A Rainha Do Fogo - Anthony Ryan

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Copy right © 2015 by Anthony Ry an
Tradução para a Língua Portuguesa © 2017, Casa da Palavra/LeYa, Gabriel
Oliva Brum
Título original: Queen of Fire: a Raven’s Shadow Novel

Esta edição foi publicada mediante acordo com The Berkley Publishing Group,
um membro do Penguin Group (USA).

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/2/1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Revisão: Beatriz D'Oliveira e Ana Grillo


Diagramação: Abreu's Sy stem
Capa: Leandro Dittz
Ilustrações de capa: Ralph Damiani

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Ry an, Anthony

A rainha do fogo / Anthony Ry an; tradução de Gabriel Oliva Brum. – Rio de


Janeiro: LeYa, 2017.

752 p. (A Sombra do Corvo ; 3)

ISBN 978-85-441-0501-6
Título original: Queen of Fire: a Raven's Shadow Novel

1. Literatura escocesa 2. Ficção I. Título II. Brum, Gabriel Oliva

17-0162 CDD 891.63

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:


1. Literatura escocesa – ficção

Todos os direitos reservados à


EDITORA CASA DA PALAVRA
Av. Calógeras, 6 – sala 701
20030-070 – Rio de Janeiro – RJ
www.ley a.com.br
Para Rod, Helen, Amber e Kyle
AGRADECIMENTOS

Mais uma vez, obrigado à minha excelente editora na Ace, Susan Allison, que,
três anos atrás, deu o pontapé inicial nisso tudo com um e-mail para um sujeito
no Reino Unido que havia vendido alguns exemplares do seu livro de fantasia
autopublicado. Minha profunda gratidão também ao meu editor no Reino Unido,
James Long, por seu apoio e dedicação a este projeto. E, por fim, meus sinceros
agradecimentos ao meu segundo par de olhos, que há muito tempo vem
sofrendo, Paul Field.
SUMÁRIO

AGRADE CIME NTOS

P ART E I

P ART E II

P ART E III

P ART E IV

P ART E V

APÊ NDICE
P ART E I
O corvo não conhece o
descanso Sua sombra incessante
Sobre a terra.

— Poema seordah, autor


desconhecido
RELATO DE VERNIERS

Ele aguardava no cais quando cheguei com minha prisioneira. Empertigado como
sempre, as feições retas voltadas para o horizonte, enrolado no manto para se
proteger do vento marinho. Minha perplexidade inicial por encontrá-lo ali
desapareceu tão logo avistei o navio deixando o porto, uma embarcação de casco
estreito à moda meldeneana, enviada aos Confins do Norte com um importante
passageiro de quem eu sabia que ele sentiria muita falta.
Ele se virou na minha direção com um sorriso receoso nos lábios, e percebi
que ele ficara para presenciar a minha partida. As nossas interações haviam sido
breves desde a libertação de Alltor, um tanto bruscas, na verdade, distraído como
ele estava pelo incessante tumulto da guerra e por alguma enfermidade que o
acometera após o seu já lendário ataque. A fadiga transformara as feições outrora
firmes numa máscara letárgica de olhos avermelhados, e a voz estridente porém
incisiva num sussurro rascante. Eu podia ver que tais transformações haviam sido
revertidas a essa altura. As batalhas recentes de algum modo o haviam curado, e
eu me perguntei se ele encontrava alguma forma de sustento no sangue e no
horror.
— Meu senhor — cumprimentou-me ele com o esboço de uma mesura formal,
e então acenou com a cabeça para a minha prisioneira. — Minha senhora.
Fornella retribuiu o aceno, mas nada disse, encarando-o de forma impassível
enquanto os seus cabelos esvoaçavam ao vento salgado, uma única madeixa
grisalha visível em meio à cabeleira castanho-avermelhada.
— Já recebi instruções suficientes… — comecei, mas Al Sorna acenou com a
mão.
— Não vim para dar instruções, meu senhor — disse ele. — Vim apenas para
me despedir e desejar boa sorte em sua empreitada.
Observei a sua expressão enquanto ele aguardava uma resposta, o sorriso
receoso agora diminuindo, os olhos negros cautelosos. Será possível?, pensei
comigo mesmo. Ele está buscando perdão?
— Obrigado, meu senhor — retorqui, colocando o pesado saco de lona no
ombro. — Mas precisamos embarcar antes da maré matutina.
— É claro. Eu irei acompanhá-los.
— Não precisamos de um guarda — disse Fornella, seca. — Eu dei a minha
palavra, atestada pelo seu interrogador. — Realmente, caminhávamos sozinhos
naquela manhã, sem escolta ou formalidade. A corte restaurada do Reino
Unificado tinha pouco tempo ou inclinação para cerimônias.
— De fato, Honorável Cidadã — retorquiu Al Sorna num volariano desajeitado
e de sotaque carregado. — Contudo, tenho… palavras para este homem de cinza.
— Homem livre — corrigi-o antes de mudar para a língua do Reino. — O cinza
indica posição financeira, e não social.
— Ah, sem dúvida, meu senhor. — Ele ficou de lado e fez sinal para que eu
continuasse ao longo do cais até onde os navios estavam atracados, uma longa
fileira de belonaves e navios mercantes meldeneanos. Naturalmente, a nossa
embarcação se encontrava na extremidade oposta da fileira.
— O presente do Irmão Harlick? — perguntou ele, indicando com a cabeça o
saco que eu carregava.
— Sim. Quinze dos livros mais antigos da Grande Biblioteca, os que pude
identificar como úteis durante o pouco tempo que me foi permitido em seus
arquivos. — Na verdade, eu esperara algum protesto da parte do irmão
bibliotecário quando fiz meu pedido, mas o homem apenas fez um aceno cortês
com a cabeça e ordenou a um dos seus assistentes que buscasse os pergaminhos
necessários nos carroções que serviam como a sua biblioteca móvel. Eu sabia que
a sua aparente indiferença a esse roubo devia-se em parte ao seu dom; ele
sempre podia simplesmente redigir novos exemplares, e abertamente, uma vez
que a necessidade de manter tais coisas ocultas havia desaparecido. As Trevas,
como chamavam esse dom, haviam sido reveladas e agora eram discutidas
abertamente, e os dotados estavam livres para praticar os seus talentos sem medo
de serem torturados e executados, pelo menos em teoria. Eu podia ver o medo que
ainda permanecia no rosto daqueles não tão talentosos, assim como a inveja, e me
perguntava se o caminho mais sensato não teria sido manter os dotados nas
sombras. Porém, haveria como sombras perdurarem em meio aos fogos da
guerra?
— Acha mesmo que ele está aí em algum lugar? — perguntou Al Sorna
enquanto caminhávamos em direção ao navio. — O Aliado?
— Uma influência tão maligna e poderosa sem dúvida deixa rastros —
respondi. — Um historiador é um caçador, meu senhor. À procura de sinais no mar
de correspondências e autobiografias, no encalço da presa através do rastro da
memória. Não espero encontrar uma história completa e imparcial dessa coisa,
seja ela animal ou humana, ou nenhum dos dois. Mas haverá de ter deixado
rastros, e pretendo ir atrás dela.
— Então o senhor precisa ter cuidado, pois suspeito que a sua atenção não
passará despercebida por ela.
— Nem a do senhor. — Fiz uma pausa e olhei para o seu perfil, vendo ali uma
fronte preocupada. Onde está sua certeza?, pensei. Esse havia sido um de seus
traços mais irritantes durante a nossa prévia associação: a certeza implacável e
inabalável. Agora havia somente um homem taciturno e preocupado com a
perspectiva das privações por vir.
— Conquistar a capital não será fácil — falei. — O curso mais sensato seria
aguardar aqui, reunindo forças até a primavera.
— Sensatez e guerra são raras companheiras, meu senhor. E tem razão, o mais
provável é que o Aliado fique a par de tudo.
— Então por quê…?
— Não podemos simplesmente ficar aqui esperando que o próximo golpe seja
desferido. Não mais do que o seu Imperador pode esperar permanecer imune à
atenção do Aliado.
— Estou perfeitamente ciente de qual mensagem transmitir ao Imperador. — A
bolsa de couro com o pergaminho selado pendia pesada de meu pescoço, mais
pesada do que o meu saco de livros, embora na verdade fosse apenas uma fração
do peso. Nada mais do que tinta, papel e cera, pensei. E, no entanto, podia enviar
milhões à guerra.
Paramos ao chegar ao navio, uma larga embarcação mercantil meldeneana, a
madeira ainda chamuscada pela Batalha dos Dentes, a amurada com marcas de
lâminas e pontas de flechas, e as velas remendadas enroladas no cordame. Meu
olhar também foi atraído até a serpentina figura de proa que, apesar de ter perdido
boa parte do maxilar inferior, ainda era familiar. Meus olhos recaíram sobre o
capitão no alto da rampa, com os braços grossos cruzados e uma carranca no
rosto, um rosto do qual eu me lembrava muito bem.
— Por acaso o senhor teve algo a ver com a escolha dessa embarcação? —
perguntei a Al Sorna.
Um traço de divertimento apareceu em seus olhos quando ele encolheu os
ombros.
— Meramente uma coincidência, posso lhe assegurar.
Suspirei, percebendo que eu tinha pouco espaço no coração para ainda mais
ressentimento, virei-me para Fornella e estendi a mão na direção do navio.
— Honorável Cidadã. Irei me juntar à senhora num instante.
Vi os olhos de Al Sorna a acompanharem enquanto ela subia a rampa até o
navio, movendo-se com a graciosidade costumeira de séculos de prática.
— Apesar do que disse o revelador da verdade, tenha cuidado e não confie
nela — disse ele.
— Fui escravo dela tempo suficiente para aprender essa lição por conta
própria. — Ergui mais uma vez o meu saco e acenei com a cabeça em despedida.
— Com sua licença, meu senhor. Aguardo pela oportunidade de ouvir a história de
sua campanha…
— O senhor tinha razão — interrompeu ele, novamente com o sorriso receoso
nos lábios. — Sobre a história que lhe contei. Houve algumas… omissões.
— Creio que o senhor queira dizer mentiras.
— Sim. — O sorriso desapareceu. — Mas acredito que o senhor mereça a
verdade. Não faço ideia de como esta guerra terminará, nem mesmo se algum de
nós viverá para ver a sua conclusão. Porém, se vivermos, encontre-me
novamente e prometo que o senhor ouvirá de mim apenas a verdade.
Sei que eu deveria ter ficado grato. Pois que estudioso não ansiava pela
verdade vinda de alguém como ele? Contudo, não havia gratidão quando olhei em
seus olhos, nem pensamento algum, a não ser por um nome. Seliesen.
— Eu costumava me perguntar como um homem que havia tirado tantas vidas
podia andar pelo mundo sem o peso da culpa — falei. — Como um assassino pode
suportar o fardo de ter matado e ainda se chamar de humano? Mas ambos somos
assassinos agora, e vejo que isso em nada pesa em minha alma. Porém, eu matei
um homem mau, e o senhor, um homem bom.
Virei-me e subi a rampa sem olhar para trás.
CAPÍTULO UM
Lyrna

Ela foi despertada pela neve. Carícias suaves e geladas em sua pele, formigantes,
mas não desagradáveis, chamando-a de volta da escuridão. Levou um momento
para que a memória retornasse, e quando retornou era algo fragmentado, em
que o medo e a confusão reinavam em meio a um turbilhão de imagens e
sensações. Iltis urrando ao investir, a espada desembainhada… O aço retinindo…
Um punho duro atingindo-a na boca… E o homem… O homem que a queimou.
Ela abriu a boca para gritar, mas conseguiu soltar apenas uma lamúria,
seguida por uma arfada que encheu os seus pulmões de ar gelado. Parecia que
iria congelar de dentro para fora, e ela achou estranho que fosse morrer de frio
após ser queimada com tamanha intensidade.
Iltis! O nome foi um grito súbito em sua mente. Iltis está ferido! Talvez morto!
Desejou se mover, levantar-se, gritar por um curandeiro com toda a força
que a sua voz de rainha conseguia reunir. Contudo, mal foi capaz de gemer e
agitar um pouco as mãos enquanto a neve continuava com suas carícias gélidas.
Ela ardeu de raiva, espantando o frio dos pulmões. Preciso me mexer! Não vou
morrer na neve feito uma cachorra esquecida! Respirou fundo, encheu de novo os
pulmões de ar cortante e gritou, colocando todas as suas forças e sua raiva no
som. Um grito furioso, um grito de rainha… mas não mais do que um sussurro
por entre os dentes quando chegou aos seus ouvidos, junto com algo mais.
— … melhor que haja uma boa razão para isso, sargento — dizia uma voz
firme, forte, brusca e objetiva. A voz de um soldado, acompanhada por pisadas
de botas na neve.
— O Senhor da Torre disse que ele tinha de ser tratado bem, capitão — outra
voz, com um sotaque nilsaelino, mais velha e não tão forte. — Tratado com
respeito, foi o que ele disse. Como as outras pessoas da Ponta. E ele pareceu
bastante insistente, ao menos pelo que deu para entender de um sujeito que não
fala mais do que duas palavras por vez.
— Pessoas da Ponta — disse o capitão num tom mais brando. — A quem
devemos agradecer pela neve no fim do verão… — A voz desapareceu e as
pisadas das botas tornaram-se o barulho de homens correndo.
— Alteza! — Mãos em seus ombros, delicadas, mas insistentes. — Alteza!
Está ferida? Está me ouvindo?
Ly rna só conseguiu gemer, sentindo as mãos se agitarem mais uma vez.
— Capitão Adal. — A voz do sargento soou embargada e entrecortada pelo
medo. — O rosto dela…
— Eu tenho olhos, sargento! Leve o Senhor da Torre até a tenda do Irmão
Kehlan! E traga homens para carregarem Sua Senhoria. Não diga nada sobre a
Rainha. Entendeu?
Mais botas na neve, e então ela sentiu algo quente e macio cobri-la da cabeça
aos pés, suas costas e pernas dormentes formigando quando mãos a ergueram.
Ela tornou a ser tragada pela escuridão, sem se incomodar com a corrida
chocalhante do capitão que a levava para longe dali.

Ele estava lá quando Ly rna despertou pela segunda vez, passando os olhos pelo
teto de lona até encontrá-lo sentado ao lado do catre onde a haviam colocado.
Embora os seus olhos estivessem com os mesmos traços avermelhados que ela
vira no dia anterior, o olhar dele agora estava mais vivo, mais concentrado, e os
olhos negros pareceram perfurar a pele do rosto dela quando ele se inclinou para
a frente. Ele me queimou… Ly rna fechou os olhos e virou o rosto para o outro
lado, abafando o soluço choroso no peito. Engoliu em seco e se recompôs antes
de se virar novamente e encontrá-lo ajoelhado ao lado do catre, de cabeça baixa.
— Alteza — disse ele.
Ela engoliu em seco e tentou falar, esperando que saísse apenas um leve
sussurro, mas ficou surpresa com a resposta um tanto estridente:
— Meu Lorde Al Sorna. Espero que o senhor esteja bem esta manhã.
Ele ergueu a cabeça com uma expressão séria no rosto, os olhos negros ainda
penetrantes. Ly rna queria lhe dizer que não era educado ficar encarando, ainda
mais uma rainha, mas sabia que soaria grosseiro. Cada palavra precisa ser
escolhida, dissera o seu pai certa vez. Cada palavra dita por quem usa a coroa
será lembrada, com frequência de forma errônea. Então, minha filha, se algum dia
você se vir com esse diadema de ouro na cabeça, nunca diga uma única palavra
que não deveria ser ouvida da boca de uma rainha.
— Muito… bem, Alteza — disse Vaelin, permanecendo com um joelho no
chão enquanto ela se mexia.
Para sua surpresa, Ly rna viu que podia se mover com facilidade. Alguém
havia despido o vestido e o manto que ela usara na noite anterior, substituindo os
trajes finos por uma veste simples de algodão que a cobria do pescoço aos
tornozelos, e Ly rna achou agradável a sensação do tecido em sua pele ao se
sentar e colocar as pernas para fora do catre.
— Levante-se, por favor — disse a Vaelin. — Acho o cerimonial tedioso, na
melhor das hipóteses, e de pouca utilidade quando estamos sozinhos.
Ele se levantou, sem tirar os olhos do rosto dela. Havia uma hesitação em
seus movimentos, um leve tremor nas mãos ao puxar a cadeira para perto para
sentar-se diante dela, seu rosto a um braço de distância, o mais perto que eles já
haviam estado desde aquele dia na Feira de Verão.
— Lorde Iltis? — perguntou Ly rna.
— Ferido, mas vivo. O dedo mínimo de sua mão esquerda sofreu geladura. O
Irmão Kehlan foi obrigado a removê-lo. Ele mal pareceu notar, e foi difícil
impedi-lo de sair correndo à procura da senhora.
— Sinto-me afortunada pelos amigos que o destino colocou no meu caminho.
— Ela fez uma pausa, tomando fôlego e coragem para o que tinha de dizer a
seguir. — Não tivemos muitas oportunidades de conversar ontem. Sei que você
deve ter muitas perguntas.
— Uma em particular. Há muitas histórias fantásticas circulando a respeito
dos seus… ferimentos. Dizem que aconteceram quando Malcius morreu.
— Malcius foi assassinado pelo Irmão Frentis da Sexta Ordem. Eu o matei
por isso.
Ly rna o viu ser tomado pelo choque, como se ela o tivesse golpeado com
uma lâmina gélida. O olhar de Vaelin tornou-se distante ao se curvar para a
frente, sussurrando:
— Quero ser um irmão… Quero ser como você.
— Havia uma mulher com ele — prosseguiu Ly rna. — Desempenhando o
papel de uma escrava fugida, tal como o seu irmão, que atravessara o oceano
com uma grande história de aventura. Pela reação dela quando o matei,
desconfio que os dois eram muito próximos. O amor pode nos levar a extremos.
Vaelin fechou os olhos, controlando o pesar com um estremecimento.
— Matá-lo não deve ter sido fácil.
— O tempo que passei com os lonaks me deixou habilidosa em certas áreas.
Eu o vi cair. Depois disso… — O fogo rasgando a sua pele como as garras de um
gato selvagem, enchendo-lhe a garganta com o fedor de sua própria carne sendo
queimada… — Parece que a minha memória tem alguns limites, afinal.
Vaelin permaneceu em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, perdido
em pensamentos, com o rosto ainda mais esmaecido que antes.
— Ela me disse que ele estava voltando — murmurou ele, por fim. — Mas
não para isso.
— Eu esperava que você fosse pedir uma explicação diferente — disse
Ly rna, ansiosa para tirá-lo de quaisquer recordações que anuviassem a sua
mente. — Pelo modo como foi tratado em Linesh.
— Não, Alteza. — Ele sacudiu a cabeça. — Asseguro-lhe de que não preciso
de qualquer explicação.
— A guerra foi um erro atroz. Malcius foi… O juízo de meu pai estava…
debilitado.
— Duvido que o juízo do Rei Janus fosse capaz de sofrer alguma debilitação,
Alteza. E quanto à guerra, pelo que me recordo, a senhora tentou me advertir.
Ela assentiu, parando para acalmar o coração disparado. Eu tinha tanta
certeza de que ele me odiaria.
— Aquele homem… — disse ela. — O homem com a corda.
— O nome dele é Artesão, Alteza.
— Artesão — repetiu Ly rna. — Presumo que ele era um agente de qualquer
que seja a força maligna que esteja por trás das nossas atuais dificuldades.
Escondido no seu exército, aguardando o momento para atacar.
Vaelin recuou um pouco, o pesar substituído pela surpresa.
— Atacar, Alteza?
— Ele me salvou. Daquela coisa. Então ele me queimou. Confesso que acho
isso curioso. Mas estou descobrindo que essas criaturas se comportam de
maneiras estranhas. — Ly rna vacilou ao sentir um nó na garganta, lembrando-se
do fogo que a dominou quando o jovem musculoso a abraçou, o calor mais
intenso até que o daquele dia horrível na sala do trono. Ela ergueu a mão,
forçando-se a encarar o olhar firme dele. — Está… está pior?
Vaelin soltou um leve suspiro e estendeu os braços para segurar as mãos da
Rainha com palmas ásperas e calejadas. Ly rna esperava algum aperto de
consolo antes que ele desse a inevitável e terrível notícia, mas em vez disso
Vaelin agarrou os pulsos dela e ergueu as suas mãos, abrindo os dedos para que
ela tocasse o próprio rosto.
— Não! — gritou ela, tentando se soltar.
— Confie em mim, Ly rna — sussurrou ele, pressionando os dedos dela contra
a carne… A carne lisa e ilesa. Quando ele a soltou, os dedos de Ly rna
começaram a explorar por conta própria, tocando cada centímetro de pele, da
testa ao queixo, o pescoço. Onde está?, pensou ela, desconcertada ao não
encontrar cicatrizes ásperas e sarapintadas, sem sentir a dor lancinante que
continuara a atormentá-la apesar dos bálsamos curativos que suas damas
aplicavam nas queimaduras todos os dias. Onde está o meu rosto? — Eu sabia
que Artesão possuía um grande dom — disse Vaelin. — Mas isso…
Ly rna continuou a apalpar o rosto, segurando os soluços no peito. Cada
palavra precisa ser escolhida.
— Eu… — começou ela, vacilou, e então tentou de novo. — Eu gostaria…
que você convocasse um conselho de capitães assim que… assim que…
Então havia apenas as lágrimas e a sensação dos braços dele em volta de seus
ombros quando ela apoiou a cabeça no peito de Vaelin e chorou como uma
criança.

A mulher no espelho passou a mão sobre a penugem clara que lhe cobria a
cabeça, franzindo a testa lisa. Crescerá de novo, ela sabia. Talvez eu não o
mantenha tão longo desta vez. Ly rna voltou a atenção para a pele onde as
queimaduras haviam sido mais graves e viu que a cura não a havia deixado
completamente incólume, afinal de contas. Havia linhas claras e tênues visíveis
na carne em volta dos olhos, rastros finos e irregulares que iam da testa até onde
começava o cabelo. Ela se lembrou de algo que o pobre e confuso receptáculo
da Mahlessa dissera naquele dia sob a montanha. Ainda não estão lá… As marcas
da sua grandeza.
Ly rna afastou-se um pouco do espelho, inclinando a cabeça para examinar a
aparência das marcas à luz da entrada da tenda, percebendo que desapareciam
um pouco com a luz direta do sol. Algo se moveu no espelho e ela notou Iltis atrás
dela, desviando depressa os olhos, agarrando a mão enfaixada que saía da manga
de sua tipoia. Ele entrara cambaleando na tenda uma hora antes, empurrando
Benten para o lado e caindo de joelhos diante de Ly rna. Estava tropeçando nas
palavras ao fazer um pedido de perdão quando ergueu a cabeça e viu o rosto da
Rainha, calando-se no mesmo instante.
— O senhor deveria estar deitado — disse ela.
— Eu… — Iltis piscara, as lágrimas brilhando em seus olhos — jamais
ficarei longe da senhora, Alteza. Eu dei a minha palavra.
Eu sou a sua nova Fé?, ela se perguntava agora, observando-o no espelho
enquanto ele se balançava um pouco, sacudia a cabeça e se empertigava. A
velha acabou sendo uma decepção, então agora a sua devoção é por mim.
A aba da tenda foi levantada, e Vaelin entrou com uma mesura.
— O exército a aguarda, Alteza.
— Obrigada, meu senhor. — Ly rna estendeu a mão a Orena, que estava de
pé segurando o manto encapuzado de pele de raposa que ela escolhera dentre a
montanha de roupas que a Senhora Reva ficara mais do que feliz em
providenciar. Orena aproximou-se e colocou o manto nos ombros da Rainha,
enquanto Murel ajoelhava-se para oferecer os pouco práticos porém elegantes
sapatos para os seus pés reais. — Bem — disse ela, calçando os sapatos e
puxando o capuz para encobrir o rosto —, vamos tratar logo disso.
Vaelin havia deixado um carroção alto e descoberto do lado de fora da tenda;
ele foi até o veículo e estendeu a mão quando Ly rna se aproximou. Ela a agarrou
e subiu no carroção, segurando o manto com a mão livre para evitar tropeçar
nele. A ideia de cair de cara no chão num momento como aquele provocou um
risinho infantil, abafado antes que pudesse lhe chegar aos lábios. Cada palavra
precisa ser escolhida.
Ela continuou segurando a mão de Vaelin ao parar para observar o seu novo
exército. O irmão corpulento dos Confins lhe informara, enquanto olhava de
soslaio para o seu rosto com olhos arregalados, que o Exército do Norte
atualmente consistia em sessenta mil homens e mulheres, além de cerca de trinta
mil guerreiros seordah e eorhil. Os regimentos estavam posicionados em fileiras,
a maioria desordenada e sem a coesão refinada exibida pela Guarda do Reino
durante aquelas paradas intermináveis em Varinshold. Na verdade, os poucos
Guardas do Reino presentes contrastavam com os companheiros, um
aglomerado compacto e disciplinado de companhias despojadas alinhadas atrás
do Irmão Caenis no centro. Porém, a maior parte do novo exército era composta
pelos nilsaelinos do Conde Marven, pelos recrutados que Vaelin trouxera dos
Confins e pelos recrutas reunidos ao longo do caminho. Ly rna viu pouca
uniformidade nas fileiras; armaduras e armas desiguais, boa parte saqueada dos
copiosos volarianos mortos, e bandeiras improvisadas que careciam das cores e
da nitidez dos estandartes regimentais da Guarda do Reino.
Os seordah haviam se posicionado no flanco direito, uma multidão de
guerreiros em silêncio, a curiosidade como única emoção aparente. Atrás deles
aguardavam os eorhil, a maioria montada em seus belos cavalos altos,
igualmente silenciosos. A Senhora Reva respondera ao convite educado de Ly rna
com toda a sua Guarda da Casa, reduzida a não mais do que trinta homens, e
aparentemente todos os seus arqueiros que sobreviveram. Eles estavam alinhados
em duas longas filas atrás de sua Senhora Governadora, homens corpulentos de
olhar firme com arcos longos atravessados nas costas. A Senhora Reva estava
ladeada por sua Conselheira, pelo Lorde Arqueiro Antesh e pelo velho
Comandante da Guarda de costeletas, nenhum dos quais demonstrava o menor
sinal de assombro com a presença de Ly rna. À esquerda, o Escudo trouxera os
capitães da Frota Meldeneana, e o Senhor Marinho Ell-Nurin encontrava-se
deliberadamente alguns metros adiante do Escudo, que estava de braços
cruzados, com a cabeça inclinada na direção dela, o sorriso habitual mais
radiante do que nunca. Era uma pena, pois ela esperava que desaparecesse em
breve.
Atrás de todos, a ainda fumegante cidade de Alltor erguia-se em sua ilha, os
coruchéus gêmeos da catedral parcialmente ocultos pela neve poeirenta que
continuava a cair.
Ly rna parou no alto do carroção, avistando a forma diminuta porém distinta
da Senhora Dahrena, parada na fileira dianteira ao lado do Capitão Adal e da
Guarda do Norte. Ao contrário de todos os olhos naquele campo, os da Senhora
Dahrena não estavam fixos em Ly rna, mas em Vaelin. Ela não piscava, e tal
olhar era de uma intensidade inquietante, deixando Ly rna consciente do calor da
mão dele na sua. Ela a soltou e encarou o exército, erguendo as mãos para tirar o
capuz.
A visão os tomou de assalto como uma onda, uma mistura de gritos sufocados
de espanto, pragas, preces e puro choque, as fileiras já desordenadas ficando
ainda menos coesas, com soldados virando-se para os companheiros incrédulos
ou assombrados. No entanto, ela notou que os seordah e os eorhil permaneciam
em silêncio, embora com posturas agora nitidamente mais alertas. Ly rna
permitiu que o burburinho do exército se tornasse uma cacofonia e então ergueu
a mão. As conversas continuaram inalteradas por um momento e ela temeu que
precisasse pedir a Vaelin que os silenciasse, mas o Capitão Adal berrou uma
ordem aos seus homens que logo foi repetida pelos oficiais e sargentos, e o
silêncio recaiu célere sobre as fileiras.
Ly rna passou os olhos pelos soldados, escolhendo rostos, encontrando os seus
olhares, notando que alguns eram incapazes de manter o contato visual,
remexendo-se pouco à vontade e abaixando as cabeças, enquanto outros a
encaravam perplexos.
— Eu ainda não tive a oportunidade de me dirigir a vocês — gritou-lhes
Ly rna, a voz forte e ressoando bem no frio. — Para aqueles que possam
desconhecer o meu nome, a minha lista de títulos é longa e não irei entediá-los
com ela. Basta dizer que sou a sua Rainha, aclamada como tal pelo Senhor da
Torre Al Sorna e pela Senhora Governadora Reva de Cumbrael. Muitos de vocês
me viram ontem, e viram uma mulher com o rosto queimado. Agora veem uma
mulher curada. Como sua Rainha, prometo que jamais mentirei para vocês. E,
assim, digo-lhes com sinceridade que o meu rosto foi curado com o uso das
Trevas. Não afirmo que isso tenha sido alguma bênção dos Finados ou favor de
algum deus. Eu me encontro diante de vocês curada pela mão de um homem
com um dom que não alego compreender. Isso foi feito sem qualquer ordem ou
planejamento de minha parte. Contudo, não vejo motivos para lamentar o
ocorrido ou punir o homem que me prestou esse serviço. Muitos de vocês sem
dúvida estão cientes de que há outros entre as fileiras deste exército com
habilidades similares, pessoas boas e corajosas que, de acordo com a letra de
nossas leis, são condenadas à morte pelos dons que lhes foram conferidos pela
natureza. Desse modo, todas as leis que proíbem o uso dos dons outrora
conhecidos como as Trevas estão agora revogadas pela Palavra da Rainha.
Ly rna fez uma pausa, esperando que murmúrios irrompessem, que algumas
vozes se erguessem em descontentamento. Porém, reinou apenas o silêncio, e
cada rosto agora se encontrava arrebatado; os que haviam evitado o seu olhar
aparentemente eram incapazes de desviar os olhos. Há alguma coisa no ar aqui,
compreendeu ela. Alguma coisa… útil.
— Não há ninguém aqui que não tenha sofrido — continuou Ly rna. — Não há
ninguém aqui que não possa dizer que teve uma esposa, marido, filho, amigo ou
pai assassinado. Muitos de vocês sentiram a ponta do chicote, assim como eu.
Muitos de vocês foram espancados por mãos imundas, assim como eu. Muitos de
vocês foram queimados, assim como eu.
Ouviam-se agora resmungos crescentes nas fileiras, o som baixo da fúria
atiçada. Ela avistou uma mulher no meio da companhia de escravos libertos do
Capitão Nortah, esguia e pequena, mas com várias adagas pelo corpo, os dentes
arreganhados numa carranca de ira cada vez mais intensa.
— Esta terra recebeu o seu nome em homenagem a sua união — prosseguiu
Ly rna. — Porém, somente um tolo diria que alguma vez já fomos
verdadeiramente unidos. Sempre derramamos o nosso próprio sangue em disputa
insensata após disputa insensata. Isso termina agora. O nosso inimigo chegou a
estas praias trazendo escravidão, tormento e morte, mas também nos trouxe um
presente, um que lamentará por toda a eternidade. Eles fizeram com que
forjássemos a união que por tanto tempo deixamos escapar. Eles nos tornaram
uma lâmina única de aço inquebrável apontada para o coração sombrio deles.
Com vocês ao meu lado, sangrarei esse coração!
Os resmungos irromperam num grito furioso, rostos distorcidos de ódio e
raiva, punhos, espadas e alabardas erguidos, o tumulto transbordando sobre ela,
inebriando-a em seu poder. Poder. É necessário odiá-lo tanto quanto amá-lo.
Ly rna ergueu a mão e eles tornaram a se calar, embora os sussurros
ferventes continuassem.
— Não prometo vitórias fáceis. O nosso inimigo é feroz e ardiloso. Eles não
morrerão facilmente. Assim, posso prometer somente três coisas: luta, sangue e
justiça. Ninguém que me seguir nesse caminho deve imaginar que haverá
qualquer outra recompensa.
Foi a mulher pequena com as adagas que começou a entoar, brandindo uma
lâmina em cada mão com a cabeça jogada para trás:
— Luta, sangue e justiça! — O brado se espalhou num instante, erguendo-se
de uma ponta a outra do exército. — Luta, sangue e justiça! Luta, sangue e
justiça!
— Em cinco dias marchamos para Varinshold! — gritou Ly rna enquanto o
brado continuava, o volume aumentando ainda mais. Ela apontou para o norte.
Nunca tema um pouco de espetáculo, dissera o velho maquinador durante uma
das cerimônias em que entregava espadas para pessoas que as mereciam cada
vez menos. A realeza é sempre uma performance, filha. O tumulto dobrou de
intensidade quando ela gritou de novo, suas palavras perdidas em meio às
aclamações repletas de fúria. — PARA VARINSHOL D!
Ly rna permaneceu parada por alguns momentos de braços abertos no meio
do furor de adoração. Você já teve isso, pai? Eles alguma vez o amaram?
O barulho continuou quando ela desceu do carroção, mais uma vez
estendendo a mão a Vaelin, mas se deteve ao avistar o Escudo. Como esperado, o
sorriso desaparecera, substituído por uma carranca sombria que fez Ly rna se
perguntar se ele ainda a seguiria a qualquer lugar.

***

— Varinshold está a mais de trezentos quilômetros de distância, Alteza — disse o


Conde Marven. — E mal temos grãos suficientes para alimentar os cavalos por
oitenta. Os nossos amigos cumbraelinos foram muito eficientes em despojar esta
terra de suprimentos.
— Melhor queimados do que na barriga de nossos inimigos — observou a
Senhora Reva do outro lado da mesa.
Eles estavam reunidos em volta de uma grande mesa com um mapa aberto,
na tenda de Vaelin; todos os principais capitães do exército, além da Senhora
Reva e os chefes de guerra dos eorhil e dos seordah. O eorhil era um cavaleiro
rijo de mais de cinquenta anos, pelos cálculos de Ly rna. O seordah era um pouco
mais novo, mais alto do que a maioria de seu povo, esguio como um lobo e com
um rosto aquilino. Os dois homens pareciam compreender cada palavra dita,
mas falavam pouco, e ela notou que seus olhares iam constantemente dela para
Vaelin. É desconfiança?, pensou ela. Ou apenas assombro?
O Conde Marven passara boa parte da última hora explicando a situação
estratégica do exército. Sem nunca ter visto muita utilidade na entediante história
militar, Ly rna foi obrigada a selecionar os detalhes pertinentes em meio à
confusão de jargões. Pelo que podia ver, a posição deles não era tão favorável
quanto uma rainha poderia esperar após conquistar tamanha vitória.
— De fato, minha senhora — disse o conde a Reva. — Mas isso nos deixa
com uma escassez perigosa de suprimentos, ainda mais com o inverno a apenas
dois meses de distância.
— Devo supor, meu senhor, que temos um exército poderoso, mas não meios
de deslocá-lo para outro lugar? — perguntou Ly rna.
O conde passou a mão pela cabeça raspada, a cicatriz costurada em sua face
parecendo ficar um pouco mais vermelha enquanto ele suspirava de frustração e
procurava formular a resposta correta.
— Sim — falou Vaelin, da extremidade oposta da mesa. — E não é apenas
uma questão de deslocá-lo. Se não encontrarmos alimentos suficientes para o
inverno, este exército poderá muito bem passar fome.
— Sem dúvida capturamos suprimentos volarianos — disse Ly rna.
— De fato, Alteza — concordou o corpulento Irmão Hollun. Como a maioria
dos presentes, ele parecia ter dificuldades para não olhar fixamente para o rosto
da Rainha. — Doze toneladas de grãos, quatro de milho e seis de carne.
— Sem as quais o meu povo passará fome no inverno — afirmou a Senhora
Reva. — Já tive de recomeçar o racionamento… Alteza — acrescentou ela,
claramente ainda tendo problemas com a etiqueta.
Ly rna olhou para o mapa, traçando a rota até Varinshold e encontrando
muitas cidades e aldeias ao longo do caminho, mas ciente de que a maioria agora
seria pouco mais do que ruínas incendiadas, sem quaisquer suprimentos.
Trezentos e vinte quilômetros até Varinshold, ponderou ela, examinando o mapa
com mais atenção. Metade dessa distância até a costa… e o mar.
Ela ergueu a cabeça e viu o Escudo parado fora do círculo de capitães, mais
para o fundo da tenda, com o rosto parcialmente nas sombras.
— Meu senhor Ell-Nestra — disse Ly rna. — Sua opinião, por favor.
Ele se aproximou após uma leve hesitação; os netos gêmeos do Senhor Feudal
Darvus abriram caminho com mesuras educadas que ele não notou.
— Alteza — disse ele num tom neutro.
— Há muitos navios em sua frota — afirmou ela. — Suficientes para levar
um exército até Varinshold?
Ele sacudiu a cabeça.
— Metade da frota foi obrigada a retornar às Ilhas para reparos depois dos
Dentes. Talvez pudéssemos transportar um terço dos que estão reunidos aqui, e
ainda assim teríamos de deixar os cavalos para trás.
— Varinshold não será tomada por tão poucos — disse o Conde Marven. —
Não se acreditarmos no que a volariana disse. Eles estão bem-guarnecidos e são
abastecidos pelo mar e por Renfael.
Ly rna olhou para Varinshold. Capital e principal porto de todo o Reino, cuja
riqueza, em grande parte, vinha do comércio com Volaria. Ela apontou para as
rotas marítimas ao largo da costa de Varinshold e olhou para o Escudo.
— Já levou algum navio por essas águas, meu senhor?
Ele examinou o mapa por um momento e então assentiu.
— Alguns. Não há pilhagens tão fáceis quanto nas rotas comerciais do sul. A
frota do Rei sempre cuidou do comércio de Varinshold como um pastor zeloso.
— Agora não há frota — observou Ly rna. — E não é provável que as
pilhagens sejam consideráveis, dadas as perdas do inimigo nos Dentes?
Ele assentiu mais uma vez.
— De fato consideráveis, Alteza.
— O senhor me deu um navio ontem. Hoje eu o devolvo com um pedido
para que o senhor pegue a sua frota e capture ou queime qualquer navio
volariano que encontrar navegando para Varinshold ou saindo de lá. Fará isso por
mim?
Ly rna sentiu os outros capitães se remexerem e voltarem os olhares firmes
para o pirata. Não gostam de ver uma rainha barganhar, concluiu ela. No futuro,
falarei com ele em particular.
— Os meus homens podem precisar de certa persuasão — respondeu o
Escudo após um momento. — Nós navegamos para defender as Ilhas. E essa
tarefa foi cumprida.
O Senhor Marinho Ell-Nurin adiantou-se, curvando-se para Ly rna com
requintada graça.
— Não posso falar pelos homens do Escudo, Alteza. Mas os meus homens
estão prontos para segui-la até os Salões de Udonor, se a senhora pedir. Assim
como estou certo de que muitos outros também o farão. Depois da Batalha dos
Dentes e de sua… cura, muitos não ousariam recusar. — Ele se virou para o
Escudo com uma expressão de expectativa.
— Como disse o Senhor Marinho — afirmou o Escudo por entre os dentes,
após um momento —, como poderíamos recusar?
— Muito bem. — Ly rna passou novamente os olhos pelo mapa. — Os
preparativos precisam estar concluídos em uma semana. Então o exército
marchará não para o norte, mas para leste, para a costa. Seguiremos para
Varinshold pelos portos costeiros, onde os nossos aliados meldeneanos irão nos
reabastecer com quaisquer produtos que o Conselho Governante volariano ache
apropriado enviar à sua guarnição. Além disso, portos são sinônimos de
pescadores, que seguramente ficarão gratos pela preferência.
— Se é que restou algum — disse Reva em voz baixa.
— Faço então as seguintes nomeações — prosseguiu Ly rna, optando por
ignorar a Senhora Governadora. — Por favor, perdoem a falta de cerimônia,
mas não temos tempo para tais trivialidades agora. Nomeio Lorde Vaelin Al
Sorna como Senhor da Batalha do Exército da Rainha. O Conde Marven é
nomeado Espada do Reino e Ajudante-General. Irmão Hollun, eu o nomeio
Tesoureiro Real. Os Capitães Adal, Orven e Nortah são nomeados Espadas do
Reino e elevados à patente de Lorde Comandante. Lorde Atheran Ell-Nestra. —
Ela mais uma vez olhou nos olhos do Escudo. — Eu o nomeio Lorde Almirante
do Reino Unificado e capitão de sua nau capitânia. — Ly rna passou os olhos pelos
presentes. — Essas nomeações incluem todos os direitos e privilégios garantidos
pela Lei do Reino. Concessões de terras serão designadas ao encerramento das
hostilidades. Eu lhes pergunto formalmente: aceitam esses títulos?
Ela notou que Vaelin foi o último a assentir, e somente depois de o Escudo ter
levado quase uma eternidade para concordar com uma mesura e a sombra do
sorriso costumeiro nos lábios.
— Outros assuntos de que precisamos tratar, meus senhores? — perguntou
Ly rna ao conselho.
— Há a questão dos prisioneiros, Alteza — disse o Lorde Comandante Orven.
— Mantê-los a salvo tem sido uma provação. Ainda mais dada a habilidade com
o arco de nossos anfitriões cumbraelinos — acrescentou ele, com um olhar
rápido na direção de Reva.
— Presumo que tenham sido interrogados sobre informações úteis? —
perguntou Ly rna.
Harlick, o magro Irmão mais velho, ergueu a mão ossuda.
— Essa tarefa me foi confiada, Alteza. Há alguns oficiais entre eles que ainda
preciso interrogar. Contudo, a minha experiência até o momento indica que a
utilidade deles provavelmente é limitada.
— Eles podem trabalhar — disse Vaelin, encarando-a com olhos vermelhos,
mas firmes. — Reconstruir o que destruíram.
— Não posso permitir que fiquem na cidade — interrompeu Reva, sacudindo
a cabeça. — A população os faria em pedaços.
— Então os levamos conosco — retorquiu Vaelin. — Eles podem servir de
carregadores.
— E mais bocas para alimentar — disse Ly rna, virando-se para o Irmão
Harlick. — Conclua o seu interrogatório, Irmão. Lorde Comandante Orven os
enforcará quando você tiver terminado. Meus senhores, ao trabalho, por favor.

Ela o encontrou sentado na beira do rio, aparentemente apenas um soldado


musculoso trançando uma corda com dedos incrivelmente ágeis. Vaelin a avisara
para não esperar muito dele, de modo que foi uma surpresa quando o homem se
levantou depressa quando Ly rna se aproximou, fazendo uma mesura com uma
perfeição que teria envergonhado o cortesão mais experiente.
— Cara disse que eu devia me curvar — disse o homem, o belo rosto
iluminado por um sorriso franco. — Ela me mostrou como fazer.
Ly rna olhou para a direita, onde os três outros dotados dos Confins
observavam. A garota, Cara, ainda pálida e cansada pelo esforço do dia anterior,
tinha o olhar fixo em Ly rna, com o rosto franzido de desconfiança, imitada pelo
jovem magro que lhe segurava a mão e pelo sujeito grande de barba volumosa
parado atrás de ambos. Eles acham que vim para punir?
Benten colocou uma das mãos na espada quando Artesão aproximou-se,
estendendo a mão para tocar a face de Ly rna.
— Está tudo bem, meu senhor — disse ela ao ex-pescador, ficando imóvel e
permitindo que o curandeiro tocasse o seu rosto. Antes queimou, mas agora está
fria. — Vim para lhe agradecer, senhor — continuou. — Gostaria de nomeá-lo
lorde…
— Sua recompensa já foi dada — respondeu ele, retirando a mão. O sorriso
desapareceu do rosto e ele franziu a testa confuso, batendo nela de leve com um
dedo. — É sempre assim, algo sempre vem junto. — Os olhos dele se
arregalaram um pouco ao olhar os de Ly rna. — Você deu mais. Mais do que
qualquer outro.
Ly rna sentiu uma pontada da mesma sensação de quase pânico que
vivenciara na montanha de Mahlessa, o desejo de fugir de algo incompreensível,
mas inegavelmente perigoso. Ela respirou devagar e forçou-se a olhá-lo nos
olhos.
— O que eu dei?
Artesão sorriu de novo, virou-se para tornar a sentar e pegou a sua corda.
— Você mesma — respondeu ele em voz baixa, enquanto as suas mãos
retomavam o trabalho.
— Minha Rainha. — Ly rna virou-se e se deparou com Iltis vindo depressa em
sua direção, com o rosto mais pálido do que ela gostaria. Mas ele ainda se
recusava a descansar. Atrás dele, podia ver o Irmão Caenis parado com quatro
pessoas, duas jovens da cidade, um soldado nilsaelino e um dos guerreiros livres
de Lorde Nortah. Ly rna notou que os três dotados dos Confins ficaram tensos ao
avistá-los e trocaram olhares preocupados, e o homenzarrão chegou a erguer o
bastão que carregava, colocando-se diante da garota como que para protegê-la.
— O Lorde Comandante Caenis solicita uma audiência particular, Alteza —
disse-lhe Iltis com uma mesura.
Ela assentiu e fez sinal para que Caenis se aproximasse, afastando-se um
pouco de Artesão. Ly rna parou por um momento para ver as águas congeladas
do Ferrofrio, e então olhou para Cara, que agora encarava fixamente com franca
animosidade o Irmão Caenis, que se ajoelhou diante de sua Rainha. O poder de
congelar um rio no verão, mas ela teme este homem.
— Alteza, peço a atenção da senhora…
— Sim, sim, irmão. — Ela fez sinal para que Caenis se levantasse,
gesticulando na direção de Cara e dos outros dotados. — Parece que você está
deixando meus súditos nervosos.
O Irmão Caenis virou-se para os dotados, fazendo uma leve careta.
— Eles… temem o que preciso contar à senhora. — Ele se virou para Ly rna
e empertigou-se. — Minha Rainha, venho oferecer os serviços de minha Ordem
neste conflito. Nós nos submetemos às suas ordens e não faltaremos ao dever em
busca da vitória.
— Nunca duvidei da lealdade da Sexta Ordem, irmão. Embora eu quisesse
ter mais de vocês… — Ly rna calou-se ao olhar de novo para as quatro pessoas,
notando como se remexiam sob o seu escrutínio, cada rosto com uma expressão
tensa e cautelosa. — Essas pessoas não me parecem prováveis recrutas para a
Sexta.
— Não, Alteza — disse Caenis, e ela teve a impressão de estar ali um homem
que se forçava a assumir um dever há muito temido. — Nós pertencemos a uma
ordem completamente diferente.
CAPÍTULO DOIS
Alucius

O nome do Kuritai era Vinte e Sete, embora Alucius ainda não tivesse ouvido o
homem dizê-lo. Na verdade, ele ainda não ouvira o escravo de elite dizer coisa
alguma. O homem reagia a instruções com obediência instantânea e era o criado
perfeito, buscando coisas, carregando e limpando sem qualquer sinal de cansaço
ou mesmo a mais leve expressão de reclamação.
Meu presente para você, dissera Lorde Darnel no dia em que arrastaram
Alucius das profundezas da Fortaleza Negra, com ele esperando a morte e
sufocando um grito de perplexidade quando removeram os seus grilhões e
encontrou as mãos de seu pai ajudando-o a se levantar. Um criado de perfeitude
sem igual, prosseguira Darnel, indicando o Kuritai com um gesto. Sabe, acho que
estou começando a gostar dessa coisa de brincar com as palavras, poetinha.
— Sim, estou muito bem nesta bela manhã — disse Alucius a Vinte e Sete
enquanto o escravo servia o café. — Que gentileza a sua perguntar.
Eles estavam na varanda que dava para o porto, o sol nascendo no horizonte
para pintar os navios com um matiz dourado que ele sabia que faria Alornis
correr para pegar uma tela e pincéis. Alucius escolhera a casa pela vista, sem
dúvida a morada de um mercador, que presumivelmente estava morto ou
escravizado, assim como a sua família. Varinshold agora estava repleta de casas
vazias; havia outras dentre as quais ele podia escolher caso se cansasse daquela,
mas Alucius havia se acostumado com a vista, ainda mais porque abarcava todo
o porto.
Cada vez menos navios, pensou, contando as embarcações com a precisão
habitual. Dez navios de escravos, cinco mercantes, quatro belonaves. Os cascos
dos navios de escravos estavam mais acima da água, seus porões copiosos vazios,
como estavam havia semanas, desde que a grande coluna de fumaça se erguera
para bloquear o sol durante dias a fio. Alucius vinha tentando escrever algo sobre
o acontecimento, mas percebeu que as palavras não fluíam quando colocava a
pena no papel. Como escrever um tributo para uma floresta?
Vinte e Sete colocou o último prato na mesa e afastou-se enquanto Alucius
pegava os talheres, provando primeiro os cogumelos e vendo que haviam sido
cozinhados de forma perfeita com um pouco de alho e manteiga.
— Excelente como sempre, meu letal amigo.
Vinte e Sete olhou pela janela e nada disse.
— Ah, sim, é dia de visitas — prosseguiu Alucius, com um pedaço de bacon
na boca. — Obrigado por me lembrar. Embrulhe o bálsamo e os livros novos, por
favor.
Vinte e Sete virou-se de pronto para obedecer às instruções, indo primeiro à
estante. O dono da casa havia cultivado uma biblioteca razoável, em grande
parte, supunha Alucius, para manter as aparências, visto que poucos dos volumes
mostravam sinais de já terem sido lidos. Eram na maioria romances populares e
algumas das obras históricas mais famosas, nenhuma apropriada aos seus
propósitos, o que o obrigou a passar horas esquadrinhando as casas maiores em
busca de materiais mais interessantes. Havia muitas opções, uma vez que os
volarianos eram saqueadores de um entusiasmo sem limites, mas tinham pouco
interesse em livros, a não ser como combustível para fogueiras. O dia anterior
fora particularmente proveitoso, com a obtenção de uma coleção completa das
Observações Astronômicas, de Marial, e um volume com dedicatória que ele
esperava que despertasse o interesse de uma de suas incumbências em particular.
Dez navios de escravos, cinco mercantes, quatro belonaves, contou ele de
novo, virando-se para o porto. Dois a menos do que ontem… Alucius parou ao
avistar outra embarcação, uma belonave contornando o promontório ao sul.
Parecia estar tendo dificuldades para avançar pelas águas, com apenas uma vela
içada, e esta, ele viu quando a embarcação chegou mais perto, era uma lona
esfarrapada escurecida pela fuligem. O navio arrastava cordas frouxas pelas
ondas plácidas da manhã ao se aproximar da entrada do porto, blocos e vigas
quebradas penduradas no cordame, uma tripulação reduzida andando pelo
convés com as costas curvadas de homens exaustos. Quando ancorou, os olhos de
Alucius discerniram numerosas marcas de chamuscamento que enegreciam o
casco e muitas manchas marrom-escuras no convés sujo.
Cinco belonaves, corrigiu-se. Uma com uma história interessante para contar,
ao que parece.

***

Eles passaram pelo pombal no caminho, encontrando a única ave restante com a
fome costumeira.
— Coma devagar — disse ele a Pena Azul, sacudindo o dedo, mas ela o
ignorou, subindo e descendo a cabeça enquanto apanhava as sementes com o
bico. O pombal ficava no alto da casa da Guilda dos Tipógrafos, cujo telhado
havia sido poupado do fogo que devastara a construção graças às vigas de ferro
de que era feito. As casas em volta não tiveram tanta sorte, e o outrora
movimentado edifício ao qual Alucius vinha para imprimir os seus poemas agora
se erguia em meio a ruas de escombros e cinzas. Vista daquela altura, a cidade
lembrava uma colcha de retalhos encardida, ilhas de construções intactas num
mar de ruínas negro-acinzentadas.
— Sinto muito se você tem achado solitário ficar aqui — disse ele a Pena
Azul, esfregando o peito macio da ave. Havia dez deles, um ano antes. Pássaros
jovens, cada um com um grampo minúsculo preso na pata direita, resistente o
suficiente para carregar uma mensagem.
Aquele fora o primeiro lugar para onde Alucius correra ao ser libertado da
Fortaleza Negra, encontrando vivas apenas três das aves. Ele as alimentara e
livrara-se dos corpos enquanto Vinte e Sete assistia impassível. Fora um risco
levar o escravo até ali para testemunhar o seu maior segredo, mas não havia
muita escolha. Na verdade, ele esperara que o Kuritai o matasse ali mesmo ou o
colocasse a ferros mais uma vez para retornar de imediato à prisão. Contudo, o
homem apenas ficara parado e observara enquanto Alucius escrevia a
mensagem em código num pedaço minúsculo de pergaminho antes de enrolá-lo
e enfiá-lo no pequeno cilindro de metal que caberia no grampo da pata do
pombo.
Varinshold caiu, escrevera ele, embora soubesse que provavelmente era
notícia velha para os destinatários. Darnel governa. Quinhentos cavaleiros e uma
divisão V. Vinte e Sete nem mesmo se virou para ver o pássaro voar para longe
quando Alucius o lançou do telhado e o esperado golpe mortal jamais fora
desferido, não naquela ocasião, nem quando ele soltou o pássaro seguinte na noite
em que a frota volariana zarpou para as Ilhas Meldeneanas. Ao que tudo
indicava, Vinte e Sete não era seu carcereiro nem espião de Darnel; ele era
simplesmente o seu carrasco que aguardava. De qualquer forma, as suas
preocupações quanto ao que o Kuritai via desapareceram havia há muito tempo,
junto com a esperança de que pudesse viver para ver aquela cidade liberta… e
ver Alornis desenhar de novo.
Ele considerou por um breve momento enviar Pena Azul com a sua
mensagem final; aqueles aos quais ele prestava contas sem dúvida achariam
interessante a notícia sobre a belonave avariada, mas abandonou a ideia. O navio
pressagiava muita coisa, e seria melhor aguardar para descobrir a história inteira
antes de usar o seu último vínculo com o mundo exterior.
Eles desceram do telhado por uma escada encostada na parede dos fundos e
seguiram para a única construção em Varinshold que parecia não ter sofrido
qualquer dano, a vasta fortaleza de pedra negra situada no centro da cidade.
Alucius sabia que ocorrera uma batalha sangrenta ali. A guarnição de capangas
da Quarta Ordem presente na Fortaleza Negra lutara de maneira
surpreendentemente valente e repeliram sucessivas ondas de Varitai, com o
Aspecto Tendris no meio do combate, instigando-os a feitos de coragem cada vez
maiores com Fé inabalável. Pelo menos era essa a história caso se desse crédito
aos murmúrios de escravos nascidos no Reino. A fortaleza finalmente foi tomada
quando os Kuritai foram enviados, e o Aspecto Tendris abateu quatro dos
escravos de elite antes de uma facada covarde nas costas derrubá-lo, algo que
Alucius achava extremamente improvável, embora admitisse que o desgraçado
louco provavelmente tinha morrido lutando.
Os Varitai no portão abriram caminho quando ele se aproximou seguido por
Vinte e Sete com os seus livros e vários remédios num saco pendurado no ombro
largo. O interior da Fortaleza Negra era ainda menos edificante do que o exterior,
um pátio estreito com paredes negras austeras e arqueiros Varitai postados no
parapeito acima. Alucius foi até a porta nos fundos do pátio, e o guarda Varitai a
destrancou e lhe deu passagem. Lá dentro, ele desceu os degraus sinuosos até as
galerias. O cheiro avivou lembranças desagradáveis de sua estada ali: podridão
bolorenta e o traço pungente de mijo de rato. Os degraus terminavam uns seis
metros abaixo, dando para um corredor iluminado por tochas e ladeado por dez
celas, cada uma fechada por uma pesada porta de ferro. Todas as celas estavam
ocupadas quando ele fora trazido pela primeira vez para ali, mas agora apenas
duas estavam ocupadas.
— Não — respondeu Alucius à pergunta que Vinte e Sete não fizera. — Não
posso dizer que é bom estar de volta, meu amigo.
Ele se aproximou do Espada Livre, sentado num banco no fim do corredor.
Era sempre o mesmo homem, um sujeito emburrado e musculoso que falava a
língua do Reino com toda a delicadeza de um escultor cego tentando esculpir
uma obra-prima.
— Quadelis? — grunhiu ele, levantando-se e deixando de lado um odre de
vinho.
— Aspecto Dendrish, acho — disse Alucius. — As tarefas enfadonhas
primeiro, é o que sempre digo. — Ele escondeu um suspiro de frustração quando
o Espada Livre franziu a testa, confuso. — O homem gordo — acrescentou
lentamente.
O Espada Livre encolheu os ombros e andou até a porta mais afastada, as
chaves tilintando enquanto a destrancava. Alucius lhe agradeceu com uma
mesura e entrou.
O Aspecto Dendrish Al Hendrahl perdera talvez metade de seu peso durante
o cativeiro, mas mesmo assim ainda era consideravelmente mais gordo do que a
maioria dos homens. Ele cumprimentou Alucius com o costumeiro rosto franzido
e informalidade, os olhos pequenos apertados e reluzindo à luz da única vela no
recanto acima de sua cama.
— Imagino que você tenha trazido algo mais interessante do que da última
vez.
— Acredito que sim, Aspecto. — Alucius pegou o saco de Vinte e Sete e o
revirou, tirando de dentro um volume grande com o título gravado em relevo
dourado na capa de couro.
— Falácia e crença — leu o Aspecto ao pegar o volume. — A natureza da
adoração de Deus. Você me trouxe o meu próprio livro?
— Não exatamente, Aspecto. Sugiro que olhe dentro.
Dendrish abriu o livro, os olhos pequenos examinando o texto na página de
rosto, em que Alucius sabia estar escrito Ou “Pomposidade e arrogância: a
natureza da erudição do Aspecto Dendrish”.
— O que é isso? — perguntou o Aspecto.
— Encontrei na casa de Lorde Al Avern — falou Alucius. — O senhor sem
dúvida se lembra dele. Era chamado de Lorde da Tinta e do Pergaminho, por
causa de suas realizações eruditas.
— Realizações? O homem era um amador, um mero copiador de talentos
maiores.
— Bem, ele tem muito a dizer sobre os seus talentos, Aspecto. A crítica dele
do seu tratado sobre a origem dos deuses alpiranos é particularmente efusiva, e
escrita de forma bastante elegante, devo dizer.
As mãos gordas de Al Hendrahl folhearam o livro com precisão, abrindo-o
para revelar um capítulo adornado de forma deliberada com a letra elegante do
finado Lorde Al Avern.
— “Simplesmente repete Carvel”? — leu o Aspecto num sussurro furioso. —
O macaco desmiolado me acusa de falta de originalidade.
— Achei que o senhor podia achar divertido. — Alucius fez uma mesura e foi
até a porta.
— Espere! — Al Hendrahl lançou um olhar cauteloso para o Espada Livre do
lado de fora da cela e levantou-se, não sem dificuldade. — Sem dúvida você tem
notícias.
— Infelizmente, as coisas não mudaram desde a minha última visita,
Aspecto. Lorde Darnel está procurando o filho em meio às cinzas do seu grande
crime, aguardamos notícias da gloriosa vitória do General Tokrev em Alltor e da
tomada igualmente gloriosa do Almirante Morok das Ilhas Meldeneanas.
Al Hendrahl aproximou-se e falou num sussurro quase inaudível:
— Nada ainda sobre Mestre Grealin?
Era a pergunta que ele sempre fazia, e Alucius desistira de tentar arrancar a
razão para esse interesse no almoxarife da Sexta Ordem.
— Nada, Aspecto. Tal como da última vez. — Estranhamente, essa resposta
sempre parecia tranquilizar o Aspecto, e o homem assentiu, voltando a se sentar
na cama, com os dedos sobre o livro e sem erguer o olhar quando Alucius saiu da
cela.
Como sempre, a Aspecto Elera contrastava com o seu irmão de Fé, sorrindo
e levantando-se quando a porta se abriu, as mãos delgadas estendidas em
saudação.
— Alucius!
— Aspecto. — Ele percebia que sempre tinha de cuidar para que sua voz não
ficasse embargada quando a via, vestida com o imundo manto cinzento que não
deixavam que ele substituísse, o tornozelo dela vermelho e em carne viva por
causa do grilhão. Porém, ela sempre sorria e ficava feliz ao vê-lo.
— Trouxe mais bálsamo — disse Alucius, colocando o saco sobre a cama. —
Para a sua perna. Há uma farmácia na rua dos Condutores. Incendiada,
naturalmente, mas parece que o proprietário teve a previdência de esconder
parte do estoque no porão.
— Engenhoso como sempre, meu senhor. Obrigada. — Ela se sentou e
examinou o saco por um momento, retirou de dentro um pequeno pote de
cerâmica de bálsamo e removeu a tampa para sentir o cheiro do conteúdo. —
Óleo de corr e mel. Excelente. Servirão muito bem. — A Aspecto revirou mais o
saco e encontrou os livros. — Marial! — exclamou ela, encantada. — Já tive
todos os volumes. Deve fazer quase vinte anos desde a última vez que os li. Você
é bom para mim, Alucius.
— Eu me esforço para fazer o melhor que posso, Aspecto.
Elera deixou o livro de lado e olhou para ele, o rosto tão limpo quanto
permitia sua parca cota de água. Lorde Darnel fora muito específico nas
instruções sobre o confinamento da Aspecto, uma consequência das palavras
pouco lisonjeiras que ela lhe dissera durante a sua primeira e única visita àquela
cela. Assim, enquanto o Aspecto Dendrish era tratado apenas com a crueldade
da indiferença e de uma dieta restrita, a Aspecto Elera fora presa à parede com
uma corrente que restringia os seus movimentos a menos que os dois metros
quadrados de sua cela minúscula. Entretanto, até o momento Alucius não a
ouvira fazer uma reclamação sequer.
— Como vai o poema? — perguntou Elera.
— Devagar, Aspecto. Receio que esses tempos tumultuosos mereçam um
cronista melhor.
— Uma pena. Eu estava ansiosa para lê-lo. E o seu pai?
— Envia os seus cumprimentos — mentiu Alucius. — Embora eu raramente
o veja esses dias, ocupado como ele está a serviço do Lorde.
— Ah. Bem, não deixe de lhe dar os meus cumprimentos.
Pelo menos ela não o chamará de traidor quando isso acabar, pensou Alucius.
Embora talvez seja a única.
— Diga-me, Alucius — prosseguiu a Aspecto. — As suas explorações o
levam até o quadrante sul?
— Raramente, Aspecto. As sobras não são das melhores, e, de qualquer
forma, não restou muita coisa do quadrante para ser vasculhado.
— Que pena. Havia uma estalagem lá, creio que se chamava Javali Negro.
Se você estiver precisando de vinho decente, acredito que o proprietário
mantinha uma seleção de safras cumbraelinas num local secreto sob as tábuas do
assoalho, para não incomodar os coletores de impostos do Rei, claro.
Vinho decente. Quando foi a última vez que você bebeu algo que não tenha
gosto do mais ácido vinagre? Os volarianos podiam ter tido pouco interesse nos
livros da cidade, mas haviam limpado cada prateleira de vinho na primeira
semana de ocupação, forçando-o a um período indesejado de sobriedade.
— Muito gentil de sua parte, Aspecto. Mas devo confessar a minha surpresa
por a senhora ter conhecimento de tais assuntos.
— Escuta-se toda espécie de coisas quando se é uma curandeira. As pessoas
revelam os seus segredos mais íntimos àqueles que elas esperam que acabem
com suas dores. — Elera o olhou nos olhos, e havia um novo peso em sua voz
quando acrescentou: — Eu não me demoraria à procura do vinho, meu senhor.
— Eu… não irei me demorar, Aspecto.
O Espada Livre bateu com as chaves na porta, soltando um grunhido
impaciente.
— Preciso ir — disse ele, pegando o saco vazio.
— Foi um prazer, Alucius, como sempre. — A Aspecto estendeu a mão, e ele
se ajoelhou para beijá-la, um ritual de cortesia que haviam adotado com o passar
das semanas. — Sabe de uma coisa? — comentou ela quando Alucius levantou-
se e caminhou até a porta. — Creio que, se Lorde Darnel fosse um homem
verdadeiramente corajoso, já teria nos matado a essa altura.
— E com isso teria feito o seu feudo se levantar contra ele — respondeu
Alucius. — Nem mesmo ele é tão tolo.
Ela assentiu, sorrindo mais uma vez enquanto o Espada Livre fechava a porta,
suas últimas palavras foram baixas, mas audíveis e insistentes:
— Não deixe de aproveitar o vinho!

Lorde Darnel mandou chamá-lo à tarde, adiando uma exploração do quadrante


sul. O Senhor Feudal tomara posse da única ala restante do palácio, um
aglomerado reluzente de paredes e torres de mármore que se erguia das ruínas
destroçadas que o cercavam. As paredes estavam parcialmente cobertas por
andaimes, enquanto pedreiros esforçavam-se para remodelar o que sobrara
numa construção convincentemente independente, como se sempre tivesse sido
assim. Darnel estava determinado a apagar quanto fosse possível do passado
inconveniente. Um pequeno exército de escravos trabalhava sem parar para
realizar a visão de seu novo mestre; as alas arruinadas eram removidas para dar
lugar a um jardim ornamental, repleto de estátuas saqueadas e canteiros de
flores ainda não desabrochadas.
Alucius sempre ficava surpreso por não sentir medo toda vez que tinha a
infelicidade de se encontrar na presença do Senhor Feudal; o temperamento do
homem era lendário, e o seu gosto pela pena de morte fazia o velho Rei Janus
parecer o modelo de governança tolerante. Porém, apesar de todo o seu desprezo
evidente, Darnel precisava dele vivo. Pelo menos até que meu pai vença a guerra
para ele.
Dois dos cavaleiros mais robustos de Darnel, vestindo armaduras completas e
fedendo de forma horrível, apesar de todo o óleo de lavanda com que se
besuntavam, abriram caminho para que Alucius entrasse na nova sala do trono.
Até o momento, nenhum ferreiro resolvera o problema eterno dos odores
malcheirosos causados pelo uso prolongado de armaduras. Darnel estava sentado
em seu novo trono, uma sinfonia de carvalho e veludo belamente entalhada, com
um encosto ornamentado que passava de dois metros de altura. Embora ainda
tivesse que se declarar rei formalmente, Darnel não tardara em se vestir com o
maior número possível de parafernálias reais, a coroa do Rei Malcius sendo o
item principal, ainda que Alucius achasse que ficava um pouco solta na cabeça
do homem. Balançou agora em sua fronte quando o Senhor Feudal inclinou-se
para dirigir-se ao homem diante dele, um sujeito rijo e um tanto esfarrapado
vestido como um marinheiro volariano, com um manto negro sobre os ombros.
O medo de Alucius tomou forma quando ele avistou o homem parado atrás do
marinheiro. O Comandante de Divisão Mirvek estava empertigado em seu
peitoral preto laqueado, as feições pesadas e marcadas por cicatrizes, e o ar
impassível com que sempre ficava na presença do Senhor Feudal. Darnel podia
precisar dele vivo, mas o volariano certamente não precisava. Alucius ficou um
pouco aliviado ao ver o pai, parado de braços cruzados ao lado de Darnel.
— Um tubarão? — perguntou Lorde Darnel ao marinheiro, com a voz cheia
de desprezo. — Você perdeu a sua frota para um tubarão?
O marinheiro retesou-se, o rosto revelando um homem insultado por alguém
que ele considerava ser pouco mais do que um escravo favorecido.
— Um tubarão vermelho — respondeu o marinheiro, falando bem, mas com
sotaque da língua do Reino. — Comandado por uma elverah.
— Elverah? — perguntou Darnel. — Achei que essa suposta elverah estivesse
ocupada atrasando o General Tokrev em Alltor.
— Não é um nome, pelo menos não atualmente — explicou Mirvek. —
Significa bruxa, ou feiticeira, e vem de uma lenda antiga…
— Não dou a mínima para a bosta da sua lenda! — exclamou Darnel. — Por
que você me trouxe esse cão derrotado com essas histórias fantásticas de bruxas
e tubarões?
— Não sou mentiroso! — retorquiu o marinheiro, ficando com o rosto
vermelho. — Testemunhei mais de mil mortes pelas mãos daquela vadia e de sua
criatura.
— Controle o seu cão — disse Darnel calmamente ao Comandante de
Divisão. — Ou ele será chicoteado como lição.
O marinheiro tornou a se enfurecer, mas nada mais disse quando Mirvek o
conteve, colocando a mão em seu ombro, e sussurrando algo em sua própria
língua. O volariano de Alucius era ruim, mas ele teve certeza de ter ouvido a
palavra “paciência” na voz tranquilizadora do comandante.
— Ah, poetinha — disse Darnel, notando Alucius. — Eis uma história digna
de um ou dois versos. A grande frota volariana afundada por um tubarão
abençoado pelas Trevas atendendo aos caprichos de uma bruxa.
— Elverah — disse mais uma vez o marinheiro, antes de acrescentar algo em
sua própria língua.
— O que ele falou? — perguntou Darnel ao Comandante de Divisão num tom
cansado.
— Nascida do fogo — traduziu o comandante. — Os marinheiros dizem que a
bruxa nasceu do fogo, por causa de suas queimaduras.
— Queimaduras?
— No rosto dela. — O marinheiro passou a mão pelo próprio rosto. —
Queimado, terrível de se olhar. Uma criatura, não uma mulher.
— E eu pensava que não havia superstição alguma entre o seu povo — disse
Darnel antes de virar-se de novo para Alucius. — O que acha que isso significa
para a nossa grande empreitada, poetinha?
— Parece que as Ilhas Meldeneanas afinal de contas não sucumbiram tão
facilmente, meu senhor — observou Alucius num tom seco. Ele viu o pai se
remexer ao lado de Darnel, encarando-o com um aviso no olhar, mas Darnel
pareceu não se incomodar com a observação.
— De fato. Apesar das muitas promessas feitas por nossos aliados, eles
fracassam em capturar as Ilhas e, em vez disso, trazem para a minha casa cães
que latem absurdos. — Ele apontou um dedo firme para o marinheiro. — Tire-o
daqui — disse a Mirvek. — Aproxime-se, poetinha. — Darnel fez um sinal
lânguido com a mão quando os volarianos se retiraram. — Quero a sua opinião
sobre outra história fantástica.
Alucius adiantou-se e se ajoelhou diante do trono. Ele se sentia
constantemente tentado a abandonar toda a simulação de respeito, mas sabia que
a tolerância do lorde tinha limites, a despeito de sua serventia.
— Aqui. — Darnel pegou um objeto esférico ao pé do trono e o jogou para
Alucius. — Familiar, não?
Alucius agarrou o item e o revirou nas mãos. O elmo de um cavaleiro
renfaelino, laqueado de azul, com várias mossas e uma viseira quebrada.
— Lorde Wenders — disse ele, lembrando-se de que Darnel presenteara o
seu principal bajulador com uma armadura indesejável.
— De fato — concordou Darnel. — Encontrado há quatro dias com um virote
de besta cravado no olho. Suponho que você não tenha muita dificuldade para
adivinhar a causa de sua morte.
— O Irmão Vermelho. — Alucius escondeu um sorriso. Incendiou a Urlish
até não restar nada e ainda assim não conseguiu pegá-lo.
— Sim — disse Darnel. — O curioso é que trataram dos ferimentos dele
antes de matá-lo. Ainda mais curiosa é a história contada pelo único sobrevivente
de sua companhia. Receio que ele não tenha vivido por muito tempo, vítima de
um braço esmagado e supurado, mas ele jurou pelos Finados que a companhia
inteira havia sido soterrada por um deslizamento de rochas invocado pelo mestre
gordo do Irmão Vermelho.
Grealin.
— Invocado, meu senhor? — perguntou Alucius com o rosto impassível.
— Sim, com as Trevas, se é que é possível acreditar em tal coisa. Primeiro a
história do irmão tocado pelas Trevas, agora a balada do tubarão da bruxa. Tudo
muito estranho, não concorda?
— Concordo, meu senhor. Sem dúvida alguma.
Darnel reclinou-se no trono, encarando Alucius com malícia no olhar.
— Diga-me, em todas as suas conversas com os nossos estimados Aspectos
sobreviventes, eles já fizeram alguma menção a esse mestre gordo e aos seus
dons das Trevas?
— O Aspecto Dendrish pede livros e comida. A Aspecto Elera não pede nada.
Nunca fazem menção a esse mestre…
Darnel olhou para o pai de Alucius.
— Grealin, meu senhor — disse Lakrhil Al Hestian.
— Sim, Grealin. — Darnel voltou os olhos para Alucius. — Grealin.
— Lembro-me do nome, meu senhor. Creio que Al Sorna o mencionou
durante o tempo que passamos juntos durante a Revolta do Usurpador. Ele
cuidava do almoxarifado da Sexta Ordem, se não me engano.
O rosto de Darnel perdeu toda a expressão e empalideceu, como costumava
acontecer à menção do nome Al Sorna, algo que Alucius bem sabia e com que
contava para causar uma distração conveniente e evitar mais questionamentos
astutos. Contudo, naquele dia o Senhor Feudal não estava se distraindo com tanta
facilidade.
— Almoxarife ou não, parece que ele agora é um monte de cinzas — disse
ele por entre os dentes após um momento. Tirou algo do bolso de seu manto de
seda e jogou para Alucius: um medalhão numa corrente de metal liso,
chamuscado, mas intacto. O Guerreiro Cego. — Os batedores de seu pai
encontraram isso entre as cinzas de uma pira próximo ao corpo de Wenders. É do
mestre gordo ou do Irmão Vermelho, e duvido que teríamos tamanha sorte.
Não, concordou Alucius mentalmente. Você jamais teria tamanha sorte.
— Os nossos aliados volarianos estão extremamente interessados em
qualquer boato sobre as Trevas — disse Darnel. — Estão pagando muito por
escravos que dizem ser tocados por elas. Imagine o que farão aos seus amigos na
Fortaleza Negra se suspeitarem que eles sabem de mais pessoas assim. Na
próxima vez que visitá-los, mostre-lhes esse medalhão, narre para eles essa
história fantástica e me conte cada palavra que disserem.
Ele se levantou e andou lentamente na direção de Alucius, o rosto
estremecendo um pouco, os lábios úmidos de saliva. Eram quase da mesma
altura, mas Darnel era consideravelmente mais largo, e um matador experiente.
Porém, de alguma forma Alucius não sentiu medo quando o homem se
aproximou.
— Essa farsa já durou tempo demais — disse o Senhor Feudal, com a voz
áspera. — Parto esta noite com todos os cavaleiros sob meu comando para
capturar esse Irmão Vermelho e reaver o meu filho. Enquanto eu estiver fora,
você vai se certificar de que aqueles merdas santimoniais saibam que eu os
entregarei de bom grado aos nossos aliados para vê-los esfolados, caso isso
arranque deles os seus segredos, Aspectos ou não.
CAPÍTULO TRÊS
Frentis

Ela desperta e seus olhos encontram um brilho fraco e amarelo num mundo de
sombras. O brilho se torna a chama de uma vela, não tão nítida quanto deveria ser.
Por um momento ela se pergunta se renasceu num corpo parcialmente cego, a
piada do Aliado, ou um castigo adicional. Mas então ela se lembra de que a sua
visão, a visão de seu primeiro corpo, sempre fora surpreendentemente aguçada.
Mais aguçada do que a de qualquer falcão, dissera o seu pai séculos antes, um
raro elogio que lhe enchera os olhos de lágrimas na época, mas que agora nada
causava a esses olhos. Esses olhos mais fracos, roubados.
Ela está deitada sobre pedra dura, fria e áspera ao toque de sua pele nua. Ela
se senta, e algo se move na escuridão; um homem sai das sombras para a luz
fraca. Ele veste o uniforme da Guarda do Conselho e tem o rosto magro de um
veterano, mas ela enxerga a verdadeira face dele no olhar malicioso.
— O que acha? — questiona ele.
Ela ergue as mãos, flexionando os dedos e os pulsos. Forte, ótimo. Seus braços
são esguios, bem-torneados, tal como suas pernas, esbeltas e flexíveis.
— Uma dançarina? — pergunta ela ao Guarda do Conselho.
— Não. Ela foi encontrada quando era uma criança. Das tribos da colina ao
norte, mais ricas em dotados do que qualquer outro lugar do império. O dom é
poderoso, um domínio espantoso do vento. Algo para o qual tenho certeza de que
você encontrará alguma serventia. Ela foi treinada com faca, espada e arco desde
que tinha seis anos. Por segurança, devido à sua inevitável queda.
Ela sente uma pontada de raiva ao ouvir isso. Não era inevitável. Não mais do
que o amor é inevitável. Ela fica tentada a deixar que a raiva aumente, que
alimente com fúria o novo corpo e teste suas habilidades contra o Mensageiro
malicioso, mas se detém diante de outra sensação… A música flui, a melodia é
intensa e forte. Sua canção voltou!
Ela sente uma gargalhada lhe subir pelo peito e a solta, jogando a cabeça para
trás, o som exultando no momento em que outro pensamento lhe ocorre, não
menos intenso em sua compreensão jubilante. Eu sei que você me vê, amado!

Ele acordou sobressaltado, fazendo Retalhador, que dormia aos seus pés, soltar
um ganido de curiosidade. Ao seu lado, Mestre Rensial continuava dormindo,
com um sorriso estranhamente sereno no rosto; um homem contente em seu
sono. Era o único momento em que ele parecia são, além de nas batalhas. Frentis
sentou-se com um gemido, sacudindo a cabeça para afastar o sonho. Sonho?
Você realmente acredita que era isso?
Ele deixou a ideia de lado e calçou as botas, pegou a espada e saiu da tenda
pequena que dividia com o mestre. O céu ainda estava escuro, e ele calculou que
o novo dia começara havia menos de duas horas, pela altura da lua. A companhia
dormia à sua volta; as tendas fornecidas pelo Barão Banders eram um luxo
extraordinário após tantos dias de privações. Eles estavam acampados na encosta
sul de uma colina alta, um dos morros que tornavam a região fronteiriça de
Renfael tão distinta; as fogueiras haviam sido proibidas pelo barão, que não via
motivo para dar a Lorde Darnel qualquer indício de quantos eles eram.
Seis mil homens, pensou Frentis, percorrendo o acampamento com os olhos,
lembrando-se das informações fornecidas pelo desafortunado Lorde Wenders.
Suficientes para tomar uma cidade protegida pelos cavaleiros de Darnel e por
uma divisão inteira de volarianos?
Um som baixo atraiu a sua atenção de volta às tendas onde dormia a sua
companhia, um risinho que vinha da tenda que Arendil dividia com a Senhora
Illian. Ele ouviu sussurros indistintos, mas urgentes, seguidos por mais risinhos. Eu
devia impedir isso, decidiu Frentis, e começou a andar, mas então parou quando
as palavras que Illian lhe dissera no dia anterior lhe vieram à mente. Eu não sou
criança.
Eles perderam a juventude na minha cruzada sangrenta, pensou. E coisas
ainda piores estão por vir em Varinshold. Frentis suspirou e afastou-se até os sons
diminuírem.
Era noite de meia-lua, mas o céu estava claro, fornecendo luz suficiente para
se ter uma boa visão da planície para além dos morros, até então livre de
inimigos. Ele irá esperar?, perguntou-se Frentis. Será que Darnel virá quando
souber que Banders fez o seu feudo rebelar-se contra ele e que agora protege o
seu filho? Sua mão doeu ao apertar o punho da espada, sentindo a sede de sangue
aumentar mais uma vez, chamando a voz dela como sempre fazia. Não está tão
livre dos seus prazeres, afinal, amado?
— Me deixe em paz — sussurrou em volariano por entre os dentes, forçando
a mão a soltar a espada.
— Então aprendeu uma nova língua, irmão?
Frentis virou-se e viu um irmão mais ou menos da sua idade vindo das
sombras, alto com um rosto estreito e um sorriso enviesado. Foi o sorriso que
avivou a sua memória.
— Ivern — disse ele após um momento.
O jovem irmão parou a alguns metros de distância e olhou Frentis da cabeça
aos pés, espantado.
— Achei que o Irmão Sollis estava de brincadeira quando me contou — disse
ele. — Mas desde quando ele brinca sobre alguma coisa? — Ele avançou e deu
um abraço caloroso em Frentis.
— A Ordem — começou Frentis quando Ivern recuou. — A Casa caiu. Não
há outros…
— Eu sei. Ele me contou a sua história. Pouco mais de uma centena de nós. É
tudo o que resta da Sexta Ordem.
— O Aspecto Arly n está vivo. O lambe-botas de Darnel confirmou essa
informação, mas não pôde nos dizer onde em Varinshold o haviam aprisionado.
— Um mistério a ser resolvido quando chegarmos lá. — Ivern inclinou a
cabeça para o agrupamento de tendas ali perto. — Sobrou meia garrafa de
Amigo de Irmão, se quiser dividir.
Frentis nunca tivera uma predileção especial pela bebida alcoólica favorita da
Ordem, pois não gostava do modo como ela entorpecia os sentidos, de forma que
se limitou a um gole educado antes de devolver o frasco a Ivern, que parecia não
ter tais preocupações.
— Estou dizendo a mais pura e completa verdade — insistiu ele após um gole
longo do frasco. — Ela me beijou, bem nos lábios.
— A Princesa Ly rna beijou você? — perguntou Frentis, erguendo uma
sobrancelha.
— De fato beijou. Após uma perigosa e, suponho, agora já lendária
empreitada pelo Domínio Lonak. Eu já havia escrito metade do relato para que
fosse incluído no arquivo do Irmão Caenis quando chegou a notícia da invasão. —
O sorriso dele tornou-se pesaroso. — Meu melhor momento como um irmão,
que a história perdeu graças a preocupações maiores. — Ele olhou Frentis nos
olhos. — Ouvimos muitas coisas sobre você enquanto vínhamos para o sul. A
história do Irmão Vermelho se espalhou depressa e por toda parte. Existe até
mesmo uma versão que diz que você a viu morrer.
O fogo lhe envolvendo o rosto enquanto ela gritava, o cabelo enegrecendo
enquanto tentava apagar as chamas com as mãos…
— Eu não a vi morrer — disse Frentis. Apenas matei o irmão dela.
Ele contara tudo ao Irmão Sollis na noite anterior enquanto a companhia fazia
a sua primeira refeição de verdade após dias, alguns com os ombros tão
curvados de alívio que não conseguiam levar a comida às bocas. Sollis assimilara
cada palavra sem fazer qualquer comentário, os olhos claros nada revelando
enquanto a história de assassinato e dor era narrada. Terminado o relato, ele, tal
como o Aspecto Grealin, dera instruções expressas para que não fosse repetido a
ninguém e que fosse mantida a ficção na qual acreditavam as pessoas que o
seguiam. A mesma mentira, acrescentou a voz da mulher num tom de leve
zombaria.
— Então há uma chance — insistiu Ivern. — Ela ainda pode estar viva.
— Peço todos os dias aos Finados para que assim seja.
Ivern tomou outro gole.
— Os lonaks não compreendiam o que era uma princesa, então a chamavam
de rainha. No fim, estavam certos. Se eu fosse um volariano, estaria rezando pela
morte dela. Não gostaria de ser o alvo da vingança daquela mulher.
Vingança, pensou Frentis, olhando para as próprias mãos, mãos que haviam
quebrado o pescoço de um rei. Ou justiça?

Ele retornou para a sua companhia pela manhã e encontrou Davoka conversando
com Illian, a jovem nobre sentada de forma rígida e com o rosto pálido enquanto
a lonak falava num tom instrutivo:
— Você precisa ter cuidado — advertiu ela, passando uma pedra ao longo da
lâmina da sua lança. — Barriga inchada não é boa coisa numa batalha. Garanta
que ele faça na sua coxa.
Quando Illian avistou Frentis, seu rosto ganhou um tom escarlate no mesmo
instante. Ela se levantou e afastou-se pisando firme, mas depressa, conseguindo
soltar apenas um guincho baixo em resposta ao cumprimento dele.
— Essas coisas não são discutidas abertamente entre os merim her — disse
Frentis a uma Davoka confusa, sentando-se ao lado dela.
— A garota é tola — murmurou ela, encolhendo os ombros. — Fica brava
rápido demais, abre as pernas rápido demais. Meu primeiro marido teve que me
dar três pôneis antes de colocar as mãos em mim.
Frentis ficou tentado a perguntar quantos pôneis Ermund precisaria entregar
no devido tempo, mas achou que seria uma pergunta insensata. Preso como
estava pelo seu juramento, o cavaleiro reassumira rapidamente sua posição ao
lado do Barão Banders, e sua espada faria muita falta. Contudo, Davoka parecia
não se incomodar com a ausência repentina do cavaleiro, e Frentis perguntou-se
se o homem não teria sido apenas uma distração bem-vinda durante os raros dias
de calmaria na Urlish.
— As coisas são diferentes aqui — disse ele, mais para si mesmo do que para
a lonak. Illian se transformou de uma garota mimada numa caçadora mortal;
Draker, de um fora da lei num soldado; Grealin, de um mestre num Aspecto. Tudo
está diferente. Os volarianos nos construíram um novo Reino.
O Irmão Comandante Sollis apareceu quando eles tomavam o café da
manhã, oferecendo um aceno de cabeça respeitoso a Davoka, e parando apenas
por um momento ao avistar Trinta e Quatro, que sorriu com uma mesura
graciosa.
— O Barão Banders convocou um conselho — disse Sollis a Frentis. — Ele
quer a sua opinião.

— Quinhentos cavaleiros e um penico cheio de volarianos? — O Barão Banders


ergueu uma sobrancelha grossa para Frentis e soltou uma risada baixa. — Não é
bem um exército poderoso, irmão.
— Se é que esse Wenders disse a verdade — comentou Sollis.
O barão reunira o seu conselho numa área afastada do acampamento
principal; os vários capitães e lordes estavam de pé num círculo sem muita
cerimônia ou introduções formais. Ao que tudo indicava, os modos
frequentemente elaborados da nobreza renfaelina eram de pouca serventia a
Banders.
— Wenders não me pareceu um homem com inteligência suficiente para
engodos, irmão — disse Frentis a Sollis antes de virar-se para Banders. — Há
mais de oito mil homens numa divisão volariana, meu senhor. Além disso, eles
possuem os mercenários Espadas Livres, que protegem os traficantes de
escravos e os contingentes de Kuritai. Eu o aconselho a não subestimá-los.
— Eles são piores do que os alpiranos?
— De algumas formas.
O barão grunhiu e ergueu uma sobrancelha para Ermund, que assentiu
solenemente.
— Matamos muitos na floresta, meu senhor, mas pagamos caro. Se eles têm
mais soldados, tomar a cidade será uma tarefa sangrenta.
— Se Darnel for sensato o suficiente para permanecer atrás das muralhas —
ponderou Banders. — E sensatez não é uma de suas virtudes.
— Ele recrutou sensatez — disse Frentis. — Wenders nos contou que Lakrhil
Al Hestian foi pressionado a servir Darnel como Senhor da Batalha. Ele sabe
muito bem como é importante não nos enfrentar em campo aberto.
— Rosa Sangrenta — comentou Banders em voz baixa. — Eu não suportava o
homem, para falar a verdade. Mas ele nunca me pareceu um traidor.
— Darnel está mantendo o filho de Al Hestian como refém para garantir a
sua lealdade. Devemos considerá-lo um inimigo, e um que não é propenso a
erros de julgamento.
— Mas não conseguiu defender Marbellis. — Banders olhou para Sollis. —
Conseguiu, irmão?
Houve uma pausa antes de Sollis responder, e Frentis imaginou que horrores
apinhavam a memória do homem.
— Ninguém conseguiria defender Marbellis, meu senhor — respondeu Sollis.
— Um cascalho não tem chance contra um oceano.
Banders calou-se e apoiou o queixo na mão.
— Eu esperava que a Urlish ocultasse o nosso avanço — disse ele num tom
de reflexão. — Pelo menos durante algum tempo, e que ainda fornecesse
madeira para escadas e máquinas. Agora até mesmo isso nos foi tirado.
— Há outros caminhos, avô — afirmou Arendil.
Sua mãe, a Senhora Ulice, estava ao seu lado, segurando com firmeza o
braço do filho. O alívio da mulher ao encontrá-lo vivo no dia anterior fora um
espetáculo de beijos chorosos, embora ela tivesse ficado claramente mortificada
pela insistência do filho em permanecer com a companhia de Frentis.
— Caro irmão — disse Arendil, gesticulando para Frentis —, Davoka e eu
escapamos pelos esgotos da cidade. Se pudemos sair, sem dúvida podemos entrar
do mesmo modo.
— O cano do porto pode ser visto com muita facilidade pelos marinheiros —
disse Frentis. — Mas existem alternativas, e há alguém em nossa companhia que
conhece os esgotos quase tão bem quanto eu.
— Tenho quatro mil cavaleiros que não caberão tão facilmente num cano de
bosta, irmão — observou Banders. — Tire os cavalos deles e ficam tão úteis
quanto um eunuco num bordel. O resto é soldado e algumas centenas de
camponeses com contas a acertar com Darnel e seus cães.
— Tenho mais de cem irmãos — disse Sollis. — E mais a companhia do
Irmão Frentis. Sem dúvida é suficiente para capturar um portão e defendê-lo
pelo tempo necessário para que os seus cavaleiros entrem.
— E então o quê? — perguntou Banders. — Eles não têm experiência em
lutas de rua, irmão.
— Eu lutarei num pântano se isso deixar Darnel ao alcance de minha espada
— disse Ermund. — Não compreenda mal o temperamento de seus cavaleiros,
meu senhor. O caminho deles não foi escolhido de forma leviana, e eles o
seguirão até o Além e de volta se o senhor ordenar.
— Não duvido do temperamento deles, Ermund — assegurou-lhe Banders. —
Mas o nosso feudo perdeu guerras suficientes para aprender a lição de que o
ataque de uma onda de aço não pode vencer todas as batalhas. E, supondo que
consigamos tomar a cidade, o grosso das forças do inimigo ainda está sitiando
Alltor. E depois que terminarem, para onde acha que eles marcharão?
— De acordo com as poucas informações que conseguimos obter, o Senhor
Feudal Mustor está resistindo por muito mais tempo do que o esperado — disse
Sollis. — O inverno estará chegando quando os volarianos conseguirem
conquistar a capital e subjugar o feudo. É tempo suficiente para nos
entrincheirarmos e recebermos reforços de Nilsael e dos Confins.
Banders virou-se para um de seus capitães à menção dos Confins, um
cavaleiro veterano com uma armadura branca laqueada.
— Suponho que não haja notícias, Lorde Furel?
— É uma longa cavalgada até Meanshall — comentou o cavaleiro. — E uma
viagem ainda mais longa até os Confins. Nossos mensageiros foram enviados há
apenas dez dias.
— Eu tinha esperança de que ele já estivesse a caminho a essa altura —
ponderou Banders, e Frentis não precisava que o barão dissesse o nome de quem
tinha em mente.
— Ele está — disse Frentis. — Eu sei. — Ele olhou para o Irmão Sollis, que
respondeu com um aceno de cabeça. — E termos Varinshold em nossas mãos
quando ele chegar tornará a nossa tarefa muito mais fácil.
— Você me pede para arriscar muito com base apenas em fé, irmão —
retorquiu Banders.
— Fé é o meu negócio, meu senhor — disse Frentis.
O exército do barão estava bem guarnecido de cavalos, a maioria tirada das
propriedades de cavaleiros que haviam se aliado a Darnel. Eram todos garanhões
de altura imponente, com a inquietação de cavalos criados para atacar. Mestre
Rensial andava pelo curral temporário onde os cavalos haviam sido reunidos,
aparentemente alheio às bufadas e relinchos enquanto passava as mãos por
flancos e pescoços, com o olhar concentrado de um especialista.
— Não tão… — Davoka procurou a palavra certa enquanto olhavam o
mestre fazer o seu serviço. — Ara-kahmin. Doença da cabeça.
— Louco — disse Frentis, vendo a segurança com que Mestre Rensial se
movia. — Não tão louco quando ele está com cavalos. Eu sei.
— Ele olha para você e vê um filho — respondeu Davoka. — Você também
sabe disso?
— Ele vê muitas coisas. A maioria delas não está lá.
O mestre escolheu um cavalo para cada um deles, levando um jovem
cinzento para Frentis e um negro e largo para Davoka.
— Grande demais — disse ela, recuando um pouco quando o cavalo grande a
cheirou. — Não tem pôneis aqui?
— Não — respondeu Mestre Rensial, e afastou-se para escolher mais
montarias.
— Você vai se acostumar com ele — assegurou-lhe Frentis, coçando o
focinho do cavalo cinzento. — Que nome será que você merece?
— Merim her — murmurou Davoka com sarcasmo. — Pessoas ganham
nomes. Cavalos são usados e comidos.
Eles cavalgaram para o sul ao meio-dia; o Irmão Sollis seguia na frente com
seus irmãos, fazendo o reconhecimento; os cavaleiros e servidores seguiam
numa coluna cerrada. Por ordem do Barão, cada homem estava de armadura e
preparado para entrar em batalha. Os camponeses rebeldes seguiam atrás a pé, a
maioria homens fortes com pouca armadura, mas com ampla variedade de
armas. Havia uma uniformidade sombria em suas expressões que Frentis
conhecia bem: o rosto dos injustiçados e furiosos. Pelas histórias que Ivern lhe
contara sobre a viagem do irmão desde o Passo, era evidente que, com a
ausência da autoridade da Coroa, Darnel não perdera tempo em ajustar contas
antigas, e boa parte de sua ira havia recaído sobre as pessoas que trabalhavam
nas terras de seus inimigos. A companhia de Frentis, em que poucos podiam ser
chamados de cavaleiros experientes, compunha a retaguarda, disposta numa
formação vaga que muitos tiveram dificuldade de manter por muito tempo.
— Eu… odeio… cavalos! — bufava Draker enquanto balançava em cima do
alazão que Rensial escolhera para ele.
— É fácil! — exclamou Illian, avançando a galope, movendo-se na sela com
a facilidade habitual. — É só se erguer um pouco no momento certo.
Ela riu quando Draker fez uma tentativa medíocre de seguir a instrução,
batendo na sela com um grunhido alto.
— Ah, meus filhos não nascidos.
Depois de Frentis e Mestre Rensial, Arendil e Illian sem dúvida eram os seus
melhores cavaleiros. Ele enviou Arendil para oeste e Illian para leste com
instruções de fazer o reconhecimento dos flancos e ordens expressas de
retornarem assim que avistassem qualquer sinal de amigo ou inimigo. A Senhora
Ulice demonstrara um desprazer nítido com o fato de Arendil mais uma vez ser
mandado para longe de sua vista, mas se limitou a protestar franzindo o cenho
com severidade. Ela havia se juntado a eles enquanto entravam em formação,
oferecendo poucas palavras além da declaração de que viajaria com o filho por
ordem do barão, embora parecesse encorajada pela presença de Davoka.
— Eu sei que devo a vida dele a você — admitiu ela à lonak. — Seja o que
for que você desejar como agradecimento…
— Arendil é gorin para mim — disse Davoka, seca, acrescentando quando a
mulher franziu a testa, confusa: — Clã. — Davoka estendeu o braço, abarcando a
companhia ao redor, de Frentis a Trinta e Quatro e Draker, que ainda se encolhia
a cada solavanco da sela. — Meu clã. Clã da Floresta Queimada. — Ela soltou
uma gargalhada. — Agora seu.
— Você poderia ir para casa — disse Ulice. — O norte está livre até as
montanhas.
Davoka fechou a cara como se tivesse sido ofendida, mas relaxou um pouco
quando percebeu que a mulher estava genuinamente curiosa.
— Rainha não foi encontrada — disse Davoka. — Sem lar para mim até ela
ser encontrada.

***

Eles chegaram tarde da noite à região de colinas mais acidentada, e Banders


concordou com a escolha de Sollis para o local do acampamento: a encosta norte
de um promontório que oferecia uma visão desimpedida em todas as direções e
era protegida no lado sul por uma ravina funda. As fogueiras desta vez foram
permitidas, pois Banders sabia muito bem que quaisquer outras tentativas de
ocultar um exército tão grande seriam redundantes após terem penetrado tanto
em território asraelino.
A companhia de Frentis ficou encarregada de proteger o flanco leste, e ele
montou piquetes numa fileira compacta, com duplas de vigias que se revezavam
em turnos de três horas. Illian retornou quando ele inspecionava o perímetro.
— Você ficou fora por muito tempo — disse Frentis a ela. — Arendil voltou
há uma hora. Nas próximas vezes, volte antes do anoitecer.
— Desculpe, irmão — respondeu Illian, evitando o olhar de Frentis, e ele
percebeu que o embaraço daquela manhã ainda não havia desaparecido.
— Algo a relatar? — perguntou ele num tom menos severo.
— Não há vivalma num raio de quilômetros — comentou Illian, animando-se
um pouco. — A não ser por um lobo a quinze quilômetros daqui. Nunca vi um tão
grande, para falar a verdade. Nem tão ousado. Simplesmente ficou sentado lá
olhando para mim pelo que pareceu uma eternidade.
Provavelmente sentiu o cheiro do sangue que será derramado, pensou Frentis.
— Ótimo. Descanse um pouco, minha senhora.
Frentis terminou a inspeção dos piquetes e encontrou o resto dos combatentes
bem-dispostos. Agora que os horrores da fuga da floresta haviam ficado para
trás, eles estavam mais combativos do que nunca, e muitos expressavam o
desejo de chegar a Varinshold.
— A balança ainda não se moveu, irmão — disse o ex-cabo da Guarda da
Cidade Vinten, o brilho levemente selvagem nos olhos provocando recordações
de Janril Norin. — Tem sangue demais pesando para o nosso lado. Vamos
equilibrá-la em Varinshold ou morrer tentando.
Frentis retornou ao acampamento principal e comeu com os que ainda
estavam acordados. Nos últimos tempos Trinta e Quatro assumira boa parte das
tarefas culinárias, produzindo um saboroso ensopado de perdiz recém-caçada e
cogumelos silvestres que era muito superior aos esforços amadores de Arendil.
— Então eles ensinaram você a cozinhar, além de torturar? — perguntou
Draker entre colheradas, a gordura acumulando-se em sua barba enquanto
mastigava.
— O escravo-cozinheiro do meu último mestre adoeceu durante a viagem
para cá — explicou Trinta e Quatro na sua língua do Reino agora estranhamente
sem sotaque. — Ele recebeu ordens para me ensinar os seus conhecimentos
antes de morrer. Sempre fui capaz de aprender depressa.
A Senhora Ulice aceitou uma tigela de ensopado oferecida pelo ex-escravo
com uma expressão cautelosa no rosto.
— Torturar? — perguntou ela.
— Eu era um escravo numerado — disse Trinta e Quatro no seu tom objetivo
e simples. — Um especialista. Educado nas artes da tortura desde a infância.
Ele continuou a servir o ensopado enquanto a senhora o encarava; o olhar
dela então percorreu os rostos em volta da fogueira. Frentis sabia que ela os
estava vendo como realmente eram pela primeira vez, a brutalidade que os
moldara agora evidente na dureza dos olhos de Draker, no rosto de Illian franzido
pela concentração ao apertar a corda de sua besta e na preocupação nos olhos de
Arendil enquanto encarava o fogo, levando colheradas de ensopado à boca com
uma regularidade automática e inconsciente.
— Foi uma estrada árdua, minha senhora — disse Frentis. — Escolhas difíceis
tiveram de ser feitas.
Ela olhou para o filho e estendeu a mão para afastar o cabelo da testa de
Arendil, provocando um sorriso cansado.
— Não sou uma senhora — observou ela. — Se vamos ser companheiros de
clã, vocês precisam saber disso. Sou a filha bastarda do Barão Banders, nada
mais. Meu nome é apenas Ulice.
— Não — disse Arendil, lançando um olhar firme às pessoas reunidas em
volta da fogueira. — O nome de minha mãe é Senhora Ulice, e qualquer um que
a chamar por um nome diferente terá que se ver comigo.
— Sem dúvida, meu senhor — assentiu Frentis. — Sem dúvida.

Ele se ocupou limpando as armas, muito depois de os outros terem se recolhido


às suas tendas, o som familiar dos roncos de Draker percorrendo o
acampamento. Quando a espada e a faca estavam brilhando, Frentis limpou as
botas, depois a sela, e então tirou a corda do seu arco e examinou a vara à
procura de rachaduras. Depois disso permaneceu sentado e afiou as pontas de
todas as flechas de sua aljava. Não preciso dormir, dizia a si mesmo sem parar,
embora suas mãos estivessem começando a formigar de exaustão e sua cabeça
pendesse sobre o peito sem que pudesse evitar.
Apenas sonhos. Ele tentava se convencer, lançando um olhar relutante à sua
tenda. Apenas a mancha da companhia dela, o fedor dela na minha mente. Apenas
sonhos. Ela não me vê. Frentis por fim se rendeu quando as mãos cansadas o
deixaram com um polegar sangrando; ele colocou as flechas de volta na aljava e
foi para a tenda com as pernas bambas. Apenas sonhos.

Ela está no topo de uma torre alta, com Volar estendida abaixo em toda a sua
glória antiga, rua após rua de casas, mansões de mármore, jardins magnificamente
elaborados e inúmeras torres erguidas por todos os lados, embora nenhuma tão
alta quanto aquela: a Torre do Conselho.
Ela ergue os olhos para o céu à procura de um alvo. O dia está claro, o céu de
um azul ininterrupto, mas ela avista uma pequena nuvem alguns quilômetros
acima, rarefeita, mas suficiente para os seus propósitos. Ela procura pelo dom
dentro de si, descobrindo que precisa suprimir a sua canção para trazê-lo à tona,
mas, quando o faz, o poder a desnorteia, fazendo com que se apoie no parapeito ao
ficar tonta. Ela sente o nariz pingar de um modo familiar e compreende que o
preço para este dom será ainda mais difícil de pagar do que o fogo maravilhoso
que roubara de Revek, cujas palavras lhe ocorriam agora com uma ironia
precisa: É o que acontece com dons roubados, não concorda?
O que ele sabia?, pensa ela, embora o escárnio seja forçado e vazio. Ele sabia
o suficiente para não ficar cego por amor.
Ela afasta da mente os pensamentos indesejados e concentra-se na nuvem; o
dom é avivado, mais sangue escorre de seu nariz quando ela o libera, e a pequena
nuvem gira num vórtice antes de se desfazer, os fiapos desaparecendo no céu azul
límpido.
— Impressionante.
Ela se vira e vê um homem alto de manto vermelho surgir da escada e pisar no
telhado da torre. Dois Kuritai o seguem para a luz com as mãos apoiadas nas
espadas. Ela ainda não testou as habilidades oferecidas por aquela nova casca e
precisa resistir à tentação de fazê-lo agora. Esconda uma vantagem e o valor dela
será dobrado. Um dos axiomas de seu pai, mas suspeita de que ele possa tê-lo
roubado de um filósofo morto há muito tempo.
— Arklev — cumprimenta ela enquanto o homem alto se aproxima. Ela pode
ver uma mudança nele, um novo cansaço ao redor dos olhos, uma expressão que
ela conhece bem. Ele está sofrendo.
— O Mensageiro não se demorou — conta ele. — A não ser para dizer que a
orientação do Aliado a partir de agora será dada apenas através de você.
A orientação do Aliado… Como se ele pudesse compreender o verdadeiro
significado dessas palavras, o que significa a uma alma no Vazio ouvir a voz do
Aliado. Ela quase ri da ignorância desse homenzinho ancestral. Séculos de vida e
ele ainda não sabe nada.
Ele a encara com expectativa, com uma leve preocupação na testa, e ela
percebe que vários momentos se passaram desde que ele falou. Há quanto tempo
ela está parada ali? Há quanto tempo ela subiu até o alto da torre?
Ela respira fundo e permite que a confusão se dissipe.
— Você está sofrendo — diz ela. — Quem você perdeu?
Ele recua um pouco, a preocupação transformando-se em medo, sem dúvida
perguntando-se quanto ela já sabe. Ela estava aprendendo que parecer onisciente
podia oferecer tanto poder quanto ser onisciente.
— Meu filho — responde Arklev. — Sua embarcação não chegou a Varinshold.
Os videntes não conseguem mais encontrar qualquer traço dele nos tempos por
vir.
Ela assente e espera que ele diga mais, mas o Conselheiro coloca uma
máscara sobre o rosto e permanece em silêncio.
— O Aliado quer que você me promova ao Conselho — diz ela ao homem. — À
Cadeira Escravocrata.
— Essa é a cadeira do Conselheiro Lorvek — protesta ele. — Cujas funções ele
tem desempenhado com esmero e zelo há quase um século.
— Enquanto enchia os bolsos e fracassava na tarefa de produzir dotados
suficientes. O Aliado acha que a sua orientação não foi completamente
compreendida. E com o amadurecimento dos nossos novos recursos, ele acha que
eu seria uma supervisora mais confiável para esta empreitada bastante específica.
Se Lorvek não renunciar, tenho certeza de que serão encontradas evidências
suficientes de corrupção para justificar uma acusação de traição. A não ser que
você prefira um método mais discreto.
Ele diz mais coisas, mas ela não o escuta, sentindo outra vez o tempo passar.
Quanto tempo ela ficou ali? Quando deixa de se sentir desorientada, ela está
novamente sozinha e o céu é de um tom mais escuro de azul. Ela volta o olhar
para oeste, acompanhando o vasto estuário até a costa e ao oceano além. Por
favor, venha depressa até mim, amado. Estou tão sozinha.
CAPÍTULO QUATRO
Reva

Ela tinha visto cadáveres suficientes para saber que os mortos raramente
conservavam alguma expressão. Os sorrisos largos e as caretas aterrorizadas
eram simplesmente o resultado do retesamento de tendões e músculos conforme
os humores do corpo se esvaíam. Assim, foi uma surpresa ver no rosto do
sacerdote o retrato de tamanha serenidade; não fosse pelo corte fundo e estreito
em sua garganta, ele poderia ter sido facilmente confundido com um homem
adormecido, pois suas feições mostravam uma alma contente com o mundo.
Contente, pensou ela, afastando-se do cadáver e sentando-se. Quão
apropriado ele encontrar a paz apenas na morte.
— É ele? — perguntou Vaelin.
Ela assentiu e levantou-se quando Alornis se aproximou, tocando-lhe a mão
para tranquilizá-la. Vaelin ergueu o esboço feito pela irmã, seus olhos indo do
rosto do sacerdote para a representação no pergaminho.
— Que talento você tem — disse a ela com um sorriso antes de virar-se para
o homem corpulento parado próximo da parede da tenda. — E o senhor, Mestre
Marken. Um olhar aguçado para detalhes.
A barba de Marken contraiu-se com um leve sorriso e Reva notou como ele
apertava com força uma das mãos na outra e recusava-se com veemência a
olhar para o segundo cadáver. O corpo estava deitado ao lado do sacerdote, as
feições mais típicas da experiência de Reva, a pele de um azul-claro, os lábios
arreganhados e a língua para fora por entre os dentes expostos, parcialmente
cortada durante os espasmos finais. Contudo, assim como com o sacerdote, suas
feições eram reconhecíveis o suficiente para corresponderem ao esboço de
Alornis.
— Meu tio Sentes falou que o nome dele era Lorde Brahdor — disse ela a
Vaelin. — A Senhora Veliss me disse que ele possuía terras um pouco a leste
daqui, com vinhedos excelentes. Famoso mais pelo vinho branco do que pelo
tinto.
— Isso é tudo? — perguntou Vaelin. — Nenhuma suspeita? Histórias
fantásticas sobre poderes estranhos ou eventos inexplicáveis?
— Isso é tudo. Apenas um nobre menor com algumas centenas de acres de
uvas… e um celeiro.
Vaelin olhou de forma indagadora para Marken. O homenzarrão rangeu os
dentes por um momento e então apontou um dedo grosso para o cadáver de
Lorde Brahdor, ainda se recusando a olhar para ele.
— Não tocarei nesse, meu senhor. Posso sentir, saindo dele como veneno.
Perdoe minha covardia. Mas… — Ele sacudiu a cabeça desgrenhada. — Não
posso. Eu…
— Está tudo bem, Marken — assegurou-lhe Vaelin, indicando o sacerdote
com a cabeça. — E ele?
Marken soltou um suspiro de alívio e virou-se para se agachar ao lado do
sacerdote, arregaçando a manga e colocando a mão grande na testa do cadáver.
Ele se contraiu após um momento, como se estivesse sentindo dor, sua boca
contorceu-se em repugnância quando pareceu que estava prestes a afastar a
mão, mas Reva o viu fortalecer a sua determinação, fechando os olhos e ficando
imóvel como uma estátua durante vários minutos. Por fim, ele respirou fundo e
devagar, o suor brilhando em meio aos cabelos que pendiam sobre a testa
vincada. Marken levantou-se, olhando para Reva com solidariedade e pesar.
— Minha senhora… — começou ele.
— Eu sei — disse Reva. — Eu estava lá. Mestre Marken, por favor, conte a
Lorde Al Sorna tudo o que viu.
— A infância dele é confusa — disse Marken a Vaelin. — Parece que ele foi
criado pela Igreja do Pai do Mundo. Não há imagens de seus pais, então imagino
que fosse órfão, aprendiz de um sacerdote, um destino comum para órfãos
cumbraelinos, creio eu. O sacerdote que o criou era bondoso, um ex-soldado da
Guarda do Senhor, chamado à igreja mais tarde do que o normal, determinado a
fazer com que os seus pupilos adquirissem tanto as suas habilidades marciais
quanto o fervor de sua devoção. O garoto passou longos anos mergulhado no
estudo dos Dez Livros e treinando para a guerra. Adulto, suportou longos anos de
vergonha quando olhava para mulheres. Quanto mais jovem a mulher, maior era
a vergonha, e mais ele olhava. Senti uma compulsão de se esconder nos Dez
Livros, para se refugiar de seus desejos nos ensinamentos da igreja.
“Alltor e a catedral possuem um lugar de destaque em suas lembranças, e
acredito que ele foi enviado para lá para se preparar para o sacerdócio. Eu o vi
se encontrar com o Leitor e receber o seu nome sacerdotal. Eles nunca se
encontravam em público e senti que o sacerdote havia sido escolhido para um
papel secreto. Vi uma viagem para longe de Alltor ser interrompida quando ele
encontrou um homem com uma cicatriz, aqui. — Marken parou para tocar a
própria bochecha. — O homem está falando diante de uma grande multidão e o
jovem sacerdote é tomado por uma nova paixão ao ouvir a sua voz. Ele retorna
ao Leitor e é enviado mais uma vez. Então há muitos meses de encontros em
salas escuras e locais isolados, homens reunidos e temendo serem descobertos
enquanto trocavam cartas e juntavam armas em esconderijos. Ele nunca mais
vê o homem com a cicatriz, mas se lembra com frequência daquela ocasião.
Então, em outro encontro secreto, ele encontra esta coisa. — Marken indica com
a cabeça o segundo corpo, fazendo uma careta ao olhar para o rosto morto de
Brahdor. — A coisa fala, mas não posso ouvir as palavras, como sabe, meu
senhor. Mas elas fazem com que a paixão do sacerdote se torne ainda mais
intensa. A coisa o leva até uma casa de fazenda à noite, onde um casal idoso está
sentado diante de uma lareira cuidando de uma menininha. — Ele olha de novo
para Reva e engole em seco. — A vergonha do sacerdote é maior do que nunca
quando olha para ela.
— Eles mataram os meus avós, não? — perguntou Reva. — Eles os mataram
e me roubaram.
Ele assentiu.
— Eles esperaram até a senhora ter sido colocada na cama. O casal idoso foi
morto, a menina tirada da cama e a casa incendiada.
— E então muitos anos felizes num celeiro — murmurou Reva enquanto
Marken procurava as palavras certas a serem ditas.
— Algum nome? — perguntou Vaelin ao dotado.
— Alguns, meu senhor. O sacerdote os anotava para memorizá-los. Ele
queimava o papel, mas as lembranças permaneceram.
— Faça uma lista e a entregue à Senhora Reva.
Ela se afastou do cadáver do sacerdote, sentindo uma grande tentação de
esmagar com a bota o rosto satisfeito dele, de estragar para sempre o seu sono.
— Reva — disse Alornis, puxando a manga dela. — Não há mais nada a se
conseguir aqui.
— Eu… — gaguejou Marken. — Eu tenho o nome dele, minha senhora. O
Leitor o anotou quando o deu ao sacerdote.
— Não — disse ela, virando-se e indo até a aba da tenda. — Queime-o se
tiver terminado — disse Reva a Vaelin. — Ninguém dirá nenhuma palavra por
ele.
— Meu senhor — prosseguiu Marken enquanto se dirigiam à entrada da
tenda. — Com a sua permissão. Sobre o Irmão Caenis…
— Estou ciente da questão, Mestre Marken — disse Vaelin.
— Nós não seguimos o senhor até aqui para nos tornarmos servos da Fé…
— Discutiremos isso esta noite — afirmou Vaelin com firmeza. — Com
Lorde Nortah. O senhor deixou as suas preocupações devidamente claras.
Eles voltaram em silêncio para o passadiço, Reva absorta na história do
dotado, Vaelin sem dúvida ponderando a respeito da revelação do Irmão Caenis à
Rainha. Alornis seguia a uma distância discreta, perscrutando as muralhas da
cidade e com o onipresente embrulho de lona com seus desenhos junto ao peito,
já sendo preenchido com reproduções da destruição por trás das muralhas. Ela
chorara no dia em que encontrou Reva parada em meio às ruas tomadas de
cadáveres. Ao vê-la, Alornis abraçara Reva, convulsionando de alívio, causando
uma dor antiga que Reva notou que não lhe doía mais da mesma forma.
— A Sétima Ordem — disse ela a Vaelin ao pararem diante do passadiço. —
Não é uma lenda, afinal de contas. Mas imagino que você saiba disso há algum
tempo.
— Sim. — O rosto dele estava sombrio, não tão cansado quanto estivera
recentemente, mas ainda assim ele parecia ter envelhecido muito em poucos
dias. — Embora houvesse algo de que eu devia ter conhecimento, mas não tinha.
— O Irmão Caenis?
Ele assentiu e mudou de assunto.
— O que você fará com os nomes que Marken lhe deu?
— Irei encontrá-los e levá-los a julgamento. Se for provado que são Filhos,
irei enforcá-los.
— Minha Senhora Governadora favorece uma justiça severa.
— Eles tramaram a morte do meu tio, com pleno apoio da igreja que há
séculos instiga o povo deste feudo a um respeito servil. Eles conspiraram com
criaturas imundas das Trevas para me submeterem a uma vida de abusos antes
de me enviarem atrás de você na esperança de que eu morresse. E não nos
esqueçamos da tentativa deles de matar a Rainha. Devo continuar?
Vaelin examinou o rosto dela por um momento e Reva sentiu a dureza de sua
expressão suavizar sob o escrutínio.
— Sinto muito por tudo o que lhe aconteceu aqui, Reva. Se eu tivesse tido a
mínima noção…
— Eu sei. — Ela forçou um sorriso. — Junte-se a nós esta noite. Veliss
encontrou um novo cozinheiro, ainda que só possamos oferecer dois pratos e
nenhum vinho.
— Não posso. Há muito a ser feito. — Ele olhou para trás na direção do
acampamento onde soldados estavam ocupados guardando equipamentos e
suprimentos para a marcha do dia seguinte e o início do que estava tornando-se
rapidamente conhecido como a Cruzada da Rainha. — Ela queria que eu
perguntasse quantos homens você enviará conosco — disse ele, virando-se para
Reva.
— Não enviarei nenhum. Vou liderá-los, a Guarda da Casa inteira e mais
quinhentos arqueiros.
— Reva, você já fez o bastante…
O rosto flácido e sem vida de Arken, a espada em suas costas… Os arqueiros
debatendo-se no rio enquanto as flechas caíam… Tio Sentes morrendo nos degraus
da catedral…
— Não — retorquiu ela. — Não, não fiz.

Veliss foi encontrá-la em algum momento após a meia-noite. Elas haviam


voltado a ficar em quartos separados após o cerco, mais por insistência da
Conselheira do que dela. Suas numerosas indiscrições podiam ter passado
despercebidas no tumulto das batalhas diárias, mas a cidade começara a retomar
uma estranha normalidade agora que os cadáveres e o grosso dos escombros
haviam sido removidos e a catedral havia sido reaberta.
— Tem certeza de que quer se encontrar sozinha com eles? — perguntou
Veliss. Elas estavam deitadas lado a lado, cobertas por um leve brilho de suor, e
Reva desfrutava da sensação do cabelo solto da Conselheira grudado em sua
pele.
— Eles precisam saber que falo por conta própria — disse Reva. —
Considerando o que preciso lhes contar.
— Eles não vão gostar…
— É o que espero. — Ela puxou Veliss para perto, beijando-lhe os lábios para
evitar mais discussões.
— A Senhora Alornis — disse Veliss, algum tempo depois. — Você gosta dela.
— Ela é minha amiga, assim como o irmão dela.
— Não mais do que isso?
— Com ciúmes, Conselheira Honorável?
— Você não quer me ver com ciúmes, acredite. — Ela se ergueu, abraçando
os joelhos. — Eu ia embora de qualquer forma, sabia? Quando a guerra
acabasse, se o seu tio tivesse sobrevivido. Pegaria o ouro que ele ofereceu e
partiria. Nunca me importei com todos os nomes de que me chamavam, ou com
a condescendência escarnecedora do Leitor. Mas eu estava ficando cansada de
tudo, das mentiras e das intrigas. Isso pode acabar cansativo mesmo para uma
ex-espiã.
Reva estendeu a mão para acariciar as costas nuas de Veliss.
— E agora?
— Agora não consigo imaginar estar em outro lugar. — Reva a sentiu ficar
tensa em antecipação às próximas palavras. — A Cruzada da Rainha…
— É minha cruzada. E não é um tópico a ser discutido.
— Acha que ela seria tão receptiva se soubesse da sua verdadeira natureza?
Se ela soubesse sobre nós?
— A não ser que isso se mostrasse um impedimento para a libertação do
Reino, duvido que ela fosse dar a mínima. — Reva lembrou-se do seu primeiro
encontro com a Rainha, da inteligência ardente que brilhava por trás da máscara
queimada do seu rosto e da determinação implacável, da singularidade de
propósito que Reva reconheceu pelos poucos olhares imaturos que ela dispensava
ao próprio reflexo. Mas eu fui enviada em busca de um mito, pensou ela. O
objetivo dela é muito real, e duvido que fique satisfeita com qualquer número que
encontremos em Varinshold. — Para falar a verdade, aquela mulher me assusta
mais do que os volarianos — confessou ela a Veliss.
— Então por que segui-la?
— Porque ele segue. Ele me diz que é necessário. Não dei ouvidos às
palavras dele uma vez e não cometerei o mesmo erro de novo.
— Ele é apenas um homem — murmurou Veliss, embora Reva pudesse ouvir
a incerteza na voz dela. A história estava na boca de todos, cumbraelinos tão
arrebatados pelo relato quanto os demais, espalhando-se mais cada vez que era
contada. Um homem, abrindo caminho através de um exército a golpes de
espada para salvar uma cidade, e vivendo para contar a história.
Vivendo? Reva lembrou-se de como as feições de Vaelin ficaram abatidas
naquele dia, das lágrimas dela e da chuva constante lavando o sangue enquanto
ela gritava para que ele não a deixasse. Mas ele a deixara, Reva vira claramente.
Durante aqueles breves segundos, ele não esteve em seu corpo.
— Precisarei que você cuide das coisas enquanto eu estiver fora — disse
Reva. — Que reconstrua da melhor forma que puder. Deixarei Lorde Arentes
aqui como garantia da minha palavra, embora ele sem dúvida vá me odiar por
isso. Que tal um novo título? Talvez Vice-Governadora? Tenho certeza de que
você consegue elaborar algo melhor.
Veliss abraçou as pernas com mais força.
— Não quero títulos, só quero você.

Os Lordes Arentes e Antesh entraram primeiro na catedral, atravessando o


interior cavernoso na direção dos aposentos do Leitor enquanto ela os seguia
acompanhada por vinte Guardas da Casa. Os dois sacerdotes de guarda na porta
dos aposentos foram dominados sem muita dificuldade, então Lorde Arentes
abriu as portas e ficou de lado para lhe dar passagem. Reva parou ao ver o
sacerdote preso contra a parede por Lorde Antesh, um homem de rosto
emaciado com uma das mãos enfaixada e um nariz deformado.
— Nunca me disseram o seu nome — disse Reva.
O sacerdote franziu o cenho e nada disse até Antesh lhe dar uma sacudida
nem um pouco gentil.
— Meu nome diz respeito apenas ao Pai.
— E creio que Ele quer que você o compartilhe. — Ela fez sinal para dois
guardas se aproximarem. — Levem-no para a Senhora Veliss. Digam a ela que
eu acho que algumas ervas medicinais fariam bem a esse homem.
Reva virou-se para a porta aberta enquanto arrastavam dali o sacerdote,
caminhando tranquilamente e cumprimentando animada os sete velhos que
encontrou sentados a uma mesa circular.
— Caros bispos! — Deveria haver dez, mas três haviam perecido no cerco, e
ela suspeitava de que não tivesse sido por virtude de qualquer ato corajoso.
Um dos bispos levantou-se com dificuldade quando ela caminhou até a única
cadeira desocupada na mesa, um homem mirrado e semelhante a um pássaro
que Reva se lembrava de haver protestado quando ela ordenara que catedral
fosse usada como lugar de tratamento dos feridos.
— Este é o sagrado conclave dos dez bispos — balbuciou ele. — Você não
tem permissão para…
Ele se calou quando Lorde Arentes esmurrou a mesa com uma manopla.
— A forma correta de se dirigir à Senhora Governadora é “minha senhora”
— disse ele ao clérigo amedrontado. — E ela pode atravessar qualquer porta
nesta cidade.
Reva parou junto à cadeira vazia, naturalmente a mais ornamentada da sala,
com uma almofada grande para o traseiro ossudo do velho desgraçado. Ela
suspirou e empurrou a cadeira para longe. Não posso matá-lo duas vezes,
infelizmente.
— Ora, meu senhor comandante — disse ela a Arentes. — Devemos
respeitar a privacidade dos prezados bispos. Deixe-nos, pois temos muito a
discutir.
Eles permaneceram sentados num silêncio atônito quando as portas foram
fechadas com um estrondo ecoante. Reva esperou que o som se dissipasse antes
de falar, a voz já sem qualquer vestígio de respeito.
— Então, escolheram?
Apenas um deles manifestou-se, um homem esguio de nariz proeminente,
um pouco mais novo do que os colegas.
— Ainda não contamos os votos, minha senhora. — Ele indicou uma caixa
simples de madeira no centro da mesa.
— Então contem agora.
Reva o observou atentamente quando ele pegou a caixa, percebendo que se
lembrava de seu rosto do dia em que o Leitor morreu, aquele que sorrira quando
ela atacara o velho. Um possível aliado? Ela deixou tal sugestão de lado; as
revelações de Marken não deixavam espaço para boa vontade. Não tenho amigos
nesta sala.
— O Bispo da Paróquia do Sul — informou o bispo magro após contar os
votos. — Por unanimidade.
Reva passou os olhos pelos rostos ao redor da mesa e encontrou seis velhos
assustados e um ancião adormecido que não erguera a cabeça desde que ela
entrara.
— Quem é? — perguntou Reva.
O bispo magro pigarreou, pouco à vontade.
— Sou eu, minha senhora.
Ela deu uma risada curta e virou-se para ele, e seu olhar foi atraído para uma
alcova iluminada por luz de velas nos fundos da sala, onde havia dez tomos
grandes sobre leitoris. Os livros eram antigos, as capas descascadas e rachadas
pela idade. Os primeiros a serem encadernados na terra de Cumbrael, ela sabia,
achando estranho que não sentisse nenhum arroubo de assombro ao vê-los.
Apenas uma coleção de livros velhos numa sala de homens velhos.
— Tenho em minha posse — disse Reva, voltando-se para a mesa — o que
acredito ser uma lista completa dos que aderiram à seita herege conhecida como
Filhos do Lâmina Fiel. No devido tempo, cada nome desta lista será capturado e
interrogado. Tenho certeza de que vocês celebrarão comigo essa notícia, dada a
quantidade de informações que eles sem dúvida fornecerão.
Ela examinou um rosto de cada vez, encontrando confusão na maioria deles,
mas medo em outros. Eles sabiam, compreendeu ela. Não todos, mas alguns.
Reva viu como o Bispo da Paróquia do Sul evitou o seu olhar, e algumas gotas de
suor estavam se formando em sua testa enrugada. Ele em particular. Ela tinha
razão; não havia aliados ali.
Reva andou lentamente em volta da mesa, observando cada uma das costas
curvadas estremecer ao passar por elas. Não estava portando armas naquele dia,
tendo colocado a espada de seu avô de volta no lugar na biblioteca, mas Reva não
tinha dúvidas de que poderia quebrar cada pescoço naquela sala se quisesse. Ela
parou atrás da cadeira ocupada pelo Leitor eleito e apontou para os votos
empilhados com esmero ao lado dele.
— Dê-me esses papéis.
As mãos ossudas e manchadas tremiam ao fazer o que lhe fora ordenado,
derrubando os votos e os recolhendo às pressas para colocá-los de forma
desajeitada na palma de Reva.
— “O logro é tanto um pecado quanto uma bênção” — citou ela ao pegar os
votos com o Leitor, o Quinto Livro, o Livro da Razão, que já estava se tornando o
seu favorito. Ela se virou e caminhou lentamente de volta para a alcova, com os
votos na mão. — “São muitos os caminhos que nos são apresentados pelo Pai e
por demais sinuosos. A cada curva os amados se veem diante de inúmeras
escolhas à medida que os seus caminhos se bifurcam, divididos por guerra ou
fome, amor e traição. É impossível percorrer os variados caminhos da vida sem
logro.” — Ela parou diante da alcova, erguendo os votos sobre uma das velas,
deixando que a chama consumisse metade do papel antes de jogá-los no chão de
pedra, onde continuaram a queimar, e em pouco tempo não eram mais do que
um amontoado de cinzas enegrecidas. — “Mas” — continuou, com um sorriso
aos bispos, que agora a encaravam ultrajados ou horrorizados — “o Pai perdoa a
mentira dita por bondade, ou a serviço de um propósito maior.”
Reva permaneceu no mesmo lugar e o sorriso desapareceu de seus lábios,
esperando que uma única voz se erguesse em contestação. Porém, todos os
bispos simplesmente continuaram sentados e a encarando, instigando a raiva dela
com a sua paralisia silenciosa. Essa igreja corrupta colaborou com assassinos.
Eles se aliaram aos servos de um inimigo que trouxe carnificina e escravidão para
esta terra. O povo desta cidade enforcaria todos vocês das torres desta catedral se
eu assim desejasse. Eu ganhei o amor do povo, enquanto vocês se escondiam aqui
e rezavam por milagres que nunca ocorreram. Ganhei o amor do povo com
espada e arco.
Uma palavra a Arentes e estaria feito: os bispos seriam arrastados para fora,
as acusações lidas enquanto a população assistia e ela atiçava a fúria dos
habitantes com algumas verdades bem escolhidas. Todos agora eram assassinos,
exceto as crianças, e mesmo elas estavam calejadas por verem tanta morte. Não
haveria protestos, nenhuma mão se ergueria para impedi-la e ela teria aquilo
pelo qual o sacerdote outrora a fizera ansiar: uma nova igreja moldada pela visão
de seu pai.
A visão de meu pai louco. O pensamento dissipou a sua raiva, substituindo-a
por uma compreensão cansada. Eles haviam perdido tanto, mas a igreja resistira
por séculos e aquela terra não se curaria se Reva causasse ainda mais feridas.
O ancião adormecido se mexeu, despertando e lançando um olhar embaçado
pela sala.
— Almoço! — gritou ele, batendo com a bengala na mesa.
Reva aproximou-se do ancião, sorrindo diante da careta de reprovação.
— E quem seria você, caro bispo?
— Eu — começou ele, empertigando-se — sou o Santo Bispo da… — Ele
franziu o cenho, confuso, os ombros caíram um pouco, e passou a língua pelos
lábios. — O Bispo da…
— Da Paróquia da Terra dos Rios — informou o bispo à esquerda dele num
sussurro tenso.
— Sim! — O bispo ancião animou-se, fixando um olhar arrogante em Reva.
— Sou o Bispo da Paróquia da Terra dos Rios e exijo o meu almoço.
— Você o terá — assegurou-lhe Reva com uma mesura. — E muito mais. —
Ela andou até a porta, parando para fazer um gesto expansivo na direção dos
outros bispos. — Pois os seus colegas o elegeram Santo Leitor da Igreja do Pai do
Mundo. Aceite, por favor, as minhas sinceras congratulações, Leitor, e saiba que
tem a mais devota lealdade da Casa Mustor. Aguardo o seu primeiro sermão com
o mais profundo interesse.

A sala das espadas estava quase vazia, os cavaletes outrora cheios agora sem
lâminas, exceto por umas poucas penduradas alto demais na parede para serem
alcançadas com facilidade. Ela passou uma hora treinando com a espada do avô,
dançando a sua dança com a lâmina pesada, rodopiando e cortando, forçando os
músculos.
— Eu poderia vê-la fazer isso por horas.
Reva parou no meio de uma pirueta e viu Alornis parada na porta, os dedos
manchados de carvão ainda segurando a sua pasta de couro.
— Duvido que você tivesse gostado da visão alguns dias atrás — disse Reva,
massageando as costas.
O olhar de Alornis tornou-se sombrio.
— Foi terrível, eu sei. Tantas partes da cidade destruídas. Na marcha até aqui
eu vi coisas… Coisas que senti que precisava desenhar. — Ela bateu na pasta. —
Achei que colocá-las no papel pudesse tirá-las da minha cabeça, mas ainda
continuam lá.
As cabeças cortadas caindo do alto… O olhar desafiador do volariano ao ser
conduzido até o bloco…
— Como deveriam continuar — disse Reva. — Você irá para Varinshold? Há
quartos de sobra aqui, caso queira ficar. E tenho certeza de que a Senhora Veliss
gostaria da companhia.
Alornis sorriu, mas sacudiu a cabeça.
— Alucius e Mestre Benril. Preciso encontrá-los. — Ela hesitou e então
entrou na sala, arregalando os olhos ao apreciar os quadros no alto das paredes,
os espadachins em suas várias poses. — Foram pintados por uma mão habilidosa.
— E ao custo do dinheiro do meu bisavô, sem dúvida, que parece ter sido um
pouco generoso demais com suas moedas, de acordo com os registros de Veliss.
Talvez seja por isso que ele tenha perdido tantas guerras para os asraelinos. Tenho
visto que governar um feudo é em grande parte uma questão de dinheiro.
Alornis franziu a testa ao olhar para Reva, sacudindo a cabeça um pouco
espantada.
— Tão mudada em tão pouco tempo.
Reva achou difícil suportar o escrutínio e virou-se, erguendo a espada.
— Você é pesada demais — disse ela à arma.
— O que aconteceu à sua antiga espada? — perguntou Alornis. — Era
belíssima.
Parada sobre o corpo de Arken, o seu braço movendo-se num arco incessante
e mortal, a fúria brotando de seus lábios numa torrente sem sentido…
— Eu a quebrei. — Ela ergueu a cabeça para as poucas lâminas restantes nos
cavaletes mais altos, avistando uma espada asraelina que de algum modo passara
despercebida pelos criados enviados para revirar o lugar em busca de armas. —
Você pode me ajudar a encontrar outra.
Ela juntou as mãos para fazer um apoio e Alornis colocou um pé ali, estendeu
a mão para cima ao ser erguida por Reva e tirou a espada do cavalete antes de
perder o equilíbrio e cair. Reva a apanhou, segurando-a com força enquanto ela
ria, afastando-se para olhá-la nos olhos.
— Meu irmão disse que a Senhora Veliss já foi uma espiã a serviço do Rei
Janus — disse Alornis.
— Eu sei. Ela foi muitas coisas.
— Bem, eu a acho adorável. — Ela ficou na ponta dos pés para beijar a testa
de Reva. — Fico feliz por você.
Alornis virou-se, recolheu a pasta de desenhos e partiu. Reva fechou os olhos,
sentindo o calor do beijo deixar a sua pele. O olhar dela sempre foi perspicaz
demais. Seria tolice imaginar que ela não soubesse.
Ela ergueu a espada, sacou a lâmina da bainha e viu que era antiga, mas não
estava enferrujada; o gume embotado, mas não tanto que não pudesse ser afiado.
— Bem — disse ela, deixando a bainha de lado e assumindo uma posição de
luta. — Vamos ver se você é mais apropriada. Temos muito trabalho a fazer.
CAPÍTULO CINCO
Lyrna

A égua fora um presente dos eorhil, tinha um metro e meio até a altura da
cernelha e era branca do focinho ao rabo, exceto por um tufo de pelo negro entre
as orelhas. Ly rna encontrara a eorhil chamada Sabedoria esperando com a égua
quando saiu da tenda naquela manhã. A mulher ofereceu as rédeas com uma
mesura formal surpreendentemente bem-executada.
— Ela tem um nome? — perguntou Ly rna.
— A tradução é “uma flecha invisível quando corre na neve e no vento”,
Alteza — respondeu Sabedoria com perfeição na língua do Reino. — Meu povo
não é famoso pela brevidade.
— Então será Flecha — decidiu Ly rna, coçando o focinho da égua e
provocando uma leve bufada.
— Ela sente falta do seu cavaleiro — disse Sabedoria. — Ele tombou diante
da cidade. Sinto que a senhora conseguirá curar o coração dela.
— Obrigada. — Ly rna retribuiu a mesura. — Poderia cavalgar comigo hoje?
Eu gostaria muito de saber mais sobre o seu povo.
Havia um tom sardônico na voz da mulher ao responder:
— A senhora já não leu todos os livros da sua biblioteca que falam dos eorhil,
Alteza?
— Percebo cada vez mais que a sagacidade proporcionada pelos livros é
limitada quando comparada com a experiência.
— Como queira. — Sabedoria virou-se e montou no próprio cavalo, olhando
com expectativa para Ly rna. — Meu povo cavalga agora.
Iltis e Benten foram obrigados a correr até os próprios cavalos enquanto
Ly rna montava e partia a trote com Sabedoria. Cavalgaram até a extremidade
leste do acampamento, onde o exército eorhil já se encontrava em movimento,
os vários bandos de guerra galopando aparentemente a esmo. Não havia fileiras
ou colunas devidamente ordenadas ali, apesar de cada cavaleiro parecer se
mover com um propósito, e Ly rna notou como o exército assumiu uma
formação definida, ainda que não muito rígida, ao encimarem as colinas a leste e
descerem para as planícies mais além.
— Uma região boa para cavalos — comentou Ly rna com Sabedoria por volta
de uma hora antes do meio-dia. A cavalgada havia sido difícil, mas não
exaustiva; a sua jornada pelo Domínio Lonak a deixara bem adaptada a longas
horas na sela. Além disso, ela achava a sua nova montaria encantadora, mais
veloz do que o pobre e velho Sable e menos irascível do que Passofirme.
— Ainda há colinas demais para o gosto de meu povo — retorquiu Sabedoria,
tomando um longo gole do seu odre. — E não se vê um alce desde que chegamos
aqui. Alguns dos jovens estão irritados; a verdadeira maioridade só começa
quando se abate o primeiro alce.
Ly rna olhou para os cavaleiros ao seu redor, notando como os olhos deles
constantemente encontravam o seu rosto, mas não revelavam nenhum traço do
assombro demonstrado pelos habitantes do Reino. Na verdade, detectou um
desconforto pela proximidade dela.
— Vocês chamam de Trevas — disse Sabedoria, de alguma forma sentindo a
pergunta que Ly rna estava prestes a fazer. — Nós simplesmente chamamos de
Exilla, “poder”, na sua língua.
— Não um que eu possuo — observou Ly rna.
— Não importa. Sabemos que existe, mas poucos de nós recebem tais dons.
— Presumo que aqueles que os recebem sejam evitados.
Sabedoria soltou uma leve risada.
— Não nos julgue pelos padrões de seu povo, Alteza. Aqueles que possuem
dons não são evitados, são respeitados. Quanto maior o poder, maior o respeito, e
respeito pode transformar-se em medo caso o poder seja grande o bastante. Até
hoje não há conto ou canção em nossa história que mencione um poder maior do
que o usado para curá-la. Eles estão preocupados com o que isso pode significar.
— Você está preocupada?
Os lábios de Sabedoria, rachados pela idade, formaram um sorriso pequeno,
mas cheio de solidariedade.
— Não, grande e terrível Rainha, sei muito bem o que significa.
Sanesh Poltar aproximou-se a trote em seu alto garanhão malhado, fazendo
um cauteloso aceno de cabeça para Ly rna.
— Batedores dizem muitos homens ao sul — informou o chefe de guerra à
Sabedoria. — A Rainha fica aqui enquanto nós vamos ver.
— Acho que não — disse Ly rna, lançando um sorriso radiante ao eorhil.
— Senhor da Torre diz para mantê-la a salvo mais do que todos os outros —
retorquiu Sanesh Poltar. — E nós respondemos a ele, não a senhora.
— E eu não respondo a ninguém. — Ly rna puxou as rédeas de Flecha,
apontando o focinho da égua para o sul e saindo a galope.

Os eorhil logo a alcançaram, é claro, embora ela tenha ficado satisfeita pelo
olhar severo que Sanesh Poltar lhe lançou ao passar galopando. Iltis e Benten
aproximaram-se pelos dois lados enquanto seguiam no encalço dos cavaleiros;
Ly rna se viu piscando para afastar dos olhos a poeira que era levantada à medida
que o sol se erguia para secar a terra. Eles chegaram ao topo de uma pequena
colina uma hora mais tarde, parando ao lado do chefe de guerra, que observava
o vale não muito fundo mais além. A leste e oeste os seus batedores galopavam
numa formação perfeitamente coordenada, enquanto o grosso de seus cavaleiros
aguardava no alto da colina. Ela notou que a maioria colocara uma flecha nos
arcos de chifre.
Sanesh Poltar permaneceu em silêncio, esquadrinhando o vale como uma
águia. Ly rna acompanhou o seu olhar e viu apenas uma terra vazia.
— Quantos homens foram vistos? — perguntou ela ao chefe de guerra.
— Menos do que havia na cidade — informou o eorhil sem se virar. — Mais
do que temos.
Outra força volariana enviada por Tokrev para saquear o sul?, perguntou-se.
Mestre Marken vasculhara a mente do general morto, revelando o que ele
descrevera como um pântano de ambições vãs e invejas medíocres, mas
nenhum indício de outra força considerável nos arredores. Poderiam ter
desembarcado antes do esperado?, ponderou Ly rna. Teria Tokrev chamado a
segunda onda para acelerar a conquista?
Sanesh Poltar endireitou-se na sela e apontou. Passaram-se alguns segundos
até Ly rna avistá-los: um pequeno bando de cavalaria galopando para o vale e
parando de repente ao verem tantos cavaleiros no horizonte acima. Eles se
espalharam, ainda distantes demais para que quaisquer detalhes pudessem ser
discernidos, e um deles partiu a galope e desapareceu por sobre a orla do vale.
Ao lado de Ly rna, Sabedoria soltou o arco da sela e colocou uma flecha na
corda. Velha como é e ela ainda espera lutar, pensou Ly rna.
Os cavaleiros no vale aguardaram por vários minutos; Ly rna achou estranho
que nenhum ainda tivesse desembainhado a espada. O olhar de Sanesh Poltar
mudou novamente de direção quando um estandarte alto surgiu da orla do vale,
balançando na frente de uma coluna de infantaria liderada por um homem a
cavalo. Eles marcharam para dentro do vale em fileiras cerradas, sem fazerem
menção de assumir uma formação de batalha, e Ly rna compreendeu o motivo
quando o símbolo no estandarte ficou visível: uma torre erguendo-se das ondas de
um oceano.
Ela riu e avançou com Flecha, ignorando o protesto horrorizado de Iltis, que
seguia galopando atrás. A coluna em marcha parou quando a Rainha se
aproximou, sargentos gritavam ordens ignoradas por homens que olhavam para
ela com franco assombro. Ly rna dirigiu-se até o cavaleiro na frente da coluna,
erguendo uma das mãos e sorrindo calorosamente. O homem desmontou, não
sem alguma dificuldade, e agachou-se lentamente sobre um joelho.
— Que surpresa agradável, meu senhor! — exclamou Ly rna.
O Senhor da Torre Al Bera olhou para ela com uma expressão pálida, porém
firme, levantando-se com esforço quando a Rainha saltou da sela e aproximou-se
dele de mãos estendidas.
— Alteza — disse ele, a voz rouca e as costas rígidas ao colocar os lábios nas
mãos de Ly rna, os olhos mal deixando o rosto da Rainha ao se empertigar. —
Ouvimos tantas histórias terríveis. É uma felicidade imensa descobrir que pelo
menos uma é falsa. — Ele se virou, erguendo um braço para os homens às suas
costas à medida que mais surgiam marchando. — Apresento o Exército da Costa
Sul. Vinte mil cavaleiros e soldados de infantaria prontos para marchar e morrer
pela Palavra da Rainha.

— Eles enviaram cerca de cinco mil homens para os condados do sul — relatou
o Senhor da Torre ao conselho de capitães naquela noite.
Ly rna fora obrigada a ordenar que ele se sentasse, visto que o homem corria
o risco de tombar a qualquer momento pela exaustão e dor evidentes. Ele se
sentou num banco dobradiço, com os braços aninhados no colo, o esquerdo
bastante enfaixado e o direito pendendo frouxo do ombro caído. Ly rna sugeriu
levá-lo até Artesão, mas a expressão chocada do Senhor da Torre foi suficiente
para que ela deixasse o assunto de lado.
— Principalmente soldados-escravos — prosseguiu Al Bera. Ly rna sabia que
este era um homem promovido por mérito em vez de sangue, e havia na voz dele
as vogais bem enunciadas que eram uma característica do povo do sul de Asrael.
— Além de mil cavaleiros. E traficantes de escravos, é claro. Arrasaram várias
aldeias antes que as notícias chegassem na Torre. Marchei com a Guarda do Sul
e os homens que pude recrutar do litoral. Nós os alcançamos enquanto
terminavam um massacre em Cais de Draver, nas margens mais baixas do
Ferrofrio. Tive a impressão de que não esperavam uma resposta tão ligeira. O
que era de imaginar, visto que eu deveria estar morto. — Al Bera parou para dar
um leve sorriso. — Fizemos com que pagassem. As forças eram praticamente
iguais, de modo que o confronto foi acirrado, mas fizemos com que pagassem.
— Prisioneiros? — perguntou Vaelin.
— Os soldados-escravos não se rendem, mas capturamos alguns cavaleiros e
traficantes de escravos. Entreguei-os às pessoas que libertamos. Provavelmente
eu devia apenas tê-los enforcado, mas sangue se paga com sangue.
— De fato, meu senhor — disse Ly rna. — Continue, por favor.
— Desde então, tenho reunido homens e os treinado da melhor forma
possível. Recebemos notícias há duas semanas de que a frota meldeneana estava
subindo o Ferrofrio, então julguei que era hora de ir para o norte.
— O senhor julgou corretamente — assentiu Ly rna. — Porém, estamos com
uma escassez de suprimentos.
— Suprimentos eu consegui, Alteza. A senhora minha esposa tem laços
familiares dos dois lados do Erineano. Aparentemente alguns mercadores
alpiranos estavam dispostos a fazer negócios conosco. Os termos não foram
favoráveis, e o tesouro da Torre Sul está praticamente vazio, mas, uma vez que o
Imperador revogou o embargo, imagino que eles não podiam deixar passar uma
oportunidade de lucrar.
Ly rna viu Lorde Verniers erguer a cabeça ao ouvir aquilo. Ele era uma
presença deliberadamente obscura no exército, determinado a evitar conversas
com qualquer um que não Vaelin e a Rainha, embora Ly rna tivesse deixado claro
que ele era bem-vindo em todas as reuniões e livre para registrar todas as
palavras ditas. O Escudo de certa forma o exaltara após a batalha, declarando-o
“O escriba que matou um general!” com uma gargalhada estrondosa, imitada
por sua tripulação. Entretanto, Verniers parecia evitar quaisquer recompensas
que o seu heroísmo pudesse oferecer, embora tivesse pedido com insistência por
uma reunião particular.
— Seu Imperador parece estar mais disposto com o nosso Reino, meu senhor
— disse ela a Verniers.
O cronista remexeu-se um pouco quando os capitães se viraram para olhá-lo,
dando voz somente a uma resposta curta.
— Parece que sim, Alteza.
— Acha que ele sabe sobre o grande plano dos volarianos? Poderia ser essa a
razão para ter mudado de opinião?
— Os propósitos do Imperador nunca são determinados com facilidade,
Alteza. Porém, qualquer coisa que possa prejudicar o Império Volariano
provavelmente irá agradá-lo muito. Eles são nossos inimigos há muito mais
tempo do que de vocês.
— Devíamos enviar um embaixador — disse Vaelin. — Forjar uma aliança,
se possível.
— Tudo ao seu devido tempo, meu senhor — ponderou Ly rna, virando-se de
novo para Al Bera. — Escreverei uma carta para a Senhora Al Bera garantindo
que quaisquer dívidas contraídas na compra de mais suprimentos serão
plenamente quitadas ao encerramento das hostilidades. Ela terá liberdade para
concordar com condições adequadas de juros com qualquer mercador. Enquanto
isso, metade dos seus suprimentos disponíveis será enviada para Alltor para
ajudar os cumbraelinos no decorrer do inverno. A outra metade virá até nós —
ela passou um dedo pelo mapa até uma cidade na costa renfaelina — em
Warnsclave, onde nos encontraremos com os nossos aliados meldeneanos em
quinze dias. Por ora, meu senhor, descanse um pouco, por favor.

Ly rna passou a viagem até Warnsclave na companhia de um contingente


diferente todos os dias. Um dia com os cumbraelinos da Senhora Reva, o seguinte
com um regimento de mineiros dos Confins, o terceiro com a Guarda do Sul.
Cada rosto revelava assombro, fascinação ou, no caso da Companhia Livre de
Lorde Nortah, uma lealdade intensa e resoluta.
— Os Finados a abençoaram, minha Rainha! — gritou um homem quando
ela se aproximou a cavalo de Lorde Nortah, o grito logo repetido por seus
companheiros combatentes.
— Silêncio nas fileiras! — berrou o sargento da companhia, um jovem
atlético de cabelos longos e com uma espada atravessada nas costas ao estilo da
Sexta Ordem.
— Perdão, Alteza — disse Lorde Nortah ao seguirem caminho. — Eles não
são fáceis de controlar. E não é como se eu pudesse chicoteá-los.
— Não, meu senhor — disse Ly rna. — O senhor certamente não pode. — Ela
achou estranho que viajassem em silêncio durante boa parte da manhã; o garoto
de quem se lembrava como o filho do Primeiro-Ministro de seu pai raramente
era silencioso, um fanfarrão e por vezes valentão, que não demorava em
provocar e chorava ainda mais depressa quando essas provocações eram
devolvidas. Ly rna não via nada daquele garoto no guerreiro barbado ao seu lado,
que tinha um sorriso leve nos lábios ao observar a grande gata que os
acompanhava aos saltos.
— Pretendo lhe oferecer a restituição das terras e títulos de seu pai — disse
ela quando o silêncio tornou-se cansativo. — Contudo, Lorde Vaelin me informou
que o senhor não teria interesse em tais honrarias.
— Nunca foram de muita serventia para o meu pai, não é, Alteza? —
retorquiu Lorde Nortah com bastante cordialidade, mas com uma leve aspereza
na voz.
— Eu não estive a par da decisão do Rei sobre essa questão — disse Ly rna. —
Creio que tenha sido… lamentável.
— Não guardo mágoa alguma, Alteza. O tempo turvou as minhas lembranças
de um homem que eu amava tanto quanto odiava. Seja como for, sem a morte
dele eu não teria seguido o caminho que me levou à minha esposa, aos meus
filhos e ao lar pelo qual anseio. E a Fé nos ensina a aceitar as dádivas que o
destino nos traz.
— O senhor ainda segue a Fé?
— Eu deixei a Ordem, Alteza, não a Fé. Meu irmão pode ter perdido a sua
em algum lugar do deserto, mas a minha ainda existe. Embora minha esposa
espere que eu a abandone em favor do sol e da lua. — Lorde Nortah deu uma
risada baixa e Ly rna pôde perceber nela a saudade que ele sentia de casa. — É a
única coisa pela qual discutimos, na verdade.
Eles pararam ao meio-dia para descansar; Ly rna desmontou de Flecha e
empertigou-se alarmada quando uma mulher correu das fileiras da Companhia
Livre com uma adaga em cada mão. A espada de Iltis saiu da bainha num
borrão, mas, em vez de se lançar sobre Ly rna, a mulher caiu de joelhos, de
cabeça baixa e com as adagas erguidas no alto.
— Minha Rainha! — disse ela com voz trêmula. — Imploro à senhora para
que abençoe estas adagas para que possam realizar o seu serviço.
Os outros combatentes livres imediatamente caíram de joelhos, e todos
sacaram as suas armas e as ergueram. Aquela era nitidamente uma cerimônia
planejada durante a marcha, sobre a qual Lorde Nortah nada sabia, a julgar por
sua expressão cansada e de descontentamento.
Nunca tema um pouco de espetáculo. Ly rna respirou fundo e pôs um sorriso
bondoso nos lábios ao se aproximar da mulher ajoelhada, reconhecendo-a como
a figura esguia que havia sido a primeira a gritar em Alltor.
— Como você se chama? — perguntou ela.
— F-Furelah, minha Rainha — gaguejou a mulher, sem erguer a cabeça.
Ly rna segurou gentilmente as mãos trêmulas da mulher.
— Abaixe as suas lâminas, irmã. Levante-se, olhe para mim.
Furelah ergueu lentamente a cabeça, os olhos arregalados ao absorverem o
rosto dela, ficando de pé enquanto Ly rna ainda lhe segurava as mãos.
— Quem você perdeu? — perguntou ela à mulher.
— M-minha filha — sussurrou a mulher esguia, com lágrimas escorrendo dos
olhos. — Ilegítima, desprezada e chamada de bastarda durante toda a sua vida,
mas sempre muito meiga. Eles e-esmagaram a cabeça dela com uma pedra. —
A mulher perdeu as forças ao ser tomada pelos soluços chorosos, caindo de
joelhos. Ly rna a abraçou enquanto ela chorava, ainda segurando firme as
adagas.
— Não posso abençoar as lâminas dessa mulher — disse ela aos
combatentes, muitos dos quais agora choravam abertamente. — Pois ela me
abençoa. Todos vocês abençoam. Eu sou a sua lâmina, e vocês são as minhas. —
Ela ergueu a ainda soluçante Furelah, levando-a de volta às fileiras da
companhia. — Portanto, eu os nomeio o Décimo Sexto Regimento de Infantaria
da Guarda do Reino, a serem conhecidos doravante como as Adagas da Rainha.
— Eles abriram caminho diante dela quando soltou Furelah, a mulher caindo de
joelhos mais uma vez no mesmo instante, todos os seus companheiros estendendo
mãos hesitantes para tocar o vestido de Ly rna enquanto ela andava por entre eles,
uma devoção fervorosa em cada rosto. Não posso me embriagar com isso, pensou
ela, sorrindo e tocando cabeças abaixadas em súplica. A tentação é grande
demais.
— Luta, sangue e justiça! — começou o grito, um clamor espontâneo de uma
voz sem rosto nas fileiras ajoelhadas, repetido sem parar enquanto brandiam as
variadas armas. — Luta! Sangue! E justiça!
Ly rna sentiu a sedução do grito invadi-la, o poder que havia nele, a
consciência de que aquelas centenas de almas feridas morreriam por ela num
instante. Ela estava à beira de entregar-se completamente a ele quando algo a
deteve, um único rosto que não havia sido tomado pela adoração. Lorde Nortah
estava parado ao lado de seu cavalo, passando a mão sobre a cabeça da grande
gata agachada ao seu lado, o seu olhar de leve descontentamento agora
substituído por um de profunda e óbvia desaprovação.

***

Ela se encontrou com o Irmão Caenis à noite, sozinha, uma vez que Vaelin
parecia determinado a evitar o seu antigo irmão, uma atitude compartilhada por
muitos nas fileiras do exército. Até mesmo Orena, que lhe parecia uma mulher
muito prática, pedira para retirar-se mais cedo em vez de permanecer para
receber o irmão. O medo das Trevas não desaparece de uma hora para outra,
concluiu Ly rna.
O recém-revelado irmão da Sétima Ordem estava sentado em posição de
sentido num banco dobradiço, recusando a bebida oferecida com uma sacudida
cortês de cabeça. Apesar de toda a sua robustez evidente e renome como
guerreiro, havia uma nítida timidez naquele homem compacto e calejado pela
guerra, um movimento nos olhos como se esperasse um ataque a qualquer
momento. Tanto tempo vivendo nas sombras, pensou ela. A luz do dia pode ser tão
assustadora quanto as Trevas.
— Meus irmãos e irmãs me pediram para lhe agradecer, Alteza — disse ele.
— Por sua consideração.
— Uma rainha importa-se com todos os seus súditos, meu senhor.
— Por favor, Alteza, prefiro ser chamado de “irmão”. Sou um homem da Fé
em todas as coisas.
— Como queira. — Ly rna pegou o pergaminho que ele lhe entregara ao
chegar, uma lista completa dos membros de sua Ordem e de seus vários dons. —
Você tem um irmão que pode ver o passado?
— O dom do Irmão Lucin é limitado, Alteza. A visão dele se restringe à
localidade em que ele estiver no momento.
Ly rna assentiu, franzindo a testa diante da descrição seguinte na lista.
— E essa Irmã Merial realmente consegue puxar raios do ar?
— Não exatamente, Alteza. Ela consegue jorrar um poder, uma energia
pelas mãos. Na escuridão ou nas sombras pode se parecer com raios. O dom é
muito desgastante, fatal se o uso for exagerado.
— Ela pode matar com esse dom?
O Irmão Caenis hesitou, e então assentiu lentamente.
— Então ela e o seu dom são muito bem-vindos neste exército. — Ly rna leu o
resto da lista e olhou para ele com uma sobrancelha erguida. — Vejo que está
faltando um nome, irmão.
O desconforto dele aumentou visivelmente, mas o olhar permaneceu firme e
não havia nota alguma de concessão em seu tom.
— Meu dom não pode ser revelado, Alteza. Por ordem expressa do meu
Aspecto.
Ly rna ficou tentada a lembrá-lo que a Fé servia à Coroa, mas achou melhor
não dizer nada. Há muita serventia no que ele me trouxe. E esse não é um bom
momento para conflitos com a Fé, especialmente por continuarem escondendo
coisas demais.
— Passei muitos anos à procura da sua gente — disse ela, deixando de lado a
lista. — Até mesmo arrisquei a minha vida nas montanhas para encontrar
evidências de sua existência. E, no entanto, parece que tudo o que eu tinha de
fazer era aguardar pelo curso da história e eu seria confrontada por mais
evidências do que poderia desejar.
O Irmão Caenis limitou-se a assentir com cautela em resposta e a desviar o
olhar quando ela continuou.
— Deve ter sido difícil viver escondido por tanto tempo. Mentir para os seus
irmãos durante anos.
— A Fé o exigia, Alteza. Eu não tive escolha. Mas, sim, foi um dever árduo.
— Lorde Vaelin me disse que você era o súdito mais leal que meu pai poderia
desejar. Que o seu entusiasmo pela guerra do deserto era grande. Tanto que ele
achou que o seu coração havia sido despedaçado quando isso não serviu de nada.
— O Aspecto Grealin foi bastante preciso quanto ao papel que queria que eu
desempenhasse. Minha devoção pela Fé era tão forte que ele achou melhor que
fosse mascarada como devoção pelo Rei. Porém, meu irmão tinha razão. Meu
entusiasmo pela guerra era genuíno, inflamado por meu Aspecto, que me disse
que ela era a peça-chave para garantir o futuro da Fé. Por suas próprias razões,
ele não me contou como essa garantia seria alcançada, ou o destino de meu
irmão. Sempre achei os argumentos do Aspecto Grealin infalíveis, ele nunca me
conduziu ao caminho errado, nunca cometeu erros.
— Teve notícias dele desde a tomada da capital?
— Infelizmente não, Alteza. — Caenis baixou a cabeça, a tristeza aparente na
voz. — O Irmão Lernial possui uma facilidade para ouvir os pensamentos das
pessoas que já encontrou, mesmo a grandes distâncias. Sabemos que o Aspecto
se refugiou na Urlish com um bando de combatentes livres. Os detalhes são
vagos, pois o dom de Lernial é limitado. Ele sofreu um ferimento na cabeça em
Alltor e acordou dois dias depois com um grande grito. Eu esperava que as suas
palavras fossem apenas um sintoma de uma mente abalada, mas ele se
recuperou muito desde então e o seu dom lhe diz que não há mais pensamentos a
serem ouvidos vindo do Aspecto Grealin.
Vendo o seu sofrimento evidente, Ly rna apertou a mão do irmão.
— Meus pêsames, irmão.
Ele se remexeu pouco à vontade, forçando um sorriso. Ele tem medo de mim?
Um dos nomes na lista aparentemente possuía certa facilidade para ver o futuro,
e ela imaginou de que revelações Caenis estaria a par, lembrando-se do
semblante carregado de Lorde Nortah e das palavras de Sabedoria no primeiro
dia de marcha. Sei muito bem o que significa.
— Durante o interrogatório do Irmão Harlick, a volariana que capturamos em
Alltor falou de um Aliado — disse Ly rna, afastando-se. — Lorde Vaelin parece
achar que você pode ser capaz de explicar o que ela queria dizer.
— O Irmão Harlick já lhe contou tudo o que sabemos, Alteza. Aquela coisa se
encontra no Além e trama a nossa destruição. Não sabemos por quê.
— Se essa coisa existe num lugar além da morte, isso não faz pressupor que
já tenha vivido? Que já foi um homem, ou uma mulher?
— Sim, Alteza. Mas nenhum membro de nenhuma Ordem conseguiu
descobrir até agora como essa coisa veio a se tornar o que é, nem que
intervenção maligna poderia tê-la corrompido e transformado em tamanho mal.
— Deve haver registros, textos antigos que descrevam a sua origem.
— A Terceira Ordem passou séculos reunindo as palavras mais antigas
escritas por mãos humanas, pagando somas consideráveis por pedaços de
pergaminho ou fragmentos de cerâmica. O Aliado está lá, mas sempre como
uma sombra, uma catástrofe inexplicada ou um assassinato cometido por ordem
de um espírito sombrio e vingativo. Separar verdade de mito costuma ser uma
tarefa infrutífera.
As palavras do irmão instigaram a memória impecável de Ly rna, que se
lembrou de uma frase dos Cantos de ouro e pó de Lorde Verniers: “A verdade é a
maior arma do estudioso, mas com frequência também a sua perdição.” Ela
chegou à conclusão de que já havia passado muito da hora de uma audiência
particular com o cronista alpirano.
— Suponho que a sua Ordem agora precise de um novo Aspecto, não? —
perguntou ela a Caenis.
— Como a senhora sabe, há formalidades para a escolha, Alteza. Minha
Ordem permanecerá sem um Aspecto até que um conclave possa ser reunido.
Porém, meus irmãos e irmãs manifestaram o desejo de aceitar a minha
liderança nesse ínterim. — O olhar dele tornou a se firmar. — O que me leva a
outra questão.
— As pessoas dos Confins.
— De fato, Alteza. Minha Ordem perdeu muitos irmãos e irmãs nesta guerra.
As nossas fileiras estão diminuindo.
— E você levaria esses outros para a sua Ordem mesmo com as objeções
veementes deles? Lorde Vaelin deixou muito claro o que eles pensam a respeito
disso. Seguem a ele, não a você.
— Minha Ordem é o escudo dos dotados. Sem nós, todos eles teriam perecido
há gerações.
— E ainda assim vocês continuaram se escondendo durante décadas
enquanto eles corriam o risco de serem descobertos e mortos pelas mãos da
Quarta Ordem.
— Um subterfúgio necessário. A maioria de nós é descoberta na infância,
crianças dotadas nascidas de pais dotados e membros antigos da Ordem. Nem
todos são tão afortunados, ou tornam-se bons de coração ou imunes à cobiça.
Apesar de todo o nosso poder, temos almas humanas como qualquer outra
pessoa. Antes da ascensão do Aspecto Tendris, os dotados encontrados pela
Quarta Ordem eram avaliados para determinar se tinham condições de serem
admitidos em nossas fileiras. Era escolha deles se juntarem ou não a nós.
— Mas não, suponho, se continuassem fora da Fé?
— A Sétima Ordem é da Fé, Alteza. Isso não pode mudar.
Tenho outro Tendris aqui?, ponderou Ly rna, vendo a crença implacável em
seu olhar. Ela se perguntara com frequência por que o seu pai não havia
ordenado que um de seus muitos agentes ocultos envenenasse o sempre
problemático Aspecto da Quarta Ordem. Contudo, nem mesmo o velho
maquinador fora imune à Fé, tampouco ignorava o poder que ela detinha.
— Este é um Reino livre — disse ela a Caenis. — Isso também não pode
mudar. Você pode falar com os dotados dos Confins e lhes oferecer um lugar em
sua Ordem. Porém, se recusarem, você deixará o assunto de lado e eu não o
ouvirei ser mencionado novamente durante o meu reinado, que espero ser de
considerável duração. A não ser que a sua irmã Verlia — Ly rna consultou a lista
mais uma vez, apenas para dar um efeito dramático, pois havia memorizado o
conteúdo à primeira vista — preveja um futuro diferente, é claro.
— As visões de minha irmã são… infrequentes — disse Caenis. — E
necessitam de muita interpretação. Até o momento ela vê pouco no que diz
respeito a Vossa Alteza.
— E que pouco é esse que ela vê?
Caenis empertigou-se, mais uma vez aparentemente um guerreiro e não um
Aspecto temporário, o rosto carregado com a consciência da batalha que estava
por vir.
— Fogo — respondeu ele. — Ela vê somente fogo.

Ly rna viajou com os seordah no dia seguinte, optando por andar tal como eles. A
Senhora Dahrena a acompanhou como intérprete, um papel um tanto
redundante, uma vez que poucos dentre o povo da floresta pareciam dispostos a
falar com elas, e a maioria na verdade evitava olhar na direção das duas. Ela
podia ver como isso afligia a senhora, o modo como o sorriso dela vacilava
quando os guerreiros de feições aquilinas desviavam o olhar ou grunhiam
respostas curtas às suas tentativas de conversa. Em comparação, a atitude deles
para com Ly rna parecia ser mais de perplexidade curiosa do que de medo.
— Toque de cura muito raro na floresta — disse Hera Drakil, o único de seu
povo a ficar ao lado de Dahrena por mais de alguns passos, e mesmo assim ela
sentia uma relutância tensa vinda do chefe de guerra, como se cada passo fosse
um teste de coragem. — Há muitas gerações não se vê.
— Seu povo possui livros? — perguntou Ly rna, seus pensamentos voltando-se
para a vasta biblioteca da Mahlessa sob a Montanha. — Registros da época antes
dos marelim sil?
— Livros? — O chefe de guerra franziu o cenho.
— Virosra san elosra dural — disse Dahrena ao homem. O seordah de Ly rna
era mais precário do que o seu lonak, mas ela sabia o suficiente para uma
tradução aproximada. As palavras que prendem o espírito.
— Não — respondeu o seordah a Ly rna. — Nada de livros para os seordah.
Não agora, não nos tempos de antes. Tudo é falado e lembrado. Só a palavra
falada é verdadeira.
Ly rna viu Dahrena hesitar e então dizer algo na língua seordah, rápido demais
para ser traduzido com facilidade e com palavras além do conhecimento da
Rainha. Qualquer que fosse o significado, as palavras foram suficientes para
tornar sombrio o semblante de Hera Drakil, que se virou e afastou-se em meio às
fileiras desordenadas de seu povo.
— Ele se ofendeu? — perguntou Ly rna a Dahrena.
O rosto da senhora estava tomado pela tristeza enquanto observava o chefe de
guerra afastar-se.
— Só a palavra falada é verdadeira — disse ela. — Eu lhe disse a verdade.
Ele não gostou.

O exército aumentava conforme seguia para leste; bandos ocultos de fugitivos e


escravos fugidos surgiam de florestas e cavernas para se juntar a eles ou
implorar por comida. Ly rna certificou-se de que todos fossem bem tratados,
mesmo aqueles que relutavam em se juntar às suas fileiras, embora esses
fossem poucos. Havia numerosos desgarrados da Guarda do Reino entre os novos
recrutas, ávidos por retornarem a regimentos que àquela altura em grande parte
já haviam sido dizimados. A pedido de Ly rna, o Irmão Caenis deixara o cargo de
Lorde Comandante do contingente da Guarda do Reino, embora essa decisão
tivesse causado certa desarmonia nas fileiras. Independentemente de qualquer
toque das Trevas, muitos ainda o viam como um salvador, o comandante
destemido que os liderara à libertação após uma derrota calamitosa. Outros
estavam menos dispostos a aceitar tais desdobramentos, principalmente os
homens que haviam servido sob o comando da Senhora Reva em Cumbrael e os
fugitivos encontrados durante a marcha, o que levou a muitas discussões
acaloradas e até mesmo a algumas brigas. Uma delegação formal de sargentos
encontrara-se com Vaelin para pedir a reintegração de Caenis, e o Senhor da
Batalha fora obrigado a acalmá-los promovendo um deles para o posto do irmão,
um sargento veterano e robusto com um rosto feito couro marcado.
— Sargento Travick, Alteza — disse ele, ajoelhando-se diante dela no dia em
que Ly rna juntou-se a eles na marcha. — Outrora do Décimo Sexto Regimento
de Infantaria.
— Ah, os Ursos Negros, pelo que me lembro — disse Ly rna, fazendo um
sinal para que Benten lhe trouxesse o item que buscara no arsenal itinerante do
Irmão Hollun.
Travick piscou para ela, surpreso.
— Sim, Alteza. A memória da senhora é digna de respeito.
— Obrigada. Contudo, devo adverti-lo de que, em comparação, a sua etiqueta
deixa muito a desejar.
O veterano abaixou a cabeça, franzindo a testa, embaraçado.
— Perdoe-me, Alteza. Não estou acostumado com tais coisas.
— Não é desculpa — disse Ly rna, estendendo a mão para pegar a espada
oferecida por Benten, uma lâmina asraelina, condizente com a ocasião — para
uma Espada do Reino referir-se a si mesmo como sargento. Devo dizer que estou
chocada.
O homem ergueu a cabeça de repente, alarmado, arregalando os olhos ao
ver a espada.
— Lorde Comandante Al Travick — disse Ly rna, invertendo a espada para
colocá-la sobre o antebraço, com o punho da arma para a frente —, aceita esta
espada oferecida por sua Rainha?
Atrás de Travick, a Guarda do Reino agitava-se em suas fileiras, menos
organizada e bem barbeada do que ela lembrava, mas todos calejados e com
ares de homens perigosos. Posso usar os perigosos, concluiu Ly rna. Que lutem
entre eles se precisarem, contanto que lutem com ainda mais afinco contra os
volarianos.
— A-aceito, Alteza — gaguejou Travick.
— Então a receba, meu senhor, e levante-se. — A mão grossa e cheia de
cicatrizes fechou-se sobre o punho da espada e ele se levantou, erguendo a arma
com uma expressão estupefata. — É meu desejo que a Guarda do Reino seja
reorganizada, Lorde Comandante — prosseguiu Ly rna, atraindo de novo a
atenção de Travick e fazendo-o retomar uma postura militar, com as costas retas,
e desviando o olhar.
— O que quer que minha Rainha ordene.
— Respeito pelo passado é algo bom, mas não podemos permitir que isso
obstrua o nosso propósito. Muitos regimentos admiráveis preservam agora meros
fragmentos de seus antigos efetivos ou foram completamente dizimados. Caso
meus cálculos estejam corretos, há pouco mais de seis mil Guardas do Reino sob
o seu comando, e muitos deles ainda seguem laços regimentais que já não
possuem significado. Dos regimentos que ainda restam, somente três podem de
fato ser chamados assim, e mesmo eles estão bastante reduzidos. O senhor os
deixará com efetivos completos e dividirá os homens remanescentes em três
novos regimentos, cujos nomes e estandartes serão determinados pelos homens,
sujeitos à minha aprovação. Além disso, o senhor acrescentará a companhia de
Lorde Nortah ao rol da Guarda do Reino como o Sexagésimo Regimento de
Infantaria.
Ly rna voltou o olhar para as fileiras da Guarda do Reino. A lealdade
regimental dos soldados do Reino era lendária e ela viu o franco espanto em
muitos rostos.
— Dou-lhes minha palavra que, quando esta guerra for vencida, a Guarda do
Reino será reorganizada, e qualquer um que desejar juntar-se novamente ao seu
antigo regimento terá permissão para fazê-lo — disse ela, erguendo a voz. — Por
ora, temos uma guerra para ganhar e sentimentalidade não nos ajudará nesta
empreitada.
Lorde Travick berrou uma ordem, sua voz de sargento ressoando como um
trovão, colocando cada soldado ajoelhado e de cabeça baixa.
— A Guarda do Reino é da senhora, Alteza — disse ele. — Para moldar
como queira, e — acrescentou, a voz alta chegando aos ouvidos de todos os
soldados sob o seu comando — se eu ouvir algum homem dizer algo em
contrário, irei chicoteá-lo até os ossos.

As muralhas de Warnsclave haviam sido negligenciadas por muitos anos; o longo


período de paz que teve início com a ascensão do pai de Ly rna as tornara uma
irrelevância custosa para sucessivos feitores da cidade. Vaelin dissera que
haviam sido resistentes o suficiente para repelir um ataque volariano, mas no fim
se provaram frágeis demais para aguentar um segundo. Estavam fendidas em
diversos lugares, grandes brechas abertas na pedra, do solo ao parapeito,
oferecendo uma visão desimpedida do que se encontrava além quando Ly rna
aproximou-se montada em Flecha.
— Não resta nada, Alteza — relatou Lorde Adal naquela manhã, após fazer o
reconhecimento. — Nenhuma casa e nenhuma alma.
A leve esperança de que a Guarda do Norte tivesse exagerado desapareceu
com cada passo dos cascos de Flecha: as cinzas e os escombros visíveis através
das brechas revelavam uma destruição total. Ela encontrou Vaelin esperando no
portão arruinado com uma expressão sombria no rosto.
— O porto, Alteza — disse ele.
As águas do porto estavam turvas pelo lodo e cobertas pelo óleo que vazava
dos barcos abandonados da frota pesqueira da cidade, mas Ly rna podia vê-las
claramente: um grande aglomerado de ovais pálidas, tingidas de verde pelas
algas da água, de maneira que lembravam um monte de uvas após a colheita.
Ly rna passou os olhos pelo que sobrara do que se lembrava como uma cidade
agitada, ainda que um tanto fedorenta, suja, na verdade, onde as pessoas falavam
com um sotaque rústico, mais dispostas a olhá-la nos olhos do que em Varinshold
e menos propensas a se curvarem. No entanto, haviam ficado felizes em vê-la,
recordava Ly rna, vibrando quando ela passara a cavalo, oferecendo bebês para
serem beijados e lançando pétalas de flores em seu caminho. Ela viera à cidade
para abrir um albergue para pobres, pago pela Coroa e administrado pela Quinta
Ordem. Ly rna não encontrou qualquer vestígio do albergue no trajeto até o porto,
apenas rua após rua de tijolos amontoados e madeiras queimadas.
— Eles as acorrentaram juntas — disse Vaelin. — Empurraram as primeiras,
que foram seguidas pelo resto. Talvez quatrocentas, as únicas sobreviventes
quando tomaram a cidade, imagino.
— Não queriam ficar sobrecarregados com escravos na marcha para o norte
— comentou Lorde Adal. Havia em sua voz o tom seco de emoções bem
controladas, mas Ly rna viu como os músculos do maxilar do homem se
retesaram quando olhou para a água.
— Marcha para o norte, meu senhor? — perguntou Ly rna.
A Senhora Dahrena adiantou-se com uma mesura, o rosto exibindo o tipo de
palidez causada somente pelo frio mais intenso.
— Creio que eu possa ter informações úteis, Alteza.

— Desapareceu? — perguntou Ly rna a Dahrena pouco tempo depois. Ela


ordenara que Murel buscasse uma bebida quente para a senhora, e ela agora
estava sentada em sua tenda, agarrando com as pequenas mãos uma tigela de
leite morno. Vaelin encontrava-se de pé olhando para Dahrena com evidente
preocupação, após expressar a sua inquietação por ela usar o seu dom.
— Alltor lhe custou muito — disse ele. — Voar de novo tão cedo foi insensato.
— Sou uma soldado neste exército, como qualquer outro soldado — retorquiu
a senhora, encolhendo os ombros. — E meu dom é minha arma.
Ly rna forçou-se a permanecer calada quando o ar pareceu ficar carregado
entre eles, ciente que muito não havia sido dito, mas que os dois tinham se
entendido como se as palavras tivessem sido gritadas. Enquanto eu conheço tão
pouco do que há por trás dos olhos dele.
— Transformada em cinzas de ponta a ponta — confirmou Dahrena. — A
Urlish está morta, Alteza.
Ly rna lembrava-se do dia em que Lorde Al Telnar implorara ao seu pai que
revogasse as restrições quanto à obtenção de madeira da Urlish, de como fora
enxotado da Câmara do Conselho, o rosto vermelho pela humilhação. A Urlish é
o local de nascimento deste Reino, dissera Janus a um encolhido Al Telnar ao
assinar outro decreto transferindo ainda mais terras que haviam pertencido ao
Ministro das Obras Reais. O berço do meu reinado, que não será desmatado por
gente como você.
Al Telnar e a Urlish, refletiu Ly rna. Agora ambos são apenas cinzas. Estranho
que ele se sacrificasse por mim após tantos anos de tormentos com meu pai.
— E esse exército atravessando a fronteira renfaelina em direção a
Varinshold? — perguntou ela a Dahrena. — A senhora conseguiu estimar quantos
são?
— Mais de cinco mil, Alteza. A maioria a cavalo.
— Darnel está convocando os seus cavaleiros — ponderou Ly rna. —
Certamente precisará deles em breve.
— Acho que não, Alteza — disse Dahrena. — Há uma alma entre eles,
ardendo com intensidade, mas vermelha. Eu a vi antes, quando sobrevoei a
Urlish. Tenho certeza de que estava enfrentando os volarianos lá.
Ly rna assentiu, recordando-se da noite que passara num forte renfaelino
apenas alguns meses antes, mas que agora pareciam anos. Há muitos que
consideram a ideia de serem governados por aquele homem uma mancha na
honra, dissera Banders.
— E a escória que assassinou as pessoas no porto? — perguntou ela. —
Algum sinal dela em seu voo, minha senhora?
Ly rna sentiu certa resignação na resposta de Dahrena, uma aceitação
sombria das consequências das informações que ela fornecia.
— Cerca de quatro mil, Alteza. Trinta quilômetros a noroeste. A maioria a pé.
Ly rna virou-se para Vaelin.
— Meu senhor, faça o favor de pedir a Sanesh Poltar o cavalo mais veloz de
que os eorhil possam dispor e uma escolta para um mensageiro real. Eles irão
atrás desse exército renfaelino e descobrirão sua identidade e suas intenções.
Ele fez uma mesura curta.
— Sim, Alteza.
— Providenciarei para que os corpos sejam resgatados do porto e me
certificarei de que sejam entregues ao fogo com todas as devidas cerimônias,
enquanto o senhor levará todos os cavaleiros que temos para ir atrás dos
assassinos daquelas pessoas. E espero não ouvir mais nada a respeito de
prisioneiros.
CAPÍTULO SEIS
Vaelin

Nós faremos um final, você e eu.


— Meu senhor?
Vaelin foi trazido de repente de volta ao presente pelas palavras de Adal e
encontrou o comandante da Guarda do Norte montado ao seu lado, estreitando os
olhos enquanto o olhava atentamente.
— Os meus homens encontraram alguns desgarrados três quilômetros ao
norte — disse Adal. — À beira da exaustão e sem comer há dias. Parece
provável que o resto não estará muito melhor.
Vaelin assentiu, dando as costas ao escrutínio do homem e olhando para oeste,
onde os eorhil galopavam para realizar a manobra de cercamento que ele
ordenara aquela manhã. Ficou desorientado por um momento quando os homens
das planícies chegaram ao topo de uma elevação e desapareceram de vista, uma
sensação cada vez mais familiar que mesclava frustração com desapontamento.
Não havia canção para acompanhar a cavalgada dos eorhil, como não houve
canção para guiá-lo quando Ly rna foi encontrada curada de corpo, ainda que,
aparentemente, não de espírito. Tampouco houve qualquer canção para
acompanhar o enforcamento dos prisioneiros volarianos executado por Orven
por ordem dela, nem música alguma agora ao se virar de novo para Adal e
ordenar que levasse seus homens para proteger o flanco leste.
Vaelin não viu qualquer relutância no comportamento de Adal antes de o
comandante virar o cavalo e partir a galope, mas havia uma incerteza ali, até
mesmo uma leve preocupação. Ele se perguntou se a animosidade da Guarda do
Norte havia diminuído desde Alltor, se não havia realmente preocupação alguma
pelo seu Senhor da Torre. Contudo, onde antes tais coisas podiam ser facilmente
discernidas, agora havia apenas uma incerteza contínua. É isso que é viver sem
um dom?
Lembrou-se daqueles breves anos em que sua canção silenciara, quando a
sua recusa em escutá-la o deixara desolado e desorientado. Fora difícil não ter
um leme num mar de caos e guerra. Porém, isso era muito pior, pois agora havia
a gelidez, o frio glacial que entrara em seus ossos no domínio do Aliado e
continuara ali naquele mundo de inúmeros caminhos, todos aparentemente tão
escuros. E as palavras, é claro, aquelas palavras que o perseguiam desde o Além.
Nós faremos um final, você e eu.
Nortah aproximou-se a trote, com Dança da Neve saltando adiante, como
sempre animada com a perspectiva de sangue.
— Seu lugar é com o seu regimento — disse Vaelin a ele.
— Davern os têm sob controle — retorquiu o seu irmão. — Para falar a
verdade, eu ficaria grato se você pedisse à Rainha para promovê-lo no meu
lugar. Ódio e sede de sangue sem limites não são tolerados por muito tempo.
— Eles precisarão de uma liderança firme e uma mão que os contenha.
Nortah ergueu uma sobrancelha.
— A Rainha partilha dessa opinião, irmão? Eu ficaria muito surpreso se fosse
verdade.
Vaelin não respondeu, recordando-se da alegria que sentira naquele dia em
Alltor quando o barco a transportou pelo rio, o alívio que aflorara quando ela
desembarcara. A ausência da canção era uma dor física e ela pareceu oferecer
um antídoto, um único ponto de certeza, queimado, mas glorioso. Como eu pude
imaginar que ela tivesse tombado?, pensara, caindo de joelhos diante dela.
No entanto, à medida que os dias passavam e o amor evidente do exército
pela Rainha aumentava cada vez mais, Vaelin sentia a ausência da canção com
crescente intensidade. Ela é motivo de tantas perguntas. E ainda assim parece não
fazer nenhuma. Ele via grandes diferenças da garota que conhecera num
corredor do palácio tantos anos antes, a ambição desenfreada transformada em
algo novo e mais preocupante. Ela ansiava por poder. Pelo que anseia agora?
— Meu povo se encontrou com o nosso irmão — disse Nortah. Ele sempre se
referia aos dotados de Ponta de Nehrin daquela maneira, como se fossem uma
nação. — A pedido da Rainha. Eles lhe disseram não, como esperado. — Ele fez
uma pausa. — Você falou com ele? Desde a sua pequena revelação?
Vaelin sacudiu a cabeça, ansioso para evitar discussões sobre aquele assunto.
As questões levantadas eram ainda mais preocupantes do que as que cercavam a
Rainha.
— Sétima Ordem ou não — prosseguiu Nortah. — Fé ou não. Ele ainda é
nosso irmão.
Ele sempre soube mais, pensou Vaelin. Mais do que sempre disse.
Conhecimento que poderia ser útil, ter salvado muitos, talvez até mesmo Frentis…
ou Mikehl.
— Vou falar com ele — prometeu Vaelin a Nortah. Pois temos muito a
discutir.
— Você não vai fazer nada… estúpido hoje, vai? — perguntou Nortah.
— Estúpido, irmão?
— Sim, irmão. — O rosto de Nortah estava sério. — Como se atirar contra
um exército inteiro. Eles podem escrever todas as canções que quiserem, aquilo
ainda foi idiota. Temos um lar para o qual voltar, caso ainda se lembre. A Ordem
ficou para trás. Há algo pelo qual viver agora, alguém por quem viver.
Havia um peso adicional na voz dele e Vaelin sabia bem o que Nortah queria
dizer. Dahrena estivera ao seu lado durante a maior parte da viagem, exceto
naquele dia, pois ele lhe implorara que descansasse após os esforços dela para
encontrar o seu alvo. Era estranho, mas, apesar de todo o tempo que passavam
juntos, eles falavam pouco, as conversas aparentemente desnecessárias. Vaelin
sabia que ela podia sentir a ausência de sua canção e temia que isso criasse uma
barreira entre eles, mas Dahrena estava mais à vontade com ele agora do que
nunca, e não era difícil de adivinhar o motivo. Duas almas que se encontraram no
Além. Não é um elo que se rompe com facilidade.
Apesar de todo o desconforto que a compreensão desse fato causava, ele
continuava grato pela companhia dela, pois era somente na presença de Dahrena
que o frio parecia diminuir. Surgiu de novo naquele momento, uma dor súbita no
fundo de seu ser, que costumava se manifestar quando ele cavalgava por muito
tempo, ou quando se esforçava demais.
— Não farei nada estúpido, irmão — disse ele a Nortah, enrolando mais o
manto em volta do peito. — Dou a minha palavra.

Seu cavalo pertencera à Guarda do Norte e, como a maioria das montarias


criadas nos Confins, era de origem eorhil: alto, veloz e de temperamento plácido
quando não era usado numa batalha. O Capitão Adal dissera que o seu antigo
dono havia sido um homem muito prático e pouco sentimental, referindo-se ao
animal simplesmente como “Cavalo”, e Vaelin ainda não havia pensado em nada
melhor. Ele sentiu o animal ficar tenso ao se aproximarem do alto de uma colina
no final da tarde, dilatando as narinas ao sentir um cheiro tênue demais para o
nariz de Vaelin, embora ele pudesse adivinhar o significado: o suor de muitos
homens amedrontados.
Vaelin os avistou quando chegou ao topo, a cavalaria nilsaelina perfilando-se
de ambos os lados, espalhando-se conforme reorganizavam as fileiras em
preparação para a investida. Usavam armaduras leves e os cavalos eram criados
para serem rápidos em vez de fortes, e a maioria de seus cavaleiros estava
armada com uma lança de mais de dois metros de comprimento. Olhavam de
cara fechada para os volarianos, sem piedade ou medo. A notícia sobre a
atrocidade em Warnsclave espalhara-se depressa e aqueles homens já haviam
testemunhado horrores de sobra na marcha até Alltor.
Os volarianos haviam formado batalhões dispostos num quadrado, desigual e
em movimento na esquerda, onde Vaelin acreditava que se encontravam os
Espadas Livres, sólido na direita, onde os Varitai aguardavam o seu destino com
uma indiferença rígida. Os eorhil haviam cortado o caminho de retirada atrás
deles e entraram em formação em terreno plano, agrupados em seus bandos de
guerra e avançando devagar. A leste, Vaelin podia ver a Guarda do Norte se
posicionando com os cavalos para bloquear qualquer rota de fuga, enquanto a
guarda montada de Orven aproximava-se do flanco a oeste.
— Ao seu comando, meu senhor — disse o comandante da cavalaria
nilsaelina, um homem rijo com a aparência tipicamente vilanesca dos soldados
de seu feudo, de cabeça raspada e exibindo cicatrizes recentes que sem dúvida
ganhara em Alltor. Em comum com os seus homens, Vaelin podia ver a
ansiedade do homem para se chocar com o inimigo, o modo como a sua mão
enluvada apertava e soltava a haste da lança.
— Esperem pelos eorhil — ordenou Vaelin.
Ele passou a mão sobre o ombro e sacou a espada, achando estranho não
encontrar consolo ao sentir o punho da arma. Antes a sensação era a de segurar
algo vivo, agora era apenas um pedaço de aço e madeira, mais pesado do que se
lembrava.
Um som sibilante familiar atraiu a sua atenção para o campo, encontrando o
céu sobre os volarianos escurecido por flechas no ápice de seu trajeto, os eorhil
agora atravessando a planície em disparada. Vaelin ergueu a espada quando os
corneteiros nilsaelinos deram o sinal para que se preparassem para a investida e
a abaixou quando a saraivada dos eorhil atingiu o alvo. Ele esporeou os flancos do
cavalo e dispararam a galope em uníssono, fazendo a terra ribombar como um
trovão.

***

O choque do impacto o fez balançar na sela, os relinchos ensandecidos do cavalo


abafados pela cacofonia instantânea de fúria e pelo entrechoque de metal e
carne. Ele se agarrou à sela pelo cepilho, sentindo algo duro percorrer a cota de
malha que lhe cobria as costas. Um volariano investiu contra ele saído da
multidão, de olhos arregalados e desesperado, embora sua espada permanecesse
apontada e certeira. Vaelin soltou o cepilho e caiu no chão, rolando de encontro
ao volariano com força suficiente para jogá-lo longe. Ficou de joelhos com
muito custo, erguendo a espada para bloquear a estocada de um Espada Livre
corpulento, um veterano a julgar pela idade e a naturalidade com que se
esquivou para longe quando Vaelin respondeu com um golpe contra as suas
pernas, espantado com a própria lentidão. O Espada Livre golpeou a lâmina de
Vaelin com habilidosa eficácia, logo acima do punho da arma, arrancando-a de
sua mão.
Ele olhou para a mão vazia enquanto um pensamento se repetia com um
distanciamento estranho e calmo. Eu deixei a minha espada cair.
O Espada Livre aproximou-se com a espada preparada para uma estocada
forte no pescoço de Vaelin, e então se contorceu numa pirueta estranhamente
elegante, o sangue jorrando da cabeça quase decepada enquanto Nortah puxava
as rédeas de seu cavalo alguns metros adiante, seguido por Dança da Neve, cujos
dentes e garras já estavam ensanguentados.
Vaelin levantou-se e olhou ao redor. A investida os havia conduzido quase até
o centro das fileiras volarianas; combates eram travados por todos os lados
enquanto os nilsaelinos cravavam suas lanças e os guardas de Orven cortavam
com as espadas. Uma nova tempestade de flechas caía em algum ponto a oeste,
indicando que os eorhil haviam encontrado um aglomerado obstinado de
resistência Varitai.
A voz de Lorde Orven soou próxima e Vaelin o viu reunindo seus homens
para uma investida contra um grupo compacto de Espadas Livres, que lutavam
com todo o desespero de homens condenados. Ouviu-se um relincho alto e ele
viu o seu cavalo sem cavaleiro atirar-se contra os volarianos, empinando e dando
coices, os dentes arreganhados ao gritar. O grupo volariano foi desfeito sem
demora quando os homens de Orven chocaram-se com eles, seguidos a galope
pelos nilsaelinos que se juntavam à matança.
— Nada estúpido? — perguntou Nortah, assomando sobre ele com um olhar
repreensivo.
Vaelin olhou para a mão vazia, dobrando os dedos e sentindo o frio aumentar
mais uma vez. Algo encostou em seu ombro, e ao se virar ele encontrou o seu
cavalo, bufando alto e balançando a cabeça, com um corte no focinho.
— Cicatriz — disse Vaelin, passando uma das mãos sobre o focinho do
animal. — Seu nome é Cicatriz.

— Fique parado — advertiu Dahrena quando ele se retraiu com a ardência


causada pelo unguento que ela aplicava em suas costas. A queda da sela o
deixara com um hematoma espetacular da cintura ao ombro, sem falar nas
palavras constantemente repetidas que o atormentaram na viagem de volta a
Warnsclave. Eu deixei a minha espada cair.
— Sua lenda já não cresceu o bastante? — prosseguiu Dahrena, aplicando o
unguento sobre a pele dele, movendo os dedos em círculos tensos e firmes. —
Precisa atacar cada exército que encontra? E, agora, aparentemente com um
cavalo comandando pelas Trevas.
— Acho que não — gemeu ele, suspirando aliviado quando Dahrena
levantou-se e foi até o pequeno baú onde guardava os diversos potes e caixas
com os seus curativos. — Desconfio que o meu novo cavalo apenas goste de
lutar.
Vaelin ocupara um porão na única estrutura que ficara de pé em Warnsclave;
a casa do capitão do porto, que parecia uma fortaleza, ficava na base do molhe,
construída inteiramente de granito e resistente demais para ser derrubada com
facilidade. A Rainha e o seu séquito ocuparam os andares, enquanto o exército
acampara entre as ruínas, as fileiras aumentando à medida que mais pessoas
chegavam das terras ao redor.
— Como o dono dele — murmurou Dahrena, fazendo-o retrair-se de novo.
Aquelas eram as primeiras palavras ásperas que trocavam desde Alltor,
causando um receio de que o elo deles pudesse não ser tão imune a abalos, afinal
de contas. A batalha fora breve, o que não era de espantar dada a vantagem que
tinham sobre os volarianos, que fugiram depois de menos de quinze minutos de
combate, o tempo que foi necessário para matar os Varitai. Os Espadas Livres
sobreviventes correram em todas as direções e logo foram perseguidos pelos
eorhil, enquanto os nilsaelinos davam cabo dos feridos e se engajavam na
consagrada atividade militar de saquear os mortos. Para sua surpresa, Vaelin foi
recebido com um respeito grave ao percorrer o campo, com soldados fazendo
mesuras e erguendo lanças em saudação. Eles preferem não ver?, ponderou ele.
Preferem acreditar num homem de coragem insensata e num cavalo guiado pelas
Trevas do que num tolo enfraquecido que não consegue ficar na sela e deixa a
espada cair?
— Hoje eu quase morri — disse ele a Dahrena num tom seco e pensativo.
Ela não se virou, mas se empertigou. — Sei que perdi a minha canção —
prosseguiu Vaelin. — Quando você me trouxe de volta. Sem ela… Eu deixei a
minha espada cair, Dahrena.
Ela se virou com o rosto franzido de irritação.
— É pena de si mesmo que escuto, meu senhor?
— Não. — Ele sacudiu a cabeça. — Apenas palavras sinceras…
— Bem, eu tenho algumas palavras sinceras para você. — Ela se aproximou
de Vaelin, ajoelhou-se e agarrou suas mãos, os dedos pequenos e esguios
fechando-se sobre os dele. — Uma vez eu vi um garoto lutar feito um selvagem
para capturar uma flâmula em algum jogo terrível. Achei cruel na ocasião, e
ainda acho, na verdade. Mas o garoto que vi aquele dia não ouviu uma nota
sequer de sua canção, ou eu a teria sentido. Você sempre foi mais do que o seu
dom. — Dahrena apertou as mãos dele com mais força. — Um dom não é um
músculo, um osso ou uma habilidade que foi desenvolvida desde a infância, uma
habilidade que não posso acreditar que tenha sido perdida em apenas algumas
semanas.
Ela ergueu o olhar e a irritação desaparecera ao se levantar, soltando as mãos
de Vaelin para segurar sua cabeça, puxando-o para perto.
— Nós dois ainda temos muito que fazer, Vaelin. E acredito que o objetivo da
Rainha seria alcançado com mais facilidade com você ao lado dela. — Ela se
afastou, sorrindo para ele, passando a mão macia e quente da testa ao queixo de
Vaelin antes de beijá-lo nos lábios. — Por acaso você encontrou uma chave para
esta porta?

Mais tarde ela estava deitada com a cabeça apoiada no peito de Vaelin, o seu
corpo pequeno e perfeito pressionado contra o dele, acabando com qualquer
vestígio do frio. Começara em Alltor, com eles mal trocando uma palavra
naquela primeira noite. Não houve preâmbulo, apenas silêncio e uma
necessidade fremente ao se aninharem no escuro, atraídos por algo a que
nenhum dos dois sentiu qualquer inclinação de resistir.
— A Rainha me odeia — sussurrou ela, sua respiração eriçando os pelos do
peito dele. — Ela se esforça para esconder isso, mas posso sentir.
Enquanto eu posso apenas suspeitar, pensou Vaelin.
— Não infringimos nenhuma lei, nem insultamos ninguém — disse ele. — E
até mesmo uma rainha tem direito aos próprios sentimentos.
— Você e ela, quando eram jovens, vocês…?
Ele soltou uma leve risada.
— Não, isso nunca poderia ter acontecido. — O sorriso desapareceu quando o
rosto de Linden Al Hestian veio à sua mente; tantos anos depois e a culpa ainda o
afligia.
— Ela ama você — continuou Dahrena. — Não é possível que você não veja
isso.
— Vejo apenas a Rainha que tenho o dever de seguir. — Será melhor para
todos se eu não vir mais nada. — O que os seordah dizem sobre ela?
Ele a sentiu ficar tensa, mexendo a cabeça sobre o seu peito.
— Nada. Digo, nada para mim. Mas não sei o que dizem uns para os outros.
Vaelin sabia que a atitude dos seordah com os dois sofrera uma
transformação severa desde Alltor, e uma profunda cautela tomara o lugar da
afeição que sentiam por Dahrena e do respeito relutante que haviam começado a
demonstrar por ele.
— O que é? — perguntou Vaelin. — Por que eles nos temem tanto?
Ela permaneceu em silêncio durante um longo tempo, então se ergueu e
apoiou o queixo nas mãos, o rosto oculto pela escuridão, mas os olhos refletindo a
luz que vinha de uma pequena abertura na parede do porão.
— Assim como os Fiéis, os seordah não veem a morte como uma maldição.
Mas acreditam que, quando uma alma deixa o corpo, ela não vai para um mundo
além deste, mas sim para um lugar oculto, um mundo que existe em cada
sombra e em cada canto, invisível e irreconhecível a olhos vivos. Nesse mundo,
você leva consigo cada lição aprendida enquanto estava vivo, cada truque de
caçador ou habilidade de guerreiro, cada migalha de conhecimento, e embarca
numa grande e eterna caçada, mas livre de medo ou incerteza, sem os fardos
carregados durante a vida, restando apenas a caçada. Talvez você às vezes os
tenha visto na floresta, estendendo a mão para o buraco escuro no tronco de uma
árvore ou para a sombra lançada por uma rocha, à espera de uma mensagem
sussurrada de uma alma querida que foi para a caçada.
— Quando me trouxe de volta, você me privou de um dom — disse ele.
— Do maior dos dons.
— Devia falar com eles, contar a verdade sobre o que aconteceu.
— Eu contei. Não adiantou. Aos olhos deles, eu sou uma transgressora e você
não deveria estar andando sobre esta terra. Eu os perdi.
Vaelin a abraçou quando ela baixou de novo a cabeça, passando as mãos por
seus ombros e sentindo a tristeza dela.
— Então por que eles continuam aqui? — perguntou ele.
A resposta de Dahrena foi baixa, sussurrada entre lágrimas:
— Eles fazem o que fazemos: atendem ao chamado do lobo.
A espada de Reva chocou-se com o lado machucado do corpo dele, provocando
um gemido dolorido. Ela saltou com agilidade para trás quando Vaelin respondeu
com um golpe ascendente desajeitado, em seguida avançando agachada e
desferindo uma estocada contra o peito dele. Vaelin se esquivou, desviando para
cima a espada de madeira de Reva e mirando um golpe lateral nas pernas dela,
que as atingiu em cheio quando ela demorou demais para bloquear.
— Melhor — disse Reva. — Não acha?
Vaelin foi até o cepo onde estava o seu cantil e tomou longos goles. O céu
estava nublado naquele dia e o ar gelado, prenunciando a chegada do outono e a
perspectiva de uma marcha nada fácil até Varinshold. Eles já estavam em
Warnsclave havia três dias, esperando que a frota meldeneana aparecesse. A
situação dos suprimentos fora abrandada pelas provisões de Lorde Al Bera, mas
os estoques ainda eram insuficientes para prover o deslocamento para o norte,
ainda mais se considerando o número crescente de recrutas. Mais de mil pessoas
rumaram para a cidade arruinada desde que eles ali chegaram, forçando o
acréscimo de ainda mais companhias ao regimento de Nortah. Tudo indicava
que os volarianos não haviam sido tão eficientes para conseguir escravos quanto
imaginado, embora batedores trouxessem diariamente evidências de sua
proficiência em massacres, histórias reveladoras de uma aldeia arrasada após a
outra, cada uma bem suprida de cadáveres putrescentes.
— Não — disse ele a Reva. — Na verdade, hoje estou pior.
Ele jogou o cantil de lado e investiu contra Reva, desferindo uma série de
estocadas e golpes rápidos, a espada de madeira movendo-se num borrão. Ela se
esquivou e aparou com uma fluidez muito superior à das suas primeiras lições;
Vaelin sabia que habilidades desenvolvidas em batalha sempre faziam a
diferença. Também sabia que Reva o estava poupando, permitindo que acertasse
golpes que ela poderia ter bloqueado sem dificuldade e respondendo apenas com
uma fração da velocidade que poderia ter empregado.
— É inútil — murmurou Vaelin, parando em meio a outro ataque.
— Ora, vamos — zombou ela. — Está desistindo?
Você me ama demais, pensou ele com um suspiro mental. Tem medo de me
ver morrer de novo. Vaelin olhou para o campo no sopé da colina onde estavam
praticando, o exército trabalhando sob a supervisão de oficiais e sargentos,
recrutas novos e velhos sendo transformados no instrumento mortal de justiça da
Rainha. Podia vê-la percorrendo o acampamento em seu cavalo branco, o manto
negro esvoaçando ao vento, provocando saudações e exortações por onde quer
que passasse.
— Você… — Reva parara ao seu lado, falando com um tom hesitante.
— O quê?
— A Rainha. — Os olhos de Reva acompanharam o cavalo de Ly rna ao trotar
em direção às novas companhias de Nortah, as pessoas caindo de joelhos quando
a Rainha parou. — O que fizeram com ela. Você não se pergunta o que isso pode
significar?
— A cura dela?
— Não. Não a cura. O que foi feito antes. Sofrer o que ela sofreu… Curada
ou não, as cicatrizes são fundas.
— Tão fundas quanto as suas, irmã?
— Talvez mais fundas. É isso que me preocupa. As minhas mãos estão
vermelhas, assim como as suas. Não alego inocência e responderei ao Pai
quando chegar a minha hora. Mas ela… Às vezes penso que ela queimaria o
mundo inteiro se isso fosse significar a morte do último volariano. E mesmo
assim ela não ficaria satisfeita.
— Você não anseia por justiça?
— Por justiça, sim. E por deixar meu povo seguro mais uma vez. Para fazer
isso, irei lutar a guerra dela e libertar a sua cidade. Mas não será suficiente, não
é? O que você dirá quando ela lhe ordenar que a siga através do oceano?
Sem canção. Sem orientação. Apenas uma incerteza cada vez mais silenciosa.
— Obrigado pelo exercício, minha senhora — disse Vaelin, virando-se para
fazer uma mesura. — Mas acho que preciso de um tutor menos caridoso.

A espada de freixo de Davern desviou a apara de Vaelin e estalou nas suas


costelas desprotegidas, deixando-o sem ar e curvado. Davern afastou-se
enquanto Vaelin engasgava tomando fôlego e olhando-o furioso.
— Quem mandou parar, sargento?
O ex-construtor de barcos franziu a testa por um momento, mas a expressão
transformou-se rapidamente num sorriso cheio de dentes brilhantes, e ele
avançou para desferir uma estocada no nariz de Vaelin. Ele se contorceu, a
espada de freixo o errando por um centímetro, agarrou o braço do sargento e o
arremessou por sobre o ombro. Davern recuperou-se depressa, levantando-se de
um pulo e rodando para desferir um golpe giratório nas pernas de Vaelin.
Madeiras estalaram quando Vaelin bloqueou a investida e então respondeu com
uma série de golpes segurando a espada com as duas mãos e visando o peito e a
cabeça, fazendo o sargento recuar e bloquear cada espadada, alheios aos gritos
dos espectadores.
Três dias já haviam se passado e Vaelin ainda não acertara um golpe,
atraindo uma multidão maior a cada luta de exercício. Davern, como esperado,
não precisou de muita persuasão para lutar com o Senhor da Batalha, o seu
deleite evidente ficando ainda maior quando as habilidades reduzidas de Vaelin
tornaram-se aparentes. Teria sido fácil fazer aquilo longe dos olhares do exército,
mas Vaelin resistiu à tentação, encontrando no escrutínio de tantos olhos críticos
um estímulo útil para se esforçar ainda mais.
Ele estava melhorando, podia sentir; o frio agora não era tão intenso. Contudo,
a sensação da espada em sua mão ainda era estranha, a outrora sublime maestria
substituída por uma eficiência habilidosa. Quanto era a canção?, perguntava-se
continuamente. Quanto preciso dela?
Davern abaixou-se para evitar outro golpe, movendo-se para o lado e
desferindo uma estocada precisa que conseguiu atravessar a guarda de Vaelin e
atingi-lo no lábio superior, arrancando sangue e fazendo-o cambalear para trás.
— Perdão, meu senhor — disse Davern, atingindo a perna direita de Vaelin
com a espada e derrubando-o no chão, desviando o débil contragolpe e erguendo
a arma para um golpe final sem dúvida doloroso. — Mas o senhor disse para não
me conter.
— Já basta! — Alornis estava avançando, com o rosto vermelho de fúria. Ela
empurrou o sorridente Davern para o lado e ajoelhou-se perto de Vaelin, levando
um pano limpo ao lábio ensanguentado. — A luta acabou — disse ela ao sargento.
— Volte para o seu regimento.
— A senhora sua irmã agora está no comando aqui, meu senhor? —
perguntou Davern a Vaelin. — Talvez devesse estar.
— Sargento. — A voz era baixa, mas o sorriso debochado de Davern
desapareceu no mesmo instante. Nortah estava ali perto, passando os olhos pelos
soldados que assistiam, a maioria combatentes livres do próprio regimento, todos
tratando de encontrar rapidamente outro lugar para passar o tempo. Dança da
Neve afastou-se de Nortah para empurrar o ombro de Vaelin com o focinho,
ronronando com insistência até ele se levantar.
— O seu homem é um bruto — disse Alornis a Nortah, continuando a
estancar o sangue que escorria do lábio de Vaelin.
— Só estava seguindo as ordens de Sua Senhoria, professor — retorquiu
Davern a Nortah. Apesar de demonstrar não sentir qualquer medo com relação a
Vaelin, sua atitude com Nortah era sempre visivelmente mais respeitosa.
— De fato ele estava — disse Vaelin, fazendo uma pausa para cuspir um
muco vermelho no chão. — E muito bem, aliás.
Nortah olhou rapidamente para Davern.
— Vá tratar dos piquetes — ordenou ele com calma.
O sargento fez uma mesura e partiu depressa.
— Mil coisas podem acontecer numa batalha — disse Nortah a Vaelin. —
Você está dando importância demais a uma espada caída.
— Guerras não são vencidas com espadas caídas, irmão. — Vaelin tirou o
pano de Alornis e foi até a árvore onde amarrara Cicatriz.
— O Irmão Kehlan devia cuidar disso — gritou ela às suas costas, mas ele
apenas acenou e montou no cavalo.

Não foi difícil encontrar Caenis. O contingente da Sétima Ordem, que agora
chegava a quatro irmãos e duas irmãs, estava alojado numa ruína coberta por
uma lona, próxima do porto, um pouco afastada do resto do exército, que
continuava a encará-los com franca desconfiança. Caenis estava sentado com os
outros, falando em voz baixa, mas com veemência, cada um deles escutando
com muita atenção. Eram todos mais novos do que o seu irmão. A dádiva da
juventude proporcionava uma chance maior de sobrevivência à investida
volariana, uma vez que os jovens adaptavam-se melhor aos rigores da batalha,
ou atraíam mais a atenção dos traficantes de escravos. Um jovem havia
claramente sofrido algum tratamento cruel, sentado sem camisa enquanto ouvia
Caenis, suas costas marcadas por chicotadas recentes, em carne viva e
vermelhas à luz do entardecer.
— A guerra não é mais da alçada apenas da Sexta Ordem — Caenis estava
dizendo. — Agora todos os Fiéis são convocados para juntarem-se a esse conflito.
Agora todos nós somos guerreiros. Não podemos mais nos dar ao luxo de nos
escondermos.
Ele se calou quando Vaelin surgiu das sombras, os outros se virando para
encará-lo numa mistura do assombro costumeiro com um respeito grave.
— Irmão — chamou Vaelin. — Gostaria de falar com você.
Eles caminhavam ao longo do molhe à medida que a noite caía, uma lua
crescente surgindo de trás de uma nuvem intermitente. Caenis nada disse,
esperando que Vaelin falasse, talvez perfeitamente ciente de qual seria a
primeira palavra dita.
— Mikehl — disse Vaelin quando chegaram ao final do molhe.
A maré noturna havia afastado o mar do molhe, de modo que parecia que
estavam no alto de um pico elevado fustigado por uma brisa forte, as ondas que
se quebravam suavemente mal podendo ser vistas abaixo. Vaelin olhou
atentamente para o rosto de Caenis quando este nada respondeu, vendo ali o que
esperara ver. Culpa.
— Antes de eu zarpar para os Confins, o Aspecto Grealin me assegurou de
que não havia tomado parte naquilo — prosseguiu Vaelin. — E colocou toda a
culpa no Irmão Harlick, que na verdade admitiu a sua participação, embora não
nos termos mais claros. Por acaso há algo que você gostaria de acrescentar à
história, irmão?
A expressão de Caenis não mudou e sua voz soou apática quando respondeu:
— Meu Aspecto me ordenou que mantivesse você a salvo. Fiz o que me foi
ordenado.
— Os homens que mataram Mikehl falaram de um outro, alguém que acho
que encontraram na floresta naquela noite. Alguém que temiam.
— Eles estavam esperando um irmão que Harlick conhecia, alguém
cúmplice de seu plano. Eu o encontrei, matei-o e tomei o seu lugar. Os assassinos
contratados pelo pai de Nortah não podiam ser mortos tão facilmente, então eu os
enviei na direção errada, uma direção que eu esperava que fosse levá-los para
longe de qualquer irmão. Porém, Mikehl sempre foi muito lento e se perdia com
muita facilidade.
Vaelin lhe deu as costas e encarou o mar. O vento estava ficando mais forte e
as ondas reluziam brancas sob o pálido luar. Ao longe ele pôde ver uma forma
negra no horizonte, logo seguida por muitas outras.
— Nosso Lorde Almirante cumpre as suas promessas — comentou ele.
Caenis olhou para os navios que se aproximavam.
— Esta guerra reuniu alguns aliados estranhos.
— E com isso revelou muitas coisas.
— Naquele dia em que você nos encontrou… As minhas palavras foram
injustas. Eu havia perdido tantos homens, presenciado tantas mortes inesperadas.
Parecia que os Finados haviam nos abandonado, que a sua falta de Fé havia feito
com que eles nos condenassem. Foi tolice, irmão.
— Irmão — repetiu Vaelin em voz baixa. — Nós nos chamamos assim há
tanto tempo que eu me pergunto se a palavra ainda possui significado. Tanto foi
escondido, tantas mentiras foram ditas. Naquele primeiro dia, nas galerias,
Grealin deu tapas no seu ombro e você se retraiu. Eu achei que você estava com
medo dos ratos imaginários dele, mas ele estava cumprimentando-o. Você não
estava se juntando à Sexta Ordem, estava se apresentando ao seu Aspecto.
— É como perseveramos, como continuamos a servir à Fé. Pelo menos até
agora. Com a morte do Aspecto Grealin, cabe a mim o fardo de reconstruir essa
Ordem. Seria mais fácil com a sua ajuda.
— Os dotados dos Confins não querem fazer parte da sua Ordem. Cara e
Marken nem mesmo são da Fé, e duvido que Lorkan reuniria a vontade
necessária para crer em algo.
— Tal como você, irmão. — As palavras de Caenis foram ditas de forma
afável, mas Vaelin ouviu nitidamente a reprovação nelas.
— Eu não perdi a minha fé. Ela murchou e morreu diante da verdade.
— E essa grande verdade ganhará esta guerra, irmão? Olhe ao seu redor e
veja quantos sofreram. Sua verdade irá sustentá-los nos meses e anos por vir?
— Seu dom fará isso? Ainda não sei que tipo de poder você possui, e se devo
comandar este exército, eu gostaria muito de saber.
Caenis o encarou em silêncio com um olhar firme, sem piscar. Vaelin levou a
mão à faca de caça em seu cinto, agarrou o punho com força, pronto para sacá-
la e cravá-la no olho de seu irmão… Ele exalou lentamente, soltando a faca e
notando que sua mão tremia.
— Agora você sabe, irmão — disse Caenis antes de se virar e se afastar.
CAPÍTULO SETE
Alucius

O Aspecto Dendrish ficou visivelmente abatido, parecendo encolher quando seu


corpo afundou na cama estreita demais. A papada reluziu quando ele moveu os
lábios gordos, a testa franzida de desespero.
— Pode… — Ele fez uma pausa e engoliu em seco, olhando para Alucius
com desesperança nos olhos arregalados. — Pode haver algum erro nisso.
Algum equívoco…
— Eu duvido, Aspecto — disse Alucius. — Parece que Mestre Grealin de fato
pereceu, ainda que em circunstâncias um tanto estranhas. — Ele prosseguiu
relatando a história que Darnel lhe contara, inclusive com os poderes das Trevas
atribuídos ao mestre caído da Sexta Ordem.
A reação de Dendrish foi rápida, imediata e habilidosa demais para ser
verdadeira.
— Absurdo. Na verdade, muito me choca que um homem culto possa
acreditar em tamanho disparate.
— De fato, Aspecto. — Alucius tirou um volume novo de dentro do saco e o
jogou na cama. Uma de suas melhores descobertas, A Viagem do Asa Veloz, do
Irmão Killern. Sua intenção havia sido importunar o Aspecto com um exemplar
anotado de A história completa e imparcial da Igreja do Pai do Mundo, de Lorde
Al Avern, mas sentiu que o gordo estudioso podia estar precisando ser animado.
Contudo, Dendrish nem mesmo notou o livro, permanecendo sentado e olhando
para o nada quando Alucius pediu licença e saiu da cela.
A Aspecto Elera foi mais cuidadosa em sua reação, comentando rapidamente
que tivera pouco contato com o finado mestre antes de expressar sua profunda
gratidão pelos medicamentos e livros novos. Porém, o tom da mulher ficou
distintamente mais intenso ao fazer uma pergunta.
— E o vinho, Alucius?
— Ainda preciso procurá-lo, Aspecto.
Elera o olhou nos olhos e falou num sussurro surpreendentemente ríspido:
— Então se certifique de saciar sua sede logo, meu senhor.

Com Darnel e boa parte dos cavaleiros renfaelinos ausentes à procura do esquivo
Irmão Vermelho, Varinshold estava ainda mais silenciosa do que de costume. A
maioria da guarnição volariana era composta por Varitai, que eram
particularmente calados, e o contingente menor de Espadas Livres encontrava-se
recolhido nas mansões do quadrante norte que haviam sido transformadas em
casernas. As ruas, se é que podiam ser assim chamadas, não eram patrulhadas
na maior parte do tempo, uma vez que não havia praticamente ninguém a quem
policiar. A maioria dos escravos fora despachada para o outro lado do oceano
semanas antes, e os que permaneceram estavam ocupados concretizando a visão
de Darnel para o seu grande palácio. Um dos escravos em particular fornecia o
serviço mais valioso, tão valioso, de fato, que Darnel ameaçara decepar a mão
de qualquer capataz que ousasse encostar nele a ponta de um chicote.
Visitar Mestre Benril não era uma das obrigações favoritas de Alucius, uma
tarefa que ele realizava de modo tão infrequente quanto a sua consciência lhe
permitia, geralmente até que sua cabeça ficasse repleta de imagens de Alornis.
Ele encontrou o velho mestre trabalhando com afinco na muralha oeste, uma
monstruosidade disforme e queimada após a tomada da cidade, marcando o
ápice da destruição do palácio, agora coberto de mármore de ponta a ponta.
Benril estava acompanhado por um escravo corpulento e calvo, mais velho do
que a maioria, mas poupado da execução em virtude de sua habilidade com
pedras e de seu conhecimento especializado de onde encontrar mais. Ele
raramente falava mais do que algumas palavras, visto que os capatazes não
haviam sido proibidos de aplicar o chicote em suas costas, mas revelava os tons
refinados de um nobre quando o fazia. Alucius ainda não sabia o nome do
homem, e na verdade evitava descobri-lo. Não se podia esperar que escravos
vivessem o suficiente para tornar qualquer associação com eles vantajosa.
— Está ficando muito bom, mestre! — gritou ele para Benril no segundo
andar do andaime, onde o escultor trabalhava para entalhar o grande relevo que
retratava a vitória gloriosa de Darnel sobre a Guarda do Reino.
Benril parou de martelar e olhou por sobre o ombro. O velho mestre não o
cumprimentou, mas fez um aceno irritado com a mão, permitindo que Alucius
subisse a escada. Alucius sempre se espantava com a velocidade com que eles
trabalhavam, o escravo corpulento guiando uma lima sobre os entalhes recém-
acabados enquanto Benril continuava a criar a partir da pedra virgem. Passara-se
apenas um mês desde o início do projeto vanglorioso de Darnel e um quarto dele
já estava terminado, as figuras esculpidas à perfeição brotando da pedra de
acordo com o enorme desenho que Benril desenrolara diante o olhar aprovador
do Senhor Feudal.
Talvez seja a sua maior obra, ponderou Alucius, observando Benril entalhar o
perfil heroico de um cavaleiro renfaelino em combate com um Guarda do Reino
encolhido. E é tudo uma mentira.
— O que é? — perguntou Benril, abandonando o entalhe por um momento e
pegando uma garrafa de cerâmica.
— Apenas a minha garantia regular de que os dois Aspectos continuam vivos
e ilesos — explicou Alucius. Fora o preço do mestre no dia em que o arrastaram
para diante do Senhor Feudal, limitando-se a erguer uma sobrancelha ao ouvir as
promessas de tortura ou de execução rápida feitas por Darnel, concordando
somente quando as ameaças foram dirigidas aos Aspectos. Apesar de todo o seu
desdém por costumes e etiqueta, Benril permanecia um homem da Fé.
O Mestre assentiu, tomando um gole da garrafa e a entregando ao escravo. O
homem lançou um olhar cauteloso a Vinte e Sete antes de tomar um gole rápido,
retornando ao trabalho com uma pressa determinada. Alucius recolheu a
garrafa, tirou a rolha e cheirou o conteúdo. Apenas água.
— Ouvi falar sobre um estoque escondido de vinho — disse ele a Benril. —
Caso o senhor queira.
— O vinho entorpece os sentidos e faz o artista medíocre imaginar-se grande.
— Benril o olhou com severidade e voltou ao trabalho. — Um truísmo com o
qual imagino que você esteja bastante familiarizado.
— Como sempre, foi um grande prazer, mestre. — Alucius fez uma mesura
desnecessária e voltou à escada, parando para olhar as costas ossudas mas ainda
fortes de Benril, cujos braços esguios cobertos de músculos nodosos moviam-se
num ritmo experiente ao trabalharem a pedra. — Há mais uma coisa —
acrescentou ele. — Parece que Mestre Grealin juntou-se a um bando de
combatentes na floresta. O senhor se lembra de Mestre Grealin? Um sujeito
grande e gordo que cuidava do almoxarifado da Sexta Ordem.
— E o que tem isso? — perguntou Benril, continuando a entalhar.
Alucius manteve os olhos nas mãos de Benril.
— Ele morreu.
Foi somente um deslize, meramente a mais leve irregularidade deixada num
entalhe magnífico. Mas era funda demais para ser lixada, uma evidência eterna
de um breve lapso de concentração.
— Muitos morreram — disse Benril sem se virar. — E muitos mais morrerão
quando Lorde Al Sorna chegar.
O escravo corpulento deixou cair a lima e olhou com receio para Vinte e Sete
antes de retomar depressa a ferramenta. Um capataz perto dali virou-se na
direção deles, levando a mão ao chicote enrolado preso à cintura.
— Por favor, tome cuidado, Mestre Benril — disse Alucius. — Não me
agrada a ideia de descrever a sua morte à mulher que amo.
Benril ainda se recusava a virar-se, suas mãos movendo-se mais uma vez
sem esforço com a mesma precisão.
— Você não tem um vinho para encontrar?

Foram necessárias várias tentativas até ele identificar a ruína certa e desenterrar
uma placa de madeira enegrecida de um monte de tijolos; as letras reduzidas a
nada pelo fogo, mas a imagem tosca de um javali ainda visível na madeira
queimada.
— Sim — disse ele, concordando com Vinte e Sete. — Estou ciente de que
provavelmente é perda de tempo, obrigado. Ajude-me a erguer esta pedra.
Eles trabalharam por mais de uma hora até encontrarem, tirando os destroços
de cima das tábuas do assoalho para revelar somente um leve contorno debaixo
da poeira, um retângulo de cerca de um metro quadrado.
— Uma ou duas garrafas de Sangue de Lobo sem dúvida seriam muito bem-
vindas — disse Alucius a Vinte e Sete, limpando a poeira e revelando a entrada
oculta, passando os dedos pelas extremidades. — Estreito demais para enfiar os
dedos. Use a sua espada para arrombá-la.
Vinte e Sete realizou a tarefa com a costumeira obediência, sem hesitação,
enfiando a espada curta no canto da porta e empurrando a arma para baixo, a
tensão do esforço evidente nos músculos salientes dos braços, embora o seu rosto
permanecesse impassível como sempre. Alucius agarrou o canto da porta
quando ela se soltou, escancarando-a e revelando um vão horizontal tomado pela
escuridão.
Ele tivera a previdência de trazer uma lamparina e a acendeu naquele
momento, em seguida deitando-se de bruços para abaixá-la dentro da abertura,
onde a luz amarela iluminou apenas um túnel de pedra bruta, sem qualquer brilho
revelador de vidro.
— Não — disse ele, sacudindo a cabeça. — Também não me agrada muito,
meu amigo. Mas um homem precisa ir atrás de suas paixões, não acha? —
Alucius afastou-se do buraco e gesticulou para o escravo. — Você primeiro.
Vinte e Sete o encarou e nada disse.
— Pela Fé! — resmungou Alucius, entregando-lhe a lamparina. — Se eu
morrer lá embaixo, vão chicoteá-lo até a morte. Imagino que você saiba disso.
Ele apoiou-se na borda do buraco e abaixou-se para dentro, pendurando-se na
ponta dos dedos e então saltando para o negrume abaixo, sentindo o ar bolorento
do lugar. Vinte e Sete aterrissou com agilidade ao seu lado um segundo depois, a
luz da lamparina iluminando um túnel de extensão pouco convidativa.
— É melhor haver algum vinho tinto cumbraelino no final deste túnel — disse
Alucius. — Ou serei forçado a dizer algumas palavras muito grosseiras para a
Aspecto Elera. Algumas palavras realmente muito grosseiras.
Eles seguiram pelo túnel durante alguns minutos, embora as passadas
ecoantes e a escuridão absoluta além do limite do parco brilho da lamparina
fizessem parecer muito mais tempo. A convicção de Alucius de que não havia
vinho algum para se encontrar ali também era crescente.
— Não dou a mínima para o que você diz — sibilou ele para Vinte e Sete. —
Eu simplesmente não vou voltar agora.
O túnel por fim acabou numa vasta câmara circular, e Alucius parou de
repente ao ver a bela alvenaria que contrastava com as paredes de pedra bruta
do túnel. A câmara era circundada por sete pilares de pedra e degraus baixos que
desciam até uma base plana, no centro da qual havia uma mesa longa. Alucius
aproximou-se da mesa, erguendo a lamparina sobre a superfície e notando que
não havia poeira nela.
— Pensando bem, talvez você tenha raz…
Um súbito farfalhar deslocado e a lamparina estilhaçou-se em sua mão, o
óleo flamejante espalhando-se pela pedra antes de apagar e a escuridão se
fechar com terrível rapidez. Alucius ouviu a espada de Vinte e Sete sair da bainha
e então mais nada, nenhum entrechoque de metal ou gemido de dor. Havia
apenas a escuridão e o silêncio.
— Eu… — começou ele, então engoliu em seco e tentou de novo. — Imagino
que você não tenha vinho algum aqui.
Algo frio e duro foi pressionado contra a sua garganta, posicionado
precisamente sobre a veia que ele sabia que o mataria num piscar de olhos caso
sofresse a mais leve perfuração.
— Aspecto Elera! — gritou Alucius de súbito. — Ela me enviou.
Uma pausa, e então a lâmina desapareceu de seu pescoço.
— Irmã — disse uma voz feminina, suave e refinada, mas também ríspida e
seca. — Acenda as tochas. Irmão, não mate o outro ainda.

— Alucius Al Hestian. — A jovem o encarava do outro lado da mesa com uma


expressão firme e não muito receptiva. — Eu li os seus poemas. Meu mestre os
achava as melhores obras de poesia asraelina moderna.
— Obviamente um homem de bom gosto e considerável educação — disse
Alucius, lançando um olhar furtivo a Vinte e Sete, que estava agachado numa
posição de luta, a espada movendo-se de um lado para outro numa lenta paródia
de combate. Um homem e uma mulher o ladeavam, ambos jovens como a
moça sentada à mesa. A mulher era gorda e baixa, com um rato grande
empoleirado no ombro. O homem era mais alto, corpulento e trajava um
uniforme imundo da Guarda da Cidade. A mulher gorda encarava Alucius com
um leve sorriso enquanto o guarda o ignorava, encarando fixamente Vinte e Sete
e os seus movimentos lentos com a espada.
— Para falar a verdade, eu os achei de um sentimentalismo nauseante e
floreados demais — disse a mulher na mesa.
— Devem ter sido as minhas primeiras obras — retorquiu Alucius, virando-se
para ela. A jovem tinha feições belas; um nariz aquilino e um queixo levemente
afilado, o cabelo de um tom de mel agradável e um olhar analítico, frio e hostil.
— Seu pai é um traidor, poeta — afirmou ela.
— Meu pai foi forçado a um serviço odioso por seu amor por mim —
retorquiu Alucius. — Mate-me se quer que ele abandone esse serviço.
— Quão nobre. — A jovem estendeu os dedos na mesa, onde uma fileira de
pequenos dardos de aço estavam dispostos num arco alinhado. — E um desejo
fácil de ser realizado, caso eu ache que você não está sendo sincero.
A mulher gorda adiantou-se, o rato desceu pelo seu braço e pulou para a
mesa, correndo até Alucius, o focinho erguido para farejar a manga de sua
camisa.
— Ele não tá sentindo cheiro de mentira no suor dele — disse ela à jovem
com um sotaque rústico das ruas.
— Meu suor? — perguntou Alucius, sentindo uma gota escorrer pelas costas.
— Suor de mentiroso tem um cheiro próprio — informou a mulher gorda. —
A gente não percebe, mas o Focinho Preto aqui consegue farejar ele.
Ela estendeu a mão e o rato foi em sua direção, pulando em seus braços e
aninhando-se ali, satisfeito.
As Trevas, pensou Alucius. Como Lyrna teria ficado encantada de ver isso. Ele
se forçou a deixar o pensamento de lado; a lembrança de Ly rna era dolorosa e
provavelmente provocaria um pesar que o distrairia num momento em que
deveria estar concentrado em continuar vivo.
— Quem são vocês? — perguntou ele à jovem.
Ela o encarou em silêncio por um momento e então ergueu a mão esquerda,
mantendo os dedos estendidos e apontados na direção de Alucius. A jovem piscou
e um dos dardos ergueu-se da mesa, pairando a dois centímetros de seu dedo
indicador.
— Faça outra pergunta, e este aqui vai para o seu olho — disse ela.
— Podemos andar logo com isso, irmã? — perguntou o guarda numa voz
cansada. — É fácil anuviar a mente deste aqui, mas não posso fazer isso
eternamente.
A jovem piscou de novo e o dardo desceu lentamente até a mesa. Ela
entrelaçou as mãos sem tirar os olhos de Alucius.
— A Aspecto Elera enviou você?
— Sim.
— Em que condição ela se encontra?
— Ela está na Fortaleza Negra. Ilesa, exceto por um tornozelo em carne viva
e por precisar urgentemente de um banho.
— O que ela lhe contou sobre nós?
— Que vocês tinham vinho. — Alucius arriscou uma olhada ao redor da
câmara. — Imagino que ela tenha mentido sobre isso.
— Ela mentiu — retorquiu a jovem. — Também nos resta pouca comida ou
água, e as nossas incursões à cidade acima não rendem nada.
— Eu posso trazer comida. Medicamentos também, caso precisem. Suponho
que tenha sido esse o verdadeiro motivo de ela me enviar… — Ele fez uma
pausa para respirar fundo. — Para me enviar até a Sétima Ordem.
A jovem inclinou a cabeça, a boca contorcendo-se num sorriso sardônico.
— Você fala de lendas, poeta.
— Ah, que diferença faz agora? — perguntou a mulher gorda, indo colocar-
se atrás de sua irmã. — Tem razão, Vossa Senhoria. Sou a Irmã Inehla, ela é a
Irmã Cresia e aquele ali é o Irmão Rhelkin. Tudo o que resta da Sétima Ordem
nesta bela cidade.
Alucius gesticulou para a câmara ao redor.
— E esse lugar?
— Era um templo das Ordens — respondeu a Irmã Cresia. — Construído
antes que esse tipo de ostentação fosse expurgado da Fé. Os nossos irmãos da
Sexta Ordem o encontraram há alguns anos. Era um esconderijo de criminosos e
depois foi usado para algo mais útil.
Alucius virou-se para ter uma visão melhor de Vinte e Sete e do Irmão
Rhelkin, notando o esforço no rosto do guarda enquanto o escravo continuava a
mover a espada como se estivesse mergulhado em melaço.
— O que ele está fazendo com o volariano?
— Fazendo-o ver o que precisa que ele veja — respondeu Cresia. —
Descobrimos que essa é a principal fraqueza deles, dos outros como ele e de seus
primos menos mortais. Mentes tão vazias são facilmente anuviadas. Ele acha que
está enfrentando uma horda de assassinos, enviada para lhe matar. O Irmão
Rhelkin também pode controlar a velocidade da visão, fazendo-a durar uma hora
ou um segundo.
— Mas não — acrescentou Rhelkin por entre os dentes — eternamente.
Alucius virou-se para Cresia.
— Comida e água — disse ele. — Do que mais vocês precisam?
— Notícias sobre a guerra seriam bem-vindas.
— A frota volariana enviada para as Ilhas Meldeneanas sofreu algum tipo de
derrota calamitosa. Tokrev se prepara para tomar Alltor e Darnel partiu com os
seus cavaleiros à procura do Irmão Vermelho.
— Lorde Al Sorna?
Alucius sacudiu a cabeça.
— Nenhuma notícia ainda.
Cresia suspirou e levantou-se da mesa.
— Quando você voltará?
— Em dois dias, se puderem esperar tanto. Juntar provisões extras sem
levantar suspeita leva tempo.
Ela indicou Vinte e Sete com a cabeça.
— Devemos matar esse aí?
— A única tarefa dele é me proteger ou me matar caso eu saia da cidade.
Para todo o resto ele é cego e surdo.
Cresia assentiu.
— Vou confiar em você, porque a Aspecto Elera não o teria enviado sem
alguma razão. — Ela abriu uma algibeira em seu cinto e os dardos ficaram de pé
na mesa antes de entrarem no compartimento desenhando um arco numa
sequência perfeita, fazendo Alucius sorrir diante da impossibilidade elegante que
presenciava. — Na noite em que a cidade foi tomada, eu perdi a conta de
quantos homens matei com esses dardos e outras coisas — acrescentou Cresia.
— Fiquei branca de tanto perder sangue matando e teria morrido se minha irmã
não tivesse me encontrado e trazido até aqui. Fique sabendo, poeta, que se você
abusar da nossa confiança, usarei cada gota de sangue do meu corpo para matá-
lo.

Ele encontrou o seu pai no portão para a Estrada Norte, entretido numa conversa
com o comandante de divisão volariano enquanto um batalhão de Espadas Livres
cavava um fosso fundo atrás da muralha.
— Óleo de lamparina? — perguntava o volariano quando Alucius aproximou-
se, parando a uma distância respeitosa, embora ainda perto o bastante para ouvir
a conversa.
— Quanto você puder obter — respondeu Lakrhil Al Hestian. — Suficiente
para encher esse fosso de ponta a ponta.
O volariano olhou para o mapa aberto diante deles, examinando as linhas que
representavam as muralhas e a região além delas. Alucius se permitiu uma leve
esperança de que o homem fosse arrogante o bastante para desconsiderar o
conselho de seu pai, mas, infelizmente, ele mais uma vez provou não ser tolo.
— Muito bem — disse ele. — Você já decidiu onde posicionar as máquinas?
O pai de Alucius apontou para diversos pontos no mapa enquanto o volariano
balançava a cabeça em aprovação.
— Contudo, eu naturalmente precisarei das máquinas para posicionar — disse
Lakrhil.
— Elas estarão aqui em trinta dias — assegurou-lhe o comandante de divisão.
— Junto com mil Varitai e mais trezentos Kuritai. O Conselho não nos abandonou.
Se Lakrhil Al Hestian ficou encorajado pelas palavras do homem, não
demonstrou.
— Um exército pode percorrer uma longa distância em trinta dias — disse
ele. — Especialmente um exército movido pelo amor a uma rainha ressuscitada.
Alucius abafou um grito para não enfurecer o volariano, seu coração batendo
ainda mais forte do que batera na escuridão sob a estalagem arruinada. Ela está
viva?
Mirvek empertigou-se, olhando fixamente para o seu pai.
— Uma mentira contada por covardes em busca de uma desculpa para o
fracasso — afirmou ele num tom que não deixava dúvidas. — E é isso que você
dirá ao seu Rei quando ele retornar. Seja lá quem esteja liderando essa gentalha,
ela não é a sua Rainha.
Seu pai respondeu apenas com um aceno discreto de cabeça. Alucius ainda
não o vira curvar-se a um volariano. O comandante de divisão lançou um último
olhar furioso a ele, deu meia-volta e partiu pisando firme, seguido por seus
assistentes, que corriam para acompanhá-lo. Alucius aproximou-se do pai com o
coração ainda palpitando.
— Rainha? — perguntou ele.
— É o que dizem. — Al Hestian não tirou os olhos do mapa. — Trazida de
volta à vida e aparentemente à beleza por meio das Trevas. Se for realmente ela.
Eu não me espantaria se Al Sorna encontrasse uma sósia em algum lugar e a
tornasse uma testa de ferro.
Vaelin também? E se ele vier, então talvez Alornis também venha.
— E quanto a Tokrev? Alltor?
— Morto e salva. Um mensageiro chegou de Warnsclave esta manhã. Parece
que todos os homens do exército de Tokrev foram massacrados e que um grande
exército marcha para o norte sob o comando de uma rainha abençoada pelas
Trevas. Meu filho, tudo indica que logo você terá um final para o seu poema.
Alucius respirou fundo, tirando os olhos do mapa para olhar para os Espadas
Livres trabalhando no fosso.
— Fossos normalmente não são cavados do lado de fora das muralhas?
— São — respondeu o seu pai. — E, se houver tempo, vou cavar um lá
também, para manter as aparências. A verdadeira defesa é aqui. — Ele bateu no
mapa com o cravo de aço farpado que saía de sua manga direita e Alucius viu
uma teia intricada de linhas negras que percorriam o labirinto de ruas, ruas que
não mais existiam. — Uma série de barreiras, passagens estreitas, armadilhas de
fogo e assim por diante. Al Sorna é bastante engenhoso, mas ele não faz
milagres. Essa cidade será o túmulo de seu exército.
— Meu senhor — disse Alucius em voz baixa, indo para o lado de seu pai. —
Eu lhe imploro…
— Já falamos sobre esse assunto. — O tom de seu pai era absoluto,
implacável. — Eu perdi um filho. Não vou perder outro.
Alucius lembrou-se da noite em que a cidade foi tomada, dos gritos e das
chamas despertando-o do sono embriagado, de cambalear escada abaixo e
encontrar o pai no salão principal, cercado por Kuritai, golpeando loucamente
com a espada enquanto o circundavam. Um deles já estava morto e mesmo
assim nenhum dos outros tentava matá-lo. O choque paralisara Alucius e alguém
passou um braço musculoso em volta de seu pescoço e uma espada curta foi
pressionada contra a sua têmpora. Um Espada Livre gritou para o seu pai,
apontando para Alucius. A expressão no rosto do pai ao se afastar da luta era
difícil de esquecer: não era vergonha, nem desespero, mas somente um medo
sincero e exasperado por um filho amado.
— Trinta dias — disse Alucius em voz baixa, afastando-se e abraçando-se
com força. — A véspera do início do inverno é em trinta dias, não?
— Sim — respondeu Al Hestian após pensar por um momento. — Sim,
imagino que seja. — Alucius sentiu os olhos do pai sobre si, ciente de que
estavam cheios de preocupação. — Você precisa de algo, Alucius?
— De mais comida. O Aspecto Dendrish ameaçou se enforcar se não o
alimentarmos mais. Embora eu duvide que os lençóis consigam suportá-lo.
— Cuidarei disso.
Alucius virou-se com um sorriso radiante no rosto, o coração calmo agora
que o peso da indecisão havia sido removido.
— Obrigado, meu senhor.
Ele estava se afastando quando ouviu uma comoção no portão, e os guardas
Varitai abriram caminho para dar passagem a um cavaleiro solitário. Alucius
pensou que fosse um dos caçadores de Darnel, que na verdade eram um bando
de patifes e saqueadores recrutados entre a escória de Renfael para perseguir o
Irmão Vermelho. O homem curvou-se sobre a sela ao cavalgar na direção do pai
de Alucius, os flancos e a boca do cavalo cobertos de espuma. Ele quase caiu ao
desmontar, esboçando uma mesura e falando baixo demais para que Alucius
pudesse ouvir, apesar de que, pelo modo como o seu pai se empertigou ao
escutar o homem, fossem notícias importantes. Al Hestian saiu pisando firme e
berrando ordens, seguido por seus dois guardas Kuritai, e Alucius ouviu a palavra
“cavalaria” antes que ele desaparecesse de vista.
— Primeiro uma Rainha renascida, e agora a necessidade de cavalaria —
ponderou Alucius em voz alta para Vinte e Sete. — Creio que é hora de dizer
adeus a uma velha amiga.

Pena Azul deu uma bicada dolorosa em seu polegar quando ele a tirou do pombal
com a mensagem pendurada na pata. Tanto peso em algo tão frágil, pensou
Alucius, olhando para o grampo fino.
— Quer se despedir dela? — perguntou ele a Vinte e Sete, que, como sempre,
nada disse. — Ah, ignore-o — disse Alucius a Pena Azul. — Eu vou sentir
saudade.
Ele ergueu a ave e abriu as mãos. Ela permaneceu sentada por um momento,
aparentemente indecisa, e então saltou, as asas um borrão enquanto subia, e
então estendidas para receber o vento e voar para o sul.
Véspera do início do inverno, pensou Alucius ao perder o pássaro de vista.
Quando dizem que todas as mágoas são esquecidas, pois quem deseja guardar
rancor durante as agruras do inverno?
CAPÍTULO OITO
Frentis

Um constante vento outonal soprava sobre o que restara da Urlish, erguendo


colunas rodopiantes de cinzas que faziam olhos arderem e gargantas
engasgarem. A terra era um lençol cinzento e sujo que se estendia ao longe, para
todos os lados, perfurado somente por um ocasional espigão enegrecido de uma
árvore que um dia fora imponente.
— Pensei que alguma parte dela tivesse sobrevivido — lamentou Ermund,
pigarreando e cuspindo antes de amarrar um lenço em volta do rosto.
— Darnel sem dúvida foi meticuloso — disse Banders. — Não será agradável
marchar através disso.
— Poderíamos contornar — sugeriu Arendil. — Seguir para o litoral.
— A estrada para o litoral é estreita demais — disse Sollis. — Há muitas
passagens que se afunilam, e Al Hestian sem dúvida conhece todas.
— E, se mantivermos este curso, o rastro de poeira que vamos levantar lhe
dará sinais de sobra sobre a nossa aproximação — retorquiu Banders. — Sem
falar que os nossos pulmões ficarão cheios dessa coisa.
— A terra a oeste é mais aberta — admitiu Sollis. — Mas acrescentará outra
semana à nossa marcha.
Frentis abafou um gemido diante da perspectiva de passar mais dias temendo
as noites repletas de sonhos. Varinshold havia se tornado um foco para o seu
desejo de uma conclusão, uma esperança crescente de que, qualquer que fosse o
resultado do ataque de seu exército, ele pelo menos garantiria que se veria livre
dela.
— Não há o que se fazer, irmão. — Banders virou o cavalo e acenou com a
cabeça para Ermund. — Transmita a ordem. Seguimos para oeste até deixarmos
as cinzas para trás.

***

— Estava lá de novo — disse Illian durante o café da manhã, agradecendo a


Trinta e Quatro com um sorriso quando ele lhe entregou uma tigela do seu
mingau adoçado com mel.
— O que estava lá? — perguntou Arendil.
— O lobo. Faz uma semana que o vejo todos os dias.
— Jogue pedras — sugeriu Davoka. — Lobo vai fugir das pedras.
— Não esse. Ele é tão grande que duvido que as sentisse. De qualquer modo,
ele não é assustador. Não me persegue, nem rosna, nem faz qualquer coisa.
Apenas fica sentado olhando.
Frentis notou a inquietação no rosto de Davoka enquanto ela observava a
garota comer o mingau.
— Vou com você hoje — disse ela. — Ver se ele me olha.
Illian franziu o cenho e disse uma frase elaborada mas precisa em lonak que
ele traduziu como “O filhote mimado nunca caça”.
Davoka deu uma risada baixa e voltou à própria comida, mas Frentis viu que
ela continuava incomodada.
— Irei também — disse ele, ansioso para encontrar qualquer coisa que o
distraísse da mancha persistente do sonho da última noite. Fora mais estranho do
que de costume, uma mistura confusa de imagens, a maioria violenta, com
frequência repletas de dor e tristeza, mas nem sempre. Ela chora deitada,
olhando para a porta do quarto… Ri ao enfrentar uma mulher sob o céu de um
deserto… Estremece de prazer enquanto ele se move dentro dela, o coração se
enchendo de sentimentos que achava que haviam desaparecido há muito tempo…
Ao despertar, suando e lutando para conter uma torrente de sensações, ele
compreendeu que não vira os momentos em que ela estava acordada, mas os
seus sonhos. Eu sonho os sonhos dela. O que ela sonha sobre mim?

Eles cavalgaram para oeste até o meio-dia sem encontrar nada além de campos
vazios e o ocasional amontoado de gado ou ovelhas abatidos, a maioria animais
mais velhos, os mais novos sem dúvida levados para Varinshold. Chegaram,
depois de mais um quilômetro, a uma casa de fazenda vazia, sem teto e de
paredes enegrecidas pelo fogo, sem qualquer sinal de vida no interior.
— Por que eles destroem tanto? — perguntou Illian. — Eles fazem escravos,
que é algo horrível, mas pelo menos é compreensível. Mas destruir tudo para
isso… Não faz sentido.
— Eles acham que estão purificando a terra — disse Frentis. — Limpando-a
para que a sua própria gente possa começar de novo. Construir outra província à
imagem do império.
Illian parou o cavalo uma hora mais tarde, virando-se para Davoka e
apontando para uma elevação próxima, com um sorriso radiante.
— Lá. Ele não é lindo?
Frentis encontrou depressa o animal, uma silhueta envolta em sombra no
horizonte, maior do que qualquer lobo que ele já vira. O animal permaneceu
sentado encarando-os com um escrutínio impassível quando eles se
aproximaram trotando. Davoka apoiou a lança no ombro para permitir um
arremesso rápido. Eles pararam a uns trinta metros do lobo, perto o bastante para
que Frentis visse os seus olhos, que piscavam ao encarar cada um deles, o pelo
agitado pelo vento. Frentis reconheceu a verdade evidente das palavras de Illian:
o animal era lindo.
O lobo levantou-se e virou-se, partindo para o norte num trote rápido por uns
oitenta metros, antes de parar mais uma vez, sentar-se e observar enquanto eles
se entreolhavam.
— Ele não fez isso antes — disse Illian após um momento.
Davoka murmurou algo na própria língua, o rosto tomado por um
pressentimento, mas Frentis notou que ela abaixara a lança. Ao se virar para o
lobo, viu como o animal olhava fixamente apenas para ele. Frentis esporeou o
cavalo adiante e o lobo tornou a se levantar e a seguir para o norte. No instante
seguinte ouviu Illian e Davoka esporeando suas montarias para acompanhá-lo.
O lobo começou a correr depois de cerca de um quilômetro, as passadas
longas cobrindo a distância com uma velocidade enganadora. Frentis o perdeu de
vista várias vezes enquanto galopavam em seu encalço, seguindo o seu rastro por
colinas baixas de capim longo. Eles por fim puxaram as rédeas quando o lobo
parou numa das colinas mais altas e um cheiro familiar chegou às narinas de
Frentis. Ele ergueu uma sobrancelha questionadora para Davoka, que assentiu e
desmontou. Frentis fez o mesmo e eles entregaram as rédeas a Illian. A garota
fez um beicinho de aborrecimento quando ele apontou um dedo enfático para o
chão, mandando que ela ficasse onde estava.
Eles subiram a colina agachados, deitando de bruços para se arrastarem até o
topo. O lobo estava sentado, esperando a poucos metros de distância, ainda
encarando Frentis com o mesmo escrutínio impassível.
— Que tolo deve ser o homem — sussurrou Frentis, olhando para a cena
diante deles. O acampamento ficava num espaço aberto, o flanco posterior
protegido por um córrego raso, com piquetes patrulhando o perímetro, mas não
longe o bastante. O cheiro de fumaça e suor de cavalo estava mais forte agora;
fogueiras lançavam ao ar dezenas de colunas cinzentas, obscurecendo apenas
parcialmente o estandarte que se erguia do centro do acampamento: uma águia
sobre um fundo quadriculado vermelho e branco.
Quinhentos homens, no máximo, ponderou Frentis, percorrendo com os olhos
o acampamento. E o exército de Banders encontra-se despercebido entre ele e
Varinshold.
— Leve Illian — ordenou ele a Davoka. — Diga a Banders que vou atraí-los
até o Esporão de Lirkan. Mestre Sollis conhece o caminho.
— Ela pode ir — disse Davoka. — Você não devia fazer isso sozinho.
Frentis sacudiu a cabeça, sorrindo ao acenar para o lobo.
— Parece que não estou sozinho. Cavalguem rápido.

Ele esperou por uma hora depois de as duas terem partido, observando o
acampamento enquanto batedores iam e vinham, pequenos grupos de homens
com cães de caça apresentando-se ou partindo a galope numa nova direção. Ele
achou que iríamos para Nilsael, concluiu Frentis, vendo como a maioria dos
batedores cavalgava para o norte ou para oeste. Não imaginou que seguiríamos
para Renfael, sua própria terra, com um povo tão leal. Ele sacudiu a cabeça,
perguntando-se se Darnel realmente tinha a mente de um tolo ou se o homem
não era de fato apenas um lunático que ladrava demais.
Levou boa parte de outra hora até um grupo de batedores vir em sua direção,
dois cavaleiros e uma matilha de cães seguindo diretamente para a colina. O lobo
levantou-se quando começaram a subir a encosta e os cavaleiros imediatamente
pararam suas montarias enquanto os cães andavam de um lado para outro,
ganindo de medo quando os seus donos lhes davam chibatadas, xingando e
ameaçando.
E o lobo uivou.
Frentis encolheu-se diante da enormidade do som, escorregando para o solo,
fechando os olhos com força e tapando os ouvidos com as mãos enquanto o uivo
percorria campos e colinas, com uma força que o trespassava como uma
lâmina. Não se sentia tão indefeso, tão pequeno, desde os longos anos do domínio.
Ele abriu os olhos quando o uivo cessou e deu com o lobo o encarando, os
olhos cinzentos encontrando os seus e causando a impressão de que o animal o
conhecia, conhecia todos os seus segredos, cada vestígio oculto de culpa. O lobo
abaixou a cabeça e passou a língua áspera pela testa de Frentis, provocando um
gemido e deixando algo novo. Uma mensagem. Não era uma voz, e sim mais
uma certeza, uma convicção nítida e brilhante reluzindo em sua mente: você
deve se perdoar.
Frentis sentiu uma risada lhe escapar quando o lobo recuou, piscou mais uma
vez e então se virou para partir a trote. Frentis levantou-se e viu o animal correr,
uma mancha prateada em meio ao capim ondulante, que desapareceu num
piscar de olhos.
O relincho de um cavalo em pânico o tirou de seus devaneios; virou-se e se
deparou com os dois cavaleiros olhando espantados para ele, os cães a uma boa
distância, ganindo de medo enquanto corriam para o acampamento. Frentis
escolheu o cavaleiro à esquerda, sacou uma faca e a arremessou em sua
garganta. O homem caiu do cavalo, o sangue brotando da boca enquanto
agarrava o pescoço. O olhar arregalado de seu companheiro ia de Frentis para
ele, as mãos tremendo nas rédeas, a espada ainda na bainha.
— Você tem um relatório a fazer — disse Frentis. — Mande os cumprimentos
do Irmão Vermelho a Lorde Darnel.

Ele montou de novo e guiou o cavalo até o topo da colina, observando o caçador
galopar de volta ao acampamento. Não demorou mais do que algumas batidas do
coração para a comoção ter início; cavaleiros vestiam as armaduras às pressas e
corriam para os seus cavalos, tendas caíam conforme escudeiros faziam as
malas e um cavaleiro solitário surgiu da nuvem de poeira cada vez maior, a
armadura azul reluzindo ao sol do fim de tarde. Frentis ergueu a mão num aceno
amigável por tempo suficiente para garantir que Darnel o visse, então deu meia-
volta e galopou para leste.
Ele os conduziu por um caminho sinuoso, ganhando tempo para que Banders
deslocasse a sua gente. Frentis galoparia para leste durante algum tempo, pararia
e observaria Darnel persegui-lo por alguns momentos e então rumaria para o sul.
Darnel se aproximava a cada parada, mas o seu cavalo e o de seus homens
estavam sobrecarregados demais pelas armaduras dos cavaleiros para tornar
aquela perseguição eficaz. Frentis acenava toda vez que parava, na última
demorando-se por tempo suficiente para garantir que Darnel visse a sua mesura
escarnecedora.
Ele chegou ao Esporão de Lirkan cerca de duas horas após o início da
perseguição, uma extensão de terra relvada em forma de um polegar que
adentrava as águas do Rio Salgado. O rio era raso naquele ponto, vadeável
mesmo tão perto do fim do ano, com campos abertos ao norte e uma colina alta
e rochosa a mais de duzentos metros ao sul bloqueando a vista da margem leste.
Frentis parou o cavalo e examinou os arredores, não encontrando evidência de
qualquer aliado.
Virou a montaria, passando a mão por seu flanco para acalmar o animal
enquanto esperava. A mensagem do lobo ainda ecoava em seu peito, seu ânimo
recém-nascido deixando-o com um leve sorriso que se recusava a morrer,
mesmo enquanto os quinhentos cavaleiros de Darnel avançavam em direção ao
esporão.
Venha, meu senhor, pedia ele a Darnel em silêncio. Um pouco mais perto.
Seu ânimo sofreu um leve abalo ao avistar Darnel erguer a mão e sua
companhia inteira parar a uns 150 metros de distância. Frentis passou a mão por
cima do ombro e desembainhou a espada, erguendo-a no alto antes de apontá-la
diretamente para Darnel num nítido e inconfundível desafio. Seja você mesmo,
meu senhor, implorou-lhe Frentis. Seja o tolo.
O cavalo de Darnel empinou quando o seu cavaleiro desembainhou a própria
espada. Um de seus seguidores aproximou-se, talvez ansioso para pedir cautela,
mas Darnel o dispensou com um aceno furioso e saiu em disparada com o
cavalo. Frentis preparou-se para fazer a própria investida, mas então parou
quando ouviu um novo som: cornetas soando uma nota aguda a leste, aguda
demais para um cavaleiro renfaelino, e a Sexta Ordem não usava cornetas. Ele
parou e olhou por sobre o ombro, o sorriso desaparecendo por completo ao
avistar pelo menos dois batalhões de cavalaria volariana investindo na direção da
margem leste do Rio Salgado.
Al Hestian!, praguejou. Outro tumulto atraiu a sua atenção para o sul, o
grande estrondo de muitos cavalos correndo por águas rasas. Banders deu a volta
com os seus cavaleiros na colina rochosa e rumou diretamente para a companhia
de Darnel, e Frentis avistou as figuras indistintas de seus irmãos no alto da
elevação, com arcos a postos. Voltou a olhar para Darnel e viu que o Senhor
Feudal parara, seus homens movendo-se confusos às suas costas. Frentis lançou
um último olhar à cavalaria volariana que avançava e agora vadeava o rio, mas
impedida de galopar devido à profundidade das águas.
Ele fixou o olhar mais uma vez em Darnel e esporeou o cavalo, a espada
estendida e apontada enquanto investia, vencendo a distância em poucos
segundos. Ele via os riscos negros das flechas de seus irmãos descerem em arco
sobre a companhia de Darnel, onde cavalos empinavam e cavaleiros tombavam
conforme elas atingiam os alvos. Um dos homens de Darnel agarrou as rédeas
do Senhor Feudal e tentou arrastá-lo na direção dos volarianos, caindo morto
quando Darnel lhe golpeou o pescoço com sua longa espada, virando o cavalo e
recebendo de frente o impacto da investida de Frentis.
Seus cavalos se chocaram com uma força esmagadora e a espada de Frentis
ricocheteou na lâmina de Darnel quando o Senhor Feudal tentou lhe golpear antes
de os cavalos recuarem. O cavalo de Frentis cambaleou, bufando espuma e
sangue, caindo de joelhos no momento em que ele saltou para longe do animal,
agachando-se quando Darnel abaixou-se na sela para tentar decapitá-lo com um
golpe da espada longa. Frentis deixou que a lâmina passasse zumbindo pela sua
cabeça e atirou-se para agarrar o antebraço encouraçado de Darnel, passando os
braços pelo membro coberto de aço e arrancando o homem da sela. Ele tombou
com um estrondo de metal se partindo, mas se recompôs depressa e deu uma
cabeçada com o elmo no flanco de Frentis, derrubando-o e então erguendo a
longa espada no alto com as duas mãos. Frentis percebia o olhar do outro por trás
da viseira, repleto de um ódio irracional.
Ele rolou quando a lâmina desceu e cravou-se na terra, levantou-se de um
pulo e desferiu um golpe na viseira de Darnel. O Senhor Feudal esquivou-se da
lâmina e girou a espada num grande arco, fazendo Frentis grunhir com o esforço
de aparar o golpe, o aço de Darnel denteando a sua lâmina da Ordem. Ele
agarrou o punho da manopla de Darnel antes que ele pudesse afastar a lâmina,
aproximou-se mais, virou a espada e a enfiou na viseira. Darnel jogou a cabeça
para trás ao ser atingido pela lâmina, cuja ponta ressurgiu ensanguentada, o
Senhor Feudal urrando de fúria e dor.
Frentis girou e desferiu um golpe contra as pernas de Darnel sem perfurar a
armadura, mas com força suficiente para derrubá-lo. O Senhor Feudal urrou e
golpeou de novo, mas Frentis bloqueou o ataque e chutou a mão que segurava a
espada, jogando a arma longe. Ele bateu com a guarda de sua espada na viseira
de Darnel, atordoando-o, e então pressionou uma bota em seu pescoço. Colocou
a ponta de sua lâmina na abertura, encontrando os olhos atrás dela, e sorriu
intensamente diante do medo que via.
— IRMÃO!
Era Arendil, correndo na direção deles, com homens engalfinhados em
combate de ambos os lados, apontando a espada para algo sobre o ombro de
Frentis. Ele não perdeu tempo olhando e mergulhou para a esquerda no momento
em que a espada de um cavaleiro volariano deixou um corte superficial em seu
rosto. O volariano virou o cavalo com dificuldade para desferir outro golpe e
então caiu da sela quando a espada de Arendil atravessou o seu ombro.
Frentis virou-se e se viu diante de mais quatro volarianos que avançavam a
galope. Ele ouviu o ribombar de cascos às suas costas e atirou-se no chão,
sentindo um bafo quente no pescoço quando um cavalo saltou por cima de seu
corpo. Ergueu a cabeça e viu Mestre Rensial desferir um golpe ascendente
preciso contra um dos atacantes volarianos, partindo o peitoral do homem com a
força do impacto. Rensial abaixou-se sob a espada frenética do volariano à sua
direita e respondeu com um golpe para trás ao passar pelo homem, e o cavaleiro
arqueou as costas quando a lâmina lhe cortou até a coluna.
Os dois volarianos restantes atacaram Frentis juntos e com as lâminas
apontadas, e então tombaram no solo quando uma nuvem de flechas desceu em
arco do alto da colina, abatendo cavaleiros e cavalos.
Frentis girou sobre os calcanhares, procurando Darnel em meio ao caos. Os
cavaleiros de Banders haviam destroçado a companhia do Senhor Feudal, mas
agora enfrentavam os volarianos, homens e cavalos rodopiando num aglomerado
de aço e carnes cortadas. Frentis teve um vislumbre de uma armadura azul em
meio à confusão crescente à direita, uma figura curvada a cavalo sendo levada
para longe por dois volarianos. Cornetas soaram e a cavalaria começou recuar,
cavaleiros desferiam seus últimos golpes antes de virarem as montarias e
galoparem de volta ao rio.
Frentis viu um cavalo sem cavaleiro a três metros e pulou para a sela,
disparando na direção em que Darnel fugia, golpeando quaisquer volarianos
desafortunados em seu caminho. Avistou Mestre Rensial ali perto, matando um
volariano desmontado, e gritou para chamar a sua atenção. Os olhos do mestre o
encontraram depressa, como sempre em batalha, concentrados, calmos e
aparentemente sem vestígio de loucura. Frentis apontou para a figura de
armadura azul que agora se aproximava do rio e o mestre esporeou o cavalo
naquela direção, com Frentis cavalgando a toda a velocidade em seu encalço.
Darnel já estava batalhando para atravessar a água quando Rensial e Frentis
alcançaram a sua escolta. Os dois homens se viraram na beira do rio para
enfrentá-los, manobrando suas montarias com uma precisão assombrosa, e
Frentis soltou um grunhido de aborrecimento ao ver as espadas duplas em suas
costas.
Kuritai.
Rensial tentou desviar-se deles, pendurando metade do corpo para fora da
sela para evitar uma lâmina Kuritai, mas o escravo de elite saltou do próprio
cavalo, caindo com habilidade na sela de Rensial e golpeando para baixo com as
duas espadas. Rensial tirou o pé do estribo e girou em volta da cabeça do cavalo,
chutando com os dois pés o peito do Kuritai enquanto atravessavam o rio; o
escravo foi arrancado do cavalo e o mestre voltou à sela.
Frentis tentou despachar o segundo Kuritai com uma faca, esperando até
estar quase emparelhado com o escravo, quando então arremessou a lâmina em
seu olho. O homem mal pareceu notar o ferimento, golpeando Frentis ao passar
por ele com o cavalo, a lâmina errando o alvo por alguns centímetros, virando o
cavalo para segui-lo, mas tombando morto quando a lança de Davoka brotou de
seu peito. Ela arrancou a arma do cadáver e seguiu adiante a galope,
acompanhando Frentis rio adentro.
Ele podia ver Darnel adiante, tirando sangue do cavalo com chibatadas até o
animal chegar à margem oposta, galopando para leste cercado por uma escolta
de volarianos enquanto a retaguarda permanecia firme na beira da água. Rensial
avançou sobre eles, sua espada um borrão à medida que homens caíam à sua
volta, saindo em perseguição de Darnel, que se afastava rapidamente, e então
empinando quando uma lâmina volariana cravou-se no pescoço de seu cavalo.
Outro volariano correu na direção do mestre com a espada pronta para lhe
golpear as costas. O cavalo de Frentis chocou-se com a montaria do volariano
antes que ele pudesse atacar, a cabeça do homem trespassada pela lâmina da
Ordem um segundo depois.
Davoka gritava de frustração ao abrir caminho à força em meio aos
volarianos remanescentes, girando a lança, a lâmina deixando um rastro de
sangue e apenas dois cavaleiros vivos, que tentaram em vão seguir seus
companheiros em retirada, caindo mortos ao serem atingidos por flechas
disparadas por trás. Frentis virou-se e viu Sollis e Ivern vadeando depressa o rio
de arcos em punho. Atrás deles a margem oeste estava tranquila após a batalha,
e cavaleiros e combatentes livres andavam por entre os mortos.
Frentis olhou de novo para a nuvem de poeira que se erguia com a passagem
de Darnel, sabendo que não iriam alcançá-lo agora. Davoka praguejou em lonak
e jogou a lança no chão. Perto dali, Rensial ajoelhou-se ao lado de seu cavalo,
passando a mão pelo pescoço do animal e sussurrando gentilmente enquanto ele
dava o último suspiro.
— Aquilo foi imprudente, irmão. — Os olhos claros de Sollis o encaravam
com severa desaprovação, que se tornou ainda mais intensa quando Frentis soltou
uma gargalhada longa e alta.
— Sim, irmão — retorquiu ele quando o júbilo havia desaparecido, ciente de
que a expressão no rosto de Sollis era idêntica à sua ao olhar para Rensial. —
Muito imprudente. Minhas mais sinceras desculpas.

— Ele estava em nossas mãos! — exclamou Ermund, com as mãos no punho da


espada, batendo na terra com a ponta da bainha. — Eu estava a menos de dois
metros, no meio do combate. Ele estava em nossas mãos e ainda vive. Está rindo
de nós, posso ouvi-lo.
— Os cavaleiros dele estão mortos ou capturados e ele está fugindo para
Varinshold como um cão açoitado — retorquiu Banders. — Duvido que esteja
rindo.
— Embora agora ele tenha pleno conhecimento de quantos somos e onde
estamos — observou Sollis.
— Mas não tem a força para fazer muita coisa a respeito — retorquiu o
Barão.
Eles estavam no alto da colina rochosa que dava para o esporão. Abaixo, os
combatentes de Frentis andavam entre os mortos, saqueando armas e objetos de
valor. Um pequeno grupo de cavaleiros de Darnel aguardava sob vigilância
próximo da margem do rio. Eles forneciam um espetáculo curiosamente patético
sem as armaduras; apenas homens cansados e derrotados, de olhos arregalados
de medo e nervos abalados pela morte instantânea com que foram
recompensados os volarianos que tentaram se render.
— O que esses porcos filhos da puta estão fazendo vivos, irmão? —
perguntara Draker a Frentis mais cedo, os prisioneiros a uma distância em que
podiam ouvir e estremecendo. — São traidores do Reino, não?
— Eles se renderam de acordo com os costumes — dissera-lhe Ermund, não
sem um tom de arrependimento. — O Barão decidirá o destino deles.
— Melhor mantê-los longe da gente na marcha — murmurou Draker
sombriamente antes de partir pisando firme para saquear mais.
Banders extraíra informações suficientes dos cavaleiros capturados que
revelavam o tamanho das atuais ilusões de Darnel.
— Está reconstruindo o palácio, fazendo de si mesmo um rei — disse ele,
sacudindo a cabeça. — Fico pensando se os volarianos não lançaram algum
feitiço das Trevas sobre ele, privando-lhe de toda a razão.
— Ela sempre existiu, pai — disse calmamente a Senhora Ulice. — Essa
loucura. Eu me lembro bem dela. Quando era mais nova, confundi com paixão,
até mesmo com amor. E pode ser que tenha sido isso, mas era amor por si
mesmo, contido apenas pela vontade de seu pai. Como o Senhor Feudal Theros
não está mais aqui, ele se sente livre, capaz de finalmente voar.
— É melhor esperarmos que a insensatez dele o deixe surdo aos conselhos de
Al Hestian — disse Banders. — Será impossível tomar Varinshold de modo
furtivo agora, e tudo o que ele precisa fazer é aguardar atrás das muralhas
enquanto os seus aliados concluem os seus assuntos em Cumbrael.
— Eu ainda gostaria de tentar os esgotos, meu senhor — disse Frentis. —
Sozinho, se necessário.
Isso atraiu alguns olhares estranhos dos capitães ali reunidos, o de Sollis
particularmente severo em sua intensidade. Frentis sabia que a sua alma recém-
aliviada transparecia em seu rosto, mas o presente do lobo era algo estimado e
ele não via muito motivo para escondê-lo.
Você deve se perdoar.
— Eu… certamente levarei isso em consideração, irmão — assegurou-lhe
Banders com o tipo de sorriso que Frentis conhecia.
O sorriso que se dá a alguém que você considera louco.
— Estamos a poucos quilômetros da fronteira nilsaelina — disse Lorde Furel.
— Uma pausa aqui para descansar e aguardar notícias de meus mensageiros
pode ser o melhor caminho. Reforços podem estar marchando até nós neste
momento. No mínimo alguma notícia virá dos Confins.
Banders olhou para Sollis com uma pergunta no olhar.
— Enviarei meus irmãos em todas as direções — disse o Irmão Comandante.
— Se houver alguma notícia num raio de cem quilômetros, nós a teremos dentro
de dois dias.
Banders assentiu.
— Muito bem. Acamparemos aqui. Irmão Frentis, você responde ao seu
irmão, não a mim, mas acho que podemos concordar que a sua visita a
Varinshold terá de esperar.
Frentis encolheu os ombros, fazendo uma mesura com um sorriso afável.
— Como meu senhor desejar.
O sorriso continuou em seu rosto enquanto retornava para a tenda, e a
inquietação que ele tinha sentido ao ver seu saco de dormir agora não existia
mais. Um sonho sem sonhos, pensou ele, descalçando as botas e deitando-se. Fico
pensando como será.

Ela os vê lutar com fria indiferença, avaliando habilidade e velocidade conforme


dançam no fosso abaixo. Ecos metálicos ressoam pelas paredes que a cercam, o
teto de pedra acima bruto e sem decoração, pois aqueles são os novos fossos,
esculpidos muito abaixo das ruas de Volar, o local de nascimento de filhos de longa
gestação.
Você gosta deles, amado?, ela lhe pergunta, sabendo que ele os vê, ansiosa
para deixá-lo interessado, ávida, de fato, para ouvir uma única palavra do outro
lado do abismo que os separa. Aprendemos tanto com você.
Os homens no fosso abaixo lutam sem qualquer coibição e morrem sem gritos.
Mas os seus rostos não são os dos Kuritai; não há autômatos impassíveis ali. Esses
homens fazem caretas de dor e rosnam de fúria, demonstram uma satisfação
sinistra com uma vitória sangrenta. Há pelo menos cem no fosso, movendo-se com
toda a agilidade daqueles criados para lutar.
Dê uma corda apertada demais a um cão e ele se enforca, pensa ela. E por
mais que você o açoite, ele sempre será um cão. Mas esses, amado… Ela sorri
para os homens no fosso. Esses são leões.
Ela dá as costas para o fosso e atravessa um passadiço de pedra até uma porta
estreita. Os sons de combate a seguem enquanto caminha; o túnel é longo e
escuro, mas ela já o percorreu e não precisa de tochas. A câmara em que chega é
ampla e alta, com passadiços erguendo-se de ambos os lados e dando acesso a
fileiras de celas, cada uma fechada com barras de ferro. Ela para e deixa a sua
canção ecoar, sentindo os medos embotados emanarem de cada uma das celas.
Drogas são usadas em abundância pelos capatazes que cuidam dessas celas, mas
ainda assim o medo sempre permanece. A canção dela encontra uma cela na
fileira do meio, à esquerda. A nota é dissonante, sombria, avivando uma ânsia.
Isso a incomoda por um momento. Geralmente a canção escolhe um inocente,
algum jovem de rosto pálido raptado de uma tribo das colinas massacrada ou
identificado pelos capatazes nos fossos de treinamento. Ela gostara de fazer o
papel de benfeitora, da senhora bondosa que surgia para lhes libertar daquele
lugar de medo incessante, desfrutando da esperança desesperada em seus olhos,
até mesmo lhes concedendo a misericórdia de uma morte rápida como
recompensa.
Agora é diferente. A canção fala de uma alma asquerosa e é isso que aviva a
sua ânsia. Foi você, amado?, pergunta ela. Você me mudou tanto assim? Apesar
da inquietação, ela sabe que aquela casca precisa ser nutrida; o Mensageiro
informara como uma casca roubada podia adoecer rapidamente, consumida pelas
exigências dos múltiplos dons. Ela segue para a escadaria mais próxima, mas para
quando dois Kuritai se aproximam, arrastando entre eles uma figura vestida de
vermelho e fornecendo uma distração bem-vinda.
— Conselheiro Lorvek — cumprimenta ela o homem de vermelho. — Faz tanto
tempo. Fico feliz em ver que os anos em nada o debilitaram.
O homem de vermelho parece ter trinta e tantos anos, embora ela o tenha
encontrado pela primeira vez cerca de oitenta anos antes, quando ele chegou ao
Conselho pela primeira vez, naquela mesma câmara, na verdade. Ele estivera
triunfante na ocasião, ela se recorda, envaidecido de satisfação por ter assegurado
a lendária imortalidade. Agora ele apenas parece ser o que é: um homem
assustado, intimidado pela tortura e à espera da morte.
— Eu… — começa ele e engole em seco, um filete de sangue escorrendo do
canto da boca. — Eu… humildemente me arrependo de qualquer ofensa que tenha
cometido contra o Aliado ou os seus servos…
— Ah, lá vai você de novo, Lorvek — diz ela, sacudindo a cabeça com um
sorriso triste. — Sempre dizendo a coisa errada. Do que foi que você me chamou
naquele dia no Conselho, há vinte anos? Lembra-se, o dia em que regressei da
minha excursão ao reino do porco de olhos puxados?
Lorvek abaixa a cabeça, reunindo a vontade para continuar implorando.
— Eu… eu disse… coisas insensatas…
— Vadia assassina de um fantasma pestilento. — Ela agarra o cabelo do
homem e ergue a sua cabeça. — Sim, aquilo foi insensato. E agora você me
chama de serva. Eu me pergunto como você subiu tanto com um discernimento
tão deplorável. Depois de tudo o que o Aliado lhe deu.
Ele é tomado por uma onda de exaustão e seus olhos ficam turvos por um
segundo. Ela supõe que Lorvek exauriu a sua capacidade de implorar, mas então
ele respira fundo e a luz volta aos seus olhos ao cuspir sangue no rosto dela.
— O Conselho não tolerará isso, sua vadia abominável! — sibila ele.
— Evidências de corrupção são difíceis de ignorar — diz ela, encontrando um
lampejo de admiração por aquele último arroubo de coragem. — Receio que a
votação tenha sido unânime. Além disso… — Ela se aproxima, sussurrando: — Cá
entre nós, o Conselho logo não terá de tolerar nada.
Ela o beija no rosto e recua.
— Lá atrás — diz ela aos Kuritai, indicando com a cabeça o túnel que leva aos
fossos. — Deem a ele uma espada e o joguem lá dentro. Digam ao capataz que
quero saber quanto tempo ele dura.
Ele grita quando o arrastam para longe, mais desafios, reduzindo-se outra vez
a apelos arrependidos ao entrarem no túnel, e sua voz desaparece. Ela invoca a
canção novamente, procurando a cela com a nota sombria e seguindo para a
escadaria.

Frentis acordou com um grito, o desespero e a tristeza fazendo com que se


curvasse para a frente. Ele sentiu as lágrimas escorrerem e cobriu o rosto com as
mãos, soluçando com violência.
— Garoto? — Hesitante, Mestre Rensial estendeu a mão para tocá-lo no
ombro, soando perplexo. — Garoto?
Frentis continuou a chorar enquanto o mestre louco lhe dava tapinhas no
ombro, ciente de que os outros haviam saído de suas tendas, que estavam do lado
de fora olhando espantados, mas percebeu que não conseguia parar. Não até o sol
da manhã se erguer e qualquer possibilidade de sono ter desaparecido por
completo.

— Minha avó de sangue tinha muitos sonhos. — Davoka olhava fixamente para
ele enquanto cavalgava ao seu lado, embora o seu tom fosse brando, os
resmungos costumeiros ausentes naquela manhã.
Frentis deu um aceno cansado com a cabeça e não respondeu. O silêncio
havia sido praticamente total durante o café da manhã; Trinta e Quatro lhe
passara uma tigela de mingau franzindo a testa de inquietação, Illian e Arendil
não conseguiram olhá-lo nos olhos e Draker ficou encarando-o, as sobrancelhas
grossas franzidas de preocupação.
Lágrimas do Irmão Vermelho, pensou Frentis. Eles esqueceram que eu era
apenas um homem… Talvez eu também tenha esquecido.
— Ela via estrelas caindo do céu para destruir a terra — prosseguiu Davoka.
— E enchentes grandes o suficiente para afogar as montanhas. Um dia ela deu o
seu pônei e todas as suas coisas porque um sonho lhe disse que o sol iria explodir
com o crepúsculo. O sol não explodiu e as pessoas viram apenas uma velha louca
com sonhos, e sonhos não significam nada.
Não são sonhos, ele quis dizer à lonak, fechando os olhos e esfregando as
têmporas ao ser invadido pela fadiga.
— Você acha que eu não tenho condições de liderar?
— O nosso clã iria seguir você para dentro da Boca de Nishak se pedisse. Eles
temem por você, isso é tudo.
Ele abriu os olhos e forçou-se a esquadrinhar o horizonte. O solo a oeste do
Esporão era em sua maioria pasto, apesar de agora não haver gado, o capim
longo devido à falta de pastejo. Mestre Sollis concordara com o seu pedido de
fazer o reconhecimento da passagem ao sul, embora os seus olhos claros
transmitissem uma crítica mais severa do que a oferecida pela gente que o
seguira desde a Urlish. Ele acha que estou abalado, sabia Frentis. Destruído pelo
fardo de tanta culpa. Não contara a Sollis sobre a bênção do lobo, a libertação da
culpa que o ato trouxera, mas agora isso parecia inútil. De que adiantava ser
liberado da culpa se ele estava condenado a enxergar pelos olhos dela todas as
noites?
Davoka retesou-se ao seu lado e apontou. Frentis afastou as dúvidas que
turvavam a sua mente e olhou para onde ela indicava, avistando duas figuras no
horizonte, ambas montadas e movendo-se em trote constante pelo capim longo.
Ele sabia que não podiam ser volarianos, que nunca patrulhavam em grupos
pequenos, e duvidava que Darnel tivesse muitos caçadores para enviar,
especialmente sem cães. Além do mais, estava claro que eles já haviam avistado
os dois cavaleiros ao norte, e ambos continuavam a se aproximar. Não eram as
ações de um inimigo. Ainda assim, ele pegou o arco e colocou uma flecha na
corda quando os cavaleiros chegaram mais perto. Davoka afastou o cavalo e o
posicionou de modo que a sua lança ficasse oculta, abaixada sobre o flanco
direito do animal.
Frentis franziu o cenho quando o rosto dos cavaleiros ficaram visíveis,
percebendo que eram uma mulher e um homem. A mulher tinha um cabelo
longo preso numa trança e montava uma égua malhada e alta. Suas roupas eram
estranhas, uma mistura de couro e equipamento volariano, incluindo uma espada
curta amarrada à sela, embora também carregasse uma lança adornada com
penas e o que pareciam ser talismãs de ossos entalhados.
Ele ouviu Davoka soltar um grunhido de surpresa.
— Eorhil.
O homem vestia o uniforme da infantaria da Guarda do Reino, suas feições
um tanto emaciadas num rosto permanentemente franzido, algo entre
perplexidade e dor, a boca aberta e os lábios sem expressão. Eles pararam a
cerca de dez metros de distância, o olhar da mulher indo de Frentis para Davoka,
levemente divertido por ver Frentis, severo e cauteloso quando se voltou para
Davoka. O Guarda do Reino ao seu lado lançava-lhes apenas um olhar cansado.
Davoka disse algo numa língua desconhecida, as palavras hesitantes e
formadas com dificuldade. A eorhil soltou uma gargalhada antes de falar na
língua do Reino com um sotaque carregado:
— Lonakhim soa como uma macaca parindo.
Davoka empertigou-se, agarrando com força as rédeas e erguendo a lança,
mas a eorhil apenas sorriu e virou-se para Frentis.
— Meu… marido me ensina… sua língua. Você um… irmão?
— Sim — respondeu ele. — Irmão Frentis da Sexta Ordem. Esta é a Senhora
Davoka, Embaixadora do Domínio Lonak no Reino Unificado.
A eorhil piscou, aturdida com as palavras desconhecidas, e sacudiu a cabeça,
batendo no próprio peito.
— Insha ka Forna, eu sou eorhil.
— Nós sabemos — disse Davoka no mesmo tom. — O que vocês fazem aqui?
— Este Irmão Lernial. — A eorhil gesticulou para o Guarda do Reino, que
agora olhava em silêncio para o chão. — Rinia nos mandou.
— Rinia? — perguntou Frentis.
Insha ka Forna grunhiu de frustração e virou-se, apontando para o sul e
falando com lenta determinação:
— Rainha.
CAPÍTULO NOVE
Lyrna

O nome estava na metade da lista, claramente legível na letra caprichosa do


Irmão Hollun. Havia se tornado um hábito diário ler a lista após o café da manhã,
com o irmão esperando pacientemente enquanto ela examinava cada nome.
Ly rna ficara satisfeita ao descobrir que ele já havia compilado uma lista
completa de cada súdito em seu exército, com exceção dos seordah e dos eorhil,
que reagiam às tentativas de aproximação do irmão com um desdém perplexo.
Desde a chegada a Warnsclave, ela havia lhe pedido para expandir a lista a fim
de incluir os refugiados que continuavam a chegar à cidade devastada. O irmão
corpulento realizava a tarefa com o zelo costumeiro, embora tivesse sido
obrigado a aumentar a sua equipe de escribas para mais de trinta, a maioria
pessoas de mais idade que eram habilidosas com as letras e pouco adequadas à
vida militar.
— Todas essas pessoas chegaram ontem? — perguntou Ly rna.
— Sim, Alteza. Nós as colocamos no quadrante oeste. Os abrigos são
escassos, mas os mineiros de Ultin têm estado ocupados, trazendo madeira para
consertar telhados e outras coisas. Eles inclusive começaram a erguer algumas
casas de pedra com os escombros.
— Ótimo. Designe mais homens para ajudá-los. — Ela olhou novamente
para o nome na lista, lembrando-se das últimas palavras de um homem se
afogando.
Lembre-se de sua promessa, minha Rainha.
Ly rna colocou a lista de lado e sorriu para Hollun. Ela passara a receber os
súditos numa sala ampla no segundo andar da casa do capitão do porto; uma
cadeira confortável, ainda que um tanto chamuscada, servia de trono, enquanto
Iltis e as suas damas permaneciam atrás dela com uma imobilidade obediente
que Ly rna achava bastante incômoda, embora reconhecesse a sua necessidade.
Uma rainha precisa de uma corte.
— Com isso chegamos a cerca de trinta mil novas bocas para alimentar, não
é mesmo, irmão? — perguntou ela ao Tesoureiro Real.
— Trinta e uma mil, seiscentas e vinte — informou o irmão com a presteza
costumeira. — Benditos sejam os Finados por Lorde Al Bera, ou todos estariam
passando fome.
— De fato. — Ly rna preferiu não acrescentar que, não fossem os súditos
recém-adquiridos, o seu exército já estaria marchando a essa altura. Em vez
disso, eram obrigados a demorar-se naquela ruína, garantindo que as pessoas
fossem alimentadas e treinando novos recrutas, ansiosos para se atracarem com
os volarianos, mas carecendo de força para marchar por mais de um quilômetro.
As pilhagens fornecidas pela frota meldeneana foram menos copiosas do que ela
esperara, mal chegando a uma tonelada de grãos até o momento, embora os
piratas que iam e vinham do porto parecessem bem providos de sedas e joias. O
Escudo ainda não se apresentara, apesar de o Senhor Marinho Ell-Nurin ter
chegado no dia anterior com o convés do Falcão Vermelho carregado de flechas
apreendidas outrora destinadas a Varinshold.
Ouviu-se uma batida alta na porta e Orena foi abri-la, revelando Benten de
joelhos.
— Lorde Al Sorna e a Senhora Al My rna, minha Rainha.
Ly rna assentiu, sorrindo mais uma vez para o Irmão Hollun.
— Aguardarei o relatório de amanhã, irmão.
Ele se curvou e caminhou até a porta, colocando-se de lado quando Vaelin e a
Senhora Dahrena entraram.
— Gostaria de falar com o lorde e a senhora em particular — disse Ly rna à
corte, que prontamente fez as devidas mesuras e se retirou. Iltis com óbvia
relutância, visto que era raro perdê-la de vista ultimamente, mas ciente de que
não lhe cabia discutir a questão. Ly rna observou Vaelin e Dahrena erguerem-se
ao mesmo tempo, os seus movimentos quase tão sincronizados quanto os
daqueles gêmeos nilsaelinos de cabeças ocas. Olhando para as expressões
similares e neutras, ela se perguntou se eles tinham consciência daquilo, de como
era inquietante de se ver, ou de como era doloroso.
Uma rainha está acima da inveja, lembrou a si mesma. Ainda que, depois de
hoje, seja possível perdoá-los por pensar o contrário.
— Senhora Dahrena — disse Ly rna, mantendo o tom o mais brando e
animado possível. — Tenho ponderado a respeito do seu relatório sobre os ricos
depósitos de ouro que se encontram nos Confins. Pelo que posso concluir das
estimativas do Irmão Hollun, as minas possuem ouro suficiente para pagar as
nossas atuais e futuras dívidas com a classe mercantil meldeneana diversas
vezes.
Dahrena assentiu lentamente.
— Acredito que sim, Alteza.
— O estranho é que não me recordo de qualquer ocasião em que o Rei
Malcius tenha expressado estar ciente de tamanhas riquezas em seu Reino.
A resposta da senhora foi rápida e, na opinião de Ly rna, bem ensaiada:
— O laudo completo das jazidas ainda não havia sido concluído quando se
deu o trágico falecimento do Rei, Alteza. Na verdade, desconfio que ainda haja
mais veios a serem encontrados.
— Fico feliz, minha senhora. Tal riqueza pode muito bem servir como a
salvação deste Reino nos anos que estão por vir, pois ainda temos muito trabalho
pela frente. E, ainda assim, tal riqueza não nos serve de muita coisa
permanecendo no solo, a centenas de quilômetros de distância, enquanto os
homens com a habilidade para extraí-la estão aqui, além da pessoa mais indicada
para organizar o trabalho.
Ela os viu se empertigarem, mais uma vez com a mesma uniformidade
inquietante.
— Minha Rainha? — perguntou Vaelin numa voz firme.
Ly rna respirou fundo, conjurando o seu sorriso de arrependimento. Ela
passara algum tempo praticando diante do espelho aquela manhã, pois nunca
fora um de seus melhores sorrisos.
— Senhora Dahrena, é meu árduo dever ordenar o seu retorno imediato aos
Confins do Norte, onde a senhora exercerá a Palavra da Rainha até que Lorde
Vaelin possa reassumir as suas funções. A embarcação do Senhor Marinho Ell-
Nurin aguarda no porto para transportá-la até lá. Com tempo bom, a senhora
deve chegar à Torre Norte em três semanas, visto que o navio dele é de uma
velocidade fora do comum. Ordenarei também que embarcações suficientes
sejam reunidas para transportar os mineiros do Capitão Ultin para casa assim que
possível.
— Eles querem lutar — afirmou Vaelin, enquanto Dahrena permanecia
inexpressiva ao seu lado. — Mandá-los embora causará problemas…
— Eu falarei com eles — disse Ly rna. — Explicarei que cada golpe de uma
picareta vale cem golpes de uma espada. Além do mais, eles já lutaram o
suficiente para justificar qualquer reivindicação de honra, não acham?
— Acho, Alteza — respondeu Dahrena antes que Vaelin pudesse falar. —
Eu… lamento a necessidade de sua ordem. — Ela olhou rapidamente para Vaelin
antes de baixar o rosto. — Contudo, não tenho qualquer argumento em contrário.
Que bom, já que não ouvirei qualquer argumento seu. Ly rna segurou as
palavras atrás de outro sorriso, levantando-se e indo apertar as mãos da pequena
mulher.
— Os seus serviços nesta guerra têm sido enormes e magníficos. Jamais
serão esquecidos, tampouco estão encerrados. Traga-me riquezas, minha
senhora, para que eu possa comprar justiça.
Ela soltou as mãos de Dahrena e recuou, forçando-se a olhar Vaelin nos
olhos, o brilho em seu olhar difícil de suportar. Isso não é ciúme, ela queria dizer.
Você me conhece bem demais para isso.
— Vou deixá-los a sós para que se despeçam — disse a eles. — Tenho
assuntos a tratar com os nossos recém-chegados.

Havia de incomum nos recém-chegados o fato de, ao contrário da maioria dos


outros grupos que rumaram para Warnsclave no decorrer da última semana,
muitos deles serem crianças. Uma das cenas mais frequentes e difíceis durante a
marcha havia sido a quantidade imensa de pequenos cadáveres, com frequência
levados para dentro das casas e queimados até que restassem pedaços
minúsculos, outros simplesmente abatidos como gado indesejado e deixados ao
ar livre para apodrecerem. Ver tantas crianças ainda vivas animou Ly rna,
mesmo que em sua maioria estivessem esmaecidas e silenciosas, olhando
fixamente para ela enquanto atravessava suas simples acomodações.
— Irmão Innis — disse o Irmão Hollun, apresentando um homem magro de
manto cinzento. — Diretor do Orfanato em Rhansmill. Ele escondeu seus
protegidos na floresta durante semanas.
— Irmão. — Ly rna retribuiu a mesura do homem com um respeito grave. —
Eu lhe agradeço, de todo o coração. Os seus feitos fazem jus à Fé.
O Irmão Innis, claramente não acostumado à realeza e adoentado pela falta
de comida, cambaleou um pouco, mas conseguiu permanecer de pé. As crianças
se aglomeravam à sua volta, agarrando-se ao seu manto, algumas olhando
furiosas para Ly rna como se ela tivesse causado algum mal ao homem.
— Eu tive muita ajuda, Alteza — disse o irmão, gesticulando para os poucos
adultos do grupo. — Essas pessoas passaram fome para que as crianças
pudessem comer, atraíram os volarianos para longe para que elas não fossem
descobertas. Algumas pagaram caro por sua coragem.
— A justiça pelo seu sacrifício será feita de forma plena — assegurou-lhe
Ly rna. — Se vocês precisarem de algo, falem com o Irmão Hollun e será
providenciado.
Ele fez outra mesura vacilante.
— Obrigado, Alteza.
— Agora, procuro uma mulher chamada Trella Al Oren.
Innis empalideceu ao ouvir o nome, lançando um olhar cauteloso a um abrigo
próximo, um teto de tábuas finas sobre o que parecia ter sido um depósito de
madeira.
— Ela… sacrificou muito para manter essas crianças aquecidas — gaguejou
ele. — Perdoe-me, Alteza. Mas imploro que ela não seja punida.
— Punida? — perguntou Ly rna.
— Como posso ajudá-la, Alteza?
Ly rna virou-se e encontrou uma mulher alta parada do lado de fora do
abrigo, de braços cruzados. Ela devia ter mais de cinquenta anos, as feições belas
franzidas pela desconfiança, fios grisalhos em meio ao cabelo negro.
— Minha senhora — Ly rna curvou-se para a mulher. — Eu trago notícias de
seu filho.

A Senhora Trella conseguira preservar um conjunto de chá feito de porcelana


durante as provações pelas quais passara, duas xícaras pequenas e um bule
esférico, belamente decorados com a imagem de uma orquídea incrustrada a
ouro.
— Alpirano — disse ela, servindo o chá ao se sentarem do lado de fora do seu
abrigo. — Um presente de casamento de minha tia.
Ly rna bebericou o chá, achando o gosto surpreendentemente saboroso.
— Minha senhora é engenhosa — comentou ela, esperando diminuir a tensão
evidente da mulher. — Para manter tais tesouros a salvo e conseguir chá de
tamanha qualidade.
— Encontramos o carroção de um mercador há algumas semanas. O dono
havia sido morto, é claro. Levaram tudo, menos o chá, apesar de que uma única
saca de grãos teria sido muito mais bem-vinda. — Ela bebericou o próprio chá e
suspirou, tomando coragem para fazer a pergunta óbvia. — Como ele morreu?
— Salvando a minha vida, e a vida daqueles que agora fazem parte da minha
corte.
— Mas não a própria vida.
— Minha senhora, se tivesse havido qualquer modo…
A Senhora Trella sacudiu a cabeça, de olhos fechados e rosto abaixado.
— Eu mantive as esperanças durante tudo isso, durante a fuga de Varinshold,
nos longos dias na estrada, ao encontrar o Irmão Innis e as crianças… Eu
mantive as esperanças. Fermin sempre foi tão esperto, apesar de não ser sensato.
Se houvesse um modo de sobreviver à queda da cidade e escapar das
masmorras, ele o teria encontrado.
Ly rna pensou no tubarão e na batalha, perguntando-se se deveria
compartilhar suas suspeitas, sua opinião de que Fermin ao menos encontrara
alguma forma de fuga, e de vingança. Contudo, faltaram-lhe as palavras, diante
de um enigma tão grande. Ele era um homem vivendo num tubarão? Ou um
tubarão com a memória de já ter sido um homem? De qualquer forma, ela sentiu
que aquela mulher corajosa não precisava ser sobrecarregada por mais
mistérios.
— É meu desejo tornar Fermin uma Espada do Reino postumamente — disse
Ly rna. — Em homenagem ao seu sacrifício.
Os lábios da Senhora Trella formaram o mais leve dos sorrisos.
— Obrigada. Creio que ele teria achado a ideia… engraçada.
Ly rna olhou ao redor para as pessoas que as observavam, os adultos estavam
ocupados com as tarefas culinárias ou de construção, mas o Irmão Innis e seu
grupo de crianças continuavam a assistir ao encontro delas com grande
preocupação.
— O Irmão Innis disse que a senhora as manteve aquecidas.
A Senhora Trella encolheu os ombros.
— Qualquer um pode acender uma fogueira.
— Além disso, sobreviveu ao ataque da cidade e à fuga para o sul. Um feito
impressionante.
— Não sei quanto Fermin lhe contou sobre as nossas circunstâncias, Alteza,
mas, apesar de nosso nome, não vivíamos uma existência nobre. A pobreza nos
torna engenhosos.
— Tenho certeza de que sim. No entanto, uma mulher sozinha, sobrevivendo
à guerra e à fome por tanto tempo… — Ela observou a Senhora Trella bebericar
mais chá, notando como a mulher se forçava a engolir. — É possível que a
senhora tenha ouvido que eu revoguei todas as restrições acerca do uso das
Trevas neste Reino — prosseguiu Ly rna. — Os dotados agora ocupam um lugar
de honra em meu exército e, ao falar com eles, noto que possuem um traço em
comum. Em todos os casos, as mães deles também possuíam um dom, mas nem
sempre os pais. Curioso, não acha?
A Senhora Trella a olhou nos olhos e então ergueu lentamente a mão,
estendendo os dedos.
— Um soldado volariano enfiou o pé na minha porta naquela noite,
encontrou-me escondida no armário do meu quarto, riu ao agarrar o meu cabelo
e se preparar para cortar a minha garganta. — Uma pequena chama azul surgiu
na ponta de seu dedo indicador, dançando belamente. — Ele não riu por muito
tempo. — A chama tornou-se amarela e aumentou, envolvendo a mão de Trella
dos dedos ao pulso.
— Alteza! — Iltis apareceu ao seu lado, com a espada parcialmente
desembainhada. Ly rna percebeu que havia se levantado e recuado, e olhava para
as chamas.
— Sei de seu decreto, Alteza — disse Trella. — Mas meras palavras não
fazem séculos de medo desaparecerem. Minha mãe certificou-se de que eu
conhecesse bem o perigo de revelar a minha natureza, o terror que isso causava
e a atenção indesejada que atraía dos Fiéis. — Ela fechou a mão e as chamas se
apagaram. Ly rna respirou fundo, controlando o tremor em seus membros. Ela
assentiu com a cabeça para tranquilizar Iltis e voltou ao assento, bebericando
mais chá até as lembranças desaparecerem. O cheiro de sua própria pele
queimando enquanto as chamas a envolviam…
— A Sétima Ordem tem a obrigação de obedecer às minhas ordens — disse
ela após um momento, quando teve certeza de que sua voz não vacilaria. — Não
permitirei que obriguem qualquer súdito a se unir a eles. Há uma pequena
companhia de dotados dos Confins do Norte separada da Ordem e que presta
contas apenas a Lorde Vaelin e a mim. A senhora seria bem-vinda para se juntar
a eles.
— Eu sou uma velha, Alteza.
— Não tão velha assim, creio eu. E sinto que a alma de seu filho gostaria do
serviço prestado pela senhora, não acha?
O olhar de Trella recaiu sobre as crianças ali perto.
— Tenho obrigações aqui, Alteza.
— Essas crianças serão bem cuidadas, a senhora tem a minha palavra. Elas
não necessitam mais do seu fogo, mas eu, sim.
Algo deve ter transparecido em sua voz naquele momento, pois a cautela no
rosto de Trella ficou ainda maior e em seu rosto surgiu o olhar precavido que
Ly rna estava vendo com mais frequência em algumas pessoas específicas.
Nortah, Dahrena, Reva… Vaelin. Aqueles que não ficam assombrados veem com
mais clareza.
— Não é uma ordem — acrescentou Ly rna com um sorriso. — Somente o
pedido de uma rainha. Pense a respeito por enquanto. Encontre-se com o
Aspecto Caenis ou com as pessoas dos Confins. Tenho certeza de que todos a
receberiam de bom grado.
— Farei isso, Alteza. — Trella curvou-se quando Ly rna se levantou. — Mais
uma coisa, se eu puder pedir uma graça.
— É claro.
— O emblema de meu filho. — Os olhos da senhora agora brilhavam devido
às lágrimas e as crianças se aproximaram dela ao sentirem o seu pesar. — Eu
gostaria que fosse uma doninha. De todas as criaturinhas que o seguiam até em
casa, elas eram as suas favoritas.
— Como minha senhora desejar — assegurou-lhe Ly rna com uma mesura.
Melhor uma doninha do que um tubarão.

Apesar de boa parte de Warnsclave ter sido destruída até restarem apenas as
pedras das ruas, a infraestrutura abaixo da cidade continuava essencialmente
intacta e numerosos porões serviam como abrigos adicionais e locais de
confinamento. A volariana havia sido presa num porão de carvão do que havia
sido a oficina de um ferreiro, a julgar pela bigorna coberta de fuligem em meio
aos escombros. Dois Guardas do Reino estavam no alto dos degraus que levavam
ao porão enquanto Lorde Verniers esperava, apoiado na bigorna, quando Ly rna
se aproximou, escrevendo num pequeno caderno. Ele se levantou ao vê-la,
curvou-se com a sua graciosidade usual e a cumprimentou na língua do Reino
sem o menor traço de sotaque.
— Alteza. Obrigado por aceitar o meu pedido.
— Não há de quê, meu senhor — disse Ly rna. — Contudo, tenho a impressão
de que eu o trouxe aqui sob uma falsa premissa.
— Alteza?
Ly rna fez sinal para os guardas abrirem a porta do porão.
— Sim, meu senhor. Sei que está ansioso pelo que tenho a dizer para
acrescentar à sua obra histórica, mas receio que a erudição terá de atender às
necessidades da diplomacia.
Ela fez sinal para que Verniers a seguisse escada abaixo, precedida por Iltis
para a escuridão. Fornella Av Entril Av Tokrev estava sentada a uma mesa
pequena, lendo à luz de uma única vela. Ela não estava acorrentada, e seu rosto e
seus cabelos estavam limpos, visto que Ly rna lhe permitira uma bacia de água
toda as manhãs para se lavar. A mulher também recebera pergaminho e tinta, e a
mesa à sua frente estava coberta por um pergaminho escrito de ponta a ponta em
volariano com uma letra caprichosa.
Fornella levantou-se e fez uma mesura quando Ly rna entrou, seu rosto
impassível até ver Lorde Verniers, quando então abriu um sorriso cauteloso.
— Alteza, meu senhor — cumprimentou ela, com seu conhecimento básico
da língua do Reino. — Dois visitantes. Estou honrada.
— Falaremos na sua língua — disse Ly rna em volariano. — É importante que
não haja mal-entendidos entre nós. — Ela pediu que Iltis esperasse do lado de
fora e fez sinal para que Fornella se sentasse, indo até a mesa e examinando o
pergaminho que a volariana escrevera e encontrando nele uma lista de nomes,
lugares e bens, cada nome marcado com um símbolo circular que Ly rna
reconheceu. — Uma carta de alforria — comentou ela. — Suponho que estes
sejam escravos seus.
— Sim, Alteza. Embora o documento na verdade seja um testamento. Os
escravos deverão ser libertados quando eu morrer.
— Meu conhecimento sobre as leis volarianas é limitado — mentiu Ly rna. —
Mas creio que um escravo, independentemente do dono ou de sua importância,
só pode ser libertado através de um decreto especial do Conselho Governante.
— De fato, mas meu irmão faz parte do Conselho. Não duvido que ele realize
a minha vontade no tocante a essa questão.
Imagino que, quando ele ficar sabendo de sua morte, estará preocupado
demais com a iminência do seu próprio fim para se importar com o seu último
desejo, pensou Ly rna.
— Devo supor que recentemente você passou a gostar menos da principal
instituição do seu império? — perguntou ela.
Fornella olhou para Verniers, que estava encostado de forma rígida na parede
do porão e se recusava a olhá-la nos olhos.
— Nós cometemos muitos erros — disse a volariana. — A escravidão talvez
seja o pior, superada apenas pelo nosso acordo com o Aliado.
— Um acordo que, se acreditarmos no relato de Lorde Verniers, concedeu a
você vários séculos de vida.
— Vida não, Alteza. Meramente existência.
— E como todos esses anos adicionais são conseguidos?
Fornella abaixou o olhar e, pela primeira vez, Ly rna teve uma ideia da
verdadeira idade da mulher nas linhas tênues agora visíveis ao redor dos olhos
baixos.
— Com sangue — respondeu Fornella após um momento, a voz não mais do
que um murmúrio. — O sangue dos dotados.
A memória de Ly rna voltou ao navio, ao capataz andando pelo porão de
escravos com o chicote enrolado. Todos aqui, trocar por um com magia. Ela se
aproximou da mesa, apoiou os punhos na superfície e inclinou-se na direção de
Fornella, que ainda estava com o rosto abaixado.
— Vocês bebem o sangue dos dotados — disse Ly rna por entre os dentes. —
É de onde vêm os seus anos.
— Há um lugar — murmurou Fornella. — Uma grande câmara abaixo de
Volar, com centenas de celas repletas de dotados. Aqueles que fazem parte do
acordo vão até lá uma vez por ano… para beber. E a cada ano há mais celas
vazias, e sempre mais dos que usam vermelho clamando para partilhar da
bênção do Aliado.
— E assim vocês precisam de mais, e o Aliado prometeu que os
encontrariam neste Reino. É por isso que vocês vieram.
— E para assegurar uma frente setentrional para a invasão alpirana, como eu
disse. Mas, sim, o Aliado prometeu que haveria sangue de dotados em
abundância nesta terra.
— E quando o sangue acabasse, e as terras alpiranas também fossem
varridas, o que aconteceria? Enviariam os seus exércitos para saquear o mundo
inteiro?
Fornella ergueu a cabeça, os olhos firmes, embora a voz estivesse vacilante, a
voz de uma mulher diante dos seus últimos momentos.
— Sim. Ele prometeu que o mundo seria nosso no seu devido tempo.
É vergonha que vejo em seus olhos?, ponderou Ly rna. Ou apenas
desapontamento?
— Suponho que tenha sido a promessa de uma vida eterna que tenha seduzido
Lorde Darnel à sua causa? — perguntou Ly rna.
Fornella encolheu os ombros com pesar.
— À tentação da imortalidade é difícil de resistir, especialmente para um
homem apaixonado por si mesmo.
Ly rna afastou-se da mesa e virou-se para Verniers.
— Meu senhor, acha que as palavras desta mulher são verdadeiras?
Verniers forçou-se a olhar para Fornella, relutante, mas a avaliou
atentamente.
— Duvido que ela tenha mentido, Alteza — respondeu ele. — Mesmo como
seu escravo, descobri que a honestidade era a sua única qualidade interessante.
— E acredita que o seu Imperador a acharia digna de crédito?
— O Imperador é mais sábio do que eu em todos os aspectos. Se ela estiver
sendo sincera, ele ouvirá a verdade.
— E, espero, compreenderá a importância de esquecer diferenças passadas.
O rosto de Verniers estava sério ao olhá-la nos olhos.
— Há muito a esquecer, Alteza.
— E um mundo a ser destruído se não forjarmos um propósito em comum.
— Ela virou-se de novo para Fornella. — Há um homem na Ordem do Irmão
Caenis que consegue ouvir mentiras. Você declarará a ele a sua disposição de
viajar até Alpira com Lorde Verniers, onde contará ao Imperador tudo o que me
contou. Se ele ouvir uma mentira, Honorável Cidadã…
— Ele não ouvirá, Alteza. — O alívio de Fornella era palpável, os anos mais
uma vez aparecendo no modo como os cantos de sua boca caíam. — Farei como
a senhora pede.
— Muito bem. — Ly rna olhou para Verniers, conjurando o seu sorriso de
arrependimento. — E o senhor? Fará isso por mim?
— Não, Alteza — respondeu o alpirano, o tom ríspido da voz e a estreiteza do
olhar deixando claro que o sorriso dela havia sido esforço desperdiçado. Este aqui
vê demais. — Farei por meu Imperador — prosseguiu Verniers —, que é grande
em sabedoria e benevolência.

Ly rna estava no telhado da casa do capitão do porto para observar os navios


partirem, vendo Vaelin despedir-se de Dahrena e incapaz de desviar o olhar,
apesar de se sentir uma intrusa. Ele a abraçou por tanto tempo. A pequena mulher
afastou-se dele, despediu-se da Senhora Alornis, de Lorde Adal, do Irmão
Kehlan e de Sanesh Poltar, então se virou e subiu a prancha do Falcão Vermelho,
sendo recebida pelo Senhor Marinho Ell-Nurin com uma mesura. Enquanto o
navio seguia para a entrada do porto, Ly rna perguntou-se se havia algum
significado no fato de nenhum seordah ter aparecido para se despedir dela.
Vaelin ficou para observar o navio velejar para longe, respondendo ao abraço
da irmã sacudindo a cabeça de leve antes de ela e os outros deixarem o cais.
Passado algum tempo, Lorde Verniers e a volariana chegaram e Ly rna o viu
escoltá-los até o navio. Ela ainda estava intrigada pelo interesse que Vaelin
demonstrara na escolha da embarcação que os levaria até o império, mas ele
sempre fora um homem de segredos.
Ly rna virou-se quando Orena subiu no telhado, trazendo um manto de pele.
— O vento está forte hoje, Alteza.
Ly rna agradeceu com um aceno de cabeça quando a dama colocou o manto
sobre os seus ombros, ainda o observando enquanto Vaelin olhava o erudito que
partia.
— Murel falou que ele é o homem mais assustador que ela já conheceu —
disse Orena em voz baixa.
— Então há sabedoria nos jovens — disse Ly rna. — Ele a assusta, minha
senhora?
Orena encolheu os ombros; de todos os seus servidores, ela era a menos dada
a formalidades quando estavam sozinhas, algo que Ly rna considerava
suficientemente animador para perdoar a língua solta da mulher.
— Alguns homens são brutos, outros são gentis. De vez em quando
encontramos um que é as duas coisas. — Ela se empertigou e fez uma mesura
formal. — O Lorde Comandante Travick deseja uma audiência, Alteza. Parece
que seus novos recrutas estão brigando a respeito de que nome dar aos
regimentos.
— Estarei lá daqui a pouco, minha senhora.
Mais uma vez sozinha, Ly rna aguardou e viu quando Vaelin se virou e deixou
o porto, afastando-se com um passo determinado. Não foi ciúme, pensou ela. Não
posso lhe permitir nenhuma distração, meu senhor.

Ela foi despertada de madrugada pela mão suave porém insistente de Murel. Não
houve sonhos naquela noite, e ser arrancada de um sono tranquilo a deixou de
mau humor.
— O que é? — perguntou ela, ríspida.
— Lorde Vaelin está lá embaixo, Alteza. Com o Capitão Belorath. Parece que
ele traz uma mensagem importante das Ilhas.
Ly rna ordenou que a dama buscasse uma bacia de água fria e mergulhou o
rosto nela, sufocando um grito com a dor de cabeça instantânea ao mesmo
tempo que o cansaço persistente desaparecia. Ela vestiu o manto mais simples e
conseguiu conjurar um semblante receptivo quando desceu a escada até a sala
do trono improvisada.
O Capitão Belorath imitou a mesura de Vaelin, embora o seu rosto revelasse o
desconforto por se encontrar numa posição servil diante de uma mulher que fora
sua prisioneira, uma prisioneira que ele quase matara. Depois que o Escudo
assumiu a monstruosa nau capitânia volariana, Belorath havia retomado o
comando do Sabre do Mar e retornara às Ilhas para fazer reparos e dar a notícia
da grande vitória em Alltor. Além de, esperava Ly rna, buscar mais navios para a
frota.
— Meu senhor, capitão — cumprimentou ela, sentando-se no trono. —
Imagino que as notícias sejam graves o bastante para justificar o avançado da
hora.
— De fato são, Alteza — disse Vaelin, acenando com a cabeça para Belorath.
O rosto do capitão revelava certa relutância ao falar, o tom seco e cuidadoso.
— Como Vossa Alteza sabe, os Senhores Marinhos têm se empenhado em
garantir a segurança das Ilhas por meio de… certas medidas discretas.
— Vocês têm espiões infiltrados neste Reino há anos, capitão — interrompeu
Ly rna. — Um fato que era do conhecimento tanto do finado Rei quanto do meu.
— Sim, Alteza. A maioria silenciou desde a invasão. Contudo, continuamos a
receber informações ocasionais de um em Varinshold.
— Aquele que avisou que a frota volariana havia zarpado — lembrou-se
Ly rna.
— Exato. Ao regressar às Ilhas, descobri que outra mensagem havia
chegado, vinda da mesma fonte. — Belorath tirou um pergaminho do cinto e
aproximou-se para entregá-lo à Ly rna. — Está endereçada à senhora, Alteza.
Ly rna desenrolou o pergaminho e viu que eram poucas palavras, mas
suficientes para se perguntar se, apesar de toda a sua alardeada inteligência, ela
não era apenas uma tola, afinal de contas.

Lyrna—
Ataque na véspera do início do inverno. Evite as muralhas se puder.
Aspectos E e D na Fortaleza Negra. Sinto muito.

—Alucius
CAPÍTULO DEZ
Alucius

— Não minta para mim, poetinha! — Darnel lhe lançou um olhar furioso, sua
voz baixa e carregada de promessas terríveis, o corte recém-costurado abaixo do
olho ameaçando se abrir enquanto gritava. — Eles devem ter lhe contado alguma
coisa.
Alucius estendeu as mãos num gesto impotente.
— Não fizeram mais do que lamentar pela morte de um irmão na Fé, meu
senhor. Embora eu tenha sentido certa satisfação do Aspecto Dendrish por
finalmente se tornar o homem mais gordo de Asrael.
Darnel ergueu-se do trono, levando a mão à espada, o rosto vermelho de
fúria. Ele parou quando o Comandante de Divisão Mirvek soltou uma tosse de
aviso e o pai de Alucius retesou-se, aproximando-se do filho. Darnel olhou para
todos eles com a mão trêmula no punho da espada. Sua fuga recente diante do
Irmão Vermelho e a notícia de que o seu feudo agora se rebelara em nada
ajudaram a melhorar o seu temperamento. Além disso, os crescentes desdém e
deferência de Mirvek pelo seu Senhor da Batalha forneciam amplas evidências
da irrelevância cada vez maior de Darnel. Restavam poucos de seus cavaleiros e
não havia onde conseguir mais em seu feudo. Alucius se perguntava por que o
volariano simplesmente não matava Darnel e assumia o comando, mas estava
evidente que o homem era um soldado até a alma e continuaria a seguir ordens
até receber uma palavra em contrário do Conselho. Darnel era o vassalo
apontado e Mirvek não tinha autoridade para depô-lo, por mais inútil que o
homem tivesse se tornado.
— Eles sabem onde há mais dotados — disse Darnel ao volariano, sem
conseguir disfarçar o tom desesperado da voz. — Tenho certeza.
Não é tão tolo a ponto de não saber que já não tem tanta serventia,
compreendeu Alucius, observando Darnel se remexer, pouco à vontade. Está
tentando comprar a sua segurança com o que os Aspectos sabem.
— Os Aspectos são preciosos a todos os que ainda são livres nestas terras —
afirmou o pai de Alucius. — Feri-los é instigar mais rebeliões.
— O povo dele está se rebelando de qualquer forma — observou Mirvek num
tom de reflexão. — Esses seus Aspectos são intrigantes. O Aspecto guerreiro era
intrigante o suficiente para que o Conselho ordenasse que fosse levado para o
império no dia em que foi capturado. Poderia ser proveitoso interrogá-los.
Alucius não gostou da ênfase que o volariano colocou em “interrogá-los”.
— Se me derem mais tempo, estou certo de que eles se mostrarão mais
afáveis. O Aspecto Dendrish, em particular, provavelmente revelaria todos os
segredos que tem na mente por um jantar completo.
Mirvek não riu, estreitando os olhos para observá-lo. Até então, a sua atitude
para com o filho de seu general escravo fora mais de desprezo vago, mas agora
Alucius sabia que ele o via com uma clareza desconfortável.
— Meu interrogador mais habilidoso foi capturado pelo seu Irmão Vermelho
— disse o volariano. — Ele poderia fazê-los falar em questão de segundos. Pedi
um substituto, que chegará com os nossos reforços até o final da semana. Você
tem até a chegada deles.
Alucius respondeu com uma mesura de gratidão, afastando-se quando o
volariano o dispensou com um aceno de mão. Ele podia sentir os olhos de Darnel
o seguindo ao se retirar da sala do trono, e mais uma vez se indagou por que não
sentia medo.

— Bem — começou Alucius enquanto a Irmã Cresia ofegava em seu ouvido, o


corpo nu sobre ele, tremendo um pouco. — Isso foi inesperado.
Ela saiu de cima dele, dando-lhe as costas e pegando a blusa.
— Não passei a vida inteira me escondendo aqui — disse Cresia. — Eu estava
entediada. Não se apaixone por mim, poeta.
Ele afastou à força uma imagem do rosto de Alornis, escondendo a culpa
numa risada.
— Irmã, dessa instrução eu não preciso, acredite.
A Irmã Cresia lhe lançou um olhar incisivo e levantou-se da pilha de peles
que lhe servia de cama. Ela não dissera nada quando Alucius aparecera ali mais
uma vez, apenas inclinou a cabeça para uma passagem lateral e o conduziu até o
quarto dela, onde se despiu e aguardou nua com um olhar questionador. Alucius
olhara para Vinte e Sete parado na passagem do lado de fora, o olhar vazio
aparentemente fixo na bela alvenaria. O irmão e a irmã de Cresia estavam em
algum lugar nas ruas acima, conseguindo informações e suprimentos, dissera ela,
embora Alucius tivesse trazido o suficiente para durar até a véspera do início do
inverno, quando então a falta de provisões provavelmente seria a menor das
preocupações deles.
— Quem era ela? — perguntou Cresia, com uma leve curiosidade na voz.
— Quem era quem?
— A mulher em quem você estava pensando um momento atrás. — Ela
apertou o cinto da calça e sentou-se para calçar as botas.
É esse o objetivo dela?, perguntou-se Alucius. Conseguir informações através
da intimidade? Ela é tão espiã quanto eu.
— Como algum homem poderia pensar em outra mulher em seus braços,
minha senhora? — retorquiu ele, sentando-se.
Alucius percebeu que ela se retraiu diante do seu tom cáustico e sentiu uma
pontada de arrependimento. Eu sempre as magoo, lembrou-se, pensando nos anos
passados, nas garotas atraídas pelo belo poeta com um sorriso triste, nos doces
abraços e nas lágrimas inevitáveis. Alornis era a única mulher que ele jamais
conseguira desapontar, e nunca a havia sequer beijado.
— Se precisa que eu lhe dê informações, talvez fosse mais simples e menos
demorado simplesmente perguntar — disse a Cresia.
Ela se levantou e lhe jogou a sua camisa.
— Muito bem. Quando meu irmão e minha irmã voltarem. E espero um
relato completo se vamos ajudar nessa sua empreitada.
Eles fizeram uma refeição frugal de carne seca e pão com água, uma vez
que o pai de Alucius não se dera ao trabalho de providenciar vinho com as
provisões extras. Se Inehla e Rhelkin sentiram alguma tensão entre eles, não
demonstraram, embora Alucius achasse que houvera um leve brilho de
divertimento no olhar que Inehla deu à irmã.
— Como você pode ter certeza de que o exército da Rainha irá atacar na
véspera do início do inverno? — perguntou Rhelkin preocupado, após a refeição.
— Não posso — admitiu Alucius. — A única certeza que posso dar é a de que
enviei uma mensagem a eles para que fizessem isso.
— Como? — perguntou Cresia.
— Por pombo. Meu último, na verdade. Então não me peçam para mandar
mais, por favor.
— Como um poeta tem pombos?
— Também sou um espião a serviço dos Senhores Marinhos meldeneanos. —
Alucius bebericou a água, suspirando ao lembrar-se da última vez que provara
um vinho decente, enquanto os outros o olhavam em silêncio. Havia sido uma
garrafa da adega de seu pai, uma das mais antigas, cumbraelina, naturalmente,
um vinho tinto de sabor encorpado dos vinhedos do sul. A garrafa fora agradável,
mas não o suficiente para lhe dar o sono pelo qual ansiava, atormentado como
estava pela dor deixada pela partida de Alornis para os Confins. Então ele
procurara uma garrafa de conhaque na cozinha, desabando na cama e sendo
despertado somente algumas horas mais tarde por um exército volariano.
— Então você é um traidor deste Reino — disse a Irmã Cresia,
interrompendo as suas reminiscências. Alucius notou que a mão dela havia se
movido para a algibeira de couro no cinto, enquanto o Irmão Rhelkin estava
agora virado para Vinte e Sete, sem dúvida preparado para usar o seu dom.
— Suponho que sim — disse Alucius. Ele olhou para o seu copo d’água e
estremeceu, colocando-o de lado.
Cresia continuou a encará-lo à medida que o silêncio se prolongava.
— Por quê? — perguntou ela, por fim.
— Isso não é da sua conta — falou Alucius. — O que importa é que temos o
interesse comum de assegurar que esta cidade seja retomada para o Reino com
o mínimo de banho de sangue. E, no momento, eu me encontro na melhor
posição para atingir esse objetivo.
— Um espião não merece confiança.
— Confiança? Você fala de confiança? — Alucius riu. — Você, que viveu
uma vida de mentiras? Eu me pergunto que serviço você prestou em nome da Fé.
Quanto sangue derramou nas sombras ao longo dos anos?
O rato de Inehla correu pela mesa, farejando a mão de Alucius e
arreganhando os dentes com um guincho alto.
— Ele sentiu o cheiro de uma mentira? — perguntou Cresia.
A irmã gorda sacudiu a cabeça, com uma expressão sombria no rosto.
— Não, só o desprezo desse aí por nós.
A fúria transpareceu no rosto de Cresia antes que ela assumisse uma
expressão neutra, afastando a mão da algibeira. O rato de Inehla soltou um
último guincho e voltou para a sua dona, e o Irmão Rhelkin deu as costas a Vinte e
Sete.
— Como faremos isso? — perguntou Cresia a Alucius.
— Os reforços volarianos devem chegar na véspera do início do inverno. E
serão recebidos nas docas pelo Comandante Mirvek, Lorde Darnel e meu pai.
Duvido que algum deles faça objeção ou note se eu estiver lá. Precisarei da
habilidade de sua irmã para criar distração suficiente.
— Distração do quê?
— A resistência ou derrocada desta cidade depende das habilidades de meu
pai. Sem elas, Darnel e seus aliados estarão condenados.
— Não é fácil para um filho matar um pai — observou Rhelkin.
— Se duvidam da minha capacidade de fazer isso, vocês deveriam me matar
agora e continuar se escondendo aqui até a Rainha Ly rna chegar — retorquiu
Alucius. Ele notou a aversão do homem em seu olhar frio e viu que não se
importava mais. — Precisarei que você e a Irmã Cresia resgatem os Aspectos.
— Invadir a Fortaleza Negra não é uma tarefa fácil — respondeu Cresia.
— Mas está à altura de suas habilidades, sem dúvida. Não duvido que os
guardas tenham ordens para matá-los caso a cidade seja tomada, e é melhor
arriscar a morte do que a aceitar cegamente.
Ele os viu trocarem olhares, chegando a um acordo com acenos silenciosos, o
de Cresia o mais relutante.
— Faremos isso — disse ela. — Mas quando acabar, poeta, você não será
poupado de uma prestação de contas.
— Não. — Alucius levantou-se e caminhou na direção do túnel, seguido por
Vinte e Sete. — Não imagino que serei.

— Devo dizer, Aspecto, que achei o vinho bastante amargo — disse Alucius ao
sentar-se ao lado dela no catre.
— Mas você o encontrou? — perguntou Elera, olhando-o fixamente.
— De fato encontrei. Mas apenas três garrafas.
A boca dela se crispou ao conter o desapontamento.
— Uma pena.
— O desapontamento sempre foi a minha sina, Aspecto. No entanto, trago
notícias. Parece que temos uma nova rainha.
— Ly rna? Ela está viva?
— Com saúde, ilesa e liderando um exército para a nossa salvação neste
exato momento, um exército comandado por Lorde Al Sorna, após terem
derrotado o General Tokrev em Alltor.
A Aspecto Elera empertigou-se e fechou os olhos, os ombros tensos enquanto
inspirava e expirava de forma controlada. Ele a vira fazer isso antes, quando sua
compostura usual vacilava e o leve brilho de lágrimas surgia em seus olhos. Após
alguns segundos, ela reabriu os olhos e sorriu, o mesmo sorriso calmo e franco de
que Alucius sabia que sentiria muita falta.
— Notícias excelentes, Alucius — disse ela. — Obrigada por me contar. E
para quando podemos esperar a chegada da Rainha?
Alucius lançou um olhar rápido para o Espada Livre do lado de fora da cela.
O homem podia parecer mais burro do que uma porta e capaz de dizer somente
algumas palavras na língua do Reino, mas a curta carreira de espionagem de
Alucius lhe ensinara o valor de ver além das aparências.
— Tal informação está além do meu alcance, Aspecto. — Ele cruzou os
braços e estendeu três dedos na direção do cotovelo, notando a compreensão no
olhar de Elera, que resistia ao impulso de assentir.
— Acho que seria melhor você não poupar o vinho — disse ela num tom
brusco. — Esta é uma época agitada, e o vinho sempre oferece uma fuga das
preocupações, não acha?
— Bondade sua pensar no meu conforto, Aspecto. Mas se existe alguém que
já bebeu o bastante, esse alguém sou eu.
O Espada Livre sacudiu as chaves com impaciência e Alucius levantou-se.
— Contudo, posso dividir duas garrafas com a senhora — disse ele. — Já que
o seu conforto é da maior importância para mim.
O sorriso dela vacilou um pouco e um brilho severo apareceu em seu olhar.
— Não se deve desperdiçar vinho, Alucius.
— Não será desperdiçado. — Ele se ajoelhou, olhando-a nos olhos e vendo
como Elera segurava as lágrimas. Em vez de erguer a mão para que Alucius a
beijasse, como era de hábito, ela se inclinou para a frente e lhe beijou a testa,
sussurrando:
— Vá, eu lhe imploro.
Ele apertou e beijou as mãos dela, levantou-se e saiu da cela. Alucius foi
cuidadoso ao observar o Espada Livre enquanto o homem trancava a porta e viu
apenas os olhos embotados de um bruto estúpido. Ainda assim, ficou feliz por ter
dito a Cresia para matá-lo assim que ela entrasse naquela câmara.

Era a única casa que ele não visitara desde a queda da cidade, uma mansão
parcialmente desmoronada que já fora imponente, próxima da Esquina do Vigia,
à sombra de um grande e antigo carvalho. O telhado estava ainda mais
dilapidado do que ele se lembrava, e todas as janelas haviam sido quebradas,
avivando memórias de como Alornis se esforçara para mantê-las limpas e
intactas. A casa fora poupada do fogo por algum feliz acaso, talvez devido ao seu
tamanho ou aos quartos vazios, sem qualquer coisa que valesse a pena saquear,
pelo menos para aqueles sem a habilidade de detectar esconderijos.
A porta estava pendurada nas dobradiças, a tinta descascada no corredor de
tábuas expostas. Ele se lembrou de sua primeira visita ali, da batida falsamente
confiante que ela demorou tanto para atender. “Alucius Al Hestian, minha
senhora”, cumprimentara ele, curvando-se. “Antigo companheiro de seu nobre
irmão.”
“Eu sei quem você é”, retorquira ela, franzindo o cenho, intrigada, abrindo a
porta o suficiente para olhá-lo de cima a baixo. “O que você quer?”
Foram necessárias várias visitas até ela o deixar entrar, e ainda assim
somente porque estava chovendo, indicando-lhe um banco na cozinha e o
advertindo com severidade para não molhar os seus desenhos. Fora o dever que o
fizera persistir, a aparência de estar seguindo à risca uma ordem real, mas foram
os desenhos que o fizeram voltar na noite seguinte e aguentar a indiferença
intrigada e as farpas ocasionais de Alornis. Ele nunca vira nada como aqueles
desenhos, a nitidez e os sentimentos reproduzidos com tamanha parcimônia, tão
irresistíveis quanto passou a considerar a sua criadora.
Alucius seguiu para a cozinha, onde ela passara a maior parte do tempo, os
ladrilhos do chão adornados com cacos de louça, a mesa onde ela preparava as
refeições frugais que compartilhavam virada e faltando uma perna.
“Me proteger?”, rira Alornis quando ele explicou a razão de aparecer todas as
noites. Os olhos dela recaíram sobre a espada curta no cinto de Alucius, brilhando
um pouco. “Desculpe, mas ela realmente não combina com você.”
“Não”, admitira ele. “Nunca combinou. Mas, graças ao seu irmão, eu sei
como usá-la.”
Na verdade, ele sempre soube que ela precisava de pouca proteção. Os
poucos Fiéis iludidos o suficiente para imaginá-la como alguma espécie de
substituta para o irmão eram mandados embora com uma recusa implacável e
irascível, e por isso o Rei jamais tivera motivo para duvidar de sua lealdade. Ela
trabalhava todos os dias sob a tutela pouco agradável de Mestre Benril e passava
as noites naquela casa vazia, o carvão e a ponta de prata produzindo maravilhas
no pergaminho que ela passava fome para comprar. Foram os pergaminhos que
compraram a tolerância de Alornis, pois ele sempre os tivera em ampla
quantidade e trazia alguns quando a visitava, satisfeito em sentar e observá-la
trabalhar, com uma garrafa de Sangue de Lobo sempre por perto, apesar da
óbvia desaprovação dela.
“Cada palavra que ela falar a respeito do irmão e do pai devem ser
registradas”, dissera-lhe Malcius no dia em que Alucius fora chamado ao palácio
sob o pretexto de receber os cumprimentos da Rainha pela sua última coletânea
de poemas, mas na verdade para lhe imporem um novo dever. O rosto de
Malcius estivera sério ao caminharem juntos pelos jardins, um rei forçado a uma
necessidade relutante. “O mesmo vale para a identidade de qualquer visitante. A
sombra de Lorde Vaelin sempre foi longa demais, Alucius. É melhor que a irmã
não fique sob ela, não acha?”
Ele achou que estava me transformando num espião, ponderou Alucius,
olhando para a parede onde ela pendurara os seus esboços e onde agora não
havia nada além da silhueta de pergaminhos na cal. Sem saber que os
meldeneanos haviam chegado primeiro. Pobre Malcius. Janus teria sabido num
instante.
Ele subiu a escada que rangia até o andar superior, seguido por Vinte e Sete,
que saltava os vãos com ágil rapidez. Alucius parou somente por um momento
diante da porta do quarto de Alornis, como fizera ao final de muitas noites de
bebedeira, apenas para ouvir o leve murmúrio da respiração dela enquanto
dormia. Por que eu nunca contei para ela?, perguntou-se. Palavras ditas com
tanta facilidade para tantas outras, mas que eu nunca consegui dizer a ela, na
única vez em que teriam sido verdadeiras.
O quarto onde ele dormira estava em grande parte intacto, a sua cama
estreita ainda se encontrava junto à parede com o colchão, embora os lençóis
tivessem desaparecido. Alucius afastou a cama da parede e ajoelhou-se,
deslocando um fragmento de gesso e revelando um pequeno esconderijo que
passara despercebido pelos volarianos que saquearam o lugar. Ele suspirou de
alívio ao encontrar intacto o estreito embrulho de couro.
— Não parece grande coisa, não é? — perguntou ele a Vinte e Sete,
colocando o embrulho na cama e desatando os nós, revelando uma pequena
adaga. O punho era feito de osso de baleia sem ornamentos e a bainha de couro
liso. Alucius a desembainhou, expondo uma lâmina bem-feita de quinze
centímetros. — Mas — prosseguiu ele — o homem que me deu disse que o mais
leve toque dela era suficiente para matar. Não instantaneamente, mas o veneno
na lâmina garantirá uma morte rápida. — Ele olhou o escravo nos olhos, algo que
raramente fazia, pois não havia nada para ser visto neles. — O que faria se eu
tentasse apunhalá-lo com ela? Me mataria? Duvido. O mais provável é que me
desarmasse, talvez quebrasse o meu pulso. Ou será que você simplesmente
ficaria aí parado e morreria, certo de que eu teria outro como você ao meu lado
antes do fim do dia?
Vinte e Sete o encarou e nada disse.
— Não se preocupe, meu bom amigo. — Alucius devolveu a adaga à bainha
e a enfiou no cinto. — Não é para você. Além do mais, acho que me acostumei
demais com a sua companhia. Nossas conversas são tão agradáveis.
Ele empurrou a cama contra a parede e deitou nela com as mãos atrás da
cabeça.
— Quantas batalhas você já presenciou? Dez, vinte, cem? Eu estive numa
batalha, certa vez. Bem, três vezes, se você contar a Colina Sangrenta e
Marbellis, embora meu papel não tenha sido digno de nota. Não, a minha única
batalha verdadeira foi na Revolta do Usurpador, no Forte Alto. A primeira grande
vitória na ilustre carreira daquele que em breve será o nosso salvador. Há
canções sobre ela, terríveis e horrivelmente incorretas, mas estou nelas, ou pelo
menos na maioria. Alucius, o poeta guerreiro, surgiu para vingar o irmão, “sua
espada como um raio de uma tempestade virtuosa”.
Ele se calou por um momento, recordando-se. Era sempre do cheiro e do
som que ele melhor se lembrava, muito mais vívidos em sua mente do que as
imagens, que eram apenas uma confusão tingida de vermelho. Não, era o som
dos cavalos gritando, o fedor de suor, o barulho estranho que o aço fazia ao
perfurar a carne, vozes pedindo para serem salvas pelo seu deus, e merda… o
perfume pungente da sua própria merda.
— Eu fiz com que ele me ensinasse — disse Alucius a Vinte e Sete. —
Durante a marcha. Praticávamos todas as noites. Eu melhorei, fiquei bom o
suficiente para me enganar sobre ter algum tipo de chance, alguma esperança de
sobreviver ao que estava por vir. Eu soube que estava errado quando Malcius
ordenou o ataque. Soube num instante que eu não era um guerreiro, nenhuma
alma vingadora, e sim apenas um garoto assustado com merda na calça.
Lembro-me de gritar. Imagino que os outros tenham pensado que era um grito de
guerra, mas era apenas medo. Quando atacamos o portão, eles tentaram barrar a
nossa entrada com os corpos, dando os braços uns aos outros, gritando preces ao
seu deus. No momento em que nos chocamos com eles, a força do impacto me
mandou longe. Tentei levantar, mas havia muitos corpos em cima de mim. Gritei
e implorei, mas ninguém me tirou de lá, então algo duro bateu na minha cabeça.
Lembrou-se da irmã gentil que tratara dele, mais tarde destinada a acabar na
Fortaleza Negra por heresia e traição, tudo porque ela pregava contra a guerra.
Lembrou-se do rosto do pai no dia em que ele retornou à mansão, do suspiro de
alívio seguido por uma ordem brusca: “Você não vai mais sair desta casa sem o
meu consentimento.” Ele assentira docilmente, entregara a espada de Linden e
fora para o quarto, onde ficara a maior parte do ano.
— Eu sempre fui um covarde, sabia? — disse Alucius. — E quanto mais
aprendo sobre este mundo, mais acho que é o único caminho sensato a seguir
nesta vida, na maior parte do tempo. Em Marbellis, eu fiquei parado e assisti à
cidade arder, e então vi meu pai enforcar cem homens por incendiá-la. Fiquei ao
lado dele durante o cerco, mesmo quando ele liderou um ataque para selar uma
brecha nas defesas. Não me borrei dessa vez, mas estava muito bêbado. Quando
as muralhas caíram, eu corri quando ele correu. Darnel estava lá, por mais
estranho que pareça, tão aterrorizado quanto o resto de nós. Lembro que ele teve
de enfrentar os próprios homens para chegar ao navio que nos tirou de lá em
segurança, e quando zarpamos, olhei para o seu rosto e vi que ele era tão covarde
quanto eu.
Alucius virou-se para Vinte e Sete, fez sinal para que ele se aproximasse e
falou calmamente:
— Preciso que você se lembre de uma coisa.
Ele falou por pouco tempo, palavras que não haviam sido ensaiadas, mas que
vinham com naturalidade. Quando terminou, ordenou que Vinte e Sete as
repetisse, e o escravo o fez com uma imitação desconcertante e precisa da voz
de Alucius. Meu sotaque é tão afetado assim?, perguntou-se quando o escravo se
calou.
— Muito bem — disse ele, então deu instruções cuidadosas sobre quando e a
quem as suas palavras deveriam ser repetidas. — Vou dormir agora — disse a
Vinte e Sete. — Acorde-me com o oitavo sino, por favor.

Ele ficou satisfeito ao encontrar Darnel a cavalo nas docas, cercado por seus
poucos cavaleiros remanescentes a pé. O Senhor Feudal sempre se preocupava
em ficar acima daqueles à sua volta e insistia em cavalgar sempre que deixava o
palácio. Um batalhão inteiro de Espadas Livres estava atrás de Mirvek, em
formação ao longo do cais, aguardando para saudar quaisquer luminares que se
aproximavam na imensa belonave que surgia no horizonte. Alucius soube por seu
pai que os comboios de suprimentos volarianos haviam sido alvos frequentes de
ataques nas últimas semanas, com os meldeneanos sem dúvida felizes em ver a
pirataria tão lucrativa na guerra quanto em tempos de paz. Entretanto, um navio
com o tamanho e o poder do monstro que velejava na direção deles certamente
podia esperar permanecer imune às atenções dos piratas.
Alucius passara a manhã na expectativa de alguma grande comoção, que
homens corressem para assumir as posições cuidadosamente planejadas por seu
pai enquanto o exército de Ly rna surgia na planície ao sul. Mas não houve
alarme, nenhuma corneta de aviso para cortar o ar matutino e nenhum exército
para sujar a região ao redor da cidade.
Se ela pudesse vir, teria vindo, sabia Alucius. Nem que fosse apenas para me
enforcar. Ele se esmerara para evitá-la desde a guerra, uma vez que o escrutínio
dela era sempre intenso demais, e os seus encontros ficaram limitados a
cerimônias ocasionais no palácio. Houve ocasiões em que ela enviara
mensageiros pedindo a sua presença no almoço, mas Alucius sempre recusara,
temendo o que a perspicácia dela pudesse descobrir. Eu sei o que você fez, Lyrna.
Começara no dia em que ele retornara de Marbellis e ela comparecera às
docas para receber os poucos sobreviventes do outrora grande exército de seu
pai. O sorriso dela era perfeito: grave, encorajador, livre de julgamento ou
repreensão. Mas Alucius viu, apenas por um instante, enquanto ela observava um
Guarda do Reino que perdera uma perna ser carregado para fora do navio.
Culpa.
Todas as peças se encaixaram mais tarde, com uma compreensão
instantânea, quando ele soube que o seu novo Rei havia regressado em segurança
para o Reino e Vaelin havia sido capturado pelos alpiranos. Ele estava no palácio
quando Malcius, de olhos claros e emaciado sob a barba, colocou a coroa na
cabeça e os nobres reunidos se curvaram… e o rosto de Ly rna revelou um
vislumbre da mesma expressão que ele vira naquele dia nas docas.
Eu sei o que você fez.
Alucius sempre se espantara com a velocidade com que os meldeneanos o
encontraram. Bebidas, mulheres e os poemas ocasionais haviam sido as suas
principais distrações nos dois anos desde Marbellis, o álcool o deixando um tanto
incauto com as palavras, palavras que alguns poderiam considerar
insubordinação. O meldeneano se sentara ao seu lado certa noite em sua taverna
favorita, assim considerada porque o primeiro copo sempre era de graça para
veteranos, uma despesa pequena, já que eles eram poucos. O meldeneano estava
vestido como marinheiro, como convinha à sua nacionalidade, e a princípio falou
num tom sem refinamento. Ele pagou o vinho de Alucius, confessando ser
iletrado ao ouvir sobre a sua ocupação, mas fez muitas perguntas sobre a guerra.
O homem regressou na noite seguinte, pagando por menos vinho, mas fazendo
mais perguntas, e na noite depois dessa. A cada encontro Alucius notava que o
seu sotaque não estava tão grosseiro quanto antes e que as suas perguntas
estavam minuciosas, especialmente no que dizia respeito ao Rei e à sua irmã.
— Eles são traidores — dissera Alucius, um pouco alto demais, pelo modo
como o homem se retraíra e gesticulara para que ele falasse mais baixo. — A
família inteira — prosseguira ele, ciente de que estava bêbado demais e não se
importando. — Janus enviou o meu irmão para morrer na Martishe, ordenou que
meu pai matasse milhares por nada. Abandonou meu amigo aos alpiranos. Ela
fez isso, não Janus. Foi ela.
O meldeneano assentiu lentamente.
— Nós sabemos — disse ele. — Mas gostaríamos de saber mais.
Eles lhe ofereceram dinheiro, que Alucius recusou, orgulhoso de si mesmo
por estar sóbrio quando o fez.
— Apenas me diga o que vocês querem.
Ele descobriu que a espionagem era uma ocupação absurdamente fácil.
Poucas pessoas veem mais do que desejam ver, concluiu, após aceitar um convite
para ler poemas para um bando de esposas de mercadores, cheias de fofocas e
repletas de informações sobre as novas rotas comerciais que os seus maridos
haviam sido obrigados a criar desde a guerra. Elas viram um belo e jovem poeta,
herói trágico de uma guerra trágica, abater-se visivelmente com os próprios
poemas, e se mostraram muito solícitas quando ele perguntou a respeito de
prováveis oportunidades de investimento. “Para o meu pai, a senhora
compreende. Ele precisa de algo com que se ocupar atualmente. Tempos de paz
são uma provação para um militar.”
Ele ia a tavernas frequentadas pela Guarda do Reino, onde era bem recebido
entre os veteranos que haviam estado em Linesh com Vaelin, todos cínicos
amargurados e faladores quando cheios de cerveja. Deixou que soubessem que
estava disponível para encomendas, compondo poemas de amor para jovens
nobres apaixonados e tributos para os funerais de homens abastados, ganhando
com isso acesso aos ricos e poderosos. Seu contato meldeneano estava feliz com
o seu trabalho e forneceu os pombos para tornar mais rápida a entrega de
informações e a adaga, caso ele fosse descoberto.
— Não sou assassino — dissera Alucius ao homem, olhando a adaga com
aversão.
— É para você — disse o meldeneano com um sorriso antes de sair da
taverna.
Alucius nunca mais o viu. Na semana seguinte, foi chamado pelo Rei e
recebeu a ordem de espionar Alornis, quando então viu o seu entusiasmo pela
nova ocupação começar a esmorecer. Ficar com ela diminuiu a sua raiva, tornou
menos aguda a dor da traição. Ele continuou a recolher informações, a maioria
fofocas mercantis de pouco valor, despachando os pássaros e sabendo que, caso
incluísse o seu pedido de desistência entre as mensagens, o provável era que os
meldeneanos lhe oferecessem uma lâmina em vez de uma aposentadoria. No
final das contas, os volarianos tornaram redundantes tais preocupações.
Alucius estava com Vinte e Sete a uns dez metros atrás de seu pai, que havia
se posicionado fora do círculo de cavaleiros bajuladores de Darnel.
— Um monstro impressionante, não? — perguntou ele, indo se colocar à
esquerda do pai.
Lakrhil Al Hestian assentiu à medida que o navio se aproximava e Alucius
avistou duas embarcações menores que vinham logo atrás.
— Aparentemente é o navio-irmão do Despeito da Tempestade — disse seu
pai. — Esqueci o nome. Mirvek acredita que é um sinal de que o Conselho
Governante continua a ter fé em sua liderança, enviando mais reforços do que o
esperado.
Alucius lembrava-se do Despeito da Tempestade como um monstro sombrio
que ficara ancorado no porto durante dias até que o General Tokrev zarpou para
Alltor, para nunca mais retornar. Discernindo os detalhes conforme o segundo
navio se aproximava, ele ficou espantado pela similaridade entre as duas
embarcações; mesmo para navios construídos seguindo o mesmo modelo, a
semelhança era surpreendente, embora os volarianos fossem um povo que
prezava muito a uniformidade.
— Os seus preparativos estão concluídos? — perguntou Alucius. — Tudo
pronto para sangrar o exército de Lorde Vaelin?
— Ainda não — grunhiu o seu pai. — Os Espadas Livres são preguiçosos
quando não estão saqueando, e os Varitai não são de muita serventia em trabalhos
braçais. Dê-lhes uma pá e eles ficam apenas olhando para ela. Contudo, parece
que logo teremos mais mãos para completar a tarefa.
— Você poderia ter defendido Marbellis? Se tivesse tido tantos homens para
usar?
Lakrhil virou-se para ele com uma expressão intrigada; havia um
entendimento tácito de que Marbellis era um assunto que nenhum dos dois queria
discutir.
— Não — respondeu ele. Algo deve ter transparecido na expressão de
Alucius, algum vestígio de suas intenções, pois seu pai inclinou-se para ele e
sussurrou: — Você não deveria estar aqui, Alucius. E ainda não conseguiu uma
única informação útil com os Aspectos. — Ele olhou rapidamente para Darnel.
— Não posso protegê-lo para sempre.
O olhar de Alucius foi atraído para a sua casa roubada, onde avistou a sacada
em que fazia o desjejum e contava os navios todas as manhãs. Ela estava lá,
como pedido, uma figura pequena e gorda encostada na balaustrada, com o olhar
fixo em Darnel, ou melhor, no cavalo do Senhor Feudal.
— Está tudo bem — disse Alucius ao pai. — Você não precisará fazer isso.
O cavalo de Darnel soltou uma bufada alta, balançando e sacudindo a
cabeça.
— Calma, calma — tranquilizou-o o Senhor Feudal, passando a mão no
pescoço do animal.
Alucius ficou aliviado ao ver que Darnel não estava usando armadura, apenas
sedas finas e um manto longo. Ele levou a mão à adaga enfiada atrás do cinto,
escondida debaixo do manto, sem tirar os olhos do cavalo de Darnel. O animal
bufou de novo, soltando um relincho alto, arregalando os olhos de pânico ao
empinar. Foi repentino demais para Darnel segurar com mais força as rédeas, e
derrubou-o da sela. Livre de seu cavaleiro, o grande cavalo de guerra girou e
golpeou com os cascos o cavaleiro mais próximo, as ferraduras retinindo no
peitoral do homem ao derrubá-lo. O animal girou sobre as patas dianteiras,
dispersando os cavaleiros restantes com coices furiosos enquanto Darnel
afastava-se de quatro pelo chão, os olhos arregalados de pânico. O cavalo
interrompeu o ataque aos cavaleiros e virou-se de novo, os olhos tresloucados
fixando-se em Vinte e Sete antes de investir com um grito agudo. A expressão do
escravo de elite permaneceu tão tranquila como sempre ao tentar atirar-se para
longe do caminho do cavalo, mostrando-se lento demais por uma fração de
segundo quando o flanco do animal chocou-se com o seu ombro, fazendo-o girar
para o chão, desacordado.
Alucius sacou a adaga da bainha e correu na direção de Darnel, que agora se
levantava, bem longe de qualquer proteção. Use a estocada mais curta possível,
dissera-lhe Vaelin havia tantos anos, quando ele se imaginava um herói. É a
lâmina veloz que tira sangue.
Algum instinto nascido das batalhas devia ter soado na mente de Darnel, pois
ele se virou no momento em que Alucius desferiu uma estocada contra as suas
costas, a lâmina perfurando o seu manto e ficando enroscada nas dobras do
tecido. Darnel rosnou e tentou acertar um soco no rosto de Alucius. Ele se
abaixou para desviar do golpe, arrancando a adaga do manto e golpeando o
braço de Darnel, ciente de que mesmo o menor corte seria suficiente. O Senhor
Feudal afastou-se para o lado e a sua espada saiu da bainha num borrão. Alucius
sentiu uma grande queimação percorrer o seu peito, o choque fazendo com que
caísse de joelhos, e Darnel assomou sobre ele com a espada erguida. Sua
expressão era de um triunfo feroz, sorrindo largamente na expectativa do abate.
— Você acha que vai me matar, poetinha? — riu ele.
— Não — respondeu Alucius, sentindo o sangue lhe banhar o peito ao olhar
por sobre o ombro de Darnel. — Mas imagino que ele irá.
Darnel girou sobre os calcanhares, mas tarde demais. Lakrhil Al Hestian
trespassou o pescoço do Senhor Feudal com o cravo que saía de sua manga
direita. Darnel levou alguns segundos para morrer, cuspindo sangue e chorando
pendurado no cravo, os olhos esbugalhados e os lábios balbuciando incoerências
antes de finalmente tombar no chão. Alucius ainda conseguiu pensar que não
demorara o bastante.
Uma mão fria pareceu envolvê-lo por todos os lados ao desabar; ele sentiu
seu pai ampará-lo e sorriu para o rosto lívido.
— Os Aspectos — disse ele. — Vá para a Fortaleza Negra…
— Alucius! — Seu pai o sacudiu, a voz um grito tomado de fúria. —
ALUCIUS!
Alucius percebeu que havia um grande clamor em algum lugar, embora sua
visão estivesse turva demais para distinguir a origem; homens gritavam
alarmados, avivando lembranças de Forte Alto. Ele achou estranho que o céu
acima da cabeça de seu pai parecesse estar repleto de tiras pretas, como as
flechas na Colina Sangrenta, outra lembrança indesejável. Ele fechou os olhos,
deixando tudo isso de lado e preenchendo a mente com o rosto de Alornis
enquanto o que restava de seu sangue se esvaía.
CAPÍTULO ONZE
Frentis

— Véspera do início do inverno — disse o Irmão Lernial em sua voz


constantemente neutra.
Ele praticamente não dissera nada desde que chegara com a eorhil no dia
anterior, sentando-se na frente de uma fogueira e olhando para as chamas por
horas. Insha ka Forna ficou ao seu lado, com o olhar continuamente tomado de
expectativa.
— A Sétima Ordem — disse Ivern, observando com Frentis dos limites do
círculo de capitães reunidos, seu rosto uma mistura de confusão e desconfiança.
— Escondida na Guarda do Reino. E sabe-se lá onde mais.
— O Aspecto Grealin deu a entender que eles possuíam muitos disfarces —
disse Frentis.
— Grealin. — Ivern sacudiu a cabeça. — Quantas mentiras você acha que
eles nos contaram?
— Suficientes para nos manter a salvo. — Frentis empertigou-se quando o
Irmão Lernial disse algo e Insha ka Forna ergueu a mão, fazendo sinal para que
se aproximasse.
— O que acontecerá na véspera do início do inverno? — perguntou Banders
ao irmão.
— Varinshold. — Lernial franziu o cenho em concentração, uma veia
pulsando em sua têmpora e o suor surgindo na testa. — Lorde Al Sorna atacará
Varinshold. Algo… algo acontecerá.
— O exército de Al Sorna está em Warnsclave — disse Banders. — Como ele
poderia realizar um ataque desses?
Lernial soltou um gemido de dor, arqueou as costas e exalou lentamente,
então se curvou para a frente, as feições relaxadas pela exaustão.
— Isso é tudo — murmurou ele.
— Deve haver mais — insistiu Banders, atraindo um olhar furioso de Insha ka
Forna.
— Deixa ele! — gritou a eorhil. — Isso… machuca ele, muito.
— Você consegue ouvir os pensamentos de Lorde Vaelin? — perguntou
Frentis a Lernial num tom mais gentil.
O irmão sacudiu a cabeça.
— Apenas do Irmão Caenis. É… mais fácil assim. — Ele deu um leve
sorriso. — Mas percorrer os caminhos mesmo da mente mais disciplinada é uma
tarefa exaustiva.
Frentis agradeceu com um aceno de cabeça e ergueu-se do lado do homem,
afastando-se para falar com Banders e Sollis.
— Três dias até a véspera do início do inverno — disse o Barão. — Pouco
tempo para planejamentos. Mandei meus homens derrubarem as poucas árvores
que há por aqui para construírem escadas e máquinas, mas nenhuma está pronta
ainda.
— O que faz dos esgotos a nossa única opção — disse Frentis. — Sabemos
pelos cavaleiros de Darnel que os Aspectos Elera e Dendrish estão na Fortaleza
Negra, talvez até mesmo o Aspecto Arly n. Não creio que as chances deles serão
boas se a cidade for atacada. Eu posso protegê-los, se vocês me permitirem.
— Capturar um portão é mais importante — observou Sollis.
— Os Aspectos…
— Sabem que a Fé às vezes exige sacrifícios. Iremos capturar um portão
para que os cavaleiros do Barão Banders possam entrar na cidade, e então nós
seguiremos para a Fortaleza Negra.
— Nós, irmão?
O olhar de Sollis estava firme, não deixando espaço para discussões.
— Irmão, você tem liderado bem a sua companhia e eles lhe são leais. Mas a
sua lealdade é para comigo. Ou você não está mais disposto a se chamar de
irmão?
— Nunca irei me chamar de outra coisa — retorquiu Frentis, a raiva subindo-
lhe ao rosto.
Sollis apenas piscou e virou-se para o Barão.
— Partiremos ao amanhecer, o que deve permitir que nos aproximemos da
cidade no escuro daqui a três noites. — Ele olhou para Frentis. — Escolha a sua
gente e estejam prontos.

Eles seguiram o Rio Salgado em direção a Varinshold, movendo-se em fila única


ao longo da margem, que era úmida o suficiente para evitar qualquer nuvem de
poeira reveladora. Frentis escolheu Davoka, Draker e Trinta e Quatro para
acompanhá-lo pelos esgotos, provocando reclamações incisivas de Arendil e
Illian por serem excluídos. Davoka repreendeu com severidade a garota por sua
petulância, e Banders recusou-se até mesmo a conceber a ideia de perder
Arendil de vista.
— Você ficará ao meu lado o tempo todo — disse ele ao neto. — Se isso der
certo, o feudo precisará de um novo senhor até o final da semana.
Eles pararam após uma jornada de dois dias, ocupando uma depressão rasa
do Rio Salgado, com Varinshold fora de vista logo depois do horizonte. Os irmãos
de Sollis fizeram o reconhecimento dos arredores, em grande parte capim e
extensões de cinzas deixadas pela destruição da Urlish. Eles retornaram ao
anoitecer e relataram que os volarianos pareciam ter abandonado as patrulhas.
— É possível que não lhes reste uma cavalaria para isso — sugeriu Ermund.
— Matamos centenas no Esporão.
Eles se acomodaram para descansar à medida que a noite caía, aninhando-se
em mantos contra o frio, uma vez que não podiam se arriscar a acender
fogueiras. Frentis estava sentado observando os outros dormirem, determinado a
permanecer acordado, como fizera nas duas últimas noites, lutando contra a
exaustão a cada passo. Em determinado momento, ele acordara de repente e se
vira sendo segurado na sela por Davoka, sacudindo a cabeça em resposta aos
pedidos severos da mulher para que ele descansasse quando chegasse a noite. Ela
espera por mim lá, sabia ele com uma certeza fria.
— Vai acabar amanhã, irmão? — Era Illian, sentada a alguns metros dele,
enrolada num manto tirado de um volariano morto no Esporão. A vestimenta a
cobria com facilidade, deixando visível apenas o rosto oval e pálido dentro do
capuz.
Tão jovem, pensou Frentis. Tão pequena. Ninguém imaginaria, assim como
ninguém imaginava quando olharam para ela. Irritado com a comparação, ele
desviou o olhar.
— O que vai acabar? — perguntou Frentis, mantendo a voz baixa.
— A guerra — falou ela, aproximando-se. — Draker disse que tudo estará
acabado amanhã. — Illian deu um sorriso pesaroso. — Então disse que iria
comprar um bordel com os seus espólios.
— Duvido que reste algum para ser comprado, minha senhora.
— Mas é verdade? A guerra vai terminar?
— Espero que sim.
Ela pareceu estranhamente desanimada ao ouvir isso, uma leve indicação do
seu beicinho cada vez mais raro surgindo nos lábios.
— Nada mais de gorin — murmurou ela. — Nada mais de Davoka. Arendil
vai partir para governar o seu feudo, Draker vai para o seu bordel, você para a
sua Ordem.
— E a minha senhora?
— Não sei. Não faço ideia se o meu pai está vivo, se a casa dele ainda está de
pé.
— E a sua mãe?
A expressão de Illian ficou um pouco carregada.
— Meu pai costumava dizer que ela havia morrido quando eu era pequena.
Um dia, ouvi duas das criadas conversando. Ao que parece, minha mãe fugiu
com o capitão de um navio quando eu tinha apenas um ano. Meu pai mandou
jogar fora todas as peças de roupa dela que havia na casa, assim como todas as
imagens. Eu nem mesmo sei como era a aparência dela.
— Nem todos são feitos para serem pais — disse Frentis, pensando na própria
família. Se era que podia ser chamada assim. — Qualquer que tenha sido o
destino de seu pai, as terras e os bens dele agora são seus por direito. Tenho
certeza de que a Rainha providenciará a restituição adequada no seu devido
tempo.
— Restituição. — Ela olhou em volta para os campos de cinzas que os
cercavam, azul-prateados sob a luz do luar. — Será que isso é possível agora?
Tantas coisas foram destruídas. Além disso, não sei se quero retomar a posse de
uma ruína vazia.
— Arendil… — começou Frentis num tom cauteloso. — A senhora parece…
gostar dele.
Illian soltou um leve suspiro de exasperação envergonhada.
— Eu gosto. Ele é muito meigo, e imagino que a Senhora Ulice um dia
encontrará uma esposa acostumada a belos vestidos, bailes e conversas vazias
com tolos privilegiados. Eu não sou assim. Não agora, se é que já fui algum dia.
— Ela mexeu nas dobras do manto e ergueu a sua besta, segurando firme a
coronha com as mãos. — Sou feita para isto. Sou feita para a Ordem, irmão.
Frentis só pôde olhar para a expressão completamente séria da garota.
— Não há irmãs na Sexta Ordem — disse ele, sem saber que outra resposta
dar.
— Por que não?
— Simplesmente não há. Nunca houve.
— Porque só homens lutam guerras? — Ela indicou Davoka com a cabeça.
— E quanto a ela? E quanto a mim?
Ele se remexeu pouco à vontade e abaixou os olhos.
— A composição das Ordens é determinada pelas doutrinas da Fé. Não
podem simplesmente ser abandonadas…
— Poderiam, se você se responsabilizasse por mim. Especialmente se o
Irmão Sollis também desse o seu voto. Tudo mudou. Ouvi você mesmo dizer isso.
— É uma ideia tola, Illian…
— Por que é tola?
— Você quer ser como eu? — Frentis se inclinou para a frente, olhando nos
olhos dela, subitamente irritado com a ingenuidade da garota. — Tem alguma
ideia do que eu fiz?
— Você é um grande guerreiro, e o homem que salvou a minha vida.
Ao ver o olhar perplexo de Illian, ele suspirou e sua raiva evaporou-se ao se
recostar.
— Eu matei pelo caminho enquanto atravessava meio mundo para voltar a
este Reino, e quando a Rainha vier reclamar o trono, ela irá se certificar de que
eu preste contas.
— Pelo quê? Por ganhar a guerra?
Frentis apenas sacudiu a cabeça.
— Eu já fui como você, perdido, em busca de um lar, e implorei o mesmo
favor a alguém que acabou se odiando por dizer sim. E já estou farto de ódio,
minha senhora. Fale com o Irmão Sollis se quiser. Ele dirá a mesma coisa.
— Veremos — murmurou Illian, ficando num silêncio mal-humorado.
Ele a viu colocar a besta de lado e tirar um virote da aljava, passando a farpa
de ferro numa pequena pedra de amolar. Não, admitiu ele. Não serve mais para
vestidos e bailes.
— Sabia que nas selvas no sul do Império Volariano vive uma fera de quatro
metros de altura, toda coberta de pelos, e que se parece com um homem sobre
pernas de pau? — perguntou Frentis.
Illian inclinou a cabeça para ele e ergueu uma sobrancelha.
— Você está inventando isso.
— Não, é verdade. Juro pela Fé. E nos oceanos a leste há tubarões enormes,
tão grandes quanto uma baleia e listrados de vermelho de ponta a ponta.
— Ouvi falar desses — admitiu ela. — Meu tutor me mostrou uma ilustração
uma vez.
— Bem, eu os vi. Há mais do que guerra para se encontrar neste mundo,
Illian. Há tanto coisas belas quanto feias, desde que você tenha os olhos para vê-
las.
Ela soltou uma risada.
— Talvez um dia eu encontre um capitão de navio para mim e vá em busca
delas. — As palavras eram vazias, ele sabia, o humor forçado. Ela já havia
decidido seguir um único curso.
— Espero que sim.
Ele a viu franzir a testa ao olhar para o seu rosto, a beleza jovem desfigurada
pela preocupação.
— Você precisa dormir, irmão. Por favor. Eu vou vigiar. Se você começar a
ficar… inquieto, eu lhe acordo.
Há alguns sonhos de onde não há como acordar. Contudo, ele estava muito
cansado agora, e uma batalha o aguardava dentro de menos de três horas.
— Não descuide do seu próprio sono — disse a ela, deitando-se de lado,
respirando e fundo e então fechando os olhos.

Ela está sentada sozinha numa câmara espaçosa com chão de mármore e mobília
refinada; é o meio da tarde e uma brisa suave balança as cortinas de renda sobre
os arcos que levam à sacada. A câmara pertencia ao Conselheiro Lorvek e está
repleta de artefatos comprados ou roubados de todos os cantos do mundo: estátuas
alpiranas de bronze e mármore, belas pinturas do Reino Unificado, louças
primorosas do Extremo Ocidente, máscaras de guerra extravagantes das terras
das tribos do sul. Uma coleção inestimável, o fruto do trabalho de várias vidas. É
como eles perduram, esses poucos seres em roupas vermelhas, preenchendo os
seus dias intermináveis com obsessões sucessivas, por arte, riqueza, carne… ou
assassinato.
Ela passa os olhos pela coleção de Lorvek e decide que mandará destruir tudo
na manhã seguinte. A alimentação, dois dias antes, a deixara revigorada, mas com
uma inquietude desagradável. O dotado havia sido de fato sórdido, um homem
comum de meia-idade com a habilidade de manter uma pessoa paralisada, imóvel,
mas consciente. Ele passara mais de duas décadas vagando pelo império matando
mulheres, paralisando-as para que pudessem apenas sofrer em silêncio enquanto
ele causava toda espécie de tormentos em suas carnes. Com o devido tempo, ele
teria sido um recruta útil para o Aliado, mas sua mente estava desregulada demais
para justificar o esforço necessário. O homem tentara resistir a ela, sentindo de
alguma forma a ameaça, apesar das drogas, lançando seu dom contra ela como
uma mão invisível agitada por um bêbado confuso. Ela teria rido dele em outra
época, até mesmo se retirado por um tempo para permitir que o efeito da droga
diminuísse antes de retornar para desfrutar da fúria impotente do homem enquanto
ela prolongava tudo aquilo. Porém, ela não riu, o miserável atabalhoado merecia
pouca consideração e certamente nenhuma pena, mas o sangue da garganta dele,
que ela cortara, tivera um gosto de podre, fazendo-a lutar contra a ânsia de vômito
e se forçar a beber bastante, perguntando-se se todas as mortes que ela causara
também maculariam o seu sangue.
Ela afasta a lembrança e regula a respiração, acalmando a mente, focalizando
os pensamentos. Eu sinto você, amado, diz a ele. Sei que você também me sente.
Ela aguarda com a mente aberta uma resposta, ciente de que ele está lá, mas
sentindo apenas a intensidade de seu desprezo. Não vai falar comigo?, implora
ela. Você também não está só? E nós dividimos tantas coisas.
A raiva aumenta, atravessando o grande abismo para açoitá-la, fazendo-a
estremecer. Eu temo por você, insiste ela. Nós sabemos que ela está viva, amado.
Sabemos que ela está indo tomar a cidade, e você sabe o que ela fará quando o
encontrar.
A raiva diminui, substituída por uma aceitação taciturna e uma grande culpa.
Esqueça todo esse absurdo que instilaram em você, implora ela. Todas as
mentiras que lhe contaram. A Fé é uma ilusão infantil, a nobreza a máscara de
um covarde. Não foram feitas para gente como nós, meu amado. Você sentiu,
quando estávamos matando juntos. Eu sei que sentiu. Estávamos acima de todos,
e podemos ficar novamente. Parta agora. Corra. Volte para mim.
A sensação muda, a emoção desaparece para dar lugar a uma imagem, uma
jovem de beleza misteriosa, metade do rosto banhado pela luz do fogo, a testa
franzida de confusão e pesar. Os lábios se movem, mas ela não ouve o som,
embora saiba as palavras com uma clareza absoluta. Eu fiz o meu acordo, amado.
Não posso fazer outro.
Eu não tive escolha, ela lhe diz agora.
A imagem desaparece, girando na mente dela até se transformar numa voz,
seca e fria, mas maravilhosamente familiar. Eu também não.

Eles se reuniram duas horas antes do amanhecer em torno de Sollis, que


desenrolava um mapa recém-desenhado da cidade, apontando para o portão
nordeste.
— Sugiro um ataque em duas direções, meu senhor — disse ele a Banders. —
Os seus cavaleiros farão uma investida ao longo da Travessa do Portão, que é
larga o suficiente para dez homens andarem lado a lado e leva diretamente ao
porto. Se for bem-sucedido, vocês dividirão a cidade em duas e semearão
confusão nas fileiras do inimigo. Os meus irmãos, a companhia do Irmão Frentis
e os renfaelinos irão para a Fortaleza Negra. É uma fortaleza resistente e servirá
como local para uma retirada, caso a maré da batalha se vire contra nós.
Banders assentiu e virou-se para se dirigir aos seus capitães reunidos:
— Estamos em desvantagem, como sabem. Mas soubemos que Lorde Vaelin
está vindo para tomar esta cidade, e pretendo ajudá-lo a fazer isso. Digam a
todos os cavaleiros e soldados que quando amanhecer ninguém deixará de atacar
e que não será mostrada nenhuma reserva ou misericórdia. A cidade está
infestada, e nós iremos purificá-la. — Ele olhou para Arendil, acrescentando em
tom sombrio: — Lorde Darnel não deve ser capturado vivo, independentemente
de qualquer apelo às tradições cavalheirescas. Ele perdeu o direito à vida e ao
título de cavaleiro há muito tempo.

Os quatro partiram a pé para a cidade, seguindo a extensão de muralhas ao norte,


onde o Rio Salgado deixava o local através de uma grande comporta. Eles se
arrastaram lentamente no último quilômetro, com Draker resmungando atrás e
recebendo um chute irritado de Davoka. O fora da lei se tornara muito mais
furtivo com o passar dos meses, mas com frequência precisava de um lembrete.
Como esperado, a comporta era vigiada demais para que pudessem entrar,
mesmo que fosse possível vencer a corrente espumante que passava por cima da
barreira num fluxo constante. Em vez disso, Frentis os levou para dentro do rio e
seguiram a muralha para o norte. Eles vestiam roupas de tecidos leves, as botas
haviam sido abandonadas antes de entrarem na água gelada e suas armas
limitavam-se a adagas e espadas.
O cano saía da muralha um metro acima da água onde o rio começava a
afastar-se da cidade e a seguir a sua longa jornada sinuosa até o centro do Reino.
Um fluxo contínuo saía do cano, deixando uma mancha nauseabunda no rio que
fez Draker ter ânsias de vômito enquanto nadavam em suas águas. Frentis
encostou-se na muralha, mantendo os olhos fixos no parapeito acima e
encontrando-o vazio, embora se ouvisse o murmúrio de vozes volarianas perto
dali. Ele não levara aquela saída em consideração quando escaparam da cidade
durante a invasão devido à facilidade com que arqueiros os teriam abatido assim
que saíssem do rio. Agora apostava na vulnerabilidade do local, duvidando que
mesmo uma alma tão cautelosa quanto o Rosa Sangrenta veria muito perigo
numa entrada tão exposta.
Frentis moveu-se ao longo da muralha, explorando-a com as mãos à procura
de apoios, mas sem encontrar nada.
— É escorregadia demais, irmão — sussurrou Draker ao seu ouvido,
raspando limo da pedra com a sua mão grande.
Frentis virou-se quando Trinta e Quatro deu um tapinha em seu ombro. O ex-
escravo bateu no peito e apontou para a boca do cano, e então fez um movimento
de impulso para cima com os braços. Frentis deu mais uma olhada na muralha
coberta de limo e assentiu, relutante. Eles teriam de arriscar o barulho de algo
agitando a água se fossem seguir em frente.
Ele e Davoka colocaram-se ao lado de Trinta e Quatro, respiraram fundo e
mergulharam na água. Frentis agarrou a perna magra do homem e colocou o pé
dele em seu ombro, contou até três para garantir que Davoka se preparara da
mesma forma, estendeu a mão para bater no braço da lonak e os dois se
levantaram ao mesmo tempo, erguendo Trinta e Quatro para fora da água, e ele
se agarrou à borda do cano. Trinta e Quatro ficou pendurado por alguns segundos
enquanto eles observavam a muralha acima, aguardando por algum sinal de
terem sido descobertos. Nada. Até mesmo o murmúrio de vozes tinha
desaparecido.
Trinta e Quatro subiu no topo do cano e pegou a corda enrolada que Frentis
lhe atirou, passando-a em volta do grande tubo de ferro e a amarrando firme
com a sua costumeira facilidade com nós. Draker subiu primeiro, esgueirando-se
para dentro do cano e engolindo xingamentos pela imundície que agora se
amontoava à sua frente. Passaram-se vários momentos ansiosos até a sua cabeça
finalmente desaparecer dentro do encanamento. Davoka o seguiu, grunhindo ao
subir na abertura, empurrando o corpo de Draker à sua frente. Frentis fez sinal
para que Trinta e Quatro fosse em seguida e então subiu, lançando um último
olhar para as muralhas ao desamarrar a corda do cano, arrastando-a atrás de si
enquanto se esgueirava adiante.
— Nada como o cheiro do lar, hein, irmão? — perguntou Draker quando ele
chegou aos esgotos. O fora da lei corpulento estava de pé no canal em meio à
correnteza de imundície, olhando para os dois lados. — Acho que é por aqui —
disse ele, apontando para a direita. — Pelo que me lembro, o canal faz a curva
em direção ao portão.
— Vá na frente — disse Frentis.
Levaram mais de uma hora chapinhando na água poluída e fizeram umas
duas curvas erradas até chegarem ao escoadouro apropriado. Era uma grade de
ferro a seis metros do portão norte com uma abertura estreita, onde a muralha
interna encontrava-se com a estrada. Frentis lembrava-se de certa vez passar
pela abertura com relativa facilidade, muitos anos antes, quando fugira de um
lojista vingativo. No entanto, agora até mesmo Trinta e Quatro achava a abertura
estreita demais.
— Tem uma mais larga na Rua da Pederneira — lembrou Draker.
— Longe demais — disse Frentis. Ele olhou pela abertura para as ruas
arrasadas mais além, avistando uma série de silhuetas irregulares, paredes caídas
e construções incendiadas, sem qualquer proteção eficaz, o céu acima agora de
um azul-cinzento que indicava a rápida aproximação do nascer do sol. — Eles
nos verão nos aproximando.
Ele puxou uma adaga do cinto e começou a raspar a argamassa ao redor dos
tijolos que formavam a abertura, logo acompanhado pelos outros.
— Com cuidado — disse ele a Draker, quando o homenzarrão bateu a espada
curta com força na argamassa.
O sol já havia nascido quando soltaram tijolos suficientes para poderem
passar, e longas sombras estendiam-se das ruínas quando eles saíram para o ar
livre. Frentis os conduziu de sombra em sombra em direção ao portão,
encontrando-o guarnecido por uma dúzia de Varitai.
— A gente devia ter trazido Illian — resmungou Draker em voz baixa. — Ela
mataria alguns num piscar de olhos.
Frentis fez sinal para Trinta e Quatro.
— Precisamos de uma distração.
O ex-escravo assentiu, embainhou a espada curta, levantou-se e correu na
direção do portão, gesticulando freneticamente.
— O general! — gritou ele em volariano quando os Varitai avançaram, indo
confrontá-lo com as espadas desembainhadas. — Ele está chamando vocês! —
prosseguiu Trinta e Quatro, apontando na direção do quadrante sul. — Escravos
estão se rebelando! Vocês precisam vir!
Como esperado, eles ficaram parados, encarando-o em silêncio. Os Varitai
eram condicionados a responder apenas a ordens dadas pelos seus oficiais, e não
havia chance alguma de que fossem seguir os comandos do ex-escravo. Contudo,
olharam em sua direção quando ele surgiu correndo e então parou, gesticulando
sem parar para que se aproximassem.
— Venham! Venham! Ou eu serei esfolado vivo!
Um sargento Espada Livre de aparência cansada saiu da casa da guarda
esfregando olhos embaçados e afivelando o cinto da espada, quando então
avistou o escravo desesperado.
— Que merda você quer?
Frentis acenou com a cabeça para os outros e esgueirou-se para fora da
sombra, aproximando-se sorrateiro e escondido por uma pilha baixa de tijolos
enegrecidos, a menos de cinco metros do portão.
— Uma revolta, honorável cidadão! — gritou Trinta e Quatro ao sargento,
com um choro incrivelmente convincente na voz. — Por favor! Ah, por favor!
— Cale a boca — disse o sargento, cansado, indo na direção de Trinta e
Quatro, claramente intrigado pela roupa do homem, imunda até mesmo para um
escravo, e ao ver a espada que ele carregava. — Quem lhe deu essa arma? Me
dê isso aqui!
— Certamente, honorável senhor — respondeu Trinta e Quatro quando o
sargento tentou lhe tomar a espada, desembainhando-a com um único
movimento fluido e passando a lâmina pelos olhos do homem. Trinta e Quatro
passou com agilidade pelo sargento quando o homem caiu de joelhos, gritando e
agarrando o rosto, matou um Varitai com uma estocada no pescoço e então se
virou e correu. Seis Varitai saíram em perseguição, um caindo morto com uma
faca de Frentis na garganta, outros dois rapidamente abatidos por Davoka e
Draker.
Frentis pegou a lança derrubada pelo Varitai que ele matara e a arremessou
contra o seu companheiro que avançava com força suficiente para atravessar o
peitoral do volariano. Trinta e Quatro derrapou até parar, girou nos calcanhares e
desferiu um golpe preciso na perna do Varitai que o perseguia, o golpe de Draker
quase decapitando o soldado-escravo enquanto o homem tombava.
— Fiquem perto! — ordenou Frentis, recolhendo uma lâmina caída e
correndo para o portão com uma espada em cada mão.
Os cinco Varitai remanescentes entraram numa formação defensiva
compacta, os rostos impassíveis por trás das lanças apontadas. Frentis arremessou
a espada da mão esquerda no homem do centro, e a lâmina cravou-se em seu
rosto logo abaixo do elmo.
Frentis saltou pela brecha, golpeando à esquerda e à direita, os outros se
aproximando para dar cabo dos que ele feria. Um grito cheio de dor atraiu seu
olhar e ele viu Draker caído de costas, bloqueando estocadas da lança de um
Varitai, um corte aberto em sua testa. Davoka foi ajudá-lo, mas o fora da lei
mostrou as habilidades adquiridas a duras penas rolando sob a guarda do Varitai e
espetando a sua virilha, estragando um pouco o feito ao derrubar o soldado-
escravo com uma série de golpes frenéticos, enquanto obscenidades saíam numa
torrente dos seus lábios.
— Levante o portão — disse Frentis a Davoka, seguindo para os degraus que
levavam ao parapeito. Ele encontrou dois Espadas Livres ali, os rostos jovens
horrorizados com a carnificina que haviam testemunhado abaixo, apontando as
espadas para ele com mãos trêmulas.
— Lutem ou fujam — disse Frentis a eles em volariano. — Vocês morrerão
hoje, de qualquer forma.
Eles fugiram, saindo em disparada pelo parapeito sem olhar para trás.
— Digam aos seus companheiros que o Irmão Vermelho está aqui! — gritou
Frentis na direção deles antes de se virar e tirar uma tocha de um suporte.
Ele saltou para as ameias e agitou a tocha de um lado para outro, olhando
para os campos enevoados além das muralhas. Poucos segundos depois, viu uma
única tocha despontando, ardendo com mais intensidade à medida que o seu
portador se aproximava, e dois mil cavaleiros renfaelinos surgiram da névoa a
todo o galope. Banders estava claramente visível na frente da coluna compacta, a
armadura falsamente enferrujada reluzindo ao sol nascente, ladeado por Arendil
e Ermund. Eles atravessaram o portão a tropel sem parar, o estrépito das
ferraduras nas pedras tornando-se ensurdecedor ao investirem pela Travessa do
Portão. Alguns Varitai chegaram correndo do quadrante oeste para confrontá-los,
uma única companhia conseguindo entrar em formação de um lado a outro da
rua antes de ser atropelada pela onda de cavalos e aço.
— Irmão! — Frentis olhou para baixo, do alto da casa da guarda, e encontrou
Ivern sorrindo e montado, com o cavalo de Frentis ao seu lado. — A Fortaleza
Negra nos aguarda!
A enorme fortaleza já entrara em alvoroço quando eles chegaram lá, e dois
Varitai jaziam mortos no portão principal e muitos outros no interior. Eles foram
obrigados a abrir caminho lutando pelo pátio conforme mais guardas surgiam
correndo de um labirinto de passagens sombrias, a maioria Varitai, com alguns
Espadas Livres que não demonstravam nenhum sinal da covardia de seus
companheiros da muralha. Sollis conduziu os irmãos pelas escadas até os níveis
superiores, varrendo os arqueiros do parapeito e disparando as próprias flechas
contra os defensores no pátio abaixo.
Frentis conduziu a sua companhia de porta em porta, Draker as arrombando
enquanto procuravam pelos Aspectos, encontrando apenas mais volarianos, a
maioria disposta a lutar, outros amedrontados, mas todos destinados a morrer. Ele
estava saindo de um depósito quando um Kuritai surgiu das sombras, as espadas
curtas reluzindo. Frentis aparou o primeiro golpe, mas escorregou numa poça de
sangue e caiu nas lajes, o Kuritai assomando sobre ele… e então o homem
tombou morto quando um virote atravessou o seu peitoral.
— Não é do seu feitio ser tão desajeitado, irmão — observou Illian do outro
lado do pátio, as palavras um pouco indistintas pelo virote que segurava entre os
dentes enquanto apoiava a besta no diafragma para puxar a corda para trás.
Frentis estava prestes a lhe dizer para se juntar ao Irmão Sollis no parapeito,
mas sua atenção foi atraída para a comoção que se ouvia de uma porta
entreaberta no fundo do pátio. Ele foi até lá e encontrou degraus que desciam
para as profundezas da Fortaleza Negra. Gritou para que Davoka o seguisse e
desceu correndo. Ao pé da escada ele encontrou um Espada Livre morto com o
que pareciam ser dardos de aço cravados nos olhos; ao lado dele havia o corpo
de um homem num uniforme esfarrapado da Guarda da Cidade, com uma
espada ensanguentada na mão e a barriga aberta.
Na câmara depois da escada jaziam três Varitai com dardos cravados nos
pescoços; do outro lado dos corpos, uma jovem engalfinhava-se com um Espada
Livre corpulento, o sangue escorrendo do nariz e dos olhos dela quando ele a
forçou a ficar de joelhos, a espada curta a centímetros de sua garganta. Frentis
preparou-se para desferir uma estocada, mas Illian foi mais rápida, disparando
um virote na têmpora do volariano antes que ele pudesse usar a lâmina.
A mulher cedeu sob o Espada Livre, que tombou, o sangue lhe brotando dos
lábios ao soltar um gemido de quase total exaustão. Frentis tirou o corpo de cima
dela e a ajudou a se sentar, notando que os olhos da mulher ainda brilhavam,
apesar da palidez.
— Meu irmão… — sussurrou ela.
— Irmão?
— Rhelkin… Guarda da Cidade.
Frentis sacudiu a cabeça e a mulher gemeu de tristeza, piscando para afastar
lágrimas vermelhas antes de tornar a falar.
— Aspectos… estão salvos?
Ele passou os olhos pela câmara e avistou as celas. De uma delas ele podia
ouvir uma batida implacável, uma voz no interior gritando algo ininteligível, mas
com um estranho tom de autoridade.
— Reviste os corpos — disse ele a Illian. — Encontre as chaves.
O Aspecto Dendrish ficou imóvel e empertigado quando a porta se abriu, o
rosto rígido e calmo, embora os olhos piscando rápido revelassem um homem à
espera de uma morte ligeira.
— Aspecto — cumprimentou-o Frentis com uma mesura. — Irmão Frentis.
Duvido que você lembre, mas nos encontramos no meu Teste do
Conhecimento…
O Aspecto pareceu se encolher, soltando um imenso suspiro de alívio e
dobrando-se para a frente tanto quanto o seu corpo permitia.
— Onde está a Aspecto Elera? — perguntou ele após um momento, erguendo
um rosto encovado que de algum modo conseguira preservar um vestígio da
arrogância de que Frentis se lembrava.
— Irmão Frentis — disse ela quando a porta se abriu, sentando-se na cama e
lhe dando as boas-vindas com um sorriso, as mãos entrelaçadas sobre o colo. —
Como você cresceu. Alucius está com você?
Ouviu-se o som de passos apressados e Ivern apareceu na porta da cela com
um sorriso mais largo do que de costume.
— O Irmão Sollis envia os seus cumprimentos, Aspectos — disse ele,
acenando rapidamente com a cabeça para eles antes de se dirigir a Frentis. —
Ele disse para você reunir a sua gente e esquecer a defesa deste lugar.
Precisamos ir para as docas.
CAPÍTULO DOZE
Vaelin

— Eu já lhe disse — começou Nortah, sua pele um tanto acinzentada à luz fraca
do porão — quanto detesto viajar de navio?
Atrás dele um de seus combatentes concordou com um grunhido e vomitou
dentro do próprio elmo.
— Faça isso no chão — repreendeu-o Nortah. — Logo você terá de usar o
elmo.
Vaelin deu um tapinha no braço do irmão e foi para o fundo do porão,
passando por fileiras de combatentes trajando armaduras volarianas e descendo
a escada até o convés inferior onde os seordah estavam sentados sofrendo da
mesma forma. Ele encontrou Hera Drakil sentado ao lado de uma portinhola
entreaberta, de olhos fechados e a com a boca aberta para respirar o ar fresco do
exterior.
— Estamos a dez quilômetros do porto — disse Vaelin ao seordah, que franziu
a testa, confuso. — Logo chegaremos — explicou ele. — Prepare a sua gente.
— Eles estão prontos para sair desta coisa horrível desde que entraram nela
— retorquiu o chefe de guerra com um brilho furioso no olhar.
Sem a orientação de Dahrena, persuadi-los a tomar parte naquele
estratagema não fora uma tarefa fácil. Vaelin explicara tudo em detalhes para
Hera Drakil, com a Rainha fazendo promessas de grandes recompensas e
gratidão eterna caso eles concordassem em velejar até Varinshold. O seordah
escutara tudo em silêncio e então retornara ao acampamento de seu povo. Vaelin
e Ly rna permaneceram por perto, assistindo ao desenrolar da discussão. Os
seordah não eram um povo expressivo, era raro erguerem a voz ou gesticularem,
de modo que a quietude crescente evidente nos vários chefes de guerra, ao se
sentarem em círculo e debaterem os méritos do plano de Vaelin, tivera um ar
meio sinistro. Por fim, após várias horas e com o cair da noite, Hera Drakil
retornou, o rosto rígido de relutância ao dizer: “Nós vamos para a grande água.”
— Sal manchando cada respiração — disse o seordah. — Sem terra sob os
nossos pés. Como é possível aguentar uma coisa dessas?
— Por ganância ou necessidade — respondeu Vaelin. — Lembra-se do seu
papel nisso?
— Matar todos os duas-espadas que encontrarmos e seguir para a grande
construção preta. — O seordah se remexeu quando Vaelin levantou-se,
inclinando-se para a frente e o encarando fixamente com o mesmo olhar
indagador que lhe lançava desde Alltor. O que ele procura?, perguntou-se Vaelin
mais uma vez quando os olhos do chefe encontraram os seus. Ele se pergunta se
há outra alma por trás dos meus olhos? Ou é mais sobre o que eu posso ter trazido
de volta?
— Você… — O seordah fez uma pausa, procurando as palavras certas. —
Você é mais… você agora, Beral Shak Ur.
Vaelin respondeu com um aceno cauteloso de cabeça. Ele na verdade se
sentia mais forte; o frio havia praticamente deixado os seus ossos. Além disso, no
seu último exercício com Davern ele realmente derrotara o construtor de barcos,
para deleite de sua irmã. Ela passara a assistir aos confrontos diários e deu um
grito de triunfo quando a espada de Vaelin encontrou uma brecha nas defesas de
Davern, golpeando-o no diafragma com força suficiente para provocar um grito
de dor repleto de obscenidades. Ele sentiu certo prazer com a fúria carrancuda
do homem diante das provocações de Alornis, mas teve o cuidado de não deixar
isso evidente ao agradecer ao sargento pelos seus serviços e liberá-lo de
obrigações futuras.
— Eu estou sempre à sua disposição, meu senhor — disse Davern por entre os
dentes.
Vaelin seguiu para o convés superior e juntou-se a Reva no leme, que trajava
a cota de malha leve, com a espada atravessada nas costas e o arco na mão,
rindo de algo que o Escudo dissera. O humor do homem desapareceu ao avistar
Vaelin, e Escudo fez sinal para que o seu timoneiro assumisse o timão,
oferecendo uma mesura rápida.
— Meu Senhor da Batalha.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — cumprimentou Vaelin, fazendo uma
mesura mais longa. O Escudo escondia o seu ressentimento com mais cuidado do
que Davern, mas ele suspeitava que fosse igualmente profundo.
— Imagino que os nossos selvagens de estimação estejam preparados, não?
— perguntou Ell-Nestra.
— Não os chame assim — disse Vaelin, incomodado com a facilidade com
que o Escudo os provocava. Derrota e humilhação são péssimas tutoras, ao que
parece.
— Perdão, meu senhor. Mas o senhor deve concordar que eles dão péssimos
marinheiros.
— Quem pode culpá-los? — perguntou Reva, o rosto levemente menos
acinzentado do que o de Nortah. — Eu enfrentaria meio mundo para sair desta
banheira.
— Banheira? — O Escudo virou-se para ela com fúria simulada. — Minha
senhora insulta a melhor embarcação já capturada por um sabre meldeneano.
Ora, eu a desafiaria, se a senhora não fosse apenas uma mulher frágil.
Ele aceitou de boa vontade o tapa ligeiro que Reva lhe deu, fazendo-a rir
novamente com uma mesura floreada e afastando-se para ordenar ao seu
imediato que reunisse um grupo de combate. Pensei que pelo menos ela seria
imune ao charme dele, pensou Vaelin, aborrecido.
— Sua gente está pronta? — perguntou ele a Reva.
Ela ergueu a cabeça para o cordame acima e Vaelin viu os arqueiros
amontoados nas plataformas no alto dos dois grandes mastros da gigantesca
embarcação. Uma figura inclinou-se por sobre a beira da plataforma e acenou
para eles, e Vaelin reconheceu a silhueta de Bren Antesh. Ele percebeu certa
impaciência nos movimentos do arqueiro.
— Acho que o seu Lorde dos Arqueiros está ansioso para que você se junte a
ele lá no alto.
— Nesse caso, ele ficará desapontado — retorquiu Reva com um olhar
firme.
Vaelin deixou o assunto de lado; adverti-la parecia irrelevante, dada a missão
que teriam pela frente. Uma aposta temerária, o Conde Marven a chamara, não
sem justificativa. Vaelin olhou para os dois navios que os seguiam, as únicas
embarcações volarianas capturadas pelos meldeneanos durante a sua breve
campanha, cada uma repleta com mais seordah. Além do horizonte aguardavam
todos os navios que puderam requisitar sem aviso prévio, trinta embarcações
carregadas com mais gente da floresta e três regimentos da Guarda do Reino,
incluindo os Lobos Corredores. A nata daquele novo exército, arriscada na
expectativa da arrogância volariana.
O Escudo entrara em Warnsclave um dia depois da chegada de Belorath, sua
grande nau capitânia carregada de suprimentos roubados, relatando o seu
desalento por não ter conseguido capturar um navio de tamanho e modelo iguais
ao seu próprio monstro recém-adquirido.
— Foi como enfrentar uma imagem refletida num espelho — disse ele a
Ly rna, o seu costumeiro entusiasmo um pouco abrandado e, ao contrário da
maioria, menos inclinado a olhá-la no rosto. — Exceto que era comandada por
um tolo — prosseguiu ele. — Infelizmente, os incêndios que começamos no
navio foram grandes demais e ele afundou, junto com algumas centenas de
Espadas Livres, a julgar pelos gritos.
Fora então que a ideia lhe ocorrera, despertando instintos que Vaelin pensava
ter perdido com a sua canção. Eles estão esperando pelo irmão do Despeito da
Tempestade em Varinshold. Ele ponderara a respeito durante um dia e uma noite
antes de procurar a aprovação da Rainha.
— Não temos navios suficientes para o exército inteiro — lembrou-lhe Ly rna.
— Mas suficientes para tomar as docas, e Varinshold resistirá ou cairá
dependendo de quem as dominar. Além do mais, o Irmão Caenis informará ao
exército renfaelino a necessidade de se atacar na véspera do início do inverno,
por meio do Irmão Lernial.
— As chances. — Ela sacudiu a cabeça. — Mesmo que esses renfaelinos,
quem quer que sejam, cavalguem em nosso auxílio, as chances ainda não
estarão a nosso favor. Marven tem razão, o risco é grande demais.
— Não para os seordah — disse Vaelin. — Não se realizarem o primeiro
ataque, auxiliados pelos arqueiros da Senhora Reva. As docas serão tomadas
dentro de uma hora.
— As proezas deles o impressionam tanto assim?
Vaelin lembrou-se dos Kuritai naquele dia, com a chuva caindo, rápidos e
mortais, mas parecendo crianças lentas quando o povo da floresta rompeu as
suas fileiras.
— A senhora não os viu em Alltor, Alteza. — Ele se empertigou, dirigindo-se
a ela formalmente. — Minha Rainha, como Senhor da Batalha eu lhe digo que é
somente dessa maneira que Varinshold estará em nossas mãos antes do fim do
ano.
— Pelo Pai — sussurrou Reva, trazendo-o de volta ao presente.
Ela estava na amurada quando o navio dobrou o promontório e avistaram
Varinshold. Por um momento Vaelin teve certeza de que haviam navegado para
libertar apenas uma ruína, o quadrante sul inteiro aparentemente nada mais do
que um aglomerado de tijolos empilhados e madeiras enegrecidas. No entanto,
ao se aproximarem, ele começou a discernir construções familiares ainda de pé
em meio aos escombros: as casas dos mercadores que davam para o porto, a ala
norte do palácio que mal podia ser vista em meio à neblina matutina que se
dissipava e, no centro, a silhueta escura da Fortaleza Negra, onde Vaelin esperava
que os Aspectos ainda estivessem vivos.
Reva deu as costas àquele cenário, com o rosto sombrio, e acenou para os
arqueiros acima, que se agacharam de pronto, desaparecendo de vista. O Escudo
vestiu uma cota de malha de elos largos e afivelou o sabre.
— Melhor ficar perto de mim, minha senhora — disse ele a Reva com uma
piscadela. — Irei protegê-la.
Dessa vez ela não riu, a visão da cidade aparentemente lhe privando do
humor.
— São eles que precisam de proteção — murmurou ela, indicando com a
cabeça os volarianos que agora estavam visíveis no cais. Seu rosto ficou tenso,
ela franziu a testa e fixou o olhar. Em qualquer outra mulher de sua idade aquilo
poderia ser interpretado como mau humor, mas Vaelin sabia que era a expressão
que ela exibira durante o cerco, a expressão que muitos volarianos viram em
seus últimos segundos de vida.
Ele colocou a mão no ombro de Reva e ela a apertou antes de se afastar e ir
para a proa. Os homens escolhidos de Nortah estavam subindo para o convés,
trajando equipamentos volarianos, o seu irmão se passando por um convincente
comandante de batalhão de Espadas Livres ao colocá-los em formação. Ele seria
o primeiro a descer a rampa para trocar saudações com qualquer volariano
graduado que aparecesse para recebê-los, antes de matá-lo e liderar a investida
contra a escolta dele, enquanto os arqueiros cumbraelinos despejavam uma
chuva mortal sobre todos os outros.
As velas foram ajustadas quando se aproximaram da entrada do porto, tudo
em silêncio para evitar que os que se encontravam em terra se perguntassem por
que podiam ouvir vozes meldeneanas num navio volariano. Vaelin via com mais
clareza a comitiva de recepção, fileiras precisamente alinhadas de Espadas
Livres parados atrás de um único oficial, com sorte o comandante volariano mais
graduado da cidade. Uma visão animadora, uma vez que provavelmente seria
aquele homem quem cumprimentaria Nortah e, caso não fosse, era quase certo
que morresse na chuva de flechas. À esquerda havia uma figura alta montada
num cavalo de guerra, o longo cabelo escuro preso para trás, deixando visível o
belo rosto. Ly rna dera ordens para que Darnel fosse capturado vivo se possível,
ansiosa para extrair quaisquer informações que ele tivesse a respeito dos planos
volarianos, mas Vaelin não achava que as chances do homem seriam boas
quando a Guarda do Reino desembarcasse. Ele teria de pedir ao Escudo para
tirá-lo de lá…
Vaelin empertigou-se quando o cavalo de Darnel começou a empinar de
repente e derrubou o dono da sela, escoiceando com os cascos. Por um segundo
tudo se transformou em confusão quando o cavalo enlouqueceu, atropelou
homens e disparou para longe, e então ele viu o jovem correndo na direção de
Darnel, um brilho de aço na mão.
Alucius!
Ele viu tudo, de pé e impotente conforme o navio se aproximava da costa. Viu
a espada de Darnel cortar o peito de Alucius, viu uma figura alta e familiar
empalar Darnel com o cravo que usava no lugar da mão, viu o comandante
volariano reunir seus homens em resposta.
— Antesh! — gritou Vaelin, colocando as mãos em volta da boca para que
sua voz chegasse às plataformas. A cabeça do Lorde Arqueiro surgiu sobre a
beirada da plataforma e Vaelin apontou para o cais. — Matem todos!
Reva apareceu ao seu lado.
— O que houve?
— Esqueça o plano — disse ele, passando a mão sobre o ombro para sacar a
espada, o cais agora a não mais do que três metros. — Diga a Nortah para
desembarcar com os homens e começar a matar.
Ele subiu na amurada, vendo as flechas cortarem o ar, volarianos tombando
às dezenas, Al Hestian visível em meio à confusão, agachado sobre o corpo do
filho para protegê-lo. Vaelin fez uma última inspeção no cais e saltou da
amurada, aterrissando com força e rolando para absorver o impacto. Ele correu
na direção de Al Hestian e viu seu caminho bloqueado por um aglomerado de
Espadas Livres, que usavam os corpos dos companheiros como escudos enquanto
recuavam sob as ordens de um sargento veterano. Vaelin abriu caminho por
entre eles com a espada, segurando a arma com as duas mãos ao desferir os
golpes, e dois volarianos tombaram um depois do outro, o sargento veterano
cravejado no peito e no pescoço por várias flechas, os outros tentando fugir, mas
caindo em seguida sob a chuva mortífera.
Vaelin continuou correndo, matando qualquer volariano que tentasse lhe
barrar o caminho. A espada cortava e reluzia com toda aquela graciosidade
natural e terrível que ele pensara ter perdido, bloqueando e matando enquanto se
movia instintivamente. Talvez nunca tenha sido a canção, pensou ele
sombriamente, esquivando-se de uma estocada de um Espada Livre, movendo-
se para trás dele e abrindo a sua nuca. Não é preciso uma canção para ser um
matador.
Ele avistou Al Hestian adiante, ainda agachado sobre Alucius, e um grupo de
volarianos correndo em sua direção. Algo zuniu pelo ouvido de Vaelin, e o
volariano que vinha à frente caiu morto com uma flecha cravada no peitoral.
Vaelin olhou para trás e viu Reva disparando flechas com o seu arco belamente
entalhado com uma velocidade e precisão que ele sabia que jamais igualaria.
Correu até Al Hestian, vendo mais dois Espadas Livres tombarem com as flechas
de Reva. Outro se aproximou o suficiente para golpear o antigo Senhor da
Batalha. Vaelin saltou, estendendo a lâmina para bloquear o golpe, e esmurrou o
rosto do homem. O volariano cambaleou, ergueu a espada curta para um
contragolpe, e então jogou a cabeça para trás e tombou quando uma das flechas
de Reva encontrou seu olho.
— Alucius! — Vaelin empurrou Al Hestian de lado e agachou-se ao lado do
poeta, passando os olhos do ferimento terrível até seu rosto, cujas feições
estavam lívidas, os olhos semicerrados. Reva agachou-se ao seu lado, tocando o
rosto de Alucius e dando um suspiro de pesar.
— Beberrão — sussurrou ela.
— Artesão! — gritou Vaelin, levantando-se e olhando para o mar. — Ele está
no terceiro navio com os outros dotados…
— Vaelin — disse ela, agarrando o seu braço. — Ele morreu.
Vaelin ficou parado, tirando os olhos do corpo de Alucius quando os seordah
passaram correndo por eles, de ambos os lados, chocando-se com as fileiras de
Espadas Livres reunidas às pressas e as desbaratando. Alguns lutavam, golpeando
com as espadas curtas os fantasmas silenciosos e rápidos demais que os
atacavam, suas lâminas encontrando apenas o ar ao tombarem às dezenas.
Outros fugiam, correndo em meio às ruínas ou pulando do cais, mais dispostos ao
afogamento do que a enfrentar tamanha investida. Aqui e ali era possível ver
Kuritai, que conseguiam acertar um ou dois golpes antes de serem abatidos a
porretadas. Para além da matança, Vaelin podia ver uma formação compacta de
volarianos aumentando no espaço mais aberto próximo do distrito dos armazéns,
fileiras de Varitai alinhando-se com sua precisão espantosa.
— Eles vão recuar para o palácio.
Vaelin virou-se e deu com Lakrhil Al Hestian encarando-o com um olhar
vago sob a testa franzida, a voz embotada e indiferente:
— Há armadilhas de fogo em volta das muralhas. Eles poderiam resistir por
dias.
Ele olhou mais uma vez para Alucius, curvou-se para recolher a espada ainda
presa na mão do poeta e a ergueu na direção da própria garganta. O soco de
Vaelin atingiu o aglomerado de nervos abaixo do nariz de Al Hestian, deixando-o
inconsciente no chão.
— Reúna os seus arqueiros no cais — disse ele a Reva, indicando com a
cabeça as fileiras compactas de Varitai que agora tentavam recuar lutando para
dentro da cidade, enquanto eram atacados continuamente pelos seordah, com
saraivadas de flechas disparadas de seus arcos planos. Apesar da retirada, Vaelin
sabia que aquilo estava longe de acabar; ele podia ver mais formações volarianas
movendo-se pelas ruínas, batalhões assumindo posições no quadrante norte e
mais a oeste. Ele avistou Nortah a pouca distância dali, reunindo os seus
combatentes entre os restos de uma companhia de Espadas Livres, a espada
ensanguentada de uma ponta à outra.
— Vão para o portão norte! — gritou Vaelin ao irmão. — Impeçam-nos de se
reagruparem! Mandarei a Guarda do Reino se juntar a vocês quando atracarem!
Nortah assentiu, e então parou de súbito ao avistar algo mais a leste, rindo e
apontando com a espada avermelhada.
— Talvez não seja necessário, irmão.
Vaelin os ouviu antes de ver, um grande estrépito dissonante de aço contra
pedra. O comandante volariano obviamente também ouvira, pois tentou enviar as
companhias para seu flanco esquerdo, tarde demais. Os cavaleiros adentraram
as fileiras volarianas, espadas longas e maças subindo e descendo enquanto
abriam caminho em meio aos Varitai, dividindo a formação em duas. Os seordah
investiram para completar a destruição, uma névoa fina e vermelha de sangue,
hálito e suor de cavalo erguendo-se para encobrir a carnificina em andamento.
Os Varitai, ao contrário dos Espadas Livres, não sabiam como fugir e lutaram até
o fim.
Vaelin ordenou que Nortah se juntasse aos arqueiros de Reva e corresse para
o palácio.
— Ainda há metade de uma divisão para matar — disse a eles. — Não se
arrisquem, mantenham-nos separados e deixem os arqueiros fazerem seu
trabalho.
Ele esperou a Guarda do Reino desembarcar; os Lobos Corredores foram o
primeiro regimento a chegar, agora comandados por um antigo cabo de quem
Vaelin lembrava-se vagamente da guerra alpirana.
— Mantenham este homem sob vigia — ordenou Vaelin, apontando para o
corpo inconsciente de Al Hestian. Ele deu uma olhada em Alucius, sabendo que
teria de ser ele a contar a Alornis e sentindo-se um covarde por odiar o dever. —
E protejam o corpo deste homem. A Rainha gostará de dizer algumas palavras
quando nós o entregarmos ao fogo.
Vaelin caminhou pelo cenário da derrota dos Varitai, um denso tapete de
corpos cobrindo o cais de ponta a ponta. Um cavaleiro de peito largo montado
num cavalo alto aproximou-se dele a trote, passando por cima de corpos e
quebrando ossos sob os cascos. Ele ergueu a viseira pintada de vermelho que lhe
cobria o rosto, cumprimentando Vaelin com uma risada forçada.
— Que espetáculo, hein, meu senhor?
— Barão. — Vaelin fez uma mesura. — Eu esperava que fosse o senhor.
Um jovem cavaleiro sem elmo levou o seu cavalo para o lado de Banders, o
seu olhar brilhante recaindo sobre Vaelin por um momento antes de passar os
olhos pelo cais com intenso escrutínio.
— Onde ele está? — perguntou o jovem, erguendo uma espada longa coberta
de sangue.
— Arendil, meu neto — explicou Banders a Vaelin. — Está ansioso para
encontrar Lorde Darnel.
— Lá atrás, jovem senhor. — Vaelin apontou por sobre o ombro. — Bem
morto, receio.
O jovem cavaleiro curvou-se na sela, abaixando o braço da espada. O rosto
revelava tanto alívio quanto desapontamento.
— Bem, pelo menos acabou. — Ele se animou ao avistar um grupo de
pessoas que se aproximava correndo pela Travessa do Portão, erguendo a mão
num aceno de boas-vindas. Vaelin a princípio pensou que fossem alguns dos
combatentes de Nortah, mas logo percebeu que eram uma mistura ainda mais
incomum, variando bastante em idade e vestimentas, incluindo uma garota de
não mais de dezesseis anos, uma lonak de estatura impressionante… e um jovem
musculoso com uma lâmina da Ordem.
Frentis olhou para o irmão enquanto se aproximava, com um leve sorriso nos
lábios. Vaelin parou a alguns metros de distância, passando os olhos por um
homem que era tanto familiar quanto estranho. Seu corpo era ainda mais
impressionante agora, poderoso e, notou Vaelin, sem cicatrizes, a julgar pela pele
visível através da camisa rasgada. O rosto também perdera a suavidade jovial de
que se lembrava, e havia linhas rígidas se formando em volta da boca e dos
olhos. Dessa vez Vaelin ficou grato pela ausência da canção, pois não sabia se
queria saber o que aqueles olhos haviam visto.
— Ouvi dizer que você tinha morrido.
O sorriso de Frentis alargou-se.
— Já eu sabia que você não podia ter morrido.
Ao ver o afeto evidente e genuíno do irmão, Vaelin sentiu a sua tristeza ficar
ainda maior.
— Exijo sua espada, irmão — disse ele, estendendo a mão.
O sorriso de Frentis desapareceu lentamente e ele olhou para as pessoas que o
ladeavam antes de assentir, avançando para oferecer o punho da espada. Vaelin
pegou a arma e fez sinal para o novo comandante dos Lobos Corredores se
aproximar.
— Este homem é obrigado pela Palavra da Rainha a responder pelo
assassinato do Rei Malcius — disse ele. — Ele será agrilhoado e confinado para
aguardar o julgamento de Sua Alteza.
P ART E II
É um erro singular pensar no escravo como humano por completo. A liberdade é
um privilégio proporcionado pela excelência de nossa linhagem como verdadeiros
cidadãos volarianos. Em comparação, a posição de escravo, adquirida ao se
nascer de pais escravizados, por derrota justa na guerra ou por uma evidente falta
de diligência e inteligência, não é meramente o construto artificial da sociedade, é
o reflexo preciso de uma ordem natural. Portanto, conclui-se daí que tentativas de
perturbar essa ordem, por meio de políticas equivocadas ou até mesmo por uma
total rebelião, são sempre fadadas ao fracasso.

— Conselheiro Lorvek Irlav,


Volaria: o apogeu da civilização,
Grande Biblioteca do Reino
Unificado
(Nota do bibliotecário: texto
incompleto devido a queima
parcial)
RELATO DE VERNIERS

Ao contrário de minha primeira viagem a bordo deste navio, desta vez foi-me
fornecida uma cabine, outrora ocupada pelo imediato que perecera na Batalha
dos Dentes. O capitão anunciou em voz alta à sua tripulação maltrapilha que ainda
não encontrara um substituto à altura e que eu poderia muito bem ficar com ela,
uma vez que nenhum daqueles cães merecia a honra. Entretanto, a agradável
perspectiva de conforto a bordo foi diminuída por sua insistência para que eu
dividisse o espaço com a minha antiga dona.
— Ela é sua prisioneira, escriba — dissera o capitão. — Você a vigia.
— Para quê? — perguntei, gesticulando para o oceano à nossa volta. — Diga-
me, para onde ela escaparia?
— Ela pode danificar o navio — respondeu ele, encolhendo os ombros. —
Pode se atirar a um tubarão de passagem. Seja como for, ela é sua
responsabilidade, e não tenho mãos que possa dispensar para vigiá-la.
— É uma cama pequena — observou ela quando a porta da cabine foi batida
às nossas costas. — De qualquer forma, não me importo em dividi-la.
Apontei para um canto da cabine.
— Seu lugar é ali, senhora. Se ficar em silêncio, talvez eu lhe dê um cobertor.
— Senão o quê? — perguntou ela, sentando-se de modo enfático no catre
estreito. — Vai me chicotear? Curvar-me à sua vontade com torturas cruéis?
Ela sorriu e eu lhe dei as costas, indo até uma mesinha de mapas embutida na
madeira abaixo da portinhola.
— Há uma dúzia de homens neste navio que lhe aplicarão de bom grado toda a
punição que for necessária — falei, enfiando a mão em minha bolsa e tirando de lá
o primeiro pergaminho que encontrei.
— Não duvido — concordou ela. — Você assistirá? Meu querido esposo
gostava de ver quando as escravas eram chicoteadas. Ele costumava dar prazer a
si mesmo enquanto olhava. Fará o mesmo, meu senhor?
Suspirei, engolindo uma resposta e desenrolando o pergaminho. Catálogo
Ilustrado da Cerâmica Volariana, e as letras precisas porém demasiado floreadas
do Irmão Harlick me fizeram soltar um grunhido jocoso. Até a letra do homem é
pomposa. Embora não pudesse fingir possuir qualquer apreço pelo irmão, eu tinha
de admitir que Harlick era um excelente desenhista, as ilustrações dotadas de uma
exatidão impecável, a primeira retratando a cena de uma caçada num vaso de uns
1.500 anos, onde lanceiros nus perseguiam um veado por uma floresta de
pinheiros.
— Cerâmica — disse Fornella, olhando por sobre o meu ombro. — Acha que
as origens do Aliado espreitam em potes, meu senhor?
Não tirei os olhos do pergaminho.
— Quando se estuda uma era sem escrita, ilustrações decorativas podem ser
muito informativas. Ficarei grato se puder me sugerir outro caminho.
— Quão grato? — perguntou ela, inclinando-se para mais perto, seu hálito
suave na minha orelha.
Apenas sacudi a cabeça e voltei ao pergaminho, e ela riu e se afastou.
— Você realmente não tem o menor interesse em mulheres, não é?
— Meu interesse em mulheres varia de acordo com a mulher em questão. —
Desenrolei ainda mais o pergaminho e encontrei mais cenas de caça, algumas
imagens de adoração ritualística, vários deuses e criaturas de aspecto bizarro.
— Eu posso ajudar — disse Fornella. — Eu… gostaria de ajudar.
Eu me virei e vi uma expressão cautelosa porém sincera em seu rosto.
— Por quê?
— Temos uma longa viagem pela frente. E, por mais que você suspeite de meus
motivos, estou ansiosa para ver esta missão ser bem-sucedida.
Olhei mais uma vez para a imagem no pergaminho, farristas nus dançando
diante de uma grande criatura simiesca de boca aberta e vomitando fogo.
Fragmento de jarro kethiano, dizia a inscrição abaixo da imagem. Pré-imperial.
— Quando exatamente os volarianos abandonaram os seus deuses? —
perguntei a ela.

— Isso ocorreu muito tempo antes de eu nascer — disse Fornella —, muito tempo
antes de minha mãe nascer, na verdade. Mas ela sempre foi uma mulher estudiosa
e determinada a me fazer aprender a história de nosso glorioso império.
Havíamos ido para o convés e nos sentado perto da proa, e enquanto ela
falava eu escrevia as minhas notas. O capitão grunhira algo quando aparecemos,
mas não fez objeções e a tripulação parecia nos ignorar de bom grado, exceto por
alguns olhares hostis na direção de Fornella.
— O império pode falar com uma única língua agora — prosseguiu ela — e
obedecer aos decretos do Conselho, sejam eles cidadãos da maior cidade ou do
pântano mais imundo. Mas não foi sempre assim.
— Sei que o seu império foi forjado na guerra — falei. — Em muitas guerras,
na verdade, que duraram cerca de três séculos.
— De fato, mas embora a Era do Forjamento tenha nos deixado com um
império, a verdadeira união nos escapou durante séculos. Havia moedas
diferentes demais com valores diferentes demais. Idiomas demais falados por
línguas demais. E deuses em demasia. Minha mãe dizia que homens lutavam e
matavam por dinheiro, mas que morriam apenas pelos seus deuses. Para o império
durar, precisávamos desse tipo de lealdade, imaculada por qualquer distração
divina. Então, houve mais guerras, chamadas de Guerras da Perseguição por
alguns, mas os historiadores imperiais referem-se ao período inteiro como a
Grande Purificação, uma provação de sangue e torturas de sessenta anos.
Províncias inteiras foram devastadas e povos inteiros fugiram, alguns para as
colinas setentrionais, outros através do oceano para fundar novas nações livres da
perseguição volariana. Porém, apesar de tudo que perdemos, foi isso que
realmente deu origem ao império, pois foi quando nos tornamos uma nação de
escravocratas.
“Sempre houve escravos, é claro, no coração das terras volarianas, mas agora
havia mais, conquistados por se recusarem a abandonar os seus deuses, vencidos,
subjugados e criados para que gerações posteriores os esquecessem por completo.
Duas coisas são necessárias para se reunir tamanho recurso: grande organização
e imensa crueldade. Penso com frequência que foram esses traços em particular
que o Aliado achou tão atraentes. Afinal, devemos ter sido escolhidos por alguma
razão.”
— Sabe quando foi que ele se revelou?
— Não sei se o Aliado é homem, ou mesmo se é verdadeiramente humano.
Minha mãe falava de uma época, quase quatro séculos atrás, quando o império
estava fortalecido por sua união. Guerras com os alpiranos não eram novidade,
mas adquiriram uma nova força, as batalhas aumentaram de tamanho, as
campanhas duravam anos em vez de meses, embora a vitória ainda nos escapasse.
Os alpiranos finalmente se cansaram de nossos ataques intermináveis e realizaram
um próprio, devastando as províncias meridionais em questão de meses. As crises
têm a tendência de revelar talentos notáveis, e foi assim que um jovem general da
cidade meridional de Mirtesk ganhou notoriedade, um general com uma ideia
revolucionária e os meios para torná-la realidade. Se os nossos escravos podiam
construir as nossas cidades e trabalhar em nossos campos, por que também não
lutar em nossas guerras? E assim, graças ao conhecimento recém-descoberto
desse general, criamos os Varitai e os Kuritai. Por meio de seu gênio tático e uso
prodigioso dos soldados-escravos, o nosso novo general conquistou fama eterna ao
repelir os alpiranos. Ele foi louvado de uma ponta a outra do império, estátuas
foram esculpidas em sua homenagem, épicos compostos pelos nossos melhores
eruditos para documentar a sua extraordinária vida.
Fornella fez uma pausa, seus lábios formando um sorriso enviesado, embora os
olhos revelassem uma tristeza que eu ainda não tinha visto.
— Contudo, não era uma vida normal. Pois o nosso jovem general permanecia
jovem. Enquanto os seus companheiros de armas envelheciam e mirravam ao seu
redor, ele permanecia jovem.
— Ele foi o primeiro — disse.
— De fato. O primeiro volariano abençoado com a voz do Aliado, ou, suponho,
o primeiro a quem ele enviou uma de suas criaturas para seduzir. Porém, seus
dons não se limitavam ao segredo de dominar os escravos tão completamente que
eles lutavam e morriam de acordo com as ordens de seus senhores. Não, pois ele
tinha mais a oferecer, o maior de todos os dons. Foi com ele que o Conselho
aprendeu o segredo da vida eterna, por ordem do Aliado, é claro. E, com o tempo,
todos eles se tornaram suas criaturas. O general tornou-se a voz do Aliado no
Conselho, a princípio falando com candura, orientando em vez de ordenar, fazendo
insinuações a respeito da grande tarefa que o Aliado escolhera para o império.
Entretanto, com o passar dos anos, o comportamento do general tornou-se cada
vez mais errático.
“Minha mãe disse que o encontrou uma vez, num banquete realizado em sua
homenagem. Como você pode compreender, a minha família é extremamente rica
e tem um lugar no Conselho desde os primeiros dias do império. Perguntei à minha
mãe como era o general e ela riu. ‘Terrivelmente louco’, disse ela, ‘embora eu
tenha ouvido dizer que sua filha é pior.’ ”
— Sua filha? — perguntei.
Fornella enrolou mais o xale de lã em volta dos ombros, a tristeza
transformando-se numa recordação temerosa.
— Sim, uma filha. Também a encontrei, certa vez. Um encontro foi mais do que
suficiente.
— Eles são como você? O general e a filha dele, eles ainda estão vivos?
— A loucura do general aumentou com o passar dos séculos, sua fome de
vitória sobre os alpiranos tornou-se a obsessão de um louco, resultando numa
derrota calamitosa. O Conselho, que a essa altura era composto inteiramente por
membros que haviam recebido a Bênção, e que foi aconselhado pelos outros
tenentes do Aliado a fornecer uma conclusão à gloriosa carreira do general, fez
uso de seu melhor assassino para que isso fosse providenciado. Porém, se o que a
Rainha diz for verdade, ela pode muito bem ter sucumbido com o Rei Malcius.
— A filha do general? Ela matou o próprio pai?
— Ela tirou a vida de incontáveis pessoas por todo este mundo, meu senhor. Se
tivermos sorte, ela não irá mais nos atormentar. Contudo, cada vez mais acho a
sorte um raro artigo de luxo.
— Sua mãe ainda está viva? Ela também aceitou a bênção do Aliado?
Fornella sacudiu a cabeça, erguendo os olhos para encontrar os meus e
sorrindo com ternura.
— Não. Ela envelheceu e morreu, apesar de eu ter lhe implorado para se
juntar a mim nessa nova era de vida ilimitada. Somente ela sabia a verdadeira
natureza do acordo que havíamos selado, embora ninguém lhe desse ouvidos. Ela
sabia o que atraía o Aliado, se não o que o havia criado.
— E o que é? O que o atrai?
— Poder. Foi como os primeiros foram escolhidos, não os de maior riqueza,
mas aqueles com a maior influência, o maior impacto sobre o Conselho. Já que
acontecia no decorrer de décadas e não de anos, com apenas um sendo escolhido
para receber a sua generosa dádiva a cada doze anos, parecia que a escolha era
aleatória, o capricho de um ser que era o mais próximo de um deus que alguém
poderia ser. Mas minha mãe viveu o bastante para notar o padrão. Cada acordo
selado aumentava o seu domínio sobre nós, cada dádiva concedida nos tornava
ainda mais seus servos.
“Ela disse apenas uma palavra na última vez que pude me aproximar dela,
antes que ela ordenasse que eu fosse proibida de entrar em sua casa. Ela tinha
quase noventa anos, era apenas um pequeno amontoado de ossos e pele numa
cama muito grande. Porém, sua mente nunca definhou e seus olhos eram muito
brilhantes. E, embora só pudesse falar aos sussurros, eu ouvi a palavra,
nitidamente, ainda que na época eu tenha pensado que fosse apenas o último
grasnido de uma velha amargurada.”
Fornella se calou, olhando para o horizonte ao sul onde nuvens carregadas
podiam ver vistas, prenunciando uma noite desconfortável — não que eu
esperasse dormir muito deitado ao lado dela. Notei que agora havia mais fios
grisalhos em seu cabelo ao observá-lo esvoaçar ao vento.
— Apenas uma palavra — disse ela em voz baixa. — “Escrava”.

***

Tal como eu previra, foi difícil encontrar o sono. O mar ficou turbulento com a
chegada da noite. O vento soprava forte, açoitando com chuva o vidro embaçado
da portinhola e uivando pelos incontáveis canais na estrutura do navio. Fornella
estava deitada de costas, sua respiração lenta e regular. Eu estava deitado de lado,
virado para o casco. Eu havia descalçado os meus sapatos, mas fora isso estava
completamente vestido, enquanto ela estava nua, após se despir sem o menor sinal
de embaraço, deitando-se na cama ao meu lado quando lhe dei as costas.
Permanecemos deitados em silêncio por quase uma hora, privados do descanso
pelo vento e pela estranheza de nossas circunstâncias.
— Você me odeia, meu senhor? — perguntou ela por fim.
— O ódio necessita de paixão — respondi.
— Ah, Os Cantos de Ouro e Pó, verso vinte. Não acha um pouco arrogante
citar constantemente a sua própria obra?
— O verso foi tirado de uma antiga ode cantada pelas tribos das montanhas
ocidentais. Como mencionei em minha introdução.
Ela deu uma risada baixa.
— Então eu não inflamo a sua paixão? Não me surpreende, dadas as suas
preferências. Mesmo assim, uma mulher acostumada a ser admirada por homens
não pode evitar se sentir um tanto menosprezada. — Eu a senti se mexer atrás de
mim, virando-se para deitar-se de lado. — Quem era ele? O homem que você
disse que amava?
— Não discutirei isso com você.
Devia haver advertência suficiente em meu tom, pois ela soltou um suspiro
jocoso de frustração antes de persistir.
— Eu posso ter algo para inflamar a sua paixão, pelo menos no que diz respeito
à sua sede por conhecimento. Um pedacinho de informação sobre o Aliado.
Rangi os dentes com força, perguntando-me se eu não a odiava, afinal de
contas. Sentei-me e ao virar me deparei com ela olhando para mim com a cabeça
apoiada no seu travesseiro, a penumbra suficiente para ocultar tudo, exceto o
brilho de seus olhos.
— Então me conte.
— O nome — insistiu ela.
Ergui-me, dando-lhe as costas para pôr as pernas para fora da cama.
— Seliesen Maxtor Aluran — falei.
Eu esperava uma risada, cruel e escarnecedora, mas em vez disso o seu tom
era calmamente pensativo.
— A Esperança do Império Alpirano, morto pelo mesmo homem que destruiu o
exército do meu querido esposo. O meu povo não acredita na ideia de destino. O
conceito de forças invisíveis em ação para moldar as nossas vidas é anátema para
um povo livre de superstições. Mas há momentos em que me pergunto…
Eu a senti mexer-se de novo, sua nudez cálida pressionada contra as minhas
costas, apoiando a cabeça em meu ombro. Não havia desejo no modo como ela se
encostava em mim, pelo menos nenhum que eu pudesse sentir, apenas uma
necessidade de proximidade.
— Meu pesar por sua perda, honorável senhor — disse ela em alpirano formal.
— Meu irmão é o membro há mais tempo em exercício no Alto Conselho
volariano, de modo que ele conhece os planos do Aliado melhor do que a maioria,
e mesmo ele não enxerga a verdadeira natureza desses planos, o seu propósito
derradeiro. Contudo, os servos do Aliado costumam falar sobre um homem, eterno
em anos como nós, mas não escravizado pelo sangue dos dotados. Um homem que
viveu muitas vidas e deu a volta ao mundo mais de uma vez. O Aliado é atraído
por poder, como eu disse, e que maior poder existe do que a derrota da própria
morte?
— Ele procura esse homem?
— De fato, mas jamais o encontrou.
— E ele tem um nome, esse homem eterno?
— Milhares, trocados a cada vida ao ir de nação em nação. Uma das criaturas
do Aliado, a que chamam de Mensageiro, achou o rastro dele há uns quinze anos,
no Reino Unificado. Ele estava se chamando de Erlin.
CAPÍTULO UM
Lyrna

Levou algum tempo para encontrar o seu jardim, uma vez que as ruínas haviam
sido removidas pelos escravos de Darnel para dar espaço às suas ambições
arquitetônicas, deixando somente um contorno de tijolos quebrados e terra à vista
onde antes flores haviam crescido. Estranhamente, o seu banco ainda estava
intacto, ainda que um pouco enegrecido. Ela se sentou para olhar os resquícios
arruinados do refúgio que tanto apreciara e que havia desaparecido. Foi até ali
que ela levara Vaelin aquela noite, ganhando a inimizade dele com as suas
intrigas desajeitadas, mas também aprendendo uma lição com o ocorrido; alguns
olhos sempre viam através da máscara. Também fora ali que ela passara aquelas
horas encantadoras com a Irmã Sherin após libertá-la da Fortaleza Negra, a
gentileza inata e o intelecto estimulante da curandeira servindo em grande parte
para dissipar o ciúme. Ly rna lembrava-se de achar a amizade uma novidade
agradável, ainda que breve, e, quando Sherin zarpou para Linesh, ela parara de ir
até ali. O pátio isolado não passava mais a sensação de um abrigo convidativo:
era apenas um canto vazio num palácio onde uma mulher solitária cuidava de
flores e planos enquanto esperava o pai morrer.
— Lir-nah!
Ela ergueu a cabeça a tempo de ter um vislumbre de uma figura alta vindo a
passos largos em sua direção, antes de o abraço de Davoka lhe tirar o ar dos
pulmões e arrancá-la do banco, seus pés balançando no ar enquanto era
esmagada contra o peito da lonak. Ly rna ouviu as pisadas fortes de botas
acompanhadas por espadas saindo de bainhas.
— Solte a Rainha, selvagem! — rosnou Iltis.
Davoka o ignorou, soltando Ly rna após um aperto esmagador e lhe segurando
a cabeça com as duas mãos. Ela estava sorrindo, algo que Ly rna não conseguia
se lembrar de tê-la visto fazer antes.
— Pensei que tinha perdido você, irmã — disse ela em lonak, passando os
dedos pelo rosto de Ly rna, da fronte até os cachos dourado-avermelhados que
cresciam rapidamente atrás. — Ele disse que você ardeu.
— E ardi. — Ly rna agarrou as mãos da lonak e as beijou, tranquilizando Iltis e
Benten com um aceno de cabeça, e eles embainharam as espadas e afastaram-
se com mesuras e expressões intrigadas. — Ainda ardo, irmã.
Davoka recuou, e certa relutância tensa apareceu em seu olhar antes de falar
mais uma vez, mudando para a língua do Reino com facilidade.
— O Irmão Frentis…
Ly rna lhe deu as costas e Davoka calou-se diante da severidade repentina em
sua expressão. Menções ao famoso Irmão Vermelho haviam sido frequentes
desde que chegara na noite anterior, estando entre as primeiras ditas pelo seu
Senhor da Batalha ao desembarcar nas docas, assim como numa súplica sincera
da Aspecto Elera e num pedido seco de misericórdia do Irmão Sollis. Ela dera a
mesma resposta a cada um deles, a mesma resposta que dava a Davoka agora:
— Minha decisão será anunciada no seu devido tempo.
— Nós lutamos juntos na floresta antes que ela fosse queimada. — prosseguiu
Davoka. — Somos gorin. Ele é meu irmão, assim como você é minha irmã.
As lágrimas vermelhas da volariana, a dor lancinante quando seu cabelo
pegou fogo… Ly rna fechou os olhos diante das lembranças, sentindo a brisa na
pele, a pele curada e sem cicatrizes. Curada?, perguntou a si mesma. É como
estou?
Na noite anterior, Ly rna presenciara Alucius ser entregue ao fogo. Ela dissera
algumas palavras breves, formalmente nomeando-o Espada do Reino, o seu
emblema uma pena e uma taça de vinho, pois sabia que o teria feito rir. A
Senhora Alornis adiantara-se para falar também, seu rosto pálido e inexpressivo,
mas com lágrimas escorrendo dos olhos quando o seu irmão colocou mãos
consoladoras em seus ombros.
— Alucius Al Hestian… — começara ela, vacilara e então continuara com a
voz embargada — … será chamado de… herói por muitos. Um poeta por outros
e… — ela parou para dar um leve sorriso — afeiçoado demais ao vinho por
alguns. Irei chamá-lo sempre… simplesmente de meu amigo.
Lakrhil Al Hestian tivera permissão para comparecer, assistindo com um
olhar vazio e calado em seus grilhões. Ele não fez nenhum discurso e olhou
fixamente com olhos secos as chamas se erguerem. Ly rna permitiu que ele
permanecesse até a pira virar brasas e então ordenou que fosse levado de volta
às masmorras, agora repletas de outros traidores aguardando a justiça da Rainha.
Justiça. Ela vira a fumaça envolver a pira, ocultando o rosto de Alucius e lhe
poupando da visão das chamas consumindo a sua carne. Que justiça eu teria lhe
mostrado, velho amigo? Espião, traidor do Reino, e agora herói da libertação de
Varinshold. Meu pai teria feito um espetáculo de clemência, teria lhe coberto de
títulos e ouro e então, após um intervalo decente, iria se assegurar de que um de
seus talentos ocultos providenciasse uma morte apropriadamente acidental. Eu
teria sido muito mais cruel, Alucius. Eu teria feito você me seguir, testemunhar
minha aplicação da justiça plena contra os nossos inimigos e, por isso, sei que
você teria me odiado.
As nuvens no alto deviam ter se aberto, pois Ly rna sentiu uma onda de calor
na cabeça, o seu cabelo recém-crescido sem dúvida uma bela visão ao reluzir, a
sensação agradável e livre da agonia causadora de lágrimas da qual se lembrava
de seus dias a bordo do Sabre do Mar. Curada?, perguntou-se novamente. É
possível refazer a máscara, mas o rosto por baixo dela continua o mesmo.
Ela abriu os olhos e seu olhar recaiu sobre algo, uma florzinha amarela que
brotava por entre duas lajes estilhaçadas. Ly rna agachou-se e estendeu a mão
para tocar as pétalas.
— Invernália — disse ela. — Sempre o sinal mais claro da mudança das
estações. O gelo e a neve estão chegando, irmã, trazendo privações, mas
também descanso, pois frota alguma cruzará o oceano enquanto ocorrerem as
tempestades de inverno.
— Acha que eles virão de novo? — perguntou Davoka. — Quando o oceano
ficar calmo?
— Tenho certeza que sim. Esta guerra está longe de terminar.
— Então você precisará de cada espada, de cada aliado.
Ly rna olhou de novo para a invernália, resistindo à tentação de arrancá-la e
decidindo plantar um novo jardim ali no seu devido tempo, um sem muros. Ela
se levantou, olhou Davoka nos olhos e falou em lonak formal:
— Serva da Montanha, preciso de sua lança. Irá empunhá-la a serviço da
minha causa? Pense bem antes de responder, pois a nossa estrada é longa e não
prometo um retorno à Montanha.
A resposta de Davoka não revelou qualquer sinal de hesitação.
— A minha lança é sua, irmã. Agora e sempre.
Ly rna agradeceu com um aceno de cabeça e fez sinal para que Iltis e Benten
se aproximassem.
— Então é melhor você conhecer os seus irmãos. Tente não matar Lorde Iltis.
O jeito dele pode ser um tanto provocador.

***

Karlin Al Jervin estava o mais empertigado que suas costas curvadas permitiam.
Ly rna lembrava-se dele como um sujeito alegre e barrigudo com uma careca
reluzente, menos inclinado à subserviência do que muitos de seus companheiros
nobres, e alguém que não se demorava na corte por mais tempo do que exigiam
seus negócios. Contudo, a escravidão e o trabalho forçado pareciam ter lhe
privado tanto do humor quanto da barriga. Suas faces e olhos estavam encovados,
embora encarasse o olhar de Ly rna com admirável compostura. Sua filha, no
entanto, estava menos acostumada à realeza e se remexia diante do trono, a uma
distância considerável do pai. A Senhora Illian vestia uma roupa de caçador,
calça de zibelina e uma blusa leve de algodão, manchada de marrom e verde
para ocultá-la na floresta, o cabelo cortado de modo a não lhe cair nos olhos.
Havia uma adaga embainhada presa ao seu tornozelo e outra em seu pulso.
Apesar do traje marcial, ela ainda parecia muito jovem ao se contorcer sob o
escrutínio dos presentes e evitar os olhares do pai. Atrás dela se encontravam o
Irmão Comandante Sollis e Davoka, enquanto Lorde Al Jervin estava sozinho.
Ly rna descartara depressa a monstruosidade extravagante que Darnel
chamara de trono em favor de uma cadeira confortável de encosto reto
recuperada de uma das casas de mercadores abandonadas, e sentiu-se grata pela
profundidade da almofada sob o traseiro real. Ela vinha ouvindo petições havia
cerca de quatro horas e estava estupefata com a pequenez reinante das pessoas
afortunadas o suficiente para terem sobrevivido a tão selvagem ocupação. As
pessoas apareciam com reclamações de roubo contra vizinhos desaparecidos,
reivindicações de herança por propriedade que agora eram apenas cinzas, apelos
para restituição de posições de nobreza e um sem-número de outras trivialidades
que esgotava a sua paciência com o passar das horas. Porém, nem todas as
reivindicações eram triviais ou resolvidas com facilidade.
— Irmão Sollis — disse Ly rna. — Você precisa admitir que Lorde Al Jervin
levanta várias questões válidas. Tudo isso é muito incomum.
— Perdoe-me, Alteza — retorquiu o Irmão Comandante com sua costumeira
voz rascante —, mas duvido que qualquer coisa neste Reino possa agora ser
chamada de “comum”.
— Meu conhecimento a respeito da história de sua Ordem não é dos mais
vastos, mas creio que nunca houve uma irmã da Sexta Ordem. E os recrutas
geralmente não são aceitos muito mais novos? As circunstâncias podem ter nos
forçado a esquecer alguns costumes em face das necessidades, mas esse é de
fato um passo radical.
— Há prescrições nas doutrinas da Ordem que permitem recrutas mais
velhos, Alteza. Mestre Rensial, por exemplo, veio a nós como um ex-capitão da
cavalaria da Guarda do Reino. Quanto ao gênero da Senhora Illian, a guerra
forneceu amplas evidências de que os nossos costumes a esse respeito podem
precisar ser modificados.
— As nossas leis serão deixadas de lado agora, Alteza? — perguntou Al
Jervin, mais uma vez olhando furioso para Illian. — A Sexta Ordem não pode
simplesmente levar a filha de um homem.
— Eles não estão me levando! — retorquiu Illian com veemência, e então
corou e baixou os olhos quando Ly rna virou-se para ela. — Perdão, Alteza.
— Senhora Illian, é de fato seu desejo juntar-se à Sexta Ordem? — perguntou
Ly rna.
A garota respirou fundo e ergueu a cabeça, falando num tom claro e
determinado:
— É, Alteza.
— Apesar das objeções de seu pai? De seus medos fundamentados quanto à
sua segurança?
Illian olhou para Al Jervin com uma expressão pesarosa no rosto, a voz baixa:
— Eu amo meu pai, Alteza. Pensei por tanto tempo que ele estava morto que
encontrá-lo vivo quando a cidade caiu foi maravilhoso. Mas não sou a filha que
ele perdeu, nem posso ser. Fui moldada pela guerra em outra coisa, um papel
que, acredito, me foi conferido pelos Finados.
— Ela é uma criança! — exclamou Al Jervin, seu rosto ficando vermelho. —
Pelas leis deste Reino, a posição e a condição dela são decididas por mim até a
sua maioridade. — Ele estremeceu um pouco quando Ly rna lhe olhou nos olhos,
recusando-se a desviar o olhar, mas acrescentando “Alteza” com um sussurro
forçado.
— A Senhora Davoka me contou muitas coisas sobre a sua filha, meu senhor
— disse Ly rna. — Ao que tudo indica, ela serviu com grande distinção na luta
pela libertação deste Reino. Ela se encontra diante de mim agora como a autora
de muitas mortes merecidas de nossos inimigos. De acordo com as doutrinas da
Sexta Ordem, uma súdita de bom caráter se responsabiliza por ela e o Irmão
Sollis está disposto aceitá-la, deixando de lado costumes antigos e os testes usuais
em reconhecimento de suas habilidades e coragem evidentes. Como uma irmã,
ela sem dúvida realizará serviços ainda maiores ao Reino e à Fé. Enquanto que
você, meu senhor, aparentemente passou a guerra inteira entalhando objetos de
arte fátuos para o traidor Darnel.
Al Jervin retraiu-se, mas conseguiu controlar o tom da voz ao responder:
— Ouvi rumores de que Vossa Alteza também tinha sido feita escrava pelos
nossos inimigos. Sendo assim, tenho certeza de que a senhora conhece bem a
vergonha de realizar um ato odioso para sobreviver.
Iltis empertigou-se, deu um passo adiante e falou num tom ameaçador.
— Cuidado com a língua, meu senhor.
Al Jervin rangeu os dentes e fez uma pausa antes de continuar, com a voz
rouca e quase embargada:
— Alteza, não me sobrou casa, nem riquezas, nem orgulho. Minha filha é
tudo o que me resta. Eu peço que a senhora siga suas leis e evite que ela siga esse
caminho insensato.
Isso não é orgulho ferido, concluiu Ly rna. Ele simplesmente quer mantê-la
viva. Um bom homem, e um construtor com habilidades que serão muito
necessárias quando alcançarmos a paz. Ela olhou de novo para Illian,
observando-a revelar dentes brancos perfeitos ao sorrir para um aceno de
cabeça encorajador dado por Davoka. Bela, mas um falcão também é belo, e por
ora tenho mais necessidade de falcões do que de construtores.
— Senhora Illian — disse Ly rna, gesticulando para um dos três escribas
presentes para registrar formalmente um Pronunciamento Real. — Pela Palavra
da Rainha, eu retiro a sua posição e revogo a autoridade de seu pai. Como súdita
livre deste Reino, a senhora pode escolher qualquer caminho que por lei lhe
esteja aberto.

Ela ficara surpresa ao encontrar a Câmara do Conselho praticamente intacta,


embora houvesse uma brecha considerável na parede oeste, e a tapeçaria que a
cobria balançasse à brisa. Num rompimento com as tradições, Ly rna pedira que
os dois Aspectos sobreviventes comparecessem ao Conselho, formalmente
nomeando a Aspecto Elera Ministra das Obras Reais e a Dendrish Ministro da
Justiça. Tanto seu pai quanto o seu irmão jamais haviam nomeado um Aspecto
para um cargo oficial e houve considerável apreensão entre os outros membros
do Conselho.
Nunca lhes ceda um centímetro a mais do que precisar, dissera o seu pai certa
vez sobre a Fé. Eu os uni à Coroa para conquistar o Reino, mas, se pudesse, eu os
separaria de mim como um membro necrosado. No entanto, Ly rna tinha a
sensação de que o tempo ensinara uma lição diferente. Os sermões do Aspecto
Tendris contra a tolerância de seu irmão pelas crenças Negadoras ajudaram em
muito a enfraquecer o Reino, mas o poder do Aspecto fora limitado pela
proximidade das outras Ordens com a Coroa. Seu erro não foi se unir a eles, pai.
Foi não se unir o suficiente.
— Tal como em Warnsclave, mais pessoas chegam a cada dia — relatou o
Irmão Hollun, sentado à esquerda de Ly rna. — A população civil de Varinshold
agora é de mais de cinquenta mil pessoas. Podemos esperar que esse número
dobre em um mês.
— Podemos alimentar tantos? — perguntou Vaelin.
— Com um racionamento cuidadoso — explicou o Irmão Hollun. — E com o
abastecimento constante de nossos amigos alpiranos e o fornecimento de
produtos nilsaelinos por parte do Senhor Feudal Darvus. Os meses de inverno
serão difíceis, mas ninguém deverá passar fome.
— Como está o exército, meu senhor? — perguntou Ly rna a Vaelin.
— Com os nossos novos recrutas, os cavaleiros do Barão Banders e os
populares, teremos oitenta mil homens e mulheres em armas antes do fim do
ano.
— Precisamos de mais. — Ly rna virou-se para o Lorde Comandante Travick.
— Amanhã redigirei um decreto de recrutamento. Todos os súditos do Reino com
idade para lutar entrarão para a Guarda do Reino. Treine-os com afinco, meu
senhor. — Ela olhou para Reva. — O decreto se estenderá a todos os feudos,
minha senhora. Espero que a senhora não faça qualquer objeção.
A Senhora Governadora manteve uma expressão neutra, mas Ly rna
percebeu que ela estava elaborando com cuidado a sua resposta.
— De minha parte, não, Alteza — falou Reva após um momento. — E da
parte de muitos de meu povo que sofreram nas mãos volarianas. Contudo, há
alguns cantos de Cumbrael intocados pela guerra onde antigos ressentimentos
ainda persistem.
— Ressentimentos que espero serem dissipados pelas palavras da Senhora
Abençoada — disse Ly rna. — Talvez a senhora devesse retornar a casa durante
algum tempo, Senhora Reva. Deixar que o seu povo a veja, ouça a história de
seus feitos, pois são muito inspiradores.
O aceno de consentimento de Reva foi imediato e não havia qualquer rancor
em sua voz.
— Como Vossa Alteza ordenar.
Nunca o menor lampejo de deslealdade vindo desta, ponderou Ly rna. Então
por que ela me causa tamanha inquietação?
Ela deixou a questão de lado para consideração posterior e virou-se para o
Escudo.
— Lorde Almirante Ell-Nestra, informe-nos o tamanho das forças sob o seu
comando, por favor.
Como era o seu costume ultimamente, o perpétuo sorriso enviesado do
Escudo desapareceu ao se dirigir a Ly rna, os seus olhos encontrando os dela
apenas por um segundo.
— Pouco mais de oitocentos navios de calados variados, Alteza. Capturamos
um número considerável de navios mercantis volarianos, mas os mares estão
ficando cada vez mais vazios com a chegada das tempestades de inverno.
— Uma força de tamanho decente para repelir qualquer invasão —
comentou o Conde Marven. — Tripulada pelos melhores marinheiros do mundo.
Além do mais, desta vez estamos prevenidos.
— Quantos soldados os seus oitocentos navios poderiam transportar? —
perguntou Ly rna a Ell-Nestra.
O Escudo franziu o cenho, intrigado, seu tom cauteloso ao responder:
— Se usarmos todas as embarcações volarianas, talvez quarenta mil, Alteza.
E certamente sem qualquer conforto.
— O conforto é um luxo há muito esquecido, meu senhor. — Ela calculou por
um momento, sentindo o silêncio se adensar. Eles sabem o que você planeja. E
temem isso. — Seu homem está aqui? — perguntou ela a Vaelin, que assentiu e
ordenou ao Guarda do Reino na porta que deixasse o construtor de navios entrar.
O Sargento Davern marchou até o centro da câmara, bateu continência e fez
uma mesura formal, aparentemente nem um pouco nervoso com sua solene
audiência.
— Meu Senhor da Batalha me disse que você constrói navios, sargento —
disse Ly rna.
— De fato, Alteza. — Ele lhe deu um sorriso que teria envergonhado o
Escudo por sua confiança inata. — Entrei para a Guilda dos Armadores aos
dezesseis anos. O mais jovem a conseguir isso, pelo que me contaram.
— Bastante impressionante. Preciso de um navio capaz de transportar
quinhentos soldados através do oceano até Volaria. Você o projetará e o
construirá de tal maneira que seja facilmente duplicado e construído por mãos
inexperientes.
Davern empalideceu, enquanto os outros capitães à mesa se remexeram
pouco à vontade, exceto, notou Ly rna, por Vaelin, que não demonstrou estar nem
um pouco surpreso.
— Tal tarefa é… imensa, Alteza — começou o sargento. — Exigirá muito
trabalho, sem falar em madeira…
— O Irmão Hollun compilou uma lista de súditos sobreviventes com
habilidades e experiência adequadas — disse Ly rna. — Eles serão colocados à
sua disposição. Quanto à madeira, não se preocupe, pois ela será fornecida. Eu o
nomeio… — Ela ponderou por um momento. — Davern Al Jurahl, Mestre do
Estaleiro da Rainha. Parabéns, meu senhor. Aguardarei seus projetos pela
manhã.
Davern permaneceu num silêncio estupefato por mais um momento e então
fez uma mesura hesitante e saiu da câmara.
— Creio que isso conclui os assuntos de hoje — disse Ly rna, levantando-se.
Como esperado, foi o Conde Marven quem falou; o comandante nilsaelino
era corajoso, sem sombra de dúvida, mas também aconselhava cautela sem a
menor cerimônia.
— Alteza, se me permite?
Ela parou, erguendo uma sobrancelha quando o conde vacilou e então se
forçou a continuar:
— Para que não haja qualquer mal-entendido, é intenção de Vossa Alteza
invadir o Império Volariano?
— Minha intenção é vencer esta guerra, meu senhor. Pelos meios mais
rápidos.
— Atravessar o oceano com tantos… Devo expressar as minhas dúvidas
quanto à praticidade de tal coisa.
— Por quê? Os volarianos conseguiram.
— Com anos de preparação — observou o Escudo. — E sem sair de um
Reino tão arrasado quanto este.
— Um Reino que já realizou milagres. — Ela examinou o rosto deles,
encontrando dúvidas na maioria, embora mais uma vez apenas Vaelin não
demonstrasse sinais de inquietação. — Meus senhores, este Conselho não é uma
câmara de debates. Peço conselhos conforme acho necessário e dou ordens de
acordo. E ordeno que uma frota seja construída para levar a nossa justiça ao
Império Volariano, pois quando os nossos assuntos por lá estiverem terminados,
eles nunca mais sonharão em voltar a esta terra, a não ser em seus pesadelos.
Ly rna fez uma pausa, aguardando mais objeções, mas encontrou apenas
aceitação cautelosa.
— Eu agradeço os seus conselhos. E agora, ao trabalho.

***

Lakrhil Al Hestian não se levantou quando Ly rna entrou em sua cela, meramente
olhando para ela com olhos vazios, encolhido num canto sobre a pedra nua, com
grilhões nos punhos e nos tornozelos. Iltis soltou um grunhido irritado pela
grosseria, mas Ly rna o conteve com um aceno de mão.
— Vigie a porta, meu senhor, por favor.
Iltis arreganhou os dentes para Al Hestian num rosnado de desprezo antes de
sair da cela, deixando a pesada porta entreaberta e posicionando-se de costas
para a entrada.
— Eles chamam esta cela de Canto do Traidor — disse Ly rna a Al Hestian,
indo até a única janela, uma fenda estreita na grossa parede de pedra através da
qual era possível vislumbrar um pedaço do céu. Havia marcas indistintas na
pedra, alguma inscrição antiga riscada muito tempo atrás por mãos
desesperadas. — Ocupada pela última vez por Artis Al Sendahl na véspera de sua
execução — prosseguiu ela, virando-se para Al Hestian. — O fato de os nossos
inimigos terem deixado nossas masmorras intactas apesar de toda a destruição
que causaram nesta cidade diz muito sobre eles.
Al Hestian encolheu discretamente os ombros, seus grilhões provocando um
retinido abafado.
— Artis Al Sendahl não teve um julgamento — continuou Ly rna. —
Simplesmente acordou uma manhã e encontrou dois guardas em sua porta
segurando uma Ordem do Rei. Uma semana depois ele estava morto.
— Enquanto me são concedidos apenas dois dias — disse Al Hestian, sua voz
rouca e apática. — E também nenhum julgamento.
— Então que este seja o seu julgamento, meu senhor. — Ly rna ergueu as
mãos, gesticulando para as paredes ao redor. — E eu tanto testemunha quanto
juíza, ansiosa pelo seu testemunho.
— Meu testemunho é redundante. Os meus motivos evidentes. — Ele desviou
o olhar de Ly rna e apoiou a cabeça na parede. — Não farei qualquer defesa ou
apelo por misericórdia, exceto para que a questão seja resolvida o mais depressa
possível.
Ly rna conhecia aquele homem desde a infância e nunca sentira por ele
qualquer afeição, talvez por encontrar um reflexo nítido demais em sua franca
ambição. Porém, seus filhos, com quem ela brincara quando criança, nunca
deixaram de amá-lo, apesar de todos os seus defeitos.
— Alucius será honrado para sempre neste Reino — disse ela. — Sua casa
livrou-se em parte da desonra pelo sacrifício dele.
— Um filho morto não precisa de honra. E eu tenho dois para encarar no
Além se a senhora me fizer o favor de me mandar para lá.
O olhar de Ly rna recaiu mais uma vez sobre as marcas na parede, onde
encontrou duas palavras legíveis, suficientes para adivinhar o significado do resto.
A morte é apenas uma passagem para o Além… O Catecismo da Fé, sobre o qual
tanto havia sido construído, e também destruído. Para ela sempre foram palavras
vazias que não lhe interessavam, pois havia muita sabedoria genuína para ser
lida.
— Não tenho misericórdia para o senhor — disse ela. — Apenas mais
punições. Lorde Iltis!
O Lorde Protetor retornou, permanecendo em prontidão quando ela apontou
para os grilhões nos tornozelos de Al Hestian.
— Remova-os e traga-o.
Os antigos cavaleiros e caçadores de Darnel estavam no pátio do lado de fora
das galerias cavernosas que serviam de masmorras para a cidade. Eram quase
quarenta homens, de quem haviam sido tiradas todas as armaduras e bens,
exceto por uma roupa esfarrapada, cercados por todos os lados pela Guarda do
Norte de Lorde Adal, escolhidos pela força de sua disciplina; a Guarda do Reino
provavelmente cometeria um massacre se ficasse diante daqueles que os haviam
traído no primeiro encontro fatídico com os volarianos. Ly rna conduziu Al
Hestian até um passadiço com vista para os prisioneiros reunidos, notando que a
maioria estava intimidada demais para encará-la, embora alguns olhassem para
cima numa súplica silenciosa.
— Creio que o senhor conhece esses homens, não? — perguntou Ly rna.
Al Hestian olhou para os prisioneiros, sua máscara impassível inalterada.
— Não bem o suficiente para lamentar suas mortes, se for a intenção de
Vossa Alteza me fazer testemunhar o seu assassinato.
Ly rna afastou-se dele e aproximou-se da beirada do passadiço, erguendo a
voz.
— Vocês todos são culpados de traição e merecem ser executados
sumariamente. Muitos sem dúvida alegarão lealdade em sua defesa, que
prestaram serviços devido a um juramento que os prendia por toda a vida. Digo-
lhes agora que isso não é uma defesa. Um juramento feito a um louco traiçoeiro
não tem valor algum e é abandonado por homens de discernimento ou de
verdadeira honra cavalheiresca. Vocês provaram que são desprovidos de ambas
as coisas. — Ela fez uma pausa e olhou para Al Hestian, que encontrou o seu
olhar com uma compreensão sombria. — Contudo — prosseguiu Ly rna —, a Fé
nos ensina o valor do perdão para atos pelos quais haja verdadeiro
arrependimento. E este Reino necessita de todas as mãos capazes de erguer uma
espada. Somente por esses motivos eu lhes ofereço uma oportunidade de fazer
um novo juramento, um juramento à sua Rainha. Jurem que me servirão e eu
pouparei suas vidas. Mas saibam que sua sentença não será comutada. Vocês
estão condenados e permanecerão condenados até o dia em que a batalha lhes
tomar a vida. Vocês serão a Companhia Morta. Se alguém não deseja fazer esse
juramento, que fale agora.
Ela aguardou, vendo-os estremecer e se curvarem de alívio. Um homem, um
sujeito grande de peito largo e porte de cavaleiro, chorava abertamente,
enquanto ao seu lado um homem magro, provavelmente um caçador,
estremecia, com urina lhe escorrendo pelas pernas. Ly rna esperou por um
minuto inteiro, mas nenhuma voz foi erguida.
— Meu senhor. — Ela se virou para Al Hestian, gesticulando para os homens
abaixo. — Sua companhia o aguarda, caso a aceite.
Lakrhil Al Hestian continuou impassível durante algum tempo, e então
respondeu com uma mesura discreta.
— Muito bem — disse Ly rna. — Além desses desgraçados, nossas patrulhas
relataram que o interior encontra-se tristemente apinhado de criminosos, uma
escória que está atacando aqueles que fogem dos volarianos. Estupradores e
assassinos serão executados, é claro, mas o restante eu enviarei ao senhor. — Ela
se aproximou dele e falou em voz baixa: — O senhor está vivo graças aos seus
filhos. E saiba que não serei tão bondosa quanto meu pai caso o senhor traia este
Reino de novo.

Ly rna voltou para o palácio ao entardecer, após passar o dia entre os refugiados
recém-chegados, onde encontrou a mistura usual de nobres esfarrapados e
plebeus desalojados, cada um com o próprio épico de infortúnios e
sobrevivência. No entanto, assim como em Warnsclave, havia pouquíssimas
crianças, e essas em sua maioria eram órfãs. Ela ordenou que fossem reunidas e
levadas para os aposentos designados para as crianças aos cuidados do Irmão
Innis, onde passou o resto da noite.
Era fantástico observar como o ânimo das crianças havia retornado tão
depressa, enquanto corriam à sua volta, rindo e brincando ruidosamente, embora
houvesse algumas sentadas separadas das outras, com olhos assombrados por
horrores que não as abandonavam. Ly rna passou a maior parte do tempo com as
crianças silenciosas, falando com gentileza e tentando fazer com que se
expressassem, geralmente apenas com mínimo sucesso, apesar de um garotinho
ter subido em seu colo e adormecido de imediato no momento em que ela abriu
os braços para ele. Ly rna permaneceu sentada com ele à medida que a noite
caía e as outras crianças iam para a cama, e acordou em algum momento após a
meia-noite com uma sacudida gentil de Murel.
— A Senhora Davoka pediu a sua presença no pátio, Alteza.
Ly rna deitou o menino com cuidado numa das muitas camas vazias.
— Onde está Orena? — perguntou ela enquanto atravessavam os corredores.
— Ela pediu que a perdoasse, Alteza. A visão das crianças sempre a perturba,
de modo que tomei o seu lugar.
Corações gentis geralmente ficam bem escondidos, pensou Ly rna.
No pátio ela encontrou Davoka abraçando uma figura esguia ao lado de um
pônei robusto e sem sela, ladeada por dois guerreiros eorhil que assistiam com
óbvia desconfiança.
— Lirhnah! — gritou-lhe Davoka. — Minha outra irmã veio com a palavra da
Mahlessa.
Kiral não demonstrava nenhum vestígio da confusão deixada pela cura da
Mahlessa sob a Montanha, sorrindo timidamente quando Ly rna se aproximou. A
cicatriz havia curado bem, mas ainda era uma visão sinistra, uma linha funda que
ia do queixo à testa, provocando lembranças desagradáveis da noite em que
Ly rna lhe dera a marca.
— Serva da Montanha — cumprimentou Ly rna em lonak.
— Rainha. — Kiral a surpreendeu com um abraço caloroso. — E também
irmã.
— Qual é a mensagem da Mahlessa?
— Ela não envia mensagem alguma, Rainha, apenas dois presentes. — Kiral
ergueu um pequeno frasco de vidro contendo um líquido viscoso e escuro. — Ela
acredita que isso será de serventia para você, e passou para mim o conhecimento
para produzir mais.
Ly rna hesitou antes de aceitar o frasco, lembrando-se dos gritos da coisa que
possuíra aquela garota quando uma única gota tocara a sua pele.
— Como deve ser usado? — perguntou ela.
— Ela disse que é uma chave para grilhões invisíveis e que a senhora saberia
como melhor usá-lo.
Ly rna entregou o frasco a Murel com estritas instruções para que fosse
mantido a salvo e que não fosse aberto sob nenhuma condição.
— E o outro presente? — perguntou ela a Kiral.
— Apenas eu mesma. — Ela olhou para o pátio ao redor com um olhar
indagador. — Procuro alguém que perdeu a sua canção, para que ele possa ouvir
a minha.
CAPÍTULO DOIS
Vaelin

O Conclave se reuniu na Casa da Sexta Ordem, a única construção intacta e


remanescente da Fé nas cercanias de Varinshold. O lugar fora abandonado após
a visita de Frentis, o pátio, os salões e os corredores gritando o seu silêncio
enquanto Vaelin os percorria, tomado por lembranças conforme o seu olhar
recaía sobre os marcos de sua infância. O canto do pátio onde costumavam atirar
facas no alvo, a cornija lascada perto dos aposentos do Aspecto onde Barkus
rodopiara a espada com um entusiasmo exacerbado. Ele passou alguns
momentos olhando para a escada íngreme na torre norte, notando as várias
manchas escuras na pedra onde um irmão desafortunado ou um volariano
morrera, mas não se moveu para subir até o quarto no andar de cima. Algumas
lembranças são melhores se deixadas para definhar.
Ele só concordara em comparecer graças à mensagem insistente da Aspecto
Elera e retardara a sua chegada de propósito, não desejando ser arrastado para
discussões ou decisões a respeito dos muitos desafios da Fé. Contudo, quando os
irmãos que estavam à porta permitiram que entrasse no salão de jantar, ele os
encontrou ainda no meio de uma discussão fervorosa. Havia talvez vinte pessoas
presentes, tudo o que restava dos servos mais graduados da Fé. Uma rápida
olhada pelo local revelou mais mantos azuis do que outros, embora a Sétima,
representada por Caenis e alguns de seus subordinados mais experientes, não
usasse trajes formais. O Aspecto Dendrish estava acompanhado somente por
Mestre Benril, aparentemente os únicos membros sobreviventes da Terceira
Ordem na cidade. O Aspecto estava expondo sua opinião em voz alta, como de
costume, as palavras “empreitada insana” deixando os seus lábios no momento
em que Vaelin entrou.
— Interrompo, Aspecto? — perguntou Vaelin. — Continue, por favor.
— Vaelin. — A Aspecto Elera levantou-se para cumprimentá-lo de mãos
estendidas, mancando um pouco ao se aproximar. O toque dela estava quente
como sempre, embora Vaelin tivesse detectado um leve tremor e ficado
desconcertado com sua palidez.
— Aspecto — disse ele. — A senhora está bem?
— Muito bem. Venha. — Ela se virou e o conduziu adiante. — Seu conselho é
bem-vindo aqui.
O Aspecto Dendrish bufou sem cerimônia e ele notou que Caenis se retesou
um pouco no assento, com uma expressão mais de resignação sombria do que de
boas-vindas.
— Confesso que não sei que conselho posso oferecer, uma vez que essa
reunião é da Fé, enquanto eu não sou — disse Vaelin.
— A Fé ainda lhe é fiel, irmão — respondeu Sollis. Ele estava ladeado pelo
Irmão Comandante Artin de Cardurin e por Mestre Rensial, que estava sentado
com os olhos arregalados fixos no chão e de braços cruzados firmemente sobre o
peito. — Quer você lhe seja fiel ou não.
— Acreditamos que a sua opinião será valiosa — prosseguiu a Aspecto Elera.
— Especialmente no tocante à intenção da Rainha.
Vaelin acenou com a cabeça para o Irmão Hollun, o único representante da
Quarta Ordem presente.
— O Irmão Hollun está ao lado da Rainha todas as manhãs. Tenho certeza de
que ele pode esclarecer a intenção dela de maneira mais do que satisfatória.
— Ela quer invadir o Império Volariano — disse o Aspecto Dendrish, com
uma rouquidão enfermiça na voz. — Com o Reino em ruínas, ela pretende gastar
o que nos resta de força num… — Ele fez uma pausa, a papada estremecendo
um pouco enquanto lutava para formular uma expressão menos ofensiva. —
Caminho questionável.
— Não cabe ao senhor questionar o caminho da Rainha — retrucou Vaelin.
— Você sem dúvida compreende as nossas preocupações, Vaelin — disse
Elera. — Somos responsáveis pela proteção dos Fiéis.
— Perdão, Aspecto, mas o estado atual deste Reino é evidência mais do que
suficiente do seu fracasso nessa tarefa. — Vaelin afastou-se dela e passou os
olhos pelos presentes, os remanescentes de algo que ele já considerara imutável,
eterno. — Vocês mantiveram segredos por séculos e derramaram sangue para
isso. Conhecimento, força e sabedoria que poderiam ter nos ajudado quando
sentimos o golpe do Aliado. Tudo em nome da preservação de uma Fé construída
com base numa mentira.
— A mentira de um homem é a verdade de outro. — A voz era débil,
trêmula, mas forte em sua convicção, saída de um velho num manto branco
manchado. Ele estava sentado sozinho, mantendo-se ereto com um cajado
nodoso feito de um velho galho de árvore e encarando Vaelin com um único olho
azul e brilhante, o outro de um branco leitoso.
— Aspecto Korvan — disse Elera. — O último da Primeira Ordem.
— Os Finados são almas aprisionadas — disse Vaelin ao velho. — Dotados
apanhados no Além por um ser com propósitos vis. Isso é uma mentira?
O Aspecto Korvan suspirou, baixando a cabeça, momentaneamente cansado.
— Durante cinco décadas fui Mestre da Intuição na Casa da Primeira Ordem
— disse ele. — Hoje me vejo um Aspecto, um título derivado do caráter variado
de nossa Fé. E a Fé é apenas um reflexo do que nos aguarda no Além.
— Eu já estive no Além — retorquiu Vaelin. — E o senhor?
A mão do velho se contraiu no cajado e ele levou um momento para
responder.
— Uma vez, há muito tempo. Você não é o primeiro a experimentar a morte
e regressar, jovem. O Além é um lugar que não é um lugar, tanto forma quanto
bruma, eterno porém finito. É um cristal formado por muitas facetas, e você viu
apenas uma.
— Talvez — admitiu Vaelin. — E talvez a Fé seja apenas uma tentativa
desajeitada de compreender algo que está além da compreensão. Mas eu vi o
suficiente para saber que o nosso inimigo não está satisfeito. Ele quer a nossa
aniquilação e não vai parar. A Rainha entende que a chave para derrotá-lo é
atacar o coração do império que ele construiu para nos destruir. Asseguro-lhes
que a intenção da Rainha também é a minha.
— Ainda que possa nos levar à ruína? — perguntou Dendrish.
— A ruína já se abateu sobre nós — retorquiu Vaelin. — A Rainha Ly rna
oferece uma chance de evitar a nossa total destruição. — Ele se virou para
Caenis com um olhar questionador. — Não há sinais e presságios para nos guiar,
irmão? Nenhuma mensagem recebida das brumas rodopiantes do tempo?
— O Irmão Caenis agora é Aspecto Caenis — disse Elera, conseguindo de
algum modo manter o sorriso.
— Parabéns — disse Vaelin.
Os lábios de Caenis formaram um leve sorriso e ele se levantou.
— Meu irmão sabe muito bem que a presciência não é uma arte exata —
disse ele. — E restam poucos em nossas fileiras com dons capazes de nos ajudar
nessa decisão. Só posso falar pela minha própria Ordem, e já nos jurei a serviço
do propósito da Rainha, independentemente de onde possa nos levar.
Vaelin virou-se ao ouvir o barulho de uma cadeira ser arrastada e viu Mestre
Rensial de pé. Ele permaneceu ereto olhando para eles durante alguns segundos,
com o cenho franzido em concentração. Quando falou, não havia qualquer traço
de estridência ou incerteza vacilante em sua voz.
— Eles me torturaram primeiro — disse ele. — Mas pararam quando ficou
claro que eu não podia lhes contar nada. Eles me acorrentaram a uma parede e
durante quatro dias escutei o tormento de meus irmãos. A mesma pergunta era
feita, sem parar: “Onde estão os dotados?” Não ouvi nenhuma resposta ser dada
em momento algum. — Seu olhar perdeu o foco mais uma vez e ele se abraçou
com mais força, tornando a se sentar e acrescentando num sussurro: — Onde
está o garoto? A floresta está queimando e o garoto se foi.
Sollis levantou-se e colocou a mão no ombro do mestre louco, que continuava
a murmurar para si mesmo.
— Com o consentimento deste Conclave, falo em nome de minha Ordem até
que o Aspecto Arly n seja resgatado ou fique provado que ele está morto — disse
Sollis. — Seguiremos o caminho da Rainha.
— Assim como a Quarta Ordem — afirmou o Irmão Hollun.
O Aspecto Dendrish afundou-se no assento, sacudindo a mão gorda num ato
que podia ser tanto de repúdio quanto de consentimento. Foi Mestre Benril quem
falou, levantando-se para encará-los com um semblante carregado.
— A guerra é sempre a insensatez dos ignorantes. Porém, vi muito para me
convencer de que algumas guerras precisam ser lutadas, até o mais amargo fim,
se necessário. A nossa Ordem, tal como se encontra, apoiará essa empreitada.
A Segunda Ordem estava representada por duas irmãs da missão em
Andurin, ambas cansadas da viagem e claramente intimidadas pela ocasião. Elas
aparentemente não tinham conhecimento do destino de seu Aspecto, embora
segundo rumores todos os seus irmãos e irmãs tivessem perecido quando a sua
Casa foi incendiada até sobrar apenas escombros. Conversaram entre si por um
momento e a mais velha das duas confirmou numa voz cansada que
concordavam com o rumo a se tomar.
— Aspecto? — perguntou Sollis a Elera.
O sorriso dela havia desaparecido por completo, o seu rosto, sempre sereno e
radiante como se desafiasse os sinais da idade, agora revelava uma mulher
exausta de meia-idade com olhos que haviam visto demais. Ela ficou em silêncio
por algum tempo, de mãos entrelaçadas e olhos baixos.
— Tantas coisas mudaram tão depressa — disse ela por fim. — Tantas
certezas destruídas em poucos meses. Lorde Vaelin tem razão ao falar de nossos
crimes passados, pois somos culpados de erros atrozes. Eu mesma nada disse
quando a minha pupila mais brilhante foi levada para a Fortaleza Negra por falar
contra a guerra do deserto. Temos sangue nas mãos. Mas receio os crimes que
nos aguardam se seguirmos esse curso. Todos os dias pessoas vêm até a minha
Ordem para serem curadas, mas consumidas por um ódio que jamais vi em
todos os anos de agitação pelos quais este Reino passou. Quando a Rainha levar
essas pessoas para o outro lado do oceano, que tipo de justiça ela dispensará?
— Eu sou o Senhor da Batalha do Exército da Rainha — disse Vaelin. — E
não permitirei que qualquer violência seja cometida contra aqueles que não
pegarem em armas para se opor a nós.
Ela ergueu a cabeça e sorriu mais uma vez para Vaelin, mas com algo por
trás dos olhos que ainda não demonstrara: arrependimento. Eu fiz o seu parto, ela
lhe dissera uma vez. Talvez ela esteja se perguntando o que trouxe ao mundo.
— Confiarei em sua palavra, Vaelin, como sempre fiz. — Ela se virou para os
outros e falou com formalidade: — A Quinta Ordem promete apoiar o caminho
da Rainha.

Ele se despediu de Reva no portão sul, puxando-a para perto para lhe beijar o
topo da cabeça, ficando surpreso e feliz quando ela retribuiu o abraço.
— Nenhuma dúvida? — perguntou, enquanto ela se afastava. — Nenhuma
hesitação em seguir as ordens da Rainha?
— Dúvidas eu tenho de sobra — respondeu Reva. — Mas isso não é novidade.
Vi o suficiente em Alltor para me convencer de que essa luta é até a morte. Eles
não vão parar, então nós também não podemos.
— E o seu povo verá as coisas dessa forma?
A expressão dela ficou sombria, seu tom brando e com uma admissão
relutante:
— Eles verão quando ouvirem a Senhora Abençoada falar com a voz do Pai.
Ela montou no cavalo e partiu com uma escolta de Guardas da Casa. Ao vê-
la se distanciar, Vaelin foi tomado por uma súbita sensação de perda,
compreendendo que talvez nunca mais a visse.
— Meu senhor. — Ele se virou e deparou-se com uma das damas de Ly rna, a
mais alta de olhos escuros, embora o nome lhe fugisse no momento. — A Rainha
pede a sua presença no palácio.
A dama olhou para a esquerda e sua testa ficou um pouco franzida de
inquietação. Vaelin olhou na mesma direção, que era onde os dotados dos Confins
haviam se acomodado numa taverna parcialmente arruinada. Dois Guardas do
Reino de passagem estavam recobrando a compostura, claramente vítimas da
mania de Lorkan de dar susto nos não dotados. O jovem curvou-se numa
desculpa aparentemente sincera, enquanto Cara abafava uma risada ao fundo.
Lorkan percebeu que Vaelin o olhava e deu um sorriso tímido antes de se virar e
caminhar até as sombras de um canto, onde pareceu sumir da face da terra.
Vaelin virou-se para a dama, que ainda fitava de olhos perscrutadores a
sombra por onde Lorkan havia desaparecido.
— Perdão, minha senhora — disse ele, atraindo de novo a atenção da mulher.
— Creio que eu não saiba o seu nome.
— Orena, meu senhor. — Ela se curvou mais uma vez. — Na verdade,
Senhora Orena Al Vardrian, pelas boas graças da Rainha.
— Vardrian? Do sul de Haeversvale?
— Minha avó era de Haeversvale, meu senhor.
Ele estava prestes a informá-la de que era muito provável que ambos
possuíssem algum laço de sangue, mas o desconforto evidente no rosto da mulher
o fez parar para pensar. Era evidente que não agradava à dama a ideia de ficar
tão perto dos dotados, e havia uma tensão em seu comportamento que
desencorajava o prolongamento da conversa.
— Essas pessoas são nossas aliadas — disse Vaelin, indicando a taverna com
a cabeça. — Não oferecem qualquer ameaça.
Uma neutralidade plácida tomou conta do rosto da mulher e ela fez uma
mesura.
— A Rainha aguarda a sua presença, meu senhor.

Ela estava no terreno do palácio examinando o mármore parcialmente esculpido


por Mestre Benril. A Senhora Davoka se encontrava ali perto, ao lado de outra
lonak, mais jovem e consideravelmente mais baixa. A mulher mais jovem
empertigou-se ao avistar Vaelin, com uma curiosidade evidente no rosto, como
se fazendo uma pergunta silenciosa.
— Meu senhor — cumprimentou Ly rna, animada. — Como foi o Conclave?
Vaelin não ficou surpreso por ela saber que ocorrera um. Ela tinha todo o
dom do pai para conseguir informações e modos muito mais sutis de explorá-las.
— A Fé espera se reestruturar — disse ele. — E, é claro, apoiará a sua
empreitada com todas as forças que lhe restam.
— E a Senhora Reva?
— Também irredutível na busca de seu objetivo, Alteza.
Ly rna assentiu, o olhar ainda fixo no mármore. Embora estivesse inacabado,
Vaelin achou os entalhes de uma perfeição espantosa, as expressões e poses das
figuras imbuídas de uma precisão e verossimilhança que superavam até mesmo
as das outras obras de Benril. No rosto dos soldados volarianos e da população do
Reino estavam estampados todo o medo, a fúria e a confusão de pessoas de fato
confrontadas com os horrores da guerra.
— Impressionante, não? — comentou Ly rna. — E, ainda assim, Mestre Benril
me pediu formalmente que destruísse a obra.
— Sem dúvida serve como uma lembrança dolorosa de sua escravização.
— Mas, nos anos que estão por vir, talvez todos nós precisemos de lembretes
do que nos fez tomar o nosso caminho. Acho que estou disposta a deixá-la como
está. Caso o mestre se acalme com o tempo, talvez ele possa ser persuadido a
concluí-la, do modo como achar melhor, é claro.
Ly rna ergueu a mão e fez sinal para que Davoka e a outra lonak se
aproximassem.
— Esta é Kiral do Clã do Rio Negro. Ela tem uma mensagem para o senhor.

— Você fala muito bem a minha língua. — Vaelin a levara para a casa de seu
pai, onde ele e a irmã haviam criado uma espécie de lar entre os cômodos
menos danificados.
Alornis estava ausente, tendo ido até as docas, provavelmente ansiosa para
pintar a paisagem de navios que apinhavam o porto. Eles estavam sentados sob o
carvalho no pátio, os galhos imponentes desfolhados à medida que o frio do
inverno aumentava.
— Ela sabia a sua língua — disse Kiral. — Então eu sei.
Ele ouvira de Ly rna a história e mal podia acreditar nela: uma alma possuída
por uma das criaturas do Aliado e agora livre. E uma cantora com uma
mensagem. Porém, de alguma forma ele sabia que era verdade; só de olhar no
rosto da jovem Vaelin sabia que ela ouvia uma canção e se sentiu envergonhado
pela inveja que aquilo instigava.
— Ela se lembrava de você — prosseguiu a garota lonak. — Você a impediu
de matar uma vez. O ódio dela era grande.
Ele se lembrou do rosto furioso e sibilante da Irmã Henna quando a segurou
contra a parede.
— Você possui as memórias dela?
— Algumas. Ela era muito velha, embora não tão velha quanto o irmão e a
irmã, nem tão mortal. Ela os temia e os odiava na mesma medida. Eu possuo as
artes de cura que ela aprendeu na Quinta Ordem, os rituais realizados por uma
sacerdotisa em algum lugar no sul distante do Império Alpirano, as habilidades
com a faca de uma escrava volariana que foi enviada para morrer nos
espetáculos deles.
— Sabe quando ela foi capturada pela primeira vez?
— As lembranças mais antigas dela são uma névoa de confusão e medo. A
principal dentre elas é a cena de cabanas queimando sob um céu noturno. —
Kiral fez uma pausa, estremecendo de forma involuntária. — A visão desaparece
e ela escuta a voz dele.
— O que ele diz?
Ela sacudiu a cabeça.
— Ela sempre afastava a lembrança, preferindo se concentrar em suas
muitas vidas de assassinatos e engodos.
— Sinto muito por você. Deve… doer.
Kiral encolheu os ombros esguios.
— Só quando sonho, na maioria das vezes. — Ela olhou para os galhos do
grande carvalho acima de sua cabeça e um leve sorriso surgiu em seu rosto. —
Ali — disse ela, apontando para uma forquilha larga no tronco principal. — Você
se sentava ali para observar o seu pai escovar os cavalos. — O sorriso dela
desapareceu. — Ele tinha medo de você, mas você nunca soube disso.
Vaelin ergueu a cabeça e olhou para o carvalho durante algum tempo. As
lembranças de brincar naqueles galhos sempre foram felizes, mas agora ele se
perguntava se os seus olhos de criança haviam visto mais do que ele se
recordava.
— Sua canção é forte — disse ele.
— A sua era mais. Posso ouvir o eco dela. Deve ser difícil perder tamanha
força.
— Eu a temia quando era mais novo, mas com o tempo soube que era um
dom. E, sim, sinto muita falta dela.
— Então agora eu serei a sua canção, como ordena a Mahlessa.
— E o que ela ordena?
— Ouço uma voz me chamando de uma grande distância, muito longe daqui,
no leste. É uma melodia muito antiga, e muito solitária, cantada por um homem
que não pode morrer, um homem que você encontrou.
— O nome dele?
— Não sei, mas a música carrega a imagem de um garoto que lhe ofereceu
abrigo contra uma tempestade e arriscou a vida para salvá-lo e à pessoa sob os
cuidados dele.
Erlin. De repente todas as peças se encaixaram: a fúria com que Erlin gritara
para a tempestade naquela noite, suas viagens ao redor do mundo e o seu rosto
inalterado quando apareceu para compartilhar a verdade a respeito do pai de
Davern. Erlin, Rellis, Hetril… ele tem uma centena de nomes, dissera Makril,
embora Vaelin agora soubesse que ele havia começado com apenas um. Aquele
dia na feira, enquanto ele assistia ao espetáculo de marionetes…
— Kerlis — sussurrou ele. — Kerlis, o Ímpio. Amaldiçoado a viver para
sempre por negar os Finados.
— Uma lenda — disse Kiral. — Meu povo conta outra história. Falam de um
homem que ofendeu Mirshak, Deus das Terras Negras, e foi amaldiçoado a
compor uma história sem fim.
— Você sabe onde encontrá-lo?
A lonak assentiu.
— E sei que ele é importante. A canção ressoa com um propósito quando o
toca, e a Mahlessa acredita que ele é a chave para derrotar o que quer que
comande a coisa que roubou o meu corpo.
— Onde?
A cicatriz estremeceu quando ela fez uma careta de desculpas.
— Do outro lado do gelo.
CAPÍTULO TRÊS
Frentis

Ela para e olha o Conselho antes de se sentar, vinte homens em finos mantos
vermelhos sentados em volta de uma mesa perfeitamente circular. A Câmara do
Conselho fica a meio caminho do topo da torre, e cada membro havia sido erguido
até lá pela força de uma centena de escravos trabalhando com cordas e roldanas
que se estendiam de cima a baixo do monolito. Apesar de serem abençoados com
a vida eterna, nenhum Conselheiro gostava da perspectiva de subir tantas escadas.
Ela suporta o tédio das formalidades de abertura enquanto Arklev entoa o
início da quarta e última reunião do Conselho do ano, o octingentésimo vigésimo
quinto ano do império, os escribas-escravos escrevendo com sua velocidade
sobrenatural enquanto ele continua com a ladainha, introduzindo cada membro
por vez, até finalmente chegar a ela.
— … e que acabou de assumir a Cadeira Escravocrata, Conselhei… ra, hã…
— Serei registrada simplesmente como a Voz do Aliado — diz ela, lançando um
olhar significativo para os escribas.
Arklev vacila por um momento, mas se recompõe com admirável fortitude.
— Como quiser. Agora, a nossa primeira ordem do dia…
— A única ordem do dia — interrompe ela. — A guerra. Este Conselho não tem
outra obrigação até que ela seja concluída.
Outro Conselheiro se manifesta, um simplório de cabelos grisalhos cujo nome
ela não faz questão de lembrar.
— Mas há assuntos urgentes vindos do sul, relatos de fome…
— Houve uma seca — diz ela. — Colheitas são perdidas e pessoas passam
fome. Matem quaisquer escravos excedentes para economizar suprimentos até
que a seca termine. Tudo muito triste, mas é possível sobreviver a isso, o que
talvez não possa ser dito sobre a nossa atual situação militar.
— De fato — começa Arklev —, a invasão não progrediu como planejado…
— Foi um fracasso miserável, Arklev — interrompe ela, sorrindo. — Tokrev,
aquele idiota envaidecido, orquestrou a própria morte e derrota com mais
eficiência do que qualquer uma de suas vitórias. A propósito, lamento pela sua
irmã.
— Minha irmã ainda está viva e não duvido de suas habilidades para que
continue assim. E nós ainda estamos no controle da capital deles…
— Não. — Ela estende a mão para pegar uma uva de uma tigela próxima,
colocando-a na boca e saboreando a doçura. Embora não inteiramente de seu
agrado, aquela casca tem um paladar incrivelmente sensível. — Há três dias que
não estamos no controle da cidade. Mirvek está morto, assim como os seus
comandados. Perdemos o Reino Unificado.
Ela desfruta do silêncio perplexo quase tanto quanto da uva.
— Uma tragédia — diz um deles num tom cauteloso, um sujeito belo com uma
enganadora aparência jovial. Ela se lembra de ter matado um homem a pedido
dele, quarenta anos antes, marido de alguma vadia com quem ele queria se casar.
Ela nunca pensou em perguntar se o casamento havia sido bem-sucedido. —
Porém — continua o belo Conselheiro —, ainda que a desgraça da derrota seja
difícil de suportar, isso por certo significa que a guerra está próxima do fim. Por
ora, pelo menos. Devemos reunir as nossas forças e aguardar uma oportunidade
apropriada para fazer uma nova tentativa.
— Enquanto uma nação inteira com todos os motivos para nos odiar reúne as
próprias forças.
— Eles estão enfraquecidos pela nossa invasão — observa Arklev. — E há um
oceano entre nós.
— Imagino que o Rei Malcius nutria a mesma ilusão até o momento em que
sentiu o pescoço se quebrar. — Ela se levanta e todo o humor desaparece de seu
rosto ao olhar para cada um deles. — Saibam, Honoráveis Conselheiros, que o
Aliado não perde tempo com conjecturas. Falo de fatos genuínos. O Reino
Unificado agora tem uma rainha e ela vê num oceano um obstáculo tanto quanto
veria num córrego raso. Quando os mares se acalmarem, ela virá, enquanto nós
gastamos as nossas melhores forças numa invasão comandada por um tolo, que foi
escolhido pelos votos de vocês, se bem me recordo.
— O General Tokrev era um veterano de muitas campanhas — começa o
Conselheiro grisalho, calando-se sob o olhar dela. Ela deixa o silêncio se
prolongar, sentindo uma ânsia familiar no peito quando a sua canção detecta o
medo crescente, e cerra os punhos para contê-la. Ainda não.
— É desejo do Aliado que sejam reunidas reservas para enfrentar essa
ameaça. Ex-Espadas Livres serão reconvocados aos seus batalhões e as cotas de
recrutamento serão triplicadas. As guarnições em Volar serão reforçadas por
tropas retiradas das províncias.
Ela espera que discordem, mas todos apenas continuam sentados lhe
encarando, esses homens donos de milhões, covardes ancestrais compreendendo
pela primeira vez o tamanho de sua insensatez. Ela cogita deixar uma última
ameaça velada ou uma provocação humilhante, mas se vê tomada por um desejo
imenso de se afastar deles.
Foi assim que aconteceu com você?, pergunta ela ao fantasma indiferente de
seu pai enquanto dá as costas para eles e sai da câmara sem uma palavra. Eles
viram quanto você estava enojado do fedor deles? Foi por isso que eles fizeram
com que eu o matasse?

Ele foi despertado pelo barulho da tranca da porta de sua cela. Seu principal
carcereiro, como todos os guardas, vinha da Guarda Montada da Rainha, um
sargento veterano com uma distinta indisposição para conversas que olhava para
Frentis com ódio escancarado toda vez que abria a porta. A Rainha fora
meticulosa ao escolher guardas que provavelmente não seriam influenciados
pela lenda do Irmão Vermelho. No entanto, naquele dia o ódio do homem estava
levemente contido ao abrir a porta pesada e fazer sinal para que ele saísse da
cela. Frentis ficou ainda mais surpreso quando não lhe colocaram grilhões, nem
lhe maltrataram de forma alguma. Ele era alimentado duas vezes por dia e
recebia um jarro de água fresca todas as manhãs quando o sargento aparecia
para pegar o seu balde de dejetos. Fora isso, era deixado no escuro, sem qualquer
companhia ou conversa… exceto por ela, claro, que aguardava toda vez que ele
sucumbia ao sono.
O sargento permaneceu a uma boa distância quando ele saiu da cela e
deparou-se com a Rainha parada na câmara mais além, ladeada por Davoka e
seus dois guardas enobrecidos.
— Alteza — disse Frentis, colocando um joelho no chão.
A Rainha não respondeu e virou-se para o sargento.
— Deixe-nos, por favor. Entregue suas chaves a Lorde Iltis.
Ela esperou até que o homem saísse antes de tornar a falar.
— A Fortaleza Negra não esteve tão vazia assim desde o dia de sua
construção. — Frentis permaneceu ajoelhado enquanto a Rainha examinava a
câmara, passando os olhos pelas pedras escuras iluminadas por tochas. — Prefiro
dessa forma. Pretendo mandar demoli-la ao término de nossas atuais
dificuldades.
Frentis abaixou a cabeça, respirou fundo e falou num tom formal:
— Minha Rainha, eu humildemente ofereço a minha vida…
— Cale-se! — Sua voz foi como uma chicotada, quando ela se aproximou o
suficiente para ser tocada e assomou sobre Frentis, respirando de modo arfante e
irregular. — Eu o matei uma vez. Então já tenho a sua vida.
Ela começou a respirar mais devagar após um momento e afastou-se.
— Levante-se — ordenou a Rainha com um aceno irritado e Frentis ficou de
pé, aguardando enquanto o rosto perfeito dela o encarava, a raiva substituída por
uma calma gélida. — O Irmão Sollis me transmitiu em detalhes o relato que
você lhe fez. Você não estava no comando de suas ações. É tão culpado pela
morte do Rei quanto uma espada o é pelo sangue que derrama. Eu sei disso,
irmão. E, ainda assim, sinto que não há em mim perdão para você. Compreende?
— Sim, Alteza.
— Lorde Vaelin também me disse que você afirmou que Lorde Al Telnar foi
cúmplice na invasão volariana.
— Ele foi, Alteza, pela promessa de poder e… outras recompensas.
— E o que seriam?
— Ele estava determinado a conseguir promessas de que mal algum seria
feito à senhora durante o ataque.
Ela suspirou, sacudindo levemente a cabeça.
— E eu que pensei que ele havia morrido como um herói.
Frentis respirou fundo, preparando-se antes de dizer as próximas palavras:
— Posso pedir um momento para lhe falar em particular, Alteza? Tenho uma
mensagem a entregar.
— A Senhora Davoka e estes senhores me viram em meu pior estado e ainda
assim julgam que mereço a sua lealdade. Quaisquer palavras que você me diga
são dignas de serem ouvidas por eles.
— Falo por um Lorde Comandante da Guarda Montada, um homem que vi
ser morto quando o palácio foi tomado. O nome dele era Smolen.
O rosto da Rainha não revelou nenhuma emoção ao olhar para ele, mas
Frentis notou como as mãos delas se mexeram como que ansiosas para pegar
uma arma oculta.
— Relate a sua mensagem — ordenou ela.
— Ele disse que havia sido incrível viajar até tão longe com a mulher que
amava.
A Rainha cerrou os punhos com força e avançou na direção dele. Frentis
ouviu duas espadas sendo desembainhadas quando os senhores colocaram-se ao
lado dela, os aços apontados para tirar a sua vida.
— Como ele morreu? — perguntou a Rainha.
— Bravamente. Ele lutou bem, mas os Kuritai são habilidosos, como a
senhora sabe.
Frentis não conseguiu olhá-la nos olhos; a perfeição impassível do rosto dela
era um contraste terrível com a mulher queimada que gritara e fugira da sala do
trono.
— Não peço misericórdia — disse ele, baixando a cabeça. — E aguardo o
julgamento de Vossa Alteza.
— Então você anseia pela morte? Acha que os Finados receberão alguém
como você?
— Duvido, Alteza. Mas a esperança está no coração da Fé.
— Então a sua esperança será malograda, pelo menos por ora. — Ela indicou
a Iltis uma cela trancada; o Lorde Protetor experimentou as chaves e abriu a
porta, e ele e o seu companheiro entraram para buscar o ocupante. Ao contrário
de Frentis, o homem havia sido posto a ferros, tornozelos, joelhos, pulsos e
pescoço presos por grilhões recém-forjados, forçando-o a arrastar-se centímetro
a centímetro enquanto os dois lordes o puxavam para a luz. Apesar do seu óbvio
desconforto, não havia qualquer sinal de aflição no rosto do homem, suas feições
a familiar máscara impassível dos escravos de elite. Tinha o peito nu com
músculos bem delineados e um emaranhado de cicatrizes que lhe cobriam a pele
da cintura ao pescoço.
— Kuritai — murmurou Frentis.
— O único que conseguimos capturar em toda essa guerra — disse a Rainha.
— Encontrado desacordado nas docas no dia em que a cidade foi retomada. De
acordo com Lorde Al Hestian, ele havia sido designado para vigiar Alucius,
garantindo assim a submissão de seu pai. O nome dele é Vinte e Sete.
Ela se aproximou do escravo de elite, examinando-o da cabeça aos pés com
um olhar crítico.
— O Irmão Harlick me disse que essas criaturas não possuem vontade
própria, que lhes é arrancada através de torturas, drogas e, de acordo com o
Aspecto Caenis, vários métodos das Trevas que fedem a influência do Aliado. Tal
como sua vontade foi tirada de você, imagino. O que será que ele faria se nós o
libertássemos?
— Aconselho que isso não seja feito de modo algum, Alteza — disse Frentis.
A Rainha virou-se para ele com o mesmo olhar avaliador, seus olhos indo até
um ponto em particular no seu peito.
— A Senhora Davoka me disse que o ferimento que lhe causei supurou e que
você está vivo graças a ela.
Frentis olhou para Davoka e notou que nunca a tinha visto tão pouco à
vontade, com a testa encharcada de suor. Ele reparou que a lonak segurava uma
garrafinha de vidro, cujo conteúdo parecia reluzir um pouco, e percebeu que a
mão dela de fato tremia.
— É verdade, Alteza — disse Frentis, ficando mais inquieto. O que há ali
dentro capaz de assustá-la tanto? — Embora eu acredite que foi a sua faca que
realmente me salvou. De alguma forma, ela me… libertou.
— Sim. — O olhar da Rainha recaiu sobre o prisioneiro e ela estendeu a mão
a Davoka, falando em lonak. A Rainha pegou a garrafa e a ergueu à luz fraca, o
líquido escuro no interior produzindo um odor nauseabundo quando ela tirou a
rolha. — A lâmina que o libertou havia sido banhada nisto — disse ela a Frentis.
— Um presente de nossos amigos lonaks. Um de que desconfio que possa se
mostrar bastante útil aos nossos propósitos. — Ela se aproximou do Kuritai,
falando calmamente com ele em volariano: — Isso não me dá prazer.
A Rainha ergueu a garrafa até um ponto no alto do peito do homem, virando-
a até que uma única gota do líquido pingasse nas cicatrizes do escravo. O
resultado foi imediato; o grito que saiu da garganta do Kuritai foi suficiente para
doer os ouvidos enquanto ele convulsionava, tombando sobre as correntes e
contorcendo-se no chão. A Rainha afastou-se, seu rosto sombrio e os olhos
brilhantes ao tampar a garrafa. Frentis notou como ela se empertigou e forçou-se
a assistir ao tormento do escravo. Após alguns segundos, os gritos diminuíram e
se tornaram lamúrias agonizantes, as convulsões que haviam lhe curvado as
costas reduzidas a tremores arfantes. Por fim, o escravo ficou imóvel, ofegando
e encharcado de suor.
Ly rna deu um passo cauteloso em frente, mas Frentis ergueu a mão.
— Se me permite, Alteza?
A Rainha assentiu e ele foi até o Kuritai, agachando-se para olhar em seu
rosto e vendo que a vida retornava aos olhos anuviados de dor.
— Consegue falar? — perguntou ele em volariano.
Os olhos piscaram, entrando em foco, a resposta uma tosse rouca saída de
uma garganta desacostumada à fala.
— Ssssim.
— Como você se chama?
Os olhos se estreitaram levemente e a resposta saiu num volariano brusco, de
sotaque carregado:
— Eu… comecei como Quinhentos. Agora… sou Vinte… e Sete.
— Não. — Frentis aproximou-se ainda mais. — Seu nome verdadeiro. Sabe
qual é?
Os olhos vagaram um pouco, a testa franzindo-se diante das lembranças.
— Lekran — disse o homem em voz baixa, que então se transformou num
rosnado. — Lekran… Meu pai… foi Hirkran, do machado vermelho.
— Você está longe de casa, amigo.
Lekran mexeu-se de súbito, retesando as correntes.
— Então… tire essa merda de metal de mim… para eu poder voltar para lá.
Pois o nosso tempo neste mundo é curto e tenho muitos homens para matar.

— Isso realmente previne sonhos? — Frentis cheirou desconfiado o conteúdo do


frasco e achou o odor nem um pouco convidativo, como bolor misturado com
chá fervido.
— Deixa o sono profundo o suficiente para preveni-los — respondeu o Irmão
Kehlan. — A primeira vez que o preparei foi após a passagem da Horda do Gelo.
Havia muitas pessoas nos Confins atormentadas por pesadelos quando a matança
terminou, inclusive eu. O líquido irá parar os seus sonhos, irmão. Embora a dor
de cabeça que você terá pela manhã possa fazê-lo ansiar pelos sonhos.
Não são sonhos, sabia Frentis. Mas talvez pelo menos possa me proteger contra
pensamentos indesejáveis quando ela tocar a minha mente. A Quinta Ordem havia
se instalado nas casas dos mercadores, perto das docas, os muitos cômodos e
porões fornecendo espaço suficiente para a maioria dos feridos e para o
armazenamento do estoque crescente de bandagens e curativos. Ao que tudo
indicava, a Senhora Al Bera havia conseguido convencer alguns mercadores
alpiranos a arriscarem um último transporte de suprimentos através do Erineano
no inverno, trazendo medicamentos muito necessários, assim como alimentos.
Frentis agradeceu ao curandeiro e saiu da casa, caminhando ao longo do cais
até onde Vaelin se encontrava, olhando para a imensa belonave volariana. Ele
percebeu enquanto caminhava os muitos olhares que atraía, sendo que um
número considerável deles era visivelmente hostil, apesar de a maioria ser
apenas de medo ou de surpresa. Ele ainda podia ser o Irmão Vermelho para
alguns, mas para a maioria era agora o Assassino do Rei, libertado em virtude da
infinita benevolência de sua Rainha. Ela não instilava medo algum neles, somente
adoração, e eles labutavam de forma incessante ao seu comando. Para todo
lugar que Frentis olhava pessoas estavam trabalhando, reconstruindo paredes
caídas, martelos retinindo em forjas improvisadas, e novos recrutas sendo
treinados a uma disciplina à qual não estavam acostumados. Ele viu fadiga em
muitos rostos, mas nenhuma ociosidade; todos seguiam para realizar as tarefas
designadas com singular determinação. Os capitães podem ter receio do caminho
que ela vai tomar, mas essa gente navegaria por todos os oceanos do mundo ao
seu comando.
Ele ouviu vozes se erguerem no navio ao se aproximar e avistou duas figuras
no convés; uma baixa, outra alta. A mais baixa das duas parecia ter a voz mais
elevada.
— Sua irmã tem uma língua surpreendentemente irascível, irmão —
comentou Frentis com Vaelin.
— Nosso novo Mestre do Estaleiro da Rainha a faz exibir o que tem de pior —
retorquiu ele, observando Alornis apanhar um maço de pergaminhos e atirá-lo no
rosto de Davern antes de descer a rampa pisando firme. — Ele pediu que Alornis
fizesse desenhos do navio. Algo que desconfio de que ele agora se arrepende.
— Idiota arrogante! — explodiu Alornis após descer até o cais, o semblante
carregado inalterado pelo abraço consolador do irmão.
— Ele não gostou dos desenhos? — perguntou Vaelin.
— Não foram os desenhos. — Ela ergueu a voz, para que pudesse ser ouvida
do navio. — É a recusa teimosa dele de dar ouvidos a conselhos razoáveis!
— Tenho certeza de que ele conhece o próprio ofício — disse Vaelin,
recebendo um olhar franzido de reprovação.
— Essa monstruosidade — disse Alornis, apontando para o casco do Rainha
Lyrna — foi projetada de forma exagerada, e ainda assim ele quer copiá-la,
gastando com isso quantidades enormes de trabalho e madeira.
— Sem dúvida o seu projeto é mais elegante?
— Na verdade, sim, querido irmão, é. — Ela se empertigou, segurando a
bolsa contra o peito. — Levarei isso até a Rainha. — Ela fez uma mesura rígida
para Frentis e partiu num passo determinado.
— Na última vez que a encontrei, ela falava mais baixo — disse Frentis.
— Todos nós mudamos muito, irmão. — Vaelin deu as costas ao navio e
caminhou na direção do molhe, acompanhado por Frentis. — Os planos da
Rainha para você — disse ele, parando a uma boa distância de outros ouvidos. —
Você pode recusar.
— Dificilmente, irmão. Tampouco seria o meu desejo fazer isso.
Vaelin olhou para o mar, as águas cinzentas cortadas pelo vento sob um céu
turbulento.
— A mulher que assombra os seus sonhos… Acha que ela o sentirá se
aproximando?
— Possivelmente. Embora eu espere que a poção do Irmão Kehlan mascare
os meus pensamentos. De qualquer forma, o interesse dela por mim pode ser
vantajoso, dado o caráter diversionário de minha missão.
— Parece que nós dois temos estradas difíceis à nossa frente.
— É melhor você não me dizer o que fará. Se ela me encontrar e de algum
modo me capturar vivo, eu… duvido que consiga não revelar segredos se ela me
dominar de novo.
Vaelin assentiu e deu as costas para o mar, a tristeza visível em seu
semblante.
— Procurei tanto tempo por você, projetando a minha canção por todos os
lados, mas nunca tive mais do que o mais vago vislumbre. Agora, parece que
tenho que mandá-lo de novo para longe e não tenho canção alguma para
encontrá-lo.
— Tenho muito a compensar, irmão. E um assassino não deveria se demorar
à vista da irmã de sua vítima. — Ele estendeu a mão e Vaelin a apertou com
força. — Iremos nos encontrar em Volar, disso não tenho dúvida.

A dor de cabeça era tudo o que o Irmão Kehlan prometera, aliviada um pouco
pela sensação agradável de saber que a poção funcionara. O seu sono ficara livre
de sonhos, sem quaisquer outros horrores ou pedidos para que se rendesse à
vontade dela. Frentis continuara a dormir na Fortaleza Negra após a sua
libertação, ele e Lekran agora instalados com conforto na sala de guarda. Era
uma sensação estranha viver numa construção tão grande ocupada por somente
duas pessoas, visto que a Rainha transferira depressa os guardas para serviços de
treinamento. Ele encontrou o ex-Kuritai exercitando-se no pátio, movendo-se
com toda a velocidade e precisão instiladas por anos de condicionamento e
batalhas. O volariano usava agora um machado no lugar das espadas duplas,
girando a arma conforme enfrentava um exército de oponentes imaginários.
— Irmão Vermelho — disse ele a Frentis, parando e ofegando um pouco por
causa do esforço dos exercícios. Ele abandonara a navalha desde a sua
libertação, e uma barba escura começava a crescer em seu rosto, assim como
cabelos negros em sua cabeça. — Sua mulher-chefe mandou um escravo com
isto. Ela deu um grande presente.
Ele ergueu o machado, com um sorriso largo no rosto. Era uma arma de
lâmina dupla de origem renfaelina, o aço plano no interior das lâminas incrustado
com um padrão intricado de ouro. Provavelmente um dos brinquedos de Darnel,
concluiu Frentis, mais uma vez sentindo uma pontada de arrependimento por não
ter sido ele a matar o Senhor Feudal.
— Não há escravos aqui — ponderou Frentis, um fato que fora obrigado a
repetir muitas vezes. Lekran parecia ter dificuldade em conceber uma terra sem
escravidão. Ele descrevera com detalhes a sua terra natal, que aparentemente
ficava em algum lugar na selvagem região montanhosa para além das províncias
setentrionais; e as principais ocupações de sua tribo pareciam ser cavar à procura
de minerais e guerrear constantemente com tribos vizinhas.
— Coisa boa — disse Lekran após um longo gole de vinho. — Tem mais?
Frentis indicou com um gesto uma pilha de garrafas, encontradas debaixo da
cama do oficial Espada Livre que estivera no comando daquele lugar. A cidade
acabara se mostrando rica em estoques ocultos de vinho e de saques variados. O
exército volariano permitia formalmente a pilhagem, desde que todo o saque
fosse declarado e sujeito a uma taxa de um décimo do total, mas claramente
muitos não haviam se sentido inclinados a seguir essa lei.
— Sua mulher-chefe — disse Lekran, sentando-se de novo com uma garrafa
na mão. — Ela tem um homem?
— Ela é chamada de Rainha, e não.
— Ótimo. Vou querer ela para mim. — Ele tomou um longo gole e arrotou de
forma extravagante. — Quantas cabeças você acha que vai custar?
Aparentemente era costume da tribo de Lekran oferecer as cabeças de
inimigos derrotados para noivas em potencial como prova de valor como marido.
— Mil devem bastar — disse Frentis.
Lekran franziu o cenho e bufou irritado.
— Tantas assim?
— Ela é uma rainha. Elas são caras. — Ele observou o ex-escravo esvaziar a
garrafa em alguns goles e sabia que, apesar de toda a bravata, aquele era um
homem tentando afogar os muitos horrores em sua cabeça. — Por quanto tempo
você foi Kuritai? — perguntou Frentis.
— Eu tinha dezenove anos quando me pegaram. Agora vejo o rosto do meu
pai quando me olho no espelho. O tempo se perde com o domínio. — Lekran fez
uma careta para a garrafa vazia e a jogou contra as lajes.
— Você não se lembra? — insistiu Frentis. — Eu me lembro de cada
momento do meu domínio.
— Então você tem muito azar. — Lekran se remexeu pouco à vontade por um
momento, os braços musculosos se retesando ao entrelaçar as mãos e lançar um
olhar ávido para o vinho. — Eu me lembro… o suficiente.
— Alucius Al Hestian. Você se lembra de que foi designado para vigiá-lo?
Um sorriso muito leve surgiu nos lábios de Lekran.
— Sim. Ele também queria uma bebida.
— Ele morreu como herói, tentando matar um inimigo meu muito odiado.
— Aquele desmiolado na cadeira grande? — Lekran soltou um grunhido
jocoso. — Bem, bom para ele. Vamos beber à sua memória. — Ele se levantou
para pegar outra garrafa.
— Você sabe o que vamos fazer? — perguntou Frentis enquanto ele
vasculhava o vinho, tirando a rolha de uma garrafa para sentir o cheiro da bebida
e então fazendo uma careta e a jogando de lado. — Está satisfeito em me seguir?
— Meu pai foi o único homem que já segui de boa vontade. — Lekran fungou
no gargalo de outra garrafa e ergueu as sobrancelhas em apreciação. — Mas vou
emprestar o meu machado à sua causa no caminho para casa. — Ele se sentou
mais uma vez, sorrindo ao tomar outro gole. — Afinal, a sua Rainha custa mil
cabeças.

— Belorath — apresentou-se o capitão, encarando Frentis com óbvia


desconfiança, que ficou ainda mais intensa ao avistar Lekran subir a rampa, com
espadas duplas nas costas e o machado na mão. — Bem-vindo ao Sabre do Mar.
Os seus companheiros já estão aqui.
O ar matutino estava ficando mais frio, o vento deixando-o cortante ao
embarcarem. As figuras familiares no convés estavam enroladas em seus
mantos quando Frentis avançou na direção delas, o frio que sentia dando lugar a
uma raiva repentina.
— O que é isso? — perguntou ele.
— Viemos cumprir a ordem da Rainha, irmão — disse Draker, levantando-se,
seguido pelos outros às suas costas. — É verdade, irmão. Ela teve a bondade de
atender ao nosso pedido, já que nenhum de nós gostou da ideia de uma vida na
Guarda do Reino.
O olhar de Frentis percorreu os trinta sobreviventes de sua companhia da
Urlish, homens e mulheres de rostos sérios, vestidos em cores discretas e
carregando uma variedade de armas favoritas. Embora houvesse uma exceção.
Illian era uma figura impressionante em seu manto azul-escuro, parecendo ter
crescido um pouco nos dias desde o seu último encontro. Ela estava ladeada por
Dente Negro e Retalhador, e os dois cães o encaravam de olhos arregalados e
cabeças baixas enquanto lambiam os lábios; filhotes cumprimentando o líder da
matilha. Frentis ajoelhou-se para passar a mão na cabeça deles, provocando um
ganido de boas-vindas.
— Presumo que haja uma mensagem do Irmão Sollis — disse Frentis a Illian,
incapaz de esconder o desapontamento na voz.
Ela respondeu com um leve sorriso e um tom formal:
— Apenas que você permita que eu me junte a essa missão, irmão. E que se
certifique de que o meu treinamento não diminua durante a viagem.
Frentis resistiu ao impulso de mandá-la desembarcar e ela continuou:
— Davoka também não ficou feliz, se serve de consolo.
— Não serve… irmã. Imagino que ela esteja ao lado da Rainha?
Illian assentiu.
— Não sem lamentar. Ela me deu isto. — Ela ergueu um saco com alguns
cantis de couro. — Preparadas pelo Irmão Kehlan de acordo com a receita
lonak.
Frentis assentiu.
— Mantenha-os a salvo e não fique tentada a abrir um cantil sequer. — Ele
deixou os cães e levantou-se quando Trinta e Quatro adiantou-se para lhe apertar
a mão. — Você é um homem livre agora — lembrou ele ao ex-escravo. —
Retornando à terra de sua servidão. E o nosso sucesso está longe de ser garantido.
— Ainda não encontrei o meu nome — retorquiu Trinta e Quatro encolhendo
os ombros. Ele abaixou um pouco a voz e falou em volariano: — E acho a sua
Rainha… inquietante.
Frentis soltou a mão dele e virou-se para Mestre Rensial, que se encontrava
afastado dos outros, com uma expressão no rosto mais vazia do que de costume.
— Eu esperava que o senhor fosse voltar aos estábulos, mestre — disse-lhe
Frentis. — A Ordem precisará dos seus talentos.
— O garoto não está lá — murmurou Rensial. — Nem a garota, nem a
mulher alta. — Ele olhou desconfiado ao redor, aproximou-se e sussurrou: —
Onde estão os cavalos?
— Estamos indo encontrá-los, mestre. — Frentis apertou-lhe o braço para
tranquilizá-lo. — Bem longe daqui, do outro lado do mar, há um império de
cavalos.
Rensial respondeu com um aceno grave de cabeça e se afastou na direção da
proa. Frentis decidiu avisar o Capitão Belorath para garantir que os seus homens
dessem tanto espaço quanto possível ao mestre dos cavalos. Seu olhar foi atraído
para a amurada, onde uma figura desconhecida olhava para o mar, um jovem
corpulento com uma vasta cabeleira loura e encaracolada.
— O nome dele é Artesão — disse Draker. — Não fala muito.
Frentis conhecia o nome, é claro. O dotado que curou a Rainha.
— Ele também está indo por ordem da Rainha?
— Não tenho certeza, irmão. Ele já estava a bordo quando chegamos.
Frentis assentiu e virou-se para encarar o peso dos olhares deles.
— Agradeço a todos — disse ele. — Mas vocês me oferecem demais.
Desembarquem e me deixem com esta missão, por favor. — Eles o olharam em
silêncio, com expectativa no rosto em vez de raiva. Nenhum deu um único passo
em direção à rampa. — Não há viagem de volta para essa missão… — começou
Frentis, e então parou quando Draker abriu um sorriso largo.
— Acho que o nosso capitão está ansioso para zarpar, irmão.
CAPÍTULO QUATRO
Reva

Em outros tempos, a casa de Lorde Brahdor devia ter sido um lugar imponente.
Originalmente uma fortaleza menor, sucessivas gerações a haviam transformado
numa extensa mansão de três andares, que continuava para além dos portões que
outrora a cercaram, o fosso defensivo tendo sido tapado há muito tempo. Pelos
campos ao redor estavam espalhados estábulos, depósitos e, Reva bem sabia, um
celeiro grande do outro lado de uma colina próxima. Ela fora até lá mais cedo,
parando o cavalo a uma boa distância da pilha dilapidada de madeira inclinada,
agora sem telhado e com as portas caídas no chão tomado de ervas daninhas.
Reva estava sozinha, após ordenar que seus guardas continuassem até Alltor
sem ela, alguns quilômetros antes. Encontrou Kernmill devastada e incendiada
como esperado; todas as pessoas que espionara estavam mortas, capturadas por
traficantes de escravos ou haviam fugido. A casa de Lorde Brahdor ficava uns
três quilômetros ao norte e estava apenas um pouco mais conservada. A
construção parecia ter escapado da atenção dos volarianos, possivelmente porque
a sua ruína evidente havia sido causada antes da chegada deles; as telhas de
ardósia foram arrancadas dos vários telhados pelas intempéries ou por aldeões
gananciosos, as paredes estavam sujas e com a tinta descascando, e cada porta
aparentemente havia desaparecido.
O que você espera encontrar aqui?, perguntou-se Reva com um suspiro
mental antes de desmontar e amarrar a montaria na estaca de uma cerca. Era
uma égua calma, muito mais dócil do que o pobre Bufo, que acabara na panela
durante os primeiros dias do cerco. Ela deixou a égua pastando no capim longo e
aproximou-se da casa, olhando pelas janelas sem vidros para a escuridão
bolorenta do interior. Eles se encontravam aqui?, perguntou-se. Era aqui a base
para as suas tramas? Os Filhos comparecendo para se apertarem diante do senhor
devoto que falava verdades tão maravilhosas, sem jamais conhecerem a
verdadeira natureza da coisa que lhes mentia e provavelmente ria consigo mesma
o tempo todo.
Ela foi até uma abertura sem porta e entrou nas sombras geladas da casa.
Apesar da penumbra, Reva ficou impressionada com a grandiosidade do átrio,
onde uma escadaria elegante descia do andar superior até um piso quadriculado
de mármore fino, e o barulho de suas botas ecoou pelo lugar. Ela examinou as
paredes à procura de pinturas ou emblemas, mas encontrou apenas gesso nu e
nenhum sinal que indicasse o caráter de seu último ocupante. Uma breve
exploração dos outros cômodos do andar térreo não rendeu mais frutos, de modo
que Reva subiu a escadaria com cuidado, encontrando-a surpreendentemente
firme sob os pés e provocando somente leves rangidos.
O andar superior era mais frio, com vento entrando pelas janelas arruinadas
e balançando trapos que já haviam sido cortinas. Ela foi de cômodo em cômodo,
encontrando apenas poeira, cacos de vasos e pedaços de mobília arruinada. Num
quarto, Reva parou ao avistar uma grande mancha no chão, obscurecida em
parte por um tapete embolorado; havia uma cama coberta por teias de aranha
encostada na parede. Ela conhecia uma mancha de sangue o suficiente para não
precisar inspecioná-la mais de perto; alguém havia morrido ali, mas não
recentemente.
Estava se virando para sair quando percebeu: um odor levemente acre lhe
chegou às narinas, o cheiro de uma vela que acabara de ser apagada. Reva
parou, fechou os olhos, nariz e ouvidos atentos a mais pistas. Foi apenas um
rangido discreto nas vigas sobre a sua cabeça, mas ainda assim pesado demais
para ter sido causado por um rato. Ela abriu os olhos, ergueu a cabeça para o teto
e discerniu um buraco do tamanho de uma moeda de cobre, com uma luz
bruxuleante e então ficando escuro quando algo o cobriu.
Reva foi para o corredor e procurou os degraus que levavam ao terceiro
andar, encontrando-os bem menos preservados do que a grande escadaria. A
balaustrada havia desaparecido e faltavam vários degraus, forçando-a a saltar e
agarrar-se nos patamares para conseguir subir. Havia quatro quartos de sótão no
último andar, e somente um tinha porta. Reva girou a maçaneta e, vendo que
estava trancada, abriu-a com um chute e desembainhou a espada antes de entrar.
Havia uma pequena porém bem-arrumada pilha de cobertores próxima à janela,
o quarto protegido das intempéries por algumas tábuas de madeira, seguradas no
lugar com barbante. Ao lado dos cobertores havia um toco de vela, e um filete
fino de fumaça subia do pavio.
Reva passou os olhos pelo resto do quarto, encontrando uma pequena pilha de
livros e outra de legumes variados no canto, cenouras e batatas, bolorentas e
criando raízes, algumas com pequenas marcas de mordidas. Ela foi alertada pelo
som de alguém prendendo a respiração, uma arfada brusca bem acima de sua
cabeça.
Reva deu um passo adiante e algo aterrissou às suas costas. Ela girou nos
calcanhares, a espada descrevendo um arco preciso e se chocando com uma
pequena faca, fazendo a lâmina voar para as sombras. A dona da arma olhou
para ela com olhos arregalados num rosto sujo emoldurado por uma cabeleira de
cachos emaranhados.
— Quem é você? — perguntou Reva.
O rosto da garota manteve a mesma expressão boquiaberta por um segundo,
e então se transformou num rosnado. Ela sibilou e jogou-se sobre Reva, suas
mãos como garras, unhas longas tentando arranhar o rosto da intrusa. Reva
largou a espada, desviou-se do ataque e agarrou a garota pela cintura, segurando-
lhe os braços enquanto ela se debatia, rosnando e cuspindo. Ela a imobilizou
enquanto a garota continuava a lutar, sentindo a forma esquálida por debaixo das
roupas esfarrapadas e ficando espantada com a ferocidade de alguém tão
próximo da inanição. A garota acalmou-se após se debater por uns dois minutos,
largando-se exausta nos braços de Reva, soltando uma lamúria de fúria
impotente.
— Desculpe a intrusão — disse Reva. — Meu nome é Reva. Quem é você?

— Foi Ihlsa quem mandou você?


Reva colocou mais madeira no fogo e examinou o conteúdo da panela, um
velho recipiente de ferro encontrado em meio aos restos despedaçados da
cozinha da mansão. A garota a seguira de bom grado depois que Reva a soltou,
embora tivesse ficado num silêncio emburrado até então, sentada diante dela na
frente da lareira enquanto Reva empilhava pedaços quebrados da mobília para
usar como combustível. Ela enchera a panela com aveia dos seus alforjes e
acrescentara um pouco de mel e canela para dar gosto, comprados de um
soldado nilsaelino em Varinshold pelo preço de uma espada curta e uma adaga
de um oficial volariano. Longas semanas marchando com a Cruzada da Rainha
fizeram com que aprendesse muito sobre o caráter dos vários súditos do Reino, e
geralmente era possível contar com os nilsaelinos para fornecerem alguns luxos
pelo preço certo.
— Quem é Ihlsa? — perguntou ela, mexendo o mingau.
A garota empertigou-se um pouco, erguendo o queixo e tentando mostrar um
ar de nobreza.
— Minha criada.
— O que faz de você a senhora desta casa?
— Sim. — O rosto da garota fechou-se um pouco. — Desde que minha mãe
morreu.
— Você é filha de Lorde Brahdor?
A expressão da garota mudou bruscamente de tristeza para puro medo.
— Você conhece o meu pai? Ele vai voltar?
Reva sentou-se e olhou nos olhos assustados da menina.
— Como você se chama, garota?
Ela tentou algumas vezes antes de conseguir formular uma resposta, a
palavra saindo num sussurro hesitante:
— E-Ellese.
— Eu tenho que lhe contar, Ellese. Seu pai morreu. Foi morto em Alltor, junto
com muitos outros.
Não havia pesar no rosto da garota, apenas um alívio que transpareceu em
sua postura. Ela se abraçou e abaixou a cabeça até os joelhos, o som baixo de
choro saindo de trás da máscara de cabelos emaranhados. Reva não percebera
até então quão jovem ela era, mas agora via que a garota não podia ter mais de
dez anos, e era muito magra.
Reva serviu um pouco de mingau numa tigela de madeira e a estendeu para a
garota em prantos.
— Aqui. Você precisa comer.
Os soluços pararam após um momento, o cheiro do mingau provocando um
ronco audível da barriga de Ellese quando ela ergueu a cabeça e pegou a tigela.
— Obrigada — disse ela em voz baixa antes de começar a atacar o mingau
de forma voraz.
— Devagar — advertiu Reva. — Se comer rápido demais de barriga vazia,
você passará mal.
A garota passou a engolir mais devagar e assentiu com a cabeça.
— O Senhor Feudal o matou? — perguntou ela quando a tigela estava quase
vazia.
— O que a faz perguntar isso?
— Ihlsa disse que o Senhor Feudal levaria a justiça do Pai a alguém que
era… amaldiçoado.
— Como ele foi amaldiçoado?
— Aconteceu quando eu era pequena. Antes ele era gentil, pelo que me
lembro. Mas ele adoeceu. Minha mãe disse que era uma febre do cérebro. Eu
lembro que ela me levou até o quarto deles para que eu me despedisse. Ele havia
caído num sono profundo e ela disse que ele nunca acordaria. — Ellese olhou
para o mingau, raspou o que restava na tigela e a colocou de lado. — Mas
acordou.
— E ele estava diferente?
— Meu pai não era mais o meu pai. Ele… machucava a minha mãe. Todas
as noites. Eu podia ouvir… através das paredes. Ele a machucou durante anos. —
O rosto dela se contraiu e ela começou a chorar de novo, as lágrimas escorrendo
em meio à sujeira do rosto.
— Ele alguma vez… machucou você também?
A garota abaixou mais uma vez a cabeça, e os seus soluços contínuos eram
toda a resposta de que Reva precisava. Passado algum tempo, ela tornou a falar,
forçando as palavras a saírem:
— Ele nos mantinha trancadas quando saía, e a casa ia caindo aos pedaços à
nossa volta. Um dia antes de ele partir, ele… ele a matou. Ele também tentou me
matar, mas Ihlsa agarrou a minha mão e fugimos. Corremos para a floresta e
nos escondemos por muito tempo. Quando voltamos, não tinha ninguém na
casa… além de minha mãe. Fomos até a aldeia, mas havia soldados lá, não da
Guarda do Reino ou dos homens do Senhor Feudal. Eles estavam fazendo coisas
horríveis. Corremos de volta para casa e nos escondemos nas vigas. Eles vieram
e roubaram coisas, quebraram o que não queriam, mas não nos encontraram.
Ihlsa saía para procurar comida para nós a cada poucos dias. Um dia ela não
voltou.
Reva ficou olhando enquanto ela chorava, sua cabeça tomada de imagens de
uma garota tremendo de frio no escuro e encolhida no canto de um celeiro,
agarrada à cenoura que roubara no dia anterior. Ela não queria comer tudo de
uma vez porque talvez não houvesse nenhuma no dia seguinte.
— Ele não foi morto pelo Senhor Feudal — disse ela a Ellese. — Foi morto
por um soldado a serviço da Rainha. Se serve de consolo, a morte dele não foi
rápida. — Reva pegou a bolsa e retirou de dentro o estojo de pergaminho que
continha o esboço que Alornis fizera do sacerdote. — Você já viu este homem
aqui? — perguntou ela, estendendo o esboço a Ellese.
A garota ergueu a cabeça e passou uma manga esfarrapada pelo rosto antes
de pegar o pergaminho, assentindo ao olhar para a imagem.
— Algumas vezes. Meu pai o chamava de santo amigo. Eu não gostava do
jeito como ele me olhava. Minha mãe também não. Ela me levava para o andar
de cima sempre que ele aparecia. Mas uma vez eu os ouvi discutindo e fui até o
topo da escada para escutar. A voz do meu pai estava baixa demais para eu ouvir,
mas percebi que estava diferente, que não parecia nada com ele. O outro
homem falava mais alto, com raiva. Ele disse alguma coisa sobre anos de
esforços desperdiçados. — Os olhos dela foram para o rosto de Reva por um
segundo. — Ele ficava dizendo coisas sobre uma garota, uma garota de certa
importância, acho.
— O que ele disse?
— Que o mart… — A voz de Ellese foi sumindo à medida que ela se
atrapalhava com a palavra.
— Martírio? — sugeriu Reva.
— Sim. Martírio. Ele disse que o martírio da garota devia ocorrer pela mão
de seu tio, quando houvesse mais olhos para testemunhá-lo.
A mão de seu tio. Reva soltou um grunhido de contentamento sombrio. Eles
acharam que Tio Sentes me mataria. A chegada de Vaelin fez a criatura do Aliado
mudar de planos. Quanto eles o temem?
— Obrigada. — Ela tirou o esboço da mão da garota, guardou no estojo e
levantou-se, recolhendo as suas coisas e afivelando a espada. — Se há mais
alguma coisa que você queira levar, pegue agora.
A garota ergueu a cabeça de súbito, os olhos mais uma vez arregalados e
temerosos.
— Para onde você vai me levar?
— Para Alltor. A não ser que você queira ficar aqui.

— O que aconteceu com as muralhas? — perguntou Ellese três dias depois,


quando chegaram ao topo da colina a leste de Alltor. Ela estava montada na égua
que Reva, a pé, puxava pelas rédeas. As pernas da garota estavam fracas demais
para que ela caminhasse e a égua não era forte o suficiente para aguentar o peso
das duas. No entanto, refeições regulares em muito ajudaram a levantar o ânimo
de Ellese e a provocar uma torrente de perguntas.
— Elas foram quebradas — respondeu Reva.
— Pelo quê?
— Pedras grandes arremessadas por máquinas grandes.
— Onde elas estão agora?
— Foram queimadas.
— Por quem?
— Uma por mim, as outras duas por um monte de piratas.
— Por quê?
— Eles estavam muito bravos. — Reva olhou para o rio, cheio pelas chuvas
de inverno, as águas escuras ocultando os barcos que transportaram as terríveis
máquinas junto com sabia o Pai quantos cadáveres. — E a Rainha pediu que
fizessem isso.
— Ela é muito bonita? Minha mãe foi até Varinshold uma vez. Ela disse que a
Princesa Ly rna era a mulher mais linda que ela já tinha visto.
Em Warnsclave Reva vira a Rainha com os órfãos, o sorriso que ela lhes
mostrava tão diferente do que mostrava a todos os outros, um sorriso de afeição
verdadeira e enorme compaixão. Mais tarde, no mesmo dia, ela recebeu notícias
sobre um bando de fora da lei que estava atacando refugiados a oeste e ordenou
a Lorde Adal que os perseguisse, poupando um a cada três capturados, e esses
foram chicoteados antes de serem forçados a servirem como carregadores. Ela
também se despedira do comandante da Guarda do Norte com um sorriso
naquele dia.
— Sim — disse ela a Ellese. — Ela é muito bonita.
Reva viu andaimes nas muralhas ao atravessarem o passadiço até o portão
principal, amontoados em volta das brechas, onde era possível ver homens
içando pedras.
— Abençoada Senhora Reva! — O sargento da Guarda da Casa no portão se
ajoelhou diante dela, imitado por seus homens. — Graças ao Pai pelo seu retorno
sã e salva.
— Pode me chamar apenas de senhora — disse Reva, avistando a cidade. Os
escombros se foram, mas ainda restam muitas casas arruinadas. — Ou só de Reva,
se lhe convier.
O sargento soltou uma risada de perplexidade ao recuar de cabeça baixa.
Ellese inclinou-se para a frente na sela e sussurrou discretamente:
— Quem é você?
— Eu lhe disse quem sou. — O olhar de Reva recaiu sobre um aglomerado
de pessoas nas ruas além do portão, largando ferramentas e indo em sua direção,
as vozes já erguidas num júbilo de boas-vindas. — Sargento, creio que precisarei
de uma escolta até a mansão.
Veliss a cumprimentou com uma mesura formal e um abraço recatado.
— Fiquei ausente tempo demais — sussurrou Reva, sentindo as faces
corarem.
— Concordo completamente, minha senhora. — Veliss virou-se para Ellese,
que estava parada não muito longe delas e se contorcendo um pouco sob o
escrutínio. A multidão do lado de fora da mansão era grande e barulhenta em sua
aclamação. Notícias da libertação de Varinshold e do extermínio do exército
volariano haviam se espalhado rapidamente por todos os cantos do Reino e a
chegada de Reva pareceu servir de estopim para uma celebração geral da
vitória.
— Esta é a Senhora Ellese — disse Reva, fazendo sinal para a garota se
aproximar. — Herdeira da propriedade de Lorde Brahdor e agora Protegida da
Senhora Governadora. Encontre aposentos adequados para ela, por favor.
— É claro. — Veliss estendeu a mão a Ellese, que se adiantou e a tomou após
hesitar por um momento.
— Pensei que Lorde Sentes governasse aqui — disse a garota.
— Ele morreu. — Reva olhou para a multidão que ainda vibrava. — Declare
feriado — disse ela a Veliss. — Este será para sempre o Dia da Vitória. E
distribua aquele estoque escondido de vinho que você acha que eu não sei que
existe.

— As muralhas — disse ela mais tarde quando ficaram sozinhas na biblioteca e


Ellese dormia numa cama grande no andar de cima.
— Estão sendo reparadas em virtude do apelo popular — explicou Veliss. —
O povo não se sente seguro sem elas. Providenciei a reconstrução das maiores
moradias quando foi possível, mas eles queriam as muralhas restauradas, e quem
sou eu para lhes negar isso?
— O tesouro?
— Vai surpreendentemente bem. Os soldados volarianos estavam repletos de
bens saqueados e mandei Arentes colocar os seus homens para recolher o que
pudessem antes que os nilsaelinos ou fora da lei chagassem primeiro. Ainda
assim, é custoso reconstruir uma cidade e, quando isso for terminado, temos de
cuidar de um feudo parcialmente devastado.
— A Rainha fez promessas sólidas sobre os custos da reconstrução. Os
Confins do Norte aparentemente produzem agora mais ouro do que vitríolo azul.
Mas pode levar alguns meses para recebermos.
— Bem, não devemos passar fome, graças à Senhora Al Bera e a Lorde
Darvus. Porém, será difícil no inverno. — Ela se sentou ao lado de Reva no divã
perto da lareira e pegou a mão dela, seus dedos se entrelaçando numa intimidade
automática.
— E o Leitor? — perguntou Reva, encostando a cabeça no ombro de Veliss.
— Envia um mensageiro toda semana com conselhos severos sobre como
melhor governar o feudo de acordo com as doutrinas dos Dez Livros. Às vezes
são endereçadas ao seu avô, outras ao seu bisavô, e raramente fazem muito
sentido. Semana passada ele dormiu durante o próprio sermão. Não que
importasse, já que a catedral estava praticamente vazia.
— Uma boa escolha, então.
— Parece que sim.
— Onde está Arentes?
— Em algum lugar perseguindo os últimos Filhos e com sorte dando um jeito
num bando de fora da lei nos vales a oeste. Eles estão se tornando incômodos. A
guerra tende a ajudar apenas os corações mais vis.
— O Livro da Razão, versículo seis. — Reva sorriu e lhe beijou o rosto. —
Está sendo seduzida pelo amor do Pai, Honorável Senhora Conselheira?
— Não. — Veliss passou uma das mãos pelo cabelo dela, ainda mais longo
agora, já que Reva não conseguia se lembrar de quando fora a última vez que o
cortara. — Só fui seduzida uma vez. E para mim é mais do que suficiente.
Reva ficou tensa ao pensar na reação que suas próximas palavras
receberiam, muito tentada a deixar para falar na manhã seguinte, mas ciente de
que a resposta seria ainda pior se o fizesse.
— Amanhã convocarei uma assembleia geral na praça, na qual lerei o
Decreto de Recrutamento da Rainha.
Veliss tirou a mão do cabelo dela, a cautela visível em seus olhos.
— Recrutamento?
— A Rainha está criando um exército ainda maior e uma frota para levá-lo às
costas volarianas.
Veliss levantou-se do divã e foi até a lareira, onde agarrou a cornija.
— A guerra foi vencida.
— Não, não foi.
— Devo supor, minha Senhora Governadora, que a senhora zarpará com a
Rainha e sua poderosa frota?
Reva resistiu à tentação de tocá-la, notando a brancura dos nós dos dedos dela
no consolo da lareira.
— Sim.
Veliss sacudiu a cabeça.
— Isso é loucura. O seu pai, apesar de suas inúmeras maquinações, jamais
teria sonhado com tamanha insensatez.
— Precisamos impedir que eles voltem. É o único jeito.
— Palavras de Lorde Al Sorna ou suas?
— Pensamos da mesma forma.
— Ou você só está ansiosa por outra guerra? Eu vejo isso, sabia? O modo
como você fica impaciente para partir quando está aqui, quão entediada você
está com este lugar, comigo.
Apesar de as palavras terem sido ditas com calma, havia verdade suficiente
nelas para fazer Reva retrair-se.
— Você nunca irá me entediar. Se pareço impaciente, é porque não fui feita
para governar. E já vi o suficiente da guerra, acredite ou não. Mas isso precisa
ser feito, e preciso de sua ajuda para que seja feito do jeito certo.
— O que é recrutamento?
Reva virou-se e viu Ellese parada na porta da biblioteca, enrolada num
cobertor e esfregando os olhos.
— Não conseguiu dormir?
A garota assentiu e Reva deu tapinhas no divã ao seu lado, e Ellese foi se
sentar ao lado dela.
— Eu tive um sonho — respondeu ela. — Meu pai estava vivo de novo,
procurando por mim na nossa casa.
— Foi só um sonho — disse Reva, afastando da testa dela o cabelo não mais
emaranhado. — Sonhos não podem machucá-la.
Ellese olhou para Veliss, que ainda estava parada junto à lareira, empertigada
e olhando para outro lado.
— O que é recrutamento?
Os ombros de Veliss se curvaram e ela deu um sorriso cansado à garota.
— A pior das coisas, querida. Uma barganha difícil.

— Todos os homens saudáveis entre dezessete e 45 anos devem comparecer em


Alltor até o último dia do mês de Interlasur, trazendo consigo quaisquer arcos ou
outras armas que possuírem. Qualquer mulher sem filhos e da mesma idade
também pode ser voluntária. Todos os que servirem serão pagos como a Guarda
do Reino e receberão uma pensão pelo resto de suas vidas ao término da guerra.
E essa pensão será paga às viúvas, aos viúvos ou aos filhos sobreviventes de todos
que sacrificarem suas vidas nesta causa.
Reva calou-se e entregou o pergaminho a Veliss, tentando não deixar óbvio
demais o escrutínio que fazia da multidão. Veliss colocara um engradado no
degrau mais alto da Catedral, fornecendo-lhe uma visão completa da multidão,
cerca de cinco mil pessoas na praça e mais nas ruínas além. Houve alguns
murmúrios, a surpresa evidente no mar de rostos à sua frente, mas na maior
parte as pessoas ficaram em silêncio, a expressão predominante de expectativa.
Eles aguardam as palavras da Senhora Abençoada, pensou Reva, mantendo a
careta de desagrado longe do rosto.
— Nós sofremos muito — disse a eles. — Foram muitas as nossas privações e
longa a nossa luta. Eu gostaria de vir até vocês com notícias de paz, gostaria de
lhes dizer que as nossas batalhas acabaram e que podemos por fim descansar,
mas isso faria de mim uma mentirosa. Vocês acreditaram na minha palavra
quando o inimigo estava em nossas muralhas, e eu lhes imploro que acreditem de
novo agora. — Ela fez uma pausa, reunindo forças, suas próprias palavras
ecoando na cabeça… Isso faria de mim uma mentirosa… — E acreditem que ouvi
a voz do Pai. — Ela colocou nas palavras a força que conseguiu reunir, ouvindo-
as ecoar nas muralhas da cidade arrasada. — E Ele não permitirá que se
desviem deste caminho. Muitos de vocês ouviram falar do chamado Décimo
Primeiro Livro. Eu lhes digo agora que esse livro é uma mentira, digno apenas do
seu desprezo. Mas o Pai determinou que haverá um novo livro, o Livro da Justiça,
escrito pela própria mão do Pai conosco como seu poderoso instrumento!
Não foi um brado, e sim mais um rugido, instantâneo e selvagem, que se
ergueu da garganta de cada uma das pessoas presentes. Havia ódio em seus
rostos agora, cada cabeça sem dúvida repleta de terríveis lembranças de entes
queridos mortos e casas incendiadas, um ódio liberado pela Senhora Abençoada
que falava com a voz do Pai. Nós nos banhamos com o sangue deles, pensou Reva
ao ser sacudida pelo som. E mesmo assim não foi o suficiente.
Ela desceu do engradado e parou ao avistar Ellese, que enfiava a cabeça na
saia de Veliss, o rostinho tenso e com lágrimas de medo enquanto tentava se
esconder do urro da multidão. Reva ajoelhou-se ao lado dela e enxugou o rosto
da garota.
— Está tudo bem — disse ela. — Eles só estão felizes em me ver.

***

Ela aguardou dois dias até Arentes retornar, cumprimentando o velho


comandante da guarda com um abraço caloroso.
— Já me perdoou, meu senhor?
— Minha senhora ordena e eu obedeço — respondeu ele num tom um pouco
ríspido, embora ela conseguisse detectar o vestígio de um sorriso por trás do
bigode. — Além disso — continuou, gesticulando para a fila de homens
acorrentados que estavam reunidos no passadiço —, capturar os seus inimigos é
meu dever sagrado, do qual não me esquivo por nenhuma glória.
— Não havia glória a se ganhar. Apenas mais sangue. — Ela passou os olhos
pelos prisioneiros, cerca de vinte homens extenuados em variadas condições
andrajosas, alguns amedrontados e curvados de exaustão, outros a encarando
com desafio e obstinação no olhar. — Os Filhos.
— Além de alguns fora da lei. Achei melhor enforcá-los diante da população,
fazer deles um exemplo.
— A menos que tenham estuprado ou assassinado, vou enviá-los à Rainha. Ela
quer muito fazer uso de todos os homens, mesmo daqueles que não valem nada.
— As notícias sobre o decreto se espalharam rapidamente. Nem todos
ficaram felizes em ouvi-las.
— Ficarão quando ouvirem as palavras do Pai. Receio que precisarei do
senhor e de seus homens amanhã. Está na hora de ver o meu feudo por inteiro.
Ele fez uma mesura calculada.
— É claro, minha senhora. — Arentes olhou com ódio para os prisioneiros. —
O que você quer que façamos com os Filhos?
— A Senhora Veliss irá interrogá-los. Quando eu voltar, faremos justiça.

Ellese se agarrara a ela e chorara de novo, implorando para que a deixasse ir


junto. Reva fora firme ao ordenar que ela ficasse com Veliss, mais firme do que
o necessário, a julgar pelo choro mais alto da garota.
— A maternidade tem um preço — disse-lhe Veliss, segurando Ellese contra
o corpete.
Não sou a mãe dela. Reva conteve-se para não dizer aquelas palavras e
agachou-se para afastar o cabelo dos olhos de Ellese.
— Obedeça direito à Senhora Veliss e faça as suas lições. Voltarei logo.
Ela deixou Arentes escolher o caminho que seguiriam, aceitando o fato de ele
conhecer melhor o feudo.
— Oeste e depois sul, creio eu, minha senhora — aconselhou ele. — Os
habitantes do oeste são as pessoas menos devotas de Cumbrael, então podemos
muito bem realizar a tarefa mais difícil primeiro.
Havia amplas evidências de atividade volariana a oeste, com uma procissão
de aldeias em ruínas e ocasionais pilhas de cadáveres putrescentes em meio aos
vinhedos. Em cada ocasião, Reva ordenava que parassem e enterrassem os
mortos, as palavras apropriadas ditas pelo único sacerdote que os acompanhava,
um sujeito magro de meia-idade escolhido por sua coragem renomada durante o
cerco e sua natureza taciturna. Ela não se sentia nem um pouco disposta a
sermões ultimamente. O sacerdote silencioso é o sacerdote bom, gracejou ela
consigo mesma, ponderando se deveria anotar aquilo.
A devastação diminuía à medida que rumavam mais para oeste,
desaparecendo por completo na região das colinas na fronteira nilsaelina. Ela
soube por Veliss que aquela era uma das regiões mais prósperas de Cumbrael, o
vinho sendo da melhor qualidade e as pessoas famosas por celebrações alegres e
uma aderência maleável aos Dez Livros. Arentes a guiou até a maior cidade da
região, essencialmente um forte extenso cercado por muralhas impressionantes
que acompanhavam a configuração das encostas cobertas de vinhedos ao redor,
numa faixa ininterrupta de pedra.
— É fácil perceber por que os volarianos a deixaram em paz — comentou
Arentes ao cavalgarem até os portões.
— Eles teriam chegado aqui com o tempo — disse Reva. Ela esperava
alguma dificuldade nos portões, afinal, era bem possível que aquela gente não
fizesse ideia de quem ela era, mas encontrou a guarda da cidade já enfileirada e
a passagem aberta. Um homem robusto de manto longo estava ajoelhado sob o
arco do portão, de braços abertos em súplica.
— Lorde Mentari, o feitor da cidade — explicou Arentes. — É dono da
maioria dos vinhedos num raio de quilômetros. Ele tinha grande estima pelo seu
avô.
— Mas não por meu tio? — perguntou Reva.
— Seu tio era muito mais escrupuloso no tocante à cobrança de impostos e
menos inclinado a favorecer velhos amigos.
— Que sorte, então, que eu só tenha amigos novos.
— Senhora Abençoada! — Lorde Mentari entrelaçou as mãos quando Reva
se aproximou, desmontando e olhando em volta para a cidade, e achando
estranho ver tantas construções intactas após semanas vendo ruínas. — A senhora
traz as palavras do Pai aos nossos ouvidos indignos.
Reva olhou de testa franzida para o semblante de olhos arregalados do
homem, esperando ver algum brilho de maquinação, mas o seu assombro
parecia completamente genuíno.
— Todos os ouvidos são dignos das palavras do Pai — disse Reva. — Mas ele
não exige que o senhor se ajoelhe, e eu também não.
O lorde robusto levantou-se, embora suas costas permanecessem curvadas de
forma servil.
— A história de sua vitória já é uma lenda — comentou ele de forma efusiva.
— A gratidão de nosso humilde lar é imensurável.
— Fico feliz em saber, meu senhor. — Ela ergueu o estojo de pergaminho
onde estava guardado o decreto da Rainha. — Pois trago o modo como ela pode
ser expressa.
Foram necessários dois dias para reunir a população da região ao redor para
ouvir as palavras da Senhora Abençoada, dois dias aguentando o banquete que
Mentari organizou em sua homenagem e ouvindo uma série de petições, que era
de longe a sua ocupação menos favorita. Reva julgou apenas os casos mais
claros e ordenou que Arentes anotasse os outros para enviá-los a Veliss. Apesar
do conforto e da segurança aparentes desfrutados por aquelas pessoas, as
petições tornavam evidente o fato de que a guerra não precisava chegar até a
porta de alguém para causar mal. Havia reclamações em abundância sobre
refugiados do leste roubando alimentos e gado ou ocupando terras que não lhes
pertenciam, e ainda que os exércitos de Tokrev não tivessem marchado até ali, o
mesmo não podia ser dito de seus traficantes de escravos, e mães chorosas
contavam histórias de filhos e filhas levados em ataques. Apesar de toda a tristeza
daquela gente, Reva sentia um alívio sombrio com aquelas histórias, uma vez que
a sua tarefa era facilitada pelo talento dos volarianos para despertar o ódio em
cada alma que tocavam.
Ela leu o decreto ao entardecer do segundo dia, no pórtico da casa de
Mentari, enquanto a população se aglomerava no espaço abaixo, uma avenida
larga que circundava uma elegante fonte de bronze. Dessa vez os murmúrios
foram mais altos quando ela terminou, e as expressões da multidão não tão
arrebatadas. Porém, apesar do desconforto evidente, não houve manifestações
aparentes de discordância ou gritos de desaprovação, e inúmeras almas devotas
deram voz à sua aprovação quando a Senhora Abençoada contou a sua mentira.
— Um décimo primeiro livro — sussurrou Lorde Mentari quando ela desceu,
a multidão ainda vibrando. — E pensar que vivi para ver tal coisa.
— A época em que vivemos está mudando, meu senhor. — Reva pegou o
livro que Arentes lhe estendera e conferiu as notas que Veliss fornecera sobre
aquela região. — Minha Conselheira Honorável calcula a sua cota com um
mínimo de dois mil homens com idade para lutar, levando em consideração os
problemas recentes e o censo realizado há cinco anos. Tenho certeza de que o Pai
lhe sorrirá caso ela seja excedida.

Foi necessária boa parte de um mês para percorrerem todo o feudo, cidade após
cidade, aldeia após aldeia, algumas repletas de refugiados, outras quase vazias,
visto que muitos dos habitantes haviam fugido antes do esperado ataque
volariano. Reva percebeu que a sua mentira era recebida de mais boa vontade
nos lugares onde abundavam os desalojados, muitos dos quais haviam
experimentado em primeira mão a natureza do inimigo. Mesmo em lugares onde
ninguém havia sido prejudicado pela guerra existiam muitos ouvidos dispostos às
palavras da Senhora Abençoada, embora nem todos estivessem tão abertos à
mensagem do Pai.
— Tenho quatro filhos e a Rainha quer três deles — disse uma mulher
corpulenta numa aldeia a sudoeste da terra dos rios. As pessoas daquela área
eram famosas por sua robustez, ganhando a vida com as armadilhas para enguias
que usavam na miríade de canais que circundavam os seus lares, em povoados
em geral limitados a poucas casas e raramente acompanhados por uma igreja. A
mulher olhava irritada para Reva enquanto os aldeões reunidos concordavam aos
murmúrios, embora alguns estivessem visivelmente intimidados por Arentes e os
seus cinquenta guardas. A mulher corpulenta, contudo, não lhes dava a menor
atenção. — Como uma família vai se alimentar sem mãos para remar os barcos
e puxar as armadilhas?
— Ninguém passará fome — assegurou-lhe Reva. — Quaisquer alimentos
adicionais que sejam necessários serão fornecidos de graça pela Casa Mustor e
pela Rainha.
— Ouvi promessas da sua Casa antes — retorquiu a mulher. — Quando meu
marido foi levado de arrasto e teve a garganta cortada por aqueles asraelinos
desgraçados. Agora você quer que a gente lute por eles.
— O feudo foi salvo por mãos asraelinas — disse Reva. — E por nilsaelinos,
por gente dos Confins do Norte, pelos seordah e pelos eorhil. Em Varinshold, lutei
ao lado de meldeneanos e renfaelinos. A velha era acabou. Agora lutamos uns
pelos outros.
A mulher apontou um dedo para Reva, sua voz tornando-se um rugido alto e
raivoso:
— Você luta por eles, garota. Eu não conheço eles, nunca vi esses…
volaranos de que você fala, e qualquer mentiroso pode dizer que fala com a voz
do Pai.
Os guardas ficaram alertas de imediato e o seu sargento adiantou-se com a
espada parcialmente desembainhada até Reva lhe gritar para parar.
— Ela está cometendo uma blasfêmia e traição, minha senhora — disse o
sargento, o rosto rígido de fúria ao fulminar com o olhar a mulher na multidão,
que agora se encontrava sozinha após os outros aldeões terem recuado, qualquer
solidariedade que havia antes esquecida de forma abrupta. Apesar da falta de
apoio, a mulher não cedeu, encarando Reva sem nenhum sinal de medo ou
arrependimento nas feições curtidas quando o sargento continuou a falar: —
Você não estava em Alltor. Não viu o que a Senhora Abençoada fez por nós. Se
não fosse por ela, você, os seus filhos e esta aldeia hoje seriam apenas cinzas e
ossos. Você deve tudo a ela, assim como todos nós.
A mulher não tirou os olhos de Reva.
— Então é melhor me enforcar, senhora. Pois os meus filhos não são seus
para levar, pela palavra do Pai ou não.
Os olhos de Reva percorreram a multidão, avistando três jovens mais ao
fundo, dois deles visivelmente intimidados pelas circunstâncias, de cabeças
baixas e sem dúvida rezando para que o confronto terminasse, mas o mais alto
olhava para a mulher corpulenta com um ressentimento palpável.
— Seus filhos não podem falar por si mesmos? — perguntou Reva à mulher.
— Tanto os Dez Livros quanto a Lei do Feudo decretam a maioridade aos
dezessete anos. Se os seus filhos forem adultos, que eles façam a escolha.
— Meus filhos conhecem os seus deveres… — começou a mulher, mas se
calou quando o mais alto dos três ergueu a mão e abriu caminho em meio à
multidão.
— Allern Varesh, minha senhora — disse ele com uma mesura. — Ofereço
os meus serviços conforme o Decreto da Rainha.
— Pare com isso! — rosnou a mulher, adiantando-se para esbofetear a
cabeça do jovem e então voltando a olhar para Reva com raiva. — Ele não é seu
para levar!
Reva estava prestes a simplesmente ignorá-la e agradecer o jovem por sua
lealdade, mas parou ao ver as lágrimas nos olhos da mulher, como ela se colocou
diante do filho para protegê-lo. Reva desceu do carroção e aproximou-se da
mulher, parando diante dela.
— Seu nome?
A mulher rangeu os dentes e enxugou os olhos com dedos grossos.
— Realla Varesh.
— Você perdeu muito, Realla Varesh. E me dói pedir mais. — Ela apontou
para Allern, que ainda estava ajoelhado. — Portanto, em reconhecimento pelo
seu sacrifício, a cota desta aldeia será considerada preenchida por completo
pelos serviços deste homem.
A mulher se curvou e levou as mãos ao rosto. Pela reação de choque do filho
e da multidão, Reva deduziu que provavelmente era a primeira vez que alguma
alma viva a vira chorar.
— Lorde Arentes — disse Reva.
— Minha senhora!
— Este jovem tem altura suficiente para um guarda, não acha?
Arentes lançou um olhar rápido de avaliação a Allern.
— Praticamente, minha senhora.
— Muito bem. Allern Varesh, você agora faz parte da Guarda da Casa da
Senhora Governadora Reva Mustor. — Ela olhou de novo para a mãe do homem,
que soluçava. — Você tem uma hora para se despedir. Lorde Arentes lhe
encontrará um cavalo.

Ela retornou a Alltor seguida por quinhentos homens e cinquenta mulheres, todos
voluntários dispostos a marchar ao comando da Senhora Abençoada. Podiam ter
sido mil, mas não havia provisões nem cavalos de carga suficientes para tantos.
As terras ao sul de Alltor foram as que renderam mais recrutas e ouvidos
dispostos à sua mentira, após terem sofrido tanto nas mãos dos saqueadores
volarianos. Os habitantes daquela região haviam travado a própria guerra entre
os afluentes e as margens arborizadas do Ferrofrio, então estavam de posse de
uma quantidade considerável de armas apreendidas. De acordo com Arentes, a
região sempre fora o centro da arqueria cumbraelina; os primeiros arcos longos
haviam sido feitos dos teixos que proliferavam na floresta densa. Em virtude da
ameaça volariana, companhias havia muito desmanteladas, outrora a espinha
dorsal da força militar cumbraelina, haviam sido restauradas sob o comando de
capitães veteranos, que durante meses participaram de um jogo mortal de
perseguições entre as árvores até a libertação de Alltor.
Reva ordenou que as companhias permanecessem em formação e se
fortalecessem antes de se reunirem em Alltor na primavera. Apesar de todo o
fervor do comprometimento deles, ela os achava inquietantes, de olhares firmes
e aspecto taciturno. Os vários corpos putrescentes de volarianos capturados
pendurados na floresta eram evidência de uma sede por vingança longe de estar
saciada. O que eles causarão quando atravessarmos o oceano?, perguntou-se
Reva, procurando em vão na memória por uma passagem em qualquer um dos
Dez Livros que ajudasse com pensamentos vingativos.
Ellese a recebeu com muita alegria, envolvendo sua cintura com braços finos
enquanto reclamava das lições intermináveis de Veliss.
— Ela me faz ler todas as manhãs e todas as noites. E escrever também.
— São habilidades muito importantes — disse Reva, soltando com gentileza os
braços da garota. — Ainda assim, também tenho algumas coisas para lhe
ensinar, no devido tempo.
Ellese franziu o rosto, agora não mais emaciado, embora ainda houvesse um
aspecto levemente encovado nos olhos.
— Que coisas?
— Habilidades com o arco e a faca. Com a espada também, quando você for
mais velha. Apenas se você quiser.
— Eu quero. — Ela pulou de excitação, agarrando a mão de Reva e a
puxando na direção da mansão. — Ensine-me agora!
Reva notou a expressão séria no rosto de Veliss e fez a garota parar.
— Amanhã — disse ela. — Tenho outra tarefa hoje.

— Ainda não tem nenhum nome para mim?


O sacerdote de nariz quebrado lançou um olhar cansado para ela e sacudiu a
cabeça. Eles estavam enfileirados no passadiço, doze homens esfarrapados, sujos
do cativeiro nos porões da mansão, alguns cambaleando um pouco, uma vez que
os efeitos das diversas misturas herbáceas de Veliss podiam durar dias. As
anotações que ela acumulara durante os interrogatórios eram detalhadas, quase
quinhentas páginas de nomes, datas, encontros, assassinatos, suficientes para
expor a Igreja do Pai do Mundo como um ninho de traidores, do Leitor ao Bispo,
talvez suficientes para destruí-la por completo.
— Ele realmente achou que podia fazer isso? — perguntou Reva ao sacerdote
sem nome. — Destruir a Casa Mustor e governar o feudo em nome do Pai?
O sacerdote ergueu a cabeça e engoliu em seco enquanto reunia coragem.
— Uma empreitada sagrada, abençoada pelo Pai.
— Bênçãos garantidas por um miserável a serviço de uma criatura das
Trevas. — Reva recuou e ergueu a voz, olhando para cada rosto. — Vocês são
tolos, tão enfurnados nos Dez Livros que não conseguem nem mesmo ver a
verdade contida neles. O Pai não abençoa engodos e assassinatos, o Pai não
auxilia aqueles que torturam crianças para fins vis.
Ela se calou ao ser tomada por aquela sensação, a mesma fúria que a
possuíra durante o cerco, a fúria que a fizera cortar as gargantas de traficantes de
escravos e as cabeças de prisioneiros. O sacerdote sem nome estremeceu,
engolindo em seco de novo ao sufocar um vômito causado pelo terror. Arentes
estava de pé atrás da fileira agrilhoada, com uma companhia inteira da Guarda
da Casa de espadas desembainhadas, cada um deles encarando os traidores com
uma expressão sinistra de avidez.
Nós todos somos matadores agora, lembrou a si mesma. Banhados em sangue
e com mais sangue pela frente. O olhar dela recaiu sobre uma figura no fim da
fila, um homem rijo, diferente dos outros por estar disposto a olhá-la nos olhos, o
semblante estranhamente reverente. Shindall, recordou-se Reva. O estalajadeiro
que a colocara na estrada para o Forte Alto. Ver o seu rosto é o único
agradecimento de que preciso.
Reva tirou do cinto um pergaminho, erguendo-o para que eles pudessem ver
o selo e a assinatura não muito firme.
— Por ordem do Santo Leitor, você todos estão excomungados da Igreja do
Pai do Mundo. Estão proibidos de ler ou recitar qualquer um dos Dez Livros, já
que provaram ser indignos do amor do Pai. — Ela olhou mais uma vez para o
sacerdote de nariz quebrado. — E eu sei o seu nome, uma vez que o Pai não o
quer, Mestre Jorent.
Reva os viu fechar os olhos e abaixar a cabeça, alguns sussurrando preces,
um ou dois chorando com manchas nas calças, tal como os prisioneiros
volarianos antes de serem conduzidos até o bloco, embora não tivessem orado,
apenas implorado.
— Lorde Arentes — disse Reva. — Remova os grilhões. Deixe-os ir.

***

Veliss não deu voz a qualquer repreensão, somente à perplexidade.


— Eles tramaram contra a sua Casa uma vez. O que os impedirá de fazer isso
de novo?
— Uma trama precisa de segredo, nomes ocultos, rostos escondidos. Agora
as sombras lhes foram negadas.
— E você negou justiça a si mesma.
— Não, apenas vingança. O Pai sempre foi muito claro ao dizer que não
eram a mesma coisa.
Os vários contingentes de recrutados começaram a chegar um mês depois,
ainda que o início do inverno não encorajasse a marcha. Com o frio cada vez
mais intenso, Reva ordenou a suspensão do trabalho nas muralhas e que todo o
esforço fosse redirecionado para a reconstrução da cidade, onde barracas e
oleados seriam substituídos por paredes e telhados. O racionamento foi retomado
quando a neve bloqueou as passagens pelas montanhas até Nilsael e impediu que
o abastecimento que vinha da costa sul continuasse.
Reva começava cada dia com as lições de Ellese, a princípio com a faca,
tendo encontrado um punhal de lâmina longa adequado à mão pequena da
garota. Apesar de todo o entusiasmo, ela era uma aluna desajeitada, propensa a
quedas frequentes e joelhos arranhados, mas, ao contrário de todas as outras
tarefas que lhe eram dadas, suas lições com Reva nunca arrancavam lágrimas,
ainda que a sua paixão por perguntas continuasse inalterada.
— Você tinha a minha idade quando aprendeu a fazer isso?
— Eu comecei mais nova. Não pule quando der uma estocada. Vai perder o
equilíbrio.
— Quem lhe ensinou?
— Um homem muito mau.
— Por que ele era mau?
— Ele queria que eu fizesse coisas ruins.
— Que coisas ruins?
— Coisas demais para listar. Olhe para mim, não para os seus pés.
Reva a deixou praticando no gramado e juntou-se a Veliss na varanda, onde a
mulher estava enrolada em peles para se proteger do ar gelado e segurava um
pergaminho selado.
— Então chegou?
Veliss assentiu e lhe entregou o pergaminho, mas manteve o olhar em Ellese,
que continuava com a sua dança desajeitada no gramado.
— Ela não leva muito jeito para isso.
— Ela aprenderá, com nós duas.
— Por que ficou com ela? Você poderia ter encontrado um lar decente para a
menina em algum lugar. Cumbrael está repleto de mães enlutadas desejosas de
filhos.
Reva olhou para Ellese, que bloqueava uma estocada desferida por um
inimigo invisível.
— Ela não fugiu. Quando entrei na casa dela, ela tentou me apunhalar, e
mesmo depois de eu tirar a sua faca ela não fugiu. — Ela se virou de novo para
Veliss. — Eu gostaria que você providenciasse os papéis da adoção.
— Tem certeza? Ela é muito nova.
— Ela é nobre de nascimento e tem uma mente astuta. Com você para
orientá-la, ela se dará bem. E precisamos garantir o futuro.
O olhar de Veliss recaiu sobre o pergaminho, demorando-se no selo da
Rainha.
— Eu nunca lhe pedi uma promessa, mas peço uma agora. O que quer que
aconteça do outro lado do oceano, prometa que não morrerá e que voltará para
mim.
Reva desenrolou o pergaminho e viu que havia sido escrito pela Rainha de
próprio punho, a mensagem cheia de caloroso apreço pelo seu cumprimento
diligente do decreto, terminando com uma ordem elaborada de modo cortês para
que levasse as suas forças para Torre Sul até o último dia de illnasur. Quando o
inverno ainda não terá acabado, percebeu Reva. Ela pretende zarpar antes da
chegada da primavera.
— Reva — sussurrou Veliss com a voz embargada.
Reva apertou a mão dela e lhe beijou o rosto, contando outra mentira:
— Eu prometo.
CAPÍTULO CINCO
Vaelin

Vaelin certa vez passara um inverno no Passo Skellan tentando combater as


investidas dos lonaks. Na época, o local estava apinhado de irmãos e Lobos
Corredores, contrastando muito com as muralhas e torres silenciosas que via
agora, sem irmãos para recebê-los ao se aproximarem da torre larga na entrada
do passo. Ele sabia que Sollis havia abandonado o lugar por um bom motivo, uma
vez que os lonaks haviam concordado com a paz e a invasão exigia todas as mãos
que pudessem ser reunidas, mas o vazio do grande bastião setentrional do Reino
era desconcertante, uma prova do quanto as coisas haviam mudado em tão
pouco tempo.
— Antes o meu povo teria exultado com essa cena — disse Kiral, sem dúvida
captando os seus sentimentos. — Agora até eles acham que é um presságio
sombrio.
Vaelin virou-se quando o Lorde Comandante Orven parou o cavalo ao seu
lado, seus cinquenta homens tudo o que restava da Guarda Montada da Rainha.
— Poste guardas. Descansaremos aqui esta noite.
Ele passou a noite na torre com Kiral e os dotados de Ponta de Nehrin, que
haviam optado por acompanhá-lo em vez de tomarem parte na viagem iminente
da Rainha através do Boraelino. A própria Rainha abençoara a empreitada deles
com palavras cuidadosas e um belo sorriso, diferentes de sua reação quando
Vaelin explicara em particular as suas intenções.
— Você quer marchar pelas banquisas do norte no meio do inverno?
Ela o chamara aos seus aposentos no palácio tarde da noite. Contudo, a julgar
pelas risadas que atravessavam a porta, algumas das crianças ainda estavam
acordadas. O número delas aumentara progressivamente desde a libertação da
cidade, até haver quase duzentos órfãos ocupando aquela ala do palácio, todos
reconhecidos de modo formal como Protegidos da Coroa pela Palavra da
Rainha. Quase não havia adornos nos aposentos de Ly rna, estando tomados por
livros e uma seleção dos pergaminhos do Irmão Harlick, enquanto na
escrivaninha se acumulavam várias pilhas organizadas de notas com a sua letra
precisa. O espaço era iluminado por uma única lamparina e pela luz do fogo,
deixando as feições dela nas sombras enquanto o encarava franzindo a testa,
cautelosa e intrigada, como se esperasse que ele terminasse de contar uma piada
ruim.
— A canção de Kiral será a nossa guia — retorquiu Vaelin. — Ela fala com a
bênção da Mahlessa e sei que a senhora acredita na palavra dela.
— Acredito que a Mahlessa age apenas em benefício dos lonaks. Se servisse
aos propósitos dela nos mandar numa busca infrutífera, não tenho dúvida de que
ela o faria. — Sua testa relaxou um pouco e ela pegou um pedaço de pergaminho
da escrivaninha, erguendo-o contra a luz. Vaelin o reconheceu como obra de
Alornis; as linhas eram precisas e perfeitas demais para terem sido traçadas por
outra mão. Mas o tema era novo, algum desenho semicircular, a forma
composta por um padrão intrincado de linhas retas.
— Sua irmã propõe uma mudança radical nos métodos de construção de
navios — disse Ly rna. — Um casco interno formado por vigas curtas interligadas
que descrevem uma curva, em essência uma aplicação prática do conceito de
arcos tangenciais de Lervial, embora ela afirme jamais ter lido a respeito. Se
adotarmos o método dela, mãos inexperientes podem ser colocadas para
trabalhar na produção de milhares de vigas retas, poupando meses de trabalho
experiente.
— Então por que não fazer isso?
— Porque nunca foi feito antes. Nenhum navio já foi construído dessa forma.
Assim como, pelo que me lembro de qualquer obra histórica que já li, nenhum
explorador teve sucesso em atravessar as banquisas, nem mesmo no auge do
verão.
— Kiral confia na sua canção, e eu confio nela.
— Esse homem, Erlin, é tão importante assim?
— Acredito que sim. Alguém que viveu tanto tempo possui conhecimentos
muito mais valiosos do que qualquer coisa que haja nos pergaminhos de Harlick.
E a lenda diz que o Além lhe foi negado, o que pode significar que ele teve um
vislumbre de lá, tal como eu. E talvez ele tenha visto mais do que eu vi.
Ly rna franziu outra vez a testa ao se lembrar de algo.
— Arendil uma vez me contou uma história sobre Kerlis, afirmando que o
seu tio o havia encontrado anos atrás. Ele disse que havia sido amaldiçoado a
viver para sempre por se recusar a juntar-se aos Finados. De modo que ele
passava os seus dias intermináveis percorrendo o mundo em busca daquele com
os meios para matá-lo, aquele que nasceria dos dotados desta terra. — Ela deu
uma risada cansada. — Apenas histórias, Vaelin. Você não pode esperar que eu
aprove essa missão, que envie o meu Senhor da Batalha para morrer nas
vastidões congeladas com base numa lenda.
— Nós dois pagamos caro ao aprender que nem todas as lendas são baseadas
em mentiras. — Ele se empertigou e respirou fundo para falar de modo formal,
mas Ly rna ergueu a mão para impedi-lo.
— Poupe-me da oferta de demissão, por favor. Eu posso comandar todas as
outras almas deste Reino, mas não fingirei que faço o mesmo com você.
— Obrigado, Alteza. Sugiro que o Conde Marven seja nomeado Senhor da
Batalha em meu lugar.
— Muito bem. Quantas tropas você levará?
— Nenhuma. Seremos apenas eu e Kiral.
Ela sacudiu a cabeça.
— Isso é inaceitável. Os dotados dos Confins e a companhia de Lorde Orven
irão escoltá-los.
— A esposa de Orven está grávida. Não pedirei que ele me siga num
caminho tão perigoso…
— Mas eu sim, meu senhor. Orven é um soldado e conhece o seu dever,
havendo ou não notícias alegres.
Vaelin notou a expressão determinada no rosto dela e assentiu.
— Como queira, Alteza. O outro assunto que discutimos?
Ly rna retorceu as mãos sobre a escrivaninha e seu rosto ficou ainda mais
rígido.
— Você pede muito de mim, Vaelin.
— Ele não era responsável…
— Eu sei. Mas a cena do assassinato de meu irmão não desaparece com
facilidade.
— Se é punição que a senhora deseja, parece-me que o curso que propus
fornecerá isso de sobra.
Ela o olhou nos olhos, as linhas pálidas em sua testa destacando-se à luz do
fogo, a voz firme de certeza.
— Eu desejo apenas uma coisa, meu senhor. Assegurar o futuro deste Reino.
Mandarei o seu irmão para o outro lado do oceano para ser o arauto de minha
chegada, mas não me peça para perdoar. Percebo que tal sentimento não está
mais ao meu alcance.
Se Janus tivesse conseguido o que queria, nós estaríamos casados agora,
ponderou Vaelin. Ele deixara os outros e subira até o topo da torre, enrolado no
manto e com a respiração transformando-se em fumaça enquanto olhava para a
escuridão plena além do passo. Os nossos filhos teriam sido belos ou terríveis? Ou
ambos, como ela?
Houve uma leve mudança no vento que soprava pela torre, trazendo um novo
odor: uma mistura de fumaça de lenha e suor.
— Sei que você está aí — disse Vaelin, sem dar as costas para a vista.
Lorkan deu uma risada enviesada ao aparecer ao seu lado, o cabelo
desgrenhado caindo sobre o rosto pálido de frio.
— O dom de meu senhor voltou, então?
— Há outros sentidos além da visão. — Ele deixou Lorkan remexer-se
inquieto por vários momentos antes de tornar a falar. — Suponho que você veio
fazer um pedido, não?
— De fato, meu senhor. — Lorkan esfregou as mãos, olhando para outro lado
e tentando falar num tom jovial. — Ao que, hã, parece, meu senhor, essa nossa
grande cruzada já forneceu toda a agitação que eu podia querer. Por mais
orgulhoso que eu esteja dos serviços que prestei, os quais, como creio que o
senhor concordará, foram valiosos, chegou a hora de eu procurar aventuras em
climas mais quentes.
— Você quer ser dispensado.
Lorkan inclinou a cabeça com um sorriso.
— Quero.
— Muito bem. Dado o seu dom, eu dificilmente poderia obrigá-lo a vir, de
qualquer forma.
— Obrigado, meu senhor. — Ele permaneceu no lugar e se remexeu um
pouco mais.
— O que é? — perguntou Vaelin, com um suspiro cansado.
— Cara, meu senhor.
— Ela também quer ser dispensada?
— Não, ela continua firme em sua determinação de segui-lo. Porém, se o
senhor ordenasse que ela partisse…
Vaelin lhe deu as costas.
— Não.
O tom de Lorkan ficou mais grave.
— Ela é pouco mais do que uma criança…
— Com um coração de mulher e um grande dom. Ela é bem-vinda em
minha companhia e tenho orgulho de contar com a lealdade dela. — Ele
caminhou até a escada no meio do telhado. — Você pode ficar com o seu cavalo,
suas armas e quaisquer espólios acumulados durante a campanha, mas parta
antes do nascer do sol, por favor.
— Não posso! — Lorkan o olhava furioso agora, seu grito ecoando pelo passo.
— O senhor sabe que não posso partir sem ela.
Vaelin olhou para trás, para o jovem dotado, que estava com o rosto tenso de
raiva e um pouco de medo, numa postura que sem dúvida indicava que ele
estava preparado para desaparecer de vista.
— Sei que a vida às vezes nos dá apenas escolhas difíceis — disse Vaelin
antes de descer a escada. — Se você não estiver aqui pela manhã, não deixarei
de explicar a sua ausência a Cara.

Eles estavam a oito quilômetros do passo, no dia seguinte, quando Kiral parou o
seu pônei de repente, olhando para oeste com o semblante carregado enquanto
esquadrinhava aquela direção.
— Problemas? — perguntou Vaelin.
Ela apertou os olhos, franzindo o cenho, confusa.
— Algo… Alguém novo.
— Outra canção?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não é um cantor, e não há aviso na minha canção. Mas ele me chama.
— De onde?
Uma cautela súbita surgiu em seu rosto, o primeiro sinal de medo que ele a
vira demonstrar.
— Da Cidade Caída.
Vaelin assentiu, virou-se e fez sinal para Orven se aproximar.
— Preciso de cinco homens, meu senhor. Acampem no vale mais além e
aguardem o nosso retorno. — Ele ergueu a voz, dirigindo-se a uma figura um
tanto mal-humorada que se encontrava mais atrás na coluna. — Mestre Lorkan!
Junte-se a nós, por favor.
Foi uma viagem de dois dias até a cidade, o trajeto diminuído pela
familiaridade de Kiral com as montanhas. As ruínas eram basicamente como
Vaelin se lembrava, embora agora não sentisse o peso opressivo que o
atormentara durante a sua última visita àquele lugar, mas Kiral e Lorkan não
desfrutavam de tal imunidade.
— Pela Fé, é pior do que a floresta. — Lorkan estremeceu e curvou-se na
sela, ficando com o semblante pálido.
— Nunca cheguei tão perto — disse Kiral, a sua inquietação evidente na
postura dos ombros. — Este não é um lugar para os vivos.
— Mestre Lorkan? — perguntou Vaelin, dando um sorriso de expectativa para
o jovem e indicando as ruínas com a cabeça.
Após um momento de longa hesitação, Lorkan inclinou a cabeça e
desmontou. Respirou fundo e partiu na direção da cidade, caminhando com
firmeza, desaparecendo no ar após alguns passos e provocando murmúrios de
inquietação nos guardas.
— Quem quer que esteja esperando lá irá vê-lo — advertiu Kiral.
— Eu sei — disse Vaelin.
— Então por que mandá-lo?
— O que é a vida sem uma diversão ocasional?
Eles continuaram observando as ruínas silenciosas por mais alguns momentos
até ouvirem o grito, uma exclamação aguda de alarme que ecoou pelas pedras
caídas. Kiral tirou o arco do ombro e os guardas se espalharam com as espadas a
postos quando Lorkan surgiu de repente no limite da cidade, o manto esvoaçando
às suas costas enquanto disparava na direção deles, os olhos arregalados de puro
terror. A razão para a sua fuga logo se tornou evidente: uma grande forma
castanha o perseguia, de boca escancarada e dentes arreganhados num rugido
desafiador.
— Eu não sabia que eles cresciam tanto — comentou Vaelin. O urso devia ter
talvez um metro e meio, de quatro, o que significa que de pé devia chegar quase
a três metros. Apesar de parecer ter dificuldade para acompanhar Lorkan, o
animal vencia a distância com uma velocidade enganadora graças ao tamanho
de suas passadas.
— Matem-no, pela Fé! — gritou Lorkan, correndo na direção deles, o urso
agora apenas poucas passadas atrás.
— Não! — gritou Vaelin a Kiral quando ela ergueu o arco, seus olhos
discernindo uma figura entre as ruínas, pequena e familiar, com outra ao seu
lado, apenas levemente mais comprida e segurando no alto um cajado longo de
algum tipo. O urso derrapou até parar, espalhando cascalhos, um rosnado
pesaroso saindo do focinho. O animal tomou impulso nas patas dianteiras,
cravando as garras no solo pedregoso e continuando a olhar em desafio para
Lorkan, que agora estava de quatro atrás de um dos guardas, ofegando e
claramente prestes a colocar o desjejum para fora.
Cicatriz, como os outros cavalos, começara a empinar ao avistar o urso e
agora estava à beira do pânico, balançando a cabeça em protesto enquanto
Vaelin puxava as rédeas.
— Está tudo bem — disse ele, desmontando e passando a mão ao longo do
flanco do animal. — Ele não vai machucá-lo.
O urso bufou de novo, sacudindo a grande cabeça de um lado para outro
como se reunisse forças para outra investida, mas então se retesou, ficando quase
tão imóvel quanto uma estátua.
— Ele ainda jovem. — Um homem pequeno vestindo peles e segurando um
osso tão longo quanto um cajado apareceu ao lado do urso, com um tom de
desculpas na voz. — Amigo e inimigo têm cheiro igual.
— Urso Sábio! — Vaelin adiantou-se para apertar a mão do xamã, feliz ao
sentir a força no aperto do homem. — Você está longe dos Confins.
— Você vai para o gelo — retorquiu Urso Sábio, encolhendo os ombros. —
Eu mostro como.
— Ele foi muito insistente. — Dahrena estava parada um pouco mais
afastada, sorrindo levemente. — Não podia deixá-lo vir sozinho.
Vaelin aproximou-se dela e a abraçou, a compreensão do quanto sentira falta
dela provocando uma dor penetrante. Vou mandá-la de volta, pensou ele, sabendo
que mentia. Vou mandá-la de volta pela manhã.

Eles fizeram uma refeição de cabra no espeto, aparentemente vítima das


habilidades de caça do grande urso-pardo a julgar pelos cortes fundos na
carcaça.
— Garra de Ferro traz carne boa — disse Urso Sábio. — Guarda só as
entranhas para si.
Vaelin seguiu o xamã após a refeição enquanto ele percorria as ruínas,
olhando para as estátuas despedaçadas e de vez em quando cutucando escombros
cobertos de ervas daninhas com o cajado de osso. O urso andava por perto,
demonstrando o mesmo escrutínio ao enfiar o grande focinho em vários
recantos, às vezes usando as garras semelhantes a adagas para quebrar as pedras.
— Garra de Ferro quer insetos — explicou Urso Sábio. — Barriga de urso
nunca cheia.
— Como você soube que tinha de vir aqui? — perguntou Vaelin.
Urso Sábio o olhou com uma expressão intrigada, como se a resposta fosse
óbvia, e ergueu as sobrancelhas quando Vaelin não demonstrou saber o ele queria
dizer.
— Grande… — Ele franziu o cenho, procurando as palavras certas. —
Grande poder, grande… — Ele fez um gesto amplo agitando os braços e
assoprando.
— Distúrbio? — perguntou Vaelin, acrescentando “Tempestade?” diante do
olhar vazio do xamã.
— Tempestade, sim, grande tempestade no… mar. Mar de poder.
Mar de poder. Ele vê as Trevas como um mar de poder.
— Você consegue ver o mar de poder?
Urso Sábio soltou uma gargalhada.
— Ninguém consegue ver ele todo. Só sentir tempestades, sentir aqueles que
tocam nele, ouvir canções, se cantam. Senti a tempestade se formando, ouvi a
canção da garota, a segui até aqui com Mulher Voa Alto. — O rosto do velho
tornou a se franzir ao chegarem à grande pedra de que Vaelin se lembrava de
sua primeira visita ao lugar, o homem barbudo com uma expressão preocupada
no rosto.
— A tempestade está vindo para cá? — perguntou Vaelin, observando-o tocar
com cuidado a superfície da pedra com a ponta do cajado.
— Tempestade veio aqui antes. — Urso Sábio baixou o cajado, colocou uma
das mãos na testa do homem barbudo e fechou os olhos. — Agora só eco.
— De quê?
— Do que foi, do que vai ser. — O xamã tirou a mão da cabeça de pedra, a
tristeza dominando o seu rosto enrugado.
— Pensei que ele pudesse ser um rei, um chefe — disse Vaelin, mas Urso
Sábio sacudiu a cabeça.
— Não, homem sábio, guardião de muitas histórias.
— Mas não sábio o bastante para impedir que a cidade caísse?
— Algumas coisas nada pode parar. Ele construiu este lugar, xamãs
encheram pedras com poder para cantar a sua canção.
Encheram pedras com poder? Vaelin recordou-se da história de Sabedoria
sobre como ela recebera o seu nome, a pedra que lhe fora dada pelo fantasma
de Nersus Sil Nin — que não passava de uma memória preservada nas pedras na
Martishe e na Grande Floresta do Norte.
— Eles podiam colocar as memórias nas pedras? — perguntou ele.
Urso Sábio assentiu.
— Mais do que… memória. Sentimento. — Ele ergueu o cajado e o girou
lentamente ao redor, indicando o que restava de uma cidade que já fora
fabulosa. — Este lugar, cheio de poder.
Ele seguiu em frente, observando intensamente, examinando as ruínas com
uma atenção quase predadora. Vaelin o seguiu pelo labirinto de escombros,
passando pela rara construção intacta que o Irmão Harlick usara como biblioteca
e chegando até o que parecia ter sido algum tipo de plataforma elevada. Vaelin
calculou que poderia ter tido três metros de altura quando intacta, mas os pilares
estavam destroçados e a superfície de pedra tombara e se rachara de ponta a
ponta. Urso Sábio parou, um espasmo de desconforto evidente em seus
membros, antes de pisar na plataforma e ir até o centro, onde tocou a pedra nua
com o cajado.
— Algo aqui — disse ele. — Algo… sombrio.
Vaelin não gostou da perplexidade que viu no rosto do xamã, cujas feições
ficaram um pouco abatidas, fazendo com que parecesse ainda mais velho.
— Algo sombrio? — perguntou ele quando o velho agachou-se e tocou com
cuidado a pedra. — Você quer dizer as Trevas? Algo que tinha o poder?
— Sombrio — disse Urso Sábio num tom enfático antes de se levantar. — Já
se foi, para longe. Levado.
— Por quem?
Urso Sábio se virou e olhou Vaelin nos olhos.
— Você sabe — respondeu ele. — Nós atravessar o gelo para encontrar ele.

— Deixei Ultin no comando — disse Dahrena, deitando-se ao lado dele e


cobrindo ambos com peles. — Duvido que ele tenha gostado da honraria, mas
não havia mais ninguém tão capaz.
— O ouro? — perguntou Vaelin.
— O primeiro carregamento deve atracar em Porto Gélido dentro de um
mês, sem dúvida para alegria de Lorde Darvus.
— Ele não será o primeiro nem o último a lucrar com a guerra. — Ele fez
uma pausa, desfrutando da sensação de senti-la contra o corpo, lamentando a
necessidade das palavras seguintes. Porém, ela evidentemente havia percebido a
sua intenção e falou primeiro:
— Não vou embora. — Ela ergueu a cabeça, beijou-o nos lábios e tornou a se
deitar. — Como está Alornis?
Vaelin lembrou-se do rosto rígido de Alornis na manhã em que ele partiu, a
tentativa valente dela de segurar as lágrimas, que fracassou ao agarrar o irmão,
afastando-se somente com um puxão gentil porém insistente de Ly rna. Sua
última visão da irmã permanecia como uma mancha culposa, a cabeça dela no
ombro de Ly rna ao virar o rosto, recusando-se a vê-lo cavalgar para longe.
— Ela está prestando um bom serviço à causa da Rainha — disse a Dahrena.
— Os talentos dela são ainda maiores do que imaginávamos.
Dahrena mexeu-se um pouco e olhou para o céu sem nuvens, que oferecia
uma bela visão das estrelas.
— Está mais fraca — sussurrou ela. Vaelin sabia de que estrela ela estava
falando: Avensurha, de onde Sanesh Poltar havia tirado o seu nome eorhil. Dizem
que nenhuma guerra pode ser travada sob a luz trazida por ela. Agora era apenas
um ponto minúsculo entre muitos outros.
— Iremos vê-la brilhar de novo — disse ele. — Só temos que viver por muito
tempo.
Dahrena virou-se de novo para ele com um tom de inquietação na voz:
— Não gosto deste lugar.
— Coisas terríveis já foram feitas aqui. Urso Sábio disse que as pedras
carregam a memória.
— Não a cidade. As montanhas, o lar do povo de onde vim… — Ela se calou,
mas Vaelin sabia que palavras ela deixara de dizer.
— E que matou o seu marido.
Dahrena assentiu levemente.
— Qual era o nome dele?
— O povo dele o chamava de Leordah Nil Usril, Vive em Sonhos. Eu o
chamava de Usril. Os seordah o consideravam uma alma silenciosa, que
raramente falava e com frequência se perdia em pensamentos. Era raro ele se
juntar a bandos de guerra contra os lonaks, embora tenha se mostrado corajoso e
habilidoso na batalha com a Horda. Os lonaks apareceram em maior número do
que de costume num verão, fazendo incursões mais para o interior da região do
que antes. Eu estava visitando meu pai quando recebi as notícias do ataque. Eu
voei para a floresta e encontrei o seu corpo entre muitos outros, com um lonak
morto sobre ele. Lembro quanto eles pareciam tranquilos, como se tivessem
adormecido juntos. Procurei em toda parte por sua alma, mas ele havia morrido
há pelo menos um dia.
Ela se calou, sua respiração suave no peito de Vaelin enquanto ele a abraçava
com ainda mais força. Quando Dahrena tornou a falar, a sua voz era pouco mais
do que um sussurro e era possível perceber o medo contido.
— Fiz o possível para morrer naquele dia, Vaelin. Pairei sobre a floresta e
velei o seu corpo, ciente de que o meu próprio corpo logo perderia o calor,
esperando poder me juntar à sua eterna caçada nas sombras… O meu pai me
trouxe de volta. De alguma forma ouvi a voz dele me implorando para regressar.
Mal senti o frio quando voltei ao meu corpo. Na verdade, quase não senti nada
por semanas. Então fui até a pedra em busca do auxílio de Nersus Sil Nin. Ela me
disse algo, algo em que eu não queria acreditar.
Dahrena ergueu-se, deixando o rosto na altura do dele e lhe olhando nos
olhos.
— Ela me disse que eu ainda tinha muito o que fazer. Que havia grandes
privações pela frente e que uma vida inteira de pesar era um luxo que não me
seria permitido. E ela disse que certa vez dera um nome seordah a um homem,
um homem que eu viria a amar. — Ela soltou uma risada, seu hálito suave nos
lábios de Vaelin. — Eu pensei que ela era louca. Eu me enganei.

Eles retornaram à companhia de Orven dois dias depois, encontrando todos


montados e dispostos em formação de batalha. A razão logo ficou aparente: pelo
menos uma centena de lonaks em seus pôneis robustos claramente visíveis no alto
de uma colina, quatrocentos metros ao norte.
— Apareceram esta manhã, meu senhor — relatou Orven quando Vaelin se
aproximou a cavalo, saudando Dahrena com uma mesura surpresa. — É muito
bom vê-la de novo, minha senhora.
— Meu senhor. Suponho que sejam necessárias congratulações.
Orven deu um sorriso discreto antes de lançar um olhar cauteloso aos lonaks.
— Receio que elas tenham de esperar.
Vaelin ergueu uma sobrancelha para Kiral, que observava os seus
conterrâneos lonaks com um olhar firme.
— Eles vieram a mando da Mahlessa, ainda que desconfiados.
— Então é melhor dizermos olá.
Vaelin disse a Dahrena e aos outros que esperassem com os homens de
Orven e cavalgou adiante com Kiral. Eles chegaram a poucos metros do sopé,
parando quando um dos lonaks desceu a colina com o seu pônei, um homem
enorme com um traje de pele de urso e uma tatuagem labiríntica que lhe cobria
a cabeça raspada. O rosto lhe pareceu familiar quando ele parou o pônei a alguns
metros de distância, encarando Vaelin com ódio e cumprimentando Kiral em
lonak, num tom brusco.
— Este é Alturk — disse ela a Vaelin. — Tahlessa dos Senthar da Mahlessa.
— Nós já nos encontramos — comentou Vaelin, acenando com a cabeça ao
homenzarrão. — O seu filho está bem?
Um espasmo de fúria percorreu o rosto de Alturk e Vaelin resistiu à tentação
de sacar a espada quando Kiral ficou tensa ao seu lado.
— Meu filho era varnish — disse Alturk com aspereza na língua do Reino. —
Uma vida imprestável que teve o fim merecido.
Vaelin perguntou-se se deveria dizer algumas palavras de condolência, mas
supôs que seriam consideradas apenas mais insultos.
— A Mahlessa nos concedeu passagem — disse ele. — Qual é o seu propósito
aqui?
Alturk rangeu os dentes e falou num tom lento e controlado, como se temesse
que sua fúria pudesse sufocá-lo:
— A Mahlessa ordenou que cem dos Senthar seguissem você. O melhor
sangue dos lonakhim, para ser derramado ao seu comando.
— Você sabe o que vamos fazer? Atravessaremos o gelo até as terras de
nosso inimigo. São muitos os perigos.
— Ordens que vêm da Montanha não são questionadas. — Alturk puxou as
rédeas e virou o pônei. — Sigam o nosso rastro e não se desviem dele. Há poucos
aqui que receberiam de bom grado a sua chegada, e não prometo segurança.

Eles percorreram cinquenta quilômetros até o anoitecer, os Senthar mantendo


um ritmo difícil através de inúmeros desfiladeiros e vales. Vaelin notou que eles
cavalgavam com armas a postos, muitos segurando arcos com flechas nas
cordas, olhos esquadrinhando constantemente o topo das colinas ao redor. Avistou
também alguns pôneis sem cavaleiros entre eles e percebeu que alguns
guerreiros exibiam ferimentos enfaixados havia pouco tempo.
— A Mahlessa pede muito de nosso povo ao permitir a sua passagem —
explicou Kiral, seguindo o seu olhar. — A Falsa Mahlessa pode ter caído, mas
suas palavras perduram em muitos ouvidos.
— Mas você é… era a Falsa Mahlessa — disse Vaelin. — Sua presença entre
nós não irá desencorajá-los?
Kiral deu um sorriso melancólico.
— Quando a Mahlessa me libertou, parti da Montanha com as minhas irmãs,
contando a minha história nas fogueiras de cada clã. É uma história bem-vinda
em qualquer fogueira por ser tão cheia de acontecimentos. A maioria acreditou
nela, mas alguns não, achando que de algum modo eu havia sido desviada de
meu verdadeiro caminho pela Mahlessa. A coisa que me aprisionou tinha
habilidade com as palavras, uma capacidade de plantar sementes de dúvida nos
corações daqueles já acostumados com a malícia e a crueldade. É mais fácil
odiar quando é dada uma razão, e ela tinha muitas.
Eles acamparam entre as escarpas de um planalto baixo algumas horas mais
tarde, e Alturk posicionou uma guarda pesada em todos os pontos de acesso. A
maioria dos Senthar parecia satisfeita em ficar longe dos merim her, mas nem
todos eram tão cautelosos. Uma mulher robusta aproximou-se para olhar para
Dahrena enquanto ela tirava a sela do cavalo, falando depressa em lonak.
— Não conheço a sua língua — disse Dahrena, visivelmente pouco à vontade
com o escrutínio.
— Ela está perguntando se você pertence ao Clã da Flecha de Vidro —
explicou Kiral. — Seu rosto a lembra de uma prima que ela perdeu anos atrás.
Dahrena franziu a testa com cautela para a lonak de rosto grave.
— Perdeu como?
— Num ataque — relatou Kiral. — Uma aldeia inteira foi dizimada e a prima
dela morreu junto com as irmãs e os filhos. Eles acharam que haviam sido os
seordah, mas os rastros estavam errados, e os seordah nunca matam crianças.
A expressão de Dahrena ficou mais atenta e ela largou a sela, aproximando-
se da lonak.
— A prima dela tinha um nome?
— Mileka — traduziu Kiral. — Significa Coruja. — Ela fez uma pausa quando
a lonak continuou a falar. — Ela está perguntando se você tem uma história para
a fogueira.
— Sim. — Dahrena assentiu, relutante. — Tenho uma história.
A lonak levou cerca de uma dúzia de Senthar para ouvir a história, e todos se
agacharam em volta da fogueira enquanto Kiral traduzia o que Dahrena tinha
para contar. A presença de Urso Sábio e de Garra de Ferro era uma fonte óbvia
de desconforto, mas aparentemente não o suficiente para diminuir o desejo por
uma nova história. Eles se acomodaram, claramente fascinados, enquanto ela
relatava as vagas lembranças que tinha da destruição de sua aldeia. Alguns
ficaram agitados quando ela mencionou o lobo que a carregara pela floresta,
mas todos permaneceram até Dahrena terminar, relatando como Lorde Al
My rna a encontrara e a tornara sua filha, assentindo e grunhindo em apreciação
quando ela se calou.
— Eles gostaram — disse Kiral, com um tom de alívio na voz. — Uma boa
história significa muito para o meu povo. — Ela ficou um pouco tensa quando
Alturk surgiu da sombra de uma escarpa próxima, de braços cruzados e olhar
fixo em Dahrena.
— Você viveu como merim her — disse ele. — Mas seus braços estão
cobertos por adornos seordah.
— Sou tanto merim her como seordah — retorquiu ela no mesmo tom. — Se
não de sangue, pelo menos de alma.
Alturk grunhiu algo que poderia ter sido uma risada.
— Sangue lonak não enfraquece tão fácil. Talvez você o sinta correndo em
suas veias de novo antes desta história terminar. — Ele rosnou algo para os
Senthar que observavam e eles se levantaram depressa e desapareceram nas
sombras. — Não deixe de acordar antes do amanhecer — disse ele a Vaelin,
retornado para a noite.

O primeiro ataque ocorreu no dia seguinte, enquanto eles atravessavam um


desfiladeiro profundo a meio dia de marcha do planalto. Um grupo de cerca de
duas dúzias de lonaks surgiu da entrada de uma caverna e disparou uma
saraivada de flechas antes de se lançar sobre os Senthar, claramente
determinados a abrir caminho até os odiados merim her. Somente um conseguiu
atravessar o cordão, os outros sendo abatidos sem demora a golpes de porrete ou
lança, aparentemente sem qualquer baixa do lado dos Senthar. O guerreiro
solitário correu diretamente até Vaelin, gritando enlouquecido com o porrete de
guerra erguido, e então derrapou até parar quando Garra de Ferro entrou em seu
caminho. O lonak viu de olhos arregalados o urso rugir o seu desafio e ficar de
pé. O guerreiro deixou cair o porrete, ao que tudo indicava aturdido de terror e
alheio à flecha que se cravou em seu peito um segundo depois. Kiral caminhou
até o cadáver de arco da mão e chutou as pernas do lonak para se certificar de
que estava mesmo morto antes de se ajoelhar para recuperar a flecha.
Eles foram atacados de novo três noites depois, mas dessa vez os atacantes se
contentaram em permanecer nas sombras e disparar flechas na direção das
fogueiras, matando um Senthar que se colocara diante da luz no momento
errado. Alturk reuniu vinte guerreiros e os conduziu para a escuridão, retornando
pouco depois com porretes e pontas de lanças ensanguentados. Seus esforços
pareceram ser suficientes para garantir uma noite tranquila e um grupo de
Senthar logo se aproximou da fogueira deles à procura de uma história no que
estava se tornando um ritual.
— Pode ser a minha vez — disse Orven. — A história do ataque de Lorde
Vaelin na Batalha de Alltor.
Vaelin levantou-se com um gemido.
— Poupe-me.
— Mas eles querem uma história, meu senhor — disse Orven com um leve
sorriso.
— Mas eu não.
Ele se afastou da fogueira quando Orven começou a narrativa, andando pelo
acampamento onde os outros Senthar o recebiam com olhos cautelosos ou com
uma indiferença calculada. Encontrou Alturk sentado sozinho, esfregando um
trapo de zibelina sobre o porrete de guerra, uma faca recém-afiada no chão ao
seu lado.
— Vim perguntar sobre o seu filho — disse Vaelin. — Espero que as minhas
ações não tenham contribuído para a sua morte.
Alturk não ergueu a cabeça e grunhiu:
— Sua esperança é vã.
— Você o matou por desobedecer a Mahlessa?
O lonak tirou os olhos do porrete e havia neles um aviso nítido.
— Meu clã o matou. A morte dele foi correta e justa. E não vou falar mais
sobre isso.
Vaelin aproximou-se da fogueira, agachou-se e estendeu as mãos para o
calor. As noites estavam cada vez mais frias, os ventos que sopravam do norte
uma lembrança constante do que se encontrava à frente.
— Minha Rainha me disse que os homens não têm permissão de ficar na
companhia de sua Mahlessa. Você nunca a encontrou, e ainda assim a segue sem
questionar.
— Você questiona a sua Rainha?
Vaelin sorriu um pouco.
— Não abertamente.
Alturk não respondeu. Deixou o porrete de lado e voltou o olhar para a
fogueira. Vaelin notou que os anos haviam envelhecido o rosto do lonak, mas não
o seu corpo, as rugas fundas na tinta em volta dos olhos.
— Você precisa saber que acredito que poucos de nós voltarão dessa jornada
— afirmou ele ao lonak. — Os que não forem mortos pelo gelo podem acabar
mortos em batalha.
Alturk permaneceu em silêncio por vários minutos, observando o fogo com os
olhos envelhecidos. Por fim, quando Vaelin ia partir, ele falou:
— Um homem que já está morto não precisa temer nada.

***

Eles avistaram o gelo depois de mais duas semanas, uma faixa branca no
horizonte a leste, depois de um litoral curvo à beira de um mar de águas
cinzentas. As montanhas haviam começado a diminuir de tamanho nos últimos
dias até se tornarem meros contrafortes, a maioria desprovida de qualquer
vegetação e proporcionando pouca proteção contra inimigos. Os ataques se
tornaram mais esporádicos quanto mais seguiam para o norte, possivelmente por
simples cansaço, embora Vaelin desconfiasse que o atrito constante com os
Senthar fosse a razão principal. Apesar da total falta de uniformidade ou
costumes militares, eles eram tão disciplinados quanto qualquer companhia da
Sexta Ordem e talvez quase tão habilidosos quanto os irmãos; apenas mais dois
deles haviam sido mortos desde o ataque noturno.
— Pela Fé, como dói! — disse Lorkan, encolhendo-se diante do vento
cortante e lançando um olhar questionador a Cara. — Você não pode fazer
alguma coisa?
Ela se limitou a responder com um olhar aborrecido e desmontou quando
Urso Sábio chegou com Garra de Ferro. Os cavalos haviam se acostumado
somente um pouco à presença do urso, e o xamã em geral viajava um pouco
afastado do grosso da companhia, sacolejando no dorso da criatura. Havia uma
estranha cautela na atitude dos lonaks para com Urso Sábio, movendo-se em
volta do velho num silêncio circunspecto, e ele era o único dos forasteiros que
não precisava compartilhar uma história junto à fogueira.
— Olá! — cumprimentou Cara, coçando a cabeça imensa de Garra de Ferro,
o animal bufando de prazer e agachando-se aos pés dela, embora seus ombros
ainda batessem no peito da mulher.
— Precisa caçar mais — disse Urso Sábio a Vaelin. — Mais carne.
— Nós temos carne — rebateu Alturk. — Suficiente para pelo menos um mês
de viagem.
— Não no gelo — insistiu o xamã. — Precisa de mais e mais.
— De onde? — Alturk gesticulou para a vastidão estéril ao redor deles. —
Não há nada para se caçar aqui.
Urso Sábio olhou para o lonak por um momento e então soltou uma de suas
gargalhadas, apontando para o litoral.
— Mar traz presentes, Homem Pintado.

***

Urso Sábio desapareceu com Garra de Ferro por várias horas, e ao retornar os
conduziu até um penhasco que dava para a baía que servia de lar para os
animais. Havia pelo menos quarenta deles na costa rochosa, os corpos gordos e
cobertos de pelos arrastando-se de um lado para outro enquanto brigavam e
gritavam uns com os outros, expondo presas impressionantes.
— O que são eles? — perguntou Lorkan, mantendo a voz num sussurro,
apesar de estarem a uma distância considerável das criaturas.
— Lobos-marinhos — respondeu Dahrena. — Temos esses animais nas
costas setentrionais dos Confins, embora eu não me lembre de já ter visto algum
tão grande.
— Grande — concordou Urso Sábio com um aceno contente de cabeça. —
Carne grande para levar no gelo.
— Vai estragar — disse Alturk. — E não temos sal para preservar tanta carne
assim.
Intrigado, Urso Sábio respondeu franzindo o cenho e foi necessário algum
tempo até Vaelin traduzir o significado.
— Estragar, rá! Carne não estraga no gelo. Frio demais. Basta defumar sobre
o fogo. Dura muitos, muitos dias. — Ele fez sinal para Kiral e partiu na direção
de uma trilha estreita que levava até a praia. — Nós caçamos, vocês acendem
fogueiras.
Eles trabalharam no litoral durante boa parte de outra semana, acendendo
fogueiras e matando os desafortunados lobos-marinhos seguindo as instruções de
Urso Sábio. O xamã esfolou a primeira vítima com uma habilidade rápida e
natural, recolhendo o couro inteiro com o que pareciam ter sido apenas alguns
golpes de sua faca, um feito que nenhum deles conseguiu igualar, apesar do
trabalho contínuo. A carne foi cortada em tiras e pendurada sobre as fogueiras
para serem defumadas enquanto os couros eram separados para serem curtidos,
o xamã deixando claro que precisariam deles mais tarde, voltando o olhar com
frequência para a linha branca no horizonte.
— Fizemos a viagem tarde demais? — perguntou Vaelin a ele na última noite.
Eles estavam sentados juntos num rochedo próximo da praia de cascalhos onde o
trabalho sangrento havia terminado, enquanto Garra de Ferro mastigava satisfeito
uma pilha de entranhas ali perto.
— Ainda tempo. — Urso Sábio ergueu a mão, formando um espaço estreito
com o polegar e o dedo indicador. — Tempo pequeno. — Ele olhou por sobre o
ombro para o acampamento, onde um grupo de Senthar escutava enquanto Kiral
traduzia a versão um tanto obscena que Lorkan contava da Filha do Lenhador, um
conto sobre amor não correspondido que envolvia assassinato e adultério, ainda
que em geral não em tal quantidade e com tantos detalhes.
— Nem todos chegar nas ilhas — prosseguiu Urso Sábio. — Jeito das coisas
no gelo. Sempre leva alguns, até mesmo Povo Urso.
— As ilhas? — perguntou Vaelin.
— Onde vamos. Outro lado do gelo. Já foi casa do Povo Urso.
— Eu pensei seu povo vivia no gelo.
Urso Sábio sacudiu a cabeça, olhando mais uma vez para o gelo. Parecia
brilhar, iluminado por uma luminescência verde-clara no céu noturno que os
lonaks chamavam de Sopro de Grishak, em homenagem ao seu deus do vento.
— Só tempos pequenos — disse Urso Sábio. — Nossa viagem para a sua terra
mais tempo no gelo que Povo Urso passou.
Vaelin lembrou-se das pessoas emaciadas e de olhos encovados aglomeradas
no Riacho Água de Aço, uma nação criada para sobreviver aos climas mais
severos e ainda assim vencida pelo gelo.
— Eu jamais pediria a alguém que fizesse isso se não soubesse em meu
coração que é algo que precisa ser feito — disse ele.
CAPÍTULO SEIS
Lyrna

— Não há nada que eu possa dizer para dissuadi-los dessa decisão?


Eles haviam pedido uma audiência no início daquela manhã e agora se
encontravam diante dela na sala do trono, o rosto aquilino de Hera Drakil não
revelando qualquer emoção, enquanto Sanesh Poltar pelo menos conseguiu fazer
uma careta de pesar.
— A guerra foi vencida — disse ele, encolhendo os ombros. — As manadas
de alce estão aumentando sem ninguém para caçá-las, e comem todo o capim.
Precisam de nós nas planícies.
Ly rna virou-se para o chefe de guerra seordah, falando na língua dele de
forma meramente passável:
— E você, irmão da floresta?
— Nós atendemos o chamado do lobo — respondeu ele. — Agora está se
calando. A floresta nos chama para voltarmos para casa.
As melhores infantaria e cavalaria leves do mundo, chamara-os Vaelin,
recursos que não podiam ser perdidos facilmente.
— Os nossos inimigos retornarão se não pudermos derrotá-los — disse Ly rna
aos dois. — E quando o fizerem, eu posso não ser capaz de protegê-los da
selvageria deles.
— Nós lutamos por esta terra — insistiu Hera Drakil. — Estamos felizes por
termos feito isso. A terra do outro lado da grande água não é nossa para lutarmos
por ela.
Ly rna sabia que havia algo mais por trás das palavras do homem, um leve
lampejo em seus olhos que ela conhecia muito bem. Ela se recordou de como o
povo da floresta ficara pouco à vontade na presença da Senhora Dahrena, da sua
repugnância pelo que ela fizera por Vaelin e da grande aversão que sentiam pelo
mar. Os seordah viram muita coisa quando deixaram a floresta, concluiu ela. E
passaram a conhecer o medo.
— Vocês não fizeram qualquer juramento a mim — disse Ly rna. — Assim,
não posso obrigá-los a serem leais. E eu seria uma tola e uma mentirosa se
afirmasse que este Reino estaria livre agora sem a sua ajuda. Por favor,
retornem em segurança para casa, com os meus agradecimentos, e podem ter
certeza de que os seordah e os eorhil desfrutarão da amizade e da proteção do
Reino Unificado para todo o sempre.
Eles a surpreenderam ao se curvarem, algo que não os vira fazer antes.
— Se os corações sombrios voltarem — disse Hera Drakil ao se endireitar —,
lutaremos com a senhora novamente.
Eles partiram ao meio-dia; Ly rna observava das muralhas enquanto a grande
massa de eorhil galopava para o norte, seguida pelos seordah em suas vagas
formações tribais, alguns cobertos por vários adornos conseguidos durante a sua
estada.
— Uma perda terrível, Alteza — comentou o Conde Marven ao seu lado. —
Eles teriam feito um belo trabalho do outro lado do oceano.
— A Guarda do Reino já é três vezes mais numerosa do que eles — disse
Ly rna, esforçando-se para garantir que a sua confiança não soasse forçada. — E
nem todos partiram. — Ela indicou com a cabeça os seordah e os eorhil
acampados perto da casa da guarda, talvez trezentos guerreiros que haviam
optado por ficar. Alguns haviam formado laços firmes com a gente do Reino que
encontraram na marcha, houvera até mesmo alguns casamentos; ela podia ver a
esposa de Lorde Orven com a barriga cada vez maior entre os abrigos de pele de
alce. Outros haviam decidido se juntar à cruzada de Ly rna em busca de justiça
pelos inúmeros ultrajes testemunhados durante a campanha, e o resto possuía
nada mais do que uma curiosidade básica, um desejo de ver o que havia do outro
lado da grande água. A anciã eorhil, Sabedoria, tinha lugar de destaque entre
esses últimos. “Penso que há sempre espaço na minha cabeça para mais
conhecimento, Alteza”, dissera ela em resposta à pergunta de Ly rna.
— Pelo menos não precisaremos encontrar espaço para tantos cavalos —
continuou o seu novo Senhor da Batalha. — Sobrecarregados como já estamos
com os cavaleiros renfaelinos e com a nossa própria cavalaria. — Ele fez uma
pausa, sem dúvida tomando coragem para dar um conselho indesejado. —
Alteza, a frota cresce a cada dia, mas de maneira lenta. Logo, acredito que possa
ser necessário enviar o exército em duas levas. A primeira transportando a elite
da Guarda do Reino e os arqueiros da Senhora Reva. Eles tomarão e manterão
um porto defensável enquanto a frota retorna para buscar o resto do exército.
Ly rna observou os últimos seordah desaparecerem atrás de uma elevação
distante. Pensou ver uma figura solitária demorar-se por um momento. Talvez
Hera Drakil, ou apenas um guerreiro olhando para um lugar que esperava jamais
ver novamente.
— Há uma Condessa Marven? — perguntou Ly rna. — Uma família
esperando pelo senhor em Nilsael?
— Sim, em Porto Gélido. Minha esposa e meus dois filhos.
— O senhor devia trazê-los para cá. Serão muito bem-vindos na corte.
— Eu duvido, Alteza. Minha esposa tem um… temperamento difícil. Ela
exigiria um palácio próprio assim que chegasse.
— Ah. — Ela deu as costas para a paisagem quando o seordah solitário
desapareceu de vista. — Não conseguiremos nada atacando em pequenos
números, meu senhor. Os volarianos perderam muitos soldados, mas o seu
império possui muitos mais. Cairemos sobre eles como uma leva apenas, e nisso
limparemos a terra da imundície deles.
— Perdoe-me, Alteza, mas não possuímos nem mesmo metade da
quantidade necessária de navios.
— Não — concordou Ly rna. — Uma situação que logo espero ver
remediada.

Davoka aguardava com os cavalos no pátio do palácio.


— Está feito? — perguntou Ly rna em lonak, montando em Flecha.
— Foi como você previu — comentou Davoka, a expressão plácida
contrastando com o seu tom.
— Uma pena. — Ly rna virou Flecha na direção do portão do palácio. —
Vamos encontrar uma distração que seja bem-vinda.
Varinshold fervilhava de atividade ao cavalgarem pelas ruas flanqueadas por
Benten e Iltis, as pessoas parando para se curvarem ou gritarem uma saudação
leal antes de voltarem depressa às suas tarefas. Apesar de todo o alvoroço, pouca
coisa da estrutura da cidade havia sido restaurada; algumas construções recém-
concluídas erguiam-se da devastação, e essas eram apenas quartéis simples e
funcionais, sem qualquer valor estético. Malcius teria chorado, soube ela ao
passar os olhos pela capital, que agora era uma cidade de lona e madeira em vez
de uma de pedra. Ele adorava tanto construir.
A atividade era ainda mais intensa nas docas. Varinshold era uma cidade
portuária, mas tradicionalmente construíra poucos navios, a maioria das
embarcações do Reino sendo produto dos estaleiros de Torre Sul e Warnsclave,
onde milhares agora trabalhavam num ritmo frenético para fornecer a frota por
ela exigida, ainda que nunca rápido o bastante. O inverno já se avizinhava e não
mais do que uma dúzia de novos navios estava pronta; belonaves de formato
tradicional. Lorde Davern, exasperado, advertira que, para erguer uma
embarcação com as dimensões que Ly rna queria, seria necessário construir um
estaleiro completamente novo.
— Então construa, meu senhor — disse ela, simplesmente.
A Forja da Rainha, como o estaleiro passou a ser chamado, ocupava a maior
parte do cais que outrora abrigara os armazéns da cidade, um aglomerado
extenso de forjas e oficinas onde artesãos habilidosos trabalhavam dia e noite em
turnos de dez horas. Em sua maioria, eram antigos aprendizes, jovens o bastante
para fugir dos traficantes de escravos que capturaram os seus mestres, muitos
tendo de ser retirados das fileiras da Guarda do Reino, geralmente sob protesto.
De acordo com as ordens estritas de Ly rna, eles não pararam para fazer mesuras
quando ela entrou na Forja, embora tenha havido muitos olhares rápidos de
assombro ou de admiração para saudá-la.
Ela atravessou a cacofonia de metal retinindo e serras incessantes até o
espaço cavernoso onde Alornis aguardava com Lorde Davern, e atrás deles se
erguia o casco de uma embarcação que chegava a dez metros de altura. O olhar
de Ly rna percorreu os andaimes que cobriam as laterais e os trabalhadores que
revestiam as vigas superiores com calafeto e piche.
— Fui levada a crer que ela estava pronta para ir para a água, meu senhor —
disse ela a Davern.
— São apenas os toques finais, Alteza — assegurou-lhe ele com uma mesura
cansada, virando-se e estendendo a mão para o navio recém-nascido. —
Entrego-lhe o Orgulho do Reino, cinquenta metros de comprimento, quinze de
largura, um calado de sete metros e capaz de transportar quinhentos Guardas do
Reino completamente armados pela extensão de qualquer oceano.
— E construído em apenas vinte dias por menos de cem homens —
acrescentou Alornis num tom afetado.
— Então — disse Ly rna a Davern — funcionou.
— De fato, Alteza. — Ele inclinou a cabeça para Alornis. — Meu ceticismo
inicial parece ter sido infundado.
Ly rna aproximou-se do navio, parando para segurar a mão de Alornis e a
apertar.
— Obrigada, minha senhora. Eu a nomeio Artífice da Rainha. Agora que o
navio está concluído, eu gostaria que a senhora voltasse as suas atenções para a
execução da guerra. Enfrentaremos exércitos numerosos em Volaria e eu ficaria
grata por quaisquer aparelhos que a senhora possa conceber que sejam capazes
de equilibrar de algum modo a situação.
Ela sentiu a mão de Alornis estremecer na sua.
— Eu… conheço pouco sobre armas, Alteza.
— A senhora conhecia pouco sobre navios e ainda assim isso pareceu não
importar muito. Aguardarei os seus projetos com interesse. — Ly rna soltou a
mão dela e virou-se para Davern. — Quando ele será colocado na água?
— Na maré noturna, Alteza. Os mastros devem ser colocados dentro de dois
dias.
— Envie cópias das plantas para os estaleiros em Warnsclave e Torre Sul. De
hoje em diante nenhum outro projeto será usado.
— Sim, Alteza.
Seu olhar recaiu sobre as letras no casco. Orgulho do Reino. Adequado, mas
pouco inspirador.
— E mude o nome — acrescentou ela, virando-se para ir embora. — Ele
será chamado Rei Malcius. Fornecerei uma lista de títulos para os irmãos dele.

A Companhia Morta foi obrigada a acampar fora das muralhas da cidade. O


Conde Marven lhes dera uma torre de vigia no promontório ao norte para
protegerem, a uma boa distância dos muitos veteranos da Guarda do Reino e ex-
escravos ansiosos para acertarem velhas contas. Ela encontrou Al Hestian
treinando os seus homens com a costumeira gentileza.
— Levante, seu comedor de bosta imprestável! — rosnou a um jovem caído,
que agarrava a barriga onde o Lorde Comandante acertara um golpe com a
haste de sua alabarda. — Tem coragem para roubar, mas não o suficiente para
lutar, é? Deixando-se ser derrotado por um velho aleijado. — Ele deu um chute
implacável nas pernas do garoto, que continuava a se encolher. — De pé! Ou
será chicoteado!
Al Hestian empertigou-se quando Ly rna aproximou-se montada em Flecha,
ignorando a mesura e olhando para o jovem encolhido. Ele ergueu a cabeça para
Ly rna num apelo evidente, os olhos enchendo-se de lágrimas. Pouco mais do que
um garoto, percebeu ela.
— Seu Lorde Comandante lhe deu uma ordem — disse ela calmamente ao
garoto, retribuindo o olhar e sabendo que ele não via bondade alguma ali.
O garoto levantou-se controlando as lágrimas e esboçou uma mesura.
— Sargento! — berrou Al Hestian, e um homem de ombros largos veio
correndo até o seu lado e bateu continência. Ly rna o reconheceu como o
cavaleiro das masmorras, o que havia chorado quando ela lhe concedeu as suas
vidas. — Faça esse covarde correr até cair — disse Al Hestian. — Sem rum por
uma semana.
— Esse aí se daria bem entre os lonakhim — comentou Davoka ao lado de
Ly rna.
Al Hestian adiantou-se e segurou as rédeas da égua enquanto Ly rna
desmontava. Ela podia ver uma nova vitalidade nele, o homem derrotado do
Canto do Traidor aparentemente substituído pelo epítome de um Lorde
Comandante da Guarda do Reino, o que, lembrou a si mesma, ele já fora.
Contudo, as costas empertigadas e o uniforme impecável não podiam mascarar
os olhos; eles ainda revelavam um homem de luto.
— Meu senhor — disse ela, gesticulando para a falésia, onde Orena e Murel
estavam arrumando uma mesa e cadeiras. — Vim assistir à primeira viagem de
meu novo navio. Gostaria de se juntar a mim?
Al Hestian mandou os seus homens acenderem lamparinas e pendurá-las em
estacas ao longo do topo da falésia, e sentou-se rígido diante dela enquanto o sol
se punha e uma brisa marítima intensa fazia o capim sussurrar.
— O que acha dos seus novos comandados, meu senhor? — perguntou Ly rna,
aceitando uma taça de vinho servida por Orena.
— Um grupo variado, Alteza. Cavaleiros que buscam recuperar a honra
servindo ao lado da escória do Reino. Os meus Falcões Negros teriam matado
todos eles em um dia.
— Sim, se eles não tivessem sido dizimados, é claro. — Ly rna olhou para o
vinho em sua taça, um escuro vinho tinto cumbraelino, o aroma adocicado, com
um leve toque de hortelã e amora. — Alguma deserção?
— Duas, Alteza. Eram recrutas recentes, fora da lei estúpidos, na verdade,
sem muita noção de como evitar serem capturados. Eles foram trazidos de volta
com facilidade.
— E suponho que chicoteados?
— Enforcados, Alteza, na frente de todo o regimento. — Ele agradeceu com
um aceno de cabeça para Orena quando ela lhe serviu a bebida. — É preciso dar
exemplos.
— De fato. Eu preferiria não beber com o senhor — acrescentou Ly rna antes
que ele experimentasse o vinho. Al Hestian hesitou por um momento e então
abaixou a taça, seu rosto não revelando qualquer sinal de ofensa.
Benten deu as costas ao topo da falésia e apontou na direção do porto.
— Minha Rainha.
Ly rna levantou-se e fez sinal a Al Hestian para acompanhá-la. O promontório
oferecia uma vista excelente das docas, onde muitas tochas cintilavam e pessoas
aglomeravam-se no cais para assistir ao nascimento do poderoso navio da
Rainha. A Forja fora construída com uma carreira que desembocava no porto, o
interior reluzindo intensamente e banhando as águas com uma luz amarelada.
Mesmo àquela distância, Ly rna ouvia o som de várias marretas atingindo os
blocos que mantinham a embarcação no lugar, então o ruído sumiu de repente e
foi substituído por um grande brado quando o casco imenso deslizou pela carreira
até a água, seu rastro reluzindo como ouro à luz das tochas.
— É uma bela cena, não acha? — perguntou Ly rna a Al Hestian, gesticulando
para que Orena trouxesse mais vinho.
Ele observou o navio por um momento, seus olhos fundos reluzindo por uma
fração de segundo.
— Uma embarcação impressionante, Alteza.
— Sim. Devo confessar que não fui totalmente sincera com o senhor, Lorde
Comandante. Minha missão aqui esta noite não era lhe mostrar o meu navio.
Ela o viu ficar tenso, olhando de relance para Iltis e Benten, que se
encontravam um pouco afastados, de olhos firmes e mãos apoiadas no punho das
espadas.
— Não era, Alteza?
— Não. — Ly rna virou-se quando Orena se aproximou, olhando-a nos olhos e
virando o vinho na relva. — Foi para lhe mostrar a face de nosso inimigo.
Orena estacou e seu rosto ficou inexpressivo, mas os olhos iam até cada um
deles com uma velocidade incomum.
— Lorde Vaelin notou — disse Ly rna à mulher. — Você viu o garoto que não
pode ser visto, a não ser por outro dotado. Isso foi uma tolice.
Orena não se moveu, fixando o olhar em Ly rna enquanto Benten e Iltis
aproximavam-se pelos lados de espadas desembainhadas e apontadas, e Davoka
aproximava-se por trás dela de lança a postos.
— Orena Vardrian — prosseguiu Ly rna. — Sobrenomes seguem a linhagem
feminina entre os camponeses de Asrael. O Irmão Harlick memorizou cada
censo realizado neste Reino, de modo que foi fácil saber que você e Lorde Vaelin
são primos, com a mesma avó, uma mulher que sem dúvida passou o seu sangue
dotado para as duas filhas. O sangue maternal carrega as Trevas, mas a natureza
dos dons pode variar entre gerações. Qual é o dela?
As feições de Orena sofreram um espasmo, uma variedade de expressões
distorcendo o seu semblante que parecia uma máscara. Malícia, medo e
divertimento transpareceram em seu rosto antes que a mais inesperada fosse
adotada: tristeza, sua fronte ficando lisa e a boca formando um leve sorriso.
Quando falou, sua voz era seca, embora Ly rna tenha achado a cadência
horrivelmente familiar.
— Ela consegue colocar os seus pensamentos na cabeça dos outros. Um dom
difícil de dominar e que ela raramente usava, uma vez que morria de medo de
ser descoberta, ciente de que a sua gente a entregaria para a Quarta Ordem caso
se tornasse público. Não é de espantar que ela tenha decidido fugir da fazenda e
se casar com um homem rico. Ela teve bastante utilidade para o dom na hora de
cortejá-lo.
— E na hora de dizer à outra criatura sua companheira e ao seu sacerdote
onde me encontrar naquela noite em Alltor.
Iltis arreganhou os dentes, sua espada estremecendo um pouco ao lutar contra
a fúria, embora Ly rna tenha ficado satisfeita pela disciplina dele por não se
entregar à emoção.
— Uma tarefa à qual fui forçada — disse Orena. — Como a incontáveis
outras.
— Mais de uma vez, sem dúvida. Suponho que os nossos inimigos estejam
perfeitamente cientes de nossos preparativos.
— Eles sabem tudo o que sei.
— Então por que arriscar ser descoberta esta noite? A Senhora Davoka a tem
vigiado de perto desde que Lorde Vaelin nos informou suas suspeitas. Por que
escolher hoje para envenenar o vinho?
Orena não respondeu, mas Ly rna viu os olhos da mulher irem na direção de
Al Hestian.
— Parece que o nosso inimigo também o teme, meu senhor — disse Ly rna
ao Lorde Comandante. — Estou subitamente feliz por não tê-lo executado. — Ela
tornou a olhar para Orena. — Por que o Aliado deseja a morte dele?
— Ele possui um grande talento para o comando. Um talento que será de
grande utilidade quando vocês chegarem a Volaria.
— Já nos encontramos antes, não? Nas montanhas.
— Não importa. — A voz da mulher soou ainda mais sem emoção, seu olhar
começou a perder o foco e ela curvou os ombros, derrotada. — Nada importa.
Construa a sua frota, reúna o seu exército, leve-os para as suas mortes. Somos
todos apenas peças no tabuleiro dele e, se o jogo acabar mal, ele começará
outro. Morri centenas de vezes e despertei em casca após casca, em cada
ocasião rezando para que dessa vez ele me deixasse em paz. Quando despertei
nesta aqui e não ouvi sussurro algum da voz dele, pensei… — Ela se calou,
baixando a cabeça ao se abraçar.
— Você teve amplas oportunidades para me matar no Sabre do Mar — disse
Ly rna. — Durante a batalha, teria sido fácil com tantas flechas voando, tanta
fumaça para ocultar o feito. Por que você não me matou?
Orena deu uma risada melancólica, baixa e que logo se perdeu no vento.
— A senhora fez de mim uma dama. Era a… minha Rainha. E… — Ela fez
uma pausa para sorrir. — E havia Harvin. É terrível viver por tanto tempo sem
nunca tocar o coração de outra pessoa. E pensar que eu conseguiria isso com ele,
um fora da lei comum mais burro do que um vira-lata.
— Espera que eu acredite nisso? — Ly rna sentiu a raiva aumentar e lutou
para mantê-la sob controle. A tentativa daquela coisa de manipulá-la era
perigosa, provocando-a para que se vingasse de modo apressado. — Uma
criatura como você é imune ao amor.
— Se acha tão sábia, minha Rainha, mas ainda é uma criança. Vi muitas
coisas serem feitas em nome do amor, coisas maravilhosas e horrendas, e
sempre achei tudo muito divertido. Há um pedaço da minha alma que gostaria
que a senhora estivesse certa, que eu tivesse permanecido imune ao toque desse
sentimento, pois então a minha tristeza não teria sido tão grande. Acho que foi
assim que ele me encontrou de novo, ouvindo o meu desespero quando adentrou
o vazio, chamando-o de volta ao seu serviço.
— Um chamado que você poderia ter recusado.
— Ele me prendeu a si há muito tempo, fundiu a minha alma na dele,
arrancando qualquer vontade de resistir. É como ele nos escolhe, aquelas almas
mais adequadas aos seus propósitos, aqueles com malícia suficiente para se
igualar à dele e fraquezas suficientes para serem moldados.
Ela caiu de joelhos e olhou por sobre o ombro para onde Davoka se
encontrava agora, com uma garrafinha de vidro na mão.
— Você precisa saber — disse Orena, virando-se de novo para Ly rna — que
a mente desta casca está perturbada. Foi arruinada pelo estupro e pelo
estrangulamento que quase a matou na noite em que a cidade caiu, salva apenas
pelo seu dom, que destruiu a mente do homem que a atacou, mas deixou a dela
esgotada e facilmente arrebatada.
— Ela terá o melhor dos cuidados — destacou Ly rna. — E prometi a Lorde
Vaelin que lhe devolveria a sua prima.
Orena assentiu e arregaçou a manga, erguendo a mão com a palma
estendida.
— Desta vez não haverá perdão. Os meus fracassos tornaram-se muito
frequentes, a minha alma maculada demais por sentimentos. Desta vez ele vai
me reduzir a nada, destruindo até mesmo a memória de que um dia já vivi. Um
destino que acredito que me é bastante apropriado. — Seu rosto estava fechado,
determinado, o medo bem controlado, contrastando muito com a garota que
implorara e chorara sob a Montanha. — Estou pronta, minha Rainha.
Anos mais tarde, restariam poucos vivos na Companhia Morta para se
lembrarem do grito que cortou o promontório naquela noite. Porém, os que
sobreviveriam, apesar de calejados por muitos horrores, ainda seriam capazes de
estremecer ao se recordarem do som, lembrando-se dele como um presságio do
que estava por vir.

A fúria plena do inverno chegou cedo aquele ano, a chuva forte dando lugar à
neve com uma rapidez indesejada, os tetos de lona de Varinshold vergando-se
sob o seu peso. Ly rna havia ordenado que se estocasse lenha, mas a intensidade
do frio pegou muitos de surpresa e houve alguns que pereceram em suas garras,
principalmente os idosos e os enfermos. Outros foram encontrados do lado de
fora das muralhas da cidade, sem roupas quentes, os rostos congelados
geralmente serenos, aceitando o destino. A invasão privara muitos de suas
famílias e os deixara vulneráveis ao desespero, mãos preciosas entregues a um
pesar que não tinha fim.
Apesar do frio e das privações, o trabalho continuava, a Forja produzia armas
numa velocidade furiosa e os construtores de Davern haviam entregado à Rainha
mais três navios em menos de um mês, o ritmo de construção sendo acelerado à
medida que se acostumavam com as novas técnicas.
— A senhora devia esquecer o ouro dos Confins, Alteza — aconselhara
Davern um dia com o seu sorriso costumeiro. — Quando a guerra acabar, esta
terra enriquecerá só com a construção de navios.
Na verdade, Ly rna com frequência desejava poder esquecer-se do ouro. O
Senhor da Torre em exercício, Ultin, era um correspondente frequente com os
seus pedidos de mais mineiros, e os escribas do Senhor Feudal Darvus eram
escrupulosos na contagem e pesagem de cada lingote que chegava a Porto
Gélido, a ponto de atrasar o envio subsequente aos mercadores alpiranos. Se
Vossa Alteza enviasse mais escribas, escrevera o velho em resposta à repreensão
formulada por Ly rna de forma amigável, tenho certeza de que o fluxo do ouro
seria retomado com toda a velocidade. Ela resistiu à tentação de despachar Lorde
Adal com um decreto formal desfazendo o acordo de Darvus com Vaelin e
colocando o comércio do ouro sob o controle da Coroa. Entretanto, como o seu
Ministro da Justiça sempre fazia questão de lembrá-la, ela já havia exercido a
Palavra da Rainha com uma frequência que fazia o seu pai parecer o modelo de
um governo de não intervenção, e odiaria ganhar a reputação de colocar de lado
leis inconvenientes.
O Aspecto Dendrish assumira a tarefa não invejável de ouvir petições,
incomodando-a somente com os casos da maior importância ou complexidade.
Ele também fora obrigado a reconstituir um sistema de tribunais numa terra
agora severamente desprovida de advogados ou magistrados, obtendo a
permissão de Ly rna para uma reorganização completa da máquina judiciária do
Reino.
— Três Juízes Superiores? — perguntou Ly rna ao ler o plano dele. — O papel
de juiz mais graduado não deveria ser seu, Aspecto?
— Poder demais delegado a um único oficial frequentemente é uma receita
para a corrupção, Alteza.
Ly rna franziu a testa de forma jocosa. Apesar de possivelmente ser o homem
menos agradável que ela já conhecera, fora o felizmente falecido Darnel, o
Aspecto ganhara depressa uma reputação de grande discernimento e rígida
imparcialidade, relatando cada tentativa de suborno e decretando punições
sumárias ao transgressor.
— O senhor se sente corrompido pelos seus deveres? — perguntou ela.
— Não ficarei neste cargo para sempre. — Havia um peso em suas palavras
que a fizeram parar para pensar, considerando a palidez da pele do Aspecto e a
gordura que desaparecia rapidamente. Ly rna já notara como as palavras dele
costumavam ser pontuadas por um leve ofegar, e ele parava para tossir com
uma frequência desconcertante.
— Três juízes — disse ela, voltando ao documento. — Suponho que para
garantir que as suas decisões não cheguem a um impasse?
— Exato, Alteza. Todas as decisões estarão sujeitas à sua aprovação,
naturalmente.
— Além disso, notei que não há menção à Fé no seu código corrigido de
transgressões criminais.
— A Fé diz respeito à alma e ao Além. A lei diz respeito apenas ao Reino e
aos seus súditos.
— Muito bem. Precisarei de tempo para pensar bem a respeito disso.
— Obrigado, Alteza. — Ele se curvou, tentando conter sem sucesso uma tosse
com um lenço rendado, que estava manchado de vermelho quando o afastou da
boca. — Perdoe-me.
— Perdoo. Também ordeno que o senhor vá ver o Irmão Kehlan
imediatamente e siga qualquer instrução que ele lhe der.
O Aspecto assentiu com relutância quando ela largou o documento.
— Nem meu irmão nem meu pai tentaram uma mudança tão radical nas leis
do Reino.
O Aspecto Dendrish ofegou, seus olhos levemente úmidos ao responder:
— Tudo mudou neste Reino, mais do que eu gostaria. Mas desejos não
tornam uma terra adequada para se viver.

— É baseada numa máquina volariana — disse Alornis, o braço esguio girando o


molinete na parte traseira do engenho, fazendo engrenagens retinir e braços
cruzados em diagonal recuarem. De fato lembrava uma das balistas com que os
volarianos adornavam os seus navios, mas era consideravelmente maior, com
uma pesada caixa de ferro afixada sobre o corpo principal. Ficava sobre uma
base larga de ferro, mas com uma abertura côncava através da qual passava a
haste de sustentação, permitindo que o mecanismo inteiro fosse girado com uma
rapidez surpreendente, apesar do tamanho.
Ly rna juntou-se ao seu Senhor da Batalha no principal campo de treinamento
da Guarda do Reino para assistir ao teste da primeira invenção de sua Senhora
Artífice. A planície extensa que abrigara a Feira de Verão estava quase toda
coberta pela neve agora, e tropas de recrutados se exercitavam entre os montes
para além da fileira de alvos colocados a distâncias variadas do dispositivo. Cada
alvo consistia em quatro peitorais volarianos dispostos num quadrado, uma vez
que Alornis garantira que o dispositivo tinha poder suficiente para perfurar as
armaduras.
— Qual é o alcance, minha senhora? — perguntou o Conde Marven.
— Uma balista volariana consegue disparar a até duzentos metros —
informou Alornis, prendendo no lugar a corda grossa do mecanismo e afastando-
se. — Tenho esperança de que vamos conseguir superar essa marca. Eles usam
madeira para os braços das balistas, nós usamos metal. — Ela levou um
momento para alinhar o engenho e então bateu com a palma da mão numa
alavanca. Os braços arqueados deslocaram-se para frente num borrão e o virote
foi disparado rápido demais para que Ly rna pudesse acompanhar a sua
trajetória, embora o tinido metálico que se ouviu indicasse que um dos alvos mais
distantes fora acertado.
— Quase trezentos metros — disse o Conde Marven com uma gargalhada,
fazendo uma mesura a Alornis. — Muito bem, minha senhora. Um feito
extraordinário.
— Obrigada, meu senhor. Mas ainda não terminei. O projeto original
volariano tornava a recarga lenta, levando mais de um minuto para disparar dois
virotes. Porém, lembro-me de quando vi um moedor de grãos, o que me deu
uma ideia peculiar. — Alornis segurou o molinete de novo e começou a girá-lo,
os braços sendo puxados para trás enquanto as engrenagens rangiam. — Tudo é
uma questão de alinhar as engrenagens — explicou ela, gemendo um pouco com
o esforço. — As engrenagens puxam a corda para trás até certo ponto, e então a
caixa no topo dispara um novo virote. — O engenho fez um ruído baixo enquanto
ela continuava a girar o molinete. — E a engrenagem seguinte solta a corda.
Os braços deslocaram-se de novo, acertando mais uma vez o alvo mais
distante.
— Tudo o que se precisa fazer é continuar a girar o molinete — prosseguiu
Alornis, ajustando a mira do engenho, de modo que o virote seguinte voou na
direção de um alvo diferente. — Até que os virotes acabem, quando então uma
nova caixa pode ser colocada no lugar da vazia.
Ela continuou a manusear o engenho, disparando virotes em trajetórias
variadas até que todos os alvos tivessem sido acertados. Quando o último virote
voou, ela se afastou de sua criação, suando um pouco apesar do frio.
— Ainda preciso cuidar de alguns detalhes — disse Alornis, arfando um
pouco. — Ela tende a emperrar se não for lubrificada com frequência, e acho
que posso melhorar o formato das cabeças dos virotes.
— Dê-me uma centena dessas máquinas, Alteza — disse o Conde Marven,
seu tom agora completamente sério —, e poderemos medir forças com qualquer
exército que os volarianos levarem a campo.
Ly rna avançou e deu um abraço delicado em Alornis, beijando-a na testa.
— O que mais pode me mostrar, minha senhora?
CAPÍTULO SETE
Frentis

Illian abaixou-se sob o golpe da espada de madeira dele e contra-atacou com


uma estocada nos olhos, desviada com facilidade antes que se aproximasse e
então ele prendeu o braço dela debaixo do ombro, puxando-a para perto.
— Agora, o que você vai fazer, irmã? — perguntou ele num tom brando.
Frentis a viu engolir uma resposta mordaz, suas feições vermelhas de
frustração, e detectou a decisão nos olhos da garota por uma fração de segundo
tarde demais. A cabeça de Illian o atingiu com força no nariz, deixando-o
atordoado pelo breve momento que ela levou para se soltar e girar a espada de
freixo de forma desajeitada porém veloz contra o seu diafragma. A espada de
madeira de Frentis chocou-se com a dela a um centímetro de seu peito,
aparando-a com um estalo alto para então a desviar para o lado e desferir uma
estocada na barriga de Illian. Ela grunhiu com o golpe e abaixou a espada, o peito
arfando e os olhos tomados de ressentimento.
— A raiva é sua inimiga — lembrou-lhe Frentis, limpando o sangue do nariz.
— Um pouco melhor desta vez, mas ainda não rápido o suficiente. Pratique as
séries até o meio-dia e então alimente os cães.
Ela respirou fundo para se acalmar antes de assentir, seu tom
cuidadosamente modulado:
— Sim, irmão.
Frentis a deixou e atravessou o convés até onde a sua companhia estava
ocupada com o próprio treinamento, e Draker ensinava a um trio de membros
mais jovens o básico para se cortar a garganta de um homem.
— Tem que fazer num golpe só — aconselhou ele, com um braço musculoso
em volta do peito de um jovem magricela chamado Dallin, um lavrador
renfaelino resgatado dos traficantes de escravos pouco antes de a estada deles na
Urlish chegar à sua conclusão desastrosa. — Não tentem encontrar as veias. —
Draker demonstrou a técnica com uma adaga embainhada. — Só cortem fundo e
de um lado ao outro. Então segurem o cabelo dele e puxem a cabeça para trás
para abrir o corte o máximo possível.
Frentis passou por Artesão a caminho da popa, com Retalhador e Dente
Negro ao seu lado como vinham ficando nos últimos dias, aparentemente
fascinados por seu trabalho. Na metade da viagem ele subitamente parara de
trançar cordas e começara a enrolar tiras de couro com firmeza sobre uma
armação circular, respondendo apenas com um sorriso vago quando perguntado
do que se tratava. A criação a princípio lembrara um cesto raso, mas o seu
propósito gradualmente se tornou mais claro quando Artesão fixou tiras no lado
côncavo e pediu emprestado piche à tripulação para cobrir a superfície curva
externa.
— Um belo escudo, senhor — disse Frentis, parando ao lado do homem e
erguendo a mão para Retalhador lamber.
— Um modelo lonak — disse Artesão, com uma cadência estranhamente
familiar na voz ao usar uma agulha grande de osso para passar um cordel pela
borda do escudo. — Embora usado raras vezes, uma vez que a cultura marcial
deles é de natureza essencialmente agressiva.
Ele continuou a trabalhar e não ergueu a cabeça quando Frentis se afastou. O
Capitão Belorath estava na popa, de pé e tão imóvel quanto o convés oscilante
permitia, com o sextante apontado para o horizonte. Frentis não fazia ideia de
como o aparelho funcionava ou do significado dos números que o capitão parava
para anotar num pergaminho, mas sabia que era como ele determinava a
posição em que estavam naquele oceano.
— As águas estão mais calmas hoje — comentou ele. Na verdade, era o
primeiro dia de calmaria em mais de uma semana; as histórias que ele ouvira a
respeito da natureza tempestuosa do inverno no Boraelino não haviam sido
exageradas.
Belorath respondeu com o grunhido costumeiro, erguendo mais uma vez o
sextante.
— Mas as nuvens não. Promessa de outra tempestade amanhã. — Ele
estreitou os olhos e manteve o sextante apontado, voltando o olhar ao ter um
breve vislumbre do sol através de uma nuvem. — Creio que estamos a menos de
duas semanas das praias volarianas, irmão — disse ele, consultando os números
no seu pergaminho. — É hora de tomar uma decisão.

— Eskethia. — Trinta e Quatro bateu com um dedo no mapa onde uma extensão
de mais de trezentos quilômetros do litoral volariano ia de norte a sul. — Uma das
últimas províncias a sucumbir ao domínio volariano. As pessoas livres de lá
podem estar menos inclinadas a lutar pelo império. Além disso, Nova Kethia
abriga o maior mercado de escravos das províncias ocidentais. Muitos dos
escravos capturados na sua terra natal ainda estarão lá, aguardando pelos leilões
de inverno.
— Bem guarnecida? — perguntou Frentis, mas quem respondeu foi Lekran.
— Pelo menos uma divisão — disse ele. — Como disse o nosso amigo, os
eskethianos nunca deixaram de lado o ressentimento pela perda de sua soberania,
ainda que tenha ocorrido há séculos.
Frentis examinou atentamente o mapa, medindo a distância de Eskethia a
Volar. Perto o bastante para ameaçar a capital, mas distante o suficiente para
garantir que quaisquer forças enviadas contra nós não tenham tempo de retornar
quando a Rainha desembarcar. Ele ergueu o olhar para Belorath.
— Capitão?
— Não estou familiarizado com esse litoral. Pode levar algum tempo para
encontrar um local adequado para o desembarque. Felizmente, a tempestade que
está chegando deve ocultar dos navios de patrulha a nossa aproximação.
Frentis assentiu.
— Eskethia, então — disse ele, odiando-se pelo pavor que tomava conta de
seu peito, sabendo que a decisão significava que as suas semanas de sono sem
sonhos logo teriam de ser abandonadas. Só mais uma noite, disse a si mesmo. O
que ela pode fazer em apenas uma noite?

Houve um tempo em que ela os teria feito assistir, deleitando-se com a sua
impotência enquanto se retorciam nas amarras, testemunhas desamparadas do
assassinato de suas famílias. Porém, por motivos que não conseguia compreender,
tais diversões já não lhe interessavam, e ela se contentara em reuni-los no topo da
Torre do Conselho, parados no parapeito com a ponta de uma espada encostada
nas costas de cada um, vendo a fumaça e as chamas subirem dos distritos mais
abastados da cidade enquanto suas propriedades eram devastadas. Era quase
meia-noite e as chamas eram intensas, embora eles estivessem a uma altura
grande demais para que pudessem ouvir os gritos. Apesar de toda a sua vitalidade
sobrenatural, aqueles poderosos do império revelavam-se agora velhos, curvados
pelo pesar, chorando ou sufocando súplicas desesperadas por misericórdia,
mantidos de pé somente pela promessa de uma morte instantânea caso vacilassem.
— Compreendo que esta pode ser uma afirmação redundante, Honoráveis
Conselheiros — diz ela. — Mas o Aliado não está nem um pouco impressionado
com os seus esforços para tornar o seu grande plano realidade.
Ela se aproxima do simplório de cabelos grisalhos, aquele de cujo nome ainda
não consegue se lembrar, embora tenha quase certeza de que o homem devia ter
conhecido o seu pai na juventude. Ele está vestindo o traje formal de um
Conselheiro, vermelho da cabeça aos pés, apesar de uma mancha reveladora
estar se espalhando pelo tecido em volta de suas pernas.
— Apenas um décimo das forças necessárias foram reunidas — diz ela ao
homem grisalho um tanto pungente —, enquanto vocês me vêm com uma tirada
interminável de desculpas cada vez mais patéticas. O Aliado estabeleceu um
grande destino a este império, enquanto vocês chafurdam nos seus confortos e
ficam cegos à ameaça crescente do outro lado do mar.
Ele tenta implorar, mas as suas palavras saem num balbucio incoerente de
saliva e lágrimas. Ela o deixa balbuciando e volta o olhar para o homem parado
atrás do Conselheiro, trajando uma armadura leve como a dos Kuritai, mas
armado com apenas uma espada, a lâmina mais longa e mais estreita do que o
padrão volariano, na verdade similar ao padrão asraelino. Além disso, diferente
dos Kuritai, a sua armadura é laqueada de vermelho em vez de preto. O homem é
de altura mediana, mas tem um corpo definido quase à perfeição, produto de
décadas de cruzamento e anos de condicionamento. Sempre fora uma ilusão
persistente entre aqueles boçais de vida longa que os Kuritai eram os soldados-
escravos definitivos, incapazes de serem aprimorados, e agora ali estavam, mais
uma vez mostrando estarem fatalmente errados.
O espadachim está ciente do escrutínio dela e responde ao olhar com um
aceno respeitoso de cabeça e um sorriso de expectativa nos lábios. Eles foram o
projeto mais estimado do Aliado durante séculos, um soldado-escravo capaz de
pensar assim como de obedecer, mas sucessivas gerações mostraram-se
decepcionantes, difíceis ou fáceis demais de serem controladas. Foi o seu amado
que fornecera a pista; durante o tempo que ele passara nos fossos, ela o estudara
atentamente, percebendo que ele se tornava mais mortal quando o domínio era
enfraquecido, quando a sua fúria acrescentava uma velocidade preciosa aos seus
golpes. Então, eles começaram a mudar a dieta de drogas dos soldados-escravos,
a alterar de forma sutil o regime de treinamento, livrando-se daqueles que não
possuíam o temperamento necessário. Em poucos anos, os resultados alcançados
foram… impressionantes.
— Aproxime-se — diz ela ao espadachim, cujo sorriso se alarga ao obedecer,
cravando a espada nas costas do Conselheiro. O grito é longo enquanto o homem
mergulha em direção ao chão. Ela não se incomoda em ver o resultado,
gesticulando para cada um dos espadachins; os Conselheiros são forçados para
além da beirada com graus variados de pânico e terror, alguns implorando
enquanto caem, como se suas súplicas pudessem vencer a gravidade. Pouco
depois, resta apenas um. Ele está empertigado, olhando fixamente para os bairros
residenciais ao norte, onde sua casa de campo está queimando, o lago ornamental
que a cerca fornecendo um belo reflexo no ar parado daquela noite.
— Nada a dizer, Arklev? — pergunta ela.
Ele não reage, nem mesmo para virar a cabeça. Ela se aproxima, achando a
postura dele estranhamente nobre, estoica diante da morte, recusando-se a notar o
inimigo. Uma clássica pose volariana, digna de uma estátua.
— Eu sempre me perguntei… — diz ela, apoiando os braços no parapeito ao
lado dele. — Foi você que propôs ao Conselho me usar para assassinar o meu pai?
A pergunta é inútil, ela sabe. Ele não irá falar com ela. Ela é uma inimiga
indigna, desprovida de consideração, merecedora de tanto respeito quanto o tigre
que devora o viajante incauto.
Em vez disso, ele decide surpreendê-la.
— Não foi uma proposta — diz ele, o rosto ainda tranquilo e a voz firme. — Foi
uma ordem, transmitida pela criatura que você chama de Mensageiro.
Ela olha para Arklev por um momento e então gargalha. Foi uma recompensa
ou uma provocação?, ela se pergunta.
— Ordenei que a sua esposa e os pirralhos gerados mais recentemente sejam
mortos depressa — diz ela. — Achei que lhe devia isso.
Ele nada diz, sua compostura ainda intacta. Ela brinca com a ideia de deixá-lo
de pé ali por um dia inteiro, curiosa para ver quanto tempo levará até que suas
pernas se curvem, mas mais uma vez encontra o seu apetite por prazeres
diminuído naquela noite.
— Leve-o para a masmorra — diz ela ao espadachim parado atrás do
Conselheiro.
Arklev olha para ela horrorizado e então se inclina para a frente, tentando
jogar-se do parapeito, mas o seu guarda é mais rápido e o agarra pelas pernas,
puxando-o para trás.
— Mate-me! — grita Arklev furioso. — Mate-me, sua cadela pestilenta!
— Você ainda tem muito a fazer, Arklev — diz ela com um sorriso de desculpas.
Ele continua a se debater enquanto o guarda o arrasta para a escada, e seus gritos
ecoam durante todo o caminho até lá embaixo.
Ela se demora um pouco, olhando para as chamas, perguntando-se quantos
dos que viviam na cidade abaixo tinha alguma ideia do que aquilo significava, do
mundo diferente que os receberia pela manhã, sua mente sendo tomada por uma
melodia confusa agora familiar.
As chamas estão menores quando ela volta a si, a confusão está diminuindo.
Quanto tempo ficou ali? Ela se vira para um dos espadachins, o que matou o
grisalho, e o encontra encarando-a com franca admiração, seus olhos detendo-se
na fenda da túnica que revela um pouco de sua coxa.
— Você sabe o que você é? — pergunta ela ao homem.
— Arisai — responde ele, olhando-a nos olhos com um sorriso. — Um servo do
Aliado.
— Não. — Ela se vira para a cidade. — Você é um escravo. Pela manhã serei
uma imperatriz, mas também uma escrava. Pois agora todos nós somos escravos.
Ela está caminhando em direção à escada quando é atingida pela sensação do
retorno dele, como que por uma martelada. Ela cambaleia e cai de joelhos.
Amado! Sua canção aumenta em boas-vindas e presságio, as mesmas notas que
sempre cantou na presença dele. Ele está perto, ela pode sentir, o oceano não
mais entre eles. Amado, está vindo até mim?
A canção muda ao tocar o ódio dele, o seu doce ódio, e uma visão surge na
mente dela, nebulosa, mas nítida o suficiente para discernir um trecho de litoral,
ondas altas quebrando-se numa praia rochosa, uma única palavra na voz dele, a
sua voz maravilhosa repleta de ódio: Eskethia.

— Lembra o sul de Cumbrael — disse Draker, protegendo os olhos do sol com a


mão ao olhar para a paisagem. — Fiz alguns contrabandos aqui na minha
juventude.
Eskethia de fato tinha alguma semelhança com a região mais seca do Reino e
parecia ser igualmente rica em vinhedos, com fileiras de videiras alinhadas com
precisão estendendo-se ao longe pelas colinas ondulantes, entremeadas por uma
casa de campo ou fazenda ocasional. Frentis olhou para trás, para o Sabre do Mar
balançando na maré matutina. Belorath aceitara desembarcá-los quando a costa
ficou livre de ondas, evitando arremessá-los contra as rochas, e encostou o casco
nas areias antes de desembarcarem.
— Pedirei aos deuses que facilitem a sua missão — gritou o capitão do alto da
popa para Frentis, lançando um olhar cauteloso para a praia, suas últimas
palavras um sussurro que quase não foi ouvido —, embora eu duvide que até
mesmo eles possam protegê-los aqui.
— Estimo que estamos a oitenta quilômetros ao sul de Nova Kethia — disse
Trinta e Quatro, examinando um mapa desenrolado. — Se pudermos confiar nos
cálculos do capitão.
— Basicamente só confio nos meldeneanos no que diz respeito a uma boa
navegação. — O olhar de Frentis recaiu sobre a casa de campo mais próxima,
talvez a quatrocentos metros dali, com anexos grandes o bastante para serem
estábulos.
— Deve ser a casa de um dos que usam preto — disse Trinta e Quatro,
seguindo o seu olhar. — Grandiosa demais para ser outra coisa. É provável que
tenham guardas. Varitai domésticos. Uma propriedade desse tamanho talvez
tenha uma dúzia.
— Tanto melhor. — Frentis deu o sinal para que a companhia adotasse a
formação vaga de escaramuça que havia lhes ensinado na Urlish. — Precisamos
começar em algum lugar.
Eles conseguiram capturar um Varitai vivo, um guarda postado no lado oeste
da casa de campo, subjugado e amarrado com cordas por Draker com a ajuda
de Trinta e Quatro. Os companheiros não tiveram tanta sorte, correndo para
confrontá-los com armas desembainhadas quando uma escrava em pânico deu o
alarme, gritando de forma esganiçada sobre bandidos ao fugir para dentro da
casa. Frentis ordenou que não se arriscassem e o combate foi breve, com metade
dos Varitai abatida pelas flechas e pela besta de Illian antes que a companhia se
aproximasse com espadas desembainhadas para dar cabo dos outros.
Como aprenderam tanto, pensou Frentis, dando um sorriso de satisfação diante
da eficácia com que a sua gente lidava com os Varitai, o magricela Dallin
abaixando-se sob uma espada curta para cravar a sua nos olhos de um escravo e
movendo-se para trás dele para terminar com o truque de Draker. Mais além,
Illian desviou um golpe descendente e desferiu uma contra-estocada mortal,
encontrando uma brecha na armadura do Varitai logo acima do esterno. Estava
acabado em alguns momentos, a companhia ajoelhando-se ao lado dos
cadáveres frescos para retirar armas e adornos, um ritual que surgira na floresta.
— Deixem isso! — gritou Frentis. — Vasculhem a casa. Se não fugiu, o dono
vai estar nos cômodos de cima. Draker, leve Trinta e Quatro e reúnam os
escravos.
— Irmão Vermelho. — Lekran estava parado na entrada do pátio da casa,
limpando o sangue do machado com uma expressão sombria. — Algo que você
precisa ver.
O homem havia sido forte, os músculos em seus braços e nas costas salientes
enquanto pendia de dois postes, o sangue seco marcando os seus pulsos onde os
grilhões o mantinham ereto. A cabeça estava caída para a frente, imóvel e sem
vida, as costas largas cobertas com as marcas de chicotadas de poucos dias antes.
Frentis notou que o pé esquerdo do homem era atrofiado, a metade frontal tendo
sido cortada fora em algum momento, o castigo padrão para escravos que
fugiam de seus senhores, a morte sendo o destino de qualquer um que fugisse
duas vezes.
Uma jovem havia sido acorrentada a outro poste diante do morto, os braços
puxados para trás e as pernas amarradas para que não pudesse se virar, com
uma mordaça de couro cobrindo-lhe a boca. Estava seminua, os seios e os
ombros revelando sinais de repetidos espancamentos. Ela desabou nos braços de
Illian quando Lekran arrebentou as correntes com o machado, e a irmã cortou
suas amarras. A jovem engasgou com a água do cantil de Illian, a expressão de
completo atordoamento no rosto desaparecendo aos poucos ao avistar Frentis, os
olhos percorrendo o seu traje, o manto azul e a espada que levava nas costas.
— Irmão? — perguntou ela na língua do Reino com um sotaque asraelino
inconfundível.
— Sim, Irmão Frentis. — Ele se ajoelhou ao lado da mulher. — Esta é a Irmã
Illian.
A cabeça da mulher pendeu para os lados e o seu olhar perdeu o foco.
— Então finalmente morri — disse ela com uma risada esganiçada.
— Não. — Illian tomou-lhe a mão e a apertou com delicadeza. — Não. Nós
estamos aqui. Viemos salvá-la por ordens da sua Rainha.
A mulher olhou para ela, aparentemente incapaz de compreender a realidade
do fato de ter sobrevivido.
— Jerrin — disse ela após um momento, levantando-se e olhando ao redor
com uma animação exaltada. — Jerrin. Vocês o salvaram também? — Ela parou
quando o seu olhar recaiu sobre o homem pendurado nos postes. Ela caiu nos
braços de Illian e soltou um grito desesperado de dor. — Eu disse para ele que
não devíamos fugir — sussurrou a jovem. — Mas ele não suportava a ideia do
homem me tocar de novo.
Frentis virou-se ao ouvir o som de uma lamúria temerosa. Um homenzinho
gordo num manto folgado de seda negra tremia ao lado de uma fonte ornamental
no meio do pátio, o queixo duplo ficando um pouco saliente quando Mestre
Rensial pressionou com mais força a lâmina da espada, obrigando-o a ficar na
ponta dos pés.
— Onde estão os cavalos? — perguntou ele.
O homem gordo ergueu a mão trêmula e apontou para uma entrada em arco
à esquerda. Rensial ergueu uma sobrancelha questionadora para Frentis. Ele se
virou de novo para a mulher que haviam libertado, notando o tamanho do ódio no
olhar que direcionava ao gordo vestido de preto.
— Ainda não, mestre — disse Frentis. — Se não se importar.
Eles encontraram outras seis pessoas do Reino entre os escravos, nenhuma com
mais de quarenta anos, todas possuindo algum tipo de habilidade.
— Jerrin era um fabricante de rodas — explicou a sua esposa. O nome dela
era Lissel, uma fabricante de velas de Rhansmill que fora viver em Varinshold
por insistência do marido. — O dinheiro ficou escasso após a guerra do deserto.
Ele disse que faríamos fortuna em Varinshold. — Ela começou a dar outra de
suas risadas esganiçadas, mas controlou o impulso com visível esforço, seu olhar
recaindo sobre o dono da casa, agora nu e acorrentado aos postes onde o seu
marido havia morrido. Trinta e Quatro o interrogara por pouco tempo; suas
habilidades não foram necessárias, uma vez que o homem de preto estava mais
do que ansioso para cooperar.
— Ele disse que há uma propriedade maior vinte quilômetros a leste —
relatou Trinta e Quatro. — O proprietário é um famoso criador de cavalos e
também comprou muitos escravos do influxo recente.
— A guarnição mais próxima? — perguntou Frentis.
— Quinze quilômetros ao norte daqui, um único batalhão de Varitai, ainda que
em menor número do que deveria ser. Parece que o Conselho tem concentrado
forças na capital recentemente.
— Não por muito tempo. — Frentis pegou o chicote que haviam encontrado
no corpo do capataz. O homem tentara fugir, demonstrando uma velocidade
impressionante para alguém tão grande, mas Retalhador e Dente Negro foram
mais rápidos. Frentis colocou o chicote no colo de Lissel. — Deixo esse assunto
em suas mãos, dona.
Ele saiu e foi até onde Draker havia reunido os escravos, as pessoas do Reino
afastadas das outras, algumas já segurando armas que haviam tirado dos Varitai
e saudando Frentis com mesuras e expressões de grave determinação. Os outros
somavam mais de quarenta e demonstravam apenas medo. Um grupo de
garotas, as mais novas com menos de treze anos, juntara-se a fim de se proteger,
lançando olhares lacrimosos para os homens à sua volta. Somente um escravo
olhava Frentis nos olhos, um homem asseado de meia-idade, vestindo uma túnica
parda e limpa. Ele se retraiu um pouco quando se ouviu o primeiro grito vindo do
pátio, o estalo do chicote indicando que Lissel aprendia depressa.
— Você é primaz aqui? — perguntou Frentis ao homem asseado.
Ele se retraiu de novo ao ouvir outro grito, e então fez uma mesura longa.
— Sou, mestre.
— Não sou o seu mestre e você não é um escravo. Como você se chama?
— Tekrav, m… Honorável Cidadão.
Frentis examinou o rosto do homem, notando a inteligência aguçada que ele
tentava esconder curvando-se de forma servil.
— Você nem sempre foi um escravo. Os que nascem escravos não têm
nomes. Qual foi o seu crime?
— Um gosto exagerado por dados. — Outro grito ecoou, mais longo e mais
alto, seguido por um balbucio de súplicas e promessas desesperadas. Tekrav
engoliu em seco e forçou um sorriso. — E uma aversão pelas dívidas resultantes.
— Sua habilidade?
— Sou escriba e guarda-livros aqui. Se precisar dos meus talentos, Honorável
Cidadão, estou à sua disposição.
— Precisarei deles no seu devido tempo. Você decidirá se quiser oferecê-los.
— Frentis recuou e ergueu a voz, dirigindo-se a todos eles: — Por ordem da
Rainha Ly rna, estas terras estão agora confiscadas para o Reino Unificado, e
todos que residem aqui têm agora os direitos e os privilégios de qualquer súdito
livre da Coroa.
Não houve muita reação além de perplexidade, a maioria das pessoas
permanecendo imóvel, de olhos fixos no chão, o grupo de garotas ainda mais
encolhido.
— Vocês são livres — prosseguiu Frentis. — Podem partir e fazer o que bem
entenderem. Contudo, qualquer um que deseje se juntar a mim e libertar os seus
irmãos e irmãs é bem-vindo.
Mais silêncio; até mesmo Tekrav apenas o encarava sem compreender.
— Está perdendo o seu tempo, irmão — disse uma das pessoas do Reino, um
homem baixo, mas largo, com cicatrizes em forma de lágrimas causadas na
forja visíveis nos antebraços. — Vai encontrar mais coragem num cão açoitado
do que nesse bando.
Frentis olhou para eles uma última vez, percebendo com nitidez a verdade nas
palavras do homem e contendo um suspiro de frustração. A escravidão é mais do
que apenas correntes, ele sabia. Ela prende a alma tanto quanto o corpo.
— Partimos em uma hora — disse ele aos escravos, dando-lhes as costas. —
Podem pegar o que quiserem da casa, mas aconselho a não se demorarem.

Os Varitai não demonstravam medo, ajoelhados com os braços amarrados nas


costas, despidos das armaduras e das camisas de baixo, revelando o padrão de
cicatrizes. Eram menos elaboradas do que a matriz que já cobrira o peito de
Frentis, similares às marcas de Lekran, mas visivelmente causadas sem muita
preocupação com a qualidade artística ou com o desconforto da pessoa marcada.
— Quanto? — perguntou Illian, removendo a tampa do cantil.
— Apenas uma gota — respondeu Frentis, observando os Varitai com atenção
quando ela se aproximou e virou uma pequena quantidade do líquido dentro da
tampa.
— Os Varitai não são tão fortes quanto os Kuritai — disse Lekran num tom
cauteloso. Ele estava de pé atrás do soldado-escravo com o machado a postos. —
Pode matá-lo.
— Então tentaremos uma dose menor no próximo. — Frentis assentiu para
Illian e ela virou a tampa, permitindo que o líquido pingasse nas cicatrizes do
peito do Varitai.
Diferentemente de Lekran, não houve grito. O Varitai ergueu a cabeça de
repente, as veias saltando em seu pescoço, rangendo os dentes com tanta força
que era espantoso não quebrarem. Seus olhos se arregalaram, as pupilas
encolhendo a pontos minúsculos enquanto começava a escorrer baba de sua
boca. Um segundo depois ele tombou, convulsionando no chão com uma espuma
branca lhe cobrindo os lábios, suas contorções diminuindo gradualmente até se
tornarem leves tremores, e então nada.
Frentis agachou-se para sentir o pulso no pescoço do homem e o encontrou
fraco e ficando mais lento.
— Ele está morrendo — disse com um suspiro. Ele ergueu a cabeça quando
uma sombra o encobriu e deu com Artesão olhando para a cena com franca
aversão. Frentis começava a se levantar quando o punho de Artesão desceu num
borrão, chocando-se com o seu maxilar e derrubando-o.
Frentis ficou atordoado e ouviu Illian desembainhar a espada. Sua visão
clareou após um momento e ele viu Artesão de joelhos com as mãos no peito do
Varitai moribundo, não dando atenção a Illian, que tocara sua nuca com a ponta
da espada.
— Esqueça — ordenou Frentis, levantando-se e fazendo sinal para ela recuar.
Artesão manteve as mãos no peito do Varitai por algum tempo, uma
expressão de profunda concentração no rosto, os olhos semicerrados e os lábios
movendo-se num sussurro silencioso. Frentis ouviu Illian abafar um grito quando
as cicatrizes do soldado-escravo começaram a desaparecer do peito, encolhendo
a linhas pálidas e tênues em questão de minutos. Por fim Artesão removeu as
mãos e levantou-se, recuando quando o soldado-escravo soltou um gemido
cansado.
— Ele dormirá por um tempo — disse Artesão, virando-se para Frentis com
uma expressão severa. — A liberdade não será conquistada com crueldade.
Frentis esfregou o maxilar, sentindo o hematoma já começando a se formar
e o gosto metálico do sangue na língua.
— Deixarei em suas mãos da próxima vez.

Eles ergueram uma pira para o marido de Lissel no pátio, ensopando de óleo a
madeira empilhada antes de fazer o mesmo com a casa de campo. Ela deixara o
proprietário vivo, embora o homem mal estivesse consciente, pendurado nos
postes, ensanguentado e arrasado. A mulher pegara emprestada uma faca de
Illian e podia-se ver um pequeno volume vermelho na grande poça de sangue
sob as pernas abertas do volariano. Frentis supôs que o homem provavelmente
acharia as chamas misericordiosas.
Eles partiram para leste quando começou a escurecer, a casa de campo em
chamas lançando uma coluna alta de fumaça para o ar às suas costas. Os
estábulos forneceram meia dúzia de carroções, mas cavalos suficientes apenas
para dez pessoas. Frentis enviou Mestre Rensial e Lekran para fazer o
reconhecimento da rota que tomariam e colocou os outros de ambos os lados da
pequena coluna. O Varitai libertado ia sentado na traseira de um dos carroções,
balançando a cabeça, as feições franzidas numa perplexidade intensa. Eles
haviam conseguido arrancar somente algumas palavras dele, que disse se
chamar Oito antes de expressar um desejo veemente de saber quando receberia
a sua próxima dose de karn.
— É uma mistura de várias drogas — explicou Trinta e Quatro. — Subjuga o
espírito, entorpece a memória e aprisiona a vontade. Ele sentirá falta esta noite.
Frentis lembrou-se das noites que Trinta e Quatro passara contorcendo-se e
gemendo na floresta após ter jogado fora o próprio frasco. Sua recuperação fora
rápida, mas ele era um homem de considerável força de vontade e pelo menos
tinha a memória da liberdade, enquanto Oito evidentemente fora um escravo
desde que nascera.
— Nós libertamos ou amaldiçoamos esse homem? — ponderou ele em voz
alta.
— A liberdade nunca é uma maldição, irmão — insistiu Trinta e Quatro. —
Mas com frequência é uma estrada difícil.
Frentis virou-se quando ouviu um grito vindo da retaguarda e avistou um
pequeno grupo de figuras correndo da casa de campo em chamas. Ele parou o
cavalo e aguardou se aproximarem, Tekrav seguido pelo grupo de garotas e mais
alguns dos escravos mais jovens, todos carregando vários fardos de roupas e
objetos de valor.
Tekrav parou a alguns metros de distância, arfando e olhando para Frentis
num apelo desesperado. Atrás dele as garotas e os homens se amontoaram, sem
tanto medo quanto antes, mas ainda cautelosos.
— Honorável Cidadão… — começou Tekrav, calando-se quando Frentis
ergueu a mão.
— Meu nome é Irmão Frentis da Sexta Ordem — disse ele. — Se vocês se
juntarem a nós, serão livres, mas também serão soldados. Não ofereço proteção
e nenhuma promessa de vitória.
Tekrav hesitou, olhando para trás, para os companheiros, em busca de
orientação. Eles se remexeram pouco à vontade até que alguém falou, uma
garota de pele escura que não devia ter mais de vinte anos, a voz com um leve
traço de sotaque alpirano:
— Seus homens não vão tocar em nós?
— Só se vocês quiserem — disse Draker, abaixando depressa a cabeça diante
do olhar irritado de Frentis.
— Vocês não serão maltratadas de forma alguma — prometeu Frentis à
garota.
Ela trocou olhares com os outros e então avançou, assentindo com a cabeça.
— Nós vamos nos juntar a vocês.
Frentis passou rapidamente os olhos pelos fardos que carregavam e avistou o
brilho revelador de ouro e prata entre os cobertores e roupas enrolados.
— Peguem quaisquer armas que tiverem — disse ele. — Mas não podemos
ficar sobrecarregados com saques. Joguem fora o resto.
Ele permaneceu sentado na sela e aguardou que obedecessem, jogando fora
as taças e pratos brilhantes com graus variados de relutância. Tekrav retraiu-se ao
colocar com delicadeza no chão uma pequena tapeçaria bordada a ouro.
— Irmã Illian — chamou Frentis. — Estas pessoas estão sob os seus cuidados.
Comece o treinamento delas pela manhã.

Eles chegaram à casa do criador de cavalos no dia seguinte e a encontraram


muito mais repleta de espólios, porém também muito melhor protegida, com um
contingente de mais de trinta Varitai domésticos. A propriedade ficava no alto de
uma colina extensa rodeada por campos cercados, onde cavalos pastavam e
Varitai montados moviam-se em patrulhas bem organizadas.
— Parece que não vai ser fácil, irmão — comentou Draker. Eles haviam se
arrastado até o alto de uma elevação a quase um quilômetro de distância. — Se
eu estivesse procurando um lugar fácil para roubar, passaria longe deste.
— Vamos abrir caminho lutando — disse Lekran, encolhendo os ombros.
— Será custoso — advertiu Draker. — E temos poucas espadas para perder.
Frentis conteve um gemido. Ele voltara a tomar a poção para dormir do
Irmão Kehlan na noite anterior e a dor de cabeça resultante o deixara impaciente
para seguir em frente e tentado a atender o desejo de Lekran por uma luta.
Estava prestes a ordenar que montassem quando Illian surgiu ao seu lado, a
garota alpirana da casa de campo agachando-se ao lado dela.
— Irmão — disse Illian. — Creio que a nossa nova recruta tem algumas
informações para dar, mas o meu volariano é ruim demais para compreender o
significado.
A garota empalideceu um pouco quando Frentis e dois homens se viraram
para ela, baixando os olhos e tropeçando nas primeiras palavras.
— Como você se chama? — perguntou Frentis no seu alpirano imperfeito.
A garota ergueu a cabeça e um leve sorriso surgiu em seus lábios, fazendo-o
se perguntar há quanto tempo ela não ouvia a própria língua.
— Lemera.
— Suas palavras têm valor, Lemera — disse ele, mudando para volariano. —
Fale.
— Eu estive neste lugar. — Ela apontou para a casa de campo. — O mestre
me mandou aqui com duas outras. Nós fomos… uma distração para o filho do
dono no seu aniversário. Isso foi há quase um ano.
Frentis virou-se para Lekran, que sorriu e assentiu.
— Nós ficamos com a armadura do Varitai.

Eles acabaram sofrendo apenas uma baixa; uma das pessoas do Reino recém-
libertadas demonstrara um excesso de coragem quando Illian as conduziu por
sobre o muro que protegia a face sul da casa de campo. A casa principal já havia
sido tomada e os Varitai restantes estavam sendo forçados a recuar para o pátio
central, formando um círculo compacto ao redor de seu senhor e da família dele.
O homem cometera o erro de ir recebê-los na entrada principal, seu sorriso largo
desaparecendo quando a máscara de seda preta de Tekrav caiu do rosto e o
machado de Lekran abateu o Varitai mais próximo. Apesar do choque, o
proprietário teve presença de espírito suficiente para organizar uma defesa
apressada ao fugir para dentro de casa, ainda que não tivesse sido rápido o
bastante para organizar uma fuga, o que deveria ter sido a prioridade.
Frentis havia mandado os combatentes se afastarem do ajuntamento de
Varitai e colocara os arqueiros para trabalhar quando os recrutas de Illian
pularam o muro. O jovem correra na direção do Varitai sem armadura e
carregando somente uma machadinha, o rosto revelando um ódio profundo
nutrido durante os meses de cativeiro. Ele conseguiu enterrar a machadinha no
crânio de um Varitai antes que uma dúzia de golpes rápidos de espada o matasse.
No entanto, o rapaz desorganizara as fileiras dos Varitai o suficiente para que os
recrutas seguintes avançassem e rompessem a formação, os homens golpeando
com porretes e machados e as garotas apunhalando com as adagas que Illian
distribuíra. Praguejando, Frentis ergueu a espada e conduziu os seus combatentes
para o meio da batalha, Lekran soltando um grito de alegria ao saltar e derrubar
um Varitai com um chute no peitoral do homem e desferir um golpe descendente
com o machado.
Acabou rápido, e todos os Varitai haviam sido mortos, assim como o
proprietário e a sua família. O proprietário estava caído sobre os corpos da
esposa e do filho, um garoto que não devia ter mais de quinze anos, as sedas
pretas de seu pai rasgadas numa dúzia de lugares e ensopadas de sangue.
— Eu tentei contê-los, irmão — disse Illian, abaixando o rosto em
arrependimento. — Mas a gente do Reino está cheia de fúria e os outros não
entendem uma palavra do que digo.
A reprimenda morreu em seus lábios diante da evidente consternação dela.
— Recolha as armas e as armaduras — disse Frentis. — Então vasculhem a
casa. Entreguem quaisquer documentos que encontrarem a Trinta e Quatro.
Draker o chamou do alto do muro voltado para oeste, agitando o porrete.
— Cavaleiros se aproximando, irmão.
Frentis correu para fora, onde Rensial aguardava, montado e com a espada
desembainhada. Frentis montou no próprio cavalo e soltou o arco da sela.
— Mestre — disse ele, trotando até o lado de Rensial. — Vamos?

Eles conseguiram capturar vivos dois dos cavaleiros, que desmaiaram ao caírem
das montarias quando a espada de Rensial cortou com precisão as amarras de
suas selas. Frentis cuidou do resto com o arco; nenhum dos Varitai chegou perto o
suficiente para tentar uma investida, demonstrando uma incapacidade típica de
compreender quanto a sua causa era perdida.
Conforme prometido, ele entregou os prisioneiros a Artesão. Vaelin insinuara
que o homem tinha uma mente perturbada, e seu comportamento durante a
viagem ajudara em muito a confirmar isso, de modo que era estranho
testemunhar a grave compreensão em seu rosto ao examinar os dois Varitai
inconscientes.
— Grande dor — disse ele em voz baixa.
— Dor pode trazer liberdade. — Frentis ergueu a bolsa que continha o
suprimento do elixir lonak. — Isso me libertou. Irá libertá-los, com a sua ajuda.
Os gritos foram terríveis, erguendo-se ao céu noturno enquanto se reuniam no
pátio para fazer uma refeição com os espólios saqueados. Os escravos
receberam a libertação de modo ainda pior do que na primeira casa de campo, e
vários choraram ao verem o corpo de seu mestre.
— Ele era econômico com o chicote — explicou Lemera. — Permitia que as
crianças que tinha com as escravas de prazer vivessem. Geralmente elas são
expostas e deixadas para morrer. Ele ficava com elas até que tivessem idade
suficiente para serem vendidas. Um homem generoso.
— Essas pessoas me dão nojo — disse Draker quando Trinta e Quatro
traduziu, lançando um olhar sombrio para os escravos que pranteavam o corpo
do mestre. — Calem a boca, seus cães estúpidos! — Eles se espalharam quando
Draker jogou neles uma coxa de frango parcialmente comida, fugindo para a
escuridão ou voltando para os seus dormitórios, amedrontados demais para
perguntar sobre qual seria o seu destino.
Os gritos dos Varitai cessaram de forma abrupta, e o silêncio que se seguiu
pareceu durar uma eternidade. Frentis passou os olhos pelos seus veteranos
sentados em volta da fogueira, pela primeira vez compreendendo a magnitude da
tarefa que tinham pela frente. Um punhado de gente contra um império sempre
foi uma causa perdida. Soubera disso desde o dia em que zarparam, mas e eles?
— Devemos ir atrás dos que fugiram? — perguntou Illian, rompendo o
silêncio. — Sem dúvida vão avisar sobre a nossa chegada.
— Ótimo — disse Frentis. — Estamos aqui para causar o máximo de medo e
confusão possível.
— Precisamos de mais combatentes — disse Lekran. — Os covardes que
continuamos encontrando não irão formar um exército.
— Então talvez estejamos com sorte. — Trinta e Quatro puxou um livro de
registros, abrindo-o e revelando fileiras e mais fileiras de números anotados com
cuidado. — O escriba do mestre mantinha registros excelentes. Ao que parece,
ele fazia muitos negócios com uma Varikum ao sul.
— Varikum? — perguntou Frentis. — Não conheço essa palavra.
— Escola de treinamento — traduziu Lekran. — Para os Garisai, aqueles
escolhidos para tomarem parte nos espetáculos.
— Escravos?
Ele assentiu.
— Mas não como os Varitai ou os Kuritai. Sem domínio para eles. Capturados
na guerra e escolhidos pela força ou pela selvageria. Eu mesmo quase fui
mandado para uma dessas escolas, mas a cota de Kuritai estava baixa aquele
ano.
— O lugar estará bem defendido — advertiu Trinta e Quatro. — Por dentro e
por fora.
Frentis virou-se para Lemera, notando pela primeira a perfeição do perfil da
mulher, a pele lisa e impecável. Algumas horas antes ele a vira apunhalar o
corpo do mestre, de dentes arreganhados e gargalhando de júbilo cada vez que a
faca descia.
— É raro um homem conseguir se defender contra a beleza — disse ele.
CAPÍTULO OITO
Vaelin

Urso Sábio chamava de A Noite Longa o período em que o sol desaparecia do


gelo por um mês inteiro, sua chegada prenunciada pelos dias mais curtos e o
aumento da luminosidade do Sopro de Grishak.
— Precisa alcançar as ilhas antes que ela chegue — advertira o xamã no
primeiro dia em que pisaram no gelo. — Noite Longa mata tudo.
A primeira semana foi mais fácil do que o esperado, a novidade de se
atravessar um ambiente tão vasto e rigoroso ajudando em muito a acabar com o
desconforto que sentiam diante do frio cada vez mais intenso. Urso Sábio ia à
frente, movendo-se com passadas curtas e econômicas, seguido por Garra de
Ferro. O grande urso às vezes desaparecia por um dia, retornando com sangue
seco no focinho, embora Vaelin não fizesse ideia de que presa o animal
conseguira encontrar. Para ele, o gelo parecia tão estéril quanto o deserto
alpirano, um lugar desprovido de vida apesar de toda a sua beleza, revelada em
sua plenitude ao crepúsculo quando o fogo de tom verde dançava no céu e o gelo
se tornava um espelho daquela majestade. Os lonaks ficavam num silêncio
reverente quando o sol se punha, sussurrando agradecimentos pela bênção de
Grishak.
Urso Sábio parecia ter uma reverência similar pelas dançantes luzes celestes,
saudando o seu surgimento ao cair de joelhos e erguer o cajado de osso, uma
canção ritmada emanando de sua garganta. Vaelin ainda não ouvira o xamã falar
de qualquer deus, mas estava claro que o fogo celeste possuía um significado
considerável.
— Ele não está rezando — disse Kiral uma noite quando o olhar de Vaelin
recaiu sobre o velho, o rosto da lonak sombrio enquanto a sua canção relatava o
significado da ode ritmada de Urso Sábio. — Ele está saudando a esposa e os
filhos que perdeu no gelo.
Vaelin ergueu os olhou para o fogo verde ondulante, observando-o fundir-se e
separar-se numa dança interminável. Podia lembrar uma chama, mas não havia
fúria no espetáculo, as ondulações constantes transmitindo uma estranha
sensação de serenidade.
— Ele acha que ela está lá em cima? — perguntou Vaelin.
— Ele sabe que está. Cada alma que já viveu está lá, olhando para nós aqui
embaixo até o fim do mundo.
O Além tornado real, ponderou Vaelin, observando Urso Sábio terminar a sua
canção e levantar-se com a ajuda do cajado. Pelo menos ele pode ver o objeto
de sua fé.
A princípio eles se moviam apenas de dia, os cavalos e os pôneis carregados
com provisões e arrastando os trenós que Urso Sábio os fizera construir antes de
deixarem a praia; armações simples de ramos torcidos de tojo que deslizavam
sobre lâminas feitas de osso de lobo-marinho. Cicatriz, como todos os cavalos,
assustara-se na primeira vez que o seu casco tocou o gelo, arregalando os olhos
alarmado diante da sensação desconhecida, somente consentindo em seguir em
frente pela insistência gentil de Vaelin. Mesmo após vários dias, o animal ainda
encarava o novo ambiente com cautela, como se compreendesse o aviso
sombrio que Urso Sábio dera ao partirem:
— Cavalos não vão durar. Ter que comer eles antes do fim.
À medida que os dias ficavam mais curtos, o xamã os fazia andar noite
adentro, até que o último vestígio de luminescência clareasse o horizonte,
deixando luz suficiente apenas para distinguirem vultos ao acamparem. As
fogueiras noturnas eram pequenas, o suprimento de lenha diminuía rapidamente,
e o fogo era avivado com esterco de cavalo, que queimava bem, mas fedia
muito, impregnando roupas e cabelos.
— Em que grandiosa aventura nos conduz, meu senhor — disse Lorkan uma
noite, o rosto de nariz vermelho mal visível entre o amontoado de peles de lobo-
marinho, a fumaça de sua respiração deixando pingentes de gelo na barra do
capuz. — Um frio que gela os ossos e o fedor de merda, da manhã à noite. Caso
eu não tenha dito antes, aceite a minha humilde gratidão pela oportunidade de
tomar parte deste momento histórico.
— Cale a boca — disse Cara, num tom cansado. Ela estava sentada o mais
perto que podia do fogo, um tom de branco preocupante no rosto. Os últimos dias
haviam sido mais duros para ela do que para qualquer outro na companhia. Ela
vinha tropeçando no fim da longa fila estreita, sacudindo a cabeça diante dos
apelos de Dahrena para que cavalgasse o pônei durante algum tempo. Eu devia
tê-la mandado de volta para os Confins, pensou Vaelin, sentindo uma pontada de
culpa no peito ao ver Cara estender as mãos enluvadas para o fogo, um brilho
fraco nos olhos contornados por órbitas escuras. Ela já deu o bastante em Alltor.
Urso Sábio surgiu ao lado de Cara, inclinou-se, olhou criticamente para o
rosto da garota e então se empertigou, com uma expressão de severa repreensão
ao olhar de Dahrena para Marken.
— Por que vocês não dividir? — perguntou o xamã.
Marken franziu o cenho para ele.
— Dividir o quê? Minhas rações estão à disposição dela.
— Bah! — Urso Sábio apontou o cajado de osso para o grande dotado e então
girou e apontou-o sucessivamente para Lorkan, Dahrena e Kiral. — Não carne.
Dividir poder. — O velho tocou com delicadeza a cabeça de Cara, abaixando a
voz com um leve tom de tristeza. — Ela precisa.
Dahrena inclinou-se para a frente com uma expressão atenta no rosto.
— Como? Como dividimos?
Urso Sábio a encarou por um momento e então soltou uma gargalhada ao
compreender.
— Saber tão pouco — disse ele, sacudindo a cabeça. Ele se curvou e fez Cara
levantar-se, segurou a sua mão e estendeu a outra para Dahrena. — Todos dividir.
Dahrena levantou-se e pegou a mão do xamã, seguida com cautela por Kiral,
que estava claramente intrigada. Marken hesitou e então se adiantou para pegar a
mão estendida da caçadora. Contudo, Lorkan permaneceu sentado olhando para
eles com uma relutância mal-humorada até Vaelin usar a ponta da bainha para
cutucá-lo com insistência. Ele se levantou, mas manteve os braços cruzados,
observando Cara, que cambaleava um pouco pela fadiga.
— Como vamos saber que isso não vai machucá-la? — perguntou ele.
— Não machucar — assegurou-lhe Urso Sábio. — Só precisa de pouco poder
de cada.
— Está tudo bem, Lorkan — disse Cara, sorrindo fraco ao estender a mão. —
Se eu confio nele, você também devia confiar.
Vaelin levantou-se quando Lorkan completou o círculo, lançando um olhar
atento para os lonaks, sentindo a súbita inquietação deles. Alguns murmuraram e
se viraram para se afastar. Alguns permaneceram, remexendo-se pouco à
vontade, mas aparentemente incapazes de resistir à visão dos dotados, ou à
mudança palpável no ar à sua volta, um novo calor que fazia a pele formigar e
uma névoa tênue levantar do gelo sob os seus pés. Eles estavam completamente
imóveis, de mãos dadas e calados, as feições plácidas, até mesmo satisfeitas, e
um leve sorriso surgiu nos lábios de Cara quando o calor aumentou e eles foram
envoltos por um vapor, uma pequena poça de água derretida em volta dos pés
cobertos de peles.
Vaelin sentiu-se envergonhado por uma súbita sensação de inveja, uma
compreensão indesejada de que tais coisas não mais lhe pertenciam. Em Alltor
ele se sentira o senhor de sua canção, encontrando um sentido de completude em
meio a todo o sangue e carnificina. Eu ainda era apenas uma criança, pensou,
lutando contra uma sensação crescente de desespero ressentido, os olhos fixos
em Urso Sábio. Quanto ele poderia ter me contado?
Cara arfou de repente, abrindo as mãos para romper o círculo, o sorriso
transformando-se numa risada de contentamento, as faces coradas de um rosa
saudável. Os outros pareciam igualmente animados; Marken puxou a garota e a
abraçou, erguendo-a com um grito de alegria, os outros trocando olhares repletos
do júbilo compartilhado. Dahrena tocou as mãos de Kiral, os seus rostos
iluminados por uma expressão idêntica de compreensão. Ela avistou Vaelin e riu,
correndo para abraçá-lo, a respiração dela quente em seu rosto ao se erguer para
beijá-lo nos lábios. Olhando para a animação sincera e os olhos arregalados dela,
Vaelin a puxou para perto e o seu ressentimento desapareceu.
Urso Sábio soltou um grunhido de satisfação e bateu com o cajado no gelo.
— Dividir — disse ele, então voltou o olhar para o norte, as feições enrugadas
endurecendo ao esquadrinhar o horizonte irregular. — Logo precisar.
A tempestade chegou no dia seguinte, uma nevasca impelida por uma ventania
que engoliu o sol e transformou o mundo num caos branco e uivante. O ar ficou
tão carregado de neve que, cada vez que Vaelin respirava, gelo serrilhado
entrava na sua garganta e o vento parecia cortar suas peles de lobo-marinho
como se fossem de papel. Ele logo se viu completamente ocupado em segurar
com força as rédeas de Cicatriz à medida que o cavalo tropeçava nos montes de
neve que se acumulavam, de cabeça baixa e estreitando os olhos contra o vento,
a crina congelada e dura em seu pescoço.
Isso é loucura, soube ele com uma certeza terrível, uma rajada de vento
atingindo-o pelo lado como uma martelada. Condenei todos nós.
Ele se virou ao ouvir um grito em meio à tempestade, tendo um vislumbre de
duas pequenas figuras, não mais do que sombras vagas naquela brancura
ininterrupta. Parecia que uma delas erguia algo e as sombras no mesmo instante
tornaram-se completamente nítidas: Urso Sábio segurando o cajado no alto, a
outra mão segurando firme a de Cara, ajoelhada ao seu lado, de rosto lívido e
rígido pelo frio, mas também franzido com determinação. A neve parecia
rodopiar em volta deles, deixando-os numa bolha de ar calmo que crescia
conforme dividiam o poder. A bolha estendeu-se num ritmo constante, o ar calmo
envolvendo Vaelin e Cicatriz, e o cavalo bufou um suspiro de alívio quando o
vento diminuiu. Vaelin olhou em volta e encontrou Dahrena encolhida contra o
flanco de seu pônei.
— E eu que pensava que o vento negro era o mais severo deste mundo —
disse ela, forçando um sorriso quando Vaelin correu até o seu lado, tirando-a da
neve que se acumulara ao redor dela e do pônei.
Vaelin passou os olhos pela companhia, notando que todos agora estavam
quase envolvidos pela bolha, enquanto a nevasca continuava para além dos seus
limites. Os guardas de Orven foram os últimos a receber o abrigo, muitos caindo
de joelhos em choque ao se livrarem da fúria da tempestade. Ele viu Alturk
mover-se entre os Senthar, distribuindo bofetadas e repreensões severas nos que
estavam parados olhando espantados e com medo, forçando-os a voltar a se
mexer. Vaelin foi até Urso Sábio e Cara, o xamã ainda segurando a mão dela
quando a garota se levantou com uma indiferença serena, o olhar distante, sem
qualquer sinal de fadiga no rosto.
— Por quanto tempo vocês podem fazer isso? — perguntou ele.
— Enquanto houver poder para dividir — disse o xamã, apontando o cajado
para os outros dotados. — Espero que tempestade acabe primeiro.
A tempestade levou outro dia e uma noite para passar, e os dotados se
revezaram para dividir sua força com Cara. Ela era mantida no centro do grupo,
agora amontoado para permanecer dentro dos limites da bolha que a garota
criara, movendo-se para leste num passo lento porém constante. Embora Cara
não demonstrasse sinais de cansaço, era evidente que o compartilhamento de
poder estava exigindo muito dos outros; Marken caiu de joelhos ao final de seu
turno de duas horas, limpando um filete de sangue da barba antes de afastar-se
aos tropeços quando Vaelin o ergueu, emprestando o ombro para que ele se
apoiasse até que estivesse recuperado o suficiente para caminhar sem ajuda.
Dahrena e Kiral ficavam ainda mais exauridas, incapazes de caminhar, e
curvando-se pálidas e apáticas nos dorsos de seus pôneis. Por alguma razão,
Lorkan provou ser o mais resistente dos dotados, aguentando três horas inteiras ao
lado de Cara e somente consentindo em soltar a mão dela pela insistência
veemente de Urso Sábio.
A tempestade terminou tão depressa quanto começara, o vento cessando e as
últimas pancadas de neve caindo para revelar um sol brilhante do meio-dia. Cara
cambaleou um pouco quando Urso Sábio soltou a sua mão, mas fora isso parecia
não ter sido afetada pelo esforço, embora o seu triunfo inicial diante do feito
tivesse diminuído ao avistar os companheiros.
— Eu… não sabia que havia tomado tanto — disse ela a Lorkan, que tinha o
rosto pálido.
Ele apenas sorriu e sacudiu a cabeça.
— Tome quanto quiser.
Ela se remexeu pouco à vontade sob o olhar franco dele e virou-se para Urso
Sábio.
— Precisamos ser cautelosos. Haverá um preço. Sempre há.
O xamã assentiu e enfiou o cajado na neve para tocar o gelo abaixo,
inclinando a cabeça como se estivesse se concentrando para ouvir um som
distante. Ele permaneceu imóvel durante algum tempo e então se empertigou e
virou-se para Vaelin com um brilho urgente nos olhos.
— Precisar andar depressa — disse ele. — Muito depressa.

Eles percorreram outros dez quilômetros até o anoitecer, mas Urso Sábio não
permitiu que descansassem, instigando-os com acenos impacientes do cajado e
tiradas na própria língua, cliques e grunhidos ininteligíveis que ainda assim
transmitiam a mensagem clara de que demorar significava a morte. Embora frio
o bastante para congelar a respiração que saía em fumaça das bocas, o ar agora
estava calmo, agitado por uma brisa quase imperceptível, o céu límpido e
brilhante com estrelas e a ondulação ocasional do Sopro de Grishak. Um silêncio
tão profundo tomara conta da atmosfera que, quando se escutou, o som foi
suficiente para fazer Vaelin levar as mãos aos ouvidos já cobertos.
Era mais um ribombar do que um estrépito, um tremor fazendo o gelo sob os
seus pés balançar e Cicatriz empinar, alarmado. A companhia inteira foi forçada
a parar quando os outros cavalos soltaram relinchos agudos e tentaram escapar
das mãos de seus condutores. O estrondo continuou com a mesma intensidade, o
som a princípio parecendo cercá-los, mas logo se concentrando na banquisa a
oeste que haviam acabado de atravessar. Vaelin avistou uma cortina de gelo
estilhaçado erguendo-se da superfície e indo de norte a sul tão rápido que ele mal
podia acompanhar o trajeto.
O som cessou sem aviso, deixando um profundo porém breve silêncio, logo
preenchido por um rangido alto, quase bestial em sua intensidade, como se o
próprio gelo estivesse gemendo de dor. Outro tremor sacudiu o gelo, dessa vez
com força suficiente para derrubar muitos deles, a superfície abaixo subindo e
descendo numa grande oscilação à medida que o rangido diminuía. Uma neblina
de neve e gelo havia baixado cerca de um quilômetro a oeste, durando por tempo
suficiente para que Vaelin se perguntasse se aquilo que via podia ser alguma
ilusão de ótica. O gelo poderia mesmo estar se movendo?
Quando a neblina se dissipou, a verdade tornou-se clara: uma grande
extensão de gelo estava à deriva, deixando um rastro de neve pelos flancos
irregulares ao se desprender da massa principal e começar uma viagem em
direção ao sul. Devia ter pelo menos dez quilômetros de uma ponta a outra, uma
ilha recém-nascida onde sem dúvida teriam perecido caso fossem arrastados por
ela.

Kiral o acordou quando o céu ainda estava escuro, sacudindo-o para fora do
abraço adormecido de Dahrena com empurrões insistentes.
— Minha canção está sombria — disse ela. — Algo ao norte.
Ele a acompanhou até a extremidade norte do acampamento, onde
encontraram Alturk ajoelhado em meio a uma larga extensão de gelo manchado
de vermelho, passando as mãos enluvadas pelas marcas deixadas por um
confronto breve, mas furioso. Vaelin possuía suficiente habilidade de
rastreamento para compreender o significado das marcas ao redor, a quantidade
de sangue e os sulcos seguindo para a escuridão além da luz das fogueiras.
— Quantos foram levados? — perguntou ele.
— Um, e o seu pônei. — Alturk levantou-se e franziu o cenho numa mistura
de raiva e perplexidade. — Não conheço essas marcas.
Vaelin olhou para as impressões deixadas na neve: a marca de uma pata,
grande o bastante para ser de um urso-negro, mas não de um pardo.
— Não é um urso — disse Kiral, traçando uma linha em volta de uma das
marcas com a ponta de sua faca de caça. Ela se levantou e tirou o arco do
ombro. — Minha canção logo o encontrará.
— Não. — Ela se virou ao som da voz de Urso Sábio, e o xamã aproximou-se
e cutucou as marcas ensanguentadas com o cajado. — Mandado para deixar um
rastro para vocês seguirem.
— Alguma coisa está nos perseguindo — disse Alturk.
Urso Sábio disse algo no próprio idioma, a boca contorcendo-se em
repugnância como se as palavras maculassem a sua língua. Ele notou o olhar
inquisidor de Vaelin e forneceu uma tradução brusca:
— Povo Gato.
— Eu esperava que todos tivessem morrido. — Dahrena estava sentada perto do
fogo com peles extras cobrindo-lhe os ombros, de mãos dadas com Cara e
Lorkan. — Restaram tão poucos deles após a batalha.
Vaelin resistiu ao impulso de pedir que ela esquecesse aquilo; compartilhando
ou não as forças, o dom dela sempre custava caro e a perspectiva de enfrentar
mais uma vez a Horda do Gelo sem dúvida avivava lembranças horríveis. Ela
notou a preocupação dele e deu um sorriso tranquilizador.
— Só um voo curto. Urso Sábio me garantiu que eles não podem estar longe.
Ela fechou os olhos, o corpo se enrijeceu e o rosto assumiu a máscara sem
expressão que indicava que ela havia voado para fora do corpo, e tanto Cara
quanto Kiral soltaram um grito sufocado diante da sensação.
— Ela toma muito — disse Kiral com uma careta.
— O que é isso?
Vaelin ergueu a cabeça e deu com Alturk ao seu lado, olhando para Dahrena
com profunda desconfiança. Como todos os lonaks, o seu receio para com as
Trevas era óbvio, mas até então ele era o único que ousava perguntar sobre a
natureza do fenômeno.
— Ela está procurando o nosso caçador — disse Vaelin a ele.
O Tahlessa andou de um lado para outro enquanto Dahrena permanecia
sentada e imóvel, o rosto revelando o único sinal de medo que Vaelin já vira no
lonak.
— Há dotados entre o seu povo — disse ele, indicando Kiral com a cabeça.
— Ela serve a Mahlessa, assim como você.
— É bom que sirva, pois tais coisas são de conhecimento apenas da Mahlessa.
Crianças como ela são levadas para a Montanha. Se não forem, crescem e viram
varnish, ou coisa pior.
— O que acontece com elas na Montanha?
Alturk encolheu os ombros.
— Algumas voltam, outras não.
Vaelin olhou de novo para Dahrena, recordando-se da história do lobo e dos
homens que apareceram para arrasar a sua aldeia. O lobo a levou embora antes
que ela pudesse ir para a Montanha. Estava salvando-a da morte ou de algo pior?
O rosto de Dahrena se contraiu e ela soltou um gemido áspero e inclinou-se
sem forças para a frente, sendo impedida de cair no fogo por Kiral e Cara, que a
deitaram com delicadeza. Ela estremeceu por um tempo enquanto o calor
retornava ao seu corpo, e por fim se levantou, a testa franzida dando indicações
de uma dor que mal conseguia controlar.
— Uma rocha — disse ela. — Brotando do gelo a uns dez quilômetros a
noroeste. Apenas um homem, mas muitos gatos. Acho que ele sentiu a minha
presença. E acho que não gostou.
Urso Sábio bateu com força o cajado no gelo, o rosto velho retorcendo-se ao
dizer um nome no próprio idioma. Garra de Ferro pareceu sentir a fúria de seu
mestre e foi para o seu lado com um rosnado de indagação.
— Sabe quem estamos enfrentamos? — perguntou Vaelin.
— Xamã do Povo Gato — respondeu Urso Sábio. — O que mandou eles para
a guerra. Povo Gato chamava de Caminho Sombrio. Povo Urso chamava de
Sem Olhos.

Os Senthar assumiram uma formação de batalha ao seguirem para noroeste,


ladeando a companhia numa vaga porém coesa linha de escaramuça por cem
metros; os dotados no centro conduzindo os cavalos e os pôneis. A companhia de
Orven ia na retaguarda, marchando com espadas desembainhadas sob ordens de
manter uma vigília constante em todas as direções. Vaelin assumiu a dianteira ao
lado de Alturk e Urso Sábio, seguido um pouco atrás por Kiral, que tinha uma
flecha pronta no arco. Garra de Ferro ia adiante, correndo de forma tranquila,
com paradas ocasionais para farejar o ar.
Vaelin ficou surpreso com a mudança abrupta em Urso Sábio; com exceção
do rosto enrugado, todos os sinais da idade pareciam ter desaparecido e ele se
movia num passo constante e firme, segurando com força o cajado de osso e
encarando Garra de Ferro fixamente. Ele conhecia bem aquela expressão: um
homem determinado a se vingar.
Garra de Ferro parou e Urso Sábio ergueu o cajado, fazendo com que a
companhia também parasse. O urso balançou de um lado para outro, soltando
um ronco baixo de inquietação sem tirar os olhos do gelo adiante. O local era
diferente da costumeira vastidão plana, a superfície elevada em alguns pontos
criando formas abstratas envoltas numa neblina baixa. Ao longe, Vaelin podia ver
a silhueta tênue e cinzenta da rocha que Dahrena descrevera, erguendo-se como
uma adaga deformada.
— Bom lugar para uma emboscada — comentou Alturk, esquadrinhando a
paisagem gelada e irregular.
Urso Sábio parou ao lado de Garra de Ferro e segurou o cajado com as duas
mãos, erguendo-o acima da cabeça e ficando imóvel. Ele não emitiu nenhum
som, mas o súbito grito sufocado de Kiral indicava que o xamã enviara uma
mensagem por um meio diferente. Vaelin viu o olhar da caçadora ficar um
pouco carregado enquanto encarava o velho, seus olhos revelando um assombro
ainda maior, assim como uma sensação nítida de medo que fez Vaelin se
perguntar que notas sombrias a canção da lonak estava emitindo.
Urso Sábio baixou o cajado, mantendo a mesma expressão enquanto
aguardava.
Passaram-se alguns segundos antes que uma resposta fosse ouvida do gelo
irregular, uma cacofonia de silvos, uivos selvagens, um som que Vaelin só tinha
ouvido ser produzido por uma fera antes, mas agora havia muitas. Ele tirou o
próprio arco do ombro quando Kiral foi depressa para o lado de Urso Sábio.
Vaelin despiu as peles mais pesadas e parou à esquerda do xamã com uma
flecha na corda, de olhos atentos para o menor movimento.
— Ali! — gritou Kiral erguendo o arco, mas Vaelin foi mais rápido e num
instante disparou a flecha, que voou na direção de uma forma prateada que
saltara de trás de um pilar de gelo denteado. A forma continuou avançando por
algumas passadas e então tombou no gelo, onde permaneceu.
Urso Sábio soltou um grunhido rouco e avançou, seguido por Garra de Ferro.
— É melhor esperarmos — disse Vaelin. — Há mais.
Urso Sábio o ignorou e continuou andando, não demonstrando qualquer
reação quando mais uma dúzia de gatos guerreiros surgiu do gelo e avançou na
direção dele a toda a velocidade. Vaelin calculou que tinham mais ou menos o
mesmo tamanho de Dança da Neve, mas com uma aparência muito mais
magra, o pelo cheio de falhas e bem mais emaranhado… Dança da Neve era
assustadora, mas ele jamais vira os olhos da gata brilharem com um propósito
tão malévolo.
Ele acertou uma flecha no gato bem à sua frente enquanto Kiral abatia
rapidamente mais dois. Os arcos dos Senthar também começaram a zunir e mais
gatos tombaram diante da saraivada de flechas, mas restaram seis que
investiram contra Urso Sábio, rápidos demais para serem abatidos por qualquer
arqueiro.
O gato na dianteira, maior e de aspecto ainda pior que os seus companheiros,
saltou sobre Garra de Ferro de presas arreganhadas e olhos brilhando com um
ódio deliberado e inquietante. A garra do grande urso atingiu o felino no ar antes
que ele pudesse morder, derrubando-o. O gato derrapou no gelo, firmou as patas
e então saltou mais uma vez, soltando um silvo agudo o suficiente para fazer os
ouvidos doerem. Desta vez Garra de Ferro não o deixou escapar, fechando os
braços em volta do gato quando este tentou cravar as presas em sua garganta;
costelas se partiram com um estalo audível quando o gato foi derrubado no gelo e
o urso começou a golpear, seus ombros subindo e descendo como marteladas
rápidas, até que a fera se tornasse uma massa destroçada e ensanguentada.
Vaelin preparou uma segunda flecha e mirou nos outros gatos, percebendo,
para seu horror, que Urso Sábio agora estava parado diante deles, de braços
abertos e sem oferecer resistência enquanto os animais se aproximavam. Vaelin
puxou a corda do arco e mirou no flanco do gato mais próximo.
— Não! — Kiral colocou uma das mãos em seu braço. — Espere!
Alturk berrou uma ordem para os Senthar e eles abaixaram os arcos,
assistindo em completa perplexidade Urso Sábio estender a mão a uma das
feras… e o gato se encolher, o rosnado desaparecendo da cara, sem nenhum
ódio no olhar. O xamã passou os olhos por cada um dos gatos, produzindo um
resultado idêntico, todos encolhendo-se no mesmo instante sob o seu olhar,
abaixando-se suplicantes, desviando os olhos, alguns até mesmo tremendo.
Urso Sábio virou-se para Vaelin, sua expressão não menos implacável do que
antes.
— Você vem. Outros ficam.

Eles avançaram sozinhos através do labirinto de gelo pontiagudo, exceto Garra de


Ferro, que foi obrigado a passar por cima de boa parte das superfícies irregulares
à medida que o caminho tornava-se cada vez mais estreito.
— Como você fez aquilo? — perguntou Vaelin, sem ter certeza se queria ou
mesmo se compreenderia a resposta. Quanto mais aprendia sobre Urso Sábio,
mais misterioso e preocupante o seu poder se tornava.
— Sem Olhos está ficando fraco — respondeu o xamã, com um tom de
satisfação sombria na voz. — Domínio diminui. Gatos são meus agora.
— Então não havia necessidade de matarmos os outros?
Urso Sábio parou ao chegarem a uma abertura no gelo adiante, pouco mais
do que uma fenda estreita na muralha branco-azulada. Mais além Vaelin podia
ver uma extensão de granito, a ponta da rocha imensa agora assomando sobre
eles, os flancos reluzindo como metal mal polido onde o gelo se formara.
— Sem carne suficiente para todos — disse Urso Sábio. Seus olhos se fixaram
nos de Vaelin, ferozes e determinados. — Diga nada. Faça nada. Só escuta.
O gelo para além da fenda era plano, formando um largo fosso congelado ao
redor da grande rocha. Urso Sábio conduziu Vaelin para a direita e um fedor
crescente de algo podre o deixou nauseado, ficando mais intenso ao avistarem
uma grande mancha negro-pardacenta espalhada pela face leste da rocha. Ao se
aproximar, Vaelin viu que a mancha estava coberta de ossos; vértebras e costelas
de lobos-marinhos em sua maioria, mas aqui e ali havia a forma inconfundível
de um crânio humano sem nenhuma carne. A fonte do fedor tornou-se evidente
um momento depois: havia a carcaça de um pônei recém-desmembrado ao lado
de uma gruta rasa na face da rocha. Pela forma bruta, mas regular, Vaelin
deduziu que havia sido feita por alguém, fornecendo um pouco de abrigo contra
aquelas terríveis intempéries.
Um homem estava sentado na base da gruta, vestindo peles bolorentas e
acomodado no que parecia ser uma cadeira feita de ossos amarrados. Ele era
velho, embora não tanto quanto Urso Sábio, a pele curtida e descolorida, com
feridas vermelhas visíveis na cabeça careca e faces cadavéricas, e seus olhos
eram pedaços escuros de pele velha coberta de cicatrizes. Estava tão imóvel que
a princípio Vaelin achou que fosse um cadáver, mas então viu as narinas se
dilatarem ao sentir o cheiro deles e um leve sorriso formou-se nos lábios
rachados.
— Falaremos na língua do meu irmão, velho amigo — disse ele a Urso Sábio.
— Nada mais educado, não acha?
Vaelin então o reconheceu, a horrível familiaridade da voz, o mesmo sorriso
escarnecedor. Urso Sábio ergueu a mão e ele percebeu que havia segurado a
espada e avançado de forma inconsciente, determinado a matar aquela coisa
imediatamente. O Bastardo da Bruxa. Há quanto tempo ele está esperando?
Vaelin soltou o punho da espada e recuou enquanto Urso Sábio encarava a
coisa em silêncio.
— Nada a dizer? — perguntou a coisa, as sobrancelhas sem pelos erguidas
acima dos olhos de cicatrizes. — Sem últimos xingamentos ou discursos
preparados há muito tempo? Ouvi muitos ao longo dos anos. Infelizmente a
maioria era esquecível.
Urso Sábio continuou calado, voltando o olhar para os ossos que apinhavam o
gelo ao redor e usando o cajado para cutucar um crânio que estava dentro de
uma caixa torácica estilhaçada. Era pequeno, pouco maior do que uma maçã,
mas claramente humano.
— Os últimos membros do Povo Gato — disse a coisa ao ouvir o som de osso
contra osso. — Eles morreram felizes, sabia? Adorando-me, dispostos a entregar
a própria carne para o sustento de minha luz divina.
O sorriso dele se alargou, revelando dentes escuros e parcialmente
apodrecidos, e então virou o rosto sem olhos para Vaelin.
— Eram um povo notável, irmão. Séculos vivendo longe de qualquer vestígio
do que chamamos de civilização, mas ainda assim tinham leis, arte e sabedoria
suficientes para sobreviver no lugar mais inóspito do mundo. Mas não possuíam
qualquer noção sobre um deus até que lhes ensinei. E com que rapidez
sucumbiram à ideia! Afinal, do que mais você chamaria um homem que volta à
vida após um falcão-lanceiro arrancar os olhos de seu crânio?
O sorriso desapareceu dos lábios rachados e ele virou o rosto mais uma vez
para Urso Sábio.
— Tudo isso poderia ter sido evitado, velho amigo, se você tivesse aberto o
coração à minha mensagem, à minha grande missão para o povo do gelo. As
terras do sul teriam sido tomadas por nós, assim como a grande floresta mais
além. Agora o seu povo é um refugo debilitado e o meu nada mais do que ossos.
O som de gelo se partindo anunciou a chegada de Garra de Ferro, que
transpôs a parede circundante e foi para o lado de Urso Sábio, as narinas
dilatando-se com o cheiro de carne. O homem sem olhos se enrijeceu ao som da
aproximação do urso, mas a voz permaneceu sem qualquer traço de medo.
— Você não pode me ameaçar, homenzinho. Sua fera não pode me
aterrorizar. Pergunte ao meu irmão. Ele me matou uma vez, e aqui estou. Assim
como estou em outro lugar. Esperei você chegar aqui durante longos anos. É uma
pena que os meus gatos não tenham se mostrado à altura da tarefa, mas sou
paciente e desconfio que você ainda tenha um longo caminho a percorrer.
— Então você espera — disse Urso Sábio, avançando ligeiro e agarrando o
couro cabeludo do homem sem olhos. — Espera mais.
O homem sem olhos abriu a boca e de dentro saiu um ar nauseabundo
quando soltou um grito silencioso, contorcendo-se na cadeira de ossos. Ele tentou
agarrar o braço de Urso Sábio, mas não havia qualquer força em seus dedos, que
tremulavam como penas sobre a manga dele enquanto convulsionava.
Por fim o xamã o soltou e recuou quando o homem sem olhos curvou-se, o
rosto uma máscara de perplexidade e dor.
— O que você fez? — perguntou ele num sussurro rouco, batendo as mãos no
próprio peito e no rosto, as unhas deixando leves escoriações na carne.
— Você espera — disse Urso Sábio de novo, dando-lhe as costas. — Então
você morre. Para sempre.
— Isso é… — A coisa tentou levantar-se da cadeira de ossos e estendeu a
mão para segurar Urso Sábio quando o xamã começou a se afastar. — Isso é
impossível.
Urso Sábio não se virou, andando em direção à fenda na parede de gelo,
seguido por Garra de Ferro.
— Irmão! — A coisa escorregou da cadeira de ossos e estendeu o braço para
Vaelin enquanto se arrastava até ele, suplicante. — Irmão! Faça ele me libertar!
Vaelin observou a coisa se arrastar, notando como restara pouca força nos
seus membros, um amontoado de pele e ossos destinado a perecer quando a noite
trouxesse um frio mortal. Ele não disse nada e virou-se para seguir Urso Sábio.
— Você amava Barkus! — gritou a coisa, a voz lhe faltando. — Eu sou
Barkus! Sou seu irmão!
Vaelin continuou andando.
— Eu tenho informações! Conheço o plano do Aliado!
Vaelin parou.
— Eu sei… — A voz da coisa vacilou ao encher os pulmões arruinados de ar.
— Eu sei o que ele quer.
— Eu também — disse Vaelin, olhando por sobre o ombro e vendo um
moribundo debater-se em meio à carne putrescente. — Ele quer compor um
final. E comporemos.

— Você matou toda a coisa?


Urso Sábio deu um sorriso pesaroso e sacudiu a cabeça. Eles haviam
acampado à sombra da grande rocha, em meio ao abrigo fornecido pelo gelo
irregular, os lonaks erguendo suas tendas a uma distância ainda maior do que de
costume, inquietados pelos cinco gatos guerreiros que agora estavam sentados
em volta do xamã num silêncio desconcertante. Vaelin virou-se para observar
quando Cara estendeu com cautela um pedaço de carne de lobo-marinho a um
dos gatos. A fera a ignorou até que Urso Sábio olhou na sua direção, e então
abocanhou a guloseima dos dedos da garota num movimento rápido de cabeça.
— Só uma parte — respondeu ele, virando-se de novo para Vaelin,
estendendo a mão e afastando os dedos. — Tira um, ainda pode usar —
prosseguiu, imitando a amputação do polegar e cerrando o punho. — Mas agora
mais fraco.
— Se encontramos outras partes da coisa, você pode fazer o mesmo com
elas? — perguntou Vaelin.
Urso Sábio assentiu.
— Se encontrar.
Vaelin olhou para a ponta da rocha acima, perguntando-se se o Bastardo da
Bruxa de algum modo ainda se agarrava à vida. Desconfio que você ainda tenha
um longo caminho a percorrer, dissera a coisa. Sabia que estávamos vindo, mas
não por quê.
— Ah, não tenho dúvidas de que vamos encontrá-las.
CAPÍTULO NOVE
Lyrna

A saúde do Senhor da Torre Al Bera melhorara muito desde a libertação de


Varinshold, sua pele visivelmente menos pálida e as mãos livres de quaisquer
tremores. Contudo, ele ainda tinha dificuldade para permanecer de pé durante
longos períodos e Ly rna se apressou a levá-lo até uma cadeira. Ela o chamara
até os antigos aposentos de seu pai contíguos à Câmara do Conselho. Outrora
ricamente adornados com vários tesouros, agora, é claro, restavam nos aposentos
somente alguns quadros e tapeçarias, bens que pertenceram ao finado Lorde
Darnel, sem dúvida saqueados de nobres assassinados. Ly rna fora meticulosa ao
catalogar cada item encontrado no palácio, distribuindo a lista para que os
verdadeiros donos pudessem reivindicá-los, mas até então apenas alguns lordes e
mercadores miseráveis haviam se apresentado.
— Lembro que meu pai o chamava de Flagelo dos Contrabandistas, meu
senhor — disse ela a Al Bera. — Um título conquistado a duras penas, sem
dúvida.
Al Bera assentiu com firmeza. Ly rna notara antes o desconforto dele em sua
presença, uma prudência que presumivelmente tinha origem na posição inferior
de onde ele havia sido elevado.
— As gangues de contrabandistas eram mais numerosas na minha juventude,
Alteza — disse o Senhor da Torre. — Eu era um capitão da Guarda do Reino
antes de o Rei Janus ordenar que eu assumisse o comando de seus coletores de
impostos, um bando relaxado, dado a subornos e bebedeiras. Levou tempo para
transformá-los num braço eficaz da Coroa, e uma quantidade considerável de
sangue.
— E mesmo assim o senhor conseguiu, acabando com a influência dos
contrabandistas na costa meridional e com isso dobrando a receita do porto.
Al Bera deu um sorriso cauteloso.
— Ajudado um pouco pela Sexta Ordem.
— Não obstante, a espada que meu pai lhe deu foi bem merecida. — Ela
pegou o pequeno baú de madeira sobre a mesa. — Infelizmente, não tenho outra
para lhe dar. Como era de se esperar, os volarianos roubaram a coleção real
inteira. Mas encontrei uma velha joia minha nas ruínas do que antes foram os
meus próprios aposentos.
Ela retirou o item da caixa. A corrente era nova, feita de prata com maestria,
mas presa a um antigo amuleto, um disco simples de bronze incrustado com um
único vitríolo azul.
— Dizem que foi usado pela mãe do Rei Nahris — continuou Ly rna. — O
primeiro a reivindicar o domínio de todos os quatro feudos do Reino.
Infelizmente, ele era propenso a surtos de loucura, de modo que o governo de seu
território ficava a cargo de sua formidável mãe, Bellaris, a primeira a ser
nomeada Regente do Reino Unificado. Um título que eu mesma usei no final da
guerra alpirana, e esta — ela colocou o amuleto na mesa e o empurrou na
direção do Senhor da Torre — era a insígnia do meu cargo.
A escolha correta, concluiu Ly rna, notando o modo como Al Bera olhava
para o amuleto, como uma criança colocando os olhos numa cobra pela primeira
vez.
— Eu… — começou ele, o rosto corando um pouco. — Serei deixado para
trás, Alteza?
— O senhor servirá a este Reino conforme ordenado pela sua Rainha.
— Se é uma questão de estar fisicamente bem para lutar…
— É uma questão de a quem posso confiar com segurança o governo destas
terras na minha ausência. Nada mais. Lorde Regente Al Bera, coloque a insígnia
de seu cargo, por favor.
Ele passou os dedos pela corrente de prata por um momento, cerrando o
maxilar e lutando para esconder um leve tremor na mão.
— O Rei Janus lhe contou por que eu era tão bom em capturar
contrabandistas, Alteza?
Ly rna sorriu com placidez e sacudiu a cabeça.
— Porque meu pai era um contrabandista. Um homem de grande bondade
em casa, mas de temperamento terrível no trabalho, um trabalho que teria sido
meu se eu não tivesse fugido para me alistar na Guarda do Reino aos treze anos.
A essa altura eu já havia compreendido que tipo de homem ele era, quanto
estava envolvido em engodos e assassinatos, e eu não queria fazer parte daquilo.
— Al Bera afastou a mão da corrente.
— E não quero fazer disto.
Ly rna manteve o sorriso, pegou a corrente e o amuleto da mesa, levantou-se
e foi para trás da cadeira do Senhor da Torre. Ela o sentiu encurvar ao passar a
corrente por sua cabeça e colocá-la em seus ombros, embora não pesasse mais
do que alguns gramas.
— Exatamente, meu senhor. — Ela se abaixou e o beijou de leve no rosto,
optando por ignorar quando ele se encolheu. Ela se afastou e o viu levantar-se
com dificuldade.
— Vou lhe deixar vinte mil Guardas do Reino — disse Ly rna. — Eles irão
reprimir qualquer vestígio de criminalidade dentro das fronteiras asraelinas, e
todos os criminosos devem ser executados pela Palavra da Rainha, sem exceção.
Sinto que ultimamente temos sido lenientes demais. Contudo, o senhor ficará
longe das terras cumbraelinas, a não ser em caso de extrema urgência ou a
pedido da Senhora Veliss. Fornecerei uma lista de outras prioridades, sendo que
as reformas legais do Aspecto Dendrish e a reconstrução desta cidade são as
mais urgentes.
Ly rna inclinou a cabeça, examinando o amuleto pendurado em volta do
pescoço dele e notando que o homem curvara um pouco mais os ombros.
— Ele lhe cai muito bem, meu senhor.
Al Bera fez uma mesura discreta, e a sua resposta foi tensa e curta, para que
não transparecesse qualquer expressão.
— Obrigado, Alteza.

Orena gostava de dançar à tarde, movendo-se pelos jardins sem vida do palácio
com uma graciosidade jovial, às vezes segurando as mãos de Murel e puxando-a
num rodopio, dando a sua risada de menina. Naquele dia ela tinha invernálias nos
cabelos, as pétalas claras brilhando como estrelas na cabeleira escura enquanto
ela girava sem parar.
— Sente-se comigo — disse Ly rna quando a dança por fim cessou, a saia de
Orena esvoaçando quando ela rodopiou até o chão com uma risadinha cansada,
mas feliz. — Eu trouxe bolos.
Elas estavam no que restara de seu antigo jardim secreto, e Ly rna arrumava
os bolos junto a um jogo de chá de porcelana no banco ao seu lado. Orena
gostava muito de bolos, mas continuava sem modos, enfiou um inteiro na boca ao
se sentar, lambuzando os dedos com cobertura e creme.
— Nham — disse ela, uma das únicas palavras que se dispunha a proferir
ultimamente; estava evidente que a fala não tinha muita serventia para aquela
nova Orena. A mente de Ly rna foi inundada por um momento pela sensação de
prazer, a textura do bolo em sua língua, a suavidade do creme. Teve que se
concentrar para afastar as impressões, uma habilidade aprendida com o Aspecto
Caenis, que aconselhava a repetição de uma sequência numérica como o melhor
meio para bloquear os pensamentos imprevisíveis de Orena.
— O Irmão Innis me disse que você não tem prestado atenção nas lições —
disse Ly rna.
Os pensamentos de Orena transmitiram um cansaço aborrecido, e ela engoliu
o último pedaço do bolo e revirou os olhos.
— Aprender é importante — insistiu Ly rna. — Não quer ler de novo?
Orena deu de ombros e seus pensamentos mudaram: alegria e raios de sol, o
giro da dança.
— Você não pode dançar para sempre, minha senhora. — Ly rna pegou a
mão dela. — Preciso lhe dizer uma coisa.
Uma cautela repentina diante da gravidade em sua voz, um medo crescente.
— Preciso me ausentar durante algum tempo.
O medo aumentou e Orena olhou para Murel, que estava de pé ali perto, com
as mãos entrelaçadas e forçando um sorriso consolador. Ela achava que era uma
provação dolorosa ficar na companhia de Orena, o peso do seu dom incontido
difícil de suportar, ainda mais quando resolvia compartilhar lembranças
terrivelmente similares àquelas que Murel lutava para reprimir.
— Sim — disse Ly rna. — Murel também. E Iltis e Benten.
Mais medo, beirando o terror, uma sensação chocante de abandono. Orena
agarrou as mãos de Ly rna, uma súplica desesperada preenchendo os seus olhos.
— Não. — Ly rna forçou uma nota de comando em seu tom. — Não, você
não pode vir conosco.
Raiva misturada com repreensão grosseira quando Orena arrancou as mãos
das de Ly rna e desviou o olhar, o rosto um espelho de seus pensamentos.
— Espero retornar com um homem que creio que possa curá-la — disse
Ly rna em voz baixa enquanto passava os dedos pelas madeixas escuras de
Orena. — Fui egoísta ao deixá-lo ir, mas quando ele olhou para mim, quando
olhou para este rosto, eu soube que ele percebeu que o seu dom havia falhado.
Não posso ser curada, mas acredito que você possa, pois a sua alma é tão
radiante.
As feições de Orena se suavizaram, o rosto perdendo de súbito qualquer
vestígio da criança em corpo de mulher que ela parecia ser. Ela olhou nos olhos
de Ly rna, franziu o cenho… e as lembranças surgiram num rompante.
Ly rna tentou pensar num cálculo para conter o fluxo de imagens e sensações,
mas a torrente era grande demais, sobrepujando os números gotejantes com
uma facilidade que revelava que Orena vinha exercendo muito mais controle
sobre o seu dom do que eles pensavam. O cheiro surgiu primeiro, água salgada,
suor e excremento. Então os sons, os tinidos das correntes, os soluços abafados de
almas desesperadas. A visão e a dor chegaram juntas, os grilhões esfolando
punhos e tornozelos, a silhueta indistinta de prisioneiros encolhidos. Ela estava de
volta ao porão do navio, mais uma vez escrava. O pânico aumentou e então
diminuiu ao notar que a vista diferia das próprias lembranças, os degraus que
levavam ao convés superior agora vistos de um ângulo menos agudo, e,
acorrentada próximo a eles, havia uma jovem de vestido azul, o rosto coberto
pelas sombras, mas o jogo de luzes em seu couro cabeludo sem fios revelando
queimaduras horríveis. No entanto, ela conhecia aquele perfil, vira-o delineado
contra uma fogueira numa distante encosta de montanha alguns meses antes.
Júbilo misturado com uma satisfação maliciosa em seu peito… junto com uma
inebriante expectativa pela recompensa do Aliado.
A lembrança ficou turva, desfazendo-se e reformando-se numa cena de
terror, o casco despedaçado pelo ataque do tubarão, gritos desesperados por todos
os lados. Ela viu a mulher queimada de pé ao lado dos degraus, a chave
pendurada em sua mão. O momento de hesitação foi breve, quase imperceptível,
mas aqueles olhos tinham séculos de prática em discernir fraquezas e ela soube
numa torrente de grave compreensão que aquela nova rainha estava prestes a
abandonar os súditos à própria sorte.
Fazia muito tempo que ela não sentia algo semelhante a assombro, mas a
sensação que tomou conta dela ao observar a mulher queimada voltar para
libertar primeiro o irmão bruto, depois o fora da lei e então, incrivelmente, a si
mesma, foi o mais perto de que ela chegara daquilo em muitas vidas. O
agradecimento balbuciado que oferecera à mulher queimada quando ela
avançou com dificuldade na direção dos degraus a surpreendeu ainda mais, pois
era totalmente genuíno.
As imagens se mesclaram em outra lembrança, o rosto coberto de cicatrizes
de Harvin sobre o seu, os hálitos se misturando quando os lábios se tocaram.
— Eu jamais vou machucá-la — sussurrou ele. — Nem eu nem ninguém.
— Você não pode prometer isso — sussurrou ela em resposta. — Ninguém
pode.
Os dedos dele percorreram os hematomas no pescoço dela, suavizados, mas
ainda escuros o suficiente para estragar a agradável lisura da pele daquela casca.
— Prometo que vou matar todo volariano de merda que eu encontrar, só para
o caso de ter sido ele quem fez isso.
Ela então sentiu algo, algo mais do que o desejo familiar, e isso a incomodou.
— Chega de conversa — disse ela, empurrando-o de cima dela e montando
em sua cintura. — E tente não fazer barulho dessa vez.
A mudança final foi mais abrupta, como se Orena sentisse o seu desconforto.
O convés do Sabre do Mar balançava sem parar naquele dia; as águas em volta
da Ilha de Wensel raramente eram calmas. Ela olhou para a mulher queimada e
para o anel que ela oferecia, perguntando-se por que as lágrimas vinham com
tanta facilidade. Normalmente ela precisava forçá-las, mas naquele dia elas
brotaram de forma espontânea dos seus olhos.
— Creio que tais trivialidades tenham ficado para trás, minha senhora —
disse a mulher queimada, e um ser que havia muito tempo esquecera o próprio
nome soube então que encontrara uma rainha.
Ly rna soltou um grito sufocado quando a última lembrança desapareceu, e se
viu encarando os olhos suplicantes de Orena, um sorriso incerto nos lábios.
— Alteza? — Murel estava ao seu lado, tocando-lhe o ombro com cuidado.
Ly rna levantou-se e puxou as duas para um abraço, Orena agarrando a sua
cintura enquanto Murel apoiava a cabeça em seu ombro.
— Eu sempre tive apenas damas — disse Ly rna. — Nunca amigas.
Os pensamentos de Orena pulsaram uma última vez, repletos de uma
sensação de pesarosa necessidade, uma lição que mal compreendia, mas que
precisava compartilhar: elas podem mudar.

Eles apinharam as docas para vê-la partir, envolvendo-a num tumulto de vivas e
exortações ao subir a rampa para o convés do Rainha Lyrna, todos aqueles que
não haviam sido escolhidos para singrar o oceano e terminar a sua grande
cruzada, os velhos, os jovens e os habilidosos. Muitos choravam, alguns
reclamando abertamente da vergonha e implorando para que pudessem se juntar
a ela. Um cordão de Guardas do Reino os manteve afastados, evitando que os
mais fervorosos saltassem do cais e tentassem nadar até o navio.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — disse Ly rna, cumprimentando o Escudo
quando ele fez uma mesura precisamente formal.
— Alteza — disse ele no tom neutro que ela achava cada vez mais irritante.
— Os navios de Torre Sul e Warnsclave se aproximam. Iremos nos encontrar a
quinze quilômetros da costa, caso o tempo permita.
Ly rna ignorou a zombaria final, ainda que dita sem má intenção. Ele e vários
de seus capitães protestaram contra a decisão dela de zarpar tão cedo no início do
ano, advertindo que as tempestades de inverno ainda seriam frequentes em alto-
mar. O Escudo não se abalou com as tabelas de padrões climáticos históricos
cuidadosamente preparadas pelo Irmão Harlick, que indicavam que o norte do
Boraelino passava por um período de cinco semanas de relativa calmaria durante
os meses de illnasur e onasur.
— Apenas marcas num papel, Alteza — dissera o Escudo, lançando um olhar
de repúdio aos documentos do bibliotecário. — Udonor não sabe ler.
— Talvez ele não saiba, mas eu sei — retorquiu Ly rna. — Os nossos inimigos
não nos esperam até a primavera, e não deixarei passar uma oportunidade de
surpreendê-los. Nossa frota estará pronta dentro de um mês, quando então
zarparemos, com ou sem o senhor.
Ly rna voltou o olhar para o Rei Malcius, que desfraldava as velas ao se
afastar do molhe. Para além dele, uma longa fileira de embarcações igualmente
imensas seguia em direção ao horizonte. Na ponta do molhe ela podia ver uma
figura sentada diante de uma ampla tela apoiada de forma precária sobre um
cavalete. Mestre Benril, que viera registrar a cena, embora o céu cinzento e o
horizonte enevoado fossem um espetáculo lúgubre.
O Escudo curvou-se mais uma vez e começou a gritar ordens que os
afastariam das docas, e a tripulação correu para soltar cabos e içar as vigas nos
devidos lugares para empurrá-los para longe do cais.
— Esperem! — ordenou Ly rna ao avistar uma figura diminuta na proa.
Alornis não tirou os olhos da máquina quando Ly rna aproximou-se, batendo de
leve com um pequeno martelo em algum tipo de tubulação na parte inferior. —
Minha senhora — disse Ly rna.
— Alteza. — Alornis deu uma última batida no tubo, sorrindo de satisfação
com o som produzido.
— Caso o seu trabalho aqui tenha terminado — prosseguiu Ly rna —, eu
gostaria que a senhora desembarcasse.
— Infelizmente, este novo dispositivo precisa de mais ajustes. — Alornis
soltou uma risada claramente forçada e agachou-se para inspecionar a
sustentação da máquina. — Não posso de modo algum deixar que seja levada
nessas condições, Alteza.
Ly rna parou ao lado dela e falou num tom brando:
— Eu prometi solenemente ao seu irmão que a manteria a salvo. Agora,
retire-se do navio, ou ordenarei que Lorde Iltis o faça para a senhora…
— Eles mataram Alucius! — Alornis girou na direção dela, o martelo voando
pelo convés ao ser jogado de lado, o rosto lívido. Seu grito fez com que um
silêncio glacial tomasse conta do convés. — A senhora prometeu justiça. — A voz
de Alornis estava embargada, embora forçasse as palavras a saírem; o olhar
estava lacrimoso porém firme. — Eu percorri todos os cantos deste Reino
registrando mortes e destruição a cada quilômetro, e trabalhei durante meses
sem dormir para lhe fornecer estes instrumentos mortais. Tudo isso sem pedir
recompensas ou esperar algum favor, porque a senhora prometeu justiça, e eu
quero a minha.
Ele nunca me perdoará por isso, pensou Ly rna. Mesmo que ela sobreviva.
— Lorde Almirante Ell-Nestra — disse Ly rna, e virou-se. — Sigamos em
frente, por favor.

Os primeiros dias foram difíceis, o mar agitado o suficiente para privar a frota de
qualquer coesão, e muitos dos navios eram perdidos de vista sob a chuva quase
constante. Por ordem do Escudo, cada embarcação tinha navegadores
experientes a bordo, a maioria deles meldeneanos, a quem se podia confiar que
mantivessem um curso a leste independentemente do clima. Ainda assim, havia
momentos em que Ly rna olhava para a muralha cinzenta e oscilante que os
cercava e tinha de lutar contra a sensação de que estavam navegando sozinhos.
Abaixo do convés, o regimento de Lorde Nortah sofria de forma constante
com enjoos e a vida a bordo. Eles tinham de ser levados em grupos para o
convés superior para respirarem ar fresco e se exercitarem, a maioria
atrapalhando-se com os exercícios, movendo-se com uma letargia negligente,
embora a presença de Ly rna parecesse fornecer algum estímulo para se
esforçarem mais. A mulher esguia com as adagas, de quem Ly rna se lembrava
de Alltor, a cumprimentou com uma longa mesura ao sair para a luz do dia na
terceira manhã desde a partida de Varinshold, e em seguida começou uma série
de exercícios de esgrima com uma energia fervorosa, até tombar numa
convulsão súbita. Ela ergueu o rosto lívido para Ly rna, mortificada quando a
Rainha aproximou-se para ajudá-la a se levantar.
— P-perdoe-me, Alteza — gaguejou ela. — Embora a minha maldita
fraqueza não mereça perdão…
Ela se calou quando Ly rna levou a mão à sua testa, achando-a fria e pegajosa
demais.
— Guarda Furelah, você está doente.
Furelah piscou surpresa ao ser tratada pelo nome e então se empertigou.
— Não mais do que qualquer outra pessoa aqui, Alteza. — A mulher
cambaleou quando o casco do navio passou por outra onda elevada, e Ly rna
sentiu como ela tremia ao estender a mão para ampará-la pelo braço.
— O que você fazia? — perguntou ela. — Antes da guerra.
— Meu pai tinha um moinho, Alteza. Eu trabalhava lá com ele.
— Então você tem familiaridade com engrenagens e máquinas?
— Era preciso ter, Alteza. Depois que aquele maldito filho da p… O pai de
minha filha não era um homem cumpridor de seus deveres, o que nos forçou a
buscar abrigo com meu pai. Após algum tempo, as mãos dele ficaram rígidas
demais para consertar coisas.
— Venha comigo.
Ela conduziu a mulher até a popa, onde Alornis erguia uma lona sobre uma
das quatro balistas do navio. A chuva e a espuma constantes lhe causavam grande
consternação, e ela tentava manter as suas preciosas máquinas livres da
ferrugem e do sal que danificavam as suas diversas novidades mecânicas.
— Senhora Alornis! — gritou Ly rna, gesticulando para Furelah. — Estou
nomeando esta guarda como sua assistente. Instrua-a sobre como operar a sua
máquina, por favor.
Alornis cumprimentou Furelah com um sorriso intrigado.
— Obrigada, Alteza, mas não preciso de assistência.
— As batalhas começarão em breve, minha senhora — retorquiu Ly rna. — E
elas não têm protegidos. Caso a senhora morra, é importante que os seus
conhecimentos não pereçam com a senhora.
Alornis retraiu-se um pouco com a aspereza do tom da Rainha e então
estendeu a mão a Furelah, que, apesar da evidente náusea, admirava a balista
com extrema fascinação.
— A senhora construiu isso?
— Eu tive ajuda. — Alornis pegou a mão da guarda e a levou até o engenho.
— Venha, é melhor começarmos com as engrenagens.

***

O anoitecer do décimo dia trouxe a primeira tempestade, um vendaval uivante


do norte que arremessava uma série de ondas cada vez maiores contra o casco
do Rainha Lyrna a bombordo, forçando o Escudo a ordenar que virassem para o
sul. Ly rna esperara alguma expressão de reprovação ao vê-lo assumir o timão,
suas mãos movendo-se com habilidade experiente para controlar o grande barco,
mas ele parecia estranhamente contente, lançando olhares ocasionais para o céu
e franzindo o rosto com aparente satisfação.
— Parece que os meus cálculos foram otimistas! — comentou Ly rna, tendo
que gritar para ser ouvida por causa do vento ao se aproximar de Ell-Nestra.
— A senhora se refere a isto? — Um traço do sorriso antes contínuo surgiu
em seus lábios quando ele indicou com a cabeça o céu carregado de nuvens. —
Isso é apenas uma brisa suave comparada com a fúria costumeira do inverno no
Boraelino. Já terá passado de manhã.
Ly rna se demorou ao lado do Escudo, notando a relutância dele em olhá-la, a
rigidez de seus ombros.
— Por que o senhor ficou? — perguntou ela. — Sei que não queria tomar
parte nisto.
— Apesar do meu receio, não posso negar a sabedoria de suas palavras. Se
não acabarmos com eles, eles voltarão. Melhor uma guerra longa do que uma
dúzia de curtas, fazendo as Ilhas se esvaírem em sangue com cada geração
chamada para lutar nelas. Além disso, eu assumi um compromisso, como talvez
se lembre.
Ela se lembrava daquela noite após os Dentes, da oferta dele de outra vida e
da promessa feita sob as estrelas.
— Se serve de consolo, nós nunca teríamos navegado juntos para o oceano
ocidental — disse Ly rna. — Independentemente de quaisquer outros…
desdobramentos.
O Escudo não se virou, mas ela notou como os seus ombros se curvaram um
pouco.
— Não — disse ele, num tom melancólico em vez de amargurado. —
Naquele dia em Alltor, o modo como você olhou para Al Sorna… E eu pensava
que não havia mais nada que ele pudesse tirar de mim. E o seu rosto. O rosto de
uma estranha.
— Eu esperava que você pudesse ver o rosto de uma amiga.
Mesmo com o vento, ela o ouviu soltar uma leve risada.
— É isso que você imagina que o futuro nos reserva? Amizade? Que quando
esta guerra for vencida eu ainda comandarei a sua frota? Que ficarei ao seu lado
por todos os longos anos de seu reinado? Seu ex-pirata fiel? Seu cão de
focinheira? — Ell-Nestra olhou por sobre o ombro para ela, a chuva escorrendo-
lhe pelo rosto, sem qualquer vestígio do sorriso. — Eu deixei você me colocar
numa gaiola, Ly rna. Não me peça para viver nela para sempre.
Ly rna virou-se quando Murel puxou com insistência o seu braço, gesticulando
para a porta de sua cabine, onde Iltis se encontrava encharcado da cabeça aos
pés e com uma expressão de muita impaciência.
— Sugiro que se abrigue, Alteza — disse o Escudo, girando de novo o timão
quando outra onda ergueu a proa para o céu. — Tempestades não respeitam
posição social.
Como ele previra, o tempo melhorou nos dias seguintes, permitindo à Senhora
Alornis uma oportunidade para fazer uma demonstração de seu novo aparelho.
— O Irmão Harlick teve a bondade de fornecer alguns exemplos inspiradores
da história — disse ela, engatando um fole grande num tubo de cobre que saía de
baixo do engenho. A máquina fora colocada a bombordo do Rainha Lyrna e tinha
uma aparência ainda mais estranha do que a balista; era um tubo de latão e ferro
de quase quatro metros de comprimento, bulboso numa das extremidades, que se
afilava num bico estreito. Havia um barril grande em cima do meio do cano, que
estava montado sobre uma base idêntica à da balista, o que significava que
mesmo alguém com as proporções diminutas de Alornis tinha pouca dificuldade
em ajustar o ângulo. Furelah estava na extremidade mais fina do aparelho,
fixando ao bico o que parecia ser uma lamparina a óleo alongada. Pela sua
postura, trabalhando com os braços totalmente estendidos e olhando sem parar
para o barril ligado à máquina, Ly rna pressentiu que a mais recente novidade de
sua Senhora Artífice tinha considerável potencial.
— Não havia imagens em que me basear — prosseguiu Alornis, passando um
pano sobre uma alavanca circular na extremidade bulbosa da máquina. — Mas
um texto alpirano de cerca de seiscentos anos forneceu uma descrição detalhada
do maquinário. A maior dificuldade foi estabelecer a mistura correta para o
combustível.
— Esta é uma máquina alpirana? — perguntou Ly rna.
— De fato, Alteza. Usada numa batalha marítima numa das guerras civis
deles. Parece que o imperador da época testemunhou o primeiro uso dela e a
baniu de imediato, temendo que os deuses pudessem considerá-lo
desnecessariamente cruel. Eles a chamavam de Lança de Rhevena.
Rhevena, Ly rna sabia, era uma das principais deusas do panteão alpirano,
guardiã dos caminhos sombrios que deviam ser percorridos por todas as almas
após a morte. Mas Rhevena era uma deusa bondosa e iluminava os caminhos
com fogo para que nenhuma alma boa se perdesse. No entanto, o fogo era algo
vivo, que possuía sabedoria e discernimento, e aumentava para engolfar uma
alma indigna. O coração de Ly rna começou a bater mais rápido quando notou o
modo como Furelah terminou a sua tarefa e foi para trás da máquina sem
disfarçar a pressa, a lamparina que havia afixado ao bico agora acesa com uma
brilhante chama amarela.
— O óleo de lamparina é ralo demais — continuou Alornis, girando uma
manivela na lateral do barril — e queima depressa demais. Então fui obrigada a
usar óleo de base. E mesmo assim foi necessário engrossá-lo com resina de
pinho. — Ela se afastou, dando uma última olhada de avaliação em sua invenção
antes de se virar para Iltis e Benten. — Meus senhores, o fole, por favor.
Os dois lordes se aproximaram do fole, parando lado a lado e agarrando a
grande barra de ferro presa a ele, e ambos lançaram um olhar questionador a
Ly rna. Ela tentou controlar as batidas aceleradas de seu coração e inclinou a
cabeça para que dessem início à tarefa. Foram necessários vários movimentos
dos lordes no fole antes que alguma coisa acontecesse, mas quando aconteceu
Ly rna ficou grata pelo grito de espanto que percorreu o navio, pois escondeu o
seu próprio grito sufocado de medo. Um jato de fogo amarelo e brilhante jorrou
do bico da máquina, subindo em arco a dez metros e cascateando no mar em
meio a uma nuvem de vapor. O mar calmo permitiu que boa parte da frota
retomasse a formação e um coro de gritos animados pôde ser ouvido dos navios
mais próximos enquanto o arco de fogo continuava a jorrar.
— A mira é bastante simples — disse Alornis, manobrando a lança de um
lado para outro de modo que o arco cortava o ar como um leque flamejante. Ela
fez sinal para que Benten e Iltis parassem e virou-se para Ly rna, os últimos
vestígios de óleo em chamas pingando às suas costas enquanto sorria à espera de
elogios da Rainha.
Ly rna resistiu à tentação de enxugar o suor na testa e manteve as mãos
entrelaçadas sob o manto, temendo que tantos olhos vissem quanto tremiam. O
cheiro do seu cabelo queimando… As lambidas lancinantes das chamas ao
devorarem a sua carne… O tremor em suas mãos aumentou, ameaçando
espalhar-se para os braços enquanto continuava a encarar o semblante orgulhoso
de Alornis. No que eu lhe transformei?
Ly rna sentiu um toque delicado no braço e, ao se virar, deparou-se com o
Escudo ao seu lado, dando o seu sorriso mais largo a Alornis.
— Um feito extraordinário, minha senhora — disse ele. — Uma arma para
vencer uma guerra, sem dúvida. Não concorda, Alteza?
Ly rna respirou fundo, sentindo o tremor diminuir à medida que o calor se
espalhava com o toque dele.
— Minha Senhora Artífice supera todas as expectativas — disse ela a Alornis.
— Há mais dessas máquinas?
— Eu trouxe componentes suficientes para apenas mais duas, Alteza. Quando
chegarmos ao nosso destino, talvez eu possa construir mais se for possível
encontrar os materiais certos.
Mais? Não sei se quero uma que seja.
— Prossiga com a construção, por favor. O Lorde Almirante Ell-Nestra
decidirá que embarcações serão beneficiadas pelo seu poderoso talento.

Ly rna tentou dormir, mas não conseguiu se acomodar, remexendo-se no catre e


tentando afastar da mente a imagem do arco flamejante. Acabou desistindo e foi
procurar Alornis; Iltis despertou e a seguiu sem a necessidade de qualquer
instrução. A Artífice da Rainha trabalhava com afinco no canto do porão que
abrigava as suas várias inovações. Furelah estava deitada numa rede perto dali,
sem ter o sono perturbado pelo balanço suave do navio.
— Parece que o estômago dela se ajustou à vida a bordo — disse Alornis,
tirando os olhos de um pedaço de tubulação de cobre. — Ela consegue dormir
com facilidade agora.
— Furelah tem sorte — disse Ly rna. — Suponho que a senhora ache o
trabalho dela satisfatório?
— Ela é muito habilidosa e astuta, Alteza. Tenho certeza de que criará alguns
aparelhos próprios com o devido tempo.
Ly rna sentou-se no banco diante de Alornis e a observou trabalhar, as mãos
ágeis moldando o tubo de cobre que segurava sobre uma chama para amolecer o
metal.
— É melhor a senhora também descansar um pouco — disse Ly rna.
Um leve tique de exaustão podia ser visto na fronte de Alornis, embora ela
continuasse concentrada em sua tarefa.
— Ultimamente não tenho conseguido dormir com muita frequência, Alteza.
— Sente falta de seu irmão, e de Alucius.
Ela viu Alornis abafar um suspiro e deixar o tubo de lado.
— Precisa de algo, Alteza?
— A senhora não se pergunta o que ele teria achado disso? Se ele teria sido
tão fervoroso em sua devoção a esta causa quanto a senhora?
— Alucius era um homem pacífico. Isso não o salvou.
— Ele também era um espião a serviço de uma potência estrangeira. Sabia
disso?
— Não até recentemente. O soldado-escravo, o que havia sido designado
para vigiá-lo, veio me ver antes de partir com o Irmão Frentis. Alucius lhe
entregou uma mensagem para mim antes de morrer. Então, sim, sei tudo sobre
as suas… alianças infelizes, e elas não diminuem em nada a minha opinião sobre
ele.
— O que mais dizia a mensagem?
— Eram palavras destinadas apenas a mim, Alteza.
Ly rna teve a impressão de que podia adivinhar o conteúdo da mensagem do
Kuritai liberto pelo olhar cauteloso de Alornis. Você retribuía esse amor?, ela
queria perguntar, mas se conteve.
— A guerra mudou a todos nós — Ly rna acabou dizendo. — E sei que Alucius
não teria gostado de ver a mudança na senhora.
O olhar de Alornis tornou-se sombrio.
— Ou na senhora, Alteza.
— A senhora tem escolha. Esse luxo me foi roubado no dia em que
destruíram o meu rosto e chegaram para devastar a nossa nação. Mas a senhora
ainda pode dar as costas a isso. Como acha que se sentirá quando aquela sua
máquina monstruosa transformar homens em tochas vivas? Os gritos de um
homem em chamas não são fáceis de ouvir.
— A senhora pediu a todos nós que carregássemos muitos fardos. Não fugirei
do meu.
Eu vou mandar você de volta assim que desembarcarmos, decidiu Ly rna
quando Alornis voltou ao trabalho. Eu não deveria tê-la trazido. O Reino não
precisa de mais uma alma deturpada, por mais habilidosa que seja.
Ela ergueu a cabeça ao ouvir um grito vindo do convés acima, logo seguido
por um tumulto de botas e pelas batidas rápidas do tambor do contramestre
chamando todos às armas.
— O que é? — perguntou Alornis.
— Um navio inimigo. — Ly rna levantou-se e seguiu para os degraus que
levavam ao convés superior. — Talvez possamos ver as suas novidades em
funcionamento mais cedo do que pensávamos.

Tripulantes correram aos seus postos de armas em punho, enquanto arqueiros


subiam no cordame com arcos às costas. O convés sob os pés de Ly rna ressoava
com o alarido do regimento de Lorde Nortah preparando-se para a batalha. Ela
encontrou o Escudo na amurada a estibordo, de luneta apontada para algo ao sul.
— Quantos? — perguntou Ly rna, indo para o lado dele e encarando a
penumbra, discernindo apenas um borrão tênue a alguns quilômetros de
distância. O céu havia clareado um pouco; ainda estava encoberto, mas havia luz
suficiente para revelar o horizonte.
— Um — respondeu ele, e apontou para uma embarcação meldeneana
menor a um quilômetro de distância, de velas desfraldadas e deixando um rastro
brilhante ao redor do casco enquanto seguia na direção do recém-chegado. — Fiz
sinal ao Orca para que investigasse.
Ly rna olhou para a proa, onde Alornis e Furelah estavam ocupadas
preparando a balista, e resistiu à tentação de mandá-la para baixo.
— Um navio de patrulha? — perguntou ela a Ell-Nestra.
— É bem provável, embora estejam muito distantes da costa para esta época
do ano.
Passou-se talvez meia hora de uma espera tensa desde que o Orca
desapareceu no horizonte enevoado até o Escudo soltar um grunhido de
satisfação e abaixar a luneta.
— O Orca deu o sinal de navio capturado e pede que nos aproximemos.
— Então faça isso.
As ordens do Escudo fizeram homens correrem para içar as velas e não
tardou para avistarem o Orca, de velas recolhidas enquanto balançava ao lado de
um cargueiro volariano de casco escuro, mantido perto da embarcação
meldeneana por numerosos cabos e escadas de abordagem. Ly rna podia ver
vários meldeneanos no convés volariano, parados atrás de uma pequena fileira
de prisioneiros ajoelhados, todos vestidos de cinza, com exceção de um. Um
homem de vermelho, ponderou Ly rna quando a aparência do prisioneiro ficou
mais nítida. No meio do oceano e sem escolta.
— Traga aquele a bordo — disse ao Escudo, apontando para o homem de
vermelho que agora percebia ter uma aparência um tanto esfarrapada; o manto
desalinhado e o rosto cinzento pela barda por fazer e pela fadiga. Olhando mais
de perto, ela notou certa familiaridade nas feições do homem, uma semelhança
com outro vestido de vermelho que teve o azar de cair em mãos meldeneanas.
— E faça sinal ao navio que está transportando o Aspecto Caenis — acrescentou
Ly rna. — Preciso de um de seus irmãos.

— Quantos anos você tem?


O homem de vermelho olhou para ela com olhos apáticos, suas feições
abatidas pela fadiga. Ly rna ordenara que ele fosse levado até a sua cabine, onde
agora estava sentado curvado numa cadeira com Iltis de pé atrás dele. O Irmão
Verin da Sétima Ordem estava parado perto da porta, um jovem magro de
sorriso nervoso que só conseguira responder com um murmúrio ao cumprimento
de Ly rna antes de fazer uma mesura com tanta pressa que quase caiu. Ela só
esperava que o receio do irmão não afetasse o seu dom.
Quando o homem de vermelho continuou a encará-la em silêncio, Iltis
colocou uma mão grande em seu ombro e inclinou-se para falar baixo em seu
ouvido.
— Responda à Rainha ou vou arrancar o seu couro antes de os piratas o
jogarem aos tubarões.
Pelo espasmo de raiva do homem de vermelho Ly rna deduziu que a sua
compreensão da língua do Reino era mais do que adequada, mas ainda assim ele
falou em volariano.
— Sou mais velho do que você pode imaginar — disse ele com o tom
refinado da classe governante volariana.
— Ah, acho que não — retorquiu Ly rna na língua do Reino. — E fale a minha
língua, por favor. Quanto à sua idade, pelo que a sua irmã me contou, estimo que
você tenha mais de trezentos anos.
O olhar do homem ficou um pouco mais vívido à menção da irmã.
— A Honorável Cidadã Fornella Av Entril Av Tokrev — prosseguiu Ly rna. —
Ela é sua irmã, não? E você é o Conselheiro Arklev Entril. — Cujo filho tive o
prazer de matar há alguns meses, acrescentou ela mentalmente.
— Você está com a minha irmã? — perguntou ele, mudando para a língua do
Reino com um sotaque carregado mas de forma compreensível.
— Não no momento. Mas ela estava bem quando a vi pela última vez, ainda
que levemente envelhecida.
— Onde ela está?
— Parece que você não está entendendo o propósito deste encontro,
Conselheiro. Não estamos aqui para que eu possa responder às suas perguntas,
muito pelo contrário, na verdade. E a nossa primeira ordem do dia é determinar
por que um membro do Conselho Governante volariano veio a ser capturado
com tamanha facilidade em alto-mar.
Arklev curvou-se mais, o cansaço e a derrota evidentes no suspiro.
— Já não há mais Conselho Governante, apenas o Aliado e a elverah que ele
escolheu chamar de Imperatriz.
Ly rna encarou o Irmão Verin. Ele fora cuidadosamente instruído acerca de
seu papel, embora suas mãos tremessem um pouco quando tocou o punho com
um dedo.
— Elverah significa bruxa ou feiticeira, pelo que me lembro — disse Ly rna.
— O nome começou com ela, que fez por merecê-lo. — Um traço de
desafio apareceu nos olhos do volariano quando ele ergueu a cabeça. — Você a
encontrou no dia em que ela fez a sua criatura matar o seu irmão.
Ly rna controlou a raiva e a torrente instantânea de lembranças horrendas. A
raiva é perigosa aqui, ela sabia. Provocará ações insensatas quando há muito para
se ficar sabendo.
— O Irmão Frentis a matou — disse Ly rna.
— Foi meramente a destruição de uma casca velha. Agora ela tem uma
nova.
— E essa criatura tomou sozinha o seu império?
— Ela faz o que o Aliado ordena. Parece que ele chegou à conclusão de que
o Conselho era supérfluo às suas necessidades.
— Eles foram mortos?
Ele abaixou a cabeça e assentiu.
— E ainda assim você sobreviveu.
— Eu me atrasei tratando de negócios no dia em que ela atacou. Os Kuritai
dela estavam por toda Volar, matando todos que serviam ao Conselho, cada
servo, escravo e familiar. Milhares eliminados num único dia. Eu consegui fugir
para as docas. Minha família possui muitos navios, mas só havia um no porto e
fomos obrigados a zarpar com poucos suprimentos. O navio foi parcialmente
destruído por uma tempestade há três dias.
Ly rna viu o Irmão Verin se retesar e lhe lançou um olhar questionador. Estava
evidente que o nervosismo dele não passara, mas havia uma convicção em seus
movimentos quando tocou o pulso, desta vez com dois dedos.
— Imagino que essa nova Imperatriz esteja perfeitamente ciente de nossas
intenções, não? — perguntou Ly rna, virando-se de novo para Arklev.
— Sua invasão é esperada para o verão. Ela está reunindo forças na capital e
ordenou que o restante da frota se dirigisse para lá. O plano do Aliado era zarpar
para confrontar vocês com mil navios e todas as tropas que pudessem reunir. Ao
que parece, ele está impaciente e ansioso para evitar que ocorram mais
frustrações.
Ly rna olhou de relance para as mãos de Verin e notou que ele mais uma vez
tocava o pulso com dois dedos em vez de um.
— Percebo que fui relapsa — disse ela a Arklev, gesticulando para o jovem
irmão — ao não apresentar o Irmão Verin da Sétima Ordem, um rapaz com uma
habilidade muito útil. Irmão, relate quais mentiras este homem me contou, por
favor.
Verin tossiu, corou um pouco e falou num tom levemente trêmulo:
— Eu… eu creio que ele estava presente quando o Conselho foi destruído. Ele
mentiu sobre correr para as docas e embarcar num navio. Mentiu sobre o plano
de oposição à invasão.
— Obrigada, irmão. — Ela olhou para Arklev e notou que ele agora estava
tenso de medo, mas deixando transparecer também uma resistência
determinada, encarando-a com raiva, de maxilar cerrado e a boca fechada com
firmeza. — Lorde Iltis — disse Ly rna. — Remova o manto deste homem.
Arklev tentou lutar, debatendo-se contra Iltis com os pulsos agrilhoados e
conseguindo somente ser derrubado no convés com uma bofetada e segurado
com um joelho pressionado em suas costas. O Lorde Protetor arrancou o manto
das costas do volariano em alguns segundos, revelando um padrão intrincado de
cicatrizes recentes que cobriam o seu torso da cintura ao peito.
Ly rna virou-se para o pálido Irmão Verin, que ficou um tanto mais lívido sob
o olhar dela e afastou-se um pouco.
— Chame a Senhora Davoka, por favor — disse ela ao irmão. — Ela saberá o
que trazer.
CAPÍTULO DEZ
Frentis

A Varikum ficava sobre uma colina baixa, uma fortaleza vasta de pedra com
cinco bastiões circulares interligados. Eles haviam sido obrigados a esperar
durante três dias nas colinas ao sul até que uma caravana aparecesse; vinte
carroções transportando mantimentos e escravos novos para serem treinados. O
comboio estava bem protegido com uma mistura de Varitai montados e
mercenários Espadas Livres. Felizmente, tudo indicava que notícias sobre as
táticas preferidas do Irmão Vermelho não haviam atravessado o oceano, pois
eles reagiram da forma mais previsível ao avistarem um grupo de escravas
aterrorizadas andando pela estrada. A pessoa no comando da guarda do comboio
despachou de imediato os Espadas Livres a cavalo para investigar, sem se
preocupar em proteger os flancos da coluna de maneira adequada. Frentis
aguardou que os Espadas Livres cercassem as garotas e assistiu enquanto
Lemera contava entre lágrimas a história de seu pobre senhor assassinado,
caindo de joelhos diante do terror daquilo tudo. O Espada Livre que liderava os
cavaleiros cometeu o erro de desmontar para erguê-la, segurou a cabeça da
garota e a virou de um lado para outro, avaliando-a, e então cambaleou para trás
quando a faca oculta de Lemera abriu o seu pescoço.
Os arqueiros cuidaram dos outros Espadas Livres, uma nuvem de flechas
caindo sobre eles das rochas ao redor, e as garotas atiraram-se sobre os que
ainda estavam vivos, caídos na estrada, as adagas subindo e descendo num
frenesi. Frentis conduziu a pé o grupo de escravos libertos treinado por Illian
contra o flanco do comboio, com Retalhador e Dente Negro indo na frente, cada
cão arrancando um Varitai da sela. O destino da coluna foi selado quando Mestre
Rensial e sua dúzia de combatentes montados investiram contra a retaguarda,
despachando rapidamente os defensores restantes. O capataz do comboio foi o
último a tombar, um sujeito tipicamente corpulento, de pé no carroção da frente,
estalando o chicote furiosamente sem nenhum sinal aparente de medo contra os
cavaleiros que o cercavam. Illian abaixou-se sob o chicote e saltou para o
carroção, decepando um dos pés do homem e arrancando com destreza o
chicote de sua mão enquanto ele caía. Na Martishe, eles sempre se empenharam
em capturar vivo qualquer capataz; os escravos recém-libertados costumavam
apreciar isso.
Os escravos somavam mais de trinta pessoas, a maioria homens, sentados
com grilhões em carroções enjaulados no meio da coluna. Havia também meia
dúzia de mulheres, escolhidas pela juventude e pela força.
— Os espetáculos são mais populares quando oferecem certa variedade —
explicou Lekran. — É uma tradição colocar mulheres para enfrentar feras em
homenagem a mitos antigos. Os volarianos descartaram os seus deuses, mas
mantiveram boa parte das histórias, especialmente as sangrentas.
Frentis ficou feliz ao ver que a maioria dos escravos era gente do Reino, com
alguns alpiranos de pele escura do Império Meridional. Pelo tratamento
dispensado ao capataz, também estava claro que dariam recrutas dispostos.
— Você agiu bem — disse Frentis a Lemera, que estava agachada sobre o
corpo de um Espada Livre enquanto o livrava de quaisquer itens úteis ou
brilhantes. Ela respondeu com um sorriso acanhado que desapareceu num
estremecimento ao ouvir o grito do capataz. — A liberdade é uma estrada difícil
— disse Frentis a ela antes de ir encontrar Trinta e Quatro.

— Você está satisfeito com o seu papel nisso?


Oito olhou para os dois companheiros ex-Varitai e assentiu. Nos dias seguintes
à libertação, eles passaram muitas horas de dor insones à medida que a ausência
do karn cobrava o seu preço. Contudo, também trouxe de volta uma luz aos olhos
deles, além de uma tendência de olhar para o céu ou a paisagem, como se as
vissem pela primeira vez. Eles falavam pouco e Frentis começara a se perguntar
se eles realmente compreendiam a situação em que se encontravam, mas agora
ele via uma consciência no olhar dos volarianos, assim como uma sensação de
certeza.
— Libertaremos tantos Varitai quanto pudermos, mas não podemos libertar
todos — prosseguiu Frentis. — Compreende?
Oito assentiu mais uma vez e falou devagar, com uma voz rouca e formando
palavras com cuidado deliberado:
— Nós estávamos… mortos. Agora… estamos vivos. Faremos outros… viver.
— Sim. — Frentis ergueu a espada tirada de um Varitai morto e a entregou a
Oito. — Muitos outros.
A breve conversa de Trinta e Quatro com o capataz revelou que Varikum era
protegida por não menos do que sessenta Varitai, complementados por uma dúzia
de capatazes. Por sorte, eles se dedicavam principalmente à defesa interna e
mantinham apenas alguns para proteger o lugar contra uma incursão.
— Garisai são famosos por serem difíceis de se cuidar — advertira Trinta e
Quatro. — Eles nunca recebem drogas e não são dominados como os Kuritai.
— Podemos esperar libertar quantos? — perguntou Frentis.
— O capataz estimou mais de uma centena. Mas não espere que todos sejam
recrutas dispostos, irmão, ou fáceis de comandar. A vida na Varikum é brutal e
curta, muitos perecem no treinamento e poucos sobrevivem à primeira
experiência dos espetáculos. Não é raro Garisai enlouquecerem devido às
provações.
Frentis olhou para Mestre Rensial, sentado no chão ali perto com a expressão
vazia que sempre parecia tomar conta de seu rosto após uma batalha. Então eles
estarão em boa companhia.
Ele fez Lekran assumir o papel de capataz, vestido de preto e de chicote em
punho. Frentis e Mestre Rensial vestiram os trajes de mercenários Espadas Livres
e cavalgaram junto ao carroção dianteiro, subindo a encosta até o portão
principal da Varikum. A falta de preparação do estabelecimento ficou evidente
pelo fato de que o portão já estava aberto, e um homem grande adiantou-se para
recebê-los com um olhar irritado.
— Estão atrasados, seus merdas! — rosnou ele a Lekran, e então parou,
franzindo o cenho, desconfiado. — Onde está Mastorek?
— Se der para acreditar nas velhas da minha aldeia — disse o ex-Kuritai,
levantando-se e tirando o machado que estava escondido debaixo de seu colete
—, sofrendo mil anos de tormentos para além do mar infindável. Você irá
cumprimentá-lo lá.
O capataz ainda tinha uma expressão de espanto no rosto quando o machado
desceu e lhe rachou o crânio.
Frentis esporeou o cavalo adiante com a espada desembainhada e atravessou
o portão a galope, matando outro capataz que tentava desesperadamente fechá-
lo. Dois Varitai saíram correndo de uma entrada sombreada com as espadas
curtas erguidas, e então rolaram sob os cascos do cavalo de Mestre Rensial
quando este os atropelou. Frentis desmontou e seguiu ao lado de Lekran quando o
ex-Kuritai passou por ele correndo de machado em punho, seguido de perto pelos
três ex-Varitai e todos os combatentes de seu pequeno exército, uma vez que
Frentis já não via sentido em tentar ser moderado a essa altura.
O exército dividiu-se de acordo com um plano preestabelecido quando
chegou à fortaleza interior, Lekran levando metade da força para a direita
enquanto Frentis seguia pela esquerda. A resistência era esporádica, mas feroz,
com três ou quatro Varitai de cada vez tentando lhes bloquear o caminho, mas
eram logo sobrepujados pelo ataque furioso. Oito, junto com Artesão e seus dois
Varitai libertos, recebera a incumbência de capturar vivos tantos quanto possível;
Artesão passava a sua corda grossa em volta de um e o arrastava para o chão,
enquanto os outros se aproximavam para amarrá-lo. Tiveram pouco sucesso,
capturando somente mais sete vivos quando a Varikum foi tomada, seus elegantes
e sinuosos corredores de mármore cobertos de sangue de ponta a ponta.
Frentis ordenou ao grupo de Illian que revirasse a Varikum em busca de
sobreviventes e então enviou Draker e o povo do Reino disfarçado às ameias com
instruções de aparentar que tudo continuava como antes. Ele seguiu para o amplo
círculo coberto de areia no meio da fortaleza principal, onde encontrou um
aglomerado de homens e mulheres em formação defensiva. Haviam se
posicionado em três fileiras compactas e disciplinadas, seus rostos fechados e
desafiadores, embora as armas consistissem apenas em lanças e espadas curtas
de madeira. A areia ao redor deles estava apinhada com os corpos dos capatazes,
abatidos pelos arqueiros que haviam ocupado a galeria que dava para a arena.
Ao que tudo indicava, o ataque pegara a Varikum no meio de seus treinamentos
vespertinos.
— Eles acham que somos bandidos de uma expedição para capturar escravos
— comentou Lekran quando Frentis entrou no círculo. — Está difícil convencê-
los do contrário.
Frentis embainhou a espada e avançou na direção do grupo, vendo como eles
ficaram tensos com a sua aproximação e notando as cicatrizes que ostentavam.
Parecia que nenhum havia escapado ileso, quer do chicote, quer de quaisquer
tormentos que os veteranos haviam sofrido nos espetáculos. Frentis parou a dez
metros deles, procurando algum vestígio de reconhecimento entre os rostos, mas
vendo apenas desconfiança.
— Há alguém aqui do Reino Unificado? — perguntou ele na língua do Reino.
A resposta foi principalmente uma série de olhares furiosos e perplexos, embora
um deles tenha se remexido ao ouvir as palavras, um homem de pele clara um
pouco mais velho e com ainda mais cicatrizes do que os outros. Ele tinha a
cabeça raspada como os demais e vestia uma roupa folgada que revelava um
corpo moldado para o tipo de magreza que só se adquiria com anos de árduo
treinamento.
— O último dos marinheiros de água doce morreu há dois dias — disse ele
com um sotaque meldeneano. O homem inclinou a cabeça para Frentis, a boca
contorcendo-se num leve desprezo. — Eles raramente duram muito tempo.
Mais alguém falou, uma jovem baixa porém musculosa que empunhava uma
lança de madeira apontada para os olhos de Frentis.
— Diga a ele que, se pretende nos vender, é melhor estar preparado para
sangrar pelo privilégio — disse ela em volariano.
— Eu falo a sua língua — revelou Frentis à mulher, erguendo as mãos
abertas. — E viemos apenas para libertá-los.
— Para quê? — retorquiu ela, seu olhar tão furioso quanto antes.
— Isso vocês é que decidirão — respondeu Frentis.

Ao todo, duas dúzias de Garisai libertos decidiram ir embora, o meldeneano entre


os primeiros a partir.
— Sem querer ofender, irmão, mas para o raio que o parta com a sua
rebelião — disse ele num tom afável no portão, erguendo um saco cheio de
objetos de valor e provisões. — Participei de dois espetáculos e isso é sangue
suficiente para qualquer vida. Vou para o litoral, onde vou encontrar alguma
coisa que flutue e navegar para as Ilhas. Imagino que a minha esposa
provavelmente já encontrou outro idiota a essa altura, mas, ainda assim, lar é lar.
— Seu povo se aliou a nós — observou Frentis. — Os Senhores Marinhos
concordaram com um tratado formal.
— É mesmo? Então para o raio que os parta também. — Ele deu um leve
sorriso de despedida e partiu correndo para oeste.
— Covarde — murmurou Lekran.
Ou o homem mais sensato que encontro em muito tempo, pensou Frentis,
observando-o se afastar.
A jovem do campo de treinamento fora escolhida para falar pelos seus
companheiros Garisai e se apresentou como Ivelda. Frentis percebeu certa
inimizade tribal pelos olhares atravessados e o sotaque similar ao de Lekran.
— Ela é rotha — advertiu o volariano, seu olhar tornando-se sombrio. — Não
se pode confiar neles.
— Othra significa “cobra” na nossa língua — retorquiu a jovem, colocando a
mão na espada curta que pegara da pilha de armas apreendidas. — Eles bebem
mijo de cabra e se deitam com suas irmãs.
— Se vocês pretendem se matar — disse Frentis quando Lekran empertigou-
se, vendo que estava cansado demais para intervir —, façam isso lá fora.
Ele voltou o olhar para o mapa que Trinta e Quatro abrira nos aposentos
luxuosos que o capataz principal da Varikum ocupara. Não conseguiram capturá-
lo vivo, para irritação dos Garisai libertos, embora tivessem se divertido com o
cadáver, e a sua cabeça agora adornasse uma lança cravada no centro do campo
de treinamento.
— A guarnição volariana sem dúvida recebeu notícias de nossas atividades a
essa altura — disse Trinta e Quatro, batendo num ícone a uns 25 quilômetros a
noroeste da Varikum. — Não será difícil seguir o nosso rastro até aqui.
— Nosso contingente? — perguntou Frentis.
— Duzentos e dezessete.
— Não é o suficiente — observou Lekran.
— Covarde fodedor de irmã — disse Ivelda com uma risada de escárnio. —
Cada Garisai aqui vale dez Varitai.
— Ele tem razão — disse Frentis. — Precisamos de mais combatentes.
— Se eles vierem para cá, terão que atacar as muralhas para nos capturar —
observou Draker. — Isso equilibra um pouco as coisas.
— Não podemos demorar aqui, por mais que eu queira. Além disso,
incendiar este lugar será um sinal bem claro de nossas intenções. Talvez até
funcione como um chamado àqueles aprisionados. — Ele passou o dedo por um
amontoado de colinas a cinquenta quilômetros a nordeste, uma rota marcada
com muitas plantações. — Iremos nos virar para enfrentá-los aqui, com sorte
num número ainda maior. Preparem-se para partir numa hora.
Eles atacaram quatro plantações em quatro dias, e suas fileiras aumentavam
a cada incursão. As propriedades ficavam maiores quanto mais eles seguiam
para o interior, com mais escravos e amplas evidências de que os capatazes
empregavam um nível de crueldade ainda maior do que o visto no litoral. A
maioria dos novos recrutas era composta por pessoas do Reino; os que haviam
nascido em cativeiro mostravam-se menos dispostos a abandonar uma vida
inteira de servidão, em alguns casos até lutavam para defender os seus senhores.
Isso foi particularmente evidente na quarta plantação, onde os escravos mais
leais formaram um cordão de proteção em volta da proprietária, uma mulher
alta e grisalha vestida de preto da cabeça aos pés, que permaneceu empertigada
e com um olhar desafiador enquanto a sua propriedade queimava à sua volta. Os
escravos que a protegiam estavam desarmados, mas deram os braços uns aos
outros, recusando-se a ceder apesar dos pedidos de Frentis.
— Nossa senhora é bondosa e não merece isso — disse uma das escravas a
Frentis, uma mulher de aparência matronal vestida com uma roupa visivelmente
menos esfarrapada do que a maioria dos escravos que haviam encontrado. Seus
companheiros escravos também estavam vestidos de maneira similar e ele viu
poucas evidências de quaisquer cicatrizes. Aquela plantação também era
incomum pelo fato de ser a única até então onde não encontraram um capataz
sequer, possuindo somente quatro Varitai fora de forma, todos capturados, com
exceção de um.
Frentis olhou para mulher no centro do cordão e percebeu como ela evitava o
seu olhar, estoica em sua recusa de notar alguém inferior.
— Sua senhora enriqueceu às custas do trabalho de vocês — disse ele à
matrona. — Se ela é tão bondosa assim, por que não os liberta? Venham conosco
e saibam o que é a liberdade.
Foi inútil; todos os escravos permaneceram no lugar e não deram ouvidos a
nenhuma outra tentativa de persuasão.
— Mate-os, irmão — disse uma das pessoas do Reino, um antigo ferreiro da
primeira incursão, que arreganhou os dentes ao cuspir contra o cordão de
escravos. — Eles nos traem com esse servilismo nojento.
Os outros escravos concordaram com um brado e, notou Frentis, nem todos
eles povo do Reino. Os combatentes libertos estavam ficando mais ferozes a cada
ataque, cada capataz ou senhor que torturavam até a morte aparentemente
aumentando a sede de sangue.
— A liberdade é uma escolha — disse Frentis a eles. — Recolham esses
suprimentos e preparem-se para partir.
O ferreiro grunhiu de frustração, apontando a espada para a senhora
empertigada.
— E quanto à cadela velha? Meta uma flecha nela e talvez eles recobrem a
razão.
O homem cambaleou quando Illian apareceu ao seu lado e lhe acertou um
soco ligeiro no maxilar.
— Esta empreitada está sob o comando da Sexta Ordem — disse ela —, e a
Ordem não guerreia contra velhas. — Ela levou a mão à espada quando o
ferreiro virou-se na sua direção cuspindo sangue. — Questione o Irmão Frentis
de novo e resolveremos isso com aço — prosseguiu Illian numa voz seca e firme.
— Agora, junte as suas coisas e mexa-se.

Naquela noite, Frentis viu Artesão libertar os Varitai capturados. Eles haviam
parado para passar a noite numa elevação quinze quilômetros ao norte da casa de
campo da velha, e os Varitai, que agora chegavam a cerca de trinta indivíduos,
haviam estabelecido o próprio acampamento, um pouco afastado da companhia
principal. Eles permaneciam um grupo bastante silencioso, uniformes nas
expressões de assombro e curiosidade com que encaravam o mundo, e
raramente se afastavam de Artesão, lembrando a Frentis gamos recém-nascidos
que se aglomeravam em volta de um pai.
Os três prisioneiros estavam sentados no meio do grupo, despidos até a cintura
e impassíveis quando Artesão agachou-se ao seu lado com o cantil na mão. Ele
mergulhou um junco fino no cantil e tocou com a ponta dele nas cicatrizes dos
volarianos, em cada uma das vezes provocando um espasmo de agonia
instantânea e um grito estridente que parecia sempre causar um arrepio intenso,
não importando quantas vezes Frentis o ouvisse. Os Varitai ao redor
aproximaram-se quando os gritos cessaram, os prisioneiros agora encolhidos aos
pés de Artesão. Ele se curvou para tocar um de cada vez, apoiando a mão em
suas cabeças até eles piscarem e despertarem para as suas novas vidas, cada
rosto uma máscara de confusão.
Isso é um ritual, compreendeu Frentis, observando como todos os Varitai se
viraram para erguer as mãos para Artesão, tocando um punho no outro e então
os afastando. Uma corrente partida, lembrou-se ele de suas lições da língua dos
sinais, perguntando-se onde eles a haviam aprendido. Apesar da reverência,
Artesão não demonstrava qualquer sinal de estar desfrutando das súplicas dos
Varitai, respondendo simplesmente com um leve sorriso, a fronte franzida de
tristeza.
— Ele é um sacerdote?
Frentis virou-se e viu Lemera parada ali perto, encarando os Varitai com uma
expressão intrigada.
— Não, um curandeiro — respondeu Frentis no seu alpirano hesitante. —
Tem… grande poder mágico.
— Você está assassinando a minha língua — disse ela, mudando para
volariano com uma risada. — Você a aprendeu no meu país?
Ele se voltou para os Varitai, estremecendo com lembranças que seria
melhor se permanecessem esquecidas.
— Eu viajei muito.
— Eu tinha apenas oito anos quando me levaram, mas as lembranças que
tenho de casa ainda são nítidas. Uma aldeia na costa sul. O mar era repleto de
peixes e azul como uma safira.
— Você voltará um dia.
Ela se aproximou de Frentis, o olhar baixo e pesaroso.
— Não serei bem-vinda lá… arruinada como estou. Nenhum homem fará
alguma oferta por mim e as mulheres irão me evitar pela minha violação.
— Parece que o seu povo possui costumes severos.
— Não é mais o meu povo. — Ela indicou com a cabeça os Varitai, que
agora ajudavam os irmãos libertados a se levantarem, alguns dizendo palavras de
consolo para tranquilizá-los. — Eles são o meu povo agora, e os outros. Você é o
Rei de uma nova nação.
— Já tenho uma, e a minha Rainha dificilmente permitiria outra coroa no
Reino.
— A irmã disse que você é o maior herói da sua terra. Você não merece ter
as próprias terras?
— A Irmã Illian tende a exagerar, e a posse de propriedades é negada aos
servos da Fé.
— Sim, ela tentou me ensinar a sua fé. Uma ideia estranha essa de adorar os
mortos com tanta devoção. — Lemera sacudiu a cabeça antes de se virar e
voltou para o acampamento principal, suas últimas palavras baixas, quase
inaudíveis: — Os mortos não podem retribuir esse amor.

Eles chegaram à região das colinas dois dias depois, e já somavam mais de
quinhentas pessoas, embora muitas não tivessem armas decentes, cerca de
metade delas apenas com porretes ou ferramentas agrícolas. Um número
crescente de recrutas era de fugitivos, que escapavam de seus senhores ao
ouvirem sobre a grande rebelião conforme aqueles que haviam sobrevivido aos
ataques espalhavam as notícias dos feitos da companhia de Frentis. Os fugitivos
traziam notícias do terror que os atacantes estavam causando na população livre
de Eskethia, as estradas setentrionais estavam agora apinhadas de pessoas
vestidas de preto e cinza que buscavam a segurança de terras com mais
guarnições.
Frentis os conduziu para o meio das colinas, uma paisagem essencialmente
descampada, salpicada de árvores pequenas e marcada pelas pedras monolíticas
que adornavam as encostas sinuosas. Ele escolheu um planalto rochoso para o
acampamento principal, com vista desimpedida em todas as direções e protegido
na extremidade norte por um rio de correnteza veloz. Mandou Mestre Rensial e
Illian para fazerem o reconhecimento do terreno a oeste, e eles retornaram após
uma cavalgada de dois dias para relatar que uma guarnição volariana os
perseguia numa velocidade impressionante, mil soldados numa marcha forçada
de oitenta quilômetros por dia.
— Este bando não pode enfrentar mil soldados, Irmão Vermelho — disse
Lekran naquela noite. — Os recém-chegados ainda acham que é um jogo e a
maioria nunca participou de uma luta de verdade.
— Então é hora de participarem — retorquiu Frentis. — Não podemos fugir
para sempre. Levarei os arqueiros para ver se conseguem diminuir um pouco as
fileiras deles. Irmã Illian, faça a sua gente começar a empilhar estas rochas em
algo que se assemelhe a uma fortificação. Você e Draker ficarão no comando do
acampamento até eu voltar. — Ele se virou para Lekran e para a Garisai. —
Posso esperar que vocês realizem uma tarefa sem derramar o sangue um do
outro?
Ivelda lançou um olhar azedo para Lekran, mas assentiu, e o ex-Kuritai
concordou com um grunhido brusco. Eles observaram Frentis desenhar um mapa
na terra, escutando com atenção enquanto ele explicava o papel que
desempenhariam.
— Muita coisa pode dar errado nisso — disse Lekran.
— Mesmo que não funcione, deve pelo menos acabar com metade deles, e
as pessoas aqui terão uma chance ao lutarem. — Frentis levantou-se e ergueu o
arco. — Mestre Rensial, junte-se a mim, por favor.

Eles encontraram uma saliência sombreada para se esconder e observar os


Varitai marcharem para as colinas, Frentis usava a sua luneta para avistar os
oficiais. Foi fácil identificar o comandante, um homem robusto a cavalo no meio
da coluna, sua autoridade evidente nos bruscos acenos de cabeça que dava aos
homens mais jovens que ocasionalmente cavalgavam até o seu lado. A coluna
estava bem organizada, mas possuía uma vaga fileira conflituosa de Espadas
Livres na vanguarda, nos flancos e na retaguarda.
— Esse sujeito é um pouco cauteloso demais para o meu gosto, mestre —
comentou Frentis, passando a luneta a Rensial.
O mestre a levou ao olho por um breve momento e então a devolveu,
encolhendo os ombros.
— Então mate-o.
Frentis fez sinal para que o Cabo Vinten e Dallin se aproximassem e apontou
para o flanco sul da coluna.
— Dallin, você vem comigo e Mestre Rensial. Vinten, pegue os outros e dê a
volta. Quando eles acamparem, esperem pelo crepúsculo e matem o máximo de
homens nos piquetes que puderem. Assim que terminarem, voltem para o
acampamento, não se demorem.
O Guarda da Cidade assentiu, relutante.
— Não parece certo deixar você, irmão.
— Façam isso e ficaremos bem. Agora, vão.
Eles seguiram a coluna até o anoitecer, observando-a se transformar num
acampamento quadrado com a velocidade e a precisão desconcertantes dos
soldados-escravos volarianos. Vendo o modo como o batalhão inteiro se movia
como um animal vivo, Frentis ficou feliz por nunca ter tido de enfrentá-los em
campo aberto e assombrado com o fato de Vaelin ter conseguido derrotar tantos
em Alltor. Não me admira que ela achasse que podiam conquistar o mundo inteiro.
Eles deixaram Dallin com os cavalos a um quilômetro do acampamento
volariano e aproximaram-se a pé, seguindo para a fileira de piquetes ao norte.
Frentis e Rensial vestiam os trajes dos mercenários Espadas Livres, basicamente
idênticos à vestimenta padrão, porém um pouco menos uniformes na aparência,
os peitorais adornados com vários escritos em volariano. Frentis não sabia ler as
palavras, mas Trinta e Quatro traduzira o suficiente para indicar que consistiam
em várias frases cínicas e fatalistas populares entre Espadas Livres veteranos:
livre em espírito, mas escravo do sangue era um exemplo típico. Contudo, o traje
era similar o bastante aos dos outros Espadas Livres para permitir que se
aproximassem do primeiro que viram sem qualquer sinal de alarme.
— Que frio de merda esta noite — cumprimentou ele animado, a fumaça
subindo enquanto mijava numa rocha.
Mestre Rensial não falava uma única palavra em volariano, mas repetiu “frio
de merda” com uma precisão espantosa antes de se aproximar e cortar a
garganta do homem. Eles esconderam o corpo atrás de um rochedo grande e
seguiram em frente, chegando até os limites do acampamento sem qualquer
interrupção. Varitai estavam postados a intervalos de cinco metros, sentinelas
silenciosas que mal se moviam e que também não tentaram detê-los ao
rumarem para o interior do acampamento, onde avistaram a grande tenda
armada no centro. Frentis ficou consternado ao encontrar dois Kuritai postados do
lado de fora da tenda; a cautela do comandante volariano estava se mostrando
cada vez mais exasperante. Eles foram até uma fogueira a pouca distância dali,
estendendo as mãos para esquentá-las e escutando pedaços da conversa no
interior da tenda.
— … recebemos mais críticas por cada dia que demoramos, pai — dizia uma
voz, aflita em sua impaciência juvenil. — Pode apostar que aqueles desgraçados
em Nova Kethia já estão lucrando muito com os nossos infortúnios.
— Que lucrem — ouviu-se uma resposta muito mais plácida de uma voz
mais velha, irritada e cansada. — A vitória sempre silencia as críticas.
— Você ouviu os batedores ontem. Pelo menos duzentos escravos fugiram só
na semana passada. Se não acabarmos logo com essa rebelião…
— Não é uma rebelião! — exclamou a voz mais velha, uma raiva súbita
espantando o cansaço. — É uma invasão de estrangeiros sedentos de sangue e
você não vai me convencer do contrário. Nunca houve uma revolta de escravos
na história do império e a nossa família não terá o nome maculado pela menção
de uma. Está me ouvindo?
Uma pausa antes de uma resposta mal-humorada:
— Sim, pai.
A voz mais velha soltou um suspiro cansado e Frentis visualizou o seu dono
jogando-se numa cadeira.
— Pegue o mapa. Não, o outro…
Eles esperaram até o sol desaparecer além do horizonte e vários alarmes
soarem no perímetro sul, indicando que Vinten seguia as suas ordens com a típica
eficiência. Frentis puxou uma faca de arremesso e olhou nos olhos de Rensial.
— Não mate o filho.
Eles correram para a tenda, Frentis sacudindo freneticamente a mão vazia
para o sul.
— Honorável Comandante, estamos sendo atacados!
Como esperado, os Kuritai avançaram ao mesmo tempo para lhes bloquear o
caminho, enquanto uma praga ecoava do interior da tenda e um rosto largo e
grisalho surgia na entrada.
— O que é essa balbúrdia? — perguntou numa voz irritada.
Não tão cauteloso, afinal de contas, concluiu Frentis ao arremessar a faca, que
passou por entre os dois Kuritai e atingiu o comandante na garganta. Frentis
esquivou-se para o lado quando o Kuritai à direita atacou, sua espada chocando-
se com as lâminas duplas ao girar, sua própria lâmina cortando fundo o braço do
escravo de elite. O ferimento mal pareceu retardá-lo, e o homem desferiu um
golpe veloz com o braço bom contra o peito de Frentis, as espadas colidindo-se
com uma chuva de faíscas antes de o irmão segurar a espada curta pelo cabo,
colocar um joelho no chão e dar uma estocada para o alto contra a cabeça do
Kuritai. A ponta da espada atingiu o volariano sob o queixo, atravessando-o até o
cérebro.
Frentis ergueu a cabeça e viu Mestre Rensial dando cabo do outro Kuritai,
bloqueando um golpe alto com a espada enquanto sua outra mão cravava uma
adaga na brecha que encontrara entre a axila e o peito na armadura do escravo
de elite. O mestre recuou quando outra figura saiu da tenda, um jovem alto
brandindo uma espada curta com as duas mãos, gritando de fúria e pesar,
desferindo golpes frenéticos e sem muita precisão. Rensial esquivou-se de uma
estocada mal calculada e arrancou a espada da mão do jovem, derrubando-o
com uma bofetada no rosto.
O jovem se arrastou para trás quando Rensial avançou, erguendo as mãos
para proteger o rosto, uma súplica quase incoerente por misericórdia brotando de
seus lábios ensanguentados. Frentis parou sobre ele e o jovem se encolheu ainda
mais, os olhos arregalados de terror.
— Está desonrando o seu pai com essa atitude — disse-lhe Frentis com grave
desaprovação, e então inclinou a cabeça na direção de Rensial. — Mestre, creio
que é hora de ir.

Como esperara, o ataque de Vinten atraíra atenção para o perímetro sul e eles
seguiram quase sem serem interrompidos ao se afastarem do acampamento,
gritando a cada guarda pelo caminho que estavam sofrendo um ataque e que o
comandante havia sido morto. Não surtiu muito efeito com os Varitai, mas os
Espadas Livres não tardaram a correr para investigar. Somente um tentou lhes
bloquear o caminho, um cavaleiro corpulento de meia-idade com o porte
comum a sargentos do mundo todo.
— Vocês viram o Honorável Comandante tombar? — perguntou ele, uma
fúria sombria visível no seu rosto marcado.
— Dois assassinos — disse Frentis, colocando uma nota de pânico na voz. —
Eles mataram os Kuritai como se fossem crianças.
— Acalme-se — ordenou o volariano na sua voz de sargento, franzindo um
pouco o cenho ao olhar com mais atenção para Frentis e Rensial, seus olhos
demorando-se nas armaduras cobertas de escritos. — De que companhia vocês
são? Quais são os seus nomes e patentes?
Frentis olhou em volta e não viu mais ninguém por perto que pudesse ouvir,
parando de se curvar de medo e empertigando-se.
— Irmão Frentis da Sexta Ordem — respondeu ele, acertando o lábio
superior do sargento com os nós dos dedos. — Estou aqui a serviço da Rainha.
Ele deixou o homem quase inconsciente, mas vivo. Pela sua reação ao ouvir
as notícias, Frentis deduziu que ele havia sido por muito tempo subordinado do
comandante morto, e o filho poderia se beneficiar bastante de um conselheiro tão
leal.
Dallin estava esperando onde o haviam deixado na face leste de um dos
maiores rochedos, segurando firme os cavalos apesar da inquietação dos animais
com o barulho crescente que vinha do acampamento.
— Cavalgue depressa — disse-lhe Frentis, montando. — Nada de descanso
até o sol nascer.

A perseguição volariana mostrou-se mais lenta do que o esperado; a poeira


levantada pelos batedores só apareceu bem depois do alvorecer do dia seguinte.
— Na Urlish eles já estariam nos nossos calcanhares a essa altura —
comentou Dallin.
Frentis ergueu a luneta para ter uma visão melhor dos perseguidores; trinta
homens, andando bem perto uns dos outros.
— Estou começando a suspeitar de que as melhores tropas deles morreram
no Reino.
Frentis mandou Dallin ir na frente com instruções para Ivelda e Lekran,
enquanto ele e Rensial ficavam para deixar alguns rastros óbvios para os
volarianos: uma pedra virada, uma tira rasgada de roupa num galho de tojo. Ele
esperou até que os cavaleiros estivessem a não mais que um quilômetro e meio
de distância e a infantaria pudesse ser vista seguindo-os em fila por uma trilha
estreita. Cavalgaram durante algum tempo e pararam no alto de uma colina, suas
silhuetas visíveis contra o céu. Frentis podia ver a infantaria com mais clareza
agora, uma longa coluna de Varitai deslocando-se numa corrida constante e que
de alguma forma ainda conseguia acompanhar o ritmo. Os batedores
avançavam numa boa velocidade, e a luneta de Frentis discerniu duas figuras na
dianteira, um jovem alto seguido de perto por um homem corpulento com o lábio
superior roxo. A tristeza acaba com a cautela, pensou ele com satisfação, virando
o cavalo mais uma vez para leste.
Avistaram Lekran cerca de duas horas mais tarde, acenando com o machado
erguido do alto de um dos rochedos monolíticos, os Garisai surgindo das rochas
pelos lados.
— Está tudo pronto? — gritou-lhe Frentis, desmontando e subindo pela face
mais escarpada do rochedo.
— A cadela rotha está guardando o flanco sul com metade dos Garisai. —
Lekran apontou para o desfiladeiro abaixo, uma fenda estreita na paisagem de
uns 150 metros de extensão por quarenta de largura. O desfiladeiro era fechado
na extremidade oposta, onde um grupo de combatentes livres montara um
acampamento adequadamente óbvio, com fumaça subindo de fogueiras e
abrigos simples erguidos entre as rochas. — E a isca foi lançada.
Frentis sabia que aquilo era arriscado; ele só podia esperar que a fúria dos
volarianos os impedisse de se perguntarem por que os seus inimigos haviam
escolhido um lugar tão ruim para acampar. Contudo, Lekran não via muito risco
no plano.
— Os volarianos veem escravos como seres inferiores aos homens — disse
ele. — Incapazes de raciocinar de verdade. Confie em mim, Irmão Vermelho.
Eles engolirão tudo e nós faremos com que se engasguem.
— E os tojos?
Lekran indicou com a cabeça o local onde os arqueiros de Vinten estavam
agachados entre as rochas, pouco depois da extremidade norte do desfiladeiro,
cercados por feixes amarrados de tojo. Frentis começou a descer do rochedo.
— É melhor eu assumir a minha posição. Lembre-se de deixar alguns
Espadas Livres escaparem.
Ele seguiu para o outro lado do desfiladeiro, onde encontrou Illian
supervisionando os preparativos.
— Eu lhe disse para aprontar o acampamento principal, irmã — disse Frentis,
aborrecido.
— Draker tem tudo sob controle — retorquiu ela, olhando-o nos olhos sem
sinal de arrependimento. — E já que treinei essa gente, não estou disposta a
deixar que enfrentem uma batalha sem mim.
Frentis resistiu ao impulso de mandá-la sair dali. Illian tornava-se cada vez
menos reverente com o passar dos dias, exercendo certa flexibilidade ao
interpretar as ordens dele e com frequência mais do que disposta a defender a
própria opinião. Ele sabia que não era necessariamente algo ruim. Sempre
chegava um momento na Ordem em que os noviços deixavam a sombra de seus
mestres, mas Frentis esperara que com ela isso levasse mais tempo; Illian ainda
tinha muito a aprender e ele temia as consequências da ignorância dela.
— Fique perto de mim — disse ele. — Desta vez no máximo a um braço de
distância. Entendido?
A atitude desafiadora dela se abrandou um pouco e Illian assentiu, erguendo a
besta e encaixando um virote antes de colocar outro entre os dentes no que agora
era reconhecido como um ritual pré-batalhas.
— Irmão! — Dallin estava no alto de um rochedo apontando para a abertura
do desfiladeiro voltada para oeste, onde a cavalaria volariana surgira.
— Vocês conhecem o plano! — gritou Frentis para os outros enquanto se
preparavam, brandindo armas variadas e posicionando-se numa fileira sem uma
ordem muito definida.
A maioria era de seus combatentes originais da Urlish, misturados com os
recrutas mais habilidosos conseguidos durante a marcha, com Artesão e os seus
Varitai entre eles, carregados de cordas e porretes. Todos haviam amarrado
panos úmidos sobre as bocas, algo que ele esperava que os volarianos
interpretassem como um esforço para não serem reconhecidos.
— Temos que resistir à primeira investida — prosseguiu Frentis. — Quando as
fileiras deles se desfizerem, formem pares e abram caminho até o centro do
desfiladeiro.
Os volarianos pararam a oitenta metros de distância e começaram a entrar
em formação. Era evidente que estava ocorrendo uma discussão acalorada no
centro da fileira deles, e Frentis reconheceu a figura alta do filho do comandante,
que batia boca com o sargento corpulento, gesticulando com impaciência para a
gentalha de escravos celerados que aguardava. Atacar ladeira acima a cavalo em
terreno irregular, ponderou Frentis, observando o sargento ser calado aos gritos e
o filho do comandante sacar a espada, apontando para o homem. Seu pai sem
dúvida teria ficado envergonhado, Honorável Cidadão.
Frentis virou-se para Illian quando os volarianos atacaram em disparada,
espalhando pedras ao subirem com dificuldade a encosta.
— O sujeito grande ao lado do homem alto, irmã, por favor.
O virote foi disparado assim que ela levou a besta ao ombro, subindo e
descendo num arco calculado com perfeição e cravando-se no peitoral do
sargento antes que os cavaleiros tivessem percorrido metade do caminho; a
forma corpulenta desabou da sela e permaneceu imóvel no solo rochoso. Illian
moveu-se com uma velocidade natural para recarregar a besta e grunhiu ao
apoiar a coronha no diafragma, preparando outro virote na arma e segurando
mais um entre os dentes, tudo em menos de três segundos, um feito que Frentis
jamais viu alguém igualar. A corda da besta zuniu de novo quando os cavaleiros
chegaram a quinze metros de distância, e um Espada Livre caiu no chão com um
virote fincado no elmo.
Frentis se pegou sentindo uma admiração relutante pelo modo como o filho
do comandante avançava, as esporas entrando nos flancos do cavalo enquanto
ele se esforçava para alcançar o assassino de seu pai, o ódio cego e a fúria
estampados em seu rosto, tentando desfazer a vergonha com coragem, uma
coragem que o deixava alheio ao fato de que o solo havia desordenado a sua
companhia e que ele deixara os seus homens para trás para atacar sozinho.
Frentis correu para o rochedo mais próximo, o volariano tomado pelo ódio
agora a menos de três metros dele, virando-se para interceptá-lo. Ele saltou para
o alto do rochedo, o que o deixou na altura do filho, e desferiu um golpe giratório
que se chocou com a espada de cavalaria de lâmina longa, estilhaçada pela
lâmina da Ordem acima do punho. O volariano parou o cavalo e tentou virá-lo,
tateando em busca da espada curta extra presa à sela, e então arqueando as
costas quando o virote da besta de Illian cravou-se nelas.
Ela correu quando o filho do comandante caiu, segurando-o no chão com
uma bota no pescoço e erguendo a adaga.
— Deixe-o — disse Frentis, aproximando-se e batendo com o pomo da
espada na têmpora do volariano, deixando-o desacordado. — Veremos o que ele
tem a dizer mais tarde.
Frentis olhou para a cena ao redor, sentindo um orgulho indulgente no modo
como a investida volariana fora anulada com sucesso; os combatentes saltavam
das rochas e arrancavam os cavaleiros das selas enquanto os Varitai de Artesão
derrubavam cavalos com cordas ou desmontavam homens e se aproximavam
para golpear com os porretes. Estava acabado dentro de poucos momentos; uma
dúzia de cavalos sem cavaleiros trotaram de volta para as profundezas do
desfiladeiro, cada volariano morto ou capturado. Eles mesmos tiveram poucas
baixas, quatro mortos e dez feridos. Porém, a verdadeira batalha ainda não
começara.
Os Varitai aproximavam-se com uma indiferença típica, embora o massacre
sofrido pela cavalaria Espada Livre tivesse claramente alarmado os seus oficiais
pelo modo como esporearam os cavalos até a retaguarda da coluna, ao mesmo
tempo que ordenavam que o batalhão avançasse. Os Varitai se espalharam para
formar uma linha ofensiva com quatro companhias, cada uma com quatro
fileiras compactas, a primeira avançando com o seu ritmo impecável e
inquietante, as lanças de lâminas largas apontadas na altura da cintura.
Quando os Varitai haviam percorrido dois terços da extensão do desfiladeiro,
os arqueiros levantaram-se de seus esconderijos e começaram a trabalhar.
Apesar de não serem muitos, a essa altura as suas habilidades estavam bem
aprimoradas; a chuva de flechas foi esparsa porém mortal ao abater uma dúzia
de Varitai a cada saraivada, mas, como sempre, os soldados-escravos mal
pareciam notar, avançando naquele passo inabalável, com somente o mais leve
sinal de desarmonia em suas fileiras.
O primeiro fardo de tojo flamejante voou em arco da parede do desfiladeiro
e caiu bem diante da primeira fileira, erguendo uma fumaça branca, e foi
rapidamente seguido por mais até parecer que caíam do céu enormes granizos
em chamas. Uma cortina de fumaça logo cobriu o fundo do desfiladeiro de ponta
a ponta, e os Varitai foram ocultados pela neblina sufocante.
Frentis prendeu o pano úmido sobre a boca e ergueu a espada, virando-se
para dirigir-se aos combatentes ao redor:
— Lutem bem e que os Finados guiem as suas mãos!
Eles investiram num grupo compacto, correndo às cegas em meio à fumaça
e chocando-se com a vanguarda da companhia de Varitai, o ímpeto da investida
suficiente para fazê-los atravessar as quatro fileiras; Frentis e Illian moviam-se
numa dança circular, matando Varitai por todos os lados. Logo tudo havia se
transformado num tumulto de metais entrechocando-se e de gritos de dor ou
fúria. Às vezes eles se viam numa multidão de oponentes, empurrando e
golpeando enquanto tropeçavam sobre os mortos; em outros momentos a
resistência desaparecia por completo e ficavam isolados num mundo de fumaça
branca à medida que a cacofonia da batalha prosseguia invisível por toda parte.
Frentis tinha vislumbres dos Varitai libertos em ação, derrubando os irmãos
escravizados e golpeando-os até deixá-los inconscientes. No entanto, o que mais
via era cenas de matança, os Garisai realizando a sua tarefa com toda a
habilidade e a fúria aprendidas na Varikum. Frentis se pegou distraído por um
momento pela visão de Ivelda e dois outros Garisai sendo erguidos pelos
companheiros e arremessados sobre uma fileira de Varitai, girando no ar feito
acrobatas na Feira de Verão e aterrissando para atacar o inimigo pela retaguarda.
— Irmão!
O aviso de Illian chegou tarde demais por uma fração de segundo, e Frentis
girou nos calcanhares, deparando-se com um oficial Espada Livre que surgia a
todo o galope da fumaça, perto demais para que pudesse se esquivar dele. Saltou
então para a frente, agarrando o freio do cavalo e passando as pernas em volta
do pescoço do animal. O cavalo empinou quando o cavaleiro golpeou Frentis
com a espada. O golpe não foi bem direcionado, mas deixou um corte superficial
em seu antebraço, forçando-o a se soltar. Frentis caiu com força no solo rochoso
e perdeu o fôlego com o impacto. Ele rolou, tentou levantar-se e encheu a
garganta com o ar carregado de fumaça, engasgando-se. O Espada Livre era um
cavaleiro muito mais habilidoso do que o filho do comandante e virou o cavalo
numa rápida demonstração de perícia, investindo com a espada preparada para
um golpe decapitador contra o pescoço de Frentis.
A faca arremessada por Illian perfurou o rosto do cavaleiro logo acima da
correia do queixo do elmo, forçando-o a virar o animal, mas ainda assim o
flanco do cavalo chocou-se com Frentis tão logo ele conseguiu levantar-se,
derrubando-o mais uma vez. Ele engoliu mais ar contaminado e forçou-se a ficar
de pé, procurando de forma frenética pelo cavaleiro, mas vendo que a sela agora
estava vazia. Seus olhos avistaram um movimento vago de sombras em meio à
fumaça, a quatro metros dali, e ele correu na direção delas, onde encontrou Illian
enfrentando o Espada Livre que fora derrubado do cavalo. Apesar da faca
cravada na face, o volariano atacava a irmã com uma série de golpes
habilidosos, a sua espada longa de cavalaria um borrão enquanto avançava, os
dentes arreganhados no rosto ensanguentado. Illian aparou cada golpe e saltou,
desferindo um chute na lateral do rosto do homem, enfiando a faca ainda mais
fundo. O volariano cambaleou para trás, o sangue escorrendo grosso de sua boca
ao cair de joelhos e olhar para Illian, a fúria dissipada agora que havia uma
súplica desesperada em seus olhos.
Frentis parou para tomar fôlego, os sons da batalha diminuindo ao redor deles
junto com a fumaça, revelando a ruína do batalhão Varitai, as fileiras
organizadas rompidas, restando poucos focos de resistência. Nem mesmo eles
conseguiam permanecer em formação ao serem cegados.
Frentis parou ao lado de Illian, que observava o volariano morrer.
— Matar sem necessidade é contra a Fé — explicou ela em resposta à
sobrancelha erguida de Frentis.
— Sem dúvida, irmã — disse Frentis, apertando rapidamente o ombro dela
antes de ir procurar Lekran e garantir que alguns sobreviventes pudessem fugir.
— Sem dúvida.

Ela sente o retorno dele com uma torrente de alegria, imaculada pela inimizade
feroz que toma conta da mente dele. Os longos dias de sua ausência foram árduos.
Fora difícil dominar a solidão, antes uma sensação há muito esquecida, que agora
provocava uma dor desesperadora quando ela se entregava às lembranças do
tempo glorioso que passaram juntos. Em vez da voz, desta vez ele oferece uma
visão, e pela clareza ela conclui que ele passou muito tempo vendo aquela cena,
tentando capturar cada detalhe. Ela deduz que o seu retorno não é acidental e que
qualquer artifício que ele vinha usando para ocultar os seus sonhos havia agora
sido removido; ele quer que ela veja.
Mil ou mais Varitai e Espadas Livres jazem mortos num desfiladeiro, em algum
lugar na região das colinas a leste de Nova Kethia, a julgar pela paisagem.
Pessoas em armaduras descombinadas andam por entre os mortos dando cabo dos
feridos e recolhendo armas. Ela se vê dando um sorriso jocoso. Você obteve uma
vitória, amado, diz a ele. Que encantador. Eu procurava alguma desculpa para
executar o governador de Eskethia.
A inimizade fica mais intensa, os pensamentos transformam-se em palavras, o
seu coração palpita ao som da voz dele. Venha me enfrentar. Terminaremos isso.
Ela suspira, passa a mão pelo cabelo e seu olhar recai sobre o oceano cinzento
que se estende para além do penhasco. Está começando a chover; o litoral
noroeste sempre é úmido no inverno, embora as águas estejam mais calmas do
que o esperado. Seus escravos aproximam-se correndo e trazem um toldo,
ansiosos para proteger a Imperatriz das intempéries. Ela os dispensa com um
aceno irritado. São escravos experientes, atentos ao extremo; porém, para uma
mulher acostumada à privação e ao perigo, a sua devoção pelo conforto dela é
irritante, deixando pouco pesar pelo destino iminente deles.
Sinto muito, amado, diz a ele, os olhos agora fixos no horizonte e o coração
batendo mais rápido com a alegria da expectativa. Mas tenho assuntos a resolver
aqui. Você terá que se entreter com os meus escravos por mais algum tempo.
A inimizade diminui, transformando-se numa curiosidade relutante. Ela ri,
jubilante, quando os primeiros mastros surgem no horizonte, e ergue os olhos para
o céu repleto de nuvens. Ela faz sinal para que o capitão de sua escolta se
aproxime, um Arisai como os outros, promovido graças à sua brutalidade
levemente mais controlada.
— Mate os escravos — diz a ele. — Além disso, passamos por uma aldeia a
alguns quilômetros. Não pode haver testemunhas de minha presença aqui. Cuide
disso.
— Imperatriz. — Ele faz uma mesura, com uma expressão de quase adoração,
ainda que, tal como os outros, a crueldade raramente esteja ausente de seus olhos.
Ele se vira e anda na direção dos escravos, sacando a espada.
Os membros dela estremecem ao se virar de volta para o mar, alheia aos gritos
ao invocar o dom. Ela lamenta um pouco a necessidade de fazer isso, pois se
acostumou àquela casca. Contudo, outra a aguarda em Volar, um pouco mais alta,
embora não tão atlética.
É preciso cumprir as formalidades, meu amado, diz a ele, erguendo os braços
e concentrando-se nas nuvens, observando-as dançar em resposta ao dom. É hora
de uma imperatriz receber uma rainha.
CAPÍTULO ONZE
Vaelin

A tempestade seguinte durou mais tempo do que a primeira, dois dias inteiros de
avanço difícil por trás do escudo criado pelo dom de Cara. O esforço constante a
forçara a reduzir o alcance do escudo, obrigando todos a se moverem num grupo
compacto, os guardas de Orven andando ombro a ombro com os Senthar de
Alturk. Apesar de todo o acotovelamento e proximidade indesejada, não houve
problemas; a ferocidade da tempestade que os cercava deixava pouco espaço
para outras preocupações. Cara começou a vacilar no segundo dia, caindo de
joelhos diversas vezes e só conseguindo manter o escudo ao dividir o poder com
Kiral e Marken ao mesmo tempo. Ao anoitecer, todos os outros dotados já
haviam dividido ao ponto de desmaiarem, e Cara estava quase inconsciente,
murmurando em delírio enquanto escorria sangue de seu nariz e olhos.
— Temos que acabar com isso! — gritou Lorkan a Vaelin, mal conseguindo
manter-se de pé. — Ela vai morrer se continuarmos.
Vaelin virou-se para Urso Sábio com um olhar questionador. O velho xamã
franziu o cenho e abriu caminho até a extremidade da companhia, esticando o
cajado para fora do escudo na fúria branca e uivante do lado de fora.
— Vento diminui, mas devagar — disse ele. O xamã hesitou, olhou para Cara
e então se empertigou, decidido. — Fazer círculo, cavalos do lado de fora. Cobrir
toda a pele, ficar bem juntos.
Foram necessárias algumas manobras desajeitadas para posicionar os
cavalos e os pôneis num círculo, e a essa altura Cara havia enfraquecido ainda
mais.
— Pare agora, Passarinha — disse Urso Sábio, mantendo o seu hábito de
ignorar os nomes deles e usar os que escolhia.
— Não posso — sussurrou ela, os olhos fechados e escorrendo sangue. — A
tempestade… o preço.
— Tempestade diminui — disse o xamã, colocando a mão na testa dela. —
Pare agora.
Cara gemeu, piscou por um momento… e o escudo caiu.
O frio foi como uma martelada, arrancando um gemido de dor de cada
garganta ao mesmo tempo que os viajantes encolhiam-se sob o seu peso,
aninhando-se numa necessidade instintiva. Vaelin segurou firme as rédeas de
Cicatriz enquanto Dahrena lhe abraçava a cintura e Kiral encolhia-se contra as
suas costas, entoando em voz baixa, em lonak, as palavras desconhecidas, mas
com um tom ritmado familiar: canção de morte. Os cavalos e os pôneis gritaram
quando o vento os açoitou, alguns pinoteavam e empinavam, aterrorizados,
arrebentando as rédeas que os seguravam e fugindo para dentro da tempestade.
Cicatriz bufou e bateu os cascos no chão, retesando as rédeas nas mãos de Vaelin
ao soltar um relincho alto de protesto, ameaçando arrancá-lo da companhia.
Vaelin rangeu os dentes e puxou as rédeas com força, trazendo o cavalo para
mais perto e pressionando a si mesmo e a Dahrena contra o flanco do animal na
esperança de que o pouco de calor pudesse tranquilizá-lo. Cicatriz relinchou de
novo, mas se acalmou, provavelmente mais pelos efeitos debilitantes do frio do
que por qualquer lealdade instintiva.
O tempo pareceu estender-se enquanto eles suportavam o ataque da
tempestade, cada segundo um teste de resistência. Os cavalos começaram a
morrer após a primeira hora, desabando numa exaustão silenciosa, os cavaleiros
encolhendo-se atrás dos cadáveres que logo congelavam. Vaelin podia ouvir
outras vozes lonaks erguidas na mesma cadência ritmada, mais canções de morte
proferidas ao vento, desaparecendo à medida que os minutos intermináveis se
prolongavam.
Ele começara a se curvar quando sentiu a tempestade amainar, como se o
frio de uma lâmina tivesse sido removido. Soltou as rédeas de Cicatriz e abafou
um grito de dor quando sentiu a vida voltar aos dedos parcialmente congelados.
Dahrena mexeu-se ao seu lado, um sorriso cansado visível em meio ao
amontoado de peles. Para seu espanto, Cicatriz ainda estava vivo, ainda que
tivesse caído de joelhos e a neve houvesse se acumulado em seus flancos; ele
piscou olhos doloridos quando Vaelin lhe coçou as orelhas.
Ao examinarem os animais, encontraram metade dos pôneis lonaks mortos,
assim como um terço dos cavalos dos guardas. Quatro dos Senthar também
haviam morrido, todos guerreiros veteranos com dez anos ou mais do que os seus
companheiros. No que parecia ser um costume lonak, Alturk recolheu os
pertences e os distribuiu entre os outros Senthar quando se reuniram ao redor dos
corpos. Nada foi dito; a única estima visível pelos mortos foi um olhar breve para
os cadáveres antes de se afastarem.
Vaelin foi para o lado de Urso Sábio, observando enquanto o olhar do xamã
percorria o gelo por todos os lados, a preocupação estampada no rosto franzido.
— Qual direção? — perguntou Vaelin.
Urso Sábio continuou a examinar o gelo por mais um momento e então
baixou os olhos.
— Nenhuma.
— Mas o preço…
— Gelo se quebra por toda parte. — O xamã fez um movimento circular
com o cajado de osso. — Nenhum lugar para andar. Dessa vez, nós todos
pagamos preço.

Eles acamparam e esperaram, o povo do Reino encolhido em volta de suas


fogueiras, os lonaks ocupados em cortar a carne dos pôneis e dos cavalos mortos.
Afinal, carne não devia ser desperdiçada no gelo. O já familiar estrondo de gelo
se partindo foi ouvido logo após o nascer do sol. O som perdurou por muito mais
tempo do que antes, o gelo dando plena vazão ao seu tormento quando paredes de
névoa branca se ergueram de todos os lados. Eles sentiram o gelo se mexer de
forma abrupta sob os pés e o céu pareceu balançar enquanto o campo inteiro
rachava num raio de quilômetros num crescendo retumbante. O silêncio
subsequente pareceu imenso; todos os membros da companhia haviam caído de
joelhos e olhavam ansiosos em volta na expectativa do clímax de alguma
calamidade. Contudo, nada ocorreu. O gelo balançava suavemente debaixo
deles, a paisagem gelada ao redor movendo-se num curso lento porém constante
para leste.
Vaelin juntou-se a Urso Sábio na beira do fragmento onde agora estavam
ilhados, e olhou para baixo, para a fenda cavernosa entre eles e o pedaço de gelo
mais próximo, tão funda que não era possível avistar a água do mar abaixo.
— O gelo é bondoso — disse o xamã numa voz surpreendentemente calma.
— Bondoso? — perguntou Vaelin.
— Ilhas a leste. — Um leve sorriso surgiu no rosto envelhecido de Urso Sábio.
— Lar.

***

O tempo permaneceu calmo durante a semana seguinte enquanto eles se


acostumavam à vida no seu novo lar. O pedaço de gelo tinha 230 metros de ponta
a ponta, permitindo que montassem um acampamento mais espalhado e, graças
à tempestade, eles estavam bem guarnecidos de carne de cavalo.
Ocasionalmente o gelo colidia com um de seus vizinhos e estremecia com o
impacto, mas até então não começara a rachar. Para Vaelin, os dias cada vez
mais curtos eram mais preocupantes do que o fato de não poderem se mover; a
Noite Longa se aproximava e ele não tinha ilusões quanto às suas chances quando
chegasse.
— Você não tinha escolha — disse-lhe Kiral certa manhã. Ele havia ido até a
beira do pedaço de gelo, no que havia se tornado uma espécie de ritual diário.
Eles estavam tão ao norte agora que Avensurha podia ser vislumbrada apenas
durante um breve momento entre o crepúsculo e o nascer do sol, brilhando com
mais intensidade do que ele jamais vira. Nenhuma guerra pode ser travada sob a
luz trazida por ela. Apenas outra antiga ilusão, ele sabia. Vida, morte, amor,
guerra. Tudo se desenrolaria naquele mundo até o fim dos tempos e Avensurha
não se importava. Era apenas uma estrela.
— Essas pessoas me seguiram — disse Vaelin. — Para a morte, ao que
parece.
— A canção chamou e você respondeu. E a sua jornada ainda não terminou.
Ela falou com uma autoridade calma, mas Vaelin não pôde conter o
ceticismo, gesticulando para o gelo que se movia lentamente ao redor deles.
— Ela tem algum aviso sobre isso?
— Ela tem emitido uma nota de aviso desde que começamos essa jornada.
Mas também há certeza nela. Estamos no caminho certo. O homem eterno
aguarda a nossa chegada. Eu sei.

Avistaram a primeira ilha quatro dias depois, uma pequena elevação coberta de
neve, alguns quilômetros ao sul, e várias primas maiores apareceram no dia
seguinte. As colisões do pedaço de gelo aumentaram à medida que a banquisa
era constringida pelos canais em meio às ilhas. Após muitas horas de constante
estremecimento e um estrondo ominoso que sacudiu o gelo sob os seus pés, a ilha
parou por completo.
Urso Sábio os conduziu através da paisagem gelada e agora fendida até a ilha
mais próxima, mais alta do que as outras e com rochas nuas que saíam de suas
encostas cobertas de neve. O xamã ficou taciturno ao darem a volta na costa sul
da ilha, chegando por fim até um agrupamento de cabanas sob um penhasco alto.
Tinham formas cônicas, as paredes construídas com couro de foca sobre uma
estrutura de ossos e madeira, e pelo mau estado ficou evidente que estavam
desocupadas havia muito tempo. Em muitas faltava couro e outras estavam
parcialmente em ruínas pela ação constante das intempéries.
— Você conhece este lugar? — perguntou Vaelin ao xamã.
— Acampamento de caça do Povo Urso — respondeu ele, imóvel e com o
rosto inexpressivo.
— Poderíamos seguir em frente — sugeriu Vaelin, sentindo a relutância do
homem. — Encontrar outra ilha.
— Mais próxima a dois dias daqui. — Urso Sábio avançou, movendo-se com
determinação e apontando o cajado para o norte. — Mais tempestade vindo.
Descansar aqui até passar.
Eles consertaram as cabanas o melhor que puderam, usando couro de cavalo
para cobrir as fendas, e a noite chegou depressa, trazendo consigo um vento
cortante. A essa altura eles já estavam acostumados com o temperamento do
gelo, com a velocidade com que uma tempestade podia chegar, e isso fez surgir
um novo nível de cooperação entre os Senthar e os guardas de Orven.
Trabalhavam juntos com uma eficiência silenciosa, aparentemente sem deixar
que a barreira da língua fosse um empecilho.
— O gelo já fez todos os homens irmãos — disse Urso Sábio aquela noite.
Consertaram cinco cabanas, o suficiente para abrigar a companhia inteira da
tempestade que uivava do lado de fora, e os cavalos sobreviventes foram
reunidos numa única cabana com o pouco de forragem que restava. O xamã
estava sentado ao lado da fogueira no meio da cabana, a fumaça subindo até um
pequeno buraco no telhado enquanto ele entalhava um novo símbolo no cajado
de osso.
— A Noite Longa era mais longa antigamente, durava anos, não meses —
prosseguiu ele, os olhos fixos na ponta da faca que marcava o osso. — Sem
tribos, apenas um povo, unido pela Noite Longa. Quando passou, um povo virou
três, não mais irmãos.
Ele parou para assoprar o pó de osso do cajado, revelando um padrão
irregular de pontos, cada um ligado por uma linha.
— O que significa? — perguntou Cara, inclinando-se para a frente. Ela ainda
estava magra de forma alarmante, mas recuperara boa parte das forças durante
o tempo que passaram no pedaço de gelo, embora Vaelin duvidasse que ela
pudesse resistir por tempo suficiente para protegê-los da tempestade no caminho.
Urso Sábio franziu o cenho, procurando as palavras certas.
— Uma história agora contada — respondeu ele por fim, passando os olhos
pelos dotados. — História de jornada e união. Quando tempestade passar,
fazemos nova história, de aprendizado e luta.

Urso Sábio os conduziu para o sudeste três dias depois, as ilhas aumentando em
tamanho e número a cada quilômetro percorrido, algumas até mesmo com
árvores ou arbustos ocasionais quanto mais para o sul seguiam. Entretanto, havia
pouco que pudesse alimentar os cavalos e, acabada a forragem, logo restava
somente Cicatriz, arrastando-se atrás de Vaelin de cabeça cada vez mais baixa.
Quando a escuridão desceu, Urso Sábio reuniu os dotados, tentando transmitir
um pouco dos seus conhecimentos, embora a agitação do xamã, a ignorância
deles e o seu domínio ainda rudimentar da língua do Reino tornassem a tarefa
frustrante.
— Fale! — ordenou ele a Dahrena, erguendo a mão dela e colocando a
palma na própria testa.
— Falar o quê? — perguntou Dahrena, intrigada.
— Não com boca — retorquiu ele, batendo com um dedo na têmpora dela.
— Fale uma palavra, aqui.
Dahrena fechou os olhos e concentrou-se, pressionando a mão com força
cada vez maior contra a testa do velho, mas ele apenas grunhiu, consternado.
— Chame poder — disse ele. — Não todo. Só pouco poder.
Dahrena suspirou e tentou de novo, retesando-se um pouco, o rosto perdendo
a expressão e adquirindo um matiz pálido e familiar.
— Torre! — exclamou Urso Sábio com uma gargalhada de satisfação, e
acrescentou: — Pare agora. Não usar demais.
Dahrena tirou a mão da testa do xamã e dobrou os dedos, com um olhar de
assombro perplexo no rosto.
— Eu não sabia… Todos os dotados podem fazer isso?
— Todos com poder, sim. Dons mudam, poder não. Tudo uma coisa só.
Venham. — Ele reuniu os outros dotados e os levou até os seus gatos guerreiros,
que esperavam placidamente ali perto. Urso Sábio apontou para o maior dos
gatos, que como os outros ainda tinha o pelo bastante emaranhado, mas estava
visivelmente melhor alimentado do que quando foram capturados pelo dom do
xamã. — Fale — disse ele a Dahrena. — Dê ordem.
Dahrena aproximou-se da fera com óbvio receio; apesar de toda a calma
aparente do gato, ela testemunhara a carnificina causada por Dança da Neve,
que geralmente não parecia ser mais ameaçadora do que um filhote grande. Ela
parou a um ou dois metros do gato e estendeu a mão com cautela, na direção da
grande cabeça felina e fechando os olhos para invocar o seu dom mais uma vez.
O gato piscou e então se agachou no gelo e rolou de costas, erguendo as patas.
Dahrena deu uma risada de satisfação e ajoelhou-se para passar as mãos na
barriga peluda do bicho.
— Todos tentar. — Urso Sábio apontou o cajado para os outros dotados e
acenou com ele para os gatos. — Escolher, dar nomes. Seus agora.
Cara avançou com evidente entusiasmo, assim como Kiral, enquanto Lorkan
e Marken foram muito mais cautelosos.
— E se eles morderem? — perguntou Lorkan ao xamã, dando um passo curto
na direção de um dos dois gatos restantes.
— Você morre — disse Urso Sábio. — Não deixar morder.
Vaelin voltou o olhar de repente para Kiral quando ela se levantou do lado do
gato que escolhera, o menor do grupo e com a orelha esquerda mutilada. O
sorriso da lonak desapareceu ao olhar para leste com uma intensidade repentina e
ardente.
— Perigo? — perguntou Vaelin, indo colocar-se ao lado dela.
— Uma nova canção. — Ela se retraiu um pouco, sacudindo a cabeça,
confusa. — Muito antiga, muito estranha.
Urso Sábio disse algo na própria língua ao se juntar a eles, com uma
expressão cautelosa em vez de temerosa no rosto quando acrescentou:
— Povo Lobo.

Ele os conduziu até outra ilha ao raiar do dia, a maior que haviam visto até então,
com grandes extensões de rocha nua e um pequeno aglomerado de árvores e
arbustos na extremidade leste. Vaelin colocou Cicatriz para comer as poucas
folhas que os arbustos podiam oferecer, e o cavalo de guerra bufou de satisfação
ao começar a sua primeira refeição em dias.
— Eu devia ter chamado você de “Força”, não? — perguntou Vaelin,
limpando a geada do pelo do cavalo. — Desculpe por tudo o que você sofreu,
meu velho.
Cicatriz deu outra bufada e continuou mastigando.
Vaelin encontrou Urso Sábio sentado onde a costa da ilha encontrava-se com
o gelo. Garra de Ferro estava sentado ali perto roendo o osso da coxa de um
cavalo.
— Nós vamos, outros ficam — disse o xamã. — Povo Lobo não odeia como
Povo Gato, mas não vão gostar de muita gente no seu gelo.
— Onde podemos encontrá-los?
Urso Sábio deu uma risada leve ao se virar e começar a caminhar, e Garra
de Ferro levantou-se e o seguiu com o osso ainda entre os dentes.
— Eles encontram nós.
Eles seguiram para leste até o céu ficar negro e o fogo verde mais uma vez
dançar nele. Urso Sábio descansou num monte de gelo com formato de um
pequeno pedestal, olhando para o céu e cantando a sua canção aos ancestrais.
— O que você diz a eles? — perguntou Vaelin quando o xamã se calou.
— Povo Urso ainda vivo. Eu ainda vivo, mas não esperar muito agora.
— Você está tão ansioso assim para se juntar a eles? Para ficar mais uma vez
com a sua esposa?
— Ela comigo agora, observando. — Urso Sábio o olhou de soslaio. — Você
acha isso… uma história. Sua palavra… a palavra para história não real.
— Uma mentira.
— Sim. Mentira. Sem palavra para mentira na língua do Povo Urso.
— Uma mentira ainda é uma mentira, mesmo que você não tenha uma
palavra para ela. Mas, não, não acho que seja mentira. Acredito que o seu povo,
e o meu, criou lendas para compreender melhor um mundo que com frequência
não faz muito sentido. E uma lenda se torna a própria verdade com o tempo.
— Lenda é o quê?
— Uma história antiga, contada muitas vezes e mudada cada vez que é
contada. Uma história tão antiga que ninguém sabe dizer se realmente aconteceu.
— Você tinha poder, quando nos conhecer. Canção como Garota Raposa, mas
mais forte. Isso uma lenda?
— Não, é verdade, de fato. Mas, tal como uma lenda, ela teve um fim.
— Não. — Urso Sábio ergueu o cajado e apontou para as luzes dançantes no
céu. — Nada termina de verdade. Lá histórias vivem para sempre.
Ele olhou por sobre o ombro quando Garra de Ferro soltou um rosnado baixo
e ergueu-se para farejar o ar.
— Muitos chegam. — O xamã suspirou e levantou-se. — Bando de guerra.
Manter mãos vazias.
Os falcões-lanceiros chegaram primeiro; sete das grandes aves desceram das
nuvens e os circundaram, ocasionalmente voando baixo o bastante para fazer
Vaelin agachar-se. Ele ouvira de Dahrena histórias suficientes para reconhecer o
poder mortal dos pássaros, mas ainda assim ficou surpreso com o tamanho deles,
calculando que cada um tinha uma envergadura de pelo menos dois metros, os
bicos tão longos quanto pontas de lanças e, não pôde deixar de notar, farpas de
aço reluzindo nas garras.
— Um xamã controla todos esses falcões? — perguntou Vaelin a Urso Sábio.
— Se for forte o bastante. Eles veem e ele vê. — O xamã olhou para o
horizonte a leste, e uma desconcertante nota de presságio pôde ser ouvida em sua
voz: — Poucos fortes o bastante para dominar tantos.
Os pontos negros surgiram no horizonte pouco depois, a princípio cerca de
uma dúzia, mas logo o número aumentou até Vaelin contar mais de cinquenta. Os
pontos transformaram-se em figuras que trotavam ao se aproximarem,
movendo-se com rapidez e graça naturais sobre o gelo. Ao chegarem perto, o
grupo compacto dividiu-se e formou um círculo quase perfeito com Urso Sábio e
Vaelin no centro. Eles se sentaram encarando os dois com uma indiferença
plácida, todos de pelos brancos e maiores do que qualquer lobo que Vaelin já
vira, com exceção de um.
Mais pontos logo surgiram no horizonte, movendo-se com menos graça, mas
quase com a mesma velocidade. A visão era tão fora do comum que Vaelin a
princípio não teve certeza do que era: parelhas de lobos amarrados em fila e
arrastando algo atrás. Conforme se aproximavam, ele percebeu que os lobos
puxavam trenós, cada um com três homens, todos armados com lanças e arcos
de vara plana similares aos usados pelos seordah. Os lobos que puxavam os
trenós eram menores em estatura do que aqueles que os cercavam e
visivelmente menos plácidos, rosnando e tentando morder um ao outro quando os
trenós pararam. Vaelin contou rapidamente as cabeças à medida que os homens
desciam dos trenós; mais de cem, menos do que a sua própria companhia, mas
aquele era o gelo deles, e eles tinham lobos e falcões.
Os guerreiros espalharam-se e formaram um segundo círculo atrás do feito
pelos lobos, e duas figuras avançaram na direção de Vaelin e Urso Sábio. Um
tinha proporções similares às outras pessoas do gelo que Vaelin já encontrara,
com pouco mais de um metro e meio de altura e robusto. No entanto, a segunda
figura tinha quase a mesma altura de Vaelin e ombros largos, mas com uma
aparência magra e atlética.
— Você os conhece? — perguntou Vaelin a Urso Sábio.
O xamã sacudiu a cabeça, a expressão em seu rosto agora mais tensa do que
quando confrontaram Sem Olhos.
— Fazer trocas com Povo Lobo às vezes — disse ele. — Não viver com eles.
As duas figuras pararam a pouca distância, ergueram as mãos e jogaram
para trás as peles que lhes cobriam o rosto. A menor das duas revelou-se uma
mulher de meia-idade com maçãs do rosto elevadas e feições largas típicas do
povo do gelo. Ela encarava Urso Sábio com uma expressão de óbvio
reconhecimento, até mesmo de respeito, embora sua postura continuasse tensa.
Vaelin notou que ela carregava o osso próprio, mais curto do que o de Urso Sábio,
mas adornado com entalhes de forma similar. A figura alta ao lado dela removeu
a máscara de pele, revelando o rosto de um jovem um pouco mais novo do que
Vaelin, de feições sem qualquer traço do povo do gelo. A inquietação de Vaelin
aumentou ao notar a cor do homem: pele clara, olhos e cabelos escuros como
breu, tal como muitos volarianos que já vira.
A mulher disse algo na própria língua dirigindo-se a Urso Sábio, que
respondeu com um aceno de cabeça e algumas palavras.
— Xamã cumprimenta xamã — explicou ele. — É… costume.
A mulher voltou o olhar para Vaelin, examinando-o da cabeça aos pés, e
então acenou para o jovem. Ele cumprimentou Vaelin com um sorriso cauteloso,
transmitindo uma sensação de desconforto juvenil num encontro importante.
— Minha mãe pergunta qual é o seu nome — disse ele na língua do Reino, as
palavras bruscas e com um sotaque carregado, mas facilmente compreendido.
— Sua mãe? — O olhar de Vaelin foi de um para outro e ele ergueu uma
sobrancelha.
— Sim — respondeu o jovem. — Muitas Asas, xamã do Povo Lobo das Três
Ilhas. Sou o filho dela, chamado de Faca Longa com o consentimento do povo.
— É mesmo? — Vaelin o encarou e deixou que o silêncio se prolongasse,
notando como o jovem mantinha os braços relaxados ao lado do corpo. Não
trazia nenhuma arma aparente, mas Vaelin tinha certeza de que ele tinha pelo
menos uma faca debaixo das peles e que sabia muito bem como usá-la. Também
notou como os lobos ficaram subitamente alertas ao seu redor, erguendo a
cabeça como que em resposta a um chamado silencioso.
— Sua… mãe não é a única xamã aqui — disse Vaelin. — Ela comanda os
falcões e você os lobos.
O jovem rangeu os dentes e forçou um sorriso.
— Sim. E perguntamos qual é o seu nome.
— Ouvirei o seu primeiro, volariano. Seu nome verdadeiro. Fui obrigado a
matar seus conterrâneos em demasia para confiar com tanta facilidade.
Os lobos levantaram-se ao mesmo tempo e um rosnado saiu de cada
garganta quando o jovem empertigou-se e disse num tom implacável:
— Não sou volariano.
Muitas Asas tornou a falar, algumas palavras bruscas, mas suficientes para
fazer o jovem conter a raiva, e os lobos relaxaram mais uma vez quando ele
respirou fundo.
— Meu nome de nascimento é Astorek Anvir — disse ele. — E pergunto qual
é o seu nome.
— Vaelin Al Sorna, Senhor da Torre dos Confins do Norte pela Palavra da
Rainha.
Muitas Asas agitou o cajado de osso na direção dele e soltou uma
exclamação gutural, o rosto subitamente tomado pela irritação.
— Minha mãe diz que você tem outro nome — informou Astorek Anvir.
— Sou chamado de Avensurha pelos eorhil — disse Vaelin. — E de Beral
Shak Ur pelos seordah.
— Nós não conhecemos essas palavras — comentou Astorek. — Explique o
que significam.
— Avensurha é a estrela brilhante que aparece no céu matutino. Beral Shak
Ur é a Sombra do Corvo.
Astorek e Muitas Asas trocaram um olhar, a expressão em seus rostos grave.
Não disseram nada, mas, pelo modo como Urso Sábio empertigou-se, Vaelin
percebeu que estavam se comunicando por outros meios.
— Reúna a sua gente — disse Astorek após um momento. — Vocês irão nos
seguir.
— Com que propósito? — perguntou Vaelin.
— Sigam e descubram. — O volariano deu meia-volta e começou a andar na
direção do seu trenó, os lobos levantando-se ao mesmo tempo e acompanhando o
seu mestre de ambos os lados. O rapaz olhou por sobre o ombro para dizer as
últimas palavras: — Ou fiquem aqui e morram quando a Noite Longa chegar.

***

A ilha estendia-se por diversos quilômetros, coberta por muitas árvores, e no


centro erguia-se uma montanha escarpada de granito salpicado de neve.
— Lar Lobo — chamou-a Urso Sábio numa tradução aproximada do
impronunciável nome verdadeiro. — Não ver ela por muitos anos.
A viagem levara quatro dias de caminhada penosa sobre o gelo, que se
tornava nitidamente mais fino quanto mais para o sul avançavam. Era inquietante
olhar através do gelo quando o sol atingia o ápice, a luz refletindo-se nas bolhas
visíveis sob uma barreira que tinha apenas poucos metros de espessura.
— Ele derrete no verão — explicou Astorek. — E as ilhas ficam isoladas,
podendo ser alcançadas apenas de barco. Mas temos muitos desses.
Até então ele vinha sendo um guia afável, não se ofendendo com a
desconfiança instintiva dos Senthar ou com a hostilidade evidente das pessoas do
Reino.
— Não me parece sensato confiar em alguém como ele, meu senhor —
advertiu Orven, sua expressão um reflexo das de seus soldados ao encarar o
volariano. Assim como todos os homens do Reino, ele fora forçado a abandonar
uma rotina diária de asseamento e agora estava com uma aparência um tanto
selvagem, a barba desgrenhada e o cabelo longo deixando-o quase
irreconhecível. — Pagamos caro ao descobrir como eles usam bem os seus
espiões.
— Ele não é espião — disse Kiral, a única na companhia além de Urso Sábio
que não demonstrava qualquer inimizade pelo jovem xamã. — Minha canção
não me advertiu sobre nenhum engodo.
— Essas pessoas confiam nele — observou Vaelin quando Orven claramente
não se sentiu menos preocupado com as palavras da caçadora. — E Urso Sábio
confia neles. Além disso, não temos muita escolha.
Uma grande multidão do Povo Lobo aguardava numa extensão de terra na
costa oeste da ilha, centenas de homens, mulheres e crianças que encararam os
recém-chegados com franca curiosidade. Aglomeradas entre eles havia diversas
alcateias, cada uma com dez ou mais animais e um único xamã no centro,
enquanto um grande bando de falcões-lanceiros sobrevoava o local. Muitas Asas
ergueu o cajado de osso para que parassem quando um homem adiantou-se para
recebê-los, um pouco mais alto do que ela e mais corpulento do que a maioria do
povo do gelo. Pelo abraço caloroso que deu em Muitas Asas e em Astorek, Vaelin
deduziu que estava presenciando uma reunião de família.
— Meu pai lhes dá as boas-vindas — informou Astorek. — Ele é o líder aqui.
Em sua língua, o nome dele significa Matador de Baleia.
— Agradeço a ele pela hospitalidade — disse Vaelin, notando que, diferente
de Muitas Asas, o xamã precisava traduzir as suas palavras em voz alta para o
chefe do Povo Lobo.
Matador de Baleia sujeitou Vaelin ao mesmo escrutínio demonstrado por sua
esposa, ainda que com um semblante mais amigável.
— Ele disse que é estranho quando uma história antiga toma forma —
traduziu Astorek.
Vaelin fez menção de pedir um esclarecimento, mas Matador de Baleia já
havia se afastado e se aproximado de Urso Sábio de braços abertos. Eles se
abraçaram, trocando cumprimentos na língua do povo do gelo que, apesar de
todas as semanas que passou ouvindo, Vaelin ainda não conseguia compreender
sequer um pouco.
— Nós pensávamos que o Povo Urso havia sido dizimado — explicou
Astorek. — Meu pai está feliz por ver que estávamos enganados.
— Eles enfrentaram os volarianos — disse Vaelin. — Foram forçados a
atravessar o gelo para encontrar refúgio em nossas terras. Vejo que o mesmo
não ocorreu com o seu povo.
O rosto de Astorek ficou sombrio e Vaelin notou o estremecimento solidário
de Kiral, fazendo-o se perguntar que melodia a lonak ouvira de sua canção.
— Tivemos uma guerra — disse o volariano. — Foi terrível, mas curta.

O povoado estendia-se por um quilômetro e meio ao longo da costa. Em vez de


derrubar a floresta, o Povo Lobo fizera o seu lar entre as árvores. A maioria
eram pinheiros misturados com bétulas, altos e resistentes o bastante para
sustentar os passadiços construídos entre elas, os galhos adornados com cordas e
escadas. As moradas maiores ficavam todas no nível do solo, estruturas cônicas
de madeira parcialmente cobertas de limo e aparentando brotar das árvores
como se tivessem crescido nas sombras delas como grandes cogumelos. Eles
foram conduzidos à maior estrutura, uma impressionante construção circular
erigida ao redor da árvore mais alta, cujo tronco brotava do centro do piso de
madeira e subia através do teto de muitas vigas. Havia várias mesas baixas no
interior, mas nenhuma cadeira, uma vez que o Povo Lobo costumava se sentar
sobre pilhas de peles levadas de morada a morada conforme a necessidade.
Muitos já haviam começado a tomar conta do lugar quando Vaelin e os outros
foram conduzidos para dentro, e Astorek os levou até um grupo de mesas
dispostas ao redor da árvore central.
— Esta é sua Câmara do Conselho? — perguntou Vaelin, sentando-se num dos
montes de peles, com Dahrena ao seu lado. — O lugar onde decisões são
tomadas — explicou ele em resposta ao olhar confuso do jovem volariano.
— Decisões. — Astorek deu uma leve risada e olhou para onde o homem que
chamava de pai estava se sentando, fazendo sinal para que Urso Sábio se juntasse
a ele. — Todas as decisões foram tomadas há muito tempo. E não por nós.
Alturk sentou-se do outro lado da mesa antes que Vaelin pudesse fazer mais
perguntas, resmungando:
— Meu povo teria nos alimentado a essa altura. Ou nos matado.
O chefe de guerra dos Senthar havia perdido peso durante a marcha, assim
como todos eles, mas enquanto a maioria dos outros havia se recuperado nos
últimos dias, os estragos do gelo pareciam perdurar em Alturk. Os lonaks eram
imberbes e o seu rosto ostentava uma magreza esquelética, a cabeça antes
careca agora tomada por uma juba emaranhada de cabelos negros, e os braços
não eram mais tão musculosos como antes. O tamanho do pesar que Vaelin vira
nele nas montanhas também não havia diminuído, e ele se perguntava se Alturk
não estava se prendendo ao sentimento de forma deliberada, permitindo que a
tristeza o diminuísse, talvez até mesmo esperando que o gelo pudesse fazer o que
as batalhas não puderam.
— Você deveria se alegrar — disse Dahrena ao lonak. — Agora você tem a
maior de todas as histórias para contar quando voltar para casa.
— Alturk nunca compartilha em volta da fogueira — disse Kiral. — Embora
minha irmã tenha me dito uma vez que ele tem uma história incomparável. Pois
Alturk, tal como confirmado pela própria Mahlessa, uma vez ouviu a voz de um
deus.
Alturk bateu a mão na mesa, dizendo algo por entre os dentes na própria
língua e olhando furioso para Kiral. Vaelin se preparou para defendê-la, mas a
caçadora apenas sorriu, encontrando o seu olhar com uma total ausência de
medo e dizendo algo em lonak, que traduziu rapidamente para Vaelin e Dahrena:
— Uma história não compartilhada é um desperdício de riqueza.
A comida foi trazida pouco depois, pratos de madeira com pilhas de carne
assada, além de tigelas com nozes e frutas silvestres.
— Tem gosto de foca — comentou Alturk, dando uma grande mordida num
pedaço de carne. — Mas não é tão dura.
— Morsa — explicou Astorek, aproximando-se e sentando-se à mesa deles.
— Carne de inverno. No verão, comemos principalmente alce. — Ele lançou um
olhar curioso a Alturk e Kiral, seus olhos indo deles para Vaelin. — Vocês não são
da mesma tribo.
— Não — confirmou Alturk com um rosnado enfático, mastigando e
engolindo. — Nós somos lonakhim. Eles — Alturk indicou Dahrena e Vaelin com
a cabeça — são merim her.
— Fomos inimigos durante muito tempo — disse Vaelin. — Agora somos
aliados, graças ao seu povo.
Astorek deu um suspiro irritado, mas desta vez recusou-se a mostrar-se
ofendido.
— Estas pessoas são o meu povo.
— Como você fala a nossa língua? — perguntou Dahrena.
Astorek olhou para Matador de Baleia, que agora conversava de forma
animada com Urso Sábio.
— Uma história que logo será contada.
A refeição seguiu noite adentro, a carne em abundância complementada por
uma bebida inebriante que tinha um cheiro forte de pinho. Vaelin apenas a
bebericou antes de deixá-la de lado, embora Alturk parecesse apreciá-la.
— É como beber uma árvore — disse ele, soltando uma rara gargalhada ao
esvaziar a sua tigela.
— Fermentamos frutas silvestres e pinhas — disse Astorek. — Deixe-a
envelhecer por tempo suficiente e é possível usá-la para acender fogo.
— Está mesmo acendendo um fogo na minha barriga. — Alturk levou outra
tigela aos lábios, esvaziando-a com alguns goles.
Conforme a noite avançou, Vaelin ficou aliviado ao descobrir que o imenso
lonak era um bêbado melancólico em vez de violento, e o observou inclinar-se
para a frente e apoiar a cabeça na mão enquanto continuava a tomar a cerveja
de pinho, murmurando para si mesmo na própria língua, para a evidente
repugnância de Kiral.
— Você envergonha os Senthar da Mahlessa com esse comportamento —
disse ela, torcendo o nariz.
Alturk crispou os lábios e disse algumas palavras bruscas em lonak. Pela
reação furiosa de Kiral, Vaelin deduziu que não foram elogiosas. Ela rosnou uma
praga em lonak e levantou-se, com metade da faca para fora do cinto.
— Basta! — disse-lhe Vaelin, com a voz cheia de autoridade e alta o
suficiente para fazer um silêncio súbito descer sobre o salão. — Esta não é a sua
casa e você está insultando os nossos anfitriões — prosseguiu ele num tom mais
brando, voltando o olhar para Alturk. — E você, Tahlessa, deveria ir dormir para
se recuperar.
— Merim her — disse Alturk, arrastando as palavras e começando a se
levantar, tentando pegar o porrete de guerra e derrubando-o de pronto. —
Matador de filho! — Ele apoiou os braços na mesa e tentou se erguer. Contudo, a
tarefa parecia estar além do alcance de seus membros debilitados e ele caiu,
batendo o rosto na mesa com um baque doloroso. Alturk permaneceu caído e
logo começou a roncar.
— Varnish — escarneceu Kiral, tornando a se sentar e lançando um olhar
irritado a Vaelin. — Você deveria ter me deixado matá-lo. Minha canção não vê
muito valor nele.
— Uma mente perturbada merece a cura, não a morte — disse-lhe Astorek,
olhando com solidariedade para o lonak adormecido. — E os da mesma tribo não
deveriam se matar.
Kiral riu e colocou uma frutinha na boca.
— Então, já que não podemos mais matar os merim her, os lonaks não teriam
muito mais o que fazer.
Astorek sacudiu a cabeça, pesaroso.
— Tudo tão estranho, mas tão familiar.

O banquete terminou algumas horas depois, e os Senthar carregaram Alturk,


ainda inconsciente, para a extremidade oposta do salão, onde Astorek lhes disse
que ficassem à vontade para se acomodarem, uma vez que não havia moradas
vazias no povoado para abrigar tantos recém-chegados.
— A tribo fica maior a cada ano — disse ele. — Precisamos construir
constantemente.
Matador de Baleia e Muitas Asas apareceram ao seu lado com Urso Sábio, e
a xamã apontou o cajado na direção da larga entrada do salão.
— Está na hora da nossa história — disse Astorek.
Após o calor do salão, o frio do lado de fora pareceu esmagador, tirando o ar
dos pulmões de Vaelin e provocando um latejamento instantâneo em suas
têmporas. Dahrena e Kiral o acompanharam enquanto seguiam o povo do gelo
para dentro da floresta, com Astorek indo na frente com uma tocha. O caminho
era íngreme e estava repleto de neve, e ficava mais difícil conforme subiam,
embora o Povo Lobo se movesse com uma velocidade natural após terem
percorrido aquela trilha tantas vezes.
Chegaram por fim a uma extensão plana de terra no sopé de um penhasco
escarpado, onde Astorek ergueu a tocha e a luz clareou uma abertura estreita na
face da pedra. Vaelin notou como Kiral e Dahrena retesaram-se ao avistar a
caverna e como Urso Sábio segurou o cajado de osso com mais força.
— Poder? — perguntou ele.
— Muito poder — confirmou o xamã, olhando para dentro da caverna com
óbvia inquietação. — Talvez demais.
— Não há perigo para vocês aqui — disse Astorek, entrando na caverna e
fazendo sinal para que Vaelin o seguisse. — Este lugar é tanto seu quanto nosso.
A entrada era estreita, mas se abria para uma caverna ampla, de paredes
secas e ar bolorento pelo tempo. Numerosas concavidades semelhantes a tigelas
haviam sido escavadas no chão da caverna, cada uma manchada com pigmentos
secos de diferentes tonalidades, mas foram as paredes que atraíram a atenção de
Vaelin. A caverna curvava-se em volta deles num longo semicírculo, dois terços
de sua extensão ricamente adornados com pinturas, as cores tão vibrantes que
pareciam reluzir à luz da tocha de Astorek.
Muitas Asas falou, conduzindo Vaelin na direção da parede mais próxima da
boca da caverna.
— Minha mãe diz "Sejam bem-vindos à memória do Povo Lobo" — disse
Astorek.
Vaelin olhou para as imagens pintadas sobre a pedra e ficou surpreso ao ver
que a tinta estava fresca, as imagens nítidas e facilmente discerníveis, uma
grande porção de tinta preta adornada com pequenos pontos amarelos, que ele
deduziu que simbolizassem o céu noturno. Um pouco mais adiante ele encontrou
uma imagem de toscas figuras-palito, todas dispostas em um único grupo grande,
e ao lado delas o mesmo grupo dividido por três linhas pretas.
— O fim da primeira Noite Longa — disse Astorek — e o surgimento das três
tribos, dividindo as ilhas entre elas. Não havia xamãs naquela época e a vida era
difícil. Mas ainda assim prosperamos. — Ele seguiu em frente, a tocha
tremeluzindo sobre várias cenas, as imagens tornando-se menos toscas à medida
que avançavam, de modo que logo não eram mais figuras-palito, mas
representações bem definidas de pessoas e animais. Caçadores acertavam
morsas com lanças no gelo ou atiravam arpões contra baleias da proa de barcos,
outros construíam moradas entre as árvores. Vaelin parou na imagem seguinte,
levando um momento para compreender a cena por completo; uma ilha, Lar
Lobo, a julgar pela forma da montanha, e ao lado dela algum tipo de
embarcação, mas de um modelo completamente desconhecido. Era longa e
baixa na água, com somente um mastro e muito mais remos do que qualquer
navio moderno.
— Eles vieram do oeste nos meses de verão — disse Astorek. — Tantos anos
atrás que as estrelas desde então já mudaram de curso. Um povo alto que falava
uma língua sem sentido, mas que trazia presentes de grande valor, lâminas de
ferro mais resistente e mais afiado do que qualquer um que pudéssemos refinar e
maravilhosos aparelhos de vidro para lançar a visão a grandes distâncias. Nós os
chamamos de Povo do Grande Barco.
Ele apontou para três figuras retratadas ao lado do navio, dois homens e uma
mulher. A mulher era de uma beleza arrebatadora, tinha cabelos escuros e olhos
verdes, vestia um longo manto branco e usava um amuleto dourado em volta do
pescoço: uma meia-lua adornada com uma pedra vermelha. O homem à
esquerda dela vestia um manto azul e era esbelto, tinha um rosto belo, mas
estreito, e parecia estar com um sorriso enviesado nos lábios. No entanto, foi o
homem à direita da mulher que atraiu a atenção de Vaelin, uma figura
imponente, barbada, alta e de ombros largos, a fronte franzida como se estivesse
perdido em pensamentos, o rosto quase idêntico a um que Vaelin já havia visto.
— É ele! — exclamou, virando-se para Urso Sábio, o coração palpitando,
excitado. — A estátua da Cidade Caída! Está vendo?
Urso Sábio assentiu, com uma expressão visivelmente menos entusiasmada
no rosto.
— História conhecida por Povo Urso — disse ele. — Povo do Grande Barco
trouxe morte ao gelo.
— Sim. — Astorek seguiu adiante, sua tocha revelando uma cena de
devastação, um povoado como o que haviam deixado para trás, mas apinhado de
cadáveres. — Eles vieram em paz, esperando trocar tesouros por conhecimento.
Não tinham guerreiros, não foram violentos, mas ainda assim trouxeram a
morte. Uma grande doença que dizimou cada povoado que visitaram, até que
restassem somente três tribos.
A luz da tocha iluminou mais uma vez a mulher, desta vez sozinha, o rosto
mostrado de perfil, voltado para baixo e tomado por uma grande tristeza. Levava
as mãos ao rosto, vermelhas de sangue dos dedos aos pulsos.
— Foi a mulher que nos salvou — disse Astorek. — Não se sabe com detalhes
como, mas ela deu o próprio sangue e ele nos salvou, a doença desapareceu.
Mas… — Ele iluminou a imagem seguinte, os dois homens parados sobre o corpo
da mulher. O sorriso do homem belo havia desaparecido, o rosto agora furioso,
enquanto o homem barbado tinha uma expressão de paciência estoica, embora a
mão ancestral que retratara o seu rosto claramente tivesse notado a tristeza que o
homem tentava esconder.
— O homem alto pegou o seu grande barco e partiu — disse Astorek. — Mas
o outro homem ficou, não disposto a se afastar muito do corpo da mulher,
recusando-se a entregá-la ao gelo, como era o costume. Então… — Ele revelou
uma imagem sombreada em silhueta, um homem puxando um trenó em meio a
uma nevasca. — Ele pegou o corpo da mulher quando o inverno chegou e não foi
mais visto pelo povo do gelo. Mas… ele deixou um presente.
Astorek parou, encarando Vaelin com uma expressão tanto de relutância
quanto de assombro.
— Eles conheciam muitas coisas, esse Povo do Grande Barco, como
trabalhar os metais e o movimento das estrelas, e até mesmo o curso do futuro.
A pintura revelada pela tocha de Astorek era a maior até então, cobrindo a
parede do chão ao teto e executada com uma habilidade artística e uma clareza
que superavam até mesmo as de Alornis. Era o rosto de um homem, talvez com
trinta anos, de feições angulares em vez de belas, os olhos escuros, um leve
sorriso nos lábios. Era um rosto sério, não alheio a privações, a julgar pelo
aspecto levemente magro, ou à violência, pensou Vaelin. Ele havia olhado nos
olhos de um número suficiente de matadores para saber…
Os pensamentos desapareceram quando ele compreendeu. Vaelin sentiu
Dahrena parar ao seu lado e segurar a sua mão que, percebeu, começara a
tremer.
— Aquele que nos salvará de um perigo ainda desconhecido — disse Astorek.
— Ele o chamou de a Sombra do Corvo.
P ART E III
Qualquer um que afirme possuir talento para a guerra deve ser visto como o maior
dos tolos. Pois a conduta bem-sucedida de uma guerra é um exercício de
administração de tolices.

— Rainha Ly rna Al Nieren,


Citações reunidas,
Grande Biblioteca do
Reino Unificado
RELATO DE VERNIERS

No trigésimo quinto dia de nossa viagem aportamos em Marbellis, onde o capitão


desembarcou com dez tripulantes, cada um carregado com uma pilha
impressionante de saques acumulados de vários volarianos desafortunados nos
Dentes e em Alltor.
— Um navio se alimenta de carga — grunhiu ele para mim antes de partir. Ele
estava levemente mais inclinado a conversar nos últimos dias, mas ainda se
recusava a trocar uma palavra sequer com Fornella. — Devo conseguir
especiarias suficientes para encher metade do porão com o que apreendemos.
Permaneça a bordo e fique de olho naquela sua bruxa.
Ela se juntou a mim na amurada enquanto eu olhava as docas e a cidade mais
além.
— Ouvi este lugar ser descrito como o tesouro do norte do império — disse
Fornella. — Devo dizer que me parece um pouco sem brilho.
Marbellis encontrava-se num estado contínuo de reconstrução desde a guerra,
os vários distritos incendiados e arrasados desaparecendo lentamente à medida
que o grande porto se curava. Porém, embora uma cidade pudesse ser reparada,
o coração de seus cidadãos era uma história diferente. No decorrer dos anos após
a guerra, muitos apelos foram feitos ao Imperador para que houvesse uma
retaliação mais direta e duradoura contra os nortistas, os mais ruidosos e
numerosos partindo de Marbellis.
— “Encontramos uma joia no deserto” — citei. — “E dela fizemos uma cinza
calcinada.”
— Bonito — disse Fornella. — Um dos seus, imagino.
— Na verdade, foi composto por um jovem poeta em Varinshold. O filho do
general que comandou o exército que quase destruiu esta cidade.
— Suponho que não tenha conseguido falar com o pai?
— Não. Ele recusou todos os pedidos para uma entrevista. O filho, no entanto,
ficou feliz em conversar, desde que eu pagasse a sua cota noturna de vinho.
— Ele tinha alguma desculpa para isto? Alguma razão em particular?
Sacudi a cabeça.
— Apenas arrependimento e culpa, ainda que não tenha tomado parte no
massacre. Estava determinado a salientar que o pai suprimira depressa os
excessos do exército, executando com isso mais de cem homens por vários feitos
terríveis.
— Tokrev também os teria executado. Escravos mortos não têm valor.
Dei as costas à amurada e segui para a cabine que dividíamos.
— Temos trabalho a fazer.
No decorrer das semanas anteriores, as nossas pesquisas em muito expandiram o
meu conhecimento acerca de mitos antigos, mas até então haviam revelado
poucas evidências sobre as origens do Aliado ou sobre o paradeiro do homem
eterno. Havia algumas referências às maquinações de deuses sombrios ou
espíritos malignos nas histórias mais antigas e fragmentárias deixadas pelos
habitantes do que veio a se tornar o Império Volariano, mas separar fato de ilusão
supersticiosa era simplesmente impossível. O homem eterno provou ser uma linha
de investigação mais produtiva, revelando não menos do que sete versões
diferentes de sua história, a maioria de Asrael e girando em torno da rejeição da
Fé do desafortunado súdito. No entanto, havia outras histórias, como uma de
Cumbrael que retratava o sujeito como um herege ímpio que cometera o crime
máximo de queimar os Dez Livros, acabando amaldiçoado pelo Pai do Mundo a
contemplar o seu pecado por toda a eternidade. Hoje, porém, minha pesquisa
revelou uma lenda meldeneana que falava de um homem levado pelas ondas até
as Ilhas após um naufrágio, um homem que deveria ter se afogado, mas que
sobreviveu, enquanto todos os seus companheiros de tripulação haviam perecido.
Ele chamava a si mesmo de Urlan e dizia que chegara à procura dos Deuses
Antigos.
Ergui os olhos do pergaminho quando o som de muitas passadas no convés
anunciou o sucesso do capitão na obtenção de uma carga. Fornella já havia
adormecido, deitada nua no catre, como de costume. Ela parecia dormir mais com
o passar dos dias e os seus cabelos tornavam-se cada vez mais grisalhos. Está
envelhecendo, senhora, pensei, contemplando a sua nudez e, apesar das rugas que
agora lhe marcavam o rosto, notando que ela ainda era bela. Joguei um cobertor
sobre Fornella e saí.
A noite caíra e o convés estava iluminado por tochas, a maioria aglomerada na
proa, onde um som persistente de algo batendo em madeira podia ser ouvido. Fui
até lá e encontrei o capitão de braços cruzados, o semblante severo voltado para
um homem suspenso por cordas, pendurado sobre a proa. O homem era velho,
mas ágil, claramente alpirano, pelo tom de pele, e trabalhava com um martelo e
um cinzel na figura de proa sem maxilar, lascas de madeira voavam conforme ele
apagava as cicatrizes do focinho. Notei que um bloco de madeira novo, mas ainda
não esculpido, havia sido pregado no lugar para dar origem a um novo maxilar
para a serpente.
— A tripulação não gosta de navegar sem um deus para acalmar as águas —
grunhiu o capitão, observando o trabalho do carpinteiro. — Paguei o triplo do
preço a ele para que terminasse até de manhã.
— O que ele é? — perguntei, gesticulando para a serpente. — Um deus antigo
ou novo?
O capitão estreitou os olhos para mim, e era possível ver neles um leve traço
de divertimento.
— Acha que o meu povo é digno de ser estudado agora, escrevinhador?
— Pode ajudar com a minha missão.
Ele encolheu os ombros e indicou com a cabeça a figura de proa.
— Não é ele, é ela. Levansis, irmã do grande deus-serpente Moesis. Embora
desprezasse o irmão por sua selvageria, ela chorou quando Margentis destruiu o
corpo dele e as lágrimas de Levansis mantiveram o mar calmo durante dez anos. É
para ela que rezamos quando as tempestades se formam.
Meu conhecimento sobre a história meldeneana era escasso, mas eu sabia que
seu panteão datava da época em que os meldeneanos colonizaram as Ilhas, cerca
de seiscentos anos atrás, e, pela minha análise das ruínas encontradas lá, era
evidente que as Ilhas haviam sido ocupadas muito antes disso.
— Uma deusa nova, então. O que você pode me dizer sobre os deuses antigos?
Ele desviou o olhar e notei como apertou ainda mais os braços cruzados.
— Não rezamos a eles.
— Mas o que são eles?
O capitão lançou um olhar cauteloso para os tripulantes mais próximos, dois
marinheiros, ambos jovens, mas com cicatrizes ganhadas na Batalha dos Dentes, e
olhando para mim com franca indignação.
— Dá azar falar dos deuses antigos no convés de um navio — disse o capitão,
indo na direção da rampa. — Venha, vou deixar você me pagar uma bebida,
escrevinhador. Além do mais, tenho notícias para dar.

***

Ele me levou até uma taverna tranquila perto do distrito dos armazéns; os
frequentadores eram em sua maioria estivadores, desfrutando de um ou dois copos
de vinho ao final do dia de trabalho. Mesmo levando em consideração a fadiga
evidente dos outros clientes, a atmosfera era sombria a ponto de ser opressiva, e a
maioria estava sentada em silêncio, contemplando o seu vinho. Nós nos sentamos
junto a uma janela e o capitão acendeu o cachimbo, o fornilho cheio com a erva
de cinco folhas de aroma adocicado popular no norte do império, mas que não era
vista com bons olhos em outros lugares pelo seu efeito soporífero.
— Ah, essa é das boas — disse o capitão, soprando uma nuvem de fumaça. —
Certa vez, levei algumas sementes para a minha esposa plantar. Nunca deu certo,
o solo não é ideal. Uma pena. Eu teria feito uma fortuna.
— Os deuses antigos — falei, com a pena preparada sobre o pergaminho. — O
que você sabe sobre eles?
— Bem, eles são antigos, para começo de conversa. — Ele soltou uma risada
incomum, algo que atribuí ao conteúdo do cachimbo. A demonstração de
hilaridade fez com que algumas cabeças se levantassem nas mesas ao redor, e
algumas pessoas franziram o rosto em desaprovação, fazendo com que eu me
perguntasse que notícias sombrias haviam causado aquele estado.
— Eles estavam lá quando desembarcamos nas Ilhas — prosseguiu o capitão,
tornando a atrair a minha atenção. — Os deuses antigos, em pedra, tão naturais
que parece que vão se mexer se tocá-los.
— Você os viu?
Ele deu uma baforada no cachimbo e assentiu.
— Privilégio de capitão. Quando consegue o próprio navio, você vai até as
cavernas e presta homenagem aos deuses antigos. Parece ser a coisa educada a
se fazer, já que eles estavam lá primeiro. E há histórias de sobra a respeito dos
destinos terríveis que aguardavam os capitães que não fizeram a peregrinação.
— Então são estátuas encontradas séculos atrás.
— Mais do que estátuas, escrevinhador. — O olhar do capitão ficou sombrio ao
lembrar. — Uma estátua não faz você suar assim que coloca os olhos nela, não faz
a sua cabeça doer quando você chega perto, nem coloca imagens na sua cabeça
quando você se curva para tocar o pé dela.
Minha pena parou no meio do caminho e segurei um suspiro. Eu já havia visto
o suficiente àquela altura para compreender que aquilo que antes eu achava ser
superstição era bastante real, mas ainda assim o ceticismo inerente se fazia sentir.
— Imagens em sua cabeça? — perguntei num tom passivo.
— Só por um segundo. Eu toquei o pé dela e… vi as Ilhas, mas não as nossas
Ilhas. Havia uma cidade, onde hoje fica a nossa capital. Mas muito bela, de
mármore reluzente de ponta a ponta, o porto repleto de navios, mais longos do que
os nossos e conduzidos principalmente por remadores. E não eram piratas, isso eu
podia ver. Nenhum marinheiro carregava uma arma. Qualquer que fosse a época,
era uma época de paz.
Ele se calou, o rosto agora toldado por lembranças ao tirar o cachimbo dos
lábios, mal se movendo quando lhe fiz uma pergunta:
— O pé dela? Os deuses antigos são mulheres?
— Uma é. Os outros dois são homens. Um é um sujeito grande e barbado, o
outro é mais novo e mais belo de rosto. Não toquei em nenhum deles, pois as
visões que transmitem são apenas para os olhos mais corajosos. Porém, dizem que
o Escudo tocou nos três, o único homem a fazer isso.
— Há uma história, sobre um homem que não podia morrer. Conta que ele
chegou às Ilhas em busca dos deuses antigos.
O capitão soltou uma gargalhada e voltou ao cachimbo.
— Urlan. Minha velha avó costumava me contar essa história.
— A versão que tenho diz que ele os ofendeu ao pedir uma dádiva impossível,
então eles o amaldiçoaram a andar pelo fundo do oceano para todo o sempre.
O capitão franziu o cenho, a fumaça subiu e seus olhos começaram a ficar
levemente embotados.
— A história da minha avó era diferente, mas histórias antigas costumam
mudar dependendo de quem as conta. Ela dizia que Urlan fora expulso das Ilhas,
deixado à deriva num barco e advertido a jamais retornar. E não porque ele havia
ofendido os deuses antigos, mas porque, ao ouvir as palavras dele, o povo passou a
temer alguém tão jovem que sabia tanto.
Ele me observou anotar a história, apagou o cachimbo e guardou o que
sobrara da erva numa algibeira.
— Hora de eu dar as minhas notícias, escrevinhador — disse ele.
— Mais notícias graves da guerra, presumo? — perguntei, olhando em volta
para os presentes de rosto taciturno.
— Não, de Alpira. — Notei que o embotamento havia desaparecido de seus
olhos e ele me encarou com um olhar firme e pesaroso. — O Imperador Aluran
morreu há uma semana. Antes de falecer, ele nomeou como sucessora a Senhora
Emeren Nasur Ailers, a ser para sempre conhecida como Imperatriz Emeren I.
CAPÍTULO UM
Vaelin

Dahrena chamou a sua gata guerreira de Mishara, a palavra seordah para


relâmpago, e tinha grande prazer em treiná-la. Todas as manhãs ela passava uma
hora ou mais na floresta, sorrindo enquanto a fera saltava, corria ou subia em
árvores ao seu comando.
— Eu tinha uma gatinha quando era pequena — disse ela a Vaelin, jogando
uma bola feita de couro de morsa para Mishara pegar; o animal saltou alto e a
agarrou no ar com uma mordida rápida do impressionante maxilar. — Dei a ela
o nome de Listras. Um dia ela sumiu e meu pai me contou que ela devia ter
fugido. Mais tarde descobri que ele não teve coragem de me contar que ela havia
sido esmagada pela roda de uma carroça.
Ela franziu o cenho diante do aceno vago que Vaelin fez com a cabeça,
mandou Mishara para o meio das árvores com um aceno de mão e foi sentar-se
ao lado dele, pegando a sua mão. Não perguntou nada; como sempre, boa parte
da comunicação entre eles dava-se sem palavras.
— Na Ordem, eles nos diziam que profecias eram uma mentira, como um
deus — disse Vaelin. — Que eram da alçada de Negadores iludidos que
confundiam loucura com discernimento. E, ainda assim, todo esse tempo a
Sétima Ordem ia atrás das próprias profecias em segredo.
— Você se lembra do que o Irmão Harlick nos contou — disse ela. — Todas
as profecias são falsas.
— Você viu a parede deles.
— Imagens pintadas há anos incontáveis e visíveis agora somente porque essa
gente as mantém com muita devoção. — Dahrena apertou com mais força a
mão dele. — As visões de Nersus Sil Nin deram aos seordah séculos para se
prepararem para a chegada dos marelim sil, mas ainda assim eles foram
empurrados para a floresta. O futuro não é pintado em pedra. Nós fazemos o
futuro cada vez que respiramos e damos um passo. Nossa missão é vital, você
sabe. Não podemos nos distrair.
— Kiral me disse que a sua canção ressoa com uma advertência sempre que
falo sobre seguir em frente. Por ora, parece que este lugar é a nossa missão.
Ela suspirou e encostou a cabeça no ombro de Vaelin.
— Bem, pelo menos está começando a degelar.

À tarde, ele passou em revista os guardas de Orven, em grande parte para


assegurar o Lorde Comandante de seu apreço por tê-los colocado em prontidão
marcial com tamanha diligência. No decorrer da Noite Longa ele manteve a
disciplina severa e a rígida adesão à rotina que caracterizavam a Guarda
Montada, as barbas que haviam crescido no gelo logo foram raspadas e a
ferrugem limpa de cada peitoral.
— Como anda o treinamento? — perguntou Vaelin a Orven após examinar as
fileiras e trocar gentilezas ritualísticas com os homens. Eles respondiam de bom
grado, todos veteranos da marcha dos Confins e Alltor, encarando-o com um
respeito implacável que ele sabia que talvez nunca desaparecesse. Ainda assim,
apesar da generosa alimentação oferecida pelos seus anfitriões, muitos
mantinham o aspecto abatido daqueles expostos aos piores extremos das
intempéries.
— Lutar a pé é difícil para aqueles acostumados à sela, meu senhor. Mas não
há alternativa. Os lonaks às vezes se juntam ao treinamento. Creio que acham
divertido ou não têm muito mais o que fazer.
Vaelin olhou para onde um grupo de Senthar observava um dos membros do
Povo Lobo tirar a pele de uma morsa recém-apanhada, notando que Alturk não
estava entre eles, assim como não estivera durante a maior parte da Noite Longa.
— Concentre-se nos exercícios de ordem-unida — disse ele a Orven. — Você
viu como os volarianos lutam, batalhões inteiros movendo-se em uníssono. Tenho
certeza de que é um feito que os guardas podem igualar.
Orven empertigou-se, levando o punho ao peitoral numa continência perfeita,
como de costume.
— De fato podemos, meu senhor.

Astorek encontrou-o escovando Cicatriz no pequeno estábulo que o Povo Lobo


havia permitido que construísse próximo à costa. Como de costume, um bando de
crianças havia se reunido para vê-lo tirar o cavalo de guerra de seu lar
improvisado, aparentemente fascinadas pelo estranho animal de quatro patas,
maior do que um alce, mas sem a galhada. Eles pareciam não ter inclinação à
timidez ou consciência de que Vaelin pudesse não compreender a enxurrada de
perguntas que faziam ao se aglomerar ao redor, passando as mãozinhas sobre o
pelo de Cicatriz, ocasionalmente recuando com risinhos encantados diante das
pisadas e bufadas irritadas do cavalo. Um garotinho era mais insistente do que os
outros, puxando as peles de Vaelin e repetindo a mesma pergunta, franzindo o
cenho, confuso.
— Ele quer saber por que você não o come.
Vaelin virou-se e deu com Astorek parado perto dali, assistindo à cena com
um leve divertimento. Dois de seus lobos estavam sentados não muito longe, um
macho e uma fêmea de tamanho desconcertante, o cheiro deles provocando um
estremecimento de medo em Cicatriz.
— Eles estão perto demais — disse Vaelin ao volariano, indicando os lobos
com a cabeça.
Astorek inclinou a cabeça e os lobos levantaram-se ao mesmo tempo e
partiram a trote na direção do gelo, a placidez costumeira desaparecendo quando
começaram a saltar e tentar morder um ao outro numa dança brincalhona.
— Ele é para cavalgar — disse Vaelin, virando-se de novo para o garotinho
enquanto Astorek traduzia. — Não para comer.
A resposta pareceu confundir ainda mais a criança, as pequenas feições
franzindo-se numa careta de perplexidade, de modo que Vaelin o ergueu e
colocou-o em cima de Cicatriz, segurando as rédeas e levando-o numa
caminhada lenta em direção ao litoral. O garotinho ria e batia palmas enquanto
balançava no dorso do cavalo, as outras crianças acompanhando-os com gritos
que não precisavam de muita tradução: todas queriam a sua vez. Após cerca de
uma hora de diversão, Astorek por fim mandou as crianças embora com
algumas palavras bruscas. Embora o Povo Lobo parecesse manter os seus
membros mais novos com uma disciplina relaxada, o silêncio instantâneo feito
pelas crianças revelava a existência de uma autoridade subjacente que não
tolerava desobediência, e elas logo partiram para encontrar outras coisas com
que se divertir.
— A descrição que ele fez de você não foi totalmente exata — disse Astorek
depois que as crianças foram embora. — Ele disse que você seria feroz.
— Palavras do seu profeta? Você fala como se o conhecesse.
— Às vezes sinto como se tivesse conhecido, já que ouvi as suas palavras
tantas vezes. Nosso povo não registra nada por escrito, mas todos os xamãs
aprendem a recitar a mensagem dele perfeitamente.
Vaelin levou Cicatriz de volta para o estábulo e prendeu um bornal no focinho
do cavalo. Havia poucos grãos nas ilhas, mas raízes e frutas silvestres em
abundância, colhidas nos meses de verão e preservadas durante o inverno. Pelas
bufadas de satisfação e pelo corpo menos esquálido, parecia que Cicatriz achava
a mistura tão apetitosa quanto qualquer bornal de cereais.
— Meus pais pediram que eu lhe perguntasse as suas intenções — disse
Astorek.
— Intenções?
— O Povo Lobo tem aguardado a sua chegada desde que consegue se
lembrar, sabendo que isso prenunciaria uma época de grande perigo. E, ainda
assim, você passa todos os dias cuidando de seu cavalo, enquanto os seus
companheiros jogam e o homenzarrão esvazia os nossos estoques de cerveja de
pinho.
— Alturk é um homem… perturbado. E permanecemos aqui porque Urso
Sábio advertiu que seguir adiante durante a Noite Longa significava a morte. Mas
nós, é claro, somos gratos pela sua hospitalidade.
— Você fala como se pretendesse nos deixar.
— Viemos à procura de um homem em particular. A canção de Kiral nos
guiará até ele. Quando ela ouvir uma melodia nítida, partiremos.
— Deixando-nos à própria sorte, qualquer que seja?
— Você dá importância demais a pinturas e histórias antigas, principalmente
considerando que pode não ter nascido para esta vida.
Astorek deu uma risada amarga.
— É isso? Você nega ajuda ao meu povo porque ainda não confia em mim?
— Seu povo não precisa de ajuda, pelo que sei. Quanto a você… — Vaelin
tirou o bornal de Cicatriz e coçou o seu focinho. — Ainda não sei como você veio
parar aqui, nessa época, falando com perfeição a nossa língua.
— Se eu fosse um inimigo, a canção de sua caçadora não teria lhe avisado?
Barkus, aquela noite na praia, a máscara caindo num instante. Todos aqueles
anos e a canção não lhe dissera nada.
— Deveria, mas sei a duras penas quão bem os servos do inimigo podem
evitar ser detectados.
Vaelin colocou o bornal de lado e acomodou uma pele de lobo-marinho sobre
o dorso de Cicatriz, o cavalo de guerra soltando uma bufada contente pelo
aumento de calor. Então se virou para Astorek, com as sobrancelhas erguidas,
esperando. O volariano abaixou o olhar, sua resposta um murmúrio relutante:
— Eu fui guiado até aqui… por um lobo.

— Meu pai era um homem rico. — O rosto de Astorek estava banhado de


amarelo à luz do fogo, o olhar fixo nas chamas.
Vaelin chamara os outros para a grande morada que dividiam, para ouvir o
conto do volariano, e os lonaks sentaram-se com a costumeira atenção diante da
promessa de uma história interessante. Os dotados se sentaram dos dois lados de
Vaelin, Orven e os seus guardas dispostos em fileiras organizadas atrás. Somente
Alturk estava ausente, algo que provocou uma troca de palavras ríspidas entre
Kiral e um dos Senthar, um guerreiro veterano que se remexeu pouco à vontade
diante das perguntas dela. Pela expressão enojada, Vaelin deduziu que ela havia
achado a resposta do lonak nem um pouco satisfatória.
— Um mercador por profissão — prosseguiu Astorek. — Como o seu pai
antes dele. Nosso lar era a grande cidade portuária de Varral, onde cresci na bela
casa de meu avô cercado por belas escravas e belos brinquedos. A maioria das
transações comerciais de meu avô era feita com o Reino Unificado, e com
frequência fazíamos o papel de anfitriões para mercadores e capitães vindos do
outro lado do mar. Determinado a assegurar o seu legado, meu avô insistiu que eu
aprendesse todas as principais línguas de comércio, de modo que aos doze anos
eu era fluente na língua do Reino e em alpirano, e podia conversar de forma
adequada nos dois principais dialetos do Extremo Ocidente. Lembro-me de ser
uma criança feliz, e por que não seria? Desde que prestasse atenção nas lições
durante algumas horas por dia, todos os meus caprichos eram realizados, e meu
avô gostava de me mimar.
O sorriso de ternura de Astorek pelas lembranças desapareceu quando ele
continuou:
— Tudo mudou quando meu avô morreu. Parece que meu pai tivera
aspirações de ser um soldado na juventude, que foram rapidamente
desconsideradas por meu avô, é claro, que tinha pouco interesse em assuntos
militares além do comércio de armas. Todos os homens volarianos devem servir
por no mínimo dois anos como Espadas Livres, mas meu avô sabia a quem
subornar para negar ao filho uma chance de glória militar. E assim, conforme os
anos passavam, meu pai alimentou sua mágoa e sua ambição secreta, uma
ambição que pôde ser colocada em prática com a morte de meu avô.
“Volaria tende a ver soldados amadores com desdém. Os filhos dos ricos
podem comprar uma patente de oficial subalterno, mas a partir daí promoções
são concedidas estritamente por mérito. Contudo, meu pai também sabia a quem
subornar e, pouco depois de ter assegurado a sua patente e de fornecer fundos
para equipar e recrutar um batalhão completo de cavalaria Espada Livre, ele se
viu rapidamente elevado à patente de comandante. Porém, a patente não foi o
bastante. Sua sede de glória não havia sido saciada. Varral, como todas as cidades
volarianas, possui muitas estátuas, longas fileiras de bronze em memória a heróis,
antigos e novos, e meu pai queria muito um pedestal para si. Um aumento
repentino nas campanhas contra os selvagens nortistas lhe forneceu a
oportunidade e, como é o costume entre os ricos em Volaria, filhos em idade
suficiente precisam seguir seus pais na guerra. Eu tinha treze anos.”
— Sua mãe não fez objeções? — perguntou Vaelin.
— Talvez tivesse feito, se eu a tivesse conhecido. Meu avô me contou que ela
havia sido mandada embora depois que se revelou uma vadia infiel e meu pai
nunca falou uma única palavra sobre ela. Mas havia uma escrava, uma velha
que trabalhava na cozinha, tão velha que estava ficando senil. Certa vez ela me
viu roubando bolos, como eu costumava fazer, e começou a gritar “Cria de
elverah! Cria de elverah!”. Os outros escravos a arrastaram para longe depressa
e nunca mais a vi. Essa foi a única vez que meu avô me castigou, trinta varadas,
e após cada golpe ele me fez prometer nunca mais falar sobre a minha mãe.
— Ela era dotada — disse Dahrena. — Como você.
— Suponho que sim. Acontece o mesmo entre o Povo Lobo: somente mães
com poder o passam para os filhos. Enquanto eu viajava para o norte com o
batalhão de meu pai, os soldados às vezes trocavam histórias de pessoas estranhas
levadas por agentes do Conselho e que nunca mais tornavam a ser vistas. Mas
eles sempre falavam sobre tais assuntos em voz baixa, pois meu pai aplicava a
disciplina com zelo, e chicoteou vários homens na primeira semana da marcha.
Imagino que ele estivesse tentando compensar por uma ausência total de
qualquer talento militar.
“Pobre de meu pai. Ele era um soldado terrível, cansava-se depressa na sela,
adoecia com facilidade, negligente na obtenção de provisões suficientes para os
seus homens. Quando nos juntamos ao resto do exército, os seus sonhos de glória
haviam desaparecido em meio à realidade da vida de um soldado, que, pelo que
eu podia ver, consistia principalmente em desconforto, comida ruim e a ameaça
constante do chicote, animada somente por uma ocasional ração de vinho ou
jogo de dados. Desconfio que ele havia decidido deixar a nova carreira, e talvez
tivesse conseguido fazê-lo com um suborno bem aplicado se não fosse pelo
General Tokrev.”
Todas as pessoas do Reino se empertigaram ao ouvir o nome, fazendo Astorek
piscar, surpreso.
— Vocês conhecem esse nome?
— Ele cometeu muitos crimes na nossa terra natal — disse Vaelin. — Está
morto agora.
— Ah. Uma notícia que há muito eu esperava ouvir. Sempre desconfiei que
ele não estava destinado a uma vida longa, ainda que, assim como alguns dos
vestidos de vermelho, houvesse rumores de que ele já era muito mais velho do
que aparentava ser. Conhecíamos a sua reputação. Diziam que era um
comandante de brilhantismo tático, mas também de disciplina severa. Quando
nos juntamos ao exército, ele estava prestes a enforcar três oficiais por covardia,
sendo um deles comandante de batalhão culpado de manifestar sentimentos
derrotistas. As ordens de Tokrev eram concentrar os seus esforços nas tribos
montanhesas, uma vez que apenas metade da cota de escravos para aquele ano
havia sido preenchida, mas ele tinha ambições de ir além, até o norte congelado,
onde as lendas falavam de tribos selvagens que viviam no gelo, supostamente
muito mais ricas em sangue dotado do que qualquer outro povo do mundo.
“Muitos de seus oficiais, inclusive meu pai, não ficaram nem um pouco
felizes com esse plano. Porém, a demonstração de Tokrev foi suficiente para
silenciar qualquer discordância e marchamos para o norte, sendo obrigados a
enfrentar as tribos ao longo do caminho. Era uma gente feroz, acostumada a uma
vida de guerreiro, e um inimigo formidável. Por sorte, também gostavam tanto
de lutar entre si quanto de enfrentar os odiados invasores sulistas, de maneira que
nunca tinham guerreiros suficientes para serem um sério obstáculo.
“Nosso batalhão recebeu a tarefa de patrulhar os flancos, algo complicado
para o comandante mais experiente e muito além das capacidades de meu pai.
Basta dizer que o nosso primeiro combate foi um desastre previsível. Meu pai nos
conduziu a uma ravina estreita e fomos atacados pelo alto por arqueiros e
fundeiros. Seu principal sargento teve perspicácia suficiente para ordenar uma
investida que nos levou para campo aberto, mas eles estavam nos esperando do
outro lado, mil selvagens ou mais descendo aos gritos das colinas ao redor para
nos atacar. Vi meu pai ser derrubado sem demora do cavalo e corri na direção
dele, pois, afinal de contas, apesar de todos os defeitos, ele era meu pai. Consegui
chegar ao seu lado, mas o machado de um selvagem cortou a pata dianteira do
meu cavalo, deixando nós dois a pé e cercados. Meu pai estava ferido, tinha um
corte fundo na testa, mal percebia o que estava acontecendo, gritando de horror
enquanto o seu batalhão era feito em pedaços. Os montanheses estavam rindo
quando se aproximaram, riam do garoto tentando afastá-los com uma espada
trêmula enquanto o seu pai tropeçava ao redor e gritava ordens a cadáveres.
Aquela foi a primeira vez que aconteceu.
“Vi um grupo de cavalos sendo reunido a pouca distância de onde eu estava.
Os selvagens têm poucos cavalos, então os animais eram um grande prêmio. Eu
sabia que, se ao menos pudesse nos levar até um cavalo, poderíamos cavalgar
para a liberdade. Sabia disso com toda a certeza. Olhei para eles, desejando que
ouvissem o meu desespero… E eles vieram, todos de uma vez, escapando dos
selvagens e atropelando os que nos cercavam, pisando e escoiceando. Dois
pararam ao nosso lado, imóveis como se estivessem congelados. Consegui
colocar meu pai na sela e cavalgamos para longe, e cada cavalo sobrevivente
veio atrás de nós. Cavalgamos às cegas por uma eternidade até que eu também
comecei a perder as forças e notei que sangrava, pelo nariz, pelos olhos, pela
boca. Lembro-me de cair do cavalo, e então tudo ficou escuro.
“Fomos encontrados por um grupo de batedores Varitai na manhã seguinte,
desacordados em meio a uma manada de cavalos sem cavaleiros. Eles nos
levaram de volta ao acampamento, onde o curandeiro-escravo conseguiu
despertar o meu pai com algum tipo de mistura de ervas, mas ele não era o
mesmo, me encarando com olhos que viam um estranho, balbuciando coisas que
somente ele podia compreender. Por mais que estivesse fora de si agora, o
General Tokrev ainda assim o julgou incompetente e covarde. Como único
herdeiro, fui obrigado a vê-lo ser decapitado. O general decretou que a linhagem
dele não era digna de liberdade e me condenou à escravidão. Naturalmente,
como a parte prejudicada, toda a riqueza de minha família agora era dele.
“A vida de um escravo raramente é fácil, mas ser um escravo em serviço
militar é uma forma particular de tormento. Meus companheiros eram na
maioria covardes e desertores, sujeitados a espancamento rotineiro para reprimir
qualquer atitude de desafio, o menor sinal de desobediência punível com tortura
prolongada e morte, um destino sofrido por três de meus companheiros durante a
marcha para o norte. Éramos usados como animais de carga, carregados de
fardos que teriam colocado à prova o homem mais forte, alimentados com o
mínimo para permanecermos vivos. Havíamos passado de duzentos escravos a
menos de cinquenta quando chegamos ao gelo.
“A gloriosa campanha do general começou com a destruição de um pequeno
povoado na costa do oceano congelado. Talvez quinhentas pessoas, de estatura
pequena e vestidas com peles. Deveria ter sido uma vitória fácil, mas aquela
gente não era indefesa, pois de algum modo controlavam ursos. Grandes ursos
brancos diferentes dos que já havíamos visto, ursos que pareciam não sentir nada
quando flechas ou lanças lhes perfuravam as peles, ursos que faziam companhias
inteiras em pedaços antes de serem abatidos. O general foi obrigado a sacrificar
uma brigada inteira no combate, e o que se esperava ser uma vitória fácil
transformou-se numa carnificina prolongada. O povoado era dele, embora
muitos dos habitantes tivessem fugido para o gelo. Os poucos prisioneiros, a
maioria homens e mulheres feridos que lutaram na retaguarda para ganhar
tempo para que o seu povo fugisse, sentaram-se e recusaram-se a se mover,
independentemente de quaisquer tormentos que lhes fossem infligidos pelos
capatazes. Eles foram arrastados para dentro de jaulas, mas se recusaram a
comer e morreram pouco tempo depois, sem dizer uma única palavra.
“Embora Tokrev não tenha tardado a enviar a Volar um relato exagerado de
sua vitória, as tropas não compartilhavam de seu júbilo. O frio já estava
causando mortes e o inverno ainda nem havia chegado de vez. Os Espadas Livres
olhavam para a vasta extensão de gelo à sua frente com uma grande inquietação.
Contudo, ninguém teve coragem de contradizer o general quando ele ordenou
que avançassem, e logo me vi puxando um trenó pelo gelo ao lado de uma dúzia
de outros infelizes. Todas as manhãs ao acordar víamos que havia cada vez
menos de nós, até que em pouco tempo só restara eu e outros três. Os capatazes
nos xingavam e batiam, mas não tinham muita opção além de aliviar a carga,
deixando provisões vitais para trás porque não havia escravos suficientes para
carregá-las. Barrigas começaram a roncar e ânimos a se exaltar, e o medo dos
Espadas Livres aumentava a cada passo dado no gelo, medo esse que se mostrou
bem justificado.
“O Povo Urso esperou o momento propício, deixando que nossas vidas e
comida acabassem a cada quilômetro percorrido, até que os dias ficaram tão
curtos que o exército não conseguia percorrer mais de alguns quilômetros por
vez. Estranhamente, eu estava mais bem alimentado do que antes. O capataz
principal havia conseguido mergulhar para a morte no fundo de uma fenda
oculta no gelo, e os seus subordinados sobreviventes estavam esgotados demais
pelo frio para prevenir que eu me servisse das rações dos meus companheiros
escravos. Todos eles haviam perecido a essa altura, alguns devido aos
espancamentos, mas a maioria havia sido levada pelo frio.
“Lembro-me do dia em que vi o general pela última vez, sozinho na frente da
coluna. Ele andava de um lado para outro no gelo, pisando firme e impaciente, e
me pareceu que esperava por alguma coisa. Graças às minhas forças
recuperadas, eu havia começado a alimentar ideias insanas de vingança. Os
capatazes cada vez mais negligentes, reduzidos a apenas dois, não notaram
quando peguei uma chave de um de seus companheiros mortos, um bêbado que
cometera a tolice de desmaiar após se esquecer de enrolar-se bem nas peles.
Seria simples soltar os meus grilhões do trenó, correr na direção do general e
passar as correntes por sobre a cabeça dele, estrangulando-o antes que os seus
Kuritai pudessem reagir. Era um plano impossível, é claro. O homem tinha o
dobro do meu tamanho e os seus Kuritai teriam caído sobre mim antes que eu
tivesse percorrido metade da distância. Mas eu era jovem, e a esperança sempre
é viva nos jovens. E a visão do cadáver decapitado de meu pai jamais
desapareceu, por mais tolo que ele tivesse sido.
“Assim, enquanto o general andava de um lado para outro, enfiei a chave no
fecho e me preparei para colocar o meu plano em prática. Penso com
frequência no que teria acontecido se o homem sem olhos não tivesse aparecido.
Provavelmente haveria mais um escravo morto no rastro do exército daquele
louco através do gelo. Mas, ainda assim, em meus momentos de menos reflexão,
costumo pensar no que teria sentido ao ter aquele homem à minha mercê,
somente por um instante, ter consciência do medo dele quando a corrente fosse
apertada em volta do seu pescoço.
“Porém, a chegada do homem sem olhos afastou todos esses pensamentos da
minha cabeça. Ele não era muito diferente das pessoas que havíamos matado no
litoral, vestido com peles, pequeno e de rosto largo, mas em vez de ursos ele
havia trazido gatos, gatos muito grandes que saíram da neblina de ambos os lados,
fazendo os poucos cavalos sobreviventes empinarem alarmados e uma
quantidade considerável de Espadas Livres recuar. Muitos começaram a sacar as
espadas, mas foram detidos por uma ordem do general. Para minha grande
surpresa, ele começou a conversar com o homem sem olhos, não em alguma
língua tribal estrangeira, mas em volariano. Ainda mais chocante foi o seu
comportamento, com ombros curvados e cabeça levemente abaixada, a postura
de um homem subserviente. As palavras eram baixas, mas ouvi alguns trechos
da conversa em meio ao vento constante. ‘Você foi ordenado a esperar’, disse o
homem sem olhos ao general. Tokrev pareceu corar, falando o tipo de jargão
militar que meu pai adorava, mas raramente compreendia, sobre aproveitar
iniciativas e investidas ousadas. O homem sem olhos disse que ele era um tolo.
‘Volte no próximo verão’, falou antes de lhe dar as costas. ‘Se eles lhe deixarem
algo com que voltar’. Então ele desapareceu, assim como os seus gatos.
“Permanecemos acampados com o cair da noite, cada alma agora sem
dúvida implorando em silêncio para que Tokrev ordenasse uma retirada de
manhã. O Povo Urso acabou não lhe deixando alternativa. Os falcões-lanceiros
atacaram primeiro, mergulhando do céu noturno às centenas para arrancar olhos
de órbitas, rasgar rostos e cortar dedos, de modo que parecia que uma chuva
vermelha caía por toda parte. Os Espadas Livres entraram em pânico e somente
os Varitai e os Kuritai responderam aos toques de corneta, formando um cordão
defensivo ao redor do acampamento. Houve um momento de total calmaria, a
noite para além da luz das tochas apenas um vazio silencioso, mas então se ouviu
o som, preenchendo a noite, o rugido de mil ursos enfurecidos.
“Eles nos atacaram por dois lados, uma cunha densa de músculos e garras,
atravessando os Varitai como se fossem feitos de palha, e então saindo numa
disparada destruidora pelo acampamento. Por todos os lados homens tombavam
gritando, eviscerados ou decapitados por golpes de garras, os ursos subindo e
descendo ao transformar os soldados numa massa sangrenta. A última vez que vi
o general ele estava no meio de um grupo de Kuritai, que lutava com toda a
habilidade para manter as feras afastadas enquanto ele fugia, seguido de perto
por um aglomerado de Espadas Livres enlouquecidos de medo.
“Quanto a mim, eu ainda me encontrava agachado junto ao trenó, agora
adornado com os restos dos meus capatazes. Tudo acontecera com tal velocidade
que eu mal podia acreditar. Os ursos pareciam satisfeitos em continuar
desmembrando cadáveres, mas então vi homens correrem das sombras, muitos
homens com lanças, mais ursos correndo ao lado deles e o ar acima tomado pelo
estrondo de asas. Num instante eu soube que continuar por mais um momento
significaria a morte.
“Soltei-me e fugi para a escuridão, sem me lembrar de pegar algumas
provisões, pensando apenas em escapar. Corri até os meus pulmões começarem
a arder com o ar congelado, e caí somente quando as minhas pernas cederam.
Permaneci deitado e imóvel por algum tempo, tentando recuperar um pouco das
minhas forças, mas eu estava cansado demais e fazia muito frio. Achei que seria
melhor dormir um pouco, e eu teria caído num sono eterno se não tivesse ouvido
o som constante das garras de um urso sobre o gelo atrás de mim. Eu me forcei a
levantar e segui em frente, cambaleando, impelido somente pelo terror, mas
nem isso foi suficiente para que eu pudesse continuar fugindo e caí mais uma
vez.
“Ciente de que minha causa estava perdida, forcei-me a me virar e
confrontar o meu perseguidor, uma forma pesada que se aproximava em meio à
escuridão, de olhos brilhantes, garras e focinho vermelhos de uma refeição
recente. Os volarianos não possuem canções de morte, pois não acreditam que
haja deuses ou almas elevadas para ouvi-los, mas naqueles momentos finais me
vi pensando mais uma vez nos sonhos tolos de meu pai e em como eu gostaria de
ter encontrado coragem para lhe perguntar sobre a minha mãe.”
Astorek calou-se e agora tinha o olhar distante, franzindo a testa, intrigado,
como se estivesse se lembrando de algo que não compreendia plenamente.
Vaelin conhecia bem aquela expressão, que tantas vezes já estivera em seu
próprio rosto.
— O lobo — disse ele.
— Sim. — Astorek deu um leve sorriso. — O urso parou a alguns metros de
mim, rosnando, com um brilho malicioso no olhar que eu só tinha visto nos olhos
de homens. Ele parecia estar saboreando o momento e aproximou-se devagar
até que o seu focinho ensanguentado estivesse a poucos centímetros de mim, seu
hálito quente e fedorento em meu rosto… E então ele parou.
“Eu havia fechado os olhos, recusando-me a encarar aquele olhar cheio de
ódio, mas quando senti o seu hálito se afastar, abri-os de novo. O urso estava
encolhido, de cabeça baixa, os olhos agora iluminados por outro traço humano:
medo. Não de mim, é claro, mas de algo atrás de mim. Então me virei e vi um
lobo.
“Percebi duas coisas de imediato. Primeiro, ele era grande, maior do que o
urso que agora se encolhia diante dele, na verdade. Segundo, os olhos. Olharam
nos meus e eu soube… Ele estava me vendo, por completo, pele, ossos, coração
e alma. Estava me vendo e não sentia qualquer malícia.
“Ouvi o som de algo sendo raspado e me virei para ver o urso fugindo para
noite adentro a toda a velocidade, a forma branca logo engolida pela escuridão.
O lobo andou à minha volta durante algum tempo, seu olhar ainda fixo em mim.
Apesar de toda a estranheza e do terror, eu ainda sentia o frio intenso me
envolver, o suor na minha pele agora congelado, sugando o que me restava de
forças. Minha visão começou a ficar turva e eu soube que logo encontraria a
morte… Então o lobo rosnou.
“Não foi uma voz que entrou na minha cabeça naquele momento e sim mais
uma certeza, uma convicção implacável de que eu não podia morrer ali. Tirei
forças de algum lugar para me levantar e o lobo partiu a trote em direção ao
norte, parando depois de algum tempo para certificar-se de que eu o estava
seguindo. Arrastei-me em seu encalço por incontáveis horas, ou possivelmente
dias, pois toda a noção de tempo pareceu sumir. Se eu vacilava ou sentia um
desespero crescente que me tentava a afundar no gelo onde pelo menos poderia
descansar, o lobo rosnava, e eu continuava me movendo.
“Paramos quando o fogo verde começou a ondular no céu. Sem saber o que
era, finalmente caí de joelhos, achando que era uma visão de morte, ou de
loucura. Talvez eu já tivesse morrido e todos os meus tutores estivessem
enganados. Havia algo nos esperando do outro lado do arco da vida. A essa altura
eu já não sentia medo algum, assim como quase todas as outras sensações,
entorpecido como estava. Naquele momento havia apenas aceitação, um
sentimento de uma jornada completa.
“E o lobo uivou.”
Astorek fechou os olhos e Vaelin sentiu a mão de Dahrena entrelaçar-se com
a sua, consciente de que ela também estava se lembrando do uivo do lobo,
daquela noite na floresta quando os seordah atenderam ao chamado dele para a
guerra. Vaelin sabia que Astorek não podia descrever como foi a sensação, o som
que parecia anular tudo, exceto o âmago daqueles privilegiados, ou
amaldiçoados, por ouvi-lo.
— Eu teria chorado — disse o jovem xamã, reabrindo os olhos para encarar
a sua plateia com um sorriso melancólico — se as minhas lágrimas não tivessem
congelado nos olhos. O uivo do lobo cessou e ele me encarou uma última vez, e
então partiu, saltando sobre o gelo. Olhei para o fogo no céu durante algum
tempo e então me deitei para dormir. Matador de Baleia deve ter me encontrado
poucos minutos depois, pois eu ainda estava vivo ao amanhecer.
— E você permaneceu aqui desde então? — perguntou Vaelin. — Nunca
tentou voltar para casa?
— Para que casa eu voltaria? Tudo o que eu tinha havia desaparecido. Além
do mais, quando eles retornaram no verão seguinte, compreendi muito bem a
torpeza do meu antigo povo. Ficamos sabendo sobre a grande batalha do Povo
Urso com o Povo Gato, que eles haviam fugido para o oeste em busca de presas
mais fáceis. O Povo Lobo não lamentou vê-los partir do gelo, pois eles haviam
adotado costumes insensatos. Porém, embora o Povo Urso tivesse conquistado
uma vitória, suas baixas significavam que não podiam resistir a outra expedição
volariana, ainda mais porque os volarianos haviam aprendido bem a lição e
voltaram melhor equipados e em número muito maior. Quando terminaram com
o Povo Urso, eles vieram atrás de nós.
“Muitas Asas me ensinara muito, e eu era um aluno bastante determinado.
Ela esperava me proteger do conflito, mas eu queria retribuir a bondade deles.
Matamos muitos volarianos juntos, meus lobos e os falcões dela, atacando onde
eles eram mais vulneráveis, fugindo antes que pudessem revidar. Nós os
atacamos durante meses, até que a linha de marcha deles tornou-se uma mancha
vermelha no gelo. Mas sempre havia mais, e, embora eu o procurasse, nunca
mais encontrei o rastro de Tokrev. Eles pararam de vir há dois invernos.
Pensamos que finalmente os havíamos convencido a nos deixar em paz, mas
parece que eles atravessaram a grande água para atormentar o seu povo, e
sentimos muito por isso.”
Vaelin olhou para Kiral, que assentiu lentamente. Ela não está ouvindo
mentiras… Assim como não ouvi mentiras ditas por Barkus.
— Eles virão de novo — prosseguiu Astorek, olhando fixamente para Vaelin.
— Em números ainda maiores. Mas agora temos você, Sombra do Corvo.

A cabana que Alturk escolhera para isolar-se era precária, pouco mais do que um
barraco inclinado numa pequena clareira afastada do povoado principal. A porta
cedeu facilmente sob a bota de Vaelin, liberando o odor fétido de um homem
sujo que se entregara à bebida. O corpo volumoso de Alturk estava deitado numa
cama de peles, roncando alto, cercado pelos cantis de dente de morsa que os
anfitriões usavam para armazenar cerveja de pinho, todos vazios. O adormecido
Alturk não deu qualquer sinal de ter notado a intrusão, algo que mudou de forma
brusca quando Vaelin esvaziou uma tigela cheia de água gelada sobre a cabeça
desgrenhada do lonak.
A explosão de fúria foi instantânea, e o homem levantou-se de um pulo, com
o porrete de guerra na mão e os dentes arreganhados. Ele parou ao avistar Vaelin
na entrada da cabana, uma expressão confusa passando pelo rosto molhado.
— Escolheu morrer agora, merim her? — perguntou ele, sibilando.
— Sorbeh Khin — disse Vaelin, a expressão lonak para um desafio formal. —
Você não está mais em condições de liderar os Senthar. Eles são meus agora. Se
quiser ficar com eles, lute comigo. — Ele deu meia-volta e foi para a clareira,
onde os Senthar aguardavam, assistindo a tudo com expressões de grave
compreensão. Kiral havia explicado os motivos de Vaelin e, para a sua surpresa,
ninguém fizera objeção.
— Cães traiçoeiros — rosnou Alturk para eles ao sair da cabana, e em
seguida começou a gritar em lonak numa diatribe breve porém veemente que
pareceu não comover ninguém.
— Você não dá mais ouvidos às ordens da Montanha — disse Kiral a ele. —
Está se tornando varnish. Este homem está lhe dando uma chance de provar o
contrário.
Alturk não disse nada, consentindo apenas em olhar com desprezo para ela
antes de encarar fixamente Vaelin, apertando com força o porrete de guerra.
— Onde está a sua arma?
Vaelin estendeu as mãos, mostrando que não havia adaga em seu cinto, nem
espada em suas costas.
— Por que eu precisaria de uma arma? Você não oferece qualquer ameaça.
Alturk olhou furioso para ele por mais um momento, e então começou a
gargalhar, jogando a cabeça para trás e fazendo o seu divertimento ecoar pelas
árvores ao largar o porrete.
— Eu deveria lhe agradecer — disse ele quando finalmente parou de rir. —
Nem todo homem consegue tornar os seus sonhos realidade.
Ele avançou sobre Vaelin correndo agachado. O tempo passado entre o Povo
Lobo ajudara em muito a recuperar a sua constituição física e, apesar de toda a
cerveja de pinho na barriga, a velocidade do lonak era impressionante, deixando
apenas uma fração de segundo para Vaelin desviar-se da investida e desferir um
soco em seu maxilar. Alturk grunhiu de dor, mas não vacilou, respondendo com
um rápido soco giratório. Vaelin bloqueou com os dois braços e enfiou o cotovelo
no rosto exposto do lonak, seguindo com uma série de socos no rosto e na barriga,
esquivando-se dos contragolpes de Alturk enquanto o fazia recuar, acertando
cada soco com precisão… até que ele segurou um com a mão e deu um murro
na têmpora de Vaelin.
Ele cambaleou para trás com o impacto, o mundo subitamente um borrão
enquanto lutava para assumir uma postura de combate. Porém, Alturk não lhe
deu a oportunidade, dando uma rasteira e atingindo outro soco em seu rosto. O
mundo desapareceu por um momento e Vaelin só conseguia ver uma sombra
vaga, cercada por estrelas cintilantes…
— Você — disse Alturk entre dentes, erguendo o punho pesado para dar outro
golpe. — Você fez do meu filho um varnish. Eu o vejo todas as noites, vejo-o
morrer todas as noites, por causa de você, merim her.
— Eu poupei um garoto — retorquiu Vaelin, cuspindo sangue e sentindo seu
olho esquerdo fechar-se com o inchaço. — Você matou um homem… um
homem que fez as próprias escolhas. — Ele então viu, um lampejo de algo nos
olhos do lonak, um espasmo de expressão no rosto marcado. — Você sabia —
disse Vaelin, compreendendo. — Sabia que ele o havia traído muito antes de
matá-lo.
Alturk rosnou de novo, levando o punho ainda mais para trás. Vaelin pigarreou
e cuspiu sangue nos olhos do lonak, conseguindo tempo suficiente para girar e
chutá-lo na lateral da cabeça. Ele se ergueu depressa quando Alturk cambaleou
para trás, correndo e dando uma cabeçada no diafragma do lonak, levantando a
cabeça em seguida e o atingindo no maxilar. Vaelin complementou com mais
socos no rosto, e Alturk se encolhia a cada golpe, agitando os braços à medida
que tentava repelir o ataque. Vaelin por fim o deixou de joelhos com um gancho
de direita no queixo.
Vaelin parou, o peito arfando, sangue escorrendo dos punhos e pingando no
chão da floresta.
— Nishak me contou — disse Alturk numa voz apática e cansada, erguendo os
olhos para ele, o sangue escorrendo de vários cortes. — Eu… não dei ouvidos. —
Ele abaixou a cabeça, encolhendo-se, resignado. — Não peço a faca.
Kiral surgiu ao lado de Vaelin com o porrete de guerra de Alturk na mão.
— Atinja em cheio — disse ela, oferecendo a arma a Vaelin. — Ele ao
menos merece um fim rápido.
Kiral se calou de repente e empertigou-se, voltando o olhar para o sul. Pela
expressão de dor em seu rosto, Vaelin sabia que a canção da lonak devia estar
emitindo uma nota poderosa. No entanto, desta vez ele não precisou perguntar o
significado, pois pôde ouvir outro aviso, atravessando o gelo e a floresta, inegável
e implacável. Os Senthar remexeram-se pouco à vontade e trocaram olhares
temerosos, pois o uivo de nenhum lobo já soara tão alto.
Vaelin virou-se para Alturk quando o uivo cessou e o encontrou de pé; a
postura de derrota havia desaparecido de seus ombros e havia uma certeza
ardente em seu olhar.
— Vou precisar disso — disse ele, indicando o porrete de guerra.
Vaelin olhou para Kiral, esperando que ela fizesse alguma objeção, mas a
expressão da lonak foi de grave consentimento, ainda que relutante.
— Urso Sábio possui algumas habilidades de cura — disse ele a Alturk. — Ele
pode dar pontos em seus cortes.
Alturk apenas grunhiu.
— Se eu estivesse sóbrio, você estaria morto agora.
Vaelin deu uma leve risada e jogou o porrete de guerra para as mãos do
lonak.
— Eu sei.
CAPÍTULO DOIS
Reva

Ela podia ver que o volariano estava morrendo; a pele do homem pendia dos
ossos do rosto como uma máscara dessecada, os olhos embotados pela derrota e
pelos sofrimentos recentes. Ainda assim, ele havia contado a sua história com
uma voz firme, num tom claro e forte, um homem com a experiência de séculos
em oratória.
— A Imperatriz irá enfrentá-los apenas com um terço da frota — disse ele
aos capitães reunidos do Exército da Rainha, que haviam sido chamados para o
conselho na nau capitânia. — Depois que os derrotarem, ela espera que vocês
rumem para o Estreito de Lokar. A frota completa virá do sul para interceptá-los.
Isso é tudo que sei.
Reva observou enquanto o Escudo examinava o mapa detalhado sobre a
mesa. Eles haviam se reunido no convés principal do Rainha Lyrna, uma vez que
nenhuma cabine era grande o suficiente para acomodar tantos. O mar estava
mais calmo naquele dia, embora ainda turbulento o suficiente para fazer o barco
que a levara até o navio balançar de forma alarmante, deixando entrar água a
cada minuto que passava. Reva percebeu que não gostava muito da vida no mar;
mesmo após ter superado os enjoos iniciais, a vida a bordo era extremamente
desagradável, assim como a dor recorrente que sentia sempre que pensava em
Veliss e Ellese.
— O Estreito de Lokar. — A voz de Ell-Nestra a trouxe de volta ao presente
quando ele bateu com o dedo numa baía na costa volariana. — A única rota
marítima direta até Volar. Assim que entrarmos no estreito, eles poderão nos
encurralar mesmo com poucos navios. A quantidade de embarcações não fará
muita diferença num espaço tão exíguo. Sem contar que será fácil para eles
guarnecerem as margens norte e sul contra um desembarque.
— Essa nova Imperatriz deles preparou uma armadilha elegante — disse o
Conde Marven num tom de admiração relutante. — Parece que ela não é
nenhum Tokrev, infelizmente.
— Um ardil mais complicado do que o necessário — retorquiu a Rainha, sem
nenhum vestígio de respeito na voz. — Duvido que ela já tenha jogado keschet.
— Ela se virou para o Escudo. — Seu conselho, Lorde Almirante Ell-Nestra?
— Lutar uma batalha desnecessária nunca é uma boa opção — comentou
ele, ainda passando os olhos pelo mapa. — Ainda mais no mar, onde tantas coisas
dependem do acaso. E manobrar uma frota tão carregada de tropas será árduo,
para dizer o mínimo. Sugiro que simplesmente evitemos o inimigo, seguindo um
curso para nordeste para desembarcar aqui. — Ele bateu com o dedo numa baía
rasa mais de 150 quilômetros ao norte do Estreito de Lokar. — Alguns de meus
capitães já fizeram contrabandos nestas costas e me disseram que a praia aqui é
grande o bastante para acomodar pelo menos um quinto do exército num
desembarque. Com o grosso das forças volarianas protegendo as margens do
estreito, eles devem ter poucas tropas lá para se oporem a nós. Assim que o
exército desembarcar, a frota estará livre para lidar com qualquer ameaça às
nossas linhas de abastecimento.
A Rainha virou-se para o seu Senhor da Batalha.
— Conde Marven?
— Levará pelo menos três dias para desembarcar o exército inteiro, Alteza.
Mesmo que a maioria das forças volarianas esteja concentrada no sul, ainda
devemos esperar algum tipo de ataque das guarnições locais antes de estarmos
totalmente prontos para marchar.
— Poderíamos desembarcar mais para o norte — admitiu o Escudo com um
suspiro. — Mas a costa não oferece muitos outros locais de desembarque por
pelo menos mais outros trezentos quilômetros.
— Quanto maior a distância até Volar, menores as nossas chances de sucesso
— disse a Rainha, tirando os olhos do mapa e encarando os seus capitães,
detendo-se por fim em Reva. — E temos alguém em nossas fileiras que pode ser
considerada especialista em repelir ataques volarianos.

— Além dos seus arqueiros e guardas — disse a Rainha —, vou lhe dar três
regimentos da Guarda do Reino, todos veteranos, incluindo os Lobos Corredores.
— Eles serão muito bem-vindos, Alteza — afirmou Reva.
Ela havia sido chamada à cabine da Rainha para uma audiência particular, a
primeira vez que ficaram realmente sozinhas. Até mesmo o enorme Lorde
Protetor recebera ordens de esperar do lado de fora. Reva se viu mais uma vez
espantada com a beleza da Rainha, e mesmo as tênues linhas brancas que iam da
fronte até o agora lustroso cabelo louro-avermelhado pareciam aumentar e não
macular a sua perfeição. Mais que isso, era a confiança natural, a autoridade
inigualável que garantiam que ela tivesse a atenção de todos os olhos em cada
encontro. Apesar disso, ou talvez em parte por causa disso, Reva ainda não
sentira o menor vestígio de atração pela mulher. Ela era mais fácil de se gostar
quando estava queimada, concluiu. Agora a máscara é perfeita demais.
— Por favor, saiba que a senhora tem liberdade para recusar essa ordem —
prosseguiu a Rainha. — Sem qualquer desaprovação.
— Viemos aqui para terminar isso — disse Reva. — Além do mais, acho que
prefiro lutar em terra do que no mar.
— Sem dúvida é um gosto adquirido com o tempo. — A Rainha sorriu,
embora não fosse um de seus sorrisos estonteantes; na verdade, foi um pouco
cauteloso. — Antes de partir em sua expedição ao norte, Lorde Vaelin me pediu
que eu não permitisse que a senhora se expusesse a riscos excessivos. Na
verdade, ele me implorou para deixá-la no Reino, como regente.
Reva segurou o riso. Sempre tão ávido para agir como o irmão mais velho.
— Uma tarefa para a qual dificilmente estou apta, Alteza. Mas eu pretendia
pedir uma explicação mais clara sobre o propósito por trás da atual missão de
Lorde Vaelin.
— Se segredos são mantidos, é por uma boa razão. Basta dizer que as
oportunidades oferecidas pela missão dele eram grandes demais para serem
ignoradas. — A Rainha fez uma pausa e o sorriso desapareceu lentamente. —
Recentemente tive a oportunidade de ler relatos mais detalhados sobre os eventos
ocorridos em Alltor. Eu não havia percebido quão verdadeiramente difícil a
situação havia se tornado, os extremos aos quais a senhora foi forçada.
O rosto do volariano ao se ajoelhar diante do bloco… Não é melhor do que
nós…
— A sobrevivência nos força a extremos, Alteza.
— De fato. Palavras das quais eu gostaria que a senhora se lembrasse ao
realizar a sua tarefa. Esta guerra ainda não foi vencida e a sobrevivência de
nossos povos necessita da vitória, a qualquer custo. — O olhar dela estava intenso
agora, a máscara impecável sem qualquer traço de humor. — Compreende?
A qualquer custo. Ao ver o olhar resoluto da Rainha, Reva teve uma súbita
sensação de reconhecimento, e outro rosto que ela conhecia tão bem surgiu em
sua mente, um com o qual ela falara com frequência em termos similares,
geralmente nos momentos antes que ele a espancasse.
— Talvez a senhora possa entrar em detalhes, Alteza — disse ela. — Minha
tarefa se tornará mais fácil com instruções claras.
A Rainha mal piscou.
— Os Varitai devem ser capturados somente se houver oportunidade. Todos
os Espadas Livres devem ser mortos.
— E se eles se renderem?
— Então matá-los será uma tarefa mais simples. — A Rainha avançou e
tomou as mãos dela, seu rosto agora um retrato de afeição fraternal. — Como
minha senhora disse, viemos aqui para terminar isso.

O Escudo acompanhou Reva de volta ao Marechal Smolen, um dos monstros


recém-construídos carregados com a sua Guarda da Casa e um quinto de seus
arqueiros. Ell-Nestra foi sob o pretexto de supervisionar os desembarques,
embora Reva tivesse a sensação de que ele subitamente não desejava ficar na
companhia da Rainha, talvez devido ao destino do volariano. Reva estava se
preparando para entrar no seu barco quando viu o homem recuar diante da
Rainha, suas feições abatidas subitamente lívidas pelo choque. A Rainha
permaneceu encarando-o com uma expressão de serena satisfação quando o
volariano lançou-se contra ela, de dentes arreganhados, as mãos feito garras
estendidas na direção da garganta dela. Com uma rapidez habilidosa, a Rainha
tirou uma adaga da manga e a cravou no peito do volariano, um ato sem
hesitação realizado antes que os seus guardas pudessem reagir.
— Jogue isto sobre a amurada — disse ela a Lorde Iltis, aceitando um pano
da Senhora Murel e limpando a adaga enquanto dava as costas ao homem.
O volariano, porém, conseguira de alguma forma agarrar-se à vida e
continuava a expressar toda a sua fúria contra ela enquanto o Lorde Protetor o
carregava até a amurada, praguejando aos gritos na própria língua com uma voz
esganiçada. A Rainha não se virou quando ele foi jogado no mar e foi até Reva
com as despedidas mais calorosas e desejos de boa sorte em sua empreitada.
— O homem mereceu o fim que teve, ao que tudo indica — disse Reva ao
Escudo ao deixarem o barco e subirem a escada de corda até o convés do navio.
— Dono de incontáveis escravos e membro do Conselho que enviou o exército
deles para invadir o Reino.
— Ela matou o filho dele — retorquiu Ell-Nestra, a voz seca de sombria
compreensão. — Queria que ele soubesse antes de morrer.
— Nossa Rainha é justa, mas a justiça dela pode ser severa.
— Ela é a sua Rainha, minha senhora. Minha lealdade terminará quando esta
guerra finalmente acabar.
Ele partiu pisando firme para encontrar o capitão do navio, enquanto Reva
explicava o plano para os Lordes Antesh e Arentes.
— Seremos a vanguarda do exército — disse o comandante da guarda,
cofiando o bigode. — Uma honra considerável.
— E um risco considerável — observou Antesh, sempre disposto a aconselhar
prudência ao lidar com a sua monarca. Durante a marcha até Warnsclave,
Vaelin contara a história completa de sua antiga relação com o Lorde dos
Arqueiros, deixando-a bem ciente da antipatia que o homem já nutrira por toda a
noção de um Reino Unificado. Embora o seu fanatismo claramente tivesse
desaparecido com o passar dos anos, ele ainda tinha uma desconfiança perene de
tudo o que era asraelino, principalmente da Rainha Ly rna.
— Estamos a quase dois mil quilômetros de casa enfrentando um inimigo
abominável — observou Reva. — Cada alma neste exército partilha do risco,
meu senhor. Informem o plano aos seus capitães, por favor. Desembarcamos em
cinco dias. — Ela estava prestes a acrescentar a instrução da Rainha a respeito
dos prisioneiros, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Seu povo não
precisava de muita instrução sobre isso e provavelmente matariam qualquer
volariano em que colocasse as mãos, mas dar voz a uma ordem que tolerava a
sede de sangue deles ainda parecia errado, lembrando-a mais uma vez de que o
Pai jamais transmitira uma única palavra sobre vingança.

Gaivotas apareceram no céu no dia seguinte e os primeiros vislumbres vagos de


terra um dia depois. Eles navegavam a uma distância de quinze quilômetros do
resto da frota, trinta navios que transportavam os soldados de Cumbrael e a elite
da Guarda do Reino. A Rainha também achara apropriado fornecer quatro das
extraordinárias novas balistas de Alornis, assim como uma nilsaelina esbelta que
parecia conhecer bem o funcionamento das máquinas.
— A Senhora Alornis me pediu que lhe desse os seus mais sinceros
cumprimentos, minha senhora — disse ela a Reva, com uma mesura
desajeitada. — Ela queria vir pessoalmente, mas a Rainha Ly rna ameaçou
amarrá-la ao mastro principal.
Reva a deixou escolher as pessoas mais habilidosas para operar as balistas
dentre as Filhas Marcadas, um título cruel mas apropriado dado à companhia
formada pelas cumbraelinas ansiosas para servirem com a Senhora Abençoada.
Eram pouco mais de duzentas e, assim como os homens recrutados, pelo menos
metade delas tinha menos de vinte anos, na maioria garotas de rostos taciturnos
com várias histórias terríveis de maus tratos e orfandade em mãos volarianas. A
princípio Arentes as manteve separadas dos homens, pretendendo que servissem
como carregadoras ou cozinheiras, mas um olhar severo de Reva lhe disse que
isso seria inaceitável. Reva passou a treiná-las pessoalmente, embora o assombro
evidente delas e a crença inquestionável em sua mentira contínua tornassem isso
uma espécie de provação.
— Se me permite, Senhora Abençoada — começou uma delas um dia antes
do desembarque, uma garota vivaz com menos de dezoito anos, se ajoelhando no
convés diante de Reva.
— Eu já falei, Lehra, pare de fazer isso.
— Desculpe-me, Senhora Abençoada. — A garota olhou para ela com um
rosto que teria sido o epítome da inocência juvenil se não fosse pela cicatriz que
ia de seu olho esquerdo arruinado até o lábio superior, uma punição por uma
pequena infração durante o tempo em que foi escravizada. — Mas estávamos
em dúvida. — Lehra fez uma pausa e olhou para o resto das Filhas, que se
encontravam aglomeradas perto dali de cabeças baixas. — Que versículo
devemos recitar pela manhã? Para termos certeza de que o Pai abençoa a nossa
empreitada.
O Pai não abençoa a guerra. Acha que Ele está vendo tudo isso e sorrindo?
Reva engoliu as palavras. A mentira levara milhares através do oceano e não
podia ser abandonada agora.
— Vocês todas precisam escolher os próprios versículos — disse ela,
levantando Lehra com menos gentileza do que pretendia, pois a garota encolheu-
se com uma mesura contrita. — “Nenhuma multidão pode pensar como uma só
mente, pois o Pai nos fez a todos para seremos diferentes, cada alma outra faceta
de Seu amor. Encontre o caminho ao amor do Pai com os próprios olhos e não
deixe que outros afastem você do caminho verdadeiro.” — O Livro da Razão; ela
raramente citava outro nos últimos tempos.
— Estaremos ao seu lado, minha senhora? — perguntou uma garota, a sua
avidez refletida no rosto das outras.
O olhar de Reva foi atraído para Escudo encostado no mastro de proa, que
assistia à cena com evidente divertimento.
— Eu não as mandaria para nenhum outro lugar — respondeu Reva. —
Agora, voltem ao treinamento.
Ela foi até o barril de água ao lado do mastro e olhou Ell-Nestra nos olhos ao
tomar um gole.
— Algo a dizer, meu senhor?
— A senhora teve uma visão divina — disse ele, encolhendo os ombros. —
Também tive uma, certa vez. Não gostei muito. Fez a minha cabeça doer.
— Os seus deuses são produtos de sonhos entremeados numa tapeçaria de
lendas.
— Enquanto o seu vive no céu, concede desejos e, quando vocês morrem,
deixa que vivam num campo para sempre.
— Para um homem que viajou tanto, acho que a sua ignorância é bastante
surpreendente.
Escudo fechou a cara e indicou as Filhas Marcadas com a cabeça, que agora
executavam a série mais recente de movimentos com espada que Reva lhes
ensinara.
— A senhora sabe o que as aguarda quando desembarcarmos. Quantas
morrerão acreditando nessa sua ficção?
Reva percebeu que não sentia raiva dele; a verdade era inescapável e havia
muito tempo ela se acostumara com a dor que causava. Ela observou as Filhas
por um momento e notou que meses de treinamento haviam aprimorado bastante
as suas habilidades; elas se movimentavam bem, os golpes e as aparas realizados
com velocidade e precisão. Além disso, eram ferozes, muitas delas já
transformadas em matadoras pelos volarianos. Mas, ainda assim, todas eram
muito jovens. Como eu costumava ser.
— O senhor teve escolha? — perguntou Reva ao Escudo. — Quando eles
apareceram para tomar as Ilhas? Quantos de seus piratas morreram nos Dentes
ou em Alltor? E, se essa guerra é tão odiosa e a Rainha tão vil, por que o senhor
está aqui?
Ela esperava raiva, mas a resposta dele foi contida, e todo o divertimento
havia desaparecido do rosto de Ell-Nestra quando ele falou:
— Eu achava que tinha uma mácula para limpar. Mas parece que tudo o que
fiz foi me conspurcar ainda mais.
Ele olhou para o alto quando se ouviu um grito vindo do cesto da gávea.
— A baía está à vista — disse ele, fazendo uma mesura a Reva e afastando-
se. — Hora de reunir os seus soldados, minha senhora.

Eles ancoraram a um quilômetro e meio da costa e os marinheiros passaram os


barcos por sobre a amurada enquanto Reva aguardava no convés com as Filhas
Marcadas. Lorde Arentes e todos os Guardas da Casa estavam posicionados na
amurada, visto que seriam os primeiros a desembarcar, complementados por um
contingente de arqueiros. Antesh aguardava no navio ao lado com o grosso de
seus homens enquanto as embarcações que transportavam a Guarda do Reino
balançavam nas ondas menos de um quilômetro a oeste. Observando a atividade
com uma impaciência cada vez maior, Reva ponderava sobre a tendência de o
tempo arrastar-se durante eventos que ela queria que passassem voando.
Ela percorreu o navio com o olhar, buscando uma distração, e encontrou o
Escudo na proa, pegando uma luneta com o capitão enquanto apontava para algo
em terra firme.
— O inimigo? — questionou Reva, indo para o lado dele.
— Apenas um pequeno número deles — respondeu Ell-Nestra, apontando a
luneta para a praia. — Talvez trinta cavaleiros. Nada com que a senhora não
possa lidar, sem dúvida… — Ele franziu o cenho e um sorriso jocoso surgiu em
seus lábios. — Um deles acabou de cair.
— Meu senhor Escudo! — Os dois ergueram a cabeça para o cesto da gávea,
onde podiam ver um marinheiro acenando freneticamente para o norte. —
Tempestade se aproximando!
Reva seguiu o Escudo até a popa e parou surpresa ao avistar o aglomerado de
nuvens que cobria o horizonte. Eram escuras como breu, reluzindo com
relâmpagos e lançando um estrondo retumbante pelas águas à medida que
cresciam, aproximando-se a cada batida do coração.
— Impossível — sussurrou Ell-Nestra.
— O que faremos? — perguntou Reva, mas ele continuou olhando aturdido
para a tempestade que se aproximava depressa.
— Meu senhor! — Reva agarrou a cota de malha dele e o sacudiu com força.
— O que faremos?
O Escudo olhou boquiaberto para ela e piscou ao recobrar a razão.
— Içar âncora! — gritou ele, livrando-se das mãos de Reva. — Içar todas as
velas! Timoneiro, vire para o sul! Capitão, faça sinal para os outros navios nos
seguirem! Minha senhora, leve a sua gente para baixo.
A tripulação correu para obedecer enquanto Reva berrava ordens, mandando
os cumbraelinos para os conveses inferiores. Contudo, ela continuou onde estava
na popa, observando a tempestade chegar cada vez mais perto. Como pode se
mover tão depressa?, perguntou-se, uma desconfiança crescendo em sua mente
ao lembrar-se de outra tempestade inesperada, em Alltor, quando a chuva caiu
torrencialmente de dia e a neve de noite. O grupo na praia… No que nos
metemos?
Graças aos esforços frenéticos da tripulação, o grande navio logo seguiu para
o sul, as velas inflando-se assim que foram desfraldadas quando o vento norte
transformou-se num vendaval. Os outros navios haviam seguido o sinal do
Escudo, embora os tripulados por marinheiros nascidos no Reino fossem
nitidamente mais lentos para responder do que os meldeneanos. Reva viu a
embarcação que transportava um dos regimentos da Guarda do Reino balançar
na onda crescente à medida que se afastava, somente metade das velas içadas e
virando num ângulo alarmante enquanto o timoneiro tentava fazê-la seguir para o
sul. Em pouco tempo a chuva caía tão forte que só era possível distinguir uma
forma vaga, mas Reva tinha certeza de ter ouvido um grande gemido vindo da
imensa embarcação antes de perdê-la de vista. Dentro de minutos a tempestade
também atingira o seu navio, e Reva se viu envolvida pela escuridão quando o
mundo transformou-se numa fúria uivante.
O vendaval foi forte o bastante para derrubá-la, o cordame ressoando com
cordas e madeiras se partindo no alto, marinheiros tombando no convés ou
apanhados pelo vento e sendo jogados no mar. Reva foi arrastada pelo convés,
agora tomado de água. Ela passou pela entrada do porão, perto o suficiente para
ouvir os gritos assustados das Filhas Marcadas vindo de baixo enquanto a água
caía em cascata pelos degraus. Conseguiu se agarrar na amurada antes que o
convés oscilante a jogasse para fora do navio, abraçando com força a
balaustrada enquanto o vento e a chuva a açoitavam. Uma forma escura passou
rolando por ela, uma das mãos raspou a sua cota de malha por um breve instante,
um grito súbito e desesperado logo engolido pela tempestade.
O convés desceu de repente, invertendo o ângulo de sua inclinação, jogando-
a de um lado para outro até cair de costas no convés, arfando em meio à
calmaria repentina.
— Minha senhora! — Era Arentes, que corria em sua direção de braços
estendidos. Ela estava tentando alcançá-lo quando ocorreu o estrondo.
O impacto a fez se soltar da amurada, deixando o convés inclinado demais
para que pudesse se segurar, e ela e Arentes foram arrastados para estibordo.
Reva viu o comandante da guarda chocar-se contra a amurada, despedaçando a
madeira com um estalo de ossos se quebrando e deixando um vão por onde ela
passou, indo mergulhar no mar revolto.
A fúria da tempestade desapareceu num instante, substituída pelo silêncio do
mundo sob as ondas. Ela via somente variadas formas cinzentas que rodopiavam
enquanto afundava, puxada para baixo pelo peso da armadura e das armas. Reva
soltou o arco, sabendo que desta vez a obra maravilhosa de Mestre Arren estava
perdida para sempre, e então desafivelou o cinto da espada, deixando que a
lâmina afundasse. Tentou desamarrar às pressas as tiras de sua cota de malha,
contorcendo-se no frio entorpecente, as bolhas saindo de sua boca numa torrente.
Não! Reva forçou-se a se acalmar quando as tiras resistiram a cada puxão
desesperado. O pânico vai matar você.
Ela assumiu a pose mais imóvel e empertigada que conseguiu, voltada para a
superfície para desacelerar a sua descida, e então sacou a adaga e cortou cada
uma das tiras. A cota de malha se soltou num instante e Reva sentiu-se subindo,
mas devagar demais, a julgar pela queimação agora agonizante em seu peito.
Bateu as pernas até a superfície, colocando todas as forças nos pulmões e
recusando-se com obstinação ao impulso de respirar.
Ela botou a cabeça para fora da água com um grito, engolindo ar tomado
pela chuva e tossindo, carregada para cima e para baixo por ondas altas. Não
havia sinal de Arentes, nem de mais ninguém. Então ouviu uma cacofonia súbita,
alta o bastante para chegar aos seus ouvidos em meio à tempestade, um grande
estrondo, como se mil árvores fossem feitas em pedaços com um só golpe. O
turbilhão da tempestade oscilou por um momento, diminuindo a escuridão e
permitindo que avistasse o Marechal Smolen, o casco da grande embarcação
estremecendo ao ser raspado ao longo de alguma barreira invisível, as velas
arrancadas do cordame e o que pareciam ser gotas escuras pingando pelos lados,
gotas que Reva logo compreendeu serem pessoas, a sua gente, lançando-se ao
mar enquanto o navio era destruído sob os seus pés.
A tempestade oscilou de novo, levando consigo o espetáculo, mas Reva
continuava a olhar, o frio aumentando e deixando seus membros dormentes,
estremecendo, consciente de que a morte não tardaria e de que não tinha desejo
algum de enfrentá-la.
Eu matei todos eles, pensou ela quando as ondas cobriram a sua cabeça. Com
uma mentira.
CAPÍTULO TRÊS
Frentis

A casa de campo era a maior que haviam encontrando até então, mais uma
fortaleza do que um lar, suas muralhas espessas e altas, os jardins estendendo-se
por vários acres para todos os lados. Era evidente que fora a morada de um
proprietário de considerável riqueza, suficiente, de fato, para manter uma
guarnição de duzentos Varitai. No entanto, a força das defesas da casa de campo
não impediu que o proprietário a abandonasse ao primeiro sinal da aproximação
deles. Seus Varitai foram contados com facilidade, caídos em quatro fileiras
alinhadas no pátio interno, cada um com um corte idêntico na garganta que ia de
orelha a orelha.
— Todos os objetos de valor foram levados, assim como os cavalos — relatou
Draker. — Encontramos a maioria dos escravos no lado de dentro. Parece que
alguns resistiram, ao contrário destes aqui. Mas isso não os salvou.
— Duzentos de seus próprios homens — disse Illian, sacudindo a cabeça,
perplexa. — Não compreendo.
— Eles agora sabem o que planejamos. — Frentis indicou com a cabeça um
aglomerado silencioso dos próprios Varitai libertos que se encontrava por perto.
— Não queriam que ficássemos com eles. — Ele olhou para Mestre Rensial. —
Pelo estado dos corpos, não podem estar a mais de um dia de cavalgada para o
norte. Cuide disso, mestre, por favor.
Rensial assentiu e foi até o seu cavalo, e sua companhia montada o seguiu
quando saiu a galope pelo portão da casa de campo. Frentis considerou por um
momento ir com eles, dada a natureza errática do mestre, mas resistiu ao
impulso. Ocorrera uma mudança em Rensial nos últimos dias; o seu olhar não
estava mais tão vazio e ocasionalmente o que falava não precisava de tanta
interpretação quanto de costume. Somente na guerra o louco fica são.
Nem todos os escravos da casa de campo foram mortos antes da fuga de seu
senhor, pois alguns estavam trabalhando nos campos quando a matança
começara. Muitos foram vistos fugindo em todas as direções, embora uma
minoria considerável tivesse rumado para a casa de campo, cautelosa e confusa
pelas boas-vindas que recebera, e alguns ficaram pesarosos ao avistarem os
companheiros assassinados, a maioria homens que choravam por mulheres
mortas. O casamento era proibido entre escravos, mas aonde quer que fossem
havia evidências de que as pessoas eram capazes de forjar os próprios laços,
independentemente de quaisquer barreiras ou ameaças que restringissem as suas
vidas. Foi a esses enlutados que Frentis entregou o proprietário da casa de campo
quando Rensial retornou no dia seguinte, arrastando o infeliz homem de preto
atrás do cavalo, de mãos amarradas e amordaçado.
— Ele tinha esposa e filhos — relatou Rensial quando os escravos cercaram o
seu antigo senhor com facas e chicotes erguidos. — Eu os deixei ir.
— É claro, mestre. — Eles sempre imploram. Frentis viu o homem de preto
cair de joelhos, erguendo as mãos amarradas em súplica. Era um homem alto,
corpulento e com a aparência de um soldado, fato que podia ser atestado pelas
várias lembranças militares encontradas na casa. Um oficial de renome? A casa
de campo, a família, os escravos. Todos frutos de uma carreira ilustre. A
recompensa de um herói. Ele estava longe de parecer heroico agora; era apenas
um homem aterrorizado e mijado implorando pela vida. Eles sempre imploram.
Frentis deu as costas ao homem quando o tormento começou e foi até onde
Illian estava treinando o grupo mais recente de recrutas. Havia menos gente do
Reino agora, mas a quantidade de pessoas começara a crescer desde a vitória
sobre a guarnição eskethiana; os Espadas Livres que eles haviam permitido que
fugissem espalharam a notícia da calamidade com rapidez espantosa. Mais cem
fugitivos haviam chegado às montanhas dentro de poucos dias, e o exército
passara de quatro mil membros no intervalo de um mês. Para alimentar tantos,
Frentis fora forçado a ordenar que seguissem para o noroeste, até as terras férteis
cultivadas que se estendiam em direção a Nova Kethia; aquela casa de campo
fora a primeira a ser tomada.
Ele assistiu ao treinamento durante algum tempo, satisfeito com a facilidade
com que Illian guiava os recrutas, exibindo toda a autoridade de um mestre no
campo de treinamento da Casa da Ordem. Ela estava lhes ensinando como usar o
bastão, que era a base para o uso eventual da alabarda ou da lança, mas também
um sinal de que ainda não dispunham de armas suficientes. Frentis havia
colocado o antigo ferreiro para trabalhar na forja da casa de campo com ordens
para transformar as várias ferramentas agrícolas no maior número possível de
lâminas de machado. Isso significava que teriam de permanecer ali por algum
tempo, provavelmente semanas, e o atraso o irritava. Determinado a manter o
ímpeto da rebelião, Frentis enviara Lekran e Ivelda em direções opostas, cada
um com duzentos combatentes e ordens para libertar tantos escravos quanto
possível.
Frentis virou-se quando Trinta e Quatro apareceu. O ex-escravo agora vestia
equipamentos tirados dos corpos de oficiais Espadas Livres e passava uma
impressão de impecável asseamento militar, cada centímetro de armadura
meticulosamente limpo e todas as fivelas polidas a ponto de brilharem.
— Ele está pronto, então? — perguntou Frentis.
— Curado e perfeitamente capaz de cavalgar, irmão. Mas ainda se recusa a
falar.
— Isso é incomum. Geralmente eles não conseguem calar a boca quando
percebem o que você é.
— Quem eu sou — corrigiu Trinta e Quatro, com uma aspereza incomum na
voz. — O que eu costumava ser.
— Sim. — Frentis deu um sorriso de desculpas. — Bem, vamos soltá-lo.
O volariano se recusara a fornecer um nome, mas eles o haviam descoberto
na correspondência encontrada no comboio de carga de seu batalhão.
— Honorável Cidadão Varek — cumprimentou-o Frentis calorosamente,
agachando-se ao lado do homem à sombra da acácia à qual ele havia sido preso.
— Espero que esteja se sentindo melhor.
Varek permaneceu encolhido contra o tronco da árvore, seu rosto não
revelando qualquer emoção além da fúria ardente que tomara conta dele desde
que despertara e se vira acorrentado e com o batalhão destruído.
— Tenho boas notícias — prosseguiu Frentis, fazendo sinal para Trinta e
Quatro soltar a corrente. — A liberdade o aguarda.
A expressão de Varek ficou cautelosa, e Frentis notou como ele conteve o
breve lampejo de esperança que pôde ser visto em seus olhos.
— Garanto que não é um truque. — Frentis pegou a corrente e deu um puxão
insistente, e o volariano levantou-se devagar, os olhos cautelosos movendo-se
sem parar à espera de um ataque. Frentis o conduziu pelo pátio, ciente de que o
homem prestaria bastante atenção nos muitos ex-escravos que treinavam. Draker
aguardava na entrada arqueada da casa de campo com um cavalo, selado e
carregado com provisões para vários dias de cavalgada.
— Este era o seu cavalo, não? — perguntou Frentis, removendo os grilhões
dos pulsos de Varek.
O volariano estava levemente menos desconfiado agora, e esfregou a carne
avermelhada, enquanto seu olhar ia de Frentis para o animal.
— Não irei trair o meu povo — afirmou ele, as primeiras palavras que falava
desde que despertara. — Qualquer que seja a recompensa.
— Dificilmente daria para chamar isso de recompensa — disse Frentis. —
Imagino que você sabe que tipo de recepção terá em Nova Kethia, o filho
derrotado e humilhado de um pai venerável. A vergonha será insuportável, mas,
antes de se matar, informe àqueles que o atormentarem que o que aconteceu a
você logo acontecerá a eles, por favor. A cidade cairá antes que o ano termine e
cada alma mantida em cativeiro será libertada. Contudo, a minha rainha tem
compaixão de sobra e está disposta a oferecer termos.
O volariano suspirou e sacudiu a cabeça.
— Você é louco.
— Os portões da cidade devem ser abertos e quaisquer defensores retirados
das muralhas. Todos os Espadas Livres devem depor as armas e todos os
escravos, incluindo Varitai e Kuritai, devem ser libertados. A cidade se tornará
propriedade da Rainha Ly rna Al Nieren, que decretará uma justa redistribuição
de terras e riquezas no seu devido tempo. — Ele se aproximou de Varek e falou
em voz baixa, sentindo a sua raiva aumentar de novo: — O não cumprimento
desses termos extremamente generosos resultará na destruição total de sua
cidade e na execução de cada volariano encontrado armado.
Varek virou a cabeça na direção do grupo de recrutas.
— Você realmente acredita que essa gentalha é capaz de tomar Nova Kethia?
Acha que o Conselho Governante não fará nada enquanto marcham? Vocês
serão esmagados antes mesmo de avistarem a cidade, e cada um desses cães
que ainda estiver vivo será esfolado e deixado para apodrecer ao sol, se tiverem
sorte.
Frentis apenas sorriu.
— Parece que as notícias estão se espalhando devagar. — Ele se inclinou para
mais perto do volariano. — Não há mais Conselho Governante. Vocês são
governados por uma Imperatriz agora e ela irá assistir e gargalhar quando eu
destruir a sua cidade, acredite.
— Irei suportar o que quer que me aguarde — disse Varek num tom de
absoluta certeza. — Sofrerei cada tormento por mil anos somente pela mínima
chance de chegar tão perto assim de você novamente.
— Então é melhor investir primeiro em algumas lições de esgrima. — Frentis
virou-se para Draker. — Escolte o honorável cidadão até o anoitecer. Se ele olhar
uma vez para trás, mate-o.

O corpo novo dela é mais forte do que aquele que deixou na praia, saltando e
girando com toda a velocidade e precisão que ela poderia desejar, mas ainda
assim…
— Está sentindo, não? — pergunta o Mensageiro, reclinado numa cadeira no
terraço. Ele usa o corpo de um Arisai, um dos poucos com sangue dotado, alto e
esguio. Atrás dele há mais seis de pé, também dotados, e, embora seus rostos
sejam diferentes, as expressões são idênticas. Ela nunca encontrou tantos dele e
acha isso desgastante; um sempre foi mais do que suficiente.
Ela abaixa a espada curta e levanta-se da posição agachada de luta, nua e
coberta de suor pelo esforço. Se o Mensageiro se sente excitado com o que vê,
não demonstra o menor sinal em nenhum de seus rostos. Ela se sente
desconfortável com a visão do céu escuro que os emoldura, percebendo que era
meio-dia quando retornara à Torre do Conselho. Desde que despertara naquela
nova casca, a sua capacidade de manter uma noção do tempo havia diminuído
ainda mais.
— Sentindo o quê? — pergunta ela.
— O torpor. O frio não é tão frio, o calor não é tão quente. Piora a cada um
que você toma. Hoje em dia mal consigo sentir alguma coisa. — Ele inclina a
cabeça, examinando-a, um leve sorriso predatório nos lábios. — Consegue ouvir
desta vez? Consegue, não?
Ela contém um lampejo de raiva, ressentindo-se com a intuição natural dele. A
dona da casca era mais velha do que a primeira, e não havia nascido escrava,
deixando uma quantidade imensa de lembranças que vinham à tona com
desagradável clareza e com muita frequência: … brincando com o irmão na
margem de algum lago nas montanhas… rindo quando o pai lhe mostrou os seus
truques…
A princípio ela achava que o dom da mulher era tão pequeno que não podia
ser discernido, mas acabou compreendendo que a memória era o seu dom. Cada
pensamento, ação e palavra guardados em sua cabeça, imutáveis e sempre muito
vívidos.
— Você disse para preparar oito — diz ela, afastando as imagens. — Mas só
contei sete.
Ela sente certa satisfação ao vê-los cerrar os maxilares em uníssono, ciente de
que o Mensageiro está contendo a própria raiva.
— Al Sorna tem facilidade para fazer amigos úteis — diz ele após uma breve
pausa.
Então ela vê. Embora as cascas sejam todas joviais e atléticas, suas feridas
evidentes ainda as marcam, deixando que nos olhos transpareça dor, cansaço… e
medo.
— Tem certeza de que sabe onde encontrá-lo? — pergunta ela.
— Ele procura o homem eterno. Basta que eu viaje para o norte para
encontrar o seu rastro. Você terá de me tornar general, e alguma espécie de título
grandioso parece apropriado. Senhor Supremo do Norte, ou algo assim.
— Os Exércitos Setentrionais são comandados pelo Governador Geral de
Atethia. Vou lhe dar uma ordem de execução. Quando ele estiver morto, você
pode se chamar do que quiser.
— Devo dizer que você parece não gostar muito desses governadores. Restará
algum vivo depois dessa ordem?
— Apenas o Governador de Eskethia. Eu ia executá-lo também, mas estou
começando a me sentir mais inclinada a deixá-lo à própria sorte.
Os rostos mudam de novo, sem restar nenhum vestígio de humor, e ela sabe
que as palavras seguintes não são dele.
— Você não pode se dar a caprichos agora. Essa sua distração teve alguma
serventia, mas agora obstrui o nosso propósito. Ele precisa que você cuide da
questão sem demora.
— O Conselho está morto e a frota da vadia despedaçada. Tudo pelas minhas
mãos. Mereço os meus caprichos.
— Os três últimos séculos foram o seu capricho. Décadas de assassinatos e
malícia, o presente dele para você. Agora ele exige pagamento.
A mão dela se fecha sobre a espada, a verdadeira intensidade da antipatia que
sempre sentiu por aquela criatura tornando-se evidente pela primeira vez. Ela os
vê se retesarem, e o que falava levanta-se.
— Ele sabe o que você planejava — diz o Mensageiro. — Seu precioso plano,
o sonho de governar com aquele garoto ao seu lado, eterna e terrível com o
mundo inteiro para a sua diversão. Acha mesmo que daria certo?
— Se eu não tenho mais serventia para ele — responde ela, sorrindo —, mate-
me. Se puder.
Eles levam as mãos ao mesmo tempo às espadas penduradas ao lado do corpo.
Ela sabe que não tem chance, sabe que está escolhendo a morte. Olhe para mim,
meu amado, pensa ela, ciente de que ele a vê. Veja como vou deixá-lo
orgulhoso.
Porém, o Mensageiro para, todos os sete soltam as espadas e seguem em
silêncio para a porta. O que falou demora-se por um momento, seu rosto agora o
de um soldado cansado chamado ao dever do qual não pode escapar.
— Ele sempre encontrará mais serventia para nós. Você pode ficar com o
garoto, se capturá-lo vivo. Mas o assunto precisa ser resolvido.
Mais uma vez sozinha, ela fecha os olhos, buscando a presença dele,
abraçando a determinação implacável que encontra, o seu novo coração quase
transbordando de alegria. Ela vê algo, um redemoinho de névoa na escuridão,
assumindo uma forma que ela conhece tão bem. As palavras dele não significam
nada, amado, diz ela, estendendo a mão para lhe acariciar o rosto. O mundo
ainda pode ser nosso.

Ele arrancou a mão de seu rosto, rosnando de fúria, levando a sua faca até a
garganta dela.
— Nunca! — sibilou ele no rosto dela, pressionando a lâmina com mais
força.
Lemera choramingou, os olhos arregalados e horrorizados, o rosto trêmulo de
terror, a cabeça puxada para trás pelo punho que agarrara o seu cabelo, a pele
lisa de sua garganta exposta e vulnerável.
Ele perdeu o fôlego ao largar a faca, afastando-se da mulher e encolhendo-se
na beira da cama com a cabeça nas mãos.
— O que… o que foi? — perguntou Frentis quando seus membros pararam de
tremer.
A resposta dela foi pouco mais do que um sussurro.
— Eu ouvi gritos… Você estava sonhando…
Ele olhou por sobre o ombro, notando o vestido fino de algodão que mal a
cobria e o tamanho do medo que ainda se via nos olhos dela. Frentis virou-se para
o outro lado, piscando enquanto os seus olhos acostumavam-se com o escuro. Ele
ficara com os aposentos do proprietário, uma exibição espaçosa de riqueza e
luxo, as paredes adornadas com vários quadros, a maioria retratando batalhas de
precisão implausível. O proprietário estava presente em várias delas, uma versão
mais jovem, alta e orgulhosa, de espada na mão enquanto comandava os seus
homens com coragem e um olhar severo, um contraste singular com a forma
arruinada, ensanguentada e suplicante, que fora deixada para morrer no pátio
quando os escravos se cansaram dele.
— Eu… tenho pesadelos às vezes — disse a Lemera. — Desculpe-me se a
machuquei.
— Já fui machucada de formas piores. — Frentis sentiu-a se mexer na cama
e depois um toque hesitante nas costas, os dedos dela se abrindo para explorar a
carne. — Você lutou tanto, e ainda assim não tem cicatrizes.
— Eu tinha cicatrizes. Elas sararam.
— Artesão?
— Não. — A semente germinará. — Não, foi outra coisa. Algo que duvido
que algum dia irei compreender. — Ele se virou de novo, e Lemera colocou a
mão em seu ombro, até que Frentis a tirou com cuidado. — É melhor você ir.
Ela recuou um pouco, mas não partiu. O rosto havia se fechado, mas Frentis
teve a impressão de que Lemera sorria.
— A irmã disse que você havia sido proibido de tocar numa mulher. Achei
que ela estava brincando.
— A Fé exige tudo que temos.
Ela se mexeu de novo, encolhendo as pernas e apoiando o queixo nos joelhos,
a cabeça inclinada enquanto o observava, agora mais curiosa do que divertida.
— E você está tão disposto assim a dar?
— A Ordem é tudo o que sempre quis.
— Então o mundo fora da sua Ordem não oferece nenhuma tentação?
— Eu vi o mundo, com todas as suas tentações. Estou satisfeito com a Ordem.
— Depois do treinamento de ontem, Draker deu um soco num homem por
contar uma história. Uma história estranha sobre como você foi levado para o
palácio, junto com uma mulher que possuía uma magia maligna. E juntos vocês
mataram o seu Rei. Ele estava mentindo?
— Não. Ele não estava mentindo e Draker não devia ter feito o que fez.
— E ainda assim a sua rainha deixou você viver e o mandou para cá.
— Eu não controlava as minhas ações. A magia da mulher me dominou,
obrigou-me a fazer coisas terríveis.
Lemera se empertigou e ele sentiu os olhos dela percorrendo o seu rosto.
Embora não pudesse ver a expressão dela, a intensidade do escrutínio era
inquietante. Frentis estava prestes a pedir mais uma vez que ela saísse quando
Lemera falou.
— Então não somos muitos diferentes, você e eu.
Ela se esticou e deitou-se na cama.
— Posso dormir aqui? Só por hoje. Também tenho sonhos. — Ela soltou uma
risada baixa diante da hesitação evidente de Frentis. — Prometo não oferecer
nenhuma… tentação.
Eu devia fazê-la ir embora, ele sabia. Nada de bom pode vir disso. Mas não a
mandou a embora, percebendo que não conseguia ser cruel assim. Então se
deitou ao lado dela, tentando afastar a tensão dos membros, ciente de o que o
sono seria um estranho aquela noite. Lemera aproximou-se após alguns
momentos e apoiou a cabeça no ombro dele, sua mão encontrando a de Frentis,
entrelaçando os dedos.
— Não haverá vitória para nós, não é? — perguntou ela num sussurro.
— Não diga isso. Minha Rainha está vindo para estas praias com um grande
exército. Se permanecermos firmes na nossa causa…
— Eu fui escrava, mas nunca fui tola. Esse império é mais vasto do que se
pode imaginar e matamos apenas uma fração das forças que eles trarão contra
nós. Eles vão nos matar, todos nós, pois somos escravos e não podem permitir
que tenhamos a mínima esperança de liberdade. Sem nós, eles não possuem um
império.
O assunto precisa ser resolvido.
— Se acredita que a nossa causa é tão perdida, por que se juntou a nós?
Ela chegou ainda mais perto, passando o braço livre em volta do dele,
apertando a mão de Frentis com mais força, o seu hálito quente na pele dele.
— Porque você ofereceu algo que eu havia esquecido que podia ser
oferecido. Uma escolha. E eu escolhi morrer livre.

O número deles dobrou no decorrer das semanas seguintes, quando Ivelda e


Lekran continuaram a trazer recrutas às dezenas e cada vez mais fugitivos
chegavam à casa de campo. Logo havia tantos, que alimentar todos se tornou um
problema, e Frentis se viu obrigado a ordenar que alguns trabalhassem nos
campos para colher o que pudessem. Alguns se ressentiram com a ordem, mas
ele conseguiu amenizar qualquer descontentamento ao prometer que todos se
revezariam na mesma tarefa, inclusive ele. Conahl, o ferreiro nascido no Reino,
realizara feitos prodigiosos produzindo grandes quantidades de armas, mas ainda
não era suficiente; apenas um terço do exército podia ser descrito como
adequadamente armado, e pelo menos a mesma quantidade de combatentes
ainda estava equipada com várias ferramentas agrícolas.
— Há armas de sobra em Nova Kethia — observou Lekran no conselho da
noite.
— Ainda não temos força suficiente para tomá-la — retorquiu Frentis. Trinta
e Quatro conhecia bem Nova Kethia e tinha informações detalhadas sobre a
resistência de suas muralhas. Além disso, eles tinham de partir do princípio de
que a Imperatriz a essa altura já devia ter enviado algum reforço para a cidade,
ou talvez até mesmo ido até lá em pessoa. Frentis resistiu ao impulso de se
permitir sonhar novamente, e deu continuidade às doses noturnas da poção para
dormir do Irmão Kehlan, apesar das dores de cabeça. A campanha se
encaminhava para uma fase crucial e ele não estava disposto a arriscar que ela
pudesse descobrir os seus planos quando suas mentes se tocassem. Frentis
também sabia que ela estaria furiosa com a súbita ausência de contato, e talvez
até mesmo propensa a cometer erros como consequência.
— Se esperarmos por muito mais tempo, não haverá mais escravos nesta
região — disse Trinta e Quatro. — Os que não se juntaram a nós já terão sido
mortos ou mandados embora pelos seus senhores. Se tivermos que ir para o sul,
não tenho dúvida de que este exército pode se tornar poderoso dentro de alguns
meses.
— Não temos alguns meses — comentou Frentis. — A frota da Rainha já terá
zarpado e marchar para o sul não providenciará a distração de que ela necessita.
— Mais da metade da nossa gente não é do Reino e não sabe nada sobre a
Rainha. Eles vieram porque prometemos liberdade, não para trocar um senhor
por outro.
— Se conseguirmos garantir a vitória da Rainha, então cada escravo neste
império será libertado. A causa dela é a causa deles. Certifique-se de que saibam
disso.
Frentis voltou os olhos para o mapa. Temos que atacar em algum lugar.
— O que é este lugar? — perguntou ele, apontando para uma cidade na costa
setentrional, cerca de oitenta quilômetros a leste de Nova Kethia.
— Viratesk — disse Trinta e Quatro. — Um porto menor usado para as rotas
comerciais ao norte.
— Defesas?
— Uma espécie de muralha. É um lugar pobre, lar de apenas alguns vestidos
de preto com poucos fundos para gastar numa muralha que há séculos não é
necessária. — Trinta e Quatro parou e apertou os lábios, ponderando. — Pelo que
me lembro, eles têm um mercado de escravos bem movimentado. O mercado
de Nova Kethia geralmente fica lotado de escravos, então muitos traficantes
buscam alternativas para se livrarem dos seus estoques.
Se uma cidade tão perto da capital da província for incendiada, eles serão
forçados a sair de trás de suas muralhas. Frentis afastou-se do mapa.
— Vamos esperar mais uma semana para acumular gente e treinar, e então
marchamos para Viratesk.

Ele pedira a Trinta e Quatro que desenhasse um mapa da cidade e enviou Mestre
Rensial para fazer o reconhecimento das rotas de acesso, advertindo-o que não
fosse visto. Os dias restantes foram passados treinando os recrutas e fazendo um
esforço para trocar algumas palavras com tantos quanto possível, satisfeito pelo
fato de que a maioria parecia animada com a perspectiva de ação. Contudo,
Frentis não precisou olhar com atenção para notar que muitos ainda tinham
medo, principalmente os nascidos escravos ou veteranos de prolongada
escravidão; eles haviam arriscado tudo para se unir àquela rebelião e não tinham
ilusões quanto às consequências caso fracassassem.
— Eu quase fugi uma vez — contou Tekrav a Frentis cerca manhã enquanto
conferiam o inventário de suprimentos. O ex-guarda-livros havia se mostrado
entusiasmado nos treinamentos, mas sem habilidade; no entanto, a sua facilidade
com números continuava tão aguçada quanto antes. — Pouco depois que a
petição de meus credores fez com que eu fosse colocado a ferros. Eu e outro que
se tornara escravo havia pouco tempo elaboramos um plano durante a caravana
até a casa de campo do senhor. Meu coconspirador era um sujeito grande e forte,
mas tão afeiçoado à bebida e à essência de papoula quanto eu era aos dados. A
ideia era que ele estrangulasse o guarda quando ele se aproximasse da nossa
jaula e pegasse as chaves dele.
— Funcionou?
— Ele conseguiu colocar uma das mãos na garganta do guarda, mas então
um dos cães de escravos arrancou-a com uma mordida. Não tinham muita
serventia para ele depois disso, exceto como exemplo. Eles levaram o dia inteiro
para dar a lição, e ao final o sujeito estava implorando para morrer. Depois disso
fiquei muito grato pelo meu destino como escravo.
— Então por que você se juntou a nós?
Tekrav encolheu os ombros.
— Mesmo agora não sei ao certo. Meu senhor era bom comigo. Só fui
chicoteado duas vezes durante todos os anos que o servi. Mas ele não era tão
gentil com os outros e, como Primaz, eles recorriam a mim em busca de
proteção. Eu tinha maneiras sutis de desviar a sua raiva, questões de negócios ou
uma nova safra de vinho para distraí-lo de qualquer tormento que a sua mente
cruel pudesse conceber. Porém, quando a guerra começou e os novos escravos
chegaram… — Tekrav calou-se e forçou um sorriso. — Bem, ele tinha tantos
brinquedos novos com que brincar. E eu não podia proteger todos.
— Lemera e os outros. Você se juntou a nós porque eles se juntaram.
— Um homem deve ficar com a sua família, não acha?
— Sim, deve. — Frentis deu uma última olhada no inventário antes de
entregá-lo a Tekrav. — Tudo está em perfeita ordem. Agradeço pela atenção. Eu
ficaria grato se você cuidasse do comboio de carga durante a marcha.
— Cuidarei, irmão. Eu estava pensando que talvez pudesse ter um título.
Frentis parou e ergueu uma sobrancelha.
— Suponho que você tenha alguma coisa em mente.
— Nada muito extravagante. Mas talvez… Lorde Intendente?
— Intendente-Mor. Quaisquer enobrecimentos serão determinados pela
Rainha Ly rna.
— É claro. Imagino que você vai assegurar a Rainha de meu valor no seu
devido tempo, não?
Livre há alguns meses e já trama a sua ascensão. Ele provavelmente acabará
como Ministro de Obras se viver por tempo suficiente.
— Será um prazer, senhor.
Mestre Rensial retornou no dia seguinte para relatar que o caminho até Viratesk
estava livre de patrulhas volarianas. Na verdade, ele não vira mais ninguém
durante toda a missão.
— Não é do feitio deles serem descuidados — observou Lekran. —
Geralmente não há um dia que se passe na estrada sem se ver pelo menos uma
tropa de cavalaria.
— O império está sempre determinado a vigiar os seus habitantes —
concordou Trinta e Quatro.
— Então nós os afugentamos — disse Ivelda. — Assim como o meu povo fez
com os othra quando eles surgiram para tomar as colinas de bronze.
— Nós as tomamos — retorquiu Lekran com um sorriso surpreendentemente
cortês. — Mas as achamos imprestáveis, então as devolvemos.
Ela riu e sacudiu a cabeça.
— Seu pai lhe contou muitas mentiras, comedor de irmã.
— Fiz uma promessa ao Irmão Vermelho, então vou esperar isso terminar
antes de cortar a sua cabeça.
— Estou ansiosa para me divertir com a sua tentativa…
— Calem-se! — gritou Frentis, de forma bastante séria. Encarou os dois até
que eles abaixaram o olhar. — Todos vocês, preparem as suas companhias para
marcharem ao amanhecer.
Desta vez eles deixaram a casa de campo intacta. Alguns dos escravos mais
velhos haviam lhe pedido permissão para ficar, na esperança de se apropriar do
local. Frentis não viu muito sentido em tentar forçar a participação deles, ainda
mais depois que Illian advertira que não seriam de muita utilidade numa batalha.
Ele seguiu adiante fazendo o reconhecimento do terreno com a tropa de Mestre
Rensial, confirmando que a região estava deserta num raio de quilômetros. Os
campos se tornavam cada vez mais bravios à medida que seguiam para o norte,
sem escravos, exceto por alguns cadáveres que supuseram serem fugitivos das
casas de campo pelas quais passaram, todas também igualmente abandonadas e
algumas já incendiadas pelos proprietários.
— Eu lhe disse — disse Ivelda, provocando Lekran com uma gargalhada. —
Eles se mijaram de medo e fugiram. Quando chegarmos na cidade, vão fazer o
mesmo.
Avistaram Viratesk após uma marcha de cinco dias, quase dois quilômetros
quadrados de construções de tijolos abrigadas na depressão de uma baía natural.
A luneta de Frentis revelou que as muralhas se encontravam em estado
deplorável, com várias brechas, e o fosso que as cercava fora coberto havia
muito tempo. Além disso, não conseguiu ver sinal de qualquer guarda nas
muralhas ou de fumaça saindo de uma única chaminé.
— Não há nada aqui. — Ele suspirou, baixando a luneta.
Encontraram os portões da cidade abertos e desguarnecidos, as ruas mais
além desertas e apinhadas de detritos, sinal de uma fuga apressada.
— Alguns podiam ter tido a decência de ficar e lutar — resmungou Lekran.
— Por pouco tempo que fosse.
— Pegue a sua companhia e siga pela direita, até o porto — disse-lhe Frentis.
— Draker, vá pela esquerda. Eu e Mestre Rensial iremos pelo centro.
Levou pouco tempo para chegarem ao porto, passando por fileiras de casas
vazias, os únicos ocupantes vivos da cidade sendo alguns cães que se fartavam
com as carcaças de cavalos e cabras mortos deixados para apodrecer nas ruas.
Encontraram o cais sem nenhuma embarcação, exceto por um único barco de
pesca afundado, o mastro principal saindo da água no que Frentis achou ser um
ângulo insultante.
— Nenhum desgraçado em casa, irmão — relatou Draker, a expressão
sombria enquanto caminhava ao longo do cais. — Mas encontramos uma pilha
de corpos num armazém. Todos escravos, a maioria gente mais velha.
— Livraram-se da mercadoria menos valiosa antes de partirem. — Frentis
passou os olhos pela cidade, lutando contra a sensação de que as janelas vazias o
olhavam de forma acusadora. Eles teriam vivido se vocês não tivessem vindo
para cá. — Vasculhem cada construção — disse ele. — Recolham qualquer coisa
de valor, principalmente armas. Precisamos de qualquer coisa com um gume
afiado, até mesmo a menor faca de açougueiro. Lekran, a sua gente cuidará das
muralhas. Serão rendidos ao anoitecer.

Frentis deixou que o intendente-mor supervisionasse a remoção dos corpos,


embora tivesse feito questão de ajudar a colocá-los nas carroças. Eram cerca de
cinquenta ao todo, homens e mulheres de meia-idade, nus, uma vez que as suas
roupas eram consideradas de mais valor do que as suas vidas, antigas marcas de
chicotadas visíveis na maior parte da carne que estava ficando acinzentada
rapidamente. Foram transportados para fora das muralhas, onde Tekrav
organizou a construção de uma pira imensa feita com os móveis deixados para
trás pela população. Assim que todos os corpos haviam sido colocados sobre a
madeira embebida em óleo, Frentis virou-se para se dirigir aos combatentes
reunidos.
— Entre o meu povo, é costume dizer algumas palavras sobre os mortos, não
importando as crenças — disse ele. — Muitas dessas pessoas, se não a maioria,
conheceram apenas uma vida de escravidão, destinadas a uma morte de
escravo. Para serem descartadas como um cavalo aleijado, sem identificação,
despercebidas, indignas de um pensamento ou de uma palavra sequer. Mas agora
estamos aqui para lembrar as suas mortes, com palavras e com aço. Dias difíceis
nos esperam, dias em que nossa causa parecerá perdida e os seus corações serão
tentados pelo desespero. Quando esses dias chegarem, peço que se lembrem do
que viram aqui hoje, pois, se fracassarmos, este será o nosso destino, e nenhuma
voz se erguerá para testemunhar que algum dia vivemos.
Ele foi para as muralhas para ver à pira queimar, as chamas erguendo-se alto
na escuridão que se aproximava.
— Um belo sinal de fogo — comentou Lekran.
— Eles sabiam que estávamos vindo — retorquiu Frentis. — E sabem que
estamos aqui agora. Com sorte, vão mandar as suas forças contra nós.
— E se não mandarem?
— Então vamos nos certificar de que marchem na direção da própria Nova
Kethia. O momento para furtividade já passou. É hora de trazermos os nossos
inimigos para a batalha.

Ela sempre achou estranho que os espetáculos nunca tivessem lhe atraído. Na
verdade, ela os acha repugnantes, milhares de vozes tomadas pela sede de sangue
ao assistirem a combates que poucos ou ninguém teriam coragem de experimentar
em primeira mão. Para ela, a alegria da luta, e da morte, só era conseguida
participando diretamente.
Mas eles adoram tanto isso, amado, diz a ele, sentindo a sua desaprovação.
Tiramos os deuses deles, mas mantivemos os rituais, pois os deuses sempre
gostaram muito de sangue.
É o Festival do Fim do Inverno, embora outrora fosse chamado por outro
nome em homenagem a um deus há muito esquecido que exigia o sacrifício de
almas corajosas para abençoar os campos e propiciar uma boa colheita. A arena
havia sido construída originalmente em homenagem aos deuses antigos, mas todos
os ornamentos divinos tinham sido removidos havia muito tempo, estátuas de
mármore substituídas por efígies de bronze de generais e Conselheiros, motivos
divinos substituídos pelo brasão imperial. Porém, por mais que o palco mudasse, os
espetáculos continuavam os mesmos.
Revelar-se para a multidão é uma tarefa necessária; ela não poderia
permanecer oculta para sempre, e hoje há muitos olhos para ver a Imperatriz
Elverah em toda a sua glória. Ela mesma escolheu o nome. Um dos muitos títulos
que recebeu ao longo dos séculos, mas esse lhe propicia alguma satisfação, e não
um leve divertimento. Que se curvem diante de uma bruxa.
Houve problemas, é claro. A mudança súbita que eliminou o domínio do
Conselho com certeza abalaria uma sociedade dedicada à ideia de estabilidade
conseguida por meio de uma ordem inalterável. Os seus espiões, uma rede antiga
construída ao longo de décadas, desconhecida do próprio mecanismo de
inteligência do Conselho, trazem notícias de descontentamento e de conspirações
para rebeliões de todos os cantos do império. A maioria é reprimida depressa, os
conspiradores sujeitados a um método prolongado de execução pública, familiares
de primeiro e segundo graus condenados à escravidão e todas as propriedades
aprendidas pela Imperatriz. Porém, apesar de milhares já terem sofrido esse
destino, todos os dias chegam relatos de mais tramas e, caso ela fosse suscetível a
tais coisas, a ameaça constante de assassinato levaria uma alma inferior à
paranoia. Na semana anterior uma escrava conseguira envenenar o mingau do
café da manhã da Imperatriz, como vingança por um senhor bem-amado sujeitado
às Três Mortes duas semanas antes. Foi uma tentativa corajosa, mas desajeitada,
percebida com facilidade mesmo sem o aviso da canção. O veneno havia sido
misturado numa forma concentrada demais, deixando um odor familiar, e a garota
devia saber que estava ganhando para si um fim doloroso.
— Você era Primaz no estábulo dele? — perguntou ela à garota, forçada a se
ajoelhar com uma lâmina Arisai preparada para golpeá-la na nuca. — Ele deve
ter fodido você muito bem para despertar tamanha lealdade.
A garota chorava em grandes soluços convulsivos, mas ainda assim encontrou
voz suficiente para responder:
— Ele… nunca… me tocou.
— Então por quê?
— Ele… me criou… me ensinou a ler… me deu um nome.
— É mesmo? E qual é?
— L-Lieza.
— Dar nome a um escravo é uma ofensa capital por si só, e o seu antigo dono
era culpado de muito mais coisas além disso. — Ela dispensou o Arisai com um
aceno de mão e fez sinal para que a garota retirasse o café da manhã. — Traga-
me outro mingau, Lieza. Depois pode me ler as correspondências da manhã.
Lieza está de pé ao seu lado agora, pronta para servir vinho na taça imperial.
Seu rosto está pálido, mas consegue não tremer. Todas as manhãs desde a tentativa
fracassada de assassinato, ela traz o café da manhã e lê as correspondências
imperiais enquanto a Imperatriz come. Depois ela se senta e escreve enquanto a
Imperatriz dita uma lista de nomes a serem executados. A letra da garota é
excelente.
Não sei por que a poupei, responde ela, sentindo uma perplexidade em meio à
aversão dele. Acho que ela me lembra alguém, mas não sei quem. Talvez eu a
mate amanhã. Talvez a entregue para os espetáculos. Os dentes-de-adaga estão
sempre com fome.
Mas hoje não há dentes-de-adaga. Hoje são as Corridas da Espada. Ela se
lembra de seu pai lhe contando uma vez as origens daquilo, o evento mais popular
em qualquer espetáculo. Em tempos primitivos, um dos deuses mais iluminados, ou
um de seus sacerdotes mais iluminados, decretou que não deveria haver mais
guerras entre as tribos que lhe prestavam homenagem. Determinou-se então que
todos os anos eles enviariam os seus melhores guerreiros para competir nas
Corridas da Espada, onde todas as disputas seriam resolvidas. As regras foram
aprimoradas no decorrer dos séculos subsequentes, mas a essência da competição
permanecia a mesma: uma única espada é fincada no meio da arena e as duas
equipes competidoras posicionam-se em lados opostos a uma mesma distância do
centro. A um determinado sinal, elas correm até a espada, e o combate tem início
quando o membro de uma das equipes consegue segurar o punho da arma, a
vencedora sendo a equipe com o maior número de homens de pé após o virar de
uma ampulheta de dez minutos. Pela lógica, a equipe de posse da espada estaria
em vantagem, mas competidores experientes ainda são capazes de virar o jogo,
geralmente ao sacrificar um membro menos habilidoso da equipe para poder tirar
a espada de seus oponentes.
Hoje são os Verdes contra os Azuis, duas das seis equipes que representam as
seis províncias do império. Os Azuis tendem a atrair as chances mais favoráveis,
mas os Verdes possuem os competidores mais experientes, o que é evidenciado
pela sua tática de formar um compacto grupo defensivo ao redor do portador da
espada, forçando os Azuis a fazerem uma série de ataques custosos. Passados vinte
minutos, dez homens, quatro Azuis e seis Verdes, estão mortos ou aleijados na
areia. Corredores da Espada raramente têm carreiras longas, embora as vultosas
recompensas conferidas aos que sobrevivem até a aposentadoria garantam que
nunca haja falta de recrutas, pois os que participam não são escravos, e sim
homens livres. Pobres e desesperados o bastante para arriscar a vida diante de
uma turba ladradora, mas ainda assim livres.
Está surpreso por me ver aqui?, pergunta a ele, entediada com a competição.
Perguntando-se por que não estou em Nova Kethia reunindo um exército? Ela
nota como Lieza se retrai e percebe que falou em voz alta. A julgar pela rigidez da
postura da escrava, não é a primeira vez que ela ouve a sua Imperatriz fazer uma
pergunta a ninguém.
A resposta dele é tênue, embora mais controlada do que antes; ele se
acostumou a assumir o comando de seus sonhos. Ainda há tempo. Irei esperar por
você.
Tocante, amado, mas desnecessário. Aquela vadia para quem você se curva
foi astuta ao lhe enviar antes de sua poderosa frota. Mas receio que não seja tão
poderosa agora. E sim apenas madeira quebrada e cadáveres.
Os pensamentos dele mudam, de incerteza para negação, mas ela sabe que ele
sente a verdade em seus pensamentos.
O que está achando de Viratesk?, continua ela, desfrutando da pontada
resultante de alarme. Os seus batedores foram cuidadosos, mas nós os vimos. A
população não queria partir, então deixei que ficassem. Você pensou em
vasculhar os esgotos, não é?

Ele despertou com um grito, levando a mão à espada encostada na cama, mas
sem encontrar nada. Seus olhos percorreram a escuridão e viram apenas
sombras. Frentis sentiu o peso de Lemera ao seu lado na cama, suas visitas
noturnas agora um ritual, embora nunca fizessem mais do que se deitar juntos.
Ele a cutucou com cuidado, pronto para cobrir a boca dela com a mão quando
despertasse, mas parou ao sentir o frio familiar da pele da garota. Os olhos de
Lemera estavam semicerrados, os lábios arreganhados numa careta de agonia.
Um corte preciso ia de uma extremidade à outra de sua garganta.
— Você é decepcionante.
Frentis rolou para fora da cama quando uma figura saiu das sombras, um
jovem com o porte comum aos Kuritai, embora usasse uma armadura vermelha
e tivesse um sorriso escarnecedor no rosto. Atrás dele mais dois surgiram da
escuridão, um deles segurando a sua espada. As mãos do homem que sorria
moveram-se num borrão e algo foi passado em volta do pescoço de Frentis,
apertando-o até que perdesse o fôlego antes de ser arrastado para o chão. Algo
rápido e duro chocou-se com a sua barriga, fazendo com que se dobrasse para a
frente, a corda em volta do seu pescoço cada vez mais apertada à medida que
sua visão ia ficando turva, as palavras do homem que sorria seguindo-o para
dentro da escuridão:
— Ela nos prometeu que você seria um desafio.
CAPÍTULO QUATRO
Lyrna

— A Armadilha do Ladrão — disse Ly rna, surpresa com a calma pensativa que


ouviu na própria voz.
— Alteza? — Murel olhou para ela da portinhola que estava tentando manter
fechada apesar do vendaval que a açoitava como um monstro invisível tentando
entrar.
— Um aspecto raro do jogo longo — disse Ly rna. — Qualquer peça tomada
pelo ladrão pode ser usada pelo jogador que a tomou. A armadilha envolve
sacrificar ambas as peças alguns movimentos depois, dando a ilusão de
fragilidade no centro do tabuleiro. Um estratagema empregado apenas pelos
jogadores mais habilidosos.
E eu sou uma tola arrogante, acrescentou Ly rna mentalmente.
Começara duas horas antes, desabando numa torrente negra ensurdecedora
enquanto ela observava os trinta navios da Senhora Reva aproximarem-se do
litoral indistinto. Em questão de minutos o mundo para além do Rainha Lyrna
havia desaparecido e Iltis a arrastara em direção à cabine enquanto marinheiros
tentavam freneticamente manter o cordame no lugar. Ly rna avistou o Irmão
Verin, que estava paralisado pelo pânico no convés alvoroçado, e fez um sinal
para que Benten o tirasse dali.
— Esta tempestade não é natural — disse ela, virando-se para o irmão
quando Iltis bateu a porta contra a fúria do exterior. — É?
— Alteza, eu… — O jovem irmão sacudiu a cabeça, suas feições tomadas
pela perplexidade e pelo choque. — É sabido que alguns possuem o poder para
mudar o vento, mas isso… — O irmão empalideceu diante da consternação
óbvia dela, gaguejando ao se forçar a continuar: — Houve… alguma coisa,
quando os navios se aproximaram da costa.
— Que coisa?
— Era tênue, mas a senti. Uma… queimação, por assim dizer. Geralmente é
sentida quando outro dotado morre, como se todo o poder da pessoa emanasse
dela de uma só vez.
Ly rna afastou-se dele e sentou-se no catre, perdida na enormidade de seu
erro. Matei Arklev cedo demais. Se bem que duvido que ele soubesse o seu
verdadeiro papel. Ela se entregou à contemplação enquanto o navio balançava e
rangia à sua volta, uma vez que não havia muito mais a se fazer. A Armadilha do
Ladrão leva à vitória em menos de dez movimentos adicionais, desde que o
jogador aproveite a oportunidade com um ataque rápido contra o Imperador
oponente.
— Lirhnah?
Ela ergueu a cabeça e encontrou Davoka parada à sua frente, a preocupação
estampada no rosto. Atrás dela Murel afastou-se da portinhola, agora aberta e
revelando um céu ensolarado. Pela altura do sol, ela calculou que ficara sentada
em meditação silenciosa por algumas horas.
— Preciso falar com o capitão.
O comando diário do Rainha Lyrna havia sido entregue a um nilsaelino
chamado Devish Larhten, um veterano magro das rotas de comércio até os
Confins do Norte, que também comandara uma belonave na frota do pai de
Ly rna durante a guerra alpirana. Ela o encontrou junto ao mastro principal
supervisionando os reparos num pedaço do convés arrebentado por um bloco que
caíra. Felizmente, esse foi o único dano considerável que haviam sofrido.
— Alteza — cumprimentou o capitão, erguendo o olhar quando a notou indo
em sua direção, claramente ocupado com a sua tarefa.
— Capitão, vire este navio para o sul e prepare-se para a batalha. — Ela
olhou para o oceano ao redor e viu somente quatro outros navios; o litoral havia
sumido de vista. Espalhados e prontos para serem abatidos, pensou Ly rna,
contendo uma onda de autocensura. Deixe para se afogar em sua culpa mais
tarde. — E faça sinal para aqueles navios se aproximarem de nós.
— Tudo ao seu devido tempo, Alteza. Temos muito que…
— Faça isso agora! — gritou ela. — A frota volariana está agora ao norte de
nós e não duvido que ataquem dentro de uma hora.
Larhten olhou rapidamente para Iltis, que dera um passo determinado à
frente.
— Agora mesmo, Alteza — disse o capitão antes de se afastar e berrar uma
torrente de ordens.
— Encontre a Senhora Alornis — disse Ly rna a Murel. — Ela deve se
assegurar de que as suas máquinas estejam funcionando perfeitamente. Lorde
Benten, diga a Lorde Comandante Nortah para preparar o seu regimento para a
batalha, por favor.

***

O Capitão Larhten aconselhou que seguissem para oeste durante algum tempo,
argumentando que encontrariam mais embarcações do Reino navegando mais
afastados da costa. No meio da tarde eles já haviam reunido outros quarenta
navios, alguns com mastros e cordames faltando, mas todos capazes de seguir
em frente. Como era de se esperar, os navios meldeneanos eram os menos
danificados, e Ly rna ficou feliz ao ver o Falcão Vermelho entre eles, o Senhor
Marinho Ell-Nurin acenando da proa quando o navio aproximou-se. Até então
somente ele o Rainha Lyrna haviam sido equipados com a máquina cuspidora de
fogo de Alornis, nas quais agora depositava uma boa dose de esperança.
— Poderíamos seguir para a costa, Alteza — sugeriu o capitão a Ly rna, que
estava parada na amurada com os olhos fixos no horizonte. — Recolher mais
alguns desgarrados no caminho.
Ela passou os olhos pela sua frota e encontrou dois dos grandes navios de
tropas presentes, assim como uma boa quantidade de meldeneanos.
— Não — disse Ly rna. — Ancore e encha um dos barcos com todos os trapos
e madeira de que puder dispor, cubra-o de piche para se certificar de que faça
fumaça e coloque fogo. Faça sinal aos outros navios para fazerem o mesmo.
Desta vez o nilsaelino sabia que era bom não se demorar e o barco logo foi
deixado à deriva, lançando ao céu uma coluna alta e serpenteante de fumaça
negra, logo acompanhada por outras dezenas quando os outros navios fizeram o
mesmo.
— Um belo farol, Alteza — congratulou-a Larhten com uma mesura.
— Obrigada. — Ly rna olhou para o norte. Apesar de ser provável que atraia
tanto inimigos quanto amigos.
Os volarianos surgiram quando o sol começou a se pôr, pelo menos cem
mastros despontando do horizonte setentrional, e mais continuaram a aparecer
sem parar. O farol de Ly rna reunira mais de trinta outros desgarrados enquanto
aguardavam ancorados, mas ela sabia que seria fatal demorar-se mais.
— Içar todas as velas, capitão — disse a Larhten. — E faça sinal para o
Falcão Vermelho permanecer a estibordo de nós. Os outros navios devem nos
seguir.
Larhten assentiu gravemente, olhando para a frota volariana com um receio
justificado porém controlado.
— O curso, Alteza?
Ly rna gargalhou ao se afastar, indo para a proa.
— Na direção do inimigo, meu senhor. O mais rápido possível.
Ela encontrou Alornis ocupada com a inspeção da máquina, suas mãos
movendo-se com uma velocidade e uma agilidade que pareciam quase
sobrenaturais.
— Algum dano, minha senhora?
— Tive que drenar água dos tubos. E os encaixes precisam de um leve ajuste.
— Alornis ergueu uma marreta e começou a bater num tubo de cobre na parte
de baixo da máquina. — Mas irá funcionar, Alteza.
— Ótimo. Vá para baixo. Lordes Iltis e Benten cuidarão da máquina.
Alornis nem mesmo ergueu os olhos, continuando a martelar enquanto os
volarianos se aproximavam cada vez mais. Ly rna suspirou e virou-se para Murel.
— Há outra cota de malha na minha cabine. Busque-a para a Senhora
Alornis, por favor. — Ela puxou Davoka de lado e falou em voz baixa em lonak:
— Ela não deve se ferir, irmã. Prometa-me.
— Meu lugar é ao seu lado.
— Não hoje. — Ly rna agarrou o braço da lonak. — Ela é sua irmã hoje.
Prometa-me.
— Você teme tanto assim a ira do irmão dela?
Ly rna baixou os olhos.
— Você sabe que não é a ira dele que temo.
Davoka assentiu com relutância, pegou a cota de malha com Murel e foi até
Alornis.
— Vista isso, pequena.
Ly rna juntou-se a Lorde Nortah, que organizava um grupo de combates no
convés, cinquenta de seus melhores soldados equipados com largos painéis de
madeira para se protegerem das flechas.
— Meu senhor, eu gostaria de me dirigir às suas tropas.
Ele fez uma mesura e deu uma ordem brusca, e a companhia ficou em
posição de sentido, batendo as botas em uníssono. Ly rna examinou os seus rostos,
feliz por não encontrar medo neles e pela devoção que continuava visível em
cada olhar.
— Eu disse uma vez que não mentiria para vocês — disse a eles. — E não
mentirei. Estamos diante de uma luta árdua porque cometi um erro terrível. Mas
também não minto quando digo que esta batalha pode ser vencida, se ficarem
comigo.
O grito instantâneo de aclamação foi suficiente para convencê-la de que não
era necessário dizer mais nada.
— Não poupem inimigo algum — disse Ly rna a Nortah. — Cada volariano
que pisar neste convés deve ser morto antes que possa dar outro passo.
Diferente de seus soldados, Lorde Nortah concordou em voz baixa, seu rosto
franzido da mesma forma cautelosa que sempre exibia na presença dela.
— Cuidarei disso, Alteza.
Ela voltou para a proa e posicionou-se na plataforma elevada, logo atrás de
Alornis e da máquina. Benten e Iltis estavam perto em ambos os lados, enquanto
Murel permanecia atrás, de adaga na mão. Davoka agachou-se ao lado da
máquina, a lança abaixada e preparada.
— Eu deveria ir buscar algum escudo, Alteza — disse Iltis. — Tinha muitas
flechas deles nos Dentes, como a senhora deve se lembrar.
— Lembro-me muito bem, meu senhor. Mas isso não será necessário.
Ly rna observou os navios volarianos chegarem ainda mais perto, a
embarcação que vinha à frente a uma distância de quinhentos metros. Ela olhou
para estibordo e ficou satisfeita ao avistar o Falcão Vermelho ao lado, onde um
homem estava a postos em outra máquina. Ly rna só esperava que ele tivesse sido
ensinado a usá-la adequadamente. Uma olhada para a popa confirmou que os
outros navios em sua pequena frota seguiam numa fila estreita e organizada,
cada convés apinhado de soldados e piratas.
A balista a bombordo começou a ranger quando os navios volarianos se
aproximaram, disparando os seus virotes contra o cordame de uma pequena
porém veloz belonave que entrara em seu caminho. A princípio, o jorro arqueado
de projéteis pareceu não surtir qualquer efeito, mas eles logo foram
recompensados ao verem uma figura despencar do mastro da belonave e cair
com força no convés, fazendo a equipe da balista soltar um brado de
comemoração no mesmo instante. Contudo, os arqueiros volarianos logo
colocaram as próprias armas em jogo, e uma chuva de flechas caiu sobre o
Rainha Lyrna de uma extremidade à outra. Ly rna viu uma flecha cravar-se nas
tábuas a um braço de distância, mas conseguiu controlar o instinto de se encolher.
O medo é um luxo hoje. Eles precisam ver uma rainha.
A balista a bombordo continuava a ranger, o tripulante que girava o
mecanismo vibrava empolgado com o efeito que estava tendo contra a
embarcação volariana, o seu primeiro virote atingindo com força suficiente para
prender um homem ao convés. Uma dúzia ou mais de Espadas Livres que
estavam muito perto uns dos outros tombaram quando os arqueiros no cordame
do Rainha Lyrna se juntaram ao combate, causando destruição na belonave
enquanto a embarcação tentava se afastar, coberta de cadáveres.
Um estrondo chiado atraiu a atenção de Ly rna de volta à proa, onde foi
recebida com a visão de Alornis erguendo ao máximo a máquina, e um jorro de
fogo foi expelido em arco na direção da embarcação volariana que se
aproximava. Era um dos navios de tropas, pouco menor do que o Rainha Lyrna,
os arqueiros no cordame disparando uma chuva de flechas sobre eles conforme
se aproximavam a toda a velocidade. A princípio o jato de fogo de Alornis caiu
no mar, levantando vapor suficiente para ocultar por um momento o navio
atacante. Porém, quando o vapor se dissipou, viram o fogo envolvendo a proa do
navio, do mar até a amurada. A embarcação volariana pareceu estremecer, seu
curso mudando de forma abrupta como um javali ferido recuando diante da
ponta de uma lança.
Alornis virou-se com um olhar furioso para os dois soldados que
manuseavam o fole.
— Mexam com mais força! Preciso de mais pressão!
Ela realinhou a máquina enquanto a embarcação volariana balançava diante
deles, soltando outra torrente de chamas que envolveu a lateral do navio antes de
subir para se espalhar pelo convés, queimando homens e cordames, sem
distinção. Corpos flamejantes começaram a saltar do navio, e um coro de gritos
lhes chegou aos ouvidos em meio à fumaça que se adensava, acompanhado do
fedor de carne queimada. Alornis vacilou nesse momento e tirou a mão da
manivela, fazendo as chamas se apagarem, suas feições pálidas e retesadas.
Ly rna foi rapidamente para o seu lado, colocou a mão em seu ombro e a
virou para si.
— Um fardo que não pode ser evitado, minha senhora — disse ela, pegando a
mão de Alornis e a colocando de volta com firmeza na manivela. — Ao trabalho,
por favor.
Uma flecha atingiu a máquina, a ponta de aço estilhando-se nos encaixes de
ferro e a seta rodopiando para longe. Alornis mal pareceu notar, o rosto pálido
ainda imóvel ao assentir e voltar ao trabalho, alterando o ângulo da máquina para
lançar chamas contra as velas volarianas. Ly rna podia ver homens correndo pelo
navio carregando baldes para enfrentar chamas que não se apagavam. Em
pouco tempo o cordame estava pegando fogo e a tripulação começou a
abandonar o navio com uma rapidez frenética, com homens deixando rastros de
fogo ao caírem no mar às dezenas.
Ly rna olhou em volta à procura de outra vítima e avistou uma belonave veloz
a cerca de duzentos metros a bombordo.
— Diga ao capitão para ir na direção daquele navio — disse ela a Murel antes
de se virar de novo para Alornis. — Minha senhora, creio que a sua máquina
precisa de mais combustível.

Ao anoitecer eles já haviam aberto caminho a fogo pelo meio da formação


volariana, dividindo a frota deles em duas e semeando o caos e o pânico em cada
marinheiro e Espada Livre, que presenciavam o espetáculo de uma dúzia de
belonaves queimando na escuridão que se adensava. Mas a batalha não havia
terminado. Embora tivessem perdido a coesão, os volarianos continuavam
lutando, navios empreendendo ataques solitários e frequentemente suicidas, logo
deixados ardendo na trilha do navio de Ly rna ou atacados pelos meldeneanos.
Somente um conseguiu chegar perto o suficiente para atacar o Rainha Lyrna. O
timoneiro volariano demonstrara uma habilidade considerável ao deixar a
embarcação fora de alcance do engenho de Alornis e então girar a cana do leme
para chocar-se contra o casco do Rainha Lyrna a estibordo, e o contingente de
Varitai a bordo estendeu escadas e atravessou correndo o espaço entre os dois
navios, apesar das baixas terríveis causadas pela balista e pelos arqueiros que se
encontravam no alto.
A companhia de Lorde Nortah bateu-se com eles antes que tivessem
percorrido mais do que alguns metros do convés, atacando com uma ferocidade
disciplinada que fazia jus aos meses de treinamento. O próprio Lorde
Comandante abriu um caminho sangrento pelas fileiras Varitai, desfazendo a
formação deles, lutando com uma habilidade e precisão inconscientes que Ly rna
não via desde os dias que passara com o Irmão Sollis. Sua gata guerreira lutava
ao seu lado, matando a cada golpe que dava com as garras. Com todos os Varitai
mortos ou forçados a saltar pela amurada, Nortah reuniu os seus soldados numa
cunha compacta e os conduziu para o navio volariano, sobrepujando o resto da
tripulação que se defendia desesperada em volta do mastro principal. Alguns
evidentemente haviam tentado se render, a julgar pela quantidade de homens
desarmados que Ly rna viu serem jogados ao mar.
— Alteza! — Um marinheiro chegou correndo do leme, apontando para
bombordo. — O Capitão Larhten pediu para informar que há mais navios a oeste.
Ly rna olhou para dentro do crepúsculo, discernindo os contornos tênues de
mastros altos. Parece que não haverá muito alívio com a escuridão. Ela olhou
para leste, onde o Falcão Vermelho podia ser visto, o fogo jorrando de sua proa e
envolvendo um navio de tropas volariano. Mais adiante, outras embarcações
meldeneanas atacavam o restante da linha inimiga, o céu iluminado pela cascata
contínua de bolas flamejantes enquanto as manganelas executavam o seu
trabalho mortal.
— Diga ao capitão para virar para oeste — disse Ly rna ao marinheiro. — E
faça sinal para que as embarcações do Reino nos sigam. Nossos aliados estão
com as coisas sob controle.
Infelizmente, era evidente que uma mão invisível ainda exercia alguma
forma de comando sobre a frota volariana e não tinha desejo algum de permitir
que ela enfrentasse a nova ameaça. Uma esquadra de dez embarcações
separou-se do aglomerado central de navios e partiu na direção deles a toda a
velocidade. O vento estava a seu favor e eles conseguiram se posicionar
diretamente no caminho do Rainha Lyrna, virando os navios para ficar de frente
para a embarcação do Reino, flechas e virotes de balista cobrindo o ar entre eles
ao se aproximarem. Ly rna entrelaçou as mãos e permaneceu imóvel enquanto o
ar zunia ao seu redor, e um virote atravessou o seu cabelo logo abaixo da orelha.
Iltis colocou o seu corpanzil na frente dela, levando o braço ao rosto como se
estivesse se protegendo da chuva e soltando um grunhido quando uma flecha
raspou em seu antebraço.
Ly rna virou-se para Alornis com um olhar questionador enquanto ela
terminava de reabastecer a máquina.
— É tudo o que resta do óleo, Alteza — informou ela, a voz tão inexpressiva
quanto o rosto.
— Não poupe nada, minha senhora — advertiu Ly rna. — Um navio em
chamas causa mais impressão do que um chamuscado.
O primeiro navio volariano a ficar ao alcance da máquina era de calado
consideravelmente menor do que o do Rainha Lyrna e Alornis foi obrigada a
abaixar o bico da máquina quando a embarcação passou por eles, envolvendo-a
por completo em chamas da proa à popa, provocando o agora familiar coro de
gritos. Alornis conseguiu fazer outro disparo substancial contra a embarcação
seguinte, um navio de tropas consideravelmente maior, bem equipado com
balistas e arqueiros. O jato de fogo conseguiu arrancar vários do cordame, mas
não antes que matassem uma dúzia ou mais de Guardas do Reino e a equipe que
manuseava a balista a bombordo.
Ly rna virou-se e viu os últimos vestígios de fogo pingarem do bico da
máquina; Alornis encontrou o seu olhar e pediu desculpas com uma mesura.
Ly rna a encaminhou para a balista agora silenciosa.
Apesar das chamas que ainda consumiam suas cordas e velas, o navio de
tropas volariano manteve o curso, com um batalhão inteiro de Espadas Livres
reunido no convés. Ly rna estava prestes a ordenar que Nortah trouxesse o resto
do seu regimento, mas viu que o Lorde Comandante havia antecipado essa
necessidade, os soldados correndo para entrar em formação com extraordinária
precisão apesar do tumulto que havia por todos os lados.
A balista a bombordo voltou à vida; Alornis mirava enquanto Davoka girava a
manivela. Ly rna acompanhou o voo de um virote que atravessou o espaço entre
as duas embarcações e ceifou a vida de um oficial Espada Livre volariano que
tivera a insensatez de permanecer de pé junto à amurada, sem dúvida como
exemplo aos seus homens. Ela esperava que tivessem aprendido bem a lição.
— Alteza! — Era Larhten, chamando do leme e apontando para algo além do
navio volariano. Ly rna piscou para afastar a ardência nos olhos e tentou avistar
algo em meio à fumaça. O Rei Malcius, percebeu ela quando a vista ficou
desimpedida. Que apropriado o meu irmão vir para me salvar.
O Rei Malcius vinha a toda a velocidade, seus arqueiros disparando uma
saraivada de flechas incendiárias contra o navio de tropas volariano antes de
chocar-se com estrondo contra o casco a estibordo. As fogueiras que agora
apinhavam o mar pintaram o espetáculo subsequente com sombras bruxuleantes.
A cena de um bando de homens cobertos de metal correndo do Rei Malcius para
atacar os Espadas Livres parecia de algum modo surreal, como algo saído de um
sonho, ou de um pesadelo.
O olhar de Ly rna logo foi atraído pela visão de um homem corpulento
lançando-se contra o grupo mais compacto de volarianos, sua maça subindo e
descendo com mortal eficácia. Ao seu lado havia uma figura mais alta e mais
esguia brandindo uma espada longa. Ela assistiu enquanto os dois juntos abriram
caminho a golpes pelo navio, seus cavaleiros seguindo numa massa
entrechocante de aço, rechaçando os Espadas Livres para trás com tal fervor
assassino que a maioria preferiu a duvidosa segurança do mar a permanecer no
navio e lutar. Quando o Rainha Lyrna enfim parou ao lado do navio de tropas, as
duas figuras se encontravam na amurada a bombordo, onde removeram os
elmos e a cumprimentaram com uma mesura.
— Boa noite, meus senhores! — gritou ela ao Senhor Feudal Arendil e ao seu
avô.
— Perdoe-me, Alteza — gritou Banders em resposta, o rosto largo coberto de
suor —, mas iremos desembarcar logo? Mais uma semana no mar e meus
cavaleiros provavelmente irão me enforcar!
Ly rna virou-se para contemplar a cena, o céu agora negro e a única
iluminação vindo dos vários navios em chamas. O tumulto do combate havia
cessado, embora ela ainda pudesse ouvir homens gritando em algum lugar, vozes
pedindo ajuda em volariano misturadas com o estranho som gorgolejante que
acompanhava um navio afundando.
— De fato, meu senhor! — gritou ela a Banders. — Já passou da hora de
desembarcarmos!

O navio se encontrava sobre a areia como uma grande fera ferida, os mastros
cortados e boa parte da madeira removida das laterais do casco, expondo a
trama complexa de vigas que de algum modo conseguira mantê-lo intacto. Foi
Benten quem o reconheceu como o Senhor Feudal Sentes; o seu olhar de
marinheiro experiente era capaz de discernir as leves diferenças que distinguiam
um navio de outro.
— Parece estar muito para dentro da praia para que pudesse ser levado pela
maré — disse ele. — É espantoso que ainda esteja inteiro.
A curta viagem até a baía revelara apenas cinco dos trinta navios que
navegavam com a Senhora Reva, todos severamente danificados e mal se
mantendo à tona, embora suas cargas preciosas de tropas e suprimentos
estivessem em sua maioria intactas. Com o Sentes chegavam a seis, mas o navio
não podia ser considerado em condições de navegar. Ao todo, pouco mais de dois
terços da Frota da Rainha haviam sobrevivido à tempestade, apesar de as baixas
terem sido severas e a batalha com os volarianos tivesse ceifado outras mil vidas.
Embora Ly rna visse o rubor da vitória em muitos rostos, ela sabia que a batalha
na verdade não fora decisiva, e o Senhor Marinho Ell-Nurin estimava que
haviam capturado ou afundado no máximo metade da frota volariana.
— Quem quer que os estivesse comandando teve sensatez suficiente para
recuar sob a proteção da noite — concluiu ele. — Um de nossos navios de
reconhecimento relatou ter avistado velas no horizonte ao sul.
Ly rna pegou o primeiro barco para a praia, calando todos os protestos com
um olhar intenso e silencioso. O momento para cautela havia acabado na
tempestade. Apesar de toda a aclamação com que foi recebida pelos navios ao
redor enquanto o barco seguia a caminho da costa, ela sabia que a moral ainda
despencaria como uma pedra quando a realidade da situação em que se
encontravam ficasse aparente. Eles precisam ver uma rainha.
Foi acompanhada pelo Lorde Comandante Nortah e uma companhia inteira
de Adagas da Rainha. O Irmão Sollis levou para o norte um aglomerado de
barcos repletos com o que restava da Sexta Ordem, enquanto o Conde Marven
levou os seus melhores nilsaelinos para proteger as rotas de aproximação ao sul.
Eles foram obrigados a remar em meio a diversos cadáveres, e Ly rna ficou
surpresa ao ver que a maioria era de volarianos, balançando nas ondas com
flechas cravadas nas armaduras.
A maré estava baixa e as ondas não estavam se quebrando na praia quando
pararam na areia, e Ly rna saltou do barco antes que Iltis pudesse fazer objeção.
Ela o ouviu abafar um xingamento ao pular atrás dela na água que lhe chegava
até a cintura. Ly rna seguiu pelo mar na direção do navio, passando os olhos pelo
casco parcialmente arruinado e dando com vários rostos a encarando, embora
agora não houvesse vozes aclamadoras, e a maioria simplesmente estivesse
pálida de exaustão. Ela notou um amontado escuro de corpos volarianos na praia,
cerca de duzentos homens e cavalos cobertos de flechas.
— Pensaram que éramos alvo fácil — gritou uma voz do alto do Sentes, e o
olhar de Ly rna encontrou um homem robusto parado numa das fendas no casco
do navio, segurando um arco longo e olhando para baixo na direção dela com
uma gravidade que contrastava com o costumeiro respeito cauteloso que os
soldados cumbraelinos demonstravam para com ela. — Provamos que estavam
errados.
Ly rna olhou para ele e continuou o encarando até ele acrescentar um
“Alteza” numa voz seca.
— Lorde Antesh — disse ela. — Onde está Senhora Reva?
Ele ficou visivelmente abatido ao ouvir suas palavras, baixou a cabeça e
fechou os olhos com força.
— Suponho que a senhora também não tenha notícias dela, Alteza?
Ly rna virou-se e viu a primeira leva de tropas desembarcar, as Adagas da
Rainha espalhando-se para vasculhar as dunas, enquanto um regimento da
Guarda do Reino tirava os barcos da água, seguido por mais, numa maré
aparentemente interminável.
— Lorde Antesh. — Ela virou-se de novo para o arqueiro e encontrou um
homem agora nitidamente tomado pelo pesar. — Lorde Antesh!
Ele se empertigou com o grito, e um espasmo de raiva tomou conta de seu
rosto antes de se forçar a uma expressão mais neutra.
— Alteza.
— Eu o nomeio Lorde Comandante do Exército Cumbraelino da Rainha.
Remova os seus soldados deste navio e prossiga para o interior além da praia.
Haverá um conselho de capitães esta noite e vou precisar do número exato de
suas tropas.
Ela seguiu em frente sem esperar uma resposta de confirmação. Eles
seguiam a Senhora Abençoada, ela sabia. Não posso deixar nenhuma dúvida de
que agora precisam me seguir.

A mulher devia ter sido muito bela quando viva, dotada da flexibilidade de uma
dançarina e de feições delicadas como porcelana. Contudo, como Ly rna a essa
altura havia testemunhado muitas vezes, a morte parecia sempre privar o corpo
da beleza, descorando a pele e tornando as feições um eco flácido da alma que
já fizera aqueles lábios carnudos sorrirem. O Irmão Sollis havia descoberto mais
corpos nas dunas não muito longe dali; escravos, a julgar pelas roupas, todos com
a garganta cortada. Entretanto, a mulher que já fora bela não mostrava sinais de
qualquer ferimento, apesar do sangue seco que manchava a pele em volta dos
olhos e do nariz.
O Irmão Lucin era o membro da Sétima Ordem mais velho que Ly rna
encontrara até então, magricela e quase completamente careca, exceto por um
tufo de cabelo branco que brotava do topo da cabeça como uma erva daninha
esquecida. Ele andou em volta do corpo da mulher durante algum tempo,
franzindo o cenho, concentrado, de vez em quando murmurando consigo mesmo.
Durante a sua busca infrutífera por evidências, Ly rna entrevistara várias pessoas
presas por suspeita de prática das Trevas e descobrira que todas eram charlatãs
ou vítimas de acusações maliciosas. Uma dessas pessoas, um jovem charmoso,
mas aterrorizado, explicara de bom grado como enganava viúvas ricas e as fazia
gastarem dinheiro ou joias ao afirmar que se comunicava com parentes mortos
havia muito tempo, e dera uma demonstração não muito diferente da realizada
naquele momento pelo Irmão Lucin. Em reconhecimento de sua honestidade,
Ly rna convencera o seu pai a comutar a sentença do charlatão para dez anos na
Guarda do Reino.
— Isso vai levar quanto tempo? — perguntou ela ao Aspecto Caenis, sem
conseguir manter o tom de desconfiança longe da voz.
— Todos os lugares possuem uma história, Alteza — respondeu ele. — O
Irmão Lucin é obrigado a vasculhar um emaranhado de imagens para encontrar
o evento certo.
— Argh! — gritou o irmão idoso, o rosto contorcido numa careta tanto de
aversão quanto de medo.
— Irmão? — perguntou Caenis, aproximando-se.
O Irmão Lucin o afastou com um aceno irritado de seus braços ossudos.
— Eu a senti — disse ele, lançando um olhar acusador a Ly rna, como se ela o
tivesse conduzido até uma armadilha. — A coisa dentro dela. Você está tentando
me matar?
— Olhe essa boca, irmão — rosnou Iltis, com um olhar de aviso.
O Irmão Lucin mal olhou para ele.
— O passado é real — disse ele a Ly rna. — Não uma confusão de sombras.
Ele possui poder.
— Perdão se eu o coloquei em perigo, irmão — retorquiu Ly rna, percebendo
que não adiantaria de muita coisa insistir no uso de etiqueta com aquele homem.
— Mas as nossas atuais circunstâncias exigem que corramos todos os riscos. —
Ela indicou o cadáver com um aceno de cabeça. — Era ela?
O irmão olhou para a morta com palpável relutância, afastando-se como se
esperasse que ela pudesse voltar à vida de repente.
— Havia soldados com ela. Eles a chamavam de Imperatriz. Ela tinha um
dom poderoso, pude sentir isso, que emanou dela de uma só vez para fazer com
que o vento obedecesse à sua vontade.
— Então ela está morta — disse o Conde Marven. — Ela deu a vida para nos
destruir. O inimigo está sem líder agora.
O Irmão Lucin lançou um olhar fulminante ao Senhor da Batalha.
— Esta era apenas uma casca, escolhida pelo seu dom. Podem estar certos
de que ela já despertou em outra.
— Por que matar os escravos? — questionou Marven.
— Testemunhas — respondeu Ly rna, olhando de novo para o rosto da morta.
Onde ela encontrou você? Você já teve um nome? — Poucos ou nenhum
volariano sabe qual é a verdadeira natureza de sua nova Imperatriz. Levem os
corpos para as piras. Duvido que tenham algo mais a nos contar.

***

— O fingimento não nos servirá de nada agora — disse Ly rna aos capitães
sobreviventes de seu exército e sua frota, reunidos na elevação para além da
praia, onde as tropas ainda desembarcavam, a areia salpicada de piras
flamejantes para os mortos. — Sofremos um golpe doloroso. A Senhora Reva
está desaparecida e é muito provável que esteja morta, assim como o Lorde
Almirante Ell-Nestra. Perdemos um quinto de nosso exército devido a um erro
de julgamento meu. Assim, sou obrigada a perguntar se há alguém aqui que não
esteja mais disposto a seguir minhas ordens.
Ly rna examinou o rosto deles e viu que a maioria estava claramente perplexa
pela pergunta. Os meldeneanos a encaravam com a mesma certeza que
marcara a atitude deles desde os Dentes, onde, ela sabia, muitos acreditaram que
os deuses a haviam imbuído com alguma forma de discernimento divino. Longe
de diminuir a sua fé, os eventos da noite anterior pareciam tê-la consolidado;
quem além dos deuses poderia obter uma vitória a partir de uma derrota tão
certa?
De forma semelhante, o Senhor Feudal Arendil e o Barão Banders também
não exibiam sinais de desconfiança, assim como Sabedoria, que comparecera
para falar em nome do pequeno contingente de eorhil e seordah. As únicas
expressões nítidas de inquietação vinham do Lorde Comandante Nortah, o que
era típico, e de Lorde Antesh, ainda evidentemente tomado pelo pesar. Porém,
assim como os outros, ele permaneceu calado.
— Muito bem — disse Ly rna, assentindo para o Conde Marven. — Senhor da
Batalha, a nossa posição tática, por favor.
— Estabelecemos um perímetro que se estende por um quilômetro e meio
para o interior, Alteza. O Irmão Sollis designou a Ordem para fazer
reconhecimento mais distante, e até o momento não há relatos de forças inimigas
significativas por perto, apesar de termos encontrado algumas patrulhas
montadas. Teremos uma ideia melhor quando os cavalos restantes forem trazidos
para terra firme.
— Os que sobraram — interrompeu o Barão Banders. — Um terço de nossas
montarias adoeceu e morreu nos navios. Cavalos não lidam bem com a vida no
mar.
— Esta região é repleta de terras cultivadas — disse Ly rna. — Sem dúvida
logo encontraremos substitutos. Até que isso aconteça, receio que qualquer
cavaleiro sem cavalo terá de lutar a pé, meu senhor.
— Isso lhes dará algo de que reclamar — murmurou Banders, baixo o
suficiente para Ly rna ignorar sem problemas.
— A frota volariana? — perguntou ela ao Senhor Marinho Ell-Nurin.
— Ainda nenhum sinal dela, Alteza. Mas duvido que tenham ido longe.
Provavelmente estão lambendo as feridas e esperando reforços.
— Então não vamos lhes dar o prazer disso. Eu o nomeio Lorde Almirante
Ell-Nurin. Os cargueiros e os navios de tropas regressarão para o Reino o mais
depressa possível para buscar mais suprimentos e reforços. O senhor pegará
todas as belonaves que temos e atacará o inimigo sem cessar.
— Assim o farei, Alteza. Ajudaria os nossos esforços se a Senhora Alornis
nos acompanhasse. Precisamos de mais combustível para as máquinas dela e os
meus companheiros não estão conseguindo acertar a mistura.
— A Senhora Artífice está indisposta. Façam o melhor que puderem. — Ela
parou e fez questão de encontrar o olhar de todos os presentes, certificando-se de
que não vissem qualquer incerteza em seus olhos. — O exército deve estar
totalmente reunido até amanhã. Assim que estiver, marchamos para Volar. A
Imperatriz deles sem dúvida estará se deleitando com a sua vitória imaginária.
Pretendo desenganá-la dessa ideia quanto antes.

— Reva está morta, não?


Alornis não conseguia olhá-la nos olhos, e estava sentada, apática, no catre da
tenda do Irmão Kehlan. Ela não demonstrava qualquer sinal de que os gemidos e
gritos ocasionais dos feridos a incomodassem, mantendo uma expressão tão
impassível quanto a exibida durante a batalha.
— O navio dela naufragou na tempestade — disse Ly rna. — Encontramos
alguns sobreviventes, mas nenhum tinha qualquer notícia dela. Sei que a senhora
era próxima da Senhora Governadora e também lamento pela perda dela. Seu
espírito, assim como a sua espada, farão muita falta.
— Eu sempre quis perguntar a ela sobre o cerco, o que ela fez. Mas não
consegui. Eu vi como aquilo a atormentava. Costumava me perguntar como uma
alma tão bondosa podia fazer o que dizem que ela fez em Alltor, pois aquela não
era a Reva que eu conhecia. Agora… — Ela olhou para as próprias mãos, os
dedos ágeis movendo-se como aranhas pálidas. — Agora duvido que ela me
reconhecesse.
Ly rna estendeu a mão para afastar uma mecha de cabelo da testa de Alornis
e ficou perturbada pelo frio da pele dela.
— Minha senhora, há milhares de pessoas vivas graças à senhora.
— E milhares mortas.
Irmão Kehlan foi para o lado de Alornis segurando uma taça de algo quente e
de aroma adocicado.
— Um sonífero, minha senhora.
— Não quero dormir — disse ela. — Posso acabar sonhando.
— Não haverá sonhos. — Ele sorriu, colocando a taça nas mãos de Alornis.
— Eu prometo.
Ly rna acompanhou o curandeiro quando ele se afastou. Apesar das muitas
horas de trabalho incessante, ele permanecia alerta, aparentemente indiferente
ao fedor que permeava a tenda e ao sangue que manchava o seu manto.
— Pode ajudá-la? — perguntou Ly rna.
— Posso ajudá-la a dormir, Alteza. Posso lhe dar vários remédios para
acalmar uma mente perturbada. Isso pode fazer com que ela volte a um tipo de
estado normal durante algum tempo. Mas já vi isso antes, a enfermidade do
espírito que surge naqueles forçados além dos limites. Uma vez que se manifesta,
jamais desaparece de fato. Aconselho que ela seja mandada de volta ao Reino o
mais breve possível.
— Não! — Alornis havia se levantado do catre e avançou na direção deles, as
feições antes plácidas agora rígidas com uma recusa determinada. — Não. Vou
ficar aqui. — Suas palavras saíram um pouco arrastadas e ela cambaleou. Ly rna
correu para ampará-la. — Temos mais fogueiras para acendermos juntas, Alteza
— sussurrou ela a Ly rna quando a Rainha a deitava no catre, observando-a
adormecer, ainda murmurando —, tantas fogueiras bonitas.
CAPÍTULO CINCO
Vaelin

O Povo Lobo removeu a cobertura de suas canoas quando a superfície sólida e


branca que cercava a ilha afinou e então se fragmentou sob o peso do novo sol.
Passados alguns dias, tudo o que restava eram alguns blocos de gelo teimosos à
deriva na correnteza rápida que separava as ilhas. Tal como os barcos do Povo
Urso no Estreito do Espelho, as canoas do Povo Lobo eram todas feitas de troncos
de árvores escavados e variavam bastante de tamanho. A maioria era capaz de
transportar não mais do que quatro pessoas de uma vez, outras tinham tamanho
suficiente para acomodar até dez, mas havia três de tais dimensões que parecia
incrível que pudessem sequer flutuar.
— Feitas das grandes árvores vermelhas que crescem no sul — explicou
Astorek enquanto uma das imensas embarcações era empurrada até uma
carreira para ser preparada a fim de ser lançada às águas. — Árvores que
crescem tão alto quanto montanhas ao longo da vida de vinte homens. O Povo
Lobo se permite pegar uma árvore vermelha somente uma vez a cada geração.
É motivo de grande celebração quando um novo barco grande é feito.
O propósito da embarcação imensa logo se tornou claro quando Astorek
conduziu os seus lobos a bordo junto com as outras alcateias. Havia uma tensão
nítida em cada um dos xamãs de pé entre os lobos, a concentração estampada no
rosto. Todos os lobos se sentaram numa obediência plácida, embora de vez em
quando um se virasse para uma alcateia diferente e um rosnado baixo
começasse a se formar em sua garganta antes de voltar à placidez instantânea
com um gesto insistente feito pelo seu xamã. Sem o comando do xamã, eles
voltam a ser lobos, compreendeu Vaelin, mais uma vez admirado com a fortitude
dos dotados encontrados entre aquela gente. Eles usam os seus dons por horas e
ainda assim nunca se cansam.
— Não é força — disse Kiral, aparecendo ao seu lado, seguida por seu gato.
Conforme os costumes dos lonaks, ela não dera um nome à fera, embora os
outros dotados a chamassem de Orelha, como era de se esperar. Era o menos
bem-comportado dos gatos, dado a um coro noturno de lamúrias desoladas e
uma indisposição sibilante para qualquer companhia humana que não fosse a de
Kiral. O animal cumprimentou Vaelin com um rosnado breve e manteve-se ao
lado da garota, agachado e cauteloso.
— É habilidade — prosseguiu a caçadora, indicando Astorek com a cabeça.
— Surgida de uma necessidade secular. Os nossos dons são úteis, mas ainda
podemos sobreviver sem eles. Essas pessoas precisam do seu poder, ou o gelo as
mata. Então aprenderam a controlar, compartilhar, usar apenas o necessário. —
Ela deu um leve sorriso, ainda olhando para o volariano. — Devemos parecer
crianças desajeitadas para eles.
Vaelin e os dotados ficaram com lugares num dos barcos imensos, enquanto
os guardas de Orven e os Senthar foram obrigados a se amontoarem nas
embarcações menores, algumas recém-construídas para acomodar o número
maior de pessoas que tomaria parte daquela migração anual. Cicatriz tremia um
pouco ao ser levado para dentro da canoa, apenas levemente acalmado por um
punhado de frutas silvestres. O cavalo de guerra se acostumara um pouco à
presença dos lobos, mas a proximidade com tantos num espaço confinado
claramente testava a sua paciência.
— Calma, meu velho — disse Vaelin, tentando tranquilizá-lo com uma
coçada no focinho. No entanto, naquele dia Cicatriz não estava disposto a ser
tranquilizado, de olhos arregalados e fixos no aglomerado silencioso de lobos
enquanto balançava a cabeça e arreganhava os dentes, alarmado.
— Deixe-me tentar — disse Dahrena, aproximando-se e colocando a mão no
pescoço do cavalo de guerra. Ela fechou os olhos e uma pequena ruga surgiu em
sua testa quando se concentrou. Cicatriz acalmou-se quase que de imediato,
baixando a cabeça e piscando num contentamento sereno.
— Eu mostrei a ele os estábulos de casa — disse Dahrena. — Ele acha que
está lá agora.
— Suas habilidades estão aumentando, minha senhora — disse Vaelin,
inclinando a cabeça.
— Um pouco. — Ela se virou para o xamã mais próximo, um veterano de
rosto magro cercado por cinco lobos imóveis. — Mas duvido que algum de nós
algum dia irá se igualar a eles. Algumas habilidades precisam do aprendizado de
uma vida inteira.

***

Era esperado que todos se revezassem para remar, com exceção dos xamãs;
duas ou mais horas passadas cortando as águas com um remo de pá larga. Como
sempre, o esforço constante deu a Lorkan muito do que reclamar, embora Vaelin
tivesse notado que ele demonstrava fazer pouca força ao remar. O homem
parecia mais alto agora, com as costas mais retas e os ombros mais largos.
Apesar de toda a reclamação, Vaelin sabia que o garoto que conhecera nos
Confins se perdera em algum lugar na maré de guerra e nas privações do gelo.
Porém, pelos olhares constantes a Cara, tudo indicava que pelo menos uma coisa
não havia mudado durante a jornada.
As ilhas ao redor ficavam cada vez maiores e mais altas à medida que
seguiam para o sul, grandes colinas de granito encimadas pela neve e florestas
densas de onde mais canoas surgiam conforme se aproximavam. Havia pouca
celebração nos cumprimentos trocados entre o Povo Lobo, alguns acenos
respeitosos de mão ou de cabeça entre xamãs, alguns chamados de velhos
amigos, mas na maior parte formavam o seu comboio crescente com uma
eficiência silenciosa. Vaelin também achou estranho que ninguém parecesse
particularmente surpreso ou incomodado com a presença de tantos forasteiros, e
a maioria apenas olhava a sua companhia diversificada com uma aceitação
taciturna.
— Eles sabiam que estaríamos viajando com vocês — disse ele a Astorek
durante o seu turno nos remos, que ocorria duas vezes por dia. O xamã falava
pouco na água, o rosto uma máscara de concentração constante enquanto
cuidava para manter os seus lobos sob controle.
— Falcões podem fazer mais do que matar — retorquiu ele, erguendo a
cabeça para o céu, onde o grande bando rodopiante de falcões-lanceiros
acompanhava o comboio. À noite eles desciam até a floresta de poleiros que
brotava das canoas, devorando os pedaços de carne fornecidos pelos seus xamãs,
cuja maioria parecia ser de mulheres.
— Eles levam mensagens? — perguntou Vaelin. — Mas o seu povo não
escreve.
— Não, não temos livros. — Astorek tirou algo de um bolso de suas peles e
jogou para Vaelin: um pedaço de osso de alce, marcado de ponta a ponta com
cortes retos ao longo de uma linha. — Cada marca representa um som —
explicou Astorek. — Junte-os e se tem uma palavra.
— O que diz?
— “Faca Longa é xamã de trinta lobos”. Muitas Asas entalhou quando virei
adulto e enviou cópias a todos os povoados. Foi a única vez que vi alguém de meu
povo se vangloriar.
Vaelin olhou em volta para as outras alcateias na canoa, notando como eram
pequenas em comparação, nenhuma com mais do que doze lobos.
— Deve ser difícil controlar tantos.
— Controlar não é bem a palavra. Eles… me aceitam.
Vaelin olhou mais atentamente para a alcateia de Astorek e notou como os
animais fixavam os olhares nele de forma uniforme, cativados e quase não
piscando.
— Eles conseguem ouvir — percebeu Vaelin. — O eco do chamado do lobo.
Ainda está em você.
O desconforto transpareceu por um momento na expressão de Astorek, e um
dos lobos virou-se para Vaelin com um rosnado crescente nos lábios. O animal se
acalmou quando Astorek passou a mão em sua cabeça, e olhou para o xamã com
a boca entreaberta em adoração.
— Eles também conseguem ouvi-lo em você, Sombra do Corvo. Algumas
coisas nunca desaparecem da alma de um homem.

Remaram para o sul por três dias, reunindo cada vez mais membros do Povo
Lobo ao longo do caminho. Quando avistaram o litoral vasto do continente, Vaelin
estimou que chegavam agora a mais de cem mil. Outros aguardavam na costa,
onde povoados podiam ser vistos entre as árvores, as moradas maiores ocupando
mais espaço do que as do Lar Lobo.
— Por que não viver aqui o tempo todo? — perguntou Cara a Astorek ao se
aproximarem da costa. — Parece ser um lugar mais confortável.
— Os alces vão para o sul no inverno — explicou ele. — Longe demais para
seguirmos, deixando uma vastidão congelada para trás. Mas nas ilhas, morsas e
baleias aparecem quando o gelo se forma.
À noite ocorreu um banquete de celebração, onde os últimos estoques de
inverno foram consumidos. O Povo Lobo aglomerou-se ao redor de várias
fogueiras imensas para assar as suas carnes em espetos e dividir chifres de
cerveja de pinho, emitindo cliques em sua língua indecifrável ao trocarem
histórias de privação durante o inverno. Apesar de a atmosfera em geral ser
festiva, Vaelin sabia que havia moderação no evento, notando como muitos rostos
o encaravam numa expectativa tensa. Assim como não possuíam uma palavra
para mentira, aquela gente também não possuía uma para segredo. Há séculos
vinham fazendo peregrinações até a caverna pintada e conheciam seu rosto e seu
nome.
Ele se sentou com Dahrena, afastado da multidão principal, e acendeu uma
fogueira menor para que pudessem jantar um ensopado de morsa. Vaelin cuidou
da refeição, cortando a carne em tiras e a temperando com ervas e com o que
restava do sal que havia trazido do Reino.
— Conheci irmãos que prefeririam abandonar as suas espadas no lugar do sal
— disse a Dahrena, exagerando apenas um pouco. A vida na Ordem fazia com
que a maioria dos irmãos adquirisse habilidade na arte de cozinhar em fogueiras
e reconhecesse o consolo necessário oferecido por uma pequena quantidade de
temperos.
— Você sente falta? — perguntou ela, aceitando uma tigela de ensopado. —
Foi criado para uma vida na Ordem. Deve ter sido difícil abandoná-la.
— Eu já havia perdido meus irmãos ao final da guerra, e muito mais. Não
havia nada pelo que voltar. — Vaelin sentou-se ao lado dela e eles comeram em
silêncio durante algum tempo. Como sempre, a sensação de compreensão mútua
afastava as suas preocupações com uma facilidade consoladora. Quando estava
com ela, era quase como se a sua canção tivesse retornado, tão fáceis de ler
eram os humores de Dahrena. Vaelin podia ver agora, a leve tensão no rosto dela
enquanto comia, o modo como os olhos iam constantemente para o seu rosto.
— Você está preocupada com o futuro.
— O mundo está mergulhado no caos — retorquiu Dahrena. — Parece
apropriado me preocupar.
— Se eu ainda fosse um homem da Fé, poderia citar um catecismo pertinente
sobre as virtudes da esperança.
— Acredita que a invasão da Rainha será bem-sucedida?
— Acredito nela. Ela é… mais do que era.
— E se formos bem-sucedidos, o que acontecerá?
— Voltaremos para os Confins, onde desconfio que passaremos boa parte do
nosso tempo protegendo-os de idiotas sedentos por ouro.
— É essa a sua ambição? Apenas a torre e os Confins?
— A torre, os Confins — Vaelin estendeu a mão e pegou a dela — e você.
Além da paz para desfrutar de tudo isso.
Dahrena sorriu, mas ele notou que era forçado.
— Meu pai também queria a paz, e esperava encontrá-la nos Confins.
— Caenis me disse que ele foi exilado por questionar a Palavra do Rei. Eu
sempre imaginei que havia sido por ter se recusado a fazer o que meu pai fez nas
Ilhas Meldeneanas.
— O clímax de uma longa discussão. Meu pai começou a carreira como um
guarda na Guarda da Casa Al Nieren, quando as famílias nobres asraelinas ainda
brigavam sem cessar pela Cadeira do Senhor. Uma vez ele me contou que Janus
lhe havia prometido a paz, na época em que a Mão Vermelha finalmente havia
desaparecido. Os dois eram pouco mais do que garotos na ocasião, enfrentando o
ataque de uma dúzia de casas aliadas contra eles, pois a linhagem Al Nieren
havia sido enfraquecida pela praga e parecia que seria fácil vencê-la. “Vamos
matar todos esses tolos, Vanos”, dissera Janus. “Então criaremos um Reino”.
“E criaram, ano após ano de guerra, as outras casas destruídas e humilhadas,
os feudos subjugados, tudo pela promessa de paz. Uma paz que não deu as caras
com o nascimento do Reino quando Janus voltou a atenção para terras
estrangeiras. Então, incapaz de encarar outra guerra, meu pai implorou para ser
dispensado, imaginando que poderia aposentar-se de forma tranquila nos Confins,
distante dos problemas do Reino e da ambição de Janus. Mas mesmo assim a
guerra o encontrou quando a Horda do Gelo apareceu.”
Vaelin apertou a mão dela com mais força.
— Não haverá nenhuma outra guerra como esta para ser lutada.
— Eu vejo a Rainha, assim como você. Eu a encontrei uma vez antes, há
muitos anos, quando meu pai me levou para o Reino. E você tem razão, ela
mudou muito. Mas ainda vejo nela o que meu pai viu no dia em que ela nos levou
a um passeio pelos jardins do palácio, toda risos e charme. Meu pai sorria ao
ouvir os ditos espirituosos dela, aceitou os elogios e despediu-se com
graciosidade. Contudo, enquanto nos afastávamos a cavalo o sorriso dele
desapareceu e o ouvi dizer: “E eu achava que Janus era ambicioso”. Pode ter
mudado, mas não desapareceu, Vaelin. Quando ela acabar com esta guerra, o
que acontecerá? O que a saciará quanto tiver conquistado um império? O que
mais ela pedirá de você?
Matará por sua fé, por seu Rei e pela Rainha do Fogo quando ela surgir…
Palavras de um sonho antigo. Talvez nem toda profecia seja falsa.
— Acho que ela é sensata o bastante para não pedir o que não darei.
Astorek veio buscá-los de manhã para um conselho, seguindo por um caminho na
floresta até chegarem a uma árvore tão grande que Vaelin a princípio se
perguntou se não era alguma ilusão conjurada por xamãs. O tronco era coberto
por uma casca marrom-avermelhada e tinha mais de vinte metros de largura na
base, chegando a uma altura de mais de sessenta metros, o topo perdido em
algum lugar acima das copas da floresta.
— O nome perde muito do significado na sua língua — disse Astorek. —
Lança dos Lobos é a tradução mais aproximada. A mais antiga das grandes
árvores que conhecemos. Nem mesmo os avós de nossos avós conseguiam
lembrar-se dela como uma muda.
Na base do tronco havia uma cavidade grande semelhante a uma caverna
onde alguns membros do Povo Lobo aguardavam, permanecendo de pé e em
silêncio quando Astorek levou Vaelin para dentro. Ele não se apresentou e
simplesmente assumiu um lugar enquanto encaravam o seu rosto, o
reconhecimento e a inquietação evidentes em cada olhar. O silêncio se arrastou
enquanto ele permaneceu parado ali, perguntando-se se havia algum ato
ritualístico que não fizera, até que Urso Sábio aproximou-se e falou em voz baixa:
— Eles querem as suas palavras.
— Palavras?
Urso Sábio deu um sorriso breve para o Povo Lobo reunido ali, lembrando
um pai desculpando-se por um filho mal-educado.
— Palavras de guerra. Eles esperam que você os lidere.
Os olhos de Vaelin percorreram o conselho, encontrando Matador de Baleia
entre eles, os outros também identificados como anciões pelos objetos que
portavam: colares de ossos ou contas, uma faca comum com o punho entalhado
de forma delicada. Somente as pessoas do gelo com idade e influência
suficientes tinham o tempo ou a oportunidade de acumular bugigangas.
— Não há xamãs aqui — comentou com Astorek.
— Xamãs são proibidos de liderar — disse ele. — Poder demais deixa a alma
doente. Uma lição que o Povo Gato nunca aprendeu.
Vaelin assentiu.
— Quantos guerreiros eles comandam?
Astorek falou brevemente com o conselho, recebendo respostas secas, mas
ligeiras.
— Não contamos números como vocês — informou o xamã. — Mas talvez
um quarto da gente de cada ilha esteja em idade de lutar.
Pouco mais de vinte mil. Dificilmente o Exército da Rainha, mas eles têm os
seus lobos e falcões.
— Eles viram algum sinal dos volarianos?
— Batedores foram enviados para o sul com o primeiro degelo — informou
Astorek. — Como são enviados todos os anos. Regressarão quando os volarianos
atravessarem a região das colinas e entrarem nas planícies. Eles costumam vir
quando o sol está mais alto, mais ou menos daqui a dois meses.
Vaelin lembrou-se das palavras de Sem Olhos no gelo: Sou paciente e
desconfio que você ainda tenha um longo caminho a percorrer.
— Eles virão mais cedo este ano, e não podemos esperar. Seu povo precisa
reunir os guerreiros, todos os lobos e falcões, e vir para o sul comigo.
A inquietação dos anciões aumentou de forma visível quando Astorek
traduziu, embora nenhuma palavra tenha sido dita quando trocaram olhares
cautelosos. Mesmo após uma vida acreditando é difícil confiar seu destino à tinta
pintada numa parede séculos atrás, concluiu Vaelin.
Por fim, um dos anciões falou, um velho curvado que se apoiava bastante
num cajado, a voz fina e cansada, mas ainda capaz de impor um grande respeito
pelo modo como Astorek traduziu suas palavras com uma solenidade objetiva.
— Andarilho Distante, o mais velho e sábio do Povo Lobo, pergunta que
promessas a Sombra do Corvo pode fazer. As palavras do Povo do Grande Barco
tornaram-se verdadeiras?
— Não posso oferecer quaisquer palavras com respeito às suas crenças —
falou Vaelin. — E qualquer homem que conduz outros à guerra com uma
promessa de vitória é tolo ou mentiroso. Ofereço uma oportunidade de derrotar o
seu inimigo e evitar que ele retorne. Nada mais.
O velho falou de novo quando Astorek terminou de traduzir, aproximou-se e
olhou para Vaelin, a confusão e o espanto alternando-se em suas feições
envelhecidas.
— Quando eu era criança, perguntava aos anciões: “Quando a Sombra do
Corvo virá?” Eu fazia a mesma pergunta sem parar, pois sabia que ele não havia
aparecido na época de meus pais, ou de meus avós, nem nas muitas Noites
Longas antes disso. “Não enquanto você viver, pequenino”, respondiam eles, e
então eu dormia bem, sabendo que sua época traria grandes tormentos e
privações ao Povo Lobo, mas que eu seria poupado de testemunhá-la.
Ele continuou a encarar Vaelin por algum tempo, fazendo por fim uma
pergunta breve, num sussurro:
— Como você derrotará nosso inimigo?
— Com os seus guerreiros, seus xamãs, seus lobos e seus falcões. Com o aço
dos soldados que comando e as habilidades terríveis dos aliados que nos seguiram
até aqui. — Ele fez uma pausa e olhou para Dahrena e os dotados, que tinham
permanecido na extremidade da caverna. — E a coragem de almas intensas e
poderosas.
Andarilho Distante abaixou os olhou e virou-se, voltando-se para as
profundezas da árvore num passo cansado. Ele tornou a falar ao ser engolido
pelas sombras, as palavras fazendo com que os outros membros do Povo Lobo
soltassem um grito instantâneo e sufocado de choque. Alguns gritaram às suas
costas, fazendo perguntas urgentes à escuridão, mas não houve resposta.
— O que ele disse? — perguntou Vaelin a Astorek, que olhava boquiaberto
para onde o velho se dirigira.
— O testamento dele — explicou o volariano, num tom que não dava brechas
a mais questionamentos. Ele voltou o olhar para os outros anciões e fez uma
pergunta que todos responderam com uma série de assentimentos, alguns mais
relutantes do que outros. — Iremos com você — disse Astorek.

Dahrena estava sentada no centro de um círculo de fogueiras, de olhos fechados


e com o rosto ficando mais pálido a cada minuto, enquanto Marken, Lorkan e
Cara se esforçavam para manter as chamas altas. Vaelin permaneceu ao lado
dela, mantendo uma pele de lobo-marinho enrolada em seu corpo esguio quando
Dahrena estremeceu, o que indicava o seu retorno. Ela se encostou sem forças
nele, gemendo quando Vaelin lhe esfregou os ombros.
— Esperava que isso ficasse mais fácil com a prática.
Cara entregou a ela uma taça de cerveja de pinho aquecida, o que a fez tossir
um pouco, mas colocou um rubor em suas faces.
— Eles ainda não chegaram nas colinas — disse ela a Vaelin. — Mas estão
vindo, um grande exército liderado por sete generais. Pude vê-los cavalgando
adiante, suas almas tão sombrias que pareciam engolir a luz, e eram todas a
mesma. Só vi uma alma assim antes. No gelo.
— Sem Olhos — disse Vaelin, e ela assentiu. Sete almas, todas a mesma,
pensou ele. O Aliado enviou o Bastardo da Bruxa com um exército. Quanto ele
teme o que buscamos?

***

O Povo Lobo insistiu numa semana inteira de caça antes de partirem. Apesar do
degelo, a vida na tundra setentrional continuava precária o ano inteiro e eram
necessários estoques para as pessoas que ficariam para trás quando os guerreiros
rumassem para o sul. Astorek convidou Vaelin e Kiral para a sua expedição, uma
vez que se exigia que cada xamã liderasse um grupo de caça, mas o proibiu de
levar Cicatriz.
— Caçamos a pé. Os alces sentiriam os cascos dele na terra.
Eles seguiram para leste por um dia com vinte caçadores, e os lobos de
Astorek iam adiante num arco amplo, parando constantemente e erguendo o
focinho para farejar o ar. Os lobos com frequência saíam em disparada,
desapareciam para além do horizonte por uma hora ou mais, mas sempre eram
encontrados esperando por eles pouco tempo depois. Mudavam de direção
frequentemente, virando para o norte e depois para o sul sem aviso.
— Até onde eles podem ir antes de você perdê-los? — perguntou Kiral ao
xamã, que pareceu intrigado pela questão.
— O vínculo é profundo, tão profundo que a distância não significa nada. Eles
poderiam estar do outro lado do mundo que eu ainda os sentiria.
Ele parou e empertigou-se quando os lobos pararam, todos agachados, os
focinhos apontados para sudoeste. O Povo Lobo atirou-se no chão ao mesmo
tempo; Vaelin e Kiral abaixaram-se ao lado de Astorek enquanto ele erguia uma
das mãos, medindo o vento. O rapaz fez um aceno rápido com a cabeça e os
lobos saíram em disparada para o sul, movendo-se num grupo compacto.
— Eles irão trazê-los até nós.
Os caçadores arrastaram-se até formarem uma linha paralela ao xamã,
deitados com as lanças em punho. O capim que crescia na tundra era mirrado,
fornecendo pouca proteção, mas também uma visão desimpedida do horizonte.
Cada caçador carregava três lanças, todas com pontas de ferro serrilhadas, e
Vaelin notou a escrita semelhante a riscos com que haviam decorado as hastes.
Tudo indicava que cada lança possuía a própria história.
— Você já caçou os grandes alces alguma vez? — perguntou Kiral,
colocando uma flecha em seu arco.
Vaelin sacudiu a cabeça e preparou o arco. Suas flechas eram todas mais
adequadas para a guerra do que para caçar, estreitas e com pontas para perfurar
cotas de malha ou armaduras, de modo que Kiral lhe entregou três das suas,
serrilhadas como a ponta das lanças dos caçadores, mas feitas do mesmo vidro
negro inquebrável usado pelos seordah.
— Uma não será suficiente — disse a ele. — Ignore os flancos e mire no
pescoço.
Vaelin os ouviu antes de avistá-los, um tremor retumbante reverberando pelo
solo acompanhado pelos ganidos tênues dos lobos. Quando surgiu o primeiro alce,
a princípio pareceu que uma árvore havia brotado de repente no horizonte, a
silhueta de galhos largos balançando enquanto aumentava de tamanho, uma
pequena floresta surgindo ao seu redor. Ele vira os eorhil exibirem fragmentos de
galhadas de alce e tinha uma ideia do tamanho deles pelas pinturas na caverna do
Povo Lobo, mas a visão de um dos alces vivos era realmente impressionante. O
primeiro a aparecer tinha galhadas que chegavam a três metros de um lado a
outro, o próprio animal quase tão alto quanto dois homens, levantando uma
espessa nuvem de poeira ao correr na direção deles de cabeça abaixada, as
pontas das galhadas como longas lâminas de espada.
Quando o alce chegou a vinte metros de distância, os caçadores se
levantaram ao mesmo tempo e arremessaram rapidamente as lanças, e o animal
que vinha à frente e dois outros tombaram numa confusão de cascos se
debatendo e galhadas despedaçadas. O resto da manada afastou-se do perigo e
rumou para o norte, perseguida pelos lobos. Um dos alces feridos conseguiu
levantar-se, bufando e sacudindo as galhadas parcialmente quebradas de um lado
para outro antes de investir contra o caçador mais próximo. Kiral acertou uma
flecha no pescoço do animal e Vaelin mais duas, mas o alce mal diminuiu a
velocidade, raspando a galhada no chão enquanto avançava até o caçador. No
entanto, o homem não precisava de ajuda: ele pulou para a frente no último
segundo e saltou por cima da cabeça do alce, girou no ar, apoiou as mãos no
pescoço do animal e jogou-se para longe num salto mortal que teria
impressionado qualquer acrobata.
O alce bufou e virou-se, deixando um rastro de sangue e berrando a sua
frustração até Kiral dar cabo dele com uma flecha certeira no olho, um feito que
Vaelin duvidava que até mesmo Reva conseguisse igualar. Ele se aproximou de
Astorek enquanto os caçadores tratavam de descarnar as presas, as facas longas
reluzindo ao estriparem e desmembrarem as carcaças com uma velocidade
automática. Podia ver os lobos a uns oitenta metros dali, aglomerados em volta
de outra carcaça; a placidez usual desaparecera enquanto disputavam a carne e
tentavam se morder, os pelos brancos manchados de sangue dos focinhos às
caudas.
— A recompensa deles — disse Astorek. — Não é bom controlá-los demais.
Às vezes eles precisam se lembrar do que são.
Uma nuvem de poeira ao longe indicava que os alces remanescentes
continuavam a fugir.
— Vocês não matam todos — observou Vaelin.
— Se matássemos, não haveria nenhum para caçar no ano seguinte.
— Quando enfrentarmos os volarianos não será uma caçada, mas uma
batalha. Nenhum pode escapar. Vamos matar todos.
— Você acha que eu tenho algum receio de matar o meu antigo povo? Não é
nada que eu já não tenha feito antes.
— Desta vez será diferente. Desta vez eles são liderados por algo muito pior
do que um general ambicioso demais.
Kiral aproximou-se, limpando o sangue das flechas e lançando um olhar
cauteloso para o xamã.
— Lorde Vaelin fala a verdade — disse ela. — Eu sinto a sua compaixão.
Mas ela o matará quando enfrentarmos o cão favorito do Aliado.
Astorek franziu o cenho e sacudiu a cabeça, perplexo.
— Aliado?

— E ele vive nesse… lugar além? Um lugar além da morte?


Vaelin esforçou-se para formular uma resposta precisa. Explicar o conceito
do Além a alguém criado sem qualquer forma de fé estava se provando uma
tarefa difícil. Além disso, ao contrário do povo que o adotara, Astorek não sentia
quaisquer tendências de venerar o fogo verde que continuava a tremeluzir no céu
noturno, embora a sua luz agora fosse apenas um brilho fraco no horizonte ao
norte.
"Um dos muitos mistérios da natureza", era a sua única opinião.
Eles haviam dado início à marcha no dia anterior; os guerreiros do Povo Lobo
agruparam-se de acordo com associações vagas e seguiram para o sul sem uma
ordem ou cerimônia específica, exceto por despedidas breves e pessoais dos
familiares. Porém, havia alguns que não viajariam para o sul, nem ficariam na
tundra. Vaelin observou um grupo de pessoas se reunir na costa, homens e
mulheres de idade avançada, cada uma com a própria canoa e levando apenas
poucas provisões. Ele avistou Andarilho Distante entre elas, entregando vários
itens para um grupo mais jovem, que supôs serem os filhos e netos do ancião:
uma faca, um colar, uma lança. Todos aceitaram os presentes com respeito
silencioso, e o mais novo entre eles fungava quando o velho entrou na sua canoa
e se afastou da costa, remando para o norte sem olhar para trás. O testamento
dele, pensou Vaelin.
Mais tarde ele se juntou a Astorek na vanguarda do exército, conduzindo
Cicatriz pelas rédeas enquanto o xamã mandava os seus lobos adiante como
batedores da linha de marcha.
— Sei que pode ser difícil de acreditar — disse Vaelin. — Mas eu estive lá, e
ouvi a voz dele. Por mais que eu quisesse desconsiderá-lo como um produto de
lendas ou de ilusões, a sede dele pela nossa destruição é bastante real.
— Eu achava que era preciso morrer para entrar no Além.
Vaelin voltou os olhos para o horizonte. Nunca era fácil falar sobre o que
acontecera em Alltor, talvez porque ainda não compreendesse boa parte.
— E é.
— Então como você está aqui?
Vaelin olhou para trás, para Dahrena, que ria com Cara enquanto seus gatos
rolavam juntos numa luta de brincadeira perto dali.
— Sempre fui muito afortunado com meus amigos.
Avistaram as montanhas após outra semana de marcha, uma cadeia de
encostas escarpadas e picos que se estendia para o sul até onde conseguiam ver.
Os vales pareciam repletos de pinheiros, mas os picos eram principalmente de
granito bruto, pintados de azul na neblina. A leste, um tênue brilho alaranjado
podia ser visto sob um aglomerado de nuvens baixas e escuras.
— Montanhas de fogo — disse Astorek. — Nem mesmo os membros das
tribos vão até lá.
— Seu povo faz trocas com eles? — perguntou Vaelin. — Fala a língua deles?
— Eles falam alguma forma de volariano. Difícil de entender para o ouvido
menos acostumado. E, não, não há trocas entre nós. Eles ficam em suas colinas
lutando suas rixas sem fim, ou contra os volarianos, quando aparecem para
preencher as cotas de escravos, e raramente se arriscam a atravessar a tundra.
— Astorek olhou para o sempre presente bando de falcões-lanceiros no alto
quando alguns se separaram do grupo principal e voaram na direção das colinas.
— Minha mãe avisará se alguém vier nos receber.
Contudo, não havia ninguém esperando quando começaram a subir os
contrafortes, as encostas adiante sem qualquer sinal de que o caminho pudesse
ser bloqueado.
— Meu povo faria o mesmo — disse Alturk, estreitando os olhos ao
esquadrinhar as colinas silenciosas. — Permitir que entremos, marchemos até
nos acharmos seguros e então atacar à noite.
— Não há ninguém nos vigiando — disse Kiral num tom de certeza. Ela se
virou para Vaelin com uma expressão grave no rosto. — Mas alguém está vindo.
Minha canção é clara: devemos esperar.
Eles acamparam numa série de colinas com uma boa vista da região ao
redor, os falcões-lanceiros fornecendo uma vigilância constante e os lobos
mantidos em alcateias compactas no perímetro. Mas ainda assim as colinas
permaneceram silenciosas. Ao cair da noite, o brilho das montanhas de fogo a
leste ficou mais intenso e lampejos ocasionais de raios cortavam a fumaça que
elas lançavam para o céu.
— Então o braço de Nishak dá a volta no mundo — observou Alturk num raro
comentário junto à fogueira, mantendo o olhar nos fogos distantes. Recentemente
ele abandonara o seu costume de comer e dormir afastado do grosso da
companhia, e sua cabeça estava mais uma vez raspada. O desprezo que alguns
dos Senthar ainda sentiam era evidente, mas outros mostravam que haviam
voltado a respeitá-lo com relutância.
Ao olhar para a companhia, Vaelin notou como eles estavam misturados
agora, guardas e lonaks sentados lado a lado com naturalidade, os dotados entre
eles, seus gatos abocanhando os restos que lhes eram jogados pelos guerreiros. O
gelo é uma forja, concluiu, lembrando-se de dias distantes que passara
observando Mestre Jestin na bigorna, as três hastes de uma espada que ainda não
tomara forma derretendo sob o martelo incessante. Ele nos transforma em algo
novo à força.
— Você realmente ouviu a voz dele? — perguntou Dahrena.
Alturk baixou os olhos, pouco à vontade, embora parecesse não haver raiva
nele, somente uma lembrança de remorso.
— Ouvi, um som que só podia ter saído da boca de um deus.
— A Caverna das Brumas — disse Kiral. — A Mahlessa me disse que só mais
uma pessoa além dela já havia visto o local.
— Foi a Mahlessa que me guiou até lá. Apesar de o meu porrete e a minha
faca terem feito de mim o Tahlessa dos Falcões Cinzentos, marido de seis esposas
e pai de um belo filho, eu ainda era um jovem que sonhava com a grandeza,
uma grandeza que eu achava que encontraria na Caverna das Brumas, onde
dizem que as vozes dos deuses ainda ecoam. Então fui até a Montanha e pedi que
a Mahlessa me orientasse. Não tive permissão de ficar em sua presença, pois
nenhum homem é digno, mas ela me deu uma guia e nos enviou com palavras
que eu pensei serem uma bênção, mas que mais tarde soube que eram um aviso.
“Só há verdades a serem ouvidas dos deuses.”
Alturk fez uma pausa e olhou para Kiral com um leve sorriso nos lábios.
— Minha guia era uma mulher de aspecto sombrio que raramente falava, a
não ser para insultar, chamando-me de tolo e fanfarrão, e filho de uma mãe que
sem dúvida havia aberto as pernas para um macaco. Se ela não fosse uma Serva
da Montanha, eu a teria jogado do penhasco mais alto, como ela bem sabia.
— Você teria tentado — afirmou Kiral numa voz firme.
— Sua mãe de sangue foi a mulher de língua mais afiada que já conheci —
retorquiu Alturk. — E eu me casei com as seis piores cadelas das montanhas.
— E a queria como sétima. — Kiral retribuiu o sorriso. — Só que ela tinha
bom senso.
Alturk grunhiu e acenou com a mão para deixar o assunto de lado.
— Seja como for, ela me guiou até uma caverna, uma pequena fenda na
encosta de uma montanha igual às outras. “Você vai morrer aí dentro, filho de
macaco”, ela me disse, e então partiu sem falar mais nada. Eu podia sentir o
calor que vinha da caverna e sabia que o que me esperava lá dentro seria o
maior dos testes. Mas eu queria muito ouvir a voz de Nishak. Eu sabia que ele
tinha coisas importantes para me contar.
“A princípio o negrume foi total, a minha tocha a única luz enquanto eu descia
cada vez mais. Às vezes as paredes da caverna desapareciam e me deixavam
agachado numa saliência estreita cercado pelo vazio, sem saber se um único
tropeço me lançaria para a morte. Então cheguei à ponte, na verdade um arco
estreito de rocha sobre um grande abismo, com uma torrente furiosa de água que
caía como uma cortina a meio caminho dali. Do outro lado só havia a escuridão.
O teste era claro. Se eu seguisse em frente, a minha tocha se apagaria na torrente
e talvez eu jamais encontrasse o caminho de volta. Os deuses são sábios em seus
testes e escolhem somente aqueles merecedores de suas vozes, pois um covarde
teria dado meia-volta e ido embora.”
Alturk fez uma pausa e uma risada baixa deixou seus lábios.
— E somente um tolo teria ido em frente. E eu fui.
“A ponte era escorregadia, a água congelante e tudo ficou escuro quando ela
apagou a minha tocha. Eu me joguei de bruços no chão e me arrastei, tateando
em frente até que a ponte estreita se tornou uma rocha larga, e adiante havia um
brilho muito tênue, fazendo com que eu seguisse em frente. A luz aumentou à
medida que me aproximei, as paredes da grande caverna em que eu entrara
emitiam um brilho esverdeado e no centro havia um lago de água agitada, que
borbulhava sem cessar e soltava uma bruma fina. A princípio achei o cheiro dele
desagradável e pensei que ficaria enjoado, mas o odor desapareceu quando me
aproximei do lago, tão perto quanto eu ousava, pois o calor era intenso… E eu
ouvi, a princípio baixa, como um tremor na terra, mas foi crescendo, ficando
mais nítida e mais forte até eu sentir que meus ouvidos poderiam explodir.
“Eu soube então que era um tolo, um inseto rastejando aos pés de um gigante,
pois o que tal voz teria a dizer a um ser insignificante como eu? Mas… ele falou.
‘Sabe quem está falando com você?’, ele me perguntou, e em meio ao meu
medo eu balbuciei o seu nome. ‘Sim’, disse ele. ‘Eu, que dei o presente do fogo a
toda a humanidade. Eu, que salvei vocês da escuridão total. Eu, que lhes forneci
calor para todo o sempre. Pois sou o mais generoso dos deuses, e ainda assim
vocês sempre pedem mais’.
“Eu teria fugido se não tivesse perdido a força nas pernas, que me deixaram
rastejando no chão da caverna como o inseto que eu sabia que era. Eu implorei a
ele, como um merim her capturado diante da faca justa, implorei e chorei e me
borrei de medo. Porém, Nishak não conhece a pena nem a raiva, ele é generoso,
mas o seu presente pode arder assim como ajudar, pois a verdade é uma chama
que queima fundo. ‘Eu sei por que você veio, Tahlessa dos Falcões Cinzentos’, ele
me disse. ‘Sua mente é muito fácil de ler. Tanta raiva, tanta ambição, e o que é
isto? Um filho que você imagina ser digno de um grande futuro, um filho que
você acredita que liderará os lonaks contra os merim her. Olhe com mais
atenção, veja mais’.
“E em meio às brumas da memória eu vi: a crueldade do garoto com todos a
sua volta, a vez em que o encontrei com um filhote estrangulado, o garoto mais
velho que caíra para a morte quando escalaram juntos, as mentiras às quais não
dei ouvidos quando ele me falou de um acidente, uma mão que escorregara e
que levara a um pescoço quebrado. Eu vi tudo.”
Alturk abaixou a cabeça, envergonhado, o rosto marcado tão tomado pelo
pesar que até mesmo Kiral pareceu pouco à vontade, estremecendo e desviando
o olhar.
— Em vez de aceitar essa dádiva — prosseguiu Alturk —, eu gritei com
Nishak, encontrando forças para me levantar. “Há grandeza no meu filho!”,
gritei. “Ele empurrará os merim her para o mar.” E Nishak soltou uma
gargalhada longa e alta. “Pense nisso quando o matar”, disse ele. “Agora, vá.”
“Um silêncio se abateu sobre o lugar, exceto pelo barulho da água. Eu me
demorei mais um pouco e gritei para que Nishak voltasse e retirasse as suas
mentiras, mas ele não tinha mais palavras para um inseto tão ingrato. Encontrei
outra passagem para fora da caverna, estreita e sinuosa, mas também iluminada
pelo mesmo brilho esverdeado. Depois de horas incontáveis saí mais uma vez
para o mundo acima, que agora parecia muito frio.”
Alturk calou-se e olhou para os fogos distantes com os olhos de um homem
cansado que logo se depararia com o crepúsculo de sua vida. Ele não se virou
quando tornou a falar, embora fosse óbvio a quem estava fazendo a pergunta.
— Aquela coisa da qual você foi livrada pela Mahlessa. Ela o encontrou ou
ele a encontrou?
— Os Senthar já haviam renascido antes de eu ser… tomada — disse Kiral.
— Seu filho foi um dos que os trouxeram de volta à ativa, encontrando outros que
pensavam de forma similar, sedentos de sangue e procurando justificar a sua
crueldade. Ele odiava a Mahlessa por sua desgraça e dizia que poderia ter
matado o maior dos merim her se não fosse pela fraqueza dela, pois ela era
velha e corrompida pelas eras. Mas eles eram poucos e seus planos caóticos, pois
compartilhavam da mesma loucura. Os Senthar precisavam de liderança para
levar a sua missão a cabo, e a encontraram em mim. — Ela estremeceu e um
tom de desculpas transpareceu em sua voz. — Você teria que matá-lo de
qualquer forma, Tahlessa. Só há verdades a serem ouvidas dos deuses.

Ele foi despertado por um dos lobos, um macho grande com uma língua
insistente e um hálito fedorento. O animal saltou para trás quando Vaelin acordou
de repente de adaga em punho, inclinando a cabeça para ele com curiosidade e
soltando um ganido impaciente.
— O que é?
Dahrena gemeu ao seu lado, o rosto pálido e os olhos sem brilho sob as peles.
— Acho que alguém finalmente veio nos receber — comentou ele, pegando
as botas.
Astorek, Kiral e Urso Sábio aguardavam no sopé da encosta sul, uma fileira
de lobos espalhada diante deles e um aglomerado de falcões-lanceiros no céu.
— Quantos? — perguntou Vaelin, indo para o lado de Kiral.
— Apenas um.
Vaelin olhou para longe e discerniu uma figura solitária, encapuzada e de
manto, caminhando na direção deles sem aparentar alarme com a nuvem de
falcões-lanceiros que desceu para circundá-lo na altura da cabeça. Vaelin
avançou para recebê-lo quando o homem parou antes da fileira de lobos. Tinha
altura mediana, era largo, mas não musculoso demais, e jogou o capuz para trás
revelando um rosto esguio, mas bastante enrugado, e olhos que indicavam uma
experiência que Vaelin agora sabia ser vasta.
— Ah — disse Erlin. — Imaginei que pudesse ser você.
CAPÍTULO SEIS
Reva

Ela despertou com dor, uma dor lancinante na mão direita, que afastou a
escuridão com uma agonia pulsante e persistente. Reva gemeu e sacudiu a mão,
mas a dor aumentou em vez de diminuir. Ela se contraiu ao abrir os olhos, a luz
do sol enviando um raio incandescente para o seu cérebro. Durante algum tempo
tudo o que pôde ver foi um borrão levemente amarelado, seus ouvidos assaltados
constantemente por um silvo estrondoso. Forçando-se a piscar, Reva conseguiu
fazer a visão entrar em foco, e o borrão transformou-se numa praia, o estrondo
vindo das ondas que lhe atingiam e a dor na mão direita causada por um pequeno
caranguejo vermelho que tentava comer o seu polegar.
Ela apertou as garras do animal com a ponta dos dedos e o soltou, jogando-o
para as ondas, rangendo os dentes ao sentir a pontada causada pelo sal na ferida,
mas se viu estranhamente grata pela sensação: aquilo confirmava que, para a sua
surpresa, estava viva. Mal capaz de se mover e prostrada numa praia enquanto
ondas a açoitavam, mas inegavelmente viva.
Por quê?, perguntou ela ao Pai, mais curiosa do que brava. Você não pode
achar que mereço viver. Não pode recompensar alguém cuja mentira matou
tantos.
A voz foi tão inesperada e chocante pelo volume que por um instante Reva
achou que o Pai havia de fato se dignado a responder. Seu coração se acalmou
quando percebeu que a voz gritava palavras que ela não compreendia, e sua
visão ainda embaçada encontrou quem falara, uma forma imensa de preto que
atravessava a água em sua direção. Os detalhes de sua vestimenta ficaram mais
nítidos conforme ele se aproximou, um colete de couro preto, um medalhão
prateado em volta do pescoço e um chicote enfiado no cinto.
Capataz.
Reva o deixou agarrar o seu cabelo e tirá-la da água, mantendo as feições
relaxadas como se não compreendesse o que estava acontecendo quando ele
aproximou o rosto bruto e a olhou de cima a baixo, avaliando-a. O homem gritou
por sobre o ombro para um companheiro invisível, confirmando que não estava
sozinho. Reva manteve os olhos semicerrados quando ele a arrastou para fora do
mar e contou mais seis formas de pé na praia e muitas outras prostradas e
imóveis.
O capataz a jogou na areia, onde ela se forçou a permanecer mole e imóvel,
respirando fundo, mas de maneira discreta, reunindo forças. Eles cometeram o
erro de esperar vários minutos antes de voltarem para examinar o que haviam
apanhado, e o capataz que a encontrara a virou de barriga para cima quando os
companheiros se aproximaram. Reva contou dois com lanças quando sua cabeça
pendeu para um lado, os outros com espadas curtas. O capataz ergueu a blusa
dela, revelando seus seios e fazendo uma pergunta aos companheiros. Houve
alguns murmúrios de concordância, e um deles acrescentou algo com uma
gargalhada de apreciação.
— Meu amigo… gostar você — disse o capataz com dificuldade na língua do
Reino, agarrando o rosto dela e virando-o para que Reva pudesse ver o seu olhar
malicioso. — Quer… foder você. Pode abaixar o preço… Mas devo a ele.
Você… querer fodida, coisa linda?
Na verdade foi o sorriso que o matou, não tanto o golpe, pois o fez franzir a
testa, confuso, diante da expressão receptiva e lasciva de Reva, e ele recuou,
surpreso, o suficiente para expor a garganta. Vaelin a havia ensinado o golpe; as
lições do sacerdote sobre combate desarmado nunca foram tão meticulosas, nem
tão eficazes na prática. Os dedos rígidos de Reva atingiram o pescoço do capataz
com força suficiente para esmagar a sua laringe, deixando-o contorcendo-se na
areia, uma espuma ensanguentada brotando da boca. Reva rolou na areia,
esquivando-se da estocada de uma lança e então agarrando a haste antes que o
dono pudesse recolhê-la para outra tentativa. Ela deu um chute no rosto do
homem, derrubando-o, então se levantou de lança em punho.
Reva girou quando se aproximaram, a ponta da lança cortando o lanceiro
desarmado nos olhos, outro no rosto. O segundo lanceiro a atacou com uma
estoca mal calculada, revelando um nível de habilidade mais adequado para
abusar de prisioneiros indefesos. Ela bloqueou a estocada sem dificuldade,
desviando a lança com a haste da sua e girando para bater com a extremidade
cega na nuca do homem, fazendo o pescoço se quebrar com um estalo
gratificante.
Reva os observou enquanto hesitavam, lançando olhares cautelosos para o
homem que ela cegara e que gritava enquanto o sangue escorria pelas mãos que
levara ao rosto.
— Vamos! — sussurrou ela enquanto os homens trocavam olhares incertos.
— Vocês não podem achar que mereço viver.
Uma corneta soou em algum lugar perto e os olhos de Reva avistaram um
grupo de cavaleiros subindo as dunas a algumas centenas de metros de distância.
Ela se virou e viu mais cavaleiros se aproximando pela extremidade norte da
praia. Qualquer ideia de que logo pudesse ser resgatada desapareceu diante do
alívio evidente dos traficantes de escravos.
O cavaleiro que vinha à frente parou ao lado do corpo do capataz de laringe
esmagada. Os cavaleiros eram diferentes dos volarianos que Reva havia visto,
trajados em peitorais e grevas vermelhos. Teria achado que eram Kuritai se não
fosse pelo divertimento explícito no rosto do líder ao olhar para o corpo do
capataz, divertimento esse compartilhado pelos cerca de trinta cavaleiros às suas
costas.
Os traficantes saudaram o homem de armadura vermelha com vozes
ultrajadas, subitamente menos intimidados, agora que havia outros olhos para
presenciar a cena. O cavaleiro os ignorou e voltou o olhar para Reva, sorrindo
ainda mais. Ele ergueu a mão para calar os traficantes e lhes fez uma pergunta,
erguendo as sobrancelhas ao ouvir a resposta, o traficante com o rosto cortado
tentando estancar o sangue com um trapo enquanto gesticulava para ela, a voz
estridente de fúria.
No entanto, o homem de armadura vermelha parecia não ter se abalado com
as súplicas deles, inclinando-se na sela e indicando Reva com a cabeça ao dar
uma ordem brusca. A confiança dos traficantes diminuiu visivelmente ao
ouvirem as palavras do homem e eles lançaram olhares cautelosos na direção
dela, remexendo-se, inseguros. O cavaleiro tornou a falar e disse só uma palavra,
fazendo com que todos os outros cavaleiros desembainhassem as espadas com
velocidade e fluidez idênticas. O líder apontou a própria espada para os
traficantes e depois para Reva, repetindo a primeira ordem com lenta
determinação.
Os traficantes, agora de rosto lívido e encolhendo-se para longe das muitas
lâminas que os cercavam, começaram a avançar devagar e agachados na
direção de Reva. Ela não viu muito sentido em prolongar o encontro; escolheu o
mais alto deles e arremessou a lança no meio de seu peito, então correu para a
frente, rolando sob os golpes frenéticos dos outros e pegando a espada do morto.
Depois disso, os outros não ofereceram mais desafio do que um treinamento
leve.

***

Agachada em suas correntes na traseira de um carroção enjaulado, com dois dos


volarianos de armadura vermelha de guarda por perto, Reva se forçou a
observar enquanto os outros prisioneiros eram inspecionados. Ela conseguira
deixar uma cicatriz num deles na praia ao arremessar a espada contra o primeiro
que se aproximou. O homem esquivou-se com uma velocidade espantosa, mas
não antes que a lâmina rodopiante deixasse um corte longo em seu maxilar. Ela
esperara que a morte viesse em seguida, mas o homem marcado pareceu achar
o evento tão divertido quanto os seus companheiros. Eles já haviam se entretido
bastante com o modo como Reva cuidara dos traficantes, batendo as mãos nos
peitorais em apreciação quando ela matou o último, um homem magro que
tentara fugir e conseguiu apenas ser chutado de volta para enfrentá-la. Ele não
durou muito tempo.
Reva começara a correr, pretendendo saltar sobre um deles, derrubá-lo da
sela e fugir a cavalo, mas logo se viu de rosto no chão com a boca cheia de areia
e uma corda apertando suas pernas. Ela se debateu e tentou se libertar, mas outra
corda foi passada em volta de seus pulsos. O cavaleiro que falara com os
traficantes de escravos desmontou e agachou-se ao seu lado enquanto ela se
debatia, sorrindo calorosamente ao passar uma das mãos pelo rosto de Reva,
falando uma única palavra em volariano:
— Garisai.
Eles a prenderam dos pés à cabeça, acabando com qualquer ideia de fuga, e
a colocaram em cima de um cavalo para ser levada por alguns quilômetros até
aquele acampamento. Foram recebidos por mais traficantes de escravos sob o
comando de um capataz que se comportava de forma estranhamente intimidada
na presença dos homens de armadura vermelha, mantendo a cabeça baixa
enquanto o líder dava instruções bruscas. Reva foi deixada aos cuidados deles.
Ela se preparou para mais sofrimento, vendo o ódio no rosto dos traficantes
enquanto a acorrentavam, um deles segurando uma faca contra a sua garganta,
dois outros com lanças a menos de um centímetro de seu peito enquanto os
grilhões se fechavam. Entretanto, quaisquer que fossem as ideias de vingança
que tivessem, parecia que as ordens que haviam recebido proibiam quaisquer
maus tratos mais severos do que alguns empurrões ao ser levada para o carroção
enjaulado. Contudo, ao passar os olhos pelo novo ambiente, ficou claro que ela
não seria poupada de todas as formas de tormento.
Reva teve de fazer força contra as correntes e esticar o pescoço para ver,
mas com esforço suficiente pôde testemunhar o espetáculo dos outros
prisioneiros sendo trazidos para o acampamento e sendo alvos das atenções dos
traficantes. A ordem de não a ferir evidentemente não se estendia às outras
presas conseguidas na praia. O primeiro era um arqueiro, a julgar pela largura
dos ombros, que caiu de joelhos diante do capataz, que se curvou para ver um
ferimento profundo no peito do homem antes de recusar com um aceno de mão.
Outro traficante se aproximou com uma adaga curva em punho e cortou a
garganta do arqueiro antes que Reva pudesse pensar em gritar em protesto.
Ela se recusou a desviar os olhos quando mais foram trazidos, embora o seu
corpo doesse com o esforço. Eram na maioria cumbraelinos, com alguns
Guardas do Reino, e todos eram mortos ou poupados dependendo de seus
ferimentos. A tempestade evidentemente havia causado danos consideráveis, pois
parecia que mais eram descartados do que poupados. Ela resistiu à leve
esperança nutrida pelo fato de que nem Antesh, nem Arentes estavam entre os
prisioneiros. Perdidos no mar ou mortos na praia, que diferença faz? Eu matei
todos eles, de qualquer forma.
A última prisioneira provou ser a tortura mais difícil de suportar, uma figura
esguia de cabelo curto, andando empertigada apesar dos grilhões, recusando-se a
ser intimidada pelos homens que se assomavam sobre ela.
— Lehra! — gritou Reva, batendo com as correntes nas barras da jaula. Um
traficante enfiou a haste da lança por entre as barras para empurrá-la para trás e
então se afastou ao ver o olhar furioso de um dos homens de vermelho. Reva
esticou-se para ver Lehra de novo e encontrou a Filha Marcada de pé com um
sorriso ao contemplar a Senhora Abençoada, os olhos brilhando com uma
reverência inabalada.
— Eu sabia que o Pai a havia poupado, minha senhora! — gritou ela, a voz
animada e jubilante.
O capataz grunhiu uma praga e ergueu a mão para esbofetear o rosto da
garota. Lehra não se desviou do golpe, preferindo inclinar a cabeça e abrir bem a
boca quando a mão do traficante bateu em seu rosto, quando então mordeu com
força. O capataz soltou um grito afeminado enquanto tentava se soltar, mas
Lehra o segurou mesmo quando os outros traficantes a atacaram com chicotes e
bordões, sacudindo a cabeça como um cão e rasgando a carne, parando somente
quando uma lança foi cravada em suas costas, prendendo-a na areia.
Reva ouviu uma mulher gritar em algum lugar e sentiu um baque forte na
testa e um filete de sangue quente escorrer pelo rosto. Uma voz volariana gritou
com ela e Reva sentiu mãos ásperas a afastando das barras agora
ensanguentadas onde havia batido com sua cabeça. Ouviu os gritos da mulher
cessarem e sentiu algo na garganta lhe embargar a voz. Ela se viu encarando o
rosto do homem de armadura vermelha da praia, o que parecia liderar os outros.
O sorriso dele havia desaparecido e ele a fitava com uma expressão levemente
intrigada, a cabeça inclinada como a de um gato olhando para algo novo e
brilhante.
O rosto do homem ficou turvo e Reva sabia que a fadiga, a dor e o desespero
estavam conspirando para deixá-la inconsciente. Ela encontrou ódio suficiente
para se manter acordada por mais um momento.
— Eu sou a elverah — disse ela ao homem de vermelho com voz rouca. —
Matei mais de vocês do que consigo contar e ainda estou longe de terminar.

Ela despertou e viu que não estava mais sozinha na jaula. O rosto do homem
caído diante dela estava oculto por uma cabeleira loura, balançando com o
movimento do carroção. Reva podia ver que ele era alto e acostumado a
trabalhar ou a guerrear, a julgar pela força evidente nas mãos fortes e cobertas
de cicatrizes apoiadas nos joelhos, os grilhões apertados em seus pulsos
musculosos. Reva suspirou e ponderou, não pela primeira vez, sobre a quantidade
inesgotável de provações do Pai para uma alma pecaminosa.
— Acorde, meu senhor — disse ela, esticando a perna para cutucar o pé
descalço do homem. Assim como as dela, as botas do homem também haviam
sido retiradas.
O homem louro se mexeu, mas não acordou, soltando apenas um leve
gemido. Reva o chutou de novo, mais forte.
— Meu senhor Escudo!
Ele ergueu a cabeça de repente com um grito, os olhos azuis arregalados e
alarmados e, Reva notou para o seu espanto, consideravelmente assustados. O
pânico dele desapareceu ao vê-la, embora ao olhar ao redor ele mal tenha
conseguido esconder um gemido desesperado.
— Sonhei que tinha morrido — murmurou ele, abaixando a cabeça. — Foi
um sonho bom.
— Eles o capturaram na praia? — perguntou Reva.
Ele assentiu.
— Cerca de uma dúzia de nós. Consegui me segurar em alguns destroços na
tempestade com alguns outros. Nadamos para a praia assim que amanheceu.
Estávamos indo para o norte, na direção do local do desembarque, quando eles
apareceram.
— Os traficantes de escravos?
— Não, os outros. — O Escudo cerrou os punhos e suas correntes retiniram
um pouco.
— Os homens de armadura vermelha?
— Não tínhamos armas. Nada com que lutar. — O Escudo soltou um estranho
som gutural e Reva percebeu que ele estava rindo. — Então eles nos deram
espadas. Cada um de nós recebeu uma espada de nossos inimigos. Lutei com
todas as minhas forças… mas não consegui salvá-los. Quando acabou, eles
mataram os feridos e me levaram, o único que restou, cansado demais até
mesmo para ficar de pé. Pareceram se… entreter comigo.
— Garisai — murmurou Reva.
O Escudo ergueu a cabeça de novo, um brilho súbito no olhar.
— O quê?
— Um deles me chamou assim quando me capturaram. Sabe o que significa?
Ele se recostou e algum vestígio de seu antigo humor apareceu no movimento
sardônico das sobrancelhas.
— Sim. Significa que teríamos tido sorte se tivessem nos matado.

Os dias seguintes no carroção foram tomados de uma monotonia terrível. Eles


nunca eram retirados da jaula; a comida, que consistia em duas tigelas de papa
por dia e dois copos de água, era empurrada para dentro por uma fenda na
lateral de ferro do carroção. Não lhes deram talheres, de modo que eram
obrigados a comer com os dedos. Receberam um balde para os excrementos,
esvaziado sempre que paravam através de um esforço colaborativo de escorrê-lo
por entre as barras. Aprenderam a esperar até o traficante que conduzia o
carroção descer do banco, uma vez que ele se deleitava em fazer os bois
avançarem um ou dois passos para banhá-los na própria sujeira.
— Flores rubras — observou o Escudo na manhã do décimo dia, olhando para
os campos de flores escarlates pelos quais passavam. — Talvez estejamos a uns
sessenta quilômetros de Volar.
— Conhece este país? — perguntou Reva.
— Vim aqui quando era um marinheiro novo, há muitos anos. Num navio
mercante, antes que eu descobrisse a sensatez e o lucro de uma vida de pirataria.
Os volarianos cultivam as melhores flores rubras, e sempre rende um bom
dinheiro, se conseguir aguentar os costumes deles por tempo suficiente para
fechar negócio.
— Seu ódio surgiu antes da guerra, então?
— Ódio? Não, meramente uma vaga aversão hoje em dia. Meu povo é
repleto de defeitos, eu sei, mas a escravidão nunca foi um deles. Qualquer
capitão meldeneano que fosse descoberto transportando escravos logo se veria
desprezado e sem navio.
Reva ergueu a cabeça ao sentir o carroção diminuir de velocidade, e o seu
olhar foi atraído para o condutor, que encarava algo adiante. Levou um momento
para avistar o objeto de interesse dele, um poste alto colocado à beira da estrada,
encimado por uma viga, lembrando uma forca. Havia algo tão desfigurado
pendurado na viga que Reva levou um momento para reconhecer como um
cadáver. As pernas estavam enegrecidas e carbonizadas, restando apenas tocos, a
cavidade da barriga aberta e vazia, e a cabeça… O rosto provavelmente era de
um homem, transformado numa máscara de couro rachada e de idade incerta
pela decomposição, mas os dentes estavam arreganhados num grito paralisado,
evidência da agonia com que aquele homem morrera.
O condutor murmurou algo consigo mesmo, desviou o olhar da cena e estalou
as rédeas para fazer os bois seguirem num passo mais acelerado.
— As três mortes — traduziu o Escudo. — Primeiro um veneno agonizante,
depois a queima, terminando com a evisceração. Punição volariana tradicional
para traição, embora há muitos anos não fosse usada.
Reva ergueu os olhos quando avistaram outro poste, o cadáver pendurado
alvo de um abuso similar, embora desta vez os olhos tivessem sido arrancados.
Ela perguntou a Ell-Nestra se aquilo possuía algum significado, mas ele apenas
encolheu os ombros.
— Apenas que alguém gosta do que faz, imagino.
Ao anoitecer, eles haviam contado mais de cem postes, dez para cada
quilômetro percorrido.

Avistaram Volar na manhã seguinte. Reva agachou-se numa posição que forçava
as suas costas, para ter uma visão melhor, quando chegaram ao alto de uma
colina a cerca de um quilômetro e meio da capital imperial. A estrada, ladeada
por mais postes de cadáveres, tornava-se uma linha reta no sopé da colina,
atraindo a atenção para os bairros residenciais a oeste, que consistiam em fileiras
arborizadas de casas de um ou dois andares. Volar parecia não possuir muralhas
ou fortificações defensivas, e o Escudo explicou que elas haviam sido engolidas
pelo crescimento da cidade séculos antes.
— A maior cidade do mundo, ou é o que dizem — disse a Reva. — Se bem
que ouvi que há algumas no Extremo Ocidente que também poderiam
reivindicar o título.
A altura das construções aumentava à medida que se embrenhavam mais em
Volar, e habitações luxuosas e espaçadas davam lugar a ruas e prédios estreitos.
Avenidas labirínticas estendiam-se para longe da estrada, lembrando Reva dos
distritos menos salubres de Varinshold, que agora obviamente haviam sido
destruídos.
— Ela queria incendiar tudo isto — disse o Escudo em voz baixa, franzindo o
cenho ao olhar para as ruas por onde passavam. — E eu a teria ajudado a
segurar a tocha.
Os pensamentos de Reva voltaram-se para Lehra, como passara a ser
comum durante aquela viagem terrível. Ela fora uma das combatentes livres que
vieram da região de florestas ao sul de Alltor, líder de um grupo de outras doze
garotas, todas tendo se libertado sozinhas das garras dos traficantes de escravos,
cobertas de sangue e sedentas por mais. Reva lembrava-se de como haviam se
reunido em volta dela, caindo de joelhos numa atitude espontânea de respeito; a
história da Senhora Abençoada já havia se espalhado e vê-la em carne e osso
pareceu a confirmação de uma lenda estimada, um sinal de que os seus
sofrimentos não haviam sido em vão. A adoração nos olhos de Lehra naquele dia
não fora menos intensa do que no momento em que morreu. A voz dela era tão
cheia de alegria… Ela morreu acreditando na minha mentira.
— Só preciso de uma mínima chance — sussurrou ela ao Escudo. — Só uma
chance de me libertar e botarei fogo neste lugar.
Ele se curvou de novo, a voz baixa e amargurada:
— Era o sonho de uma louca, minha senhora. E ela nos deixou loucos ao
compartilhá-lo. Olhe para este lugar. Como pudemos pensar em destruir um
império capaz de erguer uma cidade como esta?
— Derrotamos um exército que deveria ter nos derrotado — observou Reva.
— As cidades deles podem ser resistentes, mas eles são fracos, suas almas
enegrecidas e maculadas por eras de crueldade.
O Escudo ergueu os pulsos e sacudiu as correntes.
— E, ainda assim, aqui estamos. Trazidos até aqui para morrermos para o
divertimento deles.
— “O desespero é um pecado contra o amor do Pai, pois é somente
indulgência, enquanto a esperança é uma virtude da alma mais forte”.
— Esse é qual?
— O Terceiro Livro, o Livro da Luta, Versículo Três, Provações dos Profetas.
— Reva percebeu que o Livro da Razão não estivera em seus pensamentos desde
que fora capturada. E por que estaria? A razão não me servirá de nada aqui.

Os volarianos pareciam gostar muito de estátuas, guerreiros de bronze em sua


maioria, erguidos em meio às fontes jorrantes e aos parques impecáveis que os
receberam assim que deixaram a aglomeração dos arredores. Contudo, a
característica mais notável da região interna da cidade eram as torres, grandes
estruturas de mármore de simetria angular que se erguiam por todos os lados.
Estranhamente, aquele distrito parecia bastante vazio, com exceção das figuras
curvadas dos escravos que cuidavam dos parques ou esfregavam os excrementos
dos pássaros das estátuas. Reva supôs que a ausência de cidadãos podia ser
explicada pelos corpos que pendiam das torres às dezenas. Alguns evidentemente
haviam sido pendurados enquanto ainda estavam vivos, a julgar pelas manchas
marrom-avermelhadas que adornavam as paredes altas.
— A Imperatriz deles parece estar determinada a causar uma impressão —
observou o Escudo.
O carroção parou diante da maior estrutura que haviam visto até então, uma
maravilha alta e ovalada de mármore vermelho e dourado. Chegava a mais de
vinte metros de altura, construída em cinco níveis e distintamente diferente das
outras obras arquitetônicas que Reva já vira. Havia poucas evidências ali da
preferência dos volarianos por ângulos retos, os níveis construídos a partir de
arcos elegantes e colunas levemente curvadas que lembravam a haste de uma
taça de vinho.
— A grande arena de Volar, minha senhora — disse Ell-Nestra. — Aproveite
a vista. É improvável que vejamos outra.
Um círculo compacto de homens de armadura vermelha cercou o carroção
quando o condutor destrancou a jaula, recuando bastante e ordenando que
saíssem com uma impaciência quase frenética. Reva concluiu pela expressão
receosa do homem e pelo suor que deixava o seu rosto lustroso que ele estava
ansioso para se afastar dos guardas. Ela desceu com dificuldade, as pernas e as
costas doendo a cada movimento. Reva tentara flexionar os músculos durante a
viagem, mas um confinamento prolongado enfraqueceria até mesmo o mais
forte dos corpos. O Escudo grunhiu ao descer e caiu de joelhos com os dentes
cerrados.
— De pé. — Não havia raiva ou ameaça na voz, as palavras ditas na língua
do Reino sem sotaque. Reva ergueu os olhos para um homem de talvez quarenta
anos que trajava um manto preto liso, o cabelo escuro, ficando grisalho nas
têmporas, preso para trás, expondo uma testa lisa e um rosto magro e
inexpressivo.
O Escudo olhou para o homem vestido de preto, estreitando os olhos ao sol.
— Não vejo um chicote com você — disse ele.
— Não preciso de um — retorquiu o homem. — Vocês me obedecem ou
morrem.
Ell-Nestra indicou com a cabeça a arena atrás deles.
— Aqui ou lá, que diferença faz?
— Lá você tem uma chance de viver, pelo menos por algum tempo. — Os
olhos do homem de preto se voltaram para Reva, estreitando-se enquanto a
avaliava. Seu olhar era intenso, mas ela não viu desejo algum nele e, notou com
surpresa, nenhum traço de crueldade. — Eu me chamo Varulek Tovrin — disse o
homem a ela. — Mestre da Grande Arena Volariana e Capataz dos Garisai, pelo
consentimento benevolente da Imperatriz Elverah.
Ele se virou e fez sinal para dois guardas de armadura vermelha, e Reva
notou a quantidade de tatuagens que cobriam as suas mãos das pontas dos dedos
aos pulsos. Eram de formatos desconhecidos, muito mais densas e intrincadas do
que as usadas pela lonak da Rainha, e ela só podia imaginar as horas e a dor
suportadas para gravar uma teia tão complexa em sua carne. O volariano
percebeu o escrutínio de Reva e sua expressão transformou-se em algo
totalmente inesperado: solidariedade.
— Ela deseja vê-la.

O frio cortante do vento aumentava com cada balanço ritmado das cordas da
gôndola, os cem escravos abaixo se movendo com uma uniformidade bem-
treinada enquanto a erguiam até o topo da torre. Reva estava ladeada por dois dos
homens de armadura vermelha, mas eles pareciam dispostos a deixar que ela se
virasse para os lados e admirasse a vista, a majestade da cidade exibida em sua
plenitude, uma verdadeira maravilha que fazia com que Alltor e Varinshold
parecessem apenas um amontoado grosseiro de casebres mirrados.
Ao contemplar a perfeita regularidade do lugar que se estendia à sua frente,
Reva foi forçada a admitir que era o exemplo mais impressionante de
criatividade humana que veria na vida; cada rua, parque, avenida e torre
dispostos de acordo com regras precisas de forma e função, onde quase não se
viam curvas. Porém, os pequenos pontos escuros que cobriam as laterais lisas de
cada torre à vista contavam uma história diferente. Volar era uma mentira, uma
fachada de precisão e beleza que encobria uma verdade abominável.
A gôndola parou num terraço a mais ou menos seis metros do pináculo da
torre. Uma escrava de beleza estonteante cumprimentou Reva com uma mesura
formal e virou-se para conduzi-la para dentro, seguida de perto pelos guardas. O
interior era iluminado de forma tênue por algumas lamparinas de óleo
espalhadas; cortinas de seda de várias tonalidades cobriam as janelas e pintavam
o lugar com uma mistura colorida que oscilava conforme o vento soprava ao
redor da torre. Apesar da penumbra e da confusão de cores, Reva levou apenas
um momento para encontrar a Imperatriz, seus olhos há muito acostumados a
procurar a maior ameaça em qualquer aposento.
A mulher estava sentada num banco diante de uma mesa baixa, trajando um
vestido branco simples, os pés descalços no chão de mármore, os dedos apoiados
e os calcanhares erguidos, como uma dançarina. Numa das mãos ela segurava
um pedaço de tecido preso a algum tipo de armação circular, e com a outra
usava uma agulha e linha. Seu rosto estava envolto em sombras, o perfil elegante
numa concentração intensa enquanto as mãos passavam a linha pelo tecido. Os
olhos de Reva encontraram uma dúzia ou mais de armações espalhadas pelo
chão, cada uma adornada com uma grande quantidade de pontos irregulares e
desajeitados. Alguns tecidos estavam rasgados e a armação em volta deles
quebrada. Reva perguntou-se por que a escrava não as recolhera.
— Você tem usado o meu nome — disse a mulher que costurava.
Reva nada disse. Ao ouvir uma lamúria abafada da escrava, ela se virou e
encontrou o rosto da garota tenso com um aviso e lágrimas que mal conseguia
conter. Ela sacudiu a cabeça de modo quase imperceptível, os olhos brilhantes
com uma súplica silenciosa. Não encontrarei misericórdia aqui, de qualquer
forma, Reva quis lhe dizer. Mas obrigada pela sua preocupação.
— Então, Lieza gostou de você.
Reva virou-se e viu que a mulher agora se dirigia diretamente a ela. Suas
mãos estavam envoltas pelo tecido, uma mancha brilhante de sangue
espalhando-se da agulha fincada em seu dedo. Ela não demonstrava qualquer
sinal de sentir a agulha e sorriu para Reva com uma cordialidade aparentemente
genuína ao se levantar e aproximar-se.
— Posso sentir a estima muito profunda dela — disse a Imperatriz, parando
pouco além do alcance das correntes de Reva. A mulher era alguns centímetros
mais alta do que ela, o corpo delineado e atlético. Parecia ter pouco mais de vinte
anos, mas bastou olhar em seus olhos para Reva saber que estava na presença de
algo muito mais antigo. Algo, sabia ela com uma certeza terrível, que possuía um
dom que Vaelin perdera em Alltor. — Mas será que é recíproca? — A mulher
inclinou a cabeça, fechando os olhos como se escutasse algo, o sorriso ficando
mais leve, melancólico. — Ah. Lamento, querida Lieza, mas o coração dela
pertence a outra. Mas ela sente um leve desejo por você, se servir de consolo. O
amor pode dominar os nossos corações, mas o desejo sempre dominará os
nossos corpos. É o traidor que espreita em cada alma. — A mulher abriu os olhos
de novo e o sorriso desapareceu ao franzir o cenho de repente, confusa. — Eu
disse isso? Ou li em algum lugar?
Ela permaneceu aparentemente perplexa por algum tempo, imóvel a não ser
por uma tensão espasmódica no rosto, os olhos indo de um lado para outro em
movimentos rápidos, a boca movendo-se num diálogo inaudível até que a
confusão desapareceu de modo tão abrupto quanto surgira.
— Bordado — disse ela, erguendo a armação com a sua obra inexperiente, e
Reva notou as múltiplas manchas marrons no material e o sangue nas pontas dos
dedos da Imperatriz. — As mulheres ricas de Mirtesk eram famosas por ele. Meu
pai achava que era a maneira mais produtiva para uma jovem de nascimento
ilustre ocupar o seu tempo. — A Imperatriz olhou para o tecido e suspirou,
frustrada. — Mas não no meu caso. Foi a primeira das muitas decepções de meu
pai. Ainda assim, estou melhorando, não acha?
Ela estendeu a armação para que Reva avaliasse. Reva discerniu entre as
manchas de sangue algumas linhas verdes e vermelhas agrupadas no que poderia
ter sido uma aproximação grosseira de uma flor.
— Um macaco cego poderia fazer melhor — disse ela.
A escrava, Lieza, soltou outro grito sufocado, piscando rapidamente ao baixar
os olhos, sem querer testemunhar o que viria a seguir.
— Ah, pare de choramingar — disse a Imperatriz a ela, revirando os olhos.
— Não se preocupe, estou certa de que o objeto da sua fascinação ainda tem
muitos dias animados pela frente. Exatamente quantos depende dela, é claro.
A Imperatriz voltou a olhar para Reva, uma nova concentração lhe
iluminando os olhos.
— Alguns de meus soldados sobreviveram a Alltor, sabia? Passaram por
penosas privações para chegar a Varinshold antes da queda. O General Mirvek,
sempre um sujeito meticuloso, compilou os relatos deles de forma diligente antes
de executá-los. Afinal, tais histórias fantásticas só perturbariam os seus homens.
Veja bem, esses homens falavam de uma bruxa em Alltor, uma bruxa que era
invencível pelo poder de seu deus, que brandia uma espada que podia cortar aço
e um arco encantado que nunca errava o alvo. Um chegou até mesmo a afirmar
que a havia encontrado e, embora estivesse meio louco, ele forneceu uma
descrição detalhada.
Reva lembrou-se do prisioneiro que haviam tirado da margem do rio na
manhã depois que o primeiro grande ataque havia sido repelido, um homem de
olhos arregalados e nervos à flor da pele. Era estranho, mas ela se viu
lamentando a morte dele. Os volarianos haviam sido monstruosos, mas aquela
alma abalada e arruinada oferecera tanta ameaça quanto um cão faminto.
— Elverah — prosseguiu a Imperatriz. — Eles roubaram o meu nome e
deram a você. Eu deveria estar brava. Sabe o significado dele?
— Bruxa — respondeu Reva. — Ou feiticeira.
— “Feiticeira” é uma palavra estúpida, sem sentido, na verdade, já que a
feitiçaria é apenas uma fábula. Encantamentos escritos em livros antigos e
misturas fedorentas que só servem para revirar o estômago. Não, sempre preferi
“bruxa”, embora o significado mude um pouco no dialeto do povo que me
chamou de Elverah. Eles conferiam autoridade àqueles com o maior poder,
independentemente da origem, quer fossem habilidades marciais, quer fosse o
que o seu povo chama de Trevas. Poder é poder, de modo que o nome Elverah
também poderia ser traduzido como “rainha”. — Ela deu uma risada baixa. —
Quando os meus soldados a chamaram de bruxa, também a estavam chamando
de rainha.
— Eu tenho uma rainha.
— Não, querida irmãzinha, você tinha uma rainha. Imagino que logo
receberá a cabeça dela, caso o meu almirante recolha o corpo do mar.
Reva lutou para conter a fúria e a incerteza que lhe brotaram no peito. Tudo o
que sente revela mais a ela, advertiu a si mesma. Não sinta nada. Contudo, foi
inútil, pois pensamentos sobre a morte da Rainha Ly rna inevitavelmente levaram
a imagens de alguém que não estivera com ela.
— Ah — disse a Imperatriz com um suspiro cansado. — E assim, mais uma
vez, ele vem para nos atormentar. — Ela encarou Reva com uma sobrancelha
erguida, a boca levemente torcida de irritação. — Ouvi dizer que ele marchou
com um exército de uma ponta a outra do seu Reino em menos de um mês
apenas para salvá-la. Fico pensando no que ele fará agora.
Não sinta nada!
Reva encheu a mente de imagens tranquilizadoras, abraçando-se
alegremente no escuro com Veliss… Ellese tropeçando nos jardins com a sua
espada de madeira… Porém, tudo desapareceu sob a luz lançada por um único
pensamento, brilhante em sua certeza: Ele virá, irá me libertar e matar você.
O rosto da Imperatriz se contorceu de novo, todo o resquício de humor
desapareceu, e quando tornou a falar a sua voz era seca, a emoção sobrepujada
pela lógica mais fria.
— Há uma cantora com ele, não? Posso ouvi-la. A canção dela é poderosa,
mas sombria. Manchada por muito sangue inocente. Mas suponho que você saiba
qual é a sensação.
Ela se aproximou, largando a estrutura com tecido e erguendo os dedos
manchados de sangue para acariciar o rosto de Reva.
— Faz mais de um século que não desfruto de uma mulher — continuou ela
na mesma voz vazia. — Uma doce garota de alguma cidade do norte, cuja
família havia passado a usar vermelho há pouco tempo. Criada em meio a
prazeres, era fascinada com extremos e deleitava-se de forma perversa com as
minhas muitas histórias de assassinato. Duvido que tenha achado o dela tão
fascinante, embora eu o tenha feito ser rápido.
Não sinta nada!
A face de Reva se contraiu com o toque da Imperatriz, provocando um
tremor traiçoeiro em seu corpo, os grilhões retesados entre os pulsos.
— Porém — disse a Imperatriz, passando a ponta de um dedo pelo queixo de
Reva —, desde o meu retorno não me sinto atraída por qualquer carne, e tudo o
que antes me dava alegria é agora apenas uma vaga lembrança. Antes eu não
compreendia a necessidade do Aliado. Mas agora se tornou clara, anos
intermináveis de consciência desprovida de sentimentos, exceto pela ânsia de que
tudo terminasse. Pior do que qualquer morte.
Sem conseguir mais suportar, Reva afastou de repente o rosto do toque da
Imperatriz, sua face ardendo como se tivesse levado um tapa.
— Você devia me matar — disse ela por entre os dentes. — Aqui e agora. Se
for sensata, não permitirá a menor chance de que eu possa me libertar destas
correntes.
Ela ouviu Lieza dar um passo involuntário para trás, respirando aterrorizada,
agora em arfadas irregulares.
— E que graça teria isso? — perguntou a Imperatriz, a voz recobrando um
pouco de expressão. — Meu povo adora tanto os seus espetáculos, e tenho certeza
de que terão muito o que gritar a você…
A Imperatriz calou-se de forma abrupta, o rosto perdendo toda a expressão ao
erguê-lo, virando-se na direção da parede oeste. Sua face foi tomada por um
espasmo de pura fúria por um segundo, as feições elegantes contraídas numa
raiva frustrada, mas então relaxando ao exalar lentamente.
— Tudo indica que tenho um almirante para executar, irmãzinha — disse ela
a Reva. — Sua Rainha agarra-se teimosamente à própria cabeça. Ainda assim,
tenho certeza de que no seu devido tempo ela proporcionará tanto divertimento
quanto você.
A Imperatriz se virou para os guardas.
— Levem a minha irmãzinha de volta a Varulek, e entreguem esta a ele
também. — Ela acenou para Lieza. — Elas devem ficar confinadas juntas.
Quero fornecer todo o conforto possível à minha nova irmã entre os espetáculos.
Digam a ele que a história de Jarvek e Livella daria uma bela introdução. O
público sempre aprecia os clássicos.
Ela se afastou, dando uma última ordem por sobre o ombro, dita de forma
afável, mas determinada:
— E digam aos capatazes nas masmorras para terminarem de preparar o
meu novo general.
CAPÍTULO SETE
Frentis

Ele levou as mãos à corda, enfiando os dedos na carne enquanto tentava segurá-
la firme o suficiente para arrebentá-la. O homem de armadura vermelha riu e
deu outro chute em sua barriga, deixando-o sem ar, a corda sufocando um grito
involuntário.
— Já chega por ora — advertiu o homem com um sorriso malicioso,
aproximando-se. — Ela não quer que você seja machucado.
Ele colocou a bota no peito de Frentis e o forçou para o chão, seus
companheiros aproximaram-se com os grilhões.
— Ela mandou lhe dizer — prosseguiu o homem com a corda, pressionando
com mais força com a bota — que você pode escolher qual dos seus amigos irá
viver. Mas apenas um.
Frentis tentou chutar o homem agachado aos seus pés, mas ele se esquivou,
agarrou os seus tornozelos e colocou um peso esmagador sobre eles. O outro já
havia segurado os seus braços e os puxado sobre a cabeça, prendendo um grilhão
no pulso direito.
— Não imagino por que ela quer você tanto assim — disse o homem
sorridente, passando os olhos pelo corpo prostrado de Frentis com um calmo
desinteresse —, quando ela poderia ter qualquer um de n…
Houve um estrondo repentino de vidro se estilhaçando e um virote de besta
pareceu brotar da têmpora do homem sorridente, balançando a cabeça enquanto
os lábios ficavam frouxos e balbuciavam algo sem sentido ao cair de cara no
chão. A janela do lado oposto explodiu quando Illian a atravessou com os dois
pés, caindo montada sobre o cadáver de Lemera com a espada desembainhada.
Ela golpeou o homem que segurava os braços de Frentis, deixando um corte
fundo em sua testa quando ele se esquivou para trás numa velocidade
impressionante. Seu companheiro evitou o golpe seguinte dela, rolando e parando
de pé com a espada em punho depois de dar um salto mortal perfeito para trás.
Porém, os dois foram obrigados a soltar Frentis.
Ele ficou de joelhos num rodopio, a corrente presa ao pulso movendo-se num
borrão como um chicote e enrolando-se nas pernas do homem mais perto dele.
Frentis puxou com força, derrubou o inimigo no chão e então saltou, caindo com
os dois pés na cabeça do homem, o pescoço se partindo com um estalo. Ele
pegou a espada do homem e ao se virar deparou-se com Illian numa luta
desesperada com o outro, a espada dela movendo-se de forma frenética
enquanto ele a repelia, o rosto da garota tomado pela frustração, o homem de
armadura vermelha com o mesmo sorriso enlouquecedor de seu companheiro
morto. Frentis o golpeou com a corrente, fazendo-o dançar para o lado com uma
velocidade que teria envergonhado até mesmo um Kuritai, mas deixando espaço
suficiente para Illian desferir uma estocada em seu pescoço. O volariano aparou
a espada com habilidade, mas não teve como bloquear o golpe de Frentis em sua
perna, a lâmina entrando fundo o bastante para raspar no osso. O homem
praguejou, mas seu rosto não revelou raiva alguma, apenas divertimento e até
mesmo admiração, inclinando a cabeça para Frentis em apreciação ao mesmo
tempo que a ponta da espada de Illian atravessava a sua garganta.
— Irmão! — Ela correu até Frentis, passando os olhos pelo corpo dele em
busca de ferimentos.
— Não estou ferido. — Ele foi até o cadáver do homem de pescoço quebrado
e encontrou uma chave para os grilhões enfiada em sua bota. — Você estava
vigiando o meu quarto?
— Nós nos revezamos. Tem uma saliência confortável no telhado.
Frentis olhou para Lemera, emoldurada por uma mancha crescente de
sangue escuro nos lençóis. Eu escolhi morrer livre…
— Eu sei que você não quebrou o seu juramento, irmão — disse Illian,
seguindo o seu olhar. — Ela me disse que dormir ao seu lado a consolava.
Frentis vestiu a camisa e a calça e pegou as botas.
— O que está acontecendo lá fora?
— Está tudo tranquilo. Não percebi alarme algum até ouvir os sons da luta. —
Illian foi até o primeiro homem que matara, agachou-se e arrancou o virote do
crânio com um ruído rascante. — O que são eles?
— São chamados de Arisai. E não tenho dúvida de que há mais. — Ele pegou
a sua espada e correu para a janela, percorrendo com os olhos as ruas vazias
abaixo até as muralhas, onde as sentinelas caminhavam pelo parapeito. Nada,
nenhuma indicação de qualquer ameaça. Você se lembrou de vasculhar os
esgotos… Seu olhar recaiu sobre um bueiro com tampa de ferro na rua abaixo.
Esperando. Com ordens para se certificarem de cumprir a missão de sua
Imperatriz antes de tudo.
Frentis estremeceu ao perceber que agora estaria acorrentado e sua gente
prestes a ser massacrada se não fosse pelo aviso dela, um aviso que ele sabia que
não havia sido um erro. Ela queria que eles fracassassem. Ele olhou novamente
para os cadáveres no quarto silencioso. E eles não sabem que fracassaram.
— Vá buscar Draker, Lekran e Mestre Rensial — disse ele a Illian, voltando
para dentro. — E Tekrav. Seja silenciosa, mas rápida.

Ele estava sendo carregado entre Lekran e Rensial, de cabeça baixa, as correntes
em seus tornozelos batendo nas pedras da rua enquanto o levavam até o bueiro de
ferro à sombra do principal bordel da cidade. Diferente de Lekran e Rensial, o
peitoral vermelho laqueado de Draker não cobria bem o seu corpo, obrigando-o a
manter-se nas sombras ao segui-los. Frentis tinha certeza de que os Arisai
estavam observando tudo atentamente; sua breve experiência o convencera dos
perigos de subestimar as habilidades deles, mas também lhe fornecera uma pista
sobre uma fraqueza em potencial. O modo como sorriem. Eles têm prazer com a
batalha, com a matança, e o prazer pode nos tornar ávidos demais.
Uma figura de armadura vermelha surgiu das sombras quando se
aproximaram do bueiro, e Frentis ergueu os olhos semicerrados para ela,
satisfeito ao ver o sorriso receptivo.
— Nenhum problema, então? — sussurrou ele em volariano, mantendo de
maneira insensata o olhar em Frentis enquanto chegavam mais perto.
— Nenhum — respondeu Lekran, e ele e Rensial largaram Frentis aos pés do
Arisai.
— Pensei que ele poderia matar pelo menos um de vocês — disse o homem,
sacando uma adaga e agachando-se para bater três vezes com o punho da arma
na tampa do bueiro.
Lekran olhou para Frentis, o próprio sorriso agora genuíno.
— Parece que a lenda dele é bem maior do que as suas habilidades.
O Arisai grunhiu e recuou quando a tampa do bueiro foi erguida e empurrada
para o lado por mãos invisíveis, fazendo sinal de forma impaciente para Lekran.
— Levem-no para baixo. Temos trabalho a fazer.
— Não — disse Lekran ao Arisai, atraindo o olhar do homem enquanto
Mestre Rensial aproximava-se por trás dele. — O seu já acabou.
A adaga de Rensial reluziu pela garganta do Arisai, deixando-o de joelhos na
rua, o sangue escorrendo por entre os dedos enquanto tossia uma risada de
surpresa. Um Arisai colocou a cabeça para fora do bueiro, agarrando as laterais
do buraco para subir, mas caindo de volta numa nuvem de sangue quando o
machado de Lekran desceu sobre ele.
— Vamos, seus desgraçados preguiçosos! — gritou Draker, saindo correndo
das sombras e gesticulando de modo frenético quando Tekrav apareceu no fim da
rua com cerca de uma dúzia de seus carregadores, cada um rolando um barril.
Lekran levou uma corneta aos lábios e tocou uma única nota longa, e a cidade
despertou ao redor deles quando os rebeldes responderam ao chamado, com
tochas acesas e pessoas correndo para assumirem posições predefinidas de
armas em punho.
Frentis arriscou uma olhada para a abertura vazia do bueiro e jogou a cabeça
para trás quando uma faca surgiu rodopiando da escuridão, errando-o por um
milímetro. Ele ouvia o chapinhar de muitos pés correndo pela água, mas
nenhuma voz, nenhum sinal, na verdade, de alarme ou pânico, causando-lhe uma
sensação desconfortável: Talvez eles não consigam sentir medo.
— Quanto? — perguntou Tekrav, parando o seu barril na beira do bueiro.
— Tudo — afirmou Frentis.
Tekrav girou o barril e Lekran quebrou a tampa com o seu machado, fazendo
com que o óleo de lamparina jorrasse para dentro do bueiro. Viraram o barril
para esvaziá-lo e em seguida fizeram o mesmo com outro, enquanto os demais
carregadores passavam por eles para esvaziar os próprios barris em cada bueiro
da cidade.
Frentis olhou para o telhado do armazém onde Illian agora se encontrava
agitando uma tocha para confirmar que todos os bueiros estavam cercados por
pelo menos uma companhia de soldados.
— Não há por que esperar — disse ele a Tekrav.
O Intendente-Mor deu um passo à frente, o rosto sombrio, mas determinado
ao erguer uma tocha acesa.
— Por Lemera — disse ele.
A tocha desapareceu no buraco, criando uma coluna instantânea de chamas
amarelas de pelo menos três metros de altura. O fogo baixou para um tamanho
moderado após alguns segundos, e Frentis esticou-se para avaliar os resultados.
Nada. Nem um grito sequer.
Ele deixou Draker e a sua companhia vigiando o bueiro flamejante e correu
com Lekran e Rensial até o próximo, onde Ivelda e metade dos Garisai estavam
aglomerados em volta da abertura, observando enquanto os carregadores
despejavam mais óleo de lamparina nos esgotos. Um fedor forte de óleo
queimado subiu pela abertura junto com uma cortina densa de fumaça, mas o
buraco permanecia sinistramente silencioso.
— Se estiverem lá embaixo, irmão, eles sabem como morrer em silêncio —
disse Ivelda.
Frentis virou-se ao ouvir um grito vindo do buraco e viu um dos Garisai
cambalear para trás com uma adaga cravada no ombro quando uma figura
surgiu do bueiro, arremessada pelos companheiros a quase dois metros no ar em
meio a uma cascata cintilante de água e óleo. Sua espada começou a reluzir ao
aterrissar, abatendo um Garisai e ferindo outro antes que uma alabarda lhe
perfurasse o peito. Mais dois Arisai foram arremessados do bueiro rapidamente,
o óleo voando dos corpos rodopiantes enquanto golpeavam e cortavam,
procurando afastar os Garisai do buraco. Um foi morto depressa, mas o outro
continuou lutando, bloqueando estocadas e causando ferimentos com uma
precisão mortal. Frentis avançou correndo, desviou para o lado a lâmina do
Arisai e o chutou no peitoral, derrubando-o de novo na direção do bueiro.
Contudo, o homem se agarrou, mantendo os braços e as pernas estendidos, e os
seus companheiros esticaram as mãos para empurrá-lo de volta ao combate,
fixando o rosto sorridente em Frentis num desafio direto.
Frentis pegou uma tocha com um dos Garisai e a arremessou contra o peito
do Arisai, avançou e pisou no homem quando as chamas o envolveram,
devolvendo-o aos esgotos cheios de óleo. A coluna de fogo foi mais alta dessa vez
e a lufada de calor chamuscou os pelos nos braços de Frentis, que cambaleou
para trás.
Um tumulto crescente atraiu a sua atenção para as docas, onde podia ver um
aglomerado de combatentes tentando conter um grupo de Arisai que saía de um
dos bueiros maiores nos limites do cais. A superioridade numérica conseguiu
manter os homens vermelhos afastados, mas mais deles escapavam a cada
segundo, ceifando vidas com cada golpe de espada.
— Sua gente vem comigo — disse Frentis a Ivelda. — Esta será uma noite
longa.

Pela manhã, Viratesk estava encoberta por uma cortina nauseabunda de fumaça
preta-acinzentada, cada tijolo e ladrilho tão sujo quanto os rebeldes que vagavam
pelas ruas ou se sentavam curvados de exaustão. Frentis passou por muitos
aconchegados uns nos outros, alguns chorando pelo esforço da batalha que durara
a noite inteira, a maioria apenas encostada nos companheiros, de olhos
arregalados, olhares vazios em rostos cobertos de fuligem.
— Foram 782 mortos — relatou Trinta e Quatro. — Quatrocentos feridos.
— Quantos deles? — perguntou Lekran, passando um pano pela lâmina de seu
machado. Embora estivesse ainda mais enegrecido do que todos os presentes, o
machado do volariano reluzia com o brilho do polimento.
— Contamos pouco mais de cem corpos. Se bem que, a julgar pelo cheiro,
muitos mais morreram nos esgotos.
— Sete para um — murmurou Draker, lançando um olhar cauteloso para
Frentis. — São chances ruins, irmão.
— E quando as nossas chances foram boas? — Frentis virou-se quando
Artesão se aproximou, seguido pelo único prisioneiro que haviam feito, preso por
várias correntes. O Arisai sacudia a cabeça, rindo baixo e de esguelha enquanto
os Varitai libertos à sua volta olhavam com expressões idênticas de pesar.
— Não vai funcionar — disse Artesão. — Não nele.
— O domínio é forte demais? — perguntou Frentis.
— O domínio sobre ele é menos restringente do que o dos Varitai. Ele é…
errado. Deturpado, de mente e de corpo. Se removêssemos o domínio,
libertaríamos algo terrível neste mundo.
— Então vamos arrancar o que pudermos dele e acabar com isso — disse
Lekran, indicando Trinta e Quatro com a cabeça.
— Ele não vai lhe dizer nada — retorquiu Artesão. — Qualquer tormento que
lhe causarem será apenas outro divertimento.
— Você pode curá-lo? — perguntou Frentis. — Reparar a sua alma
deturpada?
Artesão olhou para o Arisai, suas mãos entrelaçadas, o rosto revelando o
primeiro sinal de medo que Frentis já vira nele.
— Talvez — disse ele. — Mas as consequências…
— Algo sempre vem junto — disse Frentis. — Cada vez que você cura
alguém, eles dão algo em troca.
Artesão assentiu, virando-se para ele com um leve sorriso.
— Se quiser que eu tente…
— Não. — Ele avançou na direção do Arisai, sacando a adaga do cinto. O
divertimento do homem aumentou com a aproximação de Frentis, a gargalhada
repleta de um júbilo genuíno.
— Ela disse que você provaria ser interessante — disse o homem.
— Ela lhes dá nomes? — perguntou Frentis.
O Arisai encolheu os ombros.
— Às vezes, a alguns de nós que ela se dá ao trabalho de reconhecer. Ela me
chamou de Cão uma vez. Gostei bastante.
— Sabia que ela os mandou aqui para morrer?
— Então fico feliz em ter servido aos propósitos dela. — O homem encarou
Frentis com olhos firmes, sem medo, até mesmo orgulhosos, mas principalmente
entretidos.
— O que fizeram para deixá-lo desse jeito? — perguntou Frentis,
surpreendendo a si mesmo com um arroubo súbito de pena. Artesão tinha razão:
aquele homem acostumara-se a uma vida que o transformara em algo que não
era mais humano.
O sorriso do Arisai tornou-se escarnecedor.
— Você não sabe? O tempo que passou nos fossos ensinou muita coisa a eles.
Por gerações eles nos criaram, treinaram, tentaram diferentes domínios para
fazer de nós os matadores perfeitos. Nunca funcionou. Nossos antepassados ou
eram selvagens demais, ou parecidos demais com os Kuritai, mortais, mas
apáticos, necessitando de supervisão constante. Não foi diferente com a minha
geração, mais um fracasso. Dez mil Arisai destinados a serem executados,
depois que tivessem nos cruzado com a raça adequada. Então você chegou, o
nosso salvador, um exemplo brilhante das vantagens da crueldade, da disciplina e
da astúcia inerentes na alma de um verdadeiro matador. Quando nos enviou para
cá, ela nos disse que iríamos encontrar o nosso pai e, devo dizer, considero isso
um privilégio.
— Então há pelo menos mais nove mil de vocês? — ponderou Frentis.
Por um momento, o sorriso desapareceu do rosto do Arisai, que franziu o
cenho, consternado como uma criança tentando dar uma resposta a uma
pergunta desagradável.
— Não tão aperfeiçoados, afinal de contas — observou Frentis, movendo-se
para trás dele e apontando a adaga para a base do crânio do volariano. — O que
você sabe sobre o Aliado?
Cão animou-se de novo quando a ponta da lâmina lhe tocou a pele, rindo e
sacudindo a cabeça.
— Só a promessa que ela nos fez em nome dele no dia em que nos tirou das
masmorras. “Todos os seus sonhos se tornarão realidade”. Esperamos por muito
tempo e tínhamos muitos sonhos. Caso a veja de novo, pai, diga-lhe por favor que
eu…
Frentis enfiou a adaga até o punho, e Cão, o Arisai, arqueou as costas e
convulsionou antes de desabar morto no chão.
— Direi a ela — assegurou-lhe Frentis.

Por quê?
A pergunta a alcança sem aviso, fazendo com que seu dedo escorregue mais
uma vez e outra mancha de sangue se espalhe pelo tecido esticado. Ela olha para
a agulha fincada no dedo e compreende friamente; a carne é como o gelo,
desprovida de dor. O bordado é medíocre, tentativas desajeitadas de uma criança
de imitar habilidades adultas. É tentador culpar a casca e os seus dedos
dormentes, mas ela nunca conseguiu dominar aquela arte em particular. A
lembrança é tênue, assim como todas as suas recordações da infância, mas certa
vez houve uma mulher. Uma mulher bondosa, com um rosto de uma beleza felina,
que sabia costurar com uma habilidade surpreendente, adornando os seus tecidos
com uma clareza e uma arte que se igualavam às pinturas mais belas. Elas se
sentavam e costuravam juntas, a mulher guiava as suas mãozinhas, dava-lhe um
beijo quando fazia algo certo, apenas ria com os erros frequentes que cometia. Ela
tem certeza de que essa lembrança é real, embora por alguma razão os seus
pensamentos sempre se distanciem do nome da mulher, ou de seu destino. Sempre
mudam, tornando-se mais sombrios, e ela se vê na cama, choramingando
enquanto olha para a porta do quarto…
Um rangido de cordas e engrenagens atrai o seu olhar para o terraço. Tenho
que receber uma visitante ilustre, meu amado, diz a ele. Uma Imperatriz não
deve negligenciar os seus deveres.
Por quê? O pensamento é implacável, irresistível em sua exigência.
Você sabe por que, amado, ela lhe diz.
Imagens rodopiam e tomam forma em sua mente, outro presente precioso
capturado pela visão dele: chamas brotando dos esgotos de Viratesk, os Arisai
lutando, matando e morrendo com toda a fúria que ela esperava. Um, em chamas
da cabeça aos pés, gira numa confusão de fogo, ainda matando e gargalhando
mesmo quando as flechas o atingem.
Sei que você tem mais nove mil, ele lhe diz. Onde eles estão?
Suas mãos apertam o bordado ao ser tomada pelo deleite, a maravilhosa
retomada da intimidade que haviam perdido. Fora desse modo durante a viagem
que fizeram juntos, a mistura jubilante de amor e ódio, cada assassinato
derrubando os muros entre eles. Ela percebe que o seu coração está palpitando,
cada vez mais depressa, como um animal atacando as barras de sua jaula. Até
então ela achara que aquela casca era capaz de sentir apenas as coisas mais
rudimentares, mas ele, é claro que somente ele, é capaz de revivê-la.
A gôndola para do lado de fora do terraço e ela olha para a sua convidada. Ela
sente o sobressalto dele ao avistá-la, fazendo-a se perguntar se o ciúme poderá
fazer com que jogue aquela coisinha linda do alto da torre. Contudo, uma nota da
canção quando a garota olha para Lieza lhe informa que tais suspeitas são
infundadas.
Deixe-a em paz!, grita ele em sua mente. Toque nela e você nunca me verá
de novo. Eu juro.
Ela resiste ao impulso de se perder no ódio dele e permite que o seu coração
se acalme, tentando transmitir um frio desinteresse em sua resposta. Quanto mais
cedo você vier me ver, maior será a chance de ela sobreviver.
Ela estremece um pouco, sentindo a ligação retomada entre eles ser forçada
enquanto ele domina a própria raiva. Quando ele retorna, os seus pensamentos
são de uma aceitação relutante. Os Arisai, insiste ele. Onde eles estão?
Posso lhe dizer onde eles não estão. Ela percebe que tem de abafar um risinho.
Nova Kethia.

— Idiotas — disse Draker, observando a coluna volariana com um olhar


experiente. — Não estão nem fazendo o reconhecimento dos flancos.
— E por que fariam? — perguntou Frentis. — Não estão esperando nada mais
do que uma marcha da vitória quando chegarem a Viratesk.
— Pouco mais de quatro mil — disse Trinta e Quatro, devolvendo a luneta a
Frentis. — Somente um batalhão de Varitai e alguns Kuritai. O resto é uma
mistura de mercenários Espadas Livres e recrutados de Nova Kethia. Pelos meus
cálculos, o grosso da força militar que resta nesta província.
— Idiotas — repetiu Draker, sacudindo a cabeça.
A região a oeste de Viratesk era em grande parte desprovida das elevações e
florestas que Frentis sempre achara tão úteis. No entanto, o reconhecimento feito
por Mestre Rensial ao longo da estrada costeira até Nova Kethia identificara uma
depressão vasta na terra cultivada dez quilômetros a oeste, não profunda o
suficiente para ser chamada de vale, mas a elevação na extremidade sul era alta
o bastante para ocultar o grosso de seu exército. A altura das plantações era outra
vantagem, altas o suficiente para ocultar os arqueiros e seca o bastante para
pegar fogo com a primeira chama. A cavalaria na vanguarda da coluna
volariana evidentemente não levara em consideração a faixa de cem metros de
largura e um quilômetro e meio de comprimento de terreno estéril e enegrecido
paralela à estrada, resultado de uma manhã gasta com queimadas cuidadosas. Os
muitos lavradores no exército haviam informado que tais aceiros eram uma
característica comum da agricultura volariana e que era improvável que
chamassem a atenção daqueles que nunca haviam trabalhado na terra.
— Alguns devem conseguir passar — disse Frentis a Illian e Draker. — Se
estiverem em desvantagem, recuem e formem um círculo defensivo. — Ele
olhou Illian nos olhos e falou com grave autoridade: — A questão será decidida
nos flancos, então não há necessidade de coragem excessiva.
Ele a viu conter uma careta aborrecida e forçar-se a balançar a cabeça.
— É claro, irmão.
Ele os deixou agachados entre os talos altos de trigo e seguiu para o abrigo da
elevação, onde Mestre Rensial aguardava com o contingente montado. Os
volarianos não viam muito motivo para ensinar os seus escravos a cavalgarem,
mas alguns eram familiarizados com cavalos de suas vidas anteriores, a maioria
gente do Reino e alguns alpiranos, suficientes para formar uma companhia de
cavalaria leve com cerca de trezentos cavaleiros. Outros mil soldados de
infantaria estavam agachados um pouco mais para trás, principalmente aqueles
que não possuíam armas decentes, embora alguns usassem as espadas e adagas
tiradas dos Arisai mortos. O grosso da infantaria estava com Lekran e Ivelda no
flanco esquerdo, pronto para seguir atrás dos Garisai no ataque quando chegasse
a hora.
Frentis montou num garanhão capturado na região das colinas, bem treinado
como a maioria dos animais da cavalaria volariana, mas sem a velocidade e a
agressividade de uma montaria da Ordem. Ainda assim, Mestre Rensial se
empenhara em treinar tanto cavaleiros quanto cavalos, de modo que ele estava
confiante de que o animal não iria refugar quando tivesse que investir. Frentis
bateu com os calcanhares nos flancos do garanhão e saiu a trote até o topo da
elevação. Os volarianos sem dúvida o veriam delineado contra o horizonte, mas
pouco importava agora que a companhia principal houvesse chegado ao fim do
aceiro. Frentis desembainhou a espada e a ergueu acima da cabeça e os
arqueiros no trigal levantaram-se com os arcos preparados ao sinal. Ele viu um
cavaleiro na frente da coluna virar o cavalo e acenar freneticamente para o
corneteiro, tarde demais.
Mais de quatrocentas flechas deixaram o trigal e caíram sobre o centro da
coluna volariana, provocando um tumulto de gritos alarmados e toques
dissonantes de corneta. No entanto, fora o caos inicial, o efeito da saraivada foi
mínimo, matando apenas uma dúzia de soldados antes que os oficiais
conseguissem organizá-los de forma razoável. Como de costume, os Varitai
foram os primeiros a se posicionar, e três batalhões assumiram uma formação
defensiva dentro de um minuto. Frentis ficou satisfeito ao ver que haviam sido
colocados no centro da coluna, o que significava que os flancos seriam
defendidos principalmente por Espadas Livres e recrutas recentes. Draker estava
certo, concluiu ele. Esses homens são comandados por tolos.
Os arqueiros seguiram disparando sem cessar enquanto a fileira volariana
tomava forma, e as flechas continuaram a cair enquanto um coro de cornetas
soava o sinal para um avanço geral. Frentis não precisou dar outras ordens, já
que os arqueiros haviam sido bem-treinados para o que fazer a seguir. Embora o
trigo estivesse seco o bastante para pegar fogo, Frentis tomara a precaução de
espalhar vários fardos de gravetos embebidos em óleo pelo campo, fornecendo
alvos para os arqueiros e suas flechas incendiárias, provocando um flamejar
instantâneo. Eles tinham ordens expressas de disparar tais flechas e então correr
para o aceiro, embora alguns continuassem a disparar mesmo enquanto
recuavam para longe do campo coberto pela fumaça. O inferno teve início quase
que de imediato, uma muralha brilhante de chamas estendendo-se ao longo da
fileira que avançava e criando uma cortina de fumaça preta que fez tudo
desaparecer de vista.
Frentis virou-se e fez um sinal com a cabeça para Mestre Rensial, então saiu
a galope. Eles haviam aberto a fogo uma avenida larga pelo trigal, dos dois lados
do aceiro principal, larga o suficiente para permitir a investida de uma
companhia inteira de cavalaria, rapidamente seguida por mil soldados de
infantaria. Ainda assim, a fumaça densa tornou a cavalgada enervante, e seu
cavalo soltou um relincho de protesto pela proximidade das chamas. Frentis bateu
de novo com os calcanhares nos flancos do animal, fazendo-o começar um
galope mais rápido e saíram da fumaça, deparando-se com dois cavaleiros
volarianos assustados. Ele passou por entre os dois, golpeando à esquerda e à
direita, ouvindo gritos simultâneos de dor antes de disparar em frente.
A confusão era total agora, e a fumaça descia e subia ao capricho do vento.
Quando se dissipava, ele abatia qualquer volariano ao alcance; quando se
adensava, ele cavalgava adiante, sua única indicação do andamento da batalha
vindo dos gritos de dor e fúria por todos os lados. Frentis tinha vislumbres
ocasionais de Mestre Rensial, que matava com a típica destreza, o cavalo
aparentemente dançando enquanto ele mal tocava nas rédeas, deixando
perplexos aqueles insensatos o bastante para desafiarem um homem que Frentis
sabia ser o melhor guerreiro montado do mundo.
Os volarianos se mostraram um grupo variado; alguns fugiam assim que
avistavam Frentis, outros imediatamente corriam para confrontá-lo. Quando a
fumaça se adensou mais uma vez, ele se viu atacado por um Kuritai montado,
aparentemente não afetado pela visão comprometida, investindo contra ele num
belo garanhão dois palmos mais alto do que o seu. Frentis girou na sela quando o
Kuritai se aproximou e desferiu um golpe descendente com a espada que se
cravou no pescoço de seu garanhão. Ele saltou para longe quando o animal gritou
e empinou numa fonte de sangue, aterrissando com destreza e arremessando a
sua faca contra o Kuritai. A lâmina atingiu o alvo e entrou no rosto do escravo de
elite logo acima do maxilar, mas isso não foi o suficiente para deter o ataque.
Frentis rolou e tentou golpear as patas do cavalo quando o animal passou
correndo por ele. O Kuritai, porém, era um cavaleiro muito habilidoso e mudou o
curso do animal no último momento para evitar a lâmina. Frentis arremessou
outra faca quando o homem virou para uma segunda investida, e o dardo de aço
cravou-se na anca do animal, fazendo-o empinar. Frentis avançou correndo,
pulou e golpeou com a espada, a lâmina da Ordem atravessando o avambraço no
pulso do Kuritai. O homem caiu da sela, rolou e ficou de pé, girando para
encarar Frentis com a espada apontada para ele, o sangue jorrando do toco da
mão decepada. Frentis ouviu um rosnado familiar às suas costas e caiu de
joelhos, e Retalhador e Dente Negro saltaram por cima dele e atacaram o
Kuritai com precisão coordenada, a cadela abocanhando as pernas do homem
enquanto seu companheiro rasgava a garganta.
Ele não precisou esperar para ver o espetáculo, correndo em meio à fumaça
em busca de mais oponentes. Seus ouvidos logo foram assaltados por um grande
brado seguido do estrépito de inúmeras armas se entrechocando, e ele seguiu o
som até se deparar com a sua infantaria desfazendo um batalhão de Espadas
Livres. Eles evidentemente haviam investido de frente contra a linha inimiga,
dado o modo como cederam e se romperam no centro, golpeando e cortando
com seus machados e foices, cada rosto iluminado por uma fúria desesperada.
Os Espadas Livres tentaram resistir durante algum tempo, amontoados de
acordo com as ordens berradas pelos oficiais, e muitos escravos libertos
tombaram diante de suas espadas curtas, mas a fileira havia sido rompida e, ao
contrário daqueles que enfrentavam, eles ainda pensavam em vidas longas e
famílias. Após mais alguns momentos de resistência frenética eles começaram a
ceder, homens davam meia-volta e corriam em direção à fumaça, a princípio
sozinhos ou em duplas, depois às dezenas. Um deles correu na direção de Frentis,
derrapando até parar de olhos arregalados e cair sentado no chão, a espada
aparentemente já largada. Frentis parou e encarou o homem, notando o horror
estampado no rosto trêmulo, as súplicas ininteligíveis que lhe brotavam dos lábios,
e apontou com severidade para oeste. O Espada Livre olhou boquiaberto para ele
por mais um segundo e então se levantou e saiu correndo, ainda implorando por
misericórdia.
— Em formação! — gritou Frentis para a sua gente liberta, enquanto alguns
ainda apunhalavam os volarianos mortos. — Recolham armas e entrem em
formação!
Com a quantidade certa de gritos e empurrões, ele conseguiu restabelecer
certa ordem; os que haviam sido designados como sargentos recobraram a razão
ao vê-lo e posicionaram as suas companhias numa linha ofensiva, muitos agora
armados com espadas e lanças de cavalaria.
— Continuem alinhados até saírem da fumaça — ordenou Frentis, virando-se
e andando na direção do centro volariano. A linha manteve-se coesa até ouvirem
os sons de mais combate, e a sede de sangue ainda não saciada fez com que os
libertos bradassem ao dispararem numa investida espontânea. Sabendo que não
dariam ouvidos a outras ordens, Frentis correu com eles, a fumaça se dissipou e
revelou uma muralha sólida de Varitai, os rostos impassíveis encarando-os por
cima de lanças apontadas em sua direção.
Ele saltou no último momento, sua espada desviou uma lança erguida e suas
botas se chocaram com o peitoral do Varitai, arremessando o homem para trás.
Frentis aterrissou fora da linha volariana e se virou, matando depressa dois
Varitai, sua espada encontrando brechas nas armaduras com precisão mortal. Os
libertos aproveitaram a oportunidade, amontoando-se na lacuna numa massa
compacta de homens e mulheres que golpeavam sem parar. Porém, o pânico
conveniente que tomara conta dos Espadas Livres não estava presente ali, e os
Varitai recuaram em resposta a um toque estridente de corneta para entrarem
em outra formação defensiva vinte metros para trás. Frentis podia ver duas
figuras no centro do círculo cada vez menor de Varitai, um homem corpulento
com uma corneta nos lábios, um sargento veterano, a julgar pela armadura, e
uma figura mais esguia com o elmo emplumado de um oficial subalterno.
— Parem! — Frentis ergueu a espada quando os libertos se preparavam para
outra investida. Todos agora estavam tomados pela fúria, cada rosto coberto de
fuligem sedento por mais sangue, armas ensanguentadas em cada mão,
tremendo de expectativa.
— Nós podemos com eles, irmão! — gritou com voz rouca uma mulher na
língua do Reino, uma adaga numa das mãos e uma espada curta na outra, ambas
vermelhas das pontas aos punhos. Levou um momento para Frentis reconhecer
aquela figura ofegante e de rosto enegrecido como Lissel, a ex-fabricante de
velas de Rhansmill.
— Vocês já fizeram o suficiente por hoje, dona — disse a ela. E temos baixas
a compensar, acrescentou ele mentalmente. — Você encontrará a Irmã Illian e
Artesão na elevação. Traga-os aqui, por favor.
Ele andou ao redor do círculo quase perfeito de Varitai, olhando através da
fumaça que se dissipava e confirmando a derrota do flanco esquerdo volariano.
Espadas Livres corriam para todos os lados e os Garisai avançavam de forma
ordenada na direção dos Varitai, liderados por Ivelda e Lekran. Frentis ergueu a
mão para fazê-los parar e virou-se rapidamente para contar os Varitai
remanescentes. Trezentos. O dobro da quantidade que já se encontrava em seu
exército.
— Irmão. — Illian parou ao seu lado de besta em punho. Frentis viu a
bandagem na testa dela, o ferimento pouco abaixo de onde começavam os
cabelos e ainda sangrando. — Kuritai — disse ela, encolhendo os ombros.
Ele assentiu e virou-se de novo para os Varitai.
— Aguarde a minha ordem. — Ele se aproximou do círculo de soldados-
escravos, o olhar fixo nas duas figuras no centro. O sargento corpulento ficou
imóvel e empertigou-se, encarando Frentis, o rosto grisalho exibindo uma atitude
severa de desafio que ele não conseguiu deixar de admirar. O oficial ao seu lado
tinha no máximo metade da idade do sargento e era consideravelmente menos
desafiador, seus olhos percorrendo sem cessar os libertos ao redor, o rosto lívido
de terror.
— Você está sozinho! — gritou Frentis para o homem corpulento através das
fileiras de Varitai imóveis. — Seus oficiais estão mortos ou correndo de volta
para Nova Kethia! Se quiser se juntar a eles, ordene a estes homens que
deponham as armas!
O rosto do sargento crispou-se numa careta de aversão e ele cuspiu no chão,
e disse apenas uma palavra, cheia de desprezo:
— Escravo!
O virote de Illian entrou no peitoral do sargento logo à esquerda do esterno.
Àquela distância, não foi difícil penetrar a armadura e o osso até encontrar o
coração.
— E você, Honorável Cidadão? — gritou Frentis ao jovem oficial, que agora
olhava boquiaberto para o sargento morto, as lágrimas que escorriam de seus
olhos fazendo com que parecesse apenas uma criança perdida em meio a um
campo de estranhos perigosos. Após um momento ele se controlou o suficiente
para retirar a corneta do corpo do sargento. O toque que deu soou vacilante e
agudo, mas claro o suficiente. Os Varitai largaram as armas ao mesmo tempo e
permaneceram nas fileiras, cada rosto demonstrando tanta emoção quanto uma
pedra.
— Você pode curar tantos assim? — perguntou Frentis a Artesão quando o
curandeiro apareceu com os seus Varitai libertos.
Artesão deu uma risada baixa, percorrendo as fileiras ordenadas dos
soldados-escravos com o seu agora habitual sorriso triste.
— Você fala como se eu tivesse escolha, irmão.

Nova Kethia queimava. Colunas altas de fumaça subiam das ruas apinhadas de
gente, a maioria dos incêndios aparentemente concentrada ao redor das docas,
onde era possível ver alguns navios afastando-se do porto. Todos estavam com os
cascos baixos na água, um deles tão carregado que soçobrou ao chegar à entrada
do porto, e figuras minúsculas feito formigas correram pelo casco enquanto a
embarcação rolava nas ondas. Ao sul, uma longa fila de pessoas saía pelos
portões da cidade, e a luneta de Frentis confirmou que a maioria estava vestida
de cinza, curvadas e sobrecarregadas com vários objetos de seus lares,
arrastando crianças chorosas, a confusão e o medo em cada rosto.
— Eles podiam ter esperado até chegarmos aqui — resmungou Draker.
— Uma batalha a menos para lutar — disse Frentis. Eles haviam acampado
em meio a várias ruínas num planalto baixo a pouco menos de um quilômetro e
meio a leste da cidade; Trinta e Quatro informara que naquele lugar se erguera a
Velha Kethia, destruída séculos antes na Era do Forjamento. O ex-escravo
retornou do reconhecimento do terreno no final da tarde, após ele e Mestre
Rensial terem sido enviados à frente pela manhã.
— Parece que a notícia de nossa vitória teve um efeito dramático — relatou
Trinta e Quatro. — O governador elaborou um plano para executar todos os
escravos em vez de permitir que caíssem em nossas mãos. Uma vez que há dois
escravos para cada habitante livre da cidade, essa estratégia provou ser insensata.
Os tumultos estão ocorrendo há três dias. Milhares morreram, mais fugiram.
— Os escravos controlam a cidade? — perguntou Frentis.
— Somente um quadrante. — Trinta e Quatro apontou para um distrito que
parecia ainda mais envolto em fumaça do que os outros. — Visto que não têm
armas, suas baixas são grandes. Avançamos com cuidado até conseguir entrar
em contato com os líderes deles. — Ele se virou para Frentis com um sorriso. —
Parece que eles ouviram muitas coisas sobre o Irmão Vermelho e estão ansiosos
pela sua chegada.
— Uma batalha a menos — murmurou Draker, levantando-se.

— Por que fizeram isso?


O corpo estava pendurado num poste na praça principal de Nova Kethia, os
pés reduzidos a tocos carbonizados, a barriga aberta e o rosto congelado num
grito de agonia. Apesar de toda a mutilação que o cadáver sofrera, Frentis ainda
conseguiu reconhecer as feições. Sofrerei cada tormento por mil anos, dissera
Varek. Pelo estado dele, Frentis duvidava que tivesse durado mais do que uma
hora.
O Vice-Tesoureiro de Nova Kethia, um homem de preto com rosto contraído,
perplexo e aterrorizado em igual medida por continuar vivo, teve que tossir várias
vezes antes de encontrar a voz para falar.
— Ordens da Imperatriz — falou ele, o tom vacilante, apesar do esforço para
controlá-lo. — Chegaram antes dele.
Não gostou do que ele me disse, concluiu Frentis, tendo uma estranha
sensação de desapontamento. Varek parecera tão determinado que teria sido
interessante ver até onde a sua busca por vingança o levaria. Mas ele era um dos
milhares de cadáveres espalhados pela cidade, inchando ao sol e atraindo nuvens
de moscas que voavam em meio ao fedor crescente. Milhares de histórias
interrompidas antes do final.
Levara um dia e uma noite de luta dura para capturarem a cidade, com
Frentis conduzindo a infantaria num avanço lento porém inexorável até as docas,
onde Lekran e Ivelda assumiram o comando dos rebeldes sobreviventes. Eles
foram obrigados a lutar de rua em rua, seus oponentes uma mistura de Espadas
Livres e moradores, capazes de resistir furiosamente agora que os seus lares
corriam o risco de ser destruídos. Contudo, eram muito poucos e desorganizados
demais para serem bem-sucedidos, suas barricadas construções precárias
erguidas por mãos não acostumadas ao trabalho. Frentis logo adotou uma tática
de capturar os telhados ao redor e atacar os defensores do alto, forçando-os a
recuar ao mesmo tempo que as barricadas eram destruídas. Eles formaram uma
espécie de resistência final nas docas, algumas centenas encolhidas atrás de
barris e caixas, recusando todos os chamados para que se rendessem. Foram os
Varitai libertos de Artesão que terminaram aquilo, simplesmente derrubando os
barris e avançando para subjugar os defensores a golpes de porrete.
O que restara do governador fora amarrado à base do poste; ao contrário de
Varek, o seu rosto estava realmente irreconhecível. O homem havia sido um
general antes de entrar para a política, e escolhera morrer nos degraus da
mansão do governador com alguns guardas leais. Infelizmente, a sua atitude
heroica não lhe assegurou uma morte rápida, e a grande turba de escravos
acabou com qualquer resistência ao invadir a mansão no ataque final, mas
tiveram presença de espírito suficiente para garantir que o governador fosse
capturado vivo. Após testemunhar os horrores causados pelas tentativas do
governador de matar a população de escravos, Frentis não teve a menor intenção
de interferir no castigo prolongado e engenhoso do homem.
— A Imperatriz é um monstro — acrescentou o Vice-Tesoureiro, com um
leve tom de adulação esperançosa na voz.
— Ela é volariana — retorquiu Frentis. — Como o único oficial imperial
remanescente nesta cidade, preciso que você atue como o contato com a
população livre que sobreviveu. Você os encontrará nas docas, onde estão sendo
vigiados. Informe-lhes que, como súditos livres do Reino Unificado, eles
desfrutam da proteção da Coroa e que eu garanto pessoalmente a segurança de
todos aqueles inocentes de tomarem parte nas atrocidades cometidas aqui.
Contudo, todas as propriedades que possuíam estão confiscadas pela Coroa como
espólios de guerra. Pela Palavra da Rainha, a escravidão a partir de agora está
abolida desta província e qualquer pessoa que for pega praticando-a estará
sujeita à execução sumária.
Ele se afastou enquanto Draker levava o homem de preto na direção das
docas.
— Vamos, não chore, meu camarada. Não sabe a sorte que tem de
testemunhar um novo amanhecer no Reino Unificado Maior.
Caminhando pelas ruas, todas repletas de corpos e dos incontáveis escombros
de uma cidade destruída, Frentis se viu recordando-se de um sonho, ou o que ele
agora sabia ser o início de sua ligação com uma alma que o Vice-Tesoureiro
achava monstruosa. Eu teria sido terrível, dissera a mulher enquanto olhavam
para um litoral tomado de cadáveres. Porém, por mais terrível que o destino me
fizesse, eu não sou ele.
Ele parou ao avistar uma mãe com a filha, aninhadas na morte do lado de
fora de uma padaria. Os olhos da garotinha estavam abertos, a cabeça perto da
cabeça da mãe, a boca levemente entreaberta como se congelada em alguma
espécie de pergunta final. Ao ver os ferimentos nos braços da mãe, sem dúvida
infligidos ao tentar proteger a garota do frenesi de lâminas que as mataram,
Frentis não conseguiu deixar de ter a sensação de que ele e a Imperatriz estavam
conspirando para tornar aquele mar de morte uma realidade.
— Irmão? — Era Illian, que o encarava com uma expressão que beirava o
espanto. Ele sentiu a umidade nas faces e enxugou depressa as lágrimas.
— O que é, irmã?
— Os Garisai encontraram algumas centenas de pessoas vestidas de cinza nas
galerias abaixo do quadrante dos mercadores. Os escravos da cidade estão
querendo ir atrás deles. A coisa pode ficar feia. — Ela forçou um sorriso incerto,
ainda o olhando nos olhos. Frentis voltou a atenção para o corte da testa dela.
Trinta e Quatro fizera o serviço tipicamente preciso de suturá-lo, mas a cicatriz
seria funda, e longa. — Pelo menos parou de coçar — disse Illian, levando os
dedos ao ferimento.
Não há incerteza nela, concluiu ele. Todas essas mortes e ela continua
inabalada. Illian tinha razão, a Ordem é o melhor lugar para ela.
— Estarei lá daqui a pouco — disse Frentis. — Diga a Draker para formar um
grupo com as pessoas livres para recolher esses corpos. Serão pagas em pão.
Não devemos esperar que trabalhem por nada.
CAPÍTULO OITO
Lyrna

Logo começaram a chamá-la de Marcha da Lama, um nome que Ly rna sabia


que persistiria no relato histórico daquela campanha, caso restasse algum
historiador para escrevê-lo. A chuva começara a cair no dia em que deram início
à marcha para o interior e não parou durante as duas semanas seguintes,
transformando todos os caminhos em lama mole e grudenta, prendendo pés,
cascos e rodas de carroças até que o exército foi forçado a parar após ter
percorrido menos de duzentos quilômetros.
— O preço, Alteza — explicou o Aspecto Caenis no conselho de capitães. —
A criação de tamanha tempestade causou um desequilíbrio no ambiente.
— Quanto tempo durará? — perguntou Ly rna.
— Até que o equilíbrio seja restabelecido. Um dia, ou um mês. Não há como
saber.
— Não há ninguém na sua Ordem que possa nos ajudar?
Ele encolheu os ombros, indicando que não podia fazer nada.
— A garota dos Confins era a única alma que já encontrei que possuía tal
dom.
Ly rna ignorou a insinuação proposital de suas palavras, ciente de que o
Aspecto ainda estava irritado por ela ter se recusado a obrigar os dotados dos
Confins a entrarem para a sua Ordem. De certa forma, ela estava achando o
Aspecto Caenis tão irredutível quanto o não pranteado Tendris.
— Precisamos de uma estrada, Alteza — insistiu o Conde Marven. — As
estradas volarianas são famosas por serem bem construídas e imunes às
intempéries. — Ele passou um dedo pelo mapa até uma linha trinta quilômetros
ao norte. — Esta é usada pelos portos do norte. É um desvio de quatro dias da
linha de marcha que pretendemos seguir, mas deve nos poupar semanas de
avanço lento pela lama.
Embora não gostasse da ideia de abandonar a aproximação direta de Volar,
Ly rna não via alternativa. Estava prestes a confirmar a ordem quando uma voz
raramente ouvida falou:
— Seria um erro, Alteza.
Lorde Al Hestian estava de pé no fundo da tenda com espaços vazios de
ambos os lados, uma vez que nenhum dos capitães parecia gostar de ficar perto
do homem que agora era chamado de Rosa Traidora. Ly rna passara a excluí-lo
daquelas reuniões, mas o desempenho impressionante de seus homens durante o
que passara rapidamente a se chamar Batalha do Farol e a perda recente de
tantos capitães a fizeram mudar de ideia. Afinal, ela o poupara por uma razão.
— Como assim, meu senhor? — perguntou Ly rna, vendo o Conde Marven
empertigar-se. De todos os seus capitães, era ele quem parecia nutrir a maior
inimizade com relação a Al Hestian, algo que ela supunha que tivera origem
durante o tempo que passaram na guerra do deserto.
— A linha óbvia de marcha sempre deve ser evitada — respondeu Al
Hestian. — A estrada estará patrulhada, vigiada. Notícias de nossa posição
chegarão a Volar em poucos dias. Se formos enviar forças para o norte, elas
devem ser apenas diversivas.
— Enquanto continuamos a chafurdar na lama — disse o Conde Marven.
— Chuva alguma dura para sempre, criada ou não pelas Trevas. E se não
pudermos marchar sob ela, tampouco poderá o inimigo.
— O tempo é o verdadeiro inimigo — disse Ly rna. — Cada dia de inatividade
dá mais tempo para que a Imperatriz reúna forças em Volar. — Ela se
empertigou e assentiu para o Conde Marven. — Senhor da Batalha, dê ordens
para que a linha de marcha do exército seja mudada de manhã. Meus senhores,
ao trabalho.

Alornis estava desenhando de novo quando ela retornou à sua tenda, o lápis de
carvão movendo-se de modo frenético pelo pergaminho enquanto ela se curvava
sobre o cavalete. Durante o dia ela trabalhava na balista montada no carroção, o
tempo todo quase sem falar, mas à noite ela desenhava. Somente quando estava
trabalhando alguma animação transparecia em seu rosto, tenso de concentração
e com os olhos iluminados pelas lembranças, ainda que, a julgar pela natureza
dos desenhos, Ly rna achasse serem memórias que não deveriam ser remexidas.
Navios e homens em chamas, marinheiros gritando enquanto se debatiam num
mar tempestuoso. Página após página de horrores retratados de maneira
habilidosa, produzidas num ritual noturno de autoflagelação.
— Ela pelo menos comeu algo? — perguntou Ly rna a Murel, despindo o
manto ensopado de chuva.
— Apenas um pouco de mingau, Alteza. Mas Davoka teve que fazê-la comer
praticamente à força.
Ela se sentou ao lado de Alornis durante algum tempo, a Senhora Artífice
notando a sua presença com um aceno quase imperceptível de cabeça, o lápis de
carvão continuando a se mover sem interrupção. Ly rna se consolou um pouco
com o fato de que aquele esboço era diferente da costumeira carnificina
executada com maestria; era uma espécie de retrato. Alornis definiu a forma
básica do rosto com algumas linhas bem colocadas e então começou a detalhar
os olhos, olhos escuros, apertados em julgamento e repreensão, olhos que ela
conhecia bem.
— Seu irmão a ama — disse ela a Alornis, estendendo a mão para segurar a
dela e sentindo-a tremer.
Alornis não olhou para ela, mantendo os olhos fixos no retrato.
— É o meu pai — sussurrou ela. — Eles tinham os mesmos olhos. Ele
também me amava. Talvez, se a Fé estiver certa, ele ainda me veja. Pode ser
que ele me ame mais agora, pois somos iguais, não? Ele também matou milhares
com fogo uma vez. Às vezes ele sonhava com isso, quando ficou mais velho e a
doença apareceu. Debatia-se na cama e gritava por perdão.
Ly rna resistiu à tentação de sacudi-la, de esbofeteá-la, de tentar forçar a volta
da garota animada e gentil que conhecera em Alltor. Porém, ao olhar naqueles
olhos confusos, ela soube que aquela garota havia desaparecido, consumida pelo
fogo assim como tantos outros.
— Tome o seu sonífero, minha senhora — ela preferiu insistir, tirando o lápis
de carvão dos dedos de Alornis com gentileza, mas de modo firme. — Temos
uma marcha árdua pela frente amanhã. O sono lhe fará bem.

Eles chegaram à estrada em três dias; a chuva diminuiu um pouco na terceira


manhã, embora o avanço não fosse melhor para o norte. O Irmão Kehlan relatou
numerosos casos de homens saindo de forma durante a marcha devido a algo
chamado “pé de guarda”, uma afecção causada pela imersão constante na água
e que fazia a pele se tornar uma esponja. Em pouco tempo todos os carroções
estavam carregados de soldados de rosto acinzentado, seus pés enfaixados com
bandagens enroladas em lona para mantê-los secos. Assim, foi com um alívio
considerável que pisaram na estrada, um exemplo realmente extraordinário de
construção humana que humilhava as estradas de terra típicas no Reino. Malcius,
se você tivesse visto isto, pensou Ly rna, notando a curvatura suave na superfície
da estrada que permitia que a chuva escoasse para as beiras, você teria esvaziado
o tesouro para cobrir o Reino com tais maravilhas.
— Devemos fazer cinquenta quilômetros ou mais por dia aqui — disse o
Conde Marven com um sorriso de satisfação, batendo com a bota na superfície
de tijolos. — Mais, quando a chuva parar.
— Certifique-se de enviar batedores em todas as direções — disse Ly rna. Ela
relutava em dizer ao Senhor da Batalha como fazer o seu trabalho, mas o
conselho de Al Hestian instigara uma cautela que ainda sentia. Sem dúvida
encontrariam o inimigo em algum lugar ao longo daquela estrada; a única
questão era o tamanho da força.
— É claro, Alteza.
A chuva finalmente começou a diminuir três dias depois, revelando uma
paisagem agradável de colinas ondulantes e vales extensos de capim luxuriante e
poucos sinais de habitação, exceto por casas de campo ocasionais, todas
desocupadas.
— Todo o gado foi morto e as lavouras queimadas — relatou o Irmão Sollis
dois dias depois. Ele conduzira os seus irmãos num reconhecimento de longa
distância, sem encontrar qualquer sinal do inimigo, mas sim amplas evidências
de que a sua aproximação havia sido detectada. — Todos os poços foram
contaminados com carcaças. Há alguns corpos aqui e ali, a maioria de idosos,
escravos, a julgar por suas aparências.
— Já existiu alguma raça mais abominável do que esta? — disse Lorde Adal,
sacudindo a cabeça. Ele conduzira a Guarda do Norte para o sul numa missão
similar, retornando com notícias igualmente terríveis.
— Então não temos o que comer — disse Ly rna.
— Nossos suprimentos devem durar pelo menos até Volar, Alteza —
informou o Irmão Hollun. — Onde sem dúvida encontraremos mais, assim que
os nossos… assuntos forem concluídos.
— Se me permite, Alteza — disse Lorde Nortah —, eu gostaria de saber a
natureza exata de nossos assuntos em Volar.
Ly rna o olhou nos olhos, deparando-se com a prontidão costumeira dele de
responder ao escrutínio na mesma medida.
— Administraremos a justiça pelas ofensas cometidas no Reino — disse ela.
— E garantiremos que não sejam repetidas.
— Sim, como a senhora já afirmou antes. Contudo, eu gostaria de saber
como essa justiça será administrada. A senhora pretende realizar julgamentos?
— Não me lembro de quaisquer julgamentos em Alltor — disse Lorde
Antesh, encarando o Lorde Comandante com um olhar severo. — E sei que não
houve nenhum em Varinshold. — Ele raramente falava nos conselhos e ficava
entre as próprias tropas durante a marcha. Os cumbraelinos haviam assumido
um comportamento uniformemente taciturno desde a perda da Senhora Reva, do
velho comandante da guarda e de tantos de seus conterrâneos. Sempre que
percorria as suas fileiras, Ly rna se via recebida por acenos bruscos de cabeça ou
por um ressentimento não muito discreto; ela mandara a Senhora Abençoada
para a morte, e eles sabiam disso. No entanto, qualquer raiva que pudessem
sentir de sua Rainha era superada em muito pelo ódio ardente que tinham dos
volarianos, surgido em Alltor e em milhares de outras atrocidades inomináveis, e
agora estavam tomados por uma sede descomunal de vingança. A Senhora Reva
fora o elo deles com o amor e a orientação do Pai; Ele sem dúvida abençoaria
todos os esforços de vingar a sua morte.
— Não houve julgamentos em Alltor — retorquiu Nortah — porque os
volarianos são uma raça repugnante e pestilenta criada para a crueldade e o
assassinato. Por outro lado, nós nos imaginamos um povo racional e compassivo,
ou as nossas virtudes serão deixadas de lado agora?
— Coragem e fortitude também são virtudes — observou o Barão Banders.
— Nosso povo espera que garantamos o seu futuro. Isso não será feito de
coração mole.
— Atravessei os Confins e o Reino — disse Nortah. — Tomando mais vidas
em poucos meses do que eu havia tomado em todos os meus anos na Ordem.
Liderei meu regimento através de batalhas, fogo e privações porque achava que
era justo e certo… e minha esposa me disse que era necessário. Mas não desejo
olhar nos olhos dela quando ela se deparar com um homem que tomou parte de
assassinatos indiscriminados.
Ele se virou para o Aspecto Caenis, cujos olhos permaneciam fixos no mapa,
sem querer encontrar o olhar do irmão.
— E você, irmão? Está contente por a Fé ser manchada com sangue
inocente?
O Aspecto não respondeu de imediato, abaixando a cabeça num momento de
contemplação silenciosa. Quando por fim abriu os olhos e falou, o seu tom era
pesaroso, mas também determinado:
— A Imperatriz e o seu império são meras ferramentas de um inimigo maior.
Nós todos sabemos disso, apesar de frequentemente não ousarmos falar a
respeito. Conhecendo a natureza desse inimigo, vejo que o único caminho para a
sua derrota é empregar todas as medidas à nossa disposição. Se isso faz de nós
assassinos, então aceito o nome e a culpa. Pois se fracassarmos, irmão, não
haverá esposa à qual você poderá voltar.
— Não posso crer que o caminho para a vitória seja macularmos tanto as
nossas almas que nos tornemos indistinguíveis daqueles que enfrentamos. —
Nortah olhou para o Irmão Sollis, sua voz agora cansada. — Mestre? Sem dúvida
o senhor vê que a Fé nos obriga a um caminho mais razoável. A Ordem sempre
procurou defender os indefesos.
— E preservar os Fiéis — retorquiu Sollis, seu tom tão determinado quanto o
do Aspecto. — Se fracassarmos aqui, o mundo inteiro poderá ser arruinado. A Fé
deu o seu apoio ao caminho da Rainha com pleno conhecimento da importância
desta missão. Não podemos nos dar ao luxo de sermos virtuosos agora, irmão.
— E eu — disse Antesh por entre os dentes, ficando com o rosto vermelho —
não vim até essas praias para deixar que a maior alma da história cumbraelina
não seja vingada.
— Vingança não é justiça! — Nortah bateu com os punhos na mesa ao se
inclinar para a frente. — E se Lorde Vaelin estivesse aqui…
— Ele não está — disse Ly rna, sua voz calma, mas implacável. — Eu estou.
E sou a sua Rainha, meu senhor.
Ela observou o Lorde Comandante se controlar, ciente de que ele lutava para
não dizer palavras insensatas. De todos nós, só ele permanece imune à atração da
vingança, pensou ela. Essa compreensão lhe causou uma pontada de inveja, um
anseio por uma parte dela perdida em algum lugar entre as chamas.
— O senhor é um homem bom, Lorde Nortah — disse ela. — O Reino é
enriquecido pelo seu serviço. E eu lhe dou a minha palavra como sua Rainha de
que este exército fará todo o possível para poupar sangue inocente. Porém,
asseguro-lhe de que quando chegarmos a Volar garantirei que a cidade seja
destruída até o último fragmento de pedra e a terra salgada, para que nada possa
crescer entre as ruínas. Se não tem estômago para isso, o senhor tem a liberdade
de deixar o seu posto e partir sem desfavorecimento.
Lorde Nortah abaixou a cabeça, rangendo os dentes ao suspirar.
— Nada de sangue inocente — disse ele, de cabeça ainda baixa. — A senhora
me promete?
— A Palavra da Rainha está dada e não lhe cabe questioná-la, meu senhor —
rosnou Lorde Iltis.
Nortah ergueu a cabeça e fulminou o Lorde Protetor com o olhar por um
segundo antes de virá-los para os outros capitães. Ly rna se perguntou se ele
achava que era único homem são num exército de almas enlouquecidas. Quando
o seu olhar recaiu sobre ela, Nortah tornou a falar, sua voz a promessa seca e
precisa de um homem muito perigoso:
— Pode não caber a mim questionar a sua palavra, Alteza, mas garantirei
que a senhora a mantenha mesmo assim.

Outra semana de marcha os levou da agradável região das colinas para uma
vasta planície empoeirada, seu único marco de interesse um rio longo que se
estendia para leste num curso sinuoso quase paralelo à estrada.
— Pelo menos não seremos pegos desprevenidos — comentou o Conde
Marven, olhando para a paisagem desolada. — Não daria para esconder um
cavalo sequer aqui.
No dia seguinte, uma forma indistinta e irregular surgiu no horizonte
enevoado, revelando-se uma estranha construção extensa adornada com
múltiplos coruchéus altos. Ficava numa curva aberta do rio e tinha o tamanho de
uma cidade pequena, mas sem qualquer moradia. Era constituída por uma série
de estruturas piramidais dispostas em espiral, todas encimadas por torres
consideráveis, a maior chegando a pelo menos sessenta metros de altura.
— Uma fortaleza? — ponderou Benten quando chegaram a menos de um
quilômetro da estrutura.
— Não há muralhas defensivas — disse Iltis. — E ninguém para defendê-las,
se houvesse.
Não houve qualquer sinal de resposta à aproximação deles, e não se via
qualquer luz ou movimento nas estruturas variadas. Ly rna virou-se ao ouvir o
som de um cavalo galopando e viu Sabedoria parar ao seu lado. Ly rna deixara
Flecha no Reino, não querendo sujeitá-la aos desconfortos possivelmente mortais
da travessia do oceano, e encontrou a sua nova montaria vagando perto das dunas
quando desembarcaram. Era um belo garanhão de pelo totalmente negro, tão
imponente que Ly rna imaginou se o animal não havia levado a Imperatriz até a
praia no dia em que desencadeou a tempestade. Ela o chamara de Azeviche pela
sua cor.
— Grande Rainha — disse Sabedoria, um cumprimento habitual que sempre
deixava Ly rna se perguntando se não estava sendo ridicularizada. —
Impressionante, não? — prosseguiu a anciã eorhil, gesticulando para a
construção.
— De fato — concordou Ly rna. — Eu ficaria mais impressionada se
soubesse o que era.
— Navarek Av Devos, que significa Portal dos Deuses na sua língua. O último
grande templo dos deuses volarianos. O único a sobreviver à Grande Purificação.
Imagino que devido ao tamanho e por ficar afastado de outros lugares.
A Guarda do Norte de Lorde Adal cavalgou adiante para inspecionar o
templo e o encontrou deserto, a não ser por uma colônia de abutres, que havia
feito ninho ali. Por sugestão de Marven, Ly rna concordou em deixar o exército
acampar ali para passar a noite; o templo carecia de fortificações, mas ainda
possuía telhados de sobra, e ela sabia que muitos de seus soldados apreciariam
uma noite sob a proteção de pedras em vez de lonas frágeis. Havia espaço
suficiente para cerca de metade do exército, e Marven postou os remanescentes
num amplo arco defensivo ancorado no rio. O templo se estendia para além da
margem, onde uma longa fileira de estátuas monstruosas abaixavam a cabeça
para as águas. Eram uma combinação impossível de diversas feras: um tigre
com a cabeça de um lagarto, uma grande águia com uma longa cauda
escamosa. Havia também duas figuras humanas entre elas, guerreiros de
músculos implausíveis ajoelhados para colocarem a mão na correnteza veloz.
— Algum tipo de deuses? — perguntou Ly rna a Sabedoria enquanto
percorriam a cidade. Ela não conseguia deixar de sentir certo fascínio pela
absoluta excentricidade do lugar; a construção de um edifício tão vasto sem
nenhum propósito prático era tão desconcertante quanto encantadora, ao mesmo
tempo que proporcionava uma apreciação da longa história do povo que Ly rna
viera enfrentar. Eles nem sempre foram como são agora.
— Os cinquenta guardiões dos deuses. Criados a partir de todos os animais do
mundo para lutar uma batalha sem fim contra os Dermos, habitantes do grande
fosso de fogo debaixo da terra, os inimigos eternos de toda a humanidade.
O olhar de Ly rna foi atraído para a maior das estátuas, alguma espécie de
macaco de costas largas, com uma cauda longa e serrilhada e braços tão grossos
quanto troncos de árvores. A boca de Murel se crispou numa risada abafada ao
olhar de Iltis para a estátua.
— Como eles conseguiram capturar a sua imagem antes que tivesse nascido,
meu senhor?
Ela abriu um sorriso gracioso ao notar o olhar fulminante do Lorde Protetor e
beijou-o afetuosamente no rosto antes de se afastar dançando.
— Esse é Jarvek — disse Sabedoria. — Considerado durante muito tempo o
maior dos guardiões, até que o povo das sombras o tentou com um desejo
ardente por uma rainha humana. Ele a levou para o seu covil nas profundezas da
terra, mas, antes que pudesse saciar os seus desejos vis, ela foi resgatada pela sua
irmã, Livella, a donzela guerreira que portava uma lança abençoada pelos
deuses. — Sabedoria apontou para outra estátua próxima, uma figura feminina
alta sobre um pedestal, empertigada e orgulhosa de lança em punho. A visão da
estátua fez Murel cair novamente na gargalhada.
— Primeiro Sua Senhoria, agora a senhora — disse ela, apontando para
Davoka. — Este lugar é realmente espantoso.
Davoka apenas deu um leve sorriso, lançando um olhar crítico às improváveis
proporções generosas da estátua.
— Uma mulher assim passaria a vida caindo para a frente.
— Estátuas de guardiões, estátuas de heróis míticos — disse Ly rna. — Onde
estão os deuses?
— Não irá encontrá-los aqui — respondeu Sabedoria. — Os deuses eram
considerados tão divinos que era blasfêmia um humano tentar retratá-los. Até
mesmo os seus nomes só eram conhecidos por um clero pequeno e seleto.
Aqueles que queriam buscar a ajuda dos deuses faziam o pedido aos sacerdotes,
que por sua vez faziam o pedido ao deus necessário. Por um preço, naturalmente.
Iltis e Benten sacaram as espadas ao ouvirem um berro súbito vindo do centro
do templo, logo transformado num grito que ecoou pelas paredes de granito.
Ly rna não deu atenção às objeções de Iltis e foi investigar, indo até o espaço
circular no meio do templo, onde encontrou o Aspecto Caenis agachado sobre o
Irmão Lucin. O idoso dotado estava deitado de costas no chão, o rosto contorcido
numa careta de dor e horror, espumando pela boca.
— Ele quis muito ver como este lugar era antes de ser abandonado —
explicou o Aspecto, segurando o irmão enquanto ele convulsionava.
— Uma decisão infeliz — comentou Sabedoria, apontando para um pedestal
baixo de pedra ali perto. — Os deuses eram generosos, mas também sedentos.
O pedestal tinha um metro de altura, era estreito e retangular, com um
semicírculo entalhado na parte superior. Junto à base havia uma mossa côncava
no chão de pedra, de onde numerosos canais seguiam na direção das estruturas
piramidais ao redor.
As convulsões do Irmão Lucin cessaram e o velho abriu os olhos, arregalados
pelo choque do que quer que tivessem testemunhado.
Sangue, pensou Ly rna, olhando para o pedestal. A pedra havia sido limpa por
séculos de vento e chuva, mas ela sabia que já fora vermelha. É sempre o sangue
com essa gente. Antigamente derramado para saciar as criações de sua própria
imaginação. Agora bebido para afastar o espectro da morte. Matar os seus deuses
não fez com que mudassem.

Ela não sonhava desde a Batalha dos Dentes, passando todas as noites num sono
profundo e tranquilo. Ly rna teria gostado de pensar nele como o sono de uma
alma justa e satisfeita, mas sabia que tinha mais a ver com simples exaustão,
uma vez que todo dia era muito cheio. Assim, ela levou algum tempo para
perceber que os seus pés descalços não estavam realmente pisando no chão de
pedra do templo, levando-a na direção do pedestal num passo lento porém
constante. A pedra agora estava vermelha, como havia estado quando aquele
lugar liderava a fé de tantas almas iludidas, coberta de sangue de cima a baixo, a
mossa côncava transbordando com o líquido, os canais levando a oferenda até as
moradas silenciosas dos deuses.
Havia uma mulher de aparência terrível ao lado do pedestal, de faca em
punho. Trajava um vestido azul sujo, o corpete e a saia escuros de tão
manchados, embora Ly rna pudesse ver que aquela fora um dia uma bela
vestimenta, digna de uma princesa, na verdade. Porém, era o rosto da mulher
que lhe chamava a atenção, em carne viva e recém-queimado, filetes tênues de
fumaça ainda subindo da carne carbonizada.
— Eu estive esperando — disse a mulher queimada, fixando em Ly rna um
olhar intenso, com um tom de censura na voz.
— Pelo quê? — perguntou Ly rna, perplexa.
— Por você, é claro. — A mulher gesticulou com impaciência para algo nas
sombras e um jovem saiu para a luz, baixo, mas com uma aparência bela e
delicada. — Seus adoradores estão ansiosos para fazerem uma oferenda.
Ly rna observou o jovem ajoelhar-se diante do pedestal, olhando-a nos olhos,
o rosto inexpressivo.
— Eu mantive a minha promessa — disse Ly rna a ele, incapaz de esconder o
tremor da voz. — Eu encontrei a sua mãe. Ela está viajando com o meu exército,
como uma irmã da Sétima Ordem, que veio para conseguir justiça para o filho.
Fermin sorriu e seus lábios se arreganharam a um extremo impossível,
revelando longas fileiras de dentes triangulares, os dentes de um tubarão.
A faca da mulher queimada reluziu e a garganta de Fermin foi aberta, o
sangue jorrando numa torrente, escorrendo pelas laterais do pedestal e enchendo
a concavidade. A mulher queimada empurrou o corpo para o lado e tornou a
gesticular, e outra figura adiantou-se. Ele era mais alto, corpulento, o rosto
marcado por cicatrizes revelando uma vida difícil, embora o seu sorriso fosse o
mesmo que lhe surgira nos lábios quando o dardo da balista o atravessou pelas
costas. O dardo ainda estava lá, a ponta de aço saindo pelo peito, raspando na
pedra ao se ajoelhar.
— Você teve uma escolha. — Ly rna soube que as palavras eram uma
mentira assim que deixaram os lábios. No entanto, Harvin pareceu achar a
desonestidade dela engraçada, pois gargalhou quando a faca reluziu de novo. —
Eu não fiz isso — insistiu ela quando a mulher queimada empurrou o corpo para
longe e tornou a gesticular. — Eles me serviram de livre-arbítrio.
— Como deviam — disse a mulher queimada. — Mortais vivem apenas para
servir os seus deuses.
Furelah apareceu em seguida, curvando-se para Ly rna com uma adaga em
cada mão, o rosto e os cabelos molhados de água do mar, as órbitas vazias, a
carne em volta delas parcialmente apodrecida. Pouco antes de a faca lhe abrir a
garganta, um pequeno caranguejo saiu do círculo negro de seu olho, batendo as
pinças para Ly rna como se a acusasse.
Ela desviou o olhar da cena, mas foi em vão. O templo agora estava cheio.
Havia uma fila longa de pessoas; ela conhecia algumas, mas não a maioria. O
arqueiro meldeneano que despencara do cordame nos Dentes, a seordah que
morrera em Varinshold e tantos outros. Eorhil, nilsaelinos, cumbraelinos, como
Furelah, todos pingando água salgada, suas carnes parcialmente levadas pelo
mar…
— E U NÃO T IVE E SCOL HA! — gritou Ly rna para a mulher queimada, calando-se
ao ver a figura agora ajoelhada diante do pedestal.
— Escolha? — perguntou Malcius. Sua cabeça estava inclinada num ângulo
obsceno, embora o rosto fosse gentil, o sorriso cheio de afeição e solidariedade.
— Escolhas não são da alçada daqueles que ousam governar. O mundo é seu
para fazer o que quiser dele, minha irmã. Como eu sempre soube que seria. Não
acha que teria sido mais bondoso me matar mais cedo, antes de eu assumir o
trono? Isso não lhe ocorreu? Uma pequena gota de veneno na minha taça de
vinho? Teria sido tão mais fácil.
— Não — disse ela num sussurro. — Você era o meu irmão… Certa vez fiz
algo terrível por você.
— Você me deixou livre para presidir a destruição de meu Reino, o
assassinato de minha esposa e de meus filhos.
Ele ergueu os braços quando a mulher queimada se aproximou. A faca dessa
vez não reluziu, e a mulher a pressionou contra a carne dele com uma suavidade
delicada, até mesmo afetuosa, aninhando a cabeça de Malcius em seu peito com
a outra mão.
— Não dê as costas agora, Ly rna — disse Malcius quando a lâmina foi
passada pela sua garganta. — Pois os deuses estão sempre sedentos…

Ela despertou com as sacudidas gentis de Murel, que ficou visivelmente


sobressaltada com o olhar arregalado de Ly rna.
— O Senhor da Batalha tem uma mensagem para a senhora, Alteza — disse
ela. — Um exército volariano se aproxima pelo leste.
Ela encontrou o Conde Marven nos degraus do templo, a planície mais além
repleta de soldados entrando em formação e cavaleiros galopando até as suas
companhias, uma nuvem espessa de poeira erguendo-se e encobrindo o sol
matutino.
— O Irmão Sollis estima que sejam sessenta mil, Alteza — relatou o Senhor
da Batalha. — Quase todos Espadas Livres, o que é incomum. Porém, estão se
aproximando de forma ordenada.
Sessenta mil. Pouco mais da metade do nosso exército. Talvez a Imperatriz
esteja fazendo uma aposta arriscada para deter o nosso avanço?
— Não se arrisque, meu senhor — disse ela a Marven. — Não podemos nos
dar ao luxo de ter baixas significativas.
— A batalha sempre é um risco, Alteza. Mas estou convencido de que a
questão estará resolvida ao meio-dia. — Ele fez uma mesura e foi até o seu
cavalo, partindo a galope e logo desaparecendo em meio aos homens e à poeira.
Ly rna olhou para a torre mais alta do templo. Ficou tentada a se poupar do
espetáculo da batalha, uma vez que o sonho acabara com qualquer desejo de
presenciar mais derramamento de sangue, mas parecia uma atitude covarde
desviar o olhar de seu exército agora.
— Minha senhora, veja se consegue encontrar uma luneta — disse ela a
Murel, seguindo para a torre.
Foi desgastante subir a torre; suas pernas doíam com o esforço ao se forçar a
subir os degraus estreitos sem diminuir o ritmo, seguida de perto por Iltis e
Benten, que ofegavam. Era difícil não se distrair com a decoração interna da
torre. Cada superfície, incluindo os degraus sob os seus pés, era adornada por
alguma antiga escrita volariana, os símbolos nos níveis inferiores entalhados com
uma precisão e elegância delicadas que desapareciam quanto mais alto Ly rna
subia, de modo que quando chegou ao topo os símbolos eram uma confusão de
marcas aleatórias, aparentemente gravadas ao acaso por alguma mão febril. Ela
decidiu perguntar a Sabedoria o significado de tudo aquilo quando houvesse
tempo.
O topo da torre consistia num espigão com ameias que se erguia de uma
plataforma plana de granito de uns quatro metros de diâmetro. Tal como os
degraus, a plataforma estava adornada por mais escritos, tão confusos que Ly rna
soube que estava olhando para a obra de uma alma enlouquecida. Não havia
balaustrada ou qualquer espécie de abrigo na plataforma, e um vento forte e
cortante jogou os cabelos de Ly rna de um lado para outro assim que ela deixou a
escada. Benten avançou para olhar por sobre a beirada desprotegida e recuou
rapidamente com o rosto um pouco pálido.
— É melhor ficar perto do centro, Alteza — aconselhou ele.
Ly rna olhou para leste e viu duas grandes muralhas de poeira aproximando-
se uma da outra na planície. A cortina de vez em quando se levantava e revelava
os regimentos em marcha, fornecendo algumas indicações sobre o modo como
Marven organizara os soldados. Ele posicionara uma linha compacta de Guardas
do Reino à sua esquerda, perto do rio, o que evitaria qualquer flanqueamento
naquela direção. O centro era mantido por uma mistura da infantaria nilsaelina e
da Guarda do Reino, enquanto o grosso da cavalaria movia-se em paralelo às
fileiras deles no flanco direito. Atrás do contingente principal havia mais quatro
regimentos de infantaria e os cavaleiros renfaelinos, embora apenas dois terços
estivessem montados, o restante sendo obrigado a sofrer a indignidade de
marchar para a batalha.
— Que visão, Alteza — disse Iltis com um raro sorriso.
Ly rna tivera a sua dose de batalhas, mas somente como participante, e ver
uma se desenrolar a tal distância lhe causou uma estranha sensação de culpa,
como se fosse uma espectadora de algum espetáculo sangrento.
— De fato, meu senhor — disse ela, forçando um sorriso. — Que visão.
Murel apareceu ao lado de Ly rna, curvada e sem fôlego.
— Com os cumprimentos do Irmão Hollun, Alteza — ofegou ela, oferecendo
uma luneta. Ly rna pegou o instrumento, estendeu-o e voltou a lente para o
exército volariano. Passaram-se vários momentos até a poeira assentar o
bastante para que ela pudesse discerni-los e ver que suas fileiras estavam bem
organizadas, os batalhões de Espadas Livres marchando num ritmo constante.
Assim como Marven, o comandante volariano percebera a sensatez de ancorar o
flanco esquerdo no rio, com a maioria da cavalaria no direito. No entanto, Ly rna
podia ver que a linha deles estava bem espalhada, a infantaria movendo-se
apenas em fileiras duplas de modo a formar uma frente larga o suficiente para
igualar-se à do inimigo. Ela ergueu a luneta, a poeira movendo-se o bastante para
que pudesse enxergar a retaguarda deles.
— Nenhuma reserva — murmurou ela. Ela pretende nos sangrar?
Desperdiçar as vidas de um exército inteiro para reduzir o número de nossos
soldados? Aquela parecia uma estratégia medíocre mesmo para uma mente
insana. Por que não reunir forças suficientes para nos enfrentar em igual número
mais adiante na estrada?
Marven parou o exército a trezentos metros dos volarianos, e arqueiros
cumbraelinos avançaram para formar três fileiras compactas na frente da linha.
A tempestade a deixara com somente um terço dos que haviam zarpado por
ordem da Senhora Abençoada. Porém, os cadáveres repletos de flechas que
Ly rna vira em Alltor haviam fornecido amplas evidências do que até mesmo um
número pequeno de arqueiros podia fazer, e ela tinha mais de três mil. Somadas
aos arqueiros, havia as doze balistas montadas em carroções, que agora eram
empurrados para a frente. Ly rna inspecionou cada uma com a luneta para
certificar-se de que Alornis não havia conseguido de alguma forma escapar dos
cuidados de Davoka, e soltou um leve suspiro de alívio com a sua ausência. Ela
dera à lonak instruções estritas de amarrar as mãos e os pés da Senhora Artífice
caso ela tentasse ir para a batalha, e esperava que isso não tivesse sido
necessário.
Uma agitação tomou conta das fileiras vagas dos arqueiros quando a linha
volariana chegou a duzentos metros de distância, a luneta avistando homens com
os arcos preparados e erguidos para o alto, cada um com várias flechas fincadas
no solo em volta dos pés. Eles dispararam como um só, a chuva de flechas densa
o suficiente para que Ly rna pudesse discernir a trajetória das setas, uma nuvem
escura e arqueada formando-se entre os arqueiros e os volarianos. A linha
inimiga pareceu reluzir sob o peso do ataque, o centro sendo o mais castigado.
As balistas logo se juntaram aos disparos, e pelo menos vinte homens
tombaram com a primeira saraivada; as fileiras dos batalhões centrais
diminuíam a cada passo. Ly rna viu um batalhão ser dizimado, deixando uma
dezena ou mais de mortos e feridos a cada dez metros, até que inevitavelmente
começou a se deslocar mais devagar, os homens em marcha vacilando enquanto
os companheiros morriam ao seu redor. Ela viu um oficial virar o cavalo de um
lado para outro, na retaguarda, agitando a espada e gritando ordens inaudíveis até
que um virote de balista atravessou o seu peitoral com força suficiente para
arrancá-lo da sela. O batalhão diminuiu ainda mais de velocidade, parou e então
se desfez, os homens largando as armas e dando meia-volta para fugir, curvados
debaixo da interminável chuva mortal.
Ly rna não conseguiu ouvir o grito que devia ter sido dado pelos cumbraelinos,
mas sabia que seria uma expressão selvagem de vingança ainda não saciada por
completo. Eles dispararam numa investida espontânea, largando os arcos e
sacando espadas e machados, correndo na direção da brecha na fileira volariana.
Não sendo homem de perder uma oportunidade, Marven deu o sinal para um
avanço imediato, e a Guarda do Reino inteira correu adiante, a cavalaria à direita
saindo em disparada ao mesmo tempo. Ly rna viu o ataque cumbraelino atingir o
alvo antes que a nuvem de poeira ficasse densa demais para que se pudesse
enxergar. Ela teve um vislumbre do centro volariano fragmentando-se sob a fúria
da investida, mas em pouco tempo o campo inteiro transformou-se numa massa
de poeira rodopiante e de sombras vagas e tremeluzentes de homens em
combate.
— Bem, esse foi um espetáculo de merda — comentou Iltis.
— Alteza.
Ly rna virou-se ao ouvir o chamado baixo porém insistente de Murel, vendo-a
apontar para algo ao norte: outra nuvem de poeira na margem oposta do rio.
Ly rna apontou a luneta para a base da nuvem e avistou um aglomerado de
cavaleiros avançando a galope.
— Cavalaria — murmurou ela, observando os cavaleiros aproximarem-se,
notando que usavam armaduras vermelhas em vez do preto volariano de
costume. Era uma força de tamanho considerável, mais de cinco mil, pelos seus
cálculos. A Imperatriz envia os seus Arisai, ponderou, lembrando-se da descrição
que o Irmão Frentis dera de uma de suas visões oníricas. Por que não os enviou
com o exército?
— O rio é fundo demais para ser vadeado num raio de quilômetros — disse
Benten. — Mesmo que tenham barcos, a batalha terá terminado antes de
conseguir fazer a travessia. Os arqueiros os farão em pedaços.
Ly rna sentiu uma inquietação crescente no peito à medida que os cavaleiros
de armadura vermelha se aproximavam, o curso deles ficando cada vez mais
evidente ao chegarem mais perto. Ela esperara uma tentativa contra o flanco do
exército, presumindo que possuíam algum meio de atravessar o rio, mas em vez
disso os cavaleiros cavalgavam diretamente para o templo, na direção dela.
— Quantos guardas o Conde Marven nos deixou? — perguntou ela a Iltis.
— Dois regimentos, Alteza. O Décimo Segundo e as Adagas da Rainha.
Ly rna aproximou-se da beira da plataforma e olhou para o templo abaixo.
Lorde Nortah claramente avistara os cavaleiros e estava posicionando a própria
companhia de arqueiros na margem do rio. Como se sentisse o olhar dela, ele
olhou para cima e gesticulou perplexo para a cavalaria que se aproximava.
Por que atacariam apenas para ficar dando voltas na outra margem do rio? O
rio…
Ly rna voltou a luneta para a correnteza veloz e viu apenas a água agitada,
cinzenta pelos sedimentos. Foi quando abaixou a luneta que notou algo estranho
nas águas, como a correnteza parecia um pouco mais veloz perto do templo, as
águas levemente mais claras.
— Há alguma coisa debaixo d’água — sussurrou ela, sabendo que era tarde
demais.
A companhia de cavaleiros que vinha à frente galopou na direção da margem
oposta e entrou no rio sem diminuir o passo, os cavalos afundando não mais do
que meio metro na água, deixando-a espumosa enquanto continuavam a investir.
Antes que Iltis agarrasse a sua mão e a puxasse para a escada, Ly rna teve um
vislumbre de um dos homens de armadura vermelha, que tinha um sorriso
radiante ao chegar perto da margem sul, rindo da parca saraivada dos arqueiros
de Lorde Nortah.
Davoka estava esperando na base da escada, o rosto sombrio e a lança já
ensanguentada. Alornis estava ao seu lado, olhando lívida e imóvel para a
carnificina que acontecia no templo. O barulho era quase ensurdecedor, o
choque de metais misturado com os gritos dos moribundos, os berros de desafio
dos que ainda lutavam e as gargalhadas dos homens que haviam chegado para
matá-la.
Ao deixar a escada, Ly rna viu uma das Adagas da Rainha, um sujeito
enorme que empunhava um machado e gritava de fúria a cada golpe enquanto o
seu oponente de armadura vermelha esquivava-se e fazia repetidos cortes
precisos em seu rosto. Para além deles, o templo estava envolto num tumulto de
combate e metal rodopiante, Lorde Nortah mal visível em meio ao turbilhão,
matando um Arisai e puxando uma das Adagas para perto, berrando ao tentar
reunir uma formação defensiva. Apesar de sua habilidade, Ly rna podia ver que a
sobrevivência dele devia-se em muito à Dança da Neve, a gata guerreira um
borrão de garras e dentes ao abater um inimigo após o outro, aparentemente
alheia aos ferimentos que lhe causavam nos flancos.
— Precisamos… — começou ela, dando um passo adiante.
— NÃO! — O punho considerável do Lorde Protetor fechou-se sobre o seu
braço, fazendo Lorde Nortah desaparecer de vista enquanto ela era arrastada
para longe.
— Lorde Nortah! — protestou Ly rna, tentando se soltar.
— Morrerá aqui defendendo a senhora, Alteza. — Iltis a empurrou contra
uma parede quando um Arisai surgiu de um canto, soltando uma gargalhada de
satisfação ao desferir uma estocada contra o Lorde Protetor com uma espada de
lâmina estreita. Iltis contorceu-se para o lado e a ponta da lâmina do Arisai
estilhaçou-se na pedra, embora ainda tivesse aço de sobra para bloquear o
contragolpe alto de Iltis, mas velocidade insuficiente para esquivar-se da lança
que Davoka cravou em sua virilha. Iltis empurrou o cadáver para o lado e
segurou de novo o braço de Ly rna.
— Os cavalos estão amarrados na extremidade oeste do acampamento —
disse ele. — Se eu tombar, Alteza, não se demore.
Mais dois Arisai apareceram para lhes bloquear o caminho, e Davoka e Iltis
os atacaram no mesmo instante. Aquela parte do templo era composta
principalmente de passagens estreitas que descreviam um caminho complexo
entre as várias estruturas piramidais, limitando os movimentos dos combatentes,
embora isso parecesse favorecer Iltis. O lorde corpulento prendeu o punho de sua
espada no de um oponente, empurrando-o para baixo com o seu peso e
acertando uma joelhada em seu peito, deixando-o sem ar, batendo então com a
cabeça desprotegida do volariano na parede repetidas vezes até o crânio rachar
como um ovo.
O que atacara Davoka conseguiu aparar as estocadas precisas da lonak com
aparente facilidade, soltando uma gargalhada que morreu em sua garganta
quando Ly rna arremessou uma adaga em seu pescoço. Um choque de aço às
suas costas a fez se virar e ela viu Benten, de costas contra uma parede, a espada
movendo-se numa velocidade frenética enquanto tentava repelir dois Arisai.
Murel, agachada ao lado de Ly rna, soltou um grito de fúria e lançou-se sobre o
inimigo mais próximo, cravando a sua adaga no braço do homem. O Arisai
afastou o braço antes que ela pudesse recuperar a lâmina para outro golpe e deu
um soco no rosto da dama que a fez cambalear para trás, depois avançou na
direção dela com um sorriso largo no rosto e então tombando ao ter o pescoço
perfurado pela espada de Benten. O outro Arisai jazia morto aos seus pés, mas o
jovem lorde estava com uma das mãos sobre um ferimento na lateral do corpo,
e o sangue escorria por entre os seus dedos.
— Meu senhor! — Ly rna correu na direção dele e se viu contida por Murel.
O olho da garota estava se fechando pelo inchaço e ela parecia um pouco tonta,
mas ainda teve forças suficientes para evitar que Ly rna corresse para o lado de
Benten quando mais três Arisai surgiram e um deles olhou rapidamente para o
lorde ferido antes de lhe abrir a garganta com um golpe rápido e eficiente.
— Lirhnah! — A mão de Davoka agarrou o seu ombro e a puxou dali, o
mundo tornando-se um borrão de combate frenético. Iltis ia à frente, tentando
encontrar um caminho pelo labirinto de pedra, agora apinhado de cadáveres a
cada esquina. Davoka protegia a retaguarda, parando para golpear com a lança
qualquer Arisai que ficasse ao alcance. Ao lado de Ly rna, Murel segurava a mão
de Alornis, o rosto da Senhora Artífice pouco revelando se ela tinha
conhecimento do horror ao redor.
Iltis soltou um grito de frustração ao se deparar mais uma vez com o caminho
bloqueado, abaixando-se sob uma espada e desferindo um contragolpe que
deixou o seu atacante dando risinhos enquanto olhava para os dedos decepados. O
Lord Protetor olhou ao redor, suas feições revelando um pânico que Ly rna
achava que ele não fosse capaz de sentir. Foi o medo dele que a fez se recompor,
afastando a visão de Benten, o sangue jorrando pelo pescoço aberto e
encharcando o chão do templo. Os deuses estão sempre sedentos…
— Para o centro, meu senhor — disse ela a Iltis. — Pelo menos há aliados lá.
Ele hesitou por um momento e então fez uma mesura curta.
— Peço perdão pelo meu fracasso…
— O tempo está contra nós, meu senhor. — Uma das Adagas da Rainha jazia
ali perto, uma mulher esbelta de cabelos escuros, sua machadinha aninhada nos
braços como se agarrasse um bebê amado. Ly rna agachou-se para recolher a
arma e fez sinal com a cabeça para que Iltis prosseguisse.
Eles foram obrigados a abrir caminho lutando até os defensores sobreviventes
de Lorde Nortah, talvez cinquenta deles num círculo compacto no centro do
templo, cercados por uma muralha crescente de mortos. Iltis matou um Arisai
pelas costas e desferiu grandes golpes de ambos os lados segurando a espada
com as duas mãos, abrindo passagem suficiente para que Ly rna e Murel
atravessassem com Alornis entre elas. Iltis tentou segui-las, mas caiu quando um
Arisai lhe chutou as pernas, outros se aproximaram para dar cabo dele, mas
Davoka aterrissou no meio dos guerreiros, a lança girando e arrancando olhos e
mãos estendidas. Ela parou para levantar Iltis e o Lorde Protetor abriu caminho
em meio à multidão de homens de armadura vermelha, seguido de perto pela
lonak, a lança ainda girando.
Ly rna foi colocada depressa no meio da formação, onde encontrou Dança da
Neve caída de lado, com pedaços de carne rasgada presos nas garras, o pelo
coberto de sangue, assim como o chão de pedra debaixo da gata. Apesar dos
ferimentos, os grandes olhos amarelos ergueram-se para Ly rna tão brilhantes
quanto antes. Ela até mesmo ronronou baixo quando Alornis ajoelhou-se e passou
a mão pela sua cabeça.
Ly rna ergueu a cabeça quando a cacofonia cessou de súbito, o entrechoque
de armas desaparecendo e deixando somente os gemidos dos feridos. Havia
Arisai por todos os lados, mas eles pareciam ter recuado um pouco. Muitos
estavam feridos, alguns gravemente, sem olhos ou de pé com talhos no rosto ou
com sangue escorrendo em abundância de buracos das armaduras, mas todos
estavam sorrindo, não em zombaria, ou de crueldade, mas de alegria.
É para isso que foram criados, pensou Ly rna, percorrendo com os olhos o mar
de rostos felizes. Uma nova raça nascida para ter prazer com a matança. O
volariano criado à perfeição.
As Adagas da Rainha estavam ao seu redor, respirando fundo em arfadas
irregulares, tensos para o próximo ataque. A maioria tinha ferimentos
ensanguentados, alguns os olhos arregalados de choque ou pesar. Mas, ainda
assim, não de medo, percebeu Ly rna, notando como as fileiras deles se fechavam
à sua volta, muitos lançando olhares furtivos como se temessem a desaprovação
dela. A Imperatriz criou algo abominável, concluiu. Eu criei algo grandioso.
— Parece que nós os deixamos felizes — disse ela, levantando-se do lado da
gata de guerra. Ly rna ergueu a machadinha acima da cabeça, a lâmina
ensanguentada evidência de que a sua dona morrera lutando, assim como ela
pretendia fazer. — Fiquem comigo e os faremos chorar!
As Adagas da Rainha urraram em uníssono, um brado selvagem de desafio e
sede de sangue, agitando as armas na direção dos Arisai e fazendo provocações
repletas de obscenidades.
— Vou fazer você comer as próprias bolas, seu risonho de merda! — gritou
um homem robusto, que segurava uma alabarda, ao Arisai mais próximo, que
pareceu achar isso ainda mais engraçado.
Ly rna encontrou o olhar de Lorde Nortah e viu a determinação sombria em
sua expressão. Ele olhou para Dança da Neve, que agora estava de olhos
fechados, e um espasmo de fúria e pesar passou pelo seu rosto antes de se
empertigar.
— Vamos tirar a Rainha daqui! — gritou ele aos seus soldados. — Formação
de ataque!
A resposta foi imediata, as Adagas da Rainha movendo-se com uma precisão
natural resultante de meses de treinamento, assumindo uma formação de cunha
dentro de poucos segundos. Nortah ergueu a espada, preparando-se para dar a
ordem para avançar, mas então parou ao ver uma agitação nas fileiras de Arisai.
A multidão abriu caminho e revelou uma figura alta, de armadura vermelha tal
como eles, mas o seu rosto era o de um homem muito mais velho, as feições
longas e magras, lábios finos e olhos azul-claros. Além disso, diferente dos Arisai,
ele não sorria.
Ly rna viu Nortah baixar o braço da espada ao olhar boquiaberto para o
homem alto, o rosto tomado pela perplexidade.
— Aspecto?
CAPÍTULO NOVE
Reva

— Por que você não… com medo?


A língua do Reino de Lieza era adequada, mas não perfeita, embora fosse
consideravelmente melhor do que o volariano de Reva. Ela estava sentava na
única cama, com os braços em volta dos joelhos, os olhos brilhantes enquanto
observava Reva praticar suas séries de movimentos de espada. No primeiro dia
de confinamento, Varulek lhe fornecera uma espada curta de madeira e alguns
conselhos veementes. “Prepare-se com todo o vigor. A arena não se importa com
quem você era, apenas com o que pode ser”.
Seus alojamentos consistiam numa câmara cavernosa sem janelas, o que lhe
dava espaço mais do que suficiente para praticar. Reva dançava pelo piso coberto
de mosaicos, esquivando-se por entre pilares elegantes de mármore negro com
veios brancos. As paredes eram decoradas com pinturas desbotadas que
retratavam várias feras e homens em combate, e Reva notou como Lieza fazia o
possível para não olhar para elas. Uma grande banheira havia sido inserida no
piso no fundo da câmara, enchida com água quente através de algum dispositivo
oculto de canos. Porém, fora a cama, havia pouco que pudesse ser chamado de
mobília, ou qualquer coisa pesada o suficiente para ser usada como uma arma
decente. Até mesmo a espada de madeira era feita de sândalo, e provavelmente
se despedaçaria ao primeiro contato com qualquer coisa sólida.
— O medo mata — disse Reva à escrava, rodopiando numa última
combinação de aparas e estocadas. — Você teria menos medo se treinasse
comigo.
A série era invenção sua, uma variante bastante modificada de uma das
séries padronizadas da Ordem de Vaelin, elaborada para enfrentar os Kuritai. No
entanto, de acordo com o que Lieza lhe contara sobre os espetáculos, Reva
concluiu que talvez fosse preferível enfrentar os escravos de elite. Ela
questionara rigorosamente a garota durante horas, parando somente quando ela
começou a chorar, as lágrimas escorrendo enquanto se atrapalhava com a
descrição de alguma espécie de gato com dentes como adagas.
— Eu não uma… guerreira como você. — Lieza abraçou-se com mais força,
encostando a cabeça nos joelhos.
— Então o que você é? — perguntou Reva.
— Escrava. — A garota falou num murmúrio, sem erguer a cabeça. —
Sempre só escrava.
— Você deve ter habilidades.
— Números, letras, língua. — Lieza encolheu os ombros. — Meu mestre me
ensinou muito. Não vai ajudar aqui. Eu sou Avielle, você Livella.
— E quem são elas?
— Irmãs. Uma fraca, outra forte.
Reva grunhiu de irritação e foi até a cama, agarrando a garota pelos pulsos e
a colocando de pé.
— Olhe para mim! — Ela segurou o queixo de Lieza e o ergueu, sacudindo-a
até que abrisse os olhos, úmidos e brilhando alarmados. — Basta disso.
Precisaremos de todas as nossas forças, suas e minhas, para o que quer que nos
espere aqui, se quisermos sobreviver.
A garota se encolheu e as lágrimas voltaram a escorrer.
— Eu não como você…
Reva ergueu a mão para esbofeteá-la. Bote alguma coragem nela à força,
faça-a praticar e bata nela toda vez que vacilar. Ela aprenderá depressa o
suficiente se eu colocar alguns hematomas naquelas pernas perfeitas, a pecadora
desgraçada e bastarda…
Suas mãos tremeram com um espasmo involuntário, permitindo que Lieza se
afundasse de novo na cama, a cabeça abaixada, sentindo-se miserável.
— Desculpe — disse Reva, afastando-se da garota chorosa, seu coração
batendo depressa.
O som de chaves sacudidas foi ouvido do outro lado da grossa porta de ferro.
As dobradiças rangeram ao se abrir, revelando Varulek com dois Kuritai às suas
costas. Ele olhou de Reva para Lieza, que ainda chorava.
— Fui instruído a punir essa aí caso ela não consiga lhe agradar — disse ele.
— Ela me agrada o suficiente — afirmou Reva. — O que você quer?
Varulek afastou-se da porta, inclinando a cabeça num gesto
surpreendentemente cortês de convite respeitoso.
— O louro lutará hoje. A Imperatriz achou que você gostaria de assistir.
Sua ideia inicial foi recusar, não desejando testemunhar o assassinato do
Escudo. Contudo, ela não encontraria uma oportunidade para escapar ali, e talvez
o pirata merecesse que o seu fim fosse testemunhado por pelo menos uma
aliada. Reva jogou a espada de madeira na cama, ao lado de Lieza.
— Tente, pelo menos — disse ela em voz baixa, colocando a mão no ombro
da garota. — Copie o que me viu fazer.
A cabeça da garota balançou no que pareceu ser um assentimento e Reva foi
até a porta, notando como os Kuritai mantinham um espaço de no máximo
quinze centímetros entre eles e Varulek. Ele tem medo de mim, concluiu ela,
deprimida pelas constantes evidências de que o Mestre da Arena não era tolo. Ele
permanecia inabalado com os insultos que Reva lhe lançava, estava sempre fora
de alcance e certificava-se de que os punhos dela estivessem agrilhoados nas
raras ocasiões em que tinha permissão de deixar a câmara.
Reva ficou imóvel quando um dos Kuritai levou uma faca à sua garganta, o
outro fechando os grilhões em volta de seus pulsos. Ela calculava que despachar
um deles seria relativamente simples, bastaria passar as correntes em volta da
garganta e quebrar o pescoço, mas ainda precisava elaborar uma manobra que
evitasse que o outro a matasse um segundo depois. Além do mais, Reva achava
improvável que Varulek simplesmente ficasse parado e a ajudasse a escapar.
Embora o volariano tivesse proporções medianas, ela podia ver pela sua postura
e pela força evidente nas mãos tatuadas que o combate não lhe era estranho.
Talvez já tenha sido um soldado?
— Seus aposentos são aceitáveis? — perguntou ele, conduzindo-a ao longo da
passagem. Eles estavam nas profundezas da arena, o corredor levando a uma
longa escadaria que subia num arco curvo alinhado com a gigantesca arena oval.
— Seria bom ter uma mesa e uma cadeira — falou Reva ao começarem a
subir os degraus.
— Seriam quebradas com facilidade e as pernas usadas como porretes —
retorquiu ele. — Então, infelizmente, tenho de recusar.
Reva segurou um suspiro de frustração, ponderando mais uma vez sobre a
predileção do Pai de colocar obstáculos em seu caminho. Por que não me
permitir um carcereiro estúpido?, perguntou a ele. Se o seu objetivo é me punir,
tentar escapar deste lugar sem dúvida servirá para isso num piscar de olhos. Não
houve resposta, é claro, e o Pai permanecia tão alheio às suas súplicas como
sempre fora, embora agora ela pelo menos visse uma razão. Eu menti em seu
nome. Não posso achar que mereço viver.
— Alguns livros para a garota, então — disse ela. — Acho que ela apreciaria
uma distração.
— Cuidarei disso.
Subiram em silêncio durante algum tempo, passando por várias plataformas
de sentinela, cada uma com uma dupla de Kuritai em sua típica imobilidade de
olhar vazio. Quanto mais subiam, mais ornamentada a estrutura que os cercava
se tornava, os tijolos expostos dando lugar a paredes lisas decoradas com
mosaicos e ocasionais esculturas em alto-relevo. Reva ficou surpresa ao notar
que a maior parte da decoração mostrava sinais de vandalismo não reparado,
escritos desconhecidos arrancados a cinzel ou imagens sujeitas a marteladas
despedaçadoras. Pela cor da pedra, ela deduziu que aqueles eram estragos
antigos.
— Esta é uma construção muito antiga — comentou Reva ao se
aproximarem do nível térreo da arena, a passagem estreita ecoando com um
zunido baixo que aumentava a cada passo. Era um som que Reva conhecia muito
bem, similar aos gritos coletivos dos arqueiros nas muralhas de Alltor quando
desafiavam os volarianos a marcharem para outra chuva de flechas, o brado de
muitas almas sedentas de sangue.
— De fato — disse Varulek. — Na verdade, é a mais antiga da cidade.
Produto de uma era menos esclarecida. — Ela notou uma entonação nova na voz
geralmente impassível dele, um leve porém discernível tom de desprezo.
— Menos esclarecida?
— Assim dizem os historiadores imperiais.
Reva viu como os olhos de Varulek se demoraram numa estátua ao subirem o
último degrau e entrarem na passagem larga e arqueada que levava à arena
propriamente dita. Era uma figura de bronze típica, como as muitas que vira na
viagem até ali, um homem, como costumavam ser, que empunhava uma espada
curta no alto num gesto de desafio heroico. Ela podia ver pelo lustre no bronze
que a estátua era relativamente recente, mas o pedestal em que estava era muito
mais antigo, um cilindro entalhado de mármore dourado-avermelhado, uma
placa de ferro pregada na lateral sem muita consideração com a pedra, que
estava rachada e lascada em vários lugares.
— Antes havia outra estátua no pedestal — disse Reva. — Quem era?
Varulek tirou os olhos da obra e começou a andar a passos mais largos.
— Savorek — respondeu ele numa voz seca. — O maior dos guardiões.
— Guardiões de quê?
Ele a conduziu até outra escada, que levava ao nível superior. Varulek
permaneceu em silêncio até subirem a escada e o barulho da multidão tornar-se
uma cacofonia incessante, quase abafando a sua resposta, mas Reva a ouviu.
— De tudo o que nos foi tirado.
Ele a levou por uma série de corredores, o caminho ladeado por guardas a
cada dez metros. A maioria ali era de Espadas Livres, embora suas armaduras e
armas tivessem uma aparência menos uniforme do que a dos recrutados que
enfrentara no Reino. Contudo, apesar da falta de uniformidade, Reva notou que
todos tinham a mesma expressão: olhos mais arregalados do que o normal, rostos
pálidos e maxilares que se contraíam intermitentemente. Todos eles estão
aterrorizados, compreendeu ela, voltando o olhar para o balcão onde uma figura
esguia estava sentada num banco acolchoado.
A Imperatriz levantou-se para recebê-la ao entrar no balcão, o seu sorriso
desconcertante em sua cordialidade genuína. Ela se aproximou e inclinou-se para
lhe beijar o rosto.
— Que bom que você veio, irmãzinha.
Reva cerrou os punhos com a proximidade dela, não gostando do fato de que
o perfume da Imperatriz agradava os sentidos de modo sutil. Porém, qualquer
impulso violento foi contido ao avistar os cinco Arisai no balcão, cada um
cumprimentando Reva com um sorriso de boas-vindas, enfurecedor por sua
intimidade. Acham que estão vendo alguém igual a eles, pensou ela, enojada com
a ideia.
A Imperatriz recuou, virou-se para Varulek e acenou para a multidão de
forma impaciente.
— Cale-os.
O homem de preto foi até a beira do balcão e ergueu a mão para olhos
invisíveis abaixo. Quase que de imediato ouviu-se o som de muitas trombetas, as
notas formando uma melodia estridente repleta de uma autoridade implacável. A
multidão ficou num silêncio absoluto no mesmo instante, não perturbado nem
mesmo pela mais leve tosse ou grito ocasional, como se cada alma presente
tivesse prendido a respiração ao mesmo tempo e temesse soltá-la.
— Honoráveis Cidadãos e gentalha de todos os tipos! — gritou-lhes a
Imperatriz, avançando até que os dedos dos pés descalços ficassem para fora da
beirada do balcão, sua voz ressoando com uma facilidade quase sobrenatural até
os cantos mais afastados da arena. — Antes de deliciar os seus corações
pestilentos com ainda mais sangue, eu gostaria de apresentar uma convidada
ilustre do outro lado do oceano. — Ela gesticulou para Reva, seus lábios dando o
sorriso encorajador de uma irmã mais velha. Reva não se mexeu, até que um
Arisai forçou uma tosse, coçando o queixo com uma careta de desculpas, a outra
mão apoiada na adaga em seu cinto. Ela foi lentamente para o lado da
Imperatriz, contraindo-se quando a mulher agarrou o seu pulso agrilhoado e o
ergueu. — Eu lhes apresento a Senhora Governadora Reva Mustor de Cumbrael!
— tornou a gritar a Imperatriz. — Muitos de seus filhos e esposos sem dúvida
tombaram pelas mãos dela, merecidamente, aliás. No entanto, mesmo que
nenhum de vocês seja digno de beijar os pés desta mulher, eu ainda assim
determinei que ela irá entretê-los aqui no seu devido tempo. Sua Imperatriz não é
generosa?
Ela apertou com mais força os pulsos de Reva, o rosto uma máscara de
intensa malícia. A Imperatriz continuou encarando a multidão no que pareceu
uma eternidade, percorrendo com os olhos cada fileira silenciosa, como se
procurasse a menor expressão de deslealdade. Por fim, ela grunhiu e soltou
Reva, voltando para o banco e gesticulando irritada para Varulek.
— Ande logo com isso. Irmãzinha, venha se sentar ao meu lado.
As trombetas tornaram a ressoar, uma nota menos estridente desta vez, quase
alegre. Os murmúrios da multidão aumentaram de novo quando Reva se sentou
ao lado da Imperatriz, não ouvindo nenhum grito de empolgação entre a tensão
de milhares que trocavam sussurros temerosos.
Um escravo trouxe chá em pequenas xícaras de vidro, assim como uma
seleção de bolos belamente decorados, cada um deles um cubo perfeito de
coberturas coloridas, encimados por algum tipo de folha de ouro minúscula.
— Meu brasão — disse a Imperatriz, erguendo um dos bolos para que Reva o
examinasse, revelando que o brasão era uma adaga diminuta dentro de um
círculo de corrente. — Morte e servidão, minhas duas dádivas. — Ela riu e
colocou o bolo na boca, franzindo o cenho consternada ao mastigar, seu rosto não
revelando mais satisfação do que se estivesse comendo um pão puro.
Reva voltou a atenção para a arena, vendo que o balcão oferecia uma visão
quase total do campo de areia. Ela calculou que talvez tivesse duzentos metros de
largura e quase trezentos de comprimento. A areia estava sendo preparada por
alguns escravos, que passavam rodos sobre diversas manchas escuras, sem
dúvida evidências de alguma matança que ocorrera antes. O olhar de Reva
esquadrinhou a multidão e ela notou como a entonação das vozes misturadas
havia mudado, o medo dando lugar a um burburinho coletivo de expectativa. Eles
a temem, mas não conseguem resistir ao que ela oferece aqui, concluiu Reva com
desprezo.
— Sim, horríveis, não? — comentou a Imperatriz, bebericando o chá.
Reva engoliu um suspiro.
Não sinta nada. Não pense em nada.
— Você odeia o seu povo como eu odeio essa gente? — prosseguiu a
Imperatriz. — A ingenuidade deles deve ser cansativa às vezes.
Reva sabia que estava sendo provocada, que aquela coisa estava tentando
estimular uma raiva que pudesse revelar algo de novo. No entanto, não havia
raiva em seus pensamentos ao voltá-los para o seu povo, o seu povo crente e
confiante.
— Eles rechaçaram o seu melhor exército durante meses — disse Reva. —
Famintos e sem esperança, eles deram o sangue e a vida para salvarem uns aos
outros. Seu povo se deleita com a crueldade e faz do assassinato um
entretenimento. Reservarei o meu ódio a eles.
— E a sua culpa para si mesma. — A Imperatriz deu uma mordida em outro
bolo, erguendo as sobrancelhas com leve desapontamento. — Tudo tem gosto de
cinzas — murmurou ela, jogando o bolo de lado.
Reva tentou ignorar o peso do olhar da Imperatriz concentrando-se numa
nova agitação na arena. Dois grupos de homens estavam surgindo de portas em
extremidades opostas, os brados excitados da multidão logo cessando quando a
condição dos homens tornou-se clara. Estavam todos nus e a maioria era de
meia-idade ou mais velhos, pálidos e trêmulos sob o escrutínio da multidão,
alguns com as mãos sobre os genitais de forma protetora, outros parados em
aparente perplexidade ou choque.
— Com licença por um momento, irmãzinha — disse a Imperatriz,
levantando-se mais uma vez. Ela foi até a beira do balcão, onde um Arisai
aguardava com um joelho no chão e estendia uma espada curta. — Como mais
uma prova da generosidade ilimitada de sua Imperatriz — gritou ela,
gesticulando com o braço de um extremo ao outro da arena —, acrescento mais
duas equipes às veneráveis Corridas da Espada! À minha direita, a Honorável
Companhia de Traidores. À minha esquerda, a Nobre Ordem dos Oficiais
Corruptos. Ambas conquistaram o meu desagrado com sua deslealdade e
ganância, mas a minha compassiva alma feminina me obriga a ser
misericordiosa. Haverá apenas um vitorioso na competição de hoje, que terá
permissão de viver o resto de seus dias como escravo e a família poupada das
três mortes.
Ela pegou a espada do Arisai ajoelhado e a arremessou no centro da arena.
Reva não conseguiu deixar de ficar impressionada com a habilidade do
arremesso, que fez a espada afundar na areia até o punho. A Imperatriz virou-se
quando as trombetas tocaram uma nota curta, o murmúrio da multidão agora
uma mistura de espanto e confusão.
Os dois grupos de homens nus continuaram imóveis quando a nota cessou,
trocando olhares cautelosos ou olhando para a multidão com o rosto manchado
pelas lágrimas e uma leve esperança no ar. Por um momento pareceu que
simplesmente continuariam parados ali, paralisados pelo terror, até que um grupo
de arqueiros Varitai posicionado nos níveis superiores disparou uma saraivada de
flechas na areia ao redor de seus pés. Um dos homens nus afastou-se do grupo de
imediato, disparando na direção da espada com uma velocidade surpreendente
para um sujeito com uma barriga tão avantajada. Vários homens começaram a
correr no seu encalço, fazendo os seus oponentes se moverem. Logo os dois
grupos estavam correndo na direção um do outro num estouro de carnes flácidas
e suadas, as vozes erguidas num desafio desesperado. O homem gordo foi o
primeiro a chegar à espada, arrancando-a da areia e a agitando contra a equipe
adversária quando se aproximaram, uma nuvem brilhante de sangue surgindo na
massa de carnes que se chocaram. O homem gordo logo desapareceu de vista,
afundando num mar de membros agitados enquanto os combatentes se
atracavam com uma ferocidade inexperiente. A espada reapareceu, erguida na
mão de um velho magricela de cabelos grisalhos e desgrenhados. Ele golpeou
repetidas vezes a multidão que o cercava, os olhos arregalados de loucura, antes
de ser arrastado e desaparecer de vista.
— Não desperdice a sua piedade — disse a Imperatriz a Reva, tornando a se
sentar. — São todos homens de preto, e não há um entre eles que não tenha
sangue nas mãos. — Ela se aproximou, baixando a voz a um sussurro
conspirador, como se fossem duas garotas trocando fofocas: — Então, está
gostando de Lieza? Não a acha uma coisinha doce?
Reva estava determinada a não responder e manteve o olhar na multidão
agora minguante de infelizes combatentes. Muitos estavam caídos na areia,
feridos ou cansados demais para continuar lutando, mas um grupo compacto
deles ainda se enfrentava no meio da arena, uma massa rodopiante de carnes
avermelhadas com a espada no centro.
— Posso providenciar uma substituta — prosseguiu a Imperatriz. — Caso ela
não esteja se mostrando do seu… agrado.
Não pense em nada. Não sinta nada.
— Eu a acho… aceitável.
— Fico feliz. Afinal, você é a Honorabilíssima Garisai. Os aposentos que lhe
foram dados são tradicionalmente reservados para os campeões mais
celebrados. Veja bem, antigamente os Garisai não eram escravos, mas sim
homens e mulheres livres, que vinham honrar os deuses com sangue e coragem.
Os invictos eram elevados a grandes posições, recebiam todos os luxos e
prazeres, pois os deuses favoreciam aqueles que conseguiam saciar a sua sede
infindável.
— O que aconteceu com eles? — perguntou Reva, observando um grupo de
cinco sobreviventes cercar o homem que agora empunhava a espada,
aproximando-se enquanto ele tentava afastá-los com estocadas desajeitadas, o
rosto pálido de exaustão. — Com os deuses.
— Nós os matamos — respondeu a Imperatriz, voltando a atenção para a
arena quando a competição se aproximou de sua conclusão.
O homem com a espada matou um oponente alto mas idoso, antes que os
outros chegassem perto e o derrubassem, punhos subindo e descendo num frenesi
até que um se afastou com a espada, virando-se de pronto para golpear os antigos
aliados, soltando um grito bestial a cada golpe. A multidão havia ficado mais uma
vez em silêncio e a fúria ritmada do homem reverberava pelos níveis
ascendentes, parando em meio a arfadas ao dar cabo da última vítima e cair de
joelhos na areia, chorando, o torso flácido vermelho do pescoço à cintura.
A Imperatriz estreitou os olhos por um momento para a figura encolhida.
— Um dos corruptos — disse ela antes de se virar para Varulek. —
Certifique-se de que ele dê cabo dos feridos e então o mande para a Casa da
Moeda. Carregar sacos de ouro e prata pelo resto da vida talvez lhe ensine o
verdadeiro valor do dinheiro.
Ela se recostou, esticou a mão e passou os dedos pelas madeixas do cabelo de
Reva que haviam escapado de sua longa trança.
— Os deuses já não tinham serventia para um povo disposto a ter um grande
futuro, um destino que só poderia ser alcançado pela união e pela razão objetiva
— afirmou ela num tom de reflexão. — Pelo menos foi o que o meu pai me
disse certa vez.
— Eles não eram reais — disse Reva. — Seus deuses morreram enquanto o
Pai do Mundo permaneceu. — Ela observou quando dois Arisai ergueram o
único sobrevivente e o empurraram na direção da forma prostrada de um
homem com a barriga aberta por um talho, uma mão agarrada às entranhas que
saíam enquanto erguia a outra numa súplica vã por misericórdia. — Vocês
construíram uma nação de horrores.
— E o que é a sua nação, irmãzinha? Uma perfeita civilização? Eu a vi, e
acho que não. Vocês rastejam para um sonho anotado séculos atrás, continuando
com a rixa interminável com aqueles que por sua vez rezam às almas
imaginadas dos mortos.
— Uma rixa que agora terminou, graças a você.
— E a você, Senhora Abençoada. Aquela que fala com a voz do Pai. — Ela
deu uma risada baixa quando o desconforto de Reva aumentou. — Ah, sim, eu
compreendo. Você mentiu. Milhares a seguiram até aqui para morrer, tudo por
causa das palavras que você disse em nome de um deus surdo-mudo. E, apesar
de nunca de fato ter ouvido a sua voz, você ainda receia ser punida por ele.
Ela se inclinou para mais perto, e Reva manteve o olhar fixo na arena e no
último homem, cambaleando feito um bebê ao ir de uma figura aleijada a outra.
— Deixe isso de lado, irmãzinha — sussurrou a Imperatriz no tom urgente de
um pedido honesto. — Eu posso lhe mostrar tantas coisas.
Reva viu o último dos feridos morrer antes de os Arisai arrastarem o
sobrevivente para fora da arena, suspenso entre eles, a cabeça jogada para trás
enquanto tagarelava com uma voz enlouquecida.
— Já vi o suficiente — disse ela.
Reva sentiu o hálito da Imperatriz em sua face quando ela soltou um pequeno
suspiro, beijando-lhe o rosto antes de se afastar.
— Sinto que tenho de discordar, minha senhora.
Os escravos levaram quase meia hora para remover os corpos da arena e
limpar o sangue empoçado da areia. A Imperatriz permaneceu em silêncio
durante esse tempo, seu rosto assumindo uma expressão estranhamente vazia, os
olhos embaçados. De vez em quando seus lábios se moviam num murmúrio
silencioso, sua fronte se franzia em confusão com alguma perplexidade interna,
suas feições ocasionalmente retesando-se numa máscara de espanto tão pesaroso
que Reva se viu abafando uma pontada de pena. Esta coisa é louca,
compreendeu. Uma Imperatriz louca para um império erguido com razão
objetiva.
As trombetas soaram de novo e a Imperatriz piscou, endireitando-se para ver
as figuras que saíam de uma porta da parede da arena. Havia dois homens,
ambos altos, um louro, outro moreno. O louro empunhava uma espada curta,
enquanto o seu companheiro carregava uma lança. Vestiam calças de couro,
mas nenhuma armadura, os peitos nus enquanto olhavam para os níveis ao redor.
Ao contrário dos infelizes homens de preto que os haviam precedido, não havia
qualquer sinal de súplica em seus rostos; estavam tensos, por certo, mas não
dispostos a implorar.
A multidão recobrou um pouco da animação diante da perspectiva de um
entretenimento que lhes era familiar, numerosas vozes erguendo-se em escárnio
ou apreciação, o horror da Corrida da Espada aparentemente esquecido. Os
pulsos de Reva rasparam nos grilhões quando ela cerrou os punhos, e seu olhar
voltou-se para o rosto do Escudo. Sua barba havia sido raspada, revelando feições
belamente esculpidas que ela sabia terem atraído a atenção de muitas senhoras
do Reino. Ela notou o reconhecimento dele quando Ell-Nestra encarou o balcão e
baixou a cabeça numa saudação rápida. Reva olhou para o moreno e viu que era
um jovem de não mais do que vinte anos, o rosto rígido com um medo
controlado que desapareceu quando a avistou. A sensação de reconhecimento foi
quase nauseante, e Reva se viu de pé quando o jovem alto caiu de joelhos, a
lança erguida no alto com as duas mãos. Ele gritou alguma coisa que se perdeu
em meio aos brados bestiais da multidão, mas Reva sabia bem qual era o
significado.
Alegra-me vê-la, Senhora Abençoada.
— Você conhece o mais novo também? — perguntou a Imperatriz, seu dom
decifrando os sentimentos de Reva com uma facilidade execrável.
Reva não soube por que respondeu. Talvez porque quisesse que ele tivesse
alguma forma de memorial, alguém que dissesse o seu nome antes que
morresse.
— Allern Varesh — disse ela, as palavras arranhando a garganta seca. — Da
Terra dos Rios e Guarda da Casa Mustor.
— Tanta culpa. — A Imperatriz colocou uma mão solidária em seu ombro,
puxando-a para perto. — Você precisa aceitar quem e o que é. — Ela acenou
para Allern, que continuava ajoelhado. — Ele e a sua laia jamais chegarão ao
nosso nível. A natureza fez deles nossos servos. Uma verdade que acredito que a
sua rainha compreendeu há muito tempo.
Ela deu um último abraço em Reva e foi mais uma vez para a beira do
balcão, a multidão calando-se de imediato com o toque das trombetas.
— Antigamente! — gritou ela. — Quando este império sofria com
superstições e ilusões, este dia era conhecido como o Festim dos Irmãos Caídos.
Uma celebração da batalha final travada pelos únicos mortais a serem elevados
à posição de Guardiões. Eu lhes apresento Morivek e Korsev!
Ela estendeu um braço para o Escudo e Allern, o jovem agora de pé, o olhar
ainda fixo em Reva, sorrindo e aparentemente alheio às palavras da Imperatriz
ou aos gritos entusiasmados da multidão.
— Desfrutem enquanto eles enfrentam os mais mortais dos Dermos —
entoou a Imperatriz, erguendo a mão para um portão na extremidade oeste da
arena. — Os Arautos da Queda!
O portão se abriu quando as trombetas tornaram a soar, a multidão
explodindo em vivas ao ver as criaturas que entravam na arena. A princípio Reva
achou que fossem parentes da gata guerreira de Lorde Nortah, mas logo
percebeu que era uma raça completamente diferente, de corpo mais esguio e
não tão alto. Além disso, a coloração também era diferente, o pelo rajado de
amarelo e preto do pescoço à cauda. Porém, a principal diferença eram os
dentes, e cada um dos animais possuía um par de presas semelhantes a adagas,
que arreganhavam sem parar ao fazerem força contra as correntes. Havia nove
deles, acorrentados em grupos de três sob o controle de um domador, homens
grandes em armaduras de couro segurando as correntes dos gatos numa das
mãos e um longo chicote na outra.
— Dentes-de-adaga — disse a Imperatriz, voltando para o lado de Reva. —
Dizem que foram criados no fosso de fogo pelos Dermos e enviados como
anúncio da iminente destruição da humanidade. Os antigos sacerdotes estavam
sempre prevendo o fim de tudo, grandes calamidades e pragas que só podiam ser
evitadas com mais homenagens aos deuses, e tributos aos templos, naturalmente.
Reva tentou acalmar o coração quando os domadores permitiram que as
feras chegassem mais perto dos dois homens no centro da arena, os gatos
sibilando e contorcendo-se nas correntes, aparentemente enlouquecidos de
desejo por sangue.
— Os filhotes mais ferozes foram criados dessa forma. Mantidos num estado
permanente de inanição. A arena é o único lugar que eles associam com carne
em abundância. Por isso tal ânsia.
Allern e o Escudo se aproximaram um do outro, o jovem guarda fazendo
uma última mesura a Reva antes de assumir postura de combate. Arentes o
ensinou bem, pensou ela, perdendo a batalha para controlar o coração, o suor
acumulando-se em sua testa enquanto ele palpitava contra o peito.
— Não — disse ela num sussurro, deixando de lado todo o orgulho e a atitude
desafiadora, sabendo que aquilo era algo que não podia testemunhar. — Por
favor.
— Está pedindo um favor, irmãzinha? — A Imperatriz colocou as mãos nos
ombros de Reva, virando-a e ficando face a face com ela. — O que você me
dará em troca?
— Eu lutarei — sussurrou Reva. — No lugar deles.
— Você lutará aqui de qualquer forma. E prometi um espetáculo terrível ao
meu povo terrível. O que mais você pode oferecer? — Ela abraçou Reva, sua
respiração suave no ouvido dela. — Quando o meu amado vier até mim,
derrotaremos o Aliado e o mundo será nosso. Venha comigo, irmãzinha. Eu lhe
darei o Reino para governar em meu nome. Fique com o seu Pai do Mundo, se
quiser. Não me importa que mentiras você conte. Leve estes dois como servos.
Com o condicionamento certo, eles serão realmente aterradores. Você poderia
destruir todas as outras crenças, banir para sempre a fé herética, levar o amor do
Pai a todos os cantos do Reino.
Ela recuou, sorrindo com ternura ao passar a mão pelo rosto de Reva,
enxugando a lágrima solitária que escapara de seu olho.
— Não é o que você sempre quis?
Reva olhou para a arena, vendo como os domadores colocavam os gatos em
círculo ao redor de Allern e do Escudo, aproximando-se cada vez mais.
— Você tem um dom — disse Reva à Imperatriz. — Uma canção que lhe
conta os sentimentos dos outros.
— Ela me conta muitas coisas.
Reva virou-se e a olhou nos olhos.
— O que ela está lhe contando agora?
Um lampejo de alarme passou pelo rosto da Imperatriz e sua boca crispou-se
numa mistura de divertimento e frustração quando começou a recuar, tarde
demais.
Reva jogou a cabeça para a frente, batendo com a testa na boca da
Imperatriz, fazendo-a cambalear para trás. Os Arisai responderam de imediato,
as espadas chiando ao deixarem as bainhas, aproximando-se por todos os lados,
exceto um. Reva correu para a beira do balcão e pulou.
CAPÍTULO DEZ
Vaelin

Dahrena retornou ao seu corpo com um grito, dobrando-se para a frente com o
rosto tenso de aflição. Vaelin a abraçou e a segurou até que parasse de tremer.
Ela voara apenas por um curto período de tempo por insistência própria, uma vez
que os montanheses ainda não haviam aparecido, de modo que Vaelin deduziu
que a sua aflição não se devia aos estragos causados pelo seu dom.
— Eles agora estão nas montanhas — disse ela, erguendo o olhar para ele
com uma intensidade pálida. — Matando todos que conseguem encontrar. Ele
sabia, Vaelin. Ele sabia que eu estava vendo, e gargalhou.
Vaelin reuniu os anciões do Povo Lobo para ouvir o relato dela e observou o
último vestígio de esperança desaparecer de cada rosto; a Sombra do Corvo
havia de fato sido lançada e o sofrimento prometido havia tanto tempo chegara.
— Há muitos Varitai entre eles — disse Dahrena —, e também Kuritai. Os
Espadas Livres não são tão numerosos, a maioria é da cavalaria, e suas almas
estão perturbadas, brilhando vermelhas de desconfiança e medo. Entraram nas
montanhas há dois dias. Vi evidências de uma batalha e o que restava de um
povoado. Todos estavam mortos, jovens e velhos. Não fizeram prisioneiros. Eles
não vieram pelos escravos. — Ela fez uma pausa, mantendo os olhos fechados
enquanto se forçava a lembrar. — Foram feitas coisas aos que eles capturaram
vivos. Foram muitos e prolongados os seus tormentos. — Ela encontrou o olhar de
Vaelin. — Ele queria que eu visse.
— Onde eles estão agora? — perguntou Vaelin.
— Movendo-se para nordeste. Estão mantendo uma formação compacta,
fazendo poucas patrulhas. Vi muitas almas se reunindo para confrontá-los, mas
em grupos pequenos, nenhum com a capacidade de deter o seu avanço.
— Então eles precisarão da nossa ajuda — disse Vaelin.
— Não. — O homem encapuzado era o único presente que estava sentado
junto a uma fogueira, que cutucava com um cajado grosso.
— Tem algum conselho a dar, Mestre Erlin? — perguntou Vaelin.
— Somente fatos óbvios, irmão. — Erlin suspirou e jogou o capuz para trás,
sorrindo para Dahrena com solidariedade. — Eles têm mais do que o dobro do
nosso número, não é, minha senhora?
Ela lançou um olhar cauteloso a Vaelin e assentiu.
— As tribos teriam de se unir para terem uma chance contra eles — disse
Erlin, virando-se para Vaelin. — E não farão isso. Tentei alertar os chefes, mas
eles não me deram ouvidos, achando que era apenas outra campanha por
escravos. Os volarianos aparecem de tantos em tantos anos, às vezes podem ser
comprados com minério e prisioneiros de outras tribos, às vezes os enfrentam
para que os guerreiros jovens possam conseguir as suas primeiras cicatrizes. Isso
vem ocorrendo há mais de duzentos anos e agora é quase um ritual. Eles não
compreendem o que estão enfrentando. Quando você for se juntar à batalha, eles
já estarão derrotados e espalhados.
Erlin virou-se de novo para a fogueira e Vaelin notou a brancura dos nós dos
dedos no cajado enquanto cutucava as brasas. Ele está com medo, compreendeu.
O que poderia assustar um homem que não pode morrer?
— As tribos o conhecem — disse ele. — Pode nos guiar até elas? Falar por
nós?
— Elas não falam como uma só. Quando as tribos não estão lutando umas
com as outras, elas lutam internamente. Quando conseguíssemos negociar com
todas, já seria tarde demais. De qualquer forma, eles verão vocês e essa gente
apenas como mais inimigos a serem enfrentados.
— Espera que eu fique sentado aqui e ignore um massacre?
— A criatura do Aliado está tentando atraí-lo. Você percebe isso, sem dúvida.
E não veio aqui para guerrear, veio pelo conhecimento que imagina que possuo.
A chave para derrotar o Aliado.
Vaelin franziu o cenho ao ouvir a nota sardônica na voz de Erlin, o tom de um
homem diante de um desfecho bastante previsível.
— Isso já aconteceu antes?
— Houve alguns ao longo dos séculos. Estudiosos, reis — ele lançou um olhar
breve e pesaroso a Vaelin —, guerreiros. Todos diante da desagradável verdade
da existência do Aliado, guiados até mim por conhecimentos antigos ou poderes
de dotados. Embora ninguém tenha me encontrado numa época tão turbulenta
quanto esta.
— O Aliado quer compor um final. Desta vez será diferente.
Erlin suspirou e levantou-se.
— Então é melhor eu lhe mostrar o que mostrei a eles, irmão. — Ele apontou
o cajado para leste, onde as nuvens negras pendiam baixas sobre os picos. —
Embora eu duvide que essa gente achará o clima agradável.

As colinas permaneceram resolutamente desertas enquanto eles marchavam


para leste, atravessando vales desprovidos de vida, com exceção de alguns alces
que fugiam ao primeiro sinal do cheiro deles no vento.
— Os montanheses são mineradores — explicou Erlin. — Mineram cobre e
estanho das montanhas e negociam com os volarianos, apesar de suas
dificuldades perenes. Há poucos veios aqui tão ao norte, e os batedores estarão
ocupados com esta última incursão.
— Você vive aqui há muito tempo? — perguntou Vaelin.
— Seis anos desta vez, embora eu já tenha ficado por quase três décadas. Isso
foi há dois séculos, quando o povo daqui não era tão feroz.
— O que o manteve aqui?
— Uma viúva com vários filhos. Ela tinha uma língua ferina, mas um
coração bondoso e pareceu não se importar que eu ficasse e fizesse o papel de
marido. Quando morreu, os filhos haviam crescido e os volarianos estavam
fazendo as primeiras operações para conseguir escravos. Achei melhor seguir
em frente. Apesar de sempre ser atraído de volta.
— Pelo quê?
A expressão de Erlin se anuviou quando parou para olhar as montanhas de
fogo ao longe, seu brilho flamejante mais intenso agora, e o céu acima cada vez
mais escuro.
— Tudo no seu devido tempo, irmão.
Ao anoitecer, Lorkan, Cara e Marken reuniram-se em volta de Erlin, ansiosos
por histórias de suas viagens. Cara era a que menos se lembrava dele, mas ainda
assim se recordava das histórias ouvidas no período que passara na Cidade Caída
durante a infância.
— Você voltou para o Extremo Ocidente? — perguntou ela. — Para o templo
acima das nuvens?
— Voltei. — Ele ergueu os olhos para os Senthar que haviam se aproximado.
Pareciam ser um dos poucos povos com os quais ele tivera mínimo contato, e
Erlin achava o desejo incessante deles por uma história um contraste
surpreendente com a sua reputação de ferocidade. — Mas fiquei apenas uma
noite.
— Ela estava lá? — insistiu Cara. — A Princesa de Jade?
— Estava, e encantadora como sempre. Intocada pela idade e ainda cantando
a sua bela canção. Fiquei feliz por ter feito o esforço de ouvi-la de novo, apesar
de a jornada ter sido mais difícil do que antes. Nem mesmo a terra dos Reis
Mercadores é imune a conflitos.
— Princesa de Jade? — perguntou Vaelin.
— A única alma que já encontrei que viveu mais tempo do que eu.
Consignada ao templo acima das nuvens quinhentos anos atrás pelos Reis
Mercadores, que ainda fazem peregrinações em busca de seus conselhos,
imaginando que ela mantém contato com o Céu. Creio que ela os ache bastante
divertidos, embora seja difícil dizer. Seu temperamento costuma ser tão
inescrutável quanto as suas palavras. Mas a canção… — Ele fechou os olhos,
lembrando-se de algo jubilante. — Anos incontáveis passados praticando o canto
e a harpa. Somente eu tive a felicidade de ouvi-la mais de uma vez na vida.
Vaelin viu Kiral se remexer pouco à vontade e soube o que a sua canção
estava lhe dizendo: aquele era um homem que esperava nunca mais ouvir a
Princesa de Jade. Nós causaremos a sua perdição. É isso que ele teme.
— Uma vez ouvi uma história — disse ele a Erlin. — Sobre um cavaleiro
renfaelino que teve a vida salva por um garoto com o poder de curar, que
viajava na companhia de um homem que não podia morrer. O cavaleiro contou
como esse homem tentava preservar os dotados na esperança de que nasceria
um no Reino com o poder para matá-lo, pois ele estava cansado de sua vida
eterna.
— Cansado? — Erlin reclinou-se um pouco, apertando os lábios em
contemplação. — A vida é feita de infindáveis sensações, mudanças
intermináveis e variedade ilimitada. Não fomos feitos para nos cansarmos dela, e
eu não me cansei. Porém, eu sempre soube que acabaria. Por mais anos que
tivesse, eu não poderia durar para sempre, tampouco deveria. A Princesa de Jade
soube disso na primeira vez que a procurei buscando uma resposta, uma razão
para eu permanecer jovem enquanto outros envelheciam, enquanto aqueles ao
meu redor morriam de pestes e doenças e eu não. Ela não respondeu, como de
costume. Muitos que sobem o caminho traiçoeiro até o templo com frequência
são mandados embora desapontados, e mesmo aqueles com quem ela escolhe
falar acham suas palavras obscuras, geralmente além de suas capacidades de
decifrá-las. Contudo, apesar de não me responder, ela permitiu que eu ouvisse a
sua canção, e isso foi resposta suficiente. Vejam bem, há uma imperfeição na
canção. Pequena, quase imperceptível ao ouvido destreinado, mas, para alguém
que viveu tanto quanto eu, tão dissonante quanto um aprendiz de menestrel
atrapalhando-se com os primeiros acordes. É apenas uma sequência breve de
notas, tão complexa a ponto de talvez estar além das habilidades de todos que já
seguraram uma harpa, inclusive ela. A canção dela não é perfeita. Ela não a
terminou, e talvez nunca termine.

Após três dias de marcha, eles avistaram o único povoado que haviam
encontrado até então, um pequeno aglomerado de casas de pedra no sopé de
uma montanha de topo achatado. Havia um leve traço de enxofre no ar e o céu
continuava encoberto por nuvens cinzentas que se tornavam negras a leste, onde
as montanhas de fogo ardiam com cada vez mais intensidade. Erlin os fez parar a
menos de dois quilômetros do povoado, de onde foi possível ver algumas figuras
correndo das casas, talvez uma centena, todas armadas.
— Os laretha não recebem muitos visitantes — disse Erlin. — Há poucos
deles e viver tão perto das montanhas de fogo lhes fornece certa segurança. —
Ele se virou para Vaelin, gesticulando na direção do povoado. — Eles vão querer
parlamentar com o chefe desta nova tribo.
Vaelin pediu que Astorek se juntasse a eles e seguiram Erlin até o povoado,
onde os guerreiros estavam dispostos numa fileira esparsa porém firme. Eram na
maioria homens, todos armados com um machado ou uma lança longa de
lâmina estreita. Todos vestiam saiotes de couro que lhes chegavam às
panturrilhas, decorados com vários símbolos pintados, e peitorais de bronze que
brilhavam um pouco à meia-luz. No centro da fileira havia um homem robusto
de meia-idade, com um machado em cada mão, o longo cabelo grisalho preso
para trás em tranças grossas. Sua postura rígida pareceu relaxar um pouco ao
avistar Erlin, mas o seu semblante permaneceu carregado de desconfiança ao
passar os olhos por Vaelin e então ficou furioso ao avistar Astorek. Ele ergueu os
dois machados quando se aproximaram e a sua gente adotou de imediato uma
postura de combate.
— Pertak! — gritou Erlin ao homem robusto, dando um sorriso de boas-
vindas e então gesticulando para Vaelin e Astorek quando continuou a falar.
— Ele disse que trouxe muitos aliados para os laretha — informou Astorek.
Vaelin notou a grande inquietação na fronte do xamã. — Isso é uma tolice,
Sombra do Corvo. Essa gente oferece apenas morte a forasteiros.
Com a cabeça Vaelin indicou Erlin, que agora se aproximava do chefe de
braços abertos.
— Mas não a ele.
Erlin parou a alguns metros do chefe, suas palavras baixas e inaudíveis para
eles, embora o semblante do homem robusto tivesse perdido um pouco da
ferocidade, mas nada da desconfiança. Após alguns momentos, Erlin virou-se e
fez sinal para que se aproximassem.
— Pertak, chefe dos laretha, exige um tributo se vocês forem poluir as terras
dele com a sua presença — disse Erlin, embora Vaelin ainda não tivesse visto o
homem robusto falar.
— Tributo?
— Apenas uma oferenda simbólica — explicou Erlin. — Se permitir que
vocês passem sem um, ele parecerá fraco e um dos homens mais jovens irá
desafiá-lo.
O chefe falou, apontando um de seus machados para as fileiras reunidas do
povo do gelo, e fez uma exigência gutural. Vaelin olhou para onde o machado
apontava e se deparou com Dahrena, que estava de pé ao lado de Cicatriz,
segurando as rédeas do cavalo.
— Ele quer o meu cavalo?
— Ah, não. — Erlin deu um leve sorriso. — Ele quer a sua mulher.
— Isso é inaceitável. — Vaelin levou a mão a uma algibeira no cinto,
desamarrou-a e tirou de dentro uma pedra, um rubi belamente lapidado de peso
mediano que lhe fora dado pelo Governador Aruan nas docas de Linesh cerca de
dois anos antes, embora agora parecesse que havia sido há muito mais tempo.
Houve momentos em que ele ficara tentado a vendê-lo, em particular quando
estava na estrada, com Reva constantemente tão faminta, mas a canção do
sangue ressoara em alerta sempre que considerava fazê-lo. Vaelin esperava que
aquela ocasião fosse o motivo.
O chefe largou um dos machados para pegar a pedra preciosa quando Vaelin
a jogou para ele, arregalando os olhos com uma fascinação instantânea. Os
guerreiros ao seu lado esqueceram a disciplina e se aglomeraram em volta, cada
rosto iluminado por um arroubo de cobiça. Pertak rosnou algo e ergueu o outro
machado como aviso, fazendo com que recuassem, embora os guerreiros
voltassem continuamente os olhos para o rubi.
Pertak tornou a falar, fazendo uma pergunta a Vaelin ao erguer o rubi contra
a luz.
— Ele quer saber qual é o poder da pedra — traduziu Astorek, com uma leve
nota de desprezo na voz.
— As montanhas são ricas em minério, mas não em pedras preciosas —
disse Erlin. — Os laretha têm certa estima irracional por elas.
— Diga-lhe que tem o poder de capturar a alma dos homens — disse Vaelin.
— Ele não deve olhar para a pedra por muito tempo.
Um breve lampejo de medo iluminou os olhos do chefe quando Erlin relatou
o aviso, cerrando o punho com força sobre a pedra antes de erguer o olhar para
Vaelin, estreitando os olhos em contemplação. Ele grunhiu uma resposta brusca
e, com considerável determinação, deu meia-volta e caminhou na direção do
povoado, seguido de perto pelo seu pequeno exército, e toda a preocupação com
a chegada de um número tão grande de intrusos parecia ter desaparecido.
— Vocês podem ficar um dia e uma noite — disse Erlin. — Devo dizer que é
uma concessão bastante generosa.
— É o suficiente? — perguntou Vaelin. — Para os nossos propósitos?
Erlin ergueu os olhos para a montanha que assomava sobre o povoado, o topo
achatado parcialmente encoberto por uma névoa tênue.
— Você perceberá que o tempo perde o seu significado aqui, irmão.

Ele proibiu que qualquer um além de Vaelin o acompanhasse, embora Dahrena e


os outros dotados tivessem protestado com veemência.
— Viemos de tão longe — disse Cara — para que o conhecimento nos fosse
negado agora…
— Eu procuro preservar — interrompeu Erlin —, não negar. Acredite, você
não me agradeceria por esse conhecimento.
Erlin conduziu Vaelin por um caminho que dava a volta no povoado laretha e
ia até o sopé da montanha, parando entre um aglomerado de ruínas. Vaelin
examinou os blocos de granito e as paredes parcialmente desmoronadas, notando
uma familiaridade no modo como haviam sido modelados, a elegância das linhas
e das imagens desgastadas pelo vento que haviam sido entalhadas nas pedras.
— A Cidade Caída — disse ele. — Este lugar foi construído pelas mesmas
mãos.
— Não exatamente — retorquiu Erlin. — Apesar de falarem a mesma
língua. — Ele apontou para uma escadaria que subia das ruínas e unia-se à
encosta da montanha, e os olhos de Vaelin discerniram mais degraus entalhados
na pedra, subindo num caminho sinuoso até o topo. — E terem os mesmos
deuses.
— Então — disse Erlin enquanto subiam, os degraus úmidos devido à neblina
perene e o ar cada vez mais frio ao seu redor — você não segue mais a Fé.
— Um homem não pode seguir uma mentira.
— A Fé nunca foi uma mentira. Confusa em certos aspectos, presa demais a
dogmas em outros. Porém, tendo visto o que o resto do mundo tem a oferecer no
que diz respeito ao divino, ela me agrada o suficiente.
— Quando nos encontramos pela primeira vez, você disse que não tinha
escolha a não ser seguir a Fé. Quando compreendi quem você era, pensei que
queria dizer que a lenda era verdadeira, que os Finados o haviam amaldiçoado
por negar a Fé.
— Amaldiçoado? Durante muito tempo achei que fosse isso, quando fui
expulso de minha aldeia natal, ainda aparentando ser um homem de trinta anos
enquanto aqueles com quem eu cresci ficavam cada vez mais curvados e
enrugados. Minha esposa era quem mais me perseguia, amargurada pela inveja
diante da minha contínua juventude, odiando-me pelos fios grisalhos em seu
cabelo e pela falta de desejo no meu olhar. Eu nunca fui um praticante muito
assíduo da Fé, dizia os catecismos sem pensar de fato no significado, de vez em
quando murmurava palavras mordazes contra os irmãos e sua moralização
entediante. “Negador!”, a minha esposa me chamava, desesperada para
encontrar uma razão nesse mistério. “Os Finados o amaldiçoaram”. Imagino que
tenha sido aí que tudo começou. O insulto de uma velha amargurada deu origem
a uma lenda.
— Então você nunca ouviu as vozes deles? O Além não lhe foi negado? Erlin
parou, sua respiração saindo como fumaça e o rosto ficando sombrio.
— Ah, eu ouvi, mas só muitos anos mais tarde. Apesar das aparências, irmão,
não sou de fato imune à morte. Não envelheço e não adoeço. Mas sem comida
eu passo fome e, se for cortado, sangro como qualquer homem. Eu posso morrer
e uma vez, há muito tempo, morri. Ou pelo menos cheguei tão perto de morrer
que não faz muita diferença.
“Viajei muito depois que os aldeões me expulsaram, de uma ponta a outra
dos quatro feudos, pois o Reino não existia naquela época. Suponho que estivesse
procurando por algo, uma resposta para o enigma da vida interminável, mas eu
não fazia muita ideia de como encontrá-la. Místicos e charlatães não eram
difíceis de achar, todos prometiam sabedoria em troca de ouro, e com o tempo
todos provaram ser loucos ou desonestos. Um dia parei numa taverna nilsaelina e
ouvi um menestrel cantar sobre os costumes estranhos dos seordah, sobre como
preservavam o seu lar na floresta com encantamentos das Trevas. Pareceu um
bom lugar para procurar respostas. Afinal, eu era apenas um homem e sem
dúvida nenhum guerreiro. Que ameaça poderiam ver em mim? Creio que andei
durante meio dia entre as árvores até um seordah acertar uma flecha na minha
barriga.
“Ele se aproximou para me ver sangrar, um sujeito alto com rosto aquilino
que não mostrou muita reação quando implorei por ajuda. Depois de algum
tempo o rosto dele desapareceu e a escuridão fria da morte surgiu para me
buscar. Foi então que as ouvi, as vozes, sussurrando, gritando, implorando…
Havia muitas. ‘O Além é isso?’, pensei. ‘Apenas um vazio ecoando com as vozes
dos mortos?’ Nada de serenidade e sabedoria infinitas. Nada de uma eternidade
tranquila. Devo dizer que fiquei bastante desapontado.
“Notei que as vozes haviam desaparecido, prendendo a respiração ao mesmo
tempo, como se tivessem se calado numa expectativa temerosa. Então uma
falou, e não era como as outras. Elas eram baixas, como os últimos ecos de uma
canção sussurrada. Aquela era a voz plena e poderosa de uma alma completa,
mas antiga, muito antiga.”
— O Aliado — disse Vaelin, lembrando-se do frio ancestral na voz que ouviu
quando Dahrena o trouxe de volta do Além.
— Um nome que só fui escutar muito tempo depois. Mas, sim, era ele. E ele
tinha uma oferta a fazer. “Irei mandá-lo de volta”, disse ele, “se você for o meu
receptáculo”. Fui tomado pelo terror, não apenas dele, mas também da
perspectiva de uma eternidade naquele vazio terrível. Meu medo era tamanho
que poderia ter concordado num instante se não fosse por algo que ouvi em sua
voz: uma ânsia desmedida e desesperada, uma necessidade do que ele sentia em
mim. Era esmagadora, nauseante, e eu soube então que havia destinos piores do
que a morte.
“Ele sentiu a minha recusa, a minha repulsa, e eu senti a sua vontade. O
Além é um lugar que não é um lugar, um lugar de almas, mas também um lugar
de dor, se souber como infligi-la, e ele sabia. Pude senti-lo me atacando,
arrancando partes do meu ser à medida que eu era atingido pela sua vontade, não
com ódio, mas em rompantes precisos e agonizantes. ‘Sirva-me’, disse ele de
novo, ‘enquanto você ainda tem uma alma capaz de servir’. Não havia ódio
naquela voz, pois acho que ele já não era capaz de sentir ódio, transformado
pelas eras num ser de puro propósito.
“Eu me debati, gritei, chorei… implorei. Mas, ainda assim, recusei. Foi
quando senti outra vontade que não a dele. Era algo diferente, algo não tão antigo,
mas tão poderoso quanto, ao seu próprio modo, poderoso o suficiente para me
arrancar das garras dele. Pude sentir então a minha alma se refazer, embora
muito já tivesse sido tirado de mim, e memórias de infância e amizade se
perderam para sempre. Até hoje não consigo me lembrar do rosto de minha
mãe ou do nome da esposa que veio a me odiar.
“Minha salvadora falou comigo, a voz de uma mulher, a sua vontade tão
diferente da dele. Confortando enquanto ele havia ferido, afastando o terror que
ele tentara incutir. ‘Você não está acabado’, ela me disse. ‘Eu vi seu fim, homem
de muitas vidas, e não é este. Procure aqueles como você, preserve todos os que
puder, pois, quando retornar, será a força deles que irá sustentá-lo e trará o fim
pelo qual você passará a ansiar.’ Ela então me disse mais três palavras antes de
me tirar do vazio e me colocar de volta no meu corpo. O seordah ainda estava lá
e teve um sobressalto quando os meus olhos se abriram de repente. Pelo sangue
que escorria por entre os meus dedos, calculei que me ausentara por apenas
alguns segundos. O seordah disse algo, parecendo levemente irritado, e sacou
uma faca do cinto… e então a largou quando falei as palavras que ouvira no
Além: ‘Nersus Sil Nin.’”
— A cega o mandou de volta — murmurou Vaelin. — Ela está lá, no Além.
Enfrentando-o.
— Ela o enfrentou naquela época, mas agora… — Erlin sacudiu a cabeça. —
Agora parece que o poder dele cresce sem oposição.
Vaelin deixou de lado as inúmeras perguntas, acostumado havia muito tempo
com o fato de que quaisquer respostas demorariam a ser dadas.
— O seordah o curou — disse ele.
— Sim. Ele trouxe outros e me levaram para o seu acampamento. Meu
ferimento era grave e passaram-se muitos meses até eu poder viajar de novo.
Aprendi a língua deles, suas lendas, a verdade de como o nosso povo havia
tomado as suas terras. Também aprendi que não havia encantamentos das Trevas
protegendo a sua floresta, apenas grandes habilidades e uma coragem indomável
que causavam medo suficiente para nos manter afastados. Com o tempo, eu me
despedi e parti para cumprir a missão que ela me dera. Nem sempre tenho sido
assíduo com os meus deveres. Sou dado a distrações e às vezes me canso dos
erros repetidos com frequência e da crueldade que assola a humanidade. Porém,
acho que no fim — ele ergueu o olhar para os degraus enevoados acima — fiz o
que pude.

***

O topo da montanha estava envolto num silêncio tão pesado quanto a névoa que o
cobria, e era possível ver apenas formas vagas quando venceram o último
degrau. Erlin curvou-se um pouco pelo esforço, apoiando-se no seu bastão e
olhando para as formas sombrias adiante com óbvio receio.
— Odeio este lugar — sussurrou ele, a voz baixa ao se empertigar e seguir
em frente. — Porém, acho que aqueles que o construíram também odiavam.
Eles avançaram para dentro da névoa, as sombras transformando-se num
aglomerado de construções, todas exibindo sinais de terem sido erigidas pelas
mesmas mãos que haviam construído as ruínas no sopé da montanha. Eram na
maioria moradas térreas e estruturas menores que Vaelin supôs serem depósitos,
formando uma cópia em miniatura da Cidade Caída. Mas estas construções não
estavam em ruínas. O silêncio tornou-se cada vez mais opressor conforme
andavam por entre os prédios, cada porta e janela vazia uma testemunha
indiferente à passagem deles. Apesar da ausência de estragos, Vaelin sabia que
aquele era um lugar antigo; os cantos das construções haviam sido alisados e
arredondados pelas intempéries. Além disso, ao contrário da Cidade Caída, não
havia estátuas ali, e as únicas decorações eram imagens entalhadas acima de
portas ou janelas, que séculos de vento e chuva haviam despojado de significado.
Quem quer que tivesse construído aquele lugar aparentemente não tinha muito
tempo ou inclinação para arte.
Levaram apenas alguns momentos para vasculhar as construções e
terminaram na borda de um amplo círculo plano, em cujo centro havia um único
pedestal achatado no topo.
— Pedra da memória — disse Vaelin.
Erlin assentiu e Vaelin ouviu o leve tremor em sua voz quando falou:
— A última a ser entalhada, pela mão de um deus, ainda por cima.
A boca de Vaelin se crispou com um divertimento indesejado e ele se virou
para Erlin com um sorriso.
— Um deus é uma mentira.
Riram juntos, apenas por um momento, o som de seu júbilo logo se perdendo
entre a névoa e a pedra ancestral.
— Bem. — Erlin apertou o cajado com mais força e deu um passo adiante.
— Vamos?
Tal como as construções ao redor, os cantos do pedestal haviam sido
arredondados pelas eras de exposição às intempéries, o topo plano era liso e sem
marcas, a mossa no centro um círculo perfeito.
— Já tocou numa dessas antes? — perguntou Vaelin a Erlin.
— Quatro vezes até agora. Com frequência procuro lugares antigos, guiado
pelos mitos e lendas que escuto em minhas viagens. Uma delas falava de uma
cidade esquecida de imponente majestade escondida nas montanhas e protegida
por tribos selvagens. Não fiquei muito surpreso ao descobrir que a realidade não
correspondia à lenda. É raro corresponder.
Ele estendeu a mão, deixando-a erguida sobre a pedra, e olhou nos olhos de
Vaelin.
— Pronto, irmão?
— Já toquei duas vezes nessas pedras — disse Vaelin, notando o tremor nos
dedos de Erlin. — Elas possuem conhecimento, mas não são perigosas.
Erlin soltou outra risada, mais grave desta vez.
— Todo conhecimento é um perigo para alguém.
Vaelin estendeu a mão e Erlin a pegou, entrelaçando seus dedos nos dele.
Fechando os olhos, ele respirou fundo e colocou as suas mãos na pedra.
P ART E IV
Pelo cômputo alpirano, o Rei Janus Al Nieren nasceu no décimo ano do Novo Sol,
sob uma configuração de estrelas conhecida pelos astrólogos alpiranos como “O
Leão Empinado”, um fato que forneceria presságios de sobra tanto para
admiradores quanto para detratores no decorrer das décadas seguintes. Em
comparação, a sua filha nasceu sob a constelação relativamente mundana do
“Fardo de Feno”, assim chamada por sua semelhança ao trigo recém-colhido. O
fato de a Guilda Leal de Astrólogos Imperiais ter recentemente votado para
renomear a constelação como “A Chama Vingadora” revela muito sobre o curso
subsequente da história do Reino, sem falar na vacuidade essencial da arte do
astrólogo.

— Verniers Alishe Someren,


Uma história do Reino Unificado: Introdução,
Grande Biblioteca do Reino Unificado
RELATO DE VERNIERS

— Ela sabia?
Observei o porto conforme nos aproximávamos, sua vastidão evidência das
origens de Alpira como o maior centro comercial do baixo Boraelino. Estendia-se
numa ampla curva com cerca de cinco quilômetros, com incontáveis píeres e
ancoradouros e muitos navios, mais do que de costume, na verdade. À medida que
nos aproximávamos, notei que a maioria era de belonaves. Havia um exército de
trabalhadores em cada embarcação, revestindo os cascos com placas de aço e
instalando manganelas.
A Imperatriz Emeren chamou a sua frota de volta à capital, deduzi. Por qual
motivo?
— Meu senhor? — perguntou Fornella. Seu cabelo cada vez mais grisalho
estava preso naquele dia, afastado do rosto, que permanecia belo apesar do
número crescente de rugas. Com o seu vestido simples e enrolada num xale, ela
tinha a aparência de uma matrona graciosa, e os que estavam em terra firme
talvez a tomassem pela esposa do capitão. Uma ideia que me fez soltar uma risada
curta.
Fornella franziu o cenho de aborrecimento, mas se recusou a ser ignorada.
— Ela sabia, não é? Sabia sobre você e o Esperança.
Encolhi os ombros, assentindo lentamente. Ela olhou de relance para o capitão
e aproximou-se.
— Pague ao pirata para nos levar embora daqui.
— Temos uma missão a cumprir, Honorável Cidadã.
— Não à custa de sua vida.
— Eu dei a minha vida ao Imperador. A lei determina que eu agora a ofereça à
sua sucessora, assim como os meus conselhos sensatos.
— Acha mesmo que ela lhe dará ouvidos?
— Sei que dará. O que ela fará depois é um mistério.
Atracamos num dos ancoradouros menores próximos da extremidade norte do
porto, e o capitão foi obrigado a pagar o dobro da taxa normal de atracação a um
incomodado oficial subalterno do porto.
— Estou a negócios oficiais do Reino Unificado e das Ilhas Meldeneanas —
rosnou o capitão. — Isso pelo menos deve valer algum desconto.
— Você também tem um porão cheio de especiarias — retorquiu o jovem
oficial. — E o espaço é muito procurado. — Ele entregou uma nota ao capitão pelo
ancoradouro e ergueu a mão, esperando.
— Algum problema? — perguntei, indo para o lado do capitão.
O jovem olhou para mim por um longo momento e deu um passo para trás com
o rosto cada vez mais lívido.
— O senhor é Lorde Verniers? — perguntou ele num sussurro.
Eu estava acostumado a certa notoriedade nos cantos mais educados do
império, mas geralmente se limitava a cumprimentos cordiais ou pedidos de
comparecimento a vários eventos culturais. Assim, ver o burocrata de rosto pálido
cambalear para trás ao longo da rampa antes de se virar e correr pelo cais foi um
tanto inquietante, e o seu retorno pouco depois ainda mais, visto que estava
acompanhado por um pelotão de soldados. Eles se aproximaram correndo do
navio seguidos do jovem oficial, que gesticulava freneticamente e gritava para os
estivadores ao redor:
— O traidor! O traidor voltou!
— Creio, capitão — falei, pegando o meu saco de livros e caminhando até a
rampa —, que é melhor o senhor partir.
— Os Senhores Marinhos me disseram para mantê-lo a salvo — disse ele,
embora os olhos perspicazes revelassem uma grande preocupação com a
comoção que ocorria no cais.
— E sou grato pelos seus esforços. — Estendi a mão, esperando que ele a
ignorasse. Contudo, ele a apertou com força, fazendo uma careta de pesar.
— Boa sorte, honorável senhor — disse ele num alpirano surpreendentemente
bom.
— Desejo-lhe o mesmo, honorável senhor. — Olhei para Fornella e notei como
ela observava temerosa os soldados que se aproximavam. — Eu ficaria grato se o
senhor a levasse de volta ao Reino.
— Não. — Fornella respirou fundo e veio para o meu lado, forçando um
sorriso. — Temos uma missão, afinal de contas.
Aguardamos no cais, vendo o capitão fazer a sua tripulação mexer-se depressa
ao erguerem os remos para empurrar a embarcação para longe do molhe. Os
marinheiros logo se puseram a remar para alto-mar conforme as batidas urgentes
do tambor do contramestre.
— Qual era o nome dele? — perguntou Fornella. — Do navio.
— Nunca me ocorreu perguntar. — Virei-me quando os soldados pararam a
pouca distância. Eram recrutados de infantaria, a julgar por suas armaduras, meia
dúzia de jovens sob o comando de um sargento nem um pouco jovial.
— Seu nome? — perguntou ele, avançando, olhando fixamente para o meu
rosto.
— Lorde Verniers Alishe Someren — respondi. — Cronista Imperial…
— Não — rosnou ele, chegando mais perto com a mão na espada. — Não é
mais.

Fomos levados para a estação do capitão do porto, uma construção robusta


equipada com algumas celas para contrabandistas em geral ou marinheiros
barulhentos demais. Graças ao excitável oficial do porto, uma multidão havia
começado a se formar no cais quando os soldados nos cercaram.
— Se estou sujeito a ser preso, tenho o direito de ouvir a acusação — falei ao
sargento.
— Silêncio! — disse ele, ríspido, o rosto ruborizando ao ver a multidão que se
aglomerava no cais. — Já será difícil tirá-lo daqui sem que esse bando o pendure
no mastro mais próximo.
Eu podia ouvi-los agora, apesar da espessura das paredes que nos cercavam,
uma clássica turba gritadora. As palavras “Enforquem o traidor!” e “Vinguem o
Esperança!” pareciam as mais proeminentes entre os brados.
— “Somente no Império Alpirano o primado da lei é de fato respeitado” —
citou Fornella numa voz levemente mordaz. Como sempre, a sua memória para as
minhas obras era de uma precisão exasperante. — “A justiça é aplicada de forma
igualitária, independentemente de posição social. Todos, do súdito mais pobre e
andrajoso ao próprio Imperador, podem esperar um tratamento igual perante a
lei”.
Ela andava de um lado para outro na cela, retraindo-se com o ocasional
aumento da fúria da multidão.
— O que fez para despertar tamanha ira, meu senhor? — perguntou ela num
tom mais do que um pouco sarcástico. — Talvez tenha ofendido de algum modo a
Imperatriz?
— Você não precisava ficar — observei.
Fornella suspirou e sentou-se ao meu lado no tosco banco de madeira,
passando a mão pelo cabelo e soltando um gemido de irritação ao ver as madeixas
grisalhas que ficaram em seus dedos.
— Para onde mais posso ir?
Eu a vi erguer o cabelo contra a luz da pequena janela, pensando em como
lembravam fios de cobre manchados e fazendo uma nota mental para anotar a
observação mais tarde, caso me fosse dada a oportunidade.
— É isso que acontece? — perguntei. — Quando o sangue dos dotados lhes é
negado?
— Pelo que sei, nenhum outro dos que receberam a bênção do Aliado passou
por essa provação em particular. Alguns foram mortos, é claro, assassinados ou na
guerra, dada a natureza da política volariana. Porém, uma vez abençoado,
nenhum tentou existir sem se alimentar.
Ela abriu a mão e deixou o cabelo cair no chão, parando um momento para
dobrar os dedos no facho de luz do sol com um leve sorriso nos lábios.
— Estranhamente, não sinto falta. A mortalidade tem as suas compensações.
Um ruído de trancas e o som de passos anunciaram um visitante. Levantei-me
para encarar a figura que parou do outro lado das barras, um sujeito imponente de
feições belas, ainda que um pouco curtidas, e de cabelo curto que agora era mais
branco do que grisalho.
— Hevren — falei, notando o seu uniforme e a estrela em relevo no meio do
peitoral, o emblema de um comandante de Coorte. — Vejo que enfim foi
promovido.
— Lorde Verniers. — Seu tom era neutro, embora os olhos revelassem uma
cautela considerável ao irem de mim a Fornella. — Quem é ela?
— Fornella Av Entril Av Tokrev — disse ela, levantando-se. — Outrora do
Império Volariano e agora embaixadora em nome da Rainha Lyrna do Reino
Unificado.
Hevren voltou a olhar para mim.
— Chamado de traidor e agora aparece acompanhado por uma volariana.
Devo dizer, meu senhor, que começo a questionar a sua alardeada sabedoria.
Chamado de traidor… Apesar de falsa, a acusação ainda assim machucava.
Tudo o que dei, todos os anos de serviço, e é esta a minha recompensa.
— Posso saber quem me caluniou de tal forma?
Um espasmo de raiva tomou conta de seu rosto e ele se aproximou mais.
— Você foi chamado de traidor pela própria Imperatriz Emeren — disse ele
por entre os dentes. — Portanto, aconselho-o a ter muito cuidado com cada
palavra que disser.
Houve uma época em que eu teria recuado diante de um homem assim; esses
brutos sempre me deixavam nervoso. Contudo, parecia que a constante exposição
ao seu tipo acabara com boa parte de minha antiga timidez. Eram apenas homens,
afinal de contas, homens que podiam matar, assim como eu.
— Os detalhes da acusação? — perguntei, olhando-o nos olhos.
O fato de eu não demonstrar medo pareceu detê-lo, e sua raiva diminuiu
quando recuou.
— Tudo no seu devido tempo, como determinado pela lei. — Ele fez uma
pausa, encarando-me com uma relutância taciturna. Nunca tivemos qualquer
afeição um pelo outro, mas sempre houve alguma espécie de respeito mútuo, por
mais relutante que fosse. — Tudo o que você tinha a fazer era vê-lo morrer,
Verniers — disse ele. — Teria sido tão difícil assim?

Diziam que os Reis Mercadores do Extremo Ocidente possuíam palácios tão


vastos que lembravam cidades, que se estendiam por muitos acres e abrigavam
inumeráveis serviçais. No entanto, a grandeza não era medida apenas pelo
tamanho, mas também pela riqueza, e jamais fui capaz de conceber qualquer
construção que pudesse superar o Palácio Imperial Alpirano em pura opulência
arquitetônica. Ele estava situado no topo de uma colina alta, cujas encostas
íngremes se erguiam do Rio Tamerin, encimada por uma construção surgida numa
época em que a modéstia e o comedimento não estavam entre as principais
virtudes alpiranas. Era essencialmente um edifício na forma de uma grande estrela
de seis pontas, as alas estendiam-se de um centro circular encimado por uma
abóbada, e foi essa abóbada, é claro, que atraiu de imediato a atenção de
Fornella.
— Seus Imperadores gostam de cegar o povo? — perguntou ela, protegendo os
olhos. O sol do meio-dia estava alto no céu e a abóbada reluzia com intensidade
suficiente para ocultar a sua forma. Sempre achei que era melhor admirá-la ao
pôr do sol, quando o brilho alaranjado percorria a superfície prateada como a
chama de uma vela, bruxuleando até se extinguir com o cair da noite. Às vezes
Seliesen e eu cavalgávamos para além das muralhas e assistíamos ao espetáculo
do topo de uma colina. Ele disse que tinha um poema em mente que talvez fizesse
justiça àquela visão, mas eu nunca soube se chegou a escrever.
Hevren trouxera duas companhias inteiras de cavalaria para nos escoltar das
docas, embora quase não tivessem se provado suficientes para evitar que a turba
aglomerada cumprisse as ameaças gritadas. Porém, não foram as ameaças que
me machucaram, foram os rostos que vi ao cavalgarmos ao longo do canal estreito
que os homens de Hevren abriram à força em meio à multidão. Rosto após rosto
contorcido de ódio, homens, mulheres, crianças. Quaisquer mentiras que tivessem
sido ditas contra mim claramente haviam sido aceitas de forma quase universal.
Foi então que eu soube que, independentemente do que ocorresse ali, eu agora
havia perdido o meu lar. Não era apenas o fato de que aquelas pessoas nunca me
aceitariam, mas principalmente que eu jamais perdoaria a sua credulidade.
Lembrei-me de uma frase dita por Al Sorna certa vez quando nos afastamos da
multidão e rumamos a trote para o palácio. Ele estava citando Janus na ocasião,
contando a história das maquinações de seu Rei às vésperas da invasão: Dê a elas
a mentira certa e acreditarão.
Hevren afastou-se da estrada que levava ao portão principal quando nos
aproximamos do palácio, conduzindo-nos a uma muralha voltada para o norte e a
uma entrada muito menos ornamentada: o Portão do Soldado, reservado a
guardas, servos e ocasionais prisioneiros imperiais. Eu raramente havia me
aventurado naquela extremidade do palácio e fiquei espantado pela ausência de
formalidade ou da organização escrupulosa que garantia uma vida de comodidade
imperturbada aos honoráveis membros da corte. O local era repleto de oficinas
barulhentas e estábulos envoltos por uma nuvem rica com a mistura do cheiro de
comida e esterco. Antes de minhas viagens, eu poderia ter franzido o nariz diante
de tal lugar, mas agora me despertava apenas um vago desagrado; os meus
sentidos haviam sido assaltados por coisas muito piores no decorrer do último ano.
Fomos recebidos por um homem de quem me lembrava do julgamento de Al
Sorna, um sujeito musculoso em trajes pretos simples, segurando um molho de
chaves nos punhos enormes. Não vendo muito sentido em protestar, desmontei e
ofereci os meus pulsos, esperando algumas ameaças rosnadas pelo carcereiro ao
fechar os grilhões. Porém, ele me cumprimentou com uma longa mesura e uma
expressão de grave respeito.
— Meu senhor, há muito eu queria lhe falar em pessoa… — Ele se calou,
erguendo as correntes com uma careta embaraçada. — Mas não assim.
— Deixe isto de lado, Raulen — disse Hevren ao carcereiro.
— Mas ele deve ser levado diretamente até a Imperatriz, Honorável
Comandante.
— A segurança da Imperatriz cabe a mim. Levarei Lorde Verniers para as
celas no seu devido tempo.
Era fácil percorrer o interior do palácio graças à sua construção
descomplicada; todos os corredores levavam ao centro onde o Imperador, ou
melhor, a Imperatriz, reunia a corte. Entretanto, o comprimento excessivo
daqueles corredores deixava tempo de sobra para contemplações ou conversas
embaraçosas.
— Eu estava pensando — disse a Hevren — sobre a morte do Imperador
Aluran…
— Ele estava com quase oitenta anos e ficava mais fragilizado a cada dia —
falou Hevren num tom seco. — Não há mistério ou suspeita a ser inquirida, meu
senhor.
— E o seu testamento? — Era tradição que o Imperador incumbente, uma vez
diante do fim de seu reinado, fizesse um testamento, elogiando aqueles que o
haviam servido em vida e oferecendo orientações ao seu sucessor.
— Sua herança foi generosa — afirmou Hevren. — Terras na costa norte, uma
pensão anual, além de vários volumes raros da biblioteca imperial. Se o senhor
tiver permissão de mantê-la…
— Não estou interessado na minha herança. Apenas na orientação dele para a
Imperatriz.
Hevren caminhou em silêncio durante algum tempo, seu semblante ficando
visivelmente mais sombrio à medida que nos aproximávamos da entrada da sala
de audiências imperial; grandes portas de mogno de quase seis metros de altura.
— Era apenas uma frase — disse ele. — “Abandone todo o luxo.”
— Hevren. — Parei, forçando-o a fazer o mesmo, e os guardas ao redor
começaram a desembainhar as espadas. Eu os ignorei e me aproximei do
comandante, falando com veemência: — Ela tem de me ouvir. Quer eu seja
condenado ou não. Ela tem de ouvir o que eu e esta mulher temos a dizer.
— Eu sou um soldado — disse ele, virando-se quando as portas foram abertas.
— Não um conselheiro.
Ele ficou parado e fez sinal para que eu seguisse em frente, sua postura
respeitosa em vez de ameaçadora. Olhei para Fornella, que encarava a sala do
trono com franco receio.
— É a minha cabeça que ela quer — disse a ela. — Quando ela tentar tomá-la,
certifique-se de que a Imperatriz a escute.
A sala do trono imperial tinha a forma de um círculo, rodeado por todos os
lados por grossos pilares de mármore que sustentavam a grande abóbada acima.
Não havia assentos além do trono, posicionado no alto de uma plataforma elevada
no centro, que era formada por sólidos blocos cilíndricos de diâmetro decrescente,
criando seis degraus onde ficavam os conselheiros imperiais. O prestígio de cada
conselheiro era indicado pela sua posição na plataforma; oficiais militares mais
graduados ocupavam o degrau inferior, enquanto legisladores e eruditos podiam
esperar ficar no segundo ou no terceiro degrau. Eu havia sido excepcional por ser
o único historiador a subir ao quarto degrau. Somente o Esperança ou aqueles
cujos conselhos eram os mais estimados pelo Imperador podiam esperar um lugar
no quinto degrau. O sexto degrau era sempre deixado vazio, um lembrete de que o
governante do Império Alpirano no final das contas devia suportar sozinho o peso
do poder.
Passei brevemente os olhos pelos conselheiros, encontrando alguns rostos
conhecidos, todos ou relutantes de me olhar nos olhos, ou me encarando com uma
fúria visível, ainda que um tanto forçada. Fiquei surpreso ao ver dois conselheiros
no quinto degrau, sendo um deles um soldado. Horon Nester Everen, alto-
comandante das Forças Imperiais, sempre fora um homem difícil de decifrar. Em
parte devido à sua carranca habitual, mas ainda mais nos últimos anos por causa
das extensas queimaduras que sofrera no ataque final a Marbellis, que marcavam
o lado esquerdo de seu rosto da fronte ao pescoço. No entanto, a atitude do outro
homem no quinto degrau era muito mais fácil de reconhecer. Merulin Nester
Velsus, o Promotor Imperial, nunca tivera muita afeição por mim, ou eu por ele.
Sempre me pareceu um homem numa busca perpétua pelas fraquezas dos outros,
como se isso confirmasse sua capacidade ilimitada para julgamentos. Ao ver a
nova força de sua inimizade, deduzi que a minha situação atual era o resultado de
suspeitas antigas.
Porém, a minha atenção logo foi atraída para a figura sentada no alto da
plataforma. Meu último vislumbre dela havia sido em Linesh ao retornar das Ilhas.
Ela descera a rampa até o cais e saíra pisando firme, sozinha, sem olhar para trás.
Não havíamos trocado uma única palavra durante a viagem, e vê-la andar de um
lado para outro no convés, o rosto tomado por um rancor constante e inabalável,
convencera-me de que nunca haveria qualquer oportunidade para boa vontade
entre nós. Eu havia perdido meu ódio, mas ela se agarrava ao dela. Foi então que
tomei uma decisão. Minha curiosidade acadêmica, reacendida pela história de Al
Sorna, ansiava por respostas às muitas perguntas irresistíveis deixadas em seu
encalço. Eu regressaria à corte, entregaria ao Imperador o meu relato dos
eventos nas Ilhas e tomaria um navio para o Reino Unificado. Com o tempo, é
claro, vim a me arrepender de tomar uma decisão tão precipitada. Entretanto, ao
olhar para a Imperatriz Emeren I, suspeitei de que não teria feito muita diferença
nas minhas atuais circunstâncias.
Seu rosto estava fechado, as belas feições impassíveis, tranquilas e desprovidas
de animosidade. Contudo, os olhos diziam outra coisa; o modo como se fixavam
em mim, parecendo reluzir de expectativa, revelou que, qualquer que fosse a
pretensão de imparcialidade que ela pudesse alegar, o meu destino já havia sido
decidido.
— Tio Verniers! — Tive um sobressalto com o grito de alegria, e meu olhar
recaiu sobre o garoto que saiu correndo de trás de um dos pilares. Iveles crescera
nos meses desde a última vez que eu o vira, adquirindo uma esbelteza que
revelava a chegada precoce da adolescência, embora ele mantivesse um espírito
infantil. Ele correu na minha direção, sem se preocupar com os guardas em volta,
com um soldado de brinquedo em cada mão, abraçou a minha cintura e olhou
para mim com olhos tão parecidos com os do pai que por um momento me vi sem
palavras.
— Trouxe algo das terras do norte? — perguntou ele antes de prosseguir,
falando quase sem parar: — Pessoas más vieram me matar e a mamãe, mas uma
delas virou uma pessoa boa e nos deixou ir embora e Hevren lutou com elas e a
casa de campo pegou fogo…
— Iveles!
A Imperatriz havia se levantado, o rosto ainda sereno, mas por muito pouco.
Todos os guardas haviam desembainhado as espadas, com exceção de Hevren,
que se agachara para tirar com gentileza os braços do garoto de minha cintura.
Seu rosto ficou tenso com uma recusa teimosa e ele apertou mais o abraço,
tentando se segurar.
— Está tudo bem, Iveles — falei para ele, colocando as mãos em seus ombros
para afastá-lo com delicadeza. — Desculpe-me, esqueci do seu presente. Mas eu
trouxe uma história, que espero contar em breve. Agora, vá para perto de sua
mãe.
O garoto lançou um olhar ressentido a Hevren e então se virou e correu até a
plataforma, subindo depressa os degraus até ficar do lado da mãe. Ao ver como
ela o puxou num abraço protetor, seus olhos ainda fixos em mim, percebi que o seu
ódio era inspirado pelo menos em parte pela proximidade que sempre tive com o
seu filho. Designado pelo Imperador como tutor do garoto em história imperial,
havíamos passado muitas horas juntos, e, embora eu tentasse dissuadi-lo, ele
passara a me chamar de tio. “Você e meu pai eram como irmãos”, dissera ele.
“Então você será o meu tio. Eu não tenho outros.”
A Imperatriz passou a mão pelo cabelo do garoto e falou em voz baixa.
— Mas eu quero ficar! — protestou ele. O tom da Imperatriz tornou-se mais
sério e Iveles fez um beicinho emburrado antes de sair pisando firme pela parte de
trás da plataforma, seus passos rápidos ecoando pela câmara enquanto ele ia à
procura de outras diversões.
A Imperatriz sentou-se em silêncio durante algum tempo, encarando-me com
um desinteresse praticado antes de voltar o olhar para Fornella, quando então a
sua boca crispou-se numa aversão momentânea.
— Lorde Velsus — disse ela ao Promotor Imperial. — O prisioneiro tem o
direito de ouvir as acusações feitas contra ele.
Velsus fez uma mesura para ela e virou-se para mim, tirando um pergaminho
das dobras do manto.
— Lorde Verniers Alishe Someren, Cronista Imperial e Primeiro dos Eruditos, é
por meio desta acusado de traição — leu ele. — Que se saiba, conforme
estabelecido por um testemunho crível, Lorde Verniers conspirou com o
prisioneiro imperial Vaelin Al Sorna para efetuar a sua libertação e escapar da
justa punição por seus crimes. Que se saiba também que Lorde Verniers conspirou
com agentes de uma potência estrangeira, a saber, o Império Volariano, para ferir
a pessoa da Imperatriz e de seu filho Iveles.
Ali estavam. Não uma, mas duas mentiras. Não posso explicar a calma glacial
que tomou conta de mim naquele momento, assim como continuo incapaz de
explicar a presença de espírito que me permitiu cravar uma faca na base do
crânio do General Tokrev. É possível que haja ocasiões em que o medo torna-se
redundante.
— Testemunho crível? — perguntei.
Lorde Velsus piscou e concluí que ele esperara algum protesto ultrajado de
inocência, que sem dúvida seria calado com uma refutação bem preparada e
apropriadamente teatral. No entanto, ele recobrou a compostura depressa e
gesticulou para os guardas na porta.
— Tragam a testemunha.
Eu era esperado aqui, compreendi enquanto aguardava em silêncio. A
armadilha foi bem preparada.
A testemunha foi conduzida para dentro da sala, uma jovem num vestido
simples, sua cor típica do norte do império, cabelos escuros e pele de um tom
moreno, exceto por um punhado de riscos vermelhos em seu pescoço. Ela estava
visivelmente intimidada pelo ambiente, de mãos entrelaçadas e cabeça baixa, seus
olhos recaindo sobre mim somente por um segundo antes de desviá-los.
— Diga o seu nome — ordenou Lorde Velsus.
A jovem teve de tossir duas vezes até conseguir colocar as palavras para fora,
a voz tomada por um tremor que mal conseguia conter.
— Jervia Mesieles.
— Esse é o seu nome de casada, não? — perguntou Velsus.
— Sim, meu senhor.
— Diga o seu nome de solteira.
— Jervia Nester Aruan.
— De fato. Seu pai foi Governador de Linesh, não?
— Sim, meu senhor.
— Na verdade, ele ficou responsável pela administração da cidade na época
da ocupação do Matador do Esperança. Uma ocupação que muitos acreditam ter
levado ao surto da Mão Vermelha, durante o qual você mesma quase pereceu.
Não é verdade?
As mãos de Jervia se contorceram e deduzi que ela estava lutando contra um
impulso de tocar as marcas no pescoço.
— É, meu senhor.
— Contudo, você foi salva pela intervenção do Matador do Esperança, que
mandou chamar uma curandeira em sua terra natal. Assim, seria justo dizer que o
seu pai se considerava em dívida com o Matador do Esperança, não seria?
Jervia fechou os olhos, ergueu a cabeça e respirou fundo. Quando os abriu e
olhou para mim, vi neles um pedido de desculpas inconfundível.
— Seria, meu senhor — respondeu ela numa voz arrastada, a voz de uma atriz
relutante.
— Dizem — prosseguiu Velsus — que o seu pai recebeu um presente do
Matador do Esperança pouco antes da prisão deste. O que foi?
— Uma espada, meu senhor.
O Promotor Imperial olhou para os conselheiros reunidos, suas sobrancelhas
erguidas de surpresa.
— Ele aceitou como presente a espada do Matador do Esperança, a mesma
lâmina que havia sido manchada com o sangue divino do próprio Esperança. Um
homem de espírito mais nobre poderia ter considerado tal presente um fardo
intolerável sobre sua honra, mas, dada a inépcia de seu pai na defesa de sua
cidade e o fracasso em seguir o curso honrado após a derrota, não é de
surpreender. Diga-me, havia algo de incomum nessa espada?
Jervia tornou a respirar fundo.
— Sim, meu senhor. A lâmina tinha marcas estranhas, e às vezes… às vezes
meu pai a pegava à noite, quando achava que ninguém podia ver. Ele a tirava da
bainha e a lâmina reluzia com um brilho branco estranho. Ela… fez algo com o
meu pai, mudou-o de alguma forma…
Ela vacilou quando gargalhei, seu rosto ficando lívido de repente e os olhos
enchendo-se de lágrimas.
— Perdoe-me, honorável senhora — falei. — Continue, por favor.
Velsus virou-se para mim, o rosto contorcido de raiva, apontando um dedo de
forma acusadora.
— Vejam bem o humor deste homem, meus senhores! Vejam como ele se
delicia com a própria vilania!
Ele se voltou para Jervia, acalmando-se com um esforço que me fez suspeitar
que aquilo não era tudo uma farsa.
— Você já viu este homem antes, não?
— Eu… — A garota baixou os olhos para as mãos entrelaçadas, que agora
estavam brancas e trêmulas. — Sim… Sim, ele foi ver o meu pai, uma noite antes
de o Matador do Esperança ser trazido para a cidade.
— Você presenciou o encontro deles?
— Sim, meu senhor. Eu não devia, mas conhecia um lugar oculto no escritório
de meu pai, de onde podia ouvir os seus encontros. Eu estava preocupada, veja
bem. A espada havia mudado tanto ele, e com o retorno do Matador do
Esperança, fiquei pensando no que poderia fazer. Meu pai disse a Lorde Verniers
que ele pretendia devolver a espada ao Matador do Esperança. Lorde Verniers
ficou muito bravo, chamou meu pai de traidor e disse que faria o Imperador enviar
guardas para prendê-lo… Mas meu pai lhe mostrou a espada, e ele se calou. Meu
pai disse que com aquela espada o Matador do Esperança sem dúvida sairia
vitorioso no seu duelo nas Ilhas, e que se Lorde Verniers não fizesse objeção ao
uso da arma, ele receberia uma grande recompensa.
— Compreendo. E a natureza dessa recompensa?
— Conhecimento. O Matador do Esperança contaria a história de sua vida e a
razão para o Rei Janus começar a guerra.
— Sem dúvida uma grande recompensa, que seria apreciada por qualquer
historiador.
Velsus olhou para mim, sua expressão a concentração inabalável de um
leopardo de olho numa presa encurralada.
— O senhor viajou com o prisioneiro imperial até as Ilhas Meldeneanas, não?
— Por ordem do Imperador — respondi.
— De fato, mas também, se bem me lembro, a um pedido do senhor. E durante
a viagem o selvagem cumpriu a sua parte do acordo? Ele lhe contou a sua história
miserável?
— Ele transmitiu o que acredito ser um relato parcialmente preciso do seu
papel na invasão.
— E o senhor lhe deu a espada.
— O Governador Aruan lhe deu a espada. Uma arma simples de pouca
distinção, aliás.
Velsus gesticulou com desdém.
— Os nortistas são famosos por sua habilidade de ocultar a magia. E ao chegar
à capital meldeneana, após receber a sua recompensa, o senhor não se sentiu
obrigado a avisar o oponente do Matador do Esperança de que ele agora
enfrentaria um adversário que se tornara invencível através de meios
sobrenaturais? E ao não fazê-lo, o senhor não garantiu que o Matador do
Esperança saísse vitorioso no duelo, uma disputa que, ao que tudo indica, durou
apenas um segundo, privando dessa forma o nosso Esperança assassinado de toda
justiça?
— Não foi dado aviso algum. — Olhei para Jervia, que agora estava de cabeça
baixa, o rosto tomado por uma angústia abjeta. — Não sei que ameaças forçaram
esta infeliz mulher a contar mentiras. E lamento vê-la angustiada por minha causa.
Mas se Al Sorna ficou invencível aquele dia, não foi por meio de algo tão mundano
quanto a sua espada.
Velsus desceu os degraus, movendo-se com uma determinação calculada na
minha direção.
— Vejam como ele se debate no anzol, meus senhores. Vejam como ele se
contorce e profere ainda mais falsidades. Este homem vil, escolhido e elevado a
uma posição alta pelas graças do Imperador, e ainda assim disposto a se vender
como a prostituta mais barata pelas palavras de um selvagem. Se este tivesse sido
o seu único crime, talvez fosse possível perdoá-lo, após receber a devida punição,
naturalmente, pois todos os homens são fracos e sujeitos a serem seduzidos.
Entretanto, meus senhores, esta criatura tem de responder por um crime ainda
maior.
Ele se voltou para a plataforma, parando para dirigir algumas palavras a
Jervia, dispensando-a. A garota ergueu o olhar para mim quando os guardas a
conduziram para fora, as lágrimas escorrendo livremente ao articular “meu pai”
em silêncio com os lábios, os olhos implorando que eu compreendesse. Respondi
com um leve aceno de cabeça, conseguindo até mesmo dar um leve sorriso antes
que ela fosse levada da sala do trono.
— Peço humildemente à Imperatriz Emeren I — entoou Velsus, curvando-se
diante da plataforma — que de bom grado consinta em testemunhar neste caso.
A Imperatriz aguardou um momento antes de se levantar, uma ação que exigia
que todos os presentes se ajoelhassem. Prontamente coloquei um joelho no chão e
gesticulei para Fornella fazer o mesmo. Este era o único ponto da etiqueta que não
podíamos nos dar ao luxo de ignorar, uma vez que desrespeito para com a pessoa
imperial era punido de pronto com a morte.
Notei como os olhos de Emeren mais uma vez se demoraram em Fornella,
vendo o breve momento de maquinação antes que ela desviasse o olhar. Um
obstáculo em seu plano, concluí. Uma complicação indesejável.
— Como todos aqui sabem — começou a Imperatriz —, pouco antes de minha
Escolha, um atentado foi cometido contra a minha vida e a vida de meu filho.
Muitos servos amados e leais morreram nesse ataque e meu filho e eu escapamos
por muito pouco. Meus atacantes eram uma volariana e um servo da mesma seita
herege e fanática do Matador do Esperança. Ficou claro para mim durante a
minha provação que esses assassinos haviam recebido informações detalhadas
sobre a minha casa, pois de que outro modo poderiam ter acesso a ela com
tamanha facilidade? Antes de ser resgatada pela corajosa intervenção do
Comandante Hevren, a mulher falou comigo. — Ela ergueu um braço e apontou o
dedo direto para mim, resoluta. — E deu o nome deste homem como a fonte das
informações. Aparentemente ele queria que eu soubesse de seu envolvimento,
como convém a um homem tomado pelo ciúme e pelo ódio.
Olhei-a nos olhos, vendo ali apenas triunfo. Amado Imperador, pensei. O que
fez conosco?
Suspirei e me levantei, mantendo o olhar fixo no dela, recusando-me a desviar
os olhos mesmo quando a lâmina da espada de Hevren foi pressionada contra o
meu pescoço. A arma foi detida quando a Imperatriz ergueu a mão.
— Não pouparei esse traidor de um julgamento — disse ela. — Nosso povo
merece a verdade e que a lei seja seguida.
— Se pretende me matar, então mate e me poupe da farsa do seu julgamento —
falei. — Peço apenas que antes escute o meu relato do conflito no Reino
Unificado, a ser comprovado por esta mulher, pois é de extrema importância a
este império.
Mal podia ser chamado de um sorriso, era mais uma leve curvatura nos lábios
perfeitos, mas vi então uma mulher experimentar aquele que talvez fosse o
momento mais doce de sua vida.
— Lorde Verniers, eu já o ouvi demais.
CAPÍTULO UM
Vaelin

Tal como antes, a primeira coisa que ele notou foi a mudança no ar, o cheiro
sulfúrico do topo da montanha substituído por algo muito mais adocicado. O frio
úmido também havia desaparecido, transformado na carícia morna da luz do sol,
impregnada por uma brisa suave de verão. Porém, desta vez, os sons eram
diferentes; não havia estalos de galhos de floresta ou pássaros cantando, mas sim
o barulho de muitas mãos trabalhando. O solo debaixo da pedra da memória
também havia mudado, a rocha entalhada substituída por ladrilhos lisos de
mármore recém-cortado. Vaelin ergueu a cabeça e viu que de fato não se
encontravam mais no topo da montanha, mas numa plataforma elevada no
centro de uma cidade recém-construída.
Por todo lado homens trabalhavam entre andaimes, puxando cordas ou
entalhando pedras, parelhas de cavalos de tração altos e de patas peludas
puxavam carroções enormes com blocos de granito e mármore. O ar estava
repleto de chamados e canções enquanto os homens trabalhavam, a ausência de
qualquer estalo de chicote ou correntes um sinal claro de que aquelas pessoas não
eram escravas. Na verdade, todos pareciam animados em seus trabalhos. Os
olhos de Vaelin foram atraídos para a estrutura mais alta, uma torre estreita e
retangular de mais de quinze metros de altura. As paredes estavam cobertas por
andaimes, mas ele podia ver o mármore vermelho e o granito cinzento por trás
deles. Voltou o olhar para outra construção perto dali, cujas paredes já estavam
erguidas, mas o telhado ainda não estava terminado. Era uma estrutura de
tamanho considerável, maior do que aquelas ao seu redor. Um pedreiro estava
sentado numa correia pendurada sobre o lintel, o seu cinzel deixando uma linha
de símbolos na pedra, símbolos aos quais o Irmão Harlick certa vez atribuíra um
significado: biblioteca.
— A Cidade Caída — disse ele em voz alta, e bastou um olhar para a
paisagem ao sul para confirmar aquilo. As eras podiam fazer uma cidade ruir,
mas não as montanhas.
— Sem dúvida. — Erlin estava de pé ali perto com as mãos enfiadas no
manto enquanto olhava para uma figura alta parada a pouca distância, de cabeça
baixa enquanto lia um pergaminho desenrolado. — E o homem que a construiu.
O homem ergueu os olhos do pergaminho e Vaelin moveu-se para fitar seu
rosto, de algum modo sabendo o que veria. Ele tinha barba e uma fronte
carregada, embora não fosse tão velho e enrugado quanto a sua estátua o
retrataria mais tarde; era mais jovem até do que a pintura na parede da caverna
do Povo Lobo. Mas ainda assim havia uma gravidade em sua expressão enquanto
examinava a sua cidade recém-erguida e mantinha os olhos apertados,
ocasionalmente piscando-os numa frustração contida.
O que ele poderia encontrar que não fosse de seu agrado em tamanha
realização?, perguntou-se Vaelin, olhando ao redor para a elegância crescente
por todos os lados.
— Ele é o rei deste lugar? — perguntou a Erlin.
— Duvido que essa palavra tenha algum significado aqui.
Vaelin gesticulou para os trabalhadores ocupados.
— Mas esses homens obedecem às ordens dele.
— E parecem felizes em fazê-lo, não acha? Vejo apenas o que a pedra me
mostra, irmão. Mas não vi nada que indicasse que esse homem comandasse
através do medo ou pela força de armas. Vasculhe a cidade inteira e não
encontrará uma única espada.
Uma voz alta fez o homem barbado se virar, os dentes subitamente à mostra
num sorriso radiante quando uma jovem correu para o seu lado. Vaelin mais
uma vez não ficou surpreso ao notar a semelhança dela com a mulher das
pinturas na caverna: olhos verdes e cabelos escuros. Ela deu um abraço caloroso
no homem barbado, seus dedos entrelaçando-se numa intimidade automática ao
se beijarem. Ela recuou com uma risada, virou-se e estendeu a mão, dizendo
palavras que Vaelin não compreendia, embora o tom fosse animado, até mesmo
jubilante. Um jovem de rosto fino apareceu e chegou a alguns metros do casal,
dando um sorriso leve e relutante. Havia diferenças sutis nele com relação à
figura retratada na caverna; era mais jovem e não tinha a boca torcida de forma
sardônica, mas ainda era reconhecível. A mulher riu e estendeu a mão para
trazê-lo para perto, apresentando-o ao homem barbado, que ignorou a mão do
jovem e o abraçou.
— Irmão e irmã — compreendeu Vaelin, seu olhar indo da mulher para o
jovem.
— Creio que sim — disse Erlin. — A primeira vez que os três se reuniram.
Mas longe de ser a última.
A lembrança mudou de modo abrupto, as construções e as pessoas
desaparecendo numa névoa rodopiante em volta deles, como se estivessem de pé
no centro de um vórtice, embora não houvesse qualquer sensação de vento. O
movimento logo diminuiu e a névoa transformou-se mais uma vez na cidade,
mas agora todas as construções estavam terminadas. A primavera havia chegado
às montanhas e o ar era puro, a cidade agitada por pessoas; pais com filhos,
amantes passeando de mãos dadas. Parecia que era possível ouvir música em
todos os cantos: um homem com algum tipo de harpa cantando num telhado
próximo, um grupo de cantores algumas ruas adiante acrescentando as próprias
vozes. Havia também grupos de pessoas travando discussões animadas,
gesticulando umas para as outras com pergaminhos e dispositivos estranhos que
Vaelin supôs serem alguma forma de sextante.
— Reúna mais de um filósofo e uma discussão tem início — comentou Erlin.
— Um truísmo que observei em todas as partes do mundo. Na verdade, certa vez
vi um deles discutir consigo mesmo. Ficou bastante violento no fim. — Ele foi
para a beira da plataforma elevada e fez um gesto abrangente com o braço
estendido. — Acho que foi por isso que ele construiu este lugar. Um santuário
para pensadores, artistas, eruditos. Em todas as minhas viagens, jamais vi uma
cidade como esta.
Uma voz irritada atraiu a atenção de Vaelin para a aproximação da mulher
de cabelos escuros, caminhando a passos largos à frente do homem barbado,
movendo as mãos em gestos enfáticos e negativos. Seu irmão vinha atrás, a certa
distância. Todos estavam mais velhos do que antes, apesar de talvez por poucos
anos. A timidez do homem mais novo parecia ter desaparecido, a expressão de
divertimento cansado em seu rosto um eco do que posteriormente exibiria na
parede da caverna.
A mulher foi até a pedra da memória e Vaelin viu que agora havia ali outra
idêntica, menos na cor, pois esta pedra era negra, a superfície sem qualquer
falha ou veio. Algo negro. Vaelin lembrou-se da profunda inquietação de Urso
Sábio ao tocar o espaço onde aquela coisa se encontrava agora.
A mulher parou para olhar para a pedra negra, seu rosto por um momento
transformado numa máscara de confusão antes de se virar para o homem
barbado e apontar para a pedra, a voz erguida num tom enfático. O homem
suspirou e moveu-se para o outro lado dela, deixando a rocha entre os dois. Ele
falou com calma, mas havia tanta certeza em suas palavras quanto nas dela,
além de um tom inconfundível de recusa. A mulher começou a gritar com ele, as
belas feições transformadas por uma raiva intensa. Ela se acalmou um pouco
quando o irmão aproximou-se da pedra, e Vaelin notou como ele mantinha as
mãos atrás das costas. Ele falou durante algum tempo e encolheu os ombros
várias vezes, e sua irmã estava evidentemente irritada com a sua aparente
despreocupação. Por fim, a mulher moveu as mãos numa exclamação
enraivecida de derrota e foi embora.
O irmão e o homem barbado trocaram olhares pesarosos, mas nenhuma
outra palavra. Após uma breve pausa, o homem barbado estendeu a mão para a
pedra, deixando-a erguida sobre a superfície lisa, e Vaelin notou o tremor
involuntário na ponta de seus dedos. O homem mais novo falou, somente
algumas palavras, mas o humor havia desaparecido por completo de seu rosto e
o tom era seco, quase autoritário.
O homem barbado hesitou, e um breve espasmo de raiva tomou conta de seu
rosto. Então ele riu, recolheu a mão e recuou, dando um tapinha no ombro do
jovem antes de se afastar caminhando tranquilamente. Ele desceu os degraus até
a rua abaixo, trocando cumprimentos afáveis enquanto avançava em meio à
multidão, cada rosto à sua volta repleto de respeito e afeição.
O jovem o observou ir embora e então se virou para a pedra, esfregando o
queixo e com o cenho franzido, pensativo. Após um momento ele começou a se
afastar, mas parou ao chegar aos degraus. Empertigou-se como que em resposta
a algum alarme inaudível e se virou, passando os olhos pela plataforma até parar
em Vaelin.
— Ele me vê — disse Vaelin.
— Sim — retrucou Erlin. — Sempre me perguntei o que o fez parar nesse
momento. Com sorte, as próximas palavras dele agora farão algum sentido.
O jovem avançou devagar, com uma expressão de espanto cauteloso. Ele
chegou a poucos metros de Vaelin e parou, estendendo a mão como se
pretendesse tocar o seu manto, mas os dedos atravessaram o material como se
fosse feito de bruma. O jovem recuou um pouco, seus lábios tentando formular
uma pergunta numa língua que não era a sua.
— Você… tem… nome? — perguntou ele na língua do Reino com um
sotaque carregado, mas compreensível.
— Tenho muitos — respondeu Vaelin. — Embora eu suspeite que você me
conheça apenas por um.
O jovem franziu o cenho, perplexo.
— Eu… Lionen — disse ele. — Eu ver você… antes. — Ele bateu na têmpora
com um dedo. — Em sonhos… Em acordado… Ouvir sua língua… Aprender.
— Você tem o dom da presciência — disse Vaelin, e procurou explicar em
resposta a outra expressão de perplexidade: — Você… vê o que está por vir.
— Às vezes… Às vezes… muda. Você, sempre mesmo. — Ele olhou para a
pedra negra. — Isto também.
— O que é isso?
O rosto de Lionen ficou tenso de consternação e Vaelin percebeu que o
jovem estava procurando palavras para descrever algo que nem mesmo ele
compreendia completamente.
— Uma caixa — disse ele por fim. — Caixa cheia… de tudo, e nada.
— Sua irmã tem medo dela.
Lionen assentiu.
— Essara vê grande perigo nisso. Seu esposo, grande… uso.
— E você?
— Eu vejo você, e a caixa. — Seu olhar recaiu em Erlin. — E ele… Mas ele
não é ele quando a toca.
Seu rosto se anuviou e ele se virou na direção da cidade, agora banhada por
um leve brilho alaranjado à medida que o sol começava a descer atrás das
montanhas a oeste.
— Em seu tempo… este lugar desapareceu, não?
— Sim. Arruinado muitas eras antes.
Lionen baixou os olhos e seu semblante ficou carregado de pesar.
— Eu… espero ver errado. — Ele respirou fundo e empertigou-se. — Se…
eu ver você de novo. Trazer… palavras felizes.
— Espere. — Vaelin estendeu a mão na direção de Lionen quando ele
começou a se afastar, apesar de não conseguir tocar nada, é claro. — Você
possui um conhecimento de que preciso. Estamos diante de um grande perigo…
— Eu sei — retorquiu Lionen, encolhendo os ombros. — Eu… diante de
perigo também.
Vaelin teve um vislumbre do rosto do jovem antes que a lembrança se
desfizesse mais uma vez; o sorriso enviesado retornara por um instante, e então
se transformou em névoa quando o vórtice girou.
— O que ele quis dizer? — perguntou a Erlin.
— Bem que eu gostaria de saber, irmão — respondeu o homem ancestral. —
Mas suspeito que agora já nos aventuramos muito além dos limites do meu
conhecimento.
Desta vez o vórtice transformou-se numa cena de caos, a cidade em chamas
e desmoronando em volta deles, acompanhada pelos gritos de milhares em
agonia. Vaelin agachou-se instintivamente quando um tremor estrondoso sacudiu
a pedra sob os seus pés, e seu olhar foi atraído de imediato para a torre, alta e
gloriosa no céu noturno, mas somente por um momento. O solo tornou a tremer e
a torre desabou, as paredes de pedra curvaram-se como um arco ao
despencarem para o chão, destruindo as casas abaixo numa explosão de pedras e
chamas.
Vaelin foi até a beira da plataforma e parou aturdido diante dos horrores que
ocorriam lá embaixo. Uma mulher cambaleava pelas ruas com uma criança
sem cabeça nos braços, o rosto lívido pela loucura. Um homem robusto de manto
longo passou correndo por ela gritando de medo, alcançado e desmembrado em
segundos por um grupo de homens em armaduras vermelhas, rindo alegremente
enquanto as suas espadas subiam e desciam num frenesi jubilante.
Os olhos de Vaelin percorreram a cidade moribunda, encontrando cenas de
carnificina e tormento por toda parte, e as palavras ditas por Sella anos antes lhe
vieram à mente: Viveram em paz por várias gerações e não tinham guerreiros,
então quando veio a tempestade eles estavam nus diante dela.
A devastação continuou por uma hora ou mais, a cidade desmoronando ao
redor deles enquanto a população morria. Os homens de armadura vermelha
eram criativos em suas crueldades, deleitando-se com os gritos daqueles que
estupravam ou esfolavam, ainda que, com exceção das risadas, fossem
matadores mudos, realizando o trabalho sanguinolento sem trocar uma palavra
entre si.
— O que são eles? — perguntou Vaelin num sussurro.
— Com o tempo, o povo que construirá o Império Volariano irá chamá-los de
Dermos — disse Erlin. — Imaginarão que são o produto de algum fosso
flamejante nas profundezas da terra. Quando terminarem aqui, eles atravessarão
o oceano para atacar cada lugar que puderem encontrar onde a humanidade
resida, com isso dando origem a lendas e deuses. — Erlin apontou para algo nas
ruas cobertas de fumaça abaixo. — O massacre continuará até que aquele que os
comanda tombe.
A figura movia-se pela carnificina sem parecer notá-la, pisando em
cadáveres e em sangue empoçado num passo constante e despreocupado. Os
homens de armadura vermelha abriam caminho quando ele se aproximava, não
por respeito, pois não faziam mesuras, nem o cumprimentavam de qualquer
forma, mas como em resposta a uma ordem inaudita. Assim que o homem
passava, eles retornavam aos seus divertimentos abomináveis sem olhar na sua
direção. Seu rosto tornou-se nítido quando se aproximou dos degraus da
plataforma e parou para olhar para o alto, a testa tão enrugada agora que parecia
coberta de cicatrizes, o brilho de milhares de incêndios reluzindo nos fios
grisalhos de sua barba.
Ele fez uma careta quando começou a subir, as pernas rígidas e as costas
curvadas pelo esforço. Parou ao chegar à plataforma e soltou um gemido alto e
cansado, e então olhou para trás na direção do caos abaixo. A expressão em seu
rosto envelhecido era uma que Vaelin conhecia bem demais. Aquele que os
comanda, pensou ele, vendo a malícia ávida que distorcia as feições do homem
barbado.
— Ele fez isso — compreendeu Vaelin em voz alta. — Ele destruiu a própria
cidade.
— E muito mais além dela — disse Erlin quando o homem foi para o centro
da plataforma, parando diante do pedestal de pedra negra, olhando para o vazio
de sua superfície. Ele permaneceu ali durante algum tempo, até que os gritos e os
últimos estrondos retumbantes de destruição tivessem cessado, restando apenas o
estrépito das chamas.
O homem barbado ergueu o rosto para o céu noturno, os olhos fechados ao
estender a mão para a pedra. Sua malícia parecia ter desaparecido agora,
deixando um cansaço tão grande que Vaelin o achou quase digno de pena.
Enquanto antes a sua mão havia estremecido, agora ela tremia como se ele
estivesse sendo tomado por uma paralisia, e a boca do homem barbado abriu-se
num grito silencioso…
De repente, ele girou para longe da pedra com um grito, o peito arfando e o
rosto lívido de fúria e outra expressão que Vaelin conhecia bem: a máscara
espasmódica de olhos brilhantes de um homem orgulhoso não disposto a
reconhecer a própria derrota.
Uma tropa grande de homens de armadura vermelha subiu correndo os
degraus, carregando várias vigas longas de madeira. O homem barbado afastou-
se da pedra negra quando os seus servos se aproximaram. Eles colocaram as
vigas debaixo do topo largo do pedestal, semelhante a um cogumelo, e o
ergueram, levando-o embora depressa, aparentemente alheios ao peso enquanto
desciam os degraus e avançavam pelas ruas apinhadas de cadáveres.
O homem barbado demorou-se por um momento, os olhos apertados como
se esquadrinhasse a plataforma. Havia também um leve sorriso em seus lábios,
um brilho discreto de humor nos olhos. Ele sabe que estou vendo isso, concluiu
Vaelin, e o frio enregelante da compreensão percorreu o seu corpo ao ver a
malícia retornar ao rosto do homem barbado, o sorriso ainda ali quando se virou
e desceu os degraus sem olhar para trás. Não era mais do que uma grande cabeça
de pedra à espera que as eras o transformassem em poeira…
O Aliado.

— Você sabia?
— Eu desconfiava. — Erlin ergueu a mão para a pedra da memória. — Mas
essas lembranças são muito antigas. Tantas vidas foram vividas desde então, mil
reinos se ergueram e sucumbiram, dando origem a incontáveis mistérios.
— Lionen disse que você tocaria a pedra negra — insistiu Vaelin. — Mas não
seria você quando o fizesse. O que ele quis dizer com isso?
— Acho que ele quis dizer que temos muito sobre o que pensar. — Erlin
estendeu a outra mão a Vaelin. — Nada mais ocorrerá aqui, embora uma vez eu
tenha esperado quase um mês para confirmar. Espere por tempo suficiente e
talvez você veja os lonaks chegarem.
Vaelin suspirou e lançou um último olhar para as ruínas ainda fumegantes
antes de se aproximar para pegar a mão de Erlin, e então recuou alarmado
quando ela se transformou em poeira antes que pudesse segurá-la. O vórtice
retornou num piscar de olhos, levando Erlin consigo. Parecia haver uma nova
intensidade na poeira rodopiante agora, as cores mudavam, uma dança mais
complexa na espiral de caos. Ela desapareceu tão depressa quanto surgira,
revelando o topo da montanha acima da aldeia lathera. No entanto, Vaelin agora
estava sozinho e era noite, as nuvens acima transformadas num teto alaranjado e
rodopiante pelo brilho do fogo das montanhas. A fúria incandescente parecia
mais intensa; seus olhos discerniram uma gota de rocha derretida entre as
chamas e a fumaça, e um pequeno tremor pulsou pela pedra debaixo de seus
pés.
— Então — disse uma voz —, tem notícias mais alegres para mim?
Lionen caminhou em sua direção do aglomerado de casas. Ele estava mais
velho, o cabelo longo em grande parte grisalho, o rosto ainda magro, mas
também enrugado. Ele parou a alguns metros de distância e franziu o cenho ao
examinar a aparência de Vaelin.
— Ah. Faz apenas alguns momentos para você, não?
Vaelin assentiu.
— Meu amigo…
— Esta lembrança não é para ele. — Lionen virou-se e estendeu a mão na
direção das casas. — Eu estava prestes a jantar. Gostaria de se juntar a mim?
— Seu conhecimento da minha língua aumentou — observou Vaelin,
acompanhando Lionen até uma das maiores casas. Ele notou que todas as outras
estavam silenciosas, sem nenhuma luz nas janelas.
— Tive muitos anos para estudá-la. E várias outras, embora esta seja a minha
favorita. Menos fluida do que o seordah, mas mais poética e funcional do que o
volariano. — Lionen ficou de lado na porta de sua casa, gesticulando para que
Vaelin entrasse primeiro. O interior era aquecido, o cômodo parcamente
mobiliado com um catre baixo de madeira e alguns pergaminhos empilhados
num canto. Havia uma pequena panela de ferro fumegando sobre uma fogueira,
a fumaça saindo por um buraco estreito no teto.
— Eu lhe ofereceria um pouco de cozido — disse Lionen, sentando-se ao lado
da fogueira —, mas seria um gesto redundante.
— Posso sentir — comentou Vaelin. — Mas não tocar. Por quê?
— A pedra captura o lugar e o tempo, mas eles são imutáveis. Assim como a
nossa conversa. Ela já aconteceu, apesar de para nós dois parecer estar
acontecendo agora. O que aconteceu não pode ser mudado, de modo que você
não pode tocá-lo. A mudança é da alçada do futuro.
Ele ergueu a tampa da panela e provou a comida com uma pequena colher.
— Codorna com tomilho e cogumelos — disse Lionen. — Uma pena que
você não possa comer. Tive muito tempo para aperfeiçoar a receita.
— Há quanto tempo você está aqui?
— Quinze anos desde que construí esta cidade em miniatura. Eu tinha
companheiros na época.
— O que aconteceu com eles?
— Alguns partiram, entediados com a minha inatividade. Outros ficaram
desapontados com as minhas lições e buscaram conhecimento em outros lugares.
Os restantes eu mandei embora. Acho os jovens tediosos hoje em dia. São
sempre terrivelmente fervorosos.
— Você entalhou a pedra lá fora, encheu-a com as suas lembranças.
— E muito mais. As pedras não eram simplesmente repositórios para
lembranças. Eram também um meio de comunicação, conectadas entre si. Uma
inovação útil para uma civilização que se estendeu por meio mundo.
— Destruída pelo marido de sua irmã?
— Sim. Enquanto eu vagava pelo gelo à procura do impossível, ele tinha
outras obras em mente.
Vaelin lembrou-se das pinturas da caverna, os três visitantes que se tornaram
dois.
— Sua irmã morreu salvando o povo do gelo. Vocês trouxeram doenças, e ela
os curou, embora tenha custado a sua vida.
— Ela era uma curandeira. Viu isso como uma obrigação, apesar de
implorarmos que parasse.
— Foi isso que o mudou? Que fez com que ele odiasse o que construíra?
— A morte de Essara pode ter escurecido a sua alma, mas desconfio que os
primeiros passos no caminho do que ele é agora foram dados muito antes. Foi a
decepção, veja bem, o constante descontentamento. Ele tentou com tanto
empenho construir o seu mundo perfeito, uma civilização que faria a
humanidade ascender a algo maior. Porém, as pessoas ainda são pessoas, por
mais confortável que seja o ambiente em que se encontram. Elas mentem,
brigam, traem e não importa quanto se dê a elas, sempre querem mais. Sem a
influência de minha irmã, ficou cada vez mais difícil para ele continuar sendo
generoso, continuar guiando na esperança de que um dia eles tornassem a sua
visão realidade. E assim, após se provarem indignos do mundo que criara para
eles, ele decidiu destruí-lo.
Lionen pegou uma tigela e começou a enchê-la com ensopado; pelo cheiro
Vaelin supôs que a preferência dele pela receita era bem fundamentada.
— Diga-me — disse ele, sentando-se de novo com a tigela na mão —, a
eorhil encontrou a pedra que deixei para ela?
Vaelin lembrou-se da história de Sabedoria sobre a viagem que fizera à
Cidade Caída, o seu encontro com Nersus Sil Nin.
— Encontrou, com a ajuda de uma cega que tinha o mesmo dom que você.
— Ah, a cega. — Lionen sorriu com ternura enquanto comia. — Vista com
frequência nas minhas visões, mas nunca falo com ela. Tão graciosa na
juventude. Gostaria muito de tê-la conhecido.
— Você esculpiu a pedra que deu a Sabedoria o seu nome — disse Vaelin. —
Sabendo que ela a encontraria um dia.
— A visão muda. Às vezes ela a encontra, às vezes não. Desconfio que a cega
achou necessário dar um leve empurrão no destino. Voltei para a cidade após o
meu período no gelo e encontrei cadáveres há muito apodrecidos e destruição,
uma cena que meu dom nunca me revelara, pois sempre voltou a minha visão
para o futuro distante. A pedra negra havia desaparecido e a pedra da memória
estava despedaçada, mas fui capaz de tirar informações suficientes dos
fragmentos para descobrir quem havia feito aquilo. Passei anos entre as ruínas,
entregue ao pesar, distraindo-me com o aprendizado da língua e o conhecimento
revelados pelo meu dom. Certo dia, meu dom trouxe uma visão da eorhil
segurando uma pedra perfeitamente quadrada feita do mesmo material da pedra
da memória, só que esse artefato não existia naquela Cidade Caída, então eu o
criei. Refiz a pedra da memória, cinzelando-a por boa parte de um ano até restar
apenas um pequeno cubo, e nele coloquei todo o conhecimento que me fora
revelado pelo meu dom. Espero que a tenha feito feliz.
— Fez com que ela fosse… de grande ajuda para o povo dela, e para o meu.
E por isso lhe agradeço.
Lionen deu de ombros de forma afável e voltou à refeição.
— O que você estava procurando? — perguntou Vaelin quando o silêncio se
arrastou. — No gelo, para onde levou o corpo de sua irmã.
— Uma lenda. Sei que para você o meu povo é pouco mais do que um mito,
mas nesta época nós temos as nossas próprias histórias, canções antigas dos dias
em que o mundo era jovem. Vi muita coisa que sugere que este mundo é muito
mais antigo do que poderíamos compreender, fonte de incontáveis maravilhas.
Fui à procura de uma, um ser que as pessoas da sua época chamariam de deus,
que diziam possuir o poder de trazer os mortos de volta à vida.
Seu olhar ficou distante e ele voltou à refeição, comendo em silêncio. Vaelin
ficou imaginando se aquele encontro era tão familiar a Lionen a ponto de deixá-
lo cansado com a repetição. Ocorreu-lhe que o dom de Lionen era de fato uma
maldição, enchendo sua mente de visões de um futuro tão distante daquela
época, mas repleto de uma verdade terrível, privando de significado a sua
própria era.
Outro tremor sacudiu o solo, mais forte desta vez, fazendo com que as folhas
das janelas chacoalhassem e arrancando Lionen de seu silêncio. Ele raspou o
resto de ensopado da tigela e levantou-se, levando-a para fora. Vaelin o seguiu e
o encontrou amarrando a tigela a um pedaço de corda preso entre duas casas.
— É uma longa descida até o rio — disse ele. — O vento irá limpá-la. Um
gesto vazio, mas sempre achei difícil deixar hábitos de lado.
— Você encontrou? — perguntou Vaelin. — Esse deus lendário?
Lionen olhou para algo por cima do ombro de Vaelin.
— Creio que sabe o que encontrei, ó Sombra dos Corvos.
Ele sabia o que veria, ainda que não houvesse rosnado dessa vez e tivesse se
aproximado de forma silenciosa. Não estava tão grande quanto antes, seus
ombros chegavam à cintura de Vaelin, embora havia muito desconfiasse que ele
podia assumir qualquer tamanho que escolhesse.
O lobo aproximou-se com o focinho perto do chão como se farejasse a pedra
ao redor dos pés de Vaelin, lembrando-lhe de como Arranhão procurava um
rastro.
— Ele pode sentir o seu cheiro, mesmo você sendo apenas um eco enviado
do futuro — disse Lionen. — Parece que ele deseja poder encontrá-lo de novo.
O lobo sentou-se, a longa língua rosada deslizando sobre os lábios ao bocejar,
os olhos verdes encarando Vaelin com uma afeição plácida.
— Ele o seguiu desde o gelo? — perguntou a Lionen.
— Sim. Encontrei-o tão ao norte que desconfio que eu estava no topo do
mundo inteiro. Ele estava maior na ocasião, a imagem do deus que eu esperava
encontrar. Ele se aproximou, cheirou o corpo de Essara e usou os dentes para
tirar a mortalha que cobria o rosto dela. Por um segundo achei que fosse comê-
la, mas em vez disso lhe lambeu o rosto, só uma vez… E eu ouvi a voz dela.
O rosto de Lionen se anuviou e ele foi até a pedra da memória, seguido por
Vaelin e o lobo, que caminhava ao seu lado.
— Você tem mais perguntas para me fazer — disse Lionen. — Seja breve,
por favor. O tempo é curto.
— A pedra negra — disse Vaelin. — O que ela é? Por que ele a levou?
— Eu lhe disse, é uma caixa. Uma que abrimos juntos, e este mundo é o
resultado.
— Você disse que Erlin iria tocá-la, mas que não seria o mesmo quando o
fizesse. O que quis dizer com isso?
— O homem ancestral lhe disse que quase foi capturado uma vez, quando
ficou à beira da morte e tocou no Além. Você sabe que o Aliado usa outros para
causar a sua destruição no mundo, almas capturadas e deturpadas para os seus
propósitos. Por que acha que ele não enviou uma delas para roubar o corpo de
Erlin?
Lionen parou diante da pedra, sorrindo levemente.
— A última a ser entalhada, pelas minhas próprias mãos. A pedra em si vem
de uma mina nas profundezas das montanhas localizadas no lugar que você
chama de Confins do Norte. Também encontramos a pedra negra lá, um pedaço
imenso dela com propriedades muito singulares. Foi ideia dele entalhá-la, é claro,
embora minha irmã fosse contra. “Tal poder não deveria ser colocado em mãos
humanas”, disse ela. Ele riu, puxou-a para perto e falou: “Todo poder deveria
estar em mãos humanas, minha amada. Pois de que outro modo podemos
transcender a humanidade?”
— Poder — disse Vaelin. — O Aliado é atraído por ele.
— Como um abutre a um cadáver. E que maior poder existe do que a
habilidade de derrotar a própria morte? — Havia um peso nas palavras de Lionen
agora, uma intenção séria em seus olhos, o significado bastante claro.
— Não farei isso — respondeu Vaelin.
— Então veja o seu mundo morrer assim como vi o meu. A terra ao nosso
redor é estéril, e continua assim por quilômetros em todas as direções. Restam
pequenas aldeias aqui e ali, algumas cidades que de algum modo resistiram à
tempestade, à atenção do que chamavam de Dermos. Elas crescerão com o
tempo, criarão reinos e depois um império, esquecendo-se de suas lendas e
tornando a si mesmas perfeitas para os propósitos dele com a sua ganância
ilimitada. Ele aguarda, por ora. Posso senti-lo agora, encolhido no Além,
tramando, planejando. Ainda não é forte o bastante para me capturar quando eu
morrer, mas não tenho dúvida de que tentará.
— Você o matou — disse Vaelin. — Você é a razão para ele estar no Além.
— De que outro modo eu teria reunido seguidores numa terra tão estéril?
Com a ajuda do lobo, procurei aqueles que podiam me ajudar, um bando de
guerreiros corajosos e aqueles com dons que mal compreendiam, todos sofrendo
com a perda de familiares ou amantes durante o massacre dele. Os volarianos
irão chamá-los de Guardiões com o tempo. Juntos, nós o matamos.
Lionen gesticulou para a pedra e lançou um olhar urgente a leste quando o
solo tornou a tremer.
— Está na hora.
— Algo está prestes a acontecer — disse Vaelin.
— Um fim prometido há muito tempo. — Lionen virou-se para as montanhas
de fogo, e Vaelin viu como o brilho flamejante delas havia se tornado ainda mais
intenso, a cortina de nuvens acima agora de um tom mais forte de vermelho. —
Uma erupção a oitenta quilômetros daqui está prestes a expelir uma nuvem de
cinzas quentes que cairão sobre esta montanha mais depressa do que qualquer
homem poderia correr. As cinzas irão se assentar, ocultando este lugar dos olhos
humanos por séculos, mas as intempéries acabarão removendo-as, e os meus
ossos com elas. A única visão de minha própria época que me foi permitida, a
minha própria morte.
— Você viu o meu futuro? — perguntou Vaelin. — Viu o que acontece com o
meu povo?
Lionen olhou por sobre o ombro e sorriu. Era um sorriso de pesar genuíno,
cheio de solidariedade e sem qualquer traço de ironia.
— Vi o suficiente para ter pena de você, Sombra dos Corvos. — Ele se virou
de novo para as montanhas de fogo quando o solo voltou a estremecer, a força do
tremor fazendo-o cambalear. — Você precisa matar as criaturas dele — disse
Lionen. — Prendê-las nos seus corpos roubados e matá-las. Sem ferramentas
neste mundo, a necessidade dele de agir será ainda maior, a atração pelo poder
impossível de resistir. A pedra negra se encontra na arena em Volar. Quando
estiver feito, leve-o até lá. Um toque e ela dá. Um segundo toque e ela toma.
Ouviu-se um estrondo ribombante do leste, acompanhado por uma explosão
de lava, subindo num jorro de fogo antes de escorrer pelos flancos da montanha
que a expelira. O topo da montanha foi sacudido, fazendo Lionen cair de joelhos,
o céu acima escurecendo à medida que o brilho da montanha diminuía, uma
névoa densa sendo expelida do topo destruído e descendo as encostas a uma
velocidade impossível.
O lobo soltou um ganido baixo mas urgente ao lado de Vaelin, levando o
focinho até a sua mão e o empurrando para perto da pedra. Vaelin estendeu a
mão para a rocha, mas percebeu que não conseguia desviar os olhos de Lionen,
que agora estava ajoelhado e de braços abertos, as cinzas incandescentes
rumando em sua direção numa onda negra descontrolada.
— Minha irmã disse o meu nome! — gritou ele quando as cinzas subiram o
topo da montanha e o engoliram. O calor era insuportável e as cinzas estavam
sufocando Vaelin quando ele colocou a mão na pedra…
… ele piscou e a mudança instantânea no ar o fez engasgar. Seus olhos foram
para o local onde Lionen estava ajoelhado um segundo antes, recebendo a morte
de braços abertos. A pedra estava lisa, sem o menor sinal de sua morte.
— O que você viu? — perguntou Erlin, a testa franzida de incerteza. — Ela o
manteve lá. Deve ter lhe mostrado algo mais.
Que maior poder existe? Vaelin desviou o olhar, achando a confusão nos olhos
de Erlin difícil de suportar. Não farei isso. Ele se afastou da pedra e dirigiu-se para
os degraus.
— Como você disse, temos muito sobre o que pensar.

***
Lorkan apareceu de repente e sentou-se ao lado de Vaelin, ignorando os
murmúrios agitados dos Senthar. Os lobos de Astorek também começaram um
coro de ganidos aflitos, até que ele os acalmou com um olhar.
— Eu diria cerca de cinco mil pessoas — disse Lorkan. — Todas amontoadas
nas entranhas daquela montanha. — Ele apontou para um pico escarpado a
pouco mais de um quilômetro e meio dali, uma cicatriz irregular visível na rocha
a um terço do caminho flanco acima. — Não me aprofundei muito, mas vi o
suficiente para saber que eles estão num estado lastimável, vários feridos
recentemente, alguns moribundos. Talvez metade seja de crianças. Os mais
velhos parecem não estar se dando bem e estão sentados em grupos diferentes,
trocando olhares furiosos.
Vaelin ficara irritado ao descobrir que Dahrena voara mais uma vez enquanto
estivera fora, retornando ao acampamento e encontrando-a curvada junto a uma
fogueira, amparada por Cara e Kiral de ambos os lados.
— Chega disso — disse ele, sentando-se diante dela e passando uma das mãos
pela sua fronte gelada. — Mesmo que eu precise drogá-la para deixá-la
inconsciente.
— Ah, não resmungue — murmurou ela com um sorriso, os lábios lívidos e
os olhos turvos de exaustão. — Acho que posso ter encontrado alguns aliados.
— Alguém viu você? — perguntou Vaelin a Lorkan.
— Um garotinho começou a apontar e gritar quando tentei entrar mais na
caverna. Supondo que ele fosse dotado, era o único entre eles.
— Devíamos ir sozinhos — disse Erlin. — Um grupo grande causará muito
medo.
— O medo pode ser útil. — Vaelin virou-se para Astorek. — Diga ao seu pai
para trazer o exército inteiro para este vale.
Ele aguardou até o meio-dia e então conduziu Cicatriz pelas rédeas até a
montanha, parando no sopé. Vaelin ergueu os olhos para a abertura irregular no
flanco da elevação, revelando-se agora a entrada de uma caverna, escura e
silenciosa, de onde não saía nem mesmo um filete de fumaça que pudesse
entregar os seus ocupantes, apesar de que ele não tinha dúvida de que o haviam
visto se aproximar.
Ele segurou as rédeas de Cicatriz com menos força, permitindo que o cavalo
mordiscasse o pouco de capim que havia no fundo do vale, mantendo os olhos
fixos na entrada da caverna. Vaelin não tinha certeza de que atingiria o seu
objetivo. Pertak rira quando Erlin informou o pedido de Vaelin por uma aliança.
O chefe lathera tinha uma cicatriz recente no maxilar e um túmulo recém-
escavado aparecera do lado de fora das muralhas do povoado. Ele mantinha a
mão perto da algibeira no cinto e movia-se com a postura curvada e os olhos
apertados de um homem com medo constante de ser atacado. Porém, a sua
risada fora totalmente genuína.
— Deixe os fodedores de cabras morrerem — traduziu Erlin quando Pertak
voltou para o povoado pisando firme, ainda gargalhando. — Então os veios deles
serão nossos para mineirar.
O primeiro deles apareceu após uma espera de vários momentos, uma figura
solitária de saiote parada à entrada da caverna, olhando para Vaelin com um
machado em punho. Vaelin ergueu os braços, mostrando que suas mãos estavam
vazias. Várias outras figuras surgiram da escuridão da caverna, ficando cada vez
mais numerosas até que talvez seiscentas pessoas estivessem encarando-o em
silêncio. Vaelin abaixou os braços e esperou, ouvindo o tumulto crescente
causado pela aproximação do Povo Lobo. Os falcões-lanceiros chegaram
primeiro, dando os seus gritos estridentes ao planarem para dentro do vale e
voarem em círculos no alto, depois os lobos, várias alcateias que somavam bem
mais de cem animais. Avançaram aos pulos e cercaram Vaelin, fazendo Cicatriz
estremecer de forma involuntária.
Quando o Povo Lobo marchou para dentro do vale, Vaelin olhou para o rosto
da primeira figura que aparecera. Ele estava longe demais para ver as feições
com detalhes, mas Vaelin deduziu que fosse o mais velho presente, possivelmente
um chefe. Contudo, a julgar pelos símbolos e cores desiguais que adornavam os
trajes de seus companheiros, ele duvidava que aquele homem fosse capaz de
falar por todos os que haviam se refugiado ali. Ainda assim, era evidente que ele
era uma pessoa de respeito, trocando algumas palavras breves com os outros
antes de começar a descer a encosta. Alguns de seus companheiros o seguiram
de imediato, e todos usavam as mesmas cores e símbolos. Os outros se
demoraram durante algum tempo, exibindo uma desunião irascível ao trocarem
gritos e ameaçarem uns aos outros com armas erguidas. Porém, a discórdia não
durou muito, e logo todos seguiram o homem mais velho até o fundo do vale.
Vaelin manteve os olhos na figura que vinha na frente e não se virou para ver
o Povo Lobo parar às suas costas. O homem caminhava em sua direção sem
muita pressa, embora houvesse uma nítida determinação em seus passos. Ele
parou a quinze metros de distância, e os outros se alinharam de ambos os lados do
homem. Vaelin segurou as rédeas de Cicatriz e avançou, causando uma onda de
inquietação na pequena multidão, mas ninguém tentou impedi-lo.
Ele parou Cicatriz a poucos metros do possível chefe, olhou em seu rosto e viu
o olhar taciturno e quase enlouquecido de um homem que havia perdido boa
parte de seu mundo em poucos dias. Kiral advertira que a sua canção lhe dissera
que havia fúria e confusão entre aquela gente, mas não emitira qualquer nota
confirmando que estavam no caminho certo.
— Minha canção fica mais sombria e menos harmônica a cada dia que passa
— disse ela. — Desde que encontramos o homem eterno. Duvido que eu tenha
mais certezas a oferecer.
Porém, olhando para a dor por trás dos olhos daquele homem, Vaelin viu toda
a certeza de que precisava. Ele vira aquele rosto muitas vezes durante a marcha
até Alltor. O rosto dos torturados, dos estuprados, dos enlutados… e dos vingativos.
Seu volariano não era bom, mas Erlin lhe ensinara a pronúncia correta.
— Vamos para o sul — disse ele, batendo no peito e apontando para a
extremidade sul do vale. — Matar volarianos. Venham conosco.
CAPÍTULO DOIS
Lyrna

O rosto do Aspecto Arly n não revelou qualquer traço de reconhecimento quando


ele encarou Nortah, nem qualquer emoção ao voltar o olhar para Ly rna, embora
seus olhos tivessem se estreitado ligeiramente. Dominado, compreendeu Ly rna.
Como o Irmão Frentis ou os Kuritai. O Aspecto passou a mão sobre o ombro para
sacar uma espada de padrão asraelino, o aço exibindo as marcas semelhantes a
chamas características de uma lâmina da Ordem.
— Aspecto! — disse Nortah mais uma vez, dando um passo adiante, o braço
da espada agora abaixado ao lado do corpo. — Sabe quem sou?
O Aspecto voltou a olhar para Nortah, a lembrança causando uma leve
contração no rosto comprido.
— Sei quem você é, irmão — disse ele num tom calmo e reflexivo. — Você
morreu.
Ele ergueu a mão livre, parou por um momento de reflexão inexpressiva,
então fez um movimento quase imperceptível com o pulso e os Arisai
avançaram, um júbilo maníaco em cada rosto, espadas movendo-se num borrão
de carnificina habilidosa. A princípio as Adagas da Rainha recuaram diante do
ataque, e Ly rna se viu prensada entre Davoka e Iltis quando as fileiras ao redor se
comprimiram, mas a pressão diminuiu quando soltaram outro brado selvagem,
recuperaram-se e revidaram.
Ela lutou para se virar e teve um vislumbre de Nortah enfrentando o Aspecto,
o rosto tomado pela relutância enquanto bloqueava os golpes de Arly n.
— Irmã! — gritou Ly rna a Davoka, que segurava a lança acima das fileiras
que se entrechocavam, os olhos atentos para uma oportunidade de usá-la. — Os
frascos! — Ly rna abriu caminho à força até parar ao lado da lonak e agarrou o
seu braço. — Você ainda tem os frascos?
Davoka piscou para ela, aturdida por um momento, e então assentiu, dando
um tapinha numa pequena bolsa que levava pendurada ao lado do corpo.
— Apenas dois.
— Fique perto de mim.
Ly rna bateu no ombro de Iltis para lhe chamar a atenção e apontou para
Nortah, que agora recuava diante do ataque furioso do Aspecto, ao mesmo
tempo que se esquivava das estocadas dos Arisai que os cercavam. Iltis assentiu e
começou a abrir caminho pelas fileiras de soldados. Ao se aproximarem da
extremidade da formação, o Lorde Protetor foi obrigado a se desviar de uma
estocada dada por um Arisai, a mão de manopla vermelha que segurava a
espada surgindo de repente no espaço entre ele e Ly rna. Ela golpeou com a
machadinha, a lâmina atravessou o avambraço e quase decepou a mão do
homem. O Arisai caiu aos seus pés e olhou para cima com um sorriso cheio de
desejo e admiração. A machadinha de Ly rna tornou a descer, abrindo o crânio
do volariano acima dos olhos.
Iltis deixou o círculo externo de soldados e forçou os Arisai a recuarem com
golpes amplos de espada. Ly rna estendeu uma mão a Davoka, que a preencheu
de pronto com um frasco já com a rolha removida. Outro Arisai passou por Iltis,
a espada erguida junto à cabeça para desferir uma estocada curta e precisa na
garganta de Ly rna. Ela moveu a mão num reflexo, lançando um jato de líquido
negro do frasco direto nos olhos do volariano. A reação foi instantânea: a espada
do Arisai caiu quando ele arqueou as costas e urrou, batendo com as mãos no
rosto, enfiando os dedos na carne. Ao vê-lo cair e contorcer-se no chão do
templo, Ly rna teve a satisfação de notar que qualquer vestígio de um sorriso
havia desaparecido do rosto do homem.
Nortah estava a poucos metros agora, forçado a se agachar pelo peso dos
golpes do Aspecto Arly n, todos desferidos com tamanha fúria que mal era
possível enxergá-los enquanto o seu rosto permanecia uma máscara pálida. Um
trio de Arisai colocou-se no caminho de Iltis e o ataque combinado o forçou a
parar; cortes começaram a aparecer no seu braço da espada e na testa. Ly rna foi
para o seu lado e agitou o frasco da esquerda para a direita num arco amplo,
fazendo a mistura da Mahlessa jorrar e atingir os Arisai; a maior parte do líquido
caiu nas armaduras, mas o suficiente encontrou carnes expostas, levando-os para
o chão de pedra aos gritos.
Para além deles, Nortah agora estava caído de costas, arrastando-se para
longe enquanto o Aspecto se aproximava, a lâmina ainda em movimento. O
Lorde Comandante aparou dois golpes com a típica eficácia, mas Ly rna notou
como ele ainda estava se contendo, deixando de golpear as aberturas deixadas
pelo ataque impiedoso do Aspecto.
— Aspecto Arly n!
Ele parou ao ouvir o grito de Ly rna, a espada erguida, lançando-lhe apenas
um olhar breve e indiferente, mas foi o suficiente. O frasco estava vazio, a não
ser por algumas gotas no bocal. Ly rna colocou todas as forças no arremesso, o
frasco rodopiou no ar e acertou o rosto do Aspecto. Por um momento ela achou
que não havia funcionado, que toda a mistura havia sido usada, mas então viu
uma gota brilhando na face do Aspecto, seu rosto transformado num grito
paralisado de olhos arregalados. Ele caiu de quatro no chão, a espada chocou-se
com estrépito nas pedras, estremecendo enquanto lutava para controlar as
convulsões.
Um dos Arisai soltou uma risada pesarosa e avançou depressa com a espada
preparada para golpear as costas do Aspecto, e então se curvou quando a espada
de Nortah subiu numa estocada e lhe perfurou o peitoral. O Lorde Comandante
levantou-se de um pulo e sua espada moveu-se num borrão prateado à medida
que mais Arisai se aproximavam.
— Ao Lorde Nortah! — gritou Ly rna para as Adagas sobreviventes. Havia
menos de trinta agora, mas todos ainda lutavam e estavam dispostos a seguir as
ordens da Rainha. Ela estendeu a mão a Davoka, pegando o segundo frasco e
arremessando o conteúdo contra os Arisai quando tornaram a investir,
derrubando uma dúzia ou mais deles e fazendo os outros recuarem. Ver os
companheiros convulsionando aos gritos pareceu ter acabado com o seu humor,
muitos sorrisos vacilaram e as risadas cessaram. A dor os torna humanos,
concluiu Ly rna, indo se posicionar junto às Adagas, que agora formavam um
círculo bem reduzido, com apenas uma fileira. Nortah estava no centro,
agachado ao lado do Aspecto, o rosto lívido de preocupação.
— Meu senhor! — gritou Ly rna, ríspida. — Ao trabalho, por favor!
Nortah lhe lançou um olhar de ressentimento malcontido e então se levantou,
indo colocar-se ao seu lado.
— Se Vossa Alteza tem algum estratagema brilhante para estas
circunstâncias, sou todo ouvidos.
— Matar o inimigo — disse ela, jogando o frasco de lado e erguendo a
machadinha.
Um traço de um sorriso surgiu em seus lábios por um segundo e ele assentiu.
— Pouco sutil e mais do que direto, Alteza.
Os Arisai chegavam mais perto, mantendo os olhos fixos em Ly rna, atentos
para qualquer sinal de outro frasco. Os companheiros caídos haviam parado de
se contorcer e jaziam numa imobilidade rígida, cada rosto uma máscara
petrificada de agonia, paralisada na morte. Pelo menos os ensinei a ter medo.
O olhar de Ly rna foi atraído de súbito para o quadrante sul do templo pelo
brilho crescente de chamas alaranjadas, acompanhado do tumulto indistinto de
combate e, curiosamente, do latido de cães enraivecidos. Porém, qualquer
alegria que estivesse sentindo com a visão foi anulada pela quantidade de Arisai
que se encontrava em seu caminho; a Imperatriz tivera a sensatez de enviar um
amplo suprimento.
Outra explosão de chamas surgiu atrás dos Arisai, seguida por alguma
espécie de comoção, distante demais para ser identificada, mas Ly rna percebeu
certa discórdia na retaguarda das fileiras deles. Ela viu um dos Arisai que estava
se aproximando parar de repente com a espada erguida diante do rosto, virando a
lâmina em aparente perplexidade. Ele piscou, franziu o cenho, confuso, e então,
sem uma pausa sequer, virou-se para o Arisai à sua esquerda e passou a lâmina
pela garganta dele. Um de seus companheiros o matou de pronto, apenas para se
conter um segundo depois, o rosto também assumindo a mesma expressão
perplexa. Esse novo Arisai aturdido lançou-se de súbito no meio dos
companheiros, desferindo golpes tresloucados com a espada, matando três antes
de também ser abatido.
— O que é isso? — sussurrou Nortah. — É o seu elixir lonak, Alteza?
— Não. — Ly rna voltou o olhar para a retaguarda do exército Arisai e viu as
fileiras inimigas se abrindo como se estivessem sendo cortadas por uma lâmina
invisível, permitindo que uma figura esguia caminhasse entre elas, ignorada pelos
Arisai ao redor, que pareciam estar todos com a mesma expressão de total
perplexidade. O Aspecto Caenis passou pelo meio dos Arisai, fez uma mesura
rígida para Ly rna, o sangue escorrendo de seu nariz, olhos, ouvidos e boca, e
então voltou toda a sua atenção para os inimigos.
À direita, outro Arisai cravou a espada na barriga do homem ao seu lado,
depois outro fez o mesmo, seguido por mais um. A discórdia percorreu as fileiras
vermelhas como uma onda causada por uma pedrinha jogada num lago, mas
provocando uma tempestade em vez de uma leve ondulação. Logo parecia que
cada Arisai que podia ser visto estava lutando com aquele ao seu lado,
golpeando-se com uma ferocidade que não correspondia com suas expressões
aturdidas.
Caenis ficou de lado e gesticulou para o caminho que havia aberto pelas
fileiras inimigas.
— Vão! — ordenou Ly rna às Adagas sobreviventes. — Fujam deste lugar.
Mas eles ficaram, não querendo partir sem a Rainha. Ela foi para o lado de
Caenis e viu como ele tremia, o sangue escorrendo em abundância e a pele
branca como neve.
— Venha, Aspecto — disse ela, segurando as suas mãos.
— Eu… receio que precise… permanecer aqui por algum tempo… Alteza —
retorquiu ele, uma torrente vermelha escapando de sua boca e lhe cobrindo o
queixo.
— Irmão! — Nortah correu até ele e tentou agarrar os braços de Caenis, mas
o Aspecto cambaleou para longe, entrando na massa rodopiante de Arisai
enlouquecidos, desaparecendo de vista em meio à fúria deles, que agora
alcançava uma intensidade ainda maior de autodestruição. Nortah tentou ir atrás
dele e foi contido somente por Iltis e Davoka, obedecendo a uma ordem gritada
por Ly rna. Ela ordenou que as Adagas carregassem o ainda inconsciente Aspecto
Arly n e os conduziu pela batalha até os degraus do templo, com Nortah gritando
irado enquanto Iltis e Davoka o arrastavam em seu encalço.
Do lado de fora havia mais corpos apinhando os degraus e o solo mais além,
Arisai e Guardas do Reino, além de alguns com a vestimenta sem armadura da
Sétima Ordem. Uma jovem de cabelos cor de mel estava ajoelhada ao lado de
uma irmã gorda, as lágrimas escorrendo pelo rosto, um punhado de dardos
ensanguentados presos entre os nós dos dedos. A mulher gorda estava nitidamente
morta, os degraus abaixo dela cobertos de sangue, apesar de seu corpo não
mostrar sinais de ferimentos. Estavam cercadas por uma dúzia de cães de caça,
todos agachados no chão e ganindo tristemente. Perto dali, Trella Al Oren estava
de pé em meio a uma dúzia de corpos enegrecidos, seu rosto coberto de sangue e
fuligem. Uma nuvem de poeira cada vez maior subia a leste, as formas escuras
de muitos cavaleiros visíveis ao pé dela, mantos azuis e verdes: a Sexta Ordem e
a Guarda do Norte correndo em auxílio da Rainha.
Nortah ainda se debatia contra Iltis e Davoka, xingando-os enraivecido
enquanto lutava para retornar ao templo. Ly rna virou-se e viu como a fúria dos
Arisai continuou com a mesma intensidade por alguns minutos e então cessou de
repente, fazendo com que se afastassem uns dos outros como que em resposta a
alguma ordem silenciosa, olhando para o tapete de cadáveres que cobria o
templo de uma ponta a outra.
— Basta! — gritou Ly rna, indo até Nortah e lhe dando uma bofetada forte no
maxilar. Ele parou de se debater e olhou para Ly rna boquiaberto, seus olhos por
um momento tão desprovidos de razão que ela se perguntou se Nortah não havia
enlouquecido. — Ele se foi — disse ela, tentando abrandar o tom. — Veja como
está o seu regimento, meu senhor.
O Lorde Comandante se curvou, afastou-se de Davoka e Iltis e passou os
olhos pelos remanescentes das Adagas da Rainha, que agora mal chegavam a
duas dúzias de almas.
— É claro, Alteza — murmurou ele num tom ao mesmo tempo mordaz e
cansado. — Minha poderosa força está às suas ordens.
Ele se retirou e começou a organizar os sobreviventes de alguma forma.
Ly rna virou-se quando o Irmão Sollis parou o cavalo ali perto, saltou da sela e
correu até onde o Aspecto Arly n jazia entre Murel e Alornis, seu rosto revelando
choque e alívio.
— Alteza! — O Irmão Ivern parou ao lado e olhou para ela com uma
preocupação horrorizada que a fez considerar a própria aparência, coberta de
sangue da cabeça aos pés e segurando uma machadinha avermelhada. —
Precisa de um curandeiro?
— Não, obrigada, irmão. — Ly rna voltou o olhar para a Guarda do Norte,
que galopava para formar um cordão entre ela e o templo. A leste, mais poeira
se erguia sobre uma massa compacta de infantaria que vinha correndo, o
estandarte da Companhia Morta de Al Hestian visível em meio à nuvem.
— Onde está o Senhor da Batalha? — perguntou ela a Ivern.
A expressão do jovem irmão tornou-se sombria.
— Ferido, Alteza. É grave. Havia Kuritai escondidos entre os Espadas Livres,
pelo menos mil dos desgraçados. — Ly rna notou a bandagem ensanguentada que
cobria a mão de Ivern. — Devo dizer que demoraram para serem mortos.
Ela assentiu e virou-se para o templo, vendo os Arisai remanescentes mais
uma vez entrando em formação em fileiras organizadas. Não conseguia ver os
rostos, mas o som de suas risadas era nítido o bastante. Metade obrigada a matar
a outra e é tudo apenas uma bela piada.
— Encontre Lorde Al Hestian — disse ela a Ivern. — Ele deve cercar o
templo para evitar que o inimigo escape. Peça aos seus irmãos para que
transmitam a ordem aos outros regimentos para fazerem o mesmo. Então me
traga Lorde Antesh.

Eles tentaram romper o cerco antes que a Guarda do Reino estivesse


completamente a postos, uma cunha compacta de quinhentos Arisai lançando-se
sobre o regimento de Al Hestian enquanto o restante dividia-se em grupos
menores e tentava escapar para o sul. Contudo, os mortos de Al Hestian se
mantiveram firmes; a linha deles vacilou com o impacto da investida, mas não se
desfez, e seu Lorde Comandante posicionou-se no centro da primeira fileira.
Mais tarde Ly rna ouviu como ele usara o seu cravo para empalar um de seus
homens que dera as costas ao inimigo. Após quinze minutos de combate
selvagem, com a Guarda do Reino movendo-se para flanqueá-los, os Arisai
recuaram de forma ordenada, tendo perdido cerca de metade de seus homens.
Os grupos menores eram atacados sem cessar pela Guarda do Norte e pela Sexta
Ordem, abatidos às dezenas, até que também começaram a recuar. Os Arisai
formaram um compacto quadrado defensivo enquanto recuavam, movendo-se
como uma só besta gargalhante ao subirem os degraus para espalharem-se
dentro do templo.
— Dê a ordem, Alteza — disse Lorde Adal, suas feições geralmente belas
distorcidas por uma sede de vingança. Os Arisai aparentemente não possuíam
qualquer noção de rendição e ele havia perdido muitos Guardas do Norte
contendo a fuga deles. — Limparemos o lugar para a senhora.
— Se me permite, Alteza? — Ly rna virou-se e se deparou com Al Hestian
apontando o cravo ensanguentado para o rio. — Nossa cavalaria deveria cobrir o
passadiço oculto e a margem norte. É a única linha de retirada que lhes resta.
Ela assentiu.
— Lorde Adal, junte-se à cavalaria nilsaelina. Vocês protegerão o passadiço
enquanto os lanceiros bloqueiam a margem norte.
O comandante da Guarda do Norte assentiu, relutante.
— E o ataque, Alteza? Peço para ter a honra de liderá-lo.
Ly rna passou os olhos pelo exército: a Guarda do Reino e a infantaria
nilsaelina estavam numa formação ordenada e os arqueiros de Antesh se
posicionavam atrás deles. A cavalaria patrulhava os flancos num arco amplo que
chegava até o rio, para bloquear todas as rotas de fuga. Tudo feito apenas com
poucas ordens e nenhum plano formal. Que instrumento mortal construímos,
pensou ela. Marcado e massacrado o suficiente por um dia.
— Isso não será necessário, meu senhor — disse ela a Adal antes de se virar
para Al Hestian. — O exército permanecerá no lugar. Transmita a ordem para
trazerem as balistas.
Os Arisai continuaram a fazer pequenas surtidas enquanto as balistas eram
posicionadas; alguns ainda tinham cavalos suficientes para fazer uma investida a
oeste, tentando romper as fileiras da cavalaria e conseguindo apenas se
depararem com cavaleiros renfaelinos e serem aniquilados. Ly rna também
recebeu relatos de outros que tentavam nadar para o outro lado do rio, os poucos
que chegavam à margem oposta fornecendo um exercício bem-vindo aos
lanceiros nilsaelinos que se encontravam à espera.
Alornis informou que as balistas estavam prontas ao final da tarde. Como
sempre, trabalhar em seus engenhos parecia deixá-la mais animada, e ela ficou
de lado, observando com uma expressão levemente orgulhosa, enquanto a última
das máquinas era colocada ao lado de suas companheiras. O pequeno
contingente de artesãos que cuidava das balistas manuseou as várias alavancas e
molinetes até que cada uma estivesse armada e pronta, os braços cruzados dos
arcos puxados para trás, à espera.
— Quando quiser, meu senhor — disse Ly rna a Antesh.
O Lorde dos Arqueiros assentiu e ergueu o seu arco acima da cabeça. Os
arqueiros, perfilados imediatamente atrás da linha das balistas, ergueram
bastante os arcos e puxaram as cordas até atrás das orelhas para que tivessem o
máximo de alcance. Antesh abaixou o braço e a chuva de flechas teve início. O
céu ainda estava claro o suficiente para que fosse possível acompanhar a massa
escura de flechas ao subirem e caírem sobre o templo, uma chuva negra que
continuou no mesmo ritmo, uma vez que Ly rna ordenara que todas as setas
possíveis fossem recolhidas do campo de batalha. Ela podia ver o sangue ainda
reluzindo em muitas pontas de flechas disparadas pelos arcos longos. Os
arqueiros pareciam incansáveis, muitos grunhindo com o esforço de puxar a
corda e disparar a tal velocidade, mas os seus rostos estavam tomados por um
ódio determinado. Ao que parecia, matar tantos Espadas Livres não havia sido
suficiente para saciar a sua sede de vingança.
Ly rna usou a sua luneta para examinar o templo e viu um Arisai tombar ao
tentar correr para uma das casas de deuses piramidais, atravessado por três
flechas a trinta centímetros do abrigo, e dois de seus companheiros caíram sobre
o seu corpo no momento seguinte. Eles já são loucos, pensou ela, a luneta
detendo-se num Arisai que sacudiu a cabeça com uma resignação divertida ao
olhar para as duas flechas cravadas em seu peitoral. Podem ser enlouquecidos
ainda mais?
A resposta não tardou a ser dada: um grito retumbante de despreocupação foi
ouvido do templo antes que saíssem correndo. Toda coesão havia sido esquecida
agora e eles simplesmente investiram contra a linha de balistas numa onda
vermelha e desordenada. Ly rna aguardou até que os que vinham à frente
tivessem deixado os degraus antes de dar a ordem para que as balistas fossem
disparadas, a distância tendo sido encurtada para menos de quarenta metros. O
efeito foi impressionante: os Arisai da linha de frente foram abatidos por uma
foice invisível e os que vinham atrás tropeçaram sobre os corpos ou foram
jogados longe pelo impacto da segunda saraivada. Em alguns casos, um virote
perfurava um Arisai com força suficiente para atravessá-lo e matar mais um de
seus companheiros. No entanto, apesar das baixas, a investida dos Arisai manteve
ímpeto suficiente para chegar a quinze metros das balistas, e foi nesse momento
que os arqueiros de Antesh avançaram, miraram mais baixo e dispararam outra
chuva de flechas que deteve de vez o exército vermelho.
— Alteza — disse Al Hestian —, creio que está na hora.
Ly rna assentiu e gesticulou para o grupo de corneteiros ali perto, mandando-
os correndo para os flancos opostos do exército, e foi ouvido o toque para uma
investida da cavalaria. Antesh andou pela linha de arqueiros berrando ordens
para que cessassem os disparos, embora alguns continuassem com uma
desconsideração frenética pelas ordens e tivessem de ser contidos à força.
Felizmente, tanto os arqueiros quanto as balistas haviam parado quando o Senhor
Feudal Arendil conduziu os seus cavaleiros do flanco esquerdo e o Irmão Sollis
levou a Sexta Ordem e a cavalaria da Guarda do Reino do direito. Os Arisai
sobreviventes morreram com o que só podia ser descrito como uma bravura
incomparável, saltando para derrubar cavaleiros das selas, cortando patas de
cavalos, lutando até o último homem, dando voz ao seu júbilo até o fim.

O Conde Marven perdia e recobrava a consciência enquanto ela permanecia


sentada ao seu lado, segurando um pano úmido contra a testa ardente dele
quando a sua aflição transformava-se num pânico choroso. O Irmão Kehlan
tratara do Senhor da Batalha com grandes doses de flor rubra e seu rosto ficou
sombrio quando Ly rna lhe perguntou se era sensato usar tanta.
— A coluna dele está quebrada abaixo do pescoço, Alteza — informou o
curandeiro. — Se vivesse, ele não tornaria a andar. E ele não viverá.
— Eu… — começou Marven, os olhos arregalados de súbito ao encontrar o
rosto de Ly rna. — Eu matei um Kuritai, Kerisha. Eles lhe contaram?
Kerisha, ela sabia, era o nome da Condessa Marven.
— Sim, meu amado — disse ela, passando o pano pela testa e descendo pelo
rosto. — Eles me contaram.
— Qual é o problema? — perguntou Marven, subitamente cauteloso. — Por
que está zangada?
— Não estou zangada. Estou orgulhosa. Muito orgulhosa.
— Você… só é gentil quando está zangada — murmurou ele, acalmando-se
um pouco. — Uma língua que podia cortar seda, o Senhor Feudal sempre dizia…
Mas a Rainha… — Ele fez uma pausa para sorrir com afeto enquanto refletia. —
Você pode ter encontrado alguém à sua altura com ela. Mas acho que ela estará
mais receptível agora… Aquele castelo que você sempre quis…
— Sim — assegurou-lhe Ly rna. — Tenho certeza de que ela estará.
— Os meninos… — Sua voz ficou mais baixa, os olhos turvando-se ao
afundar ainda mais a cabeça no travesseiro. — Você tinha razão… Nada de
serviço militar para eles… Há ouro nos Confins, muito… Vamos man-dá-los para
lá…
Ele dormiu durante algum tempo, sem se incomodar com os choros e gritos
dos feridos que apinhavam a tenda. Mensageiros e capitães vieram vê-la no
decorrer da noite, todos dispensados por Murel e Iltis. Ly rna permaneceu e velou
o Conde Marven até que seu peito parasse de subir e seu rosto perdesse toda a
cor.
— Murel — disse ela, e a dama foi agachar-se ao seu lado. A carne ao redor
de seu olho esquerdo estava com um tom púrpura escuro e ela tinha uma fileira
de sete centímetros de pontos na face. — Tome nota. Uma concessão de terra
para a Condessa Kerisha Marven de Nilsael e fundos suficientes para a
construção de um castelo.
— Sim, Alteza. — Murel hesitou, olhando fixamente para o rosto de Ly rna. —
A senhora devia dormir, minha Rainha.
Ly rna sacudiu a cabeça. Dormir significava sonhar, e ela sabia o que os
sonhos lhe mostrariam.
— Peça ao Irmão Kehlan algo para me manter acordada. E diga ao Irmão
Hollun que preciso de um relatório completo de nossas baixas.

A irmã loura apresentou-se como Cresia e estava de pé com a cabeça baixa


enquanto o corpo do Aspecto queimava atrás dela. Ly rna os observara dizerem
as suas palavras, aqueles poucos sobreviventes de uma Ordem muito reduzida,
cada um dando um passo à frente com uma história de bondade, sabedoria ou
coragem. Lorde Nortah também estava ali, assim como o Irmão Sollis e muitos
da Sexta Ordem. O Lorde Comandante vacilara durante as suas palavras, uma
história da época que passaram na Floresta Martishe, deixada inacabada quando
ele se calou, olhando para o corpo na pira como se não compreendesse o que
estava acontecendo.
— Ele não chegou a conhecer os seus sobrinhos — disse ele por fim, a voz
fraca e sem emoção. — Pois ele era meu irmão, e sei que eles o teriam amado.
— Indiscutivelmente, o Aspecto Caenis foi um grande homem — disse
Ly rna. — Uma grandeza que só foi revelada recentemente, mas brilhante o
bastante para ofuscar a todos nós. Será sabido para todo o sempre que este
homem jamais vacilou no caminho que tomou, jamais se esquivou dos mais
árduos deveres e deu tudo a serviço do Reino e da Fé.
Houve mais fogos a serem acesos, mais palavras a serem ditas. Murel, Iltis e
Davoka estavam junto à pira de Benten e a planície estava repleta de outras. De
acordo com a tradição, soldados do mesmo regimento estavam sendo entregues
juntos às chamas, de modo que havia dezenas de piras em vez de milhares.
— Sua Ordem fez a sua escolha, então? — perguntou Ly rna à Irmã Cresia.
A jovem abraçou-se com força, o cabelo lhe cobrindo o rosto como um véu.
— Sim, Alteza. Embora eu tenha implorado para que escolhessem outra
pessoa. — O cabelo dela se dividiu quando ergueu o rosto para encarar a pira, o
Aspecto Caenis agora apenas uma forma escura entre as chamas. — Nunca
poderei ser ele. Ele era… grande, como a senhora disse.
— A guerra tem uma tendência a nos privar de escolhas, Aspecto. Descanse
um pouco. Amanhã precisarei de um relatório de quantos vocês são.
— Restam 23 de nós, Alteza — disse Cresia. — A Sétima Ordem nunca foi
muito numerosa. Talvez o máximo que já teve foi quatrocentos membros.
— Vocês a reerguerão, com o tempo.
Cresia tornou a baixar o olhar e Ly rna não teve muita dificuldade em
adivinhar o que ela pensava. Outra batalha como essa e não haverá nada para ser
reerguido.

O sol do início da manhã caía sobre a correnteza agitada do rio, levantando uma
névoa fina das águas. O Aspecto Arly n estava sozinho na margem, agora sem a
armadura vermelha, uma figura alta com um manto azul sem dúvida tirado do
corpo de um irmão morto. O Irmão Ivern encontrava-se ali perto, e curvou-se
com um sorriso cansado quando Ly rna se aproximou. Ela se perguntou se ele
estava ali como guarda ou carcereiro.
— Ele falou? — perguntou ela.
— Um pouco, Alteza. Perguntou sobre o Aspecto Grealin e Lorde Vaelin.
— O que você contou a ele?
Ivern pareceu intrigado pela pergunta.
— Tudo. Ele é o nosso Aspecto.
Ly rna assentiu e foi para o lado do Aspecto, o Irmão Verin mantendo-se a
menos de três metros dela, como ordenado. Arly n virou-se para a Rainha,
abaixando a cabeça na mesura curta que ele sempre fizera ao seu pai e ao seu
irmão. Sua expressão era pesarosa, como era de se esperar, mas Ly rna também
percebeu que ele a encarava com um olhar de julgamento, um olhar que ela
sabia que o Aspecto nunca hesitara em mostrar a Janus.
— Alteza — disse ele. — Por favor, aceite as minhas condolências pela perda
do Rei Malcius.
— Obrigada, Aspecto. Apesar de todos nós termos sofrido perdas.
Ele olhou rapidamente para o Irmão Verin. O jovem dotado vira muito desde
que embarcara no navio com ela e estava menos inclinado a demonstrações de
nervosismo, embora ainda se remexesse um pouco sob o olhar do Aspecto.
— Aprendi a ser cautelosa ao lidar com aqueles que encontraram a
Imperatriz — disse Ly rna.
O Aspecto assentiu numa aceitação plácida e virou-se de novo para o rio.
Eles se encontravam paralelos ao ponto onde os Arisai haviam atravessado, a
correnteza mais turbulenta ali do que nos outros lugares, deixando a água branca
onde se encontrava com a margem.
— Como foi feito? — perguntou Ly rna. — O passadiço. A Senhora Alornis o
considera um feito notável de engenharia.
— Com tijolos, ossos e sangue — respondeu Arly n. — Três mil escravos
trabalhando durante dez dias sob o meu comando. O rio é veloz, como a senhora
pode ver, e os Arisai divertiam-se muito com o chicote. No fim, restavam apenas
quinhentos escravos.
— Parece que os estratagemas da Imperatriz são astutos, mas custosos.
O Aspecto sacudiu lentamente a cabeça.
— Este estratagema foi meu, Alteza. Concebido por ordem dela,
naturalmente. Mas a ideia toda de atacar vocês aqui foi minha.
— Eu sei que o senhor não era responsável por suas ações. Nosso inimigo
emprega muitos artifícios ignóbeis.
— De fato. Principalmente uma compulsão para que vinganças
inconsequentes sejam executadas.
— Não peço desculpas por assegurar o futuro do Reino.
— É essa a sua intenção, Alteza? Se for, a Imperatriz ficaria muito surpresa.
Ly rna enfiou as mãos no vestido, relutante em deixar que ele visse como as
cerrava numa raiva contida.
— Se o senhor possui informações sobre os planos do inimigo, eu gostaria de
ouvi-las.
— Ela descia para me ver às vezes, naquela caverna de horrores onde
gravaram o domínio na minha carne. Na maior parte do tempo ela fazia
perguntas, testando o meu conhecimento da História, a minha experiência de
comando. Eu esperava que ela fosse arrancar de mim cada segredo que eu tinha
sobre a Fé e o Reino, mas logo ficou claro que ela sabia mais do que eu. Também
ficou claro que ela é totalmente louca, uma consequência inevitável de séculos
passados a serviço do Aliado. — Arly n abaixou a cabeça por um momento, de
olhos fechados e com a respiração subitamente fraca. — Até mesmo uma breve
exposição é a mais árdua das provações.
— O que ela fará agora?
— Formulará outro plano para matá-la, imagino. Ela parece achá-la bastante
incômoda. “Criei milhares de almas vingativas, mas nenhuma tão importuna
quanto essa vadia cuspidora de fogo.”
— Quantos Arisai ela ainda tem?
— Talvez sete mil. Mais outros oitenta mil Varitai e Espadas Livres.
Ly rna olhou para as mãos de Verin, confirmando que ele fizera o sinal para
verdade. Embora ela tenha ocultado a verdade antes, e eu não fui capaz de
perceber.
— Eu imaginava que haveria mais — disse ela.
— A guerra no Reino consumiu o grosso das melhores tropas deles e a
discórdia aumenta em todos os cantos do império. Nova Kethia caiu com uma
rebelião de escravos, inspirando revoltas pelas províncias. Ela também parecia
preocupada com alguma missão ao norte. Ela me fez executar um general
graduado que questionara a sensatez de enviar mais tropas para lá.
Uma missão ao norte… Vaelin. Ele conseguiu atravessar o gelo. Um leve
sorriso surgiu em seus lábios. É claro que conseguiu.
— Fale-me mais sobre essa discórdia.
CAPÍTULO TRÊS
Vaelin

O nome do homem parecia ser Hirkran ou Machado Vermelho; pareciam ser


intercambiáveis, dada a frequência com que Erlin os usava.
— Ele perdeu três filhos para os volarianos — relatou ele. — Um foi levado
como escravo anos atrás, os outros dois na semana passada.
— Ele é o chefe desses… othra? — perguntou Vaelin.
Erlin sacudiu a cabeça.
— Machado Vermelho é um título honorífico, dado ao principal guerreiro da
tribo. “Campeão” seria uma tradução melhor. E os othra são apenas uma das seis
tribos abrigadas aqui. Todos os chefes morreram lutando. Ele não fala por todos.
— Ele sabe se os outros lutarão conosco?
Erlin transmitiu a pergunta a Hirkran, que lançou um olhar severo para a
caverna, onde os membros das tribos espreitavam nas sombras, todos os olhos
aparentemente voltados para aquele encontro.
— Ele não tem certeza — traduziu Erlin. — Alguns não irão apenas porque os
othra irão. Alguns vão ficar aqui e irão se mijar para sempre.
— Ele pode nos guiar até os volarianos?
Hirkran fez uma longa pausa antes de responder, o olhar fixo em Vaelin.
— Ele vai nos guiar, mas primeiro insiste que seja nomeado líder do exército.
Lorkan, que se encontrava ali perto com o seu gato, soltou uma bufada de
escárnio, fazendo o othra rosnar e avançar com um machado erguido. Vaelin se
colocou entre eles quando o gato se agachou e arreganhou os dentes. Ele notara
que a coragem de Lorkan aumentara de forma considerável desde que adquirira
o animal.
— Suponho que ele tenha uma razão para pedir isso? — perguntou ele a Erlin
enquanto Hirkran continuava a olhar furioso para o dotado.
— Essas pessoas respeitam somente a força. Se ele não for nomeado líder,
elas o verão como um mero vassalo de um estrangeiro, o que significa que ele
enfrentará um desafio instantâneo de um rival mais jovem. Pode chamar de
título cerimonial, se quiser. Estas são as terras deles, Vaelin. Diminuídos como
estão, ainda merecem o seu respeito.
Vaelin olhou para as figuras esfarrapadas que se moviam na penumbra da
caverna, gente mais jovem agarrando armas enquanto as crianças se reuniam
em volta dos idosos. Cada rosto parcialmente sombreado estava coberto pela
sujeira de dias passados lutando pela vida; muitas estavam visivelmente exaustas
e curvadas pela dor de ferimentos recentes. Contudo, ele viu que ainda havia
uma atitude desafiadora em seus olhos, até mesmo nos mais jovens. Eles podiam
ter perdido a batalha, mas ainda não estavam derrotados.
— Diga-me o que dizer — pediu ele a Erlin.

Hirkran os conduziu por um caminho sinuoso ao longo de uma cadeia de colinas


altas, com seis de seus guerreiros fazendo o reconhecimento do terreno adiante.
Vaelin seguia com Erlin, Kiral e Astorek. A missão de reconhecimento poderia
ter sido evitada se ele tivesse concordado em deixar que Dahrena voasse mais
uma vez, mas uma olhadela nas feições ainda pálidas dela o fez recusar de modo
veemente.
— Eu gostaria de lhe lembrar, meu senhor — disse ela por entre os dentes —,
que não possuo posição formal neste exército e, na verdade, sou livre para agir
como quiser.
— E eu sou livre para empregar qualquer um dos diversos métodos à minha
disposição para deixá-la inconsciente sem machucá-la — retorquiu Vaelin. —
Ficará aqui e descansará, minha senhora.
Ela franziu o cenho e se afastou, e Mishara forneceu uma ideia nítida dos
sentimentos dela sibilando brevemente antes de acompanhá-la aos pulos.
Haviam percorrido cerca de treze quilômetros quando Hirkran mandou
pararem, e Vaelin notou como os lobos de Astorek haviam passado a andar com
mais cautela, mantendo-se agachados entre o topo escarpado das colinas e
parando com frequência para farejar o ar. Os animais eram claramente uma
presença desconcertante para Hirkran e a sua gente, apesar de que, pela
indiferença que tinham o cuidado de manter, ele tivesse deduzido que
demonstrações aparentes de medo eram consideradas uma grande vergonha.
Hirkran agachou-se e foi até a beira da encosta, e Vaelin esgueirou-se ao seu
lado. Abaixo deles a cadeia descia num penhasco escarpado, fornecendo uma
bela visão do vale adiante. Era vasto e com uma planície no centro de talvez um
quilômetro de largura, dividida por um rio raso. O exército volariano estava
acampado num perímetro circular de vários piquetes e tendas bem alinhadas.
Parecia que o Bastardo da Bruxa era um general eficiente.
Hirkran disse algo num murmúrio brusco que Erlin traduziu como uma praga
obscena que envolvia a invocação de várias entidades etéreas, assim como uma
forma engenhosa e canibalesca de mutilação genital.
— Por que comeriam isso? — perguntou Kiral com uma careta de
desagrado.
— Para absorver a força de um inimigo — respondeu Erlin. — E simbolizar o
fim de sua linhagem. Ter filhos é muito importante para as tribos. Um homem ou
uma mulher infértil são vistos como uma maldição e ficam sujeitos a ser
exilados, ou a coisa pior, caso sejam insensatos o suficiente para não deixarem a
tribo.
A caçadora lançou um olhar enojado para os guerreiros ao redor e
murmurou “Selvagens”.
Hirkran tornou a falar e gesticulou na direção do acampamento volariano.
— Nosso líder exige que o exército seja trazido aqui para um ataque imediato
— disse Erlin. — Ataque esse que ele liderará pessoalmente. Isso precisa ser
feito depressa, ou os espíritos nos acharão fracos e se recusarão a ajudar.
— Eles esperam que os seus deuses ajudem? — perguntou Vaelin.
— Eles não possuem deuses propriamente ditos. Acreditam que estas
montanhas possuem almas próprias, bondosas ou vingativas de acordo com os
seus caprichos. Quando ocorrem tempestades, elas estão bravas, quando o
inverno é ameno, estão satisfeitas. Mas elas nunca veem a covardia com bons
olhos.
— E iremos honrá-las de bom grado com a nossa coragem. Mas primeiro
preciso perguntar o que ele viu desses invasores. Em particular dos que os
lideram.
O rosto de Hirkran se fechou e ele desviou o olhar antes de dar uma série de
respostas curtas e grunhidas.
— Quando chegaram, pensamos que seria como antes — relatou Erlin. —
Eles chegam, nós os enfrentamos, roubam crianças, partem. Às vezes as
crianças podem ser compradas de volta por cobre ou metal de fogo. Geralmente
não. Desta vez eles pegaram as crianças e as mataram. Mataram tudo, até
mesmo as cabras e alces selvagens. Nós lutamos… — O rosto de Hirkran
assumiu o aspecto de uma máscara, como se os horrores que testemunhara
estivessem além de sua capacidade de expressão. — Lutamos com todas as
nossas forças… Mas eles eram tantos, muitos mais do que antes. Não vimos
quem os lidera, embora os rotha tenham falado de sete homens vermelhos com
poderes que rivalizavam com os espíritos, mas eles são mentirosos notórios.
Poderes que rivalizavam com os espíritos.
— Há algum rotha aqui? — perguntou Vaelin, gesticulando para os outros
guerreiros.
Hirkran cuspiu e fez um barulho de nojo.
— Na caverna. O fedor deles nos desonra.
Vaelin assentiu e afastou-se da encosta, fazendo com que Hirkran berrasse
uma pergunta a Erlin.
— Onde você vai?
— Reunir o exército para o ataque do nosso poderoso líder. Onde mais?

Os rotha eram liderados por uma mulher robusta de meia-idade com uma matriz
funda de cicatrizes decorativas gravadas na carne em volta dos olhos.
— Mirvald — disse ela quando Erlin perguntou o seu nome, acrescentando
alguns outros títulos que aparentemente indicavam a sua posição.
— Ela é uma mistura de conselheira e xamã, e dizem que tem a capacidade
de ouvir as palavras dos espíritos — disse Erlin.
— Ela viu os sete homens vermelhos? — perguntou Vaelin.
Mirvald olhou atentamente para Vaelin por um segundo antes de responder.
— Os rotha foram os primeiros a sentir a ira deles. Os Sete foram sozinhos
até o povoado. Por serem forasteiros, os guerreiros tentaram matá-los, mas
acabaram mortos. Os Sete não são como outros homens. Eles se movem e lutam
como se fossem um, como se cada um deles ouvisse os pensamentos dos outros.
Ainda assim, os rotha teriam vencido se eles não tivessem outros poderes. Um
podia matar com um único toque, outro tinha o poder de congelar o coração de
um homem com o medo. Eles mataram muitos rotha, e então o exército chegou
e matou muitos mais.
— Agradeça a ela pelas informações — disse Vaelin.
A mulher inclinou a cabeça ao ouvir as palavras de Erlin e então fez uma
pergunta:
— Como você pretende derrotar os Sete quando outros não conseguiram?
Vaelin olhou para onde Urso Sábio conversava com os outros dotados, todos
reunidos enquanto ele dava outra lição tirada de seu poço de conhecimento
inesgotável.
— Diga a ela que temos os nossos poderes. Se quiser vê-los, ela deveria vir
conosco.
Erlin escutou a resposta da mulher e forçou um sorriso plácido.
— Ela irá, mas só se você nomeá-la líder do exército. O povo dela não irá de
outra forma.
— Já temos um líder.
— Desconfio que não fará diferença se você nomear dois. As tribos
raramente falam umas com as outras, a não ser para trocar insultos. Admito que
estou surpreso que elas tenham conseguido passar mais de um dia sem terminar
o que os volarianos começaram.
— Muito bem. — Cansado, Vaelin assentiu e curvou-se para Mirvald, e então
se virou para Urso Sábio. — Aguardo as ordens sensatas dela e, com a sua
permissão, irei agora consultar os meus capitães.

— Como os encontramos? — perguntou Marken. — Escondidos num exército


desses?
— A rotha disse que eles se movem como um — disse Vaelin. — Desconfio
que, se encontrarmos um, encontraremos todos. Ainda assim, não será fácil no
meio da batalha.
— Minha canção pode nos guiar — disse Kiral. — Mas a melodia está tão
irregular agora…
— Não. — Vaelin sacudiu a cabeça para afastar as lembranças tingidas de
vermelho de Alltor. — É melhor evitar cantar durante uma batalha. — Ele se
virou para Astorek. — Os falcões-lanceiros de sua mãe poderiam encontrá-los?
— Fica difícil controlar um animal quando a matança começa — respondeu
ele. — Os sons, o cheiro de sangue, tudo isso os deixa temerosos ou sedentos. É
necessária uma grande concentração para garantir que ataquem o inimigo e não
a nossa própria gente. Manter foco suficiente para procurar uma presa específica
seria difícil, talvez impossível.
— Eu posso encontrá-los — disse Dahrena, num tom baixo, mas
determinado. — As almas deles são como pérolas negras num mar vermelho.
— A senhora já voou o suficiente durante esta empreitada — disse Vaelin.
— Não há outro modo, como desconfio que saiba, meu senhor. Além do mais
— ela estendeu a mão e pegou a de Cara —, tenho amigos para dividir o fardo.
— Mais de um — acrescentou Marken, indo para o seu lado. — Duvido que
os meus velhos ossos sirvam para lutar, de qualquer forma.
— Então, como pode ver, meu senhor — Dahrena o olhou nos olhos com um
sorriso radiante —, o nosso curso está traçado.

— Lembre-se, eles precisam ser capturados vivos — disse Vaelin a Astorek. —


Até que Urso Sábio possa tocá-los, eles não devem ser mortos.
O volariano assentiu enquanto os seus lobos se posicionavam ao lado de
Vaelin e Cicatriz. O exército havia se reunido ao norte da cadeia de colinas,
marchando durante a noite para chegar antes do amanhecer. Dahrena ficaria no
topo da elevação com Cara e Marken, seus gatos andando pelas encostas com
vinte dos guerreiros mais confiáveis do Povo Lobo.
Vaelin foi até Dahrena e os outros recuaram a uma distância respeitosa. A
raiva dela parecia ter se dissipado e ela apertou sem hesitar as mãos que Vaelin
estendeu, retribuindo o beijo e demorando-se um pouco.
Ele recuou depois de um momento e falou em voz baixa:
— Eu pedi tanto de você…
Ela levou a mão aos lábios dele.
— Não mais do que pede de si mesmo. Viemos para pôr um fim nisto, e estou
ansiosa para fazê-lo. Eu quero ir para casa, Vaelin. Eu quero ir para casa com
você, o que não acontecerá até que isto acabe.
Vaelin encostou a testa na dela e apertou mais uma vez as mãos de Dahrena
antes de se afastar e ir até Cicatriz e os lobos.

O Bastardo da Bruxa escolhera bem o lugar para o acampamento; a única


proteção era fornecida pelo rio raso que corria pelo fundo do vale. Vaelin
conduziu Cicatriz pelas rédeas através da água, as margens altas o suficiente para
ocultar o cavalo. Os lobos iam adiante, mantendo-se nos flancos. A penumbra
antes do amanhecer desaparecia depressa quando ele parou a um quilômetro e
meio do acampamento e pediu que Alturk pegasse os seus Senthar e atacasse os
volarianos pelos flancos.
— Lorkan irá com você — disse ele ao Tahlessa. — Abra um buraco na linha
de piquetes deles.
— Mal posso esperar — comentou Lorkan, forçando um sorriso, sua coragem
recém-descoberta agora vacilando visivelmente, apesar da presença de seu gato.
— Ao raiar do dia — disse Vaelin a Alturk, estendendo a mão. — Não antes.
Alturk olhou para a mão dele por um momento e então apertou rapidamente
o seu antebraço.
— O nome do meu filho era Oskith — falou. — Significa Faca Negra. Um
nome apropriado. — Ele olhou para onde Kiral estava agachada na correnteza,
passando a mão no pelo molhado de seu gato. — Assim como o da minha filha.
Eu gostaria que ela soubesse disso.
— Então viva e diga você mesmo a ela.
— Isso faria de mim um mentiroso. Cantei a minha canção de morte para os
deuses na noite passada.
Alturk levantou-se da água e subiu agachado a margem antes de desaparecer
de vista, seguido pelas formas curvadas e sombrias dos Senthar. Vaelin viu Kiral
observando-os partir, notando a compreensão em seus olhos e percebendo que
não teria nada para contar a ela se Alturk morresse. Poucos segredos podem ser
escondidos da canção.
Um pouco mais adiante, ele mandou as tribos pararem e, tal como Alturk,
atacarem ao raiar do dia, tendo como alvo a extremidade norte do
acampamento. Eles estavam reunidos em seus agrupamentos tribais, o que o
obrigou a visitar cada um com Erlin. Todos os seis novos chefes tinham agora a
impressão de que detinham o comando absoluto daquele exército e Vaelin lhes
agradeceu pela honra de permitirem que ele fizesse o primeiro ataque.
Ele conduziu o Povo Lobo adiante pela correnteza gelada, parando ao
ficarem paralelos com a parte principal do acampamento. Matador de Baleia
parou ao seu lado com um sorriso afável ante de seguir na frente dos guerreiros.
Dariam a volta pelo perímetro sul do acampamento e, tal como Alturk,
atacariam ao primeiro sinal do sol acima das montanhas a leste.
Vaelin olhou ao longo do rio, agora repleto de lobos, Astorek e os outros
xamãs agachados entre eles, cada rosto concentrado indicando o esforço
necessário para evitar uma explosão de rosnados reveladores com a proximidade
de tantas alcateias diferentes. Os lobos se remexiam, mas a maioria estava
imóvel, principalmente os de Astorek. Eles haviam permanecido perto de Vaelin
durante a viagem inteira, raramente tirando os olhos dele.
Ele se virou para Erlin e Urso Sábio, que estavam agachados ali perto.
— Você não tomará parte nisto — disse ele a Erlin, notando a machadinha
que o outro segurava.
— Já lutei em muitas ocasiões, irmão — retorquiu Erlin. — É possível que eu
tenha visto mais batalhas do que você.
— Mesmo assim, permaneça na retaguarda. Se a maré virar contra nós, vá
embora, dê talvez mais uma volta no mundo.
— E vê-lo ser destruído enquanto isso? — Erlin sacudiu a cabeça. — Acho
que não.
— Precisaremos de você. — Vaelin o olhou nos olhos, sentindo uma nova
pontada de culpa. Não farei isso… — Fique na retaguarda.
Ele se virou para Urso Sábio antes que Erlin pudesse dizer mais alguma coisa.
— Está preparado?
O xamã olhou para leste, onde os picos começavam a exibir a tonalidade
dourada que anunciava um novo dia. O céu estava límpido, o ar com um frescor
agradável, com um leve traço de odor floral que vinha das urzes que cobriam o
fundo do vale.
— O fogo verde não visto aqui — ponderou o xamã num leve tom de pesar, e
então chapinhou pelo rio até onde Garra de Ferro esperava. O grande urso soltou
um rosnado baixo quando Urso Sábio subiu em seu dorso e o virou na direção da
margem.
Vaelin fez sinal para Lorde Orven se aproximar e montou em Cicatriz.
— Se tudo ocorrer bem, deverá haver uma brecha decente nas fileiras deles
— disse ele ao guarda. — Concentre-se nos Varitai, se possível.
— Farei isso, meu senhor. — Orven bateu continência, empertigado enquanto
o rio corria à sua volta. — Nesse momento, eu daria tudo o que tenho por um
cavalo.
Vaelin sorriu e passou a mão sobre o ombro para sacar a espada.
— Desconfio que haverá cavalos de sobra para escolher quando
terminarmos.
Ele esporeou Cicatriz, saindo do rio e esperando enquanto os lobos de Astorek
se posicionavam na frente, as outras alcateias subindo a margem e aproximando-
se de ambos os lados. Mishara atravessou a multidão e sentou-se ao seu lado.
Vaelin olhou para baixo e encontrou o olhar dela, imaginando se Dahrena o via
pelos olhos da gata. Mishara apenas piscou e lambeu as presas antes de voltar a
atenção para os volarianos.
O acampamento estava a 230 metros, silencioso sob a cortina de fumaça
causada pelas fogueiras da noite anterior, agora apagadas. Vaelin podia ver,
através da neblina matutina, os piquetes se movendo num passo descontraído e
sem nenhum sinal de alarme. Ele aguardou à medida que o sol esquentava sua
nuca e sua sombra estendia-se no solo adiante, uma longa seta escura apontada
para o exército volariano.
Lembrou-se das palavras de Nortah ao apertar com mais força as rédeas de
Cicatriz: Você não vai fazer nada estúpido hoje, vai?
Vaelin deu uma risada baixa e bateu com os calcanhares nos flancos de
Cicatriz, e o cavalo soltou um relincho estridente e jubilante ao disparar num
galope. Os lobos avançaram com eles, acompanhando-os com facilidade e
soltando um rosnado coletivo, sem dúvida causado pela excitação de seus xamãs.
Vaelin viu os piquetes começarem a reagir, correndo para formar uma fileira
desorganizada enquanto toques dissonantes de corneta ressoavam pelo
acampamento, homens saíam aos tropeços das tendas e corriam para pegar
armas e armaduras.
Naturalmente foram os Varitai que reagiram primeiro, dois batalhões inteiros,
provavelmente mantidos acordados para se protegerem contra um ataque
surpresa; eles entraram em formação para bloquear o seu caminho com a
eficiência de costume. Posicionaram-se em duas fileiras, a primeira ajoelhada e
apontando uma cerca de lanças. Entretanto, apesar de toda a disciplina
inconsciente, nem mesmo eles eram imunes ao sol. Vaelin viu muitos baixarem a
cabeça quando o sol saiu de trás das montanhas. Aquilo causou certa agitação em
suas fileiras, mas não suficiente para desorganizá-las; para isso, ele precisava de
algo mais.
O primeiro falcão-lanceiro passou como um raio pela sua orelha, perto o
bastante para ele sentir a ponta da asa raspar sua pele, seguido por mais dezenas
de ambos os lados um momento depois. As aves atingiram o centro da linha
Varitai numa nuvem negra e compacta, surgindo do sol cegante rápido demais
para que os volarianos pudessem se esquivar ou se abaixar. O centro da linha
Varitai transformou-se numa massa confusa de pássaros e homens que se
digladiavam; os falcões subiam da refrega deixando rastros de sangue e com
carne pendurada nas garras de aço. Eles pairavam por um breve segundo e então
tornavam a mergulhar. Quando os lobos se juntaram ao combate, as fileiras
volarianas já haviam sido desfeitas.
Vaelin guiou Cicatriz através do caos, vendo um oficial volariano ser
derrubado por um trio de lobos e sua garganta ser estraçalhada num piscar de
olhos. Os volarianos haviam formado mais batalhões atrás dos Varitai, mas os
Espadas Livres estavam dispostos em fileiras muito menos organizadas.
Pareciam mais jovens do que os soldados volarianos que Vaelin enfrentara antes,
muitos rostos novos demonstrando choque e puro terror com a visão da horda de
feras que causava destruição diante de seus olhos. A maioria dos lobos se chocou
com eles sem parar, e o batalhão mais próximo foi feito em pedaços com o
ataque em questão de poucos segundos. O contingente ao lado teve mais sorte,
formando um círculo defensivo compacto e conseguindo matar muitos dos lobos
que o atacavam. Contudo, eles não tinham como responder aos falcões-lanceiros.
Após lidar com os Varitai, os seus xamãs reagruparam os bandos de aves e os
enviaram contra os Espadas Livres, descendo numa chuva negra enquanto os
lobos continuavam a atacar, avançando aos pares, cravando as mandíbulas nas
pernas dos volarianos e os arrastando para longe das fileiras.
Vaelin avistou um comandante de batalhão montado perto dali, a espada
erguida enquanto reunia os seus homens, sargentos veteranos correndo para o seu
lado e berrando ordens. Ele virou Cicatriz na direção do comandante, os lobos de
Astorek pularam na frente e derrubaram o cavalo do volariano. O homem saltou
para longe enquanto o cavalo gritava em meio a uma fonte de sangue, ficando de
pé a tempo de se virar e receber a espada de Vaelin em cheio no rosto. Ele
seguiu galopando para espalhar os homens que haviam se reunido, matando um
sargento que tivera a insensatez de permanecer no lugar.
Vaelin puxou as rédeas e parou Cicatriz, olhou ao redor e encontrou Garra de
Ferro espancando um infeliz volariano até a morte com as suas patas enormes,
Urso Sábio parecendo quase cômico balançando nas suas costas. Para além dele,
Vaelin tinha vislumbres de uma luta violenta, com os membros das tribos
atacando com fúria o perímetro norte. O tumulto que vinha do sul e oeste
indicava que o plano havia funcionado, pelo menos a princípio. Os volarianos
estavam agora sendo atacados por todos os lados e suas fileiras haviam sido
desfeitas a leste. Porém, o acampamento não havia sido invadido e eles
continuavam lutando; muitos regimentos eram formados e moviam-se com o
ritmo automático típico dos Varitai. Aquela batalha estava longe de ser vencida.
Vaelin olhou para Mishara e a encontrou imóvel, agachada até o chão e com
o focinho apontado para o centro do acampamento, onde era possível ver a
massa mais compacta de Varitai. Ele virou Cicatriz e saiu em disparada, ouvindo
o rosnado ávido de Garra de Ferro que o seguia, os lobos logo tomando a
dianteira, ignorando os Espadas Livres feridos ou atordoados que andavam a
esmo por ali.
Os falcões-lanceiros tinham sido mais uma vez reagrupados e voavam ao
redor do centro volariano num aglomerado de asas. Havia menos pássaros agora,
mas a sua ferocidade parecia inabalada ao subirem e descerem numa espiral
mortal incessante, fazendo chover sangue enquanto homens sem olhos
cambaleavam para longe das fileiras. Espadas Livres gritavam e Varitai
golpeavam o ar numa obediência silenciosa ao seu condicionamento.
Foi então que Vaelin os viu, um grupo de homens no centro das fileiras
volarianas, vislumbres de vermelho em meio ao mar negro. Ele virou Cicatriz na
direção deles e os lobos se aglomeraram à sua volta, abrindo um buraco na
muralha de Varitai. Vaelin lutou pelo caminho, aparando lâminas de lança e
matando qualquer um que chegasse perto demais.
Os dois primeiros homens vermelhos surgiram à sua frente quando ele
conseguiu sair do meio da multidão, ambos montados em cavalos de guerra altos
e girando num círculo compacto, as espadas movendo-se num borrão enquanto
abatiam falcões-lanceiros no ar. Vaelin investiu diretamente contra eles e o mais
próximo se virou na sua direção, o rosto lívido com um reconhecimento repleto
de ódio. Ele esporeou o cavalo para a esquerda ao mesmo tempo que o seu
companheiro foi para a direita num ataque coordenado. Vaelin agachou-se e
ficou com metade do corpo para fora da sela quando eles se aproximaram,
aparando o golpe da esquerda enquanto o outro o errava por centímetros.
Endireitou-se na sela e girou, fazendo Cicatriz parar quando os dois homens
vermelhos se viraram para outra investida. Eles se detiveram, aparentemente
intrigados por sua imobilidade, e observaram enquanto Vaelin permanecia
parado, devolvendo o olhar deles sem desviar os olhos.
Garra de Ferro levantou-se com um urro, as garras erguidas no alto. Os
homens vermelhos tentaram jogar os cavalos para o lado, mas tarde demais, e as
garras desceram e cravaram-se na coluna dos dois animais. Os cavalos gritaram
e se debateram enquanto o sangue jorrava, os homens vermelhos rolaram para
longe da carnificina e levantaram-se depressa, sendo em seguida derrubados
pelos lobos de Astorek. Eles lutavam em silêncio, cada um segurado com firmeza
por quatro lobos, as mandíbulas presas em cada membro. Encararam Vaelin
com toda a malícia de que ele se lembrava, malícia que se transformou em puro
terror quando Urso Sábio desceu do dorso de Garra de Ferro.
Eles imploraram e gritaram em uníssono, ambos fazendo as mesmas súplicas
e sons guturais quando o xamã ajoelhou-se e pressionou as mãos contra as suas
testas. O estremecimento cessou num instante, os dois homens vermelhos se
calaram e então piscaram, confusos, quando Urso Sábio removeu as mãos e se
afastou. Olharam boquiabertos um para o outro e depois para Vaelin… e então
para os lobos.
— Irmão… — disse um, olhando para ele com um rosto lívido e suplicante.
Vaelin virou Cicatriz para o outro lado enquanto os lobos faziam o seu serviço,
alheio aos gritos breves que puderam ser ouvidos acima do coro de rosnados.
Mishara estava mais uma vez ao seu lado, o focinho apontado para uma massa
compacta de figuras que lutavam na extremidade oeste do que restava do
acampamento. Uma breve inspeção lhe confirmou que a maior parte do campo
estava agora em suas mãos. O flanco sul fora destruído por completo sob o peso
da quantidade de membros do Povo Lobo. Ele podia ver os guerreiros movendo-
se em meio à névoa, lanças longas apontadas, de vez em quando se juntando
para lidar com pequenos grupos de resistência. Ao norte, os membros das tribos
haviam cercado o que pareciam ser os remanescentes da cavalaria volariana,
algumas centenas de homens montados que tentavam em vão escapar. Ele
observou cavaleiro após cavaleiro tombar sob os machados dos montanheses, a
sua desunião arraigada aparentemente esquecida por ora.
— Meu senhor!
Vaelin agachou-se por instinto ao ouvir o aviso de Orven, e algo passou
voando acima de sua cabeça, rápido demais para se ver. Ele girou Cicatriz e se
deparou com três homens correndo na sua direção através da névoa, cada um
trajando uma armadura leve e empunhando uma espada em cada mão. Kuritai.
Orven bloqueou o ataque do que vinha na frente, agachando-se e golpeando
com a espada as pernas do escravo de elite. O Kuritai saltou com facilidade
sobre a lâmina e rodopiou no ar, sua espada mirando o pescoço de Orven.
Porém, o capitão não era um novato e aparou o golpe, desferindo a própria
espada contra o rosto do Kuritai, e então erguendo e girando a lâmina num
contragolpe rápido e quase perfeito que deixou o escravo cambaleando com um
corte aberto na garganta.
Ele se virou para confrontar outro quando o terceiro passou por eles e atacou
Vaelin, saltando com as duas espadas erguidas. Mishara encontrou-se com ele
em pleno ar, cravou as presas em sua cabeça e o derrubou no chão, sacudindo-o
até que o seu pescoço deu um estalo audível.
Vaelin tocou Cicatriz adiante, vendo Orven pressionado pelo Kuritai que
restara, as espadas duplas desferindo uma série complexa de golpes rápidos que
forçaram o guarda a ficar de joelhos. Vaelin ainda estava a três metros deles
quando o Kuritai fez a espada de Orven sair rodopiando de sua mão e ergueu as
lâminas para o golpe final, mas então se enrijeceu de repente, jogando a cabeça
para trás no momento em que Lorkan surgiu do nada, o braço estendido para
enfiar uma adaga na base do crânio do escravo de elite.
O dotado removeu a lâmina com uma careta enojada e ergueu os olhos para
Vaelin, que se aproximava a trote. Seu rosto estava coberto com o sangue de um
corte em algum lugar na cabeleira escura, obrigando-o a limpá-lo continuamente
dos olhos.
— Você precisa vir — disse ele, balançando um pouco ao apontar a adaga
ensanguentada para o combate em andamento perto dali. — É Alturk.
Os lobos foram na frente, despedaçando a linha volariana já fragilizada de
Varitai feridos e parcialmente cegos, permitindo que Vaelin atravessasse
correndo, seguido de perto por Urso Sábio e Garra de Ferro. Avistou Alturk vinte
metros adiante, o porrete de guerra rodopiando enquanto o lonak girava e se
esquivava em meio a um círculo de homens vermelhos. Os Senthar tentavam se
juntar a ele, mas estavam sendo repelidos por uma companhia de Kuritai, lonaks
e escravos de elite engalfinhados numa luta feroz enquanto o Tahlessa enfrentava
uma situação sem saída. Porém, ele ainda estava vivo, com cortes nos braços, no
rosto e nas pernas, mas de pé, enquanto os homens vermelhos dançavam.
Vaelin tentou fazer Cicatriz ir mais rápido, mas o cavalo de guerra estava se
cansando, tinha os flancos e a boca cobertos de espuma, as passadas custosas, e
estremecia com o esforço. Vaelin viu quando Alturk esquivou-se de uma espada
e girou o porrete de encontro ao flanco de seu atacante, evitando de forma
deliberada um golpe mortal na cabeça, conforme Vaelin instruíra. No entanto, os
homens vermelhos claramente haviam permitido que Alturk acertasse o golpe
para fazê-lo avançar, dois deles dançando para mais perto e desferindo ataques
contra suas pernas. O lonak desviou da primeira espadada, mas não da segunda, e
a lâmina entrou fundo em sua coxa, fazendo-o colocar um joelho no chão e
arreganhar os dentes numa careta.
Outro homem vermelho pulou e chutou Alturk no maxilar, derrubando-o. O
homem vermelho aterrissou com destreza sobre a forma prostrada do Tahlessa, e
tinha um sorriso largo no rosto quando ergueu a espada. Alturk cuspiu sangue em
seu rosto e o homem vermelho recuou, o sorriso transformando-se numa
máscara de malícia.
Cicatriz colidiu com um Kuritai, arrancando-o do caminho, Vaelin ergueu-se
alto na sela quando o homem vermelho avançou sobre Alturk, caindo em seguida
quando uma flecha cravou-se em sua perna. Outra figura de armadura vermelha
disparou na direção do lonak, mas parou quando Vaelin chegou perto, erguendo
tarde demais a espada para bloquear os coices de Cicatriz, que o atingiu no peito,
arremessando-o para trás.
Os homens vermelhos remanescentes foram para cima de Vaelin, movendo-
se com uma velocidade espantosa. Outra flecha surgiu zunindo do tumulto ao
redor e atingiu a perna do volariano mais adiantado. Os outros pararam e se
agacharam, os olhos à procura de inimigos. Kiral apareceu, andando num passo
quase descontraído enquanto disparava flechas do arco de vara plana, e cada um
dos homens vermelhos caiu quando suas pernas foram atingidas pelas setas.
Os lobos avançaram quando Vaelin desmontou e correu para o lado de Alturk,
onde Kiral já se encontrava agachada. Os homens vermelhos gritaram e
xingaram quando os lobos abocanharam os seus membros e Urso Sábio desceu
do dorso de Garra de Ferro. O xamã foi até cada um deles, agachando-se e
encostando a palma da mão em suas cabeças, os gritos cessando um a um. Ele
parou no último, recuando com uma confusão estampada no rosto.
— Você não… — grunhiu Alturk, colocando a mão sobre o ferimento na
perna. — Você não me permite nem mesmo uma morte decente?
Kiral o esbofeteou em cheio no rosto, repreendendo-o severamente na
própria língua. Vaelin não sabia muito lonak, mas ouviu a palavra “pai” em meio
à torrente irritada. A raiva de Alturk desapareceu à medida que ela continuava a
gritar com ele, rasgando uma tira da calça do lonak e enfaixando a ferida.
Vaelin levantou-se e foi até onde Urso Sábio se encontrava de pé sobre o
homem vermelho remanescente; os dentes dos lobos já haviam silenciado os
outros. O xamã franziu o cenho, sacudindo a cabeça confuso enquanto o homem
vermelho o encarava, os membros esticados e presos pelos lobos, o suor lhe
cobrindo o rosto, o sangue escorrendo em profusão do nariz e dos cantos dos
olhos. Foi então que Vaelin sentiu, um aumento súbito nas batidas de seu coração,
um tremor tomando conta de seus membros.
O poder de congelar o coração de um homem com o medo, lembrou-se e se
pegou rindo.
— Medo — disse ele, agachando-se ao lado do homem vermelho e atraindo o
seu olhar. — Na verdade, é algo insignificante, e um velho amigo. — Ele bateu
com o punho da espada na têmpora do homem, deixando-o flácido e quase
inconsciente. Urso Sábio sacudiu a cabeça e murmurou uma praga na própria
língua, então se agachou e colocou a mão na testa do homem vermelho. O
volariano se enrijeceu por um momento, soltou um grito abafado de medo e
então ficou imóvel.
Vaelin deu as costas ao homem enquanto os lobos terminavam o serviço e viu
os últimos Kuritai serem mortos pelos Senthar. Em algum lutar às suas costas os
membros das tribos cantavam algum tipo de canção de vitória; a melodia era
dissonante, mas todos pareciam conhecer as palavras.
— Meu senhor — disse Lorkan, aparecendo ao seu lado com um trapo
ensanguentado pressionado na cabeça. — Sinto que este é um momento oportuno
para pedir demissão. Pois essa é uma experiência que eu não gostaria de repetir,
não importam quais sejam as opiniões de Cara.
— Aceito a sua demissão, caro senhor — disse Vaelin. — E agradeço pelo
seu serviço.
Ele se virou quando Mishara sibilou de repente, seu pelo se eriçando ao se
virar e sair em disparada na direção do topo da cadeia de colinas, onde haviam
deixado a sua dona.
O olhar de Vaelin percorreu os corpos dos homens vermelhos. Quatro, e os
outros dois. Seis. Mas Mirvald disse sete…
Ele correu até Cicatriz e saltou para a sela, batendo com força os calcanhares
nos flancos do cavalo ao disparar num galope.

A cadeia de colinas estava encoberta por nuvens e pela chuva quando Vaelin
parou o já quase exausto Cicatriz no sopé dela. Vira as nuvens descerem
enquanto cavalgavam até as colinas, rápidas demais para que pudessem ser outra
coisa que não o trabalho de Cara. Mishara estava vários metros adiante e
desapareceu de vista depressa na cortina de chuva quando um relâmpago reluziu
em algum lugar mais acima.
Vaelin subiu correndo a cadeia de colinas, vendo corpos caídos entre as
rochas, os guerreiros do Povo Lobo, todos aparentemente mortos em questão de
segundos. Encontrou o gato de Marken a seguir, morto, e o próprio dotado estava
caído alguns metros adiante, as feições barbadas flácidas e inertes debaixo da
chuva.
Vaelin desviou o olhar e forçou-se a seguir em frente. Sentiu primeiro o
cheiro, queimado, acre, nauseante. O fedor de carne recém-carbonizada. Avistou
Cara ao chegar ao topo da colina, uma forma pequena e imóvel sentada à chuva,
o rosto pálido encarando com olhos arregalados algo ali perto, algo enegrecido e
carbonizado, mas que de algum modo ainda se movia, o rosto parcialmente
derretido de uma armadura vermelha grudando-se à carne torrada ao se mexer.
— Eu não vi — disse Cara num sussurro. — Dividimos o poder… Não
consegui ver… Aconteceu tão depressa…
Vaelin agachou-se ao seu lado, vendo o sangue escorrer do nariz da garota,
tornar-se rosado e se dissolver na torrente. Tocou nas mãos dela.
— Basta — disse ele. — Está feito.
Cara piscou para ele e então se curvou, a chuva diminuindo até se
transformar numa garoa quando ele a amparou.
— Raio — murmurou ela. — Eu não sabia que podia.
— Cara. — Vaelin ergueu o queixo dela. — Onde está a Senhora Dahrena?
Ele ouviu Mishara soltar um chamado desolado em algum lugar adiante.
— Sinto muito — disse Cara, a voz baixa e embargada. — Aconteceu tão
depressa…
Vaelin a encostou numa rocha e levantou-se, afastou-se e seguiu o som do
choro pesaroso de Mishara.
Ela estava caída para o lado junto aos restos encharcados de chuva da
fogueira que Vaelin acendera para ela na noite anterior, ainda enrolada em peles.
Não havia sangue, nenhum sinal de ferimentos.
Um que podia matar com um único toque…
Ele se sentou ao lado dela e puxou o corpo pequeno e flácido para os seus
braços, afastando o cabelo sedoso da testa gelada.
— Eu quero ir para casa — disse ele. — Quero ir para casa com você.
CAPÍTULO QUATRO
Reva

Ela aterrissou com força, rolando com o impacto para absorver o choque, mas a
queda ainda assim deixou uma queimação dolorida em suas pernas quando se
levantou e correu na direção do domador mais próximo. Ficou grata pela sede de
sangue da multidão, pois a animação estrondosa com o seu surgimento fez com
que o domador não tivesse aviso algum até ela estar quase em cima dele. Ele se
virou pouco antes de Reva lhe acertar o rosto com os grilhões, quebrando dentes
e cortando os lábios com o impacto, o grito do homem um gorgolejo estridente
ao cair de joelhos, as correntes escapando de suas mãos.
Os três dentes-de-adaga que o homem estava guiando na direção das presas
giraram de imediato ao serem soltos de repente, sibilando para Reva e
agachando-se para saltar. Ela mergulhou na direção do domador, arrancou o
chicote da tira amarrada em seu pulso e o estalou contra o gato mais próximo,
forçando-o a recuar. Reva ergueu os olhos e viu que o Escudo e Allern se
encontravam ilesos no centro da arena, os outros dois domadores olhando em
choque para ela. O Escudo reagiu primeiro, saiu correndo e golpeou a fera mais
próxima; espada curta atravessou o pescoço do animal e os seus companheiros
uivaram e tentaram acertá-lo com as garras. Ell-Nestra dançou para trás com
pés ágeis, mas não sem sofrer três cortes paralelos no peito.
Os gatos do domador caído lançaram-se sobre Reva, desviando a sua
atenção. Ela golpeou de novo com o chicote e então correu, saltando por cima de
uma garra que tentava cortá-la. Virou-se ao ser perseguida, o chicote cortando o
ar com um estalo terrível. Os dentes-de-adaga recuaram mais uma vez e então
pararam ao mesmo tempo, como que em resposta a alguma compreensão
silenciosa, viraram-se e olharam para o domador ferido, que agora tentava
chegar aos tropeços até uma porta na parede da arena, as mãos sobre o rosto
enquanto deixava um rastro de sangue pela areia. Os gatos sibilaram de forma
idêntica e correram atrás dele, um saltando em suas costas e o derrubando na
areia, enquanto os outros atacavam as suas pernas, as longas presas perfurando
carne e osso com uma facilidade pavorosa. Os gritos do homem foram breves e
os gatos logo estavam se alimentando com satisfação, ignorando Reva por
completo.
Ela se virou e viu Allern usando estocadas curtas de sua lança para tentar
manter afastados os três gatos que tinha diante de si. No entanto, o domador deles
ficou bastante distraído com a investida de Reva, empalideceu, largou as
correntes e saiu correndo. O volariano chegou a três metros da porta antes que
uma saraivada de flechas dos arqueiros Varitai nos níveis superiores caísse sobre
ele e o prendesse à areia.
Livres, os gatos do homem começaram a andar em círculos em volta de
Allern, movendo-se numa dança rodopiante de garras cortantes e investidas com
os dentes arreganhados, procurando uma brecha enquanto ele girava, sua lança
movendo-se num borrão. Reva correu até o gato mais próximo e o golpeou com
o chicote, que se enrolou na pata do animal, e o puxou para trás se debatendo e
uivando. Allern viu a sua oportunidade e golpeou a fera no ombro, embora a
força da estocada tivesse feito a lâmina da lança trespassar o animal, prendendo-
se entre ossos e tendões. Allern praguejou e tentou arrancar a arma, os outros
dois gatos se aproximando para liquidá-lo.
O chicote de Reva tornou a estalar, forçando-os a recuar.
— Deixe-a! — gritou ela para Allern, empurrando-o para longe do cadáver.
— Pegue isto.
Ela lhe entregou o chicote e então colocou o pé no cabo da lança, pisando
com força e a quebrando em dois. Reva rolou o gato para o outro lado e agarrou
a lâmina da lança, arrancando-a da carcaça com um jorro de sangue.
— Mantenha-os afastados! — ordenou a Allern, virando-se e vendo o Escudo
agora caído de costas com as pernas erguidas para afastar o gato que rosnava em
cima dele, batendo as mandíbulas, as presas terríveis a um centímetro de seu
rosto. O domador sobrevivente soltou o seu gato e recuou, olhando ao redor de
modo frenético, ciente de que fugir significaria a morte, mas evidentemente não
querendo tomar parte naquele combate que de súbito tornara-se equilibrado. O
gato solto rodeou a dupla engalfinhada com rapidez, deslizando até parar perto da
cabeça de Ell-Nestra, preparando-se para atacar, arreganhando as mandíbulas
ao saltar… A lâmina partida de Reva atingiu o gato no flanco em pleno ar e o
corpo flácido colidiu com o dentes-de-adaga em cima do Escudo, forçando-o a
recuar, deixando espaço suficiente para que Ell-Nestra cravasse a espada em seu
pescoço.
Ele rolou para longe quando o cadáver tombou, arrancou a lâmina do corpo e
então se agachou quando o chicote do domador deixou uma longa marca
vermelha no seu braço. Virou-se e encarou com uma sobrancelha erguida o
domador visivelmente apavorado.
— Tem certeza?
O domador olhou para ele com uma indecisão aterrorizada; lutar ou fugir
significava o mesmo destino. Reva lhe poupou de mais considerações ao saltar e
enfiar os dois pés no rosto do volariano, derrubando-o desmaiado na areia. Ela se
agachou e recolheu o seu chicote e uma pequena adaga que saía de sua bota.
— Permita-me dizer, minha senhora — disse o Escudo, cumprimentando-a
com uma mesura —, que está encantadora hoje. O vermelho realmente lhe cai
muito bem.
Reva grunhiu e correu até Allern.
— Você teria mais chance com uma dessas feras.
Allern havia empurrado os dois gatos sobreviventes para a extremidade da
arena, seu peito arfando ao manusear o chicote, contendo cada corrida e
investida que tentavam fazer. Reva usou o próprio chicote para apanhar a pata
dianteira de uma das feras, arrastando-a para o chão para que o Escudo pudesse
dar cabo dela com a espada. Ela mesma matou o último gato, provocando-o até
que pulasse sobre ela, quando então se esquivou para o lado e saltou para as
costas do animal, a adaga entrando abaixo das omoplatas repetidas vezes até que
ele parou de se debater e soltou um último suspiro pelo focinho.
Quando Reva se ergueu do cadáver, a exultação da multidão tomou conta da
arena, os níveis acima eram um mar de rostos jubilantes que gritavam de
admiração e, ela percebeu, enojada, de puro desejo. Homens a olhavam com
malícia, mulheres mostravam os seios e uma chuva de flores caiu sobre a areia.
Uma caiu próxima aos seus pés, uma orquídea, as pétalas de um tom claro de
rosa que se tornava vermelho escuro nas pontas.
— Pegue-a! — sibilou o Escudo para ela, e Reva notou que ele tinha um
punhado de flores nas mãos. — Você também, rapaz! — gritou ele a Allern. —
Peguem as flores, depressa!
Reva ajoelhou-se e pegou a orquídea, notando como a adulação fervorosa da
multidão ficou ainda mais intensa.
— Um sinal das graças deles! — gritou o Escudo para ela acima do tumulto,
antes de lançar um olhar cauteloso para o balcão da Imperatriz. — Difícil de ser
ignorado por aqueles que orquestram esses espetáculos.
Reva olhou para o balcão e viu a forma esguia da Imperatriz ainda sentada no
seu banco, o rosto oculto pelas sombras. Ela parecia completamente imóvel e
Reva se perguntou se havia entrado em outro daqueles estados inexpressivos.
Também duvidava que a Imperatriz tivesse algum respeito pelas tradições que
costumavam ser celebradas ali. Ela os odeia, lembrou-se, olhando para a
multidão. Quem disse que ela se importa com as graças deles?
Ela viu a Imperatriz erguer a mão e fazer um gesto casual para Varulek, e o
homem de preto avançou para ordenar que as trombetas soassem mais uma vez.
Desta vez a obediência da multidão não foi tão instantânea, a exultação e o
desejo demoraram mais para desaparecer, deixando um murmúrio fervilhante
que continuou mesmo após a Imperatriz levantar-se e ir até a beira do balcão.
Reva se abateu ao ver a expressão no rosto dela. Não havia fúria ou frustração,
apenas uma afeição calorosa e sincera. Os lábios da Imperatriz se moveram
num apreço silencioso, as palavras facilmente compreensíveis:
— Você realmente é a minha irmã.

Ela encontrou Lieza andando de um lado para outro quando a levaram de volta à
câmara, e a garota teve um sobressalto de surpresa e alívio quando Reva entrou e
a porta foi batida. Lieza foi até ela com uma risada trêmula, parando de repente
ao ver o sangue que cobria Reva da cabeça aos pés, embora parecesse mais
chocada pelo que ela tinha nas mãos.
— Onde você pegou isso? — perguntou ela.
Reva olhou para a orquídea. Não largara a flor quando a Imperatriz decretou
que os espetáculos do dia estavam concluídos e uma dúzia de Kuritai entrou na
arena. Allern e o Escudo foram acorrentados e conduzidos para outra porta, mas
não antes de o jovem guarda colocar um joelho no chão diante dela, erguendo o
olhar com uma devoção quase desvairada.
— O Pai me abençoou, minha senhora! — gritou ele quando o arrastaram
dali. — Ao permitir que eu lutasse com a senhora hoje!
O Escudo estava visivelmente menos animado.
— Não conquistamos vitória alguma aqui — disse ele por sobre o ombro. —
Imagino que você saiba disso.
— Estamos vivos — retorquiu Reva. — E de nada, meu senhor.
Reva ficou imaginando por que Varulek não havia lhe tirado a flor. O Mestre
da Arena ficara em silêncio no trajeto de volta à cela, sua expressão mais tensa
do que antes e os olhos indo sem cessar para a flor que ela segurava.
— Eu estraguei a história? — perguntou Reva a ele ao chegarem à porta da
câmara. — Suponho que a lenda tenha um final diferente.
— Morivek e Korsev ficaram na entrada dos fossos de fogo e repeliram os
arautos durante um dia e uma noite. — O homem de preto permaneceu afastado
enquanto os Kuritai removiam os grilhões dela com a cautela de costume. —
Morivek, o mais velho, caiu mortalmente ferido e implorou ao irmão que fugisse.
Mas Korsev ficou, tomado de tamanha fúria que matou cada arauto que saiu do
fosso e, ao ver o irmão agora morto, jogou-se nas profundezas da terra, em
busca de ainda mais vingança, e nunca mais foi visto. Se bem que, como com
qualquer lenda — acrescentou ele quando a porta foi aberta —, a história muda
dependendo do autor.
— Na arena — disse ela a Lieza, estendendo a orquídea. — Fique com ela, se
quiser.
A garota encolheu-se e sacudiu a cabeça.
— Não para mim. — Olhou de novo para o corpo ensanguentado de Reva e
foi para o fundo da câmara. — Preparei um banho para você.
Reva sentou-se nos degraus de mármore quando a água jorrou de uma
ornamentada torneira de bronze na parede, massageando os pulsos quando o
vapor se levantou.
— Eu lavo isso para você — disse Lieza, apontando para as roupas
ensanguentadas de Reva.
— Você não é minha escrava — disse ela.
— Também não livre. — Lieza encolheu os ombros. — Mais nada para fazer.
Reva levantou-se e encarou Lieza, esperando. A garota pareceu confusa por
um momento, mas então riu e se virou. Reva chutou os sapatos para longe e
então tirou a blusa e a calça, deixando-as empilhadas no chão, e entrou na água,
suspirando com o calor aliviado.
— Quem você enfrentar? — perguntou Lieza, sorrindo um pouco ao se
abaixar para recolher as roupas, ainda desviando o olhar.
— Gatos com dentes grandes.
— Você matar todos eles?
— Menos três. — Reva lembrou-se da visão dos três gatos sobreviventes,
ocupados se fartando com o corpo de seu domador morto, presas e rostos
vermelhos pela alimentação frenética. Por mais horroroso que fosse o
espetáculo, ela não conseguiu deixar de sentir uma pontada de pena. Apesar de
toda a fúria, aquelas eram criaturas miseráveis, que passavam fome de forma
contínua, eram tratadas com brutalidade e lhes tinha negado o papel que o Pai
havia determinado para elas. É isso que eles fazem, concluiu. Deturpam o mundo
de acordo com caprichos cruéis.
Ela passou algum tempo desfazendo a trança e mergulhou na água,
esfregando as madeixas para tirar o sangue seco. A banheira era funda,
permitindo que ela submergisse por completo, abaixando até que os pés tocaram
o fundo ladrilhado. A sensação dos cabelos nos dedos despertou lembranças de
Veliss, de como ela adorava escovar o seu cabelo e moldá-lo num dos milhares
de penteados que conhecia. Veliss, Ellese… Tão longe e muito provavelmente
perdidas para sempre.
Uma agitação na água fez com que voltasse à superfície, onde se assustou ao
ver Lieza entrar nua na banheira.
— O que você está fazendo? — perguntou ela, desviando o olhar.
— Roupas precisam lavar. — A garota pegou a pilha de roupas de Reva e as
jogou na água com um leve sorriso nos lábios.
— Faça isso depois.
— Não sua escrava. — O sorriso de Lieza aumentou ao pegar uma barra de
sabão e começar a esfregar as roupas. Reva lhe virou as costas e foi para a beira
da banheira, querendo sair, mas sabendo que o olhar da garota a acompanharia
se o fizesse.
— Seu povo não tem respeito uns pelos outros — murmurou ela. — Também
nenhum respeito pela vida ou pela privacidade, ao que parece.
— Privacidade? — perguntou Lieza.
— Ficar… — Reva se esforçou para traduzir o conceito, achando mais difícil
do que esperava. — Ficar sozinha, guardar segredos. Proteger o pudor.
— Pudor?
— Deixe para lá. — Ela ouviu Lieza abafar um risinho quando voltou a
esfregar as roupas. — Vejo que não está com tanto medo agora.
— Não, ainda com medo. Vem como uma… — Reva a ouviu bater na água.
— Uma onda?
— Sim. Onda. Onda grande quando eu tentar matar a Imperatriz. Onda
menor agora.
Reva se pegou virando com uma surpresa involuntária, e então tornou a
desviar o olhar quando viu os seios de Lieza logo acima da água.
— Você tentou matá-la?
— Com veneno. Não funcionou. Me manteve com ela. — O tom de Lieza
ficou mais sombrio. — Me achou… engraçada.
— Por que você fez isso?
— Meu mestre… não só meu mestre. Pai também. Minha mãe uma escrava.
Ela morrer quando eu pequena. Ele me criou, me amou. Não podia me libertar,
a lei. Não gostava da Imperatriz e dizia isso. Ela deu para ele as três mortes,
pegou todos os escravos para si.
— Lamento o seu fracasso. Mas, em nome da Rainha e de meu povo,
agradeço-lhe pelo esforço.
— Rainha também é palavra para Imperatriz, não?
— Imagino que sim, embora elas sejam muito diferentes.
— Sua Rainha não cruel?
Reva lembrou-se da visão da Rainha cravando a adaga no peito do volariano
no navio, a mudança instantânea e total do seu comportamento quando o corpo
dele foi jogado por sobre a amurada.
— Ela é determinada na sua dedicação à nossa causa, que é justa.
— Acha que ela ganhar esta guerra? — Havia um tom distintamente duvidoso
na voz de Lieza.
— Com ajuda. — Reva sentiu as pálpebras ficarem pesadas, o calor da água
e os seus esforços recentes se combinando para sobrepujá-la. Ela se virou para a
beira da banheira e apoiou a cabeça nos braços. — Há um homem, um amigo
meu. — Ela se pegou sorrindo. — Meu irmão mais velho, para todos os efeitos.
Se eu puder sobreviver aqui tempo suficiente para que ele receba notícias, ele
virá atrás de mim. — Fechou os olhos, sua voz tornando-se um sussurro. —
Apesar de eu não querer que ele se arrisque mais por minha causa…
Reva deixou que tudo desaparecesse, a arena, o sorriso terno da Imperatriz,
entregando-se ao calor receptivo da água, deixando que entrasse em seu corpo,
acalmando, acariciando…
Ela voltou a si com um sobressalto e as mãos de Lieza desapareceram de
seus ombros ao recuar alarmada.
— Você… tensa — disse ela. — Sei como fazer desaparecer. — Ela ergueu
as mãos, flexionando os dedos, e então os estendeu lentamente para passar as
unhas pelo cabelo de Reva.
— Não. — Reva segurou a mão da garota, odiando a sensação elétrica
provocada pelo toque de sua pele, e a afastou com gentileza. — Por favor.
— Eu não sua escrava — disse Lieza. — Eu querer…
— Não posso. — Reva lutou contra uma onda de autocensura pelo
arrependimento em sua voz. — Há alguém, alguém que está esperando por mim.
Ela tomou impulso até os degraus e saiu da banheira, foi até a cama e cobriu-
se com um lençol. Encostou-se num pilar, sem olhar para Lieza, que, ela sabia,
estaria encarando, e escorregou para o piso de mármore com um sussurro:
— A fidelidade é tudo o que me resta para dar a ela.

***

Ela despertou na escuridão, com Lieza dormindo ao seu lado, ainda nua e
descoberta. A garota lavara as próprias roupas após terminar com as de Reva e
as deixara secando. “Nenhum outro lugar para dormir”, dissera ela, de pé ao
lado da cama após diminuir a chama das lamparinas.
Reva virou-se para o outro lado, dando-lhe as costas.
“Então durma.”
Lieza gemeu quando Reva se ergueu, passando os olhos pela porta quase
invisível e percebendo que havia sido acordada pelo som da fechadura virando.
Ela se levantou da cama, jogo um lençol sobre o corpo de Lieza, que a distraía, e
recolheu as suas roupas ainda úmidas. Conseguira vesti-las quando a porta se
abriu e revelou Varulek, parado com uma lamparina a óleo na mão. Reva piscou
de surpresa ao notar que ele estava sozinho e o túnel às suas costas sem qualquer
Kuritai.
Cuidado, advertiu a si mesma contra o impulso instintivo de correr até o
homem de preto. Ele não viria aqui indefeso.
De modo que ela permaneceu em silêncio quando o volariano entrou e olhou
ao redor da câmara, parando rapidamente ao avistar a nudez parcial de Lieza. O
rosto de Varulek estava tenso com um medo controlado porém palpável, o rosto
de um homem se forçando a um dever inevitável, uma expressão que ela
conhecia bem.
— Tenho algo a lhe mostrar — disse ele, a voz mantida a um sussurro.
Reva nada disse, mas lançou um olhar penetrante para o túnel vazio além da
porta.
— Se não se interessar pelo que ofereço — disse ele, acompanhando o olhar
dela —, seria um grande favor me matar.
Um golpe na têmpora para derrubá-lo, outro para esmagar a sua laringe e
evitar que grite. Cubra o nariz e a boca dele enquanto o sufoca até a morte.
Acorde a garota e encontre um caminho para fora deste lugar de horrores. Tudo
tão fácil. Porém, havia algo no olhar do volariano que a fez parar para pensar,
outra expressão que ela também conhecia bem, pois a vira muitas vezes em
Alltor. Esperança. Ele vê esperança em mim.
— O Pai não vê a traição com bons olhos — disse ela, pegando os seus
sapatos. — Assim como eu.
A luz da lamparina era fraca, forçando Reva a manter-se perto dele enquanto o
volariano a conduzia ao longo do túnel até uma porta pequena, onde enfiou uma
pesada chave de ferro na tranca e a abriu. A escadaria do outro lado era estreita,
os degraus e as paredes entalhados de forma tosca e sem a precisão evidente em
cada linha da arena.
— Esse Pai de quem você fala — disse ele enquanto desciam a escada — é o
seu deus?
— O único deus, que nos criou para que possamos conhecer o Seu amor. —
Ela abafou uma tosse causada pelo ar bolorento, que ficava mais pesado a cada
passo. O ar cheirava basicamente a poeira, mas tinha a sensação nauseante e
sufocante típica de lugares raramente visitados.
— Ah — disse Varulek em reconhecimento. — A heresia alltoriana,
expurgada na Purificação. Então os seguidores dos Seis Livros encontraram um
novo lar no seu Reino.
— Dez Livros — corrigiu Reva. Embora eu tenha lhes prometido um décimo
primeiro. — Está dizendo que o meu povo veio desta terra?
— A Purificação forçou milhares a fugirem para o outro lado do oceano.
Questionadores, Ascendentes, Acólitos do Sol e da Lua. Embora o seu povo
estivesse entre os mais numerosos, junto com os Servos dos Mortos.
Servos dos Mortos.
— A Fé. A Fé também se originou aqui?
— Ela floresceu pouco antes da Purificação. Alguns dizem que foi o estopim
dela. Milhares abandonaram os deuses em questão de apenas vinte anos,
preferindo rastejar para os mortos, implorando por um lugar no seu paraíso
imaginário após a morte. Tal devoção era anátema ao Conselho Governante, que
estava determinado a fomentar a lealdade absoluta ao império. Os Servos dos
Mortos foram os primeiros a sentir a sua ira, embora tenham resistido bem,
liderados por um homem chamado Varin. Porém, com o tempo, foram forçados
ao exílio, zarpando para uma terra úmida do outro lado do mar, onde mais os
seguiram no seu devido tempo, à medida que o Conselho buscava apagar
qualquer vestígio do que chamava de crença irracional.
— Vocês mataram os seus deuses — disse Reva, lembrando-se das palavras
da Imperatriz.
— Não. — Eles chegaram ao fundo da escada e Varulek agachou-se para
destrancar outra porta, fazendo dobradiças rangerem ao abri-la. — Nós os
escondemos.
O espaço do outro lado da porta emitiu um longo eco quando ele entrou,
apesar de a escuridão absoluta prevenir qualquer estimativa de seu tamanho. O
volariano parou ao lado da porta e ergueu a lamparina até uma tocha fixada na
parede, afastando-se quando as chamas aumentaram. Reva o seguiu para dentro
da câmara, que ia sendo revelada de forma gradual à medida que ele ia de tocha
em tocha. O olhar dela recaiu de imediato sobre as estátuas, três figuras, dois
homens e uma mulher. Eram de tamanho real e em poses como se tivessem sido
congelados num momento de discussão. A mulher inclinava-se para a frente, as
mãos erguidas e aparentemente dirigindo-se aos dois homens ao mesmo tempo.
O mais alto dos homens cofiava uma barba com o cenho bastante franzido, como
se ponderasse algo sombrio. O outro homem era barbeado, tinha belas feições
esguias e aparentava estar dando de ombros, encarando a mulher com um
sorriso enviesado, com uma expressão de discordância afável.
As três figuras estavam em volta de alguma espécie de pedestal de topo plano
e com uma mossa circular no centro. Parecia não ter se deteriorado com o
tempo; sua superfície estava intacta, sem quaisquer marcas ou lascas. O pedestal
também contrastava com as três estátuas, tendo sido entalhado de alguma pedra
negra, enquanto elas pareciam ter sido esculpidas de um tipo de granito cinzento.
— Os deuses? — perguntou Reva a Varulek.
— Os deuses são divinos demais para serem retratados por mãos mortais, em
palavras ou em pedra.
Reva franziu o cenho com a voz dele, ouvindo um leve eco das arengas do
sacerdote no tom brusco.
— Estes são os Tiranos — prosseguiu o volariano, gesticulando para as três
figuras. — Progenitores dos Dermos. Outrora governaram o mundo inteiro com
magias abomináveis, destruindo todos que ousassem se opor a eles, um
triunvirato de tirania. Acabaram sendo depostos pelos deuses, que os baniram
para os fossos de fogo sob a terra onde criaram os Dermos. Não, esses não são os
deuses. — Ele se afastou e foi até uma parede, iluminando a pedra com a luz da
lamparina. — É aqui que você os encontrará.
Reva foi até a parede e viu que a pedra era bruta, transformada por mãos
inexperientes numa superfície vagamente plana e marcada por mossas de ponta
a ponta. Ao olhar mais de perto, ela percebeu que as mossas eram alguma
espécie de símbolos agrupados, a princípio alinhados, mas ficando cada vez mais
irregulares à medida que avançavam ao longo da parede.
— Escrituras? — perguntou a Varulek.
— Somente alguns são escolhidos em cada geração — disse o volariano. —
Aqueles com a força e a vontade para receber a essência dos deuses, suas mãos
guiadas para transmitir a sua sabedoria e as suas orientações, gravadas na pedra
enquanto restarem vida e forças. Porém, uma bênção de tamanho poder
inevitavelmente possui um preço.
Ele seguiu ao longo da parede, a luz revelando ainda mais escrituras, cada
grupo e símbolo ficando menos uniforme até se tornarem apenas rabiscos vagos
na pedra. A obra de um louco rabiscando no escuro, concluiu Reva, achando
melhor não dizer aquilo em voz alta por enquanto. Ao passar por ela, Reva notou
de novo as tatuagens que cobriam as mãos de Varulek, vendo nelas uma
semelhança inconfundível com as inscrições na parede.
— O que dizem? — perguntou ela. — Você pode lê-las, não?
Ele assentiu, mantendo os olhos fixos na parede.
— Embora eu duvide que exista outra alma no mundo que possa. — Varulek
foi até a extremidade oposta da parede, onde havia as inscrições mais coerentes.
— “Os Tiranos retornaram” — leu ele, passando um dedo sobre o primeiro
grupo. — “Ocultos atrás do rosto de um herói, Dermos invisíveis, soltos sobre a
terra. Até mesmo este refúgio desaparecerá do conhecimento dos deuses”.
Este refúgio.
— A arena permaneceu um templo, mesmo após terem banido os deuses —
disse ela. Reva olhou de novo para as mãos do volariano. — Você é um
sacerdote.
Ele inclinou a cabeça, confirmando a suspeita dela.
— Talvez o último. A incumbência secreta da minha família por gerações,
assim como esta arena. Os meus ancestrais eram encarregados deste templo
muito antes de o Conselho surgir com as suas noções pestilentas de racionalidade.
Fomos sensatos o suficiente para encenar o abandono de nossa devoção,
estávamos entre os primeiros a jurar lealdade ao Conselho e ao império, os
primeiros a acusar outros. Criando uma confiança perene. A destruição dos
deuses foi tão completa que fomos capazes de reivindicar o símbolo de nossa
verdadeira lealdade. — Ele ergueu a mão e afastou os dedos para exibir as
tatuagens. — O Conselho achou que era apenas uma tradição dos encarregados
da arena. Ela sabia que o motivo era outro, é claro.
— A Imperatriz sabe o que você é?
— Ela sabia muito antes de sua ascensão. Ela veio aqui anos atrás, quando
usava um corpo diferente. “Você tem um segredo”, ela me disse, ordenando que
eu a trouxesse aqui ou fosse denunciado. Como eu sabia que bastaria uma
palavra dela para assegurar a minha execução, obedeci. E ela riu. — A boca do
volariano se crispou de raiva e vergonha. — Ela zombou deste lugar divino. —
Ele se acalmou com um esforço e apontou para o pedestal entre as três estátuas.
— Mas parou quando viu aquilo.
Reva inclinou a cabeça para examinar mais uma vez o pedestal, não vendo
nada de excepcional além da precisão com que fora esculpido. Não havia
qualquer marca nele, qualquer coisa que pudesse indicar o seu propósito. Ela se
aproximou e ficou entre a mulher e o homem barbado. Talvez uma pia batismal?
Reva inclinou-se para mais perto e estendeu a mão para a mossa no centro.
— Não toque nela! — A voz do volariano era pouco mais do que um sussurro,
mas carregada de uma advertência tão enfática que a mão de Reva ficou
paralisada de imediato.
— O que é?
— Eu não sei. Tampouco os que vieram antes de mim sabiam. Mas é a
ordem mais implacável instilada em cada membro de minha família desde que
assumimos o nosso dever divino: não toque na pedra.
— Ela tocou? Quando veio aqui?
Ele sacudiu a cabeça.
— Eu esperava que tocasse, mas não. Ela sabe demais. Porém, não estava
sozinha quando veio aqui. Havia um jovem, vestido de vermelho, pouco mais
velho do que você. E claramente enamorado dela. “Se você me ama”, disse ela
ao jovem, “toque na pedra”. E ele tocou.
Varulek chegou mais perto e iluminou a superfície do pedestal; a superfície
negra reluziu. Séculos aqui embaixo e nem sinal de poeira, notou Reva.
— O que aconteceu com ele?
— Ela não queria que eu visse e me mandou ficar na porta. Mas vi o garoto
estremecer e gritar, como se estivesse sentindo dor e prazer ao mesmo tempo.
Ela se inclinou para perto dele e sussurrou alguma pergunta que não consegui
ouvir. A resposta do garoto foi baixa, mas cheia de espanto, e ele ergueu as mãos,
mãos que brilhavam com alguma luz estranha, tremeluzindo como relâmpago.
Ela lhe disse para tocar de novo na pedra, para “ver que outros presentes daria”.
E ele a tocou de novo. Dessa vez ele não gritou e ficou imóvel no instante em que
tocou a pedra, tão imóvel quanto estas estátuas, e não respondeu a nenhuma
pergunta sussurrada. Eu a vi sorrir, um sorriso de grande satisfação… e então ela
o matou, aproximando-se e lhe quebrando o pescoço. “Jogue isso às suas feras”,
ela me disse, apontando para o cadáver. “Voltarei um dia, daqui a alguns anos,
imagino. Ou muito antes, se eu souber que você deu com a língua nos dentes”.
— Ninguém mais viu a pedra? — perguntou Reva. — Nenhuma das…
criaturas dela?
Varulek sacudiu a cabeça.
— Somente ela.
Mantendo os próprios segredos. Reva lembrou-se da oferta sussurrada da
Imperatriz: Quando o meu amado vier até mim, derrotaremos o Aliado e o mundo
será nosso… O que ela está tramando? Reva suspirou, frustrada, desejando poder
pedir o conselho de Veliss; ela chegaria a uma conclusão num instante. Assim
como a Rainha.
— Não posso lhe dar nenhum conselho sobre isso — disse ela a Varulek. —
Mas se puder de algum modo entregar uma mensagem à Rainha…
— Uma impossibilidade. Estou preso a este lugar por mais do que dever. Dar
um único passo para além dos limites da arena significaria as três mortes.
— Então por que me mostrou isso?
— Não era isso que eu queria lhe mostrar. — Ele voltou à parede, erguendo a
tocha perto de um grupo de símbolos quase apagados que mais adiante
desapareciam quase por completo. — Aqui — disse o volariano, fazendo sinal
para que Reva se aproximasse, passando um dedo sobre as marcas. — “Livella
será encarnada quando a Rainha do Fogo surgir.”
— Livella? — Ela se lembrou de Lieza dizendo o nome aquela manhã, com
uma voz aterrorizada. Reva se viu recuando diante da intensidade súbita do olhar
de Varulek.
— Uma grande guerreira lendária — murmurou ele. — Favorecida pelos
deuses com habilidades e forças maiores do que as de qualquer mulher. Ela
desceu para os fossos e enfrentou os próprios Dermos, matando três. Um com
uma espada, um com uma lança, e um… — O volariano lhe entregou a tocha e
se afastou, indo até um canto da caverna envolto em sombras e retornando com
algo enrolado num manto esfarrapado. Reva notou como as mãos dele tremiam
de excitação quando removeu o pano, revelando uma vara de pouco menos de
um metro e meio de comprimento, a madeira clara e lustrosa pelo uso, decorada
de ambos os lados, um exibindo espadas cruzadas, o outro machados cruzados. —
E um — prosseguiu Varulek, quase sem fôlego agora com uma mistura de
veneração e medo, os olhos brilhantes à luz da tocha —, um ela matou com um
arco feito de olmo.
CAPÍTULO CINCO
Frentis

— Sua vingança é de fato severa, irmão.


O rosto do Lorde Almirante Ell-Nurin revelava uma mistura de aversão e
reprovação ao esquadrinhar Nova Kethia, notando as casas arruinadas evidentes
em cada quadrante e a fumaça que subia para além das muralhas voltadas para
o sul. Cadáveres ainda estavam sendo levados para piras, uma tarefa que
mantinha cinquenta libertos ocupados já havia seis dias.
— Seu povo sem dúvida possui um talento para a destruição.
— Justiça, conforme determinada pela Rainha. — Frentis podia ouvir a
insinceridade na própria voz. A visão da garota de cinza morta nos braços da mãe
ainda não desaparecera. Tantos anos de batalhas e mortes, tantos rostos
esquecidos, mas ele sabia que aquela imagem jamais o deixaria. — A cidade não
foi destruída — acrescentou ele. — Quaisquer danos serão reparados de acordo
com a vontade da Rainha, no seu devido tempo.
— Uma tarefa que depende de um desfecho bem-sucedido para esta guerra.
— O Lorde Almirante olhou para o porto, apinhado de navios meldeneanos e
embarcações volarianas capturadas, com muitas mais ancoradas no estuário
mais além. Haviam chegado no dia anterior, e a visão de tantos mastros no
horizonte ao norte levou a população recém-libertada ao pânico. Frentis
conseguira acalmá-los, mas não antes de várias centenas fugirem da cidade com
os seus fardos de espólios. Ele posicionou a sua própria gente nas docas numa
densa formação defensiva com arqueiros nos telhados ao redor, e então ordenou
que Draker começasse a comemorar ao avistar o Falcão Vermelho entrando no
porto.
— Creio que temos espaço suficiente para transportar todas as suas tropas —
disse Ell-Nurin, gesticulando para a frota. — Devo dizer que o inimigo não estava
muito animado quando o alcançamos. Parece que o seu almirante cometeu
suicídio para não ter que enfrentar a ira da Imperatriz. A maioria se entregou
sem lutar.
— Transportar as minhas tropas para onde, meu senhor?
— Volar, é claro. A Rainha estará esperando por reforços.
— A maioria das pessoas agora portando armas nesta cidade era escrava até
duas semanas atrás. As outras se juntaram a mim para conquistar a liberdade,
não para serem aceitas no Reino. As pessoas do Reino que libertamos irão, não
tenho dúvida. Os Garisai também, embora muitos esperarão ser pagos. Talvez
duas mil espadas ao todo. Os outros sofreram muito, mais do que eu jamais
pediria que sofressem.
— Eles podem ter capturado uma cidade e matado os seus senhores, mas a
liberdade duradoura só virá com a vitória. Como estou certo de que você
explicará a eles. — Havia uma aspereza na voz de Ell-Nurin, um lembrete de
que ele era o oficial graduado ali.
Frentis suspirou e assentiu lentamente.
— Muito bem. Esta — o Lorde Almirante virou-se para uma jovem que se
encontrava no meio de seus capitães — é a Irmã Merial. Você entregará a ela
um relatório completo de suas operações e quaisquer informações úteis obtidas,
para que sejam transmitidas à Rainha.
Frentis franziu o cenho para a mulher e calculou que ela fosse um ou dois
anos mais nova do que ele, vestida com um traje que supunha ter sido escolhido
pela simplicidade. A jovem também estava visivelmente pouco à vontade na
presença de tantos meldeneanos, embora eles parecessem inclinados a lhe dar
bastante espaço.
— Sétima Ordem?
— De fato, irmão. — Ell-Nurin inclinou-se para perto dele. — E, por mais
tentador que possa ser, você realmente não vai querer tocá-la.

— Mais nove mil, então? — A Irmã Merial falava com um forte sotaque
renfaelino, quase sem usar títulos honoríficos e repleto de entonações dúbias. —
Desses terríveis homens vermelhos.
— Eles são bastante reais — grunhiu Draker. — Vários de nós temos
cicatrizes e queimaduras para provar. Tenho uma na bunda, se você quiser ver.
— Acho que já vi horrores suficientes nos últimos tempos. — Merial deu um
sorriso largo mas vazio para Draker e aceitou uma tigela de cozido de cabra
oferecida por Trinta e Quatro.
Eles haviam ocupado a mansão do infeliz governador, apesar de boa parte da
construção ter ficado inabitável graças às atenções da turba. Frentis acampou no
pátio principal, e o resto do exército que o havia seguido desde Viratesk instalou-
se nos vastos jardins. Ficara surpreso e satisfeito com a disciplina deles,
permanecendo em suas companhias e tomando uma parte relativamente
pequena dos espólios com os quais a população recém-libertada continuava
ocupada. Talvez uma dúzia de combatentes houvesse desaparecido após a queda
da cidade e mais alguns haviam lhe pedido permissão para partir, para retornar a
lares distantes ou admitindo com franqueza que já haviam visto o suficiente da
guerra. Ele disse a mesma coisa a todos: “Vocês libertaram a si mesmos no
momento em que se juntaram a mim. A Rainha Ly rna lhes agradece pelo seu
serviço.”
— Então a Rainha está marchando para Volar? — perguntou Illian a Merial.
— Apesar de perder tantos no mar?
— A Rainha não é uma mulher facilmente dissuadida. — Merial comeu um
pouco do cozido e deu um sorriso de apreciação a Trinta e Quatro. — Melhor do
que aquela lavagem que os piratas servem quando não estão sendo atrevidos
demais com as mãos.
— Quando zarpamos? — perguntou Illian a Frentis, com uma avidez intensa
brilhando em seus olhos.
Algum dia ela vai se cansar disso?, perguntou a si mesmo.
— Quando o Lorde Almirante quiser. Ele é o oficial mais graduado aqui.
— Foda-se a patente dele — resmungou Lekran com um pedaço de cozido na
boca, falando na sua língua do Reino arrastada. — Não conheço ele.
Frentis virou-se de novo para Merial.
— Você disse que a Rainha acredita que a Senhora Reva está morta?
Ela assentiu.
— Afundou com metade dos seus seguidores hereges.
— Não, ela está viva. Em Volar. — Ele estremeceu ao se lembrar do sonho
da noite anterior, do júbilo intenso enquanto ela via a Senhora Reva enfrentar os
dentes-de-adaga. — Embora eu não possa dizer por mais quanto tempo.
Merial franziu o cenho para ele, uma ruga de desconfiança aparecendo em
sua testa.
— Tem conhecimento disso, irmão?
— Tenho. Sem dúvida alguma.
A irmã franziu ainda mais o cenho e inclinou a cabeça, passando os olhos pelo
rosto dele.
— Não sinto dom algum em você…
— Eu sei que ela está viva — disse ele, com uma leve aspereza na voz. — E a
Rainha também deveria saber.
Merial assentiu com cautela e voltou à comida.
— Permita que uma garota encha a barriga primeiro, e então vou ter uma
palavrinha com o meu querido marido.
— Que marido? — perguntou Draker, franzindo a testa, intrigado, mas Merial
apenas sorriu e continuou comendo.
Mais tarde, ela se sentou longe deles e assumiu uma imobilidade concentrada,
de olhos fechados e sem qualquer expressão no rosto.
— Não gosto disso, irmão — murmurou Draker, indo para o lado de Frentis e
olhando a irmã com óbvia desconfiança. — As Trevas não deviam ser vistas.
— O mundo mudou desde a queda de Varinshold — disse Frentis. — Agora
nenhum de nós tem onde se esconder.
A Irmã Merial se moveu de repente, arqueou as costas e abriu os olhos, um
leve porém distinto grito sufocado de choque escapando de seus lábios. Ela se
curvou para a frente com um gemido e cobriu o rosto com as mãos, os ombros
esguios movendo-se com os soluços.
— Não gosto disso — murmurou Draker de novo, voltando para a fogueira.
Frentis foi até Merial, que agora se abraçava, o rosto tomado por uma
angústia profunda.
— Irmã?
Merial ergueu a cabeça para ele e então desviou olhar, passando a mão pelo
rosto úmido pelas lágrimas ao se levantar, saindo do pátio sem dizer uma palavra.
Frentis esperou por um momento antes de segui-la e a encontrou sentada num
pedestal no jardim. A estátua que antes ficava sobre ele havia sido derrubada e
arrastada dali durante as revoltas, sem dúvida para ser derretida, uma vez que o
bronze era um metal valioso. A Irmã Merial de repente pareceu muito jovem, as
pernas balançando sobre a lateral do pedestal ao erguer o rosto ainda úmido para
o céu. Ela olhou rapidamente para Frentis antes de voltar os olhos para as
estrelas.
— Elas são diferentes — disse Merial. — Não todas, só algumas.
— O braço da Donzela aponta para casa — disse Frentis.
Ela assentiu e baixou os olhos.
— O Aspecto Caenis está morto.
Ele se contraiu ao ser atingido pela pontada de dor, um golpe cortante de
tristeza instantânea. Abatido, ele foi até o pedestal e apoiou as mãos na beirada
bastante lascada.
— Seu marido lhe contou isso?
— O Irmão Lernial, que acho que você já conheceu.
— Eu não sabia que os membros da Sétima Ordem tinham permissão para se
casarem.
— Claro que temos. De onde você acha que vêm todos os irmãozinhos e
irmãzinhas? Sempre fomos mais uma família do que uma Ordem, mas sempre
procurando sangue novo.
Frentis deu uma risada cansada.
— Como isso aconteceu?
— Uma batalha. Os detalhes são vagos, o dom do meu marido é um pouco
errático, especialmente quando é afetado por uma tristeza tão grande. Pelo que
entendi, foi um confronto bastante terrível. Os seus homens vermelhos são
mesmo um bando horroroso. Parece que a Rainha no fim saiu vitoriosa, então
duvido que eles ainda sejam nove mil.
Caenis… Ele o vira apenas uma vez em Varinshold, um breve encontro nos
portões da Fortaleza Negra. “Muitas provações nos aguardam, irmão”, dissera
ele. “Só posso lhe desejar boa sorte.”
Caenis, que se esforçara para lhe ensinar a história da Ordem, mesmo que
sem muito sucesso no fim, embora Frentis tivesse apreciado as lições. Durante o
tempo penoso que passara nos fossos, gastara o tempo entre os combates
entregando-se às recordações, tentando lembrar-se das muitas histórias de
Caenis, sabendo que elas de alguma forma o mantinham ligado à Ordem, o
mantinham um irmão, e não um escravo.
— O Aspecto e eu já fomos irmãos — disse Frentis a Merial. — Aprendi
muito com ele.
— Eu também. Ele era o meu mestre, sabia? Nós nos encontrávamos em
segredo, sempre que a Ordem lhe dava uma folga. Ele me ensinou muito, a Fé,
os mistérios… — Ela ergueu mais uma vez o olhar. — As estrelas.
Frentis tocou as mãos dela por um segundo.
— Lamento por sua perda, irmã.
— Contei ao meu marido sobre a Senhora Reva e tudo mais — disse ela
quando Frentis virou-se para o outro lado.
— Descobriu algo sobre as intenções da Rainha?
— Apenas que não mudaram. — Merial virou-se para a cidade que se
estendia diante deles, as fogueiras tremeluzindo entre as muitas construções
arruinadas, as piras ainda ardendo para além das muralhas. — Seguir para Volar.

— Quem eram elas?


Ele está na rua do lado de fora da padaria, olhando mais uma vez para a
garota e a sua mãe.
— Como você pode estar aqui?
Ela aparece, usando o rosto de que ele se lembra, o rosto que usava quando
matavam juntos.
— Você sonha, eu sonho. — Ela indica a mãe e a filha com a cabeça. — Você
as conhecia?
Ele nota que o rosto dela não é realmente o mesmo; a crueldade e a loucura
não haviam desaparecido de fato, apenas diminuído, como se aquele sonho
compartilhado de algum modo a despisse de seu eu desperto.
— Não. Elas morreram quando a cidade foi tomada.
— Sempre tão determinado em se sentir culpado, amado. — Ela se aproxima,
passando por cima dos cadáveres que cobrem a rua e lançando um olhar
indiferente à mãe e à filha mortas. — É o que acontece nas guerras. Batalhas
acontecem e gente insignificante morre.
Uma raiva antiga alimentada por muito tempo lhe sobe ao peito.
— Gente insignificante?
— Sim, meu amado, gente insignificante. — Há uma nota de impaciência
cansada na voz dela, como a de um tutor ensinando a uma criança uma lição
esquecida com frequência. — Os fracos, os triviais, os de mente e propósitos
estreitos. Aqueles que, na verdade, não são como nós.
A raiva dele aumenta, estimulando palavras que ansiara dizer durante sua
viagem de assassinatos, agora sem serem reprimidas por qualquer domínio.
— Você é uma pestilência — diz a ela. — Uma praga sobre o mundo, que logo
será eliminada.
O rosto dela não revela raiva alguma ao erguer os olhos, apenas um leve
sorriso, um olhar triste, mas também repleto de conhecimento, lembrando-o do
quão velha ela é, de quantos cadáveres já viu.
— Não, eu sou a única mulher que você amará.
Ele se vê recuando, apesar de também não conseguir desviar os olhos do rosto
dela.
— Sei que você sente — diz ela, acompanhando enquanto ele se afasta. — Por
mais fundo que você enterre, por mais que você inflame sua raiva para afogá-lo.
Você viu o futuro que podíamos ter compartilhado, que devíamos compartilhar.
— Uma ilusão abominável — diz ele num sussurro.
— Nosso filho jamais nascerá — retruca ela, agora implacável. — Mas faremos
outro, herdeiro de uma dinastia tão grande…
— Basta! — A raiva dele a faz parar, o calor do sentimento enviando uma onda
através do solo, ameaçando desfazer aquele cenário onírico. — Eu nunca quis
tomar parte nos seus planos insanos. Como pôde imaginar que algum dia eu me
entregaria à sua ambição? Você é movida por que loucura? O que a transformou
nisto? O que aconteceu do outro lado daquela porta?
O rosto dela fica completamente imóvel, os olhos fixos nos dele, não com
raiva, mas com puro terror.
— Você sonha, eu sonho — diz a ela. — Uma garota, deitada na cama,
chorando enquanto olha para a porta do quarto. Você se lembra disso quando
acorda? Você ao menos tem consciência disso?
Ela pisca e dá um passo lento para trás.
— Houve momentos em que pensei em matá-lo. Durante a nossa viagem, às
vezes eu sacava a minha faca e a colocava contra o seu pescoço enquanto você
dormia. Eu tinha medo de você, embora dissesse a mim mesma que era apenas
raiva de suas muitas crueldades, de seu ódio costumeiro. De alguma forma eu
sabia que o meu amor por você iria me matar, como de fato matou. Mas não sinto
qualquer arrependimento.
Ela estende a mão na direção dele, que não sabe por que a deixa tocá-lo, por
que permite que passe as mãos sobre as suas, por que abre os braços e a recebe
com um abraço. Ela se aperta contra o seu peito e ele escuta o soluço contido na
voz dela quando sussurra em seu ouvido:
— É hora de vir para Volar, amado. Traga o seu exército, se quiser. Não
importa. Apenas se certifique de que o curandeiro esteja entre eles. Se eu não vir
vocês dois na arena dentro de trinta dias, Reva Mustor morrerá.

O líder dos ex-escravos de Nova Kethia se apresentou como Karavek,


aparentemente o nome do senhor que ele espancara até a morte durante a
primeira noite de revoltas.
— Ele me roubou a liberdade, eu roubei o seu nome — disse ele com um
leve sorriso. — Pareceu uma troca justa.
Era um homem grande, por volta dos cinquenta anos, com cabelos grisalhos
brotando de forma desgrenhada da cabeça que já fora raspada. Porém, apesar
do tamanho e da aparência feroz, sua voz indicava um passado instruído e uma
mente aguçada o suficiente para compreender inteiramente a realidade da
circunstância, não ofuscada pelo brilho de triunfos recentes.
— Volar não é Nova Kethia — disse Karavek quando o meldeneano fez o seu
pedido formal de aliança em nome da Rainha Ly rna. Ele chegara à mansão do
governador acompanhado por uma dúzia de combatentes, todos armados e
encarando o Lorde Almirante Ell-Nurin com uma desconfiança evidente que
beirava a hostilidade. — Esta cidade é uma aldeia em comparação.
— Ainda há muitos em cativeiro lá — disse Frentis. — Assim como vocês
estavam.
— É verdade, mas eu não os conheço e a minha gente também não.
— A Rainha concedeu a todos nesta província um lugar no Reino Unificado
— disse Ell-Nurin. — Vocês agora são súditos livres sob a proteção dela. Mas a
liberdade tem um preço…
— Não me dê um sermão sobre liberdade, pirata — rosnou Karavek. —
Metade dos escravos desta cidade morreu pagando esse preço. — Ele se virou
para Frentis e baixou a voz: — Irmão, você sabe tão bem quanto eu como a sua
posição é precária. A qualquer dia as guarnições do sul irão marchar para
retomar esta cidade para o império. Não podemos enfrentá-los se as nossas
forças estiverem morrendo em Volar.
Uma vitória em Volar acabará com este império, Frentis queria dizer, mas
sentiu as palavras morrerem na língua, ciente de como soariam vazias.
— Eu sei — concordou ele. — Mas eu e a minha gente precisamos zarpar
para Volar, com qualquer um disposto a se juntar a nós.
— Nós nos revoltamos por sua causa — disse Karavek. — A rebelião do
Irmão Vermelho, a grande cruzada que instigava a esperança nos corações
daqueles condenados a uma vida de escravidão. Agora parece apenas uma
distração para que a sua rainha enfrente menos inimigos na estrada até Volar. E
se a cidade cair, o que acontecerá? Irão subir nos navios e nos deixar para
enfrentar o caos de um império destroçado?
— Vocês têm a minha palavra — disse Frentis. — Independentemente das
intenções da Rainha, quando os nossos assuntos em Volar estiverem concluídos,
eu voltarei aqui para ajudar como puder. — Ele olhou para Ell-Nurin. — E a
Rainha nos assegurou que, caso a sua posição aqui se mostre insustentável, a frota
dela levará a sua gente para o outro lado do oceano, onde lhes serão concedidas
terras e plenos direitos no Reino Unificado.
Karavek empertigou-se ao ouvir isso e estreitou os olhos para o Lorde
Almirante.
— Ele está falando a verdade?
Ell-Nurin manteve uma expressão de admirável placidez quando falou:
— Somente um tolo sem amor algum pela própria vida ousaria falar
falsamente em nome da Rainha.
O líder rebelde grunhiu e passou a mão pela cabeleira desgrenhada, franzindo
o cenho enquanto ponderava.
— Irei falar com a minha gente — disse ele por fim. — Devemos conseguir
reunir mil espadas para irem com você. Imagino que a Rainha irá apreciar o
gesto.
— Ela é a sua rainha agora — lembrou-lhe Frentis. — E ela nunca se esquece
de uma dívida.

Os Varitai libertados estavam acampados nas ruínas de Velha Kethia, junto com
uma grande quantidade de pessoas de cinza que achavam a companhia dos ex-
soldados-escravos mais convidativa do que a dos cidadãos recém-libertados da
própria cidade. Algumas dezenas haviam sido perseguidas até as ruínas por uma
turba logo após a tomada da cidade. A sede de sangue dos perseguidores diminuiu
um pouco ao avistarem setecentos Varitai dispostos em ordem de batalha, com
Artesão à frente deles de braços cruzados e com uma severa desaprovação no
rosto. Ainda assim, a turba se demorou por algum tempo, sua fúria ainda não
saciada, e a situação poderia ter piorado ainda mais se não fosse pela chegada da
companhia montada de Mestre Rensial. Desde então, um fluxo constante de
volarianos esfarrapados rumava para as ruínas, e mais chegavam do sul a cada
dia, tendo achado a vida nas regiões selvagens uma provação grande demais.
— Os Varitai irão? — perguntou Frentis a Artesão, os dois sentados no que ele
supunha ter sido a Câmara do Conselho da antiga cidade. Era uma estrutura
retangular composta de seis fileiras ascendentes de bancos de mármore ao redor
de um grande espaço plano. O teto desaparecera, mas os pilares enormes que
outrora o sustentaram permaneciam no lugar, embora talvez tivessem metade do
antigo tamanho. O piso era coberto por um vasto mosaico, os ladrilhos desbotados
pelo sol e fragmentados em muitos lugares, mas ainda completos o suficiente
para transmitirem uma sensação de refinada habilidade artística, uma grandeza
destruída com a fúria da guerra.
— Eles têm um novo nome agora — disse Artesão. — Politai, que significa
desacorrentados em volariano. E, sim, eles irão, uma vez que há tantos de seus
irmãos para serem libertados em Volar. Mas pedirei a eles que deixem homens
suficientes aqui para protegerem essas pessoas.
— Karavek me assegurou que elas serão deixadas em paz, desde que não
entrem em Nova Kethia.
Artesão assentiu lentamente, passando os olhos pela ruína.
— Sabia que as pessoas desta cidade escolhiam o próprio rei? Cada homem
que tinha uma casa ou gado recebia uma pedra negra a cada quatro anos. Um
vaso era colocado diante de cada um dos candidatos, que ficavam ali — ele
apontou para a entrada da câmara —, e cada homem enfiava a mão em todos os
vasos, mantendo o punho fechado quando o retirava de dentro, de modo que
ninguém soubesse em que vaso ele havia colocado a pedra.
— E se colocassem duas pedras? — perguntou Frentis.
— Uma grande blasfêmia punida com a morte, pois esse era um ritual assim
como um costume, determinado pelos deuses. Que se perdeu quando os
volarianos chegaram, é claro, mas a Rainha Ly rna o achou interessante. De uma
perspectiva histórica.
— Você realmente possui as lembranças dela?
Artesão soltou uma risada baixa e sacudiu a cabeça.
— O conhecimento, o discernimento dela, por assim dizer. Nem sempre são a
mesma coisa que uma lembrança. — Ele se virou para Frentis e o seu humor
desapareceu rapidamente. — Você sonhou de novo.
— Foi mais do que um sonho. Nós conversamos. Ela quer que eu leve você
para a arena em Volar. Não imagino por qual motivo. Mas duvido que ela queira
lhe fazer algo de bom.
— E se você não me levar?
— Ela está com a Senhora Reva, obrigando-a a lutar na arena. Estou certo de
que ela enfrentará coisas piores se não formos.
— Você se importa com ela?
— Eu mal a conheço. Mas o meu irmão a vê como uma irmã, o que faz dela
minha irmã. Não quero dizer a ele que dei as costas a uma oportunidade de
salvá-la. Mas não posso obrigá-lo a fazer isso, tampouco desejo.
Artesão não disse nada durante algum tempo, uma expressão tão preocupada
tomando gradualmente conta de seu rosto que a sua juventude parecia ter
desaparecido.
— Quando era criança, eu não compreendia a natureza do meu dom — disse
ele. — Se eu via uma criatura ferida, um pássaro com uma asa quebrada ou um
cão mancando com uma pata torcida, parecia ser algo maravilhoso e simples
curá-los com um toque. Porém, durante muito tempo tudo o que eu curava
tornava-se uma sombra do que havia sido, uma casca de olhar vazio que se
arrastava pela vida e era com frequência evitada pela própria espécie. Eu não
sabia por que, até que compreendi que o meu dom não só dá como tira. Aqueles
que curo se abrem a mim pelo toque, tudo o que possuem é revelado e fica ao
meu alcance. Suas lembranças, sua compaixão, sua malícia… E seus dons.
Embora eu tente evitar, algo sempre volta, trazendo consigo a tentação de tomar
mais, de pegar tudo.
“Eu encontrei o seu irmão pela primeira vez anos atrás, quando a minha
mente estava… menos clara do que está hoje. Tive a oportunidade de curá-lo,
uma vez que Dança da Neve é tão difícil de ser contida. — Artesão olhou para as
próprias mãos e estendeu os dedos ágeis. — O dom dele era grande, irmão, e a
tentação foi mais forte do que nunca. Então eu tomei, apenas um pouco. Se eu
tivesse tomado tudo…” — Artesão sacudiu a cabeça, a vergonha e o medo
mesclando-se em seu rosto. — A canção é baixa — prosseguiu ele —, mas posso
ouvi-la se eu escutar com bastante atenção, e ela me guia, me diz onde preciso
estar. Ela me levou a segui-lo até Alltor, guiou-me até a Rainha quando ela
precisava ser curada e ao navio que nos trouxe até esta terra. E agora, irmão, ela
me diz para ir para Volar, e a melodia está longe de ser fraca.
Ele deu um tapinha no joelho de Frentis e levantou-se, passando os olhos pela
câmara uma última vez.
— Eles também matavam crianças aqui — disse Artesão. — Para selar a
escolha do povo com uma oferenda de sangue aos deuses. O sacrifício era tirado
na sorte, e os pais da criança o consideravam uma grande honra.
Ele se virou e começou a subir os degraus.
— É melhor eu falar com os Politai. Eles insistem cada vez mais em receber
explicações.
CAPÍTULO SEIS
Vaelin

Os lábios do homem vermelho haviam sido parcialmente cauterizados, expondo


dentes e gengivas num sorriso obsceno. Vaelin não podia evitar a sensação de que
o homem estava rindo dele, de que o Bastardo da Bruxa desfrutava de seu triunfo
final.
Uma série de gorgolejos saiu do rosto arruinado, saliva e sangue voando
enquanto os olhos sem pálpebras o encaravam. Ele estava implorando?
Provocando? Vaelin agachou-se e inclinou-se para tentar entender algo em meio
aos balbucios sufocados. O homem vermelho se contorceu e convulsionou,
passando a língua sobre os dentes ao tentar formar as palavras.
— R-Resta… um. Ainnndaa… reeestaaa… maaaisss… uummm.
— Onde?
— M-mme… meee… maatteee…
Vaelin olhou para os olhos injetados da coisa, incapaz de decifrar qualquer
expressão, uma vez que a carne ao redor havia sido queimada até os ossos.
— Matarei.
A coisa engasgou, a língua dobrando-se atrás dos dentes enquanto lutava para
dar uma resposta.
— Alpiraaah…
Vaelin levantou-se e foi até Urso Sábio e Erlin.
— Ele disse que há outro — disse ao xamã. — Longe daqui. Fará diferença?
— Diferença para o quê? — perguntou Erlin.
Vaelin não respondeu e manteve os olhos em Urso Sábio, que olhou de modo
incerto para o homem ancestral antes de responder.
— Outro fica no corpo que roubou, não vai fazer diferença.
Vaelin olhou para a coisa enegrecida e arruinada caída entre as rochas e
várias ideias tentadoras passaram por sua mente. Deixe-a definhar até o último
segundo. Diga para Astorek soltar os lobos sobre ela. Enfie uma lâmina quente em
seus olhos…
Os soluços de Cara atraíram a sua atenção para a extremidade do penhasco,
onde os guardas de Orven estavam construindo a pira. Ela caiu nos braços de
Lorkan com o rosto enfiado em seu peito. Os Senthar estavam parados ali perto
num silêncio respeitoso, reduzidos pela metade no combate com os Kuritai, com
Kiral ao lado de Alturk. O Tahlessa se apoiava numa lança e suava com o
esforço.
— Dê cabo dela — disse Vaelin a Urso Sábio, indicando a coisa enegrecida
com a cabeça e indo na direção da pira. — A forma de sua morte fica à sua
escolha.

Ele se sentou na beira do penhasco enquanto o fogo diminuía às suas costas e o


sol caía atrás das montanhas. No fundo do vale, os membros das tribos ainda
estavam tirando o que podiam dos volarianos mortos. Após a vitória, eles haviam
voltado de imediato às suas antigas alianças e os diferentes grupos disputavam os
espólios, ameaças e xingamentos ecoavam pelo vale, cada chefe sem dúvida
reivindicando os saques acumulados como líder do exército e responsável pela
vitória.
Vaelin não dissera nada quando o fogo foi aceso, observando os corpos de
Dahrena e Marken enrolados em peles serem envolvidos pelas chamas e pela
fumaça enquanto os outros se despediam. Até mesmo Alturk conseguira dizer
algumas palavras bruscas de respeito por aqueles que tombaram numa causa
comum. Eles se afastaram quando anoiteceu, Cara ainda chorando e o fazendo
se perguntar se um dia ela iria parar.
— Por que não fará diferença?
Ele ergueu os olhos para Erlin, notando a expressão cautelosa porém
determinada em seu rosto. Vaelin voltou os olhos para o vale e os mortos,
despidos e pálidos na escuridão que se adensava. Estavam espalhados na forma
vaga de uma lágrima, aglomerados no rio e rareando a oeste, onde os
sobreviventes haviam tentado fugir. Pelo que ele sabia, nenhum escapara; os
vitoriosos não tinham o costume de ser misericordiosos. Os mortos também não
haviam sido contados. O Povo Lobo estava satisfeito por saber que havia
garantido um futuro seguro, e ele duvidava que os membros das tribos soubessem
contar acima de dez. Sessenta mil?, ponderou Vaelin. Setenta?
— O que mais você viu na pedra? — insistiu Erlin.
— Você teve séculos neste mundo — disse Vaelin. — Adquirindo
conhecimento para muitas vidas. E, ainda assim, nunca antes fez um esforço
para acabar com o Aliado. Deve ter havido oportunidades. Você disse que outros
o procuraram. Por que tomar uma posição agora?
— Antes eu sempre soube que seria inútil, provavelmente fatal.
— Bem, agora certamente é fatal. Foi o que a pedra me mostrou.
Erlin sentou-se ao seu lado e voltou a atenção para o vale, as disputas dos
membros das tribos ainda podendo ser ouvidas em meio à escuridão crescente.
— Meu dom irá atraí-lo.
— Sim.
— Como você fará?
— A escolha não é minha. — Vaelin levantou-se, deu as costas ao vale e foi
até a pira. As chamas haviam se apagado, deixando apenas uma cortina de
fumaça cada vez menor que se erguia das cinzas. Ele sabia que se olhasse bem
de perto veria os ossos dela, e fechou os olhos contra a tentação. Ela jamais iria
querer que você se torturasse.
— Está dizendo que posso partir? — perguntou Erlin. — Vai simplesmente
deixar que eu vá embora daqui?
— Parto para Volar de manhã, onde acredito que encontraremos o final que
buscamos. Espero que você se junte a mim. Irei compreender se não o fizer.
— O que nos aguarda em Volar?
Vaelin observou os filetes de fumaça subirem para o céu noturno, retorcendo-
se no ar até serem perdidos de vista entre as estrelas. Ela está aprisionada?,
ponderou. Ele a capturou assim como me capturou? Ele a está torturando agora,
transformando-a na mesma coisa que a matou?
— Uma caixa — disse a Erlin. — Cheia de tudo, e de nada.

Havia cavalos mais do que suficientes para todos, embora os Senthar preferissem
muito mais os seus pôneis robustos às montarias mais altas e plácidas da
cavalaria volariana.
— Pelo menos darão um bom alimento quando a neve cair — comentou
Alturk ao cortar os estribos da sela de seu cavalo, jogando-os de lado com uma
careta de desdém.
Vaelin passara boa parte da manhã lidando com os chefes tribais, que
pareciam achar que agora seriam obrigados a lutar com o Povo Lobo pela posse
de territórios perdidos.
— Nós não queremos as suas terras — disse-lhes um exasperado Astorek,
repetindo as palavras na língua do Reino para o benefício de Vaelin. — Meu povo
já está retornando para a tundra.
Hirkran disse algo, mantendo uma pose rígida com um ornamentado peitoral
volariano, um machado numa das mãos e uma espada curta saqueada na outra.
— Ele quer saber que tributo exigimos — explicou o xamã a Vaelin.
Vaelin se pegou cansando-se depressa daquela gente; suas rixas intermináveis
e desconfiança genuína agora pareciam incrivelmente triviais.
— Que fiquem longe do seu povo enquanto marcham para o norte e do meu
enquanto marchamos para o sul.
Hirkran estreitou os olhos e falou de novo.
— Ele diz que juntaram muito ouro e joias neste campo — disse Astorek. —
E não acredita que você simplesmente iria embora sem tentar tomá-los.
— Então — Vaelin levou a mão à espada quando o seu cansaço transformou-
se em raiva súbita — ele pode lutar comigo e eu provarei empilhando todo o ouro
sobre o seu cadáver antes de partir.
A tradução de Astorek claramente não foi necessária a julgar pelo modo
como Hirkran se empertigou, descruzou os braços e adotou uma postura
agachada com um rosnado desafiador.
— Basta! — Kiral se colocou entre eles, surpreendendo Vaelin ao se dirigir a
Hirkran numa torrente de volariano fluente porém severo. A agressividade de
Hirkran diminuiu diante do sermão, apesar de estreitar ainda mais os olhos, uma
expressão de grave compreensão tomando conta de seu rosto. Ele soltou um
rosnado curto quando Kiral se calou, olhando por um momento para Alturk antes
de recuar, ainda agachado, como se esperasse um ataque a qualquer segundo.
Disse uma frase determinada em voz baixa para Kiral e então se virou de
repente e afastou-se, gritando para os seus guerreiros.
— O que você disse a ele? — perguntou Vaelin.
— Que meu pai havia notado a fraqueza e a desunião deles. — Ela fez um
gesto indicando Alturk, que estava alheio a tudo aquilo. — Um grande chefe
guerreiro que voltará com toda a nossa tribo para reivindicar estas montanhas,
pois eles não são dignos das riquezas oferecidas pelos espíritos.
Astorek soltou uma gargalhada de apreciação.
— Se há algo que pode uni-los, é isso.
Kiral inclinou a cabeça com um sorriso, mas seu humor desapareceu ao
olhar para Vaelin.
— Minha canção indicou que você o teria matado.
— Sua canção estava certa. — Vaelin virou-se e começou a andar na direção
de Cicatriz. — Partimos dentro de uma hora. Astorek, transmita os meus
agradecimentos ao seu povo e assegure-os da amizade contínua do Reino
Unificado, por favor. Estou certo de que a Rainha enviará embaixadores para
formalizar a nossa aliança no devido tempo.
— Pelo que Urso Sábio me disse — gritou Astorek às suas costas —, se a sua
missão fracassar, a nossa vitória aqui provará ser apenas uma prorrogação de
perigos maiores.
Vaelin parou e virou-se, assentindo com impaciência para o xamã.
— Por isso estou ansioso para partir.
Astorek olhou primeiro para Kiral e então para a nuvem crescente de poeira
para além do penhasco, onde o seu povo levantava acampamento.
— Então irei com você. Eu… sinto que o lobo gostaria que eu fosse.
Vaelin sentiu uma leve pontada de humor ao ver Kiral ter o cuidado de evitar
o seu olhar. Ele está respondendo ao chamado de um lobo? Ou de uma gata?
— Você será bem-vindo — disse ele ao xamã, continuando a caminhar. —
Não demore para se despedir, por favor.

A jornada pelas montanhas foi repleta de cenas horríveis que comprovavam a


destruição causada pelo Bastardo da Bruxa. Membros de tribos assassinados
apinhavam as urzes, povoados incendiados tornaram-se uma visão comum,
assim como os corpos de soldados volarianos presos a armações de madeira, a
carne de suas costas esfoladas até a coluna. Pela frequência de tais cenas, era
evidente que os homens vermelhos haviam liderado um exército relutante,
demonstrando pouca imaginação para manter a disciplina.
— Nem mesmo Tokrev era tão cruel — disse Astorek ao chegarem perto de
uma fileira de uma dúzia de homens esfolados, uma nuvem de corvos levantando
voo das armações ao se aproximarem.
— Achei a crueldade dele mais do que suficiente — retorquiu Vaelin. Ele
avistou um povoado adiante, incendiado e praticamente em ruínas, mas com
alguns telhados ainda intactos. — Vamos nos abrigar aqui esta noite. Lorde
Orven, faça um reconhecimento das colinas num raio de dez quilômetros. Com
ou sem vitória, este continua sendo território inimigo.
Erlin foi até a sua fogueira quando escureceu por completo. Vaelin se sentava
afastado dos outros desde o início da marcha. Os Senthar estavam repletos de
novas histórias e, embora mal compreendesse uma palavra, o prazer evidente
deles em recontar a batalha despertou uma raiva insensata em Vaelin. Foi para
isso que vieram, repreendeu a si mesmo. Outra história, o presente da Mahlessa
para os seus guerreiros mais corajosos é a oportunidade para uma história mais
rica.
— Astorek e Kiral sumiram — disse Erlin, sentando-se diante dele e
estendendo as mãos para o calor. — Não vi nenhum dos dois desde o anoitecer.
Vaelin olhou para a escuridão além das paredes parcialmente caídas da casa
que escolhera, um lugar que ele teria dividido com Dahrena, tal como Kiral e
Astorek agora dividiam outro.
— Imagino que estejam bem.
— Ela me contou sobre o composto que carrega — disse Erlin, seu rosto tenso
ao olhar para o fogo. — Alguma mistura lonak antiga que pode causar dor a
ponto de deixar um homem à beira da morte se usada em quantidade suficiente,
ou livrá-lo de uma alma indesejada.
Vaelin assentiu. Ly rna e Frentis não lhe deixaram dúvidas sobre o poder
contido no composto da Mahlessa, embora ainda não o tivesse visto em ação.
— O Aliado tinha um dom — prosseguiu Erlin. — Não compreendemos qual
era a sua natureza, mas era poderoso o suficiente para destruir uma civilização
inteira. Um dom que ele pode muito bem trazer consigo caso seja atraído do
Além.
— Eu sei — disse Vaelin. — Mas chegamos a um ponto em que acredito não
termos muita opção além de confiar nas palavras do vidente. Você tocará na
pedra negra em Volar, mas não será você.
— Como sabemos que colocará um fim nisso? Como sabemos que não vai
deixá-lo mais forte? Você o viu na pedra da memória. Ele queria tocá-la.
— Mas também a temia, o suficiente para tê-la escondido durante séculos.
As mãos de Erlin tremiam estendidas ao fogo, e Vaelin franziu o cenho ao ver
o sorriso que surgiu em seus lábios.
— Estou com medo, irmão. Todos esses anos, tanta coisa vista, ouvida e
experimentada. E, ainda assim, eu quero mais. Com frequência ouvia minha
esposa sem nome me chamar de egoísta, geralmente antes de jogar alguma
coisa em mim.
— Você salvou muitas pessoas — lembrou-lhe Vaelin. — Duas delas crianças
que cresceram e se tornaram as pessoas corajosas que cavalgam conosco agora.
— Receio que seja apenas mais egoísmo. Eu imaginava que, se salvasse o
suficiente, eles acabariam lutando a guerra por mim, derrotariam o Aliado e me
poupariam da provação das batalhas. — Ele olhou de soslaio para Vaelin. — O
que a sua Rainha faria se este dilema em particular lhe fosse apresentado?
— Ela agiria pelo bem do Reino.
Erlin deu uma risada grunhida.
— Você quer dizer que ela me amarraria num piscar de olhos e me faria
ingerir à força o composto da Mahlessa até que o Aliado estivesse aprisionado
em segurança na minha carne. Você não se preocupa com o que ela pode se
tornar caso vocês sejam bem-sucedidos nesse confronto? Vi muitos monarcas,
irmão, mas nenhum como ela.
— Ela não é o Aliado. Nem nunca será.
— Tem tanta certeza assim? Você o viu na cidade que ele construiu, o modo
como o seu povo o amava. E, ainda assim, o poder dele de alguma forma
cresceu a ponto de se tornar absoluto, e não havia ninguém para detê-lo.
— Lionen o deteve. Ele matou o Aliado e o mandou para o Além.
Erlin abaixou as mãos e cruzou os braços.
— Poderíamos esperar, adiar até chegarmos a Volar…
— A criatura dele ainda possui um corpo em Alpira. Se adiarmos, ela pode
morrer, e o Aliado pode enviá-la atrás de você.
Vaelin observou o rosto de Erlin por um momento, notando o leve tique
abaixo do olho, o maxilar saliente ao cerrar os dentes. Não há como saber quantos
anos ele viveu, testemunhando cada maravilha que este mundo pode oferecer,
sendo tema de mitos e lendas, e agora é apenas um homem assustado tremendo
numa cabana arruinada.
— Se acontecer de você não conseguir levá-lo até a pedra, preciso de sua
promessa de que não matará este corpo — disse Erlin. — Você usará o composto
para devolvê-lo ao Além.
— Você a tem. Irei proteger você.
— Eu? — Erlin arreganhou os dentes no que poderia ter sido um sorriso. —
Duvido que reste algo de mim quando ele tiver acabado, irmão. — Ele se
levantou, ainda se abraçando com força, e afastou-se num passo rígido, suas
palavras de despedida pouco mais do que um sussurro. — Dê-me esta noite.
Acabaremos com isso pela manhã.
Ele pediu que Alturk cuidasse das amarras; os lonaks faziam cordas resistentes e
era improvável que os nós do Tahlessa se soltassem.
— Espaço suficiente apenas para respirar — disse Vaelin enquanto o homem
passava a corda em volta do peito de Erlin.
Kiral avançou quando Alturk terminou o último nó e Erlin se contraiu com o
esforço de se ajoelhar, amarrado dos ombros à cintura e com os braços presos às
costas. Kiral respirou fundo ao tirar a rolha do frasco.
— Eu… — começou ela, agachada ao lado de Erlin, a voz vacilando. — Isto
vai… doer. Sinto muito.
Ele assentiu com impaciência.
— É o que ouvi dizer, minha cara. Melhor acabar com isso de uma vez,
então.
A lonak se levantou e enfiou um junco fino no frasco.
— Uma gota para expulsá-los — disse ela num sussurro, presumivelmente
recitando uma lição da Mahlessa. — Duas para atraí-los.
Os olhos de Erlin se voltaram para Vaelin quando ela se aproximou mais.
Palavras eram irrelevantes, o significado nítido em seu olhar marejado. Não se
esqueça da sua promessa.
Kiral tirou o junco do frasco, a ponta reluzindo com algo escuro e viscoso, e
então o baixou para que duas gotas caíssem na pele exposta de Erlin. Vaelin
esperava gritos, mas Erlin se enrijeceu, cerrou os dentes e as veias do pescoço
ficaram salientes, seu rosto transformado numa máscara vermelha da mais pura
agonia. No instante seguinte ele caiu, contorcendo-se no chão enquanto saía
espuma de sua boca, batendo com as pernas na terra. As convulsões continuaram
por um minuto até Erlin por fim ficar imóvel, toda a animação parecendo esvair-
se de seus membros, a cabeça pendendo relaxada de seus ombros.
Por um momento Vaelin teve certeza de que o havia matado, que aquele
grande plano se revelara a manobra desesperada de um tolo enlutado… Mas
então Erlin piscou.
Ele rolou para se levantar e permaneceu de joelhos, olhando brevemente
para as cordas que o prendiam antes de erguer a cabeça. Sua expressão era
curiosa, inquisitiva, sem malícia ou raiva ao passar os olhos por eles, detendo-se
em Vaelin, quando então sorriu. Era um sorriso genuíno, caloroso, até mesmo de
apreciação, assim como a sua voz quando falou, o sotaque poliglota de Erlin
transformado em algo mais forte, o tom mais profundo.
— Obrigado.
Ele fechou os olhos e ergueu o rosto para o céu, sorrindo ainda mais ao sentir
o vento na pele.
— Mate essa coisa! — Era Kiral, bem afastada do homem amarrado, o rosto
lívido, seu gato agachado ao lado com as presas à mostra. — Isso é errado!
— A decisão é minha — disse Vaelin. — Independentemente do que a sua
canção diga.
— Nunca devíamos ter feito isso. — Ela levou a mão de forma inconsciente
até a faca no cinto. — É o que grita a minha canção. — A lonak avançou,
sacando a faca.
— Ele precisa ser levado a Volar — disse Vaelin, colocando-se no caminho
dela. — E eu o levarei até lá.
— Você não compreende — sibilou a lonak. — Essa jornada inteira, cada
vida tomada e perdida, cada batalha lutada. Fizemos tudo o que essa coisa quer,
levando-a para mais perto do seu objetivo a cada passo.
Vaelin virou-se para o homem amarrado, que agora o encarava com feições
plácidas, sem medo ou protesto.
— Nós faremos um final, você e eu — disse ele, e começou a rir.

— Qual era o seu nome?


O homem amarrado não se virou ao ouvir a pergunta de Vaelin. Estava
sentado à vontade na sela à qual havia sido amarrado, absorto na paisagem pela
qual passavam enquanto Vaelin cavalgava na frente conduzindo a montaria dele,
os olhos brilhantes e arregalados como se tentasse capturar cada detalhe.
— Minha esposa me chamava de esposo, meus filhos me chamavam de pai
— disse ele. — Os únicos nomes de que de fato já precisei.
Vaelin franziu a testa, consternado. A ideia daquela coisa procriando era ao
mesmo tempo absurda e pavorosa.
— Você teve filhos?
— Sim. Dois meninos e uma menina.
— O que aconteceu com eles?
— Eu os matei. — O Aliado olhou para o céu, uma leve expressão de
assombro surgindo em seu rosto ao avistar um pássaro solitário voando em
círculos no alto, um dos abutres de asas largas comuns nas montanhas.
— Por quê? — perguntou Vaelin.
O rosto do Aliado se fechou um pouco ao olhar para ele, perplexidade e raiva
mesclando-se em sua fronte.
— O dever de um pai com frequência é difícil, mas não pode ser evitado.
Uma verdade que você jamais descobrirá, e por isso devia me agradecer.
— Então você pretende me matar?
— Você se matou assim que abriu este corpo para mim. A garota tinha razão,
esta circunstância em particular serve muito bem aos meus propósitos.
— Como? Como ela serve aos seus propósitos?
— Você sabe que não vou lhe contar, não importa que torturas você possa
infligir nesta carne. Porém, nada tema. As respostas não tardarão a surgir.
Cavalgaram em silêncio durante a maior parte do dia, os guardas de Orven
fazendo o reconhecimento adiante enquanto os Senthar protegiam os flancos e a
retaguarda. Kiral manteve-se perto de Astorek, ambos bem ao fundo da linha de
marcha com os lobos dele por perto. Pela palidez contínua do rosto da lonak,
Vaelin deduziu que a sua canção não havia diminuído. Lorkan e Cara estavam
com menos medo e encaravam o Aliado com uma curiosidade cautelosa,
embora até então apenas Vaelin tivesse falado com ele.
— Por que não me pergunta? — disse o Aliado por fim, mantendo os olhos
nas nuvens que se acumulavam e encobriam o sol do final da tarde. — Sem
dúvida você quer saber se eu a capturei.
Vaelin agarrou as rédeas com mais força, e Cicatriz soltou uma leve bufada
ao sentir a sua raiva crescente.
— Capturou?
— Ah, sim. E ela foi muito divertida, ainda que exaustivamente obstinada.
Pude ver por que você a amava. Uma alma tão brilhante é rara. Se tivesse tido
tempo, sem dúvida poderia tê-la moldado, criado um sonho repleto com todas as
tentações necessárias. Fiz o mesmo para o seu irmão. Caenis, não?
Vaelin parou, e a montaria do Aliado o trouxe para mais perto até ficar
apenas ao comprimento de uma espada de distância. Ele encarou o olhar vazio e
indiferente do Aliado, suas mãos tremendo.
— Ele teve uma morte adequadamente heroica — disse o Aliado após um
momento. — Salvando a sua Rainha de uma das armadilhas encantadoras de
minha serva. Ele teria sido de grande utilidade, o dom dele era muito forte, mas,
graças a você, tudo se perdeu. Assim como a mulher que você amava tanto. Se
tivesse me deixado lá, um dia talvez pudesse ouvir de novo a voz dele, mas agora
desapareceram, tornaram-se nada, como qualquer outra alma. Você fez isso ao
me trazer aqui, pois sem mim não há nada para segurá-los.
— Você está mentindo — disse Vaelin, descobrindo que tinha que forçar as
palavras a sair. — Algo manteve você no Além. Pode tê-los mantido também.
— O Além — repetiu o Aliado com um suspiro mordaz. — Que nome
ridículo. Mas imagino que vocês precisavam chamá-lo de alguma coisa. Meu
povo nunca pensou em lhe dar um nome, como se, ao lhe negar um título,
pudessem apagar o crime de criá-lo.
Mais mentiras. O Além certamente é eterno. Caenis e Dahrena estarão presos
lá para sempre… A ideia causou uma nova pontada de pesar e ainda mais raiva
insensata. Ele sentia a espada pesada nas costas agora, uma tentação constante.
Vaelin virou Cicatriz e se afastou a passo lento com o cavalo.
— Nós não sabíamos, veja bem — continuou o Aliado, seu tom pensativo,
mas também animado, um tio contando travessuras passadas a um sobrinho
curioso. — Nós nos achávamos tão sábios. E por que não acharíamos? As
maravilhas que criamos neste mundo teriam desnorteado a sua mente primitiva.
Mas esse é o eterno dilema da curiosidade, a sua infinidade. Após conquistar a
maior parte de um mundo, uma conquista obtida sem batalhas ou sangue, devo
acrescentar, por que não procurar outros? As pedras eram a chave, claro, assim
como eram a chave para tudo no nosso mundo de maravilhas. Escavadas da
terra e lapidadas, e foi somente com a lapidação que o seu poder foi revelado. O
poder de armazenar memória e conhecimento, de preservar a nossa sabedoria
para todo o sempre e, como se descobriu, o poder de entrar em contato com
outro mundo.
— A pedra negra — disse Vaelin, recusando-se a se virar.
— Sim. — O Aliado riu, surpreso. — É evidente que não lhe dou crédito
suficiente. Sim, a pedra negra seria a nossa maior realização. Imagino que você
deva estar morrendo de curiosidade para saber o que é.
— Sei que você a criou, e teve medo do que havia criado.
— O que Lionen lhe contou? Talvez que era uma caixa para me prender
dentro?
Vaelin olhou por sobre o ombro e notou que o olhar do Aliado estava mais
intenso agora, a animação substituída pela maquinação. Ele não sabe de tudo.
— Ele me contou que a morte de sua esposa o levou a querer destruir o
mundo que vocês construíram, e ele o matou para prevenir que isso acontecesse.
— É verdade, embora eu desconfie que tenha sido mais uma questão de ódio
primitivo. Ele não me concedeu uma morte rápida, sabia?
— Eu vi o que você fez com o seu povo. Você tinha muito pelo que pagar, e
ainda mais agora.
— Pagar? Passei anos incontáveis sem dor, prazer ou sem conhecer qualquer
coisa que pudesse ser chamada de sensação humana. — Ele se reclinou na sela,
encolhendo os ombros dentro das amarras. — Por favor, sinta-se à vontade para
infligir qualquer tormento que quiser sobre esta carne. Vou aceitar e pedir mais.
— O que é a pedra negra? — perguntou Vaelin, a espada movendo-se em
suas costas ao se virar para o Aliado. — Se não é uma prisão, o que é?
O Aliado olhou para Lorkan e Cara, que cavalgavam a uma distância em que
podiam ouvir.
— Na minha época, não havia ninguém como eles. Ninguém que nascia com
um dom, com o poder gravado em suas almas e passado através da linhagem por
gerações. Os nossos dons vinham apenas da pedra negra.
Toque uma vez e ela dá…
— As Trevas não existiam no mundo — disse Vaelin, compreendendo. —
Vocês as libertaram.
O rosto do Aliado revelou uma mistura de desdém e divertimento.
— Quão pouco você sabe. Sempre houve poder aqui, na água e na terra,
antigo e caprichoso, mas além do alcance do conhecimento humano. As pedras
trouxeram algo novo, algo diferente, um presente de poder vindo do outro lado do
abismo que divide os mundos. Nós o tomamos e construímos maravilhas.
O Aliado calou-se, olhou em volta para os lonaks e os dotados, o rosto
assumindo uma expressão de desprezo.
— E este mundo é o nosso legado — prosseguiu ele. — Lionen lhe contou que
quando recebeu as visões pela primeira vez ele achou que estava vendo o
passado? Alguma era de barbarismo há muito esquecida, onde pessoas se
matavam por causa de meras superstições. Então ele viu as ruínas da minha
cidade e soube que estava olhando para o futuro. Um futuro que construímos
juntos.

O Aliado não tornou a falar, permanecendo aparentemente satisfeito em suas


amarras, cavalgando sem reclamar e aceitando a comida que lhe era dada na
boca com um sorriso de gratidão. Vaelin fez muitas perguntas durante os
primeiros dois dias de silêncio, mas desistiu quando ficou claro que aquela coisa
não tinha mais nada a compartilhar.
Deixaram as montanhas para trás dez dias depois, seguindo para as planícies
mais além. Era uma região agradável, salpicada de pequenas ravinas cobertas
por florestas, e, quando avançaram mais para o sul, de plantações e casas de
campo de tamanho e luxo variados. Algumas mostravam sinais de terem sido
abandonadas recentemente, outras estavam apinhadas de corpos e parcialmente
destruídas pelo fogo ou por vandalismos deliberados. Vaelin a princípio suspeitou
que o Bastardo da Bruxa dera vazão à sua malícia enquanto conduzia o seu
exército para o norte, mas logo ficou evidente que aquela destruição não havia
sido causada por opressão, mas por revolta. A todo momento encontravam
corpos vestidos de preto pendurados em arcadas de casas de campo
parcialmente destruídas, e com frequência famílias que tiveram o mesmo
destino, os cadáveres exibindo sinais de tortura.
— Os homens vermelhos recrutaram os seus Varitai a caminho para o norte
— concluiu Astorek após inspecionar uma casa de campo particularmente
grande que havia sido botada abaixo pelo fogo. — Os escravos se revoltaram e
eles estavam indefesos.
— Por que matar as crianças? — perguntou Cara. A casa de campo havia
sido queimada, mas não o proprietário, cujo corpo jazia com os membros
estendidos e eviscerado no pátio dianteiro, ao lado de uma mulher e um menino,
que receberam o mesmo tratamento.
— Uma vida inteira de fúria não é mitigada com facilidade — disse Astorek.
— Crianças nascidas de escravos são tiradas de seus pais e vendidas. Isto é,
aquelas que os donos permitem que vivam.
— Não faz com que isto seja certo — murmurou Cara. — Nada nessa
jornada terrível tem sido certo.
Vaelin viu o Aliado olhando para os escombros queimados da casa de campo
com indiferença. A atitude dele nos últimos dias havia sido de tédio, fazendo com
que Vaelin se lembrasse dos nobres privilegiados que vira aguentando os
entretenimentos banais da Feira de Verão. Ele está ficando impaciente para
encontrar o seu fim. Assim como eu.
Chegaram à primeira cidade que encontraram após outra semana de viagem,
um aglomerado murado de casas um tanto precárias que se erguiam dos campos
verdes como um tumor disforme. Astorek lutou para se lembrar do nome do
lugar, mas se recordava de ter ficado aquartelado ali com o regimento de seu pai
antes de seguirem para o norte para o encontro fatídico nas montanhas.
— Os homens se embebedaram e começaram a brigar com os moradores —
disse ele. — Facas foram sacadas, a situação ficou feia. No dia seguinte, meu pai
enforcou um e chicoteou dez. Estranhamente, os homens não pareceram se
importar muito. Acho que foi a única vez que ele ganhou algum respeito.
— Fede mais do que as cabanas dos merim her — comentou Alturk. —
Somos poucos. É melhor desviarmos do lugar.
— A Estrada Norte começa aqui — disse Astorek. — Ela nos levará a Volar.
Podemos segui-la para o sul.
Contudo, a população não estava disposta a deixá-los passar. Ao se
aproximarem da estrada, um grupo diverso de cerca de trezentas pessoas saiu
pelos portões da cidade e bloqueou a rota. Quando chegou mais perto, Vaelin viu
que trajavam roupas variadas, pretas e cinzentas com um vislumbre ocasional de
vermelho, e todas estavam armadas, embora não muito bem, e a fileira que
formaram estava visivelmente desalinhada.
Havia um homem grande à frente do exército desigual, com os musculosos
braços nus cruzados e encarando Vaelin com uma expressão de grave desafio.
Vestia uma túnica vermelha e calça preta, os pulsos grossos bastante adornados
com braceletes de ouro e prata.
— Diga-lhe que ele está no nosso caminho — disse Vaelin a Astorek ao
chegarem a quarenta metros dos habitantes.
Astorek gritou para o homem grande e recebeu como resposta um sermão
alto e prolongado, o homem sacudindo os braços cobertos de braceletes e
apontando para várias direções.
— Ele diz que é o rei desta terra até onde a vista alcança — informou
Astorek. — Matou muitos homens para conquistar aquela cidade e matará muitos
mais para mantê-la.
— O que ele quer?
— Tributo e reverência, se você quiser usar a estrada.
— Ele é um escravo?
— Um Garisai, ao que tudo indica. Parece que esta província passou por uma
transformação política recentemente e, em meio ao caos, é provável que os mais
fortes ganhem autoridade.
— Diga-lhe que vimos muitas crianças assassinadas nestas terras. Eu gostaria
de saber se ele é responsável por isso.
O homem grande cuspiu com desprezo no chão quando Astorek traduziu a
pergunta, gesticulando com ainda mais fúria e apontando para Vaelin em óbvio
desafio.
— Ele varreu destas terras o sangue maldito dos senhores, a semente deles
nunca mais crescerá para incomodá-los. Ele agora é senhor aqui, e exige o que
lhe é de direito.
— E ele o terá. — Vaelin desmontou de Cicatriz e aproximou-se do homem
grande num passo rápido. As feições do rei recém-empossado ficaram tensas de
perplexidade e então de puro alarme quando Vaelin desembainhou a espada. O
homem assumiu uma posição de luta, espadas curtas aparecendo em suas mãos,
sacadas de bainhas debaixo da túnica. Exibia considerável aprumo em sua
postura, uma espada abaixada, a outra erguida.
Vaelin arremessou uma faca por entre as lâminas duplas, e o dardo de aço
cravou-se inteiro no olho do homem. Ele cambaleou, suas lâminas moveram-se
num contragolpe automático que ricocheteou na apara de Vaelin com um tinido
antes de Vaelin desferir um golpe lateral com a lâmina da Ordem num arco feito
um borrão. A lâmina afundou cerca de dois terços da extensão do pescoço grosso
do Garisai, obrigando Vaelin a retirá-la e desferir outro golpe para cortar a
cabeça do cadáver que estrebuchava.
Ele ergueu o olhar para o exército desalinhado de escravos revoltosos. Em
vez de avançarem para vingar o seu rei morto, eles recuaram vários metros,
cada rosto exibindo um nível gratificante de choque e consternação. Vaelin virou-
se e fez sinal para que Astorek se aproximasse.
— Traduza cada palavra como eu disser — disse ele antes de se voltar para a
multidão. — Eu reivindico esta província em nome da Rainha Ly rna Al Nieren
do Reino Unificado. Até que ela possa tomar as devidas providências acerca de
um governo justo, vocês se comportarão como cidadãos livres do Reino,
abstendo-se de assassinatos e roubos. Se não o fizerem, a Rainha não tardará em
aplicar suas punições, e — ele fez uma pausa para cutucar a cabeça do homem
grande com a ponta da bota — ela não é tão clemente quanto eu.
Ele tirou o sangue da lâmina e a devolveu à bainha, caminhando de volta até
Cicatriz.
— Agora, saiam do caminho.

A região ficou mais populosa à medida que rumavam para o sul, mas não menos
agitada. Avistavam com frequência pessoas na estrada adiante, carregadas de
bens, seus ou produtos de saque. A maioria fugia assim que colocavam os olhos
num grupo tão grande de guerreiros montados, espalhando-se pelos campos ao
redor onde, de maneira incrível, alguns escravos continuavam a trabalhar. No
entanto, nem todos fugiam; alguns, na maioria os idosos e aqueles com crianças,
arrastavam-se para a beira da estrada e os encaravam com silenciosa fascinação
enquanto passavam, os mais jovens silenciados enquanto apontavam para os
homens estranhos. Tampouco todos ficavam tão intimidados, e aguentavam
muitos insultos dos despojados; aparentemente não restava muita coisa que
causasse medo naqueles que haviam perdido tudo para escravos saqueadores.
Um velho com um manto negro rasgado os atacou com projéteis tirados de um
monte de esterco de cavalo, seu rosto uma máscara de fúria irracional enquanto
gritava insultos ininteligíveis. Alturk cavalgou adiante e olhou para baixo na
direção do velho com o porrete de guerra apoiado no ombro até que o homem
por fim desabou, afundando na sua munição perfumada e chorando.
— Essas pessoas são muito estranhas — disse Alturk, trotando de volta para a
coluna. — Procuram uma morte boa e então caem no choro quando lhes é
oferecida.
Percorreram mais de trezentos quilômetros ao longo da semana seguinte,
sem esbarrar com um único soldado volariano, apesar de encontrarem
evidências de batalha. Estavam espalhados pela estrada, talvez mais de cem
corpos, a maioria homens, mas também havia mulheres, e Astorek calculou que
fossem uma mistura de escravos e pessoas livres a julgar pelas roupas. Muitos
haviam morrido enquanto lutavam: mãos ainda agarravam gargantas ou facas,
uma jovem estava caída com os dentes cravados no antebraço do homem de
preto que a matara.
— Se isto continuar por mais tempo, não sobrará nada para a sua Rainha
conquistar — disse Astorek.
— A não ser terra — disse o Aliado, fazendo a companhia inteira se
sobressaltar ao som de sua voz. Ele lançou um olhar impassível à carnificina
antes de acrescentar: — Terra é a única riqueza verdadeira num mundo como
este. Imagino que a sua Rainha sairá muito bem de tudo isso. Uma pena que eu
não possa deixá-la ficar com o que conquistar.
— Você não diria isso se a tivesse conhecido — disse-lhe Vaelin.

Ele não conseguia sonhar. Todas as noites se deitava e adormecia quase que de
imediato, e todas as vezes o seu sono permanecia sem sonhos. Vaelin sonhara
todas as noites na masmorra do Imperador, com Dentos, Sherin e até mesmo
Barkus. Na época, ele achou isso um tormento, uma tortura merecida que
cumpria um desejo ao qual o Imperador resistia. Agora ele sabia que era uma
bênção. Dahrena se fora, de fato e por completo, e lhe era negada até mesmo a
ilusão de um sonho, a breve e preciosa mentira de que ela ainda vivia, mesmo
que o despertar fosse difícil, quando a consciência descesse sobre ele como a
lâmina de um machado ao estender a mão para o lugar vazio e gelado ao seu
lado. Ainda assim, Vaelin ansiava por aquilo.
— Ela falou de você.
Vaelin levantou-se de seu saco de dormir, evitando o olhar do Aliado. Era
cedo e o céu ainda não havia clareado o suficiente para que se pudesse ver bem,
revelando o outro homem como uma forma curvada nas sombras, do outro lado
das cinzas ainda fumegantes da fogueira da noite anterior.
— Não quer saber o que ela disse?
— Por que decidiu tornar a falar agora? — retorquiu Vaelin. — É porque
estamos nos aproximando de Volar?
— Não, apenas um tédio sincero. Além disso, vocês, primitivos, estão se
provando mais divertidos a cada dia. Posso ter lhes legado uma era de
ignorância, mas vocês a tornam interessante. Diga-me, por que não ficou com a
cabeça daquele homem? Presumo que havia algum significado ritual em tomá-
la.
— É possível que você seja tão ignorante assim a nosso respeito? Você
orquestrou destruição neste mundo durante séculos. Como pode saber tão pouco?
— Vejo apenas através dos olhos daqueles presos no Além, e mesmo assim
as visões costumam ser turvas. A morte faz coisas à alma, priva-a de boa parte
do que lhe dá substância. Havia um filósofo na minha época que argumentava
que a essência de uma alma é feita meramente de lembranças, a alma em si
sendo não mais do que uma metáfora.
— Evidentemente ele estava errado.
— Estava? Nunca se perguntou por que apenas os dotados residem no Além?
Será possível que somente eles sejam dignos de permanecer como almas e que
todos esses outros não abençoados sejam condenados a se tornar nada quando
morrem?
— A vida me ensinou a ser tolerante com mistérios, em particular com
aqueles sem resposta.
O Aliado soltou uma risada baixa e sincera, e então se arrastou para mais
perto. Suas feições ficaram nítidas quando se inclinou para a frente, seu olhar
determinado e indagador, buscando compreensão.
— Eu sou a resposta. O Além não é o domínio eterno dos mortos, é o
resultado de tolice e orgulho, é uma casca cobrindo uma ferida que vaza,
eternamente corrompida e corrompendo. Existir lá é conhecer o frio da morte
por toda a eternidade, sentir-se desaparecendo lentamente até se tornar apenas
uma consciência disforme, sem memória, mas cônscia, sem nada conhecer
além daquele frio incessante.
— E mesmo assim, de alguma forma, você ainda possui raciocínio suficiente
para nos atormentar. — Vaelin levantou-se e foi para o lado do Aliado,
agachando-se e inclinando-se para perto para sussurrar as perguntas. — Qual é o
seu dom? O que nos aguarda em Volar?
O Aliado nada disse por um momento, e Vaelin viu a maquinação retornar ao
seu olhar.
— Ela falou de quanto o amava, de como você curou um coração ferido pelo
pesar. Embora ela se preocupasse com a mulher que você amou antes dela,
temendo que quando esta guerra acabasse você fosse procurá-la. Porém, ela se
preocupava principalmente com o filho que vocês fizeram juntos. Ela esperava
uma menina, mas sabia que seria um menino, um menino que talvez um dia
pudesse ser tentado pelos modos marciais do pai…
O Aliado cambaleou com o soco, sangue e dentes voaram de sua boca.
Vaelin tinha apenas uma vaga consciência da sensação de seu punho
massacrando o rosto de Erlin ou da torrente de ódio que brotava de sua boca, e
não sentiu o porrete de guerra de Alturk atingir a base de seu crânio, mandando-o
para o sono mais profundo.
E, desta vez, os sonhos vieram.
CAPÍTULO SETE
Lyrna

— Lorde Lakrhil Al Hestian é agora nomeado Senhor da Batalha do Exército da


Rainha.
Ela os chamara até a torre mais alta do templo, muito acima das piras
fumegantes que apinhavam a planície. Era possível ver a massa vermelho-
escura de Arisai mortos, desarmados e então empilhados perto da margem do rio
e deixados para apodrecer.
— Esses homens não tinham almas — disse Ly rna quando o Irmão Kehlan
tentou sugerir que alguma forma de cerimônia poderia ser apropriada. — Não se
pode prestar homenagem àquilo que não existe.
Ela examinou o rosto dos capitães, procurando sinais de discordância; porém,
quaisquer sentimentos que pudessem ter a respeito da elevação de um homem
chamado de traidor foram mantidos bem escondidos. Eles agora me conhecem
muito bem, concluiu Ly rna, estranhamente espantada com a timidez deles.
Somente Lordes Nortah e Antesh demonstraram alguma reação evidente. O
Lorde Comandante sacudiu a cabeça em silêncio, cansado. Ele e Al Hestian
tinham uma tendência a se ignorarem com o tipo de indiferença rígida que
indicava uma inimizade mútua, o cravo que saía do toco do braço direito de Al
Hestian uma lembrança constante e inescapável de uma ofensa não resolvida
havia muito tempo. A reação do seu Lorde dos Arqueiros foi mais marcante, o
seu rosto ficando tenso com uma raiva contida.
Não deseja seguir o açougueiro do Vau da Água Verde, concluiu Ly rna. Que
sorte eu ter outra carta na manga.
— O Lorde Comandante Nortah assumirá o comando da Companhia Morta
em seu lugar — prosseguiu ela. — As Adagas da Rainha passam a estar alistadas
na Guarda Montada sob o comando de Lorde Iltis.
Ela se virou para Al Hestian.
— Senhor da Batalha, o seu relatório sobre o estado do Exército da Rainha,
por favor.
— Nossas baixas totais somam pouco mais de 1.500 homens, Alteza — disse
ele. — Além de trezentos feridos e incapazes de lutar. Três regimentos além das
Adagas da Rainha foram tão massacrados que aconselho que sejam fundidos
num só. No entanto, as nossas baixas podem ser consideradas leves em
comparação com as do inimigo. Mais de trinta mil mortos e mil capturados. O
restante fugiu e não se encontra em condições de lutar de novo. O Conde Marven
merece um grande crédito por tamanha vitória.
Um dos gêmeos nilsaelinos falou, o que usava o peitoral vermelho laqueado,
embora Ly rna ainda achasse que isso não ajudava muito a distinguir entre os
dois.
— Nosso nobre avô garantirá que a memória dele seja honrada em todo
Nilsael. Meu irmão e eu iremos financiar pessoalmente a construção de uma
estátua em Meanshall.
Ly rna afastou a imagem do rosto lívido e em pânico de Marven, chorando
enquanto ela pressionava um pano em sua testa quente. Ele teria preferido apenas
ir para casa para aguentar a língua ferina da esposa.
— Mil prisioneiros? — perguntou ela a Al Hestian.
— De fato, Alteza. Eu pretendia perguntar o que senhora quer que seja feito
com eles.
— O rio é fundo e veloz — observou o Barão Banders. — Poupa-nos o
esforço de cortar tantas gargantas.
Os outros capitães trocaram acenos de cabeça e murmúrios de concordância,
mas ela notou a careta enojada de Nortah.
— Não — disse Ly rna. — Eles serão poupados. Os feridos serão tratados e
todos serão alimentados. O Irmão Hollun me informou que a maioria é originária
desta província.
— Eles são, Alteza — confirmou Al Hestian. — Devo dizer que são
notavelmente medíocres para soldados volarianos. Há alguns veteranos entre
eles, mas a maioria é composta por pouco mais do que garotos recrutados há
apenas dois meses.
— Creio que há uma cidade a alguns dias de marcha ao longo da nossa
estrada. Suponho que muitos sejam de lá.
— Urvesk, Alteza. Um lugar de tamanho considerável, de acordo com todos
os relatórios. Eu ia aconselhar que a ignorássemos, uma vez que é improvável
que a guarnição seja numerosa o bastante para nos ameaçar e um cerco custaria
tempo e vidas que não podemos perder.
Ly rna sacudiu a cabeça.
— Não. Marcharemos para lá o mais depressa possível. Preparem o exército
para partir ao amanhecer, por favor. Já nos demoramos demais aqui.
Ela os dispensou e ficou admirando a vista enquanto desciam a escadaria
sinuosa. Porém, como esperado, um deles decidira ficar.
— Tem algo a me dizer, Lorde Antesh? — perguntou Ly rna sem se virar.
Ele se posicionou a uma distância respeitável, embora o seu semblante
carregado revelasse uma raiva crescente.
— Não posso ordenar que meu povo siga aquele homem, Alteza — disse ele.
— Quando ficarem sabendo disso…
— A Senhora Reva o teria seguido — disse Ly rna. — Não concorda?
— A Senhora Reva tinha uma alma abençoada pelo próprio Pai. Eu não
tenho, nem os meus arqueiros. Quando a perdemos… perdemos o nosso ânimo.
— Então o senhor sem dúvida se alegrará ao saber que tem uma
oportunidade de recuperá-lo. — Ela se virou e o olhou nos olhos. — Recebi
informações seguras da Sétima Ordem de que a Senhora Reva está viva e é
mantida prisioneira em Volar.
Ly rna observou o rosto de Antesh transformar-se de uma raiva sombria para
um choque lívido, logo seguido pela esperança.
— Isso… isso foi confirmado?
— Fale com o Irmão Lernial, ele irá lhe assegurar de que é verdade. Então
suponho que você gostará de compartilhar essa ótima notícia com o seu povo.
— Eu… sim. — Ele fez uma mesura com a cabeça e recuou. — Obrigado,
Alteza.
Ela se voltou de novo para a paisagem enquanto os passos rápidos do Lorde
dos Arqueiros ecoavam pela escadaria, tropeçando de vez em quando em sua
pressa.
— Eles realmente acham que o deus deles fala com ela? — ponderou Murel
em voz alta.
— Quem pode dizer que estão errados?
O olhar de Ly rna recaiu sobre as marcas na superfície plana que encimava
aquela torre, o amontoado de símbolos sem sentido gravado séculos antes.
— Sabedoria me disse que um sacerdote foi designado a cada torre deste
templo ao serem construídas, alguém que diziam ter sido tocado pelos deuses.
Sua missão ao longo da vida era gravar na torre qualquer conhecimento que os
deuses houvessem lhes transmitido, do degrau mais baixo até o topo. Uma vida
inteira passada entalhando suas visões na pedra, proibidos de realizarem qualquer
outra tarefa, sem nunca terem permissão para deixar as suas torres. Não é de
espantar que estivessem insanos quando terminavam, suas mensagens não mais
do que os rabiscos de mãos deformadas e enlouquecidas. E quando acabavam…
— Ela foi até a beira da plataforma, seus sapatos despontando para fora ao
erguer os braços, o vento fazendo o vestido e os cabelos esvoaçarem. — Eles
voavam e os deuses estendiam as mãos do alto e os apanhavam no ar.
— Alteza?
Ela se virou e viu Iltis se aproximando, esticando uma das mãos com cuidado
para puxá-la para longe da beira. Ly rna abaixou os braços e o afastou com uma
risada baixa.
— Não se preocupe, meu senhor. Não é a minha hora de voar. Ainda tenho
muito a fazer.

Ela disse para Al Hestian enviar a Guarda do Norte na frente para Urvesk com
ordens para serem o mais conspícuos possível. A cavalaria nilsaelina foi dividida
em companhias e despachada para o norte e para o sul com a missão de libertar
todos os escravos que pudessem encontrar, embora Ly rna esperasse que o talento
deles para saques fosse colocado em prática. Foram advertidos para poupar as
pessoas livres quando possível e enviá-las para leste com uma total compreensão
das intenções de sua Rainha. Assim, ao se afastarem do templo e da planície
poeirenta e adentrarem a região de colinas verdejantes mais além, o horizonte
em ambas as direções estava marcado por colunas altas de fumaça que se
erguiam de casas de campo incendiadas no rastro dos nilsaelinos. Pelos
relatórios, parecia que muitos haviam sido aconselhados a não fugir, pois os
invasores logo seriam aniquilados pelas forças invencíveis da Imperatriz.
Muitas das companhias haviam retornado no quinto dia, um tanto carregadas
de objetos de valor, mas também trazendo grupos de escravos libertos, que logo
passaram de mil no decorrer dos dias seguintes. Ly rna fez questão de receber
pessoalmente tantos quanto possível, notando que a maioria era jovem e
propensa a tratá-la como “Honorável Senhora”. Os mais velhos aparentemente
já estavam acostumados demais com o medo de uma vida inteira para aceitar a
oferta de liberdade dessa nova rainha.
— Alguns deles choraram quando incendiamos a casa de seu senhor, Alteza
— disse-lhe um aturdido capitão nilsaelino. — Alguns até mesmo tentaram nos
enfrentar.
Ela deixou os novos recrutas sob o comando de Nortah, com a ajuda de
Sabedoria, uma vez que o Lorde Comandante não falava volariano.
— Levará meses para transformar esse bando em soldados — disse-lhe
Nortah enquanto ela percorria o seu campo de treinamento improvisado. Eles
haviam parado num vale amplo a quinze quilômetros de Urvesk, instalando-se
numa luxuosa casa de campo que os nilsaelinos tiveram a consideração de
poupar para o conforto dela.
— O senhor já transformou escravos em combatentes antes — observou
Ly rna.
— Eles haviam sido aprisionados por apenas alguns dias, semanas, no
máximo. E o ódio deles era intenso o suficiente para superar a falta de habilidade
e disciplina. — Nortah gesticulou para os recrutas que trabalhavam sob a
instrução de sargentos da Companhia Morta, que pareciam determinados a
compensar a falta de uma língua em comum com volume. — A maioria dessas
pessoas só conheceu o cativeiro.
— Estou disposta a apostar que o ódio deles também será intenso — disse
Ly rna. — Quando for suficientemente instigado. Continue com o treinamento,
meu senhor. Partimos em três dias.

A cidade de Urvesk ficava situada próxima à bifurcação no rio que corria ao lado
da estrada, dando origem a um afluente menor que seguia sinuoso para o norte.
Lembrava-a vagamente de Alltor com suas muralhas altas; contudo, a
similaridade desapareceu ao avistar as muitas brechas e a quantidade de
moradias precárias que se estendia para além dela até a margem do rio. O preço
da estabilidade é a falta de prontidão, concluiu Ly rna quando Lorde Adal
cavalgou até onde ela se encontrava.
— O lugar parece ficar menos populoso a cada dia, Alteza — relatou o
comandante da Guarda do Norte. — Eles têm fugido para o norte ou leste num
fluxo constante desde que nos avistaram. Nenhum sinal de soldados além de
algumas sentinelas nas muralhas, talvez duzentos, no máximo.
— Obrigada, meu senhor. Descanse os seus homens, por favor.
— Alteza, eu… — Ele hesitou, com um pedido ansioso no olhar. — Eu
esperava liderar o ataque.
O que é essa sede de glória deste homem?, perguntou-se Ly rna. Ela o
estimava muito como capitão, sendo um dos poucos verdadeiros profissionais do
exército, mas estava ficando cada vez mais preocupada com o desejo dele de se
colocar em perigo. Os relatos da batalha no templo estavam repletos de
descrições de sua coragem temerária, embora ele tivesse conseguido sair do
conflito sem um arranhão sequer.
— Não haverá ataque, meu senhor — disse ela. — Poupe a sua coragem
para Volar.
Ela virou Azeviche e rumou a trote até onde os prisioneiros haviam sido
reunidos, pouco mais de mil homens e garotos de rosto acinzentado acorrentados
em quatro fileiras não muito definidas.
— Há oficiais aqui naturais desta cidade? — gritou ela em volariano.
Os prisioneiros arrastaram os pés num silêncio amedrontado, muitos não
ousando erguer a cabeça, e um garoto mais à frente chorava abertamente.
— Respondam, escória! — berrou Iltis na língua do Reino, deixando o
significado claro com um estalo terrível do chicote de capataz que conseguira em
algum lugar.
Um homem com o rosto enfaixado na terceira fileira ergueu lentamente a
mão e logo foi arrastado da multidão por Iltis.
— Você é um oficial? — perguntou Ly rna ao prisioneiro quando Iltis o forçou
a se ajoelhar diante dela.
— Um capitão — respondeu ele numa voz ofegante. A bandagem sobre o
rosto cobria o olho direito, e estava escurecida pelo sangue seco. Sua aparência
revelava um homem que se aproximava da morte a cada passo. — Convocado
da reserva para lutar a gloriosa guerra de defesa da Imperatriz. — Ele soltou
uma risada amargurada e Ly rna deduziu que o homem esperara morrer logo.
— Levante-se — disse ao homem. — Remova as correntes, meu senhor.
Ly rna levou Azeviche para mais perto quando o capitão caolho olhou
perplexo para ela, não aparentando se importar com o sangue que escorria de
seus pulsos esfolados quando Iltis removeu os grilhões.
— Você irá para casa, Capitão — disse ela, apontando para Urvesk. — E dirá
a quem quer que esteja no comando da cidade que os seus companheiros aqui
serão libertados, pois não vim para esta terra em busca de carnificina, e sim de
justiça. Em troca, a cidade libertará todos os escravos e abrirá os seus portões a
mim. Caso contrário, matarei dez prisioneiros por hora até que o façam. Caso a
razão ainda assim não prevaleça, eles se afogarão em cinzas e sangue quando eu
enviar o meu exército através daquelas muralhas precárias.
Ela aproximou Azeviche ainda mais e inclinou-se para olhar diretamente no
olho bom do homem.
— Pergunte a eles se realmente querem morrer pela Imperatriz.

Ao anoitecer, mais de três mil escravos haviam saído pelos portões. Ly rna
observou os últimos saírem e aguardou, ocultando um suspiro de alívio quando os
portões permaneceram abertos. Alguma vez você conseguiu isso, pai?, perguntou
ela ao fantasma do velho maquinador. Capturar uma cidade apenas com
palavras?
— Eu deveria ir à frente com a Guarda do Reino, Alteza — sugeriu Al
Hestian. — Garantir uma recepção apropriada para a sua entrada.
Seria tão fácil, pensou ela, os olhos ainda fixos nos portões abertos. Tantas
casas de madeira, tanto combustível, as chamas iluminariam o céu por mais de
cem quilômetros.
— Não entrarei na cidade — disse ela a Al Hestian. — Mande quantos
homens achar necessário para garantir que não tenham mantido nenhum escravo
e para obter suprimentos adicionais para os meus novos súditos. Nada de saques,
sob pena de execução. Deixe-lhes suprimentos suficientes para que não passem
fome, e os seus cavalos. Estou ansiosa para que a notícia de nossas ações aqui se
espalhe. Certifique-se de que o exército esteja pronto para marchar ao
amanhecer.
Ly rna olhou para os prisioneiros amontados na penumbra, tremendo tanto de
medo quanto pelo frio que chegava. Como todas aquelas almas que deixei se
afogarem no fundo do navio de escravos, pensou ela, apertando as rédeas até suas
mãos doerem. Seria tão fácil…
— Solte este bando uma hora antes de partirmos — ordenou, virando
Azeviche e voltando a galope para a casa de campo.

Percorreram 160 quilômetros em três dias, com o Senhor da Batalha insistindo


num passo que fazia com que muitos soldados desabassem ao final do dia
passado no que muitos agora chamavam de a “estrada de sangue”. A marcha
deixou Ly rna familiarizada com os ânimos variados de seu exército. Os
nilsaelinos eram os que resmungavam com mais veemência, soltando um
gemido coletivo de alívio e exaustão ao final do segundo dia. A Guarda do Reino
era a mais disciplinada na marcha, embora também fosse a mais irascível à
noite; brigas por causa de jogos de cartas ou disputas triviais ainda eram um
incômodo comum. Os renfaelinos eram de longe os mais animados, o seu
acampamento repleto de canções e risadas na maioria das noites, contrastando
muito com a eficiência silenciosa dos cumbraelinos, ainda que a sua quietude
tivesse passado a uma determinação sombria desde o templo. Eles marchavam
num ritmo mais rápido do que os outros contingentes, Ly rna tendo concordado
com o pedido de Lorde Antesh de liderar a coluna, e com frequência se
encontravam três ou quatro quilômetros à frente com o cair da noite. Além disso,
a julgar pelo modo como se aglomeravam em volta dos poucos sacerdotes entre
eles ao anoitecer, a notícia da sobrevivência da Senhora Reva parecia ter
reacendido a sua devoção.
— Estou envergonhado, Alteza — disse Antesh na noite do terceiro dia. Ly rna
o procurara durante a sua inspeção noturna do acampamento, encontrando os
cumbraelinos mais respeitosos do que de costume, suas mesuras mais longas,
embora o olhar sempre cauteloso ainda estivesse lá.
— Envergonhado, meu senhor?
— Após a tempestade, quando pensamos que havíamos perdido a Senhora
Reva, eu duvidei do propósito do Pai em nos trazer aqui. Em Alltor, tudo foi tão
claro, ela parecia brilhar com o Seu amor. Mas se Ele a tirara de nós, como
poderia abençoar esta empreitada? Pensei que talvez pudesse ser um castigo,
uma condenação pela nossa disposição de nos aliarmos à senhora. Agora vejo
como isso era absurdo. Ela jamais teria nos guiado por um caminho falso.
Ao ouvir a convicção em cada uma de suas palavras, Ly rna resistiu ao
impulso de perguntar se o seu Lorde dos Arqueiros na verdade não adorava uma
deusa em vez de um deus.
— Ela de fato é uma grande alma — disse Ly rna. — Desejo muito vê-la de
novo.
A Rainha inclinou a cabeça e se afastou, mas Antesh estendeu a mão,
parando pouco antes de tocar sua manga.
— Alteza, se me permite? Sei que a senhora não acredita no Pai. Na verdade,
duvido que a senhora também queira alguma coisa com a sua própria Fé. Mas
saiba que, embora a senhora possa não sentir o Seu amor, Ele o dá mesmo assim.
Ly rna foi tomada pela estranha sensação de não saber o que dizer. Ela nunca
se sentiu à vontade perto de demonstrações de devoção; seus encontros
infrequentes com o finado Aspecto Tendris foram uma provação considerável,
assim como as conversas com o Aspecto Caenis, embora ele provocasse tanto
pena quanto desconforto. Vidas dominadas pelo espectro de sonhos antigos,
pensou. Mas parece nunca deixá-los felizes.
— Certifique-se de agradecer a ele por mim — disse ela a Antesh, colocando
um tom de finalidade na voz e dando-lhe as costas.
— Havia mais uma coisa, Alteza — começou ele, indo para o seu lado e
então recuando quando Iltis deu uma bufada de aviso. — A Senhora Reva —
prosseguiu Antesh. — Temo que ela possa se tornar uma refém de nossas
intenções. Ao que tudo indica, essa Imperatriz abominável deles não hesitará em
matá-la caso ataquemos Volar.
O seu Pai do Mundo não irá estender a mão e salvá-la? Ly rna sorriu para
encobrir o seu aborrecimento.
— Não permitirei que isso aconteça.
— Então a senhora tem um estratagema? Algum modo de garantir a
libertação dela?
— De fato tenho. — Capturar a cidade e confiar nas habilidades mortais da
garota de garantir a própria sobrevivência. Ly rna estendeu a mão para que ele
não falasse. — Por favor, garanta a seus arqueiros que não há maior propósito
para mim do que proteger a vida da Senhora Abençoada, mesmo que isso
coloque a minha em risco.
Antesh hesitou antes de colocar um joelho no chão e lhe beijar a mão.
— Assim o farei, Alteza.

As colinas começaram a ficar mais planas nos dias seguintes, transformando-se


em terras onduladas e cultivadas. Boa parte era dominada por campos de flores
rubras, estendendo-se ao longe como um tapete escarlate interminável,
interrompido por uma ocasional casa de campo ou cidade pequena, a maioria
exibindo sinais de ter sido abandonada às pressas. Aquela região possuía também
outra distinção singular com os postes com que a Imperatriz decidira adornar a
estrada.
— Não é de admirar não lutarem por ela — comentou o Barão Banders,
estreitando os olhos para um dos cadáveres putrescentes que pendiam acima. —
É possível que tenhamos uma estrada livre até Volar.
Ly rna olhou adiante para a longa procissão de postes que desapareciam ao
longe, notando uma tênue nuvem de poeira que se erguia acima do horizonte.
— Duvido que a Imperatriz pretenda que a nossa passagem seja fácil.
Al Hestian enviou a Sexta Ordem à frente naquela manhã e o Irmão Sollis
logo retornou para informar sobre a aproximação de um exército de cerca de
setenta mil combatentes.
— Pelos meus cálculos, cerca de metade é Varitai — disse ele. — São mais
esfarrapados do que aos que estamos acostumados. Desconfio que a Imperatriz
recrutou todos os soldados-escravos particulares da região. Os Espadas Livres
não parecem muito melhores, a maioria velhos e garotos. Porém, a cavalaria é
outra história, mantendo-se em ordem e patrulhando os flancos com atenção.
Tivemos sorte de voltar sem sermos vistos.
— Nenhum Kuritai ou Arisai? — perguntou Ly rna.
— Nenhum que eu pudesse ver, Alteza.
— O templo nos ensinou uma dura lição — disse Al Hestian. — Podemos
esperar que tenham escondido a elite entre os medíocres.
— Seja como for, é suicídio — comentou Nortah, sacudindo a cabeça. — Há
bem mais de cem mil almas neste exército agora, que aumenta a cada dia.
— Se o nosso inimigo está determinado a causar a própria destruição, terei o
maior prazer de cumprir o seu desejo — disse Ly rna. — Senhor da Batalha, fique
à vontade para preparar as suas tropas.

Al Hestian enviou a cavalaria nilsaelina e a Guarda do Norte a galope antes que a


sua linha principal de batalha estivesse totalmente posicionada, ordenando que
entrassem em combate com quantos cavaleiros volarianos fosse possível. A
cavalaria da Guarda do Reino permaneceu onde estava para proteger os flancos
da infantaria, que assumiu uma formação surpreendentemente compacta. O
agrupamento principal era composto por apenas três regimentos, dispostos em
fileiras próximas umas das outras, com o resto da Guarda do Reino posicionado
atrás e a Companhia Morta de Lorde Nortah, flanqueada pela massa vagamente
organizada de escravos com pouco treinamento, formando uma retaguarda com
a infantaria nilsaelina. À frente ele colocou os cavaleiros renfaelinos e os
arqueiros cumbraelinos.
— Supus que Vossa Alteza gostaria que esta questão fosse concluída
rapidamente — disse o Senhor da Batalha em resposta à observação cautelosa de
Ly rna de que aquela ordem de batalha estava além de sua experiência.
— De fato, meu senhor — disse ela, observando-o cavalgar para longe com
os seus sinaleiros, perguntando-se se não deveria pedir a Davoka que ficasse ao
lado dele durante a batalha, pronta para matá-lo caso aquele estratagema se
revelasse uma grande e talvez deliberada tolice. Ly rna deixou os seus receios de
lado ao ver Al Hestian cavalgando ao longo do flanco do exército que ela lhe
dera, notando a total dedicação em seu rosto enquanto passava o olhar experiente
pelas fileiras. A guerra é a sua arte, compreendeu ela. A única paixão que lhe
resta. Como as estátuas de Mestre Benril ou os desenhos de Alornis.
Seu olhar recaiu sobre a Senhora Artífice, que se movia ao longo da fileira de
balistas posicionadas numa colina baixa à esquerda da linha de marcha do
exército. Ela protestara de forma estridente quando Al Hestian avisara que as
máquinas não seriam necessárias para o seu ataque, acalmando-se apenas um
pouco quando Ly rna sugeriu que fossem usadas para se protegerem em caso de
algum contra-ataque. Animada apenas pela perspectiva de sangue, pensou Ly rna,
acompanhando com o olhar a forma esguia de Alornis enquanto ela ia de
máquina em máquina.
Ly rna se posicionara não muito longe das balistas, sob a escolta atenta dos
remanescentes das Adagas da Rainha e os membros mais dotados da Sétima
Ordem. A colina oferecia uma bela visão do desenrolar do drama. Os volarianos
se aproximavam em boa ordem, a linha de frente composta quase que
exclusivamente por Varitai, com os Espadas Livres atrás. Uma grande nuvem de
poeira que se erguia dos campos de flores rubras para além do flanco esquerdo
indicava que uma batalha feroz já estava em andamento entre a Guarda do
Norte e a Cavalaria Espada Livre, com os lanceiros nilsaelinos correndo em
direção ao conflito a toda a velocidade. Era possível ver um contingente de três
batalhões de cavalaria volariana dando a volta pela direita, presumivelmente
com a intenção de ameaçar a retaguarda, mas uma série de sinais de bandeiras
realizada pelos auxiliares do Senhor da Batalha logo enviou a cavalaria da
Guarda do Reino em perseguição, as massas opostas de cavaleiros chocando-se
numa investida de frente a menos de trezentos metros da colina. Ly rna viu
Alornis andando de um lado para outro entre as balistas, de rosto fechado e
punhos cerrados de frustração por nem um cavaleiro volariano sequer sair da
luta e fornecer o esperado alvo.
Um zunido familiar atraiu a atenção de Ly rna de volta ao grosso do exército,
permitindo-lhe um breve vislumbre da primeira saraivada cumbraelina caindo
no meio da linha volariana. A linha pareceu estremecer com o impacto e
diminuiu o passo, mas continuou em frente apesar da chuva contínua de flechas.
A luneta de Ly rna revelava o rosto inexpressivo dos Varitai marchando
despreocupados em frente enquanto seus companheiros morriam à sua volta. Ela
esperara que Al Hestian parasse o exército e deixasse os cumbraelinos fazerem o
seu serviço durante algum tempo, mas o toque de múltiplas cornetas revelou uma
intenção diferente.
Ly rna abaixou a luneta quando os cavaleiros renfaelinos atacaram em
disparada, a terra ribombando enquanto aceleravam, uma nuvem de flores
rubras esmigalhadas erguendo-se em seu encalço, estranhamente bela à luz do
sol. Os cumbraelinos cessaram de pronto a sua chuva de flechas e começaram a
entrar em formação para a própria investida. Largaram os arcos e sacaram as
espadas e machadinhas, movendo-se de forma mais coordenada do que na
investida enlouquecida no templo e acompanhando os regimentos da Guarda do
Reino que iam à frente.
Ly rna ergueu o olhar e assistiu à investida renfaelina atingir o alvo, um
espetáculo que nunca testemunhara, embora o seu pai costumasse falar com
frequência sobre ele. Imagine uma ponta de flecha de ferro inquebrável, mas feita
por um gigante. Ela ouviu Murel soltar uma imprecação de espanto quando a
grande cunha de aço e carne de cavalo atingiu o alvo, o impacto causando um
tumulto imediato de homens e animais aos gritos mesclado com as notas
dissonantes da colisão de carne com metal. Viu vários cavaleiros caírem,
tombando com os seus cavalos num emaranhado de armadura e cascos
escoiceadores, mas na maior parte o contingente de cavaleiros manteve a coesão
para trespassar a linha volariana, abrindo caminho até os Espadas Livres e ao
espaço desocupado mais além.
Mais cornetas ressoaram e a massa inteira da infantaria de Al Hestian
aumentou o passo e começou a correr. A aparente coesão do contingente
cumbraelino se evaporou à medida que corriam, atravessando a distância
remanescente até a linha volariana numa disparada frenética de espadas e
machadinhas que eram agitadas, cravando-se no aglomerado de Varitai já
desordenado. Os regimentos dianteiros da Guarda do Reino atingiram o alvo
segundos depois, alabardas subindo e descendo numa demonstração habilidosa de
carnificina disciplinada, destruindo quaisquer resquícios de ordem nas fileiras
volarianas, que cederam, recuaram e se desintegraram.
Mais pétalas se ergueram do campo quando a batalha se transformou em
debandada, obscurecendo boa parte da matança que ocorria com uma cortina
escarlate. As batalhas da cavalaria em ambos os flancos continuaram por algum
tempo, mas logo os cavaleiros volarianos podiam ser vistos fugindo para leste ao
perceberem o destino da sua infantaria. A luneta revelou a cena de Lorde Adal
conduzindo a Guarda do Norte em perseguição aos fugitivos, apesar da espuma
que cobria os flancos do seu cavalo, o manto verde esvoaçando às suas costas
enquanto o esporeava em frente, a espada ensanguentada estendida e reta como
uma flecha.
Ao olhar de novo para o centro do campo de batalha, Ly rna descobriu que
um aglomerado compacto de Espadas Livres havia se formado em meio ao
ataque da Guarda do Reino. A luneta revelou principalmente homens assustados,
lutando com o tipo de ferocidade causada apenas pela vontade de sobreviver.
— Envie um cavaleiro a Lorde Al Hestian — disse ela a Iltis. — Quero
conseguir mais prisioneiros…
— Ah, Alteza…
Ela se virou ao ouvir as palavras meio sussurradas de Murel e a visão com
que se deparou a fez se perguntar se algum novo inimigo não havia aparecido
entre eles. As fileiras da Guarda do Reino estavam desordenadas, milhares de
figuras, a maioria sem armadura, lutando para atravessar as suas linhas. Os
escravos, compreendeu Ly rna, avistando Nortah a cavalo, tentando em vão
conter os seus recrutas que investiam na direção dos Espadas Livres
sobreviventes. Os cerca de cem primeiros foram mortos em segundos, mas os
outros continuaram avançando como se tivessem enlouquecido, alheios às
espadas que cortavam a sua carne desprotegida. Ela viu um homem abrir
caminho pelas fileiras volarianas com as mãos nuas, arranhando rostos e
pescoços, parecendo não sentir a lâmina que foi cravada em seu peito quando
derrubou o homem que a empunhava, arrancando-lhe o elmo e fincando os
dentes na carne que havia por baixo. Seus companheiros se amontoaram na
brecha estreita que ele abrira na linha volariana, a coragem desesperada dos
Espadas Livres transformada em pânico pela selvageria do ataque. Alguns
correram até a Guarda do Reino com as mãos vazias erguidas e caíram de
joelhos. A maioria não teve tanta sorte.
Justiça, pensou Ly rna quando o último ponto negro volariano desapareceu na
turba fervilhante de ex-escravos. Muitos agora brandiam armas capturadas, ou
mesmo membros e cabeças decepados em celebração enquanto as pétalas
continuavam a cair. Não somos as únicas almas sedentas aqui.

— Você me acha bonita?


A jovem escolhida para falar pelos escravos libertos de fato possuía uma
beleza delicada, suas feições eram suaves, com uma pele de um agradável tom
moreno, um pouco maculada pela bandagem que lhe cobria a orelha, que fora
cortada em parte. A mulher usava uma variedade desigual de armadura e armas
capturadas e estava de braços cruzados, olhando fixamente para Ly rna em claro
desafio, a ausência de qualquer mesura ou título honorífico fazendo Iltis soltar um
resmungo ameaçador ao avançar. Ly rna o acalmou com um toque no braço e
fez um sinal para que a mulher continuasse.
— Minhas costas não são tão bonitas — prosseguiu a jovem. — Chorei na
minha primeira noite na casa de prazeres, desagradando bastante o homem de
vermelho que pagara uma bela quantia para tirar a minha virgindade. Meu
senhor me chicoteou todos os dias durante uma semana e então me vendeu para
um criador de porcos. Os porcos comiam melhor do que eu e o criador não se
importava se eu chorava quando ele me apalpava. Gostaria de ver as minhas
costas, Grande Rainha?
— Lamento por tudo o que você sofreu — disse-lhe Ly rna. — Meus pulsos
também já ficaram presos por correntes, então não imagine que não faço ideia
da sua dor. Não imagine também que me importo com os inimigos que matamos.
Contudo, se a sua gente for marchar conosco, ela precisa se considerar como
soldado e obedecer às ordens daqueles que a lideram.
— Não pretendemos trocar um senhor por outro — retorquiu a mulher,
embora o seu tom estivesse mais cauteloso. — E somos gratos por vocês terem
vindo. Mas há muitas contas que precisam ser prestadas, e nós apenas
começamos.
— Vocês terão as suas prestações de contas. Quando esta guerra for vencida,
dê-me o nome do senhor que a chicoteou e irei me certificar de que o mesmo
seja feito com ele, e com o criador de porcos. Diga à sua gente para fazer listas
dos males que lhes foram causados e garantirei que cada alma receba a devida
justiça. No entanto, até lá preciso pedir que a sua gente se comporte como
soldados e não como uma turba. Vocês receberão o mesmo soldo de qualquer
soldado da minha Guarda do Reino, mas serviço requer disciplina. Lorde Nortah
é um bom comandante que não desperdiçará as suas vidas. Seria bom vocês
darem ouvidos a ele.
— E se não quisermos lhe servir?
Ly rna estendeu as mãos.
— Vocês são pessoas livres e podem ir para onde quiserem, levando consigo
o pagamento pelos serviços já prestados, além de meus agradecimentos e minha
amizade.
A mulher pensou por um momento, sua postura um pouco menos fechada.
— Alguns irão embora, alguns ficarão — disse ela. — Muitos, como eu,
foram tirados de suas terras natais anos atrás e vão querer voltar para elas.
— Não tentarei impedi-los, e inclusive providenciarei navios para levá-los
para casa quando a nossa tarefa estiver concluída.
— Você fará um juramento sobre isso, na frente de todos eles?
— Farei.
A mulher assentiu.
— Venha até nós esta noite. Vou garantir que eles escutem. — Ela fez uma
mesura desajeitada e foi até a aba da tenda.
— Você não me disse o seu nome — disse Ly rna.
— Sessenta e Três — retorquiu a mulher, e um leve sorriso surgiu em seus
lábios. — Retomarei o meu nome verdadeiro quando for para casa. E não se
preocupe com o criador de porcos. Os animais dele comeram melhor do que
nunca no dia em que parti.

É linda.
Ela parou Azeviche ao lado do Aspecto Arly n e do Irmão Sollis, que
aguardavam com a Sexta Ordem no topo de uma colina baixa, todos sentados e
olhando em silêncio para a cidade que se estendia ao longe. O céu estava límpido
naquele dia e o sol desimpedido caía sobre uma panóplia de mármore, fazendo-a
reluzir antes de produzir um brilho cintilante nas águas do Estreito de Lokar ao sul.
O absurdo de sua missão ficou evidente ao considerar a miríade de torres e
incontáveis ruas; a destruição de tal cidade seria um trabalho de anos e ela
duvidava que mesmo Alornis pudesse conceber um engenho capaz de causar
uma conflagração grande o suficiente para arrasá-la.
— Nenhum inimigo a relatar, Alteza — disse o Irmão Sollis. — Nem
qualquer sinal de obras defensivas na periferia. Há alguns incêndios ocorrendo
mais para o interior da cidade, e um grande número de pessoas livres foi visto
fugindo para o norte. Os escravos estão fugindo em nossa direção.
Ly rna assentiu. Ela ordenara a libertação de algumas centenas de prisioneiros
capturados dois dias antes, após terem recebido descrições exageradas das
intenções da temível rainha. Ao que tudo indicava, gente suficiente havia fugido
para Volar para causar o efeito desejado.
— Alteza! — Era o Irmão Ivern, de pé na sela e apontando para o sul. Ly rna
levou um momento para reconhecer as formas escuras que pontilhavam as
águas do estreito. Ela usou a luneta e avistou a bandeira de guerra meldeneana
tremulando nos diversos mastros, todos aglomerados num arco ao redor do porto,
dezenas mais visíveis rio abaixo, a inconfundível forma lustrosa do Falcão
Vermelho entre eles.
Ly rna fez sinal para uma das Adagas da Rainha.
— Cavalgue até o Senhor da Batalha. Ele deve seguir para o centro da cidade
sem demora, destruindo quaisquer forças de oposição que encontrar. Diga-lhe
que acredito que seria melhor manter os nossos súditos recém-libertados na
reserva. — Ela se virou para o Aspecto Arly n. — Aspecto. Creio que o senhor se
lembra do caminho para a arena, não?
— Sim, Alteza.
— Pois bem. — Ela saiu a galope com Azeviche, descendo a encosta leste
em meio a uma nuvem de pétalas escarlate. — A cortesia exige que eu
cumprimente a Imperatriz, e não quero deixá-la esperando.
CAPÍTULO OITO
Reva

— Onde você conseguiu isso?


Reva se pegou estendendo a mão para o arco de forma involuntária. O
padrão era desconhecido, machados e espadas no lugar do gamo e do lobo, mas
o trabalho era inconfundível. Um arco de Arren.
— Você conhece esta arma? — perguntou Varulek, seus olhos brilhando com
a mesma intensidade.
— Já tive o gêmeo dele, que agora se encontra no fundo do mar. São
heranças da minha família. Criadas para o meu avô pelo maior fabricante de
arco da história de Cumbrael, perdidos nas guerras que construíram o Reino. —
Reva encontrou o olhar de Varulek e apertou ainda mais o arco. — Onde você o
conseguiu?
— É incumbência da minha família servir aos deuses e às escrituras que nos
deixaram. Como senhores da arena, o nosso alcance sempre foi longo e os nossos
bolsos cheios. Volaria é repleta de mercadores e comerciantes que apreciam as
virtudes da discrição. Há vinte anos, um deles levou este arco ao meu pai. Ele foi
bem pago por sua consideração.
Reva passou os dedos sobre os entalhes, lembrando-se da sensação de seu
próprio arco, do modo como sempre parecera se adequar tão bem a ela. Antesh
lhe contara que cada um havia sido decorado para refletir os diversos interesses
de seu avô. O que ela carregara por Alltor mostrara evidências da paixão dele
pela caça. Ao que tudo indicava, o arco que tinha agora em mãos mostrava um
grande interesse pela guerra.
— O que quer que eu faça com isto? — perguntou a Varulek.
— Seu espetáculo será uma grande provação. Jarvek e Livella. Não vou
mentir, as chances de você sobreviver são ínfimas, mas, caso sobreviva, posso
esconder este arco na arena num lugar ao alcance do balcão da Imperatriz.
— Há arqueiros nos níveis superiores. Estarei morta antes de puxar a corda.
— Esta arena possui os próprios Kuritai, que prestam contas a mim. Além
disso, há alguns mercenários Espadas Livres com contas a acertar. Os expurgos
da Imperatriz deixaram poucas famílias intocadas nesta cidade.
— Se eu a matar, estarei apenas libertando o que há dentro dela, e essa coisa
sem dúvida encontrará uma nova casca.
— A sua Rainha está se aproximando. O último plano da Imperatriz para
derrotá-la fracassou. Testemunhei a reação dela ao ouvir a notícia, e foi uma
cena sangrenta. Ela agora está reunindo as forças que pode, mas as melhores
tropas estão no norte, enfrentando uma nova ameaça, e o império fervilha com
rebeliões. Nenhuma ajuda virá das províncias. Seu espetáculo acontecerá daqui a
três semanas, e a sua Rainha se aproxima ainda mais a cada dia. Caso mate a
Imperatriz diante de milhares, ela poderá encontrar um novo corpo, mas isso não
terá importância. Quem iria segui-la? Sua Rainha pode muito bem encontrar uma
cidade em meio ao caos, pronta para ser tomada.
— E você sem dúvida espera uma recompensa quando ela fizer isso.
— Você adora um deus, mas ela não, e ainda assim ela permite a sua
adoração. Quando Volar cair, ela será Imperatriz, uma imperatriz disposta a
tolerar um retorno dos deuses antigos.
O mais provável é que ela ponha abaixo este matadouro à sua volta. Reva
passou mais uma vez os olhos pelo arco. Tio Sentes teria visto a mão do Pai em
você, como a viu em mim. Ocorreu-lhe que aquele evento, caso um dia se
tornasse conhecido, formaria um versículo importante no Décimo Primeiro
Livro. A Senhora Abençoada e o Arco de Arren, um presente do Pai. A
tempestade não pôde matá-la, a arena não a aterrorizou e, com o amor do Pai
para guiar a sua mira, ela disparou uma flecha no coração negro da própria
Imperatriz.
— Farei isso — disse ela a Varulek, devolvendo o arco. — Porém, se eu não
sobreviver, você vai se certificar de que esta coisa seja queimada e que jamais
seja mencionada ao meu povo. — Já contei mentiras demais a eles.

— Aaaai! — gritou Lieza, rolando no chão e esfregando o joelho. Para uma


pessoa tão bem-feita, ela continuava desajeitada de um modo irritante e
praticamente não possuía coordenação, apesar das duas semanas de treinamento
constante.
— Levante-se — suspirou Reva. — Vamos tentar de novo.
— Você é rápida demais — resmungou Lieza, levantando-se. A garota fez
beicinho diante da testa franzida de Reva e assumiu a postura agachada que lhe
fora ensinada, quase curvada em duas, com uma das mãos tocando o chão. As
informações que Varulek fornecera sobre o espetáculo vindouro deixaram bem
claro para Reva que tentar treinar a garota para lutar dificilmente aumentaria as
suas chances de sobrevivência, mas a habilidade de se esquivar da investida de
um oponente talvez aumentasse.
Reva a olhou nos olhos e forçou um sorriso. Desta vez, Lieza não se deixou
enganar e correu para a direita, rolou e ficou de pé, pouco além do alcance do
braço que Reva usara para golpeá-la.
— Melhor — disse ela. — Mas a coisa que enfrentamos terá um alcance
maior.
— Você acha mesmo que pode matá-la?
Se eu colocar as mãos no arco rápido o bastante.
— Temos uma chance. Lembre-se do que lhe contei. Haverá caos. Quando
isso acontecer, corra para a saída oeste. Não espere por mim, não olhe para trás.
Lieza empalideceu e abraçou-se quando o medo retornou. Era menos
frequente agora, mas ainda podia deixá-la tremendo e chorosa. Reva havia se
acostumado a acordar com o corpo esguio da garota encostado no seu, o rosto
manchado de lágrimas aninhado em seu ombro. Ainda não tivera coragem de
afastá-la.
Lieza teve um sobressalto quando as trancas na porta fizeram barulho pela
primeira vez em dias. Sua comida era fornecida através de uma abertura na base
da porta, a única forma de medir a passagem do tempo, uma vez que haviam
sido deixadas em paz desde a visita secreta de Varulek. Quando a porta se abriu,
Reva ficou surpresa ao ver que o homem de preto estava ausente. Em seu lugar
havia dois Arisai, que sorriram ao se curvarem, o desejo visível nos olhares que
voltaram para ela e Lieza.
Um deles falou, curvando-se ainda mais e gesticulando para o corredor. Lieza
engoliu em seco antes de fornecer uma tradução.
— Ela quer ver você.

Não pense em nada. Não sinta nada.


Sabia que estava pedindo o impossível de si mesma; como qualquer mente
viva podia não pensar em nada? Ainda assim, Reva achava o refrão constante
um consolo, confiando na loucura evidente da Imperatriz, na esperança de que a
sua mente fosse anuviada demais para permitir que o seu dom fosse colocado
em prática.
Para a sua surpresa, os Arisai a levaram da arena para um parque amplo que
a cercava. A Imperatriz estava supervisionando alguma forma de modificação
numa estátua de bronze de tamanho real sobre um pedestal diante da entrada
principal, um grupo de escravos movendo-se depressa sob as suas instruções
gritadas. A maioria do trabalho parecia estar concentrada na cabeça da estátua,
onde martelavam fervorosamente pinos de ferro no pescoço de bronze. Perto
dali, uma dúzia de Arisai estava de guarda, e no meio deles havia um homem
ajoelhado, nu, curvado e acorrentado.
— Ah, irmãzinha — cumprimentou-a a Imperatriz, dando-lhe um abraço
caloroso. — E como você está esta manhã?
Não pense em nada. Não sinta nada.
— O que você quer?
— Não tivemos oportunidade de conversar desde a sua encantadora
demonstração. Não gostaria que pensasse que sinto alguma raiva de você. Irmãs
não devem brigar.
— Não somos irmãs.
— Ah, mas somos. Estou convencida disso. Eu estava destinada a ter uma
irmã, sabia? Mas ela morreu antes que pudesse nascer. — A Imperatriz tornou a
olhar para os escravos e a estátua. — Depressa!
Os esforços se tornaram frenéticos no mesmo instante, martelos movendo-se
num borrão e os pinos de ferro enfim foram colocados no lugar.
— Sujeito bonito, não? — perguntou a Imperatriz enquanto os escravos
passavam cordas em volta do pescoço da estátua. — Não do seu agrado, eu sei.
Mas suponho que ainda possa apreciar as qualidades estéticas da beleza
masculina.
Reva olhou para o rosto de bronze, agora parcialmente oculto por uma teia de
cordas. Ele sem dúvida havia sido um homem bonito, de maxilar forte com um
nariz fino, embora sua expressão fosse ainda mais séria e imponente do que a da
infinidade de heróis que os volarianos erguiam em cada canto livre de sua
cidade. O homem trajava a armadura de um oficial graduado, apesar de parecer
mais elaborada e ornamentada do que as outras que ela já vira.
— Savarek Avantir — disse a Imperatriz. — O maior comandante militar da
história volariana. E meu pai.
Os escravos prenderam depressa as cordas a uma parelha de cavalos e
começaram a açoitar os flancos dos animais com chibatas. Os pinos de ferro no
pescoço da estátua caíram quando as fendas que haviam forçado no material se
alargaram, o bronze soltando um rangido de protesto até que a cabeça enfim se
soltou, caindo no pedestal com estrépito.
— Conquistador das províncias meridionais — prosseguiu a Imperatriz, indo
até o pedestal e colocando a mão na cabeça de metal. — Vencedor de 63
conflitos diferentes. Um dos únicos dois cidadãos a ganhar o vermelho devido ao
mérito marcial em vez de propriedades, criador dos Varitai e dos Kuritai e o
primeiro a receber a bênção do Aliado. Um sujeito de realizações singulares, não
acha?
— Ele matou tantas pessoas quanto você?
A boca da Imperatriz se crispou com um sorriso quando acariciou a cabeça.
— Mais do que nós duas juntas, irmãzinha. E matamos muitas, não?
Não pense em nada. Não sinta nada.
— Se ele recebeu a bênção do Aliado, onde ele está? Pensei que a sua laia
vivesse para sempre.
— Mesmo o presente do Aliado é vulnerável contra uma lâmina habilidosa.
— Ela se virou e olhou para o homem ajoelhado entre os Arisai. — Tampouco é
recompensa suficiente para garantir um bom serviço, ao que parece.
Ela acenou com a mão e os Arisai ergueram o homem ajoelhado e o
arrastaram para a frente. Parecia não haver ferimentos nele, mas estava caído
entre os Arisai como se estivesse machucado, a cabeça pendendo e os membros
flácidos. O homem não emitiu nenhum som, mas o fedor que vinha das manchas
escuras que cobriam as suas coxas revelavam um intestino solto pelo medo.
— Permita-me lhe apresentar o General Lotarev — disse a Imperatriz
quando os Arisai permitiram que o homem fedorento caísse de joelhos diante
dela. — Comandante do Terceiro Exército Volariano, a quem elevei ao vermelho
e prometi a bênção do Aliado caso ele cumprisse a sua promessa de trazer a
vadia loura até mim, de preferência acorrentada, apesar de um cadáver também
servir. Suas heroicas tropas acabaram fugindo do campo com tamanha
disposição que não duvido que tenham chegado à costa leste a essa altura.
Ela se agachou, agarrou os cabelos do desafortunado general e puxou a
cabeça do homem para trás, revelando um rosto que se contorcia de genuíno
terror, lívido, e olhos que evidenciavam uma perda quase que total da razão.
— Por que você voltou, Lotarev? — perguntou a Imperatriz num tom que não
era indelicado, mas como ela estava falando na língua do Reino, Reva duvidava
que o homem pudesse compreender uma palavra sequer. — O que imaginou que
seria a recompensa? Foi o dever? Todos aqueles anos de serviço não
desaparecem com facilidade, ao que parece. A capital estava em perigo e você
correu para me avisar, não importando o risco para o próprio pescoço.
Esperando por uma estátua sua, hein?
Ela se inclinou para mais perto e falou com suavidade, segurando o queixo
com barba por fazer.
— Não entende? A vadia loura pode matar todas as pessoas desta cidade e
transformá-la em pó, e desconfio que rirei assistindo ao espetáculo. Não, eu só
queria ela. — A Imperatriz apertou os cabelos do general com a outra mão,
puxando de novo a sua cabeça e provocando uma lamúria temerosa. — Veja, ela
tirou algo de mim. Tenho uma dívida considerável com ela.
A Imperatriz o soltou, levantou-se e virou-se para a estátua sem cabeça com
um ar contemplativo.
— Contudo, não posso deixar de recompensar o seu serviço zeloso. Estou
disposta a poupá-lo das três mortes e lhe dar a estátua pela qual você tanto anseia.
Criada pela mão habilidosa de minha própria irmãzinha.
Um dos Arisai parou ao lado de Reva e lhe ofereceu um machado de lâmina
longa, os outros arrastaram o general até que se ajoelhasse diante dela de cabeça
baixa.
Reva ignorou o machado, fixando o olhar na Imperatriz.
— Não.
— É mesmo? — Ela ergueu uma sobrancelha. — Que coisa terrivelmente
incomum. Os relatos de Alltor foram bastante lúridos nas descrições de sua
disposição de fazer exatamente isso.
A cabeça do heroico Espada Livre deixando um rastro de sangue quando ela a
arremessou por sobre a muralha… Os prisioneiros sendo levados até o bloco…
Não é melhor do que nós…
Não pense em nada! Não sinta nada!
— Cometa os seus próprios assassinatos.
— Mas preciso que nós nos entendamos melhor. — A Imperatriz estendeu a
mão e agarrou os seus pulsos agrilhoados, olhando nos olhos de Reva com uma
sinceridade determinada. — O sangue nos aproximará. Uma lição que aprendi
com o meu amado. Com o tempo, seremos uma família…
Reva puxou as mãos para longe, a raiva crescente trazendo à tona imagens
insensatas em sua mente: a câmara secreta de Varulek, o arco de Arren, como
seria a sensação de tê-lo nas mãos quando chegasse a hora…
Não pense em nada!
— O que é isso, irmãzinha? — A Imperatriz franziu o cenho, inclinando a
cabeça num gesto já familiar. — Está planejando algo? Está tramando? Com
quem será?
Reva fechou os olhos e respirou fundo, acalmando-se com uma imagem de
Veliss daquele dia nos jardins enquanto viam Ellese se atrapalhar com as séries
de movimentos. Eu nunca lhe pedi uma promessa… Prometa que não morrerá e
que voltará para mim.
— Eu já tenho uma família — disse ela. — E você jamais poderia fazer parte
dela.
— E Lieza? — perguntou a Imperatriz. — Ela merece um lugar na sua
família? O que você dirá à mulher de que sente falta quando voltar? Por que não
a poupo da complicação? Posso mandar que a tragam e a estátua de meu pai
pode ter a cabeça de uma garota em vez da de um covarde.
Reva agarrou o machado de repente, arrancou-o da mão do Arisai e o
arremessou na direção da Imperatriz, mas ela se esquivara para longe, uma
gargalhada de satisfação deixando os seus lábios.
— Chega de brincadeiras — disse ela, sua alegria desaparecendo ao apontar
para o general ajoelhado. — É hora de colocar a sua arte em prática.

— Ela fez você lutar de novo? — Lieza olhou para o sangue que coloria a blusa
de Reva, avançando com os olhos arregalados de preocupação. — Está
machucada?
— Não. — Reva se afastou e arrancou a blusa, subitamente não se
importando com o que a garota visse. Lotarev olhou boquiaberto para ela
compreendendo vagamente, a baba acumulando-se no lábio inferior…
Ela se despiu, encheu a banheira e limpou-se com várias esfregadas. Tantas
mortes causadas por elas, pensou, olhando para as suas mãos enquanto o sangue
se dissipava na água. Por que a sinto tanto agora?
Passado algum tempo, Lieza aproximou-se para lavar a sua blusa. Desta vez
a garota não tentou entrar na água, evitando o olhar de Reva e agachando-se na
beira para passar o sabão pelo tecido.
— Você já matou alguém? — perguntou Reva. — Sei que você tentou matar
a Imperatriz, mas já teve sucesso alguma vez?
A garota lhe lançou um olhar cauteloso e sacudiu a cabeça.
— Bem, para escapar deste lugar você pode ter que matar. Não vou poder
protegê-la quando começar.
Lieza falou em voz baixa, as mãos ainda ocupadas.
— Não vou embora sem você.
— Isso não é um jogo! — Reva gesticulou na direção da garota, espalhando a
água avermelhada da banheira. — Não é uma história! Você vai morrer aqui e
eu não posso salvá-la!
Lieza estava deitada de costas, presa debaixo dela, a preocupação em seus
olhos agora transformada em medo. Reva não conseguia se lembrar de ter
saltado da banheira.
Lotarev não falou quando ela ergueu o machado. Ouviu-se um som de
esmigalhamento quando a lâmina cravou-se na coluna no homem, tal como
ocorrera com os prisioneiros e o Espada Livre, todos pecadores sem Pai…
Reva estremeceu e afastou-se depressa de Lieza até bater com as costas na
parede, encolhendo as pernas e enfiando a cabeça entre os joelhos. Ela sentiu
Lieza sentar-se ao seu lado e passar os dedos macios pelo seu cabelo úmido até
que Reva ergueu a cabeça. O beijo foi cauteloso, tão diferente de Veliss na sua
inexperiência…
Reva recuou.
— Não posso…
— Não por você — murmurou Lieza, beijando-a de novo, agora com mais
insistência, e Reva notou que o seu coração estava palpitando, ciente de que
deveria afastar a garota, mas ainda assim os seus braços se abriram para
envolvê-la e a puxaram para perto. Lieza recuou alguns centímetros, seus hálitos
se mesclando ao olhar nos olhos de Reva. — Por mim.

Varulek apareceu após a refeição matutina com uma dúzia de escravas, algumas
sem nada, outras trazendo pentes e várias misturas usadas para pentear cabelos
ou pintar rostos. Elas a vestiram com uma armadura, por assim dizer,
confeccionada especialmente para o seu tamanho a julgar pelo modo como lhe
servia precisamente. O peitoral era apertado em volta do torso, feito de couro
rígido, mas fino demais para repelir mais do que um golpe de raspão. Da mesma
forma, o saiote de tiras de couro, cada uma com uma tacha de latão na ponta,
era delicado demais para fornecer mais do que uma proteção básica. Reva logo
percebeu que aquela não era uma armadura de fato; ela devia representar um
papel e aquela era a sua fantasia. No entanto, se consolou um pouco com o fato
de que era leve o suficiente para permitir que se movesse depressa.
Colocaram em Lieza um vestido longo de seda esvoaçante, tingido de um tom
claro de violeta que combinava com seus olhos. Seus cabelos, que estavam mais
longos do que em geral qualquer escravo tinha permissão de usar, foram
moldados numa lustrosa cascata de ébano, adornada com um pequeno diadema
de prata.
— Avielle era uma rainha — explicou Varulek. — Que recebeu o trono de sua
irmã mais velha, que trocou o poder pelo serviço, preferindo lutar a governar.
Quando os Dermos instigaram o desejo de Jarvek para que levasse Avielle para
os lugares sombrios, eles prepararam uma armadilha à qual Livella jamais
poderia resistir.
Reva encontrou o olhar de Lieza e a garota sorriu, aparentemente imune ao
medo agora. Reva despertara mergulhada em lembranças que se alternavam
entre Veliss e a noite anterior, culpa e prazer precipitando uma melodia de
confusão. Ela se desvencilhou do abraço de Lieza e andou pela câmara,
procurando em vão nos Dez Livros algumas palavras de consolo a uma alma
traidora. Lieza estava visivelmente menos confusa, despertando e indo até ela
com mais beijos.
— Não. — Reva virou-se para o outro lado, suavizando a rejeição ao apertar
a mão da garota. — Não. Iremos lutar hoje. Um último treinamento antes que
venham nos buscar.
Varulek dispensou as escravas quando Reva se tornou irascível com as
atenções constantes delas, rosnando para uma matrona que tentava pincelar
algum pó vermelho em suas bochechas.
— Duvido que a Imperatriz note alguma imperfeição — disse ele depois que
as escravas partiram. Olhou para os dois Kuritai na porta, presumivelmente para
confirmar que nenhum Arisai havia se juntado a eles naquele meio-tempo. —
Segundo rumores, a sua Rainha está a oitenta quilômetros da cidade. O pânico
está se espalhando, mas a Imperatriz possui espiões por toda parte. Cem homens
livres receberam as três mortes ontem e ela decretou que todos os cidadãos
maiores de idade compareçam à arena.
— O arco — disse Reva.
— Há um emblema gravado no meio do lintel abaixo do balcão da
Imperatriz, um águia com as asas estendidas. O arco está sob a areia a cinquenta
metros diretamente em frente ao emblema. Você terá seis flechas.
Com sorte, cinco a mais do que precisarei.
— Tenho outra condição — disse ela, voltando-se mais uma vez para Lieza.
— Caso eu fracasse, você garantirá que ela escape deste lugar e a levará até a
Rainha. Ela será a minha garantia de que as suas palavras são verdadeiras.
— A tarefa diante de nós é perigosa. Não posso prometer nada… — Ele se
calou diante do olhar furioso de Reva, e por fim assentiu, relutante. — Farei o que
puder.

As trombetas ressoaram quando foram conduzidas à arena; as arquibancadas


estavam tão cheias de gente que parecia que transbordariam pelas paredes e
escorreriam para a areia. No entanto, fora as trombetas, praticamente não havia
qualquer outro som, com exceção do sussurro contínuo de milhares respirando
fundo. Reva avistou numerosos pontos vermelhos e pretos em meio à multidão:
Kuritai e Arisai estrategicamente posicionados para garantir que as pessoas
continuassem presentes. Ela voltou os olhos para o nível mais baixo, examinando
os rostos à vista. Não havia nenhum sinal da sede de sangue que vira antes; era
apenas uma exposição de pessoas assustadas, tensas por uma terrível expectativa.
Era essa a intenção dela?, perguntou a si mesma. Fazê-los odiar os
espetáculos que amavam?
Dois Kuritai conduziram Lieza até uma estrutura nova que se erguia no centro
da arena: três plataformas circulares de tamanho decrescente colocadas uma em
cima da outra para formar um estrado, feito de madeira, mas pintado para
lembrar mármore. Os Kuritai prenderam os grilhões de Lieza a um poste de
madeira resistente situado na plataforma mais alta, enquanto os que vigiavam
Reva colocaram uma lança longa de lâmina larga e uma espada curta diante
dela na areia antes de lhe removerem os grilhões e partirem depressa para a
saída mais próxima.
As trombetas cessaram, deixando um silêncio tenso quando a forma esguia
da Imperatriz surgiu dos recônditos sombreados de seu balcão.
— Honoráveis Cidadãos! — gritou ela, sem a zombaria que antes estivera
evidente em sua voz. Agora era cheia de um tom celebrador e jubilante, uma
governante benevolente cumprimentando súditos leais com uma grande
recompensa. — Este espetáculo não é apresentado ao povo volariano há uma
geração. O Conselho sempre foi mesquinho em suas responsabilidades,
esforçando-se para encher os próprios bolsos e lhes concedendo com relutância
os menores entretenimentos. Agora, contemplem a generosidade da Imperatriz,
deleitem-se enquanto lhes dou a lenda de Jarvek e Livella!
Ela abriu os braços e a multidão vibrou, embora aos ouvidos de Reva soasse
como o latido rouco de algum monstro atormentado. As pessoas no nível mais
baixo gritaram até ficarem com o rosto vermelho em seu desejo de demonstrar
lealdade enquanto os Arisai observavam, os dentes arreganhados em risadas
escarnecedoras.
A Imperatriz baixou os braços, provocando um silêncio imediato.
— Há eras se sabe que os Dermos conspiraram para raptar a boa Rainha
Avielle e levá-la para o fosso mais escuro das profundezas da terra — disse ela
num tom sério de recitação. A Imperatriz assumiu uma pose teatral ao apontar
para Lieza, acorrentada no alto do estrado. — E lá eles a acorrentaram sob a
ameaça de terríveis tormentos, cientes de que a sua querida irmã enfrentaria
qualquer perigo para trazê-la mais uma vez para a luz. Saúdem todos Livella, a
mais corajosa dos Guardiões!
Seu dedo apontou para Reva, provocando outro coro de vivas roucos na
multidão.
— Porém, os Dermos sempre foram muito astutos em sua maldade —
prosseguiu a Imperatriz quando o tumulto cessou. — Pois após terem tentado o
mais poderoso dos Guardiões com desejo e traição, eles encheram o seu coração
com malícia e rancor, transformando-o no seu mais vil e selvagem servo.
Contemplem Jarvek!
A porta na extremidade oposta da arena se abriu com um estrondo audível, a
multidão gritou aproveitando a deixa, e então começou a se calar aos poucos
quando nada aconteceu. Por um momento, Reva desconfiou de alguma
artimanha da parte da Imperatriz, um grande logro para avivar os seus medos
antes de revelar outra crueldade. Contudo, uma olhada para o balcão mostrou
que ela estava encarando a arcada vazia com uma irritação palpável.
Então se ouviu o rugido.
Pareceu preencher a arena de cima a baixo, atravessando Reva feito uma
lâmina, não por sua fúria, mas por sua dor. A angústia que ela ouviu naquele grito
era devastadora, indicando um tormento inimaginável.
Varulek lhe contara que tipo de fera ela enfrentaria naquele dia, mas meras
palavras não podiam fazer jus à sua aparência. Quando ela e Vaelin viajaram
com os artistas do menestrel, Reva vira alguns macacos, criaturinhas endiabradas
propensas a sibilar e arranhar quando pessoas insensatas enfiavam os dedos nas
jaulas. No espetáculo noturno, o dono dos animais tocava uma flauta enquanto os
macacos dançavam, ou melhor, saltitavam de um lado para outro numa vaga
relação com a melodia. A ideia de que aquilo que via agora podia de alguma
forma estar relacionado com aqueles diabretes barulhentos parecia absurda,
fazendo com que se perguntasse se as lendas extravagantes de Varulek podiam
ter algum embasamento, afinal de contas.
A criatura entrou correndo na arena, ou, melhor dizendo, galopando,
movendo-se de quatro e levantando uma nuvem de poeira considerável. Seu
tamanho real foi revelado quando a nuvem baixou, e um grito sufocado pôde ser
ouvido das arquibancadas. Ainda que estivesse agachado, aquele macaco, ou
grande símio do sul, como Varulek o chamava, chegava a quase a dois metros e
meio de altura. Seu pelo pendia em cachos desgrenhados dos braços e dos
ombros, de cor castanho-avermelhada, exceto nas costas cobertas de músculos,
onde o pelo era mais curto e prateado.
O animal rugiu de novo, um uivo retumbante de dor e fúria, arreganhando
dentes que pareciam pregos cegos de mármore. Quando o macaco se levantou,
Reva viu as cicatrizes que lhe cobriam o torso, fundas e pouco saradas. O animal
ergueu as mãos e ela avistou um lampejo de aço, notando as tiras de couro
presas aos pulsos.
“São animais pacatos, na verdade”, dissera Varulek. “Ficam em suas florestas
e seus vales, comendo apenas folhas, evitando o homem, e não sem razão. É
difícil encontrar um com suficiente agressividade inata para desempenhar o
papel desejado, mas quando encontram… Bem, após um período de treinamento
adequadamente árduo, eles sempre parecem saber o que é esperado deles e das
garras de aço que lhes damos.”
Reva percebeu a verdade nas palavras do volariano quando o olhar do
macaco percorreu a arena, fixando-se primeiro em Lieza e então nela. Havia
uma inteligência clara em seus olhos, uma compreensão mais do que
reconhecível de suas circunstâncias. O macaco rosnou, raspou a areia com as
garras aumentadas pelo aço, e atacou.
Reva correu para a frente, pegando a lança e a espada curta. O macaco
rumou direto para Lieza, atravessando a distância com alguns passos ligeiros.
Reva viu Lieza ficar imóvel, como se estivesse petrificada, todo o treinamento
provavelmente afastado de sua mente pelo terror. Mas então, quando a fera se
aproximou, a garota mergulhou para a direita, rolando para longe quando as
garras de aço golpearam o poste ao qual estava presa, estilhaçando a sua
corrente. Ela se levantou e recolheu a corrente como Reva lhe dissera.
O macaco derrapou até parar, rosnando e preparando-se para outra investida.
Lieza soltou um grito estridente ao golpear o macaco com as correntes,
levantando poeira, mas também fazendo com que o animal parasse apenas por
um momento antes de atacar de novo.
Ainda não!, implorou Reva, correndo na direção deles. Não se esquive cedo
demais.
No entanto, Lieza calculou perfeitamente, disparando para a direita e
abaixando-se sob outro golpe das garras, e então se levantando e correndo de
volta para o estrado. A garota subiu depressa os degraus e agachou-se atrás do
poste, e o macaco foi atrás dela. A fera atacou o poste e suas garras destroçaram
a madeira acima da cabeça de Lieza, lançando uma chuva de lascas sobre a
figura abaixada, e então recuou, erguendo as duas garras para um golpe mortal.
A espada curta de Reva rodopiou pelo ar e cravou-se na perna do macaco
logo abaixo do joelho. Ele rugiu, cambaleou para longe do estrado, rolou de
costas e debateu-se na areia em meio a uma névoa amarela.
— Está ferida? — Reva agachou-se ao lado de Lieza.
A garota olhou boquiaberta para ela por um segundo e então a surpreendeu
com um sorriso.
— Talvez eu também seja Livella hoje.
Reva sentiu uma pontada de orgulho, que desapareceu num instante quando
viu o macaco surgir da poeira e arrancar a espada da perna com um uivo de
fúria.
— Fique atrás de mim.
A fera circundou o estrado, deixando um rastro de sangue e arrastando a
perna mutilada. O ferimento o deixara mais lento, mas também ajudara em
muito a concentrar a sua atenção. Olhava fixamente para Reva agora, os olhos
cintilando com uma compreensão desconcertante. Ele sabe, pensou Reva. Sabe
que um de nós tem de morrer.
O macaco investiu de novo de repente, subindo o estrado num frenesi de
garras golpeantes. Os degraus de mármore falso foram feitos em pedaços, Reva
e Lieza mergulharam para longe quando a fera destruiu qualquer vestígio de
proteção e então se voltou mais uma vez para elas, jogando-se para a frente
repetidas vezes e tentando acertá-las com as garras. Reva dançava para o lado
cada vez que uma lâmina chegava perto; Lieza seguia o seu exemplo, mas estava
se cansando visivelmente.
Ele é astuto demais, concluiu Reva, notando a concentração tensa nos olhos do
macaco. Está tentando nos cansar.
— Precisamos de uma distração — disse a Lieza, abaixando-se sob outra
passada das garras. Ela conseguiu repelir mais uma com uma estocada da lança,
mas o macaco recuou apenas alguns metros antes de voltar a se aproximar. —
Mergulhe para a esquerda quando ele atacar de novo. Use as correntes, mas só
uma vez. Depois corra.
O macaco soltou um grunhido determinado e fez outra investida mancando,
os braços estendidos para os lados como lâminas de tesoura preparadas. Reva
mergulhou para a direita quando os braços se fecharam, as garras passando perto
o bastante para cortar a ponta de sua trança. Ela olhou de relance para Lieza e
suspirou de alívio ao vê-la levantando-se no momento em que o macaco girava
para outro ataque. Lieza segurou a corrente com as duas mãos e a girou, gritando
com o esforço. O chicote de aço serpenteou para cima e conseguiu atingir o rosto
do macaco, e Reva teve um vislumbre de um olho arruinado quando o animal
jogou a cabeça para o lado.
Ele se voltou para Lieza dando o seu maior rugido até então quando a garota
lhe deu as costas e correu, conseguindo dar apenas alguns passos antes de
tropeçar e cair na areia. O macaco urrou em triunfo e agachou-se para um
ataque, suas costas agora totalmente voltadas para Reva. Ela se levantou e saiu
correndo, fincando a extremidade cega da lança na areia e saltando para o ar,
indo cair montada nos ombros do macaco. Agarrou-se no pelo emaranhado do
pescoço com a mão livre enquanto a fera se debatia, tentando arrancá-la dali. As
pernas de Reva balançavam enquanto o macaco girava e ofegava, tentando
atingi-la como se fosse uma mosca incômoda, forçando-a a se abaixar, as farpas
de aço errando-a por centímetros.
O macaco cambaleou de repente, parou de atacá-la e colocou um joelho no
chão. Reva avisou Lieza, cujas costas estavam arqueadas e os braços retesados
enquanto puxava as correntes. O olhar de Reva acompanhou a corrente até onde
estava enrolada na perna ferida do macaco, o sangue pulsando para fora do
ferimento enquanto o animal tentava em vão soltar os elos de aço que entravam
em sua carne.
Ela soltou o pelo, ficou de pé e ergueu a lança com as duas mãos, girou-a e
cravou a lâmina larga no ombro do macaco. Reva colocou todo o seu peso na
haste, rangendo os dentes enquanto forçava a arma mais para dentro, sentindo-a
triturar ossos e atravessar tendões até sair pelo peito do animal.
A fera convulsionou quando ela mergulhou para longe, um urro sufocado de
dor e confusão brotando da boca dele. O macaco ficou totalmente ereto por um
momento e seus olhos foram da lâmina da lança para Reva, que agora estava
agachada na areia, pronta para se esquivar de outra investida. Porém, ao ver os
olhos da criatura, turvos pela dor e pela consciência da derrota, soube que ela
estava morta antes de tombar de joelhos com um gemido gorgolejante.
Reva olhou em volta e viu que estava a menos de cem metros do balcão da
Imperatriz. A mulher estava de pé perto da beirada, sorrindo com um orgulho
fraternal enquanto a exultação espontânea da multidão tomava conta da arena.
Uma olhada rápida para os níveis superiores confirmaram a ausência de
arqueiros; Varulek mantivera a sua palavra.
Ela se ergueu e caminhou na direção do balcão, seus olhos discernindo o
emblema da águia no centro. Flores caíam em cascata das arquibancadas
enquanto caminhava, cobrindo a areia ao seu redor com um tapete floral
multicolorido. Reva baixou os olhos, ocultando um grunhido de frustração com o
cobertor cada vez maior de flores. Como encontrá-lo em meio a tudo isso…
Então a avistou, uma linha irregular na areia, obscurecida apenas em parte
pelo amontoado de rosas. Ergueu os olhos para a Imperatriz e a viu inclinar a
cabeça em reconhecimento. Não pense em nada. Não sinta nada. Reva colocou
um joelho no chão, mantendo os olhos na Imperatriz, enfiando os dedos na areia
e aproximando-se da linha até sentir a aspereza de um tecido. Fechou os dedos
sobre o material e o arrancou, a areia subindo numa nuvem e revelando o arco,
com a corda e pronto… e uma única flecha ao lado dele.
A multidão calou-se de imediato quando algo caiu na areia com um baque
suave. Reva fechou os olhos, soltando ar num chiado. Apenas uma flecha.
Abriu os olhos e se viu encarando o rosto flácido e sem vida de Varulek. Pelo
sangue fresco que ainda escorria do pescoço decepado, era evidente que ele
havia morrido há apenas alguns momentos.
Reva ergueu os olhos, esperando encontrar a Imperatriz agora protegida por
uma parede de Arisai, mas em vez disso a mulher estava tal como antes, perto
demais da beirada, de braços abertos e sem nenhuma proteção.
— Você demonstrou uma grande habilidade em se esconder da minha
canção, irmãzinha — disse ela. — O Honorável Mestre da Arena, não.
As portas nas paredes da arena se abriram ao mesmo tempo e Arisai saíram
dos túneis correndo, talvez cinquenta, todos formando um círculo em volta de
Reva, Lieza e do macaco moribundo. Lieza tentou correr para o lado de Reva,
mas foi derrubada sem demora por um trio de Arisai, que ria enquanto ela cuspia
e se debatia em seus braços.
— Fico feliz por ter dado um presente tão valioso à minha irmã — disse a
Imperatriz quando Lieza foi forçada a ficar de joelhos. Reva voltou a atenção
para o balcão onde a Imperatriz se encontrava, terrivelmente perto, um alvo tão
fácil.
— Porém, se vamos dividir o poder — continuou a Imperatriz —, sou forçada
a concluir que você precisa de uma lição sobre o preço dele. Poder jamais foi
conquistado sem sangue, ambições jamais foram realizadas sem sacrifícios.
Assim, antes que a querida Lieza receba as três mortes, os Arisai têm ordens de
estuprá-la na sua frente durante um dia e uma noite. Mas você pode poupá-la
desse destino, é claro. — Ela apontou para o arco e a flecha a poucos centímetros
da mão de Reva. — Parece que você tem uma escolha a fazer, irmãzinha.
CAPÍTULO NOVE
Frentis

— Volar possui o porto mais fortificado do mundo — disse o Lorde Almirante,


abrangendo o mapa com a mão enluvada. Era um mapa antigo, com as bordas
puídas e o pergaminho encerado amarelado pelo tempo, mas também
extremamente detalhado. — Há torres dos dois lados da entrada do porto e
muralhas altas nos molhes que o cercam. As docas em si possuem seis baluartes
diferentes, cada um com um batalhão de Varitai.
O mapa tremulou um pouco ao vento, obrigando-o a colocar uma adaga em
cima para segurá-lo. O dia amanhecera com um céu ominoso e um frio fora de
época no ar. Frentis podia ver o receio no rosto de muitos meldeneanos que
cuidavam do cordame do Falcão Vermelho, ciente de que temiam a chegada de
outra tempestade causada pelas Trevas, embora o próprio Ell-Nurin
escarnecesse de tal ideia.
— Naveguei pelo Estreito umas cinquenta vezes. O lugar sempre foi propenso
a ventanias de verão. Não há nada das Trevas nisso.
— Como propõe que ataquemos tal lugar? — perguntou Karavek ao Lorde
Almirante. — A não ser que você pretenda envolver a minha gente em alguma
empreitada suicida.
— Certamente não pretendo. — Ell-Nurin levou um dedo até uma pequena
baía a oito quilômetros a leste da cidade. — Este é o Desfiladeiro de Brokev, um
lugar frequentado por contrabandistas desde que existiu um império.
Um dos outros capitães, um asraelino, pelo traje, deu um passo adiante e
olhou para o mapa com um olhar desconfiado.
— O canal não é largo o bastante para que três navios consigam avançar
tanto lado a lado. — Ell-Nurin não disse nada e o encarou em silêncio até que o
capitão rangeu os dentes e acrescentou “Meu senhor”.
— Iremos nos revezar para desembarcar — disse Ell-Nurin. — Entraremos
em formação na praia e marcharemos para Volar do leste, a direção menos
esperada.
— A Imperatriz é louca, mas não é tola — disse Frentis. — Ela pode muito
bem ter antecipado essa manobra. Podemos nos deparar com uma costa
fortificada.
— E é por isso que um terço de nossos navios, os que não estiverem
carregados de tropas, permanecerá do lado de fora do porto ao amanhecer,
dando toda a impressão de estarmos prestes a atacar. Com sorte, a Imperatriz
concentrará as suas forças lá.
— Eles podem fazer sortidas — observou o capitão asraelino. — Tentar
dividir a nossa frota em duas antes que desembarquemos.
— Graças aos engenhos maravilhosos da Senhora Alornis e à nossa
considerável vantagem numérica, tenho certeza de que podemos conter
quaisquer sortidas que eles possam tentar — retorquiu Ell-Nurin. Ele se virou
para Frentis. — Irmão, fique à vontade para decidir a ordem de desembarque.
Frentis assentiu.
— Minha própria gente primeiro. Depois os Politai. A gente de Mestre
Karavek por último.
— Quer a glória toda para você, hein, irmão? — perguntou Karavek, mas não
sem um tom de alívio na voz.
Ell-Nurin empertigou-se, ergueu o queixo e olhou para leste.
— Meus senhores, Capitães de Frota e honoráveis aliados, quando o novo dia
raiar teremos dado um golpe mortal neste império tão abominável. Pois viemos
com justiça em nossos corações e liberdade em nossas almas. Que todos os que
navegam conosco saibam que o destino aguarda e não nos será negado.
Ell-Nurin manteve a pose, aparentemente à espera de alguma resposta, talvez
alguma aclamação estrondosa. Após um momento, como o silêncio se estendia e
ficava mais pesado, ele tossiu.
— Meus senhores, ao trabalho.

— Que cretino — murmurou Draker enquanto ele e Frentis desciam do convés.


— Temos mesmo que receber ordens dele, irmão?
— Ele pode ser cretino, mas não é tolo. O plano é bom. Certifique-se de que
os outros saibam disso.
Draker assentiu e começou a se afastar, mas então parou.
— Eu sempre quis saber, irmão. Qual é a minha patente?
— Patente?
— É. Você é um irmão, Illian é uma irmã, o cretino é um Lorde Almirante.
O que eu sou?
— Você pode ser um sargento, se quiser.
Draker franziu as sobrancelhas grossas em desapontamento.
— Tenho mais gente sob o meu comando do que qualquer sargento que já vi.
Mais de duzentos dos desgraçados, na última contagem.
— Capitão, então. Capitão Draker da Companhia Livre da Rainha. O que
acha?
— Acho que valeria uma pensão.
Frentis deu uma risada.
— Imagino que valerá.
Draker sorriu, mas havia um tom sombrio em sua voz quando tornou a falar.
— Desculpe pelas surras, irmão. Caso eu nunca tenha dito isso antes. Eu
estava bêbado o tempo todo, sabia? Não acho que fiquei um dia sóbrio até
Varinshold cair.
— Foi há muito tempo, capitão. Veja como está a sua companhia, por favor.
Ele procurou a Irmã Merial e a encontrou acompanhada por um cachimbo
perto da popa, a fumaça adocicada escapando por uma fenda estreita no casco.
— Sempre é possível contar com os meldeneanos para um pouco de erva de
cinco folhas alpirana de primeira — disse ela, oferecendo-lhe o cachimbo. —
Faz mais de um ano desde que traguei algo tão bom assim.
Frentis recusou erguendo a mão.
— Alguma notícia de seu marido?
— De fato. — Merial deu outra baforada no cachimbo, piscou com olhos
marejados e o seu olhar perdeu o foco. — Acho que fui um pouco generosa
demais comigo mesma, irmão.
— Alguma notícia? — repetiu Frentis enquanto ela batia no peito e tossia um
pouco.
— A Rainha conquistou outra vitória — respondeu ela com a voz um pouco
rouca. — Está se tornando um hábito dela. Estão chamando de Batalha das
Flores, não sei por quê. De qualquer forma, a estrada para Volar foi aberta esta
manhã. Eles devem chegar lá dentro de dois dias.
Ele assentiu, seus pensamentos anuviados com visões da Senhora Reva na
arena, e muito mais.
Traga o curandeiro…
Frentis voltara a tomar o sonífero do Irmão Kehlan em Nova Kethia, ansioso
para evitar mais sonhos compartilhados, receoso do que poderiam revelar a ela,
embora isso também o privasse de quaisquer pistas a respeito de suas intenções.
Não se importa se eu levar um exército. Parece indiferente à aproximação da
Rainha. O que ela está tramando agora?
— Imagino que vamos desembarcar primeiro — disse a Irmã Merial.
— Minha companhia vai. Você permanecerá no navio.
— Uma ova. Viajei metade do mundo para isso, e o Aspecto Caenis merece
um ajuste de contas.
— Você possui habilidade com armas?
A irmã deu uma risada curta e voltou ao cachimbo, girando os polegares com
um sorriso no rosto.
— Você verá com o que tenho habilidade, irmão. Só não fique muito perto na
hora.

O Desfiladeiro de Brokev era formado por uma pequena baía flanqueada por
falésias escarpadas. O terreno subia depois da praia numa elevação íngreme até
os campos de flores rubras mais além. O sol estava apenas começando a reluzir
no horizonte e a promessa de um tempo ruim se manifestara como uma leve
garoa matutina.
— Basta só um punhado de inimigos naquelas alturas, Irmão Vermelho —
disse Lekran com uma careta —, e esta baía se tornará um matadouro.
Frentis nada disse, mantendo o olhar no topo das falésias à medida que o
barco se aproximava da praia. A maré estava baixa e as ondas fracas, os
remadores trabalhavam num ritmo intenso, sem se importar com o barulho; a
velocidade era mais importante do que a furtividade agora. Ele não conseguia
ver qualquer movimento nas falésias, nem no terreno depois da praia.
— Lembre-se — disse Frentis a Lekran —, não se demore por um segundo
sequer, independentemente das baixas.
Ele colocara os Garisai nos barcos que iam à frente junto com todos os seus
arqueiros, seguidos pela gente de Draker e Illian com ordens para capturar as
falésias. Mestre Rensial decidira acompanhá-lo, provavelmente com a esperança
de encontrar um cavalo o mais rápido possível.
Frentis saltou para fora do barco ao ouvir o barulho do casco raspando na
areia, afundando na água até os joelhos e avançando com esforço em direção à
praia. De acordo com as suas ordens, os arqueiros se espalharam com flechas já
preparadas e os arcos erguidos, esquadrinhando sem cessar as falésias por
qualquer sinal de um inimigo. Os Garisai ergueram uma espuma branca nas
águas ao correrem com Frentis, todos chegando até a areia sem serem
molestados pelo zunido revelador de uma chuva de flechas ou por gritos de
alarme.
Frentis não permitiu que parassem na praia e correu até a encosta relvada,
parando somente quando chegou ao topo. Os Garisai assumiram de pronto uma
formação defensiva, embora não houvesse qualquer sinal de oposição. Os
campos, que tinham um tom escarlate escuro na penumbra matutina, estendiam-
se silenciosos e desertos. A oeste Frentis podia ver o sol nascente caindo sobre
torres que se erguiam das flores rubras como alfinetes de prata num vasto
cobertor vermelho.
— Volar — disse Lekran num tom estranhamente reverente. — Todos aqueles
anos como escravo deste império e esta é a primeira vez que coloco os olhos
nela.
E talvez a última, ponderou Frentis. É possível que não reste nada quando a
Rainha tiver terminado. O pensamento despertou lembranças da garota de cinza e
de sua mãe, e ele voltou o olhar para a praia à procura de alguma distração. A
gente de Draker e de Illian já se encontrava em terra e se dividia para rumar até
as falésias. Os Politai aproximavam-se depressa da praia, a figura de cabelos
encaracolados de Artesão visível no barco que vinha à frente.
Traga o curandeiro…
— Isso não está cheirando bem — disse Ivelda, esquadrinhando os campos de
papoula com olhos apertados. — Nem um único batedor para nos receber. Onde
estão?
Frentis observou conforme os extensos bairros residenciais de Volar eram
revelados ao sol que despontava. Nenhuma muralha para atravessarmos, mas é
bastante fácil transformar uma casa numa fortaleza.
— Desconfio que teremos resposta dentro de uma hora.
Encontraram o primeiro corpo a três quilômetros da baía, um garoto de cerca
de quinze anos, caído entre as flores, vestido de cinza e morto havia apenas umas
duas horas, pelos cálculos de Frentis. Fora morto com uma única estocada nas
costas, provavelmente a cavalo, a julgar pelo ângulo.
— Mais três aqui — disse Ivelda perto dali. — Homem, mulher e criança.
Alguém matou uma família.
Eles seguiram em direção aos bairros residenciais numa formação cerrada,
os Garisai numa de escaramuça na frente, a companhia de Draker à direita e a
de Illian à esquerda. A gente de Karavek seguia numa massa compacta com os
Politai agindo como a retaguarda. Frentis manteve um ritmo pesado; deslocar-se
por campo aberto sem uma cavalaria para proteger os flancos instilava uma
forte sensação de vulnerabilidade. Mais corpos foram descobertos na marcha,
pessoas de cinza e alguns escravos com ocasionais homens de preto. A maioria
tinha ferimentos nas costas, indicando que haviam sido mortos enquanto corriam.
Frentis havia contado mais de cem quando chegaram às primeiras casas, quando
então parou de contar.
O que ela está fazendo?
Jaziam em cada entrada, cada esquina, as sarjetas vermelhas evidência de
que a matança ocorrera fazia pouco tempo. Não havia sinais de tortura nos
corpos, poucos tinham mais do que dois ferimentos, a maioria apenas um. Fora
um massacre eficiente, realizado sem levar em consideração idade, sexo ou
posição social. Crianças estavam caídas ao lado de idosos, escravos estavam
entrelaçados com capatazes. Pessoas de preto, de cinza e escravizadas, todas
unidas na morte.
— A Rainha? — perguntou Draker a Frentis, pálido debaixo da barba. — Sei
que ela queria justiça, mas isso…
— Não foi a Rainha que fez isso — disse Frentis. — A Imperatriz colocou os
Arisai para trabalhar.
— Aqueles desgraçados vermelhos? Achei que a gente tinha matado todos.
Mais nove mil… Ele suspirou com a própria estupidez. Todos devem ter
recebido a mesma mentira para contar caso fossem capturados.
— Varitai e Espadas Livres são uma coisa, irmão — disse Karavek. — Até
mesmo Kuritai. Mas a minha gente não é páreo para os homens vermelhos…
— Então voltem para a praia e implorem a Lorde Ell-Nurin que os leve para
casa. — Frentis virou-se de novo para Draker. — Escolha o seu corredor mais
rápido e mande-o para o Estreito com um pedido para que o Lorde Almirante
desembarque com todos os marinheiros que puderem empunhar uma lâmina. —
Ele se virou e olhou para as ruas repletas de morte à sua frente. — Ele nos
encontrará na arena.
Foram atraídos pelos gritos, um coro estridente de terror e dor que ecoava
pelas ruas ensanguentadas. Frentis conduziu os Garisai na direção do som,
ordenando a Illian e a Draker que dessem a volta pelos flancos e mandassem os
arqueiros para os telhados. A oitenta metros, as ruas se abriam numa praça, que
exibia a típica organização volariana com os seus gramados elaborados,
salpicados com estátuas e cortados por caminhos de pedra. E, no centro, uma
multidão de volarianos sendo sistematicamente massacrada por cerca de
duzentos Arisai. As pessoas haviam sido cercadas por todos os lados,
amontoando-se num terror instintivo enquanto os homens vermelhos abriam
caminho de forma metódica a golpes de espada, e a multidão diminuía
visivelmente a cada segundo em meio a um círculo crescente de cadáveres.
— Não espero que você lute por eles — disse Frentis a Lekran, erguendo a
espada para os arqueiros nos telhados.
— Vou lutar com você, Irmão Vermelho — disse o homem, girando
brevemente o machado. — Até que isso acabe. Você sabe disso.
Frentis assentiu e abaixou a espada. Os arqueiros dispararam a sua saraivada,
as flechas zunindo e matando pelo menos uma dúzia de Arisai enquanto ele
disparava em frente, seguido pelos Garisai com um grito coletivo.
Até que isto acabe. Por bem ou por mal, isso acabará hoje.

O Arisai ricocheteou na mão estendida da Irmã Merial e colidiu com uma


parede, filetes de fumaça cinzenta subindo da marca de mão enegrecida que
havia sido queimada em seu peitoral, e o homem escorregou para o chão, as
feições petrificadas desprovidas de qualquer sinal de vida. A irmã se virou para
Frentis com um sorriso cansado e dobrou os dedos.
— Sou boa de se ter à mão num aperto, não acha, irmão?
— Abaixe-se! — Frentis agarrou o ombro dela e a empurrou para o lado
quando um Arisai investiu de uma entrada sombreada, de espada curta estendida
e com um sorriso feliz nos lábios. Frentis desviou a lâmina com a sua e rodopiou,
girando a espada e cortando através dos olhos do soldado, dando cabo dele com
uma estocada na garganta quando o homem cambaleou, rindo de alegre
surpresa.
Frentis parou para respirar fundo e passou os olhos pela rua, apinhada de
cadáveres de uma ponta à outra. Avistou Ivelda entre eles, morta sobre o Arisai
que matara, sua adaga ainda cravada no pescoço do homem. Estavam lutando de
rua a rua há quase uma hora, forçando os Arisai a abandonarem a matança da
população para enfrentá-los. O combate foi ficando cada vez mais caótico
quanto mais avançavam cidade adentro, à medida que as ruas ficavam mais
estreitas e os Arisai revelavam um talento diabólico para emboscadas. Atacavam
sozinhos ou em duplas, lançando-se sem aviso de becos, entradas de casas ou
janelas, e caindo sobre os seus combatentes num frenesi de carnificina jubilante
antes de serem abatidos pela desvantagem numérica ou por uma flecha bem
disparada de um dos arqueiros que se encontravam nos telhados. Eles haviam
aprendido bem a lição em Nova Kethia, e o seu avanço foi possível graças aos
arqueiros, que continuavam a saltar de telhado em telhado, matando qualquer
Arisai que viam nas ruas abaixo.
Frentis avistou Lekran com meia dúzia de Garisai na extremidade norte da
rua e correu para o seu lado, seguido por Merial, ainda trôpega. Ele já a vira
matar três Arisai e sabia que a irmã estava se arriscando a desmaiar cada vez
que usava o seu dom.
— Os últimos dos covardes de Nova Kethia se mijaram e fugiram — relatou
Lekran com uma careta enojada. — Vou matar Karavek com as minhas próprias
mãos.
— Você teria uma tarefa difícil — gemeu Merial, encostando-se no batente
de uma porta, o rosto pálido e abatido. — Eu o vi morrer duas ruas para trás.
Frentis ergueu a cabeça ao ouvir chamarem o seu nome, e encontrou a
silhueta esguia de Illian no alto de uma construção de dois andares a vinte metros
dali, agitando o arco acima da cabeça.
— Artesão! — gritou ela para Frentis quando ele se aproximou correndo,
indicando um ponto onde as ruas estreitas davam no que parecia ser uma praça
de mercado. — E Mestre Rensial!
Frentis fez sinal para que os Garisai o seguissem e disparou para a praça,
encontrando-a devastada, carroças e barracas derrubadas em meio às formas
caídas de escravos e pessoas livres assassinados. Cerca de cinquenta Politai
haviam formado uma cunha compacta na extremidade norte da praça,
avançando de forma constante contra uma muralha frenética e duas vezes maior
de Arisai. Os Politai se moviam com toda a precisão resultante de seus anos de
disciplina enraizada, as lanças de lâminas largas saltando como os espinhos de
um porco-espinho enquanto avançavam, os cabelos louros de Artesão visíveis no
centro. Curiosamente, os Arisai pareciam ter perdido boa parte do seu humor
enlouquecedor ao serem confrontados pelos ex-soldados-escravos. Frentis viu
pura fúria em muitos rostos ao se lançarem contra as fileiras organizadas, a
maioria morrendo na irredutível sebe de lanças, embora alguns conseguissem
perfurar a formação a golpes de espada, matando um ou dois Politai.
A princípio Frentis ficou intrigado com a determinação do avanço dos Politai,
pois parecia não restar ninguém para ser salvo naquela praça; então ele o avistou,
um cavaleiro solitário entre os Arisai, manobrando a montaria com uma
graciosidade incomparável, a espada movendo-se em arcos elegantes, fazendo
os homens vermelhos tombarem à sua volta. Porém, ele era apenas um, e os
Arisai, muitos.
Frentis abandonou toda a cautela e jogou-se sobre os homens vermelhos,
segurando a espada com as duas mãos enquanto abria um caminho sangrento,
rodopiando e matando, os Garisai investindo em seu encalço. Ouviu um grito
indistinto dos Politai, não de exultação, pois tais emoções ainda pareciam estar
além de suas capacidades, mas de reconhecimento a uma ordem. A formação
acelerou o passo à medida que as fileiras de Arisai diminuíam em volta deles,
aproximando-se do cavaleiro à força.
Frentis agachou-se sob o golpe lateral de uma espada e atravessou com a sua
lâmina o peitoral do Arisai que a empunhava. No entanto, o homem recusou-se a
morrer, agarrando-se ao braço da espada dele e segurando Frentis no lugar, os
dentes vermelhos arreganhados num sorriso largo e afetuoso.
— Olá, pai — disse ele numa voz áspera, suas mãos como um torno no braço
de Frentis.
Um de seus compatriotas atacou com a espada apontada para o pescoço de
Frentis, e então parou de repente quando algo desceu do alto e atravessou a sua
testa. Por um segundo ele revirou os olhos para cima para ver o virote de besta,
imóvel e babando, antes que o machado de Lekran lhe cortasse fora as pernas. O
selvagem girou e o machado subiu, decepando o braço do Arisai ainda agarrado
a Frentis. Ele arrancou o seu braço da mão que restava do Arisai quando o
machado de Lekran desceu para dar cabo dele, virou-se e viu Illian de pé num
telhado ali perto. Frentis ergueu a mão em sinal de reconhecimento da ajuda
dela, mas a atenção da garota estava em outro lugar, segurando um virote entre
os dentes ao sair a toda a velocidade e saltar para o telhado seguinte, o olhar fixo
no cavaleiro solitário adiante.
Mestre Rensial!
Flechas caíam cada vez mais rápido enquanto ele lutava para abrir caminho,
com Lekran ao seu lado e os Garisai atrás, cada vez mais arqueiros surgindo nos
telhados ao redor. As fileiras de Arisai diminuíram diante de Frentis e ele viu três
caírem mortos um atrás do outro, abatidos por arqueiros, livrou-se do
emaranhado de combates e partiu na direção de Mestre Rensial, soltando um
grito de fúria e frustração ao ver um Arisai avançar e cravar a espada no flanco
do cavalo do mestre. O animal empinou, boquiaberto, como se gritasse, e
tombou, estrebuchando. Os Arisai que se encontravam ao redor se aproximaram
de espadas erguidas e rindo. A formação de Politai soltou outro grito e disparou
numa investida, empurrando de lado os Arisai remanescentes e rumando para o
aglomerado que cercava o cavaleiro caído. Frentis perdeu o cavalo de vista
quando os Politai atingiram o alvo, matando os Arisai e então formando um
círculo defensivo com sua rapidez típica e natural. Ele abriu caminho à força e
parou de repente ao avistar o cavalo que ainda se contorcia, notando pela
primeira vez que era um belo garanhão cinzento. Frentis só podia imaginar onde
o mestre o encontrara. Ele saltou por cima do animal moribundo, soltando um
imenso suspiro de alívio ao ver Mestre Rensial preso debaixo do cavalo, franzindo
o cenho irritado ao tentar arrancar a espada do corpo de um Arisai que jazia
morto ao seu lado.
— Precisamos encontrar outro estábulo — disse ele a Frentis, grunhindo
quando a lâmina escorregou para fora do cadáver.
— É claro, mestre. — Frentis agachou-se e apoiou o ombro no corpo do
cavalo, empurrando-o até que o mestre conseguiu puxar a perna para fora. Pelo
estado retorcido e lacerado do membro, ele podia ver que Rensial não cavalgaria
ou caminharia de novo durante algum tempo.
— Irmão Vermelho!
Frentis levantou-se com o grito de Lekran, percebendo que agora estavam
cercados de Arisai por todos os lados, depois que mais haviam se materializado
das casas ao redor, cada um aparentemente o encarando com uma mistura de
fascinação e deleite. Flechas continuavam a cair dos telhados, mas eles pareciam
não se importar, mal olhando quando seus irmãos tombavam ao seu lado.
Atraídos até mim, concluiu Frentis, vendo algo mais no olhar coletivo. Loucura.
Ela os soltou, e todos eles anseiam pela alegria de matar o seu pai.
— Isso pode terminar aqui! — gritou para eles, indo se posicionar com os
Politai que os cercavam. — Estou vendo que ela os libertou. Agora, libertem a si
mesmos. Deixem a loucura de lado.
Eles riram, é claro. Gargalhadas estrondosas de júbilo percorreram as suas
fileiras, e alguns ainda riam quando as flechas os abateram.
— Como quiserem — suspirou Frentis, erguendo a espada. — Venham,
recebam a sua cura!
Um novo som foi ouvido acima das gargalhadas incessantes, um estrondo que
ecoava das ruas em volta, logo se erguendo num brado, o brado de muitos
homens furiosos.
Os meldeneanos surgiram correndo de todas as ruas e vielas, os sabres
reluzindo ao caírem sobre a multidão de armadura vermelha. Os Arisai lutaram,
como foram criados para lutar, matando com uma alegre despreocupação;
contudo, apesar de toda a habilidade e ferocidade, não eram páreo para a onda
de piratas que passou por cima deles, e ilhas de vermelho afundaram e
desapareceram em poucos momentos. Os meldeneanos gritaram a vitória aos
céus, erguendo os sabres e jogando as cabeças para trás num triunfo bestial.
— Demoraram bastante — resmungou Lekran quando a carnificina
terminou.
Frentis virou-se e encontrou Artesão parado sobre Mestre Rensial, a cabeça
inclinada enquanto lançava um olhar crítico à perna do mestre.
— Pode ajudá-lo?
— Sinto muito, irmão. — O curandeiro sacudiu a cabeça com uma careta,
voltando então o olhar para uma imensa estrutura curva que se erguia acima dos
telhados a oeste. — Tenho a sensação de que logo precisarei de todas as minhas
forças.

Ele deixou Mestre Rensial aos cuidados dos meldeneanos, a maioria dos quais
parecia satisfeita em ficar e pilhar as muitas casas vazias, mostrando-se surda
aos apelos para que rumassem juntos até a arena. Frentis não conseguia ver
qualquer sinal do Lorde Almirante Ell-Nurin ou de qualquer outro meldeneano
com patente maior do que a de segundo imediato, de modo que foi obrigado a
deixá-los às suas recompensas e seguir em frente. Encontraram Trinta e Quatro
dando pontos num corte no braço de Draker algumas ruas adiante, a dúzia de
sobreviventes da companhia do capitão recém-designado aglomerada em volta
deles em meio aos corpos de cerca de trinta Arisai.
— Não consegue terminar uma batalha sem um ferimento? — perguntou
Illian a Draker, seu tom mordaz suavizado um pouco pela mão afetuosa que
passou pelos cabelos desgrenhados dele.
— Gosto das minhas lembrancinhas — retorquiu ele, rangendo os dentes
quando Trinta e Quatro deu um nó nos pontos. Ele ergueu um olhar de desculpas
a Frentis e indicou com a cabeça algo caído ali perto. — Sinto muito, irmão.
Retalhador estava caído de lado, com Dente Negro ganindo ao cutucar a
cabeça do cão com o focinho. Havia uma espada curta enfiada no peito do
animal e um Arisai morto e escorado numa parede perto dali, com o rosto
mastigado e transformado numa massa sangrenta.
— Não podemos demorar — disse Frentis, desviando o olhar e percorrendo o
rosto cansado e pálido de todos os presentes. Havia talvez um terço do número
que o havia seguido desde Nova Kethia. Tantos perdidos salvando aqueles que os
escravizaram, ponderou, lutando contra a mistura de pesar e admiração que
ameaçava umedecer os seus olhos. — Capitão — disse a Draker —, posicione a
sua gente na retaguarda. Irmã, pegue os arqueiros e faça o reconhecimento das
vias de acesso à arena.
— Sem dúvida não pode ter restado nenhum depois disso — disse a Irmã
Merial. Sua aparência havia melhorado um pouco, embora as manchas
vermelhas em volta dos olhos e do nariz evidenciassem uma tentativa de ocultar
a sua exaustão.
— Pensamos o mesmo em Eskethia — disse Frentis. — Fique perto de mim e
não use o seu dom de novo, a não ser que seja extremamente necessário.
O denso labirinto de ruas logo deu lugar a avenidas e parques largos, também
apinhados de cadáveres. Havia principalmente pessoas vestidas de preto ali, além
de alguns escravos que foram mortos enquanto cortavam a grama ou poliam as
estátuas de bronze. Porém, não havia sinal dos Arisai. Uns cem metros adiante as
ruas acabavam na arena, e cada combatente e Politai parou ao avistá-la, os
níveis dourado-avermelhados de curvas suaves vívidos à luz do sol. Podiam ouvir
uma grande comoção do lado de dentro, milhares de vozes erguidas em
adulação, sem dúvida devido a algum espetáculo terrível orquestrado pela
Imperatriz. Balindo feito ovelhas enquanto a sua cidade morre em volta deles,
pensou Frentis, incapaz de conter o ressentimento de que aquelas pessoas não
valiam o sangue derramado por elas.
— Nenhum guarda — relatou Illian. — Parece estar completamente
desprotegida.
Frentis olhou para Artesão, notando pela primeira vez a ruga de preocupação
em sua testa ao encarar a arena, e até mesmo um tremor de medo nos lábios.
Traga o curandeiro…
— Você não precisa fazer isso — disse-lhe Frentis. — Fique aqui com os
Politai. Mandarei avisar quando estiver seguro.
Artesão parou de franzir a testa e se virou para ele, afastando o medo com
um leve sorriso.
— Não acredito que haja algum lugar seguro hoje, irmão.
Frentis assentiu, deu um passo adiante e virou-se para se dirigir a todos eles,
sentindo a voz rouca e tendo que forçar as palavras a saírem.
— Vocês todos já fizeram mais do que eu poderia pedir. Esperem aqui,
Artesão e eu seguiremos sozinhos.
Não houve resposta, nem qualquer mudança de expressão quando todos
deram um passo à frente ao mesmo tempo.
— Não sei o que nos espera lá dentro — comentou Frentis, ouvindo a nota de
desespero na voz. — Mas sei que muitos de nós não irão sobreviver…
— Está perdendo tempo, irmão — disse Draker. Ao lado dele, Illian ergueu a
besta, olhando-o nos olhos com expectativa.
Frentis virou-se para a arena quando se ouviu outro brado vindo de dentro;
pelo volume e duração, parecia que o espetáculo da Imperatriz havia atingido
alguma forma de clímax.
— Nosso objetivo é resgatar a Senhora Reva e matar a Imperatriz! — gritou
ele, erguendo a espada e partindo em disparada. — Não mostrem misericórdia,
pois ela não terá nenhuma com vocês!
CAPÍTULO DEZ
Vaelin

Estrelas.
Ele piscou, tentando afastar o que sabia ser uma ilusão, mas ainda estavam lá,
cintilando e brilhantes. E havia tantas, mais do que poderia contar. Algumas eram
mais brilhantes do que outras, tão brilhantes que pareciam ofuscar aquelas à sua
volta. Algumas eram escuras, cintilando entre o vermelho e o negro. Todas se
moviam como formigas minúsculas num vasto cobertor verde e azul. Não são
estrelas, compreendeu. São pessoas.
— Vaelin. — Ela estava lá, flutuando próxima do céu noturno, pois agora
percebera que estavam voando muito acima da terra. Ele só pôde encará-la, as
palavras entalando em sua garganta, a tristeza e a gratidão mesclando-se e
fazendo-o estremecer. Ela sorriu e deslizou para perto, estendendo as mãos para
as dele. — Eu queria lhe mostrar — disse ela. — Queria que você visse o que eu
vejo.
— Eu… — Ele gaguejou e agarrou as suas mãos. — Eu nunca deveria… Ela
se colocou entre os seus braços, o calor dela maravilhoso, afastando a culpa que
ele sentia.
— Todas as escolhas foram feitas por mim. — Ela pressionou a testa contra a
dele e então recuou, virou-se e gesticulou para a terra salpicada de estrelas
abaixo. — Veja — disse ela —, o mundo como era, prestes a mudar para
sempre.
Ele segurou a mão dela ao descerem, aproximando-se de uma extensão de
terra com um litoral que ele reconheceu como o do Reino Unificado. Pararam
acima de um denso aglomerado de estrelas no centro do que um dia seria
conhecido como a Cidade Caída, as estrelas transformando-se nas formas
cintilantes de pessoas quanto mais baixo voavam. Havia duas figuras paradas no
meio do aglomerado, perto de algo tão escuro que parecia engolir toda a luz, e
Vaelin levou um momento para reconhecer a forma reduzida.
A Pedra Negra.
Uma das figuras ao lado da pedra diferia das outras no modo como a sua luz
brilhava, ficando intensa por um segundo e então vermelho-escura no seguinte. O
bruxuleio tornava difícil discernir alguma feição, mas Vaelin teve a impressão de
ser um homem alto, um homem barbado.
O Aliado.
A figura ao lado do Aliado era mais baixa e, a julgar pelo modo como as suas
costas estavam curvadas, consideravelmente mais velha. Ao contrário do Aliado,
a luz deste homem era constante e brilhante, o matiz um tom vivo de azul. Vaelin
observou quando o Aliado colocou a mão no ombro do homem mais velho de
forma respeitosa e então se afastou. O homem mais velho permaneceu imóvel
por um momento, de cabeça baixa, como se estivesse reunindo forças, sua luz
diminuindo levemente de intensidade, e então deu um passo adiante e colocou a
mão no vazio absoluto da pedra negra.
Por um segundo nada aconteceu, mas então um círculo vermelho surgiu no
centro da pedra. Era pequeno, mas brilhava com uma energia ardente, pulsando
de modo rítmico como um coração. O velho estendeu a mão brilhante para o
círculo para agarrá-lo… O círculo fulgurou de repente, a pulsação aumentou e
transformou-se num zunido e o velho cambaleou para trás quando algo brotou da
pedra, jorrando para o alto e para fora numa fonte multicolorida, subindo para o
céu ao mesmo tempo que uma circunferência de pura energia se espalhava da
pedra ao nível do chão, expandindo-se e disparando para o horizonte feito uma
muralha de chamas. A maioria das luzes a atravessava sem efeito aparente, mas
aqui e ali uma brilhava ainda mais forte quando a parede as tocava.
O poder, lembrou-se Vaelin. Gravado na linhagem…
A fonte espectral secou lentamente, o círculo flamejante na pedra diminuiu
de tamanho até se tornar um ponto minúsculo, e depois desapareceu. O velho
rolava no chão ao lado da fonte, contorcendo-se em óbvia agonia, sua luz agora
tremeluzindo, mas pulsando com mais intensidade do que antes. Sua agonia
diminuiu aos poucos, e ele estendeu a mão para pegar a do Aliado quando este se
ajoelhou ao seu lado. Contudo, o Aliado não tentou pegar a sua mão e olhou para
a forma prostrada do velho, sua luz agora mais vermelha do que branca.
Ele se empertigou de repente, erguendo algo escuro acima da cabeça e o
abaixando com toda a força. A luz do velho chamejou e então pareceu se dividir,
diminuindo para dois pontos de brilho tênue, um grande, o outro menor.
A cabeça dele, compreendeu Vaelin. Ele cortou a cabeça do velho.
O Aliado curvou-se para recolher a cabeça e a ergueu até que o pescoço
decepado tocasse seus lábios, quando então a sua luz assumiu um tom vermelho
permanente, um brilho escarlate-escuro com o mesmo ritmo do círculo de fogo
na pedra.
O Aliado jogou a cabeça do velho para o lado e voltou-se para a multidão de
espectadores. Todos haviam recuado diante dele com um medo evidente, e
muitos se viraram para fugir. Então todos pararam como um só, paralisados. O
Aliado encarou a multidão por um longo tempo num escrutínio cuidadoso, e
então começou a andar entre ela, parando ao lado de um homem de porte
atlético e um brilho amarelado, tocando-lhe a cabeça com a mão. As costas do
homem escolhido formaram um arco rígido no mesmo instante em que soltou
um grito silencioso, sua luz assumindo o mesmo tom de vermelho do Aliado num
piscar de olhos.
O Aliado seguiu em frente, tocando rapidamente mais uma dúzia de homens,
então se afastou da multidão e parou para assistir às figuras avermelhadas
começarem a assassinar as suas companheiras brancas. Algumas foram
estranguladas, outras golpeadas com pedras ou galhos, pois aquelas pessoas
pareciam não possuir armas. O Aliado permaneceu imóvel e assistiu ao
massacre, a cabeça levemente inclinada, observando a tudo impassível. Quando
acabou, quando cada brilho branco havia sido apagado, o Aliado partiu para o
norte, seguido pelos homens vermelhos.
Dahrena apertou a mão de Vaelin com mais força e o tempo acelerou abaixo
deles, o aglomerado vermelho do Aliado aumentou no norte e se espalhou,
criando grupos menores que se expandiam como esporos de uma ponta a outra
do Reino Unificado, luzes brancas se apagando onde quer que chegassem.
— O dom do Aliado — disse Vaelin.
— Não — disse Dahrena —, nunca um dom. Uma doença, uma praga. Como
a Mão Vermelha.
— Isto é apenas um sonho. Como posso saber disso?
— Nós sabemos. — Ela flutuou para longe dele, estendendo os braços quando
mais pessoas surgiram da escuridão ao redor, formando um círculo em volta
deles. Eram na maioria estranhas, mas Vaelin reconheceu algumas. A irmã da
Sétima Ordem que conspirara com Alucius em Varinshold. Marken também
estava ali, sorrindo sombriamente por trás da barba, e o Aspecto Grealin, ainda
gordo mesmo ali… E um outro.
Caenis usava as vestes de um irmão da Sexta Ordem, apesar de ter morrido
como Aspecto da Sétima.
— Irmão — disse Vaelin, estendendo a mão para ele, mas Caenis apenas
sorriu e inclinou a cabeça num reconhecimento afetuoso.
— Nós que permanecemos quando você o atraiu para fora do Além — disse
Dahrena. — Não é somente a vontade dele que pode nos prender aqui. Gastamos
o que nos sobrava de forças para criar esta visão. Era tudo o que nos restava para
dar.
Vaelin viu o círculo de almas desaparecer, deslizando para a escuridão;
Caenis foi o último a ir, sua mão erguida numa despedida relutante antes de ser
tragado pelo escuro.
— Então agora vocês realmente se foram? — perguntou ele a Dahrena. —
Suas almas desapareceram para sempre?
— A alma é uma lembrança — disse Dahrena, pressionando-se contra ele
mais uma vez, passando os braços em volta de seu pescoço. — Você é o meu
Além agora, Vaelin. Você e todos aqueles que amei, até mesmo os que enfrentei.
Para que eu perdure, você precisa perdurar.
Ela recuou e segurou o rosto dele com as mãos.
— Lembre-se, uma praga como a Mão Vermelha. E ninguém que pegou a
Mão Vermelha e sobreviveu tornou a pegá-la. E, agora, você precisa mesmo
acordar.
Ele despertou ao som de vozes exaltadas. Vozes lonaks, raivosas e irritantemente
altas. Vaelin gemeu, rolou e se ergueu, seus dedos explorando de forma instintiva
o galo cada vez maior atrás da cabeça. As vozes pararam, ele ergueu a cabeça e
viu Kiral e Alturk afastando-se um do outro; o Tahlessa lhe deu um último olhar
de desaprovação antes de ir se colocar diante da forma curvada do Aliado. Ele
parecia estar desacordado, a cabeça balançando para a frente e um filete de
sangue escorrendo de um corte na testa.
Orven estava de pé ao lado de Vaelin, seus guardas os cercavam por todos os
lados, olhando furiosos para os Senthar reunidos do outro lado da clareira.
Calculou que havia passado pouco tempo desde que Alturk o deixara inconsciente
com uma porretada. Vaelin estendeu a mão a Orven, que o ergueu com presteza.
Foi até Alturk e fez uma mesura curta.
— Obrigado, Tahlessa. Lorde Orven, levantar acampamento. Ainda temos
um longo caminho pela frente.

***

Quanto mais para o sul seguiam, mais cidades apareciam ao longo do trajeto.
Em geral eram lugares extensos, que há muito haviam ultrapassado as muralhas
protetoras da era pré-imperial. A maioria claramente sofrera revoltas e
rebeliões, algumas eram pouco mais do que ruínas enegrecidas e muito poucas
tinham conseguido permanecer intactas em virtude de muralhas e barricadas
construídas recentemente, em geral defendidas por uma população armada que
de bom grado disparava flechas contra forasteiros que chegavam muito perto.
Vaelin evitou todas elas, não tendo a menor intenção de acabar enredado em
batalhas desnecessárias, apesar de os Senthar costumarem ficar irritados com a
necessidade de não responder a um desafio.
O Aliado agora cavalgava na retaguarda da coluna, o rosto machucado e
parcialmente remodelado imperturbável e animado como sempre. Os guardas
de Orven haviam recebido instruções estritas de amordaçá-lo caso tentasse falar
de novo, mas ele se mantinha num silêncio contínuo desde que despertara do
espancamento. Kiral o encarava constantemente, suas mãos apertavam as
rédeas com frequência e Vaelin sabia que ela estava resistindo ao impulso de
pegar o arco. A orientação da canção raramente está equivocada, ele sabia,
sentindo falta de seu dom com mais intensidade do que nunca. Porém, na visão
de Dahrena não havia qualquer desejo pela morte imediata do Aliado e nenhum
indício de que ele estivesse no caminho errado.
Uma linha vermelha surgiu no horizonte cinco dias depois, aumentando
conforme chegavam mais perto, até que pararam em meio a um vasto
aglomerado de campos de flores rubras e avistaram ao longe, através da neblina,
as torres altas de uma cidade de mármore.
— Volar — sussurrou Lorkan ao lado de Vaelin, sacudindo a cabeça em
franco assombro. — Realmente achei que nunca a veria.
Vaelin chamou Lorde Orven e apontou a oeste e a leste.
— Envie os seus batedores. Precisamos de notícias sobre o paradeiro da
Rainha. Acamparemos aqui…
— Você não tem tempo!
Vaelin virou-se e viu que o Aliado o encarava com fria determinação e que
qualquer vestígio de humor havia desaparecido de suas feições ainda
deformadas. Os guardas de ambos os lados se aproximaram para cumprir as
ordens, mas Vaelin os afastou com um aceno e levou Cicatriz para mais perto,
olhando o Aliado nos olhos.
— Por quê?
— Minha serva está brincando com a sua irmã na arena neste momento. Ou
melhor, aquela vadia pervertida que você chama de irmã. Demore mais e
desconfio que ela estará morta em pouco tempo, depois de um período adequado
de punição bem merecida. Ela sempre me irritou muito.
Vaelin olhou para Kiral, que rangeu os dentes e assentiu.
Reva! A criatura dele está com Reva.
— Ela não possui um dom — prosseguiu o Aliado. — Não há lugar para ela
no Além…
Vaelin lhe deu as costas e disparou para a frente da coluna, berrando uma
ordem para que Orven o seguisse, rumando para Volar a galope.
CAPÍTULO ONZE
Lyrna

Parece que vim de longe para administrar a justiça a um povo determinado a


causar a própria destruição. A cidade parecia ser governada pelos mortos; não
havia uma avenida, entrada ou jardim sem cadáveres. Também pendiam das
muitas torres como bonecas esfarrapadas há muito esquecidas. Estava claro para
Ly rna que aquele havia sido um distrito rico: a opulência das casas e os vastos
jardins murados repletos de flores de cerejeira e estátuas eram indicativos de
grande privilégio e altas posições sociais, mas o que quer que tivesse passado por
ali não tinha muito respeito por classes; a abundância de escravos mortos
revelava que aquilo não fora obra de uma revolta.
— Arisai, Alteza — relatou o Irmão Sollis, as ferraduras de seu cavalo uma
intrusão dissonante no silêncio que envolvia o lugar. Ele parou o cavalo ali perto e
cumprimentou o Aspecto Arly n com um aceno respeitoso de cabeça antes de se
dirigir à Rainha. — Encontramos cerca de vinte no distrito ao lado, matando todos
que encontravam. Cuidamos deles, mas não tenho dúvida de que há mais.
Sollis se remexeu na sela quando os seus irmãos pararam os cavalos perto
dali, nitidamente impaciente para partir.
— O caminho para a arena? — perguntou Ly rna.
— Desimpedido, Alteza. Parece não haver outros soldados volarianos na
cidade. Acredito que a senhora tenha proteção suficiente para seguir até lá.
Enquanto você parte para salvar o povo que viemos destruir, sem dúvida.
Ly rna estava prestes a lhe ordenar que entrasse em formação com a sua
companhia como escolta quando Murel pulou do cavalo de repente e correu até
uma pilha de corpos perto da entrada arqueada de uma das casas maiores. Ela
afastou o cadáver que estava no alto, uma mulher esguia de manto vermelho
com o pescoço aberto por um talho, e enfiou as mãos na massa sangrenta abaixo,
tirando de lá uma pequena figura seminua. Murel a abraçou com força e Ly rna
se aproximou a trote com Azeviche, desmontando ao lado da dama que limpava
o sangue fresco do rosto de uma menina de talvez oito anos, viva, mas
estranhamente imóvel, olhando em volta com olhos escuros arregalados. Murel
estava chorando, a primeira vez que Ly rna a via fazer isso desde o dia de seu
enobrecimento na Ilha de Wensel.
A menina piscou para a dama e então olhou para Ly rna com a testa franzida
de curiosidade.
— Eu conheço você — disse ela numa voz um tanto afetada.
— Conhece? — Ly rna chegou mais perto, sentou-se e estendeu a mão,
afastando da testa da menina uma mecha dura de cabelo emaranhado.
— Meu pai me contou — continuou a menina, fazendo um pouco de beicinho
numa atitude de desafio. — Você veio botar fogo em tudo. Você é a Rainha do
Fogo.
Ly rna fechou os olhos. Uma brisa lhe roçou a pele numa carícia gentil,
trazendo consigo o odor de flores de cerejeira, o perfume delicado, mas
pungente o suficiente para mascarar o fedor de sangue e intestinos soltos à beira
da morte. Ela tentou se lembrar de outro cheiro, um que conhecia tão bem, um
que a fazia engasgar e a bile subir de suas entranhas, o fedor de sua própria carne
sendo queimada. No entanto, não conseguiu encontrá-lo, não naquele dia.
— Não — disse à menina, reabrindo os olhos e segurando o rosto dela com
um sorriso. — Sou apenas uma rainha.
Ela se levantou e tocou o ombro de Murel.
— Leve-a para o Irmão Kehlan. — Ela se virou e voltou para o cavalo. —
Irmão Sollis, pegue a sua companhia e vá atrás de qualquer Arisai que restar.
Cidadãos volarianos encontrados vivos devem ser levados para um lugar seguro,
se possível. Direi ao Senhor da Batalha que designe tropas para auxiliá-lo.
Ele se curvou na sela, seu rosto revelando um sentimento de gratidão que
Ly rna não vira antes, acenou mais uma vez para o Aspecto e virou o cavalo, a
voz rouca gritando ordens para os irmãos ao partir a galope.
— Não gosto disso, Lirhnah — disse Davoka quando ela montou, lançando um
olhar crítico para as Adagas da Rainha que restavam. — Somos muito poucos.
Ly rna virou-se ao ouvir o som de inúmeras vozes na retaguarda, fazendo Iltis
girar com a espada desembainhada. Ele se acalmou quando avistou o primeiro
cumbraelino. Um homem corpulento, como muitos arqueiros, corria com o arco
atravessado nas costas e uma machadinha na mão; ele parou, fez uma breve
mesura para Ly rna e continuou a correr, seguindo para a estrutura inconfundível
da arena, agora distante apenas um quilômetro. O cumbraelino logo foi seguido
por mais centenas e as avenidas ao redor ressoavam com as suas preces
ofegantes, as palavras “Senhora Abençoada” ouvidas com maior frequência
entre elas.
Al Hestian não conseguiu detê-los, concluiu Ly rna. Espero que ele tenha sido
sensato o suficiente para não tentar.
— Acho que teremos o bastante, irmã — disse ela a Davoka, saindo a galope
com Azeviche.

A cabeça a encarava com olhos cegos, a boca aberta e a língua pendurada entre
os dentes. Havia sido presa ao toco do pescoço da estátua com pregos de ferro,
martelados através do bronze e da carne, e filetes de sangue seco cobriam o
metal até o pedestal, onde jazia a cabeça original.
— Parece que nunca faltam horrores a essa gente — comentou Iltis num tom
enojado.
Ly rna deixou a estátua para trás e seguiu com Azeviche para a arena, onde os
cumbraelinos agora adentravam as arcadas. Ela teve um vislumbre de Lorde
Antesh incitando-os em frente antes de desaparecer do lado de dentro, mas não
teve oportunidade de lhe passar ordem alguma; não que esperasse que ele a
obedecesse agora que a Senhora Abençoada estava tão perto.
Ly rna desmontou diante da arcada mais alta e seguiu para o interior sombrio;
gritos de combate ecoavam pelas escadarias e corredores abobadados à medida
que os cumbraelinos sobrepujavam qualquer sinal de oposição. As Adagas da
Rainha se espalharam à sua volta num arco defensivo, o Aspecto Arly n e Iltis se
posicionaram de ambos os lados com as espadas desembainhadas.
— Se me permite, Alteza — disse o Aspecto, apontando para uma escadaria
próxima, que descia para as profundezas daquela estrutura. Ly rna ergueu uma
sobrancelha indagadora e ele continuou: — As jaulas onde são mantidos os
Garisai. Eles podem ser úteis.
Ela assentiu e gesticulou para que o Aspecto prosseguisse, seguindo-o quando
conduziu as Adagas pela escadaria. Ly rna foi recebida pelo tumulto da batalha
enquanto descia, chegando a uma longa câmara retangular, ladeada por jaulas.
As Adagas e o Aspecto lutavam com uma dúzia de Kuritai. O Aspecto movia-se
com a típica graciosidade da Sexta Ordem, desmentindo a sua idade pela forma
como aparava e girava no combate corpo a corpo, matando um Kuritai e
bloqueando a lâmina de outro que atacou uma das Adagas. Porém, os Kuritai
também possuíam uma habilidade espantosa, e Ly rna lutou contra uma pontada
de fúria ao ver ainda mais de sua gente tombar pelas lâminas dos escravos de
elite.
Sou apenas uma rainha.
Ela mandou Iltis se juntar à luta com um aceno de mão e olhou ao redor, seus
olhos recaindo sobre um cadáver que jazia ali perto, um homem de cintura
considerável com ferimento de faca no peito, um carcereiro, a julgar pelas
chaves que pendiam de seu cinto. Ly rna abaixou-se e as arrancou, foi até a jaula
mais próxima e parou de repente ao ver quem era o ocupante.
Não havia um sorriso em seus lábios agora, nenhuma travessura no olhar; seu
cabelo pendia oleoso sobre um rosto sem qualquer expressão de humor ou de
admiração.
— Então, como pode ver, você conseguiu me colocar numa gaiola, afinal.
Ela não disse nada, girou a chave na fechadura e abriu a porta da jaula,
avançando com um gesto impaciente quando ele se demorou. Ell-Nestra saiu
devagar da jaula e olhou rapidamente para a luta que continuava no corredor, os
Kuritai agora reduzidos a três, encostados nas barras das jaulas, onde mãos saíam
de dentro para lhes arranhar numa fúria desesperada.
— Esta é a última guerra que luto por você — disse o Escudo.
Ly rna lhe jogou as chaves quando o último Kuritai foi morto, dirigiu-se até a
escadaria e subiu sem olhar para trás.
CAPÍTULO DOZE
Reva

— Mate-a! — gritou Lieza, debatendo-se nos braços dos Arisai. — Mate-a e isso
acaba!
A mão de Reva se mexeu na areia, indo na direção do arco como que por
vontade própria enquanto mantinha os olhos no rosto sorridente da Imperatriz.
— Ela não deixa de ter razão! — gritou a Imperatriz. — Se eu desaparecer,
esta guerra acaba, mas ela ainda morrerá e você se lembrará de sua morte por
muito tempo. Ordenei que eles poupassem você, pois como eu poderia ferir a
minha irmã? Não prefere conceder uma morte rápida a ela?
Reva desviou o olhar e virou-se para Lieza, que agora não resistia nas mãos
dos Arisai, com uma súplica no olhar, sua respiração ofegante o único som na
arena, o silêncio não sendo rompido nem mesmo pelo mais leve sussurro
enquanto a mão de Reva chegava mais perto do arco…
Algo passou zunindo pela sua cabeça e caiu na areia com um baque surdo ao
lado do arco. Uma flecha, as penas estremecendo com o impacto. Reva voltou
de súbito o olhar para os níveis superiores da arena e avistou lá silhuetas
segurando arcos. Ela gemeu e seu desespero aumentou. Os Kuritai de Varulek
não haviam feito o seu trabalho, afinal. Um dos arqueiros ergueu o arco acima
da cabeça e Reva estreitou os olhos, vendo algo de familiar na postura dele, a
largura dos ombros lembrando-lhe de alguém que conhecia, alguém que sem
dúvida havia se perdido no oceano. Ela olhou para o arco do homem. Era longo,
com uma única curva elegante, tão diferente dos arcos de duas curvas preferidos
pelos volarianos.
Reva virou-se devagar e abaixou os olhos para a flecha enfiada na areia.
Penas-de-asa-rápida, percebeu. Um pássaro que só é visto em Cumbrael, no
verão.
Reva ergueu o olhar para a Imperatriz e retribuiu o sorriso.
Ela pegou o arco e a flecha de Varulek, girou para a esquerda, colocou a
flecha na corda e disparou num único movimento. Um dos Arisai que seguravam
Lieza cambaleou para trás, olhando com divertimento e arfante para a flecha
cravada no peito. O outro desembainhou a espada de imediato e a ergueu para
enfiá-la nas costas de Lieza, e então caiu morto quando Reva disparou a flecha
de Antesh em seu pescoço.
O ar zuniu quando ela se levantou e correu na direção de Lieza, cada Arisai à
vista tombando ao mesmo tempo sob a chuva de flechas. Reva derrapou, parou
agachada ao lado de Lieza e a ergueu. A garota soltou um grito alarmado quando
um Arisai se arrastou na direção delas, os dentes arreganhados num sorriso feroz
ao se esforçar para chegar mais perto com flechas fincadas nos ombros e nas
pernas. Reva pegou outra flecha da areia e a disparou no olho do Arisai a menos
de quatro metros, então agarrou o braço de Lieza e a puxou na direção da saída
mais próxima. A pesada porta de ferro estava trancada, mas o arco de pedra pelo
menos oferecia alguma proteção. Ela podia ver arqueiros Varitai nos níveis
inferiores, tentando em vão enfrentar os cumbraelinos acima enquanto a
multidão convulsionava em volta deles, aglomerados de pessoas que fugiam em
pânico para as saídas.
Então a chuva de flechas começou a diminuir, a princípio lentamente, mas
não tardou a cessar por completo. Reva deixou o abrigo da arcada e
esquadrinhou os níveis superiores, encontrando-os repletos de homens
engalfinhados, vermelhos e pretos em meio ao verde-acinzentado dos
cumbraelinos. Ela voltou o olhar para a porta pela qual o desafortunado Jarvek
entrara na arena e viu que ainda estava aberta.
— Vamos — disse a Lieza, segurando-lhe a mão e começando a andar.
A Imperatriz aterrissou em seu caminho e rolou para uma posição de luta
com a espada curta abaixada, encarando Reva com a testa franzida de seriedade
e irritação.
— Você estragou o meu espetáculo.
Reva recuou, colocando Lieza atrás de si e procurando freneticamente por
outra flecha enquanto a batalha prosseguia nas arquibancadas.
— Todas as minhas lições — disse a Imperatriz, aproximando-se e mantendo
a espada abaixada. — Toda a minha generosa tutela, desprezada. Estou muito
desapontada, irmãzinha.
Ela atacou e Reva rolou para o lado, arrastando Lieza consigo, e a lâmina a
errou por centímetros. Ficou de pé e girou o arco como um porrete, mirando na
cabeça da Imperatriz. A mulher se abaixou com facilidade e encarou Reva com
uma carranca de desaprovação.
— Nossa mãe morreu com você na barriga enquanto eu estava acamada e
escutava os gritos dela do outro lado da porta. O Aliado havia contado ao meu pai
sobre a bênção, veja bem, e ele estava sedento.
Ela atacou de novo e Reva empurrou Lieza para a esquerda ao mesmo tempo
que se esquivou para a direita. Reva viu o corpo de um Arisai a menos de três
metros, cravejado de flechas e com uma espada caída sob a mão.
— Nossa mãe teria amado você mais do que a mim — disse a Imperatriz a
Reva, saltando em seu caminho assim que ela começou a ir na direção do corpo.
— Eu sei disso. Mas não me importo. Ainda assim você teria sido a minha irmã.
Reva olhou de relance para Lieza, implorando que ela corresse, mas a garota
ficou onde estava, ergueu as correntes e assumiu uma posição desajeitada de
luta. A Imperatriz riu dela, então se acalmou.
— Tamanha devoção — disse ela, sacudindo a cabeça. — Tudo o que sempre
recebi foi medo e desejo. Eu teria amado você, irmã. Mas teria sido difícil
suportar a inveja.
Reva olhou de novo para o corpo do Arisai, calculando a distância e as suas
chances de saltar por cima da espada da Imperatriz… quando então viu mais
uma coisa.
— Eu não sou sua irmã! — gritou ela para a Imperatriz, atraindo um olhar
arregalado. — Você nunca teve nada além de medo e desejo porque isso é tudo
que você é. Apenas uma louca que viveu por tempo demais.
— Louca? — A Imperatriz recuperou o humor e abaixou um pouco a espada
ao rir. — O que você acha que o mundo é, se não um desfile interminável de
loucura? Guerrear é loucura. Buscar poder é loucura. — Ela gargalhou mais alto
e abriu os braços. — E a loucura é gloriosa!
Reva supôs que o macaco estivesse simplesmente tentando completar o papel
para o qual havia sido treinado, deixando um rastro vermelho na arena enquanto
se arrastava na direção da Imperatriz com suas garras de aço, achando que ela
era Livella por ser a única armada. Com um rugido rouco, a fera se levantou e
atacou, golpeando com as garras quando a Imperatriz se virou, fazendo com que
as três farpas de aço a atingissem em cheio no peito.
O macaco soltou um último urro, de triunfo ou fúria, e desabou no chão da
arena, levantando areia ao dar o último suspiro. Reva se aproximou enquanto a
Imperatriz se debatia, ainda viva de alguma forma, o sangue escorrendo aos
borbotões de sua boca enquanto se esforçava para se livrar da garra do macaco,
conseguindo por fim com um grito de agonia. Ela ficou caída, arfando,
respirando com dificuldade em tiques convulsivos, e olhou para Reva com os
mesmos olhos arregalados e insanos, sorrindo com uma afeição genuína que fez
a mão de Reva coçar por uma espada.
Ficou ciente mais uma vez dos sons da batalha e ao erguer os olhos viu que o
conflito havia se espalhado pelas arquibancadas, onde os cidadãos volarianos se
encolhiam à medida que a luta prosseguia à sua volta. Parecia que os
cumbraelinos haviam recebido reforços da Guarda do Reino, os combatentes
livres de Lorde Nortah, a julgar pela quantidade de mulheres em suas fileiras.
Ela também avistou o cabelo louro do Escudo esvoaçando nas arquibancadas
inferiores, lutando ao lado de várias dezenas de Garisai libertados. Fez uma prece
ao Pai para garantir que Allern estivesse entre eles. Os grupos de vermelho e
preto estavam diminuindo diante do ataque combinado, apesar de, como sempre,
os Arisai não demonstrarem qualquer consternação com a própria morte
iminente, lutando até o fim e rindo conforme morriam.
Reva teve um sobressalto quando a Imperatriz deu um rosnado alto e
entrecortado, agitando os braços para tentar se levantar, o olhar fixo em algo na
extremidade norte da arena, uma única palavra discernível em meio aos
balbucios sufocados pelo sangue.
— Vadia!
A Rainha Ly rna Al Nieren atravessou a areia, acompanhada pelo imenso
Lorde Protetor e por um irmão alto e idoso da Sexta Ordem que Reva não
reconheceu. Cerca de uma dúzia de Guardas do Reino se espalharam de ambos
os lados quando ela foi em direção a Reva, dispensando a sua mesura com um
aceno e a abraçando de forma calorosa.
— Minha senhora. Por favor, aceite as minhas sinceras desculpas por não tê-
la encontrado mais cedo.
CAPÍTULO TREZE
Vaelin

Eles foram obrigados a abrir caminho à força por uma horda de volarianos em
fuga, todos em pânico e lívidos demais de terror para até mesmo reconhecer um
grupo de invasores estrangeiros. Muitos disparavam através das flores rubras dos
dois lados da estrada, sem levar qualquer bagagem ao fugir, os horrores recentes
estampados nos rostos pálidos. Em comparação, as famílias se moviam em
grupos compactos e cautelosos, segurando os seus poucos fardos e mantendo as
crianças perto, os rostos pequenos chorosos ou paralisados de medo.
Astorek abaixou-se e puxou um homem da multidão, um calvo de meia-idade
vestido de cinza com um menininho agarrado ao seu lado. Ele respondeu às
perguntas do xamã num tom seco, o servilismo habitual superando o seu pavor.
— A Imperatriz soltou os seus Arisai na cidade — informou Astorek, largando
o homem de cinza, que cambaleou em frente sem parar. — Eles estão matando
todo mundo. O homem parecia achar que era uma punição por não comparecer
à arena, apesar do fato de que o lugar jamais poderia comportar todos eles.
Vaelin virou-se para o Aliado, que encarava os refugiados apenas com um
vago interesse.
— Isso é obra sua? — perguntou ele.
O Aliado encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.
— Ela era louca mesmo antes de eu capturá-la. E essa gente sempre instigou
o seu ódio.
Eles seguiram em frente, livrando-se da turba em fuga após mais um
quilômetro e meio, e entraram na cidade. O distrito leste parecia ser o quadrante
dos mercadores, repleto de armazéns e canais, cujas águas escuras estavam
apinhadas de cadáveres boiando. De vez em quando pessoas aturdidas entravam
em seu caminho, feridas ou anestesiadas pelo choque. Eram recebidos por
horrores a cada esquina; mulheres choravam sobre filhos assassinados e crianças
perplexas cutucavam pais mortos. Vaelin fechou o coração a tudo aquilo e fez
Cicatriz trotar mais rápido, mantendo o olhar fixo na forma arqueada da arena
que se erguia do centro da cidade. Ele lançava olhares indagadores a Kiral sem
parar, e a garota apenas confirmava a melodia urgente de sua canção.
Após uma cavalgada tortuosa de uma hora, eles adentraram o parque que
cercava a arena e lá Vaelin forçou Cicatriz a disparar a todo galope, ouvindo uma
cacofonia cada vez mais alta ao se aproximarem da grande construção dourado-
avermelhada. Avistou algo pelo canto do olho e ao se virar viu uma fila de
pessoas correndo na direção da parede sul da arena, talvez quinhentas, todas
armadas. Vaelin encarou a figura que ia à frente, discernindo o manto azul-
escuro e o modo preciso e familiar com que corria. Virou Cicatriz para a
esquerda, saltando sobre cadáveres e disparando sobre mármore e grama, indo
se colocar no caminho dos combatentes, quando então parou o cavalo e ergueu a
mão.
Eles começaram a parar lentamente quando Frentis ergueu a espada. Eram
um bando estranho, homens e mulheres de armaduras mistas e com as marcas
de uma batalha recente; algumas de cores volarianas, outras de origem
claramente alpirana ou do Reino. Vaelin soltou um suspiro de alívio ao ver
Artesão entre eles, no meio do único grupo daquela companhia que tinha uma
aparência de fato militar.
— Irmão! — cumprimentou-o Frentis, correndo para o seu lado. Vaelin ficou
espantado com a sua aparência, sujo de sangue e fuligem da cabeça aos pés, a
lâmina da espada manchada de vermelho de uma ponta à outra. No entanto,
ficou aliviado pelo olhar dele, envelhecido desde que o vira pela última vez, mas
firme e desprovido da loucura que parecia ter tomado conta daquela cidade.
Vaelin acenou com a cabeça para Artesão e os volarianos dispostos de forma
ordenada em volta dele.
— Eles são Varitai?
— Eles se chamam Politai agora — disse Frentis. — Significa
“desacorrentados” em volariano antigo.
Vaelin olhou por sobre o ombro quando os guardas de Orven e os Senthar
surgiram com o Aliado entre eles, sua postura agora consideravelmente mais
alerta ao passar os olhos pela arena. Vaelin notou o sorriso que ele tinha nos
lábios. Agora não vê mais necessidade de esconder a sua expectativa.
— Desacorrentados — repetiu ele, virando-se de novo para Frentis. — Tal
como você foi, irmão.
Frentis assentiu, franzindo um pouco a testa, intrigado.
— A Senhora Reva — disse ele, apontando a espada para a arena. — Tenho
informações seguras…
— Eu sei. — Vaelin desmontou de Cicatriz e desembainhou a espada,
seguindo a passos largos para a arena, e fez sinal para que Frentis o seguisse,
falando em voz baixa: — Não temos muito tempo, então escute bem…

Todos os sons de batalha haviam cessado quando entraram na arena. Tinham sido
atrasados por alguns Kuritai que encontraram no labirinto de corredores que os
levara até ali, mas os Senthar e os guardas eram numerosos e habilidosos o
suficiente para matá-los sem dificuldade. O olhar de Vaelin percorreu as
arquibancadas ao redor quando pisou na areia, encontrando apenas um terço
delas ocupado, onde aglomerados nervosos de cidadãos volarianos mantinham-se
afastados das companhias de Guardas do Reino e arqueiros cumbraelinos. A
Rainha estava no meio da arena, sorrindo ao trocar palavras com Reva, ao lado
do que parecia ser alguma espécie de macaco monstruoso, morto com uma
lança cravada nas costas.
Reva correu até ele quando se aproximou, dando-lhe um abraço forte e
caloroso.
— Atrasado desta vez — disse ela, repreendendo-o. Reva recuou e deu um
tapa brincalhão em seu rosto.
Vaelin assentiu e forçou um sorriso, fazendo uma mesura para a Rainha
quando ela se aproximou para cumprimentá-lo.
— Alteza. Fico feliz em ver que está bem.
— Digo o mesmo, meu senhor. — Vaelin achou o olhar dela estranhamente
frio, o sorriso sincero que lhe mostrara no passado agora mais deliberado. A
maior conquistadora da história do Reino, lembrou a si mesmo. Mais do que uma
rainha agora.
— E a Senhora Dahrena? — perguntou Ly rna, percorrendo com os olhos a
companhia atrás dele.
Vaelin a olhou nos olhos e sacudiu a cabeça, notando o breve espasmo de
perda de compostura revelado por ela, seu rosto ficando anuviado por um pesar
genuíno.
— Uma… grande perda, meu senhor.
O olhar de Vaelin foi atraído por um som sufocado atrás da Rainha, onde
notou outro corpo caído ao lado do macaco monstruoso, os olhos dela fixos não
nele, mas em Frentis. Os lábios da mulher se moveram em alguma forma de
saudação, cuspindo sangue na areia e retorcendo as mãos.
— Permita-me apresentar a Imperatriz Elverah do Império Volariano —
disse a Rainha.
Vaelin viu como Frentis empalideceu e se remexeu ao seu lado,
aparentemente incapaz de desviar os olhos da moribunda, que continuava a
cumprimentá-lo. Vaelin encarou o irmão até que Frentis se virasse e retribuísse
seu olhar fixamente, esperando que ele se lembrasse de sua tarefa. Frentis fez
um aceno quase imperceptível com a cabeça e deu as costas à Imperatriz,
fazendo com que ela soltasse um gemido desolado e cravasse as unhas na areia,
tentando desesperadamente se arrastar para perto dele.
— Também tenho uma apresentação a fazer — disse Vaelin à Rainha,
fazendo sinal para que os guardas de Orven trouxessem o Aliado.
— Seu dotado imortal? — perguntou a Rainha, lançando um olhar crítico à
forma amarrada do Aliado. Ele retribuiu o olhar dela com distração e ergueu a
cabeça para as arquibancadas ao redor, estreitando os olhos numa maquinação
cuidadosa.
— Não exatamente — disse Vaelin. — Não sei o seu nome verdadeiro, mas
nos acostumamos a chamá-lo de Aliado.
— Nunca gostei desse nome — comentou o Aliado em voz baixa. — Talvez,
daqui a alguns anos, vocês criem um melhor. Algo mais poético. Vejam bem, eu
decidi me tornar um deus.
Vaelin abriu a boca para mandá-lo se calar e parou. Tentou erguer o braço da
espada e viu que estava imóvel. Tentou se virar para Frentis, mas o seu pescoço
recusou-se a se mover. Perdeu toda a sensação nos membros e apenas o seu
peito se movia, continuando a respirar, e seus olhos, que iam de um lado para
outro num pânico ligeiro. Ele podia ver a Rainha, paralisada com o mesmo rosto
franzido de escrutínio crítico, Lorde Iltis atrás dela, imóvel feito uma estátua,
assim como todos os outros seres vivos à vista, até mesmo os que se encontravam
nas arquibancadas acima. A arena estava em silêncio agora, exceto pelos
suspiros agonizantes da Imperatriz e pelo som dos passos leves do Aliado na areia
ao se aproximar de Vaelin e olhá-lo nos olhos.
— Você perguntou sobre o meu dom — disse ele. — Ei-lo, ou um deles.
Tantos anos desde que o usei neste mundo sem a necessidade de um
intermediário. Não é tão desgastante agora, graças a você e ao seu amigo
imortal. Está vendo? — Ele inclinou a cabeça, virando-a de um lado para outro.
— Nada de sangue. Imagino que este corpo irá me sustentar por um bom tempo.
Talvez até a morte deste mundo, embora eu não tenha desejo algum de
testemunhá-la.
O Aliado se afastou e parou para olhar atentamente para Ly rna e depois para
Reva, visível apenas pelos cantos do olho de Vaelin, tão imóvel quanto todos os
outros.
— Tão bem-feita — disse o Aliado, mantendo o olhar em Reva. — É uma
pena desperdiçá-la, mas esta aqui irá precisar de uma recompensa se for
continuar como minha serva.
Ele se afastou de novo e foi até a Imperatriz, o único corpo à vista que não
estava paralisado, embora os seus movimentos agora se limitassem a leves
tremores. O Aliado ajoelhou-se ao lado dela, inclinou-se para trás e pressionou as
cordas em volta de seu torso contra as garras de aço que saíam da mão do
macaco morto. Ele fez uma careta com o esforço, subindo e descendo várias
vezes até as amarras cederem.
— Ahh — suspirou o Aliado, levantando-se e jogando as cordas de Alturk
para o lado. — Assim é melhor. — Ele flexionou os braços por um momento e
então se agachou para examinar a Imperatriz, apertando os lábios ao notar o
brilho tênue ainda visível no olho dela, grunhindo de satisfação. — Já fui
chamado muitas vezes de arrogante — disse ele, olhando para Vaelin. — E
confesso certa relutância em admitir fracassos. Porém, tantos anos de
consciência fizeram com que eu apreciasse a humildade com novos olhos. Eu
fracassei, é claro, e Lionen me torturou até a morte por isso. Mas foi o método e
não a intenção que me derrotou. O método era falho. Tentar matar todos os
dotados do mundo pessoalmente, mesmo com a habilidade de corromper almas
maliciosas o suficiente aos meus propósitos, era uma tarefa grande demais. No
entanto, tive tempo de sobra para pensar numa nova abordagem.
Ele se abaixou até a areia, recolheu uma espada curta e colocou um pé sob o
corpo da Imperatriz, virando-a de barriga para cima.
— Por que tentar o impossível? — perguntou ele a Vaelin. — Quando a
cobiça infinita da humanidade pode fazer isso por mim? Esse seria o papel dos
volarianos, que foram moldados para servir aos meus propósitos. Nunca lhes
ocorreu por que eu sempre me assegurava de que jamais houvesse o suficiente.
Não importava quantos criassem nos fossos, eu simplesmente dava a minha
bênção a outros de seus nobres para que sempre precisassem de mais, fossem
compelidos à expansão, um império criado para conquistar o mundo em busca
de sangue dotado, impelido por sua sede pela vida eterna. Tudo desfeito, graças a
você e a estes outros. Obra do lobo, suponho. Ainda assim, não importa.
O Aliado ergueu a espada acima da cabeça, virou-se para as arquibancadas e
gritou numa voz estridente:
— Prestem atenção! Os deuses antigos voltaram em mim! Um grande poder
corre pelas minhas veias! Vejam a minha bênção!
Ele se aproximou da Imperatriz e encostou a lâmina da espada na carne do
próprio braço, fazendo um corte pequeno, mas fundo. Baixou o ferimento até o
rosto da Imperatriz e deixou que o sangue pingasse em seus lábios. A princípio ela
mal reagiu, os lábios exibindo apenas um leve tremor, mas logo a sua boca se
abriu mais, permitindo que o sangue escorresse para a garganta, fazendo com
que as suas costas se arqueassem. O Aliado afastou-se enquanto ela continuava a
convulsionar, jogou a espada de lado e arrancou um pedaço da camisa para
enfaixar o ferimento.
— Já que você me privou de meu império — disse ele a Vaelin, rangendo os
dentes em volta do trapo ao apertá-lo —, construiremos outro.
O Aliado se aproximou e parou mais uma vez ao lado de Ly rna, percorrendo
o rosto perfeito dela com os olhos.
— Ela será a Rainha Salvadora, que veio do outro lado do oceano para livrar
o povo volariano do reinado homicida da Imperatriz Elverah. E você — sorriu ele
a Vaelin — será o grande e nobre general. Pense nos exércitos que criarão
juntos, nas terras que conquistarão. E em cada terra que capturarem, vocês irão
procurar os dotados.
O seu sorriso se evaporou ao se aproximar de Vaelin, o rosto perdendo toda a
simulação de humanidade, a malícia pura daquela coisa revelada num rosnado
trêmulo.
— E você irá sacrificá-los ao seu novo deus. Pode levar décadas, pode ser
que eu faça você ter filhos com a minha rainha-fantoche para que eles possam
continuar o trabalho. Mas, com o tempo, os dotados deste mundo desaparecerão
e eu finalmente poderei seguir em frente.
O Aliado aproximou-se ainda mais e baixou a voz até se tornar um sussurro:
— As pedras cinzentas foram as fundações da nossa grandeza, receptáculos
de memória e sabedoria, capazes de transmitir os nossos pensamentos através de
vastas distâncias. Com elas construímos uma era de paz e sabedoria, então
encontramos a pedra negra e achamos que fosse outra bênção. Ah, as dádivas
que concedeu! À minha esposa, o poder de curar; ao seu irmão, a habilidade de
atravessar as brumas do tempo. Dons tão maravilhosos, mas não para mim. Para
mim, a pedra tinha uma maldição. Sabe o que é viver num mundo de harmonia,
um mundo imaculado pela cobiça, e possuir verdadeiro poder? O poder de
comandar com um único toque, o poder de forçar um homem a matar. Eu não o
queria, queria algo melhor, algo mais. Porém, a pedra negra concede apenas um
dom, permite apenas um toque. Pois, como os que a escavaram pagaram caro
ao descobrir, com um toque você recebe um dom, com dois você perde a alma.
“Assim, ano após ano, década após década, eu resisti contra o meu dom.
Construí cidades, ensinei, espalhei sabedoria pelo mundo, e não usei o meu dom
uma única vez. E a minha recompensa? Uma esposa sacrificada para salvar uma
raça de selvagens que não tinha inteligência suficiente para escrever o próprio
nome. Este mundo, este mundo de feras imperfeitas que se consideram acima da
natureza. Que lealdade eu lhe devia agora? Por que não tomar o que me havia
sido negado?
“Não me lembro de seu nome, mas ele foi o primeiro a tocar na pedra negra,
o primeiro a receber um dom. Um poder imenso, como o meu, um poder que
ele preferia não usar. Mas havia ocasiões em que ele o demonstrava, mantendo
voluntários imobilizados durante horas. Seria possível pensar que era um
divertimento inofensivo. Porém, eu vi o que era de fato: uma barreira, uma
anulação do poder que me fora concedido.
“Com o tempo nos tornamos grandes amigos. À medida que a idade o
deixava debilitado e ele começou a contemplar as provações que teria pela
frente, não foi difícil persuadi-lo a uma última aventura, um segundo toque na
pedra que o pouparia de tanta dor, deixando o seu corpo vazio, enquanto o seu
dom permaneceria em seu sangue.
“Eu não sabia, é claro. Não percebi o que estaria libertando. Nós tocamos em
algo, veja bem. Quando encostamos na pedra negra. Tocamos em algo além
deste mundo. Outro lugar, um lugar onde o que você chama de Trevas é
supremo, um lugar de caos absoluto. Ao fazer com que uma alma tão poderosa
tocasse na pedra, perfurei o véu entre os mundos e o soltei no nosso, e ele se
espalhou por toda a terra como uma praga, fundindo-se a algumas almas,
entrando no sangue delas de maneira que cada geração daria origem a mais, e
criando assim uma armadilha para as suas almas. Pois nós as tornamos reais. Ao
lhes dar um lugar onde residir, criamos a alma. Havíamos criado a vida após a
morte. São elas que me mantêm no Além. O poder delas me sustenta, alimenta e
me mantém cativo naquela prisão eterna. Tentei muito não fazer isso, mas
mesmo lá, num lugar sem forma ou qualquer sensação que não o frio
interminável, mesmo lá o instinto de me alimentar é irresistível, e se não restar
nenhuma alma aqui, não haverá mais nada para me sustentar quando eu decidir
abandonar esta carne.”
Ele recuou e o seu semblante estranho retomou a impassibilidade anterior.
— Para falar a verdade, eu não tinha certeza de que poderia deturpar você
aos meus propósitos. Algumas almas simplesmente não possuem a malícia que
as tornam instrumentos úteis. Mas então vi você cortar fora a cabeça daquele
animal no norte. Não pense que não sou generoso. — O Aliado ergueu a mão e a
estendeu na direção da testa de Vaelin. — Também farei de você um deus, se
quiser.
A mão parou a um centímetro da pele de Vaelin e os olhos do Aliado se
arregalaram em choque ao ver o punho fechado sobre o seu pulso.
— A semente germinou — disse Frentis.
CAPÍTULO CATORZE
Frentis

O Aliado bateu com a mão livre no punho de Frentis; seu rosto estava contorcido
e a pele ficou vermelha enquanto tentava usar o seu dom. Frentis afastou a mão
dele com um tapa e o empurrou, forçando-o a ficar de joelhos.
— Eles estão presos a mim para sempre — rosnou o Aliado para ele,
gesticulando para as figuras paralisadas ao redor. — Enquanto eu estiver vivo
neste mundo, eles são meus. Somente a morte desta carne irá libertá-los.
Frentis o ignorou e olhou com expectativa para a porta aberta na extremidade
norte da arena.
— Então foi por isso que Revek se agarrou à sua casca por tanto tempo. — O
Aliado deu uma gargalhada rouca. — Assumir outra o teria deixado mais uma
vez suscetível ao meu toque. Então ele lhe deu o seu sangue para libertar você
assim como ele havia se libertado. — O júbilo dele desapareceu e o Aliado
sibilou para Frentis, os olhos brilhando com uma promessa maligna. — Você não
devia ter revelado esse segredinho, garoto. Tudo o que conseguiu foi garantir a
morte de todos que já estiveram sujeitos a mim. Embora eu possa levar anos.
Acha que o tempo é uma barreira para mim? Os séculos que aguentei no
Além…
Frentis lhe deu uma bofetada no lado da cabeça, e a força do golpe foi
suficiente para deixar o Aliado atordoado e quase desmaiar.
— Você parece assustado demais para um deus.
— Amado.
Ela estava de pé ao lado do corpo do macaco, vermelha da cabeça aos pés,
mas novamente ilesa: os talhos que haviam sido abertos em seu peito estavam
fechados e lisos. O rosto era o de uma estranha, mas o olhar era o mesmo: de
afeição altruísta, de amor verdadeiro.
— Você trouxe o curandeiro? — perguntou ela.
Frentis olhou de novo para a porta e viu a garota lonak entrar, conduzindo
Lekran e os Politai para a arena. Vaelin havia dito a ela que esperasse até que a
sua canção lhe dissesse que era seguro. Artesão vinha à frente dos Politai,
mantendo o olhar fixo no Aliado.
— Vejo que trouxe — observou a mulher. — Imagino que não faça diferença
agora. Parece que o seu irmão encontrou um receptáculo melhor.
Frentis virou-se de novo para ela e notou que a mulher havia recolhido uma
espada curta da areia e ia determinada na direção da Rainha.
— Não! — gritou ele, bloqueando o caminho dela.
A mulher parou e soltou um suspiro de frustração.
— Ela tirou você de mim — explicou a mulher com sua voz de tutora
impaciente. — É necessário um ajuste de contas.
— Sim. — Ele ergueu a própria espada. — Sim, é necessário.
— Não está vendo? — disse a mulher, repreendendo-o com uma raiva súbita,
apontando para o Aliado. — Ele está enfraquecido agora. Beberei o sangue dele
e tomarei os seus dons. O mundo pode ser nosso.
— O que você faria com ele? Hoje atravessei lutando uma cidade de
horrores, todos causados por você. Como pode sonhar que eu permitiria que
fizesse isso com o mundo?
— Porque você me ama! — Os olhos novos dela eram bonitos, Frentis notou.
Lagos escuros e límpidos numa máscara pálida, sem qualquer crueldade, mas
completamente loucos.
— Você está doente — disse ele. — E eu trouxe o curandeiro…
Ela soltou um grito de frustração e tentou desviar dele, estendendo a espada
para as costas expostas da Rainha. Frentis forçou a lâmina para o lado com a sua
e tentou agarrar o pulso da mulher na esperança de desarmá-la. Ela era rápida
demais e girou para longe, deixando um corte em seu ombro.
— Você fala de doença — rosnou ela. — Vivemos num mundo de doenças.
Você lamenta pelos que matei hoje. Alguém já lamentou por mim? Matei
durante décadas para construir este império de imundície e ganância. Era meu
para destruir.
Frentis sentiu o braço esquerdo adormecer enquanto o sangue quente escorria
pelas suas costas.
— Por favor! — implorou ele. — Se ele consegue curar um corpo, talvez
consiga curar uma mente.
A mulher parou por um segundo e franziu a testa, confusa.
— Na noite em que matei meu pai, ele não estava com medo. Escarneceu de
mim, cuspiu com desprezo. Ele disse, “Eu devia ter bebido o seu sangue na noite
em que bebi o da vadia da sua mãe”. Ele pode curar isso?
— Não sei. — Frentis estendeu a mão na direção dela, o braço gelado e
trêmulo. — Mas podemos…
A flecha a atingiu no peito, seguida depressa por outras duas. A mulher
cambaleou, a confusão sumindo ao ver as penas, com uma expressão de
compreensão total e sã no rosto.
A garota lonak foi para o lado de Frentis com a corda do arco puxada e
disparou outra flecha no pescoço da mulher, que desabou na areia. Frentis
observou a garota se aproximar e chutar com força o cadáver, estreitando os
olhos enquanto examinava a mulher à procura do menor sinal de vida. A lonak
olhou para Frentis e franziu o cenho com o que viu em seu rosto.
— A canção foi clara — disse ela.
Ele ouviu um leve gemido às suas costas e virou-se, vendo Artesão segurar
com gentileza o homem caído na areia e fazendo-o se sentar. Os Politai os
cercavam com as lanças apontadas para o Aliado.
— Há uma grande doença em você — disse Artesão. — Deixe-me ajudar.
Os sentidos do Aliado pareceram retornar quando Artesão o abraçou com
força, lutando debilmente e então jogando a cabeça para trás para gritar.
P ART E V
Aquele sobre o qual se descubra ter difundido a mentira de que a vida humana
pode ser prolongada através da prática abominável do consumo do sangue dos
dotados estará sujeito à detenção sumária e sua punição será determinada de
acordo com a Palavra da Rainha. Quaisquer obras que contenham esta mentira
estão sujeitas à apreensão e destruição imediata.

— O Décimo Decreto da
Rainha,
assinado de bom grado por
ela como Lei do Reino no
sexto ano de seu reinado
RELATO DE VERNIERS

Apesar dos dedos grossos, Raulen possuía uma letra bela e fluida que estava à
altura de qualquer escriba. Além disso, a sua voz de leitura era igualmente
competente, e ele recitou as palavras que eu acabara de ditar num tom regular e
sem deslizes.
— “… e, assim, a Rainha Lyrna Al Nieren pisou mais uma vez no solo de sua
amada terra natal” — leu ele. — “E a sua vingança seria terrível.”
— Muito bom, Raulen — falei. — Acho que já chega por hoje.
— Obrigado, meu senhor. — Ele se levantou do banco e foi até a porta da cela.
— A mesma hora amanhã, então.
— Meu julgamento começa amanhã — lembrei-lhe.
— Sim. — O carcereiro suspirou, parando na porta e forçando um sorriso. —
Sem dúvida esta grande obra será terminada quando a sua inocência for provada.
— Sem dúvida. — Retribuí o sorriso, grato pela mentira.
— Até mesmo os seus carcereiros são eruditos — observou Fornella depois
que a porta pesada foi fechada, deixando-nos sozinhos. Ela estava sentada no
catre estreito, cercada por maços de pergaminhos. Sem ter muito mais com o que
se ocupar durante os longos meses de nosso cativeiro compartilhado, ela assumira
a tarefa de traduzir o meu manuscrito para volariano, apesar da plena consciência
de ser mais provável que o trabalho permanecesse inacabado.
Meus olhos percorreram o seu cabelo agora quase todo branco, preso para
trás num coque firme. Nas últimas semanas, leves manchas vermelhas haviam
surgido na pele de seu couro cabeludo e de suas mãos e as rugas em volta dos
olhos estavam cada vez mais fundas, embora ela suportasse tudo sem reclamar.
Apesar das muitas mensagens que pedi que Raulen transmitisse a cada oficial
imperial de que consegui me lembrar, Fornella não teve permissão para deixar a
cela uma vez sequer para dar o aviso que trazia consigo. Nossa jornada havia sido
de fato um fracasso abjeto e parecia que a sobrevivência do império agora
dependia inteiramente dos propósitos vingativos da Rainha Lyrna. Eu sabia que
era uma esperança absurda. Apesar de toda a sua inteligência e da astúcia
marcial de Al Sorna, o Império Volariano era monstruoso. É necessário um
império para destruir um império, concluí, pegando uma pena e um pergaminho
para anotar isso.
— Espero que seja algo para ajudar na sua defesa — disse Fornella, erguendo
a cabeça do próprio trabalho.
— Eu não tenho defesa, a não ser a verdade. E isso não me servirá de nada
agora. A Imperatriz, em sua sabedoria e benevolência, designou não menos do
que seis advogados instruídos para me representar no julgamento. Todos eruditos
legais experientes de impecável reputação e, como vi com clareza em seus rostos,
sem absolutamente nenhuma esperança ou expectativa de conseguir a minha
absolvição. Escutei com educação todos eles antes de dispensá-los do dever com
a declaração de que eu iria conduzir a minha própria defesa, o que lhes causou
um alívio evidente.
— A garota estava mentindo — prosseguiu Fornella. — O mais cego dos tolos
poderia ver isso.
— E se eu fosse julgado por um júri de tolos cegos, talvez tivesse uma chance.
Mas haverá apenas uma jurada, e ela está longe de ser cega. Contudo, nem
mesmo ela pode me negar o direito de falar após ser condenado. Só posso esperar
que haja ouvidos para escutar o aviso.

Não obstante a calma que eu mantinha, uma calma que confesso ainda me
desconcertar, não consegui dormir aquela noite. Eu passara a noite organizando o
manuscrito e escrevendo um esboço para Raulen a respeito dos capítulos finais.
Ele concordara em levar cópias a alguns eruditos seletos que eu conhecia,
embora eu desconfiasse que aqueles que não as queimassem de imediato
poderiam tentar declará-las como obras próprias. Outra cópia seria entregue ao
Irmão Harlick em Varinshold, onde pelo menos teria um lar na Grande Biblioteca
que ele esperava reconstruir. Quando a pequena janela gradeada sobre a minha
cama começou a ficar escura, peguei uma pena e escrevi as palavras “Uma
História do Reino Unificado” numa folha de pergaminho em branco, um pouco
contrariado pelo fato de que a minha letra não era tão elegante quanto a de
Raulen, e a coloquei no alto da pilha organizada.
Deitei-me no meu catre em busca do descanso que eu sabia que não viria e
ponderando sobre uma questão de arrependimento profissional. Nunca ouvi o
relato completo de Al Sorna.
Em algum momento após a meia-noite, o meu cochilo parcial foi interrompido
por um leve rangido. Levantei-me, piscando na penumbra e sentindo meu coração
disparar ao ver a porta da cela se abrir lentamente.
Ela decidiu não esperar por um julgamento, concluí quando a minha calma
perene se desfez, e olhei desesperado em volta à procura de algum tipo de arma.
No entanto, Raulen era um carcereiro diligente demais para permitir que um
prisioneiro tivesse qualquer instrumento além do pequeno castiçal de madeira à
luz do qual eu escrevia.
Eu esperava Hevren, ou mais provavelmente algum servo imperial anônimo
com a habilidade de elaborar um suicídio convincente a partir de um assassinato.
Porém, a porta ao se abrir revelou uma forma esguia num vestido negro, de olhos
arregalados e assustados ao fazer sinal para que eu a seguisse com uma urgência
desesperada. Jervia.
Por um segundo só consegui olhar espantado enquanto ela continuava a
gesticular e os seus movimentos se tornavam mais frenéticos, então saí do catre,
vesti-me depressa e fui até Fornella. Durante estas semanas ela dormira mais
profundamente do que eu, quer pela chegada rápida da velhice, quer por uma
consciência aliviada. De qualquer forma, foram necessárias várias tentativas para
acordá-la e outras tantas para persuadi-la a sair da cama.
— Por que ela está aqui? — sussurrou Fornella, franzindo bastante a testa
enrugada ao encarar Jervia, que se remexia pouco à vontade no corredor.
— Eu não sei — respondi, voltando para o meu catre para calçar os sapatos. —
Porém, temos uma porta aberta, e pretendo usá-la.
Jervia colocou a mão sobre a minha boca quando me aproximei da porta para
impedir perguntas sussurradas, recuando e fazendo sinal para que eu a seguisse.
Olhei para Fornella, que agora estava vestida, mas não menos desconfiada.
— Não tenho certeza se consigo correr — sussurrou ela ao chegar do meu lado
e segurar a minha mão.
Eu a conduzi ao longo do corredor, passando pelas outras celas — notei que
estavam todas vazias — e indo até onde Jervia aguardava, junto ao portão
gradeado. Parei de súbito ao avistar Raulen, que estava posicionado ao lado do
portão e o mantinha aberto.
— Está tudo bem — sussurrou Jervia. — Ele não nos vê.
Aproximei-me do carcereiro e observei o seu rosto: tinha os olhos focados,
mas não em mim, um sorriso afetuoso nos lábios; o rosto de um homem que
contemplava uma visão que sempre estimara muito.
— Você fez isso — sussurrei para Jervia, esgueirando-me por Raulen e indo
para o lado da mulher.
Ela deu um sorriso nervoso.
— A filha dele morreu em Marbellis. Eu a devolvi a ele.
Dotada, compreendi, olhando de novo para o carcereiro com uma nova
apreciação pelo seu senso de dever. Todos aqueles anos com o Matador do
Esperança ao seu alcance e ele nunca tentou se vingar.
— Não vai durar — disse Jervia, puxando a minha manga.
Ela me conduziu pelos parcos alojamentos de Raulen até a ala norte do
palácio, que era apenas levemente mais ornamentada, composta por uma série de
depósitos e alojamentos onde o exército de criados imperiais dormia. Encontramos
somente dois guardas, todos com a mesma expressão de ilusão concentrada de
Raulen. Vi Jervia passar o punho da manga pelo rosto enquanto prosseguíamos,
notando a mancha escura de sangue em sua pele e imaginando o tamanho do
esforço que ela estava exercendo para facilitar a nossa fuga.
Atravessamos o pátio agachados, embora os dois guardas no portão norte não
tivessem demonstrado qualquer sinal de notar nossa passagem.
— Precisamos nos apressar — disse Jervia, rumando para a terra relvada que
se encontrava além da estrada. — As ilusões irão desaparecer logo.
— A estrada… — comecei, mas ela sacudiu a cabeça.
— Vigiada demais, meu senhor. Tenho uma corda presa no penhasco e um
barco aguardando no rio.
— Eu… — ofegou Fornella, e parou; seu rosto estava abatido à pouca luz do
luar. — Não posso.
— Não é muito longe…
— Deixem-me — gemeu ela, dobrando-se para a frente e caindo de joelhos,
enchendo os pulmões com arfadas irregulares.
— Meu senhor! — implorou Jervia.
Agachei-me e passei o braço em volta dos ombros de Fornella, franzindo o
cenho ao ver o seu rosto, os olhos alertas com um aviso e sem sinal de fadiga.
— É ele — sussurrou ela. — O Mensageiro. Conheço o fedor dele.
Empertiguei-me e encontrei o olhar de Jervia, vendo apenas uma jovem
assustada forçada a cometer um ato corajoso.
— Um momento, por favor — falei. — Ela está envelhecendo a cada dia que
passa.
Jervia assentiu com relutância, olhando sem parar ao redor à procura de
qualquer sinal de perseguição.
— Diga-me — falei. — Que ameaças a Imperatriz fez para coagi-la a dar
aquele testemunho?
Uma careta de aflição surgiu no rosto da jovem.
— Meu pai foi preso acusado de traição. Logo quando começamos a receber
notícias do que havia acontecido no Reino Unificado.
— Ela sabia que o meu retorno seria iminente, e então preparou a armadilha.
— Suponho que sim.
— E quanto àquela história ridícula sobre a espada?
— Inventada por Lorde Velsus, por ordem da Imperatriz. Eu não tive escolha,
meu senhor.
— É claro. — Apertei o ombro de Fornella e me afastei, mantendo uma
distância da nossa libertadora. — Conheço Lorde Velsus há quase vinte anos. Ele é
um intimidador arrogante, convencido e opinioso. Mas nunca foi um mentiroso,
visto que desconfio que ele não possua imaginação suficiente para engodos.
Ela não disse nada, mas notei como os seus olhos se estreitaram e como levou
a mão às dobras do vestido.
— Você desempenhou bem o seu papel — falei, continuando a me afastar de
Fornella, e Jervia girou para acompanhar cada passo que eu dava, os músculos
de seu antebraço retesando-se ao apertar algo com força. — Tão relutante e
arrependida, determinada a ganhar a minha confiança quando foi abrir a porta da
minha cela. Quando aconteceu? Foi quando você contraiu a Mão Vermelha?
Ela olhou depressa para Fornella, que agora gemia e balançava a cabeça
grisalha para a frente, e então se virou para mim com um rosto diferente. Era
como se tivesse realizado algum truque de mágica, trocando o rosto de uma
donzela doce e corajosa por algo muito mais velho, a malícia evidente em cada
ruga e no sorriso retorcido de escárnio.
— Você não era tão corajoso quando nos encontramos pela última vez — disse
ela, a voz clara de Jervia transformada em algo mais ríspido e familiar.
— Coragem? — Dei uma risada muito baixa. — Considero a coragem apenas
outra das ilusões da vida. No fim, todos nós fazemos o que temos de fazer.
— Muito profundo. E verdadeiro. Pois esta noite você precisa saltar de um
penhasco, após escapar por meio de artes mágicas abomináveis, sem dúvida
aprendidas com os seus amigos no norte. Talvez a culpa o tenha levado a fazer tal
coisa, ou pode ter sido um último ato de desafio. Uma recusa em permitir que a
Imperatriz tivesse a sua justa recompensa por todos os seus atos odiosos. Tenho
certeza de que os eruditos irão ponderar sobre a questão nos anos que estão por
vir.
— Você nunca se cansa disso? De todos esses anos passados cometendo
assassinatos e crueldades? Não deseja ser mais do que o escravo de um monstro?
— Escravo? — Os lábios retorcidos se abriram numa risada. — Ele não me
escravizou. Todos esses anos a serviço dele nunca foram um castigo. Cada vida
tomada, cada semente de caos semeada, tudo isso foi a minha justa recompensa,
pois este mundo merece toda a devastação que eu puder causar. Após você ter
recebido o seu merecido fim, o olhar da Imperatriz inevitavelmente se voltará
para o norte, onde o Reino Unificado se encontra privado de boa parte de seu
poderio bélico, uma vez que a Rainha deles busca a sua vingança ensandecida do
outro lado do oceano. Por que acha que ela está reunindo a sua frota?
— Instigada por mais de suas mentiras, presumo.
— Ela vê muita sabedoria nos meus conselhos e, com o tempo, o pirralho dela
também verá. Eu praticamente a convenci de que a prática de escolher um
herdeiro entre a população é uma tradição arcaica e mesmo insensata. Quem
melhor para governar do que uma criança nascida daqueles que conhecem os
fardos do poder? Uma criança nascida de uma Imperatriz e de um Esperança,
ainda por cima.
Dei um passo involuntário na direção dela, cerrando os punhos de fúria.
— Aquele garoto não é para você.
Ela tirou a mão do vestido e a faca reluziu ao luar quando se agachou,
forçando-me a parar.
— Aquele garoto concluirá a destruição do Reino Unificado e irá conquistar o
Império Volariano — disse ela. — Seus filhos construirão uma frota poderosa para
levar a civilização alpirana a todos os cantos do mundo. Não é para se regozijar
com tal perspectiva, meu senhor? Seu amante sem dúvida se regozijou.
Dei outro passo adiante e ela atacou, a lâmina passando perto o suficiente para
me forçar a recuar.
— Você é uma mentirosa!.
Ela soltou uma risada estridente e satisfeita.
— Ele era um sujeito muito astuto. Tão instruído e fascinado pelas
oportunidades oferecidas por aqueles com dons singulares. Nós não o
corrompemos, Verniers. Não o seduzimos. Ele veio até nós, mas, como sempre, a
lâmina de Al Sorna conseguiu complicar os nossos planos.
Lancei-me sobre ela, minha fúria colocando de lado toda a razão, não me
importando com a faca. Ela se esquivou para o lado, ágil e veloz como qualquer
dançarina.
— Se não acredita em mim — disse ela, parando de girar e gesticulando na
direção do alto do penhasco. — Por que não perguntar a ele?
Eu estava prestes a me atirar sobre ela de novo, mas parei ao avistar algo
cintilando na escuridão para além do penhasco, algo que brilhou com um fulgor
incandescente por um momento antes de assumir uma forma familiar.
Fiquei paralisado, percorrendo com os olhos o seu rosto, com a mente vazia, a
não ser por um pensamento:
— Seliesen.
Ele estava parado lá, sorrindo o sorriso que eu conhecia tão bem, trajando o
manto simples que preferia usar na vida privada, o mesmo manto, na verdade, que
ele vestia na última vez que o vi. Seria preferível, e desonesto, registrar que eu
não fazia ideia de que aquilo era uma ilusão, que eu fui completamente iludido e
que perdi a razão por causa da habilidade perversa do dom roubado do
Mensageiro. Contudo, eu sabia que aquele era um fantasma, sabia que estava
sendo atraído para a minha morte enquanto corria para o alto do penhasco
gritando o seu nome. E eu simplesmente não me importava.
Ele desapareceu quando cheguei a trinta centímetros da beirada, tremeluzindo
como a chama de uma vela soprada pelo vento antes de ser apagada. Gritei de
pesar e pela derrota amarga, caindo de joelhos e berrando os meus chamados
para a escuridão indiferente. A única resposta que recebi foi o suave sibilar do
vento pelo capim.
Virei-me ao ouvir um som de engasgo às minhas costas e vi Fornella arrancar
uma faca do pescoço de Jervia, um jorro fino de sangue escapando ao segurar a
jovem de pé.
— Você devia ter pegado a faca do carcereiro — murmurou ela antes de se
livrar do corpo com uma careta.
Ela caiu de joelhos quando me aproximei, a fadiga óbvia e verdadeira agora, o
sorriso forçado e discreto.
— Eu lhe devia uma vida, não, meu senhor?
Fui até o corpo e, lutando contra a náusea, ergui-o, oferecendo a ela o
ferimento que ainda sangrava.
— Beba.
Ela observou sem muito interesse o sangue escorrer por um momento e então
desviou o olhar.
— Não.
— Isso fará com que se recupere…
— Já estou recuperada. Tire essa coisa da minha frente, por favor.
Deixei o cadáver escorregar de meus braços e me aproximei de Fornella,
amparando-a antes que pudesse cair. Ela se recostou em mim e respirava agora
em arfadas lentas e curtas.
— Logo amanhecerá — sussurrou ela.
Eu podia ver apenas um brilho tênue no horizonte — a alvorada só chegaria
dali a algumas horas —, mas ainda assim a abracei e sussurrei “Sim” em seu
ouvido.
Ouvi as passadas leves de botas no capim, uma companhia inteira, a julgar
pelo som, mas não me dei ao trabalho de me virar quando uma silhueta militar
parou ao meu lado.
— Então a Imperatriz nunca acreditou nela — falei.
Hevren não respondeu de imediato, e havia uma pontada de desconforto em
seu tom.
— Ela estava curiosa para ver o que aconteceria.
— Bem, imagino que isso satisfará a sua curiosidade.
— Sua inocência será proclamada pela manhã. Por ora, ela exige a sua
presença…
— Depois. — Segurei Fornella com mais força, sentindo apenas as batidas
fracas e minguantes de seu coração enquanto o seu cabelo grisalho roçava em
meu rosto. — Minha amiga e eu gostaríamos de ficar mais um pouco e assistir ao
nascer do sol.
CAPÍTULO UM
Vaelin

Ele se tornou completamente humano quando Reva os levou para as profundezas


da arena, como qualquer outro homem diante de seu fim: ora implorando, ora
barganhando, tendo acessos breves de resistência irracional.
— Vocês acham que estão aplicando a justiça em mim? Isto é simplesmente
vingança… Vocês não sabem o que sofri… Conheço muitas coisas, possuo uma
grande sabedoria, sabedoria pela qual qualquer rainha seria grata… Não sabem o
que sou? O que fiz?! Vocês são apenas uma mera mancha na minha grandeza…
Ele se calou ao ver a pedra negra em meio aos seus companheiros
silenciosos, a tocha de Reva pintando os cantos com um brilho amarelo.
— Vocês… — O Aliado ficou com a voz embargada e estremeceu ao forçar
as palavras a saírem: — Vocês pensam em me destruir com isso? Vocês… vocês
estarão me dando um presente de mais poder… — A mentira de suas palavras
ficou evidente no modo como ele se encolheu para longe da pedra, contorcendo-
se nas mãos de Frentis.
Ly rna correu os olhos pelas estátuas antes de passar por entre eles,
fornecendo a Vaelin uma lembrança indesejada do pai dela enquanto examinava
a pedra negra com intenso escrutínio.
— Você disse que isso foi escavado nos Confins do Norte? — perguntou-lhe a
Rainha.
— Sim, Alteza. Há milhares de anos.
— Então pode haver mais?
— O vidente não mencionou nada a respeito. Contudo, ficou claro para mim
que ele achava que era melhor deixá-la enterrada.
A Rainha assentiu lentamente e passou os olhos pelas estátuas, até pará-los no
homem barbado.
— Este é realmente ele? — perguntou ela, lançando um olhar duvidoso ao
Aliado, que começara a choramingar.
— Sim, Alteza.
— Quão grande pode ser a nossa queda — ponderou ela com calma,
tornando a olhar para as linhas nobres no rosto do homem barbado — se nos
entregarmos à malícia. — A Rainha virou-se para a pedra e fez sinal para que
Frentis trouxesse o Aliado.
Ele praguejou. Gritou. Resistiu, caiu e raspou o chão com as unhas, obrigando
Vaelin a ajudar o seu irmão a arrastá-lo até a pedra, onde se debateu até ficar
exausto, acabando por se largar entre eles de cabeça baixa enquanto chorava em
soluços lastimáveis.
— Apenas… — disse ele, entre arfadas. — Apenas me mate… Perdi todos os
meus dons, não ficarei preso no Além.
— Isso exigiria a morte do corpo que você roubou — retorquiu Vaelin. — E
eu fiz uma promessa ao dono dele.
— Você é um tolo! — O Aliado ergueu a cabeça de repente, cuspindo saliva
ao tentar avançar sobre Vaelin. — Não sabe o que é essa coisa!
— É um portal para outro lugar, um lugar que desconfio que fará com que
você se sinta mais em casa.
— Você não compreende. — Seus olhos se arregalaram ao percorrer a
superfície lisa da pedra, sem piscar, fixos de terror, a voz transformando-se num
sussurro rouco: — Quando a toquei, quando recebi o meu dom, eu olhei para
aquele mundo… e algo olhou para mim, algo imenso e faminto.
Vaelin olhou para o rosto coberto de suor do Aliado, para os olhos que não
piscavam, e não viu qualquer vestígio de mentira. Ele começou a exigir uma
explicação, mas Ly rna agarrou o pulso do Aliado.
— Então deixe essa coisa se alimentar — disse ela, batendo com a mão dele
na pedra.
Não se ouviu qualquer som, nenhum lampejo de luz das profundezas da
pedra, nem mesmo a mais leve mudança no ar bolorento da câmara. O Aliado
inspirou rapidamente e então ficou imóvel; Vaelin viu a luz desaparecer de seus
olhos, as feições logo ficarem flácidas, desprovidas de qualquer movimento.
Eles o mantiveram no lugar por mais um momento, e Ly rna examinou
atentamente as feições do que havia sido o rosto de Erlin. Vaelin o soltou e
recuou, Frentis e Ly rna fizeram o mesmo, afastando-se do homem imóvel e
calado quando sua mão caiu ao lado do corpo.
— Bem — disse Reva, tocando na pedra com a ponta da bota. — O que
faremos com isto?

***

— Os montanheses não serão tão amigáveis desta vez.


— Antes eles do que a grande água. — Alturk jogou um cobertor sobre o
dorso do cavalo e passou os alforjes por cima dele. O Tahlessa mancava de
forma perceptível nos últimos dias, levemente aliviado pelo bálsamo que o Irmão
Kehlan fornecera para aplicar no seu ferimento, o único presente que aceitara
dos merim her. — E temos ele para falar por nós. — Alturk indicou Lekran com a
cabeça, que se despedia de Frentis a alguns passos dali.
O ex-Kuritai causara certa comoção ao se apresentar à Rainha no dia
anterior, deixando de se curvar e em vez disso fazendo uma declaração formal
de amor e uma proposta de casamento. Ela escutara com paciência a longa lista
de vitórias do homem, suas desculpas por não fornecer as cabeças como prova e
a garantia de que, caso ela concordasse com a união, ele mataria de bom grado o
número exigido de inimigos em menos de cinco anos e abriria mão da própria
vida caso fracassasse.
“Apenas mil?”, perguntou a Rainha, rompendo o silêncio tenso que se seguira.
“Suba para três mil e me dignarei a considerar a proposta. Nesse ínterim, você
pode assumir o posto de capitão na minha guarda e farei de você embaixador de
seu povo. Volte para as montanhas e diga a eles que os dias de escravidão
acabaram e que pagarei um preço justo por quaisquer metais que quiserem nos
vender”.
— Você vai realmente enfrentar o gelo de novo? — perguntou Vaelin a
Alturk.
— O xamã disse que é mais fácil nos meses de verão. E dará uma bela
história. — Ele apertou uma tira no freio do cavalo e parou. — Ela era uma boa
mulher — disse o lonak. — Terei orgulho de contar a história dela e fazer com
que seja colocada na biblioteca da Mahlessa. Pois ela era lonak, e não devemos
nos esquecer de nossa gente, não importa qual nome escolham.
Vaelin recuou quando o Tahlessa montou no cavalo e ergueu o seu porrete de
guerra.
— Obrigado.
Alturk o encarou, os olhos astutos debaixo das sobrancelhas grossas.
— Um dia… — começou ele.
— Os lonaks empurrarão os merim her para o mar — completou Vaelin. —
Eu sei.
— Não. — Alturk sacudiu a cabeça. — Um dia os lonaks irão desaparecer,
espalhados e mortos na guerra, ou por nosso sangue se misturar com o dos
merim her até que as nossas histórias sejam esquecidas. Será assim com os
seordah, os eorhil, o povo do gelo e os montanheses. Compreendo agora. A
Mahlessa estava tentando nos proteger do nosso destino. Nós nos tornamos como
pedras agarradas à encosta de uma montanha. Mas as montanhas sempre
tremem, e as pedras sempre caem.
Vaelin o observou cavalgar para longe, acompanhado pelo Senthar ao
tomarem a Estrada Norte.
— Venha conosco. — Ele se virou e deparou-se com Urso Sábio montando
em Garra de Ferro, com o cajado de osso na mão. — Este lugar é ruim, cheio de
fedor e calor, e longe demais do fogo verde.
— Verei você no Estreito do Espelho em breve — disse Vaelin, mas Urso
Sábio apenas sorriu, dizendo algo com os cliques da sua língua insondável, e
Garra de Ferro partiu em direção à estrada.
Mishara veio cutucar a sua mão com o focinho quando Kiral se aproximou e
Astorek aguardava entre os seus lobos. Ela não lhe deu um abraço, nem mesmo
um sorriso, sua cicatriz quase invisível à luz brilhante do sol. Davoka se
encontrava ali perto, de cabeça baixa e braços cruzados. A despedida delas havia
sido longa e com algum rancor.
— Minha canção varia quando olho para você — disse Kiral por fim. —
Escuto tantas notas diferentes agora, como se ela não soubesse que caminho você
tomará. Alguns são brilhantes, alguns sombrios. Não era assim quando nos
encontramos pela primeira vez.
Mishara deu uma última lambida em sua mão e partiu no encalço de Garra
de Ferro, e o urso soltou um rosnado irritado quando ela lhe mordiscou as ancas
de brincadeira.
— Espero que esteja mais clara quando eu a encontrar de novo — disse
Vaelin a Kiral, olhando de relance para Astorek, que acenou animado e seus
lobos começaram de imediato um coro de uivos. — Fico feliz que a sua canção a
tenha conduzido à felicidade.
— Será bom caçar de novo — disse ela, parando para olhar uma última vez
para Davoka antes de montar no cavalo. Ele observou até a poeira da partida
deles assentar na Estrada Norte, embora ainda fosse possível ouvir os lobos muito
tempo depois.

— Prometi que voltaria — disse Frentis, erguendo a mochila. — Mesmo que


tenha sido uma promessa feita a um homem que agora está morto. E o Aspecto
Arly n me designou para estabelecer uma missão conjunta com a Quinta Ordem.
Eles ainda se agarram a ela, pensou Vaelin, acompanhando Frentis ao longo
do cais. Apesar de todo o conhecimento que obtiveram, a Fé permanece e busca
crescer.
— Além do mais — continuou Frentis —, tenho a impressão de que a Rainha
ficará mais à vontade se eu não estiver aqui.
Vaelin não via como questionar esse ponto; a Rainha permanecera gélida na
presença de seu irmão e ele sabia que Ly rna lembrava-se muito bem das últimas
palavras dele à Imperatriz. No entanto, como principal arquiteto do que estava
rapidamente se tornando conhecida como a Grande Liberação, a posição de
Frentis entre a população libertada alcançara proporções quase míticas. Por toda
parte ex-escravos paravam para se curvar diante dele, alguns corriam até ele
com agradecimentos fervorosos e oferendas. Tampouco todos os seus
admiradores eram escravos; muitos cidadãos livres o viram lutar para salvá-los
dos Arisai.
— Você sabe que sempre haverá um lugar para você nos Confins — disse
Vaelin. — Caso um dia se canse da Ordem.
— Esse dia nunca chegará, irmão. Acho que você sabe disso. — Frentis parou
não muito longe da rampa e olhou para o alto, na direção dos rostos cheios de
expectativa que aguardavam junto à amurada do navio. A Irmã Illian, que
encarava Vaelin com um semblante um tanto sério. O capitão cabeludo que
trocava uma piada obscena com o ex-escravo. E o louco Mestre Rensial,
equilibrando-se em muletas e franzindo o rosto para Vaelin como se tentasse se
lembrar de seu nome. Ele tem a própria Ordem agora, concluiu Vaelin, uma
pontada de inveja misturando-se com satisfação em seu peito.
— Kiral disse que você tentou salvá-la — disse Vaelin. — A Imperatriz.
— Uma vez atravessamos um império cometendo assassinatos e matamos
um rei — retorquiu Frentis. — E, ainda assim, eu fui salvo. Por que não ela?
— Ela era monstruosa. Irmão Hollun estima que quase meio milhão de
pessoas morreram por ordem dela.
— Ela era aquilo no que foi transformada. — Frentis levou a mão à camisa,
procurando sentir cicatrizes que não mais existiam. — Assim como eu. Sei no
meu coração que ela poderia ter sido transformada em algo… melhor.
Ele deu um leve sorriso e se abraçaram.
— Meus cumprimentos à sua irmã — ofereceu Frentis, afastando-se e
pisando na rampa, onde parou mais uma vez. — Ainda tenho os sonhos, irmão.
Não todas as noites, mas na maioria delas. Ela vem até mim e a acho mais fácil
de suportar agora.
Frentis sorriu mais uma vez e embarcou no navio, o último dos cães da Fé
pulando de excitação para lhe lamber o rosto quando ele pisou no convés e
desapareceu de vista.

A Rainha reuniu a corte no que fora a casa do Conselheiro Arklev, uma mansão
de terrenos vastos que se beneficiavam de uma muralha alta ao redor e uma
grande sala de audiências. Um pequeno exército de funcionários trabalhava nos
muitos aposentos da mansão para lidar com a copiosa correspondência produzida
por um império que agora se via parte de um Reino. As questões eram muitas e
variadas: de fome no sul a declarações de secessão a leste, onde algumas forças
militares volarianas persistiam, aparentemente devido à atitude pragmática do
governador provincial que levara suas forças para realizar manobras
prolongadas, evitando assim mensageiros imperiais que traziam a sua sentença
de morte.
Nas semanas após a captura da cidade, a Rainha se vira diante de um fluxo
contínuo de requerentes, a princípio dezenas, passando depois a centenas. Vários
grupos rebeldes buscavam reconhecimento, representantes das cidades e
povoados mais tranquilos exigiam proteção contra vizinhos menos plácidos e,
principalmente, mercadores apareciam com ofertas generosas por concessões
comerciais exclusivas.
Vaelin foi recebido na porta da sala pela Senhora Lieza, salva da arena e
agora elevada ao lado da Rainha por virtude de suas habilidades com
correspondências, sem falar no conhecimento profundo das leis e costumes
variados daquela terra recém-conquistada.
— A Rainha pediu que entrasse imediatamente, meu senhor — disse a dama,
cuja habilidade com a língua do Reino aumentava rapidamente.
— Quantos hoje? — perguntou Vaelin quando ela fez sinal para que os
guardas abrissem a porta.
Lieza deu um sorriso tenso.
— Apenas um.
A Rainha estava falando quando ele entrou, o tom surpreendente em sua raiva
contida.
— E a sua Imperatriz espera que eu simplesmente concorde com isso sem
negociação?
Lorde Verniers parecia ter envelhecido desde que Vaelin o vira pela última
vez, embora também parecesse estar um pouco mais empertigado agora e não
demonstrasse muita reação diante da ira da Rainha.
— Ela está fazendo a cortesia de lhe informar sobre suas ações, Alteza —
disse ele. — E não vê motivo para um conflito no tocante a esta questão.
Ele se calou quando Vaelin entrou, parando para fazer uma mesura curta de
boas-vindas.
— Lorde Vaelin — disse a Rainha, cumprimentando-o. — Parece que Lorde
Verniers ficou mais importante desde que nos deixou. Permita-me apresentar o
embaixador alpirano no Reino Unificado.
— Parabéns, meu senhor — disse Vaelin a Verniers, retribuindo a mesura.
— Ele veio me dizer que uma de minhas cidades encontra-se agora nas mãos
de sua Imperatriz — prosseguiu a Rainha.
— Verehl era uma cidade alpirana muito antes do Império Volariano sequer
existir, Alteza — retorquiu Verniers. — E devo salientar que a captura da cidade
ocorreu enquanto a guerra ainda estava em andamento. As ações de uma aliada,
na verdade.
— Uma aliada teria enviado a sua frota para o Estreito e ajudado a capturar
esta cidade, não roubado outra. — Ly rna levantou-se do trono e aproximou-se de
Verniers com o rosto tenso de raiva. — Sua Imperatriz tem alguma noção do
exército que comando agora? Ou da natureza da espada que empunho?
Conquistei um império em poucos meses. Se eu quisesse, poderia conquistar um
mundo.
— Alteza… — começou Vaelin, mas ela fez sinal para que se calasse,
afastando-se e suspirando de frustração.
— Acho que seria melhor se o senhor voltasse amanhã, Lorde Verniers,
quando o meu humor estiver mais adequado à diplomacia. Lorde Vaelin, o
senhor ficará. Temos questões militares a discutir.
Vaelin tocou a manga de Verniers quando ele se curvou e seguiu para a porta.
— E a volariana?
Verniers deu um passo deliberado para trás, para longe dele.
— Ela morreu — respondeu, com o rosto inalterado.
— Sinto muito. Tínhamos informações de que havia um agente do Aliado em
Alpira…
— Ele também morreu. — Verniers curvou-se mais uma vez e saiu da sala.
— O que acha? — Vaelin virou-se e deparou-se com a Rainha
cumprimentando-o com um sorriso, a raiva tendo desaparecido de forma
abrupta. — Talvez um pouco dramático demais?
— Estou certo de que Vossa Alteza sabe como lidar com um embaixador.
— Na verdade, é uma habilidade que estou tendo de aprender com certa
rapidez. Então, acha que devemos retomar Verehl?
— A decisão não é minha, Alteza. E a senhora tem um Senhor da Batalha
para aconselhá-la nas praticidades de tal empreitada.
— Não preciso de Al Hestian para me dizer que seria impossível, pelo menos
por mais um ano. Verehl fica na costa meridional, um lugar bastante
desagradável, ao que tudo indica, cercado pela selva e sujeito a tempestades
anuais de uma ferocidade lendária. Seu único valor está no comércio de
especiarias, que contribui com menos de metade de um centésimo para o tesouro
imperial. Desconfio que a Imperatriz Emeren queira me testar, lançando uma
isca para ver se eu mordo.
— Dada a animosidade entre os nossos povos, uma cidade de pouco valor
parece ser um preço pequeno a se pagar para curar a ferida.
Ela soltou uma risada e sacudiu a cabeça, voltando para o trono.
— Sempre o pacificador, mesmo agora.
— Eu esperava que Vossa Alteza tivesse me chamado aqui para discutir a
minha petição.
— E chamei, embora eu quisesse acrescentar um pouco de espetáculo para
Lorde Verniers. — Ela se sentou no trono e aceitou um copo d’água de Iltis. —
Você quer ir para casa.
— Com a minha irmã, sim.
O rosto de Ly rna ficou um pouco anuviado enquanto bebia.
— Eu soube que a Senhora Alornis está… melhorando.
— Ela tem pesadelos sempre que dorme e, quando está acordada, mexe
constantemente nas máquinas que construiu para a senhora. Alornis me disse que
a cada dia que passa ficam mais letais. Ela parece ansiosa para vê-las em ação.
Eu, não.
— Concordamos que esta guerra precisava ser vencida, Vaelin, e todos
demos muito de nós para a vitória. Sua irmã mais do que a maioria, fato pelo
qual sinto muito. Mas ela é uma mulher adulta e nunca a forcei a ação alguma.
— Ainda assim, mantenho a minha petição e peço a sua resposta.
Ly rna virou-se para Iltis, entregou-lhe o copo e pediu que os deixasse a sós.
— Você precisará de um novo comandante para a Guarda do Norte — disse
ela quando o Lorde Protetor se retirou. — Lorde Adal pediu para ser dispensado
do serviço.
Vaelin assentiu, resignado. Fora difícil dar a Adal a notícia da morte de
Dahrena, piorada pela compostura rígida do homem e pelas respostas secas a
todas as perguntas. No entanto, a acusação em seu rosto ao fazer uma mesura e
se retirar fora bastante evidente. Ela teria sobrevivido se tivesse amado a ele em
vez de a mim.
— Imagino que a senhora encontrará um serviço adequado para ele — disse
Vaelin à Rainha.
— De fato. Estou pensando em criar uma Guarda do Leste para os meus
novos territórios. A guerra nos deixou com muitas mãos capazes para preencher
as fileiras, e quem melhor para comandá-las?
— Uma boa escolha, Alteza. Peço que Lorde Orven seja o seu substituto.
— Como quiser, sujeito a ele concordar com a indicação. Creio que ele
ganhou o direito de escolher os seus comandados.
Ly rna levantou-se de novo e caminhou até a janela. A casa do Conselheiro
Arklev ficava numa colina com uma bela vista para o porto, ainda tomado pela
frota, apesar de um pouco diminuída agora. O Escudo zarpara dois dias após a
captura da cidade, levando consigo talvez um décimo dos meldeneanos. Havia
rumores de uma disputa irascível com o Lorde Almirante, de desafios feitos e
sabres desembainhados, embora Lorde Ell-Nurin parecesse ileso quando Vaelin
tornou a vê-lo, fazendo uma longa mesura para a Rainha quando ela o presenteou
com uma espada e uma concessão de terra na costa sul asraelina.
— Você se lembra da noite em que nos conhecemos? — perguntou Ly rna.
— Vossa Alteza me surpreendeu, eu arremessei uma faca contra a senhora.
— Sim. — Ela sorriu. — Eu a guardei. Ela salvou a minha vida, na verdade.
— Fico feliz.
— Havia uma pergunta que eu lhe fiz na época, uma que não farei de novo,
pois agora tanto a pergunta quanto a resposta são redundantes. Porém, sempre
tive curiosidade: você alguma vez se arrependeu por ter dito não?
Vaelin notou que o cabelo dela estava totalmente crescido agora, mais longo
do que jamais fora, uma cascata dourada à luz da janela. E o seu rosto, a
perfeição de porcelana acentuada pelas poucas e pequenas rugas de experiência
e pela inteligência aguçada que brilhava em seus olhos, não mais sujeita a
qualquer repressão.
— É claro — mentiu ele. — Que homem não se arrependeria?

Artesão estava no meio dos Politai, falando em voz baixa, mas com veemência
enquanto eles se aglomeravam ao redor. Estavam mais animados do que Vaelin
jamais os vira, muitos o interrompiam para falar algo, rostos revelavam
emoções distintas que iam da tristeza à raiva. Os que haviam sido libertados mais
recentemente estavam afastados, as testas franzidas de perplexidade, mas não
deixavam seus irmãos. Frentis dissera que se comportavam sempre assim, que
eram incapazes de ficar sozinhos ou de tolerar a companhia daqueles que não
eram como eles.
Nós libertamos algo?, pensou Vaelin consigo mesmo. Ou desencadeamos?
Depois de mais de uma hora de discussão, Artesão terminou de falar e os
Politai começaram a se dispersar, retornando às casas que ocupavam ao redor.
Aquele distrito havia sido inteiramente despovoado pelos Arisai, deixando
inúmeras residências vazias, embora os ex-Varitai tivessem optado por viver com
doze ou mais deles em cada casa.
— Eles não pareciam felizes — comentou Vaelin quando Artesão foi se
sentar no banco ao seu lado.
— Eles sabem que ainda há outros Varitai escravizados em alguns lugares —
retorquiu o curandeiro. — Libertar todos os irmãos se tornou uma espécie de
missão sagrada.
— Que a Rainha deu a sua palavra de que completaria.
— Sem mim.
— O argumento dela faz sentido…
— E eu não o contesto. O dom do Aliado é algo terrível.
Vaelin percorreu com os olhos o corpo robusto de Artesão, ciente de que
olhava agora para aquele que era possivelmente o ser mais poderoso do mundo.
Ficou um pouco aliviado com a expressão no rosto dele, tão franco e livre de
maquinações como sempre fora.
— Já o usou? — perguntou ele. — Desde a arena?
Artesão sacudiu a cabeça.
— Mas o sinto, agitando-se dentro de mim como uma lagoa fervilhante.
— E o dom de Erlin?
— Só o tempo dirá. Que acomodações a Rainha escolheu para mim no
Reino?
— A guerra deixou muitas propriedades desertas. Você poderá escolher
dentre uma vasta gama de opções.
— É mesmo uma honra poder escolher a própria prisão.
Vaelin nada disse, não querendo dar voz a uma mentira.
— O navio parte com a maré matutina — disse ele, levantando-se e
estendendo a mão.
Artesão piscou, surpreso. Desde a arena, poucos que sabiam dos eventos que
haviam ocorrido lá desejavam falar com ele, e certamente não se arriscavam a
tocá-lo. Sua expressão permaneceu a mesma, mas havia uma nova certeza em
sua voz quando apertou a mão de Vaelin.
— Não estarei lá para embarcar nele, meu senhor. Como desconfio que o
senhor saiba, visto que escolheu vir aqui sozinho sem guardas para cumprir a
Palavra da Rainha.
Vaelin apertou com mais força a mão do curandeiro, segurando-a por mais
um momento antes de soltá-la.
— Para onde você irá?
— Há alguns cantos do mundo que Erlin nunca visitou. E desejo muito ouvir a
canção da Princesa de Jade com meus próprios ouvidos.
— Você possui as lembranças de Erlin?
— De certa forma. Boa parte de seus conhecimentos está comigo, mas não o
modo como ele os obteve. Muita coisa se perde com o passar dos anos.
— Então você também possui os conhecimentos do Aliado?
O rosto de Artesão ficou visivelmente mais anuviado.
— Mais do que eu gostaria.
— Ele falou do lobo. Gostaria de saber o que quis dizer.
— Ele quis dizer… — Artesão franziu o cenho, lutando para encontrar as
palavras certas. — Ele quis dizer que há uma razão para você estar disposto a me
deixar ir. Quis dizer que todos nós, não importando que dons possamos ter, somos
luzes muito pequenas e breves neste mundo. A diferença é que aceito isso de bom
grado, coisa que ele nunca conseguiu fazer.
Ele se levantou e rumou para a casa que dividia com os Politai.
— Mande as minhas lembranças à Rainha, por favor — disse ele, parando à
porta. — E quando ela enviar assassinos para seguir o meu rastro, diga-lhe para
se certificar de ter escolhido bem.

Ele observou Reva da proa do navio, não precisando de canção para saber o que
se passava entre ela e a Senhora Lieza quando se abraçaram no cais. A garota
recuou de cabeça baixa, lutando contra as lágrimas ao voltar para o lado da
Rainha. Reva fez as últimas mesuras e embarcou no navio com o seu alto guarda
às costas; a Guarda do Reino ali reunida ergueu as armas em saudação e deu um
grito que ecoou pelo porto.
— Mais alto do que aquele que você recebeu, irmão — comentou Nortah
com um sorriso.
— Acho que ela fez por merecer.
— Meu bando sequer veio se despedir. Provavelmente ainda estão brigando
sobre a lista de exigências de direito à Rainha.
— Exigências de direito?
— Sim, eles querem escolher os próprios oficiais, querem o fim da posse de
terras e o direito de nomear os conselheiros da Rainha. Pode imaginar? Que a Fé
nos salve dos recém-libertados.
Vaelin juntou-se à Reva na popa quando o navio atravessou a entrada estreita
do porto, os molhes murados repletos de pessoas que davam vivas, suas palavras
sem sentido para ele, mas Reva conseguia compreender algumas.
— Livella renasceu — murmurou Reva, observando a chuva de flores
despejadas ao passarem. — Talvez Varulek tenha os seus deuses de volta, afinal
de contas.
— Varulek? — perguntou Vaelin.
— Um homem morto, e servo de deuses mortos. — Ela passou os olhos pela
multidão animada à medida que o navio se afastava, o timoneiro os levando para
dentro do Estreito enquanto o capitão ordenava que as velas fossem posicionadas
de modo a rumarem para oeste, na direção do oceano distante. — Não faz muito
tempo que muitas dessas pessoas estavam pedindo a minha morte aos gritos na
arena. Agora estão comemorando o fato de eu ter sobrevivido.
— Elas não são as únicas. — Vaelin olhou de relance para o jovem guarda,
que estava a uma distância respeitosa, raramente tirando os olhos da Senhora
Abençoada. — Parece que você também tem o próprio Iltis.
— Concedi uma graça ao Guarda Varesh pelos seus serviços. — Reva deu
um sorriso um tanto forçado para o jovem. — Tudo o que ele pediu foi ficar ao
meu lado. Estou pensando em encontrar outra ocupação para ele quando
voltarmos para casa.
Vaelin virou-se e olhou para os três imensos navios de tropas que agora se
afastavam do cais, carregados de cumbraelinos. Alguns haviam escolhido ficar,
atraídos pelo generoso soldo que a Rainha oferecia a arqueiros experientes, mas
a maioria decidira seguir a Senhora Abençoada de volta ao lar.
— Ouvi dizer que Lorde Antesh já começou a citar o Décimo Primeiro
Livro.
— Ele recuperou boa parte de seu fervor desde Alltor — disse ela. — E mais
ainda desde que chegou aqui. Acho que eu preferia quando ele estava cansado
disso tudo. O mundo seria um lugar melhor se fosse governado por almas
desapontadas.
— Você não deveria anotar isso? A sabedoria da Senhora Abençoada não
deveria ser desperdiçada com um herege.
Reva deu uma risada curta e então baixou os olhos; havia um tom pesaroso
em sua voz quando tornou a falar.
— Contei a Antesh que tudo foi uma grande mentira. Que jamais ouvi a voz
do Pai na minha vida. Não ouvi durante o cerco e não ouvi aqui. Ele disse: “A
senhora é a voz do Pai.”
O olhar de Reva recaiu sobre Alornis, que estava ocupada cuidando da
máquina na amurada a estibordo. O engenho aparentemente podia cuspir fogo
com resultados terríveis, caso os relatos que Vaelin ouvira fossem verdadeiros.
Alornis parecia incapaz de largar a máquina; as mãos habilidosas removiam as
diversas placas para explorar as misteriosas entranhas, o rosto absorto, alheio a
tudo mais.
— Eu jogaria de bom grado aquela coisa no mar — disse ele. — Mas esses
engenhos dela são a única coisa que faz com que os seus olhos mostrem um
pouco de vida.
— Então vamos descobrir por quê.
Reva foi agachar-se ao lado de Alornis e a observou trabalhar por um
momento antes de fazer uma pergunta. Vaelin esperava que sua irmã a
ignorasse, como costumava ignorá-lo, mas ela pareceu ficar entusiasmada,
movendo as mãos com uma animação veemente ao apontar para as entranhas
da máquina, explicando com detalhes cada tubo e manivela enquanto Reva
assentia de forma encorajadora.
Ele as observou durante algum tempo, viu sua irmã relaxar e até mesmo dar
uma ou duas risadas, e então viu o seu olhar ser atraído de forma inexorável ao
volume enrolado em lona que se encontrava amarrado ao mastro principal. As
instruções da Rainha haviam sido claras, sem qualquer ambiguidade, mas Vaelin
percebeu que ainda era atormentado pelas perguntas.
O que faremos com essa coisa?

***

— Eu não consegui salvá-lo, irmão!


Vaelin fora chamado de sua cabine pelo terceiro imediato e se deparou com
Nortah cambaleando pelo convés, com uma garrafa de vinho na mão. As ondas
haviam aumentado com o cair da noite e eles estavam adentrando o que os
marinheiros chamavam de “as montanhas boraelinas”, uma região famosa pelas
ondas altas e tempestades violentas. O vento sem dúvida estava forte naquela
noite; embora não fosse um vendaval, ainda assim conseguia açoitar o convés
com uma chuva pesada e constante.
— Matei uma dúzia daqueles desgraçados vermelhos, enfrentei o próprio
Aspecto, e ainda assim não consegui salvá-lo! — berrou Nortah.
Ele tropeçou quando o convés deu um solavanco, cambaleando na direção da
amurada a bombordo e quase caindo no mar.
— Pare com isso! — Vaelin o segurou e o puxou de volta, agarrando o
cordame.
— Matar. — Nortah gargalhou, erguendo os braços e gritando para o céu
tomado pela chuva. — A única coisa em que sou bom! Só porque você odeia
uma coisa não significa que não seja bom nela. Mas não foi o suficiente. Ele
morreu mesmo assim.
— Ele morreu salvando você — disse Vaelin, segurando-o com força
enquanto Nortah tentava se soltar. — Para que pudesse ver de novo a sua esposa.
Para que pudesse segurar de novo os seus filhos.
Nortah cedeu ao ouvir a sua família ser mencionada, abaixando a cabeça e
deixando cair a garrafa, que rolou para longe.
— Eles mataram a minha gata — murmurou ele. — Tenho que voltar para
casa sem a minha gata.
— Eu sei, irmão. — Vaelin deu um tapinha na cabeça encharcada de Nortah
e tentou levantá-lo. Uma figura encapuzada subiu no convés e foi para o seu lado
para ajudá-lo a erguer o Lorde Comandante que desmaiara. Levaram-no para
baixo juntos e o deitaram em sua cabine.
— Obrigado — disse Vaelin à figura encapuzada.
— Pelo que eu soube — disse Erlin, jogando o capuz para trás —, este
homem merece um fim melhor do que cair bêbado do convés de um navio.
— Isso ele merece.
Deixaram Nortah roncando e sentaram-se juntos num canto do porão, Vaelin
ciente de que não descansaria muito aquela noite com o vento uivando num
volume tão alto. Ele observou quando Erlin esfregou as costas na altura da
cintura, gemendo um pouco.
— Vou demorar a me acostumar com isso — disse ele.
— Sua primeira dor nas costas?
— Sem dúvida a primeira de muitas. — Erlin sorriu e Vaelin ocultou uma
careta ao ver as mudanças no rosto do homem. O espancamento o deixara com
um nariz torto e um maxilar um pouco deformado, embora os olhos parecessem
brilhar com mais intensidade, como se fosse um jovem, na verdade.
— Já decidiu? — perguntou Vaelin.
— Cara me convidou para viver com eles quando chegarmos aos Confins —
respondeu Erlin. — Se bem que não tenho certeza se Lorkan gostou do gesto.
Afinal, recém-casados precisam de privacidade. Mas ouvi falar de uma cabana
na praia que precisa de um ocupante.
— Ficará satisfeito com uma cabana na praia depois de todas as suas viagens?
— Por algum tempo. Sinto que tenho muito no que pensar.
— Você se lembra? De quando ele… o possuiu? Você estava consciente?
Erlin permaneceu em silêncio durante algum tempo, os olhos com um brilho
novo, agora um pouco turvados, e quando falou Vaelin soube que o que dizia era
uma mentira.
— Não. Está tudo embaçado, como um sonho ruim que é melhor ser
esquecido.
— Então você não faz ideia de por que ela o poupou? Por que a pedra não o
capturou quando capturou o Aliado?
— O Aliado havia tocado nela antes, eu não. Talvez ela soubesse da
diferença.
— Ele falou sobre algo à espreita do outro lado…
— Ele falou sobre muitas coisas, irmão. — Havia uma rispidez na voz de
Erlin agora, um cansaço evidente de perguntas. — E é melhor que todas sejam
esquecidas. — Ele se animou, bateu nos joelhos e levantou-se. — Acho que vou
procurar um marinheiro com um pouco de vinho para dividir. Gostaria de se
juntar a mim?
Vaelin sorriu e sacudiu a cabeça. Ele viu Erlin desaparecer nos confins
sombreados do porão e se perguntou se persuadir Ly rna a não matar o homem
ancestral e agora sem dom um dia acabaria provando-se algo de que se
arrependeria.

“O futuro sempre é incerto”, dissera ela nas docas, controlando a raiva por
Artesão não aparecer, uma raiva que naquele dia era bastante genuína.
“Encontre a sua mina mais profunda e a enterre lá, e apenas você e eu
saberemos a localização. As Ordens jamais devem saber da existência dessa
coisa”.
Ele esperou até o capitão avisar que haviam chegado à parte mais funda do
Boraelino, quando então disse ao homem para recolher as velas. Era pouco
depois do amanhecer e, com exceção dos marinheiros do turno da noite, ele
estava sozinho no convés. Eles ficaram perplexos quando Vaelin deixou de lado a
marreta que pegara emprestada com o carpinteiro do navio e cortou a corda que
prendia a lona. O tecido caiu e revelou a superfície lisa e imaculada da pedra
negra. Vaelin recuou, pegou a marreta e a ergueu acima da cabeça.
— Pare!
Era Alornis, enrolada num cobertor perto do porão, encarando-o com olhos
arregalados e horrorizados.
— Eu preciso fazer isso — disse ele.
Alornis franziu o cenho, confusa, e então sacudiu a cabeça.
— Não desse jeito. — Ela lhe apontou um dedo implacável. — Não se mexa
até eu voltar.
Vaelin a viu descer do convés e ficou parado, indeciso, com a marreta na
mão enquanto a tripulação assistia com curiosidade ou divertimento no rosto.
— Eu jamais poderia encarar Mestre Benril de novo — disse Alornis,
ressurgindo da escada com a bolsa de couro no ombro — se deixasse você
quebrar uma pedra assim.
Ela largou a bolsa no convés e a desamarrou, escolhendo um martelo
pequeno e um cinzel estreito de ferro entre as várias ferramentas.
— Não toque nela ela — disse Vaelin quando a irmã se aproximou da pedra.
— Eu sei. — Alornis fez uma careta para ele. — Reva me contou.
Ela posicionou o cinzel no centro da pedra, bateu de leve até que uma
pequena rachadura apareceu na superfície, e então desferiu uma série de golpes
bem dados com o martelo até que houvesse apenas alguns centímetros do cinzel
para fora. Alornis pegou mais dois cinzéis da bolsa e repetiu o processo,
colocando-os de ambos os lados do pino central e martelando até que surgisse na
superfície da pedra uma rachadura de quase um centímetro e meio.
— À vontade, irmão — disse ela, recuando.
Vaelin olhou para a pedra, notando o modo como a superfície parecia engolir
a luz, sentindo uma incerteza súbita.
Você não sabe o que é essa coisa!, dissera ele. Eu olhei para aquele mundo…
e algo olhou para mim, algo imenso e faminto. Com um toque você recebe um
dom…
Ele ergueu a mão e a estendeu sobre a pedra, mantendo-a acima da
superfície, quase a tocando. O que ela me dará? Outra canção? O dom do
Aliado?
— Alucius me contou que me amava — disse Alornis, atraindo a sua atenção.
Ela segurava com força o cobertor, piscando enquanto o vento afastava as
lágrimas de seus olhos, escorrendo pela sua pele pálida como prata derretida. —
O escravo liberto veio me ver com uma mensagem, a última mensagem dele.
Ele disse que me amava e implorou que eu o perdoasse por não dizer antes. Ele
disse que fizera muitas coisas das quais se arrependia, mas que aquela era a pior.
E ele me disse para não odiar, Vaelin. Disse que havia ódio suficiente neste
mundo e ele queria olhar para mim do Além e ver pelo menos uma alma que
não havia sido tocada pelo ódio. Mas eu não consegui… Eles o mataram, e eu os
odiei, e os queimei.
— Você fez o que todos nós fizemos, irmã — comentou Vaelin. — Você, a
Rainha, Reva, Frentis… Alucius e Caenis… A mulher com quem eu teria me
casado. Vencemos uma guerra que precisava ser vencida.
Ele olhou para a pedra e recolheu a mão. Seus pensamentos estavam repletos
de muitas coisas quando ergueu a marreta, muitos rostos, alguns que haviam
morrido, alguns que ainda viviam, todos mudados ou machucados. Pensou nas
batalhas que lutara e nos irmãos que perdera, e pensou em Dahrena.
Você é o meu Além agora. Para que eu perdure, você precisa perdurar.
O primeiro golpe enterrou o pino central fundo o bastante para partir a pedra
até a base. Ela se dividiu em duas e caiu com força no convés. Vaelin ergueu e
abaixou a marreta repetidas vezes, arfando com uma fúria incansável à medida
que uma nuvem de poeira negra se erguia à sua volta. Um pouco dela foi levado
pelo vento, mas a maioria se acumulou numa pilha no convés, reluzindo à luz do
sol que surgia depressa. Quando o último fragmento foi esmigalhado, Vaelin
ordenou que toda a poeira fosse recolhida na lona e jogada por sobre a amurada.
A mancha negra estendeu-se no rastro deles, permanecendo na superfície apenas
por alguns segundos antes de desaparecer com completo enquanto o navio seguia
o seu rumo, levado para casa pelos ventos do oeste.
APÊNDICE
Dramatis Personae

O REINO UNIFICADO

A Corte da Rainha Lyrna Al Nieren


Lyrna Al Nieren — Rainha do Reino Unificado
Iltis Al Adral — Espada do Reino, Lorde Protetor da Rainha
Benten Al Gaivota Cinzenta — Espada do Reino, Lorde Protetor da Rainha
Orena Al Vardrian — dama da Rainha
Murel Al Harten — dama da Rainha
Hollun — irmão da Quarta Ordem e Tesoureiro Real

O Exército da Rainha
Vaelin Al Sorna — Senhor da Torre dos Confins do Norte e Senhor da Batalha do
Exército da Rainha
Alornis Al Sorna — artista e irmã de Vaelin, posteriormente Senhora Artífice da
Rainha Ly rna
Dahrena Al Myrna — Primeira Conselheira da Torre Norte
Caenis Al Nysa — irmão da Sexta Ordem, Espada do Reino e Lorde
Comandante do Trigésimo Quinto Regimento de Infantaria, posteriormente
Aspecto da Sétima Ordem
Conde Marven — comandante do contingente nilsaelino do Exército da Rainha
Adal Zenu — capitão da Guarda do Norte, posteriormente Lorde Comandante e
Espada do Reino
Kehlan — curandeiro e irmão da Quinta Ordem
Orven Al Melna — capitão da Terceira Companhia da Guarda Montada do Rei,
posteriormente Lorde Comandante e Espada do Reino, esposo de Insha ka
Forna
Insha ka Forna (Aço ao Luar) — guerreira eorhil, esposa de Orven
Harlick — irmão da Sétima Ordem, Arquivista da Torre Norte, posteriormente
Primeiro Bibliotecário da Grande Biblioteca do Reino Unificado
Nortah Al Sendahl — amigo de Vaelin, posteriormente Lorde Comandante das
Adagas da Rainha e Espada do Reino
Dança da Neve — gata guerreira
Sanesh Poltar — chefe de guerra dos eorhil sil
Sabedoria — sábia anciã dos eorhil sil
Ultin — capataz dos mineiros de Fenda do Saqueador, posteriormente capitão do
Primeiro Batalhão do Exército do Norte
Davern — construtor de barcos e sargento do Exército do Norte, posteriormente
Mestre do Estaleiro da Rainha
Furelah — guarda das Adagas da Rainha
Atheran Ell-Nestra — capitão marinho meldeneano e Escudo das Ilhas,
posteriormente Lorde Almirante da Rainha Ly rna
Carval Ell-Nurin — Senhor Marinho e capitão do Falcão Vermelho
Cara — residente dotada de Ponta de Nehrin
Lorkan — residente dotado de Ponta de Nehrin
Marken — residente dotado de Ponta de Nehrin
Artesão — residente dotado de Ponta de Nehrin

Cumbrael
Reva Mustor — Senhora Governadora de Cumbrael
Senhora Veliss — Conselheira Honorável da Senhora Governadora
Arentes Varnor — Lorde Comandante da Guarda da Cidade
Bren Antesh — Lorde Comandante dos Arqueiros
O Leitor — líder da Igreja do Pai do Mundo
Ellese Brahdor — órfã e protegida da Senhora Governadora
Allern Varesh — guarda da Casa Mustor

Varinshold
Darnel Linel — Senhor Feudal de Renfael, vassalo volariano
Alucius Al Hestian — poeta, amigo de Alornis e Vaelin, filho de Lakrhil
Lakrhil Al Hestian — pai de Alucius, Senhor da Batalha de Darnel
Elera Al Mendah — Aspecto da Quinta Ordem
Dendrish Al Hendrahl — Aspecto da Terceira Ordem
Benril Lenial — artista renomado e irmão da Terceira Ordem
Mirvek Korvin — comandante da guarnição volariana
Vinte e Sete — Kuritai, guarda de Alucius
Cresia — irmã da Sétima Ordem
Inehla — irmã da Sétima Ordem
Rhelkin — irmão da Sétima Ordem

Fronteira renfaelina
Frentis — irmão da Sexta Ordem, amigo de Vaelin, conhecido como Irmão
Vermelho
Davoka — guerreira do Clã do Rio Negro, Serva da Montanha, amiga de Ly rna,
combatente da companhia do Irmão Vermelho
Sollis — mestre espadachim e Irmão Comandante da Sexta Ordem
Rensial — Mestre dos Cavalos e irmão da Sexta Ordem
Hughlin Banders — cavaleiro e Barão de Renfael
Ulice — filha ilegítima de Banders
Arendil — filho de Ulice e Darnel, herdeiro do Senhor Feudal de Renfael,
combatente da companhia do Irmão Vermelho
Ermund Lewen — cavaleiro e principal servidor de Banders
Draker — ex-fora da lei, combatente da companhia do Irmão Vermelho
Illian Al Jervin — escrava fugida e combatente da companhia do Irmão
Vermelho
Trinta e Q uatro — ex-escravo numerado e torturador, combatente da
companhia do Irmão Vermelho
Ivern — irmão da Sexta Ordem, posicionado no Passo Skellan
Retalhador — cão da Fé e amigo de Frentis
Dente Negro — cadela da Fé e amiga de Illian

Outros
Urso Sábio — xamã do Povo Urso
Kiral — caçadora lonak do Clã do Rio Negro e irmã de Davoka
Alturk — Tahlessa lonak do Clã dos Falcões Cinzentos
Verniers Alishe Someren — Cronista Imperial da Corte do Imperador Aluran
Fornella Av Entril Av Tokrev — prisioneira volariana, irmã de Arklev Entril
Belorath — capitão meldeneano do Sabre do Mar
Lekran — guerreiro dos rotha, posteriormente combatente da companhia do
Irmão Vermelho
O IMPÉRIO ALPIRANO

Aluran Maxtor Selsus — Imperador


Emeren Nasur Ailers — ex-protegida do Imperador
Iveles Maxtor Seliesen — filho de Emeren
Neliesen Nester Hevren — capitão na Guarda Imperial
Merulin Nester Velsus — Promotor Imperial
Horon Nester Everen — Alto-Comandante das Forças Imperiais
Raulen — carcereiro das masmorras do palácio

O IMPÉRIO VOLARIANO

Arklev Entril — membro do Conselho Governante volariano, ocupante da


Cadeira de Tesoureiro
Lorvek Irlav — membro do Conselho Governante volariano, ocupante da
Cadeira Escravocrata
Varulek Tovrin — Mestre da Grande Arena volariana e Capataz dos Garisai
Lieza — escrava
Hirkran do Machado Vermelho — campeão da tribo montanhesa dos othra

O GELO

Matador de Baleia — líder do Povo Lobo, esposo de Muitas Asas


Muitas Asas — xamã do Povo Lobo das Três Ilhas, esposa de Matador de Baleia
Astorek Anvir, também conhecido como “Faca Longa” — xamã do Povo Lobo,
filho adotado de Matador de Baleia e Muitas Asas
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Índice
CAPA PÁGINA
PÁGINA DE TÍTULO
DIREITOS AUTORAIS PÁGINA
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
PARTE I
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
PARTE II
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
PARTE III
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
PARTE IV
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
PARTE V
RELATO DE VERNIERS
CAPÍTULO UM
APÊNDICE

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