Xenofonte de Éfeso+a História de Hipótoo (Efesíacas, Iii.2)
Xenofonte de Éfeso+a História de Hipótoo (Efesíacas, Iii.2)
Xenofonte de Éfeso+a História de Hipótoo (Efesíacas, Iii.2)
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Esse artigo apresenta resultados parciais de projeto financiado pelo CNPq através da Bolsa de
Produtividade em pesquisa 303671/2015-7.
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Para o testemunho da Suda, cf. Gärtner (1983: 2057).
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Também se pode entender que além das Efesíacas, o romance, Xenofonte tivesse escrito um livro
intitulado Sobre a cidade de Éfeso (Περὶ τῆς πόλεως ᾿Εφεσίων), de caráter historiográfico, entre outras
obras (καὶ ἄλλα) das quais nada se sabe.
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Cf., p. ex. a recente edição de Henderson para Loeb (Xenophon of Ephesus:2009).
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"Eu argumentei [em outra parte] que [as Efesíacas] deveriam ser
consideradas como um texto transicional, uma obra ainda fortemente
ligada à sua origem oral, mas que foi composta por escrito e que é
até mesmo capaz de incorporar – embora eu não veja isso de maneira
tão clara em Xenofonte – características literárias e, inclusive,
intertextuais".5
5
Aqui O'Sullivan remete ao seu livro de 1995. Veja-se também Ruiz-Montero (2004:44), para
aproximação com o conto popular, mas também com as exibições retóricas. Trechos entre colchetes são
acréscimos meus.
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Cáriton de Afrodísias (cidade próxima de Éfeso) é autor de Quéreas e Calírroe, obra tida como o
primeiro exemplar conhecido do romance antigo, tendo contribuído para estabelecer os padrões que o
gênero adotaria. Embora a grande maioria dos estudiosos situe Cáriton no século primeiro da era Cristã
e Xenofonte de Éfeso no segundo, O’Sullivan defende que o segundo é mais antigo, tendo sido ele a
influenciar aquele. Na sua opinião (O'Sullivan, 2014:52), Xenofonte representaria uma espécie de
transição entre uma tradição oral de histórias de amor e aventura e sua assimilação na cultura letrada,
da qual Cáriton seria o continuador.
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Cf. Morgan (2004:490-1).
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_ Minha família é de Perinto, cidade próxima à Trácia, uma das mais influentes dali.
Sem dúvida você já ouviu falar da fama de Perinto e da prosperidade de seus
habitantes. Ali, quando jovem, apaixonei-me por um belo rapaz, também de lá. Seu
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Para uma descrição do corpus e das espécies em que se divide o gênero consultar Brandão (2005),
especialmente o cap. 3, “O gênero e suas espécies”. Os parádoxa, ou narrativas extraordinárias são os
romances de viagem e aventura; os erotiká, são os que privilegiam as peripécias amorosas. Há também
os que conjugam ambas as vertentes, os erótika + parádoxa (Brandão, 2005: 271).
9
Para um resumo bem mais completo, cf. O'Sullivan (2014).
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A tradução tem por base o texto estabelecido por O’Sullivan para Teubner: Xenophon Ephesius. De
Antia et Habrocome Ephesiacorum Libri V. Ed. J.N. O'Sullivan (Bibliotheca Teubneriana). Monachii
et Lipsiae: K. G. Saur, 2005.
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nome era Hiperanto. Foi amor à primeira vista: assim que o vi praticar a luta no ginásio,
não pude resistir. Por ocasião do festival local e da vigília noturna procurei Hiperanto
e implorei que tivesse pena de mim e o rapaz, com pena, após escutar, tudo me
prometeu. Primeiro trilhamos o caminho do amor através dos beijos, das carícias e das
lágrimas, que da minha parte eram muitas. Por fim, quando tivemos oportunidade,
conseguimos ficar sozinhos e desfrutar da companhia um do outro – éramos da mesma
idade e não atraíamos suspeitas. Passávamos juntos muito tempo, gozando
intensamente um do outro, até que uma divindade teve inveja de nós. Veio um homem
de Bizânzio (Bizânzio fica perto de Perinto), um dos mais influentes de lá. Por sua
riqueza e posses, esse homem, de nome Aristômaco, era um arrogante. Assim que
pisou em Perinto, como se enviado por um deus contra mim, avista Hiperanto comigo
e imediatamente queda cativo, admirado com a beleza do rapaz, capaz de atrair
qualquer um. Apaixonado, não conteve a paixão dentro do razoável, mas de cara
declarou-se ao rapaz através de emissários. Como o caso era impossível (pois
Hiperanto, por sua dedicação a mim, não se aproximava de ninguém mais), trata de
convencer seu pai, um homem sem caráter e com um fraco por dinheiro. Esse lhe
confia Hiperanto sob pretexto de zelar por sua educação, pois aquele alegava ser
mestre em retórica. Ao se apoderar dele, primeiro o manteve trancado, depois levou-o
para Bizâncio. Fui atrás, deixando tudo que era meu, e, na medida do possível,
convivia com o rapaz. Mas eu podia pouco e eram-me raros os beijos e difíceis as
conversas – já que eu era severamente vigiado. Por fim, sem poder suportar mais, num
rompante, retornei a Perinto e, após vender todos os meus pertences e recolher o
dinheiro, vou para Bizânzio. Em posse de um punhal (isso estava combinado com
Hiperanto), entrei à noite na casa de Aristômaco e encontrei-o deitado ao lado do
menino. Tomado de raiva, firo de morte Aristômaco. Como tudo estava tranquilo e
todos dormiam, saí do jeito que estava, sem ser visto. Levei comigo Hiperanto e
durante toda a noite rumei para Perinto. Tão logo desci do navio, sem que ninguém
soubesse, embarquei para a Ásia. Por certo tempo a viagem transcorreu bem, mas no
final um forte vento abateu-se sobre nós quando estávamos junto de Lesbos e virou o
navio. Tratei de nadar sustentando Hiperanto e aliviava seu esforço, mas quando veio
a noite, sem que o rapaz pudesse aguentar mais, afundou e morreu. E eu não só
consegui resgatar o corpo até a terra firme, como o sepultei. E após chorar e lamentá-
lo, afastei-me de seus restos mortais e, capaz de encontrar por ali uma pedra
apropriada, finquei-a à maneira de lápide em sua sepultura. Nela inscrevi em memória
do desafortunado rapaz um epigrama, composto para aquela ocasião. Ei-lo:
HIPÓTOO ERIGIU ESTE JAZIGO PARA O CÉLEBRE HIPERANTO,
INDIGNO SEPULCRO DE UM CIDADÃO SACROSSANTO,
QUE, DO CHÃO PARA O ABISMO, O DEUS COLHEU UM DIA, ILUSTRE
FLOR,
QUANDO NO OCEANO O VENTO SOPRAVA COM MÁXIMO FUROR.
Desde então, determinado a não voltar a Perinto, embrenhei-me através da Ásia até a
Grande Frígia e a Panfília. Ali, em vista da dificuldade em garantir meu sustento e por
força das circunstâncias, entreguei-me à bandidagem. Para começar, juntei-me a um
bando de ladrões; por fim, nas cercanias da Cilícia formei o meu próprio, que gozava
de grande reputação até serem capturados os que iam comigo, não muito antes de eu
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te encontrar. E são essas as desventuras que compõem minha história. Agora, meu caro
amigo, conte-me você a sua. Está claro que passa por grande necessidade para se lançar
nessa jornada.
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Sobre os paralelos entre Habrocomes e Hipótoo, cf. Alvarez (1995: 394).
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No romance grego antigo, a figura que mais se aproxima de Hipótoo nesse aspecto é Thyamis, o líder
do bando que captura Teágenes e Caricleia em Etiópicas, de Heliodoro. Ele, que estava destinado a
tornar-se sacerdote em Mênfis, vê frustradas suas pretensões em decorrência de uma intriga de seu
irmão. Essa reviravolta o leva à marginalidade.
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REFERÊNCIAS
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Alvarez (1995: 398-399) acredita que o fato de Habrocomes ter renunciado a vida sem lei tem forte
impacto sobre o bandido, servindo de estímulo a sua regeneração e reintegração à sociedade ao final do
romance.
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