é muito
mais amplo do que o abarcado pela experiência. A experiência
religiosa refere-se a ({algo" que diz pouco de si mesmo. Toda
relação do homem com esse "algo" é algo distinto (outro).
Então, o objeto da religião é o "outro", o "estranho". O
sentimento em relação a esse "algo", "outro", é primariamente
de assombro. O princípio é o mesmo que está na origem
da filosofia - o assombro dos gregos diante do mundo - e
da teologia - o anseio por se aproximar e conhecer o
absolutamente outro. Mas, todo conhecimento de Deus, o
que dizemos dele, é impróprio e limitado.
Van der Leeuw não está, até aqui, muito distante dos
fenomenólogos anteriores ao firmar-se no "absolutamente
outro" com "algo" experiencial mas distante e inefável.
A diferença, ou a característica, melhor dizendo, está em que
van der Leeuw, partindo de observadores de "religiões
primitivas", como Max Müller (1823-1900), afirma que o
"poder" constitui o objeto da religião. A noção de "poder"
em van der Leeuw tem a ver com a noção de mana encontrada
entre os melanésios, algo difuso e indefinível que pode estar
no pensamento ou em coisas. A religião consiste, então, em
apossar-se desse poder em benefício próprio. O que se pode
dizer, então, de Deus, é que ele é um "poder".
A natu reza do fenômeno para van der Leeuw é
intencional, quer dizer, ele não se manifesta em estado puro,
16 LEEUW, FenomenologIa de la religión, p. 13.

2 Numen: revista de eSludos e pesquisa da religilo.luiz de Fora, v. 2, n, 2, p. 65-89


Fenomenologia da Experiência Religiosa

mas sempre em alguma coisa a um sujeito consciente. Como


diz Nesti,17 sujeito e consciente, embora distintos, são
inseparáveis. O fenômeno religioso, portanto, é o manifestar­
se desse poder na conjunção do sujeito consciente e do objeto.
O fenômeno é alguma coisa que se mostra progres­
sivamente na realidade caótica. A fenomenologia consiste
no esforço de descoberta das estruturas dessa realidade.
Na base da consciência fenomenológica está uma experiência
vivida, irracional e inapreensível e que termina no existencial
imediato. O fenômeno só existe no testemunho, isto é,
quando alguém começa a falar daquilo que se mostra.1 8
É o que diz van der Leeuw: o fenômeno é o que se
mostra. Isto quer dizer três coisas: (1) é algo; (2) este algo se
mostra; (3) é fenômeno exatamente porque se mostra. Mas,
o mostrar-se tem relação tanto com aquilo que se mostra
como com aquele a quem se mostra. Portanto, o fenômeno
não é um objeto puro, nem "a verdadeira realidade" cuja
essência permanece oculta pela aparência das manifestações.
Van der Leeuw entende que o "fenômeno", em relaçãO
com alguém a quem se mostra, tem três classes de "fenome­
nalidade": (1) abscondidade; (2) revelação progressiva; (3)
transparência. Não são etapas plenas, mas relativas. Não são
etapas iguais, mas relacionadas com as três etapas da vida:
( 1) vivência; (2) compreensão; (3) testemun ho. As duas
últimas, tratadas sob o prisma científico, constituem a atividade
fenomenológica. '9
A linha fenomenológica de van der Leeuw é, metodolo­
gicamente, importante para o estudo dos atos fundantes ou
reformadores das religiões históricas, das quais construiu um
sistema tipológico. De uma maneira mais simples e prática ­
e para encerrar esta parte -, seria o caso de isolarmos um

17 NESTI, A perspectiva fenomenológica, p. 262.


18 Ibid.
19 Na tradução de van der Leeuw ao espanhol usada por nós, a questão
do "poder" começa a ser discutida na p. 13 e da relação entre
fenômeno e fenomenologia, a partir da p. 642.

Numen: revista de estudos e pesquisa da religido. Juiz de Fora. v. 2. n. 2. p. 65-89


AntOnio GOuvea Mendonça

grupo religioso e estudarmos sua mensagem fundante a fim


de isolar nela as formas de relação com o "poder" por parte
de seus fiéis. Poder-se-ia detectar também como a experiência
religiosa do fundador (vivida e não transmissível na sua pureza)
.é por ele preenchida e testemunhada. A fenomenologia pode
indicar também se, numa dada forma religiosa, os elementos
básicos de relação com o "poder" estão íntegros em relação
à respectiva tradição ou se estão reinterpretados. O método
fenomenológico, portanto, ao partir das formas fundantes da
experiência religiosa, pode ser bastante instrumental na análise
e compreensão dos chamados novos movimentos religiosos.
Isto não tem sido feito, com algumas exceções, nos estudos
mais recentes, o que os tem levado à produção de trabalhos
mais descritivos do que compreensivos.
Joachim Wach (1898-1955) publicou, em 1931, uma
Introdução à Sodologia da Religião em alemão e que, mais
tarde, ganhou em inglês (Sociology ofReligion, 1971) a forma
da tradução que temos em mãos. 2D Não vamos nos alongar
nesta abordagem a respeito de Wach em relação à fenome­
nologia, mas simplesmente ressaltar o que ele entende por
experiência religiosa. Para ele, a experiência religiosa caracterjza­
se por: (I) resposta àquilo que é exr>erimentado como
realidade última; (2) resposta total do ser àquilo que é
apreendido como realidade última; (3) é a experiência mais
intensa de que é capaz o homem; (4) experiência que
comporta um imperativo que conduz à ação. 21 A partir daí,
depois que o fato religioso é distinguido dos demais, Wach,
mais no campo da sociologia, estuda como a experiência
religiosa se expressa: teoricamente, na doutrina, praticamente
no culto e sociologicamente na comunhão, isto é, na religião
coletiva e individual. 22 Fiel ainda, embora por linhas diferentes,
à fenomenologia, Wach caminha na direção da compreensão
e explicação das formas religiosas a partir da experiência.

20 Joachim WACH, Sociologia da religião;

21 NESTI, A perspectiva fenomenológica, capo 2.

22 WACH, Sociologia da religião.

84 Numen: revista de esludos e pesquisa da religilo. Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 65-89


Fenomenologia da Experiência Religiosa

Para concluir esta parte, é necessano lembrar ainda a


contribuição de um dos mais importantes estudiosos da
religião neste século. O romeno Mircea Eliade (1907-1986),
que deixou vasta obra sobre filosofia e história das religiões,
insere-se no grupo dos fenomenólogos por causa da
importância que confere ao estudo da hierofania como
fenômeno e experiência religiosa. No prefácio de sua grande
obra Tratado de História das Religiões,23 Mircea Eliade
considera que não havendo fenômeno religioso "puro",
surgem no seu estudo muitas dificuldades. Seria vão, por
exemplo, pretender estudar a religião partindo de fatos sociais,
econômicos, políticos, etc. Se não podemos definir o fato
religioso, temos de encontrar maneiras de isolá-lo para melhor
compreendê-lo. Paralelamente a Roger Caillois 24 ele entende
que, desde logo, o primeiro passo é distinguir o sagrado do
profano. Ora, essa mera distinção, diz Eliade, não é suficiente,
porque termina num círculo vicioso em que um se define
por não ser o outro. Ciente dessa dificuldade, Eliade se propõe
a deixar de lado a definição do fenômeno religioso a fim de
partir do fenômeno mesmo enquanto tal, isto é, de como ele
aparece. Decide-se pelo estudo das hierofanias, o que ele
entende ser, no fenômeno religioso, irredutível e original.
Na hierofania, diz ele, o sagrado vem à tona da consciênçia
do homem como fenômeno. Aqui consciência e fenômeno
são inseparáveis. 25 As hierofanias são formas de experiência
do sagrado por parte do homem que variam no tempo e no
espaço em seus traços externos, mas que internamente se
universalizam. Em última instância, as hierofanias são senti­
mentos ou narratiyas que mostram sempre o anseio humano
por transformar a desordem em ordem, o caos em cosmos. 26
Na consciência, como absoluto a priori, está presente a idéia
de uma força, um poder, um inteiramente "outro" que mantém

23 Mircea ELlADE, Tra.tado de história das religiões.

24 Roger CAILLOIS, L'l7omme et le sacré.

25 Mircea Eliade, O sagrado e o profano, p. 25.

26 Norman COHN, Cosmo~ caos e o mundo que virá.

Numen: revista de estudos e pesquisa da religi~o. Juiz de Fora, v. 2. rt 2. p. 65-89


Antônio GOuvea Mendonça

a ordem do mundo apesar de forças contrárias e ameaçadoras


da desordem. Todos os atos culturais e doutrinas expressam o
apoio humano à ordem e o rechaço à desordem.
A hierofania, em Eliade, portanto, é a própria experiência
religiosa. Cada hierofania é histórica, é datada (veja-se Isaías
6,1-8: "no "tempo do rei Uzias..."), mas o crucial é que sua
estrutura permaneça a mesma para que guarde sua obje­
tividade e comunicabilidade. A hierofania é única e histórica,
mas como é arquetípica, quando despojada de suas
peculiaridades materiais e ciscunstanciais, paira acima do
tempo e do espaço e está sempre presente e renovada nos
rituais e na memória.
A hierofania, como experiência religiosa primordial, é
ato fundante ou modificador de uma religião. Tenha-se em
vista, porém, que em Eliade toda experiência religiosa
(hierofania) traz em si, em grau maior ou menor, o desejo de
volta às origens,27 um estado de verdade, de perfeição e, por
que não, um estado de ser perfeito. "Porque Deus sabe que
no dia em que dele comerdes (do fruto da árvore proibida)
se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores
do bem e do mal" (Gn 3,5). Aqui trata-se de uma hierofania
negativa, pois o que aparece na fala é o adversário da ordem.
Entretanto, na estrutura da narrativa está acenada a possibi­
lidade d,a volta às origens do ser (como Deus), ao estado de
ordem perfeita, de discernimento entre o bom e o mau, de
controle do conflito entre Cosmos e Caos.
Na série de hierofanias narradas em Êxodo, a da "sarça
que não se consumia" é significativa para explicar a vocação
de Moísés para organizar em nação um povo disperso e sem
território. Javé aparece a Moisés no monte Horebe em forma
de fogo que, ardendo sobre a sarça, não a consumía. Curioso,
Moisés tenta se aproximar, mas é contido pela voz de Javé:
"não te chegues para cá (...) o lugar a que estás é terra santa."
Javé se identifica e passa a dar a Moisés as ordenações para
a libertação do povo do cativeiro egípcio.
27 Cf. ELlADE, O mito do eterno retorno.

6 Numen: revista de estudos e pesquisa da religi~o. Juiz de Fora, v. 2, n, 2, p. 65-89


Fenomenologia da Experiência Religiosa

Em primeiro lugar, os elementos materiais da hierofania


remetem a consciência de Moisés a um ser poderoso e "outro",
capaz de reorganizar o que estava desorganizado, isto é, transformar
um povo escravo e sem território em nação consciente e dona de
seu espaço. Javé era o fogo,28 a coisa cujo poder cria e dá forma
aos objetos e também destrói e é, ao mesmo tempo, pela ausência
de forma e capacidade de total mobilidade, impossível de definir.
Não consumia a sarça porque não necessitava dela para se
alimentar. Era algo indefinível e absolutamente independente.
Por outro lado, a alteridade absoluta de Javé manifestava-se na
divisão do espaço em sagrado (onde estava o fogo) e profano
(onde estava Moisés). Nenhuma das coisas naquele espaço do
fogo eram em si mesmas sagradas, mas se tornaram sagradas
pela presença de Javé. É por isso que o lugar das hierofanias
muitas vezes é perpetuado como espaço sagrado através de
símbolos como monumentos, templos e lugares de romaria.
No estudo das hierofanias, Mircea Eliade mostra a
indissolubilidade, no fenômeno, entre a consciência
intencional do sujeito e as coisas externas, não importando
se existem ou não in re.

4 - Considerações Finais

Estas reflexões sobre a fenomenologia da experiência religiosa


estão longe de fazer justiça a um assunto tão importante
como o estudo da fenomenologia aplicada à religião.
Entretanto, esforçamo-nos para pôr em relevo algumas
questões que necessitarão de desenvolvimento posterior.
Em primeiro lugar, a constatação de que o desenvolvimento
da ciência da religião entre nós vai depender da distinção
prévia entre a essência e as formas da religião. Enquanto
permanecermos no estágio da descrição das formas, não
chegaremos à compreensão do sentido, tanto das origens

28 Em Heráclito d-e Éfeso (540-470 a. C), o fogo é a essência do processo,


da transformação.

Numen: revista de estudos e pesquisa da religilo. Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 65-89


7
AntOnio GôlNea Mendonça

como das transformações da religião. Com poucas exceções,


este ir além das formas na busca do sentido não tem sido
feito. O retorno à filosofia, especificamente à fenomenologia
e seu método, está na base da reconstrução científica do
estudo da religião.
Em segundo lugar, a constatação de que o estudo
fenomenológico da experiência religiosa poderá nos ajudar
a distinguir entre a pura emoção e suas correlações, e a
experiência do sagrado como tal, anterior a todo envolvimento
com as formas. E ainda, e talvez o mais importante, a procurar
nas formas religiosas o sentido puro de suas estruturas
fundamentais.
É preciso reconhecer que faltou uma abordagem daquelas
experiências religiosas íntimas em que elementos materiais
não estão presentes. São as experiências místicas que em
dados momentos as pessoas têm da presença do sagrado
na consciência, com características nítidas de alteridade.
São experiências difíceis de analisar, mas que se tornam
objetivas no posterior testemunho na ação e na existência
dos indivíduos, ao fundar ou fazer mudar de rumos uma
determinada religião. O espaço e o tempo não nos permi­
tiram chegar a este ponto.

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Antônio Gouvêa Mendonça


Rua Domingos Dalasta, 100
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