Metzger Sublimação No Ensino de Lacan
Metzger Sublimação No Ensino de Lacan
Metzger Sublimação No Ensino de Lacan
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Clarissa Metzger
São Paulo
2014
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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Clarissa Metzger
São Paulo
2014
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Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Metzger, Clarissa.
RC506
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Nome: METZGER, C.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição: ________________________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição: ________________________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição: ________________________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição: ________________________________Assinatura:____________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição: ________________________________Assinatura:____________________
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AGRADECIMENTOS
À professora Miriam Debieux Rosa, pela confiança que depositou em mim, pela orientação,
por me acompanhar neste percurso. Aos professores Ana Maria Medeiros da Costa e Christian
Ingo Lenz Dunker, pelas importantes contribuições ao exame de qualificação, cruciais para os
rumos que esta pesquisa tomou.
Aos professores Ana Maria Medeiros da Costa, Christian Ingo Lenz Dunker, Mario Eduardo
da Costa Pereira e Nelson da Silva Junior, que gentilmente aceitaram o convite para participar
da banca de defesa desta tese.
À Sandra Letícia Berta, que me acompanhou neste percurso, desde o início até os momentos
finais da escrita desta tese. Por sua disposição e pelo acolhimento que ofereceu, pelas
sugestões e indicações bibliográficas preciosas.
À Isabel e ao Ivan, pelo amor e pela paciência sem fim. Por permitirem que eu me ausentasse
em muitos momentos ao longo dos últimos anos para realizar esta pesquisa. Ao Ivan, de modo
incomensurável. Pelo companheirismo e pelas contribuições sem os quais não poderia ter
realizado esse trabalho do modo como fiz. Aos meus pais, Idel e Anita, que souberam me
transmitir o interesse pelo conhecimento. Pela presença amorosa e constante, pelo
encorajamento que sempre exerceram nos momentos cruciais da minha vida.
RESUMO
Nossa intenção com o presente trabalho foi pesquisar o estatuto teórico-clínico da sublimação
ao longo do ensino de Lacan, enfatizando os momentos em que se detém no tema, fazendo
avançar suas elaborações do conceito e partindo da hipótese de que a sublimação é um
tratamento possível do gozo. Após o seminário em que se dedica de forma mais extensa ao
tema da sublimação, em 1959-1960, no qual propõe a sublimação como elevação do objeto à
dignidade da Coisa, o conceito aparece aqui e ali ao longo dos seminários subsequentes. Mas
é em 1966-67 que a sublimação detém novamente a atenção de Lacan, que passa então a
articulá-la com outros conceitos bastante importantes da teoria, quais sejam: alienação,
repetição, acting out e passagem ao ato. Além disso, discute a articulação da sublimação com
o ato sexual e, consequentemente, com a castração. Para isso, fará uso articulado do
quadrângulo de Klein, das leis de Morgan e dos círculos de Euler, de modo a demonstrar a
relação lógica entre os elementos. Desde as primeiras referências ao termo, passando pelas
elaborações do seminário VII, nos anos de 1959-60, entendemos que é possível sustentar a
vocação eminentemente clínica do conceito de sublimação como tratamento possível do gozo,
em articulação com outros conceitos importantes no ensino de Lacan, como gozo, fantasia e
ato. Partindo da sublimação definida como elevação do objeto à dignidade da Coisa, Lacan
discute nos anos de 1966-1967 sua presença como satisfação ligada à repetição, mas que dela
pode se afastar. A sublimação também se apresenta como saída do impasse do paradoxo da
fantasia, que busca encobrir a relação sexual que não há. Propomos desde Lacan
que a sublimação é um tratamento do gozo que permite que o sujeito, a partir da repetição,
avance até um limiar, ainda que não o ultrapasse. O avanço está relacionado à sua
possibilidade de prescindir do recalque, o que diferencia a sublimação do sintoma. A
proximidade da sublimação com a relação sexual que não existe já se evidencia desde o
seminário XIV e, no seminário XVI, proferido nos anos de 1968-1969, a sublimação retorna
pela última vez no ensino de Lacan como estando do lado da mulher, articulada a não
existência da relação sexual e como possibilidade privilegiada na perversão, o que deixa ainda
mais claro, de nosso ponto de vista, seu estatuto de tratamento de gozo mortífero, na medida
em que alude ao vazio da Coisa, criando a partir desse vazio. A partir desse percurso na
sublimação, empreendemos uma discussão do documentário Elena, lançado no ano de 2013,
sustentando que, com tal discussão, não se trata de aplicar a psicanálise à arte, mas sim de
aplicar a arte à psicanálise, na medida em que a primeira permita à segunda avançar. Por
evidenciar como toda a estrutura do filme se organiza em torno do vazio, ele permite que
avancemos no debate sobre a sublimação e em sua elucidação como possibilidade de
tratamento do gozo, em articulação com o ato em suas variáveis de acting out e passagem ao
ato, tal como Lacan apresentara com os quadrângulos de Klein. Por último, propomos
comentários suplementares que visam propor articulações que apontam caminhos pelos quais
entendemos que a discussão sobre o tema da sublimação poderia ter continuidade. Aqui,
propomos a articulação da sublimação com a psicose, com o sinthoma, tal como Lacan
discute no seminário XXIII, e por último a relação da sublimação com o fim de análise. Nesse
ponto, as discussões de Lacan sobre o quadrângulo de Klein nos fornecem indicações sobre a
relação da sublimação com o ato analítico, que buscamos problematizar.
ABSTRACT
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11
1.1 PERCURSO INICIAL PELA SUBLIMAÇÃO EM PRIMEIRA PESSOA ..................... 11
1.2 DA SUBLIMAÇÃO NA PSICOSE À SUBLIMAÇÃO COMO TRATAMENTO DO
GOZO............................................................................................................................... 14
1.3 MOMENTOS DE UM PERCURSO............................................................................. 15
1 INTRODUÇÃO
Embora, como é de praxe, esta pesquisa cumpra o requisito acadêmico de ser escrita
na primeira pessoa do plural, decidi escrever uma breve passagem na primeira pessoa do
singular para contar um percurso que só pode ser contado assim. Trata-se da escolha pelo
tema de pesquisa dessa tese, que elucido em parte aqui.
Meu interesse pelo tema da sublimação se configurou a pouco mais de uma década,
antes mesmo do ingresso no mestrado. Em um curso de formação em teoria e clínica
freudiana, conforme estudava as teorias da pulsão em Freud, ficou claro o quanto esse era um
conceito interessante, em dois sentidos: primeiro, por se tratar de um destino pulsional
alternativo ao recalque, o que, por si só, parecia apontar para uma abertura que escapava das
fixações inerentes à neurose e, portanto, fundamental para ser levado em conta no tratamento
psicanalítico. Em outra direção, a articulação da sublimação às artes era promissora para
alguém que apreciava as artes, mas principalmente a literatura, como era meu caso. Embora
essas possibilidades de fato existam, Freud deixa muito claro que a sublimação não é uma
solução tão boa quanto ele próprio havia imaginado de início, dadas suas limitações (Cf.
Capítulo 2, sessão Breve percurso da sublimação de Freud a Lacan). Por outro lado, embora
continue pensando que a sublimação é de fato um articulador interessante entre artes e
psicanálise, me parece que esse não é sua maior qualidade. Suas articulações clínicas trazem
grande interesse e permitem uma leitura do sujeito e de seus modos de lidar com o gozo que
muito agregam a outros temas teórico-clínicos da psicanálise.
Na época em que teve início meu interesse pela sublimação, escrevi uma monografia
sobre o tema que, se era ainda um tanto incipiente, teve o mérito de contribuir para minha
decisão de ingressar no mestrado com o objetivo de empreender uma pesquisa de cunho
acadêmico sobre esse tema, intento que realizei pouco depois. Ainda antes do ingresso no
mestrado, coordenava um grupo de escrita em um Centro de Atenção Psico-Social (CAPS),
nos moldes de um grupo terapêutico, que tinha boa adesão dos pacientes. Perguntava-me
sobre a efetividade dessa proposta em termos de tratamento. Também alimentava a
interrogação sobre a possível relação do que poderia acontecer, como tratamento, pela via da
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escrita e se isso seria articulável à sublimação, conceito que já vinha estudando e que se
apresentava como um ponto de intersecção possível entre a literatura – e, me parecia, também
a escrita – e a psicanálise. A ideia da escrita como um tratamento articulado à sublimação
especificamente no caso da psicose se apresentava para mim como uma possibilidade a ser
examinada, ainda que eu não encontrasse muito amparo para ela na teoria freudiana, então
minha referência mais forte. Naquela época pretendia pesquisar sobre a articulação possível
entre sublimação e psicose, clínica com a qual trabalhei por muitos anos, intenção que
reavivei quando ingressei no doutorado. Na época do mestrado, já estudava a teoria lacaniana
e pude entrever um caminho para pesquisar a escrita na psicose pela via de um conceito que
eu apenas ouvira falar e lera nos comentadores de Lacan: o sinthoma. Entretanto, por diversas
razões, uma incursão acadêmica na teoria lacaniana estava distante das minhas possibilidades
naquele momento do mestrado.
Assim, alimentando a ideia, na linha do ideal de eu, de que no futuro poderia retomar a
pesquisa sobre a sublimação em articulação com a psicose, decidi pesquisar no mestrado o
conceito de sublimação em Freud. Nesse trabalho, como resultado de meu percurso, pude
abordar algumas das consequências da sublimação na teoria freudiana, principalmente no que
dizia respeito à desfusão pulsional em jogo na sublimação e suas possíveis consequências,
bem como também esboçar em que direção seria possível, desde Freud empreender alguma
articulação entre sublimação e psicose, ainda que fosse para encontrar com seus limites. Ao
final do mestrado, conclui que a sublimação parecia possível como uma direção ética para o
tratamento da psicose, tomando como referência o ensino de Lacan, hipótese que extrai de
uma primeira leitura do Seminário VII e de um livro de Gérard Pommier (cf. Referências).
Desse modo, seria natural no doutorado retomar essa articulação que ficou apontada
no final do mestrado, agora partindo da teoria lacaniana. Como é sabido, Freud, embora tenha
abordados conceitos importantes relativos à psicose, não formulou uma teoria de tratamento
da psicose como fez com a neurose, diferente de Lacan, cuja clínica e teorização tem início
exatamente pela psicose. Assim, no primeiro ano e meio do doutorado, me detive na pesquisa
dessa articulação da sublimação com a psicose, ainda imaginando que o grupo de escrita (do
qual eu já não participava havia alguns anos) poderia se configurar como campo de pesquisa.
Entretanto, a partir desse percurso inicial, foi ficando claro que, se a sublimação continuava
sendo meu tema de interesse central, revelando sempre novas nuances e aberturas possíveis,
não havia motivo para que mantivesse a psicose nessa empreitada como tema principal. Isso
se devia tanto às questões clínicas, uma vez que nessa altura a clínica da psicose já não era o
foco de meu trabalho clínico, quanto às questões teóricas: embora fosse uma articulação
13
interessante, após a qualificação, me pareceu que havia muito o que discutir com relação à
própria sublimação antes de sustentar a articulação entre sublimação e psicose. Além do mais,
essa escolha tem motivações que se relacionam também a um percurso de análise.
Foi assim que passei a pesquisar a sublimação no ensino de Lacan com vistas a
sustentar que ela seria um tratamento possível do gozo. No início de 2013, assisti ao
documentário Elena, da diretora Petra Costa, um feliz encontro que me permitiu articular
ideias que vagavam ainda um tanto soltas. A partir desse encontro, escrevi um trabalho que
apresentei em um encontro de psicanálise, no meio do mesmo ano.
Essa apresentação foi crucial para deixar claro para mim mesma de uma vez por todas
aquilo que eu já intuía, mas ainda não tinha formulado: que a sublimação tem uma vocação
clínica que com frequência fica obscurecida por seu uso nas discussões das artes de um modo
geral. Não que esse uso não tenha interesse – pelo contrário. Como sabemos, há múltiplos
trabalhos de grande qualidade que articulam a sublimação às artes e a própria sublimação é
um conceito que rende tributos à arte. No entanto, os trabalhos que realmente interessam a nós
psicanalistas, são, do meu ponto de vista, aqueles que, tal como repetiremos algumas vezes ao
longo dessa tese, fazem a arte interrogar a psicanálise desde a sublimação e não aqueles que
tentam explicar a arte ou o artista através da sublimação e da psicanálise, fazendo dessas
últimas um uso que visaria provar que os conceitos da psicanálise seriam irretocáveis.
A questão, portanto, é que a dobradinha sublimação-artes pode parecer fazer Um,
fazer existir a relação sexual, de tal modo que outras nuances do conceito facilmente se
perdem, e esse é meu ponto aqui. Não foi à toa que, na mesa em que apresentei o trabalho, os
demais eram articulações da sublimação com as artes plásticas e a literatura. Mas eu também
não estava discutindo um documentário? Pois então. Como dizia um escritor antigo, o diabo
mora nos detalhes: eu propunha a discussão de um filme, mas – e essa é a parte importante –
apenas na medida em que ele se mostrou paradigmático para interrogar a organização em
torno do nada que faz da sublimação um tratamento possível do gozo, coisa que me parece
possível identificar na clínica, em um momento específico de uma análise: seu fim. Talvez
esse não seja realmente um detalhe. Ainda que o seja, não me parece pequeno.
Retomo esses últimos acontecimentos porque considero que são responsáveis pelo
modo como escolhi organizar a apresentação dessa pesquisa, que, se vem sendo preparada há
bastante tempo, ganhou sua forma final apenas recentemente. Considero também que esse
breve percurso explica a presença das interrogações sobre a psicose que permeiam alguns
momentos desse trabalho e surgem mais claramente no último capítulo, embora me pareça
que essa presença também possa ser justificada pela lógica interna da pesquisa.
14
que singularidade porta essa resposta, desde um percurso no ensino de Lacan, seguindo suas
indicações. É nesse escopo que empreendemos nossa pesquisa, visando discutir quais seriam
as características que fariam da sublimação um tratamento possível do gozo; quais seriam as
condições para que ocorresse e também as consequências e articulações desse tratamento
específico de gozo naquilo que tange ao sujeito e à clínica psicanalítica, que toma a seu
encargo esse sujeito. Eis nossa hipótese, que buscamos investigar.
É importante notar que nossa hipótese parte da premissa – que buscaremos
fundamentar e sustentar nesse trabalho – de que a sublimação é um conceito eminentemente
clínico, apesar de sua ampla utilização em psicanálise visando discutir as artes e suas
produções. Esse entendimento da sublimação se apoia no ensino de Lacan e em suas
indicações relativas a esse conceito, que buscaremos explicitar ao longo desse trabalho.
Entendemos que a articulação da sublimação com a ética, a fantasia e a repetição, bem
como com o sinthoma, o ato e o fim de análise, permite pensar sua presença na clínica e seu
papel como tratamento possível do gozo, o que buscaremos sustentar. Ao mesmo tempo, esse
percurso pede esclarecimentos relativos à proximidade da sublimação com o sintoma – e
também com o sinthoma. Se sustentamos a sublimação como um modo de tratar, de fazer com
o gozo, que relação tem isso com o saber fazer com o real que é prerrogativa do sinthoma,
discutido por Lacan no Seminário XXIII? Por outro lado, se a sublimação é um fazer com o
gozo, como situá-la em relação ao sintoma, à fantasia, ao ato e ao fim de análise?
Optamos em nossa pesquisa por perfazer um percurso que teve início com o
mapeamento do termo sublimação no ensino de Lacan. A partir daí, elegemos os pontos-
chave nos quais o autor discute mais detidamente o conceito, que ganha então maior precisão.
É possível situar esses momentos principalmente nos Seminários VII, XIV e XVI. De modo a
introduzir nossa discussão sobre a sublimação como um tratamento possível do gozo,
retomamos e discutimos inicialmente conceitos da psicanálise que se articulam de modo mais
direto com nossa hipótese de trabalho: pulsão e objeto, que abordamos no Capítulo 2 e gozo,
fantasia e desejo, abordados no Capítulo 3.
Em 1959-60, no Seminário VII, sobre a ética da psicanálise, Lacan propõe a
sublimação como elevação do objeto à dignidade da Coisa, discutindo as consequências dessa
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proposição, que discutiremos no capítulo 4. A sublimação surge referida à das Ding, estranho
íntimo que funda o sujeito e em articulação à ética da psicanálise como uma ética do desejo.
Alguns anos depois, em 1966-67, encontramos a sublimação novamente, agora
articulada aos termos através dos quais Lacan discute a lógica da fantasia. Lançando mão dos
semigrupos de Klein, a sublimação será discutida a partir da alienação, em articulação com a
repetição e com diferentes modalidades do ato: a passagem ao ato, o acting out e o ato sexual.
Lacan utilizará o quadrângulo de Klein, juntamente com as leis de Morgan e os círculos de
Euler com o objetivo de desvendar a lógica da fantasia. Essa nova abordagem da sublimação
define um segundo momento da sublimação na teorização de Lacan, no qual, se não abre mão
dos avanços feitos anos antes, Lacan avança nas possíveis articulações e consequências da
sublimação no que tange à fantasia e – consequentemente – ao tratamento psicanalítico.
Outras articulações se mostraram importantes ao longo de nossa pesquisa, caso da
relação entre a sublimação e a perversão, sua proximidade com a mulher e sua articulação
com o aforismo não há relação sexual, cuja discussão já é possível localizar no seminário
XIV, na forma da incomensurabilidade do gozo da mulher e do gozo do homem, mas cujo
debate ganhará extensão no Seminário XVI. Uma das consequências desse debate culmina no
que encontramos no Seminário XX formulado como o aforismo a mulher não existe, que tem
como correlato o gozo feminino, debate no qual avançaremos, mas que tem seus limites, na
medida em que depois do Seminário XVI, não encontramos mais referência direta à
sublimação no ensino de Lacan. Desse modo, as articulações com as contribuições trazidas
pelo ensino de Lacan no Seminário XX são supostas a partir do que deixou como indicação
com relação à sublimação até o Seminário XVI. Abordaremos esses pontos também no
Capítulo 7, na sessão Psicanálise e campo do gozo.
Em seguida, propomos uma discussão sobre o documentário Elena, que expõe de
modo paradigmático a organização da sublimação em torno do vazio e que nos permitiu
avançar em nossa hipótese de um tratamento do gozo, na medida em que tomemos o dizer da
narradora principal do filme. Aqui retomaremos as operações de alienação e separação para
discutir o ato como ato de passagem que supõe uma sublimação.
Por último, empreendemos alguns comentários suplementares, que compreendem
articulações que são consequência da pesquisa empreendida no ensino de Lacan, mas não se
encontram tematizadas pelo autor. Aqui, fazemos algumas observações em relação à
possibilidade da sublimação na psicose. Em seguida, interrogamos a sublimação em
articulação com o sinthoma e com o fim de análise.
17
PRIMEIRA PARTE:
PREMISSAS PARA A SUBLIMAÇÃO
19
2 A SUBLIMAÇÃO EM CAUSA
Qualquer que seja ela, de qualquer forma que ela seja tomada, a obra
da sublimação não é de forma alguma necessariamente a obra de arte.
Ela pode ser muitas outras coisas ainda, inclusive o que estou fazendo
aqui com vocês que não tem nada a ver com a obra de arte. Esta
reprodução da falta [...], eis de que se trata em toda obra de
sublimação realizada. (LACAN, 2008a, p. 258/FR, p. 125, grifos
nossos).
O sublime comporta, dentre outros pontos, a ideia de uma exposição não imediata, não
direta à dor e ao perigo, mas sim a imitação dessa situação, o que evoca a sublimação naquilo
que o conceito indica da satisfação indireta apontada por Freud. Não nos ateremos a essa
concepção, deixando-a apenas indicada como uma das direções possíveis na abordagem da
sublimação1.
A sublimação se mostra um conceito escorregadio na psicanálise desde os seus
primórdios, na obra freudiana. Possivelmente o sumiço ou impossibilidade de escrita do artigo
metapsicológico sobre a sublimação não seja mera coincidência, mas sim efeito das
dificuldades implícitas no próprio conceito. É bem possível que Freud não tenha chegado a
um ponto satisfatório em suas reflexões sobre a sublimação – e a ausência do artigo
metapsicológico talvez seja o melhor indício disso.
Entretanto, para além das conjecturas, mesmo que as levando em conta, fato é que a
sublimação surge com frequência na psicanálise que vai de Freud a Lacan em diferentes
1
O tema do sublime articulado à sublimação é trabalhado por Guilherme Massara Rocha em sua tese de
doutorado, cf. Referências do presente trabalho.
20
contextos do ensino de cada um desses autores, o que por si só já aponta para a necessidade de
precisar o conceito – a despeito das dificuldades que essa tarefa impõe.
Diversos colegas do campo da psicanálise de Freud à Lacan têm trabalhado nesse
sentido nos últimos anos, como Gellis (2000), Cruxên (2004), França Neto (2007), Rocha
(2010), Torezan (2012), apenas para citar os mais recentes, propondo articulações e
abordagens bastante variadas do conceito.
Outros colegas também discutem o tema em seus trabalhos, em uma abordagem que
leva em conta principalmente a teoria freudiana, caso de Birman (1996; 1997; 1999), Silva Jr.
(2001; 2003; 2006), Kuperman (2003), e Castiel (2007).
Em nosso trabalho, nos deteremos de forma mais estrita na teorização lacaniana da
sublimação. Recorreremos ao texto freudiano apenas na medida em que isso seja
indispensável para lançar luz aos conceitos e temas do ensino de Lacan, uma vez que já
empreendemos um debate mais estrito sobre a sublimação em Freud (METZGER, 2008).
Nossa intenção é destacar pontos do conceito que a presente pesquisa mostrou serem
importantes para o trabalho clínico desde o referencial lacaniano, apontando na direção de um
tratamento possível do gozo e que tomamos como hipótese central.
Nossa premissa, desde a psicanálise lacaniana, é de que o gozo pode ser tratado de
diferentes maneiras, no sentido de domá-lo, ainda que sempre parcialmente. No dicionário
(MICHAELIS on-line) encontramos nada menos do que 28 definições do termo “tratar”,
incluindo aí as expressões idiomáticas. Destacamos aquelas que nos interessam mais
diretamente nesse trabalho: “1) Apalpar, manear, manejar, manusear; 2) Cuidar de; 3) Dar o
tratamento prescrito ou aconselhado (a uma pessoa doente); 4) Aplicar tratamento a si mesmo;
cuidar da própria saúde; seguir um tratamento; 5) Dirigir ou fazer (um curativo), pensar (uma
ferida); 6) Aplicar certo tratamento a; 7) Alimentar, nutrir, sustentar. 8) Cuidar bem ou mal
de; dar bom ou mau alimento a; dispensar maior ou menor agasalho ou conforto a”.
Já com relação ao “tratamento”, selecionamos, dentre as definições apresentadas pelo
dicionário: “Conjunto de meios terapêuticos, cirúrgicos e higiênicos de que lança mão o
médico para cura ou alívio do doente. [...] Bom ou mau uso que se faz das coisas; cuidado ou
21
negligência com que delas se cura. [...] Modo de operar sobre certas matérias que se deseja
transformar”.
As definições tanto do termo tratar quando de tratamento estão impregnadas pelo
ideário médico, ainda que em alguns pontos sejam abrangentes o suficiente para que se inclua
o que entendemos por tratamento em psicanálise. Quando nos referimos a um tratamento do
gozo, estamos considerando principalmente o manejo, o cuidado que se pode dispensar ao
gozo, os cuidados com que se empreende uma cura, por um lado e, por outro, a definição que
inclui tratamento como um “modo de operar sobre certas matérias que se deseja transformar”
– no caso, o gozo. Entretanto, como caracterizar o tratamento de modo mais específico, mais
próximo daquele adotado pela psicanálise?
A priori, poderíamos remontar o tratamento à discussão em torno da própria definição
e origem da clínica psicanalítica, principalmente como tributária da ideia de cura. Entretanto,
essa ideia aponta para uma nova tese que, afinal, já foi ampla e competentemente
desenvolvida por Dunker (2011). Por isso, nos restringiremos a fazer algumas indicações,
partindo da discussão empreendida por esse autor e que nos permitem delinear a noção de
tratamento, sublinhando que a discussão acerca dessa tese tem múltiplas facetas e
articulações, prenhe de consequências para a definição de clínica psicanalítica, de cura e de
tratamento, tal como problematizadas e discutidas pelo autor, dentre as quais abordaremos
apenas aquelas que nos permitem seguir adiante em nosso exame da sublimação.
Esse autor evidencia a cura como “conceito-limite entre filosofia e psicanálise” (p.
238) e dirá que
Essa apresentação do tratamento evidencia sua amplitude, mas ao mesmo tempo, uma
precisão: que em psicanálise, o tratamento implica não apenas a ligação entre sintoma e
sofrimento, o que já deixa claro que o que está em jogo não é simplesmente a abolição do
sofrimento, na acepção prescritiva, mas também implica o método, a interpretação e o uso da
palavra, através dos quais o tratamento pode se dar. Em seguida, veremos como isso se
articula com a questão do sujeito como agente no tratamento.
22
2
Ainda que não nos aprofundemos aqui na discussão sobre o cuidado de si, é importante destacar que é dessa
ideia que se origina a noção de cura e de tratamento proposta pela psicanálise, tal como discute Dunker (2011).
3
O autor sustenta uma “integração do cuidado de si à arqueologia da prática psicanalítica”, ainda que Lacan não
tenha tido acesso ao texto de Foucault sobre o assunto, publicado um ano antes de sua morte. Aponta para o uso
que faz Lacan da figura de Sócrates em diversos momentos de seu ensino, para sustentar essa tese e conclui que
“Não se deve considerar o cuidado de si apenas como prática de vida, uma técnica da felicidade, para usar a
expressão de Freud. Seria preciso ler novamente o tema lacaniano da afinidade entre o desejo de Sócrates e o
desejo do psicanalista, levando em conta que Sócrates é metáfora central tanto para a tradição platônica do
conhecimento de si quanto para a tradição helênica do cuidado de si” (op. cit, p. 237).
23
4
Indiquemos aqui a peculiaridade do ato analítico, do qual não trataremos diretamente nesse trabalho, mas que é
discutido por Lacan ao longo de um de seus Seminários (XV).
24
quiçá a chamada sétima arte, o cinema. Entretanto, desde o momento em que Lacan rechaça a
ideia de um a psicanálise aplicada, em A juventude de Gide e a letra e o desejo (LACAN,
1958/1998) é necessário precisar de qual relação entre arte e psicanálise estamos falando.
Na realidade, a relação entre arte e psicanálise é não só antiga como controversa e
remonta ao próprio Freud, que discutiu a arte a partir da psicanálise desde pontos de vista
diferentes em vários de seus artigos, como Escritores criativos e devaneios (1908), em que
busca discutir a relação entre a construção de textos literários e a fantasia do neurótico, ou
então em Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910) em que aborda a
sublimação e a neurose a partir dos diários de da Vinci e de alguns de seus trabalhos, além da
lembrança infantil que dá nome ao texto. Delírios e sonhos na “Gradiva” de Jensen (1907) é
outro exemplo desse tipo. Não podemos esquecer que Freud utiliza em O estranho (1919) um
conto de E.T.A. Hoffman para empreender sua discussão sobre o Unheimlich que remete à
castração, nesse caso usado mais como metáfora do que como objeto artístico a ser discutido,
mas que demonstra igualmente e uma vez mais o apreço do pai da psicanálise pelas produções
artísticas e literárias.
Entretanto, se as produções artísticas comparecem no texto freudiano, isso não se
deve, em última instância, a uma tentativa de desvendar o psiquismo dos artistas a partir de
suas produções ou então de decifrar uma obra a partir da biografia do autor, mesmo que Freud
pareça se aproximar um tanto disso, por exemplo, no artigo sobre da Vinci. Ainda que não
buscasse de forma geral essa relação tão direta entre vida e obra do artista, Freud levava em
conta que havia algo do psiquismo do artista que comparecia em sua obra, tal como
encontramos na discussão empreendida por ele em 1908, ao discutir o processo criativo dos
escritores e sua relação com a fantasia. Mesmo que não se trate de desvendar o psiquismo do
artista ou interpretar a obra de arte, Freud já aponta para a existência de mecanismos que
regem a criação e que, como aponta Rocha, remetem à linguagem:
Ao tornar o discurso o solo comum que reúne elementos tão distintos quanto a
produção linguageira de um analisante e a narrativa literária de um escritor criativo,
Freud estará dando um dos passos mais fundamentais para a consolidação de sua
teoria do inconsciente. Mas estará, não menos, fornecendo os termos que nutrirão a
origem de uma importante polêmica acerca dos limites e consequências da aplicação
de seu método. (ROCHA, 2010, p. 33).
que tange ao psiquismo. É essa posição de Freud que abre caminho para a subversão operada
por Lacan com relação à arte: ele não apenas não aplicará a psicanálise à arte, “ mas aplicará a
arte à psicanálise, pensando que, porquanto o artista preceda o psicólogo, sua arte deve fazer
avançar a teoria psicanalítica” (REGNAULT, 2001, p. 20). Além de ser o oposto da
concepção de que a psicanálise explicaria a arte, nosso ponto de vista – que partilhamos com
Lacan, Regnault e outros – se afasta de um modo de “aplicar” a psicanálise à arte que não faz
mais do que encontrar na arte aquilo que já era ponto pacífico na teoria, como mera
confirmação do que já se sabe. Por exemplo, fazer uma correspondência direta de elementos
de uma obra que confirmariam a presença do Édipo, da castração, etc., em uma modalidade
que poderíamos chamar de relação imaginária da psicanálise com a obra de arte, na qual a arte
apenas espelharia o que a psicanálise buscasse encontrar na obra.
Discutir a sublimação desde as artes, nesse sentido, é uma maneira de ampliar nossa
abordagem da clínica, já que há produções artísticas que evidenciam, de modo quase didático,
diríamos paradigmático, a maneira como se organizam em torno do vazio. Por causa desse
didatismo, entre outras coisas, elegemos o documentário Elena como um operador de
discussão nessa tese, levando em conta que o documentário evidencia, por um lado, a
organização do filme em torno do vazio e, por outro, a produção a partir do vazio, sendo
ambos os aspectos que remetem à sublimação. Sustentamos que essa organização/produção
em torno do vazio pressupõe um tratamento do gozo, tal como buscaremos demonstrar.
Em outras palavras, na medida em que seja um destino pulsional diferente do recalque,
entendemos ser possível pensar a sublimação como um tratamento possível do gozo que
produziria uma “economia” de gozo. Para sustentar esse ponto de vista, é necessário
circunscrever diferentes momentos do conceito de sublimação no ensino de Lacan, pois, nos
moldes do que ocorre com outros conceitos, a sublimação e seus efeitos se modificam e são
detalhados ao longo de seu ensino, o que traz como consequência modificações no
entendimento da própria sublimação e de seu alcance.
inúmeros textos freudianos. Se isso é verdade, também o é o fato de que o avanço de sua
teorização evidencia impasses importantes. Em um primeiro momento, a sublimação surge na
obra freudiana como conceito “pau para toda obra”, um destino desejável para a pulsão, já que
é a responsável pelos laços sociais entre os indivíduos, bem como pela criação e pela
proliferação da cultura. Mas já no primeiro dualismo pulsional, em 1908, encontramos uma
limitação à sublimação: não é possível sublimar toda a pulsão nem todo o tempo.
O termo sublimação surge pela primeira vez na obra freudiana no Rascunho L, como
uma defesa histérica (FREUD, 1897/1990, p. 341, nota de rodapé), embora aí seu sentido
ainda não seja o que virá a adquirir nos anos subsequentes, a partir das elaborações dentro da
teoria psicanalítica. De todo modo, certo caráter defensivo da sublimação está aqui presente,
definindo a tentativa da histérica de embelezar, pela via da fantasia, algum fato ou elemento
desagradável.
Em 1905, o termo aparece novamente, tanto no texto sobre o Caso Dora quanto em
Três ensaios sobre a sexualidade, no qual Freud se estende mais na discussão sobre a
sublimação. Em um primeiro momento, ela surge como uma possibilidade caso não haja uma
fixação do olhar sobre os genitais. O olhar seria índice da curiosidade sexual, que visaria
“completar o objeto sexual” através da visão daquilo que estaria oculto, a partir da civilização
e do uso das roupas que ocultariam os genitais (O tocar e o olhar, 1º ensaio). Essa curiosidade
poderia ser desviada para a arte, ou sublimada, caso não se restringisse aos órgãos sexuais,
mas sim tivesse a capacidade de se voltar para a forma do corpo como um todo. Esse mesmo
“prazer de ver”, originário da curiosidade de ver os genitais, poderia, segundo Freud, dar
origem à perversão, caso se mantivesse restrita à genitália, caso fosse indício de uma
superação do asco (caso do voyeur das funções excretórias) ou então caso o olhar se tornasse
um objetivo em si (como o que ocorre no exibicionismo).
A mudança de objeto característica da sublimação também já aparece apontada,
embora só seja formulada anos depois, em 1914 no texto Pulsões e destinos da pulsão. Aqui,
Freud aponta que há entre pulsão sexual e objeto sexual apenas uma “solda”, que as faz
parecer uma mesma coisa. Na verdade, pulsão e objeto são independentes um do outro. Já
enuncia aqui uma característica da pulsão retomada por Lacan no Seminário VII, ao discutir o
amor cortês: o valor e o tipo do objeto eleito pela pulsão estariam em segundo plano: o mais
importante na escolha de objeto estaria relacionado à pulsão em si: “O essencial e constante
na pulsão sexual é alguma outra coisa” (FREUD, 1905/1990, p. 140; AE, p. 136). Freud já
anuncia, portanto, a característica de contingência do objeto da pulsão, sua plasticidade na
escolha de objetos, que abre espaço para a sublimação.
29
transformou ao longo da obra freudiana a partir da ideia de pulsão; sendo um dos destinos da
pulsão, a sublimação é também manifestação da sexualidade humana.
Nos mesmos Três ensaios, Freud empreende uma crítica à ideia então dominante de
uma sexualidade normal e adaptada, pautada pela relação sexual entre pessoas do sexo oposto
com objetivos de reprodução. Ao longo desse texto, de maneira clara e transparente, Freud
derruba o mito da sexualidade normal, demonstrando que a sexualidade humana, desde que o
homem saiu da natureza e entrou na cultura, é necessariamente anormal – na acepção de que
não há norma, a sexualidade humana é fora da norma. Na psicanálise, não se trata da
sexualidade como entendida pela biologia, pautada pelo instinto, mas sim de uma sexualidade
delineada pela pulsão e, portanto, inicialmente aberta.
A sublimação é elencada entre os destinos da pulsão, em texto publicado por Freud em
19155, juntamente com os outros três destinos: recalque, a reversão de uma pulsão em seu
oposto (que comporta tanto a mudança de atividade em passividade quanto a reversão de seu
conteúdo) e o retorno ao próprio eu. Cabe notar que a partir da concepção freudiana, haveria
necessariamente oposição entre sintoma e sublimação (ainda que a existência de um não
exclua a existência do outro). Enquanto o primeiro se caracterizaria pelo recalque e, por esse
motivo, pela fixação pulsional em uma forma de satisfação com consequências específicas –
lembremos da afirmação freudiana de que o sintoma do neurótico é sua satisfação sexual – a
sublimação se apresentaria como um destino diferente para a pulsão, que prescindiria do
recalque e, portanto, estaria menos submetida aos complexos e fixações da neurose.
É nesse texto também que Freud enuncia com clareza a contingencialidade do objeto
da pulsão, característica que definirá a sexualidade humana como sempre desadaptada,
indefinida a priori, tal como já comentamos.
Entendida enquanto errante, sem objeto predeterminado, a pulsão seria perversa – ou
“aberrante” por definição (GARCIA-ROZA, 2004, p. 30). Se não há um objeto
predeterminado para a pulsão, que a satisfaria de modo completo, já em Freud podemos
afirmar que o objeto da pulsão poderá ser qualquer um. A introdução da noção de pulsão
sexual, com essa característica de ser diferenciada do objeto sexual – ou seja, a pulsão não
está “soldada” ao objeto – subverte a noção então corrente de sexualidade, que deixa de ter
sua origem no “instinto sexual”, como acontece com os outros animais. Daí a impossibilidade
de decidir o que é normal e o que é desviante em termos da sexualidade humana, já que não
há um padrão fixo e hereditário da sexualidade (GARCIA-ROZA, 2004, p. 30).
5
Pulsão e destinos da pulsão, 1915.
31
É a partir daqui, também, que a noção de sublimação ganha força; se qualquer objeto
pode ser objeto da pulsão, eis aqui também os objetos sublimados como possibilitadores de
satisfação.
Podemos dizer que será por uma dedução das consequências dos enunciados
freudianos sobre a sexualidade humana como desadaptada desde o início que Lacan formulará
a ética da psicanálise como ética do desejo, como veremos à frente.
Ainda em 1905, a pulsão de saber, de investigar, aparece como forma sublimada da
pulsão de dominação – que é o modo como Freud entenderá sistematicamente a sublimação
possível da pulsão de dominação. Uma discussão mais aprofundada dessa variação possível
da sublimação é feita no texto sobre Leonardo da Vinci, de 1910, embora Freud também
insistisse na inibição neurótica que dominava esse artista e pesquisador.
Mas é em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) que encontramos
a primeira referência a um limite da possibilidade sublimatória. Aqui, em um texto que
poderíamos, se tomado como isolado do restante da obra freudiana, imaginar ter sido escrito
pouco antes da revolução sexual dos anos 60 do século XX, Freud empreende uma crítica à
civilização ocidental monogâmica e repressora, que seria então a grande responsável pela
neurose; uma vez que obriga os indivíduos a renúncias eróticas, restringindo as possibilidades
de obtenção de prazer de seus membros, ela os obrigaria a obter satisfações substitutivas pela
via da neurose. Piadas à parte, é evidente que a teoria psicanalítica exerceu sua influência na
chamada revolução sexual, ainda que se possa criticar a distorção feita por esse movimento da
proposta psicanalítica, como inclusive fez Lacan em seu seminário de 1968. No texto acima
citado, Freud se refere novamente à mudança de meta presente no processo sublimatório: “A
essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas
psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação” (FREUD,
1915/1990, p. 193).
O autor busca entender do que depende a capacidade sublimatória de cada indivíduo e
conclui que
Para Freud, apenas uma minoria dos indivíduos conseguiria compensar as exigências
de renúncia da civilização com uma dose de sublimação. E, de todo modo, essa possibilidade
seria apenas intermitente e limitada. A conclusão inevitável é de que há um limite para a
sublimação, seja porque apenas uma pequena parcela de indivíduos é capaz de sublimar, seja
porque a sublimação só pode acontecer dentro de certo limite, já que uma dose de satisfação
sexual direta é indispensável para qualquer um.
A partir de 1920, com a entrada da pulsão de morte em cena, a sublimação perde
campo no que diz respeito a sua capacidade construtiva – e talvez também um tanto idealizada
– em termos culturais: a pulsão de morte é inerente à constituição psíquica e o mal-estar por
ela causado parece não poder ser transposto nem mesmo por esse destino pulsional antes tão
promissor no que tange ao alívio do sofrimento humano.
Aquilo que poderíamos chamar da última definição freudiana da sublimação (que
inclui mudança de meta e de objeto da pulsão, de meta e objeto sexuais para outros não mais
sexuais, mas sim socialmente reconhecidos e valorizados), que encontramos em 1922, no
artigo Teoria da libido, dá margem, de forma incômoda, a uma interpretação que conduz à
ideia de que aí se trata de uma utilização da pulsão na produção de objetos comercializáveis.
Interpretações como essa se apoiam basicamente na ideia de que a plasticidade da libido que
estaria em jogo na sublimação apontaria para uma maior possibilidade de adaptação à
realidade, em oposição à fixidez libidinal que se apresenta no sintoma neurótico – nesse
sentido, a sublimação surge como um ideal a ser atingido, já que seria uma manifestação da
“normalidade”. A sublimação implicaria a “aceitação social”, o que a colocaria no lugar ideal
desde a ênfase da adaptabilidade.
Lacan já apontava esse estranho estatuto da sublimação, que surge em certa leitura da
obra freudiana, mais próxima da chamada psicologia do ego e cujos elementos,
inegavelmente, podem ser encontrados no texto freudiano – ainda que essa leitura se apoie
nesses elementos sem levar em conta a direção do pensamento freudiano em termos da
amplitude de sua obra, tal como Lacan nos apresenta em sua proposta de “retorno à Freud”:
ao levar em conta a proposição lacaniana de ler Freud de modo coerente com a radicalidade
de seu próprio pensamento (o de Freud), é preciso no mínimo desconfiar dessa leitura.
Lacan, em cujo ensino a sublimação está presente desde seus primórdios, não aceita o
estatuto “adaptativo” do conceito de sublimação e propõe, em 1959-60, a definição de
elevação do objeto à dignidade da Coisa, o que aponta para a sublimação como uma produção
que evidencia o vazio, cerne de toda criação. Assim, a ênfase não mais recai sobre o
distanciamento daquilo que é da ordem do sexual, tal como encontramos em Pulsão e
33
destinos da pulsão (FREUD, 1915/1990), o que fica claro, por exemplo, na afirmação
lacaniana “O jogo sexual mais cru pode ser objeto de uma poesia sem que se perca, no
entanto, uma visada sublimadora” (LACAN, 1997, p. 198). A própria ideia de
reconhecimento social é colocada em questão. Lacan sublinha a presença da alusão ao vazio,
o que consideramos uma mudança do estatuto do objeto (e não mais do objeto em si; ele
agora deve ser elevado à dignidade da Coisa) como condição da sublimação ao invés de levar
em conta apenas as mudanças de meta e objeto da pulsão.
Podemos entender que a posição lacaniana não exclui as proposições freudianas, mas
sim as explicita e define melhor: não se trata mais de uma mudança de meta no que tange ao
sexual, mas sim no que toca à posição do objeto da sublimação para o sujeito. No caso do
reconhecimento social, não estamos mais falando em algo simplesmente da ordem de uma
valorização social, mas sim do reconhecimento do vazio da Coisa a que o objeto da
sublimação deve aludir. A definição lacaniana mantém a sublimação como conceito princeps
da psicanálise na interface com a criação artística, mas aponta também para a ideia de que
nem toda arte é sublimatória, que já era consequência lógica da formulação freudiana de
sublimação. Ou seja, a sublimação não está ligada a beleza ou popularidade de uma obra, mas
sim a outras características peculiares: para Freud, a satisfação sexual, inibida em sua meta
com um objeto socialmente reconhecido e para Lacan, a alusão ao vazio da Coisa.
Atualmente, no campo psicanalítico, ao pronunciar o termo “sublimação”, ouve-se
como eco “obra de arte”. Embora o conceito de sublimação seja de fato um operador
privilegiado na discussão da arte de suas produções, esse não é o único escopo do conceito,
que tem abrangência clínica importante, talvez um tanto desprezada ou então pouco elucidada
em nosso campo. Se o reconhecimento do vazio e a criação a partir dele têm relação com uma
mudança de posição do sujeito frente ao objeto, é lícito supor que a sublimação tenha relação,
em alguma medida, com certo percurso de análise, embora não necessariamente apenas com
este (assim como a análise não é garantia de sublimação, a sublimação não acontece
necessariamente apenas a partir de um contexto analítico). Ainda que se trate de um destino
da pulsão, na proposta lacaniana esse destino pulsional supõe uma relação específica com o
vazio de das Ding e, portanto, com o real. Se a ética da psicanálise aponta para uma relação
específica com o real, na medida em que comporta o real de das Ding como central e como
norteador do desejo, a sublimação será decorrência lógica da análise, tal como discutiremos
no último capítulo desse trabalho.
Desse modo, podemos dizer que, no que tange à clínica, a sublimação se apresenta de
duas maneiras diferentes, mas intimamente ligadas: como uma das consequências do fim de
34
análise, na medida em que a análise proponha uma mudança de relação do sujeito com o real
e também como uma ética que norteia a própria análise e que, portanto, está necessariamente
presente como horizonte em cada análise empreendida. Estando assim presente no campo da
clínica, formulamos, portanto, a questão: pode a sublimação tratar o gozo? Talvez possamos
pensar em um tratamento do gozo diferente da circunscrição de gozo que o sintoma faz na
neurose, por exemplo. O tratamento que a sublimação poderia fazer se daria na direção de
uma não fixação do gozo, diferente do que ocorre no sintoma – direção, aliás, apontada pelo
próprio Freud.
35
Encontramos referência à pulsão em vários textos lacanianos. Ela é tratada por Lacan
no Seminário XI como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com
o inconsciente, a repetição e a transferência (LACAN, 1985b, p. 19). Aqui, por um lado, o
autor retoma ideias freudianas e por outro propõe esclarecimentos no que tange aos quatro
conceitos por ele enunciados como título do seminário. Em relação à concepção de pulsão,
propõe a existência de dois modos diversos de apresentação da pulsão, que, entretanto, seria
de apenas um tipo. Desse modo, mantém o dualismo tão caro à Freud, não com relação aos
tipos de pulsão como este fazia, mas aludindo a suas duas formas de apresentação: pulsão de
vida e pulsão de morte. Além disso, formula que o gozo é da ordem da pulsão de morte,
seguindo a trilha do pai da psicanálise, que aponta a pulsão de morte como a pulsão por
excelência.
Em um entendimento ligeiramente diverso, o caráter conservador da pulsão seria o
denominador comum entre os dois tipos de pulsão (JORGE, 2010 p. 131). No Seminário XI,
Lacan dirá que toda pulsão é pulsão de morte, mas que a pulsão de morte é, além de vontade
de destruição, também vontade de recomeçar (LACAN, 1997, p. 260), o que indica que uma
mesma pulsão pode atuar de formas diversas – e que remete á ideia, já defendida pelo próprio
Freud, de que a pulsão não é sinônimo de “natureza humana”, seja ela boa ou má.
Ele também lembra que a pulsão é um conceito fundamental da psicanálise, conforme
enunciado pelo próprio Freud em Pulsão e destinos da pulsão (FREUD, 1915/1990) e
enfatiza a diferença da pulsão – Trieb e daquilo que é da ordem da necessidade. Essa
observação nos parece importante na medida em que mostra o posicionamento de Lacan de
rompimento com uma concepção biologizante da pulsão (ao qual retornaremos na sessão
Necessidade, demanda e desejo).
Lacan nos remete ao texto freudiano para apontar que, no que tange à finalidade
reprodutiva, as pulsões são sempre parciais. Nessa afirmação está subentendida uma crítica
36
feita por ele em outros momentos de forma explícita, em relação à leitura dos psicanalistas de
linha inglesa, os quais entenderiam a finalidade reprodutiva como o momento de síntese das
pulsões parciais em torno de um objetivo: a relação sexual com fins de reprodução.
Entendemos que esta leitura, criticada por Lacan, é tributária de uma leitura literal e pouco
avisada do texto freudiano, principalmente do artigo Três ensaios sobre a sexualidade. Nesse
texto, Freud de fato retoma todos os preconceitos e ideias apriorísticas em voga na época. O
erro é supor que ele concorda com essas ideias; de forma clara, ao longo do texto, Freud
desmonta um por um os argumentos em favor da concepção de uma sexualidade humana
normatizada, voltada para a relação sexual entre homem e mulher, com fins de procriação.
Nas palavras de Lacan,
Mas então, poderíamos perguntar, qual é a diferença entre esse percurso da pulsão que
visa à satisfação da satisfação autoerótica? Afinal, definimos o autoerotismo justamente como
a satisfação da pulsão com uma parte do próprio corpo. Se uma parte do corpo está no lugar
de a, qual a diferença? A diferença, explica Lacan, é justamente que no primeiro caso, a
pulsão contorna um objeto externo ao corpo:
[...] este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio ocupável,
nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma
de objeto perdido, a minúsculo. O objeto a minúsculo não é a origem da pulsão oral.
Ele não é introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que
nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto
eternamente faltante. (Op. cit., p. 170/FR p. 164, grifos nossos).
3.1 PULSÃO
medida em que não há satisfação completa. A sublimação daria à pulsão seu verdadeiro
estatuto, uma vez que se refere justamente ao impossível, ao objeto impossível – a Coisa (Op.
cit., p. 144).
A partir da característica de pressão constante (Konstante Kraft) da pulsão, mais uma
vez fica clara sua diferença daquilo que seria uma função biológica: “A constância do impulso
proíbe qualquer assimilação da pulsão a uma função biológica, a qual tem sempre um ritmo.”
(LACAN, 1985b, p. 157)6. Por não haver objeto específico da pulsão, ela se satisfaz em uma
multiplicidade de objetos – mas em nenhum deles encontra a satisfação completa. Essa
satisfação completa mítica seria o gozo que adviria do encontro com das Ding; uma vez que
não exista é a própria insatisfação ou satisfação incompleta da pulsão que funciona como
motor da busca constante por satisfação.
Ao discutir a sublimação, Lacan destaca a inibição da pulsão com relação a seu alvo,
sua meta. Freud aponta que a sublimação é uma possibilidade de satisfação da pulsão – ou
seja, a satisfação pulsional, que afinal de contas é a meta última da pulsão, tal como indica
Freud em Pulsão e destinos da pulsão, e que pode ser atingida pela via da sublimação. Assim,
temos a curiosa situação de um destino pulsional cujo alvo é inibido, mas que ao mesmo
tempo permite satisfação da pulsão. Em sua leitura do texto freudiano, Lacan destaca: “Entre
estes dois termos, estabelece-se numa extrema antinomia que nos lembra que o uso da função
da pulsão não tem para nós outro valor senão o de por em questão o que é da satisfação” (op.
cit, p. 158). É justamente esse paradoxo da pulsão, que se satisfaz mas não se satisfaz ao
mesmo tempo, que deu margem à afirmação de que na sublimação aconteceria uma
“dessexualização da pulsão”.
Mais precisamente, Lacan dirá que autores da psicologia do ego falam de uma
“desinstintualização do instinto”. Com relação a tal concepção, cita nominalmente Hartmann
e Lownstein (LACAN, 1995, p. 442). Nessa concepção, a inibição da finalidade diretamente
sexual da pulsão é tomada como dessexualização da pulsão, o que é um engano além de uma
impossibilidade. A pulsão não pode jamais deixar de ser sexual, mas sim se satisfazer com
objetos distantes dos objetos sexuais, em uma satisfação, digamos, não direta. Segundo
Garcia-Roza (2004), o modo possível de se pensar uma “dessexualização do sexual” seria
pensar que se trata de uma dessexualização do objeto da pulsão, que passaria a ser um objeto
distante do sexual. Assim, a pulsão não perderia seu caráter sexual, o que, ademais, é
6
Lembremos que a constância da pulsão é coerente com a hipótese freudiana do recalque orgânico; essa
constância seria correlata à constância da possibilidade de excitação sexual pela visão dos genitais, inaugurada
pela adoção da posição ereta do homem, milhares de anos atrás. E, de todo modo, dá notícias de uma pressão
constante em direção à satisfação que, paradoxalmente, nunca é completamente atingida.
39
impossível. Ainda seria possível perguntar como um objeto não sexual poderia satisfazer uma
pulsão sexual. Mas basta lembrar a plasticidade das pulsões sexuais, que podem investir
objetos distantes de suas intenções sexuais originais, tal qual nos informa Freud em Pulsão e
destinos da pulsão (FREUD, 1915/1990), ao que chamamos justamente capacidade de
sublimação da pulsão. A pulsão sexual pode, paradoxalmente, se satisfazer com objetos não
sexuais – essa é a prerrogativa da sublimação, na qual acontece é justamente isso: um objeto
não sexual satisfaz uma pulsão sexual.
Em sua leitura de Freud, Lacan evidencia outro aspecto da satisfação da pulsão, na
medida em que a satisfação da pulsão leva, por outro lado ao gozo. “Isso que eles satisfazem
pelas vias do desprazer é, assim mesmo – e isto é também comumente aceito – a lei do
prazer.” (LACAN, 1985b, p. 158). Esse paradoxo aponta para o impossível – que não é o
oposto do possível, mas sim o real: “O real se distingue, como eu disse da última vez, por sua
separação do campo do princípio do prazer, por sua dessexualização, pelo fato de que sua
economia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossível” (op. cit, p. 159).
Assim, temos a prerrogativa de outro tipo de satisfação da pulsão, ligada ao que Freud
chamaria pulsão de morte, essa por sua vez manifestação da compulsão à repetição. Satisfação
não é igual a prazer: se a pulsão visa à satisfação, pelo viés da descarga, isso não significa que
vise sempre o prazer.
Lacan propõe que a pulsão é uma montagem, mas não uma que visa algo definido
como finalidade (além de sua descarga). Aí sim estaríamos no nível das modernas teorias do
instinto, segundo Lacan. “A montagem da pulsão é uma montagem que, de saída, se apresenta
como não tendo nem pé nem cabeça – no sentido em que se fala de montagem numa colagem
surrealista.” (op. cit, p. 161). Ou seja, não há uma finalidade que defina de antemão o objeto
da pulsão, aquilo em que ela pode se satisfazer. É por isso que a montagem da pulsão é
necessariamente surrealista – ela não tem uma finalidade a não ser contornar o objeto, seja lá
qual for, obtendo assim uma satisfação, que por sua vez será sempre parcial. Se Freud já o
disse, Lacan destaca a importância dessa diferença entre instinto e pulsão e a característica de
inutilidade da pulsão no que tange à adaptabilidade do homem a uma natureza ou à biologia.
40
3.2 OBJETO
O objeto tem estatuto complexo para Lacan, estatuto que vai se modificando ao longo
de sua teorização. Inicialmente, o objeto é enfatizado como objeto imaginário, no qual a libido
é investida, trata-se do objeto como objeto de amor, tal como indicado por Freud. Se a libido
investe o outro como objeto, ela investe também o eu, uma vez que se leve em conta a
constituição do eu, tal como definida em O estado do espelho como formador da função do eu
(LACAN, 1949/1998), no qual discute a constituição do eu e o correlativo advento do
imaginário. O eu se confunde com o outro porque é a partir desse outro, do qual pouco se
diferencia inicialmente, que se constitui. Entretanto, anos depois, encontramos no ensino de
Lacan uma definição do objeto que já indica um para além do imaginário. Em 1957, no
Seminário IV, encontramos alusão à afirmação freudiana do objeto ser sempre a continuação
da busca do objeto perdido, a ser reencontrado (LACAN, 1995, p. 13).
Uma curiosidade sobre a denominação de a para designar o objeto que, como referido
por Lacan, foi sua contribuição original para a psicanálise: Segundo Fink (1998), Lacan teria
feito um jogo de palavras a partir da estranheza e também da natureza objetal do eu, de tal
modo que se referiria ao eu como um outro (autre). Daí teria surgido a abreviação “a” para
denominar o outro como semelhante, o que ressaltaria a semelhança entre o eu (a) e o outro
(a‟) e sublinharia o aspecto imaginário do objeto – na medida em que o objeto seria o outro.
(FINK, 1998, p. 109). Seria a partir de 1959, no Seminário VII, que surgiria no ensino de
Lacan das Ding, objeto que traz em si o estatuto real do objeto que, pouco tempo depois, será
formulado como objeto causa de desejo.
Entretanto, cabe notar que, por exemplo, no Seminário IV, cujo tema é justamente a
relação de objeto, este já comparece anunciando seus aspectos simbólicos e reais: “O objeto é
instrumento para mascarar, enfeitar o fundo fundamental de angústia que caracteriza, nas
diferentes etapas do desenvolvimento do sujeito, sua relação com o mundo” (LACAN, 1995,
p. 21). Temos aqui, portanto, a indicação da presença no real, na medida em que o objeto
mascara a angústia, manifestação do real e, por outro lado, a presença do objeto nas relações
do sujeito com o mundo, o que pressupõe o simbólico na medida em que se pense o sujeito
como sujeito do inconsciente e, consequentemente, sujeito do significante. Assim, se a
concepção de das Ding no Seminário VII pode ser usada didaticamente para marcar um
momento de mudança na concepção de objeto no sentido da ênfase no real, na medida em que
o real será ali francamente central e trabalhado com um nível de complexidade até então
41
inédito, não podemos esquecer que o aspecto real, bem como o estatuto simbólico do objeto já
se anunciavam desde anos antes. De fato, a mudança maior seria, como aponta Fink, que até
meados da década de 50 do século XX o outro – a – seria o objeto, enquanto que o objeto a
como causa de desejo começaria a surgir a partir do Seminário VII na forma de das Ding, que
depois seria trabalhado como agalma no Seminário VIII sobre a transferência, até chegar ao
Seminário X sobre a angústia, no qual Lacan trabalha de forma intensiva o conceito de objeto
a e no seminário seguinte, no qual dá continuidade aos desenvolvimentos do seminário
precedente no que tange ao objeto a. Novas elaborações do objeto a serão feitas ao longo de
seu ensino, como no Seminário XVI, quando propõe o gozo como concernente ao campo da
psicanálise e introduz a articulação entre o objeto a e o mais-de-gozar, conceito forjado desde
a mais-valia marxista. Entretanto, nessa altura, podemos dizer que o conceito já tem seu
estatuto estabelecido.
O objeto a, criação lacaniana, é diferente do que propõe Freud como objeto: enquanto
para este qualquer objeto pode ser a princípio objeto da pulsão, para Lacan, desde o Seminário
VII, a pulsão – bem como o desejo – tem um objeto definido – mas definido enquanto vazio:
o objeto a, que define um lugar, um oco que pode ser “ocupado” por qualquer outro objeto,
desde que se trate de um objeto causa de desejo – definição lacaniana para o objeto a. Mas
qual é a diferença entre objeto do desejo e objeto causa do desejo? Como é possível que um
objeto que se caracteriza pela ausência, pela falta, seja ainda assim um objeto?
Podemos pensar que o vazio do objeto a é o que causa o desejo, tomando o vazio
como causa – do mesmo modo que das Ding é o vazio contornado pelo vaso, na metáfora
heidegeriana utilizada por Lacan no Seminário VII –, buscando objetos que supostamente
preencham esse vazio. No entanto, sabemos que esse vazio, constitutivo do sujeito, não é
passível de ser preenchido – o que veremos pouco adiante com relação aos semblantes de a.
Safouan (2006, p. 112) alude ao paradoxo do objeto a como causa e como objeto ao mesmo
tempo e esclarece que o objeto a é o objeto através do qual o sujeito pensa preencher a falta
no Outro (tal como encontramos sua função na fantasia, $ ◊ a), mas, como Lacan vai
esclarecer no Seminário XI, o sujeito serve-se de sua própria falta para interpretar a falta do
Outro, confundindo o desejo do Outro com sua demanda. Isso acontece porque é possível ao
sujeito saber o que o Outro demanda, mas não o que ele deseja, que é sempre um enigma.
Recobrindo o desejo com a demanda, o sujeito tampona a angústia de nada saber do desejo do
Outro. Voltaremos a isso no Cap. 4.
Mesmo que a concepção de objeto para Lacan tenha permanecido muito similar à
noção freudiana até o final dos anos 1950, insistimos em lembrar que depois disso a
42
conceituação do objeto sofreu modificações ao longo do ensino de Lacan. Como observa Fink
(1998), o conceito de objeto a sofreu muitas mudanças desde os anos 50 até os anos 70.
Segundo este autor,
[...] poucos conceitos tem tantos avatares nas obras de Lacan: o Outro, o agalma, o
número de ouro, a Coisa freudiana, o real, a anomalia, a causa do desejo, o mais-
gozar, a materialidade da linguagem, o desejo do analista, a consistência lógica, o
desejo do Outro, o semblante/simulacro, o objeto perdido e assim por diante. (FINK,
1998, p. 107).
Se Freud nos faz esta observação de que o objeto na pulsão não tem nenhuma
importância, é provavelmente porque o seio deve ser revisado por inteiro quanto à
sua função de objeto. [...] A esse seio, na sua função de objeto, de objeto a causa do
desejo, tal como eu trago sua noção – devemos dar uma função tal que pudéssemos
dizer seu lugar na satisfação da pulsão. A melhor fórmula nos parece ser esta – que a
pulsão o contorna. (LACAN, 1985b, p. 160/FR p. 153).
7
Retornaremos a esse tema no próximo capítulo.
44
Lacan nomeia o mamilo (como objeto que é separado da boca que o sugou) e os
excrementos como objetos pré-genitais. A voz (a emissão da voz é algo “que se corta, que se
escande”) é incluída na terceira das categorias do objeto a, o delírio. O objeto a tem sempre a
mesma função, embora possa ter várias formas. Lacan explicita que, uma vez que se trate de
corte, nos objeto a, está aí implicada a separação do sujeito de uma parte dele próprio,
evocando a separação primeira do Outro. É desde esse ponto que podemos situar a relação do
sujeito com o objeto a, tal como veremos ao discutir a fantasia no próximo capítulo.
A partir da indicação dos ritos iniciáticos dos quais fazem parte a mutilação (a
extração do objeto a), Lacan já se refere à função do objeto a de moldar, orientar o desejo,
que adquire então função de índice que só pode se exprimir “em um mais além do simbólico”
(LACAN, 2002c, p. 410).
Aqui, o objeto a nos é apresentado como objeto de desejo inconsciente do sujeito – na
verdade, como objeto fundador do sujeito, na medida em que é na separação com o seio,
entendida como separação desse Outro primordial, que ele começa a surgir.
Lacan se refere também em seu texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano (LACAN, 1960/1998) ao objeto (mamilo, falo, fluxo urinário e
acrescenta o olhar e a voz), explicitando tratar-se sempre de objeto parcial, não na medida em
que seriam parte de um objeto total – o corpo – , mas sim na medida em que só representam
parcialmente o que o produz: a pulsão, ela mesma sempre parcial. A parcialidade da pulsão
pode ser deduzida do que já discutimos acima e também no capítulo anterior, com relação à
desadaptação da sexualidade. Essa desadaptação primeira da sexualidade humana, desde a
pulverização da possibilidade de satisfação sexual tem como consequência a inexistência de
um objeto de satisfação completa, de algo que obture o desejo e também de uma unificação do
pulsional.
Mais uma vez se opondo à leitura dominante dos então pós-freudianos, Lacan
esclarece que a passagem de uma pulsão à outra (da pulsão oral à anal, por exemplo) não se
dá por um processo de maturação, por uma espécie de modificação natural pela qual passaria
a pulsão, mas sim pela intervenção da demanda do Outro. É porque o Outro demanda da
criança que se alimente, porque demanda seus excrementos que as fases da libido se sucedem.
A passagem de uma pulsão parcial para outra, portanto, não é automática, mas sim causada
pelo Outro, que comumente é representado inicialmente pela mãe, Outro primordial da
criança, mas a função desse Outro pode ser desempenhada por qualquer um que tome a
criança aos seus cuidados, colocando-a inicialmente no lugar de falo.
45
O traço comum aos objetos da pulsão, denominados objetos a, é que eles não têm
imagem especular ou alteridade, o que fica mais evidente quando nos referimos à voz e ao
olhar.
Pois esse sujeito, que acredita poder ter acesso a si mesmo ao se designar no
enunciado, não é outra coisa senão um objeto desse tipo. Perguntem ao angustiado
com a página em branco e ele lhes dirá quem é o excremento de sua fantasia.
(LACAN, 1960/1998, p. 832).
corte do significante. Lacan não desenvolveu tanto a questão do objeto vocal quanto o olhar;
esboçamos seu desenvolvimento a partir do modelo da “esquize”, da oposição entre o olho e o
olhar. É nesse sentido que a voz como objeto a não pertence ao registro do significante, bem
como sendo distinta do sentido e das modalidades de entonação (que carregam em si algo da
ordem do sentido). “Isso é sem dúvida um paradoxo, mas que diz respeito ao fato dos objetos
ditos a só poderem se afinar com o sujeito do significante se perderem toda substancialidade,
se estiverem centrados por um vazio que é a castração.” (op. cit, p. 6).
É a partir da experiência clínica com a psicose que Lacan estende os objetos a já
designados por Freud (o seio e as fezes, como objetos oral e anal da demanda do Outro) para
o olhar e a voz. Enquanto o objeto escópico é deduzido por Lacan a partir do delírio de
observação, a voz se mostra como objeto da pulsão a partir dos fenômenos de automatismo
mental, tal como observados por Clérambault. A alucinação verbal motora também atesta a
voz como objeto a – voz como objeto separado do corpo, que na psicose é vivido como vindo
desde fora, ao mesmo tempo em que o sujeito articula fonematicamente aquilo que atesta
ouvir de fora, as vozes. Nos dois casos, não é a materialidade dos objetos que define seu
estatuto – do mesmo modo que ocorre com o seio e as fezes. O que os define é uma função: a
de esvaziamento de um material específico, que se desprende do sujeito.
Miller propõe a voz como precedendo para Lacan o olhar, dado o fato de Lacan ter
partido da função da fala e do campo da linguagem. Nesse sentido, a fala amarra significado e
significante. Miller propõe a voz como um terceiro termo entre a função da fala e o campo da
linguagem (MILLER, 2013, p. 6). Define a voz como “tudo o que, do significante, não
concorre para o efeito de significação” (idem), ou seja, trata-se de uma função da cadeia
significante – ainda que não concorra para a significação. A voz não é o falar nem a fala, mas
é uma função da cadeia significante. Nesse sentido, a voz está na posição de resto.
Lacan aponta a função da voz no delírio de Schreber, discutido em De uma questão
preliminar..., considerando que a voz no delírio apresenta o peso real do sujeito no discurso
que faz entrar em jogo um Outro que se manifesta como real. As frases interrompidas de
Schreber evidenciam o caráter de corte, após o qual surge um apelo à significação. De todo
modo, vale apontar que esses objetos a se transmutam na alucinação psicótica em
representantes do Outro, de forma coerente com a não diferenciação entre outro e Outro
vigente na psicose.
47
Lacan evoca o termo das Ding, utilizado por Freud em Projeto para uma psicologia
científica (1895/1950), para se referir ao mais interior e ao mesmo tempo mais externo –
êxtimo, palavra que Lacan cunha para apontar esse paradoxo –, ao estranho (Fremde) que
seria o centro mais íntimo em torno do qual surgiria o sujeito e a cadeia significante. É
importante destacar que das Ding e die Sache poderiam ser traduzidas para chose, no francês,
ou coisa, no português, mas há uma diferença no uso corrente das duas palavras. Sache estaria
ligada a coisa em jogo no conflito entre homens que passaria à ordem simbólica, produto da
indústria, da ação do homem ordenada pela linguagem, diferente de Ding, caracterizado
justamente por estar fora da linguagem, ao mesmo tempo em que a funda. Como indica
Braustein (2007), os objetos (die Sache, die Objekte), seriam os objetos imaginários, objetos
da fantasia e, portanto, semblantes de a. Assim, podemos entender tais objetos como aqueles
que podem ser elevados à dignidade da Coisa, ou seja, os objetos que podem “ocupar” – ao
menos como semblante – o lugar impossível de das Ding.
Em 1915, Freud se refere a Sache ao diferenciar e articular a Sachvorstellung e a
Wortvorstellungen, a representação-coisa e a representação-palavra, respectivamente;
enquanto a primeira pertenceria ao sistema inconsciente, a segunda faria parte do sistema pré-
consciente/consciente 8 . De fato, no sistema pré-consciente/consciente estariam presentes a
Sachvorstellung e a Wortvorstellungen, articuladas, somadas. Se estão em sistemas diferentes,
representação-coisa e representação-palavra ainda assim se articulam, formam um par.
Garcia-Roza (2004) propõe que a representação-objeto (Objektvorstellung) 9 articulada à
representação-palavra designaria o significado, tal como o discute Lacan, enquanto que a
Vorstellungsreprasentanz seria o equivalente freudiano para o significante lacaniano. O
próprio Lacan o indica no Seminário VII, não precisamente a partir das Sachevorstellungen,
mas das Vorstellungen de forma geral. “Pois as Vorstellungen já têm desde a origem o caráter
8
Há uma extensa e complexa discussão a respeito da tradução e mesmo da conceitualização dos termos
Wortvorstellung, Sachvorstellung e Objektvorstellung. Para um maior esclarecimento do tema, recomendamos,
além do próprio texto de Freud, a leitura do capítulo 4 do livro de Garcia-Roza (2004). Não entraremos aqui
nessa discussão, pois isso nos afastaria muito de nosso tema central. Entretanto, cabe notar que o capítulo VII do
texto O Inconsciente tem suas origens na monografia de Freud sobre as afasias (1891) e que há uma diferença
terminológica entre os dois textos. O que no texto que aqui discutimos é a representação-coisa, no texto sobre as
afasias aparece como representação-objeto. No texto O Inconsciente, a representação–objeto é o complexo que
surge a partir da combinação de representação-coisa e representação-palavra (cf. Anexo C de O Inconsciente,
1990/1915).
9
Aqui, quanto aos termos utilizados, devemos entender a referência de Garcia-Roza como sendo o texto sobre as
afasias (cf. nota anterior).
48
de uma estrutura significante” (LACAN, 1997, p. 172). Mas, como nesse momento essa
comparação não nos fará avançar, deixemo-la apenas apontada, talvez para retomá-la
subsequentemente.
Enfim, o que nos interessa aqui é entender que, diferente de die Sache, que faz parte
do domínio do simbólico, uma vez que se trata de um traço do objeto, algo que representa o
objeto no inconsciente (FREUD, 1915/1990), das Ding aponta para o real: “Minha tese é de
que a lei moral se articula com a visada real como tal, do real na medida em que ele pode ser a
garantia da Coisa” (LACAN, 1997, p. 97). Na articulação entre lei e desejo, das Ding se
apresentará como a garantia da lei moral, se afirmando do lado da ética da psicanálise. A
moral só precisa existir porque há das Ding.
Fink (1998) relembra a escolha de Lacan pelo termo das Ding, a Coisa, a partir do
texto freudiano no qual das Ding é da ordem neuronal e se refere “àquilo que é invariável nas
diversas percepções que a criança tem do seio” (FINK, 1998, p. 121); é essa última parte que
nos interessa destacar. Trata-se da parte constante no campo perceptivo, mas também daquilo
que remete à primeira perda, separação prototípica do Outro primordial. Lacan, ao se
apropriar do termo, refere-se à ordem significante. Nesta, tal como ocorre com os neurônios
referidos por Freud em seu texto, Lacan entende que das Ding é alguma coisa que permanece
isolada do resto da cadeia significante, mesmo que esta tenha que circular em torno da Coisa.
Ou seja, das Ding seria o centro em torno do qual irão gravitar as Sachevorstellung.
No entanto, das Ding instaura a gravitação das Vorstellungen inconscientes (LACAN,
1997, p. 81). Por que não se refere às Sachevorstellung, já que para Freud o inconsciente é
formado por elas? Justamente porque não vem ao caso se são Sache ou Wort, coisa ou
palavra: trata-se das representações inconscientes, traços, para Lacan, os significantes.
O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto, das
Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas
suas coordenadas de prazer. É nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será
buscada, em nome do princípio de prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais
nem percepção nem esforço. (LACAN, 1997, p. 69/FR p. 65, grifos nossos).
Para Lacan, das Ding seria fora-do-significado e anterior a todo recalque. Esse será
um ponto importante ao considerar a relação do psicótico com das Ding. Se das Ding é
anterior ao recalque, é possível considerar que das Ding seja foracluído? Voltaremos a isso no
último capítulo desta tese. Por enquanto, deixemos marcado que é este o objeto a ser
reencontrado na prova de realidade; não se trata de encontrar aquilo que é compatível com a
49
Assim, poderíamos dizer que das Ding seria o aspecto real do objeto a, que por sua
vez teria também aspectos simbólicos e imaginários. É possível articular das Ding e objeto a
pensando o primeiro como um “real prévio”, aquém do significante cujo produto seria “um
saldo inassimilável e incomensurável, o gozo perdido, causa do desejo, que é o objeto a, um
real posterior” (BRAUSTEIN, 2007, p. 80, grifos nossos). Ou seja, desse gozo inicial,
absoluto e mítico que é a Coisa, restariam gozos menores, dos objetos pequenos a causadores
de desejo.
Em suma, no que se refere a das Ding, trata-se de um vazio que não pode ser
preenchido por nenhum objeto e em torno do qual o próprio simbólico se organiza. Já
pensando na sublimação, nosso tema central, podemos adiantar que a elevação do objeto à
50
dignidade da Coisa teria a ver com “a Coisa só se apresenta a nós na medida em que ela acerta
na palavra, como se diz, acertar na mosca”; mesmo sendo muda, mesmo que não seja
passível de tradução em palavras – até porque não se trata de tradução – é possível tangenciá-
la através do significante que então “acerta em cheio”, elevando o objeto à dignidade da
Coisa.
Partindo da diferença entre das Ding e interdição do incesto, mas apontando para seu
campo comum que seria o de uma falta ou um vazio, é possível interrogar qual seria o estatuto
da Coisa na psicose. Afinal, se na psicose houve foraclusão do Nome-do-Pai, ainda assim é
possível falar em das Ding nessa estrutura? Lacan, no Seminário VII, refere-se de forma mais
específica à neurose, retomando Freud; no caso da histeria, das Ding seria o suporte de uma
aversão, ao passo que na neurose obsessiva se trataria de uma organização que se dá a partir
de uma experiência inicial que trouxe prazer demais. Mas também se refere à psicose, ao falar
da paranoia.
O paranoico não acreditaria nesse “estranho inaugural” ao qual o sujeito tem que se
referir inicialmente. Segundo Lacan, uma vez que regula a relação do sujeito com o princípio
de prazer, das Ding nortearia a escolha da neurose. É importante notar que Lacan retoma o
texto freudiano a partir da divisão que Freud faz entre os três grandes grupos do que então
chamava neuroses: histeria, neurose obsessiva e paranoia10. Assim, quando Lacan retoma o
termo alemão usado por Freud, Neurosenwahl, ele está se referindo a um momento em que o
próprio Freud incluía a paranoia entre as neuroses. Se Freud parte dessa divisão que inclui a
paranoia e se Lacan a utiliza para falar da relação de das Ding com a neurose, mas incluí aí
também a paranoia, surge a questão sobre se não estaria também em jogo, na relação com das
Ding, por assim dizer, a “escolha da psicose”. Essa hipótese nos interessa na medida em que a
possibilidade e o modo como se daria a sublimação na psicose estão diretamente relacionados
com a relação com das Ding.
Com relação especificamente à paranoia, a descrença do paranoico frente à Coisa
provavelmente originaria o delírio como seu tamponamento. Então, a sublimação dificilmente
poderia aqui ser pensada, na medida em que, ao elevar o objeto à dignidade de das Ding,
estaria implícita a referência a um vazio, o que é incompatível com a tentativa de
tamponamento feita através do delírio. Por outro lado, Soler (2007), ao falar da relação do
paranoico e do melancólico com a Coisa, deixa claro, no caso de Rousseau – segundo ela, um
“paranoico brilhante” – o fato de que ele criou novos valores sociais. Ora, a criação de valores
10
Conforme encontramos em “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”, de 1896.
51
sociais é uma das exigências da sublimação. Não poderíamos aqui falar em sublimação na
paranoia? Voltaremos a essa questão no Capítulo 8.
Na discussão sobre das Ding, é comum referirmo-nos ao vazio e ao nada. Não é raro
encontrar referências ao furo, à falta, o vazio e o nada como se fossem sinônimos. Entretanto,
a bem de um certo rigor, vale a pena tentar diferenciar esses quatro termos, ainda que
encontremos semelhanças entre eles e ainda que não pretendamos uma diferenciação absoluta,
que abarque todas as variações de sentido possíveis de cada um dos quatro termos ou todos os
momentos da teorização de Lacan.
Podemos encontrar a utilização do termo vazio em referência àquilo que, na menção
heiddegeriana tomada de empréstimo por Lacan, está no centro do vaso e em torno do qual ele
é feito. No dicionário, encontramos que vazio refere-se ao que está vago, desabitado,
desocupado.
Lacan se refere ao nada ao apontar para a criação ex nihilo, literalmente criação a
partir do nada. Nada pode ser definido como “a não existência, o não existente”
(MICHAELIS on-line). O vazio do vaso é referência ao nada a partir do qual se cria. Desse
modo, podemos dizer que há solidariedade entre as noções de vazio e nada.
A falta é um termo comumente referido na teoria psicanalítica de Lacan àquilo que é
da ordem da castração; a castração é a expressão de uma falta no Outro e está referida ao
Édipo e ao recalque. É possível definir falta como carência, privação (op. cit). Na psicanálise,
é comum referir a falta em termos dos três tempos do Édipo. No primeiro tempo, a falta incide
como frustração, já que para a criança não existe nenhuma noção da falta no Outro; há apenas
o dom, que o Outro dá ou não dá conforme seu capricho. Já no segundo tempo do Édipo, nos
referimos à falta como privação. Aqui, começa a entrar em jogo a possibilidade de que o
Outro prive a criança de algo. Ambas têm sua importância na constituição do sujeito na
medida em que preparam o terreno para a castração, incidência da falta do terceiro tempo do
Édipo e que é a modalidade de falta correlata à instauração do Nome-do-Pai. A partir desse
entendimento, propomos nos referir à falta no sentido de uma suposta possibilidade de
completude que não se efetua; onde ela supostamente poderia existir, não existe e aí há falta.
Aqui, a ausência se contrapõe a uma presença correlativamente possível. Podemos falar em
52
falta também com relação à das Ding, mas nesse caso é preciso esclarecer que não se trata da
falta no Outro, “mas como vazio que implica a falta do Outro no Real” (CRUGLAK, 2001, p.
100).
É possível entender a falta como uma noção, até certo ponto, solidária ao furo, na
medida em que o furo se refere também a algo que instaura uma falta naquilo que,
supostamente, seria completo de outro modo. O furo rompe uma continuidade; é nesse sentido
que dizemos que o simbólico faz furo no real. Podemos definir o furo como aquilo que faz
uma abertura, um orifício. Na medida em que o simbólico pode significantizar algo do real,
faz furo nesse real, que então passa a ser não-todo. Cruglak dirá:
Será o mesmo criar desde o nada, desde o vazio e criar a partir de um furo? “Um
furo é muito difícil de definir”, disse Lacan. Porém, ainda que não contemos com a
definição, podemos pensar que para que haja furo é necessário que haja uma
consistência que o suporte: as paredes da vasilha. O centro do Real, a Coisa é esse
vazio, e será função da consistência do furo fazê-lo existir. Então não será o mesmo
o Real do furo e um furo no Real. O Real do furo é um vazio. (CRUGLAK, 2001, p.
94).
Buscaremos nesse capítulo discutir as articulações entre gozo, fantasia e desejo. Se por
um lado propomos como hipótese de trabalho que a sublimação é um tratamento do gozo, por
outro lado, sabemos que o modo como funciona o que podemos chamar de uma “economia do
gozo” está ligada à fantasia e também ao desejo. É nesse quadro que buscaremos discutir a
sublimação no presente capítulo, apontando a relação de cada um desses termos com a
sublimação. Para isso, é importante retomar cada um dos três conceitos, gozo, fantasia e
desejo.
A noção de fantasia tem lugar precocemente na obra freudiana, já a partir dos estudos
sobre a histeria. Se em um primeiro momento chegou-se a crer que as histéricas haviam de
fato sofrido abuso e assédio por parte de adultos quando crianças – normalmente de um único
adulto, próximo e familiar – Freud entende, em momento posterior, que o que está em jogo
para a histérica, saiba ela ou não, é uma fantasia de abuso. De outro modo, seria necessário
acreditar que a Viena de Freud, em fins do século XIX, era formada em sua maioria por
abusadores, dada a alta prevalência das descrições de abuso que surgiam nos relatos das
histéricas. Podemos dizer que há, na teoria freudiana, a passagem de uma teoria do trauma, a
uma teoria da fantasia11. A fantasia se mostrará central para a psicanálise na medida em que
11
É possível indicar uma teoria do conflito psíquico, que Freud configura ainda em sua primeira tópica e que se
baseia no conflito entre as diferentes instâncias psíquicas – entre o inconsciente e o consciente, sendo que esse
último praticamente coincide com o eu na primeira tópica – como origem do recalque e do sintoma. Tal como
ocorre na passagem da teoria do trauma para a teoria da fantasia, a teoria do conflito psíquico não anula as
precedentes, mas sim vem modificá-las, somando-se a elas. Voltaremos ao que estamos chamando de teoria do
conflito psíquico na sessão A ética da psicanálise desde Freud, no Cap. 5.
54
ocupará o lugar de uma cena de sedução que nunca aconteceu. Assim, logo de saída a fantasia
já traz em sua raiz a marca do traumático e do sexual. Ela é traumática porque é a expressão
do sexual naquilo que ele comporta de real – diferente, portanto, da realidade –, que, como tal,
ultrapassa qualquer possibilidade de inscrição.
O entendimento de que, com relação às histéricas, se tratava de uma fantasia e não de
um abuso de fato, permitiu uma diferenciação esquemática entre o que podemos chamar de
realidade factual (os fatos, aquilo que realmente aconteceu) e a realidade psíquica (permeada
pela fantasia). Entretanto, sabemos que, no fim das contas, não existe realidade que não seja
psíquica, se partirmos do princípio de que a realidade é sempre acessada a partir do crivo da
fantasia. Nesse sentido, podemos dizer que não há realidade que não seja ficcional, na medida
em que tomamos a realidade a partir dessa tela que é a fantasia. Ou seja, a realidade é sempre
psíquica e, portanto, sempre atravessada pela linguagem e pelo significante. Nas palavras de
Iannini, “A clínica psicanalítica não se interessa pela realidade material, se entendermos com
esse conceito uma realidade pré-discursiva alheia ao sujeito que fala. Ao contrário, o que está
realmente em jogo é a questão da „verdade‟” (IANNINI, 2013, p. 69). Assim, encontramos
uma oposição entre o que é da ordem desta realidade factual ou material e o que é da ordem
da verdade enquanto ligada ao inconsciente.
Dessa forma, a cena traumática narrada pela histérica, afinal, seria a ficção que dá
estrutura à verdade (CARREIRA, 2009), ou dito de outro modo, “Assim, é de outro lugar que
não o da Realidade concernida pela Verdade que esta extrai sua garantia: é da Fala. Como é
também desta que ela recebe a marca que a institui numa estrutura de ficção” (LACAN,
1960/1998, p. 822). A referência que Lacan faz aqui à fala deixa clara a alusão ao simbólico;
é na fala, no simbólico, que a verdade pode aparecer; é a própria fala que imprime a marca
que institui a verdade com estrutura de ficção.
Desde então, o interesse da psicanálise ficou claramente voltado para isso que
podemos chamar, com Freud, realidade psíquica, e a fantasia adquiriu um lugar central na
teoria. Lacan não deixou de sublinhar em diferentes momentos de seu ensino, que toda
verdade se revela numa estrutura de ficção (LACAN, 1998, p. 22; 1960, p. 822), uma vez que
é permeada pelo significante. Nesse sentido, no Seminário XVI, encontramos referência ao
55
livro Theory of Fictions, de Jeremy Bentham. Aqui, Lacan retoma o que entende ser uma
referência ao que está em jogo na categoria do simbólico:
Assim, a separação entre realidade factual e realidade psíquica cai por terra de uma
vez por todas, uma vez que toda a realidade humana passa necessariamente pelo filtro do
desejo, sustentado pela fantasia. A fantasia, portanto, vem tomar o lugar do real do trauma em
Freud, ainda que não completamente, uma vez que há sempre algo do real do trauma que
escapa, que não se inscreve nem mesmo pelo viés da fantasia.
Nesse sentido, podemos dizer mais acertadamente, com Lacan, que a fantasia
funciona como uma tela sobre o real e que, como tal, tentar ordená-lo a partir de
determinadas linhas. A fantasia tem função defensiva frente ao real, encobrindo-o com uma
lógica intrínseca que encobre a falta de lógica e de sentido daquilo que é da ordem do real.
Por outro lado, ela implica uma posição do sujeito frente ao real, ainda que ele não se
aperceba disso uma vez que, numa certa medida, é um crente da fantasia.
enuncia que o desejo do homem é o desejo do Outro (LACAN, 1960/1998, p. 829). É como
Outro que o homem deseja na medida em que
a pergunta do Outro, que retorna para o sujeito do lugar de onde ele espera um
oráculo, formulada como um “Che vuoi? – que quer você?”, é a que melhor conduz
ao caminho de seu próprio desejo – caso ele se ponha, graças ao saber-fazer de um
parceiro chamado psicanalista, a retomá-la, mesmo sem saber disso muito bem, no
sentido de um “Que quer ele de mim?” (LACAN, 1960/1998, p. 829/FR p. 815).
chora. A mãe, Outro primordial do bebê, afirma, significando seu choro: está com fome. O
bebê está em um estado de necessidade, mas ele próprio não tem nenhuma representação
psíquica do que seja isso, precisa de um Outro que instaure uma significação de seu choro. A
mãe ou alguém que cumpra essa função, introduz então uma significação em seu choro,
alimenta o bebê e, assim, não apenas satisfaz a necessidade de alimento do bebê (está com
fome), mas cria a demanda de satisfação, ou seja, coloca em ação algo que se origina na
necessidade, mas que já não coincide com ela, já que é permeado pela linguagem – e,
portanto, passa sempre pelos desfiladeiros do significante. É por isso que podemos dizer que a
mãe (ou quem quer que exerça sua função) assume o lugar do Outro primordial: é ela que
introduz a criança na linguagem, a partir da leitura que faz do corpo do bebê e de suas reações
– que, por sua vez, estão permeadas pelo desejo da própria mãe, como nos recorda Dor (1989,
p. 144)12.
O que chamamos estado de necessidade é algo ainda mais próximo do instinto e, nesse
sentido, cabe interrogar se o que está em jogo já é da ordem da pulsão, como afirma Joel Dor
(1989), ao dizer que “nesse estado de pura necessidade a pulsão se vê satisfeita sem mediação
psíquica” (p. 140). Se nos referimos a um bebê de poucos dias de vida, imerso na pura
necessidade, estamos falando justamente desse momento de instauração primeira da pulsão,
uma vez que esta não é inata, mas sim é consequência da incidência da linguagem sobre a
criança. A pulsão, conceito situado “entre o psíquico e o somático”, como formula Freud,
seria correlato às primeiras experiências de satisfação, e não anterior a elas. Nesse sentido,
cabe precisar que este momento das primeiras experiências de satisfação é o momento mesmo
de surgimento da pulsão.
É possível remontar ao traço mnêmico deixado pelas primeiras experiências de
satisfação e que serão evocados frente a um novo estado de necessidade. Esse traço mnêmico
de uma percepção do objeto de satisfação pode ser entendido como uma primeira
representação da pulsão – e, portanto, a partir daí, a necessidade já não é mais pura (DOR,
1998, p. 140), estando permeada de forma inaugural pela pulsão: o traço mnêmico indica a
partir de agora o caminho que leva à satisfação da pulsão – e não mais da pura necessidade.
Entretanto, há aqui uma peculiaridade digna de nota: a evocação do traço mnêmico de
12
É interessante notar que ao significar o choro do bebê, a mãe já supõe nele uma demanda. Mas se o faz, é
tomando o bebê como já fazendo parte do mundo da linguagem. Assim, é a partir desse “mal-entendido” (uma
vez que o bebê não pode ainda ter a intencionalidade suposta pela mãe nesse momento, dado que ninguém nasce
na linguagem, mas é aí introduzido depois) que a mãe justamente introduz o bebê na linguagem – que é a dela –
e, portanto, instaura nele aquilo que será depois, em um segundo momento, demanda do bebê de fato, já
atravessado pela demanda do Outro. Nesse segundo momento, podemos, sim, dizer que o choro do bebê é uma
demanda.
59
Zielgehemmt [inibida quanto ao objetivo] por um lado, mas por outro lado,
satisfação encontrada sem nenhuma transformação, deslocamento, álibi, repressão,
reação ou defesa. É assim que Freud introduz, coloca diante de nós, a função da
sublimação. (LACAN, 2008a, p. 214/ FR p. 105).
objeto. Essa indicação é importante na medida em que “Colocar o acento sobre a tendência
desprovida de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper certo ciclo
alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como indicação da
proximidade do final de análise” (SAFATLE, 2006, p. 70). Essa assertiva aponta a direção de
uma possível resposta à pergunta sobre o que aconteceria com o desejo no final da análise,
uma vez que a fantasia atravessada perderia seu estatuto norteador para o sujeito, inclusive em
seu aspecto imaginário. Desse modo, o desejo ficaria mais diretamente articulado à pulsão, à
tendência com o final de análise.
É nessa medida que a sublimação se relaciona, desde essa primeira abordagem mais
extensa de Lacan do tema, com a temática do final de análise. A elevação do objeto ao vazio
da Coisa implica, em certa medida, a dissolução imaginária correlata de uma destituição
subjetiva, na qual o desejo se manteria como norteador. Voltaremos a esse tema no capítulo
final deste trabalho.
4. Gozo feminino ou gozo suplementar. Está ao mesmo tempo além do gozo fálico,
mas por outro lado nada deve ao processo de significação. Ou seja, nunca foi
articulado à linguagem. Essa modalidade de gozo será abordada por Lacan
principalmente no Seminário XX (1972-73) e nos textos O aturdito (1973) e
Televisão (1974). Em suas variações, encontraremos o que Lacan chamará de gozo
místico.
Essa caracterização dos tipos de gozo, se por um lado é interessante, porque é uma
referência às questões teóricas de Lacan em diferentes momentos de seu ensino no que tange
ao gozo, corre o risco de se tornar excessivamente esquemática, caso fiquemos restritos a essa
divisão, o que empobreceria o próprio conceito. Então, se temos aqui um quadro didático de
como podemos nos referir ao gozo ao longo do ensino de Lacan, entendemos que o conceito
de gozo não deve se restringir a ele.
Ocorre que, ao se pensar na sublimação como possível tratamento do gozo, é
importante circunscrever ou ao menos indicar algumas articulações do gozo. Assim,
retomaremos sua origem em Freud e discutiremos sua relação com o significante, com a
fantasia e com o desejo.
As bases do conceito de gozo podem ser buscadas em Freud, embora em sua teoria
não seja possível falar no gozo como um conceito. Em Os chistes e sua relação com o
inconsciente (1905), encontramos a palavra Genuss em referência ao fragmento de gozo que
pode ser recuperado através do chiste. Valas (2001) nota que quando quer chamar a atenção
para o caráter excessivo do prazer, Freud utiliza a palavra Genuss ao invés de Lust (prazer,
desejo). Genuss evocaria um júbilo mórbido ou poderia referir-se ao horror. Tanto para Freud
como para Lacan, na discussão do gozo está em jogo o aspecto econômico – enunciado por
Freud como condição sine qua non para a existência de uma metapsicologia, juntamente com
os aspectos tópico e dinâmico – ou o que poderíamos chamar uma “teoria do valor”
(DUNKER, 2002), na qual se leva em conta as variações de valor psíquico presentes em
diferentes situações, os diferentes “investimentos pulsionais” envolvidos em cada caso.
Desde o Projeto, de 1895, o traumático a partir do qual os sistemas concebidos por
Freud nesse artigo operam está presente, produzindo um desprazer análogo ao que se
66
entenderá muitas décadas mais tarde como sendo da ordem do gozo. A lembrança do trauma
seria um "corpo estranho" que não pode ser metabolizado. O traumático já é, aqui, o sexual (o
real do sexual, constitutivo do sujeito, se quisermos utilizar os termos lacanianos), esse cujo
excesso causa a "doença" de neurose, como pensa Freud nesse momento inicial de sua
teorização. O traumático é incompatível com o princípio de prazer, não pode, portanto, ser
assimilado por um psiquismo orientado por aquele princípio, formando assim esse corpo
estranho, como um cisto (BRAUSTEIN, 2007). De fato, é possível dizer que o princípio de
prazer seria um freio para o gozo, que é entendido então como esse corpo estranho,
incompatível com o primeiro.
É a libido em jogo na sedução subjetivante do Outro que toma a criança a seus
cuidados desde a mais tenra idade, sedução originária, que implicará necessariamente um
gozo no corpo da criança – um gozo que não pôde ser “metabolizado” ou representado, como
dirá Freud, devido a sua intensidade ou precocidade e que, por esse motivo, tem efeito de
trauma sobre o sujeito. Assim, assistimos a um deslocamento da noção de trauma na teoria
que, se antes era efeito da ação externa, agora passa a habitar o interior do sujeito na forma de
traço, de lembrança. "O externo tornou-se o mais íntimo, um interior inacessível e
ameaçador" (BRAUSTEIN, 2007, p. 22). Curiosa homologia com a característica de
extimidade13 de das Ding, tal como a concebe Lacan.
Apesar das mudanças ao longo da teoria freudiana, nunca deixa de estar presente na
etiologia da neurose sua ligação com o traumático, embora seu estatuto sofra modificações.
Assistimos a um deslocamento desse traumático, que se inicialmente era resultado do abuso
sofrido em épocas remotas das vidas das histéricas, pouco a pouco passa a ser entendido como
fruto indissociável da própria constituição da sexualidade, efeito da pulsão – é importante
lembrar que o sexual, para a psicanálise, é o pulsional – e posteriormente como estando
relacionado também a algo constitutivo, mas dessa vez especificamente à pulsão de morte e
suas vicissitudes.
Junto a esses deslocamentos na teoria e indissociável desses, encontramos a presença
do Outro traumatizante; seja como abusador num primeiro momento ou como o Outro
repressivo encontrado tempos depois em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna
(1908) e outros artigos. Talvez a maior mudança, nesse sentido, seja a passagem para a
segunda teoria pulsional em Freud, quando, pela via da pulsão de morte e da compulsão à
repetição, radicaliza-se a presença do Outro como interiorizada pelo sujeito e não mais como
13
Neologismo criado por Lacan em seu seminário sobre a ética da psicanálise (Seminário 7), para caracterizar a
“exterioridade íntima” de das Ding com relação ao sujeito.
67
ação externa que se poderia de algum modo ter evitado. Se antes dos anos 20 do século XX
Freud ainda parecia crer que a mudança social pudesse promover uma mudança na alta
incidência da neurose (menos repressão social teria como consequência menos neurose), essa
ideia cai por terra com o advento da pulsão de morte. Agora, o mal é inerente a cada um, é a
condição mesma de existência do sujeito, juntamente com o princípio de prazer, em interação
com ele. É o que encontramos de forma dramática em O mal-estar na cultura (1929) e é de
onde partirá Lacan em seu seminário sobre a ética (LACAN, 1997) para se referir ao gozo e a
seu paradoxo: quanto mais o gozo é interditado, tanto mais forte fica o interdito. Dito de outro
modo, quanto mais alguém se submete aos ditames morais, tanto mais estará submetido às
exigências cada vez mais cruéis do supereu (LACAN, 1997, p. 216).
É, portanto, na famosa teoria freudiana do trauma que encontraremos de forma mais
inicial também o substrato do que virá a ser o conceito de gozo, em sua incidência real, em
seu caráter de um resto não simbolizável, de um “não cessar de não se inscrever”. Os
conceitos de libido e gozo ou mesmo de pulsão e gozo não se recobrem completamente, mas
claramente se avizinham e o gozo deve tributo tanto a libido quanto a pulsão. A libido que
traumatiza, discutida por Freud já nos primórdios de sua teorização, antecede o conceito de
gozo que surge na teoria lacaniana, aponta para ele.
Ainda na teoria freudiana, encontramos o conceito de pulsão, discutido de modo mais
sistemático no artigo metapsicológico Pulsões e destino da pulsão (1915) e, na década de 20,
a formulação do segundo dualismo pulsional e da pulsão de morte, conceito freudiano que
mais se aproxima daquilo que Lacan irá, anos depois, postular como gozo14. É importante
notar que, se há proximidade do conceito de gozo com o de pulsão, há também diferenças e
não é possível fazer ambas equivalerem completamente.
Antes de tudo, lembremos de que a maior proximidade do conceito de gozo se dá com
a pulsão de morte e não com qualquer pulsão. Isso permite que tracemos a diferença entre
prazer e gozo, já que a pulsão de morte não se articula ao prazer, que está ligado, isso sim, às
pulsões de vida. Portanto, haveria uma oposição entre prazer e gozo, uma vez que o primeiro
estaria do lado do princípio de prazer e, portanto, das pulsões de vida, enquanto o segundo
estaria do lado da pulsão de morte. Se antes o que tinha efeito de trauma era o excesso de
libido, agora, com o advento do segundo dualismo pulsional, a pulsão de morte com sua carga
14
Embora haja momentos em que o termo “gozo” surge no texto lacaniano indicando algo da ordem do prazer,
do mesmo modo que acontece em Freud. A partir de um certo momento, para Lacan, será tomado como
definidor do conceito de gozo uma “satisfação parcial da pulsão” ligada à pulsão de morte – e, portanto, em
oposição ao prazer.
68
O que parece fazer parte dos esforços lacanianos de “desbiologizar” os conceitos freudianos, como nos lembra
15
diferença é o que permite justificar a pulsão de morte como historicizante e, portanto, ligada à
cadeia significante.
Se a pulsão de morte “põe em causa tudo o que existe”, ela necessariamente age na
cadeia significante, ainda que não seja parte dela. Todavia, por paradoxal que possa parecer,
se a pulsão de morte antecede a cadeia significante, esta é ao mesmo tempo fundamento
daquela, no sentido de sua dimensão histórica. O recomeço, a “sublimação criacionista” seria,
então, consequência daquilo que foi posto em causa pela via da destruição operada pela
pulsão de morte, que seria por sua vez o “para-além dessa cadeia, o ex nihilo sobre o qual ela
se funda e se articula como tal” (LACAN, 1997, p. 260). Dito de outro modo, a pulsão de
morte é o que aponta para o ponto da criação ex nihilo desde onde surgirá aquilo que é
histórico na pulsão. Vazio que funda a cadeia, mas que tem no significante seu próprio
fundamento de existência.
Lacan aponta para a suspeita despertada pelo conceito de pulsão de morte, mas,
diferente de outros psicanalistas, que francamente condenaram o conceito freudiano por
questões que são mais de ordem moral16, seus motivos são outros. Para Lacan, a pulsão de
morte é um conceito suspeito – o que não significa que as articulações do conceito em Freud
sejam falsas – uma vez que supõe uma substituição da Natureza pelo sujeito. Isso implicaria
um sujeito que sabe, ele diz. Trata-se do sujeito da razão, o que vai na contramão da
experiência evidenciada por Freud e que aponta justamente para o sujeito que não sabe, “[...]
num ponto de ignorância limite, se não absoluta. É esse o nervo da investigação freudiana”
(LACAN, 1997, p. 260). O limite do saber do sujeito aponta para o inconsciente, mas não só:
aponta para o real, na medida em que o gozo é da ordem do real. Ao identificar o ponto
problemático na leitura biologizante de Freud (substituição da Natureza pelo sujeito), Lacan
evidencia o cerne do pensamento freudiano que ficou “de fora” da leitura evolucionista.
A pulsão de morte freudiana evidencia o intransponível, o ponto da Coisa. “Ele indica
esse ponto que lhes designo alternativamente como sendo o do intransponível ou o da Coisa.
16
Uma vez que a pulsão de morte coloca no cerne do sujeito a destrutividade, derrubando de uma vez por todas
qualquer esperança em uma natureza supostamente boa do homem.
70
Freud desenvolve aí sua sublimação referente ao instinto de morte, dado que essa sublimação
é fundamentalmente criacionista” (LACAN, 1997, p. 260-261). Embora Freud não tenha
discutido de forma aprofundada a articulação possível entre pulsão de morte e sublimação17,
podemos entender que Lacan deduz consequências do pensamento freudiano quando se refere
ao fato de que, a partir da pulsão de morte é que podemos pensar na sublimação com
fundamentalmente criacionista. Isso implica na ideia da criação ex nihilo como aquilo que
introduz, que está na origem da organização significante – da cadeia significante. De modo
homológico, estamos falando, portanto, da sublimação da pulsão de morte como possibilidade
de criação a partir do nada.
Se deixamos indicada acima a relação do gozo com a pulsão, como precisar essa
relação? O desejo se articula com a divisão do sujeito (Spaltung), que por sua vez é
consequência da passagem pelo Édipo e do advento da castração. Esse mesmo desejo
apresenta uma aresta, um obstáculo que evidencia a problemática do gozo. Esse obstáculo
opaco, barrado, se define por ser um ponto do desejo – inacessível. É essa característica de
inacessibilidade que esclarece porque no desejo se trata não de uma satisfação de necessidade
(besoin), mas sim da satisfação de uma pulsão. A ideia de “satisfação” de uma pulsão merece
ser discutida para que seja possível entender o porquê da inacessibilidade desse gozo – gozo
da Coisa e, ao mesmo tempo, a relação entre gozo e pulsão.
É importante examinar a ideia de que o gozo seria uma satisfação da pulsão, ideia
bastante difundida e definição que se encontra no seminário lacaniano sobre a ética. Embora
isso seja também verdade, há certa imprecisão, apontada com clareza por Braustein, quanto à
propagação da ideia de que é apenas disso que se trata, da satisfação da pulsão. O autor
começa apontando o quanto essa definição guarda de antifreudiana, na medida em que a
satisfação estaria ligada à necessidade, ao passo que a pulsão seria “uma exigência incessante
de trabalho imposta ao psiquismo por sua ligação com o corporal”.
Ou seja, enquanto a satisfação da necessidade faria com que esta cessasse, a exigência
de trabalho imposta pela pulsão, pelo contrário, se renovaria a cada tentativa, como uma força
17
A esse respeito, consultar Metzger, C. e Silva Junior, N. Sublimação e pulsão de morte: a desfusão pulsional.
Revista Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 567-583, jul.-set. 2010.
71
constante – tal como enunciado por Freud em Pulsão e destino das pulsões (1915). Nessa
medida, se há satisfação da pulsão no gozo, trata-se da satisfação de uma pulsão bem
específica: a de morte. Acrescentamos que, ainda que houvesse outro tipo de satisfação, ela
seria sempre parcial. Vale a pena recorrer à citação literal da transcrição do seminário em que
aparece a afirmação de Lacan quanto à pulsão:
Assim, ao nos referir à satisfação de uma pulsão a partir do gozo, cabe sublinhar que
se trata sempre de uma satisfação parcial.
Inicialmente, como comentado no início do capítulo, há na teorização lacaniana inicial
certa sobreposição ou no mínimo uma não discriminação entre gozo e prazer – que
poderíamos remeter, como notamos, a uma herança freudiana. Como aponta Dunker (2002, p.
31), o próprio espectro semântico do Genuss é muito amplo, associando-se a ideias como
desprazer, insatisfação, dor, asco, mas também como libido e gozo sexual, o que também dá
margem a certa imprecisão na interpretação do texto freudiano. Ainda assim, é possível dizer
que para Freud, o gozo estaria mais do lado de um grande prazer, do êxtase, do mesmo modo
que encontraremos nos textos iniciais de Lacan (BRAUSTEIN, 2007, p. 14). Todavia, em
Lacan, depois de algum tempo, fica claro que o gozo está do lado da pulsão de morte e que,
portanto, se opõe ao princípio de prazer. Já a partir de 1958 podemos dizer que “A tese central
é que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, sim, mas depende, como tal, do
gozo; é um processador do gozo por meio do aparelho linguageiro que transmuta o gozo em
discurso” (BRAUSTEIN, 2007, p. 54 grifos nossos).
Valas (2001) observa que, conforme vai ficando claro que a linguagem não permite
que se diga tudo, haverá algo além (ou aquém) do inconsciente estruturado como linguagem
tal como concebido inicialmente por Lacan: “como pode o sujeito manejar o gozo, se, por
definição, o acesso ao gozo lhe é impossível através da lei do prazer e, ao mesmo tempo, esse
gozo lhe é proibido pela Lei?” (VALAS, 2001, p. 7). Assim, devido ao fato de que nem tudo
diz respeito ao significante, Lacan se viu obrigado a partir de certo momento de seu ensino a
discutir conceitualmente o gozo, o que vai fazer a partir dos anos de 1959-60, no Seminário
VII.
72
Embora Braustein considere que não vale à pena entrar na discussão sobre o que veio
primeiro, se o gozo ou o significante, em alguns momentos – como o da citação alguns
parágrafos acima – parece ser inevitável, a cada momento, tomar um dos dois como
originário. Aqui, no final dos anos 1950, início dos 1960, o gozo pode ser entendido como
causa do significante, na medida em que a tentativa do inconsciente, enquanto estruturado
como linguagem, é justamente processar o gozo que invadiria o sujeito, leitura aliás
aparentada de certo modo da que encontramos no Projeto freudiano (1895/1950), no qual as
vias facilitadas buscariam assimilar a tensão. Entretanto, sabemos que o gozo é também um
gozo a partir da linguagem, gozo do ser falante. Há um paradoxo, uma contradição entre o
gozo e a Lei da linguagem, que, impondo sua regulação, obriga o sujeito a abdicar do gozo,
convertendo-o em termos aceito pelo laço social. Assim, temos um recorte no gozo – que é
desde o início gozo do corpo – e que implica um modo específico permitido: pela via do gozo
linguageiro, colocado fora do corpo e em função do ideal de eu. Eis a passagem do gozo do
ser, gozo absoluto da Coisa, para o gozo fálico, regulado pela Lei da linguagem.
partir de então, temos o sujeito “dividido pelo significante, que o representa para outro
significante”. Essa concepção diferenciará radicalmente o sujeito da pessoa, que talvez antes
poderiam se confundir. Essa nova concepção de um sujeito dividido pelo significante terá
como consequência um desejo submetido às leis da linguagem, regidas pelas metáforas e
metonímias. Ao mesmo tempo, a questão relativa ao fato de que nem tudo é significante, que
existe aquilo que escapa da linguagem – e que é o próprio gozo – faz com que Lacan, a partir
do Seminário VII passe a elaborar a relação entre gozo e desejo na experiência psicanalítica.
Antes de 1958, o desejo, na medida em que estaria ligado ao sexual, emanaria do isso.
Entretanto, também o gozo teria a mesma origem. Para Lacan, inicialmente não havia uma
diferença clara entre o isso e o inconsciente. “Assim, também, para Lacan, no começo de seu
ensino, o desejo e o gozo são praticamente sinônimos, como são para Freud, que às vezes faz
uso do termo Lust par designar o desejo (Wunsch) ou o prazer.” (VALAS, 2001, p. 31).
Gozo e desejo vão ser, desde então, diferenciados a partir da concepção do sujeito
dividido pelo significante por um lado e da Coisa como objeto interditado por outro. Essas
duas condições já partem do princípio do “não todo significante” do campo da psicanálise. A
partir daí, o desejo é o resultado da interdição do incesto, que marca uma falta na mãe. Por
que a mãe, não tendo seu desejo obturado pela criança, não a sacia completamente, e porque a
mãe é interditada para a criança, por essas razões a criança pode, a partir da falta que a mãe
então lhe provoca e a partir dessa mesma mãe como objeto interditado (o que a colocaria na
esteira de das Ding, embora não sejam sinônimos), desejar. O gozo estaria, então, do lado da
Coisa, cujo acesso é barrado ao sujeito do significante 18 . Ainda assim, o gozo surge nas
entrelinhas, cifrado. A partir dessa ideia do ciframento do gozo Lacan vai elaborar as
diferentes modalidades do gozo, tal como vimos na introdução deste capítulo – que, parece
possível dizer, são na realidade diferentes aspectos, formas diversas assumidas por um mesmo
gozo.
Com a entrada na linguagem e a passagem pelo Édipo, o sujeito renuncia a um gozo –
gozo do ser – pela promessa de um outro gozo (BRAUSTEIN, 2007 p. 32): o do sujeito da
Lei. A entrada na linguagem transforma o corpo orgânico, biológico em corpo recortado pelo
significante. É a partir desse recorte que restará o gozo de borda das zonas erógenas, que são
ilhas de gozo em meio ao mar de um corpo significantizado pelo discurso. A partir daí, o gozo
18
No que diz respeito à relação do psicótico com a Coisa, ela precisa ser pensada a partir do fato de que o
psicótico é também sujeito do significante, ainda que não possamos falar em desejo nesse caso, já que a
castração e o correlativo Nome-do-Pai não advieram. Nesse sentido, podemos pensar que o psicótico é mais
vulnerável ao horror da Coisa, da qual o neurótico é protegido pelo desejo e pela fantasia. É daí que deduzimos a
coerção do psicótico à sublimar, como forma de lidar com o horror do vazio da Coisa.
74
será delimitado pelo significante. Entretanto, aqui há um paradoxo, pois “ [...] esse gozo é
apenas um resto de gozo corporal, ele sempre deixará o sujeito em uma insatisfação
fundamental, e o desejo insistirá, para encontrar o gozo do Outro, idealizado porque perdido
desde sempre e para sempre” (VALAS, 2001, p. 44). O paradoxo está na busca de um gozo
mítico que está, afinal, perdido.
Para pensar a relação entre gozo e desejo, há que remontar a relação entre gozo e
castração, gozo e Édipo, gozo e incidência da Lei. A circunscrição do gozo em uma parte do
corpo é correlata da angústia de castração no caso do homem, e da inveja do pênis, no caso da
mulher. Mas esse gozo só será acessível a partir da demanda endereçada ao Outro.
A demanda ao Outro passa pela pergunta do sujeito quanto a seu próprio desejo, na
tentativa de compreender aquilo de indecifrável que há no desejo do Outro, o que é correlato à
alienação do sujeito no desejo do Outro. Mas esse x do desejo do Outro funciona como causa
do desejo do sujeito. Por isso, Lacan dirá que “o desejo do homem é o desejo do Outro”
(LACAN, 2005, p. 31). É o desejo do Outro que causará o desejo do sujeito, que na verdade é
o desejo do desejo do Outro. Nesse sentido o desejo do Outro funciona como objeto a,
causando o desejo do sujeito.
Em outros termos, ao pensar essa relação entre o sujeito e o Outro no momento inicial
da constituição do sujeito, temos que a criança desejará ser objeto dessa mãe que encarna o
Outro primordial da criança, momento de alienação da criança que assim se introduz na
cadeia significante (HARARI, 2001, p. 220). A criança buscará ser objeto da demanda do
Outro, na medida em que a demanda pode encobrir o desejo do Outro – nesse caso, ao menos
a criança sabe qual é a demanda do Outro, ao passo que nada sabe do desejo do Outro.
Entretanto, ao se dar conta de que algo do desejo da mãe enquanto Outro lhe escapa, esse x
lhe causará desejo, o que evidencia que o que a criança de fato deseja é a capacidade da mãe
de desejar. Essa instauração do desejo no sujeito, ainda que partindo do desejo do Outro, vai
instaurar um corte, a partir do qual o desejo da criança e o desejo da mãe não coincidem,
apontando, portanto, para a separação.
É esse corte, da ordem da separação, que instaura o objeto a. Nesse sentido, o objeto a
é o resto que se produz a partir desse corte que separa a criançada mãe, o sujeito do Outro.
Frente ao objeto a, o sujeito pode apegar-se a ele, mantendo a ilusão dessa unidade perdida
com o Outro. É a isso que chamamos fantasia, o modo como o sujeito mantém sua relação
com o objeto a (FINK, 1998 p. 83), formalizado por Lacan com o matema $ ◊ a, que se lê
sujeito punção de a e mostra o sujeito dividido por sua relação com a. Na relação de
conjunção e disjunção do sujeito com o objeto a, representado no matema pela punção, o
75
sujeito buscará a sensação de completude. O que é interessante notar é que completude não é
prazer e o que o sujeito obtém dessa relação fantasmática é da ordem do gozo, mas um gozo
permeado pelo significante, não mais o gozo mítico do ser, anterior à castração.
Assim, podemos discernir um tipo de gozo anterior ao Édipo, à entrada desse elemento
de mediação que imprime um corte na unidade entre a criança e a mãe (que podemos chamar
de pai ou função paterna) – gozo do ser, gozo do Outro – e um outro tipo de gozo, esse gozo
da relação do sujeito com o objeto a, que se instaura a partir do corte e, portanto, vem
substituir a completude mítica entre a criança e sua mãe e que podemos chamar de gozo
fálico. Nessa passagem, o desejo funciona como defesa contra o gozo do Outro, que então
passará pelo significante e será gozo fálico.
É nesse contexto – do gozo permeado pela Lei – que o objeto a se apresenta como
mais-de-gozar, indicando o gozo que falta – e, portanto, a falta-a-ser. Daí ser causa de desejo.
Do mesmo modo que a mais-valia, conceito de Karl Marx no qual Lacan se inspira para
formular o mais-de-gozar (LACAN, 2008b), faz com que o trabalhador volte no dia seguinte
para trabalhar mais – porque grande parte do gozo gerado por seu produto lhe é subtraído pelo
contrato de trabalho, restando-lhe apenas o salário; o objeto causa o desejo pela falta a qual
remete. É a perda de gozo que relança o sujeito na busca pelo gozo perdido e inalcançável,
movimento incessante da pulsão. Esse mais-de-gozar a ser buscado, portanto, escapa à lógica
fálica.
Ao mesmo tempo, temos aqui o fundamento da compulsão à repetição freudiana,
causada pelo gozo interditado que escapa pelas brechas e tem na compulsão à repetição seu
auge. Na metáfora lacaniana do Seminário XI, sobre a perda do ser, na operação da alienação,
na qual o ladrão ameaça dizendo „a bolsa ou a vida‟ (LACAN, 1985, p. 201), Braustein
sublinha que “nunca se termina de perdoar o ladrão”, é isso que mostra a compulsão à
repetição; desde a instauração da linguagem, da alienação do sujeito na linguagem e da
renúncia ao gozo, o gozo perdido tenta se infiltrar: o sujeito não se conforma totalmente a essa
renúncia ao gozo que foi forçado a fazer para entrar na linguagem.
O gozo na concepção lacaniana por muitos anos, desde o Seminário VII, dizia respeito
ao usufruto – e aqui ainda podemos falar do conceito inicialmente guardando certa
proximidade com a ideia de prazer extremado; tratava-se de “gozar de”, usufruir de algo de
que se tem a posse. Lembremos que, se tenho a posse de algo, outro foi privado da mesma, ou
seja, o gozo implica por um lado uma apropriação (do objeto de gozo) e, por outro lado, uma
expropriação (daquele que tinha ou poderia ter a posse desse objeto). Do mesmo modo, esse
76
gozo implica o corpo, corpo esse que permite que se goze do objeto em questão. Essa
concepção de gozo que encontramos nos inícios de Lacan tem origem no discurso jurídico e
encontra seu fundamento em Hegel. Nas palavras de Braunstein,
Temos de admitir que a jouissance chega a Lacan por um caminho inesperado que é
o do direito: Lacan se nutre com a filosofia do direito de Hegel, na qual aparece o
Genuss, o gozo, como algo que é “subjetivo”, “particular”, impossível de
compartilhar, inacessível ao entendimento e oposto ao desejo que resulta de um
reconhecimento recíproco de duas consciências e que é “objetivo”, “universal”,
sujeito à legislação. (BRAUSTEIN, 2007, p. 16-17).
objetos imaginários, que são da ordem do significante e que podem ser alçados à dignidade da
Coisa, parece necessário tomar o gozo fálico como presente na sublimação, na medida em que
estamos nos referindo a uma operação que diz respeito nesse ponto ao significante. Assim,
caberia a pergunta: ainda que o gozo fálico estivesse presente De alguma forma na
sublimação, de que modo se daria essa presença? Ela se restringiria a esse tipo de gozo?
Valas afirma que na sublimação se trata “no essencial” do gozo fálico (VALAS, 2001,
p. 65), mas, apontamos, com essa afirmação, não exclui a possibilidade de que haja outro tipo
de gozo em jogo.
Torezan (2012) afirma que a sublimação pertenceria à ordem do gozo suplementar ou
gozo feminino: “A teoria lacaniana estabelece uma classificação do campo dos gozos, no qual
localiza a sublimação na ordem do gozo suplementar, aquele que transcende o gozo fálico”
(TOREZAN, 2012, p. 75). Pouco à frente, essa autora afirma que “o erótico se mantém na
obra e não mais no corpo. [...] Em uma palavra, a sublimação não se encontra no circuito das
substituições fálicas e neste fato reside o desvio de algo e a ideia da dessexualização.” (op. cit,
p. 76). Assim, situa a sublimação em relação ao gozo feminino, por um lado e, por outro,
aponta sua distância do referencial fálico.
Tal afirmação é tradução de uma tentativa de definir o gozo produzido pela
sublimação, o que é de fato um ponto a discutir. O que torna delicada a afirmação de que a
sublimação seria da ordem do gozo feminino, é o fato de que o assim chamado gozo
feminino, gozo fora do significante19, foi formulado por Lacan como sabemos muitos anos
depois de sua primeira definição de sublimação como elevação do objeto à dignidade da
Coisa, e depois também do momento em que retoma a sublimação naquilo que propomos
chamar segundo momento da teoria da sublimação em Lacan, nos Seminários XIV e XVI. A
formulação do gozo feminino se dá principalmente no Seminário XX, Mais, ainda, bem como
em O aturdito e Televisão. Desse modo, é importante esclarecer que a dedução de que na
sublimação se trataria do gozo feminino, embora seja uma hipótese passível de ser sustentada,
é uma asserção de quem lê Lacan, já que ele mesmo nunca o disse. A última vez que se refere
à sublimação em seu ensino é no Seminário XVI.
O gozo feminino remete ao “fora de si”, o que implica de certo modo uma ausência do
sujeito. A premissa do gozo feminino é que ninguém nasce homem ou nasce mulher; essas
duas condições dependem de um para além do sexo biológico, da incidência do Outro. É isso
19
Encontramos em diferentes autores diferentes empregos da nomenclatura “gozo do Outro”. No caso de Valas
(2001), o gozo feminino é oposto ao gozo do Outro, que por sua vez é tomado como sinônimo do gozo do ser. Já
Braustein (2007) toma o gozo feminino como um tipo de gozo do Outro, levando em conta que tanto um quanto
outro são fora do significante.
78
que Lacan vai discutir no Seminário XX, coma ajuda das fórmulas da sexuação. A castração
secciona – ou, na feliz grafia de Braustein, sexiona – os corpos e, a partir de então, o sujeito se
posicionará na partilha dos sexos. O gozo feminino, portanto, não deve ser igualado ao gozo
das mulheres no sentido biológico: refere-se muito mais a uma posição.
O gozo feminino seria um gozo fora do simbólico, que não encontra com o gozo
fálico, que é o gozo masculino por excelência. Isso permitiu a Lacan enunciar que não há
relação sexual, já que não necessariamente há relação, se cada um dos parceiros no ato sexual
goza de uma maneira, de acordo com sua posição feminina ou masculina (o que, reiteramos,
não depende de ser cada um deles, homem ou mulher em termos de seu sexo biológico)20.
Segundo Valas (2001, p. 47), há autores que tomam o gozo feminino como uma variação do
gozo fálico e, nesse sentido, tratar-se-ia de um gozo pós-linguageiro, ou seja, a partir da
entrada na linguagem, mas que estaria fora da linguagem, no corpo. Nesse sentido, estaria não
totalmente tomado pelo gozo fálico, mas ainda em referência a ele.
Para pensar que na sublimação se trata de gozo fálico, é preciso partir da concepção
freudiana, na qual a sublimação seria um destino da pulsão afeito ao processo secundário, já
que implicaria desvio da meta e do objeto sexual. Nessa medida seria um destino pulsional
mais acessível à neurose e talvez inacessível ou pouco comum na psicose. Se Valas se refere à
sublimação como sendo da ordem do gozo fálico, é possível que a tome como um
acontecimento da neurose ou da perversão, o que pode ser colocado em questão, conforme
indicamos no último capítulo dessa tese. De todo modo, é possível que “em essência”, como
indica esse autor, a sublimação produza o gozo fálico – desde que partamos de uma
concepção eminentemente freudiana da sublimação. Entretanto, se, nessa concepção, produz o
gozo fálico, ainda assim é possível que a sublimação trate de outro tipo de gozo: o gozo
mortífero, ligado ao vazio de das Ding ao qual alude.
Por outro lado, ao levar em conta a contribuição lacaniana da sublimação como
elevação do objeto à dignidade da Coisa, ou seja, a esse vazio real, a sublimação não poderia
mais logicamente guardar relação com o gozo fálico. Nesse sentido, podemos considerar a
possibilidade de que na sublimação esteja implicada, sim, a produção do gozo feminino, já
que a sublimação faz essa alusão à Coisa, fora do significante.
Cruglak (2001) auxilia no esclarecimento desse ponto quando indica que
20
Voltaremos a esse tema ao discutir o segundo momento da sublimação no ensino de Lacan.
79
Para que a sublimação ocorra, ou seja, para que se produza a partir do vazio, é
necessário prescindir do significante Nome-do-Pai. Assim, parece possível afirmar que o gozo
que a sublimação pode produzir não é o gozo fálico, já que para produzir com o vazio da
Coisa – e, consequentemente, sublimar – é necessário prescindir do significante que define a
ocorrência do gozo fálico. Também é difícil pensar que nesta última estaria em jogo o gozo do
Outro21, uma vez que para sublimar o sujeito precisa necessariamente já estar na linguagem.
Cruglak aponta que o vazio da Coisa fica à disposição do sujeito após o advento Nome-do-
Pai, mesmo que para produzir com o vazio o sujeito deva prescindir daquele. Esse é um dos
motivos que nos faz pensar que a sublimação na psicose será possível – e necessária – como
direção ética, já que a sublimação localiza o vazio, circunscrevendo-o.
Assim, ainda que fosse inicialmente por exclusão (já que na sublimação não poderia se
tratar do gozo do ser nem do gozo fálico, como discutimos acima), o gozo feminino, se
apresentaria como gozo que poderia ser produzido pela sublimação, na medida em que seria
um gozo não significantizado, solidariamente a das Ding.
Consequentemente, parece possível afirmar, desde a concepção lacaniana da
sublimação como elevação do objeto à dignidade da Coisa, que a sublimação trata o gozo
remetido ao vazio da Coisa, esse gozo para além do significante, ao passo que produz o gozo
feminino, também fora do significante e fora da referência fálica.
Miller (2012) recupera a relação do significante com o gozo no caso da sublimação, tal
como discutida por Lacan no Seminário VII e o que ocorre a ambos no grafo do desejo.
21
Aqui estamos tomando o gozo do Outro como próximo do gozo do ser e não como próximo ao gozo feminino.
80
Esse autor busca uma divisão do ensino lacaniano no que propõe como seis diferentes
paradigmas do gozo. A questão da articulação ou disjunção do significante e do gozo é
presente e funciona como fio condutor da lógica que atribui ao movimento do conceito de
gozo na obra lacaniana, bem como a localização do gozo em termos dos três registros do
psiquismo: real simbólico e imaginário. Assim, na leitura do autor, gozo e significante estão
articulados em determinados momentos do ensino de Lacan e desarticulados em outros
momentos, o que trará consequências para conceitos importantes, como fantasia,
transferência, desejo – e também para a sublimação.
É nesse contexto que aponta para o que chama de “efeito de sublimação”, que localiza
no 2º dos 6 paradigmas, chamado por ele de o paradigma da “significantização do gozo”,
situado no momento da construção do grafo do desejo por Lacan. O gozo seria aqui
completamente transposto para o significante, a pulsão seria reduzida a uma cadeia
significante. É no bojo desse paradigma que Miller propõe uma incidência peculiar do
significante sobre o gozo que faz com que dele resulte o desejo significado, por um “efeito de
sublimação”.
Ou seja, se nos detivermos na parte superior do grafo, que podemos chamar “nível do
gozo” (ZIZEK, 1992), veremos que o vetor que parte do gozo passa por S(A), significante de
81
uma falta no Outro, de uma inconsistência do simbólico: é o gozo que promove inconsistência
do simbólico.
Em seguida, o vetor se dirige à ($ ◊ D) ponto de encontro entre gozo e significante.
Aqui, D refere-se às zonas erógenas, pontos em torno dos quais a pulsão circula. As zonas
erógenas dizem respeito à demanda simbólica, a demanda do Outro. O Outro primordial
erogeiniza o corpo, a partir das demandas orais, anais etc., delimitando assim as zonas
erógenas. Estas são, portanto, o que resta do gozo no corpo filtrado pelo significante a partir
dessa demanda do Outro (daí $ ◊ D ser a fórmula da pulsão).
Continuando seu percurso, o vetor chega à castração, que é correlativa a esse corte do
gozo pelo significante. A partir daí, seguindo pela linha de baixo do quadrado, passando por
d, desejo sustentado pela fantasia, encontramos a fórmula da fantasia, $ ◊ a, cuja função é
justamente ocultar essa inconsistência no Outro e que irá determinar a constituição da
significação, s(A).
É justamente porque há algo do gozo que o sujeito busca delimitar, articulando-o ao
significante de um modo específico – mas para aludir ao fora do significante – que podemos
falar em um “efeito de sublimação”, na medida em que a sublimação é a operação que permite
aludir ao vazio da Coisa e, consequentemente, a seu gozo. Não se trata de uma sublimação de
fato, mas de uma reprodução de sua estrutura naquilo que ela permite de referência ao gozo.
Embora Lacan não tenha localizado a sublimação no grafo, podemos deduzir desde as
indicações de Miller que sua presença se daria no nível do gozo, em um percurso até certo
ponto semelhante ao que discutimos acima. Todavia, se avançarmos nesse exercício de
elocubração, sua passagem pela fantasia implicaria uma relação peculiar com esta última, na
medida em que a sublimação seria justamente a possibilidade de tratar o gozo sem tamponar
a falta no Outro. Pois, embora a falta no Outro e o furo de das Ding não se sobreponham,
supomos solidariedade entre ambos, ainda que saibamos que há margem para debate neste
ponto (cf. sessão Sublimação e psicose).
Lembremos que o sintoma é tributário da fantasia e a fantasia é o modo de acobertar a
inconsistência do Outro. Então o sintoma, derivado da fantasia, é também uma forma –
diferente da sublimação – de lidar com o gozo, tal como indicamos no Cap. 2 desse trabalho.
O grafo do desejo foi elaborado por Lacan em um momento anterior a sua elaboração
da sublimação como elevação do objeto à dignidade da Coisa, de tal modo que o grafo, tal
como foi construído, não comportaria a sublimação. Entretanto, esse exercício de hipotetizar
qual seria o percurso da sublimação no grafo do desejo traz uma questão interessante: que
desejo seria esse, pelo qual passaria a sublimação, que não seria sustentado pela fantasia? A
82
resposta não está no grafo, mas sim na ideia de travessia da fantasia. A partir da indicação de
Zizek (1992), buscamos em Lacan a indicação dissono Seminário XI. Aqui, diz: “Como um
sujeito que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão? Isso é o mais-além da análise, e
jamais foi abordado.” (LACAN, 1985, p. 258) Voltaremos a isso mais à frente, na discussão
sobre sublimação e sinthoma, mas deixemos indicada na sublimação a proximidade do desejo
e da pulsão sem a presença da fantasia à moda neurótica ou, dito de outro modo, com uma
incidência daquela diferente da que temos no sintoma.
Ao se referir à sublimação tal como desenvolvida por Lacan nos anos de 1959 e 1960,
Miller situa-a em outro paradigma, no qual estaria em jogo um gozo impossível e, portanto,
um gozo no real. Aqui, sim, podemos falar em sublimação (e não apenas em “efeito de
sublimação”), na medida em que Lacan já coloca em jogo o impossível do gozo, em oposição
ao paradigma da significantização do gozo, no qual o gozo poderia ser totalmente
metabolizado pelo simbólico. No 3º dos paradigmas propostos por Miller, o gozo é entendido
como fora do simbólico e o real, nesse sentido, faz barreira ao simbólico.
Aqui, uma breve digressão: apesar do interesse da proposta milleriana do que nomeia
como “paradigmas do gozo”, Miller propõe um pensamento que operaria por rupturas, na
medida em que se refere a seis diferentes “paradigmas” do gozo. Nesse sentido, evocamos
Monzani, bem como Rabinovich. Embora o primeiro trabalhe com a teoria freudiana, o que
está em jogo ali é a mesma discussão no que tange à evolução do pensamento de um teórico
do quilate de Freud. Monzani sustenta uma continuidade, em oposição à ideia de que o
pensamento freudiano sofreria rupturas, por exemplo, na passagem da primeira para a
segunda tópica – como se a segunda significasse uma ruptura e um abandono da primeira.
Analogamente, Rabinovich lembra, ao abordar o Seminário XXIII, tido por muitos
como “revolução” ou “progresso” do ensino lacaniano, que o próprio Lacan era um descrente
das revoluções (RABINOVICH, 2005, p. 139-140). É o que fica claro também na leitura
empreendida por Lacan do texto freudiano:
Lacan discute aqui o estatuto da repetição na obra freudiana, situando sua presença nos
Três ensaios, indicando já aí o objeto perdido, que está presente no cerne da repetição tal
como surge em Além do princípio de prazer, escrito quinze anos depois dos Três ensaios.
83
SEGUNDA PARTE:
PRIMEIRO MOMENTO DA SUBLIMAÇÃO (1938 A 1960)
85
22
Ainda que possamos remontar a origem da sublimação ao sublime, como encontramos em vários trabalhos,
como o de Rocha (2010).
86
entre a sublimação e a produção de bens comercializáveis, que até então poderiam ser
confundidos, dada a leitura dominante entre os pós-freudianos que rezava a sublimação como
destino da pulsão mais afeito à realidade.
A partir dessa definição lacaniana, a sublimação passa a ter um campo mais definido:
qualquer produção, para que se possa falar em sublimação, precisa estar ligada a um
tangenciamento do objeto ausente – a Coisa. Não basta que uma produção tenha beleza –
aliás, não é disso que se trata, embora Lacan atribua um papel ao belo na sublimação, como
veremos adiante. Também não basta que o objeto seja “socialmente reconhecido” no sentido
da valorização comercial, pois, como já comentamos, não é disso que se trata. O objeto
sublimatório é aquele que remete à Coisa, independente de sua beleza ou popularidade –
portanto, independente de seu apelo ao belo ou ao bem – e a partir daí cria a valorização
social. Esse é um esclarecimento de Lacan, que por sua vez entende que Freud não foi às
últimas consequências desse conceito – o que supomos que poderia ter feito ou começado a
fazer no suposto artigo perdido sobre a sublimação.
Tal como já comentamos, a concepção da sublimação como elevação do objeto à
dignidade da Coisa se opõe frontalmente ao que Lacan identifica em certos autores na
tradição psicanalítica pós-freudiana de então, como Hartmann e Loewenstein (LACAN, 1995,
p. 442), que entenderiam na sublimação uma “desinstintualização do instinto” ou
“deslibidinização da libido” o que, evidentemente, não se sustenta, na medida em que a
sublimação traga satisfação da pulsão. Oposição que Lacan constrói paulatinamente e que terá
seu auge nos anos de 1959-1960, no seminário sobre a ética da psicanálise.
Antes do Seminário VII, proferido nos anos 1959 e 1960, Lacan abordou o tema da
sublimação de forma incidental em vários momentos de seu ensino, dos quais retomaremos
aqueles nos quais se trata de algo além de simples referência e que prepara o terreno para o
modo como trabalhará o conceito posteriormente.
Já em 1938, Lacan se refere à sublimação, ao falar do complexo do desmame
(LACAN, 1938/2002); a imago da mãe seria de difícil, mas necessária sublimação para que
novas relações e novos complexos se introduzissem. Caso não ocorresse a sublimação, a
imago tornar-se-ia fator de morte. A sublimação aqui aparece como o que possibilitaria uma
87
Mesmo raciocínio presente em O estádio do espelho como formador do eu, fica claro
que a prematuração humana é o que dá ensejo para especificidades do funcionamento
psíquico no homem, mas isso não significa que se deva igualar o psíquico ao orgânico, ao
biológico. O mal-estar do desmame, a morte a que Lacan se refere carregam uma sucessão de
“nostalgias da humanidade”, que incluem a busca pelo paraíso perdido anterior ao
nascimento. Acaso já não podemos identificar aqui, nessas nostalgias supostas, passos do
caminho que trilhará Lacan algumas décadas depois e que conduzirá a das Ding?
Ainda nesse texto, a sublimação surge em outros pontos, quando Lacan aborda o
complexo de Édipo. Desde esse momento inicial, a leitura de Lacan da sublimação já
evidencia sua proposta de que na sublimação não se trata de exclusão do que é da ordem do
sexual, o que deixará ainda mais claro no Seminário VII. Ao mesmo tempo, já caracteriza a
sublimação como promotora de criação, colocando aí sua ênfase em detrimento da satisfação
do desejo: “[...] é essa luz do espanto que transfigura um objeto dissolvendo suas
equivalências no sujeito e o propõe não mais como meio para a satisfação do desejo, mas
como pólo para as criações da paixão” (op. cit, p. 53). Ou seja, Lacan parece destacar o
interesse da sublimação naquilo que ela pode promover como criação mais do que como saída
desviada para a satisfação. A satisfação da pulsão estaria na própria criação e não no desvio.
Por outro lado, se não há objeto de satisfação natural, adequado para a pulsão e se a satisfação
é sempre parcial, o desvio está sempre presente naquilo que é da ordem da pulsão, quando não
há a fixação da neurose. Nas palavras de Torezan:
23
Como veremos adiante, Lacan trata de mostrar que não é o caráter sexual do objeto que o afasta da
possibilidade sublimatória.
88
Mas talvez um dos comentários mais interessantes desses momentos inaugurais das
discussões lacanianas da psicanálise freudiana no que tange à sublimação seja a proposição de
que a neurose estaria ligada a certa carência da “personalidade do pai” cuja consequência
seria, além de exaurir o instinto, um prejuízo da dialética da sublimação (LACAN, 1938/2002,
p. 61). Ora, se a personalidade do pai – ausente, humilhada, dividida – se refere à sua
intervenção como pai simbólico, o prejuízo da dialética da sublimação não estaria então
ligado à ausência de ato paterno? Parece inevitável pensar então que a instauração – ou
reinstauração – dessa dialética da sublimação estaria ligada a um ato, que por sua vez
cumpriria função ali onde o pai do Édipo deixou uma hiância. Destacamos essa função que a
sublimação poderia cumprir, para retomá-la, já com a contribuição de outras abordagens de
Lacan ao tema da sublimação, adiante, ligada ao sinthoma.
Quinze anos depois, no Seminário I (LACAN, 1986), encontramos uma diferenciação
entre idealização e sublimação, na esteira da diferenciação que faz Freud em Sobre o
narcisismo: uma introdução, texto de 1914 (FREUD, 1914/1990, p. 111). Aqui, Freud
esclarece que a idealização diz respeito ao objeto, enquanto a sublimação tem relação com a
pulsão. Já Lacan dirá que a primeira pertenceria ao registro do imaginário, enquanto que a
segunda estaria remetida ao registro do simbólico. Afirmação que traz no mínimo a
necessidade de um complemento, que virá adiante; Lacan irá complexificar seu ponto de vista
com relação ao estatuto da sublimação – e, mais do que isso, subvertê-lo. Que na sublimação
haja um apelo ao o simbólico, não há dúvida, uma vez que está em jogo o laço social.
Entretanto, o que veremos a partir de 1959/60, é que a sublimação apela também ao
imaginário para se realizar, dado que se utiliza dos objetos imaginários para aludir ao vazio da
Coisa – e aqui encontramos a presença do real na sublimação, na medida em que se a defina
pelo tangenciamento do real através da alusão à. Assim, a partir de 1959/60, a sublimação
poderá ser caracterizada a partir dos três registros: real, simbólico e imaginário.
No ano seguinte, no Seminário II (LACAN, 1985), ainda na trilha do próprio Freud, a
partir de Além do princípio de prazer, Lacan faz uma retomada do estatuto da sublimação,
dizendo que não se trata, com a sublimação, de uma “tendência transcendente”, de uma
“tendência em direção a formas superiores”. Novamente encontramos um comentário que
alude à confusão possível entre sublimação e ideal, na medida em que a sublimação seja
colocada no lugar do ideal. Freud já discutira as diferenças entre ambas (FREUD, 1914/1990,
89
p. 111-112), tal como aludimos acima. Embora o ideal talvez pudesse estimular a sublimação,
nos diz Freud, ambos são independentes e, aliás, ele nos diz, as maiores distâncias entre
capacidade de sublimar e ideal são encontradas justamente entre os neuróticos. Conclui então
que o aumento de exigência ao eu promovido pelo ideal de eu promoveria mais recalque, na
direção inversa a da sublimação.
Tanto em Freud quanto em Lacan, encontramos um posicionamento contrário ao juízo
de valor, à ideia de que há um “melhor” e um “pior” no que tange ao psiquismo humano – e,
portanto, uma discussão ela mesma afastada do ideal. Ao mesmo tempo, fica claro como
Lacan evoca a proposição freudiana, presente principalmente a partir do segundo dualismo
pulsional, de que na sublimação se trata do movimento pulsional em busca de satisfação, é
isso que está em jogo e não uma suposta tendência à perfeição, à transcendência.
Encontramos no Seminário III (2002b) sobre as psicoses uma interessante articulação
entre sublimação e psicose, que merece menção:
Dizem-nos formalmente que o eu, não sendo mais bastante forte para encontrar
pontos de ligação no meio exterior a fim exercer sua defesa contra a pulsão que está
no isso, encontra um outro recurso, que é o de fomentar esta neoprodução que é
alucinação, e que é uma outra maneira de agir, de transformar seus instintos duais.
Sublimação à sua maneira, mas que tem grandes inconvenientes. (LACAN, 2002b,
p. 125/FR p. 121 grifos nossos).
Lacan empreende uma crítica à visão que privilegia o eu como instância defensiva,
cuja função seria defender-se de uma tentação e, por essa via, produziria a alucinação. É nesse
sentido que podemos entender a alusão que faz aqui à sublimação. Aqueles que privilegiam
uma psicanálise centrada no funcionamento do eu, notadamente os adeptos da psicologia do
eu, entenderiam a sublimação na psicose – caso considerassem-na possível – como uma
defesa do eu que transformaria as pulsões produzindo a alucinação, de vez que não haveria a
possibilidade de transformar as pulsões de outro modo (como o neurótico faria, sublimando
em produções culturais, socialmente valorizadas).
Estamos em 1955-1956 e o que encontramos aqui é uma definição ao avesso, a partir
da crítica que empreende: o que, para Lacan não é a psicose: uma relação imaginária,
fantasmática, como o mundo exterior (LACAN, 2002 p. 125). Resta não respondida a
pergunta sobre o que é, como poderíamos pensar a sublimação na psicose, questão que Lacan
não responde e que seria preciso buscar em seu texto.
Nesse momento, Lacan ainda não formulara sua definição da sublimação como
elevação do objeto à dignidade da Coisa. Mas, à luz dessa concepção de 1959-1960 podemos
90
supor que não se trataria, para que pudéssemos falar em sublimação na psicose, de uma
transformação qualquer da pulsão: é na medida em que a alucinação ou mesmo o delírio
permitiriam um certo tratamento do objeto pela via delirante, sua elevação à dignidade da
Coisa, que poderíamos falar em sublimação. Podemos pensar que esse tratamento do objeto
não está presente em toda alucinação ou em todo delírio, mas apenas naqueles que
cumpririam função de delimitação de gozo – do gozo da Coisa (Cf. Cap. 9, item Sublimação e
psicose).
A crítica à noção de reconhecimento social adotada pelos pós-freudianos, na linha da
produção de objetos comercializáveis, já começa a aparecer quando Lacan responde ao pintor
André Masson, explicando como a psicanálise não tenta explicar e definir o valor da arte, mas
sim que “Trata-se para nós da criação como Freud a designa, quer dizer, como sublimação, e
do valor que ela ganha num campo social” (LACAN, 1995, p. 108). Com relação ao sucesso
de uma obra, Freud diz que se uma criação do desejo tem sucesso comercial, é porque há nela
algo que a sociedade pode aproveitar. Isso seria reconfortante, pois significaria que alguns
podem viver da exploração de seu desejo. “Mas para que aquilo as satisfaça tanto, é mesmo
preciso que ali haja também esta outra incidência, que seu desejo, o deles, de contemplar,
encontre naquilo alguma pacificação. Isso lhes eleva a alma, como se diz, quer dizer, os
incita, a eles, à renúncia.” (op. cit, p. 108).
Embora Lacan vá mais tarde subverter o ponto de vista freudiano com relação ao que
seria o estatuto de “reconhecimento social” do produto da sublimação, aqui encontramos que
o sucesso comercial estaria ligado à pacificação de um desejo ligada à renúncia, pacificação
causada em outros, nos espectadores da obra de arte. Embora não diga explicitamente, um
certo incômodo paira no comentário de Lacan, talvez já apontando a direção de discordância
com uma leitura da sublimação que enfatiza a necessidade de que o valor do produto da
sublimação seja reconhecido no sentido comercial. Ou seja, que “se encaixe” naquilo que
pode ser reconhecido socialmente, visão com a qual talvez o próprio Freud tenha flertado.
A sublimação também comparece em uma breve discussão empreendida por Lacan
sobre Leonardo da Vinci. A partir de sua “escrita em espelho”, ao final desse mesmo
Seminário IV, Lacan interroga/discute as relações imaginárias (eu – outro). Essa “escrita em
espelho” é o que encontramos nos diários de da Vinci, quando se refere a si mesmo na 2ª
pessoa do singular. Assim, dirá que correlativamente à sublimação, se produz uma inversão
das relações imaginárias. Tal inversão pode funcionar a tal ponto que o ser esqueça-se do seu
próprio eu como objeto imaginário do outro.
91
Antes de qualquer coisa, atente-se para a aproximação que empreende Lacan entre a
sublimação e a dessubjetivação do Outro, que seria efeito de um final de análise, no qual o
Outro perderia seu peso. Entendemos, portanto, um descentramento correlativo em relação ao
outro, que em da Vinci apareceria através de uma escrita em espelho.
Tal escrita seria signo da posição de da Vinci como outro diante de si mesmo.
Diferente talvez do que ocorreria na psicose, em que o outro se misturaria ao Outro, aqui
inverte-se a relação eu-outro. Descentramento do eu causado pelas produções do sujeito?
Ficando o narcisismo investido nessas produções, o eu de certo modo se “esvaziaria”,
confundindo-se com o outro? Parece-nos que a resposta a essas perguntas somente se
configurará de modo mais claro no Seminário XVI, na discussão que empreende Lacan acerca
do destino possível do narcisismo na perversão (Cf. Cap. 7, sessão Perversão).
Nesse momento, ainda no Seminário IV, Lacan coloca a seguinte questão:
Pois bem, o passo dado por Freud, no nível do princípio de prazer, é o de mostrar-
nos que não há Bem Supremo – que o Bem Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o
objeto do incesto, é um bem interditado e que não há outro bem. Tal é o
fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da lei moral. (LACAN, 1997, p. 90/FR
p. 85).
93
Na medida em que concebe das Ding, como vazio, Lacan entende que não se trata da
mãe, mas da experiência de desprendimento, separação – que pode ser remetida a essa
separação mítica inicial da mãe, tornada então bem inatingível, traduzida por das Ding como
o vazio que resta como cicatriz dessa separação e ao mesmo tempo fundação do que virá a ser
o sujeito. Aqui estaria o Bem Supremo, nesse oco que funda o sujeito.
Mas qual é o estatuto da moral para Lacan, se ela será entendida como separada da
ética?24
A ética e a moral referem-se aos usos e costumes, mas há diferentes modos de pensá-
las ao longo do tempo e para diferentes autores. Não cabe aqui uma discussão profunda sobre
o tema, mas entendemos a importância de situar brevemente os autores aos quais Lacan se
refere em sua discussão sobre o que vai considerar como a ética da psicanálise.
As ideias de ética e de moral remontam à antiguidade: para Aristóteles, ambas seriam
sinônimos, na medida em que para ele não há distinção entre público e privado. Para este
pensador, vige a ética da virtude: deve-se fazer o que é virtuoso. A moral é composta pelo
conjunto de regras que são aceitas socialmente e que apontam para a virtude. Uma vez tendo
como referência a ética da virtude, as soluções dadas a determinados problemas são
particulares, ou seja, não seguem regras universais. Ao contrário, sua ética é uma ética
particularista (que é diferente de relativista; não se trata de mudar a ética para cada situação,
mas de buscar a maneira mais adequada em cada caso de atingi-la). Pensemos no exemplo de
um homem que cometa um assassinato. Esse é um ato aceitável em termos da moral? Embora
a princípio não seja, para Aristóteles, isso depende de certas circunstâncias. Sigamos em
nosso exemplo do assassinato. A princípio, trata-se de ação moralmente condenável. Se, por
exemplo, um tirano sequestra minha família e me ordena que mate alguém – um inimigo dele,
do tirano, por exemplo – obedecê-lo seria moralmente condenável. No entanto, se esse mesmo
tirano sequestra minha família e ameaça matá-la caso eu não mate seu inimigo, o assassinato
24
Os parágrafos seguintes foram escritos a partir dos esclarecimentos fornecidos pela Professora Marisa Lopes,
professora de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) sobre a ética e a moral em Aristóteles e
Kant.
94
que eu venha a cometer a contragosto nessa situação pode se tornar uma ação moral: mato
para salvar minha família.
Em uma tradição moderna, Kant, no século XVIII, formula o procedimento do
imperativo categórico, que visa por à prova as ações do homem. Para tanto, deve universalizar
uma regra que já existe. Para este autor, uma ação só é moral na medida em que atenda a
condição de ser passível de universalização (em oposição ao pensamento particularista de
Aristóteles): antes de executar uma ação, devo me interrogar se a atitude que tomarei seria
também correta caso se voltasse para mim e em qualquer outra situação. Dito de outro modo,
não farei a outro aquilo que não seria correto que fizessem a qualquer um e também a mim.
Trata-se de uma regra que aponta para a universalização, na medida em que o bem é comum a
todos. Este é o Bem Supremo, ao qual se refere Lacan, partindo de Kant: o que é bom para um
homem, deve ser bom para todos. Não está em jogo aqui a singularidade de cada homem, pelo
contrário; qualquer ser racional deve aceitar a regra da universalização. No exemplo acima, o
assassinato seria moralmente condenável mesmo que eu o fizesse para defender a vida da
minha família. Ou seja, para que o imperativo categórico tenha validade, não pode haver
exceções. De forma resumida, para Kant, a moral diz respeito a valores da esfera pública,
enquanto a ética se aplica à esfera privada. Elas podem coincidir ou não.
Seja como for, a ética proposta por Lacan diverge em um ponto pelo menos de toda a
tradição filosófica: no centro da ética da psicanálise encontra-se algo de eminentemente não-
ético – ou para além da ética ou indiferente a ela: das Ding. Nesse sentido, a psicanálise
reconhece no centro de sua ética a barbárie do real. Das Ding seria então a face ética da
pulsão de morte e apontaria, nesse sentido, para uma ética da vontade de recomeçar. Esta
vontade de recomeço, por sua vez, remete ao próprio desejo, em seu aspecto de deslizamento
metonímico.
A discussão empreendida por Lacan não deixa dúvida quanto a sua crítica à proposta
de colocar a ética da psicanálise do lado da moral, tentativa empreendida pelos leitores anglo-
saxões de Freud. Lacan indica o que considera os três ideais propostos, explicita ou
implicitamente por essa leitura da psicanálise e que seriam: o ideal do amor humano, o ideal
da autenticidade e por último o ideal da não dependência – os quais Lacan destitui,
evidenciado o que os sustenta. A argumentação de Lacan demonstra a vizinhança desses
ideais com os ideais morais, na acepção kantiana dos hábitos e costumes – e, portanto, com
uma universalidade incompatível com a psicanálise, cujo programa se baseia na
singularização do sujeito desde uma ética do desejo. Esta, em certo sentido, só pode ser
singular, dada a singularidade do desejo do sujeito, ainda que a ética do desejo valha como
universal dentro da psicanálise como indicador da direção do tratamento. Para a psicanálise,
segundo sua visão, o imperativo moral, substrato dos ideais, estaria do lado do masoquismo
moral. Lacan situará a ética da psicanálise do lado do desejo:
Esse Wunsch, nós o encontramos, em seu caráter particular irredutível, como uma
modificação que não supõe outra normatividade senão a de uma experiência de
prazer ou de penar, mas uma experiência derradeira de onde ele jorra, e a partir da
qual ele se conserva na profundeza do sujeito sob uma forma irredutível. O Wunsch
não tem o caráter de uma lei universal, mas, pelo contrário, da lei mais particular –
mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres
humanos. (LACAN, 1997, p. 35/FR p. 33).
25
Regnault (2001) esclarece que “A psicanálise, por sua dialética do caso clínico, é então o campo no qual o
singular e o universal coincidem sem passar pelo particular” (p. 10).
96
É possível dizer que a articulação da ética ao desejo está apontada desde Freud. Lacan
relembra a importância da dimensão do conflito psíquico para Freud (LACAN, 1997, p. 49) e
propõe que o conflito é já no início conflito moral. De fato, a teoria do conflito psíquico
freudiana implica desde o começo uma contraposição entre um desejo – de cunho sexual – e o
eu, inicialmente concebido como idêntico à consciência, instância moral, sede da imagem de
si e dos valores do indivíduo26. A saída neurótica do conflito seria o recalque do conteúdo
representativo do desejo de cunho sexual, enquanto que a parcela afetiva de tal ideia daria
origem ao sintoma. Na histeria conversiva, o afeto inervaria uma parte do corpo, ligado de
algum modo – mais especificamente de um modo metafórico, podemos dizer desde Lacan – à
ideia recalcada.
É o que acontece com Elizabeth von R., uma das histéricas discutidas por Freud que,
apaixonada por seu cunhado, chega a desejar a morte da irmã para desposá-lo, ideia que lhe
ocorre enquanto passeia na companhia do cunhado em torno do lago na clínica em que sua
irmã estava acamada, muito doente (ela de fato falece pouco tempo depois). O desejo de
morte da irmã bem como a ideia de desposar seu cunhado, ambas ideias incompatíveis com o
eu, com os valores morais e imagem de si de Elizabeth, caem sob o recalque. Todavia, algum
tempo depois, Elizabeth desenvolve uma hemiparesia em uma das pernas, acompanhada de
dor. Esse sintoma trás a contribuição, por um lado, do conteúdo recalcado, o desejo de morte
com relação à irmã, e, por outro, marcas da instância recalcante, na medida em que as há uma
paralisia na perna que a impede de caminhar (resultante da censura exercida pelo eu). Além
disso, o sintoma nas pernas faz uma referência metafórica à expressão “dar um mau passo”,
de conotação sexual. Assim, o sintoma corporal – dor e paralisia nas pernas –, resultado de
uma inervação somática originada no afeto que se desprendeu da representação que foi
recalcada, é ele mesmo uma metáfora. O sintoma corporal de Elizabeth a impede de dar um
mau passo, ao mesmo tempo em que faz referência a esse desejo. Eis aqui a expressão do
conflito moral.
De modo similar, mas não idêntico, na neurose obsessiva, podemos encontrar
pensamentos irrelevantes e rituais ligados na cadeia significante (mesmo que de forma
26
Freud sempre se referiu ao indivíduo, enquanto Lacan fala do sujeito. É curiosa a escolha freudiana pelo termo
indivíduo, já que ele indica justamente a ausência de divisão. Entretanto, optamos por manter o termo utilizado
por Freud aqui, uma vez que ele se refere à consciência e não ao sujeito do inconsciente.
97
distante) à ideia recalcada. Estes ficariam hiperinvestidos pelo afeto que se “desprendeu” da
representação recalcada ou isolada. É o que vemos acontecer, por exemplo, com um obsessivo
que confere inúmeras vezes antes de sair de casa se o gás está fechado. Em análise, ficamos
sabendo de seus conflitos com relação à esposa e à sogra que reside com o casal e seu desejo
de separar-se da esposa, ideia incompatível com seus valores morais relativos ao casamento.
Ao invés de se deter nesse ponto, o obsessivo cria um ritual aparentemente sem sentido, mas
que alude à possibilidade de que a mulher e sogra morressem asfixiadas com o gás que
eventualmente escaparia caso o registro de gás não estivesse bem fechado, o que resolveria
seu conflito sem que ele tivesse que contrariar seus ideais.
Na fobia, o objeto fóbico é que seria superinvestido com o afeto que ficou livre a partir
do recalque, tal como ocorre com o Pequeno Hans em sua fobia de cavalos. O cavalo, entre
outras coisas, funciona como uma representação deslocada do pai de Hans, por quem nutria,
além do amor declarado, um ódio ligado a questões edípicas27. É claro que os três exemplos
acima são um tanto resumidos, mas servem para ilustrar o que dá origem ao conflito psíquico
e que destino tem o conflito em cada um dos três tipos clínicos da neurose.
Se para Freud a psicanálise se propunha a minimizar o recalque e seus efeitos, isso só
seria possível uma vez que se evidenciasse o desejo do sujeito, desejo esse que foi recalcado
por ser incompatível com o que era julgado aceitável pelo eu. Assim, desde a primeira tópica
freudiana, a ética da psicanálise, na acepção de ética do desejo, comparece marcando a
direção da análise e se opondo a moral, aqui tomada como causa do conflito que termina por
levar ao recalque, porque incompatível com o desejo de ordem sexual, no sentido amplo que
esse termo pode adquirir para a psicanálise.
Ainda que Freud não tenha explicitado uma ética da psicanálise, tal como fez Lacan,
suas bases podem ser encontradas pelo menos em dois pontos: em 1910, quando, nas Cinco
lições de psicanálise, propõe três saídas possíveis do conflito psíquico diferentes do recalque.
Ele indica que é possível exercer um juízo de condenação com relação ao desejo sexual, ou
seja, trazendo para a consciência o desejo condenável, o sujeito poderia recusá-la de modo
consciente ao invés de recalcá-lo. Também seria possível, uma vez tendo consciência de qual
era o conflito que levou ao recalque, aceitar o desejo sexual, o que implicaria uma
modificação da instância recalcante e, por último, Freud propõe a sublimação do desejo
sexual como outra saída possível do sintoma, de modo que o alvo da pulsão passaria a não ser
27
Lacan discutiu o caso de Hans em seu seminário sobre a relação de objeto e esclarece que essa é apenas um a
das funções do cavalo na fobia do menino. Como se trata apenas de um exemplo para ilustrar outro ponto, não
entraremos nessa discussão.
98
mais de ordem sexual. O que nos interessa nessas três saídas é que em todas elas o desejo
sexual deve ser levado em consideração, independente do destino que lhe será dado. Também
em Linhas de progresso na terapia psicanalítica, texto publicado quase dez anos depois das
Cinco lições, encontramos a confirmação desse ponto de vista:
É possível dizer, então, que Lacan recupera a diretriz freudiana de explicitação do que
é da ordem do desejo inconsciente para propor a ética da psicanálise como ética do desejo,
ainda que empreenda uma discussão inédita a partir das indicações do texto freudiano.
Desde o início, para Lacan, a sublimação é introduzida aqui como ponto problemático
ligado à ética da psicanálise. Problemático, segundo Coutinho Jorge (2005, p. 154), não
apenas pela inexistência do artigo metapsicológico freudiano sobre a sublimação, como já
comentamos, mas também por ser um conceito fundamental que revela a radicalidade do
impossível da satisfação da pulsão, em sua referência ao objeto mítico de satisfação que foi
perdido. Conceito importante, imprescindível até, mas cujo texto fundamental estaria,
ironicamente, também ele, tal como a Coisa, mítico e para sempre perdido.
Lacan esclarece que, a primeira vista, a ordem da ética da psicanálise poderia ser
tomada num mal-entendido como a busca de uma moral natural, de um equilíbrio normativo
com o mundo, ao qual a maturação dos instintos levaria naturalmente. Nesse sentido, alude à
relação genital, tal como colocada por uma psicanálise de leitura inglesa. Em suma, haveria aí
uma referência a um equilíbrio que apontaria para essa relação genital, mas, como pondera
Lacan com Freud, deixando de fora um aspecto nada irrelevante. Trata-se do fato de que a
consciência moral nunca é aplacada, mostrando-se mais cruel quanto mais é satisfeita em suas
exigências. Lacan identifica aqui o paradoxo da consciência moral, no qual se manifestaria o
ódio de si: quanto mais alguém segue a diretriz moral, tanto mais deve punir-se. Ora, o que
evidencia esse paradoxo é a existência da Trieb em detrimento de uma suposta bondade
humana, suposta adequação ao objeto e ao mundo; como frisa Lacan, não se trata de Instinkt,
não é ao instinto que se refere Freud, mas à pulsão, com sua característica de deriva. A Trieb
busca satisfação, que não é necessariamente prazer. Daí poder se satisfazer
masoquisticamente pela via da consciência moral – o que em nada tem a ver com “bondade
humana” nem com uma moral natural.
99
A sublimação é distinta do belo, mas cabe interrogar a relação entre ambos. Podemos
dizer que o belo é a máscara da sublimação, um anteparo que recobre a Coisa ao mesmo
tempo em que, por recobri-la, dela se aproxima. É apenas assim que é possível pensar o belo
como acedendo à sublimação. Ou seja, não é a beleza que indica a sublimação, mas a
proximidade da beleza com a Coisa, de forma a velá-la.
Juntamente com a dor, como comentado na sessão acima, tanto o belo quanto o bem se
apresentam como barreiras ao acesso à das Ding como núcleo inacessível do desejo; o bem e,
para além dele, o belo – e aqui parece interessante pensar que dizer das Ding como desejo é
diferente de dizer que das Ding é o desejo. Que haja um aspecto, uma incidência do desejo
que aponte para a Coisa é diferente de igualá-los. Assim, diremos que o bem e o belo
franqueiam gozo, mas não o gozo do encontro direto com a Coisa, que permanece velado,
inacessível. Talvez tenhamos que nos remeter a discussão empreendida no capítulo anterior,
na sessão Que gozo na sublimação?, lembrando da possibilidade ali aventada de que a
sublimação trate o gozo da Coisa, mas produza um outro tipo de gozo.
E o bem, de que modo barra o acesso à das Ding? Aliás, do que se trata no bem?
Lacan diferencia seu valor de uso e sua utilização de gozo. Uma coisa é o uso do bem de
forma a responder a uma dita necessidade; outra coisa é o potencial de satisfação que esse
100
mesmo bem guarda. Tanto uma quanto outra colocam em jogo o poder, na medida em que
poder dispor dos bens é furtar a outro o acesso a esses mesmos bens. Assim, o real dos bens é
disputado pela via da rivalidade imaginária. O privar o outro do bem tamponaria o real de das
Ding de que se trata. Nesse sentido, o bem é um dos avatares imaginários da Coisa.
Lacan situa o belo para além do princípio do bem e aponta a relação do primeiro com
o desejo, relação ambígua na medida em que o belo evidencia o desejo justamente por
recobri-lo, escondê-lo, nesse sentido também apontado para o imaginário. “A manifestação do
belo intimida, proíbe o desejo” (op. cit., p. 290), desejo que aqui Lacan situa no ponto da
pulsão de morte. Assim, é quando surge o desejo em sua vertente destrutiva que o belo é
chamado a comparecer, escamoteando o desejo – desejo como das Ding.
Mas, se o bem e o belo nos interessam aqui, é na medida em que se relacionam com o
desejo. Pois se a ética da psicanálise é a ética do desejo, se é o desejo que oferece o norte a
essa ética, é necessário precisar de que modo isso ocorre e através de quais vicissitudes. A
discussão empreendida por Lacan sobre Antígona de Sófocles evidencia a incidência da
pulsão de morte sobre o desejo, relevando então a radicalidade dessa ética. O para além do
limite da Até tornou-se para Antígona o bem, mas um bem singular – o que, portanto, aponta
para uma ética do desejo como singular. Mais do que isso, Lacan evidencia a condição do
herói trágico – e refere-se não só à Antígona, mas a outros também – que se encontra em uma
posição extrema, em um limite entre a vida e a morte, limite que Antígona vai ocupar na
tumba em que será confinada, já não fazendo parte do rol dos vivos, mas ainda não tendo
encontrado a morte. Aqui se revela a tragicidade do desejo, que pode conduzir a esse limite do
entre duas mortes, a morte ela mesma e a morte simbólica.
É na condução de Antígona à cena de seu suplício que, segundo Lacan (1997), o
desejo é tornado visível – ou seja, é a consolidação de sua posição de defender o irmão morto
apenas porque ele é ele, porque ele vem da mesma matriz que ela e é, portanto, insubstituível.
Encontramos aqui mais uma vez a referência à singularidade, da mesma forma que
encontramos na ética da psicanálise como ética do desejo particular e a encontramos mais
uma vez na afirmação de Antígona em não ceder de seu intento sob pena alguma, é assim
porque é assim, o que aponta para uma redução máxima do desejo.
A cena do suplício de Antígona, a tumba onde será sepultada viva, evidencia a
radicalidade de sua escolha: sua posição é que, independente do que Polinices possa ter feito
de certo ou de errado, independente dos crimes que cometeu, não se pode deixá-lo insepulto.
Isso é o que diz “a lei não escrita”, conforme a própria Antígona (SÓFOCLES, 1990, p. 219).
101
Essa pureza, essa separação do ser de todas as características do drama histórico que
ele atravessou, é justamente esse o limite, o ex nihilo em torno do qual Antígona se
mantém. Nada mais é do que o corte que a própria presença da linguagem instaura
na vida do homem. (LACAN, 1997, p. 338/FR p. 325).
Portanto, é num para além – ou aquém – da linguagem que se encontra esse limite a
partir do qual o drama precisa ser separado da própria condição do ser falante, que como tal
carrega seu destino trágico – que precisa passar por certos rituais, como é o caso do
sepultamento. Embora se trate aí do simbólico, é o que aponta para o vazio fundante, da
ordem do real.
É digno de nota o fato de que Lacan teria dito em mais de uma ocasião que, caso
devesse redigir um de seus seminários, esse seria sem dúvida A ética da psicanálise. Essa
afirmação dá a dimensão da importância crucial da ética em relação à psicanálise para Lacan.
Ele nos remete a Aristóteles, em Ética a Nicômaco, e faz uma valiosa reflexão a partir
desse autor para avançar na discussão sobre a ética da psicanálise. “Se há uma ética da
psicanálise – a questão se coloca – é na medida em que, de alguma maneira, por menos que
seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação – ou simplesmente
pretende isso.” (LACAN, 1997, p. 374).
Ora, a ética implica um juízo sobre nossa ação. Por consequência, há a pressuposição
de uma direção que se imprime em nossa ação, seja ela qual for. Para a psicanálise, aquilo que
dá direção à ação não é o próprio desejo? É partindo desse ponto que formulamos que a ética
da psicanálise é norteada pelo desejo – é uma ética do desejo, afirmação que já foi tão
repisada que corre o risco de ser banalizada. E, nesse sentido, há que se pensar em uma
oposição entre moral e ética, de vez que a ética da psicanálise se distancia do bem comum a
todos, que seria o campo, mais estritamente falando, da moral, ligada aos bens e sua
manutenção, ligada à universalização e introduz a dimensão da singularidade do desejo.
Kant introduz um imperativo moral que, diferente de se tratar de fazer o que é possível
em determinada situação, introduz uma obrigação incondicional, independente do que é ou
não possível. Lacan situa aí o lugar do desejo (que exemplificou como o dever pode ser
substituído pelo desejo sadista) e propõe que só se possa ser culpado por ter cedido de seu
102
desejo, de modo que, em última instância, é isso que está em jogo na culpa: ter cedido de seu
desejo. Afirmação intrigante, que não deixa de causar certo estranhamento, uma vez que a
afirmação de Lacan soa como o imperativo superuóico. Safouan (op. cit, p. 119) ressalta que a
afirmação de Lacan teve um objetivo provocativo com os analistas de um lado, mas, de outro
aponta o corolário do imperativo: na neurose, é com desejos separados da vontade que
lidamos todo o tempo, daí a culpa neurótica; daí o incitamento de não ceder do desejo, ainda
que se considere a disjunção entre desejo e vontade. Lacan qualifica a ética da psicanálise
como uma “ética sem obrigação”. O que pode parecer uma contradição, mas pode ser
entendido como um esclarecimento tributário do fato de que estar avisado de seu desejo – e aí
pode haver convergência entre desejo e vontade – não significa a obrigação de realizá-lo.
Ceder de seu desejo aponta para a renúncia em saber do desejo que não se aplica. Se o
desejo desliza metonimicamente, por outro lado não se trata de um desejo redutível a outra
coisa – daí a possibilidade de dizer que “o desejo é sua interpretação” (SAFOUAN, 2006, p.
107), não há outra coisa a interpretar. Portanto, em nome do bem se negocia e abdica do
desejo, contrariamente ao que está sob a égide da ética do desejo. Lacan parte da ideia de que
o bem, se ele serve para algo, é justamente para pagar o preço de acesso ao desejo, que define
então como metonímia do ser. Desse modo, é possível entender que ceder de seu desejo se
relaciona com abrir mão desse deslizamento possível do ser.
Se o ser – ou melhor, o falasser – está no deslizamento do desejo, esse último está na
mudança em si mesma, na mudança constante de seu objeto – e é aqui que entra a sublimação,
exigindo mudança de objeto e de meta. “Comer o livro é justamente aí que sentimos de perto
o que Freud quer dizer quando fala da sublimação como de uma mudança, não de objeto, mas
de alvo. Isso não se vê imediatamente.” (LACAN, 1997, p. 385-386). Partindo do
deslizamento metonímico do desejo é que Lacan articula a ética da psicanálise à sublimação.
Se elevar o objeto à dignidade da Coisa é aproximá-lo da fronteira, do limite, do campo
impossível do desejo, fazendo-lhe borda, então a direção da ética da psicanálise aponta
também para a sublimação, como o caminho que é acessível rumo ao desejo.
Supomos que esse ponto é essencial para pensar a sublimação como transestrutural e,
portanto, pensá-la como fazendo uma função importante na psicose, regulando aí de alguma
forma a referência ao objeto. Como já anunciamos, a sublimação estaria então do lado da ética
da psicanálise e por isso indicaria uma direção do tratamento.
103
Em outros termos, ele [Freud] ilustra o tal traço de caráter, tal traço adquirido da
regulação social, como algo que longe de se estabelecer no prolongamento, na linha
reta de uma satisfação instintual, necessita da construção de um sistema de defesas,
antagônico, por exemplo, à pulsão anal. Ele faz intervir, portanto, uma oposição,
uma antinomia como fundamental à construção da sublimação de um instinto. Ele
introduz, portanto, o problema de uma contradição em sua própria formulação.
O que se propõe desse modo como construção oposta à tendência instintual não
pode absolutamente ser reduzido a uma satisfação direta, em que a própria pulsão se
saturaria de uma maneira que só teria por característica a de poder receber a
estampilha da aprovação coletiva. (LACAN, 1997, p. 120/ FR p. 113-114).
104
Desse modo, a sublimação, tal como a formação reativa, não prescindiria dessa
construção antagônica que é a defesa e não poderia se dar de uma forma direta – o que nos
leva novamente ao non sense da dessexualização da pulsão e ao caráter adaptativo da
sublimação, criticados por Lacan. Nesse sentido, para avançar na discussão sobre a
sublimação, é preciso diferenciar o que é da ordem das defesas do eu daquilo que é a
sublimação ela mesma, pois reduzi-la a uma defesa seria um achatamento da complexidade
em jogo no conceito. É aqui que a ênfase no objeto ou na tendência se apresenta como
elemento que pode nos auxiliar. Se Lacan questiona o estatuto da valorização social, o faz
também com relação ao objeto. Os questionamentos lacanianos são imprescindíveis, na
medida em que evidenciam o estatuto de satisfação em jogo na sublimação em detrimento do
caráter defensivo, que recai em uma simplificação destoante das indicações freudianas.
Lacan recoloca a questão da relação com o objeto, onde identifica que, mais uma vez,
a ênfase colocada no objeto não dá a devida importância para a tendência, em uma inversão
em relação ao que se observa com relação à vida amorosa dos pré-cristãos, tal como já
comentamos (apontada pelo próprio Freud, em uma nota de rodapé dos Três ensaios). A
referência a esta deixa claro como a ênfase no objeto não é natural, como atesta de modo mais
amiúde a discussão feita por Lacan do amor cortês, que abordaremos na próxima sessão.
O objeto é esse que surge no princípio ligado ao narcisismo, tal como indica Freud em
seu texto sobre o narcisismo, de 1914. É daí que deriva o objeto no nível do imaginário,
estruturada pela relação narcísica. Já das Ding se apresentaria de modo diverso desse objeto
(cf. nossa discussão sobre die Sache e das Ding no Cap. 2). É na linha dessa diferença entre o
objeto no nível imaginário e das Ding que se apresenta o problema da sublimação.
Sublinhamos o destaque dado por Lacan para a arte literária. Entendemos que essa
afirmação terá importância e talvez só veja algumas de suas consequências exploradas em
1975, ao discutir a escrita joyceana. Retomamos a hipótese, enunciada na introdução do
presente trabalho, que nos encaminha na direção de pensar uma articulação possível entre a
sublimação e o conceito lacaniano de sinthoma. Talvez a sublimação se refira à dimensão
ética do sinthoma? Nesse caso ainda precisaremos fundamentar de que modo isso ocorre e
efetuar uma articulação entre os dois conceitos. Adiemos qualquer debate ou conclusão nesse
sentido.
A dimensão ética se apresenta na sublimação na medida em que esta última criaria
valores que seriam, só então, socialmente reconhecidos. Criações a partir do vazio. A
subversão lacaniana da sublimação está no entendimento de que o reconhecimento social é
criado pela sublimação; não se trata então de criar algo, uma obra de arte ou qualquer outro
objeto, que se encaixe em um crivo social já estabelecido – e seja, portanto,
106
[...] para nós está em questão saber o que podemos fazer desse dano que é a Coisa
como hiância no centro de nosso desejo para transformá-lo em senhora, em nossa
senhora. Assim, a teoria da sublimação está prontinha: esta consiste em pôr o objeto
no lugar da Coisa. (SAFOUAN, 2006, p. 115).
889). Como aponta Regnault (2001), para justificar essa mudança, é necessário atentar para o
fato de que, em A ciência e a verdade, Lacan “[...] define a função de uma operação relativa à
verdade como causa, enquanto O seminário, livro 7 define uma operação relativa à Coisa”
(REGNAULT, 2001, p. 16).
Não podemos esquecer que os seminários foram proferidos por Lacan como aulas e
apenas posteriormente transcritos (e transcritos por outros), ou seja, ao ler e discutir os
seminários, estamos acompanhando o movimento de seu pensamento – coisa que em geral ele
mesmo deixa muito clara. Esse fato torna necessário não apenas o recurso a seus próprios
textos, como também certo rigor na leitura e alguma parcimônia nas conclusões, que
eventualmente possam ser endossadas pelos escritos do próprio Lacan ou então por
reafirmações feitas por ele em sucessivos momentos de seu ensino. Uma vez que seu ensino é
também uma construção, uma elaboração teórica ou teórico-clínica, ainda que os alicerces
estejam lá desde o início e com certa clareza (citemos o estruturalismo e o retorno a Freud
como exemplos mais óbvios), há formulações que são aprimoradas e modificadas ao longo de
seu ensino, outras que não são conclusivas.
É essa ideia que sustenta nossa suposição de que haja alguma solução de continuidade
entre os conceitos de sublimação e sinthoma, tal como já comentamos, afirmação que
encontra sustentação na pena de Joseph Attié (1997), Scotti (2009) e outros, como veremos no
Cap. 9.
28
Lacan retornará ao conceito de anamorfose depois, em seu seminário de 1964, Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise.
109
perspectiva. Perspectiva essa que seria utilizada na arquitetura posteriormente, mas isso não é
ainda o essencial.
A anamorfose mostra que a ilusão transcende a si mesma, na medida em que,
revelando algo da “farsa” em jogo na ilusão, destrói a si mesma, deixando claro que se trata
ali apenas de um significante e que, portanto, tem seu valor como tal. Assim, a anamorfose
evidenciaria no campo das artes plásticas a primazia da linguagem (apontando para o
significante). Mas, além disso, ela também teria a capacidade de apontar a Coisa.
Estou dizendo, portanto, que o interesse pela anamorfose é descrito como o ponto de
virada em que, dessa ilusão do espaço, o artista reverte completamente sua utilização
e se esforça para fazê-lo entrar na meta primitiva, ou seja, de fazer dela o suporte
dessa realidade enquanto escondida – uma vez que, de uma certa maneira, numa
obra de arte trata-se sempre de cingir a Coisa. (LACAN, 1997, p. 175/FR p. 169,
grifos nossos).
Assim como a anamorfose se faz suporte de das Ding, na medida em que aluda a uma
realidade escondida, Lacan recorre pela mesma razão ao amor cortês, “uma forma exemplar,
um paradigma de sublimação” (op. cit., p. 160), já adiantando que na arte há a primazia da
poesia, dada a primazia da linguagem.
Entretanto, se há primazia da poesia, e se o amor cortês servirá para mostrar a
incidência da Coisa na sublimação, Lacan retoma a questão da função da arte por aí. Imitar a
realidade? Representá-la? A questão não é nova e as artes plásticas a discutem e aludem a ela
nas próprias criações artísticas. Lacan, por seu turno, não parece preocupado em resolver essa
questão, mas sim em apontar uma incidência dessa discussão que diz respeito diretamente à
psicanálise, em sua homologia com a Coisa: “Fornecendo a imitação do objeto elas fazem
outra coisa desse objeto. Destarte, nada fazem senão fingir imitar. O objeto é instaurado numa
certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para
ausentificar” (op. cit., p. 176/FR p. 169, grifos nossos).
Talvez não haja melhor exemplo desse efeito de presentificação que também alude ao
ausente e do fingir imitar da arte do que o trecho do conhecido poema de Fernando Pessoa, do
qual transcrevemos abaixo alguns versos. Como já apontou Silva Jr. (2000), a obra de Pessoa
explora de modo exemplar a ausência, o vazio, como elementos constitutivos do sujeito:
110
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não tem.
Coisa, esse nada, esse vazio que, estando no centro do humano, não é humano na medida em
que não é da ordem do simbólico, mas sim do real.
A Dama, no amor cortês, portanto, está no lugar de inacessibilidade, apontando,
portanto uma ausência, que por sua vez remete à das Ding, essa falta real. Falta e limite
fornecidos por distâncias intransponíveis, principalmente distância social. Não era incomum
que os trovadores fossem servos e as damas, filhas dos senhores. Também era comum que
outras forças os impedisse de acessar a Dama, tornando-a inacessível.
Cabe notar que há no amor cortês um apelo narcísico, na medida em que não estão em
jogo as qualidades da dama de fato; o que está em jogo é uma idealização empreendida pelo
trovador, de forma que a Dama possa ser exaltada via sublimação. Mas aqui, Lacan observa
uma função bastante específica do narcisismo: como limite que não se pode transpor, dada a
inacessibilidade do objeto. Então, podemos dizer que o narcisismo comparece aqui como um
indicativo do que está além e que é da ordem do Nebenmensch, esse outro estranho e íntimo,
aludido pela Dama (LACAN, 1997). Veremos no próximo capítulo como a questão do
narcisismo em relação à sublimação será trabalhada de outro modo alguns anos depois por
Lacan, dessa vez em articulação com a perversão (Cf. Cap. 7, sessão Perversão).
Se o amor cortês é situado em um determinado momento histórico, sua estrutura se
presentifica em outros momentos – Lacan oferece disso o exemplo tanto ao referir-se a André
Breton, poeta do movimento surrealista, quanto à organização sentimental do homem
contemporâneo. O recurso ao amor cortês para falar da sublimação então parece dar-se pelo
fato de que ele evidencia algo da estrutura que tem no centro das Ding, de uma forma mais
clara ou didática, uma vez que a Dama era já de antemão inatingível, tal como a Coisa; essa
era a condição para que uma mulher fosse a Dama, objeto dos trovadores do amor cortês.
Por outro lado, como já vimos no capítulo anterior, o amor cortês é exemplar com
relação à valorização da tendência em detrimento do objeto; a Dama, ela mesma, é menos
importante do que aquilo que se cria a partir desse objeto que ela é para o trovador, a partir do
valor de representação da Coisa que ela adquire a partir daí. Lacan retoma o Amor cortês para
falar d‟A mulher no Seminário XVI, como veremos na sessão 7.2.
112
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão
dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser
amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são
criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem
compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas
posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus.
(FREUD, 1930/1990, p. 133).
Lacan vai buscar esse entendimento do gozo partindo da discussão que Freud
empreende justamente sobre a pulsão de morte – ou o para além do princípio de prazer – e sua
ação na sociedade, sobre os outros homens. Desse modo, fica claro que o mandamento cristão
Amarás a teu próximo como a ti mesmo é uma resistência que busca impedir o acesso ao
gozo; é esse ditame que detém o impulso de gozar do outro, tomando-o como objeto de
destruição, humilhação etc. Para Freud, a questão sobre o destino desse gozo barrado pela Lei
é respondida em parte pela presença do supereu, a partir do qual a agressividade se voltaria
contra o próprio eu.
113
29
Encontramos opinião semelhante em Fleig (2008, p. 70).
114
Por um lado, Sade propõe o gozo sem obstáculos, que Valas (2001) entende como uma
“conduta sexual não sublimada”. Ora, não podemos esquecer que Sade não se ocupou apenas
em realizar em ato aquilo que criou em seus textos, mas sim, na maior parte do tempo, em
escrevê-los. Concluindo, a dor tal como surge na obra sadeana é a descrição de uma forma de
atingir o inatingível de das Ding e, nesse sentido, o gozo sem obstáculos, gozo da Coisa. Por
outro lado, se Sade escreveu textos literários, ele alude à Coisa, no limite de desvelá-la, o que
aponta, nesse sentido, para a sublimação e não para o gozo 30.
Enquanto a sublimação tangencia a Coisa, haveria um gozo que seria o próprio
encontro com ela, gozo impossível como sabemos, de vez que, em relação à Coisa, o que está
em jogo é o impossível e não o proibido: “Quando se avança na direção desse vazio central,
dado que é, até agora, sob essa forma que se apresenta para nós o acesso ao gozo, o corpo do
próximo se despedaça” (LACAN, 1997, p. 246). Ou seja, podemos dizer que Sade aponta em
cheio para das Ding, para o que seria seu encontro impossível, produtor de despedaçamento.
Todavia, produz com seus textos literários, sublimação.
Ao evidenciar a transgressão presente na dialética do gozo, partindo de Kant e de Sade
e usando o mandamento cristão, Lacan introduz dois pontos importantes no que tange à ética
da psicanálise: primeiramente, a falta de garantias e a fronteira sutil que pode haver entre o
ético e perverso. Ponto nada desprezível, em se tratando de uma discussão sobre a ética da
psicanálise. Pode então essa ética fazer fronteira com a perversão? Em segundo lugar, e não
dissociado do ponto anterior, mas em articulação com ele, o estatuto da sublimação em
proximidade com o gozo.
Com relação ao primeiro dos dois pontos, nos parece que o desejo do analista, tal
como formulado por Lacan, é uma tentativa de bastear a ética da psicanálise, que então não se
confundiria com o imperativo do gozo. Isso pode ser verdadeiro na medida em que pensemos
o desejo do analista como uma posição diferente da posição de instrumento de gozo do Outro,
posição que o perverso assume. Ainda assim, trata-se de uma questão delicada.
No que toca à proximidade da sublimação e do gozo, temos outro ponto problemático.
Em certa acepção, encontramos oposição entre sublimação e gozo; enquanto a primeira obtém
reconhecimento social, o gozo se apresentaria como pura satisfação da pulsão, desarticulada
de qualquer laço ou reconhecimento social, pura pulsão de morte. Mas a relação do gozo com
30
O próprio Valas, retomando o final de A filosofia na alcova, alude à fala de Dolmancé, que indica a inutilidade
de tentar gozar da mãe, que de todo modo permanece sempre proibida, o que parece corroborar nosso ponto de
vista (VALAS, 2001 p. 33-34).
115
a sublimação é mais complicada do que uma simples oposição, é isso que mostra Lacan em
sua discussão da obra sadeana.
Podemos formular a pulsão de morte como a pulsão que satisfaz o gozo. Lacan coloca
o estatuto da pulsão de morte em Freud como “suspeito” e propõe, em consonância com suas
ideias sobre o tema expostas em 1938, a pulsão de morte como estando para além do retorno
ao inanimado, proposta feita por Freud em Além do princípio de prazer (1920/1990). Para
Lacan, na pulsão de morte se trata de “Vontade de destruição. Vontade de recomeçar com
novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a
partir da função do significante.” (LACAN, 1997, p. 259). Também se refere à pulsão de
morte como “vontade de criação a partir do nada”, o que já aponta a relação da pulsão de
morte com a sublimação, na medida em que a sublimação implique exatamente essa criação a
partir do oco da Coisa. Todavia, também mostra como a fronteira entre gozo e sublimação
pode ser sutil, já que a pulsão de morte que pode criar o novo é a mesma que satisfaz o gozo.
Lacan afirma que no ponto da Coisa, Freud desenvolveria a sublimação do instinto de
morte, “dado que essa sublimação é fundamentalmente criacionista”. Afirmação que traduz
mais uma exigência da teoria do que mera reprodução do texto freudiana, já que, conforme
comentado no início deste trabalho, Freud não falou em nenhum texto sobre a possibilidade
de sublimação da pulsão de morte. A única referência a essa possibilidade, como já dissemos,
encontra-se em uma carta enviada à princesa Marie Bonaparte (METZGER, 2008).
Entretanto, levando em conta a subversão de Lacan com relação à sublimação (que
criaria novos laços sociais) e sua proposta de retorno à Freud, é possível entender sua
afirmação como uma continuidade do pensamento freudiano no sentido de deduzir as
consequências necessárias do conceito de pulsão de morte, articulada a essa acepção da
sublimação como o rompimento das “amarras psicossociais” – expressão, em nosso entender,
ligada ao rompimento com valores vigentes e a possibilidade que guarda a sublimação de
criação de novos valores. Daí a proposta lacaniana da sublimação da pulsão de morte. É
possível deduzir que a sublimação da pulsão de morte para Lacan é o que estaria à mostra na
obra de Sade – que, tal como indicamos, não realizou em ato – ou não apenas realizou –
aquilo que criou em seus textos. Concluindo, a dor, o gozo, tal como mostrado pela obra
sadeana é uma forma de atingir o inatingível de das Ding. Ou, dito de modo mais preciso,
aludir à Coisa, no limite de desvelá-la.
116
TERCEIRA PARTE:
SEGUNDO MOMENTO DA SUBLIMAÇÃO (1961 A 1969)
117
amor cortês e, por outro, com a obra de arte pelo viés da anatomia do vacúolo e da discussão
que Lacan empreende acerca da incidência do objeto a na perversão.
6.1 ALIENAÇÃO
É a partir da negação lógica do cogito cartesiano, desde a lei de Morgan31 que Lacan
iniciará sua discussão no seminário A lógica do fantasma que visa elucidar, como o próprio
nome do seminário mostra, a lógica que determina a fantasia, seus elementos e suas relações
estruturais. Para tanto, partirá da alienação, que articulará depois com a repetição e o ato
sexual como elementos implicados nessa lógica. É nesse contexto que encontraremos também
a sublimação. De fato, a negação do cogito ganha importância na medida em que o sujeito se
funda em uma alienação que se evidencia justamente no próprio cogito, como veremos.
Entretanto, é importante marcar que, aqui, Lacan não trabalhará a alienação do mesmo
modo como faz em O Seminário, livro 11, no qual se refere a uma escolha forçada. Nesse, a
metáfora que utiliza, da escolha entre a bolsa e a vida, faz menção à escolha entre o ser e o
sentido na qual, escolhendo uma, perde-se a outra; já em A lógica da fantasia, trata-se de uma
escolha preferencial que será, para todo sujeito, não pensar, mantendo portanto o ser – como
veremos, não se trata do mesmo ser a que se referia Lacan em 1964. Aqui, o sou, não penso, é
a escolha preferencial do sujeito antes da análise e que pode ser caracterizada como a escolha
pelo falso ser, na medida em que se trata de um ser que se funda no desconhecimento. Por
outro lado, a alternativa penso, não sou, é solidária ao inconsciente na medida em que o
pensar a que se refere é o pensar do inconsciente, da livre associação – e não o pensar da
racionalidade, pelo qual todos se encantam (BRODSKY, 2004). Assim, essa última operação
é inicialmente rechaçada pelo sujeito.
A ênfase de Lacan agora recai sobre a possibilidade de escolha, escolha necessária
para cada sujeito, o que é coerente com pensar a lógica da fantasia em articulação com o ato,
como já começa a fazer no seminário que nos orienta nesse momento de nossa discussão.
Todavia, se no seminário sobre a lógica da fantasia o autor está centrado na constituição do
sujeito, no seminário seguinte, O ato analítico, a questão do ato e suas consequências
31
Segundo a lei de Morgan, a negação da intersecção de A e B é equivalente a reunião da negação de A e da
negação de B, ou seja, (não (A∩B)) = ((não A) U (não B)) (KOREN, 2008). É dessa lei que Lacan lança mão
para extrair as afirmações “não penso” ou “não sou”, derivadas da divisão e negação do cogito “penso logo sou”
com as quais vai trabalhar nesse seminário.
119
ganharão outra relevância. Como aponta Brodsky, referindo-se a esses dois seminários, “São
dois momentos lógicos que não respondem à mesma conjuntura: um é a produção de um
sujeito; o outro, a escolha que esse sujeito fez a favor ou contra o inconsciente” (BRODSKY,
2004, p. 76).
É importante lembrar que a negação do cogito se dá na medida em que este afirma o
domínio do Eu e do sujeito do enunciado, o que não se sustenta para a Psicanálise desde
Freud. Lacan justifica seu recurso a Descartes e ao cogito justamente porque é a partir do
penso, logo existo, afirmação que comporta a certeza da existência articulada ao pensamento,
que ele empreenderá o retorno necessário às origens do sujeito. É em termos de sujeito que
Freud articula seu aforismo wo Es war, soll Ich werden; como Lacan faz questão de
esclarecer, não se trata do Ich da segunda tópica freudiana32, mas sim do sujeito. Assim, a
tradução não pode ser “o eu deve desalojar o isso”, como indicam algumas traduções,
notadamente as utilizadas pelos pós-freudianos alinhados à chamada psicologia do eu, mas, de
modo coerente com aquilo que Freud busca demonstrar com a Psicanálise desde os momentos
iniciais de sua teorização, desde sua descoberta do inconsciente33, a tradução deve ser aí onde
isso era, o sujeito deve advir, o que evidencia o sujeito do inconsciente de que se trata. Nesse
contexto, entende-se que devemos traduzir Ich como sujeito, no sentido de sujeito do
inconsciente e não como Eu/Ego. É dessa leitura do Ich que parte Lacan ao referir-se ao
cogito.
Lacan utiliza a teoria dos conjuntos, tal como representada pelos círculos abaixo, em
articulação com as leis de Morgan, para chegar à disjunção entre pensar e ser. Outra maneira
de dizer Penso, logo sou seria dizer que o cogito cartesiano é a intersecção entre o conjunto
“penso” e o conjunto “sou”. Vejamos como incluir o cogito cartesiano nos círculos de Euler,
tomando os círculos abaixo como A e B:
32
Esse aforismo freudiano data de 1915-17, nas Novas conferências introdutórias à Psicanálise, portanto, de um
momento anterior à elaboração da segunda tópica, que pode ser localizada a partir de O eu e o isso, de 1923.
Desse modo, seria difícil sustentar que o Ich do aforismo seria referência ao Eu da segunda tópica, que não havia
sido sequer elaborado por Freud.
33
Lembremos das três “grandes feridas narcísicas” do homem: o sol não gira em torno da terra (Copérnico); o
homem descende do macaco (Darwin) e o homem não é o senhor de seu castelo, já que existe o inconsciente
(Freud).
120
Inserimos em cada um dos círculos, uma das duas partes da afirmação do cogito, desse
modo:
34
Como observa Torres (2009), trata-se da negação da intersecção (do cogito cartesiano) que corresponde a
reunião da negação do ser (não sou) e da negação do pensar. É assim que Lacan vai conseguir que a operação
lógica da negação aplicada ao cogito na intersecção resulte na reunião das negações de dois conjuntos. Logo ou
não penso, ou não sou (TORRES, 2009, p. 91-92).
121
Pela inclusão dos círculos de Euler, Lacan introduz essas duas variáveis do Penso,
logo sou cartesiano (ou não penso, ou não sou), a partir da Lei de Morgan, que, como
observamos acima, dividirá o cogito em duas partes que serão mutuamente excludentes, o que
é importante para indicar a escolha de que se trata na produção do sujeito.
Lacan articulará esses círculos ao tetraedro ou quadrângulo de Klein, como veremos
na próxima sessão. Entretanto, seu ponto de partida será a afirmação de que o estatuto de não
ser E não pensar conjugados, a negação do cogito, não pode perdurar; trata-se apenas do
“ponto zero” da subversão do cogito (BRODSKY, 2004); Assim, é preciso, necessariamente,
escolher: ou não penso, ou não sou. É o que podemos ver como movimento proposto por
Lacan nos vetores que partem do ângulo superior direito, encontra-se a alternativa: ou
bem...ou bem..., que conduzem cada uma dessas duas escolhas ou ao vértice inferior direito
ou ao vértice superior esquerdo.
Por que é necessário afirmar de um lado, não penso e de outro, não sou? Porque se
trata, inicialmente, para Lacan, de mostrar a constituição do sujeito desde a alienação e,
portanto, desde a escolha preferencial aí implicada. Além disso, a partir desse novo vel da
alienação, será possível também distinguir, desde a negação do cogito e desde a dialética do
sujeito, o Isso e o Inconsciente, que não coincidem, mas tem estreita relação. Cada uma dessas
afirmações – não penso e não sou – com as quais estamos trabalhando, tem uma implicação
bastante específica com relação à alienação do sujeito. Em um caso, o não penso, há um
desconhecimento da enunciação. No outro, trata-se de que, uma vez que advenha a
enunciação, não se sabe quem é seu autor; é o que se apresenta na afirmação não sou. Dito de
outra maneira,
a afirmação „eu penso‟, qualquer que seja o predicado que a ela se adicione,
se paga com o desconhecimento da enunciação subjetiva. Ao contrário,
deixar lugar para a enunciação devolve o sujeito a assunção de não ser „o
autor‟ de seus pensamentos. (KOREN, 2008, p. 125, tradução nossa).
Assim, temos que se penso, não sou e se sou não penso, ou seja ou penso, ou sou, na
medida em que pensar e ser sejam mutuamente excludentes.
De forma resumida, podemos dizer que na separação dos dois círculos (que estão em
relação no ponto zero, lembremos), tal como encontramos nos desenvolvimentos do
quadrângulo de Klein, se evidencia que Isso e Inconsciente não se recobrem. Além disso, cada
uma das duas negações – eu não penso e eu não sou – funciona como resto, seja do Isso, seja
do Inconsciente (HARARI, 2001). O não penso e o não sou serão “restos” respectivamente do
Isso e do Inconsciente. Lacan indica que o Isso é tudo aquilo que é não-eu. Ou seja, temos de
um mesmo lado o não penso e o não-eu, que é o próprio Isso. E, de outro lado, o eu não sou,
que é o essencial daquilo que se trata no Inconsciente. Lacan evoca o dito espirituoso como
exemplo revelador das formações do inconsciente, uma vez que o que está em jogo é um rir
123
que se dá no nível do eu não sou; uma vez que o dito espirituoso seja involuntário, da ordem
da manifestação do inconsciente, aquele e que o enuncia não sabe quem é o autor de seu dizer,
ao passo que aquilo que é risível no que é dito, é da ordem da enunciação.
Conforme veremos na próxima sessão, círculo do Isso/não penso ficará posicionada,
no grafo, sobre a passagem ao ato, ao passo que o círculo do Ics/não sou ficará solidário ao
acting out. No lugar do eu não penso, encontramos a passagem ao ato, que é justamente onde
não se pensa; se faz. “Se nos pusermos a pensar, não passamos ao ato” (ATTIÉ, 1997). Por
outro lado, o acting out implica em uma encenação que pede interpretação e, como tal, é uma
expressão que carece do sujeito do enunciado, uma vez que é pura enunciação.
35
Tal como Lacan já indicara que se deveria fazer no próprio seminário XIV, embora não encontremos a figura
da sobreposição nas versões do seminário com as quais trabalhamos.
124
Passagem Repetição
ao ato
Sublimação Acting
out
o
Observamos que, embora haja semelhanças entre os grafos construídos por Lacan nos
Seminários XIV e XV, trata-se de dois grafos diferentes (BRODSKY, 2004, p. 79; ATTIÉ,
1997), mas, além disso, o grafo com o qual Lacan trabalha no Seminário XIV é, tal como
comentamos, a sobreposição de dois. Lacan faz alusão ao fato de serem dois na parte final do
Seminário XIV:
Procurei dar a armadura de uma certa lógica que nos interessa ao nível destes dois
registros, da alienação, de uma parte, da repetição da outra, estes dois esquemas em
quadrângulo e, fundamentalmente superpostos, de que espero que pelo menos uma
parte de vocês se lembre. (LACAN, 2008a, p. 433/FR p. 206, grifos nossos).
Além disso, como nos referimos acima, é possível construir dois tetraedros, sendo que
a segunda versão é aquela que podemos construir a partir do resumo do seminário XIV. Os
dois são necessários exatamente porque os quadrângulos lacanianos não mantém a
característica de reversibilidade que é própria aos grupos de Klein, como veremos.
Lacan trabalha com os quadrângulos tal como encontramos nos Seminários XIV e XV
apenas neles próprios e nos textos que escreveu em referência a estes seminários, seus
resumos e mais um texto contemporâneo a esses dois, Da psicanálise em suas relações com a
realidade, de modo que há um material restrito sobre eles, que deixa muitos pontos em aberto
(BRODSKY, 2004)36. Em cada um desses grafos ou quadrângulos, ele trabalha com vetores e
termos articulados. Especificamente naquele dos dois onde encontramos a sublimação situada
no vértice inferior esquerdo, coloca o termo em relação com outros conceitos, pelos quais
faremos um breve percurso de modo a indicar suas articulações com a sublimação.
36
Ainda que Lacan utilize a figura do quadrângulo ou tetraedro, derivado dos grupos de Klein, em várias de suas
elaborações formais, como, por exemplo, no Esquema L, nos quatro discursos e em seus seminários sobre os nós
(DARMON, 1994).
126
37
Sobre o sentido da palavra estrutura em matemática.
127
38
Félix Klein matemático nascido na Prússia, conhecido por suas pesquisas na topologia não-euclidiana
(VÍCTORA, 2005).
128
partida do grafo, bem como a não reversibilidade se aplicam ao grafo utilizado tanto em A
lógica do fantasma quanto no seminário sobre O Ato analítico.
Nos dois tetraedros utilizados por Lacan no Seminário 14, do mesmo modo que
acontece no Seminário 15, vemos que os vetores são unidirecionais, diferente do que
encontramos no tetraedro original do grupo de Klein, acima, no qual os vetores são
bidirecionais. Desse modo, na proposta lacaniana os vetores tem um ponto de partido (X no
primeiro grafo e P2 no segundo grafo), um percurso preferencial que segue os vetores e um
produto (P1 no primeiro grafo e X‟ no segundo grafo).
6.4.1 Repetição
colocada não mais na tensão em jogo, portanto de algum índice quantitativo, da pulsão, mas
sim naquilo que é de ordem significante.
Lacan vai dizer que a situação primeira, tornou-se a situação repetida, pela via do
signo, o que necessariamente implica que ela se perca como situação original: “há alguma
coisa que se perde no fato da repetição” (op. cit, p. 194, itálico do autor). Há algo que se
transforma com a repetição, que faz impossível o reencontro, é isso que o olhar aguçado de
Lacan encontra no texto freudiano já em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, em uma referência ao objeto perdido. A partir daí, Lacan aponta a repetição
como lei constituinte do sujeito, mas ao mesmo tempo impossível como repetição idêntica.
Isso vai acontecer porque o arco que se redobra, descrevendo uma curva sobre si
mesmo, quando perfaz a segunda volta, deixando uma marca do cruzamento das duas voltas
(uma por cima e outra por baixo, é preciso imaginar o oito interior em três dimensões).
Assim, naquilo que se repete (seja um ato, seja um sintoma), há um traço. “O traço onde se
sustenta o que é repetido, [e que] enquanto repetente, deve se fechar, deve reencontrar a
origem.” (op. cit, p. 195). É este traço que se assemelha à marca que é deixada pela linha que
passa por cima de si mesma na segunda volta da repetição (GRANON-LAFONT, 1990, p.
36).
Lacan convoca essa forma topológica para se referir à regressão, expressão da
repetição. A regressão tem aqui um sentido específico, que é o de “encontrar no retorno, esse
efeito de retorno da repetição” (LACAN, 2002, p. 196). Assim, estamos falando na regressão
como repetição desde um retorno ao anterior. Lacan aponta o paradoxal efeito progressivo da
regressão: apesar da regressão ser ela mesma uma repetição, o elemento que se repete não é
sempre o mesmo. Haveria entre o repetido e o repetente o vazio do espaço moebiano
(GRANON-LAFONT, 1990). Assim, na figura do oito interior podemos ver a repetição, mas
também a diferença.
Essa discussão sobre a repetição se ancora na alienação como significante do Outro,
marcado por uma fratura e por uma finitude que indicam não falha, mas um fato de estrutura.
Fato de estrutura que deve permitir situar a neurose, desde o que encontramos na experiência
clínica, a partir da demanda do sujeito ao Outro como demanda de que o Outro lhe demande
algo, de tal modo que o desejo do neurótico possa girar em torno da demanda do Outro – o
que também é uma maneira de referir à alienação no Outro. Entretanto, aqui Lacan faz uma
precisão: o que o sujeito vem fazer na análise essencialmente não é demandar, no sentido de
uma exigência atual; ele vem para saber o que demanda. É Isso que conduz o sujeito a
demandar que o Outro lhe demande seja lá o que for, de tal modo que o desejo do neurótico
gravite em torno da demanda do Outro.
133
É importante marcar que, nesse seminário XIV, Lacan vai articular a repetição à
alienação, partindo do vel da alienação de O seminário, livro 11, tal como indica Torres
(2009), mas não mais a partir do “ser” e do “sentido”, como encontramos no seminário XI e
sim das variações do cogito cartesiano, como vimos. Lacan avança aqui nas premissas que
vão sustentar sua discussão sobre o ato analítico no ano seguinte – e que, de fato, já tem início
nesse seminário, embora ele não se centre nesse tema. Por ora, ele sublinha que o ato – não
ainda o psicanalítico – é o que há em comum entre a repetição e a passagem ao ato como
alienação (LACAN, 2008a, p. 199) e define o ato do seguinte modo: “É impossível defini-lo
de outra maneira, a não ser sobre o fundamento da dupla volta, dito de outro maneira: da
repetição. E é precisamente nisso que o ato é fundador do sujeito.” (op. cit, p. 202). Ou seja,
aqui o ato é definido como fundado na repetição, mas não apenas isso: trata-se da repetição de
um único traço. Essa repetição deve se designar pelo corte que se opera na banda de Moebius,
que seria a dupla volta do significante. Nessa repetição, “O sujeito, digamos, no ato é
equivalente a seu significante. Ele não está menos dividido nisso” (op. cit, p. 203). O ato
opera um corte e nesse ato o sujeito parece equivaler ao significante, embora isso não seja
possível. Retornaremos a este ponto.
É a partir do corte operado na banda de Moebius que Lacan dirá que o importante não
é tanto a definição do ato quanto o que se segue e que é da ordem de uma mudança de
superfície. Mudança de superfície que é correlata a mutações no sujeito, decorrentes do ato.
Interessante notar que Lacan aponta para um paradoxo, que consiste no fato da mudança –
expressão do novo – ser fundada justamente naquilo que se repete como o mesmo. Assim,
transformação e repetição estão intimamente articuladas, são os dois lados de uma mesma
moeda.
acting out, passagem ao ato e ato sexual. É também partindo da discussão desses atos que
Lacan poderá elaborar o que virá a chamar, no ano seguinte, de ato analítico.
Freud aponta a existência dos atos sintomáticos na análise do caso Dora, ao indicar
que seu “brincar, colocando e retirando os dedos de dentro de uma pequena bolsinha”, seria
um ato sintomático, referido à masturbação. Aqui, ele já evidencia que o ato sintomático
revela algo do sujeito. Antes disso, em Psicopatologia da vida cotidiana (1901), a menção
aos atos sintomáticos já está presente, no capítulo IX, Atos casuais e sintomáticos.
Harari (2001) retoma em Freud a presença da repetição desde os atos sintomáticos até
concluir desde Lacan (A lógica da fantasia) que a repetição é intrínseca a todo ato – cuja
definição, tal como nos fornece Lacan no Seminário XIV, abordaremos em seguida. Harari
faz uma classificação dos atos sintomáticos, apontando que há atos sintomáticos que ocorrem
regularmente, mas também há aqueles que podem denotar a singularidade de alguém como
traço unário. Soma-se aos atos sintomáticos e ao traço unário o ato sintomático como tique.
Nesse caso, tratar-se-ia de um movimento involuntário – lembremos do estalar de língua de
Emmy von N, uma das histéricas de Freud. Cada um desses três aspectos do ato sintomático
pode ser do tipo que se chamaria habitual, constante e que é, nesse caso, expressão da fantasia
inconsciente – eis aqui a repetição, expressa em atos sintomáticos em suas variações
possíveis, desde a fantasia.
O ataque histérico poderia se somar a esse agrupamento dos atos sintomáticos na
medida em que seria também da ordem do ato; para Freud, ato que comporta uma
“reprodução de prazer” (FREUD apud HARARI, 2001, p. 126). Entretanto, desde Além do
princípio de prazer, o ato comporta também – e principalmente – a repetição do gozo 39. O
ato, portanto, desde o ato sintomático, passando pelo ataque histérico, não apenas a partir de
sua característica de repetição do prazer, mas também de reprodução de gozo, estaria ligado
à repetição.
Os atos sintomáticos poderiam ser chamados eventuais, esporádicos, tais como fazer
tilintar moedas nos bolsos, girar os óculos pela haste e assim por diante. Esses atos, cujo tom
é em geral de brincadeira inocente, muitas vezes passam despercebidos para os próprios
sujeitos que as executam. Entretanto, a partir de uma interrogação do analista, que se deixa
surpreender por tais “brincadeiras”, poderiam ganhar o estatuto de atos. É nesse sentido que
39
Articulado por Freud como pulsão de morte, expressão da compulsão à repetição, tal como já comentamos no
Capítulo 4.
135
Harari vai afirmar que a intervenção do analista “eleva o gesto à dignidade do ato” 40 (op. cit,
p. 131), ou ao menos pode fazê-lo. A participação do inconsciente nesses atos é de tal monta
que o sujeito dela não se apercebe, tendendo a não se responsabilizar por seu ato. O sujeito aí
funcionaria a partir da Verleugnung, na medida em que não reconhece seu gesto como ato e,
além disso, como seu ato; cabe ao analista intervir para alterar essa situação, apontando para o
ato.
O analista só pode intervir caso se deixe assombrar pelo ato, pois, dessa forma, terá
deixado cair a antecipação imaginária que estaria em jogo no ato sintomático. Esse último
poderia facilmente ser incluído na “paisagem” sem dela se destacar, bem à moda da
antecipação do infans no estádio do espelho, que, fascinado pela imagem do outro e a ela se
identificando, supõe uma maturação que não tem, ou seja uma completude que não há. O ato
sintomático, assim, seria negado pelo analista, uma vez que esse se apoiasse no imaginário de
completude que ignora o que é da ordem da contradição, do estranhamento trazido pelo
paradoxo.
6.4.1.3 Ato
40
Harari propõe, mesmo se interrogando se não está embutido no comentário de Lacan uma crítica à concepção
sartreana, que aquele parte da diferença que faz Sartre entre ato e gesto em “O ser e o nada”. Segundo este autor,
temos que “O ato em Sartre se inscreve na realização de um projeto, como execução da liberdade do sujeito, e
em função de seu „compromisso‟. A categoria de gesto, em compensação, não oculta esse traço; portanto, tem
uma posição inferior na „realidade humana‟.” (HARARI, 2001, p. 130).
136
se extrai o oito interior da banda de Moebius devido à volta circular do corte. Esse é um dos
paradoxos do ato (GRANON-LAFONT, 1990, p. 39).
É importante sublinhar que o ato é diferente de um reflexo; o que está em jogo no ato
não é o aspecto motor, algo da ordem de um movimento, uma descarga motora, embora seja
intuitivo fazer essa associação do ato com a ação motora. Como buscamos mostrar, há
especificidades para considerar que algo é da ordem do ato; não é qualquer ação motora que
terá o estatuto de ato. É nesse esforço de precisar do que se trata que Lacan dirá que
Interessa-nos destacar que o ato só pode ser entendido como tal a partir de uma
estrutura lógica que permite alçar o que é da ordem da paixão ou da ação ao estatuto de ato. É
nesse sentido que o quadrângulo de Klein, por exemplo, é tão interessante, na medida em que
permite, com suas articulações lógicas, algumas das quais abordamos aqui, que se acompanhe
essa passagem que vai da alienação, passando pela repetição, em direção ao ato (em suas
variações de passagem ao ato e acting out) e à sublimação.
Concluindo, Lacan define o ato, no seminário A lógica do fantasma, a partir da
repetição. É nisso que o ato é fundador do sujeito, ele vai dizer (LACAN, 2002, p. 202). A
partir do ato, da dupla volta a partir do corte da banda de Moebius, Lacan deduz que do ato
advém uma mudança de superfície (Cf. sessão O oito interior), que tem como correlato uma
mutação no sujeito. É por essa via que dizemos que a partir do ato, não se sabe o que virá em
seguida – e, nesse sentido, não se sabe exatamente quais serão suas consequências, seja ele
qual for.
Retomando o quadrângulo tal como construído por Lacan, vemos que há duas linhas
partindo da Repetição: uma delas, horizontal, leva ao eu não penso da passagem ao ato; o
outro vetor segue verticalmente em direção ao eu não sou do acting out, o que é consonante
com a afirmação de uma oposição entre acting out e passagem ao ato que faz Lacan em O
138
seminário, livro 10 (p. 136) – mas também com aquilo da ordem da repetição que está em
jogo de modo mais evidente no acting out.
Vemos na figura acima que o eu não sou e o acting out encontram-se no mesmo
vértice, a partir da separação dos círculos que contém a negação do cogito. Isso nos permite
supor solidariedade entre ambos, tal como representado no círculo dividido no vértice inferior
direito. O acting out é impossível de ser escolhido pela via da alienação; é a opção que se
apresenta a partir do eu não sou na medida em que este supõe a articulação do pensamento
inconsciente, o que não acontece na alienação. Ao mesmo tempo, no eu não sou está
implicado um “não estar nem aí” para o que lhe acontece, para uma determinada manifestação
do inconsciente. Entretanto, o acting out pede interpretação, é dirigido a alguém a quem se
apela, dirigido ao Outro (LACAN, Seminário X). Eventualmente, o próprio analista, como
139
Lacan nos faz notar, por exemplo, no conhecido caso dos miolos frescos 41. O acting out é o
que podemos chamar de uma transferência selvagem, na medida em que há endereçamento ao
Outro, há um pedido por interpretação.
Com Harari (2001), podemos dizer que haveria dominância do simbólico no acting
out, enquanto poderíamos falar de uma dominância do real na passagem ao ato. Como
argumento, podemos recorrer à proximidade que o primeiro teria com o sintoma, com a
diferença de que esse não “pediria” interpretação, tal como o acting out. É o que encontramos
em Lacan, quando diferencia o sintoma do acting out:
Não, não é essencialmente da natureza do sintoma ter que ser interpretado. Ele não
clama pela interpretação como faz o acting out. [...] O sintoma, por natureza, é gozo,
não se esqueçam disso, gozo encoberto, sem dúvida, untergebliebene Befriedigung;
não precisa de vocês como o acting out, ele se basta. [...] Diferentemente do
sintoma, o acting out, bem, ele é o começo da transferência. É a transferência
selvagem. (LACAN, 2005, p. 140/FR p. 147-148).
41
Trata-se de um caso clínico discutido por Lacan em diversos momentos, inclusive em A direção do tratamento
e os princípios de seu poder. As interpretações que Lacan dá ao episódio se modificam, de modo que nos
referimos a interpretação que toma a fala do analisando como um acting out. Esse caso foi atendido por Melina
Schmideberg e posteriormente por Ernst Kris. Este supõe sucesso em sua intervenção onde Lacan evidencia o
acting out como mostração ao analista daquilo que continua no mesmo lugar, da ordem da repetição atuada.
Nesse acting out, Lacan afirmará que “o objeto pequeno a, oral, está aí de algum modo presentificado, trazido
num prato”, o que em português evoca a ideia do “de bandeja”, expressão que traduz um modo de mostrar algo
de forma clara e inequívoca.
42
Harari chega a dizer que o analista é o “parteiro do acting out” (HARARI, 2001, p. 180).
140
deslocado que tal coisa se repita aqui?”. Nesse caso, tratar-se-ia de interpretar manifestações
da transferência (op. cit, p. 250), o que seria inócuo.
Com relação à passagem ao ato, é importante retomar também alguns pontos
levantados por Lacan em O seminário, livro 10. Aqui, ele evidencia a passagem ao ato como
queda do sujeito, que se identifica então ao objeto a. Enquanto podemos dizer que o acting
out “coloca em cena” para o Outro algo de que o próprio sujeito não se apercebe – algo da
ordem do inconsciente – a passagem ao ato estaria do lado do “sair de cena”, sair da cena que
inclui o Outro e o significante. Ou seja, na passagem ao ato, o inconsciente é rechaçado de
forma radical, o sujeito nada quer saber de seu inconsciente43. Voltando a figura 10, acima,
encontramos a passagem ao ato como resultante do vetor que parte da repetição, mas passa
pela alienação. Essa observação é importante porque mostra que, desde o eu não penso, o que
é permitido é a alienação. Nesse caso, o que está em jogo é a eliminação ordinária do Outro
pela via da alienação.
Com relação à passagem ao ato, cabe uma observação relativa à sublimação; enquanto
esta alude ao vazio da Coisa, a passagem ao ato, na medida em que é uma identificação do
sujeito ao objeto a, na medida em que implica uma “perfuração narcísica” (na medida em que
o semblante – em suas acepções imaginária e simbólica – caiu), é justamente a identificação
com a, com o real de a – diríamos, identificação com a Coisa. Em oposição, a sublimação é
criação a partir do nada, ou seja, a partir do real. Nesse caso, estamos falando de relações
diversas com das Ding; enquanto a passagem ao ato seria um ir de encontro à das Ding, a
sublimação seria um modo de tratar seu gozo, produzindo algo a partir do nada de das Ding.
Estando a passagem ao ato remetida à angústia, nos alinhamos com Harari quando ele
propõe, desde Lacan, que “A diferença entre a sublimação e a angústia radica no ocorrido
com o objeto” (HARARI, 2001, p. 278). É nesse sentido que dirá que o a sem (– ᵠ) estaria
ligado à angústia, enquanto a não sem (– ᵠ) estaria ligado à sublimação, sendo que em a
devemos ler “algum objeto”. A sublimação se apresenta como possibilidade de satisfação com
um objeto não idealizado44, mas sim um objeto comum, que seria alçado a outro estatuto pelo
tratamento que a sublimação lhe concederia – de elevá-lo à dignidade da Coisa. O objeto da
sublimação não prescindiria da castração, na medida em que é ela que permite que se abra
43
É interessante notar que Lacan diz que o suicídio é a passagem ao ato bem-sucedida e que o analista só seria
contrário ao suicídio na medida em que esse implicasse o nada querer saber o inconsciente e não por questões
morais.
44
Como seria, por exemplo, o objeto genital para o qual todas as pulsões deveriam convergir na „maturação‟,
segundo alguns pós-freudianos.
141
uma distância entre o sujeito e o objeto a com o qual se relaciona através da fantasia, tal como
mostra a fórmula da fantasia $ ◊ a, sujeito punção objeto a.
Na angústia, o a aparece no lugar em que falta (– ᵠ), o que leva à falta da falta e à
consequente objetalização do sujeito. Na sublimação, trata-se de a como um objeto não
aderido ao sujeito, ao qual pode renunciar, mantendo a castração (HARARI, 2001, p. 278).
Essa abordagem mostra que há proximidade entre sublimação e angústia, na medida em que
entendamos que se trata de duas maneiras diversas do sujeito se relacionar com o gozo da
Coisa; no caso da angústia, sucumbe a ele, passando ao ato, enquanto que no caso da
sublimação, trata-o a partir da alusão à Coisa via objetos quaisquer. O que determina que se
lide com o gozo de uma ou de outra maneira? É essa a questão que nos encaminhará a uma
discussão que articule a sublimação ao final de análise, no capítulo final de nosso texto,
embora já tenhamos adiantado que esta forma de lidar com o gozo está articulada ao fim de
análise.
Em suma, pela divisão dos círculos de Euler desde a negação do cogito, temos como
resultado dois grupos de articulações: por um lado, partindo dos círculos e sendo conduzido
pelo vetor superior que passaremos a chamar alienação, temos um novo círculo que
compreende o eu não penso e o Isso, cuja expressão será a passagem ao ato. De outro lado,
temos uma articulação entre o eu não sou, manifestação do inconsciente na medida em que
onde não se é, estão os pensamentos do inconsciente e seu correlato, o acting out. Resta
inexplicado, por enquanto, o vértice do tetraedro no qual encontramos a sublimação.
6.4.2 Sublimação
6.4.2.1 Fantasia
Figura 14 – Sublimação e -ᵠ
Quanto a isso, Lacan esclarece que encontramos no vértice inferior esquerdo, nos
círculos, um tempo posterior aos tempos que levavam ao eu não penso e o eu não sou como
excludentes. A castração, aqui, alude ao referente fálico como essa circunscrição de uma falta,
em torno da questão do falo.
Lacan aponta aquilo que é da ordem do real do sexo, que não entra na linguagem e que
tem ligação com a diferença sexual. Essa, por sua vez, só se sustenta no sentido de algo que
falta sob o aspecto do falo, que marca então uma falta. É desse ponto que vai derivar a
incomensurabilidade dos gozos do homem e da mulher no ato sexual (cf. próxima sessão). É
também nesse ponto do quadrângulo que Lacan vai identificar um recobrimento do eu não
penso, correlativo ao isso e do eu não sou, correlativo ao inconsciente, indicado pelos dois
pequenos vetores que partem cada um de um dos círculos no vértice inferior esquerdo do
tetraedro. Recobrindo-se mutuamente, ocultam-se um ao outro. Como consequência, no lugar
do eu não sou o Isso virá, positivando-o em um eu sou isso, no qual Lacan localiza o Wo es
war, soll Ich werden freudiano (LACAN, 2008, p. 134). O quarto vértice então, pelo
recobrimento dos círculos, evidenciaria o imperativo que podemos traduzir como “ali onde
isso estava, o sujeito deve advir”. Que a castração e a sublimação também se encontrem nesse
vértice, pede que avancemos mais um passo.
O que nos interessa, aqui, é que a sublimação se encontra solidária a uma polarização
dos sexos, resultante da diferença sexual que, como veremos na próxima sessão, tem
consequências importantes no que tange ao ato sexual e ao entendimento do lugar da
sublimação nesse momento da teorização lacaniana, principalmente se pensarmos que a
localização dos termos no grafo implica termos que funcionam desde uma mesma lógica. É
desse modo que poderemos chegar à incomensurabilidade dos gozos do homem e da mulher,
como solidária a sublimação.
Por outro lado, Lacan passa a incluir nesse mesmo lugar o objeto a, no final da lição
de 11 de janeiro de 1967. Agora, além da sublimação, lá encontramos a/-ᵠ, conjunção do
objeto a e da castração. Esses são justamente os dois termos que devem ser disjuntos no final
de análise e que se encontram, cada um deles, também presentes disjuntos no esquema;
enquanto o objeto a é suposto junto do eu não penso, a castração o é em relação ao eu não sou
e do acting out. É o que veremos na Figura 12. Isso explica, em parte, a junção de ambos, a/-
ᵠ, já que há vetores que partem de cada um dos vértices em que cada um desses dois
elementos isolados estão, que se encontram justamente no ponto da sublimação. É nesse
ponto que a, como resíduo do eu não penso – portanto, como resto da alienação – surgirá no
vértice inferior esquerdo, do mesmo modo que o -ᵠ, falta-a-ser que é produzida como resíduo
do eu não sou. Pois bem, uma vez que entendemos como chegaram onde estão, resta a
pergunta: a que lógica respondem, porque estão nesse lugar do grafo, que é o mesmo da
sublimação?
144
Nesse segundo grafo, vemos que o vetor da transferência é a diagonal oposta àquela
que encontramos no primeiro esquema, o que é coerente com o que encontramos no resumo
do Seminário XIV, no qual Lacan alude ao esquadro cujos braços seriam a alienação e a
verdade e cuja diagonal seria a transferência (LACAN, 1966-67/2003, p. 324), tal como
145
identificamos acima45. O vetor da transferência conduz do eu não penso ao acting out. O que
pode ser entendido como uma invocação do sujeito suposto saber, outro modo de dizer de um
apelo ao inconsciente. “De fato, é dos impasses do eu não penso, que um endereçamento, uma
demanda de análise pode produzir-se.” (ATTIÉ, 1997 p. 164). Portanto, o vetor da
transferência é o que permite que, a partir do eu não penso, o sujeito chegue, pela via da
demanda de saber que é a transferência, a interrogar o inconsciente.
Attié (1997) propõe que chegaríamos assim ao sintoma analítico, esse que advém sob
transferência, a partir da busca de um analista. Em sua leitura de Lacan, com esse esquema,
ele operaria uma disjunção entre sintoma (articulado ao -ᵠ) e a sublimação (articulada ao a)46.
Diferente disso, mas em consonância com o que encontramos de modo mais direto no resumo
do seminário, Brodsky (2004) propõe que no ponto em que encontramos a/-ᵠ, trata-se da
fantasia,de modo fiel ao que encontramos no resumo do Seminário 14.
Para entender porque a sublimação ocupa esse lugar junto a a/-ᵠ no quadrângulo,
devemos lembrar que a conjunção de a e -ᵠ remete a uma sobreposição da falta estrutural do
discurso e da pulsão. Como ocorre essa sobreposição? Na medida em que o significante que
falta ao discurso (esse que asseguraria toda significação) é preenchido pela inscrição pulsional
no corpo. Assim, o que retornaria do Outro como falta de significante, seria representado pelo
falasser como falta de objeto para satisfação da pulsão (POLI, 2003).
Assim, o -ᵠ como marca de uma falta no Outro será recoberto pelo objeto a, objeto da
pulsão, que é o objeto da fantasia, de modo que a falta será entendida como podendo ser
suprida pelos objetos semblante de a, objetos da fantasia – temos aqui o recobrimento das
duas faltas. Aparentemente é a isso que Lacan se refere ao dizer, quando se refere aos objetos
a:
45
Embora haja semelhanças, esse não é o quadrângulo usado por Lacan no Seminário XV. Ali, a transferência é
um vetor na diagonal oposta.
46
Attié, na discussão que faz da sublimação, recorre a uma condensação dos quatro semigrupos de Klein
utilizados por Lacan no Seminário XIV em um único grafo. Embora seja interessante acompanhar seu raciocínio
e suas considerações, trazê-los para nosso debate nesse momento complicaria excessivamente a discussão sobre
os quadrângulos e semigrupos que ora empreendemos, dada a condensação de que parte. Como nossa intenção é
buscar algum didatismo na apresentação dos grafos utilizados por Lacan, sempre mantendo a sublimação como
elemento-chave de nossa discussão, não retomaremos a maior parte da discussão feita por Attié, embora
indicando seu interesse, pelos avanços que propõe.
146
Assim, deduzimos que a/-ᵠ aqui remete à estrutura da fantasia. Entretanto, dirá em
seguida “Eis-nos de novo, portanto, no nihil do impasse [segundo grifo nosso] assim
reproduzido do sujeito suposto saber.” Brodsky lembra que esse quarto vértice, de acordo com
a lógica do grupo de Klein, deve ser “um novo produto”, o produto final desse quadrângulo, já
que não há efeito involutivo, como já dissemos. O impasse é o mesmo referido por Lacan
como aquele que se trata de atravessar para o sujeito e que aqui localizamos na fantasia. É por
isso que Brodsky propõe que esse seja o ponto de partida do grafo seguinte, que sucede
logicamente o quadrângulo da Figura 9, levando em conta a repetição e a pressa – que é o
semigrupo no qual poderemos resituar a sublimação, agora vetor diagonal e responder à
questão sobre a localização da sublimação no grafo. Esse semigrupo partirá, então, da
fantasia.
Fantasia que, como lembra Brodsky, faz existir a relação sexual que não existe,
funcionando assim como tela frente ao real. Entretanto, trata-se de um impasse do sujeito,
como Lacan já indicara, pois a fantasia faz existir a relação sexual 47 onde, de fato, ela não
existe. Esse impasse abriria caminho para o ato, mas em versões bem específicas. Um ato que
47
Antecipamos aqui a menção ao aforismo “não há relação sexual”, que, embora ainda não tivesse sido
enunciada e formulada como será posteriormente, já encontra seus pressupostos lógicos no Seminário XIV, onde
Lacan afirma que não há ato sexual na medida em que há incomensurabilidade entre o gozo do homem e o gozo
da mulher.
147
poderia ser da ordem do acting out, partindo do vértice da não relação e caminhando através
do vetor da repetição, ou então da ordem da passagem ao ato, partindo-se do mesmo vértice,
mas seguindo com o vetor da pressa. Essas seriam as duas falsas saídas ou lapsos do ato que
Lacan indicou, tal como representado acima.
O raciocínio de Brodsky é totalmente coerente com o que encontramos em Lacan, no
resumo do Seminário XIV:
Ou seja, Lacan indica que a sublimação é a via necessária pela qual será satisfeita a
lógica por ele proposta, uma vez que supõe a entrada do sujeito no real pela fantasia como
única entrada possível. É dessa forma que a saída do semigrupo anterior será o ponto de
partida do semigrupo seguinte, como podemos ver pela direção dos vetores, que agora partem
do vértice inferior esquerdo.
A sublimação assume, então, sua posição de vetor nesse segundo esquema, ou seja, de
operação. A fantasia se encontra no vértice onde antes estava a sublimação, mas a fantasia
comparece aqui na dupla acepção que comentamos acima, de referência a uma proporção dos
gozos do homem e da mulher que não existe e, por outro lado, como velando essa
incomensurabilidade. Partindo desse ponto, encontramos o vetor da sublimação, como saída
possível e que levará, como vemos na Figura 13, em direção ao ato analítico, ponto que
retomaremos em breve.
Recorrendo ao ensino lacaniano, notamos que ele introduz aqui, na caracterização que
propõe do ato, sua dimensão de condição sine qua non para abordar a sublimação, na medida
em que, tal como o ato – aqui discutido em diversas variações –, a sublimação pressupõe a
repetição e o novo, como veremos em breve. Então, retomando, temos por enquanto, em
nossa construção de um percurso que leve em conta a sublimação, uma associação dos
148
seguintes termos: repetição, como pressuposto do ato e subjacente a ele e a sublimação, como
homóloga ao ato no que tange ao novo, à transformação que pode surgir da repetição.
Lacan vai afirmar que com relação à sublimação, Freud nunca disse que sua finalidade
sexual fosse inibida; ele diz zielgehemmt, ou seja, desviada de seu objetivo. Desviada não é
sinônimo de inibida e Lacan nos alerta para a importância de que nos detenhamos nessa
palavra, que é aquela que indica que não se trata de perda de satisfação na sublimação.
“Zielgehemmt, por um lado, mas por outro lado, satisfação encontrada sem nenhuma
transformação, deslocamento, álibi, repressão, reação ou defesa. É assim que Freud introduz,
coloca diante de nós, a função da sublimação.” (LACAN, 2008a, p. 214). A sublimação, tal
como qualquer outra forma de satisfação, é sempre e necessariamente desviada, no sentido de
que não existe objeto adequado para a satisfação pulsional que, portanto, nunca será total, será
sempre parcial e desviada (Cf. Capítulo 3). Nesse sentido, o desvio do objeto também seria
pressuposto da satisfação da pulsão de uma forma geral, e não apenas da sublimação, na
medida em que o objeto da satisfação é sempre outro, deslizando metonimicamente.
Pois bem, poderíamos então perguntar onde estaria a relação da sublimação com o ato
sexual, enquanto ligado à fantasia, uma vez que levemos em conta a posição da fantasia e da
sublimação nesse novo grafo (Figs. 12 e 13). É nesse sentido que Lacan vai remeter a
sublimação ao ato sexual “enquanto ele tem relação com a função da repetição” (op. cit, p.
218, grifos nossos), na medida em que repete a cena edipiana. “O agente do ato sexual sabe
muito bem que ele é um filho. E é por isso que, sobre o ato sexual, enquanto ele nos concerne
a nós psicanalistas, o relacionamos com o Édipo.” (op. cit, p. 218). Todavia, mais do que isso,
Lacan vai apontar no ato sexual isso que se apresenta como “falta essencial”, “falta
fundamental” desde a função fálica e que é a função própria da castração (op. cit, p. 221)48.
É precisamente na medida em que alguma coisa, em que algum objeto pode vir
tomar o lugar que toma o – ᵠ no ato sexual como tal, que a sublimação pode
subsistir, dando a isso exatamente a mesma ordem de Befriedignun que é dada no
ato sexual e da qual vocês vêem isso: que está precisamente suspenso ao fato de que
o que é pura e simplesmente interior ao casal não é satisfatório. (op. cit, p. 221/FR
p. 108).
48
Em A lógica do fantasma, Lacan propõe que “Se há alguma coisa que nos revela a experiência, é a
heterogeneidade radical do gozo do macho e do gozo da fêmea” (op. cit, p. 237), ou seja, já anuncia o substrato
de seu aforismo “Não há relação sexual”, formulado tempos depois.
149
pertinente na medida em que reitera uma posição contrária às proposições como a de uma
“maturação genital” enunciada pelos pós-freudianos, que pressupõe uma forma de satisfação
melhor do que a outra. Essa proposição dos pós-freudianos contradiz o esforço freudiano que
encontramos já nos Três ensaios sobre a sexualidade, nos quais Freud, partindo das noções da
medicina da época, coloca em xeque o ideário médico permeado pela moral vitoriana do
século XIX, que condenava como anômalas todas as manifestações da sexualidade que
fugissem do padrão da relação heterossexual com finalidade reprodutiva. Se Freud já
caminhava na direção de desvendar a sexualidade humana como não determinada
biologicamente, independente de interpretações equivocadas de seu texto, Lacan segue o
mesmo caminho, elucidando e levando às últimas consequências as propostas do pai da
psicanálise.
É nessa linha, Lacan vai resituar a questão do sexo, do gênero, ao propor que o que
está em jogo não é uma possível bissexualidade biológica, como propunha Fliess, mas sim
uma incomensurabilidade do objeto a com a junção de dois seres de sexo oposto, naquilo que
incide “na exigência subjetiva de seu ato”, que seria o ato sexual. Nesse sentido, Lacan vai
dizer, em relação a essa incomensurabilidade: “Empregamos o número áureo para demonstrar
que ela só pode ser resolvida à maneira da sublimação” (LACAN, 1969/2003, p. 326). Assim,
o número áureo ou número de ouro e sua relação (impossível) com a unidade vem para
mostrar essa incomensurabilidade, já que não há medida comum, não há proporção de gozo
entre os sexos. Nas palavras de Lacan, “Se há alguma coisa que nos revela a experiência, é a
heterogeneidade radical do gozo do macho e do gozo da fêmea” (LACAN, 2008a, p. 237).
Afinal, não é possível medir o efeito de perda ligado ao objeto a enquanto objeto perdido
(KOREN, 2008). Entendemos que a sublimação, aqui, comparece como satisfação que
prescinde da complementaridade, uma vez que se remete ao vazio da Coisa. É por esse
motivo que pode suplantar o que não se mede no gozo do homem e no gozo da mulher. É
nesse ponto que a sublimação permitirá uma alusão ao incomensurável do gozo naquilo que
é o encontro subjetivo entre dois seres de sexos diferentes em um ato.
É a partir dessa incomensurabilidade que podemos entender sua afirmação de que “é
sempre por identificação à mulher que a sublimação produz a aparência de uma criação”
(LACAN, 2008a, p. 238), já que a mulher só dá, como seu dom, aquilo que ela não tem, mas
que também é a causa de seu desejo. Trata-se da definição do amor, dar o que não se tem, e é
desde esse dar o que não se tem que Lacan vai afirmar que a mulher não perde nada porque
não tem, e, portanto, ela cria o objeto evanescente que lhe falta, e o cria desde uma falta.
150
Essa tese ficará mais clara a partir de dois pontos articulados abordados por Lacan em
O seminário, livro 20: aqui, Lacan enuncia seu conhecido aforismo a mulher não existe. Uma
leitura desse aforismo aponta para o fato de que não existe a mulher do mesmo modo que
existe o homem, já que o homem está sempre referido ao universal do falo. Isso terá como
consequência que as mulheres se contarão uma a uma, ou seja, é preciso que cada mulher se
faça como tal, já que não há um universal da mulher (LACAN, 1985). O segundo ponto,
estreitamente articulado a esse primeiro, está ligado ao fato de que “[...] a mulher se define
por uma posição que apontei como não-todo no que se refere ao gozo fálico” (LACAN, 1985,
p. 15). A mulher, estando também referida ao gozo fálico, não está referida apenas a ele;
nesse sentido, seu gozo é não-todo fálico. Esses dois pontos, a não existência d‟A mulher e
seu gozo ser não-todo fálico terá inúmeras consequências. O que é importante nesse momento
é marcar que, na medida em que não existe a mulher e a invenção está suposta para que
possa vir a existir, assim temos a solidariedade com a sublimação, que é criação a partir do
nada.
Entretanto, Lacan também vai diferenciar a sublimação e o ato sexual, na medida em
que no ato sexual não se percebe o que falta. “É toda a diferença que há com a sublimação.
Não que na sublimação se saiba o tempo todo, mas que se obtém como tal, ao fim; se é [que]
há um fim na sublimação.” (LACAN, 2008a, p. 257). Além disso, a sublimação parte, ela
mesma, de uma falta, o vazio da Coisa que é motor da sublimação. O próprio produto da
sublimação é uma reprodução da falta, o que não acontece no ato sexual, no qual a falta fica
encoberta pela fantasia. Aqui, Lacan sublinha que na produção via sublimação, o que se
produz não é necessariamente uma obra de arte.
Qualquer que seja ela, de qualquer forma que ela seja tomada, a obra da sublimação
não é de forma alguma forçosamente a obra de arte, ela pode ser muitas outras
coisas ainda, inclusive o que estou fazendo aqui com vocês que não tem nada a ver
com a obra de arte. (LACAN, 2008a, p. 258/FR p. 125, grifos nossos).
da Coisa e que é diferente do sintoma (já que prescinde do recalque) e também de outros
destinos do gozo. Em alguma medida, podemos dizer que a sublimação é uma possibilidade
de trabalhar com a falta que Lacan eleva à dignidade do ato, na medida em que tanto no ato
quanto na sublimação, está implícita uma repetição que pode instaurar a diferença, aludindo a
ela.
Possibilidade que deve advir com a análise, mas que não parece depender
exclusivamente desta para se produzir e que não coincide com o surgimento de um artista ao
final da análise. É comum a ideia – um tanto idealizada, é claro – de que, como resultado do
final de uma análise, surja um artista, alguém que cria desde uma nova posição frente à
fantasia, que implica uma redução do sintoma ao sinthoma. Alguém que, supostamente,
produziria obras de arte a partir daí. É importante sublinhar que o final de análise não coincide
com o surgimento de um artista – não é necessariamente esse fazer que está em jogo na
sublimação e nem mesmo no sinthoma, como indicamos no início desse trabalho e que
retomaremos na sessão O que a sublimação tem a ver com o sinthoma? do Capítulo 9.
Inicialmente, como vemos na Fig. 12, a transferência (vetor diagonal que sai do vértice
superior esquerdo) é a operação que permite uma passagem da escolha primordial do sujeito
(não penso, a afirmação do Je) para a psicanálise (penso, mas perco a referência de quem
sou). Essa passagem do não penso ao penso implica uma passagem do eu ao sujeito do
inconsciente, onde desemboca o vetor.
Já no segundo semigrupo do segundo grafo, a sublimação é um vetor diagonal que
parte do ângulo inferior esquerdo e chega ao que nomeamos no grafo como ato analítico, por
uma questão lógica mas que Lacan não nomeou, conforme adverte Brodsky (2001).
Embora o título dessa subsessão comece com a sublimação, por ser esse nosso tema de
pesquisa, a partir das indicações de Brodsky, é preciso partir da transferência para chegar à
sublimação. Com relação à transferência, sua existência implica em que “há saber”49 e, mais
do que isso, “há saber no real” (LACAN, 1973/2003, p. 312), afirmação que se articula com
outra desde a psicanálise: “há sujeito”, dada a existência do sujeito suposto saber:
49
Nesse momento de sua teorização, Lacan articula o inconsciente ao saber.
152
Como diz Lacan, uma vez que todo progresso da ciência requer a afirmação de que
há saber, e a afirmação de que há saber acarreta automaticamente a suposição de um
sujeito que sabe sobre esse saber, de que esse saber está escrito em algum lugar,
então a conclusão brutal a que chega é que “toda ciência é crente”, mesmo a mais
declaradamente atéia. Toda ciência crê na função do sujeito suposto saber, que pode
ser encarnada por diversos personagens, Deus ou a natureza, o importante é a
função. (BRODSKY, 2004, p. 147).
A transferência, manejada pelo analista, será o que promove essa crença no Outro (e
não mais na maldade do vizinho ou não apenas nela) que possibilita uma entrada em análise.
Isso nos conduz de volta ao 1º semigrupo do 2º grafo (Fig. 12), no qual a transferência
desemboca no inconsciente, que pode ser entendido como um saber sem sujeito, mas que é o
saber de que se trata em uma análise – ou melhor, a partir de um certo momento dessa análise,
ao se considerar que “O percurso de uma análise vai do sujeito suposto saber ao saber sem
sujeito” (BRODSKY, 2004, p. 155). É esse saber sem sujeito que emerge na análise,
produzido pelo inconsciente. Saber sem sujeito na medida em que há a queda da transferência,
queda do sujeito suposto saber; a constatação que não há sujeito do saber é o mesmo que dizer
que o Outro não existe, o que acontece no fim da análise. Nessa medida, é coerente que
tenhamos dois semigrupos que determinam ou bem a presença da transferência, ou bem a
presença da sublimação, já que não há criação via sublimação onde há suposição de saber. Em
suma, podemos dizer que transferência e sublimação são antitéticos na medida em que a
suposição de saber escamoteia o vazio desde onde a sublimação pode ocorrer.
Entretanto, ainda que haja saber no inconsciente, há também um saber que falta
(LACAN, 1973/2003, p. 315). Naquele que estamos chamando de 2º grafo, a sublimação
parte do oposto, uma vez que parte do vértice em que se encontra a fantasia, que vem suprir a
falta de saber, encobrindo o real. A fantasia, no entanto, tem como causa, tal como
comentamos, a incomensurabilidade do gozo sexual do homem e do gozo sexual da mulher,
que apontam para aquilo que do ato sexual não se inscreve. Essa sequência culmina na
153
constatação de que não há relação sexual 50. Ou seja, não há um saber no inconsciente que
designe o modo como um homem se liga a uma mulher e vice-versa, dado o que acabamos de
dizer sobre o gozo e dado que, decorrente disso, a relação do homem e a relação da mulher
com o falo é diferente, como inferimos desde a entrada de cada um no Édipo. O falo é um
elemento terceiro, não instala uma suposta complementaridade e menos ainda simetria entre
homem e mulher. O que encobre esse não saber da relação sexual é a fantasia, que faz existir
um saber que não há, já que é através da fantasia que um homem pode se vincular a uma
mulher, como se soubesse como fazê-lo. Em suma, “É a partir desse momento, dessa
confrontação com o „não há relação sexual‟ que surge a possibilidade do que Lacan escreve
nesse segundo quadrângulo, ou seja, a sublimação” (BRODSKY, 2004, p. 158). Uma vez que
não há relação sexual e que o fantasma tenha sido atravessado, é a satisfação via sublimação
que permanece aberta – e, nesse sentido, estamos nos referindo à característica de satisfação
da pulsão pela via sublimatória, tal como já retomamos em Freud.
Brodsky aponta que há diferença entre sublimação e invenção, embora não se detenha
aí e as aborde por suas semelhanças. Sublinha que ambas poderiam ser situadas no mesmo
vetor e alude à invenção como um “saber fazer com”, tirado de O Seminário, livro 23, que nos
conduz novamente à questão sobre a relação entre sublimação e sinthoma, que investigaremos
no último capítulo desse trabalho. De todo modo, já podemos adiantar que a invenção de
saber seria uma alternativa quando já não há o que saber. “Assim como a invenção é um
destino para o saber que não há, a sublimação é uma solução para a satisfação que não há.”
(BRODSKY, 2004, p. 159).
A sublimação seria, portanto, a satisfação possível frente ao “não há” do saber,
ausência que remete à criação ex nihilo a que se refere Lacan em O Seminário, livro 7. Mais
uma vez encontramos a articulação entre sublimação e criação, mas de tal modo que a criação
se aproxima do “saber fazer com” que encontraremos no sinthoma.
50
É interessante notar que no Seminário XIV encontramos a afirmação “O segredo da psicanálise é que não há
ato sexual” (LACAN, 2008a, p. 293) (“Le secret de la psychanalyse, le grand secret de la psychanalyse, c'est
qu'il n'y a pas d'acte sexuel” staferla, p. 142), que depois será modificada para não há relação sexual. Trata-se
de uma precisão posterior efetuada por Lacan, de tal modo que a questão não se centre no ato sexual, mas sim na
relação, proporção (rapport). Dito de outro modo, a modificação empreendida por Lacan vem responder ao fato
de que há o ato sexual, o que não há é relação, proporção entre os sexos. Não como sexos biológicos, mas como
posições de gozo.
154
um discurso reduzido a uma escrita, que alude à tentativa de escrita do não há relação sexual.
Isso pode ser entendido como uma ênfase naquilo que há de real no discurso, que é o que lhe
estrutura e aponta para o que na teoria lacaniana, aparece como redução de uma frase a uma
letra, por exemplo. A proposição de um discurso sem palavras continuará a ser explorada
posteriormente, em O seminário, livro 17, no qual formula uma teoria dos discursos e em O
seminário, livro 19, ...ou pior.
A série de Fibonacci, por exemplo, utilizada por Lacan em O seminário, livro 16,
objetiva explicar a incomensurabilidade do objeto a com o significante (VALAS, 2001, p. 72),
mas não só isso: é uma tentativa de formalizar essa incomensurabilidade, desde a lógica.
Entendemos, portanto, que com seu recurso à matemática, como nesse caso, busca esvaziar o
sentido e subtrair de suas fórmulas um valor de verdade.
Isso indica de modo bastante específico o que já estava apontado no Seminário XIV,
quando anuncia a não existência do ato sexual: o real passa para um lugar prevalente, como
aquilo que entra em jogo na lógica da fantasia, o que ganhará destaque ainda maior no
seminário XV, na medida em que o ato será aqui trabalhado como ato analítico, no qual toma
corpo seu aspecto real. No Seminário XVI, o que surge como central é a questão do gozo
trabalhada desde a lógica e a topologia, referências importantes para Lacan na abordagem
disso que nomeia no seminário como “o campo do gozo”.
A sublimação se apresenta aqui justamente como uma relação peculiar com o gozo, o
que abre campo para nossa hipótese de trabalho. Hoffmann e Houbballah (2008) sublinham
que, para Lacan, nesse momento de seu ensino, o que está em jogo é “oferecer a encarnação
clínica de sua teoria” (p. 164). Não é por outra razão que ele afirmará que
O gozo, isso é o que só se percebe ao ver sua constância nos enunciados de Freud.
Mas é também o que se percebe na experiência – refiro-me à psicanalítica. O gozo,
aqui, é um absoluto, é o real, e tal como o defini, como aquilo que sempre volta ao
mesmo lugar. (LACAN, 2008b, p. 206/FR p. 212, grifos nossos).
Se o real já se apresentava com força no Seminário VII, na forma de das Ding e suas
vicissitudes – e, portanto, na forma do real – como central na ética da psicanálise aqui, quase
dez anos depois, encontramos a presença do real apontando para uma articulação com a
clínica que parece ganhar contornos ainda mais nítidos, na medida em que Lacan formula o
gozo como aquilo que está em jogo na experiência psicanalítica de modo central. Aquilo de
que se trata na psicanálise, aquém ou além do desejo, é, literalmente, o gozo, o que permite
156
que relancemos nossa questão a partir dessa assertiva: de que modo a sublimação pode tratar o
gozo, cuja constância na experiência psicanalítica é notável?
É possível dizer que os dois caminhos tomados por Lacan com relação à sublimação
nesse seminário podem ser resumidos da seguinte forma: por um lado, indica a sublimação
como a possibilidade de constituir a mulher pelo lado da Coisa, já que o significante sexual
falta no inconsciente, que o representante da representação da mulher está perdido. Por outro
lado, a sublimação se apresenta pela via da obra de arte, na qual o objeto a faria cócegas em
das Ding desde dentro. Nesse sentido, parece possível pensar o amor cortês como o ponto de
encontro entre as duas vertentes, na medida em que aborda a mulher, mas desde o ponto de
vista da arte, levando em conta que o amor cortês foi, em sua origem, um movimento literário.
Além das duas vertentes, a partir da discussão sobre o objeto a como condensador de gozo,
Lacan indicará a relação peculiar da perversão com a sublimação, que também abordaremos
nesse capítulo.
retoma o neologismo que criara em 1959-60 aqui. Ou seja, o vacúolo seria esse vazio central,
êxtimo e interditado porque impossível. Aquilo que já tinha sido formulado nos anos de 1959-
60, com relação a esse objeto do real, central no sujeito, retorna agora com a insígnia de
anterioridade ao significante.
Lacan se refere à função do Nebenmensch, do próximo – no sentido do homem mais
próximo, estranho e ao mesmo tempo o mais íntimo, aquele referido no mandamento Ama o
teu próximo como a ti mesmo e explicita que é esse próximo que aponta para a iminência
intolerável do gozo. O próximo é o que me é mais íntimo, mas que só pode ser reconhecido
pelo lado de fora – nova referência ao lugar êxtimo de das Ding: “O próximo é a iminência
intolerável do gozo” (op. cit., p. 219). Em suma, embora até aqui não acrescente nada
diferente do que o que já dissera com relação à das Ding, Lacan agora coloca o gozo como
ponto central de sua discussão.
É sob esta égide que dirá que o Outro, como contraponto ao outro, é justamente “um
terreno do qual se limpou o gozo”, e é aí que estaria o inconsciente estruturado como
linguagem, bem como o indício, nesse momento, da ideia lacaniana de uma anterioridade do
gozo em relação ao significante. Assim, podemos propor uma diferença que implica no Outro
como lugar do desejo e na Coisa, a partir da função de Nebenmensch, como lugar êxtimo do
gozo (HOFFMANN; HOUBBALLAH, 2008).
É a partir dessa definição do Outro como lugar de onde se limpou o gozo que Lacan
pode conceber o que já está expresso em Freud, e que Lacan formula como uma
impassibilidade do desejo, a tal ponto que passa a ser possível formalizá-lo. Trata-se da
retomada da concepção freudiana da constância do desejo como indestrutível, que em sua
insistência, atualiza o passado. Essa característica faria o desejo redutível ao formal (op. cit, p.
220). Desse modo, vemos uma mudança de ênfase no que tange ao desejo, que antes estava no
movimento metonímico do desejo e que agora Lacan desloca para sua indestrutibilidade.
Lacan refere-se à anatomia do vacúolo, que seria o que pode explicar a relação da
sublimação com o gozo como gozo sexual (LACAN, 2008b, p. 226), que é diferente da
relação sexual. Para mostrar do que se trata nesse gozo, ele se refere ao sistema auditivo e
158
51
Crustáceo milimétrico, conhecido também como pulga d‟água.
52
“Por fim, talvez seja uma sublimação que realizo aqui.” (LACAN, 2008b, p. 236).
159
Lacan realiza nesse seminário uma nova retomada sobre a questão da satisfação,
passando pela sublimação e chegando à relação sexual. Já no início dessa aula desenhara na
lousa o quadro abaixo (LACAN, 2008b, p. 211):
Nesse quadro, Lacan busca situar, a partir das interrogações da primeira linha, a
relação sexual. Vai então dizer que, se não há relação sexual, na análise afirma-se isso no
ponto em que “a Mulher, não sabemos o que é isso”, que é o ponto no quadro onde
encontramos o “X”. Aqui, trata-se da Mulher em uma acepção precisa, a freudiana.
Se em sua essência a Mulher é alguma coisa, e disso nada sabemos, ela é tão
recalcada para a mulher quanto para o homem. E o é duplamente. Primeiro no
sentido de que o representante de sua representação está perdido, de que não se sabe
o que é a Mulher. Depois, porque esse representante, quando é recuperado, é o
objeto de uma Verneinung. (op. cit, p. 221/FR p. 227).
A questão é que a negação surge na medida em que se atribui à Mulher algo que ela
nunca teve, pois que a referência freudiana é o falo. Isso que (não) a representa – o falo – ela
nunca o teve. Ou seja, “o que falta ao conjunto dessa lógica é justamente o significante
sexual” (op. cit, p. 221). Toda essa discussão acerca da Mulher tem lugar pouco tempo depois
da discussão que acompanhamos com relação ao ato sexual no Seminário XIV. Aqui, vemos a
afirmação da incomensurabilidade do gozo do homem e do gozo da mulher, bem como a não
existência do ato sexual, ganharem a forma da não existência da relação sexual e da mulher
como a Mulher, que poderia ser generalizada do mesmo modo que fazemos com o homem a
partir da referência ao gozo fálico. Lacan parte de uma interrogação da uma suposta
160
53
E antes ainda, se lembrarmos que no Seminário XIV Lacan já interroga o estatuto da incomensurabilidade dos
gozos, como já abordamos no presente trabalho.
161
A experiência nos permite também falar de pulsões „de meta inibida‟ no caso de
processos a que se permite avançar um pouco no percurso da satisfação pulsional,
mas depois experimentam uma inibição ou um desvio. Cabe supor que também com
tais processos esteja associada uma satisfação parcial. (FREUD, AE 2006/1915, p.
118, trad. e grifos nossos).
Eis aqui a proposição da “meta inibida”, que vai depois fundamentar a ocorrência da
sublimação. Freud refere-se aqui à satisfação da pulsão ser parcial; parece-nos que é dessa
precisão de Freud que parte Lacan para discutir a satisfação da pulsão, por um lado, e a
sexual, por outro.
Desse modo, aponta a pulsão como oriunda da sexualidade da qual, no entanto, nada
sabemos. Todavia, indica o que está em jogo na satisfação da pulsão: trata-se daquilo que
chama estrutura de borda, que remetem aos orifícios do corpo. O que é da ordem da pulsão
funciona, diz Lacan, por orifícios nos quais se encontra a estrutura de borda, que deverá ser
tomada no sentido matemático. Borda cujo fluxo é constante, referência à constância
característica da pulsão tal como discutida por Freud em 1915. É a partir da estrutura de borda
que ele indica que o vacúolo é o furo próprio do gozo, apontado desde esse ponto para o que é
da ordem do sexual.
A discussão lacaniana aqui sublinha a diferença entre a relação sexual e o gozo sexual,
esse último ligado ao pulsional. Quanto à relação sexual, Lacan alude a sua não existência,
que será formulada como tal anos depois, em 1972, como já indicamos, mas tenta situá-la, tal
como podemos identificar no quadro acima. A relação sexual, aqui, mas também A Mulher,
como já indicamos, situa-se como aquilo de que nada se sabe e, nesse sentido, Lacan parece
apontar sua relação com a Coisa. Como comparação, aludindo que não se trata na relação
sexual da ordem do orgânico, se refere ao funcionamento de estrutura social que encontramos
nas formigas e nas abelhas para atestar sobre a fixidez que aí encontramos: “o formigueiro,
assim como a colméia, são inteiramente centrados na realização da relação sexual” (op. cit, p.
210). Fixidez ligada a uma determinação biológica que garante a relação sexual e em nada
tem a ver com a não existência da relação sexual para o humano.
162
54
Antes, no Seminário VII, encontramos o narcisismo como um limite, tal como encontramos no primeiro
momento da sublimação; agora, trata-se de uma oposição entre narcisismo e sublimação.
55
Lembremos que Freud apontava que a libido, para que pudesse ser sublimada, precisava antes de mais nada
fluir para o Eu, para apenas em um momento posterior poder ser investida em novos objetos na forma de
sublimação.
163
com elementos teóricos com os quais não contava no Seminário VII, principalmente o objeto
a, a topologia, a lógica e a matemática.
O amor cortês, homenageando o desejo sexual pela via da poesia, a partir de um objeto
distante, impossível, “parceiro desumano” e que se define pela diferença, busca superar isso.
Lembremos que a Dama a que se refere o amor cortês, em O seminário, livro 7, é inatingível,
por pertencer a algum estrato social muito distante daquele do autor e por ser mesmo
desconhecida pelo autor do poema. Tanto a impossibilidade quanto a diferença que estão em
jogo aqui colocam em cheque o Um do amor que aponta para o narcisismo, ao mesmo tempo
em que remete ao Nebenmensch, a esse próximo que é o lugar em que o gozo se apresenta56.
Mas o interesse do amor cortês não se restringe a isso. Lacan retoma que Freud
articula a sublimação com idealização do objeto e operando com a pulsão.
Sublimamos, diz-nos ele, com as pulsões. Mas, por outro lado, que sabemos dessas
pulsões? De onde vêm elas? Do horizonte da sexualidade, que não foi minimamente
esclarecido até hoje pelo fato de elas comportarem uma satisfação sexual. Mas o que
nos é dito é que o gozo delas está ligado à sexualidade. Não é mau, nesse nível,
termos começado por afirmar desde logo que da sexualidade, nada sabemos.
(LACAN, 2008b, p. 223/FR p. 229, grifos nossos).
56
Não deixa de ser interessante notar que essa presença do gozo naquilo que é da ordem da sublimação já estava
de certo modo apontada por Freud, quando o autor refere-se à desfusão pulsional, uma vez que tomemos a
pulsão de morte como a pulsão por excelência, e, portanto, como articulada ao gozo. O tema da desfusão
pulsional comporta múltiplas consequências, que são discutidas por autores como Silva Jr. (2003, 2006 e em
parceria conosco, 2010) e Carvalho (1997, 2001, 2010). A hipótese das consequências da desfusão pulsional é
tributária da ideia de que não é possível a sublimação da pulsão de morte. Freud propõe que as pulsões de vida e
de morte surgem frequentemente mescladas, fusionadas. Assim, a partir da sublimação das pulsões de vida, a
pulsão de morte restaria livre e em estado puro, no interior do homem, gerando uma destrutividade muda,
silenciosa, uma vez que a pulsão de morte pura não tem representação possível – posto que só temos notícias da
pulsão de morte quando ela surge fusionada com as pulsões de vida, essas sim ruidosas, audíveis. Temos aqui,
em Freud, um prenúncio do que Lacan conceituará como gozo e que, se não é idêntico à pulsão de morte, é
intimamente ligado a esta.
164
aponta para o vacúolo, o furo57. Esse vacúolo estaria presente no sexual e também na estrutura
de borda, na pulsão. Evoca então o enigma da sensibilidade das paredes da vagina como
limítrofe do gozo feminino e propõe que algo aí se aproxima da Coisa. “É por isso mesmo
que lhe damos traços de mulher, quando a chamamos, no mito, a Verdade.” (op. cit, p. 224).
Temos, então, a articulação claramente realizada entre algo que tange à mulher, com relação à
qual há um furo significante, e a Coisa, ela mesma real do gozo. A alusão que faz Lacan no
Seminário VII (LACAN, 1997, p. 207) ao órgão sexual feminino em analogia à sublimação,
aqui retorna com maior amplitude no que tange às suas consequências.
7.3 PERVERSÃO
Aqui, já formulado o objeto a, Lacan interroga qual seria seu papel na sublimação e
aponta uma resposta na direção da perversão, o que até então não formulara. Mas como, se
podemos definir o perverso também por ser aquele que comanda o gozo do Outro, buscando
obturar sua falta por esse viés? Onde se evidenciaria a dimensão do contornar o furo à moda
da sublimação na perversão?
Para responder a essa pergunta, é necessária uma breve digressão: devemos retomar os
três diferentes mecanismos de constituição psíquica para extrair o que é peculiar da perversão
nesse sentido, que pode nos fornecer alguma indicação relativa à proposta lacaniana da
facilidade sublimatória na perversão.
57
Aqui, diferente do que propusemos ao discutir o primeiro momento da sublimação, não se sustenta mais a
diferença entre nada e vazio, de um lado, e falta e furo de outro. Entendemos que isso acontece porque na própria
ideia do vacúolo, com a qual Lacan trabalha aqui, está suposto seu entorno como invólucro.
165
continuidade pela via da negação da castração. Essa negação pode acontecer de três maneiras
diferentes. Cada uma dessas maneiras de negar a castração terá como resultado uma estrutura
diferente: neurose, psicose ou perversão. Cabe notar que o uso dos três termos em alemão foi
deduzido do uso que fazia Freud de cada um deles, embora ele mesmo não tivesse realizado
tal sistematização. Assim, Lacan já partirá dessa diferença para propor a constituição do
sujeito a partir desses três termos que denotam três formas distintas de constituição.
No caso da negação da castração através da Verwerfung (foraclusão), se constituirá um
sujeito psicótico. Na psicose, podemos dizer que não houve a Bejahung original anterior, ou
seja, algo não se inscreveu de início pela via da Beajhung e, em um momento logicamente
posterior, dá-se a foraclusão. A foraclusão seria a tradução de uma recusa do acesso da
ameaça de castração ao mundo simbólico. É por isso que Lacan dirá – partindo da afirmação
freudiana de que o que é recusado desde dentro retornará de fora – que o que foi foracluído no
simbólico retorna no real. Ou seja, aquilo que não foi aceito, inscrito na ordem simbólica,
retornará no real, como ocorre, por exemplo, nas alucinações (LACAN, 2002b).
Para a neurose, assim como para a perversão, a Bejahung primordial ocorrerá, bem
como o posterior recalque primário (Uverdrängung), mas o que acontece em seguida difere
em cada um dos dois casos.
No caso da neurose, há a Verdrängung, ou recalque do significante da castração.
Poderíamos dizer, nesse caso, que o que foi recalcado no simbólico retorna no próprio
simbólico, na medida em que o sintoma, que é o retorno do recalcado, é ele mesmo, uma
metáfora, tal como fica evidente nas discussões que Freud empreende de suas histéricas. Por
exemplo, no caso Elizabete von R., ficaremos sabendo que o sintoma conversivo nas pernas
era expressão metafórica – portanto, simbólica – de um conjunto de coisas: seu desejo e da
censura desse mesmo desejo de que sua irmã morresse para que assim ela pudesse desposar
seu cunhado, bem como de seu desejo e da censura a esse desejo de que o pai finalmente
morresse, para que ela pudesse, em determinada ocasião, ir com um rapaz com quem flertava
a um baile.
No caso da perversão, após a Bejahung primordial, ocorrerá a Verleugnung, termo que
surge no texto freudiano sobre o fetichismo. Podemos traduzi-lo por desmentido, embora
encontremos também outras traduções, como denegação. A Verleugnung comporta em si um
paradoxo, na medida em que implica que o sujeito sabe de algo que tenta recusar. Ou seja, o
sujeito sabe da castração materna e ao mesmo tempo a desmente. Para fazer isso, Freud indica
que o perverso lança mão do fetiche, que funcionará como objeto substituto do pênis ausente
na mãe. Assim, o objeto fetiche permite ao perverso ao mesmo tempo negar a castração, posto
166
que o objeto fetiche substitui o pênis materno, e admiti-la, na medida em que o objeto fetiche
vela a castração, encontrando-se no lugar daquilo que falta. Lacan indicará, para além do
fetiche, o funcionamento perverso em que o sujeito se coloca como pivô, como instrumento
do gozo do Outro. É a isso que se refere quando, retomando a cena do texto freudiano “Bate-
se em uma criança”, pergunta em que posição estaria o perverso. Responde que o perverso
ocuparia a posição do chicote com o qual a criança é batida, o que evidencia a posição desse
sujeito.
Posteriormente, Lacan avançará na discussão da perversão, buscando especificar suas
declinações e relações do sujeito com o objeto a. É no bojo desse esforço que encontramos
indicações no Seminário XVI que buscam articular os diferentes tipos de objeto a com
diferentes formas topológicas.
Lacan indica que o objeto a pode funcionar como equivalente do gozo, em razão de
sua estrutura topológica, dada a posição de extimidade do objeto a e sua estrutura de borda. É
por essa posição e estrutura que Lacan recorre às formas topológicas: esfera, toro, cross-cap e
garrafa de Klein para apontar seu parentesco com esse objeto e a correspondência entre cada
uma dessas formas e cada um dos quatro objetos a: objeto oral, objeto anal, objeto
escopofílico e objeto voz. Feita essa indicação, Lacan retoma a função do objeto a na clínica,
para discutir a perversão – na medida em que ela evidencia toda a importância dessa discussão
em torno do real e do objeto a. A abordagem da perversão, nos termos em que Lacan propõe
aqui, só é possível levando-se em conta o objeto a em sua função de captura de gozo.
Antes de estar, possivelmente, por métodos que elaboram sua produção, sob a forma
que há pouco qualificamos de comercial, o objeto a, em níveis exemplificados com
precisão pela clínica, fica em posição de funcionar como lugar de captura de gozo.
(LACAN, 2008b, p. 241/FR p. 249, grifos nossos).
É esse gozo que o perverso restitui ao Outro. Lacan procede a uma crítica ao modo de
se tentar definir a perversão pelo avesso da neurose apenas – ainda que aí já identifique uma
ordem topológica. Propõe que a perversão se define por um modo específico de estruturação
167
pelo significante – e, portanto, pelo Outro – mas também em sua relação com o furo do Outro,
pelo modo como se introduz esse furo e se o trata, hiância que é o objeto a. A ideia de que o
recalque na neurose seria uma defesa contra a perversão, contra o desejo perverso, bem como
referir-se ao perverso como aquele que despreza o outro, seriam simplificações que não
contribuem para que se evidencie o que é peculiar à perversão. Definir a perversão apenas
como avesso da neurose é uma simplificação que diz muito pouco sobre essa estrutura.
O perverso se consagra, diz Lacan, a tapar o furo no Outro, de modo a garantir sua
existência assim. Por isso Lacan o chamará um defensor da fé – fé no Outro. O perverso, na
vertente exibicionista, garante sua existência fazendo aparecer o olhar no campo do Outro,
como modo de evocar o inapreensível do olhar naquilo que ele guarda de “relação topológica
com o limite imposto ao gozo pela função do princípio de prazer.” Nesse sentido, é pelo gozo
do Outro que o exibicionista zela. O exibicionista, que a princípio não goza, estando a serviço
de fazer o Outro gozar, só pode gozar a partir do gozo do Outro. A questão não pode se
reduzir à interrogação sobre a intenção do exibicionista com relação ao outro, se ele quer
causar medo, susto, cumplicidade etc. naquele que o assiste. Não é essa a essência da pulsão
escopofílica, mas sim fazer aparecer o olhar – em seu estatuto de objeto a – no campo do
Outro, pois essa é a forma de fazer o Outro gozar. O outro é aqui o suporte disso, na medida
em que funciona como ponto de referência no qual a fala ganha seu estatuto verdadeiro. É isso
que causa a aparência de desprezo pelo outro que o exibicionista nutre. Por outro lado e de
modo não simétrico, o voyeur interroga no Outro o que não se pode ver, aquilo que é da
ordem do inapreensível. É isso que o voyeur busca ver através do buraco da fechadura,
tapando o furo do Outro com seu próprio olhar. Nesse caso, podemos dizer que o objeto a está
no próprio olhar do voyeur.
Já com relação ao sadomasoquista, seu objeto a é a voz, mas com declinações
diferentes conforme estejamos nos referindo ao sádico ou ao masoquista. Nos jogos sádicos,
trata-se de despojar o sujeito de sua fala – embora, como já observamos no início desse
trabalho (Cap. 3), não seja a fala o objeto a, mas sim seu resto: a voz, como suporte da fala.
No caso do masoquista, é ele que deve responder fielmente como um cão à voz do Outro. A
resposta do masoquista, mais especificamente, funciona como suporte da voz que suplementa
o Outro; ele faz surgir essa voz.
O que importa, em cada uma dessas declinações da perversão, é a função de
suplemento, de algo que interroga o que falta no Outro, ao mesmo tempo se prevenindo contra
isso, na medida em que supre a falta com o objeto causa. Função que se exerce, em cada caso,
de acordo com o modo específico de relação de cada uma delas com o objeto a. A definição
168
No que diz respeito à sublimação, na aula de quatro de junho de 1969, Lacan afirma:
Para o neurótico, o saber é o gozo do sujeito suposto saber. É por isso mesmo que o
neurótico é incapaz de sublimação. A sublimação, por sua vez, é própria daquele que
sabe contornar aquilo a que se reduz o sujeito suposto saber. Toda criação artística
169
pode se afastar do referencial fálico, poderá produzir a partir do vazio – e não da castração.
Nesse sentido, o perverso teria dois caminhos abertos desde a Uverdrängun: de um lado a
Verleugnung, o desmentido da castração e de outro lado a sublimação, sendo que ambas
prescindem do recalque secundário, ou seja, da Verdrängung.
Se por um lado as indicações de Martinho evidenciam a proximidade possível entre
sublimação e perversão, nos parece que ela também deixa claro que não é apenas uma questão
de estrutura, quando ressalta que a maior facilidade do perverso para a sublimação é
verdadeira “contanto que para isso tenha talento”. Ela se refere à criação artística. De nosso
ponto de vista, cabe a indicação de que, no que tange à sublimação como criação artística ou
como aquilo que pode se desenrolar em uma aula (como o próprio Lacan indica em seu
seminário), parece possível dizer que o caminho sublimatório seria o mesmo caminho passível
de ser tomado por um neurótico – e, porque não, por um psicótico, desde uma indicação
precisa: de certa forma, para além do fato de que o perverso tenha mais facilidade para a
sublimação, é esse o caminho ético apontado por uma análise, na medida em que se refere a
um modo de se relacionar com o gozo. Nesse sentido, nosso entendimento é de que se trata de
um caminho transestrutural – ao menos no que diz respeito a uma direção ética de
tratamento, na medida em que ela seja correlata ao fim de análise e a um modo específico de
lidar com o gozo.
Entendemos que a sublimação seria a ocorrência que poderia endereçar esse gozo a
uma criação (não necessariamente artística, lembremos), pensando o vazio de das Ding como
esse oco que, uma vez provocado pelo objeto a, pode produzir algo que promova a satisfação
da pulsão – talvez pela via da produção do gozo feminino, tal como aventamos no Capítulo 4.
171
QUARTA PARTE:
ARTICULAÇÕES COM A SUBLIMAÇÃO
172
O documentário Elena traz à baila o que talvez seja um paradoxo das artes. Partindo
do estatuto do phármacon de Platão, com suas características de veneno e remédio, arriscamo-
nos a dizer que a arte seria – ou guardaria a possibilidade de ser – por um lado, remédio, mas
por outro, veneno no que tange ao gozo. Nesse caso, utilizamos a ideia de veneno como algo
que intoxica – na linha do que poderíamos chamar de gozo mortífero – e o remédio como o
que pode produzir um tratamento. O que nos interessa do ponto de vista do phármacon é
aludir a essa dupla possibilidade de uma mesma substância que implicaria modos distintos de
se aproximar dela, de utilizá-la. Em outras palavras, podemos perguntar se a arte pode
promover para o artista algo como um tratamento do gozo, mas se pode também levar na
direção oposta, de um encontro com um gozo pleno como o do suicídio. Entendemos que é
essa a dupla vocação das artes – ou daquilo que a sustenta, seria mais preciso dizer e que é da
ordem da relação com a Coisa – que o documentário parece mostrar, recuperando o suicídio
da personagem Elena, sua relação com a arte e a própria realização do filme de Petra Costa.
Frente à morte, para quem fica, há tratamento – mas a ausência não desaparece, o
buraco não deixa de existir. Como lembra Cruglak (2001), desde Lacan, a dimensão
intolerável não é a experiência da própria morte, que ninguém tem: é a experiência da morte
do outro. Nesses casos, chorar a morte não basta: há o trabalho de luto, há a possibilidade da
melancolização, há, em um caso e em outro, a pergunta sobre o que se pode fazer com a
ausência. É devido a ela que se busca falar do indizível, de muitas maneiras. Alguns tocam o
impossível contornando o que não pode ser dito – não porque é proibido, mas porque é
impossível dizer. Há esse ponto que as palavras simplesmente não atingem, que é da ordem
do real. A ausência do objeto – causada pela morte, por exemplo –, pode reproduzir o vazio
da Coisa – é dessa premissa que Lacan parte para se referir à sublimação como alusão ao
vazio da Coisa.
É isso que coloca em cena o documentário Elena. O filme tem justamente o efeito de
tocar no ponto instaurado por uma ausência – no caso, a morte da irmã de Petra, Elena – que,
pelo tratamento recebido no filme, remete ao vazio da Coisa à moda da sublimação.
Trata-se, evidentemente, de um documentário com forte teor autobiográfico, o que nos
leva a uma discussão velha conhecida da psicanálise que envolve a vida particular e a obra
produzida pelo artista. Evidentemente, o caráter autobiográfico do documentário não nos
autoriza a saber algo sobre a pessoa que foi Elena ou sobre quem é Petra – não é isso que está
174
em pauta. Uma discussão acerca do filme tem intenção de nos permitir avançar em nossa
discussão sobre a sublimação, a partir da produção que é o documentário. Por esse motivo,
essa discussão também se apoia em alguns outros materiais igualmente públicos, como uma
entrevista realizada com Petra Costa sobre o documentário. Dito de outro modo, trata-se aqui
de realizar uma discussão a partir da obra ficcional criada por Petra, qual seja, seu
documentário e aquilo que ela pode dizer sobre sua produção.
Mesmo que estejamos falando de um documentário – o que teoricamente aponta para a
documentação daquilo que realmente, aconteceu – entendemos que estamos nos referindo a
uma obra ficcional, na medida da proposição lacaniana de que toda verdade se revela numa
estrutura de ficção (LACAN, 1998, p. 22; 1960, p. 822). Levando a proposição lacaniana à
sua radicalidade, como faz o próprio Lacan, entendemos que a criação de uma ficção, tal
como o documentário Elena, evidencia a estrutura da verdade em jogo, na medida em que “O
fictício, efetivamente, não é, por essência, o que é enganador, mas, propriamente falando, o
que chamamos de simbólico” (LACAN, 1997, p. 22). Desse modo, tomamos o documentário
como uma produção simbólica que, nesse caso específico, toca o real.
É possível falar em homologia entre o modo de discutir um caso clínico e a maneira
como podemos abordar obras de arte, tal como ora nos propomos a fazer com o documentário
Elena. É nesse sentido que Lacan condena a psicanálise aplicada, lembrando que a psicanálise
só se aplica “a um sujeito que fala e ouve” (LACAN, 1958/1998, p. 758) e que, afora esse
caso, estamos nos referindo ao método psicanalítico, “aquele que procede à decifração dos
significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado” (id.,
ibid.) e que, por essa via, encontra aí a estrutura do sujeito tal como a designa a psicanálise.
Desse modo, ainda que haja diferenças entre caso clínico e obra de arte – haja vista a ausência
de transferência no segundo caso – sustentamos a homologia entre ambos na estrutura do
sujeito.
Observamos que o documentário Elena causa um efeito bastante peculiar naqueles que
o assistem: ou bem são tocados de modo intenso pelo filme, ou o rejeitam fortemente – parece
impossível a neutralidade. É a própria Petra quem relata, em entrevista a Thais Lazzeri, como
artistas que nem chegaram a conhecer Elena, se propuseram a participar do trailer de
175
discutir, é o tratamento que Petra dá a ambas que proporciona ao filme a qualidade peculiar,
o seu caráter sublimatório, que aqui abordamos – e possivelmente o efeito de causar,
naqueles que também convivem com a ausência, o desejo de falar sobre ela, desejo de
inscrever o impossível, tocá-lo de algum modo.
Em um nível, parece difícil separar a personagem de Petra da irmã no documentário,
assim como testemunha a própria Petra e a sucessão das cenas e vozes em cena no filme; ora é
Petra quem fala em off, enquanto assistimos imagens de Elena; ora é a voz de Elena58 que
ouvimos e o que se vê são cenas protagonizadas por Petra. Mais do que isso, há pontos
cruciais de identificação entre as duas, como o desejo de ser atriz, o amor à arte, a aparência
física e outros ainda:
No filme, o momento em que Petra, pouco depois da morte de Elena, diz querer
morrer, também aponta para aquilo que chama de sua identificação com a irmã. Identificação
imaginária, diríamos, por um lado, que trás para Petra a difícil tarefa de conviver com a morte
dessa que em alguns momentos se mostra como um espelho para ela. A dimensão do
narcisismo está presente aqui, sem dúvida. Se o que está em jogo, por um lado, é da ordem da
identificação imaginária, não é apenas disso que se trata. A construção do filme entrelaça a
vida de Petra e a morte de Elena, de modo a evidenciar o que diz Cruglak com relação ao luto
e à melancolia:
É-nos necessário situar o estatuto da perda como questão central no que concerne ao
luto e à melancolia, o que nos leva a precisar, em primeiro plano, que a perda de que
se trata é, em cada caso, a reativação da perda original: perda da Coisa no objeto.
(CRUGLAK, 2001, p. 68, grifos nossos).
Essa autora aponta, desde Freud e Lacan, três saídas distintas para a perda: o desvio da
libido para outro objeto, o que acarretaria em certa medida uma substituição do objeto
perdido; a não retirada da libido do objeto, que teria como efeito a alucinação do objeto
perdido e, por último, o estopim para um ato criador, saída que nesse momento tudo indica ter
58
Elena gravou cartas em fitas K7 quando morou sozinha em Nova Iorque, que enviava para a família no Brasil.
177
sido a de Petra com a realização de seu filme. Ainda que a morte de Elena tenha se dado
muitos anos antes da realização do documentário, sua ausência continua se fazendo presente
ao longo da vida da irmã, podemos nos perguntar se na forma de objeto melancolizado, no
sentido de um luto que não se concluiu.
O filme começa com a voz em off de Petra:
Elena, sonhei com você essa noite. Você era suave, andava pelas ruas de Nova
Iorque com uma blusa de seda. Procuro chegar perto, encostar tocá-la, sentir seu
cheiro. Mas quando vejo, você está em cima de um muro, enroscada em um
emaranhado de fios elétricos. Olha de novo e vejo que sou que estou em cima do
muro. Eu mexo nos fios, buscando tomar um choque. E caio. Do muro bem alto. E
morro. (COSTA, 2012).
O sonho, que abre o filme, mostra a tentativa de Petra de se aproximar da irmã; tocá-
la, sentir seu cheiro – o que parece ser a busca do próprio documentário: resgatar alguma
coisa da irmã que já se foi. Alguma coisa que só pode ser capturada na condição de objeto a,
naquilo que se desprendeu da irmã: alguma coisa de sua voz (gravada em fitas K7), algo da
ordem do olhar que busca encontrar nas imagens dos filmes caseiros em que a irmã aparece.
Não à toa, muitas das cenas do filme mostram imagens granuladas, sombras, luzes em meio
ao escuro, imagens indiscerníveis, eventualmente filmadas de um trem em movimento ou a
partir da perspectiva de alguém caminhando pelas ruas, gotas de água escorrendo
horizontalmente em vidro (a janela de um avião em movimento na chuva) e outros relances
que evidenciam sempre partes, pedaços, nuances em meio ao movimento.
Em seguida, é Petra quem está em cima do muro, buscando tomar um choque. A
referência ao “em cima do muro” não passa despercebida: pode ser entendida como a
expressão usada para se referir a alguém que não se decide, que não se posiciona. Mas o que
vem em seguida é a busca por um choque – como alguém que precisasse acordar a si mesmo;
sair de cima do muro.
O sonho anuncia a passagem de uma posição à outra, da saída de cima do muro
através de um ato: a busca do choque, a queda de uma posição. Como em toda passagem, algo
morre – no sonho, a própria Petra. Ato que, tal como discutimos no Capítulo 5, é significante,
funciona como marco e, nesse sentido, inaugura a abertura para algo novo desde a repetição,
para algo que ainda não se sabe o que será, na medida em que o ato trás em si a dimensão de
abertura. No caso, o que vem depois da morte no sonho é o filme. Os fios que aparecem no
sonho também reaparecem em outro contexto: Elena se refere a um “rolo de fios no peito e na
garganta”, que sempre estiveram ali e a impediam antes de respirar e agora a impedem de
178
falar, como que a amarrando por dentro. Talvez os fios do sonho, que agora são elétricos e
que a prendem no alto do muro, refiram-se, aludam a esses outros. Fios que prendem, por
dentro ou por fora. Fios dos quais Petra se solta depois do choque, quando cai do muro.
É importante sublinhar a noção de passagem, pensando na sublimação como amparo à
possibilidade de uma passagem, na medida em que trata o gozo. Cabe notar que passagem é
um significante que insiste em Elena, principalmente nas cenas iniciais, nas quais o que se
acompanha é o deslocamento de Petra, a pé ou de carro, buscando de algum modo Elena em
Nova Iorque, além das outras cenas já mencionadas, que mostram sempre a perspectiva de
alguém que se movimenta.
Embora Petra se refira à Ofélia – e o filme faça alusão à personagem shakespeariana,
nas imagens que aludem à imagem de Ofélia em seu leito de água/leito de morte; embora ao
que tudo indica Ofélia tenha ela mesma se suicidado, enlouquecida pela tristeza da perda de
seu pai e da privação de seu amor, é Hamlet quem se pergunta sobre o ser – questão crucial
que fica a descoberto, exposta de um modo muito peculiar no documentário, tanto na voz de
Elena quanto no que narra Petra sobre suas próprias dúvidas. Pergunta sobre o ser e também
sobre um sentido que não há. Pergunta que se atualiza sempre e cujas respostas que um sujeito
pode tecer não serão sem consequências em sua vida.
Vi o filme milhares de vezes para fazer correções, mas nunca na tela do cinema,
como o espectador verá. Não consegui. Sinto que não faz sentido. Preciso dar um
tempo para ele respirar, para a memória descansar um pouco, para poder esquecer e
depois lembrar sem sentir tanta dor. (LAZZERI, 2013).
O que se configura como motor para Petra é da ordem do real que não se inscreve: o
suicídio de sua irmã e todas as consequências que daí advém. Embora o tema do trauma abra
um novo campo de discussão e pesquisa na teoria lacaniana, que certamente contribuiria em
nossa discussão, não nos deteremos aí. No entanto, notemos que é a partir do encontro com o
real como traumático, da passagem ao ato de Elena, que a diretora se encaminha para seu
próprio ato – para seu ato de criação, que parece implicar uma passagem em outra acepção.
Fink aponta para uma dimensão do trauma que é a do encontro com o desejo do Outro. Nesse
caso,
– o trauma funciona como a causa da criança: a causa de seu advento como sujeito e
da posição que a criança assume como sujeito em relação ao o desejo do Outro. O
encontro com o desejo do Outro constitui uma experiência traumática de prazer/dor
ou gozo, que Freud descreve como sexual uber, uma sobrecarga sexual, o sujeito
advindo como uma defesa contra essa experiência traumática. (FINK, 1998, p. 86).
59
A produção do documentário Elena criou um prêmio com esse nome, no intuito de dar lugar à avalanche de
depoimentos que chegaram à Petra e à produção do documentário, de pessoas que, assistindo ao filme, se
sentiram compelidas a contar sobre suas próprias perdas.
180
filhas teriam “herdado” o sonho da mãe. Entretanto, como herdar o sonho do Outro sem estar
colado nele?
Ser atriz de filmes de Hollywood, para a mãe das duas irmãs, seria escapar da
desadaptação, da falta de lugar que sentia em sua vida. É assim que a mãe, então adolescente,
dá a si mesma um prazo para encontrar um lugar no mundo: até seus 16 anos. Em que pesem
as injunções e mudanças vividas na adolescência, o que se evidencia aqui é ser atriz de filmes
como saída frente à inexistência da relação sexual, ao desamparo do real: ser atriz de cinema
americano, aqui, comparece como objeto da fantasia, que poderia tamponar o real. No
entanto, nesse momento a mãe conhece aquele que, recém-chegado do país tão admirado por
ela na forma dos filmes que ali se produziam, virá a ser o pai de suas filhas. É ele que
aparentemente passa a cumprir essa função de objeto de fantasia antes ocupado pelo “ser atriz
de cinema americano”.
Elena, antes de passar ao ato, encontra-se em uma crise na qual pensa não ser capaz de
ser atriz e diz à mãe que sem a arte, é melhor morrer, o que nos faz pensar em uma colagem
na demanda do Outro, da qual o sujeito então não se separa60.
Para Petra, até pela própria produção do documentário com obra autoral, é possível
dizer que se trata de separação da herança materna, desde a apropriação dessa mesma herança
como algo seu. Até que ponto o ato criativo de Petra não alude à separação do Outro, em uma
das rearticulações lógicas das operações de alienação separação, que podem se atualizar ao
longo da vida de um sujeito? Operação fundadora, traumática por excelência e que deixa
como saldo a ausência, ponto de novo tocado pela morte de sua irmã, a partir da qual Petra
cria aquilo que alude ao vazio da Coisa.
A época da separação dos pais de Petra e Elena é marcada, segundo o filme, pelo
distanciamento de Elena, então com 15 anos de idade. Distanciamento que é acompanhado
por uma parada nas filmagens amadoras que fazia desde os 13 anos, época em que nasce Petra
e quando ganhou de presente uma câmera, com a qual fazia desde então filmes que, apesar do
tom de brincadeira, guardavam intenções cinematográficas. Distanciamento que também é
correlato à busca de Elena em ser “atriz de verdade”. Cabe interrogar o efeito dessa separação
dos pais em Elena, já que é identificada pelo documentário como um marco. Marco de algo da
60
Não é nossa intenção propor um diagnóstico estrutural das personagens, mesmo que indiquemos possíveis
operações do sujeito em jogo. Ainda que normalmente localizemos essa colagem na demanda do Outro
principalmente na psicose, estrutura na qual a operação de separação do Outro não ocorreu, é possível entender,
desde as indicações de Lacan no Seminário X, o momento de angústia como o momento em que o sujeito se
reduz ao objeto a, objeto do Outro. Nesse momento, portanto, identificado ao objeto a, é possível encontrar a
colagem ao Outro a qual nos referimos, independente da estrutura clínica.
181
ordem da separação também para ela, que empreende um movimento rumo a sua busca
profissional, apontando para uma tentativa de separação do Outro?
Assim como o “ser atriz” pode se apresentar no lugar de objeto que vela o real, Elena
cria outros objetos ao longo do filme que poderiam, ingenuamente, cumprir essa função: a
concha que dá de presente à Petra e que permitiria que as irmãs se comunicassem mesmo à
distância; antes de ir para Nova Iorque pela primeira vez; o cachorrinho de pelúcia azul que
atende desejos. Entretanto, o que fica evidente ao longo do documentário, é que não há objeto
que consiga protegê-la a ela, Elena, do real que não se inscreve e insiste.
Quando passa ao ato, Elena escreve uma carta, na qual se refere a um escuro que
nunca vai terminar. Suspensão do tempo que indica a falta da falta, momento da angústia.
outro significante” (op. cit., p. 197) partindo do fato de que o sujeito só pode ser representado
parcialmente, reduzido a um significante e sempre a partir do campo do Outro. Ou seja, o
sujeito só pode apreender a si mesmo através da linguagem, “como uma representação, uma
máscara que o aliena” (DOR, 1989, p. 107). Tal como vimos no Capítulo 6, na sessão
Alienação, o vel da alienação impõe um ou...ou, que significa uma escolha em que uma das
partes será necessariamente excluída. Esse funcionamento é próprio da linguagem, é condição
para esse surgimento primeiro do sujeito e que impõe sua parcialização, uma vez que só pode
surgir como significante: “o sujeito só está ali presentificado ao preço de mostrar-se ausente
em seu ser” (op. cit., p. 107).
É nesse sentido que Lacan refere-se à escolha que tem que ser feita com relação ao ser
e ao sujeito: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a
vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada.” (LACAN, 1985, p. 201). Poderíamos dizer que
entregar a bolsa seria o preço de aceder à linguagem; abrir mão do ser para entrar na
linguagem. Trata-se de uma escolha, mas ao mesmo tempo uma escolha forçada, na medida
em que não é possível manter a bolsa e a vida ao mesmo tempo, é preciso escolher. No
entanto, como atestam as psicoses, é possível escolher a bolsa e, nesse caso, não abrir mão do
ser, recusando-se ser representado pela camisa-de-força da linguagem (FINK, 1998, p. 72). É
nesse sentido que Fink afirma que o psicótico pode assimilar a linguagem, mas não vir a ser
nela, diferente do neurótico (op. cit., p. 78). Assim, na psicose também algo se perde – se não
o ser, uma possibilidade na linguagem.
Na alienação, a criança busca ocupar todo o espaço do desejo da mãe, tentando saber o
que a satisfaz, tamponar sua falta. Assim, ficaria garantido seu lugar de falo. Eis aqui uma
leitura possível da origem da afirmação lacaniana de que o desejo é o desejo do Outro; ainda
que haja mudanças com a separação, como veremos a seguir, é possível dizer que já neste
momento inicial de alienação é o desejo do Outro que baliza e estrutura o desejo do sujeito à
sua imagem e semelhança. Aqui, podemos dizer que o desejo da criança é obturar o desejo da
mãe, corresponder totalmente a ele. Nesse caso, o desejo da criança se sobreporia
perfeitamente ao desejo a mãe, obedecendo seus contornos.
No entanto, a criança não chega a ser bem sucedida em seu intento de completar a
mãe, que na maioria das vezes tem outros interesses para além da criança e não se satisfaz
inteiramente apenas com ela. Mesmo que isso ocorra em um momento mais inicial, em que a
criança ocuparia o lugar de falo da mãe, algo pode intervir em um segundo momento – a
função paterna, com frequência encarnada pelo próprio pai da criança, mas eventualmente
encarnada por qualquer outra coisa que ocupe essa função de quarto elemento e que
183
intervenha entre a criança como falo e a mãe61, atraindo o interesse da mãe e evidenciando
que a criança não a completa. Caso esse quarto termo não intervenha – caso em que a mãe não
dá espaço e não se deixa ela mesma atravessar por esse quarto elemento – a relação dual não
se romperá, o que trará consequências no que tange ao sujeito que é a criança, em termos de
sua estruturação como sujeito na linguagem.
A operação que se articula com a alienação, sucedendo-a logicamente para que se
constitua aí um sujeito do desejo, é a separação. Lembremos que há uma correlação entre as
operações de alienação/separação e os tempos lógicos do estádio do espelho e do Édipo.
Assim, o sujeito alienado no Outro se dá conta pouco a pouco, a partir das presenças e
ausências desse Outro – e aqui nos referimos ao Outro primordial, com frequência encarnado
pela mãe – de que, a despeito de seus esforços, não o completa: fracassa em ser seu falo. A
criança se dá conta de que o Outro é faltante, ou seja, de que a mãe é desejante, apesar de seus
esforços em obturar a falta materna. A impossibilidade que a criança percebe de corresponder
completamente ao desejo da mãe, instaura nela a pergunta: o que ela quer? A primeira
resposta parece ser: ela quer o pai, o termo que faz com que a mãe se ausente para a criança.
Entretanto, a criança se dá conta de que também o pai não completa a mãe, pois ela retorna e
se faz novamente presente. É aí que a interrogação ganha maior alcance. Se não é a mim nem
a ele, o que ela quer afinal? O desejo da mãe torna-se então um enigma para a criança.
O enigma insolúvel diz respeito à independência do desejo da mãe com relação ao
desejo da criança. Essa independência marca uma ruptura que é justamente o que dá origem
ao objeto a, (op. cit., p. 83) esse resto que se produz quando se rompe a suposta unidade
formada pela mãe e pela criança e que ao mesmo tempo atesta sua existência (ilusória) no
passado. Assim, a criança, agora sujeito dividido e separado do Outro, pode manter a
ignorância da sua divisão relacionando-se com esse objeto. Eis aqui a fantasia, tal como
concebida por Lacan e expressa pelo matema $ ◊ a. O modo como o sujeito se relaciona com
o objeto a na fantasia caracteriza sua posição frente ao desejo do Outro. Nas palavras de Fink,
“O objeto a é o complemento do sujeito, um parceiro fantasmático que sempre desperta o
desejo do sujeito” (op. cit., p. 84). A relação com o objeto a produz um gozo que é da ordem
do gozo fálico. Nesse sentido, tal gozo vem substituir o gozo mítico da unidade mãe-criança
que foi perdida.
Lembremos que a separação do Outro não coincide com a separação dos pais, que,
como nos lembra Alberti (2009, p. 37), se dá antes da puberdade – lembrando que a separação
61
A criança, o falo e a mãe são os três elementos aqui já presentes; é nesse sentido que o pai será um quarto
elemento.
184
dos pais é diferente do desligamento da autoridade desses mesmos pais, essa sim em jogo na
adolescência. A partir de então, podemos pensar que o lugar do Outro já não é mais ocupado
pelos pais.
É importante deixar claro que, na presente discussão, não estamos nos referindo à
travessia do fantasma quando nos referimos à noção de passagem e nem ao ato psicanalítico
quando propomos uma discussão do ato62, mas sim apontando para o rompimento com uma
significação, que configura uma passagem; passagem que pode ou não reiterar a separação,
permitindo ao sujeito avançar.
No campo da neurose, a resposta à incompletude necessariamente comporta um ato do
sujeito no sentido de um reposicionamento perante o Outro que em certa medida comportaria
um “descolamento” da demanda do Outro, essa mudança de posição a que nos referimos há
pouco. Pensamos que para Petra, trata-se da separação de Elena, misturadas como retrata o
início do documentário, tal como mostra o sonho de Petra em que Elena se transforma nela;
misturadas como atesta a fala, repetida por Petra e por sua mãe no filme: “Se ela me convence
que a vida não vale a pena, eu tenho que morrer junto com ela.” Como retrata a cena em que
várias pessoas, falando em off, comparam as duas irmãs em múltiplos aspectos.
Petra também parece se referir à separação da mãe através da passagem para a vida
adulta, separação do desejo materno: “Você pode morar em qualquer lugar, menos em Nova
Iorque. Você pode escolher qualquer profissão, menos atriz”. Separar-se carregando as
marcas da separação. No entanto, se é de separação que fala o filme, é também de passagem.
Rituais de passagens, crises se passagem. Passagem para onde? O descolamento do Outro
implica mudança de posição do sujeito frente a seus ideais.
Ainda sobre o documentário, Petra fala: “Ao colocar no papel minhas memórias,
percebi que, em vários momentos, aparecia na nossa história o elemento água”. Minhas
memórias, nossa história. Há momentos em que a presença de cada uma das duas irmãs no
documentário também ganha contornos mais separados, nítidos – como na dança que faz
Petra no final do documentário: lembra a dança de Elena, em que ela se enrosca e se
desenrosca com uma corda que segura com as mãos, enquanto gira em torno de si mesma,
cena que aparece no filme algumas vezes e que evoca a repetição – tanto Petra quanto Elena
dançam, girando em círculos. No entanto, Petra dá voltas em torno de si mesma enquanto
caminha pelas ruas de Nova Iorque, apontando para a transformação implicada na repetição,
tal como discutimos no Capítulo 6, na sessão Repetição.
62
Embora os elementos aqui em jogo no que tange ao ato de fato tenham antecedido para Lacan a construção
daquilo que chamará de ato psicanalítico em 1967-68, conforme já comentamos em outro ponto desse trabalho.
185
Quando faz vinte e um anos, sua mãe lhe diz: “Agora você está mais velha que Elena”.
Em seguida, diz Petra:
As memórias vão com o tempo. Se desfazem. Mas algumas não encontram consolo.
Só algum alívio, nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória
inconsolável, feita de pedra e de sombra e é dela que tudo nasce e dança. (COSTA,
2012, grifos nossos).
A ausência, ela nos diz, é a partir de onde algo pode surgir, ser criado.
Freud enfatizou o reconhecimento social que o fruto da sublimação deveria provocar e
a importância de que o objeto da sublimação fosse também um objeto passível de ser
partilhado. Assim, o conceito se aplicaria, por exemplo, aos escritores que o autor alude em
seu artigo “Escritores criativos e devaneios”, que criam, a partir de seus devaneios
particulares, um modo especial de abordar temas relativos ao inconsciente que os torna
socialmente valorizados ao invés de fantasias bobas e singulares demais para poderem ser
compartilhadas. As transformações como essas, de ideias aparentemente sem sentido ou
mesmo constrangedoras em textos tornados públicos e que podem ser apreciados por muitos,
Freud chamou sublimação.
Já Lacan trouxe o acento do conceito de sublimação para a criação de um novo valor
social a partir do tratamento especial dado a um objeto que pode ser qualquer um. Diferente
da proposta freudiana, de uma produção que se encaixasse nos valores já vigentes, tal como já
indicamos nesse trabalho, Lacan enfatiza o aspecto da criação de valor. É por isso que usa
como exemplo para falar da sublimação uma arrumação peculiar que fez seu amigo Jacques
Prévert de uma grande quantidade de caixas de fósforos vazias, uma ao lado da outra, um
arranjo que evidenciava o oco de cada uma das suas gavetinhas. Ele redefiniu a sublimação
dizendo que aí se tratava de elevar o objeto à dignidade da Coisa. Ou seja, transformar
objetos comuns em objetos que aludem ao vazio da Coisa. O que o exemplo evocado por
Lacan mostra – e que Elena também deixa ver – é como essa transformação ocorre por um
reposicionamento dos objetos, que evidencia algo da ordem do vazio e que permite então um
novo olhar sobre esses objetos tão cotidianos. Nesse sentido, o objeto da sublimação é o
menos importante; o que realmente importa é o tratamento que é dispensado a ele.
Elena, uma pessoa comum, objeto mundano, cotidiano, ganha outro estatuto, outra
dignidade: ela é elevada, através do documentário de Petra, à dignidade da Coisa. A Coisa é,
grosso modo, esse vazio em torno do qual o sujeito se constitui, tal como o oleiro molda com
suas mãos o vaso em torno do nada, é esse o exemplo que Lacan toma de empréstimo a
Heiddegger. O oco do vaso, vazio fundante que está no centro de cada um como origem, lugar
êxtimo, estranho e ao mesmo tempo íntimo que nos funda.
187
O que o filme faz é aludir a esse vazio, tocando a ausência deixada por Elena. Por
contraditório que possa parecer, mas em consonância com as indicações de Lacan no
Seminário VII, o que causa o efeito de comoção em muitos dos que assistem ao filme não é a
beleza das imagens – ou não é somente a beleza. Não é a poesia – não apenas ela. É
justamente esse desvelamento de algo da ordem de um vazio, que se deixa tangenciar, além
ou aquém da beleza e da poesia. Ausência a partir da qual algo pode ser criado, não sem
aludir ao vazio.
É nesse lugar êxtimo, nesse vazio real sempre escamoteado por coisas como a beleza,
como os vários tipos de bens – os da bondade e os de consumo que o filme toca, de um modo
ímpar. Elevar à dignidade, como faz Petra com a memória da irmã ausente, já evidencia que
não se trata de mostrar, escancarar, identificar; não se trata de fazer um objeto à imagem e
semelhança de outro ou de tampar com um objeto o vazio deixado por outro. Trata-se de saber
que tratar o vazio implica essa alusão, esse tangenciamento – criação ex nihilo.
O documentário Elena retrata um momento muito específico de sua vida, que começa
com o nascimento de sua irmã mais nova, quando Elena tem treze anos de idade, e termina
quando de seu suicido, aos vinte anos.
Sabemos que, para aquilo que concerne ao sujeito, não é o tempo cronológico que vai
definir os momentos de alienação e separação, mas sim o tempo lógico. Ainda que se costume
situar a ocorrência inicial dessas duas operações nos primeiros anos de vida de uma criança,
não é a idade que define sua ocorrência e menos ainda são operações que, uma vez realizadas,
não se atualizariam. Nesse sentido, esses dois tempos se apresentam e reapresentam ao longo
da vida, logicamente articulados. É nesse sentido que podemos entender o momento do
suicídio de Elena como um momento que demandava uma passagem. Passagem que se
configurou em seu caso como uma passagem ao ato suicida, saída de cena radical.
A separação inclui e pressupõe um ato do sujeito que de algum modo permita que ele
realize a passagem de que se trata em cada caso – portanto, se requer um ato, não se trata
apenas de uma “fase”, de algo que “vai passar naturalmente” e que tem uma idade definida
para começar e terminar, mas sim de uma passagem que pode ou não ser realizada. Passagem
que implica uma retomada das questões edípicas, devido à injunção de posicionamento na
partilha dos sexos, a partir da demanda do Outro – e das questões do estádio do espelho.
No sentido do ato que precisa ser realizado para que se efetive uma passagem, o
suicídio pode também ser um ato, eventualmente o único ato que um sujeito conseguiu fazer
por si mesmo, de modo a separar-se do Outro – o que Alberti chamou de “travessia selvagem
da fantasia”. A autora (ALBERTI, 2009, p. 64) esclarece que o suicídio pode ser um ato do
188
sujeito no sentido da separação, uma vez que não é o ato em si que determina sua natureza,
mas sim a estrutura no qual ele se insere e que o precipita. Desse modo, a tentativa de suicido
pode ser um ato de alienação, mas também um ato de separação. No primeiro caso, o sujeito
se apaga e está totalmente submetido ao discurso do Outro, pela via da identificação –
identificação ao resto, objeto a, que se desprende do Outro, tal como refere Lacan em O
seminário, livro 10. Quando se trata da separação, o ato suicida é uma “queda do sujeito da
cadeia significante”, uma separação radical do sujeito de tudo que o determina no Outro (e,
portanto, no inconsciente).
Mas, se há a “travessia selvagem da fantasia”, há também outras travessias, outras
maneiras de efetuar passagens.
Que o suicídio é a passagem ao ato por excelência, Lacan já o havia deixado claro em
O seminário, livro 10. Lançar-se para fora da cena, como fez Elena em seu último ato, o ato
de suicídio, indica um atravessamento do simbólico e do imaginário que se configura como
puro encontro com o real, travessia selvagem da fantasia, dizemos a partir de Alberti.
Já em A lógica do fantasma, Lacan indica a função da repetição em relação à
passagem ao ato que seria a mesma que separa sublimação e acting out. Sugere também que a
passagem ao ato teria algo a ver com a sublimação do mesmo modo que aquilo que separa a
repetição do acting out (LACAN, 2008a, p. 222). Nessa série de relações, poderíamos dizer
que aquilo da ordem da repetição que atinge seu ápice na passagem ao ato,63 como tentativa
de romper com o que se repete, pode encontrar outra saída na sublimação. Se a sublimação
se separa do acting out, entendemos que isso também se deve à possibilidade de ruptura com
a repetição que a sublimação comporta, diferente do que se faz ver no acting out, que
funciona como expressão dessa mesma repetição. Dito de outro modo, após seguir o percurso
de Lacan nos semigrupos de Klein propostos no Seminário XIV até o último deles,
entendemos que a sublimação se apresenta como operação que, ainda que tenha relação com a
repetição, pode se afastar de algum modo dela sem passagem ao ato. Isso só seria possível
aludindo ao vazio da Coisa, que é solidário com a não existência da relação sexual.
63
Aí estaria a função da passagem ao ato em relação à repetição, nessa tentativa de ruptura.
189
9 COMENTÁRIOS SUPLEMENTARES
Neste trabalho, nos referimos à sublimação na neurose e na perversão. Ainda que não
tenhamos nos centrado na abordagem da sublimação na psicose, entendemos que é importante
indicar alguns pontos sobre essa relação, antes de avançar nos comentários sobre a
proximidade entre sublimação e sinthoma.
A possível relação entre sublimação e sinthoma é abordada por diversos comentadores
do ensino de Lacan. Trata-se de um ponto importante na medida em que, a partir do
Seminário XVI, o autor não se refere mais à sublimação em nenhum momento e, alguns anos
depois, formula o sinthoma, no Seminário XXIII, a partir da discussão que empreende desde a
escrita de James Joyce, criando então sua teoria dos nós. Não passa despercebido para muitos
comentadores o parentesco, em algum grau, dos dois conceitos, motivo pelo qual julgamos
pertinente realizar uma passagem também por esse tema antes de concluir, de modo a tentar
evidenciar de que parentesco se trata.
Nossa intenção, nesses comentários suplementares é apenas deixar indicados caminhos
possíveis, que não serão trilhados de forma extensa no presente trabalho, deixando aberturas.
Nossa intenção é destacar alguns pontos importantes e, por vezes, paradoxais ligados às três
articulações propostas: sublimação e psicose primeiro, em seguida sublimação e sinthoma e,
por último, sublimação e final de análise.
possibilidade de sua conjunção. Desse modo, Quinet propõe que a psicose está para o
sinthoma assim como a sublimação está para a neurose, mas termina por aceder que pode
haver sublimação na psicose. Demonstra isso na discussão que empreende sobre Arthur Bispo
do Rosário (QUINET, 2003). Cruxên (2004), que justamente nos fala da foraclusão do furo
(furo de das Ding), termina seu texto exortando pesquisadores a se debruçarem sobre o que
seria e como poderia ocorrer a sublimação na psicose. Soler (1998) também aborda o tema a
partir de sua discussão sobre Rosseau e Joyce. Pommier propõe claramente a sublimação
como final de análise na psicose, embora não leve em conta o sinthoma nesse debate.
Lacan associa a lei do incesto com das Ding, na medida em que o desejo pela mãe não
poderia ser satisfeito sob o risco da abolição do mundo da demanda, que é o que estrutura o
inconsciente.
Ao mesmo tempo, já indicara que das Ding é anterior a lei do incesto e, mesmo aqui,
aponta para uma relação da lei do incesto enquanto inconsciente com das Ding. Deduzimos,
portanto, uma comparação, uma analogia que não iguala a ambas, mas sim as coloca,
digamos, na mesma esteira. Dito de outro modo, das Ding é aquilo que deve ser buscado, mas
não pode ser alcançado; é o objeto daquilo que não é acessível, mas que dá as coordenadas ao
princípio de prazer, indicando a direção do desejo ao mesmo tempo em que o proíbe. Das
Ding aponta para o objeto inatingível e, nesse sentido, impossível. Não podemos esquecer que
a lei do incesto, como tal, está ligada à inscrição de um significante. Das Ding é anterior a
todo significante.
Se das Ding fosse equivalente à lei de interdição do incesto, então estaria ligada ao
advento do Nome-do-Pai, como aquilo que interdita o incesto. Consequentemente, caberia o
questionamento sobre o estatuto de das Ding na psicose. Como seria possível falar em
sublimação, na medida em que das Ding estaria rejeitada, via foraclusão? Nesse sentido,
192
Quinet (2003, p. 72) apresenta uma precisão que nos será muito útil: o que está foracluído na
psicose é a realidade psíquica e não a Coisa; é o significante, não o real da Coisa.
Principalmente ao se tomar a Coisa como gozo, o qual o psicótico não rejeita, mas ao qual
está submetido, pelo qual é invadido e assujeitado. Jorge (2005) adverte que não se confunda
o objeto materno com das Ding, o que promoveria uma confusão entre o impossível e o
proibido. Essa confusão promoveria a degradação da descoberta freudiana, sua
imaginarização, que teria como consequência pensar a direção do tratamento como uma
normatização do sujeito a partir do Édipo, retificando sua relação com o objeto perdido. Desse
modo, uma vez que não se tratasse na sublimação de foraclusão da Coisa, aquela seria
teoricamente uma possibilidade aberta à psicose de uma forma geral.
Entendemos na neurose e na psicose relações diferentes com a Coisa, naquilo que
tange à sua delimitação; no caso da psicose, haveria uma coerção a lidar com ela como
possibilidade de delimitação do gozo invasivo do vazio da Coisa, que estaria por sua vez mais
“domado” na neurose. O delírio seria uma das formas de lidar com esse estranho inaugural
que é a Coisa. Todavia, não seria justamente essa coerção a lidar com a Coisa motor da
sublimação na psicose?
Ainda que partamos da ideia de que há algo de ordem da criação que pode se operar a partir
da fantasia, podemos formular diferenças entre a criação pela via da fantasia e a criação pela
via da sublimação. Enquanto a primeira funciona como uma tela sobre o real, a sublimação
alude ao real. Assim, a fantasia busca recobrir aquilo que a sublimação alude e que é da
ordem do furo. Mais que isso, Lacan dirá que a Coisa é aquilo do real que padece do
significante (op. cit, p. 157), apontando para a dimensão real que é central no sujeito e ao
mesmo tempo para a ideia de que a Coisa, padecendo do significante, pode ser causa de
criação. O que causaria a criação seria justamente o furo no real que o significante perpetraria,
pois “Ao Real não lhe falta nada, esta falta é engendrada pelo significante” (CRUGLAK,
2001, p. 99 a partir de Lacan, Seminário X). Assim, o real padece justamente de sua relação
com o significante, padece pelo significante.
Se em uma análise de neurótico o que se visa é a travessia da fantasia, ou seja, que o
sujeito de algum modo se dê conta da fantasia como criação sua, responsabilizando-se por ela
para que possa então atravessá-la, a análise abriria a possibilidade da criação como
sublimação. Criação que alude ao vazio ao invés de buscar encobri-lo. É nesse sentido que
algo pode se criar a partir da análise – e, tal como já dissemos, não estamos nos referindo
necessariamente a obras de arte, pois talento artístico não necessariamente tem relação com a
sublimação e menos ainda é suscitado apenas por uma análise. A análise pode, sim incidir
sobre a inibição que impede um artista de criar, mas com certeza não criará talentos antes
inexistentes. Nesse sentido, a sublimação em jogo em uma análise, é essa que abre espaço ao
aludir o vazio da Coisa, espaço vazio que pode dar origem àquilo que é da ordem da
transformação frente à repetição da neurose.
Podemos falar em criação na psicose desde a sublimação?
Soler (1998) faz uma discussão em torno das escritas de Rousseau e de Joyce,
comparando-as, diferenciando-as e revelando suas peculiaridades, em um percurso que
certamente nos auxiliará a indicar uma direção para a questão acima.
Essa autora fala da possibilidade da literatura como sinthoma e do gozo a ela
vinculado; remete-se a dois tipos de sintoma64, o de James Joyce e o do complexo de Édipo.
Aqui podemos ver que talvez a invenção não seja criação. O sintoma inventa – o que
significa: escolhe, seleciona – o termo singular que não é programado pelo Outro, e
que fixa o gozo. Mas este termo não é necessariamente um termo original. Neste
sentido, se a criação – a verdadeira criação que produz uma novidade radical – é um
64
Nesse texto, Soler não diferencie na grafia sintoma de sinthoma; refere-se quase sempre ao “sintoma”, mesmo
quando se refere ao que Lacan nomeia como “sinthoma”. Em nosso texto, optamos por indicar a diferença na
grafia, escrevendo sinthoma para nos referir ao tema que Lacan trata no Seminário 23.
194
exatamente isso que Rousseau faz. Entretanto, levando em conta a característica de alusão ao
vazio da Coisa, tudo se complica. Pois se há a criação de novos valores, há, a princípio, o
rechaço que o paranoico faz à Coisa (Soler, C. 2007 p. 59), desde sua Unglauben, sua
descrença com relação ao vazio que o habita. Essa Unglauben estaria relacionada à foraclusão
e, nesse sentido, seria uma forma de manter fora do simbólico aqueles significantes que
poderiam implicar o sujeito. É o Outro que acusa o paranoico por faltas que ele não cometeu,
não é ele que comete atos condenáveis. Isso seria inaceitável. Assim, para o paranoico, o gozo
ficaria do lado do Outro. Para essa autora, portanto, não poderia haver sublimação na psicose,
pois como aludir ao vazio da Coisa se ela está rechaçada? Tratar-se-ia, portanto, de uma
tentativa do paranoico de lidar com o gozo do Outro – e não, pela via sublimatória, lidar com
o gozo da Coisa. Nesse sentido, para sustentar a hipótese da ocorrência da sublimação na
psicose, precisaríamos supor que em casos especiais não haveria esse rechaço. Mas como
justificar essas exceções?
Soler também aponta, com relação ao melancólico, sua impossibilidade de elaboração
sublimatória, já que o melancólico se apropriaria de todo o vazio da Coisa.
Todavia, se o reconhecimento social de valores propostos por Rousseau está presente,
isso parece apontar para a sublimação na acepção da criação de valores, tal como já
discutimos nesse trabalho. Entretanto, se podemos falar em sublimação em Rousseau, onde
estaria a alusão à Coisa? Parece não haver relação direta da sublimação proposta por ele e seu
delírio. Poderíamos falar de duas operações diferentes e coexistentes no mesmo sujeito, como
o delírio e a sublimação? Podemos dizer que se trata de tentativa de tratamento tanto no
delírio quanto na sublimação e que, portanto, de algum modo, haveria sublimação?
Uma direção possível para essa discussão parece apontar para o furo que
eventualmente pode ser empreendido, por exemplo, no delírio. A dúvida do psicótico que, a
partir do tratamento, muitas vezes vemos surgir com relação a seus próprios delírios. Não
seria nesse furo que a sublimação poderia se instalar?
as produções artísticas que encontramos na psicose. Ainda que a articulação mais direta e
óbvia seja entre psicose e sinthoma, entendemos que a pergunta cabe.
O que se evidencia na crise psicótica é a ausência de uma amarração dos três registros,
real simbólico e imaginário, que permita ao sujeito psicótico estabilidade. Nesse sentido, ele
precisaria produzir algo singular que cumprisse essa função de amarração, uma vez que a
metáfora paterna – que faria a função de amarração na neurose – não adveio. As figuras
teóricas com as quais contamos para dar conta dessa questão são a metáfora delirante e o
sinthoma. Mas haveria presença da sublimação aí?
Cruxên (2004) sugere a importância de uma investigação do tema da sublimação na
psicose:
Assim, Pommier propõe o que parece ser uma sublimação a partir da alucinação, do
delírio, uma criação desde a “neoprodução que é a alucinação”. A análise – e os outros
197
É nesse sentido que Pommier apresenta a sublimação como uma saída possível de
sustentação subjetiva na psicose como suplência ao Nome-do-pai foracluído. Diferente do que
ocorreria na neurose, onde a sublimação seria um meio desviado de buscar uma fantasia, na
psicose este destino pulsional teria como função não a realização da fantasia, mas a garantia
da existência do sujeito. Daí a coação à sublimação na psicose.
Retornando à questão do que seria o final de análise na psicose, o autor entende que a
sublimação não necessita da análise para se produzir e não é seu fim próprio, a tarefa analítica
abriria um espaço que a sublimação poderia vir a ocupar. “A sublimação, é verdade, não
requer a análise para se produzir, não constitui seu fim próprio. Mas não é menos verdade que
a tarefa analítica abre-lhe um espaço que ela pode vir ocupar.” (POMMIER, 1990, p. 217).
198
Não é por acaso que Pommier se refere à “tarefa analítica” e não a uma psicanálise
necessariamente empreendida no consultório do analista – embora ela também possa ocorrer.
Nesse sentido, parece também possível pensar nos tratamentos como aqueles propostos pela
chamada clínica da Reforma Psiquiátrica como tratamentos possíveis para as psicoses. A
questão passa a ser sobre o que norteia esses tratamentos, do ponto de vista da teoria lacaniana
e se poderíamos falar na sublimação como horizonte, tal como sugerimos no capítulo anterior.
Nesse sentido, da “tarefa analítica”, segundo o autor, a obra seria a metade do caminho, que
só se completaria com a assinatura da obra, que autorizaria a existência do sujeito que
cometeu seu ato.
Assim, a circulação social, a comercialização da obra, seriam pontos fundamentais
para que se completasse esse caminho. A discussão empreendida por Pommier tem o efeito de
causar certa inquietação, na medida em que coloca a sublimação praticamente como sinônimo
de sinthoma. Nada indica que seja possível fazê-lo. Aqui, nos parece necessário o recurso ao
Seminário XXIII e à discussão sobre o conceito de sinthoma tal como Lacan o aborda ali.
A publicação de uma obra, sua circulação, é uma questão sem dúvida delicada. Há
exemplos, como o lembrado pelo próprio Pommier, do caso de Althusser, que toda vez que
devia publicar um texto seu, entrava em crise (POMMIER, 2002). Também Soler (1998)
sugere que a publicação de Emílio precipitou Rousseau em seu primeiro episódio delirante
(op. cit, p. 42).
Ao pensar no publicar na linha do fazer-se um nome, temos mais um dentre os
possíveis Nomes-do-Pai, conforme discutidos por Rabinovich, a partir de Lacan, quais sejam:
o Complexo de Édipo, a Realidade Psíquica, o Sinthoma, o Fazer-se um nome e O ego
(RABINOVICH, 2005, p. 147). Segundo esta autora, todos eles podem funcionar como o
quarto enodamento dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário, o que vai variar é a
maneira como se dá esse enodamento. Lacan entende que os três últimos deles funcionariam
como suplência diante do fracasso do nó, o que suspeitamos que pode ocorrer no caso da
psicose. Lacan, embora sempre insista no aspecto de satisfação da pulsão da sublimação, em
nenhum momento sugere ou afirma que a sublimação seria uma suplência. Então, qual
poderia ser seu estatuto na psicose?
199
Bispo utiliza o simbólico, não para visar a Coisa mas para delimitá-la e vir aí se
localizar. Eleva à dignidade da Coisa objetos encontrados ao acaso, reunidos nas
latas de lixo do hospital, que cifrarão seu gozo. Ele significantiza com agulha e linha
o real para alinhavá-lo ao simbólico. (QUINET, 2003, p. 234).
65
Antes disso, em seu seminário R.S.I., Lacan retomara Freud para dizer que “fez o nó com quatro a partir de
seus três [...]”, de tal modo que a Realidade Psíquica faria as vezes de quarto termo no nó que, entretanto, seria
dispensável . Lacan continua dizendo que “É o que pode atar com um quarto termo, o S, o Imaginário e o Real,
naquilo que Simbólico, Imaginário e Real são deixados independentes, estão à deriva, em Freud, é enquanto isso
que lhe é preciso uma realidade psíquica que ate essas três consistências.” Posteriormente, entretanto, criticará
Freud quanto a seu quarto termo, que funcionaria à moda da religião, sendo, portanto, dispensável, supérflua
(Aula de 14 de janeiro de 1975, p. 18).
201
mas também em sua ex-sistência e em seu furo?” (op. cit, p. 38). É importante notar que a
introdução do quarto termo implica em que se desatem os três anteriores primeiro para,
apenas posteriormente, reatá-los, de tal modo que passará a ser o quarto elo que enodará os
outros três. Apenas assim teremos o nó borromeu atado pelo sinthoma, o nó de quatro elos.
Harari (2002) enuncia que o desenlace e posterior re-enlace do nó com a introdução do quarto
termo é o equivalente ao final de análise. Entretanto, é importante notar que, no caso de
Joyce, não é de análise que se trata – ele nunca se analisou, já que era um “desabonado do
inconsciente”. O que podemos encontrar em Joyce a partir das elaborações lacanianas são as
coordenadas do que ocorre no final da análise, já que ele, através de sua escrita (e
prescindindo da análise), introduziu o quarto termo.
Mais à frente, Lacan dirá que “O que proponho aqui é considerar o caso de Joyce
como respondendo a um modo de suprir um desenodamento do nó” (LACAN, 2007, p. 85). O
que cumpriria essa função de suplência? Encontramos a indicação que, para além de sua
escrita, é o nome próprio de Joyce que desempenha essa função, a partir da publicação de seus
escritos. “Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo mundo, do máximo de gente
possível, em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai
jamais foi um pai para ele?” (op. cit, p. 86). Ou, dito de outra maneira, “[...] ao se pretender
um nome, Joyce fez a compensação da carência paterna” (op. cit, p. 91). A carência paterna
de Joyce referida por Lacan, portanto, poderia ser compensada por sua escrita, por fazer-se
um nome, publicando sua obra.
O sinthoma, sendo ele mesmo uma produção do sujeito, é necessariamente uma
produção singular, em oposição ao Nome-do-Pai, que seria uma amarração universal, ligada à
lógica fálica. Sendo singular e ao mesmo tempo sustentando o sujeito, o sinthoma se faz a
partir de um traço inegociável do qual não se pode fugir. Como aponta Harari (2002 p. 51),
aqui está em jogo o caráter ético do sinthoma, já que essa singularidade do sinthoma será
sustentada – e sustentará o sujeito – a partir de sua irredutibilidade.
A ideia de que haveria alguma relação entre os conceitos de sublimação e sinthoma
não é nova. Pelo contrário, encontramos indícios de que ambos teriam relação na pena de
alguns comentadores do ensino de Lacan. Além de Quinet (2003), que ao tentar diferenciá-los
mantém aberta a possibilidade da sublimação na psicose e Soler (1998), que a partir de sua
discussão de Joyce e Rousseau também buscar diferenciar a ambos, é esse o caso no artigo de
Flores (2010), que propõe um percurso que vai da Arte-sublimação à Arte-sinthoma, gozo da
letra – embora não proponha claramente uma articulação entre sublimação e sinthoma.
Entretanto, a montagem do artigo proposto pela autora sugere que há alguma solução de
202
continuidade entre os dois conceitos, mas não avança nessa que é a direção que nos interessa
no momento.
Harari (2001) se detém em diferenciar os dois conceitos (p. 285). Attié (1997) se
refere à sucessão dos dois conceitos cronologicamente ao longo da obra lacaniana, propondo
o sinthoma como herdeiro da sublimação. Também França Neto (2007), embora não se
aprofunde no debate, pela via da arte, propõe uma continuidade entre sublimação e sinthoma:
No entanto, a questão da arte de que fala Lacan em seu Seminário sobre A ética da
psicanálise será muito mais tarde retomada no Seminário 23, sobre O sinthoma, sob
a forma do savoir-faire [...] Diferentemente do que se coloca no Seminário sobre A
ética da psicanálise, no Seminário sobre O sinthoma, a partir do desenvolvimento da
teoria dos nós, Lacan destaca o efeito de suplência com que o saber-fazer com a
linguagem permite a Joyce fazer uma amarração dos registros real, simbólico e
imaginário, para além da metáfora do Nome-do-Pai que estaria ausente em Joyce.
(SCOTTI, 2009, p. 301-302).
Scotti já indica o que entendemos, desde a proposta lacaniana dos nós, ser uma
diferença crucial entre sinthoma e sublimação: que a suplência seria característica do
sinthoma, mas não uma possibilidade da sublimação. A sublimação não faz suplência. Nossa
hipótese é que ela poderia, como destino pulsional que endereça o gozo a uma criação,
oferecer alguma estabilização, na medida em que se configure como uma solução, um fazer
com o real que trate o gozo. Ainda assim, não se trata de uma suplência – e, nesse sentido,
seria uma estabilização que pode ser frágil, bem mais frágil sem dúvida do que uma suplência.
Nesse sentido, recorremos ao esquema de Guerra (2007, p. 179), buscando indicar essa
diferença.
203
questão sobre o fim de análise, somando-se às outras soluções propostas anteriormente por
Lacan, como retomaremos no último tópico deste capítulo.
9.3.1 Escabelo
66
Para São Tomás, a verdade não seria recebida do mesmo modo por todos.
205
67
No texto original, Hisser é uma referência à elevação e il se croit beau se traduz por ele se crê belo (N. do T.,
SOLER, 1998).
68
O que, inclusive, é um dos motivos que leva Lacan a pensar em Joyce como um psicótico. O outro tem relação
com um deixar cair o corpo próprio, tal como descreve Joyce em Um retrato do artista quando jovem. Ali,
descreve a surra que levou de um grupo de rapazes e da ausência de raiva em relação a esse episódio. Dirá que
apenas sentiu o corpo como se uma casca se despojasse dele.
206
no que diz respeito à elevação do objeto à dignidade da Coisa; enquanto ela é a própria
condição da sublimação, o escabelo surge no ensino de Lacan como referência à elevação, à
Aufhebung, mas não refere à elevação como relacionada à dignidade da Coisa. Por que essa
ausência de um ponto tão importante, justamente o ponto crucial da definição lacaniana de
sublimação? Talvez porque a criação joyceana já se dê necessariamente a partir do vazio.
Vazio do Nome, já que Joyce se faz filho sem um pai – quase podemos dizer, um filho que se
autoengendra sem o pai. Assim, seria um fazer desde o vazio, na medida em que trabalharia
com a letra desde o real da Coisa, transformada em possibilidade de gozo da letra. Nesse
sentido, o escabelo, ainda que tenha parentesco próximo com a sublimação, prescindiria desta,
que estaria presente como que incorporada ao fazer no real de Joyce. O objeto, na invenção
joyceana, estaria sempre e necessariamente elevado à dignidade da Coisa, uma vez que sua
invenção seria do nome necessariamente ex nihilo. Desse modo, encontramos aqui endosso à
hipótese de que o sinthoma é condição de ocorrência da sublimação; mais especificamente,
pela via do escabelo, a sublimação compareceria como suplementar ao sinthoma que
encontramos na publicação da obra joyceana.
Por outro lado, tal como indicamos alguns parágrafos acima, não nos escapa que a
referência ao escabelo implica uma elevação do corpo, o que coloca a interrogação sobre essa
ênfase no que podemos chamar de herdeiro da sublimação no último Lacan. Em
contraposição à pele da qual se despoja, que deixa cair Stephen, personagem de Um retrato
do artista quando jovem, o escabelo permite uma elevação do corpo. Em realidade, parece-
nos que não se trata exatamente de uma contraposição, mas sim de relações peculiares com o
corpo próprio. Em uma delas, o imaginário cai. Na outra, pela via da elevação, o imaginário
estaria presente como semblante que eleva aquele que se crê belo.
De modo coerente com o que destacamos no início desse trabalho, a arte, na discussão
empreendida por Lacan no Seminário XXIII, interroga a psicanálise; é a partir da escrita
joyceana que Lacan indica a possibilidade de suplência pela via do sinthoma. A sublimação,
na forma do escabelo, estaria atrelada ao sinthoma como solução possível de enodamento.
Dessa forma, não estaria errado dizer que o sinthoma absorve o conceito de sublimação nesse
seminário através do escabelo, levando em conta o que acabamos de apontar com relação às
especificidades de ambos os termos.
Por fim, é importante ressaltar que no Seminário XXIII, a partir do caso paradigmático
de Joyce, Lacan é capaz de oferecer uma solução para a questão do Nome-do-Pai, agora mais
articulado à nomeação, à função nomeante, solução já esboçada em R.S.I., seminário que
ministrara no ano anterior ao seminário sobre o sinthoma (PORGE, 1998).
207
relacionados ao fim de análise, levando em conta que este implicaria em certa medida uma
redução do recalque – e, portanto, aceitar um novo destino para a pulsão, diverso da satisfação
proporcionada pelo sintoma como retorno do recalcado. A satisfação da pulsão prescindiria do
recalque e, portanto, deduzimos que outra saída de satisfação da pulsão possível seria a
sublimação. Nesse sentido, podemos dizer que, já em Freud, é possível encontrar logicamente
a sublimação como consequência do fim da análise, do mesmo modo que no ensino de Lacan.
Entretanto, como aponta Soler (1995), há diferença nas concepções de Freud e de Lacan tanto
com relação ao sintoma – quanto a seu destino no final da análise – quanto com relação ao
sujeito, de tal modo que fica difícil proceder a uma identificação entre as ideias de ambos no
que tange a esses pontos.
Lacan aborda o fim de análise em diversos de seus textos, bem como nos seminários:
suas ideias a respeito desse tema se expandiram ao longo de seu ensino, mas tratam de modo
diverso do freudiano o “rochedo da castração”: em uma análise, não se trataria de transpor
esse limite, já que, como lembra Quinet, “o sujeito não se cura de sua divisão” (QUINET,
2005, p. 97). Assim, o que para Freud seria um impasse no curso da análise, para Lacan seria
seu fim. Trata-se, no ensino de Lacan, de como conduzir o sujeito até esse ponto. Nesse
sentido, Lacan vai se referir ao final de análise como travessia da fantasia, no qual cairiam as
identificações do sujeito, ocasionando uma destituição subjetiva. Somar-se-ia a essa travessia
as concepções citadas acima, de identificação ao sintoma no final da análise e da saída pelo
sinthoma como saber-fazer-ali-com, tradução de savoir-y-faire-avec69. Trata-se de um saber-
fazer-ali-com que, do mesmo modo que o sinthoma, é singular e, portanto, não previsível.
Soler (1995) retoma a antecedência que tem a concepção do fim de análise como
travessia do fantasma em relação à ideia de identificação ao sintoma (p. 65). Chama nossa
atenção para os pontos de convergência entre as visões de Freud e de Lacan no que tange ao
fim de análise – por exemplo, com relação à implicação de uma mudança na pulsão/gozo a
partir da elucidação do recalcado ou mesmo na ideia de que um fim de análise não é garantia
de que a neurose nunca mais retorne. Contudo, Lacan considera que o fim de análise aponta
para uma identificação ao sintoma e não para sua eliminação, proposta por Freud.
Ao falar da pulsão, estamos nos referindo ao gozo, que podemos entender como
manifestação da pulsão. Assim, devemos também formular a questão sobre o destino do gozo
no fim de análise. Soler (1995) alude à “obscura decisão do ser” (p. 58) com relação ao que
69
O savoir-y-faire-avec, do Seminário XXIV inclui um acréscimo com relação ao savoir-faire do Seminário
XXIII, que pressupõe não apenas um saber fazer, mas um que inclui uma localização específica (o y da
expressão) e um desligar-se; não se trata de aprender, mas sim de desligar-se, desembaraçar-se de algo.
209
fazer do gozo, uma decisão que não passa evidentemente pela consciência, mas que
transforma a economia de gozo, de vez que, tendo se desfeito o recalque, o sujeito se veja na
posição de aceitar um gozo antes negado ou de negá-lo novamente. Ou seja, não há uma
mudança na exigência de gozo, mas sim uma mudança do tratamento desse gozo, no sentido
do destino que se dá a ele. Já adiantamos que, de nossa parte, entendemos que aqui se
encontra a possibilidade sublimatória, como tratamento do gozo que pode advir com a
mudança de posição do sujeito com relação a seu gozo e desejo no fim de análise.
A questão do final de análise para Lacan se apresenta desde a introdução do registro
simbólico na análise, em contraponto aos pós-freudianos que rezavam o fim de análise como
identificação ao analista. Dessa forma, apontavam para uma saída imaginária e, portanto,
alienante, já que tomariam o analista como ideal, reproduzindo o efeito imaginário e alienante
dos ideais. Nesse sentido, a proposta dos pós-freudianos para o final de análise seria uma
reprodução daquilo mesmo que originou o sintoma: um recobrimento do sujeito do
inconsciente pelo Outro no qual o sujeito se aliena. Soler (op. cit) aponta que assim
encontramos uma equivalência entre o discurso do mestre e o discurso do psicanalista, que
não são absolutamente equivalentes. Isso porque, nessa concepção de análise, o analista
estaria no lugar do mestre, o que é incoerente com a lógica do discurso do analista. A
identificação, nesses parâmetros, estaria do lado da defesa, enquanto a identificação com o
sintoma apontaria para o real, na medida em que a identificação com o sintoma visaria
alcançar algo do registro do real e não do simbólico ou do imaginário.
Entretanto, se a identificação ao sintoma aponta para o real, então há uma dimensão
real do inconsciente ou algo do sintoma que está aquém ou além do inconsciente. Nesse
sentido, Soler remete-nos ao Seminário XXII, R.S.I., no qual Lacan propõe uma redefinição
do sintoma.
Ou seja, por um lado, o sintoma na concepção de letra passa a ser da ordem do real,
assim como o gozo que vem a reboque do sintoma também o é. Sendo a letra idêntica a si
mesma, como aponta Soler, trata-se de um significante fora do simbólico. Nesse sentido, nos
diz Soler, “‟identificar-se com o sintoma‟ não é identificar-se com o simbólico, mas com um
real” (p. 76).
210
Ora, o fim de análise definido como identificação ao sintoma, uma vez que se trate de
uma identificação com algo da ordem do real, implica na pergunta sobre qual a relação entre
esse sintoma no real e a sublimação como alusão ao vazio de das Ding, no sentido do vazio,
da ordem do real, que está no centro do sujeito. Podemos pensar em uma homologia entre as
relações entre sintoma no real e sublimação como alusão ao vazio de das Ding. Isso porque a
identificação com das Ding só poderia levar a dissolução do sujeito – na linha do que se
encontra na melancolia e na passagem ao ato. Na sublimação se trata, justamente, de aludir ao
vazio da coisa e não identificar-se com ele.
No que tange ao real no fim de análise, Alberti (2009), ao discutir a crise da
adolescência, elucida que, ao fim e ao cabo, o próprio sujeito humano é um sujeito em crise
(p. 124). Essa autora propõe que o despertar da adolescência é despertar para o real
impossível do encontro com o sexo. Nesse sentido, entendemos que a crise adolescente é
paradigmática desse encontro que vai se repetir ao longo da vida do sujeito. A análise, pela
via da transferência, aponta para algo da ordem do real e da não-relação. Nas palavras da
autora,
Dito de outro modo, o amor ao analista não equivale ao amor ao pai; trata-se de um
amor que surge na própria presença do analista, implicando para além do
imaginário, como vimos, o próprio real sem sentido. É daí que pode surgir a
questão sobre o desejo advindo do vazio de significação [...] É desse nada que surge
o desejo singular de cada um [...] (ALBERTI, 2009, p. 125).
Assim, parece possível pensar que o vazio de significação, o nada ao qual se refere à
autora, a partir de Lacan, é o vazio que será tangenciado por uma criação sublimatória. A
contribuição de Alberti para nosso trabalho está em indicar o real que se presentifica na
análise pela via da transferência, a partir do qual a sublimação será então possível – ainda que
transferência e sublimação não coexistam, tal como indicamos em outro momento desse
trabalho, a transferência pode apontar para a sublimação como direção ética.
Nesse sentido, podemos nos perguntar se a sublimação em jogo na análise não é
inicialmente a do analista, no sentido de que ele, como sua presença, a partir da
transferência, possa aludir ao vazio da Coisa, indicando uma direção ética da análise. Aludir
o vazio da Coisa se articula com uma presentificação do real, que, nos parece, o analista faz
através de seu ato. Assim, parece-nos legítimo aventar a possibilidade de que haveria uma
homologia entre o ato analítico e a sublimação, ou, talvez fosse mais preciso dizer, que o ato
analítico incluísse em seu bojo uma dimensão sublimatória.
211
Como vemos no grafo, parece possível perfazer um percurso desde a fantasia enquanto
impasse até o ato analítico passando pela via da passagem ao ato ou pela via do acting out.
Entretanto, essas seriam as falsas saídas ou, como as chamou Lacan, os lapsos do ato. Dessa
forma, nesse quadrângulo podemos supor, por dedução, tal como faz Brodsky (2001) uma
primeira aproximação ao ato analítico ao qual de fato Lacan se refere algumas vezes no
seminário sobre a lógica da fantasia, já anunciando o trabalho do seminário do ano seguinte. É
o que podemos ver em afirmações que indicam a incidência real do ato analítico e a
212
interrogação de Lacan com relação a sua localização no tetraedro em articulação com outros
termos, como “Preciso avançar e demonstrar, no movimento, de qual natureza é o saber
analítico; mais exatamente como se faz para que este saber passe, que ele passe no real”
(LACAN, 2008a, p. 189) ou então “Para falar da lógica do fantasma, é indispensável ter pelo
menos alguma ideia de onde se situa o ato psicanalítico” (op. cit, p. 252).
A partir do grafo acima, podemos conjecturar que a sublimação seja a operação que
permite a saída do impasse que a relação do sujeito com o objeto a através da fantasia implica,
naquilo do real que a fantasia tenta encobrir e ao mesmo tempo não encobre. Essa saída
conduz ao ato analítico que, neste momento do ensino de Lacan, é tomado como produto da
sublimação. O que é coerente com a tentativa lacaniana, que já tem início aqui, de indicar que
não há relação sexual; a sublimação seria uma saída do impasse da fantasia pela via de uma
alusão à Coisa real, ou seja, seria uma forma de aludir a não relação e, desse modo, sair do
impasse. Assim, nessa configuração, a sublimação conduziria ao ato analítico.
Entretanto, talvez Lacan não estivesse plenamente convencido desse papel da
sublimação, o que fica claro com os rumos tomados por ele no que concerne a esse conceito
no ano seguinte. Possivelmente, essa foi uma elaboração intermediária, que levou a um
destino diferente no seminário seguinte. É digno de nota o fato de que a sublimação não estará
presente no novo quadrângulo que Lacan construirá em seu seminário sobre o ato analítico e
que o conceito mal será citado ali.
Em sua última aparição, no Seminário XVI, a sublimação, antes de sumir
completamente do ensino de Lacan, é apresentada, talvez mais claramente do que em
qualquer outro momento, como um modo de tratar o gozo, seja pela via da mulher que não
existe (o que já se anunciara no Seminário XIV 70 mas que só ganhará pleno alcance no
Seminário XX), seja pela via do trato do gozo na perversão que Lacan anuncia no Seminário
XVI.
70
“E é bem por isso que é sempre por identificação à mulher que a sublimação produz a aparência de uma
criação.” (LACAN, 2008, p. 238).
213
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
centro o real de das Ding. Nesse sentido, a sublimação, na medida em que eleva o objeto à
dignidade de das Ding, pode ser entendida, também ela, como uma direção ética da
psicanálise. Assim, apesar de ser, desde essa primeira abordagem, um conceito ligado às artes,
a sublimação também se apresenta desde o início como conceito clínico, implicado na direção
do tratamento. Com relação às artes, mas também às outras formas de presença da
sublimação, o bem, o belo e a dor são barreiras que protegem o sujeito do encontro com das
Ding. Desse modo, a presença de cada uma delas na sublimação é importante na medida em
que aluda e vele a presença do vazio.
A partir de sua possibilidade de elevação do objeto, a sublimação pode ser entendida
como um tratamento do gozo da Coisa; tratamento que, por sua vez produzirá outro tipo de
gozo, o gozo feminino. Isso é coerente com a indicação lacaniana de que a sublimação é uma
satisfação da pulsão que opera sem inibição, mas também com a ideia de que a sublimação se
produziria com o fim de análise. Nesse sentido, implicaria em um tratamento do gozo, mas
também na produção de um gozo diferente do gozo fálico, já que com o fim de análise ocorre
a queda dos ideais que estariam mais estritamente ligados ao gozo fálico. A sublimação se
produziria, então, como outra forma de satisfação da pulsão, em alguma medida fora da
referência fálica. Desse modo, se trata o gozo mortífero da Coisa, por outro lado a sublimação
poderia produzir Outro gozo.
Em 1966-67, reencontramos a sublimação, dessa vez vinculada à lógica da fantasia e,
por essa via, discutida em relação à alienação. Com o uso dos semigrupos de Klein e dos
círculos de Euler, Lacan situará a sublimação como ligada à repetição. Contudo, indicará que,
a partir dessa, pode produzir algo novo, já que a transformação só pode advir da repetição. Do
mesmo modo, o ato é aqui discutido como fruto da repetição que pode introduzir o novo, nas
suas vertentes de ato sintomático, passagem ao ato, acting out e ato sexual. Duas diferentes
modalidades de ato são aqui introduzidas como possibilidades de negação do cogito
cartesiano, que elucidam em cada caso uma relação peculiar com o inconsciente e com o Isso:
a passagem ao ato, na qual o sujeito nada quer saber do inconsciente, negando-o e por essa via
“saindo de cena” e o acting out, no qual o ato coloca algo em cena que pede interpretação,
como transferência selvagem.
É nesse quadro que encontramos a sublimação, como alternativa ao não sou do acting
out e ao não penso da passagem ao ato. Funcionando por uma lógica solidária à lógica da
castração, a sublimação evidencia o furo. Desse modo, em um primeiro momento, podemos
215
falar em um recobrimento do furo do objeto a71 e da falta implicada na castração. Esse furo ou
falta apontam para a impossibilidade da fantasia de velar o real, de velar a
incomensurabilidade do gozo do homem e do gozo da mulher, a despeito da tentativa de
velamento pela relação com o objeto a.
Pela introdução do segundo tetraedro, feito por Lacan em seu resumo do Seminário
XIV, a sublimação adquire o estatuto de operação que conduz do impasse da fantasia ($ ◊ a),
que vem substituir a conjunção de -ᵠ e a em direção ao que supomos ser o ato analítico, sem
passar pela pressa nem pela repetição, como podemos observar na Figura 16. Essa nova
localização da sublimação no quadrângulo permite ver que ela é em certa medida oposta à
transferência, já que a segunda é uma forma de encobrir a não proporção entre os gozos,
enquanto a primeira é uma operação que trabalha desde o furo sem negá-lo. Nesse sentido, a
sublimação se apresenta como alternativa ao acting out, que seria uma saída da fantasia
passando pela repetição e também alternativa à passagem ao ato, busca de saída que
necessariamente passaria pela pressa. Ainda nesse seminário, Lacan indicará a solidariedade
da sublimação com o ato sexual na medida em que esse evidencia a não proporção entre os
gozos do macho e da fêmea. Ambas evidenciam o que é da ordem da hiância. A não
proporção será reencontrada posteriormente como o aforismo lacaniano a relação sexual não
existe, que evidencia a impossibilidade da fantasia de recobrir completamente o real. Partindo
dessa antecipação, entendemos que a sublimação seria uma saída que não tentaria fazer a
relação sexual existir, como a fantasia, já que ocorre desde o vazio, desde a hiância, sem
precisar negá-la. Contudo, essa característica de produção desde o nada da sublimação
implica na travessia da fantasia, como retomaremos depois.
Em O seminário, livro 16, Lacan retorna pela última vez ao tema da sublimação,
indicando suas duas vertentes: de um lado, através do que chama Teoria do vacúolo, na qual a
obra de arte é tomada como paradigmática para evidenciar o modo como o objeto a “faz
cócegas” em das Ding desde dentro. Nessa vertente, o que se apresenta é a maneira pela qual
a sublimação se exerce no lugar êxtimo de das Ding, naquilo que podemos entender como
uma contribuição topológica com relação ao que Lacan já enunciara no Seminário VII. Na
outra vertente, encontramos a mulher e o avanço daquilo que ele já propusera no Seminário
XIV no que tange à relação da mulher com das Ding. Na medida em que a sublimação cria
desde o nada, de modo análogo, nada sabemos do significante da significação da mulher. Nos
dois casos, está implicada a criação desde o nada. Essa abordagem da sublimação aponta para
71
Lembremos que os objetos a se referem a “fragmentos” de das Ding.
216
o aforismo lacaniano A mulher não existe, que será enunciado no Seminário XX. Sua não
existência exige que as mulheres sejam contadas uma a uma, o que envolve a invenção de
cada uma. Também é aqui que o gozo feminino será discutido, em articulação a essa
concepção da mulher, gozo feminino que supomos presente também na sublimação.
Ainda no Seminário XVI, Lacan indica a relação da sublimação com a perversão. O
perverso teria, por razões estruturais, maior facilidade na sublimação. Isso se deveria a dois
motivos articulados. Primeiro, porque o perverso buscaria suplementar o Outro pela via do
objeto a e não complementá-lo, fazer Um com ele como faz o neurótico. Depois porque, uma
vez que o funcionamento preferencial do perverso seja a Verleugnung, ela prescinde do
recalque. Assim, o perverso teria duas possibilidades de lidar com a castração: o desmentido e
a sublimação. Diferente disso, o neurótico tenderia a lidar com a castração pela via da
Verdrängung. A suplementação do gozo do Outro está ligada – além da facilidade da
sublimação, mas em articulação com ela – a um modo peculiar de lidar com o narcisismo, que
não estaria voltado a fazer Um com o Outro. Contudo, cabe notar que a maior facilidade
estrutural para a sublimação não é garantia – até porque o perverso também pode lidar com a
castração e seu gozo correlato pela via da Verleugnung.
Desde a proposta lacaniana da sublimação no Seminário VII, ainda que haja maior
facilidade de sublimação para o perverso, entendemos a sublimação como possibilidade
transestrutural, uma vez que seja tomada como direção ética da análise. Dessa forma, a
sublimação se configura como possibilidade tanto na perversão quanto na neurose e na
psicose. É nessa medida que ela poderá ser tomada, antes de mais nada, como um tratamento
do gozo. Nesse sentido, ainda que a sublimação não dependa da análise para ocorrer, como
nos mostram inúmeras produções artísticas, a análise pode manter a sublimação como
horizonte ético e de tratamento do gozo.
Em consonância com esse ponto de vista, nossa abordagem do documentário Elena
nos permitiu afirmar que a sublimação depende de um posicionamento do sujeito frente ao
objeto que permitirá que o primeiro reposicione o segundo, de modo a aludir o vazio da
Coisa. O documentário mostrou de forma paradigmática a organização em torno de uma
ausência implicada na sublimação. Também a partir de nossa discussão do filme, pudemos
entender a sublimação como amparo à possibilidade de uma passagem diferente da passagem
ao ato. Nesse sentido, entendemos que aquilo da ordem da repetição que atinge seu ápice na
passagem ao ato – como tentativa de romper com o que se repete e instaurar uma mudança –
pode encontrar outra saída na sublimação como passagem. Passagem que se dá a partir de um
retorno lógico da operação de separação para o sujeito. Passagem que é da ordem da
217
10.1 HORIZONTES
coup, depois e a partir do percurso lacaniano, mas também busca indicar horizontes para os
quais podem apontar os avanços dessa teorização.
220
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