A Construção Do Herói
A Construção Do Herói
A Construção Do Herói
PUC-SP
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2012
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
Às cinco pessoas mais importantes da minha vida.
Agradecimentos
Escrever tem que ser uma das mais egoístas de todas as atividades criativas. Enquanto o
escritor se perde no labirinto sedutor da criatividade mental, sua esposa, filhos, amigos e
colegas ficam na companhia de alguém que está no insatisfatório estado de quase permanente
absorção.
Richard Bassett
Geralmente, quando se tem muita gente assim, fica difícil decidir por
quem começar mas, no meu caso, não tenho nem o que pensar. Começo
agradecendo aos meus pais, Valdete e Adélio, aqueles que foram os primeiros a me
amar e a confiarem em mim. Obrigado, Mamãe e Papai. Tudo o que sou e o que eu
conquistei na minha vida eu devo a vocês e nem todas as palavras do mundo são
suficientes para expressar a minha gratidão. Amo muito vocês.
À minha filhinha, Júlia, por na sua doce inocência, ter entendido que “o
papai precisa muito escrever e ficar mais inteligente”. Obrigado, filha, por ter pulado
à minha volta enquanto escrevia, por ter pedido colo o tempo todo, por não me
deixar em paz enquanto eu não te contasse uma história antes de dormir, por ser
insistente até eu levantar da mesa para brincar ou desenhar com você e,
principalmente, por existir em minha vida. Obrigado por me fazer entender que,
apesar de ser um trabalho sério, é preciso criatividade para escrevê-lo. Amo muito
você.
Minha querida irmã foi uma das que aguentou minhas choradeiras e
maus-humores. Desde pequena você o faz e, quanto mais o tempo passa, melhor
fica nisso. Obrigado, Dani, por ser amiga, paciente, compreensiva e a melhor irmã
que alguém como eu poderia ter. Amo muito você.
Muito obrigado ao Prof. Dr. Fábio Caim Viana e ao Prof. Dr. Paulo Ramos,
por suas inestimáveis considerações, dicas e puxões de orelha na Qualificação e
pelas sugestões de bibliografia e possíveis caminhos a serem seguidos, daquele dia
até hoje.
Algumas pessoas não estão sempre ao meu lado, mas também merecem
minha gratidão por, de alguma maneira, terem contribuído na minha trajetória, que
por sua vez, me fez estudar em parte um assunto que eu gosto muito: a guerra.
Meus mestres nas Artes Marciais, e seus ensinamentos, foram peças importantes
para direcionar algumas de minhas interpretações. Por isso, agradeço ao meu
Sensei de Jiu Jitsu e amigo, Milton Maximiano Trombini, o Max, por me ensinar os
valores dos samurais, muito presentes no pensamento e obra de Frank Miller.
Agradeço, também, ao Sensei de Judô Rodrigo Motta e meu companheiro de
treinos, por ser um exemplo de persistência, dedicação e superação nas artes
marciais. Muito obrigado, também, ao Lakan Goru de Kali Silat e meu irmão de
armas, Rodrigo Okubo, por me ensinar a nunca desistir e mostrar que avançar é
mais simples do que possa parecer. Meus agradecimentos, também, ao Mas Goru
Paulo Albuquerque, Mestre do Rodrigo, por me contar a sua experiência de trabalho
com Jack Kirby, o grande mentor de Frank Miller.
Por fim, mas não menos importante, meu agradecimento à minha querida
orientadora, Profa. Dra. Leda Tenório da Motta, que me acolheu quando mais
precisei, dando uma direção bem mais adequada ao meu projeto. Obrigado,
Professora, por ter segurado minha mão e ter sido compreensiva com o meu
laconismo espartano como orientado. Se não fosse pela sua paciência, brilhantismo
e competência, eu jamais teria conseguido.
“Flectere si nequeo Superos Acheronta movebo.”
(“Se não consigo dobrar os deuses do céu, moverei aqueles dos infernos.”
The construction of a hero during the narrative course of the graphic novel 300: a
journey from Duty to Victory
The goal of this study is to investigate the semiotic building process of a hero in the
graphic novel 300, by Frank Miller, through the identification of a unique style of the
author, based on narrative protocols of this media. Object of the investigation and
contextualization determinant of this construction, the language of comics is exposed
and analyzed in what constitute it, that is, on what defines it as a genre and
characterizes it as a singular media, propitious as an entertainment use, especially in
its graphic novel format. So, the research predisposes to unravel this language
discursive course (Comics in graphic novel format), through which represents and
constitutes the character of King Leonidas, leader of the warrior campaign which
gives name to the aforementioned graphic novel. Such unraveling is supported by a
semiotic analysis of the representation games between the characters and the
narrative in the journey of the hero, which justifies the use of a theoretical reflection
provided by the narratology of Vladimir Propp, supported by the Haroldian study on
Macunaíma and the deepened analysis on that subject made by the studies of
Christopher Vogler, and, finally, under the perspective of myth Joseph Campbell. The
studies showed a King Leonidas built from a rescue of he old style hero, celebrated
in the early days of comics, associated with multiple layers of meanings, which are
repeated in two other Miller’s characters, while they identified a millerian style, that
works with elements of comics language in an unusual way, combining them with
other languages, such as film and painting.
Introdução _________________________________________________________ 1
Anexo II - Cópias das páginas de Slings & Arrows do Capítulo Três __________ 135
Introdução
Foi ele que, em 490, para punir os atenienses que apoiavam os seus compatriotas jônios,
enviou uma expedição naval pelo mar Egeu, que foi enfrentada e derrotada em Maratona. Essa
famosa vitória grega provocou uma inevitável reação persa, embora, quando aconteceu, sob a
forma de uma maciça expedição anfíbia de conquista e de presumível anexação, o próprio
Dário já estivesse morto, sendo sido sucedido pelo filho, Xerxes. (Cartledge - 2009, p.
109-110).
Para a estrutura deste trabalho, optamos por trabalhar com três capítulos
e uma conclusão, além desta introdução. No capítulo 1, falaremos do universo das
HQs como um todo, começando com a sua história (e pré-história) dividida por eras
e suas peculiaridades, bem como suas obras mais significativas. Além disso,
descreveremos o estado das artes dos quadrinhos, levantando os principais
trabalhos, obras e autores sobre o segmento, brasileiros e estrangeiros.
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do
medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo
do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram
de Macunaíma. (Andrade - 2004, p. 10).
E vive dessa maneira sua infância, até que, depois de crescido, conhece
e se apaixona por Ci, a Mãe do Mato, que lhe dá uma pedra-amuleto, a muiraquitã.
Ci morre e Macunaíma perde seu amuleto, que depois descobre estar com um
gigante comedor de gente, o Piamã. Depois de algum tempo, e de muitas aventuras,
Macunaíma recupera sua pedra, que estava em São Paulo, e volta para casa. Antes
de chegar à aldeia, porém, perde novamente a muiraquitã e, “de tanto penar na terra
sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza
solitário no campo vasto do céu” (Andrade - 2004, p. 148), transformando-se na
constelação da Ursa Maior.
O herói sem nenhum caráter também inspirou Myriam Muniz, Silvio Zilber
e Flávio Império a repensarem a maneira de ensinar a dramaturgia e, em 1974,
fundarem o Teatro Escola Macunaíma, cuja metodologia é muito parecida com a
personalidade independente, rebelde e livre da personagem marioandradiana.
5
No campo das ciências exatas haviam sido feitas descobertas assombrosas. Estas
descobertas tornaram-se possíveis graças ao emprego dos novos métodos, cada vez mais
exatos, de pesquisa e de cálculo. A aspiração de utilizar métodos exatos estendeu-se também
às ciências humanas. Surgiram a lingüística estrutural e a lingüística matemática; seguiram-se
6
a elas outras disciplinas. Uma delas é a poética teórica. Constatou-se, então, que o conceito de
arte como determinado sistema de signos, o procedimento de formalização e modelização, a
possibilidade de emprego de cálculos matemáticos já haviam sido antecipados neste livro,
apesar de que no tempo em que ele havia sido elaborado não existia ainda o conjunto de
conceitos e a terminologia com que operam as ciências atualmente. (Propp - 2010, p. 234).
Em 1897, Rudolph Dirks dá vida aos Katzenjammer Kids, ou, como são
conhecidos aqui no Brasil, Os Sobrinhos do Capitão.
IV. Período Clássico das Aventuras ou da Explosão das HQs - 1929 a 1937
O ano de 1929 foi um grande ano para as HQs e três eventos distintos
marcaram o início dessa nova fase.
A indústria norte-americana de quadrinhos, apesar dos pesares, se
desenvolve a olhos vistos nesse período, despejando no mercado uma torrente de
13
Figura 9: Tarzan
Por fim, o terceiro motivo que torna o ano de 1929 um divisor de águas no
segmento dos quadrinhos é o lançamento na Bélgica das personagens Tintin e Milou
14
homem de aço se tornou “o ícone de um gênero que mudaria toda a história dos
quadrinhos” (Chinen - 2011, p.52), mas não se pode ignorar a importância de outro
super-herói nessa revolução. Quando surgiu em 1939 pelos traços de Bob Kane,
Batman não tinha (e até hoje não tem) poderes sobre-humanos, nem era um extra-
terrestre, mas seu jeito sombrio e sua perspicácia faziam o contraponto.
Veremos que, durante as décadas seguintes, os perfis de quase todos os super-heróis foram
modelados a partir de semelhanças ou diferenças com relação a Superman e Batman. Entre
esses dois extremos típicos, dotados de forte valor icônico, nasceu a fisionomia de toda a
geração inicial de super-heróis. (Patati e Braga - 2006, p.68)
A força dessas imagens era tão grande que passou a incomodar inclusive
quem parecia ser inabalável. Em 1942, Joseph Goebbels, ministro da propaganda
nazista afirma: “Superman é judeu”. (Marny - 1988, p.25)
Figura 16: Exemplos de publicações com tema “terror” e “crime” da década de 1950
Esse movimento pela censura ocorreu em vários países, mas foi mais forte no país onde eram
mais vendidos: os Estados Unidos. A campanha foi tão feroz que eram promovidas fogueiras
para queimar os gibis e foi aberta uma comissão no Senado para investigar os efeitos nocivos
dos quadrinhos. (Chinen - 2011, p. 55)
19
Figura 18: Peter Parker / Homem-Aranha se culpa pela morte de seu tio
No entanto, nem só de super-heróis foi feito esse período. Nos anos 60,
os Estados Unidos viviam intensamente a Guerra do Vietnã, participando dela e
protestando contra, criando um clima propício para o fortalecimento de “um
movimento de contestação que colocava frontalmente em xeque a cultura oficial,
prezada e defendida pelo Sistema, pelo Establishment” (Pereira - 2009, p. 19), a
Contracultura, “que questionava os valores da sociedade sob diversas formas,
inclusive manifestações culturais como a música e os quadrinhos” (Chinen - 2011, p.
60). Esse momento de contestação permitiu que surgissem os Quadrinhos
Underground, ou Comix: HQs alternativas e independentes, na sua produção e na
distribuição, que faziam sucesso entre os universitários norte-americanos por
conterem todos os temas considerados tabus pelo Comics Code (sexo, violência,
drogas etc.). O espírito contestador da época gerou publicações que deixaram a
sociedade de cabelos em pé. Em 1964, por exemplo, o escritor e desenhista Jean-
Claude Forest publica Barbarella, uma aventureira espacial do século XLI, que usa
seu corpo e sua sexualidade para derrotar os inimigos.
22
Figura 22: Edições nº 132 de Superman’s Pal Jimmy Olsen e nº 1 de Conan, the Barbarian
Outro fator que marcou a Era de Bronze foi o nascimento das primeiras
comic book specialty shop, (ou direct-only stores): lojas especializadas na
distribuição de gibis, que antes eram encontrados apenas em mercados, farmácias
ou lojas de brinquedos. Na verdade, elas foram uma consequência de um advento
igualmente importante, que foi o surgimento de um novo modelo de negócios do
segmento de HQs. Entre o final da década de 1970 e início da década de 1980,
Philip Nicholas Seuling, organizador do New York Comic Art Convention e
distribuidor de quadrinhos, reuniu-se com as principais editoras do segmento para
sugerir um sistema de distribuição direta de suas publicações. Basicamente,
comprava-se com desconto e diretamente das editoras uma quantidade razoável
das suas publicações, que era oferecida em determinados pontos de venda
específicos, sem consignação. Ou seja, sem prejuízo para a editora.
Assim, determinados pontos de venda passaram a trabalhar
exclusivamente com gibis, novos e antigos, já que haviam números antigos em
estoque devido à nova prática. Por serem pontos de venda bastante segmentados e
com um público distinto, as editoras perceberam outra oportunidade: tornarem as
comic book shops pontos para distribuírem seus títulos menos nobres, ou que foram
fracasso no seu lançamento, mas que tinham apelo com esse público específico e
certo valor para os colecionadores.
Ao mesmo tempo que o mercado direto de HQs dava seus primeiros
passos, Will Eisner consagrava o formato graphic novel com uma de suas mais
importantes obras: A Contract with God, de 1978. O termo já havia sido empregado
27
antes para descrever obras como Maus, de Art Spiegelman, em 1972, mas foi com
Eisner que ganhou notoriedade.
Ainda em 1986, Alan Moore lança sua emblemática Watchmen, uma “obra
que desmonta a ingenuidade das histórias em quadrinhos, temporalmente situada os
anos 80, seara propícia para a desconstrução do mito dos super-heróis, que teria
tido seus frágeis pedestais atacados em Watchmen e em outras obras, como O
Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller.” (Carneiro - 2009, p.40)
Christopher Voger, que teve como colaboradores ninguém menos que Frank Miller,
Dave Gibbons e Alex Ross.
Lanterna Verde enlouqueceu; a Mulher Maravilha perde seu trono (e o direito de ser
a Mulher Maravilha); o Homem-Aranha na verdade era um clone; Hulk se divide e
morre; etc.
Capitão América e Homem Aranha estão à beira da falência. A Marvel, editora dos super-
heróis, pediu concordata nos EUA. Motivo: queda na venda das histórias em quadrinhos. A
empresa necessita de US$ 525 milhões para sair do buraco. (Caderno de Negócios - Folha de
São Paulo - 30/12/1996)
33
Fica difícil, então, estabelecer uma definição dessa era que sucede a “da
Independência”. O mais simples é denominá-la de “Era Contemporânea”, já que é o
que geralmente se faz com o momento em que vivemos. Talvez, num futuro próximo,
possamos desenvolver um estudo mais preciso, em que sejam levados em
consideração fatores históricos, econômicos, sociais e políticos para descrever tal
era. E, claro, com o devido distanciamento necessário para a realização da tarefa.
Tarzan... é o símbolo duma humanidade que recusa o pensamento ou dele desconfia. Tarzan,
sob o prisma da razão, surge como uma revolta formidável contra o domínio racional da nossa
civilização. É como que uma nostalgia da animalidade primitiva. (...) é necessário que o homem
controle pelo menos os mitos apresentados às crianças... temos boas razões em suspeitar de
Tarzan, o homem-macaco. (Citado por Marny - 1988, p.117)
um instrumento de aprendizagem para a cultura de massa” (p. 39), pois é “de uma
linguagem imediatamente inteligível e atraente para a criança” (p. 39). De acordo
com o autor, a criança é precocemente exposta a temas adultos, que empregam
cada vez mais imagens e desenhos para chegar às massas, criando, como provoca
Morin, “uma criança com caracteres pré-adultos ou um adulto acriançado” (p. 39).
Não se pode deixar de citar, também, Para ler o Pato Donald, considerado
no passado como referência no estudo das HQs, cujo texto é recheado de pérolas
como “Esconde-se sobre a aparência simpática, sob os animaizinhos com gosto de
rosa, a lei da selva: a crueldade, a chantagem, a dureza, o aproveitamento das
debilidades alheias, a inveja, o terror. A criança aprende a odiar socialmente ao não
encontrar exemplos para encarnar seu próprio afeto natural” (Dorfman e Mattelard -
1978, p.29). Passado o furor revolucionário da época em que foi lançado, inclusive
aqui no Brasil, o livro é visto por alguns estudiosos com reservas. Mesmo Álvaro de
Moya, no seu prefácio para a edição brasileira da obra, demonstra ressalvas quanto
ao seu conteúdo:
Este livro tem que ser portanto encarado como um panfleto, uma obra sectária, política, parcial,
radical, esquerdista, antiimperialista e anticolonialista em seu bom e seu mau sentido. (Moya
apud Dorfman e Mattelard - 1978, p.5)
quadrinhos à Pop Art. Outro estudo interessante foi o de Umberto Eco sobre o mito
do Superman, publicado no livro Apocalípticos e Integrados (1970), que por sua vez
serviu como suporte para muitos outros estudos posteriores.
Além dos estudos anteriores, outros mais específicos sobre a linguagem e
a produção dos quadrinhos foram publicados. Dos mais relevantes, podemos citar
Scott McCloud e o seu metalinguístico Desvendando os Quadrinhos (1995), em que
expõe e exemplifica, em forma de uma história em quadrinhos, os elementos que
caracterizam e compõem uma HQ. Mas, talvez as mais importantes obras a respeito
da técnica foram escritas por Will Eisner: Quadrinhos e Arte Sequencial (1999) e
Narrativas Gráficas (2005). Nelas, Eisner utiliza exemplos extraídos de sua produção
(na sua maioria da série The Spirit) para explicar a técnica e os elementos
constituintes, muitos deles compartilhados com outras técnicas como a fotografia e o
cinema, das histórias em quadrinhos. Assim como os clássicos, outros autores mais
contemporâneos discorrem sobre a técnica, como os já citados Waldomiro Vergueiro
e Paulo Ramos, e Nobu Chinen, com o seu recente trabalho Linguagem HQ:
Conceitos Básicos (2011).
Há que se assinalar também algumas dissertações e teses disponíveis,
que foram alguns dos textos que nos serviram como auxílio no “pensar um formato”.
Trabalhos como O Mosaico Narrativo de Watchmen, Ressemantizações Mitológicas
nos Quadrinhos e Os Perpétuos e os Incompletos, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, bem como História em Quadrinhos sobre a História do Brasil
em 1950, As histórias em quadrinhos como informação imagética integrada ao
ensino universitário e Tiras Cômicas e Piadas: duas leituras, um efeito de humor, da
Universidade de São Paulo.
Mesmo crucificadas, difamadas, espinafradas e confundidas, as HQs
continuam, a cada ano, firmes nas vendas de seus exemplares e conquistando
outros milhões de leitores insaciáveis ao redor do mundo. A força desse tipo de
literatura é inegável e, na mesma proporção dos críticos, surgem autores que
defendem seu uso em sala de aula. Em muitos países atualmente, as HQs são
instrumentos pedagógicos:
38
É o que aconteceu no Brasil, por exemplo, onde o emprego das histórias em quadrinhos já é
reconhecido pela LDB (Lei de diretrizes Básicas) e pelos PCN (Parâmetros Curriculares
Nacionais). (Rama e Vergueiro - 2005, p. 21)
Ler quadrinhos é ler sua linguagem. Dominá-la, mesmo que em seus conceitos mais básicos, é
condição para a plena compreensão da história (...).” (Ramos - 2009, p. 30)
Figura 36: Capa da edição 84 de The Twilight Zone, da editora Gold Key
Figura 37: Capas das edições 64, de Weird War Tales, e 18, de John Carter: Warlord of Mars
Mas foi com Batman, da DC Comics, que Frank Miller pode, pela primeira
vez, tentar colocar em prática o seu antigo sonho de quadrinhizar aquela atmosfera
noir dos livros que lia em sua adolescência. Sua primeira experiência com o herói foi
em abril de 1980, na edição Super Star Holiday Special, com o episódio Wanted -
Santa Claus - Dead or Alive. Nessa história, o herói ajuda um ex-condenado
fantasiado de Papai Noel. Em 1986, quando a mesma DC fez o convite para
desenvolver uma nova história para Batman, Frank decide fazê-la como ninguém
nunca havia pensado, sob uma ótica completamente diferente. Assim, nasceu em
março do mesmo ano O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns), uma
história que se passa dez anos depois da aposentadoria do herói e que mostra um
Bruce Wayne em conflito entre permanecer na vida de empresário de sucesso e bon
vivant, ou voltar a assumir a identidade de Batman, numa Gotham City decadente e
mais violenta. Quando se decide pela segunda opção, Batman retorna mais
impaciente, sombrio, brutal e violento, como nunca se viu na série. Vale salientar
que “O Cavaleiro das Trevas” é um marco, não apenas para o herói e para Miller,
mas também para o formato das histórias em quadrinhos, já que o autor inova na
maneira de sequenciar a narrativa usando 16 quadrinhos por página. Segundo
Valdomiro Vergueiro, o efeito cria um senso de urgência, que é sistematicamente
quebrado por páginas inteiras com uma única imagem ou dois quadrinhos, aliviando
a tensão da leitura.
Quando eu estava estruturando Cavaleiro das Trevas, a primeira coisa que eu fiz foi
estabelecer o esquema de 16 quadros em que a série inteira seria baseada. Isto era eu
tentando tratar os painéis como notas musicais em um pulso, para controlar o passo. Era um
livro muito denso, eu estava empacotando coisas de maneira extremamente forte nesse ponto,
mas você notará que a tensão desses pequenos painéis em staccato é quebrada de vez em
quando por uma meia página ou por uma imagem de página inteira que é destinada não a
43
retirar você da história, mas fazer com que você dê uma pausa e se dê conta de onde a história
está, qual é o objetivo. (Miller apud Vergueiro, em A trajetória de Frank Miller, 2007)
Ele escreve para se satisfazer. Acho que ele não se importa se ninguém comprar seus gibis...
ou não ler nenhuma linha, contanto que ele escreva e diga: “É isso que eu queria dizer.” (Zack
Snyder - The Frank Miller Tapes, 2007)
Sua última experiência nas telas foi como roteirista do filme The Spirit
(2008), a versão cinematográfica da série mais famosa de Will Eisner, a quem Miller
sempre cita como uma de suas grandes influências. Mas além de dedicar-se ao
cinema (ator, roteirista e diretor) e HQs, Frank Miller ainda alimenta, com certa
regularidade, um blog e um perfil no Twitter. Além disso, em 2010, deixou sua
assinatura na publicidade, dirigindo um comercial protagonizado por Rachel Wood e
Chris Evans para o perfume Gilty, da marca Gucci, cuja atmosfera é nitidamente
inspirada em Sin City: estilo noir, filmado em preto e branco, apenas com poucos
detalhes destacados em cores fortes e vibrantes, enquadramentos ousados e
sempre brincando com luzes e sombras.
46
Escrita e desenhada por Miller e colorizada por sua esposa, Lynn Varley,
a graphic novel 300 foi publicada originalmente nos Estados Unidos entre os meses
de maio e setembro de 1998 pela Dark Horse Comics, em cinco fascículos mensais:
Honor, Duty, Glory, Combat e Victory. No ano seguinte, a série foi lançada no Brasil
pela Editora Abril, sob o título Os 300 de Esparta. Com periodicidade quinzenal, a
edição brasileira manteve as características da norte-americana e os nomes dos
capítulos foram traduzidos literalmente: Honra, Dever, Glória, Combate e Vitória.
Bullets, da série Sin City, publicada no Brasil em 2006, pela Devir, sob o título Balas,
Garotas & Bebidas.
2.3. A narrativa
De acordo com o que o próprio Miller relata em Slings & Arrows (coluna
de cartas dos leitores na edição americana, em que o próprio Miller atuava), e
posteriormente The Frank Miller Tapes Unfiltered Conversations (documentário que
é parte dos extras do DVD 300), sua inspiração veio do filme The 300 Spartans
(Rudolph Maté, 1962), a que assistiu quando tinha entre cinco e seis anos de idade.
Apesar da qualidade do filme de 1962 passar longe da versão de 2006, dirigida por
Zack Snyder, o jovem Miller ficou tão impressionado que, depois de adulto, teve que
50
transformar aquela paixão infantil num épico dos quadrinhos e recontar o episódio à
sua maneira.
O filme, chamado Os 300 de Esparta, foi lançado em 1962. Eu o assisti quando tinha cinco
anos - e fiquei fascinado com (o episódio) os Portões de Fogo desde então. Embora seja um
tipo de filme antigo e desajeitado, é surpreendentemente preciso - e com certeza inspirou este
garoto. (tradução de Miller, Slings and Arrows - 1998, p. 31 do Capítulo Três)
Além dessa técnica, Miller ainda usa com bastante competência aquilo
que é considerado seu traço característico, o contraste entre luzes e sombras, que,
aliado ao recurso das perspectivas e combinado com os diversos tipos de quadros e
requadros, amplifica ainda mais o efeito de temor crescente causado pela leitura da
obra. As cores são um outro ponto que vale a pena destacar. Lynn Varley aplica o
jogo de contraste às cores, sendo que há a predominância do ocre, bege e marrom,
contraposta somente ao vermelho do sangue e dos mantos espartanos e o ouro do
rei Xerxes e seus embaixadores e oficiais. O céu nunca está limpo ou azul, o que
torna cada cena pesada, angustiante e árida, bem conforme o humor espartano.
52
2.4. As capas
Quando se analisa uma obra intrincada como esta que nos ocupa, é
necessário que se siga um método de decupagem. Aqui, inspiramo-nos no trabalho
desenvolvido por Haroldo de Campos em 1972, em seu Morfologia do Macunaíma, a
partir do modelo de análise de Vladimir Propp, em Morfologia do Conto Maravilhoso,
obra datada de 1928.
(...) a “Tabulação da fábula” que Propp esboça em apêndice a seu trabalho, envolvendo uma
“lista completa dos elementos da fábula de magia” (inclusive os numerosos componentes
deixados à margem quando da análise funcional que redundou na depreensão das trinta e uma
56
funções, e que, sem embargo, fazem parte do sistema fabular), permite a distinção das “formas
típicas” e, além disso, através da comparação dos materiais inscritos nas rubricas, possibilita o
estudo “das transformações, das metamorfoses de cada elemento” (...). (Campos - 1973, p. 57)
1. Definição espácio-temporal
(...) uma espécie de vestíbulo, um engaste para o futuro desenrolar da ação. Providencia uma
espécie de “fundo contrastante” para o infortúnio superveniente (e de certa forma já esperado),
que desencadeia a marcha fabular. (p. 103)
Nós vamos bloquear o avanço costeiro dos persas com uma grande muralha de pedras...
Forçando-os a passar pelo desfiladeiro que chamamos de Termópilas. Nesse corredor estreito,
de nada valerá seu grande número. (Capítulo Dois, p. 12)
2. Composição da Família
g) Oráculo - Escolhida dentre as mais belas espartanas, essa jovem era recrutada
pelos éforos para ser o seu canal de comunicação com os deuses, além da
obrigação de satisfazer seus desejos masculinos. Mantida constantemente em
transe por substâncias tóxicas, quando consultada, repetia o veredicto dos
deuses. A personagem se encaixa na categoria do Doador, exercendo a função
de “fornecimento do objeto mágico ao herói”. Desde o início da conversa com os
éforos, Leônidas já dava mostras de que foi lá apenas para lhes mostrar o perigo
real da situação, e não ouvir ladainhas sobre o festival da Carneia, quando não se
travavam guerras. “Se não autorizarem o meu plano, este será o último festival”,
sentencia o rei e, em resposta à sugestão de consultarem a Oráculo, diz que
prefere que os velhos confiem no bom senso. Leônidas já estava decidido pela
razão e, ao profetizar que Esparta cairia assim mesmo, a Oráculo dá ao rei o
argumento que precisava para partir em direção às Termópilas. Algo como “se
Esparta cair, que caiamos lutando.”
64
tenta o suicídio mas falha, passando para o lado persa em seguida. Desempenha
um papel importante no desmantelamento da estratégia espartana ao orientar
Xerxes e ainda tenta negociar pessoalmente a rendição de Leônidas no momento
final.
k) Daxos - Rei da província grega Arcádia que, com seu exército, se junta à
empreitada contra os persas no início da história. Tanto o rei, como seus soldados
árcades, têm a função de Auxiliares, exercendo a função de “reparação da
carência” de um número maior de combatentes. Apesar de não serem guerreiros
profissionais como os espartanos, os árcades estão em maior número e se
mantêm firmes ao lado de Leônidas, até o momento em que o combate é
considerado perdido pelo rei espartano. Antes de recuar com seu exército, Daxos
ainda tenta convencer Leônidas a fazer o mesmo, sem lograr êxito.
67
Em uma das partes da narrativa de Dilios deixa bem claro quem era
espartano e o destino daqueles que não o eram:
Ele estava com frio. Com frio e com fome. Era a iniciação dele. Seu dia na floresta. Ele iria
voltar como espartano... ou morrer. (Capítulo Um, p. 16)
68
8. Profecias, predições
Tal sentido ganha mais força quando o próprio Leônidas, envolto em seus
pensamentos, associa esse ponto de sua iniciação a dois momentos, um do início e
outro do fim da história. No primeiro capítulo, logo depois de Dilios ter terminado de
contar a história aos 300 espartanos acampados, o rei caminha sozinho, enquanto o
narrador descreve suas reflexões: “Hoje, como antes, uma fera se aproxima.
Paciente, confiante, saboreando a próxima refeição. É uma fera composta de
homens e cavalos e lanças e espadas. (...) A fera se aproxima... E foi o próprio
Leônidas quem a provocou” (p. 23). O segundo momento se dá no último capítulo,
momentos antes de executar o seu plano de ferir Xerxes. À frente de seus homens,
cercado por Xerxes e seu exército, mais uma vez Leônidas se lembra do episódio,
dessa vez como uma epifania: “Já se passaram mais de 40 anos desde o lobo e o
frio do inverno. Agora, como antes, não é o medo que o domina. Apenas uma
inquietação, uma sensibilidade maior diante das coisas” (p. 28-29).
(8) “Exórdio” é a tradução adotada na edição italiana (esordio) para o termo zaviázka (ed.
russa, p. 109), “nó”, traduzido na ed. francesa por noeud de l’intrigue (p. 149) e na inglesa por
complication (p. 122). No “exórdio” é que ocorre a “complicação da ação” pelo “dano”. (ibid., p.
119)
É interessante notar que nas seis páginas que retratam o episódio, o sol
se faz presente, pois podemos perceber as sombras de todas as personagens se
formando no chão e paredes, reforçando ainda mais a atmosfera de tranquilidade e
prosperidade espartanas. Todas as outras cenas por toda a graphic novel depois
disso, inclusive as que antecedem a chegada dos persas, não são mais
ensolaradas, muito menos têm sombras resultantes de qualquer iluminação,
ressaltando o clima pesado e de mau agouro que permeia a história.
71
10.Nomenclatura, sexo
11.Crescimento rápido
Apesar de a história iniciar com a marcha dos 300, a origem, bem como o
“nascimento”, de Leônidas nos é mostrada desde o primeiro capítulo. Depois da sua
aclamação, ainda criança, o rei é mostrado já adulto, mais de 40 anos depois. Não é
o “crescimento anormal”, anotado por Haroldo Campos em seu estudo sobre
Macunaíma, mas apenas uma grande elipse que nos leva ao ponto da história que
importa.
13.Qualidades espirituais
14.Travessuras
15.Outras qualidades
São elas:
Não entraremos no mérito nem nos porquês do autor ter optado por essa
forma, pois é apenas uma feliz inspiração para este trabalho, já que a graphic novel
possui dois falsos heróis. De acordo com Campos (1973),
O “falso herói”, no corpus fabular analisado por Propp, é um vilão dissimulado que, no segundo
movimento de certos contos, faz-se passar pelo herói verdadeiro ou tenta sub-rogar-se nos
méritos deste. É, em substância, um “novo antagonista”, que provoca um novo lance de tensão
narrativa. (p. 114)
Ephialtes demora mais a se mostrar um anti herói, por outro lado exerce
um papel fundamental, tanto para reviravolta de Xerxes, quanto para os planos de
74
Propp estuda o fenômeno da “triplicação” no conto de magia, que pode ser de caráter atributivo
(as três cabeças do dragão) ou funcional (atingindo funções emparelhadas do tipo
“perseguição/salvamento”, grupos de funções ou mesmo movimentos inteiros). Salienta que as
repetições podem ser uniformes ou de complexidade crescente (a terceira tarefa é a mais difícil
o terceiro combate o mais árduo, havendo ainda a possibilidade de duas derrotas e uma vitória
final). (Campos - 1973, p. 115)
Essa passagem dos dias é marcada pela crescente violência dos ataques
persas, sempre antecedida por um encontro diplomático entre os dois lados. A cada
dia, há uma tentativa de negociar uma rendição, seguida de um embate violento,
sendo que nos dois primeiros dias, a vitória é sempre do lado espartano, explicando
a crescente raiva de alguém que nunca havia sido contrariado ou vencido. Como
Haroldo de Campos verificou em sua análise da sedução da personagem Sofará em
Macunaíma
a) Macunaíma vira príncipe e brinca com Sofará (“andaram por lá muito”, M, 10); Jiguê bate em
Sofará (“Sofará agüentou a sova sem falar um isto”, M, 11);
aa) idem (“o pequeno foi crescendo e virou um príncipe lindo”, M, 11-12); Jiguê bate de novo
em Sofará (“Mas Sofará agüentou a coça com paciência”, M, 12);
aaa) idem (“... pediu pra Sofará que levasse ele passear... virou num príncipe fogoso.
Brincaram. Depois de brincarem três feitas...”, M, 12-13). Nesta terceira ocorrência, a
triplicação é como que mimada, em progressão metalinguística. O mesmo número três, já
esvaziado de qualquer relevo morfológico e reduzido a um simples emblema atributivo (como
no caso das “três cabeças de dragão”), intervém novamente, agora na descrição erótico-
antropofágica da luta amorosa de Macunaíma e Sofará (“... uma pedra lascou o canto da boca
da moça e moeu três dentes...”, M, 13). Esse elemento emblematizado reaparece em detalhe
do episódio-recorrência da sedução de Súzi, “a piolhenta” (“No outro dia Jiguê entrou em casa
com uma cunhatã, fez ela engolir três bagos de chumbo pra não ter filhos e os dois dormiram
na rede. (...) Porém Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê..., M, 155-156)
(Campos - 1973, p. 116)
força de homens... Tão imensa que sua marcha estremece a terra” (Capítulo Três, p.
23). Ao final do dia, Xerxes tenta pessoalmente uma negociação, rejeitada por
Leônidas em pessoa, gerando outro ataque persa que segue frustrado pela
madrugada. “E um homem que se julga um deus... sente um calafrio muito humano
na espinha” (Capítulo Quatro, p. 27).
as derrotas infligidas por ele, a maior de todas elas foi ter conseguido ferir Xerxes no
terceiro dia, mostrando a todos que o rei persa nada tinha de deus.
Miller, porém, introduziu mais triplicações por sua obra. Ao retratar o olhar
de Leônidas no momento final, evocando uma triplicação atributiva, o faz em três
momentos:
Além disso, o número três aparece uma terceira vez nesse último
episódio, ainda como um “emblema atributivo” (Campos - 1973, p. 116), quando
Leônidas se desfaz de três objetos antes de se ajoelhar perante Xerxes - o elmo, o
escudo e a lança - representando os três momentos em que teve que abrir mão de
algo por um objetivo maior:
• quando Leônidas lhe diz: “Você, Ephialtes. Que viva para sempre” (Capítulo
Cinco, p. 31).
78
23.Resultado da disputa
Por sua vez, Dilios consegue voltar a Esparta e convencer aos que
ficaram, inclusive a toda Grécia, a enviar seus exércitos ao norte do país, mais
precisamente à região conhecida como Plataea. No desenlace, temos o único
sobrevivente dos heróis das Termópilas contando a 10.000 espartanos e 30.000
gregos livres como a marinha grega destruiu seus oponentes persas na recente
batalha de Sálamis, motivados pela história dos 300 de Esparta, a mesma que os
levou até lá: “Agradeçam, homens, a Leônidas e a seus bravos 300 de Esparta... e
preparem-se para a guerra” (Capítulo Cinco, p.45)
(...) as funções dessa Parte são preparatórias em dois sentidos: porque aviam a ação
propriamente dita e porque não comparecem em todos os casos. (Campos 1973, p. 126)
24-26. Proibições
24.Personagens atuantes
26.Motivação
27-29. Afastamento
27.Personagens atuantes
28.Forma de afastamento
29.Motivação
30.Personagens atuantes
31.Forma de infração
32.Motivação
33.Nomenclatura
36.Personagem atuante
38.Motivações
Para conquistar toda a Grécia, Xerxes precisa ter certeza de que não
encontrará resistência vinda do exército mais bem treinado e preparado do país.
Após descobrir que os espartanos seriam um risco às suas pretensões, o persa
passa a se dedicar a sabotar o inimigo, subornando os Éforos para que demovam
Leônidas da empreitada e entreguem os planos da defesa espartana, facilitando a
invasão. Por fim, já na batalha, os persas estão há dois dias tentando passar pelo
estreito corredor das Termópilas. O terreno acidentado da Grécia oferece apenas
84
essa passagem como porta de entrada e os espartanos sabem muito bem como
defendê-la, usando as formações rochosas para proteger seus flancos. A única
maneira de furar o bloqueio é cercá-los pela retaguarda.
40.Personagens traidores
43.Embustes do malfeitor
Seus deuses foram cruéis ao lhe dar forma, amigo Ephialtes. Os espartanos também o foram
em rejeitá-lo. Mas eu sou bom. Tudo o que você sempre desejou... Toda felicidade que
imaginou... Todo prazer que seus patrícios gregos e seus falsos deuses lhe negaram... Eu hei
de conceder. Pois eu sou bom. Aceite-me como seu rei e seu deus... Leve meus soldados pela
trilha oculta que desagua atrás dos malditos espartanos... E sua alegria será eterna. Peça o
que quiser... E será seu. (...) Eu sou bom. O cruel Leônidas exigiu que você se erguesse. Eu
peço apenas que se ajoelhe. (Capítulo Cinco, p. 8-9)
a) o dano acontece;
b) o dano é provocado pelo malfeitor.
86
45.Reação do herói
Figura 65: Exemplo de Painéis, publicados no caderno Folhinha, da Folha de São Paulo, em
27/1/2007
89
Figura 66: Exemplo de Tira, publicada no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, em 27/5/2011
Entendemos que graphic novel seja uma forma usada editorialmente para se referir a
determinadas produções, prioritariamente norte-americanas, que se valem da linguagem dos
quadrinhos para narrar histórias mais longas, (auto)biográficas ou não. Trata-se de um rótulo
aceito comercialmente e, por isso, difundido e almejado. Tal etiqueta, no entanto, ofusca as reais
características do gênero que contém, algo ainda a ser investigado. Um ponto a ser observado,
por exemplo, é a liberdade temática e mais realista vista em tais produções. (Ramos e Figueira -
2011, p. 19)
! Para Will Eisner, a graphic novel surgiu para atender aos “leitores que
desejavam (...) narrativas mais sutis e complexas”, fundamentadas “na escolha de
temas importantes e na inovação da exposição.” (Eisner, 1999, p. 138)
Ninguém em sã consciência me acusou de ser realista. Esse não é o meu papel. Escrevo
histórias de aventura. 300 é o mais próximo que cheguei da realidade. (...) O que eu fiz foi uma
evocação. Não era uma obra histórica. (Miller apud Snyder - The Frank Miller Tapes, 2007)
estocadas de lança) é usada por 18 vezes, contra 21 de uma que representa uma
marcha acelerada de um comboio persa. A surpresa está em a graphic novel se
referir a um episódio extremamente violento, mas o fato é facilmente explicado.
Miller investiu mais na plasticidade das imagens, no contraste entre luz e sombras e
entre cores frias e quentes. Além disso, a linguagem corporal é bastante explorada
pelo autor.
a. vista simples, ao nível dos olhos, que informa o leitor sobre detalhes;
b. vista aérea, para dar ao leitor uma visão nítida e sem envolvimento da
ambientação e dos eventos;
d. vista de baixo para cima, a partir do chão, para que haja o envolvimento do
leitor na ação.
Frank Miller não só usa essas regras, como extrapola suas aplicações,
alternando as combinações acima com outras mais improváveis, fazendo o leitor
passar do cansaço à reflexão, passando para a brutalidade e, logo depois para o
descanso, misturando as sensações causadas por um determinado tipo de
perspectiva com outro, sem aviso prévio.
momentos, quase como que escalando. Tudo começa com uma tomada de baixo
para cima, quando caminham sobre terreno plano, seguida de uma outra tomada no
nível do chão, quando estão subindo uma elevação. Depois, Miller adota uma vista
aérea, quando eles descem de uma outra elevação, finalizando com um plano geral
e uma vista de baixo para cima. Esse jogo com as perspectivas reforça ainda mais a
dureza da marcha.
graphic novel com dois tipos de ritmo de leitura, listados por Will Eisner no seu livro
Narrativas Gráficas: o cinematográfico e o impresso. Enquanto o primeiro “emula o
ritmo dos filmes como se a câmera ‘corresse’ de uma imagem para a outra”, o
segundo organiza as imagens de maneira que “as imagens estejam realmente
conectadas para que a ação fique mais clara.” (2005 - p. 74)
Não há uma norma rígida na aplicação dos dois tipos, o que nos leva a
crer que Miller tenha usado de licença artística para definir suas escolhas. Na
sequência inicial, por exemplo, o autor se utiliza do ritmo impresso. Apesar de
estarem em páginas separadas, como podemos ver na figura 73, as imagens são
parte de uma mesma sequência e se conectam perfeitamente, deixando claro serem
parte de uma mesma ação. Na sequência seguinte, quando o soldado Stelios
tropeça e apanha de seu oficial, o ritmo cinematográfico é utilizado nos quadros da
mesma página dupla e nos mesmos quadros das páginas duplas seguintes. Os
enquadramentos passam da queda de Stelios para o rosto do capitão no momento
em que repreende o soldado. O quadro seguinte mostra Stelios se desculpando,
sucedido por um quadro mostrando o rosto inexpressivo de Leônidas assistindo à
cena, passando para a cena do espancamento.
processo é fundamental quando Miller quer “criar tensão, suspense ou preparar para
uma grande revelação” (Chinen - 2001, p. 41) e, principalmente, porque a narrativa
alterna entre eventos passados e “do presente”. A elipse, nesse último caso, é um
eficiente recurso, já que se reduziu consideravelmente a narrativa a um flashback e,
como se o tempo tivesse transcorrido durante o resgate desse momento passado, a
situação já está momentos à frente.
! Vale ressaltar que, não só nessa parte de sua narrativa mas em toda a
história, Miller adotou os dois tipos de elipses definidos por Moacy Cirne, como
aponta Ramos (Ramos, 2009, p. 146): as pequenas, “que indicam uma sequência de
eventos no tempo”, e as grandes, “que indicam um corte maior tanto no espaço
como no tempo narrativos”.
103
Além das elipses, Frank Miller trabalha com a alternância entre quadros
grandes e pequenos em sequência para definir a noção de tempo das ações,
principalmente quando quer dar certa dramaticidade a elas. Por exemplo, quando
Leônidas arremessa sua lança em direção a Xerxes, o percurso da arma é
desenhado em três quadros horizontais que ocupam, em extensão, as duas páginas.
Os três quadros são separados por calhas estreitas e dispostos em ordem vertical,
reforçando ainda mais a sensação de passagem mais lenta do tempo, quase que
como uma câmera lenta.
Albert Einstein, na sua Teoria Especial (relatividade), diz que o tempo não é absoluto, mas
relativo à posição do observador. Em essência, o quadrinho faz desse postulado uma
realidade. O ato de enquadrar ou emoldurar a ação não só define seu perímetro, mas
estabelece a posição do leitor em relação à cena e indica a duração do evento. Na verdade, ele
“comunica” o tempo. A magnitude do tempo transcorrido não é expressa pelo quadrinho per se,
como logo revela o exame de uma série de quadrinhos em branco. A imposição das imagens
dentro do requadro dos quadrinhos atua como catalisador. (Eisner - 1999, p.28)
Miller ainda acrescenta sua visão pessoal de herói à sua versão dos
personagens, visão esta que permeia toda a sua produção. Nos extras do DVD 300
(2007), Zack Snyder questiona Miller se Leônidas, Marv (Sin City) e sua versão de
Batman são parecidos propositadamente. Em resposta, o quadrinista retoma o
episódio de quando assistiu pela primeira vez o filme The 300 Spartans, de Rudolph
Maté, concluindo em seguida:
Meu conceito de herói mudou. O herói não era mais quem ganhava o distintivo, ou era
aplaudido como Harry Potter no final da história. Um herói era alguém que fazia algo porque
era certo... Alguém cujas conquistas pudessem ir além de sua morte e que estivesse disposto a
morrer desacreditado e esquecido. Então, sim, surgiram Marv e minha versão de Batman. Esse
foi meu tema desde então. (Miller apud Snyder - The Frank Miller Tapes, 2007)
A maneira como ele foi desenhado por Miller o mostra como um homem
fleumático e quase inexpressivo. Um símbolo do “recato espartano”, como define
Dilios no segundo capítulo da graphic novel, que era forjado com brutalidade e
determinação. Tudo se resumia a não mostrar dor, o que acabava levando a não
demonstrar mais nenhum sentimento. Isso explica a impassibilidade de Leônidas
frente aos acontecimentos.
106
(...) sempre houve uma tendência no sentido de dotar o herói de poderes extraordinários desde
o momento em que nasceu ou mesmo desde o momento em que foi concebido. Toda a vida do
herói é apresentada como uma grandiosa sucessão de prodígios, da qual a grande aventura
central é o ponto culminante. (Campbell - 2007, p. 311)
“é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para
os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos” (p. 13).
A punição pela violação de um tabu era, sem dúvida, originalmente deixada a um agente
interno automático: o próprio tabu violado se vingava. (Freud - 1999, p. 29)
Isso se deve ao fato de constituírem veículos do poder mágico misterioso e perigoso que se
transmite por contato, como uma carga elétrica, e que causa a morte e a ruína a quem quer
que não esteja protegido por uma carga semelhante. (Freud - 1999, p. 50)
109
obedecer ao pai.” Inconscientemente, ter o líder como uma figura paterna já faz
parte do agir do ser humano. A personagem de Leônidas em Os 300 de Esparta
representa esse pai a quem devemos todos obedecer, pois ele é tudo o que um filho
espera de um pai. “Esse filho quer que seu pai seja forte e vencedor. Se for
vencedor no sentido do bem, da justiça e do amor, tanto melhor. Muitas vezes,
porém, o mais importante é que o pai seja exemplo de vitória, e o bem passa a
constituir coisa de segunda ordem” (Zoja - 2005, p. 12). Leônidas não só superou a
iniciação comum a todos os espartanos, mas também venceu um lobo quando ainda
não tinha idade suficiente para ir à guerra, e isso fez dele um homem admirável, que
deve ser temido e seguido.
O episódio inicial, quando Stelios cai durante a marcha, ainda nos brinda
com outro bom exemplo da figura paternal de Leônidas. Quando o rei ordena que o
soldado carregue o Capitão, o faz de maneira jocosa, apelidando-o de “Stombo”. No
quarto capítulo, após a manobra que decepou o braço do embaixador persa, Stelios
começa a ser chamado pelo verdadeiro nome por Leônidas, que exige do Capitão
que faça o mesmo. É como se estivesse tirando o filho do castigo e o
recompensando por ter feito algo certo, além de defendê-lo em uma briga com seu
“irmão mais velho”.
anos depois. Quando Leônidas é questionado pelo conselho espartano por estar se
equipando para a guerra, a despeito da proibição, simplesmente usa a Petição de
Princípio Oculta (Schopenhauer - 2003, p. 137), dizendo que estava “apenas
esticando as pernas” e que iria “dar um passeio”. Em seguida, quando Daxos o
critica por trazer apenas 300 homens frente aos milhares de árcades que o
acompanham, o espartano usa de Pré-silogismos (ibid., p. 134) para mostrar que
tinha mais soldados que o outro rei.
Porém, é o diálogo entre Xerxes e Leônidas que nos dá uma melhor visão
do humor sardônico do espartano. Ao se deparar com a procissão persa, que muito
se parece com um carro alegórico contemporâneo, Leônidas começa tentando
Encolerizar o Adversário (ibid., p. 140), fingindo tentar adivinhar quem está no alto
do palanque. Aparentemente, Xerxes não se abala e sugere que a batalha anterior
foi um mal-entendido. Em resposta, o espartano usa uma Anulação do Paradoxo
(ibid., p. 147), por meio de uma “redução ad absurdum” - “provar a absurdidade de
uma tese mostrando que ela leva a pelo menos uma consequência notoriamente
absurda” (ibid., p. 147) -, dizendo, quase que simploriamente, que estavam se
divertindo muito. Xerxes não se dá por vencido e argumenta que as culturas persa e
espartana têm muito a partilhar, que é respondida por outra “redução ad absurdum”.
Percebendo que não terá mais do que sarcasmo como resposta, Xerxes apela
ameaçando as mulheres espartanas que, de acordo com Leônidas, poderiam
facilmente marchar contra os inimigos enfrentados até o momento. Com a paciência
no fim, Xerxes dá a sua última cartada, oferecendo o poder supremo sobre toda a
Grécia a Leônidas, desde que este se ajoelhasse. O golpe de misericórdia do
espartano vem na forma de uma Incompetência Irônica (ibid., p. 172), dizendo que
matar todos aqueles escravos persas o deixaram com câimbra na perna, ficando
difícil ajoelhar-se, portanto, teria que recusar. Finalmente Xerxes perdeu a paciência
e expôs a Leônidas seu ponto fraco: a arrogância.
A palavra herói vem do grego, de uma raiz que significa “proteger e servir” (aliás, o lema do
Departamento de Polícia de Los Angeles). Um herói é alguém que está disposto a sacrificar
suas próprias necessidades em benefício dos outros. Como um pastor que aceita se sacrificar
para proteger e servir a seu rebanho. A raiz da ideia de herói está ligada a um sacrifício de si
mesmo. (Vogler - 2011, p. 87)
1. Função Psicológica
É fácil ver que o Eu é a parte do Id modificada pela influência direta do mundo externo, sob
mediação do Pcp-Cs [pré-consciente-consciente - minha nota], como que um prosseguimento
114
2. Funções Dramáticas
a. Identificação com a plateia - Não há boa história sem uma boa personagem, ou
um grande herói, e para Vogler, o herói funciona como uma janela para a história.
“Os heróis têm qualidades com as quais todos nós podemos nos identificar e nas
quais podemos nos reconhecer. São impelidos pelos impulsos universais que
todos podemos compreender: o desejo de ser amado e compreendido, de ter
115
e. Lidando com a morte - Na versão de Frank Miller para a história, Leônidas lida
com ela desde os seus primeiros anos de vida, quando é avaliado ao nascer,
passando pelas torturas do agogê, enfrentando o lobo e, por fim, liderando “seus
preciosos 300 à morte certa.” A trajetória do rei espartano é um eterno confronto
com a morte, que o torna mais forte e sábio a cada vitória. O seu objetivo é o
sacrifício e a tão valorizada “bela morte”, ou seja, morrer em batalha, ao lado de
seus companheiros e enfrentando um inimigo formidável.
O verdadeiro heroísmo aparece nas histórias em que o herói se oferece no altar da sorte,
disposto a correr o risco de que sua busca de aventuras possa levar ao perigo, à perda ou à
morte. (Vogler - 2011, p. 92)
! O rei de Esparta nasceu para ser um herói e, de fato, ele quer sê-lo.
Podemos classificar Leônidas no que Campbell (2007) chama de herói do mito, ou
herói universal, ou seja, um herói que obtém triunfos macrocósmicos, histórico-
universais e que trazem uma mensagem para o mundo inteiro, como Maomé, Jesus
ou Gautama Buda (p. 41-42). Já para Vogler, de acordo com a sua disposição, o
espartano se encaixa na categoria dos heróis “decididos, ativos, loucos por
aventuras, que não têm dúvidas, do tipo sempre em frente, automotivados” (2011 -
p. 96).
Porém, ele mergulha no combate até o sacrifício final por amor aos que ficaram
longe, o que nos permite encaixá-lo numa outra classificação definida por Vogler: a
dos heróis voltados para o grupo. No início, Leônidas é mostrado como parte de
Esparta, até que ele tem que se separar dela e seguir para a batalha em um lugar
distante da sua terra, ou como Vogler define, o mundo especial.
Os heróis orientados para o grupo muitas vezes enfrentam a escolha entre voltar ao mundo
comum do primeiro ato ou ficar no mundo especial do segundo ato. Na cultura ocidental, são
raros os heróis que decidem ficar no mundo especial, mas eles são bastante comuns nos
contos clássicos da Ásia ou em narrativas indígenas. (Vogler - 2011, p. 99)
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali
encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa
aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (Campbell - 2007, p. 36)
! Para que retornasse, teria que ter conquistado algo, assim, voltar
significaria admitir a derrota ou se acovardar, o que não seria heróico. O que restou
a Leônidas foi ficar e conquistar algo que servisse de benefício a Esparta, ou seja, a
oportunidade de mortalizar Xerxes, mesmo que o preço fosse sua própria vida. Mas
há outro aspecto que devemos levar em consideração: Leônidas não voltou, mas
suas palavras e atos voltaram a Esparta com Dilios, assim fechando o ciclo do
monomito.
118
Conclusão
Porém, como dito anteriormente, não foi uma tarefa simples e alguns
desafios se apresentaram durante nossa pesquisa. Primeiramente, percebemos que
não há um consenso entre os diversos autores e pesquisadores das HQs quanto às
fases pelas quais passou o segmento. A importância desse mapeamento se dá na
medida em que precisamos situar Os 300 de Esparta em um contexto e encaixá-la
em um conjunto de características de uma determinada época. Um segundo desafio
se fez presente na escassez de literatura, e mesmo de material acadêmico, sobre a
119
publicação de Frank Miller. Por outro lado, a internet se mostrou uma fonte infinita de
artigos e demais textos a respeito, porém nem todos confiáveis. Essa dificuldade,
em particular, foi sanada com o conteúdo dos extras no DVD 300, em que o próprio
Miller, apoiado por estudiosos das mais diversas áreas, explica a graphic novel em
detalhes. Por fim, o terceiro e último desafio foi o de encontrar um modelo adequado
para a decupagem de Os 300 de Esparta. Por ser uma obra bastante complexa,
como dito anteriormente, apenas o modelo tabular de Propp, ainda que apenas as
duas primeiras tabelas, se adequou às especificações procuradas. Assim, o estudo
de Haroldo de Campos se mostrou fundamental nesta parte.
Apesar de retratar uma violenta batalha, Miller não usa balões-berro para
representar os gritos ou comandos em voz alta, preferindo trabalhar com as palavras
em negrito e, algumas vezes, com cores diferentes, reforçando ainda mais a frieza
expressiva dos espartanos. A onomatopeia é um outro elemento da linguagem dos
quadrinhos trabalhada de maneira inusitada na obra. Aparentemente, o quadrinista
economizou no seu uso, porém, sua proposta era retratar um episódio histórico, o
que requer certa dose de seriedade. Apesar de ser um importante elemento de
suporte, a onomatopeia, se usada sem critério, pode dar um tom cômico indesejado
à história. Por outro lado, Miller faz um excelente trabalho com as perspectivas, tanto
para reforçar a dramaticidade de algumas situações, como para mostrar a ironia em
outras, sempre combinando com rítimos diferenciados, elipses grandes e pequenas
e alternâncias entre quadros horizontais e verticais. Essa mistura, que é uma
característica do estilo milleriano, só aumenta mais o caráter perturbador do roteiro.
desde a Primeira Guerra do Golfo (1991). Um prato cheio para Dorfman e Mattelard
e suas teorias da conspiração, já que, na década de 1990, o discurso dos EUA era o
de que as incursões militares eram feitas sob o pretexto de garantir a liberdade do
Kuwait, à época invadido pelo Iraque, e, preventivamente, “conter os atores locais,
especialmente os que pudessem espalhar instabilidade e tumulto, como o Irã logo
após a Revolução Islâmica de 1979” (Waack apud Magnoli - 2006, p. 454).
Coincidência ou não, o filme de 1962, que inspirou Miller, também é suspeito de
retratar um conflito de maneira parcial: a Guerra Fria. Dessa vez, os espartanos
eram os americanos combatendo o avanço soviético, representado pelos persas.
Leônidas, independente de quem represente, é uma personagem complexa demais
para ser analisada apenas sob essa ótica, bem como a graphic novel como um todo.
Afinal, o relato de Herodoto (também feito, à sua maneira, de maneira parcial) não é
diferente das versões de Maté, Miller e Snyder, deixando os exageros fantasiosos de
lado, como o deformado Ephialtes das duas últimas. Historicamente falando, houve
mesmo a luta de poucos pela liberdade contra um invasor muito maior e com sede
de destruição.
associado à personalidade soturna e lacônica dos espartanos, faz com que a obra
se encaixe perfeitamente ao perfil da Vertigo a partir de 1988.
anos depois, quando a mulher Oráculo o alerta para o perigo que se aproxima,
ameaçando Esparta.
fato de que os espartanos viviam para um dia terem a “bela morte”. Em uma análise
mais profunda, concluímos que essa relação de liderança se dá de maneira muito
similar à relação “pai e filhos”, principalmente pela maneira como Leônidas trata os
seus 300. Esse laço é reforçado por uma relação totêmica decorrente do episódio do
lobo, que não dá superpoderes a Leônidas, mas lhe confere uma aura sobre-
humana, pois foi um plus pelo qual mais ninguém passou durante a iniciação. Para
os espartanos, Leônidas é mais que um rei: é um pai e um verdadeiro herói. Esse
herói, porém, como todo ser humano, tem suas limitações.
Para defender Esparta, por exemplo, Leônidas teve que ignorar as leis
espartanas e a restrição da Carneia, portanto, fica claro que obediência é uma
palavra que não faz muito sentido ao rei. Essa “deficiência” é compensada pelos
seus 300 guarda-costas que, por terem um forte sentimento de dever, permanecem
até o fim ao seu lado, sem questionar uma de suas ordens, mostrando-se bem mais
obedientes que o seu líder. Ao final da história, chega a ser irônico quando Leônidas
se mostra fiel à única lei que lhe é conveniente, pois lhe dará a tão sonhada “bela
morte”: “Sem retirada. Sem rendição. e pela lei espartana vamos resistir, lutar e
morrer” (Capítulo Cinco, p. 13).
descreve sua estratégia aos éforos, Leônidas conta com um grande efetivo para tal.
Posteriormente, em um dado momento da história, Leônidas lamenta ter tão poucos
homens para sacrificar. Ou seja, se não fosse o Conselho Espartano reforçar o
veredicto dos Éforos, o rei partiria com um grande efetivo e a tragédia poderia ser
bem maior, mesmo porque, Esparta ficaria desprotegida.
Referências
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte:
Livraria Garnier, 2004.
ASSIS, Érico. Gréfic Nóvel. Disponível em <http://www.blogdacompanhia.com.br/
2012/04/grefic-novel/>. Acesso em 12 de junho de 2012.
AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
BLUMBERG, Arnold T. The Night Gwen Stacy Died: The End of Innocence and the
Birth of the Bronze Age. Disponível em <http://reconstruction.eserver.org/034/
blumberg.htm>. Acesso em 17 de junho de 2012.
BORGO, Érico. Bilheteria USA: Sin City. Disponível em <http://omelete.uol.com.br/
cinema/bilheteria-usa-isin-cityi/>. Acesso em 17 de junho de 2012.
BONAPARTE, Napoleão. Manual do Líder. Porto Alegre: L&PM, 2010.
BROWNSTEIN, Charles. Returning to the Dark Knight: Frank Miller interview - part 1.
Disponível em <http://www.comicbookresources.com/?page=article&old=1&id=233>.
Acesso em 17 de junho de 2012.
____________________. Returning to the Dark Knight: Frank Miller interview - part
2. Disponível em <http://www.comicbookresources.com/?page=article&old
=1&id=234>. Acesso em 17 de junho de 2012.
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CARNEIRO, Luiz Marcelo B. O Mosaico Narrativo de Watchmen: Processos
Intertextuais, Intersemióticos e Bakhtinianos de Construção dos Sentidos.
Dissertação de Mestrado apresentada em 2009, no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Comunicação e Semiótica.
CARTLEDGE, Paul. História ilustrada da Grécia Antiga. São Paulo: Ediouro, 2009.
CHINEN, Nobu. Linguagem HQ: Conceitos Básicos. São Paulo: Criativo, 2011.
CIRNE, Moacy. Heróis e personagens - talvez sim, talvez ficção. Texto publicado em
Estudos de Psicologia 1996.
128
VOGER, Mark. The Dark Age: Grim, Great & Gimmicky Post-Modern Comics.
Raleigh (NC): TwoMorrows Publishing, 2006.
VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
WERNECK, Daniel L.. A tal da “graphic novel”.Disponível em <http://
garagemhermeneutica.tumblr.com/post/19741538372/a-tal-da-graphic-novel>.
Acesso em 17 de junho de 2012.
ZOJA, Luigi. O Pai. São Paulo: Axis Mundi, 2005
133
VI.O antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de seus bens
XX.Regresso do herói
A história se inicia com uma marcha, logo no Capítulo Um. Ora, soldados
são mostrados marchando em terreno plano, ora íngreme e, em outros momentos,
quase como que escalando. A alternância entre plongée e contra plongée dos
quadros reforça a dureza da marcha. Um deles narra o evento: “Nós marchamos.
Desde a querida Lacônia... dede a sagrada Esparta... nós marchamos. Em nome da
honra... em nome da glória... nós marchamos” (p. 5 a 9) É interessante notar que,
independente do terreno, os espartanos permanecem no mesmo compasso e
homogêneos, como se fossem um só organismo, um só corpo. O passo
sincronizado, que nos termos militares significa uma marcha bem executada,
permanece inalterado, bem como a posição das lanças, sempre apontadas para
cima, paralelas, prontas para serem usadas assim que necessário, ao mesmo tempo
que conotam a virilidade daqueles que as envergam. Os homens marcham sem
expressão, sem palavras, eretos e sempre olhando para frente. Estão equipados
apenas com seus elmos, sempre nas cabeças, o indefectível escudo com uma
enorme letra lambda (o símbolo da Lacônia), caneleiras e protetores para os
antebraços e o manto vermelho espartano (posteriormente podemos ver que estão
com suas espadas também). O ano é 480 a.C.
serem alguns segundos, Leônidas diz “Basta.” Como não é ouvido, entrega seu
escudo e lança ao espartano mais próximo e avança até o oficial, pega-o pelos
cabelos e o nocauteia com um único golpe. Mais uma vez, ninguém se manifesta.
Em seguida, ordena ao soldado, chamando-o jocosamente de “Stombo”, que se
ponha de pé e carregue nas costas o capitão “que dorme”. Mais uma vez resignado
(e dolorido), Stelios obedece à ordem, escarnecido pelos seus pares. A jornada, a
partir daquele momento, foi sem comida para todos, até o destino de chegada.
“Envergonhados... nós marchamos”, diz o narrador, numa ironia típica espartana.
guerra, já que os éforos deram a palavra final. Leônidas, por sua vez, responde que
não pretende ir à guerra, já que não emitiu ordem nenhuma, mas apenas dar um
passeio e esticar as pernas. Sua esposa, a rainha Gorgo, também está presente, e
pede que, por mais que pareça exagero, que Leônidas leve toda sua guarda
pessoal, composta por 300 espartanos. Não convencidos, os membros do conselho
insistem ao perguntar o destino do “passeio”. Displicentemente, o rei responde:
“Ainda não pensei a respeito, mas agora que me pergunta... Acho que vou para o
norte.”
“Adeus, meu amor”, ele não diz. Não há lugar para ternura. Não em Esparta. Não há lugar para
fraqueza. Apenas os fortes e ásperos podem se chamar de espartanos. Apenas os fortes.
Apenas os ásperos. Uma mulher forte. Uma ótima esposa. Para ele, agora apenas uma
lembrança. Leônidas jamais a verá novamente. Jamais verá Esparta novamente.
Segue, então, uma cena em que fica clara e nítida a diferença entre a
disciplina e unicidade espartana e a heterogeneidade desorganizada, ao mesmo
144
tempo que são um único exército, agora marchando não só em nome de Esparta,
mas de toda a Grécia: “Sete mil fortes... Nós marchamos. Para a boca do inferno...
Nós marchamos” (p. 20 a 22). De repente, o caminho se estreita e a tropa grega se
depara com o desfiladeiro das Termópilas, se erguendo imponente à sua frente: uma
grande garganta de rocha, que em muito lembra o corredor em que Leônidas, anos
antes, prendeu o lobo negro antes de matá-lo. O jogo de luzes e sombras
característico de Frank Miller contribui para tornar a localidade mais mórbido e
assustador.
Assim que chegam, são recebidos por um forte temporal que faz com que
o mar se torne revolto. Os espartanos correm para mais perto da orla para observar
a forte chuva e os relâmpagos, enquanto refletem sobre a grandeza de Zeus, Bóreas
e Posêidon, que naquela noite serão os pesadelos dos marinheiros. Então, um dos
elementos do contingente espartano percebe a presença da frota persa no mar. A
cena seguinte mostra os espartanos assistindo de muito perto a um espetáculo
grotesco, feito de grandes navios sendo arremessados contra as pedras, corpos de
marinheiros voando e gigantescas ondas engolindo destroços e cadáveres.
Enquanto todos vibram e comemoram a desgraça persa, Leônidas é o único que
“mantém o recato espartano”, taciturno e com a expressão pesada, como na
abertura do capítulo. Ele sabe que aquilo é apenas a ponta de um iceberg e que não
terão a menor chance contra o que está por vir.
persas serão tão numerosas que cobrirão o sol. Stelios responde que, então, lutarão
à sombra.
Enquanto desce para o acampamento, Leônidas ordena seu capitão que despache o
grupamento de soldados fócios à trilha de bodes desguarnecida, quando o chão
148
começa a tremer. A princípio, o capitão pensa ser um terremoto, mas o forte tremor é
causado pelos milhares de persas que se aproximam do acampamento em um
ataque surpresa. A pé e a cavalo, uma grande, mas desordenada, fração do exército
de Xerxes se aproxima a toda velocidade, inundando a paisagem com seus
escudos, espadas e lanças.
Esparta irá à guerra. Reze para que eles sejam tão idiotas. Além do mais, não há por
que não sermos civilizados” (p. 15).
Nesse momento, pode-se notar a grande diferença de altura entre Leônidas e o bem
mais alto Xerxes e que o rei persa não veio tão desprevenido como se pensava:
arqueiros estrategicamente posicionados apontam suas flechas em direção ao
espartano.
151
L.- Você não conhece as nossas mulheres. A julgar pelo que vi, eu até as
poria em marcha aqui. Você tem muitos homens, Xerxes... Mas poucos soldados. E
logo eles vão temer mais minhas lanças do que suas chibatas.
X.- Não é o chicote que eles temem. É o meu poder divino. Mas eu sou
um deus generoso. Posso torná-lo rico como ninguém. Posso torná-lo o comandante
militar de toda a Grécia. Levando meu estandarte de batalha ao coração da Europa.
Seus rivais atenienses vão se ajoelhar a seus pés... Se você se ajoelhar aos meus.
L.- É uma oferta tentadora. Eu seria louco de recusar. Mas essa história
de me ajoelhar... Infelizmente, matar todos aqueles seus escravos me deixou com
câimbra na perna. Acho que vou recusar.
X.- Você me entristece. Assim como sou generoso, também sou colérico.
Vou eliminar da história até mesmo a lembrança de Esparta. Não haverá glória em
seu sacrifício. Ninguém jamais saberá.
escudos. Ainda é a primeira noite de combate, como o título da parte deixa claro em
suas letras garrafais. Quando esses soldados se aproximam, percebemos que
realmente não são os espartanos. Vestidos de negro, peitoral branco e máscaras
carrancudas de metal. “Emudecidos... Em formação impecável... Movendo-se em
uníssono, cada passo coletivo atingindo o solo como um golpe de martelo do deus
do fogo... Eles marcham. A guarda pessoal do rei Xerxes. A elite dos guerreiros
persas. a mais mortífera força de combate em toda a Ásia. Os Imortais.”
resposta, o rei pede que o soldado conte uma história aos colegas. Enquanto todos
riam de como os persas, dez anos antes, haviam sido escorraçados pelos
atenienses na batalha de Maratona, Daxos chega apressado e atônito a cavalo, aos
gritos de “estamos perdidos”.
Nossa escolha é fácil, árcade! Espartanos nunca recuam! Espartanos nunca se rendem! Vá
embora! Passe a palavra! Que todos os gregos aqui reunidos saibam a verdade... Que todos
contemplem a própria alma! Que você mesmo contemple a sua!
Quando o árcade parte resignado, Leônidas reúne seus soldados para fazer um
discurso sobre a próxima e última batalha:
Os deuses nos sorriem. Ao amanhecer, vamos acender uma fogueira que há de arder no
coração dos homens livres por muitos e muitos séculos. Sem retirada. Sem rendição. Essa é a
lei espartana. E pela lei espartana vamos resistir, lutar e morrer.
A lei. Nós não sacrificamos a letra da lei à vontade dos homens. Assim agiam os antigos, os
idiotas. Assim age Xerxes e todas as criaturas iguais a ele. Uma nova era começou. Uma era
de grandes feitos. Uma era de razão. Uma era de justiça. Uma era de lei. e todos saberão que
300 espartanos deram seu último alento para defendê-la!
Espartanos. Preparem sua refeição matinal. E comam bem... pois esta noite vamos jantar no
inferno!
De repente, Leônidas apóia sua lança no ombro, retira seu elmo e o joga
no chão, fazendo o mesmo com seu escudo. Ephialtes e o embaixador persa
observam a cena calados, até que este último lembra ao espartano sobre a sua
lança. Ignorando o persa, Leônidas olha calmamente para o corcunda e amaldiçoa:
“Você, Ephialtes. Que viva para sempre.” Mais uma vez, o persa fala da lança, agora
mais enfático. Leônidas apenas a mostra ao embaixador e a joga no chão,
ajoelhando-se e baixando sua cabeça em seguida, submisso. Ainda de cabeça
baixa, o rei espartano diz um nome: Stelios.
Hoje, resgatamos um mundo dos hábitos retrógrados, sombrios e idiotas... E partimos rumo a
um futuro certamente mais brilhante do que podemos imaginar. Agradeçam, homens, a
Leônidas e a seus bravos 300 de Esparta... E preparem-se para a guerra!