Xenofonte de Éfeso+a História de Hipótoo (Efesíacas, Iii.2)

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TRANSLATIO Porto Alegre, n.

14, Dezembro de 2017

A HISTÓRIA DE HIPÓTOO (EFESÍACAS, III.2):


TRADUÇÃO E COMENTÁRIO1

Adriane da Silva Duarte

RESUMO: “A história de Hipótoo” é uma narrativa intercalada no livro terceiro de


As Efesíacas ou Ântia e Habrocomes, romance de Xenofonte de Éfeso (II. d.C.).
Embora o autor não se destaque pelas qualidades literárias de seu texto, é notável o
emprego que faz dessas narrativas secundárias em sua obra, com intuito de caracterizar
as personagens, traçar paralelos com as situações vividas pelos protagonistas e fazer
avançar a ação. O objetivo desse artigo é apresentar a tradução dessa passagem
(Efesíacas, III.2), antecedida por uma breve apresentação do autor e obra em que se
inserem e sucedida de comentário.

PALAVRAS-CHAVE: Xenofonte de Éfeso; Efesíacas; Ântia e Habrocomes;


romance grego antigo.

ABSTRACT: “The Hippothous’ tale" is an embedded narrative inserted in the third


book of The Ephesian tales, or Anthia and Habrocomes, novel by Xenophon of
Ephesus (II AD). Although the author does not stand out for the literary qualities of
his text, the use that he makes of these secondary narratives in his work is remarkable,
in order to characterize the characters, to draw parallels with the situations lived by the
protagonists and to advance the action. The purpose of this paper is to present the
translation of this passage (The Ephesian tales, III.2), preceded by a brief presentation
of the author and work in which it is inserted and followed by a commentary.

KEYWORDS: Xenophon of Ephesus; The Ephesian tales, Anthia and Habrocomes,


Greek Ancient Novel.

Xenofonte de Éfeso (II a.C.), como de resto os demais autores do romance


grego, é praticamente um desconhecido. A única fonte sobre sua vida é um curto e
polêmico verbete da Suda, famosa enciclopédia bizantina, que anota apenas2:

Ξ. ᾿Εφέσιος· ἱστορικός. ᾿Εφεσιακά· ἐστι δὲ ἐρωτικὰ βιβλία ί Περὶ


᾿Αβροκόμου καὶ ᾿Ανθίας· καὶ Περὶ τῆς πόλεως ᾿Εφεσίων καὶ ἄλλα.

1
Esse artigo apresenta resultados parciais de projeto financiado pelo CNPq através da Bolsa de
Produtividade em pesquisa 303671/2015-7.
2
Para o testemunho da Suda, cf. Gärtner (1983: 2057).

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X[enofonte] de Éfeso, historiador, [autor de] Efesíacas, uma história


de amor em 10 livros sobre Habrocomes e Ântia e também sobre a
cidade de Éfeso, além de outros.3

É certo que o verbete associa o nome Xenofonte a Efesíacas ou Ântia e


Habrocomes (título pelo qual é mais referida), mas nada outro informa sobre quem
tenha sido o autor nem em que época teria vivido. Embora anote que o assunto de
Efesíacas seja uma história de amor (erotiká), denomina seu autor um historiador
(historikós). Talvez a maior inconsistência esteja na atribuição de 10 livros à obra
quando o texto que nos chegou traz somente cinco. O que pensar disso tudo?
A falta de outras fontes e de precisão na que existe não permite tirar conclusões
seguras. É verdade que a identidade do autor também se afirma na última sentença do
romance, com a devida menção ao total dos livros (Efesíacas, V.15.4):

Ξενοφῶντος τῶν κατὰ ᾿Ανθίαν καὶ ῾Αβροκόμην ᾿Εφεσιακῶν ε’


λόγων τέλος.

É o final das Efesíacas de Xenofonte, relato em 5 livros, a respeito


de Ântia e Habrocomes.

A passagem, no entanto, foi considerada interpolação por vários editores, cuja


supressão aconselharam.4 A suspeita é que o nome do autor constitua um pseudônimo
tomado de empréstimo ao Xenofonte ateniense, historiador do século IV a.C., cujas
obras, especialmente a Ciropedia, teriam tido grande influência na formatação do
gênero romance – o que explicaria também a designação de nosso autor como
"historiador" no verbete. Também a naturalidade é posta em dúvida, pois a ligação
com Éfeso pode ter sido induzida pelo fato de a cidade constituir o cenário principal
do romance, ponto de partida e de retorno dos protagonistas, que dela são originários.
O aspecto mais polêmico, no entanto, é a descrição de uma obra em dez livros,
quando o manuscrito traz cinco. Isso se soma ao fato de o estilo de Xenofonte ser
considerado simplório e desprovido de ornamentação quando comparado aos dos
demais romancistas, o que foi motivo para que sua obra tenha sido amplamente
negligenciada (Ruiz-Montero, 2004:43). Kytzler (2003:350) sintetiza bem a questão
ao anotar que:

"É óbvio para qualquer leitor da obra de Xenofonte, seja no original,


seja em qualquer uma de suas numerosas traduções, que ele se vale
de uma linguagem pouco refinada, mais para o simples."

3
Também se pode entender que além das Efesíacas, o romance, Xenofonte tivesse escrito um livro
intitulado Sobre a cidade de Éfeso (Περὶ τῆς πόλεως ᾿Εφεσίων), de caráter historiográfico, entre outras
obras (καὶ ἄλλα) das quais nada se sabe.
4
Cf., p. ex. a recente edição de Henderson para Loeb (Xenophon of Ephesus:2009).

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As duas coisas juntas reforçaram a hipótese de que o texto que conhecemos


seja uma epítome, i. e, uma versão resumida da obra original. Essa teoria, que teve
grande aceitação no passado, atualmente começa a ser revista em grande parte graças
às análises de Hägg (1966) e O'Sullivan (1995). Este último defende que o padrão de
repetição (repetitive-formulaic character) de estruturas sintáticas, semânticas e
temáticas deve-se à dívida do autor para com as narrativas de base oral, e não ao fato
de ter sido reescrita com o intuito de resumi-la (O'Sullivan, 2014:50):

"Eu argumentei [em outra parte] que [as Efesíacas] deveriam ser
consideradas como um texto transicional, uma obra ainda fortemente
ligada à sua origem oral, mas que foi composta por escrito e que é
até mesmo capaz de incorporar – embora eu não veja isso de maneira
tão clara em Xenofonte – características literárias e, inclusive,
intertextuais".5

Quer se aceite a hipótese da influência de um estrato de base oral ou não, o


fato é que, em vista da complexidade de sua estrutura narrativa, que conjuga vários
planos de ação e personagens, sujeitos a sucessivas peripécias, Xenofonte parece ter
aberto mão da ornamentação da linguagem em troca da agilização do ritmo narrativo.
Certo é que, dentre os cinco autores que compõem o cânone do romance grego antigo,
Xenofonte é sem dúvida o que goza de menos prestígio no que concerne à qualidade
de sua escrita. Uma análise mais isenta, contudo, é capaz de revelar sua competência
narrativa.
O romance apresenta um narrador, onisciente e em terceira pessoa, bastante
discreto, que quase não se intromete na narrativa – justamente o contrário do que se vê
em Cáriton de Afrodísias (I a.C.), seu predecessor cujo estilo é mais apurado.6 Segundo
Morgan (2004:490), "a função mais visível desse quase invisível narrador é
precisamente controlar as rápidas transições entre as duas linhas narrativas da trama",
i.e, as aventuras de Ântia e as de Habrocomes. No entanto, a narrativa não carece de
interesse e num ponto Xenofonte parece ter se destacado: no que respeita às narrativas
intercaladas (embedded narrative). Além de cumprirem a função de informar as
personagens dos passos umas das outras, também oferecem-se enquanto analogias
exemplares para os heróis (III.2.1-15; V.1.4-11).7 A meu ver, a história de Hipótoo,

5
Aqui O'Sullivan remete ao seu livro de 1995. Veja-se também Ruiz-Montero (2004:44), para
aproximação com o conto popular, mas também com as exibições retóricas. Trechos entre colchetes são
acréscimos meus.
6
Cáriton de Afrodísias (cidade próxima de Éfeso) é autor de Quéreas e Calírroe, obra tida como o
primeiro exemplar conhecido do romance antigo, tendo contribuído para estabelecer os padrões que o
gênero adotaria. Embora a grande maioria dos estudiosos situe Cáriton no século primeiro da era Cristã
e Xenofonte de Éfeso no segundo, O’Sullivan defende que o segundo é mais antigo, tendo sido ele a
influenciar aquele. Na sua opinião (O'Sullivan, 2014:52), Xenofonte representaria uma espécie de
transição entre uma tradição oral de histórias de amor e aventura e sua assimilação na cultura letrada,
da qual Cáriton seria o continuador.
7
Cf. Morgan (2004:490-1).

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narrativa embutida no começo do livro terceiro do romance, exemplifica bem algumas


dessas características.
Antes de passar a ela, no entanto, devo contextualizá-la tendo em vista o
conjunto da obra. Efesíacas, como as demais obras que compõem o corpus do romance
grego antigo, conjuga amor e aventura (erotiká e parádoxa).8 Centrada no par
protagonista, que dá nome ao livro, a narrativa apresenta sua paixão inicial, a
subsequente separação do casal, pontuada por aventuras em terras distantes, a
subsequente reunião com regresso à terra natal e final feliz. Note-se, contudo, que a
trama é muito enredada, com peripécias sequenciais e duplicação de padrões
narrativos. Por isso, apesar de ser o mais breve dos romances gregos de amor, é o mais
difícil de resumir. Vou me ater aqui apenas aos elementos que ajudem a caracterizar
Hipótoo e elucidar sua relação com os protagonistas.9
Depois de casados, Ântia e Habrocomes, seguindo a determinação de um
oráculo, partem em viagem. Suas desventuras têm início quando, capturados por
piratas, que os assediam, são feitos escravos do líder do bando e, posteriormente,
graças à intriga de sua filha, separados. Ântia é enviada para Síria e Habrocomes
permanece aprisionado na Fenícia. A partir de então, Habrocomes estará sempre à
procura da esposa, cujo rastro perde constantemente em vista da constante
movimentação dela e das informações desencontradas que recebe. Durante um desses
deslocamentos, a jovem sofre um naufrágio na costa da Cilícia e é feita prisioneira
pelos bandoleiros liderados por Hipótoo. Quando estava prestes a ser sacrificada ao
deus Ares num ritual de grande crueldade – amarrada e suspensa em uma árvore, a
vítima seria alvejada pelas lanças dos bandidos –, tropas de segurança investem contra
o bando e salvam-na. Hipótoo consegue escapar ao cerco, escondido na floresta, até
que dias depois encontra Habrocomes vagando por ali – ele tinha se perdido ao seguir
uma pista sobre o paradeiro de Ântia. Constrangido pelo bandido, que o quer por
sócio, Habrocomes parte com ele para a Capadócia, onde aquele pretendia reconstituir
sua quadrilha. Após dias de uma marcha forçada, resolvem pousar numa grande
cidade, onde trocam confidências durante o jantar. Em meio a lágrimas, Hipótoo é o
primeiro a contar sua história, “longa e digna de uma tragédia” (III.1.4), como ele
mesmo a introduz. Passemos a ele a palavra, portanto.

“A história de Hipotoo” (Ântia e Habrocomes, III.2): tradução10

_ Minha família é de Perinto, cidade próxima à Trácia, uma das mais influentes dali.
Sem dúvida você já ouviu falar da fama de Perinto e da prosperidade de seus
habitantes. Ali, quando jovem, apaixonei-me por um belo rapaz, também de lá. Seu
8
Para uma descrição do corpus e das espécies em que se divide o gênero consultar Brandão (2005),
especialmente o cap. 3, “O gênero e suas espécies”. Os parádoxa, ou narrativas extraordinárias são os
romances de viagem e aventura; os erotiká, são os que privilegiam as peripécias amorosas. Há também
os que conjugam ambas as vertentes, os erótika + parádoxa (Brandão, 2005: 271).
9
Para um resumo bem mais completo, cf. O'Sullivan (2014).
10
A tradução tem por base o texto estabelecido por O’Sullivan para Teubner: Xenophon Ephesius. De
Antia et Habrocome Ephesiacorum Libri V. Ed. J.N. O'Sullivan (Bibliotheca Teubneriana). Monachii
et Lipsiae: K. G. Saur, 2005.

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nome era Hiperanto. Foi amor à primeira vista: assim que o vi praticar a luta no ginásio,
não pude resistir. Por ocasião do festival local e da vigília noturna procurei Hiperanto
e implorei que tivesse pena de mim e o rapaz, com pena, após escutar, tudo me
prometeu. Primeiro trilhamos o caminho do amor através dos beijos, das carícias e das
lágrimas, que da minha parte eram muitas. Por fim, quando tivemos oportunidade,
conseguimos ficar sozinhos e desfrutar da companhia um do outro – éramos da mesma
idade e não atraíamos suspeitas. Passávamos juntos muito tempo, gozando
intensamente um do outro, até que uma divindade teve inveja de nós. Veio um homem
de Bizânzio (Bizânzio fica perto de Perinto), um dos mais influentes de lá. Por sua
riqueza e posses, esse homem, de nome Aristômaco, era um arrogante. Assim que
pisou em Perinto, como se enviado por um deus contra mim, avista Hiperanto comigo
e imediatamente queda cativo, admirado com a beleza do rapaz, capaz de atrair
qualquer um. Apaixonado, não conteve a paixão dentro do razoável, mas de cara
declarou-se ao rapaz através de emissários. Como o caso era impossível (pois
Hiperanto, por sua dedicação a mim, não se aproximava de ninguém mais), trata de
convencer seu pai, um homem sem caráter e com um fraco por dinheiro. Esse lhe
confia Hiperanto sob pretexto de zelar por sua educação, pois aquele alegava ser
mestre em retórica. Ao se apoderar dele, primeiro o manteve trancado, depois levou-o
para Bizâncio. Fui atrás, deixando tudo que era meu, e, na medida do possível,
convivia com o rapaz. Mas eu podia pouco e eram-me raros os beijos e difíceis as
conversas – já que eu era severamente vigiado. Por fim, sem poder suportar mais, num
rompante, retornei a Perinto e, após vender todos os meus pertences e recolher o
dinheiro, vou para Bizânzio. Em posse de um punhal (isso estava combinado com
Hiperanto), entrei à noite na casa de Aristômaco e encontrei-o deitado ao lado do
menino. Tomado de raiva, firo de morte Aristômaco. Como tudo estava tranquilo e
todos dormiam, saí do jeito que estava, sem ser visto. Levei comigo Hiperanto e
durante toda a noite rumei para Perinto. Tão logo desci do navio, sem que ninguém
soubesse, embarquei para a Ásia. Por certo tempo a viagem transcorreu bem, mas no
final um forte vento abateu-se sobre nós quando estávamos junto de Lesbos e virou o
navio. Tratei de nadar sustentando Hiperanto e aliviava seu esforço, mas quando veio
a noite, sem que o rapaz pudesse aguentar mais, afundou e morreu. E eu não só
consegui resgatar o corpo até a terra firme, como o sepultei. E após chorar e lamentá-
lo, afastei-me de seus restos mortais e, capaz de encontrar por ali uma pedra
apropriada, finquei-a à maneira de lápide em sua sepultura. Nela inscrevi em memória
do desafortunado rapaz um epigrama, composto para aquela ocasião. Ei-lo:
HIPÓTOO ERIGIU ESTE JAZIGO PARA O CÉLEBRE HIPERANTO,
INDIGNO SEPULCRO DE UM CIDADÃO SACROSSANTO,
QUE, DO CHÃO PARA O ABISMO, O DEUS COLHEU UM DIA, ILUSTRE
FLOR,
QUANDO NO OCEANO O VENTO SOPRAVA COM MÁXIMO FUROR.
Desde então, determinado a não voltar a Perinto, embrenhei-me através da Ásia até a
Grande Frígia e a Panfília. Ali, em vista da dificuldade em garantir meu sustento e por
força das circunstâncias, entreguei-me à bandidagem. Para começar, juntei-me a um
bando de ladrões; por fim, nas cercanias da Cilícia formei o meu próprio, que gozava
de grande reputação até serem capturados os que iam comigo, não muito antes de eu

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te encontrar. E são essas as desventuras que compõem minha história. Agora, meu caro
amigo, conte-me você a sua. Está claro que passa por grande necessidade para se lançar
nessa jornada.

“A história de Hipotoo” (Efesíacas, III.2): comentário

O texto traduzido, a que dei o nome de “A história de Hipótoo”, ocupa o


segundo capítulo do livro III de Efesíacas ou Ântia e Habrocomes, que, como visto
anteriormente, compõe-se de cinco livros. A tradução dessa passagem insere-se no
projeto maior, que atualmente desenvolvo, e que prevê a tradução integral do romance
de Xenofonte de Éfeso.
O relato de Hipótoo é de natureza analéptica, de modo que a personagem, que
recém tinha sido introduzida na narrativa, possa apresentar-se, ganhando relevo e
antecipando a importância que virá a ter no desenrolar da ação. A primeira menção a
ele ocorre já no final do livro II (Ântia e Habrocomes, II.11), quando o leitor é
informado que Hipótoo lidera o bando que captura a heroína. Apesar disso, ele não
parece estar diretamente envolvido nas ações que envolvem a prisão e o sacrifício, que
o narrador atribui ao bando coletivamente (II.11.11: ὑπὸ τῶν περὶ τὸν Ἱππόθοον τὸν
λῃστήν; II.13.1: οἱ δὲ περὶ τὸν Ἱππόθοον τὸν λῃστήν), diluindo assim sua
responsabilidade. A ideia do sacrifício humano, por exemplo, é atribuída não a uma
ordem do chefe, mas a um costume estabelecido (II.13.1: ἔδει δὲ τὴν θυσίαν γενέσθαι
τρόπῳ τῷ συνήθει).
Hipótoo passa a ser individualizado quando o narrador anota que apenas ele
escapou ao cerco das tropas de segurança (II.13.4), o que sugere que é mais habilidoso
ou alerta que os demais. Ao avistar Habrocomes, Hipótoo não faz qualquer menção de
atacá-lo, embora porte armas e o éfésio, não (II.14.1). Ao contrário demonstra simpatia
instantânea pelo jovem, que intui ter sido vítima de alguma injustiça, e o convida para
fazer parte do novo bando que ele pretende formar. É indiscutível, contudo, que sua
figura tem algo de ameaçador, uma vez que o narrador informa que Habrocomes aceita
“porque ele o coagia” (III.14.4: συγκατατίθεται δὲ ἀναγκάζοντι τῷ ῾Ιπποθόῳ). Por fim,
é dito que o bandido é fluente em capadócio, o que facilita muito a viagem dos sócios
por esse território (III.1,2: καὶ γάρ ὁ ῾Ιππόθοος ἐμπείρως εἶχε τῆς Καππαδοκῶν φωνῆς,
καὶ αὐτῷ πάντες ὡς οἰκείῳ προσεφέροντο), o que pode dar a entender ou que é muito
viajado ou que é originário dessa região. Isso é tudo que o leitor sabe dele até que toma
a palavra para contar a história de sua vida.
Trata-se, portanto, de um relato em primeira pessoa, de caráter autobiográfico,
em que o bandoleiro revela seu passado e as circunstâncias que o levaram à sua vida
atual. Pertencente a elite da cidade grega de Perinto, Hipótoo tem mais em comum
com Habrocomes do que se poderia supor a princípio. Tanto em um caso quanto em
outro é Eros a causa das mudanças drásticas que afetam a vida das personagens,
tirando-os de sua zona de conforto. O retrato que emerge da narrativa é o de um jovem
arrebatado, mas sensível, disposto a tudo para manter seu amor. Separado de
Hiperanto, jovem por quem se apaixona, Hipótoo termina por assassinar seu rival,
Aristômaco, movido pelo ciúme. Juntos os jovens empreendem uma fuga por mar que

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termina tragicamente com o naufrágio da embarcação que os transportava e a morte


por afogamento de Hiperanto. Atordoado com esse desfecho, Hipótoo decide lançar-
se na bandidagem como forma de sobrevivência e de superação.
Como nota Morgan (2004: 491), há um paralelismo evidente entre o relato de
Hipótoo e a trajetória de Habrocomes, embora também se notem diferenças
significativas. Estas dizem respeito sobretudo ao desfecho, pois se o primeiro vê
morrer seu bem-amado Hiperanto, o último reencontra Ântia, sua esposa, no final do
romance – embora, no momento em que a história é narrada, o leitor não possa estar
totalmente seguro disso. Note-se também que enquanto Habrocomes e Ântia mantêm
uma relação sancionada pela sociedade (formam um casal heterossexual cujo
casamento foi realizado com o assentimento de suas famílias), Hipótoo e Hiperanto
vivem um amor proibido, uma vez que não eram benquistos os relacionamentos
duradouros entre pessoas de mesma idade e sexo. Outros detalhes, no entanto,
aproximam as experiências: o festival religioso como cenário da corte amorosa, a
irrupção de um rival que determina a separação do casal, a percepção de que a
infelicidade se deve à ação de um deus, a viagem para longe da terra natal.11
Esse último elemento me parece particularmente significativo, uma vez que o
afastamento da cidade de origem leva ao corte dos vínculos familiares e de
solidariedade que as personagens mantinham, relegando-as a uma situação de extrema
fragilidade. Longe da pátria, o cidadão é condenado ao anonimato e ao desamparo
absolutos. Hipótoo é o maior exemplo disso uma vez que para ele o retorno não é uma
opção, para conseguir se sustentar, torna-se um bandoleiro, transformando em meio de
vida a violência já exarada no crime passional que sela seu destino.
Para Alvarez (1995: 398), o desamparo material não é o único fator, nem
mesmo o principal, que faz de Hipótoo um fora-da-lei. O desfecho trágico de sua
história de amor, dá origem a uma frustração que só se mitiga com a prática da
violência. Nota-se, de fato, que a ação do bandido está mais orientada para desforra do
que para a aferição de lucros derivados dos roubos que comete. Nesse sentido, ele
ilustra bem um tipo que terá ressonância na literatura o ocidental, o do bandoleiro
romântico que, apesar de nobre, abraça a vida criminosa em decorrência de uma
decepção ou desonra.12
Finda a narrativa do livro III, Hipótoo surge aos olhos do leitor como uma
figura trágica, digna de piedade e simpatia. Tal imagem terá comprovação na
sequência em que, depois de ouvir as confidências de Habrocomes, dá a entender que
a moça que seu bando capturara na Cilícia não era outra senão Ântia. Essa revelação
coloca novamente Habrocomes na pista de sua amada, renovando suas esperanças de
encontrá-la. Hipótoo promete auxiliá-lo em sua empresa (III.3).
Esse mesmo Hipótoo, tão compassivo, também se mostra capaz de uma
crueldade sem limites. Uma vez separado de Habrocomes, que abandona a vida

11
Sobre os paralelos entre Habrocomes e Hipótoo, cf. Alvarez (1995: 394).
12
No romance grego antigo, a figura que mais se aproxima de Hipótoo nesse aspecto é Thyamis, o líder
do bando que captura Teágenes e Caricleia em Etiópicas, de Heliodoro. Ele, que estava destinado a
tornar-se sacerdote em Mênfis, vê frustradas suas pretensões em decorrência de uma intriga de seu
irmão. Essa reviravolta o leva à marginalidade.

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bandida, se atira a uma espiral de violência, atacando cidades e queimando as casas


dos habitantes. Ainda mais chocante é um episódio que envolve Ântia, mais uma vez
capturada pelos bandidos. Sem ser reconhecida pelo líder do bando, a moça é por ele
punida ao matar um de seus sócios que tentara violá-la. Num requinte de sadismo,
Hipótoo ordenou que ela fosse lançada a uma cova em companhia de cães ferozes e
famintos, para que viesse a ser estraçalhada viva.
Ainda assim, Hipótoo será o artífice do reencontro do casal, garantia de sua
redenção.13 Após livrar-se dos cães, Ântia, depois de outras tantas desventuras, é
vendida a um bordel na Sicília de onde é resgatada por Hipótoo, então um cidadão rico
e respeitável, depois de ter herdado a fortuna deixada por uma velha viúva com quem
se casara. Após tentar sem sucesso convencer a moça a deitar-se com ele, descobre sua
identidade e trata de escolta-la até Éfeso, esperando lá encontrar Habrocomes. Numa
parada na ilha de Rodes, o casal termina por se reunir e todos, inclusive Hipótoo,
seguem juntos para Éfeso, onde se estabelecem em definitivo.
O texto traduzido não destoa do restante do romance no estilo, já discutido na
primeira seção desse artigo. Note-se, contudo, que nele se insere uma das poucas
passagens em verso do texto – a outra concerne à reprodução de um oráculo em
hexâmetros datílicos (I.6). O epigrama que Hipótoo compõe, também em hexâmetros,
ilustra bem o que se acredita serem as características originais do gênero: trata-se de
composição para ser inscrita em uma lápide funerária. Procurei marcá-las graficamente
com o uso das maiúsculas, que sugerem a inscrição, e de rimas, para contrastar com o
tom prosaico do relato de uma trágica história de amor.

REFERÊNCIAS

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Classical Journal, 90.4, pp. 393-404, 1995.
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Gärtner, H. Xenophon von Ephesus. in Pauly, A. et al. Realencyclopädie der
classichen Altertumwissenschaft, IX A 2: 2055-89, 1983.
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narratees, and narratives in ancient Greek literature. Leiden: Brill, 2004, pp.
489-92.

13
Alvarez (1995: 398-399) acredita que o fato de Habrocomes ter renunciado a vida sem lei tem forte
impacto sobre o bandido, servindo de estímulo a sua regeneração e reintegração à sociedade ao final do
romance.

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O'Sullivan, J. N. Xenophon, The Ephesian tales. in Cueva, P.; Byrne, S. (ed) A


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Ruiz-Montero, C. Xenophon of Ephesus and Orality in the Roman Empire, Ancient
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