Caosmose Felix Guattari
Caosmose Felix Guattari
Caosmose Felix Guattari
Fe Iix Guattari
Tradu~ao Ana Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leao
editoralll34
116 3 2 13
5 10 11 8
------- ~-~~---
9 6!7 12, I
4 15[14 II
colet;ao TRANS
Felix Guattari
CAOSMOSE
Urn Kovo Paradigma Estetico
TradUI;iio
Ana Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leao
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, S92 Jardim Europa CEP 014SS-OOO
Sao Paulo- SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br
ISBN 85-85490-0l-2
11
Heterogenese
99
A Caosmose Esquizo
113
Oralidade Maquinica e Ecologia do Virtual
127
0 Novo Paradigma Estetico
153
Espa<,:o e Corporeidade
169
Restaura<,:ao da Cidade Subjetiva
183
Pr<lticas Analiticas e Praticas Sociais
Sobre as ripas da ponte, sobre os adros do barco, sobre o mar, com
o percurso do sol no ceu e como do barco, se esbo<;:a, se esbo<;:a e se des-
tr6i, com a mesma lentidao, uma escritura, ilegivel e dilacerante de sam-
bras, de arestas, de tra<;:os de luz entrecortada e refratada nos angulos,
nos triangulos de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombra
das vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, con-
tinua r a existir.
Heterogenese 11
momento em que foram assumidos pelos mass midia deal-
cance mundial. Apresentaremos a qui sumariamente a pen as
dois exemplos. 0 imenso movimento desencadeado pelos es-
tudantes chineses tinha, evidentemente, como objetivo pa-
lavras de ordem de democratiza<;ao politica. Mas parece
igualmente indubitavel que as cargas afetivas contagiosas
que trazia ultrapassavam as simples reivindica<;6es ideol6-
gicas. E todo urn estilo de vida, toda uma concep\iiO das re-
la<;6es sociais (a partir das imagens veiculadas pelo Oeste),
uma etica coletiva, que af e posta em questao. E, afinal, OS
tanques nao poderao fazer nada contra isso! Como na Hun-
gria ou na Polonia, e a muta<;ao existencial coletiva que ted.
a ultima palavra! Porem OS grandes movimentos de subjeti-
Va\aO nao tendem necessariamente para urn sentido eman-
cipador. A imensa revolu\ao subjetiva que atravessa o povo
iraniano ha mais de dez anos se focalizou sobre arcafsmos
religiosos e atitudes sociais globalmente conservadoras
em particular, a respeito da condi\ao feminina (questao
sensfvel na Fran\a, devido aos acontecimentos no Maghreb
e as repercussoes dessas atitudes repressoras em rela\aO as
mulheres nos meios de imigrantes na Fran<;a).
No Leste, a queda da cortina de ferro nao ocorreu pela
pressao de insurrei<;oes armadas, mas pela cristaliza<;ao de
um imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mental
do sistema totalitario p6s-stalinista. Fenomeno de uma ex-
trema complexidade, ja que mistura aspira\oes emancipa-
doras e pulsoes retr6gradas, conservadoras, ate mesmo fas-
cistas, de ordem nacionalista, etnica e religiosa. Como, nessa
tormenta, as popula<;oes da Europa Central e dos pafses do
Leste superarao a amarga decep\ao que o Oeste capitalista
lhes reservou ate o presente? A Hist6ria nos dira; uma His-
t6ria portadora talvez de surpresas ruins e posteriormente,
por que nao, de uma renova\ao das lutas sociais! Quao as-
sassina, em compara\ao, ted. sido a guerra do Golfo! Qua-
I I
Caosmose
se se poderia falar, a seu respeito, de genocfdio, ja que
vou ao extermfnio muito mais iraquianos do que as vftimas
das duas bombas de Hiroshima e de Nagasaki, em 1945.
Mas como distanciamento ficou ainda mais claro que o que
estava em questao era essencialmente uma tentativa de do-
mesticar a opiniao arabe e de retomar as redeas da opiniao
mundial: era preciso demonstrar que a via yankee de subje-
tiva<;;ao podia ser imposta pela potencia da midia combina-
da a das armas.
De um modo geral, pode-se dizer que a hist6ria con-
temporanea esta cada vez mais dominada pelo aumento de
reivindica<;;6es de singularidade subjetiva- querelas lingiifs-
ticas, reivindica<;;6es autonomistas, quest6es nacionalfsticas,
nacionais que, em uma ambiguidade total, exprimem porum
lado uma reivindica<;;ao de tipo libera<;;ao nacional, mas que,
por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterri-
torializa<;;6es conservadoras da subjetividade. Deve-se admi-
tir que uma certa representa.;;ao universalista da subjetivi-
dade, tal como pode ser encarnada pelo colonialismo capi-
talistico do Oeste e do Leste, faliu, sem que ainda se possa
plenamente medir a amplidao das consequencias de um tal
fracasso. Atualmente ve-se que a escalada do integrismo nos
pafses arabes e mu.;;ulmanos pode ter conseqiiencias incal-
culaveis nao apenas sabre as rela<;;6es internacionais, mas sa-
bre a economia subjetiva de centenas de milhoes de indivi-
duos. Etoda a problematica do desamparo, mas tambem da
escalada de reivindica<;;6es do Terceiro Mundo, dos paises
do Sul, que se acha assim marcada por um pomo de inter-
roga<;;ao angustiante.
A sociologia, as ciencias economicas, politicas e juri-
dicas parecem, no atual estado de coisas, insuficientemente
armadas para dar coma de uma tal misrura de apego arcai-
zante as tradi<;;6es culturais e entretanto de aspira<;ao a mo-
dernidade tecnol6gica e cientffica, mistura que caractcriza
Heterogenese 13
o coquetel subjetivo contemporaneo. A psicanalise tradicio-
nal, por sua vez, nao esta nem um pouco melhor situada
para enfrentar esses problemas, devido a sua maneira de
reduzir os fatos sociais a mecanismos psicologicos. Nessas
condi~6es, parece indicado forjar uma concep~ao mais trans-
versalista da subjetividade, que permita responder ao mes-
mo tempo a suas amarra\6es territorializadas idiossincra-
ticas (Territorios existenciais) e a suas aberturas para siste-
mas de valor (Universos incorporais) com implica\6es so-
ciais e culturais.
Devem-se tomar as produ~6es semioticas dos mass mi-
dia, da informatica, da telematica, da robotica etc ... fora da
subjetividade psicologica? Penso que nao. Do mesmo modo
que as maquinas sociais que podem ser classificadas na ru-
brica geral de Equipamentos Coletivos, as maquinas tecno-
logicas de informa~ao e de comunica~ao operam no nucleo
da subjetividade humana, nao apenas no seio das suas me-
morias, da sua inteligencia, mas tambem da sua sensibili-
dade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. A
considerac,;ao dessas dimens6es maquinicas de subjetiva~ao
nos leva a insistir, em nossa tentativa de redefini\ao, na he-
terogeneidade dos componentes que concorrem para a pro-
du\aO de subjetividade, ja que encontramos ai: 1. compo-
nentes semiologicos significantes que se manifestam atra-
ves da familia, da educac,;ao, do meio ambiente, da religiao,
da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela industria
dos midia, do cinema, etc. 3. dimens6es semiologicas a-
significantes colocando em jogo maquinas informacionais
de signos, funcionando paralelamente ou independente-
mente, pelo fato de produzirem e veicularem significa\6es
e denota~oes que escapam entao as axiomaticas propria-
mente lingi.ilsticas.
As correntes estruturalistas nao deram sua autonomia,
:d 1:1 l'spccificidade, a esse regime semiotico a-significante,
I I Caosrnose
ainda que certos autores como Julia Kristeva ou Jacques
Derrida tenham esclarecido urn pouco essa relativa autono-
mia desse tipo de componentes. 11as, em geral, as corren-
tes estruturalistas rebateram a economia a-significante da
linguagem - 0 que chamo de maquinas de signos- sobre
a economia lingiiistica, significacional, da lingua. Isso e par-
ticularmente sensfvel em Roland Barthes, que relaciona to-
dos os elementos da linguagem, os segmentos da narrativi-
dade, as figuras de Expressao e confere a semiologia lingiifs-
tica urn primado sobre todas as semi6ticas. Foi urn grave
erro, por parte da corrente estruturalista, pretender reunir
tudo 0 que concerne a psique sob 0 unico baluarte do sig-
nificante lingiiistico!
·.As transforma~oes tecnol6gicas nos obrigam a consi-
derar simultaneamente uma tendencia a homogeneiza<;ao
universalizante e reducionista da subjetividade e uma ten-
dencia heterogenetica, quer dizer, urn refor~o da heteroge-
neidade e da singulariza<;ao de seus componentes. E assim
que 0 "trabalho com 0 computador" conduz a prodw:,:ao de
imagens abrindo para Universos pListicos insuspeitados-
penso, por exemplo, no trabalho de Matta com a palheta
grafica ou a resolw;;ao de problemas matematicos que te-
ria sido propriamente inimaginavel ate algumas decadas
arras. Mas, ainda af, e preciso evitar qualquer ilusao pro-
gressista ou qualquer visao sistematicamente pessimista. A
prod·w;;ao maquinica de subjetividade pode trabalhar tanto
para o melhor como para o pior. Existe uma atitude anti-
modernista que consiste em rejeitar maci\amente as inova-
\Oes tecnol6gicas, em particular as que estao ligadas a re-
volu\ao informatica. Entretanto, tal evolu\ao maquinica
nao pode ser julgada nem positiva nem negativamente; tudo
depende de como for sua articula\aO com os agenciamen-
tos coletivos de enuncia\ao. 0 melhor e a cria<;ao, a inven-
\ao de novos Universos de referencia; o pior e a mass-mi-
Heterogenese 15
dializa~ao embrutecedora, a qual sao condenados hoje em
dia milhares de individuos. As evolu~oes tecnol6gicas, con-
jugadas a experimenta~oes sociais desses novos domfnios,
sao talvez capazes de nos fazer sair do periodo opressivo
atual e de nos fazer entrar em uma era p6s-midia, caracte-
rizada por uma reapropria~ao e uma re-singulariza~ao da
utiliza~ao da mfdia. (Acesso aos bancos de dados, as video-
tecas, interatividade entre os protagonistas etc ... )
Nessa mesma via de uma compreensao polifonica e he-
terogenetica da subjetividade, encontraremos o exame de
aspectos etol6gicos e ecol6gicos. Daniel Stern, em The Im-
personal World of the Infant 1, explorou nora vel mente as
forma~oes subjetivas pre-verbais da crian~a. Ele mostra que
nao se trata absolutamente de "fases", no sentido freudia-
no, mas de nfveis de subjetiva~ao que se manterao parale-
los ao Iongo da vida. Renuncia, assim, ao caniter superesti-
mado da psicogenese dos complexos freudianos e que foram
apresentados como "universais" estruturais da subjetivida-
de. Por outro lado, valoriza o cad~ter trans-subjetivo, des-
de 0 inicio, das experiencias precoces da crian~a, que nao
dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. Uma
dialetica entre os "afetos partilhaveis" e os "afetos nao-
partilhaveis" estrutura, assim, as fases emergentes da sub-
jetividade. Subjetividade em estado nascente que nao cessa-
remos de encontrar no sonho, no dellrio, na exalta\=ao cria-
dora, no sentimento amoroso ...
A ecologia social e a ecologia mental encontraram lu-
gares de explora\=ao privilegiados nas experiencias de Psi-
cotera pia Institucional. Penso evidentemente na Clinica de
La Borde, onde trabalho ha muito tempo, e onde tudo foi
preparado para que os doentes psic6ticos vivam em um eli-
16 Caosmose
rna de atividade e de responsabilidade, nao apenas com o
objetivo de desenvolver urn ambiente de comunica~ao, mas
tambem para criar instancias locais de subjetiva~ao coleti-
va. Nao se trata simplesmente, portanto, de uma remode-
lagem da subjetividade dos pacientes, tal como preexistia a
crise psicotica, mas de uma produ~ao sui generis. Por exem-
plo, certos doentes psicoticos de origem agricola, de meio
pobre, serao levados a praticar artes phisticas, teatro, video,
musica, etc., quando esses eram antes Universos que lhes es-
capavam completamente.
Em contrapartida, burocratas e intelectuais se sentirao
atra1dos por urn trabalho material, na cozinha, no jardim,
em ceramica, no clube hfpico. 0 que importa aqui nao e uni-
camente o confronto com uma nova materia de expressao,
e a constitui~ao de complexos de subjetiva~ao: individuo-
grupo-maquina-trocas multiplas, que oferecem a pessoa pos-
sibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade
existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de algu-
ma forma, de se re-singularizar.
Assim se operam transplantes de transferencia que nao
procedem a partir de dimensoes "ja existentes" da subjeti-
vidade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que pro-
cedem de uma cria~ao e que, por esse motivo, seriam antes
da al~ada de uma especie de paradigma estetico. Criam-se
novas modalidades de subjetiva~ao do mesmo modo que urn
artista phistico cria novas formas a partir da palheta de que
dispoe. Em urn tal contexto, percebe-se que os componen-
tes os mais heterogeneos podem concorrer para a evolu<;ao
positiva de urn doente: as rela~oes como espa<;o <lrquitett>-
nico, as rela~oes economicas, a co-gestao entre o doente e
os responsaveis pelos diferentes veto res de t ra Ltnwtllo, a
apreensao de todas as ocasioes de abertura p;tr:t o exterior,
a explora~ao processual das "singulnrithdes" do.., ;tconte-
cimentos, enfim tudo aquilo que podc cotltlillltir p;lr:t ;t cria-
lleterogenese 17
<;ao de uma rela<;ao autentica com o outro. A cada urn des-
ses componentes da institui<;ao de tratamento corresponde
uma prdtica necessaria. outros termos, nao se esta mais
diante de uma subjetividade dada como urn em si, mas face
a processos de autonomiza<;ao, ou de autopoiese, em urn sen-
tido um pouco desviado do que Francisco Varela da a esse
termo 2 •
Consideremos agora urn exemplo de explora<;iio dos re-
cursos etologicos e ecologicos da psique no domfnio das
psicoterapias familiares, muito particularmente no ambito
da corrente que, em torno de ~1ony Elkaim, tenta se tiber-
tar da domina<;iio das teorias sistemistas em curso nos paf-
ses anglo-saxonios e na Italia 3 .
A inventividade das curas de terapia familiar, tais co-
mo sao aqui concebidas, tambem nos distancia de paradig-
mas cientificistas para nos aproximar de urn paradigma eti-
co-estetico. 0 terapeuta se engaja, corre riscos, nao hesita
em considerar seus proprios fantasmas e em criar urn eli-
rna paradoxa! de autenticidade existencial, acrescido entre-
tanto de uma liberdade de jogo e de simulacro. Ressalte-
mos, a esse respeito, que a terapia familiar e levada a pro-
duzir subjetividadc da mancira mais artificial possfvcl, em
particular durante a forma<;ao, quando os tcrapeutas se
reuncm para improvisar ccnas psicodramaticas. A cena,
aqui, implica uma multipla superposi<;ao da cnuncia<;ao:
uma visao de si mesmo, enquanto encarna<;ao concrcta; urn
sujcito da enuncia<;ao que duplica o sujeito do enunciado e
a distribui<;ao dos papeis; uma gestao colctiva do jogo; uma
interlocu<;ao com os comentadores dos acontecimentos; c,
Caosmose
enfim, urn olhar-vfdeo que restitui em feedback o conjun-
to desses niveis superpostos.
Esse tipo de performance favorece o abandono da ati-
tude realista, que consistiria em apreender as cenas vividas
como correspondentes a sistemas realmente encarnados nas
estruturas familiares. Atraves desse aspecto teatral de mul-
tiplas facetas, apreende-se 0 carater artificial criacionista da
prodw;ao de subjetividade. E particularmente notavel que
a instancia do olhar-video habite a visao dos terapeutas.
Mesmo se estes nao manipulem efetivamente uma camera,
adquirem o habito de observar certas manifesta<;oes semi6-
ticas que escapam ao olhar comum. 0 face a face ludico com
os pacientes, a acolhida imediata das singularidades desen-
volvida por esse tipo de terapia, se diferencia da atitude do
psicanalista que esconde o rosto, ou mesmo da performance
psicodramatica classica.
Quer nos voltemos para o lado da hist6ria contempo-
d.nea, para o lado das produ<;oes semi6ticas maqufnicas ou
para o lado da etologia da infancia, da ecologia social e da
ecologia mental, encontraremos o mesmo questionamento
da individuas;ao subjetiva que subsiste certamente mas que
e trabalhada por Agenciamentos coletivos de em.mciafao.
No ponto em que nos encontramos, a definis;ao provis6ria
mais englobante que eu proporia da subjetividade e: "o
conjunto das condis;oes que torna possivel que instancias
individuais e/ou coletivas estejam em posis;ao de emergir
como territ6rio existencial auto-referencial, em adjacencia
ou em relas;ao de delimitas;ao com uma alteridade ela mes-
ma subjetiva".
Assim, em certos contextos sociais e semiol6gicos, a
subjetividade se individua: uma pessoa, tida como respon-
savel por si mesma, se posiciona em meio a relas;oes de al-
teridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis ju-
rfdicas ... Em outras condis;oes, a subjetividade se faz coleti-
Heterogenese 19
va, o que nao significa que ela se torne por isso exclusiva-
mente social. Com efeito, o termo "coletivo" deve ser en-
tendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se de-
senvolve para alem do indivfduo, junto ao socius, assim
como a quem da pessoa, junto a intensidades pre-verbais, de-
rivando de uma 16gica dos afetos mais do que de uma l6gi-
ca de conjuntos bem circunscritos.
As condi-;;6es de produ-;;ao evocadas nesse esbo~o de
redefini~ao implicam, entao, conjuntamente, instiincias hu-
manas inter-subjetivas manifestadas pela linguagem e ins-
tiincias sugestivas ou identificat6rias concernentes a etolo-
gia, intera~oes institucionais de diferentes naturezas, dispo-
sitivos maquinicos, tais como aqueles que recorrem ao tra-
balho com computador, Universos de referencia incorporais,
tais como aqueles relativos a mllsica e as artes plasricas ...
Essa parte nao-humana pre-pessoal da subjetividade e essen-
cia!, ja que e a partir dela que pode se desenvolver sua hete-
rogenese. Deleuze e Foucault foram condenados pelo fato
de enfatizarem uma parte nao-humana da subjetividade,
como se assumissem posi-;;oes anti-humanistas! A questao
nao e essa, mas ada apreensao da existencia de maquinas
de subjetiva-;;ao que nao trabalham apenas no seio de "facul-
dades da alma", de rela~oes interpessoais ou nos complexos
intra-familiares. A subjetividade nao e fab:ricada apenas atra-
das fases psicogeneticas da psicanalise ou dos "matemas
do Inconsciente", mas tambem nas grandes maquinas sociais,
mass-mediaticas, lingiiisticas, que nao podem ser qualifica-
das de humanas. Assim, um certo equilibria deve ser encon-
trado entre as descobertas estruturalistas, que certamente
nao sao negligenciaveis, e sua gest:lo pragmatica, de maneira
a nao naufragar no abandonismo social p6s-moderno.
Com seu conceito de consciente, Freud postulou a exis-
tencia de um continente escondido da psique, no interior do
qual se representaria o essencial das op~oes pulsionais, afe-
'I) Caosmose
tivas e cognitivas. Atualmente nao se podem dissociar as teo-
rias do inconsciente das praticas psicanallticas, psicotera-
peuticas, institucionais, literarias etc., que a elas se referem.
0 inconsciente se tornou uma instituis;ao, urn "equipamento
coletivo" compreendido em urn sentido rnais amplo. En-
contramo-nos trajados de urn inconsciente quando sonha-
mos, quando deliramos, quando fazernos urn ato falho, urn
lapso ... Incontestavelmente as descobertas freudianas- que
prefiro qualificar de invens;oes- enriqueceram OS angulos
sob os quais se pode atualrnente abordar a psique. Portan-
to, nao e absolutamente em um sentido pejorativo que falo
aqui de invens;ao! Assim como os cristaos inventaram uma
nova formula de subjetivas;ao, a cavalaria cortes, eo roman-
tismo, urn novo amor, uma nova natureza, o bolchevismo,
urn novo sentimento de classe, as diversas seitas freudianas
secretaram uma nova maneira de ressentir e mesmo de pro-
duzir a histeria, a neurose infantil, a psicose, a conflituali-
dade familiar, a leitura dos mitos, etc ... 0 proprio incons-
ciente freudiano evoluiu ao longo de sua hist6ria, perdeu a
riqueza efervescente e o inquietante ateisrno de suas origens
e se recentrou na analise do eu, na adaptas;ao a sociedade
ou na conformidade a uma ordem significante, em sua ver-
sao estruturalista.
Na perspectiva que e a minha e que consiste em fazer
transitar as ciencias humanas e as ciencias sociais de para-
digmas cientificistas para paradigmas etico-esteticos, a ques-
tao nao e mais a de saber se 0 inconsciente freudiano ou 0
inconsciente lacaniano fornecern uma resposta cientlfica aos
problemas da psique. Esses modelos s6 serao considerados
a titulo de prodw;ao de subjetividade entre OLltros, insepa-
raveis dos dispositiVOS tecniCOS e institucionais que OS pro-
movem e de seu irnpacto sobre a psiquiatria, o ensino uni-
versitario, os mass mfdia ... De uma maneira mais geral, dc-
ver-se-a admitir que cacla indivfduo, cada grupo social vl'i
Heterogenese 21
cula seu proprio sistema de modeliza~ao da subjetividade,
quer dizer, uma certa cartografia feita de demarca~6es cog-
nitivas, mas tambem miticas, rituais, sintomatol6gicas, a
partir da qual ele se posiciona em rela~ao aos seus afetos,
suas angustias e tenta gerir suas inibi~oes e suas pulsoes.
Durante uma cura psicanalitica, somas confrontados
com uma multiplicidade de cartografias: a do· analista e a
do analisando, mas tambem a cartografia familiar ambien-
te, a da vizinhan<;a, etc. E a intera~ao dessas cartografias
que dara aos Agenciamentos de subjetiva<;ao sen regime.
Mas nao se podera dizer de nenhuma dessas cartografias-
fantasmaticas, delirantes ou te6ricas que exprima urn
conhecimento cientifico da psique. Todas tern importancia
na medida em que escoram urn certo contexto, urn cerro
quadro, uma armadura existencial da situa~ao subjetiva.
Assim nossa questao, hoje em dia, nao e apenas de ordem
especulativa, mas se coloca sob angulos muito praticos:
sed. que os conceitos de inconsciente, que nos sao propos-
tos no "mercado" da psicanalise, convem as condi~6es a-
tuais de produ<;ao de subjetividade? Seria preciso trans-
forma-los, inventar outros? Logo, o problema da mode-
liza<;ao, mais exatamente da metamodeliza~ao psicol6gica,
e 0 de saber 0 que fazer com esses instrumentos de carto-
grafia, com esses conceitos psicanaliticos, sistemistas etc.
Sera que sao utilizados como grade de leitura global exclu-
siva com pretensao cientifica ou enquanto instrumentos
parciais, em composi~ao com outros, sendo o criteria ulti-
mo ode ordem funcional?
Que processos se desenrolam em uma consciencia com
o choque do inusitado? Como se operam as modifica~6es
de urn modo de pensamento, de uma aptidao para apreen-
der o mundo circundante em plena muta~ao? Como mudar
;ls rcpresenta~6es desse mundo exterior, ele mesmo em pro-
' \'';<,() de mudan<;a? 0 inconsciente freudiano e inseparavel
Caosmose
de uma sociedade presa ao seu passado, as suas tradis;oes
falocraticas, as suas invariantes subjetivas. As convulsoes
contempodineas exigem, sem duvida, uma modeliza~ao
mais voltada para o futuro e a emergencia de novas prati-
cas socials e esteticas em todos os domfnios. A desvaloriza-
s;ao do sentido da vida provoca o esfacelamento da imagem
do eu: suas representas;oes tornam-se confusas, comradit6-
rias. Face a essas convulsoes, a melhor atitude consiste em
visar ao trabalho de cartografia e de modelizas;ao psicol6-
gica em uma relas;ao dialetica com os interessados, os indi-
viduos e os grupos concernidos, quer dizer, indo no senti-
do de uma co-gestao da produs;ao de subjetividade, renun-
ciando as atitudes de autoridade, de sugestao, que ocupam
um lugar tao destacado na psicanalise, a despeito de ela
pretender ter escapado disto.
Ha muito tempo recusei o dualismo Consciente-Incons-
ciente das t6picas freudianas e todas as oposi<;:oes maniquefs-
tas correlativas atriangula-;ao edipiana, ao complexo de cas-
tra<;:ao etc ... Optei por um inconsciente que superpoe mul-
tiplos estratos de subjetiva<;:oes, estratos heterogeneos, de
extensao e de consistencia maiores ou menores. Inconscien-
te, entao, mais "esquizo", liberado dos grilh6es familialistas,
mais voltado para praxis atuais do que para fixas;oes ere-
gressoes em relas;ao ao passado. Inconsciente de Fluxo e de
maquinas abstratas, mais do que inconsciente de estrutura
e de linguagem.
Entretanto, nao considero minhas "cartografias esqui-
zo-analiticas" como doutrinas cientfficas4 . Assim como um
artista toma de seus predecessores e de seus contemporaneos
os tra<;:os que lhe convem, convido meus leitores a pegar e a
rejeitar livremente meus conceitos. 0 importante nesse caso
nao e0 resultado final mas 0 fato de 0 metodo cartografico
Heterogenese
multicomponencial coexistir com o processo de subjetiva-
<;ao e de ser assim tornada possivel uma reapropria<;ao, uma
autopoiese, dos meios de produ<;ao da subjetividade.
Que fique bern claro que nao assimilo a psicose a uma
obra de arte e o psicanalista, a urn artista! Afirmo apenas que
os registros existenciais aqui concernidos envolvem uma di-
mensao de autonomia de ordem estetica. Estamos diame de
uma escolha etica crucial: ou se objetiva, se reifica, se "cien-
tificiza" a subjetividade ou, ao contrario, tenta-se apreende-
la em sua dimensao de criatividade processual. Kant enfati-
zara que o julgamento de gosto envolve a subjetividade e sua
rela<;ao com outrem em uma certa atitude de "desinteresse" 5 •
Mas nao basta designar essas categorias de liberdade e de de-
sinteresse como dimensoes essenciais da estetica inconscien-
te; convem ainda considerar seu modo de insen;;ao ativo na
psique. Como certos segmentos semi6ticos adquirem sua au-
tonomia, come<;am a trabalhar por sua propria conta e a se-
cretar novos campos de referencia? Ea partir de uma tal rup-
tura que uma singulariza<;ao existencial correlativa a genese
de novos coeficientes de liberdade tornar-se-a possivel. Uma
tal separa<;ao de urn "objeto parcial" etico-estetico do campo
das significa<;oes dominantes corresponde ao mesmo tempo
apromo<;ao de urn desejo mutame e afinaliza<;:ao de urn certo
desinteresse. Gostaria de fazer uma ponte entre o conceito de
objeto parcial ou de objeto "a", tal como foi teorizado por
Lacan, que representa a autonomiza<;:ao de componentes da
subjetividade inconsciente, e a autonomiza<;:ao subjetiva en-
gendrada pelo objeto estetico.
Encontramos aqui a problem:hica de Mikhail Bakhtine
24 Caosmose
em seu primeiro ensaio te6rico de 1924 6 , onde destaca bri-
lhantemente a fun<;ao de apropria<;ao enunciativa da forma
estetica pela autonomiza<;Cio do conteudo cognitivo ou eti-
co e o aperfei<;oamento desse conteudo em objeto estetico
que, de minha parte, qualificaria como enunciador parciaL
Tento levar o objeto parcial psicanalftico, adjacente ao corpo
e ponto de engate da pulsao, na dire<;ao de uma enuncia<;ao
parcial. A amplia.;;ao da no<;ao de objeto parcial, para a qual
Lacan contribuiu com a inclusao no objeto do olhar e da
voz, deveria ser prosseguida. Trata-se de fazer dela uma ca-
tegoria que cubra o conjunto dos focos de auronomiza.;;ao
subjetiva relativos aos grupos-sujeitos, as instancias de pro-
du.;;ao de subjetividade maquinica, ecol6gica, arquitetoni-
ca, religiosa etc ...
Bakhtine descreve uma transferencia de subjetiva<;ao
que se opera entre o autor e o contemplador de uma obra
- o olhador, no sentido de Marcel Duchamp. Nesse movi-
mento, para ele, o "consumidor" se torna, de algummodo,
co-criador. A forma estetica s6 chega a esse resultado por
intermedio de uma fun<;ao de isolamento ou de separa<;ao,
de tal modo que a materia de expressao se torna fonnalmen-
te criadora. 0 conteudo da obra se destaca de suas conota-
<;oes tanto cognitivas quanto esteticas: "o isolamento ou a
separa<;ao nao se relacionam a obra como coisa mas a sua
significa.;;ao, ao seu conteudo, que muito freqiientemente se
Iibera de certos vinculos necessarios com a unidade da na-
tureza e com a unidade etica do ser" 7 . Eentao urn certo tipo
de fragmento de conteudo que "to rna posse do a utor", que
6
"Le prohleme de contenu, du materiau et de !a forme dans !'oeuvre
litteraire", in M. Bakhtine, Esthetique et theorie du roman, Gallimard,
Paris, 1978 (edi<;-ao brasileira: Questoes de literatura e de estetica A
teoria do romance, Hucitec, Sao Paulo, 1988).
7 Op. cit., p. 72.
Heterogenese 25
engendra urn certo modo de enunciac;:ao estetica. Na musi-
ca, por exemplo, onde- repete-nos Bakhtine- o isolamen-
to e a invenc;:ao nao podem ser relacionados axiologicamente
com o material: "Nao e o som da acustica que se isola nem
0 numero matematico intervindo na composic;:ao que se in-
venta. Eo acontecimento da aspira<;:ao e a tensao valorizante
que sao isolados e tornados irreversiveis pela inven<;:ao e,
grac;:as a isso, se eliminam por eles mesmos scm obst:iculo e
encontram um repouso em sua finaliza<;:ao" 8 .
Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar,
se autonomizar, se finalizar, apossar-se-a, de preferencia:
1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical;
2) de suas significa<;:oes materiais com suas nuanc;:as e
variantes;
3) de seus aspectos de liga<;:ao verbal;
4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos;
5) do sentimento da atividade verbal do engendramento
ativo de urn som significante que comporta elementos mo-
tores de articula<;:ao, de gesto, de mfmica, sentimento de urn
movimento no qual sao arrastados o organismo inteiro, a
atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta.
E, evidentemente, declara Bakhtine, e esse iiltimo as-
pecto que engloba os outros 9 .
Essas amilises penetrantes podem conduzir a uma am-
pliac;:ao de nossa abordagem da subjetivac;:iio parcial. Encon-
tramos igualmente em Bakhtine a ideia de irreversibilidade
do objeto estetico e implicitamente de autopoiese, noc;:oes tao
necessarias no campo da ana.lise das formac;:oes do Inconscien-
te, da pedagogia, da psiquiatria, e mais geralmente no cam-
po social devastado pela subjetividade capitalfstica. Nao e
entao apenas no quadro da musica e da poesia que vemos
8
Idem, p. 74.
9 Ibidem.
( :,tosrnose
funcionarem tais fragmentos destacados do conteudo que, de
urn modo geral, incluo na categoria dos ritornelos existen~
ciais. A polifonia dos modos de subjetiva<;ao corresponde, de
fa to, a uma multiplicidade de maneiras de "marcar o tempo".
Outros ritmos sao assim levados a fazer cristalizar Agencia-
mentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.
Os casos mais simples de ritornelos de delimita<;ao de
T erritorios existenciais pod em ser encontrados na etologia
de numerosas especies de passaros cujas seqiiencias especf~
ficas de canto servem para a sedu<;ao de seu parceiro sexual,
para o afastamento de intrusos, o aviso da chegada de pre~
dadores ... 10 T rata -se, a cada vez, de definir urn espa<;o fun-
cional bem-definido. Nas sociedades arcaicas, e a partir de
ritmos, de cantos, de dan<;as, de mascaras, de marcas no
corpo, no solo, nos Totens, por ocasiao de rituais e atraves
de referencias miticas que sao circunscritos outros tipos de
Territorios existenciais coletivos 11 • Encontramos esses tipos
de ritornelos na Antigiiidade grega com os "nomos", que
constituiam, de alguma forma, "indicativos sonoros", estan-
dartes e selos para as corpora<;oes profissionais.
Mas cada urn de nos conhece tais transposi<;oes de li-
miar subjetivo pela atua<;ao de urn modulo temporal cata-
lisador que nos mergulhara na tristeza ou, entao, em urn
clima de alegria e de anima<;ao. Com esse conceito de ritor-
nelo, visamos nao somente a tais afetos massivos, mas a ri-
tornelos hipercomplexos, catalisando a entrada de Univer-
sos incorporais tais como 0 da musica ou 0 das matemati-
cas e cristalizando Territ6rios existenciais muito mais des-
Heterogenese
territorializados. E nao se trata, com isso, de universos de
referencia "em geral ", mas de universos singulares, histori-
camente marcados no cruzamento de diversas linhas de
virtualidade. Urn ritornelo complexo- aquem dos da poe-
sia e da musica - marca o cruzamento de modos hetero-
geneos de subjetiva<;:ao. Por urn Iongo perfodo, o tempo foi
considerado uma categoria universal e univoca, ao passo
que, na realidade, sempre lidamos apenas com apreensoes
particulares e multivocas. 0 tempo universal e apenas uma
proje<;:ao hipotetica dos modos de temporaliza<;:ao concer-
nentes a m6dulos de intensidade os ritornelos que
operam ao mesmo tempo em registros biol6gicos, s6cio-
culturais, maquinicos, c6smicos etc ...
Para ilustrar esse modo de produ<;:ao de subjerividade
polifonica em que urn ritornelo complexo representa urn
papel preponderante, consideremos o exemplo da consu-
ma<;ao televisiva. Quando olho para o aparelho de televi-
sao, existo no cruzamento: 1. de uma fascina<;:ao percepti-
va pelo foco luminoso do aparelho que confina ao hip-
notismo12; de uma rela<;ao de captura com o conte{Ido
narrativo da emissao, associada a uma vigilancia lateral
acerca dos acontecimentos circundantes (a agua que ferve
no fogo, urn griro de crian<;a, o telefone ... ); 3. de urn mun-
do de fantasmas que habitam meu devaneio ... meu senti-
memo de identidade e assim assediado por diferentes dire-
<;:6es. 0 que faz com que, apesar da diversidade dos com-
ponentes de subjetiva<;:ao que me atravessam, eu conserve
urn sentirnento relativo de unicidade? Isso se deve a essa
ritorneliza<;ao que me fixa diante da tela, constitufda, as-
sirn, como n6 existencial projetivo. Sou o que esta diante
Caosmose
de mim. lv1inha identidade se tornou o speaker, o persona-
gem que fala na televisao. Como Bakhtine, diria que o ri-
tornelo nao se ap6ia nos elementos de formas, de materia,
de significac,;ao comum, mas no destaque de urn "motivo"
(ou de leitnwtiv) existencial se instaurando como "atrator"
no seio do caos sensfvel e significacional.
Os diferemes componentes mantem sua heterogeneida-
de, mas sao entretanto captados porum ritornelo, que
nha o territ6rio existencial do eu. Com a identidade neur6-
tica, acontece que o ritornelo se encarna em uma represen-
tac,;ao "endurecida", por exemplo, um ritual obsessivo. Se,
por urn motivo qualquer, essa maquina de subjetivac,;ao e
ameac,;ada, e entao toda a personalidade que pode implodir:
e 0 caso na psicose, em que OS componentes parciais par-
tern em linhas delirantes, alucinat6rias etc.
Com esse conceito diffcil e paradoxa! de ritornelo com-
plexo, poder-se-a referir um acontecimento interpretativo,
em uma cura psicanalltica, nao a universais on a matemas,
a estruturas preestabelecidas da subjetividade, mas ao que
eu denominaria uma constelac,;ao de Universos de referen-
cia. Nao se trata, entao, de Universos de referencia em ge-
ral, mas de domfnios de entidades incorporais que se detec-
tam ao mesmo tempo em que sao produzidos, e que seen-
contram todo o tempo presentes, desde o instante em que
os produzimos. Eis o paradoxa proprio a esses Univer-
sos: eles sao dados no instante criador, como hecceidade e
escapam ao tempo discursivo; sao como os focos de eterni-
dade aninhados entre os instantes. Alem disso, implicam a
considerac;:ao nao somente dos elementos em situac,;ao (fa-
miliar, sexual, conflitiva), mas tambem a projec;:ao de todas
as linhas de virtualidade, que se abrem a partir do aconte-
cimento de seu surgimento.
Tomemos um exemplo simples: urn paciente, no pro-
cesso de cura, permanece bloqueado em seus problemas, em
Heterogenese 29
urn impasse. Essa pessoa, um dia, faz a seguinte afirma<,;ao,
sem lhe dar importancia: "tenho vontade de retomar minhas
aulas de dire<,;ao, pois nao dirijo ha a nos"; ou en tao, "tenho
vontade de aprender a processar textos". Trata-se deacon-
tecimentos menores que poderiam passar despercebidos em
urna concep<;;ao tradicional da analise. Mas nao e de todo
inconcebivel que o que denornino uma tal singularidade se
tome uma chave, desencadeando urn ritornelo complexo,
que nao apenas modificara o comportamento irnediato do
paciente, mas lhe abrira novos campos de virtualidade. A
saber, a retomada de contato com pessoas que perdera de
vista, a possibilidade de restabelecer a liga<,;ao com antigas
paisagens, de reconquistar uma seguran<,;a neurol6gica. Aqui
uma neutralidade rigida demais, urna nao-interven<,;ao do
terapeuta se tornaria negativa; pode ser necessaria, em tais
casos, agarrar as oportunidades, aquiescer, correr o risco de
se enganar, de tentar a sorte, de dizer "sim, com efeito, essa
experiencia talvez seja importante". Fazer funcionar o acon-
tecimento como portador eventual de uma nova constela-
<;;ao de Universos de referencia: eo que viso quando falo de
uma interven<;;ao pragrnatica voltada para a constru<;;ao da
subjetividade, para a produ<,;ao de campos de virtualidades
e nao apenas polarizada por uma hermeneutica sirnb6lica
dirigida para a infancia.
Nessa concep<;;ao de analise, o tempo deixa de ser vi vi-
do passivarnente; ele eagido, orientado, objeto de mutat;oes
qualitativas. A analise nao e mais interpreta<;;ao transferen-
cial de sintomas em fun<;;ao de urn conteudo latente preexis-
tente, mas inven<,;iio de novos focos cataliticos suscetiveis de
fazer bifurcar a existencia. Uma singularidade, uma ruptu-
ra de sentido, urn corte, uma fragmenta<;;ao, a separa<;;iio de
urn conteudo semi6tico - por exemplo, a rnoda dadaista
ou surrealista - podem originar focos mutantes de subje-
1iv;H;:ao. Da mesma forma que a quimica teve que come<,;ar
Caosmose
a depurar misturas complexas para delas extrair materias
at6micas e moleculares homogeneas e, a partir delas, com-
par uma gama infinita de entidades qufmicas que nao exis-
tiam anteriormente, a "extra<;;ao" e a "separa<;;ao" de sub-
jetividades esteticas ou de objetos parciais, no sentido psi-
canalitico, tornam possfveis uma imensa complexifica<;;ao da
subjetividade, harmonias, polifonias, contrapontos, ritmos
e orquestra<;;oes existenciais ineditos e inusitados.
Complexifica<;;ao desterritorializante essencialmente
precaria, porque constantemente amea<;;ada de enfraqueci-
mento reterritorializante, sobretudo no contexto contempo-
raneo onde o primado dos fluxos informativos engendrados
maquinicamente amea<;;a conduzir a uma dissolu<;;ao gene-
ralizada das antigas territorialidades existenciais. Nas pri-
meiras fases das sociedades industriais, o "demonfaco" ain-
da continuava a aflorar por roda parte, mas doravante o mis-
terio se tornou uma mercadoria cada vez mais rara. Que
baste aqui evocar a busca desesperada de urn Witkiewiz para
apreender uma ultima "estranheza do ser" que parecia lite-
ralmente escapar-lhe por entre os dedos.
Nessas condi<;;oes, cabe especialmente a fun<;;ao poeti-
ca recompor universos de subjetiva<;;ao artificialmente rare-
feitos e re-singularizados. Nao se trata, para ela, de trans-
mitir mensagens, de investir imagens como suporte de iden-
tifica<;;ao ou padroes formais como esteio de procedimento
de modeliza<;;ao, mas de catalisar operadores existenciais sus-
cetfveis de adquirir consistencia e persisrencia.
Essa caralise poetico-existencial, que encontraremos em
opera<;;ao no seio de discursividades escriturais, vocais, mu-
sicais ou plasticas, engaja quase sincronicamente a recris-
taliza<;;ao enunciativa do criador, do interprete e do aprecia-
dor da obra de arte. Sua eficacia reside essencialmente em
sua capacidade de promover rupturas ativas, processuais, no
interior de tecidos significacionais e denorativos semiotica-
I lcterogenese .~ I
mente estruturados, a partir dos quais ela colocara. em fun-
cionamento uma subjetividade da emergencia, no sentido de
Daniel Stern.
Quando ela se lanc.;:a efetivamente em uma zona enun-
ciativa dada quer dizer, situada a partir de urn ponto de
vista historico e geopolitico - , uma tal func.;:ao analitico-
poetica se instaura entiio como foco mutante de auto-refe-
rencia<;:ao e de auto-valorizac.;:ao. E por isso que deveremos
sempre considera-la sob dois angulos: 1. enquanto ruptura
molecular, imperceptive! bifurca<;:ao, suscetivel de desesta-
bilizar a trama das redundancias dominantes, a organiza<;:iio
do "ja classificado" ou, se preferirmos, a ordem do classi-
co; e 2. enquanto sele~ao de alguns segmentos dessas rues-
mas cadeias de redundancia, para conferir-lhes essa func.;:ao
existencial a-significante que acabo de evocar, para "ritor-
neliza-las", para fazer delas fragmentos virulentos de enun-
cia<;:iio parcial trabalhando como shifter de subjetivac.;:ao.
Pouco importa aqui a qualidade do material de base, como
se ve na musica repetitiva ou na dan<;:a Buto que, segundo
Marcel Duchamp, sao inteiramente voltadas para "o olha-
dor". 0 que importa, primordialmente, e 0 impeto ritmico
mutante de uma temporalizac.;:ao capaz de fazer unir os com-
ponentes heterogeneos de urn novo ediffcio existencial.
Para alem da fun<;:ao poetica, coloca-se a questao dos
dispositivos de subjetivac.;:ao. mais precisamente, o que
deve caracteriza-los para que saiam da serialidade -no
sentido de Sartre- e entrem em processos de singulariza-
c.;:ao, que restituem a existencia o que se poderia chamar de
sua auto-essencializa~ao. Abordamos uma cpoca em que, es-
fumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem mais
distintamente as ameac.;:as principais que nossas sociedades
produtivistas fazem pairar sobre a especie hum;JJJa, cuja so-
brevivencia nesse planeta esta amea~ada, n;1o ;qwnas pelas
degrada<;:oes ambientais mas tambem pda dq•,cm·rTscencia
32 Caosmose
do tecido das solidariedades sociais e dos modos de vida psi-
quicos que convem literalmente reinventar. A refunda<;:ao do
politico devera passar pelas dimensoes esteticas e analiticas
que estao implicadas nas tres ecologias: do meio ambiente,
do socius e da psique.
Nao se pode conceber resposta ao envenenamento da
atmosfera e ao aquecimento do planeta, devidos ao efeito
estufa, uma estabiliza<;:ao demognifica, sem uma muta<;:ao
das mentalidades, sem a promo<;:ao de uma nova arte de
viver em sociedade. Nao se pode conceber disciplina inter-
nacional nesse dominio sem trazer uma solu<;:ao para os
problemas da fome no mundo, da hiperinfla<;:ao no Tercei-
ro Mundo. Nao se pode conceber uma recomposi<;:ao cole-
tiva do socius, correlativa a uma re-singulariza~ao da sub-
jetividade, a uma nova forma de conceber a democracia
polftica e economica, respeitando as diferen<;:as culturais,
sem multiplas revolu<;:oes moleculares. Nao se pode esperar
uma melhoria das condi<;:oes de vida da especie humana sem
urn esfor~o consideravel de promo<;:ao da condi<;:ao femini-
na. 0 conjunto da divisao do trabalho, seus modos de va-
loriza<;:ao e suas finalidades devem ser igualmente repensa-
dos. A produ<;:ao pela produ<;:ao, a obsessao pela taxa de
crescimento, quer seja no mercado capitalista ou na econo-
mia planificada, conduzem a absurdidades monstruosas. A
unica finalidade aceitavel das atividades humanas e a pro-
du~ao de uma subjetividade que enrique<;:a de modo conti-
nuo sua rela<;:ao com o mundo.
Os dispositivos de produ<;:ao de subjetividade podem
existir em escala de megalopoles assim como em escala dos
jogos de linguagem de urn individuo. Para apreender os re-
cursos fntimos dessa produ~ao- essas rupturas de senti do
autofundadoras de existencia -,a poesia, atua.lmcntc, tal~
vez tenha mais a nos ensinar do que as ciencias ccotH)mi
cas, as ciencias humanas e a psicanalise reunidas! As trans-
Heterogenese 33
forma<;:oes sociais podem proceder em grande escala, por
muta<;:ao de subjetividade, como se ve atualmente com as
revolu<;:oes subjetivas que se passam no leste de urn modo
moderadamente conservador, ou nos pafses do Oriente Me-
clio, infelizmente de urn modo largamente reacionario, ate
mesmo neofascista. Mas elas podem tambem se produzir em
uma escala molecular- microffsica, no sentido de Foucault
-,em uma atividade polftica, em uma cura analitica, na ins-
tala<;:ao de um dispositivo para mudar a vida da vizinhan-
<;:a, para mudar o modo de funcionamento de uma escola,
de uma institui<;:ao psiquiatrica.
34 Caosmose
valer generalizado, no contexto de desenvolvimento conti-
nuo dos mass mfdia, dos Equipamentos Coletivos, da revo-
lw;ao informatica que parece chamada a recobrir com sua
cinzenta monotonia OS m)nimos gestOS, OS ultimos recantos
de misterio do planeta.
Proporemos entao operar urn descentramento da ques-
tao do sujeito para a da subjetividade. 0 sujeito, tradicio-
nalmente, foi concebido como essencia ultima da indivi-
dua~ao, como pura apreensao pre-reflexiva, vazia, do mun-
do, como foco da sensibilidade, da expressividade, unifica-
dor dos estados de consciencia. Com a subjetividade, sera
dada, antes, enfase a instancia fundadora da intencionali-
dade. Trata-se de tomar a rela~ao entre o sujeito eo objeto
pelo meio, e de fazer passar ao primeiro plano a instancia
que se exprime (ou o Interpretante da trfade de Pierce). A
partir dai se recolocan1 a questao do Conteudo. Este parti-
cipa da subjetividade, dando consistencia a qualidade on-
tologica da Expressao. E nessa reversibilidade do Conteu-
do e da Expressao que reside o que chamo de fun~ao
tencializante. Partiremos, entao, de urn primado da substan-
cia enunciadora sobre o par Expressao e Conteudo.
Acreditei perceber uma alternativa valida aos estrutu-
ralismos inspirados em Saussure, apoiando-me na oposi~ao
Expressao/Conteudo, tal como a concebeu Hjelmslev 13 , quer
dizer, fundada precisamente em uma reversibilidade possi-
vel entre a Expressao e o Conteudo. Para alem de Hjelmslev,
proponho considerar uma multiplicidade de instancias que
se exprimem, quer sejam da ordem da Expressao ou do Con-
teudo. Ao inves de tirar partido da oposi~ao Expressao/Con-
teudo, que em Hjelmslev duplica o par significante/signica-
I Ieterogenese 35
do de Saussure, tratar-se-ia de colocar em polifonia, em pa-
ralelo, uma multiplicidade de sistemas de expressao, ou do
que chamaria agora de substiincias de expressao.
Minha dificuldade metodologica deve-se ao fa to de que
o proprio Hjelmslev empregava a categoria de substf'mcia em
uma triparti.;ao entre materia, substancia e forma de Expres-
sao e de Conteudo. Nele, a jun.;ao entre a Expressao e o
Conteudo ocorria ao nfvel da forma de expressao e da for-
ma do conteudo que identificava. Essa forma comum ou co-
mutante e um pouco misteriosa, mas se apresenta, em mi-
nha opiniao, como uma intui.;ao genial que levanta a ques-
tao da existencia de uma maquina formal, transversal a toda
modalidade de Expressi.io como de Conteudo. Haveria en-
tao uma ponte, uma transversalidade entre a maquina de dis-
cursividade fonematica e sintagmatica da Expressao, propria
a linguagem, e o recorte das unidades semanticas do Con-
teudo, por exemplo a maneira pela qual seri.io classificadas
as cores, as categorias animais. Denomino essa forma comum
de maquina desterritorializada, maquina abstrata. Essa no-
.;ao de maquina semiotica nao foi inventada por mim: en-
contrei-a em Chomsky, que fala de maquina abstrata na raiz
da linguagem. So que esse conceito, essa oposi.;ao Expres-
sao/Conteudo, ou esse conceito chomskiano de maquina abs-
trata, ainda permanecem muito rebatidos sobre a linguagem.
0 objetivo seria re-situar a semiologia e as semi6ticas no qua-
dro de uma concep~ao maquinica ampliada da forma, que
nos afastaria de uma simples oposi~ao lingiifstica Expressao/
Conteudo enos permitiria integrar aos Agenciamentos enun-
ciativos urn numero indefinido de substancias de Expressao
como as codifica~oes biol6gicas ou as formas de organiza-
.;ao pr6prias ao socius.
Nessa perspectiva, a questao da substancia enunciado-
ra sairia da triparti~ao tal como a concebia Hjelmslev, entre
lnatcria/substancialforma, a forma se lan~ando como uma
Caosmose
rede sobre a materia para engendrar a substancia tanto de
Expressao quanta de Conteudo. Tratar-se-ia de fazer estilha<;ar
de modo pluralista o conceito de substancia, de forma a pro-
mover a categoria de subsdncia de expressao, nao a pen as nos
domfnios semiol6gicos e semi6ticos mas tambem nos dominios
extralingiiisticos, nao-humanos, biol6gicos, tecnol6gicos, es-
teticos etc. Deste modo, o problema do Agenciamento de enun-
cia<;ao nao seria mais especffico de urn registro semi6tico, mas
atravessaria urn conjunto de materias expressivas heteroge-
neas. T ransversalidade, entao, entre substancias enunciadoras
que podem ser, por urn lado, de ordem expressiva lingiifsti-
ca, mas, por outro lado, de ordem maquinica, se desenvol-
vendo a partir de "materias niio-semioticamente formadas",
para retomar uma outra expressao de Hjelmslev.
A subjetividade maquinica, o agenciamento maquini-
co de subjetiva<;ao, aglomera essas diferemes enuncia<;5es
parciais e se instala de algum modo antes e ao lado da rela-
<;ao sujeito-objeto. Ela tern, alem disso, urn caniter coleti-
vo, e multicomponencial, uma multiplicidade maquinica. E,
terceiro aspecto, comporta dimens5es incorporais- o que
constitui talvez o lado mais problematico da questao e que
s6 e abordado lateralmente por Noam Chomsky com sua
tentativa de retomada do conceito medieval de Universais.
Retomemos esses tres pontos. As substancias expressivas lin-
giifsticas e nao-lingiifsticas se instauram no cruzamento de
cadeias discursivas pertencentes a urn mundo finito pre-for-
mado (o mundo do grande Outro lacaniano) e de registros
incorporais com virtualidades criacionistas infinitas (ja es-
tas nao tern nada a ver com os "matemas" lacanianos). E
nessa zona de interse<;iio que o sujeito e o objeto se fundem
e encontram seu fundamento. Trata-se de urn dado como
qual OS fenomen6logos estiveram as voltas, ao mostrar que
a intencionalidade e inseparavel de seu objeto e depende en-
tao e da ordem de urn aquem da rela<;:ao discursiva sujeito-
I kterogenese 37
objeto. Psic6logos enfatizaram as rela;;;oes de empatia e de
transitivismo na infancia e na psicose. Mesmo Lacan, quan-
do ainda influenciado pela fenomenologia, em suas primei-
ras obras, evocou a importa.ncia desse tipo de fenomeno. De
urn modo geral, pode-se dizer que a psicanalise nasceu indo
ao enconrro dessa fusao objeto-sujeito que vemos operan-
do na sugestao, na hipnose, na histeria. 0 que originou a
pratica e a teoria freudiana foi uma tentativa de leitura do
transitivismo subjetivo da histeria.
Os antrop6logos, alias, desde a epoca de Levy-Bruhl,
Priezluski etc., mostraram que existia, nas sociedades arcai-
cas, o que denominavam uma "participa;;;ao", uma subjeti-
vidade coletiva, investindo urn certo tipo de objero e se colo-
cando em posi;;;ao de foco existencial do grupo. Mas nas pes-
quisas sobre as novas formas de arte, como as de Deleuze
sobre o cinema, veremos, por exemplo, tmagens-movimento
ou imagens-tempo se constituirem igualmente em germes de
produ;;;ao de subjetividade. Nao se trata de uma imagem pas-
sivamente representativa, mas de um vetor de subjetiva~.;ao.
E eis-nos en tao confrontados com um conhecimento patico,
nao-discursivo, que se da como uma subjetividade em dire-
;;;ao a qual se vai, subjetividade absorvedora, dada de ime-
diato em sua complexidade. Poder-se-ia atribuir a inrui;;;ao
disso a Bergson, que esclareceu essa experiencia nao-dis-
cursiva da dura;;;ao em oposi;;;ao a urn tempo recortado em
presente, passado e futuro, segundo esquemas espaciais.
Essa subjetividade patica, aquem da rela;;;ao sujeito-ob-
jeto, continua, com efeito, se atualizando atraves de coor-
denadas energetico-espacio-temporais, no mundo da lingua-
gem e de multiplas media;;;oes; mas o que importa, para
captar o m6vel da produ;;;ao de subjetividade, e apreender,
atraves dela, a pseudodiscursividade, o desvio de discursi-
vidade, que se instaura no fundamento da rela;;;ao sujeito-
objeto, digamos numa pseudomedia;;;ao subjetiva.
38 Caosmose
Na raiz de todos os modos de subjetiva~ao, essa sub-
jetividade patica eocultada na subjetividade racionalista ca-
pitalfstica, que tende a contorna-la sistematicamente. A cien-
cia e construfda sobre uma tal coloca<;ao entre parenteses
desses fatores de subjetivas;ao que so encontram o meio de
vir a expressao colocando fora de significas;ao certas cadeias
discursivas.
0 freudismo, embora impregnado de cientificismo, po-
de ser caracterizado, em suas primeiras etapas, como uma
rebeliao contra o reducionismo positivista, que tendia a
deixar de lado essas dimensoes paticas. 0 sintoma, o lap-
so, o chiste, sao concebidos af como objetos destacados que
permitem que urn modo de subjetividade que perdeu sua
consistencia encontre a via de uma "passagem a existencia".
0 sintoma funciona como ritornelo existencial a partir de
sua propria repetitividade. 0 paradoxo consiste no fato de
que a subjetividade patica tende a ser constantemente eva-
cuada das rela<,;oes de discursividade, mas e esencialmente
na subjetividade patica que os operadores de discursivida-
de se fundam. A funs;ao existencial dos agenciamentos de
enuncia~ao consiste na utiliza~ao de cadeias de discursivi-
dade para estabelecer urn sistema de repeti~ao, de insisten-
cia intensiva, polarizado entre urn T erritorio existencial ter-
ritorializado e Universos incorporais desterritorializados-
duas funs;oes metapsicologicas que podemos qualificar de
ontogeneticas.
Os Universos de valor referencial dao sua consistencia
propria as maquinas de Expressao, articuladas em Phylum
maquinicos. Os ritornelos complexos, para alem dos sim-
ples ritornelos de territorializa<;ao, declinam a consistencia
singular desses Universos. (Por exemplo, a apreensao patica
das ressonancias harmonicas, fundadas na gama diatonica,
configura o "fundo" de consistencia da musica polifOmca,
ou ainda a apreensao da concatena~ao possfvel dos nl'm1e-
Heterogenese 39
ros e dos algoritmos configura o "fundo" das idealidades
matemaricas.)
A consistencia maqufnica abstrata que se encontra des-
sa forma conferida aos Agenciamentos de enuncia~ao resi-
de no escalonamento e na ordena~ao dos nfveis parciais de
territorializa~ao existencial. 0 ritornelo complexo funcio-
na, alem disso, como interface entre registros atualizados de
discursividade e Universos de virrualidade nao discursivos.
Eo aspecto mais desterritorializado do ritornelo, sua dimen-
sao de Universo de valor incorporal que assume o controle
dos aspectos mais territorializados atraves de um movimento
de desterritorializa~ao, desenvolvendo campos de possivel,
tensoes de valor, rela~oes de heterogeneidade, de alterida-
de, de devir outro. A diferen~a entre esses Universos de va-
lor e as Ideias platonicas e que eles nao tem carater de fixi-
dez. Trata-se de constela~6es de Universos, no interior das
quais um componente pode se afirmar sobre os outros e
modificar a configura~ao referencial inicial e o modo de
valoriza~ao dominante. (Por exemplo, veremos afirmar-se,
ao Iongo da Antigtiidade, o primado de uma maquina mili-
tar baseada nas armas de ferro sobre a maquina de Estado
desp6tica, a maquina de escritura, a maquina religiosa etc.)
A cristaliza~ao de uma tal constela~ao podera ser "ultrapas-
sada" ao Iongo da discursividade hist6rica, mas jamais apa-
gada enquanto ruptura irreversivel da memoria incorporal
da subjetividade coletiva.
Colocamo-nos, entao, aqui totalmente fora da visao de
um Ser que atravessaria, imuravel, a hist6ria universal das
composi~6es ontol6gicas. Existem constela<;6cs incorporais
singulares que pertencem ao mesmo tempo a histbria natu-
rale a hist6ria humana e simultaneameme lhcs cscapam por
milhares de linhas de fuga. A partir do momcnto em que ha
surgimento de Universos matematicos, nao sc pmk mais fa-
zer COm que essas maquinas abstratas que OS Sllportam nao
Caosmose
tenham ja existido em toda parte e desde sempre e nao se
projetem nos possfveis por vir. Nao se pode mais fazer com
que a mtisica polifonica nao tenha sido inventada pela se-
quencia dos tempos passados e futuros. Essa e a primeira
base de consistencia ontol6gica dessa fun\;ao de subjetiva-
\;ao existencial que se situa na perspectiva de urn certo
cionismo axiol6gico.
A segunda e a da encarna\;ao desses valores na irrever-
sibilidade do ser af dos Territ6rios existenciais, que confe-
rem seu selo de autopoiese, de singulariza\;ao, aos focos de
subjetiva\;aO. Na 16gica dos conjuntos discursivos que regem
os dominios dos Fluxos e dos Phylum maqufnicos ha sem-
pre separa\;ao entre os p6los do sujeito e do objeto, ha o que
Pierre Lev)' denomina o estabelecimento de urna "cortina de
ferro" ontol6gica 14 . A verdade de uma proposi\;aO respon-
de ao princfpio do terceiro exclufdo; cada objeto se apresenta
ern urna rela\;ao de oposi\;ao binaria com urn "fundo", ao
passo que na 16gica patica nao ha mais referencia global ex-
trinseca que se possa circunscrever. A rela\;ao objetal se
encontra precarizada, assirn como se encontram novamen-
te questionadas as fun\;6es de subjetiva\;ao.
0 Universo incorporal nao se ap6ia em coordenadas
bern-arrimadas no mundo, mas ern ordenadas, ern uma or-
dena\;ao intensiva mais ou menos engatada nesses Territ6-
rios existenciais. Territ6rios que pretendem englobar ern urn
mesmo movimento o conjunto da mundaneidade e que s6
contarn, na verdade, com ritornelos derris6rios, indexando
senao sua vacuidade, ao menos o grau zero de sua intensi-
dade ontol6gica. Territ6rios, entao, jarnais dados como ob-
jeto mas sernpre como repeti\;ao intensiva, lancinante
ma\;ao existencial. E, repito, essa opera\;ao se efetua atra-
llcterogenese 41
ves do emprestimo de cadeias semi6ticas destacadas e des-
viadas de sua voca~ao significacional ou de codifica~ao.
Aqui uma instancia expressiva se funda sobre uma rela<;ao
materia-forma, que extrai formas complexas a partir de uma
materia ca6tica.
Mas voltemos al6gica dos con juntos discursivos: e a do
Capital, do Significante, do Ser com urnS maiusculo. 0 Ca-
pital e 0 referente da equivalencia generalizada do trabalho
e dos bens; o Significante, o referente capitallstico das expres-
soes semiol6gicas, o grande redutor da polivocidade expres-
siva; eo Ser, o equivalente ontol6gico, o fruto da redw;;ao da
polivocidade ontol6gica. 0 verdadeiro, o born, o belo sao
categorias de "normatiza<;ao" dos processos que escapam a
16gica dos con juntos circunscritos. Sao referentes vazios, que
criam o vazio, que instauram a transcendencia nas rela<;6es
de representa<;ao. A escolha do Capital, do Significante, do
Ser, participa de uma mesma op~ao etico-politica. 0 Capital
esmaga sob sua bota todos os outros modos de valoriza<;ao.
0 Significante faz calar as virtualidades infinitas das llnguas
menores e das expressoes parciais. 0 Sere como urn aprisio-
namento que nos torna cegos e insensiveis a riqueza e a mul-
tivalencia dos Universos de valor que, entretanto, pro life ram
sob nossos olhos. Existe uma escolha etica em favor da riqueza
do possivel, uma etica e uma polltica do virtual que descor-
porifica, desterritorializa a contingencia, a causalidade linear,
o peso dos estados de coisas e das significa~6es que nos asse-
diam. Uma escolha da processualidade, da irreversibilidade
e da re-singulariza<;ao. Esse redesdobramento pode se ope-
rar em pequena escala, d: modo completamente cerceado, po-
bre, ate mesmo catastr6fico, na neurose. Pode tomar de em-
prestimo referencias religiosas reativas; pode se anular no al-
cool, na droga, na televisao, na cotidianeidade sem horizonte.
Mas pode tambem tomar de emprestimo outros procedimen-
tos, mais coletivos, mais sociais, mais polfticos ...
42 Caosmose
Para questionar as oposi<,:oes de tipo dualista ser/ente,
sujeito/objeto, os sistemas de valoriza<,:ao bipolar maniqueis-
tas, propus o conceito de intensidade ontol6gica, que implica
urn engajamento etico-estetico do agenciamento enunciativo,
tanto nos registros atuais quanta nos virtuais. Mas urn ou-
tro elemento da metamodeliza<,:ao que proponho aqui resi-
de no carater coletivo das multiplicidades maquinicas. Nao
existe totaliza<,:iio personol6gica dos diferentes componen-
tes de Expressao, totaliza<,:ao fechada em si mesma dos Uni-
versos de referencia, nem nas ciencias, nas artes e tampon-
co na sociedade. Ha aglomera<;iio de fatores heterogeneos
de subjetiva<,:iio. Os segmemos maqufnicos remetem a uma
mecanosfera destotalizada, desterritorializada, a urn jogo in-
finito de interface, segundo a expressiio de Pierre Levy.
Nao existe, insisto, urn Ser ja af, instalado atraves da
temporalidade. Esse questionamento de rela<;oes duais, bi-
narias, do tipo Ser/ente, consciente/inconsciente, implica o
questionamento do carater de linearidade semi6tica que pa-
rece sempre evidente. A expressiio patica niio se instaura
em uma rela<;ao de sucessividade discursiva, para colocar
o objeto sob o fundo de um referente bern circunscrito.
tamos aqui em um registro de coexistencia, de cristaliza<,:iio
de intensidade. 0 tempo niio existe como continente vazio
(concep<,:iio que permanece na base do pensamento einstei-
niano). As rela<;oes de temporaliza<;:iio sao essencialmente
de sincronia maquinica. Ha desdobramento de ordenadas
axiol6gicas, sem que haja constitui<,:iio de um referente ex-
terior a esse desdobramento. Estamos aqui aquem da rela-
<;iio de linearidade "extensionalizante" entre urn objeto e
sua media<,:ao representativa no interior de uma complei<,:ao
maqufnica abstrata.
Insisti, em terceiro Iugar, no carater incorporal e vir-
tual de uma parte essencial do "meio ambiente" dos agen-
ciamentos de enuncia<,:ao. Dir-se-ia que os universos de re-
Heterogenese 43
ferencia incorporais sao in voce, segundo uma terminolo-
gia "terminista", nominalista, tornando as entidades semi6-
ticas tributarias de uma pura subjetividade, ou que eles sao
in res, no quadro de uma concepc;ao realista do mundo,
sendo a subjetividade apenas um artefato ilus6rio? Talvez
seja necessario afirmar sincronicamente essas duas posic;oes,
instaurando-se o dominio das intensidades virtuais antes das
distint;:oes entre a maquina semi6tica, o objeto referido e o
sujeito enunciador.
Por nao se ter visto que os segmentos maquinicos cram
autopoieticos e ontogeneticos, procedeu-se ininterruptamen-
te a reduc;(>es universalistas quanto ao Significante e quan-
to a racionalidade cienrifica. As interfaces maqufnicas sao
heterogeneticas; elas interpelam a alteridade dos pontos de
vista que se pode ter sobre elas e, conseqiientemente, sobre
os sistemas de metamodelizat;ao que permitem considerar,
de um modo ou de outro, 0 carater fundamentalmente ina-
cessivel de seus focos autopoieticos. E preciso se afastar de
uma referencia unica as maquinas tecnol6gicas, ampliar 0
conceito de maquina, para posicionar essa adjacencia da ma-
quina aos Universos de referencia incorporais (maquina mu-
sical, maquina matematica ... ). As categorias de metamode-
liza<;:ao propostas aqui- os Fluxos, os Phylum maquinicos,
os Territ6rios existenciais, os Universos incorporais -
tern interesse porque estao em grupo de qumro e permitem
que nos afastemos das descrit;:oes tcrn:iri:1s que scmpre sao
rebatidas sobre um dualismo. 0 quarto tnnm vale por urn
enesimo termo, quer dizer, a abertura para a multiplicida-
de. 0 que distingue uma metamodeliza<;ao de 11111:1 modeli-
zat;ao e, aSSII11, 0 fatO de ela dispor de UI11 tl'rlllO organizador
das aberturas possiveis para o virtual e para :1 proccssua-
lidade criativa.
44 Caosmose
2. MAQUIKAS SEMIOTICAS E HETEROGENESE OU
A HETEROGEKESE MAQUINICA
Heterogencse 45
res de intensidade ontol6gica que nos permitem apreender
o maquinismo como urn todo em seus avatares tecnicos, so-
dais, semi6ticos, axiol6gicos. Isso implica reconstruir urn
conceito de maquina que se desenvolve muito alem da rna-
quina tecnica. Para cada tipo de maquina, colocaremos a
questao, nao de sua autonomia vital- nao e urn animal-
mas de seu poder singular de enunciac,;:ao: o que denomino
sua consistencia enunciativa espedfica.
0 primeiro tipo de maquina em que pensamos e 0 dos
dispositivos materiais. Sao fabricados pela mao do homem
ela mesma substituida por outras maquinas - e isso se-
gundo concepc,;:oes e planos que respondem a objetivos de pro-
dw;,:ao. Denomino essas diferentes etapas de esquemas dia-
gramaticos finalizados. Atraves dessa montagem e dessa fina-
lizac,;:ao, se coloca de safda a necessidade de ampliar a deli-
mitac,;:ao da rna quina stricto sensu ao conjunto funcional que
a associa ao homem atraves de multiplos componentes:
componentes materiais e energeticos;
componentes semi6ticos diagramaticos e algorftmi-
cos (planos, formulas, equac,;:oes, dJculos que participam da
fabricac,;:ao da maquina);
- componentes sociais, relativos a pesquisa, a forma-
c,;:ao, a organizac,;:ao do trabalho, a ergonomia, a circulac,;:ao
e a distribuic,;:iio de hens e servic,;:os produzidos ...
componentes de 6rgao, de influxo, de humor do
corpo humano;
- informac,;:oes e representac,;:oes mentais individuais e
coletivas;
investimentos de "maquinas desejantes" produzin-
do uma subjetividade adjacente a esses componentes;
- maquinas abstratas se instaurando transversalmen-
te aos niveis maquinicos materiais, cognitivos, afetivos, so-
dais, anteriormente considerados.
Quando falamos de maquinas abstratas, por "abstra-
4() Caosmose
to" podemos igualmente entender "extra to", no sentido de
extrair. Sao montagens suscetiveis de par em rela\=ao todos
os niveis heterogeneos que atravessam e que acabamos de
enumerar. A maquina abstrata lhes e transversal. E ela que
lhes clara ou nao uma existencia, uma eficiencia, uma po-
tencia de auto-afirma\=aO ontol6gica. Os diferentes compo-
nentes sao levados, remanejados por uma especie de dina-
mismo. Um tal conjunto funcional sera doravante qualifi-
cado de Agenciamento maqulnico. 0 termo Agenciamento
nao COmporta nenhuma 110\'aO de liga\=aO, de passagem, de
anastomose entre seus componentes. E um Agenciamento de
campo de possfveis, de virtuais tanto quanto de elementos
constitufdos sem no\=ao de rela\=ao generica ou de especie.
Dentro desse quadro, os utensllios, os instrumentos, as fer-
ramentas mais simples, as menores pe~as estruturadas de
uma maquinaria adquirirao o estatuto de protomaquina.
Tomemos um exemplo. Se desconstruirmos um marte-
lo, retirando-lhe seu cabo: e sempre um martelo, mas em es-
tado "mutilado". A "cabe~a" do martelo- outra metafo-
ra zoom6rfica- pode ser reduzida por fusao. Ela transpo-
ra entao um limiar de consistencia formal onde perdera sua
forma; esta gestalt maqufnica opera, alias, tanto em um pla-
no tecnol6gico quanto em um nlvel imaginario (quando se
evoca, por exemplo, a lembran\;:a obsoleta da foice e do mar-
telo ). Conseqiientemente, estamos apenas diante de uma
massa metalica devolvida ao alisamento, a desterritoria-
liza~ao, que precede sua entrada numa forma maquinica.
Para ultrapassar esse tipo de experiencia, similar aquela do
peda\o de cera cartesiano, tentemos, inversamente, associar
o martelo e o bra\=o, o prego e a bigorna. Eles mantem entre
si rela\;:6es de encadeamento sintagmaticas. Sua "dan<;a co-
letiva" podera mesmo ressuscitar a defunta corpora<;ao dos
ferreiros, a sinistra epoca das antigas minas de ferro, OS USOS
ancestrais das rodas de ferro ...
Heterogenese 47
Como enfatizou Leroi-Gourhan, o objeto tecnico nao e
nada fora do conjunto tecnico a que pertence. E acontece o
mesmo com as maquinas sofisticadas, tais como esses robos
que em breve serao engendrados por outros robos. 0 gesto
humano permanece adjacente a sua gesta~ao, a espera da fa-
lha que requeira sua interven~ao: esse residua de urn ato di-
reto. 11as tudo isso nao diz respeito a uma visao parcial, a
urn cerro gosto por uma epoca datada da fic~ao cientffica?
Ecuriosa observar que, para adquirir cada vez mais vida, as
maquinas exigem, em troca, no percurso de seus phylum e-
volutivos, cada vez mais vitalidade humana abstrata. Assim
a concep~ao por computador, os sistemas experts e a inteli-
gencia artificial dao, pelo menos, tanto a pensar quanta sub-
traem do pensamento o que constitui no fundo apenas es-
quemas inerciais. As formas de pensamento que trabalham
com computador sao de fa to mutantes, concernem a outras
music as, a outros Universos de referencia 15 .
Impossivel, entao, recusar ao pensamento humano sua
parte na essencia do maquinismo. Mas ate que ponto este
pode ainda ser qualificado de humano? 0 pensamento tec-
nico-ciemifico nao e da ordem de urn certo tipo de maqui-
nismo mental e semi6tico? Impoe-se aqui estabelecer uma
distin~ao entre as semiologias produtoras de significa~oes
moeda corrente dos grupos sociais - , como a enuncia~ao
"humana" de gente que trabalha em torno da rna quina, e,
por outro lado, as semi6ticas a-significantes, que, indepen-
dentemente da quantidade de significa~6es que veiculam,
manipulam figuras de expressao que se poderia qualificar de
"nao-humanas"; sao equa~6es e pianos que enunciam a rna-
quina e fazem-na agir de forma diagramatica sobre os dis-
48 Caosmose
positivos tecnicos e experimentais. As semiologias da signi-
fica<;:ao utilizam claves de oposi<;oes distintivas de ordem
nematica OU escritural que transcrevem OS enunciados em
materias de expressao significantes.
Os estruturalistas se regozijaram em erigir o Signifi-
cante como categoria unificadora de todas as economias
expressivas: a lingua, o fcone, o gesto, o urbanismo, o ci-
nema etc ... Postularam uma traduzibilidade geral signifi-
cante de todas as formas de discursividade. Mas, ao fazer
isso, nao ignoraram a dimensao essencial de uma autopoie-
se maqufnica? Essa emergencia continua de sentidos e de
efeitos nao diz respeito a redundancia da mimesis, mas a
uma produ<;ao de efeito de sentido singular, ainda que in-
definidamente reprodutfveL
Esse nucleo autopoietico da maquina eo que faz com
que ela escape a estrutura, diferenciando-a e dando-lhe seu
valor. A estrutura implica ciclos de retroa<;:oes, poe em jogo
urn conceito de totaliza<;ao que ela domina a partir de si
mesma. E habitada por inputs e outputs que tendem a
la funcionar segundo urn principia de eterno retorno. A es-
trutura e assombrada por urn desejo de eternidade. A rna-
quina, ao contrario, e atormentada por urn desejo de aboli-
<;ao. Sua emergencia eacompanhada pela pane, pela catas-
trofe, pela morte que a amea<;am. Ela possui uma dimensao
suplementar: a de uma alteridade que ela desenvolve sob di-
ferentes formas. Essa alteridade afasta-a da estrutura, orien-
tada por urn prindpio de homeomorfia. A diferen<;:a promo-
vida pela autopoiese maqufnica e fundada sobre 0 desequi-
lfbrio, a prospec<;ao de Universos virtuais longe do equili-
brio. E nao se trata apenas de uma ruptura de equillbrio
formal, mas de uma radical reconversao ontol6gica. A rna-
quina depende sempre de elementos exteriores para poder
cx:istir como tal. Implica uma complementaridade nao ape-
nas com o homem que a fabrica, a faz funcionar ou a des-
I krerogenese 49
tr6i, mas ela propria esta em uma rela~ao de alteridade com
outras maquinas, atuais ou virtuais, enuncia~ao "nao-hu-
mana", diagrama proto-subjetivo.
Essa reconversao ontol6gica rompe o alcance totalizante
do conceito de Significante. Pois nao sao as mesmas entida-
des significantes que operam as diversas muta~oes de referen-
te ontol6gico que nos fazem passar do Universo da qufmica
molecular ao da qufmica biol6gica, ou do mundo da acusti-
ca ao das musicas polifonicas e harmonicas. Certamente, as
linhas de decifra~ao significante, compostas por figuras dis-
cretas, binarizaveis, sintagmatizaveis e paradigmatizaveis, po-
dem coincidir de urn universo ao outro e dar a ilusao de que
uma mesma trama significante habita todos esses domfnios.
Mas o mesmo nao ocorre com a textura desses uriiversos de
referencia, que sao marcados, a cada vez, com o selo da sin-
gularidade. Da acustica a musica polifonica, as constela~oes
de intensidades expressivas divergem. Elas dizem respeito a
uma certa rela~ao patica, liberando consistencias ontol6gi-
cas irredutivelmente heterogeneas. Descobrem-se assim tan-
tos tipos de desterritorializa~ao quantos tra~os de materia de
expressao. A articula~ao significante que os sobrepuja- em
sua indiferente neutralidade- e inca paz de se impor como
rela~ao de imanencia com as intensidades maqufnicas- quer
dizer, com 0 que constitui 0 nucleo nao-discursivo e auto-
enunciador da maquina.
As diversas modalidades da autopoiese maqufnica es-
capam essencialmente a media~ao significante e nao se sub-
metem a nenhuma sintaxe geral dos procedimentos de des-
territorializa~ao. Nenhum par ser/ente, ser(nada, ser/outro,
podera ocupar o lugar de binary digit ontol6gico. As pro-
posi~oes maqufnicas escapam aos jogos comuns da discur-
sividade, as coordenadas estruturais de energia, de tempo e
de espa~o.
Entretanto, tampouco existe uma "transversalidade"
'd) Caosmose
ontol6gica. 0 que acontece em urn nfvel pan:icular-c6smi-
co nao deixa de estar relacionado ao que acontece com o
socius ou com a alma humana. Mas nao segundo harmoni-
cas universais de natureza platonica (0 Sofista). A compo-
si<;ao das intensidades desterritorializantes se encarna em
maquinas abstratas. E, preciso considerar que existe uma
essencia maqufnica que ira se encarnar em uma maquina
tecnica, mas igualmente no meio social, cognitive, ligado a
essa maquina -OS ConjuntOS SOCiais sao tambem maqui-
nas, 0 corpo e uma maquina, ha maquinas cientfficas,
ricas, informacionais. A maquina abstrata atravessa todos
esses componentes hetcrogeneos, mas sobrctudo cia os he-
terogenefza fora de qualquer tra<;o unificador e segundo urn
princfpio de irreversibilidadc, de singularidadc e de ncces-
sidade. A esse respeito, o significante lacaniano e fustigado
por uma dupla carencia: e abstrato dcmais, pelo fato de
traduzibilizar scm o menor esfor<;o as materias de exprcs-
sao heterogencas; clc perde a heterogenesc ontol6gica, uni-
formiza c sintaxiza gratuitamentc as divcrsas regioes do ser
e, ao mesmo tempo, nao e suficientemente abstrato porque
einca paz de dar conta da especificidadc dcsses nucleos ma-
quinicos autopoieticos aos quais e necessario voltar agora.
Francisco Varela caracteriza uma maquina como "o
conjunto das inter-rela<;oes de seus componentes indcpcn-
dcntemcnte de seus pr6prios componentcs" 16 • A organiza-
<;ao de uma maquina nao tern, pois, nada a vcr com a sua
materialidade. Ele distingue dois tipos de maquinas: as "alo-
poieticas", que produzem algo diferente dclas mesmas, e as
"autopoieticas", que engendram e cspecificam continuamen-
te sua propria organiza<,;ao c seus pr6prios limites. Estas
ultimas realizam um proccsso incessante de substitui<;ao de
seus componentcs porque estao submetidas a pcrturba<,;oes
16 Op. cit.
Heterogenese 51
extern as que devem constantemente compensar. De fa to, a
qualifica.:;:ao de autopoietica e reservada por Varela ao do-
minio biol6gico; dcla sao exdufdos os sistemas sociais, as
maquinas tecnicas, OS sistemas crista}inos etc.- talC 0 sen-
tido de sua distin.:;:ao entre alopoiese e autopoiese. Mas a au-
topoiese, que define unicamente entidades autonomas, in-
dividualizadas, unitarias e escapando as rela.:;:oes de input e
output, carece das caracteri'sticas essenciais aos organismos
vi~os, como o fato de que nascem, morrem e sobrevivem
atraves de phylum geneticos.
Parece-me, entretanto, que a autopoiese mereceria ser
repensada em fun.:;:ao de entidades evolutivas, coletivas e
que mantem diversos tipos de rcla.:;:6es de alteridade, ao in-
ves de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas.
Assim as institui.:;:6es como as maquinas tecnicas que, apa-
rentemente, derivam da alopoiese, consideradas no quadro
dos Agenciamentos maqufnicos que elas constituem com os
seres humanos, tornam-se autopoieticas ipso facto. Consi-
derar-se-a, entao, a autopoiese sob 0 angulo da ontogene-
se e da filogenese pr6prias a uma mecanosfera que se su-
perpoe a biosfera.
A evolu.:;:ao filogenetica do maquinismo se traduz, em
um primeiro nivel, pelo fato de que as maquinas se apre-
sentam por "gera.:;:6es"' recalcando urn as as outras, a me-
did a que se tornam obsoletas. A filia.:;:ao das gera.:;:oes pas-
sadas e prolongada para 0 futuro por linhas de virtualida-
de e por suas arvores de implica.:;:ao. Mas nao se trata af de
uma causalidade hist6rica unfvoca. As linhas evolutivas se
apresentam em rizomas; as data.:;:oes nao sao sincrtmicas mas
heterocronicas. Exemplo: a "decolagem" industrial das ma-
quinas a vapor que ocorreu seculos ap6s o imperio chines
te-las utilizado como brinquedo de criam,;a.
De fato, esses rizomas evolutivos atravcssam rm hlocos
as civiliza.:;:oes tecnicas. Uma muta.:;:ao tecnok)gica pode co-
S2 Caosmose
nhecer perfodos de longa estagnac;;ao ou de regressao, mas nao
ha exemplo de que ela nao "recomece" em uma epoca ulte-
rior. Isso e particularmente claro com as inovac;;6es tecnolo-
gicas militares que pontuam freqi.ientemente grandes seqi.ien-
cias historicas as quais atribuem uma marca de irreversibi-
lidade, fazendo desaparecer imperios em beneficio de novas
configurac;;6es geopoliticas. Mas, repito, isso ja era verdadeiro
quanto aos instrumentos, aos utensllios e as ferramentas as
mais modestas, que nao escapam a essa filogenese. Poder-se-
ia, por exemplo, consagrar uma exposic;;ao a evoluc;;ao do mar-
telo desde a idade da pedra e conjecturar sobre o que ele sera
forc;;ado a se rornar no contexto de novos materiais e de novas
tecnologias. 0 martelo que hoje se compra no supermercado
se acha, de algum modo, "destacado" de uma linha filoge-
netica de prolongamentos virtuais indefinidos.
E no cruzamento de universes maquinicos heteroge-
neos, de dimensoes diferentes, de textura ontologica estra-
nha, com inovac;;oes radicais, sinais de maquinismos ances-
trais outrora esquecidos e depois reativados, que se singu-
lariza o movimento da historia. A maquina neolitica assn-
cia, entre outros componentes, a maquina da lfngua falada,
as maquinas de pedra talhada, as maquinas agrarias fund a-
das na selec;;ao dos e uma proto-economia aldeL. A
maquina escritural so vera sua emergencia com 0 nascimento
das megamaquinas urbanas (Lewis Mumford), correlativas
a implanta<;ao dos imperios arcaicos. Paralelamente, gran-
des maquinas nomades se constituirao tendo como base 0
conluio entre a maquina metalurgica e novas maquinas de
guerra. Quanto as grandes maquinas capitalisticas, seus ma-
quinismos de base foram proliferantes: maquinas de
do urbano, depois real, maquinas comerciais, bandrias,
maquinas de navegac;;ao, maquinas religiosas monoteistas,
maquinas musicais e phisticas desterritorializadas, m;iqui-
nas cientificas e tecnicas etc ...
Heterogenese 53
A questao da reprodutibilidade da m:lquina em urn pla-
no ontogenetico e rna is complexa. A manuten<;;ao do estado
de funcionamento de uma maquina nunca ocorre sem falhas
durante seu periodo de vida presumido, sua identidade fun-
cional nunca e absolutamente garantida. 0 desgaste, a pre-
cariedade, as panes, a entropia, assim como seu funciona-
mento normal, lhe imp6em uma certa renova<;;ao de seus
componentes materials, energeticos e informacionais, esses
{dtimos podendo dissipar-se no "ruldo". Paralelamente, a
manuten<;;ao da consistencia do agenciamento maquinico
que seja tambem renovada a parte de gesto e de inte-
ligencia humana que entra em sua composi<;;ao.
A alteridade homem/maquina esra entao inextricavel-
mente ligada a uma alteridade maquina/maquina que ocorre
em rela<;;6es de complementaridade ou rela<;;6es agonicas (entre
maquinas de guerra) ou ainda em rela<;;oes de pe<;;as ou de
dispositivos. De fato, o desgaste, o acidente, a morte e a res-
surrei<;;ao de uma maquina em urn novo "exemplar" ou em
urn novo modelo fazem parte de seu destino e podem passar
ao primeiro plano de sua essencia em certas maquinas
cas (as "compressoes" de Cesar, as "metamed.nicas", as
quinas happening, as maquinas delirantes de Jean Tinguely).
A reprodutibilidade da maquina nao e entao uma pura
repeti<;;ao programada. Suas escansoes de ruptura e de indi-
ferencia<;;ao, que separam urn modelo de qualquer suporte,
introduzem sua parte de diferen<;;as tanto ontogeneticas quan-
ta filogeneticas. E durante essas fases de passagem ao esta-
do de diagrama, de maquina abstrata desencarnada, que OS
"suplementos de alma" do nucleo maquinico tem sua dife-
ren<;;a atestada em rela<;;ao a simples aglomerados materiais.
Urn amontoado de pedras nao e uma maquina, ~w passo que
uma parede ja e uma protomaquina esratic1, manifestando
polaridades virtuais, urn dentro e urn fora, um alto e urn bai-
xo, urn a direita e urn a esquerda ...
Caosmose
Essas virtualidades diagramaticas fazem-nos sair da ca-
racteriza<_;:ao da autopoiese maquinica por Varela em termos
de individua<_;:ao unitaria, sem input nem output, e nos le-
vam a enfatizar urn maquinismo mais coletivo, sem unidade
delimitada e cuja autonomia se adapta a diversos suportes
de alteridade. A reprodutibilidade da maquina tecnica, di-
ferentemente da dos seres vivos, nao repousa em seqiiencias
de codifica<_;:ao perfeitamente circunscritas em urn genoma
territorializado. Cada maquina tecnologica tern seus pianos
de concep<_;:ao e de montagem mas, por urn !ado, estes man-
tern sua disrancia em rela<_;:ao a ela e, por outro lado, sao re-
metidos de uma maquina a outra de modo a constituir urn
rizoma diagramatico que tende a cobrir globalmente a me-
canosfera. As rela<_;:oes das maquinas recnol6gicas entre si e
os ajustes de suas pe<_;:as respectivas pressupoem uma se-
rializa<_;:ao formal e uma certa diminui<;;ao de sua singulari-
dade mais forte do que a das maquinas vivas cor-
relativas a uma distancia tomada entre a maquina manifes-
tada nas coordenadas energetico-espacio-temporais e a rna-
quina diagramatica que se desenvolve em coordenadas mais
numerosas e mais desterritorializadas.
Essa distancia desterritorializanre e essa perda de sin-
gularidade devem ser relacionadas a urn alisamento comple-
to das materias constitutivas da maquina tecnica. Certamen-
te as asperezas singulares proprias a essas mathias nao po-
dem nunca ser completamente abolidas, mas elas so devem
interferir no "jogo" da maquina se af forem requisitadas por
seu funcionamento diagramatico. Examinemos, a partir de
urn dispositivo maqufnico aparentemente simples o par
formado por uma fechadura e sua chave - , esses dois as-
pectos de desvio maqufnico e de alisamento. Dois tipos de
forma, com texturas ontologicas heterogeneas, se encontram
aqui colocados em funcionamento:
formas materializadas, contingentes, concretas, dis-
lleterogenese 55
cretas, cuja singularidade esta encerrada nela mesma, encar-
nadas respectivamente no perfil pf da fechadura e no perfil
pc da chave. e pc nunca coincidem totalmente. Elas evo-
luem ao Iongo do tempo devido ao desgaste e a oxida<,;ao.
Mas ambas sao obrigadas a permanecer no quadro de urn
desvio padrao, para alem do qual a chave deixaria de ser
operacional;
formas "formais", diagramaticas, subsumidas por
esse desvio padrao, que se apresentam como urn continuum
incluindo toda a gama dos perfis F, pf compativeis com o
acionar efetivo da fechadura.
Logo se constata que o efeito, a passagem ao ato pos-
sivel, deve ser inteiramente assinalado do lado do segundo
tipo de forma. Embora se escalonando em urn desvio padrao
o mais restrito possfvel, essas formas diagramaticas se apre-
sentam em numero infinito. De faro, trata-se de uma inte-
gral das formas F, Ff.
Essa forma integral infinitaria duplica e alisa as formas
contingentes pf e pc, que so valem maquinicamente name-
dida em que elas lhes perten<,;am. Um ponto e assim estabe-
lecido "por cima" das formas concretas autorizadas. Eessa
opera<,;ao que qualifico de alisamento desterritorializado e
que concerne tanto anormaliza<,;ao das mathias constituti-
vas da maquina quanto a sua qualifica.,;ao "digital" e fun-
cional. Urn minerio de ferro que nao houvesse sido suficien-
temente laminado, desterritorializado, a presentaria rugosi-
dades de tritura.,;ao dos minerais de origem que falseariam
os perfis ideais da chave e da fechadura. 0 alisamento do
material deve retirar-lhe os aspectos de singula ridnde exces-
sivos e fazer com que ele se comporte de forma a mol dar fiel-
mente as impressoes formais que lhe sao extrlnsecas. Acres-
centemos que essa modelagem, nisso compnr;ivcl il fotogra-
fia, nao deve ser evanescente e deve conscrvar uma
consistencia propria suficiente. Af tambem sl· encontra urn
Caosmose
fenomeno de desvio padrao, pondo em jogo uma consisten-
cia diagramatica te6rica. Uma chave de chumbo ou de ouro
correria o risco de se entortar dentro de uma fechadura de
a<;o. Uma chave levada ao estado liquido ou ao estado ga-
soso perde logo sua eficiencia pragmatica e sai do campo da
maquina tecnica.
Esse fenomeno de fronteira formal sera encontrado em
todos os niveis das rela<;oes intramaquinas e das rela<;oes
intermaquinas, particularmente com a existencia de pe<;as
sobressalentes. Os componentes da maquina tecnica sao as-
sim como as pe<;as de uma moeda formal, o que e revelado
de modo ainda mais evidente desde sua concep<;ao e sua con-
fec<;ao auxiliadas por computador.
Essas formas maquinicas, esses alisamentos de materia,
de desvio padrao entre as pe<;as, de ajustes funcionais, ten-
deriam a fazer pensar que a forma prima sobre a consisten-
cia e sobre as singularidades materiais, parecendo a repro-
dutibilidade da maquina tecnol6gica impor que cada urn de
seus elementos se insira em uma defini<;ao preestabelecida
de ordem diagramatica.
Charles Sanders Pierce, que qualificava o diagrama de
"icone de rela<;ao" e que o assimilava a fun<;ao dos algorit-
mos, dele nos propos uma visao ampliada que convem ain-
da, na presente perspectiva, transformar. 0 diagrama, com
efeito, e concebido ai como uma maquina autopoietica, 0
que nao apenas lhe confere uma consistencia funcional e
uma consistencia material mas lhe impoe tambem o desdo-
bramento de seus diversos registros de alteridade, que o
fazem escapar a uma identidade restrita a simples rela<;oes
estruturais.
A proto-subjetividade da maquina se instaura em uni·
versos de virtualidade que ultrapassam sua territorial ithdt·
existencial em todos os sentidos. Assim, recus:11110 11o.-; :1
postular uma subjetividade intrinseca a Semiot·il.:l<..::to di:l);Ll
Heterogenese 57
matica, por exemplo, uma subjetividade "aninhada" nas ca-
deias significantes em razao do celebre princfpio lacaniano:
"urn significante representa o sujeito para urn outro signi-
ficante". Nao existe, para OS diversos registros de maqui-
na, uma subjetividade unfvoca a base de cisao, de £alta e de
sutura, mas modos ontologicamente heterogeneos de sub-
jetividade, constela<;;oes de universos de referencia incorpo-
rais que assumem uma posi<;;ao de enunciadores parciais em
dominios de alteridade multiplos, que seriam melhor deno-
minados dominios de alterifica<;;ao.
Ja encontramos alguns desses registros de alteridade
maquinica:
- a alteridade de proximidade entre maquinas diferen-
tes e entre pe<;;as da mesma maquina;
- a alteridade de consistencia material interna;
- a alteridade de consistencia formal diagramatica;
- a alteridade de phylum evolutivo;
- a alteridade agonica entre maquinas de guerra, em
cujo prolongamento poder-se-ia associar a alteridade "auto-
agonica" das maquinas desejantes que tendem a seu proprio
colapso, sua propria aboli<;;ao.
Uma outra forma de alteridade so foi abordada muito
indiretamente; poder-se-ia chama-la de alteridade de esca-
la, ou alteridade fractal, que estabelece urn jogo de corres-
pondencia sistemica entre maquinas de diferentes niveis 17 .
Entretanto, nao estamos preparando um quadro uni-
versal das formas de alteridade maqufnicas pois, na verda-
de, suas modalidades ontologicas sao infinitas. Elas se or-
58 Caosmose
ganizam par constela~oes de universos de referencia incor-
porais de combinat6rias e de criatividade ilimitadas.
As sociedades arcaicas estao melhor armadas do que
as subjerividades brancas, masculinas, capitalfsticas, para
cartografar essa multivalencia da alteridade. Remeto, a esse
respeito, ao estudo de ~1arc Auge sobre os registros hete-
rogeneos com os quais se relaciona o objeto fetiche legba
na sociedade africana dos Fon. 0 legba se instaura trans-
versalmente em:
- uma dimensao de destino;
- um universo princfpio vital;
- uma filia~ao ancestral;
- um deus materializado;
- um signo de apropriac;:ao;
uma entidade de individuac;:ao;
- um fetiche na entrada da aldeia, um outro no porti-
co da casa, ap6s a iniciac;:ao na entrada do quarto ...
0 legba e um punhado de areia, um receptacula, mas
e tambem a expressao da com outrem. Encontramo-
lo na porta, no mercado, na pra~a da aldeia, nas encni-
zilhadas. Pode transmitir as mensagens, as perguntas, as res-
postas. E tambem o instrumento da relac;:ao com os mortos
ou com os ancestrais. E ao mesmo tempo um indivfduo e
uma classe de individuos, um nome proprio e um nome co-
mum. "Sua existencia corresponde a evidencia do fa to de
que o social nao e somente da ordem da rela~ao mas da
ordem do ser". :.\1arc Auge 1 8 enfatiza a impossivel trans-
parencia e traduzibilidade dos simbolicos. "0 dis-
positivo legba (... ) se constr6i segundo dois eixos. Um,
to do exterior ao interior; 0 outro, da identidade a alteri-
dade". Assim o ser, a identidade e a rela~ao como outro sao
Heterogenese 59
construfdos, atraves da pratica fetichista, nao apenas de
modo simb6lico mas tambem de modo ontol6gico aberto.
Ainda mais do que a subjetividade das sociedades ar-
caicas, OS Agenciamentos maqufnicos contemporaneos nao
tern referente padrao unfvoco. Todavia estamos muito me-
nos habituados a irredutfvel heterogeneidade- e mesmo ao
carater de heterogenese- de seus componentes referenciais.
0 Capital, a Energia, a Informa<;ao, o Significante sao al-
gumas das categorias que nos fazem acreditar na homoge-
neidade ontol6gica dos referentes biol6gicos, etol6gicos, eco-
nomicos, fonol6gicos, escriturais, musicais etc ...
No contexto de uma modernidade reducionista, cabe-
nos redescobrir que a cada promo<;ao de urn cruzamento
maqufnico corresponde uma constela<;ao especffica de Uni-
versos de referencia a partir da qual uma enuncia<;ao par-
cial nao-humana se institui. As maquinas biol6gicas promo-
vern os universos do vivo que se diferenciam em devires ve-
getais, devires animais. As maquinas musicais se instauram
sabre universos sonoros constantemente remanejados des-
de a grande muta<;ao polifonica. As maquinas tecnicas se ins-
tituem no cruzamento dos componentes enunciativos os
mais complexos e os mais heterogeneos.
Heidegger 19 , que fazia do mundo da tecnica urn tipo de
destino malefico resultante de urn movimento de distancia-
mento do ser, tomava o exemplo de urn aviao comercial pou-
sado em uma pista: o objeto visfvel esconde "o que ele e e a
forma pela qual ele e". Ele s6 desvela seu "fundo a medida
que e designado para assegurar a possibilidade de urn trans-
porte" e, para esse fim, "e preciso que ele seja designavel,
quer dizer pronto para voar e que ele o seja em toda sua
constru<;ao". Essa interpela<;ao, essa "designa<;ao", que re-
Caosmose
vela o real como "fundo", e essencialmente operada pelo
homem e se traduz em termos de operac;:ao universal, des-
locar-se, voar. .. Mas esse "fundo" da maquina reside ver-
dadeiramente em urn "ja ai", sob a especie de verdades eter-
nas, reveladas ao ser do homem? De fato, a maquina fala
com a maquina antes de falar com 0 homem e OS dominios
ontol6gicos que ela revela e secreta sao, em cada caso, sin-
gulares e precarios.
Retomemos esse exemplo de urn aviao comercial, des-
sa vez nao mais de forma generica, mas atraves do modelo
tecnologicamente datado que foi batizado "o Concorde". A
consistencia ontol6gica desse objeto e essencialmente com-
p6sita; ela esta no cruzamento, no ponto de constelac;:ao e
de aglomerac;:ao patica de universos que tern, cada urn, sua
propria consistencia ontol6gica, seus trac;:os de intensidade,
suas ordenadas e coordenadas pr6prias, seus maquinismos
especificos. Concorde concerne ao mesmo tempo a:
-urn universo diagramatico com os planos de sua
"exeqiiibilidade" te6rica;
- universos tecnol6gicos que transpoem essa "exeqiii-
bilidade" em termos de materiais;
- universos industriais capazes de produzi-lo efetiva-
mente;
- universos imaginarios coletivos correspondendo a
urn desejo suficiente de fazer com que ele exista;
- universos politicos e economicos que permitem, en-
tre OUtros, liberar OS creditos para SUa execuc;:ao.
Mas o conjunto dessas causas finais, materiais, formais
e eficientes, no final das contas, nao da conta do recado! 0
objeto Concorde circula efetivamente entre Paris e Nova
Torque, mas permanece colada ao solo economico. Essa falta
de consistencia de urn de seus componentes fragilizou deci-
sivamente sua consistencia ontol6gica global. 0 Concorde
s6 existe no limite de uma reprodutibilidade de doze exem-
I kterogenese 61
plares e na raiz do phylum possibilista dos supersonicos por
vir. 0 que ja nao e negligenciavel!
Por que insistimos tanto na impossibilidade de fundar
uma traduzibilidade geral dos diversos componentes de re-
ferencia e de enuncia~ao parcial de agenciamento? Por que
essa falta de reverencia acerca da concep~ao lacaniana do
significante? E que precisamente essa teoriza~ao oriunda do
estruturalismo lingiiistico nao nos faz sair da estrutura e nos
impede de entrar no mundo real da maquina. 0 significan-
te estruturalista e sempre sinonimo de discursividade linear.
De urn simbolo a outro, o efeito subjetivo advem sem outra
garantia ontologica. Contrariamente, as maquinas hetero-
geneas, tais como as considera nossa perspectiva esquizoa-
nalitica, nao fornecem urn ser padrao, ao sabor de uma tem-
poraliza<;:ao universal. Para esclarecer esse ponto, dever-se-
ao estabelecer distin~oes entre as diferentes formas de linea-
ridade semiologica, semi6tica e de encodiza<;:ao:
as codifica<;:oes do mundo "natural", que operam em
varias dimensoes espaciais (por exemplo, as da cristalogra-
fia) e que nao implicam a extra4;iio de operadores de codifi-
ca~ao autonomizados;
- a linearidade relativa das codifica~oes biologicas, por
exemplo a dupla helice do DNA, que, a partir de quatro ra-
dicais quimicos de base, se desenvolve igualmente em tres
dimensoes;
- a linearidade das semiologias pre-significantes que
se desenvolve em linhas paralelas relativamente autonomas,
mesmo seas cadeias fonologicas da lingua falada parecem
sempre sobrecodificar todas as outras;
a linearidade semiologica do significantc estrutural
que se impoe de modo despotico a todos os outros modos
de semiotizac;:ao, que os expropria e tende mcsmo a faze-los
desaparecer no quadro de uma economia comunicacional
dominada pela informatica (precisemos: ;l informatica em
Caosmose
seu estagio atual, pois esse estado de coisas nao e absoluta-
mente definitivo);
- a sobrelinearidade de substancias de expressao a-sig-
nificantes, onde o significante perde seu despotismo, paden-
do as linhas informacionais recuperar urn determinado pa-
ralelismo e trabalhar em contato direto com universos refe-
rentes que nao sao absolutamente lineares e que tendem a es-
capar, alem disso, a uma 16gica de conjuntos espacializados.
Os signos das maquinas semi6ticas a-significantes sao,
por urn lado, "pontos-signos", de ordem semi6tica; por outro
lado, intervem diretamente em uma serie de processos ma-
quinicos materiais. (Exemplo: o numero do cartao de credi-
to que opera o funcionamento do distribuidor de notas).
As figuras semi6ticas a-significantes nao secretam ape-
nas significa<;oes. Elas proferem or dens de movimento e pa-
rada e, sobretudo, acionam a "passagem ao ser" de univer-
sos ontol6gicos. Consideremos, agora, o exemplo do ritor-
nelo musical pentatonico que, ao fim de algumas notas, ca-
talisa a constela<;ao debussiana de multiplos universos:
- o universo wagneriano em torno de Parsifal, que se
liga ao territ6rio existencial constituido por Bayreuth;
- o universo do canto gregoriano;
- 0 da musica francesa com a revaloriza<;ao atual de
Rameau e Couperin;
- o de Chopin em razao de uma transposi<;ao nacio-
nalista (Ravel tendo por sua vez se apropriado de Liszt);
- a musica javanesa, que Debussy descobriu na Expo-
si<;ao Universal de 1889;
- o mundo de Manet e de Mallarme que se liga a es-
tada do musico na Vila Medicis.
E a essas influencias presentes e passadas conviria acres-
centar as ressonancias prospectivas que constituem a rein-
ven<;ao da polifonia desde a Ars Nova, suas repercussoes no
phylum musical frances de Ravel, Duparc, Messiaen etc., na
1-leterogenese 63
muta<;;ao sonora acionada por Stravinsky, sua presen<;;a na
obra de Proust. ..
Ve-se bern assim que nao existe nenhuma correspon-
dencia bi-univoca entre elos lineares significanres ou de
arquiescritura, segundo os autores, e essa catalise maqufnica,
multidimensional, multirreferencial. A simetria de escala, a
rransversalidade, 0 carater patico nao-discursivo de sua ex-
pansao: todas essas dimensoes nos fazem sair da l6gica do
terceiro exduido enos incentivam a renunciar ao binarismo
ontol6gico que havfamos anteriormente denunciado. Urn
Agenciamento maqufnico, atraves de seus diversos compo-
nentes, extrai sua consistencia ultrapassando fronteiras on-
tol6gicas, fronteiras de irreversibilidade nao-lineares, fron-
teiras ontogeneticas e filogeneticas, fronteiras de heteroge-
nese e de autopoiese criativas.
E a noc;;ao de escala que conviria aqui ampliar, a fim
de pensar as simetrias fractais em termos ontol6gicos. 0 que
atravessa as maquinas fractais sao escalas substanciais. Elas
as atravessam, engendrando-as. Mas- e preciso admiti-lo
essas ordenadas existenciais que elas "inventam" ja
tiam desde sempre. Como sustentar urn tal paradoxo? Eque
tudo se rorna possfvel, incluindo o alisamento recessivo do
tempo evocado por Rene Thon, desde que se admita uma
escapada do Agenciamento para fora das coordenadas ener-
getico-espacio-temporais. E ainda af cabe-nos redescobrir
uma forma de ser do ser, antes, depois, aqui e em toda par-
te, sem ser entretanto identico a si mesmo; urn ser proces-
sual, polif6nico, singularizavel, de texturas infinitamente
complexificaveis, ao sabor das velocidades infinitas que ani-
mam suas composic;;oes virtuais.
A relatividade ontol6gica aqui preconizada c insepara.-
vel de uma relatividade enunciativa. 0 conhecimento de um
universo no sentido astroflsico ou no scntido axiol6gico
s6 e possivel atraves da media<;;ao de m<1quinas auto-
64 Caosmose
poieticas. Convem que urn foco de pertencimento a si exis-
ta em alguma parte para que qualquer ente ou qualquer mo-
dalidade de ser possa vir a existencia cognitiva. Fora desse
acoplamento maquina-universo, OS entes SO tern urn puro es-
tatuto de entidade virtual. E acontece o mesmo com as suas
coordenadas enunciativas.
A biosfera e a mecanosfera, fixadas sobre este plane-
ta, focalizam urn ponto de vista de espac;;o, de tempo e de
energia. Formam urn angulo de constituic;;ao da nossa gala-
xia. Fora desse ponto de vista particularizado, o resto do uni-
verso s6 existe- no sentido em que apreendemos aqui em-
baixo a existencia - atraves da virtualidade da existencia
de outras maquinas autopoieticas no seio de outras bio-
mecanosferas salpicadas no cosmos. A relatividade dos pon-
tos de vista de espac;;o, de tempo, de energia nem por isso
faz com que oreal se dissipe no sonho. A categoria de tem-
po se dissolve nas considerac;;oes cosmol6gicas sobre o Big-
Bang, ao passo que se afirma a de irreversibilidade. A obje-
tividade residual e aquilo que resiste a varredura da infini-
ta variabilidade dos pontos de vista constitufveis sobre ela.
Imaginemos uma entidade autopoietica cujas partfculas
seriam edificadas a partir das galaxias. Ou, inversamente,
uma cognitividade se constituindo na escala dos quarks. Ou-
tro panorama, outra consistencia ontol6gica. A mecanosfera
antecipa e atualiza configurac;;oes que existem dentre uma
infinidade de outras nos campos de virtualidade. As maqui-
nas existenciais estao em pe de igualdade com o ser na sua
multiplicidade intrfnseca. Elas nao sao mediatizadas por sig-
nificantes transcendentes nem subsumidas por urn fundamen-
to ontol6gico unfvoco. Sao para si mesmo sua propria ma-
teria de expressao semi6tica. A existencia, enquanto processo
de desterritorializac;;ao, e uma operac;;ao intermaqufnica espc-
dfica que se superpoe a promoc;;ao de intensidades existcn-
ciais singularizadas. E, repito, nao existe sintaxe gcncralir.ad;J
Heterogenese 65
dessas desterritorializac;;oes. A existencia nao e diah~tica, nao
e representavel. Mal se consegue vive-la!
As maquinas desejantes, que rompem com OS grandes
equilfbrios organicos interpessoais e sociais e invertem os
comandos, jogam o jogo do outro contrariamente a uma po-
litica de autocentramento no eu. Por exemplo, as pulsoes
parciais e os investimentos perversos polimorfos da psica-
milise nao constituem uma ra<;;a excepcional e desviante de
maquinas.
Todos os Agenciamentos maqufnicos contem, mesmo
em estado embrionario, focos enunciativos que sao proto-
maquinas desejantes. Para delimitar esse ponto, e preciso
ampliar ainda nossa ponte transmaqufnica e compreender
o alisamento da textura ontol6gica do material maquinico
e os feedbacks diagramaticos como dimensoes de intensifi-
ca<;;ao que nos fazem ultrapassar as causalidades lineares da
apreensao capitalistica dos universos maquinicos. E preci-
so igualmente que saiamos das 16gicas fundadas no prind-
pio do terceiro exclufdo e de razao suficiente. Atraves
se alisamento esta em jogo urn ser para alem, um ser-para-
o-outro, que faz com que um existente tome consistencia
fora da sua delimitac;;ao estrita, aqui e agora.
A maquina e sempre sinonimo de urn foco constituti-
vo de territ6rio existencial baseado em uma constela<;;ao de
universes de referenda incorporais. 0 "mecanismo" dessa
revirada de ser consiste no fa to de que certos segmentos dis-
cursivos da maquina se poem a jogar um jogo nao mais
apenas funcional ou significacional, mas assumem uma fun-
c;;ao existencializante de pura repetic;;ao intensiva, a que de-
nominei func;;ao de ritornelo. 0 alisamento e como urn ri-
tornelo ontol6gico e assim, ao inves de apreendcr uma ver-
dade univoca do Ser atraves da techne, como queria a on-
tologia heideggeriana, e uma pluralidadc de sercs como ma-
quinas que sc dao a n6s, desde que se mlquiram os meios
66 Caosmose
paticos e cartograficos de aceder a eles. As manifesta<;oes,
nao do Ser, mas de uma infinidade de componentes ontol6-
gicos, sao da ordem da maquina. E isso, sem media<;ao se-
miol6gica, sem codifica<;ao transcendente, diretamente como
"dar-a-ser", como Dando. Aceder a urn tal dar ja e partici-
par dele ontologicamente de pleno direito. Esse termo "de
direito" nao aparece aqui por acaso, tanto e verdade que,
nesse nivel proto-ontol6gico, ja e necessaria afirmar uma
dimensao proto-etica. 0 jogo de intensidade da constela<;ao
ontol6gica e de alguma forma uma escolha de ser nao ape-
nas para si, mas para toda a alteridade do cosmos e para o
infinito dos tempos.
Se deve haver escolha e liberdade em certas etapas an-
tropol6gicas "superiores"' e porque deveremos tambem en-
contra -las nos niveis mais elementares das concatena<;oes
maquinicas. Mas as no<;oes de elementos e de complexida-
de sao suscetiveis aqui de se inverterem brutalmente. 0 mais
diferenciado e o mais indiferenciado coexistem no seio de urn
mesmo caos que, com velocidade infinita, joga seus registros
virtuais uns contra os outros e uns com os outros. 0 mun-
do maqufnico-tecnico, em cujo "terminal" se constitui a
humanidade de hoje, e barricado por horizontes de constan-
cia e de limita<;ao das velocidades infinitas do caos. (Veloci-
dade da luz, horizonte cosmol6gico do Big-Bang, distancia
de Planck e quantum elementar de a<;ao da fisica quantica,
impossibilidade de ultrapassar o zero absoluto ... ) Mas esse
mesmo mundo de coa<;ao semi6tica e duplicado, triplicado,
infinitizado por outros mundos que, em certas condi<;oes, s6
exigem a bifurca<;ao para fora de seu universo de virtuali-
dade e o engendramento de novos campos de possivel.
As maquinas de desejo, as maquinas de cria<;ao cstcti-
ca, pela mesma razao que as maquinas cientfficas, rcmanc-
jam constantemente nossas fronteiras c6smicas. Por cssa ra-
zao, elas devem tomar urn lugar eminentc 110 interior dos
Heterogenese 67
Agenciamentos de subjetiva<;ao, eles mesmos chamados a
substituir nossas velhas maquinas sociais, incapazes de se-
guir a eflorescencia de revolu<;oes maquinicas que fazem ex-
plodir nosso tempo por todos os lados.
Mais do que adotar uma atitude de frieza em rela<;ao a
imensa revolu<;ao maquinica que varre o planeta (como ris-
co de acabar com ele) ou de aferrar-se aos sistemas de va-
lor tradicionais cuja transcendencia pretender-se-a refundar,
o movimento do progresso, ou se preferirmos, o movimen-
to do processo, se esfor<;ara para reconciliar os valores e as
maquinas. Os valores sao imanentes as maquinas. A vida dos
Fluxos maquinicos nao se manifesta somente atraves das re-
troa<;oes ciberneticas; e tambem correlativa a uma promo-
<;ao de Universos incorporais a partir de uma encarna<;ao
Territorial enunciativa, de uma tomada de ser valorizadora.
A autopoiese maqufnica se afirma como um para-si
nao-humano atraves de focos de proto-subjetiva<;ao parcial
e desdobra um para-outrem sob a dupla modalidade de uma
alteridade ecossistemica "horizontal" (os sistemas maquf-
nicos se posicionando como rizoma de dependencia recfpro-
ca) e de uma alteridade filogenetica (situando cada estase
maqufnica atual de encontro a uma filia<;ao passadificada e
de um Phylum de muta<;oes por vir). Todos os sistemas de
valor- religiosos, esteticos, cientificos, ecos6ficos ... - se
instauram nessa interface maqufnica entre o atual necessa-
ria eo virtual possibilista. Os Universos de valor constituem
assim os enunciadores incorporais de complei<;oes maquf-
nicas abstratas compossiveis as realidades discursivas. A
consistencia desses focos de proto-subjetiva'.;'ao, portanto,
s6 e assegurada na medida em que eles sc cncarnem, com
mais ou menos intensidade, em nos de finitude, de grasping
ca6smico, que garantam, alem dis so, sua t-ccl rga possfvel de
complexidade processual. Dupla enuncia<.,-:"1o, cntao, terri-
torializada finita e incorporal infinita.
Caosmose
Entretanto, essas constela<;:6es de Universos de valor
nao constituem Universais. 0 fato de se formar em Territ6-
rios existenciais singulares lhes confere, com efeito, uma po-
tencia de heterogenese, quer dizer, de abertura para proces-
sos irreversfveis de diferencia<;:ao necessarios e singularizan-
tes. Como essa heterogenese maqufnica - que diferencia
cada cor de ser, que faz, por exemplo, do plano de consis-
tencia do conceito filos6fico urn mundo completamente di-
ferente do plano de referencia da fun<;:ao cientffica ou do
plano de composi<;:ao estetica- chega a ser rebatida sobre
a homogenese capitalfstica do equivaler generalizado, fazen-
do com que todos os valores sejam equivalentes, todos os
Territ6rios apropriativos sejam referidos segundo uma mes-
ma escala economica de poder, e que todas as riquezas exis-
tenciais caiam sob o jugo do valor de troca?
A oposi<;:ao esteril entre valor de uso e valor de troca,
convem opor uma complei<;:ao axiol6gica incluindo todas
as modalidades maqufnicas de valoriza<;:ao: os valores de
desejo, OS valores esteticos, ecologicos, economicos ... 0
valor capitalfstico, que subsume geralrnente o conjunto des-
sas mais-valias maqufnicas, procede por urn poder de coa-
<;:ao reterritorializante, fundado no primado das semi6ticas
economicas e monetarias e corresponde a urn tipo de im-
plosao geral de todas as Territorialidades existenciais. De
fato, 0 valor capitalfstico nao esta a parte, fora dos outros
sistemas de valoriza<;:ao; ele constitui o cora<;:ao mortffero
de tais sistemas, correspondendo a transposi<;:ao do inefa-
vel limite entre uma desterritorializa<;:ao ca6smica contro-
lada - sob a egide de praticas sociais, esteticas, analiticas
- e uma oscila<;:ao vertiginosa no buraco negro do aleat6-
rio, a saber de uma referencia paroxisticamente binarist;l,
que dissolve implacavelmente qualquer tomada de consis
tencia dos Universos de valor que pretendessem l'Sl';l p;t r .1
lei capitalfstica.
Heterogenese l1
1
)
Entao, apenas abusivamente e que foi passive! colocar
as determina<;:6es economicas em posi<;;ao princept acerca das
rela<;:oes sociais e das produ<;:oes de subjetividade. A lei eco-
nomica, assim como a lei juridica, deve ser deduzida do con-
junto dos Universos de valor, para cujo enfraquecimento ela
nao cessa de trabalhar. Sua reconstru<;;ao, sobre os escom-
bros misturados das economias planificadas e do neo-libe-
ralismo e segundo novas finalidades etico-politicas (ceo-
sofia), exige, em contrapartida, urna incansavel retomada de
consistencia dos Agenciamentos maquinicos de valorizac,:ao.
Caosmose
3. METAMODELIZAC::AO ESQUIZOANALfTICA
I lcterogenese 71
velocidade infinita, a partir do qual se constituem as compo-
si<;6es complexas, as quais sao elas mesmas suscetiveis de ter
suas velocidades reduzidas em coordenadas energetico-espa-
cio-temporais ou em sistemas categoriais.
A problematica anteriormente evocada da fun<;ao exis-
tencializante que poderiam assumir certos sistemas de mo-
deliza<;ao, certas cadeias discursivas (enunciados mfticos,
enunciados cientificos, enunciados ideol6gicos, ritornelos,
tra<;os de rostidade) desviadas, de algum modo, de sua fun-
t;ao significacional, denotacional e proposicional, nos leva
a urn reexame dos problemas do significado ou do Conteu-
do, da imagem, tudo o que havia sido relativamente colo-
cado entre parenteses na perspectiva esrruturalista.
Essa fun<;ao existencial que pode se encarnar segundo
ritornelos muito concretos, como o fa to de roer as unhas ou
o ritual obsessivo de lavar as maos, constitui uma cbave exis-
tencial para conjurar a dispersao dos Universos de referen-
cia do sujeito. Urn ritornelo territorializado funciona como
urn canto de passaro, no dominio etol6gico, que concorre
para a delimita<;ao de urn territ6rio. A unica diferent;a e que
0 territ6rio, aqui, nao e visfvel, nao e espacializado, mas e
da ordem do eu.
Existem igualmente ritornelos complexos, ritornelos
problematicos que nao se encarnariam necessariamente em
uma discursividade articulada no espat;o e no tempo. Uma
problematica religiosa como ada Trindade co_nstitui urn ri-
tornelo complexo que pode se indexar pelo signo da cruz,
mas que e tambem portador de toda uma concep<;ao da sub-
jetividade, de toda uma triangulat;ao personol6gica. Do mes-
mo modo, OS conceitos e OS fantasmas relativos a Juta de
classes funcionaram ao mesmo tempo em um campo de sig-
nifica<;6es ideol6gicas e a titulo de constcla..;ao de Univer-
ses de referencia e de Territ6rios existenci;l is.
Temos entao que lidar nao somente com a discursivi-
72 Caosmose
dade fonol6gica, gestual, espacial, musical etc., que da urn
suporte a constitui<;ao de urn Territ6rio existencial, mas so-
mos igualmente confrontados com consistencias de conteu-
do nao-discursivas, as quais sao referidas a essas mesmas
semiologias discursivas.
A perspectiva estruturalista sempre teve tendencia are-
bater os conteudos dos elementos significativos sobre os ele-
mentos estruturais, quer dizer, sobre cadeias de discursivida-
de. 0 que proponho aqui e urn afastamento dessas coorde-
nadas de discursividade a fim de tirar todas as conseqiiencias
dos modos de apreensao paticos nao-discursivos que pude-
ram ser demarcados pelos psic6logos da forma, pelos feno-
men6logos do afeto, pelos psicanalistas da imagem ...
A problematica que se acha en tao levantada ea de uma
mudan<;a de tipo de rela<;ao 16gica. 0 ritornelo existencial
desencadeia urn efeito nao-discursivo, uma apreensao on-
tol6gica que nao depende mais de uma 16gica onde os con-
juntos sao qualificados de modo unfvoco. A entidade inten-
siva e multfvoca, diferentemente dos conjuntos discursivos
coletados, de modo que se possa sempre saber, sem ambi-
gi.iidade, se urn de seus elementos bem-determinados faz
parte dela ou nao. Existe, ao contrario, urn tipo de "trans-
versalismo" da intensidade, caracterizado por sua afirma-
<;ao em diferentes escalas e urn "autopoietismo" que fazem
com que a entidade maqufnica escape a 16gica em que os
conjuntos discursivos permanecem sempre enquadrados em
coordenadas transcendentes.
Voltemos ao tratamento da discursividade na concep-
<;ao lacaniana do Significante. 0 Significante lacaniano nao
e assimilado pura e simplesmente a linearidade significantc
de tipo saussureana. Mas, quanto a isso, Lacan mantcm fun-
damentalmente uma leitura onde urn topos rcmctc a tllll ou-
tro topos, a uma alteridade de topos. Perdc--sc ('lll:to esse
carater de passagem transversalista entre OS lopos, dl' ;1glo-
Heterogenese 73
mera~.;ao entre os topos, que caracteriza a entidade intensi-
va. 0 exemplo mais simples que nos vern a mente e relativo
areleitura por Lacan da rela~.;ao fort-da, do jogo infantil es-
tudado por Freud. 0 fort-da e articulado como matriz de
uma rela<.;ao simbolica Sl/S2, entre dois significantes 20 . Ora,
0 que importa, em uma outra perspectiva imanentista, enao
2
°
Cf. S. Freud, Au dela du principe du plaisir e J. Ecrits, Le
Seuil,Paris, 1966,pp. 276 e 319.
21 Mikel Borch-Jacobsen, em Lacan, le maitre absolu (Flammarion,
Paris, 1990), mosu·a bern o carater de espacialidade crismlizada, de visi-
bi!idade exterior ao olho, de espw;amento do "diantc de si", na maneira
qual Lacan descreve a subjetividade (pp. (, 1-'>.l ).
74 Caosrnose
0 esfacelamento da rela<;;ao oposicional entre o Con-
teudo e a Expressao corresponde, entao, a uma reabilita<;;ao
do Conteudo em rela<;;ao as figuras de Expressao binaristas
de tipo fonol6gico. Os Universos de referencia e os Territ6-
rios existenciais se enunciam sem media<;;ao. Na l6gica dos
conjuntos, havia distin<;;ao entre a media<;;ao por uma subs-
tancia de Expressao e uma substancia de Conteudo. 0 lin-
guista que mais aprofundou o questionamento dessa oposi-
<;;iio Significante/Significado foi Hjelmslev, ao formular o pa-
radoxo de uma reversibilidade entre a forma de Expressao
e a forma de Conteudo. 0 que proponho aqui nao e mais
uma simples reversibilidade de forma como a de Hjelmslev,
mas proponho ir alt~m, considerando que as substancias de
Expressao e as substancias de Conteudo entram em rela<;;oes
de aglomera<;;ao, em urn tipo de concatena<;;ao que e bern di-
ferente do que o da dupla articula<;;iio, definida por Martinet
e retomada por diversos linguistas. Poder-se-ia entao falar
de uma multipla aglomera<;;iio, de urn agenciamento hetero-
geneo, sendo o termo articula<;;iio questionado atraves doter-
mo interface maqufnica.
Aglomera<;;ao de componentes heterogeneos de
pressao e de Conteudo: o que atravessa os diferentes com-
ponentes semi6ticos nao e mais uma articula<;;ao formal,
mas maquinas abstratas que se manifestam ontologicamen-
te em registros heterogeneos e nao-discursivos. A questao
que e colocada atraves dessa concep<;;ao polifonica dos
componentes, tanto de Expressao quanto de Conteudo, ou
dos ritornelos de Expressao e dos ritornelos complexos de
Conteudo, e que na verdade eles nao estao todos no mes-
mo gra u de "tomada pragmatica" no registro dos sistemas
de valor. Por exemplo, na semi6tica a-significante, sao fi-
guras de Expressao que se concatenam diretamente com o
referente, e "tomam o poder" sobre o conjunto dos outros
componentes semi6ticos; ao passo que, na semiologia lin-
Heterogenese 75
guistica, sao, ao contrario, redundancias de contetido que
reenquadrar o conjunto dos componentes de expres-
sao, quer sejam fonol6gicos, gestuais, pros6dicos... en-
tao urn tipo de hierarquia interna, ou antes de tensao va-
lorizante, entre os componentes. importante, para uma
pragmatica esquizoanalftica, determinar que tipo de com-
ponente se afirma sobre os outros. Que tipo de componen-
te, por exemplo, no Agenciamento capitallstico, domina de
modo hegernonico. Por que, por exemplo, uma maquina se-
rni6tica de Capital se irnpora aos outros componentes de
Expressao arquiteturais, urbanisticos, demognificos, ar-
tisticos, pedag6gicos, etc. Ou por que, na histeria, urn corn-
ponente semantico como 0 da corporeidade expropria OS
outros componentes, por que havera "somatizac;ao". Essa
tomada de poder de um componeme nao e irreversfvel; re-
manejarnentos podern ser operados; assiste-se sem cessar ao
questionamento do componente dominante, que polariza o
conjunto dos componentes semi6ticos em sua constelac;ao
ontol6gica.
Durante o sono, e um certo tipo de componente "nar-
cisico" que domina: um tipo de autisrno psicol6gico invade
a psique e faz passar ao segundo plano os componemes per-
ceptivos para recalcar qualquer imrusao que pudesse amea-
c;ar o sono. Ao dirigir urn carro, euma certa submissao ma-
qufnica que passa ao primeiro plano.
0 interesse dessa abordagem mulricomponencial dos
Agenciamentos de semiotizat,;ao reside no fato de permitir sua
abertura para as diferentes configur;H,;f)cs praglll:iticas poten-
ciais e de impedir que se prenda sohre t·ss:L~ () mesmo siste-
ma interpretativo, o mesmo invariantt· tk ligur:ls de Expres-
sao 0 que conseqiientemente torna !otalllH'Illl' ohscura e
misteriosa a articulac;ao entre o Con!rt.ido c a Lx prcssao.
Chega-se assim a substituir os si.-,tl'lll:ls scllliol6gicos e
semi6ticos do estruturalismo por umn "nLHp1111ica" que en-
76 Caosmose
globa as problematicas nao apenas da Expressao e do Con-
teudo, mas tambem as das estruturas sociais, esteticas,
cientificas etc ... Para alem desses aspectos de discursividade
maqufnica, convem igualmente evocar 0 outro funtor da
enuncia<;;ao que os Universos de referencia constituem. Eles
se organizam em constela<;;oes singulares, cristalizando um
acontecimento, uma hecceidade, que sera 0 suporte onto-
16gico da discursividade maquinica.
Um Universo de referencia e um enunciador que pode
ser descrito como uma potencia divina, como uma ideia pia-
tonica, pelo faro de por em jogo um sistema de valoriza<;;ao.
Com ele ha polariza<;;ao da subjetividade, polariza<;;ao ma-
quinica, cristaliza<;;ao de uma op~,;ao pragmatica. A textura
de urn tal Universo de subjetiva<;;ao e hipercomplexa, ja que
pode categorizar componentes ontol6gicos como os das ma-
tematicas, das artes plasticas, da musica, das problematicas
politicas ...
Entretanto esses Universos nao sao discursivos neles
mesmos. Instauram-se na raiz enunciativa da discursivida-
de. 0 conceito de afeto ou o de rela<;;ao patica indica a pos-
sibilidade de apreender globalmente uma situa<;;ao relacional
complexa, tal como a melancolia, ou a rela<;ao com a sub-
jetividade esquizofrenica. Mas temos a tendencia de pensar
que esse modo de conhecimento por afeto nao-discursivo
permanece rude, primitivo, espontanefsta. Essa abordagem
nao discursiva e igualmente a da hipercomplexidade, tal
como e estudada atualmente em diversos domfnios cientifi-
cos. Ela implica que exista uma via de passagem entre a com-
plexidade real e a complexidade virtual e transferencias de
consistencia ontol6gica entre o virtual e o real, entre o pos-
sfvel e o atual.
Seria necessario repensar aqui uma certa teoriza<;;ao do
caos. Na concep-;ao frcudiana do id, ha a ideia de uma re-
la<;;ao entr6pica da libido como caos e de uma amea<;:a, de
Heterogenese
uma dissocia~ao generalizada, desde que se saia das confi-
gura~oes cristalizadas em torno do eu e das significa~oes
bem-constitufdas. Em nossa perspectiva serfamos levados a
fazer incidir sobre configura~oes elementares uma hipercom-
plexidade catalftica, de um ponto de vista existencial e on-
tol6gico. 0 caos, ao inves de ser um fator de dissolw;;ao
absoluta da complexidade, torna-se o portador virtual de
uma complexifica~ao infinita.
Se voces considerarem o sistema ca6tico, tal como resul-
ta da analise dos resultados de uma triagem aleat6ria do jogo
dos dados, verao surgir configura~oes complexas as mais di-
versas: voces tern sempre a possibilidade de ver aparecer as
figuras as mais raras. A raridade informacion a! habita entao
o caos, do mesmo modo que a desordem. Para reunir essa
complexidade virtual e essa amea~a ca6tica entr6pica de dis-
solu~ao da diferencia~ao e de perda da heterogenese ontol6-
gica, partimos da ideia de que o caos e essencialmente dina-
mica, de que e composto de entidades animadas com velo-
cidade infinita, que ora as precipita em urn estado de disper-
sao absoluta, ora reconstitui, a partir delas, composi~oes hi-
percomplexas. Assim o hipercomplexo pode coincidir, ja que
animado por velocidade infinita, com o hiperca6tico.
Essa concep~ao do caos me permite caracterizar o fun-
tor ontol6gico que qualifico de Universo incorporal, ao mes-
mo tempo o hipersimples- ritornelo alijado de qualquer re-
la~ao com uma referencia eo hipercomplexo, desenvol-
vendo-se no seio de campos de virtualid;ldc infinitos. Esse
tipo de paradoxa conduz ao fato de qm·, pcla cscolha ao aca-
so das letras do alfabeto, pudesscmos co111por uma poesia de
Mallarme. Existe uma potencialidadc, dm;nltt· uma tal esco-
lha, do surgimento da maior complcxidadl' iJJ!'ormacional.
Essa velocidade infinita do cws t·· n·cm·o1Jtr:1da nave-
locidade que anima a economia do conu·ito quc thi sua di-
mensao de imanencia as proposi~ocs filosolicls. Ja as cien-
78 Caosmose
tfficas, ao formular fun<;oes, marcam, ao contrario, um limite,
uma barragem a essa velocidade infinita. Eo que se manifes-
tara sob forma de constantes que fixam fronteiras limites, in-
terditam passagens ao infinito no dominio da fisica (como o
horizonte cosmol6gico, a distancia de Planck, o zero abso-
luto, a velocidade da luz etc.). Ao nivel do percepto e do afeto
esteticos existe urn tipo de duplica<;ao das velocidades infi-
nitas, uma mimesis, uma simulac;ao, que reencena e reinter-
preta, scm cessar, as potencialidades criativas do caos.
Heterogenese '')
mitico, para dar um fundamento narrativo a ritualiza<;iio
existencial de uma "cur a", quer ela seja de candomble ou
bem de tipo psicanalitico?
Nao ha primado de um sistema de modeliza<;iio sabre
os outros. Nao ha uma modeliza<;ao cientffica que seria, por
exemplo, a da psicologia ou da psicanalise, face a uma mo-
deliza<;ao neur6tica ou a uma modeliza<;ao micro-social con-
tingente. Todas as modeliza<;oes, potencialmente, se equi-
valem, a nao ser pelo fa to de que suas rela<;oes de agrega-
<;iio, de aglomera<;ao - evito propositalmente o termo de
intera<;ao tra<;am um certo vetor, uma certa escolha mi-
cropolltica, uma certa polariza<;ao de valores. Pode ser que,
por exemplo, a polariza<;ao da pragmatica analitica, Ionge
de ser controlada pelo analista, dependa do analisando. No-
rou-se freqiientemente que o analista, em sua poltrona, es-
tava de pes e maos atados a "teleguiagem" do analisando,
de modo que, se o analista mantem o silencio na maior parte
do tempo, e porque ele nao tem acesso a fala.
Como se articulam tais sistemas de modeliza<;ao? 0 que
faz com que a subjetividade de uma crian<;a seja constituida
no cruzamento den sistemas de modeliza<;ao? Tudo isso e
visto muito bem na teo ria polifonica do self de Daniel Stern.
Ha co-ocorrencia entre o desenvolvimento subjetivo do lac-
tante e o comportamento de sua mae. Em seguida a crian<;a
passa de um sistema de modeliza<;ao a um outro: ode sua fa-
milia, ode seus fantasmas pr6prios, o das narrativas televi-
sivas, o dos desenhos animados, da cscola, com os grupos so-
ciais no seio dos quais clc c inscrido ... Nao h;1 cocrencia ex-
plicativa fun dada sobrc univcrs:1 is cstrutu ra is, m;ls desenvol-
vimento daquilo que Pierre I ,t'·vy dcnomina tlln hipcrtcxto 22 •
Ea interface maqufnica que opna a aglollll'Ll~)o ontol6gica
de diferentes ritornelos existenciais. F t' ;J dinwns:lo de trans-
80 Caosmose
versalidade desenvolvida por esses ritornelos, essas maquinas
abstratas, singularizando uma certa Constela<;ao de Universos
e pondo em jogo certos Phylum maquinicos.
Nessas condi<;6es, a que se reduz a praxis analitica?
Trata-se essencialmente de urn trabalho de discernibiliza<;ao
e de intensifica<;ao dos componentes de subjetiva<;ao, de urn
trabalho de heterogenese. E, ao mesmo tempo, de singula-
riza<;ao, de passagem ao ser e, conseqiientemente, de neces-
sita<;ao e de irreversibiliza<;ao; trata-se entao, simetricamen-
te, de homogenese territorial. Esse trabalho nao e situado
sob a egide de urn corpus cientifico, mas sob a de catalisa-
dores existenciais iguais em direito.
0 exemplo princeps desse tipo de catalisador, que
estudei em meu livro 0 inconsciente maquinico, encontra-
se em Proust. Pode-se mostrar que toda a discursividade
proustiana se tece a partir de alguns ritornelos complexos
que a conduzem ao desenvolvimento de Universos de refe-
rencia heterogeneos. Esses momentos fecundos poem-sea vi-
brar e a invadir o conjunto do campo da subjetividade com
a experiencia da madalena, com a visao dos sinos que dan-
<;am uns em rela<;ao aos outros, a pequena frase de Vinteuil,
o piso desnivelado do patio de Guermantes, sobre o qual ele
coloca os pes e que desencadeia uma deriva sobre V eneza,
sobre o passado etc. Proust logo percebe que h;1 neccssida-
de de urn corte, de uma parada, de uma mudatH,·a de rcfe-
rencias temporais: pede as pessoas que() acotnp;tllhatll que
o deixem s6, a fim de que chegue a captar o que :Kontcce
nesse momenta privilegiado. Mas nao sc trata dt· tllll acon-
tecimento de ordem cognitiva e sim de 11111 ft.ni.lllll'llO de in-
tensidade existencial.
Seria tambem o que faz o traballw do s<~ttho, t'tll tlln;t
perspectiva p6s-freudiana? Nao se tr;H;t tna is d<· p:t rt ir :·t pro-
cura de chaves interpretativas entre tllll L"<Ht!t'tJdo ttt:lttiksto
e urn conteudo latente, mas de transloriiLtr stt:t 111:1tcria de
Heterogenese 81
expressao, de lhe dar uma intensifica<;;ao ontol6gica, simples-
mente pelas passagens sucessivas: 1) do sonho no ato de ser
vivido; 2) do sonho ao despertar com seu carater de uma re-
viravolta semi6tica, que faz com que se perca 99% disso, mas
cujo centesimo salvo assume uma fun<;;ao fractal em rela<;;ao
aos 99% perdidos; 3) o sonho contado a urn terceiro ou es-
crito; 4) o sonho contado durante uma sessao analftica etc ...
E toda essa atividade de reterritorializa<;;ao, de recom-
posi<;;ao de territ6rios existenciais especificos, de entrada em
materias de expressao heterogeneas, que constitui o "traba-
lho" do sonho e que faz com que ele possa desembocar em
uma obra literaria, em uma dimensao axiol6gica, urn proces-
so criativo. "Desde que tive urn certo sonho, minha vida deu
uma reviravolta ... " 0 trabalho da analise consiste em mudar
as coordenadas enunciativas e nao em dar chaves explicati-
vas. Trata-se nao apenas de elucidar, de discernibilizar com-
ponentes ja existentes, mas tambem de produzir componentes
que ainda nao estejam presentes, e que se tornarao "sempre
ja presentes do momenta em que sao engendrados", em ra-
zao mesmo da 16gica dessas multiplicidades, cuja trama mo-
lecular funciona com uma velocidade infinita aquem do es-
pa<;;o, do tempo e das ordenadas ontol6gicas.
Examinemos sumariamente urn outro exemplo de si-
tua<;;ao neur6tica que implica uma renuncia a "neutralida-
de" terapeutica e demanda a mobiliza<;;ao de urn novo Uni-
verso de referencia enunciativo. Trata-se de uma cantora que
eu acompanhava em psicoterapia e que, com a morte da
mae, perde bruscamente a parte alta da tessitura de sua voz,
o que a condena a uma parada brutal do exercicio de sua
profissao. Estamos diante de urn acontecimcnto complexo
que, evidentemente, repercute em uma dimcnsao semi6tica
totalmente heterogenea em rela<;;ao ada performance vocal.
Como conceber essa passagem? Defini-la-cmos em ter-
mos de mecanismo de autopuni<;;ao ou relacionaremos o fe-
S.'. Caosmose
nomeno a urn Edipo invertido em dire<;ao a mae? De fato, e
o Agenciamento de enuncia<;ao, comportando urn compo-
nente autopoietico na rela<;ao com a mae, que implode e que,
atraves do trabalho de luto e de recomposi<;ao enunciativo,
arrebata em seu rastro a perda de consistencia de outros
componentes enunciativos: o componente visivel, relativo a
extensao da tessitura, e outros menos aparentes de ordem
timica, que farao com que a paciente entre em urn regime
larvado de depressao. Mas trata-se de uma fase depressiva,
de tipo kleiniano, preludiando uma recomposi<;ao do eu?
Isso nao e absolutamente evidente, pois esse falecimento da
mae esse corte qw<;a prov1sono com a profissao de
cantora abram talvez, para a paciente, toda uma gama de
possiveis que lhe eram ate entao interditos.
Com efeito, essa mulher, em seguida a esses aconte-
cimentos, encetara uma serie de novas atividades, fani novos
contatos, estabelecera uma nova rela<;ao afetiva, ap6s re-
manejar radicalmente sua constela<;ao de Universos. Hou-
ve entao, em seguida a perda de consistencia de urn Agen-
ciamento existencial, abertura de novos campos de poss1vel.
genera de remanejamento e acompanhado por urn tipo
de vertigem: vertigem da possibilidade de urn outro mundo,
vertigem comparavel ao estado que acompanha o fato de se
debru<;ar na janela, vertigem da morte como tenta<;ao da
Alteridade absoluta, mas tambem vertigem da anorexia. E
sempre a mesma questao: se colocar na tangente da finitu-
de, brincar com o ponto limite. Kafka trabalhou com esse
tipo de vertigem da aboli<;ao, relacionando a noite aos verda-
deiros estados de transe ligados a fome, ao frio e a fadiga.
Mais do que postular uma Alteridade absoluta, referen-
simb6lica transcendental ou uma pulsao de morte dian-
te de Eros, partiremos aqui da ideia de que ha tantas pul-
soes de alteridade e, consecutivameme, pulsoes de morte,
quantos forem os componentes heterogeneos de subjetiva-
Heterogenese 83
<;:ao. Assim o Territ6rio existencial que Kafka cria para si
inscreve-se nas texturas ontol6gicas heterogeneas que cons-
titui: o Casamento impossivel com Felice (0 Processo), a
literatura impossivel, o sionismo impossivel etc. Quando a
vertigem de aboli~ao aglomera em si o conjunto dos siste-
mas de aboli<;:ao dos outros Territ6rios existenciais, e a
~ao de urn mundo atraves do fim do mundo. Uma tal mu-
ta~ao engaja igualmente componentes biol6gicos, ja que se
pode pensar que a anorexia, a fome, a dor, o sadomasoquis-
mo estao associados a fenomenos de drogas de auto-adic~ao
por intermedio do sistema das endorfinas cerebrais.
Como conceber urn dispositivo esquizoanalitico de meta-
modeliza~ao que permitiria passar de urn tipo de modeliza<;:ao
a urn outro? Volta-se sempre ao mesmo ponto, eo surgimen-
to de singularidades, o afastamento de certos componentes
semi6ticos e de certos segmentos maquinicos que gera o
surgimento de urn acontecimento catalitico. Uma pessoa
que, ha semanas, me repetia sempre as mesmas coisas, exe-
cuta algo na cena da analise que transforma todas as suas
coordenadas, suas referencias, e engendra novas linhas de
possivel.
Poderiamos evocar outros exemplos no sentido da tera-
pia institucional. Urn dispositivo analltico podera se encar-
nar em um subconjunto institucional tal como a cozinha, em
La Borde, ou a lavanderia ou urn "atelie". entidades ad-
quirem entao uma consistencia autopoietica particular. A co-
zinha, que pode serum Iugar estereotipado vazio onde cada
um representa seu pequeno ritornelo vazio, pode desencadear
uma certa aglomera~ao pulsional oral, entrando em ressonan-
com sistemas de troca, de rela<;:6es econtm1icas, de pres-
tas;6es de prestfgio ... 0 trabalho esquizoanalftico consistira
em discernibilizar os componentes postos em jogo e os Uni-
versos de referencia correspondentes. A emergl:·ncia en uncia-
tiva da cozinha podera ser importante, mas nao pma1s
R4 Caosmose
dada em si como instancia analftica. E apenas o conjunto dos
focos autopoieticos, considerados como uma rede, que po-
dera exercer uma tal fun<;;ao de "analisador". Nao ha portan-
to urn sujeito anal1tico localizado, un1voco. 0 psicanalista
sentado em sua poltrona ou a institui<;;ao que se pretended
analftica- porque, a cada semana, o psiquiatra, o psic6lo-
go, o assistente social e tres educadores se reunem - , ou o
subconjunto do qual eu falava, do tipo cozinha, lavanderia,
s6 podem ser elementos de enuncia<;;ao parcial, individual, co-
letiva, institucional e concorrendo para que haja muta<;:ao dos
processos de semiotiza<;;ao e fatores de muta<;;ao autopoieti-
ca. Urn acontecimento surge onde nada se produzia, onde se
estagnava na pura redundancia. Surgimento nao de uma sin-
gularidade, mas de urn processo de singulariza<;;ao, com suas
aberturas pragmaticas, suas virtualidades, seus Universos de
referencia ontol6gicos.
Descentramento entao de uma analise baseada no in-
div1duo para processos nao-humanos que qualifico de ma-
qu1nicos e que sao mais humanos do que 0 humano, sobre-
humanos em urn sentido nietzscheano.
Esses processos de singulariza<;;ao sao tanto objetivos
quanto subjetivos. Mas, ao inves de coordenadas objetivas,
falaremos de ordenadas objetais. Separamo-nos aqui do
ideal "capitalfstico" das coordenadas objetivas homogeneas,
que sao as do espa<;;o, do tempo, das trocas energeticas. Exis-
tem tantos sistemas energeticos, tantos modos de tempora-
liza<;;ao e de espacializa<;;ao, quantos sistemas autopoieticos,
que afirmam suas pr6prias ordenadas, ao mesmo tempo em
que posicionam sua propria existencia.
0 peso da subjetividade capitallstica, qualificada de
edipiana em razao da redu<;;ao das ordenadas heterogeneas
que ela opera, nao pode ser subestimado. A descoberta, por
Freud, dos complexos de Edipo e de castra<;;ao foi e perma-
nece sendo genial. Mas essas descobertas devem ser reen-
Heterogenese 85
quadradas em outros eixos de referencia. Elas estao na base
da subjetividade capitalistica, quer dizer, de uma subjetivi-
dade que assimila a apreensao da morte, a vertigem da fini-
tude, o mais intensamente possivel, mais do que os sistemas
que se propuseram como alternativos, particularmente o so-
cialismo burocratico ou, atualmente, o ideal de urn retorno
aos valores tradicionais (retorno fascistizante a terra, a ra<;:a
etc.). 0 sistema capitallstico e a subjetividade do equivaler
generalizado se sustentam na tangente da morte e da fini-
tude para, no ultimo momento, reterritorializar 0 sistema,
refunda-lo sobre identidades personologicas, em uma dina-
mica edipiana, uma hierarquiza<;:ao e uma aliena<;:ao da al-
teridade que podem ser levadas ate a paranoia, mas que ge-
ralmente mergulham em urn morno infantilismo.
Essa potencia de aboli<;:ao de subjetividade capitallsti-
ca pode conduzir, no horizonte historico atual, ao desapa-
recimento da humanidade, devido a sua incapacidade de en-
frentar as quest6es ecologicas, as reconvers6es impostas pelo
impasse no qual se engajou a sociedade produtivista, o avan-
<;:o demografico etc ... Essa pulsao de morte s6 pode ser com-
batida por agenciamentos enunciativos capazes de assumir
a morte e a finitude muito alem de uma subjetividade capi-
talistica cada vez mais debil, desde que a mfdia come<;:ou a
exercer uma hegemonia sobre ela. A entrada em uma era pos-
mfdia implica uma reapropria<;:ao da finitude em outras ba-
ses que nao a da serializa<;:ao e da redundiincia.
discursividad('
desterritorializa;;;ao
reterritorializa;;;ao F Tc
86 Caosmose
0 eixo ontol6gico aqui proposto no dominio da dis-
cursividade entre os Fluxos (F) e os Phylum (<!>) correspon-
de a compreensao do mundo fenomenol6gico sensivel, ha-
bitado por maquinas complexas, concernentes a Phylum em
muta~ao permanente. No dominio nao-discursivo, as outras
duas categorias, de Territ6rio existencial e de Universo de
referencia, correspondem a dois modos enunciativos dila-
cerados entre a finitude absoluta, o retorno a urn estado
ca6tico de nao-diferencia~ao (Te} e uma complexidade ab-
soluta trazida por Universos incorporais singularizados.
Entre esses quatro funtores se instauram nao imperativos ca-
teg6ricos de tipo kantiano, mas comandos ontol6gicos, pro-
cessuais, micropollticos. Entre o eixo dos Fluxos e dos Ter-
rit6rios existenciais, uma categoria de necessita(:iio, ou de
tomada de contingencia, de finitude, se encarna nas coor-
denadas de espa~o, de tempo e de diferentes mah~rias de ex-
pressao. Finitude existencial que nao apenas aceita a morte
e a vida em seu carater de subjuga~ao, mas que nao cessa
de intensifica-la, que faz da morte uma potencia ativa, ao
inves de uma maldi~ao. 0 perigo de morte que pesa sobre
a biosfera poderia entao se transformar em uma questao
maqulnica fascinante, extraordinaria. Ao inves de se aban-
donar ao horizonte de morte capitalistico, uma polftica de
produ~ao de vida e possivel, nao para repeti-la tal como eb
era ha cern ou dois mil anos, mas para produzir formas
mutantes segundo ordenadas atualmente imprcvisfvcis.
Segundo eixo etico-polftico entre OS Phylum maqulni-
cos e os Universos de referencia. Trata-se de um ci-.:o para-
lelo ao precedente, e 0 da singulariza(:iiO. Os proccssos cria
dores, sempre recome~ados, nao Se referclll j;lllLlis ;.l rqw-
vazia. A instancia ontol6gica e scmptT ('ltriquccillH'Il·
to de virtualidade. Isso pode ser bem pcrn·hido tl:l llll.lsiu
rcpetitiva, cuja repeti~aO naO f Vazia, 11l:lS l'IIJ',i'lldra lllll;l sin-
gulariza~aO, uma prolifera~ao subjctiv;l propri;tnwtllc '"inau-
Heterogenese 87
dita"; ao passo que a musica tradicional, por exemplo a
romantica, pode ter uma tendencia para rebater a subje-
tividade sobre o "ja visto", o "ja sentido", o que tambem
nao deixa de ter uma certa sedw;:ao. Essa singulariza~ao
implica a entrada de componentes heterogeneos, o surgimen-
to de pontos de bifurca~ao, esses tipos de singularidade que
fazem com que, de urn so golpe, urn micro-acontecimento
abra novos campos de possivel.
Terceiro eixo, entre os Fluxos e os Phylum, o da irre-
versibilizar;ao. 0 primeiro eixo de necessita~ao entre os Flu-
xos e os Territorios se relacionaria a sistemas sofisticados
de causas materiais. (No eixo dos Phylum e dos Universos,
a singulariza~ao operaria no plano das causas finais, ao
passo que o presente sistema de irreversibiliza~ao seria mais
da ordem das causas formais.) 0 que aqui esta em causae
a ideia mesma de Phylum, de processo, a ideia de que ha urn
antes, urn depois, uma historia natural, uma historia huma-
na, que estao articuladas no ponto de jun~ao do antes e do
depois, na raiz da repeti~ao, da insistencia existencial.
Enfim, a categoria de heterogenese deveria ser relacio-
nada a de causa-eficiente; ela corresponde a constitui~ao de
Universos de referencia. E uma dimensao de produ~ao on-
tologica que implica que se abandone a ideia de que existi-
ria urn Ser subsumindo as diferentes categorias heterogene-
as de entes. 0 proprio ser nao e passivamente dado, do Big-
Bang original ate a explosao final de nossa constela~ao de
urn Universo cosmico, passando por nossa propria explo-
sao de Universos axiologicos, relativos a vida, a morte, aos
processos criadores. Nao existe uma substancia ontologica
unica se perfilando com suas significa~oes "scmpre ja pre-
sentes", enquistadas nas raizes etimologicas, em particular
de origem grega, que polarizam e fascinam :1s :111;1lises poe-
tico-ontologicas de Heidegger. Para alem da nia<;ao semio-
logica de sentido, se coloca a questao da ni:1~:io de textura
Caosmose
ontologica heterogenea. Produzir uma nova musica, um no-
vo tipo de amor, uma rela~ao inedita com o social, com a
animalidade: e gerar uma nova composi<;:ao omologica cor-
relativa a uma nova tomada de conhecimento sem media-
~ao, atraves de uma aglomera~ao patica de subjetividade,
ela mesma mutante.
Heterogenese 89
ANEXO: 0 AGENCIAMENTO DOS QUA TRO
FUNTORES ONTOL6GICOS
Conteudo
focos enunciativos virtuais
(nao discursivos)
<I> u
discursividade complexidade
maqufnica incorporal
. ·--~+--~ ·--··~-----
F T
1
90 Caosmose
xo, trabalhara para sua complexifica<,;ao, para seu enrique-
cimento processual, para a tomada de consistencia de suas
linhas virtuais de bifurca<,;iio e de diferencia<,;ao, em suma para
sua heterogeneidade ontologica.
A localiza<,;ao de focos de vida parciais, do que pode dar
uma consistencia enunciativa as multiplicidades fenomeni-
cas, nao depende de uma pura descri<,;ao objetiva. 0 conhe-
cimento de uma monada de ser-no-mundo, de uma esfera
de para-si, implica uma apreensao p;hica que escapa as coor-
denadas energetico-espacio-temporais. 0 conhecimento e
aqui, antes de mais nada, transferencia existencial, transi-
tismo nao-discursivo. Colocar em enunciado essa transfe-
rencia passa sempre pelo desvio de uma narrativa que nao
rem como fun~;;ao primeira engendrar uma explica<,;ao racio-
nal, mas promover ritornelos complexos, suportes de uma
persistencia memorial intensiva. E apenas atraves das nar-
rativas miticas, religiosas, fantasmaticas etc., que a fun<,:iio
existencial acede ao discurso. Mas o proprio discurso, aqui,
nao e urn simples epifenomeno, ele e objeto de
etico-pollticas de evita<,:ao da enuncia<,:aO. Os quatro £unto-
res ontologicos, tais como anteparos de prote<,:ao, sinaliza-
dores de advertencia, tem por missiio visibilizar os objetos
dessas estrategias.
Por exemplo, os Universos incorporais da Antigtiida-
de classica, associados a urn compromisso politefsta rclati-
vo a uma infinidade de Territorialidades classicas c cticas,
sofreram urn remanejamento radical com a rcvolw,;ilo trini-
taria do cristianismo, indcxada no ritornelo do signo da
Cruz, que recentrani nao somente o conjunto dos Tnrit<'l·
rios existenciais sociais, mas tambem todos os i\gcm·iaJJil'Jl-
tos corporais, mentais, familiares, sob o linico Tnrill.lrio
existencial da encarna<,;iio e da crucificat,·:lo nisi il·a. Fssc
golpe de for~;;a inedito de assujeitamento suhjl'l ivo 1dt ra p:tssa
evidentemente o quadro teologico! A nova .~uhjl·l ivid:1dt· da
Heterogenese 91
culpabilidade, da contri~ao, da marca<;ao do corpo e da se-
xualidade, da media<;ao redentora, e tambem uma pe<;a es-
sencial dos novos dispositivos sociais, das novas maquinas
de sujei~ao que deveriam ser buscadas atraves dos destro-
<;os do Baixo-Imperio e das reterritorializa~6es de ordens
feudais e urbanas por vir.
!v1ais proxima de nos, a narrativa mitico-conceitual do
freudismo tambem operou urn remanejamenro dos quatro
quadrantes ontologicos. Toda uma maquinaria dinamica e
topica do recalque rege ai a economia dos Fluxos de libido,
ao passo que uma zona de focos enunciativos, que a abor-
dagem clfnica havia evirado, de ordem onirica, sexual, neu-
rotica, infantil, relativa ao lapso, ao chiste, invade a parte
direita de nosso quadro. 0 Inconsciente promovido como
Universo da nao-contradi~ao, da heterogenese dos contra-
rios, envolve os Territorios manifestos do sintoma, cuja
voca<;ao para a autonomiza<;ao, para a repeti<;ao autopoie-
tica, patica e patogenica, amea<;a a unidade do eu, a qual se
revelara, ao Iongo da historia da dinica analitica, cada vez
mais precaria, ate mesmo fractalizada.
A cartografia freudiana nao e apenas descritiva; e in-
separavel da pragmatica da transferencia e da interpreta~ao,
que convem, em minha opiniao, destacar de uma perspecti-
va significacional e entender como conversao dos meios ex-
prcssivos e como muta<;ao das texturas ontologicas desta-
cando novas linhas de possfvel c, isso, pelo simples fato da
instala~ao de novos Agcnci;mwntos de escuta e de modcli-
za~ao. 0 sonho, objeto de um intcn:ssc rcnovado, contado
como uma narrativa encerrando chavcs inconscientes, que
passou pelo crivo da associ<l<.;il<> livre, sofrc unw profunda
muta<;ao. Assim como apos a n.:volt1<,)o da Ars !\ova, na Ita-
lia do seculo XIV, nao se entender;i 111;1is ;1 nH~,sica domes-
mo modo no meio cultural europcu, o so11ho c a atividade
onfrica mudarao intrinsecamentc lk n;Jtun·z;l no seio de seu
92 Caosmose
novo Agenciamento referencial. paralelamente, uma in-
finidade de ritornelos psicopatol6gicos nao seriio mais vi-
vidos, e conseqiientemente modelizados, da mesma manei-
ra. 0 doente obsessivo que lava as maos cem vezes por dia
exacerba sua angustia solitaria em um contexto de Univer-
so de referencia profundamente modificado.
A modeliza<:;ao freudiana marcou incontestavelrnente
urn enriquecirnento da produ<:;iio de subjetividade, urna am-
plia<:;ao de suas constela<:;oes referenciais, urna nova abertura
pragmatica com a inven<:;ao do dispositivo da cura analftica.
Mas ela rapidamente encontrou seus lirnites corn suas con-
cep<:;oes farnilialista e universalizante, com sua pratica este-
reotipada da interpreta<:;ao, com sua dificuldade para arn-
pliar seu campo de intervcn<:;ao para alern da semiologia lin-
glifstica. Enquanto a psicanalisc conceitualiza a psicose atra-
ves de sua visao da neurose, a esquizoanalise aborda todas
as modalidades de subjetiva<;ao a luz do modo de ser no
rnundo da psicose. Com cfeito, ern nenhurn outro lugar e
desnudada, a esse ponto, a rnodeliza<:;ao ordinaria da coti-
dianeidade (os "axiornas de cotidianeidade"), que obstruem
as rafzes da fun<;ao existencial a-significante, grau zero de
qualquer modeliza<:;ao poss!vel.
Com a neurose, a materia sintomatica continua a ba-
nhar no entorno de significa<;oes dominantes, ao passo que,
em contrapartida, com a psicose, e o mundo do Dasein es-
tandartizado que perde sua consistencia. A alteridade, cn-
quanto tal, torna-se entao a questao primeira. Por exemplo,
o que se encontra fragilizado, fendido, esquizado, no deli-
rio e na alucina<;;ao, antes do estatuto do mundo objetivo, e
o ponto de vista do outro em mim, o corpo reconhecido em
articula<:;ao com o corpo vivido e com o corpo ressentido,
sao as coordenadas de alteridade normalizadas que dao a
evidencia sensivel seu fundamento.
A psicosc nao e um objeto estrutural mas urn concci-
I leterogenese 93
to; nao e uma essencia inamovivel mas uma maquina~ao,
sempre recome~ada, a cada encontro com aquele que se tor-
nara, a posteriori, 0 psic6tico. 0 conceito nao e, entao, aqui
uma entidade fechada sabre si mesma, mas a encarna~ao
maqufnica abstrata da alteridade em seu ponto extrema de
precariedade, a marca indelevel que tudo, nesse mundo,
pode sempre disjuntar.
0 Inconsciente tem tudo a ver como conceito: tam-
hem e uma constru~ao incorporal que se apropria da sub-
jetividade em seu ponto de emergencia. Mas e um conceito
que corre o risco o tempo todo de engrossar, que deve ser
constantemente livrado das esc6rias culturais que amea~am
reterritorializar a subjetividade. Ele pede para ser reativado,
recarregado maquinicamente, em razao da virulencia dos
acontecimentos que colocam em atua~ao a subjetividade. A
fratura esquizo e a via principal de acesso a fractalidade
emergente do Inconsciente. 0 que se pode denominar a re-
dw,;ao esquizo ultrapassa todas as redu~oes eideticas da
nomenologia, porque leva ao encontro de ritornelos a-sig-
nificantes que produzem, novamente, narrativa, que refun-
dem no artificio uma narratividade e uma alteridade exis-
tenciais, ainda que delirantes.
Salientemos, de passagem, uma curiosa contradan~a en-
tre a psicanalise e a fenomenologia: enquanto a primeira nao
alcan~ou, no essencial, a alteridade psic6tica (particularmen-
te devido a suas concep~oes reificantes em materia de iden-
tifica~ao e devido a sua incapacidade de pensar OS devires
intensivos), a segunda, embora tendo produzido as melho-
res descri~oes da psicose, nilo sou he rcvclar atraves dela o
papel fundador da modeliza<;ilo narrativ;l, suporte da incon-
tornavel fun~ao existencial do ritornclo- fantasmatica,
mitica, romanesca ... Encontra-se ai o nH-lVcl do paradoxo de
Tertuliano: por que e impossivcl que o lilho esteja morto,
Sepultado e reSSUSCitado, C que CSSl'S fatos devem Ser tidos
94 Caosrnose
como certos . .E porque, em varios aspectos, a teoria freudia-
na e mftica, que cia pode desencadear ritornelos de subjeti-
va<;:ao mutante.
A l6gica tradicional dos conjuntos qualificados de ma-
neira univoca, de tal modo que se possa sempre saber sem
ambigiiidade se urn de seus elementos lhes pertence ou nao,
a metamodcliza<;:ao esquizoanalltica substitui uma ontol6-
gica, uma maqufnica da existencia cujo objeto nao ecircuns-
crito ao interior de coordenadas extrfnsecas e fixas, que su-
pera a si mesmo, que pode proliferar ou se abolir com os
Universos de alteridade que lhes sao compossfveis ...
I lcil'rogenese 95
A Caosmose Esquizo
A "normalidade", sob a luz do delfrio, a l6gica tecni-
cista, sob a lei do processo primario freudiano, urn pas de
deux em dire<;ao ao caos para ten tar circunscrever urn a sub-
jetividade longe dos equillbrios dominantes, para captar suas
linhas virtuais de singularidade, de emergencia e de renova-
<;ao: eterno retorno dionisfaco ou paradoxal revolu<;ao co-
pernicana que se prolongaria em uma reviravolta animista?
No mfnimo, fantasma originario de uma modernidade in-
cessantemente posta em questao e sem esperan<;a de remis-
sao p6s-moderna. Sempre a mesma aporia: a loucura cer-
cada em sua estranheza, reificada para sempre em uma al-
teridade, nao deixa de habitar nossa apreensao comum, sem
qualidade, do mundo. Mas seria necessaria ir ainda mais
longe: a vertigem ca6tica, que encontra uma de suas expres-
s6es privilegiadas na loucura, e constitutiva da intencio-
nalidade fundadora da rela<;ao sujeito-objeto. A psicose re-
vela urn motor essencial do ser no mundo.
Com efeito, o que prima, no modo de ser da psicose-
mas tamb6n, segundo outras modalidades, no modo do
"self emergente" da infancia (Daniel Stern) ou no da cria-
<;ao estetica- e a irrup<;ao na cena subjetiva de urn real "an-
terior" a discursividade cuja consistencia patica literalmente
pula no pesco<;o. Deve-se considerar que este real se crista-
lizou, petrificou, tornou-se catatonico por acidente patol6-
gico, ou que estava af desde todos os tempos- passados e
futuros - a espera de uma atua<;ao, na qualidade de san-
<;ao da forclusao de uma suposta castra<;ao simh<>lic<l? Tal-
vez seja necessaria encadear essas duas perspectivas: cste real
ja estava presente, como referencia virtu<1l, a lwrLl, c corre-
lativamente ele surgiu enquanto produ<;ao sui ,!!,i'neris de urn
acontecimento singular.
Os estruturalistas foram por dcm<lis prl'cipitados ao
posicionar topicamente o Real d<1 psicost· l'lll rch<.;ilo ao
Imaginario da neurose e ao Simh<>lico da n<mllalid<llle. 0
A Caosmose Esquizo 99
que ganharam com isso? Erigindo matemas universais do
Real, do Imaginario e do Simb6lico, considerados cada um
em si mesmo como um todo, eles reificaram, reduziram a
complexidade da questao- a saber, a cristaliza.;;:ao de Uni-
versos reais-virtuais, agenciados a partir de uma multipli-
cidade de territ6rios imaginarios e semiotizados pelas mais
diversas vias.
As complei.;;:oes reais- por exemplo, as da cotidianei-
dade, do sonho, da paixao, do delfrio, da depressao e da ex-
periencia estetica - nao sao, todas elas, da mesma cor on-
tol6gica. Alem disso, nao sao sofridas passivamente, nem ar-
ticuladas mecanicamente ou trianguladas dialeticamente a
outras instancias. Uma vez ultrapassados certos limiares de
consistencia autopoieticos, elas come.;;:am a trabalhar por sua
propria conta, constituindo focos de subjetiva.;;:ao parcial.
Enfatizemos que seus instrumentos expressivos (de semio-
tiza;;;ao, de encodagem, de catalise, de moldagem, de resso-
nancia, de identifica.;;:ao) nao se reduzem a uma unica eco-
nomia significante. A pratica da psicoterapia institucional
nos ensinou a diversidade das modalidades de aglomera;;;ao
dessas multiplas estases reais ou virtuais: as do corpo e do
soma, as do eu e do outro, as do espa;;;o vivido e dos ritor-
nelos temporais, as do socius familiar e do socius artificial-
mente elaborado para abrir outros campos de possfvel, as
da transferencia psicoterapeutica ou ainda as de universos
imateriais referentes a musica, as formas pListicas, aos de-
vires animais, vegetais, maqufnicos ...
As complei<;:ocs do real psid>tico, em sua cmergencia
clinica, constituem mna via cxplorat<',ria privilcgiada de ou-
tros modos de prodw,;ao ontok1gicos pclo h to de revclarem
aspectos de excesso, expcri('·m·i:ls lilllitc dcsscs modos. A
pSlCOSC habita assim nao apcnas ;I llCllrOSC C a perversao
mas tambem todas as formas de 11or11didade. A patologia
psic6tica se especifica pelo fato de qw· por n razoes os vai-
100 Caosmose
vens esperados e as rela<;oes polifonicas "normais" entre os
diferentes modos de passagem ao ser da enuncia<;ao sub-
jetiva rem sua heterogeneidade comprometida pela repe-
ti<;ao, pela insistencia exclusiva de uma estase existencial
que qualifico de caosmica e que e suscetfvel de assumir to-
das as nuan<;as de uma gama esquizo-paran6ico-manfaco-
epilept6ide etc ...
Fora dessa patologia essa estase so e apreendida atra-
~es de urn evitamento, urn deslocamento, urn desconheci-
mento, uma desfigura<;ao, uma sobredeterminac;ao, uma
ritualizac;ao ... 1\essas condic;oes, a psicose poderia ser defi-
nida como uma hipnose do real. Aqui, urn sentido de ser
em si se impoe aquem de qualquer esquema discursivo, uni-
camente posicionado atraves de urn continuum intensivo
cujos trac;os de distintividade nao sao apreensfveis por urn
aparelho de representac;ao mas por uma absorc;ao patica
existencial, uma aglomerac;ao pre-egoica (pre-moique), pre-
identificatoria.
Enquanto o esquizofrenico esta como que instalado em
pleno centro dessa fenda caotica, o dellrio paranoico mani-
festa uma vontade ilimitada de se apossar dela. Por sua vez,
os delirios passionais (Serieux, Capgras e de Clerambault)
marcariam uma intencionalidade de monopolizac;ao da caos-
mose menos fechada, mais processual. As perversoes ja im-
plicam a recomposic;ao significante de polos de alteridade
aos quais cabe encarnar do exterior uma caosmose domi-
nada, teleguiada por roteiros fantasmaticos. Ja as neuroses
apresentam todas as variantes de evitac;ao anteriormente
evocadas, a comec;ar pela mais simples, a mais reificadora
- a da fobia - , continuando pela histcria que forja subs-
titutos de tais variantcs de evitac;ao no cspa<;o social e no
corpo, para terminar pela neurose obsessiva que secreta a
seu respeito uma pcrpetua "differcncia" (Derrida) tempo-
ral, uma infinita procrastinac;ao.
102 Caosmose
de suas rela<;oes de alteridade esta. sempre na raiz de urn
mundo.
Nao oporemos aqui, como na metapsicologia freudia-
na, duas pulsoes antagonistas de vida e de morte, de com-
plexidade e de caos. A intencionalidade objetal mais origi-
nal se recorta da caosmose. E o caos nao e uma pura indi-
ferencia<;ao; possui uma trama ontol6gica especifica. Esra
povoado de entidades virtuais e de modalidades de alteri-
dade que nao tern nada de universal. Nao e entao o Ser em
geral que irrompe, na experiencia ca6smica da psicose, ou
na rela<;ao patica que se pode manter com ela, mas urn acon-
tecimento datado, assinalado, marcando urn destino, in-
flectindo significa<;oes anteriormente estratificadas. Ap6s urn
tal processo de desgualifica<;ao e de homogenese ontol6gi-
ca, nada mais sera como antes. Mas o acontecimento e in-
separavel da textura do ser que emergiu. F, o que atesta a
aura psic6tica ao associar urn sentimento de cad.strofe de
fim de mundo (Fran<;ois Tosquelles) eo sentimento pertur-
bador de uma reden.;;ao iminente de todos os poss.lveis ou,
em outros termos, o vaivem desnorteador entre uma com-
plexidade proliferante de sentido e uma total vacuidade, urn
abandono irremediavel da caosmose existencial
0 que e essencial precisar, na apreensao patica do de-
lirio, do sonho e da paixao, e que a petrifica<;ao ontol6gi-
ca, o congelamento existencial da heterogenese dos entes que
ai se manifesta segundo estilos particulares esta sempre la-
tente nas outras modalidades de subjetiva<;ao. E como uma
parada na imagem que ao mesmo tempo revela sua posi.;;ao
de base (base) (ou de baixo [basse]) na polifonia dos com-
ponentes ca6smicos e intensifica sua potencia relativa. Ela
nao constitui entao um grau zero da subjetiva.;;ao, urn pon-
to negativo, neutro, passivo, deficitario, mas urn gran ex-
tremo de intensifica.;;ao. E passando por esse fio-terra ca6-
tico, essa oscila.;;ao perigosa, que outra coisa se torna pos-
103
sfvel, que bifurcai_;:6es ontologicas e a emergencia de coefi-
cientes de criatividade processual podem emergir.
0 fato de que o doente psicotico seja incapaz de urn
restabelecimento heterogenetico nao desmente a riqueza de
experimentai_;:aO ontologica com a qual e confrontado, ape-
sar dele. E isso que faz com que a narratividade delirante,
enquanto potencia discursiva voltada para a cristalizai_;:ao de
urn Universo de referencia ou de uma substa.ncia nao-dis-
cursivos, constitua o paradigma da construi_;:ao e da recons-
trw;ao dos mundos mfticos, mfsticos, esteticos, ate mesmo
cientfficos. A existencia de estases caosmicas nao e absolu-
tamente privilegio da psicopatologia. Encontrar-se-ia sua
preseni_;:a no interior de uma filosofia como a de Pascal ou
mesmo de autores os mais racionalistas. A sequencia carte-
slana da duvida generalizada, que precede o engate extre-
mamente urgente ao Cogito, ao qual sucedera o reencontro
com Deus e a refundai_;:ao do mundo, pode ser assimilada a
essa redui_;:ao esquizo-caotica: o fato de que a complexida-
de e a alteridade sejam tentadas (pelo genio maligno) a de-
sistir confere a subjetividade uma potencia suplementar de
escapada para fora das coordenadas espacio-temporais, que,
por sua vez, ficam fortalecidas.
De urn modo mais geral, pode-se considerar que urn co-
lapso de sentido sera sempre associado a promoi_;:ao de ca-
deias de discursividade a-significantes consagradas ao en-
trani_;:amento ontologico de um mundo autoconsistente. A
ruptura de acontecimento advem assim no :imago do ser e
e que ela pode gerar novas mutai_;:oes ontol{>gicas. As opo-
sii_;:6es distintivas, as sintaxes e as sem~1nticas relativas ao
codigo, aos sinais e aos significantes conrinuam sua traje-
toria, mas ao lado de seu estrato de origc111. ( :omo no de-
liria, as sinaleticas e as semioticas dl'colam. A caosmose
esquizo e urn meio de apercep<;ao dns m;iquin~1s abstratas
que funcionam transversalmente aos estratos heterogeneos.
104 Caosmose
A passagem pela homogenese caosmica, que pode ser- mas
isso nao ejamais garantido nem mecanica nem dialeticamen-
te- uma via de acesso para a heterogenese complexual, nao
constitui uma zona de ser translucida, indiferente, mas urn
intolenivel foco de criacionismo ontologico.
Ao desfazer a heterogenese ontologica que confere sua
diversidade ao mundo e sua distra~,;ao, no sentido pascalia-
no, a subjetividade, a homogenese esquizo exacerba a po-
tencia de transversalidade da caosmose, sua aptidao em atra-
vessar os estratos e em transpor as paredes. Dai a capaci-
dade, freqiientemente destacada, que urn grande numero de
esquizofrenicos possui de revelar, inadvertidamente, as in-
ten~,;oes mais secretas de seu interlocutor; capacidade para
ler, fluentemente, de algum modo, o inconsciente com faci-
lidade. A complexidade, liberada de suas sujei~,;oes discur-
sivas significantes, se encarna entao em dan<;as maquinicas
abstratas, mudas, imoveis e extraordinarias.
Con vern evitar uma utiliza<;ao simplista e reificadora de
categorias tais como o autismo e a dissocia~,;ao para qua-
lificar a estranheza esquizo; a perda do sentimento vital, para
as depressoes; a gliscroidia, para a epilepsia ... Mais do que
com altera~,;oes deficitarias globais e padroes de uma subje-
tividade normal, devemos lidar com as modalidades ao mes-
mo tempo plurais e singulares de uma auto-alteridade. Eu
e urn outro, uma multiplicidade de outros, encarnado no
cruzamento de componentes de enuncia<;oes parciais extra-
vasando por todos os !ados a identidade individuada. 0
cursor da caosmose nao cessa de oscilar entre esses diver-
sos focos enunciativos, nao para totaliza-los, sintetiza-los em
urn eu transcendente, mas para fazer deles, apesar de tudo,
urn mundo.
Estamos assim diante de dois tipos de homogenese: uma
homogenese normal e/ou neurotica, que evita ir muito Ion-
gee por muito tempo em dire<;ao a uma redu<;iio caosmica
106 Caosmose
em absoluto desamparo e entretanto foco virtual de com-
plexidade sem limite. Eternidade de urn mundo adulto pro-
fundamente infantil, que e preciso opor a hiperlucidez da
crian~a em medita~ao solitaria sobre o cosmos ou ao devir
crian~a da poesia, da musica, da experiencia mfstica. E so-
mente entao- quando, ao inves de reimpulsionar complei-
~oes de alteridade e de relan~ar processos de semiotiza~ao,
a caosmose se cristaliza, implode em abismo de angustia, de
depressao, de desorientat;:ao mental- que, sem duvida, se
coloca a questao de uma recomposit;:ao de Territories exis-
tenciais, de "enxertos de transferencia", de reles dialogicos,
de uma invent;:ao de pragmaticas assistenciais e institucio-
nais de todos os tipos. Logo, nada de herofsmo da psicose
mas, ao contrario, indexa<;ao sem complacencia do corpo
caosmico que ela leva a incandescencia e cujos restos pi-
soteados sao hoje em dia laminados pela quimioterapia, des-
de que este corpo deixou de ser cultivado, tal como tlores
monstruosas, pelo Hospicio tradicional.
A pulverulencia delirante primaria ou as grandes cons-
tru<;oes narrativas da paranoia, vias precarias de cura da in-
trusao do absoluto, nao podem ser colocadas no mesmo pla-
no que os sistemas de defesa bern socializados como os jo-
gos, os esportes, as manias alimentadas pelos mass mfdia,
as fobias racistas ... Sua mistura, entretanto, eo pao cotidia-
no da psicoterapia institucional e das esquizoanalises.
E assim igualmente no interior de uma miscehinea de
enunciados banais, de preconceitos, de estereotipias, de es-
tados de coisas aberrantes, de toda uma livre associa<;ao do
cotidiano, que convem destacar, ainda e sempre, esses pon-
tos Z ou Zen da caosmose, so localizaveis em contra-sen-
so, atraves de lapsos, de sintomas, de aporias, de passagens
ao ato em cenas somaticas, de urn teatralismo familialista,
ou atraves de engrenagens institucionais. Isso se deve, repi-
to, ao fato de a caosmose nao ser propria da psique indivi-
108 Caosmose
nam papeis, pontos de vista, comportamentos de submissao
e ate- por que nao? - processos liberadores. Quem diz a
verdade? Esta nao e mais a questao, mas sima de saber como
e em que condi<;:5es pode melhor aflorar a pragmatica dos
acontecimentos incorporais que recomporao urn mundo,
reinstaurado uma complexidade processual. As modeliza-
<;:5es idiossincraticas, enxertadas em uma analise dual, uma
auto-analise, uma psicoterapia de grupo ... sao sempre leva-
das a fazer emprestimos as linguas especializadas. Nossa
problematica de caosmose e de safda esquizoanalltica do
aprisionamento significante visa, em contrapartida a esses
emprestimos, a uma necessaria desconstru~ao a-significan-
te de sua discursividade e a uma perspectiviza<;:ao pragma-
tica de sua efidcia ontologica.
114 Caosmose
te nas maquina<;5es e nas vias maquinicas desterritorializa-
das capazes de engendrar essas subjetividades mutantes.
Quero dizer com isso que ha algo de artificial, de construi-
do, de composto - o que denomino uma processualidade
maqufnica- na redescoberta da oralidade pela poesia so-
nora. De urn modo mais geral, todo descentramento esteti-
co dos pontos de vista, toda multiplica<;ao polifonica dos
componentes de expressao, passam pelo prc-requisito de
uma desconstru<;ao das estruturas e dos c6digos em vigor e
por urn banho de ca6smico nas materias de sensa<;ao, a par-
tir das quais tornar-se-a possivel uma recomposi<;ao, uma
recria<;ao, urn enriquecimento do mundo (urn pouco como
se fala de uranin enriquecido ), uma prolifera<;ao nao ape-
nas das formas mas das modalidades de ser. En tao, nada de
oposi<;ao maniquefsta e nostalgica do passado entre uma boa
oralidade e uma rna escrituralidade, mas busca de focos
enunciativos que instaurarao novas clivagens entre outros
dentros e outros foras, que promoverao urn outro metabo-
lismo passado-futuro a partir do qual a eternidade podera
coexistir com o instante presente.
Sao, de fato, as maquina esteticas que, em nossa epo-
ca, nos prop5em os modelos relativamente mais bern reali-
zados desses blocos de sensa<;ao suscetiveis de extrair urn
sentido pleno a partir das sinaleticas vazias que nos inves-
tem por todos os lados. E nas trincheiras da arte que seen-
contram os nucleos de resistencia dos mais conseqiientes ao
rolo compressor da subjetividade capitalfstica, a da unidi-
mensionalidade, do equivaler generalizado, da segrega<;ao,
da surdez para a verdadeira alteridade. Nao se trata de fa-
zer dos artistas os novos her6is da revolu<;ao, as novas ala-
vancas da hist6ria! A arte aqui nao e somente a existencia
de artistas patenteados mas tambem de toda uma criativi-
dade subjetiva que atravessa os povos e as gera<;5es oprimi-
das, os guetos, as minorias ... Gostaria apenas de enfatizar
116 Caosmose
Estranhos aparatos, dirao voces, essas maquinas de vir-
tualidade, esses blocos de perceptos e de afetos mutantes,
meio-objeto meio-sujeito, ja instaurados na sensa<;:ao e fora
deles mesmos nos campos de possivel. Nao serao facilmen-
te encontradas no mercado habitual da subjetividade e tal-
vez ainda menos no da arte, entretamo elas habitam tudo o
que concerne a cria<;:ao, ao desejo de devir outro, assim como
alias a desordem mental ou as paixoes do poder. Tentemos,
agora, tra<;:ar 0 perfil dessas maquinas a partir de algumas
de suas caracterfsticas principais.
Os Agenciamentos de desejo estetico e os operadores
da ecologia do virtual nao sao entidades que possamos fa-
cilmeme circunscrever na logica dos conjuntos discursivos.
Eles nao possuem nem dentro nem fora. Sao interfaces sem
limite que secretam a interioridade e a exterioridade, que se
constituem na raiz de todo sistema de discursividade. Sao
devires, entendidos como focos de diferencia<;:ao, por um
lado no centro de cada dominio e, por por outro, entre do-
minios diferentes para acentuar sua heterogeneidade. Um
devir crian<;:a, por exemplo, na musica de Schumann, se ex-
trai das recorda.;oes de infancia para encarnar um presente
perpetuo que se instaura como urn entroncamento, jogo de
bifurca<;oes entre devires: devir mulher, devir planta, devir
cosmo, devir melodico ...
Se esses Agenciamentos nao sao detectaveis em rela.;ao
a sistemas de referencia extrinsecos tais como as coordena-
das energetico-espacio-temporais, ou coordenadas semanti-
cas bern catalogadas, nao sao menos apreensiveis a partir de
tomadas de consistencia ontologicas, transitivistas, trans-
versalistas e paticas. Nao os conhecemos atraves de represen-
ta<;oes mas por contamina<;iio afetiva. Eles se poem a existir
em voce, apesar de voce. E nao apenas como afetos rudes,
indifereciados mas como composi<;iio hipercomplexa: "e De-
bussy, e jazz, eVan Gogh". 0 paradoxa ao qual nos conduz
118 Caosmose
tica, pode tambem morrer por falta de realimentac;ao pos-
s!vel ou derivar em direc;ao a destinos que o tornem estran-
geiro a ele mesmo.
Eis entao uma entidade, urn ecossistema incorporal,
cujo ser nao e garantido do exterior, que vive em simbiose
com a alteridade que ele mesmo concorre para engendrar,
que amea~a desaparecer se sua essencia maquinica for da-
nificada acidentalmente- os bons e os rna us encontros do
jazz como rock- ou quando sua consistencia enunciativa
estiver abaixo de urn certo limite. Nao e urn objeto "dado"
em coordenadas extrinsecas mas urn Agenciamento de sub-
jetiva~ao dando sentido e valor a Territorios existenciais de-
terminados. Esse Agenciamento deve trabalhar para viver,
processualizar-se a partir das singularidades que o atingem.
Tudo isso implica a ideia de uma necessaria pnitica criati-
va e mesmo de uma pragmatica ontologica. Sao novas ma-
neiras de ser do ser que criam os ritmos, as formas, as co-
res, as intensidades da dan~a. Nada esta pronto. Tudo deve
ser sempre retomado do zero, do ponto de emergencia ca6s-
mica. Potencia do eterno retorno do estado nascente.
Apos Freud, os psicanalistas kleinianos e lacanianos,
cada urn a sua maneira, apreenderam esse tipo de entidade
em seu campo de investigac;ao batizando-o: "objeto parcial",
"objeto transicional", e situando-o na intersec;ao de uma
subjetividade e de uma alteridade elas mesmas parciais e
transicionais. Mas eles jamais o desinseriram de uma infra-
estrutura pulsional causalista; jamais lhe conferiram dimen-
soes de Territorio existencial multivalente e de criatividade
maqufnicas de horizontes sem limites. Certamente Lacan
teve 0 merito, com sua teoria do objeto "a"' de desterrito-
rializar a noc;ao de objeto do desejo, de defini-lo como nao
especularizavel, escapando assim as coordenadas de espa-
c;o e de tempo, de faze-lo sair do campo limitado ao qual os
pos-freudianos o haviam destinado - o do seio materno,
1 Espac;:o
nbsrrato no qual os eixo~ rcpr<'"'Jll:llll as variaveis que ca-
racterizam o sistema.
120 Caosmose
plexidade eo caos. Urn grito, um azul monocromatico fazem
surgir urn Universo incorporal, intensivo, nao-discursivo,
patico, em cujo rastro sao desencadeados outros Universos,
outros registros, outras bifurcas;oes maquinicas. Constela-
s;oes singulares de universos. As narrativas, os mitos, os leo-
nes mais elaborados nos levam sempre a esse ponto de bas-
cula caosmica, a essa singular oralidade ontologica. Algo se
absorve, se incorpora, se digere, a partir do que novas linhas
de senti do se esbos;am e se alongam. Seria preciso passar por
esse ponto umbilical- as escaras brancas e pardacentas no
fundo da garganta de Irma, no sonho inaugural de Freud,
ou a rigor urn objeto fetiche e conjuratorio para que possa
advir um retorno de finitude e de precariedade, para en-
contrar uma saida para os sonhos eternitarios e mortiferos,
para tornar a dar, enfim, o infinito a urn mundo que amea-
s;ava sufocar.
Os blocos de sensas;ao da oralidade maqufnica desta-
cam do corpo uma carne desterritorializada. Quando eu
"consumo" uma obra- que seria necessaria denominar de
outro modo, pois ela pode ser igualmente ausencia de obra
- ea uma cristalizas;ao ontol6gica complexa que procedo,
a uma alterificas;ao de todo ser-ai. lntimo o ser a existir di-
ferentemente e usurpo-lhe novas intensidades. Seria neces-
saria precisar que uma tal produtividade ontologica nao se
resume de forma alguma a uma alternativa de sere de ente
ou de sere de nada? Nao apenas eu e urn outro mas e uma
multidao de modalidades de alteridade. Nao estamos mais
mergulhados aqui no Significante, no Sujeito e no Outro em
geral. A heterogeneidade dos componentes - verbais, cor-
porais, espaciais ... - engendra uma heterogenese ontol6gica
tanto mais vertiginosa na medida em que se enlas;a atual-
mente com a proliferas;ao de novos materiais, de novas re-
presentas;oes eletronicas, de uma retras;ao de distancias e de
urn alargamento dos pontos de vista. A subjetividade infor-
122 Caosmose
0 Novo Paradigma Estetico
Na historia do Ocidente, so tardiamente a arte desta-
cou-se como atividade especffica, da ordem de uma referen-
cia axiologica particularizada. Nas sociedades arcaicas, a
dan~a, a mtisica, a elabora~ao de formas pL:isticas e de sig-
nos no corpo, nos objetos, no chao, estavam intimamente
mescladas as atividades rituais e as representa~oes religio-
sas. Da mesma forma, as rela~oes sociais, as trocas econo-
micas e matrimoniais nao eram muito discernfveis do con-
junto da vida daquilo que propus chamar de Agenciamen-
tos territorializados de enuncia~ao. Atraves de diversos mo-
dos de semiotiza~iio, de sistemas de representa~ao e de pra-
ticas multireferenciadas, tais agenciamentos conseguiam
zer cristalizar segmentos complementares de subjetividade,
extrair uma alteridade social pela conjuga~iio da filia~ao e
da alian~a, induzir uma ontogenese pessoal pelo jogo das fai-
xas et<irias e das inicia~oes, de modo que cada indivfduo se
encontrasse envolto por varias identidades transversais co-
letivas ou, se preferirem, no cruzamento de intimeros veto-
res de subjetiva~ao parcial. Nestas condi<;:oes, o psiquismo
de urn individuo nao estava organizado em faculdades in-
teriorizadas, mas dirigido para uma gama de registros ex-
pressivos e praticos, diretamente conectados a vida social e
ao mundo externo.
Uma tamanha interpenetra~ao entre o socius, as ativi-
dades materiais e os modos de semiotiza<;:ao deixava pouco
Iugar para uma divisao e uma especializa~ao do trabalho-
ficando, alias, a propria no<;:ao de "trabalho" urn tanto vaga.
E, correlativamente, tal interpenetra<;:iio tampouco deixava
muito Iugar para a separa<;:ao de uma esfera estetica, distin-
ta de outras esferas: economica, social, religiosa, polftica ...
Nao se trata aqui de retra<;:ar, mesmo que sucintamen-
te, as diversas vias de desterritorializa~ao de tais Agencia-
mentos territorializados de enuncia~ao. Destaquemos ape-
nas que sua evolu~ao geral ira no sentido de acentuar a in-
128 Caosmose
rios de viagem, as expedi<;;oes coloniais, aos romances de
aventura, cuja aura de misterio estava sendo intensificada
pela fotografia, pelo cinema, pelas grava<;;oes sonoras e pelo
desenvolvimento da etnologia de campo. Se nao e ilegitimo
e see sem duvida inevitavel projetar sabre o passado os pa~
radigmas esteticos da modernidade, isto s6 pode acontecer
com a condi<,:ao de se considerar o caniter relativo e virtual
das constelac;oes de universos de valor, as quais da Iugar este
tipo de recomposic;ao.
A ciencia, a tecnica, a filosofia, a arte, a conduta hu-
mana defrontam~se com coer<;;oes, com resistencias de rna~
teriais especfficos, que elas desfazem e articulam, nos limi-
tes dados, com a ajuda de c6digos, de urn savoir-faire, de
ensinamentos hist6ricos que as levam a fechar algumas por~
tas e a abrir outras. As rela<;;oes entre os modos finitos des~
ses materiais e os atributos infinitos dos Universos de pos-
sfvel que eles implicam nao sao identicas em cada uma des-
sas diferentes atividades. A filosofia, par exemplo, engen~
dra seu proprio registro de coer\'6es criativas, secreta seu
material de referencia textual, cuja finitude ela projeta a uma
potencia infinita que corresponde ao autoposicionamento
e a autoconsistencia ontol6gica de seus conceitos~chave, pelo
menos em cada fase de muta<;ao de seu desenvolvimento. Ja
OS paradigmas da tecnociencia, por sua vez, dao enfase ao
mundo objetal de rela<;;oes e de fun\'5es, mantendo sistema-
ticamente entre parenteses os afetos subjetivos, de modo que
o finito, o delimitado coordenavel, acabe sempre prevale-
cendo sobre o infinito de suas referencias virtuais.
Na arte, ao contrario, a finitude do material sensivel
torna~se urn suporte de uma produ\'ao de afetos e de per-
ceptos que tended cada vez mais a se excentrar em rela\'ao
aos quadros e coordenadas pre~formadas. Marcel Duchamp
declarava: "a arte e urn caminho que leva para regioes que
o tempo e o espa<;o nao regem ". Os diferentes campos do
1\0 Caosmose
tadas no campo social, mas a uma dimensao de cria<;ao em
estado nascente, perpetuamente acima de si mesma, paten-
cia de emergencia subsumindo permanentemente a contin-
gencia e as vicissitudes de passagem a ser dos universos ma-
teriais. Horizonte remanescente do tempo discursivo - o
tempo batido pelos rel6gios sociais - , uma dura<;ao eter-
nitaria habita com espantosa intensidade o afeto da subje-
tividade territorializada, escapando da alternativa lembran-
<;·a-esquecimento. 0 territ6rio existencial, aqui, se faz ao
mesmo tempo terra natal, pertencimento do eu, amor do cHi,
efusao c6smica. ~esse primeiro caso de Agenciamento, a
categoria de espa<;o encontra-se numa postura bern particu-
lar, que podemos qualificar de globalmente estetizada. Es-
tratos espaciais polifonicos, freqiientemente concentricos,
parecem atrair, colonizar, todos os niveis de alteridade que,
por outro lado, eles pr6prios engendram. Os objetos instau-
ram-se em rela<;ao a tais espa<;os em posi<;ao transversal,
vibrat6ria, conferindo-lhes uma alma, urn devir ancestral,
animal, vegetal, c6smico.
Essas objetidades-subjetidades sao levadas a trabalhar
por conta propria, a se encarnar em foco animista: imbri-
cam-se umas com as outras, invadem-se, para constituir en-
tidades coletivas meio-coisa, meio-alma, meio-homem,
meio-animal, maquina e fluxo, materia e signo ... 0 estran-
geiro, o estranho, a alteridade malefica sao remetidos para
urn exterior que amea<;a. Mas as esferas da exterioridade nao
sao radicalmente separadas do interior. Maus objetos inter-
nos tern que responder por tudo aquilo que rege os mundos
externos. Na verdade, nao ha de fato urn exterior: a subje-
tividade coletiva territorializada e hegemonica; ela rebate OS
universos de valor, uns sobre os outros, atraves de urn mo-
vimento geral de fechamento em torno de si mesma; ela rima
os tempos e os espa<;os ao sabor de suas medidas internas,
de seus ritornelos rituais.
112 Caosmose
bricolages que levavam a invoca-las, a provoca-las, corren-
do-se o risco de que se revelassem evanescentes, mudas, ou
perigosas. 0 valor transcendente, por sua vez, coloca-se
como inamovivel, tendo sempre estado e ai devendo per-
manecer para sempre. Face a tal valor, a subjetividade fica
perpetuamente em falta, culpada a priori ou, na melhor das
hip6teses, em estado de "concordata ilimitada" (segundo a
formula do Processo de Kafka). A "mentira do ideal", como
e~crevia Nietzsche, se torna "a maldi<;:ao suspensa acima da
realidade" 1•
Assim a subjetividade modular nao tern mais o controle
sobre a dimensao de emergencia dos valores, que se encon-
tra neutralizada sob o peso das tabelas de c6digos, de regras
e de leis decretadas pelo enunciador transcendente. Esta sub-
jetividade nao mais resulta de uma intrinca<;ao com contor-
nos m6veis das esferas de valoriza<;:ao arrimadas as materias
de expressao; ela e recomposta enquanto individua<;:ao rei-
ficada, a partir de Universais dispostos segundo uma hierar-
quia arborescente. Direitos, deveres e normas imprescritfveis
expropriam as antigas interdi<;:oes que sempre deixavam um
Iugar para a conjura<;:ao e para a transgressao. Essa seto-
riza<;:ao e bipolariza<;ao dos valores pode ser qualificada de
capitalistica em razao do esgotamcnto, da desqualifica<;ao
sistematica das materias de expressao que ela realiza e que
as engajam na 6rbita da valoriza<;ao econ6mica do CapitaL
Este trata num mesmo plano formal valores de desejo,
valores de uso e valores de troca, e faz passar qualidades
diferenciais e intensidades nao discursivas sob a egide
exclusiva de rela<;ocs binarias c lineares. A subjctividade
padronizou-se atraves de uma comunica<;ao que elimina, ao
maximo, as composi<;:oes enunciativas trans-semi6ticas
1.14 Caosmose
tencia autopoietica ele s6 faz intensificar. Entretanto, o fim
da autarquia e do esvaziamento dos universos de valor da fi-
gura precedente nao mais constitui sinonimo de uma volta
aagrega<;;ao territorializada dos Agenciamentos emergentes.
Do regime da transcendencia reducionista nao recaimos
na reterritorializa<;;ao do movimento do infinito segundo os
modos finitos. A estetiza<;;ao geral (e relativa) dos diversos
Universos de valor conduz a urn reencantamento de outra
natureza das modalidades expressivas da subjetivas;ao. Ma-
gia, misterio e demoniaco nao mais emanarao, como ou-
trora, da mesma aura totemica. Os territ6rios existenciais·
se diversificam, se heterogenizam. 0 acontecimento nao e
mais delimitado pelo mito, masse torna foco de relance pro-
cessuaL 0 choque incessante do movimento da arte com os
papeis estabelecidos- ja desde o Renascimento, mas so-
bretudo durante a epoca moderna - , sua propensao a re-
novar suas materias de expressao e a textura ontol6gica dos
perceptos e dos afetos que ele promove, operam se nao uma
contaminas;ao direta dos outros campos, no minimo oreal-
ce e a reavalias;ao das dimens6es criativas que os atraves-
sam a todos.
E evidente que a arte nao detem o monop6lio da cria-
s;ao, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de in-
vens;ao de coordenadas mutantes, de engendramento de qua-
lidades de ser ineditas, jamais vistas, jamais pensadas. 0
limiar decisivo de constitui<;;ao desse novo paradigma este-
tico reside na aptidao desses processos de cria<;;ao para se
auto-afirmar como fonte existencial, como maquina auto-
poietica. Ja podemos pressentir o fim dos grilh6es que a
referencia a uma Verdade transcendente impunha as cien-
cias como garante de sua consistencia te6rica. Tal consis-
tencia, hoje, parece depender cada vez mais de modelizac;;:6es
operacionais, que se encontram 0 mais coladas possfvel a
empiria imanente. Sejam quaisforem as viradas da hist6ria,
Caosmose
rico. Nlas, para estabelecer essa ponte, temos que nos des-
fazer de visoes mecanicistas da maquina e promover uma
concep<;ao que englobe, ao mesmo tempo, seus aspectos
tecnologicos, biologicos, informaticos, sociais, teoricos, es-
teticos. E aqui, mais uma vez, e a maquina estetica que nos
parece a mais capaz de revelar alguma de suas dimensoes
essenciais, muitas vezes desconhecidas - a da finitude re-
lativa a sua vida e a sua morte, a da produ<;ao de proto-al-
teridade no registro de seu entorno e de suas multiplas im-
plica<;oes, a de suas filia<;oes geneticas incorporais ...
0 novo paradigma estetico tern implica<;oes etico-po-
llticas porque quem fala em cria<;ao, fala em responsabili-
dade da instancia criadora em rela<;ao a coisa criada, em
inflexao de estado de coisas, em bifurca<;ao para alem de es-
quemas pre-estabelecidos e aqui, mais uma vez, em con-
sidera<;ao do destino da alteridade em suas modalidades
exrremas. l\1as essa escolha etica nao mais emana de uma
enuncia<;ao transcendenre, de urn codigo de lei ou de urn
deus unicc) e todo-poderoso. A propria genese da enuncia-
<;ao encontra-se tomada pelo movimento de cria<;ao proces-
sual. Isto e bern nftido no caso da enuncia<;ao cientffica, que
tern sempre uma cabe<;a multipla: cabe<;a individual, e cla-
ro, mas tambem cabe<;a coletiva, cabe<;a institucional, cabe<;a
maqufnica com os dispositivos experimentais, a infonmiti-
ca com os bancos de dados e a inteligencia artificiaL.
0 processo de diferencia<;ao dessas interfaces maquf-
nicas multiplica os focos enunciativos auto poeticos e os
torna parciais na medida em que tal processo se estende para
todos os lados atraves dos campos de virtualidade dos uni-
versos de referenda. Mas como podemos ainda falar de uni-
versos de valor com esse esfacelamento da individua<;ao do
sujeito e essa multiplica<;ao das interfaces maqufnicas? Nao
sendo mais agregados e territorializados como na primeira
figura de Agenciamento, ou autonomizados e transcenden-
138 Caosmose
tro de formas e de estruturas, no horizonte absoluto de to-
dos os processos de cria..;:ao. Nao se coloca entao a quali-
dade ou o atributo como segundo em rela,;;ao ao ser ou a
substancia; nao se parte de urn ser como puro continente
vazio e a priori de todas modalidades possiveis de existen-
te. 0 sere antes de tudo autoconsistencia, auto-afirma..;:ao,
existencia para si desenvolvendo rela,;;oes particulares de
alteridade. 0 para-si, e o para-outrem deixam de ser o pri-
vilegio da humanidade, eles cristalizam em toda parte em
que interfaces maqufnicas engendrem disparidade e, em con-
trapartida, sao fundadas por ela. A enfase nao e mais co-
locada sobre o Ser, como equivalente ontol6gico geral, o
qual, pela mesma razao que outros equivalentes (o Capital,
a Energia, a Informa..;:ao, o Significanre), envolve, delimita
e dessingulariza o processo, mas sobre a maneira de ser, a
maquina,;;ao para criar o existente, as praxis geradoras de
heterogeneidade e de complexidade.
A apreensao fenomenol6gica do ser, existente enquan-
to facticidade inerte, s6 se da no quadro de experiencias
limites tais como a nausea existencial ou a depressao me-
lanc6lica. A tomada de ser maquinica, por sua vez, sera
antes desdobrada atraves de envolvimentos temporais e es-
paciais mtiltiplos e polif6nicos e de desenvolvimentos po-
tenciais, racionais e suficientes, em termos de algoritmos de
regularidades e de leis, cuja textura e tao real quanto suas
manifesta..;:oes atuais. Uma ecologia do virtual se impoe en-
tao aqui como complemento necessario das ecologias do ja
existente.
As entidades maquinicas que atravessam esses diferen-
tes registros de mundos atualizados e de Universos incor-
porais sao umJano bifronte. Elas existem paralelamente em
estado discursivo no seio dos Fluxos molares, em rela..;:ao de
pressuposi.:;ao com urn corpus de proposi..;:oes semi6ticas
possiveis e em estado nao-discursivo, no seio de focos enun-
140 Caosmose
Iindo sua diversidade figural e homogeneizando-se no inte-
rior de urn mesmo ser-nao-ser. Elas nao cessam, de algum
modo, de mergulhar em uma zona umbilical caotica em que
perdem suas referencias e suas coordenadas extrinsecas, mas
de onde podem reemergir investidas de novas cargas de com-
plexidade. E no percurso dessa dobragem ca6smica que se
acha instaurada uma interface emre a finitude sensfvel e a
infinitude trans-sensfvel dos Universos de referencia que lhe
estao arrimados.
Oscila-se assim entre, por um lado, um mundo finito
em velocidades desaceleradas, em que um limite se esbo~a
sempre por tnis de urn limite, uma coa~ao por detnis de uma
coa~ao, um sistema de coordenada por detnis de outro sis-
tema de coordenada, sem que se chegue jamais a tangente
ultima de urn ser-materia que escapa por toda parte e, por
outro !ado, Universos de velocidade infinita em que o ser nao
se recusa mais, em que ele se da em suas diferen~as intrin-
secas, em suas qualidades heterogeneticas. A maquina, to-
das as especies de maquina estao sempre nesse cruzamento
do finito e do infinito, nesse ponto de negocia<,_:ao entre a
complexidade e o caos.
Esses dois tipos de consistencia ontologica: o ser-qua-
lidade heterogenetica e o ser-materia-nada nao implicam
nenhum dualismo maniquefsta, ja que se instauram a par-
tir do mesmo plano de imanencia entitario e se envolvem
um ao ourro. Mas o pre<;:o desse primeiro nfvel de imanen-
cia do caos e da complexidade e que ele nao da a chave da
estabiliza~ao, da localiza~ao, da ritmiza~ao das estases e es-
tratos caosmicos reduzidos, das "paradas na imagem" da
complexidade, daquilo que a impede de voltar atras para
so~obrar mais uma vez no caos e daquilo que as leva, ao
contrario, a engendrar limites, regularidades, coa~oes, leis,
todas as coisas de que a segunda dobragem autopoietica
deve dar coma.
142 Caosmose
das de velocidades finitas, de uma conversiio do virtual em
possfvel, do reversfvel em irreversfvel, do diferido em dife-
ren<;a. As mesmas multiplicidades entitarias constituindo os
Universos virtuais e os mundos possfveis, essa potencialidade
de bifurca<;iio sensfvel finita, inscrita em uma temporalida-
de irreversivel, permanece em absoluta pressuposi<;iio reci-
proca com a reversibilidade atemporal, o eterno retorno
incorporal da infinitude.
Um lance de dados
]amais
Mesmo quando lan~ado em circunstancias eternas
Do (undo de um naufragio ...
144 Caosmose
patinae transitar a complexidade, coloca-a em rela<;ao
com ela mesma e como que lhe e outro, com o que a altera.
Essa atualiza<;ao da diferen<;a opera uma sele<;ao agregativa
sabre a qual poderao se enxertar limites, constantes, esta-
dos de coisas. Desde ja nao estamos mais nas velocidades
de dissolu<;ao infinitas. Ha urn resto, uma reten<;ao, a ere-
s;ao seletiva de semelhan<;as e dessemelhan<;as. Em simbiose,
compleis;6es infinitas, composi<;6es finitas se engastam em
coordenadas extrfnsecas, agenciamentos enunciativos se en-
caixam em relas;6es de alteridade. A linearidade, matriz de
toda ordenas;ao, ja e uma desacelera<;ao, urn enviscamento
existenciaL
Pode parecer paradoxa! que seja a persistencia de uma
nadifica<;ao, ou melhor, de uma desterritorializas;ao inten-
siva, que de sua consistencia corporal aos estados de coisas ·
e aos pontos de vista autopoieticos. Mas s6 esse tipo de re-
cuo linearizante e rizomatico pode selecionar, dispor e di-
mensionar uma complexidade que vivera, doravante, sob o
duplo regime de uma desaceleras;ao discursiva e de uma ve-
locidade absoluta de nao-separabilidade. A complei<;ao vir-
tual selecionada se encontra marcada por uma
versivel facticidade envolvida por uma prototemporalidade
que se pode ao mesmo tempo qualificar de instantanea e de
eterna, facilmente reconhecfvel na apreensao fenomenol6-
gica dos Universos de valor. 0 transmonadismo, por urn
efeito a posteriori, faz cristalizar, no interior da sopa ca6ti-
ca primitiva, coordenadas espaciais, causalidades temporais,
escalonamentos energeticos, possibilidades de cruzamento
das complei<;6es, toda uma "sexualidade" ontol6gica, feita
de bifurca<;6es e de muta<;6es axiol6gicas.
Assim, a segunda dobra de ordena<;ao autopoietica,
fundamentalmente ativa e criacionista, desprende-se da pas-
sividade inerente a primeira dobra ca6smica. A passivida-
de vai se transformar em limite, em enquadramento, em ri-
146 Caosmose
tambem sempre em vias de ser perdido. A irreversibilidade
propria aos eventos-adventos do grasping e do transmona-
dismo da autopoiese e consubstancial a uma resistencia per-
manente as repeti<;:6es circulates reterritorializantes e a uma
constante renova<;:ao dos enquadramentos esteticos, dos dis-
positivos cientfficos de observa<;:ao parcial, das rnontagens
conceiruais filos6ficas, da instala<;:ao de "habitat" (oikos)
politicos ou psicanalfticos (ecosofia).
Produzir novos infinitos a partir de urn mergulho na
finitude sensfvel, infinitos nao apenas carregados de virrua-
lidade, mas tambem de potencialidades atualizaveis em situa-
<;:ao, se demarcando ou contornando os Universais reperto-
riados pelas artes, pela filosofia, pela psicanalise tradicionais:
todas as coisas que implicam a promo<;:ao permanente de
outros agenciamentos enunciativos, outros recursos semi6-
ticos, uma alteridade apreendida em sua posi<;:ao de emer-
gencia- nao-xen6foba, nao-racista, nao-falocratica -,de-
vires intensivos e processuais, urn novo amor pelo desconhe-
cido ... Enfim, urn a politica de uma etica da singularidade,
em ruptura corn os consensos, os "lenitivos" infantis desti-
lados pela subjetividade dominante. Dogmatismos de todo
tipo investem e opacificarn esses pontos de criacionismo que
tornam necessario 0 afrontarnento sem descanso, na anali-
se do inconsciente, como em todas as outras disciplinas, de
colapsos de sem sentido, de contradi<;:6es insohiveis, mani-
festa<;:ao de curto-circuitos entre a complexidade e o caos.
Por exemplo, o caos democr:hico que encobre uma infini-
dade de vetores de re-singulariza<;:ao, de atratores de criati-
vidade social em busca de atualiza<;:ao. Nao se trata aqui do
aleat6rio neoliberal e de seu fanatismo da economia de mer-
cado, mercado univoco, mercado das redundancias de poder
capitalisricas, mas de uma heterogenese de sistemas de va-
loriza<;:ao e de uma eclosao de novas praticas sociais, artis-
ticas, analfticas.
148 Caosmose
Espa~o e Corporeidade
0 espa<;:o eo corpo, quando considerados por discipli-
nas como a arquitetura e a medicina, sao apreendidos a
partir de categorias distintas e autonomas. E de urn ponto
de vista completamente diferente que desejo aqui relaciona-
los: o de seu Agenciamento de enuncia<;:ao.
A abordagem fenomenol6gica do espa<;:o e do corpo vi-
vido mostra-nos seu carater de inseparabilidade. Por exem-
plo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com
as diferentes modalidades de semiotiza<;:ao espacial que po-
nho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo
e acompanhada por urn desdobramento de espa<;:os imagi-
narios. Quando dirijo urn carro, minha atra<;:ao pelo espa-
<;:o frontal equivale a colocar entre parenteses meu esquema
corporal, deixando de lado a visao e os membros que se
acham em posi<;:ao de sujei<;:ao cibernetica a maquina auto-
mobilistica e aos sistemas de sinaliza<;:ao emitidos pelo meio
rodoviario. No cinema, o corpo se encontra radicalmente
absorvido pelo espa<;:o filmico, no seio de uma rela<;:ao qua-
se hipn6tica. Durante a leitura de urn texto escrito, o tra<;:a-
do da articula<;:ao fonematica libera, de modo descontfnuo,
suas seqiiencias significativas de articula<;:ao monematica.
Ainda ai urn outro Agenciamento de enuncia<;:ao desenca-
deia outras modalidades de espacializa<;:ao e de corpora-
lidade. 0 espa<;:o da escritura e, sem duvida, urn dos mais
misteriosos que se nos oferece, e a postura do corpo, os rit-
mos respirat6rios e cardiacos, as descargas humorais nele
interferem fortemente. Tantos espa<;:os, entao, quantos fo-
rem os modos de semiotiza<;:ao e de subjetiva<;:ao.
Mas nao devemos nos contentar com esse primeiro as-
pecto de diversifica<;:ao diacronica. Existe igualmente, a cada
instante da demarca<;:ao aqui e agora, urn "folheado" sin-
cronico de espa<;:os heterogeneos. Para retomar OS exemplos
precedentes, posso ao mesmo tempo me encontrar atraido
pelo ponto de fuga da circula<;:ao rodoviaria e desdobrar urn
154 Caosmose
outra parte, quando esse exagero da altura nao era reitera-
do, o afeto complexo da infancia que a estava associado
nao podia ser desencadeado.
Esse exemplo nos mostra que percep<;:6es atuais does-
pa<;:o podem ser "duplicadas" por percep<;:6es anteriores, sem
que se possa falar de recalque ou de conflito entre represen-
ta<;:6es pre-estabelecidas, ja que a semiotiza<;:ao da recorda-
<;:ao de infancia fora acompanhada, aqui, pela cria<;:iio ex-
nihilo de uma impressao de carater poetico
0 psicanalista e etologo americana Daniel Stern, em seu
livro The Impersonal World of the Infant\ elaborou uma
concep<;:ao do self muito inovadora, que pode nos esclare-
cer um pouco sobre o carater polifOnico da subjetividade.
Ele descreve, no lactente, ate a idade de dois anos, quatro
estratifica<;:6es do self:
-do nascimento dois meses: o self emergente (sense
of an emergent self);
de dois-tres meses sete-nove meses: o self mkleo
(sense of a core self);
de sete-nove meses ate quinze meses: o self sub;eti-
vo (sense of a subjective self);
apos quinze meses: o self verbal (sense of a verbal
self).
Enfatizemos que cada urn desses componentes do eu, uma
vez aparecendo, continua a existir paralelamente aos outros
e e suscetivel de subir a superficie, ao primeiro plano da sub-
jetividade, de acordo com as circunstancias. Daniel Stern
renuncia aqui as psicogeneses diacronicas do tipo das fases
psicanaliticas - fase oral, fase anal, fase genital, periodo de
lactencia ... - onde os retornos no tempo cram sinonimo de
fixa<;:ao arcaica e de regressao. Daqui em diante, existe verda-
deiramente polifonia das forma<;:6es subjetivas.
1 Op. cit.
2
Op. cit, p. 113.
156 Caosmose
me abandonam, eles tambem, em uma cidade estrangeira.
Quanto ao self verbal, ele consiste em transformar em fra-
ses urn acontecimento que, na int':incia, foi vivido, em sua
essencia, no aquem da linguagem.
Essa experiencia de subjetiva<;ao do espa<;o s6 apresenta
urn carater de exce<;ao na medida em que revela uma falha
psiquica deixando entrever, de modo quase pedag6gico, as
estratifica<;oes do self. Mas qualquer outro espa<;o vivido
engajaria igualmente tais aglomerados sincronicos da psi-
que que apenas o trabalho poetico, a experiencia delirante
ou a explosao passional podem atualizar. E assim que cer-
tos psic6ticos se encontram atormentados por vozes, nos
quatro cantos do espa<;o, que os interpelam, freqiientemente
para insulta-los.
Sera que a arquitetura tern alguma rela<;ao com essa
diacronia e essa polifonia dos espa<;os? Seria o dominio cons-
truido sempre univoco, de "mao unica"? Evidentemente
qualquer constru<;ao e sempre sobredeterminada ao menos
por urn estilo, mesmo quando esse estilo brilha por sua au-
sencia. Como diz Wittgenstein: "cada coisa se encontra, por
assim dizer, em urn espa<;o de coisas possiveis".
Tomemos, por exemplo, a textura dos materiais e os
dispositivos espaciais daquilo que se convencionou chamar
"a Ida de Media". Eles sao sempre portadores de urn a aura
de misterio como se seu proprio apoio no solo os irrigasse
com uma potencia secreta. Uma feiticeira ou urn alquimis-
ta continua, ai, a trabalhar furtivamente desde urn tempo
imemorial. Ao contrario, e a urn mundo de fic<;ao cientifica
que nos remetem as extraordinarias constru<;oes de urn Shin
Takamatsu e isso apesar de seu carater maquinico "ultra-
passado", posto que fixado aos cliches futuristas do inicio
do seculo. Quer tenhamos consciencia ou nao, 0 espa<;o
construido nos interpela de diferentes pontos de vista: esti-
listico, hist6rico, funcional, afetivo ... Os edificios e constru-
158 Caosmose
fera<;;ao extraordinaria dos componentes subjetivos, tanto
para o melhor quanta para o pior. (Subjetividade coletiva
da reemergencia de arcafsmos religiosos e nacionalistas. Sub-
jetividade maqufnica dos mass mfdia, da qual se pode espe-
rar que terminara, ela tambem, por encontrar as vias da sin-
gularidade, engajando-se em uma era p6s-mfdia) Todos es-
ses componentes de subjetividade social, maqufnica e este-
tica nos assediam literalmente par toda parte, desmembran-
do nossos antigos espa<;;os de referencia. Com maior ou me-
nor felicidade e com uma velocidade de desterritorializa<;;ao
cada vez maior, nossos 6rgao sensoriais, nossas fun<;;oes or-
ganicas, nossos fantasmas, nossos reflexos etol6gicos seen-
contram maquinicamente ligados em urn mundo tecnico-
cientffico que esta realmente engajado em urn crescimento
louco. 0 mundo nao muda mais de dez em dez anos, mas
de ana em ana. Nesse contexto, a programa<;;ao arquitetu-
ral e urbanfstica parece caminhar a passos de dinossauro.
Assim urn arquiteto escrupuloso seria condenado a perma-
necer de bra<;;os cruzados face a complexidade das questoes
que o assolam?
Mas se e verdade que as intera<;;oes entre o corpo e o
espa<;;o construfdo se desdobram atraves de campos de vir-
tualidade cuja complexidade beira o caos- cidades como
o Mexico se dirigem a toda velocidade para uma asfixia eco-
16gica e demografica que parece insuperavel-, talvez cai-
ba aos arquitetos e aos urbanistas pensar tanto a complexi-
dade quanta o caos segundo caminhos novas? 0 equivalente
aqui dos "atratores estranhos" da termodinamica dos esta-
dos distantes do equilfbrio poderia ser buscado junto aos
Agenciamentos potenciais de enuncia<;;ao que habitam secre-
tamente o caos urbana e arquitetural. Mas de urn tal para-
digma cientffico devemos rapidamente passar a urn para-
digma estetico. 0 projeto (dessin) do arquiteto- que, em
frances e hom6fono de inten<;;ao (dessein), 0 objetivo, a fi-
160 Caosmose
rem sua autoconsistencia subjetiva. Pode parecer paradoxa!
deslocar assim a subjetividade para conjuntos materiais, por
isso falaremos aqui de subjetividade parcial; a cidade, a rua,
o predio, a porta, o corredor. .. modelizam, cad a urn por sua
parte e em composi<;;oes globais, focos de subjetiva<;;ao. 0
agorafobo, por exemplo, experimenta uma perda de consis-
tencia de uma maquina espacial complexa para a qual con-
correm: o lugar que ele atravessa, a circula<;;ao que ele res-
sente como uma amea<;;a, o olhar dos passantes, sua propria
apreensao existencial de urn espa<;;o dilatado ao extrema e
seus fantasmas de perdi<;;ao.
Mas de que meios o arquiteto dispoe para apreender e
cartografar essas produ<;;oes de subjetividade que seriam ine-
rentes ao seu objeto e a sua atividade? Poder-se-ia falar aqui
de uma transferencia arquitetural que, evidentemente, nao
se manifestaria atraves de urn conhecimento objetivo de
carater cientffico, mas por intermedio de afetos esteticos
complexos. 0 que caracteriza esse conhecimento, que ap6s
Viktor Von Weizsaker pode-se qualificar de patico, eo fato
de que ele nao procede de uma discursividade concernente
a conjuntos bern delimitados, mas antes por agrega<;;ao de
Territ6rios existenciais. Ele nos permite postular a existen-
cia de urn mesmo enunciador parcial por detras de entida-
des tao diferentes e heterogeneas quanto as forma<;;oes do
eu, as partes do corpo real e do corpo imaginario, o espa<;;o
domestico vivido, a rela<;;ao como "companheiro evocado",
OS tra<;;OS inerentes a etnia, a vizinhan<;;a e, bern entendido,
o espa<;;o arquitetural. 0 exemplo mais simples de conheci-
mento patico nose dado pela apreensao de urn "clima"' 0
de uma reuniao ou de uma festa que apreendemos imedia-
tamente e globalmente e nao pelo acumulo de informa<;;oes
distintas. A "compreensao" da psicose e dessa ordem bern
como a do objeto arquitetural e ocorrem, de algum modo,
sem media<;;ao. Por exemplo, quando entramos em certas es-
162 Caosmose
se voltar os arquitetos de hoje. Eles devem assumir urn a po-
si<,;ao, se engajar (como se dizia no tempo de Jean-Paul Sartre)
quanto ao genero de subjetividade que ajudam a engendrar.
Irao no sentido de uma produ<,;ao refor<,;ada de uma subjeti-
vidade do "equivaler generalizado", de uma subjetividade
padronizada que tira o seu valor de sua cota<,;ao no merca-
do dos mass-mfdia, ou colocar-se-ao na contracorrente, con-
tribuindo para uma reapropria<;ao da subjetividade pelos
grupos-sujeitos, preocupados com a re-singularizac;;ao e a
heterogenese? Iriio no sentido do consenso infantilizador ou
de urn dissenso criador? Mas pode-se imaginar uma peda-
gogia da singularidade? Nao ha aqui contradi<,;ao nos ter-
mos? Sem duvida existe uma potencia de exemplo da dife-
renc;;a. E um pouco o que esta se produzindo no Japao, onde
numerosos jovens arquitetos rivalizam em uma original ida-
de desenfreada. 0 componente estetico trazido pelo arqui-
teto enquanto criador pode se tornar o elemento primordial
no interior do Agenciamento com mil coa<,;oes funcionais, so-
ciais, economicas, de materiais, de meio ambiente, que cons-
titui o objeto-sujeito arquitetural. Ve-se aqui que o paradig-
ma etico-estetico e chamado a passar ao primeiro plano. A
singularidade que se busca atraves de sua "projeta<;ao" deve
nao apenas ser reconhecida mas afirmar sua autenticidade.
Em nenhum caso seu papel deve ser reduzido ao do enge-
nheiro civil. 0 fato de que as maquinas desejantes do cria-
dor se encontrem em um tipo de continuum com as maqui-
nas de opiniao, maquinas materiais, nao implica absoluta-
mente que elas af se deixem submergir.
Convem, pois, associar esse retorno a uma assun<;ao es-
tetica a uma responsabilidade etico-polftica de ordem mais
geral que pede a considerac;;ao, em alma e consciencia, de
multiplas "materias opcionais". 0 essencial do trabalho do
arquiteto reside nas escolhas que ele e levado a fazer. Por que
escutar os imperativos de tal componente mais do que os de
164 Caosmose
progressistas. Nao sera mais apenas questao de qualidade
de vida, mas do porvir da vida enquanto tal, em sua rela-
c;ao com a biosfera.
As revoluc;oes informaticas, rob6ticas, telematicas e o
engineering biol6gico conduzem a criac;iio de uma disponi-
bilidade sempre maior das atividades humanas em detrimen-
to do trabalho assalariado tradicional, a medida que a rna-
quina assume as tarefas mais ingratas e repetitivas. Mais do
que uma massa crescente de desempregados e assistidos pelo
Estado, trata-se de saber se essa nova disponibilidade po-
ded ser convertida em atividades de produc;ao de subjeti-
vidade individual e coletiva relativas ao corpo, ao espac;o
vivido, ao tempo, aos devires existenciais concernentes a
paradigmas etico-esteticos. E desse ponto de vista, eu o re-
pito, as escolhas da arquitetura e do urbanismo se coloca-
riio com uma acuidade particular, em urn cruzamento par-
ticularmente sensfvel.
170 Caosrnose
civiliza<;:ao. Em outros termos, e a distin<;:ao mesma entre a
cidade e a natureza que tendeni a se esmaecer, dependendo
os territ6rios "naturais" subsistentes, em grande parte, de
programa<;:ao com o fim de organizar espa<;:o de lazer, de es-
porte, de turismo, de reserva ecol6gica ...
mundializa<;:ao da divisao das fon;as produtivas e
dos poderes capitalfsticos nao e absolutamente sinonimo de
uma homogeneiza<;:ao do mercado, muito pelo contrario.
Suas diferen<;:as desiguais nao se localizam mais entre urn
centro e sua periferia, mas entre malhas urbanas superequi-
padas tecnologicamente, e sobretudo informaticamente, e
imensas zonas de habitat de classes medias e de habitat sub-
desenvolvido. E muito caracterfstico, por exemplo em Nova
Iorque, ver urn dos grandes centros da finan<;:a internacio-
nal, no ponto extremo de Manhattan, coexistir com verda-
deiras zonas de subdesenvolvimento, no Harlem e no South
Bronx, sem falar das ruas e dos parques publicos invadidos
por mais de 300 mil homeless'' e cerca de urn milhao de
pessoas amontoadas em lugares superpovoados.
Doravante nao existe mais, com efeito, uma capital que
domine a economia mundial, mas urn "arquipelago de cida-
des" ou mesmo, mais exatamente, subconjuntos de grandes
cidades, ligados por meios telematicos e por uma grande di-
versidade de meios de comunica<;:ao. Pode-se dizer que a ci-
dade-mundo do capitalismo contemporaneo se desterrito-
rializou, que seus diversos constituintes se espargiram sobre
toda a superffcie de urn rizoma multipolar urbana que en-
volve o planeta. Homoteticamente encontrar-se-ao nas cida-
des muito pobres do Terceiro Mundo, onde se amontoam
milh6es de pessoas em imensas favelas, focos urbanos alta-
''Nome dado, nos EUA, aos desabrigados nos grandes centros, bern
como ao movimento por moradia que corresponde, no aos "sem-
teto". (N. da Rev. Tee.)
172 Caosmose
etico-polfticos adquirem af uma relevancia que, ao Iongo da
hist6ria, anteriormente jamais tiveram.
Nao seria enfatizar que a tomada de conscien-
cia ecol6gica futura nao devera se contentar com a preo-
cupa~ao com fatores ambientais, mas devera tambem ter
como objeto devasta~oes ecol6gicas no campo social e no
dominio mental. Sem transforma~ao das mentalidades e dos
habitos coletivos havera apenas medidas ilus6rias relativas
ao meio material.
Desta forma, os urbanistas nao poder:io mais se con-
tentar em definir a cidade em termos de espacialidade. Esse
fenomeno urbana mudou de natureza. 1\ao e mais um pro-
blema dentre outros; e 0 problema numero urn, 0 problema-
cruzamento das questoes econ6micas, sociais e culturais. A
cidade produz o destino da hurnanidade: suas promo~oes,
assirn como suas segrega~oes, a forma~ao de suas elites, o
futuro da inova~ao social, da cria~ao em todos os domfnios.
Constata-se muito freqiientemente urn desconhecimento des-
se aspecto global das problematicas urbanas como meio de ·
produ~ao da subjetividade.
Enfatizemos, a esse respeito, que experiencias interes-
santes estao atualmente em curso na URSS, no contexto de
uma situa~ao que foi por muito tempo bloqueada pelas bu-
rocracias e no quadro da polftica chamada "perestroika".
Grupos de autogestao se constituem com o objetivo de se
contrapor ao imobilismo dos Soviets locais, muito parti-
cularmente no domfnio da arquitetura, do urbanismo e da
defesa do meio arnbiente. Essas experiencias sao coordena-
das por urn Centro de pesquisas regionais criado pel a Aca-
demia das Cicncias, sob a dire~ao de Victor Tischenko. A
atividade desses grupos conduziu a instala~ao de coopera-
tivas que construiram em Moscou, em Leningrado e em ou-
tras cidades, apartamentos em melhores condi~oes do que
as das constru~oes do Estado. Em 1987, a pedido do depu-
174 Caosmose
das na divisao planetaria do trabalho e que, em particular,
varios pafses do Terceiro Mundo nao sejam mais tratados
como guetos de assistidos pelo Estado. E igualmente neces-
saria que OS antigos antagonismos internacionais Se atenuem
e que se siga uma polftica geral de desarmamento que per-
mitira, em particular, transferir creditos consideraveis para
a experimenta<;:ao de urn novo urbanismo.
Deveremos esperar transforma<;:oes polfticas globais an-
tes de empreender tais "revolu<;:oes moleculares" que devem
contribuir para mudar as mentalidades? Encontramo-nos
aqui diante de urn cfrculo de dupla dire<;:ao: de urn lado a
sociedade, a polftica, a economia nao podem mudar sem
uma muta<;:ao das mentalidades; mas, de urn outro lado, as
mentalidades s6 podem verdadeiramente evoluir sea socie-
dade global seguir urn movimento de transforma<;:ao. A ex-
perimenta<;:ao social em grande escala que preconizamos
constituira urn dos meios de sair dessa "contradi<;:ao". Ape-
nas uma experiencia bem-sucedida de novo habitat indivi-
dual e coletivo traria conseqi.iencias imensas para estimular
uma vontade geral de mudan<;:a. (Foi o que se viu, por exem-
plo, na Fran<;:a, no campo da pedagogia com a experiencia
inicial e "iniciatica" de Celestin Freinet, que reinventou to-
talmente o espa<;:o da sala de aula.) Em essencia, o objeto
urbana e de uma complexidade muito grande e exige ser
abordado com as metodologias apropriadas a complexida-
de. A experimenta<;:ao social visa especies particulares de
"atratores estranhos", comparaveis aos da ffsica dos pro-
cessos ca6ticos. Uma ordem objetiva "mutante" pode nas-
cer do caos atual de nossas cidades e tambem uma nova poe-
sia, uma nova arte de viver. Essa "16gica do caos" pede que
se examinem bern as situa<;:oes em sua singularidade. Tra-
ta-se de entrar em processos de re-singulariza<;:ao e de irre-
versibiliza<;:ao do tempo. Alem disso, trata-se de construir
nao apenas no real mas tambem no possfvel, em fun<;:ao das
176 Caosmose
verdadeira maieutica, implicando, em particular, procedi-
mentos de analise institucional e de explora~ao das forma-
~oes coletivas do inconsciente. Nessas condi~oes, o projeto
deve ser considerado em seu movimento, em sua dialetica.
Ele e chamado a se tornar uma cartografia multidimensional
da produ~ao de subjetividade, cujos operadores serao oar-
quiteto e o urbanista. As mentalidades coletivas mudam e
mudarao amanha cada vez mais rapido. E preciso que a
qualidade da produ~ao dessa nova subjetividade se tome a
finalidade primeira das atividades humanas e, por essa ra-
zao, ela exige que tecnologias apropriadas sejam postas a
seu servi~o. Urn tal recentramento nao e apenas tarefa de es-
pecialistas mas requer uma mobiliza~ao de todos os com-
ponentes da "cidade subjetiva".
0 nomadismo selvagem da desterritorializa~ao con-
temporanea demanda entao, a meu ver, uma apreensao
"transversalista" da subjetividade. Quero dizer com isso uma
apreensao que se esfor~ara para articular pontos de singula-
ridade (por exemplo, uma configura~ao particular do terre-
no ou do meio ambiente), dimensoes existenciais especfficas
(por exemplo, o espa~o visto pelas crian~asrou deficientes ff-
sicos ou doentes mentais), transforma~oes funcionais virtuais
(por exemplo, mudan~as de programa e inova~oes pedag6gi-
cas), afirmando ao mesmo tempo urn estilo, uma inspira~ao,
que fara reconhecer, aprimeira vista, a assinatura de urn cria-
dor. A complexidade arquitetural e urbanfstica encontrara
sua expressao dialetica em uma tecnologia do projeto- do-
ravante auxiliada por computador - que nao se fechara
sobre si mesma, mas que se articulara com o conjunto do
Agenciamento de enuncia~ao que eo seu alvo.
A constru~ao e a cidade constituem tipos de objeto que,
de fato, trazem igualmente uma fun~ao subjetiva. Sao "ob-
jetidades" ou, se se prefere, "subjetidades" parciais. Essas
fun~oes de subjetiva~ao parcial, que nos presentifica o es-
178 Caosmose
Texto inedito, escrito em vista da participa<:;Zio do autor
no Col6quio "Homem, cidade, natureza: a atltura hoje",
organizado pela UNESCO, no Rio de janeiro, nos dias 25,
26 e 27 de maio de 1992.
184 Caosmose
ver o Comite intra-hospitalar da Clinica, em particular o
Clube dos pensionistas. Minha suposta competencia nesse
domfnio vinha do fato de que, desde os dezesseis anos, eu
nao cessara de "militar" em organiza<;oes tais como "os Al-
bergues da Juventude" e toda uma gama de movimentos de
extrema-esquerda. E verdade que eu sabia animar uma reu-
niao, estruturar urn debate, solicitar que as pessoas silencio-
sas tomassem a palavra, fazer surgir decis5es praticas, re-
tornar as tarefas anteriormente decididas ... Em alguns me-
ses, contribui assim para a instala<;ao de multiplas instancias
coletivas: assembleias gerais, secretariado, comissoes pa-
ritarias pensionistas-pessoal, subcomissao de anima<;ao para
o dia, escrit6rio de coordena<;ao dos encargos individuais e
"atelies" de todos os tipos: jornal, desenho, costura, gali-
nheiro, jardim etc.
Mas, para instaurar uma talmultiplicidade de estrutu-
ras, nao era suficiente mobilizar os doentes; era necessaria
tambem poder contar com 0 maximo de membros do pes-
soal. Isso nao trazia nenhuma dificuldade com a equipe dos
animadores mais antigos, que haviam sido cooptados, como
eu mesmo o fora, na base de urn projeto comum e de urn
certo "ativismo" anterior. Mas nao acontecia o mesmo com
os novos membros do pessoal, que vinham das proximida-
des, que haviam abandonado urn emprego ou urn meio agri-
cola, para se engajar na clinica como cozinheiros, jardinei-
ros, faxineiras, recreadores. Como iniciar esses recem-che-
gados em nossos metodos psiquiatricos, como evitar que nao
se criasse uma cisao entre as tarefas supostamente nobres
dos "tecnicos" e as tarefas materials ingratas do pessoal de
manuten<;ao? (Esses ultimos, dependendo do angulo em que
se colocavam, consideravam entretanto que somente o tra-
balho material era efetivo, ao passo que os "monitores" s6
faziam tagarelar em reuni5es inuteis ... }
Nessa etapa de seu desenvolvimento, o processo insti-
186 Caosmose
de certa forma, para suprir uma fun<;ao de chefe de pessoal
que jamais existiu em La Borde.
Uma descric;ao tao condensada poderia fazer acreditar
em urn desenvolvimento linear, ao passo que na pratica as
dificuldades mais imprevistas nao cessaram de surgir devi-
do a resistencias, inabilidades, obstaculos materiais de todo
tipo. Cada problema devia ser incessantemente retomado,
rediscutido, sem jamais perder de vista a orienta~ao essen-
cia! que consistia em caminhar no sentido de uma desse-
grega<;ao das rela<;oes atendente-atendido assim como das
rela<;6es internas ao pessoal. Essa atividade incessante de
questionamento, aos olhos de urn organizador-conselho, pa-
receria imitil, desorganizadora e, entretanto, e somente atra-
ves dela que podem ser instauradas tomadas de responsa-
bilidade individuais e coletivas, unico remedio para a roti-
na burocratica e para a passividade geradas pelos sistemas
de hierarquia tradicionais.
Uma palavra que estava enti1o na moda era "serialida-
de", que definia, segundo Jean-Paul Sartre, o carater repe-
titivo e vazio de urn estilo de existencia concernente a urn
funcionamento de grupo "pratico-inerte". 0 que visavamos,
atraves de nossos multiplos sistemas de atividade e sobre-
tudo de tomada de responsabilidade em rela~ao a si mesmo
e aos outros, era nos libertamos da serialidade e fazer com
que os individuos e os grupos se reapropriassem do sentido
de sua existencia em uma perspectiva etica e nao mais tec-
nocratica. Tratava-se de conduzir simultaneamente modos
de atividades que favorecessem uma tomada de responsa-
bilidade coletiva e fundada entretanto em uma re-singula-
rizat;;ao da relat;;ao com o trabalho e, mais geralmente, da
existencia pessoal. A maquina institucional que instalava-
mos nao se contentava em operar uma simples remodelagem
das subjetividades existentes, mas se propunha, de fato, a
produzir urn novo tipo de subjetividade. Os monitores for-
188 Caosmose
corpo psic6tico, utiliza freqiientemente a mediac;ao de uma
massa de modclar a fim de tornar possivel uma expressao
plastica onde a lingua falada se encomra falha. Pois bem!
Em La Borde, nossa massa de modclar e a "materia" insti-
tucional que e engendrada atraves do emaranhado dos ate-
lies, das reunioes, da vida cotidiana nas salas de jantar, dos
quartos, da vida cultural, esportiva, hidica ... A palheta de
expressao nao e dada de antemao como a das cores da pin-
tura, pois um grande Iugar e reservado ainovac;ao, aimpro-
visac;ao de atividades novas.
A vida coletiva, concebida segundo esquemas rfgidos,
segundo uma ritualizac;ao do cotidiano, uma hierarquizac;ao
definitiva das responsabilidades, em suma, a vida coletiva
serializada pode se tornar de uma tristeza desesperadora tan-
to para os doentes como para os "tecnicos". Esurpreendente
constatar que, com as mesmas "notas" microssociol6gicas,
pode-se compor uma musica institucional completamente
diferente. Pode-se enumerar em La Borde cerca de quaren-
ta atividades diferentes para uma populac;ao que e somente
de 100 pensionistas e de 70 membros do pessoal. Existe
uma especie de tratamemo barroco da instituic;ao, sempre
aprocura de novos temas e varia<;:oes, para conferir sua mar-
ca de singularidade- quer dizer de finitude e de autentici-
dade - aos mfnimos gestos, aos minimos encontros que
advem dentro de urn tal contexto.
E comec;amos a sonhar com o que poderia se tornar a
vida nos conglomerados urbanos, nas escolas, nos hospitais,
nas prisoes etc ... , se, ao inves de concebe-los na forma da
repetic;ao vazia, nos esforc;assemos em reorientar sua fina-
lidade no sentido de uma re-criac;ao interna permanente. Foi
pensando em uma tal ampliac;ao virtual das praticas insti-
tucionais de produc;ao de subjetividade que, no inicio dos
a nos sessenta, forj ei o conceito de "analise institucional".
Tratava-se entao nao somente de questionar a psiquiatria
1
Instituto Nacional de Previdencia Social para Estudantes. (N. da
Rev. Tee.)
2
Uniao Nacional dos Estudantes da Fran<;:a. (N. da Rev. Tee.)
190 Caosmose
midia, o esporte ... Insisto no fa to de que nao e apenas o con-
teudo cognitivo da subjetividade que se encontra aqui mo-
delado mas igualmente todas as suas outras facetas afetivas,
perceptivas, volitivas, mnemicas ...
Trabalhando regularmente com sua centena de pacien-
tes, La Borde se encontrou progressivamente implicada em
urn questionamento mais global sobre a saude, a pedago-
gia, a condi<;ao penitenciaria, a condi<;ao feminina, a ar-
quitetura, o urbanismo ... Cerca de vinte grupos setoriais de
reflexao constitufram-se assim em torno da tematica da
"analise institucional"' que implicava que a analise das for-
ma<;oes do inconsciente nao dizia respeito apenas aos dois
protagonistas da psicanalise classica, mas poderia se esten-
der a segmentos sociais muito mais amplos. Por volta da
metade da decada de sessenta, esses grupos se federaram no
seio de urn 6rgao chamado F.G.E.R.I (Federa<;ao dos Gru-
pos de Estudo e de Pesquisa Institucional). Mais tarde essa
federa<;ao foi substituida por urn Centro de Estudo e de
Pesquisa Institucional (C.E.R.F.I) editando uma revista in-
titulada Recherches. Cinqiienta numeros especiais dessa
revista foram publicados, os quais se deve acreditar que
permane<;am ainda atuais, ja que uma estudante america-
na consagrou sua tese a essa revista e uma editora japone-
sa pretende traduzir alguns desses numeros. 0 mais celebre
dentre eles foi, sem duvida, o que teve como titulo "Dois
mil perversos", dirigido por Guy Hocquenghem e Rene
Scherrer e que tratava de formas "desviantes" de sexuali-
dade. Esse numero sofreu, alias, urn processo por "ultraje
aos bons costumes", processo no qual fui condenado a ti-
tulo de Diretor de publica<;ao. Urn numero memoravel de
Recherches, por volta do ano de 1966, foi consagrado a
programa<;ao dos equipamentos psiquiatricos. Em torno de
programadores titulares do Ministerio da Saude e de urn
grupo de jovens arquitetos da F.G.E.R.I, a elite da psiquia-
192 Caosmose
tais- o que as diferentes correntes renovadoras da psiquia-
tria europeia nao haviam jamais conseguido fazer. Infeliz-
mente, a revela~ao para o grande publico do sentido da lou-
cura, atraves de filmes como "Family life", de Kenneth Loach,
ou as obras de Mary Barnes, nao era acompanhada de nenhu-
ma proposi~ao verdadeiramente concreta para reformar a si-
tua~ao. Experiencias comunitarias como a de "Kinsley Hall"
em Londres permaneciam exce~ao e pareciam dificilmente
generalizaveis para transformar a psiquiatria inglesa em seu
todo. Uma outra obje~ao que faria aCorrente criada por Laing
e Cooper era a de creditar uma concep~ao deveras reducionista
da doen~a mental, aparecendo-lhes a psicose como resultante
de conflitos intrafamiliares.
Foi nessa epoca que se popularizou o famoso "double
bind" - duplo vinculo- considerado como gerador dos
problemas de comportamento os mais graves atraves dare-
cep~ao, pelo "paciente designado", de uma mensagem con-
tradit6ria vinda dos membros de sua familia. ("Pe~o que
voce fa~a alguma coisa mas desejo secretamente que fa~as
o contrario ... ") Tratava -se, evidentemente, de uma visao
simplista da etiologia das psicoses e que tinha, entre outros
efeitos negativos, o de culpabilizar as famflias dos psic6ti-
cos que ja encontravam bastante dificuldade!
A corrente italiana "Psiquiatria Democratica", em torno
de seu lfder carismatico, Franco Basaglia, por sua vez, nao
se embara~ava com tais considera~oes te6ricas sobre a ge-
nese da esquizofrenia ou sobre as tecnicas de tratamento.
Concentrava o principal de sua atividade no campo social
global, aliando-se aos partidos e aos sindicatos de esquerda
com o objetivo de conseguir pura e simplesmente que os
hospitais psiquiatricos italianos fossem fechados. Foi o que,
finalmente, conseguiu obter, ha dez anos, com a Lei 180, cuja
ado~ao, infelizmente, quase coincidiu com a morte de Franco
Basaglia. De modo geral, os hospitais psiquiatricos foram
194 Caosmose
em que se desenvolvem outras praticas sociais com a ajuda
direta das popula<;;6es concernidas.
Em 1975, instigado por urn grupo de amigos, Many
Elkaim (psiquiatra de origem marroquina, especialista mun-
dialmente conhecido em terapias familiares) convocou uma
reuniao em Bruxelas durante a qual foi lan~ada uma "Rede
internacional de alternativa a psiquiatria". Propusemo-nos
a conjugar e, se possivel, ultrapassar as tentativas diversas
inspiradas em Laing, Cooper, Basaglia etc ... Tratava-se so-
bretudo de se libertar do carater quase unicamente mass-
mediatico da antipsiquiatria para lan<;;ar urn movimento que
engajasse efetivamente OS trabalhadores da saude mental e
OS pacientes. Sob a egide dessa Rede, importantes reunioes
ocorreram em Paris, Trieste, Sao Francisco, no Mexico, na
Espanha ... Essa Rede ainda continua a existir atualmente.
E animada principalmente pelos sucessores de Franco Ba-
saglia, em Trieste, reagrupados em torno de Franco Rotelli.
Por for~a das circunsdincias, quero dizer devido a evolu<;;ao
das mentalidades, ela renunciou a suas perspectivas iniciais,
ao menos sob seus aspectos mais ut6picos. As equipes de
Trieste se concentram na reconversao dos equipamentos psi-
quiatricos existentes para uma abertura nao somente para
a cidade- como o haviam preconizado, de uma forma urn
pouco formal, os defensores franceses da politica do "Setor"
- mas na dire<;;ao de uma abertura para o social. Existe ai
uma nuan<;;a importante. Podem-se criar equipamentos psi-
quiatricos ageis no seio do tecido urbana sem por isso tra-
balhar no campo social. Simplesmente miniaturizaram as
antigas estruturas segregativas e, apesar disso, interiorizaram-
nas. Completamente diferente e a pratica desenvolvida em
Trieste atualmente. Sem negar a especificidade dos proble-
mas que se colocam aos doentes mentais, as institui~oes ins-
taladas, como as cooperativas, dizem respeito a outras ca-
tegorias de popula~ao que tern igualmente necessidade de
196 Caosmose
fora dos quadros estabelecidos. E entretanto, mais do que
nunca, a falta dcssas estruturas se faz sentir. 56 elas pode-
riam evitar, em certos casos, hospitaliza<;oes custosas cpa-
togenicas nas estruturas oficiais.
Volta-se sempre a esse terrfvel peso do Estado, que in-
cide sobre as estruturas de tratamemo e de assistencia. As
institui<;oes vivas e criativas levam urn born tempo para se-
rem instaladas; implicam a constitui<;ao de equipes dinami-
cas que se conhe<;am bern, que tenham uma hist6ria comum,
tantos dados que nao podem ser regidos por meio de circu-
lares administrativas. Ora, e preciso saber que, mesmo atual-
mente, eo Ministro da Solidariedade e da Saude quem de-
cide sobre a nomea<;ao dos psiquiatras nos hospitals psiquia-
tricos e que rege o jogo de suas substitui<;oes, a cada dois
anos aproximadamente. Situa<;ao absurda: mais nenhuma
dire<;ao de hospital psiquiatrico e assumida por medicos psi-
quiatras. Todo o poder passou para as maos de diretores
administrativos que controlam totalmente os servi<;os, por
intermedio de enfermeiros gerais. Isso significa a condena-
<;ao antecipada de qualquer tentativa de inova<;ao, por mais
breve que seja.
Uma experiencia como a de Fran<;ois Tosquelles, du-
rante a ultima guerra mundial e na Liberta<;ao, no hospital
de Saint Alban, em Lozere, seria impossfvel hoje em dia.
Existe certamente, entre a nova gera~,;ao de psiquiatras, de
psic6logos e de enfermeiros, a mesma propor<;ao que outrora
de pessoas desejosas de sair da mediocridade na qual se
banha a psiquiatria francesa! Mas essas jovens gera<;oes tern
as maos atadas por urn estatuto que as assimila ao dos fun-
cionarios. E toda uma concep<;ao do "servi<;o publico" que
se deve aqui rever. A tecnocracia estatal se acompanha de
urn espfrito corporativista nos "tecnicos". Felizmente
tern exce<;oes em algumas dezenas de experiencias vivas no
interior de certos Setores e de certos Servi~,;os psiquiatricos
198 Caosmose
bastante e que OS medicos, enfermeiros, tecniCOS em gera! e
os psiquiatras e psic6logos sao igualmente vitimas do esta-
do de coisas atual, onde doentes e funcionarios morrem li-
teralmente de tedio.
Convem tambem relevar o crescimento das ideologias
comportamentalistas no interior da psiquiatria francesa, que
consistem em se consagrar apenas aos programas de condi-
cionamento os mais mecanicistas, sem se preocupar mais
com a vida social e com a considera<;ao das singularidades
e das virtualidades psiquicas dos doentes mentais. Eintolera-
vel desviar-se assim da essencia da existencia humana, a
saber, de suas dimensoes de liberdade e de responsabilidade.
Alguns perigos existem igualmente com a influencia exercida
pelas teorias sistemicas em referencia as terapias familiares.
Com efeito, elas tratam de intera<;oes intrafamiliares cujo
conceito e perfeitamente vago e consistem muito freqiien-
temente em urn tipo de psicodrama cujas sessoes sao ri-
tualizadas e codificadas, a partir de teorias pseudomatema-
ticas que nao tern outro alcance senao 0 de conferir urn
verniz cientffico a seus operadores. Deixo aqui completa-
mente de lado a corrente "anti-reducionista" animada por
Mony Elkaim que, bern ao contrario, se preocupa essen-
cialmente com uma re-singulariza<;ao da cura, quer dizer,
com o engajamento do terapeuta no que ele tern de mais pes-
soal - o que permite conferir uma marca insubstituivel de
autenticidade e de verdade a rela<;ao estabelecida entre o
terapeuta e a famflia.
Por sua vez, a corrente psicanalitica, que conhece na
Fran<;a um nitido declfnio, e igualmente responsavel, ate urn
certo ponto, pelo desinvestimento de jovens psiquiatras em
rela<;ao a vida institucional. Em particular, a psicanalise de
origem lacaniana, com seu carater esoterico, pretensioso e
separado de qualquer apreensao de terreno de psicopatolo-
gia, mantem a ideia de que somente uma cura individual per-
200 Caosmose
der do mesmo tipo de criatividade. A interpreta..,;ao nao for-
nece chaves padronizadas para resolver problemas gerais fun-
dados no que Lacan denominou os matemas do Inconscien-
te, mas deve constituir urn acontecimento, marcar uma bi-
furca<;ao irreversivel da produ<;ao de subjerividade - em
suma, ela e da ordem da performance, no sentido adquirido
por esse termo no campo da poesia contempodinea.
0 saber do psicanalista permanece incontesnivel o
presente. Euma teologia no seio da qual ele se banha de vez
em quando desde sua infancia. Ainda aqui o paradigma este-
tico pode-nos ser de grande ajuda. 0 saber e aquilo que e;
nao se pode passar sem ele para adquirir urn mfnimo de "to-
nus", de consistencia, face a urn paciente ou face a uma insti-
tui<;ao. Mas ele e feito essencialmente para ser desviado. Os
conceitos da arte assim como os da analise derivam dessa
caixa de ferramentas de modeliza~ao cuja ideia eu intro-
duzi ha vinte anos e que foi retomada, para minha grande
alegria, por Michel Foucault, para lutar contra os dogma-
tismos sempre renascentes. Urn conceito so vale pela vida que
lhe edada. Ele tern menos por fun~ao guiar a representa..;iio
e a a~ao do que catalisar os universos de referencia que con-
figuram urn campo pragmatico. Nao tinha como intem;ao
hoje expor meus proprios conceitos de metamodeliza<,;iio, que
tentam construir urn inconsciente processual voltado para
o futuro, ao inves de fixado nas estases do passado, a partir
de quatro funtores: os Fluxos, os Phylum maquinicos, os Ter-
ritorios existenciais e os Universos de referenda. Nao pro-
poem absolutamente uma descri~ao mais cienrffica da psi-
que, mas sao concebidos de maneira que as forma<,;6es de sub-
jerividade sejam essencialmente abertas para uma pragma-
tica etico-estetica. Quatro "imperarivos" resultam dai:
o da irreversibilidade do encontro enquanto acon-
tecimento que da sua marca de autenticidade, de "nunca vis-
to", ao procedimento analitico;
202 Caosmose
coletivos de prodw;;ao de subjetividade; tais Agenciamentos
comportam dimensoes microssociais mas tambem dimen-
soes materiais e dimensoes inconscientes;
2) A institui~ao de tratamentos, se e reagenciada per-
manentemente com esse fim, pode se tornar urn instrumen-
to muito elaborado de enriquecimento da subjetividade in-
dividual e coletiva e de recomposi~ao de territ6rios existen-
ciais concernindo ao mesmo tempo o corpo, o eu, o espa~o
vivido, a rela~ao com o outro ... ;
3) Para ocupar convenientemente seu lugar no seio do
processo terapeutico, as dimensoes materiais da institui~ao
implicam que o pessoal dito "de manuten~ao" esteja associa-
do a todas as engrenagens segundo modalidades apropriadas;
4) A informa~ao e a forma~ao constituem aspectos im-
portantes no interior de uma institui~ao terapeutica, mas nao
supremOS aspectos etico-esteticos da vida humana COnside-
rada em sua finitude. 0 Agenciamento institucional, assim
como uma cura individual, s6 podem funcionar autentica-
mente no registro da verdade, quer dizer,da unicidade e da
irreversibilidade do sentido da vida. Essa autenticidade nao
e objeto de urn ensino mas pode, entretanto, ser "trabalha-
da" atraves de praticas analiticas individuais e coletivas;
5) A perspectiva ideal seria entao que nao existissem
duas institui~oes semelhantes e que a mesma institui~ao nao
cessasse de evoluir ao longo do tempo.
Felix Guattari
cole~ao TRANS
ISBN 85-85490-01-2
111111111111111111111111111111
9 788585 490010
ed itoralll34
Analista, Felix Guattari come~a, no ini-
cio da decada de 70, a interrogar 0 carater
cienrffico- ou estrutural dos operadores
psicanaliticos. Esta tarefa se realiza com o
desenvolvimento de uma abordagem constru-
tivista do Inconsciente, determinada, em pri-
meira instancia -- e born lembrar des-
coberta freudiana dos processos de singula-
semi6tica que compoem () celebre
"processo primario".
Sendo o inconsciente menos teatro (anti-
go) do que usina (ada modernidade), e neces-
saria experimentar Agenciamentos e disposi-
tivos ineditos de enuncia.;:ao analitica. Tal
op~ao processuallevara Guattari a elaborar
urn a modeliza~ao transformacional que op6e
a programa~ao psicanalftica do Outro uma
pragmatica ontol6gica das mulriplicidades,
implantada no Dando- e nao rna is no sem-
pre ja-dado, ocultado, vel ado, esquecido ..
Poi essa a grande lio;:ao do Anti-Edipo, escri-
to com o fil6sofo Gilles Deleuze: uma revo-
lu~ao copernicana, que procura considerar a
subjetividade sob o angulo de sua IJt<Juo.!<.a
E se a morte de Deus nao tivesse efeito
senao com a morte de Edipo, enquanro repre-
sentante da subjetividade capitalfstica enalte-
cida pela psicanalise (a representa~ao subje-
tiva infinita), enquanto efeito de uma redu-
<;ao significante que estrutura o Inconsciente
como a linguagem do recalcado, que rebate
a Libido- essa materia a bstrata do possivel
sobre o "pequeno segredo sujo" estendi-
do a todos (a interioriza~ao extrema da divi-
da infinita)?
'''"' .. ,,_,, o programa rigoroso de urn
freudismo que se dedica a conceber o traba-
lho analftico como uma verdadeira "hetero-
genese", iniciando um procedimento auto-
enunciativo, produtor de novas "sinteses".
No cruzamento dos fatos de sentido, mate-
riais e sociais, no rastro da inven~ao de no-
vas universos de sua fun~ao e a
de converter os campos do possivel em efei-
tos contingentes de necessidades abertas para
formas de subjetivac;ao portadoras de alteri-
dade, coextensivas ao Real em sua produc;ao
polif6nica.
Assim, distanciando-se de qualquer cien-
tismo, a demarche esquizoanalitica intenta
promover paradigmas etico-esteticos, susceti-
veis de retomar a questiio do sujeito do ponto
de vista de uma pratica da resistencia, cen-tra-
cia na afirmac;ao de seu primado ontol6gico.
Assim, se a resistencia e primeira, sua pri-
meira definic;ao e: uma etica da finitude cons-
tituinte, ou criadora.
:E a ultima etapa dessa pesquisa, apresen-
tada por Felix Guattari, em maio de 1990,
no Colegio Internacional de Estudos Filos6-
ficos Transdisciplinares, que e agora propos-
ta ao leitor brasileiro. A ela acrescentamos
textos recentes, artigos e conferencias inedi-
tos, que tern como ponto comum o fato de
fazer fun-cionar o novo paradigma estetico,
proposto pelo autor na interface Arte-Cien-
cia-Filoso-fia. 0 livro se encerra com uma es-
pecie de balanc;o programatico da "psicana-
lise fim de seculo", em que Felix Guattari
retoma as grandes etapas que marcam sua
formac;ao policlinica.
0 livro inedito de urn autentico fil6sofo
da praxis - de uma praxis sem teleologia.
Eric Alliez