A Linguagem, A Verdade e e o Poder. Martins PDF
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MOISÉS DE LEMOS MARTINS
Autor
MOISÉS DE LEMOS MARTINS
Impressão: Papelmunde
2.ª edição: Novembro de 2017
1.ª edição: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002
Depósito legal: 433638/17
ISBN: 978-989-755-296-0
Apoio:
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A LINGUAGEM, A VERDADE E O PODER – ENSAIO DE SEMIÓTICA SOCIAL
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MOISÉS DE LEMOS MARTINS
ÍNDICE
11 Prefácio
185 Bibliografia
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PREFÁCIO
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INTRODUÇÃO
O ENSAIO, A LIÇÃO E A ATOPIA DO SENTIDO
“A linguagem existe, a arte existe, porque existe ‘o outro’. Falamos de nós para nós num
solilóquio constante. Mas o medium deste solilóquio é o da linguagem partilhada –
condensada, tornada privada e críptica talvez por meio de referências e associações
veladas, mas enraizando-se, em todo o caso, e até aos limites incertos da consciência,
num vocabulário e numa gramática herdados, determinados histórica e socialmente”
(Steiner, 1993: 127).
1 Sobre este assunto, vejam-se Etudes littéraires (1983); e Sémiotiques (1996). Vejam-se também
os estudos de Jean Cervoni (1987) e de Kerbrat-Orecchioni (1997).
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das suas práticas sociais, como os próprios sujeitos são produzidos pelas suas
práticas sociais de comunicação. Não podemos esquecer que o sujeito usa a
língua e é por ela usado 2. Como refere algures Oswald Ducrot (1984: 394), pelo
facto de utilizarmos a língua são introduzidos no discurso, através do léxico,
e mesmo da sintaxe, toda a espécie de crenças e de conhecimentos, que pro-
duzem o sentido, e produzindo-o, nos produzem a nós.
A orientação seguida nestas páginas depende fundamentalmente da
maneira como entendo a realidade do discurso e a atividade crítica. Meios
de produção, transmissão e receção do conhecimento, elas constituem por si
o material e a dinâmica deste ensaio.
Sempre sonhei com uma utopia para o trabalho que conjuntamente com
o leitor gostaria de realizar. Melhor dizendo, uma atopia. É que a atopia é
superior à utopia. Enquanto que “a utopia é reativa, tática, literária, procede
do sentido e põe-no a funcionar”, como ensina Roland Barthes (1975: 53), a
atopia é o habitáculo à deriva. Enquanto que a utopia se situa ainda numa
oposição, “a atopia coloca-se ao lado, e, deste modo, quebra o sentido da
oposição” (Coelho, 1984: 295). A atopia instaura a possibilidade de outros
lugares no lugar que é o nosso e que nos parece exclusivo.
Gostaria de traçar o espaço desta atopia. É o que farei de seguida, glosando
um texto de O rumor da língua, que Barthes (1987: 281-288) escreveu, em 1974,
para a abertura do seu seminário no Collège de France.
Ao interrogar-se sobre o lugar onde inscrevia a sua prática pedagógica,
Barthes distingue o lugar real, o lugar fictício e o lugar atópico 3. Opõe o real,
que é o concreto, a empiria, o determinismo das coisas, à ficção, que é mera
construção mental, sem suporte real ou empírico. E projeta um lugar suspenso,
lugar do sonho, do desejo, da fruição. A criação, a instauração de alguma coisa, é
sempre assim, o lugar de um devaneio, o lugar de “um (ligeiro) delírio” (Ibid.: 281).
“Tracemos um espaço”, digo então ao leitor, projetando a atopia do meu
texto. Neste ensaio, que é para mim um ato lúdico e gozoso, dou comigo a
sonhar, a fantasmar. Sonhar não é, no entanto, um ato que dispense a orga-
nização. O prazer organiza-se, a festa não se deixa ao acaso – prepara-se. E
quando não resulta, dizemo-nos dececionados. “Esse livro é uma mistela!”
– Aqui está uma expressão que diz bem o desprazer, que diz bem a frustrada
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4 Quanto a Nietzsche, veja-se, por exemplo, A gaia ciência (1987: 14). Mas também Rorty, que ao
contrapor o conceito de “racionalidade fraca”, que adota, ao conceito de “racionalidade forte”,
associa razão e saúde, razão e sanidade. “Racional significa qualquer coisa de são”, diz em Science
et solidarité (1990: 49).
5 Vilfredo Pareto (1966: 122) dizia que “apenas a fé motiva fortemente a ação dos homens”. E já
Pierre Janet insistia neste aspeto: “a crença mais não é que uma promessa de ação: crer é agir;
dizer que acreditamos em alguma coisa é dizer: faremos alguma coisa” (Janet, apud Michel de
Certeau, 1981: 8).
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6 O ponto de vista que adoto está todavia longe de ser consensual. Confrontado com a ideia de
Danchin de que “o real não fala”, René Thom (1988: 135) defende o critério de juízo último nos
seguintes termos: “Até os experimentalistas mais convencidos da insignificância do mundo, não
fazem o que lhes dá na gana; não há como proceder de maneira diferente: nenhuma sociedade
está disposta a financiar uma pesquisa que não tenha qualquer sentido”.
7 Curiosa é, no entanto, a reflexão que a propósito das trocas simbólicas na sala de aula é feita por
Maria Augusta Babo (1993: 20-21). Ao apontar como critério de avaliação da competência indi-
vidual o “nível de autonomização maior ou menor relativamente ao discurso da aula”, entende
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ordens do professor não só não são exteriores àquilo que ensina, como também
não se lhe acrescentam. Elas não decorrem de significações primeiras, não
são a consequência de informações: a ordem incide sempre e já sobre ordens
(as ordens do sistema de ensino, as regras de um campo disciplinar, enfim,
as normas de uma língua vernácula).
Também como professor dou comigo a sonhar, projetando a atopia das
minhas aulas: um lugar de circulação do prazer e do desejo, um lugar de circu-
lação das minhas crenças e das dos meus alunos. Bem gostaria de ser apenas
um sonhador, não o sujeito sagrado/consagrado, que enquanto académico
efetivamente sou. O conhecimento da lógica própria do social, e neste caso
do sistema escolar, “instância de socialização especialmente eficaz, pois que
se apoia em meios de acção pedagógica reiteráveis, graduados e controláveis
nos seus resultados” (Pinto, s/d: 267), obriga-me a reconhecer o transmissor
de “palavras de ordem” (Deleuze e Guattari) e o examinador que o professor
em boa verdade é.
Longe de mim, por isso, a ideia de querer produzir, na sala de aula, um
espaço autónomo arrancado às leis daquilo que Pierre Bourdieu chama de
mercado, que compreende não apenas o universo curricular explícito e ver-
balizado da escola, mas ainda a vasta série de componentes da vida escolar
(emprego do tempo, rituais de cortesia, organização do espaço), assim como
o efeito de socialização informal e difuso, subjacente a estas práticas formais
e informais. Tais leis têm um papel decisivo em termos de reprodução das
propriedades estruturais do sistema social.
É verdade, como professor/examinador, também tenho que dar notas e
avaliar os meus alunos, uma vez que a minha atopia não pode dissociar-se
das condições sociais da sua produção e generalização, e estas não autorizam
ilusões desmedidas. Quando é o próprio espaço de uma sala de aula que é
solidário de toda a instituição escolar, é toda a estrutura social que está pre-
sente em cada interação. Madureira Pinto (s/d: 267) sintetiza bem este ponto
de vista ao afirmar que o sistema escolar impõe “o arbitrário cultural, definido,
esta semióloga que tal exigência mede, entre outras coisas, o grau de banalização, de redução à
doxa que a massa opera na episteme, e salienta a importância de, “em cada ano, verificar o quê
e como o saber foi ‘laicizado’”.
Importaria talvez acrescentar, como nota temperadora desta visão um tanto iluminista, que a
episteme em circunstância alguma é isolável da doxa. Como diria Gadamer (1976: 139), ao subli-
nhar a natureza histórica do nosso conhecimento, há um vínculo indelével entre compreensão
e situação, interpretação e preconceito, conhecimento e crença, teoria e prática.
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8 Um campo “só pode funcionar com indivíduos socialmente predispostos a comportarem-se como
agentes responsáveis, a arriscarem dinheiro, tempo, e mesmo a honra e a vida, para levarem por
diante os seus intentos e atingirem os benefícios que ele possibilita” (Bourdieu, 1982 a: 47).
Neste contexto haverá que assinalar que a teoria da dominação simbólica de Bourdieu repousa
na ideia de que a legitimação ideológica da desigualdade das classes (que é um efeito da “natura-
lização” da realidade social) opera através de uma correspondência que apenas se cumpre entre
sistemas. A teoria bourdieusiana não impõe que os produtores culturais se entreguem a mascarar
ou a servir deliberadamente os interesses dos dominantes. É unicamente pela prossecução efetiva
dos seus interesses específicos que os interlocutores legitimam também uma posição de classe
(Bourdieu, 1977: 405-411).
9 Contrariando este tipo de epistemologia, que desvaloriza, rotulando-a em bloco de althusseriana,
Paulo Monteiro entende que tudo é aqui remetido para o social sem que este seja explicado.
Tratar-se-ia de fazer valer de cima a baixo na sociedade um esquema grosseiro de dominadores
e dominados, que nada analisa hoje, como em boa verdade nunca nada analisou (Monteiro, 1996:
151-163). Veja-se o comentário feito ao meu artigo “A epistemologia do saber quotidiano” (Martins,
1993). Apesar da cativante argumentação apresentada, não me parece que Paulo Monteiro (1993:
101-103; 1996: 158) proponha qualquer modelo de análise das relações de poder. Numa linha
rortyana, a sua proposta aponta, se bem a entendo, para um conceito de verdade sem o poder.
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Rematando o meu ponto de vista, saliento que, por maiores que sejam
as alterações na estrutura social e política, quaisquer que venham a ser as
leis promulgadas, e por muito que evoluam as mentalidades, não é possível
a alteração de todas as regulações instaladas no sistema escolar e no campo
científico. Da mesma forma que não é possível a subversão total das regras
e dos protocolos do bom funcionamento da leitura de um texto. Habermas
(1987: 434) não dirá, aliás, coisa diferente, embora com a vantagem de ser
muito mais argumentativo. Diz assim: “O domínio das situações apresenta-se
como um processo circular em que o ator é, simultaneamente, o iniciador
de ações de que é responsável, e o produto das tradições em que se inscreve,
dos grupos solidários de que faz parte, e dos processos de socialização e de
aprendizagem a que está sujeito”. Com efeito, precisa Habermas (Ibid.: 435):
“Aceitando a situação que vivem, os participantes de uma interação são tri-
butários de uma tradição cultural de que tiram partido, ao mesmo tempo que
a renovam; coordenando as suas ações pelo reconhecimento intersubjetivo
de pretensões à validade susceptíveis de serem criticadas, os participantes de
uma interação apoiam-se na sua pertença a grupos sociais, ao mesmo tempo
que aí reforçam a sua integração; participando em interações com pessoas de
referência que agem de maneira competente, os adolescentes interiorizam
as orientações axiológicas dos seus grupos sociais e adquirem capacidades
práticas generalizadas”.
Em suma, o ator social (no caso, o professor, o investigador e o ensaísta
que eu sou) é um instrumento de reprodução social, que legitima uma posição
social, na exata medida em que procura concretizar na sala de aula, no campo
científico, e no campo das ideias em geral, os seus interesses pedagógico-cien-
tíficos, e também os seus interesses estéticos e éticos; e em resultado deste
processo é, ao mesmo tempo, efeito de reprodução social. Quer isto dizer
que o professor de semiótica que ensaia o passo de dança de uma procura de
sentido e de comunicação com o leitor – é essa a minha atopia –, está sujeito
ao jogo dialógico do discurso do conhecimento em geral, repetindo ordens
quando supõe apenas afirmar a liberdade. O ensaio e a lição têm essa natureza
híbrida: produto de uma herança, vivem constrangimentos locais conflituais
e constituem uma prática de adaptação ao processo temporal; espaço ainda
assim lúdico e gozoso, percorre-o o “ligeiro delírio” de um “bricolage” atópico
do sentido.
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A ideia de uma semiótica centrada no signo tem pelo seu lado não só a eti-
mologia, mas sobretudo uma larguíssima tradição que se estende por toda a
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10 Ver, neste sentido, Barthes (1989: 7): “a semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos,
sejam quais forem a sua substância ou os seus limites: as imagens, os gestos, os sons melódicos
[...]”. Ver também Fidalgo (1999 b: 21-28).
11 Sobre “A economia e a eficácia dos signos” escreveu António Fidalgo uma Lição de Síntese,
apresentada para Provas de Agregação em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira
Interior (Fidalgo, 1999 a). No número 29 da Revista de Comunicação e Linguagens, António
Fidalgo faz um resumo desta Lição, em artigo de título homónimo (Fidalgo, 2001).
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12 Sobre os mitos do conhecimento total e da sua comunicação universal, ver também Martins
(1998).
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A uma semiótica do signo, prefiro, pois, uma ideia de semiótica crítica, uma
semiótica que interrogue o sentido do movimento dos signos, que interrogue
as condições de possibilidade daquilo que se chama na linguagem dos média,
para dar um exemplo, a informação, a notícia, a atualidade, uma semiótica
que interrogue as condições de possibilidade da interação. Ora, este sentido
não está nos signos, sejam eles signos simples ou complexos, nomes ou frases.
Está no discurso, que é a interação de pelo menos dois indivíduos, ambos
coenunciadores.
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15 Veja-se, a propósito, Greimas (1976: 59): “A teoria da comunicação social generalizada deve
colocar-se sob a égide da significação, e não da informação”. Veja-se também Geninasca (1991:
12) e Deleuze e Guattari (1980: 95-139).
16 “A teoria semiótica deve tomar-se, antes de mais, por aquilo que é, a saber, uma teoria da signi-
ficação. Deve pois curar de explicitar primeiramente, na forma de uma construção conceptual,
as condições da perceção e da produção do sentido” (Greimas e Courtès, 1979).
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17 Terei ocasião de examinar em detalhe, em vários passos deste ensaio, as condições de entrada
no discurso e os constrangimentos sociais da sua ordem.
Atendendo a que, no corpo do texto, abri o parágrafo invocando a perspetiva semiótica de José
Augusto Mourão, gostaria de chamar a atenção para o facto de ela não conceber o primado da
relação na produção de sentido, apesar de configurar um espaço pragmático. Concebe, sim, “o
contacto”, que é “o acto primitivo de ordem linguística que estabelece o espaço actancial em
que vai desenrolar-se o discurso” (Mourão, 1999 a: 33; e 1999 b: 66). Apoiando-se em Per Aage
Brandt (1992: 140), José Mourão não coloca no começo do nosso espaço pragmático o “primum
relationis” de um campo de posições assimétricas. Coloca antes “a transgressão primordial e as
palavras que a acompanham (‘a mulher que tu me deste…’ – Gén. 9, 1-9), que ‘cobrem’ aquilo que
faz falar: ‘o corpo falante’, que doravante deverá esconder a sua nudez” (Ibidem).
18 Repare-se entretanto que a esta sistematização barthesiana não é alheio o forte contributo
da semanálise de Kristeva, que à “teoria do texto” de Barthes fornece o léxico e os conceitos
principais: prática significante, significação e significância, fenotexto e genotexto, produto e
produtividade, estrutura e estruturação, intertexto, etc. Cf. Barthes (1976).
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19 É de salientar, no entanto, que a semiologia de tradição francesa não associa o discurso, seja ele
texto, seja enunciação, à tradição retórica, para que remete a pragmática. Também não o encara
como simples “acto de fala”, mera execução das performances da língua, como quer Martinet. A
semiótica discursiva reclama-se de Benveniste e de Saussure, por ambos considerarem o discurso
como “linguagem em ação”. Cf. Martinet (1960: 30); e também Benveniste (1966: 128). A posição
de Saussure é analisada por Godel (1957: 171).
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20 Veja-se Barthes (1976: 1014). E veja-se, sobretudo, Eco (1981), que estende a crise do signo ao
momento da própria criação do conceito. Também Hjelmslev (apud Eco, 1975: 74) já advertira
para o facto de, em rigor, não dever falar-se de signo, mas de funções sígnicas, que se realizam
“quando dois functores (expressão e conteúdo) entram em mútua correlação”. Isso mesmo é
também assinalado por Fontanille (1990: 3): “A semiótica de inspiração hjelmsleviana dispensa
geralmente, e cada vez mais radicalmente, qualquer referência a uma teoria do signo”. Deleuze
e Guattari (1980: 141), por sua vez, sintetizam bem este entendimento, ao fixarem para a lin-
guagem um ponto de partida linguístico que dispensa o signo: “no limite, podemos dispensar
a noção de signo, uma vez que o que há a reter não é principalmente a sua relação a um estado
de coisas designado, nem a uma entidade significada, mas apenas a relação formal do signo
com o signo, na medida em que define uma cadeia significante. O ilimitado da significância
substituiu o signo”.
21 Passando do signo ao texto, a semiótica deu-se como objeto, como seria de esperar, o texto
literário (Barthes, 1976: 1014). O que já não acontece hoje, uma vez que é o texto mediático, cada
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1. Os nomes e as coisas
“[1] Existe uma relação entre a forma dos signos complexos (enunciados) e a forma do
pensamento, quer dizer, existe uma relação entre a ordem semiótica e a ordem lógica;
[2] existe uma relação entre os signos simples e as coisas denotadas por eles através
da mediação dos conceitos, quer dizer existe uma relação semiótica entre signo e
conceito, o qual por sua vez é signo de coisa;
[3] existe uma relação entre a forma dos signos complexos (enunciados) e a forma dos
factos que eles descrevem, quer dizer, existe uma relação entre a ordem semiótica, de
um lado, e a ordem ontológica, do outro;
[4] existe uma relação entre a forma do signo simples e a forma do objeto a que ele se
refere, porque o objeto é de algum modo causa do signo;
[5] existe uma relação funcional entre o signo e o objeto a que ele se refere de facto, a
qual, não existindo, faz com que o signo seja privado de qualquer valor denotativo,
ou não se preste a afirmações dotadas de sentido” (Eco, 1989: 105, sublinhados meus).
Estas cinco hipóteses formuladas por Umberto Eco sobre as relações que o
signo estabelece com a realidade, e que podem ser tomadas por nós como
outros tantos modos de formular o problema do referente, bastam para lan-
çar a dúvida sobre a simplicidade com que a produção do sentido é encarada
pelo senso comum. “Significar é signum fieri”, diz-se. Conforme a sugestão
etimológica, significar é utilizar um signo (ou uma sequência de signos) para
reenviar a um sentido, e isto a propósito de um mundo a dizer.
São bem mais incontornáveis, no entanto, estas realidades: signo, mundo
e produção do sentido. Problematizemos cada um destes elementos. Falámos
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de signos. A que espécie de signos nos referimos? Será que eles integram um
sistema, e que esse sistema é, por exemplo, o sistema linguístico? E se são
signos linguísticos, em que é que consiste o sentido? Constituirá, porventura,
um suplemento relativamente ao suporte semiótico, qualquer coisa como um
invariante que lhe é transcendente e extrínseco, ou pelo contrário, é o sentido
um efeito da estruturação dos significantes?
Outra questão. Que relação estabelecer entre o sentido e aquilo a que nos
referimos graças a ele? E como é que concebemos o mundo? É o mundo uma
coisa, um estado de coisa, ou um conjunto de factos? É o mundo um dado
real, empírico, ou, pelo contrário, é antes uma possibilidade, uma construção?
E se se der o caso de o referente existir independentemente de nós, como é
que pode existir deste modo, estando ligado, como está, à nossa maneira de
o determinar, devido ao sentido das proposições?
Outra questão ainda. Significar é uma atividade, um ato pessoal, um acon-
tecimento impessoal, ou um processo em larga medida interpessoal? E se for
um processo interpessoal, quem são os agentes e quem é que significa? Aquele
que fala é também aquele que significa?
Questão complexa a do sentido. Ela não é redutível ao sensível (ao concreto,
ao empírico, à experiência), nem é redutível ao racional (à ideia). Não é puro
real, puro dado empírico, nem pura construção mental, racional 27.
Ao colocar a questão dos signos linguísticos, é justo assinalar de entrada,
com Saussure, a dualidade radical existente entre língua e discurso. Integral-
mente formal e integralmente atravessada pelos embates subjetivos e sociais,
a linguagem não vê, no entanto, em nada diminuído, por este facto, o carácter
conflitual desta situação. A fronteira entre estas duas zonas, a linguística e
a discursiva, não é de forma alguma demarcada com antecedência, e consti-
tui inevitavelmente o objeto de um debate incessante (Maingueneau, 1989:
11-12) 28. Invocando, por momentos, a terminologia de Benveniste, direi que
o acesso ao sentido implica o recurso ao estudo da língua-discurso, a semântica,
27 Estas questões sobre a relação entre signo, mundo e produção do sentido são colocadas por
Francis Jacques (1987: 180).
28 Talvez deva, desde já, mencionar aqui, como contraponto, as preocupações enunciacionistas
das pesquisas conduzidas por André Joly e seus colaboradores nas décadas de 70 e 80, marcadas
pelo “desejo de não perpetuar a dicotomia saussuriana entre língua e fala” (Joly, 1987: 8). Esse
desejo manifesta-se, com efeito, na vontade de “definir progressivamente, e se possível cada vez
melhor, o lugar dos sujeitos falantes [...] no seio do fenómeno global da linguagem, instrumento
privilegiado, se não exclusivo, da comunicação humana” (Ibid.: 7).
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29 Benveniste refere-se, no entanto, à semiótica como a ciência do signo e do seu sentido, mera
forma, e à semântica como a ciência do discurso e da significação. Sobre este assunto, veja-se
Coquet (1974: 3-4; 1987: 7).
Esta oposição foi proposta por Benveniste em 1966, na conferência publicada com o título: “La
forme et le sens dans le langage” (Benveniste, 1967). Benveniste mantém, por outro lado, o termo
semiologia. O estudo semiológico deveria fornecer-nos, em simultâneo, as chaves da estrutura
e do funcionamento dos sistemas de expressão. Da língua, por exemplo.
30 Gérard Deledalle (1990: 48) diz, a propósito: “a pragmática (terceira) é inseparável da semântica
(segunda), que inclui, a qual é, por sua vez, inseparável da sintaxe (primeira), que inclui”. Veja-se
também, neste sentido, Eco (1989: 22-23); Meyer (1992: 110-111, 115); Carrilho (1990: 71).
31 O conceito de “grande unidade” do discurso chega a ser formulado por Benveniste, por exemplo
numa entrevista concedida a Guy Dumur em 1968, embora nunca o tenha desenvolvido (Benve-
niste, 1974: 36).
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36 Cf. Francis Jacques (1987: 187), que retoma uma ideia proposta por Benveniste (1967: 35).
37 Francis Jacques, visando o ponto de vista de Foucault, fala, erradamente, da “coleção mais ou
menos sistemática dos enunciados proferidos aquando de um discurso” (Jacques, 1987: 180).
38 Cesare Segre entende, no entanto, que o conceito foucaultiano de arquivo não é diferente do
conceito de estrutura. Remetendo exclusivamente para L’ archéologie du savoir, Segre (1989 a:
38) não vê na noção de arquivo outra coisa que “o normativo do dizível”. Veja-se, também, Segre
(1989 b: 172-173).
Diga-se, a propósito, que pelo menos num aspeto o ponto de vista de Segre é de uma fragilidade
notória. O estruturalismo, que por inteiro remete para uma linguística do discurso, é reduzido
a uma linguística da denominação e a uma análise filológica.
E não é diferente de Segre o pensamento de Michel Pêcheux. Tal como Segre, Pêcheux (1990: 96)
entende que a noção de formação discursiva “derivou muitas vezes para a ideia de uma máquina
discursiva de dominação, dotada de uma estrutura semiótica interna, e por isso mesmo votada
à repetição”. No limite, conclui Pêcheux, esta conceção estrutural de discursividade apaga o
acontecimento, absorvendo-o numa sobre-interpretação antecipadora.
Sobre o mesmo assunto, e com uma posição igualmente crítica relativamente ao “estruturalismo”
de Foucault, veja-se Habermas (1990: 252-253).
39 “É preciso conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, em todo o caso como
uma prática que lhes impomos; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram
o princípio da sua regularidade” (Foucault, 1971: 55).
39
40 Veja-se Geninasca (1991: 11-12). Veja-se, também, Coquet (1984). Claro que ambos insistem no
facto de a noção de sujeito se ter apurado e depurado, a ponto de sermos hoje capazes de dis-
tinguir os parceiros da interação dos simulacros subjetivos que os atores fabricam, no sentido
de assegurarem o controle do jogo em que se encontram envolvidos.
41 Veja-se, neste sentido, Francis Jacques (1985). Lembro, a propósito, que é pelo facto de a lingua-
gem dizer mais facilmente as coisas do que os processos, os estados do que as relações, que ela
habitualmente reifica aquilo que não é coisa (Bourdieu, 1982 a: 35).
40
42 Deledalle (1980: 25) escreve o seguinte, a este propósito: “A teoria do signo de Peirce é triádica,
mas isso não significa simplesmente que ela acrescenta uma dimensão à teoria de Saussure [...]
O que está em causa é a aceitação ou não do princípio de continuidade como princípio de base
da semiótica peirciana”.
43 Esta observação só é tautológica se levarmos às últimas consequências a crítica da teoria subjeti-
vista e mentalista da significação. Só é tautológica se considerarmos, como aliás o faz Wittgens-
tein, que a linguagem é constitutivamente pública. Falar é seguir regras, e seguir uma regra só é
possível como atividade publicamente controlada, só é possível no exercício da comunicação.
44 Parece-me que é exatamente este o sentido do subtítulo da obra de Richard Rorty Science et
solidarité (1990). La vérité sans le pouvoir sugere, a meu ver, que há uma relação intersubjetiva
(a verdade) sem a relação institucional (o poder).
45 A expressão é de Derrida (1967 a: 72 e 227).
46 Há mesmo quem se oponha radicalmente a este “desejo de objetividade”, a esta procura funda-
cionista da compreensão, que se deixa conduzir pelas “estruturas subjacentes”, pelos “invariantes
culturais” ou pelos “modelos biologicamente determinados”. É o caso de Richard Rorty (1994),
que de modo nenhum entende o “desejo de objetividade” como o desejo de se furtar aos limites
da comunidade. Para Rorty (1994: 38), o desejo de objetividade é, simplesmente, “o desejo de
estender o mais possível o entendimento intersubjetivo, de estender o mais longe possível a
referência ao ‘nós’”. Em consequência, o sentido passa a ser pensado “como desprovido de outro
fundamento que um fundamento ‘puramente’ ético”, assente em razões práticas e crente na
esperança partilhada e na confiança daí resultante (Ibid.: 53-54).
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signo está em lugar de qualquer coisa: do seu objeto. Está em lugar deste objeto,
não sob todos os aspetos, mas em referência a uma espécie de ideia, a que por
vezes tenho dado o nome de fundamento do representamen” (Peirce, 1960,
2, § 228). O signo é, assim, uma semiose, quer dizer, um processo produtor
de objetos novos, que manifesta e realiza uma relação triádica. Nos termos
referidos por Peirce, esta relação triádica tem como pontos de apoio o represen-
tamen, o interpretante e o objeto. Apel, cuja semiótica transcendental remete
explicitamente para Peirce, caracteriza assim a relação ternária: “num conhe-
cimento que tem os signos como mediação, estabelece-se uma relação entre I)
o objeto real, reconhecido na qualidade de alguma coisa; II) o signo que, pela
sua significação que pressupõe uma interpretação, veicula o conhecimento
de alguma coisa na qualidade de alguma coisa e que, na qualidade de signo
da língua, faz parte de um sistema linguístico; e III) o utilizador do signo ou
o intérprete, na qualidade de sujeito do conhecimento que lhe é transmitida
pelo signo – utilizador que, na sua qualidade de sujeito da interpretação, faz
parte obrigatoriamente de uma comunidade interpretativa ilimitada, a partir
da qual somente se pode constituir, se possível, o sujeito transcendental do
verdadeiro conhecimento” (Apel, 1994: 29-30).
Segundo Morris, estas três dimensões da relação triádica do signo devem
ser vistas, por um lado, como temas das disciplinas behavioristas e empíricas,
e por outro lado, como temas das disciplinas construtivo-formais, que dão pelo
nome de sintaxe, semântica e pragmática 48. A sintaxe ocupa-se da relação
entre os signos e fixa a estrutura gramatical de uma língua como sistema de
signos. A semântica ocupa-se da relação entre o signo e o seu denotatum real.
A pragmática ocupa-se da relação entre o signo e o seu utente ou intérprete,
seja este um locutor, seja um ouvinte.
Quando Morris refere em Foundations of the theory of signs (1938: 81) a
dimensão semântica do signo como um denotar, ou um “estar lá por” objetos
reais, tem em vista o modo de referência representativo, ou na sua termi-
nologia, designativo. Trata-se unicamente da linguagem na sua função de
mediação do conhecimento, nos exatos termos em que também Carnap utiliza
o conceito de semiótica, na sua lógica da ciência fundada semioticamente. É
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49 Jacques (1987: 180) prefere utilizar antes a expressão: “o sentido de um conteúdo proposicional”.
45
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50 Voltarei a referir-me à “competência pragmática”, com considerações críticas a André Joly, mais
à frente, no capítulo IV.
51 Não já com as palavras de Jacques, mas continuando a apontar num sentido que contraria a
ideia de dizibilidade do mundo, invoco Deleuze e Guattari (1980: 97). A linguagem, dizem estes
investigadores, “não se estabelece entre alguma coisa vista (ou sentida) e alguma coisa dita; pelo
contrário, anda sempre de dizer em dizer”. E se a linguagem parece supor sempre a linguagem,
não é possível fixar um ponto de partida não linguístico (Ibidem).
48
rortyana, que é depois retomada por Giddens, entre muitos outros, situa-se nos
anos oitenta e aparece no contexto anglo-saxónico da viragem hermenêutica
da pragmática, em clara rutura com o estruturalismo de incidência francesa.
Tomando as palavras de Giddens, o linguistic turn é “a crítica da linguística
estrutural como processo de análise da própria linguagem e a avaliação crítica
da importação de noções tomadas da linguística por outras áreas de explicação
do comportamento humano” (Giddens, 1990: 259).
Em 1999, na lição de síntese que apresentou a Provas de Agregação, José
Augusto Mourão refere uma outra viragem, uma viragem morfodinâmica e
morfogenética da semiótica (Mourão, 1999 a). Neste caso, não há rompimento
com o estruturalismo. Há sim prolongamento, e mesmo refundação. Por outras
palavras, a semiótica da primeira geração, uma tradição que compreende a
narratologia clássica de Barthes e Todorov e a semântica estrutural de Grei-
mas e da escola de Paris, dos anos sessenta e setenta, ver-se-ia refundada
por uma semiótica de segunda geração, a saber, pela morfodinâmica e pela
morfogénese de Jean Petitot e de Per Aage Brandt, ambos na esteira da teoria
das catástrofes de René Thom, uma teoria geral das formas, tanto linguísticas,
como naturais (Ibid.: 4-7) 52.
Não entrando em contradição com o estruturalismo, a morfodinâmica
e a morfogénese situam-se no mesmo terreno do imanentismo semântico,
deslocando-o todavia no sentido de uma abertura, a que a primeira geração
da semiótica teria sido refratária 53. A morfogénese permite a distribuição
topológica da semântica pelas formas físicas. Por sua vez, a morfodinâmica
articula os mundos socio-físico, epistémico, discursivo e axiológico (o mundo
dos objetos-valor). Greimas e a escola de Paris, do tempo da Sémantique struc-
turale (1966), e ainda do Dictionnaire raisonné de la théorie du langage (1979),
haviam tratado as instâncias a quo e ad quem da significação. Tais instâncias
teriam concretizado um imanentismo fechado, entre os terminus a quo e ad
quem de um percurso significativo em que a enunciação seria pressuposta,
52 José Augusto Mourão foi cerca de vinte anos professor de semiótica na Universidade Nova de
Lisboa. Nas páginas que seguem trago a juízo as suas opções teórico-metodológicas, que desde
sempre se situam no terreno da teoria imanentista do sentido. Veja-se o que escreve, a propósito,
em Sujeito, paixão e discurso (1996: 20): “A semiótica de Greimas é, basicamente, o meu campo
de referência dominante, sendo também o que melhor conheço”.
53 Veja-se, neste sentido, Mourão (1999 c). O próprio título deste artigo, “Para um imanentismo
aberto”, não deixa dúvidas sobre os propósitos que animam o seu autor.
49
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Na articulação da forma e do sentido, este estudo prolonga a ideia das estruturas subjacentes
ao processo generativo, proposta por Greimas, introduzindo-lhe todavia uma nova dimensão: o
modelo teórico utilizado permite mostrar que “as morfologias urbanas são sintáticas pelas suas
funções e semânticas pela sua constituição” (Marcos, 1996: 12).
56 É talvez paradoxal o emprego que aqui faço da figura do labirinto. José Mourão refere-se-lhe ao
denunciar aquilo que Ricœur classificou um dia como a “ideologia do texto absoluto” (Ricœur,
1970: 184). A ideia de labirinto, diz Mourão (1996: 40), “recusa a figura da porta, da referência.
O jogo substitui o ser: dobrar-se numa pura imanência é maneira sumária de negar qualquer
exterioridade”.
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59 Sobre esta relação interativa entre o mundo real e a estrutura conceptual, veja-se Petitot (1985).
60 José Mourão contraria, de facto, o extremo relativismo da epistemologia bem-pensante contempo-
rânea. À diletante ideia de que é ciência todo o saber organizado e tradicionalmente transmitido
numa comunidade humana, José Mourão contrapõe o critério ético de que a ciência só existe na
medida em que a espécie humana toma consciência dela mesma e se dá como finalidade última
salvaguardar as possibilidades da aventura humana. Veja-se neste sentido a proposta feita em
A sedução do real (1998: 67) de uma “ética de leitura”, uma ética que recusa o atual “momento
53
sofista” e “pagão”, uma ética que não se conforma com o “abandono de qualquer prescrição ou
de critérios de juízo último”.
61 É curiosa a expressão “sereia estética”. José Mourão regista a viragem estética da semiótica, mas
não lhe faz grande confiança. Por essa razão, falará também da “contaminação fenomenológica”
da semiótica (Mourão, 1999 c: 60). A ideia da “contaminação” sugere uma fatalidade imposta, de
que dá conta, e não uma escolha feita em liberdade.
62 O imanentismo aberto “consiste em admitir que é legítimo dar um lugar, no interior da teoria
linguística, a determinadas considerações julgadas precedentemente ‘extravagantes’ e que res-
peitam às condições de produção/receção da mensagem, bem como à natureza particular do
enunciador, do enunciatário e da situação de enunciação” (Mourão, 1999 c: 46).
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64 Trata-se de um artigo publicado na revista L’Homme. A partir da análise do mito de Édipo, por
Lévi-Strauss, Greimas esboça então o “quadrado semiótico”.
56
durkheimiana. Aceito que haja que estudar o social como coisa, mas entendo
que a sua explicação é social, e não natural 65.
Greimas e Thom, e com eles José Mourão, entendem que a vida e o sentido
vão a par, de tal modo que são formados conjuntamente (Ibid.: 7). Concordo
com este ponto de vista, se bem que me seja estranha a ideia de uma “física
do sentido” (Ibid.: 6). A ideia que privilegio é a de um sentido dialógico. E ao
colocar a questão da “semiótica do visível”, entrevejo apenas formas, e não
qualquer “substância”, como chega a ser sugerido por José Mourão (Ibidem).
Confesso, aliás, a minha irredutível dificuldade em falar de substância, quando
se trata de ciência 66. Por muito que também não queira abrir mão dos crité-
rios de juízo último, faço minhas as palavras de Deleuze nos Pourparlers:
“os conceitos remetem para circunstâncias, e não para essências” (Deleuze,
1990: 14-15).
Não me parece, com efeito, que a crítica dialógica, que permite abrir o
imanentismo, imponha o regresso da metafísica, o regresso do ser à lingua-
gem como presença plena. À crítica dialógica basta-lhe, ao que penso, a nossa
experiência da tensão com um outro, o acolhimento dessa alteridade e a
possibilitação do novo. A ideia de imanentismo aberto é exatamente isso,
o acolhimento no presente de um outro como enigma. Não penso que haja
passos a dar no sentido de um outro substancial.
65 Bem sei dos esforços de Radcliffe-Brown (1968), no passado, e de Dan Sperber (2000), no presente,
para fundar uma ciência natural da sociedade e da cultura. Mantenho, todavia, sérias dúvidas
sobre o lugar que é dado às coisas naturais numa epistemologia das representações. Pensando
especificamente em Dan Sperber, confesso que, numa caracterização do social e da cultura, me
parece excessiva a confiança posta na cognição.
66 A ideia de que o sentido é natural e de que a natureza se exprime morfologicamente não é nova
nas ciências sociais e humanas. Sempre estas ciências fizeram uso de metáforas geológicas ou
telúricas. Verdadeiramente novo é, todavia, o facto de podermos formular hoje esta questão
no quadro da teoria das catástrofes, uma teoria geral das formas, das formas linguísticas e das
formas naturais, como já referi.
Fora deste enquadramento teórico, Pierre Livet e Ruwen Ogien (2000) organizaram um estudo
coletivo que relança a controvérsia em torno da natureza da realidade social. A essa controvérsia,
que se ocupa do “modo de existência de certas entidades” e das “relações de dependência ou
de prioridade entre elas”, dão-lhes estes investigadores um estatuto “metafísico” (Ibid.: 7). Em
contrapartida, Jean-Yves Durand interroga-se, entre “sedimentos, estratos e falhas”, se não será
o “terreno” (antropológico) uma “metáfora minada” (Durand, 2001). Ao olhar deste antropólogo
não escapou a deriva essencialista da metáfora geológica: fundir “o temporal, o telúrico e o
identitário” (Ibid.: 133).
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74 Cf. Algirdas Greimas (1976: 59). No mesmo sentido, Jacques Geninasca (1991: 12).
75 Oswald Ducrot (1990: 158).
62
1. As prerrogativas da escrita
76 Cf., no mesmo sentido, Coquet (1987: 5): de um lado há o frásico, que é objeto da linguística, e do
outro, o transfrásico, “as grandes unidades significantes do discurso”, que constituem o objeto
da semiologia.
63
deva ser identificado com o sistema linguístico. Deve ser colocado antes em
relação com ele, “sendo essa relação de contiguidade e de semelhança, simul-
taneamente” (Ibidem).
Esta ideia de que o texto não é identificável à frase, de que não é identifi-
cável ao sistema linguístico, mas que pode e deve colocar-se em analogia com
ele, é também referida por Ricœur (1970). Reconhecendo que a escrita 77 está
do mesmo lado da fala, na relação que esta estabelece com a língua, a saber, do
lado do discurso, Ricœur (1970: 190) entende no entanto que “a especificidade
da escrita relativamente à fala efetiva assenta em traços estruturais suscetíveis
de serem tratados como análogos da língua no discurso”. E acrescenta que esta
hipótese de trabalho é perfeitamente legítima. “Em certas condições”, diz, “as
grandes unidades da linguagem, isto é, as unidades de grau superior à frase,
oferecem organizações comparáveis às das pequenas unidades da linguagem,
ou seja, as unidades de grau inferior à frase, aquelas que são precisamente do
âmbito da linguística” (Ibidem).
Em abono deste propósito, Ricœur convoca entretanto a Anthropologie
Structurale de Lévi-Strauss: como qualquer ser linguístico, escreve Ricœur
(Ibidem), “o mito é formado por unidades constitutivas; estas unidades cons-
titutivas implicam a presença daquelas que intervêm normalmente na estru-
tura da língua, a saber, os fonemas, os monemas e os semantemas. Mas elas
estão por relação a estes últimos (os semantemas), como estes mesmos estão
por relação aos monemas e estes por relação aos fonemas. Cada forma difere
daquela que a precede por um mais elevado grau de complexidade. Por esta
razão, chamaremos ‘grandes unidades constitutivas’ os elementos que são
próprios do mito (e que são os mais complexos de todos) “.
Ricœur conclui então o seguinte:
“para se confinar aos limites da analogia entre os mitemas [os elementos constitutivos
do mito] e as unidades linguísticas de nível inferior, a análise dos textos deverá pro-
ceder ao mesmo tipo de abstração que é praticado pelo fonólogo. Para este, o fonema
não é um som concreto, tomado em termos absolutos, na sua substância sonora. É
uma função definida pelo método comutativo e que se cumpre no seu valor opositivo
por relação a todos os outros. Neste sentido, e para falar como Saussure, [o fonema]
77 E “a escrita é aquilo que fixa o discurso num texto” (Ricœur, 1970: 181). Na expressão de Barthes
(1976: 1013), “o texto é aquilo que está escrito”. Veja-se também Derrida (1967).
64
não é uma ‘substância’, mas uma ‘forma’, quer dizer, um jogo de relações. De igual
modo, um mitema não é uma das frases do mito, mas um valor opositivo, que remete
para várias frases particulares, constituindo, na linguagem de Lévi-Strauss, um ‘feixe
de relações’: ‘É apenas sob a forma de combinação de tais feixes que as unidades
constitutivas adquirem uma função significante’. Aquilo que chamamos aqui função
significante não é de modo algum o que o mito quer dizer, o seu alcance filosófico ou
existencial, mas a ordenação, a disposição dos mitemas, numa palavra, a estrutura
do mito” (Ricœur, Ibid.: 190-191).
“Para o investigador russo, a narrativa era constituída por uma série de funções (‘abs-
trações de ação’, assinala com pertinência P. Ricœur), dispostas sempre na mesma
ordem e em número limitado, como limitados eram o número dos participantes na
ação e, acrescentemos, o tipo de relações lógicas subjacentes (conjunção, disjunção,
inversão, permuta, transformação...). A fazermos fé no Dictionnaire raisonné de la
théorie du langage, as descobertas de Propp permitiam pôr em evidência ‘o princípio
paradigmático de organização narrativa’ [...] Ao que parece, o ideal seria prever sufi-
cientemente os constrangimentos narrativos a que respeitam as ações, os actantes e
o cálculo lógico, de modo a podermos dizer, à semelhança de Propp: ‘a estrutura do
78 Benveniste, apud Coquet (1987: 9). Coquet associa também Saussure a esta ideia de discurso como
linguagem em ação, no que tem razão. Para este linguista, o discurso é o uso social da língua em
atos de fala.
79 Por exemplo, numa entrevista dada a Guy Dumur, em 1968. Cf. Benveniste (1974: 36).
65
conto quer que...’ [...] ‘Aquilo que permite organizar o discurso’, afirma ainda Greimas
(atente-se no emprego de ‘discurso’), ‘não é tanto a sucessão de funções [...], mas a
projeção à distância de termos que pertencem à mesma estrutura’. Decididamente,
‘é o paradigmático que organiza o sintagmático’“ .
80 A posição de Ricœur é expressa, entre outros estudos, nos seguintes: “La métaphore et le
problème central de l’herméneutique” (1972); A metáfora viva (1983: 109-119); e Teoria da
interpretação (1987: 20-33). Quanto a Francis Jacques, veja-se “De la signifiance” (1987). Michel
Pêcheux, por seu lado, desenvolve o seu ponto de vista em O discurso – Estrutura ou aconte-
cimento? (1990).
66
81 Cf. Ricœur (1972: 95; 1987: 20-21 e 23-24). Cf., também, Jacques (1987: 191); e Pêcheux (1990: 51).
Esclareço, a propósito, que em Ricœur e em Jacques o conceito de significação tem o sentido
restrito de um conteúdo proposicional. Mas a significação tem, por outro lado, para ambos, um
sentido extenso. Neste último caso, Jacques utiliza o termo “significância”, e Ricœur fala, sem
mais, de “sentido”.
82 Cf., a propósito, Ricœur (1972: 95; e 1987: 21-23).
83 Veja-se Ricœur (1972: 95; e 1987: 31-33); e Jacques (1987: 188-189).
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90 Mais à frente, no ponto 2 do capítulo IV (“A razão argumentativa”), desenvolvo este tema da
contextualidade própria da ação social, ao esclarecer os conceitos de “competência social”,
“consciência pragmática” e “consciência prática”.
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1. A enunciação 99
“Eu postulo uma outra pessoa, aquela que, por muito exterior que me seja, se torna o
eco de mim mesmo: eu digo-lhe tu e ela diz-me tu” (Benveniste, 1966: 259).
“Não é porque os outros como eu podem dizer ‘eu’ que estou em ligação com eles, mas
pela razão inversa. [...] enquanto não rompermos com a ideologia espontânea do indi-
víduo, ens realissimum, sede de todo o processo, fonte de toda a iniciativa semântica,
não vemos como é possível introduzir de facto a intersubjetividade” (Jacques, 1987: 195).
77
Parte-se, sim, do enunciado para descrever o que ele pressupõe como con-
dições de possibilidade e o que ele desenha como ‘lugar’ para uma instância
de enunciação.
Assim, na semiótica greimasiana, falar-se-á mais facilmente de instância
de enunciação do que de sujeito de enunciação. E do mesmo modo, falar-se-á
mais de discursificação do que de enunciação. Não se considera em primeiro
lugar a relação do discurso com o sujeito (autor). Postula-se, antes, que um
discurso particular é uma ‘realização’, uma execução original das leis gerais
que presidem à realização destes sistemas semio-linguísticos e que são outros
tantos elementos da competência discursiva. Por outro lado, se se quer con-
siderar a discursificação como um ato, é preciso encará-la como um ato que
converte o sistema geral (a língua, a gramática narrativa, o universo semân-
tico...) na realização particular de um texto.
A relação entre enunciado e enunciação corresponde deste modo à relação
entre uma performance e uma competência, e não à relação com a atividade
de um sujeito que fala, escreve, produz, enuncia um discurso. O sujeito pen-
sado pela semiótica greimasiana decorre da linguagem. Não é anterior nem
exterior a ela. Seja a que nível for, o sujeito greimasiano encontrará sempre a
linguagem como tecido que lhe confere existência.
E, no entanto, o paradigma semiótico greimasiano deixou de ser imper-
meável ao paradigma semântico. É possível que a mudança seja meramente
tática, como sugere Francis Jacques (1987: 209-210):
“Já ninguém desdenha hoje pronunciar os termos outrora odiosos de
enunciação, referência, sujeito falante. São olhadas com interesse as teorias
semântico-pragmáticas. Reclama-se que a semiótica da escola de Paris pode
muito bem integrá-las, e por essa razão, a elas se tem recorrido. Perante a
dificuldade de entender quão profundo é o fosso filosófico que as separa, não
se tem feito cerimónia e antevê-se uma homologação rápida, tanto mais que
é menos onerosa do que uma controvérsia incerta” .
Mas a ironia de Jacques acaba aqui. Entusiasmado com os esforços de
homologação teórica entretanto empreendidos, apressa-se a saudá-los:
“Comparando o objetivismo estruturalista, em voga até aos anos setenta,
com a subjetivação dos produtos semióticos tentada pela gramática nar-
rativa, surpreendem-nos as concessões efetivamente consentidas. Muito
justamente, permanece a resistência à noção subjetivista de sujeito falante.
Devidamente operacionalizada, a subjetividade já não é o sujeito em carne
78
100 Posso fazer esta mesma pergunta, aliás, a propósito da pragmática da comunicação de Habermas,
Apel e Jacques (que nesta aproximação ao modelo logico-semântico de Greimas, trai a consabida
vocação de os contrários se atraírem reciprocamente). Que vantagem há em associar a pragmática
a “universais de comunicação”? Talvez o problema esteja, como assinalam Deleuze e Guattari
(1980: 117), em não haver razão para conjugar o abstrato com o universal e o constante, enquanto
se procura, por outro lado, diluir a singularidade da máquina abstrata, construindo-a em torno
de variáveis e variações.
101 A “catálise” é em Greimas, na esteira de Hjelmslev, a explicitação dos elementos elípticos que
faltam na estrutura de superfície de uma narrativa. A “encatálise” é, assim, a explicitação por
perífrase de um termo elíptico, a montante da sequência semiótica.
79
102 Contrariamente a Austin, Benveniste (1966: 274 ss) entende que o performativo não reenvia
para quaisquer atos. Renviaria sim para a propriedade de termos sui-referenciais (os pronomes
pessoais eu, tu..., definidos como “embraiadores”). Assim, uma estrutura de subjetividade prévia
na linguagem (ou se se quiser, uma estrutura de intersubjetividade, sendo que esta em Benve-
niste decorre da subjetividade) explica os atos de fala, em vez de os pressupor. Esta subjetivação
propriamente linguística explicaria tudo aquilo que fazemos existir pelo facto de o dizer.
80
103 Atos performativos: ações que realizamos pelo facto de as dizermos. Atos ilocucionários: ações
que realizamos ao falar. Como é bom de ver, neste entendimento, o ilocucionário é mais geral
do que o performativo. Daí se conclui que realizamos mais atos ilocucionários do que atos
performativos.
81
104 Veja-se, neste sentido, Marcos (1995: 35): “A dimensão transacional da enunciação impõe a
submissão da força ilocutória à condição do emprego pessoal”.
105 O meu ponto de vista, já argumentado, é o de que os conceitos bourdieusianos de “legitimidade”
e de “aceitabilidade social” corrigem o conceito de “compreensão mútua” e submetem à contex-
tualidade própria da ação social a noção transcendental de relação dialógica.
82
2. A razão argumentativa
“Falar é levantar uma questão. Escrever também o é. Por essa razão, não falamos do que
é evidente [...] O marido que em viagem de negócios telefona à mulher para assegurar
que é muito sério, só pode suscitar-lhe dúvidas a esse respeito. O que o marido está a
sugerir, se porventura a questão não lhe foi posta, é que se trata de uma questão que
se lhe coloca a ele” (Meyer, 1993: 73/74).
83
A retórica antiga
Conta-se que no século V antes de Jesus Cristo, a Sicília foi governada por
dois tiranos, que confiscaram as terras aos seus legítimos proprietários e
as distribuíram pelos soldados. Quando em 467 (antes de J.-C.) a tirania foi
derrubada, os proprietários espoliados reclamaram a reposição da legalidade,
pelo que foram então instaurados intrincados e infindáveis processos. Teria
sido nestas circunstâncias, para falar diante do tribunal, que Córax (aluno
de Empédocles) e Tísias compuseram o primeiro tratado de argumentação.
A retórica estaria assim ligada a “um processo de propriedade” (Barthes,
1970: 173), como se a linguagem, enquanto projeto de uma transformação,
conduta de uma prática, se tivesse determinado, não a partir de uma subtil
mediação ideológica, mas a partir da sociabilidade mais transparente, afirmada
na sua brutalidade fundamental, a da posse da terra: “começámos no ocidente
a refletir sobre a linguagem para defender o nosso quinhão” (Ibid.: 176).
Este mito fundador da argumentação é paralelo, curiosamente, ao mito
que funda a geometria. Heródoto (V século antes de Cristo) atribui a sua
invenção aos egípcios, que todos os anos se viam obrigados a reparar os
prejuízos causados pelas cheias do Nilo. Tratar-se-ia, das duas vezes, de
uma questão de limites desfeitos, num caso pelo rio, noutro pelo tirano.
Como restabelecer os limites das propriedades? A geometria é dada como
resposta para as catástrofes naturais; a argumentação como resposta para
as catástrofes culturais. Christian Plantin (1996: 4-5), que estabelece este
paralelismo, entende que esta oposição é de um carácter exemplar na dis-
tribuição das tarefas que realiza: aquilo que é feito pelas palavras, é por elas
que pode ser desfeito.
Concebida, no entanto, como “fazedora de persuasão” (peithous demiour-
gos), fórmula de Córax, que Platão e Aristóteles retomarão, a retórica vê-se
inquinada pela suspeita de empiria e de vassalização à doxa, ou seja, vê-se
ameaçada pela possibilidade de se esgotar na astúcia, de se esgotar em tor-
nar forte o argumento mais fraco, através de uma sedução enganadora, que
calcule, desvie e encante.
Platão fixou-a aí, numa presunção de verdade: “A retórica”, diz Sócrates,
“não precisa de conhecer a realidade das coisas; basta-lhe um certo procedi-
mento de persuasão por si inventado para que pareça diante dos ignorantes
mais sábia que os sábios (Gorgias, 459 b).
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A argumentação na língua
106 Louis Quéré (1996: 106) diz a este respeito o seguinte: Habermas aparece “como o mais filosófico
dos sociólogos contemporâneos, e também como o mais sociológico dos filósofos”.
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107 Refira-se que “marido” e “mulher” não têm o sentido de “seres no mundo”. A enunciação não se
conforma a uma exterioridade discursiva. Temos aqui apenas a descrição da enunciação, com
um “locutor enquanto tal” e um “destinatário enquanto tal”.
90
108 Veja-se, a este propósito, a caraterização que Grice (1979: 64-65) faz da noção de “implicitação
conversacional”.
109 Sem dúvida que me coloco aqui, ao invocar Bourdieu nos termos em que o faço, no quadro de
uma “racionalidade forte” (no sentido em que a entendem Popper e Chomsky, a saber, uma racio-
nalidade dotada de hipóteses empiricamente corroboráveis sobre os universais). Não subscrevo,
é verdade, o sentimento de depreciação total (bem contemporâneo) que atinge a linguagem
científica e a sua significação prática, em benefício das convenções do uso. Os pressupostos
normativos da ciência não podem confinar-se ao seu papel e ao seu estatuto no contexto de uma
“forma de vida” (Wittgenstein). Se porventura quisermos invocar estes pressupostos (“recursos”)
como pressupostos metodologicamente inultrapassáveis, só podemos concluir – com Gethmann
e Hegselmann – que para um aristocrata as normas de uma moral aristocrática têm uma fundação
última. Confira-se, a propósito, Apel (1990: 41).
91
92
110 Esta remissão para as Investigações filosóficas de Wittgenstein não indica a página; indica sim a
parte da obra e o número do parágrafo.
Este entendimento da compreensão, feita conhecimento implícito nas nossas atividades práticas
e conhecimento incorporado (“história feita corpo”), é aprofundado por Pierre Bourdieu (1972),
Charles Taylor (1995) e Jacques Bouveresse (1995), entre outros.
111 Merecem reflexão as considerações feitas, a este propósito, por Bragança de Miranda (1997: 133):
“Entre a abertura do agir (na sua máxima indeterminação) e o fechamento das práticas (na sua
determinação total) desdobra-se uma série de possibilidades de ação, sempre relativas e parciais,
que têm o seu fundamento na necessidade de estabilizar a experiência moderna, enquanto
resposta imperativa, e nunca realizada, à situação de crise geral que a carateriza”. Veja-se, no
mesmo sentido, Miranda (1994, 304, n. 33). Uma reserva, no entanto: as regras da prática não a
fecham. Pelo contrário, defletem-na, de acordo com a sua contextualidade própria.
93
subjacente de um dado texto (ou “discurso”); 2) estas regras são decifráveis nos
seus efeitos, sendo passíveis de uma leitura rigorosa; manifestam-se de modo
diferido (retoricamente) em algumas figuras-chave do discurso; 4) a axiomática
é uma palavra de ordem (“un commandement”); 5) finalmente, a axiomática
impõe uma interpretação dos possíveis, rigidamente determinados pelas suas
regras (Miranda, 1994: 287). Sem a maleabilidade dos topoi e das “regras de
ação”, as axiomáticas esgotam-se, deste modo, no código de uma conduta.
A teoria da argumentação na língua projeta, no entanto, um novo tipo
de semântica. Trata-se de uma semântica fundamentalmente intencional,
embora o conceito de intenção seja em Ducrot e Anscombre linguístico, e não
psicológico. É possível dizer a alguém “Convido-te a vir a minha casa” com
a intenção psicológica de lhe armar uma cilada. Em termos linguísticos, no
entanto, o enunciado manifesta intenções amigáveis. O sentido do enunciado
consiste numa descrição da enunciação, o que quer dizer que descreve o
“locutor como tal”, e não o “locutor como ser do mundo”, comenta a enun-
ciação mesma do enunciado, e não o objeto exterior a que esta enunciação
pretenderia conformar-se (Ducrot, 1990: 157).
Entende Ducrot (1990: 163) que o seu conceito de polifonia, de inspiração
bakhtiniana, lhe permite descrever em termos puramente argumentativos os
conteúdos semânticos de um discurso. E por polifonia entende uma espécie
de diálogo cristalizado, que descreveria o sentido do enunciado (Ibid.: 160).
O sentido do enunciado consiste assim numa descrição da enunciação, o
que quer dizer, numa confrontação de várias vozes que se sobrepõem ou se
respondem umas às outras. É verdade que o responsável pelo enunciado (o
locutor) é único, e que olhadas as coisas apenas a este nível, o enunciado é
um monólogo. No entanto, a um nível mais profundo, o locutor do enunciado
põe em cena, no seu monólogo, um diálogo entre vozes mais elementares, a
que chama “enunciadores”. Cada enunciador identifica-se com um ponto
de vista. Por sua vez, o ponto de vista de um enunciador é a evocação, ou
melhor, a convocação, a propósito de um estado de coisas, de um princípio
argumentativo (um topos). O topos, que como salientei é um princípio comum,
partilhado pelo conjunto dos membros de uma dada comunidade, permite
que o locutor o utilize como um argumento que justifique uma conclusão.
Não estando, pois, a teoria da argumentação na língua orientada para o
pensamento, nem para a realidade, pode dizer-se que a sua orientação é para a
continuação do discurso. E é essa a razão, aliás, pela qual, neste entendimento
94
112 A este propósito ver também Aníbal Alves (2001). Ver ainda, do mesmo autor, o estudo feito
sobre o Sermão da Sexagésima, do Padre António Vieira (Alves, 1997).
113 Este entendimento aproxima-se um tanto da pragmática transcendental da linguagem, proposta
por Francis Jacques, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas. Há, em todos eles, uma determinação
de sentido por força da linguagem. Simplesmente, em Ducrot, fala-se de enunciados concretos,
cuja coerência os faz aceitáveis; em Jacques, Apel e Habermas há atos de comunicação implícita
(sendo a comunicação um transcendental) que determinam o sentido.
95
A racionalidade sociológica
114 Talvez haja neste ponto da discussão que atenuar, se não contrariar, o otimismo de Bourdieu rela-
tivamente aos poderes da instituição, com o ceticismo drástico de Roland Barthes. A instituição
96
não dá forma à história; deforma-a, pois converte uma intenção histórica em natureza, transforma
a contingência em eternidade. Cf. Barthes (1984: 198 e 209).
Em todo o caso, com ou sem visão otimista, pode dizer-se que “todos os discursos são atuantes”.
Dos mais etéreos e eufemizados, aos mais voltados para o passado, como a história, ou para o
futuro, como as utopias, “todos são formas de inflectir o existente” (Miranda, 1994, 291-292).
115 Confira-se, a este propósito, Deleuze e Guattari (1980: 96), que radicalizam, aliás, a proposta de
Bourdieu: “A linguagem não é feita sequer para ser acreditada, mas para obedecer e para fazer
obedecer”.
116 Que o vínculo social resulta de lances de linguagem é, aliás, a proposta de Jean-François Lyotard
(1989: 29-30; 44-45). O exemplo dado é o da narrativa. Ao definir uma tripla competência, saber
ouvir, saber dizer, saber fazer, a narrativa transmite as regras pragmáticas que constituem o
vínculo social.
97
117 Como já referi, noutro passo deste ensaio, a viragem pragmática da filosofia analítica é bem
assinalada por Karl-Otto Apel (1988 b: 579): trata-se, com efeito, de uma perspetiva em que o
conceito de racionalidade da sintaxe e da semântica lógicas dos sistemas de linguagem foi inte-
grado e ultrapassado pelo conceito de racionalidade do uso humano da linguagem, quer dizer,
pelo conceito de racionalidade argumentativa.
98
99
significados, e ipso facto a maneira como eles virão a ser percebidos pelo
coenunciador”, são todavia as noções bourdieusianas de campo, de estru-
tura do campo e de capital simbólico (inseparável da posição do locutor na
estrutura social) que nos esclarecem sobre as condições objetivas (sociais) do
funcionamento de tal competência 118.
Idêntico, entretanto, ao conceito de “consciência pragmática” de Joly, e a
merecer, portanto, igual esclarecimento sociológico, é o conceito de “cons-
ciência prática” de Giddens (1990: 278 e 280). A “consciência prática” é um
conhecimento que se conserva e se evoca de forma tácita: dá conta das con-
venções relativas ao que ‘ocorre’ nos contextos quotidianos da ação social 119.
A “consciência prática” dá conta de uma razão comunicativa, onde são pedra
angular a “interpretação do agente” e a “agência”, o que todavia de modo
nenhum significa uma razão centrada no sujeito e na subjetividade (Ibid.:
278). A “consciência prática” não se confunde com a “consciência discursiva”,
que é uma evocação autorreflexiva das experiências e dos acontecimentos
passados, uma memória que se exprime de forma verbal (Cohen, 1990: 384).
A “consciência prática” é antes uma capacidade prática que apenas existe no
seu exercício, o que quer dizer, em condições contextuais específicas, ou por
outra, em condições de espaço e de tempo específicos 120.
118 Sobre o conceito de “competência pragmática” em André Joly, veja-se também, Francis Tollis
(1991: 210-211).
119 Escreve Giddens (1990: 280): “Um falante competente não só domina séries de normas sintáticas
e semânticas, como também domina a gama de convenções relativas ao que ‘acontece’ nos con-
textos quotidianos da atividade social”. E noutro lugar: “A competência linguística não consiste
só em dominar as frases sintaticamente, mas também em dominar as circunstâncias apropriadas
a determinados tipos de frases [...] Por outras palavras, o domínio da linguagem é inseparável do
domínio da variedade dos contextos em que se emprega a linguagem” (Ibid.: 260).
120 Este entendimento da compreensão, feita conhecimento implícito nas nossas atividades práticas
e conhecimento incorporado (“história feita corpo”), é aprofundado por Pierre Bourdieu (1972),
Charles Taylor (1995) e Jacques Bouveresse (1995), entre outros.
100
V. A FIXAÇÃO DA CRENÇA
“Não basta produzir sentido, em função de tal ou tal ‘prática discursiva’. É preciso
mais do que isso: é preciso produzir um sentido, de acordo com aquilo que funda o
sentimento de identidade do eu, da realidade do mundo e, nessa ordem de ideias, é
preciso um regime de interação. O sentido põe em jogo o crer de um sujeito” (Geni-
nasca, 1991: 20).
101
1. Crer é dizer
O meu primeiro confronto foi com o aforismo que abre o Evangelho de S. João:
“No princípio era o Verbo”. Verifiquei então que a fé cristã não vai de uma
primeira a uma segunda pessoa, de alguém que viu a alguém que não viu. Vai,
sim, de uma segunda a uma terceira pessoa, nem uma nem outra tendo visto.
A fé cristã anda sempre de dizer em dizer. Quer isto dizer, que nos termos em
que a vejo a fé cristã se coloca como a re/toma de uma experiência em certa
medida já feita. É esse todo o sentido de re/legere: aquele que acredita lê o que
já foi escrito, ou seja, lê o que lhe é legado, lê aquilo que lhe é dado. Gianni
Vattimo (1998: 8-9) generaliza a toda a experiência religiosa esta ideia de re/
toma, presente no ato de “re/legere”.
A fé cristã é então uma palavra que vai de uma segunda a uma terceira
pessoa, nem uma nem outra tendo visto. Explicitando melhor, o crente é aquele
que ouve uma palavra e lhe faz confiança, seguindo-a e obedecendo-lhe. É
nesse sentido que aponta, aliás, a etimologia de obedecer, ob/audire: ouvir
uma palavra e tornar-se seu discípulo.
O acto de fé como experiência religiosa, não remete pois, antes de mais
nada, para religare. Religare configura o vínculo institucional que objetiva e
oficializa a religião. Essa objetivação e oficialização passa, fundamentalmente,
pelo estabelecimento de um corpo de clérigos, que administra a palavra e
assim assegura a mediação entre nós e o Outro. Podemos também dizer que o
que se joga no ato de fé não é, sobretudo, o horizonte de sentido figurado por
religere. Religere figura a natureza subjetiva da experiência religiosa, dá-nos
conta de uma disposição interior, alude a um sentimento íntimo (Bastide,
1935: 3; Benveniste, 1969: 270-272).
Relegere é a retoma de um dizer que nos foi legado e dado. O crer cristão
retoma então um dizer, e fá-lo como o reconhecimento de uma alteridade.
Ou seja, ao retomar uma palavra, o crer cristão estabelece uma relação com
o diferente, uma relação com o Outro. Não podendo ver o outro face a face (e
sendo esta a condição do crente, a de uma perda e a de uma impossibilidade),
o crente garante, pela palavra recebida, pela retoma de um dizer, um outro que
há de vir. De maneira que, pela retoma de um dizer, o crente garante o outro
em diferido: perde o presente, mas é por um futuro.
Retomar um dizer significa então fazer confiança a uma palavra que é
dita, sendo esta legada e dada. E este reconhecimento, esta confiança numa
102
103
121 Como tenho vindo a defender, na sequência de Jacques (1985 e 1987) e Bourdieu (1982 a e 1982
b), a ordem do sentido supõe o primado da relação.
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2. Crer é fazer
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106
3. O ato de crer
107
do campo, assim como chutar à baliza, mesmo que para fora, sem se benzer
e sem beijar o dedo anelar. Permanece também indissociável das precauções
a tomar, não esquecer os amuletos, por exemplo.
Segundo enunciado: “Não creio em fantasmas, mas tenho medo deles”. É
claro que as ações que o meu medo me proíbe de fazer, indicam aquilo em que
ainda creio, diga eu o que disser, ou mesmo por muito que diga o contrário. E
eu digo que não creio em fantasmas. Há de facto crença, uma vez que existe
uma prática, ainda que ela seja inferida de um sentimento, o medo. Se eu digo
“não creio em fantasmas”, digo-o porque no regime oficial de crédito que é
o nosso, ou seja, no discurso “esclarecido’ que é o nosso, que supostamente
define o acreditável, que o mesmo é dizer, o pensável, os vestígios de um crer
clandestino e ilícito obrigam sempre a umas tantas práticas. No entanto, estas
práticas excluídas de regime oficial de crédito, limitam a crença e bloqueiam-
-na diante dos fantasmas.
Terceiro enunciado: “Ver para crer, como S. Tomé”. Disse na abertura deste
capítulo que o ato de crer não coincidia com o ato de ver. O ato de ver unifica o
presente de um modo totalizante, elimina o compasso de espera de um tempo
diferido, em que toda a crença radica, e impõe-nos a coincidência imediata
entre o dado e o recebido. A tradição cristã propõe-nos uma pedagogia da fé
em que a figura de S. Tomé tem um caráter exemplar. Segundo a narrativa
evangélica, este discípulo de Jesus caiu na tentação de reduzir a crença a um
saber feito de evidências: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos e
não meter a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma acreditarei” (João
20,25). A crença assim entendida não se furta ao regime do mesmo e dos seus
simulacros, não abre a nenhuma alteridade. Crer é, no entanto, obedecer, é
retomar um dizer que não viu, mas que espera, um dizer que apenas conhece
porque confia. Daí que na narrativa evangélica S. Tomé acabe por fazer ato de
obediência (“Meu Senhor e meu Deus”, João 20,28), sem precisar de meter as
mãos nas chagas de Cristo.
Finalmente, o enunciado sobre as bruxas: “Não acredito em bruxas, mas
lá que elas existem, disso não tenho dúvidas”. 0 regime oficial de crédito não
admite a possibilidade de eu acreditar em bruxas. As bruxas são aqui também
um parente pobre, um parente deserdado, enfim, a relíquia de uma cosmologia
passada, uma sobrevivência, um vestígio. “Mas lá que elas existem, disso não
tenho dúvidas”. Existem, é verdade que existem. Este conhecimento não me
é dado pela ciência. Aí, fazem-me saber que não há lugar para as bruxas que
108
109
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111
112
122 Estas citações de Peirce remetem para os Collected Papers, 8 vol., editados por C. Harthouse et
al., Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1931-1958 (apenas refiro os números do volume
e dos parágrafos).
113
123 Pode dizer-se, sintetizando, que o esquema taylorista ajustava o homem à máquina, tendo em
vista reduzir as perdas de tempo. O esquema informativo, por sua vez, ajusta agora o homem à
tecnologia informativa, sendo seu propósito reduzir as perdas de mensagem.
124 Ducrot (1990: 157) entende que as “condições de felicidade” são uma forma de a teoria dos atos
de fala reatar com a tradição lógica, com que rompera num primeiro momento. As condições de
felicidade seriam assim um outro modo de dizer as condições de verdade.
114
Nas páginas que seguem vou procurar esclarecer a base consensual da retórica
encenada hoje em dia pelos conceitos de cultura e de participação nas organi-
zações, que me parecem ter um carácter estritamente alienante. Quando se fala
de cultura e de participação nas organizações, do que se trata geralmente é da
mobilização destas, através da comunicação intersubjetiva, para a competiti-
vidade no mercado. O mercado sim é que é lei. De modo nenhum o é a relação
dialógica, exercida nas condições concretas de um dado campo social 125.
Penso, no entanto, que o mercado, enquanto razão liberal, tem de medir-
-se, por um lado, com a crise da razão, nomeadamente com a crise da razão
histórica, e por outro lado, com os efeitos de poder que acompanham o desen-
volvimento das técnicas. A racionalidade do mercado não pode dissociar-se
do processo constitutivo das sociedades modernas, que Max Weber tematizou
sob a noção de desencantamento. E, num mundo desencantado, os modos
tradicionais de legitimação (os do mito ou da religião) dissolvem-se numa
multiplicidade de racionalidades autónomas, o que exige ou torna possível
uma legitimação apenas assente nos recursos do entendimento consciente,
inscritos na linguagem.
Alienados, todavia, pela competitividade do mercado, os conceitos de
cultura e de participação permitem hoje que toda a gente possa invocá-los sem
colisão, como se a realidade social não tivesse os seus direitos, isto é, como
se ela não tivesse uma “lógica específica”. É desta lógica específica que nos
fala constantemente Pierre Bourdieu, alertando para o facto de a “realidade
125 O caráter estritamente alienante das figuras da participação e da cultura nas organizações capi-
talistas constitui o ponto de partida de uma indagação genealógica do poder, na ótica de Michel
Foucault, de que dou conta num artigo por mim publicado, em colaboração com José Pinheiro
Neves (Martins e Neves, 2000).
115
126 Sobre o processo de construção da realidade social, através da permanente luta simbólica que
as comunidades humanas empreendem para se definirem a elas próprias, veja-se o meu estudo
Para uma inversa navegação. O discurso da identidade (1996).
116
117
acrescento eu 127. Com efeito, como bem assinala Cohen (1990: 386), que retoma
a teoria da estruturação social de inspiração giddensiana, “a estrutura ‘existe’
de forma manifesta apenas quando é atualizada em práticas sociais”.
Aliás, é essa a razão, ao que suponho, que leva Pierre Bourdieu a falar
de representação e de vontade, a propósito da identidade social (no caso, da
identidade regional) 128. E mais, vemo-lo fazer uma crítica severa (com a qual,
diga-se, não posso deixar de estar mais de acordo) aos illocucionary acts. Pro-
curar o poder nas palavras (nos atos de fala), diz Bourdieu, é condenarmo-nos
a procurá-lo onde ele não está; o poder vem de fora à linguagem; esta apenas
o representa, o manifesta, o simboliza (Bourdieu, 1982 b: 105).
A identidade é representação e é vontade. Neste aspeto, sou tentado a
dizer, numa aproximação ainda grosseira, que Bourdieu, mais do que carte-
siano, é pragmatista, nos termos em que Peirce caracteriza o pragmatismo. A
saber: a) o pensamento é um sistema de ideias que tem como única função a
produção de crenças; b) a crença implica a determinação na nossa natureza de
uma regra de acção, ou seja, de um hábito; c) daí que “a essência da crença seja
a criação de um hábito e que diferentes crenças se distingam pelos diferentes
modos de ação a que dão origem” (Peirce, 1993, § 398).
Pragmatista, Bourdieu é-o, porém, apenas em termos sociológicos. Quer
isto dizer que, contrariamente à ideia de Peirce, o pensamento não é para o
pragmatismo sociológico uma simples criação do intelecto; é, isso sim, um
facto social. Corrigindo Peirce, direi então que o pensamento é um sistema
de factos sociais, cuja função é a produção de crenças. Mantenho no entanto
que as crenças implicam a criação em nós de regras de ação ou de hábitos.
Crer é uma promessa de ação. Dizer que acredito em alguma coisa é dizer que
127 Não fora o termo “dialógico” remeter para uma teoria da comunicação idealista, que incide nas
funções comunicativas de expressão e de apelo, mas ignora a função institucional da lingua-
gem, e teria sido esse o termo por mim utilizado. Ao afirmar aqui o primado da relação, não é a
relação transcendental da tradição idealista (em que Habermas, Apel e Jacques se inserem) que
importa acentuar, mas a relação concreta de agentes em interacção, em condições diferenciadas
de estatuto, de espaço e de tempo.
128 A noção de cultura organizacional é predominantemente de origem norte-americana e a noção
de identidade é de origem francesa. Correspondem estas noções a diferentes enfoques, fundados
em analogias distintas. A noção de cultura associa a estrutura e o funcionamento da organização
às particularidades dos esquemas culturais das sociedades. A noção de identidade associa a ideia
de organização à ideia de estrutura e de funcionamento psicológico do indivíduo (Lopes e Reto,
1990: 16). No essencial, uso indistintamente ambos os conceitos.
118
farei alguma coisa. Este aspeto introduz assim uma outra dimensão, sempre
presente na linguagem, a de que ela também é vontade. Quer isto dizer que
a linguagem é ato de adesão pessoal, permanentemente reiterado a uma di/
visão social, ou então é ato de rebeldia, que se joga contra a representação
legítima da realidade e reivindica uma outra legitimidade.
A definição da identidade indica deste modo o lugar de uma luta simbólica
pelo poder de representar legitimamente a realidade. Dando conta das divisões
da realidade (representando-as), as definições da identidade contribuem para
a realidade das divisões (porque são atitudes que criam a crença nas represen-
tações formuladas, e nesse sentido chamam à existência aquilo que enunciam).
Em Peirce, o hábito constitui a identidade de uma crença. Em Bourdieu, a
prática constitui a identidade de uma definição legítima da realidade, isto é,
de uma definição dominante, que todavia se não apresenta como tal.
Esta caracterização que Pierre Bourdieu faz da identidade como repre-
sentação e vontade, tendo em atenção a divisão regional, e que Michel Oriol
operacionaliza numa dimensão nacional, em estudos sobre comunidades
portuguesas emigradas em França, vou por homologia aplicá-la à cultura, e
especificamente à cultura organizacional.
Diz Michel Oriol que a identidade social reenvia para três instâncias que
a explicam: uma estrutura simbólica historicamente constituída; as defini-
ções oficiais (institucionais) que a objetivam; e as expressões individuais que
definem, em tensão com os dados objetivados, um destino singular (Oriol,
1979). A identidade é, deste modo, “o produto de dinâmicas que tendem a
circunscrever grupos”, isto é, atos de totalização efetuados, quer por insti-
tuições, quer por sujeitos individuais, que constituem a identidade com um
conjunto de coisas reais, portanto naturalmente evidentes e objeto de crença
social (Oriol, 1985: 336 e 342).
Não posso, no entanto, deixar de assinalar o carácter idealtípico desta
definição de identidade social. Na sua realidade concreta, a ordenação de
uma organização (estruturas, atitudes e práticas) só pode constituir uma
diversidade a que corresponde uma atitude plural. Nos vários níveis de uma
organização joga-se uma tensão semântica, em que se confrontam organização
e sociedade, organização e atores sociais, e ainda, atores sociais entre si. Esta
tensão é objeto de uma luta de interpretações (onde se jogam hermenêuti-
cas e retóricas), com uma dupla finalidade, a hegemonia na organização e a
hegemonia social (Martins et al., 1993: 267-270).
119
129 Por mitos-narrativas da organização, entendo os seus slogans, sagas, anedotas, histórias, lendas,
canções, glossários. Por ritos-cerimoniais, concebo as festas e as celebrações da organização.
Por ícones-objectos simbólicos, tomo as suas formas arquiteturais, as bandeiras, as insígnias
(Martins et al., 1993: 279).
120
estes processos são, por outro lado, estruturantes, concorrendo para a edifi-
cação de identidades (Martins et al., 1993: 227).
É que a identidade, já o referi, é representação e é vontade. Quer isto
dizer que a identidade é a di/visão que os agentes sociais fazem das divisões
da realidade, di/visão essa que contribui para a realidade das divisões. Neste
sentido, ou os indivíduos interiorizam a representação legítima da realidade,
fazendo sua a definição objetiva, institucional, da identidade; ou pelo contrá-
rio, definem um destino singular, jogando-o contra a representação legítima,
e lutam por uma outra legitimidade.
É pois no quadro desta racionalidade comunicativa, e concluo o meu ponto
de vista, que encaro a interrogação sobre a cultura e a participação nas orga-
nizações. No entanto, ao sujeitar a relação dialógica e a função argumentativa
do discurso às exigências de uma pragmática sociológica, a organização deixa
decididamente de se coçar onde nada lhe faz comichão.
121
122
“Aquilo que tem de específico a cultura das ciências sociais é uma diferente relação
com a escrita” (Wolf Lepenies).
“Dá mais que fazer interpretar a interpretação do que interpretar as coisas” (Montaigne).
123
130 A polissemia da palavra “pharmakos” permite traduzi-la, sem contra-senso, por remédio, veneno,
droga e filtro (Derrida, 1972: 80).
131 Podia ainda talvez assinalar a tradição pós-estruturalista de Derrida e Foucault, nalguns casos
muito próxima do estruturalismo, com o qual compartilha aliás alguns pressupostos, designa-
damente: o caráter relacional das totalidades; a ideia da arbitrariedade dos signos; a natureza
diferencial do sentido. Veja-se, por exemplo, a este propósito, Giddens (1990).
124
132 Este parágrafo é, em larga medida, uma glosa a Derrida (1967: 410-411).
133 Esta conceção do sentido relaciona-se diretamente com a ideia da natureza arbitrária do signo
linguístico, que pode interpretar-se, por sua vez, como uma crítica das teorias objetivas do
significado e como uma crítica das teorias da referência ostensiva (Giddens, 1990: 261).
125
134 Noutro passo, Barthes diz mesmo que “atualmente o saber semiológico só pode ser uma cópia
do saber linguístico” (Barthes, 1989: 9).
135 Não posso deixar, no entanto, de chamar a atenção para o facto de Barthes acabar por impor
ao signo semiológico um desvio, que o afasta do signo linguístico. Assim, enquanto que o signo
linguístico tem como primeira e única função significar, em muitos sistemas semiológicos
(objetos, gestos, imagens), como são os casos do vestuário e da alimentação, o signo (que é uma
126
127
137 Sobre esta dupla fase da filosofia analítica, veja-se Karl-Otto Apel (1994). Veja-se também Jürgen
Habermas (1990: 289-291). E ainda Stephen Toulmin (1994: 20), que assinala a deslocação do
estudo das “proposições” intemporais para a preocupação com “ilocuções” feitas em momentos
e em circunstâncias particulares e visando interesses também particulares.
138 Sobre os diferentes tipos de fundacionismo, veja-se Ernan McMullin (1976: 238-239).
139 Giddens (1990: 270) notou-o bem, ao assinalar a afinidade dos vários tipos de inovações gráficas,
a que se entrega Derrida, com a aversão de Wittgenstein a escrever em estilo narrativo e com a
aparente desordem das suas Investigações filosóficas.
140 Não acho justa a apreciação negativa que alguns fazem do “desconstrucionismo” de Derrida,
acusando-o de realizar uma apropriação perversa da noção de “semiose ilimitada” de Peirce. Não
creio que a denúncia e a contestação dos princípios logocêntricos da “metafísica da presença”
conduza, por um lado à sacralização do leitor “enquanto ser omnisciente e omnipotente”, por
outro lado à redução do texto a “um mero jogo de estímulos” para a iniciativa interpretativa do
leitor, e ainda à confusão da leitura com “práticas de disseminação e de ‘misreading’”. Com todas
estas críticas a Derrida, veja-se, por exemplo, Azevedo (1995: 45-46).
128
141 Este exemplo foi-me sugerido por uma passagem de Oswald Ducrot (1990: 181), em que este
linguista contraria a teoria argumentativa de Perelman e justifica as suas próprias posições
argumentativas.
129
modo. Primeiro, não existe nada fora do texto. Segundo, não existindo nada
fora do texto, aquilo que pode ser conhecido é apenas aquilo que dizemos. Há
um “mundo do texto”, um mundo de enunciados, aberto à explicação do seu
funcionamento. Em terceiro lugar, os textos não comunicam, uma vez que, na
melhor das hipóteses, suspendem a presença dos sujeitos; apenas significam
e se significam uns aos outros.
A tradição estruturalista, que se constrói na base do princípio saussuriano
da oposição entre língua (objeto teórico construído) e fala (conjunto de dados
observáveis), exprime uma atitude platónica, pois subscreve uma filosofia de
separação.
Quanto à tradição pragmática, a resposta é a seguinte. Primeira tese: não
existe nada fora das práticas dos agentes sociais (fora do processo que é usar
signos). Segunda tese: a ser assim, não existindo nada fora das práticas dos
agentes sociais, aquilo que pode ser conhecido é apenas aquilo que fazemos
ao dizer. Do mundo dos enunciados, passamos pois ao ato de enunciação e a
análise centra-se nos atos de linguagem e na argumentação. Terceira e última
tese: não comunicamos no sentido de transmitirmos mensagens objetivas.
Comunicamos apenas no sentido de que significamos pontos de vista e de
que argumentamos em determinada perspetiva.
A tradição pragmática, que se funda numa posição hermenêutica menos
preocupada com aquilo que os discursos dizem e mais com aquilo que os
discursos fazem (força ilocucionária) e com aquilo que nós fazemos com
os discursos (argumentamos, exprimimos pontos de vista), manifesta uma
atitude aristotélica, pois subscreve uma filosofia de compromisso.
Passemos agora ao pormenor de uma e outra tradição linguística. Começo
pela tradição estruturalista. Tendo por decisão epistemológica evacuado a
presença das coisas e a presença do sujeito, o estruturalismo remete para
um modelo transcendental das ocorrências empíricas, para um modelo de
relações sincrónicas, e através dele explica as constantes, as redundâncias,
as repetições. A significação não é, neste entendimento, o suplemento de um
material semiótico (a presença de qualquer tipo de realidade, física ou men-
tal). É sim o efeito de uma estruturação dos significantes, que é um sistema
de diferenças e de oposições.
Na tradição pragmática, em Ducrot, por exemplo, também a linguagem
não espelha as coisas. As palavras não representam a realidade em termos de
verdade ou falsidade. O sentido das palavras é argumentativo. A propósito
130
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132
133
143 Veja-se, neste sentido, o trabalho de Joaquim Pais de Brito (1983) sobre a “mudança na etnologia”,
que é perspetivada como uma “questão do olhar”.
144 Moudher Kilani (1994: 57), numa apreciação mais mitigada, abona no mesmo sentido, ao assinalar,
referindo-se ao “texto antropológico”, que ele serve outros fins que o simples “prazer do texto”
ou a mera “disseminação” do sentido. E acrescenta que, entre outras virtudes, ele serve também
para “adquirir uma posição no campo da disciplina”.
134
145 Francis Affergan (1994: 31) autoriza também este entendimento, ao descrever o funcionamento
de todo o texto nos seguintes termos: “1) [todo o texto] apresenta-se como uma maquinaria
inferencial que o leitor deve fazer funcionar graças às suas próprias suposições, pressupostos,
intenções, valores; 2) [todo o texto] representa sempre um mundo possível [...], aberto ao des-
vendamento ‘universal dos seus destinatários’”.
146 A dicotomia objetividade/subjetividade faz-me pensar também nas duas semióticas de que fala
Jean-Claude Coquet, referindo-se à escola de Paris: uma semiótica de primeira geração, estática,
formalista e nominalista; e uma semiótica de segunda geração, continuista, dinâmica e realista
(Coquet, 1997, designadamente o 3.º cap.). José Augusto Mourão (1999 a: 4-5) contraria esta ideia
de um paradigma objetivista oposto a um paradigma subjetivista: em vez de duas semióticas que
135
Era Foucault (1971: 40-47) quem dizia que a disciplina científica, sendo um
discurso, constitui sempre uma prática (social) policiada, interna e externa-
mente: pelas convenções metodológicas, pelas normas de objetividade, pelos
espantalhos do saber. Chamou-lhes ritual, comentário, citação, doutrina (teo-
ria e metodologia), linha de separação entre o verdadeiro e o falso. Deste modo,
não é qualquer um que põe o pé portas adentro de uma disciplina científica,
qualquer que ela seja. Modeladas pela escrita, as disciplinas científicas, todas
elas, nesse aspeto preciso em que são uma prática institucional, constituem
um jogo, que significa sempre o mesmo, e que portanto apenas pode repetir-
-(se). São práticas de autoridade. Não surpreende, pois, que possam ter tiques
penais, ser devotas do regime exclusivo e envenenar o olhar.
Seja-me permitido neste ponto argumentar com alguns episódios da
minha própria experiência, que invoco pelo seu carácter exemplar. Quando
escrevi O Olho de Deus no Discurso Salazarista (1990), historiadores houve
que lhe dedicaram alguma atenção, dada a referência “mágica” ao salazarismo.
Mas logo o estigmatizaram, porque “o dispositivo estratégico de escrita” aí
utilizado o tornava “um osso duro de roer para os cultores da historiografia”
(Pinto, 1990). A obra inscrevia-se num espaço disciplinar heterodoxo, aberto
por Michel Foucault, e permitia analisar as relações de poder em termos que
a perspetiva clássica da história das ideias desconsiderava. O historiador
António Costa Pinto irritava-se (o termo é seu) com o “fluxo discursivo” que
a obra produzia “em enxurrada” e duvidava que através dessa “operação fou-
caultiana” se pudesse “vislumbrar a figura de Salazar” (Ibidem).
Já o referi, a escrita é um conjunto de procedimentos, que encena apostas
éticas, estéticas, científicas e institucionais. Tanto como o objeto, a escrita
classifica o especialista de uma disciplina. Daí que Costa Pinto dê o passo
decisivo: “Com algumas tradições em Portugal, o género biográfico tem rareado
na investigação histórica e, mesmo no campo jornalístico, não vemos equiva-
lentes atuais de Lemos Martins. Parece até que anda mal visto no meio acadé-
mico” (Ibidem). Mal visto no meio académico. Quem? O género biográfico ou
Lemos Martins? Porque é da legitimação num meio profissional que se trata,
compreende-se o que se insinua, ou não fosse o descrédito um mecanismo
de exclusão.
se digladiam, prefere falar de duas semióticas que se prolongam ou se completam, “uma mais
descritiva, outra mais explicativa, uma mais projetiva, outra mais morfodinâmica”.
136
147 Em nenhum dos excelentes volumes que coordenou sobre o Estado Novo, num caso o volume
XII.º da Nova História de Portugal de Joel Serrão e Oliveira Marques (1990), noutro o volume
VII da História de Portugal de José Mattoso (1994), Fernando Rosas lhe faz qualquer menção.
Mais curioso é o caso de Braga da Cruz. Apesar da sua formação sociológica, este estudioso do
salazarismo impôs-se como historiador. E como acontece, de um modo geral, com os historia-
dores das ideias e da cultura do Portugal contemporâneo, na sua perspetiva de enfoque não há
quaisquer concessões a análises do salazarismo que tenham em Foucault uma qualquer inspi-
ração. Esta fidelidade tem sido, aliás, recompensada. Veja-se, por exemplo, o destaque que lhe é
dado no Repertório Bibliográfico da Historiografia Portuguesa (1974-1994), editado em 1995 pela
Faculdade de Letras de Coimbra e Instituto Camões. Sabe-se, no entanto, como as classificações
sociais, respondendo a funções práticas e visando efeitos sociais específicos, andam associadas
aos combates pela legitimidade e pela hegemonia simbólicas (o que também quer dizer, pela
legitimidade e pela hegemonia sociais). Braga da Cruz tem hoje uma posição hegemónica no
campo social da representação historiográfica do Estado Novo, e é em consequência da sua
posição dominante neste campo que as suas Teorias Sociológicas, objetivamente uma antologia
de textos de sociologia, figuram como trabalho de História no Repertório Bibliográfico assinalado.
148 Tenho esta convicção pelo facto de constar neste anuário bibliográfico um artigo meu, que tem
todavia a “virtuosa” particularidade de não rezar por Foucault. A mesma coisa acontece, aliás,
na Bibliografia anual de História de Portugal, ano de 1991. Dir-se-ia que a referência então feita a
um trabalho meu apenas recompensa o “progresso” de me ter feito ao caminho sem a companhia
do consagrado autor da Archéologie du Savoir.
137
ou seja, ao seu regime de observação. Mas não foi o caso. Quis Costa Pinto
fazer-me saber que não é quem quer que põe os pés portas adentro da histo-
riografia. E pelo comentário, pela citação, pela doutrina (teoria e metodologia),
pelo ritual, que armavam o seu fortim, foi de uma realidade policiada, interna
e externamente, que retirou a sua bravura. E Reis Torgal fez outro tanto. Diante
de um dispositivo de escrita que desconhecia, também não hesitou em con-
verter dificuldades próprias em inseguranças alheias, confirmando a escrita
da história como mera prática de exclusão.
É claro que um historiador, qualquer historiador, faz as escolhas teórico-
-metodológicas que entende. Mas do que nenhuma hermenêutica historio-
gráfica se livra é de subscrever um regime do olhar. Outra não é a natureza de
um projeto hermenêutico, qualquer que ele seja. Quer isto dizer, que nenhuma
leitura histórica existe “sub specie aeternitatis”. Tem, como todas têm, con-
dições históricas de possibilidade. Pressupõe, como todas pressupõem, um
específico critério de verdade e de diálogo racional.
Já Michel de Certeau (1975: 60) havia notado que, em termos enunciativos,
o discurso da história se caracteriza por ser um discurso na terceira pessoa,
um “discurso do morto”, em que o objeto da narrativa, o objeto que circula, é
o ausente. Acontece, no entanto, que o narrador se dirige aos leitores do seu
tempo, aí instaurando um determinado processo de significação que configura
sempre um sentido da história. Roland Barthes chamava a este procedimento da
escrita um “efeito de real”: na aparência, o historiador conta factos, mas aquilo
que efetivamente enuncia são sentidos, sentidos da história, sentidos da vida.
Querem Costa Pinto e Reis Torgal que a historiografia portuguesa dispense
o olhar clínico que Foucault lançou sobre a experiência da nossa modernidade,
a de um poder que nos torna dóceis e úteis, no asilo, no quartel, na prisão, no
hospital e na escola (também na Universidade). De igual modo querem que ela
dispense toda a obra que em Foucault reconheça um contributo epistemoló-
gico importante para a análise dos fenómenos do poder. Escrita paradoxal esta
que enlaça uma conceção dogmática de verdade, devota do regime exclusivo,
com uma prática que acena à sereia pragmática de uma verdade sem o poder.
Como se numa escrita científica apenas se fizesse progredir um saber! Já o
referi, pela escrita somos integrados, ou então excluídos 149.
149 Como exemplo que enobrece os historiadores, gostaria de convocar aqui, no entanto, a atitude
de Fernand Braudel, quando Foucault publicou a sua Histoire de la folie à l’âge classique. Conta
138
Didier Eribon (1990: 147) que, ao artigo de Robert Mandrou assinado nos Annales, “o papa da
nova investigação histórica” acrescentou uma nota de apreço pelo livro e pelo seu autor.
139
140
“Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial
da ciência pós-moderna é promover a ‘situação comunicativa’ tal como Habermas a
concebe” (Santos, 1987: 45)
“Não existe modelo de verdade que não reenvie a um tipo de poder, nem saber
que não exprima ou implique um efetivo poder em vias de realização” (Deleuze,
1986: 46).
“Os últimos dez anos, escreve Boaventura Sousa Santos (1992), marcaram
decididamente o regresso do indivíduo. O esgotamento do estruturalismo
trouxe consigo a revalorização das práticas e dos processos e, numas e nou-
tros, a revalorização dos indivíduos que os protagonizam. Foram os anos da
análise da vida privada, do consumismo e do narcisismo, dos modos e dos
estilos de vida, do espectador ativo de televisão, das biografias e trajetórias
de vida, análises servidas pelo regresso do interacionismo, da fenomenologia,
do micro em detrimento do macro”.
Esgotado o estruturalismo, regressa pois o indivíduo. Mas a ideia fica com-
pleta apenas se acrescentarmos: e regressado o indivíduo, regressa o sentido
e a hermenêutica (Santos, 1989: 102 e 117), sendo esta uma pragmática, uma
141
150 O pluralismo da cultura pós-moderna, para que aponta a noção de pragmática, não deixa, no
entanto, de constituir uma realidade ambivalente. Faltando-lhe referências seguras, a sociedade
pós-moderna abre-se à impotência radical, diante da extrema complexidade da situação atual. E
abrindo-se à impotência, abre-se literalmente à experiência da perda de sentido. Veja-se, neste
sentido, Gilles Lipovetsky (1988 e 1989).
151 Franco Crespi (1992: 76) faz notar que a deslocação do conceito de razão no sentido de ‘racio-
nalização’, empreendida no século XIX pelo historicismo alemão, constitui a primeira derrota
da razão triunfante. O conceito de racionalização permite-nos, com efeito, olhar a razão sob
nova luz: perdendo o caráter de princípio universal e intemporal, e adquirindo uma dimensão
histórica culturalmente determinada, que a confina à idade da técnica, “a razão deixa de ser o
que salva e é olhada como uma ameaça aos próprios valores humanos”.
152 Este entendimento conjuga o conceito gadameriano de consciência da determinação histórica
(Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein) e a noção heideggeriana de pré-compreensão, peneirados,
é verdade, no crivo sociológico.
153 Diz Boaventura Sousa Santos (1989: 114): “os cientistas, ao contrário dos filósofos, não se preo-
cupam com a verdade, mas com as verdades, com o caráter incontroverso dos resultados a que
chegam”.
142
154 Poder-se-ia ainda introduzir aqui uma outra questão, a da legitimidade ou ilegitimidade das
interpretações. Esta questão abre caminho ao “exercício de uma racionalidade competente
no domínio dos valores”. O exercício desta racionalidade confia-a também Rui Grácio (1992) à
retórica e à argumentação.
155 Ver também, a este propósito, Bourdieu: “o poder que constitui o dado ao enunciá-lo, o poder de
agir sobre o mundo pelo facto de agir sobre a representação do mundo, não reside em ‘sistemas
simbólicos’, na forma de uma ‘força ilocucionária’. Cumpre-se, sim, na e pela relação definida
que cria a crença na legitimidade das palavras e das pessoas que as pronunciam, e só opera na
medida em que aqueles que o suportam, reconhecem aqueles que o exercem. [...] É na totalidade
do espaço social que são engendradas e exercidas as disposições e as crenças que tornam possível
a eficácia da magia da linguagem” (apud Bourdieu e Wacquant, 1992: 123).
143
regresso ao indivíduo, que pelo menos neste aspeto concordam com Michel
Meyer (1992 a: 118): foi a reação contra a “obsessão sintática” que relançou a
pragmática, ou talvez mesmo se possa dizer, que a refundou como “semântica
integrada com a argumentação”.
Foram, com efeito, as insuficiências do estruturalismo, enquanto pro-
grama exclusivamente racional, que tornaram possível a aposta pragmática 156.
Foram elas que tornaram possíveis os processos de dissolução que tipificam
o estatuto pós-moderno: a prevalência do local, a flutuação dos referentes, a
cascata significante, a deriva ad infinitum. Dizendo-se do lugar provável e não
provado, conjetural e não certo, verosímil e não evidente (Carrilho, 1990: 70),
a pragmática propõe-se como a verdade da hermenêutica. E isto quer dizer
que o valor das interpretações deixa de se fundar numa conceção “forte” de
racionalidade, numa qualquer “verdade objetiva”, ou seja, na correspondência
com o real, num método e em critérios, para se justificar numa base exclu-
sivamente ética. Utilizando as palavras de Rorty (1990: 48-49), o valor das
interpretações assenta numa base solidária, isto é, “num conjunto de virtudes
morais como a tolerância, no respeito das opiniões daqueles que nos rodeiam,
na capacidade de escuta, na confiança posta na persuasão e não na força”.
A reabilitação da retórica tem pois que ver com a erosão da “fundação”
de normas universais e com a tentativa de conciliar o universal e o contex-
tual, através do princípio argumentativo. Mas sabe-se como desde Platão a
retórica está inquinada pela suspeita de vassalização à doxa. A este propósito,
talvez seja interessante referir a distinção, de sabor aristotélico, retomada
por Todorov (1991) entre verdade de adequação (verdade de facto) e verdade
de desvendamento (verdade de interpretação) 157. Perspetivada como uma
156 Franco Crespi (1992: 76) entende que é a secularização que se encontra esgotada. E a secularização
é mais do que o racionalismo. A secularização é, numa primeira fase, o racionalismo, e numa
segunda, o positivismo (Ibid.: 75).
157 Esta distinção parece corroborar o ponto de vista de Crespi (Ibid.: 78) sobre o fim do “primado da
epistemologia”, que terá caraterizado a tradição moderna desde Descartes, e o advento da nova
dimensão “ontológica”, bem acentuada pela hermenêutica de Heidegger e de Gadamer. É, no
entanto, um entendimento que merece a clara reserva dos pragmatistas, pois parece contrapor
a “objetividade” à “subjetividade”, e faz supor que ao lado das verdades “objetivas” existem
outras que são meramente “subjetivas” ou “relativas”. Esta conceção, adverte por exemplo Rorty
(1990: 6 e 49), acaba por isolar no conjunto dos enunciados verdadeiros “um conhecimento
propriamente dito” e “uma simples opinião”, e impõe a distinção entre aquilo que é da ordem
dos “factos” e aquilo que pertence ao “juízo”, entre aquilo que são “questões de facto” e aquilo
que são “questões de linguagem”.
144
158 Apesar de não poupar o estruturalismo linguístico, Pierre Bourdieu desconfia da atualidade deste
debate. Diz a propósito (1992: 154): “desde que existem as ciências do homem, em França desde
Durkheim, sempre houve pessoas para anunciar o ‘regresso do sujeito’, a ressurreição da pessoa,
selvaticamente por elas crucificada”. E logo segue o protesto contra o absoluto favor que cada
vez mais é dado à pragmática: “O espaço em que se situa o investigador não é o da ‘atualidade’,
seja ela a atualidade política ou a atualidade ‘intelectual’” (Ibid.: 160). É o espaço relativamente
intemporal que Marx e Weber, Durkheim e Mauss, Husserl e Wittgenstein, assim como Goffman
e Cicourel ajudaram a criar: “a capacidade de dar respostas precisas e verificáveis, às questões
que somos capazes de construir cientificamente”.
145
159 Ao enveredar por este caminho, Ricœur coloca-se em contracorrente a todos aqueles que, como
Michel Meyer, entendem ser inadequada a teoria linguística que, ao inspirar-se em Saussure,
privilegia o texto e desterritorializa a linguagem, fazendo-a “nada significar em particular mas
tudo em geral”. Diz Meyer (1992 b: 47) a este propósito: “Se os signos têm uma referência arbitrária
e se exteriorizam pelo a posteriori do mundo, será forçosamente a linguagem ficcional que será
primeira, e o uso referencial será o empurrão que lhe é imposto para fixar a referência ao mundo”.
160 Fazendo alarde de uma linguagem controversa e de combate, Bourdieu (1992: 155) dirá a este
respeito que o debate dos anos 60 entre a “filosofia do sujeito” e a “filosofia sem sujeito” foi uma
das formas de que se revestiu a luta entre as ciências do homem e a filosofia. A filosofia teria
encarado as ciências do homem como “uma ameaça à sua hegemonia” e teria tido dificuldade
em aceitar “os princípios fundamentais do conhecimento científico do mundo social” (Ibidem).
161 Também Michel Foucault (1971: 53-62) respeita este princípio de inversão, uma vez que o seu
projeto consiste na identificação das formas da exclusão, da limitação, da apropriação do dis-
curso, isto é, na explicação do acontecimento discursivo pela série, pela regularidade, pelas
146
147
o condão de conciliar in extremis Lévi-Strauss com a teoria linguística que preserva o uso refe-
rencial da linguagem, uma vez que a frase isolada contém estruturalmente a sua significação
como condição de verdade. O proposicionalismo tem, no entanto, hoje uma posição incerta na
comunidade científica. Quer Meyer, através da conceção problematológica da linguagem, quer
Bourdieu, através da teoria dos campos, quer Foucault, através do conceito de “policiamento”
interno e externo do discurso, para referir apenas algumas figuras marcantes da racionalidade
contemporânea, o contestam e dele se distanciam.
164 A ser esta a perspetiva antropológica de Lévi-Strauss, parece-me pouco matizada a apreciação
que dela faz Tito Cardoso e Cunha (1988). Por um lado, afigura-se-me temerário afirmar, sem
quaisquer nuances, que a perspetiva de Lévi-Strauss reduz o mito a uma “estrutura vazia”, enfim
“a uma álgebra sem referência a um mundo existencial” (Ibidem: 276). Por outro lado, não é exato
que o conceito de estrutura remeta para uma noção de “espírito humano” em tudo redutível a
mecanismos físico-químicos” (Ibidem).
Se virmos as coisas por este prisma, a análise estrutural passa a ser perfeitamente supérflua e
mesmo nefasta à compreensão do mito, o que de modo algum reflete o ponto de vista de Ricœur,
que Tito Cardoso e Cunha, todavia, parece querer adotar. Muito embora admita que a análise
estrutural coloca entre parênteses a função propriamente semântica do mito, o que aliás lhe
merece sérias reservas, Ricœur (1988: 16) conclui o seguinte: “pode afirmar-se que ela constitui
uma etapa necessária para fazer aparecer aquilo que se designará por semântica profunda do
mito e que uma leitura superficial deixa escapar” (sublinhados meus).
148
165 Veja-se, por exemplo, Cesare Segre (1989 a: 37-38; e 1989 b: 172-173); e também Acílio Rocha
(1988).
149
166 Esta expressão é de Gibert Durand (1979: 15). A categorização “hermenêuticas arqueológicas” /
“hermenêuticas escatológicas” é de P. Ricœur (1962). Como exemplo de hermenêuticas arqueoló-
gicas, na contemporaneidade, posso assinalar, entre muitas outras, as de Marx, Nietzsche, Freud,
Lévi-Strauss, Barthes, Greimas, Foucault, Bourdieu. Do lado das hermenêuticas escatológicas,
aponto as de Dilthey, Heidegger, Van der Leuw, Eliade, Cassirer, Gadamer, Durand, Vattimo,
Maffesoli.
167 Veja-se sobre este assunto Eco (1977: 22-23); Meyer (1992 b: 110-111, 115); Carrilho (1990: 71).
168 Sobre a importante função retórica que a metáfora e a analogia desempenham em Aristóteles,
veja-se Ricœur (1975: 13-61). Veja-se também como em Perelman (1987) o argumento por analogia
e o uso das metáforas são indispensáveis a todo o pensamento criador. E como em Black (1962:
242) “toda a ciência deve partir de uma metáfora”. Veja-se ainda, neste sentido, Andrew Ortony
(Ed.), 1979 (especificamente, os artigos de Searle, Levin e Morgan, pp. 92-149); e Santos, 1989
(sobretudo, pp. 126-133).
169 Vemos a mesma caracterização da escrita como lei e objeto moral, como instituição, em Jacques
Derrida (1972: 83), na leitura que faz do Fedro de Platão.
150
170 O conceito de pragmática usado por Vítor Aguiar e Silva aproxima-se da conceção clássica de
retórica, que encontramos em Platão, no Górgias, por exemplo. “A retórica, diz Sócrates, não
precisa de conhecer a realidade das coisas; basta-lhe um certo procedimento de persuasão
por si inventado para que pareça (phainesthai) diante dos ignorantes mais sábia que os sábios”
(Górgias, 495 b).
171 Nem todos os investigadores acham justificada a identificação do “texto” como “todo o discurso
fixado pela escrita” (Ricœur,1970: 181). Barthes tem neste aspeto uma posição idêntica à de Ricœur.
Mas já Aguiar e Silva (1990: 187), por exemplo, tem uma opinião diferente, definindo o texto nos
termos em que o definem Halliday e Hassan: texto é qualquer manifestação verbal “falada ou
escrita, de qualquer extensão, que constitua um todo unificado”.
172 Inspirando-se na obra de Chaïm Perelman, e contrariando Ricœur e Gadamer, Rui Grácio (1992:
72) entende que o domínio dos valores (em que é preciso escolher, decidir, deliberar) não inte-
gra, primordialmente, o campo hermenêutico, mas, por excelência, o domínio da retórica e da
argumentação.
173 Neste artigo de 1962, Ricœur defende a coerência das interpretações opostas. Posteriormente, vai
mais longe e postula a necessidade de uma sinergia entre explicar e compreender, como garantia
de qualquer processo hermenêutico, seja arqueológico, seja escatológico. Veja-se, por exemplo,
o artigo “Entre herméneutique et sémiotique” (1990), a que já aludi. A fazer fé em Ricœur, pode
hoje falar-se de uma convergência das hermenêuticas opostas.
151
Ora, a pragmática, ao não se ocupar daquilo que o discurso diz, vai rechaçar
a modernidade e a sua conceção de texto, que abre um “mundo de sentido
imanente”, à distância do “mundo real” e à distância do leitor e do autor 174.
Mas recusa igualmente a conceção clássica, corrente e tradicional de texto,
e a sua metafísica, que faz confluir numa mesma história, o signo, o texto e
a verdade 175.
Tomo como exemplo a tragédia de Sófocles, Édipo Rei. Se nos cingirmos
àquilo que o texto diz, podemos fazer quatro leituras do mito de Édipo, duas
centradas no significante (as hermenêuticas psicanalítica e estrutural), outra
no significado (a hermenêutica heideggeriana ou “platónica”) (Ricœur, 1962:
179), e uma outra, não referida por Ricœur, que funde numa só leitura as
hermenêuticas freudiana e heideggeriana, apresentando o caráter paradoxal
de uma interpretação simultaneamente desmistificadora e remitificadora (a
hermenêutica “eclética”).
A hermenêutica freudiana lê no mito de Édipo o drama do incesto: Édipo,
que mata o pai e casa com a mãe, não faz mais do que realizar um desejo da
nossa infância.
A hermenêutica estrutural, proposta por Lévi-Strauss, lê no mito de Édipo
a resolução de uma contradição sociológica. O mito de Édipo é, nesta interpre-
tação, um instrumento lógico usado para fins sociológicos: ele permite a uma
sociedade que afirma em numerosas narrativas que os homens vêm da terra
(“autoctonia”), resolver a contradição decorrente do facto de se saber que o
homem nasce da união do homem e da mulher (Lévi-Strauss, 1958: 239). Pela
redução dos mitos a “relações significativas”, ditas “mitemas”, pela arrumação
dos mitemas em quatro colunas “sincrónicas” (patenteando duas delas uma
174 De Saussure a Hjelmslev, aos estruturalistas da escola de Praga, a Barthes, Greimas, Kristeva,
Lévi-Strauss, e mesmo a Ricœur até certo ponto, o texto é concebido na sua autonomia. E na
perspetiva destes investigadores, a reapropriação do texto é a única maneira de combater o
arbítrio das interpretações ab extra.
175 Foi o conceito clássico de texto que esteve por detrás do diferendo que, nos primeiros anos deste
século, opôs à crítica textual modernista a exegese católica da Sacra Pagina, que permanecia
estreitamente ligada à teologia dogmática da Contrarreforma. A história-ciência destronava a
história-tradição, “desencantando-a”, e o decreto Lamentabili, de 3 de julho de 1907, assim como a
encíclica Pascendi dominici gregis, de 8 de Setembro do mesmo ano, epigonando o Syllabus erro-
rum, de 1864, e escudando-se na infalibilidade pontifícia, definida em 1870 pelo concílio Vaticano
I, logo foram lançados no encalço da “heresia moderna”, que sustentava a mútua separação entre
a fé e a ciência, entre a velha e a nova exegese. Sobre o assunto, ver José Mourão (1988).
152
153
desse mundo que nenhuma situação rodeia, protege ou orienta, desse mundo
de que não há via prática para nos dizer o sentido (Barthes, 1987: 53).
Enquanto linguística mais preocupada com a fala do que com a língua,
a pragmática desinteressa-se por aquilo que um discurso diz fora das rela-
ções que mantém com o contexto formado pelos pontos pertinentes da sua
enunciação. A interpretação de um enunciado por parte do destinatário não
lhe exige apenas uma simples decodificação, nem tão-pouco a sua integra-
ção na estrutura que o explica; exige-lhe aquilo que Grice (1979) chama de
“implicitação conversacional” 176, uma conjetura que reconstrói a relação entre
o enunciado e um certo número de pontos de referência selecionados nas
representações que o interlocutor partilha, ou pensa partilhar, com o locutor 177.
Será apenas em função deste “cálculo interpretativo”, ou desta “conjetura”,
na expressão de Ricœur (1987: 86-91; e 1990: 10), que a pragmática se poderá
pensar e exercer como momento argumentativo de um processo hermenêu-
tico, que valida e invalida, legitima e ilegitima interpretações.
Não lhe importando, pois, aquilo que o discurso diz, a pragmática vai
ocupar-se, por um lado, com o diálogo e a conversação, quer dizer, com aquilo
que o discurso é: interlocução, ação comunicativa, “diferença problematoló-
gica” (Meyer) 178, enfim uma “prática do outro” (Certeau) 179. E por outro lado,
176 A noção de “implicitação conversacional” é uma “subclasse ligada à existência de uns tantos
traços gerais do discurso”, e especificamente a um fator constante: um “princípio de cooperação”,
desenvolvido através de um conjunto de “regras de conversação”, às quais é suposto um locutor
conformar-se (Grice, 1979: 60-61).
A este funcionamento hermenêutico, que nos conduz da forma literal, linguística, de um enun-
ciado às suas implicitações (implicatures), Flahault (1979: 73) chama-o de “cálculo interpretativo”.
177 A distinção entre “dizer” e “implicitar” (implicate), a noção de “implicitação” (implicature), as
regras de quantidade, qualidade, relação e modalidade, nos termos em que Grice as estabeleceu,
tornaram-se correntes na análise pragmática.
Este entendimento é hoje, todavia, fortemente contrariado. A um eu e a um tu, concebidos como
únicos detentores da iniciativa semântica, Jacques, entre outros, contrapõe, como tenho vindo
a assinalar, o “primado da relação”.
178 A “diferença problematológica” remete para uma conceção retórica da razão, que subordina a
lógica e a argumentação ao questionamento, assim se distanciando da retórica proposicional
de Aristóteles e de Perelman. Desenvolvo este ponto de vista noutro ponto deste capítulo.
179 Pode ler-se neste sentido, como opção pela pragmática, o artigo de Michel de Certeau sobre
“L’institution du croire” (1983). Os discursos sobre a crença dizem os objetos de uma convicção (“ter
crenças”), e portanto os bons objetos (objetos “verdadeiros”) e os maus objetos (objetos “falsos”
ou “supersticiosos”). Ora, ao discurso sobre a crença, Certeau (1983: 62) prefere o próprio ato de
crer, entendido este como conjunto de operações feitas pelo crente sobre conteúdos variáveis.
154
ocupa-se com a força e o poder do discurso, com aquilo que o discurso faz, no
duplo sentido de peithous demiourgos e de speech act, quer dizer, de demiurgo
de persuasão, que faz a doxa e o consenso, e de ato discursivo ritualizado, isto
é, formalizado, convencional, que é eficaz 180.
Ocupando-se com aquilo que o discurso é e com aquilo que faz, a prag-
mática é, acima de tudo, um discurso de argumentação, e não um discurso
de prova, próprio da lógica apodítica 181. Como discurso de argumentação, a
pragmática utiliza raciocínios retóricos, “entimemas”, na expressão de Aris-
tóteles, quer dizer, de verdade provável, plausível e verosímil. É assim um
discurso que responde ao desejo, “às expectativas”, ao que há de vir (Santos,
1989: 108), e tem o seu destino ligado ao exercício do poder.
Com efeito, a pragmática satisfaz-se com a retórica, com a persuasão,
apenas e na medida em que é discurso autorizado, legítimo, e que portanto faz
autoridade. A pragmática é assim um discurso que já não precisa de conhecer
a realidade (social) das coisas, porque contém um poder singular: o de dispor
das palavras sem as coisas; e mais importante ainda, dada a performatividade
da palavra autorizada na deliberação da assembleia, o poder, dispondo das
palavras, de dispor dos homens (Quelquejeu, 1978: 119) 182.
Se a cronologia ajuda a precisar alguma coisa, podemos dizer que estamos
perante uma antiga e uma nova racionalidade. A antiga racionalidade é, na
Daí que investigue os modos como se inscreve na linguagem e na ação, a relação do sujeito com
aquilo que lhe escapa. O ato de crer é, neste sentido, pragmático – uma prática do outro.
180 No que acabo de dizer sobre os speech acts, já introduzi as críticas de Bourdieu (1982 b: 103-119)
a Austin e a Habermas: a “força ilocucionária” do discurso não está na própria linguagem, não
está nas expressões ditas performativas. A força, a autoridade da linguagem, vem-lhe de fora,
vem-lhe da instituição. A linguagem apenas a manifesta e simboliza.
181 Foi, com efeito, o conceito de pragmática, enquanto ciência do ser e do fazer do discurso, que
generalizou na semiótica a ideia de que comunicar é um fazer-crer e, simultaneamente, um
fazer-ser. Por sua vez, a hermenêutica tinha já estabelecido, contra a semântica, que comunicar
é também um fazer-saber, que não se esgota num ato de decodificação, mas exige sempre um
trabalho interpretativo.
182 A glosa que faço de Bernard Quelquejeu inclui já a reflexão de Bourdieu sobre a “legitimidade”
do discurso.
Com as palavras de Samuel Ijssling, posso formular de um modo mais suave, mas menos rigoroso,
a ligação da pragmática ao exercício do poder. “Quando se tem o domínio da linguagem, diz
Ijssling (1976: 201), é-se senhor da verdade; numa palavra, é-se um homem de poder”. A Ijssling,
como aliás a Quelquejeu, aplica-se, contudo, a crítica de Bourdieu: o poder não está na própria
linguagem; a magia da palavra é social.
155
183 Estou a utilizar uma expressão de sabor bíblico: “a letra mata e o espírito vivifica”, diz S. Paulo
na 2.ª carta aos Coríntios (Cor. 3,6).
184 Bourdieu (1980: 124) pensa mesmo que a linguagem tem crédito no duplo sentido do termo: tem
autoridade e faz-se fé nela, acredita-se nela.
185 Que a experiência tem uma natureza que se prende ao estatuto da linguagem é o sentido que neste
século a hermenêutica e o linguistic turn imprimiram à nossa racionalidade (Miranda, 1994: 23).
Mas admitir que o discurso constrói o horizonte da hermeneuticidade (Ibidem: 283) não significa
que passamos a pactuar com a redução de tudo ao discurso. Concordo que tenhamos que ir aquém
e além da linguagem, embora apenas esta possa autorizar o percurso a fazer (Ibidem: 23-24).
156
186 Como já referi, é a categoria de historicidade que fratura a tradicional afinidade entre a razão e a
verdade. Segundo Gadamer (1988: 101), por exemplo, tomar em consideração a historicidade sig-
nifica introduzir no pensamento “um tema autocrítico que contesta a velha pretensão metafísica
de conseguir atingir a verdade”. Não que Gadamer abandone, de forma alguma, o problema da
verdade. Aquilo que a consideração da historicidade vem sublinhar é o vínculo, indelével, entre
compreensão e situação, interpretação e preconceito, conhecimento e crença, teoria e prática
(Gadamer, 1976: 139).
187 A ideia de uma “dupla estrutura da fala” inspira os conceitos de “dualidade da estrutura” e de
“dupla hermenêutica” de Giddens. É também por reconhecer na linguagem esta dupla articula-
ção que Ricœur (1970, 1977 e 1990) fala de uma hermenêutica que realiza um duplo movimento,
explicativo e compreensivo.
157
3. A pragmática sociológica
158
adesão de muita gente: é desta circunstância que ela recebe uma autoridade,
uma presunção em seu favor.
Boaventura Sousa Santos (1989: 111-113), conjugando a teoria dos lugares
(topoi) de Aristóteles, a teoria do consenso de Habermas e a teoria da argu-
mentação de Perelman, concebe a doxa como “factos, verdades e presunções”
admitidos e aceites por um “auditório universal”. E distingue os enuncia-
dos dóxicos dos topoi (tópicos, pontos de vista, lugares comuns), que dizem
respeito a auditórios específicos, “relevantes”, e têm uma força sobretudo
persuasiva.
O conceito de auditório, central na teoria da argumentação, faz supor que
no discurso todos podemos entrar, desde que “linguisticamente competentes”
(Ibid.: 112) e na posse da técnica retórica (Ibid.: 112-113).
A posição de Boaventura Sousa Santos choca, porém, com duas dificul-
dades. Em primeiro lugar, como bem lembra Michel Foucault (1971: 40 ss.), e
Bourdieu não se cansa de repetir, a “comunicação universal do conhecimento”
e o “intercâmbio infinito e livre dos discursos” são figuras problemáticas, que
apenas “funcionam no interior de complexos sistemas de restrição”, como
sejam, o ritual, as “sociedades de discurso”, as doutrinas, enfim, a apropria-
ção social dos discursos. E por outro lado, é importante não esquecer, como
assinala Roland Barthes (1970: 173), que a retórica nasceu “de um processo
de propriedade”. Com efeito, a arte da palavra está originariamente ligada a
uma reivindicação de propriedade, “como se a linguagem, enquanto objeto de
uma transformação, conduta de uma prática, se tivesse determinado a partir
não de uma subtil mediação ideológica [...], mas a partir da socialidade mais
transparente, afirmada na sua brutalidade fundamental, a da posse da terra:
começámos no ocidente a refletir sobre a linguagem para defender o nosso
quinhão” (Ibid.:176).
Quer isto dizer que a doxa não é originariamente um discurso inocente,
uma pura condição do diálogo e da comunicação. Como toda a linguagem, ela
começa por ter uma dimensão social, institucional. Também ela participa do
processo que caracteriza o discurso em geral. E, como sabemos, o discurso
é “simultaneamente batalha e arma, estratégia e choque, luta e troféu ou
ferida, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível” (Foucault,
1969: 8), quer dizer, efeito, instrumento, cálculo, ação, acaso, objetivo, poder.
O discurso é, enfim, aquilo “por que lutamos, o poder de que procuramos
apoderar-nos” (Ibid., 1971: 12).
159
A doxa tem pois uma dimensão institucional, e é sobre este aspeto que
vamos continuar a interrogá-la. Que discurso é este “fala-se”, este “diz-se”,
cuja palavra acredita enunciados ainda antes de eles serem examinados pela
lógica e pela crítica, literária, sociológica, ou outra?
Sempre na linha dos Tópicos de Aristóteles, Michel de Certeau (1983:
70) aponta uma direção que me parece importante: é endoxos (admitido) o
enunciado formulado por um locutor endoxos (admitido). Quer dizer, o facto
discursivo (um tipo de enunciado) é posto em relação com um facto social
(um tipo de locutor): um funda-se no outro.
Mas foi Pierre Bourdieu quem mais contribuiu para o esclarecimento desta
questão, ao propor a teoria do mercado linguístico, e os conceitos de “aceitabi-
lidade” e “legitimidade” discursivas, que permitem caracterizar a doxa como
um discurso petrificado do social, e portanto como uma violência simbólica.
Veja-se, por exemplo, o que se passa com a liturgia, e particularmente com
a missa, caso exemplar de discurso dóxico. Aquilo que os linguistas apresentam
como função eminente da linguagem, a função comunicativa, pode não ser
satisfeita (o que certamente acontece, se a missa for dita em latim), sem que
a sua função real, social, deixe por isso de se realizar. São assim os discursos
institucionais: o locutor autorizado, legítimo, portador de skeptron, tem uma
autoridade tal, que pode falar para não dizer nada 188. O seu discurso é eficaz:
é acreditado, obedecido, respeitado. “Ça parle”, diz Bourdieu (1980 c: 124).
Assim se compreende que o critério de pertinência da doxa não seja o da
verdade versus falsidade 189. O seu critério de pertinência é o da oportunidade:
os enunciados dóxicos reforçam as convicções comuns, reforçam os valores
comunitários. Trata-se afinal de uma pertinência assente na verosimilhança
e na conveniência, que tem como critério único de identificação, diz Genette
(1968: 6), o de englobar “tudo aquilo que é conforme à opinião pública” 190. E
logo acrescenta: “esta ‘opinião’, real ou suposta, é aproximadamente aquilo
188 O skeptron, como refere Bourdieu (1982 b: 124), citando Emile Benveniste, é o bastão que nos
poemas de Homero é posto na mão daquele que vai tomar a palavra publicamente, para que se
saiba que se trata de uma palavra autorizada, e portanto de um discurso de autoridade.
189 Peralman (1988: 677-678) diz a propósito que as opiniões, “as crenças mais geralmente admitidas”,
longe de constituírem verdades definitivas e indiscutíveis, não só não são sempre evidentes,
como também o seu objeto raramente consiste em verdades claras e distintas.
190 Na aceção de Gérard Genette, o verosímil já não se distingue da doxa, como em Aristóteles eikota
se distinguia de endoxa. É verosímil em Genette a conformidade de um discurso com outro já
pronunciado, recebido e aceite.
160
191 Bourdieu (1989 a: 12-13) distingue doxa e ideologia. Ambas constituem sistemas simbólicos,
mas enquanto que a doxa é produzida e ao mesmo tempo apropriada pelo conjunto do grupo
(constituindo um indiscutível), a ideologia é produzida por um corpo de especialistas, mais pre-
cisamente, por um campo de produção e de circulação relativamente autónomo, onde ortodoxia
e heterodoxia vivem uma conflitualidade permanente.
192 Mesmo a imagem tem uma textura, como parece depreender-se da análise que Barthes (1964:
41) faz do cartaz publicitário das massas Panzani: “um saber de alguma maneira implantado nos
usos”; um saber “fortemente cultural”.
161
193 No mesmo sentido se pronuncia Boaventura Sousa Santos (1989: 114): “Há, pois, sempre um
conjunto de verdades incontroversas que funcionam como verdade, ou seja, como estrutura
vazia que torna possível a sucessão de imagens verdadeiras produzidas pelo animatógrafo da
ciência”.
162
mecanismo e processo esses que consistem numa prática de ver e numa prá-
tica de dizer 194.
A posição de Michel Foucault sobre as representações tem no entanto
um alcance que não tem a de Hacking. Este autor explica-as em termos de
uma história das ideias. Associa, pois, as representações a jogos intelectuais,
realizados no âmbito de uma teoria da argumentação. O conceito de verdade
que subscreve é um conceito retórico.
Retórico é também o conceito de verdade de Michel Meyer. Se bem que
a retórica se encontre aqui “subordinada ao estudo do questionamento, na
medida em que a contraditoriedade das proposições só existe em relação a pro-
blemas, e em que a utilização do discurso em geral se faz em relação a questões
que se têm na cabeça” (Meyer, 1992 b: 44) 195. Hacking e Meyer realizam, sem
dúvida da melhor maneira, o conceito rortyano de “verdade objetiva”. É que
nada havendo a dizer sobre a verdade a não ser que se terão por verdadeiras
as crenças em que nos parece vantajoso acreditar (Rorty, 1990: 51), a verdade
“não é nem mais nem menos do que a melhor ideia que temos num dado
momento para explicar o que se passa” (Rorty, 1980: 385) 196.
Quer dizer, numa linha de pensamento que na atualidade remonta a
Perelman e a Toulmin, e na antiguidade, a Aristóteles, Hacking abandona as
categorias de verdade e de demonstração, e adota as categorias de decisão
razoável e de justificação. Por sua vez Meyer modula um tanto o seu pensa-
mento, distanciando-se daquilo que chama de retórica proposicional, que alia
194 Práticas de ver e práticas de dizer são, por exemplo, o “inquérito inquisitorial”, modelo das
ciências naturais no fim da Idade Média, e o “exame disciplinar”, modelo das ciências humanas
no fim do século XVIII, que Michel Foucault compara entre si em Surveiller et Punir (1975).
195 Os sublinhados são meus. A posição de Meyer confronta-se todavia com duas dificuldades.
Confronta-se, por um lado, com a ilusão da alternância questão/resposta, ao confinar-se ao
vaivém da emissão verbal. A linearidade dos signos da linguagem não tem que ser imposta à
comunicação. A proliferação da linguagem, que lhe confere um carácter insobreponível, não
tem nada que ser transferida para a proposição. Por outro lado, confronta-se com a ilusão da
hegemonia do sujeito falante, ao confundir o titular da iniciativa semântica com quem dá a
voz no ato de fala. A iniciativa semântica é partilhada, mas a voz emana de uma única fonte. A
mensagem é pronunciada entre nós (somos nós que dizemos), embora possa ser só eu a falar.
196 Atente-se que para Meyer “o que se passa” são “as questões que se têm na cabeça”.
Encontramos também em Reis Torgal (1989) uma magnífica ilustração do conceito rortyano
de verdade objetiva. Aplicando-o ao seu domínio disciplinar, diz assim Reis Torgal (Ibid.: 198):
“a ‘verdade’ da história está em como cada um a conta, escolhendo determinadas realidades,
omitindo outras e interpretando o fio condutor da forma que entende mais correcta”.
163
verdade e justificação (Meyer, 1992 b: 39), para propor uma retórica proble-
matológica. São três os pressupostos fundamentais da sua problematologia:
1) a razão não tem como unidade fundamental a proposição, o juízo, mas o
problema, pelo que a lógica e a argumentação se subordinam ao estudo do
questionamento; 2) a unidade fundamental da linguagem não é o signo nem
a frase nem o enunciado, mas sim o par questão/resposta, pelo que o uso da
linguagem é sempre função dele; 3) a linguagem é argumentativa: pela sua
natureza e função, é uma remissão para questões 197.
Mas retórico é ainda o conceito de verdade em que se apoia Boaventura
Sousa Santos, uma vez que constitui uma concretização do conceito rortyano
de “verdade objetiva”, no sentido de “acordo sem constrangimento”, isto é,
de “acordo intersubjetivo” (Rorty, 1990: 50-51). A verdade é também para
Boaventura Sousa Santos (1989: 109) “a retórica da verdade”; é “o que há de
vir, o que corresponde às expectativas” (Ibid.: 108). Retomando a noção de
crença coletiva de Peirce e remetendo para Habermas, explicitamente para a
exigência de reconhecimento e para a pretensão ao universal, presentes em
todo o ato de comunicação, Boaventura Sousa Santos (Ibid.: 109) concebe
a verdade como o consenso que se estabelece no termo de uma discussão
argumentativa, travada no seio da comunidade científica, assim realçando
a dimensão intersubjetiva e interativa da verdade. E remata o seu ponto de
vista do seguinte modo: “o cientista, ao investigar, antecipa o seu auditório
relevante, a comunidade científica, e é em função dela que organiza o seu
trabalho. Neste caso, o cientista encarna o auditório relevante e é nessa qua-
lidade que se vai autoconvencendo, à medida que a investigação procede,
dos resultados que pretende sejam julgados convincentes pela comunidade
científica ou pelo sector desta a que se dirige” (Ibid.: 114).
Em todos estes casos, de Hacking, a Meyer e a Boaventura Sousa Santos,
as representações são “o texto, o jogo, o palco, a biografia”, enfim, “a resposta”,
que uma teoria da argumentação pode encenar, muito embora sejam diversas
as suas interpretações. As representações inscrevem-se nos três casos numa
197 Veja-se Meyer (1991 e 1992 b). Talvez haja , no entanto, que contrapor a Michel Meyer que a ple-
nitude da comunicação não se confunde com o par questão/resposta, mas que, pelo contrário,
se trata de um fenómeno de intricação semântica muito mais íntima. A comunicação extravasa
a existência da clausura do circuito da comunicação no binómio emissor e recetor, o qual por
sua vez se torna também emissor. É que a mensagem procede de uma única fonte, embora seja
parte de um único discurso (Jacques, 1987: 199).
164
história das ideias, uma vez que argumentar é fornecer argumentos, ou seja
razões, e mesmo respostas, a favor ou contra determinada tese, a favor ou con-
tra determinada pergunta, pouco importando que o resultado a que se chegue
seja incontroverso, como pretende Boaventura Sousa Santos, ou coloque uma
nova pergunta, como entende Michel Meyer. Não se trata nunca de dizer a
verdade, mas apenas de “aferir, no diálogo consigo mesmo e com os outros, a
coerência das opiniões que se pretendem justas no contexto histórico-social,
situado no concreto, em que se revelam pertinentes” (Grácio, 1992: 75).
É esta a deriva e é esta a dissolução empreendidas pela racionalidade pós-
-moderna (Vattimo, 1985). Penso, no entanto, que se a deriva e a dissolução se
desconstruíssem a si mesmas, ficariam a descoberto as suas condições históricas
de possibilidade, o que quer dizer os critérios de verdade e de diálogo racional
que pressupõem, critérios esses que se encontram enraizados na estrutura
social do universo intelectual (Bourdieu, apud Bourdieu e Wacquant, 1992: 38).
Gostaria de ilustrar com um exemplo as implicações epistemológicas e
metodológicas deste conceito intelectualista das representações. Chamo, pois,
à colação a iniciativa pioneira de avaliação do ensino, tomada pela Reitoria da
Universidade do Minho há cerca de dez anos, que faz passar os professores
pelo exame dos alunos. O questionário distribuído aos discentes em cada
disciplina diz ter por objetivo “avaliar o ensino ministrado”.
Usando uma estratégia de antecipação, trata-se, por um lado, de desarmar
os alunos num processo onde se joga aquilo que é tido por uma justa pretensão.
E, na perspetiva que estou a apresentar, dir-se-ia que o lugar de pertinência
do inquérito referido é pragmático, uma vez que obedece ao cálculo de uma
estratégia argumentativa. Por outro lado, trata-se de aduzir argumentos contra
um Ministro que, por exemplo, diz ser mau o ensino oficial em Portugal 198.
A sua verdade é assim uma verdade de oportunidade. No processo agónico
de uma interação argumentativa, qual braço de ferro interpretativo que con-
tinuamente trava com o Ministério da Educação, com outras Universidades,
com uma população discente, enfim, com o espaço público, uma Reitoria que
pode invocar a opinião largamente favorável dos seus alunos relativamente ao
ensino ministrado na sua Universidade, utiliza, sem dúvida, um forte argu-
mento. Aliás, pode mesmo dizer-se que se a verdade de um ensino se medir
198 Refiro-me a uma célebre declaração de Couto dos Santos, proferida em 1992, quando detinha a
pasta da Educação do Governo de Cavaco Silva.
165
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o consenso que resulta de uma justa decisão ditada por uma opinião razoável. Esta é que é, aliás,
a lógica específica do mundo social.
167
201 Veja-se, por exemplo, a produção da crença e do fetichismo no campo da alta costura (Bourdieu
e Delsaut, 1975), ou então, no campo das artes em geral (Bourdieu, 1977).
202 A recusa da dicotomia crença/razão não pode, no entanto, hipotecar a competência da razão a
crenças cegas ou a convicções dogmáticas, como bem assinala Rui Grácio (1992: 72). Atente-se,
porém, que para decidir da legitimidade das crenças, este investigador invoca a retórica, entendida
como uma racionalidade argumentativa (Ibidem). Pela minha parte, e como decorre do ponto de
vista que tenho defendido, penso que essa legitimidade deve ser procurada antes do lado daquilo
que Bourdieu (apud Bourdieu e Wacquant, 1992) chama de “antropologia reflexiva”, ou então de
“pragmática sociológica” (Bourdieu, 1982 b), dadas as virtualidades que esta encerra, no sentido
de esclarecer o conteúdo social dos nossos esquemas mentais.
203 Os sublinhados são meus. A pragmática hedonista e estetizante de Maffesoli (1979; 1992; 2000)
é autorreferencial, ou se se quiser, autopoiética, e remete para um relativismo diletante e
descomprometido.
168
204 Deleuze (1986: 44-45), interpretando esta causa imanente que em Foucault organiza as práticas
sociais, diz que ela é “uma causa que se atualiza no seu efeito, que se integra no seu efeito, que se
diferencia no seu efeito”, ou por outra, “uma causa cujo efeito a atualiza, a integra e a diferencia”.
169
205 Diz Paul Ricœur (1990: 18) que uma hermenêutica totalizante, que pretendesse abolir a diferença
entre a versão explicativa e a versão compreensiva do sentido, só poderia reclamar-se do saber
absoluto hegeliano. Ora, Bourdieu preconiza a sinergia entre a explicação e a compreensão, e
nunca a abolição da diferença entre ambas. Adotando embora um modelo de análise preferen-
temente explicativo, Bourdieu (apud Bourdieu e Wacquant, 1992: 221) sabe que nunca se poderá
deixar de fazer “o caminho de regresso à experiência primeira que a construção científica teve que
suspender”. Haverá sempre que “romper com os instrumentos de rutura que anulam a própria
experiência contra a qual se construíram” (Ibidem).
170
171
‘eu’, mas inversamente” (Jacques, 1987: 195). Se uma relação entre dois inter-
locutores não for previamente assegurada, eles vão certamente perder-se em
conjeturas (Ibid.).
Sem dúvida por reação contra o racionalismo, tende-se hoje a privilegiar
o enunciador em prejuízo dos sistemas de representação e de comunicação
por ele interiorizados, a ordem do discurso e a ordem social. Mas o que é um
facto é que só através destes sistemas alguém comunica efetivamente. Não se
pode, por exemplo, continuar a pensar como Ogden e Richards e adotar uma
visão unidimensional da linguagem, reduzindo-a ao discurso e descurando
por inteiro os factos condicionantes da língua (Joly, 1982: 110). Não se pode
continuar a pensar que as palavras nada significam por elas próprias, e que é
apenas quando alguém faz uso delas que elas significam alguma coisa (Ibid.).
Se as palavras nada significam, fora do uso que delas fazemos, como explicar
que se produza sentido a partir de nada?
Numa palavra, não é possível acolher sem reserva as análises pragmáticas
e fenomenológicas, que fazem referência exclusiva ao enunciador, ao uso, ao
contexto e à experiência pessoal, como se o contexto, o uso e a experiência
pessoal tivessem, por si sós, um poder de produção semântica.
172
“Já não é para as estrelas que lançamos o olhar. O que hoje olhamos são os ecrãs”
(Paul Virilio, 2001: 135).
1. Experiência e artifício
173
207 Num estudo recente, em que reflete sobre o carácter artificial da sensibilidade de produção
tecnológica, dessa “síntese artificial no interior da qual se desintegram as sensações, as emoções
e os desejos”, Teresa Cruz (s.d.: 111-112) refere a produção quotidiana nos média de “terror sem
horror, comoção sem emoção, compaixão sem paixão”, num processo de “crescente anestesia-
mento da vida nas sociedades modernas”.
174
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208 Sobre a confluência, nas sociedades modernas, da comunicação, do consumo e do lazer, veja-se
Silva (1998: 191-197).
176
2. A civilização da imagem
209 A conjunção da metáfora tecnológica com a metáfora biológica, que faz funcionar num mesmo
plano a razão e a emoção, é hoje objeto de uma radical interrogação feita por Bragança de Miranda
à cultura. É sua ideia que os média, e fundamentalmente as novas tecnologias da informação,
realizam a razão como controle e que simultaneamente modelam a nossa sensibilidade e emo-
tividade, produzindo o efeito cada vez mais alargado de uma estetização do quotidiano. Veja-se
Miranda (1998 e 1999, designadamente).
177
210 Sobre a imagem na modernidade fez José Bragança de Miranda a lição de síntese das provas de
Agregação, a que se apresentou na Universidade Nova de Lisboa, em janeiro de 2000. Propôs
então uma “crítica do devir espectral da experiência pelos dispositivos de virtualização técnica”
(Miranda, 2000).
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de guerra é, de facto, cada vez mais caso de polícia, porque a nossa situação
de urgência tende a esgotar-se em conflitos entre egoísmos de interesses;
exatamente nisso, em distribuição do orçamento. Não admira, assim, que a
política se confunda com a “arte” de governar, ou por outras palavras, como
a arte de poucos suscitarem permanentemente o “mistério da obediência” de
muitos, como fala La Boétie.
Fria, calculista e desapaixonada, não sentindo o calor, embora a todo o
tempo uma euforia libidinal e retórica a sobreaqueça e a comande do exterior,
a política corre hoje então o sério risco de se esgotar em estratégia de ges-
tão e em operação policial. Entretanto, este mundo raso de imaterialidades,
raso pelo alastramento da razão pragmática, não se cansa de galgar terreno
socialmente, da política à economia, à arte e à cultura, assentando mesmo
arraiais portas adentro da Universidade. Hoje parece não haver um critério
académico que julgue da qualidade do ensino e da investigação. Ao que se
diz, é a eficácia no mercado que garante a excelência académica. Aliás, que
outro sentido dá a Universidade aos intrincados processos de autoavaliação
interna e externa a que mete ombros? E ao interrogar-se insistentemente
pelo destino dos seus licenciados, que outro sentido dá a Universidade a esta
pergunta, além de com ela procurar avaliar a sua capacidade competitiva?
Também sabemos como são confrontados hoje os investigadores com uma
taxa de produção científica. O que é que significa apontar-lhes como objetivo
a atingir a fixação de um ranking, que obedeça ao número das citações a que
os trabalhos científicos dão origem? A eficácia no mercado é que é o critério
inequívoco da excelência académica?
Fria, calculista e desapaixonada, não sentindo o calor, embora a agitação
do mercado a sobreaqueça e a comande do exterior, a Universidade descen-
tra-se e passa a funcionar cada vez mais sobre eixos de sentido que não são
os seus, vivendo a esquizofrenia como seu estado permanente. Ao perder a
centralidade, a Universidade viu crescer então sobre si a pressão social. E assa-
rapantou-se. Resigna-se cada vez mais a que os alunos deixem de ser alunos
(com a obrigação de aprender), e passem a ser idolatrados como ‘juventude’.
Aceita que a cultura e a investigação se rendam, sem condições, ao culto da
tecnologia e do futuro enquanto tais. E sobretudo, mobiliza-se equivoca-
damente: o ensino atola-se no pedagogismo, uma coisa mole, sem ‘corpo’
real, sem o tempo do ‘outro’, sem exigência ética; a investigação deposita no
mercado e na competição todas as esperanças de redenção, sucumbindo à
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ÍNDICE ONOMÁSTICO
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Coquet, J.-Cl.: 29, 37, 40, 54, 63, 65, 66, 135 Fernandes, T. S.: 150
Córax: 84, 85, 87 Fidalgo, A.: 22, 23, 24, 25, 58, 59, 60, 61, 62
Courtès, J.: 27, 29 Flahault, F.: 154
Couto dos Santos: 165 Fontanille, J.: 30
Crespi, Fr.: 142 Foucault, M.: 28, 39, 40, 71, 73, 74, 75, 101,
Crozier, M.: 120 115, 124, 136, 137, 138, 146, 148, 149,
Cruz, T.: 174 150, 158, 159, 162, 163, 166, 167, 169
Frade, P. M.: 32, 132
de Certeau, M.: 15, 107, 138, 154, 158, 160, Frege, G.: 29, 58, 59, 127
161, 169, 170 Freud, S.: 139, 150
de la Soudière, M.: 134
Danchin, A.: 16 Gadamer, H.-G.: 17, 60, 142, 144, 150, 151,
Davidson, D.: 127 157
Debray, R.: 181 Gadet, Fr.: 14
Deledalle, G.: 37, 38, 41, 44 Galmiche, M.: 14
Deleuze, G.: 16, 17, 27, 30, 48, 57, 73, 79, 81, Geertz, Cl.: 162
83, 95, 96, 97, 141, 158, 169 Genette, G.: 160, 161
Delsaut, Y.: 168 Geninasca, J.: 27, 29, 40, 62, 101, 113, 143, 145
Derrida, J.: 41, 42, 53, 64, 69, 70, 71, 93, 117, Gethmann, C. F.: 91
124, 125, 128, 133, 150 Geremek, Br.: 178
Descartes, R.: 60, 116, 144 Giddens, A.: 18, 49, 69, 70, 91, 92, 100, 123,
Desmarais, G.: 50 124, 125, 127, 128, 133, 157
Dilthey, W.: 150 Giroud, J.-Cl.: 30
Donnat, O.: 178 Godel, R.: 29
Dreyfus, H. L.: 173 Goffman, E.: 129, 145
Ducrot, O.: 15, 29, 62, 80, 82, 83, 88, 89, 90, Goodman, N.: 52
91, 93, 94, 96, 114, 117, 124, 129, 130, Goux, J. D.: 153
131, 132, 140 Grácio, R.: 143, 151, 157, 165, 168
Dumézil, G.: 105 Greimas, A.: 27, 29, 32, 39, 49, 51, 55, 56, 57,
Dummett, M.: 127 62, 65, 66, 77, 79, 145, 147, 150, 152
Dumur, G.: 37, 65 Grice, H. P.: 91, 154, 171
Durand, J.-Y.: 57, 71, 72, 73, 147, 150, 153 Guattari, F.: 16, 17, 27, 30, 48, 73, 79, 81, 83,
Durkheim, É.: 129, 145 95, 96, 97
Guillaume, G.: 38, 55
Eco, U.: 30, 31, 34, 37, 150
Édipo: 56, 152, 153 Habermas, J.: 19, 39, 60, 61, 62, 73, 79, 88,
Eliade, M.: 150 95, 97, 98, 99, 114, 118, 128, 155, 156,
Empédocles: 84 157, 159, 164
Eribon, D.: 101, 139 Hacking, I.: 162, 163, 164, 166
Esteves, A.: 11 Halliday, M.: 32, 151
Hassan, A.: 151
200
201
padre António Vieira: 95, 104 Rorty, R.: 15, 16, 41, 53, 60, 127, 139, 144, 156,
Pais de Brito, J.: 134 157, 163, 164
Panier, L.: 30 Rosas, F.: 137
Pareto, V.: 15 Russell, B.: 127
Parret, H.: 54 Ruwet, N.: 32
Pêcheux, M.: 39, 66, 67
Peirce, Ch. S.: 22, 23, 38, 40, 41, 42, 43, 44, Sainsaulieu, R.: 114, 120
93, 106, 113, 118, 119, 127, 164 Salazar, A. O.: 136
Perelman, Ch.: 87, 129, 150, 151, 154, 157, Santos, B. S.: 74, 139, 141, 142, 143, 145, 150,
159, 160, 163 155, 159, 162, 164, 165
Perrot, M.: 134 São João: 102, 108
Petitot, J.: 49, 50, 51, 52, 53, 56 São Paulo: 156
Pinto, A. C.: 136, 137, 138 São Tomé: 108
Pinto, J. M.: 17 Sartre, J.-P.: 52
Plantin, Ch.: 84 Saussure, F.: 21, 29, 32, 38, 41, 62, 64, 83,
Platão: 42, 84, 85, 86, 123, 129, 144, 150, 151 124, 126, 132, 146, 152
Pleynet, M.: 32 Schleiden, M. J.: 162
Popper, K.: 91 Searle, J.: 29, 59, 60, 80, 82, 87, 91, 117, 124,
Prado Coelho, E.: 14 127, 150, 171
Propp, V.: 65 Segre, C.: 39, 73, 149
Proust, M.: 111 Serrão, J.: 137
Putnam, H.: 52 Shakespeare: 181
Silva, A. S.: 176
Quelquejeu, B.: 155 Shannon, C.: 22, 111
Quéré, L.: 88 Sócrates: 84, 123, 129, 151
Quine, W. V.: 127 Sófocles: 152, 153
Quino: 174, 180 Solmsen, Fr.: 77
Sperber, D.: 57
Rabinow, P.: 87, 124, 166, 167 Steiner, J.: 13
Radcliffe-Brown, A.: 57 Strawson, P. F.: 91
Rastier, Fr.: 31
Rembrandt: 167 Tammuz: 123
Ricardo III: 181 Tarski, A.: 59, 127
Richards, I.-A.: 172 Taylor, Ch.: 93, 100
Richot, G.: 50 Thibault, P.: 32
Ricœur, P.: 51, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, Thom, R.: 16, 49, 50, 52, 56, 57
72, 125, 132, 135, 145, 146, 147, 148, 149, Thot: 123, 124
150, 151, 152, 153, 154, 156, 157, 158, 161, Tirésias: 153
170, 171 Tísias: 84, 85, 87
Rocha, A.: 149 Todorov, T.: 32, 49, 63, 144
Rodrigues, A.: 31 Tollis, Fr.: 38, 100
202
Torgal, L. R.: 137, 138, 163 Wacquant, L.: 129, 134, 143, 146, 165, 168,
Torres, F.: 112 170
Toulmin, St.: 59, 87, 99, 127, 128, 132, 156, 163 Weaver, W. A.: 22, 111
Turing, A.: 176 Weber, M.: 115, 129, 145, 167
Wittgenstein, L.: 29, 41, 59, 60, 70, 91, 92,
Urry, J.: 178 93, 124, 127, 128, 129, 130, 145, 157
203
9 789897 552960