A Rainha Do Fogo - Anthony Ryan
A Rainha Do Fogo - Anthony Ryan
A Rainha Do Fogo - Anthony Ryan
Sobre a obra:
Sobre nós:
Esta edição foi publicada mediante acordo com The Berkley Publishing Group,
um membro do Penguin Group (USA).
ISBN 978-85-441-0501-6
Título original: Queen of Fire: a Raven's Shadow Novel
Mais uma vez, obrigado à minha excelente editora na Ace, Susan Allison, que,
três anos atrás, deu o pontapé inicial nisso tudo com um e-mail para um sujeito
no Reino Unido que havia vendido alguns exemplares do seu livro de fantasia
autopublicado. Minha profunda gratidão também ao meu editor no Reino Unido,
James Long, por seu apoio e dedicação a este projeto. E, por fim, meus sinceros
agradecimentos ao meu segundo par de olhos, que há muito tempo vem
sofrendo, Paul Field.
SUMÁRIO
P ART E I
P ART E II
P ART E III
P ART E IV
P ART E V
APÊ NDICE
P ART E I
O corvo não conhece o
descanso Sua sombra incessante
Sobre a terra.
Ele aguardava no cais quando cheguei com minha prisioneira. Empertigado como
sempre, as feições retas voltadas para o horizonte, enrolado no manto para se
proteger do vento marinho. Minha perplexidade inicial por encontrá-lo ali
desapareceu tão logo avistei o navio deixando o porto, uma embarcação de casco
estreito à moda meldeneana, enviada aos Confins do Norte com um importante
passageiro de quem eu sabia que ele sentiria muita falta.
Ele se virou na minha direção com um sorriso receoso nos lábios, e percebi
que ele ficara para presenciar a minha partida. As nossas interações haviam sido
breves desde a libertação de Alltor, um tanto bruscas, na verdade, distraído como
ele estava pelo incessante tumulto da guerra e por alguma enfermidade que o
acometera após o seu já lendário ataque. A fadiga transformara as feições outrora
firmes numa máscara letárgica de olhos avermelhados, e a voz estridente porém
incisiva num sussurro rascante. Eu podia ver que tais transformações haviam sido
revertidas a essa altura. As batalhas recentes de algum modo o haviam curado, e
eu me perguntei se ele encontrava alguma forma de sustento no sangue e no
horror.
— Meu senhor — cumprimentou-me ele com o esboço de uma mesura formal,
e então acenou com a cabeça para a minha prisioneira. — Minha senhora.
Fornella retribuiu o aceno, mas nada disse, encarando-o de forma impassível
enquanto os seus cabelos esvoaçavam ao vento salgado, uma única madeixa
grisalha visível em meio à cabeleira castanho-avermelhada.
— Já recebi instruções suficientes… — comecei, mas Al Sorna acenou com a
mão.
— Não vim para dar instruções, meu senhor — disse ele. — Vim apenas para
me despedir e desejar boa sorte em sua empreitada.
Observei a sua expressão enquanto ele aguardava uma resposta, o sorriso
receoso agora diminuindo, os olhos negros cautelosos. Será possível?, pensei
comigo mesmo. Ele está buscando perdão?
— Obrigado, meu senhor — retorqui, colocando o pesado saco de lona no
ombro. — Mas precisamos embarcar antes da maré matutina.
— É claro. Eu irei acompanhá-los.
— Não precisamos de um guarda — disse Fornella, seca. — Eu dei a minha
palavra, atestada pelo seu interrogador. — Realmente, caminhávamos sozinhos
naquela manhã, sem escolta ou formalidade. A corte restaurada do Reino
Unificado tinha pouco tempo ou inclinação para cerimônias.
— De fato, Honorável Cidadã — retorquiu Al Sorna num volariano desajeitado
e de sotaque carregado. — Contudo, tenho… palavras para este homem de cinza.
— Homem livre — corrigi-o antes de mudar para a língua do Reino. — O cinza
indica posição financeira, e não social.
— Ah, sem dúvida, meu senhor. — Ele ficou de lado e fez sinal para que eu
continuasse ao longo do cais até onde os navios estavam atracados, uma longa
fileira de belonaves e navios mercantes meldeneanos. Naturalmente, a nossa
embarcação se encontrava na extremidade oposta da fileira.
— O presente do Irmão Harlick? — perguntou ele, indicando com a cabeça o
saco que eu carregava.
— Sim. Quinze dos livros mais antigos da Grande Biblioteca, os que pude
identificar como úteis durante o pouco tempo que me foi permitido em seus
arquivos. — Na verdade, eu esperara algum protesto da parte do irmão
bibliotecário quando fiz meu pedido, mas o homem apenas fez um aceno cortês
com a cabeça e ordenou a um dos seus assistentes que buscasse os pergaminhos
necessários nos carroções que serviam como a sua biblioteca móvel. Eu sabia que
a sua aparente indiferença a esse roubo devia-se em parte ao seu dom; ele
sempre podia simplesmente redigir novos exemplares, e abertamente, uma vez
que a necessidade de manter tais coisas ocultas havia desaparecido. As Trevas,
como chamavam esse dom, haviam sido reveladas e agora eram discutidas
abertamente, e os dotados estavam livres para praticar os seus talentos sem medo
de serem torturados e executados, pelo menos em teoria. Eu podia ver o medo que
ainda permanecia no rosto daqueles não tão talentosos, assim como a inveja, e me
perguntava se o caminho mais sensato não teria sido manter os dotados nas
sombras. Porém, haveria como sombras perdurarem em meio aos fogos da
guerra?
— Acha mesmo que ele está aí em algum lugar? — perguntou Al Sorna
enquanto caminhávamos em direção ao navio. — O Aliado?
— Uma influência tão maligna e poderosa sem dúvida deixa rastros —
respondi. — Um historiador é um caçador, meu senhor. À procura de sinais no mar
de correspondências e autobiografias, no encalço da presa através do rastro da
memória. Não espero encontrar uma história completa e imparcial dessa coisa,
seja ela animal ou humana, ou nenhum dos dois. Mas haverá de ter deixado
rastros, e pretendo ir atrás dela.
— Então o senhor precisa ter cuidado, pois suspeito que a sua atenção não
passará despercebida por ela.
— Nem a do senhor. — Fiz uma pausa e olhei para o seu perfil, vendo ali uma
fronte preocupada. Onde está sua certeza?, pensei. Esse havia sido um de seus
traços mais irritantes durante a nossa prévia associação: a certeza implacável e
inabalável. Agora havia somente um homem taciturno e preocupado com a
perspectiva das privações por vir.
— Conquistar a capital não será fácil — falei. — O curso mais sensato seria
aguardar aqui, reunindo forças até a primavera.
— Sensatez e guerra são raras companheiras, meu senhor. E tem razão, o mais
provável é que o Aliado fique a par de tudo.
— Então por quê…?
— Não podemos simplesmente ficar aqui esperando que o próximo golpe seja
desferido. Não mais do que o seu Imperador pode esperar permanecer imune à
atenção do Aliado.
— Estou perfeitamente ciente de qual mensagem transmitir ao Imperador. — A
bolsa de couro com o pergaminho selado pendia pesada de meu pescoço, mais
pesada do que o meu saco de livros, embora na verdade fosse apenas uma fração
do peso. Nada mais do que tinta, papel e cera, pensei. E, no entanto, podia enviar
milhões à guerra.
Paramos ao chegar ao navio, uma larga embarcação mercantil meldeneana, a
madeira ainda chamuscada pela Batalha dos Dentes, a amurada com marcas de
lâminas e pontas de flechas, e as velas remendadas enroladas no cordame. Meu
olhar também foi atraído até a serpentina figura de proa que, apesar de ter perdido
boa parte do maxilar inferior, ainda era familiar. Meus olhos recaíram sobre o
capitão no alto da rampa, com os braços grossos cruzados e uma carranca no
rosto, um rosto do qual eu me lembrava muito bem.
— Por acaso o senhor teve algo a ver com a escolha dessa embarcação? —
perguntei a Al Sorna.
Um traço de divertimento apareceu em seus olhos quando ele encolheu os
ombros.
— Meramente uma coincidência, posso lhe assegurar.
Suspirei, percebendo que eu tinha pouco espaço no coração para ainda mais
ressentimento, virei-me para Fornella e estendi a mão na direção do navio.
— Honorável Cidadã. Irei me juntar à senhora num instante.
Vi os olhos de Al Sorna a acompanharem enquanto ela subia a rampa até o
navio, movendo-se com a graciosidade costumeira de séculos de prática.
— Apesar do que disse o revelador da verdade, tenha cuidado e não confie
nela — disse ele.
— Fui escravo dela tempo suficiente para aprender essa lição por conta
própria. — Ergui mais uma vez o meu saco e acenei com a cabeça em despedida.
— Com sua licença, meu senhor. Aguardo pela oportunidade de ouvir a história de
sua campanha…
— O senhor tinha razão — interrompeu ele, novamente com o sorriso receoso
nos lábios. — Sobre a história que lhe contei. Houve algumas… omissões.
— Creio que o senhor queira dizer mentiras.
— Sim. — O sorriso desapareceu. — Mas acredito que o senhor mereça a
verdade. Não faço ideia de como esta guerra terminará, nem mesmo se algum de
nós viverá para ver a sua conclusão. Porém, se vivermos, encontre-me
novamente e prometo que o senhor ouvirá de mim apenas a verdade.
Sei que eu deveria ter ficado grato. Pois que estudioso não ansiava pela
verdade vinda de alguém como ele? Contudo, não havia gratidão quando olhei em
seus olhos, nem pensamento algum, a não ser por um nome. Seliesen.
— Eu costumava me perguntar como um homem que havia tirado tantas vidas
podia andar pelo mundo sem o peso da culpa — falei. — Como um assassino pode
suportar o fardo de ter matado e ainda se chamar de humano? Mas ambos somos
assassinos agora, e vejo que isso em nada pesa em minha alma. Porém, eu matei
um homem mau, e o senhor, um homem bom.
Virei-me e subi a rampa sem olhar para trás.
CAPÍTULO UM
Lyrna
Ela foi despertada pela neve. Carícias suaves e geladas em sua pele, formigantes,
mas não desagradáveis, chamando-a de volta da escuridão. Levou um momento
para que a memória retornasse, e quando retornou era algo fragmentado, em
que o medo e a confusão reinavam em meio a um turbilhão de imagens e
sensações. Iltis urrando ao investir, a espada desembainhada… O aço retinindo…
Um punho duro atingindo-a na boca… E o homem… O homem que a queimou.
Ela abriu a boca para gritar, mas conseguiu soltar apenas uma lamúria,
seguida por uma arfada que encheu os seus pulmões de ar gelado. Parecia que
iria congelar de dentro para fora, e ela achou estranho que fosse morrer de frio
após ser queimada com tamanha intensidade.
Iltis! O nome foi um grito súbito em sua mente. Iltis está ferido! Talvez morto!
Desejou se mover, levantar-se, gritar por um curandeiro com toda a força
que a sua voz de rainha conseguia reunir. Contudo, mal foi capaz de gemer e
agitar um pouco as mãos enquanto a neve continuava com suas carícias gélidas.
Ela ardeu de raiva, espantando o frio dos pulmões. Preciso me mexer! Não vou
morrer na neve feito uma cachorra esquecida! Respirou fundo, encheu de novo os
pulmões de ar cortante e gritou, colocando todas as suas forças e sua raiva no
som. Um grito furioso, um grito de rainha… mas não mais do que um sussurro
por entre os dentes quando chegou aos seus ouvidos, junto com algo mais.
— … melhor que haja uma boa razão para isso, sargento — dizia uma voz
firme, forte, brusca e objetiva. A voz de um soldado, acompanhada por pisadas
de botas na neve.
— O Senhor da Torre disse que ele tinha de ser tratado bem, capitão — outra
voz, com um sotaque nilsaelino, mais velha e não tão forte. — Tratado com
respeito, foi o que ele disse. Como as outras pessoas da Ponta. E ele pareceu
bastante insistente, ao menos pelo que deu para entender de um sujeito que não
fala mais do que duas palavras por vez.
— Pessoas da Ponta — disse o capitão num tom mais brando. — A quem
devemos agradecer pela neve no fim do verão… — A voz desapareceu e as
pisadas das botas tornaram-se o barulho de homens correndo.
— Alteza! — Mãos em seus ombros, delicadas, mas insistentes. — Alteza!
Está ferida? Está me ouvindo?
Ly rna só conseguiu gemer, sentindo as mãos se agitarem mais uma vez.
— Capitão Adal. — A voz do sargento soou embargada e entrecortada pelo
medo. — O rosto dela…
— Eu tenho olhos, sargento! Leve o Senhor da Torre até a tenda do Irmão
Kehlan! E traga homens para carregarem Sua Senhoria. Não diga nada sobre a
Rainha. Entendeu?
Mais botas na neve, e então ela sentiu algo quente e macio cobri-la da cabeça
aos pés, suas costas e pernas dormentes formigando quando mãos a ergueram.
Ela tornou a ser tragada pela escuridão, sem se incomodar com a corrida
chocalhante do capitão que a levava para longe dali.
Ele estava lá quando Ly rna despertou pela segunda vez, passando os olhos pelo
teto de lona até encontrá-lo sentado ao lado do catre onde a haviam colocado.
Embora os seus olhos estivessem com os mesmos traços avermelhados que ela
vira no dia anterior, o olhar dele agora estava mais vivo, mais concentrado, e os
olhos negros pareceram perfurar a pele do rosto dela quando ele se inclinou para
a frente. Ele me queimou… Ly rna fechou os olhos e virou o rosto para o outro
lado, abafando o soluço choroso no peito. Engoliu em seco e se recompôs antes
de se virar novamente e encontrá-lo ajoelhado ao lado do catre, de cabeça baixa.
— Alteza — disse ele.
Ela engoliu em seco e tentou falar, esperando que saísse apenas um leve
sussurro, mas ficou surpresa com a resposta um tanto estridente:
— Meu Lorde Al Sorna. Espero que o senhor esteja bem esta manhã.
Ele ergueu a cabeça com uma expressão séria no rosto, os olhos negros ainda
penetrantes. Ly rna queria lhe dizer que não era educado ficar encarando, ainda
mais uma rainha, mas sabia que soaria grosseiro. Cada palavra precisa ser
escolhida, dissera o seu pai certa vez. Cada palavra dita por quem usa a coroa
será lembrada, com frequência de forma errônea. Então, minha filha, se algum dia
você se vir com esse diadema de ouro na cabeça, nunca diga uma única palavra
que não deveria ser ouvida da boca de uma rainha.
— Muito… bem, Alteza — disse Vaelin, permanecendo com um joelho no
chão enquanto ela se mexia.
Para sua surpresa, Ly rna viu que podia se mover com facilidade. Alguém
havia despido o vestido e o manto que ela usara na noite anterior, substituindo os
trajes finos por uma veste simples de algodão que a cobria do pescoço aos
tornozelos, e Ly rna achou agradável a sensação do tecido em sua pele ao se
sentar e colocar as pernas para fora do catre.
— Levante-se, por favor — disse a Vaelin. — Acho o cerimonial tedioso, na
melhor das hipóteses, e de pouca utilidade quando estamos sozinhos.
Ele se levantou, sem tirar os olhos do rosto dela. Havia uma hesitação em
seus movimentos, um leve tremor nas mãos ao puxar a cadeira para perto para
sentar-se diante dela, seu rosto a um braço de distância, o mais perto que eles já
haviam estado desde aquele dia na Feira de Verão.
— Lorde Iltis? — perguntou Ly rna.
— Ferido, mas vivo. O dedo mínimo de sua mão esquerda sofreu geladura. O
Irmão Kehlan foi obrigado a removê-lo. Ele mal pareceu notar, e foi difícil
impedi-lo de sair correndo à procura da senhora.
— Sinto-me afortunada pelos amigos que o destino colocou no meu caminho.
— Ela fez uma pausa, tomando fôlego e coragem para o que tinha de dizer a
seguir. — Não tivemos muitas oportunidades de conversar ontem. Sei que você
deve ter muitas perguntas.
— Uma em particular. Há muitas histórias fantásticas circulando a respeito
dos seus… ferimentos. Dizem que aconteceram quando Malcius morreu.
— Malcius foi assassinado pelo Irmão Frentis da Sexta Ordem. Eu o matei
por isso.
Ly rna o viu ser tomado pelo choque, como se ela o tivesse golpeado com
uma lâmina gélida. O olhar de Vaelin tornou-se distante ao se curvar para a
frente, sussurrando:
— Quero ser um irmão… Quero ser como você.
— Havia uma mulher com ele — prosseguiu Ly rna. — Desempenhando o
papel de uma escrava fugida, tal como o seu irmão, que atravessara o oceano
com uma grande história de aventura. Pela reação dela quando o matei,
desconfio que os dois eram muito próximos. O amor pode nos levar a extremos.
Vaelin fechou os olhos, controlando o pesar com um estremecimento.
— Matá-lo não deve ter sido fácil.
— O tempo que passei com os lonaks me deixou habilidosa em certas áreas.
Eu o vi cair. Depois disso… — O fogo rasgando a sua pele como as garras de um
gato selvagem, enchendo-lhe a garganta com o fedor de sua própria carne sendo
queimada… — Parece que a minha memória tem alguns limites, afinal.
Vaelin permaneceu em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, perdido
em pensamentos, com o rosto ainda mais esmaecido que antes.
— Ela me disse que ele estava voltando — murmurou ele, por fim. — Mas
não para isso.
— Eu esperava que você fosse pedir uma explicação diferente — disse
Ly rna, ansiosa para tirá-lo de quaisquer recordações que anuviassem a sua
mente. — Pelo modo como foi tratado em Linesh.
— Não, Alteza. — Ele sacudiu a cabeça. — Asseguro-lhe de que não preciso
de qualquer explicação.
— A guerra foi um erro atroz. Malcius foi… O juízo de meu pai estava…
debilitado.
— Duvido que o juízo do Rei Janus fosse capaz de sofrer alguma debilitação,
Alteza. E quanto à guerra, pelo que me recordo, a senhora tentou me advertir.
Ela assentiu, parando para acalmar o coração disparado. Eu tinha tanta
certeza de que ele me odiaria.
— Aquele homem… — disse ela. — O homem com a corda.
— O nome dele é Artesão, Alteza.
— Artesão — repetiu Ly rna. — Presumo que ele era um agente de qualquer
que seja a força maligna que esteja por trás das nossas atuais dificuldades.
Escondido no seu exército, aguardando o momento para atacar.
Vaelin recuou um pouco, o pesar substituído pela surpresa.
— Atacar, Alteza?
— Ele me salvou. Daquela coisa. Então ele me queimou. Confesso que acho
isso curioso. Mas estou descobrindo que essas criaturas se comportam de
maneiras estranhas. — Ly rna vacilou ao sentir um nó na garganta, lembrando-se
do fogo que a dominou quando o jovem musculoso a abraçou, o calor mais
intenso até que o daquele dia horrível na sala do trono. Ela ergueu a mão,
forçando-se a encarar o olhar firme dele. — Está… está pior?
Vaelin soltou um leve suspiro e estendeu os braços para segurar as mãos da
Rainha com palmas ásperas e calejadas. Ly rna esperava algum aperto de
consolo antes que ele desse a inevitável e terrível notícia, mas em vez disso
Vaelin agarrou os pulsos dela e ergueu as suas mãos, abrindo os dedos para que
ela tocasse o próprio rosto.
— Não! — gritou ela, tentando se soltar.
— Confie em mim, Ly rna — sussurrou ele, pressionando os dedos dela contra
a carne… A carne lisa e ilesa. Quando ele a soltou, os dedos de Ly rna
começaram a explorar por conta própria, tocando cada centímetro de pele, da
testa ao queixo, o pescoço. Onde está?, pensou ela, desconcertada ao não
encontrar cicatrizes ásperas e sarapintadas, sem sentir a dor lancinante que
continuara a atormentá-la apesar dos bálsamos curativos que suas damas
aplicavam nas queimaduras todos os dias. Onde está o meu rosto? — Eu sabia
que Artesão possuía um grande dom — disse Vaelin. — Mas isso…
Ly rna continuou a apalpar o rosto, segurando os soluços no peito. Cada
palavra precisa ser escolhida.
— Eu… — começou ela, vacilou, e então tentou de novo. — Eu gostaria…
que você convocasse um conselho de capitães assim que… assim que…
Então havia apenas as lágrimas e a sensação dos braços dele em volta de seus
ombros quando ela apoiou a cabeça no peito de Vaelin e chorou como uma
criança.
A mulher no espelho passou a mão sobre a penugem clara que lhe cobria a
cabeça, franzindo a testa lisa. Crescerá de novo, ela sabia. Talvez eu não o
mantenha tão longo desta vez. Ly rna voltou a atenção para a pele onde as
queimaduras haviam sido mais graves e viu que a cura não a havia deixado
completamente incólume, afinal de contas. Havia linhas claras e tênues visíveis
na carne em volta dos olhos, rastros finos e irregulares que iam da testa até onde
começava o cabelo. Ela se lembrou de algo que o pobre e confuso receptáculo
da Mahlessa dissera naquele dia sob a montanha. Ainda não estão lá… As marcas
da sua grandeza.
Ly rna afastou-se um pouco do espelho, inclinando a cabeça para examinar a
aparência das marcas à luz da entrada da tenda, percebendo que desapareciam
um pouco com a luz direta do sol. Algo se moveu no espelho e ela notou Iltis atrás
dela, desviando depressa os olhos, agarrando a mão enfaixada que saía da manga
de sua tipoia. Ele entrara cambaleando na tenda uma hora antes, empurrando
Benten para o lado e caindo de joelhos diante de Ly rna. Estava tropeçando nas
palavras ao fazer um pedido de perdão quando ergueu a cabeça e viu o rosto da
Rainha, calando-se no mesmo instante.
— O senhor deveria estar deitado — disse ela.
— Eu… — Iltis piscara, as lágrimas brilhando em seus olhos — jamais
ficarei longe da senhora, Alteza. Eu dei a minha palavra.
Eu sou a sua nova Fé?, ela se perguntava agora, observando-o no espelho
enquanto ele se balançava um pouco, sacudia a cabeça e se empertigava. A
velha acabou sendo uma decepção, então agora a sua devoção é por mim.
A aba da tenda foi levantada, e Vaelin entrou com uma mesura.
— O exército a aguarda, Alteza.
— Obrigada, meu senhor. — Ly rna estendeu a mão a Orena, que estava de
pé segurando o manto encapuzado de pele de raposa que ela escolhera dentre a
montanha de roupas que a Senhora Reva ficara mais do que feliz em
providenciar. Orena aproximou-se e colocou o manto nos ombros da Rainha,
enquanto Murel ajoelhava-se para oferecer os pouco práticos porém elegantes
sapatos para os seus pés reais. — Bem — disse ela, calçando os sapatos e
puxando o capuz para encobrir o rosto —, vamos tratar logo disso.
Vaelin havia deixado um carroção alto e descoberto do lado de fora da tenda;
ele foi até o veículo e estendeu a mão quando Ly rna se aproximou. Ela a agarrou
e subiu no carroção, segurando o manto com a mão livre para evitar tropeçar
nele. A ideia de cair de cara no chão num momento como aquele provocou um
risinho infantil, abafado antes que pudesse lhe chegar aos lábios. Cada palavra
precisa ser escolhida.
Ela continuou segurando a mão de Vaelin ao parar para observar o seu novo
exército. O irmão corpulento dos Confins lhe informara, enquanto olhava de
soslaio para o seu rosto com olhos arregalados, que o Exército do Norte
atualmente consistia em sessenta mil homens e mulheres, além de cerca de trinta
mil guerreiros seordah e eorhil. Os regimentos estavam posicionados em fileiras,
a maioria desordenada e sem a coesão refinada exibida pela Guarda do Reino
durante aquelas paradas intermináveis em Varinshold. Na verdade, os poucos
Guardas do Reino presentes contrastavam com os companheiros, um
aglomerado compacto e disciplinado de companhias despojadas alinhadas atrás
do Irmão Caenis no centro. Porém, a maior parte do novo exército era composta
pelos nilsaelinos do Conde Marven, pelos recrutados que Vaelin trouxera dos
Confins e pelos recrutas reunidos ao longo do caminho. Ly rna viu pouca
uniformidade nas fileiras; armaduras e armas desiguais, boa parte saqueada dos
copiosos volarianos mortos, e bandeiras improvisadas que careciam das cores e
da nitidez dos estandartes regimentais da Guarda do Reino.
Os seordah haviam se posicionado no flanco direito, uma multidão de
guerreiros em silêncio, a curiosidade como única emoção aparente. Atrás deles
aguardavam os eorhil, a maioria montada em seus belos cavalos altos,
igualmente silenciosos. A Senhora Reva respondera ao convite educado de Ly rna
com toda a sua Guarda da Casa, reduzida a não mais do que trinta homens, e
aparentemente todos os seus arqueiros que sobreviveram. Eles estavam alinhados
em duas longas filas atrás de sua Senhora Governadora, homens corpulentos de
olhar firme com arcos longos atravessados nas costas. A Senhora Reva estava
ladeada por sua Conselheira, pelo Lorde Arqueiro Antesh e pelo velho
Comandante da Guarda de costeletas, nenhum dos quais demonstrava o menor
sinal de assombro com a presença de Ly rna. À esquerda, o Escudo trouxera os
capitães da Frota Meldeneana, e o Senhor Marinho Ell-Nurin encontrava-se
deliberadamente alguns metros adiante do Escudo, que estava de braços
cruzados, com a cabeça inclinada na direção dela, o sorriso habitual mais
radiante do que nunca. Era uma pena, pois ela esperava que desaparecesse em
breve.
Atrás de todos, a ainda fumegante cidade de Alltor erguia-se em sua ilha, os
coruchéus gêmeos da catedral parcialmente ocultos pela neve poeirenta que
continuava a cair.
Ly rna parou no alto do carroção, avistando a forma diminuta porém distinta
da Senhora Dahrena, parada na fileira dianteira ao lado do Capitão Adal e da
Guarda do Norte. Ao contrário de todos os olhos naquele campo, os da Senhora
Dahrena não estavam fixos em Ly rna, mas em Vaelin. Ela não piscava, e tal
olhar era de uma intensidade inquietante, deixando Ly rna consciente do calor da
mão dele na sua. Ela a soltou e encarou o exército, erguendo as mãos para tirar o
capuz.
A visão os tomou de assalto como uma onda, uma mistura de gritos sufocados
de espanto, pragas, preces e puro choque, as fileiras já desordenadas ficando
ainda menos coesas, com soldados virando-se para os companheiros incrédulos
ou assombrados. No entanto, ela notou que os seordah e os eorhil permaneciam
em silêncio, embora com posturas agora nitidamente mais alertas. Ly rna
permitiu que o burburinho do exército se tornasse uma cacofonia e então ergueu
a mão. As conversas continuaram inalteradas por um momento e ela temeu que
precisasse pedir a Vaelin que os silenciasse, mas o Capitão Adal berrou uma
ordem aos seus homens que logo foi repetida pelos oficiais e sargentos, e o
silêncio recaiu célere sobre as fileiras.
Ly rna passou os olhos pelos soldados, escolhendo rostos, encontrando os seus
olhares, notando que alguns eram incapazes de manter o contato visual,
remexendo-se pouco à vontade e abaixando as cabeças, enquanto outros a
encaravam perplexos.
— Eu ainda não tive a oportunidade de me dirigir a vocês — gritou-lhes
Ly rna, a voz forte e ressoando bem no frio. — Para aqueles que possam
desconhecer o meu nome, a minha lista de títulos é longa e não irei entediá-los
com ela. Basta dizer que sou a sua Rainha, aclamada como tal pelo Senhor da
Torre Al Sorna e pela Senhora Governadora Reva de Cumbrael. Muitos de vocês
me viram ontem, e viram uma mulher com o rosto queimado. Agora veem uma
mulher curada. Como sua Rainha, prometo que jamais mentirei para vocês. E,
assim, digo-lhes com sinceridade que o meu rosto foi curado com o uso das
Trevas. Não afirmo que isso tenha sido alguma bênção dos Finados ou favor de
algum deus. Eu me encontro diante de vocês curada pela mão de um homem
com um dom que não alego compreender. Isso foi feito sem qualquer ordem ou
planejamento de minha parte. Contudo, não vejo motivos para lamentar o
ocorrido ou punir o homem que me prestou esse serviço. Muitos de vocês sem
dúvida estão cientes de que há outros entre as fileiras deste exército com
habilidades similares, pessoas boas e corajosas que, de acordo com a letra de
nossas leis, são condenadas à morte pelos dons que lhes foram conferidos pela
natureza. Desse modo, todas as leis que proíbem o uso dos dons outrora
conhecidos como as Trevas estão agora revogadas pela Palavra da Rainha.
Ly rna fez uma pausa, esperando que murmúrios irrompessem, que algumas
vozes se erguessem em descontentamento. Porém, reinou apenas o silêncio, e
cada rosto agora se encontrava arrebatado; os que haviam evitado o seu olhar
aparentemente eram incapazes de desviar os olhos. Há alguma coisa no ar aqui,
compreendeu ela. Alguma coisa… útil.
— Não há ninguém aqui que não tenha sofrido — continuou Ly rna. — Não há
ninguém aqui que não possa dizer que teve uma esposa, marido, filho, amigo ou
pai assassinado. Muitos de vocês sentiram a ponta do chicote, assim como eu.
Muitos de vocês foram espancados por mãos imundas, assim como eu. Muitos de
vocês foram queimados, assim como eu.
Ouviam-se agora resmungos crescentes nas fileiras, o som baixo da fúria
atiçada. Ela avistou uma mulher no meio da companhia de escravos libertos do
Capitão Nortah, esguia e pequena, mas com várias adagas pelo corpo, os dentes
arreganhados numa carranca de ira cada vez mais intensa.
— Esta terra recebeu o seu nome em homenagem a sua união — prosseguiu
Ly rna. — Porém, somente um tolo diria que alguma vez já fomos
verdadeiramente unidos. Sempre derramamos o nosso próprio sangue em disputa
insensata após disputa insensata. Isso termina agora. O nosso inimigo chegou a
estas praias trazendo escravidão, tormento e morte, mas também nos trouxe um
presente, um que lamentará por toda a eternidade. Eles fizeram com que
forjássemos a união que por tanto tempo deixamos escapar. Eles nos tornaram
uma lâmina única de aço inquebrável apontada para o coração sombrio deles.
Com vocês ao meu lado, sangrarei esse coração!
Os resmungos irromperam num grito furioso, rostos distorcidos de ódio e
raiva, punhos, espadas e alabardas erguidos, o tumulto transbordando sobre ela,
inebriando-a em seu poder. Poder. É necessário odiá-lo tanto quanto amá-lo.
Ly rna ergueu a mão e eles tornaram a se calar, embora os sussurros
ferventes continuassem.
— Não prometo vitórias fáceis. O nosso inimigo é feroz e ardiloso. Eles não
morrerão facilmente. Assim, posso prometer somente três coisas: luta, sangue e
justiça. Ninguém que me seguir nesse caminho deve imaginar que haverá
qualquer outra recompensa.
Foi a mulher pequena com as adagas que começou a entoar, brandindo uma
lâmina em cada mão com a cabeça jogada para trás:
— Luta, sangue e justiça! — O brado se espalhou num instante, erguendo-se
de uma ponta a outra do exército. — Luta, sangue e justiça! Luta, sangue e
justiça!
— Em cinco dias marchamos para Varinshold! — gritou Ly rna enquanto o
brado continuava, o volume aumentando ainda mais. Ela apontou para o norte.
Nunca tema um pouco de espetáculo, dissera o velho maquinador durante uma
das cerimônias em que entregava espadas para pessoas que as mereciam cada
vez menos. A realeza é sempre uma performance, filha. O tumulto dobrou de
intensidade quando ela gritou de novo, suas palavras perdidas em meio às
aclamações repletas de fúria. — PARA VARINSHOL D!
Ly rna permaneceu parada por alguns momentos de braços abertos no meio
do furor de adoração. Você já teve isso, pai? Eles alguma vez o amaram?
O barulho continuou quando ela desceu do carroção, mais uma vez
estendendo a mão a Vaelin, mas se deteve ao avistar o Escudo. Como esperado, o
sorriso desaparecera, substituído por uma carranca sombria que fez Ly rna se
perguntar se ele ainda a seguiria a qualquer lugar.
***
O nome do Kuritai era Vinte e Sete, embora Alucius ainda não tivesse ouvido o
homem dizê-lo. Na verdade, ele ainda não ouvira o escravo de elite dizer coisa
alguma. O homem reagia a instruções com obediência instantânea e era o criado
perfeito, buscando coisas, carregando e limpando sem qualquer sinal de cansaço
ou mesmo a mais leve expressão de reclamação.
Meu presente para você, dissera Lorde Darnel no dia em que arrastaram
Alucius das profundezas da Fortaleza Negra, com ele esperando a morte e
sufocando um grito de perplexidade quando removeram os seus grilhões e
encontrou as mãos de seu pai ajudando-o a se levantar. Um criado de perfeitude
sem igual, prosseguira Darnel, indicando o Kuritai com um gesto. Sabe, acho que
estou começando a gostar dessa coisa de brincar com as palavras, poetinha.
— Sim, estou muito bem nesta bela manhã — disse Alucius a Vinte e Sete
enquanto o escravo servia o café. — Que gentileza a sua perguntar.
Eles estavam na varanda que dava para o porto, o sol nascendo no horizonte
para pintar os navios com um matiz dourado que ele sabia que faria Alornis
correr para pegar uma tela e pincéis. Alucius escolhera a casa pela vista, sem
dúvida a morada de um mercador, que presumivelmente estava morto ou
escravizado, assim como a sua família. Varinshold agora estava repleta de casas
vazias; havia outras dentre as quais ele podia escolher caso se cansasse daquela,
mas Alucius havia se acostumado com a vista, ainda mais porque abarcava todo
o porto.
Cada vez menos navios, pensou, contando as embarcações com a precisão
habitual. Dez navios de escravos, cinco mercantes, quatro belonaves. Os cascos
dos navios de escravos estavam mais acima da água, seus porões copiosos vazios,
como estavam havia semanas, desde que a grande coluna de fumaça se erguera
para bloquear o sol durante dias a fio. Alucius vinha tentando escrever algo sobre
o acontecimento, mas percebeu que as palavras não fluíam quando colocava a
pena no papel. Como escrever um tributo para uma floresta?
Vinte e Sete colocou o último prato na mesa e afastou-se enquanto Alucius
pegava os talheres, provando primeiro os cogumelos e vendo que haviam sido
cozinhados de forma perfeita com um pouco de alho e manteiga.
— Excelente como sempre, meu letal amigo.
Vinte e Sete olhou pela janela e nada disse.
— Ah, sim, é dia de visitas — prosseguiu Alucius, com um pedaço de bacon
na boca. — Obrigado por me lembrar. Embrulhe o bálsamo e os livros novos, por
favor.
Vinte e Sete virou-se de pronto para obedecer às instruções, indo primeiro à
estante. O dono da casa havia cultivado uma biblioteca razoável, em grande
parte, supunha Alucius, para manter as aparências, visto que poucos dos volumes
mostravam sinais de já terem sido lidos. Eram na maioria romances populares e
algumas das obras históricas mais famosas, nenhuma apropriada aos seus
propósitos, o que o obrigou a passar horas esquadrinhando as casas maiores em
busca de materiais mais interessantes. Havia muitas opções, uma vez que os
volarianos eram saqueadores de um entusiasmo sem limites, mas tinham pouco
interesse em livros, a não ser como combustível para fogueiras. O dia anterior
fora particularmente proveitoso, com a obtenção de uma coleção completa das
Observações Astronômicas, de Marial, e um volume com dedicatória que ele
esperava que despertasse o interesse de uma de suas incumbências em particular.
Dez navios de escravos, cinco mercantes, quatro belonaves, contou ele de
novo, virando-se para o porto. Dois a menos do que ontem… Alucius parou ao
avistar outra embarcação, uma belonave contornando o promontório ao sul.
Parecia estar tendo dificuldades para avançar pelas águas, com apenas uma vela
içada, e esta, ele viu quando a embarcação chegou mais perto, era uma lona
esfarrapada escurecida pela fuligem. O navio arrastava cordas frouxas pelas
ondas plácidas da manhã ao se aproximar da entrada do porto, blocos e vigas
quebradas penduradas no cordame, uma tripulação reduzida andando pelo
convés com as costas curvadas de homens exaustos. Quando ancorou, os olhos de
Alucius discerniram numerosas marcas de chamuscamento que enegreciam o
casco e muitas manchas marrom-escuras no convés sujo.
Cinco belonaves, corrigiu-se. Uma com uma história interessante para contar,
ao que parece.
***
Eles passaram pelo pombal no caminho, encontrando a única ave restante com a
fome costumeira.
— Coma devagar — disse ele a Pena Azul, sacudindo o dedo, mas ela o
ignorou, subindo e descendo a cabeça enquanto apanhava as sementes com o
bico. O pombal ficava no alto da casa da Guilda dos Tipógrafos, cujo telhado
havia sido poupado do fogo que devastara a construção graças às vigas de ferro
de que era feito. As casas em volta não tiveram tanta sorte, e o outrora
movimentado edifício ao qual Alucius vinha para imprimir os seus poemas agora
se erguia em meio a ruas de escombros e cinzas. Vista daquela altura, a cidade
lembrava uma colcha de retalhos encardida, ilhas de construções intactas num
mar de ruínas negro-acinzentadas.
— Sinto muito se você tem achado solitário ficar aqui — disse ele a Pena
Azul, esfregando o peito macio da ave. Havia dez deles, um ano antes. Pássaros
jovens, cada um com um grampo minúsculo preso na pata direita, resistente o
suficiente para carregar uma mensagem.
Aquele fora o primeiro lugar para onde Alucius correra ao ser libertado da
Fortaleza Negra, encontrando vivas apenas três das aves. Ele as alimentara e
livrara-se dos corpos enquanto Vinte e Sete assistia impassível. Fora um risco
levar o escravo até ali para testemunhar o seu maior segredo, mas não havia
muita escolha. Na verdade, ele esperara que o Kuritai o matasse ali mesmo ou o
colocasse a ferros mais uma vez para retornar de imediato à prisão. Contudo, o
homem apenas ficara parado e observara enquanto Alucius escrevia a
mensagem em código num pedaço minúsculo de pergaminho antes de enrolá-lo
e enfiá-lo no pequeno cilindro de metal que caberia no grampo da pata do
pombo.
Varinshold caiu, escrevera ele, embora soubesse que provavelmente era
notícia velha para os destinatários. Darnel governa. Quinhentos cavaleiros e uma
divisão V. Vinte e Sete nem mesmo se virou para ver o pássaro voar para longe
quando Alucius o lançou do telhado e o esperado golpe mortal jamais fora
desferido, não naquela ocasião, nem quando ele soltou o pássaro seguinte na noite
em que a frota volariana zarpou para as Ilhas Meldeneanas. Ao que tudo
indicava, Vinte e Sete não era seu carcereiro nem espião de Darnel; ele era
simplesmente o seu carrasco que aguardava. De qualquer forma, as suas
preocupações quanto ao que o Kuritai via desapareceram havia há muito tempo,
junto com a esperança de que pudesse viver para ver aquela cidade liberta… e
ver Alornis desenhar de novo.
Ele considerou por um breve momento enviar Pena Azul com a sua
mensagem final; aqueles aos quais ele prestava contas sem dúvida achariam
interessante a notícia sobre a belonave avariada, mas abandonou a ideia. O navio
pressagiava muita coisa, e seria melhor aguardar para descobrir a história inteira
antes de usar o seu último vínculo com o mundo exterior.
Eles desceram do telhado por uma escada encostada na parede dos fundos e
seguiram para a única construção em Varinshold que parecia não ter sofrido
qualquer dano, a vasta fortaleza de pedra negra situada no centro da cidade.
Alucius sabia que ocorrera uma batalha sangrenta ali. A guarnição de capangas
da Quarta Ordem presente na Fortaleza Negra lutara de maneira
surpreendentemente valente e repeliram sucessivas ondas de Varitai, com o
Aspecto Tendris no meio do combate, instigando-os a feitos de coragem cada vez
maiores com Fé inabalável. Pelo menos era essa a história caso se desse crédito
aos murmúrios de escravos nascidos no Reino. A fortaleza finalmente foi tomada
quando os Kuritai foram enviados, e o Aspecto Tendris abateu quatro dos
escravos de elite antes de uma facada covarde nas costas derrubá-lo, algo que
Alucius achava extremamente improvável, embora admitisse que o desgraçado
louco provavelmente tinha morrido lutando.
Os Varitai no portão abriram caminho quando ele se aproximou seguido por
Vinte e Sete com os seus livros e vários remédios num saco pendurado no ombro
largo. O interior da Fortaleza Negra era ainda menos edificante do que o exterior,
um pátio estreito com paredes negras austeras e arqueiros Varitai postados no
parapeito acima. Alucius foi até a porta nos fundos do pátio, e o guarda Varitai a
destrancou e lhe deu passagem. Lá dentro, ele desceu os degraus sinuosos até as
galerias. O cheiro avivou lembranças desagradáveis de sua estada ali: podridão
bolorenta e o traço pungente de mijo de rato. Os degraus terminavam uns seis
metros abaixo, dando para um corredor iluminado por tochas e ladeado por dez
celas, cada uma fechada por uma pesada porta de ferro. Todas as celas estavam
ocupadas quando ele fora trazido pela primeira vez para ali, mas agora apenas
duas estavam ocupadas.
— Não — respondeu Alucius à pergunta que Vinte e Sete não fizera. — Não
posso dizer que é bom estar de volta, meu amigo.
Ele se aproximou do Espada Livre, sentado num banco no fim do corredor.
Era sempre o mesmo homem, um sujeito emburrado e musculoso que falava a
língua do Reino com toda a delicadeza de um escultor cego tentando esculpir
uma obra-prima.
— Quadelis? — grunhiu ele, levantando-se e deixando de lado um odre de
vinho.
— Aspecto Dendrish, acho — disse Alucius. — As tarefas enfadonhas
primeiro, é o que sempre digo. — Ele escondeu um suspiro de frustração quando
o Espada Livre franziu a testa, confuso. — O homem gordo — acrescentou
lentamente.
O Espada Livre encolheu os ombros e andou até a porta mais afastada, as
chaves tilintando enquanto a destrancava. Alucius lhe agradeceu com uma
mesura e entrou.
O Aspecto Dendrish Al Hendrahl perdera talvez metade de seu peso durante
o cativeiro, mas mesmo assim ainda era consideravelmente mais gordo do que a
maioria dos homens. Ele cumprimentou Alucius com o costumeiro rosto franzido
e informalidade, os olhos pequenos apertados e reluzindo à luz da única vela no
recanto acima de sua cama.
— Imagino que você tenha trazido algo mais interessante do que da última
vez.
— Acredito que sim, Aspecto. — Alucius pegou o saco de Vinte e Sete e o
revirou, tirando de dentro um volume grande com o título gravado em relevo
dourado na capa de couro.
— Falácia e crença — leu o Aspecto ao pegar o volume. — A natureza da
adoração de Deus. Você me trouxe o meu próprio livro?
— Não exatamente, Aspecto. Sugiro que olhe dentro.
Dendrish abriu o livro, os olhos pequenos examinando o texto na página de
rosto, em que Alucius sabia estar escrito Ou “Pomposidade e arrogância: a
natureza da erudição do Aspecto Dendrish”.
— O que é isso? — perguntou o Aspecto.
— Encontrei na casa de Lorde Al Avern — falou Alucius. — O senhor sem
dúvida se lembra dele. Era chamado de Lorde da Tinta e do Pergaminho, por
causa de suas realizações eruditas.
— Realizações? O homem era um amador, um mero copiador de talentos
maiores.
— Bem, ele tem muito a dizer sobre os seus talentos, Aspecto. A crítica dele
do seu tratado sobre a origem dos deuses alpiranos é particularmente efusiva, e
escrita de forma bastante elegante, devo dizer.
As mãos gordas de Al Hendrahl folhearam o livro com precisão, abrindo-o
para revelar um capítulo adornado de forma deliberada com a letra elegante do
finado Lorde Al Avern.
— “Simplesmente repete Carvel”? — leu o Aspecto num sussurro furioso. —
O macaco desmiolado me acusa de falta de originalidade.
— Achei que o senhor podia achar divertido. — Alucius fez uma mesura e foi
até a porta.
— Espere! — Al Hendrahl lançou um olhar cauteloso para o Espada Livre do
lado de fora da cela e levantou-se, não sem dificuldade. — Sem dúvida você tem
notícias.
— Infelizmente, as coisas não mudaram desde a minha última visita,
Aspecto. Lorde Darnel está procurando o filho em meio às cinzas do seu grande
crime, aguardamos notícias da gloriosa vitória do General Tokrev em Alltor e da
tomada igualmente gloriosa do Almirante Morok das Ilhas Meldeneanas.
Al Hendrahl aproximou-se e falou num sussurro quase inaudível:
— Nada ainda sobre Mestre Grealin?
Era a pergunta que ele sempre fazia, e Alucius desistira de tentar arrancar a
razão para esse interesse no almoxarife da Sexta Ordem.
— Nada, Aspecto. Tal como da última vez. — Estranhamente, essa resposta
sempre parecia tranquilizar o Aspecto, e o homem assentiu, voltando a se sentar
na cama, com os dedos sobre o livro e sem erguer o olhar quando Alucius saiu da
cela.
Como sempre, a Aspecto Elera contrastava com o seu irmão de Fé, sorrindo
e levantando-se quando a porta se abriu, as mãos delgadas estendidas em
saudação.
— Alucius!
— Aspecto. — Ele percebia que sempre tinha de cuidar para que sua voz não
ficasse embargada quando a via, vestida com o imundo manto cinzento que não
deixavam que ele substituísse, o tornozelo dela vermelho e em carne viva por
causa do grilhão. Porém, ela sempre sorria e ficava feliz ao vê-lo.
— Trouxe mais bálsamo — disse Alucius, colocando o saco sobre a cama. —
Para a sua perna. Há uma farmácia na rua dos Condutores. Incendiada,
naturalmente, mas parece que o proprietário teve a previdência de esconder
parte do estoque no porão.
— Engenhoso como sempre, meu senhor. Obrigada. — Ela se sentou e
examinou o saco por um momento, retirou de dentro um pequeno pote de
cerâmica de bálsamo e removeu a tampa para sentir o cheiro do conteúdo. —
Óleo de corr e mel. Excelente. Servirão muito bem. — A Aspecto revirou mais o
saco e encontrou os livros. — Marial! — exclamou ela, encantada. — Já tive
todos os volumes. Deve fazer quase vinte anos desde a última vez que os li. Você
é bom para mim, Alucius.
— Eu me esforço para fazer o melhor que posso, Aspecto.
Elera deixou o livro de lado e olhou para ele, o rosto tão limpo quanto
permitia sua parca cota de água. Lorde Darnel fora muito específico nas
instruções sobre o confinamento da Aspecto, uma consequência das palavras
pouco lisonjeiras que ela lhe dissera durante a sua primeira e única visita àquela
cela. Assim, enquanto o Aspecto Dendrish era tratado apenas com a crueldade
da indiferença e de uma dieta restrita, a Aspecto Elera fora presa à parede com
uma corrente que restringia os seus movimentos a menos que os dois metros
quadrados de sua cela minúscula. Entretanto, até o momento Alucius não a
ouvira fazer uma reclamação sequer.
— Como vai o poema? — perguntou Elera.
— Devagar, Aspecto. Receio que esses tempos tumultuosos mereçam um
cronista melhor.
— Uma pena. Eu estava ansiosa para lê-lo. E o seu pai?
— Envia os seus cumprimentos — mentiu Alucius. — Embora eu raramente
o veja esses dias, ocupado como ele está a serviço do Lorde.
— Ah. Bem, não deixe de lhe dar os meus cumprimentos.
Pelo menos ela não o chamará de traidor quando isso acabar, pensou Alucius.
Embora talvez seja a única.
— Diga-me, Alucius — prosseguiu a Aspecto. — As suas explorações o
levam até o quadrante sul?
— Raramente, Aspecto. As sobras não são das melhores, e, de qualquer
forma, não restou muita coisa do quadrante para ser vasculhado.
— Que pena. Havia uma estalagem lá, creio que se chamava Javali Negro.
Se você estiver precisando de vinho decente, acredito que o proprietário
mantinha uma seleção de safras cumbraelinas num local secreto sob as tábuas do
assoalho, para não incomodar os coletores de impostos do Rei, claro.
Vinho decente. Quando foi a última vez que você bebeu algo que não tenha
gosto do mais ácido vinagre? Os volarianos podiam ter tido pouco interesse nos
livros da cidade, mas haviam limpado cada prateleira de vinho na primeira
semana de ocupação, forçando-o a um período indesejado de sobriedade.
— Muito gentil de sua parte, Aspecto. Mas devo confessar a minha surpresa
por a senhora ter conhecimento de tais assuntos.
— Escuta-se toda espécie de coisas quando se é uma curandeira. As pessoas
revelam os seus segredos mais íntimos àqueles que elas esperam que acabem
com suas dores. — Elera o olhou nos olhos, e havia um novo peso em sua voz
quando acrescentou: — Eu não me demoraria à procura do vinho, meu senhor.
— Eu… não irei me demorar, Aspecto.
O Espada Livre bateu com as chaves na porta, soltando um grunhido
impaciente.
— Preciso ir — disse ele, pegando o saco vazio.
— Foi um prazer, Alucius, como sempre. — A Aspecto estendeu a mão, e ele
se ajoelhou para beijá-la, um ritual de cortesia que haviam adotado com o passar
das semanas. — Sabe de uma coisa? — comentou ela quando Alucius levantou-
se e caminhou até a porta. — Creio que, se Lorde Darnel fosse um homem
verdadeiramente corajoso, já teria nos matado a essa altura.
— E com isso teria feito o seu feudo se levantar contra ele — respondeu
Alucius. — Nem mesmo ele é tão tolo.
Ela assentiu, sorrindo mais uma vez enquanto o Espada Livre fechava a porta,
suas últimas palavras foram baixas, mas audíveis e insistentes:
— Não deixe de aproveitar o vinho!
Ela desperta e seus olhos encontram um brilho fraco e amarelo num mundo de
sombras. O brilho se torna a chama de uma vela, não tão nítida quanto deveria ser.
Por um momento ela se pergunta se renasceu num corpo parcialmente cego, a
piada do Aliado, ou um castigo adicional. Mas então ela se lembra de que a sua
visão, a visão de seu primeiro corpo, sempre fora surpreendentemente aguçada.
Mais aguçada do que a de qualquer falcão, dissera o seu pai séculos antes, um
raro elogio que lhe enchera os olhos de lágrimas na época, mas que agora nada
causava a esses olhos. Esses olhos mais fracos, roubados.
Ela está deitada sobre pedra dura, fria e áspera ao toque de sua pele nua. Ela
se senta, e algo se move na escuridão; um homem sai das sombras para a luz
fraca. Ele veste o uniforme da Guarda do Conselho e tem o rosto magro de um
veterano, mas ela enxerga a verdadeira face dele no olhar malicioso.
— O que acha? — questiona ele.
Ela ergue as mãos, flexionando os dedos e os pulsos. Forte, ótimo. Seus braços
são esguios, bem-torneados, tal como suas pernas, esbeltas e flexíveis.
— Uma dançarina? — pergunta ela ao Guarda do Conselho.
— Não. Ela foi encontrada quando era uma criança. Das tribos da colina ao
norte, mais ricas em dotados do que qualquer outro lugar do império. O dom é
poderoso, um domínio espantoso do vento. Algo para o qual tenho certeza de que
você encontrará alguma serventia. Ela foi treinada com faca, espada e arco desde
que tinha seis anos. Por segurança, devido à sua inevitável queda.
Ela sente uma pontada de raiva ao ouvir isso. Não era inevitável. Não mais do
que o amor é inevitável. Ela fica tentada a deixar que a raiva aumente, que
alimente com fúria o novo corpo e teste suas habilidades contra o Mensageiro
malicioso, mas se detém diante de outra sensação… A música flui, a melodia é
intensa e forte. Sua canção voltou!
Ela sente uma gargalhada lhe subir pelo peito e a solta, jogando a cabeça para
trás, o som exultando no momento em que outro pensamento lhe ocorre, não
menos intenso em sua compreensão jubilante. Eu sei que você me vê, amado!
Ele acordou sobressaltado, fazendo Retalhador, que dormia aos seus pés, soltar
um ganido de curiosidade. Ao seu lado, Mestre Rensial continuava dormindo,
com um sorriso estranhamente sereno no rosto; um homem contente em seu
sono. Era o único momento em que ele parecia são, além de nas batalhas. Frentis
sentou-se com um gemido, sacudindo a cabeça para afastar o sonho. Sonho?
Você realmente acredita que era isso?
Ele deixou a ideia de lado e calçou as botas, pegou a espada e saiu da tenda
pequena que dividia com o mestre. O céu ainda estava escuro, e ele calculou que
o novo dia começara havia menos de duas horas, pela altura da lua. A companhia
dormia à sua volta; as tendas fornecidas pelo Barão Banders eram um luxo
extraordinário após tantos dias de privações. Eles estavam acampados na encosta
sul de uma colina alta, um dos morros que tornavam a região fronteiriça de
Renfael tão distinta; as fogueiras haviam sido proibidas pelo barão, que não via
motivo para dar a Lorde Darnel qualquer indício de quantos eles eram.
Seis mil homens, pensou Frentis, percorrendo o acampamento com os olhos,
lembrando-se das informações fornecidas pelo desafortunado Lorde Wenders.
Suficientes para tomar uma cidade protegida pelos cavaleiros de Darnel e por
uma divisão inteira de volarianos?
Um som baixo atraiu a sua atenção de volta às tendas onde dormia a sua
companhia, um risinho que vinha da tenda que Arendil dividia com a Senhora
Illian. Ele ouviu sussurros indistintos, mas urgentes, seguidos por mais risinhos. Eu
devia impedir isso, decidiu Frentis, e começou a andar, mas então parou quando
as palavras que Illian lhe dissera no dia anterior lhe vieram à mente. Eu não sou
criança.
Eles perderam a juventude na minha cruzada sangrenta, pensou. E coisas
ainda piores estão por vir em Varinshold. Frentis suspirou e afastou-se até os sons
diminuírem.
Era noite de meia-lua, mas o céu estava claro, fornecendo luz suficiente para
se ter uma boa visão da planície para além dos morros, até então livre de
inimigos. Ele irá esperar?, perguntou-se Frentis. Será que Darnel virá quando
souber que Banders fez o seu feudo rebelar-se contra ele e que agora protege o
seu filho? Sua mão doeu ao apertar o punho da espada, sentindo a sede de sangue
aumentar mais uma vez, chamando a voz dela como sempre fazia. Não está tão
livre dos seus prazeres, afinal, amado?
— Me deixe em paz — sussurrou em volariano por entre os dentes, forçando
a mão a soltar a espada.
— Então aprendeu uma nova língua, irmão?
Frentis virou-se e viu um irmão mais ou menos da sua idade vindo das
sombras, alto com um rosto estreito e um sorriso enviesado. Foi o sorriso que
avivou a sua memória.
— Ivern — disse ele após um momento.
O jovem irmão parou a alguns metros de distância e olhou Frentis da cabeça
aos pés, espantado.
— Achei que o Irmão Sollis estava de brincadeira quando me contou — disse
ele. — Mas desde quando ele brinca sobre alguma coisa? — Ele avançou e deu
um abraço caloroso em Frentis.
— A Ordem — começou Frentis quando Ivern recuou. — A Casa caiu. Não
há outros…
— Eu sei. Ele me contou a sua história. Pouco mais de uma centena de nós. É
tudo o que resta da Sexta Ordem.
— O Aspecto Arly n está vivo. O lambe-botas de Darnel confirmou essa
informação, mas não pôde nos dizer onde em Varinshold o haviam aprisionado.
— Um mistério a ser resolvido quando chegarmos lá. — Ivern inclinou a
cabeça para o agrupamento de tendas ali perto. — Sobrou meia garrafa de
Amigo de Irmão, se quiser dividir.
Frentis nunca tivera uma predileção especial pela bebida alcoólica favorita da
Ordem, pois não gostava do modo como ela entorpecia os sentidos, de forma que
se limitou a um gole educado antes de devolver o frasco a Ivern, que parecia não
ter tais preocupações.
— Estou dizendo a mais pura e completa verdade — insistiu ele após um gole
longo do frasco. — Ela me beijou, bem nos lábios.
— A Princesa Ly rna beijou você? — perguntou Frentis, erguendo uma
sobrancelha.
— De fato beijou. Após uma perigosa e, suponho, agora já lendária
empreitada pelo Domínio Lonak. Eu já havia escrito metade do relato para que
fosse incluído no arquivo do Irmão Caenis quando chegou a notícia da invasão. —
O sorriso dele tornou-se pesaroso. — Meu melhor momento como um irmão,
que a história perdeu graças a preocupações maiores. — Ele olhou Frentis nos
olhos. — Ouvimos muitas coisas sobre você enquanto vínhamos para o sul. A
história do Irmão Vermelho se espalhou depressa e por toda parte. Existe até
mesmo uma versão que diz que você a viu morrer.
O fogo lhe envolvendo o rosto enquanto ela gritava, o cabelo enegrecendo
enquanto tentava apagar as chamas com as mãos…
— Eu não a vi morrer — disse Frentis. Apenas matei o irmão dela.
Ele contara tudo ao Irmão Sollis na noite anterior enquanto a companhia fazia
a sua primeira refeição de verdade após dias, alguns com os ombros tão
curvados de alívio que não conseguiam levar a comida às bocas. Sollis assimilara
cada palavra sem fazer qualquer comentário, os olhos claros nada revelando
enquanto a história de assassinato e dor era narrada. Terminado o relato, ele, tal
como o Aspecto Grealin, dera instruções expressas para que não fosse repetido a
ninguém e que fosse mantida a ficção na qual acreditavam as pessoas que o
seguiam. A mesma mentira, acrescentou a voz da mulher num tom de leve
zombaria.
— Então há uma chance — insistiu Ivern. — Ela ainda pode estar viva.
— Peço todos os dias aos Finados para que assim seja.
Ivern tomou outro gole.
— Os lonaks não compreendiam o que era uma princesa, então a chamavam
de rainha. No fim, estavam certos. Se eu fosse um volariano, estaria rezando pela
morte dela. Não gostaria de ser o alvo da vingança daquela mulher.
Vingança, pensou Frentis, olhando para as próprias mãos, mãos que haviam
quebrado o pescoço de um rei. Ou justiça?
Ele retornou para a sua companhia pela manhã e encontrou Davoka conversando
com Illian, a jovem nobre sentada de forma rígida e com o rosto pálido enquanto
a lonak falava num tom instrutivo:
— Você precisa ter cuidado — advertiu ela, passando uma pedra ao longo da
lâmina da sua lança. — Barriga inchada não é boa coisa numa batalha. Garanta
que ele faça na sua coxa.
Quando Illian avistou Frentis, seu rosto ganhou um tom escarlate no mesmo
instante. Ela se levantou e afastou-se pisando firme, mas depressa, conseguindo
soltar apenas um guincho baixo em resposta ao cumprimento dele.
— Essas coisas não são discutidas abertamente entre os merim her — disse
Frentis a uma Davoka confusa, sentando-se ao lado dela.
— A garota é tola — murmurou ela, encolhendo os ombros. — Fica brava
rápido demais, abre as pernas rápido demais. Meu primeiro marido teve que me
dar três pôneis antes de colocar as mãos em mim.
Frentis ficou tentado a perguntar quantos pôneis Ermund precisaria entregar
no devido tempo, mas achou que seria uma pergunta insensata. Preso como
estava pelo seu juramento, o cavaleiro reassumira rapidamente sua posição ao
lado do Barão Banders, e sua espada faria muita falta. Contudo, Davoka parecia
não se incomodar com a ausência repentina do cavaleiro, e Frentis perguntou-se
se o homem não teria sido apenas uma distração bem-vinda durante os raros dias
de calmaria na Urlish.
— As coisas são diferentes aqui — disse ele, mais para si mesmo do que para
a lonak. Illian se transformou de uma garota mimada numa caçadora mortal;
Draker, de um fora da lei num soldado; Grealin, de um mestre num Aspecto. Tudo
está diferente. Os volarianos nos construíram um novo Reino.
O Irmão Comandante Sollis apareceu quando eles tomavam o café da
manhã, oferecendo um aceno de cabeça respeitoso a Davoka, e parando apenas
por um momento ao avistar Trinta e Quatro, que sorriu com uma mesura
graciosa.
— O Barão Banders convocou um conselho — disse Sollis a Frentis. — Ele
quer a sua opinião.
***
Ela está no topo de uma torre alta, com Volar estendida abaixo em toda a sua
glória antiga, rua após rua de casas, mansões de mármore, jardins magnificamente
elaborados e inúmeras torres erguidas por todos os lados, embora nenhuma tão
alta quanto aquela: a Torre do Conselho.
Ela ergue os olhos para o céu à procura de um alvo. O dia está claro, o céu de
um azul ininterrupto, mas ela avista uma pequena nuvem alguns quilômetros
acima, rarefeita, mas suficiente para os seus propósitos. Ela procura pelo dom
dentro de si, descobrindo que precisa suprimir a sua canção para trazê-lo à tona,
mas, quando o faz, o poder a desnorteia, fazendo com que se apoie no parapeito ao
ficar tonta. Ela sente o nariz pingar de um modo familiar e compreende que o
preço para este dom será ainda mais difícil de pagar do que o fogo maravilhoso
que roubara de Revek, cujas palavras lhe ocorriam agora com uma ironia
precisa: É o que acontece com dons roubados, não concorda?
O que ele sabia?, pensa ela, embora o escárnio seja forçado e vazio. Ele sabia
o suficiente para não ficar cego por amor.
Ela afasta da mente os pensamentos indesejados e concentra-se na nuvem; o
dom é avivado, mais sangue escorre de seu nariz quando ela o libera, e a pequena
nuvem gira num vórtice antes de se desfazer, os fiapos desaparecendo no céu azul
límpido.
— Impressionante.
Ela se vira e vê um homem alto de manto vermelho surgir da escada e pisar no
telhado da torre. Dois Kuritai o seguem para a luz com as mãos apoiadas nas
espadas. Ela ainda não testou as habilidades oferecidas por aquela nova casca e
precisa resistir à tentação de fazê-lo agora. Esconda uma vantagem e o valor dela
será dobrado. Um dos axiomas de seu pai, mas suspeita de que ele possa tê-lo
roubado de um filósofo morto há muito tempo.
— Arklev — cumprimenta ela enquanto o homem alto se aproxima. Ela pode
ver uma mudança nele, um novo cansaço ao redor dos olhos, uma expressão que
ela conhece bem. Ele está sofrendo.
— O Mensageiro não se demorou — conta ele. — A não ser para dizer que a
orientação do Aliado a partir de agora será dada apenas através de você.
A orientação do Aliado… Como se ele pudesse compreender o verdadeiro
significado dessas palavras, o que significa a uma alma no Vazio ouvir a voz do
Aliado. Ela quase ri da ignorância desse homenzinho ancestral. Séculos de vida e
ele ainda não sabe nada.
Ele a encara com expectativa, com uma leve preocupação na testa, e ela
percebe que vários momentos se passaram desde que ele falou. Há quanto tempo
ela está parada ali? Há quanto tempo ela subiu até o alto da torre?
Ela respira fundo e permite que a confusão se dissipe.
— Você está sofrendo — diz ela. — Quem você perdeu?
Ele recua um pouco, a preocupação transformando-se em medo, sem dúvida
perguntando-se quanto ela já sabe. Ela estava aprendendo que parecer onisciente
podia oferecer tanto poder quanto ser onisciente.
— Meu filho — responde Arklev. — Sua embarcação não chegou a Varinshold.
Os videntes não conseguem mais encontrar qualquer traço dele nos tempos por
vir.
Ela assente e espera que ele diga mais, mas o Conselheiro coloca uma
máscara sobre o rosto e permanece em silêncio.
— O Aliado quer que você me promova ao Conselho — diz ela ao homem. — À
Cadeira Escravocrata.
— Essa é a cadeira do Conselheiro Lorvek — protesta ele. — Cujas funções ele
tem desempenhado com esmero e zelo há quase um século.
— Enquanto enchia os bolsos e fracassava na tarefa de produzir dotados
suficientes. O Aliado acha que a sua orientação não foi completamente
compreendida. E com o amadurecimento dos nossos novos recursos, ele acha que
eu seria uma supervisora mais confiável para esta empreitada bastante específica.
Se Lorvek não renunciar, tenho certeza de que serão encontradas evidências
suficientes de corrupção para justificar uma acusação de traição. A não ser que
você prefira um método mais discreto.
Ele diz mais coisas, mas ela não o escuta, sentindo outra vez o tempo passar.
Quanto tempo ela ficou ali? Quando deixa de se sentir desorientada, ela está
novamente sozinha e o céu é de um tom mais escuro de azul. Ela volta o olhar
para oeste, acompanhando o vasto estuário até a costa e ao oceano além. Por
favor, venha depressa até mim, amado. Estou tão sozinha.
CAPÍTULO QUATRO
Reva
Ela tinha visto cadáveres suficientes para saber que os mortos raramente
conservavam alguma expressão. Os sorrisos largos e as caretas aterrorizadas
eram simplesmente o resultado do retesamento de tendões e músculos conforme
os humores do corpo se esvaíam. Assim, foi uma surpresa ver no rosto do
sacerdote o retrato de tamanha serenidade; não fosse pelo corte fundo e estreito
em sua garganta, ele poderia ter sido facilmente confundido com um homem
adormecido, pois suas feições mostravam uma alma contente com o mundo.
Contente, pensou ela, afastando-se do cadáver e sentando-se. Quão
apropriado ele encontrar a paz apenas na morte.
— É ele? — perguntou Vaelin.
Ela assentiu e levantou-se quando Alornis se aproximou, tocando-lhe a mão
para tranquilizá-la. Vaelin ergueu o esboço feito pela irmã, seus olhos indo do
rosto do sacerdote para a representação no pergaminho.
— Que talento você tem — disse a ela com um sorriso antes de virar-se para
o homem corpulento parado próximo da parede da tenda. — E o senhor, Mestre
Marken. Um olhar aguçado para detalhes.
A barba de Marken contraiu-se com um leve sorriso e Reva notou como ele
apertava com força uma das mãos na outra e recusava-se com veemência a
olhar para o segundo cadáver. O corpo estava deitado ao lado do sacerdote, as
feições mais típicas da experiência de Reva, a pele de um azul-claro, os lábios
arreganhados e a língua para fora por entre os dentes expostos, parcialmente
cortada durante os espasmos finais. Contudo, assim como com o sacerdote, suas
feições eram reconhecíveis o suficiente para corresponderem ao esboço de
Alornis.
— Meu tio Sentes falou que o nome dele era Lorde Brahdor — disse ela a
Vaelin. — A Senhora Veliss me disse que ele possuía terras um pouco a leste
daqui, com vinhedos excelentes. Famoso mais pelo vinho branco do que pelo
tinto.
— Isso é tudo? — perguntou Vaelin. — Nenhuma suspeita? Histórias
fantásticas sobre poderes estranhos ou eventos inexplicáveis?
— Isso é tudo. Apenas um nobre menor com algumas centenas de acres de
uvas… e um celeiro.
Vaelin olhou de forma indagadora para Marken. O homenzarrão rangeu os
dentes por um momento e então apontou um dedo grosso para o cadáver de
Lorde Brahdor, ainda se recusando a olhar para ele.
— Não tocarei nesse, meu senhor. Posso sentir, saindo dele como veneno.
Perdoe minha covardia. Mas… — Ele sacudiu a cabeça desgrenhada. — Não
posso. Eu…
— Está tudo bem, Marken — assegurou-lhe Vaelin, indicando o sacerdote
com a cabeça. — E ele?
Marken soltou um suspiro de alívio e virou-se para se agachar ao lado do
sacerdote, arregaçando a manga e colocando a mão grande na testa do cadáver.
Ele se contraiu após um momento, como se estivesse sentindo dor, sua boca
contorceu-se em repugnância quando pareceu que estava prestes a afastar a
mão, mas Reva o viu fortalecer a sua determinação, fechando os olhos e ficando
imóvel como uma estátua durante vários minutos. Por fim, ele respirou fundo e
devagar, o suor brilhando em meio aos cabelos que pendiam sobre a testa
vincada. Marken levantou-se, olhando para Reva com solidariedade e pesar.
— Minha senhora… — começou ele.
— Eu sei — disse Reva. — Eu estava lá. Mestre Marken, por favor, conte a
Lorde Al Sorna tudo o que viu.
— A infância dele é confusa — disse Marken a Vaelin. — Parece que ele foi
criado pela Igreja do Pai do Mundo. Não há imagens de seus pais, então imagino
que fosse órfão, aprendiz de um sacerdote, um destino comum para órfãos
cumbraelinos, creio eu. O sacerdote que o criou era bondoso, um ex-soldado da
Guarda do Senhor, chamado à igreja mais tarde do que o normal, determinado a
fazer com que os seus pupilos adquirissem tanto as suas habilidades marciais
quanto o fervor de sua devoção. O garoto passou longos anos mergulhado no
estudo dos Dez Livros e treinando para a guerra. Adulto, suportou longos anos de
vergonha quando olhava para mulheres. Quanto mais jovem a mulher, maior era
a vergonha, e mais ele olhava. Senti uma compulsão de se esconder nos Dez
Livros, para se refugiar de seus desejos nos ensinamentos da igreja.
“Alltor e a catedral possuem um lugar de destaque em suas lembranças, e
acredito que ele foi enviado para lá para se preparar para o sacerdócio. Eu o vi
se encontrar com o Leitor e receber o seu nome sacerdotal. Eles nunca se
encontravam em público e senti que o sacerdote havia sido escolhido para um
papel secreto. Vi uma viagem para longe de Alltor ser interrompida quando ele
encontrou um homem com uma cicatriz, aqui. — Marken parou para tocar a
própria bochecha. — O homem está falando diante de uma grande multidão e o
jovem sacerdote é tomado por uma nova paixão ao ouvir a sua voz. Ele retorna
ao Leitor e é enviado mais uma vez. Então há muitos meses de encontros em
salas escuras e locais isolados, homens reunidos e temendo serem descobertos
enquanto trocavam cartas e juntavam armas em esconderijos. Ele nunca mais
vê o homem com a cicatriz, mas se lembra com frequência daquela ocasião.
Então, em outro encontro secreto, ele encontra esta coisa. — Marken indica com
a cabeça o segundo corpo, fazendo uma careta ao olhar para o rosto morto de
Brahdor. — A coisa fala, mas não posso ouvir as palavras, como sabe, meu
senhor. Mas elas fazem com que a paixão do sacerdote se torne ainda mais
intensa. A coisa o leva até uma casa de fazenda à noite, onde um casal idoso está
sentado diante de uma lareira cuidando de uma menininha. — Ele olha de novo
para Reva e engole em seco. — A vergonha do sacerdote é maior do que nunca
quando olha para ela.
— Eles mataram os meus avós, não? — perguntou Reva. — Eles os mataram
e me roubaram.
Ele assentiu.
— Eles esperaram até a senhora ter sido colocada na cama. O casal idoso foi
morto, a menina tirada da cama e a casa incendiada.
— E então muitos anos felizes num celeiro — murmurou Reva enquanto
Marken procurava as palavras certas a serem ditas.
— Algum nome? — perguntou Vaelin ao dotado.
— Alguns, meu senhor. O sacerdote os anotava para memorizá-los. Ele
queimava o papel, mas as lembranças permaneceram.
— Faça uma lista e a entregue à Senhora Reva.
Ela se afastou do cadáver do sacerdote, sentindo uma grande tentação de
esmagar com a bota o rosto satisfeito dele, de estragar para sempre o seu sono.
— Reva — disse Alornis, puxando a manga dela. — Não há mais nada a se
conseguir aqui.
— Eu… — gaguejou Marken. — Eu tenho o nome dele, minha senhora. O
Leitor o anotou quando o deu ao sacerdote.
— Não — disse ela, virando-se e indo até a aba da tenda. — Queime-o se
tiver terminado — disse Reva a Vaelin. — Ninguém dirá nenhuma palavra por
ele.
— Meu senhor — prosseguiu Marken enquanto se dirigiam à entrada da
tenda. — Com a sua permissão. Sobre o Irmão Caenis…
— Estou ciente da questão, Mestre Marken — disse Vaelin.
— Nós não seguimos o senhor até aqui para nos tornarmos servos da Fé…
— Discutiremos isso esta noite — afirmou Vaelin com firmeza. — Com
Lorde Nortah. O senhor deixou as suas preocupações devidamente claras.
Eles voltaram em silêncio para o passadiço, Reva absorta na história do
dotado, Vaelin sem dúvida ponderando a respeito da revelação do Irmão Caenis à
Rainha. Alornis seguia a uma distância discreta, perscrutando as muralhas da
cidade e com o onipresente embrulho de lona com seus desenhos junto ao peito,
já sendo preenchido com reproduções da destruição por trás das muralhas. Ela
chorara no dia em que encontrou Reva parada em meio às ruas tomadas de
cadáveres. Ao vê-la, Alornis abraçara Reva, convulsionando de alívio, causando
uma dor antiga que Reva notou que não lhe doía mais da mesma forma.
— A Sétima Ordem — disse ela a Vaelin ao pararem diante do passadiço. —
Não é uma lenda, afinal de contas. Mas imagino que você saiba disso há algum
tempo.
— Sim. — O rosto dele estava sombrio, não tão cansado quanto estivera
recentemente, mas ainda assim ele parecia ter envelhecido muito em poucos
dias. — Embora houvesse algo de que eu devia ter conhecimento, mas não tinha.
— O Irmão Caenis?
Ele assentiu e mudou de assunto.
— O que você fará com os nomes que Marken lhe deu?
— Irei encontrá-los e levá-los a julgamento. Se for provado que são Filhos,
irei enforcá-los.
— Minha Senhora Governadora favorece uma justiça severa.
— Eles tramaram a morte do meu tio, com pleno apoio da igreja que há
séculos instiga o povo deste feudo a um respeito servil. Eles conspiraram com
criaturas imundas das Trevas para me submeterem a uma vida de abusos antes
de me enviarem atrás de você na esperança de que eu morresse. E não nos
esqueçamos da tentativa deles de matar a Rainha. Devo continuar?
Vaelin examinou o rosto dela por um momento e Reva sentiu a dureza de sua
expressão suavizar sob o escrutínio.
— Sinto muito por tudo o que lhe aconteceu aqui, Reva. Se eu tivesse tido a
mínima noção…
— Eu sei. — Ela forçou um sorriso. — Junte-se a nós esta noite. Veliss
encontrou um novo cozinheiro, ainda que só possamos oferecer dois pratos e
nenhum vinho.
— Não posso. Há muito a ser feito. — Ele olhou para trás na direção do
acampamento onde soldados estavam ocupados guardando equipamentos e
suprimentos para a marcha do dia seguinte e o início do que estava tornando-se
rapidamente conhecido como a Cruzada da Rainha. — Ela queria que eu
perguntasse quantos homens você enviará conosco — disse ele, virando-se para
Reva.
— Não enviarei nenhum. Vou liderá-los, a Guarda da Casa inteira e mais
quinhentos arqueiros.
— Reva, você já fez o bastante…
O rosto flácido e sem vida de Arken, a espada em suas costas… Os arqueiros
debatendo-se no rio enquanto as flechas caíam… Tio Sentes morrendo nos degraus
da catedral…
— Não — retorquiu ela. — Não, não fiz.
A sala das espadas estava quase vazia, os cavaletes outrora cheios agora sem
lâminas, exceto por umas poucas penduradas alto demais na parede para serem
alcançadas com facilidade. Ela passou uma hora treinando com a espada do avô,
dançando a sua dança com a lâmina pesada, rodopiando e cortando, forçando os
músculos.
— Eu poderia vê-la fazer isso por horas.
Reva parou no meio de uma pirueta e viu Alornis parada na porta, os dedos
manchados de carvão ainda segurando a sua pasta de couro.
— Duvido que você tivesse gostado da visão alguns dias atrás — disse Reva,
massageando as costas.
O olhar de Alornis tornou-se sombrio.
— Foi terrível, eu sei. Tantas partes da cidade destruídas. Na marcha até aqui
eu vi coisas… Coisas que senti que precisava desenhar. — Ela bateu na pasta. —
Achei que colocá-las no papel pudesse tirá-las da minha cabeça, mas ainda
continuam lá.
As cabeças cortadas caindo do alto… O olhar desafiador do volariano ao ser
conduzido até o bloco…
— Como deveriam continuar — disse Reva. — Você irá para Varinshold? Há
quartos de sobra aqui, caso queira ficar. E tenho certeza de que a Senhora Veliss
gostaria da companhia.
Alornis sorriu, mas sacudiu a cabeça.
— Alucius e Mestre Benril. Preciso encontrá-los. — Ela hesitou e então
entrou na sala, arregalando os olhos ao apreciar os quadros no alto das paredes,
os espadachins em suas várias poses. — Foram pintados por uma mão habilidosa.
— E ao custo do dinheiro do meu bisavô, sem dúvida, que parece ter sido um
pouco generoso demais com suas moedas, de acordo com os registros de Veliss.
Talvez seja por isso que ele tenha perdido tantas guerras para os asraelinos. Tenho
visto que governar um feudo é em grande parte uma questão de dinheiro.
Alornis franziu a testa ao olhar para Reva, sacudindo a cabeça um pouco
espantada.
— Tão mudada em tão pouco tempo.
Reva achou difícil suportar o escrutínio e virou-se, erguendo a espada.
— Você é pesada demais — disse ela à arma.
— O que aconteceu à sua antiga espada? — perguntou Alornis. — Era
belíssima.
Parada sobre o corpo de Arken, o seu braço movendo-se num arco incessante
e mortal, a fúria brotando de seus lábios numa torrente sem sentido…
— Eu a quebrei. — Ela ergueu a cabeça para as poucas lâminas restantes nos
cavaletes mais altos, avistando uma espada asraelina que de algum modo passara
despercebida pelos criados enviados para revirar o lugar em busca de armas. —
Você pode me ajudar a encontrar outra.
Ela juntou as mãos para fazer um apoio e Alornis colocou um pé ali, estendeu
a mão para cima ao ser erguida por Reva e tirou a espada do cavalete antes de
perder o equilíbrio e cair. Reva a apanhou, segurando-a com força enquanto ela
ria, afastando-se para olhá-la nos olhos.
— Meu irmão disse que a Senhora Veliss já foi uma espiã a serviço do Rei
Janus — disse Alornis.
— Eu sei. Ela foi muitas coisas.
— Bem, eu a acho adorável. — Ela ficou na ponta dos pés para beijar a testa
de Reva. — Fico feliz por você.
Alornis virou-se, recolheu a pasta de desenhos e partiu. Reva fechou os olhos,
sentindo o calor do beijo deixar a sua pele. O olhar dela sempre foi perspicaz
demais. Seria tolice imaginar que ela não soubesse.
Ela ergueu a espada, sacou a lâmina da bainha e viu que era antiga, mas não
estava enferrujada; o gume embotado, mas não tanto que não pudesse ser afiado.
— Bem — disse ela, deixando a bainha de lado e assumindo uma posição de
luta. — Vamos ver se você é mais apropriada. Temos muito trabalho a fazer.
CAPÍTULO CINCO
Lyrna
A égua fora um presente dos eorhil, tinha um metro e meio até a altura da
cernelha e era branca do focinho ao rabo, exceto por um tufo de pelo negro entre
as orelhas. Ly rna encontrara a eorhil chamada Sabedoria esperando com a égua
quando saiu da tenda naquela manhã. A mulher ofereceu as rédeas com uma
mesura formal surpreendentemente bem-executada.
— Ela tem um nome? — perguntou Ly rna.
— A tradução é “uma flecha invisível quando corre na neve e no vento”,
Alteza — respondeu Sabedoria com perfeição na língua do Reino. — Meu povo
não é famoso pela brevidade.
— Então será Flecha — decidiu Ly rna, coçando o focinho da égua e
provocando uma leve bufada.
— Ela sente falta do seu cavaleiro — disse Sabedoria. — Ele tombou diante
da cidade. Sinto que a senhora conseguirá curar o coração dela.
— Obrigada. — Ly rna retribuiu a mesura. — Poderia cavalgar comigo hoje?
Eu gostaria muito de saber mais sobre o seu povo.
Havia um tom sardônico na voz da mulher ao responder:
— A senhora já não leu todos os livros da sua biblioteca que falam dos eorhil,
Alteza?
— Percebo cada vez mais que a sagacidade proporcionada pelos livros é
limitada quando comparada com a experiência.
— Como queira. — Sabedoria virou-se e montou no próprio cavalo, olhando
com expectativa para Ly rna. — Meu povo cavalga agora.
Iltis e Benten foram obrigados a correr até os próprios cavalos enquanto
Ly rna montava e partia a trote com Sabedoria. Cavalgaram até a extremidade
leste do acampamento, onde o exército eorhil já se encontrava em movimento,
os vários bandos de guerra galopando aparentemente a esmo. Não havia fileiras
ou colunas devidamente ordenadas ali, apesar de cada cavaleiro parecer se
mover com um propósito, e Ly rna notou como o exército assumiu uma
formação definida, ainda que não muito rígida, ao encimarem as colinas a leste e
descerem para as planícies mais além.
— Uma região boa para cavalos — comentou Ly rna com Sabedoria por volta
de uma hora antes do meio-dia. A cavalgada havia sido difícil, mas não
exaustiva; a sua jornada pelo Domínio Lonak a deixara bem adaptada a longas
horas na sela. Além disso, ela achava a sua nova montaria encantadora, mais
veloz do que o pobre e velho Sable e menos irascível do que Passofirme.
— Ainda há colinas demais para o gosto de meu povo — retorquiu Sabedoria,
tomando um longo gole do seu odre. — E não se vê um alce desde que chegamos
aqui. Alguns dos jovens estão irritados; a verdadeira maioridade só começa
quando se abate o primeiro alce.
Ly rna olhou para os cavaleiros ao seu redor, notando como os olhos deles
constantemente encontravam o seu rosto, mas não revelavam nenhum traço do
assombro demonstrado pelos habitantes do Reino. Na verdade, detectou um
desconforto pela proximidade dela.
— Vocês chamam de Trevas — disse Sabedoria, de alguma forma sentindo a
pergunta que Ly rna estava prestes a fazer. — Nós simplesmente chamamos de
Exilla, “poder”, na sua língua.
— Não um que eu possuo — observou Ly rna.
— Não importa. Sabemos que existe, mas poucos de nós recebem tais dons.
— Presumo que aqueles que os recebem sejam evitados.
Sabedoria soltou uma leve risada.
— Não nos julgue pelos padrões de seu povo, Alteza. Aqueles que possuem
dons não são evitados, são respeitados. Quanto maior o poder, maior o respeito, e
respeito pode transformar-se em medo caso o poder seja grande o bastante. Até
hoje não há conto ou canção em nossa história que mencione um poder maior do
que o usado para curá-la. Eles estão preocupados com o que isso pode significar.
— Você está preocupada?
Os lábios de Sabedoria, rachados pela idade, formaram um sorriso pequeno,
mas cheio de solidariedade.
— Não, grande e terrível Rainha, sei muito bem o que significa.
Sanesh Poltar aproximou-se a trote em seu alto garanhão malhado, fazendo
um cauteloso aceno de cabeça para Ly rna.
— Batedores dizem muitos homens ao sul — informou o chefe de guerra à
Sabedoria. — A Rainha fica aqui enquanto nós vamos ver.
— Acho que não — disse Ly rna, lançando um sorriso radiante ao eorhil.
— Senhor da Torre diz para mantê-la a salvo mais do que todos os outros —
retorquiu Sanesh Poltar. — E nós respondemos a ele, não a senhora.
— E eu não respondo a ninguém. — Ly rna puxou as rédeas de Flecha,
apontando o focinho da égua para o sul e saindo a galope.
Os eorhil logo a alcançaram, é claro, embora ela tenha ficado satisfeita pelo
olhar severo que Sanesh Poltar lhe lançou ao passar galopando. Iltis e Benten
aproximaram-se pelos dois lados enquanto seguiam no encalço dos cavaleiros;
Ly rna se viu piscando para afastar dos olhos a poeira que era levantada à medida
que o sol se erguia para secar a terra. Eles chegaram ao topo de uma pequena
colina uma hora mais tarde, parando ao lado do chefe de guerra, que observava
o vale não muito fundo mais além. A leste e oeste os seus batedores galopavam
numa formação perfeitamente coordenada, enquanto o grosso de seus cavaleiros
aguardava no alto da colina. Ela notou que a maioria colocara uma flecha nos
arcos de chifre.
Sanesh Poltar permaneceu em silêncio, esquadrinhando o vale como uma
águia. Ly rna acompanhou o seu olhar e viu apenas uma terra vazia.
— Quantos homens foram vistos? — perguntou ela ao chefe de guerra.
— Menos do que havia na cidade — informou o eorhil sem se virar. — Mais
do que temos.
Outra força volariana enviada por Tokrev para saquear o sul?, perguntou-se.
Mestre Marken vasculhara a mente do general morto, revelando o que ele
descrevera como um pântano de ambições vãs e invejas medíocres, mas
nenhum indício de outra força considerável nos arredores. Poderiam ter
desembarcado antes do esperado?, ponderou Ly rna. Teria Tokrev chamado a
segunda onda para acelerar a conquista?
Sanesh Poltar endireitou-se na sela e apontou. Passaram-se alguns segundos
até Ly rna avistá-los: um pequeno bando de cavalaria galopando para o vale e
parando de repente ao verem tantos cavaleiros no horizonte acima. Eles se
espalharam, ainda distantes demais para que quaisquer detalhes pudessem ser
discernidos, e um deles partiu a galope e desapareceu por sobre a orla do vale.
Ao lado de Ly rna, Sabedoria soltou o arco da sela e colocou uma flecha na
corda. Velha como é e ela ainda espera lutar, pensou Ly rna.
Os cavaleiros no vale aguardaram por vários minutos; Ly rna achou estranho
que nenhum ainda tivesse desembainhado a espada. O olhar de Sanesh Poltar
mudou novamente de direção quando um estandarte alto surgiu da orla do vale,
balançando na frente de uma coluna de infantaria liderada por um homem a
cavalo. Eles marcharam para dentro do vale em fileiras cerradas, sem fazerem
menção de assumir uma formação de batalha, e Ly rna compreendeu o motivo
quando o símbolo no estandarte ficou visível: uma torre erguendo-se das ondas de
um oceano.
Ela riu e avançou com Flecha, ignorando o protesto horrorizado de Iltis, que
seguia galopando atrás. A coluna em marcha parou quando a Rainha se
aproximou, sargentos gritavam ordens ignoradas por homens que olhavam para
ela com franco assombro. Ly rna dirigiu-se até o cavaleiro na frente da coluna,
erguendo uma das mãos e sorrindo calorosamente. O homem desmontou, não
sem alguma dificuldade, e agachou-se lentamente sobre um joelho.
— Que surpresa agradável, meu senhor! — exclamou Ly rna.
O Senhor da Torre Al Bera olhou para ela com uma expressão pálida, porém
firme, levantando-se com esforço quando a Rainha saltou da sela e aproximou-se
dele de mãos estendidas.
— Alteza — disse ele, a voz rouca e as costas rígidas ao colocar os lábios nas
mãos de Ly rna, os olhos mal deixando o rosto da Rainha ao se empertigar. —
Ouvimos tantas histórias terríveis. É uma felicidade imensa descobrir que pelo
menos uma é falsa. — Ele se virou, erguendo um braço para os homens às suas
costas à medida que mais surgiam marchando. — Apresento o Exército da Costa
Sul. Vinte mil cavaleiros e soldados de infantaria prontos para marchar e morrer
pela Palavra da Rainha.
— Eles enviaram cerca de cinco mil homens para os condados do sul — relatou
o Senhor da Torre ao conselho de capitães naquela noite.
Ly rna fora obrigada a ordenar que ele se sentasse, visto que o homem corria
o risco de tombar a qualquer momento pela exaustão e dor evidentes. Ele se
sentou num banco dobradiço, com os braços aninhados no colo, o esquerdo
bastante enfaixado e o direito pendendo frouxo do ombro caído. Ly rna sugeriu
levá-lo até Artesão, mas a expressão chocada do Senhor da Torre foi suficiente
para que ela deixasse o assunto de lado.
— Principalmente soldados-escravos — prosseguiu Al Bera. Ly rna sabia que
este era um homem promovido por mérito em vez de sangue, e havia na voz dele
as vogais bem enunciadas que eram uma característica do povo do sul de Asrael.
— Além de mil cavaleiros. E traficantes de escravos, é claro. Arrasaram várias
aldeias antes que as notícias chegassem na Torre. Marchei com a Guarda do Sul
e os homens que pude recrutar do litoral. Nós os alcançamos enquanto
terminavam um massacre em Cais de Draver, nas margens mais baixas do
Ferrofrio. Tive a impressão de que não esperavam uma resposta tão ligeira. O
que era de imaginar, visto que eu deveria estar morto. — Al Bera parou para dar
um leve sorriso. — Fizemos com que pagassem. As forças eram praticamente
iguais, de modo que o confronto foi acirrado, mas fizemos com que pagassem.
— Prisioneiros? — perguntou Vaelin.
— Os soldados-escravos não se rendem, mas capturamos alguns cavaleiros e
traficantes de escravos. Entreguei-os às pessoas que libertamos. Provavelmente
eu devia apenas tê-los enforcado, mas sangue se paga com sangue.
— De fato, meu senhor — disse Ly rna. — Continue, por favor.
— Desde então, tenho reunido homens e os treinado da melhor forma
possível. Recebemos notícias há duas semanas de que a frota meldeneana estava
subindo o Ferrofrio, então julguei que era hora de ir para o norte.
— O senhor julgou corretamente — assentiu Ly rna. — Porém, estamos com
uma escassez de suprimentos.
— Suprimentos eu consegui, Alteza. A senhora minha esposa tem laços
familiares dos dois lados do Erineano. Aparentemente alguns mercadores
alpiranos estavam dispostos a fazer negócios conosco. Os termos não foram
favoráveis, e o tesouro da Torre Sul está praticamente vazio, mas, uma vez que o
Imperador revogou o embargo, imagino que eles não podiam deixar passar uma
oportunidade de lucrar.
Ly rna viu Lorde Verniers erguer a cabeça ao ouvir aquilo. Ele era uma
presença deliberadamente obscura no exército, determinado a evitar conversas
com qualquer um que não Vaelin e a Rainha, embora Ly rna tivesse deixado claro
que ele era bem-vindo em todas as reuniões e livre para registrar todas as
palavras ditas. O Escudo de certa forma o exaltara após a batalha, declarando-o
“O escriba que matou um general!” com uma gargalhada estrondosa, imitada
por sua tripulação. Entretanto, Verniers parecia evitar quaisquer recompensas
que o seu heroísmo pudesse oferecer, embora tivesse pedido com insistência por
uma reunião particular.
— Seu Imperador parece estar mais disposto com o nosso Reino, meu senhor
— disse ela a Verniers.
O cronista remexeu-se um pouco quando os capitães se viraram para olhá-lo,
dando voz somente a uma resposta curta.
— Parece que sim, Alteza.
— Acha que ele sabe sobre o grande plano dos volarianos? Poderia ser essa a
razão para ter mudado de opinião?
— Os propósitos do Imperador nunca são determinados com facilidade,
Alteza. Porém, qualquer coisa que possa prejudicar o Império Volariano
provavelmente irá agradá-lo muito. Eles são nossos inimigos há muito mais
tempo do que de vocês.
— Devíamos enviar um embaixador — disse Vaelin. — Forjar uma aliança,
se possível.
— Tudo ao seu devido tempo, meu senhor — ponderou Ly rna, virando-se de
novo para Al Bera. — Escreverei uma carta para a Senhora Al Bera garantindo
que quaisquer dívidas contraídas na compra de mais suprimentos serão
plenamente quitadas ao encerramento das hostilidades. Ela terá liberdade para
concordar com condições adequadas de juros com qualquer mercador. Enquanto
isso, metade dos seus suprimentos disponíveis será enviada para Alltor para
ajudar os cumbraelinos no decorrer do inverno. A outra metade virá até nós —
ela passou um dedo pelo mapa até uma cidade na costa renfaelina — em
Warnsclave, onde nos encontraremos com os nossos aliados meldeneanos em
quinze dias. Por ora, meu senhor, descanse um pouco, por favor.
***
Ela se encontrou com o Irmão Caenis à noite, sozinha, uma vez que Vaelin
parecia determinado a evitar o seu antigo irmão, uma atitude compartilhada por
muitos nas fileiras do exército. Até mesmo Orena, que lhe parecia uma mulher
muito prática, pedira para retirar-se mais cedo em vez de permanecer para
receber o irmão. O medo das Trevas não desaparece de uma hora para outra,
concluiu Ly rna.
O recém-revelado irmão da Sétima Ordem estava sentado em posição de
sentido num banco dobradiço, recusando a bebida oferecida com uma sacudida
cortês de cabeça. Apesar de toda a sua robustez evidente e renome como
guerreiro, havia uma nítida timidez naquele homem compacto e calejado pela
guerra, um movimento nos olhos como se esperasse um ataque a qualquer
momento. Tanto tempo vivendo nas sombras, pensou ela. A luz do dia pode ser tão
assustadora quanto as Trevas.
— Meus irmãos e irmãs me pediram para lhe agradecer, Alteza — disse ele.
— Por sua consideração.
— Uma rainha importa-se com todos os seus súditos, meu senhor.
— Por favor, Alteza, prefiro ser chamado de “irmão”. Sou um homem da Fé
em todas as coisas.
— Como queira. — Ly rna pegou o pergaminho que ele lhe entregara ao
chegar, uma lista completa dos membros de sua Ordem e de seus vários dons. —
Você tem um irmão que pode ver o passado?
— O dom do Irmão Lucin é limitado, Alteza. A visão dele se restringe à
localidade em que ele estiver no momento.
Ly rna assentiu, franzindo a testa diante da descrição seguinte na lista.
— E essa Irmã Merial realmente consegue puxar raios do ar?
— Não exatamente, Alteza. Ela consegue jorrar um poder, uma energia
pelas mãos. Na escuridão ou nas sombras pode se parecer com raios. O dom é
muito desgastante, fatal se o uso for exagerado.
— Ela pode matar com esse dom?
O Irmão Caenis hesitou, e então assentiu lentamente.
— Então ela e o seu dom são muito bem-vindos neste exército. — Ly rna leu o
resto da lista e olhou para ele com uma sobrancelha erguida. — Vejo que está
faltando um nome, irmão.
O desconforto dele aumentou visivelmente, mas o olhar permaneceu firme e
não havia nota alguma de concessão em seu tom.
— Meu dom não pode ser revelado, Alteza. Por ordem expressa do meu
Aspecto.
Ly rna ficou tentada a lembrá-lo que a Fé servia à Coroa, mas achou melhor
não dizer nada. Há muita serventia no que ele me trouxe. E esse não é um bom
momento para conflitos com a Fé, especialmente por continuarem escondendo
coisas demais.
— Passei muitos anos à procura da sua gente — disse ela, deixando de lado a
lista. — Até mesmo arrisquei a minha vida nas montanhas para encontrar
evidências de sua existência. E, no entanto, parece que tudo o que eu tinha de
fazer era aguardar pelo curso da história e eu seria confrontada por mais
evidências do que poderia desejar.
O Irmão Caenis limitou-se a assentir com cautela em resposta e a desviar o
olhar quando ela continuou.
— Deve ter sido difícil viver escondido por tanto tempo. Mentir para os seus
irmãos durante anos.
— A Fé o exigia, Alteza. Eu não tive escolha. Mas, sim, foi um dever árduo.
— Lorde Vaelin me disse que você era o súdito mais leal que meu pai poderia
desejar. Que o seu entusiasmo pela guerra do deserto era grande. Tanto que ele
achou que o seu coração havia sido despedaçado quando isso não serviu de nada.
— O Aspecto Grealin foi bastante preciso quanto ao papel que queria que eu
desempenhasse. Minha devoção pela Fé era tão forte que ele achou melhor que
fosse mascarada como devoção pelo Rei. Porém, meu irmão tinha razão. Meu
entusiasmo pela guerra era genuíno, inflamado por meu Aspecto, que me disse
que ela era a peça-chave para garantir o futuro da Fé. Por suas próprias razões,
ele não me contou como essa garantia seria alcançada, ou o destino de meu
irmão. Sempre achei os argumentos do Aspecto Grealin infalíveis, ele nunca me
conduziu ao caminho errado, nunca cometeu erros.
— Teve notícias dele desde a tomada da capital?
— Infelizmente não, Alteza. — Caenis baixou a cabeça, a tristeza aparente na
voz. — O Irmão Lernial possui uma facilidade para ouvir os pensamentos das
pessoas que já encontrou, mesmo a grandes distâncias. Sabemos que o Aspecto
se refugiou na Urlish com um bando de combatentes livres. Os detalhes são
vagos, pois o dom de Lernial é limitado. Ele sofreu um ferimento na cabeça em
Alltor e acordou dois dias depois com um grande grito. Eu esperava que as suas
palavras fossem apenas um sintoma de uma mente abalada, mas ele se
recuperou muito desde então e o seu dom lhe diz que não há mais pensamentos a
serem ouvidos vindo do Aspecto Grealin.
Vendo o seu sofrimento evidente, Ly rna apertou a mão do irmão.
— Meus pêsames, irmão.
Ele se remexeu pouco à vontade, forçando um sorriso. Ele tem medo de mim?
Um dos nomes na lista aparentemente possuía certa facilidade para ver o futuro,
e ela imaginou de que revelações Caenis estaria a par, lembrando-se do
semblante carregado de Lorde Nortah e das palavras de Sabedoria no primeiro
dia de marcha. Sei muito bem o que significa.
— Durante o interrogatório do Irmão Harlick, a volariana que capturamos em
Alltor falou de um Aliado — disse Ly rna, afastando-se. — Lorde Vaelin parece
achar que você pode ser capaz de explicar o que ela queria dizer.
— O Irmão Harlick já lhe contou tudo o que sabemos, Alteza. Aquela coisa se
encontra no Além e trama a nossa destruição. Não sabemos por quê.
— Se essa coisa existe num lugar além da morte, isso não faz pressupor que
já tenha vivido? Que já foi um homem, ou uma mulher?
— Sim, Alteza. Mas nenhum membro de nenhuma Ordem conseguiu
descobrir até agora como essa coisa veio a se tornar o que é, nem que
intervenção maligna poderia tê-la corrompido e transformado em tamanho mal.
— Deve haver registros, textos antigos que descrevam a sua origem.
— A Terceira Ordem passou séculos reunindo as palavras mais antigas
escritas por mãos humanas, pagando somas consideráveis por pedaços de
pergaminho ou fragmentos de cerâmica. O Aliado está lá, mas sempre como
uma sombra, uma catástrofe inexplicada ou um assassinato cometido por ordem
de um espírito sombrio e vingativo. Separar verdade de mito costuma ser uma
tarefa infrutífera.
As palavras do irmão instigaram a memória impecável de Ly rna, que se
lembrou de uma frase dos Cantos de ouro e pó de Lorde Verniers: “A verdade é a
maior arma do estudioso, mas com frequência também a sua perdição.” Ela
chegou à conclusão de que já havia passado muito da hora de uma audiência
particular com o cronista alpirano.
— Suponho que a sua Ordem agora precise de um novo Aspecto, não? —
perguntou ela a Caenis.
— Como a senhora sabe, há formalidades para a escolha, Alteza. Minha
Ordem permanecerá sem um Aspecto até que um conclave possa ser reunido.
Porém, meus irmãos e irmãs manifestaram o desejo de aceitar a minha
liderança nesse ínterim. — O olhar dele tornou a se firmar. — O que me leva a
outra questão.
— As pessoas dos Confins.
— De fato, Alteza. Minha Ordem perdeu muitos irmãos e irmãs nesta guerra.
As nossas fileiras estão diminuindo.
— E você levaria esses outros para a sua Ordem mesmo com as objeções
veementes deles? Lorde Vaelin deixou muito claro o que eles pensam a respeito
disso. Seguem a ele, não a você.
— Minha Ordem é o escudo dos dotados. Sem nós, todos eles teriam perecido
há gerações.
— E ainda assim vocês continuaram se escondendo durante décadas
enquanto eles corriam o risco de serem descobertos e mortos pelas mãos da
Quarta Ordem.
— Um subterfúgio necessário. A maioria de nós é descoberta na infância,
crianças dotadas nascidas de pais dotados e membros antigos da Ordem. Nem
todos são tão afortunados, ou tornam-se bons de coração ou imunes à cobiça.
Apesar de todo o nosso poder, temos almas humanas como qualquer outra
pessoa. Antes da ascensão do Aspecto Tendris, os dotados encontrados pela
Quarta Ordem eram avaliados para determinar se tinham condições de serem
admitidos em nossas fileiras. Era escolha deles se juntarem ou não a nós.
— Mas não, suponho, se continuassem fora da Fé?
— A Sétima Ordem é da Fé, Alteza. Isso não pode mudar.
Tenho outro Tendris aqui?, ponderou Ly rna, vendo a crença implacável em
seu olhar. Ela se perguntara com frequência por que o seu pai não havia
ordenado que um de seus muitos agentes ocultos envenenasse o sempre
problemático Aspecto da Quarta Ordem. Contudo, nem mesmo o velho
maquinador fora imune à Fé, tampouco ignorava o poder que ela detinha.
— Este é um Reino livre — disse ela a Caenis. — Isso também não pode
mudar. Você pode falar com os dotados dos Confins e lhes oferecer um lugar em
sua Ordem. Porém, se recusarem, você deixará o assunto de lado e eu não o
ouvirei ser mencionado novamente durante o meu reinado, que espero ser de
considerável duração. A não ser que a sua irmã Verlia — Ly rna consultou a lista
mais uma vez, apenas para dar um efeito dramático, pois havia memorizado o
conteúdo à primeira vista — preveja um futuro diferente, é claro.
— As visões de minha irmã são… infrequentes — disse Caenis. — E
necessitam de muita interpretação. Até o momento ela vê pouco no que diz
respeito a Vossa Alteza.
— E que pouco é esse que ela vê?
Caenis empertigou-se, mais uma vez aparentemente um guerreiro e não um
Aspecto temporário, o rosto carregado com a consciência da batalha que estava
por vir.
— Fogo — respondeu ele. — Ela vê somente fogo.
Ly rna viajou com os seordah no dia seguinte, optando por andar tal como eles. A
Senhora Dahrena a acompanhou como intérprete, um papel um tanto
redundante, uma vez que poucos dentre o povo da floresta pareciam dispostos a
falar com elas, e a maioria na verdade evitava olhar na direção das duas. Ela
podia ver como isso afligia a senhora, o modo como o sorriso dela vacilava
quando os guerreiros de feições aquilinas desviavam o olhar ou grunhiam
respostas curtas às suas tentativas de conversa. Em comparação, a atitude deles
para com Ly rna parecia ser mais de perplexidade curiosa do que de medo.
— Toque de cura muito raro na floresta — disse Hera Drakil, o único de seu
povo a ficar ao lado de Dahrena por mais de alguns passos, e mesmo assim ela
sentia uma relutância tensa vinda do chefe de guerra, como se cada passo fosse
um teste de coragem. — Há muitas gerações não se vê.
— Seu povo possui livros? — perguntou Ly rna, seus pensamentos voltando-se
para a vasta biblioteca da Mahlessa sob a Montanha. — Registros da época antes
dos marelim sil?
— Livros? — O chefe de guerra franziu o cenho.
— Virosra san elosra dural — disse Dahrena ao homem. O seordah de Ly rna
era mais precário do que o seu lonak, mas ela sabia o suficiente para uma
tradução aproximada. As palavras que prendem o espírito.
— Não — respondeu o seordah a Ly rna. — Nada de livros para os seordah.
Não agora, não nos tempos de antes. Tudo é falado e lembrado. Só a palavra
falada é verdadeira.
Ly rna viu Dahrena hesitar e então dizer algo na língua seordah, rápido demais
para ser traduzido com facilidade e com palavras além do conhecimento da
Rainha. Qualquer que fosse o significado, as palavras foram suficientes para
tornar sombrio o semblante de Hera Drakil, que se virou e afastou-se em meio às
fileiras desordenadas de seu povo.
— Ele se ofendeu? — perguntou Ly rna a Dahrena.
O rosto da senhora estava tomado pela tristeza enquanto observava o chefe de
guerra afastar-se.
— Só a palavra falada é verdadeira — disse ela. — Eu lhe disse a verdade.
Ele não gostou.
***
Mais tarde ela estava deitada com a cabeça apoiada no peito de Vaelin, o seu
corpo pequeno e perfeito pressionado contra o dele, acabando com qualquer
vestígio do frio. Começara em Alltor, com eles mal trocando uma palavra
naquela primeira noite. Não houve preâmbulo, apenas silêncio e uma
necessidade fremente ao se aninharem no escuro, atraídos por algo a que
nenhum dos dois sentiu qualquer inclinação de resistir.
— A Rainha me odeia — sussurrou ela, sua respiração eriçando os pelos do
peito dele. — Ela se esforça para esconder isso, mas posso sentir.
Enquanto eu posso apenas suspeitar, pensou Vaelin.
— Não infringimos nenhuma lei, nem insultamos ninguém — disse ele. — E
até mesmo uma rainha tem direito aos próprios sentimentos.
— Você e ela, quando eram jovens, vocês…?
Ele soltou uma leve risada.
— Não, isso nunca poderia ter acontecido. — O sorriso desapareceu quando o
rosto de Linden Al Hestian veio à sua mente; tantos anos depois e a culpa ainda o
afligia.
— Ela ama você — continuou Dahrena. — Não é possível que você não veja
isso.
— Vejo apenas a Rainha que tenho o dever de seguir. — Será melhor para
todos se eu não vir mais nada. — O que os seordah dizem sobre ela?
Ele a sentiu ficar tensa, mexendo a cabeça sobre o seu peito.
— Nada. Digo, nada para mim. Mas não sei o que dizem uns para os outros.
Vaelin sabia que a atitude dos seordah com os dois sofrera uma
transformação severa desde Alltor, e uma profunda cautela tomara o lugar da
afeição que sentiam por Dahrena e do respeito relutante que haviam começado a
demonstrar por ele.
— O que é? — perguntou Vaelin. — Por que eles nos temem tanto?
Ela permaneceu em silêncio durante um longo tempo, então se ergueu e
apoiou o queixo nas mãos, o rosto oculto pela escuridão, mas os olhos refletindo a
luz que vinha de uma pequena abertura na parede do porão.
— Assim como os Fiéis, os seordah não veem a morte como uma maldição.
Mas acreditam que, quando uma alma deixa o corpo, ela não vai para um mundo
além deste, mas sim para um lugar oculto, um mundo que existe em cada
sombra e em cada canto, invisível e irreconhecível a olhos vivos. Nesse mundo,
você leva consigo cada lição aprendida enquanto estava vivo, cada truque de
caçador ou habilidade de guerreiro, cada migalha de conhecimento, e embarca
numa grande e eterna caçada, mas livre de medo ou incerteza, sem os fardos
carregados durante a vida, restando apenas a caçada. Talvez você às vezes os
tenha visto na floresta, estendendo a mão para o buraco escuro no tronco de uma
árvore ou para a sombra lançada por uma rocha, à espera de uma mensagem
sussurrada de uma alma querida que foi para a caçada.
— Quando me trouxe de volta, você me privou de um dom — disse ele.
— Do maior dos dons.
— Devia falar com eles, contar a verdade sobre o que aconteceu.
— Eu contei. Não adiantou. Aos olhos deles, eu sou uma transgressora e você
não deveria estar andando sobre esta terra. Eu os perdi.
Vaelin a abraçou quando ela baixou de novo a cabeça, passando as mãos por
seus ombros e sentindo a tristeza dela.
— Então por que eles continuam aqui? — perguntou ele.
A resposta de Dahrena foi baixa, sussurrada entre lágrimas:
— Eles fazem o que fazemos: atendem ao chamado do lobo.
A espada de Reva chocou-se com o lado machucado do corpo dele, provocando
um gemido dolorido. Ela saltou com agilidade para trás quando Vaelin respondeu
com um golpe ascendente desajeitado, em seguida avançando agachada e
desferindo uma estocada contra o peito dele. Vaelin se esquivou, desviando para
cima a espada de madeira de Reva e mirando um golpe lateral nas pernas dela,
que as atingiu em cheio quando ela demorou demais para bloquear.
— Melhor — disse Reva. — Não acha?
Vaelin foi até o cepo onde estava o seu cantil e tomou longos goles. O céu
estava nublado naquele dia e o ar gelado, prenunciando a chegada do outono e a
perspectiva de uma marcha nada fácil até Varinshold. Eles já estavam em
Warnsclave havia três dias, esperando que a frota meldeneana aparecesse. A
situação dos suprimentos fora abrandada pelas provisões de Lorde Al Bera, mas
os estoques ainda eram insuficientes para prover o deslocamento para o norte,
ainda mais se considerando o número crescente de recrutas. Mais de mil pessoas
rumaram para a cidade arruinada desde que eles ali chegaram, forçando o
acréscimo de ainda mais companhias ao regimento de Nortah. Tudo indicava
que os volarianos não haviam sido tão eficientes para conseguir escravos quanto
imaginado, embora batedores trouxessem diariamente evidências de sua
proficiência em massacres, histórias reveladoras de uma aldeia arrasada após a
outra, cada uma bem suprida de cadáveres putrescentes.
— Não — disse ele a Reva. — Na verdade, hoje estou pior.
Ele jogou o cantil de lado e investiu contra Reva, desferindo uma série de
estocadas e golpes rápidos, a espada de madeira movendo-se num borrão. Ela se
esquivou e aparou com uma fluidez muito superior à das suas primeiras lições;
Vaelin sabia que habilidades desenvolvidas em batalha sempre faziam a
diferença. Também sabia que Reva o estava poupando, permitindo que acertasse
golpes que ela poderia ter bloqueado sem dificuldade e respondendo apenas com
uma fração da velocidade que poderia ter empregado.
— É inútil — murmurou Vaelin, parando em meio a outro ataque.
— Ora, vamos — zombou ela. — Está desistindo?
Você me ama demais, pensou ele com um suspiro mental. Tem medo de me
ver morrer de novo. Vaelin olhou para o campo no sopé da colina onde estavam
praticando, o exército trabalhando sob a supervisão de oficiais e sargentos,
recrutas novos e velhos sendo transformados no instrumento mortal de justiça da
Rainha. Podia vê-la percorrendo o acampamento em seu cavalo branco, o manto
negro esvoaçando ao vento, provocando saudações e exortações por onde quer
que passasse.
— Você… — Reva parara ao seu lado, falando com um tom hesitante.
— O quê?
— A Rainha. — Os olhos de Reva acompanharam o cavalo de Ly rna ao trotar
em direção às novas companhias de Nortah, as pessoas caindo de joelhos quando
a Rainha parou. — O que fizeram com ela. Você não se pergunta o que isso pode
significar?
— A cura dela?
— Não. Não a cura. O que foi feito antes. Sofrer o que ela sofreu… Curada
ou não, as cicatrizes são fundas.
— Tão fundas quanto as suas, irmã?
— Talvez mais fundas. É isso que me preocupa. As minhas mãos estão
vermelhas, assim como as suas. Não alego inocência e responderei ao Pai
quando chegar a minha hora. Mas ela… Às vezes penso que ela queimaria o
mundo inteiro se isso fosse significar a morte do último volariano. E mesmo
assim ela não ficaria satisfeita.
— Você não anseia por justiça?
— Por justiça, sim. E por deixar meu povo seguro mais uma vez. Para fazer
isso, irei lutar a guerra dela e libertar a sua cidade. Mas não será suficiente, não
é? O que você dirá quando ela lhe ordenar que a siga através do oceano?
Sem canção. Sem orientação. Apenas uma incerteza cada vez mais silenciosa.
— Obrigado pelo exercício, minha senhora — disse Vaelin, virando-se para
fazer uma mesura. — Mas acho que preciso de um tutor menos caridoso.
Não foi difícil encontrar Caenis. O contingente da Sétima Ordem, que agora
chegava a quatro irmãos e duas irmãs, estava alojado numa ruína coberta por
uma lona, próxima do porto, um pouco afastada do resto do exército, que
continuava a encará-los com franca desconfiança. Caenis estava sentado com os
outros, falando em voz baixa, mas com veemência, cada um deles escutando
com muita atenção. Eram todos mais novos do que o seu irmão. A dádiva da
juventude proporcionava uma chance maior de sobrevivência à investida
volariana, uma vez que os jovens adaptavam-se melhor aos rigores da batalha,
ou atraíam mais a atenção dos traficantes de escravos. Um jovem havia
claramente sofrido algum tratamento cruel, sentado sem camisa enquanto ouvia
Caenis, suas costas marcadas por chicotadas recentes, em carne viva e
vermelhas à luz do entardecer.
— A guerra não é mais da alçada apenas da Sexta Ordem — Caenis estava
dizendo. — Agora todos os Fiéis são convocados para juntarem-se a esse conflito.
Agora todos nós somos guerreiros. Não podemos mais nos dar ao luxo de nos
escondermos.
Ele se calou quando Vaelin surgiu das sombras, os outros se virando para
encará-lo numa mistura do assombro costumeiro com um respeito grave.
— Irmão — chamou Vaelin. — Gostaria de falar com você.
Eles caminhavam ao longo do molhe à medida que a noite caía, uma lua
crescente surgindo de trás de uma nuvem intermitente. Caenis nada disse,
esperando que Vaelin falasse, talvez perfeitamente ciente de qual seria a
primeira palavra dita.
— Mikehl — disse Vaelin quando chegaram ao final do molhe.
A maré noturna havia afastado o mar do molhe, de modo que parecia que
estavam no alto de um pico elevado fustigado por uma brisa forte, as ondas que
se quebravam suavemente mal podendo ser vistas abaixo. Vaelin olhou
atentamente para o rosto de Caenis quando este nada respondeu, vendo ali o que
esperara ver. Culpa.
— Antes de eu zarpar para os Confins, o Aspecto Grealin me assegurou de
que não havia tomado parte naquilo — prosseguiu Vaelin. — E colocou toda a
culpa no Irmão Harlick, que na verdade admitiu a sua participação, embora não
nos termos mais claros. Por acaso há algo que você gostaria de acrescentar à
história, irmão?
A expressão de Caenis não mudou e sua voz soou apática quando respondeu:
— Meu Aspecto me ordenou que mantivesse você a salvo. Fiz o que me foi
ordenado.
— Os homens que mataram Mikehl falaram de um outro, alguém que acho
que encontraram na floresta naquela noite. Alguém que temiam.
— Eles estavam esperando um irmão que Harlick conhecia, alguém
cúmplice de seu plano. Eu o encontrei, matei-o e tomei o seu lugar. Os assassinos
contratados pelo pai de Nortah não podiam ser mortos tão facilmente, então eu os
enviei na direção errada, uma direção que eu esperava que fosse levá-los para
longe de qualquer irmão. Porém, Mikehl sempre foi muito lento e se perdia com
muita facilidade.
Vaelin lhe deu as costas e encarou o mar. O vento estava ficando mais forte e
as ondas reluziam brancas sob o pálido luar. Ao longe ele pôde ver uma forma
negra no horizonte, logo seguida por muitas outras.
— Nosso Lorde Almirante cumpre as suas promessas — comentou ele.
Caenis olhou para os navios que se aproximavam.
— Esta guerra reuniu alguns aliados estranhos.
— E com isso revelou muitas coisas.
— Naquele dia em que você nos encontrou… As minhas palavras foram
injustas. Eu havia perdido tantos homens, presenciado tantas mortes inesperadas.
Parecia que os Finados haviam nos abandonado, que a sua falta de Fé havia feito
com que eles nos condenassem. Foi tolice, irmão.
— Irmão — repetiu Vaelin em voz baixa. — Nós nos chamamos assim há
tanto tempo que eu me pergunto se a palavra ainda possui significado. Tanto foi
escondido, tantas mentiras foram ditas. Naquele primeiro dia, nas galerias,
Grealin deu tapas no seu ombro e você se retraiu. Eu achei que você estava com
medo dos ratos imaginários dele, mas ele estava cumprimentando-o. Você não
estava se juntando à Sexta Ordem, estava se apresentando ao seu Aspecto.
— É como perseveramos, como continuamos a servir à Fé. Pelo menos até
agora. Com a morte do Aspecto Grealin, cabe a mim o fardo de reconstruir essa
Ordem. Seria mais fácil com a sua ajuda.
— Os dotados dos Confins não querem fazer parte da sua Ordem. Cara e
Marken nem mesmo são da Fé, e duvido que Lorkan reuniria a vontade
necessária para crer em algo.
— Tal como você, irmão. — As palavras de Caenis foram ditas de forma
afável, mas Vaelin ouviu nitidamente a reprovação nelas.
— Eu não perdi a minha fé. Ela murchou e morreu diante da verdade.
— E essa grande verdade ganhará esta guerra, irmão? Olhe ao seu redor e
veja quantos sofreram. Sua verdade irá sustentá-los nos meses e anos por vir?
— Seu dom fará isso? Ainda não sei que tipo de poder você possui, e se devo
comandar este exército, eu gostaria muito de saber.
Caenis o encarou em silêncio com um olhar firme, sem piscar. Vaelin levou a
mão à faca de caça em seu cinto, agarrou o punho com força, pronto para sacá-
la e cravá-la no olho de seu irmão… Ele exalou lentamente, soltando a faca e
notando que sua mão tremia.
— Agora você sabe, irmão — disse Caenis antes de se virar e se afastar.
CAPÍTULO SETE
Alucius
Com Darnel e boa parte dos cavaleiros renfaelinos ausentes à procura do esquivo
Irmão Vermelho, Varinshold estava ainda mais silenciosa do que de costume. A
maioria da guarnição volariana era composta por Varitai, que eram
particularmente calados, e o contingente menor de Espadas Livres encontrava-se
recolhido nas mansões do quadrante norte que haviam sido transformadas em
casernas. As ruas, se é que podiam ser assim chamadas, não eram patrulhadas
na maior parte do tempo, uma vez que não havia praticamente ninguém a quem
policiar. A maioria dos escravos fora despachada para o outro lado do oceano
semanas antes, e os que permaneceram estavam ocupados concretizando a visão
de Darnel para o seu grande palácio. Um dos escravos em particular fornecia o
serviço mais valioso, tão valioso, de fato, que Darnel ameaçara decepar a mão
de qualquer capataz que ousasse encostar nele a ponta de um chicote.
Visitar Mestre Benril não era uma das obrigações favoritas de Alucius, uma
tarefa que ele realizava de modo tão infrequente quanto a sua consciência lhe
permitia, geralmente até que sua cabeça ficasse repleta de imagens de Alornis.
Ele encontrou o velho mestre trabalhando com afinco na muralha oeste, uma
monstruosidade disforme e queimada após a tomada da cidade, marcando o
ápice da destruição do palácio, agora coberto de mármore de ponta a ponta.
Benril estava acompanhado por um escravo corpulento e calvo, mais velho do
que a maioria, mas poupado da execução em virtude de sua habilidade com
pedras e de seu conhecimento especializado de onde encontrar mais. Ele
raramente falava mais do que algumas palavras, visto que os capatazes não
haviam sido proibidos de aplicar o chicote em suas costas, mas revelava os tons
refinados de um nobre quando o fazia. Alucius ainda não sabia o nome do
homem, e na verdade evitava descobri-lo. Não se podia esperar que escravos
vivessem o suficiente para tornar qualquer associação com eles vantajosa.
— Está ficando muito bom, mestre! — gritou ele para Benril no segundo
andar do andaime, onde o escultor trabalhava para entalhar o grande relevo que
retratava a vitória gloriosa de Darnel sobre a Guarda do Reino.
Benril parou de martelar e olhou por sobre o ombro. O velho mestre não o
cumprimentou, mas fez um aceno irritado com a mão, permitindo que Alucius
subisse a escada. Alucius sempre se espantava com a velocidade com que eles
trabalhavam, o escravo corpulento guiando uma lima sobre os entalhes recém-
acabados enquanto Benril continuava a criar a partir da pedra virgem. Passara-se
apenas um mês desde o início do projeto vanglorioso de Darnel e um quarto dele
já estava terminado, as figuras esculpidas à perfeição brotando da pedra de
acordo com o enorme desenho que Benril desenrolara diante o olhar aprovador
do Senhor Feudal.
Talvez seja a sua maior obra, ponderou Alucius, observando Benril entalhar o
perfil heroico de um cavaleiro renfaelino em combate com um Guarda do Reino
encolhido. E é tudo uma mentira.
— O que é? — perguntou Benril, abandonando o entalhe por um momento e
pegando uma garrafa de cerâmica.
— Apenas a minha garantia regular de que os dois Aspectos continuam vivos
e ilesos — explicou Alucius. Fora o preço do mestre no dia em que o arrastaram
para diante do Senhor Feudal, limitando-se a erguer uma sobrancelha ao ouvir as
promessas de tortura ou de execução rápida feitas por Darnel, concordando
somente quando as ameaças foram dirigidas aos Aspectos. Apesar de todo o seu
desdém por costumes e etiqueta, Benril permanecia um homem da Fé.
O Mestre assentiu, tomando um gole da garrafa e a entregando ao escravo. O
homem lançou um olhar cauteloso a Vinte e Sete antes de tomar um gole rápido,
retornando ao trabalho com uma pressa determinada. Alucius recolheu a
garrafa, tirou a rolha e cheirou o conteúdo. Apenas água.
— Ouvi falar sobre um estoque escondido de vinho — disse ele a Benril. —
Caso o senhor queira.
— O vinho entorpece os sentidos e faz o artista medíocre imaginar-se grande.
— Benril o olhou com severidade e voltou ao trabalho. — Um truísmo com o
qual imagino que você esteja bastante familiarizado.
— Como sempre, foi um grande prazer, mestre. — Alucius fez uma mesura
desnecessária e voltou à escada, parando para olhar as costas ossudas mas ainda
fortes de Benril, cujos braços esguios cobertos de músculos nodosos moviam-se
num ritmo experiente ao trabalharem a pedra. — Há mais uma coisa —
acrescentou ele. — Parece que Mestre Grealin juntou-se a um bando de
combatentes na floresta. O senhor se lembra de Mestre Grealin? Um sujeito
grande e gordo que cuidava do almoxarifado da Sexta Ordem.
— E o que tem isso? — perguntou Benril, continuando a entalhar.
Alucius manteve os olhos nas mãos de Benril.
— Ele morreu.
Foi somente um deslize, meramente a mais leve irregularidade deixada num
entalhe magnífico. Mas era funda demais para ser lixada, uma evidência eterna
de um breve lapso de concentração.
— Muitos morreram — disse Benril sem se virar. — E muitos mais morrerão
quando Lorde Al Sorna chegar.
O escravo corpulento deixou cair a lima e olhou com receio para Vinte e Sete
antes de retomar depressa a ferramenta. Um capataz perto dali virou-se na
direção deles, levando a mão ao chicote enrolado preso à cintura.
— Por favor, tome cuidado, Mestre Benril — disse Alucius. — Não me
agrada a ideia de descrever a sua morte à mulher que amo.
Benril ainda se recusava a virar-se, suas mãos movendo-se mais uma vez
sem esforço com a mesma precisão.
— Você não tem um vinho para encontrar?
Foram necessárias várias tentativas até ele identificar a ruína certa e desenterrar
uma placa de madeira enegrecida de um monte de tijolos; as letras reduzidas a
nada pelo fogo, mas a imagem tosca de um javali ainda visível na madeira
queimada.
— Sim — disse ele, concordando com Vinte e Sete. — Estou ciente de que
provavelmente é perda de tempo, obrigado. Ajude-me a erguer esta pedra.
Eles trabalharam por mais de uma hora até encontrarem, tirando os destroços
de cima das tábuas do assoalho para revelar somente um leve contorno debaixo
da poeira, um retângulo de cerca de um metro quadrado.
— Uma ou duas garrafas de Sangue de Lobo sem dúvida seriam muito bem-
vindas — disse Alucius a Vinte e Sete, limpando a poeira e revelando a entrada
oculta, passando os dedos pelas extremidades. — Estreito demais para enfiar os
dedos. Use a sua espada para arrombá-la.
Vinte e Sete realizou a tarefa com a costumeira obediência, sem hesitação,
enfiando a espada curta no canto da porta e empurrando a arma para baixo, a
tensão do esforço evidente nos músculos salientes dos braços, embora o seu rosto
permanecesse impassível como sempre. Alucius agarrou o canto da porta
quando ela se soltou, escancarando-a e revelando um vão horizontal tomado pela
escuridão.
Ele tivera a previdência de trazer uma lamparina e a acendeu naquele
momento, em seguida deitando-se de bruços para abaixá-la dentro da abertura,
onde a luz amarela iluminou apenas um túnel de pedra bruta, sem qualquer brilho
revelador de vidro.
— Não — disse ele, sacudindo a cabeça. — Também não me agrada muito,
meu amigo. Mas um homem precisa ir atrás de suas paixões, não acha? —
Alucius afastou-se do buraco e gesticulou para o escravo. — Você primeiro.
Vinte e Sete o encarou e nada disse.
— Pela Fé! — resmungou Alucius, entregando-lhe a lamparina. — Se eu
morrer lá embaixo, vão chicoteá-lo até a morte. Imagino que você saiba disso.
Ele apoiou-se na borda do buraco e abaixou-se para dentro, pendurando-se na
ponta dos dedos e então saltando para o negrume abaixo, sentindo o ar bolorento
do lugar. Vinte e Sete aterrissou com agilidade ao seu lado um segundo depois, a
luz da lamparina iluminando um túnel de extensão pouco convidativa.
— É melhor haver algum vinho tinto cumbraelino no final deste túnel — disse
Alucius. — Ou serei forçado a dizer algumas palavras muito grosseiras para a
Aspecto Elera. Algumas palavras realmente muito grosseiras.
Eles seguiram pelo túnel durante alguns minutos, embora as passadas
ecoantes e a escuridão absoluta além do limite do parco brilho da lamparina
fizessem parecer muito mais tempo. A convicção de Alucius de que não havia
vinho algum para se encontrar ali também era crescente.
— Não dou a mínima para o que você diz — sibilou ele para Vinte e Sete. —
Eu simplesmente não vou voltar agora.
O túnel por fim acabou numa vasta câmara circular, e Alucius parou de
repente ao ver a bela alvenaria que contrastava com as paredes de pedra bruta
do túnel. A câmara era circundada por sete pilares de pedra e degraus baixos que
desciam até uma base plana, no centro da qual havia uma mesa longa. Alucius
aproximou-se da mesa, erguendo a lamparina sobre a superfície e notando que
não havia poeira nela.
— Pensando bem, talvez você tenha raz…
Um súbito farfalhar deslocado e a lamparina estilhaçou-se em sua mão, o
óleo flamejante espalhando-se pela pedra antes de apagar e a escuridão se
fechar com terrível rapidez. Alucius ouviu a espada de Vinte e Sete sair da bainha
e então mais nada, nenhum entrechoque de metal ou gemido de dor. Havia
apenas a escuridão e o silêncio.
— Eu… — começou ele, então engoliu em seco e tentou de novo. — Imagino
que você não tenha vinho algum aqui.
Algo frio e duro foi pressionado contra a sua garganta, posicionado
precisamente sobre a veia que ele sabia que o mataria num piscar de olhos caso
sofresse a mais leve perfuração.
— Aspecto Elera! — gritou Alucius de súbito. — Ela me enviou.
Uma pausa, e então a lâmina desapareceu de seu pescoço.
— Irmã — disse uma voz feminina, suave e refinada, mas também ríspida e
seca. — Acenda as tochas. Irmão, não mate o outro ainda.
Ele encontrou o seu pai no portão para a Estrada Norte, entretido numa conversa
com o comandante de divisão volariano enquanto um batalhão de Espadas Livres
cavava um fosso fundo atrás da muralha.
— Óleo de lamparina? — perguntava o volariano quando Alucius aproximou-
se, parando a uma distância respeitosa, embora ainda perto o bastante para ouvir
a conversa.
— Quanto você puder obter — respondeu Lakrhil Al Hestian. — Suficiente
para encher esse fosso de ponta a ponta.
O volariano olhou para o mapa aberto diante deles, examinando as linhas que
representavam as muralhas e a região além delas. Alucius se permitiu uma leve
esperança de que o homem fosse arrogante o bastante para desconsiderar o
conselho de seu pai, mas, infelizmente, ele mais uma vez provou não ser tolo.
— Muito bem — disse ele. — Você já decidiu onde posicionar as máquinas?
O pai de Alucius apontou para diversos pontos no mapa enquanto o volariano
balançava a cabeça em aprovação.
— Contudo, eu naturalmente precisarei das máquinas para posicionar — disse
Lakrhil.
— Elas estarão aqui em trinta dias — assegurou-lhe o comandante de divisão.
— Junto com mil Varitai e mais trezentos Kuritai. O Conselho não nos abandonou.
Se Lakrhil Al Hestian ficou encorajado pelas palavras do homem, não
demonstrou.
— Um exército pode percorrer uma longa distância em trinta dias — disse
ele. — Especialmente um exército movido pelo amor a uma rainha ressuscitada.
Alucius abafou um grito para não enfurecer o volariano, seu coração batendo
ainda mais forte do que batera na escuridão sob a estalagem arruinada. Ela está
viva?
Mirvek empertigou-se, olhando fixamente para o seu pai.
— Uma mentira contada por covardes em busca de uma desculpa para o
fracasso — afirmou ele num tom que não deixava dúvidas. — E é isso que você
dirá ao seu Rei quando ele retornar. Seja lá quem esteja liderando essa gentalha,
ela não é a sua Rainha.
Seu pai respondeu apenas com um aceno discreto de cabeça. Alucius ainda
não o vira curvar-se a um volariano. O comandante de divisão lançou um último
olhar furioso a ele, deu meia-volta e partiu pisando firme, seguido por seus
assistentes, que corriam para acompanhá-lo. Alucius aproximou-se do pai com o
coração ainda palpitando.
— Rainha? — perguntou ele.
— É o que dizem. — Al Hestian não tirou os olhos do mapa. — Trazida de
volta à vida e aparentemente à beleza por meio das Trevas. Se for realmente ela.
Eu não me espantaria se Al Sorna encontrasse uma sósia em algum lugar e a
tornasse uma testa de ferro.
Vaelin também? E se ele vier, então talvez Alornis também venha.
— E quanto a Tokrev? Alltor?
— Morto e salva. Um mensageiro chegou de Warnsclave esta manhã. Parece
que todos os homens do exército de Tokrev foram massacrados e que um grande
exército marcha para o norte sob o comando de uma rainha abençoada pelas
Trevas. Meu filho, tudo indica que logo você terá um final para o seu poema.
Alucius respirou fundo, tirando os olhos do mapa para olhar para os Espadas
Livres trabalhando no fosso.
— Fossos normalmente não são cavados do lado de fora das muralhas?
— São — respondeu o seu pai. — E, se houver tempo, vou cavar um lá
também, para manter as aparências. A verdadeira defesa é aqui. — Ele bateu no
mapa com o cravo de aço farpado que saía de sua manga direita e Alucius viu
uma teia intricada de linhas negras que percorriam o labirinto de ruas, ruas que
não mais existiam. — Uma série de barreiras, passagens estreitas, armadilhas de
fogo e assim por diante. Al Sorna é bastante engenhoso, mas ele não faz
milagres. Essa cidade será o túmulo de seu exército.
— Meu senhor — disse Alucius em voz baixa, indo para o lado de seu pai. —
Eu lhe imploro…
— Já falamos sobre esse assunto. — O tom de seu pai era absoluto,
implacável. — Eu perdi um filho. Não vou perder outro.
Alucius lembrou-se da noite em que a cidade foi tomada, dos gritos e das
chamas despertando-o do sono embriagado, de cambalear escada abaixo e
encontrar o pai no salão principal, cercado por Kuritai, golpeando loucamente
com a espada enquanto o circundavam. Um deles já estava morto e mesmo
assim nenhum dos outros tentava matá-lo. O choque paralisara Alucius e alguém
passou um braço musculoso em volta de seu pescoço e uma espada curta foi
pressionada contra a sua têmpora. Um Espada Livre gritou para o seu pai,
apontando para Alucius. A expressão no rosto do pai ao se afastar da luta era
difícil de esquecer: não era vergonha, nem desespero, mas somente um medo
sincero e exasperado por um filho amado.
— Trinta dias — disse Alucius em voz baixa, afastando-se e abraçando-se
com força. — A véspera do início do inverno é em trinta dias, não?
— Sim — respondeu Al Hestian após pensar por um momento. — Sim,
imagino que seja. — Alucius sentiu os olhos do pai sobre si, ciente de que
estavam cheios de preocupação. — Você precisa de algo, Alucius?
— De mais comida. O Aspecto Dendrish ameaçou se enforcar se não o
alimentarmos mais. Embora eu duvide que os lençóis consigam suportá-lo.
— Cuidarei disso.
Alucius virou-se com um sorriso radiante no rosto, o coração calmo agora
que o peso da indecisão havia sido removido.
— Obrigado, meu senhor.
Ele estava se afastando quando ouviu uma comoção no portão, e os guardas
Varitai abriram caminho para dar passagem a um cavaleiro solitário. Alucius
pensou que fosse um dos caçadores de Darnel, que na verdade eram um bando
de patifes e saqueadores recrutados entre a escória de Renfael para perseguir o
Irmão Vermelho. O homem curvou-se sobre a sela ao cavalgar na direção do pai
de Alucius, os flancos e a boca do cavalo cobertos de espuma. Ele quase caiu ao
desmontar, esboçando uma mesura e falando baixo demais para que Alucius
pudesse ouvir, apesar de que, pelo modo como o seu pai se empertigou ao
escutar o homem, fossem notícias importantes. Al Hestian saiu pisando firme e
berrando ordens, seguido por seus dois guardas Kuritai, e Alucius ouviu a palavra
“cavalaria” antes que ele desaparecesse de vista.
— Primeiro uma Rainha renascida, e agora a necessidade de cavalaria —
ponderou Alucius em voz alta para Vinte e Sete. — Creio que é hora de dizer
adeus a uma velha amiga.
Pena Azul deu uma bicada dolorosa em seu polegar quando ele a tirou do pombal
com a mensagem pendurada na pata. Tanto peso em algo tão frágil, pensou
Alucius, olhando para o grampo fino.
— Quer se despedir dela? — perguntou ele a Vinte e Sete, que, como sempre,
nada disse. — Ah, ignore-o — disse Alucius a Pena Azul. — Eu vou sentir
saudade.
Ele ergueu a ave e abriu as mãos. Ela permaneceu sentada por um momento,
aparentemente indecisa, e então saltou, as asas um borrão enquanto subia, e
então estendidas para receber o vento e voar para o sul.
Véspera do início do inverno, pensou Alucius ao perder o pássaro de vista.
Quando dizem que todas as mágoas são esquecidas, pois quem deseja guardar
rancor durante as agruras do inverno?
CAPÍTULO OITO
Frentis
***
Eles cavalgaram para oeste até o meio-dia sem encontrar nada além de campos
vazios e o ocasional amontoado de gado ou ovelhas abatidos, a maioria animais
mais velhos, os mais novos sem dúvida levados para Varinshold. Chegaram,
depois de mais um quilômetro, a uma casa de fazenda vazia, sem teto e de
paredes enegrecidas pelo fogo, sem qualquer sinal de vida no interior.
— Por que eles destroem tanto? — perguntou Illian. — Eles fazem escravos,
que é algo horrível, mas pelo menos é compreensível. Mas destruir tudo para
isso… Não faz sentido.
— Eles acham que estão purificando a terra — disse Frentis. — Limpando-a
para que a sua própria gente possa começar de novo. Construir outra província à
imagem do império.
Illian parou o cavalo uma hora mais tarde, virando-se para Davoka e
apontando para uma elevação próxima, com um sorriso radiante.
— Lá. Ele não é lindo?
Frentis encontrou depressa o animal, uma silhueta envolta em sombra no
horizonte, maior do que qualquer lobo que ele já vira. O animal permaneceu
sentado encarando-os com um escrutínio impassível quando eles se
aproximaram trotando. Davoka apoiou a lança no ombro para permitir um
arremesso rápido. Eles pararam a uns trinta metros do lobo, perto o bastante para
que Frentis visse os seus olhos, que piscavam ao encarar cada um deles, o pelo
agitado pelo vento. Frentis reconheceu a verdade evidente das palavras de Illian:
o animal era lindo.
O lobo levantou-se e virou-se, partindo para o norte num trote rápido por uns
oitenta metros, antes de parar mais uma vez, sentar-se e observar enquanto eles
se entreolhavam.
— Ele não fez isso antes — disse Illian após um momento.
Davoka murmurou algo na própria língua, o rosto tomado por um
pressentimento, mas Frentis notou que ela abaixara a lança. Ao se virar para o
lobo, viu como o animal olhava fixamente apenas para ele. Frentis esporeou o
cavalo adiante e o lobo tornou a se levantar e a seguir para o norte. No instante
seguinte ouviu Illian e Davoka esporeando suas montarias para acompanhá-lo.
O lobo começou a correr depois de cerca de um quilômetro, as passadas
longas cobrindo a distância com uma velocidade enganadora. Frentis o perdeu de
vista várias vezes enquanto galopavam em seu encalço, seguindo o seu rastro por
colinas baixas de capim longo. Eles por fim puxaram as rédeas quando o lobo
parou numa das colinas mais altas e um cheiro familiar chegou às narinas de
Frentis. Ele ergueu uma sobrancelha questionadora para Davoka, que assentiu e
desmontou. Frentis fez o mesmo e eles entregaram as rédeas a Illian. A garota
fez um beicinho de aborrecimento quando ele apontou um dedo enfático para o
chão, mandando que ela ficasse onde estava.
Eles subiram a colina agachados, deitando de bruços para se arrastarem até o
topo. O lobo estava sentado, esperando a poucos metros de distância, ainda
encarando Frentis com o mesmo escrutínio impassível.
— Que tolo deve ser o homem — sussurrou Frentis, olhando para a cena
diante deles. O acampamento ficava num espaço aberto, o flanco posterior
protegido por um córrego raso, com piquetes patrulhando o perímetro, mas não
longe o bastante. O cheiro de fumaça e suor de cavalo estava mais forte agora;
fogueiras lançavam ao ar dezenas de colunas cinzentas, obscurecendo apenas
parcialmente o estandarte que se erguia do centro do acampamento: uma águia
sobre um fundo quadriculado vermelho e branco.
Quinhentos homens, no máximo, ponderou Frentis, percorrendo com os olhos
o acampamento. E o exército de Banders encontra-se despercebido entre ele e
Varinshold.
— Leve Illian — ordenou ele a Davoka. — Diga a Banders que vou atraí-los
até o Esporão de Lirkan. Mestre Sollis conhece o caminho.
— Ela pode ir — disse Davoka. — Você não devia fazer isso sozinho.
Frentis sacudiu a cabeça, sorrindo ao acenar para o lobo.
— Parece que não estou sozinho. Cavalguem rápido.
Ele esperou por uma hora depois de as duas terem partido, observando o
acampamento enquanto batedores iam e vinham, pequenos grupos de homens
com cães de caça apresentando-se ou partindo a galope numa nova direção. Ele
achou que iríamos para Nilsael, concluiu Frentis, vendo como a maioria dos
batedores cavalgava para o norte ou para oeste. Não imaginou que seguiríamos
para Renfael, sua própria terra, com um povo tão leal. Ele sacudiu a cabeça,
perguntando-se se Darnel realmente tinha a mente de um tolo ou se o homem
não era de fato apenas um lunático que ladrava demais.
Levou boa parte de outra hora até um grupo de batedores vir em sua direção,
dois cavaleiros e uma matilha de cães seguindo diretamente para a colina. O lobo
levantou-se quando começaram a subir a encosta e os cavaleiros imediatamente
pararam suas montarias enquanto os cães andavam de um lado para outro,
ganindo de medo quando os seus donos lhes davam chibatadas, xingando e
ameaçando.
E o lobo uivou.
Frentis encolheu-se diante da enormidade do som, escorregando para o solo,
fechando os olhos com força e tapando os ouvidos com as mãos enquanto o uivo
percorria campos e colinas, com uma força que o trespassava como uma
lâmina. Não se sentia tão indefeso, tão pequeno, desde os longos anos do domínio.
Ele abriu os olhos quando o uivo cessou e deu com o lobo o encarando, os
olhos cinzentos encontrando os seus e causando a impressão de que o animal o
conhecia, conhecia todos os seus segredos, cada vestígio oculto de culpa. O lobo
abaixou a cabeça e passou a língua áspera pela testa de Frentis, provocando um
gemido e deixando algo novo. Uma mensagem. Não era uma voz, e sim mais
uma certeza, uma convicção nítida e brilhante reluzindo em sua mente: você
deve se perdoar.
Frentis sentiu uma risada lhe escapar quando o lobo recuou, piscou mais uma
vez e então se virou para partir a trote. Frentis levantou-se e viu o animal correr,
uma mancha prateada em meio ao capim ondulante, que desapareceu num
piscar de olhos.
O relincho de um cavalo em pânico o tirou de seus devaneios; virou-se e se
deparou com os dois cavaleiros olhando espantados para ele, os cães a uma boa
distância, ganindo de medo enquanto corriam para o acampamento. Frentis
escolheu o cavaleiro à esquerda, sacou uma faca e a arremessou em sua
garganta. O homem caiu do cavalo, o sangue brotando da boca enquanto
agarrava o pescoço. O olhar arregalado de seu companheiro ia de Frentis para
ele, as mãos tremendo nas rédeas, a espada ainda na bainha.
— Você tem um relatório a fazer — disse Frentis. — Mande os cumprimentos
do Irmão Vermelho a Lorde Darnel.
Ele montou de novo e guiou o cavalo até o topo da colina, observando o caçador
galopar de volta ao acampamento. Não demorou mais do que algumas batidas do
coração para a comoção ter início; cavaleiros vestiam as armaduras às pressas e
corriam para os seus cavalos, tendas caíam conforme escudeiros faziam as
malas e um cavaleiro solitário surgiu da nuvem de poeira cada vez maior, a
armadura azul reluzindo ao sol do fim de tarde. Frentis ergueu a mão num aceno
amigável por tempo suficiente para garantir que Darnel o visse, então deu meia-
volta e galopou para leste.
Ele os conduziu por um caminho sinuoso, ganhando tempo para que Banders
deslocasse a sua gente. Frentis galoparia para leste durante algum tempo, pararia
e observaria Darnel persegui-lo por alguns momentos e então rumaria para o sul.
Darnel se aproximava a cada parada, mas o seu cavalo e o de seus homens
estavam sobrecarregados demais pelas armaduras dos cavaleiros para tornar
aquela perseguição eficaz. Frentis acenava toda vez que parava, na última
demorando-se por tempo suficiente para garantir que Darnel visse a sua mesura
escarnecedora.
Ele chegou ao Esporão de Lirkan cerca de duas horas após o início da
perseguição, uma extensão de terra relvada em forma de um polegar que
adentrava as águas do Rio Salgado. O rio era raso naquele ponto, vadeável
mesmo tão perto do fim do ano, com campos abertos ao norte e uma colina alta
e rochosa a mais de duzentos metros ao sul bloqueando a vista da margem leste.
Frentis parou o cavalo e examinou os arredores, não encontrando evidência de
qualquer aliado.
Virou a montaria, passando a mão por seu flanco para acalmar o animal
enquanto esperava. A mensagem do lobo ainda ecoava em seu peito, seu ânimo
recém-nascido deixando-o com um leve sorriso que se recusava a morrer,
mesmo enquanto os quinhentos cavaleiros de Darnel avançavam em direção ao
esporão.
Venha, meu senhor, pedia ele a Darnel em silêncio. Um pouco mais perto.
Seu ânimo sofreu um leve abalo ao avistar Darnel erguer a mão e sua
companhia inteira parar a uns 150 metros de distância. Frentis passou a mão por
cima do ombro e desembainhou a espada, erguendo-a no alto antes de apontá-la
diretamente para Darnel num nítido e inconfundível desafio. Seja você mesmo,
meu senhor, implorou-lhe Frentis. Seja o tolo.
O cavalo de Darnel empinou quando o seu cavaleiro desembainhou a própria
espada. Um de seus seguidores aproximou-se, talvez ansioso para pedir cautela,
mas Darnel o dispensou com um aceno furioso e saiu em disparada com o
cavalo. Frentis preparou-se para fazer a própria investida, mas então parou
quando ouviu um novo som: cornetas soando uma nota aguda a leste, aguda
demais para um cavaleiro renfaelino, e a Sexta Ordem não usava cornetas. Ele
parou e olhou por sobre o ombro, o sorriso desaparecendo por completo ao
avistar pelo menos dois batalhões de cavalaria volariana investindo na direção da
margem leste do Rio Salgado.
Al Hestian!, praguejou. Outro tumulto atraiu a sua atenção para o sul, o
grande estrondo de muitos cavalos correndo por águas rasas. Banders deu a volta
com os seus cavaleiros na colina rochosa e rumou diretamente para a companhia
de Darnel, e Frentis avistou as figuras indistintas de seus irmãos no alto da
elevação, com arcos a postos. Voltou a olhar para Darnel e viu que o Senhor
Feudal parara, seus homens movendo-se confusos às suas costas. Frentis lançou
um último olhar à cavalaria volariana que avançava e agora vadeava o rio, mas
impedida de galopar devido à profundidade das águas.
Ele fixou o olhar mais uma vez em Darnel e esporeou o cavalo, a espada
estendida e apontada enquanto investia, vencendo a distância em poucos
segundos. Ele via os riscos negros das flechas de seus irmãos descerem em arco
sobre a companhia de Darnel, onde cavalos empinavam e cavaleiros tombavam
conforme elas atingiam os alvos. Um dos homens de Darnel agarrou as rédeas
do Senhor Feudal e tentou arrastá-lo na direção dos volarianos, caindo morto
quando Darnel lhe golpeou o pescoço com sua longa espada, virando o cavalo e
recebendo de frente o impacto da investida de Frentis.
Seus cavalos se chocaram com uma força esmagadora e a espada de Frentis
ricocheteou na lâmina de Darnel quando o Senhor Feudal tentou lhe golpear antes
de os cavalos recuarem. O cavalo de Frentis cambaleou, bufando espuma e
sangue, caindo de joelhos no momento em que ele saltou para longe do animal,
agachando-se quando Darnel abaixou-se na sela para tentar decapitá-lo com um
golpe da espada longa. Frentis deixou que a lâmina passasse zumbindo pela sua
cabeça e atirou-se para agarrar o antebraço encouraçado de Darnel, passando os
braços pelo membro coberto de aço e arrancando o homem da sela. Ele tombou
com um estrondo de metal se partindo, mas se recompôs depressa e deu uma
cabeçada com o elmo no flanco de Frentis, derrubando-o e então erguendo a
longa espada no alto com as duas mãos. Frentis percebia o olhar do outro por trás
da viseira, repleto de um ódio irracional.
Ele rolou quando a lâmina desceu e cravou-se na terra, levantou-se de um
pulo e desferiu um golpe na viseira de Darnel. O Senhor Feudal esquivou-se da
lâmina e girou a espada num grande arco, fazendo Frentis grunhir com o esforço
de aparar o golpe, o aço de Darnel denteando a sua lâmina da Ordem. Ele
agarrou o punho da manopla de Darnel antes que ele pudesse afastar a lâmina,
aproximou-se mais, virou a espada e a enfiou na viseira. Darnel jogou a cabeça
para trás ao ser atingido pela lâmina, cuja ponta ressurgiu ensanguentada, o
Senhor Feudal urrando de fúria e dor.
Frentis girou e desferiu um golpe contra as pernas de Darnel sem perfurar a
armadura, mas com força suficiente para derrubá-lo. O Senhor Feudal urrou e
golpeou de novo, mas Frentis bloqueou o ataque e chutou a mão que segurava a
espada, jogando a arma longe. Ele bateu com a guarda de sua espada na viseira
de Darnel, atordoando-o, e então pressionou uma bota em seu pescoço. Colocou
a ponta de sua lâmina na abertura, encontrando os olhos atrás dela, e sorriu
intensamente diante do medo que via.
— IRMÃO!
Era Arendil, correndo na direção deles, com homens engalfinhados em
combate de ambos os lados, apontando a espada para algo sobre o ombro de
Frentis. Ele não perdeu tempo olhando e mergulhou para a esquerda no momento
em que a espada de um cavaleiro volariano deixou um corte superficial em seu
rosto. O volariano virou o cavalo com dificuldade para desferir outro golpe e
então caiu da sela quando a espada de Arendil atravessou o seu ombro.
Frentis virou-se e se viu diante de mais quatro volarianos que avançavam a
galope. Ele ouviu o ribombar de cascos às suas costas e atirou-se no chão,
sentindo um bafo quente no pescoço quando um cavalo saltou por cima de seu
corpo. Ergueu a cabeça e viu Mestre Rensial desferir um golpe ascendente
preciso contra um dos atacantes volarianos, partindo o peitoral do homem com a
força do impacto. Rensial abaixou-se sob a espada frenética do volariano à sua
direita e respondeu com um golpe para trás ao passar pelo homem, e o cavaleiro
arqueou as costas quando a lâmina lhe cortou até a coluna.
Os dois volarianos restantes atacaram Frentis juntos e com as lâminas
apontadas, e então tombaram no solo quando uma nuvem de flechas desceu em
arco do alto da colina, abatendo cavaleiros e cavalos.
Frentis girou sobre os calcanhares, procurando Darnel em meio ao caos. Os
cavaleiros de Banders haviam destroçado a companhia do Senhor Feudal, mas
agora enfrentavam os volarianos, homens e cavalos rodopiando num aglomerado
de aço e carnes cortadas. Frentis teve um vislumbre de uma armadura azul em
meio à confusão crescente à direita, uma figura curvada a cavalo sendo levada
para longe por dois volarianos. Cornetas soaram e a cavalaria começou recuar,
cavaleiros desferiam seus últimos golpes antes de virarem as montarias e
galoparem de volta ao rio.
Frentis viu um cavalo sem cavaleiro a três metros e pulou para a sela,
disparando na direção em que Darnel fugia, golpeando quaisquer volarianos
desafortunados em seu caminho. Avistou Mestre Rensial ali perto, matando um
volariano desmontado, e gritou para chamar a sua atenção. Os olhos do mestre o
encontraram depressa, como sempre em batalha, concentrados, calmos e
aparentemente sem vestígio de loucura. Frentis apontou para a figura de
armadura azul que agora se aproximava do rio e o mestre esporeou o cavalo
naquela direção, com Frentis cavalgando a toda a velocidade em seu encalço.
Darnel já estava batalhando para atravessar a água quando Rensial e Frentis
alcançaram a sua escolta. Os dois homens se viraram na beira do rio para
enfrentá-los, manobrando suas montarias com uma precisão assombrosa, e
Frentis soltou um grunhido de aborrecimento ao ver as espadas duplas em suas
costas.
Kuritai.
Rensial tentou desviar-se deles, pendurando metade do corpo para fora da
sela para evitar uma lâmina Kuritai, mas o escravo de elite saltou do próprio
cavalo, caindo com habilidade na sela de Rensial e golpeando para baixo com as
duas espadas. Rensial tirou o pé do estribo e girou em volta da cabeça do cavalo,
chutando com os dois pés o peito do Kuritai enquanto atravessavam o rio; o
escravo foi arrancado do cavalo e o mestre voltou à sela.
Frentis tentou despachar o segundo Kuritai com uma faca, esperando até
estar quase emparelhado com o escravo, quando então arremessou a lâmina em
seu olho. O homem mal pareceu notar o ferimento, golpeando Frentis ao passar
por ele com o cavalo, a lâmina errando o alvo por alguns centímetros, virando o
cavalo para segui-lo, mas tombando morto quando a lança de Davoka brotou de
seu peito. Ela arrancou a arma do cadáver e seguiu adiante a galope,
acompanhando Frentis rio adentro.
Ele podia ver Darnel adiante, tirando sangue do cavalo com chibatadas até o
animal chegar à margem oposta, galopando para leste cercado por uma escolta
de volarianos enquanto a retaguarda permanecia firme na beira da água. Rensial
avançou sobre eles, sua espada um borrão à medida que homens caíam à sua
volta, saindo em perseguição de Darnel, que se afastava rapidamente, e então
empinando quando uma lâmina volariana cravou-se no pescoço de seu cavalo.
Outro volariano correu na direção do mestre com a espada pronta para lhe
golpear as costas. O cavalo de Frentis chocou-se com a montaria do volariano
antes que ele pudesse atacar, a cabeça do homem trespassada pela lâmina da
Ordem um segundo depois.
Davoka gritava de frustração ao abrir caminho à força em meio aos
volarianos remanescentes, girando a lança, a lâmina deixando um rastro de
sangue e apenas dois cavaleiros vivos, que tentaram em vão seguir seus
companheiros em retirada, caindo mortos ao serem atingidos por flechas
disparadas por trás. Frentis virou-se e viu Sollis e Ivern vadeando depressa o rio
de arcos em punho. Atrás deles a margem oeste estava tranquila após a batalha,
e cavaleiros e combatentes livres andavam por entre os mortos.
Frentis olhou de novo para a nuvem de poeira que se erguia com a passagem
de Darnel, sabendo que não iriam alcançá-lo agora. Davoka praguejou em lonak
e jogou a lança no chão. Perto dali, Rensial ajoelhou-se ao lado de seu cavalo,
passando a mão pelo pescoço do animal e sussurrando gentilmente enquanto ele
dava o último suspiro.
— Aquilo foi imprudente, irmão. — Os olhos claros de Sollis o encaravam
com severa desaprovação, que se tornou ainda mais intensa quando Frentis soltou
uma gargalhada longa e alta.
— Sim, irmão — retorquiu ele quando o júbilo havia desaparecido, ciente de
que a expressão no rosto de Sollis era idêntica à sua ao olhar para Rensial. —
Muito imprudente. Minhas mais sinceras desculpas.
— Minha avó de sangue tinha muitos sonhos. — Davoka olhava fixamente para
ele enquanto cavalgava ao seu lado, embora o seu tom fosse brando, os
resmungos costumeiros ausentes naquela manhã.
Frentis deu um aceno cansado com a cabeça e não respondeu. O silêncio
havia sido praticamente total durante o café da manhã; Trinta e Quatro lhe
passara uma tigela de mingau franzindo a testa de inquietação, Illian e Arendil
não conseguiram olhá-lo nos olhos e Draker ficou encarando-o, as sobrancelhas
grossas franzidas de preocupação.
Lágrimas do Irmão Vermelho, pensou Frentis. Eles esqueceram que eu era
apenas um homem… Talvez eu também tenha esquecido.
— Ela via estrelas caindo do céu para destruir a terra — prosseguiu Davoka.
— E enchentes grandes o suficiente para afogar as montanhas. Um dia ela deu o
seu pônei e todas as suas coisas porque um sonho lhe disse que o sol iria explodir
com o crepúsculo. O sol não explodiu e as pessoas viram apenas uma velha louca
com sonhos, e sonhos não significam nada.
Não são sonhos, ele quis dizer à lonak, fechando os olhos e esfregando as
têmporas ao ser invadido pela fadiga.
— Você acha que eu não tenho condições de liderar?
— O nosso clã iria seguir você para dentro da Boca de Nishak se pedisse. Eles
temem por você, isso é tudo.
Ele abriu os olhos e forçou-se a esquadrinhar o horizonte. O solo a oeste do
Esporão era em sua maioria pasto, apesar de agora não haver gado, o capim
longo devido à falta de pastejo. Mestre Sollis concordara com o seu pedido de
fazer o reconhecimento da passagem ao sul, embora os seus olhos claros
transmitissem uma crítica mais severa do que a oferecida pela gente que o
seguira desde a Urlish. Ele acha que estou abalado, sabia Frentis. Destruído pelo
fardo de tanta culpa. Não contara a Sollis sobre a bênção do lobo, a libertação da
culpa que o ato trouxera, mas agora isso parecia inútil. De que adiantava ser
liberado da culpa se ele estava condenado a enxergar pelos olhos dela todas as
noites?
Davoka retesou-se ao seu lado e apontou. Frentis afastou as dúvidas que
turvavam a sua mente e olhou para onde ela indicava, avistando duas figuras no
horizonte, ambas montadas e movendo-se em trote constante pelo capim longo.
Ele sabia que não podiam ser volarianos, que nunca patrulhavam em grupos
pequenos, e duvidava que Darnel tivesse muitos caçadores para enviar,
especialmente sem cães. Além do mais, estava claro que eles já haviam avistado
os dois cavaleiros ao norte, e ambos continuavam a se aproximar. Não eram as
ações de um inimigo. Ainda assim, ele pegou o arco e colocou uma flecha na
corda quando os cavaleiros chegaram mais perto. Davoka afastou o cavalo e o
posicionou de modo que a sua lança ficasse oculta, abaixada sobre o flanco
direito do animal.
Frentis franziu o cenho quando o rosto dos cavaleiros ficaram visíveis,
percebendo que eram uma mulher e um homem. A mulher tinha um cabelo
longo preso numa trança e montava uma égua malhada e alta. Suas roupas eram
estranhas, uma mistura de couro e equipamento volariano, incluindo uma espada
curta amarrada à sela, embora também carregasse uma lança adornada com
penas e o que pareciam ser talismãs de ossos entalhados.
Ele ouviu Davoka soltar um grunhido de surpresa.
— Eorhil.
O homem vestia o uniforme da infantaria da Guarda do Reino, suas feições
um tanto emaciadas num rosto permanentemente franzido, algo entre
perplexidade e dor, a boca aberta e os lábios sem expressão. Eles pararam a
cerca de dez metros de distância, o olhar da mulher indo de Frentis para Davoka,
levemente divertido por ver Frentis, severo e cauteloso quando se voltou para
Davoka. O Guarda do Reino ao seu lado lançava-lhes apenas um olhar cansado.
Davoka disse algo numa língua desconhecida, as palavras hesitantes e
formadas com dificuldade. A eorhil soltou uma gargalhada antes de falar na
língua do Reino com um sotaque carregado:
— Lonakhim soa como uma macaca parindo.
Davoka empertigou-se, agarrando com força as rédeas e erguendo a lança,
mas a eorhil apenas sorriu e virou-se para Frentis.
— Meu… marido me ensina… sua língua. Você um… irmão?
— Sim — respondeu ele. — Irmão Frentis da Sexta Ordem. Esta é a Senhora
Davoka, Embaixadora do Domínio Lonak no Reino Unificado.
A eorhil piscou, aturdida com as palavras desconhecidas, e sacudiu a cabeça,
batendo no próprio peito.
— Insha ka Forna, eu sou eorhil.
— Nós sabemos — disse Davoka no mesmo tom. — O que vocês fazem aqui?
— Este Irmão Lernial. — A eorhil gesticulou para o Guarda do Reino, que
agora olhava em silêncio para o chão. — Rinia nos mandou.
— Rinia? — perguntou Frentis.
Insha ka Forna grunhiu de frustração e virou-se, apontando para o sul e
falando com lenta determinação:
— Rainha.
CAPÍTULO NOVE
Lyrna
Apesar de boa parte de Warnsclave ter sido destruída até restarem apenas as
pedras das ruas, a infraestrutura abaixo da cidade continuava essencialmente
intacta e numerosos porões serviam como abrigos adicionais e locais de
confinamento. A volariana havia sido presa num porão de carvão do que havia
sido a oficina de um ferreiro, a julgar pela bigorna coberta de fuligem em meio
aos escombros. Dois Guardas do Reino estavam no alto dos degraus que levavam
ao porão enquanto Lorde Verniers esperava, apoiado na bigorna, quando Ly rna
se aproximou, escrevendo num pequeno caderno. Ele se levantou ao vê-la,
curvou-se com a sua graciosidade usual e a cumprimentou na língua do Reino
sem o menor traço de sotaque.
— Alteza. Obrigado por aceitar o meu pedido.
— Não há de quê, meu senhor — disse Ly rna. — Contudo, tenho a impressão
de que eu o trouxe aqui sob uma falsa premissa.
— Alteza?
Ly rna fez sinal para os guardas abrirem a porta do porão.
— Sim, meu senhor. Sei que está ansioso pelo que tenho a dizer para
acrescentar à sua obra histórica, mas receio que a erudição terá de atender às
necessidades da diplomacia.
Ela fez sinal para que Verniers a seguisse escada abaixo, precedida por Iltis
para a escuridão. Fornella Av Entril Av Tokrev estava sentada a uma mesa
pequena, lendo à luz de uma única vela. Ela não estava acorrentada, e seu rosto e
seus cabelos estavam limpos, visto que Ly rna lhe permitira uma bacia de água
toda as manhãs para se lavar. A mulher também recebera pergaminho e tinta, e a
mesa à sua frente estava coberta por um pergaminho escrito de ponta a ponta em
volariano com uma letra caprichosa.
Fornella levantou-se e fez uma mesura quando Ly rna entrou, seu rosto
impassível até ver Lorde Verniers, quando então abriu um sorriso cauteloso.
— Alteza, meu senhor — cumprimentou ela, com seu conhecimento básico
da língua do Reino. — Dois visitantes. Estou honrada.
— Falaremos na sua língua — disse Ly rna em volariano. — É importante que
não haja mal-entendidos entre nós. — Ela pediu que Iltis esperasse do lado de
fora e fez sinal para que Fornella se sentasse, indo até a mesa e examinando o
pergaminho que a volariana escrevera e encontrando nele uma lista de nomes,
lugares e bens, cada nome marcado com um símbolo circular que Ly rna
reconheceu. — Uma carta de alforria — comentou ela. — Suponho que estes
sejam escravos seus.
— Sim, Alteza. Embora o documento na verdade seja um testamento. Os
escravos deverão ser libertados quando eu morrer.
— Meu conhecimento sobre as leis volarianas é limitado — mentiu Ly rna. —
Mas creio que um escravo, independentemente do dono ou de sua importância,
só pode ser libertado através de um decreto especial do Conselho Governante.
— De fato, mas meu irmão faz parte do Conselho. Não duvido que ele realize
a minha vontade no tocante a essa questão.
Imagino que, quando ele ficar sabendo de sua morte, estará preocupado
demais com a iminência do seu próprio fim para se importar com o seu último
desejo, pensou Ly rna.
— Devo supor que recentemente você passou a gostar menos da principal
instituição do seu império? — perguntou ela.
Fornella olhou para Verniers, que estava encostado de forma rígida na parede
do porão e se recusava a olhá-la nos olhos.
— Nós cometemos muitos erros — disse a volariana. — A escravidão talvez
seja o pior, superada apenas pelo nosso acordo com o Aliado.
— Um acordo que, se acreditarmos no relato de Lorde Verniers, concedeu a
você vários séculos de vida.
— Vida não, Alteza. Meramente existência.
— E como todos esses anos adicionais são conseguidos?
Fornella abaixou o olhar e, pela primeira vez, Ly rna teve uma ideia da
verdadeira idade da mulher nas linhas tênues agora visíveis ao redor dos olhos
baixos.
— Com sangue — respondeu Fornella após um momento, a voz não mais do
que um murmúrio. — O sangue dos dotados.
A memória de Ly rna voltou ao navio, ao capataz andando pelo porão de
escravos com o chicote enrolado. Todos aqui, trocar por um com magia. Ela se
aproximou da mesa, apoiou os punhos na superfície e inclinou-se na direção de
Fornella, que ainda estava com o rosto abaixado.
— Vocês bebem o sangue dos dotados — disse Ly rna por entre os dentes. —
É de onde vêm os seus anos.
— Há um lugar — murmurou Fornella. — Uma grande câmara abaixo de
Volar, com centenas de celas repletas de dotados. Aqueles que fazem parte do
acordo vão até lá uma vez por ano… para beber. E a cada ano há mais celas
vazias, e sempre mais dos que usam vermelho clamando para partilhar da
bênção do Aliado.
— E assim vocês precisam de mais, e o Aliado prometeu que os
encontrariam neste Reino. É por isso que vocês vieram.
— E para assegurar uma frente setentrional para a invasão alpirana, como eu
disse. Mas, sim, o Aliado prometeu que haveria sangue de dotados em
abundância nesta terra.
— E quando o sangue acabasse, e as terras alpiranas também fossem
varridas, o que aconteceria? Enviariam os seus exércitos para saquear o mundo
inteiro?
Fornella ergueu a cabeça, os olhos firmes, embora a voz estivesse vacilante, a
voz de uma mulher diante dos seus últimos momentos.
— Sim. Ele prometeu que o mundo seria nosso no seu devido tempo.
É vergonha que vejo em seus olhos?, ponderou Ly rna. Ou apenas
desapontamento?
— Suponho que tenha sido a promessa de uma vida eterna que tenha seduzido
Lorde Darnel à sua causa? — perguntou Ly rna.
Fornella encolheu os ombros com pesar.
— À tentação da imortalidade é difícil de resistir, especialmente para um
homem apaixonado por si mesmo.
Ly rna afastou-se da mesa e virou-se para Verniers.
— Meu senhor, acha que as palavras desta mulher são verdadeiras?
Verniers forçou-se a olhar para Fornella, relutante, mas a avaliou
atentamente.
— Duvido que ela tenha mentido, Alteza — respondeu ele. — Mesmo como
seu escravo, descobri que a honestidade era a sua única qualidade interessante.
— E acredita que o seu Imperador a acharia digna de crédito?
— O Imperador é mais sábio do que eu em todos os aspectos. Se ela estiver
sendo sincera, ele ouvirá a verdade.
— E, espero, compreenderá a importância de esquecer diferenças passadas.
O rosto de Verniers estava sério ao olhá-la nos olhos.
— Há muito a esquecer, Alteza.
— E um mundo a ser destruído se não forjarmos um propósito em comum.
— Ela virou-se de novo para Fornella. — Há um homem na Ordem do Irmão
Caenis que consegue ouvir mentiras. Você declarará a ele a sua disposição de
viajar até Alpira com Lorde Verniers, onde contará ao Imperador tudo o que me
contou. Se ele ouvir uma mentira, Honorável Cidadã…
— Ele não ouvirá, Alteza. — O alívio de Fornella era palpável, os anos mais
uma vez aparecendo no modo como os cantos de sua boca caíam. — Farei como
a senhora pede.
— Muito bem. — Ly rna olhou para Verniers, conjurando o seu sorriso de
arrependimento. — E o senhor? Fará isso por mim?
— Não, Alteza — respondeu o alpirano, o tom ríspido da voz e a estreiteza do
olhar deixando claro que o sorriso dela havia sido esforço desperdiçado. Este aqui
vê demais. — Farei por meu Imperador — prosseguiu Verniers —, que é grande
em sabedoria e benevolência.
Ela foi despertada de madrugada pela mão suave porém insistente de Murel. Não
houve sonhos naquela noite, e ser arrancada de um sono tranquilo a deixou de
mau humor.
— O que é? — perguntou ela, ríspida.
— Lorde Vaelin está lá embaixo, Alteza. Com o Capitão Belorath. Parece que
ele traz uma mensagem importante das Ilhas.
Ly rna ordenou que a dama buscasse uma bacia de água fria e mergulhou o
rosto nela, sufocando um grito com a dor de cabeça instantânea ao mesmo
tempo que o cansaço persistente desaparecia. Ela vestiu o manto mais simples e
conseguiu conjurar um semblante receptivo quando desceu a escada até a sala
do trono improvisada.
O Capitão Belorath imitou a mesura de Vaelin, embora o seu rosto revelasse o
desconforto por se encontrar numa posição servil diante de uma mulher que fora
sua prisioneira, uma prisioneira que ele quase matara. Depois que o Escudo
assumiu a monstruosa nau capitânia volariana, Belorath havia retomado o
comando do Sabre do Mar e retornara às Ilhas para fazer reparos e dar a notícia
da grande vitória em Alltor. Além de, esperava Ly rna, buscar mais navios para a
frota.
— Meu senhor, capitão — cumprimentou ela, sentando-se no trono. —
Imagino que as notícias sejam graves o bastante para justificar o avançado da
hora.
— De fato são, Alteza — disse Vaelin, acenando com a cabeça para Belorath.
O rosto do capitão revelava certa relutância ao falar, o tom seco e cuidadoso.
— Como Vossa Alteza sabe, os Senhores Marinhos têm se empenhado em
garantir a segurança das Ilhas por meio de… certas medidas discretas.
— Vocês têm espiões infiltrados neste Reino há anos, capitão — interrompeu
Ly rna. — Um fato que era do conhecimento tanto do finado Rei quanto do meu.
— Sim, Alteza. A maioria silenciou desde a invasão. Contudo, continuamos a
receber informações ocasionais de um em Varinshold.
— Aquele que avisou que a frota volariana havia zarpado — lembrou-se
Ly rna.
— Exato. Ao regressar às Ilhas, descobri que outra mensagem havia
chegado, vinda da mesma fonte. — Belorath tirou um pergaminho do cinto e
aproximou-se para entregá-lo à Ly rna. — Está endereçada à senhora, Alteza.
Ly rna desenrolou o pergaminho e viu que eram poucas palavras, mas
suficientes para se perguntar se, apesar de toda a sua alardeada inteligência, ela
não era apenas uma tola, afinal de contas.
Lyrna—
Ataque na véspera do início do inverno. Evite as muralhas se puder.
Aspectos E e D na Fortaleza Negra. Sinto muito.
—Alucius
CAPÍTULO DEZ
Alucius
— Não minta para mim, poetinha! — Darnel lhe lançou um olhar furioso, sua
voz baixa e carregada de promessas terríveis, o corte recém-costurado abaixo do
olho ameaçando se abrir enquanto gritava. — Eles devem ter lhe contado alguma
coisa.
Alucius estendeu as mãos num gesto impotente.
— Não fizeram mais do que lamentar pela morte de um irmão na Fé, meu
senhor. Embora eu tenha sentido certa satisfação do Aspecto Dendrish por
finalmente se tornar o homem mais gordo de Asrael.
Darnel ergueu-se do trono, levando a mão à espada, o rosto vermelho de
fúria. Ele parou quando o Comandante de Divisão Mirvek soltou uma tosse de
aviso e o pai de Alucius retesou-se, aproximando-se do filho. Darnel olhou para
todos eles com a mão trêmula no punho da espada. Sua fuga recente diante do
Irmão Vermelho e a notícia de que o seu feudo agora se rebelara em nada
ajudaram a melhorar o seu temperamento. Além disso, os crescentes desdém e
deferência de Mirvek pelo seu Senhor da Batalha forneciam amplas evidências
da irrelevância cada vez maior de Darnel. Restavam poucos de seus cavaleiros e
não havia onde conseguir mais em seu feudo. Alucius se perguntava por que o
volariano simplesmente não matava Darnel e assumia o comando, mas estava
evidente que o homem era um soldado até a alma e continuaria a seguir ordens
até receber uma palavra em contrário do Conselho. Darnel era o vassalo
apontado e Mirvek não tinha autoridade para depô-lo, por mais inútil que o
homem tivesse se tornado.
— Eles sabem onde há mais dotados — disse Darnel ao volariano, sem
conseguir disfarçar o tom desesperado da voz. — Tenho certeza.
Não é tão tolo a ponto de não saber que já não tem tanta serventia,
compreendeu Alucius, observando Darnel se remexer, pouco à vontade. Está
tentando comprar a sua segurança com o que os Aspectos sabem.
— Os Aspectos são preciosos a todos os que ainda são livres nestas terras —
afirmou o pai de Alucius. — Feri-los é instigar mais rebeliões.
— O povo dele está se rebelando de qualquer forma — observou Mirvek num
tom de reflexão. — Esses seus Aspectos são intrigantes. O Aspecto guerreiro era
intrigante o suficiente para que o Conselho ordenasse que fosse levado para o
império no dia em que foi capturado. Poderia ser proveitoso interrogá-los.
Alucius não gostou da ênfase que o volariano colocou em “interrogá-los”.
— Se me derem mais tempo, estou certo de que eles se mostrarão mais
afáveis. O Aspecto Dendrish, em particular, provavelmente revelaria todos os
segredos que tem na mente por um jantar completo.
Mirvek não riu, estreitando os olhos para observá-lo. Até então, a sua atitude
para com o filho de seu general escravo fora mais de desprezo vago, mas agora
Alucius sabia que ele o via com uma clareza desconfortável.
— Meu interrogador mais habilidoso foi capturado pelo seu Irmão Vermelho
— disse o volariano. — Ele poderia fazê-los falar em questão de segundos. Pedi
um substituto, que chegará com os nossos reforços até o final da semana. Você
tem até a chegada deles.
Alucius respondeu com uma mesura de gratidão, afastando-se quando o
volariano o dispensou com um aceno de mão. Ele podia sentir os olhos de Darnel
o seguindo ao se retirar da sala do trono, e mais uma vez se indagou por que não
sentia medo.
— Devo dizer, Aspecto, que achei o vinho bastante amargo — disse Alucius ao
sentar-se ao lado dela no catre.
— Mas você o encontrou? — perguntou Elera, olhando-o fixamente.
— De fato encontrei. Mas apenas três garrafas.
A boca dela se crispou ao conter o desapontamento.
— Uma pena.
— O desapontamento sempre foi a minha sina, Aspecto. No entanto, trago
notícias. Parece que temos uma nova rainha.
— Ly rna? Ela está viva?
— Com saúde, ilesa e liderando um exército para a nossa salvação neste
exato momento, um exército comandado por Lorde Al Sorna, após terem
derrotado o General Tokrev em Alltor.
A Aspecto Elera empertigou-se e fechou os olhos, os ombros tensos enquanto
inspirava e expirava de forma controlada. Ele a vira fazer isso antes, quando sua
compostura usual vacilava e o leve brilho de lágrimas surgia em seus olhos. Após
alguns segundos, ela reabriu os olhos e sorriu, o mesmo sorriso calmo e franco de
que Alucius sabia que sentiria muita falta.
— Notícias excelentes, Alucius — disse ela. — Obrigada por me contar. E
para quando podemos esperar a chegada da Rainha?
Alucius lançou um olhar rápido para o Espada Livre do lado de fora da cela.
O homem podia parecer mais burro do que uma porta e capaz de dizer somente
algumas palavras na língua do Reino, mas a curta carreira de espionagem de
Alucius lhe ensinara o valor de ver além das aparências.
— Tal informação está além do meu alcance, Aspecto. — Ele cruzou os
braços e estendeu três dedos na direção do cotovelo, notando a compreensão no
olhar de Elera, que resistia ao impulso de assentir.
— Acho que seria melhor você não poupar o vinho — disse ela num tom
brusco. — Esta é uma época agitada, e o vinho sempre oferece uma fuga das
preocupações, não acha?
— Bondade sua pensar no meu conforto, Aspecto. Mas se existe alguém que
já bebeu o bastante, esse alguém sou eu.
O Espada Livre sacudiu as chaves com impaciência e Alucius levantou-se.
— Contudo, posso dividir duas garrafas com a senhora — disse ele. — Já que
o seu conforto é da maior importância para mim.
O sorriso dela vacilou um pouco e um brilho severo apareceu em seu olhar.
— Não se deve desperdiçar vinho, Alucius.
— Não será desperdiçado. — Ele se ajoelhou, olhando-a nos olhos e vendo
como Elera segurava as lágrimas. Em vez de erguer a mão para que Alucius a
beijasse, como era de hábito, ela se inclinou para a frente e lhe beijou a testa,
sussurrando:
— Vá, eu lhe imploro.
Ele apertou e beijou as mãos dela, levantou-se e saiu da cela. Alucius foi
cuidadoso ao observar o Espada Livre enquanto o homem trancava a porta e viu
apenas os olhos embotados de um bruto estúpido. Ainda assim, ficou feliz por ter
dito a Cresia para matá-lo assim que ela entrasse naquela câmara.
Era a única casa que ele não visitara desde a queda da cidade, uma mansão
parcialmente desmoronada que já fora imponente, próxima da Esquina do Vigia,
à sombra de um grande e antigo carvalho. O telhado estava ainda mais
dilapidado do que ele se lembrava, e todas as janelas haviam sido quebradas,
avivando memórias de como Alornis se esforçara para mantê-las limpas e
intactas. A casa fora poupada do fogo por algum feliz acaso, talvez devido ao seu
tamanho ou aos quartos vazios, sem qualquer coisa que valesse a pena saquear,
pelo menos para aqueles sem a habilidade de detectar esconderijos.
A porta estava pendurada nas dobradiças, a tinta descascada no corredor de
tábuas expostas. Ele se lembrou de sua primeira visita ali, da batida falsamente
confiante que ela demorou tanto para atender. “Alucius Al Hestian, minha
senhora”, cumprimentara ele, curvando-se. “Antigo companheiro de seu nobre
irmão.”
“Eu sei quem você é”, retorquira ela, franzindo o cenho, intrigada, abrindo a
porta o suficiente para olhá-lo de cima a baixo. “O que você quer?”
Foram necessárias várias visitas até ela o deixar entrar, e ainda assim
somente porque estava chovendo, indicando-lhe um banco na cozinha e o
advertindo com severidade para não molhar os seus desenhos. Fora o dever que o
fizera persistir, a aparência de estar seguindo à risca uma ordem real, mas foram
os desenhos que o fizeram voltar na noite seguinte e aguentar a indiferença
intrigada e as farpas ocasionais de Alornis. Ele nunca vira nada como aqueles
desenhos, a nitidez e os sentimentos reproduzidos com tamanha parcimônia, tão
irresistíveis quanto passou a considerar a sua criadora.
Alucius seguiu para a cozinha, onde ela passara a maior parte do tempo, os
ladrilhos do chão adornados com cacos de louça, a mesa onde ela preparava as
refeições frugais que compartilhavam virada e faltando uma perna.
“Me proteger?”, rira Alornis quando ele explicou a razão de aparecer todas as
noites. Os olhos dela recaíram sobre a espada curta no cinto de Alucius, brilhando
um pouco. “Desculpe, mas ela realmente não combina com você.”
“Não”, admitira ele. “Nunca combinou. Mas, graças ao seu irmão, eu sei
como usá-la.”
Na verdade, ele sempre soube que ela precisava de pouca proteção. Os
poucos Fiéis iludidos o suficiente para imaginá-la como alguma espécie de
substituta para o irmão eram mandados embora com uma recusa implacável e
irascível, e por isso o Rei jamais tivera motivo para duvidar de sua lealdade. Ela
trabalhava todos os dias sob a tutela pouco agradável de Mestre Benril e passava
as noites naquela casa vazia, o carvão e a ponta de prata produzindo maravilhas
no pergaminho que ela passava fome para comprar. Foram os pergaminhos que
compraram a tolerância de Alornis, pois ele sempre os tivera em ampla
quantidade e trazia alguns quando a visitava, satisfeito em sentar e observá-la
trabalhar, com uma garrafa de Sangue de Lobo sempre por perto, apesar da
óbvia desaprovação dela.
“Cada palavra que ela falar a respeito do irmão e do pai devem ser
registradas”, dissera-lhe Malcius no dia em que Alucius fora chamado ao palácio
sob o pretexto de receber os cumprimentos da Rainha pela sua última coletânea
de poemas, mas na verdade para lhe imporem um novo dever. O rosto de
Malcius estivera sério ao caminharem juntos pelos jardins, um rei forçado a uma
necessidade relutante. “O mesmo vale para a identidade de qualquer visitante. A
sombra de Lorde Vaelin sempre foi longa demais, Alucius. É melhor que a irmã
não fique sob ela, não acha?”
Ele achou que estava me transformando num espião, ponderou Alucius,
olhando para a parede onde ela pendurara os seus esboços e onde agora não
havia nada além da silhueta de pergaminhos na cal. Sem saber que os
meldeneanos haviam chegado primeiro. Pobre Malcius. Janus teria sabido num
instante.
Ele subiu a escada que rangia até o andar superior, seguido por Vinte e Sete,
que saltava os vãos com ágil rapidez. Alucius parou somente por um momento
diante da porta do quarto de Alornis, como fizera ao final de muitas noites de
bebedeira, apenas para ouvir o leve murmúrio da respiração dela enquanto
dormia. Por que eu nunca contei para ela?, perguntou-se. Palavras ditas com
tanta facilidade para tantas outras, mas que eu nunca consegui dizer a ela, na
única vez em que teriam sido verdadeiras.
O quarto onde ele dormira estava em grande parte intacto, a sua cama
estreita ainda se encontrava junto à parede com o colchão, embora os lençóis
tivessem desaparecido. Alucius afastou a cama da parede e ajoelhou-se,
deslocando um fragmento de gesso e revelando um pequeno esconderijo que
passara despercebido pelos volarianos que saquearam o lugar. Ele suspirou de
alívio ao encontrar intacto o estreito embrulho de couro.
— Não parece grande coisa, não é? — perguntou ele a Vinte e Sete,
colocando o embrulho na cama e desatando os nós, revelando uma pequena
adaga. O punho era feito de osso de baleia sem ornamentos e a bainha de couro
liso. Alucius a desembainhou, expondo uma lâmina bem-feita de quinze
centímetros. — Mas — prosseguiu ele — o homem que me deu disse que o mais
leve toque dela era suficiente para matar. Não instantaneamente, mas o veneno
na lâmina garantirá uma morte rápida. — Ele olhou o escravo nos olhos, algo que
raramente fazia, pois não havia nada para ser visto neles. — O que faria se eu
tentasse apunhalá-lo com ela? Me mataria? Duvido. O mais provável é que me
desarmasse, talvez quebrasse o meu pulso. Ou será que você simplesmente
ficaria aí parado e morreria, certo de que eu teria outro como você ao meu lado
antes do fim do dia?
Vinte e Sete o encarou e nada disse.
— Não se preocupe, meu bom amigo. — Alucius devolveu a adaga à bainha
e a enfiou no cinto. — Não é para você. Além do mais, acho que me acostumei
demais com a sua companhia. Nossas conversas são tão agradáveis.
Ele empurrou a cama contra a parede e deitou nela com as mãos atrás da
cabeça.
— Quantas batalhas você já presenciou? Dez, vinte, cem? Eu estive numa
batalha, certa vez. Bem, três vezes, se você contar a Colina Sangrenta e
Marbellis, embora meu papel não tenha sido digno de nota. Não, a minha única
batalha verdadeira foi na Revolta do Usurpador, no Forte Alto. A primeira grande
vitória na ilustre carreira daquele que em breve será o nosso salvador. Há
canções sobre ela, terríveis e horrivelmente incorretas, mas estou nelas, ou pelo
menos na maioria. Alucius, o poeta guerreiro, surgiu para vingar o irmão, “sua
espada como um raio de uma tempestade virtuosa”.
Ele se calou por um momento, recordando-se. Era sempre do cheiro e do
som que ele melhor se lembrava, muito mais vívidos em sua mente do que as
imagens, que eram apenas uma confusão tingida de vermelho. Não, era o som
dos cavalos gritando, o fedor de suor, o barulho estranho que o aço fazia ao
perfurar a carne, vozes pedindo para serem salvas pelo seu deus, e merda… o
perfume pungente da sua própria merda.
— Eu fiz com que ele me ensinasse — disse Alucius a Vinte e Sete. —
Durante a marcha. Praticávamos todas as noites. Eu melhorei, fiquei bom o
suficiente para me enganar sobre ter algum tipo de chance, alguma esperança de
sobreviver ao que estava por vir. Eu soube que estava errado quando Malcius
ordenou o ataque. Soube num instante que eu não era um guerreiro, nenhuma
alma vingadora, e sim apenas um garoto assustado com merda na calça.
Lembro-me de gritar. Imagino que os outros tenham pensado que era um grito de
guerra, mas era apenas medo. Quando atacamos o portão, eles tentaram barrar a
nossa entrada com os corpos, dando os braços uns aos outros, gritando preces ao
seu deus. No momento em que nos chocamos com eles, a força do impacto me
mandou longe. Tentei levantar, mas havia muitos corpos em cima de mim. Gritei
e implorei, mas ninguém me tirou de lá, então algo duro bateu na minha cabeça.
Lembrou-se da irmã gentil que tratara dele, mais tarde destinada a acabar na
Fortaleza Negra por heresia e traição, tudo porque ela pregava contra a guerra.
Lembrou-se do rosto do pai no dia em que ele retornou à mansão, do suspiro de
alívio seguido por uma ordem brusca: “Você não vai mais sair desta casa sem o
meu consentimento.” Ele assentira docilmente, entregara a espada de Linden e
fora para o quarto, onde ficara a maior parte do ano.
— Eu sempre fui um covarde, sabia? — disse Alucius. — E quanto mais
aprendo sobre este mundo, mais acho que é o único caminho sensato a seguir
nesta vida, na maior parte do tempo. Em Marbellis, eu fiquei parado e assisti à
cidade arder, e então vi meu pai enforcar cem homens por incendiá-la. Fiquei ao
lado dele durante o cerco, mesmo quando ele liderou um ataque para selar uma
brecha nas defesas. Não me borrei dessa vez, mas estava muito bêbado. Quando
as muralhas caíram, eu corri quando ele correu. Darnel estava lá, por mais
estranho que pareça, tão aterrorizado quanto o resto de nós. Lembro que ele teve
de enfrentar os próprios homens para chegar ao navio que nos tirou de lá em
segurança, e quando zarpamos, olhei para o seu rosto e vi que ele era tão covarde
quanto eu.
Alucius virou-se para Vinte e Sete, fez sinal para que ele se aproximasse e
falou calmamente:
— Preciso que você se lembre de uma coisa.
Ele falou por pouco tempo, palavras que não haviam sido ensaiadas, mas que
vinham com naturalidade. Quando terminou, ordenou que Vinte e Sete as
repetisse, e o escravo o fez com uma imitação desconcertante e precisa da voz
de Alucius. Meu sotaque é tão afetado assim?, perguntou-se quando o escravo se
calou.
— Muito bem — disse ele, então deu instruções cuidadosas sobre quando e a
quem as suas palavras deveriam ser repetidas. — Vou dormir agora — disse a
Vinte e Sete. — Acorde-me com o oitavo sino, por favor.
Ele ficou satisfeito ao encontrar Darnel a cavalo nas docas, cercado por seus
poucos cavaleiros remanescentes a pé. O Senhor Feudal sempre se preocupava
em ficar acima daqueles à sua volta e insistia em cavalgar sempre que deixava o
palácio. Um batalhão inteiro de Espadas Livres estava atrás de Mirvek, em
formação ao longo do cais, aguardando para saudar quaisquer luminares que se
aproximavam na imensa belonave que surgia no horizonte. Alucius soube por seu
pai que os comboios de suprimentos volarianos haviam sido alvos frequentes de
ataques nas últimas semanas, com os meldeneanos sem dúvida felizes em ver a
pirataria tão lucrativa na guerra quanto em tempos de paz. Entretanto, um navio
com o tamanho e o poder do monstro que velejava na direção deles certamente
podia esperar permanecer imune às atenções dos piratas.
Alucius passara a manhã na expectativa de alguma grande comoção, que
homens corressem para assumir as posições cuidadosamente planejadas por seu
pai enquanto o exército de Ly rna surgia na planície ao sul. Mas não houve
alarme, nenhuma corneta de aviso para cortar o ar matutino e nenhum exército
para sujar a região ao redor da cidade.
Se ela pudesse vir, teria vindo, sabia Alucius. Nem que fosse apenas para me
enforcar. Ele se esmerara para evitá-la desde a guerra, uma vez que o escrutínio
dela era sempre intenso demais, e os seus encontros ficaram limitados a
cerimônias ocasionais no palácio. Houve ocasiões em que ela enviara
mensageiros pedindo a sua presença no almoço, mas Alucius sempre recusara,
temendo o que a perspicácia dela pudesse descobrir. Eu sei o que você fez, Lyrna.
Começara no dia em que ele retornara de Marbellis e ela comparecera às
docas para receber os poucos sobreviventes do outrora grande exército de seu
pai. O sorriso dela era perfeito: grave, encorajador, livre de julgamento ou
repreensão. Mas Alucius viu, apenas por um instante, enquanto ela observava um
Guarda do Reino que perdera uma perna ser carregado para fora do navio.
Culpa.
Todas as peças se encaixaram mais tarde, com uma compreensão
instantânea, quando ele soube que o seu novo Rei havia regressado em segurança
para o Reino e Vaelin havia sido capturado pelos alpiranos. Ele estava no palácio
quando Malcius, de olhos claros e emaciado sob a barba, colocou a coroa na
cabeça e os nobres reunidos se curvaram… e o rosto de Ly rna revelou um
vislumbre da mesma expressão que ele vira naquele dia nas docas.
Eu sei o que você fez.
Alucius sempre se espantara com a velocidade com que os meldeneanos o
encontraram. Bebidas, mulheres e os poemas ocasionais haviam sido as suas
principais distrações nos dois anos desde Marbellis, o álcool o deixando um tanto
incauto com as palavras, palavras que alguns poderiam considerar
insubordinação. O meldeneano se sentara ao seu lado certa noite em sua taverna
favorita, assim considerada porque o primeiro copo sempre era de graça para
veteranos, uma despesa pequena, já que eles eram poucos. O meldeneano estava
vestido como marinheiro, como convinha à sua nacionalidade, e a princípio falou
num tom sem refinamento. Ele pagou o vinho de Alucius, confessando ser
iletrado ao ouvir sobre a sua ocupação, mas fez muitas perguntas sobre a guerra.
O homem regressou na noite seguinte, pagando por menos vinho, mas fazendo
mais perguntas, e na noite depois dessa. A cada encontro Alucius notava que o
seu sotaque não estava tão grosseiro quanto antes e que as suas perguntas
estavam minuciosas, especialmente no que dizia respeito ao Rei e à sua irmã.
— Eles são traidores — dissera Alucius, um pouco alto demais, pelo modo
como o homem se retraíra e gesticulara para que ele falasse mais baixo. — A
família inteira — prosseguira ele, ciente de que estava bêbado demais e não se
importando. — Janus enviou o meu irmão para morrer na Martishe, ordenou que
meu pai matasse milhares por nada. Abandonou meu amigo aos alpiranos. Ela
fez isso, não Janus. Foi ela.
O meldeneano assentiu lentamente.
— Nós sabemos — disse ele. — Mas gostaríamos de saber mais.
Eles lhe ofereceram dinheiro, que Alucius recusou, orgulhoso de si mesmo
por estar sóbrio quando o fez.
— Apenas me diga o que vocês querem.
Ele descobriu que a espionagem era uma ocupação absurdamente fácil.
Poucas pessoas veem mais do que desejam ver, concluiu, após aceitar um convite
para ler poemas para um bando de esposas de mercadores, cheias de fofocas e
repletas de informações sobre as novas rotas comerciais que os seus maridos
haviam sido obrigados a criar desde a guerra. Elas viram um belo e jovem poeta,
herói trágico de uma guerra trágica, abater-se visivelmente com os próprios
poemas, e se mostraram muito solícitas quando ele perguntou a respeito de
prováveis oportunidades de investimento. “Para o meu pai, a senhora
compreende. Ele precisa de algo com que se ocupar atualmente. Tempos de paz
são uma provação para um militar.”
Ele ia a tavernas frequentadas pela Guarda do Reino, onde era bem recebido
entre os veteranos que haviam estado em Linesh com Vaelin, todos cínicos
amargurados e faladores quando cheios de cerveja. Deixou que soubessem que
estava disponível para encomendas, compondo poemas de amor para jovens
nobres apaixonados e tributos para os funerais de homens abastados, ganhando
com isso acesso aos ricos e poderosos. Seu contato meldeneano estava feliz com
o seu trabalho e forneceu os pombos para tornar mais rápida a entrega de
informações e a adaga, caso ele fosse descoberto.
— Não sou assassino — dissera Alucius ao homem, olhando a adaga com
aversão.
— É para você — disse o meldeneano com um sorriso antes de sair da
taverna.
Alucius nunca mais o viu. Na semana seguinte, foi chamado pelo Rei e
recebeu a ordem de espionar Alornis, quando então viu o seu entusiasmo pela
nova ocupação começar a esmorecer. Ficar com ela diminuiu a sua raiva, tornou
menos aguda a dor da traição. Ele continuou a recolher informações, a maioria
fofocas mercantis de pouco valor, despachando os pássaros e sabendo que, caso
incluísse o seu pedido de desistência entre as mensagens, o provável era que os
meldeneanos lhe oferecessem uma lâmina em vez de uma aposentadoria. No
final das contas, os volarianos tornaram redundantes tais preocupações.
Alucius estava com Vinte e Sete a uns dez metros atrás de seu pai, que havia
se posicionado fora do círculo de cavaleiros bajuladores de Darnel.
— Um monstro impressionante, não? — perguntou ele, indo se colocar à
esquerda do pai.
Lakrhil Al Hestian assentiu à medida que o navio se aproximava e Alucius
avistou duas embarcações menores que vinham logo atrás.
— Aparentemente é o navio-irmão do Despeito da Tempestade — disse seu
pai. — Esqueci o nome. Mirvek acredita que é um sinal de que o Conselho
Governante continua a ter fé em sua liderança, enviando mais reforços do que o
esperado.
Alucius lembrava-se do Despeito da Tempestade como um monstro sombrio
que ficara ancorado no porto durante dias até que o General Tokrev zarpou para
Alltor, para nunca mais retornar. Discernindo os detalhes conforme o segundo
navio se aproximava, ele ficou espantado pela similaridade entre as duas
embarcações; mesmo para navios construídos seguindo o mesmo modelo, a
semelhança era surpreendente, embora os volarianos fossem um povo que
prezava muito a uniformidade.
— Os seus preparativos estão concluídos? — perguntou Alucius. — Tudo
pronto para sangrar o exército de Lorde Vaelin?
— Ainda não — grunhiu o seu pai. — Os Espadas Livres são preguiçosos
quando não estão saqueando, e os Varitai não são de muita serventia em trabalhos
braçais. Dê-lhes uma pá e eles ficam apenas olhando para ela. Contudo, parece
que logo teremos mais mãos para completar a tarefa.
— Você poderia ter defendido Marbellis? Se tivesse tido tantos homens para
usar?
Lakrhil virou-se para ele com uma expressão intrigada; havia um
entendimento tácito de que Marbellis era um assunto que nenhum dos dois queria
discutir.
— Não — respondeu ele. Algo deve ter transparecido na expressão de
Alucius, algum vestígio de suas intenções, pois seu pai inclinou-se para ele e
sussurrou: — Você não deveria estar aqui, Alucius. E ainda não conseguiu uma
única informação útil com os Aspectos. — Ele olhou rapidamente para Darnel.
— Não posso protegê-lo para sempre.
O olhar de Alucius foi atraído para a sua casa roubada, onde avistou a sacada
em que fazia o desjejum e contava os navios todas as manhãs. Ela estava lá,
como pedido, uma figura pequena e gorda encostada na balaustrada, com o olhar
fixo em Darnel, ou melhor, no cavalo do Senhor Feudal.
— Está tudo bem — disse Alucius ao pai. — Você não precisará fazer isso.
O cavalo de Darnel soltou uma bufada alta, balançando e sacudindo a
cabeça.
— Calma, calma — tranquilizou-o o Senhor Feudal, passando a mão no
pescoço do animal.
Alucius ficou aliviado ao ver que Darnel não estava usando armadura, apenas
sedas finas e um manto longo. Ele levou a mão à adaga enfiada atrás do cinto,
escondida debaixo do manto, sem tirar os olhos do cavalo de Darnel. O animal
bufou de novo, soltando um relincho alto, arregalando os olhos de pânico ao
empinar. Foi repentino demais para Darnel segurar com mais força as rédeas, e
derrubou-o da sela. Livre de seu cavaleiro, o grande cavalo de guerra girou e
golpeou com os cascos o cavaleiro mais próximo, as ferraduras retinindo no
peitoral do homem ao derrubá-lo. O animal girou sobre as patas dianteiras,
dispersando os cavaleiros restantes com coices furiosos enquanto Darnel
afastava-se de quatro pelo chão, os olhos arregalados de pânico. O cavalo
interrompeu o ataque aos cavaleiros e virou-se de novo, os olhos tresloucados
fixando-se em Vinte e Sete antes de investir com um grito agudo. A expressão do
escravo de elite permaneceu tão tranquila como sempre ao tentar atirar-se para
longe do caminho do cavalo, mostrando-se lento demais por uma fração de
segundo quando o flanco do animal chocou-se com o seu ombro, fazendo-o girar
para o chão, desacordado.
Alucius sacou a adaga da bainha e correu na direção de Darnel, que agora se
levantava, bem longe de qualquer proteção. Use a estocada mais curta possível,
dissera-lhe Vaelin havia tantos anos, quando ele se imaginava um herói. É a
lâmina veloz que tira sangue.
Algum instinto nascido das batalhas devia ter soado na mente de Darnel, pois
ele se virou no momento em que Alucius desferiu uma estocada contra as suas
costas, a lâmina perfurando o seu manto e ficando enroscada nas dobras do
tecido. Darnel rosnou e tentou acertar um soco no rosto de Alucius. Ele se
abaixou para desviar do golpe, arrancando a adaga do manto e golpeando o
braço de Darnel, ciente de que mesmo o menor corte seria suficiente. O Senhor
Feudal afastou-se para o lado e a sua espada saiu da bainha num borrão. Alucius
sentiu uma grande queimação percorrer o seu peito, o choque fazendo com que
caísse de joelhos, e Darnel assomou sobre ele com a espada erguida. Sua
expressão era de um triunfo feroz, sorrindo largamente na expectativa do abate.
— Você acha que vai me matar, poetinha? — riu ele.
— Não — respondeu Alucius, sentindo o sangue lhe banhar o peito ao olhar
por sobre o ombro de Darnel. — Mas imagino que ele irá.
Darnel girou sobre os calcanhares, mas tarde demais. Lakrhil Al Hestian
trespassou o pescoço do Senhor Feudal com o cravo que saía de sua manga
direita. Darnel levou alguns segundos para morrer, cuspindo sangue e chorando
pendurado no cravo, os olhos esbugalhados e os lábios balbuciando incoerências
antes de finalmente tombar no chão. Alucius ainda conseguiu pensar que não
demorara o bastante.
Uma mão fria pareceu envolvê-lo por todos os lados ao desabar; ele sentiu
seu pai ampará-lo e sorriu para o rosto lívido.
— Os Aspectos — disse ele. — Vá para a Fortaleza Negra…
— Alucius! — Seu pai o sacudiu, a voz um grito tomado de fúria. —
ALUCIUS!
Alucius percebeu que havia um grande clamor em algum lugar, embora sua
visão estivesse turva demais para distinguir a origem; homens gritavam
alarmados, avivando lembranças de Forte Alto. Ele achou estranho que o céu
acima da cabeça de seu pai parecesse estar repleto de tiras pretas, como as
flechas na Colina Sangrenta, outra lembrança indesejável. Ele fechou os olhos,
deixando tudo isso de lado e preenchendo a mente com o rosto de Alornis
enquanto o que restava de seu sangue se esvaía.
CAPÍTULO ONZE
Frentis
Ela está sentada sozinha numa câmara espaçosa com chão de mármore e mobília
refinada; é o meio da tarde e uma brisa suave balança as cortinas de renda sobre
os arcos que levam à sacada. A câmara pertencia ao Conselheiro Lorvek e está
repleta de artefatos comprados ou roubados de todos os cantos do mundo: estátuas
alpiranas de bronze e mármore, belas pinturas do Reino Unificado, louças
primorosas do Extremo Ocidente, máscaras de guerra extravagantes das terras
das tribos do sul. Uma coleção inestimável, o fruto do trabalho de várias vidas. É
como eles perduram, esses poucos seres em roupas vermelhas, preenchendo os
seus dias intermináveis com obsessões sucessivas, por arte, riqueza, carne… ou
assassinato.
Ela passa os olhos pela coleção de Lorvek e decide que mandará destruir tudo
na manhã seguinte. A alimentação, dois dias antes, a deixara revigorada, mas com
uma inquietude desagradável. O dotado havia sido de fato sórdido, um homem
comum de meia-idade com a habilidade de manter uma pessoa paralisada, imóvel,
mas consciente. Ele passara mais de duas décadas vagando pelo império matando
mulheres, paralisando-as para que pudessem apenas sofrer em silêncio enquanto
ele causava toda espécie de tormentos em suas carnes. Com o devido tempo, ele
teria sido um recruta útil para o Aliado, mas sua mente estava desregulada demais
para justificar o esforço necessário. O homem tentara resistir a ela, sentindo de
alguma forma a ameaça, apesar das drogas, lançando seu dom contra ela como
uma mão invisível agitada por um bêbado confuso. Ela teria rido dele em outra
época, até mesmo se retirado por um tempo para permitir que o efeito da droga
diminuísse antes de retornar para desfrutar da fúria impotente do homem enquanto
ela prolongava tudo aquilo. Porém, ela não riu, o miserável atabalhoado merecia
pouca consideração e certamente nenhuma pena, mas o sangue da garganta dele,
que ela cortara, tivera um gosto de podre, fazendo-a lutar contra a ânsia de vômito
e se forçar a beber bastante, perguntando-se se todas as mortes que ela causara
também maculariam o seu sangue.
Ela afasta a lembrança e regula a respiração, acalmando a mente, focalizando
os pensamentos. Eu sinto você, amado, diz a ele. Sei que você também me sente.
Ela aguarda com a mente aberta uma resposta, ciente de que ele está lá, mas
sentindo apenas a intensidade de seu desprezo. Não vai falar comigo?, implora
ela. Você também não está só? E nós dividimos tantas coisas.
A raiva aumenta, atravessando o grande abismo para açoitá-la, fazendo-a
estremecer. Eu temo por você, insiste ela. Nós sabemos que ela está viva, amado.
Sabemos que ela está indo tomar a cidade, e você sabe o que ela fará quando o
encontrar.
A raiva diminui, substituída por uma aceitação taciturna e uma grande culpa.
Esqueça todo esse absurdo que instilaram em você, implora ela. Todas as
mentiras que lhe contaram. A Fé é uma ilusão infantil, a nobreza a máscara de
um covarde. Não foram feitas para gente como nós, meu amado. Você sentiu,
quando estávamos matando juntos. Eu sei que sentiu. Estávamos acima de todos,
e podemos ficar novamente. Parta agora. Corra. Volte para mim.
A sensação muda, a emoção desaparece para dar lugar a uma imagem, uma
jovem de beleza misteriosa, metade do rosto banhado pela luz do fogo, a testa
franzida de confusão e pesar. Os lábios se movem, mas ela não ouve o som,
embora saiba as palavras com uma clareza absoluta. Eu fiz o meu acordo, amado.
Não posso fazer outro.
Eu não tive escolha, ela lhe diz agora.
A imagem desaparece, girando na mente dela até se transformar numa voz,
seca e fria, mas maravilhosamente familiar. Eu também não.
— Eu já lhe disse — começou Nortah, sua pele um tanto acinzentada à luz fraca
do porão — quanto detesto viajar de navio?
Atrás dele um de seus combatentes concordou com um grunhido e vomitou
dentro do próprio elmo.
— Faça isso no chão — repreendeu-o Nortah. — Logo você terá de usar o
elmo.
Vaelin deu um tapinha no braço do irmão e foi para o fundo do porão,
passando por fileiras de combatentes trajando armaduras volarianas e descendo
a escada até o convés inferior onde os seordah estavam sentados sofrendo da
mesma forma. Ele encontrou Hera Drakil sentado ao lado de uma portinhola
entreaberta, de olhos fechados e a com a boca aberta para respirar o ar fresco do
exterior.
— Estamos a dez quilômetros do porto — disse Vaelin ao seordah, que franziu
a testa, confuso. — Logo chegaremos — explicou ele. — Prepare a sua gente.
— Eles estão prontos para sair desta coisa horrível desde que entraram nela
— retorquiu o chefe de guerra com um brilho furioso no olhar.
Sem a orientação de Dahrena, persuadi-los a tomar parte naquele
estratagema não fora uma tarefa fácil. Vaelin explicara tudo em detalhes para
Hera Drakil, com a Rainha fazendo promessas de grandes recompensas e
gratidão eterna caso eles concordassem em velejar até Varinshold. O seordah
escutara tudo em silêncio e então retornara ao acampamento de seu povo. Vaelin
e Ly rna permaneceram por perto, assistindo ao desenrolar da discussão. Os
seordah não eram um povo expressivo, era raro erguerem a voz ou gesticularem,
de modo que a quietude crescente evidente nos vários chefes de guerra, ao se
sentarem em círculo e debaterem os méritos do plano de Vaelin, tivera um ar
meio sinistro. Por fim, após várias horas e com o cair da noite, Hera Drakil
retornou, o rosto rígido de relutância ao dizer: “Nós vamos para a grande água.”
— Sal manchando cada respiração — disse o seordah. — Sem terra sob os
nossos pés. Como é possível aguentar uma coisa dessas?
— Por ganância ou necessidade — respondeu Vaelin. — Lembra-se do seu
papel nisso?
— Matar todos os duas-espadas que encontrarmos e seguir para a grande
construção preta. — O seordah se remexeu quando Vaelin levantou-se,
inclinando-se para a frente e o encarando fixamente com o mesmo olhar
indagador que lhe lançava desde Alltor. O que ele procura?, perguntou-se Vaelin
mais uma vez quando os olhos do chefe encontraram os seus. Ele se pergunta se
há outra alma por trás dos meus olhos? Ou é mais sobre o que eu posso ter trazido
de volta?
— Você… — O seordah fez uma pausa, procurando as palavras certas. —
Você é mais… você agora, Beral Shak Ur.
Vaelin respondeu com um aceno cauteloso de cabeça. Ele na verdade se
sentia mais forte; o frio havia praticamente deixado os seus ossos. Além disso, no
seu último exercício com Davern ele realmente derrotara o construtor de barcos,
para deleite de sua irmã. Ela passara a assistir aos confrontos diários e deu um
grito de triunfo quando a espada de Vaelin encontrou uma brecha nas defesas de
Davern, golpeando-o no diafragma com força suficiente para provocar um grito
de dor repleto de obscenidades. Ele sentiu certo prazer com a fúria carrancuda
do homem diante das provocações de Alornis, mas teve o cuidado de não deixar
isso evidente ao agradecer ao sargento pelos seus serviços e liberá-lo de
obrigações futuras.
— Eu estou sempre à sua disposição, meu senhor — disse Davern por entre os
dentes.
Vaelin seguiu para o convés superior e juntou-se a Reva no leme, que trajava
a cota de malha leve, com a espada atravessada nas costas e o arco na mão,
rindo de algo que o Escudo dissera. O humor do homem desapareceu ao avistar
Vaelin, e Escudo fez sinal para que o seu timoneiro assumisse o timão,
oferecendo uma mesura rápida.
— Meu Senhor da Batalha.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — cumprimentou Vaelin, fazendo uma
mesura mais longa. O Escudo escondia o seu ressentimento com mais cuidado do
que Davern, mas ele suspeitava que fosse igualmente profundo.
— Imagino que os nossos selvagens de estimação estejam preparados, não?
— perguntou Ell-Nestra.
— Não os chame assim — disse Vaelin, incomodado com a facilidade com
que o Escudo os provocava. Derrota e humilhação são péssimas tutoras, ao que
parece.
— Perdão, meu senhor. Mas o senhor deve concordar que eles dão péssimos
marinheiros.
— Quem pode culpá-los? — perguntou Reva, o rosto levemente menos
acinzentado do que o de Nortah. — Eu enfrentaria meio mundo para sair desta
banheira.
— Banheira? — O Escudo virou-se para ela com fúria simulada. — Minha
senhora insulta a melhor embarcação já capturada por um sabre meldeneano.
Ora, eu a desafiaria, se a senhora não fosse apenas uma mulher frágil.
Ele aceitou de boa vontade o tapa ligeiro que Reva lhe deu, fazendo-a rir
novamente com uma mesura floreada e afastando-se para ordenar ao seu
imediato que reunisse um grupo de combate. Pensei que pelo menos ela seria
imune ao charme dele, pensou Vaelin, aborrecido.
— Sua gente está pronta? — perguntou ele a Reva.
Ela ergueu a cabeça para o cordame acima e Vaelin viu os arqueiros
amontoados nas plataformas no alto dos dois grandes mastros da gigantesca
embarcação. Uma figura inclinou-se por sobre a beira da plataforma e acenou
para eles, e Vaelin reconheceu a silhueta de Bren Antesh. Ele percebeu certa
impaciência nos movimentos do arqueiro.
— Acho que o seu Lorde dos Arqueiros está ansioso para que você se junte a
ele lá no alto.
— Nesse caso, ele ficará desapontado — retorquiu Reva com um olhar
firme.
Vaelin deixou o assunto de lado; adverti-la parecia irrelevante, dada a missão
que teriam pela frente. Uma aposta temerária, o Conde Marven a chamara, não
sem justificativa. Vaelin olhou para os dois navios que os seguiam, as únicas
embarcações volarianas capturadas pelos meldeneanos durante a sua breve
campanha, cada uma repleta com mais seordah. Além do horizonte aguardavam
todos os navios que puderam requisitar sem aviso prévio, trinta embarcações
carregadas com mais gente da floresta e três regimentos da Guarda do Reino,
incluindo os Lobos Corredores. A nata daquele novo exército, arriscada na
expectativa da arrogância volariana.
O Escudo entrara em Warnsclave um dia depois da chegada de Belorath, sua
grande nau capitânia carregada de suprimentos roubados, relatando o seu
desalento por não ter conseguido capturar um navio de tamanho e modelo iguais
ao seu próprio monstro recém-adquirido.
— Foi como enfrentar uma imagem refletida num espelho — disse ele a
Ly rna, o seu costumeiro entusiasmo um pouco abrandado e, ao contrário da
maioria, menos inclinado a olhá-la no rosto. — Exceto que era comandada por
um tolo — prosseguiu ele. — Infelizmente, os incêndios que começamos no
navio foram grandes demais e ele afundou, junto com algumas centenas de
Espadas Livres, a julgar pelos gritos.
Fora então que a ideia lhe ocorrera, despertando instintos que Vaelin pensava
ter perdido com a sua canção. Eles estão esperando pelo irmão do Despeito da
Tempestade em Varinshold. Ele ponderara a respeito durante um dia e uma noite
antes de procurar a aprovação da Rainha.
— Não temos navios suficientes para o exército inteiro — lembrou-lhe Ly rna.
— Mas suficientes para tomar as docas, e Varinshold resistirá ou cairá
dependendo de quem as dominar. Além do mais, o Irmão Caenis informará ao
exército renfaelino a necessidade de se atacar na véspera do início do inverno,
por meio do Irmão Lernial.
— As chances. — Ela sacudiu a cabeça. — Mesmo que esses renfaelinos,
quem quer que sejam, cavalguem em nosso auxílio, as chances ainda não
estarão a nosso favor. Marven tem razão, o risco é grande demais.
— Não para os seordah — disse Vaelin. — Não se realizarem o primeiro
ataque, auxiliados pelos arqueiros da Senhora Reva. As docas serão tomadas
dentro de uma hora.
— As proezas deles o impressionam tanto assim?
Vaelin lembrou-se dos Kuritai naquele dia, com a chuva caindo, rápidos e
mortais, mas parecendo crianças lentas quando o povo da floresta rompeu as
suas fileiras.
— A senhora não os viu em Alltor, Alteza. — Ele se empertigou, dirigindo-se
a ela formalmente. — Minha Rainha, como Senhor da Batalha eu lhe digo que é
somente dessa maneira que Varinshold estará em nossas mãos antes do fim do
ano.
— Pelo Pai — sussurrou Reva, trazendo-o de volta ao presente.
Ela estava na amurada quando o navio dobrou o promontório e avistaram
Varinshold. Por um momento Vaelin teve certeza de que haviam navegado para
libertar apenas uma ruína, o quadrante sul inteiro aparentemente nada mais do
que um aglomerado de tijolos empilhados e madeiras enegrecidas. No entanto,
ao se aproximarem, ele começou a discernir construções familiares ainda de pé
em meio aos escombros: as casas dos mercadores que davam para o porto, a ala
norte do palácio que mal podia ser vista em meio à neblina matutina que se
dissipava e, no centro, a silhueta escura da Fortaleza Negra, onde Vaelin esperava
que os Aspectos ainda estivessem vivos.
Reva deu as costas àquele cenário, com o rosto sombrio, e acenou para os
arqueiros acima, que se agacharam de pronto, desaparecendo de vista. O Escudo
vestiu uma cota de malha de elos largos e afivelou o sabre.
— Melhor ficar perto de mim, minha senhora — disse ele a Reva com uma
piscadela. — Irei protegê-la.
Dessa vez ela não riu, a visão da cidade aparentemente lhe privando do
humor.
— São eles que precisam de proteção — murmurou ela, indicando com a
cabeça os volarianos que agora estavam visíveis no cais. Seu rosto ficou tenso,
ela franziu a testa e fixou o olhar. Em qualquer outra mulher de sua idade aquilo
poderia ser interpretado como mau humor, mas Vaelin sabia que era a expressão
que ela exibira durante o cerco, a expressão que muitos volarianos viram em
seus últimos segundos de vida.
Ele colocou a mão no ombro de Reva e ela a apertou antes de se afastar e ir
para a proa. Os homens escolhidos de Nortah estavam subindo para o convés,
trajando equipamentos volarianos, o seu irmão se passando por um convincente
comandante de batalhão de Espadas Livres ao colocá-los em formação. Ele seria
o primeiro a descer a rampa para trocar saudações com qualquer volariano
graduado que aparecesse para recebê-los, antes de matá-lo e liderar a investida
contra a escolta dele, enquanto os arqueiros cumbraelinos despejavam uma
chuva mortal sobre todos os outros.
As velas foram ajustadas quando se aproximaram da entrada do porto, tudo
em silêncio para evitar que os que se encontravam em terra se perguntassem por
que podiam ouvir vozes meldeneanas num navio volariano. Vaelin via com mais
clareza a comitiva de recepção, fileiras precisamente alinhadas de Espadas
Livres parados atrás de um único oficial, com sorte o comandante volariano mais
graduado da cidade. Uma visão animadora, uma vez que provavelmente seria
aquele homem quem cumprimentaria Nortah e, caso não fosse, era quase certo
que morresse na chuva de flechas. À esquerda havia uma figura alta montada
num cavalo de guerra, o longo cabelo escuro preso para trás, deixando visível o
belo rosto. Ly rna dera ordens para que Darnel fosse capturado vivo se possível,
ansiosa para extrair quaisquer informações que ele tivesse a respeito dos planos
volarianos, mas Vaelin não achava que as chances do homem seriam boas
quando a Guarda do Reino desembarcasse. Ele teria de pedir ao Escudo para
tirá-lo de lá…
Vaelin empertigou-se quando o cavalo de Darnel começou a empinar de
repente e derrubou o dono da sela, escoiceando com os cascos. Por um segundo
tudo se transformou em confusão quando o cavalo enlouqueceu, atropelou
homens e disparou para longe, e então ele viu o jovem correndo na direção de
Darnel, um brilho de aço na mão.
Alucius!
Ele viu tudo, de pé e impotente conforme o navio se aproximava da costa. Viu
a espada de Darnel cortar o peito de Alucius, viu uma figura alta e familiar
empalar Darnel com o cravo que usava no lugar da mão, viu o comandante
volariano reunir seus homens em resposta.
— Antesh! — gritou Vaelin, colocando as mãos em volta da boca para que
sua voz chegasse às plataformas. A cabeça do Lorde Arqueiro surgiu sobre a
beirada da plataforma e Vaelin apontou para o cais. — Matem todos!
Reva apareceu ao seu lado.
— O que houve?
— Esqueça o plano — disse ele, passando a mão sobre o ombro para sacar a
espada, o cais agora a não mais do que três metros. — Diga a Nortah para
desembarcar com os homens e começar a matar.
Ele subiu na amurada, vendo as flechas cortarem o ar, volarianos tombando
às dezenas, Al Hestian visível em meio à confusão, agachado sobre o corpo do
filho para protegê-lo. Vaelin fez uma última inspeção no cais e saltou da
amurada, aterrissando com força e rolando para absorver o impacto. Ele correu
na direção de Al Hestian e viu seu caminho bloqueado por um aglomerado de
Espadas Livres, que usavam os corpos dos companheiros como escudos enquanto
recuavam sob as ordens de um sargento veterano. Vaelin abriu caminho por
entre eles com a espada, segurando a arma com as duas mãos ao desferir os
golpes, e dois volarianos tombaram um depois do outro, o sargento veterano
cravejado no peito e no pescoço por várias flechas, os outros tentando fugir, mas
caindo em seguida sob a chuva mortífera.
Vaelin continuou correndo, matando qualquer volariano que tentasse lhe
barrar o caminho. A espada cortava e reluzia com toda aquela graciosidade
natural e terrível que ele pensara ter perdido, bloqueando e matando enquanto se
movia instintivamente. Talvez nunca tenha sido a canção, pensou ele
sombriamente, esquivando-se de uma estocada de um Espada Livre, movendo-
se para trás dele e abrindo a sua nuca. Não é preciso uma canção para ser um
matador.
Ele avistou Al Hestian adiante, ainda agachado sobre Alucius, e um grupo de
volarianos correndo em sua direção. Algo zuniu pelo ouvido de Vaelin, e o
volariano que vinha à frente caiu morto com uma flecha cravada no peitoral.
Vaelin olhou para trás e viu Reva disparando flechas com o seu arco belamente
entalhado com uma velocidade e precisão que ele sabia que jamais igualaria.
Correu até Al Hestian, vendo mais dois Espadas Livres tombarem com as flechas
de Reva. Outro se aproximou o suficiente para golpear o antigo Senhor da
Batalha. Vaelin saltou, estendendo a lâmina para bloquear o golpe, e esmurrou o
rosto do homem. O volariano cambaleou, ergueu a espada curta para um
contragolpe, e então jogou a cabeça para trás e tombou quando uma das flechas
de Reva encontrou seu olho.
— Alucius! — Vaelin empurrou Al Hestian de lado e agachou-se ao lado do
poeta, passando os olhos do ferimento terrível até seu rosto, cujas feições
estavam lívidas, os olhos semicerrados. Reva agachou-se ao seu lado, tocando o
rosto de Alucius e dando um suspiro de pesar.
— Beberrão — sussurrou ela.
— Artesão! — gritou Vaelin, levantando-se e olhando para o mar. — Ele está
no terceiro navio com os outros dotados…
— Vaelin — disse ela, agarrando o seu braço. — Ele morreu.
Vaelin ficou parado, tirando os olhos do corpo de Alucius quando os seordah
passaram correndo por eles, de ambos os lados, chocando-se com as fileiras de
Espadas Livres reunidas às pressas e as desbaratando. Alguns lutavam, golpeando
com as espadas curtas os fantasmas silenciosos e rápidos demais que os
atacavam, suas lâminas encontrando apenas o ar ao tombarem às dezenas.
Outros fugiam, correndo em meio às ruínas ou pulando do cais, mais dispostos ao
afogamento do que a enfrentar tamanha investida. Aqui e ali era possível ver
Kuritai, que conseguiam acertar um ou dois golpes antes de serem abatidos a
porretadas. Para além da matança, Vaelin podia ver uma formação compacta de
volarianos aumentando no espaço mais aberto próximo do distrito dos armazéns,
fileiras de Varitai alinhando-se com sua precisão espantosa.
— Eles vão recuar para o palácio.
Vaelin virou-se e deu com Lakrhil Al Hestian encarando-o com um olhar
vago sob a testa franzida, a voz embotada e indiferente:
— Há armadilhas de fogo em volta das muralhas. Eles poderiam resistir por
dias.
Ele olhou mais uma vez para Alucius, curvou-se para recolher a espada ainda
presa na mão do poeta e a ergueu na direção da própria garganta. O soco de
Vaelin atingiu o aglomerado de nervos abaixo do nariz de Al Hestian, deixando-o
inconsciente no chão.
— Reúna os seus arqueiros no cais — disse ele a Reva, indicando com a
cabeça as fileiras compactas de Varitai que agora tentavam recuar lutando para
dentro da cidade, enquanto eram atacados continuamente pelos seordah, com
saraivadas de flechas disparadas de seus arcos planos. Apesar da retirada, Vaelin
sabia que aquilo estava longe de acabar; ele podia ver mais formações volarianas
movendo-se pelas ruínas, batalhões assumindo posições no quadrante norte e
mais a oeste. Ele avistou Nortah a pouca distância dali, reunindo os seus
combatentes entre os restos de uma companhia de Espadas Livres, a espada
ensanguentada de uma ponta à outra.
— Vão para o portão norte! — gritou Vaelin ao irmão. — Impeçam-nos de se
reagruparem! Mandarei a Guarda do Reino se juntar a vocês quando atracarem!
Nortah assentiu, e então parou de súbito ao avistar algo mais a leste, rindo e
apontando com a espada avermelhada.
— Talvez não seja necessário, irmão.
Vaelin os ouviu antes de ver, um grande estrépito dissonante de aço contra
pedra. O comandante volariano obviamente também ouvira, pois tentou enviar as
companhias para seu flanco esquerdo, tarde demais. Os cavaleiros adentraram
as fileiras volarianas, espadas longas e maças subindo e descendo enquanto
abriam caminho em meio aos Varitai, dividindo a formação em duas. Os seordah
investiram para completar a destruição, uma névoa fina e vermelha de sangue,
hálito e suor de cavalo erguendo-se para encobrir a carnificina em andamento.
Os Varitai, ao contrário dos Espadas Livres, não sabiam como fugir e lutaram até
o fim.
Vaelin ordenou que Nortah se juntasse aos arqueiros de Reva e corresse para
o palácio.
— Ainda há metade de uma divisão para matar — disse a eles. — Não se
arrisquem, mantenham-nos separados e deixem os arqueiros fazerem seu
trabalho.
Ele esperou a Guarda do Reino desembarcar; os Lobos Corredores foram o
primeiro regimento a chegar, agora comandados por um antigo cabo de quem
Vaelin lembrava-se vagamente da guerra alpirana.
— Mantenham este homem sob vigia — ordenou Vaelin, apontando para o
corpo inconsciente de Al Hestian. Ele deu uma olhada em Alucius, sabendo que
teria de ser ele a contar a Alornis e sentindo-se um covarde por odiar o dever. —
E protejam o corpo deste homem. A Rainha gostará de dizer algumas palavras
quando nós o entregarmos ao fogo.
Vaelin caminhou pelo cenário da derrota dos Varitai, um denso tapete de
corpos cobrindo o cais de ponta a ponta. Um cavaleiro de peito largo montado
num cavalo alto aproximou-se dele a trote, passando por cima de corpos e
quebrando ossos sob os cascos. Ele ergueu a viseira pintada de vermelho que lhe
cobria o rosto, cumprimentando Vaelin com uma risada forçada.
— Que espetáculo, hein, meu senhor?
— Barão. — Vaelin fez uma mesura. — Eu esperava que fosse o senhor.
Um jovem cavaleiro sem elmo levou o seu cavalo para o lado de Banders, o
seu olhar brilhante recaindo sobre Vaelin por um momento antes de passar os
olhos pelo cais com intenso escrutínio.
— Onde ele está? — perguntou o jovem, erguendo uma espada longa coberta
de sangue.
— Arendil, meu neto — explicou Banders a Vaelin. — Está ansioso para
encontrar Lorde Darnel.
— Lá atrás, jovem senhor. — Vaelin apontou por sobre o ombro. — Bem
morto, receio.
O jovem cavaleiro curvou-se na sela, abaixando o braço da espada. O rosto
revelava tanto alívio quanto desapontamento.
— Bem, pelo menos acabou. — Ele se animou ao avistar um grupo de
pessoas que se aproximava correndo pela Travessa do Portão, erguendo a mão
num aceno de boas-vindas. Vaelin a princípio pensou que fossem alguns dos
combatentes de Nortah, mas logo percebeu que eram uma mistura ainda mais
incomum, variando bastante em idade e vestimentas, incluindo uma garota de
não mais de dezesseis anos, uma lonak de estatura impressionante… e um jovem
musculoso com uma lâmina da Ordem.
Frentis olhou para o irmão enquanto se aproximava, com um leve sorriso nos
lábios. Vaelin parou a alguns metros de distância, passando os olhos por um
homem que era tanto familiar quanto estranho. Seu corpo era ainda mais
impressionante agora, poderoso e, notou Vaelin, sem cicatrizes, a julgar pela pele
visível através da camisa rasgada. O rosto também perdera a suavidade jovial de
que se lembrava, e havia linhas rígidas se formando em volta da boca e dos
olhos. Dessa vez Vaelin ficou grato pela ausência da canção, pois não sabia se
queria saber o que aqueles olhos haviam visto.
— Ouvi dizer que você tinha morrido.
O sorriso de Frentis alargou-se.
— Já eu sabia que você não podia ter morrido.
Ao ver o afeto evidente e genuíno do irmão, Vaelin sentiu a sua tristeza ficar
ainda maior.
— Exijo sua espada, irmão — disse ele, estendendo a mão.
O sorriso de Frentis desapareceu lentamente e ele olhou para as pessoas que o
ladeavam antes de assentir, avançando para oferecer o punho da espada. Vaelin
pegou a arma e fez sinal para o novo comandante dos Lobos Corredores se
aproximar.
— Este homem é obrigado pela Palavra da Rainha a responder pelo
assassinato do Rei Malcius — disse ele. — Ele será agrilhoado e confinado para
aguardar o julgamento de Sua Alteza.
P ART E II
É um erro singular pensar no escravo como humano por completo. A liberdade é
um privilégio proporcionado pela excelência de nossa linhagem como verdadeiros
cidadãos volarianos. Em comparação, a posição de escravo, adquirida ao se
nascer de pais escravizados, por derrota justa na guerra ou por uma evidente falta
de diligência e inteligência, não é meramente o construto artificial da sociedade, é
o reflexo preciso de uma ordem natural. Portanto, conclui-se daí que tentativas de
perturbar essa ordem, por meio de políticas equivocadas ou até mesmo por uma
total rebelião, são sempre fadadas ao fracasso.
Ao contrário de minha primeira viagem a bordo deste navio, desta vez foi-me
fornecida uma cabine, outrora ocupada pelo imediato que perecera na Batalha
dos Dentes. O capitão anunciou em voz alta à sua tripulação maltrapilha que ainda
não encontrara um substituto à altura e que eu poderia muito bem ficar com ela,
uma vez que nenhum daqueles cães merecia a honra. Entretanto, a agradável
perspectiva de conforto a bordo foi diminuída por sua insistência para que eu
dividisse o espaço com a minha antiga dona.
— Ela é sua prisioneira, escriba — dissera o capitão. — Você a vigia.
— Para quê? — perguntei, gesticulando para o oceano à nossa volta. — Diga-
me, para onde ela escaparia?
— Ela pode danificar o navio — respondeu ele, encolhendo os ombros. —
Pode se atirar a um tubarão de passagem. Seja como for, ela é sua
responsabilidade, e não tenho mãos que possa dispensar para vigiá-la.
— É uma cama pequena — observou ela quando a porta da cabine foi batida
às nossas costas. — De qualquer forma, não me importo em dividi-la.
Apontei para um canto da cabine.
— Seu lugar é ali, senhora. Se ficar em silêncio, talvez eu lhe dê um cobertor.
— Senão o quê? — perguntou ela, sentando-se de modo enfático no catre
estreito. — Vai me chicotear? Curvar-me à sua vontade com torturas cruéis?
Ela sorriu e eu lhe dei as costas, indo até uma mesinha de mapas embutida na
madeira abaixo da portinhola.
— Há uma dúzia de homens neste navio que lhe aplicarão de bom grado toda a
punição que for necessária — falei, enfiando a mão em minha bolsa e tirando de lá
o primeiro pergaminho que encontrei.
— Não duvido — concordou ela. — Você assistirá? Meu querido esposo
gostava de ver quando as escravas eram chicoteadas. Ele costumava dar prazer a
si mesmo enquanto olhava. Fará o mesmo, meu senhor?
Suspirei, engolindo uma resposta e desenrolando o pergaminho. Catálogo
Ilustrado da Cerâmica Volariana, e as letras precisas porém demasiado floreadas
do Irmão Harlick me fizeram soltar um grunhido jocoso. Até a letra do homem é
pomposa. Embora não pudesse fingir possuir qualquer apreço pelo irmão, eu tinha
de admitir que Harlick era um excelente desenhista, as ilustrações dotadas de uma
exatidão impecável, a primeira retratando a cena de uma caçada num vaso de uns
1.500 anos, onde lanceiros nus perseguiam um veado por uma floresta de
pinheiros.
— Cerâmica — disse Fornella, olhando por sobre o meu ombro. — Acha que
as origens do Aliado espreitam em potes, meu senhor?
Não tirei os olhos do pergaminho.
— Quando se estuda uma era sem escrita, ilustrações decorativas podem ser
muito informativas. Ficarei grato se puder me sugerir outro caminho.
— Quão grato? — perguntou ela, inclinando-se para mais perto, seu hálito
suave na minha orelha.
Apenas sacudi a cabeça e voltei ao pergaminho, e ela riu e se afastou.
— Você realmente não tem o menor interesse em mulheres, não é?
— Meu interesse em mulheres varia de acordo com a mulher em questão. —
Desenrolei ainda mais o pergaminho e encontrei mais cenas de caça, algumas
imagens de adoração ritualística, vários deuses e criaturas de aspecto bizarro.
— Eu posso ajudar — disse Fornella. — Eu… gostaria de ajudar.
Eu me virei e vi uma expressão cautelosa porém sincera em seu rosto.
— Por quê?
— Temos uma longa viagem pela frente. E, por mais que você suspeite de meus
motivos, estou ansiosa para ver esta missão ser bem-sucedida.
Olhei mais uma vez para a imagem no pergaminho, farristas nus dançando
diante de uma grande criatura simiesca de boca aberta e vomitando fogo.
Fragmento de jarro kethiano, dizia a inscrição abaixo da imagem. Pré-imperial.
— Quando exatamente os volarianos abandonaram os seus deuses? —
perguntei a ela.
— Isso ocorreu muito tempo antes de eu nascer — disse Fornella —, muito tempo
antes de minha mãe nascer, na verdade. Mas ela sempre foi uma mulher estudiosa
e determinada a me fazer aprender a história de nosso glorioso império.
Havíamos ido para o convés e nos sentado perto da proa, e enquanto ela
falava eu escrevia as minhas notas. O capitão grunhira algo quando aparecemos,
mas não fez objeções e a tripulação parecia nos ignorar de bom grado, exceto por
alguns olhares hostis na direção de Fornella.
— O império pode falar com uma única língua agora — prosseguiu ela — e
obedecer aos decretos do Conselho, sejam eles cidadãos da maior cidade ou do
pântano mais imundo. Mas não foi sempre assim.
— Sei que o seu império foi forjado na guerra — falei. — Em muitas guerras,
na verdade, que duraram cerca de três séculos.
— De fato, mas embora a Era do Forjamento tenha nos deixado com um
império, a verdadeira união nos escapou durante séculos. Havia moedas
diferentes demais com valores diferentes demais. Idiomas demais falados por
línguas demais. E deuses em demasia. Minha mãe dizia que homens lutavam e
matavam por dinheiro, mas que morriam apenas pelos seus deuses. Para o império
durar, precisávamos desse tipo de lealdade, imaculada por qualquer distração
divina. Então, houve mais guerras, chamadas de Guerras da Perseguição por
alguns, mas os historiadores imperiais referem-se ao período inteiro como a
Grande Purificação, uma provação de sangue e torturas de sessenta anos.
Províncias inteiras foram devastadas e povos inteiros fugiram, alguns para as
colinas setentrionais, outros através do oceano para fundar novas nações livres da
perseguição volariana. Porém, apesar de tudo que perdemos, foi isso que
realmente deu origem ao império, pois foi quando nos tornamos uma nação de
escravocratas.
“Sempre houve escravos, é claro, no coração das terras volarianas, mas agora
havia mais, conquistados por se recusarem a abandonar os seus deuses, vencidos,
subjugados e criados para que gerações posteriores os esquecessem por completo.
Duas coisas são necessárias para se reunir tamanho recurso: grande organização
e imensa crueldade. Penso com frequência que foram esses traços em particular
que o Aliado achou tão atraentes. Afinal, devemos ter sido escolhidos por alguma
razão.”
— Sabe quando foi que ele se revelou?
— Não sei se o Aliado é homem, ou mesmo se é verdadeiramente humano.
Minha mãe falava de uma época, quase quatro séculos atrás, quando o império
estava fortalecido por sua união. Guerras com os alpiranos não eram novidade,
mas adquiriram uma nova força, as batalhas aumentaram de tamanho, as
campanhas duravam anos em vez de meses, embora a vitória ainda nos escapasse.
Os alpiranos finalmente se cansaram de nossos ataques intermináveis e realizaram
um próprio, devastando as províncias meridionais em questão de meses. As crises
têm a tendência de revelar talentos notáveis, e foi assim que um jovem general da
cidade meridional de Mirtesk ganhou notoriedade, um general com uma ideia
revolucionária e os meios para torná-la realidade. Se os nossos escravos podiam
construir as nossas cidades e trabalhar em nossos campos, por que também não
lutar em nossas guerras? E assim, graças ao conhecimento recém-descoberto
desse general, criamos os Varitai e os Kuritai. Por meio de seu gênio tático e uso
prodigioso dos soldados-escravos, o nosso novo general conquistou fama eterna ao
repelir os alpiranos. Ele foi louvado de uma ponta a outra do império, estátuas
foram esculpidas em sua homenagem, épicos compostos pelos nossos melhores
eruditos para documentar a sua extraordinária vida.
Fornella fez uma pausa, seus lábios formando um sorriso enviesado, embora os
olhos revelassem uma tristeza que eu ainda não tinha visto.
— Contudo, não era uma vida normal. Pois o nosso jovem general permanecia
jovem. Enquanto os seus companheiros de armas envelheciam e mirravam ao seu
redor, ele permanecia jovem.
— Ele foi o primeiro — disse.
— De fato. O primeiro volariano abençoado com a voz do Aliado, ou, suponho,
o primeiro a quem ele enviou uma de suas criaturas para seduzir. Porém, seus
dons não se limitavam ao segredo de dominar os escravos tão completamente que
eles lutavam e morriam de acordo com as ordens de seus senhores. Não, pois ele
tinha mais a oferecer, o maior de todos os dons. Foi com ele que o Conselho
aprendeu o segredo da vida eterna, por ordem do Aliado, é claro. E, com o tempo,
todos eles se tornaram suas criaturas. O general tornou-se a voz do Aliado no
Conselho, a princípio falando com candura, orientando em vez de ordenar, fazendo
insinuações a respeito da grande tarefa que o Aliado escolhera para o império.
Entretanto, com o passar dos anos, o comportamento do general tornou-se cada
vez mais errático.
“Minha mãe disse que o encontrou uma vez, num banquete realizado em sua
homenagem. Como você pode compreender, a minha família é extremamente rica
e tem um lugar no Conselho desde os primeiros dias do império. Perguntei à minha
mãe como era o general e ela riu. ‘Terrivelmente louco’, disse ela, ‘embora eu
tenha ouvido dizer que sua filha é pior.’ ”
— Sua filha? — perguntei.
Fornella enrolou mais o xale de lã em volta dos ombros, a tristeza
transformando-se numa recordação temerosa.
— Sim, uma filha. Também a encontrei, certa vez. Um encontro foi mais do que
suficiente.
— Eles são como você? O general e a filha dele, eles ainda estão vivos?
— A loucura do general aumentou com o passar dos séculos, sua fome de
vitória sobre os alpiranos tornou-se a obsessão de um louco, resultando numa
derrota calamitosa. O Conselho, que a essa altura era composto inteiramente por
membros que haviam recebido a Bênção, e que foi aconselhado pelos outros
tenentes do Aliado a fornecer uma conclusão à gloriosa carreira do general, fez
uso de seu melhor assassino para que isso fosse providenciado. Porém, se o que a
Rainha diz for verdade, ela pode muito bem ter sucumbido com o Rei Malcius.
— A filha do general? Ela matou o próprio pai?
— Ela tirou a vida de incontáveis pessoas por todo este mundo, meu senhor. Se
tivermos sorte, ela não irá mais nos atormentar. Contudo, cada vez mais acho a
sorte um raro artigo de luxo.
— Sua mãe ainda está viva? Ela também aceitou a bênção do Aliado?
Fornella sacudiu a cabeça, erguendo os olhos para encontrar os meus e
sorrindo com ternura.
— Não. Ela envelheceu e morreu, apesar de eu ter lhe implorado para se
juntar a mim nessa nova era de vida ilimitada. Somente ela sabia a verdadeira
natureza do acordo que havíamos selado, embora ninguém lhe desse ouvidos. Ela
sabia o que atraía o Aliado, se não o que o havia criado.
— E o que é? O que o atrai?
— Poder. Foi como os primeiros foram escolhidos, não os de maior riqueza,
mas aqueles com a maior influência, o maior impacto sobre o Conselho. Já que
acontecia no decorrer de décadas e não de anos, com apenas um sendo escolhido
para receber a sua generosa dádiva a cada doze anos, parecia que a escolha era
aleatória, o capricho de um ser que era o mais próximo de um deus que alguém
poderia ser. Mas minha mãe viveu o bastante para notar o padrão. Cada acordo
selado aumentava o seu domínio sobre nós, cada dádiva concedida nos tornava
ainda mais seus servos.
“Ela disse apenas uma palavra na última vez que pude me aproximar dela,
antes que ela ordenasse que eu fosse proibida de entrar em sua casa. Ela tinha
quase noventa anos, era apenas um pequeno amontoado de ossos e pele numa
cama muito grande. Porém, sua mente nunca definhou e seus olhos eram muito
brilhantes. E, embora só pudesse falar aos sussurros, eu ouvi a palavra,
nitidamente, ainda que na época eu tenha pensado que fosse apenas o último
grasnido de uma velha amargurada.”
Fornella se calou, olhando para o horizonte ao sul onde nuvens carregadas
podiam ver vistas, prenunciando uma noite desconfortável — não que eu
esperasse dormir muito deitado ao lado dela. Notei que agora havia mais fios
grisalhos em seu cabelo ao observá-lo esvoaçar ao vento.
— Apenas uma palavra — disse ela em voz baixa. — “Escrava”.
***
Tal como eu previra, foi difícil encontrar o sono. O mar ficou turbulento com a
chegada da noite. O vento soprava forte, açoitando com chuva o vidro embaçado
da portinhola e uivando pelos incontáveis canais na estrutura do navio. Fornella
estava deitada de costas, sua respiração lenta e regular. Eu estava deitado de lado,
virado para o casco. Eu havia descalçado os meus sapatos, mas fora isso estava
completamente vestido, enquanto ela estava nua, após se despir sem o menor sinal
de embaraço, deitando-se na cama ao meu lado quando lhe dei as costas.
Permanecemos deitados em silêncio por quase uma hora, privados do descanso
pelo vento e pela estranheza de nossas circunstâncias.
— Você me odeia, meu senhor? — perguntou ela por fim.
— O ódio necessita de paixão — respondi.
— Ah, Os Cantos de Ouro e Pó, verso vinte. Não acha um pouco arrogante
citar constantemente a sua própria obra?
— O verso foi tirado de uma antiga ode cantada pelas tribos das montanhas
ocidentais. Como mencionei em minha introdução.
Ela deu uma risada baixa.
— Então eu não inflamo a sua paixão? Não me surpreende, dadas as suas
preferências. Mesmo assim, uma mulher acostumada a ser admirada por homens
não pode evitar se sentir um tanto menosprezada. — Eu a senti se mexer atrás de
mim, virando-se para deitar-se de lado. — Quem era ele? O homem que você
disse que amava?
— Não discutirei isso com você.
Devia haver advertência suficiente em meu tom, pois ela soltou um suspiro
jocoso de frustração antes de persistir.
— Eu posso ter algo para inflamar a sua paixão, pelo menos no que diz respeito
à sua sede por conhecimento. Um pedacinho de informação sobre o Aliado.
Rangi os dentes com força, perguntando-me se eu não a odiava, afinal de
contas. Sentei-me e ao virar me deparei com ela olhando para mim com a cabeça
apoiada no seu travesseiro, a penumbra suficiente para ocultar tudo, exceto o
brilho de seus olhos.
— Então me conte.
— O nome — insistiu ela.
Ergui-me, dando-lhe as costas para pôr as pernas para fora da cama.
— Seliesen Maxtor Aluran — falei.
Eu esperava uma risada, cruel e escarnecedora, mas em vez disso o seu tom
era calmamente pensativo.
— A Esperança do Império Alpirano, morto pelo mesmo homem que destruiu o
exército do meu querido esposo. O meu povo não acredita na ideia de destino. O
conceito de forças invisíveis em ação para moldar as nossas vidas é anátema para
um povo livre de superstições. Mas há momentos em que me pergunto…
Eu a senti mexer-se de novo, sua nudez cálida pressionada contra as minhas
costas, apoiando a cabeça em meu ombro. Não havia desejo no modo como ela se
encostava em mim, pelo menos nenhum que eu pudesse sentir, apenas uma
necessidade de proximidade.
— Meu pesar por sua perda, honorável senhor — disse ela em alpirano formal.
— Meu irmão é o membro há mais tempo em exercício no Alto Conselho
volariano, de modo que ele conhece os planos do Aliado melhor do que a maioria,
e mesmo ele não enxerga a verdadeira natureza desses planos, o seu propósito
derradeiro. Contudo, os servos do Aliado costumam falar sobre um homem, eterno
em anos como nós, mas não escravizado pelo sangue dos dotados. Um homem que
viveu muitas vidas e deu a volta ao mundo mais de uma vez. O Aliado é atraído
por poder, como eu disse, e que maior poder existe do que a derrota da própria
morte?
— Ele procura esse homem?
— De fato, mas jamais o encontrou.
— E ele tem um nome, esse homem eterno?
— Milhares, trocados a cada vida ao ir de nação em nação. Uma das criaturas
do Aliado, a que chamam de Mensageiro, achou o rastro dele há uns quinze anos,
no Reino Unificado. Ele estava se chamando de Erlin.
CAPÍTULO UM
Lyrna
Levou algum tempo para encontrar o seu jardim, uma vez que as ruínas haviam
sido removidas pelos escravos de Darnel para dar espaço às suas ambições
arquitetônicas, deixando somente um contorno de tijolos quebrados e terra à vista
onde antes flores haviam crescido. Estranhamente, o seu banco ainda estava
intacto, ainda que um pouco enegrecido. Ela se sentou para olhar os resquícios
arruinados do refúgio que tanto apreciara e que havia desaparecido. Foi até ali
que ela levara Vaelin aquela noite, ganhando a inimizade dele com as suas
intrigas desajeitadas, mas também aprendendo uma lição com o ocorrido; alguns
olhos sempre viam através da máscara. Também fora ali que ela passara aquelas
horas encantadoras com a Irmã Sherin após libertá-la da Fortaleza Negra, a
gentileza inata e o intelecto estimulante da curandeira servindo em grande parte
para dissipar o ciúme. Ly rna lembrava-se de achar a amizade uma novidade
agradável, ainda que breve, e, quando Sherin zarpou para Linesh, ela parara de ir
até ali. O pátio isolado não passava mais a sensação de um abrigo convidativo:
era apenas um canto vazio num palácio onde uma mulher solitária cuidava de
flores e planos enquanto esperava o pai morrer.
— Lir-nah!
Ela ergueu a cabeça a tempo de ter um vislumbre de uma figura alta vindo a
passos largos em sua direção, antes de o abraço de Davoka lhe tirar o ar dos
pulmões e arrancá-la do banco, seus pés balançando no ar enquanto era
esmagada contra o peito da lonak. Ly rna ouviu as pisadas fortes de botas
acompanhadas por espadas saindo de bainhas.
— Solte a Rainha, selvagem! — rosnou Iltis.
Davoka o ignorou, soltando Ly rna após um aperto esmagador e lhe segurando
a cabeça com as duas mãos. Ela estava sorrindo, algo que Ly rna não conseguia
se lembrar de tê-la visto fazer antes.
— Pensei que tinha perdido você, irmã — disse ela em lonak, passando os
dedos pelo rosto de Ly rna, da fronte até os cachos dourado-avermelhados que
cresciam rapidamente atrás. — Ele disse que você ardeu.
— E ardi. — Ly rna agarrou as mãos da lonak e as beijou, tranquilizando Iltis e
Benten com um aceno de cabeça, e eles embainharam as espadas e afastaram-
se com mesuras e expressões intrigadas. — Ainda ardo, irmã.
Davoka recuou, e certa relutância tensa apareceu em seu olhar antes de falar
mais uma vez, mudando para a língua do Reino com facilidade.
— O Irmão Frentis…
Ly rna lhe deu as costas e Davoka calou-se diante da severidade repentina em
sua expressão. Menções ao famoso Irmão Vermelho haviam sido frequentes
desde que chegara na noite anterior, estando entre as primeiras ditas pelo seu
Senhor da Batalha ao desembarcar nas docas, assim como numa súplica sincera
da Aspecto Elera e num pedido seco de misericórdia do Irmão Sollis. Ela dera a
mesma resposta a cada um deles, a mesma resposta que dava a Davoka agora:
— Minha decisão será anunciada no seu devido tempo.
— Nós lutamos juntos na floresta antes que ela fosse queimada. — prosseguiu
Davoka. — Somos gorin. Ele é meu irmão, assim como você é minha irmã.
As lágrimas vermelhas da volariana, a dor lancinante quando seu cabelo
pegou fogo… Ly rna fechou os olhos diante das lembranças, sentindo a brisa na
pele, a pele curada e sem cicatrizes. Curada?, perguntou a si mesma. É como
estou?
Na noite anterior, Ly rna presenciara Alucius ser entregue ao fogo. Ela dissera
algumas palavras breves, formalmente nomeando-o Espada do Reino, o seu
emblema uma pena e uma taça de vinho, pois sabia que o teria feito rir. A
Senhora Alornis adiantara-se para falar também, seu rosto pálido e inexpressivo,
mas com lágrimas escorrendo dos olhos quando o seu irmão colocou mãos
consoladoras em seus ombros.
— Alucius Al Hestian… — começara ela, vacilara e então continuara com a
voz embargada — … será chamado de… herói por muitos. Um poeta por outros
e… — ela parou para dar um leve sorriso — afeiçoado demais ao vinho por
alguns. Irei chamá-lo sempre… simplesmente de meu amigo.
Lakrhil Al Hestian tivera permissão para comparecer, assistindo com um
olhar vazio e calado em seus grilhões. Ele não fez nenhum discurso e olhou
fixamente com olhos secos as chamas se erguerem. Ly rna permitiu que ele
permanecesse até a pira virar brasas e então ordenou que fosse levado de volta
às masmorras, agora repletas de outros traidores aguardando a justiça da Rainha.
Justiça. Ela vira a fumaça envolver a pira, ocultando o rosto de Alucius e lhe
poupando da visão das chamas consumindo a sua carne. Que justiça eu teria lhe
mostrado, velho amigo? Espião, traidor do Reino, e agora herói da libertação de
Varinshold. Meu pai teria feito um espetáculo de clemência, teria lhe coberto de
títulos e ouro e então, após um intervalo decente, iria se assegurar de que um de
seus talentos ocultos providenciasse uma morte apropriadamente acidental. Eu
teria sido muito mais cruel, Alucius. Eu teria feito você me seguir, testemunhar
minha aplicação da justiça plena contra os nossos inimigos e, por isso, sei que
você teria me odiado.
As nuvens no alto deviam ter se aberto, pois Ly rna sentiu uma onda de calor
na cabeça, o seu cabelo recém-crescido sem dúvida uma bela visão ao reluzir, a
sensação agradável e livre da agonia causadora de lágrimas da qual se lembrava
de seus dias a bordo do Sabre do Mar. Curada?, perguntou-se novamente. É
possível refazer a máscara, mas o rosto por baixo dela continua o mesmo.
Ela abriu os olhos e seu olhar recaiu sobre algo, uma florzinha amarela que
brotava por entre duas lajes estilhaçadas. Ly rna agachou-se e estendeu a mão
para tocar as pétalas.
— Invernália — disse ela. — Sempre o sinal mais claro da mudança das
estações. O gelo e a neve estão chegando, irmã, trazendo privações, mas
também descanso, pois frota alguma cruzará o oceano enquanto ocorrerem as
tempestades de inverno.
— Acha que eles virão de novo? — perguntou Davoka. — Quando o oceano
ficar calmo?
— Tenho certeza que sim. Esta guerra está longe de terminar.
— Então você precisará de cada espada, de cada aliado.
Ly rna olhou de novo para a invernália, resistindo à tentação de arrancá-la e
decidindo plantar um novo jardim ali no seu devido tempo, um sem muros. Ela
se levantou, olhou Davoka nos olhos e falou em lonak formal:
— Serva da Montanha, preciso de sua lança. Irá empunhá-la a serviço da
minha causa? Pense bem antes de responder, pois a nossa estrada é longa e não
prometo um retorno à Montanha.
A resposta de Davoka não revelou qualquer sinal de hesitação.
— A minha lança é sua, irmã. Agora e sempre.
Ly rna agradeceu com um aceno de cabeça e fez sinal para que Iltis e Benten
se aproximassem.
— Então é melhor você conhecer os seus irmãos. Tente não matar Lorde Iltis.
O jeito dele pode ser um tanto provocador.
***
Karlin Al Jervin estava o mais empertigado que suas costas curvadas permitiam.
Ly rna lembrava-se dele como um sujeito alegre e barrigudo com uma careca
reluzente, menos inclinado à subserviência do que muitos de seus companheiros
nobres, e alguém que não se demorava na corte por mais tempo do que exigiam
seus negócios. Contudo, a escravidão e o trabalho forçado pareciam ter lhe
privado tanto do humor quanto da barriga. Suas faces e olhos estavam encovados,
embora encarasse o olhar de Ly rna com admirável compostura. Sua filha, no
entanto, estava menos acostumada à realeza e se remexia diante do trono, a uma
distância considerável do pai. A Senhora Illian vestia uma roupa de caçador,
calça de zibelina e uma blusa leve de algodão, manchada de marrom e verde
para ocultá-la na floresta, o cabelo cortado de modo a não lhe cair nos olhos.
Havia uma adaga embainhada presa ao seu tornozelo e outra em seu pulso.
Apesar do traje marcial, ela ainda parecia muito jovem ao se contorcer sob o
escrutínio dos presentes e evitar os olhares do pai. Atrás dela se encontravam o
Irmão Comandante Sollis e Davoka, enquanto Lorde Al Jervin estava sozinho.
Ly rna descartara depressa a monstruosidade extravagante que Darnel
chamara de trono em favor de uma cadeira confortável de encosto reto
recuperada de uma das casas de mercadores abandonadas, e sentiu-se grata pela
profundidade da almofada sob o traseiro real. Ela vinha ouvindo petições havia
cerca de quatro horas e estava estupefata com a pequenez reinante das pessoas
afortunadas o suficiente para terem sobrevivido a tão selvagem ocupação. As
pessoas apareciam com reclamações de roubo contra vizinhos desaparecidos,
reivindicações de herança por propriedade que agora eram apenas cinzas, apelos
para restituição de posições de nobreza e um sem-número de outras trivialidades
que esgotava a sua paciência com o passar das horas. Porém, nem todas as
reivindicações eram triviais ou resolvidas com facilidade.
— Irmão Sollis — disse Ly rna. — Você precisa admitir que Lorde Al Jervin
levanta várias questões válidas. Tudo isso é muito incomum.
— Perdoe-me, Alteza — retorquiu o Irmão Comandante com sua costumeira
voz rascante —, mas duvido que qualquer coisa neste Reino possa agora ser
chamada de “comum”.
— Meu conhecimento a respeito da história de sua Ordem não é dos mais
vastos, mas creio que nunca houve uma irmã da Sexta Ordem. E os recrutas
geralmente não são aceitos muito mais novos? As circunstâncias podem ter nos
forçado a esquecer alguns costumes em face das necessidades, mas esse é de
fato um passo radical.
— Há prescrições nas doutrinas da Ordem que permitem recrutas mais
velhos, Alteza. Mestre Rensial, por exemplo, veio a nós como um ex-capitão da
cavalaria da Guarda do Reino. Quanto ao gênero da Senhora Illian, a guerra
forneceu amplas evidências de que os nossos costumes a esse respeito podem
precisar ser modificados.
— As nossas leis serão deixadas de lado agora, Alteza? — perguntou Al
Jervin, mais uma vez olhando furioso para Illian. — A Sexta Ordem não pode
simplesmente levar a filha de um homem.
— Eles não estão me levando! — retorquiu Illian com veemência, e então
corou e baixou os olhos quando Ly rna virou-se para ela. — Perdão, Alteza.
— Senhora Illian, é de fato seu desejo juntar-se à Sexta Ordem? — perguntou
Ly rna.
A garota respirou fundo e ergueu a cabeça, falando num tom claro e
determinado:
— É, Alteza.
— Apesar das objeções de seu pai? De seus medos fundamentados quanto à
sua segurança?
Illian olhou para Al Jervin com uma expressão pesarosa no rosto, a voz baixa:
— Eu amo meu pai, Alteza. Pensei por tanto tempo que ele estava morto que
encontrá-lo vivo quando a cidade caiu foi maravilhoso. Mas não sou a filha que
ele perdeu, nem posso ser. Fui moldada pela guerra em outra coisa, um papel
que, acredito, me foi conferido pelos Finados.
— Ela é uma criança! — exclamou Al Jervin, seu rosto ficando vermelho. —
Pelas leis deste Reino, a posição e a condição dela são decididas por mim até a
sua maioridade. — Ele estremeceu um pouco quando Ly rna lhe olhou nos olhos,
recusando-se a desviar o olhar, mas acrescentando “Alteza” com um sussurro
forçado.
— A Senhora Davoka me contou muitas coisas sobre a sua filha, meu senhor
— disse Ly rna. — Ao que tudo indica, ela serviu com grande distinção na luta
pela libertação deste Reino. Ela se encontra diante de mim agora como a autora
de muitas mortes merecidas de nossos inimigos. De acordo com as doutrinas da
Sexta Ordem, uma súdita de bom caráter se responsabiliza por ela e o Irmão
Sollis está disposto aceitá-la, deixando de lado costumes antigos e os testes usuais
em reconhecimento de suas habilidades e coragem evidentes. Como uma irmã,
ela sem dúvida realizará serviços ainda maiores ao Reino e à Fé. Enquanto que
você, meu senhor, aparentemente passou a guerra inteira entalhando objetos de
arte fátuos para o traidor Darnel.
Al Jervin retraiu-se, mas conseguiu controlar o tom da voz ao responder:
— Ouvi rumores de que Vossa Alteza também tinha sido feita escrava pelos
nossos inimigos. Sendo assim, tenho certeza de que a senhora conhece bem a
vergonha de realizar um ato odioso para sobreviver.
Iltis empertigou-se, deu um passo adiante e falou num tom ameaçador.
— Cuidado com a língua, meu senhor.
Al Jervin rangeu os dentes e fez uma pausa antes de continuar, com a voz
rouca e quase embargada:
— Alteza, não me sobrou casa, nem riquezas, nem orgulho. Minha filha é
tudo o que me resta. Eu peço que a senhora siga suas leis e evite que ela siga esse
caminho insensato.
Isso não é orgulho ferido, concluiu Ly rna. Ele simplesmente quer mantê-la
viva. Um bom homem, e um construtor com habilidades que serão muito
necessárias quando alcançarmos a paz. Ela olhou de novo para Illian,
observando-a revelar dentes brancos perfeitos ao sorrir para um aceno de
cabeça encorajador dado por Davoka. Bela, mas um falcão também é belo, e por
ora tenho mais necessidade de falcões do que de construtores.
— Senhora Illian — disse Ly rna, gesticulando para um dos três escribas
presentes para registrar formalmente um Pronunciamento Real. — Pela Palavra
da Rainha, eu retiro a sua posição e revogo a autoridade de seu pai. Como súdita
livre deste Reino, a senhora pode escolher qualquer caminho que por lei lhe
esteja aberto.
***
Lakrhil Al Hestian não se levantou quando Ly rna entrou em sua cela, meramente
olhando para ela com olhos vazios, encolhido num canto sobre a pedra nua, com
grilhões nos punhos e nos tornozelos. Iltis soltou um grunhido irritado pela
grosseria, mas Ly rna o conteve com um aceno de mão.
— Vigie a porta, meu senhor, por favor.
Iltis arreganhou os dentes para Al Hestian num rosnado de desprezo antes de
sair da cela, deixando a pesada porta entreaberta e posicionando-se de costas
para a entrada.
— Eles chamam esta cela de Canto do Traidor — disse Ly rna a Al Hestian,
indo até a única janela, uma fenda estreita na grossa parede de pedra através da
qual era possível vislumbrar um pedaço do céu. Havia marcas indistintas na
pedra, alguma inscrição antiga riscada muito tempo atrás por mãos
desesperadas. — Ocupada pela última vez por Artis Al Sendahl na véspera de sua
execução — prosseguiu ela, virando-se para Al Hestian. — O fato de os nossos
inimigos terem deixado nossas masmorras intactas apesar de toda a destruição
que causaram nesta cidade diz muito sobre eles.
Al Hestian encolheu discretamente os ombros, seus grilhões provocando um
retinido abafado.
— Artis Al Sendahl não teve um julgamento — continuou Ly rna. —
Simplesmente acordou uma manhã e encontrou dois guardas em sua porta
segurando uma Ordem do Rei. Uma semana depois ele estava morto.
— Enquanto me são concedidos apenas dois dias — disse Al Hestian, sua voz
rouca e apática. — E também nenhum julgamento.
— Então que este seja o seu julgamento, meu senhor. — Ly rna ergueu as
mãos, gesticulando para as paredes ao redor. — E eu tanto testemunha quanto
juíza, ansiosa pelo seu testemunho.
— Meu testemunho é redundante. Os meus motivos evidentes. — Ele desviou
o olhar de Ly rna e apoiou a cabeça na parede. — Não farei qualquer defesa ou
apelo por misericórdia, exceto para que a questão seja resolvida o mais depressa
possível.
Ly rna conhecia aquele homem desde a infância e nunca sentira por ele
qualquer afeição, talvez por encontrar um reflexo nítido demais em sua franca
ambição. Porém, seus filhos, com quem ela brincara quando criança, nunca
deixaram de amá-lo, apesar de todos os seus defeitos.
— Alucius será honrado para sempre neste Reino — disse ela. — Sua casa
livrou-se em parte da desonra pelo sacrifício dele.
— Um filho morto não precisa de honra. E eu tenho dois para encarar no
Além se a senhora me fizer o favor de me mandar para lá.
O olhar de Ly rna recaiu mais uma vez sobre as marcas na parede, onde
encontrou duas palavras legíveis, suficientes para adivinhar o significado do resto.
A morte é apenas uma passagem para o Além… O Catecismo da Fé, sobre o qual
tanto havia sido construído, e também destruído. Para ela sempre foram palavras
vazias que não lhe interessavam, pois havia muita sabedoria genuína para ser
lida.
— Não tenho misericórdia para o senhor — disse ela. — Apenas mais
punições. Lorde Iltis!
O Lorde Protetor retornou, permanecendo em prontidão quando ela apontou
para os grilhões nos tornozelos de Al Hestian.
— Remova-os e traga-o.
Os antigos cavaleiros e caçadores de Darnel estavam no pátio do lado de fora
das galerias cavernosas que serviam de masmorras para a cidade. Eram quase
quarenta homens, de quem haviam sido tiradas todas as armaduras e bens,
exceto por uma roupa esfarrapada, cercados por todos os lados pela Guarda do
Norte de Lorde Adal, escolhidos pela força de sua disciplina; a Guarda do Reino
provavelmente cometeria um massacre se ficasse diante daqueles que os haviam
traído no primeiro encontro fatídico com os volarianos. Ly rna conduziu Al
Hestian até um passadiço com vista para os prisioneiros reunidos, notando que a
maioria estava intimidada demais para encará-la, embora alguns olhassem para
cima numa súplica silenciosa.
— Creio que o senhor conhece esses homens, não? — perguntou Ly rna.
Al Hestian olhou para os prisioneiros, sua máscara impassível inalterada.
— Não bem o suficiente para lamentar suas mortes, se for a intenção de
Vossa Alteza me fazer testemunhar o seu assassinato.
Ly rna afastou-se dele e aproximou-se da beirada do passadiço, erguendo a
voz.
— Vocês todos são culpados de traição e merecem ser executados
sumariamente. Muitos sem dúvida alegarão lealdade em sua defesa, que
prestaram serviços devido a um juramento que os prendia por toda a vida. Digo-
lhes agora que isso não é uma defesa. Um juramento feito a um louco traiçoeiro
não tem valor algum e é abandonado por homens de discernimento ou de
verdadeira honra cavalheiresca. Vocês provaram que são desprovidos de ambas
as coisas. — Ela fez uma pausa e olhou para Al Hestian, que encontrou o seu
olhar com uma compreensão sombria. — Contudo — prosseguiu Ly rna —, a Fé
nos ensina o valor do perdão para atos pelos quais haja verdadeiro
arrependimento. E este Reino necessita de todas as mãos capazes de erguer uma
espada. Somente por esses motivos eu lhes ofereço uma oportunidade de fazer
um novo juramento, um juramento à sua Rainha. Jurem que me servirão e eu
pouparei suas vidas. Mas saibam que sua sentença não será comutada. Vocês
estão condenados e permanecerão condenados até o dia em que a batalha lhes
tomar a vida. Vocês serão a Companhia Morta. Se alguém não deseja fazer esse
juramento, que fale agora.
Ela aguardou, vendo-os estremecer e se curvarem de alívio. Um homem, um
sujeito grande de peito largo e porte de cavaleiro, chorava abertamente,
enquanto ao seu lado um homem magro, provavelmente um caçador,
estremecia, com urina lhe escorrendo pelas pernas. Ly rna esperou por um
minuto inteiro, mas nenhuma voz foi erguida.
— Meu senhor. — Ela se virou para Al Hestian, gesticulando para os homens
abaixo. — Sua companhia o aguarda, caso a aceite.
Lakrhil Al Hestian continuou impassível durante algum tempo, e então
respondeu com uma mesura discreta.
— Muito bem — disse Ly rna. — Além desses desgraçados, nossas patrulhas
relataram que o interior encontra-se tristemente apinhado de criminosos, uma
escória que está atacando aqueles que fogem dos volarianos. Estupradores e
assassinos serão executados, é claro, mas o restante eu enviarei ao senhor. — Ela
se aproximou dele e falou em voz baixa: — O senhor está vivo graças aos seus
filhos. E saiba que não serei tão bondosa quanto meu pai caso o senhor traia este
Reino de novo.
Ly rna voltou para o palácio ao entardecer, após passar o dia entre os refugiados
recém-chegados, onde encontrou a mistura usual de nobres esfarrapados e
plebeus desalojados, cada um com o próprio épico de infortúnios e
sobrevivência. No entanto, assim como em Warnsclave, havia pouquíssimas
crianças, e essas em sua maioria eram órfãs. Ela ordenou que fossem reunidas e
levadas para os aposentos designados para as crianças aos cuidados do Irmão
Innis, onde passou o resto da noite.
Era fantástico observar como o ânimo das crianças havia retornado tão
depressa, enquanto corriam à sua volta, rindo e brincando ruidosamente, embora
houvesse algumas sentadas separadas das outras, com olhos assombrados por
horrores que não as abandonavam. Ly rna passou a maior parte do tempo com as
crianças silenciosas, falando com gentileza e tentando fazer com que se
expressassem, geralmente apenas com mínimo sucesso, apesar de um garotinho
ter subido em seu colo e adormecido de imediato no momento em que ela abriu
os braços para ele. Ly rna permaneceu sentada com ele à medida que a noite
caía e as outras crianças iam para a cama, e acordou em algum momento após a
meia-noite com uma sacudida gentil de Murel.
— A Senhora Davoka pediu a sua presença no pátio, Alteza.
Ly rna deitou o menino com cuidado numa das muitas camas vazias.
— Onde está Orena? — perguntou ela enquanto atravessavam os corredores.
— Ela pediu que a perdoasse, Alteza. A visão das crianças sempre a perturba,
de modo que tomei o seu lugar.
Corações gentis geralmente ficam bem escondidos, pensou Ly rna.
No pátio ela encontrou Davoka abraçando uma figura esguia ao lado de um
pônei robusto e sem sela, ladeada por dois guerreiros eorhil que assistiam com
óbvia desconfiança.
— Lirhnah! — gritou-lhe Davoka. — Minha outra irmã veio com a palavra da
Mahlessa.
Kiral não demonstrava nenhum vestígio da confusão deixada pela cura da
Mahlessa sob a Montanha, sorrindo timidamente quando Ly rna se aproximou. A
cicatriz havia curado bem, mas ainda era uma visão sinistra, uma linha funda que
ia do queixo à testa, provocando lembranças desagradáveis da noite em que
Ly rna lhe dera a marca.
— Serva da Montanha — cumprimentou Ly rna em lonak.
— Rainha. — Kiral a surpreendeu com um abraço caloroso. — E também
irmã.
— Qual é a mensagem da Mahlessa?
— Ela não envia mensagem alguma, Rainha, apenas dois presentes. — Kiral
ergueu um pequeno frasco de vidro contendo um líquido viscoso e escuro. — Ela
acredita que isso será de serventia para você, e passou para mim o conhecimento
para produzir mais.
Ly rna hesitou antes de aceitar o frasco, lembrando-se dos gritos da coisa que
possuíra aquela garota quando uma única gota tocara a sua pele.
— Como deve ser usado? — perguntou ela.
— Ela disse que é uma chave para grilhões invisíveis e que a senhora saberia
como melhor usá-lo.
Ly rna entregou o frasco a Murel com estritas instruções para que fosse
mantido a salvo e que não fosse aberto sob nenhuma condição.
— E o outro presente? — perguntou ela a Kiral.
— Apenas eu mesma. — Ela olhou para o pátio ao redor com um olhar
indagador. — Procuro alguém que perdeu a sua canção, para que ele possa ouvir
a minha.
CAPÍTULO DOIS
Vaelin
Ele se despediu de Reva no portão sul, puxando-a para perto para lhe beijar o
topo da cabeça, ficando surpreso e feliz quando ela retribuiu o abraço.
— Nenhuma dúvida? — perguntou, enquanto ela se afastava. — Nenhuma
hesitação em seguir as ordens da Rainha?
— Dúvidas eu tenho de sobra — respondeu Reva. — Mas isso não é novidade.
Vi o suficiente em Alltor para me convencer de que essa luta é até a morte. Eles
não vão parar, então nós também não podemos.
— E o seu povo verá as coisas dessa forma?
A expressão dela ficou sombria, seu tom brando e com uma admissão
relutante:
— Eles verão quando ouvirem a Senhora Abençoada falar com a voz do Pai.
Ela montou no cavalo e partiu com uma escolta de Guardas da Casa. Ao vê-
la se distanciar, Vaelin foi tomado por uma súbita sensação de perda,
compreendendo que talvez nunca mais a visse.
— Meu senhor. — Ele se virou e deparou-se com uma das damas de Ly rna, a
mais alta de olhos escuros, embora o nome lhe fugisse no momento. — A Rainha
pede a sua presença no palácio.
A dama olhou para a esquerda e sua testa ficou um pouco franzida de
inquietação. Vaelin olhou na mesma direção, que era onde os dotados dos Confins
haviam se acomodado numa taverna parcialmente arruinada. Dois Guardas do
Reino de passagem estavam recobrando a compostura, claramente vítimas da
mania de Lorkan de dar susto nos não dotados. O jovem curvou-se numa
desculpa aparentemente sincera, enquanto Cara abafava uma risada ao fundo.
Lorkan percebeu que Vaelin o olhava e deu um sorriso tímido antes de se virar e
caminhar até as sombras de um canto, onde pareceu sumir da face da terra.
Vaelin virou-se para a dama, que ainda fitava de olhos perscrutadores a
sombra por onde Lorkan havia desaparecido.
— Perdão, minha senhora — disse ele, atraindo de novo a atenção da mulher.
— Creio que eu não saiba o seu nome.
— Orena, meu senhor. — Ela se curvou mais uma vez. — Na verdade,
Senhora Orena Al Vardrian, pelas boas graças da Rainha.
— Vardrian? Do sul de Haeversvale?
— Minha avó era de Haeversvale, meu senhor.
Ele estava prestes a informá-la de que era muito provável que ambos
possuíssem algum laço de sangue, mas o desconforto evidente no rosto da mulher
o fez parar para pensar. Era evidente que não agradava à dama a ideia de ficar
tão perto dos dotados, e havia uma tensão em seu comportamento que
desencorajava o prolongamento da conversa.
— Essas pessoas são nossas aliadas — disse Vaelin, indicando a taverna com
a cabeça. — Não oferecem qualquer ameaça.
Uma neutralidade plácida tomou conta do rosto da mulher e ela fez uma
mesura.
— A Rainha aguarda a sua presença, meu senhor.
— Você fala muito bem a minha língua. — Vaelin a levara para a casa de seu
pai, onde ele e a irmã haviam criado uma espécie de lar entre os cômodos
menos danificados.
Alornis estava ausente, tendo ido até as docas, provavelmente ansiosa para
pintar a paisagem de navios que apinhavam o porto. Eles estavam sentados sob o
carvalho no pátio, os galhos imponentes desfolhados à medida que o frio do
inverno aumentava.
— Ela sabia a sua língua — disse Kiral. — Então eu sei.
Ele ouvira de Ly rna a história e mal podia acreditar nela: uma alma possuída
por uma das criaturas do Aliado e agora livre. E uma cantora com uma
mensagem. Porém, de alguma forma ele sabia que era verdade; só de olhar no
rosto da jovem Vaelin sabia que ela ouvia uma canção e se sentiu envergonhado
pela inveja que aquilo instigava.
— Ela se lembrava de você — prosseguiu a garota lonak. — Você a impediu
de matar uma vez. O ódio dela era grande.
Ele se lembrou do rosto furioso e sibilante da Irmã Henna quando a segurou
contra a parede.
— Você possui as memórias dela?
— Algumas. Ela era muito velha, embora não tão velha quanto o irmão e a
irmã, nem tão mortal. Ela os temia e os odiava na mesma medida. Eu possuo as
artes de cura que ela aprendeu na Quinta Ordem, os rituais realizados por uma
sacerdotisa em algum lugar no sul distante do Império Alpirano, as habilidades
com a faca de uma escrava volariana que foi enviada para morrer nos
espetáculos deles.
— Sabe quando ela foi capturada pela primeira vez?
— As lembranças mais antigas dela são uma névoa de confusão e medo. A
principal dentre elas é a cena de cabanas queimando sob um céu noturno. —
Kiral fez uma pausa, estremecendo de forma involuntária. — A visão desaparece
e ela escuta a voz dele.
— O que ele diz?
Ela sacudiu a cabeça.
— Ela sempre afastava a lembrança, preferindo se concentrar em suas
muitas vidas de assassinatos e engodos.
— Sinto muito por você. Deve… doer.
Kiral encolheu os ombros esguios.
— Só quando sonho, na maioria das vezes. — Ela olhou para os galhos do
grande carvalho acima de sua cabeça e um leve sorriso surgiu em seu rosto. —
Ali — disse ela, apontando para uma forquilha larga no tronco principal. — Você
se sentava ali para observar o seu pai escovar os cavalos. — O sorriso dela
desapareceu. — Ele tinha medo de você, mas você nunca soube disso.
Vaelin ergueu a cabeça e olhou para o carvalho durante algum tempo. As
lembranças de brincar naqueles galhos sempre foram felizes, mas agora ele se
perguntava se os seus olhos de criança haviam visto mais do que ele se
recordava.
— Sua canção é forte — disse ele.
— A sua era mais. Posso ouvir o eco dela. Deve ser difícil perder tamanha
força.
— Eu a temia quando era mais novo, mas com o tempo soube que era um
dom. E, sim, sinto muita falta dela.
— Então agora eu serei a sua canção, como ordena a Mahlessa.
— E o que ela ordena?
— Ouço uma voz me chamando de uma grande distância, muito longe daqui,
no leste. É uma melodia muito antiga, e muito solitária, cantada por um homem
que não pode morrer, um homem que você encontrou.
— O nome dele?
— Não sei, mas a música carrega a imagem de um garoto que lhe ofereceu
abrigo contra uma tempestade e arriscou a vida para salvá-lo e à pessoa sob os
cuidados dele.
Erlin. De repente todas as peças se encaixaram: a fúria com que Erlin gritara
para a tempestade naquela noite, suas viagens ao redor do mundo e o seu rosto
inalterado quando apareceu para compartilhar a verdade a respeito do pai de
Davern. Erlin, Rellis, Hetril… ele tem uma centena de nomes, dissera Makril,
embora Vaelin agora soubesse que ele havia começado com apenas um. Aquele
dia na feira, enquanto ele assistia ao espetáculo de marionetes…
— Kerlis — sussurrou ele. — Kerlis, o Ímpio. Amaldiçoado a viver para
sempre por negar os Finados.
— Uma lenda — disse Kiral. — Meu povo conta outra história. Falam de um
homem que ofendeu Mirshak, Deus das Terras Negras, e foi amaldiçoado a
compor uma história sem fim.
— Você sabe onde encontrá-lo?
A lonak assentiu.
— E sei que ele é importante. A canção ressoa com um propósito quando o
toca, e a Mahlessa acredita que ele é a chave para derrotar o que quer que
comande a coisa que roubou o meu corpo.
— Onde?
A cicatriz estremeceu quando ela fez uma careta de desculpas.
— Do outro lado do gelo.
CAPÍTULO TRÊS
Frentis
Ela para e olha o Conselho antes de se sentar, vinte homens em finos mantos
vermelhos sentados em volta de uma mesa perfeitamente circular. A Câmara do
Conselho fica a meio caminho do topo da torre, e cada membro havia sido erguido
até lá pela força de uma centena de escravos trabalhando com cordas e roldanas
que se estendiam de cima a baixo do monolito. Apesar de serem abençoados com
a vida eterna, nenhum Conselheiro gostava da perspectiva de subir tantas escadas.
Ela suporta o tédio das formalidades de abertura enquanto Arklev entoa o
início da quarta e última reunião do Conselho do ano, o octingentésimo vigésimo
quinto ano do império, os escribas-escravos escrevendo com sua velocidade
sobrenatural enquanto ele continua com a ladainha, introduzindo cada membro
por vez, até finalmente chegar a ela.
— … e que acabou de assumir a Cadeira Escravocrata, Conselhei… ra, hã…
— Serei registrada simplesmente como a Voz do Aliado — diz ela, lançando um
olhar significativo para os escribas.
Arklev vacila por um momento, mas se recompõe com admirável fortitude.
— Como quiser. Agora, a nossa primeira ordem do dia…
— A única ordem do dia — interrompe ela. — A guerra. Este Conselho não tem
outra obrigação até que ela seja concluída.
Outro Conselheiro se manifesta, um simplório de cabelos grisalhos cujo nome
ela não faz questão de lembrar.
— Mas há assuntos urgentes vindos do sul, relatos de fome…
— Houve uma seca — diz ela. — Colheitas são perdidas e pessoas passam
fome. Matem quaisquer escravos excedentes para economizar suprimentos até
que a seca termine. Tudo muito triste, mas é possível sobreviver a isso, o que
talvez não possa ser dito sobre a nossa atual situação militar.
— De fato — começa Arklev —, a invasão não progrediu como planejado…
— Foi um fracasso miserável, Arklev — interrompe ela, sorrindo. — Tokrev,
aquele idiota envaidecido, orquestrou a própria morte e derrota com mais
eficiência do que qualquer uma de suas vitórias. A propósito, lamento pela sua
irmã.
— Minha irmã ainda está viva e não duvido de suas habilidades para que
continue assim. E nós ainda estamos no controle da capital deles…
— Não. — Ela estende a mão para pegar uma uva de uma tigela próxima,
colocando-a na boca e saboreando a doçura. Embora não inteiramente de seu
agrado, aquela casca tem um paladar incrivelmente sensível. — Há três dias que
não estamos no controle da cidade. Mirvek está morto, assim como os seus
comandados. Perdemos o Reino Unificado.
Ela desfruta do silêncio perplexo quase tanto quanto da uva.
— Uma tragédia — diz um deles num tom cauteloso, um sujeito belo com uma
enganadora aparência jovial. Ela se lembra de ter matado um homem a pedido
dele, quarenta anos antes, marido de alguma vadia com quem ele queria se casar.
Ela nunca pensou em perguntar se o casamento havia sido bem-sucedido. —
Porém — continua o belo Conselheiro —, ainda que a desgraça da derrota seja
difícil de suportar, isso por certo significa que a guerra está próxima do fim. Por
ora, pelo menos. Devemos reunir as nossas forças e aguardar uma oportunidade
apropriada para fazer uma nova tentativa.
— Enquanto uma nação inteira com todos os motivos para nos odiar reúne as
próprias forças.
— Eles estão enfraquecidos pela nossa invasão — observa Arklev. — E há um
oceano entre nós.
— Imagino que o Rei Malcius nutria a mesma ilusão até o momento em que
sentiu o pescoço se quebrar. — Ela se levanta e todo o humor desaparece de seu
rosto ao olhar para cada um deles. — Saibam, Honoráveis Conselheiros, que o
Aliado não perde tempo com conjecturas. Falo de fatos genuínos. O Reino
Unificado agora tem uma rainha e ela vê num oceano um obstáculo tanto quanto
veria num córrego raso. Quando os mares se acalmarem, ela virá, enquanto nós
gastamos as nossas melhores forças numa invasão comandada por um tolo, que foi
escolhido pelos votos de vocês, se bem me recordo.
— O General Tokrev era um veterano de muitas campanhas — começa o
Conselheiro grisalho, calando-se sob o olhar dela. Ela deixa o silêncio se
prolongar, sentindo uma ânsia familiar no peito quando a sua canção detecta o
medo crescente, e cerra os punhos para contê-la. Ainda não.
— É desejo do Aliado que sejam reunidas reservas para enfrentar essa
ameaça. Ex-Espadas Livres serão reconvocados aos seus batalhões e as cotas de
recrutamento serão triplicadas. As guarnições em Volar serão reforçadas por
tropas retiradas das províncias.
Ela espera que discordem, mas todos apenas continuam sentados lhe
encarando, esses homens donos de milhões, covardes ancestrais compreendendo
pela primeira vez o tamanho de sua insensatez. Ela cogita deixar uma última
ameaça velada ou uma provocação humilhante, mas se vê tomada por um desejo
imenso de se afastar deles.
Foi assim que aconteceu com você?, pergunta ela ao fantasma indiferente de
seu pai enquanto dá as costas para eles e sai da câmara sem uma palavra. Eles
viram quanto você estava enojado do fedor deles? Foi por isso que eles fizeram
com que eu o matasse?
Ele foi despertado pelo barulho da tranca da porta de sua cela. Seu principal
carcereiro, como todos os guardas, vinha da Guarda Montada da Rainha, um
sargento veterano com uma distinta indisposição para conversas que olhava para
Frentis com ódio escancarado toda vez que abria a porta. A Rainha fora
meticulosa ao escolher guardas que provavelmente não seriam influenciados
pela lenda do Irmão Vermelho. No entanto, naquele dia o ódio do homem estava
levemente contido ao abrir a porta pesada e fazer sinal para que ele saísse da
cela. Frentis ficou ainda mais surpreso quando não lhe colocaram grilhões, nem
lhe maltrataram de forma alguma. Ele era alimentado duas vezes por dia e
recebia um jarro de água fresca todas as manhãs quando o sargento aparecia
para pegar o seu balde de dejetos. Fora isso, era deixado no escuro, sem qualquer
companhia ou conversa… exceto por ela, claro, que aguardava toda vez que ele
sucumbia ao sono.
O sargento permaneceu a uma boa distância quando ele saiu da cela e
deparou-se com a Rainha parada na câmara mais além, ladeada por Davoka e
seus dois guardas enobrecidos.
— Alteza — disse Frentis, colocando um joelho no chão.
A Rainha não respondeu e virou-se para o sargento.
— Deixe-nos, por favor. Entregue suas chaves a Lorde Iltis.
Ela esperou até que o homem saísse antes de tornar a falar.
— A Fortaleza Negra não esteve tão vazia assim desde o dia de sua
construção. — Frentis permaneceu ajoelhado enquanto a Rainha examinava a
câmara, passando os olhos pelas pedras escuras iluminadas por tochas. — Prefiro
dessa forma. Pretendo mandar demoli-la ao término de nossas atuais
dificuldades.
Frentis abaixou a cabeça, respirou fundo e falou num tom formal:
— Minha Rainha, eu humildemente ofereço a minha vida…
— Cale-se! — Sua voz foi como uma chicotada, quando ela se aproximou o
suficiente para ser tocada e assomou sobre Frentis, respirando de modo arfante e
irregular. — Eu o matei uma vez. Então já tenho a sua vida.
Ela começou a respirar mais devagar após um momento e afastou-se.
— Levante-se — ordenou a Rainha com um aceno irritado e Frentis ficou de
pé, aguardando enquanto o rosto perfeito dela o encarava, a raiva substituída por
uma calma gélida. — O Irmão Sollis me transmitiu em detalhes o relato que
você lhe fez. Você não estava no comando de suas ações. É tão culpado pela
morte do Rei quanto uma espada o é pelo sangue que derrama. Eu sei disso,
irmão. E, ainda assim, sinto que não há em mim perdão para você. Compreende?
— Sim, Alteza.
— Lorde Vaelin também me disse que você afirmou que Lorde Al Telnar foi
cúmplice na invasão volariana.
— Ele foi, Alteza, pela promessa de poder e… outras recompensas.
— E o que seriam?
— Ele estava determinado a conseguir promessas de que mal algum seria
feito à senhora durante o ataque.
Ela suspirou, sacudindo levemente a cabeça.
— E eu que pensei que ele havia morrido como um herói.
Frentis respirou fundo, preparando-se antes de dizer as próximas palavras:
— Posso pedir um momento para lhe falar em particular, Alteza? Tenho uma
mensagem a entregar.
— A Senhora Davoka e estes senhores me viram em meu pior estado e ainda
assim julgam que mereço a sua lealdade. Quaisquer palavras que você me diga
são dignas de serem ouvidas por eles.
— Falo por um Lorde Comandante da Guarda Montada, um homem que vi
ser morto quando o palácio foi tomado. O nome dele era Smolen.
O rosto da Rainha não revelou nenhuma emoção ao olhar para ele, mas
Frentis notou como as mãos delas se mexeram como que ansiosas para pegar
uma arma oculta.
— Relate a sua mensagem — ordenou ela.
— Ele disse que havia sido incrível viajar até tão longe com a mulher que
amava.
A Rainha cerrou os punhos com força e avançou na direção dele. Frentis
ouviu duas espadas sendo desembainhadas quando os senhores colocaram-se ao
lado dela, os aços apontados para tirar a sua vida.
— Como ele morreu? — perguntou a Rainha.
— Bravamente. Ele lutou bem, mas os Kuritai são habilidosos, como a
senhora sabe.
Frentis não conseguiu olhá-la nos olhos; a perfeição impassível do rosto dela
era um contraste terrível com a mulher queimada que gritara e fugira da sala do
trono.
— Não peço misericórdia — disse ele, baixando a cabeça. — E aguardo o
julgamento de Vossa Alteza.
— Então você anseia pela morte? Acha que os Finados receberão alguém
como você?
— Duvido, Alteza. Mas a esperança está no coração da Fé.
— Então a sua esperança será malograda, pelo menos por ora. — Ela indicou
a Iltis uma cela trancada; o Lorde Protetor experimentou as chaves e abriu a
porta, e ele e o seu companheiro entraram para buscar o ocupante. Ao contrário
de Frentis, o homem havia sido posto a ferros, tornozelos, joelhos, pulsos e
pescoço presos por grilhões recém-forjados, forçando-o a arrastar-se centímetro
a centímetro enquanto os dois lordes o puxavam para a luz. Apesar do seu óbvio
desconforto, não havia qualquer sinal de aflição no rosto do homem, suas feições
a familiar máscara impassível dos escravos de elite. Tinha o peito nu com
músculos bem delineados e um emaranhado de cicatrizes que lhe cobriam a pele
da cintura ao pescoço.
— Kuritai — murmurou Frentis.
— O único que conseguimos capturar em toda essa guerra — disse a Rainha.
— Encontrado desacordado nas docas no dia em que a cidade foi retomada. De
acordo com Lorde Al Hestian, ele havia sido designado para vigiar Alucius,
garantindo assim a submissão de seu pai. O nome dele é Vinte e Sete.
Ela se aproximou do escravo de elite, examinando-o da cabeça aos pés com
um olhar crítico.
— O Irmão Harlick me disse que essas criaturas não possuem vontade
própria, que lhes é arrancada através de torturas, drogas e, de acordo com o
Aspecto Caenis, vários métodos das Trevas que fedem a influência do Aliado. Tal
como sua vontade foi tirada de você, imagino. O que será que ele faria se nós o
libertássemos?
— Aconselho que isso não seja feito de modo algum, Alteza — disse Frentis.
A Rainha virou-se para ele com o mesmo olhar avaliador, seus olhos indo até
um ponto em particular no seu peito.
— A Senhora Davoka me disse que o ferimento que lhe causei supurou e que
você está vivo graças a ela.
Frentis olhou para Davoka e notou que nunca a tinha visto tão pouco à
vontade, com a testa encharcada de suor. Ele reparou que a lonak segurava uma
garrafinha de vidro, cujo conteúdo parecia reluzir um pouco, e percebeu que a
mão dela de fato tremia.
— É verdade, Alteza — disse Frentis, ficando mais inquieto. O que há ali
dentro capaz de assustá-la tanto? — Embora eu acredite que foi a sua faca que
realmente me salvou. De alguma forma, ela me… libertou.
— Sim. — O olhar da Rainha recaiu sobre o prisioneiro e ela estendeu a mão
a Davoka, falando em lonak. A Rainha pegou a garrafa e a ergueu à luz fraca, o
líquido escuro no interior produzindo um odor nauseabundo quando ela tirou a
rolha. — A lâmina que o libertou havia sido banhada nisto — disse ela a Frentis.
— Um presente de nossos amigos lonaks. Um de que desconfio que possa se
mostrar bastante útil aos nossos propósitos. — Ela se aproximou do Kuritai,
falando calmamente com ele em volariano: — Isso não me dá prazer.
A Rainha ergueu a garrafa até um ponto no alto do peito do homem, virando-
a até que uma única gota do líquido pingasse nas cicatrizes do escravo. O
resultado foi imediato; o grito que saiu da garganta do Kuritai foi suficiente para
doer os ouvidos enquanto ele convulsionava, tombando sobre as correntes e
contorcendo-se no chão. A Rainha afastou-se, seu rosto sombrio e os olhos
brilhantes ao tampar a garrafa. Frentis notou como ela se empertigou e forçou-se
a assistir ao tormento do escravo. Após alguns segundos, os gritos diminuíram e
se tornaram lamúrias agonizantes, as convulsões que haviam lhe curvado as
costas reduzidas a tremores arfantes. Por fim, o escravo ficou imóvel, ofegando
e encharcado de suor.
Ly rna deu um passo cauteloso em frente, mas Frentis ergueu a mão.
— Se me permite, Alteza?
A Rainha assentiu e ele foi até o Kuritai, agachando-se para olhar em seu
rosto e vendo que a vida retornava aos olhos anuviados de dor.
— Consegue falar? — perguntou ele em volariano.
Os olhos piscaram, entrando em foco, a resposta uma tosse rouca saída de
uma garganta desacostumada à fala.
— Ssssim.
— Como você se chama?
Os olhos se estreitaram levemente e a resposta saiu num volariano brusco, de
sotaque carregado:
— Eu… comecei como Quinhentos. Agora… sou Vinte… e Sete.
— Não. — Frentis aproximou-se ainda mais. — Seu nome verdadeiro. Sabe
qual é?
Os olhos vagaram um pouco, a testa franzindo-se diante das lembranças.
— Lekran — disse o homem em voz baixa, que então se transformou num
rosnado. — Lekran… Meu pai… foi Hirkran, do machado vermelho.
— Você está longe de casa, amigo.
Lekran mexeu-se de súbito, retesando as correntes.
— Então… tire essa merda de metal de mim… para eu poder voltar para lá.
Pois o nosso tempo neste mundo é curto e tenho muitos homens para matar.
A dor de cabeça era tudo o que o Irmão Kehlan prometera, aliviada um pouco
pela sensação agradável de saber que a poção funcionara. O seu sono ficara livre
de sonhos, sem quaisquer outros horrores ou pedidos para que se rendesse à
vontade dela. Frentis continuara a dormir na Fortaleza Negra após a sua
libertação, ele e Lekran agora instalados com conforto na sala de guarda. Era
uma sensação estranha viver numa construção tão grande ocupada por somente
duas pessoas, visto que a Rainha transferira depressa os guardas para serviços de
treinamento. Ele encontrou o ex-Kuritai exercitando-se no pátio, movendo-se
com toda a velocidade e precisão instiladas por anos de condicionamento e
batalhas. O volariano usava agora um machado no lugar das espadas duplas,
girando a arma conforme enfrentava um exército de oponentes imaginários.
— Irmão Vermelho — disse ele a Frentis, parando e ofegando um pouco por
causa do esforço dos exercícios. Ele abandonara a navalha desde a sua
libertação, e uma barba escura começava a crescer em seu rosto, assim como
cabelos negros em sua cabeça. — Sua mulher-chefe mandou um escravo com
isto. Ela deu um grande presente.
Ele ergueu o machado, com um sorriso largo no rosto. Era uma arma de
lâmina dupla de origem renfaelina, o aço plano no interior das lâminas incrustado
com um padrão intricado de ouro. Provavelmente um dos brinquedos de Darnel,
concluiu Frentis, mais uma vez sentindo uma pontada de arrependimento por não
ter sido ele a matar o Senhor Feudal.
— Não há escravos aqui — ponderou Frentis, um fato que fora obrigado a
repetir muitas vezes. Lekran parecia ter dificuldade em conceber uma terra sem
escravidão. Ele descrevera com detalhes a sua terra natal, que aparentemente
ficava em algum lugar na selvagem região montanhosa para além das províncias
setentrionais; e as principais ocupações de sua tribo pareciam ser cavar à procura
de minerais e guerrear constantemente com tribos vizinhas.
— Coisa boa — disse Lekran após um longo gole de vinho. — Tem mais?
Frentis indicou com um gesto uma pilha de garrafas, encontradas debaixo da
cama do oficial Espada Livre que estivera no comando daquele lugar. A cidade
acabara se mostrando rica em estoques ocultos de vinho e de saques variados. O
exército volariano permitia formalmente a pilhagem, desde que todo o saque
fosse declarado e sujeito a uma taxa de um décimo do total, mas claramente
muitos não haviam se sentido inclinados a seguir essa lei.
— Sua mulher-chefe — disse Lekran, sentando-se de novo com uma garrafa
na mão. — Ela tem um homem?
— Ela é chamada de Rainha, e não.
— Ótimo. Vou querer ela para mim. — Ele tomou um longo gole e arrotou de
forma extravagante. — Quantas cabeças você acha que vai custar?
Aparentemente era costume da tribo de Lekran oferecer as cabeças de
inimigos derrotados para noivas em potencial como prova de valor como marido.
— Mil devem bastar — disse Frentis.
Lekran franziu o cenho e bufou irritado.
— Tantas assim?
— Ela é uma rainha. Elas são caras. — Ele observou o ex-escravo esvaziar a
garrafa em alguns goles e sabia que, apesar de toda a bravata, aquele era um
homem tentando afogar os muitos horrores em sua cabeça. — Por quanto tempo
você foi Kuritai? — perguntou Frentis.
— Eu tinha dezenove anos quando me pegaram. Agora vejo o rosto do meu
pai quando me olho no espelho. O tempo se perde com o domínio. — Lekran fez
uma careta para a garrafa vazia e a jogou contra as lajes.
— Você não se lembra? — insistiu Frentis. — Eu me lembro de cada
momento do meu domínio.
— Então você tem muito azar. — Lekran se remexeu pouco à vontade por um
momento, os braços musculosos se retesando ao entrelaçar as mãos e lançar um
olhar ávido para o vinho. — Eu me lembro… o suficiente.
— Alucius Al Hestian. Você se lembra de que foi designado para vigiá-lo?
Um sorriso muito leve surgiu nos lábios de Lekran.
— Sim. Ele também queria uma bebida.
— Ele morreu como herói, tentando matar um inimigo meu muito odiado.
— Aquele desmiolado na cadeira grande? — Lekran soltou um grunhido
jocoso. — Bem, bom para ele. Vamos beber à sua memória. — Ele se levantou
para pegar outra garrafa.
— Você sabe o que vamos fazer? — perguntou Frentis enquanto ele
vasculhava o vinho, tirando a rolha de uma garrafa para sentir o cheiro da bebida
e então fazendo uma careta e a jogando de lado. — Está satisfeito em me seguir?
— Meu pai foi o único homem que já segui de boa vontade. — Lekran fungou
no gargalo de outra garrafa e ergueu as sobrancelhas em apreciação. — Mas vou
emprestar o meu machado à sua causa no caminho para casa. — Ele se sentou
mais uma vez, sorrindo ao tomar outro gole. — Afinal, a sua Rainha custa mil
cabeças.
Em outros tempos, a casa de Lorde Brahdor devia ter sido um lugar imponente.
Originalmente uma fortaleza menor, sucessivas gerações a haviam transformado
numa extensa mansão de três andares, que continuava para além dos portões que
outrora a cercaram, o fosso defensivo tendo sido tapado há muito tempo. Pelos
campos ao redor estavam espalhados estábulos, depósitos e, Reva bem sabia, um
celeiro grande do outro lado de uma colina próxima. Ela fora até lá mais cedo,
parando o cavalo a uma boa distância da pilha dilapidada de madeira inclinada,
agora sem telhado e com as portas caídas no chão tomado de ervas daninhas.
Reva estava sozinha, após ordenar que seus guardas continuassem até Alltor
sem ela, alguns quilômetros antes. Encontrou Kernmill devastada e incendiada
como esperado; todas as pessoas que espionara estavam mortas, capturadas por
traficantes de escravos ou haviam fugido. A casa de Lorde Brahdor ficava uns
três quilômetros ao norte e estava apenas um pouco mais conservada. A
construção parecia ter escapado da atenção dos volarianos, possivelmente porque
a sua ruína evidente havia sido causada antes da chegada deles; as telhas de
ardósia foram arrancadas dos vários telhados pelas intempéries ou por aldeões
gananciosos, as paredes estavam sujas e com a tinta descascando, e cada porta
aparentemente havia desaparecido.
O que você espera encontrar aqui?, perguntou-se Reva com um suspiro
mental antes de desmontar e amarrar a montaria na estaca de uma cerca. Era
uma égua calma, muito mais dócil do que o pobre Bufo, que acabara na panela
durante os primeiros dias do cerco. Ela deixou a égua pastando no capim longo e
aproximou-se da casa, olhando pelas janelas sem vidros para a escuridão
bolorenta do interior. Eles se encontravam aqui?, perguntou-se. Era aqui a base
para as suas tramas? Os Filhos comparecendo para se apertarem diante do senhor
devoto que falava verdades tão maravilhosas, sem jamais conhecerem a
verdadeira natureza da coisa que lhes mentia e provavelmente ria consigo mesma
o tempo todo.
Ela foi até uma abertura sem porta e entrou nas sombras geladas da casa.
Apesar da penumbra, Reva ficou impressionada com a grandiosidade do átrio,
onde uma escadaria elegante descia do andar superior até um piso quadriculado
de mármore fino, e o barulho de suas botas ecoou pelo lugar. Ela examinou as
paredes à procura de pinturas ou emblemas, mas encontrou apenas gesso nu e
nenhum sinal que indicasse o caráter de seu último ocupante. Uma breve
exploração dos outros cômodos do andar térreo não rendeu mais frutos, de modo
que Reva subiu a escadaria com cuidado, encontrando-a surpreendentemente
firme sob os pés e provocando somente leves rangidos.
O andar superior era mais frio, com vento entrando pelas janelas arruinadas
e balançando trapos que já haviam sido cortinas. Ela foi de cômodo em cômodo,
encontrando apenas poeira, cacos de vasos e pedaços de mobília arruinada. Num
quarto, Reva parou ao avistar uma grande mancha no chão, obscurecida em
parte por um tapete embolorado; havia uma cama coberta por teias de aranha
encostada na parede. Ela conhecia uma mancha de sangue o suficiente para não
precisar inspecioná-la mais de perto; alguém havia morrido ali, mas não
recentemente.
Estava se virando para sair quando percebeu: um odor levemente acre lhe
chegou às narinas, o cheiro de uma vela que acabara de ser apagada. Reva
parou, fechou os olhos, nariz e ouvidos atentos a mais pistas. Foi apenas um
rangido discreto nas vigas sobre a sua cabeça, mas ainda assim pesado demais
para ter sido causado por um rato. Ela abriu os olhos, ergueu a cabeça para o teto
e discerniu um buraco do tamanho de uma moeda de cobre, com uma luz
bruxuleante e então ficando escuro quando algo o cobriu.
Reva foi para o corredor e procurou os degraus que levavam ao terceiro
andar, encontrando-os bem menos preservados do que a grande escadaria. A
balaustrada havia desaparecido e faltavam vários degraus, forçando-a a saltar e
agarrar-se nos patamares para conseguir subir. Havia quatro quartos de sótão no
último andar, e somente um tinha porta. Reva girou a maçaneta e, vendo que
estava trancada, abriu-a com um chute e desembainhou a espada antes de entrar.
Havia uma pequena porém bem-arrumada pilha de cobertores próxima à janela,
o quarto protegido das intempéries por algumas tábuas de madeira, seguradas no
lugar com barbante. Ao lado dos cobertores havia um toco de vela, e um filete
fino de fumaça subia do pavio.
Reva passou os olhos pelo resto do quarto, encontrando uma pequena pilha de
livros e outra de legumes variados no canto, cenouras e batatas, bolorentas e
criando raízes, algumas com pequenas marcas de mordidas. Ela foi alertada pelo
som de alguém prendendo a respiração, uma arfada brusca bem acima de sua
cabeça.
Reva deu um passo adiante e algo aterrissou às suas costas. Ela girou nos
calcanhares, a espada descrevendo um arco preciso e se chocando com uma
pequena faca, fazendo a lâmina voar para as sombras. A dona da arma olhou
para ela com olhos arregalados num rosto sujo emoldurado por uma cabeleira de
cachos emaranhados.
— Quem é você? — perguntou Reva.
O rosto da garota manteve a mesma expressão boquiaberta por um segundo,
e então se transformou num rosnado. Ela sibilou e jogou-se sobre Reva, suas
mãos como garras, unhas longas tentando arranhar o rosto da intrusa. Reva
largou a espada, desviou-se do ataque e agarrou a garota pela cintura, segurando-
lhe os braços enquanto ela se debatia, rosnando e cuspindo. Ela a imobilizou
enquanto a garota continuava a lutar, sentindo a forma esquálida por debaixo das
roupas esfarrapadas e ficando espantada com a ferocidade de alguém tão
próximo da inanição. A garota acalmou-se após se debater por uns dois minutos,
largando-se exausta nos braços de Reva, soltando uma lamúria de fúria
impotente.
— Desculpe a intrusão — disse Reva. — Meu nome é Reva. Quem é você?
***
Foi necessária boa parte de um mês para percorrerem todo o feudo, cidade após
cidade, aldeia após aldeia, algumas repletas de refugiados, outras quase vazias,
visto que muitos dos habitantes haviam fugido antes do esperado ataque
volariano. Reva percebeu que a sua mentira era recebida de mais boa vontade
nos lugares onde abundavam os desalojados, muitos dos quais haviam
experimentado em primeira mão a natureza do inimigo. Mesmo em lugares onde
ninguém havia sido prejudicado pela guerra existiam muitos ouvidos dispostos às
palavras da Senhora Abençoada, embora nem todos estivessem tão abertos à
mensagem do Pai.
— Tenho quatro filhos e a Rainha quer três deles — disse uma mulher
corpulenta numa aldeia a sudoeste da terra dos rios. As pessoas daquela área
eram famosas por sua robustez, ganhando a vida com as armadilhas para enguias
que usavam na miríade de canais que circundavam os seus lares, em povoados
em geral limitados a poucas casas e raramente acompanhados por uma igreja. A
mulher olhava irritada para Reva enquanto os aldeões reunidos concordavam aos
murmúrios, embora alguns estivessem visivelmente intimidados por Arentes e os
seus cinquenta guardas. A mulher corpulenta, contudo, não lhes dava a menor
atenção. — Como uma família vai se alimentar sem mãos para remar os barcos
e puxar as armadilhas?
— Ninguém passará fome — assegurou-lhe Reva. — Quaisquer alimentos
adicionais que sejam necessários serão fornecidos de graça pela Casa Mustor e
pela Rainha.
— Ouvi promessas da sua Casa antes — retorquiu a mulher. — Quando meu
marido foi levado de arrasto e teve a garganta cortada por aqueles asraelinos
desgraçados. Agora você quer que a gente lute por eles.
— O feudo foi salvo por mãos asraelinas — disse Reva. — E por nilsaelinos,
por gente dos Confins do Norte, pelos seordah e pelos eorhil. Em Varinshold, lutei
ao lado de meldeneanos e renfaelinos. A velha era acabou. Agora lutamos uns
pelos outros.
A mulher apontou um dedo para Reva, sua voz tornando-se um rugido alto e
raivoso:
— Você luta por eles, garota. Eu não conheço eles, nunca vi esses…
volaranos de que você fala, e qualquer mentiroso pode dizer que fala com a voz
do Pai.
Os guardas ficaram alertas de imediato e o seu sargento adiantou-se com a
espada parcialmente desembainhada até Reva lhe gritar para parar.
— Ela está cometendo uma blasfêmia e traição, minha senhora — disse o
sargento, o rosto rígido de fúria ao fulminar com o olhar a mulher na multidão,
que agora se encontrava sozinha após os outros aldeões terem recuado, qualquer
solidariedade que havia antes esquecida de forma abrupta. Apesar da falta de
apoio, a mulher não cedeu, encarando Reva sem nenhum sinal de medo ou
arrependimento nas feições curtidas quando o sargento continuou a falar: —
Você não estava em Alltor. Não viu o que a Senhora Abençoada fez por nós. Se
não fosse por ela, você, os seus filhos e esta aldeia hoje seriam apenas cinzas e
ossos. Você deve tudo a ela, assim como todos nós.
A mulher não tirou os olhos de Reva.
— Então é melhor me enforcar, senhora. Pois os meus filhos não são seus
para levar, pela palavra do Pai ou não.
Os olhos de Reva percorreram a multidão, avistando três jovens mais ao
fundo, dois deles visivelmente intimidados pelas circunstâncias, de cabeças
baixas e sem dúvida rezando para que o confronto terminasse, mas o mais alto
olhava para a mulher corpulenta com um ressentimento palpável.
— Seus filhos não podem falar por si mesmos? — perguntou Reva à mulher.
— Tanto os Dez Livros quanto a Lei do Feudo decretam a maioridade aos
dezessete anos. Se os seus filhos forem adultos, que eles façam a escolha.
— Meus filhos conhecem os seus deveres… — começou a mulher, mas se
calou quando o mais alto dos três ergueu a mão e abriu caminho em meio à
multidão.
— Allern Varesh, minha senhora — disse ele com uma mesura. — Ofereço
os meus serviços conforme o Decreto da Rainha.
— Pare com isso! — rosnou a mulher, adiantando-se para esbofetear a
cabeça do jovem e então voltando a olhar para Reva com raiva. — Ele não é seu
para levar!
Reva estava prestes a simplesmente ignorá-la e agradecer o jovem por sua
lealdade, mas parou ao ver as lágrimas nos olhos da mulher, como ela se colocou
diante do filho para protegê-lo. Reva desceu do carroção e aproximou-se da
mulher, parando diante dela.
— Seu nome?
A mulher rangeu os dentes e enxugou os olhos com dedos grossos.
— Realla Varesh.
— Você perdeu muito, Realla Varesh. E me dói pedir mais. — Ela apontou
para Allern, que ainda estava ajoelhado. — Portanto, em reconhecimento pelo
seu sacrifício, a cota desta aldeia será considerada preenchida por completo
pelos serviços deste homem.
A mulher se curvou e levou as mãos ao rosto. Pela reação de choque do filho
e da multidão, Reva deduziu que provavelmente era a primeira vez que alguma
alma viva a vira chorar.
— Lorde Arentes — disse Reva.
— Minha senhora!
— Este jovem tem altura suficiente para um guarda, não acha?
Arentes lançou um olhar rápido de avaliação a Allern.
— Praticamente, minha senhora.
— Muito bem. Allern Varesh, você agora faz parte da Guarda da Casa da
Senhora Governadora Reva Mustor. — Ela olhou de novo para a mãe do homem,
que soluçava. — Você tem uma hora para se despedir. Lorde Arentes lhe
encontrará um cavalo.
Ela retornou a Alltor seguida por quinhentos homens e cinquenta mulheres, todos
voluntários dispostos a marchar ao comando da Senhora Abençoada. Podiam ter
sido mil, mas não havia provisões nem cavalos de carga suficientes para tantos.
As terras ao sul de Alltor foram as que renderam mais recrutas e ouvidos
dispostos à sua mentira, após terem sofrido tanto nas mãos dos saqueadores
volarianos. Os habitantes daquela região haviam travado a própria guerra entre
os afluentes e as margens arborizadas do Ferrofrio, então estavam de posse de
uma quantidade considerável de armas apreendidas. De acordo com Arentes, a
região sempre fora o centro da arqueria cumbraelina; os primeiros arcos longos
haviam sido feitos dos teixos que proliferavam na floresta densa. Em virtude da
ameaça volariana, companhias havia muito desmanteladas, outrora a espinha
dorsal da força militar cumbraelina, haviam sido restauradas sob o comando de
capitães veteranos, que durante meses participaram de um jogo mortal de
perseguições entre as árvores até a libertação de Alltor.
Reva ordenou que as companhias permanecessem em formação e se
fortalecessem antes de se reunirem em Alltor na primavera. Apesar de todo o
fervor do comprometimento deles, ela os achava inquietantes, de olhares firmes
e aspecto taciturno. Os vários corpos putrescentes de volarianos capturados
pendurados na floresta eram evidência de uma sede por vingança longe de estar
saciada. O que eles causarão quando atravessarmos o oceano?, perguntou-se
Reva, procurando em vão na memória por uma passagem em qualquer um dos
Dez Livros que ajudasse com pensamentos vingativos.
Ellese a recebeu com muita alegria, envolvendo sua cintura com braços finos
enquanto reclamava das lições intermináveis de Veliss.
— Ela me faz ler todas as manhãs e todas as noites. E escrever também.
— São habilidades muito importantes — disse Reva, soltando com gentileza os
braços da garota. — Ainda assim, também tenho algumas coisas para lhe
ensinar, no devido tempo.
Ellese franziu o rosto, agora não mais emaciado, embora ainda houvesse um
aspecto levemente encovado nos olhos.
— Que coisas?
— Habilidades com o arco e a faca. Com a espada também, quando você for
mais velha. Apenas se você quiser.
— Eu quero. — Ela pulou de excitação, agarrando a mão de Reva e a
puxando na direção da mansão. — Ensine-me agora!
Reva notou a expressão séria no rosto de Veliss e fez a garota parar.
— Amanhã — disse ela. — Tenho outra tarefa hoje.
***
Eles estavam a oito quilômetros do passo, no dia seguinte, quando Kiral parou o
seu pônei de repente, olhando para oeste com o semblante carregado enquanto
esquadrinhava aquela direção.
— Problemas? — perguntou Vaelin.
Ela apertou os olhos, franzindo o cenho, confusa.
— Algo… Alguém novo.
— Outra canção?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não é um cantor, e não há aviso na minha canção. Mas ele me chama.
— De onde?
Uma cautela súbita surgiu em seu rosto, o primeiro sinal de medo que ele a
vira demonstrar.
— Da Cidade Caída.
Vaelin assentiu, virou-se e fez sinal para Orven se aproximar.
— Preciso de cinco homens, meu senhor. Acampem no vale mais além e
aguardem o nosso retorno. — Ele ergueu a voz, dirigindo-se a uma figura um
tanto mal-humorada que se encontrava mais atrás na coluna. — Mestre Lorkan!
Junte-se a nós, por favor.
Foi uma viagem de dois dias até a cidade, o trajeto diminuído pela
familiaridade de Kiral com as montanhas. As ruínas eram basicamente como
Vaelin se lembrava, embora agora não sentisse o peso opressivo que o
atormentara durante a sua última visita àquele lugar, mas Kiral e Lorkan não
desfrutavam de tal imunidade.
— Pela Fé, é pior do que a floresta. — Lorkan estremeceu e curvou-se na
sela, ficando com o semblante pálido.
— Nunca cheguei tão perto — disse Kiral, a sua inquietação evidente na
postura dos ombros. — Este não é um lugar para os vivos.
— Mestre Lorkan? — perguntou Vaelin, dando um sorriso de expectativa para
o jovem e indicando as ruínas com a cabeça.
Após um momento de longa hesitação, Lorkan inclinou a cabeça e
desmontou. Respirou fundo e partiu na direção da cidade, caminhando com
firmeza, desaparecendo no ar após alguns passos e provocando murmúrios de
inquietação nos guardas.
— Quem quer que esteja esperando lá irá vê-lo — advertiu Kiral.
— Eu sei — disse Vaelin.
— Então por que mandá-lo?
— O que é a vida sem uma diversão ocasional?
Eles continuaram observando as ruínas silenciosas por mais alguns momentos
até ouvirem o grito, uma exclamação aguda de alarme que ecoou pelas pedras
caídas. Kiral tirou o arco do ombro e os guardas se espalharam com as espadas a
postos quando Lorkan surgiu de repente no limite da cidade, o manto esvoaçando
às suas costas enquanto disparava na direção deles, os olhos arregalados de puro
terror. A razão para a sua fuga logo se tornou evidente: uma grande forma
castanha o perseguia, de boca escancarada e dentes arreganhados num rugido
desafiador.
— Eu não sabia que eles cresciam tanto — comentou Vaelin. O urso devia ter
talvez um metro e meio, de quatro, o que significa que de pé devia chegar quase
a três metros. Apesar de parecer ter dificuldade para acompanhar Lorkan, o
animal vencia a distância com uma velocidade enganadora graças ao tamanho
de suas passadas.
— Matem-no, pela Fé! — gritou Lorkan, correndo na direção deles, o urso
agora apenas poucas passadas atrás.
— Não! — gritou Vaelin a Kiral quando ela ergueu o arco, seus olhos
discernindo uma figura entre as ruínas, pequena e familiar, com outra ao seu
lado, apenas levemente mais comprida e segurando no alto um cajado longo de
algum tipo. O urso derrapou até parar, espalhando cascalhos, um rosnado
pesaroso saindo do focinho. O animal tomou impulso nas patas dianteiras,
cravando as garras no solo pedregoso e continuando a olhar em desafio para
Lorkan, que agora estava de quatro atrás de um dos guardas, ofegando e
claramente prestes a colocar o desjejum para fora.
Cicatriz, como os outros cavalos, começara a empinar ao avistar o urso e
agora estava à beira do pânico, balançando a cabeça em protesto enquanto
Vaelin puxava as rédeas.
— Está tudo bem — disse ele, desmontando e passando a mão ao longo do
flanco do animal. — Ele não vai machucá-lo.
O urso bufou de novo, sacudindo a grande cabeça de um lado para outro
como se reunisse forças para outra investida, mas então se retesou, ficando quase
tão imóvel quanto uma estátua.
— Ele ainda jovem. — Um homem pequeno vestindo peles e segurando um
osso tão longo quanto um cajado apareceu ao lado do urso, com um tom de
desculpas na voz. — Amigo e inimigo têm cheiro igual.
— Urso Sábio! — Vaelin adiantou-se para apertar a mão do xamã, feliz ao
sentir a força no aperto do homem. — Você está longe dos Confins.
— Você vai para o gelo — retorquiu Urso Sábio, encolhendo os ombros. —
Eu mostro como.
— Ele foi muito insistente. — Dahrena estava parada um pouco mais
afastada, sorrindo levemente. — Não podia deixá-lo vir sozinho.
Vaelin aproximou-se dela e a abraçou, a compreensão do quanto sentira falta
dela provocando uma dor penetrante. Vou mandá-la de volta, pensou ele, sabendo
que mentia. Vou mandá-la de volta pela manhã.
***
Eles avistaram o gelo depois de mais duas semanas, uma faixa branca no
horizonte a leste, depois de um litoral curvo à beira de um mar de águas
cinzentas. As montanhas haviam começado a diminuir de tamanho nos últimos
dias até se tornarem meros contrafortes, a maioria desprovida de qualquer
vegetação e proporcionando pouca proteção contra inimigos. Os ataques se
tornaram mais esporádicos quanto mais seguiam para o norte, possivelmente por
simples cansaço, embora Vaelin desconfiasse que o atrito constante com os
Senthar fosse a razão principal. Apesar da total falta de uniformidade ou
costumes militares, eles eram tão disciplinados quanto qualquer companhia da
Sexta Ordem e talvez quase tão habilidosos quanto os irmãos; apenas mais dois
deles haviam sido mortos desde o ataque noturno.
— Pela Fé, como dói! — disse Lorkan, encolhendo-se diante do vento
cortante e lançando um olhar questionador a Cara. — Você não pode fazer
alguma coisa?
Ela se limitou a responder com um olhar aborrecido e desmontou quando
Urso Sábio chegou com Garra de Ferro. Os cavalos haviam se acostumado
somente um pouco à presença do urso, e o xamã em geral viajava um pouco
afastado do grosso da companhia, sacolejando no dorso da criatura. Havia uma
estranha cautela na atitude dos lonaks para com Urso Sábio, movendo-se em
volta do velho num silêncio circunspecto, e ele era o único dos forasteiros que
não precisava compartilhar uma história junto à fogueira.
— Olá! — cumprimentou Cara, coçando a cabeça imensa de Garra de Ferro,
o animal bufando de prazer e agachando-se aos pés dela, embora seus ombros
ainda batessem no peito da mulher.
— Precisa caçar mais — disse Urso Sábio a Vaelin. — Mais carne.
— Nós temos carne — rebateu Alturk. — Suficiente para pelo menos um mês
de viagem.
— Não no gelo — insistiu o xamã. — Precisa de mais e mais.
— De onde? — Alturk gesticulou para a vastidão estéril ao redor deles. —
Não há nada para se caçar aqui.
Urso Sábio olhou para o lonak por um momento e então soltou uma de suas
gargalhadas, apontando para o litoral.
— Mar traz presentes, Homem Pintado.
***
Urso Sábio desapareceu com Garra de Ferro por várias horas, e ao retornar os
conduziu até um penhasco que dava para a baía que servia de lar para os
animais. Havia pelo menos quarenta deles na costa rochosa, os corpos gordos e
cobertos de pelos arrastando-se de um lado para outro enquanto brigavam e
gritavam uns com os outros, expondo presas impressionantes.
— O que são eles? — perguntou Lorkan, mantendo a voz num sussurro,
apesar de estarem a uma distância considerável das criaturas.
— Lobos-marinhos — respondeu Dahrena. — Temos esses animais nas
costas setentrionais dos Confins, embora eu não me lembre de já ter visto algum
tão grande.
— Grande — concordou Urso Sábio com um aceno contente de cabeça. —
Carne grande para levar no gelo.
— Vai estragar — disse Alturk. — E não temos sal para preservar tanta carne
assim.
Intrigado, Urso Sábio respondeu franzindo o cenho e foi necessário algum
tempo até Vaelin traduzir o significado.
— Estragar, rá! Carne não estraga no gelo. Frio demais. Basta defumar sobre
o fogo. Dura muitos, muitos dias. — Ele fez sinal para Kiral e partiu na direção
de uma trilha estreita que levava até a praia. — Nós caçamos, vocês acendem
fogueiras.
Eles trabalharam no litoral durante boa parte de outra semana, acendendo
fogueiras e matando os desafortunados lobos-marinhos seguindo as instruções de
Urso Sábio. O xamã esfolou a primeira vítima com uma habilidade rápida e
natural, recolhendo o couro inteiro com o que pareciam ter sido apenas alguns
golpes de sua faca, um feito que nenhum deles conseguiu igualar, apesar do
trabalho contínuo. A carne foi cortada em tiras e pendurada sobre as fogueiras
para serem defumadas enquanto os couros eram separados para serem curtidos,
o xamã deixando claro que precisariam deles mais tarde, voltando o olhar com
frequência para a linha branca no horizonte.
— Fizemos a viagem tarde demais? — perguntou Vaelin a ele na última noite.
Eles estavam sentados juntos num rochedo próximo da praia de cascalhos onde o
trabalho sangrento havia terminado, enquanto Garra de Ferro mastigava satisfeito
uma pilha de entranhas ali perto.
— Ainda tempo. — Urso Sábio ergueu a mão, formando um espaço estreito
com o polegar e o dedo indicador. — Tempo pequeno. — Ele olhou por sobre o
ombro para o acampamento, onde um grupo de Senthar escutava enquanto Kiral
traduzia a versão um tanto obscena que Lorkan contava da Filha do Lenhador, um
conto sobre amor não correspondido que envolvia assassinato e adultério, ainda
que em geral não em tal quantidade e com tantos detalhes.
— Nem todos chegar nas ilhas — prosseguiu Urso Sábio. — Jeito das coisas
no gelo. Sempre leva alguns, até mesmo Povo Urso.
— As ilhas? — perguntou Vaelin.
— Onde vamos. Outro lado do gelo. Já foi casa do Povo Urso.
— Eu pensei seu povo vivia no gelo.
Urso Sábio sacudiu a cabeça, olhando mais uma vez para o gelo. Parecia
brilhar, iluminado por uma luminescência verde-clara no céu noturno que os
lonaks chamavam de Sopro de Grishak, em homenagem ao seu deus do vento.
— Só tempos pequenos — disse Urso Sábio. — Nossa viagem para a sua terra
mais tempo no gelo que Povo Urso passou.
Vaelin lembrou-se das pessoas emaciadas e de olhos encovados aglomeradas
no Riacho Água de Aço, uma nação criada para sobreviver aos climas mais
severos e ainda assim vencida pelo gelo.
— Eu jamais pediria a alguém que fizesse isso se não soubesse em meu
coração que é algo que precisa ser feito — disse ele.
CAPÍTULO SEIS
Lyrna
A fúria plena do inverno chegou cedo aquele ano, a chuva forte dando lugar à
neve com uma rapidez indesejada, os tetos de lona de Varinshold vergando-se
sob o seu peso. Ly rna havia ordenado que se estocasse lenha, mas a intensidade
do frio pegou muitos de surpresa e houve alguns que pereceram em suas garras,
principalmente os idosos e os enfermos. Outros foram encontrados do lado de
fora das muralhas da cidade, sem roupas quentes, os rostos congelados
geralmente serenos, aceitando o destino. A invasão privara muitos de suas
famílias e os deixara vulneráveis ao desespero, mãos preciosas entregues a um
pesar que não tinha fim.
Apesar do frio e das privações, o trabalho continuava, a Forja produzia armas
numa velocidade furiosa e os construtores de Davern haviam entregado à Rainha
mais três navios em menos de um mês, o ritmo de construção sendo acelerado à
medida que se acostumavam com as novas técnicas.
— A senhora devia esquecer o ouro dos Confins, Alteza — aconselhara
Davern um dia com o seu sorriso costumeiro. — Quando a guerra acabar, esta
terra enriquecerá só com a construção de navios.
Na verdade, Ly rna com frequência desejava poder esquecer-se do ouro. O
Senhor da Torre em exercício, Ultin, era um correspondente frequente com os
seus pedidos de mais mineiros, e os escribas do Senhor Feudal Darvus eram
escrupulosos na contagem e pesagem de cada lingote que chegava a Porto
Gélido, a ponto de atrasar o envio subsequente aos mercadores alpiranos. Se
Vossa Alteza enviasse mais escribas, escrevera o velho em resposta à repreensão
formulada por Ly rna de forma amigável, tenho certeza de que o fluxo do ouro
seria retomado com toda a velocidade. Ela resistiu à tentação de despachar Lorde
Adal com um decreto formal desfazendo o acordo de Darvus com Vaelin e
colocando o comércio do ouro sob o controle da Coroa. Entretanto, como o seu
Ministro da Justiça sempre fazia questão de lembrá-la, ela já havia exercido a
Palavra da Rainha com uma frequência que fazia o seu pai parecer o modelo de
um governo de não intervenção, e odiaria ganhar a reputação de colocar de lado
leis inconvenientes.
O Aspecto Dendrish assumira a tarefa não invejável de ouvir petições,
incomodando-a somente com os casos da maior importância ou complexidade.
Ele também fora obrigado a reconstituir um sistema de tribunais numa terra
agora severamente desprovida de advogados ou magistrados, obtendo a
permissão de Ly rna para uma reorganização completa da máquina judiciária do
Reino.
— Três Juízes Superiores? — perguntou Ly rna ao ler o plano dele. — O papel
de juiz mais graduado não deveria ser seu, Aspecto?
— Poder demais delegado a um único oficial frequentemente é uma receita
para a corrupção, Alteza.
Ly rna franziu a testa de forma jocosa. Apesar de possivelmente ser o homem
menos agradável que ela já conhecera, fora o felizmente falecido Darnel, o
Aspecto ganhara depressa uma reputação de grande discernimento e rígida
imparcialidade, relatando cada tentativa de suborno e decretando punições
sumárias ao transgressor.
— O senhor se sente corrompido pelos seus deveres? — perguntou ela.
— Não ficarei neste cargo para sempre. — Havia um peso em suas palavras
que a fizeram parar para pensar, considerando a palidez da pele do Aspecto e a
gordura que desaparecia rapidamente. Ly rna já notara como as palavras dele
costumavam ser pontuadas por um leve ofegar, e ele parava para tossir com
uma frequência desconcertante.
— Três juízes — disse ela, voltando ao documento. — Suponho que para
garantir que as suas decisões não cheguem a um impasse?
— Exato, Alteza. Todas as decisões estarão sujeitas à sua aprovação,
naturalmente.
— Além disso, notei que não há menção à Fé no seu código corrigido de
transgressões criminais.
— A Fé diz respeito à alma e ao Além. A lei diz respeito apenas ao Reino e
aos seus súditos.
— Muito bem. Precisarei de tempo para pensar bem a respeito disso.
— Obrigado, Alteza. — Ele se curvou, tentando conter sem sucesso uma tosse
com um lenço rendado, que estava manchado de vermelho quando o afastou da
boca. — Perdoe-me.
— Perdoo. Também ordeno que o senhor vá ver o Irmão Kehlan
imediatamente e siga qualquer instrução que ele lhe der.
O Aspecto assentiu com relutância quando ela largou o documento.
— Nem meu irmão nem meu pai tentaram uma mudança tão radical nas leis
do Reino.
O Aspecto Dendrish ofegou, seus olhos levemente úmidos ao responder:
— Tudo mudou neste Reino, mais do que eu gostaria. Mas desejos não
tornam uma terra adequada para se viver.
— Eskethia. — Trinta e Quatro bateu com um dedo no mapa onde uma extensão
de mais de trezentos quilômetros do litoral volariano ia de norte a sul. — Uma das
últimas províncias a sucumbir ao domínio volariano. As pessoas livres de lá
podem estar menos inclinadas a lutar pelo império. Além disso, Nova Kethia
abriga o maior mercado de escravos das províncias ocidentais. Muitos dos
escravos capturados na sua terra natal ainda estarão lá, aguardando pelos leilões
de inverno.
— Bem guarnecida? — perguntou Frentis, mas quem respondeu foi Lekran.
— Pelo menos uma divisão — disse ele. — Como disse o nosso amigo, os
eskethianos nunca deixaram de lado o ressentimento pela perda de sua soberania,
ainda que tenha ocorrido há séculos.
Frentis examinou atentamente o mapa, medindo a distância de Eskethia a
Volar. Perto o bastante para ameaçar a capital, mas distante o suficiente para
garantir que quaisquer forças enviadas contra nós não tenham tempo de retornar
quando a Rainha desembarcar. Ele ergueu o olhar para Belorath.
— Capitão?
— Não estou familiarizado com esse litoral. Pode levar algum tempo para
encontrar um local adequado para o desembarque. Felizmente, a tempestade que
está chegando deve ocultar dos navios de patrulha a nossa aproximação.
Frentis assentiu.
— Eskethia, então — disse ele, odiando-se pelo pavor que tomava conta de
seu peito, sabendo que a decisão significava que as suas semanas de sono sem
sonhos logo teriam de ser abandonadas. Só mais uma noite, disse a si mesmo. O
que ela pode fazer em apenas uma noite?
Houve um tempo em que ela os teria feito assistir, deleitando-se com a sua
impotência enquanto se retorciam nas amarras, testemunhas desamparadas do
assassinato de suas famílias. Porém, por motivos que não conseguia compreender,
tais diversões já não lhe interessavam, e ela se contentara em reuni-los no topo da
Torre do Conselho, parados no parapeito com a ponta de uma espada encostada
nas costas de cada um, vendo a fumaça e as chamas subirem dos distritos mais
abastados da cidade enquanto suas propriedades eram devastadas. Era quase
meia-noite e as chamas eram intensas, embora eles estivessem a uma altura
grande demais para que pudessem ouvir os gritos. Apesar de toda a sua vitalidade
sobrenatural, aqueles poderosos do império revelavam-se agora velhos, curvados
pelo pesar, chorando ou sufocando súplicas desesperadas por misericórdia,
mantidos de pé somente pela promessa de uma morte instantânea caso vacilassem.
— Compreendo que esta pode ser uma afirmação redundante, Honoráveis
Conselheiros — diz ela. — Mas o Aliado não está nem um pouco impressionado
com os seus esforços para tornar o seu grande plano realidade.
Ela se aproxima do simplório de cabelos grisalhos, aquele de cujo nome ainda
não consegue se lembrar, embora tenha quase certeza de que o homem devia ter
conhecido o seu pai na juventude. Ele está vestindo o traje formal de um
Conselheiro, vermelho da cabeça aos pés, apesar de uma mancha reveladora
estar se espalhando pelo tecido em volta de suas pernas.
— Apenas um décimo das forças necessárias foram reunidas — diz ela ao
homem grisalho um tanto pungente —, enquanto vocês me vêm com uma tirada
interminável de desculpas cada vez mais patéticas. O Aliado estabeleceu um
grande destino a este império, enquanto vocês chafurdam nos seus confortos e
ficam cegos à ameaça crescente do outro lado do mar.
Ele tenta implorar, mas as suas palavras saem num balbucio incoerente de
saliva e lágrimas. Ela o deixa balbuciando e volta o olhar para o homem parado
atrás do Conselheiro, trajando uma armadura leve como a dos Kuritai, mas
armado com apenas uma espada, a lâmina mais longa e mais estreita do que o
padrão volariano, na verdade similar ao padrão asraelino. Além disso, diferente
dos Kuritai, a sua armadura é laqueada de vermelho em vez de preto. O homem é
de altura mediana, mas tem um corpo definido quase à perfeição, produto de
décadas de cruzamento e anos de condicionamento. Sempre fora uma ilusão
persistente entre aqueles boçais de vida longa que os Kuritai eram os soldados-
escravos definitivos, incapazes de serem aprimorados, e agora ali estavam, mais
uma vez mostrando estarem fatalmente errados.
O espadachim está ciente do escrutínio dela e responde ao olhar com um
aceno respeitoso de cabeça e um sorriso de expectativa nos lábios. Eles foram o
projeto mais estimado do Aliado durante séculos, um soldado-escravo capaz de
pensar assim como de obedecer, mas sucessivas gerações mostraram-se
decepcionantes, difíceis ou fáceis demais de serem controladas. Foi o seu amado
que fornecera a pista; durante o tempo que ele passara nos fossos, ela o estudara
atentamente, percebendo que ele se tornava mais mortal quando o domínio era
enfraquecido, quando a sua fúria acrescentava uma velocidade preciosa aos seus
golpes. Então, eles começaram a mudar a dieta de drogas dos soldados-escravos,
a alterar de forma sutil o regime de treinamento, livrando-se daqueles que não
possuíam o temperamento necessário. Em poucos anos, os resultados alcançados
foram… impressionantes.
— Aproxime-se — diz ela ao espadachim, cujo sorriso se alarga ao obedecer,
cravando a espada nas costas do Conselheiro. O grito é longo enquanto o homem
mergulha em direção ao chão. Ela não se incomoda em ver o resultado,
gesticulando para cada um dos espadachins; os Conselheiros são forçados para
além da beirada com graus variados de pânico e terror, alguns implorando
enquanto caem, como se suas súplicas pudessem vencer a gravidade. Pouco
depois, resta apenas um. Ele está empertigado, olhando fixamente para os bairros
residenciais ao norte, onde sua casa de campo está queimando, o lago ornamental
que a cerca fornecendo um belo reflexo no ar parado daquela noite.
— Nada a dizer, Arklev? — pergunta ela.
Ele não reage, nem mesmo para virar a cabeça. Ela se aproxima, achando a
postura dele estranhamente nobre, estoica diante da morte, recusando-se a notar o
inimigo. Uma clássica pose volariana, digna de uma estátua.
— Eu sempre me perguntei… — diz ela, apoiando os braços no parapeito ao
lado dele. — Foi você que propôs ao Conselho me usar para assassinar o meu pai?
A pergunta é inútil, ela sabe. Ele não irá falar com ela. Ela é uma inimiga
indigna, desprovida de consideração, merecedora de tanto respeito quanto o tigre
que devora o viajante incauto.
Em vez disso, ele decide surpreendê-la.
— Não foi uma proposta — diz ele, o rosto ainda tranquilo e a voz firme. — Foi
uma ordem, transmitida pela criatura que você chama de Mensageiro.
Ela olha para Arklev por um momento e então gargalha. Foi uma recompensa
ou uma provocação?, ela se pergunta.
— Ordenei que a sua esposa e os pirralhos gerados mais recentemente sejam
mortos depressa — diz ela. — Achei que lhe devia isso.
Ele nada diz, sua compostura ainda intacta. Ela brinca com a ideia de deixá-lo
de pé ali por um dia inteiro, curiosa para ver quanto tempo levará até que suas
pernas se curvem, mas mais uma vez encontra o seu apetite por prazeres
diminuído naquela noite.
— Leve-o para a masmorra — diz ela ao espadachim parado atrás do
Conselheiro.
Arklev olha para ela horrorizado e então se inclina para a frente, tentando
jogar-se do parapeito, mas o seu guarda é mais rápido e o agarra pelas pernas,
puxando-o para trás.
— Mate-me! — grita Arklev furioso. — Mate-me, sua cadela pestilenta!
— Você ainda tem muito a fazer, Arklev — diz ela com um sorriso de desculpas.
Ele continua a se debater enquanto o guarda o arrasta para a escada, e seus gritos
ecoam durante todo o caminho até lá embaixo.
Ela se demora um pouco, olhando para as chamas, perguntando-se quantos
dos que viviam na cidade abaixo tinha alguma ideia do que aquilo significava, do
mundo diferente que os receberia pela manhã, sua mente sendo tomada por uma
melodia confusa agora familiar.
As chamas estão menores quando ela volta a si, a confusão está diminuindo.
Quanto tempo ficou ali? Ela se vira para um dos espadachins, o que matou o
grisalho, e o encontra encarando-a com franca admiração, seus olhos detendo-se
na fenda da túnica que revela um pouco de sua coxa.
— Você sabe o que você é? — pergunta ela ao homem.
— Arisai — responde ele, olhando-a nos olhos com um sorriso. — Um servo do
Aliado.
— Não. — Ela se vira para a cidade. — Você é um escravo. Pela manhã serei
uma imperatriz, mas também uma escrava. Pois agora todos nós somos escravos.
Ela está caminhando em direção à escada quando é atingida pela sensação do
retorno dele, como que por uma martelada. Ela cambaleia e cai de joelhos.
Amado! Sua canção aumenta em boas-vindas e presságio, as mesmas notas que
sempre cantou na presença dele. Ele está perto, ela pode sentir, o oceano não
mais entre eles. Amado, está vindo até mim?
A canção muda ao tocar o ódio dele, o seu doce ódio, e uma visão surge na
mente dela, nebulosa, mas nítida o suficiente para discernir um trecho de litoral,
ondas altas quebrando-se numa praia rochosa, uma única palavra na voz dele, a
sua voz maravilhosa repleta de ódio: Eskethia.
Eles ergueram uma pira para o marido de Lissel no pátio, ensopando de óleo a
madeira empilhada antes de fazer o mesmo com a casa de campo. Ela deixara o
proprietário vivo, embora o homem mal estivesse consciente, pendurado nos
postes, ensanguentado e arrasado. A mulher pegara emprestada uma faca de
Illian e podia-se ver um pequeno volume vermelho na grande poça de sangue
sob as pernas abertas do volariano. Frentis supôs que o homem provavelmente
acharia as chamas misericordiosas.
Eles partiram para leste quando começou a escurecer, a casa de campo em
chamas lançando uma coluna alta de fumaça para o ar às suas costas. Os
estábulos forneceram meia dúzia de carroções, mas cavalos suficientes apenas
para dez pessoas. Frentis enviou Mestre Rensial e Lekran para fazer o
reconhecimento da rota que tomariam e colocou os outros de ambos os lados da
pequena coluna. O Varitai libertado ia sentado na traseira de um dos carroções,
balançando a cabeça, as feições franzidas numa perplexidade intensa. Eles
haviam conseguido arrancar somente algumas palavras dele, que disse se
chamar Oito antes de expressar um desejo veemente de saber quando receberia
a sua próxima dose de karn.
— É uma mistura de várias drogas — explicou Trinta e Quatro. — Subjuga o
espírito, entorpece a memória e aprisiona a vontade. Ele sentirá falta esta noite.
Frentis lembrou-se das noites que Trinta e Quatro passara contorcendo-se e
gemendo na floresta após ter jogado fora o próprio frasco. Sua recuperação fora
rápida, mas ele era um homem de considerável força de vontade e pelo menos
tinha a memória da liberdade, enquanto Oito evidentemente fora um escravo
desde que nascera.
— Nós libertamos ou amaldiçoamos esse homem? — ponderou ele em voz
alta.
— A liberdade nunca é uma maldição, irmão — insistiu Trinta e Quatro. —
Mas com frequência é uma estrada difícil.
Frentis virou-se quando ouviu um grito vindo da retaguarda e avistou um
pequeno grupo de figuras correndo da casa de campo em chamas. Ele parou o
cavalo e aguardou se aproximarem, Tekrav seguido pelo grupo de garotas e mais
alguns dos escravos mais jovens, todos carregando vários fardos de roupas e
objetos de valor.
Tekrav parou a alguns metros de distância, arfando e olhando para Frentis
num apelo desesperado. Atrás dele as garotas e os homens se amontoaram, sem
tanto medo quanto antes, mas ainda cautelosos.
— Honorável Cidadão… — começou Tekrav, calando-se quando Frentis
ergueu a mão.
— Meu nome é Irmão Frentis da Sexta Ordem — disse ele. — Se vocês se
juntarem a nós, serão livres, mas também serão soldados. Não ofereço proteção
e nenhuma promessa de vitória.
Tekrav hesitou, olhando para trás, para os companheiros, em busca de
orientação. Eles se remexeram pouco à vontade até que alguém falou, uma
garota de pele escura que não devia ter mais de vinte anos, a voz com um leve
traço de sotaque alpirano:
— Seus homens não vão tocar em nós?
— Só se vocês quiserem — disse Draker, abaixando depressa a cabeça diante
do olhar irritado de Frentis.
— Vocês não serão maltratadas de forma alguma — prometeu Frentis à
garota.
Ela trocou olhares com os outros e então avançou, assentindo com a cabeça.
— Nós vamos nos juntar a vocês.
Frentis passou rapidamente os olhos pelos fardos que carregavam e avistou o
brilho revelador de ouro e prata entre os cobertores e roupas enrolados.
— Peguem quaisquer armas que tiverem — disse ele. — Mas não podemos
ficar sobrecarregados com saques. Joguem fora o resto.
Ele permaneceu sentado na sela e aguardou que obedecessem, jogando fora
as taças e pratos brilhantes com graus variados de relutância. Tekrav retraiu-se ao
colocar com delicadeza no chão uma pequena tapeçaria bordada a ouro.
— Irmã Illian — chamou Frentis. — Estas pessoas estão sob os seus cuidados.
Comece o treinamento delas pela manhã.
Eles acabaram sofrendo apenas uma baixa; uma das pessoas do Reino recém-
libertadas demonstrara um excesso de coragem quando Illian as conduziu por
sobre o muro que protegia a face sul da casa de campo. A casa principal já havia
sido tomada e os Varitai restantes estavam sendo forçados a recuar para o pátio
central, formando um círculo compacto ao redor de seu senhor e da família dele.
O homem cometera o erro de ir recebê-los na entrada principal, seu sorriso largo
desaparecendo quando a máscara de seda preta de Tekrav caiu do rosto e o
machado de Lekran abateu o Varitai mais próximo. Apesar do choque, o
proprietário teve presença de espírito suficiente para organizar uma defesa
apressada ao fugir para dentro de casa, ainda que não tivesse sido rápido o
bastante para organizar uma fuga, o que deveria ter sido a prioridade.
Frentis havia mandado os combatentes se afastarem do ajuntamento de
Varitai e colocara os arqueiros para trabalhar quando os recrutas de Illian
pularam o muro. O jovem correra na direção do Varitai sem armadura e
carregando somente uma machadinha, o rosto revelando um ódio profundo
nutrido durante os meses de cativeiro. Ele conseguiu enterrar a machadinha no
crânio de um Varitai antes que uma dúzia de golpes rápidos de espada o matasse.
No entanto, o rapaz desorganizara as fileiras dos Varitai o suficiente para que os
recrutas seguintes avançassem e rompessem a formação, os homens golpeando
com porretes e machados e as garotas apunhalando com as adagas que Illian
distribuíra. Praguejando, Frentis ergueu a espada e conduziu os seus combatentes
para o meio da batalha, Lekran soltando um grito de alegria ao saltar e derrubar
um Varitai com um chute no peitoral do homem e desferir um golpe descendente
com o machado.
Acabou rápido, e todos os Varitai haviam sido mortos, assim como o
proprietário e a sua família. O proprietário estava caído sobre os corpos da
esposa e do filho, um garoto que não devia ter mais de quinze anos, as sedas
pretas de seu pai rasgadas numa dúzia de lugares e ensopadas de sangue.
— Eu tentei contê-los, irmão — disse Illian, abaixando o rosto em
arrependimento. — Mas a gente do Reino está cheia de fúria e os outros não
entendem uma palavra do que digo.
A reprimenda morreu em seus lábios diante da evidente consternação dela.
— Recolha as armas e as armaduras — disse Frentis. — Então vasculhem a
casa. Entreguem quaisquer documentos que encontrarem a Trinta e Quatro.
Draker o chamou do alto do muro voltado para oeste, agitando o porrete.
— Cavaleiros se aproximando, irmão.
Frentis correu para fora, onde Rensial aguardava, montado e com a espada
desembainhada. Frentis montou no próprio cavalo e soltou o arco da sela.
— Mestre — disse ele, trotando até o lado de Rensial. — Vamos?
Eles conseguiram capturar vivos dois dos cavaleiros, que desmaiaram ao caírem
das montarias quando a espada de Rensial cortou com precisão as amarras de
suas selas. Frentis cuidou do resto com o arco; nenhum dos Varitai chegou perto o
suficiente para tentar uma investida, demonstrando uma incapacidade típica de
compreender quanto a sua causa era perdida.
Conforme prometido, ele entregou os prisioneiros a Artesão. Vaelin insinuara
que o homem tinha uma mente perturbada, e seu comportamento durante a
viagem ajudara em muito a confirmar isso, de modo que era estranho
testemunhar a grave compreensão em seu rosto ao examinar os dois Varitai
inconscientes.
— Grande dor — disse ele em voz baixa.
— Dor pode trazer liberdade. — Frentis ergueu a bolsa que continha o
suprimento do elixir lonak. — Isso me libertou. Irá libertá-los, com a sua ajuda.
Os gritos foram terríveis, erguendo-se ao céu noturno enquanto se reuniam no
pátio para fazer uma refeição com os espólios saqueados. Os escravos
receberam a libertação de modo ainda pior do que na primeira casa de campo, e
vários choraram ao verem o corpo de seu mestre.
— Ele era econômico com o chicote — explicou Lemera. — Permitia que as
crianças que tinha com as escravas de prazer vivessem. Geralmente elas são
expostas e deixadas para morrer. Ele ficava com elas até que tivessem idade
suficiente para serem vendidas. Um homem generoso.
— Essas pessoas me dão nojo — disse Draker quando Trinta e Quatro
traduziu, lançando um olhar sombrio para os escravos que pranteavam o corpo
do mestre. — Calem a boca, seus cães estúpidos! — Eles se espalharam quando
Draker jogou neles uma coxa de frango parcialmente comida, fugindo para a
escuridão ou voltando para os seus dormitórios, amedrontados demais para
perguntar sobre qual seria o seu destino.
Os gritos dos Varitai cessaram de forma abrupta, e o silêncio que se seguiu
pareceu durar uma eternidade. Frentis passou os olhos pelos seus veteranos
sentados em volta da fogueira, pela primeira vez compreendendo a magnitude da
tarefa que tinham pela frente. Um punhado de gente contra um império sempre
foi uma causa perdida. Soubera disso desde o dia em que zarparam, mas e eles?
— Devemos ir atrás dos que fugiram? — perguntou Illian, rompendo o
silêncio. — Sem dúvida vão avisar sobre a nossa chegada.
— Ótimo — disse Frentis. — Estamos aqui para causar o máximo de medo e
confusão possível.
— Precisamos de mais combatentes — disse Lekran. — Os covardes que
continuamos encontrando não irão formar um exército.
— Então talvez estejamos com sorte. — Trinta e Quatro puxou um livro de
registros, abrindo-o e revelando fileiras e mais fileiras de números anotados com
cuidado. — O escriba do mestre mantinha registros excelentes. Ao que parece,
ele fazia muitos negócios com uma Varikum ao sul.
— Varikum? — perguntou Frentis. — Não conheço essa palavra.
— Escola de treinamento — traduziu Lekran. — Para os Garisai, aqueles
escolhidos para tomarem parte nos espetáculos.
— Escravos?
Ele assentiu.
— Mas não como os Varitai ou os Kuritai. Sem domínio para eles. Capturados
na guerra e escolhidos pela força ou pela selvageria. Eu mesmo quase fui
mandado para uma dessas escolas, mas a cota de Kuritai estava baixa aquele
ano.
— O lugar estará bem defendido — advertiu Trinta e Quatro. — Por dentro e
por fora.
Frentis virou-se para Lemera, notando pela primeira a perfeição do perfil da
mulher, a pele lisa e impecável. Algumas horas antes ele a vira apunhalar o
corpo do mestre, de dentes arreganhados e gargalhando de júbilo cada vez que a
faca descia.
— É raro um homem conseguir se defender contra a beleza — disse ele.
CAPÍTULO OITO
Vaelin
Eles percorreram outros dez quilômetros até o anoitecer, mas Urso Sábio não
permitiu que descansassem, instigando-os com acenos impacientes do cajado e
tiradas na própria língua, cliques e grunhidos ininteligíveis que ainda assim
transmitiam a mensagem clara de que demorar significava a morte. Embora frio
o bastante para congelar a respiração que saía em fumaça das bocas, o ar agora
estava calmo, agitado por uma brisa quase imperceptível, o céu límpido e
brilhante com estrelas e a ondulação ocasional do Sopro de Grishak. Um silêncio
tão profundo tomara conta da atmosfera que, quando se escutou, o som foi
suficiente para fazer Vaelin levar as mãos aos ouvidos já cobertos.
Era mais um ribombar do que um estrépito, um tremor fazendo o gelo sob os
seus pés balançar e Cicatriz empinar, alarmado. A companhia inteira foi forçada
a parar quando os outros cavalos soltaram relinchos agudos e tentaram escapar
das mãos de seus condutores. O estrondo continuou com a mesma intensidade, o
som a princípio parecendo cercá-los, mas logo se concentrando na banquisa a
oeste que haviam acabado de atravessar. Vaelin avistou uma cortina de gelo
estilhaçado erguendo-se da superfície e indo de norte a sul tão rápido que ele mal
podia acompanhar o trajeto.
O som cessou sem aviso, deixando um profundo porém breve silêncio, logo
preenchido por um rangido alto, quase bestial em sua intensidade, como se o
próprio gelo estivesse gemendo de dor. Outro tremor sacudiu o gelo, dessa vez
com força suficiente para derrubar muitos deles, a superfície abaixo subindo e
descendo numa grande oscilação à medida que o rangido diminuía. Uma neblina
de neve e gelo havia baixado cerca de um quilômetro a oeste, durando por tempo
suficiente para que Vaelin se perguntasse se aquilo que via podia ser alguma
ilusão de ótica. O gelo poderia mesmo estar se movendo?
Quando a neblina se dissipou, a verdade tornou-se clara: uma grande
extensão de gelo estava à deriva, deixando um rastro de neve pelos flancos
irregulares ao se desprender da massa principal e começar uma viagem em
direção ao sul. Devia ter pelo menos dez quilômetros de uma ponta a outra, uma
ilha recém-nascida onde sem dúvida teriam perecido caso fossem arrastados por
ela.
Kiral o acordou quando o céu ainda estava escuro, sacudindo-o para fora do
abraço adormecido de Dahrena com empurrões insistentes.
— Minha canção está sombria — disse ela. — Algo ao norte.
Ele a acompanhou até a extremidade norte do acampamento, onde
encontraram Alturk ajoelhado em meio a uma larga extensão de gelo manchado
de vermelho, passando as mãos enluvadas pelas marcas deixadas por um
confronto breve, mas furioso. Vaelin possuía suficiente habilidade de
rastreamento para compreender o significado das marcas ao redor, a quantidade
de sangue e os sulcos seguindo para a escuridão além da luz das fogueiras.
— Quantos foram levados? — perguntou ele.
— Um, e o seu pônei. — Alturk levantou-se e franziu o cenho numa mistura
de raiva e perplexidade. — Não conheço essas marcas.
Vaelin olhou para as impressões deixadas na neve: a marca de uma pata,
grande o bastante para ser de um urso-negro, mas não de um pardo.
— Não é um urso — disse Kiral, traçando uma linha em volta de uma das
marcas com a ponta de sua faca de caça. Ela se levantou e tirou o arco do
ombro. — Minha canção logo o encontrará.
— Não. — Ela se virou ao som da voz de Urso Sábio, e o xamã aproximou-se
e cutucou as marcas ensanguentadas com o cajado. — Mandado para deixar um
rastro para vocês seguirem.
— Alguma coisa está nos perseguindo — disse Alturk.
Urso Sábio disse algo no próprio idioma, a boca contorcendo-se em
repugnância como se as palavras maculassem a sua língua. Ele notou o olhar
inquisidor de Vaelin e forneceu uma tradução brusca:
— Povo Gato.
— Eu esperava que todos tivessem morrido. — Dahrena estava sentada perto do
fogo com peles extras cobrindo-lhe os ombros, de mãos dadas com Cara e
Lorkan. — Restaram tão poucos deles após a batalha.
Vaelin resistiu ao impulso de pedir que ela esquecesse aquilo; compartilhando
ou não as forças, o dom dela sempre custava caro e a perspectiva de enfrentar
mais uma vez a Horda do Gelo sem dúvida avivava lembranças horríveis. Ela
notou a preocupação dele e deu um sorriso tranquilizador.
— Só um voo curto. Urso Sábio me garantiu que eles não podem estar longe.
Ela fechou os olhos, o corpo se enrijeceu e o rosto assumiu a máscara sem
expressão que indicava que ela havia voado para fora do corpo, e tanto Cara
quanto Kiral soltaram um grito sufocado diante da sensação.
— Ela toma muito — disse Kiral com uma careta.
— O que é isso?
Vaelin ergueu a cabeça e deu com Alturk ao seu lado, olhando para Dahrena
com profunda desconfiança. Como todos os lonaks, o seu receio para com as
Trevas era óbvio, mas até então ele era o único que ousava perguntar sobre a
natureza do fenômeno.
— Ela está procurando o nosso caçador — disse Vaelin a ele.
O Tahlessa andou de um lado para outro enquanto Dahrena permanecia
sentada e imóvel, o rosto revelando o único sinal de medo que Vaelin já vira no
lonak.
— Há dotados entre o seu povo — disse ele, indicando Kiral com a cabeça.
— Ela serve a Mahlessa, assim como você.
— É bom que sirva, pois tais coisas são de conhecimento apenas da Mahlessa.
Crianças como ela são levadas para a Montanha. Se não forem, crescem e viram
varnish, ou coisa pior.
— O que acontece com elas na Montanha?
Alturk encolheu os ombros.
— Algumas voltam, outras não.
Vaelin olhou de novo para Dahrena, recordando-se da história do lobo e dos
homens que apareceram para arrasar a sua aldeia. O lobo a levou embora antes
que ela pudesse ir para a Montanha. Estava salvando-a da morte ou de algo pior?
O rosto de Dahrena se contraiu e ela soltou um gemido áspero e inclinou-se
sem forças para a frente, sendo impedida de cair no fogo por Kiral e Cara, que a
deitaram com delicadeza. Ela estremeceu por um tempo enquanto o calor
retornava ao seu corpo, e por fim se levantou, a testa franzida dando indicações
de uma dor que mal conseguia controlar.
— Uma rocha — disse ela. — Brotando do gelo a uns dez quilômetros a
noroeste. Apenas um homem, mas muitos gatos. Acho que ele sentiu a minha
presença. E acho que não gostou.
Urso Sábio bateu com força o cajado no gelo, o rosto velho retorcendo-se ao
dizer um nome no próprio idioma. Garra de Ferro pareceu sentir a fúria de seu
mestre e foi para o seu lado com um rosnado de indagação.
— Sabe quem estamos enfrentamos? — perguntou Vaelin.
— Xamã do Povo Gato — respondeu Urso Sábio. — O que mandou eles para
a guerra. Povo Gato chamava de Caminho Sombrio. Povo Urso chamava de
Sem Olhos.
Orena gostava de dançar à tarde, movendo-se pelos jardins sem vida do palácio
com uma graciosidade jovial, às vezes segurando as mãos de Murel e puxando-a
num rodopio, dando a sua risada de menina. Naquele dia ela tinha invernálias nos
cabelos, as pétalas claras brilhando como estrelas na cabeleira escura enquanto
ela girava sem parar.
— Sente-se comigo — disse Ly rna quando a dança por fim cessou, a saia de
Orena esvoaçando quando ela rodopiou até o chão com uma risadinha cansada,
mas feliz. — Eu trouxe bolos.
Elas estavam no que restara de seu antigo jardim secreto, e Ly rna arrumava
os bolos junto a um jogo de chá de porcelana no banco ao seu lado. Orena
gostava muito de bolos, mas continuava sem modos, enfiou um inteiro na boca ao
se sentar, lambuzando os dedos com cobertura e creme.
— Nham — disse ela, uma das únicas palavras que se dispunha a proferir
ultimamente; estava evidente que a fala não tinha muita serventia para aquela
nova Orena. A mente de Ly rna foi inundada por um momento pela sensação de
prazer, a textura do bolo em sua língua, a suavidade do creme. Teve que se
concentrar para afastar as impressões, uma habilidade aprendida com o Aspecto
Caenis, que aconselhava a repetição de uma sequência numérica como o melhor
meio para bloquear os pensamentos imprevisíveis de Orena.
— O Irmão Innis me disse que você não tem prestado atenção nas lições —
disse Ly rna.
Os pensamentos de Orena transmitiram um cansaço aborrecido, e ela engoliu
o último pedaço do bolo e revirou os olhos.
— Aprender é importante — insistiu Ly rna. — Não quer ler de novo?
Orena deu de ombros e seus pensamentos mudaram: alegria e raios de sol, o
giro da dança.
— Você não pode dançar para sempre, minha senhora. — Ly rna pegou a
mão dela. — Preciso lhe dizer uma coisa.
Uma cautela repentina diante da gravidade em sua voz, um medo crescente.
— Preciso me ausentar durante algum tempo.
O medo aumentou e Orena olhou para Murel, que estava de pé ali perto, com
as mãos entrelaçadas e forçando um sorriso consolador. Ela achava que era uma
provação dolorosa ficar na companhia de Orena, o peso do seu dom incontido
difícil de suportar, ainda mais quando resolvia compartilhar lembranças
terrivelmente similares àquelas que Murel lutava para reprimir.
— Sim — disse Ly rna. — Murel também. E Iltis e Benten.
Mais medo, beirando o terror, uma sensação chocante de abandono. Orena
agarrou as mãos de Ly rna, uma súplica desesperada preenchendo os seus olhos.
— Não. — Ly rna forçou uma nota de comando em seu tom. — Não, você
não pode vir conosco.
Raiva misturada com repreensão grosseira quando Orena arrancou as mãos
das de Ly rna e desviou o olhar, o rosto um espelho de seus pensamentos.
— Espero retornar com um homem que creio que possa curá-la — disse
Ly rna em voz baixa enquanto passava os dedos pelas madeixas escuras de
Orena. — Fui egoísta ao deixá-lo ir, mas quando ele olhou para mim, quando
olhou para este rosto, eu soube que ele percebeu que o seu dom havia falhado.
Não posso ser curada, mas acredito que você possa, pois a sua alma é tão
radiante.
As feições de Orena se suavizaram, o rosto perdendo de súbito qualquer
vestígio da criança em corpo de mulher que ela parecia ser. Ela olhou nos olhos
de Ly rna, franziu o cenho… e as lembranças surgiram num rompante.
Ly rna tentou pensar num cálculo para conter o fluxo de imagens e sensações,
mas a torrente era grande demais, sobrepujando os números gotejantes com
uma facilidade que revelava que Orena vinha exercendo muito mais controle
sobre o seu dom do que eles pensavam. O cheiro surgiu primeiro, água salgada,
suor e excremento. Então os sons, os tinidos das correntes, os soluços abafados de
almas desesperadas. A visão e a dor chegaram juntas, os grilhões esfolando
punhos e tornozelos, a silhueta indistinta de prisioneiros encolhidos. Ela estava de
volta ao porão do navio, mais uma vez escrava. O pânico aumentou e então
diminuiu ao notar que a vista diferia das próprias lembranças, os degraus que
levavam ao convés superior agora vistos de um ângulo menos agudo, e,
acorrentada próximo a eles, havia uma jovem de vestido azul, o rosto coberto
pelas sombras, mas o jogo de luzes em seu couro cabeludo sem fios revelando
queimaduras horríveis. No entanto, ela conhecia aquele perfil, vira-o delineado
contra uma fogueira numa distante encosta de montanha alguns meses antes.
Júbilo misturado com uma satisfação maliciosa em seu peito… junto com uma
inebriante expectativa pela recompensa do Aliado.
A lembrança ficou turva, desfazendo-se e reformando-se numa cena de
terror, o casco despedaçado pelo ataque do tubarão, gritos desesperados por todos
os lados. Ela viu a mulher queimada de pé ao lado dos degraus, a chave
pendurada em sua mão. O momento de hesitação foi breve, quase imperceptível,
mas aqueles olhos tinham séculos de prática em discernir fraquezas e ela soube
numa torrente de grave compreensão que aquela nova rainha estava prestes a
abandonar os súditos à própria sorte.
Fazia muito tempo que ela não sentia algo semelhante a assombro, mas a
sensação que tomou conta dela ao observar a mulher queimada voltar para
libertar primeiro o irmão bruto, depois o fora da lei e então, incrivelmente, a si
mesma, foi o mais perto de que ela chegara daquilo em muitas vidas. O
agradecimento balbuciado que oferecera à mulher queimada quando ela
avançou com dificuldade na direção dos degraus a surpreendeu ainda mais, pois
era totalmente genuíno.
As imagens se mesclaram em outra lembrança, o rosto coberto de cicatrizes
de Harvin sobre o seu, os hálitos se misturando quando os lábios se tocaram.
— Eu jamais vou machucá-la — sussurrou ele. — Nem eu nem ninguém.
— Você não pode prometer isso — sussurrou ela em resposta. — Ninguém
pode.
Os dedos dele percorreram os hematomas no pescoço dela, suavizados, mas
ainda escuros o suficiente para estragar a agradável lisura da pele daquela casca.
— Prometo que vou matar todo volariano de merda que eu encontrar, só para
o caso de ter sido ele quem fez isso.
Ela então sentiu algo, algo mais do que o desejo familiar, e isso a incomodou.
— Chega de conversa — disse ela, empurrando-o de cima dela e montando
em sua cintura. — E tente não fazer barulho dessa vez.
A mudança final foi mais abrupta, como se Orena sentisse o seu desconforto.
O convés do Sabre do Mar balançava sem parar naquele dia; as águas em volta
da Ilha de Wensel raramente eram calmas. Ela olhou para a mulher queimada e
para o anel que ela oferecia, perguntando-se por que as lágrimas vinham com
tanta facilidade. Normalmente ela precisava forçá-las, mas naquele dia elas
brotaram de forma espontânea dos seus olhos.
— Creio que tais trivialidades tenham ficado para trás, minha senhora —
disse a mulher queimada, e um ser que havia muito tempo esquecera o próprio
nome soube então que encontrara uma rainha.
Ly rna soltou um grito sufocado quando a última lembrança desapareceu, e se
viu encarando os olhos suplicantes de Orena, um sorriso incerto nos lábios.
— Alteza? — Murel estava ao seu lado, tocando-lhe o ombro com cuidado.
Ly rna levantou-se e puxou as duas para um abraço, Orena agarrando a sua
cintura enquanto Murel apoiava a cabeça em seu ombro.
— Eu sempre tive apenas damas — disse Ly rna. — Nunca amigas.
Os pensamentos de Orena pulsaram uma última vez, repletos de uma
sensação de pesarosa necessidade, uma lição que mal compreendia, mas que
precisava compartilhar: elas podem mudar.
Eles apinharam as docas para vê-la partir, envolvendo-a num tumulto de vivas e
exortações ao subir a rampa para o convés do Rainha Lyrna, todos aqueles que
não haviam sido escolhidos para singrar o oceano e terminar a sua grande
cruzada, os velhos, os jovens e os habilidosos. Muitos choravam, alguns
reclamando abertamente da vergonha e implorando para que pudessem se juntar
a ela. Um cordão de Guardas do Reino os manteve afastados, evitando que os
mais fervorosos saltassem do cais e tentassem nadar até o navio.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — disse Ly rna, cumprimentando o Escudo
quando ele fez uma mesura precisamente formal.
— Alteza — disse ele no tom neutro que ela achava cada vez mais irritante.
— Os navios de Torre Sul e Warnsclave se aproximam. Iremos nos encontrar a
quinze quilômetros da costa, caso o tempo permita.
Ly rna ignorou a zombaria final, ainda que dita sem má intenção. Ele e vários
de seus capitães protestaram contra a decisão dela de zarpar tão cedo no início do
ano, advertindo que as tempestades de inverno ainda seriam frequentes em alto-
mar. O Escudo não se abalou com as tabelas de padrões climáticos históricos
cuidadosamente preparadas pelo Irmão Harlick, que indicavam que o norte do
Boraelino passava por um período de cinco semanas de relativa calmaria durante
os meses de illnasur e onasur.
— Apenas marcas num papel, Alteza — dissera o Escudo, lançando um olhar
de repúdio aos documentos do bibliotecário. — Udonor não sabe ler.
— Talvez ele não saiba, mas eu sei — retorquiu Ly rna. — Os nossos inimigos
não nos esperam até a primavera, e não deixarei passar uma oportunidade de
surpreendê-los. Nossa frota estará pronta dentro de um mês, quando então
zarparemos, com ou sem o senhor.
Ly rna voltou o olhar para o Rei Malcius, que desfraldava as velas ao se
afastar do molhe. Para além dele, uma longa fileira de embarcações igualmente
imensas seguia em direção ao horizonte. Na ponta do molhe ela podia ver uma
figura sentada diante de uma ampla tela apoiada de forma precária sobre um
cavalete. Mestre Benril, que viera registrar a cena, embora o céu cinzento e o
horizonte enevoado fossem um espetáculo lúgubre.
O Escudo curvou-se mais uma vez e começou a gritar ordens que os
afastariam das docas, e a tripulação correu para soltar cabos e içar as vigas nos
devidos lugares para empurrá-los para longe do cais.
— Esperem! — ordenou Ly rna ao avistar uma figura diminuta na proa.
Alornis não tirou os olhos da máquina quando Ly rna aproximou-se, batendo de
leve com um pequeno martelo em algum tipo de tubulação na parte inferior. —
Minha senhora — disse Ly rna.
— Alteza. — Alornis deu uma última batida no tubo, sorrindo de satisfação
com o som produzido.
— Caso o seu trabalho aqui tenha terminado — prosseguiu Ly rna —, eu
gostaria que a senhora desembarcasse.
— Infelizmente, este novo dispositivo precisa de mais ajustes. — Alornis
soltou uma risada claramente forçada e agachou-se para inspecionar a
sustentação da máquina. — Não posso de modo algum deixar que seja levada
nessas condições, Alteza.
Ly rna parou ao lado dela e falou num tom brando:
— Eu prometi solenemente ao seu irmão que a manteria a salvo. Agora,
retire-se do navio, ou ordenarei que Lorde Iltis o faça para a senhora…
— Eles mataram Alucius! — Alornis girou na direção dela, o martelo voando
pelo convés ao ser jogado de lado, o rosto lívido. Seu grito fez com que um
silêncio glacial tomasse conta do convés. — A senhora prometeu justiça. — A voz
de Alornis estava embargada, embora forçasse as palavras a saírem; o olhar
estava lacrimoso porém firme. — Eu percorri todos os cantos deste Reino
registrando mortes e destruição a cada quilômetro, e trabalhei durante meses
sem dormir para lhe fornecer estes instrumentos mortais. Tudo isso sem pedir
recompensas ou esperar algum favor, porque a senhora prometeu justiça, e eu
quero a minha.
Ele nunca me perdoará por isso, pensou Ly rna. Mesmo que ela sobreviva.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — disse Ly rna, e virou-se. — Sigamos em
frente, por favor.
Os primeiros dias foram difíceis, o mar agitado o suficiente para privar a frota de
qualquer coesão, e muitos dos navios eram perdidos de vista sob a chuva quase
constante. Por ordem do Escudo, cada embarcação tinha navegadores
experientes a bordo, a maioria deles meldeneanos, a quem se podia confiar que
mantivessem um curso a leste independentemente do clima. Ainda assim, havia
momentos em que Ly rna olhava para a muralha cinzenta e oscilante que os
cercava e tinha de lutar contra a sensação de que estavam navegando sozinhos.
Abaixo do convés, o regimento de Lorde Nortah sofria de forma constante
com enjoos e a vida a bordo. Eles tinham de ser levados em grupos para o
convés superior para respirarem ar fresco e se exercitarem, a maioria
atrapalhando-se com os exercícios, movendo-se com uma letargia negligente,
embora a presença de Ly rna parecesse fornecer algum estímulo para se
esforçarem mais. A mulher esguia com as adagas, de quem Ly rna se lembrava
de Alltor, a cumprimentou com uma longa mesura ao sair para a luz do dia na
terceira manhã desde a partida de Varinshold, e em seguida começou uma série
de exercícios de esgrima com uma energia fervorosa, até tombar numa
convulsão súbita. Ela ergueu o rosto lívido para Ly rna, mortificada quando a
Rainha aproximou-se para ajudá-la a se levantar.
— P-perdoe-me, Alteza — gaguejou ela. — Embora a minha maldita
fraqueza não mereça perdão…
Ela se calou quando Ly rna levou a mão à sua testa, achando-a fria e pegajosa
demais.
— Guarda Furelah, você está doente.
Furelah piscou surpresa ao ser tratada pelo nome e então se empertigou.
— Não mais do que qualquer outra pessoa aqui, Alteza. — A mulher
cambaleou quando o casco do navio passou por outra onda elevada, e Ly rna
sentiu como ela tremia ao estender a mão para ampará-la pelo braço.
— O que você fazia? — perguntou ela. — Antes da guerra.
— Meu pai tinha um moinho, Alteza. Eu trabalhava lá com ele.
— Então você tem familiaridade com engrenagens e máquinas?
— Era preciso ter, Alteza. Depois que aquele maldito filho da p… O pai de
minha filha não era um homem cumpridor de seus deveres, o que nos forçou a
buscar abrigo com meu pai. Após algum tempo, as mãos dele ficaram rígidas
demais para consertar coisas.
— Venha comigo.
Ela conduziu a mulher até a popa, onde Alornis erguia uma lona sobre uma
das quatro balistas do navio. A chuva e a espuma constantes lhe causavam grande
consternação, e ela tentava manter as suas preciosas máquinas livres da
ferrugem e do sal que danificavam as suas diversas novidades mecânicas.
— Senhora Alornis! — gritou Ly rna, gesticulando para Furelah. — Estou
nomeando esta guarda como sua assistente. Instrua-a sobre como operar a sua
máquina, por favor.
Alornis cumprimentou Furelah com um sorriso intrigado.
— Obrigada, Alteza, mas não preciso de assistência.
— As batalhas começarão em breve, minha senhora — retorquiu Ly rna. — E
elas não têm protegidos. Caso a senhora morra, é importante que os seus
conhecimentos não pereçam com a senhora.
Alornis retraiu-se um pouco com a aspereza do tom da Rainha e então
estendeu a mão a Furelah, que, apesar da evidente náusea, admirava a balista
com extrema fascinação.
— A senhora construiu isso?
— Eu tive ajuda. — Alornis pegou a mão da guarda e a levou até o engenho.
— Venha, é melhor começarmos com as engrenagens.
***
A Varikum ficava sobre uma colina baixa, uma fortaleza vasta de pedra com
cinco bastiões circulares interligados. Eles haviam sido obrigados a esperar
durante três dias nas colinas ao sul até que uma caravana aparecesse; vinte
carroções transportando mantimentos e escravos novos para serem treinados. O
comboio estava bem protegido com uma mistura de Varitai montados e
mercenários Espadas Livres. Felizmente, tudo indicava que notícias sobre as
táticas preferidas do Irmão Vermelho não haviam atravessado o oceano, pois
eles reagiram da forma mais previsível ao avistarem um grupo de escravas
aterrorizadas andando pela estrada. A pessoa no comando da guarda do comboio
despachou de imediato os Espadas Livres a cavalo para investigar, sem se
preocupar em proteger os flancos da coluna de maneira adequada. Frentis
aguardou que os Espadas Livres cercassem as garotas e assistiu enquanto
Lemera contava entre lágrimas a história de seu pobre senhor assassinado,
caindo de joelhos diante do terror daquilo tudo. O Espada Livre que liderava os
cavaleiros cometeu o erro de desmontar para erguê-la, segurou a cabeça da
garota e a virou de um lado para outro, avaliando-a, e então cambaleou para trás
quando a faca oculta de Lemera abriu o seu pescoço.
Os arqueiros cuidaram dos outros Espadas Livres, uma nuvem de flechas
caindo sobre eles das rochas ao redor, e as garotas atiraram-se sobre os que
ainda estavam vivos, caídos na estrada, as adagas subindo e descendo num
frenesi. Frentis conduziu a pé o grupo de escravos libertos treinado por Illian
contra o flanco do comboio, com Retalhador e Dente Negro indo na frente, cada
cão arrancando um Varitai da sela. O destino da coluna foi selado quando Mestre
Rensial e sua dúzia de combatentes montados investiram contra a retaguarda,
despachando rapidamente os defensores restantes. O capataz do comboio foi o
último a tombar, um sujeito tipicamente corpulento, de pé no carroção da frente,
estalando o chicote furiosamente sem nenhum sinal aparente de medo contra os
cavaleiros que o cercavam. Illian abaixou-se sob o chicote e saltou para o
carroção, decepando um dos pés do homem e arrancando com destreza o
chicote de sua mão enquanto ele caía. Na Martishe, eles sempre se empenharam
em capturar vivo qualquer capataz; os escravos recém-libertados costumavam
apreciar isso.
Os escravos somavam mais de trinta pessoas, a maioria homens, sentados
com grilhões em carroções enjaulados no meio da coluna. Havia também meia
dúzia de mulheres, escolhidas pela juventude e pela força.
— Os espetáculos são mais populares quando oferecem certa variedade —
explicou Lekran. — É uma tradição colocar mulheres para enfrentar feras em
homenagem a mitos antigos. Os volarianos descartaram os seus deuses, mas
mantiveram boa parte das histórias, especialmente as sangrentas.
Frentis ficou feliz ao ver que a maioria dos escravos era gente do Reino, com
alguns alpiranos de pele escura do Império Meridional. Pelo tratamento
dispensado ao capataz, também estava claro que dariam recrutas dispostos.
— Você agiu bem — disse Frentis a Lemera, que estava agachada sobre o
corpo de um Espada Livre enquanto o livrava de quaisquer itens úteis ou
brilhantes. Ela respondeu com um sorriso acanhado que desapareceu num
estremecimento ao ouvir o grito do capataz. — A liberdade é uma estrada difícil
— disse Frentis a ela antes de ir encontrar Trinta e Quatro.
Naquela noite, Frentis viu Artesão libertar os Varitai capturados. Eles haviam
parado para passar a noite numa elevação quinze quilômetros ao norte da casa de
campo da velha, e os Varitai, que agora chegavam a cerca de trinta indivíduos,
haviam estabelecido o próprio acampamento, um pouco afastado da companhia
principal. Eles permaneciam um grupo bastante silencioso, uniformes nas
expressões de assombro e curiosidade com que encaravam o mundo, e
raramente se afastavam de Artesão, lembrando a Frentis gamos recém-nascidos
que se aglomeravam em volta de um pai.
Os três prisioneiros estavam sentados no meio do grupo, despidos até a cintura
e impassíveis quando Artesão agachou-se ao seu lado com o cantil na mão. Ele
mergulhou um junco fino no cantil e tocou com a ponta dele nas cicatrizes dos
volarianos, em cada uma das vezes provocando um espasmo de agonia
instantânea e um grito estridente que parecia sempre causar um arrepio intenso,
não importando quantas vezes Frentis o ouvisse. Os Varitai ao redor
aproximaram-se quando os gritos cessaram, os prisioneiros agora encolhidos aos
pés de Artesão. Ele se curvou para tocar um de cada vez, apoiando a mão em
suas cabeças até eles piscarem e despertarem para as suas novas vidas, cada
rosto uma máscara de confusão.
Isso é um ritual, compreendeu Frentis, observando como todos os Varitai se
viraram para erguer as mãos para Artesão, tocando um punho no outro e então
os afastando. Uma corrente partida, lembrou-se ele de suas lições da língua dos
sinais, perguntando-se onde eles a haviam aprendido. Apesar da reverência,
Artesão não demonstrava qualquer sinal de estar desfrutando das súplicas dos
Varitai, respondendo simplesmente com um leve sorriso, a fronte franzida de
tristeza.
— Ele é um sacerdote?
Frentis virou-se e viu Lemera parada ali perto, encarando os Varitai com uma
expressão intrigada.
— Não, um curandeiro — respondeu Frentis no seu alpirano hesitante. —
Tem… grande poder mágico.
— Você está assassinando a minha língua — disse ela, mudando para
volariano com uma risada. — Você a aprendeu no meu país?
Ele se voltou para os Varitai, estremecendo com lembranças que seria
melhor se permanecessem esquecidas.
— Eu viajei muito.
— Eu tinha apenas oito anos quando me levaram, mas as lembranças que
tenho de casa ainda são nítidas. Uma aldeia na costa sul. O mar era repleto de
peixes e azul como uma safira.
— Você voltará um dia.
Ela se aproximou de Frentis, o olhar baixo e pesaroso.
— Não serei bem-vinda lá… arruinada como estou. Nenhum homem fará
alguma oferta por mim e as mulheres irão me evitar pela minha violação.
— Parece que o seu povo possui costumes severos.
— Não é mais o meu povo. — Ela indicou com a cabeça os Varitai, que
agora ajudavam os irmãos libertados a se levantarem, alguns dizendo palavras de
consolo para tranquilizá-los. — Eles são o meu povo agora, e os outros. Você é o
Rei de uma nova nação.
— Já tenho uma, e a minha Rainha dificilmente permitiria outra coroa no
Reino.
— A irmã disse que você é o maior herói da sua terra. Você não merece ter
as próprias terras?
— A Irmã Illian tende a exagerar, e a posse de propriedades é negada aos
servos da Fé.
— Sim, ela tentou me ensinar a sua fé. Uma ideia estranha essa de adorar os
mortos com tanta devoção. — Lemera sacudiu a cabeça antes de se virar e
voltou para o acampamento principal, suas últimas palavras baixas, quase
inaudíveis: — Os mortos não podem retribuir esse amor.
Eles chegaram à região das colinas dois dias depois, e já somavam mais de
quinhentas pessoas, embora muitas não tivessem armas decentes, cerca de
metade delas apenas com porretes ou ferramentas agrícolas. Um número
crescente de recrutas era de fugitivos, que escapavam de seus senhores ao
ouvirem sobre a grande rebelião conforme aqueles que haviam sobrevivido aos
ataques espalhavam as notícias dos feitos da companhia de Frentis. Os fugitivos
traziam notícias do terror que os atacantes estavam causando na população livre
de Eskethia, as estradas setentrionais estavam agora apinhadas de pessoas
vestidas de preto e cinza que buscavam a segurança de terras com mais
guarnições.
Frentis os conduziu para o meio das colinas, uma paisagem essencialmente
descampada, salpicada de árvores pequenas e marcada pelas pedras monolíticas
que adornavam as encostas sinuosas. Ele escolheu um planalto rochoso para o
acampamento principal, com vista desimpedida em todas as direções e protegido
na extremidade norte por um rio de correnteza veloz. Mandou Mestre Rensial e
Illian para fazerem o reconhecimento do terreno a oeste, e eles retornaram após
uma cavalgada de dois dias para relatar que uma guarnição volariana os
perseguia numa velocidade impressionante, mil soldados numa marcha forçada
de oitenta quilômetros por dia.
— Este bando não pode enfrentar mil soldados, Irmão Vermelho — disse
Lekran naquela noite. — Os recém-chegados ainda acham que é um jogo e a
maioria nunca participou de uma luta de verdade.
— Então é hora de participarem — retorquiu Frentis. — Não podemos fugir
para sempre. Levarei os arqueiros para ver se conseguem diminuir um pouco as
fileiras deles. Irmã Illian, faça a sua gente começar a empilhar estas rochas em
algo que se assemelhe a uma fortificação. Você e Draker ficarão no comando do
acampamento até eu voltar. — Ele se virou para Lekran e para a Garisai. —
Posso esperar que vocês realizem uma tarefa sem derramar o sangue um do
outro?
Ivelda lançou um olhar azedo para Lekran, mas assentiu, e o ex-Kuritai
concordou com um grunhido brusco. Eles observaram Frentis desenhar um mapa
na terra, escutando com atenção enquanto ele explicava o papel que
desempenhariam.
— Muita coisa pode dar errado nisso — disse Lekran.
— Mesmo que não funcione, deve pelo menos acabar com metade deles, e
as pessoas aqui terão uma chance ao lutarem. — Frentis levantou-se e ergueu o
arco. — Mestre Rensial, junte-se a mim, por favor.
Como esperara, o ataque de Vinten atraíra atenção para o perímetro sul e eles
seguiram quase sem serem interrompidos ao se afastarem do acampamento,
gritando a cada guarda pelo caminho que estavam sofrendo um ataque e que o
comandante havia sido morto. Não surtiu muito efeito com os Varitai, mas os
Espadas Livres não tardaram a correr para investigar. Somente um tentou lhes
bloquear o caminho, um cavaleiro corpulento de meia-idade com o porte
comum a sargentos do mundo todo.
— Vocês viram o Honorável Comandante tombar? — perguntou ele, uma
fúria sombria visível no seu rosto marcado.
— Dois assassinos — disse Frentis, colocando uma nota de pânico na voz. —
Eles mataram os Kuritai como se fossem crianças.
— Acalme-se — ordenou o volariano na sua voz de sargento, franzindo um
pouco o cenho ao olhar com mais atenção para Frentis e Rensial, seus olhos
demorando-se nas armaduras cobertas de escritos. — De que companhia vocês
são? Quais são os seus nomes e patentes?
Frentis olhou em volta e não viu mais ninguém por perto que pudesse ouvir,
parando de se curvar de medo e empertigando-se.
— Irmão Frentis da Sexta Ordem — respondeu ele, acertando o lábio
superior do sargento com os nós dos dedos. — Estou aqui a serviço da Rainha.
Ele deixou o homem quase inconsciente, mas vivo. Pela sua reação ao ouvir
as notícias, Frentis deduziu que ele havia sido por muito tempo subordinado do
comandante morto, e o filho poderia se beneficiar bastante de um conselheiro tão
leal.
Dallin estava esperando onde o haviam deixado na face leste de um dos
maiores rochedos, segurando firme os cavalos apesar da inquietação dos animais
com o barulho crescente que vinha do acampamento.
— Cavalgue depressa — disse-lhe Frentis, montando. — Nada de descanso
até o sol nascer.
Ela sente o retorno dele com uma torrente de alegria, imaculada pela inimizade
feroz que toma conta da mente dele. Os longos dias de sua ausência foram árduos.
Fora difícil dominar a solidão, antes uma sensação há muito esquecida, que agora
provocava uma dor desesperadora quando ela se entregava às lembranças do
tempo glorioso que passaram juntos. Em vez da voz, desta vez ele oferece uma
visão, e pela clareza ela conclui que ele passou muito tempo vendo aquela cena,
tentando capturar cada detalhe. Ela deduz que o seu retorno não é acidental e que
qualquer artifício que ele vinha usando para ocultar os seus sonhos havia agora
sido removido; ele quer que ela veja.
Mil ou mais Varitai e Espadas Livres jazem mortos num desfiladeiro, em algum
lugar na região das colinas a leste de Nova Kethia, a julgar pela paisagem.
Pessoas em armaduras descombinadas andam por entre os mortos dando cabo dos
feridos e recolhendo armas. Ela se vê dando um sorriso jocoso. Você obteve uma
vitória, amado, diz a ele. Que encantador. Eu procurava alguma desculpa para
executar o governador de Eskethia.
A inimizade fica mais intensa, os pensamentos transformam-se em palavras, o
seu coração palpita ao som da voz dele. Venha me enfrentar. Terminaremos isso.
Ela suspira, passa a mão pelo cabelo e seu olhar recai sobre o oceano cinzento
que se estende para além do penhasco. Está começando a chover; o litoral
noroeste sempre é úmido no inverno, embora as águas estejam mais calmas do
que o esperado. Seus escravos aproximam-se correndo e trazem um toldo,
ansiosos para proteger a Imperatriz das intempéries. Ela os dispensa com um
aceno irritado. São escravos experientes, atentos ao extremo; porém, para uma
mulher acostumada à privação e ao perigo, a sua devoção pelo conforto dela é
irritante, deixando pouco pesar pelo destino iminente deles.
Sinto muito, amado, diz a ele, os olhos agora fixos no horizonte e o coração
batendo mais rápido com a alegria da expectativa. Mas tenho assuntos a resolver
aqui. Você terá que se entreter com os meus escravos por mais algum tempo.
A inimizade diminui, transformando-se numa curiosidade relutante. Ela ri,
jubilante, quando os primeiros mastros surgem no horizonte, e ergue os olhos para
o céu repleto de nuvens. Ela faz sinal para que o capitão de sua escolta se
aproxime, um Arisai como os outros, promovido graças à sua brutalidade
levemente mais controlada.
— Mate os escravos — diz a ele. — Além disso, passamos por uma aldeia a
alguns quilômetros. Não pode haver testemunhas de minha presença aqui. Cuide
disso.
— Imperatriz. — Ele faz uma mesura, com uma expressão de quase adoração,
ainda que, tal como os outros, a crueldade raramente esteja ausente de seus olhos.
Ele se vira e anda na direção dos escravos, sacando a espada.
Os membros dela estremecem ao se virar de volta para o mar, alheia aos gritos
ao invocar o dom. Ela lamenta um pouco a necessidade de fazer isso, pois se
acostumou àquela casca. Contudo, outra a aguarda em Volar, um pouco mais alta,
embora não tão atlética.
É preciso cumprir as formalidades, meu amado, diz a ele, erguendo os braços
e concentrando-se nas nuvens, observando-as dançar em resposta ao dom. É hora
de uma imperatriz receber uma rainha.
CAPÍTULO ONZE
Vaelin
A tempestade seguinte durou mais tempo do que a primeira, dois dias inteiros de
avanço difícil por trás do escudo criado pelo dom de Cara. O esforço constante a
forçara a reduzir o alcance do escudo, obrigando todos a se moverem num grupo
compacto, os guardas de Orven andando ombro a ombro com os Senthar de
Alturk. Apesar de todo o acotovelamento e proximidade indesejada, não houve
problemas; a ferocidade da tempestade que os cercava deixava pouco espaço
para outras preocupações. Cara começou a vacilar no segundo dia, caindo de
joelhos diversas vezes e só conseguindo manter o escudo ao dividir o poder com
Kiral e Marken ao mesmo tempo. Ao anoitecer, todos os outros dotados já
haviam dividido ao ponto de desmaiarem, e Cara estava quase inconsciente,
murmurando em delírio enquanto escorria sangue de seu nariz e olhos.
— Temos que acabar com isso! — gritou Lorkan a Vaelin, mal conseguindo
manter-se de pé. — Ela vai morrer se continuarmos.
Vaelin virou-se para Urso Sábio com um olhar questionador. O velho xamã
franziu o cenho e abriu caminho até a extremidade da companhia, esticando o
cajado para fora do escudo na fúria branca e uivante do lado de fora.
— Vento diminui, mas devagar — disse ele. O xamã hesitou, olhou para Cara
e então se empertigou, decidido. — Fazer círculo, cavalos do lado de fora. Cobrir
toda a pele, ficar bem juntos.
Foram necessárias algumas manobras desajeitadas para posicionar os
cavalos e os pôneis num círculo, e a essa altura Cara havia enfraquecido ainda
mais.
— Pare agora, Passarinha — disse Urso Sábio, mantendo o seu hábito de
ignorar os nomes deles e usar os que escolhia.
— Não posso — sussurrou ela, os olhos fechados e escorrendo sangue. — A
tempestade… o preço.
— Tempestade diminui — disse o xamã, colocando a mão na testa dela. —
Pare agora.
Cara gemeu, piscou por um momento… e o escudo caiu.
O frio foi como uma martelada, arrancando um gemido de dor de cada
garganta ao mesmo tempo que os viajantes encolhiam-se sob o seu peso,
aninhando-se numa necessidade instintiva. Vaelin segurou firme as rédeas de
Cicatriz enquanto Dahrena lhe abraçava a cintura e Kiral encolhia-se contra as
suas costas, entoando em voz baixa, em lonak, as palavras desconhecidas, mas
com um tom ritmado familiar: canção de morte. Os cavalos e os pôneis gritaram
quando o vento os açoitou, alguns pinoteavam e empinavam, aterrorizados,
arrebentando as rédeas que os seguravam e fugindo para dentro da tempestade.
Cicatriz bufou e bateu os cascos no chão, retesando as rédeas nas mãos de Vaelin
ao soltar um relincho alto de protesto, ameaçando arrancá-lo da companhia.
Vaelin rangeu os dentes e puxou as rédeas com força, trazendo o cavalo para
mais perto e pressionando a si mesmo e a Dahrena contra o flanco do animal na
esperança de que o pouco de calor pudesse tranquilizá-lo. Cicatriz relinchou de
novo, mas se acalmou, provavelmente mais pelos efeitos debilitantes do frio do
que por qualquer lealdade instintiva.
O tempo pareceu estender-se enquanto eles suportavam o ataque da
tempestade, cada segundo um teste de resistência. Os cavalos começaram a
morrer após a primeira hora, desabando numa exaustão silenciosa, os cavaleiros
encolhendo-se atrás dos cadáveres que logo congelavam. Vaelin podia ouvir
outras vozes lonaks erguidas na mesma cadência ritmada, mais canções de morte
proferidas ao vento, desaparecendo à medida que os minutos intermináveis se
prolongavam.
Ele começara a se curvar quando sentiu a tempestade amainar, como se o
frio de uma lâmina tivesse sido removido. Soltou as rédeas de Cicatriz e abafou
um grito de dor quando sentiu a vida voltar aos dedos parcialmente congelados.
Dahrena mexeu-se ao seu lado, um sorriso cansado visível em meio ao
amontoado de peles. Para seu espanto, Cicatriz ainda estava vivo, ainda que
tivesse caído de joelhos e a neve houvesse se acumulado em seus flancos; ele
piscou olhos doloridos quando Vaelin lhe coçou as orelhas.
Ao examinarem os animais, encontraram metade dos pôneis lonaks mortos,
assim como um terço dos cavalos dos guardas. Quatro dos Senthar também
haviam morrido, todos guerreiros veteranos com dez anos ou mais do que os seus
companheiros. No que parecia ser um costume lonak, Alturk recolheu os
pertences e os distribuiu entre os outros Senthar quando se reuniram ao redor dos
corpos. Nada foi dito; a única estima visível pelos mortos foi um olhar breve para
os cadáveres antes de se afastarem.
Vaelin foi para o lado de Urso Sábio, observando enquanto o olhar do xamã
percorria o gelo por todos os lados, a preocupação estampada no rosto franzido.
— Qual direção? — perguntou Vaelin.
Urso Sábio continuou a examinar o gelo por mais um momento e então
baixou os olhos.
— Nenhuma.
— Mas o preço…
— Gelo se quebra por toda parte. — O xamã fez um movimento circular
com o cajado de osso. — Nenhum lugar para andar. Dessa vez, nós todos
pagamos preço.
***
Avistaram a primeira ilha quatro dias depois, uma pequena elevação coberta de
neve, alguns quilômetros ao sul, e várias primas maiores apareceram no dia
seguinte. As colisões do pedaço de gelo aumentaram à medida que a banquisa
era constringida pelos canais em meio às ilhas. Após muitas horas de constante
estremecimento e um estrondo ominoso que sacudiu o gelo sob os seus pés, a ilha
parou por completo.
Urso Sábio os conduziu através da paisagem gelada e agora fendida até a ilha
mais próxima, mais alta do que as outras e com rochas nuas que saíam de suas
encostas cobertas de neve. O xamã ficou taciturno ao darem a volta na costa sul
da ilha, chegando por fim até um agrupamento de cabanas sob um penhasco alto.
Tinham formas cônicas, as paredes construídas com couro de foca sobre uma
estrutura de ossos e madeira, e pelo mau estado ficou evidente que estavam
desocupadas havia muito tempo. Em muitas faltava couro e outras estavam
parcialmente em ruínas pela ação constante das intempéries.
— Você conhece este lugar? — perguntou Vaelin ao xamã.
— Acampamento de caça do Povo Urso — respondeu ele, imóvel e com o
rosto inexpressivo.
— Poderíamos seguir em frente — sugeriu Vaelin, sentindo a relutância do
homem. — Encontrar outra ilha.
— Mais próxima a dois dias daqui. — Urso Sábio avançou, movendo-se com
determinação e apontando o cajado para o norte. — Mais tempestade vindo.
Descansar aqui até passar.
Eles consertaram as cabanas o melhor que puderam, usando couro de cavalo
para cobrir as fendas, e a noite chegou depressa, trazendo consigo um vento
cortante. A essa altura eles já estavam acostumados com o temperamento do
gelo, com a velocidade com que uma tempestade podia chegar, e isso fez surgir
um novo nível de cooperação entre os Senthar e os guardas de Orven.
Trabalhavam juntos com uma eficiência silenciosa, aparentemente sem deixar
que a barreira da língua fosse um empecilho.
— O gelo já fez todos os homens irmãos — disse Urso Sábio aquela noite.
Consertaram cinco cabanas, o suficiente para abrigar a companhia inteira da
tempestade que uivava do lado de fora, e os cavalos sobreviventes foram
reunidos numa única cabana com o pouco de forragem que restava. O xamã
estava sentado ao lado da fogueira no meio da cabana, a fumaça subindo até um
pequeno buraco no telhado enquanto ele entalhava um novo símbolo no cajado
de osso.
— A Noite Longa era mais longa antigamente, durava anos, não meses —
prosseguiu ele, os olhos fixos na ponta da faca que marcava o osso. — Sem
tribos, apenas um povo, unido pela Noite Longa. Quando passou, um povo virou
três, não mais irmãos.
Ele parou para assoprar o pó de osso do cajado, revelando um padrão
irregular de pontos, cada um ligado por uma linha.
— O que significa? — perguntou Cara, inclinando-se para a frente. Ela ainda
estava magra de forma alarmante, mas recuperara boa parte das forças durante
o tempo que passaram no pedaço de gelo, embora Vaelin duvidasse que ela
pudesse resistir por tempo suficiente para protegê-los da tempestade no caminho.
Urso Sábio franziu o cenho, procurando as palavras certas.
— Uma história agora contada — respondeu ele por fim, passando os olhos
pelos dotados. — História de jornada e união. Quando tempestade passar,
fazemos nova história, de aprendizado e luta.
Urso Sábio os conduziu para o sudeste três dias depois, as ilhas aumentando em
tamanho e número a cada quilômetro percorrido, algumas até mesmo com
árvores ou arbustos ocasionais quanto mais para o sul seguiam. Entretanto, havia
pouco que pudesse alimentar os cavalos e, acabada a forragem, logo restava
somente Cicatriz, arrastando-se atrás de Vaelin de cabeça cada vez mais baixa.
Quando a escuridão desceu, Urso Sábio reuniu os dotados, tentando transmitir
um pouco dos seus conhecimentos, embora a agitação do xamã, a ignorância
deles e o seu domínio ainda rudimentar da língua do Reino tornassem a tarefa
frustrante.
— Fale! — ordenou ele a Dahrena, erguendo a mão dela e colocando a
palma na própria testa.
— Falar o quê? — perguntou Dahrena, intrigada.
— Não com boca — retorquiu ele, batendo com um dedo na têmpora dela.
— Fale uma palavra, aqui.
Dahrena fechou os olhos e concentrou-se, pressionando a mão com força
cada vez maior contra a testa do velho, mas ele apenas grunhiu, consternado.
— Chame poder — disse ele. — Não todo. Só pouco poder.
Dahrena suspirou e tentou de novo, retesando-se um pouco, o rosto perdendo
a expressão e adquirindo um matiz pálido e familiar.
— Torre! — exclamou Urso Sábio com uma gargalhada de satisfação, e
acrescentou: — Pare agora. Não usar demais.
Dahrena tirou a mão da testa do xamã e dobrou os dedos, com um olhar de
assombro perplexo no rosto.
— Eu não sabia… Todos os dotados podem fazer isso?
— Todos com poder, sim. Dons mudam, poder não. Tudo uma coisa só.
Venham. — Ele reuniu os outros dotados e os levou até os seus gatos guerreiros,
que esperavam placidamente ali perto. Urso Sábio apontou para o maior dos
gatos, que como os outros ainda tinha o pelo bastante emaranhado, mas estava
visivelmente melhor alimentado do que quando foram capturados pelo dom do
xamã. — Fale — disse ele a Dahrena. — Dê ordem.
Dahrena aproximou-se da fera com óbvio receio; apesar de toda a calma
aparente do gato, ela testemunhara a carnificina causada por Dança da Neve,
que geralmente não parecia ser mais ameaçadora do que um filhote grande. Ela
parou a um ou dois metros do gato e estendeu a mão com cautela, na direção da
grande cabeça felina e fechando os olhos para invocar o seu dom mais uma vez.
O gato piscou e então se agachou no gelo e rolou de costas, erguendo as patas.
Dahrena deu uma risada de satisfação e ajoelhou-se para passar as mãos na
barriga peluda do bicho.
— Todos tentar. — Urso Sábio apontou o cajado para os outros dotados e
acenou com ele para os gatos. — Escolher, dar nomes. Seus agora.
Cara avançou com evidente entusiasmo, assim como Kiral, enquanto Lorkan
e Marken foram muito mais cautelosos.
— E se eles morderem? — perguntou Lorkan ao xamã, dando um passo curto
na direção de um dos dois gatos restantes.
— Você morre — disse Urso Sábio. — Não deixar morder.
Vaelin voltou o olhar de repente para Kiral quando ela se levantou do lado do
gato que escolhera, o menor do grupo e com a orelha esquerda mutilada. O
sorriso da lonak desapareceu ao olhar para leste com uma intensidade repentina e
ardente.
— Perigo? — perguntou Vaelin, indo colocar-se ao lado dela.
— Uma nova canção. — Ela se retraiu um pouco, sacudindo a cabeça,
confusa. — Muito antiga, muito estranha.
Urso Sábio disse algo na própria língua ao se juntar a eles, com uma
expressão cautelosa em vez de temerosa no rosto quando acrescentou:
— Povo Lobo.
Ele os conduziu até outra ilha ao raiar do dia, a maior que haviam visto até então,
com grandes extensões de rocha nua e um pequeno aglomerado de árvores e
arbustos na extremidade leste. Vaelin colocou Cicatriz para comer as poucas
folhas que os arbustos podiam oferecer, e o cavalo de guerra bufou de satisfação
ao começar a sua primeira refeição em dias.
— Eu devia ter chamado você de “Força”, não? — perguntou Vaelin,
limpando a geada do pelo do cavalo. — Desculpe por tudo o que você sofreu,
meu velho.
Cicatriz deu outra bufada e continuou mastigando.
Vaelin encontrou Urso Sábio sentado onde a costa da ilha encontrava-se com
o gelo. Garra de Ferro estava sentado ali perto roendo o osso da coxa de um
cavalo.
— Nós vamos, outros ficam — disse o xamã. — Povo Lobo não odeia como
Povo Gato, mas não vão gostar de muita gente no seu gelo.
— Onde podemos encontrá-los?
Urso Sábio deu uma risada leve ao se virar e começar a caminhar, e Garra
de Ferro levantou-se e o seguiu com o osso ainda entre os dentes.
— Eles encontram nós.
Eles seguiram para leste até o céu ficar negro e o fogo verde mais uma vez
dançar nele. Urso Sábio descansou num monte de gelo com formato de um
pequeno pedestal, olhando para o céu e cantando a sua canção aos ancestrais.
— O que você diz a eles? — perguntou Vaelin quando o xamã se calou.
— Povo Urso ainda vivo. Eu ainda vivo, mas não esperar muito agora.
— Você está tão ansioso assim para se juntar a eles? Para ficar mais uma vez
com a sua esposa?
— Ela comigo agora, observando. — Urso Sábio o olhou de soslaio. — Você
acha isso… uma história. Sua palavra… a palavra para história não real.
— Uma mentira.
— Sim. Mentira. Sem palavra para mentira na língua do Povo Urso.
— Uma mentira ainda é uma mentira, mesmo que você não tenha uma
palavra para ela. Mas, não, não acho que seja mentira. Acredito que o seu povo,
e o meu, criou lendas para compreender melhor um mundo que com frequência
não faz muito sentido. E uma lenda se torna a própria verdade com o tempo.
— Lenda é o quê?
— Uma história antiga, contada muitas vezes e mudada cada vez que é
contada. Uma história tão antiga que ninguém sabe dizer se realmente aconteceu.
— Você tinha poder, quando nos conhecer. Canção como Garota Raposa, mas
mais forte. Isso uma lenda?
— Não, é verdade, de fato. Mas, tal como uma lenda, ela teve um fim.
— Não. — Urso Sábio ergueu o cajado e apontou para as luzes dançantes no
céu. — Nada termina de verdade. Lá histórias vivem para sempre.
Ele olhou por sobre o ombro quando Garra de Ferro soltou um rosnado baixo
e ergueu-se para farejar o ar.
— Muitos chegam. — O xamã suspirou e levantou-se. — Bando de guerra.
Manter mãos vazias.
Os falcões-lanceiros chegaram primeiro; sete das grandes aves desceram das
nuvens e os circundaram, ocasionalmente voando baixo o bastante para fazer
Vaelin agachar-se. Ele ouvira de Dahrena histórias suficientes para reconhecer o
poder mortal dos pássaros, mas ainda assim ficou surpreso com o tamanho deles,
calculando que cada um tinha uma envergadura de pelo menos dois metros, os
bicos tão longos quanto pontas de lanças e, não pôde deixar de notar, farpas de
aço reluzindo nas garras.
— Um xamã controla todos esses falcões? — perguntou Vaelin a Urso Sábio.
— Se for forte o bastante. Eles veem e ele vê. — O xamã olhou para o
horizonte a leste, e uma desconcertante nota de presságio pôde ser ouvida em sua
voz: — Poucos fortes o bastante para dominar tantos.
Os pontos negros surgiram no horizonte pouco depois, a princípio cerca de
uma dúzia, mas logo o número aumentou até Vaelin contar mais de cinquenta. Os
pontos transformaram-se em figuras que trotavam ao se aproximarem,
movendo-se com rapidez e graça naturais sobre o gelo. Ao chegarem perto, o
grupo compacto dividiu-se e formou um círculo quase perfeito com Urso Sábio e
Vaelin no centro. Eles se sentaram encarando os dois com uma indiferença
plácida, todos de pelos brancos e maiores do que qualquer lobo que Vaelin já
vira, com exceção de um.
Mais pontos logo surgiram no horizonte, movendo-se com menos graça, mas
quase com a mesma velocidade. A visão era tão fora do comum que Vaelin a
princípio não teve certeza do que era: parelhas de lobos amarrados em fila e
arrastando algo atrás. Conforme se aproximavam, ele percebeu que os lobos
puxavam trenós, cada um com três homens, todos armados com lanças e arcos
de vara plana similares aos usados pelos seordah. Os lobos que puxavam os
trenós eram menores em estatura do que aqueles que os cercavam e
visivelmente menos plácidos, rosnando e tentando morder um ao outro quando os
trenós pararam. Vaelin contou rapidamente as cabeças à medida que os homens
desciam dos trenós; mais de cem, menos do que a sua própria companhia, mas
aquele era o gelo deles, e eles tinham lobos e falcões.
Os guerreiros espalharam-se e formaram um segundo círculo atrás do feito
pelos lobos, e duas figuras avançaram na direção de Vaelin e Urso Sábio. Um
tinha proporções similares às outras pessoas do gelo que Vaelin já encontrara,
com pouco mais de um metro e meio de altura e robusto. No entanto, a segunda
figura tinha quase a mesma altura de Vaelin e ombros largos, mas com uma
aparência magra e atlética.
— Você os conhece? — perguntou Vaelin a Urso Sábio.
O xamã sacudiu a cabeça, a expressão em seu rosto agora mais tensa do que
quando confrontaram Sem Olhos.
— Fazer trocas com Povo Lobo às vezes — disse ele. — Não viver com eles.
As duas figuras pararam a pouca distância, ergueram as mãos e jogaram
para trás as peles que lhes cobriam o rosto. A menor das duas revelou-se uma
mulher de meia-idade com maçãs do rosto elevadas e feições largas típicas do
povo do gelo. Ela encarava Urso Sábio com uma expressão de óbvio
reconhecimento, até mesmo de respeito, embora sua postura continuasse tensa.
Vaelin notou que ela carregava o osso próprio, mais curto do que o de Urso Sábio,
mas adornado com entalhes de forma similar. A figura alta ao lado dela removeu
a máscara de pele, revelando o rosto de um jovem um pouco mais novo do que
Vaelin, de feições sem qualquer traço do povo do gelo. A inquietação de Vaelin
aumentou ao notar a cor do homem: pele clara, olhos e cabelos escuros como
breu, tal como muitos volarianos que já vira.
A mulher disse algo na própria língua dirigindo-se a Urso Sábio, que
respondeu com um aceno de cabeça e algumas palavras.
— Xamã cumprimenta xamã — explicou ele. — É… costume.
A mulher voltou o olhar para Vaelin, examinando-o da cabeça aos pés, e
então acenou para o jovem. Ele cumprimentou Vaelin com um sorriso cauteloso,
transmitindo uma sensação de desconforto juvenil num encontro importante.
— Minha mãe pergunta qual é o seu nome — disse ele na língua do Reino, as
palavras bruscas e com um sotaque carregado, mas facilmente compreendido.
— Sua mãe? — O olhar de Vaelin foi de um para outro e ele ergueu uma
sobrancelha.
— Sim — respondeu o jovem. — Muitas Asas, xamã do Povo Lobo das Três
Ilhas. Sou o filho dela, chamado de Faca Longa com o consentimento do povo.
— É mesmo? — Vaelin o encarou e deixou que o silêncio se prolongasse,
notando como o jovem mantinha os braços relaxados ao lado do corpo. Não
trazia nenhuma arma aparente, mas Vaelin tinha certeza de que ele tinha pelo
menos uma faca debaixo das peles e que sabia muito bem como usá-la. Também
notou como os lobos ficaram subitamente alertas ao seu redor, erguendo a
cabeça como que em resposta a um chamado silencioso.
— Sua… mãe não é a única xamã aqui — disse Vaelin. — Ela comanda os
falcões e você os lobos.
O jovem rangeu os dentes e forçou um sorriso.
— Sim. E perguntamos qual é o seu nome.
— Ouvirei o seu primeiro, volariano. Seu nome verdadeiro. Fui obrigado a
matar seus conterrâneos em demasia para confiar com tanta facilidade.
Os lobos levantaram-se ao mesmo tempo e um rosnado saiu de cada
garganta quando o jovem empertigou-se e disse num tom implacável:
— Não sou volariano.
Muitas Asas tornou a falar, algumas palavras bruscas, mas suficientes para
fazer o jovem conter a raiva, e os lobos relaxaram mais uma vez quando ele
respirou fundo.
— Meu nome de nascimento é Astorek Anvir — disse ele. — E pergunto qual
é o seu nome.
— Vaelin Al Sorna, Senhor da Torre dos Confins do Norte pela Palavra da
Rainha.
Muitas Asas agitou o cajado de osso na direção dele e soltou uma
exclamação gutural, o rosto subitamente tomado pela irritação.
— Minha mãe diz que você tem outro nome — informou Astorek Anvir.
— Sou chamado de Avensurha pelos eorhil — disse Vaelin. — E de Beral
Shak Ur pelos seordah.
— Nós não conhecemos essas palavras — comentou Astorek. — Explique o
que significam.
— Avensurha é a estrela brilhante que aparece no céu matutino. Beral Shak
Ur é a Sombra do Corvo.
Astorek e Muitas Asas trocaram um olhar, a expressão em seus rostos grave.
Não disseram nada, mas, pelo modo como Urso Sábio empertigou-se, Vaelin
percebeu que estavam se comunicando por outros meios.
— Reúna a sua gente — disse Astorek após um momento. — Vocês irão nos
seguir.
— Com que propósito? — perguntou Vaelin.
— Sigam e descubram. — O volariano deu meia-volta e começou a andar na
direção do seu trenó, os lobos levantando-se ao mesmo tempo e acompanhando o
seu mestre de ambos os lados. O rapaz olhou por sobre o ombro para dizer as
últimas palavras: — Ou fiquem aqui e morram quando a Noite Longa chegar.
***
***
Ele me levou até uma taverna tranquila perto do distrito dos armazéns; os
frequentadores eram em sua maioria estivadores, desfrutando de um ou dois copos
de vinho ao final do dia de trabalho. Mesmo levando em consideração a fadiga
evidente dos outros clientes, a atmosfera era sombria a ponto de ser opressiva, e a
maioria estava sentada em silêncio, contemplando o seu vinho. Nós nos sentamos
junto a uma janela e o capitão acendeu o cachimbo, o fornilho cheio com a erva
de cinco folhas de aroma adocicado popular no norte do império, mas que não era
vista com bons olhos em outros lugares pelo seu efeito soporífero.
— Ah, essa é das boas — disse o capitão, soprando uma nuvem de fumaça. —
Certa vez, levei algumas sementes para a minha esposa plantar. Nunca deu certo,
o solo não é ideal. Uma pena. Eu teria feito uma fortuna.
— Os deuses antigos — falei, com a pena preparada sobre o pergaminho. — O
que você sabe sobre eles?
— Bem, eles são antigos, para começo de conversa. — Ele soltou uma risada
incomum, algo que atribuí ao conteúdo do cachimbo. A demonstração de
hilaridade fez com que algumas cabeças se levantassem nas mesas ao redor, e
algumas pessoas franziram o rosto em desaprovação, fazendo com que eu me
perguntasse que notícias sombrias haviam causado aquele estado.
— Eles estavam lá quando desembarcamos nas Ilhas — prosseguiu o capitão,
tornando a atrair a minha atenção. — Os deuses antigos, em pedra, tão naturais
que parece que vão se mexer se tocá-los.
— Você os viu?
Ele deu uma baforada no cachimbo e assentiu.
— Privilégio de capitão. Quando consegue o próprio navio, você vai até as
cavernas e presta homenagem aos deuses antigos. Parece ser a coisa educada a
se fazer, já que eles estavam lá primeiro. E há histórias de sobra a respeito dos
destinos terríveis que aguardavam os capitães que não fizeram a peregrinação.
— Então são estátuas encontradas séculos atrás.
— Mais do que estátuas, escrevinhador. — O olhar do capitão ficou sombrio ao
lembrar. — Uma estátua não faz você suar assim que coloca os olhos nela, não faz
a sua cabeça doer quando você chega perto, nem coloca imagens na sua cabeça
quando você se curva para tocar o pé dela.
Minha pena parou no meio do caminho e segurei um suspiro. Eu já havia visto
o suficiente àquela altura para compreender que aquilo que antes eu achava ser
superstição era bastante real, mas ainda assim o ceticismo inerente se fazia sentir.
— Imagens em sua cabeça? — perguntei num tom passivo.
— Só por um segundo. Eu toquei o pé dela e… vi as Ilhas, mas não as nossas
Ilhas. Havia uma cidade, onde hoje fica a nossa capital. Mas muito bela, de
mármore reluzente de ponta a ponta, o porto repleto de navios, mais longos do que
os nossos e conduzidos principalmente por remadores. E não eram piratas, isso eu
podia ver. Nenhum marinheiro carregava uma arma. Qualquer que fosse a época,
era uma época de paz.
Ele se calou, o rosto agora toldado por lembranças ao tirar o cachimbo dos
lábios, mal se movendo quando lhe fiz uma pergunta:
— O pé dela? Os deuses antigos são mulheres?
— Uma é. Os outros dois são homens. Um é um sujeito grande e barbado, o
outro é mais novo e mais belo de rosto. Não toquei em nenhum deles, pois as
visões que transmitem são apenas para os olhos mais corajosos. Porém, dizem que
o Escudo tocou nos três, o único homem a fazer isso.
— Há uma história, sobre um homem que não podia morrer. Conta que ele
chegou às Ilhas em busca dos deuses antigos.
O capitão soltou uma gargalhada e voltou ao cachimbo.
— Urlan. Minha velha avó costumava me contar essa história.
— A versão que tenho diz que ele os ofendeu ao pedir uma dádiva impossível,
então eles o amaldiçoaram a andar pelo fundo do oceano para todo o sempre.
O capitão franziu o cenho, a fumaça subiu e seus olhos começaram a ficar
levemente embotados.
— A história da minha avó era diferente, mas histórias antigas costumam
mudar dependendo de quem as conta. Ela dizia que Urlan fora expulso das Ilhas,
deixado à deriva num barco e advertido a jamais retornar. E não porque ele havia
ofendido os deuses antigos, mas porque, ao ouvir as palavras dele, o povo passou a
temer alguém tão jovem que sabia tanto.
Ele me observou anotar a história, apagou o cachimbo e guardou o que
sobrara da erva numa algibeira.
— Hora de eu dar as minhas notícias, escrevinhador — disse ele.
— Mais notícias graves da guerra, presumo? — perguntei, olhando em volta
para os presentes de rosto taciturno.
— Não, de Alpira. — Notei que o embotamento havia desaparecido de seus
olhos e ele me encarou com um olhar firme e pesaroso. — O Imperador Aluran
morreu há uma semana. Antes de falecer, ele nomeou como sucessora a Senhora
Emeren Nasur Ailers, a ser para sempre conhecida como Imperatriz Emeren I.
CAPÍTULO UM
Vaelin
A cabana que Alturk escolhera para isolar-se era precária, pouco mais do que um
barraco inclinado numa pequena clareira afastada do povoado principal. A porta
cedeu facilmente sob a bota de Vaelin, liberando o odor fétido de um homem
sujo que se entregara à bebida. O corpo volumoso de Alturk estava deitado numa
cama de peles, roncando alto, cercado pelos cantis de dente de morsa que os
anfitriões usavam para armazenar cerveja de pinho, todos vazios. O adormecido
Alturk não deu qualquer sinal de ter notado a intrusão, algo que mudou de forma
brusca quando Vaelin esvaziou uma tigela cheia de água gelada sobre a cabeça
desgrenhada do lonak.
A explosão de fúria foi instantânea, e o homem levantou-se de um pulo, com
o porrete de guerra na mão e os dentes arreganhados. Ele parou ao avistar Vaelin
na entrada da cabana, uma expressão confusa passando pelo rosto molhado.
— Escolheu morrer agora, merim her? — perguntou ele, sibilando.
— Sorbeh Khin — disse Vaelin, a expressão lonak para um desafio formal. —
Você não está mais em condições de liderar os Senthar. Eles são meus agora. Se
quiser ficar com eles, lute comigo. — Ele deu meia-volta e foi para a clareira,
onde os Senthar aguardavam, assistindo a tudo com expressões de grave
compreensão. Kiral havia explicado os motivos de Vaelin e, para a sua surpresa,
ninguém fizera objeção.
— Cães traiçoeiros — rosnou Alturk para eles ao sair da cabana, e em
seguida começou a gritar em lonak numa diatribe breve porém veemente que
pareceu não comover ninguém.
— Você não dá mais ouvidos às ordens da Montanha — disse Kiral a ele. —
Está se tornando varnish. Este homem está lhe dando uma chance de provar o
contrário.
Alturk não disse nada, consentindo apenas em olhar com desprezo para ela
antes de encarar fixamente Vaelin, apertando com força o porrete de guerra.
— Onde está a sua arma?
Vaelin estendeu as mãos, mostrando que não havia adaga em seu cinto, nem
espada em suas costas.
— Por que eu precisaria de uma arma? Você não oferece qualquer ameaça.
Alturk olhou furioso para ele por mais um momento, e então começou a
gargalhar, jogando a cabeça para trás e fazendo o seu divertimento ecoar pelas
árvores ao largar o porrete.
— Eu deveria lhe agradecer — disse ele quando finalmente parou de rir. —
Nem todo homem consegue tornar os seus sonhos realidade.
Ele avançou sobre Vaelin correndo agachado. O tempo passado entre o Povo
Lobo ajudara em muito a recuperar a sua constituição física e, apesar de toda a
cerveja de pinho na barriga, a velocidade do lonak era impressionante, deixando
apenas uma fração de segundo para Vaelin desviar-se da investida e desferir um
soco em seu maxilar. Alturk grunhiu de dor, mas não vacilou, respondendo com
um rápido soco giratório. Vaelin bloqueou com os dois braços e enfiou o cotovelo
no rosto exposto do lonak, seguindo com uma série de socos no rosto e na barriga,
esquivando-se dos contragolpes de Alturk enquanto o fazia recuar, acertando
cada soco com precisão… até que ele segurou um com a mão e deu um murro
na têmpora de Vaelin.
Ele cambaleou para trás com o impacto, o mundo subitamente um borrão
enquanto lutava para assumir uma postura de combate. Porém, Alturk não lhe
deu a oportunidade, dando uma rasteira e atingindo outro soco em seu rosto. O
mundo desapareceu por um momento e Vaelin só conseguia ver uma sombra
vaga, cercada por estrelas cintilantes…
— Você — disse Alturk entre dentes, erguendo o punho pesado para dar outro
golpe. — Você fez do meu filho um varnish. Eu o vejo todas as noites, vejo-o
morrer todas as noites, por causa de você, merim her.
— Eu poupei um garoto — retorquiu Vaelin, cuspindo sangue e sentindo seu
olho esquerdo fechar-se com o inchaço. — Você matou um homem… um
homem que fez as próprias escolhas. — Ele então viu, um lampejo de algo nos
olhos do lonak, um espasmo de expressão no rosto marcado. — Você sabia —
disse Vaelin, compreendendo. — Sabia que ele o havia traído muito antes de
matá-lo.
Alturk rosnou de novo, levando o punho ainda mais para trás. Vaelin pigarreou
e cuspiu sangue nos olhos do lonak, conseguindo tempo suficiente para girar e
chutá-lo na lateral da cabeça. Ele se ergueu depressa quando Alturk cambaleou
para trás, correndo e dando uma cabeçada no diafragma do lonak, levantando a
cabeça em seguida e o atingindo no maxilar. Vaelin complementou com mais
socos no rosto, e Alturk se encolhia a cada golpe, agitando os braços à medida
que tentava repelir o ataque. Vaelin por fim o deixou de joelhos com um gancho
de direita no queixo.
Vaelin parou, o peito arfando, sangue escorrendo dos punhos e pingando no
chão da floresta.
— Nishak me contou — disse Alturk numa voz apática e cansada, erguendo os
olhos para ele, o sangue escorrendo de vários cortes. — Eu… não dei ouvidos. —
Ele abaixou a cabeça, encolhendo-se, resignado. — Não peço a faca.
Kiral surgiu ao lado de Vaelin com o porrete de guerra de Alturk na mão.
— Atinja em cheio — disse ela, oferecendo a arma a Vaelin. — Ele ao
menos merece um fim rápido.
Kiral se calou de repente e empertigou-se, voltando o olhar para o sul. Pela
expressão de dor em seu rosto, Vaelin sabia que a canção da lonak devia estar
emitindo uma nota poderosa. No entanto, desta vez ele não precisou perguntar o
significado, pois pôde ouvir outro aviso, atravessando o gelo e a floresta, inegável
e implacável. Os Senthar remexeram-se pouco à vontade e trocaram olhares
temerosos, pois o uivo de nenhum lobo já soara tão alto.
Vaelin virou-se para Alturk quando o uivo cessou e o encontrou de pé; a
postura de derrota havia desaparecido de seus ombros e havia uma certeza
ardente em seu olhar.
— Vou precisar disso — disse ele, indicando o porrete de guerra.
Vaelin olhou para Kiral, esperando que ela fizesse alguma objeção, mas a
expressão da lonak foi de grave consentimento, ainda que relutante.
— Urso Sábio possui algumas habilidades de cura — disse ele a Alturk. — Ele
pode dar pontos em seus cortes.
Alturk apenas grunhiu.
— Se eu estivesse sóbrio, você estaria morto agora.
Vaelin deu uma leve risada e jogou o porrete de guerra para as mãos do
lonak.
— Eu sei.
CAPÍTULO DOIS
Reva
Ela podia ver que o volariano estava morrendo; a pele do homem pendia dos
ossos do rosto como uma máscara dessecada, os olhos embotados pela derrota e
pelos sofrimentos recentes. Ainda assim, ele havia contado a sua história com
uma voz firme, num tom claro e forte, um homem com a experiência de séculos
em oratória.
— A Imperatriz irá enfrentá-los apenas com um terço da frota — disse ele
aos capitães reunidos do Exército da Rainha, que haviam sido chamados para o
conselho na nau capitânia. — Depois que os derrotarem, ela espera que vocês
rumem para o Estreito de Lokar. A frota completa virá do sul para interceptá-los.
Isso é tudo que sei.
Reva observou enquanto o Escudo examinava o mapa detalhado sobre a
mesa. Eles haviam se reunido no convés principal do Rainha Lyrna, uma vez que
nenhuma cabine era grande o suficiente para acomodar tantos. O mar estava
mais calmo naquele dia, embora ainda turbulento o suficiente para fazer o barco
que a levara até o navio balançar de forma alarmante, deixando entrar água a
cada minuto que passava. Reva percebeu que não gostava muito da vida no mar;
mesmo após ter superado os enjoos iniciais, a vida a bordo era extremamente
desagradável, assim como a dor recorrente que sentia sempre que pensava em
Veliss e Ellese.
— O Estreito de Lokar. — A voz de Ell-Nestra a trouxe de volta ao presente
quando ele bateu com o dedo numa baía na costa volariana. — A única rota
marítima direta até Volar. Assim que entrarmos no estreito, eles poderão nos
encurralar mesmo com poucos navios. A quantidade de embarcações não fará
muita diferença num espaço tão exíguo. Sem contar que será fácil para eles
guarnecerem as margens norte e sul contra um desembarque.
— Essa nova Imperatriz deles preparou uma armadilha elegante — disse o
Conde Marven num tom de admiração relutante. — Parece que ela não é
nenhum Tokrev, infelizmente.
— Um ardil mais complicado do que o necessário — retorquiu a Rainha, sem
nenhum vestígio de respeito na voz. — Duvido que ela já tenha jogado keschet.
— Ela se virou para o Escudo. — Seu conselho, Lorde Almirante Ell-Nestra?
— Lutar uma batalha desnecessária nunca é uma boa opção — comentou
ele, ainda passando os olhos pelo mapa. — Ainda mais no mar, onde tantas coisas
dependem do acaso. E manobrar uma frota tão carregada de tropas será árduo,
para dizer o mínimo. Sugiro que simplesmente evitemos o inimigo, seguindo um
curso para nordeste para desembarcar aqui. — Ele bateu com o dedo numa baía
rasa mais de 150 quilômetros ao norte do Estreito de Lokar. — Alguns de meus
capitães já fizeram contrabandos nestas costas e me disseram que a praia aqui é
grande o bastante para acomodar pelo menos um quinto do exército num
desembarque. Com o grosso das forças volarianas protegendo as margens do
estreito, eles devem ter poucas tropas lá para se oporem a nós. Assim que o
exército desembarcar, a frota estará livre para lidar com qualquer ameaça às
nossas linhas de abastecimento.
A Rainha virou-se para o seu Senhor da Batalha.
— Conde Marven?
— Levará pelo menos três dias para desembarcar o exército inteiro, Alteza.
Mesmo que a maioria das forças volarianas esteja concentrada no sul, ainda
devemos esperar algum tipo de ataque das guarnições locais antes de estarmos
totalmente prontos para marchar.
— Poderíamos desembarcar mais para o norte — admitiu o Escudo com um
suspiro. — Mas a costa não oferece muitos outros locais de desembarque por
pelo menos mais outros trezentos quilômetros.
— Quanto maior a distância até Volar, menores as nossas chances de sucesso
— disse a Rainha, tirando os olhos do mapa e encarando os seus capitães,
detendo-se por fim em Reva. — E temos alguém em nossas fileiras que pode ser
considerada especialista em repelir ataques volarianos.
— Além dos seus arqueiros e guardas — disse a Rainha —, vou lhe dar três
regimentos da Guarda do Reino, todos veteranos, incluindo os Lobos Corredores.
— Eles serão muito bem-vindos, Alteza — afirmou Reva.
Ela havia sido chamada à cabine da Rainha para uma audiência particular, a
primeira vez que ficaram realmente sozinhas. Até mesmo o enorme Lorde
Protetor recebera ordens de esperar do lado de fora. Reva se viu mais uma vez
espantada com a beleza da Rainha, e mesmo as tênues linhas brancas que iam da
fronte até o agora lustroso cabelo louro-avermelhado pareciam aumentar e não
macular a sua perfeição. Mais que isso, era a confiança natural, a autoridade
inigualável que garantiam que ela tivesse a atenção de todos os olhos em cada
encontro. Apesar disso, ou talvez em parte por causa disso, Reva ainda não
sentira o menor vestígio de atração pela mulher. Ela era mais fácil de se gostar
quando estava queimada, concluiu. Agora a máscara é perfeita demais.
— Por favor, saiba que a senhora tem liberdade para recusar essa ordem —
prosseguiu a Rainha. — Sem qualquer desaprovação.
— Viemos aqui para terminar isso — disse Reva. — Além do mais, acho que
prefiro lutar em terra do que no mar.
— Sem dúvida é um gosto adquirido com o tempo. — A Rainha sorriu,
embora não fosse um de seus sorrisos estonteantes; na verdade, foi um pouco
cauteloso. — Antes de partir em sua expedição ao norte, Lorde Vaelin me pediu
que eu não permitisse que a senhora se expusesse a riscos excessivos. Na
verdade, ele me implorou para deixá-la no Reino, como regente.
Reva segurou o riso. Sempre tão ávido para agir como o irmão mais velho.
— Uma tarefa para a qual dificilmente estou apta, Alteza. Mas eu pretendia
pedir uma explicação mais clara sobre o propósito por trás da atual missão de
Lorde Vaelin.
— Se segredos são mantidos, é por uma boa razão. Basta dizer que as
oportunidades oferecidas pela missão dele eram grandes demais para serem
ignoradas. — A Rainha fez uma pausa e o sorriso desapareceu lentamente. —
Recentemente tive a oportunidade de ler relatos mais detalhados sobre os eventos
ocorridos em Alltor. Eu não havia percebido quão verdadeiramente difícil a
situação havia se tornado, os extremos aos quais a senhora foi forçada.
O rosto do volariano ao se ajoelhar diante do bloco… Não é melhor do que
nós…
— A sobrevivência nos força a extremos, Alteza.
— De fato. Palavras das quais eu gostaria que a senhora se lembrasse ao
realizar a sua tarefa. Esta guerra ainda não foi vencida e a sobrevivência de
nossos povos necessita da vitória, a qualquer custo. — O olhar dela estava intenso
agora, a máscara impecável sem qualquer traço de humor. — Compreende?
A qualquer custo. Ao ver o olhar resoluto da Rainha, Reva teve uma súbita
sensação de reconhecimento, e outro rosto que ela conhecia tão bem surgiu em
sua mente, um com o qual ela falara com frequência em termos similares,
geralmente nos momentos antes que ele a espancasse.
— Talvez a senhora possa entrar em detalhes, Alteza — disse ela. — Minha
tarefa se tornará mais fácil com instruções claras.
A Rainha mal piscou.
— Os Varitai devem ser capturados somente se houver oportunidade. Todos
os Espadas Livres devem ser mortos.
— E se eles se renderem?
— Então matá-los será uma tarefa mais simples. — A Rainha avançou e
tomou as mãos dela, seu rosto agora um retrato de afeição fraternal. — Como
minha senhora disse, viemos aqui para terminar isso.
A casa de campo era a maior que haviam encontrando até então, mais uma
fortaleza do que um lar, suas muralhas espessas e altas, os jardins estendendo-se
por vários acres para todos os lados. Era evidente que fora a morada de um
proprietário de considerável riqueza, suficiente, de fato, para manter uma
guarnição de duzentos Varitai. No entanto, a força das defesas da casa de campo
não impediu que o proprietário a abandonasse ao primeiro sinal da aproximação
deles. Seus Varitai foram contados com facilidade, caídos em quatro fileiras
alinhadas no pátio interno, cada um com um corte idêntico na garganta que ia de
orelha a orelha.
— Todos os objetos de valor foram levados, assim como os cavalos — relatou
Draker. — Encontramos a maioria dos escravos no lado de dentro. Parece que
alguns resistiram, ao contrário destes aqui. Mas isso não os salvou.
— Duzentos de seus próprios homens — disse Illian, sacudindo a cabeça,
perplexa. — Não compreendo.
— Eles agora sabem o que planejamos. — Frentis indicou com a cabeça um
aglomerado silencioso dos próprios Varitai libertos que se encontrava por perto.
— Não queriam que ficássemos com eles. — Ele olhou para Mestre Rensial. —
Pelo estado dos corpos, não podem estar a mais de um dia de cavalgada para o
norte. Cuide disso, mestre, por favor.
Rensial assentiu e foi até o seu cavalo, e sua companhia montada o seguiu
quando saiu a galope pelo portão da casa de campo. Frentis considerou por um
momento ir com eles, dada a natureza errática do mestre, mas resistiu ao
impulso. Ocorrera uma mudança em Rensial nos últimos dias; o seu olhar não
estava mais tão vazio e ocasionalmente o que falava não precisava de tanta
interpretação quanto de costume. Somente na guerra o louco fica são.
Nem todos os escravos da casa de campo foram mortos antes da fuga de seu
senhor, pois alguns estavam trabalhando nos campos quando a matança
começara. Muitos foram vistos fugindo em todas as direções, embora uma
minoria considerável tivesse rumado para a casa de campo, cautelosa e confusa
pelas boas-vindas que recebera, e alguns ficaram pesarosos ao avistarem os
companheiros assassinados, a maioria homens que choravam por mulheres
mortas. O casamento era proibido entre escravos, mas aonde quer que fossem
havia evidências de que as pessoas eram capazes de forjar os próprios laços,
independentemente de quaisquer barreiras ou ameaças que restringissem as suas
vidas. Foi a esses enlutados que Frentis entregou o proprietário da casa de campo
quando Rensial retornou no dia seguinte, arrastando o infeliz homem de preto
atrás do cavalo, de mãos amarradas e amordaçado.
— Ele tinha esposa e filhos — relatou Rensial quando os escravos cercaram o
seu antigo senhor com facas e chicotes erguidos. — Eu os deixei ir.
— É claro, mestre. — Eles sempre imploram. Frentis viu o homem de preto
cair de joelhos, erguendo as mãos amarradas em súplica. Era um homem alto,
corpulento e com a aparência de um soldado, fato que podia ser atestado pelas
várias lembranças militares encontradas na casa. Um oficial de renome? A casa
de campo, a família, os escravos. Todos frutos de uma carreira ilustre. A
recompensa de um herói. Ele estava longe de parecer heroico agora; era apenas
um homem aterrorizado e mijado implorando pela vida. Eles sempre imploram.
Frentis deu as costas ao homem quando o tormento começou e foi até onde
Illian estava treinando o grupo mais recente de recrutas. Havia menos gente do
Reino agora, mas a quantidade de pessoas começara a crescer desde a vitória
sobre a guarnição eskethiana; os Espadas Livres que eles haviam permitido que
fugissem espalharam a notícia da calamidade com rapidez espantosa. Mais cem
fugitivos haviam chegado às montanhas dentro de poucos dias, e o exército
passara de quatro mil membros no intervalo de um mês. Para alimentar tantos,
Frentis fora forçado a ordenar que seguissem para o noroeste, até as terras férteis
cultivadas que se estendiam em direção a Nova Kethia; aquela casa de campo
fora a primeira a ser tomada.
Ele assistiu ao treinamento durante algum tempo, satisfeito com a facilidade
com que Illian guiava os recrutas, exibindo toda a autoridade de um mestre no
campo de treinamento da Casa da Ordem. Ela estava lhes ensinando como usar o
bastão, que era a base para o uso eventual da alabarda ou da lança, mas também
um sinal de que ainda não dispunham de armas suficientes. Frentis havia
colocado o antigo ferreiro para trabalhar na forja da casa de campo com ordens
para transformar as várias ferramentas agrícolas no maior número possível de
lâminas de machado. Isso significava que teriam de permanecer ali por algum
tempo, provavelmente semanas, e o atraso o irritava. Determinado a manter o
ímpeto da rebelião, Frentis enviara Lekran e Ivelda em direções opostas, cada
um com duzentos combatentes e ordens para libertar tantos escravos quanto
possível.
Frentis virou-se quando Trinta e Quatro apareceu. O ex-escravo agora vestia
equipamentos tirados dos corpos de oficiais Espadas Livres e passava uma
impressão de impecável asseamento militar, cada centímetro de armadura
meticulosamente limpo e todas as fivelas polidas a ponto de brilharem.
— Ele está pronto, então? — perguntou Frentis.
— Curado e perfeitamente capaz de cavalgar, irmão. Mas ainda se recusa a
falar.
— Isso é incomum. Geralmente eles não conseguem calar a boca quando
percebem o que você é.
— Quem eu sou — corrigiu Trinta e Quatro, com uma aspereza incomum na
voz. — O que eu costumava ser.
— Sim. — Frentis deu um sorriso de desculpas. — Bem, vamos soltá-lo.
O volariano se recusara a fornecer um nome, mas eles o haviam descoberto
na correspondência encontrada no comboio de carga de seu batalhão.
— Honorável Cidadão Varek — cumprimentou-o Frentis calorosamente,
agachando-se ao lado do homem à sombra da acácia à qual ele havia sido preso.
— Espero que esteja se sentindo melhor.
Varek permaneceu encolhido contra o tronco da árvore, seu rosto não
revelando qualquer emoção além da fúria ardente que tomara conta dele desde
que despertara e se vira acorrentado e com o batalhão destruído.
— Tenho boas notícias — prosseguiu Frentis, fazendo sinal para Trinta e
Quatro soltar a corrente. — A liberdade o aguarda.
A expressão de Varek ficou cautelosa, e Frentis notou como ele conteve o
breve lampejo de esperança que pôde ser visto em seus olhos.
— Garanto que não é um truque. — Frentis pegou a corrente e deu um puxão
insistente, e o volariano levantou-se devagar, os olhos cautelosos movendo-se
sem parar à espera de um ataque. Frentis o conduziu pelo pátio, ciente de que o
homem prestaria bastante atenção nos muitos ex-escravos que treinavam. Draker
aguardava na entrada arqueada da casa de campo com um cavalo, selado e
carregado com provisões para vários dias de cavalgada.
— Este era o seu cavalo, não? — perguntou Frentis, removendo os grilhões
dos pulsos de Varek.
O volariano estava levemente menos desconfiado agora, e esfregou a carne
avermelhada, enquanto seu olhar ia de Frentis para o animal.
— Não irei trair o meu povo — afirmou ele, as primeiras palavras que falava
desde que despertara. — Qualquer que seja a recompensa.
— Dificilmente daria para chamar isso de recompensa — disse Frentis. —
Imagino que você sabe que tipo de recepção terá em Nova Kethia, o filho
derrotado e humilhado de um pai venerável. A vergonha será insuportável, mas,
antes de se matar, informe àqueles que o atormentarem que o que aconteceu a
você logo acontecerá a eles, por favor. A cidade cairá antes que o ano termine e
cada alma mantida em cativeiro será libertada. Contudo, a minha rainha tem
compaixão de sobra e está disposta a oferecer termos.
O volariano suspirou e sacudiu a cabeça.
— Você é louco.
— Os portões da cidade devem ser abertos e quaisquer defensores retirados
das muralhas. Todos os Espadas Livres devem depor as armas e todos os
escravos, incluindo Varitai e Kuritai, devem ser libertados. A cidade se tornará
propriedade da Rainha Ly rna Al Nieren, que decretará uma justa redistribuição
de terras e riquezas no seu devido tempo. — Ele se aproximou de Varek e falou
em voz baixa, sentindo a sua raiva aumentar de novo: — O não cumprimento
desses termos extremamente generosos resultará na destruição total de sua
cidade e na execução de cada volariano encontrado armado.
Varek virou a cabeça na direção do grupo de recrutas.
— Você realmente acredita que essa gentalha é capaz de tomar Nova Kethia?
Acha que o Conselho Governante não fará nada enquanto marcham? Vocês
serão esmagados antes mesmo de avistarem a cidade, e cada um desses cães
que ainda estiver vivo será esfolado e deixado para apodrecer ao sol, se tiverem
sorte.
Frentis apenas sorriu.
— Parece que as notícias estão se espalhando devagar. — Ele se inclinou para
mais perto do volariano. — Não há mais Conselho Governante. Vocês são
governados por uma Imperatriz agora e ela irá assistir e gargalhar quando eu
destruir a sua cidade, acredite.
— Irei suportar o que quer que me aguarde — disse Varek num tom de
absoluta certeza. — Sofrerei cada tormento por mil anos somente pela mínima
chance de chegar tão perto assim de você novamente.
— Então é melhor investir primeiro em algumas lições de esgrima. — Frentis
virou-se para Draker. — Escolte o honorável cidadão até o anoitecer. Se ele olhar
uma vez para trás, mate-o.
O corpo novo dela é mais forte do que aquele que deixou na praia, saltando e
girando com toda a velocidade e precisão que ela poderia desejar, mas ainda
assim…
— Está sentindo, não? — pergunta o Mensageiro, reclinado numa cadeira no
terraço. Ele usa o corpo de um Arisai, um dos poucos com sangue dotado, alto e
esguio. Atrás dele há mais seis de pé, também dotados, e, embora seus rostos
sejam diferentes, as expressões são idênticas. Ela nunca encontrou tantos dele e
acha isso desgastante; um sempre foi mais do que suficiente.
Ela abaixa a espada curta e levanta-se da posição agachada de luta, nua e
coberta de suor pelo esforço. Se o Mensageiro se sente excitado com o que vê,
não demonstra o menor sinal em nenhum de seus rostos. Ela se sente
desconfortável com a visão do céu escuro que os emoldura, percebendo que era
meio-dia quando retornara à Torre do Conselho. Desde que despertara naquela
nova casca, a sua capacidade de manter uma noção do tempo havia diminuído
ainda mais.
— Sentindo o quê? — pergunta ela.
— O torpor. O frio não é tão frio, o calor não é tão quente. Piora a cada um
que você toma. Hoje em dia mal consigo sentir alguma coisa. — Ele inclina a
cabeça, examinando-a, um leve sorriso predatório nos lábios. — Consegue ouvir
desta vez? Consegue, não?
Ela contém um lampejo de raiva, ressentindo-se com a intuição natural dele. A
dona da casca era mais velha do que a primeira, e não havia nascido escrava,
deixando uma quantidade imensa de lembranças que vinham à tona com
desagradável clareza e com muita frequência: … brincando com o irmão na
margem de algum lago nas montanhas… rindo quando o pai lhe mostrou os seus
truques…
A princípio ela achava que o dom da mulher era tão pequeno que não podia
ser discernido, mas acabou compreendendo que a memória era o seu dom. Cada
pensamento, ação e palavra guardados em sua cabeça, imutáveis e sempre muito
vívidos.
— Você disse para preparar oito — diz ela, afastando as imagens. — Mas só
contei sete.
Ela sente certa satisfação ao vê-los cerrar os maxilares em uníssono, ciente de
que o Mensageiro está contendo a própria raiva.
— Al Sorna tem facilidade para fazer amigos úteis — diz ele após uma breve
pausa.
Então ela vê. Embora as cascas sejam todas joviais e atléticas, suas feridas
evidentes ainda as marcam, deixando que nos olhos transpareça dor, cansaço… e
medo.
— Tem certeza de que sabe onde encontrá-lo? — pergunta ela.
— Ele procura o homem eterno. Basta que eu viaje para o norte para
encontrar o seu rastro. Você terá de me tornar general, e alguma espécie de título
grandioso parece apropriado. Senhor Supremo do Norte, ou algo assim.
— Os Exércitos Setentrionais são comandados pelo Governador Geral de
Atethia. Vou lhe dar uma ordem de execução. Quando ele estiver morto, você
pode se chamar do que quiser.
— Devo dizer que você parece não gostar muito desses governadores. Restará
algum vivo depois dessa ordem?
— Apenas o Governador de Eskethia. Eu ia executá-lo também, mas estou
começando a me sentir mais inclinada a deixá-lo à própria sorte.
Os rostos mudam de novo, sem restar nenhum vestígio de humor, e ela sabe
que as palavras seguintes não são dele.
— Você não pode se dar a caprichos agora. Essa sua distração teve alguma
serventia, mas agora obstrui o nosso propósito. Ele precisa que você cuide da
questão sem demora.
— O Conselho está morto e a frota da vadia despedaçada. Tudo pelas minhas
mãos. Mereço os meus caprichos.
— Os três últimos séculos foram o seu capricho. Décadas de assassinatos e
malícia, o presente dele para você. Agora ele exige pagamento.
A mão dela se fecha sobre a espada, a verdadeira intensidade da antipatia que
sempre sentiu por aquela criatura tornando-se evidente pela primeira vez. Ela os
vê se retesarem, e o que falava levanta-se.
— Ele sabe o que você planejava — diz o Mensageiro. — Seu precioso plano,
o sonho de governar com aquele garoto ao seu lado, eterna e terrível com o
mundo inteiro para a sua diversão. Acha mesmo que daria certo?
— Se eu não tenho mais serventia para ele — responde ela, sorrindo —, mate-
me. Se puder.
Eles levam as mãos ao mesmo tempo às espadas penduradas ao lado do corpo.
Ela sabe que não tem chance, sabe que está escolhendo a morte. Olhe para mim,
meu amado, pensa ela, ciente de que ele a vê. Veja como vou deixá-lo
orgulhoso.
Porém, o Mensageiro para, todos os sete soltam as espadas e seguem em
silêncio para a porta. O que falou demora-se por um momento, seu rosto agora o
de um soldado cansado chamado ao dever do qual não pode escapar.
— Ele sempre encontrará mais serventia para nós. Você pode ficar com o
garoto, se capturá-lo vivo. Mas o assunto precisa ser resolvido.
Mais uma vez sozinha, ela fecha os olhos, buscando a presença dele,
abraçando a determinação implacável que encontra, o seu novo coração quase
transbordando de alegria. Ela vê algo, um redemoinho de névoa na escuridão,
assumindo uma forma que ela conhece tão bem. As palavras dele não significam
nada, amado, diz ela, estendendo a mão para lhe acariciar o rosto. O mundo
ainda pode ser nosso.
Ele arrancou a mão de seu rosto, rosnando de fúria, levando a sua faca até a
garganta dela.
— Nunca! — sibilou ele no rosto dela, pressionando a lâmina com mais
força.
Lemera choramingou, os olhos arregalados e horrorizados, o rosto trêmulo de
terror, a cabeça puxada para trás pelo punho que agarrara o seu cabelo, a pele
lisa de sua garganta exposta e vulnerável.
Ele perdeu o fôlego ao largar a faca, afastando-se da mulher e encolhendo-se
na beira da cama com a cabeça nas mãos.
— O que… o que foi? — perguntou Frentis quando seus membros pararam de
tremer.
A resposta dela foi pouco mais do que um sussurro.
— Eu ouvi gritos… Você estava sonhando…
Ele olhou por sobre o ombro, notando o vestido fino de algodão que mal a
cobria e o tamanho do medo que ainda se via nos olhos dela. Frentis virou-se para
o outro lado, piscando enquanto os seus olhos acostumavam-se com o escuro. Ele
ficara com os aposentos do proprietário, uma exibição espaçosa de riqueza e
luxo, as paredes adornadas com vários quadros, a maioria retratando batalhas de
precisão implausível. O proprietário estava presente em várias delas, uma versão
mais jovem, alta e orgulhosa, de espada na mão enquanto comandava os seus
homens com coragem e um olhar severo, um contraste singular com a forma
arruinada, ensanguentada e suplicante, que fora deixada para morrer no pátio
quando os escravos se cansaram dele.
— Eu… tenho pesadelos às vezes — disse a Lemera. — Desculpe-me se a
machuquei.
— Já fui machucada de formas piores. — Frentis sentiu-a se mexer na cama
e depois um toque hesitante nas costas, os dedos dela se abrindo para explorar a
carne. — Você lutou tanto, e ainda assim não tem cicatrizes.
— Eu tinha cicatrizes. Elas sararam.
— Artesão?
— Não. — A semente germinará. — Não, foi outra coisa. Algo que duvido
que algum dia irei compreender. — Ele se virou de novo, e Lemera colocou a
mão em seu ombro, até que Frentis a tirou com cuidado. — É melhor você ir.
Ela recuou um pouco, mas não partiu. O rosto havia se fechado, mas Frentis
teve a impressão de que Lemera sorria.
— A irmã disse que você havia sido proibido de tocar numa mulher. Achei
que ela estava brincando.
— A Fé exige tudo que temos.
Ela se mexeu de novo, encolhendo as pernas e apoiando o queixo nos joelhos,
a cabeça inclinada enquanto o observava, agora mais curiosa do que divertida.
— E você está tão disposto assim a dar?
— A Ordem é tudo o que sempre quis.
— Então o mundo fora da sua Ordem não oferece nenhuma tentação?
— Eu vi o mundo, com todas as suas tentações. Estou satisfeito com a Ordem.
— Depois do treinamento de ontem, Draker deu um soco num homem por
contar uma história. Uma história estranha sobre como você foi levado para o
palácio, junto com uma mulher que possuía uma magia maligna. E juntos vocês
mataram o seu Rei. Ele estava mentindo?
— Não. Ele não estava mentindo e Draker não devia ter feito o que fez.
— E ainda assim a sua rainha deixou você viver e o mandou para cá.
— Eu não controlava as minhas ações. A magia da mulher me dominou,
obrigou-me a fazer coisas terríveis.
Lemera se empertigou e ele sentiu os olhos dela percorrendo o seu rosto.
Embora não pudesse ver a expressão dela, a intensidade do escrutínio era
inquietante. Frentis estava prestes a pedir mais uma vez que ela saísse quando
Lemera falou.
— Então não somos muitos diferentes, você e eu.
Ela se esticou e deitou-se na cama.
— Posso dormir aqui? Só por hoje. Também tenho sonhos. — Ela soltou uma
risada baixa diante da hesitação evidente de Frentis. — Prometo não oferecer
nenhuma… tentação.
Eu devia fazê-la ir embora, ele sabia. Nada de bom pode vir disso. Mas não a
mandou a embora, percebendo que não conseguia ser cruel assim. Então se
deitou ao lado dela, tentando afastar a tensão dos membros, ciente de o que o
sono seria um estranho aquela noite. Lemera aproximou-se após alguns
momentos e apoiou a cabeça no ombro dele, sua mão encontrando a de Frentis,
entrelaçando os dedos.
— Não haverá vitória para nós, não é? — perguntou ela num sussurro.
— Não diga isso. Minha Rainha está vindo para estas praias com um grande
exército. Se permanecermos firmes na nossa causa…
— Eu fui escrava, mas nunca fui tola. Esse império é mais vasto do que se
pode imaginar e matamos apenas uma fração das forças que eles trarão contra
nós. Eles vão nos matar, todos nós, pois somos escravos e não podem permitir
que tenhamos a mínima esperança de liberdade. Sem nós, eles não possuem um
império.
O assunto precisa ser resolvido.
— Se acredita que a nossa causa é tão perdida, por que se juntou a nós?
Ela chegou ainda mais perto, passando o braço livre em volta do dele,
apertando a mão de Frentis com mais força, o seu hálito quente na pele dele.
— Porque você ofereceu algo que eu havia esquecido que podia ser
oferecido. Uma escolha. E eu escolhi morrer livre.
Ele pedira a Trinta e Quatro que desenhasse um mapa da cidade e enviou Mestre
Rensial para fazer o reconhecimento das rotas de acesso, advertindo-o que não
fosse visto. Os dias restantes foram passados treinando os recrutas e fazendo um
esforço para trocar algumas palavras com tantos quanto possível, satisfeito pelo
fato de que a maioria parecia animada com a perspectiva de ação. Contudo,
Frentis não precisou olhar com atenção para notar que muitos ainda tinham
medo, principalmente os nascidos escravos ou veteranos de prolongada
escravidão; eles haviam arriscado tudo para se unir àquela rebelião e não tinham
ilusões quanto às consequências caso fracassassem.
— Eu quase fugi uma vez — contou Tekrav a Frentis cerca manhã enquanto
conferiam o inventário de suprimentos. O ex-guarda-livros havia se mostrado
entusiasmado nos treinamentos, mas sem habilidade; no entanto, a sua facilidade
com números continuava tão aguçada quanto antes. — Pouco depois que a
petição de meus credores fez com que eu fosse colocado a ferros. Eu e outro que
se tornara escravo havia pouco tempo elaboramos um plano durante a caravana
até a casa de campo do senhor. Meu coconspirador era um sujeito grande e forte,
mas tão afeiçoado à bebida e à essência de papoula quanto eu era aos dados. A
ideia era que ele estrangulasse o guarda quando ele se aproximasse da nossa
jaula e pegasse as chaves dele.
— Funcionou?
— Ele conseguiu colocar uma das mãos na garganta do guarda, mas então
um dos cães de escravos arrancou-a com uma mordida. Não tinham muita
serventia para ele depois disso, exceto como exemplo. Eles levaram o dia inteiro
para dar a lição, e ao final o sujeito estava implorando para morrer. Depois disso
fiquei muito grato pelo meu destino como escravo.
— Então por que você se juntou a nós?
Tekrav encolheu os ombros.
— Mesmo agora não sei ao certo. Meu senhor era bom comigo. Só fui
chicoteado duas vezes durante todos os anos que o servi. Mas ele não era tão
gentil com os outros e, como Primaz, eles recorriam a mim em busca de
proteção. Eu tinha maneiras sutis de desviar a sua raiva, questões de negócios ou
uma nova safra de vinho para distraí-lo de qualquer tormento que a sua mente
cruel pudesse conceber. Porém, quando a guerra começou e os novos escravos
chegaram… — Tekrav calou-se e forçou um sorriso. — Bem, ele tinha tantos
brinquedos novos com que brincar. E eu não podia proteger todos.
— Lemera e os outros. Você se juntou a nós porque eles se juntaram.
— Um homem deve ficar com a sua família, não acha?
— Sim, deve. — Frentis deu uma última olhada no inventário antes de
entregá-lo a Tekrav. — Tudo está em perfeita ordem. Agradeço pela atenção. Eu
ficaria grato se você cuidasse do comboio de carga durante a marcha.
— Cuidarei, irmão. Eu estava pensando que talvez pudesse ter um título.
Frentis parou e ergueu uma sobrancelha.
— Suponho que você tenha alguma coisa em mente.
— Nada muito extravagante. Mas talvez… Lorde Intendente?
— Intendente-Mor. Quaisquer enobrecimentos serão determinados pela
Rainha Ly rna.
— É claro. Imagino que você vai assegurar a Rainha de meu valor no seu
devido tempo, não?
Livre há alguns meses e já trama a sua ascensão. Ele provavelmente acabará
como Ministro de Obras se viver por tempo suficiente.
— Será um prazer, senhor.
Mestre Rensial retornou no dia seguinte para relatar que o caminho até Viratesk
estava livre de patrulhas volarianas. Na verdade, ele não vira mais ninguém
durante toda a missão.
— Não é do feitio deles serem descuidados — observou Lekran. —
Geralmente não há um dia que se passe na estrada sem se ver pelo menos uma
tropa de cavalaria.
— O império está sempre determinado a vigiar os seus habitantes —
concordou Trinta e Quatro.
— Então nós os afugentamos — disse Ivelda. — Assim como o meu povo fez
com os othra quando eles surgiram para tomar as colinas de bronze.
— Nós as tomamos — retorquiu Lekran com um sorriso surpreendentemente
cortês. — Mas as achamos imprestáveis, então as devolvemos.
Ela riu e sacudiu a cabeça.
— Seu pai lhe contou muitas mentiras, comedor de irmã.
— Fiz uma promessa ao Irmão Vermelho, então vou esperar isso terminar
antes de cortar a sua cabeça.
— Estou ansiosa para me divertir com a sua tentativa…
— Calem-se! — gritou Frentis, de forma bastante séria. Encarou os dois até
que eles abaixaram o olhar. — Todos vocês, preparem as suas companhias para
marcharem ao amanhecer.
Desta vez eles deixaram a casa de campo intacta. Alguns dos escravos mais
velhos haviam lhe pedido permissão para ficar, na esperança de se apropriar do
local. Frentis não viu muito sentido em tentar forçar a participação deles, ainda
mais depois que Illian advertira que não seriam de muita utilidade numa batalha.
Ele seguiu adiante fazendo o reconhecimento do terreno com a tropa de Mestre
Rensial, confirmando que a região estava deserta num raio de quilômetros. Os
campos se tornavam cada vez mais bravios à medida que seguiam para o norte,
sem escravos, exceto por alguns cadáveres que supuseram serem fugitivos das
casas de campo pelas quais passaram, todas também igualmente abandonadas e
algumas já incendiadas pelos proprietários.
— Eu lhe disse — disse Ivelda, provocando Lekran com uma gargalhada. —
Eles se mijaram de medo e fugiram. Quando chegarmos na cidade, vão fazer o
mesmo.
Avistaram Viratesk após uma marcha de cinco dias, quase dois quilômetros
quadrados de construções de tijolos abrigadas na depressão de uma baía natural.
A luneta de Frentis revelou que as muralhas se encontravam em estado
deplorável, com várias brechas, e o fosso que as cercava fora coberto havia
muito tempo. Além disso, não conseguiu ver sinal de qualquer guarda nas
muralhas ou de fumaça saindo de uma única chaminé.
— Não há nada aqui. — Ele suspirou, baixando a luneta.
Encontraram os portões da cidade abertos e desguarnecidos, as ruas mais
além desertas e apinhadas de detritos, sinal de uma fuga apressada.
— Alguns podiam ter tido a decência de ficar e lutar — resmungou Lekran.
— Por pouco tempo que fosse.
— Pegue a sua companhia e siga pela direita, até o porto — disse-lhe Frentis.
— Draker, vá pela esquerda. Eu e Mestre Rensial iremos pelo centro.
Levou pouco tempo para chegarem ao porto, passando por fileiras de casas
vazias, os únicos ocupantes vivos da cidade sendo alguns cães que se fartavam
com as carcaças de cavalos e cabras mortos deixados para apodrecer nas ruas.
Encontraram o cais sem nenhuma embarcação, exceto por um único barco de
pesca afundado, o mastro principal saindo da água no que Frentis achou ser um
ângulo insultante.
— Nenhum desgraçado em casa, irmão — relatou Draker, a expressão
sombria enquanto caminhava ao longo do cais. — Mas encontramos uma pilha
de corpos num armazém. Todos escravos, a maioria gente mais velha.
— Livraram-se da mercadoria menos valiosa antes de partirem. — Frentis
passou os olhos pela cidade, lutando contra a sensação de que as janelas vazias o
olhavam de forma acusadora. Eles teriam vivido se vocês não tivessem vindo
para cá. — Vasculhem cada construção — disse ele. — Recolham qualquer coisa
de valor, principalmente armas. Precisamos de qualquer coisa com um gume
afiado, até mesmo a menor faca de açougueiro. Lekran, a sua gente cuidará das
muralhas. Serão rendidos ao anoitecer.
Ela sempre achou estranho que os espetáculos nunca tivessem lhe atraído. Na
verdade, ela os acha repugnantes, milhares de vozes tomadas pela sede de sangue
ao assistirem a combates que poucos ou ninguém teriam coragem de experimentar
em primeira mão. Para ela, a alegria da luta, e da morte, só era conseguida
participando diretamente.
Mas eles adoram tanto isso, amado, diz a ele, sentindo a sua desaprovação.
Tiramos os deuses deles, mas mantivemos os rituais, pois os deuses sempre
gostaram muito de sangue.
É o Festival do Fim do Inverno, embora outrora fosse chamado por outro
nome em homenagem a um deus há muito esquecido que exigia o sacrifício de
almas corajosas para abençoar os campos e propiciar uma boa colheita. A arena
havia sido construída originalmente em homenagem aos deuses antigos, mas todos
os ornamentos divinos tinham sido removidos havia muito tempo, estátuas de
mármore substituídas por efígies de bronze de generais e Conselheiros, motivos
divinos substituídos pelo brasão imperial. Porém, por mais que o palco mudasse, os
espetáculos continuavam os mesmos.
Revelar-se para a multidão é uma tarefa necessária; ela não poderia
permanecer oculta para sempre, e hoje há muitos olhos para ver a Imperatriz
Elverah em toda a sua glória. Ela mesma escolheu o nome. Um dos muitos títulos
que recebeu ao longo dos séculos, mas esse lhe propicia alguma satisfação, e não
um leve divertimento. Que se curvem diante de uma bruxa.
Houve problemas, é claro. A mudança súbita que eliminou o domínio do
Conselho com certeza abalaria uma sociedade dedicada à ideia de estabilidade
conseguida por meio de uma ordem inalterável. Os seus espiões, uma rede antiga
construída ao longo de décadas, desconhecida do próprio mecanismo de
inteligência do Conselho, trazem notícias de descontentamento e de conspirações
para rebeliões de todos os cantos do império. A maioria é reprimida depressa, os
conspiradores sujeitados a um método prolongado de execução pública, familiares
de primeiro e segundo graus condenados à escravidão e todas as propriedades
aprendidas pela Imperatriz. Porém, apesar de milhares já terem sofrido esse
destino, todos os dias chegam relatos de mais tramas e, caso ela fosse suscetível a
tais coisas, a ameaça constante de assassinato levaria uma alma inferior à
paranoia. Na semana anterior uma escrava conseguira envenenar o mingau do
café da manhã da Imperatriz, como vingança por um senhor bem-amado sujeitado
às Três Mortes duas semanas antes. Foi uma tentativa corajosa, mas desajeitada,
percebida com facilidade mesmo sem o aviso da canção. O veneno havia sido
misturado numa forma concentrada demais, deixando um odor familiar, e a garota
devia saber que estava ganhando para si um fim doloroso.
— Você era Primaz no estábulo dele? — perguntou ela à garota, forçada a se
ajoelhar com uma lâmina Arisai preparada para golpeá-la na nuca. — Ele deve
ter fodido você muito bem para despertar tamanha lealdade.
A garota chorava em grandes soluços convulsivos, mas ainda assim encontrou
voz suficiente para responder:
— Ele… nunca… me tocou.
— Então por quê?
— Ele… me criou… me ensinou a ler… me deu um nome.
— É mesmo? E qual é?
— L-Lieza.
— Dar nome a um escravo é uma ofensa capital por si só, e o seu antigo dono
era culpado de muito mais coisas além disso. — Ela dispensou o Arisai com um
aceno de mão e fez sinal para que a garota retirasse o café da manhã. — Traga-
me outro mingau, Lieza. Depois pode me ler as correspondências da manhã.
Lieza está de pé ao seu lado agora, pronta para servir vinho na taça imperial.
Seu rosto está pálido, mas consegue não tremer. Todas as manhãs desde a tentativa
fracassada de assassinato, ela traz o café da manhã e lê as correspondências
imperiais enquanto a Imperatriz come. Depois ela se senta e escreve enquanto a
Imperatriz dita uma lista de nomes a serem executados. A letra da garota é
excelente.
Não sei por que a poupei, responde ela, sentindo uma perplexidade em meio à
aversão dele. Acho que ela me lembra alguém, mas não sei quem. Talvez eu a
mate amanhã. Talvez a entregue para os espetáculos. Os dentes-de-adaga estão
sempre com fome.
Mas hoje não há dentes-de-adaga. Hoje são as Corridas da Espada. Ela se
lembra de seu pai lhe contando uma vez as origens daquilo, o evento mais popular
em qualquer espetáculo. Em tempos primitivos, um dos deuses mais iluminados, ou
um de seus sacerdotes mais iluminados, decretou que não deveria haver mais
guerras entre as tribos que lhe prestavam homenagem. Determinou-se então que
todos os anos eles enviariam os seus melhores guerreiros para competir nas
Corridas da Espada, onde todas as disputas seriam resolvidas. As regras foram
aprimoradas no decorrer dos séculos subsequentes, mas a essência da competição
permanecia a mesma: uma única espada é fincada no meio da arena e as duas
equipes competidoras posicionam-se em lados opostos a uma mesma distância do
centro. A um determinado sinal, elas correm até a espada, e o combate tem início
quando o membro de uma das equipes consegue segurar o punho da arma, a
vencedora sendo a equipe com o maior número de homens de pé após o virar de
uma ampulheta de dez minutos. Pela lógica, a equipe de posse da espada estaria
em vantagem, mas competidores experientes ainda são capazes de virar o jogo,
geralmente ao sacrificar um membro menos habilidoso da equipe para poder tirar
a espada de seus oponentes.
Hoje são os Verdes contra os Azuis, duas das seis equipes que representam as
seis províncias do império. Os Azuis tendem a atrair as chances mais favoráveis,
mas os Verdes possuem os competidores mais experientes, o que é evidenciado
pela sua tática de formar um compacto grupo defensivo ao redor do portador da
espada, forçando os Azuis a fazerem uma série de ataques custosos. Passados vinte
minutos, dez homens, quatro Azuis e seis Verdes, estão mortos ou aleijados na
areia. Corredores da Espada raramente têm carreiras longas, embora as vultosas
recompensas conferidas aos que sobrevivem até a aposentadoria garantam que
nunca haja falta de recrutas, pois os que participam não são escravos, e sim
homens livres. Pobres e desesperados o bastante para arriscar a vida diante de
uma turba ladradora, mas ainda assim livres.
Está surpreso por me ver aqui?, pergunta a ele, entediada com a competição.
Perguntando-se por que não estou em Nova Kethia reunindo um exército? Ela
nota como Lieza se retrai e percebe que falou em voz alta. A julgar pela rigidez da
postura da escrava, não é a primeira vez que ela ouve a sua Imperatriz fazer uma
pergunta a ninguém.
A resposta dele é tênue, embora mais controlada do que antes; ele se
acostumou a assumir o comando de seus sonhos. Ainda há tempo. Irei esperar por
você.
Tocante, amado, mas desnecessário. Aquela vadia para quem você se curva
foi astuta ao lhe enviar antes de sua poderosa frota. Mas receio que não seja tão
poderosa agora. E sim apenas madeira quebrada e cadáveres.
Os pensamentos dele mudam, de incerteza para negação, mas ela sabe que ele
sente a verdade em seus pensamentos.
O que está achando de Viratesk?, continua ela, desfrutando da pontada
resultante de alarme. Os seus batedores foram cuidadosos, mas nós os vimos. A
população não queria partir, então deixei que ficassem. Você pensou em
vasculhar os esgotos, não é?
Ele despertou com um grito, levando a mão à espada encostada na cama, mas
sem encontrar nada. Seus olhos percorreram a escuridão e viram apenas
sombras. Frentis sentiu o peso de Lemera ao seu lado na cama, suas visitas
noturnas agora um ritual, embora nunca fizessem mais do que se deitar juntos.
Ele a cutucou com cuidado, pronto para cobrir a boca dela com a mão quando
despertasse, mas parou ao sentir o frio familiar da pele da garota. Os olhos de
Lemera estavam semicerrados, os lábios arreganhados numa careta de agonia.
Um corte preciso ia de uma extremidade à outra de sua garganta.
— Você é decepcionante.
Frentis rolou para fora da cama quando uma figura saiu das sombras, um
jovem com o porte comum aos Kuritai, embora usasse uma armadura vermelha
e tivesse um sorriso escarnecedor no rosto. Atrás dele mais dois surgiram da
escuridão, um deles segurando a sua espada. As mãos do homem que sorria
moveram-se num borrão e algo foi passado em volta do pescoço de Frentis,
apertando-o até que perdesse o fôlego antes de ser arrastado para o chão. Algo
rápido e duro chocou-se com a sua barriga, fazendo com que se dobrasse para a
frente, a corda em volta do seu pescoço cada vez mais apertada à medida que
sua visão ia ficando turva, as palavras do homem que sorria seguindo-o para
dentro da escuridão:
— Ela nos prometeu que você seria um desafio.
CAPÍTULO QUATRO
Lyrna
***
O Capitão Larhten aconselhou que seguissem para oeste durante algum tempo,
argumentando que encontrariam mais embarcações do Reino navegando mais
afastados da costa. No meio da tarde eles já haviam reunido outros quarenta
navios, alguns com mastros e cordames faltando, mas todos capazes de seguir
em frente. Como era de se esperar, os navios meldeneanos eram os menos
danificados, e Ly rna ficou feliz ao ver o Falcão Vermelho entre eles, o Senhor
Marinho Ell-Nurin acenando da proa quando o navio aproximou-se. Até então
somente ele o Rainha Lyrna haviam sido equipados com a máquina cuspidora de
fogo de Alornis, nas quais agora depositava uma boa dose de esperança.
— Poderíamos seguir para a costa, Alteza — sugeriu o capitão a Ly rna, que
estava parada na amurada com os olhos fixos no horizonte. — Recolher mais
alguns desgarrados no caminho.
Ela passou os olhos pela sua frota e encontrou dois dos grandes navios de
tropas presentes, assim como uma boa quantidade de meldeneanos.
— Não — disse Ly rna. — Ancore e encha um dos barcos com todos os trapos
e madeira de que puder dispor, cubra-o de piche para se certificar de que faça
fumaça e coloque fogo. Faça sinal aos outros navios para fazerem o mesmo.
Desta vez o nilsaelino sabia que era bom não se demorar e o barco logo foi
deixado à deriva, lançando ao céu uma coluna alta e serpenteante de fumaça
negra, logo acompanhada por outras dezenas quando os outros navios fizeram o
mesmo.
— Um belo farol, Alteza — congratulou-a Larhten com uma mesura.
— Obrigada. — Ly rna olhou para o norte. Apesar de ser provável que atraia
tanto inimigos quanto amigos.
Os volarianos surgiram quando o sol começou a se pôr, pelo menos cem
mastros despontando do horizonte setentrional, e mais continuaram a aparecer
sem parar. O farol de Ly rna reunira mais de trinta outros desgarrados enquanto
aguardavam ancorados, mas ela sabia que seria fatal demorar-se mais.
— Içar todas as velas, capitão — disse a Larhten. — E faça sinal para o
Falcão Vermelho permanecer a estibordo de nós. Os outros navios devem nos
seguir.
Larhten assentiu gravemente, olhando para a frota volariana com um receio
justificado porém controlado.
— O curso, Alteza?
Ly rna gargalhou ao se afastar, indo para a proa.
— Na direção do inimigo, meu senhor. O mais rápido possível.
Ela encontrou Alornis ocupada com a inspeção da máquina, suas mãos
movendo-se com uma velocidade e uma agilidade que pareciam quase
sobrenaturais.
— Algum dano, minha senhora?
— Tive que drenar água dos tubos. E os encaixes precisam de um leve ajuste.
— Alornis ergueu uma marreta e começou a bater num tubo de cobre na parte
de baixo da máquina. — Mas irá funcionar, Alteza.
— Ótimo. Vá para baixo. Lordes Iltis e Benten cuidarão da máquina.
Alornis nem mesmo ergueu os olhos, continuando a martelar enquanto os
volarianos se aproximavam cada vez mais. Ly rna suspirou e virou-se para Murel.
— Há outra cota de malha na minha cabine. Busque-a para a Senhora
Alornis, por favor. — Ela puxou Davoka de lado e falou em voz baixa em lonak:
— Ela não deve se ferir, irmã. Prometa-me.
— Meu lugar é ao seu lado.
— Não hoje. — Ly rna agarrou o braço da lonak. — Ela é sua irmã hoje.
Prometa-me.
— Você teme tanto assim a ira do irmão dela?
Ly rna baixou os olhos.
— Você sabe que não é a ira dele que temo.
Davoka assentiu com relutância, pegou a cota de malha com Murel e foi até
Alornis.
— Vista isso, pequena.
Ly rna juntou-se a Lorde Nortah, que organizava um grupo de combates no
convés, cinquenta de seus melhores soldados equipados com largos painéis de
madeira para se protegerem das flechas.
— Meu senhor, eu gostaria de me dirigir às suas tropas.
Ele fez uma mesura e deu uma ordem brusca, e a companhia ficou em
posição de sentido, batendo as botas em uníssono. Ly rna examinou os seus rostos,
feliz por não encontrar medo neles e pela devoção que continuava visível em
cada olhar.
— Eu disse uma vez que não mentiria para vocês — disse a eles. — E não
mentirei. Estamos diante de uma luta árdua porque cometi um erro terrível. Mas
também não minto quando digo que esta batalha pode ser vencida, se ficarem
comigo.
O grito instantâneo de aclamação foi suficiente para convencê-la de que não
era necessário dizer mais nada.
— Não poupem inimigo algum — disse Ly rna a Nortah. — Cada volariano
que pisar neste convés deve ser morto antes que possa dar outro passo.
Diferente de seus soldados, Lorde Nortah concordou em voz baixa, seu rosto
franzido da mesma forma cautelosa que sempre exibia na presença dela.
— Cuidarei disso, Alteza.
Ela voltou para a proa e posicionou-se na plataforma elevada, logo atrás de
Alornis e da máquina. Benten e Iltis estavam perto em ambos os lados, enquanto
Murel permanecia atrás, de adaga na mão. Davoka agachou-se ao lado da
máquina, a lança abaixada e preparada.
— Eu deveria ir buscar algum escudo, Alteza — disse Iltis. — Tinha muitas
flechas deles nos Dentes, como a senhora deve se lembrar.
— Lembro-me muito bem, meu senhor. Mas isso não será necessário.
Ly rna observou os navios volarianos chegarem ainda mais perto, a
embarcação que vinha à frente a uma distância de quinhentos metros. Ela olhou
para estibordo e ficou satisfeita ao avistar o Falcão Vermelho ao lado, onde um
homem estava a postos em outra máquina. Ly rna só esperava que ele tivesse sido
ensinado a usá-la adequadamente. Uma olhada para a popa confirmou que os
outros navios em sua pequena frota seguiam numa fila estreita e organizada,
cada convés apinhado de soldados e piratas.
A balista a bombordo começou a ranger quando os navios volarianos se
aproximaram, disparando os seus virotes contra o cordame de uma pequena
porém veloz belonave que entrara em seu caminho. A princípio, o jorro arqueado
de projéteis pareceu não surtir qualquer efeito, mas eles logo foram
recompensados ao verem uma figura despencar do mastro da belonave e cair
com força no convés, fazendo a equipe da balista soltar um brado de
comemoração no mesmo instante. Contudo, os arqueiros volarianos logo
colocaram as próprias armas em jogo, e uma chuva de flechas caiu sobre o
Rainha Lyrna de uma extremidade à outra. Ly rna viu uma flecha cravar-se nas
tábuas a um braço de distância, mas conseguiu controlar o instinto de se encolher.
O medo é um luxo hoje. Eles precisam ver uma rainha.
A balista a bombordo continuava a ranger, o tripulante que girava o
mecanismo vibrava empolgado com o efeito que estava tendo contra a
embarcação volariana, o seu primeiro virote atingindo com força suficiente para
prender um homem ao convés. Uma dúzia ou mais de Espadas Livres que
estavam muito perto uns dos outros tombaram quando os arqueiros no cordame
do Rainha Lyrna se juntaram ao combate, causando destruição na belonave
enquanto a embarcação tentava se afastar, coberta de cadáveres.
Um estrondo chiado atraiu a atenção de Ly rna de volta à proa, onde foi
recebida com a visão de Alornis erguendo ao máximo a máquina, e um jorro de
fogo foi expelido em arco na direção da embarcação volariana que se
aproximava. Era um dos navios de tropas, pouco menor do que o Rainha Lyrna,
os arqueiros no cordame disparando uma chuva de flechas sobre eles conforme
se aproximavam a toda a velocidade. A princípio o jato de fogo de Alornis caiu
no mar, levantando vapor suficiente para ocultar por um momento o navio
atacante. Porém, quando o vapor se dissipou, viram o fogo envolvendo a proa do
navio, do mar até a amurada. A embarcação volariana pareceu estremecer, seu
curso mudando de forma abrupta como um javali ferido recuando diante da
ponta de uma lança.
Alornis virou-se com um olhar furioso para os dois soldados que
manuseavam o fole.
— Mexam com mais força! Preciso de mais pressão!
Ela realinhou a máquina enquanto a embarcação volariana balançava diante
deles, soltando outra torrente de chamas que envolveu a lateral do navio antes de
subir para se espalhar pelo convés, queimando homens e cordames, sem
distinção. Corpos flamejantes começaram a saltar do navio, e um coro de gritos
lhes chegou aos ouvidos em meio à fumaça que se adensava, acompanhado do
fedor de carne queimada. Alornis vacilou nesse momento e tirou a mão da
manivela, fazendo as chamas se apagarem, suas feições pálidas e retesadas.
Ly rna foi rapidamente para o seu lado, colocou a mão em seu ombro e a
virou para si.
— Um fardo que não pode ser evitado, minha senhora — disse ela, pegando a
mão de Alornis e a colocando de volta com firmeza na manivela. — Ao trabalho,
por favor.
Uma flecha atingiu a máquina, a ponta de aço estilhando-se nos encaixes de
ferro e a seta rodopiando para longe. Alornis mal pareceu notar, o rosto pálido
ainda imóvel ao assentir e voltar ao trabalho, alterando o ângulo da máquina para
lançar chamas contra as velas volarianas. Ly rna podia ver homens correndo pelo
navio carregando baldes para enfrentar chamas que não se apagavam. Em
pouco tempo o cordame estava pegando fogo e a tripulação começou a
abandonar o navio com uma rapidez frenética, com homens deixando rastros de
fogo ao caírem no mar às dezenas.
Ly rna olhou em volta à procura de outra vítima e avistou uma belonave veloz
a cerca de duzentos metros a bombordo.
— Diga ao capitão para ir na direção daquele navio — disse ela a Murel antes
de se virar de novo para Alornis. — Minha senhora, creio que a sua máquina
precisa de mais combustível.
O navio se encontrava sobre a areia como uma grande fera ferida, os mastros
cortados e boa parte da madeira removida das laterais do casco, expondo a
trama complexa de vigas que de algum modo conseguira mantê-lo intacto. Foi
Benten quem o reconheceu como o Senhor Feudal Sentes; o seu olhar de
marinheiro experiente era capaz de discernir as leves diferenças que distinguiam
um navio de outro.
— Parece estar muito para dentro da praia para que pudesse ser levado pela
maré — disse ele. — É espantoso que ainda esteja inteiro.
A curta viagem até a baía revelara apenas cinco dos trinta navios que
navegavam com a Senhora Reva, todos severamente danificados e mal se
mantendo à tona, embora suas cargas preciosas de tropas e suprimentos
estivessem em sua maioria intactas. Com o Sentes chegavam a seis, mas o navio
não podia ser considerado em condições de navegar. Ao todo, pouco mais de dois
terços da Frota da Rainha haviam sobrevivido à tempestade, apesar de as baixas
terem sido severas e a batalha com os volarianos tivesse ceifado outras mil vidas.
Embora Ly rna visse o rubor da vitória em muitos rostos, ela sabia que a batalha
na verdade não fora decisiva, e o Senhor Marinho Ell-Nurin estimava que
haviam capturado ou afundado no máximo metade da frota volariana.
— Quem quer que os estivesse comandando teve sensatez suficiente para
recuar sob a proteção da noite — concluiu ele. — Um de nossos navios de
reconhecimento relatou ter avistado velas no horizonte ao sul.
Ly rna pegou o primeiro barco para a praia, calando todos os protestos com
um olhar intenso e silencioso. O momento para cautela havia acabado na
tempestade. Apesar de toda a aclamação com que foi recebida pelos navios ao
redor enquanto o barco seguia a caminho da costa, ela sabia que a moral ainda
despencaria como uma pedra quando a realidade da situação em que se
encontravam ficasse aparente. Eles precisam ver uma rainha.
Foi acompanhada pelo Lorde Comandante Nortah e uma companhia inteira
de Adagas da Rainha. O Irmão Sollis levou para o norte um aglomerado de
barcos repletos com o que restava da Sexta Ordem, enquanto o Conde Marven
levou os seus melhores nilsaelinos para proteger as rotas de aproximação ao sul.
Eles foram obrigados a remar em meio a diversos cadáveres, e Ly rna ficou
surpresa ao ver que a maioria era de volarianos, balançando nas ondas com
flechas cravadas nas armaduras.
A maré estava baixa e as ondas não estavam se quebrando na praia quando
pararam na areia, e Ly rna saltou do barco antes que Iltis pudesse fazer objeção.
Ela o ouviu abafar um xingamento ao pular atrás dela na água que lhe chegava
até a cintura. Ly rna seguiu pelo mar na direção do navio, passando os olhos pelo
casco parcialmente arruinado e dando com vários rostos a encarando, embora
agora não houvesse vozes aclamadoras, e a maioria simplesmente estivesse
pálida de exaustão. Ela notou um amontado escuro de corpos volarianos na praia,
cerca de duzentos homens e cavalos cobertos de flechas.
— Pensaram que éramos alvo fácil — gritou uma voz do alto do Sentes, e o
olhar de Ly rna encontrou um homem robusto parado numa das fendas no casco
do navio, segurando um arco longo e olhando para baixo na direção dela com
uma gravidade que contrastava com o costumeiro respeito cauteloso que os
soldados cumbraelinos demonstravam para com ela. — Provamos que estavam
errados.
Ly rna olhou para ele e continuou o encarando até ele acrescentar um
“Alteza” numa voz seca.
— Lorde Antesh — disse ela. — Onde está Senhora Reva?
Ele ficou visivelmente abatido ao ouvir suas palavras, baixou a cabeça e
fechou os olhos com força.
— Suponho que a senhora também não tenha notícias dela, Alteza?
Ly rna virou-se e viu a primeira leva de tropas desembarcar, as Adagas da
Rainha espalhando-se para vasculhar as dunas, enquanto um regimento da
Guarda do Reino tirava os barcos da água, seguido por mais, numa maré
aparentemente interminável.
— Lorde Antesh. — Ela virou-se de novo para o arqueiro e encontrou um
homem agora nitidamente tomado pelo pesar. — Lorde Antesh!
Ele se empertigou com o grito, e um espasmo de raiva tomou conta de seu
rosto antes de se forçar a uma expressão mais neutra.
— Alteza.
— Eu o nomeio Lorde Comandante do Exército Cumbraelino da Rainha.
Remova os seus soldados deste navio e prossiga para o interior além da praia.
Haverá um conselho de capitães esta noite e vou precisar do número exato de
suas tropas.
Ela seguiu em frente sem esperar uma resposta de confirmação. Eles
seguiam a Senhora Abençoada, ela sabia. Não posso deixar nenhuma dúvida de
que agora precisam me seguir.
A mulher devia ter sido muito bela quando viva, dotada da flexibilidade de uma
dançarina e de feições delicadas como porcelana. Contudo, como Ly rna a essa
altura havia testemunhado muitas vezes, a morte parecia sempre privar o corpo
da beleza, descorando a pele e tornando as feições um eco flácido da alma que
já fizera aqueles lábios carnudos sorrirem. O Irmão Sollis havia descoberto mais
corpos nas dunas não muito longe dali; escravos, a julgar pelas roupas, todos com
a garganta cortada. Entretanto, a mulher que já fora bela não mostrava sinais de
qualquer ferimento, apesar do sangue seco que manchava a pele em volta dos
olhos e do nariz.
O Irmão Lucin era o membro da Sétima Ordem mais velho que Ly rna
encontrara até então, magricela e quase completamente careca, exceto por um
tufo de cabelo branco que brotava do topo da cabeça como uma erva daninha
esquecida. Ele andou em volta do corpo da mulher durante algum tempo,
franzindo o cenho, concentrado, de vez em quando murmurando consigo mesmo.
Durante a sua busca infrutífera por evidências, Ly rna entrevistara várias pessoas
presas por suspeita de prática das Trevas e descobrira que todas eram charlatãs
ou vítimas de acusações maliciosas. Uma dessas pessoas, um jovem charmoso,
mas aterrorizado, explicara de bom grado como enganava viúvas ricas e as fazia
gastarem dinheiro ou joias ao afirmar que se comunicava com parentes mortos
havia muito tempo, e dera uma demonstração não muito diferente da realizada
naquele momento pelo Irmão Lucin. Em reconhecimento de sua honestidade,
Ly rna convencera o seu pai a comutar a sentença do charlatão para dez anos na
Guarda do Reino.
— Isso vai levar quanto tempo? — perguntou ela ao Aspecto Caenis, sem
conseguir manter o tom de desconfiança longe da voz.
— Todos os lugares possuem uma história, Alteza — respondeu ele. — O
Irmão Lucin é obrigado a vasculhar um emaranhado de imagens para encontrar
o evento certo.
— Argh! — gritou o irmão idoso, o rosto contorcido numa careta tanto de
aversão quanto de medo.
— Irmão? — perguntou Caenis, aproximando-se.
O Irmão Lucin o afastou com um aceno irritado de seus braços ossudos.
— Eu a senti — disse ele, lançando um olhar acusador a Ly rna, como se ela o
tivesse conduzido até uma armadilha. — A coisa dentro dela. Você está tentando
me matar?
— Olhe essa boca, irmão — rosnou Iltis, com um olhar de aviso.
O Irmão Lucin mal olhou para ele.
— O passado é real — disse ele a Ly rna. — Não uma confusão de sombras.
Ele possui poder.
— Perdão se eu o coloquei em perigo, irmão — retorquiu Ly rna, percebendo
que não adiantaria de muita coisa insistir no uso de etiqueta com aquele homem.
— Mas as nossas atuais circunstâncias exigem que corramos todos os riscos. —
Ela indicou o cadáver com um aceno de cabeça. — Era ela?
O irmão olhou para a morta com palpável relutância, afastando-se como se
esperasse que ela pudesse voltar à vida de repente.
— Havia soldados com ela. Eles a chamavam de Imperatriz. Ela tinha um
dom poderoso, pude sentir isso, que emanou dela de uma só vez para fazer com
que o vento obedecesse à sua vontade.
— Então ela está morta — disse o Conde Marven. — Ela deu a vida para nos
destruir. O inimigo está sem líder agora.
O Irmão Lucin lançou um olhar fulminante ao Senhor da Batalha.
— Esta era apenas uma casca, escolhida pelo seu dom. Podem estar certos
de que ela já despertou em outra.
— Por que matar os escravos? — questionou Marven.
— Testemunhas — respondeu Ly rna, olhando de novo para o rosto da morta.
Onde ela encontrou você? Você já teve um nome? — Poucos ou nenhum
volariano sabe qual é a verdadeira natureza de sua nova Imperatriz. Levem os
corpos para as piras. Duvido que tenham algo mais a nos contar.
***
— O fingimento não nos servirá de nada agora — disse Ly rna aos capitães
sobreviventes de seu exército e sua frota, reunidos na elevação para além da
praia, onde as tropas ainda desembarcavam, a areia salpicada de piras
flamejantes para os mortos. — Sofremos um golpe doloroso. A Senhora Reva
está desaparecida e é muito provável que esteja morta, assim como o Lorde
Almirante Ell-Nestra. Perdemos um quinto de nosso exército devido a um erro
de julgamento meu. Assim, sou obrigada a perguntar se há alguém aqui que não
esteja mais disposto a seguir minhas ordens.
Ly rna examinou o rosto deles e viu que a maioria estava claramente perplexa
pela pergunta. Os meldeneanos a encaravam com a mesma certeza que
marcara a atitude deles desde os Dentes, onde, ela sabia, muitos acreditaram que
os deuses a haviam imbuído com alguma forma de discernimento divino. Longe
de diminuir a sua fé, os eventos da noite anterior pareciam tê-la consolidado;
quem além dos deuses poderia obter uma vitória a partir de uma derrota tão
certa?
De forma semelhante, o Senhor Feudal Arendil e o Barão Banders também
não exibiam sinais de desconfiança, assim como Sabedoria, que comparecera
para falar em nome do pequeno contingente de eorhil e seordah. As únicas
expressões nítidas de inquietação vinham do Lorde Comandante Nortah, o que
era típico, e de Lorde Antesh, ainda evidentemente tomado pelo pesar. Porém,
assim como os outros, ele permaneceu calado.
— Muito bem — disse Ly rna, assentindo para o Conde Marven. — Senhor da
Batalha, a nossa posição tática, por favor.
— Estabelecemos um perímetro que se estende por um quilômetro e meio
para o interior, Alteza. O Irmão Sollis designou a Ordem para fazer
reconhecimento mais distante, e até o momento não há relatos de forças inimigas
significativas por perto, apesar de termos encontrado algumas patrulhas
montadas. Teremos uma ideia melhor quando os cavalos restantes forem trazidos
para terra firme.
— Os que sobraram — interrompeu o Barão Banders. — Um terço de nossas
montarias adoeceu e morreu nos navios. Cavalos não lidam bem com a vida no
mar.
— Esta região é repleta de terras cultivadas — disse Ly rna. — Sem dúvida
logo encontraremos substitutos. Até que isso aconteça, receio que qualquer
cavaleiro sem cavalo terá de lutar a pé, meu senhor.
— Isso lhes dará algo de que reclamar — murmurou Banders, baixo o
suficiente para Ly rna ignorar sem problemas.
— A frota volariana? — perguntou ela ao Senhor Marinho Ell-Nurin.
— Ainda nenhum sinal dela, Alteza. Mas duvido que tenham ido longe.
Provavelmente estão lambendo as feridas e esperando reforços.
— Então não vamos lhes dar o prazer disso. Eu o nomeio Lorde Almirante
Ell-Nurin. Os cargueiros e os navios de tropas regressarão para o Reino o mais
depressa possível para buscar mais suprimentos e reforços. O senhor pegará
todas as belonaves que temos e atacará o inimigo sem cessar.
— Assim o farei, Alteza. Ajudaria os nossos esforços se a Senhora Alornis
nos acompanhasse. Precisamos de mais combustível para as máquinas dela e os
meus companheiros não estão conseguindo acertar a mistura.
— A Senhora Artífice está indisposta. Façam o melhor que puderem. — Ela
parou e fez questão de encontrar o olhar de todos os presentes, certificando-se de
que não vissem qualquer incerteza em seus olhos. — O exército deve estar
totalmente reunido até amanhã. Assim que estiver, marchamos para Volar. A
Imperatriz deles sem dúvida estará se deleitando com a sua vitória imaginária.
Pretendo desenganá-la dessa ideia quanto antes.
***
Era esperado que todos se revezassem para remar, com exceção dos xamãs;
duas ou mais horas passadas cortando as águas com um remo de pá larga. Como
sempre, o esforço constante deu a Lorkan muito do que reclamar, embora Vaelin
tivesse notado que ele demonstrava fazer pouca força ao remar. O homem
parecia mais alto agora, com as costas mais retas e os ombros mais largos.
Apesar de toda a reclamação, Vaelin sabia que o garoto que conhecera nos
Confins se perdera em algum lugar na maré de guerra e nas privações do gelo.
Porém, pelos olhares constantes a Cara, tudo indicava que pelo menos uma coisa
não havia mudado durante a jornada.
As ilhas ao redor ficavam cada vez maiores e mais altas à medida que
seguiam para o sul, grandes colinas de granito encimadas pela neve e florestas
densas de onde mais canoas surgiam conforme se aproximavam. Havia pouca
celebração nos cumprimentos trocados entre o Povo Lobo, alguns acenos
respeitosos de mão ou de cabeça entre xamãs, alguns chamados de velhos
amigos, mas na maior parte formavam o seu comboio crescente com uma
eficiência silenciosa. Vaelin também achou estranho que ninguém parecesse
particularmente surpreso ou incomodado com a presença de tantos forasteiros, e
a maioria apenas olhava a sua companhia diversificada com uma aceitação
taciturna.
— Eles sabiam que estaríamos viajando com vocês — disse ele a Astorek
durante o seu turno nos remos, que ocorria duas vezes por dia. O xamã falava
pouco na água, o rosto uma máscara de concentração constante enquanto
cuidava para manter os seus lobos sob controle.
— Falcões podem fazer mais do que matar — retorquiu ele, erguendo a
cabeça para o céu, onde o grande bando rodopiante de falcões-lanceiros
acompanhava o comboio. À noite eles desciam até a floresta de poleiros que
brotava das canoas, devorando os pedaços de carne fornecidos pelos seus xamãs,
cuja maioria parecia ser de mulheres.
— Eles levam mensagens? — perguntou Vaelin. — Mas o seu povo não
escreve.
— Não, não temos livros. — Astorek tirou algo de um bolso de suas peles e
jogou para Vaelin: um pedaço de osso de alce, marcado de ponta a ponta com
cortes retos ao longo de uma linha. — Cada marca representa um som —
explicou Astorek. — Junte-os e se tem uma palavra.
— O que diz?
— “Faca Longa é xamã de trinta lobos”. Muitas Asas entalhou quando virei
adulto e enviou cópias a todos os povoados. Foi a única vez que vi alguém de meu
povo se vangloriar.
Vaelin olhou em volta para as outras alcateias na canoa, notando como eram
pequenas em comparação, nenhuma com mais do que doze lobos.
— Deve ser difícil controlar tantos.
— Controlar não é bem a palavra. Eles… me aceitam.
Vaelin olhou mais atentamente para a alcateia de Astorek e notou como os
animais fixavam os olhares nele de forma uniforme, cativados e quase não
piscando.
— Eles conseguem ouvir — percebeu Vaelin. — O eco do chamado do lobo.
Ainda está em você.
O desconforto transpareceu por um momento na expressão de Astorek, e um
dos lobos virou-se para Vaelin com um rosnado crescente nos lábios. O animal se
acalmou quando Astorek passou a mão em sua cabeça, e olhou para o xamã com
a boca entreaberta em adoração.
— Eles também conseguem ouvi-lo em você, Sombra do Corvo. Algumas
coisas nunca desaparecem da alma de um homem.
Remaram para o sul por três dias, reunindo cada vez mais membros do Povo
Lobo ao longo do caminho. Quando avistaram o litoral vasto do continente, Vaelin
estimou que chegavam agora a mais de cem mil. Outros aguardavam na costa,
onde povoados podiam ser vistos entre as árvores, as moradas maiores ocupando
mais espaço do que as do Lar Lobo.
— Por que não viver aqui o tempo todo? — perguntou Cara a Astorek ao se
aproximarem da costa. — Parece ser um lugar mais confortável.
— Os alces vão para o sul no inverno — explicou ele. — Longe demais para
seguirmos, deixando uma vastidão congelada para trás. Mas nas ilhas, morsas e
baleias aparecem quando o gelo se forma.
À noite ocorreu um banquete de celebração, onde os últimos estoques de
inverno foram consumidos. O Povo Lobo aglomerou-se ao redor de várias
fogueiras imensas para assar as suas carnes em espetos e dividir chifres de
cerveja de pinho, emitindo cliques em sua língua indecifrável ao trocarem
histórias de privação durante o inverno. Apesar de a atmosfera em geral ser
festiva, Vaelin sabia que havia moderação no evento, notando como muitos rostos
o encaravam numa expectativa tensa. Assim como não possuíam uma palavra
para mentira, aquela gente também não possuía uma para segredo. Há séculos
vinham fazendo peregrinações até a caverna pintada e conheciam seu rosto e seu
nome.
Ele se sentou com Dahrena, afastado da multidão principal, e acendeu uma
fogueira menor para que pudessem jantar um ensopado de morsa. Vaelin cuidou
da refeição, cortando a carne em tiras e a temperando com ervas e com o que
restava do sal que havia trazido do Reino.
— Conheci irmãos que prefeririam abandonar as suas espadas no lugar do sal
— disse a Dahrena, exagerando apenas um pouco. A vida na Ordem fazia com
que a maioria dos irmãos adquirisse habilidade na arte de cozinhar em fogueiras
e reconhecesse o consolo necessário oferecido por uma pequena quantidade de
temperos.
— Você sente falta? — perguntou ela, aceitando uma tigela de ensopado. —
Foi criado para uma vida na Ordem. Deve ter sido difícil abandoná-la.
— Eu já havia perdido meus irmãos ao final da guerra, e muito mais. Não
havia nada pelo que voltar. — Vaelin sentou-se ao lado dela e eles comeram em
silêncio durante algum tempo. Como sempre, a sensação de compreensão mútua
afastava as suas preocupações com uma facilidade consoladora. Quando estava
com ela, era quase como se a sua canção tivesse retornado, tão fáceis de ler
eram os humores de Dahrena. Vaelin podia ver agora, a leve tensão no rosto dela
enquanto comia, o modo como os olhos iam constantemente para o seu rosto.
— Você está preocupada com o futuro.
— O mundo está mergulhado no caos — retorquiu Dahrena. — Parece
apropriado me preocupar.
— Se eu ainda fosse um homem da Fé, poderia citar um catecismo pertinente
sobre as virtudes da esperança.
— Acredita que a invasão da Rainha será bem-sucedida?
— Acredito nela. Ela é… mais do que era.
— E se formos bem-sucedidos, o que acontecerá?
— Voltaremos para os Confins, onde desconfio que passaremos boa parte do
nosso tempo protegendo-os de idiotas sedentos por ouro.
— É essa a sua ambição? Apenas a torre e os Confins?
— A torre, os Confins — Vaelin estendeu a mão e pegou a dela — e você.
Além da paz para desfrutar de tudo isso.
Dahrena sorriu, mas ele notou que era forçado.
— Meu pai também queria a paz, e esperava encontrá-la nos Confins.
— Caenis me disse que ele foi exilado por questionar a Palavra do Rei. Eu
sempre imaginei que havia sido por ter se recusado a fazer o que meu pai fez nas
Ilhas Meldeneanas.
— O clímax de uma longa discussão. Meu pai começou a carreira como um
guarda na Guarda da Casa Al Nieren, quando as famílias nobres asraelinas ainda
brigavam sem cessar pela Cadeira do Senhor. Uma vez ele me contou que Janus
lhe havia prometido a paz, na época em que a Mão Vermelha finalmente havia
desaparecido. Os dois eram pouco mais do que garotos na ocasião, enfrentando o
ataque de uma dúzia de casas aliadas contra eles, pois a linhagem Al Nieren
havia sido enfraquecida pela praga e parecia que seria fácil vencê-la. “Vamos
matar todos esses tolos, Vanos”, dissera Janus. “Então criaremos um Reino”.
“E criaram, ano após ano de guerra, as outras casas destruídas e humilhadas,
os feudos subjugados, tudo pela promessa de paz. Uma paz que não deu as caras
com o nascimento do Reino quando Janus voltou a atenção para terras
estrangeiras. Então, incapaz de encarar outra guerra, meu pai implorou para ser
dispensado, imaginando que poderia aposentar-se de forma tranquila nos Confins,
distante dos problemas do Reino e da ambição de Janus. Mas mesmo assim a
guerra o encontrou quando a Horda do Gelo apareceu.”
Vaelin apertou a mão dela com mais força.
— Não haverá nenhuma outra guerra como esta para ser lutada.
— Eu vejo a Rainha, assim como você. Eu a encontrei uma vez antes, há
muitos anos, quando meu pai me levou para o Reino. E você tem razão, ela
mudou muito. Mas ainda vejo nela o que meu pai viu no dia em que ela nos levou
a um passeio pelos jardins do palácio, toda risos e charme. Meu pai sorria ao
ouvir os ditos espirituosos dela, aceitou os elogios e despediu-se com
graciosidade. Contudo, enquanto nos afastávamos a cavalo o sorriso dele
desapareceu e o ouvi dizer: “E eu achava que Janus era ambicioso”. Pode ter
mudado, mas não desapareceu, Vaelin. Quando ela acabar com esta guerra, o
que acontecerá? O que a saciará quanto tiver conquistado um império? O que
mais ela pedirá de você?
Matará por sua fé, por seu Rei e pela Rainha do Fogo quando ela surgir…
Palavras de um sonho antigo. Talvez nem toda profecia seja falsa.
— Acho que ela é sensata o bastante para não pedir o que não darei.
Astorek veio buscá-los de manhã para um conselho, seguindo por um caminho na
floresta até chegarem a uma árvore tão grande que Vaelin a princípio se
perguntou se não era alguma ilusão conjurada por xamãs. O tronco era coberto
por uma casca marrom-avermelhada e tinha mais de vinte metros de largura na
base, chegando a uma altura de mais de sessenta metros, o topo perdido em
algum lugar acima das copas da floresta.
— O nome perde muito do significado na sua língua — disse Astorek. —
Lança dos Lobos é a tradução mais aproximada. A mais antiga das grandes
árvores que conhecemos. Nem mesmo os avós de nossos avós conseguiam
lembrar-se dela como uma muda.
Na base do tronco havia uma cavidade grande semelhante a uma caverna
onde alguns membros do Povo Lobo aguardavam, permanecendo de pé e em
silêncio quando Astorek levou Vaelin para dentro. Ele não se apresentou e
simplesmente assumiu um lugar enquanto encaravam o seu rosto, o
reconhecimento e a inquietação evidentes em cada olhar. O silêncio se arrastou
enquanto ele permaneceu parado ali, perguntando-se se havia algum ato
ritualístico que não fizera, até que Urso Sábio aproximou-se e falou em voz baixa:
— Eles querem as suas palavras.
— Palavras?
Urso Sábio deu um sorriso breve para o Povo Lobo reunido ali, lembrando
um pai desculpando-se por um filho mal-educado.
— Palavras de guerra. Eles esperam que você os lidere.
Os olhos de Vaelin percorreram o conselho, encontrando Matador de Baleia
entre eles, os outros também identificados como anciões pelos objetos que
portavam: colares de ossos ou contas, uma faca comum com o punho entalhado
de forma delicada. Somente as pessoas do gelo com idade e influência
suficientes tinham o tempo ou a oportunidade de acumular bugigangas.
— Não há xamãs aqui — comentou com Astorek.
— Xamãs são proibidos de liderar — disse ele. — Poder demais deixa a alma
doente. Uma lição que o Povo Gato nunca aprendeu.
Vaelin assentiu.
— Quantos guerreiros eles comandam?
Astorek falou brevemente com o conselho, recebendo respostas secas, mas
ligeiras.
— Não contamos números como vocês — informou o xamã. — Mas talvez
um quarto da gente de cada ilha esteja em idade de lutar.
Pouco mais de vinte mil. Dificilmente o Exército da Rainha, mas eles têm os
seus lobos e falcões.
— Eles viram algum sinal dos volarianos?
— Batedores foram enviados para o sul com o primeiro degelo — informou
Astorek. — Como são enviados todos os anos. Regressarão quando os volarianos
atravessarem a região das colinas e entrarem nas planícies. Eles costumam vir
quando o sol está mais alto, mais ou menos daqui a dois meses.
Vaelin lembrou-se das palavras de Sem Olhos no gelo: Sou paciente e
desconfio que você ainda tenha um longo caminho a percorrer.
— Eles virão mais cedo este ano, e não podemos esperar. Seu povo precisa
reunir os guerreiros, todos os lobos e falcões, e vir para o sul comigo.
A inquietação dos anciões aumentou de forma visível quando Astorek
traduziu, embora nenhuma palavra tenha sido dita quando trocaram olhares
cautelosos. Mesmo após uma vida acreditando é difícil confiar seu destino à tinta
pintada numa parede séculos atrás, concluiu Vaelin.
Por fim, um dos anciões falou, um velho curvado que se apoiava bastante
num cajado, a voz fina e cansada, mas ainda capaz de impor um grande respeito
pelo modo como Astorek traduziu suas palavras com uma solenidade objetiva.
— Andarilho Distante, o mais velho e sábio do Povo Lobo, pergunta que
promessas a Sombra do Corvo pode fazer. As palavras do Povo do Grande Barco
tornaram-se verdadeiras?
— Não posso oferecer quaisquer palavras com respeito às suas crenças —
falou Vaelin. — E qualquer homem que conduz outros à guerra com uma
promessa de vitória é tolo ou mentiroso. Ofereço uma oportunidade de derrotar o
seu inimigo e evitar que ele retorne. Nada mais.
O velho falou de novo quando Astorek terminou de traduzir, aproximou-se e
olhou para Vaelin, a confusão e o espanto alternando-se em suas feições
envelhecidas.
— Quando eu era criança, perguntava aos anciões: “Quando a Sombra do
Corvo virá?” Eu fazia a mesma pergunta sem parar, pois sabia que ele não havia
aparecido na época de meus pais, ou de meus avós, nem nas muitas Noites
Longas antes disso. “Não enquanto você viver, pequenino”, respondiam eles, e
então eu dormia bem, sabendo que sua época traria grandes tormentos e
privações ao Povo Lobo, mas que eu seria poupado de testemunhá-la.
Ele continuou a encarar Vaelin por algum tempo, fazendo por fim uma
pergunta breve, num sussurro:
— Como você derrotará nosso inimigo?
— Com os seus guerreiros, seus xamãs, seus lobos e seus falcões. Com o aço
dos soldados que comando e as habilidades terríveis dos aliados que nos seguiram
até aqui. — Ele fez uma pausa e olhou para Dahrena e os dotados, que tinham
permanecido na extremidade da caverna. — E a coragem de almas intensas e
poderosas.
Andarilho Distante abaixou os olhou e virou-se, voltando-se para as
profundezas da árvore num passo cansado. Ele tornou a falar ao ser engolido
pelas sombras, as palavras fazendo com que os outros membros do Povo Lobo
soltassem um grito instantâneo e sufocado de choque. Alguns gritaram às suas
costas, fazendo perguntas urgentes à escuridão, mas não houve resposta.
— O que ele disse? — perguntou Vaelin a Astorek, que olhava boquiaberto
para onde o velho se dirigira.
— O testamento dele — explicou o volariano, num tom que não dava brechas
a mais questionamentos. Ele voltou o olhar para os outros anciões e fez uma
pergunta que todos responderam com uma série de assentimentos, alguns mais
relutantes do que outros. — Iremos com você — disse Astorek.
***
O Povo Lobo insistiu numa semana inteira de caça antes de partirem. Apesar do
degelo, a vida na tundra setentrional continuava precária o ano inteiro e eram
necessários estoques para as pessoas que ficariam para trás quando os guerreiros
rumassem para o sul. Astorek convidou Vaelin e Kiral para a sua expedição, uma
vez que se exigia que cada xamã liderasse um grupo de caça, mas o proibiu de
levar Cicatriz.
— Caçamos a pé. Os alces sentiriam os cascos dele na terra.
Eles seguiram para leste por um dia com vinte caçadores, e os lobos de
Astorek iam adiante num arco amplo, parando constantemente e erguendo o
focinho para farejar o ar. Os lobos com frequência saíam em disparada,
desapareciam para além do horizonte por uma hora ou mais, mas sempre eram
encontrados esperando por eles pouco tempo depois. Mudavam de direção
frequentemente, virando para o norte e depois para o sul sem aviso.
— Até onde eles podem ir antes de você perdê-los? — perguntou Kiral ao
xamã, que pareceu intrigado pela questão.
— O vínculo é profundo, tão profundo que a distância não significa nada. Eles
poderiam estar do outro lado do mundo que eu ainda os sentiria.
Ele parou e empertigou-se quando os lobos pararam, todos agachados, os
focinhos apontados para sudoeste. O Povo Lobo atirou-se no chão ao mesmo
tempo; Vaelin e Kiral abaixaram-se ao lado de Astorek enquanto ele erguia uma
das mãos, medindo o vento. O rapaz fez um aceno rápido com a cabeça e os
lobos saíram em disparada para o sul, movendo-se num grupo compacto.
— Eles irão trazê-los até nós.
Os caçadores arrastaram-se até formarem uma linha paralela ao xamã,
deitados com as lanças em punho. O capim que crescia na tundra era mirrado,
fornecendo pouca proteção, mas também uma visão desimpedida do horizonte.
Cada caçador carregava três lanças, todas com pontas de ferro serrilhadas, e
Vaelin notou a escrita semelhante a riscos com que haviam decorado as hastes.
Tudo indicava que cada lança possuía a própria história.
— Você já caçou os grandes alces alguma vez? — perguntou Kiral,
colocando uma flecha em seu arco.
Vaelin sacudiu a cabeça e preparou o arco. Suas flechas eram todas mais
adequadas para a guerra do que para caçar, estreitas e com pontas para perfurar
cotas de malha ou armaduras, de modo que Kiral lhe entregou três das suas,
serrilhadas como a ponta das lanças dos caçadores, mas feitas do mesmo vidro
negro inquebrável usado pelos seordah.
— Uma não será suficiente — disse a ele. — Ignore os flancos e mire no
pescoço.
Vaelin os ouviu antes de avistá-los, um tremor retumbante reverberando pelo
solo acompanhado pelos ganidos tênues dos lobos. Quando surgiu o primeiro alce,
a princípio pareceu que uma árvore havia brotado de repente no horizonte, a
silhueta de galhos largos balançando enquanto aumentava de tamanho, uma
pequena floresta surgindo ao seu redor. Ele vira os eorhil exibirem fragmentos de
galhadas de alce e tinha uma ideia do tamanho deles pelas pinturas na caverna do
Povo Lobo, mas a visão de um dos alces vivos era realmente impressionante. O
primeiro a aparecer tinha galhadas que chegavam a três metros de um lado a
outro, o próprio animal quase tão alto quanto dois homens, levantando uma
espessa nuvem de poeira ao correr na direção deles de cabeça abaixada, as
pontas das galhadas como longas lâminas de espada.
Quando o alce chegou a vinte metros de distância, os caçadores se
levantaram ao mesmo tempo e arremessaram rapidamente as lanças, e o animal
que vinha à frente e dois outros tombaram numa confusão de cascos se
debatendo e galhadas despedaçadas. O resto da manada afastou-se do perigo e
rumou para o norte, perseguida pelos lobos. Um dos alces feridos conseguiu
levantar-se, bufando e sacudindo as galhadas parcialmente quebradas de um lado
para outro antes de investir contra o caçador mais próximo. Kiral acertou uma
flecha no pescoço do animal e Vaelin mais duas, mas o alce mal diminuiu a
velocidade, raspando a galhada no chão enquanto avançava até o caçador. No
entanto, o homem não precisava de ajuda: ele pulou para a frente no último
segundo e saltou por cima da cabeça do alce, girou no ar, apoiou as mãos no
pescoço do animal e jogou-se para longe num salto mortal que teria
impressionado qualquer acrobata.
O alce bufou e virou-se, deixando um rastro de sangue e berrando a sua
frustração até Kiral dar cabo dele com uma flecha certeira no olho, um feito que
Vaelin duvidava que até mesmo Reva conseguisse igualar. Ele se aproximou de
Astorek enquanto os caçadores tratavam de descarnar as presas, as facas longas
reluzindo ao estriparem e desmembrarem as carcaças com uma velocidade
automática. Podia ver os lobos a uns oitenta metros dali, aglomerados em volta
de outra carcaça; a placidez usual desaparecera enquanto disputavam a carne e
tentavam se morder, os pelos brancos manchados de sangue dos focinhos às
caudas.
— A recompensa deles — disse Astorek. — Não é bom controlá-los demais.
Às vezes eles precisam se lembrar do que são.
Uma nuvem de poeira ao longe indicava que os alces remanescentes
continuavam a fugir.
— Vocês não matam todos — observou Vaelin.
— Se matássemos, não haveria nenhum para caçar no ano seguinte.
— Quando enfrentarmos os volarianos não será uma caçada, mas uma
batalha. Nenhum pode escapar. Vamos matar todos.
— Você acha que eu tenho algum receio de matar o meu antigo povo? Não é
nada que eu já não tenha feito antes.
— Desta vez será diferente. Desta vez eles são liderados por algo muito pior
do que um general ambicioso demais.
Kiral aproximou-se, limpando o sangue das flechas e lançando um olhar
cauteloso para o xamã.
— Lorde Vaelin fala a verdade — disse ela. — Eu sinto a sua compaixão.
Mas ela o matará quando enfrentarmos o cão favorito do Aliado.
Astorek franziu o cenho e sacudiu a cabeça, perplexo.
— Aliado?
Ele foi despertado por um dos lobos, um macho grande com uma língua
insistente e um hálito fedorento. O animal saltou para trás quando Vaelin acordou
de repente de adaga em punho, inclinando a cabeça para ele com curiosidade e
soltando um ganido impaciente.
— O que é?
Dahrena gemeu ao seu lado, o rosto pálido e os olhos sem brilho sob as peles.
— Acho que alguém finalmente veio nos receber — comentou ele, pegando
as botas.
Astorek, Kiral e Urso Sábio aguardavam no sopé da encosta sul, uma fileira
de lobos espalhada diante deles e um aglomerado de falcões-lanceiros no céu.
— Quantos? — perguntou Vaelin, indo para o lado de Kiral.
— Apenas um.
Vaelin olhou para longe e discerniu uma figura solitária, encapuzada e de
manto, caminhando na direção deles sem aparentar alarme com a nuvem de
falcões-lanceiros que desceu para circundá-lo na altura da cabeça. Vaelin
avançou para recebê-lo quando o homem parou antes da fileira de lobos. Tinha
altura mediana, era largo, mas não musculoso demais, e jogou o capuz para trás
revelando um rosto esguio, mas bastante enrugado, e olhos que indicavam uma
experiência que Vaelin agora sabia ser vasta.
— Ah — disse Erlin. — Imaginei que pudesse ser você.
CAPÍTULO SEIS
Reva
Ela despertou com dor, uma dor lancinante na mão direita, que afastou a
escuridão com uma agonia pulsante e persistente. Reva gemeu e sacudiu a mão,
mas a dor aumentou em vez de diminuir. Ela se contraiu ao abrir os olhos, a luz
do sol enviando um raio incandescente para o seu cérebro. Durante algum tempo
tudo o que pôde ver foi um borrão levemente amarelado, seus ouvidos assaltados
constantemente por um silvo estrondoso. Forçando-se a piscar, Reva conseguiu
fazer a visão entrar em foco, e o borrão transformou-se numa praia, o estrondo
vindo das ondas que lhe atingiam e a dor na mão direita causada por um pequeno
caranguejo vermelho que tentava comer o seu polegar.
Ela apertou as garras do animal com a ponta dos dedos e o soltou, jogando-o
para as ondas, rangendo os dentes ao sentir a pontada causada pelo sal na ferida,
mas se viu estranhamente grata pela sensação: aquilo confirmava que, para a sua
surpresa, estava viva. Mal capaz de se mover e prostrada numa praia enquanto
ondas a açoitavam, mas inegavelmente viva.
Por quê?, perguntou ela ao Pai, mais curiosa do que brava. Você não pode
achar que mereço viver. Não pode recompensar alguém cuja mentira matou
tantos.
A voz foi tão inesperada e chocante pelo volume que por um instante Reva
achou que o Pai havia de fato se dignado a responder. Seu coração se acalmou
quando percebeu que a voz gritava palavras que ela não compreendia, e sua
visão ainda embaçada encontrou quem falara, uma forma imensa de preto que
atravessava a água em sua direção. Os detalhes de sua vestimenta ficaram mais
nítidos conforme ele se aproximou, um colete de couro preto, um medalhão
prateado em volta do pescoço e um chicote enfiado no cinto.
Capataz.
Reva o deixou agarrar o seu cabelo e tirá-la da água, mantendo as feições
relaxadas como se não compreendesse o que estava acontecendo quando ele
aproximou o rosto bruto e a olhou de cima a baixo, avaliando-a. O homem gritou
por sobre o ombro para um companheiro invisível, confirmando que não estava
sozinho. Reva manteve os olhos semicerrados quando ele a arrastou para fora do
mar e contou mais seis formas de pé na praia e muitas outras prostradas e
imóveis.
O capataz a jogou na areia, onde ela se forçou a permanecer mole e imóvel,
respirando fundo, mas de maneira discreta, reunindo forças. Eles cometeram o
erro de esperar vários minutos antes de voltarem para examinar o que haviam
apanhado, e o capataz que a encontrara a virou de barriga para cima quando os
companheiros se aproximaram. Reva contou dois com lanças quando sua cabeça
pendeu para um lado, os outros com espadas curtas. O capataz ergueu a blusa
dela, revelando seus seios e fazendo uma pergunta aos companheiros. Houve
alguns murmúrios de concordância, e um deles acrescentou algo com uma
gargalhada de apreciação.
— Meu amigo… gostar você — disse o capataz com dificuldade na língua do
Reino, agarrando o rosto dela e virando-o para que Reva pudesse ver o seu olhar
malicioso. — Quer… foder você. Pode abaixar o preço… Mas devo a ele.
Você… querer fodida, coisa linda?
Na verdade foi o sorriso que o matou, não tanto o golpe, pois o fez franzir a
testa, confuso, diante da expressão receptiva e lasciva de Reva, e ele recuou,
surpreso, o suficiente para expor a garganta. Vaelin a havia ensinado o golpe; as
lições do sacerdote sobre combate desarmado nunca foram tão meticulosas, nem
tão eficazes na prática. Os dedos rígidos de Reva atingiram o pescoço do capataz
com força suficiente para esmagar a sua laringe, deixando-o contorcendo-se na
areia, uma espuma ensanguentada brotando da boca. Reva rolou na areia,
esquivando-se da estocada de uma lança e então agarrando a haste antes que o
dono pudesse recolhê-la para outra tentativa. Ela deu um chute no rosto do
homem, derrubando-o, então se levantou de lança em punho.
Reva girou quando se aproximaram, a ponta da lança cortando o lanceiro
desarmado nos olhos, outro no rosto. O segundo lanceiro a atacou com uma
estoca mal calculada, revelando um nível de habilidade mais adequado para
abusar de prisioneiros indefesos. Ela bloqueou a estocada sem dificuldade,
desviando a lança com a haste da sua e girando para bater com a extremidade
cega na nuca do homem, fazendo o pescoço se quebrar com um estalo
gratificante.
Reva os observou enquanto hesitavam, lançando olhares cautelosos para o
homem que ela cegara e que gritava enquanto o sangue escorria pelas mãos que
levara ao rosto.
— Vamos! — sussurrou ela enquanto os homens trocavam olhares incertos.
— Vocês não podem achar que mereço viver.
Uma corneta soou em algum lugar perto e os olhos de Reva avistaram um
grupo de cavaleiros subindo as dunas a algumas centenas de metros de distância.
Ela se virou e viu mais cavaleiros se aproximando pela extremidade norte da
praia. Qualquer ideia de que logo pudesse ser resgatada desapareceu diante do
alívio evidente dos traficantes de escravos.
O cavaleiro que vinha à frente parou ao lado do corpo do capataz de laringe
esmagada. Os cavaleiros eram diferentes dos volarianos que Reva havia visto,
trajados em peitorais e grevas vermelhos. Teria achado que eram Kuritai se não
fosse pelo divertimento explícito no rosto do líder ao olhar para o corpo do
capataz, divertimento esse compartilhado pelos cerca de trinta cavaleiros às suas
costas.
Os traficantes saudaram o homem de armadura vermelha com vozes
ultrajadas, subitamente menos intimidados, agora que havia outros olhos para
presenciar a cena. O cavaleiro os ignorou e voltou o olhar para Reva, sorrindo
ainda mais. Ele ergueu a mão para calar os traficantes e lhes fez uma pergunta,
erguendo as sobrancelhas ao ouvir a resposta, o traficante com o rosto cortado
tentando estancar o sangue com um trapo enquanto gesticulava para ela, a voz
estridente de fúria.
No entanto, o homem de armadura vermelha parecia não ter se abalado com
as súplicas deles, inclinando-se na sela e indicando Reva com a cabeça ao dar
uma ordem brusca. A confiança dos traficantes diminuiu visivelmente ao
ouvirem as palavras do homem e eles lançaram olhares cautelosos na direção
dela, remexendo-se, inseguros. O cavaleiro tornou a falar e disse só uma palavra,
fazendo com que todos os outros cavaleiros desembainhassem as espadas com
velocidade e fluidez idênticas. O líder apontou a própria espada para os
traficantes e depois para Reva, repetindo a primeira ordem com lenta
determinação.
Os traficantes, agora de rosto lívido e encolhendo-se para longe das muitas
lâminas que os cercavam, começaram a avançar devagar e agachados na
direção de Reva. Ela não viu muito sentido em prolongar o encontro; escolheu o
mais alto deles e arremessou a lança no meio de seu peito, então correu para a
frente, rolando sob os golpes frenéticos dos outros e pegando a espada do morto.
Depois disso, os outros não ofereceram mais desafio do que um treinamento
leve.
***
Ela despertou e viu que não estava mais sozinha na jaula. O rosto do homem
caído diante dela estava oculto por uma cabeleira loura, balançando com o
movimento do carroção. Reva podia ver que ele era alto e acostumado a
trabalhar ou a guerrear, a julgar pela força evidente nas mãos fortes e cobertas
de cicatrizes apoiadas nos joelhos, os grilhões apertados em seus pulsos
musculosos. Reva suspirou e ponderou, não pela primeira vez, sobre a quantidade
inesgotável de provações do Pai para uma alma pecaminosa.
— Acorde, meu senhor — disse ela, esticando a perna para cutucar o pé
descalço do homem. Assim como as dela, as botas do homem também haviam
sido retiradas.
O homem louro se mexeu, mas não acordou, soltando apenas um leve
gemido. Reva o chutou de novo, mais forte.
— Meu senhor Escudo!
Ele ergueu a cabeça de repente com um grito, os olhos azuis arregalados e
alarmados e, Reva notou para o seu espanto, consideravelmente assustados. O
pânico dele desapareceu ao vê-la, embora ao olhar ao redor ele mal tenha
conseguido esconder um gemido desesperado.
— Sonhei que tinha morrido — murmurou ele, abaixando a cabeça. — Foi
um sonho bom.
— Eles o capturaram na praia? — perguntou Reva.
Ele assentiu.
— Cerca de uma dúzia de nós. Consegui me segurar em alguns destroços na
tempestade com alguns outros. Nadamos para a praia assim que amanheceu.
Estávamos indo para o norte, na direção do local do desembarque, quando eles
apareceram.
— Os traficantes de escravos?
— Não, os outros. — O Escudo cerrou os punhos e suas correntes retiniram
um pouco.
— Os homens de armadura vermelha?
— Não tínhamos armas. Nada com que lutar. — O Escudo soltou um estranho
som gutural e Reva percebeu que ele estava rindo. — Então eles nos deram
espadas. Cada um de nós recebeu uma espada de nossos inimigos. Lutei com
todas as minhas forças… mas não consegui salvá-los. Quando acabou, eles
mataram os feridos e me levaram, o único que restou, cansado demais até
mesmo para ficar de pé. Pareceram se… entreter comigo.
— Garisai — murmurou Reva.
O Escudo ergueu a cabeça de novo, um brilho súbito no olhar.
— O quê?
— Um deles me chamou assim quando me capturaram. Sabe o que significa?
Ele se recostou e algum vestígio de seu antigo humor apareceu no movimento
sardônico das sobrancelhas.
— Sim. Significa que teríamos tido sorte se tivessem nos matado.
Avistaram Volar na manhã seguinte. Reva agachou-se numa posição que forçava
as suas costas, para ter uma visão melhor, quando chegaram ao alto de uma
colina a cerca de um quilômetro e meio da capital imperial. A estrada, ladeada
por mais postes de cadáveres, tornava-se uma linha reta no sopé da colina,
atraindo a atenção para os bairros residenciais a oeste, que consistiam em fileiras
arborizadas de casas de um ou dois andares. Volar parecia não possuir muralhas
ou fortificações defensivas, e o Escudo explicou que elas haviam sido engolidas
pelo crescimento da cidade séculos antes.
— A maior cidade do mundo, ou é o que dizem — disse a Reva. — Se bem
que ouvi que há algumas no Extremo Ocidente que também poderiam
reivindicar o título.
A altura das construções aumentava à medida que se embrenhavam mais em
Volar, e habitações luxuosas e espaçadas davam lugar a ruas e prédios estreitos.
Avenidas labirínticas estendiam-se para longe da estrada, lembrando Reva dos
distritos menos salubres de Varinshold, que agora obviamente haviam sido
destruídos.
— Ela queria incendiar tudo isto — disse o Escudo em voz baixa, franzindo o
cenho ao olhar para as ruas por onde passavam. — E eu a teria ajudado a
segurar a tocha.
Os pensamentos de Reva voltaram-se para Lehra, como passara a ser
comum durante aquela viagem terrível. Ela fora uma das combatentes livres que
vieram da região de florestas ao sul de Alltor, líder de um grupo de outras doze
garotas, todas tendo se libertado sozinhas das garras dos traficantes de escravos,
cobertas de sangue e sedentas por mais. Reva lembrava-se de como haviam se
reunido em volta dela, caindo de joelhos numa atitude espontânea de respeito; a
história da Senhora Abençoada já havia se espalhado e vê-la em carne e osso
pareceu a confirmação de uma lenda estimada, um sinal de que os seus
sofrimentos não haviam sido em vão. A adoração nos olhos de Lehra naquele dia
não fora menos intensa do que no momento em que morreu. A voz dela era tão
cheia de alegria… Ela morreu acreditando na minha mentira.
— Só preciso de uma mínima chance — sussurrou ela ao Escudo. — Só uma
chance de me libertar e botarei fogo neste lugar.
Ele se curvou de novo, a voz baixa e amargurada:
— Era o sonho de uma louca, minha senhora. E ela nos deixou loucos ao
compartilhá-lo. Olhe para este lugar. Como pudemos pensar em destruir um
império capaz de erguer uma cidade como esta?
— Derrotamos um exército que deveria ter nos derrotado — observou Reva.
— As cidades deles podem ser resistentes, mas eles são fracos, suas almas
enegrecidas e maculadas por eras de crueldade.
O Escudo ergueu os pulsos e sacudiu as correntes.
— E, ainda assim, aqui estamos. Trazidos até aqui para morrermos para o
divertimento deles.
— “O desespero é um pecado contra o amor do Pai, pois é somente
indulgência, enquanto a esperança é uma virtude da alma mais forte”.
— Esse é qual?
— O Terceiro Livro, o Livro da Luta, Versículo Três, Provações dos Profetas.
— Reva percebeu que o Livro da Razão não estivera em seus pensamentos desde
que fora capturada. E por que estaria? A razão não me servirá de nada aqui.
O frio cortante do vento aumentava com cada balanço ritmado das cordas da
gôndola, os cem escravos abaixo se movendo com uma uniformidade bem-
treinada enquanto a erguiam até o topo da torre. Reva estava ladeada por dois dos
homens de armadura vermelha, mas eles pareciam dispostos a deixar que ela se
virasse para os lados e admirasse a vista, a majestade da cidade exibida em sua
plenitude, uma verdadeira maravilha que fazia com que Alltor e Varinshold
parecessem apenas um amontoado grosseiro de casebres mirrados.
Ao contemplar a perfeita regularidade do lugar que se estendia à sua frente,
Reva foi forçada a admitir que era o exemplo mais impressionante de
criatividade humana que veria na vida; cada rua, parque, avenida e torre
dispostos de acordo com regras precisas de forma e função, onde quase não se
viam curvas. Porém, os pequenos pontos escuros que cobriam as laterais lisas de
cada torre à vista contavam uma história diferente. Volar era uma mentira, uma
fachada de precisão e beleza que encobria uma verdade abominável.
A gôndola parou num terraço a mais ou menos seis metros do pináculo da
torre. Uma escrava de beleza estonteante cumprimentou Reva com uma mesura
formal e virou-se para conduzi-la para dentro, seguida de perto pelos guardas. O
interior era iluminado de forma tênue por algumas lamparinas de óleo
espalhadas; cortinas de seda de várias tonalidades cobriam as janelas e pintavam
o lugar com uma mistura colorida que oscilava conforme o vento soprava ao
redor da torre. Apesar da penumbra e da confusão de cores, Reva levou apenas
um momento para encontrar a Imperatriz, seus olhos há muito acostumados a
procurar a maior ameaça em qualquer aposento.
A mulher estava sentada num banco diante de uma mesa baixa, trajando um
vestido branco simples, os pés descalços no chão de mármore, os dedos apoiados
e os calcanhares erguidos, como uma dançarina. Numa das mãos ela segurava
um pedaço de tecido preso a algum tipo de armação circular, e com a outra
usava uma agulha e linha. Seu rosto estava envolto em sombras, o perfil elegante
numa concentração intensa enquanto as mãos passavam a linha pelo tecido. Os
olhos de Reva encontraram uma dúzia ou mais de armações espalhadas pelo
chão, cada uma adornada com uma grande quantidade de pontos irregulares e
desajeitados. Alguns tecidos estavam rasgados e a armação em volta deles
quebrada. Reva perguntou-se por que a escrava não as recolhera.
— Você tem usado o meu nome — disse a mulher que costurava.
Reva nada disse. Ao ouvir uma lamúria abafada da escrava, ela se virou e
encontrou o rosto da garota tenso com um aviso e lágrimas que mal conseguia
conter. Ela sacudiu a cabeça de modo quase imperceptível, os olhos brilhantes
com uma súplica silenciosa. Não encontrarei misericórdia aqui, de qualquer
forma, Reva quis lhe dizer. Mas obrigada pela sua preocupação.
— Então, Lieza gostou de você.
Reva virou-se e viu que a mulher agora se dirigia diretamente a ela. Suas
mãos estavam envoltas pelo tecido, uma mancha brilhante de sangue
espalhando-se da agulha fincada em seu dedo. Ela não demonstrava qualquer
sinal de sentir a agulha e sorriu para Reva com uma cordialidade aparentemente
genuína ao se levantar e aproximar-se.
— Posso sentir a estima muito profunda dela — disse a Imperatriz, parando
pouco além do alcance das correntes de Reva. A mulher era alguns centímetros
mais alta do que ela, o corpo delineado e atlético. Parecia ter pouco mais de vinte
anos, mas bastou olhar em seus olhos para Reva saber que estava na presença de
algo muito mais antigo. Algo, sabia ela com uma certeza terrível, que possuía um
dom que Vaelin perdera em Alltor. — Mas será que é recíproca? — A mulher
inclinou a cabeça, fechando os olhos como se escutasse algo, o sorriso ficando
mais leve, melancólico. — Ah. Lamento, querida Lieza, mas o coração dela
pertence a outra. Mas ela sente um leve desejo por você, se servir de consolo. O
amor pode dominar os nossos corações, mas o desejo sempre dominará os
nossos corpos. É o traidor que espreita em cada alma. — A mulher abriu os olhos
de novo e o sorriso desapareceu ao franzir o cenho de repente, confusa. — Eu
disse isso? Ou li em algum lugar?
Ela permaneceu aparentemente perplexa por algum tempo, imóvel a não ser
por uma tensão espasmódica no rosto, os olhos indo de um lado para outro em
movimentos rápidos, a boca movendo-se num diálogo inaudível até que a
confusão desapareceu de modo tão abrupto quanto surgira.
— Bordado — disse ela, erguendo a armação com a sua obra inexperiente, e
Reva notou as múltiplas manchas marrons no material e o sangue nas pontas dos
dedos da Imperatriz. — As mulheres ricas de Mirtesk eram famosas por ele. Meu
pai achava que era a maneira mais produtiva para uma jovem de nascimento
ilustre ocupar o seu tempo. — A Imperatriz olhou para o tecido e suspirou,
frustrada. — Mas não no meu caso. Foi a primeira das muitas decepções de meu
pai. Ainda assim, estou melhorando, não acha?
Ela estendeu a armação para que Reva avaliasse. Reva discerniu entre as
manchas de sangue algumas linhas verdes e vermelhas agrupadas no que poderia
ter sido uma aproximação grosseira de uma flor.
— Um macaco cego poderia fazer melhor — disse ela.
A escrava, Lieza, soltou outro grito sufocado, piscando rapidamente ao baixar
os olhos, sem querer testemunhar o que viria a seguir.
— Ah, pare de choramingar — disse a Imperatriz a ela, revirando os olhos.
— Não se preocupe, estou certa de que o objeto da sua fascinação ainda tem
muitos dias animados pela frente. Exatamente quantos depende dela, é claro.
A Imperatriz voltou a olhar para Reva, uma nova concentração lhe
iluminando os olhos.
— Alguns de meus soldados sobreviveram a Alltor, sabia? Passaram por
penosas privações para chegar a Varinshold antes da queda. O General Mirvek,
sempre um sujeito meticuloso, compilou os relatos deles de forma diligente antes
de executá-los. Afinal, tais histórias fantásticas só perturbariam os seus homens.
Veja bem, esses homens falavam de uma bruxa em Alltor, uma bruxa que era
invencível pelo poder de seu deus, que brandia uma espada que podia cortar aço
e um arco encantado que nunca errava o alvo. Um chegou até mesmo a afirmar
que a havia encontrado e, embora estivesse meio louco, ele forneceu uma
descrição detalhada.
Reva lembrou-se do prisioneiro que haviam tirado da margem do rio na
manhã depois que o primeiro grande ataque havia sido repelido, um homem de
olhos arregalados e nervos à flor da pele. Era estranho, mas ela se viu
lamentando a morte dele. Os volarianos haviam sido monstruosos, mas aquela
alma abalada e arruinada oferecera tanta ameaça quanto um cão faminto.
— Elverah — prosseguiu a Imperatriz. — Eles roubaram o meu nome e
deram a você. Eu deveria estar brava. Sabe o significado dele?
— Bruxa — respondeu Reva. — Ou feiticeira.
— “Feiticeira” é uma palavra estúpida, sem sentido, na verdade, já que a
feitiçaria é apenas uma fábula. Encantamentos escritos em livros antigos e
misturas fedorentas que só servem para revirar o estômago. Não, sempre preferi
“bruxa”, embora o significado mude um pouco no dialeto do povo que me
chamou de Elverah. Eles conferiam autoridade àqueles com o maior poder,
independentemente da origem, quer fossem habilidades marciais, quer fosse o
que o seu povo chama de Trevas. Poder é poder, de modo que o nome Elverah
também poderia ser traduzido como “rainha”. — Ela deu uma risada baixa. —
Quando os meus soldados a chamaram de bruxa, também a estavam chamando
de rainha.
— Eu tenho uma rainha.
— Não, querida irmãzinha, você tinha uma rainha. Imagino que logo
receberá a cabeça dela, caso o meu almirante recolha o corpo do mar.
Reva lutou para conter a fúria e a incerteza que lhe brotaram no peito. Tudo o
que sente revela mais a ela, advertiu a si mesma. Não sinta nada. Contudo, foi
inútil, pois pensamentos sobre a morte da Rainha Ly rna inevitavelmente levaram
a imagens de alguém que não estivera com ela.
— Ah — disse a Imperatriz com um suspiro cansado. — E assim, mais uma
vez, ele vem para nos atormentar. — Ela encarou Reva com uma sobrancelha
erguida, a boca levemente torcida de irritação. — Ouvi dizer que ele marchou
com um exército de uma ponta a outra do seu Reino em menos de um mês
apenas para salvá-la. Fico pensando no que ele fará agora.
Não sinta nada!
Reva encheu a mente de imagens tranquilizadoras, abraçando-se
alegremente no escuro com Veliss… Ellese tropeçando nos jardins com a sua
espada de madeira… Porém, tudo desapareceu sob a luz lançada por um único
pensamento, brilhante em sua certeza: Ele virá, irá me libertar e matar você.
O rosto da Imperatriz se contorceu de novo, todo o resquício de humor
desapareceu, e quando tornou a falar a sua voz era seca, a emoção sobrepujada
pela lógica mais fria.
— Há uma cantora com ele, não? Posso ouvi-la. A canção dela é poderosa,
mas sombria. Manchada por muito sangue inocente. Mas suponho que você saiba
qual é a sensação.
Ela se aproximou, largando a estrutura com tecido e erguendo os dedos
manchados de sangue para acariciar o rosto de Reva.
— Faz mais de um século que não desfruto de uma mulher — continuou ela
na mesma voz vazia. — Uma doce garota de alguma cidade do norte, cuja
família havia passado a usar vermelho há pouco tempo. Criada em meio a
prazeres, era fascinada com extremos e deleitava-se de forma perversa com as
minhas muitas histórias de assassinato. Duvido que tenha achado o dela tão
fascinante, embora eu o tenha feito ser rápido.
Não sinta nada!
A face de Reva se contraiu com o toque da Imperatriz, provocando um
tremor traiçoeiro em seu corpo, os grilhões retesados entre os pulsos.
— Porém — disse a Imperatriz, passando a ponta de um dedo pelo queixo de
Reva —, desde o meu retorno não me sinto atraída por qualquer carne, e tudo o
que antes me dava alegria é agora apenas uma vaga lembrança. Antes eu não
compreendia a necessidade do Aliado. Mas agora se tornou clara, anos
intermináveis de consciência desprovida de sentimentos, exceto pela ânsia de que
tudo terminasse. Pior do que qualquer morte.
Sem conseguir mais suportar, Reva afastou de repente o rosto do toque da
Imperatriz, sua face ardendo como se tivesse levado um tapa.
— Você devia me matar — disse ela por entre os dentes. — Aqui e agora. Se
for sensata, não permitirá a menor chance de que eu possa me libertar destas
correntes.
Ela ouviu Lieza dar um passo involuntário para trás, respirando aterrorizada,
agora em arfadas irregulares.
— E que graça teria isso? — perguntou a Imperatriz, a voz recobrando um
pouco de expressão. — Meu povo adora tanto os seus espetáculos, e tenho certeza
de que terão muito o que gritar a você…
A Imperatriz calou-se de forma abrupta, o rosto perdendo toda a expressão ao
erguê-lo, virando-se na direção da parede oeste. Sua face foi tomada por um
espasmo de pura fúria por um segundo, as feições elegantes contraídas numa
raiva frustrada, mas então relaxando ao exalar lentamente.
— Tudo indica que tenho um almirante para executar, irmãzinha — disse ela
a Reva. — Sua Rainha agarra-se teimosamente à própria cabeça. Ainda assim,
tenho certeza de que no seu devido tempo ela proporcionará tanto divertimento
quanto você.
A Imperatriz se virou para os guardas.
— Levem a minha irmãzinha de volta a Varulek, e entreguem esta a ele
também. — Ela acenou para Lieza. — Elas devem ficar confinadas juntas.
Quero fornecer todo o conforto possível à minha nova irmã entre os espetáculos.
Digam a ele que a história de Jarvek e Livella daria uma bela introdução. O
público sempre aprecia os clássicos.
Ela se afastou, dando uma última ordem por sobre o ombro, dita de forma
afável, mas determinada:
— E digam aos capatazes nas masmorras para terminarem de preparar o
meu novo general.
CAPÍTULO SETE
Frentis
Ele levou as mãos à corda, enfiando os dedos na carne enquanto tentava segurá-
la firme o suficiente para arrebentá-la. O homem de armadura vermelha riu e
deu outro chute em sua barriga, deixando-o sem ar, a corda sufocando um grito
involuntário.
— Já chega por ora — advertiu o homem com um sorriso malicioso,
aproximando-se. — Ela não quer que você seja machucado.
Ele colocou a bota no peito de Frentis e o forçou para o chão, seus
companheiros aproximaram-se com os grilhões.
— Ela mandou lhe dizer — prosseguiu o homem com a corda, pressionando
com mais força com a bota — que você pode escolher qual dos seus amigos irá
viver. Mas apenas um.
Frentis tentou chutar o homem agachado aos seus pés, mas ele se esquivou,
agarrou os seus tornozelos e colocou um peso esmagador sobre eles. O outro já
havia segurado os seus braços e os puxado sobre a cabeça, prendendo um grilhão
no pulso direito.
— Não imagino por que ela quer você tanto assim — disse o homem
sorridente, passando os olhos pelo corpo prostrado de Frentis com um calmo
desinteresse —, quando ela poderia ter qualquer um de n…
Houve um estrondo repentino de vidro se estilhaçando e um virote de besta
pareceu brotar da têmpora do homem sorridente, balançando a cabeça enquanto
os lábios ficavam frouxos e balbuciavam algo sem sentido ao cair de cara no
chão. A janela do lado oposto explodiu quando Illian a atravessou com os dois
pés, caindo montada sobre o cadáver de Lemera com a espada desembainhada.
Ela golpeou o homem que segurava os braços de Frentis, deixando um corte
fundo em sua testa quando ele se esquivou para trás numa velocidade
impressionante. Seu companheiro evitou o golpe seguinte dela, rolando e parando
de pé com a espada em punho depois de dar um salto mortal perfeito para trás.
Porém, os dois foram obrigados a soltar Frentis.
Ele ficou de joelhos num rodopio, a corrente presa ao pulso movendo-se num
borrão como um chicote e enrolando-se nas pernas do homem mais perto dele.
Frentis puxou com força, derrubou o inimigo no chão e então saltou, caindo com
os dois pés na cabeça do homem, o pescoço se partindo com um estalo. Ele
pegou a espada do homem e ao se virar deparou-se com Illian numa luta
desesperada com o outro, a espada dela movendo-se de forma frenética
enquanto ele a repelia, o rosto da garota tomado pela frustração, o homem de
armadura vermelha com o mesmo sorriso enlouquecedor de seu companheiro
morto. Frentis o golpeou com a corrente, fazendo-o dançar para o lado com uma
velocidade que teria envergonhado até mesmo um Kuritai, mas deixando espaço
suficiente para Illian desferir uma estocada em seu pescoço. O volariano aparou
a espada com habilidade, mas não teve como bloquear o golpe de Frentis em sua
perna, a lâmina entrando fundo o bastante para raspar no osso. O homem
praguejou, mas seu rosto não revelou raiva alguma, apenas divertimento e até
mesmo admiração, inclinando a cabeça para Frentis em apreciação ao mesmo
tempo que a ponta da espada de Illian atravessava a sua garganta.
— Irmão! — Ela correu até Frentis, passando os olhos pelo corpo dele em
busca de ferimentos.
— Não estou ferido. — Ele foi até o cadáver do homem de pescoço quebrado
e encontrou uma chave para os grilhões enfiada em sua bota. — Você estava
vigiando o meu quarto?
— Nós nos revezamos. Tem uma saliência confortável no telhado.
Frentis olhou para Lemera, emoldurada por uma mancha crescente de
sangue escuro nos lençóis. Eu escolhi morrer livre…
— Eu sei que você não quebrou o seu juramento, irmão — disse Illian,
seguindo o seu olhar. — Ela me disse que dormir ao seu lado a consolava.
Frentis vestiu a camisa e a calça e pegou as botas.
— O que está acontecendo lá fora?
— Está tudo tranquilo. Não percebi alarme algum até ouvir os sons da luta. —
Illian foi até o primeiro homem que matara, agachou-se e arrancou o virote do
crânio com um ruído rascante. — O que são eles?
— São chamados de Arisai. E não tenho dúvida de que há mais. — Ele pegou
a sua espada e correu para a janela, percorrendo com os olhos as ruas vazias
abaixo até as muralhas, onde as sentinelas caminhavam pelo parapeito. Nada,
nenhuma indicação de qualquer ameaça. Você se lembrou de vasculhar os
esgotos… Seu olhar recaiu sobre um bueiro com tampa de ferro na rua abaixo.
Esperando. Com ordens para se certificarem de cumprir a missão de sua
Imperatriz antes de tudo.
Frentis estremeceu ao perceber que agora estaria acorrentado e sua gente
prestes a ser massacrada se não fosse pelo aviso dela, um aviso que ele sabia que
não havia sido um erro. Ela queria que eles fracassassem. Ele olhou novamente
para os cadáveres no quarto silencioso. E eles não sabem que fracassaram.
— Vá buscar Draker, Lekran e Mestre Rensial — disse ele a Illian, voltando
para dentro. — E Tekrav. Seja silenciosa, mas rápida.
Ele estava sendo carregado entre Lekran e Rensial, de cabeça baixa, as correntes
em seus tornozelos batendo nas pedras da rua enquanto o levavam até o bueiro de
ferro à sombra do principal bordel da cidade. Diferente de Lekran e Rensial, o
peitoral vermelho laqueado de Draker não cobria bem o seu corpo, obrigando-o a
manter-se nas sombras ao segui-los. Frentis tinha certeza de que os Arisai
estavam observando tudo atentamente; sua breve experiência o convencera dos
perigos de subestimar as habilidades deles, mas também lhe fornecera uma pista
sobre uma fraqueza em potencial. O modo como sorriem. Eles têm prazer com a
batalha, com a matança, e o prazer pode nos tornar ávidos demais.
Uma figura de armadura vermelha surgiu das sombras quando se
aproximaram do bueiro, e Frentis ergueu os olhos semicerrados para ela,
satisfeito ao ver o sorriso receptivo.
— Nenhum problema, então? — sussurrou ele em volariano, mantendo de
maneira insensata o olhar em Frentis enquanto chegavam mais perto.
— Nenhum — respondeu Lekran, e ele e Rensial largaram Frentis aos pés do
Arisai.
— Pensei que ele poderia matar pelo menos um de vocês — disse o homem,
sacando uma adaga e agachando-se para bater três vezes com o punho da arma
na tampa do bueiro.
Lekran olhou para Frentis, o próprio sorriso agora genuíno.
— Parece que a lenda dele é bem maior do que as suas habilidades.
O Arisai grunhiu e recuou quando a tampa do bueiro foi erguida e empurrada
para o lado por mãos invisíveis, fazendo sinal de forma impaciente para Lekran.
— Levem-no para baixo. Temos trabalho a fazer.
— Não — disse Lekran ao Arisai, atraindo o olhar do homem enquanto
Mestre Rensial aproximava-se por trás dele. — O seu já acabou.
A adaga de Rensial reluziu pela garganta do Arisai, deixando-o de joelhos na
rua, o sangue escorrendo por entre os dedos enquanto tossia uma risada de
surpresa. Um Arisai colocou a cabeça para fora do bueiro, agarrando as laterais
do buraco para subir, mas caindo de volta numa nuvem de sangue quando o
machado de Lekran desceu sobre ele.
— Vamos, seus desgraçados preguiçosos! — gritou Draker, saindo correndo
das sombras e gesticulando de modo frenético quando Tekrav apareceu no fim da
rua com cerca de uma dúzia de seus carregadores, cada um rolando um barril.
Lekran levou uma corneta aos lábios e tocou uma única nota longa, e a cidade
despertou ao redor deles quando os rebeldes responderam ao chamado, com
tochas acesas e pessoas correndo para assumirem posições predefinidas de
armas em punho.
Frentis arriscou uma olhada para a abertura vazia do bueiro e jogou a cabeça
para trás quando uma faca surgiu rodopiando da escuridão, errando-o por um
milímetro. Ele ouvia o chapinhar de muitos pés correndo pela água, mas
nenhuma voz, nenhum sinal, na verdade, de alarme ou pânico, causando-lhe uma
sensação desconfortável: Talvez eles não consigam sentir medo.
— Quanto? — perguntou Tekrav, parando o seu barril na beira do bueiro.
— Tudo — afirmou Frentis.
Tekrav girou o barril e Lekran quebrou a tampa com o seu machado, fazendo
com que o óleo de lamparina jorrasse para dentro do bueiro. Viraram o barril
para esvaziá-lo e em seguida fizeram o mesmo com outro, enquanto os demais
carregadores passavam por eles para esvaziar os próprios barris em cada bueiro
da cidade.
Frentis olhou para o telhado do armazém onde Illian agora se encontrava
agitando uma tocha para confirmar que todos os bueiros estavam cercados por
pelo menos uma companhia de soldados.
— Não há por que esperar — disse ele a Tekrav.
O Intendente-Mor deu um passo à frente, o rosto sombrio, mas determinado
ao erguer uma tocha acesa.
— Por Lemera — disse ele.
A tocha desapareceu no buraco, criando uma coluna instantânea de chamas
amarelas de pelo menos três metros de altura. O fogo baixou para um tamanho
moderado após alguns segundos, e Frentis esticou-se para avaliar os resultados.
Nada. Nem um grito sequer.
Ele deixou Draker e a sua companhia vigiando o bueiro flamejante e correu
com Lekran e Rensial até o próximo, onde Ivelda e metade dos Garisai estavam
aglomerados em volta da abertura, observando enquanto os carregadores
despejavam mais óleo de lamparina nos esgotos. Um fedor forte de óleo
queimado subiu pela abertura junto com uma cortina densa de fumaça, mas o
buraco permanecia sinistramente silencioso.
— Se estiverem lá embaixo, irmão, eles sabem como morrer em silêncio —
disse Ivelda.
Frentis virou-se ao ouvir um grito vindo do buraco e viu um dos Garisai
cambalear para trás com uma adaga cravada no ombro quando uma figura
surgiu do bueiro, arremessada pelos companheiros a quase dois metros no ar em
meio a uma cascata cintilante de água e óleo. Sua espada começou a reluzir ao
aterrissar, abatendo um Garisai e ferindo outro antes que uma alabarda lhe
perfurasse o peito. Mais dois Arisai foram arremessados do bueiro rapidamente,
o óleo voando dos corpos rodopiantes enquanto golpeavam e cortavam,
procurando afastar os Garisai do buraco. Um foi morto depressa, mas o outro
continuou lutando, bloqueando estocadas e causando ferimentos com uma
precisão mortal. Frentis avançou correndo, desviou para o lado a lâmina do
Arisai e o chutou no peitoral, derrubando-o de novo na direção do bueiro.
Contudo, o homem se agarrou, mantendo os braços e as pernas estendidos, e os
seus companheiros esticaram as mãos para empurrá-lo de volta ao combate,
fixando o rosto sorridente em Frentis num desafio direto.
Frentis pegou uma tocha com um dos Garisai e a arremessou contra o peito
do Arisai, avançou e pisou no homem quando as chamas o envolveram,
devolvendo-o aos esgotos cheios de óleo. A coluna de fogo foi mais alta dessa vez
e a lufada de calor chamuscou os pelos nos braços de Frentis, que cambaleou
para trás.
Um tumulto crescente atraiu a sua atenção para as docas, onde podia ver um
aglomerado de combatentes tentando conter um grupo de Arisai que saía de um
dos bueiros maiores nos limites do cais. A superioridade numérica conseguiu
manter os homens vermelhos afastados, mas mais deles escapavam a cada
segundo, ceifando vidas com cada golpe de espada.
— Sua gente vem comigo — disse Frentis a Ivelda. — Esta será uma noite
longa.
Pela manhã, Viratesk estava encoberta por uma cortina nauseabunda de fumaça
preta-acinzentada, cada tijolo e ladrilho tão sujo quanto os rebeldes que vagavam
pelas ruas ou se sentavam curvados de exaustão. Frentis passou por muitos
aconchegados uns nos outros, alguns chorando pelo esforço da batalha que durara
a noite inteira, a maioria apenas encostada nos companheiros, de olhos
arregalados, olhares vazios em rostos cobertos de fuligem.
— Foram 782 mortos — relatou Trinta e Quatro. — Quatrocentos feridos.
— Quantos deles? — perguntou Lekran, passando um pano pela lâmina de seu
machado. Embora estivesse ainda mais enegrecido do que todos os presentes, o
machado do volariano reluzia com o brilho do polimento.
— Contamos pouco mais de cem corpos. Se bem que, a julgar pelo cheiro,
muitos mais morreram nos esgotos.
— Sete para um — murmurou Draker, lançando um olhar cauteloso para
Frentis. — São chances ruins, irmão.
— E quando as nossas chances foram boas? — Frentis virou-se quando
Artesão se aproximou, seguido pelo único prisioneiro que haviam feito, preso por
várias correntes. O Arisai sacudia a cabeça, rindo baixo e de esguelha enquanto
os Varitai libertos à sua volta olhavam com expressões idênticas de pesar.
— Não vai funcionar — disse Artesão. — Não nele.
— O domínio é forte demais? — perguntou Frentis.
— O domínio sobre ele é menos restringente do que o dos Varitai. Ele é…
errado. Deturpado, de mente e de corpo. Se removêssemos o domínio,
libertaríamos algo terrível neste mundo.
— Então vamos arrancar o que pudermos dele e acabar com isso — disse
Lekran, indicando Trinta e Quatro com a cabeça.
— Ele não vai lhe dizer nada — retorquiu Artesão. — Qualquer tormento que
lhe causarem será apenas outro divertimento.
— Você pode curá-lo? — perguntou Frentis. — Reparar a sua alma
deturpada?
Artesão olhou para o Arisai, suas mãos entrelaçadas, o rosto revelando o
primeiro sinal de medo que Frentis já vira nele.
— Talvez — disse ele. — Mas as consequências…
— Algo sempre vem junto — disse Frentis. — Cada vez que você cura
alguém, eles dão algo em troca.
Artesão assentiu, virando-se para ele com um leve sorriso.
— Se quiser que eu tente…
— Não. — Ele avançou na direção do Arisai, sacando a adaga do cinto. O
divertimento do homem aumentou com a aproximação de Frentis, a gargalhada
repleta de um júbilo genuíno.
— Ela disse que você provaria ser interessante — disse o homem.
— Ela lhes dá nomes? — perguntou Frentis.
O Arisai encolheu os ombros.
— Às vezes, a alguns de nós que ela se dá ao trabalho de reconhecer. Ela me
chamou de Cão uma vez. Gostei bastante.
— Sabia que ela os mandou aqui para morrer?
— Então fico feliz em ter servido aos propósitos dela. — O homem encarou
Frentis com olhos firmes, sem medo, até mesmo orgulhosos, mas principalmente
entretidos.
— O que fizeram para deixá-lo desse jeito? — perguntou Frentis,
surpreendendo a si mesmo com um arroubo súbito de pena. Artesão tinha razão:
aquele homem acostumara-se a uma vida que o transformara em algo que não
era mais humano.
O sorriso do Arisai tornou-se escarnecedor.
— Você não sabe? O tempo que passou nos fossos ensinou muita coisa a eles.
Por gerações eles nos criaram, treinaram, tentaram diferentes domínios para
fazer de nós os matadores perfeitos. Nunca funcionou. Nossos antepassados ou
eram selvagens demais, ou parecidos demais com os Kuritai, mortais, mas
apáticos, necessitando de supervisão constante. Não foi diferente com a minha
geração, mais um fracasso. Dez mil Arisai destinados a serem executados,
depois que tivessem nos cruzado com a raça adequada. Então você chegou, o
nosso salvador, um exemplo brilhante das vantagens da crueldade, da disciplina e
da astúcia inerentes na alma de um verdadeiro matador. Quando nos enviou para
cá, ela nos disse que iríamos encontrar o nosso pai e, devo dizer, considero isso
um privilégio.
— Então há pelo menos mais nove mil de vocês? — ponderou Frentis.
Por um momento, o sorriso desapareceu do rosto do Arisai, que franziu o
cenho, consternado como uma criança tentando dar uma resposta a uma
pergunta desagradável.
— Não tão aperfeiçoados, afinal de contas — observou Frentis, movendo-se
para trás dele e apontando a adaga para a base do crânio do volariano. — O que
você sabe sobre o Aliado?
Cão animou-se de novo quando a ponta da lâmina lhe tocou a pele, rindo e
sacudindo a cabeça.
— Só a promessa que ela nos fez em nome dele no dia em que nos tirou das
masmorras. “Todos os seus sonhos se tornarão realidade”. Esperamos por muito
tempo e tínhamos muitos sonhos. Caso a veja de novo, pai, diga-lhe por favor que
eu…
Frentis enfiou a adaga até o punho, e Cão, o Arisai, arqueou as costas e
convulsionou antes de desabar morto no chão.
— Direi a ela — assegurou-lhe Frentis.
Por quê?
A pergunta a alcança sem aviso, fazendo com que seu dedo escorregue mais
uma vez e outra mancha de sangue se espalhe pelo tecido esticado. Ela olha para
a agulha fincada no dedo e compreende friamente; a carne é como o gelo,
desprovida de dor. O bordado é medíocre, tentativas desajeitadas de uma criança
de imitar habilidades adultas. É tentador culpar a casca e os seus dedos
dormentes, mas ela nunca conseguiu dominar aquela arte em particular. A
lembrança é tênue, assim como todas as suas recordações da infância, mas certa
vez houve uma mulher. Uma mulher bondosa, com um rosto de uma beleza felina,
que sabia costurar com uma habilidade surpreendente, adornando os seus tecidos
com uma clareza e uma arte que se igualavam às pinturas mais belas. Elas se
sentavam e costuravam juntas, a mulher guiava as suas mãozinhas, dava-lhe um
beijo quando fazia algo certo, apenas ria com os erros frequentes que cometia. Ela
tem certeza de que essa lembrança é real, embora por alguma razão os seus
pensamentos sempre se distanciem do nome da mulher, ou de seu destino. Sempre
mudam, tornando-se mais sombrios, e ela se vê na cama, choramingando
enquanto olha para a porta do quarto…
Um rangido de cordas e engrenagens atrai o seu olhar para o terraço. Tenho
que receber uma visitante ilustre, meu amado, diz a ele. Uma Imperatriz não
deve negligenciar os seus deveres.
Por quê? O pensamento é implacável, irresistível em sua exigência.
Você sabe por que, amado, ela lhe diz.
Imagens rodopiam e tomam forma em sua mente, outro presente precioso
capturado pela visão dele: chamas brotando dos esgotos de Viratesk, os Arisai
lutando, matando e morrendo com toda a fúria que ela esperava. Um, em chamas
da cabeça aos pés, gira numa confusão de fogo, ainda matando e gargalhando
mesmo quando as flechas o atingem.
Sei que você tem mais nove mil, ele lhe diz. Onde eles estão?
Suas mãos apertam o bordado ao ser tomada pelo deleite, a maravilhosa
retomada da intimidade que haviam perdido. Fora desse modo durante a viagem
que fizeram juntos, a mistura jubilante de amor e ódio, cada assassinato
derrubando os muros entre eles. Ela percebe que o seu coração está palpitando,
cada vez mais depressa, como um animal atacando as barras de sua jaula. Até
então ela achara que aquela casca era capaz de sentir apenas as coisas mais
rudimentares, mas ele, é claro que somente ele, é capaz de revivê-la.
A gôndola para do lado de fora do terraço e ela olha para a sua convidada. Ela
sente o sobressalto dele ao avistá-la, fazendo-a se perguntar se o ciúme poderá
fazer com que jogue aquela coisinha linda do alto da torre. Contudo, uma nota da
canção quando a garota olha para Lieza lhe informa que tais suspeitas são
infundadas.
Deixe-a em paz!, grita ele em sua mente. Toque nela e você nunca me verá
de novo. Eu juro.
Ela resiste ao impulso de se perder no ódio dele e permite que o seu coração
se acalme, tentando transmitir um frio desinteresse em sua resposta. Quanto mais
cedo você vier me ver, maior será a chance de ela sobreviver.
Ela estremece um pouco, sentindo a ligação retomada entre eles ser forçada
enquanto ele domina a própria raiva. Quando ele retorna, os seus pensamentos
são de uma aceitação relutante. Os Arisai, insiste ele. Onde eles estão?
Posso lhe dizer onde eles não estão. Ela percebe que tem de abafar um risinho.
Nova Kethia.
Nova Kethia queimava. Colunas altas de fumaça subiam das ruas apinhadas de
gente, a maioria dos incêndios aparentemente concentrada ao redor das docas,
onde era possível ver alguns navios afastando-se do porto. Todos estavam com os
cascos baixos na água, um deles tão carregado que soçobrou ao chegar à entrada
do porto, e figuras minúsculas feito formigas correram pelo casco enquanto a
embarcação rolava nas ondas. Ao sul, uma longa fila de pessoas saía pelos
portões da cidade, e a luneta de Frentis confirmou que a maioria estava vestida
de cinza, curvadas e sobrecarregadas com vários objetos de seus lares,
arrastando crianças chorosas, a confusão e o medo em cada rosto.
— Eles podiam ter esperado até chegarmos aqui — resmungou Draker.
— Uma batalha a menos para lutar — disse Frentis. Eles haviam acampado
em meio a várias ruínas num planalto baixo a pouco menos de um quilômetro e
meio a leste da cidade; Trinta e Quatro informara que naquele lugar se erguera a
Velha Kethia, destruída séculos antes na Era do Forjamento. O ex-escravo
retornou do reconhecimento do terreno no final da tarde, após ele e Mestre
Rensial terem sido enviados à frente pela manhã.
— Parece que a notícia de nossa vitória teve um efeito dramático — relatou
Trinta e Quatro. — O governador elaborou um plano para executar todos os
escravos em vez de permitir que caíssem em nossas mãos. Uma vez que há dois
escravos para cada habitante livre da cidade, essa estratégia provou ser insensata.
Os tumultos estão ocorrendo há três dias. Milhares morreram, mais fugiram.
— Os escravos controlam a cidade? — perguntou Frentis.
— Somente um quadrante. — Trinta e Quatro apontou para um distrito que
parecia ainda mais envolto em fumaça do que os outros. — Visto que não têm
armas, suas baixas são grandes. Avançamos com cuidado até conseguir entrar
em contato com os líderes deles. — Ele se virou para Frentis com um sorriso. —
Parece que eles ouviram muitas coisas sobre o Irmão Vermelho e estão ansiosos
pela sua chegada.
— Uma batalha a menos — murmurou Draker, levantando-se.
Alornis estava desenhando de novo quando ela retornou à sua tenda, o lápis de
carvão movendo-se de modo frenético pelo pergaminho enquanto ela se curvava
sobre o cavalete. Durante o dia ela trabalhava na balista montada no carroção, o
tempo todo quase sem falar, mas à noite ela desenhava. Somente quando estava
trabalhando alguma animação transparecia em seu rosto, tenso de concentração
e com os olhos iluminados pelas lembranças, ainda que, a julgar pela natureza
dos desenhos, Ly rna achasse serem memórias que não deveriam ser remexidas.
Navios e homens em chamas, marinheiros gritando enquanto se debatiam num
mar tempestuoso. Página após página de horrores retratados de maneira
habilidosa, produzidas num ritual noturno de autoflagelação.
— Ela pelo menos comeu algo? — perguntou Ly rna a Murel, despindo o
manto ensopado de chuva.
— Apenas um pouco de mingau, Alteza. Mas Davoka teve que fazê-la comer
praticamente à força.
Ela se sentou ao lado de Alornis durante algum tempo, a Senhora Artífice
notando a sua presença com um aceno quase imperceptível de cabeça, o lápis de
carvão continuando a se mover sem interrupção. Ly rna se consolou um pouco
com o fato de que aquele esboço era diferente da costumeira carnificina
executada com maestria; era uma espécie de retrato. Alornis definiu a forma
básica do rosto com algumas linhas bem colocadas e então começou a detalhar
os olhos, olhos escuros, apertados em julgamento e repreensão, olhos que ela
conhecia bem.
— Seu irmão a ama — disse ela a Alornis, estendendo a mão para segurar a
dela e sentindo-a tremer.
Alornis não olhou para ela, mantendo os olhos fixos no retrato.
— É o meu pai — sussurrou ela. — Eles tinham os mesmos olhos. Ele
também me amava. Talvez, se a Fé estiver certa, ele ainda me veja. Pode ser
que ele me ame mais agora, pois somos iguais, não? Ele também matou milhares
com fogo uma vez. Às vezes ele sonhava com isso, quando ficou mais velho e a
doença apareceu. Debatia-se na cama e gritava por perdão.
Ly rna resistiu à tentação de sacudi-la, de esbofeteá-la, de tentar forçar a volta
da garota animada e gentil que conhecera em Alltor. Porém, ao olhar naqueles
olhos confusos, ela soube que aquela garota havia desaparecido, consumida pelo
fogo assim como tantos outros.
— Tome o seu sonífero, minha senhora — ela preferiu insistir, tirando o lápis
de carvão dos dedos de Alornis com gentileza, mas de modo firme. — Temos
uma marcha árdua pela frente amanhã. O sono lhe fará bem.
Outra semana de marcha os levou da agradável região das colinas para uma
vasta planície empoeirada, seu único marco de interesse um rio longo que se
estendia para leste num curso sinuoso quase paralelo à estrada.
— Pelo menos não seremos pegos desprevenidos — comentou o Conde
Marven, olhando para a paisagem desolada. — Não daria para esconder um
cavalo sequer aqui.
No dia seguinte, uma forma indistinta e irregular surgiu no horizonte
enevoado, revelando-se uma estranha construção extensa adornada com
múltiplos coruchéus altos. Ficava numa curva aberta do rio e tinha o tamanho de
uma cidade pequena, mas sem qualquer moradia. Era constituída por uma série
de estruturas piramidais dispostas em espiral, todas encimadas por torres
consideráveis, a maior chegando a pelo menos sessenta metros de altura.
— Uma fortaleza? — ponderou Benten quando chegaram a menos de um
quilômetro da estrutura.
— Não há muralhas defensivas — disse Iltis. — E ninguém para defendê-las,
se houvesse.
Não houve qualquer sinal de resposta à aproximação deles, e não se via
qualquer luz ou movimento nas estruturas variadas. Ly rna virou-se ao ouvir o
som de um cavalo galopando e viu Sabedoria parar ao seu lado. Ly rna deixara
Flecha no Reino, não querendo sujeitá-la aos desconfortos possivelmente mortais
da travessia do oceano, e encontrou a sua nova montaria vagando perto das dunas
quando desembarcaram. Era um belo garanhão de pelo totalmente negro, tão
imponente que Ly rna imaginou se o animal não havia levado a Imperatriz até a
praia no dia em que desencadeou a tempestade. Ela o chamara de Azeviche pela
sua cor.
— Grande Rainha — disse Sabedoria, um cumprimento habitual que sempre
deixava Ly rna se perguntando se não estava sendo ridicularizada. —
Impressionante, não? — prosseguiu a anciã eorhil, gesticulando para a
construção.
— De fato — concordou Ly rna. — Eu ficaria mais impressionada se
soubesse o que era.
— Navarek Av Devos, que significa Portal dos Deuses na sua língua. O último
grande templo dos deuses volarianos. O único a sobreviver à Grande Purificação.
Imagino que devido ao tamanho e por ficar afastado de outros lugares.
A Guarda do Norte de Lorde Adal cavalgou adiante para inspecionar o
templo e o encontrou deserto, a não ser por uma colônia de abutres, que havia
feito ninho ali. Por sugestão de Marven, Ly rna concordou em deixar o exército
acampar ali para passar a noite; o templo carecia de fortificações, mas ainda
possuía telhados de sobra, e ela sabia que muitos de seus soldados apreciariam
uma noite sob a proteção de pedras em vez de lonas frágeis. Havia espaço
suficiente para cerca de metade do exército, e Marven postou os remanescentes
num amplo arco defensivo ancorado no rio. O templo se estendia para além da
margem, onde uma longa fileira de estátuas monstruosas abaixavam a cabeça
para as águas. Eram uma combinação impossível de diversas feras: um tigre
com a cabeça de um lagarto, uma grande águia com uma longa cauda
escamosa. Havia também duas figuras humanas entre elas, guerreiros de
músculos implausíveis ajoelhados para colocarem a mão na correnteza veloz.
— Algum tipo de deuses? — perguntou Ly rna a Sabedoria enquanto
percorriam a cidade. Ela não conseguia deixar de sentir certo fascínio pela
absoluta excentricidade do lugar; a construção de um edifício tão vasto sem
nenhum propósito prático era tão desconcertante quanto encantadora, ao mesmo
tempo que proporcionava uma apreciação da longa história do povo que Ly rna
viera enfrentar. Eles nem sempre foram como são agora.
— Os cinquenta guardiões dos deuses. Criados a partir de todos os animais do
mundo para lutar uma batalha sem fim contra os Dermos, habitantes do grande
fosso de fogo debaixo da terra, os inimigos eternos de toda a humanidade.
O olhar de Ly rna foi atraído para a maior das estátuas, alguma espécie de
macaco de costas largas, com uma cauda longa e serrilhada e braços tão grossos
quanto troncos de árvores. A boca de Murel se crispou numa risada abafada ao
olhar de Iltis para a estátua.
— Como eles conseguiram capturar a sua imagem antes que tivesse nascido,
meu senhor?
Ela abriu um sorriso gracioso ao notar o olhar fulminante do Lorde Protetor e
beijou-o afetuosamente no rosto antes de se afastar dançando.
— Esse é Jarvek — disse Sabedoria. — Considerado durante muito tempo o
maior dos guardiões, até que o povo das sombras o tentou com um desejo
ardente por uma rainha humana. Ele a levou para o seu covil nas profundezas da
terra, mas, antes que pudesse saciar os seus desejos vis, ela foi resgatada pela sua
irmã, Livella, a donzela guerreira que portava uma lança abençoada pelos
deuses. — Sabedoria apontou para outra estátua próxima, uma figura feminina
alta sobre um pedestal, empertigada e orgulhosa de lança em punho. A visão da
estátua fez Murel cair novamente na gargalhada.
— Primeiro Sua Senhoria, agora a senhora — disse ela, apontando para
Davoka. — Este lugar é realmente espantoso.
Davoka apenas deu um leve sorriso, lançando um olhar crítico às improváveis
proporções generosas da estátua.
— Uma mulher assim passaria a vida caindo para a frente.
— Estátuas de guardiões, estátuas de heróis míticos — disse Ly rna. — Onde
estão os deuses?
— Não irá encontrá-los aqui — respondeu Sabedoria. — Os deuses eram
considerados tão divinos que era blasfêmia um humano tentar retratá-los. Até
mesmo os seus nomes só eram conhecidos por um clero pequeno e seleto.
Aqueles que queriam buscar a ajuda dos deuses faziam o pedido aos sacerdotes,
que por sua vez faziam o pedido ao deus necessário. Por um preço, naturalmente.
Iltis e Benten sacaram as espadas ao ouvirem um berro súbito vindo do centro
do templo, logo transformado num grito que ecoou pelas paredes de granito.
Ly rna não deu atenção às objeções de Iltis e foi investigar, indo até o espaço
circular no meio do templo, onde encontrou o Aspecto Caenis agachado sobre o
Irmão Lucin. O idoso dotado estava deitado de costas no chão, o rosto contorcido
numa careta de dor e horror, espumando pela boca.
— Ele quis muito ver como este lugar era antes de ser abandonado —
explicou o Aspecto, segurando o irmão enquanto ele convulsionava.
— Uma decisão infeliz — comentou Sabedoria, apontando para um pedestal
baixo de pedra ali perto. — Os deuses eram generosos, mas também sedentos.
O pedestal tinha um metro de altura, era estreito e retangular, com um
semicírculo entalhado na parte superior. Junto à base havia uma mossa côncava
no chão de pedra, de onde numerosos canais seguiam na direção das estruturas
piramidais ao redor.
As convulsões do Irmão Lucin cessaram e o velho abriu os olhos, arregalados
pelo choque do que quer que tivessem testemunhado.
Sangue, pensou Ly rna, olhando para o pedestal. A pedra havia sido limpa por
séculos de vento e chuva, mas ela sabia que já fora vermelha. É sempre o sangue
com essa gente. Antigamente derramado para saciar as criações de sua própria
imaginação. Agora bebido para afastar o espectro da morte. Matar os seus deuses
não fez com que mudassem.
Ela não sonhava desde a Batalha dos Dentes, passando todas as noites num sono
profundo e tranquilo. Ly rna teria gostado de pensar nele como o sono de uma
alma justa e satisfeita, mas sabia que tinha mais a ver com simples exaustão,
uma vez que todo dia era muito cheio. Assim, ela levou algum tempo para
perceber que os seus pés descalços não estavam realmente pisando no chão de
pedra do templo, levando-a na direção do pedestal num passo lento porém
constante. A pedra agora estava vermelha, como havia estado quando aquele
lugar liderava a fé de tantas almas iludidas, coberta de sangue de cima a baixo, a
mossa côncava transbordando com o líquido, os canais levando a oferenda até as
moradas silenciosas dos deuses.
Havia uma mulher de aparência terrível ao lado do pedestal, de faca em
punho. Trajava um vestido azul sujo, o corpete e a saia escuros de tão
manchados, embora Ly rna pudesse ver que aquela fora um dia uma bela
vestimenta, digna de uma princesa, na verdade. Porém, era o rosto da mulher
que lhe chamava a atenção, em carne viva e recém-queimado, filetes tênues de
fumaça ainda subindo da carne carbonizada.
— Eu estive esperando — disse a mulher queimada, fixando em Ly rna um
olhar intenso, com um tom de censura na voz.
— Pelo quê? — perguntou Ly rna, perplexa.
— Por você, é claro. — A mulher gesticulou com impaciência para algo nas
sombras e um jovem saiu para a luz, baixo, mas com uma aparência bela e
delicada. — Seus adoradores estão ansiosos para fazerem uma oferenda.
Ly rna observou o jovem ajoelhar-se diante do pedestal, olhando-a nos olhos,
o rosto inexpressivo.
— Eu mantive a minha promessa — disse Ly rna a ele, incapaz de esconder o
tremor da voz. — Eu encontrei a sua mãe. Ela está viajando com o meu exército,
como uma irmã da Sétima Ordem, que veio para conseguir justiça para o filho.
Fermin sorriu e seus lábios se arreganharam a um extremo impossível,
revelando longas fileiras de dentes triangulares, os dentes de um tubarão.
A faca da mulher queimada reluziu e a garganta de Fermin foi aberta, o
sangue jorrando numa torrente, escorrendo pelas laterais do pedestal e enchendo
a concavidade. A mulher queimada empurrou o corpo para o lado e tornou a
gesticular, e outra figura adiantou-se. Ele era mais alto, corpulento, o rosto
marcado por cicatrizes revelando uma vida difícil, embora o seu sorriso fosse o
mesmo que lhe surgira nos lábios quando o dardo da balista o atravessou pelas
costas. O dardo ainda estava lá, a ponta de aço saindo pelo peito, raspando na
pedra ao se ajoelhar.
— Você teve uma escolha. — Ly rna soube que as palavras eram uma
mentira assim que deixaram os lábios. No entanto, Harvin pareceu achar a
desonestidade dela engraçada, pois gargalhou quando a faca reluziu de novo. —
Eu não fiz isso — insistiu ela quando a mulher queimada empurrou o corpo para
longe e tornou a gesticular. — Eles me serviram de livre-arbítrio.
— Como deviam — disse a mulher queimada. — Mortais vivem apenas para
servir os seus deuses.
Furelah apareceu em seguida, curvando-se para Ly rna com uma adaga em
cada mão, o rosto e os cabelos molhados de água do mar, as órbitas vazias, a
carne em volta delas parcialmente apodrecida. Pouco antes de a faca lhe abrir a
garganta, um pequeno caranguejo saiu do círculo negro de seu olho, batendo as
pinças para Ly rna como se a acusasse.
Ela desviou o olhar da cena, mas foi em vão. O templo agora estava cheio.
Havia uma fila longa de pessoas; ela conhecia algumas, mas não a maioria. O
arqueiro meldeneano que despencara do cordame nos Dentes, a seordah que
morrera em Varinshold e tantos outros. Eorhil, nilsaelinos, cumbraelinos, como
Furelah, todos pingando água salgada, suas carnes parcialmente levadas pelo
mar…
— E U NÃO T IVE E SCOL HA! — gritou Ly rna para a mulher queimada, calando-se
ao ver a figura agora ajoelhada diante do pedestal.
— Escolha? — perguntou Malcius. Sua cabeça estava inclinada num ângulo
obsceno, embora o rosto fosse gentil, o sorriso cheio de afeição e solidariedade.
— Escolhas não são da alçada daqueles que ousam governar. O mundo é seu
para fazer o que quiser dele, minha irmã. Como eu sempre soube que seria. Não
acha que teria sido mais bondoso me matar mais cedo, antes de eu assumir o
trono? Isso não lhe ocorreu? Uma pequena gota de veneno na minha taça de
vinho? Teria sido tão mais fácil.
— Não — disse ela num sussurro. — Você era o meu irmão… Certa vez fiz
algo terrível por você.
— Você me deixou livre para presidir a destruição de meu Reino, o
assassinato de minha esposa e de meus filhos.
Ele ergueu os braços quando a mulher queimada se aproximou. A faca dessa
vez não reluziu, e a mulher a pressionou contra a carne dele com uma suavidade
delicada, até mesmo afetuosa, aninhando a cabeça de Malcius em seu peito com
a outra mão.
— Não dê as costas agora, Ly rna — disse Malcius quando a lâmina foi
passada pela sua garganta. — Pois os deuses estão sempre sedentos…
Dahrena retornou ao seu corpo com um grito, dobrando-se para a frente com o
rosto tenso de aflição. Vaelin a abraçou e a segurou até que parasse de tremer.
Ela voara apenas por um curto período de tempo por insistência própria, uma vez
que os montanheses ainda não haviam aparecido, de modo que Vaelin deduziu
que a sua aflição não se devia aos estragos causados pelo seu dom.
— Eles agora estão nas montanhas — disse ela, erguendo o olhar para ele
com uma intensidade pálida. — Matando todos que conseguem encontrar. Ele
sabia, Vaelin. Ele sabia que eu estava vendo, e gargalhou.
Vaelin reuniu os anciões do Povo Lobo para ouvir o relato dela e observou o
último vestígio de esperança desaparecer de cada rosto; a Sombra do Corvo
havia de fato sido lançada e o sofrimento prometido havia tanto tempo chegara.
— Há muitos Varitai entre eles — disse Dahrena —, e também Kuritai. Os
Espadas Livres não são tão numerosos, a maioria é da cavalaria, e suas almas
estão perturbadas, brilhando vermelhas de desconfiança e medo. Entraram nas
montanhas há dois dias. Vi evidências de uma batalha e o que restava de um
povoado. Todos estavam mortos, jovens e velhos. Não fizeram prisioneiros. Eles
não vieram pelos escravos. — Ela fez uma pausa, mantendo os olhos fechados
enquanto se forçava a lembrar. — Foram feitas coisas aos que eles capturaram
vivos. Foram muitos e prolongados os seus tormentos. — Ela encontrou o olhar de
Vaelin. — Ele queria que eu visse.
— Onde eles estão agora? — perguntou Vaelin.
— Movendo-se para nordeste. Estão mantendo uma formação compacta,
fazendo poucas patrulhas. Vi muitas almas se reunindo para confrontá-los, mas
em grupos pequenos, nenhum com a capacidade de deter o seu avanço.
— Então eles precisarão da nossa ajuda — disse Vaelin.
— Não. — O homem encapuzado era o único presente que estava sentado
junto a uma fogueira, que cutucava com um cajado grosso.
— Tem algum conselho a dar, Mestre Erlin? — perguntou Vaelin.
— Somente fatos óbvios, irmão. — Erlin suspirou e jogou o capuz para trás,
sorrindo para Dahrena com solidariedade. — Eles têm mais do que o dobro do
nosso número, não é, minha senhora?
Ela lançou um olhar cauteloso a Vaelin e assentiu.
— As tribos teriam de se unir para terem uma chance contra eles — disse
Erlin, virando-se para Vaelin. — E não farão isso. Tentei alertar os chefes, mas
eles não me deram ouvidos, achando que era apenas outra campanha por
escravos. Os volarianos aparecem de tantos em tantos anos, às vezes podem ser
comprados com minério e prisioneiros de outras tribos, às vezes os enfrentam
para que os guerreiros jovens possam conseguir as suas primeiras cicatrizes. Isso
vem ocorrendo há mais de duzentos anos e agora é quase um ritual. Eles não
compreendem o que estão enfrentando. Quando você for se juntar à batalha, eles
já estarão derrotados e espalhados.
Erlin virou-se de novo para a fogueira e Vaelin notou a brancura dos nós dos
dedos no cajado enquanto cutucava as brasas. Ele está com medo, compreendeu.
O que poderia assustar um homem que não pode morrer?
— As tribos o conhecem — disse ele. — Pode nos guiar até elas? Falar por
nós?
— Elas não falam como uma só. Quando as tribos não estão lutando umas
com as outras, elas lutam internamente. Quando conseguíssemos negociar com
todas, já seria tarde demais. De qualquer forma, eles verão vocês e essa gente
apenas como mais inimigos a serem enfrentados.
— Espera que eu fique sentado aqui e ignore um massacre?
— A criatura do Aliado está tentando atraí-lo. Você percebe isso, sem dúvida.
E não veio aqui para guerrear, veio pelo conhecimento que imagina que possuo.
A chave para derrotar o Aliado.
Vaelin franziu o cenho ao ouvir a nota sardônica na voz de Erlin, o tom de um
homem diante de um desfecho bastante previsível.
— Isso já aconteceu antes?
— Houve alguns ao longo dos séculos. Estudiosos, reis — ele lançou um olhar
breve e pesaroso a Vaelin —, guerreiros. Todos diante da desagradável verdade
da existência do Aliado, guiados até mim por conhecimentos antigos ou poderes
de dotados. Embora ninguém tenha me encontrado numa época tão turbulenta
quanto esta.
— O Aliado quer compor um final. Desta vez será diferente.
Erlin suspirou e levantou-se.
— Então é melhor eu lhe mostrar o que mostrei a eles, irmão. — Ele apontou
o cajado para leste, onde as nuvens negras pendiam baixas sobre os picos. —
Embora eu duvide que essa gente achará o clima agradável.
Após três dias de marcha, eles avistaram o único povoado que haviam
encontrado até então, um pequeno aglomerado de casas de pedra no sopé de
uma montanha de topo achatado. Havia um leve traço de enxofre no ar e o céu
continuava encoberto por nuvens cinzentas que se tornavam negras a leste, onde
as montanhas de fogo ardiam com cada vez mais intensidade. Erlin os fez parar a
menos de dois quilômetros do povoado, de onde foi possível ver algumas figuras
correndo das casas, talvez uma centena, todas armadas.
— Os laretha não recebem muitos visitantes — disse Erlin. — Há poucos
deles e viver tão perto das montanhas de fogo lhes fornece certa segurança. —
Ele se virou para Vaelin, gesticulando na direção do povoado. — Eles vão querer
parlamentar com o chefe desta nova tribo.
Vaelin pediu que Astorek se juntasse a eles e seguiram Erlin até o povoado,
onde os guerreiros estavam dispostos numa fileira esparsa porém firme. Eram na
maioria homens, todos armados com um machado ou uma lança longa de
lâmina estreita. Todos vestiam saiotes de couro que lhes chegavam às
panturrilhas, decorados com vários símbolos pintados, e peitorais de bronze que
brilhavam um pouco à meia-luz. No centro da fileira havia um homem robusto
de meia-idade, com um machado em cada mão, o longo cabelo grisalho preso
para trás em tranças grossas. Sua postura rígida pareceu relaxar um pouco ao
avistar Erlin, mas o seu semblante permaneceu carregado de desconfiança ao
passar os olhos por Vaelin e então ficou furioso ao avistar Astorek. Ele ergueu os
dois machados quando se aproximaram e a sua gente adotou de imediato uma
postura de combate.
— Pertak! — gritou Erlin ao homem robusto, dando um sorriso de boas-
vindas e então gesticulando para Vaelin e Astorek quando continuou a falar.
— Ele disse que trouxe muitos aliados para os laretha — informou Astorek.
Vaelin notou a grande inquietação na fronte do xamã. — Isso é uma tolice,
Sombra do Corvo. Essa gente oferece apenas morte a forasteiros.
Com a cabeça Vaelin indicou Erlin, que agora se aproximava do chefe de
braços abertos.
— Mas não a ele.
Erlin parou a alguns metros do chefe, suas palavras baixas e inaudíveis para
eles, embora o semblante do homem robusto tivesse perdido um pouco da
ferocidade, mas nada da desconfiança. Após alguns momentos, Erlin virou-se e
fez sinal para que se aproximassem.
— Pertak, chefe dos laretha, exige um tributo se vocês forem poluir as terras
dele com a sua presença — disse Erlin, embora Vaelin ainda não tivesse visto o
homem robusto falar.
— Tributo?
— Apenas uma oferenda simbólica — explicou Erlin. — Se permitir que
vocês passem sem um, ele parecerá fraco e um dos homens mais jovens irá
desafiá-lo.
O chefe falou, apontando um de seus machados para as fileiras reunidas do
povo do gelo, e fez uma exigência gutural. Vaelin olhou para onde o machado
apontava e se deparou com Dahrena, que estava de pé ao lado de Cicatriz,
segurando as rédeas do cavalo.
— Ele quer o meu cavalo?
— Ah, não. — Erlin deu um leve sorriso. — Ele quer a sua mulher.
— Isso é inaceitável. — Vaelin levou a mão a uma algibeira no cinto,
desamarrou-a e tirou de dentro uma pedra, um rubi belamente lapidado de peso
mediano que lhe fora dado pelo Governador Aruan nas docas de Linesh cerca de
dois anos antes, embora agora parecesse que havia sido há muito mais tempo.
Houve momentos em que ele ficara tentado a vendê-lo, em particular quando
estava na estrada, com Reva constantemente tão faminta, mas a canção do
sangue ressoara em alerta sempre que considerava fazê-lo. Vaelin esperava que
aquela ocasião fosse o motivo.
O chefe largou um dos machados para pegar a pedra preciosa quando Vaelin
a jogou para ele, arregalando os olhos com uma fascinação instantânea. Os
guerreiros ao seu lado esqueceram a disciplina e se aglomeraram em volta, cada
rosto iluminado por um arroubo de cobiça. Pertak rosnou algo e ergueu o outro
machado como aviso, fazendo com que recuassem, embora os guerreiros
voltassem continuamente os olhos para o rubi.
Pertak tornou a falar, fazendo uma pergunta a Vaelin ao erguer o rubi contra
a luz.
— Ele quer saber qual é o poder da pedra — traduziu Astorek, com uma leve
nota de desprezo na voz.
— As montanhas são ricas em minério, mas não em pedras preciosas —
disse Erlin. — Os laretha têm certa estima irracional por elas.
— Diga-lhe que tem o poder de capturar a alma dos homens — disse Vaelin.
— Ele não deve olhar para a pedra por muito tempo.
Um breve lampejo de medo iluminou os olhos do chefe quando Erlin relatou
o aviso, cerrando o punho com força sobre a pedra antes de erguer o olhar para
Vaelin, estreitando os olhos em contemplação. Ele grunhiu uma resposta brusca
e, com considerável determinação, deu meia-volta e caminhou na direção do
povoado, seguido de perto pelo seu pequeno exército, e toda a preocupação com
a chegada de um número tão grande de intrusos parecia ter desaparecido.
— Vocês podem ficar um dia e uma noite — disse Erlin. — Devo dizer que é
uma concessão bastante generosa.
— É o suficiente? — perguntou Vaelin. — Para os nossos propósitos?
Erlin ergueu os olhos para a montanha que assomava sobre o povoado, o topo
achatado parcialmente encoberto por uma névoa tênue.
— Você perceberá que o tempo perde o seu significado aqui, irmão.
***
O topo da montanha estava envolto num silêncio tão pesado quanto a névoa que o
cobria, e era possível ver apenas formas vagas quando venceram o último
degrau. Erlin curvou-se um pouco pelo esforço, apoiando-se no seu bastão e
olhando para as formas sombrias adiante com óbvio receio.
— Odeio este lugar — sussurrou ele, a voz baixa ao se empertigar e seguir
em frente. — Porém, acho que aqueles que o construíram também odiavam.
Eles avançaram para dentro da névoa, as sombras transformando-se num
aglomerado de construções, todas exibindo sinais de terem sido erigidas pelas
mesmas mãos que haviam construído as ruínas no sopé da montanha. Eram na
maioria moradas térreas e estruturas menores que Vaelin supôs serem depósitos,
formando uma cópia em miniatura da Cidade Caída. Mas estas construções não
estavam em ruínas. O silêncio tornou-se cada vez mais opressor conforme
andavam por entre os prédios, cada porta e janela vazia uma testemunha
indiferente à passagem deles. Apesar da ausência de estragos, Vaelin sabia que
aquele era um lugar antigo; os cantos das construções haviam sido alisados e
arredondados pelas intempéries. Além disso, ao contrário da Cidade Caída, não
havia estátuas ali, e as únicas decorações eram imagens entalhadas acima de
portas ou janelas, que séculos de vento e chuva haviam despojado de significado.
Quem quer que tivesse construído aquele lugar aparentemente não tinha muito
tempo ou inclinação para arte.
Levaram apenas alguns momentos para vasculhar as construções e
terminaram na borda de um amplo círculo plano, em cujo centro havia um único
pedestal achatado no topo.
— Pedra da memória — disse Vaelin.
Erlin assentiu e Vaelin ouviu o leve tremor em sua voz quando falou:
— A última a ser entalhada, pela mão de um deus, ainda por cima.
A boca de Vaelin se crispou com um divertimento indesejado e ele se virou
para Erlin com um sorriso.
— Um deus é uma mentira.
Riram juntos, apenas por um momento, o som de seu júbilo logo se perdendo
entre a névoa e a pedra ancestral.
— Bem. — Erlin apertou o cajado com mais força e deu um passo adiante.
— Vamos?
Tal como as construções ao redor, os cantos do pedestal haviam sido
arredondados pelas eras de exposição às intempéries, o topo plano era liso e sem
marcas, a mossa no centro um círculo perfeito.
— Já tocou numa dessas antes? — perguntou Vaelin a Erlin.
— Quatro vezes até agora. Com frequência procuro lugares antigos, guiado
pelos mitos e lendas que escuto em minhas viagens. Uma delas falava de uma
cidade esquecida de imponente majestade escondida nas montanhas e protegida
por tribos selvagens. Não fiquei muito surpreso ao descobrir que a realidade não
correspondia à lenda. É raro corresponder.
Ele estendeu a mão, deixando-a erguida sobre a pedra, e olhou nos olhos de
Vaelin.
— Pronto, irmão?
— Já toquei duas vezes nessas pedras — disse Vaelin, notando o tremor nos
dedos de Erlin. — Elas possuem conhecimento, mas não são perigosas.
Erlin soltou outra risada, mais grave desta vez.
— Todo conhecimento é um perigo para alguém.
Vaelin estendeu a mão e Erlin a pegou, entrelaçando seus dedos nos dele.
Fechando os olhos, ele respirou fundo e colocou as suas mãos na pedra.
P ART E IV
Pelo cômputo alpirano, o Rei Janus Al Nieren nasceu no décimo ano do Novo Sol,
sob uma configuração de estrelas conhecida pelos astrólogos alpiranos como “O
Leão Empinado”, um fato que forneceria presságios de sobra tanto para
admiradores quanto para detratores no decorrer das décadas seguintes. Em
comparação, a sua filha nasceu sob a constelação relativamente mundana do
“Fardo de Feno”, assim chamada por sua semelhança ao trigo recém-colhido. O
fato de a Guilda Leal de Astrólogos Imperiais ter recentemente votado para
renomear a constelação como “A Chama Vingadora” revela muito sobre o curso
subsequente da história do Reino, sem falar na vacuidade essencial da arte do
astrólogo.
— Ela sabia?
Observei o porto conforme nos aproximávamos, sua vastidão evidência das
origens de Alpira como o maior centro comercial do baixo Boraelino. Estendia-se
numa ampla curva com cerca de cinco quilômetros, com incontáveis píeres e
ancoradouros e muitos navios, mais do que de costume, na verdade. À medida que
nos aproximávamos, notei que a maioria era de belonaves. Havia um exército de
trabalhadores em cada embarcação, revestindo os cascos com placas de aço e
instalando manganelas.
A Imperatriz Emeren chamou a sua frota de volta à capital, deduzi. Por qual
motivo?
— Meu senhor? — perguntou Fornella. Seu cabelo cada vez mais grisalho
estava preso naquele dia, afastado do rosto, que permanecia belo apesar do
número crescente de rugas. Com o seu vestido simples e enrolada num xale, ela
tinha a aparência de uma matrona graciosa, e os que estavam em terra firme
talvez a tomassem pela esposa do capitão. Uma ideia que me fez soltar uma risada
curta.
Fornella franziu o cenho de aborrecimento, mas se recusou a ser ignorada.
— Ela sabia, não é? Sabia sobre você e o Esperança.
Encolhi os ombros, assentindo lentamente. Ela olhou de relance para o capitão
e aproximou-se.
— Pague ao pirata para nos levar embora daqui.
— Temos uma missão a cumprir, Honorável Cidadã.
— Não à custa de sua vida.
— Eu dei a minha vida ao Imperador. A lei determina que eu agora a ofereça à
sua sucessora, assim como os meus conselhos sensatos.
— Acha mesmo que ela lhe dará ouvidos?
— Sei que dará. O que ela fará depois é um mistério.
Atracamos num dos ancoradouros menores próximos da extremidade norte do
porto, e o capitão foi obrigado a pagar o dobro da taxa normal de atracação a um
incomodado oficial subalterno do porto.
— Estou a negócios oficiais do Reino Unificado e das Ilhas Meldeneanas —
rosnou o capitão. — Isso pelo menos deve valer algum desconto.
— Você também tem um porão cheio de especiarias — retorquiu o jovem
oficial. — E o espaço é muito procurado. — Ele entregou uma nota ao capitão pelo
ancoradouro e ergueu a mão, esperando.
— Algum problema? — perguntei, indo para o lado do capitão.
O jovem olhou para mim por um longo momento e deu um passo para trás com
o rosto cada vez mais lívido.
— O senhor é Lorde Verniers? — perguntou ele num sussurro.
Eu estava acostumado a certa notoriedade nos cantos mais educados do
império, mas geralmente se limitava a cumprimentos cordiais ou pedidos de
comparecimento a vários eventos culturais. Assim, ver o burocrata de rosto pálido
cambalear para trás ao longo da rampa antes de se virar e correr pelo cais foi um
tanto inquietante, e o seu retorno pouco depois ainda mais, visto que estava
acompanhado por um pelotão de soldados. Eles se aproximaram correndo do
navio seguidos do jovem oficial, que gesticulava freneticamente e gritava para os
estivadores ao redor:
— O traidor! O traidor voltou!
— Creio, capitão — falei, pegando o meu saco de livros e caminhando até a
rampa —, que é melhor o senhor partir.
— Os Senhores Marinhos me disseram para mantê-lo a salvo — disse ele,
embora os olhos perspicazes revelassem uma grande preocupação com a
comoção que ocorria no cais.
— E sou grato pelos seus esforços. — Estendi a mão, esperando que ele a
ignorasse. Contudo, ele a apertou com força, fazendo uma careta de pesar.
— Boa sorte, honorável senhor — disse ele num alpirano surpreendentemente
bom.
— Desejo-lhe o mesmo, honorável senhor. — Olhei para Fornella e notei como
ela observava temerosa os soldados que se aproximavam. — Eu ficaria grato se o
senhor a levasse de volta ao Reino.
— Não. — Fornella respirou fundo e veio para o meu lado, forçando um
sorriso. — Temos uma missão, afinal de contas.
Aguardamos no cais, vendo o capitão fazer a sua tripulação mexer-se depressa
ao erguerem os remos para empurrar a embarcação para longe do molhe. Os
marinheiros logo se puseram a remar para alto-mar conforme as batidas urgentes
do tambor do contramestre.
— Qual era o nome dele? — perguntou Fornella. — Do navio.
— Nunca me ocorreu perguntar. — Virei-me quando os soldados pararam a
pouca distância. Eram recrutados de infantaria, a julgar por suas armaduras, meia
dúzia de jovens sob o comando de um sargento nem um pouco jovial.
— Seu nome? — perguntou ele, avançando, olhando fixamente para o meu
rosto.
— Lorde Verniers Alishe Someren — respondi. — Cronista Imperial…
— Não — rosnou ele, chegando mais perto com a mão na espada. — Não é
mais.
Tal como antes, a primeira coisa que ele notou foi a mudança no ar, o cheiro
sulfúrico do topo da montanha substituído por algo muito mais adocicado. O frio
úmido também havia desaparecido, transformado na carícia morna da luz do sol,
impregnada por uma brisa suave de verão. Porém, desta vez, os sons eram
diferentes; não havia estalos de galhos de floresta ou pássaros cantando, mas sim
o barulho de muitas mãos trabalhando. O solo debaixo da pedra da memória
também havia mudado, a rocha entalhada substituída por ladrilhos lisos de
mármore recém-cortado. Vaelin ergueu a cabeça e viu que de fato não se
encontravam mais no topo da montanha, mas numa plataforma elevada no
centro de uma cidade recém-construída.
Por todo lado homens trabalhavam entre andaimes, puxando cordas ou
entalhando pedras, parelhas de cavalos de tração altos e de patas peludas
puxavam carroções enormes com blocos de granito e mármore. O ar estava
repleto de chamados e canções enquanto os homens trabalhavam, a ausência de
qualquer estalo de chicote ou correntes um sinal claro de que aquelas pessoas não
eram escravas. Na verdade, todos pareciam animados em seus trabalhos. Os
olhos de Vaelin foram atraídos para a estrutura mais alta, uma torre estreita e
retangular de mais de quinze metros de altura. As paredes estavam cobertas por
andaimes, mas ele podia ver o mármore vermelho e o granito cinzento por trás
deles. Voltou o olhar para outra construção perto dali, cujas paredes já estavam
erguidas, mas o telhado ainda não estava terminado. Era uma estrutura de
tamanho considerável, maior do que aquelas ao seu redor. Um pedreiro estava
sentado numa correia pendurada sobre o lintel, o seu cinzel deixando uma linha
de símbolos na pedra, símbolos aos quais o Irmão Harlick certa vez atribuíra um
significado: biblioteca.
— A Cidade Caída — disse ele em voz alta, e bastou um olhar para a
paisagem ao sul para confirmar aquilo. As eras podiam fazer uma cidade ruir,
mas não as montanhas.
— Sem dúvida. — Erlin estava de pé ali perto com as mãos enfiadas no
manto enquanto olhava para uma figura alta parada a pouca distância, de cabeça
baixa enquanto lia um pergaminho desenrolado. — E o homem que a construiu.
O homem ergueu os olhos do pergaminho e Vaelin moveu-se para fitar seu
rosto, de algum modo sabendo o que veria. Ele tinha barba e uma fronte
carregada, embora não fosse tão velho e enrugado quanto a sua estátua o
retrataria mais tarde; era mais jovem até do que a pintura na parede da caverna
do Povo Lobo. Mas ainda assim havia uma gravidade em sua expressão enquanto
examinava a sua cidade recém-erguida e mantinha os olhos apertados,
ocasionalmente piscando-os numa frustração contida.
O que ele poderia encontrar que não fosse de seu agrado em tamanha
realização?, perguntou-se Vaelin, olhando ao redor para a elegância crescente
por todos os lados.
— Ele é o rei deste lugar? — perguntou a Erlin.
— Duvido que essa palavra tenha algum significado aqui.
Vaelin gesticulou para os trabalhadores ocupados.
— Mas esses homens obedecem às ordens dele.
— E parecem felizes em fazê-lo, não acha? Vejo apenas o que a pedra me
mostra, irmão. Mas não vi nada que indicasse que esse homem comandasse
através do medo ou pela força de armas. Vasculhe a cidade inteira e não
encontrará uma única espada.
Uma voz alta fez o homem barbado se virar, os dentes subitamente à mostra
num sorriso radiante quando uma jovem correu para o seu lado. Vaelin mais
uma vez não ficou surpreso ao notar a semelhança dela com a mulher das
pinturas na caverna: olhos verdes e cabelos escuros. Ela deu um abraço caloroso
no homem barbado, seus dedos entrelaçando-se numa intimidade automática ao
se beijarem. Ela recuou com uma risada, virou-se e estendeu a mão, dizendo
palavras que Vaelin não compreendia, embora o tom fosse animado, até mesmo
jubilante. Um jovem de rosto fino apareceu e chegou a alguns metros do casal,
dando um sorriso leve e relutante. Havia diferenças sutis nele com relação à
figura retratada na caverna; era mais jovem e não tinha a boca torcida de forma
sardônica, mas ainda era reconhecível. A mulher riu e estendeu a mão para
trazê-lo para perto, apresentando-o ao homem barbado, que ignorou a mão do
jovem e o abraçou.
— Irmão e irmã — compreendeu Vaelin, seu olhar indo da mulher para o
jovem.
— Creio que sim — disse Erlin. — A primeira vez que os três se reuniram.
Mas longe de ser a última.
A lembrança mudou de modo abrupto, as construções e as pessoas
desaparecendo numa névoa rodopiante em volta deles, como se estivessem de pé
no centro de um vórtice, embora não houvesse qualquer sensação de vento. O
movimento logo diminuiu e a névoa transformou-se mais uma vez na cidade,
mas agora todas as construções estavam terminadas. A primavera havia chegado
às montanhas e o ar era puro, a cidade agitada por pessoas; pais com filhos,
amantes passeando de mãos dadas. Parecia que era possível ouvir música em
todos os cantos: um homem com algum tipo de harpa cantando num telhado
próximo, um grupo de cantores algumas ruas adiante acrescentando as próprias
vozes. Havia também grupos de pessoas travando discussões animadas,
gesticulando umas para as outras com pergaminhos e dispositivos estranhos que
Vaelin supôs serem alguma forma de sextante.
— Reúna mais de um filósofo e uma discussão tem início — comentou Erlin.
— Um truísmo que observei em todas as partes do mundo. Na verdade, certa vez
vi um deles discutir consigo mesmo. Ficou bastante violento no fim. — Ele foi
para a beira da plataforma elevada e fez um gesto abrangente com o braço
estendido. — Acho que foi por isso que ele construiu este lugar. Um santuário
para pensadores, artistas, eruditos. Em todas as minhas viagens, jamais vi uma
cidade como esta.
Uma voz irritada atraiu a atenção de Vaelin para a aproximação da mulher
de cabelos escuros, caminhando a passos largos à frente do homem barbado,
movendo as mãos em gestos enfáticos e negativos. Seu irmão vinha atrás, a certa
distância. Todos estavam mais velhos do que antes, apesar de talvez por poucos
anos. A timidez do homem mais novo parecia ter desaparecido, a expressão de
divertimento cansado em seu rosto um eco do que posteriormente exibiria na
parede da caverna.
A mulher foi até a pedra da memória e Vaelin viu que agora havia ali outra
idêntica, menos na cor, pois esta pedra era negra, a superfície sem qualquer
falha ou veio. Algo negro. Vaelin lembrou-se da profunda inquietação de Urso
Sábio ao tocar o espaço onde aquela coisa se encontrava agora.
A mulher parou para olhar para a pedra negra, seu rosto por um momento
transformado numa máscara de confusão antes de se virar para o homem
barbado e apontar para a pedra, a voz erguida num tom enfático. O homem
suspirou e moveu-se para o outro lado dela, deixando a rocha entre os dois. Ele
falou com calma, mas havia tanta certeza em suas palavras quanto nas dela,
além de um tom inconfundível de recusa. A mulher começou a gritar com ele, as
belas feições transformadas por uma raiva intensa. Ela se acalmou um pouco
quando o irmão aproximou-se da pedra, e Vaelin notou como ele mantinha as
mãos atrás das costas. Ele falou durante algum tempo e encolheu os ombros
várias vezes, e sua irmã estava evidentemente irritada com a sua aparente
despreocupação. Por fim, a mulher moveu as mãos numa exclamação
enraivecida de derrota e foi embora.
O irmão e o homem barbado trocaram olhares pesarosos, mas nenhuma
outra palavra. Após uma breve pausa, o homem barbado estendeu a mão para a
pedra, deixando-a erguida sobre a superfície lisa, e Vaelin notou o tremor
involuntário na ponta de seus dedos. O homem mais novo falou, somente
algumas palavras, mas o humor havia desaparecido por completo de seu rosto e
o tom era seco, quase autoritário.
O homem barbado hesitou, e um breve espasmo de raiva tomou conta de seu
rosto. Então ele riu, recolheu a mão e recuou, dando um tapinha no ombro do
jovem antes de se afastar caminhando tranquilamente. Ele desceu os degraus até
a rua abaixo, trocando cumprimentos afáveis enquanto avançava em meio à
multidão, cada rosto à sua volta repleto de respeito e afeição.
O jovem o observou ir embora e então se virou para a pedra, esfregando o
queixo e com o cenho franzido, pensativo. Após um momento ele começou a se
afastar, mas parou ao chegar aos degraus. Empertigou-se como que em resposta
a algum alarme inaudível e se virou, passando os olhos pela plataforma até parar
em Vaelin.
— Ele me vê — disse Vaelin.
— Sim — retrucou Erlin. — Sempre me perguntei o que o fez parar nesse
momento. Com sorte, as próximas palavras dele agora farão algum sentido.
O jovem avançou devagar, com uma expressão de espanto cauteloso. Ele
chegou a poucos metros de Vaelin e parou, estendendo a mão como se
pretendesse tocar o seu manto, mas os dedos atravessaram o material como se
fosse feito de bruma. O jovem recuou um pouco, seus lábios tentando formular
uma pergunta numa língua que não era a sua.
— Você… tem… nome? — perguntou ele na língua do Reino com um
sotaque carregado, mas compreensível.
— Tenho muitos — respondeu Vaelin. — Embora eu suspeite que você me
conheça apenas por um.
O jovem franziu o cenho, perplexo.
— Eu… Lionen — disse ele. — Eu ver você… antes. — Ele bateu na têmpora
com um dedo. — Em sonhos… Em acordado… Ouvir sua língua… Aprender.
— Você tem o dom da presciência — disse Vaelin, e procurou explicar em
resposta a outra expressão de perplexidade: — Você… vê o que está por vir.
— Às vezes… Às vezes… muda. Você, sempre mesmo. — Ele olhou para a
pedra negra. — Isto também.
— O que é isso?
O rosto de Lionen ficou tenso de consternação e Vaelin percebeu que o
jovem estava procurando palavras para descrever algo que nem mesmo ele
compreendia completamente.
— Uma caixa — disse ele por fim. — Caixa cheia… de tudo, e nada.
— Sua irmã tem medo dela.
Lionen assentiu.
— Essara vê grande perigo nisso. Seu esposo, grande… uso.
— E você?
— Eu vejo você, e a caixa. — Seu olhar recaiu em Erlin. — E ele… Mas ele
não é ele quando a toca.
Seu rosto se anuviou e ele se virou na direção da cidade, agora banhada por
um leve brilho alaranjado à medida que o sol começava a descer atrás das
montanhas a oeste.
— Em seu tempo… este lugar desapareceu, não?
— Sim. Arruinado muitas eras antes.
Lionen baixou os olhos e seu semblante ficou carregado de pesar.
— Eu… espero ver errado. — Ele respirou fundo e empertigou-se. — Se…
eu ver você de novo. Trazer… palavras felizes.
— Espere. — Vaelin estendeu a mão na direção de Lionen quando ele
começou a se afastar, apesar de não conseguir tocar nada, é claro. — Você
possui um conhecimento de que preciso. Estamos diante de um grande perigo…
— Eu sei — retorquiu Lionen, encolhendo os ombros. — Eu… diante de
perigo também.
Vaelin teve um vislumbre do rosto do jovem antes que a lembrança se
desfizesse mais uma vez; o sorriso enviesado retornara por um instante, e então
se transformou em névoa quando o vórtice girou.
— O que ele quis dizer? — perguntou a Erlin.
— Bem que eu gostaria de saber, irmão — respondeu o homem ancestral. —
Mas suspeito que agora já nos aventuramos muito além dos limites do meu
conhecimento.
Desta vez o vórtice transformou-se numa cena de caos, a cidade em chamas
e desmoronando em volta deles, acompanhada pelos gritos de milhares em
agonia. Vaelin agachou-se instintivamente quando um tremor estrondoso sacudiu
a pedra sob os seus pés, e seu olhar foi atraído de imediato para a torre, alta e
gloriosa no céu noturno, mas somente por um momento. O solo tornou a tremer e
a torre desabou, as paredes de pedra curvaram-se como um arco ao
despencarem para o chão, destruindo as casas abaixo numa explosão de pedras e
chamas.
Vaelin foi até a beira da plataforma e parou aturdido diante dos horrores que
ocorriam lá embaixo. Uma mulher cambaleava pelas ruas com uma criança
sem cabeça nos braços, o rosto lívido pela loucura. Um homem robusto de manto
longo passou correndo por ela gritando de medo, alcançado e desmembrado em
segundos por um grupo de homens em armaduras vermelhas, rindo alegremente
enquanto as suas espadas subiam e desciam num frenesi jubilante.
Os olhos de Vaelin percorreram a cidade moribunda, encontrando cenas de
carnificina e tormento por toda parte, e as palavras ditas por Sella anos antes lhe
vieram à mente: Viveram em paz por várias gerações e não tinham guerreiros,
então quando veio a tempestade eles estavam nus diante dela.
A devastação continuou por uma hora ou mais, a cidade desmoronando ao
redor deles enquanto a população morria. Os homens de armadura vermelha
eram criativos em suas crueldades, deleitando-se com os gritos daqueles que
estupravam ou esfolavam, ainda que, com exceção das risadas, fossem
matadores mudos, realizando o trabalho sanguinolento sem trocar uma palavra
entre si.
— O que são eles? — perguntou Vaelin num sussurro.
— Com o tempo, o povo que construirá o Império Volariano irá chamá-los de
Dermos — disse Erlin. — Imaginarão que são o produto de algum fosso
flamejante nas profundezas da terra. Quando terminarem aqui, eles atravessarão
o oceano para atacar cada lugar que puderem encontrar onde a humanidade
resida, com isso dando origem a lendas e deuses. — Erlin apontou para algo nas
ruas cobertas de fumaça abaixo. — O massacre continuará até que aquele que os
comanda tombe.
A figura movia-se pela carnificina sem parecer notá-la, pisando em
cadáveres e em sangue empoçado num passo constante e despreocupado. Os
homens de armadura vermelha abriam caminho quando ele se aproximava, não
por respeito, pois não faziam mesuras, nem o cumprimentavam de qualquer
forma, mas como em resposta a uma ordem inaudita. Assim que o homem
passava, eles retornavam aos seus divertimentos abomináveis sem olhar na sua
direção. Seu rosto tornou-se nítido quando se aproximou dos degraus da
plataforma e parou para olhar para o alto, a testa tão enrugada agora que parecia
coberta de cicatrizes, o brilho de milhares de incêndios reluzindo nos fios
grisalhos de sua barba.
Ele fez uma careta quando começou a subir, as pernas rígidas e as costas
curvadas pelo esforço. Parou ao chegar à plataforma e soltou um gemido alto e
cansado, e então olhou para trás na direção do caos abaixo. A expressão em seu
rosto envelhecido era uma que Vaelin conhecia bem demais. Aquele que os
comanda, pensou ele, vendo a malícia ávida que distorcia as feições do homem
barbado.
— Ele fez isso — compreendeu Vaelin em voz alta. — Ele destruiu a própria
cidade.
— E muito mais além dela — disse Erlin quando o homem foi para o centro
da plataforma, parando diante do pedestal de pedra negra, olhando para o vazio
de sua superfície. Ele permaneceu ali durante algum tempo, até que os gritos e os
últimos estrondos retumbantes de destruição tivessem cessado, restando apenas o
estrépito das chamas.
O homem barbado ergueu o rosto para o céu noturno, os olhos fechados ao
estender a mão para a pedra. Sua malícia parecia ter desaparecido agora,
deixando um cansaço tão grande que Vaelin o achou quase digno de pena.
Enquanto antes a sua mão havia estremecido, agora ela tremia como se ele
estivesse sendo tomado por uma paralisia, e a boca do homem barbado abriu-se
num grito silencioso…
De repente, ele girou para longe da pedra com um grito, o peito arfando e o
rosto lívido de fúria e outra expressão que Vaelin conhecia bem: a máscara
espasmódica de olhos brilhantes de um homem orgulhoso não disposto a
reconhecer a própria derrota.
Uma tropa grande de homens de armadura vermelha subiu correndo os
degraus, carregando várias vigas longas de madeira. O homem barbado afastou-
se da pedra negra quando os seus servos se aproximaram. Eles colocaram as
vigas debaixo do topo largo do pedestal, semelhante a um cogumelo, e o
ergueram, levando-o embora depressa, aparentemente alheios ao peso enquanto
desciam os degraus e avançavam pelas ruas apinhadas de cadáveres.
O homem barbado demorou-se por um momento, os olhos apertados como
se esquadrinhasse a plataforma. Havia também um leve sorriso em seus lábios,
um brilho discreto de humor nos olhos. Ele sabe que estou vendo isso, concluiu
Vaelin, e o frio enregelante da compreensão percorreu o seu corpo ao ver a
malícia retornar ao rosto do homem barbado, o sorriso ainda ali quando se virou
e desceu os degraus sem olhar para trás. Não era mais do que uma grande cabeça
de pedra à espera que as eras o transformassem em poeira…
O Aliado.
— Você sabia?
— Eu desconfiava. — Erlin ergueu a mão para a pedra da memória. — Mas
essas lembranças são muito antigas. Tantas vidas foram vividas desde então, mil
reinos se ergueram e sucumbiram, dando origem a incontáveis mistérios.
— Lionen disse que você tocaria a pedra negra — insistiu Vaelin. — Mas não
seria você quando o fizesse. O que ele quis dizer com isso?
— Acho que ele quis dizer que temos muito sobre o que pensar. — Erlin
estendeu a outra mão a Vaelin. — Nada mais ocorrerá aqui, embora uma vez eu
tenha esperado quase um mês para confirmar. Espere por tempo suficiente e
talvez você veja os lonaks chegarem.
Vaelin suspirou e lançou um último olhar para as ruínas ainda fumegantes
antes de se aproximar para pegar a mão de Erlin, e então recuou alarmado
quando ela se transformou em poeira antes que pudesse segurá-la. O vórtice
retornou num piscar de olhos, levando Erlin consigo. Parecia haver uma nova
intensidade na poeira rodopiante agora, as cores mudavam, uma dança mais
complexa na espiral de caos. Ela desapareceu tão depressa quanto surgira,
revelando o topo da montanha acima da aldeia lathera. No entanto, Vaelin agora
estava sozinho e era noite, as nuvens acima transformadas num teto alaranjado e
rodopiante pelo brilho do fogo das montanhas. A fúria incandescente parecia
mais intensa; seus olhos discerniram uma gota de rocha derretida entre as
chamas e a fumaça, e um pequeno tremor pulsou pela pedra debaixo de seus
pés.
— Então — disse uma voz —, tem notícias mais alegres para mim?
Lionen caminhou em sua direção do aglomerado de casas. Ele estava mais
velho, o cabelo longo em grande parte grisalho, o rosto ainda magro, mas
também enrugado. Ele parou a alguns metros de distância e franziu o cenho ao
examinar a aparência de Vaelin.
— Ah. Faz apenas alguns momentos para você, não?
Vaelin assentiu.
— Meu amigo…
— Esta lembrança não é para ele. — Lionen virou-se e estendeu a mão na
direção das casas. — Eu estava prestes a jantar. Gostaria de se juntar a mim?
— Seu conhecimento da minha língua aumentou — observou Vaelin,
acompanhando Lionen até uma das maiores casas. Ele notou que todas as outras
estavam silenciosas, sem nenhuma luz nas janelas.
— Tive muitos anos para estudá-la. E várias outras, embora esta seja a minha
favorita. Menos fluida do que o seordah, mas mais poética e funcional do que o
volariano. — Lionen ficou de lado na porta de sua casa, gesticulando para que
Vaelin entrasse primeiro. O interior era aquecido, o cômodo parcamente
mobiliado com um catre baixo de madeira e alguns pergaminhos empilhados
num canto. Havia uma pequena panela de ferro fumegando sobre uma fogueira,
a fumaça saindo por um buraco estreito no teto.
— Eu lhe ofereceria um pouco de cozido — disse Lionen, sentando-se ao lado
da fogueira —, mas seria um gesto redundante.
— Posso sentir — comentou Vaelin. — Mas não tocar. Por quê?
— A pedra captura o lugar e o tempo, mas eles são imutáveis. Assim como a
nossa conversa. Ela já aconteceu, apesar de para nós dois parecer estar
acontecendo agora. O que aconteceu não pode ser mudado, de modo que você
não pode tocá-lo. A mudança é da alçada do futuro.
Ele ergueu a tampa da panela e provou a comida com uma pequena colher.
— Codorna com tomilho e cogumelos — disse Lionen. — Uma pena que
você não possa comer. Tive muito tempo para aperfeiçoar a receita.
— Há quanto tempo você está aqui?
— Quinze anos desde que construí esta cidade em miniatura. Eu tinha
companheiros na época.
— O que aconteceu com eles?
— Alguns partiram, entediados com a minha inatividade. Outros ficaram
desapontados com as minhas lições e buscaram conhecimento em outros lugares.
Os restantes eu mandei embora. Acho os jovens tediosos hoje em dia. São
sempre terrivelmente fervorosos.
— Você entalhou a pedra lá fora, encheu-a com as suas lembranças.
— E muito mais. As pedras não eram simplesmente repositórios para
lembranças. Eram também um meio de comunicação, conectadas entre si. Uma
inovação útil para uma civilização que se estendeu por meio mundo.
— Destruída pelo marido de sua irmã?
— Sim. Enquanto eu vagava pelo gelo à procura do impossível, ele tinha
outras obras em mente.
Vaelin lembrou-se das pinturas da caverna, os três visitantes que se tornaram
dois.
— Sua irmã morreu salvando o povo do gelo. Vocês trouxeram doenças, e ela
os curou, embora tenha custado a sua vida.
— Ela era uma curandeira. Viu isso como uma obrigação, apesar de
implorarmos que parasse.
— Foi isso que o mudou? Que fez com que ele odiasse o que construíra?
— A morte de Essara pode ter escurecido a sua alma, mas desconfio que os
primeiros passos no caminho do que ele é agora foram dados muito antes. Foi a
decepção, veja bem, o constante descontentamento. Ele tentou com tanto
empenho construir o seu mundo perfeito, uma civilização que faria a
humanidade ascender a algo maior. Porém, as pessoas ainda são pessoas, por
mais confortável que seja o ambiente em que se encontram. Elas mentem,
brigam, traem e não importa quanto se dê a elas, sempre querem mais. Sem a
influência de minha irmã, ficou cada vez mais difícil para ele continuar sendo
generoso, continuar guiando na esperança de que um dia eles tornassem a sua
visão realidade. E assim, após se provarem indignos do mundo que criara para
eles, ele decidiu destruí-lo.
Lionen pegou uma tigela e começou a enchê-la com ensopado; pelo cheiro
Vaelin supôs que a preferência dele pela receita era bem fundamentada.
— Diga-me — disse ele, sentando-se de novo com a tigela na mão —, a
eorhil encontrou a pedra que deixei para ela?
Vaelin lembrou-se da história de Sabedoria sobre a viagem que fizera à
Cidade Caída, o seu encontro com Nersus Sil Nin.
— Encontrou, com a ajuda de uma cega que tinha o mesmo dom que você.
— Ah, a cega. — Lionen sorriu com ternura enquanto comia. — Vista com
frequência nas minhas visões, mas nunca falo com ela. Tão graciosa na
juventude. Gostaria muito de tê-la conhecido.
— Você esculpiu a pedra que deu a Sabedoria o seu nome — disse Vaelin. —
Sabendo que ela a encontraria um dia.
— A visão muda. Às vezes ela a encontra, às vezes não. Desconfio que a cega
achou necessário dar um leve empurrão no destino. Voltei para a cidade após o
meu período no gelo e encontrei cadáveres há muito apodrecidos e destruição,
uma cena que meu dom nunca me revelara, pois sempre voltou a minha visão
para o futuro distante. A pedra negra havia desaparecido e a pedra da memória
estava despedaçada, mas fui capaz de tirar informações suficientes dos
fragmentos para descobrir quem havia feito aquilo. Passei anos entre as ruínas,
entregue ao pesar, distraindo-me com o aprendizado da língua e o conhecimento
revelados pelo meu dom. Certo dia, meu dom trouxe uma visão da eorhil
segurando uma pedra perfeitamente quadrada feita do mesmo material da pedra
da memória, só que esse artefato não existia naquela Cidade Caída, então eu o
criei. Refiz a pedra da memória, cinzelando-a por boa parte de um ano até restar
apenas um pequeno cubo, e nele coloquei todo o conhecimento que me fora
revelado pelo meu dom. Espero que a tenha feito feliz.
— Fez com que ela fosse… de grande ajuda para o povo dela, e para o meu.
E por isso lhe agradeço.
Lionen deu de ombros de forma afável e voltou à refeição.
— O que você estava procurando? — perguntou Vaelin quando o silêncio se
arrastou. — No gelo, para onde levou o corpo de sua irmã.
— Uma lenda. Sei que para você o meu povo é pouco mais do que um mito,
mas nesta época nós temos as nossas próprias histórias, canções antigas dos dias
em que o mundo era jovem. Vi muita coisa que sugere que este mundo é muito
mais antigo do que poderíamos compreender, fonte de incontáveis maravilhas.
Fui à procura de uma, um ser que as pessoas da sua época chamariam de deus,
que diziam possuir o poder de trazer os mortos de volta à vida.
Seu olhar ficou distante e ele voltou à refeição, comendo em silêncio. Vaelin
ficou imaginando se aquele encontro era tão familiar a Lionen a ponto de deixá-
lo cansado com a repetição. Ocorreu-lhe que o dom de Lionen era de fato uma
maldição, enchendo sua mente de visões de um futuro tão distante daquela
época, mas repleto de uma verdade terrível, privando de significado a sua
própria era.
Outro tremor sacudiu o solo, mais forte desta vez, fazendo com que as folhas
das janelas chacoalhassem e arrancando Lionen de seu silêncio. Ele raspou o
resto de ensopado da tigela e levantou-se, levando-a para fora. Vaelin o seguiu e
o encontrou amarrando a tigela a um pedaço de corda preso entre duas casas.
— É uma longa descida até o rio — disse ele. — O vento irá limpá-la. Um
gesto vazio, mas sempre achei difícil deixar hábitos de lado.
— Você encontrou? — perguntou Vaelin. — Esse deus lendário?
Lionen olhou para algo por cima do ombro de Vaelin.
— Creio que sabe o que encontrei, ó Sombra dos Corvos.
Ele sabia o que veria, ainda que não houvesse rosnado dessa vez e tivesse se
aproximado de forma silenciosa. Não estava tão grande quanto antes, seus
ombros chegavam à cintura de Vaelin, embora havia muito desconfiasse que ele
podia assumir qualquer tamanho que escolhesse.
O lobo aproximou-se com o focinho perto do chão como se farejasse a pedra
ao redor dos pés de Vaelin, lembrando-lhe de como Arranhão procurava um
rastro.
— Ele pode sentir o seu cheiro, mesmo você sendo apenas um eco enviado
do futuro — disse Lionen. — Parece que ele deseja poder encontrá-lo de novo.
O lobo sentou-se, a longa língua rosada deslizando sobre os lábios ao bocejar,
os olhos verdes encarando Vaelin com uma afeição plácida.
— Ele o seguiu desde o gelo? — perguntou a Lionen.
— Sim. Encontrei-o tão ao norte que desconfio que eu estava no topo do
mundo inteiro. Ele estava maior na ocasião, a imagem do deus que eu esperava
encontrar. Ele se aproximou, cheirou o corpo de Essara e usou os dentes para
tirar a mortalha que cobria o rosto dela. Por um segundo achei que fosse comê-
la, mas em vez disso lhe lambeu o rosto, só uma vez… E eu ouvi a voz dela.
O rosto de Lionen se anuviou e ele foi até a pedra da memória, seguido por
Vaelin e o lobo, que caminhava ao seu lado.
— Você tem mais perguntas para me fazer — disse Lionen. — Seja breve,
por favor. O tempo é curto.
— A pedra negra — disse Vaelin. — O que ela é? Por que ele a levou?
— Eu lhe disse, é uma caixa. Uma que abrimos juntos, e este mundo é o
resultado.
— Você disse que Erlin iria tocá-la, mas que não seria o mesmo quando o
fizesse. O que quis dizer com isso?
— O homem ancestral lhe disse que quase foi capturado uma vez, quando
ficou à beira da morte e tocou no Além. Você sabe que o Aliado usa outros para
causar a sua destruição no mundo, almas capturadas e deturpadas para os seus
propósitos. Por que acha que ele não enviou uma delas para roubar o corpo de
Erlin?
Lionen parou diante da pedra, sorrindo levemente.
— A última a ser entalhada, pelas minhas próprias mãos. A pedra em si vem
de uma mina nas profundezas das montanhas localizadas no lugar que você
chama de Confins do Norte. Também encontramos a pedra negra lá, um pedaço
imenso dela com propriedades muito singulares. Foi ideia dele entalhá-la, é claro,
embora minha irmã fosse contra. “Tal poder não deveria ser colocado em mãos
humanas”, disse ela. Ele riu, puxou-a para perto e falou: “Todo poder deveria
estar em mãos humanas, minha amada. Pois de que outro modo podemos
transcender a humanidade?”
— Poder — disse Vaelin. — O Aliado é atraído por ele.
— Como um abutre a um cadáver. E que maior poder existe do que a
habilidade de derrotar a própria morte? — Havia um peso nas palavras de Lionen
agora, uma intenção séria em seus olhos, o significado bastante claro.
— Não farei isso — respondeu Vaelin.
— Então veja o seu mundo morrer assim como vi o meu. A terra ao nosso
redor é estéril, e continua assim por quilômetros em todas as direções. Restam
pequenas aldeias aqui e ali, algumas cidades que de algum modo resistiram à
tempestade, à atenção do que chamavam de Dermos. Elas crescerão com o
tempo, criarão reinos e depois um império, esquecendo-se de suas lendas e
tornando a si mesmas perfeitas para os propósitos dele com a sua ganância
ilimitada. Ele aguarda, por ora. Posso senti-lo agora, encolhido no Além,
tramando, planejando. Ainda não é forte o bastante para me capturar quando eu
morrer, mas não tenho dúvida de que tentará.
— Você o matou — disse Vaelin. — Você é a razão para ele estar no Além.
— De que outro modo eu teria reunido seguidores numa terra tão estéril?
Com a ajuda do lobo, procurei aqueles que podiam me ajudar, um bando de
guerreiros corajosos e aqueles com dons que mal compreendiam, todos sofrendo
com a perda de familiares ou amantes durante o massacre dele. Os volarianos
irão chamá-los de Guardiões com o tempo. Juntos, nós o matamos.
Lionen gesticulou para a pedra e lançou um olhar urgente a leste quando o
solo tornou a tremer.
— Está na hora.
— Algo está prestes a acontecer — disse Vaelin.
— Um fim prometido há muito tempo. — Lionen virou-se para as montanhas
de fogo, e Vaelin viu como o brilho flamejante delas havia se tornado ainda mais
intenso, a cortina de nuvens acima agora de um tom mais forte de vermelho. —
Uma erupção a oitenta quilômetros daqui está prestes a expelir uma nuvem de
cinzas quentes que cairão sobre esta montanha mais depressa do que qualquer
homem poderia correr. As cinzas irão se assentar, ocultando este lugar dos olhos
humanos por séculos, mas as intempéries acabarão removendo-as, e os meus
ossos com elas. A única visão de minha própria época que me foi permitida, a
minha própria morte.
— Você viu o meu futuro? — perguntou Vaelin. — Viu o que acontece com o
meu povo?
Lionen olhou por sobre o ombro e sorriu. Era um sorriso de pesar genuíno,
cheio de solidariedade e sem qualquer traço de ironia.
— Vi o suficiente para ter pena de você, Sombra dos Corvos. — Ele se virou
de novo para as montanhas de fogo quando o solo voltou a estremecer, a força do
tremor fazendo-o cambalear. — Você precisa matar as criaturas dele — disse
Lionen. — Prendê-las nos seus corpos roubados e matá-las. Sem ferramentas
neste mundo, a necessidade dele de agir será ainda maior, a atração pelo poder
impossível de resistir. A pedra negra se encontra na arena em Volar. Quando
estiver feito, leve-o até lá. Um toque e ela dá. Um segundo toque e ela toma.
Ouviu-se um estrondo ribombante do leste, acompanhado por uma explosão
de lava, subindo num jorro de fogo antes de escorrer pelos flancos da montanha
que a expelira. O topo da montanha foi sacudido, fazendo Lionen cair de joelhos,
o céu acima escurecendo à medida que o brilho da montanha diminuía, uma
névoa densa sendo expelida do topo destruído e descendo as encostas a uma
velocidade impossível.
O lobo soltou um ganido baixo mas urgente ao lado de Vaelin, levando o
focinho até a sua mão e o empurrando para perto da pedra. Vaelin estendeu a
mão para a rocha, mas percebeu que não conseguia desviar os olhos de Lionen,
que agora estava ajoelhado e de braços abertos, as cinzas incandescentes
rumando em sua direção numa onda negra descontrolada.
— Minha irmã disse o meu nome! — gritou ele quando as cinzas subiram o
topo da montanha e o engoliram. O calor era insuportável e as cinzas estavam
sufocando Vaelin quando ele colocou a mão na pedra…
… ele piscou e a mudança instantânea no ar o fez engasgar. Seus olhos foram
para o local onde Lionen estava ajoelhado um segundo antes, recebendo a morte
de braços abertos. A pedra estava lisa, sem o menor sinal de sua morte.
— O que você viu? — perguntou Erlin, a testa franzida de incerteza. — Ela o
manteve lá. Deve ter lhe mostrado algo mais.
Que maior poder existe? Vaelin desviou o olhar, achando a confusão nos olhos
de Erlin difícil de suportar. Não farei isso. Ele se afastou da pedra e dirigiu-se para
os degraus.
— Como você disse, temos muito sobre o que pensar.
***
Lorkan apareceu de repente e sentou-se ao lado de Vaelin, ignorando os
murmúrios agitados dos Senthar. Os lobos de Astorek também começaram um
coro de ganidos aflitos, até que ele os acalmou com um olhar.
— Eu diria cerca de cinco mil pessoas — disse Lorkan. — Todas amontoadas
nas entranhas daquela montanha. — Ele apontou para um pico escarpado a
pouco mais de um quilômetro e meio dali, uma cicatriz irregular visível na rocha
a um terço do caminho flanco acima. — Não me aprofundei muito, mas vi o
suficiente para saber que eles estão num estado lastimável, vários feridos
recentemente, alguns moribundos. Talvez metade seja de crianças. Os mais
velhos parecem não estar se dando bem e estão sentados em grupos diferentes,
trocando olhares furiosos.
Vaelin ficara irritado ao descobrir que Dahrena voara mais uma vez enquanto
estivera fora, retornando ao acampamento e encontrando-a curvada junto a uma
fogueira, amparada por Cara e Kiral de ambos os lados.
— Chega disso — disse ele, sentando-se diante dela e passando uma das mãos
pela sua fronte gelada. — Mesmo que eu precise drogá-la para deixá-la
inconsciente.
— Ah, não resmungue — murmurou ela com um sorriso, os lábios lívidos e
os olhos turvos de exaustão. — Acho que posso ter encontrado alguns aliados.
— Alguém viu você? — perguntou Vaelin a Lorkan.
— Um garotinho começou a apontar e gritar quando tentei entrar mais na
caverna. Supondo que ele fosse dotado, era o único entre eles.
— Devíamos ir sozinhos — disse Erlin. — Um grupo grande causará muito
medo.
— O medo pode ser útil. — Vaelin virou-se para Astorek. — Diga ao seu pai
para trazer o exército inteiro para este vale.
Ele aguardou até o meio-dia e então conduziu Cicatriz pelas rédeas até a
montanha, parando no sopé. Vaelin ergueu os olhos para a abertura irregular no
flanco da elevação, revelando-se agora a entrada de uma caverna, escura e
silenciosa, de onde não saía nem mesmo um filete de fumaça que pudesse
entregar os seus ocupantes, apesar de que ele não tinha dúvida de que o haviam
visto se aproximar.
Ele segurou as rédeas de Cicatriz com menos força, permitindo que o cavalo
mordiscasse o pouco de capim que havia no fundo do vale, mantendo os olhos
fixos na entrada da caverna. Vaelin não tinha certeza de que atingiria o seu
objetivo. Pertak rira quando Erlin informou o pedido de Vaelin por uma aliança.
O chefe lathera tinha uma cicatriz recente no maxilar e um túmulo recém-
escavado aparecera do lado de fora das muralhas do povoado. Ele mantinha a
mão perto da algibeira no cinto e movia-se com a postura curvada e os olhos
apertados de um homem com medo constante de ser atacado. Porém, a sua
risada fora totalmente genuína.
— Deixe os fodedores de cabras morrerem — traduziu Erlin quando Pertak
voltou para o povoado pisando firme, ainda gargalhando. — Então os veios deles
serão nossos para mineirar.
O primeiro deles apareceu após uma espera de vários momentos, uma figura
solitária de saiote parada à entrada da caverna, olhando para Vaelin com um
machado em punho. Vaelin ergueu os braços, mostrando que suas mãos estavam
vazias. Várias outras figuras surgiram da escuridão da caverna, ficando cada vez
mais numerosas até que talvez seiscentas pessoas estivessem encarando-o em
silêncio. Vaelin abaixou os braços e esperou, ouvindo o tumulto crescente
causado pela aproximação do Povo Lobo. Os falcões-lanceiros chegaram
primeiro, dando os seus gritos estridentes ao planarem para dentro do vale e
voarem em círculos no alto, depois os lobos, várias alcateias que somavam bem
mais de cem animais. Avançaram aos pulos e cercaram Vaelin, fazendo Cicatriz
estremecer de forma involuntária.
Quando o Povo Lobo marchou para dentro do vale, Vaelin olhou para o rosto
da primeira figura que aparecera. Ele estava longe demais para ver as feições
com detalhes, mas Vaelin deduziu que fosse o mais velho presente, possivelmente
um chefe. Contudo, a julgar pelos símbolos e cores desiguais que adornavam os
trajes de seus companheiros, ele duvidava que aquele homem fosse capaz de
falar por todos os que haviam se refugiado ali. Ainda assim, era evidente que ele
era uma pessoa de respeito, trocando algumas palavras breves com os outros
antes de começar a descer a encosta. Alguns de seus companheiros o seguiram
de imediato, e todos usavam as mesmas cores e símbolos. Os outros se
demoraram durante algum tempo, exibindo uma desunião irascível ao trocarem
gritos e ameaçarem uns aos outros com armas erguidas. Porém, a discórdia não
durou muito, e logo todos seguiram o homem mais velho até o fundo do vale.
Vaelin manteve os olhos na figura que vinha na frente e não se virou para ver
o Povo Lobo parar às suas costas. O homem caminhava em sua direção sem
muita pressa, embora houvesse uma nítida determinação em seus passos. Ele
parou a quinze metros de distância, e os outros se alinharam de ambos os lados do
homem. Vaelin segurou as rédeas de Cicatriz e avançou, causando uma onda de
inquietação na pequena multidão, mas ninguém tentou impedi-lo.
Ele parou Cicatriz a poucos metros do possível chefe, olhou em seu rosto e viu
o olhar taciturno e quase enlouquecido de um homem que havia perdido boa
parte de seu mundo em poucos dias. Kiral advertira que a sua canção lhe dissera
que havia fúria e confusão entre aquela gente, mas não emitira qualquer nota
confirmando que estavam no caminho certo.
— Minha canção fica mais sombria e menos harmônica a cada dia que passa
— disse ela. — Desde que encontramos o homem eterno. Duvido que eu tenha
mais certezas a oferecer.
Porém, olhando para a dor por trás dos olhos daquele homem, Vaelin viu toda
a certeza de que precisava. Ele vira aquele rosto muitas vezes durante a marcha
até Alltor. O rosto dos torturados, dos estuprados, dos enlutados… e dos vingativos.
Seu volariano não era bom, mas Erlin lhe ensinara a pronúncia correta.
— Vamos para o sul — disse ele, batendo no peito e apontando para a
extremidade sul do vale. — Matar volarianos. Venham conosco.
CAPÍTULO DOIS
Lyrna
O sol do início da manhã caía sobre a correnteza agitada do rio, levantando uma
névoa fina das águas. O Aspecto Arly n estava sozinho na margem, agora sem a
armadura vermelha, uma figura alta com um manto azul sem dúvida tirado do
corpo de um irmão morto. O Irmão Ivern encontrava-se ali perto, e curvou-se
com um sorriso cansado quando Ly rna se aproximou. Ela se perguntou se ele
estava ali como guarda ou carcereiro.
— Ele falou? — perguntou ela.
— Um pouco, Alteza. Perguntou sobre o Aspecto Grealin e Lorde Vaelin.
— O que você contou a ele?
Ivern pareceu intrigado pela pergunta.
— Tudo. Ele é o nosso Aspecto.
Ly rna assentiu e foi para o lado do Aspecto, o Irmão Verin mantendo-se a
menos de três metros dela, como ordenado. Arly n virou-se para a Rainha,
abaixando a cabeça na mesura curta que ele sempre fizera ao seu pai e ao seu
irmão. Sua expressão era pesarosa, como era de se esperar, mas Ly rna também
percebeu que ele a encarava com um olhar de julgamento, um olhar que ela
sabia que o Aspecto nunca hesitara em mostrar a Janus.
— Alteza — disse ele. — Por favor, aceite as minhas condolências pela perda
do Rei Malcius.
— Obrigada, Aspecto. Apesar de todos nós termos sofrido perdas.
Ele olhou rapidamente para o Irmão Verin. O jovem dotado vira muito desde
que embarcara no navio com ela e estava menos inclinado a demonstrações de
nervosismo, embora ainda se remexesse um pouco sob o olhar do Aspecto.
— Aprendi a ser cautelosa ao lidar com aqueles que encontraram a
Imperatriz — disse Ly rna.
O Aspecto assentiu numa aceitação plácida e virou-se de novo para o rio.
Eles se encontravam paralelos ao ponto onde os Arisai haviam atravessado, a
correnteza mais turbulenta ali do que nos outros lugares, deixando a água branca
onde se encontrava com a margem.
— Como foi feito? — perguntou Ly rna. — O passadiço. A Senhora Alornis o
considera um feito notável de engenharia.
— Com tijolos, ossos e sangue — respondeu Arly n. — Três mil escravos
trabalhando durante dez dias sob o meu comando. O rio é veloz, como a senhora
pode ver, e os Arisai divertiam-se muito com o chicote. No fim, restavam apenas
quinhentos escravos.
— Parece que os estratagemas da Imperatriz são astutos, mas custosos.
O Aspecto sacudiu lentamente a cabeça.
— Este estratagema foi meu, Alteza. Concebido por ordem dela,
naturalmente. Mas a ideia toda de atacar vocês aqui foi minha.
— Eu sei que o senhor não era responsável por suas ações. Nosso inimigo
emprega muitos artifícios ignóbeis.
— De fato. Principalmente uma compulsão para que vinganças
inconsequentes sejam executadas.
— Não peço desculpas por assegurar o futuro do Reino.
— É essa a sua intenção, Alteza? Se for, a Imperatriz ficaria muito surpresa.
Ly rna enfiou as mãos no vestido, relutante em deixar que ele visse como as
cerrava numa raiva contida.
— Se o senhor possui informações sobre os planos do inimigo, eu gostaria de
ouvi-las.
— Ela descia para me ver às vezes, naquela caverna de horrores onde
gravaram o domínio na minha carne. Na maior parte do tempo ela fazia
perguntas, testando o meu conhecimento da História, a minha experiência de
comando. Eu esperava que ela fosse arrancar de mim cada segredo que eu tinha
sobre a Fé e o Reino, mas logo ficou claro que ela sabia mais do que eu. Também
ficou claro que ela é totalmente louca, uma consequência inevitável de séculos
passados a serviço do Aliado. — Arly n abaixou a cabeça por um momento, de
olhos fechados e com a respiração subitamente fraca. — Até mesmo uma breve
exposição é a mais árdua das provações.
— O que ela fará agora?
— Formulará outro plano para matá-la, imagino. Ela parece achá-la bastante
incômoda. “Criei milhares de almas vingativas, mas nenhuma tão importuna
quanto essa vadia cuspidora de fogo.”
— Quantos Arisai ela ainda tem?
— Talvez sete mil. Mais outros oitenta mil Varitai e Espadas Livres.
Ly rna olhou para as mãos de Verin, confirmando que ele fizera o sinal para
verdade. Embora ela tenha ocultado a verdade antes, e eu não fui capaz de
perceber.
— Eu imaginava que haveria mais — disse ela.
— A guerra no Reino consumiu o grosso das melhores tropas deles e a
discórdia aumenta em todos os cantos do império. Nova Kethia caiu com uma
rebelião de escravos, inspirando revoltas pelas províncias. Ela também parecia
preocupada com alguma missão ao norte. Ela me fez executar um general
graduado que questionara a sensatez de enviar mais tropas para lá.
Uma missão ao norte… Vaelin. Ele conseguiu atravessar o gelo. Um leve
sorriso surgiu em seus lábios. É claro que conseguiu.
— Fale-me mais sobre essa discórdia.
CAPÍTULO TRÊS
Vaelin
Os rotha eram liderados por uma mulher robusta de meia-idade com uma matriz
funda de cicatrizes decorativas gravadas na carne em volta dos olhos.
— Mirvald — disse ela quando Erlin perguntou o seu nome, acrescentando
alguns outros títulos que aparentemente indicavam a sua posição.
— Ela é uma mistura de conselheira e xamã, e dizem que tem a capacidade
de ouvir as palavras dos espíritos — disse Erlin.
— Ela viu os sete homens vermelhos? — perguntou Vaelin.
Mirvald olhou atentamente para Vaelin por um segundo antes de responder.
— Os rotha foram os primeiros a sentir a ira deles. Os Sete foram sozinhos
até o povoado. Por serem forasteiros, os guerreiros tentaram matá-los, mas
acabaram mortos. Os Sete não são como outros homens. Eles se movem e lutam
como se fossem um, como se cada um deles ouvisse os pensamentos dos outros.
Ainda assim, os rotha teriam vencido se eles não tivessem outros poderes. Um
podia matar com um único toque, outro tinha o poder de congelar o coração de
um homem com o medo. Eles mataram muitos rotha, e então o exército chegou
e matou muitos mais.
— Agradeça a ela pelas informações — disse Vaelin.
A mulher inclinou a cabeça ao ouvir as palavras de Erlin e então fez uma
pergunta:
— Como você pretende derrotar os Sete quando outros não conseguiram?
Vaelin olhou para onde Urso Sábio conversava com os outros dotados, todos
reunidos enquanto ele dava outra lição tirada de seu poço de conhecimento
inesgotável.
— Diga a ela que temos os nossos poderes. Se quiser vê-los, ela deveria vir
conosco.
Erlin escutou a resposta da mulher e forçou um sorriso plácido.
— Ela irá, mas só se você nomeá-la líder do exército. O povo dela não irá de
outra forma.
— Já temos um líder.
— Desconfio que não fará diferença se você nomear dois. As tribos
raramente falam umas com as outras, a não ser para trocar insultos. Admito que
estou surpreso que elas tenham conseguido passar mais de um dia sem terminar
o que os volarianos começaram.
— Muito bem. — Cansado, Vaelin assentiu e curvou-se para Mirvald, e então
se virou para Urso Sábio. — Aguardo as ordens sensatas dela e, com a sua
permissão, irei agora consultar os meus capitães.
A cadeia de colinas estava encoberta por nuvens e pela chuva quando Vaelin
parou o já quase exausto Cicatriz no sopé dela. Vira as nuvens descerem
enquanto cavalgavam até as colinas, rápidas demais para que pudessem ser outra
coisa que não o trabalho de Cara. Mishara estava vários metros adiante e
desapareceu de vista depressa na cortina de chuva quando um relâmpago reluziu
em algum lugar mais acima.
Vaelin subiu correndo a cadeia de colinas, vendo corpos caídos entre as
rochas, os guerreiros do Povo Lobo, todos aparentemente mortos em questão de
segundos. Encontrou o gato de Marken a seguir, morto, e o próprio dotado estava
caído alguns metros adiante, as feições barbadas flácidas e inertes debaixo da
chuva.
Vaelin desviou o olhar e forçou-se a seguir em frente. Sentiu primeiro o
cheiro, queimado, acre, nauseante. O fedor de carne recém-carbonizada. Avistou
Cara ao chegar ao topo da colina, uma forma pequena e imóvel sentada à chuva,
o rosto pálido encarando com olhos arregalados algo ali perto, algo enegrecido e
carbonizado, mas que de algum modo ainda se movia, o rosto parcialmente
derretido de uma armadura vermelha grudando-se à carne torrada ao se mexer.
— Eu não vi — disse Cara num sussurro. — Dividimos o poder… Não
consegui ver… Aconteceu tão depressa…
Vaelin agachou-se ao seu lado, vendo o sangue escorrer do nariz da garota,
tornar-se rosado e se dissolver na torrente. Tocou nas mãos dela.
— Basta — disse ele. — Está feito.
Cara piscou para ele e então se curvou, a chuva diminuindo até se
transformar numa garoa quando ele a amparou.
— Raio — murmurou ela. — Eu não sabia que podia.
— Cara. — Vaelin ergueu o queixo dela. — Onde está a Senhora Dahrena?
Ele ouviu Mishara soltar um chamado desolado em algum lugar adiante.
— Sinto muito — disse Cara, a voz baixa e embargada. — Aconteceu tão
depressa…
Vaelin a encostou numa rocha e levantou-se, afastou-se e seguiu o som do
choro pesaroso de Mishara.
Ela estava caída para o lado junto aos restos encharcados de chuva da
fogueira que Vaelin acendera para ela na noite anterior, ainda enrolada em peles.
Não havia sangue, nenhum sinal de ferimentos.
Um que podia matar com um único toque…
Ele se sentou ao lado dela e puxou o corpo pequeno e flácido para os seus
braços, afastando o cabelo sedoso da testa gelada.
— Eu quero ir para casa — disse ele. — Quero ir para casa com você.
CAPÍTULO QUATRO
Reva
Ela aterrissou com força, rolando com o impacto para absorver o choque, mas a
queda ainda assim deixou uma queimação dolorida em suas pernas quando se
levantou e correu na direção do domador mais próximo. Ficou grata pela sede de
sangue da multidão, pois a animação estrondosa com o seu surgimento fez com
que o domador não tivesse aviso algum até ela estar quase em cima dele. Ele se
virou pouco antes de Reva lhe acertar o rosto com os grilhões, quebrando dentes
e cortando os lábios com o impacto, o grito do homem um gorgolejo estridente
ao cair de joelhos, as correntes escapando de suas mãos.
Os três dentes-de-adaga que o homem estava guiando na direção das presas
giraram de imediato ao serem soltos de repente, sibilando para Reva e
agachando-se para saltar. Ela mergulhou na direção do domador, arrancou o
chicote da tira amarrada em seu pulso e o estalou contra o gato mais próximo,
forçando-o a recuar. Reva ergueu os olhos e viu que o Escudo e Allern se
encontravam ilesos no centro da arena, os outros dois domadores olhando em
choque para ela. O Escudo reagiu primeiro, saiu correndo e golpeou a fera mais
próxima; espada curta atravessou o pescoço do animal e os seus companheiros
uivaram e tentaram acertá-lo com as garras. Ell-Nestra dançou para trás com
pés ágeis, mas não sem sofrer três cortes paralelos no peito.
Os gatos do domador caído lançaram-se sobre Reva, desviando a sua
atenção. Ela golpeou de novo com o chicote e então correu, saltando por cima de
uma garra que tentava cortá-la. Virou-se ao ser perseguida, o chicote cortando o
ar com um estalo terrível. Os dentes-de-adaga recuaram mais uma vez e então
pararam ao mesmo tempo, como que em resposta a alguma compreensão
silenciosa, viraram-se e olharam para o domador ferido, que agora tentava
chegar aos tropeços até uma porta na parede da arena, as mãos sobre o rosto
enquanto deixava um rastro de sangue pela areia. Os gatos sibilaram de forma
idêntica e correram atrás dele, um saltando em suas costas e o derrubando na
areia, enquanto os outros atacavam as suas pernas, as longas presas perfurando
carne e osso com uma facilidade pavorosa. Os gritos do homem foram breves e
os gatos logo estavam se alimentando com satisfação, ignorando Reva por
completo.
Ela se virou e viu Allern usando estocadas curtas de sua lança para tentar
manter afastados os três gatos que tinha diante de si. No entanto, o domador deles
ficou bastante distraído com a investida de Reva, empalideceu, largou as
correntes e saiu correndo. O volariano chegou a três metros da porta antes que
uma saraivada de flechas dos arqueiros Varitai nos níveis superiores caísse sobre
ele e o prendesse à areia.
Livres, os gatos do homem começaram a andar em círculos em volta de
Allern, movendo-se numa dança rodopiante de garras cortantes e investidas com
os dentes arreganhados, procurando uma brecha enquanto ele girava, sua lança
movendo-se num borrão. Reva correu até o gato mais próximo e o golpeou com
o chicote, que se enrolou na pata do animal, e o puxou para trás se debatendo e
uivando. Allern viu a sua oportunidade e golpeou a fera no ombro, embora a
força da estocada tivesse feito a lâmina da lança trespassar o animal, prendendo-
se entre ossos e tendões. Allern praguejou e tentou arrancar a arma, os outros
dois gatos se aproximando para liquidá-lo.
O chicote de Reva tornou a estalar, forçando-os a recuar.
— Deixe-a! — gritou ela para Allern, empurrando-o para longe do cadáver.
— Pegue isto.
Ela lhe entregou o chicote e então colocou o pé no cabo da lança, pisando
com força e a quebrando em dois. Reva rolou o gato para o outro lado e agarrou
a lâmina da lança, arrancando-a da carcaça com um jorro de sangue.
— Mantenha-os afastados! — ordenou a Allern, virando-se e vendo o Escudo
agora caído de costas com as pernas erguidas para afastar o gato que rosnava em
cima dele, batendo as mandíbulas, as presas terríveis a um centímetro de seu
rosto. O domador sobrevivente soltou o seu gato e recuou, olhando ao redor de
modo frenético, ciente de que fugir significaria a morte, mas evidentemente não
querendo tomar parte naquele combate que de súbito tornara-se equilibrado. O
gato solto rodeou a dupla engalfinhada com rapidez, deslizando até parar perto da
cabeça de Ell-Nestra, preparando-se para atacar, arreganhando as mandíbulas
ao saltar… A lâmina partida de Reva atingiu o gato no flanco em pleno ar e o
corpo flácido colidiu com o dentes-de-adaga em cima do Escudo, forçando-o a
recuar, deixando espaço suficiente para que Ell-Nestra cravasse a espada em seu
pescoço.
Ele rolou para longe quando o cadáver tombou, arrancou a lâmina do corpo e
então se agachou quando o chicote do domador deixou uma longa marca
vermelha no seu braço. Virou-se e encarou com uma sobrancelha erguida o
domador visivelmente apavorado.
— Tem certeza?
O domador olhou para ele com uma indecisão aterrorizada; lutar ou fugir
significava o mesmo destino. Reva lhe poupou de mais considerações ao saltar e
enfiar os dois pés no rosto do volariano, derrubando-o desmaiado na areia. Ela se
agachou e recolheu o seu chicote e uma pequena adaga que saía de sua bota.
— Permita-me dizer, minha senhora — disse o Escudo, cumprimentando-a
com uma mesura —, que está encantadora hoje. O vermelho realmente lhe cai
muito bem.
Reva grunhiu e correu até Allern.
— Você teria mais chance com uma dessas feras.
Allern havia empurrado os dois gatos sobreviventes para a extremidade da
arena, seu peito arfando ao manusear o chicote, contendo cada corrida e
investida que tentavam fazer. Reva usou o próprio chicote para apanhar a pata
dianteira de uma das feras, arrastando-a para o chão para que o Escudo pudesse
dar cabo dela com a espada. Ela mesma matou o último gato, provocando-o até
que pulasse sobre ela, quando então se esquivou para o lado e saltou para as
costas do animal, a adaga entrando abaixo das omoplatas repetidas vezes até que
ele parou de se debater e soltou um último suspiro pelo focinho.
Quando Reva se ergueu do cadáver, a exultação da multidão tomou conta da
arena, os níveis acima eram um mar de rostos jubilantes que gritavam de
admiração e, ela percebeu, enojada, de puro desejo. Homens a olhavam com
malícia, mulheres mostravam os seios e uma chuva de flores caiu sobre a areia.
Uma caiu próxima aos seus pés, uma orquídea, as pétalas de um tom claro de
rosa que se tornava vermelho escuro nas pontas.
— Pegue-a! — sibilou o Escudo para ela, e Reva notou que ele tinha um
punhado de flores nas mãos. — Você também, rapaz! — gritou ele a Allern. —
Peguem as flores, depressa!
Reva ajoelhou-se e pegou a orquídea, notando como a adulação fervorosa da
multidão ficou ainda mais intensa.
— Um sinal das graças deles! — gritou o Escudo para ela acima do tumulto,
antes de lançar um olhar cauteloso para o balcão da Imperatriz. — Difícil de ser
ignorado por aqueles que orquestram esses espetáculos.
Reva olhou para o balcão e viu a forma esguia da Imperatriz ainda sentada no
seu banco, o rosto oculto pelas sombras. Ela parecia completamente imóvel e
Reva se perguntou se havia entrado em outro daqueles estados inexpressivos.
Também duvidava que a Imperatriz tivesse algum respeito pelas tradições que
costumavam ser celebradas ali. Ela os odeia, lembrou-se, olhando para a
multidão. Quem disse que ela se importa com as graças deles?
Ela viu a Imperatriz erguer a mão e fazer um gesto casual para Varulek, e o
homem de preto avançou para ordenar que as trombetas soassem mais uma vez.
Desta vez a obediência da multidão não foi tão instantânea, a exultação e o
desejo demoraram mais para desaparecer, deixando um murmúrio fervilhante
que continuou mesmo após a Imperatriz levantar-se e ir até a beira do balcão.
Reva se abateu ao ver a expressão no rosto dela. Não havia fúria ou frustração,
apenas uma afeição calorosa e sincera. Os lábios da Imperatriz se moveram
num apreço silencioso, as palavras facilmente compreensíveis:
— Você realmente é a minha irmã.
Ela encontrou Lieza andando de um lado para outro quando a levaram de volta à
câmara, e a garota teve um sobressalto de surpresa e alívio quando Reva entrou e
a porta foi batida. Lieza foi até ela com uma risada trêmula, parando de repente
ao ver o sangue que cobria Reva da cabeça aos pés, embora parecesse mais
chocada pelo que ela tinha nas mãos.
— Onde você pegou isso? — perguntou ela.
Reva olhou para a orquídea. Não largara a flor quando a Imperatriz decretou
que os espetáculos do dia estavam concluídos e uma dúzia de Kuritai entrou na
arena. Allern e o Escudo foram acorrentados e conduzidos para outra porta, mas
não antes de o jovem guarda colocar um joelho no chão diante dela, erguendo o
olhar com uma devoção quase desvairada.
— O Pai me abençoou, minha senhora! — gritou ele quando o arrastaram
dali. — Ao permitir que eu lutasse com a senhora hoje!
O Escudo estava visivelmente menos animado.
— Não conquistamos vitória alguma aqui — disse ele por sobre o ombro. —
Imagino que você saiba disso.
— Estamos vivos — retorquiu Reva. — E de nada, meu senhor.
Reva ficou imaginando por que Varulek não havia lhe tirado a flor. O Mestre
da Arena ficara em silêncio no trajeto de volta à cela, sua expressão mais tensa
do que antes e os olhos indo sem cessar para a flor que ela segurava.
— Eu estraguei a história? — perguntou Reva a ele ao chegarem à porta da
câmara. — Suponho que a lenda tenha um final diferente.
— Morivek e Korsev ficaram na entrada dos fossos de fogo e repeliram os
arautos durante um dia e uma noite. — O homem de preto permaneceu afastado
enquanto os Kuritai removiam os grilhões dela com a cautela de costume. —
Morivek, o mais velho, caiu mortalmente ferido e implorou ao irmão que fugisse.
Mas Korsev ficou, tomado de tamanha fúria que matou cada arauto que saiu do
fosso e, ao ver o irmão agora morto, jogou-se nas profundezas da terra, em
busca de ainda mais vingança, e nunca mais foi visto. Se bem que, como com
qualquer lenda — acrescentou ele quando a porta foi aberta —, a história muda
dependendo do autor.
— Na arena — disse ela a Lieza, estendendo a orquídea. — Fique com ela, se
quiser.
A garota encolheu-se e sacudiu a cabeça.
— Não para mim. — Olhou de novo para o corpo ensanguentado de Reva e
foi para o fundo da câmara. — Preparei um banho para você.
Reva sentou-se nos degraus de mármore quando a água jorrou de uma
ornamentada torneira de bronze na parede, massageando os pulsos quando o
vapor se levantou.
— Eu lavo isso para você — disse Lieza, apontando para as roupas
ensanguentadas de Reva.
— Você não é minha escrava — disse ela.
— Também não livre. — Lieza encolheu os ombros. — Mais nada para fazer.
Reva levantou-se e encarou Lieza, esperando. A garota pareceu confusa por
um momento, mas então riu e se virou. Reva chutou os sapatos para longe e
então tirou a blusa e a calça, deixando-as empilhadas no chão, e entrou na água,
suspirando com o calor aliviado.
— Quem você enfrentar? — perguntou Lieza, sorrindo um pouco ao se
abaixar para recolher as roupas, ainda desviando o olhar.
— Gatos com dentes grandes.
— Você matar todos eles?
— Menos três. — Reva lembrou-se da visão dos três gatos sobreviventes,
ocupados se fartando com o corpo de seu domador morto, presas e rostos
vermelhos pela alimentação frenética. Por mais horroroso que fosse o
espetáculo, ela não conseguiu deixar de sentir uma pontada de pena. Apesar de
toda a fúria, aquelas eram criaturas miseráveis, que passavam fome de forma
contínua, eram tratadas com brutalidade e lhes tinha negado o papel que o Pai
havia determinado para elas. É isso que eles fazem, concluiu. Deturpam o mundo
de acordo com caprichos cruéis.
Ela passou algum tempo desfazendo a trança e mergulhou na água,
esfregando as madeixas para tirar o sangue seco. A banheira era funda,
permitindo que ela submergisse por completo, abaixando até que os pés tocaram
o fundo ladrilhado. A sensação dos cabelos nos dedos despertou lembranças de
Veliss, de como ela adorava escovar o seu cabelo e moldá-lo num dos milhares
de penteados que conhecia. Veliss, Ellese… Tão longe e muito provavelmente
perdidas para sempre.
Uma agitação na água fez com que voltasse à superfície, onde se assustou ao
ver Lieza entrar nua na banheira.
— O que você está fazendo? — perguntou ela, desviando o olhar.
— Roupas precisam lavar. — A garota pegou a pilha de roupas de Reva e as
jogou na água com um leve sorriso nos lábios.
— Faça isso depois.
— Não sua escrava. — O sorriso de Lieza aumentou ao pegar uma barra de
sabão e começar a esfregar as roupas. Reva lhe virou as costas e foi para a beira
da banheira, querendo sair, mas sabendo que o olhar da garota a acompanharia
se o fizesse.
— Seu povo não tem respeito uns pelos outros — murmurou ela. — Também
nenhum respeito pela vida ou pela privacidade, ao que parece.
— Privacidade? — perguntou Lieza.
— Ficar… — Reva se esforçou para traduzir o conceito, achando mais difícil
do que esperava. — Ficar sozinha, guardar segredos. Proteger o pudor.
— Pudor?
— Deixe para lá. — Ela ouviu Lieza abafar um risinho quando voltou a
esfregar as roupas. — Vejo que não está com tanto medo agora.
— Não, ainda com medo. Vem como uma… — Reva a ouviu bater na água.
— Uma onda?
— Sim. Onda. Onda grande quando eu tentar matar a Imperatriz. Onda
menor agora.
Reva se pegou virando com uma surpresa involuntária, e então tornou a
desviar o olhar quando viu os seios de Lieza logo acima da água.
— Você tentou matá-la?
— Com veneno. Não funcionou. Me manteve com ela. — O tom de Lieza
ficou mais sombrio. — Me achou… engraçada.
— Por que você fez isso?
— Meu mestre… não só meu mestre. Pai também. Minha mãe uma escrava.
Ela morrer quando eu pequena. Ele me criou, me amou. Não podia me libertar,
a lei. Não gostava da Imperatriz e dizia isso. Ela deu para ele as três mortes,
pegou todos os escravos para si.
— Lamento o seu fracasso. Mas, em nome da Rainha e de meu povo,
agradeço-lhe pelo esforço.
— Rainha também é palavra para Imperatriz, não?
— Imagino que sim, embora elas sejam muito diferentes.
— Sua Rainha não cruel?
Reva lembrou-se da visão da Rainha cravando a adaga no peito do volariano
no navio, a mudança instantânea e total do seu comportamento quando o corpo
dele foi jogado por sobre a amurada.
— Ela é determinada na sua dedicação à nossa causa, que é justa.
— Acha que ela ganhar esta guerra? — Havia um tom distintamente duvidoso
na voz de Lieza.
— Com ajuda. — Reva sentiu as pálpebras ficarem pesadas, o calor da água
e os seus esforços recentes se combinando para sobrepujá-la. Ela se virou para a
beira da banheira e apoiou a cabeça nos braços. — Há um homem, um amigo
meu. — Ela se pegou sorrindo. — Meu irmão mais velho, para todos os efeitos.
Se eu puder sobreviver aqui tempo suficiente para que ele receba notícias, ele
virá atrás de mim. — Fechou os olhos, sua voz tornando-se um sussurro. —
Apesar de eu não querer que ele se arrisque mais por minha causa…
Reva deixou que tudo desaparecesse, a arena, o sorriso terno da Imperatriz,
entregando-se ao calor receptivo da água, deixando que entrasse em seu corpo,
acalmando, acariciando…
Ela voltou a si com um sobressalto e as mãos de Lieza desapareceram de
seus ombros ao recuar alarmada.
— Você… tensa — disse ela. — Sei como fazer desaparecer. — Ela ergueu
as mãos, flexionando os dedos, e então os estendeu lentamente para passar as
unhas pelo cabelo de Reva.
— Não. — Reva segurou a mão da garota, odiando a sensação elétrica
provocada pelo toque de sua pele, e a afastou com gentileza. — Por favor.
— Eu não sua escrava — disse Lieza. — Eu querer…
— Não posso. — Reva lutou contra uma onda de autocensura pelo
arrependimento em sua voz. — Há alguém, alguém que está esperando por mim.
Ela tomou impulso até os degraus e saiu da banheira, foi até a cama e cobriu-
se com um lençol. Encostou-se num pilar, sem olhar para Lieza, que, ela sabia,
estaria encarando, e escorregou para o piso de mármore com um sussurro:
— A fidelidade é tudo o que me resta para dar a ela.
***
Ela despertou na escuridão, com Lieza dormindo ao seu lado, ainda nua e
descoberta. A garota lavara as próprias roupas após terminar com as de Reva e
as deixara secando. “Nenhum outro lugar para dormir”, dissera ela, de pé ao
lado da cama após diminuir a chama das lamparinas.
Reva virou-se para o outro lado, dando-lhe as costas.
“Então durma.”
Lieza gemeu quando Reva se ergueu, passando os olhos pela porta quase
invisível e percebendo que havia sido acordada pelo som da fechadura virando.
Ela se levantou da cama, jogo um lençol sobre o corpo de Lieza, que a distraía, e
recolheu as suas roupas ainda úmidas. Conseguira vesti-las quando a porta se
abriu e revelou Varulek, parado com uma lamparina a óleo na mão. Reva piscou
de surpresa ao notar que ele estava sozinho e o túnel às suas costas sem qualquer
Kuritai.
Cuidado, advertiu a si mesma contra o impulso instintivo de correr até o
homem de preto. Ele não viria aqui indefeso.
De modo que ela permaneceu em silêncio quando o volariano entrou e olhou
ao redor da câmara, parando rapidamente ao avistar a nudez parcial de Lieza. O
rosto de Varulek estava tenso com um medo controlado porém palpável, o rosto
de um homem se forçando a um dever inevitável, uma expressão que ela
conhecia bem.
— Tenho algo a lhe mostrar — disse ele, a voz mantida a um sussurro.
Reva nada disse, mas lançou um olhar penetrante para o túnel vazio além da
porta.
— Se não se interessar pelo que ofereço — disse ele, acompanhando o olhar
dela —, seria um grande favor me matar.
Um golpe na têmpora para derrubá-lo, outro para esmagar a sua laringe e
evitar que grite. Cubra o nariz e a boca dele enquanto o sufoca até a morte.
Acorde a garota e encontre um caminho para fora deste lugar de horrores. Tudo
tão fácil. Porém, havia algo no olhar do volariano que a fez parar para pensar,
outra expressão que ela também conhecia bem, pois a vira muitas vezes em
Alltor. Esperança. Ele vê esperança em mim.
— O Pai não vê a traição com bons olhos — disse ela, pegando os seus
sapatos. — Assim como eu.
A luz da lamparina era fraca, forçando Reva a manter-se perto dele enquanto o
volariano a conduzia ao longo do túnel até uma porta pequena, onde enfiou uma
pesada chave de ferro na tranca e a abriu. A escadaria do outro lado era estreita,
os degraus e as paredes entalhados de forma tosca e sem a precisão evidente em
cada linha da arena.
— Esse Pai de quem você fala — disse ele enquanto desciam a escada — é o
seu deus?
— O único deus, que nos criou para que possamos conhecer o Seu amor. —
Ela abafou uma tosse causada pelo ar bolorento, que ficava mais pesado a cada
passo. O ar cheirava basicamente a poeira, mas tinha a sensação nauseante e
sufocante típica de lugares raramente visitados.
— Ah — disse Varulek em reconhecimento. — A heresia alltoriana,
expurgada na Purificação. Então os seguidores dos Seis Livros encontraram um
novo lar no seu Reino.
— Dez Livros — corrigiu Reva. Embora eu tenha lhes prometido um décimo
primeiro. — Está dizendo que o meu povo veio desta terra?
— A Purificação forçou milhares a fugirem para o outro lado do oceano.
Questionadores, Ascendentes, Acólitos do Sol e da Lua. Embora o seu povo
estivesse entre os mais numerosos, junto com os Servos dos Mortos.
Servos dos Mortos.
— A Fé. A Fé também se originou aqui?
— Ela floresceu pouco antes da Purificação. Alguns dizem que foi o estopim
dela. Milhares abandonaram os deuses em questão de apenas vinte anos,
preferindo rastejar para os mortos, implorando por um lugar no seu paraíso
imaginário após a morte. Tal devoção era anátema ao Conselho Governante, que
estava determinado a fomentar a lealdade absoluta ao império. Os Servos dos
Mortos foram os primeiros a sentir a sua ira, embora tenham resistido bem,
liderados por um homem chamado Varin. Porém, com o tempo, foram forçados
ao exílio, zarpando para uma terra úmida do outro lado do mar, onde mais os
seguiram no seu devido tempo, à medida que o Conselho buscava apagar
qualquer vestígio do que chamava de crença irracional.
— Vocês mataram os seus deuses — disse Reva, lembrando-se das palavras
da Imperatriz.
— Não. — Eles chegaram ao fundo da escada e Varulek agachou-se para
destrancar outra porta, fazendo dobradiças rangerem ao abri-la. — Nós os
escondemos.
O espaço do outro lado da porta emitiu um longo eco quando ele entrou,
apesar de a escuridão absoluta prevenir qualquer estimativa de seu tamanho. O
volariano parou ao lado da porta e ergueu a lamparina até uma tocha fixada na
parede, afastando-se quando as chamas aumentaram. Reva o seguiu para dentro
da câmara, que ia sendo revelada de forma gradual à medida que ele ia de tocha
em tocha. O olhar dela recaiu de imediato sobre as estátuas, três figuras, dois
homens e uma mulher. Eram de tamanho real e em poses como se tivessem sido
congelados num momento de discussão. A mulher inclinava-se para a frente, as
mãos erguidas e aparentemente dirigindo-se aos dois homens ao mesmo tempo.
O mais alto dos homens cofiava uma barba com o cenho bastante franzido, como
se ponderasse algo sombrio. O outro homem era barbeado, tinha belas feições
esguias e aparentava estar dando de ombros, encarando a mulher com um
sorriso enviesado, com uma expressão de discordância afável.
As três figuras estavam em volta de alguma espécie de pedestal de topo plano
e com uma mossa circular no centro. Parecia não ter se deteriorado com o
tempo; sua superfície estava intacta, sem quaisquer marcas ou lascas. O pedestal
também contrastava com as três estátuas, tendo sido entalhado de alguma pedra
negra, enquanto elas pareciam ter sido esculpidas de um tipo de granito cinzento.
— Os deuses? — perguntou Reva a Varulek.
— Os deuses são divinos demais para serem retratados por mãos mortais, em
palavras ou em pedra.
Reva franziu o cenho com a voz dele, ouvindo um leve eco das arengas do
sacerdote no tom brusco.
— Estes são os Tiranos — prosseguiu o volariano, gesticulando para as três
figuras. — Progenitores dos Dermos. Outrora governaram o mundo inteiro com
magias abomináveis, destruindo todos que ousassem se opor a eles, um
triunvirato de tirania. Acabaram sendo depostos pelos deuses, que os baniram
para os fossos de fogo sob a terra onde criaram os Dermos. Não, esses não são os
deuses. — Ele se afastou e foi até uma parede, iluminando a pedra com a luz da
lamparina. — É aqui que você os encontrará.
Reva foi até a parede e viu que a pedra era bruta, transformada por mãos
inexperientes numa superfície vagamente plana e marcada por mossas de ponta
a ponta. Ao olhar mais de perto, ela percebeu que as mossas eram alguma
espécie de símbolos agrupados, a princípio alinhados, mas ficando cada vez mais
irregulares à medida que avançavam ao longo da parede.
— Escrituras? — perguntou a Varulek.
— Somente alguns são escolhidos em cada geração — disse o volariano. —
Aqueles com a força e a vontade para receber a essência dos deuses, suas mãos
guiadas para transmitir a sua sabedoria e as suas orientações, gravadas na pedra
enquanto restarem vida e forças. Porém, uma bênção de tamanho poder
inevitavelmente possui um preço.
Ele seguiu ao longo da parede, a luz revelando ainda mais escrituras, cada
grupo e símbolo ficando menos uniforme até se tornarem apenas rabiscos vagos
na pedra. A obra de um louco rabiscando no escuro, concluiu Reva, achando
melhor não dizer aquilo em voz alta por enquanto. Ao passar por ela, Reva notou
de novo as tatuagens que cobriam as mãos de Varulek, vendo nelas uma
semelhança inconfundível com as inscrições na parede.
— O que dizem? — perguntou ela. — Você pode lê-las, não?
Ele assentiu, mantendo os olhos fixos na parede.
— Embora eu duvide que exista outra alma no mundo que possa. — Varulek
foi até a extremidade oposta da parede, onde havia as inscrições mais coerentes.
— “Os Tiranos retornaram” — leu ele, passando um dedo sobre o primeiro
grupo. — “Ocultos atrás do rosto de um herói, Dermos invisíveis, soltos sobre a
terra. Até mesmo este refúgio desaparecerá do conhecimento dos deuses”.
Este refúgio.
— A arena permaneceu um templo, mesmo após terem banido os deuses —
disse ela. Reva olhou de novo para as mãos do volariano. — Você é um
sacerdote.
Ele inclinou a cabeça, confirmando a suspeita dela.
— Talvez o último. A incumbência secreta da minha família por gerações,
assim como esta arena. Os meus ancestrais eram encarregados deste templo
muito antes de o Conselho surgir com as suas noções pestilentas de racionalidade.
Fomos sensatos o suficiente para encenar o abandono de nossa devoção,
estávamos entre os primeiros a jurar lealdade ao Conselho e ao império, os
primeiros a acusar outros. Criando uma confiança perene. A destruição dos
deuses foi tão completa que fomos capazes de reivindicar o símbolo de nossa
verdadeira lealdade. — Ele ergueu a mão e afastou os dedos para exibir as
tatuagens. — O Conselho achou que era apenas uma tradição dos encarregados
da arena. Ela sabia que o motivo era outro, é claro.
— A Imperatriz sabe o que você é?
— Ela sabia muito antes de sua ascensão. Ela veio aqui anos atrás, quando
usava um corpo diferente. “Você tem um segredo”, ela me disse, ordenando que
eu a trouxesse aqui ou fosse denunciado. Como eu sabia que bastaria uma
palavra dela para assegurar a minha execução, obedeci. E ela riu. — A boca do
volariano se crispou de raiva e vergonha. — Ela zombou deste lugar divino. —
Ele se acalmou com um esforço e apontou para o pedestal entre as três estátuas.
— Mas parou quando viu aquilo.
Reva inclinou a cabeça para examinar mais uma vez o pedestal, não vendo
nada de excepcional além da precisão com que fora esculpido. Não havia
qualquer marca nele, qualquer coisa que pudesse indicar o seu propósito. Ela se
aproximou e ficou entre a mulher e o homem barbado. Talvez uma pia batismal?
Reva inclinou-se para mais perto e estendeu a mão para a mossa no centro.
— Não toque nela! — A voz do volariano era pouco mais do que um sussurro,
mas carregada de uma advertência tão enfática que a mão de Reva ficou
paralisada de imediato.
— O que é?
— Eu não sei. Tampouco os que vieram antes de mim sabiam. Mas é a
ordem mais implacável instilada em cada membro de minha família desde que
assumimos o nosso dever divino: não toque na pedra.
— Ela tocou? Quando veio aqui?
Ele sacudiu a cabeça.
— Eu esperava que tocasse, mas não. Ela sabe demais. Porém, não estava
sozinha quando veio aqui. Havia um jovem, vestido de vermelho, pouco mais
velho do que você. E claramente enamorado dela. “Se você me ama”, disse ela
ao jovem, “toque na pedra”. E ele tocou.
Varulek chegou mais perto e iluminou a superfície do pedestal; a superfície
negra reluziu. Séculos aqui embaixo e nem sinal de poeira, notou Reva.
— O que aconteceu com ele?
— Ela não queria que eu visse e me mandou ficar na porta. Mas vi o garoto
estremecer e gritar, como se estivesse sentindo dor e prazer ao mesmo tempo.
Ela se inclinou para perto dele e sussurrou alguma pergunta que não consegui
ouvir. A resposta do garoto foi baixa, mas cheia de espanto, e ele ergueu as mãos,
mãos que brilhavam com alguma luz estranha, tremeluzindo como relâmpago.
Ela lhe disse para tocar de novo na pedra, para “ver que outros presentes daria”.
E ele a tocou de novo. Dessa vez ele não gritou e ficou imóvel no instante em que
tocou a pedra, tão imóvel quanto estas estátuas, e não respondeu a nenhuma
pergunta sussurrada. Eu a vi sorrir, um sorriso de grande satisfação… e então ela
o matou, aproximando-se e lhe quebrando o pescoço. “Jogue isso às suas feras”,
ela me disse, apontando para o cadáver. “Voltarei um dia, daqui a alguns anos,
imagino. Ou muito antes, se eu souber que você deu com a língua nos dentes”.
— Ninguém mais viu a pedra? — perguntou Reva. — Nenhuma das…
criaturas dela?
Varulek sacudiu a cabeça.
— Somente ela.
Mantendo os próprios segredos. Reva lembrou-se da oferta sussurrada da
Imperatriz: Quando o meu amado vier até mim, derrotaremos o Aliado e o mundo
será nosso… O que ela está tramando? Reva suspirou, frustrada, desejando poder
pedir o conselho de Veliss; ela chegaria a uma conclusão num instante. Assim
como a Rainha.
— Não posso lhe dar nenhum conselho sobre isso — disse ela a Varulek. —
Mas se puder de algum modo entregar uma mensagem à Rainha…
— Uma impossibilidade. Estou preso a este lugar por mais do que dever. Dar
um único passo para além dos limites da arena significaria as três mortes.
— Então por que me mostrou isso?
— Não era isso que eu queria lhe mostrar. — Ele voltou à parede, erguendo a
tocha perto de um grupo de símbolos quase apagados que mais adiante
desapareciam quase por completo. — Aqui — disse o volariano, fazendo sinal
para que Reva se aproximasse, passando um dedo sobre as marcas. — “Livella
será encarnada quando a Rainha do Fogo surgir.”
— Livella? — Ela se lembrou de Lieza dizendo o nome aquela manhã, com
uma voz aterrorizada. Reva se viu recuando diante da intensidade súbita do olhar
de Varulek.
— Uma grande guerreira lendária — murmurou ele. — Favorecida pelos
deuses com habilidades e forças maiores do que as de qualquer mulher. Ela
desceu para os fossos e enfrentou os próprios Dermos, matando três. Um com
uma espada, um com uma lança, e um… — O volariano lhe entregou a tocha e
se afastou, indo até um canto da caverna envolto em sombras e retornando com
algo enrolado num manto esfarrapado. Reva notou como as mãos dele tremiam
de excitação quando removeu o pano, revelando uma vara de pouco menos de
um metro e meio de comprimento, a madeira clara e lustrosa pelo uso, decorada
de ambos os lados, um exibindo espadas cruzadas, o outro machados cruzados. —
E um — prosseguiu Varulek, quase sem fôlego agora com uma mistura de
veneração e medo, os olhos brilhantes à luz da tocha —, um ela matou com um
arco feito de olmo.
CAPÍTULO CINCO
Frentis
— Mais nove mil, então? — A Irmã Merial falava com um forte sotaque
renfaelino, quase sem usar títulos honoríficos e repleto de entonações dúbias. —
Desses terríveis homens vermelhos.
— Eles são bastante reais — grunhiu Draker. — Vários de nós temos
cicatrizes e queimaduras para provar. Tenho uma na bunda, se você quiser ver.
— Acho que já vi horrores suficientes nos últimos tempos. — Merial deu um
sorriso largo mas vazio para Draker e aceitou uma tigela de cozido de cabra
oferecida por Trinta e Quatro.
Eles haviam ocupado a mansão do infeliz governador, apesar de boa parte da
construção ter ficado inabitável graças às atenções da turba. Frentis acampou no
pátio principal, e o resto do exército que o havia seguido desde Viratesk instalou-
se nos vastos jardins. Ficara surpreso e satisfeito com a disciplina deles,
permanecendo em suas companhias e tomando uma parte relativamente
pequena dos espólios com os quais a população recém-libertada continuava
ocupada. Talvez uma dúzia de combatentes houvesse desaparecido após a queda
da cidade e mais alguns haviam lhe pedido permissão para partir, para retornar a
lares distantes ou admitindo com franqueza que já haviam visto o suficiente da
guerra. Ele disse a mesma coisa a todos: “Vocês libertaram a si mesmos no
momento em que se juntaram a mim. A Rainha Ly rna lhes agradece pelo seu
serviço.”
— Então a Rainha está marchando para Volar? — perguntou Illian a Merial.
— Apesar de perder tantos no mar?
— A Rainha não é uma mulher facilmente dissuadida. — Merial comeu um
pouco do cozido e deu um sorriso de apreciação a Trinta e Quatro. — Melhor do
que aquela lavagem que os piratas servem quando não estão sendo atrevidos
demais com as mãos.
— Quando zarpamos? — perguntou Illian a Frentis, com uma avidez intensa
brilhando em seus olhos.
Algum dia ela vai se cansar disso?, perguntou a si mesmo.
— Quando o Lorde Almirante quiser. Ele é o oficial mais graduado aqui.
— Foda-se a patente dele — resmungou Lekran com um pedaço de cozido na
boca, falando na sua língua do Reino arrastada. — Não conheço ele.
Frentis virou-se de novo para Merial.
— Você disse que a Rainha acredita que a Senhora Reva está morta?
Ela assentiu.
— Afundou com metade dos seus seguidores hereges.
— Não, ela está viva. Em Volar. — Ele estremeceu ao se lembrar do sonho
da noite anterior, do júbilo intenso enquanto ela via a Senhora Reva enfrentar os
dentes-de-adaga. — Embora eu não possa dizer por mais quanto tempo.
Merial franziu o cenho para ele, uma ruga de desconfiança aparecendo em
sua testa.
— Tem conhecimento disso, irmão?
— Tenho. Sem dúvida alguma.
A irmã franziu ainda mais o cenho e inclinou a cabeça, passando os olhos pelo
rosto dele.
— Não sinto dom algum em você…
— Eu sei que ela está viva — disse ele, com uma leve aspereza na voz. — E a
Rainha também deveria saber.
Merial assentiu com cautela e voltou à comida.
— Permita que uma garota encha a barriga primeiro, e então vou ter uma
palavrinha com o meu querido marido.
— Que marido? — perguntou Draker, franzindo a testa, intrigado, mas Merial
apenas sorriu e continuou comendo.
Mais tarde, ela se sentou longe deles e assumiu uma imobilidade concentrada,
de olhos fechados e sem qualquer expressão no rosto.
— Não gosto disso, irmão — murmurou Draker, indo para o lado de Frentis e
olhando a irmã com óbvia desconfiança. — As Trevas não deviam ser vistas.
— O mundo mudou desde a queda de Varinshold — disse Frentis. — Agora
nenhum de nós tem onde se esconder.
A Irmã Merial se moveu de repente, arqueou as costas e abriu os olhos, um
leve porém distinto grito sufocado de choque escapando de seus lábios. Ela se
curvou para a frente com um gemido e cobriu o rosto com as mãos, os ombros
esguios movendo-se com os soluços.
— Não gosto disso — murmurou Draker de novo, voltando para a fogueira.
Frentis foi até Merial, que agora se abraçava, o rosto tomado por uma
angústia profunda.
— Irmã?
Merial ergueu a cabeça para ele e então desviou olhar, passando a mão pelo
rosto úmido pelas lágrimas ao se levantar, saindo do pátio sem dizer uma palavra.
Frentis esperou por um momento antes de segui-la e a encontrou sentada num
pedestal no jardim. A estátua que antes ficava sobre ele havia sido derrubada e
arrastada dali durante as revoltas, sem dúvida para ser derretida, uma vez que o
bronze era um metal valioso. A Irmã Merial de repente pareceu muito jovem, as
pernas balançando sobre a lateral do pedestal ao erguer o rosto ainda úmido para
o céu. Ela olhou rapidamente para Frentis antes de voltar os olhos para as
estrelas.
— Elas são diferentes — disse Merial. — Não todas, só algumas.
— O braço da Donzela aponta para casa — disse Frentis.
Ela assentiu e baixou os olhos.
— O Aspecto Caenis está morto.
Ele se contraiu ao ser atingido pela pontada de dor, um golpe cortante de
tristeza instantânea. Abatido, ele foi até o pedestal e apoiou as mãos na beirada
bastante lascada.
— Seu marido lhe contou isso?
— O Irmão Lernial, que acho que você já conheceu.
— Eu não sabia que os membros da Sétima Ordem tinham permissão para se
casarem.
— Claro que temos. De onde você acha que vêm todos os irmãozinhos e
irmãzinhas? Sempre fomos mais uma família do que uma Ordem, mas sempre
procurando sangue novo.
Frentis deu uma risada cansada.
— Como isso aconteceu?
— Uma batalha. Os detalhes são vagos, o dom do meu marido é um pouco
errático, especialmente quando é afetado por uma tristeza tão grande. Pelo que
entendi, foi um confronto bastante terrível. Os seus homens vermelhos são
mesmo um bando horroroso. Parece que a Rainha no fim saiu vitoriosa, então
duvido que eles ainda sejam nove mil.
Caenis… Ele o vira apenas uma vez em Varinshold, um breve encontro nos
portões da Fortaleza Negra. “Muitas provações nos aguardam, irmão”, dissera
ele. “Só posso lhe desejar boa sorte.”
Caenis, que se esforçara para lhe ensinar a história da Ordem, mesmo que
sem muito sucesso no fim, embora Frentis tivesse apreciado as lições. Durante o
tempo penoso que passara nos fossos, gastara o tempo entre os combates
entregando-se às recordações, tentando lembrar-se das muitas histórias de
Caenis, sabendo que elas de alguma forma o mantinham ligado à Ordem, o
mantinham um irmão, e não um escravo.
— O Aspecto e eu já fomos irmãos — disse Frentis a Merial. — Aprendi
muito com ele.
— Eu também. Ele era o meu mestre, sabia? Nós nos encontrávamos em
segredo, sempre que a Ordem lhe dava uma folga. Ele me ensinou muito, a Fé,
os mistérios… — Ela ergueu mais uma vez o olhar. — As estrelas.
Frentis tocou as mãos dela por um segundo.
— Lamento por sua perda, irmã.
— Contei ao meu marido sobre a Senhora Reva e tudo mais — disse ela
quando Frentis virou-se para o outro lado.
— Descobriu algo sobre as intenções da Rainha?
— Apenas que não mudaram. — Merial virou-se para a cidade que se
estendia diante deles, as fogueiras tremeluzindo entre as muitas construções
arruinadas, as piras ainda ardendo para além das muralhas. — Seguir para Volar.
Os Varitai libertados estavam acampados nas ruínas de Velha Kethia, junto com
uma grande quantidade de pessoas de cinza que achavam a companhia dos ex-
soldados-escravos mais convidativa do que a dos cidadãos recém-libertados da
própria cidade. Algumas dezenas haviam sido perseguidas até as ruínas por uma
turba logo após a tomada da cidade. A sede de sangue dos perseguidores diminuiu
um pouco ao avistarem setecentos Varitai dispostos em ordem de batalha, com
Artesão à frente deles de braços cruzados e com uma severa desaprovação no
rosto. Ainda assim, a turba se demorou por algum tempo, sua fúria ainda não
saciada, e a situação poderia ter piorado ainda mais se não fosse pela chegada da
companhia montada de Mestre Rensial. Desde então, um fluxo constante de
volarianos esfarrapados rumava para as ruínas, e mais chegavam do sul a cada
dia, tendo achado a vida nas regiões selvagens uma provação grande demais.
— Os Varitai irão? — perguntou Frentis a Artesão, os dois sentados no que ele
supunha ter sido a Câmara do Conselho da antiga cidade. Era uma estrutura
retangular composta de seis fileiras ascendentes de bancos de mármore ao redor
de um grande espaço plano. O teto desaparecera, mas os pilares enormes que
outrora o sustentaram permaneciam no lugar, embora talvez tivessem metade do
antigo tamanho. O piso era coberto por um vasto mosaico, os ladrilhos desbotados
pelo sol e fragmentados em muitos lugares, mas ainda completos o suficiente
para transmitirem uma sensação de refinada habilidade artística, uma grandeza
destruída com a fúria da guerra.
— Eles têm um novo nome agora — disse Artesão. — Politai, que significa
desacorrentados em volariano. E, sim, eles irão, uma vez que há tantos de seus
irmãos para serem libertados em Volar. Mas pedirei a eles que deixem homens
suficientes aqui para protegerem essas pessoas.
— Karavek me assegurou que elas serão deixadas em paz, desde que não
entrem em Nova Kethia.
Artesão assentiu lentamente, passando os olhos pela ruína.
— Sabia que as pessoas desta cidade escolhiam o próprio rei? Cada homem
que tinha uma casa ou gado recebia uma pedra negra a cada quatro anos. Um
vaso era colocado diante de cada um dos candidatos, que ficavam ali — ele
apontou para a entrada da câmara —, e cada homem enfiava a mão em todos os
vasos, mantendo o punho fechado quando o retirava de dentro, de modo que
ninguém soubesse em que vaso ele havia colocado a pedra.
— E se colocassem duas pedras? — perguntou Frentis.
— Uma grande blasfêmia punida com a morte, pois esse era um ritual assim
como um costume, determinado pelos deuses. Que se perdeu quando os
volarianos chegaram, é claro, mas a Rainha Ly rna o achou interessante. De uma
perspectiva histórica.
— Você realmente possui as lembranças dela?
Artesão soltou uma risada baixa e sacudiu a cabeça.
— O conhecimento, o discernimento dela, por assim dizer. Nem sempre são a
mesma coisa que uma lembrança. — Ele se virou para Frentis e o seu humor
desapareceu rapidamente. — Você sonhou de novo.
— Foi mais do que um sonho. Nós conversamos. Ela quer que eu leve você
para a arena em Volar. Não imagino por qual motivo. Mas duvido que ela queira
lhe fazer algo de bom.
— E se você não me levar?
— Ela está com a Senhora Reva, obrigando-a a lutar na arena. Estou certo de
que ela enfrentará coisas piores se não formos.
— Você se importa com ela?
— Eu mal a conheço. Mas o meu irmão a vê como uma irmã, o que faz dela
minha irmã. Não quero dizer a ele que dei as costas a uma oportunidade de
salvá-la. Mas não posso obrigá-lo a fazer isso, tampouco desejo.
Artesão não disse nada durante algum tempo, uma expressão tão preocupada
tomando gradualmente conta de seu rosto que a sua juventude parecia ter
desaparecido.
— Quando era criança, eu não compreendia a natureza do meu dom — disse
ele. — Se eu via uma criatura ferida, um pássaro com uma asa quebrada ou um
cão mancando com uma pata torcida, parecia ser algo maravilhoso e simples
curá-los com um toque. Porém, durante muito tempo tudo o que eu curava
tornava-se uma sombra do que havia sido, uma casca de olhar vazio que se
arrastava pela vida e era com frequência evitada pela própria espécie. Eu não
sabia por que, até que compreendi que o meu dom não só dá como tira. Aqueles
que curo se abrem a mim pelo toque, tudo o que possuem é revelado e fica ao
meu alcance. Suas lembranças, sua compaixão, sua malícia… E seus dons.
Embora eu tente evitar, algo sempre volta, trazendo consigo a tentação de tomar
mais, de pegar tudo.
“Eu encontrei o seu irmão pela primeira vez anos atrás, quando a minha
mente estava… menos clara do que está hoje. Tive a oportunidade de curá-lo,
uma vez que Dança da Neve é tão difícil de ser contida. — Artesão olhou para as
próprias mãos e estendeu os dedos ágeis. — O dom dele era grande, irmão, e a
tentação foi mais forte do que nunca. Então eu tomei, apenas um pouco. Se eu
tivesse tomado tudo…” — Artesão sacudiu a cabeça, a vergonha e o medo
mesclando-se em seu rosto. — A canção é baixa — prosseguiu ele —, mas posso
ouvi-la se eu escutar com bastante atenção, e ela me guia, me diz onde preciso
estar. Ela me levou a segui-lo até Alltor, guiou-me até a Rainha quando ela
precisava ser curada e ao navio que nos trouxe até esta terra. E agora, irmão, ela
me diz para ir para Volar, e a melodia está longe de ser fraca.
Ele deu um tapinha no joelho de Frentis e levantou-se, passando os olhos pela
câmara uma última vez.
— Eles também matavam crianças aqui — disse Artesão. — Para selar a
escolha do povo com uma oferenda de sangue aos deuses. O sacrifício era tirado
na sorte, e os pais da criança o consideravam uma grande honra.
Ele se virou e começou a subir os degraus.
— É melhor eu falar com os Politai. Eles insistem cada vez mais em receber
explicações.
CAPÍTULO SEIS
Vaelin
Havia cavalos mais do que suficientes para todos, embora os Senthar preferissem
muito mais os seus pôneis robustos às montarias mais altas e plácidas da
cavalaria volariana.
— Pelo menos darão um bom alimento quando a neve cair — comentou
Alturk ao cortar os estribos da sela de seu cavalo, jogando-os de lado com uma
careta de desdém.
Vaelin passara boa parte da manhã lidando com os chefes tribais, que
pareciam achar que agora seriam obrigados a lutar com o Povo Lobo pela posse
de territórios perdidos.
— Nós não queremos as suas terras — disse-lhes um exasperado Astorek,
repetindo as palavras na língua do Reino para o benefício de Vaelin. — Meu povo
já está retornando para a tundra.
Hirkran disse algo, mantendo uma pose rígida com um ornamentado peitoral
volariano, um machado numa das mãos e uma espada curta saqueada na outra.
— Ele quer saber que tributo exigimos — explicou o xamã a Vaelin.
Vaelin se pegou cansando-se depressa daquela gente; suas rixas intermináveis
e desconfiança genuína agora pareciam incrivelmente triviais.
— Que fiquem longe do seu povo enquanto marcham para o norte e do meu
enquanto marchamos para o sul.
Hirkran estreitou os olhos e falou de novo.
— Ele diz que juntaram muito ouro e joias neste campo — disse Astorek. —
E não acredita que você simplesmente iria embora sem tentar tomá-los.
— Então — Vaelin levou a mão à espada quando o seu cansaço transformou-
se em raiva súbita — ele pode lutar comigo e eu provarei empilhando todo o ouro
sobre o seu cadáver antes de partir.
A tradução de Astorek claramente não foi necessária a julgar pelo modo
como Hirkran se empertigou, descruzou os braços e adotou uma postura
agachada com um rosnado desafiador.
— Basta! — Kiral se colocou entre eles, surpreendendo Vaelin ao se dirigir a
Hirkran numa torrente de volariano fluente porém severo. A agressividade de
Hirkran diminuiu diante do sermão, apesar de estreitar ainda mais os olhos, uma
expressão de grave compreensão tomando conta de seu rosto. Ele soltou um
rosnado curto quando Kiral se calou, olhando por um momento para Alturk antes
de recuar, ainda agachado, como se esperasse um ataque a qualquer segundo.
Disse uma frase determinada em voz baixa para Kiral e então se virou de
repente e afastou-se, gritando para os seus guerreiros.
— O que você disse a ele? — perguntou Vaelin.
— Que meu pai havia notado a fraqueza e a desunião deles. — Ela fez um
gesto indicando Alturk, que estava alheio a tudo aquilo. — Um grande chefe
guerreiro que voltará com toda a nossa tribo para reivindicar estas montanhas,
pois eles não são dignos das riquezas oferecidas pelos espíritos.
Astorek soltou uma gargalhada de apreciação.
— Se há algo que pode uni-los, é isso.
Kiral inclinou a cabeça com um sorriso, mas seu humor desapareceu ao
olhar para Vaelin.
— Minha canção indicou que você o teria matado.
— Sua canção estava certa. — Vaelin virou-se e começou a andar na direção
de Cicatriz. — Partimos dentro de uma hora. Astorek, transmita os meus
agradecimentos ao seu povo e assegure-os da amizade contínua do Reino
Unificado, por favor. Estou certo de que a Rainha enviará embaixadores para
formalizar a nossa aliança no devido tempo.
— Pelo que Urso Sábio me disse — gritou Astorek às suas costas —, se a sua
missão fracassar, a nossa vitória aqui provará ser apenas uma prorrogação de
perigos maiores.
Vaelin parou e virou-se, assentindo com impaciência para o xamã.
— Por isso estou ansioso para partir.
Astorek olhou primeiro para Kiral e então para a nuvem crescente de poeira
para além do penhasco, onde o seu povo levantava acampamento.
— Então irei com você. Eu… sinto que o lobo gostaria que eu fosse.
Vaelin sentiu uma leve pontada de humor ao ver Kiral ter o cuidado de evitar
o seu olhar. Ele está respondendo ao chamado de um lobo? Ou de uma gata?
— Você será bem-vindo — disse ele ao xamã, continuando a caminhar. —
Não demore para se despedir, por favor.
A região ficou mais populosa à medida que rumavam para o sul, mas não menos
agitada. Avistavam com frequência pessoas na estrada adiante, carregadas de
bens, seus ou produtos de saque. A maioria fugia assim que colocavam os olhos
num grupo tão grande de guerreiros montados, espalhando-se pelos campos ao
redor onde, de maneira incrível, alguns escravos continuavam a trabalhar. No
entanto, nem todos fugiam; alguns, na maioria os idosos e aqueles com crianças,
arrastavam-se para a beira da estrada e os encaravam com silenciosa fascinação
enquanto passavam, os mais jovens silenciados enquanto apontavam para os
homens estranhos. Tampouco todos ficavam tão intimidados, e aguentavam
muitos insultos dos despojados; aparentemente não restava muita coisa que
causasse medo naqueles que haviam perdido tudo para escravos saqueadores.
Um velho com um manto negro rasgado os atacou com projéteis tirados de um
monte de esterco de cavalo, seu rosto uma máscara de fúria irracional enquanto
gritava insultos ininteligíveis. Alturk cavalgou adiante e olhou para baixo na
direção do velho com o porrete de guerra apoiado no ombro até que o homem
por fim desabou, afundando na sua munição perfumada e chorando.
— Essas pessoas são muito estranhas — disse Alturk, trotando de volta para a
coluna. — Procuram uma morte boa e então caem no choro quando lhes é
oferecida.
Percorreram mais de trezentos quilômetros ao longo da semana seguinte,
sem esbarrar com um único soldado volariano, apesar de encontrarem
evidências de batalha. Estavam espalhados pela estrada, talvez mais de cem
corpos, a maioria homens, mas também havia mulheres, e Astorek calculou que
fossem uma mistura de escravos e pessoas livres a julgar pelas roupas. Muitos
haviam morrido enquanto lutavam: mãos ainda agarravam gargantas ou facas,
uma jovem estava caída com os dentes cravados no antebraço do homem de
preto que a matara.
— Se isto continuar por mais tempo, não sobrará nada para a sua Rainha
conquistar — disse Astorek.
— A não ser terra — disse o Aliado, fazendo a companhia inteira se
sobressaltar ao som de sua voz. Ele lançou um olhar impassível à carnificina
antes de acrescentar: — Terra é a única riqueza verdadeira num mundo como
este. Imagino que a sua Rainha sairá muito bem de tudo isso. Uma pena que eu
não possa deixá-la ficar com o que conquistar.
— Você não diria isso se a tivesse conhecido — disse-lhe Vaelin.
Ele não conseguia sonhar. Todas as noites se deitava e adormecia quase que de
imediato, e todas as vezes o seu sono permanecia sem sonhos. Vaelin sonhara
todas as noites na masmorra do Imperador, com Dentos, Sherin e até mesmo
Barkus. Na época, ele achou isso um tormento, uma tortura merecida que
cumpria um desejo ao qual o Imperador resistia. Agora ele sabia que era uma
bênção. Dahrena se fora, de fato e por completo, e lhe era negada até mesmo a
ilusão de um sonho, a breve e preciosa mentira de que ela ainda vivia, mesmo
que o despertar fosse difícil, quando a consciência descesse sobre ele como a
lâmina de um machado ao estender a mão para o lugar vazio e gelado ao seu
lado. Ainda assim, Vaelin ansiava por aquilo.
— Ela falou de você.
Vaelin levantou-se de seu saco de dormir, evitando o olhar do Aliado. Era
cedo e o céu ainda não havia clareado o suficiente para que se pudesse ver bem,
revelando o outro homem como uma forma curvada nas sombras, do outro lado
das cinzas ainda fumegantes da fogueira da noite anterior.
— Não quer saber o que ela disse?
— Por que decidiu tornar a falar agora? — retorquiu Vaelin. — É porque
estamos nos aproximando de Volar?
— Não, apenas um tédio sincero. Além disso, vocês, primitivos, estão se
provando mais divertidos a cada dia. Posso ter lhes legado uma era de
ignorância, mas vocês a tornam interessante. Diga-me, por que não ficou com a
cabeça daquele homem? Presumo que havia algum significado ritual em tomá-
la.
— É possível que você seja tão ignorante assim a nosso respeito? Você
orquestrou destruição neste mundo durante séculos. Como pode saber tão pouco?
— Vejo apenas através dos olhos daqueles presos no Além, e mesmo assim
as visões costumam ser turvas. A morte faz coisas à alma, priva-a de boa parte
do que lhe dá substância. Havia um filósofo na minha época que argumentava
que a essência de uma alma é feita meramente de lembranças, a alma em si
sendo não mais do que uma metáfora.
— Evidentemente ele estava errado.
— Estava? Nunca se perguntou por que apenas os dotados residem no Além?
Será possível que somente eles sejam dignos de permanecer como almas e que
todos esses outros não abençoados sejam condenados a se tornar nada quando
morrem?
— A vida me ensinou a ser tolerante com mistérios, em particular com
aqueles sem resposta.
O Aliado soltou uma risada baixa e sincera, e então se arrastou para mais
perto. Suas feições ficaram nítidas quando se inclinou para a frente, seu olhar
determinado e indagador, buscando compreensão.
— Eu sou a resposta. O Além não é o domínio eterno dos mortos, é o
resultado de tolice e orgulho, é uma casca cobrindo uma ferida que vaza,
eternamente corrompida e corrompendo. Existir lá é conhecer o frio da morte
por toda a eternidade, sentir-se desaparecendo lentamente até se tornar apenas
uma consciência disforme, sem memória, mas cônscia, sem nada conhecer
além daquele frio incessante.
— E mesmo assim, de alguma forma, você ainda possui raciocínio suficiente
para nos atormentar. — Vaelin levantou-se e foi para o lado do Aliado,
agachando-se e inclinando-se para perto para sussurrar as perguntas. — Qual é o
seu dom? O que nos aguarda em Volar?
O Aliado nada disse por um momento, e Vaelin viu a maquinação retornar ao
seu olhar.
— Ela falou de quanto o amava, de como você curou um coração ferido pelo
pesar. Embora ela se preocupasse com a mulher que você amou antes dela,
temendo que quando esta guerra acabasse você fosse procurá-la. Porém, ela se
preocupava principalmente com o filho que vocês fizeram juntos. Ela esperava
uma menina, mas sabia que seria um menino, um menino que talvez um dia
pudesse ser tentado pelos modos marciais do pai…
O Aliado cambaleou com o soco, sangue e dentes voaram de sua boca.
Vaelin tinha apenas uma vaga consciência da sensação de seu punho
massacrando o rosto de Erlin ou da torrente de ódio que brotava de sua boca, e
não sentiu o porrete de guerra de Alturk atingir a base de seu crânio, mandando-o
para o sono mais profundo.
E, desta vez, os sonhos vieram.
CAPÍTULO SETE
Lyrna
Ela disse para Al Hestian enviar a Guarda do Norte na frente para Urvesk com
ordens para serem o mais conspícuos possível. A cavalaria nilsaelina foi dividida
em companhias e despachada para o norte e para o sul com a missão de libertar
todos os escravos que pudessem encontrar, embora Ly rna esperasse que o talento
deles para saques fosse colocado em prática. Foram advertidos para poupar as
pessoas livres quando possível e enviá-las para leste com uma total compreensão
das intenções de sua Rainha. Assim, ao se afastarem do templo e da planície
poeirenta e adentrarem a região de colinas verdejantes mais além, o horizonte
em ambas as direções estava marcado por colunas altas de fumaça que se
erguiam de casas de campo incendiadas no rastro dos nilsaelinos. Pelos
relatórios, parecia que muitos haviam sido aconselhados a não fugir, pois os
invasores logo seriam aniquilados pelas forças invencíveis da Imperatriz.
Muitas das companhias haviam retornado no quinto dia, um tanto carregadas
de objetos de valor, mas também trazendo grupos de escravos libertos, que logo
passaram de mil no decorrer dos dias seguintes. Ly rna fez questão de receber
pessoalmente tantos quanto possível, notando que a maioria era jovem e
propensa a tratá-la como “Honorável Senhora”. Os mais velhos aparentemente
já estavam acostumados demais com o medo de uma vida inteira para aceitar a
oferta de liberdade dessa nova rainha.
— Alguns deles choraram quando incendiamos a casa de seu senhor, Alteza
— disse-lhe um aturdido capitão nilsaelino. — Alguns até mesmo tentaram nos
enfrentar.
Ela deixou os novos recrutas sob o comando de Nortah, com a ajuda de
Sabedoria, uma vez que o Lorde Comandante não falava volariano.
— Levará meses para transformar esse bando em soldados — disse-lhe
Nortah enquanto ela percorria o seu campo de treinamento improvisado. Eles
haviam parado num vale amplo a quinze quilômetros de Urvesk, instalando-se
numa luxuosa casa de campo que os nilsaelinos tiveram a consideração de
poupar para o conforto dela.
— O senhor já transformou escravos em combatentes antes — observou
Ly rna.
— Eles haviam sido aprisionados por apenas alguns dias, semanas, no
máximo. E o ódio deles era intenso o suficiente para superar a falta de habilidade
e disciplina. — Nortah gesticulou para os recrutas que trabalhavam sob a
instrução de sargentos da Companhia Morta, que pareciam determinados a
compensar a falta de uma língua em comum com volume. — A maioria dessas
pessoas só conheceu o cativeiro.
— Estou disposta a apostar que o ódio deles também será intenso — disse
Ly rna. — Quando for suficientemente instigado. Continue com o treinamento,
meu senhor. Partimos em três dias.
A cidade de Urvesk ficava situada próxima à bifurcação no rio que corria ao lado
da estrada, dando origem a um afluente menor que seguia sinuoso para o norte.
Lembrava-a vagamente de Alltor com suas muralhas altas; contudo, a
similaridade desapareceu ao avistar as muitas brechas e a quantidade de
moradias precárias que se estendia para além dela até a margem do rio. O preço
da estabilidade é a falta de prontidão, concluiu Ly rna quando Lorde Adal
cavalgou até onde ela se encontrava.
— O lugar parece ficar menos populoso a cada dia, Alteza — relatou o
comandante da Guarda do Norte. — Eles têm fugido para o norte ou leste num
fluxo constante desde que nos avistaram. Nenhum sinal de soldados além de
algumas sentinelas nas muralhas, talvez duzentos, no máximo.
— Obrigada, meu senhor. Descanse os seus homens, por favor.
— Alteza, eu… — Ele hesitou, com um pedido ansioso no olhar. — Eu
esperava liderar o ataque.
O que é essa sede de glória deste homem?, perguntou-se Ly rna. Ela o
estimava muito como capitão, sendo um dos poucos verdadeiros profissionais do
exército, mas estava ficando cada vez mais preocupada com o desejo dele de se
colocar em perigo. Os relatos da batalha no templo estavam repletos de
descrições de sua coragem temerária, embora ele tivesse conseguido sair do
conflito sem um arranhão sequer.
— Não haverá ataque, meu senhor — disse ela. — Poupe a sua coragem
para Volar.
Ela virou Azeviche e rumou a trote até onde os prisioneiros haviam sido
reunidos, pouco mais de mil homens e garotos de rosto acinzentado acorrentados
em quatro fileiras não muito definidas.
— Há oficiais aqui naturais desta cidade? — gritou ela em volariano.
Os prisioneiros arrastaram os pés num silêncio amedrontado, muitos não
ousando erguer a cabeça, e um garoto mais à frente chorava abertamente.
— Respondam, escória! — berrou Iltis na língua do Reino, deixando o
significado claro com um estalo terrível do chicote de capataz que conseguira em
algum lugar.
Um homem com o rosto enfaixado na terceira fileira ergueu lentamente a
mão e logo foi arrastado da multidão por Iltis.
— Você é um oficial? — perguntou Ly rna ao prisioneiro quando Iltis o forçou
a se ajoelhar diante dela.
— Um capitão — respondeu ele numa voz ofegante. A bandagem sobre o
rosto cobria o olho direito, e estava escurecida pelo sangue seco. Sua aparência
revelava um homem que se aproximava da morte a cada passo. — Convocado
da reserva para lutar a gloriosa guerra de defesa da Imperatriz. — Ele soltou
uma risada amargurada e Ly rna deduziu que o homem esperara morrer logo.
— Levante-se — disse ao homem. — Remova as correntes, meu senhor.
Ly rna levou Azeviche para mais perto quando o capitão caolho olhou
perplexo para ela, não aparentando se importar com o sangue que escorria de
seus pulsos esfolados quando Iltis removeu os grilhões.
— Você irá para casa, Capitão — disse ela, apontando para Urvesk. — E dirá
a quem quer que esteja no comando da cidade que os seus companheiros aqui
serão libertados, pois não vim para esta terra em busca de carnificina, e sim de
justiça. Em troca, a cidade libertará todos os escravos e abrirá os seus portões a
mim. Caso contrário, matarei dez prisioneiros por hora até que o façam. Caso a
razão ainda assim não prevaleça, eles se afogarão em cinzas e sangue quando eu
enviar o meu exército através daquelas muralhas precárias.
Ela aproximou Azeviche ainda mais e inclinou-se para olhar diretamente no
olho bom do homem.
— Pergunte a eles se realmente querem morrer pela Imperatriz.
Ao anoitecer, mais de três mil escravos haviam saído pelos portões. Ly rna
observou os últimos saírem e aguardou, ocultando um suspiro de alívio quando os
portões permaneceram abertos. Alguma vez você conseguiu isso, pai?, perguntou
ela ao fantasma do velho maquinador. Capturar uma cidade apenas com
palavras?
— Eu deveria ir à frente com a Guarda do Reino, Alteza — sugeriu Al
Hestian. — Garantir uma recepção apropriada para a sua entrada.
Seria tão fácil, pensou ela, os olhos ainda fixos nos portões abertos. Tantas
casas de madeira, tanto combustível, as chamas iluminariam o céu por mais de
cem quilômetros.
— Não entrarei na cidade — disse ela a Al Hestian. — Mande quantos
homens achar necessário para garantir que não tenham mantido nenhum escravo
e para obter suprimentos adicionais para os meus novos súditos. Nada de saques,
sob pena de execução. Deixe-lhes suprimentos suficientes para que não passem
fome, e os seus cavalos. Estou ansiosa para que a notícia de nossas ações aqui se
espalhe. Certifique-se de que o exército esteja pronto para marchar ao
amanhecer.
Ly rna olhou para os prisioneiros amontados na penumbra, tremendo tanto de
medo quanto pelo frio que chegava. Como todas aquelas almas que deixei se
afogarem no fundo do navio de escravos, pensou ela, apertando as rédeas até suas
mãos doerem. Seria tão fácil…
— Solte este bando uma hora antes de partirmos — ordenou, virando
Azeviche e voltando a galope para a casa de campo.
É linda.
Ela parou Azeviche ao lado do Aspecto Arly n e do Irmão Sollis, que
aguardavam com a Sexta Ordem no topo de uma colina baixa, todos sentados e
olhando em silêncio para a cidade que se estendia ao longe. O céu estava límpido
naquele dia e o sol desimpedido caía sobre uma panóplia de mármore, fazendo-a
reluzir antes de produzir um brilho cintilante nas águas do Estreito de Lokar ao sul.
O absurdo de sua missão ficou evidente ao considerar a miríade de torres e
incontáveis ruas; a destruição de tal cidade seria um trabalho de anos e ela
duvidava que mesmo Alornis pudesse conceber um engenho capaz de causar
uma conflagração grande o suficiente para arrasá-la.
— Nenhum inimigo a relatar, Alteza — disse o Irmão Sollis. — Nem
qualquer sinal de obras defensivas na periferia. Há alguns incêndios ocorrendo
mais para o interior da cidade, e um grande número de pessoas livres foi visto
fugindo para o norte. Os escravos estão fugindo em nossa direção.
Ly rna assentiu. Ela ordenara a libertação de algumas centenas de prisioneiros
capturados dois dias antes, após terem recebido descrições exageradas das
intenções da temível rainha. Ao que tudo indicava, gente suficiente havia fugido
para Volar para causar o efeito desejado.
— Alteza! — Era o Irmão Ivern, de pé na sela e apontando para o sul. Ly rna
levou um momento para reconhecer as formas escuras que pontilhavam as
águas do estreito. Ela usou a luneta e avistou a bandeira de guerra meldeneana
tremulando nos diversos mastros, todos aglomerados num arco ao redor do porto,
dezenas mais visíveis rio abaixo, a inconfundível forma lustrosa do Falcão
Vermelho entre eles.
Ly rna fez sinal para uma das Adagas da Rainha.
— Cavalgue até o Senhor da Batalha. Ele deve seguir para o centro da cidade
sem demora, destruindo quaisquer forças de oposição que encontrar. Diga-lhe
que acredito que seria melhor manter os nossos súditos recém-libertados na
reserva. — Ela se virou para o Aspecto Arly n. — Aspecto. Creio que o senhor se
lembra do caminho para a arena, não?
— Sim, Alteza.
— Pois bem. — Ela saiu a galope com Azeviche, descendo a encosta leste
em meio a uma nuvem de pétalas escarlate. — A cortesia exige que eu
cumprimente a Imperatriz, e não quero deixá-la esperando.
CAPÍTULO OITO
Reva
— Ela fez você lutar de novo? — Lieza olhou para o sangue que coloria a blusa
de Reva, avançando com os olhos arregalados de preocupação. — Está
machucada?
— Não. — Reva se afastou e arrancou a blusa, subitamente não se
importando com o que a garota visse. Lotarev olhou boquiaberto para ela
compreendendo vagamente, a baba acumulando-se no lábio inferior…
Ela se despiu, encheu a banheira e limpou-se com várias esfregadas. Tantas
mortes causadas por elas, pensou, olhando para as suas mãos enquanto o sangue
se dissipava na água. Por que a sinto tanto agora?
Passado algum tempo, Lieza aproximou-se para lavar a sua blusa. Desta vez
a garota não tentou entrar na água, evitando o olhar de Reva e agachando-se na
beira para passar o sabão pelo tecido.
— Você já matou alguém? — perguntou Reva. — Sei que você tentou matar
a Imperatriz, mas já teve sucesso alguma vez?
A garota lhe lançou um olhar cauteloso e sacudiu a cabeça.
— Bem, para escapar deste lugar você pode ter que matar. Não vou poder
protegê-la quando começar.
Lieza falou em voz baixa, as mãos ainda ocupadas.
— Não vou embora sem você.
— Isso não é um jogo! — Reva gesticulou na direção da garota, espalhando a
água avermelhada da banheira. — Não é uma história! Você vai morrer aqui e
eu não posso salvá-la!
Lieza estava deitada de costas, presa debaixo dela, a preocupação em seus
olhos agora transformada em medo. Reva não conseguia se lembrar de ter
saltado da banheira.
Lotarev não falou quando ela ergueu o machado. Ouviu-se um som de
esmigalhamento quando a lâmina cravou-se na coluna no homem, tal como
ocorrera com os prisioneiros e o Espada Livre, todos pecadores sem Pai…
Reva estremeceu e afastou-se depressa de Lieza até bater com as costas na
parede, encolhendo as pernas e enfiando a cabeça entre os joelhos. Ela sentiu
Lieza sentar-se ao seu lado e passar os dedos macios pelo seu cabelo úmido até
que Reva ergueu a cabeça. O beijo foi cauteloso, tão diferente de Veliss na sua
inexperiência…
Reva recuou.
— Não posso…
— Não por você — murmurou Lieza, beijando-a de novo, agora com mais
insistência, e Reva notou que o seu coração estava palpitando, ciente de que
deveria afastar a garota, mas ainda assim os seus braços se abriram para
envolvê-la e a puxaram para perto. Lieza recuou alguns centímetros, seus hálitos
se mesclando ao olhar nos olhos de Reva. — Por mim.
Varulek apareceu após a refeição matutina com uma dúzia de escravas, algumas
sem nada, outras trazendo pentes e várias misturas usadas para pentear cabelos
ou pintar rostos. Elas a vestiram com uma armadura, por assim dizer,
confeccionada especialmente para o seu tamanho a julgar pelo modo como lhe
servia precisamente. O peitoral era apertado em volta do torso, feito de couro
rígido, mas fino demais para repelir mais do que um golpe de raspão. Da mesma
forma, o saiote de tiras de couro, cada uma com uma tacha de latão na ponta,
era delicado demais para fornecer mais do que uma proteção básica. Reva logo
percebeu que aquela não era uma armadura de fato; ela devia representar um
papel e aquela era a sua fantasia. No entanto, se consolou um pouco com o fato
de que era leve o suficiente para permitir que se movesse depressa.
Colocaram em Lieza um vestido longo de seda esvoaçante, tingido de um tom
claro de violeta que combinava com seus olhos. Seus cabelos, que estavam mais
longos do que em geral qualquer escravo tinha permissão de usar, foram
moldados numa lustrosa cascata de ébano, adornada com um pequeno diadema
de prata.
— Avielle era uma rainha — explicou Varulek. — Que recebeu o trono de sua
irmã mais velha, que trocou o poder pelo serviço, preferindo lutar a governar.
Quando os Dermos instigaram o desejo de Jarvek para que levasse Avielle para
os lugares sombrios, eles prepararam uma armadilha à qual Livella jamais
poderia resistir.
Reva encontrou o olhar de Lieza e a garota sorriu, aparentemente imune ao
medo agora. Reva despertara mergulhada em lembranças que se alternavam
entre Veliss e a noite anterior, culpa e prazer precipitando uma melodia de
confusão. Ela se desvencilhou do abraço de Lieza e andou pela câmara,
procurando em vão nos Dez Livros algumas palavras de consolo a uma alma
traidora. Lieza estava visivelmente menos confusa, despertando e indo até ela
com mais beijos.
— Não. — Reva virou-se para o outro lado, suavizando a rejeição ao apertar
a mão da garota. — Não. Iremos lutar hoje. Um último treinamento antes que
venham nos buscar.
Varulek dispensou as escravas quando Reva se tornou irascível com as
atenções constantes delas, rosnando para uma matrona que tentava pincelar
algum pó vermelho em suas bochechas.
— Duvido que a Imperatriz note alguma imperfeição — disse ele depois que
as escravas partiram. Olhou para os dois Kuritai na porta, presumivelmente para
confirmar que nenhum Arisai havia se juntado a eles naquele meio-tempo. —
Segundo rumores, a sua Rainha está a oitenta quilômetros da cidade. O pânico
está se espalhando, mas a Imperatriz possui espiões por toda parte. Cem homens
livres receberam as três mortes ontem e ela decretou que todos os cidadãos
maiores de idade compareçam à arena.
— O arco — disse Reva.
— Há um emblema gravado no meio do lintel abaixo do balcão da
Imperatriz, um águia com as asas estendidas. O arco está sob a areia a cinquenta
metros diretamente em frente ao emblema. Você terá seis flechas.
Com sorte, cinco a mais do que precisarei.
— Tenho outra condição — disse ela, voltando-se mais uma vez para Lieza.
— Caso eu fracasse, você garantirá que ela escape deste lugar e a levará até a
Rainha. Ela será a minha garantia de que as suas palavras são verdadeiras.
— A tarefa diante de nós é perigosa. Não posso prometer nada… — Ele se
calou diante do olhar furioso de Reva, e por fim assentiu, relutante. — Farei o que
puder.
O Desfiladeiro de Brokev era formado por uma pequena baía flanqueada por
falésias escarpadas. O terreno subia depois da praia numa elevação íngreme até
os campos de flores rubras mais além. O sol estava apenas começando a reluzir
no horizonte e a promessa de um tempo ruim se manifestara como uma leve
garoa matutina.
— Basta só um punhado de inimigos naquelas alturas, Irmão Vermelho —
disse Lekran com uma careta —, e esta baía se tornará um matadouro.
Frentis nada disse, mantendo o olhar no topo das falésias à medida que o
barco se aproximava da praia. A maré estava baixa e as ondas fracas, os
remadores trabalhavam num ritmo intenso, sem se importar com o barulho; a
velocidade era mais importante do que a furtividade agora. Ele não conseguia
ver qualquer movimento nas falésias, nem no terreno depois da praia.
— Lembre-se — disse Frentis a Lekran —, não se demore por um segundo
sequer, independentemente das baixas.
Ele colocara os Garisai nos barcos que iam à frente junto com todos os seus
arqueiros, seguidos pela gente de Draker e Illian com ordens para capturar as
falésias. Mestre Rensial decidira acompanhá-lo, provavelmente com a esperança
de encontrar um cavalo o mais rápido possível.
Frentis saltou para fora do barco ao ouvir o barulho do casco raspando na
areia, afundando na água até os joelhos e avançando com esforço em direção à
praia. De acordo com as suas ordens, os arqueiros se espalharam com flechas já
preparadas e os arcos erguidos, esquadrinhando sem cessar as falésias por
qualquer sinal de um inimigo. Os Garisai ergueram uma espuma branca nas
águas ao correrem com Frentis, todos chegando até a areia sem serem
molestados pelo zunido revelador de uma chuva de flechas ou por gritos de
alarme.
Frentis não permitiu que parassem na praia e correu até a encosta relvada,
parando somente quando chegou ao topo. Os Garisai assumiram de pronto uma
formação defensiva, embora não houvesse qualquer sinal de oposição. Os
campos, que tinham um tom escarlate escuro na penumbra matutina, estendiam-
se silenciosos e desertos. A oeste Frentis podia ver o sol nascente caindo sobre
torres que se erguiam das flores rubras como alfinetes de prata num vasto
cobertor vermelho.
— Volar — disse Lekran num tom estranhamente reverente. — Todos aqueles
anos como escravo deste império e esta é a primeira vez que coloco os olhos
nela.
E talvez a última, ponderou Frentis. É possível que não reste nada quando a
Rainha tiver terminado. O pensamento despertou lembranças da garota de cinza e
de sua mãe, e ele voltou o olhar para a praia à procura de alguma distração. A
gente de Draker e de Illian já se encontrava em terra e se dividia para rumar até
as falésias. Os Politai aproximavam-se depressa da praia, a figura de cabelos
encaracolados de Artesão visível no barco que vinha à frente.
Traga o curandeiro…
— Isso não está cheirando bem — disse Ivelda, esquadrinhando os campos de
papoula com olhos apertados. — Nem um único batedor para nos receber. Onde
estão?
Frentis observou conforme os extensos bairros residenciais de Volar eram
revelados ao sol que despontava. Nenhuma muralha para atravessarmos, mas é
bastante fácil transformar uma casa numa fortaleza.
— Desconfio que teremos resposta dentro de uma hora.
Encontraram o primeiro corpo a três quilômetros da baía, um garoto de cerca
de quinze anos, caído entre as flores, vestido de cinza e morto havia apenas umas
duas horas, pelos cálculos de Frentis. Fora morto com uma única estocada nas
costas, provavelmente a cavalo, a julgar pelo ângulo.
— Mais três aqui — disse Ivelda perto dali. — Homem, mulher e criança.
Alguém matou uma família.
Eles seguiram em direção aos bairros residenciais numa formação cerrada,
os Garisai numa de escaramuça na frente, a companhia de Draker à direita e a
de Illian à esquerda. A gente de Karavek seguia numa massa compacta com os
Politai agindo como a retaguarda. Frentis manteve um ritmo pesado; deslocar-se
por campo aberto sem uma cavalaria para proteger os flancos instilava uma
forte sensação de vulnerabilidade. Mais corpos foram descobertos na marcha,
pessoas de cinza e alguns escravos com ocasionais homens de preto. A maioria
tinha ferimentos nas costas, indicando que haviam sido mortos enquanto corriam.
Frentis havia contado mais de cem quando chegaram às primeiras casas, quando
então parou de contar.
O que ela está fazendo?
Jaziam em cada entrada, cada esquina, as sarjetas vermelhas evidência de
que a matança ocorrera fazia pouco tempo. Não havia sinais de tortura nos
corpos, poucos tinham mais do que dois ferimentos, a maioria apenas um. Fora
um massacre eficiente, realizado sem levar em consideração idade, sexo ou
posição social. Crianças estavam caídas ao lado de idosos, escravos estavam
entrelaçados com capatazes. Pessoas de preto, de cinza e escravizadas, todas
unidas na morte.
— A Rainha? — perguntou Draker a Frentis, pálido debaixo da barba. — Sei
que ela queria justiça, mas isso…
— Não foi a Rainha que fez isso — disse Frentis. — A Imperatriz colocou os
Arisai para trabalhar.
— Aqueles desgraçados vermelhos? Achei que a gente tinha matado todos.
Mais nove mil… Ele suspirou com a própria estupidez. Todos devem ter
recebido a mesma mentira para contar caso fossem capturados.
— Varitai e Espadas Livres são uma coisa, irmão — disse Karavek. — Até
mesmo Kuritai. Mas a minha gente não é páreo para os homens vermelhos…
— Então voltem para a praia e implorem a Lorde Ell-Nurin que os leve para
casa. — Frentis virou-se de novo para Draker. — Escolha o seu corredor mais
rápido e mande-o para o Estreito com um pedido para que o Lorde Almirante
desembarque com todos os marinheiros que puderem empunhar uma lâmina. —
Ele se virou e olhou para as ruas repletas de morte à sua frente. — Ele nos
encontrará na arena.
Foram atraídos pelos gritos, um coro estridente de terror e dor que ecoava
pelas ruas ensanguentadas. Frentis conduziu os Garisai na direção do som,
ordenando a Illian e a Draker que dessem a volta pelos flancos e mandassem os
arqueiros para os telhados. A oitenta metros, as ruas se abriam numa praça, que
exibia a típica organização volariana com os seus gramados elaborados,
salpicados com estátuas e cortados por caminhos de pedra. E, no centro, uma
multidão de volarianos sendo sistematicamente massacrada por cerca de
duzentos Arisai. As pessoas haviam sido cercadas por todos os lados,
amontoando-se num terror instintivo enquanto os homens vermelhos abriam
caminho de forma metódica a golpes de espada, e a multidão diminuía
visivelmente a cada segundo em meio a um círculo crescente de cadáveres.
— Não espero que você lute por eles — disse Frentis a Lekran, erguendo a
espada para os arqueiros nos telhados.
— Vou lutar com você, Irmão Vermelho — disse o homem, girando
brevemente o machado. — Até que isso acabe. Você sabe disso.
Frentis assentiu e abaixou a espada. Os arqueiros dispararam a sua saraivada,
as flechas zunindo e matando pelo menos uma dúzia de Arisai enquanto ele
disparava em frente, seguido pelos Garisai com um grito coletivo.
Até que isto acabe. Por bem ou por mal, isso acabará hoje.
Ele deixou Mestre Rensial aos cuidados dos meldeneanos, a maioria dos quais
parecia satisfeita em ficar e pilhar as muitas casas vazias, mostrando-se surda
aos apelos para que rumassem juntos até a arena. Frentis não conseguia ver
qualquer sinal do Lorde Almirante Ell-Nurin ou de qualquer outro meldeneano
com patente maior do que a de segundo imediato, de modo que foi obrigado a
deixá-los às suas recompensas e seguir em frente. Encontraram Trinta e Quatro
dando pontos num corte no braço de Draker algumas ruas adiante, a dúzia de
sobreviventes da companhia do capitão recém-designado aglomerada em volta
deles em meio aos corpos de cerca de trinta Arisai.
— Não consegue terminar uma batalha sem um ferimento? — perguntou
Illian a Draker, seu tom mordaz suavizado um pouco pela mão afetuosa que
passou pelos cabelos desgrenhados dele.
— Gosto das minhas lembrancinhas — retorquiu ele, rangendo os dentes
quando Trinta e Quatro deu um nó nos pontos. Ele ergueu um olhar de desculpas
a Frentis e indicou com a cabeça algo caído ali perto. — Sinto muito, irmão.
Retalhador estava caído de lado, com Dente Negro ganindo ao cutucar a
cabeça do cão com o focinho. Havia uma espada curta enfiada no peito do
animal e um Arisai morto e escorado numa parede perto dali, com o rosto
mastigado e transformado numa massa sangrenta.
— Não podemos demorar — disse Frentis, desviando o olhar e percorrendo o
rosto cansado e pálido de todos os presentes. Havia talvez um terço do número
que o havia seguido desde Nova Kethia. Tantos perdidos salvando aqueles que os
escravizaram, ponderou, lutando contra a mistura de pesar e admiração que
ameaçava umedecer os seus olhos. — Capitão — disse a Draker —, posicione a
sua gente na retaguarda. Irmã, pegue os arqueiros e faça o reconhecimento das
vias de acesso à arena.
— Sem dúvida não pode ter restado nenhum depois disso — disse a Irmã
Merial. Sua aparência havia melhorado um pouco, embora as manchas
vermelhas em volta dos olhos e do nariz evidenciassem uma tentativa de ocultar
a sua exaustão.
— Pensamos o mesmo em Eskethia — disse Frentis. — Fique perto de mim e
não use o seu dom de novo, a não ser que seja extremamente necessário.
O denso labirinto de ruas logo deu lugar a avenidas e parques largos, também
apinhados de cadáveres. Havia principalmente pessoas vestidas de preto ali, além
de alguns escravos que foram mortos enquanto cortavam a grama ou poliam as
estátuas de bronze. Porém, não havia sinal dos Arisai. Uns cem metros adiante as
ruas acabavam na arena, e cada combatente e Politai parou ao avistá-la, os
níveis dourado-avermelhados de curvas suaves vívidos à luz do sol. Podiam ouvir
uma grande comoção do lado de dentro, milhares de vozes erguidas em
adulação, sem dúvida devido a algum espetáculo terrível orquestrado pela
Imperatriz. Balindo feito ovelhas enquanto a sua cidade morre em volta deles,
pensou Frentis, incapaz de conter o ressentimento de que aquelas pessoas não
valiam o sangue derramado por elas.
— Nenhum guarda — relatou Illian. — Parece estar completamente
desprotegida.
Frentis olhou para Artesão, notando pela primeira vez a ruga de preocupação
em sua testa ao encarar a arena, e até mesmo um tremor de medo nos lábios.
Traga o curandeiro…
— Você não precisa fazer isso — disse-lhe Frentis. — Fique aqui com os
Politai. Mandarei avisar quando estiver seguro.
Artesão parou de franzir a testa e se virou para ele, afastando o medo com
um leve sorriso.
— Não acredito que haja algum lugar seguro hoje, irmão.
Frentis assentiu, deu um passo adiante e virou-se para se dirigir a todos eles,
sentindo a voz rouca e tendo que forçar as palavras a saírem.
— Vocês todos já fizeram mais do que eu poderia pedir. Esperem aqui,
Artesão e eu seguiremos sozinhos.
Não houve resposta, nem qualquer mudança de expressão quando todos
deram um passo à frente ao mesmo tempo.
— Não sei o que nos espera lá dentro — comentou Frentis, ouvindo a nota de
desespero na voz. — Mas sei que muitos de nós não irão sobreviver…
— Está perdendo tempo, irmão — disse Draker. Ao lado dele, Illian ergueu a
besta, olhando-o nos olhos com expectativa.
Frentis virou-se para a arena quando se ouviu outro brado vindo de dentro;
pelo volume e duração, parecia que o espetáculo da Imperatriz havia atingido
alguma forma de clímax.
— Nosso objetivo é resgatar a Senhora Reva e matar a Imperatriz! — gritou
ele, erguendo a espada e partindo em disparada. — Não mostrem misericórdia,
pois ela não terá nenhuma com vocês!
CAPÍTULO DEZ
Vaelin
Estrelas.
Ele piscou, tentando afastar o que sabia ser uma ilusão, mas ainda estavam lá,
cintilando e brilhantes. E havia tantas, mais do que poderia contar. Algumas eram
mais brilhantes do que outras, tão brilhantes que pareciam ofuscar aquelas à sua
volta. Algumas eram escuras, cintilando entre o vermelho e o negro. Todas se
moviam como formigas minúsculas num vasto cobertor verde e azul. Não são
estrelas, compreendeu. São pessoas.
— Vaelin. — Ela estava lá, flutuando próxima do céu noturno, pois agora
percebera que estavam voando muito acima da terra. Ele só pôde encará-la, as
palavras entalando em sua garganta, a tristeza e a gratidão mesclando-se e
fazendo-o estremecer. Ela sorriu e deslizou para perto, estendendo as mãos para
as dele. — Eu queria lhe mostrar — disse ela. — Queria que você visse o que eu
vejo.
— Eu… — Ele gaguejou e agarrou as suas mãos. — Eu nunca deveria… Ela
se colocou entre os seus braços, o calor dela maravilhoso, afastando a culpa que
ele sentia.
— Todas as escolhas foram feitas por mim. — Ela pressionou a testa contra a
dele e então recuou, virou-se e gesticulou para a terra salpicada de estrelas
abaixo. — Veja — disse ela —, o mundo como era, prestes a mudar para
sempre.
Ele segurou a mão dela ao descerem, aproximando-se de uma extensão de
terra com um litoral que ele reconheceu como o do Reino Unificado. Pararam
acima de um denso aglomerado de estrelas no centro do que um dia seria
conhecido como a Cidade Caída, as estrelas transformando-se nas formas
cintilantes de pessoas quanto mais baixo voavam. Havia duas figuras paradas no
meio do aglomerado, perto de algo tão escuro que parecia engolir toda a luz, e
Vaelin levou um momento para reconhecer a forma reduzida.
A Pedra Negra.
Uma das figuras ao lado da pedra diferia das outras no modo como a sua luz
brilhava, ficando intensa por um segundo e então vermelho-escura no seguinte. O
bruxuleio tornava difícil discernir alguma feição, mas Vaelin teve a impressão de
ser um homem alto, um homem barbado.
O Aliado.
A figura ao lado do Aliado era mais baixa e, a julgar pelo modo como as suas
costas estavam curvadas, consideravelmente mais velha. Ao contrário do Aliado,
a luz deste homem era constante e brilhante, o matiz um tom vivo de azul. Vaelin
observou quando o Aliado colocou a mão no ombro do homem mais velho de
forma respeitosa e então se afastou. O homem mais velho permaneceu imóvel
por um momento, de cabeça baixa, como se estivesse reunindo forças, sua luz
diminuindo levemente de intensidade, e então deu um passo adiante e colocou a
mão no vazio absoluto da pedra negra.
Por um segundo nada aconteceu, mas então um círculo vermelho surgiu no
centro da pedra. Era pequeno, mas brilhava com uma energia ardente, pulsando
de modo rítmico como um coração. O velho estendeu a mão brilhante para o
círculo para agarrá-lo… O círculo fulgurou de repente, a pulsação aumentou e
transformou-se num zunido e o velho cambaleou para trás quando algo brotou da
pedra, jorrando para o alto e para fora numa fonte multicolorida, subindo para o
céu ao mesmo tempo que uma circunferência de pura energia se espalhava da
pedra ao nível do chão, expandindo-se e disparando para o horizonte feito uma
muralha de chamas. A maioria das luzes a atravessava sem efeito aparente, mas
aqui e ali uma brilhava ainda mais forte quando a parede as tocava.
O poder, lembrou-se Vaelin. Gravado na linhagem…
A fonte espectral secou lentamente, o círculo flamejante na pedra diminuiu
de tamanho até se tornar um ponto minúsculo, e depois desapareceu. O velho
rolava no chão ao lado da fonte, contorcendo-se em óbvia agonia, sua luz agora
tremeluzindo, mas pulsando com mais intensidade do que antes. Sua agonia
diminuiu aos poucos, e ele estendeu a mão para pegar a do Aliado quando este se
ajoelhou ao seu lado. Contudo, o Aliado não tentou pegar a sua mão e olhou para
a forma prostrada do velho, sua luz agora mais vermelha do que branca.
Ele se empertigou de repente, erguendo algo escuro acima da cabeça e o
abaixando com toda a força. A luz do velho chamejou e então pareceu se dividir,
diminuindo para dois pontos de brilho tênue, um grande, o outro menor.
A cabeça dele, compreendeu Vaelin. Ele cortou a cabeça do velho.
O Aliado curvou-se para recolher a cabeça e a ergueu até que o pescoço
decepado tocasse seus lábios, quando então a sua luz assumiu um tom vermelho
permanente, um brilho escarlate-escuro com o mesmo ritmo do círculo de fogo
na pedra.
O Aliado jogou a cabeça do velho para o lado e voltou-se para a multidão de
espectadores. Todos haviam recuado diante dele com um medo evidente, e
muitos se viraram para fugir. Então todos pararam como um só, paralisados. O
Aliado encarou a multidão por um longo tempo num escrutínio cuidadoso, e
então começou a andar entre ela, parando ao lado de um homem de porte
atlético e um brilho amarelado, tocando-lhe a cabeça com a mão. As costas do
homem escolhido formaram um arco rígido no mesmo instante em que soltou
um grito silencioso, sua luz assumindo o mesmo tom de vermelho do Aliado num
piscar de olhos.
O Aliado seguiu em frente, tocando rapidamente mais uma dúzia de homens,
então se afastou da multidão e parou para assistir às figuras avermelhadas
começarem a assassinar as suas companheiras brancas. Algumas foram
estranguladas, outras golpeadas com pedras ou galhos, pois aquelas pessoas
pareciam não possuir armas. O Aliado permaneceu imóvel e assistiu ao
massacre, a cabeça levemente inclinada, observando a tudo impassível. Quando
acabou, quando cada brilho branco havia sido apagado, o Aliado partiu para o
norte, seguido pelos homens vermelhos.
Dahrena apertou a mão de Vaelin com mais força e o tempo acelerou abaixo
deles, o aglomerado vermelho do Aliado aumentou no norte e se espalhou,
criando grupos menores que se expandiam como esporos de uma ponta a outra
do Reino Unificado, luzes brancas se apagando onde quer que chegassem.
— O dom do Aliado — disse Vaelin.
— Não — disse Dahrena —, nunca um dom. Uma doença, uma praga. Como
a Mão Vermelha.
— Isto é apenas um sonho. Como posso saber disso?
— Nós sabemos. — Ela flutuou para longe dele, estendendo os braços quando
mais pessoas surgiram da escuridão ao redor, formando um círculo em volta
deles. Eram na maioria estranhas, mas Vaelin reconheceu algumas. A irmã da
Sétima Ordem que conspirara com Alucius em Varinshold. Marken também
estava ali, sorrindo sombriamente por trás da barba, e o Aspecto Grealin, ainda
gordo mesmo ali… E um outro.
Caenis usava as vestes de um irmão da Sexta Ordem, apesar de ter morrido
como Aspecto da Sétima.
— Irmão — disse Vaelin, estendendo a mão para ele, mas Caenis apenas
sorriu e inclinou a cabeça num reconhecimento afetuoso.
— Nós que permanecemos quando você o atraiu para fora do Além — disse
Dahrena. — Não é somente a vontade dele que pode nos prender aqui. Gastamos
o que nos sobrava de forças para criar esta visão. Era tudo o que nos restava para
dar.
Vaelin viu o círculo de almas desaparecer, deslizando para a escuridão;
Caenis foi o último a ir, sua mão erguida numa despedida relutante antes de ser
tragado pelo escuro.
— Então agora vocês realmente se foram? — perguntou ele a Dahrena. —
Suas almas desapareceram para sempre?
— A alma é uma lembrança — disse Dahrena, pressionando-se contra ele
mais uma vez, passando os braços em volta de seu pescoço. — Você é o meu
Além agora, Vaelin. Você e todos aqueles que amei, até mesmo os que enfrentei.
Para que eu perdure, você precisa perdurar.
Ela recuou e segurou o rosto dele com as mãos.
— Lembre-se, uma praga como a Mão Vermelha. E ninguém que pegou a
Mão Vermelha e sobreviveu tornou a pegá-la. E, agora, você precisa mesmo
acordar.
Ele despertou ao som de vozes exaltadas. Vozes lonaks, raivosas e irritantemente
altas. Vaelin gemeu, rolou e se ergueu, seus dedos explorando de forma instintiva
o galo cada vez maior atrás da cabeça. As vozes pararam, ele ergueu a cabeça e
viu Kiral e Alturk afastando-se um do outro; o Tahlessa lhe deu um último olhar
de desaprovação antes de ir se colocar diante da forma curvada do Aliado. Ele
parecia estar desacordado, a cabeça balançando para a frente e um filete de
sangue escorrendo de um corte na testa.
Orven estava de pé ao lado de Vaelin, seus guardas os cercavam por todos os
lados, olhando furiosos para os Senthar reunidos do outro lado da clareira.
Calculou que havia passado pouco tempo desde que Alturk o deixara inconsciente
com uma porretada. Vaelin estendeu a mão a Orven, que o ergueu com presteza.
Foi até Alturk e fez uma mesura curta.
— Obrigado, Tahlessa. Lorde Orven, levantar acampamento. Ainda temos
um longo caminho pela frente.
***
Quanto mais para o sul seguiam, mais cidades apareciam ao longo do trajeto.
Em geral eram lugares extensos, que há muito haviam ultrapassado as muralhas
protetoras da era pré-imperial. A maioria claramente sofrera revoltas e
rebeliões, algumas eram pouco mais do que ruínas enegrecidas e muito poucas
tinham conseguido permanecer intactas em virtude de muralhas e barricadas
construídas recentemente, em geral defendidas por uma população armada que
de bom grado disparava flechas contra forasteiros que chegavam muito perto.
Vaelin evitou todas elas, não tendo a menor intenção de acabar enredado em
batalhas desnecessárias, apesar de os Senthar costumarem ficar irritados com a
necessidade de não responder a um desafio.
O Aliado agora cavalgava na retaguarda da coluna, o rosto machucado e
parcialmente remodelado imperturbável e animado como sempre. Os guardas
de Orven haviam recebido instruções estritas de amordaçá-lo caso tentasse falar
de novo, mas ele se mantinha num silêncio contínuo desde que despertara do
espancamento. Kiral o encarava constantemente, suas mãos apertavam as
rédeas com frequência e Vaelin sabia que ela estava resistindo ao impulso de
pegar o arco. A orientação da canção raramente está equivocada, ele sabia,
sentindo falta de seu dom com mais intensidade do que nunca. Porém, na visão
de Dahrena não havia qualquer desejo pela morte imediata do Aliado e nenhum
indício de que ele estivesse no caminho errado.
Uma linha vermelha surgiu no horizonte cinco dias depois, aumentando
conforme chegavam mais perto, até que pararam em meio a um vasto
aglomerado de campos de flores rubras e avistaram ao longe, através da neblina,
as torres altas de uma cidade de mármore.
— Volar — sussurrou Lorkan ao lado de Vaelin, sacudindo a cabeça em
franco assombro. — Realmente achei que nunca a veria.
Vaelin chamou Lorde Orven e apontou a oeste e a leste.
— Envie os seus batedores. Precisamos de notícias sobre o paradeiro da
Rainha. Acamparemos aqui…
— Você não tem tempo!
Vaelin virou-se e viu que o Aliado o encarava com fria determinação e que
qualquer vestígio de humor havia desaparecido de suas feições ainda
deformadas. Os guardas de ambos os lados se aproximaram para cumprir as
ordens, mas Vaelin os afastou com um aceno e levou Cicatriz para mais perto,
olhando o Aliado nos olhos.
— Por quê?
— Minha serva está brincando com a sua irmã na arena neste momento. Ou
melhor, aquela vadia pervertida que você chama de irmã. Demore mais e
desconfio que ela estará morta em pouco tempo, depois de um período adequado
de punição bem merecida. Ela sempre me irritou muito.
Vaelin olhou para Kiral, que rangeu os dentes e assentiu.
Reva! A criatura dele está com Reva.
— Ela não possui um dom — prosseguiu o Aliado. — Não há lugar para ela
no Além…
Vaelin lhe deu as costas e disparou para a frente da coluna, berrando uma
ordem para que Orven o seguisse, rumando para Volar a galope.
CAPÍTULO ONZE
Lyrna
A cabeça a encarava com olhos cegos, a boca aberta e a língua pendurada entre
os dentes. Havia sido presa ao toco do pescoço da estátua com pregos de ferro,
martelados através do bronze e da carne, e filetes de sangue seco cobriam o
metal até o pedestal, onde jazia a cabeça original.
— Parece que nunca faltam horrores a essa gente — comentou Iltis num tom
enojado.
Ly rna deixou a estátua para trás e seguiu com Azeviche para a arena, onde os
cumbraelinos agora adentravam as arcadas. Ela teve um vislumbre de Lorde
Antesh incitando-os em frente antes de desaparecer do lado de dentro, mas não
teve oportunidade de lhe passar ordem alguma; não que esperasse que ele a
obedecesse agora que a Senhora Abençoada estava tão perto.
Ly rna desmontou diante da arcada mais alta e seguiu para o interior sombrio;
gritos de combate ecoavam pelas escadarias e corredores abobadados à medida
que os cumbraelinos sobrepujavam qualquer sinal de oposição. As Adagas da
Rainha se espalharam à sua volta num arco defensivo, o Aspecto Arly n e Iltis se
posicionaram de ambos os lados com as espadas desembainhadas.
— Se me permite, Alteza — disse o Aspecto, apontando para uma escadaria
próxima, que descia para as profundezas daquela estrutura. Ly rna ergueu uma
sobrancelha indagadora e ele continuou: — As jaulas onde são mantidos os
Garisai. Eles podem ser úteis.
Ela assentiu e gesticulou para que o Aspecto prosseguisse, seguindo-o quando
conduziu as Adagas pela escadaria. Ly rna foi recebida pelo tumulto da batalha
enquanto descia, chegando a uma longa câmara retangular, ladeada por jaulas.
As Adagas e o Aspecto lutavam com uma dúzia de Kuritai. O Aspecto movia-se
com a típica graciosidade da Sexta Ordem, desmentindo a sua idade pela forma
como aparava e girava no combate corpo a corpo, matando um Kuritai e
bloqueando a lâmina de outro que atacou uma das Adagas. Porém, os Kuritai
também possuíam uma habilidade espantosa, e Ly rna lutou contra uma pontada
de fúria ao ver ainda mais de sua gente tombar pelas lâminas dos escravos de
elite.
Sou apenas uma rainha.
Ela mandou Iltis se juntar à luta com um aceno de mão e olhou ao redor, seus
olhos recaindo sobre um cadáver que jazia ali perto, um homem de cintura
considerável com ferimento de faca no peito, um carcereiro, a julgar pelas
chaves que pendiam de seu cinto. Ly rna abaixou-se e as arrancou, foi até a jaula
mais próxima e parou de repente ao ver quem era o ocupante.
Não havia um sorriso em seus lábios agora, nenhuma travessura no olhar; seu
cabelo pendia oleoso sobre um rosto sem qualquer expressão de humor ou de
admiração.
— Então, como pode ver, você conseguiu me colocar numa gaiola, afinal.
Ela não disse nada, girou a chave na fechadura e abriu a porta da jaula,
avançando com um gesto impaciente quando ele se demorou. Ell-Nestra saiu
devagar da jaula e olhou rapidamente para a luta que continuava no corredor, os
Kuritai agora reduzidos a três, encostados nas barras das jaulas, onde mãos saíam
de dentro para lhes arranhar numa fúria desesperada.
— Esta é a última guerra que luto por você — disse o Escudo.
Ly rna lhe jogou as chaves quando o último Kuritai foi morto, dirigiu-se até a
escadaria e subiu sem olhar para trás.
CAPÍTULO DOZE
Reva
— Mate-a! — gritou Lieza, debatendo-se nos braços dos Arisai. — Mate-a e isso
acaba!
A mão de Reva se mexeu na areia, indo na direção do arco como que por
vontade própria enquanto mantinha os olhos no rosto sorridente da Imperatriz.
— Ela não deixa de ter razão! — gritou a Imperatriz. — Se eu desaparecer,
esta guerra acaba, mas ela ainda morrerá e você se lembrará de sua morte por
muito tempo. Ordenei que eles poupassem você, pois como eu poderia ferir a
minha irmã? Não prefere conceder uma morte rápida a ela?
Reva desviou o olhar e virou-se para Lieza, que agora não resistia nas mãos
dos Arisai, com uma súplica no olhar, sua respiração ofegante o único som na
arena, o silêncio não sendo rompido nem mesmo pelo mais leve sussurro
enquanto a mão de Reva chegava mais perto do arco…
Algo passou zunindo pela sua cabeça e caiu na areia com um baque surdo ao
lado do arco. Uma flecha, as penas estremecendo com o impacto. Reva voltou
de súbito o olhar para os níveis superiores da arena e avistou lá silhuetas
segurando arcos. Ela gemeu e seu desespero aumentou. Os Kuritai de Varulek
não haviam feito o seu trabalho, afinal. Um dos arqueiros ergueu o arco acima
da cabeça e Reva estreitou os olhos, vendo algo de familiar na postura dele, a
largura dos ombros lembrando-lhe de alguém que conhecia, alguém que sem
dúvida havia se perdido no oceano. Ela olhou para o arco do homem. Era longo,
com uma única curva elegante, tão diferente dos arcos de duas curvas preferidos
pelos volarianos.
Reva virou-se devagar e abaixou os olhos para a flecha enfiada na areia.
Penas-de-asa-rápida, percebeu. Um pássaro que só é visto em Cumbrael, no
verão.
Reva ergueu o olhar para a Imperatriz e retribuiu o sorriso.
Ela pegou o arco e a flecha de Varulek, girou para a esquerda, colocou a
flecha na corda e disparou num único movimento. Um dos Arisai que seguravam
Lieza cambaleou para trás, olhando com divertimento e arfante para a flecha
cravada no peito. O outro desembainhou a espada de imediato e a ergueu para
enfiá-la nas costas de Lieza, e então caiu morto quando Reva disparou a flecha
de Antesh em seu pescoço.
O ar zuniu quando ela se levantou e correu na direção de Lieza, cada Arisai à
vista tombando ao mesmo tempo sob a chuva de flechas. Reva derrapou, parou
agachada ao lado de Lieza e a ergueu. A garota soltou um grito alarmado quando
um Arisai se arrastou na direção delas, os dentes arreganhados num sorriso feroz
ao se esforçar para chegar mais perto com flechas fincadas nos ombros e nas
pernas. Reva pegou outra flecha da areia e a disparou no olho do Arisai a menos
de quatro metros, então agarrou o braço de Lieza e a puxou na direção da saída
mais próxima. A pesada porta de ferro estava trancada, mas o arco de pedra pelo
menos oferecia alguma proteção. Ela podia ver arqueiros Varitai nos níveis
inferiores, tentando em vão enfrentar os cumbraelinos acima enquanto a
multidão convulsionava em volta deles, aglomerados de pessoas que fugiam em
pânico para as saídas.
Então a chuva de flechas começou a diminuir, a princípio lentamente, mas
não tardou a cessar por completo. Reva deixou o abrigo da arcada e
esquadrinhou os níveis superiores, encontrando-os repletos de homens
engalfinhados, vermelhos e pretos em meio ao verde-acinzentado dos
cumbraelinos. Ela voltou o olhar para a porta pela qual o desafortunado Jarvek
entrara na arena e viu que ainda estava aberta.
— Vamos — disse a Lieza, segurando-lhe a mão e começando a andar.
A Imperatriz aterrissou em seu caminho e rolou para uma posição de luta
com a espada curta abaixada, encarando Reva com a testa franzida de seriedade
e irritação.
— Você estragou o meu espetáculo.
Reva recuou, colocando Lieza atrás de si e procurando freneticamente por
outra flecha enquanto a batalha prosseguia nas arquibancadas.
— Todas as minhas lições — disse a Imperatriz, aproximando-se e mantendo
a espada abaixada. — Toda a minha generosa tutela, desprezada. Estou muito
desapontada, irmãzinha.
Ela atacou e Reva rolou para o lado, arrastando Lieza consigo, e a lâmina a
errou por centímetros. Ficou de pé e girou o arco como um porrete, mirando na
cabeça da Imperatriz. A mulher se abaixou com facilidade e encarou Reva com
uma carranca de desaprovação.
— Nossa mãe morreu com você na barriga enquanto eu estava acamada e
escutava os gritos dela do outro lado da porta. O Aliado havia contado ao meu pai
sobre a bênção, veja bem, e ele estava sedento.
Ela atacou de novo e Reva empurrou Lieza para a esquerda ao mesmo tempo
que se esquivou para a direita. Reva viu o corpo de um Arisai a menos de três
metros, cravejado de flechas e com uma espada caída sob a mão.
— Nossa mãe teria amado você mais do que a mim — disse a Imperatriz a
Reva, saltando em seu caminho assim que ela começou a ir na direção do corpo.
— Eu sei disso. Mas não me importo. Ainda assim você teria sido a minha irmã.
Reva olhou de relance para Lieza, implorando que ela corresse, mas a garota
ficou onde estava, ergueu as correntes e assumiu uma posição desajeitada de
luta. A Imperatriz riu dela, então se acalmou.
— Tamanha devoção — disse ela, sacudindo a cabeça. — Tudo o que sempre
recebi foi medo e desejo. Eu teria amado você, irmã. Mas teria sido difícil
suportar a inveja.
Reva olhou de novo para o corpo do Arisai, calculando a distância e as suas
chances de saltar por cima da espada da Imperatriz… quando então viu mais
uma coisa.
— Eu não sou sua irmã! — gritou ela para a Imperatriz, atraindo um olhar
arregalado. — Você nunca teve nada além de medo e desejo porque isso é tudo
que você é. Apenas uma louca que viveu por tempo demais.
— Louca? — A Imperatriz recuperou o humor e abaixou um pouco a espada
ao rir. — O que você acha que o mundo é, se não um desfile interminável de
loucura? Guerrear é loucura. Buscar poder é loucura. — Ela gargalhou mais alto
e abriu os braços. — E a loucura é gloriosa!
Reva supôs que o macaco estivesse simplesmente tentando completar o papel
para o qual havia sido treinado, deixando um rastro vermelho na arena enquanto
se arrastava na direção da Imperatriz com suas garras de aço, achando que ela
era Livella por ser a única armada. Com um rugido rouco, a fera se levantou e
atacou, golpeando com as garras quando a Imperatriz se virou, fazendo com que
as três farpas de aço a atingissem em cheio no peito.
O macaco soltou um último urro, de triunfo ou fúria, e desabou no chão da
arena, levantando areia ao dar o último suspiro. Reva se aproximou enquanto a
Imperatriz se debatia, ainda viva de alguma forma, o sangue escorrendo aos
borbotões de sua boca enquanto se esforçava para se livrar da garra do macaco,
conseguindo por fim com um grito de agonia. Ela ficou caída, arfando,
respirando com dificuldade em tiques convulsivos, e olhou para Reva com os
mesmos olhos arregalados e insanos, sorrindo com uma afeição genuína que fez
a mão de Reva coçar por uma espada.
Ficou ciente mais uma vez dos sons da batalha e ao erguer os olhos viu que o
conflito havia se espalhado pelas arquibancadas, onde os cidadãos volarianos se
encolhiam à medida que a luta prosseguia à sua volta. Parecia que os
cumbraelinos haviam recebido reforços da Guarda do Reino, os combatentes
livres de Lorde Nortah, a julgar pela quantidade de mulheres em suas fileiras.
Ela também avistou o cabelo louro do Escudo esvoaçando nas arquibancadas
inferiores, lutando ao lado de várias dezenas de Garisai libertados. Fez uma prece
ao Pai para garantir que Allern estivesse entre eles. Os grupos de vermelho e
preto estavam diminuindo diante do ataque combinado, apesar de, como sempre,
os Arisai não demonstrarem qualquer consternação com a própria morte
iminente, lutando até o fim e rindo conforme morriam.
Reva teve um sobressalto quando a Imperatriz deu um rosnado alto e
entrecortado, agitando os braços para tentar se levantar, o olhar fixo em algo na
extremidade norte da arena, uma única palavra discernível em meio aos
balbucios sufocados pelo sangue.
— Vadia!
A Rainha Ly rna Al Nieren atravessou a areia, acompanhada pelo imenso
Lorde Protetor e por um irmão alto e idoso da Sexta Ordem que Reva não
reconheceu. Cerca de uma dúzia de Guardas do Reino se espalharam de ambos
os lados quando ela foi em direção a Reva, dispensando a sua mesura com um
aceno e a abraçando de forma calorosa.
— Minha senhora. Por favor, aceite as minhas sinceras desculpas por não tê-
la encontrado mais cedo.
CAPÍTULO TREZE
Vaelin
Eles foram obrigados a abrir caminho à força por uma horda de volarianos em
fuga, todos em pânico e lívidos demais de terror para até mesmo reconhecer um
grupo de invasores estrangeiros. Muitos disparavam através das flores rubras dos
dois lados da estrada, sem levar qualquer bagagem ao fugir, os horrores recentes
estampados nos rostos pálidos. Em comparação, as famílias se moviam em
grupos compactos e cautelosos, segurando os seus poucos fardos e mantendo as
crianças perto, os rostos pequenos chorosos ou paralisados de medo.
Astorek abaixou-se e puxou um homem da multidão, um calvo de meia-idade
vestido de cinza com um menininho agarrado ao seu lado. Ele respondeu às
perguntas do xamã num tom seco, o servilismo habitual superando o seu pavor.
— A Imperatriz soltou os seus Arisai na cidade — informou Astorek, largando
o homem de cinza, que cambaleou em frente sem parar. — Eles estão matando
todo mundo. O homem parecia achar que era uma punição por não comparecer
à arena, apesar do fato de que o lugar jamais poderia comportar todos eles.
Vaelin virou-se para o Aliado, que encarava os refugiados apenas com um
vago interesse.
— Isso é obra sua? — perguntou ele.
O Aliado encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.
— Ela era louca mesmo antes de eu capturá-la. E essa gente sempre instigou
o seu ódio.
Eles seguiram em frente, livrando-se da turba em fuga após mais um
quilômetro e meio, e entraram na cidade. O distrito leste parecia ser o quadrante
dos mercadores, repleto de armazéns e canais, cujas águas escuras estavam
apinhadas de cadáveres boiando. De vez em quando pessoas aturdidas entravam
em seu caminho, feridas ou anestesiadas pelo choque. Eram recebidos por
horrores a cada esquina; mulheres choravam sobre filhos assassinados e crianças
perplexas cutucavam pais mortos. Vaelin fechou o coração a tudo aquilo e fez
Cicatriz trotar mais rápido, mantendo o olhar fixo na forma arqueada da arena
que se erguia do centro da cidade. Ele lançava olhares indagadores a Kiral sem
parar, e a garota apenas confirmava a melodia urgente de sua canção.
Após uma cavalgada tortuosa de uma hora, eles adentraram o parque que
cercava a arena e lá Vaelin forçou Cicatriz a disparar a todo galope, ouvindo uma
cacofonia cada vez mais alta ao se aproximarem da grande construção dourado-
avermelhada. Avistou algo pelo canto do olho e ao se virar viu uma fila de
pessoas correndo na direção da parede sul da arena, talvez quinhentas, todas
armadas. Vaelin encarou a figura que ia à frente, discernindo o manto azul-
escuro e o modo preciso e familiar com que corria. Virou Cicatriz para a
esquerda, saltando sobre cadáveres e disparando sobre mármore e grama, indo
se colocar no caminho dos combatentes, quando então parou o cavalo e ergueu a
mão.
Eles começaram a parar lentamente quando Frentis ergueu a espada. Eram
um bando estranho, homens e mulheres de armaduras mistas e com as marcas
de uma batalha recente; algumas de cores volarianas, outras de origem
claramente alpirana ou do Reino. Vaelin soltou um suspiro de alívio ao ver
Artesão entre eles, no meio do único grupo daquela companhia que tinha uma
aparência de fato militar.
— Irmão! — cumprimentou-o Frentis, correndo para o seu lado. Vaelin ficou
espantado com a sua aparência, sujo de sangue e fuligem da cabeça aos pés, a
lâmina da espada manchada de vermelho de uma ponta à outra. No entanto,
ficou aliviado pelo olhar dele, envelhecido desde que o vira pela última vez, mas
firme e desprovido da loucura que parecia ter tomado conta daquela cidade.
Vaelin acenou com a cabeça para Artesão e os volarianos dispostos de forma
ordenada em volta dele.
— Eles são Varitai?
— Eles se chamam Politai agora — disse Frentis. — Significa
“desacorrentados” em volariano antigo.
Vaelin olhou por sobre o ombro quando os guardas de Orven e os Senthar
surgiram com o Aliado entre eles, sua postura agora consideravelmente mais
alerta ao passar os olhos pela arena. Vaelin notou o sorriso que ele tinha nos
lábios. Agora não vê mais necessidade de esconder a sua expectativa.
— Desacorrentados — repetiu ele, virando-se de novo para Frentis. — Tal
como você foi, irmão.
Frentis assentiu, franzindo um pouco a testa, intrigado.
— A Senhora Reva — disse ele, apontando a espada para a arena. — Tenho
informações seguras…
— Eu sei. — Vaelin desmontou de Cicatriz e desembainhou a espada,
seguindo a passos largos para a arena, e fez sinal para que Frentis o seguisse,
falando em voz baixa: — Não temos muito tempo, então escute bem…
Todos os sons de batalha haviam cessado quando entraram na arena. Tinham sido
atrasados por alguns Kuritai que encontraram no labirinto de corredores que os
levara até ali, mas os Senthar e os guardas eram numerosos e habilidosos o
suficiente para matá-los sem dificuldade. O olhar de Vaelin percorreu as
arquibancadas ao redor quando pisou na areia, encontrando apenas um terço
delas ocupado, onde aglomerados nervosos de cidadãos volarianos mantinham-se
afastados das companhias de Guardas do Reino e arqueiros cumbraelinos. A
Rainha estava no meio da arena, sorrindo ao trocar palavras com Reva, ao lado
do que parecia ser alguma espécie de macaco monstruoso, morto com uma
lança cravada nas costas.
Reva correu até ele quando se aproximou, dando-lhe um abraço forte e
caloroso.
— Atrasado desta vez — disse ela, repreendendo-o. Reva recuou e deu um
tapa brincalhão em seu rosto.
Vaelin assentiu e forçou um sorriso, fazendo uma mesura para a Rainha
quando ela se aproximou para cumprimentá-lo.
— Alteza. Fico feliz em ver que está bem.
— Digo o mesmo, meu senhor. — Vaelin achou o olhar dela estranhamente
frio, o sorriso sincero que lhe mostrara no passado agora mais deliberado. A
maior conquistadora da história do Reino, lembrou a si mesmo. Mais do que uma
rainha agora.
— E a Senhora Dahrena? — perguntou Ly rna, percorrendo com os olhos a
companhia atrás dele.
Vaelin a olhou nos olhos e sacudiu a cabeça, notando o breve espasmo de
perda de compostura revelado por ela, seu rosto ficando anuviado por um pesar
genuíno.
— Uma… grande perda, meu senhor.
O olhar de Vaelin foi atraído por um som sufocado atrás da Rainha, onde
notou outro corpo caído ao lado do macaco monstruoso, os olhos dela fixos não
nele, mas em Frentis. Os lábios da mulher se moveram em alguma forma de
saudação, cuspindo sangue na areia e retorcendo as mãos.
— Permita-me apresentar a Imperatriz Elverah do Império Volariano —
disse a Rainha.
Vaelin viu como Frentis empalideceu e se remexeu ao seu lado,
aparentemente incapaz de desviar os olhos da moribunda, que continuava a
cumprimentá-lo. Vaelin encarou o irmão até que Frentis se virasse e retribuísse
seu olhar fixamente, esperando que ele se lembrasse de sua tarefa. Frentis fez
um aceno quase imperceptível com a cabeça e deu as costas à Imperatriz,
fazendo com que ela soltasse um gemido desolado e cravasse as unhas na areia,
tentando desesperadamente se arrastar para perto dele.
— Também tenho uma apresentação a fazer — disse Vaelin à Rainha,
fazendo sinal para que os guardas de Orven trouxessem o Aliado.
— Seu dotado imortal? — perguntou a Rainha, lançando um olhar crítico à
forma amarrada do Aliado. Ele retribuiu o olhar dela com distração e ergueu a
cabeça para as arquibancadas ao redor, estreitando os olhos numa maquinação
cuidadosa.
— Não exatamente — disse Vaelin. — Não sei o seu nome verdadeiro, mas
nos acostumamos a chamá-lo de Aliado.
— Nunca gostei desse nome — comentou o Aliado em voz baixa. — Talvez,
daqui a alguns anos, vocês criem um melhor. Algo mais poético. Vejam bem, eu
decidi me tornar um deus.
Vaelin abriu a boca para mandá-lo se calar e parou. Tentou erguer o braço da
espada e viu que estava imóvel. Tentou se virar para Frentis, mas o seu pescoço
recusou-se a se mover. Perdeu toda a sensação nos membros e apenas o seu
peito se movia, continuando a respirar, e seus olhos, que iam de um lado para
outro num pânico ligeiro. Ele podia ver a Rainha, paralisada com o mesmo rosto
franzido de escrutínio crítico, Lorde Iltis atrás dela, imóvel feito uma estátua,
assim como todos os outros seres vivos à vista, até mesmo os que se encontravam
nas arquibancadas acima. A arena estava em silêncio agora, exceto pelos
suspiros agonizantes da Imperatriz e pelo som dos passos leves do Aliado na areia
ao se aproximar de Vaelin e olhá-lo nos olhos.
— Você perguntou sobre o meu dom — disse ele. — Ei-lo, ou um deles.
Tantos anos desde que o usei neste mundo sem a necessidade de um
intermediário. Não é tão desgastante agora, graças a você e ao seu amigo
imortal. Está vendo? — Ele inclinou a cabeça, virando-a de um lado para outro.
— Nada de sangue. Imagino que este corpo irá me sustentar por um bom tempo.
Talvez até a morte deste mundo, embora eu não tenha desejo algum de
testemunhá-la.
O Aliado se afastou e parou para olhar atentamente para Ly rna e depois para
Reva, visível apenas pelos cantos do olho de Vaelin, tão imóvel quanto todos os
outros.
— Tão bem-feita — disse o Aliado, mantendo o olhar em Reva. — É uma
pena desperdiçá-la, mas esta aqui irá precisar de uma recompensa se for
continuar como minha serva.
Ele se afastou de novo e foi até a Imperatriz, o único corpo à vista que não
estava paralisado, embora os seus movimentos agora se limitassem a leves
tremores. O Aliado ajoelhou-se ao lado dela, inclinou-se para trás e pressionou as
cordas em volta de seu torso contra as garras de aço que saíam da mão do
macaco morto. Ele fez uma careta com o esforço, subindo e descendo várias
vezes até as amarras cederem.
— Ahh — suspirou o Aliado, levantando-se e jogando as cordas de Alturk
para o lado. — Assim é melhor. — Ele flexionou os braços por um momento e
então se agachou para examinar a Imperatriz, apertando os lábios ao notar o
brilho tênue ainda visível no olho dela, grunhindo de satisfação. — Já fui
chamado muitas vezes de arrogante — disse ele, olhando para Vaelin. — E
confesso certa relutância em admitir fracassos. Porém, tantos anos de
consciência fizeram com que eu apreciasse a humildade com novos olhos. Eu
fracassei, é claro, e Lionen me torturou até a morte por isso. Mas foi o método e
não a intenção que me derrotou. O método era falho. Tentar matar todos os
dotados do mundo pessoalmente, mesmo com a habilidade de corromper almas
maliciosas o suficiente aos meus propósitos, era uma tarefa grande demais. No
entanto, tive tempo de sobra para pensar numa nova abordagem.
Ele se abaixou até a areia, recolheu uma espada curta e colocou um pé sob o
corpo da Imperatriz, virando-a de barriga para cima.
— Por que tentar o impossível? — perguntou ele a Vaelin. — Quando a
cobiça infinita da humanidade pode fazer isso por mim? Esse seria o papel dos
volarianos, que foram moldados para servir aos meus propósitos. Nunca lhes
ocorreu por que eu sempre me assegurava de que jamais houvesse o suficiente.
Não importava quantos criassem nos fossos, eu simplesmente dava a minha
bênção a outros de seus nobres para que sempre precisassem de mais, fossem
compelidos à expansão, um império criado para conquistar o mundo em busca
de sangue dotado, impelido por sua sede pela vida eterna. Tudo desfeito, graças a
você e a estes outros. Obra do lobo, suponho. Ainda assim, não importa.
O Aliado ergueu a espada acima da cabeça, virou-se para as arquibancadas e
gritou numa voz estridente:
— Prestem atenção! Os deuses antigos voltaram em mim! Um grande poder
corre pelas minhas veias! Vejam a minha bênção!
Ele se aproximou da Imperatriz e encostou a lâmina da espada na carne do
próprio braço, fazendo um corte pequeno, mas fundo. Baixou o ferimento até o
rosto da Imperatriz e deixou que o sangue pingasse em seus lábios. A princípio ela
mal reagiu, os lábios exibindo apenas um leve tremor, mas logo a sua boca se
abriu mais, permitindo que o sangue escorresse para a garganta, fazendo com
que as suas costas se arqueassem. O Aliado afastou-se enquanto ela continuava a
convulsionar, jogou a espada de lado e arrancou um pedaço da camisa para
enfaixar o ferimento.
— Já que você me privou de meu império — disse ele a Vaelin, rangendo os
dentes em volta do trapo ao apertá-lo —, construiremos outro.
O Aliado se aproximou e parou mais uma vez ao lado de Ly rna, percorrendo
o rosto perfeito dela com os olhos.
— Ela será a Rainha Salvadora, que veio do outro lado do oceano para livrar
o povo volariano do reinado homicida da Imperatriz Elverah. E você — sorriu ele
a Vaelin — será o grande e nobre general. Pense nos exércitos que criarão
juntos, nas terras que conquistarão. E em cada terra que capturarem, vocês irão
procurar os dotados.
O seu sorriso se evaporou ao se aproximar de Vaelin, o rosto perdendo toda a
simulação de humanidade, a malícia pura daquela coisa revelada num rosnado
trêmulo.
— E você irá sacrificá-los ao seu novo deus. Pode levar décadas, pode ser
que eu faça você ter filhos com a minha rainha-fantoche para que eles possam
continuar o trabalho. Mas, com o tempo, os dotados deste mundo desaparecerão
e eu finalmente poderei seguir em frente.
O Aliado aproximou-se ainda mais e baixou a voz até se tornar um sussurro:
— As pedras cinzentas foram as fundações da nossa grandeza, receptáculos
de memória e sabedoria, capazes de transmitir os nossos pensamentos através de
vastas distâncias. Com elas construímos uma era de paz e sabedoria, então
encontramos a pedra negra e achamos que fosse outra bênção. Ah, as dádivas
que concedeu! À minha esposa, o poder de curar; ao seu irmão, a habilidade de
atravessar as brumas do tempo. Dons tão maravilhosos, mas não para mim. Para
mim, a pedra tinha uma maldição. Sabe o que é viver num mundo de harmonia,
um mundo imaculado pela cobiça, e possuir verdadeiro poder? O poder de
comandar com um único toque, o poder de forçar um homem a matar. Eu não o
queria, queria algo melhor, algo mais. Porém, a pedra negra concede apenas um
dom, permite apenas um toque. Pois, como os que a escavaram pagaram caro
ao descobrir, com um toque você recebe um dom, com dois você perde a alma.
“Assim, ano após ano, década após década, eu resisti contra o meu dom.
Construí cidades, ensinei, espalhei sabedoria pelo mundo, e não usei o meu dom
uma única vez. E a minha recompensa? Uma esposa sacrificada para salvar uma
raça de selvagens que não tinha inteligência suficiente para escrever o próprio
nome. Este mundo, este mundo de feras imperfeitas que se consideram acima da
natureza. Que lealdade eu lhe devia agora? Por que não tomar o que me havia
sido negado?
“Não me lembro de seu nome, mas ele foi o primeiro a tocar na pedra negra,
o primeiro a receber um dom. Um poder imenso, como o meu, um poder que
ele preferia não usar. Mas havia ocasiões em que ele o demonstrava, mantendo
voluntários imobilizados durante horas. Seria possível pensar que era um
divertimento inofensivo. Porém, eu vi o que era de fato: uma barreira, uma
anulação do poder que me fora concedido.
“Com o tempo nos tornamos grandes amigos. À medida que a idade o
deixava debilitado e ele começou a contemplar as provações que teria pela
frente, não foi difícil persuadi-lo a uma última aventura, um segundo toque na
pedra que o pouparia de tanta dor, deixando o seu corpo vazio, enquanto o seu
dom permaneceria em seu sangue.
“Eu não sabia, é claro. Não percebi o que estaria libertando. Nós tocamos em
algo, veja bem. Quando encostamos na pedra negra. Tocamos em algo além
deste mundo. Outro lugar, um lugar onde o que você chama de Trevas é
supremo, um lugar de caos absoluto. Ao fazer com que uma alma tão poderosa
tocasse na pedra, perfurei o véu entre os mundos e o soltei no nosso, e ele se
espalhou por toda a terra como uma praga, fundindo-se a algumas almas,
entrando no sangue delas de maneira que cada geração daria origem a mais, e
criando assim uma armadilha para as suas almas. Pois nós as tornamos reais. Ao
lhes dar um lugar onde residir, criamos a alma. Havíamos criado a vida após a
morte. São elas que me mantêm no Além. O poder delas me sustenta, alimenta e
me mantém cativo naquela prisão eterna. Tentei muito não fazer isso, mas
mesmo lá, num lugar sem forma ou qualquer sensação que não o frio
interminável, mesmo lá o instinto de me alimentar é irresistível, e se não restar
nenhuma alma aqui, não haverá mais nada para me sustentar quando eu decidir
abandonar esta carne.”
Ele recuou e o seu semblante estranho retomou a impassibilidade anterior.
— Para falar a verdade, eu não tinha certeza de que poderia deturpar você
aos meus propósitos. Algumas almas simplesmente não possuem a malícia que
as tornam instrumentos úteis. Mas então vi você cortar fora a cabeça daquele
animal no norte. Não pense que não sou generoso. — O Aliado ergueu a mão e a
estendeu na direção da testa de Vaelin. — Também farei de você um deus, se
quiser.
A mão parou a um centímetro da pele de Vaelin e os olhos do Aliado se
arregalaram em choque ao ver o punho fechado sobre o seu pulso.
— A semente germinou — disse Frentis.
CAPÍTULO CATORZE
Frentis
O Aliado bateu com a mão livre no punho de Frentis; seu rosto estava contorcido
e a pele ficou vermelha enquanto tentava usar o seu dom. Frentis afastou a mão
dele com um tapa e o empurrou, forçando-o a ficar de joelhos.
— Eles estão presos a mim para sempre — rosnou o Aliado para ele,
gesticulando para as figuras paralisadas ao redor. — Enquanto eu estiver vivo
neste mundo, eles são meus. Somente a morte desta carne irá libertá-los.
Frentis o ignorou e olhou com expectativa para a porta aberta na extremidade
norte da arena.
— Então foi por isso que Revek se agarrou à sua casca por tanto tempo. — O
Aliado deu uma gargalhada rouca. — Assumir outra o teria deixado mais uma
vez suscetível ao meu toque. Então ele lhe deu o seu sangue para libertar você
assim como ele havia se libertado. — O júbilo dele desapareceu e o Aliado
sibilou para Frentis, os olhos brilhando com uma promessa maligna. — Você não
devia ter revelado esse segredinho, garoto. Tudo o que conseguiu foi garantir a
morte de todos que já estiveram sujeitos a mim. Embora eu possa levar anos.
Acha que o tempo é uma barreira para mim? Os séculos que aguentei no
Além…
Frentis lhe deu uma bofetada no lado da cabeça, e a força do golpe foi
suficiente para deixar o Aliado atordoado e quase desmaiar.
— Você parece assustado demais para um deus.
— Amado.
Ela estava de pé ao lado do corpo do macaco, vermelha da cabeça aos pés,
mas novamente ilesa: os talhos que haviam sido abertos em seu peito estavam
fechados e lisos. O rosto era o de uma estranha, mas o olhar era o mesmo: de
afeição altruísta, de amor verdadeiro.
— Você trouxe o curandeiro? — perguntou ela.
Frentis olhou de novo para a porta e viu a garota lonak entrar, conduzindo
Lekran e os Politai para a arena. Vaelin havia dito a ela que esperasse até que a
sua canção lhe dissesse que era seguro. Artesão vinha à frente dos Politai,
mantendo o olhar fixo no Aliado.
— Vejo que trouxe — observou a mulher. — Imagino que não faça diferença
agora. Parece que o seu irmão encontrou um receptáculo melhor.
Frentis virou-se de novo para ela e notou que a mulher havia recolhido uma
espada curta da areia e ia determinada na direção da Rainha.
— Não! — gritou ele, bloqueando o caminho dela.
A mulher parou e soltou um suspiro de frustração.
— Ela tirou você de mim — explicou a mulher com sua voz de tutora
impaciente. — É necessário um ajuste de contas.
— Sim. — Ele ergueu a própria espada. — Sim, é necessário.
— Não está vendo? — disse a mulher, repreendendo-o com uma raiva súbita,
apontando para o Aliado. — Ele está enfraquecido agora. Beberei o sangue dele
e tomarei os seus dons. O mundo pode ser nosso.
— O que você faria com ele? Hoje atravessei lutando uma cidade de
horrores, todos causados por você. Como pode sonhar que eu permitiria que
fizesse isso com o mundo?
— Porque você me ama! — Os olhos novos dela eram bonitos, Frentis notou.
Lagos escuros e límpidos numa máscara pálida, sem qualquer crueldade, mas
completamente loucos.
— Você está doente — disse ele. — E eu trouxe o curandeiro…
Ela soltou um grito de frustração e tentou desviar dele, estendendo a espada
para as costas expostas da Rainha. Frentis forçou a lâmina para o lado com a sua
e tentou agarrar o pulso da mulher na esperança de desarmá-la. Ela era rápida
demais e girou para longe, deixando um corte em seu ombro.
— Você fala de doença — rosnou ela. — Vivemos num mundo de doenças.
Você lamenta pelos que matei hoje. Alguém já lamentou por mim? Matei
durante décadas para construir este império de imundície e ganância. Era meu
para destruir.
Frentis sentiu o braço esquerdo adormecer enquanto o sangue quente escorria
pelas suas costas.
— Por favor! — implorou ele. — Se ele consegue curar um corpo, talvez
consiga curar uma mente.
A mulher parou por um segundo e franziu a testa, confusa.
— Na noite em que matei meu pai, ele não estava com medo. Escarneceu de
mim, cuspiu com desprezo. Ele disse, “Eu devia ter bebido o seu sangue na noite
em que bebi o da vadia da sua mãe”. Ele pode curar isso?
— Não sei. — Frentis estendeu a mão na direção dela, o braço gelado e
trêmulo. — Mas podemos…
A flecha a atingiu no peito, seguida depressa por outras duas. A mulher
cambaleou, a confusão sumindo ao ver as penas, com uma expressão de
compreensão total e sã no rosto.
A garota lonak foi para o lado de Frentis com a corda do arco puxada e
disparou outra flecha no pescoço da mulher, que desabou na areia. Frentis
observou a garota se aproximar e chutar com força o cadáver, estreitando os
olhos enquanto examinava a mulher à procura do menor sinal de vida. A lonak
olhou para Frentis e franziu o cenho com o que viu em seu rosto.
— A canção foi clara — disse ela.
Ele ouviu um leve gemido às suas costas e virou-se, vendo Artesão segurar
com gentileza o homem caído na areia e fazendo-o se sentar. Os Politai os
cercavam com as lanças apontadas para o Aliado.
— Há uma grande doença em você — disse Artesão. — Deixe-me ajudar.
Os sentidos do Aliado pareceram retornar quando Artesão o abraçou com
força, lutando debilmente e então jogando a cabeça para trás para gritar.
P ART E V
Aquele sobre o qual se descubra ter difundido a mentira de que a vida humana
pode ser prolongada através da prática abominável do consumo do sangue dos
dotados estará sujeito à detenção sumária e sua punição será determinada de
acordo com a Palavra da Rainha. Quaisquer obras que contenham esta mentira
estão sujeitas à apreensão e destruição imediata.
— O Décimo Decreto da
Rainha,
assinado de bom grado por
ela como Lei do Reino no
sexto ano de seu reinado
RELATO DE VERNIERS
Apesar dos dedos grossos, Raulen possuía uma letra bela e fluida que estava à
altura de qualquer escriba. Além disso, a sua voz de leitura era igualmente
competente, e ele recitou as palavras que eu acabara de ditar num tom regular e
sem deslizes.
— “… e, assim, a Rainha Lyrna Al Nieren pisou mais uma vez no solo de sua
amada terra natal” — leu ele. — “E a sua vingança seria terrível.”
— Muito bom, Raulen — falei. — Acho que já chega por hoje.
— Obrigado, meu senhor. — Ele se levantou do banco e foi até a porta da cela.
— A mesma hora amanhã, então.
— Meu julgamento começa amanhã — lembrei-lhe.
— Sim. — O carcereiro suspirou, parando na porta e forçando um sorriso. —
Sem dúvida esta grande obra será terminada quando a sua inocência for provada.
— Sem dúvida. — Retribuí o sorriso, grato pela mentira.
— Até mesmo os seus carcereiros são eruditos — observou Fornella depois
que a porta pesada foi fechada, deixando-nos sozinhos. Ela estava sentada no
catre estreito, cercada por maços de pergaminhos. Sem ter muito mais com o que
se ocupar durante os longos meses de nosso cativeiro compartilhado, ela assumira
a tarefa de traduzir o meu manuscrito para volariano, apesar da plena consciência
de ser mais provável que o trabalho permanecesse inacabado.
Meus olhos percorreram o seu cabelo agora quase todo branco, preso para
trás num coque firme. Nas últimas semanas, leves manchas vermelhas haviam
surgido na pele de seu couro cabeludo e de suas mãos e as rugas em volta dos
olhos estavam cada vez mais fundas, embora ela suportasse tudo sem reclamar.
Apesar das muitas mensagens que pedi que Raulen transmitisse a cada oficial
imperial de que consegui me lembrar, Fornella não teve permissão para deixar a
cela uma vez sequer para dar o aviso que trazia consigo. Nossa jornada havia sido
de fato um fracasso abjeto e parecia que a sobrevivência do império agora
dependia inteiramente dos propósitos vingativos da Rainha Lyrna. Eu sabia que
era uma esperança absurda. Apesar de toda a sua inteligência e da astúcia
marcial de Al Sorna, o Império Volariano era monstruoso. É necessário um
império para destruir um império, concluí, pegando uma pena e um pergaminho
para anotar isso.
— Espero que seja algo para ajudar na sua defesa — disse Fornella, erguendo
a cabeça do próprio trabalho.
— Eu não tenho defesa, a não ser a verdade. E isso não me servirá de nada
agora. A Imperatriz, em sua sabedoria e benevolência, designou não menos do
que seis advogados instruídos para me representar no julgamento. Todos eruditos
legais experientes de impecável reputação e, como vi com clareza em seus rostos,
sem absolutamente nenhuma esperança ou expectativa de conseguir a minha
absolvição. Escutei com educação todos eles antes de dispensá-los do dever com
a declaração de que eu iria conduzir a minha própria defesa, o que lhes causou
um alívio evidente.
— A garota estava mentindo — prosseguiu Fornella. — O mais cego dos tolos
poderia ver isso.
— E se eu fosse julgado por um júri de tolos cegos, talvez tivesse uma chance.
Mas haverá apenas uma jurada, e ela está longe de ser cega. Contudo, nem
mesmo ela pode me negar o direito de falar após ser condenado. Só posso esperar
que haja ouvidos para escutar o aviso.
Não obstante a calma que eu mantinha, uma calma que confesso ainda me
desconcertar, não consegui dormir aquela noite. Eu passara a noite organizando o
manuscrito e escrevendo um esboço para Raulen a respeito dos capítulos finais.
Ele concordara em levar cópias a alguns eruditos seletos que eu conhecia,
embora eu desconfiasse que aqueles que não as queimassem de imediato
poderiam tentar declará-las como obras próprias. Outra cópia seria entregue ao
Irmão Harlick em Varinshold, onde pelo menos teria um lar na Grande Biblioteca
que ele esperava reconstruir. Quando a pequena janela gradeada sobre a minha
cama começou a ficar escura, peguei uma pena e escrevi as palavras “Uma
História do Reino Unificado” numa folha de pergaminho em branco, um pouco
contrariado pelo fato de que a minha letra não era tão elegante quanto a de
Raulen, e a coloquei no alto da pilha organizada.
Deitei-me no meu catre em busca do descanso que eu sabia que não viria e
ponderando sobre uma questão de arrependimento profissional. Nunca ouvi o
relato completo de Al Sorna.
Em algum momento após a meia-noite, o meu cochilo parcial foi interrompido
por um leve rangido. Levantei-me, piscando na penumbra e sentindo meu coração
disparar ao ver a porta da cela se abrir lentamente.
Ela decidiu não esperar por um julgamento, concluí quando a minha calma
perene se desfez, e olhei desesperado em volta à procura de algum tipo de arma.
No entanto, Raulen era um carcereiro diligente demais para permitir que um
prisioneiro tivesse qualquer instrumento além do pequeno castiçal de madeira à
luz do qual eu escrevia.
Eu esperava Hevren, ou mais provavelmente algum servo imperial anônimo
com a habilidade de elaborar um suicídio convincente a partir de um assassinato.
Porém, a porta ao se abrir revelou uma forma esguia num vestido negro, de olhos
arregalados e assustados ao fazer sinal para que eu a seguisse com uma urgência
desesperada. Jervia.
Por um segundo só consegui olhar espantado enquanto ela continuava a
gesticular e os seus movimentos se tornavam mais frenéticos, então saí do catre,
vesti-me depressa e fui até Fornella. Durante estas semanas ela dormira mais
profundamente do que eu, quer pela chegada rápida da velhice, quer por uma
consciência aliviada. De qualquer forma, foram necessárias várias tentativas para
acordá-la e outras tantas para persuadi-la a sair da cama.
— Por que ela está aqui? — sussurrou Fornella, franzindo bastante a testa
enrugada ao encarar Jervia, que se remexia pouco à vontade no corredor.
— Eu não sei — respondi, voltando para o meu catre para calçar os sapatos. —
Porém, temos uma porta aberta, e pretendo usá-la.
Jervia colocou a mão sobre a minha boca quando me aproximei da porta para
impedir perguntas sussurradas, recuando e fazendo sinal para que eu a seguisse.
Olhei para Fornella, que agora estava vestida, mas não menos desconfiada.
— Não tenho certeza se consigo correr — sussurrou ela ao chegar do meu lado
e segurar a minha mão.
Eu a conduzi ao longo do corredor, passando pelas outras celas — notei que
estavam todas vazias — e indo até onde Jervia aguardava, junto ao portão
gradeado. Parei de súbito ao avistar Raulen, que estava posicionado ao lado do
portão e o mantinha aberto.
— Está tudo bem — sussurrou Jervia. — Ele não nos vê.
Aproximei-me do carcereiro e observei o seu rosto: tinha os olhos focados,
mas não em mim, um sorriso afetuoso nos lábios; o rosto de um homem que
contemplava uma visão que sempre estimara muito.
— Você fez isso — sussurrei para Jervia, esgueirando-me por Raulen e indo
para o lado da mulher.
Ela deu um sorriso nervoso.
— A filha dele morreu em Marbellis. Eu a devolvi a ele.
Dotada, compreendi, olhando de novo para o carcereiro com uma nova
apreciação pelo seu senso de dever. Todos aqueles anos com o Matador do
Esperança ao seu alcance e ele nunca tentou se vingar.
— Não vai durar — disse Jervia, puxando a minha manga.
Ela me conduziu pelos parcos alojamentos de Raulen até a ala norte do
palácio, que era apenas levemente mais ornamentada, composta por uma série de
depósitos e alojamentos onde o exército de criados imperiais dormia. Encontramos
somente dois guardas, todos com a mesma expressão de ilusão concentrada de
Raulen. Vi Jervia passar o punho da manga pelo rosto enquanto prosseguíamos,
notando a mancha escura de sangue em sua pele e imaginando o tamanho do
esforço que ela estava exercendo para facilitar a nossa fuga.
Atravessamos o pátio agachados, embora os dois guardas no portão norte não
tivessem demonstrado qualquer sinal de notar nossa passagem.
— Precisamos nos apressar — disse Jervia, rumando para a terra relvada que
se encontrava além da estrada. — As ilusões irão desaparecer logo.
— A estrada… — comecei, mas ela sacudiu a cabeça.
— Vigiada demais, meu senhor. Tenho uma corda presa no penhasco e um
barco aguardando no rio.
— Eu… — ofegou Fornella, e parou; seu rosto estava abatido à pouca luz do
luar. — Não posso.
— Não é muito longe…
— Deixem-me — gemeu ela, dobrando-se para a frente e caindo de joelhos,
enchendo os pulmões com arfadas irregulares.
— Meu senhor! — implorou Jervia.
Agachei-me e passei o braço em volta dos ombros de Fornella, franzindo o
cenho ao ver o seu rosto, os olhos alertas com um aviso e sem sinal de fadiga.
— É ele — sussurrou ela. — O Mensageiro. Conheço o fedor dele.
Empertiguei-me e encontrei o olhar de Jervia, vendo apenas uma jovem
assustada forçada a cometer um ato corajoso.
— Um momento, por favor — falei. — Ela está envelhecendo a cada dia que
passa.
Jervia assentiu com relutância, olhando sem parar ao redor à procura de
qualquer sinal de perseguição.
— Diga-me — falei. — Que ameaças a Imperatriz fez para coagi-la a dar
aquele testemunho?
Uma careta de aflição surgiu no rosto da jovem.
— Meu pai foi preso acusado de traição. Logo quando começamos a receber
notícias do que havia acontecido no Reino Unificado.
— Ela sabia que o meu retorno seria iminente, e então preparou a armadilha.
— Suponho que sim.
— E quanto àquela história ridícula sobre a espada?
— Inventada por Lorde Velsus, por ordem da Imperatriz. Eu não tive escolha,
meu senhor.
— É claro. — Apertei o ombro de Fornella e me afastei, mantendo uma
distância da nossa libertadora. — Conheço Lorde Velsus há quase vinte anos. Ele é
um intimidador arrogante, convencido e opinioso. Mas nunca foi um mentiroso,
visto que desconfio que ele não possua imaginação suficiente para engodos.
Ela não disse nada, mas notei como os seus olhos se estreitaram e como levou
a mão às dobras do vestido.
— Você desempenhou bem o seu papel — falei, continuando a me afastar de
Fornella, e Jervia girou para acompanhar cada passo que eu dava, os músculos
de seu antebraço retesando-se ao apertar algo com força. — Tão relutante e
arrependida, determinada a ganhar a minha confiança quando foi abrir a porta da
minha cela. Quando aconteceu? Foi quando você contraiu a Mão Vermelha?
Ela olhou depressa para Fornella, que agora gemia e balançava a cabeça
grisalha para a frente, e então se virou para mim com um rosto diferente. Era
como se tivesse realizado algum truque de mágica, trocando o rosto de uma
donzela doce e corajosa por algo muito mais velho, a malícia evidente em cada
ruga e no sorriso retorcido de escárnio.
— Você não era tão corajoso quando nos encontramos pela última vez — disse
ela, a voz clara de Jervia transformada em algo mais ríspido e familiar.
— Coragem? — Dei uma risada muito baixa. — Considero a coragem apenas
outra das ilusões da vida. No fim, todos nós fazemos o que temos de fazer.
— Muito profundo. E verdadeiro. Pois esta noite você precisa saltar de um
penhasco, após escapar por meio de artes mágicas abomináveis, sem dúvida
aprendidas com os seus amigos no norte. Talvez a culpa o tenha levado a fazer tal
coisa, ou pode ter sido um último ato de desafio. Uma recusa em permitir que a
Imperatriz tivesse a sua justa recompensa por todos os seus atos odiosos. Tenho
certeza de que os eruditos irão ponderar sobre a questão nos anos que estão por
vir.
— Você nunca se cansa disso? De todos esses anos passados cometendo
assassinatos e crueldades? Não deseja ser mais do que o escravo de um monstro?
— Escravo? — Os lábios retorcidos se abriram numa risada. — Ele não me
escravizou. Todos esses anos a serviço dele nunca foram um castigo. Cada vida
tomada, cada semente de caos semeada, tudo isso foi a minha justa recompensa,
pois este mundo merece toda a devastação que eu puder causar. Após você ter
recebido o seu merecido fim, o olhar da Imperatriz inevitavelmente se voltará
para o norte, onde o Reino Unificado se encontra privado de boa parte de seu
poderio bélico, uma vez que a Rainha deles busca a sua vingança ensandecida do
outro lado do oceano. Por que acha que ela está reunindo a sua frota?
— Instigada por mais de suas mentiras, presumo.
— Ela vê muita sabedoria nos meus conselhos e, com o tempo, o pirralho dela
também verá. Eu praticamente a convenci de que a prática de escolher um
herdeiro entre a população é uma tradição arcaica e mesmo insensata. Quem
melhor para governar do que uma criança nascida daqueles que conhecem os
fardos do poder? Uma criança nascida de uma Imperatriz e de um Esperança,
ainda por cima.
Dei um passo involuntário na direção dela, cerrando os punhos de fúria.
— Aquele garoto não é para você.
Ela tirou a mão do vestido e a faca reluziu ao luar quando se agachou,
forçando-me a parar.
— Aquele garoto concluirá a destruição do Reino Unificado e irá conquistar o
Império Volariano — disse ela. — Seus filhos construirão uma frota poderosa para
levar a civilização alpirana a todos os cantos do mundo. Não é para se regozijar
com tal perspectiva, meu senhor? Seu amante sem dúvida se regozijou.
Dei outro passo adiante e ela atacou, a lâmina passando perto o suficiente para
me forçar a recuar.
— Você é uma mentirosa!.
Ela soltou uma risada estridente e satisfeita.
— Ele era um sujeito muito astuto. Tão instruído e fascinado pelas
oportunidades oferecidas por aqueles com dons singulares. Nós não o
corrompemos, Verniers. Não o seduzimos. Ele veio até nós, mas, como sempre, a
lâmina de Al Sorna conseguiu complicar os nossos planos.
Lancei-me sobre ela, minha fúria colocando de lado toda a razão, não me
importando com a faca. Ela se esquivou para o lado, ágil e veloz como qualquer
dançarina.
— Se não acredita em mim — disse ela, parando de girar e gesticulando na
direção do alto do penhasco. — Por que não perguntar a ele?
Eu estava prestes a me atirar sobre ela de novo, mas parei ao avistar algo
cintilando na escuridão para além do penhasco, algo que brilhou com um fulgor
incandescente por um momento antes de assumir uma forma familiar.
Fiquei paralisado, percorrendo com os olhos o seu rosto, com a mente vazia, a
não ser por um pensamento:
— Seliesen.
Ele estava parado lá, sorrindo o sorriso que eu conhecia tão bem, trajando o
manto simples que preferia usar na vida privada, o mesmo manto, na verdade, que
ele vestia na última vez que o vi. Seria preferível, e desonesto, registrar que eu
não fazia ideia de que aquilo era uma ilusão, que eu fui completamente iludido e
que perdi a razão por causa da habilidade perversa do dom roubado do
Mensageiro. Contudo, eu sabia que aquele era um fantasma, sabia que estava
sendo atraído para a minha morte enquanto corria para o alto do penhasco
gritando o seu nome. E eu simplesmente não me importava.
Ele desapareceu quando cheguei a trinta centímetros da beirada, tremeluzindo
como a chama de uma vela soprada pelo vento antes de ser apagada. Gritei de
pesar e pela derrota amarga, caindo de joelhos e berrando os meus chamados
para a escuridão indiferente. A única resposta que recebi foi o suave sibilar do
vento pelo capim.
Virei-me ao ouvir um som de engasgo às minhas costas e vi Fornella arrancar
uma faca do pescoço de Jervia, um jorro fino de sangue escapando ao segurar a
jovem de pé.
— Você devia ter pegado a faca do carcereiro — murmurou ela antes de se
livrar do corpo com uma careta.
Ela caiu de joelhos quando me aproximei, a fadiga óbvia e verdadeira agora, o
sorriso forçado e discreto.
— Eu lhe devia uma vida, não, meu senhor?
Fui até o corpo e, lutando contra a náusea, ergui-o, oferecendo a ela o
ferimento que ainda sangrava.
— Beba.
Ela observou sem muito interesse o sangue escorrer por um momento e então
desviou o olhar.
— Não.
— Isso fará com que se recupere…
— Já estou recuperada. Tire essa coisa da minha frente, por favor.
Deixei o cadáver escorregar de meus braços e me aproximei de Fornella,
amparando-a antes que pudesse cair. Ela se recostou em mim e respirava agora
em arfadas lentas e curtas.
— Logo amanhecerá — sussurrou ela.
Eu podia ver apenas um brilho tênue no horizonte — a alvorada só chegaria
dali a algumas horas —, mas ainda assim a abracei e sussurrei “Sim” em seu
ouvido.
Ouvi as passadas leves de botas no capim, uma companhia inteira, a julgar
pelo som, mas não me dei ao trabalho de me virar quando uma silhueta militar
parou ao meu lado.
— Então a Imperatriz nunca acreditou nela — falei.
Hevren não respondeu de imediato, e havia uma pontada de desconforto em
seu tom.
— Ela estava curiosa para ver o que aconteceria.
— Bem, imagino que isso satisfará a sua curiosidade.
— Sua inocência será proclamada pela manhã. Por ora, ela exige a sua
presença…
— Depois. — Segurei Fornella com mais força, sentindo apenas as batidas
fracas e minguantes de seu coração enquanto o seu cabelo grisalho roçava em
meu rosto. — Minha amiga e eu gostaríamos de ficar mais um pouco e assistir ao
nascer do sol.
CAPÍTULO UM
Vaelin
***
A Rainha reuniu a corte no que fora a casa do Conselheiro Arklev, uma mansão
de terrenos vastos que se beneficiavam de uma muralha alta ao redor e uma
grande sala de audiências. Um pequeno exército de funcionários trabalhava nos
muitos aposentos da mansão para lidar com a copiosa correspondência produzida
por um império que agora se via parte de um Reino. As questões eram muitas e
variadas: de fome no sul a declarações de secessão a leste, onde algumas forças
militares volarianas persistiam, aparentemente devido à atitude pragmática do
governador provincial que levara suas forças para realizar manobras
prolongadas, evitando assim mensageiros imperiais que traziam a sua sentença
de morte.
Nas semanas após a captura da cidade, a Rainha se vira diante de um fluxo
contínuo de requerentes, a princípio dezenas, passando depois a centenas. Vários
grupos rebeldes buscavam reconhecimento, representantes das cidades e
povoados mais tranquilos exigiam proteção contra vizinhos menos plácidos e,
principalmente, mercadores apareciam com ofertas generosas por concessões
comerciais exclusivas.
Vaelin foi recebido na porta da sala pela Senhora Lieza, salva da arena e
agora elevada ao lado da Rainha por virtude de suas habilidades com
correspondências, sem falar no conhecimento profundo das leis e costumes
variados daquela terra recém-conquistada.
— A Rainha pediu que entrasse imediatamente, meu senhor — disse a dama,
cuja habilidade com a língua do Reino aumentava rapidamente.
— Quantos hoje? — perguntou Vaelin quando ela fez sinal para que os
guardas abrissem a porta.
Lieza deu um sorriso tenso.
— Apenas um.
A Rainha estava falando quando ele entrou, o tom surpreendente em sua raiva
contida.
— E a sua Imperatriz espera que eu simplesmente concorde com isso sem
negociação?
Lorde Verniers parecia ter envelhecido desde que Vaelin o vira pela última
vez, embora também parecesse estar um pouco mais empertigado agora e não
demonstrasse muita reação diante da ira da Rainha.
— Ela está fazendo a cortesia de lhe informar sobre suas ações, Alteza —
disse ele. — E não vê motivo para um conflito no tocante a esta questão.
Ele se calou quando Vaelin entrou, parando para fazer uma mesura curta de
boas-vindas.
— Lorde Vaelin — disse a Rainha, cumprimentando-o. — Parece que Lorde
Verniers ficou mais importante desde que nos deixou. Permita-me apresentar o
embaixador alpirano no Reino Unificado.
— Parabéns, meu senhor — disse Vaelin a Verniers, retribuindo a mesura.
— Ele veio me dizer que uma de minhas cidades encontra-se agora nas mãos
de sua Imperatriz — prosseguiu a Rainha.
— Verehl era uma cidade alpirana muito antes do Império Volariano sequer
existir, Alteza — retorquiu Verniers. — E devo salientar que a captura da cidade
ocorreu enquanto a guerra ainda estava em andamento. As ações de uma aliada,
na verdade.
— Uma aliada teria enviado a sua frota para o Estreito e ajudado a capturar
esta cidade, não roubado outra. — Ly rna levantou-se do trono e aproximou-se de
Verniers com o rosto tenso de raiva. — Sua Imperatriz tem alguma noção do
exército que comando agora? Ou da natureza da espada que empunho?
Conquistei um império em poucos meses. Se eu quisesse, poderia conquistar um
mundo.
— Alteza… — começou Vaelin, mas ela fez sinal para que se calasse,
afastando-se e suspirando de frustração.
— Acho que seria melhor se o senhor voltasse amanhã, Lorde Verniers,
quando o meu humor estiver mais adequado à diplomacia. Lorde Vaelin, o
senhor ficará. Temos questões militares a discutir.
Vaelin tocou a manga de Verniers quando ele se curvou e seguiu para a porta.
— E a volariana?
Verniers deu um passo deliberado para trás, para longe dele.
— Ela morreu — respondeu, com o rosto inalterado.
— Sinto muito. Tínhamos informações de que havia um agente do Aliado em
Alpira…
— Ele também morreu. — Verniers curvou-se mais uma vez e saiu da sala.
— O que acha? — Vaelin virou-se e deparou-se com a Rainha
cumprimentando-o com um sorriso, a raiva tendo desaparecido de forma
abrupta. — Talvez um pouco dramático demais?
— Estou certo de que Vossa Alteza sabe como lidar com um embaixador.
— Na verdade, é uma habilidade que estou tendo de aprender com certa
rapidez. Então, acha que devemos retomar Verehl?
— A decisão não é minha, Alteza. E a senhora tem um Senhor da Batalha
para aconselhá-la nas praticidades de tal empreitada.
— Não preciso de Al Hestian para me dizer que seria impossível, pelo menos
por mais um ano. Verehl fica na costa meridional, um lugar bastante
desagradável, ao que tudo indica, cercado pela selva e sujeito a tempestades
anuais de uma ferocidade lendária. Seu único valor está no comércio de
especiarias, que contribui com menos de metade de um centésimo para o tesouro
imperial. Desconfio que a Imperatriz Emeren queira me testar, lançando uma
isca para ver se eu mordo.
— Dada a animosidade entre os nossos povos, uma cidade de pouco valor
parece ser um preço pequeno a se pagar para curar a ferida.
Ela soltou uma risada e sacudiu a cabeça, voltando para o trono.
— Sempre o pacificador, mesmo agora.
— Eu esperava que Vossa Alteza tivesse me chamado aqui para discutir a
minha petição.
— E chamei, embora eu quisesse acrescentar um pouco de espetáculo para
Lorde Verniers. — Ela se sentou no trono e aceitou um copo d’água de Iltis. —
Você quer ir para casa.
— Com a minha irmã, sim.
O rosto de Ly rna ficou um pouco anuviado enquanto bebia.
— Eu soube que a Senhora Alornis está… melhorando.
— Ela tem pesadelos sempre que dorme e, quando está acordada, mexe
constantemente nas máquinas que construiu para a senhora. Alornis me disse que
a cada dia que passa ficam mais letais. Ela parece ansiosa para vê-las em ação.
Eu, não.
— Concordamos que esta guerra precisava ser vencida, Vaelin, e todos
demos muito de nós para a vitória. Sua irmã mais do que a maioria, fato pelo
qual sinto muito. Mas ela é uma mulher adulta e nunca a forcei a ação alguma.
— Ainda assim, mantenho a minha petição e peço a sua resposta.
Ly rna virou-se para Iltis, entregou-lhe o copo e pediu que os deixasse a sós.
— Você precisará de um novo comandante para a Guarda do Norte — disse
ela quando o Lorde Protetor se retirou. — Lorde Adal pediu para ser dispensado
do serviço.
Vaelin assentiu, resignado. Fora difícil dar a Adal a notícia da morte de
Dahrena, piorada pela compostura rígida do homem e pelas respostas secas a
todas as perguntas. No entanto, a acusação em seu rosto ao fazer uma mesura e
se retirar fora bastante evidente. Ela teria sobrevivido se tivesse amado a ele em
vez de a mim.
— Imagino que a senhora encontrará um serviço adequado para ele — disse
Vaelin à Rainha.
— De fato. Estou pensando em criar uma Guarda do Leste para os meus
novos territórios. A guerra nos deixou com muitas mãos capazes para preencher
as fileiras, e quem melhor para comandá-las?
— Uma boa escolha, Alteza. Peço que Lorde Orven seja o seu substituto.
— Como quiser, sujeito a ele concordar com a indicação. Creio que ele
ganhou o direito de escolher os seus comandados.
Ly rna levantou-se de novo e caminhou até a janela. A casa do Conselheiro
Arklev ficava numa colina com uma bela vista para o porto, ainda tomado pela
frota, apesar de um pouco diminuída agora. O Escudo zarpara dois dias após a
captura da cidade, levando consigo talvez um décimo dos meldeneanos. Havia
rumores de uma disputa irascível com o Lorde Almirante, de desafios feitos e
sabres desembainhados, embora Lorde Ell-Nurin parecesse ileso quando Vaelin
tornou a vê-lo, fazendo uma longa mesura para a Rainha quando ela o presenteou
com uma espada e uma concessão de terra na costa sul asraelina.
— Você se lembra da noite em que nos conhecemos? — perguntou Ly rna.
— Vossa Alteza me surpreendeu, eu arremessei uma faca contra a senhora.
— Sim. — Ela sorriu. — Eu a guardei. Ela salvou a minha vida, na verdade.
— Fico feliz.
— Havia uma pergunta que eu lhe fiz na época, uma que não farei de novo,
pois agora tanto a pergunta quanto a resposta são redundantes. Porém, sempre
tive curiosidade: você alguma vez se arrependeu por ter dito não?
Vaelin notou que o cabelo dela estava totalmente crescido agora, mais longo
do que jamais fora, uma cascata dourada à luz da janela. E o seu rosto, a
perfeição de porcelana acentuada pelas poucas e pequenas rugas de experiência
e pela inteligência aguçada que brilhava em seus olhos, não mais sujeita a
qualquer repressão.
— É claro — mentiu ele. — Que homem não se arrependeria?
Artesão estava no meio dos Politai, falando em voz baixa, mas com veemência
enquanto eles se aglomeravam ao redor. Estavam mais animados do que Vaelin
jamais os vira, muitos o interrompiam para falar algo, rostos revelavam
emoções distintas que iam da tristeza à raiva. Os que haviam sido libertados mais
recentemente estavam afastados, as testas franzidas de perplexidade, mas não
deixavam seus irmãos. Frentis dissera que se comportavam sempre assim, que
eram incapazes de ficar sozinhos ou de tolerar a companhia daqueles que não
eram como eles.
Nós libertamos algo?, pensou Vaelin consigo mesmo. Ou desencadeamos?
Depois de mais de uma hora de discussão, Artesão terminou de falar e os
Politai começaram a se dispersar, retornando às casas que ocupavam ao redor.
Aquele distrito havia sido inteiramente despovoado pelos Arisai, deixando
inúmeras residências vazias, embora os ex-Varitai tivessem optado por viver com
doze ou mais deles em cada casa.
— Eles não pareciam felizes — comentou Vaelin quando Artesão foi se
sentar no banco ao seu lado.
— Eles sabem que ainda há outros Varitai escravizados em alguns lugares —
retorquiu o curandeiro. — Libertar todos os irmãos se tornou uma espécie de
missão sagrada.
— Que a Rainha deu a sua palavra de que completaria.
— Sem mim.
— O argumento dela faz sentido…
— E eu não o contesto. O dom do Aliado é algo terrível.
Vaelin percorreu com os olhos o corpo robusto de Artesão, ciente de que
olhava agora para aquele que era possivelmente o ser mais poderoso do mundo.
Ficou um pouco aliviado com a expressão no rosto dele, tão franco e livre de
maquinações como sempre fora.
— Já o usou? — perguntou ele. — Desde a arena?
Artesão sacudiu a cabeça.
— Mas o sinto, agitando-se dentro de mim como uma lagoa fervilhante.
— E o dom de Erlin?
— Só o tempo dirá. Que acomodações a Rainha escolheu para mim no
Reino?
— A guerra deixou muitas propriedades desertas. Você poderá escolher
dentre uma vasta gama de opções.
— É mesmo uma honra poder escolher a própria prisão.
Vaelin nada disse, não querendo dar voz a uma mentira.
— O navio parte com a maré matutina — disse ele, levantando-se e
estendendo a mão.
Artesão piscou, surpreso. Desde a arena, poucos que sabiam dos eventos que
haviam ocorrido lá desejavam falar com ele, e certamente não se arriscavam a
tocá-lo. Sua expressão permaneceu a mesma, mas havia uma nova certeza em
sua voz quando apertou a mão de Vaelin.
— Não estarei lá para embarcar nele, meu senhor. Como desconfio que o
senhor saiba, visto que escolheu vir aqui sozinho sem guardas para cumprir a
Palavra da Rainha.
Vaelin apertou com mais força a mão do curandeiro, segurando-a por mais
um momento antes de soltá-la.
— Para onde você irá?
— Há alguns cantos do mundo que Erlin nunca visitou. E desejo muito ouvir a
canção da Princesa de Jade com meus próprios ouvidos.
— Você possui as lembranças de Erlin?
— De certa forma. Boa parte de seus conhecimentos está comigo, mas não o
modo como ele os obteve. Muita coisa se perde com o passar dos anos.
— Então você também possui os conhecimentos do Aliado?
O rosto de Artesão ficou visivelmente mais anuviado.
— Mais do que eu gostaria.
— Ele falou do lobo. Gostaria de saber o que quis dizer.
— Ele quis dizer… — Artesão franziu o cenho, lutando para encontrar as
palavras certas. — Ele quis dizer que há uma razão para você estar disposto a me
deixar ir. Quis dizer que todos nós, não importando que dons possamos ter, somos
luzes muito pequenas e breves neste mundo. A diferença é que aceito isso de bom
grado, coisa que ele nunca conseguiu fazer.
Ele se levantou e rumou para a casa que dividia com os Politai.
— Mande as minhas lembranças à Rainha, por favor — disse ele, parando à
porta. — E quando ela enviar assassinos para seguir o meu rastro, diga-lhe para
se certificar de ter escolhido bem.
Ele observou Reva da proa do navio, não precisando de canção para saber o que
se passava entre ela e a Senhora Lieza quando se abraçaram no cais. A garota
recuou de cabeça baixa, lutando contra as lágrimas ao voltar para o lado da
Rainha. Reva fez as últimas mesuras e embarcou no navio com o seu alto guarda
às costas; a Guarda do Reino ali reunida ergueu as armas em saudação e deu um
grito que ecoou pelo porto.
— Mais alto do que aquele que você recebeu, irmão — comentou Nortah
com um sorriso.
— Acho que ela fez por merecer.
— Meu bando sequer veio se despedir. Provavelmente ainda estão brigando
sobre a lista de exigências de direito à Rainha.
— Exigências de direito?
— Sim, eles querem escolher os próprios oficiais, querem o fim da posse de
terras e o direito de nomear os conselheiros da Rainha. Pode imaginar? Que a Fé
nos salve dos recém-libertados.
Vaelin juntou-se à Reva na popa quando o navio atravessou a entrada estreita
do porto, os molhes murados repletos de pessoas que davam vivas, suas palavras
sem sentido para ele, mas Reva conseguia compreender algumas.
— Livella renasceu — murmurou Reva, observando a chuva de flores
despejadas ao passarem. — Talvez Varulek tenha os seus deuses de volta, afinal
de contas.
— Varulek? — perguntou Vaelin.
— Um homem morto, e servo de deuses mortos. — Ela passou os olhos pela
multidão animada à medida que o navio se afastava, o timoneiro os levando para
dentro do Estreito enquanto o capitão ordenava que as velas fossem posicionadas
de modo a rumarem para oeste, na direção do oceano distante. — Não faz muito
tempo que muitas dessas pessoas estavam pedindo a minha morte aos gritos na
arena. Agora estão comemorando o fato de eu ter sobrevivido.
— Elas não são as únicas. — Vaelin olhou de relance para o jovem guarda,
que estava a uma distância respeitosa, raramente tirando os olhos da Senhora
Abençoada. — Parece que você também tem o próprio Iltis.
— Concedi uma graça ao Guarda Varesh pelos seus serviços. — Reva deu
um sorriso um tanto forçado para o jovem. — Tudo o que ele pediu foi ficar ao
meu lado. Estou pensando em encontrar outra ocupação para ele quando
voltarmos para casa.
Vaelin virou-se e olhou para os três imensos navios de tropas que agora se
afastavam do cais, carregados de cumbraelinos. Alguns haviam escolhido ficar,
atraídos pelo generoso soldo que a Rainha oferecia a arqueiros experientes, mas
a maioria decidira seguir a Senhora Abençoada de volta ao lar.
— Ouvi dizer que Lorde Antesh já começou a citar o Décimo Primeiro
Livro.
— Ele recuperou boa parte de seu fervor desde Alltor — disse ela. — E mais
ainda desde que chegou aqui. Acho que eu preferia quando ele estava cansado
disso tudo. O mundo seria um lugar melhor se fosse governado por almas
desapontadas.
— Você não deveria anotar isso? A sabedoria da Senhora Abençoada não
deveria ser desperdiçada com um herege.
Reva deu uma risada curta e então baixou os olhos; havia um tom pesaroso
em sua voz quando tornou a falar.
— Contei a Antesh que tudo foi uma grande mentira. Que jamais ouvi a voz
do Pai na minha vida. Não ouvi durante o cerco e não ouvi aqui. Ele disse: “A
senhora é a voz do Pai.”
O olhar de Reva recaiu sobre Alornis, que estava ocupada cuidando da
máquina na amurada a estibordo. O engenho aparentemente podia cuspir fogo
com resultados terríveis, caso os relatos que Vaelin ouvira fossem verdadeiros.
Alornis parecia incapaz de largar a máquina; as mãos habilidosas removiam as
diversas placas para explorar as misteriosas entranhas, o rosto absorto, alheio a
tudo mais.
— Eu jogaria de bom grado aquela coisa no mar — disse ele. — Mas esses
engenhos dela são a única coisa que faz com que os seus olhos mostrem um
pouco de vida.
— Então vamos descobrir por quê.
Reva foi agachar-se ao lado de Alornis e a observou trabalhar por um
momento antes de fazer uma pergunta. Vaelin esperava que sua irmã a
ignorasse, como costumava ignorá-lo, mas ela pareceu ficar entusiasmada,
movendo as mãos com uma animação veemente ao apontar para as entranhas
da máquina, explicando com detalhes cada tubo e manivela enquanto Reva
assentia de forma encorajadora.
Ele as observou durante algum tempo, viu sua irmã relaxar e até mesmo dar
uma ou duas risadas, e então viu o seu olhar ser atraído de forma inexorável ao
volume enrolado em lona que se encontrava amarrado ao mastro principal. As
instruções da Rainha haviam sido claras, sem qualquer ambiguidade, mas Vaelin
percebeu que ainda era atormentado pelas perguntas.
O que faremos com essa coisa?
***
“O futuro sempre é incerto”, dissera ela nas docas, controlando a raiva por
Artesão não aparecer, uma raiva que naquele dia era bastante genuína.
“Encontre a sua mina mais profunda e a enterre lá, e apenas você e eu
saberemos a localização. As Ordens jamais devem saber da existência dessa
coisa”.
Ele esperou até o capitão avisar que haviam chegado à parte mais funda do
Boraelino, quando então disse ao homem para recolher as velas. Era pouco
depois do amanhecer e, com exceção dos marinheiros do turno da noite, ele
estava sozinho no convés. Eles ficaram perplexos quando Vaelin deixou de lado a
marreta que pegara emprestada com o carpinteiro do navio e cortou a corda que
prendia a lona. O tecido caiu e revelou a superfície lisa e imaculada da pedra
negra. Vaelin recuou, pegou a marreta e a ergueu acima da cabeça.
— Pare!
Era Alornis, enrolada num cobertor perto do porão, encarando-o com olhos
arregalados e horrorizados.
— Eu preciso fazer isso — disse ele.
Alornis franziu o cenho, confusa, e então sacudiu a cabeça.
— Não desse jeito. — Ela lhe apontou um dedo implacável. — Não se mexa
até eu voltar.
Vaelin a viu descer do convés e ficou parado, indeciso, com a marreta na
mão enquanto a tripulação assistia com curiosidade ou divertimento no rosto.
— Eu jamais poderia encarar Mestre Benril de novo — disse Alornis,
ressurgindo da escada com a bolsa de couro no ombro — se deixasse você
quebrar uma pedra assim.
Ela largou a bolsa no convés e a desamarrou, escolhendo um martelo
pequeno e um cinzel estreito de ferro entre as várias ferramentas.
— Não toque nela ela — disse Vaelin quando a irmã se aproximou da pedra.
— Eu sei. — Alornis fez uma careta para ele. — Reva me contou.
Ela posicionou o cinzel no centro da pedra, bateu de leve até que uma
pequena rachadura apareceu na superfície, e então desferiu uma série de golpes
bem dados com o martelo até que houvesse apenas alguns centímetros do cinzel
para fora. Alornis pegou mais dois cinzéis da bolsa e repetiu o processo,
colocando-os de ambos os lados do pino central e martelando até que surgisse na
superfície da pedra uma rachadura de quase um centímetro e meio.
— À vontade, irmão — disse ela, recuando.
Vaelin olhou para a pedra, notando o modo como a superfície parecia engolir
a luz, sentindo uma incerteza súbita.
Você não sabe o que é essa coisa!, dissera ele. Eu olhei para aquele mundo…
e algo olhou para mim, algo imenso e faminto. Com um toque você recebe um
dom…
Ele ergueu a mão e a estendeu sobre a pedra, mantendo-a acima da
superfície, quase a tocando. O que ela me dará? Outra canção? O dom do
Aliado?
— Alucius me contou que me amava — disse Alornis, atraindo a sua atenção.
Ela segurava com força o cobertor, piscando enquanto o vento afastava as
lágrimas de seus olhos, escorrendo pela sua pele pálida como prata derretida. —
O escravo liberto veio me ver com uma mensagem, a última mensagem dele.
Ele disse que me amava e implorou que eu o perdoasse por não dizer antes. Ele
disse que fizera muitas coisas das quais se arrependia, mas que aquela era a pior.
E ele me disse para não odiar, Vaelin. Disse que havia ódio suficiente neste
mundo e ele queria olhar para mim do Além e ver pelo menos uma alma que
não havia sido tocada pelo ódio. Mas eu não consegui… Eles o mataram, e eu os
odiei, e os queimei.
— Você fez o que todos nós fizemos, irmã — comentou Vaelin. — Você, a
Rainha, Reva, Frentis… Alucius e Caenis… A mulher com quem eu teria me
casado. Vencemos uma guerra que precisava ser vencida.
Ele olhou para a pedra e recolheu a mão. Seus pensamentos estavam repletos
de muitas coisas quando ergueu a marreta, muitos rostos, alguns que haviam
morrido, alguns que ainda viviam, todos mudados ou machucados. Pensou nas
batalhas que lutara e nos irmãos que perdera, e pensou em Dahrena.
Você é o meu Além agora. Para que eu perdure, você precisa perdurar.
O primeiro golpe enterrou o pino central fundo o bastante para partir a pedra
até a base. Ela se dividiu em duas e caiu com força no convés. Vaelin ergueu e
abaixou a marreta repetidas vezes, arfando com uma fúria incansável à medida
que uma nuvem de poeira negra se erguia à sua volta. Um pouco dela foi levado
pelo vento, mas a maioria se acumulou numa pilha no convés, reluzindo à luz do
sol que surgia depressa. Quando o último fragmento foi esmigalhado, Vaelin
ordenou que toda a poeira fosse recolhida na lona e jogada por sobre a amurada.
A mancha negra estendeu-se no rastro deles, permanecendo na superfície apenas
por alguns segundos antes de desaparecer com completo enquanto o navio seguia
o seu rumo, levado para casa pelos ventos do oeste.
APÊNDICE
Dramatis Personae
O REINO UNIFICADO
O Exército da Rainha
Vaelin Al Sorna — Senhor da Torre dos Confins do Norte e Senhor da Batalha do
Exército da Rainha
Alornis Al Sorna — artista e irmã de Vaelin, posteriormente Senhora Artífice da
Rainha Ly rna
Dahrena Al Myrna — Primeira Conselheira da Torre Norte
Caenis Al Nysa — irmão da Sexta Ordem, Espada do Reino e Lorde
Comandante do Trigésimo Quinto Regimento de Infantaria, posteriormente
Aspecto da Sétima Ordem
Conde Marven — comandante do contingente nilsaelino do Exército da Rainha
Adal Zenu — capitão da Guarda do Norte, posteriormente Lorde Comandante e
Espada do Reino
Kehlan — curandeiro e irmão da Quinta Ordem
Orven Al Melna — capitão da Terceira Companhia da Guarda Montada do Rei,
posteriormente Lorde Comandante e Espada do Reino, esposo de Insha ka
Forna
Insha ka Forna (Aço ao Luar) — guerreira eorhil, esposa de Orven
Harlick — irmão da Sétima Ordem, Arquivista da Torre Norte, posteriormente
Primeiro Bibliotecário da Grande Biblioteca do Reino Unificado
Nortah Al Sendahl — amigo de Vaelin, posteriormente Lorde Comandante das
Adagas da Rainha e Espada do Reino
Dança da Neve — gata guerreira
Sanesh Poltar — chefe de guerra dos eorhil sil
Sabedoria — sábia anciã dos eorhil sil
Ultin — capataz dos mineiros de Fenda do Saqueador, posteriormente capitão do
Primeiro Batalhão do Exército do Norte
Davern — construtor de barcos e sargento do Exército do Norte, posteriormente
Mestre do Estaleiro da Rainha
Furelah — guarda das Adagas da Rainha
Atheran Ell-Nestra — capitão marinho meldeneano e Escudo das Ilhas,
posteriormente Lorde Almirante da Rainha Ly rna
Carval Ell-Nurin — Senhor Marinho e capitão do Falcão Vermelho
Cara — residente dotada de Ponta de Nehrin
Lorkan — residente dotado de Ponta de Nehrin
Marken — residente dotado de Ponta de Nehrin
Artesão — residente dotado de Ponta de Nehrin
Cumbrael
Reva Mustor — Senhora Governadora de Cumbrael
Senhora Veliss — Conselheira Honorável da Senhora Governadora
Arentes Varnor — Lorde Comandante da Guarda da Cidade
Bren Antesh — Lorde Comandante dos Arqueiros
O Leitor — líder da Igreja do Pai do Mundo
Ellese Brahdor — órfã e protegida da Senhora Governadora
Allern Varesh — guarda da Casa Mustor
Varinshold
Darnel Linel — Senhor Feudal de Renfael, vassalo volariano
Alucius Al Hestian — poeta, amigo de Alornis e Vaelin, filho de Lakrhil
Lakrhil Al Hestian — pai de Alucius, Senhor da Batalha de Darnel
Elera Al Mendah — Aspecto da Quinta Ordem
Dendrish Al Hendrahl — Aspecto da Terceira Ordem
Benril Lenial — artista renomado e irmão da Terceira Ordem
Mirvek Korvin — comandante da guarnição volariana
Vinte e Sete — Kuritai, guarda de Alucius
Cresia — irmã da Sétima Ordem
Inehla — irmã da Sétima Ordem
Rhelkin — irmão da Sétima Ordem
Fronteira renfaelina
Frentis — irmão da Sexta Ordem, amigo de Vaelin, conhecido como Irmão
Vermelho
Davoka — guerreira do Clã do Rio Negro, Serva da Montanha, amiga de Ly rna,
combatente da companhia do Irmão Vermelho
Sollis — mestre espadachim e Irmão Comandante da Sexta Ordem
Rensial — Mestre dos Cavalos e irmão da Sexta Ordem
Hughlin Banders — cavaleiro e Barão de Renfael
Ulice — filha ilegítima de Banders
Arendil — filho de Ulice e Darnel, herdeiro do Senhor Feudal de Renfael,
combatente da companhia do Irmão Vermelho
Ermund Lewen — cavaleiro e principal servidor de Banders
Draker — ex-fora da lei, combatente da companhia do Irmão Vermelho
Illian Al Jervin — escrava fugida e combatente da companhia do Irmão
Vermelho
Trinta e Q uatro — ex-escravo numerado e torturador, combatente da
companhia do Irmão Vermelho
Ivern — irmão da Sexta Ordem, posicionado no Passo Skellan
Retalhador — cão da Fé e amigo de Frentis
Dente Negro — cadela da Fé e amiga de Illian
Outros
Urso Sábio — xamã do Povo Urso
Kiral — caçadora lonak do Clã do Rio Negro e irmã de Davoka
Alturk — Tahlessa lonak do Clã dos Falcões Cinzentos
Verniers Alishe Someren — Cronista Imperial da Corte do Imperador Aluran
Fornella Av Entril Av Tokrev — prisioneira volariana, irmã de Arklev Entril
Belorath — capitão meldeneano do Sabre do Mar
Lekran — guerreiro dos rotha, posteriormente combatente da companhia do
Irmão Vermelho
O IMPÉRIO ALPIRANO
O IMPÉRIO VOLARIANO
O GELO
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Índice
CAPA PÁGINA
PÁGINA DE TÍTULO
DIREITOS AUTORAIS PÁGINA
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
PARTE I
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
PARTE II
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
PARTE III
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
PARTE IV
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
PARTE V
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
APÊNDICE