Web Historia Da Filosofia Medieval PDF
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Ricardo da Costa
Vitória
2015
Presidente da República Coordenadora Adjunta UAB da UFES Laboratório de Design Instrucional
Maria José Campos Rodrigues
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Renato Janine Ribeiro Humanas e Naturais (CCHN) Letícia Pedruzzi Fonseca
Renato Rodrigues Neto Equipe:
Diretoria de Educação a Distância Giulliano Kenzo Costa Pereira
DED/CAPES/MEC Coordenador do Curso de Graduação Patrícia Campos Lima
Jean Marc Georges Mutzig Licenciatura em História – EAD/UFES
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DO ESPÍRITO SANTO xxxxxx xxxxxxx xxxxxx Equipe:
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Reitor Revisor de Linguagem
Reinaldo Centoducatte xxxxxxx xxxxxx xxxx Ilustração
Coordenação:
Secretária de Ensino a Distância – SEAD Priscilla Garone
Maria José Campos Rodrigues Laboratório de Design Instrucional – SEAD Equipe:
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Diretor Acadêmico – SEAD SEAD
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reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por
escrito, da Secretária de Ensino a Distância da SEAD – UFES.
indicando-se o nome do autor e a origem da obra). Toda reprodução foi realizada com amparo legal do regime geral de
direito de autor no Brasil.
Sumário
módulo I Portal para o Mundo Medieval
1 Os Períodos Medievais 9
1.1 A Alta Idade Média
1.2 A Idade Média Central
1.3 A Baixa Idade Média 12
módulo II
Introdução à Filosofia Medieval
1 Das “imagens” à conceituação da Idade Média 31
1.1 As Imagens
1.2 A conceituação: Perspectivas externas e internas 37
2 As Fontes da Filosofia Medieval 45
módulo IV Severino Boécio e o Dionísio Pseudo-Areopagita
1 A transição do Mundo Antigo ao Medieval: 115
Boécio, “o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos.”
módulo VI O Renascimento do século xii e a escolástica
1 João de Salisbury e o Humanismo do século xii 201
7
8
1
Os Períodos Medievais
Esse período de um milênio (do século v ao século xiv) compreende, pelo
menos, três épocas ou períodos:
9
“Por ‘método escolástico’ entendo um método, aplicado em filosofia
(e em teologia), que se caracteriza pelo emprego, tanto para a inves-
tigação quanto para o ensino, de um sistema constante de noções,
distinções, definições, análise proposicionais, técnicas de raciocínio
e métodos de disputa, que no início haviam sido tomadas da lógica
aristotélica e boeciana, e mais tarde, de um modo mais amplo, da
própria lógica terminista” 1.
10
A segunda (século xii) é uma etapa dialética, em que a dialética aristoté-
lica foi aplicada à explicação da Sagrada Escritura e dos textos antigos (qua-
estio, disputatio);
A terceira (século xiii) foi a filosófica, quando a explicação do dogma cristão
foi feita com base na obra completa de Aristóteles (Física, Da Alma, Metafísica).
11
tidades que jamais existiram em estado puro; terceiro, porque deixa de lado
o complexo fenômeno da tradução — uma longa cadeia de transposições e
de adaptações que começou em Bagdá, prosseguiu na Espanha e se comple-
tou em Nápoles. Também porque neutralizou, sob a vaga expressão “modo
de representação oriundo do judeu-cristianismo”, um fenômeno complexo
no qual a cultura religiosa de três monoteísmos desempenhou um papel
fundamental: “A história da Filosofia Medieval” não é somente a história da
filosofia cristã. É a história da filosofia pagã e dos três monoteísmos (o Cris-
tianismo — grego e latino — o Islamismo e o Judaísmo) dos quais foi instru-
mento dócil ou indócil, parceiro ou concorrente.
12
Já no século xiii surgiram as primeiras investigações científicas (especial-
mente no âmbito da ótica), que abriram a perspectiva mais tipicamente sim-
bólica da natureza e propiciaram as primeiras fissuras no edifício dialético
da escolástica. E os filósofos que se debruçaram nos temas acima elencados
foram Guilherme de Ockham, Marsílio de Pádua, Mestre Eckart e Ramon Llull
(este, um dos últimos a defender a indissolubilidade entre fé e razão). Por
isso, o século xiv é medieval, mas com traços modernos.
Do mesmo modo — embora não faça parte do escopo de nossa disciplina
—, o pensamento do século xv ainda tem peculiaridades medievais, se bem
que seja um tempo de maiores rupturas com a filosofia do passado. Cada vez
mais a predominância do pensamento aristotélico dá lugar a correntes de
influência platônica (o Humanismo será basicamente platônico), até se che-
gar a um pensador que, definitivamente, rompeu com a estrutura de mun-
do medieval: Maquiavel (não é à toa que os mais recentes compêndios de
História da Filosofia, como o de Kurt Flasch, estendam a filosofia medieval
até o pensador florentino). Para nos atermos somente a um exemplo, a Idade
Média nunca dissociou o amor do temor em seu pensamento político. O bom
governante, segundo os filósofos medievais, deveria levar em consideração
os dois sentimentos em relação a seus súditos, mas, caso tivesse que esco-
lher um deles para governar, deveria optar pelo amor. Maquiavel subverteu,
de modo incisivo, esta noção: entre ser amado e ser temido, para preservar o
poder o governante deveria ser temido! Mas isso é outra história.
13
14
2
Cronologia e sentido da
Filosofia Medieval
Nesta semana inaugural, destacamos dois aspectos desse período do pensa-
mento ocidental, para situar o leitor:
15
O círculo da
Filosofia
16
Destacamos, em uma Cronologia, os principais expoentes do pensamento
filosófico, do século iv até a primeira metade do xiii, para que o estudante
possa confrontar seus períodos de vida e ter uma percepção mais aguda e
clara das correntes filosóficas dos séculos medievais. Como sugestão, uma
pesquisa biográfica dos pensadores elencados na Cronologia enriquecerá so-
bremaneira sua visão sobre o pensamento e a cultura do período.
17
Acima, com um vestido de cor grená, a Gramática tem um livro na mão
esquerda e um látego (chicote de cordas) na direita, e diz: “Por mim, todos
podem aprender o que são as palavras, as sílabas e as cartas”.
A Retórica veste azul e tem um estilete e duas tabuinhas, e diz: “Graças a
mim, orgulhoso orador, teus discursos poderão ter vigor”.
Com sua mão direita a Dialética, de verde, aponta para um interlocutor.
Com a esquerda, segura a cabeça de um cachorro e afirma: “Meus argumentos
são rápidos como os latidos de um cachorro”.
Após aprender as disciplinas do Trivium, o aspirante à Filosofia deveria
passar para as do Quadrivium, matérias matemáticas: Aritmética, Geometria,
Música e Astronomia.
No círculo do Jardim das Delícias, a ruiva Aritmética tem um ábaco (ins-
trumento formado por uma moldura com bastões ou arames paralelos nos
quais havia bolas ou contas deslizáveis para contar) e afirma: “Baseio-me nos
números e discrimino o que existe entre eles”.
A seguir, a Geometria. Com régua e compasso ela, triunfante, afirma: “Exa-
mino as terras com exatidão”.
A Música graciosamente toca uma harpa — outros instrumentos estão jun-
tos dela (uma lira e um pequeno órgão) — e diz: “Eu ensino minha arte com a
ajuda de uma variedade de instrumentos”.
Por fim, a Astronomia veste um traje azul-celeste. Tem uma lupa (ou um
tipo de espelho) em sua mão esquerda, e aponta para as estrelas: “Eu tenho
meu nome dos corpos celestes e prevejo o futuro”.
O sentido retilíneo do círculo é claramente do físico para o metafísico
(isso porque, desde os antigos pitagóricos, os filósofos pensavam que o mun-
do fora criado pela divindade de acordo com as regras da harmonia e da or-
dem). Assim, estudar Geometria, por exemplo, significava seguir a máxima
da Academia de Platão: “Que ninguém exceto os geômetras entrem aqui”.
No grande círculo exterior há os seguintes versos: “A Filosofia ensina as
artes por sete ramos. Investiga os segredos dos elementos e de todas as coisas.
O que descobre, retém em sua memória e escreve para transmitir aos alunos”.
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Fora do círculo, na parte inferior da iluminura, aquilo que está excluído
do âmbito da Filosofia: quatro homens (poetas e magos), sentados diante de
púlpitos. Como o texto indica, são guiados por “espíritos maus e impuros”,
e o que vem deles são contos, fábulas, frívolas poesias ou receitas de magia.
Os “maus espíritos” estão representados por pássaros negros, em oposição à
pomba branca, símbolo do Espírito Santo. Eles estão em seus ombros e falam
coisas más em seus ouvidos.
O Jardim das delícias foi redigido, conforme sua própria autora, para infor-
mar e deleitar suas monjas, e assim ajudá-las a progredir no serviço de Deus.
Esse documento do século xii é um fascinante exemplo do nível intelectual
e artístico que as mulheres oriundas de segmentos sociais elevados podiam
alcançar em uma abadia segura e rica.
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20
3
Conteúdo programático
do curso
Nosso curso sobre a Filosofia Medieval comportará basicamente cinco sema-
nas de conteúdo teórico. Pretendemos discorrer sobre os principais autores,
conceitos e temas da Idade Média.
21
3.2 Os Padres da Igreja
No módulo iii aprofundaremos a filosofia patrística, uma vez que esse amplo
período (do século i até o século viii) traz questões que serão retomadas na Idade
Média latina e no mundo bizantino. Um tema central que percorre a Idade Média
latina é a relação entre filosofia (ou saber) e a fé (ou teologia). Essa problemática
procede do encontro histórico entre a mensagem cristã e a filosofia grega.
Para conhecer o problema das relações entre fé e razão no mundo latino,
abordamos o pensamento de Agostinho de Hipona em seu itinerário intelec-
tual descrito na obra As Confissões, Livros i–ix. Esse caminho de “conversão”
parte das inquietudes existenciais de um jovem professor de Retórica e vai
desde a leitura de obras de Cícero até a seita maniqueísta, o ceticismo acadê-
mico, o neoplatonismo e, por fim, desemboca em sua conversão ao Cristia-
nismo. O paradoxo da fé em Agostinho, com base no caminho da procura, da
busca, assemelha-se à questão que os gregos formularam sobre a procura do
saber: como é possível procurar saber aquilo que se ignora completamente
(PLATÃO, Ménon 80b–86c; ARISTÓTELES, Segundos Analíticos I, 71 a1–71b8).
A resposta remete-nos à necessidade de algum saber prévio em toda aqui-
sição de conhecimento, embora varie o modo de conceber esse saber prévio.
No caso de Agostinho, a dinâmica de um procurar a Deus não paralisa sua fé
em uma estável e eterna contemplação. Com base nesse movimento existen-
cial do quaerere, Agostinho chega ao fundo infundado de sua alma, e aí pode
não somente conhecer a Deus e a si mesmo, mas também o Deus que ele
procura. Esse conhecer, longe de ser a soma quantitativa de noções divinas,
é experienciável no agir próprio do viver. Por isso, o conhecer na experiência
fática da vida não tem o estatuto de objeto, mas de significatividade: “Deus é
para ti até mesmo a vida de tua vida”.
No mundo grego, escolhemos Gregório de Nissa, chamado de o “filósofo na
Cátedra episcopal”. Comentamos alguns aspectos de sua antropologia, na obra “A
criação do homem” (ou Sobre a formação do homem), publicada pela Editora Paulus.3
22
Na vasta obra de Gregório de Nissa, é possível descortinar múltiplos e dife-
rentes interesses que revelam uma cultura filosófica profunda. Nela encon-
tramos o reflexo de sua personalidade, de suas preocupações de pensador,
bem como sua vocação de polemista, de pregador e de místico. Sua utilização
do patrimônio espiritual clássico está ligada à importância das fontes clás-
sicas e filosóficas. A concepção normativa do Cristianismo possui nisso um
influxo decisivo. No tempo de Gregório, não havia uma separação sistemáti-
ca entre Filosofia e Teologia. A utilização seletiva do patrimônio intelectual
de diferentes sistemas de pensamento correspondia ao método de trabalho de
então. O significado dos empréstimos filosóficos em Gregório de Nissa deve
levar em conta sua formulação do problema e o contexto do escrito.
Na obra A Criação do homem (ou Sobre a formação do homem), Gregório ela-
bora uma concepção do homem segundo uma imagem articulada do mundo,
conforme sua visão ontológica (de cunho platônico) que constitui o pano de
fundo unitário no qual se desdobram os diversos problemas abordados. É,
portanto, a partir desse horizonte unitário que podemos compreender o ho-
mem, sua estrutura metafísica, seu papel na criação e o significado último
de sua existência em relação a Deus. Seu tratado segue o ritmo de um drama.
A fé, como ponto de partida de sua reflexão, não suprime o “drama” da exis-
tência que, em sua estrutura originária, vivia em comunhão com Deus, sem
pecado. Ela está associada a dimensões cósmicas: há uma afinidade entre o
anthrōpos (homem) e o kosmos (mundo).
Por isso, sua especulação antropológica estrutura-se em uma lógica
constante. O homem é definido e estruturado em sua dualidade corpórea e
espiritual. Em virtude de sua constituição ontológica, ele pertence contem-
poraneamente a dois mundos: o mundo inteligível, pela sua alma, “de nature-
za e de estirpe semelhante às potências celestes”, e o mundo sensível, pelo seu
corpo. Por isso, foi criado composto de corpo e alma para participar dos bens
inteligíveis e dos bens sensíveis.
23
3.3 Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (século v)
24
3.5 O Renascimento do século xii
e a Escolástica
25
3.6 Avaliação Nível 2
Em sexto lugar, o módulo vii, será feita a avaliação Nível 02 sob a forma de
apresentação em grupos de temas seletos da Idade Média. Uma das visões
pejorativas acerca do período medieval é a que imagina que os filósofos me-
dievais se preocuparam apenas com a existência de Deus. Pelo contrário, em
que pese o fato de Deus ser um tópico fundamental para os pensadores do pe-
ríodo, houve uma grande variedade de temas tratados pelos filósofos medie-
vais. Assim, os seminários devem preparar apresentações em grupo baseadas
em quatro temas apresentados nos extratos de fontes de filosofia medieval.
3.7 Atualização de Estudos
1) COSTA, Ricardo da. “As raízes clássicas da transcendência medieval”. In:
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho (org.). Contemplatio. Ensaios de Filosofia
Medieval. Campina Grande: EDUEPB, 2013, p. 19–42 (ISBN 978–85–7879–173–
5). Conferência proferida no dia 26 de setembro de 2011 no Centro Universi-
tário Moacyr Sreder Bastos (RJ).
Disponível em:
http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/imagens/as_raizes_classi-
cas_da_transcendencia_medieval.pdf
26
2) COSTA, Ricardo da. “A Eternidade de Deus na filosofia de Ramon Llull (1232–1316)”. In: Mun-
dos medievales: Espacios, Sociedades y Poder. Homenaje al Profesor José Ángel García de Cortázar.
Santander:PUbliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, D.L., 2012, tomo II, p. 1215–1227.
Disponível em:
http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/da_costa_mundos_medievales_0.pdf
3) COSTA, Ricardo da. “A luz deriva do bem e é imagem da bondade”: a metafísica da luz do
Pseudo Dionísio Areopagita na concepção artística do abade Suger de Saint-Denis”. In: Scin-
tilla. Revista de Filosofia e Mística Medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia de São Boaventu-
ra (FFSB), Vol. 6–n. 2–jul./dez. 2009, p. 39–52 (ISSN 1806–6526).
Disponível em:
http://www.ricardocosta.com/artigo/luz-deriva-do-bem-e-e-imagem-da-bondade-metafi-
sica-da-luz-do-pseudo-dionisio-areopagita-na
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28
módulo II
Introdução à Filosofia Medieval
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30
1
Das “imagens” à conceituação
1
da Idade Média
Para uma primeira entrada no mundo medieval, impõe-se expor brevemente
as ‘imagens” já pressupostas da Idade Média no imaginário popular para, em
seguida, conceituá-la formalmente a partir de uma perspectiva historiográ-
fica ou política.
1.1 As imagens
A Época Obscura
31
ção cultural medieval se mostra como tosca, vacilante, repleta de fantasio-
sidade, acometida por um inaceitável dogmatismo e por vários elementos
de irracionalidade”2. Nessa concepção preconcebida, levando até as últimas
consequências, é como se pudéssemos passar da Antiguidade à Modernidade
sem que a história tivesse perdido sentido pela omissão dos acontecimentos
desses dez séculos! Hoje essa concepção não é mais sustentável por qual-
quer historiador. Qualquer que seja o valor dado aos fatos ocorridos social,
política e culturalmente na Idade Média, é impossível compreender o Renas-
cimento sem a referência ao período anterior. Falar de filosofia ou de arte
implica referir-se não somente à Grécia e à Modernidade, mas também ao
período medieval, como, por exemplo, o nominalismo e o gótico.
A Etapa Intermediária
32
de um sistema explicativo causal que opera pautado sempre por princípios
lógico-ontológicos”. Nesta concepção o cosmo emerge transparente ao olhar
da inteligência, ou seja, todas as suas leis devem poder derivar-se de alguns
postulados ou intuições básicas4.
Em virtude de diversos fatores, essa visão do universo modificou-se subs-
tancialmente até chegar às modernas concepções do infinitismo, à superação
do geocentrismo e do antropocentrismo, à distinção entre lógica e ontologia,
etc. Na Idade Média incoporaram-se ideias religiosas com a consequente
intenção de superar as restrições intelectivas que a antiguidade colocava às
considerações do universo. Nesse sentido, houve esforços da teologia para
tornar inteligíveis as afirmações da fé em vista de uma nova mentalidade
para compreender o universo como criado por Deus. Daí a importância dada
por Alexandre Koyré (e pelos seus seguidores)5 aos conceitos propriamente
teológicos e aos enunciados em um marco justificador de algumas religiões
históricas concretas, como os de “potência divina absoluta”, “voluntarismo”,
“infinitude intensiva divina”, etc. Sem envederar para explicação detalhada
desses conceitos6, expliquemos brevemente o primeiro deles.
Havia uma tentativa, entre teólogos e filósofos, de desenvolver um siste-
ma de ordens na tentativa de dar conta da total contingência do mundo sob
a livre vontade de Deus. Afinal, “tivesse Deus desejado, o Salvador do mundo
poderia ter sido uma pedra ou um asno — aut lapis, aut asinus”7. Deus pode-
ria reverter eventos passados “porque as proposições na mente de Deus não
têm índice temporal” (Guilherme de Ockham [1285–1349]). Deus poderia nos
enganar a qualquer momento nas nossas certezas mais básicas, ou pelo me-
5 Cf. A. Koyré, Estudos de História do Pensamento Filosófico, Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 1991.
33
nos implantar em nós noções imediatas de coisas que não existem — notitia
intuitiva rebus non existentibus. Guilherme de Ockham argumenta de modo
perspicaz que a noção intuitiva adquirida pela percepção sensorial de algo
existente é ‘naturalmente’ infalível em prover ‘conhecimento evidente’ do
fato assentido. Mas “Deus pode causar um ato de crença através do qual acre-
dito que uma coisa que está ausente esteja presente [...] Deus pode fazer-nos
ver sem o objeto criado”. Tratava-se ao mesmo tempo de um problema teoló-
gico e epistemológico. De um lado, o problema epistemológico: definir o que
poderia ser conhecido acerca dos diferentes objetos e temas; de outro lado,
o problema teológico: como obter a certeza, ou graus de certeza, acerca da su-
bordinação ao princípio de que todo o mundo criado é contingente perante a
insondável onipotência do Criador8.
A resposta surgiu através do exame do poder de Deus e suas relações com
seus outros atributos: vontade, razão, bondade. Com base no exame desses
atributos, nasceu a distinção, desenvolvida por Alberto Magno (1200–1280)
e Tomás de Aquino (1225–1274), entre o poder de Deus considerado em si — de
potentia Dei absoluta — sem relação com a ordem da criação que estabelecera,
e seu poder ordenado — de potentia Dei ordinata — segundo o qual agia no pla-
no da criação de acordo com sua providência e bondade. A teologia medieval
introduziu essa distinção de modo a alargar ao máximo o horizonte daquilo
que era possível a Deus sem violar a razão. Assim, garantia-se o poder e a li-
berdade absolutos de Deus e mantinha-se certa estabilidade no mundo criado.
Os termos “poder absoluto” e “poder ordenado” aparecem pela primeira vez
como um par em Alexandre de Hales (1185?–1245). Hales entendia que o po-
der absoluto referia-se a tudo que pudesse vir à cabeça, contraditório ou não,
enquanto o poder ordenado referia-se ao que era lógico, moral e fisicamen-
te não repugnante. A terminologia é utilizada por outros autores segundo
a distinção herdada do escritor eclesiástico Orígenes (185?–254), entre posse
de potentia e posse de iustitia, para diferenciar a ordem real dos outros atos
possíveis de Deus.
34
No século xiii, para Tomás de Aquino, De potentia Dei absoluta significava
o que quer que não viole o princípio de não contradição, o que quer que rei-
vindique o status de coisa (res) dentro ou fora de qualquer ordem. Por não-con-
tradição significava para ele — non repugnantia terminorum — propriedades
lógico-formais autoevidentes. Deus não pode criar estados de coisas contradi-
tórios, porque uma coisa que se contradiga não é uma coisa. Quando pergun-
tamos sobre o que Deus pode fazer, estamos falando única e exclusivamente
daquilo que é factível, coisas, e não estados. Por potentia ordinata Tomás de
Aquino entendia a ordem da natureza, de nosso universo, como também qual-
quer outra ordem possível de coisas, desde que fosse uma ordem9.
Ora, o caminho percorrido pela imaginação teológica contribuiu para o
surgimento da imaginação científica10, de modo que esta concepção de etapa
intermediária atribuída à Idade Média não corresponde exatamente aos fatos.
Não se trata de reduzir o fenômeno moderno à mera secularização de ideias
religiosas cristãs; mas de uma resposta legítima à crise, na alta Idade Média,
gerada pela relação cristã com o mundo. Em outras palavras: a ênfase exage-
rada dada ao tema da onipotência divina, a consequente destruição da ordem
cósmica (a questão do infinito que coloca toda criação como um processo
fundamentalmente aberto) e o estatuto contingente do mundo (que é con-
sequência de concebermos o que quer que seja como criado). Diante da total
contingência do mundo, surgiram três respostas possíveis: 1) a salvação num
outro mundo; 2) a fé na bondade, graça, sabedoria e providência divina para
conosco e para com nosso mundo; 3) a construção hipotética e/ou experimen-
tal do que quer que seja possível neste mundo em particular, assegurando um
mínimo de estabilidade e o máximo de realização para o homem, havendo ou
não um Deus. E, deste modo, a mediação entre imaginário e real passou a ser
construtiva. É assim que a Era Moderna se legitima através do ideal de conhe-
cimento por criação em analogia com a ideia de criação divina. Considera-se
aqui a reivindicação de propriedade sobre a verdade produzida como aquilo
10 A. FUNKENSTEIN, Theology and the Scientific Imagination - from the middle ages to
the seventeenth century. New Jersey: Princeton University Press, 1986, 11.
35
que permitiu à modernidade reocupar11, em favor do homem, uma posição an-
tes ocupada pela máxima teológica que, na formulação de Filo de Alexandria,
diz: Solus Scire Potest Qui Fecit (Saber só pode quem faz/produz).
O Encontro de Culturas
11 Cf. H. Blumemberg, The Legitimacy of the Modern Age. Massachusetts: MIT Press, 1995. Com
a noção de reocupação o autor busca responder às críticas de que o pensamento moderno não
passa da “mera secularização” de questões teológico-religiosas.
12 A. C. CROMBIE, Science, Art and Nature in Medieval and Modern Thought.
Hambledon Press, 1996, 82.
36
leceram uma nova sociedade, diferente tanto da bárbara como da imperial.
No entanto, nessa nova sociedade, há certamente resquícios de ambas. Em
terceiro lugar, houve um encontro cultural com base na invasão árabe da Eu-
ropa, cujo processo iniciou-se pela península ibérica entre 711 e 716, continu-
ando por outras regiões até a queda de Bizâncio em Constantinopla no século
XV. Não há como negar a importância desses encontros culturais (pacíficos
ou violentos) para a conceituação de Filosofia medieval e, por conseguinte,
para a configuração da Europa moderna e de suas projeções.
Em virtude desse período extenso não há uma uniformidade em relação à
figura do “homem medieval”, justamente porque deparamos aí com as ma-
nifestações múltiplas da cultura (vida cotidiana, social, política, religiosa,
científica, artística, etc.). O homem do século VI ou VII tem mais coisas em
comum com um homem da antiguidade romana do que com outro homem
do século XIV, mais próximo, dos renascentistas e dos modernos13.
1.2 A conceituação:
perspectiva externa e interna
37
tral na história da Idade Média. Embora a tomada de Constantinopla (1453)
marque o fim da Idade Média, portanto, da Idade Média ocidental, a história
do Império romano do Oriente não faz parte da história ocidental. No fundo,
a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado de “Ocidente cris-
tão”. “Assim rejeitam-se: o que é cristão, mas não ocidental, quer dizer, os
cristãos do Oriente (confundidos numa mesma massa obscura, se não con-
denada); o que é ocidental, mas não cristão, ou seja, os árabes e os judeus”14. É
preciso levar em conta, na configuração da filosofia medieval, o aparecimen-
tio histórico de um multiculturalismo, cujos polos foram as grandes civiliza-
ções que sucederam à civilização antiga e floresceram do século VI ao século
XV, a bizantina, a islâmica, a latino-ocidental e a tradição cultural judaica
abrigada sobretudo em terras do Islã. Daí a afirmação paradoxal de Alain de
Libera em sua obra A Filosofia Medieval (1993):
38
cesso de tradução extremamente complexo. Esse deslocamento se dá ora (1ª)
de Atenas para a Pérsia, ora da Pérsia para Haran..., ora (2ª) de Alexandria para
os mosteiros sírios dos séculos VII e VIII, ora, por fim, (3ª) da cultura siría-
ca para a cultura árabe, de Alexandria a Bagdad. Esses movimentos ocupam
toda a Alta Idade Média. Na mesma época, o Ocidente cristão é filosoficamente
estéril16. Só depois de seu longo sono com uma nova translatio, que vem de
Bagadad para Córdoba e, daí, para Toledo, isto é: do Oriente muçulmano para
o Ocidente muçulmano e, de lá, para o Ocidente cristão. “Foi uma translação
interna às terras do Islã, ligada à conquista muçulmana, que tornou possível
o retorno da ciência ao mundo latino”17. Portanto, a história da filosofia me-
dieval não é a história da filosofia cristã, mas a história da filosofia pagã e dos
três monoteísmos: o cristianismo — grego e latim —, o islã e o judaísmo. “É
a história de povos diferentes e línguas diversas, uma história de família(s),
de alianças e heranças, de capturas e furtos, de violências e tréguas”18. É pre-
ciso então assumir uma Idade Média plural, descentralizada e multicultural e
não mais aquela da tradição escolar definida com base no “ocidente cristão”:
portanto, com a “translação dos estudos”, o itinerário histórico da cultura in-
telectual parte da civilização antiga greco-romana, passa por Bizâncio e se
fixa definitivamente no Ocidente latino e no seu centro, Paris. Essa profunda
revisão do modelo tradicional de compreender a Idade Média implica a aber-
tura de um espaço histórico de policentrismo cultural donde encontramos a
ideia da complexidade das raízes filosóficas que despontaram, por exemplo,
no século XII e XIII. Uma história da Filosofia Medieval autêntica não pode
ignorar a pluralidade das racionalidades religiosas e filosóficas, nem tam-
pouco pode privilegiar nenhuma delas.
39
Perpspectiva interna ou essencial
19 H. C. DE LIMA VAZ, Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997, 294.
40
A síntese entre razão e fé aparece paradigmaticamente em sua célebre Suma de
Teologia, cuja estrutura tripartida é assim anunciada pelo autor:
41
suprema da existência humana”; essa forma de vida é adquirida: é objeto de
um trabalho e supõe uma progressão (moveri ad continuationem); o conteúdo
dessa forma é o que Aristóteles definiu como objeto da teologia filosófica:
contemplação dos seres separados; a forma de vida característica da con-
templação filosófica pode ser chamada de “felicidade intelectual”. Alberto
Magno construiu ou reconstituiu esta concepção pelo empréstimo de fon-
tes variadas: dos peripatéticos das terras do Islã (Alfaberi, Avicena, Averróis).
Evidentemente, e também dos comentadores bizantinos da Ética a Nicômaco,
Eustrato de Nicéia e Miguel de Éfeso, de quem foi um dos primeiros leitores.
Alberto Magno transmite, portanto, a doutrina greco-árabe do “intelecto ad-
quirido” (intellectus adeptus): a ideia central é a de uma felicidade na Terra
que recompensa o esforço filosófico entendido como desligamento progres-
sivo da alma humana em relação ao sensível e aquisição do intelecto20.
42
Porfírio e Averróis
43
44
2
As fontes da
21
Filosofia Medieval
Além dos escritos filosóficos desse período, devemos levar em conta também
um série de outras fontes: primeiramente, os escritos dos teólogos, dos juris-
tas, dos homens de ciência, dos médicos, até mesmo dos poetas, na medida
em que esses escritos apresentam um interesse filosófico; em seguida, todas
as outras fontes da história (crônicas, biografias, atos jurídicos e administra-
tivos, etc.), pois elas podem contribuir na reconstrução da vida, da atividade
literária, das relações sociais e da influência dos filósofos.
Ora, todas essas fontes, sem exceção, foram escritas à mão e conservadas
sob forma de documentos manuscritos, tendo a invenção da imprensa coin-
cidindo mais ou menos com o fim da Idade Média. A leitura dos manuscritos
da Idade Média comporta dificuldades mais ou menos consideráveis, em ra-
zão da forma e da variedade das escrituras, da deterioração dos pergaminhos,
mas sobretudo devido ao sistema de abreviação às vezes muito avançado que
é de uso corrente, no objetivo de ganhar lugar e tempo.
Além dessas dificuldades de ordem paleográfica e de crítica textual, a lite-
ratura manuscrita da Idade Média coloca uma série de problemas de crítica
literária relativos aos autores dos documentos, às circunstâncias de com-
posição e às fontes utilizadas. Acrescentemos que esses documentos são
conservados nas inumeráveis bibliotecas, frequentemente desprovidas de
catálogos satisfatórios e acessíveis.
Mas essas dificuldades inerentes ao estado das fontes vão ser agravadas
pela reação antimedieval que caracteriza o Renascimento e quase todo pen-
samento moderno até o século xix.
21 Para os tópicos seguintes, traduzimos e adaptamos F. VAN STEENBERGHEN, Introduction à l’étude de
la philosophie médiévale. Paris/Louvain: Béatrice-Nauwelaerts/PublicationsUniversitaires, 1974, 35-39.
45
46
3
A reação contra a
civilização medieval (séculos xv-xvii)
Os primórdios da Idade Moderna são marcados por uma reação violenta con-
tra a “escolástica”, isto é, contra o pensamento e o ensinamento das escolas
medievais, contra o sistema científico elaborado nas Universidades medie-
vais. Aspecto particular da reação contra a civilização medieval em seu con-
junto e, ao menos em certos casos, contra a “cristandade” medieval. Reação
tanto mais violenta, que ela não é somente condenação de um passado revo-
lucionário, mas a luta ainda atual contra uma ordem de coisas que persiste:
o papado e a Igreja subsiste; o clero conserva uma influência, um poder
e riquezas enormes; a escolástica continua ser ensinada, em latim, não so-
mente nos mosteiros, mas também nas Universidades, mesmo nos países
protestante; a “física” de Aristóteles não cessa de ser ensinada não obstante
os progressos decisivos da física moderna; outras instituições medievais so-
brevivem à crise do Renascimento e às crises ulteriores.
47
Tomás de
Aquino
48
media aetas é registrado em 1518; medium aevum em 1604), dando-lhe um sentido
pejorativo: ela designa o período “intermediário” de estagnação, parêntesis esté-
ril entre duas épocas de cultura brilhante e de humanismo autêntico. Portanto,
o atributo “medieval” é uma desingação aplicada posteriormente e não determi-
nada pelo teor da filosofia que abrange. Tal atributo nada diz acerca da forma ou
do conteúdo, das tendências próprias, da qualidade intrínseca, do “espírito” da
filosofia surgida entre o século v o século xiv. Nesse sentido, “o significado ha-
bitual de ‘medieval’ comporta, ou transporta, como um preconceito cultural, o
menosprezo a que o Renascimento votou a Idade Média”22.
A crise da física aristotélica começa no século xiv com Jean Buridan, Alberto
de Saxe e, em Oxford, a escola franciscana do Merton College. Todo o sistema
científico de Aristóteles, dos gregos e dos árabes desmorona sob os golpes
22 Maria Leonor XAVIER, Questões de Filosofia na Idade Média. Lisboa: Edições Colibri, 2007, 18.
49
das descobertas que abalam a física, a mecânica e a astronomia tradicional. A
cosmologia deverá ser considerada independentemente de seus pressupostos me-
tafísicos e teológicos. Como quase sempre acontece na história das ideias, de
um longo processo de transição, muito mais do que de uma ruptura radical.
Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transfor-
mações que levarão à Revolução Científica:
50
51
52
4
A Idade Média
e o pensamento filosófico posterior:
continuidades e rupturas
Embora o pensamento moderno a partir de Descartes e os seus desdobramen-
tos posteriores marquem uma ruptura com o mundo medieval quanto ao
modo de pensar o mundo e o próprio homem, persistem sinais de continui-
dade dentro de uma descontinuidade. É possível encontrar raízes medievais
do pensamento moderno, bem como examinar a apropriação fenomenológica
dos medievais em vários textos de filósofos contemporâneos, dos quais se
destaca particularmente Martin Heidegger nos inícios de sua carreira docen-
te na Universidade de Freiburg (1919–1923). Quanto à persistência de temas
medievais no pensamento moderno, dispomos da síntese realizada por Ales-
sandro Ghisalberti com base em várias conferências proferidas no Brasil: As
raízes medievais do pensamento moderno. Porto Alegre: Edipucs, 2001. Sobre a
releitura fenomenológica dos medievais, publiquei recentemente um livro:
Bento Silva Santos, Fenomenologia e Idade Média. Curitiba: Editora CRV, 2013.
53
o século XVIII, a filosofia nunca deixou de tratar do caminho da instância da
transcendência. Essa instância transcendental ora no Renascimento (como
Marsílio Ficino e Pico della Mirandola), ora nas obras filosóficas de Descar-
tes, Leibniz, Wolff, Kant. Muitos desses pensadores modernos retomam as
demonstrações da existência de Deus, reelaborando as provas a priori ou a
posteriori. Assim, há “um itinerário especulativo que deduz, com argumen-
tos, a passagem do finito ao infinito, examinando a estrutura finita das coisas
contingentes”. Da Idade Média procede “a instância ontológica que, da aná-
lise do ser limitado, sob o princípio de não-contradição, chega à afirmação
da necessidade de ordem metafísica da existência do Ser absoluto, infinito,
perfeitíssimo, que dá razão à possibilidade do ser contingente”23.
A concepção teocêntrica do pensamento medieval sempre considerou o ho-
mem como uma figura singular no quadro mais amplo da natureza. Na pessoa
humana descortinava o ser mais nobre e mais perfeito entre todos os seres
vivos da natureza. O homem sempre manifestou aspirar a uma vida de reali-
zação e felicidade permanentes, não-interrompida pela morte. Essa aspiração
a não morrer é sinal do sentido ao qual aspira constante a existência como tal.
23 A. GHISALBERTI, As raízes medievais do pensamento moderno. Porto Alegre: Edipucs, 2001, 17–18.
54
participar do ser e da verdade em todo o universo: o objeto da inteligência é
universal, privado de qualquer condição material particular; por essa razão,
é imaterial. Nesse sentido, também será imaterial o ato da potência inteligente
que o conhece. Portanto, “a inteligência é uma potência imaterial que, mesmo
dependendo extrinsecamente do corpo, é imaterial pela estrutura intrínseca e,
portanto, não está sujeita em si mesma à corrupção. Que a alma humana seja
destinada à imortalidade é doutrina presente nas filosofias platônicas do Re-
nascimento, como a de Marsílio Ficino e a de Pico della Mirandola”.
Por fim, outro ponto de contato com a Modernidade está na chamada inte-
ligibilidade do mundo. Essa inteligibilidade articula-se em diversos aspectos.
Por exemplo, “a predisposição da mente humana para conhecer a realida-
de assim como ela é, sem alterar suas estruturas constitutivas, ou mesmo,
a capacidade do homem para instituir um modelo de saber rigoroso, uma
episteme forte, que construísse processos argumentativos, demosntrativos
e conclusivos que alcançassem a plena evidência cientifica”25. Portanto, a
racionalidade científica moderna se enraiza na forte paixão dos filósofos e
cientistas medievais pela razão, na sua grande fé, na lógica e na investigação
metodologicamente correta no plano da pesquisa empírica. Daí a importân-
cia de alguns métodos dessa inteligibilidade do mundo: a scientia experimen-
talis de Rogério Bacon, o princípio de verificação empírica, ou a navalha de
Ockham, a arte combinatória e a mnemotécnica de Raimundo Lúlio26.
27 L. ALBERTO DE BONI, A Filosofia Medieval e a Filosofia atual, Studium. Filosofia y Teologia XV/30
(2012) 329. 333.
55
diacrônico” que deixamos de compilar e repetir o que foi dito. Nesse sentido, po-
demos dizer que “começamos a filosofar quando entramos em diálogo com os fi-
lósofos. Isto implica que discutamos com eles sobre aquilo do qual eles falam [...].
Uma coisa é averiguar as opiniões dos filósofos. Outra, inteiramente diferente, é
discutir com eles o que dizem, isto é, aquilo sobre que eles dizem”28.
O ponto de partida para uma aproximação fenomenológica da Idade Mé-
dia provém da releitura de intuições do filosofo alemão Martin Heidegger
nos inícios de sua carreira intelectual na Universidade de Freiburg. Nesse
sentido, a motivação para relacionar Fenomenologia e Idade Média se con-
centra nas potencialidades próprias de uma fenomenologia religiosa no seio do
período de 1916 a 1919 do “jovem” Heidegger, quando redigiu as notas de um
curso acadêmico não proferido — na verdade cancelado em agosto de 1918,
mas cuja redação continuou até 1919 —, intitulado Os Fundamentos filosóficos
da mística Medieval29, mas que, oficiosamente, essas notas tinham como obje-
tivo a redação de um livro sobre a “fenomenologia da consciência religiosa e
de seu mundo”30. Nesse período juvenil da investigação heideggeriana já se
descortina que a relação entre fenomenologia e religião é intrínseca em seu
aspecto formal (“Wie” = “como”) e não quanto aos conteúdos (“Was” = que
[coisa]), mesmo se mais tarde Heidegger tenha se mostrado pessoalmente
oscilante na atitude frente à religião. Essa convergência só é compreensí-
vel, caso aqui entendamos “religião” como religiosidade cristã, cuja estrutura
coincide formalmente com a da vida fática, da qual deriva a filosofia para
Heidegger. É justamente durante o período friburgense, de 1916 a 1923, que
Heidegger se opõe sobretudo à “absolutização injustificada da esfera teoréti-
co-científica”. O fenomenólogo e o crente respondem cada vez à provocação
de sua eventual coisa (Sache), que se subtrai a toda esfera teorético-científica.
De um lado, Heidegger propõe uma hermenêutica da facticidade, que deve
28 M. HEIDEGGER, Was ist das — die Philosophie? Pfullingen: Neske, 1956, 31, apud J. MAC-
DOWELL, A missão da Filosofia hoje, Sapere Aude 1/1 (2009) 20.
30 O livro nunca foi escrito por Heidegger, mas essas notas revolucionárias construíram as
grandes linhas hermenêuticas de uma fenomenologia teológica (ou teológica).
56
evitar uma conceitualidade abstrata; assim ele radicaliza a fenomenologia,
cuja coisa (Sache) é a vida fática:
32 Cf. P. DE VITIIS, Principali interpretazioni della Vorlesung heideggeriana Del 1920–1921: Einleintug
in die Phänomenologie der Religion, in MOLINARO, A. (a cura), Heidegger e San Paolo. Interpretazione
fenomenologica dell’Epistolario paolino. Roma: Urbaniana University Press, 2008, 107–117.
33 Heidegger fala de um “estudo filosófico, mais precisamente fenomenológico dos escritos
medievais, morais e ascéticos da escolástica medieval” (Die Kategorien und Bedeutungslehre dês
Duns Scotus in Frühe Schriften [GA 1]. Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 1978, 205).
34 “Constituição da objetualidade religiosa: Deus se constitui na oração? Ou será que, de algum modo,
ele já se deu de antemão (vorgegeben) e religiosamente na fé (‘amor’)? A oração é um comportamento espe-
cífico [Verhalten ] em relação a ele [isto é, Deus]?” (M HEIDEGGER, Fenomenologia da Vida Religiosa, 293).
57
Para evidenciar essa atualidade da apropriação contemporânea da Idade
média servimo-nos de uma citação do terceiro sermão sobre o Cântico dos
Cânticos de Bernardo de Claraval do século XII, que situa a religiosidade na
esfera interior da experiência vivida: “Hoje lemos no livro da experiência
(hodie legimus in libro experientiae) [...]”. Heidegger compreende essa frase as-
sim: “Hoje queremos mover-nos de maneira compreensiva (descrevendo) no
campo da experiência pessoal. Retorno à esfera da vivência própria e auscul-
ta da revelação da própria consciência”. Trata-se de ler e pensar de outro modo
essa fórmula de Bernardo, isto é, como campo experiencial que o livro faz
abrir. Ler (legere) não é mais decifrar, mas mover-se a si mesmo, recolher, até
mesmo ser afetado. A experiência (experientia) não é mais o ato de ler, mas
vivência pessoal à qual ele reenvia. O hoje (hodie) não é o da análise, mas o da
compreensão entendida como descrição, e descrever fenomenologicamente
é atingir o eu histórico que existe interpretando seu mundo, que é também a
morada de Deus.
Além disso, Bernardo de Claraval insiste sobre a característica vivida e emi-
nentemente pessoal da experiência religiosa: “É uma fonte selada (fons signa-
tus), onde o estrangeiro não tem acesso; mas somente aquele que dela beber,
terá ainda sede” 35. Experiência interior seria equivalente à noção de “experiên-
cia fundamental” (Grunderfahrung), que torna possíveis e donde se desvelam
todas as outras experiências religiosas ou místicas. Essa “experiência funda-
mental” é primária, não somente no sentido temporal (zeitlich), mas também
no sentido fundante. Ela é, aliás, inteiramente histórica, no sentido de que esta
palavra historisch não deve indicar nada de definitivo, mas de autoresistente pri-
mário. Entre as outras experiências ou fenômenos que inquietam o místico,
enumeram-se entre outros os seguintes: a presença de Deus na alma, o recolhi-
mento interior, o silêncio, a solidão, a receptividade, a oração, etc36.
35 S. BERNARDO DE CLARVAL, Serm. in cant., III, 1: Patrologia Latina 183, col. 704 (tr. fr. BERNARD DE
CLAIRVAUX, Sermons sur le Cantique [coll. “Sources chrétiennes”, nº 14], t. I. Paris: Cerf, 1966, 101).
58
Os dizeres de Bernardo de Claraval fixam um programa que serve para
enunciar uma prática fenomenológica da filosofia medieval37: certamente
retorno à fonte (e, concretamente, em nosso caso, aos medievais), mas es-
pecialmente à liberação de seu fluxo pelo “remontar à experiência” que uni-
camente lhe dá acesso. Concretamente isso significa o seguinte: nem o texto
e sua meditação (hermenêutica), nem a religião e seu estudo podem nem
devem afastar-nos do “modo de ser vivido”, do qual eles são portadores38. As-
sim, por exemplo, a partir da concepção de Eckhart sobre a relação entre o
esse de Deus e o ens da criatura como relação de criação, chegamos à mesma
conclusão, quando Turíngio afirma em sua Expositio in Ecclesiasticum 24, 21:
“Qui edunt me adhunc esuriunt” (“aqueles que me comem ainda desejam co-
mer”). Eis o sentido da metáfora para expressar a analogia entre a criatura e
o Criador, entre o ente e o Ser: comer sem estar jamais saciado, tendo sempre
mais fome. A fome ou a sede da criatura significa que o Ser não é para ela uma
posse fixa, mas uma recepção contínua do ser nele. A fome ou a sede designa
o apetite de uma coisa não possuída. Enquanto essa fome subsistir, a criatura
afirmar-se-á como ek-istente, como saída de si sob a forma constante de uma
inquietude em busca de Deus sem, contudo, jamais possuí-lo: nesse sentido,
o ente criado é pura recepção e, portanto, está na indigência; tem continua-
mente fome e sede do Ser absoluto.
37 Cf. E. FALQUE, Parler d’expérience: spiritualité monastique et philosophie mystique, in Jérôme
ALEXANDRE (ed.), L’actualité de saint Bernard, Paris: Collège des Bernardins, 2010, 135–147.
38 Cf. E. FALQUE, Dieu, la chair et l’autre. Paris:PUF, 2008, 16–19, 27–28.
59
60
módulo III
Os Padres da Igreja
61
62
1
O Período Patrístico
(séculos i-vii d.C.)
63
truturais para esse extraordinário evento histórico-especulativo que foi o
encontro entre sabedoria filosófica grega e o kerigma cristão primitivo”1. Há
razões estruturais para esse encontro: a homologia (concordância) notável en-
tre a dimensão teológica da filosofia grega e o essencial teocentrismo da visão
cristã, fundado na tradição bíblica. Essa homologia convive, no entanto, com
uma radical heterologia (dissonância/discordância) na medida em que, ao mo-
vimento de constituição da theologia grega, que é um movimento de anába-
sis (subida), de ascensão do sensível ao inteligível e, finalmente, ao Primeiro
Princípio, segundo uma matriz conceitual inaugurada por Platão, contrapõe
o movimento de constituição da theologia cristã que acompanha o movimen-
to de katábasis (descida), da descida do Absoluto à contingência do mundo
e da história. No primeiro caso, o Absoluto é pensado ou atingido estatica-
mente como ápice de um movimento de ascensão intelectual. No segundo,
o Absoluto é dado como termo de um gesto de revelação e de graça. É essa a
tensão fundamental que atravessa toda a tradição filosófico-teológica cristã2.
Em resumo: o helenismo contestava metafisicamente a divindade de Cristo,
porque não conseguia justificar, no evento da Encarnação, a transcendência
de Deus com a contingência história de Jesus. Além disso, era impossível seja
uma intervenção direta e pessoal na história por parte de Deus (perspectiva
platônica), seja o acolhimento de tal intervenção divina “ad extra” por parte
do cosmo (perspectiva estoica).
Do ponto de vista da literatura patrística, a filosofia aparece ora no mun-
do grego, ora no mundo latino. Então costuma-se abordá-la sob a seguinte
nomemclatura: filosofia helênico-patrística e filosofia da patrística latina3.
De um lado, na configuração da filosofia na Patrística é fundamental o Cris-
tianismo como fato religioso. Nesse sentido pressupõe-se a revelação dada
por Deus, implicando assim um tipo de saber transracional em diálogo ou
em tensão com sabedoria humana. É importante ressaltar que o Cristianis-
1 H. C. DE LIMA VAZ, Escritos de Filosofia III: Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 2002, 297s.
3 Ver, por exemplo, a síntese completa de C. MORESCHINI, História da Filosofia Patrística. São
Paulo: Loyola, 2008.
64
mo não se mostrou como um fato filosófico em si mesmo, mas “como um
sistema de crenças ou como uma concepção das relações entre o homem e
Deus”. Essa concepção abrange uma abordagem experiencial do encontro do
crente com o evento Cristo, como é o caso sobretudo nas epístolas paulinas,
e uma apreensão mais teórica com a elaboração do dogma cristão ao longo
dos grandes Concílios Ecumênicos desdos primeiros séculos do Cristianis-
mo. De outro lado, enquanto fato cultural, o Cristianismo gerou uma dimen-
são cultural, uma vez que, “servindo-se de elementos tomados da filosofia
grega, deu origem a um pensamento que ocupou toda a época da humani-
dade, o período medieval latino, e que, inclusive, orientou a reflexão filosó-
fica no mundo moderno e no contemporâneo”4. Considerando a extensão e
a complexidade do período patrístico, dividido nos mundos grego e latino,
optamos por restringir a abordagem a dois representantes fundamentais do
pensamento filosófico-teológico na época dos Padres, a saber: Agostinho de
Hipona e Gregório de Nissa. O texto de Claudio Moreschini5 poderá servir
de grande utilidade para quem deseja aprofundar o pensamento dos Padres
da Igreja como um todo.
4 R. RAMÓN GUERRERO, Historia de la Filosofia Medieval. Madrid: Ediciones Akal S.A., 2002, 14.
65
66
2
A temática da Patrística
com base na tradição greco-latina
Com base nos autores escolhidos, será possível vislumbrar concretamente o
esforço de cada um para tornar aceitável o Cristianismo enquanto exercício
cristão da razão, um exercício que permitiu à razão humana contemplar no-
vas perspectivas até então desconhecidas.
De um lado, Aurélio Agostinho, considerado o mestre da Idade Média cris-
tã, julgava a filosofia como amor da sabedoria, e essa sabedoria nada mais era
do que a contemplação e posse da verdade. Enquanto investigação da verdade,
a filosofia significava para ele procurar dinamicamente a vida feliz, a felicida-
de. Sabedoria e verdade se identificavam na pessoa de Cristo, Caminho Verdade e
Vida. Mesmo dentro de um contexto literário e retórico da argumentação de
Agostinho em vários diálogos de sua fase inicial entre 386 e 391, é predomi-
nante em seu itinerário intelectual a dimensão existencial da busca pela ver-
dade no Cristianismo. De outro lado, Gregório de Nissa, o mais importante
pensador da Capadócia no século IV. Diferentemente de Agostinho de Hipona,
já conhecido por muitos cristãos, ao menos de ter ouvido falar dele, o mesmo
não acontece com o Nisseno. O leitor poderia perguntar-se: quem de fato foi
S. Gregório de Nissa? Um bispo? Um teólogo? Um pensador? Um asceta? Um
místico? Um exegeta? As numerosas obras, importantes e originais, de caráter
polêmico, expositivo, doutrinal e exegético, confirmam a figura poliédrica de
Gregório de Nissa. Ele soube sintetizar harmonicamente a visão do homem
propriamente bíblica com os elementos mais interessantes do pensamento
de algumas das figuras entre as mais importantes da cultura filosófica prece-
dente, tais como Platão, Aristóteles, Posidônio, Galeno e Orígenes. Passemos
então ao comentário sobre os dois doutores da Igreja antiga.
67
2.1 Agostinho de Hipona (354–430)
6 Para uma visão geral, cf. U. ZILLES, Fé e Razão no pensamento medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1993
68
inacabada no momento de sua morte em 430, ele não elaborou um verda-
deiro e próprio sistema filosófico. Enquanto outros na Antiguidade clássica,
como, por exemplo, Platão e Cícero, consagraram obras inteiras ao exame de
argumentos filosóficos específicos, Agostinho só o fez muito raramente. Na
primeira fase de sua atividade literária, algumas obras abordam temas filo-
sóficos específicos como, por exemplo, o ceticismo e o dogmatismo (Contra
Academicos), os problemas relativos à alma (De quantitateanimae), o mal, o
livre-arbítrio e a presciência divina (De libero arbitrio). Muitos de seus escri-
tos, mesmo aqueles que têm um profundo embasamento filosófico (como
De Trinitate, De Civitate Dei, De Genesis ad litteram) são fundamentalmente
respostas a uma série de problemas relacionados a circunstâncias pessoais,
teológicas e de política eclesial. A especulação como um fim em si mesmo,
indiferente a tais circunstâncias, jamais constitui a causa eficiente que in-
duz Agostinho a escrever, mesmo que não poucas vezes determine o campo
a partir do qual se dedica à análise de um problema filosófico particular. Se,
portanto, os escritos de Agostinho não constituem um verdadeiro e próprio
sistema, ele poderia então ser descrito como um filósofo de ocasião. Todavia,
deve-se admitir que o seu pensamento é dominado por determinados con-
ceitos fundamentais e que tal tendência pode ser descrita em termos gerais.
69
utilidade, Agostinho conserva inalterada a sua concepção acerca da natureza,
da metodologia, da divisão e das finalidades da indagação filosófica. Nesse
sentido, quando procura definir filosofia, Agostinho propõe normalmente
a definição clássica de Pitágoras e Platão: “Studium vel amor sapientiae”8.
Não se trata simplesmente de uma definição nominal, mas real; é uma inda-
gação, um estudo da verdade em vista da posse da sabedoria; não é, portanto,
um estudo especulativo das causas últimas e das realidades fundamentais,
uma procura existencial cujo objetivo é a autorrealização na posse da vita
beata9. Ora, é um fato capital, para a compreensão do agostianismo, saber
que a sabedoria — objeto da filosofia — sempre se confunde com a ideia de
bem-aventurança. O que Agostinho procura é um bem cuja posse preencha
todo desejo e, em consequência, traga paz e felicidade.
9 Note-se que Agostinho, desde seus primeiros escritos, confronta os conceitos gregos e ro-
manos de felicidade, sabedoria e virtude com a autoridade do cristianismo. Ele assume a ética
eudaimônica que caracteriza filosofia antiga: a felicidade ou “bem-aventurança” (beatitudo) é
em si mesma acessível a todos e consiste na realização da sabedoria (sapientia).
70
“A filosofia me libertou inteiramente daquela superstição (do mani-
queísmo) na qual eu me precipitei juntamente contigo. Ela ensina, e
com razão, que não se deve ter consideração, mas somente desprezar
aquilo que se percebe com os olhos mortais, aquilo que é objeto da
percepção sensível. Ela promete mostrar com evidência a Deus, suma-
mente verdadeiro e inefável, e já se digna fazê-lo aparecer como que
através de nuvens transparentes”10.
10 AGOSTINHO, Contra Academicos I, 3. Provável alusão à meditação das disciplinas liberais (ver
Solilóquios I, 6, 12; 8, 15; 13, 23). Em outras palavras: as “nuvens transparentes” (lucidae nubes)
aludiriam ao adestramento gradual ao qual o olho interior deve submeter-se para suportar a luz
ofuscante do sol inteligível, na linha do célebre mito da caverna de Platão (República 515c–516b).
71
tureza, isto é, coloque-se no lugar que lhe convém: abaixo daquele a quem deve
se submeter, acima do que ela deve dominar. Acima do corpo e abaixo de Deus.
Desse modo, segundo Agostinho, a alma que pensa em si mesma e vol-
ta, portanto, a seu interior, superará o seu próprio eu, e, nessa experiência
de imanência, chegará a elevar-se acima de si mesmo para ir até a Verdade.
Por conseguinte, conhecer efetivamente a si mesmo e conhecer a Deus não
são dois procedimentos, métodos distintos, mas duas etapas de um único
procedimento, de um único método: a verdadeira interioridade acontece só
quando se estende e se integra na metafísica. Interioridade sem metafísica é
uma interioridade superficial comparável a uma análise existencial. A alma,
através de seu desnudamento interior, isto é, o perscrutar as condições do
seu ser, do seu conhecer, do seu amar, do seu desejar com a consequente des-
coberta de sua fragilidade, não poderá deixar de entrever a fonte do seu ser,
da sua verdade, do seu bem — Deus. Isto é o resultado de uma análise atenta
e objetiva dos fatos e não um artifício sofístico ou um divertimento literário:
Do racionalismo à fé:
O processo de conversão de Agostinho
72
S. Agostinho
73
lugar, do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico (C); em quarto lugar, a pas-
sagem determinante ao neoplatonismo (D); por fim, do neoplatonismo à sua
conversão ao cristianismo (E).
13 O. DU ROY, L’intelligence de la foi en la Trinitéselon Saint Augustin. Paris, 1966, 25s.
74
templativa15. Assim, após ter sido conquistado pelo amor à sabedoria através
da leitura de Hortensius de Cícero, Agostinho inicia seu labor em busca das
fontes de um conhecimento que julgava ser o mais aceitável. Inicialmente,
não deixa de incluir também as Escrituras, mas esse primeiro contato com as
Escrituras foi acompanhado de preconceitos racionalistas que lhe impediam
penetrar na verdade transcendente contida nos livros sagrados. O estilo e a
linguagem dos livros divinos lhe pareceram assaz ordinários e toscos:
“Eu que vos falo fui enganado outrora, quando desde jovem me aproxi-
mei pela primeira vez das Escrituras. Aproximei-me não com piedade
de quem procura humildemente, mas com a presunção de quem deseja
discutir (...) Ousei procurar com soberba aquilo que só os humildes po-
dem encontrar. Quanto sois agora mais felizes. Estivestes como filhotes
no ninho da fé e recebestes o alimento espiritual! Infeliz de mim, ao
75
contrário, que julguei-me idôneo para o vôo, abandonei o ninho e caí
antes de poder voar! Mas o Senhor misericordioso me acolheu e me re-
colocou no ninho antes que os transeuntes em pisoteassem”17.
◊ Adesão ao maniqueísmo
76
Segundo a descrição feita no Livro iii das Confissões, os maniqueístas ti-
nham continuamente na boca a palavra “verdade”: “Diziam: ‘verdade, verda-
de’, e disto falavam-me continuamente”. Foi provavelmente a palavra “verdade”
que o seduziu, levando-o assim, no espaço de poucos dias, a abandonar a
fé da juventude e a abraçar o maniqueísmo. A adesão a essa seita implicava
logicamente não somente a recusa da autoridade da Escritura, mas também
o abandono da Igreja católica.
Do racionalismo maniqueísta provêm os erros de Agostinho nessa fase de
sua vida, particularmente as concepções que assumiu acerca de Deus e da
alma. Segundo os fautores da seita, Deus é luz, o que equivale a dizer que Ele
é um ente corpóreo. As almas humanas seriam simples partículas dessa luz
divina, desterradas para os corpos visíveis. A raiz mais profunda dos erros de
Agostinho era o seu próprio orgulho: “... mas como quando eu queria pensar em
meu Deus, não sabia pensar de vós senão grandeza de corpo (nem cuidava que
houvesse outra senão como esta) era a maior e quase a única causa inevitável do
meu erro”20. Todavia, a renúncia ao racionalismo deu-se sob a ação decisiva
de seu contato com Santo Ambrósio, cujas pregações escriturísticas lhe per-
mitiram aceitar o fato de que a Igreja dispõe de uma inteligência muito mais
profunda da Escritura. Sob o influxo das homilias de Ambrósio, Agostinho
superou dois grandes obstáculos que o mantinham ainda longe da Igreja: o
primeiro era representado pela linguagem marcadamente antropomórfica
da Escritura; o segundo dizia respeito à versão repugnante dada pelos mani-
queus acerca do ensinamento da Igreja católica.
Agostinho, portanto, deu-se conta do erro que cometera ao submeter a
doutrina da Igreja ao juízo imaturo de sua própria razão. Essa não funcio-
na segundo suas próprias forças; todo conhecimento verdadeiro é efeito da
iluminação do Verbo. É assim que os platônicos puderam conhecer a Deus, o
verdadeiro Deus, uno e trino, sem, porém, terem conhecido a fonte da sabe-
doria: a Sabedoria, o Verbo que é o Cristo. Nesse nome salutar se encontra “to-
tum culmen auctoritatis lúmenque rationis” (todo o cume da autoridade, toda
77
luz da razão)21. Cristo é o princípio de coerência da doutrina agostiniana22:
Ele é, na ordem ontológica, Criador e Salvador, e, na ordem epistemológica,
fundamento da fé e da inteligência23.
22 Cf. J. J. O’DONNELL, The Authority of Augustine, Augustinian Studies 22 (1991) 7–35
25 Cf. AGOSTINHO, Confessiones V, 10, 18; V, 10, 19; V, 13, 23.
78
passou de Cícero à Bíblia, da Bíblia ao maniqueísmo e do maniqueísmo ao
ceticismo; enfim, se Agostinho permaneceu cético ou deixou de sê-lo, isto é,
sua relação com o (s) projeto (s) filosófico (s) e sua maneira de apreender o
sentido do (s) mesmo (s)26.
Se Agostinho, ao menos durante o tempo que vai de seu encontro com
Fausto à sua leitura dos neoplatônicos, adere às teses acadêmicas, está sob
a condição de resumir sua relação com essa doutrina em cinco proposições:
(1) a indagação acerca de uma união salvífica com a divindade (o Cristo
identificado com a sabedoria e com a verdade) condiciona suas pesquisas dou-
trinais, de sorte que é (2) uma “desesperança soteriológica” que o aproxima do
ceticismo acadêmico, mesmo se é verdade (3) que sua “desesperança gnosioló-
gica” serviu-lhe para terminar de refutar as pretensões maniqueias de possuir
a gnose verdadeira e salvífica; de outro lado (4) Agostinho parece-nos ter inter-
pretado a tese acadêmica da incapacidade do homem de formar uma represen-
tação compreensiva da verdade no sentido de uma impotência do homem em
unir-se a Deus, sem (5) ter aceitado a possibilidade de atingir a ataraxia pela
suspensão do juízo nem a beatitude pela pura pesquisa do verdadeiro.
A rigor, Agostinho não oferece uma apresentação da doutrina acadêmi-
ca, mas distribui o entendimento que dela possuía em dois pontos, desig-
nando sua própria compreensão como imperfeita: (1) deve-se duvidar de
tudo; (2) nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo homem; (3) na
verdade os Acadêmicos tinham escondido sua “intenção”, e o verdadeiro
sentido de sua doutrina, a fim de que o “vulgar” não tivesse acesso a ela: a
prudência deles não é somente de ordem gnosiológica, mas ela dissimula
uma verdade mais profunda27.
27 Cf. AGOSTINHO, Contra Acadêmicos III, § 37 ao § 43. Agostinho elabora nesses parágrafos uma
“hipótese histórica” sobre as vicissitudes da Academia platônica. Nessa reinterpretação da filo-
sofia de Platão discutida na Academia vê-se que Agostinho assume a tese de que houve um for-
te dogmatismo em Platão e nos desenvolvimentos posteriores estoicos e neoplatônicos. Nesse
caso, nem Platão, nem, supostamente, Arcesilau ou Carnéades seriam céticos (ou seriam ano-
malias), e esse título só conviria aos pirrônicos. Sobre a ideia de que na Academia se preservava
79
O “tempo cético” de Agostinho segundo
o Livro v das Confissões
É mais de seu próprio desespero que a narração das Confissões faz nascer a
aproximação de Agostino com as posições acadêmicas que ele já conhecia
por já tê-las encontrado em Cícero. Não se trata de adotar a posição cética
como tal, suspendo o juízo para conseguir a sabedoria sob a forma da ata-
raxia; quando não se pode ter nenhuma posição afirmativa e certa, que atitu-
de assumir para melhor conduzir a vida? Agostinho tem o conhecimento de
uma tese negativa, segundo o Contra Acadêmicos (iii, 9, 18): “negant Academi-
ci sciri aliquid posse”: os acadêmicos não são, portanto, aqueles que afirmam
que o saber é inacessível ao homem, mas aqueles que negam que o homem
possa saber o que quer que seja. O coração da doutrina concerne à possibili-
dade de uma certeza vivida, e isso é fundamental para compreender como o
ceticismo acadêmico penetra na vida de Agostinho.
80
“A desesperança teórica ou gnosiológica é bem menos decisiva na ma-
neira como Agostinho recebe o ceticismo acadêmico do que sua desespe-
rança vivida, que se situa no plano da questão da salvação pessoal”29.
30 AGOSTINHO, Confessiones V, 7, 12; V, 7, 13; V, 10, 18; V, 10, 19; V, 13, 23; V, 14, 2 4; VI, 1, 1.
81
A instabilidade e o “tempo cético”
82
mera. É justamente esta atitude que é descrita na alternativa das doutrinas
maniquéias, acadêmica e cristã: encontrando-se na desesperação de buscar
a verdade, Agostinho abandona o maniqueísmo, mas, assim procedendo, ele
permanece desprovido de todo recurso, pois ainda não encontrou a doutrina
da salvação. Ele não “havia ainda se tornado adepto da verdade”. E esta ver-
dade é a Verdade divina, isto é, Cristo (e não somente as verdades às quais a
inteligência humana é capaz de atingir)32. Trata-se aqui novamente de uma
desesperança soteriológica.
32 Cf. Jo 14, 6. Ao longo de seus escritos, Agostinho utiliza frequentemente essa passagem (em
conjunção com textos paulinos: por exemplo, 1Cor 1, 24 em Contra Acadêmicos II, 1, 1, Cristo
como virtus et sapientia Dei) para falar que Cristo, Filho de Deus, Sabedoria de Deus, é a Verdade.
83
os termos itaque e ergo dessa passagem com o itaque (Confesssiones iii, v, 9)
que introduz a passagem de Cícero à Bíblia e ao maniqueísmo, verificamos
o que é decisivo aos olhos de Agostinho: o nome de Cristo. Portanto, sua ati-
tude é essencialmente orientada por uma questão religiosa — como unir-se
ao Cristo? Qual é a justa doutrina depositária do nome de Cristo? — e não por
uma questão “filosófica” no sentido clássico da Antiguidade tardia:
“Mas Vós sabeis, Luz do meu coração, que naquele tempo ainda não
me eram conhecidos estes ensinamentos do Apóstolo S. Paulo [Cl 2,
8]. Apenas me deleitava, naquela exortação [o Hortênsio de Cícero], o
fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim
o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou
aquela seita, mas sim a própria sabedoria (ipsamsapientiam), qual-
quer que ela fosse. Uma só coisa me magoava no meio de tão grande
ardor: o nome de Cristo (nomen Christi) não se encontrava aí. [...] Por
essa razão (Itaque), dediquei o meu espírito ao estudo das Sagradas
Escrituras, e ver o que elas eram [...] Por essa razão (Itaque) caí nas
mãos de homens orgulhosamente extravagantes, demasiado carnais
e loquazes. Havia na sua boca laços do demônio e um engodo, prepa-
rado com a mistura de silabas do Vosso nome, de Nosso Senhor Jesus
Cristo e do Espírito consolador, o Espírito Santo. [...]35.
35 Ver AGOSTINHO, Confessiones III, 4, 8; III, 5, 9; III, 6, 10; V, 14, 25 (o grifo é nosso).
37 Cf. G. MADEC, Platonismeetchristianisme. Analysedu livre VII des Confessions, in CARON, M.
(sous la direction). Saint Augustin. Paris: Cerf, 2009, 77–158.
84
Vita, é também conhecida a existência de um “círculo neoplatônico” de inte-
lectuais em Milão na mesma época da conversão de Agostinho em 386. A esse
meio neoplatônico pertencia sem dúvida S. Ambrósio, cujos Sermões permi-
tiram ao Hiponense conseguir algumas referências seguras que o conduzirão
à conversão, a saber: a descoberta do sentido espiritual da Escritura, o que lhe
permitiria abandonar uma concepção antropomórfica da divindade e aceder
à ideia de uma semelhança espiritual entre o ser humano e Deus.
Não é caso aqui de evocar a quaestio vexata que concerne à identidade des-
ses “livros platônicos”, mas, sim, chamar atenção para o fato de que a leitura
de tais livros provocou em Agostinho “um choque libertador”38. Como bem
observou Paula Oliveira e Silva, “ao conjugar a leitura dos Platonicorum com a
dos escritos de S. João e de S. Paulo, Agostinho é levado a construir, progres-
sivamente, uma simbiose entre os elementos colhidos nas mundividências
neoplatônica e cristã”39. Mas, concretamente, em que sentido podemos en-
tender o incêndio interior da alma de Agostinho após abandonar o ceticismo
acadêmico e deparar com os neoplatônicos?
Esse “choque libertador” pode ser apresentado sob dois aspectos: teórico e
prático. Em primeiro lugar, o encontro com os “livros platônicos” represen-
tou uma enérgica reafirmação do primado do imaterial e uma estupenda
conquista da estrutura do suprassensível. Como o dito “Neoplatonismo” de
Agostinho se identifica pura e simplesmente com um platonismo, cuja base é
a distinção entre mundo inteligível e mundo sensível, não é difícil vislumbrar
como se revelou paulatinamente aos olhos do Hiponense a realidade inteligí-
vel em sua radical alteridade e transcendência em relação ao sensível, quan-
do elaborou uma ideia adequada de Deus e resolveu o problema da origem
do mal. A partir da leitura do Livro vii das Confissões, podemos afirmar que
39 P. OLIVEIRA E SILVA, Ordem e Ser. Ontologia da Relação em Santo Agostinho. Braga: Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 63–64.
85
Agostinho, depois de seu contato com os neoplatônicos, foi sempre contrário
a conceber a Deus de modo antropomórfico e assim tornou-se convicto de
que Deus era incorruptível, inviolável e imutável. A imersão de Agostinho nos
livros neoplatônicos permitiu-lhe perscrutar o mundo corpóreo em si mesmo
para subir por degraus da alma até a luz imutável da Verdade que ilumina as
mentes. Compreende-se assim que a certeza obtida por Agostinho através dos
Neoplatônicos tenha desencadeado aquele incrível incêndio narrado no Livro
ii do Contra Acadêmicos (2, 5). Em segundo lugar, como consequência direta do
aspecto teórico, deu-se a renúncia definitiva às ambições mundanas. Eis aqui,
portanto, o aspecto ético da assimilação dos livros neoplatônicos. A propos-
ta neoplatônica de um “itinerarium mentis in Deum” (Itinerário da mente para
Deus) estava indissoluvelmente associada a um processo de “conversão” à in-
terioridade e de purificação moral. Segundo tais filósofos, para chegar a um
conhecimento isento de qualquer conteúdo sensível, era preciso que a alma
deslocasse a sua atenção de qualquer atração terrena — prazeres, honras, ri-
quezas — e voltasse seu olhar, antes de tudo, para si mesma enquanto rea-
lidade imaterial e, posteriormente, aos princípios supremos (o Intelecto e o
Uno), donde ela provém. Uma vez chegada àquela contemplação, a alma teria
provado a verdade bem-aventurança, e todos os chamados “bens” desejados
comumente pelo homem lhe pareceriam desprezíveis.
Além disso, a descoberta da Verdade inteligível obrigava Agostinho a re-
alizar um projeto antigo, a saber: consagrar-se completamente à sapientia
uma vez encontrada. Nesse sentido, duas passagens emblemáticas das Con-
fissões confirmam inequivocamente o que acabamos de afirmar. A primeira
é Confissões vi, 11, 18: “Admirava-me muito, ao recordar diligentemente quão
longo fora o período do tempo decorrido após os dezenove anos, idade em
que começara arder no desejo da Sabedoria propondo-me, depois de obtê-la,
abandonar todas as esperanças frívolas e todas as loucuras enganosas das vãs
paixões”. A segunda é Confissões viii, 7, 17–18, onde Agostinho recorda seu es-
tado de ânimo depois de ter ouvido a narração de Ponticiano sobre conversão
repentina de dois funcionários imperiais. Em seguida, emerge a célebre cena
do jardim. Ecce, iam certum est: a certeza que procura, Agostinho a encontrou
86
nos neoplatônicos: nenhuma desculpa mais pode ser aduzida para nutrir
ainda esperança do mundo. Passando do ceticismo acadêmico ao neoplato-
nismo, Agostinho descortinou um possível acesso à certeza da existência da
Verdade, mas falta-lhe ainda chegar à união com a própria Verdade, mas isso
era inacessível ao neoplatonismo. Só o encontro com Cristo, Verdade e Sa-
bedoria de Deus, foi possível encontrar o que ele procurava desde o início de
sua odisseia intelectual.
Portanto, depois da experiência amarga de adesão ao maniqueísmo, Agos-
tinho encontrou o neoplatonismo40 que não somente lhe possibilitou superar o
materialismo filosófico da seita maniqueísta, à qual nunca aderira com plena
convicção, mas também lhe proporcionou uma metafísica do espírito alta-
mente desenvolvida. A leitura “de alguns livros platônicos” foi comparada a
uma espécie de vivência mística, da qual se tem uma descrição sem paralelo
na literatura universal41. Mesmo tendo encontrado no neoplatonismo o que
procurava, isto é, a certeza de que existe uma realidade suprassensível, um
mundo espiritual, e, acima desse mundo, um Deus, Verdade segura e Luz imu-
tável, Agostinho não se deu por satisfeito com isso. Como havia passado pela
terrível experiência da dúvida e da desesperança, Agostinho sentiu-se na obri-
gação de ir em auxílio de todos aqueles que pudessem sofrer semelhantes difi-
culdades. É assim que tratou de refutar o ceticismo na obra Contra Academicos.
Mesmo que Agostinho tenha utilizado certas categorias platônicas ou es-
toicas em sua obra filosófica, isso não faz dele um estoico ou um platônico.
A genialidade de Agostinho consistiu em realizar um trabalho de apropriação
e de interpretação a partir da fé cristã, segundo o “princípio de coerência”
definido por G. Madec como a identificação feita por Agostinho da Sabedoria
do Hortensius, e da Inteligência divina do platonismo com o Verbo do prólogo
joanino, o Cristo42.
40 Cf. S. POQUE, L’expression de l’anabase plotinienne dans la prédication de saint Augustin et ses
sources, Recherches Augustiniennes 10 (1975) 187–215.
42 Cf. G. MADEC, Christus, scientia et sapientia nostra. Le principe de cohérence de la doctrine au-
gustinienne, Recherches Augustiniennes 10 (1975) 57–58.
87
◊ Do “incêndio interior da alma” à conversão ao cristianismo
43 Agostinho leu alguns escritos neoplatônicos, especialmente uma parte das Enéadas de Ploti-
no na tradução do platônico cristão Mário Vitorino. Sobre o influxo do neoplatonismo em Agos-
tinho, cf. P. HADOT, L’image de la Trinité dans l’âme chez Victorinus et chez saint Augustin, Studia
Patristica 6, TU 81 (1962) 409–442.
44 Cf. I. BOCHET, Saint Augustin et le désir de Dieu. Paris, 1982, 123–130.
88
guintes: a primeira etapa é constituída pelo mundo sensível: o corpo huma-
no, a terra, o mar, o solo, a lua, as estrelas....; a segunda é a do espírito: aqui,
Agostinho evoca às vezes não somente a inteligência humana, mas também
os espíritos invisíveis; outras vezes indica também uma ascensão ao interior
do próprio espírito45; a terceira, por fim, é o próprio Ser, ou seja, Deus.
Seja como for, após sua conversão, a especulação filosófica de Agostinho
expressará o esforço de uma fé cristã que procura levar o mais longo possível
a inteligência de seu próprio conteúdo, mesmo vivendo do patrimônio neo-
platônico acumulado no primeiro entusiasmo dos anos 385–386. Portanto,
Agostinho aborda a fé cristã como homem penetrado da filosofia grega, de
seus problemas e de seus métodos.
45 Cf. AGOSTINHO, Confessiones VII, 17, 23: o movimento de interiorização se faz da anima, que é
o princípio animador do corpo considerado na função vital que ele exerce, e que em um nível já
mais elevado permitir sentir, ao animus, que designa a alma do homem, isto é, um princípio vital
que é ao mesmo tempo uma substância racional; em seguida, do animus à ratio, que assegura o
liame dos conhecimentos e, por fim, à intelligentia, que é o que há de mais eminente no homem
e que é iluminada diretamente pela luz divina.
89
jogos dialéticos, o materialismo (atomístico e estoico), o naturalismo dos Jô-
nicos. Uma filosofia arrogante e fechada em sua absoluta autosuficiência não
pode coadunar-se com a fé cristã; 2º) Uma filosofia segundo a tradição divina,
isto é, uma filosofia que admite a existência de um Deus transcendente, Cria-
dor e Providente, que reconhece a contingência e mutabilidade das coisas
e admite uma Providência que dirige tudo para o escopo final, que é o de
tornar-nos semelhantes a Deus. Essa filosofia se harmoniza com a doutrina
cristã, na qual naturalmente se insere46. Essa solução de Clemente foi assu-
mida por Orígenes e caracterizou o pensamento de todos os autores cristãos
dos primeiros séculos47.
Quando a adesão intelectual de Agostinho se transformou em submissão
da vontade à autoridade Cristo, isto é, a partir de sua conversão, ele procurou
aprofundar as relações entre fé e razão. Na solução agostiniana, encontram-se
o humanismo da filosofia clássica e a doutrina cristã em toda a vasta comple-
xidade de seus problemas. A descoberta do papel fundamental que compete à
autoridade no âmbito do cristianismo coincide com a descoberta da verdade
por excelência que sua alma havia almejado e para a qual Deus o tinha condu-
zido através de sua inquietação intelectual: do Hortênsio passara a Manés, de
Manés ao cetecismo acadêmico, do ceticismo acadêmico a Plotino e, por fim,
de Plotino a Paulo e a Cristo. No cristianismo chegou ao termo sua inquieta-
ção latente na busca da verdade: a luz do Verbo divino contém a centelha do
pensamento humano. Assim, vejamos a relação entre fé e razão comentando
o célebre texto do Sermão 43 que sintetiza a dupla atividade da razão: compre-
ender para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas).
90
o de Paulo na epístola aos Romanos (Rm 1, 18–22), onde se explica o porquê da
cólera divina (vv, 19–23): a inteligência como tal, partindo do mundo, deveria
chegar à sua causa; tornaram -se perfeitamente visíveis aos olhos da mente a
eterna força e majestade divina. Consequentemente, no plano cognoscitivo,
o homem acabou por perder a verdade que possuía. Seus raciocínios são va-
zios e seu pensamento move-se no meio das trevas.
Segundo o testemunho de Agostinho na obra “Cidade de Deus”, a filoso-
fia autêntica é aquela que reduz todo conhecimento em conhecimento de
Deus48, na medida em que todos os filósofos, a respeito do verdadeiro e su-
premo Deus, pensam ser o “autor da Criação, a Luz das inteligências, o fim
das ações, que dEle nos vêm o princípio da natureza, a verdade da doutrina
e a felicidade da vida”49. Ao tematizar a filosofia que mais se aproxima da
verdade da fé cristã, Agostinho evoca implicitamente o patrimônio filosófico
dos neoplatônicos que remontam a Deus como princípio do universo criado,
de todo conhecimento e toda felicidade: a filosofia platônica atingiu a Deus
como principium nostrum, lúmen nostrum, bonum nostrum (nosso princípio,
nossa luz, nosso bem). Entre todos os filósofos, Platão foi o primeiro a consi-
derar que “Deus é Autor de todas as naturezas, Dispensador da inteligência,
Inspirador do amor e conduz à vida feliz e boa”50.
Ao propor um filosofar segundo Deus, na medida em que se abre à transcen-
dência, isto é, quando Deus aparece como princípio da realidade física, da
vida intelectual e da vida moral, Agostinho deixa transparecer sua admiração
por Platão: “Em certos livros platônicos li, não com estas mesmas palavras,
mas provado com muitos e numerosos argumentos, que no princípio era o
48 A propósito dessa afirmação, devemos notar que o conhecimento de Deus, aos olhos de
Agostinho, nada mais será do que um prolongamento do conhecimento de si. O nosso conheci-
mento possui em si mesmo sua própria norma, que é a presença de Deus em nossa alma. Agos-
tinho falará diversas vezes, sobretudo no “De magistro”, de Cristo como o “Mestre interior”. A
fé em Deus não é senão o conhecimento de tudo a partir dessa norma, e a consciência dessa
presença como condição de verdade.
91
Verbo e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo” (Jo 1, 1).51 Essa filosofia, que
é amor da sabedoria, deve traduzir-se na prática da vida. O conhecimento
de Deus deve conduzir ao amor de Deus. O verdadeiro filósofo é aquele que
ama a Deus: “Que o filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da
filosofia, gozar de Deus, amar a Deus é ser feliz”52.
Não obstante a capacidade da razão filosófica de atingir a Deus, fora do
cristianismo, a filosofia permaneceria ineficaz e restrita a um horizonte da
realidade limitado. Daí a necessidade absoluta da fé, que tem como funda-
mento não uma autoridade humana, mas divina, que é a única autoridade
“absolutamente verdadeira, certa e sumamente fidedigna”53. A fé não destrói
os direitos da razão, mas a cura, a renova, a purifica, a revigora, tornando
assim possível o movimento teológico da razão, isto é, a inteligência da fé:
“O crer nada mais é do que um pensar acompanhado de assentimento. Nem
todo aquele que pensa, crê (...), mas todo aquele que crê, pensa; e pensa cren-
do e crê pensando”. “A fé é o primeiro passo para a compreensão (...). A fé
busca, a inteligência acha (...) A inteligência se dá como recompensa à fé”54.
A relação entre inteligência e fé se inverte, quando se passa do plano natu-
ral ao âmbito sobrenatural. No plano natural, é a inteligência que condiciona
a fé; no âmbito sobrenatural, é a fé que condiciona a inteligência. Segundo
Agostinho, ninguém pode acreditar em Deus senão passando pelo caminho
da inteligência. Assim, o segundo momento da dialética entre razão e fé está
condensada na fórmula crede ut intelligas: é preciso, antes de tudo, aderir e
acreditar no pensamento divino para poder compreendê- lo: “Intellige ut cre-
das verbum meum; crede ut intelligas verbum Dei”55.
92
◊ “Crede ut intelligas” (crê para compreender)
57 Tudo quanto de bom há na filosofia pagã é parte da verdade cristã, e como “ouro” que eles na
iniustitiadetinent. Tuum erat, ubicumque erat: era tua verdade qualquer verdade fora da verdade
cristã (Confessiones VII, 9).
58 AGOSTINHO, Confessiones I, 1.
93
se satisfaz com os bens finitos, mas almeja sempre mais, isto é, tende para o
Bem infinito. Se o homem foi plasmado por Deus e se, em seu ser profundo, é,
para o seu espírito, “desejo de Deus”, a filosofia, em seu significado último, é
procura de Deus: a natureza e a filosofia estão abertas à Revelação.
Do neoplatonismo ao Cristianismo:
“um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira”
94
2.2 Gregório de Nissa (ca. 335–394),
“O filósofo na Cátedra episcopal”
59 Não é sem razão asseverar que no século IV — do I concílio Ecumênico de Nicéia (325) ao
Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) — a Patrística grega atingiu seu ápice doutrinal;
para o mundo grego, a Patrística termina no século VIII Cf. B. SALMONA, Il filosofare nei luminari
di Cappadocia. Milano: Marzorati, 1974; S. LILLA, L’Orientegreco: daí Cappadoci allo Pseudo Dionigi,
in DAL COVOLO, E. (a cura di), Storia della Teologia1: Dalle origini a Bernardo di Chiaravalle. Roma:
Dehoniane, 1995, 285–298.
60 Citamos segundo a edição clássica que se encontra em Jacques Paul MIGNE (1800–1875) (ed.),
Patrologia Græca (= PG) 44, colunas 125–256 (texto original grego e tradução latina).
61 O influxo platônico é bem atestado na literatura sobre a antropologia de Gregório de Nissa:
Cf. J. DANIÉLOU, Platonismeetthéologiemystique. Essaisurladoctrinespirituelle de Saint Grégoire de
Nysse. Paris: Aubier, 1944; H. U. VON BALTHASAR, Présence et pensée. Essai sur la philosophie reli-
95
É, portanto, a partir desse horizonte unitário que podemos compreender o
homem, a sua estrutura metafísica, o seu papel na criação e o significado
último de sua existência em relação ao Deus criador.
A divisão da realidade:
entre mundo inteligível e mundo sensível
giueuse de Grégoire de Nysse. Paris: Beauchesne, 1988; W. VOLKER, Gregorio di Nissa filosofo e mis-
tico. Milano: Vita e Pensiero, 1993; E. PEROLI, Il Platonismo e l’antropologia filosofica di Gregoriodi
Nissa. Milano: Vita e Pensiero, 1993.
62 Cf. por exemplo, PLATÃO, Fédon 79 a–b; República 507 b–c; 509 c; Timeu 27 d–28 a; GREGÓRIO
DE NISSA, Contra Eunomiumlibri, In GregoriiNysseni Opera I (ed. W. JAEGER). Leiden:Brill, 1960,
105, linhas 19–20.
96
Gregório de Nissa
97
na Explicatio apologetica in Hexaemeron, a transformação dos elementos uns
nos outros se realiza segundo uma lei bem precisa, que “mostra uma mudan-
ça de um elemento no outro como a gênesis daquele no qual sucedeu a mu-
dança e a restauração (apokatástasis) progressiva a partir daquilo que era na
origem”64. Em consequência, os elementos se organizam no universo através
de duas espécies de movimentos: o movimento local (que corresponde à sua
mutabilidade [tropē] qualitativa) e a mudança de ordem (que corresponde à
estabilidade [stásis] da sua hierarquia imutável). Esse movimento cíclico, que
é ao mesmo tempo uma espécie de imutabilidade, torna o cosmo mutável
(treptón), opondo-o, portanto, a Deus e distinguindo-o dEle, que é o único
imutável (átreptos).
Particularmente significativa é a tese de Gregório de Nissa que deriva des-
sa concepção do caráter cíclico do movimento dos elementos. O mundo da
matéria, da realidade cósmica, é o âmbito da eterna repetição, de um mo-
vimento cíclico que continuamente retorna sobre si mesmo, sem que haja
algum progresso, alguma novidade: “tudo permanece idêntico sem mudar e
transformar-se em nada de novo”65. De fato, tudo o que acontece no cosmo
sensível, permanece para sempre nos limites inerentes a este desde o início,
e o seu incessante vir a ser não é senão um fadigoso e insensato movimento
de retorno a este início, em um “ciclo que se desenvolve ininterruptamente
sempre do mesmo modo”66.
“Este fadigoso curso do sol jamais terá fim, nem jamais cessará o eterno
suceder-se de luz e trevas, e a terra condenada a permanecer firmemen-
te imóvel, e ininterruptamente fadigam os rios que desembocam no mar
insaciável, e o mar, por sua vez, em vão recebe o afluxo das águas, aco-
lhendo em seu seio aquele eterno afluir sem jamais aumentar”67.
98
Quando Gregório de Nissa aplica essa forma de movimento cíclico que ca-
racteriza o cosmo sensível à questão antropológica acerca da liberdade do
homem, sem dúvida emerge um aspecto fundamental de seu pensamento
filosófico: se a alma, de fato, em vez de abrir-se ao Infinito transcendente,
direciona os próprios desejos para o mundo da matéria, então ele torna-se
vítima de sua própria lei, isto é, o homem reproduz em si mesmo o eterno re-
torno do idêntico, esse movimento cíclico entre os opostos sem progresso e
sem novidade: é a miragem do desejo que sempre renasce e sempre se esvai.
Assim procedendo, a alma imerge em um movimento ilusório que se asse-
melha àqueles que sobem através de lugar arenoso: “mesmo que caminhem
com grandes passos fadigam sem resultado, porque os pés deslizam sem-
pre mais pela areia, de modo que eles se movem, mas o movimento não os
faz progredir”68. Essa imagem exemplifica o movimento sem término e sem
progresso daquele homem que permanece ligado exclusivamente ao mundo
sensível e ao ciclo que o caracteriza.
68 GREGÓRIO DE NISSA, De vitaMoysis, in GregoriiNysseni Opera VII/1 (ed. H. MUSURILLO). Lei-
den: Brill, 1964, 50, 2ss.
99
ou do outro: de Deus, através de sua natureza divina, e dos bens terrenos atra-
vés da sensação que é da mesma espécie desses bens”70.
Considerando o homem em uma posição intermediária entre o mundo
sensível e Deus — “a natureza humana está no meio entre as duas extremida-
des opostas, entre a realidade divina e incorpórea e a vida irracional dos ani-
mais”71 —, Gregório evoca um tema caro à doutrina geral no Neoplatonismo:
“a alma humana está no confim (methórios) entre duas naturezas, das quais
uma é incorpórea, inteligível e incorruptível; a outra, corpórea, material e
irracional”72. Para Gregório, o homem é methórios entre o mundo inteligível
e o mundo sensível, não enquanto representa uma transição de um ao outro,
mas enquanto representa as características opostas e a sua liberdade deve
escolher entre elas. Uma vez purificado de sua adesão à vida presente e ma-
terial, a alma se volta com a virtude para o divino ao qual se assemelha. Acer-
ca do texto citado anteriormente, o que convém asseverar não é tanto nem
principalmente o fato de que o homem pertence às duas esferas, mas, antes
de tudo, que é livre para inclinar a uma parte ou a outra parte. É, portanto,
a liberdade que prevalece no texto em questão. Tal liberdade é considerada
em sua qualidade essencial: voltar-se ora para o sensível, ora para o inteligí-
vel. Dentro do liame existente entre a oposição matéria/espírito e bem/mal,
que é de origem platônica, Gregório introduz um novo elemento: o termo-
methórios, quando atribuído ao homem, não indica mais a sua condição de
colocar-se nos confins entre matéria e espírito, mas a condição da liberdade
como tal, na sua qualidade de constituir a fronteira entre o bem e o mal73. Nos
sermões De beatitudinibus, é valorizada a incompatibilidade absoluta entre
bem e mal: longe de indicar uma região intermediária, aqui se sustenta que
methórios indica a essência de todo intermediário!74
73 Cf. J. GAÏTH, La Conception de laliberté chez Grégoire de Nysse. Paris: Vrin, 1953
74 Cf. GREGÓRIO DE NISSA, De beatitudinibus, PG 44, 1193–1302 ou In GregoriiNysseni Opera VII
(ed. J.F. CALLAHAN). Leiden: Brill, 1992; cf. também S. LILLA, NeuplatonischesGedankengut in den
‘Homilienüber die Seligpreisungen’ Gregors von Nyssa. Leiden: Brill, 2004.
100
A expressão methórios
A partir da divisão mais geral assumida por Gregório de Nissa entre mundo
sensível e mundo inteligível, emerge outra divisão, a saber: a distinção entre
incriado e criado. Nesse sentido, existe um evento metafísico fundamental
para o pensamento filosófico-teológico de Gregório de Nissa: a passagem do
não-ser ao ser em virtude do ato criador de Deus. Em outras palavras: o mun-
do da matéria é caracterizado pelo fato de ser essencialmente limitado: “o
peso, a figura, a superfície, a forma” são os confins entre os quais está cir-
cunscrita a matéria. A substância inteligível e imaterial, ao contrário, “escapa
a todo confim, porque não é limitada por nada”. Se a matéria se caracteriza
pela finitude, a realidade inteligível e espiritual se apresenta como aquilo
que é infinito e ilimitado. É aqui que Gregório de Nissa explica o significado
dessa infinidade, introduzindo uma distinção dentro da realidade inteligível
entre incriado e criado:
101
“Dividamos ainda uma vez a substância inteligível: uma é incriada e
criadora de tudo aquilo que existe, e é sempre aquilo que é, e sempre
permanece igual a si mesma, superior a todo acréscimo, não admite
nenhuma diminuição no bem; a outra, ao contrário, foi conduzida ao
nascimento por meio da criação e sempre volta o seu olhar à causa
primeira dos seres, e continuamente é conservada no bem graças à
participação naquele que é superior; em um certo sentido esta é sem-
pre criada, enquanto se transforma na condição melhor através de
seu crescimento naquilo que é bom, de modo que tampouco para esta
substância se consegue discernir um limite, nem se pode delinear um
confim ao seu crescimento no bem”75.
75 GREGÓRIO DE NISSA, In CanticumCanticorum, in GregoriiNysseni Opera VI, 173, 17; 174, 1ss
76 Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunomiumlibri, in GregoriiNysseni OperaI. Leiden: Brill, 1960,
133, 28–29; I/2, 107, 20–108, 1; 171, 4–5; 209, 19–20.
102
A tropē como “mudança de progresso”
77 GREGÓRIO DE NISSA, In Ecclesiaten Homiliae, in Gregori Nysseni Opera V (ed. P. ALEXAN-
DER), 412, 14.
103
está somente a adiástatos physis de Deus78; somente em Deus, de fato, está
excluída toda diástasis e, em primeiro lugar, toda chronikòn diástēma.
Enquanto caráter essencial da finitude do ser enquanto, criado, o diástē-
ma “torna-se autoconsciência no homem”, isto é, experiência da cisão do ser
criado na separação em passado, presente e futuro, ou seja, na lembrança, na
esperança e na contínua experiência da morte e do nada, porque “a natureza
tende em tudo para a morte, e a morte cresceu estreitamente junto com a vida
que procede no tempo”79; e o tempo, em seu inapreensível fluir, arrasta con-
sigo em direção ao nada tudo aquilo que nele passa, de modo que tudo aquilo
que incide no horizonte cognoscitivo do homem é delimitado, de ambos os
lados — archē e telos — pelo nada. Nessa experiência, o homem toma consci-
ência da radical finitude da própria existência, da impossibilidade de sair dos
limites para ela determinados, de transcender o diástema.
O indissolúvel liame criatura/mutabilidade, que permite distinguir ra-
dicalmente o incriado do criado, é também aquilo que permite descobrir a
possibilidade do mal. O ser incriado [Deus], sendo imutável, não pode estar
sujeito ao mal. A sua autosuficiência no ser comporta a sua autonomia no
bem: não pode adquirir perfeição uma vez que possui toda perfeição, e dessa
perfeição não pode perder nenhum traço, porque nele a perfeição é idêntica
à própria essência. Inversamente, uma vez que o ser criado [por exemplo, o
homem,] não possui a existência por natureza, disso resulta que não possui
tampouco o bem por natureza; portanto, a possibilidade de perder o bem lhe
é congênita. A liberdade criada implica, portanto, uma intrínseca instabili-
dade que lhe impede de ser sempre imóvel, e que faz da transformação a lei
78 O diástema, enquanto caráter ontológico que determina a finitude do ser criado, compreende
toda a criação, tanto sensível como inteligível.
79 GREGÓRIO DE NISSA, De mortuisoratio, In GregoriiNysseni Opera IX (ed. G. HEIL). Leiden: Brill,
1967, 51, 18ss: “Não é inútil acrescentar ainda ao discurso o seguinte (mesmo que possa parecer
fora de toda lógica): que a natureza em tudo tende à morte é que a morte cresceu estreitamente
junto com a vida que procede no tempo. De fato, uma vez que o passado da vida se move sempre
em direção ao futuro e não volta jamais para trás, é a morte que segue sempre inseparavelmente
a energia vital. Propriedades da morte são a inatividade e a ausência de vida, e estas seguem
sempre imediatamente a energia vital. É, portanto, em tudo conforme à verdade dizer que a
morte está estreitamente ligada à vida”.
104
mesma do seu ser. E aqui a mudança é essencialmente a atitude para escolher
entre o bem e o mal.
Por fim, ao distinguir “imutabilidade” de Deus e mutabilidade da criatu-
ra, Gregório de Nissa elaborou uma concepção do espírito criado que define
esse último em sua essencial referência a Deus, mas que ao mesmo tempo
mantém plenamente a distinção entre a criatura finita e o Deus incriado e
infinito. O ato criador de Deus constitui a realidade última do ser da criatu-
ra: como recebeu de Deus a existência, assim o espírito criado que se abre à
comunicação dos dons da graça de Deus é por ela “continuamente criada”,
na medida em que recebe um perpétuo e infinito crescimento no ser. Se se
afasta de Deus, o seu crescimento no bem se detém e torna-se natureza. O
espírito criado não é, portanto, senão a faculdade de abrir-se ou de fechar-se
à comunicação dos bens de Deus; mesmo no grau mais alto de sua ascensão
para Deus, o espírito criado permanece sempre “vaso que acolhe”, ou seja,
“uma coisa cuja realidade é precisamente só essa ‘abertura”, enquanto pode
possuir aquilo que é “comunicado” (mesmo que a plena posse deste último
constitui a plena realização da sua natureza) sempre e só como Dom da graça
de Deus e não por força da sua natureza80.
105
O HOMEM COMO VÉRTICE E COROAMENTO
106
107
Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (séc. V)
108
módulo IV
Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (séc. V)
109
110
A quarta SEMANA versa sobre duas figuras centrais no limiar da Idade Média
e profundamente influentes ao longo de todo período medieval (por exem-
plo, o Dionísio Pseudo-Areopagita1 é um dos autores mais citados na Suma
Teológica de Tomás de Aquino no século xiii). De um lado, aquele que é a
ponte entre a cultura do mundo clássico e a do mundo medieval: SEVERINO
BOÉCIO (480–524). Segundo o testemunho do célebre medievalista Martin
Grabmann, “depois de Agostinho foi Boécio, de todos os escritos latinos da
Patrística, o que mais influenciou na Escolástica, especialmente no desenvol-
vimento do método escolástico”2. Considerado como o verdadeiro introdutor
de Aristóteles no Ocidente, Boécio pode ser chamado com razão “o primeiro
escolástico”. A obra filosófico-teológica de Boécio marca o início do que se
convencionou chamar cultura medieval e cristã. Quanto ao tema específico
deste módulo, o leitor será iniciado em uma das questões mais importantes e
complexas da Idade Média: o problema dos Universais. A via de acesso a essa
célebre questão só foi possível graças ao legado filosófico de Boécio, cujas
traduções (e comentários) constituíram o único material aristotélico conhe-
cido pela Idade Média (a chamada Logica Vetus) até que nos séculos xii e xiii
se traduziu o restante do Corpus Aristotelicum.
De outro lado, a figura de DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Ele chama-se
“Pseudo” porque se trata de escritos atribuídos a Dionísio Areopagita, mas
que não é aquele que viveu no século I da era cristã, mencionado em At 17,
343 e convertido por S. Paulo ao cristianismo. Por diversos motivos mais téc-
nicos, a crítica moderna estabeleceu que se trata de um autor anônimo pe-
las seguintes razões: a) os escritos areopagíticos foram compostos entre 482
1 DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, Dos Nomes Divinos. Introdução, tradução e notas de Bento Sil-
va Santos. São Paulo:Attar Editorial, 2004. Cf. http://www.attar.com.br/catalogo.php
2 Cf. M. LLUCH BAIXAULI, La sintesis teologica de Severino Boecio. Sobre los orígenes de la Teología
medieval. Pamplona, Universidad de Navarra, 1991, 27, nota 1.
3 “Todavia alguns homens aderiram a ele e creram: entre eles Dionísio, o Areopagita, e uma
mulher chamada Damaris, e com eles ainda outros” (At 17, 34).
111
(data em que Zenão emanou o Henotikón) e o início do século vi4; b) o autor
é de origem síria5; c) o autor frequentou provavelmente a escola de Atenas
sendo discípulo de Proclo (410–485 d. C.) e de Damáscio, último dirigente da
mesma até seu fechamento no ano 529 por parte de Justiniano6.
5 Em Hierarquia Eclesiástica V, II, 509 A–509 C, Dionísio descreve a ordenação do bispo, do pres-
bítero e do diácono de forma assaz semelhante àquela que se encontra no De ordinationibus da
liturgia siríaca editada e traduzida pelo Patriarca de Antioquia, Inácio Efrem II Rahmani.
6 Em Sobre os Nomes Divinos II, 648 B, Dionísio atribui a seu mestre Hieroteu uma obra intitula-
da Elementos de Teologia. Tal é o título de uma conhecida obra de Proclo. Hieroteu não seria outro
personagem senão o próprio Proclo.
112
113
114
1
A transição do
mundo antigo ao medieval:
Boécio, “o último dos romanos e
o primeiro dos escolásticos”.
Anicio Manlio Torcuato Severino Boécio (ca. 480–524), principal ponto de
contato entre a cultura do mundo clássico e a do mundo medieval7, viveu
entre os anos decisivos da queda do Império Romano (476) e a formação,
através de Teodorico o Grande, do reino ostrogodo de Itália (526). Boécio fez
filosofia e teologia em um mundo culturalmente dissolvido e outro que ain-
da não havia se realizado. O que caracterizava os intelectuais de seu tempo
era o esforço reconpilador: reunir, classificar, sistematizar. É nesse contex-
to que compreendemos a grandeza de Boécio para as gerações posteriores.
Seu grande projeto intelectual era a tradução e comentário de toda a obra de
Aristóteles e de Platão com a seguinte intenção: as doutrinas de ambos não
se opunham, mas se completavam entre si nas questões mais fundamentais.
De Boécio chegaram até nós três gêneros de escritos — científicos, filosóficos
e teológicos —, dos quais a obra mais conhecida é a Consolação da Filosofia
(tradução brasileira: SP; Martins Fontes), escrita no cárcere, quando aguar-
dava a sentença de morte da parte do rei Teodorico. A obra é um verdadeiro
testamento filosófico, político, moral e espiritual, na qual se se entrelaçam
harmonicamente a tradição greco-latina e sua visão cristã.
115
Mulher como símbolo da Filosofia
116
Leia prosa I de BOÉCIO, Consolação da Filosofia (Extrato de fontes das “Filo-
sofias Medievais”, nº 06) e responda: como Boécio descrece seu encontro
com a Filosofia?
8 Cícero (106–43 a.C.) traduziu os termos técnicos da lógica grega para o latim, e sua tentativa
assinalou o primeiro passo para a recepção da doutrina lógica grega na cultura intelectual latina.
Mário Vitorino (= 370 d.C.) traduziu as Categorias e o Peri hermeneias de Aristóteles.
9 Foi Tiago de Venezia que, no último quarto do século XII, traduziu os Segundos Analíticos, per-
mitindo assim que o mundo latino chegasse ao conhecimento completo do Organon aristotélico.
117
século xii e inícios do século xiii, o problema dos Universais era puramen-
te ontológico10. Se Boécio não foi um tradutor neutro que teria reconstruído
alguns conteúdos objetivos sem assimilação subjetiva, é plausível afirmar
que a tradição clássica assumiu, com sua de obra de tradutor, intérprete e co-
mentador, significados novos e originais. Em relação à nossa questão, a pre-
ocupação medieval a propósito do status ontológico dos Universais surge — à
margem do projeto teórico de Porfírio e contra a sua intenção expressa, mas
a partir de seu texto — das observações de Boécio acerca de uma passagem
da Isagogē, na qual o próprio Porfírio abandona o problema como irrelevante
em um contexto lógico11.
O objetivo desta Semana consiste, primeiramente, em examinar a Querela
dos Universais com base no seguinte texto de Boécio: Segundo Comentário sobre a
‘Isagogē’ de Porfírio (Commentarium in Isagogen Porphyrii), em 510–511. Em segun-
do lugar, comentar brevemente algumas passagens da obra mística de Dionísio
Pseudo-Areopagita. Mas, para compreender a importância de Boécio, é preciso
remontar aos dados textuais, aos esquemas conceituais e às interferências de
campos teóricos que estão na origem da Querela medieval dos Universais: o pla-
tonismo com sua teoria das ideias, a ciência aristotélica que procurou explicar a
universalidade presente na cognição humana, o aspecto semântico que decorre
desse projeto aristotélico12, o neoplatonismo como tentativa de conciliar platoni-
mso e aristotelismo, o vocabulário estoico do universal, etc.
10 É só por volta do final do século XII e inícios do século XIII que todo o corpus aristotélico
estará disponível ao mundo latino: primeiramente, o resto do Organon nas traduções de Boécio
(Primeiros Analíticos, Tópicos, Refutações Sofísticas) e de Tiago de Venezia (Segundos Analíticos, por
volta de 1125–1150); em seguida, os libri naturales, ou seja, entre outros, a Physica, o De anima, o
De caelo e a Metaphysica. Esses novos textos lógicos disponíveis são chamados “Logica nova”, e
os nomes Aristóteles novus e “Segundo Aristóteles” designam, por sua vez, o conjunto de escritos
científicos aristotélicos traduzidos do grego ou do árabe doravante acessíveis.
11 Cf. S. EBBESEN, La logica scolastica dell’antichità como fonte della logica scolastica medievale, em
KRETZMANN, N.; KENNY, A. & PINBORG, J. (ed.) La logica nel medioevo. Milano, Jaca Book, 1999, 22–23.
12 “É natural perguntar exatamente o que os universais abstraídos na mente são, o que é para
eles o existir na mente, como eles estão relacionados com seus particulares, qual é seu real fun-
damento nesses particulares, qual é seu papel na constituição de nosso conhecimento universal
e como eles contribuem para a codificação e comunicação desse conhecimento nas diversas
118
Em seus dois comentários as respostas dadas às questões de Porfírio nor-
teiam-se pela preocupação da verdade e pelo respeito dos antigos13. No segun-
do comentário (editio secunda), Boécio revisa, primeiramente, os argumentos
pró e contra a existência das entidades universais e, em seguida, oferece uma
teoria que ele atribui a Alexandre de Afrodísia, uma espécie de teoria chama-
da de “realismo moderado”, segundo a qual não existem entidades universais
na ontologia do mundo; mas existiria uma base objetiva, não arbitrária, para
a formação de nossos conceitos universais e gerais sobre o mundo. A solu-
ção de Boécio pode ser resumida no seguinte slogan: os gêneros e as espé-
cies só “existem nos indivíduos, mas são pensados como universais”. Assim,
por exemplo, Sócrates e Platão, cada um deles tem sua própria humanidade
e sua própria animalidade, de sorte que existem duas humanidades e duas
animalidades. Elas são, obviamente, “múltiplas e não uma só coisa numeri-
camente”. Entretanto, através de um processo de abstração, ou o que Boécio
algumas vezes denominou de “divisão”, a mente apreende numericamente
essas distintas humanidades como uma só coisa universal, e assim também
em relação às animalidades ao nível do gênero14. Mas, para explicitar essa
solução dada ao problema dos Universais, é preciso apresentar o que vem a
ser propriamente essa questão tipicamente medieval a partir de suas origens
na filosofia antiga.
linguagens humanas. Essas questões dão um novo aspecto ao problema dos universais, ou seja,
um aspecto semântico”: G. KLIMA, Naturezas: O problema dos universais, in McGRADE, A.S. (org.),
Filosofia Medieval. Aparecida (SP): Editora Ideias & Letras, 2008, 241.
13 Cf. L. M. DE RIJK, Boèce logicien et philosophe: ses positions sémantiques et as métaphysique de
l’être, in OBERTELLO, L. (ed.) Atti. Congresso internazionale di studi boeziani (Pavia, 5–8 ottobre
1980). Roma, Herder, 1981, 141–156.
14 Cf. também a síntese de P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais. A perspectiva de Boécio,
Abelardo e Ockham. Porto Alegre, Edipucrs, 2001, 31–39.
119
120
2
A Querela dos Universais
Uma apresentação bastante simples e corrente do que se convencionou cha-
mar “o” problema dos Universais na Idade Média consistiria na questão de
determinar o que designam os termos universais da linguagem (por exemplo,
“homem” ou “rosa”) em oposição aos particulares (“João” ou “Pedro”). Des-
sa confrontação teríamos três respostas clássicas, a saber: “ontológico-me-
tafísica” (coisas), “lógico-gnosiológica” (conceitos) e “linguística” (palavras).
A essas soluções tradicionais se associam muitos dos autores que se ocupa-
ram do problema dos Universais, que foram rotulados, ao mesmo tempo e
em de diversas maneiras, como “realistas, “conceptualistas” e “nominalis-
tas”. Exemplos dessas classificações podem ser encontrados principalmen-
te em Severino Boécio no século VI, em Pedro Abelardo no século XII e em
Guilherme de Ockham no século XIV, bem como em muitos outros lógicos e
teólogos da Idade Média.
Ora, a estrutura problemática imposta aos Universais pela tríplice posição
doutrinal do realismo, do conceptualismo e do nominalismo é a que a esco-
lástica neoplatônica tardia (séculos v e vi), impôs, primeiramente, como cha-
ve de leitura, às Categorias de Aristóteles. A questão que se coloca, portanto, é
a seguinte: como e por quais razões essa chave de leitura passou das catego-
rias aos Universais? Entre os comentadores antigos de Aristóteles, existiam
três teorias acerca da natureza das categorias: em primeiro lugar, as catego-
rias são consideradas como fwnaiv, isto é, “sons vocais”; em segundo lugar,
como o[nta, seres ou “entes”; em terceiro lugar, como nohvmata, “noemas” ou
noções, ou, como diríamos hoje, “objetos de pensamento”15. Essa tríplice de-
finição dada às categorias reapareceu na Idade Média, e a evolução dessa trí-
15 Esta tripartição aparece em CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromates VIII, 8, 23, 1 (ed. Stählin, III,
94, 5–12), que distingue o[novmata (nomes), nohvmata (conceitos, dos quais os nomes são os símbolos)
e uJpokeivmena (substratos reais, dos quais os conceitos são, em nós, as impressões ou marcas).
121
ade — mediante a adaptação de vocabulário e das flutuações terminológicas
(sob a forma de palavras/nomes, conceitos e coisas)16 — sugere que por trás das
entidades historiográficas (realismo, conceptualismo, nominalismo) exis-
tem escolhas e articulações disciplinares (ontologia, psicologia, semântica)
que condensam todas as questões conexas e verdadeiras do problema dos
Universais: da teoria da percepção à teoria da cognição.
16 O termo fwnaiv, traduzido por voces (sons vocais) deu lugar progressivamente a outros termos:
sermo, nomen (em Abelardo), terminus (coma lógica “terminista” do século XIII) e terminus vocalis
(com os nominalistas do século XIV); o termo nohvmata foi substituído por conceptus, intentiones
ou por outras expressões mais próximas de Aristóteles, tais como affectiones ou passiones ani-
mae, ou terminus mentalis no século XIV; enfim, o próprio vocábulo o[nta deu lugar, portanto,
à res (coisas). Cf. A. DE LIBERA, La querelle des universaux. De Platon à la fin Du Moyen Age. Paris:
Seuil, 1996, 48s.
17 Um exemplo privilegiado do liame entre a problemática dos Universais e a doutrina das
categorias é a controvérsia entre Abelardo e Alberico sobre a categoria de substância. Ambos
interpretam diferentemente o texto de Boécio, e a posição que cada um assume mostra as ambi-
guidades do complexo aristotélico-neo-platônico na história medieval dos Universais. Cf. J. MA-
RENBON, Vocalism, Nominalism and the Commentaries on the ‘Categories’ from the Earlier Twelfth
Century, Vivarium 30/1 (1992) 51–61; cf. também do mesmo autor, The Philosophy of Peter Abelard.
Cambridge, Cambridge University Press, 1997.
122
Idade Média]. Paris: Éditions du Seuil) sobre a questão e que influenciaram
decisivamente o debate posterior sobre os Universais. A questão dos Univer-
sais não é um problema de certo modo autônomo ou autossuficiente, mas
fazia parte de um complexo de problemáticas filosóficas interdependentes:
não somente a problemática relativa ao estatuto dos gêneros e espécies, mas
também a da individuação, estreitamente associadas, e outras menos próxi-
mas, como a do objeto da definição, a relação entre abstração e intuição in-
telectual e o conhecimento do indivíduo18. O célebre problema medieval dos
Universais foi, portanto, questionado por Alain de Libera em sua “unidade
diacrônica e sincrônica” 19. Segundo este último, a “querela dos universais, tal
como é retomada no século XIV, aparece como a reativação da oposição que,
para nós, estrutura toda a história do pensamento antigo: a crítica de Platão
por Aristóteles, mas ela faz isso de uma maneira particular, que explica a sua
especificidade”20.
Considerando a amplitude da questão na Idade Média bem como a im-
portância do problema para quem estuda a filosofia medieval, naturalmente
devo restringir minha abordagem. Portanto, na introdução ao problema dos
Universais, meu objetivo consistirá, em primeiro lugar, em uma visão geral
do mesmo com base na definição de “universal” (A) a partir duas fontes da
problemática na filosofia antiga (a) e da exposição sucinta dos cinco “predi-
cáveis”, dos quais se destacam “gênero” e “espécie”, na medida em que se co-
locou o problema do estatuto das realidades correspondentes a esses termos
(b) em segundo lugar, apresentarei o texto de Porfírio de Tiro e comentarei os
diferentes modos de existência possível do universal (B). Em terceiro lugar,
apresentarei uma síntese sobre a solução dada por Boécio em seus comentá-
rios ao texto de Porfírio. Esses comentários se tornaram determinantes para
a recepção da querela na Idade Média (C)21.
19 C. FERNÁNDEZ, Los universales: una revisión a la luz de la historiografia reciente, Studium. Filo-
sofia y Teología 30 (2012) 412.
123
2.1 O que é um “Universal”?
22 F. BERTELLONI, Estudio preliminar, in FRORENCIA MARCHETTO, M. & TURSI, A., La cuestión
de los Universales en la Edad Media. Buenos Aires: Ediciones Winograd, 2010, 12.
24 PORFÍRIO, Isagogē 17–21; ABELARDO, Logica Ingredientibus 18–20: “Aristóteles define o univer-
sal como ‘aquilo que pode ser naturalmente apto para ser predicado de muitos seres’”.
124
A predicação é a noção-chave que permite distinguir particular, ou indiví-
duo, e universal: o primeiro é predicado de um só; o segundo, de vários. As-
sim, por exemplo, “animal” é um universal com relação às diferentes espécies
animais; “homem” é um universal relativamente a Sócrates, Platão, etc. Na
versão de Boécio da obra De Interpretatione de Aristóteles há uma passagem
onde se fala de res para referir-se à noção de universal em uma proposição.
26 BOÉCIO, Comentário ao “Da interpretação” de Aristóteles, Pars Prior, Edit. C. Meiser, I, 7 (De
interpretatione 7, 17 a 38 e SS).
125
plinas proporcionaram técnicas de análise e um vocabulário técnico que
permeiam os escritos teológicos, filosóficos e científicos. Ao nível prático, a
lógica proveu o treinamento necessário para a participação nas disputas que
eram a característica central da instrução medieval, e cuja estrutura — com
argumentos pró e contra uma tese, seguida de uma solução - está presente em
muitas obras escritas. Ao nível teórico, a lógica, como outros assuntos, en-
volveu o estudo de textos escritos mediante leituras e comentários escritos.
O curriculum dos estudos lógicos no século xii era baseado fundamentalmen-
te na Logica vetus (a Isagogē de Porfírio, as Categorias e o Sobre a Interpretação
de Aristóteles), e o paradoxo que emerge é o seguinte: a tradição latina dispôs
por longo tempo só dessa Antiga Lógica para tratar de uma questão que, se-
gundo o próprio Porfírio, a lógica como tal não podia nem devia assumir28.
A segunda fonte do problema dos Universais repousa na noção de univer-
sal de comunidade. A possibilidade de predicação a vários é salvaguardada na
medida em que esses vários têm algo de comum. Por exemplo, os homens in-
dividuais possuem “algo de comum”: um universal como a espécie homem.
Em consequência, podemos formular proposições predicáveis deste gênero:
“Pedro é homem”; “João é homem”, etc. Eis, portanto, a noção de universal
com base em seu caráter de comunidade:
28 Cf. E. J. ASHWORTH, Logic Medieval, em CRAIG, E. (ed.) Encyclopedia of Philosophy 5. London-
-New York, Routledge, 1998, 746–759.
126
A noção de comunidade já está presente na Metafísica de Aristóteles. Boé-
cio utiliza a expressão aliquod commune, o que permite evocar o aspecto me-
tafísico do problema refutado posteriormente por Guilherme de Ockham:
como uma coisa pode ser comum a várias, sem que se caia nas absurdidades
do platonismo da postulação da subsistência dos gêneros e das espécies fora
da mente? Acontece, porém, que nos textos de Boécio o caráter predicativo
dos universais deriva da noção de comunidade do universal: aquilo que por
semelhança é comum a muitos e está em muitos. Afirmarmos que Pedro,
Paulo e João e tantos outros indivíduos são homens (aspecto lógico — pre-
dicabilidade) só é possível porque algo de comum — a humanidade — se en-
contra em cada um deles (aspecto ontológico — noção de comunidade). Essa
noção de comunidade será posteriormente objeto das críticas de Ockham:
a humanidade é considerada como algo universal que é comum e intrínseca
tanto a Pedro quando a Paulo, porém distinta realmente deles, do ponto de
vista numérico. Portanto, Ockham invalida totalmente o universal de comu-
nidade, conservando, porém, o universal de predicação em sua interpretação
lógica31: em nome do princípio da singularidade do real, Ockham não admite
qualquer tipo ou modo de existência de uma natureza universal nos singula-
res, ou seja, extra animam. Com base em vários argumentos, Ockham mostra
as incompatibilidades e contradições em que incidem os defensores da no-
ção de comunidade de universal: indica-se a contradição que se estabelece
entre a noção de numericamente um (singular) e a noção de comum a vários
(universal), caso tais noções aconteçam simultaneamente na res universalis:
“Se a natureza é uma coisa, então é singular. Se, por outro lado, a natureza é
comum, então é universal. Ora, se a natureza é singular, então não é comum. Mas,
essa última afirmação contradiz aquilo que os defensores da opinião examinada
sustentam, ou seja, que o universal é algo comum nas coisas fora da alma”32.
31 No final do século XIV, WYCLIF distingue entre universal de causalidade e o de representação
do universal de comunidade.
127
A querela dos Universais apresenta vários aspectos discutidos por lógicos
e teólogos na Idade Média tardia, aspectos que envolvem questões funda-
mentais da ontologia, da cosmologia e da psicologia. Mas a intenção aqui se
limita apenas a ilustrar a complexidade da querela para apresentar o “pretex-
to” do problema no questionário Porfírio de Tiro e sua recepção nas tradu-
ções e comentários de Boécio.
128
“acidentalmente” indica algo que não é da própria essência do sujeito; a atri-
buição necessária faz a distinção entre o próprio e o acidente. Por exemplo:
“A capacidade de rir” está em todo homem e só na espécie humana. Em ou-
tras palavras: é próprio do homem poder rir.
33 Sobre a “enfermidade” de Porfírio, cf. R. GOULET, Variations romanesques sur la mélancolie de
Porphyre, Hermes 110 (1982) 443–457
34 Cf. H. D. SAFFREY, Pourquoi Porphyre a-t-il édité Plotin?, em BRISSON, L.; CHERLONNEIX ET
ALII (ed.) Porphyre. La vie de Plotin II: Études d’introduction, texte grec et traduction française, com-
mentaire, notes complémentaires, bibliographie. Paris, J. Vrin, 1992, 38ss.
129
mestre — que as considerava só do ponto de vista ontológico35 — em seu en-
sinamento Sobre os gêneros do ser, conduziram-no a um posicionamento de
defesa da obra aristotélica: Porfírio repropõe a doutrina das Categorias e as
discute do ponto de vista lógico, considerando-as de grande utilidade. Assim,
em Lilibeu, Porfírio compôs dois comentários às Categorias, nos quais defen-
de “tudo aquilo que Plotino criticara em seu tratado” Sobre os gêneros do ser
e, nesse mesmo espírito, redige a Isagoge. Esse opúsculo é um texto que se
insere no clima coletivo de reação dos discípulos de Plotino à sua crítica das
Categorias de Aristóteles. Esse aspecto não platônico da Isagogē é paradoxal
e corresponde a um projeto intelectual evidenciado por Ch. Evangeliou, S.
Ebbesen e Alain de Libera36.
Ainda que Porfírio tenha escrito muitas obras na intenção de conciliar Pla-
tão e Aristóteles, sua importância reside na “recepção” medieval da Isagogē,
em uma de cujas páginas célebre passagem dá origem a conhecida querela
dos Universais. O principal responsável pelo surgimento dessa disputa filo-
sófica são as traduções latinas e os comentários de Boécio (ca. 480–524). Na
última fase de sua vida, Porfírio conduziu uma áspera polêmica contra os
cristãos, da qual se originou o tratado Contra os cristãos (em 15 livros, dos
quais existem apenas poucos fragmentos). Em suma, o espírito especulativo
de seu mestre Plotino foi predominante em Porfírio, mesmo que este tenha
feito uma concessão à teurgia em sua obra Sobre a volta da alma37. Morre em
Roma provavelmente no ano de 305.
35 Acerca do sistema aristotélico das categorias em Plotino, ver G. REALE, História da Filosofia
Antiga 4: As Escolas da Era Imperial. São Paulo, Loyola, 1994, 471s: “O sistema aristotélico das cate-
gorias não vale para o incorpóreo”. Plotino estabelece, portanto, as cinco Ideias generalíssimas do
Sofista de Platão como tábua das categorias do incorpóreo:
36 Cf. Ch. EVANGELIOU, Aristotle’s Categories and Porphyry. Leiden, E.J. Brill, 1988 (21996), 164–
181; S. EBBESEN, Porphyry’s Legacy to Logic: a Reconstruction, em SORABJI (ed.) Aristotle Transfor-
med. The Ancient Commentators and Their Influence. Ithaca/New York, Cornell University Press,
1990, 141–171; A. DE LIBERA & A.-Ph. SEGONDS, Porphyre. Isagoge. Paris, J. Vrin, 1998, VII–XII.
37 Segundo a revalorização dada ao Porfírio filósofo no âmbito da metafísica, ele admitiu a eficá-
cia da teurgia (=invocar os deuses e agir sobre eles mediante o uso de símbolos) em nível infe-
rior, embora a tenha criticado à luz do princípio da impassibilidade divina e da indiferença dos
deuses a qualquer tipo de ação humana (cf. G. REALE, História da Filosofia Antiga 4, 558ss. 546ss).
130
Uma vez considerada brevemente a vida de Porfírio, passemos ao exame
sucinto da sua obra em questão: a Isagogē.
A obra intitulada Isagogē de autoria de Porfírio de Tiro foi escrita com toda
probabilidade na Sicília entre os anos 268 e 270 durante o período sucessivo à
sua permanência em Roma, junto à escola neoplatônica de Plotino, para res-
ponder às solicitações de Crisaório, senador romano, que encontrara dificul-
dades na leitura das Categorias de Aristóteles. O breve opúsculo é igualmente
conhecido sob o título Sobre as cinco vozes, em referência às cinco noções
aristotélicas consideradas: gênero, espécie, diferença específica, próprio e
acidente. Ao termo eijsagwghv, traduzido como introdução, Porfírio não deu
um significado técnico, mas o considerável influxo exercido no âmbito da
lógica sucessiva fez com que o vocábulo adquirisse um significado específi-
co no cursus studiorum filosófico. Os comentadores antigos (Amônio, Elias,
Davi) sugeriram que a Isagogē podia assumir uma função bem mais ampla
em relação às próprias intenções de Porfírio: uma introdução às categorias
pode servir como uma introdução ao método dialético e à lógica em geral;
além disso, como uma propedêutica à filosofia em geral. Todavia, a impor-
tância da Isagogē, considerada em si mesma, pode ser resumida em quatro
pontos: a) a codificação da doutrina dos predicáveis; b) a inequívoca posição
em relação aos universais; c) o remetimento aos nexos metafísicos ontológi-
cos e henológicos; d) a construção da árvore lógica38.
Portanto, a obra Isagogē (Introdução) é uma explicação das principais no-
ções requeridas para o exame da doutrina aristotélica das Categorias, uma
explicação que adota essencialmente o ponto de vista dos “peripatéticos”, que
é o mais adaptado à lógica (logikwvteron). No quadro do curso neoplatônico, a
filosofia de Aristóteles serve como prolegômenos à filosofia de Platão. O tex-
38 Cf. G. GIRGENTI, Porfirio. Isagoge. Milano, Rusconi, 1995, 22–23; IDEM, Il pensiero forte di Porfi-
rio. Mediazione fra henologia platonica e ontologia aristotelica. Milano, Vita e Pensiero, 1996.
131
to abre-se com a formulação de um problema que se tornará na Idade Média
o problema dos Universais:
39 PORFÍRIO, Isagoge (ed. BUSSE, p. 25, 1. 10–14; trad. J. Tricot & introd. A. De Libera. Paris, Vrin,
1995, 11s).
132
do). Segundo essa teoria, as coisas sensíveis são o reflexo pálido e imperfeito
dessas Ideias. A formulação precisa da teoria se encontra no Fédon, diálogo
no qual a Ideia se torna uma realidade ontológica, uma espécie de ser que tem
as seguintes características: (a Ideia) existe “em si mesma”, é “idêntica a si
mesma”, é o “verdadeiro ser” e uma realidade “supras-sensível”. Em suma:
com tal teoria, Platão quer significar que o sensível se explica somente coma
a dimensão do suprassensível, o corruptível com o ser incorruptível, o móvel
com o imóvel, o relativo com o Absoluto, o múltiplo com o Uno.
A alternativa (B) se aproxima parcialmente da posição standard de Aris-
tóteles que concebe o universal como um conceito “posterior às coisas na
ordem do ser” (universalia post rem; De anima i, 1, 402 b 7–8), apreendido me-
diante um processo de indução abstrativa. O universal seria um ente de razão
que a mente humana cria por abstração, baseando-se na própria estrutura
ontológica do real. Mas aqui, no texto de Porfírio, a enunciação do conceito
“aristotélico” aparece codificada em um vocabulário neoplatônico: a expres-
são “simples concepções do espírito” remete à distinção, estranha ao corpus
aristotélico, entre conceitos autênticos (“noções de realidades”) e conceitos
fictícios (“noções sem correlato real”). No texto de Porfírio, porém, a tese
“aristotélica” está codificada em um vocabulário neoplatônico: a expressão
“simples conceitos mentais” evoca uma distinção entre conceitos autênticos
(como, por exemplo, a noção que concebe o ser assim: separando do triân-
gulo de bronze a figura geométrica e concebendo o triângulo em si mesmo)
e conceitos fictícios (como, por exemplo, imaginar coisas impossíveis por na-
tureza: um animal fantástico, que participa contemporaneamente da espécie
“cabra” e da espécie “cervo” [tragevlafo", hircocervus] e hipocentauro)
133
Essa alternativa evidencia também a contradição interna das posições “pla-
tônica” e “aristotélica”. Ora, admitindo com Platão que o universal vem a ser
uma “realidade subsistente”, tratar-se-ia de um incorporal, mas um incorpo-
ral depreendido do sensível apresenta-se como ser abstrato: não é, portanto,
uma realidade subsistente, mas um conceito como o universal aristotélico.
Reciprocamente, se o universal é um incorporal, ou seja, um conceito abstra-
to, como pode ser simultaneamente uma realidade subsistente e “correspon-
der” aos seres reais dos quais é depreendido? Além disso, o modo ontológico
desse subsistente é igualmente um problema: o que é, com efeito, um ser
que não é nem o ser real (a coisa singular), nem o ser ideal da Ideia separada
de Platão, nem o ser mental ou psíquico do conceito abstrato de Aristóteles?
Partindo da alternativa da subsistência real dos universais, emerge aqui
uma questão que evoca o problema da natureza dos “universais” entre os
estoicos: aquilo que o pensamento pensa, reúne e separa de vários modos
são seres corporais ou incorporais? Os estoicos admitiram também, além das
coisas existentes e das palavras significantes, os conteúdos de pensamentos,
“os significados”, os quais são simples lektav (“exprimíveis” ou, em uma lin-
guagem mais precisa, “coisas expressas” ou “enunciadas” ou, ainda, “ditas”)
e que consideram incorpóreos. Para compreender o sentido do universal entre
os estoicos, tenha-se em vista o seguinte texto:
“Eles (os estóicos) dizem que ser exprimível é o que tem uma realida-
de em uma representação racional, e que uma representação racio-
nal é aquela na qual o que é representado pode ser manifestado pela
linguagem” [...] “Os estóicos dizem que há três coisas ligadas umas
às outras, o significado (shmainovmenon), o significante (shmainon) e o
portador (tugcavnon). O significante é o próprio som vocal, por exem-
plo, ‘Dion’ [por exemplo: na frase ‘Dion caminha”, os sons com os
quais eu a expresso constituem o significante]; o significado é a coisa
mesma designada por este nome, do qual apreendemos a realidade
no fundo de nosso pensamento e que os bárbaros não compreendem,
ainda que eles entendam o som vocal [por exemplo: o que digo de
Dion, isto é, que ele caminha, é uma fato incorporal]; enfim, o por-
134
tador, é o sujeito exterior, como o próprio Dion em pessoa. Há duas
dessas realidades que são corpos, a saber: o som vocal e o portador, e
uma que é incorporal, a saber: a coisa designada pelo som, isto é, um
exprimível, que pode ser verdadeiro ou falso”41.
41 Cf. ARNIM, H. Von (ed.), Stoicorum Veterum fragmenta II. Leipzig: Teubner, 1903, 166 (apud J.-B.
GOURINAT, La dialectique des Stoïciens. Paris: J. Vrin, 2000, 111–112. 120).
42 J.-B. GOURINAT, La dialectique des Stoïciens, 117. Cf. SEXTO EMPÍRICO, Contra os matemáticos
VIII, 70;
135
A terceira questão descarta a alternativa do universal corporal, conservan-
do a proposta do universal incorporal. Assim deixa aberta a possibilidade
de que esse universal possa existir como subsistente separado do sensível
(separata) ou imanente ao sensível (in sensibilibus posita). Sob um terceiro
ponto de vista, o autor recoloca, outrossim, a oposição entre Platão e Aristó-
teles. O universal é uma Ideia separada ou uma ideia imanente ao sensível?
Na primeira alternativa — ou seja, a Ideia como uma realidade inteiramente
separada do sensível — deparamos com um abismo intransponível entre o
inteligível e o sensível; se se aceita a segunda alternativa, é preciso explicar
então como o inteligível pode estar “presente nos sensíveis”.
Formulando essas três questões, Porfírio põe em evidência o conjunto das
contradições que minam o platonismo e o aristotelismo. Trata-se de uma
apresentação diaporemática da tensão que estrutura a metafísica ocidental
em todos os aspectos: ontologia geral, teoria do conhecimento, teoria do sig-
no e da significação. Para conferir à Isagogē de Porfírio o estatuto de matriz
em relação ao problema dos Universais, é desnecessário justapor-lhe entida-
des historiográficas — realismo, nominalismo, conceptualismo — conside-
radas como categorias filosóficas imutáveis, mas, sim, tomá-lo na sequência
de suas metamorfoses, vendo-o em seu quadro estrutural originário: em seu
liame com as Categorias e, paralelamente, com o conjunto dos escritos aristo-
télico e platônico que, sob diversos degraus e segundo canais de transmissão
específicos, enquadraram-no desde a Antiguidade tardia até o fim da Idade
Média. A inteligibilidade e o conteúdo da Isagogē de Porfírio compreendem-
se, portanto, a partir do estado dos escritos filosóficos onde ela se insere. Sen-
do assim, a problemática dos universais vem a ser o produto de duas exegeses:
a de Platão e a de Aristóteles, mas também o ponto de intercessão dos dois
corpus platônicos e aristotélicos. Esses corpus variam de uma época à outra, de
um meio ao outro, de uma cultura à outra. É, portanto, como lugar de explici-
tação do debate de Aristóteles com Platão que é preciso considerar a Isagogē.
Metodologicamente, não podemos associar diretamente o conjunto da
problemática dos Universais às três questões de Porfírio. Só a partir da tra-
dição interpretativa dos textos que conduziram e estruturaram o problema
dos Universais torna-se possível compreender o paradoxo de Isagogē: Por-
fírio legou à tradição o problema que quis evitar e ele mesmo não transmi-
136
tiu nenhum dos elementos que teriam permitido construí-lo em toda a sua
amplitude. Esse procedimento é essencial para desfazer a justaposição das
grandes posições teóricas — forjadas na Idade Média sob as formas de “rea-
lismo”, “nominalismo” e “conceptualismo” — às três questões da Isagogē de
Porfírio, enquanto matriz textual das imponentes construções metafísicas
que, de Boécio à Renascença, apaixonaram os mais fervorosos espíritos.
◊ Realismo
◊ Nominalismo
◊ Conceptualismo
137
lismo “autêntico” pôde por muito tempo passar como uma doutrina segundo a
qual os universais são, ao contrário, formas “fundadas nas coisas”45.
Em resumo: segundo a abordagem tradicional que remonta ao texto de
Porfírio de Tiro como pretexto da problemática dos Universais, tais questões
remeteriam a posições filosóficas precisas designadas como “realismo” e no-
minalismo” com as suas respectivas distinções forjadas na Idade Média: realis-
mo exagerado46 e realismo moderado47; conceptualismo e nominalismo puro48.
A primeira questão (1a) contrapõe a solução realista a uma solução nominalista
(ou, se quisermos, na forma moderada do conceptualismo49). A primeira solu-
ção se liga originariamente à tese platônica, segundo a qual os gêneros e as
espécies existem em si mesmos, acima e fora dos indivíduos50; a segunda, aos
sofistas e aos céticos. A segunda questão (2a) contrapõe, por sua vez, a posição
platônica, por assim dizer, realista espiritualista àquela realista materialista dos
46 Esta posição, cara a Platão e aos platônicos, sustenta a existência das realidades universais,
que existem como tais independentemente da atividade cognoscitiva humana.
47 Segundo essa posição, os termos universais se referem à realidade concreta e singular, na
qual, porém, existe alguma coisa realmente universal. Essa é a posição de Aristóteles, dos aris-
totélicos, e de Tomás de Aquino no século XIII.
48 Para os nominalistas a universalidade não se encontra nas nossas ideias, mas somente nos
“nomes”, isto é, nas palavras, nos signos e símbolos; em suma, na linguagem. O representante
mais conhecido dessa posição é Guilherme de Ockham: o universal em ato só existe no intelecto,
ou seja, ele é gerado diretamente das coisas na mente do sujeito cognoscente. Cf. A. GHISALBER-
TI, Guilherme de Ockham (trad. Luís A. DE BONI). Porto Alegre, Edipucrs, 1997, 79; A propósito do
nominalismo de Ockham, cf. T. ANDRÉS, El nominalismo de Guillermo de Ockham como filosofía del
lenguaje. Madrid, Gredos, 1969; C. MICHON, Nominalisme. La théorie de la signification d’Occam.
Paris, J. Vrin, 1994.
49 Associar o conceptualismo à tese “aristotélica” afirmando que “as idéias gerais existem so-
mente no espírito” significa desconhecer o fato de que a posição de Aristóteles não é tão ho-
mogênero como sempre se pensou; ora, um aristotelismo “autêntico” permaneceu por muito
tempo como uma doutrina segundo a qual os Universais são, ao contrário, formas “fundadas nas
coisas” (cf. a ambiguidade conceitual sobre “os” universais no De interpretatione 7, 17 a 39–40).
50 Essa identificação não consubstancia, porém, a gênese do realismo medieval, que é constru-
ído contra a imagem indireta e até mesmo caricatural que tem da doutrina platônica das Ideias
separadas.
138
estoicos. Enfim, a terceira questão (3a) contrapõe expressamente a posição rea-
lista exagerada dos platônicos ao realismo moderado de Aristóteles.
51 Cf. Josep-Ignasi SARANYANA, A Filosofia Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia
e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2006, 113.
139
diferentes, segundo as quais podemos considerar o universal: “[...] os gê-
neros e as espécies subsistem de um modo [no sensível] e são entendidos
de outro [isto é, conhecidos independentemente dos corpos] [...]”53. A Idade
Média conhecerá a Querela dos Universais com base nas traduções latinas e
nos comentários de Boécio. O autor apresenta sua teoria da abstração e ar-
gumenta que uma metafísica basicamente nominalista não é incompatível
com uma epistemologia basicamente realista, de sorte que negar a realidade
dos Universais fora da mente humana não inviabiliza a legitimidade de nos-
so conhecimento geral. Segundo Boécio, há um modo de afirmar ao mesmo
tempo que os gêneros e as espécies são alguma coisa in rerum veritate, sem
serem substâncias, e que estão no intelecto, mas sem que sejam conceitos
vazios54. É perfeitamente possível manter simultaneamente que os gêneros e
as espécies são incorporais, ligados aos seres corporais, presentes nos sensí-
veis, mas desses separados.
Para desenvolver a posição de Boécio, examinarei aqui, primeiramente, as
reformulações da primeira pergunta de Porfírio onde se privilegia a questão
da subsistência (se [gêneros e espécies] subsistem ou se são colocados em inte-
lectos desnudos e puros): a pergunta visa à exclusão entre subsistentia, de um
lado, e intellectus, de outro lado. Os textos de Boécio apresentam, porém,
uma dimensão do universal ignorada por Porfírio, a saber: em se tratando da
questão sobre os universais, a dimensão gnosiológica55 está unida intrinse-
camente à vertente ontológica ; em segundo lugar, apresentarei a aplicação
do termo intellectus que remete inequivocamente à noção de ejpivnoia quando
Boécio inicia sua argumentação a favor dos Universais
Primeira reformulação no primeiro comentário de Boécio:
54 Por exemplo, Boécio fornecerá o exemplo da intelecção de uma linha: o intelecto age por uma
separação, ou seja, concebe mentalmente por abstração a linha isolada corpo. Trata-se, portanto,
de uma intelecção que, nesse caso, não é falsa nem vazia.
140
“[...] se (os gêneros e as espécies) são entendidos como realmente su-
bistentes e, de certo modo, entes e existentes, de sorte que compre-
endamos a espécie homem como extraída real e integralmente dos
corpos particulares ou se, em certa medida, são representados pela
imaginação do ânimo (an certe quadam animi imaginatione fingan-
tur), como naquele verso de Horácio: ‘Se um pintor quer acrescentar
um pescoço equino a uma cabeça humana [...]’, o que não existe nem
poderá existir, mas que só é pintado (figurado) por uma falsa consi-
deração da mente”56;
141
Com base nas duas reformulações da primeira pergunta de Porfírio com-
preende-se que, para Boécio, a alternativa adotada agora seja a seguinte: de
um lado, subistência ontológica e formação do pensamento ou produto da
imaginação, de outro lado. Na primeira parte da primeira pergunta refor-
mulada por Boécio, pergunta-se pela subsistência ontológica de um universal
que conhecemos (intellectus), ao passo que na segunda parte dessa mesma
pergunta apresenta a imaginatio como alternativa a ser excluída: an certe
quadam animi imaginatione fingantur. Através da dimensão gnosiológica,
Boécio supera “a unidimensionalidade do universal puramente ontológico
de Porfírio”. Resumidamente, podemos dizer o seguinte: enquanto a primei-
ra pergunta de Porfírio exclui a alternativa do universal resultante de uma
atividade intelectual com base na priodade dada à alternativa do universal
subsistindo ontologicamente, a reformulação de Boécio da mesma pergunta
elimina a alternativa do universal resultante, não da atividade do intelecto,
mas da imaginação. Por conseguinte, assim procedendo, Boécio assume o
universal que subsiste ontologicamente e que é igualmente resultado de um
processo intelectual59.
Quanto ao terceiro texto citado, a interpretação da fórmula yilh; ejpivnoia é
determinante para compreender o modelo conceptualista veiculado por Boé-
cio na primeira leitura medieval do questionário de Porfírio. Ora, para mos-
trar que os gêneros e as espécies não estão somente no pensamento, Boécio
explica que, se assim fosse o caso, eles seriam pensamentos “sem sujeito”;
portanto, não seriam pensamentos, pois não pode existir pensamento daqui-
lo que nada é. Nesse sentido, um pensamento não pode ter “sujeito” (isto é,
objeto no sentido moderno do termo) sem ele mesmo existir de algum modo,
e isso não pode ser uma simples construção do espírito. Portanto, os gêne-
ros e as espécies devem “existir na realidade” (in rerum veritate consistere). A
distinção feita no texto, que remete àquela aristotélica — a do “intelecto” e
da “sensação” — tem sua fonte imediata nas noções de incorporal e de corpo-
ral utilizadas por Alexandre de Afrodísia para explicar o mecanismo da sen-
sação: os sentidos se ligam a entidades que, mesmo sendo incorporais, são
142
atreladas às realidades corporais. Em outras palavras: as faculdades sensiti-
vas apresentam à alma, enquanto incorporais, coisas que, em si mesmas, são
corporais. Como explicita Boécio, o espírito humano (animus) tem o poder
de “reunir o que está separado (disiuncta) e de separar (resolvere) o que está
unido (composita). Ora, se o espírito pode contemplar e ver separadamente
o que existe concretamente em um corpo, ele tem também a capacidade de
fazer a mesma coisa em relação aos gêneros e às espécies: recebidos por ele
“misturados aos corpos (permixta corporibus), o espírito pode “contemplar e
considerar” os gêneros e as espécies “separando os incorporais (dividens in-
coporalia)”. Segundo Boécio, os gêneros e as espécies não existem separada-
mente, como as Ideias platônicas, mas podem ser separados dos corpos e do
sensível pelo pensamento.
Boécio utiliza no texto em questão, portanto, uma noção de intellectus que
remete a uma intelecção entendida como uma certa faculdade da alma, única
capaz de apreender, ou mais precisamente, de “colher juntamente” (colligere)
os inteligíveis. Tal é a teoria do universal como cogitatio collecta, fundamen-
tada em uma ontologia que articula duas noções complementares, a saber:
as de “natureza formal” e de “semelhança essencial”. Os indivíduos que têm
a mesma natureza formal apresentam uma semelhança essencial. A função
do intelecto (ou do pensamento?) consiste em apreender essa semelhança
enquanto inteligível, sendo esta última sensível ao nível de cada realidade
particular e, desse modo, percebida pelos sentidos. Segundo essa interpre-
tação, a espécie é, portanto, “um pensamento coligido” (cogitatio collecta) a
partir da “semelhança substancial de indivíduos numericamente diferentes”
(ex individuorum dissimilium numero substantiali similitudine); o gênero, “um
pensamento coligido a partir da semelhança das espécies”60.
A originalidade de Boécio consiste, portanto, em sustentar que — a fim
de assegurar a possibilidade da passagem da sensação ao pensamento do
ponto de vista da semelhança essencial — “é o mesmo sujeito que, em um
60 “Cogitantur vero universalia nihilque aliud species esse putanda est nisi cogitatio collecta
ex individuorum dissimilium numero substantiali similitudine, genus vero cogitatio collecta
ex specierum similitudine” (BOÉCIO, Isagogen Porphyrii commenta, 165, linha 18–166 linha 2).
143
certo sentido, é universal, quando é pensado e, em um outro sentido, sin-
gular, quando é percebido sensivelmente nas coisas onde ele tem seu ser”61.
Essa argumentação certamente se assemelha às formulações peripatéticas de
Alexandre de Afrodísia que, em sua obra De anima62, identificou a apreensão
da forma sem a matéria com a do universal: a sensação capta a forma unida à
matéria — o singular (ou seja, a coisa “composta das duas); o intelecto capta
não a coisa sensível individual (“esta coisa particular”), mas seu “ser” como
tal — o universal (isto é, a forma e a essência graças aos quais a coisa indivi-
dual existe). Não é certo, porém, que o intelecto, assegurando essa apreensão,
seja identificado no espírito de Boécio ao intelecto (nou") de que fala o De
Anima de Aristóteles.
Quanto aos termos significativos da solução de Boécio, podemos resumir
seu raciocínio do seguinte modo: cogitatio collecta: existe nos indivíduos
uma semelhança segundo a essência, mesmo havendo neles uma desseme-
lhança do ponto de vista numérico; trata-se de um conceito, de uma unifica-
ção lógica, de um colocar junto segundo a razão fundado nas coisas. Por fim,
a expressão paradoxal de sua solução: subsistunt circa sensibilia, intelleguntur
autem praeter corpora: os gêneros e as espécies subsistem no âmbito dos sen-
síveis, mas são conhecidos separadamente dos corpos.
61 “Ita quoque generibus et speciebus, id est singularitati et universalitati, unum quidem su-
biectum est, sed alio modo universale est, cum cogitatur, alio singulare, cum sentitur in rebus
his in quibus esse suum habet” (BOÉCIO, Isagogen Porphyrii commenta, 167, 3–7).
62 Cf. o comentário e as notas de P. ACCATTINO & P. DONINI, em Alessandro di Afrodisia. L’anima.
Roma-Bari, Laterza, 1996
144
Questões
145
ANTOLOGIA
63 Cf. Anicii Manlii Severini Boethii in Isagogen Porphyrii commenta, ed. Samuel Brandt [“Corpus
Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum”, vol. 48. 2]. Vienna, F. Tempsky, 1906, p. 163 linha 3–p.
167 linha 20.
146
que é uma investigação que não pesquisa aquilo que existe, nem aquilo que
pode ser compreendido ou proferido.
[A SOLUÇÃO]
[Faculdades do conhecimento]
147
forma confusa e conjunta com os corpos — pelos sentidos que apreende e
vê a natureza incorpórea por si sem os corpos nos quais é realizada [concre-
tamente]. De fato, são diversas as propriedades incorpóreas misturadas nos
corpos, e separáveis do corpo.
Portanto, os gêneros e as espécies e os demais predicáveis se encontram
ou nas coisas incorpóreas, ou nas coisas que são corpóreas. Ora, se a mente
(animus) as encontra nas coisas incorpóreas, então aí tem imediatamente
uma compreensão incorpórea do gênero. Se, ao contrário, [a mente] detecta
os gêneros e as espécies nas coisas corpóreas, então segundo o seu próprio
costume remove a natureza daquilo que é incorpóreo das coisas corpóreas
e a contempla simples e pura, como se fosse a forma em si mesma64. Do
mesmo modo, quando a mente percebe essas coisas [formas ou naturezas
incorporas] misturadas aos corpos, separando-as [enquanto] incorpóreas,
contempla e examina somente as coisas incorpóreas.
Ninguém diga, portanto, que pensamos o falso a propósito da linha, vis-
to que de tal maneira a captamos com a mente como se estivesse separada
das coisas corpóreas, ainda que não possa existir separada dos corpos.
De fato, nem toda intelecção que se concebe a partir das coisas apreendi-
das, diferentes das coisas mesmas que existem, deve ser considerada falsa,
mas, como se disse acima, a única coisa que a torna falsa é dada pela com-
posição, como quando colocando juntos um homem e um cavalo pensamos
que o centauro existe [na realidade]. Mas a intelecção que faz isto median-
te divisões e abstrações eliminando aspectos que existem nas coisas, não
somente não é falsa, mas, antes, é a única capaz de encontrar aquilo que é
verdadeiro nas propriedades das coisas.
Portanto, coisas deste tipo existem nas coisas corpóreas e sensíveis, mas
são conhecidas separadamente das coisas sensíveis justamente com o obje-
tivo de contemplar a natureza e compreender as propriedades específicas.
64 A atividade própria da mente nesta condição encarnada consiste em abstrair o universal dos
corpos particulares dados à percepção.
148
[Natureza e definição dos universais]
Por essa razão, quando os gêneros e as espécies são pensados (cum genera
et species cogitantur), é porque se apreende uma semelhança a partir dos
indivíduos existentes (tunc ex singulis in quibus sunt eorum similitudo
colligitur), como a partir dos homens individuais [por exemplo] se apreen-
de uma semelhança de humanidade entre eles (ut ex singulis hominibus
inter se dissimilibus humanitatis similitudo). Tal semelhança, pensada
pela mente (quae similitudo cogitata animo) e contemplada com verdade,
torna-se uma espécie. Assim também, a semelhança de diversas espécies,
que não pode existir senão nestas espécies ou em seus [respectivos] indi-
víduos, produz o gênero quando é levada em consideração. Portanto, essas
coisas [os gêneros] existem nos singulares, mas são pensadas como univer-
sais. A espécie não deve ser considerada senão um pensamento coligido a
partir da semelhança substancial de indivíduos que são diversos do ponto
de vista numérico (species [...] cogitatio collecta ex individuorum dissimi-
lium numero substantiali similitudine). O gênero é um pensamento coli-
gido a partir da semelhança das espécies (genus vero cogitatio collecta ex
specierum similitudine). Esta semelhança torna-se sensível quando está
nos indivíduos e torna-se inteligível quando está nos universais. Assim
também, quando é sensível está nos indivíduos, mas quando é conhecida
se torna universal. Conseqüentemente, [gêneros e espécies] subsistem nas
coisas sensíveis e são conhecidos separadamente dos corpos.
Não há de fato incoveniente em que duas coisas em uma mesma coisa
[apreendida], sejam distintas pela razão, como [por exemplo] a linha con-
vexa e a linha côncava. Trata-se de realidades que têm definições diferentes
e, por essa razão, será diferente também a sua compreensão, mesmo que
se encontrem sempre no mesmo objeto. De fato, a mesma linha é convexa
e côncava. Assim também pode dizer-se o mesmo a respeito dos gêneros e
das espécies, isto é, uma mesma coisa apreendida possui singularidade e
[ao mesmo tempo] universalidade. De um modo é universal, quando é pen-
sada (alio modo universale est cum cogitatur), e, de outro modo, singular,
149
quando é percebida nessas coisas nas quais tem seu ser (alio singulare cum
sentitur in rebus his in quibus esse suum habet).
[CONCLUSÃO]
150
151
152
3
As bases transcendentais da
Filosofia Medieval:
O Pseudo-Dionísio Areopagita
(século v)
153
superior a todos, é superior a eles, é ulterior, é mais que a essência, mais que
essencial, é supraessencial. O silêncio e as trevas são o que melhor expressam
essa realidade supraessencial (teologia negativa):
Por isso, todos os nomes atribuídos a Ele devem ser negados, porque ne-
nhum verdadeiramente expressa a essência divina. No entanto, ambos os
métodos, ambas as teologias — afirmativa e negativa — fundem-se em um ter-
ceiro instante hermenêutico: a teologia superlativa. Como Deus não é, mas
merece cada um desses nomes, ainda que em um sentido verdadeiramente
incompreensível e inconcebível para a ratio humana, Ele é supersubstancial,
é infinidade supersubstancial que se revela de acordo com as capacidades in-
dividuais, ao recebermos essa iluminação de cima. Eis aqui o princípio da
hierarquia, tão importante para a filosofia medieval: cada um ocupa seu lugar
específico na ordem do mundo, lugar que também desvela a própria compre-
ensão do mundo e da generosidade divina.
Cabe aqui uma explicação. Na verdade, o conceito de hierarquia foi her-
dado à filosofia medieval por Plotino (c. 204/205–270) em suas Enéadas (III,
2, 17). Trata-se da ordem das coisas que confere harmonia ao mundo. Por sua
vez, a ordem e a harmonia são expressões da filosofia clássica grega. Platão
(c. 428–348 a. C.) já tinha concebido o mundo e a alma como harmonias (Fé-
don, 86c), e ambas como inter-relacionadas — a alma com o mundo, o mundo
como alma (Timeu). A seguir, Aristóteles (384–322 a. C.) estabeleceu filoso-
ficamente a ordem serial — o antes e o depois (o próprio conhecimento das
coisas se expressa nessa ordem [Met., v, 1018 b9]). Já na esfera cristã, Agos-
154
tinho (354–430), receptor e condensador do mundo antigo, se maravilhou
com a ordem do mundo: nada está fora da ordem (mesmo a desordem, pois o
erro ocorre por uma causa). Os bens e os males estão inseridos na ordem. “Se
amas a ordem”, diz Agostinho,
§ 1. [96] [693B] De fato, como o nosso sol, sem reflexão nem livre esco-
lha, mas pelo fato mesmo de que existe, ilumina as coisas que podem,
segundo a sua medida, participar da sua luz, assim também o Bem, que
é superior ao sol como o arquétipo que não tem comparação supera uma
155
imagem obscura, com a sua própria existência envia os raios da sua bon-
dade absoluta, de uma maneira proporcional, a todos os seres.
156
“A Assunção da Virgem” (séc. xv), de
Francesco Botticini. National Gal-
lery London.
157
Essa filosofia, proveniente do mundo oriental e influenciada pela filosofia
neoplatônica, tinha uma ausência: o mundo dos homens. Ela não diz nem
uma palavra sobre a situação histórica ou política de seu tempo. Nela, nem o
papa, nem o imperador de Bizâncio tinham qualquer espaço considerativo.
A experiência histórica está ausente. O que importava eram as considerações
metafísicas sobre a estrutura do cosmo, sua hierarquia. Isso foi um traço
fundamental da filosofia do Pseudo-Areopagita que marcou indelevelmente
a forma de pensar do mundo medieval — inclusive de boa parte do Renasci-
mento. Inclusive na arte. Por exemplo, o pintoritaliano Francesco Botticini
(1446–1498), em pleno século xv, representou as hierarquias angélicas des-
critas pelo Pseudo-Dionísio no século v (Sobre a Hierarquia Celeste)!
O mundo teria que esperar séculos até os filósofos desconstruírem a har-
moniosa imagem criada por Platão. Entrementes, durante toda a Idade Média,
tudo estava em seu lugar, sem questionamento, só consideração, sem revolu-
ção (a própria palavra surge apenas em tratados sobre o movimento das estrelas
no céu!), apenas contemplação. A Filosofia tinha como principal preocupação
facilitar a ascensão do intelecto individual ao Bem em si. Por isso, a concepção
predominante era espiritualista ou, em termos filosóficos, transcendentalista.
Como raciocinavam em termos platônicos — só é real o que perdura, as mu-
danças somente oferecem o estado do mundo criado, caduco, dominado pela
não-coisa — a verdadeira realidade deveria ser invisível, inalterável, ou seja,
não-material. Por isso os escritos do Pseudo-Areopagita exerceram tanto fascí-
nio em seus leitores medievais. Através dele, uma parte (importante — platôni-
ca, estoica) da filosofia antiga foi transmitida à Idade Média. E a dominou, pelo
menos até a “descoberta” de Aristóteles no século xiii.
158
159
160
módulo V
O Renascimento Carolíngio e a
Pré-Escolástica (séculos xi–xii)
161
“Apoteose
de Oto III”,
Evangeliário
de Liuthar
162
Os intelectuais da Idade Média sentiam um grande apreço pelos modelos cul-
turais da Antiguidade, especialmente pela Grécia e por Roma. Os períodos
culturais inseridos na Idade Média e que sofreram a influência da cultura
antiga são conhecidos na historiografia como renascimentos— Renascimen-
to nortúmbrio (séculos vii–viii), Carolíngio (sécs. VIII–IX), Otoniano (século
X), Renascimento do século XII. Foram momentos em que os escritos antigos
(especialmente literários e filosóficos) foram apreciados, copiados, usados
como modelo de pensamento (na Filosofia–especialmente Platão) e modelos
artísticos (nas Artes, nas Letras, na Música). Por exemplo, os escritores do
Renascimento Carolíngio tinham uma grande admiração pelos modelos anti-
gos, que aqueles estudiosos e copistas do palácio imperial de Carlos Magno
(742–814) e seus filhos (pelo menos até Carlos III, o Gordo [839–888]) tentaram
imitar e assimilar. Eles consideravam os textos clássicos (especialmente os
mais ligados às artes do Trivium–Gramática, Dialética e Retórica) como pro-
tótipos de perfeição literária.
Com esse afã pela busca de um passado greco-romano idealizado, os ca-
rolíngios anteciparam humanistas como Petrarca (1304–1374) em sua paixão
pela busca e coleta de manuscritos antigos, tanto de autores pagãos quanto
dos santos Padres (da Patrística). Já haviam sido precedidos pelos monges-
copistas irlandeses, que haviam salvo boa parte dos escritos antigos da des-
truição por parte das tribos bárbaras. Agora, com o fim da primeira grande
onda de invasões (de povos germânicos — godos [ostrogodos e visigodos],
francos, suevos, burgúndios, anglos, saxões, jutos, frísios, alanos, alamanos,
vândalos), os carolíngios (eles próprios descendentes dessa mescla cultural
que foi a romana com a germânica) voltaram-se para a glória do passado im-
perial e, além de Roma, naturalmente, encontraram a Grécia. Descobriram
Platão. Novamente ele.
Esse momento foi o do nascimento do conceito de Europa. Na prática,
os carolíngios montaram bibliotecas — o conceito nasceu com Cassiodoro
(490–581), mas foi desenvolvido pelos mosteiros beneditinos — colecio-
naram manuais, extratos, seleções e florilégios, e mal conseguiam escon-
der uma alegria quase infantil ao entrarem em contato com os modelos da
Antiguidade (lembremos a paixão do próprio Petrarca em colecionar textos
163
antigos e sua admiração por Santo Agostinho e pelos pensadores cristãos, e
a consideração que John Wycliffe [1328–1384] demonstrou pelos escritos de
São Bernardo de Claraval [1090–1153]).
Os carolíngios conheciam muito bem a filosofia estoica de Cícero (106–43
a. C.) e Virgílio (70–19 a. C.) — no século VI, Isidoro de Sevilha (560–636) os
conhecia — mas especialmente os escritores romanos (e pagãos) dos séculos
III–IV (como Hélio Donato[m. 350] e suas obras Arte Menor e Arte Maior, além
de Prisciano de Cesareia [m. 500] e suas Instituições Gramaticais. Os carolín-
gios estavam embebendo a filosofia de uma boa formação de base, gramati-
cal. No entanto, devido às terríveis condições sociais da Europa em meados
do século VIII, não havia restado quase nada da herança grega no período
carolíngio, embora o nome “Atenas” fosse uma sólida referência ao mundo
clássico, como podemos verificar neste trecho de uma carta do professor Al-
cuíno de York (c. 735–804) ao imperador Carlos Magno:
164
Rábano Mauro e Alcuíno de York
diante São Martinho de Tours
165
Em várias capitulares (documentos oficiais do imperador) estão expressas
as propostas educacionais de Carlos Magno: abertura de escolas não só para
receber filhos de escravos (!!!), mas também filhos de homens livres, ensino
do Saltério, solfejo musical, canto, Gramática (especialmente a capitular Ad-
monitio generalis). Esse culto à Antiguidade por parte do Renascimento caro-
língio resultou no nascimento da Europa, na ideia de Europa.
Em que pese o centro de irradiação cultural se encontrasse no norte da
Europa, havia pelo menos outros quatro importantes centros de preservação
e leitura dos textos clássicos: Itália, Espanha, Inglaterra e Irlanda.
Na Itália, sabemos da existência da abadia de Farfa (no Lácio), do mos-
teiro beneditino de São Vicente de Volturno (Isernia) e da famosa abadia de
Bobbio (Piacenza) que, graças ao trabalho de seus copistas, forneceu textos
para muitas escolas por toda a Europa cristã. Mas o mais importante centro
cultural italiano foi a abadia de Monte Cassino, muito florescente no século
VIII até o ano de 883, quando os sarracenos a saquearam. Havia nesses mos-
teiros um grande intercâmbio de professores e de livros, o que aumentava a
noção de um fértil universo intelectual com estreitas e “internacionais” co-
nexões de estudo e de conhecimento. Por exemplo, em Vivarium, Cassiodoro
fundou um mosteiro e, além de aconselhar os monges a ler os antigos trata-
dos médicos, criou uma biblioteca e assim inaugurou a tradição bibliotecá-
ria monástica medieval, costume mantido por praticamente todos os centros
religiosos durante a Idade Média e que forneceu as bases intelectuais para o
posterior desabrochar das escolas catedralícias e das universidades nos sé-
culos XII–XIII.
Por sua vez, dois séculos antes do Renascimento carolíngio, a Hispania
visigoda (sécs. V–VIII) mantinha viva a cultura clássica em pelo menos três
centros irradiadores: Sevilha, Zaragoza e Toledo. O estudo dos clássicos con-
tinuou a ser cultivado nessas cidades, especialmente a partir da decisão do
II Concílio de Toledo (531), que determinou o ensino obrigatório das crianças
confiadas à Igreja para posterior ingresso no clero. Em Sevilha e em Zaragoza,
houve uma escola episcopal, em Toledo, duas, e em Palência, uma.
166
Biblioteca
Medieval
167
Os autores clássicos conhecidos e estudados eram: para a Poesia (muito
cultivada na época e utilizada nos textos filosóficos pelo menos desde Boé-
cio): Lucrécio (99–55 a.C.), Virgílio, Marcial (40–104) e Claudiano (c. 370–405
a. C.); para a Historiografia, extratos de Plínio, o Velho (23–79) e Salústio (86–
34 a. C.); para a Filosofia, Sêneca (4 a. C.–65 d. C.), além de serem conhecidos
resumos de Marciano Capela (séc. V) e Fulgêncio, o Mitógrafo (séc. V). Por
isso, a tradição cultural clássica na Hispania visigoda propiciou o desenvolvi-
mento do próprio Renascimento carolíngio dois séculos depois.
168
169
170
1
João Escoto Erígena (século ix) e
a Divisão da Natureza
O primeiro grande fruto filosófico dessa reforma educacional levada a cabo
por Carlos Magno foi o irlandês João Escoto Erígena (810–877). Ele “surge”
na História, quando, por volta de 850, é escolhido para dirigir, na qualidade
de Gramático, a escola palatina de Carlos II, o Calvo (823–877), neto de Car-
los Magno. Na ocasião, estava acontecendo o primeiro grande debate filosó-
fico medieval, sobre a predestinação. Um monge saxão chamado Godescalco
havia sido condenado em um sínodo (em 848, em Mogúncia) por defender
que havia uma dupla predeterminação: a dos escolhidos para salvação e a
dos condenados à danação. Sua base filosófica era o Agostinho dos últimos
escritos, além de Isidoro de Sevilha. Os bispos reunidos no concílio (espe-
cialmente Rábano Mauro [c. 780–856] e Hincmar de Reims [806–882]), além
de não aceitarem esses dois autores como autoridades, defenderam, vitorio-
samente, que sem liberdade a vida não teria sentido.
Graças a esse debate, Hincmar de Reims encomendou a Escoto Erígena um
texto sobre essa questão (Sobre a Predestinação). Nele, o filósofo defendeu que
tanto a presciência quanto a predestinação se identificam na essência divina
e que as decisões erradas dos homens não existem antes de serem cometidas,
além de não existir o castigo que merecem. Por isso, Erígena é considerado o
iniciador da filosofia medieval: tanto por defender a simplicidade divina quan-
to a responsabilidade humana pelos atos individuais (no próprio Prólogo, ele
declara sua intenção de discutir filosoficamente o problema da predestinação).
Essa confiança na razão e essa distinção entre filosofia e revelação não eram
compartilhadas por todos os pensadores de seu tempo (até porque não pode-
mos compreender o pensamento da época sem levar em conta que as discipli-
nas separadas só começaram a ser propostas pelos filósofos por volta de 1300).
171
Assim, suas teses expostas nessa primeira obra filosófica surgida na Idade
Média são as seguintes:
Para Erígena, a liberdade não era apenas algo que o homem pudesse con-
seguir: era o próprio ser humano. O homem existe na medida que conhece
e deseja. O ser humano e sua atividade volitiva e racional são uma mesma
coisa. O problema — não para a Filosofia, mas para a Teologia — era o ques-
tionamento que o irlandês fez da existência do Inferno. Para ele, o fogo do
Inferno não era nada mais do que a ausência da bem-aventurança eterna, o
que causou um mal-estar, provocou refutações e uma condenação eclesiás-
tica formal (ainda que tenha sido protegido por Carlos, o Calvo, que muito o
considerava).
Seja como for, o tratado Sobre a Predestinação, ainda que seja avaliado
como o primeiro fruto filosófico medieval, não é sua obra principal, mas a
Divisão da Natureza.
Para o filósofo irlandês, a palavra Natureza equivale ao Ser em toda a sua
amplitude, e abarca todos os seres, de Deus a todas as realidades — inclusive
o não-ser. Por isso, estabelece quatro divisões (que se reduzem a três, pois a
primeira e a quarta coincidem):
172
2) A Natureza que é criada e que cria — as ideias divinas exemplares, ar-
quétipos das coisas;
4) A Natureza que não cria e que não é criada — Deus, como fim último de
tudo e para qual retornam todas as coisas criadas.
173
O homem é dotado de corpo e alma, unidas de modo admirável. A alma
é uma substância simples, incorpórea e carente de partes. Os sentidos per-
cebem a pluralidade e a diversidade das coisas corpóreas, sombras da ver-
dadeira realidade. A razão conhece a essência da própria alma por meio de
suas operações. A inteligência conclui o processo de elevação e unificação que
possibilita à alma a capacidade de se elevar, sair de si e, com a ajuda da graça,
reduzir as ideias exemplares à unidade absoluta e chegar a Deus.
A natureza que não cria e não é criada é Deus que, após ter concluída Sua
criação e a produção dos seres particulares, deixa de criar e fica como fina-
lidade última de tudo. E tudo que foi criado retornará a Ele. Assim, a criação
fica encerrada em dois termos, entre seu princípio e seu fim. É o Amor que
originou tudo e será o Amor que fará tudo retornar à unidade primigênia. Os
indivíduos retornarão a seu estado de unidade puríssima, a ideia exemplar
de Humanidade.
174
JOÃO ESCOTO ERÍGENA (c. 815–885),
a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da Natureza, Livro I.1
Mestre — Já que estamos de acordo que este termo é geral, dize-me, te rogo,
como se faz a divisão em espécies e por diferenças3: ou, se preferes, procu-
rarei eu fazer tal divisão e tu darás depois tua opinião a respeito.
1 JOÃO ESCOTO ERIÚGENA (c. 815–885). A Divisão da Natureza. In: DE BONI, Luis Alberto. Filo-
sofia Medieval — Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 75–83.
3 Espécie — conceito que é parte ou elemento de outro conceito, empregado por Platão, Aris-
tóteles e na Isagōgē de Porfírio: “Espécie é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é atribuído
essencialmente” (Isagogē, 4, 10). Cf. PORFÍRIO DE TIRO, Isagōgē. Introdução às “Categorias” de Aris-
tóteles. Introdução, tradução e comentário de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar Editorial, 2002.
175
Mestre — Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em
quatro espécies: a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada;
a segunda, na que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a
quarta, na que não cria e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de
opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta
fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de sua essência o não
poder ser. Parece-te bem feita esta divisão ou não?
Mestre — Creio que vês a oposição da terceira divisão com relação à primei-
ra (a primeira, com efeito, é a que cria e não é criada: à qual, portanto, põe-
se como contrária à que é criada e não cria), e a oposição da segunda com
relação à quarta, já que a segunda é da que é criada e cria, à qual, por conse-
guinte, opõe-se em toda a linha à quarta, a da que não cria e nem é criada.
Discípulo — Parece-me que está fora de dúvida que devemos dizer da pri-
meira, antes que de todas as demais, o que a luz que ilumina a toda mente
se digne comunicar-nos.
176
Mestre — Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas pa-
lavras a respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de to-
das, a saber, a divisão entre as coisas que são e as que não são.
Mestre — Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coi-
sas requer cinco modos de interpretação. O primeiro parece ser aquele pelo
qual a razão nos persuade de que todas as coisas que caem sob a percepção
dos sentidos corporais ou da inteligência se dizem com a verdade e racio-
nalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência de sua natureza
escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo entendimento e
razão, parecem com razão que não são, o que não tem reta interpretação se-
não só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele criadas. E
com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, é essência de todas as coisas
aquele que é o único que verdadeiramente é, “pois — diz ele — o ser de todas
as coisas é a divindade que está sobre o ser”.4
(...)
(...)
177
(...)
(...)
Mestre — Assim, devemos seguir a razão que investiga a verdade das coisas
e que não é oprimida por nenhuma autoridade, para que ela manifeste pu-
blicamente e difunda aquilo que no âmbito de sua inquirição buscou com
afã, e que, laboriosamente encontrou.
178
179
180
2
Anselmo de Canterbury (c.1033–1109) :
O argumento ontológico
Maior filósofo de seu tempo, Anselmo é considerado o precursor da Esco-
lástica. Depois de Escoto Erígena, é o outro fruto maduro especulativo da Fi-
losofia Medieval. Sua confiança na razão para explicar a fé fez com que ele
buscasse razões necessárias para demonstrar os mistérios da fé cristã. A razão
está a serviço da fé. Por isso, o que é mais característico de sua filosofia são as
provas da existência de Deus — que Aristóteles havia feito (em sua Metafísica)
a partir do movimento.
Na obra Monológio, Anselmo expõe três argumentos a partir da constatação
de que existem múltiplos seres finitos, desigualmente perfeitos, cujos graus
podem ser organizados em uma ordem hierárquica ascendente, até a afirma-
ção do primeiro ser, causa exemplar, eficiente e final. Trata-se de um procedi-
mento a posteriori. A prova consiste na aplicação de um realismo in extremis:
por exemplo, percebemos que existe no mundo uma variedade de coisas boas,
maiores e menores, desiguais. Como tudo tem uma causa, podemos pergun-
tar qual a origem dessa bondade, pois não deve haver uma causa particular
para cada ser, mas uma única e universal, porque o mesmo fato de possuir a
perfeição de modo imperfeito indica que essa coisa não a possui por essência,
mas por participação com a bondade absoluta existente fora das coisas. Por-
tanto, os seres são mais ou menos bons em relação à bondade, essencialmen-
te perfeita. O mesmo raciocínio se aplica à grandeza e à magnitude.
O segundo argumento baseia-se no próprio ser das coisas. Tudo quanto
existe tem uma causa. Ou existe por alguma coisa, ou existe por nada. Por
nada, nada pode existir. Assim, qual a causa da existência dos seres? Pode a
causa ser mais de uma? Se são muitas as coisas, ou todas se referem a uma
181
Eadmero
escrevendo
(biográfo de
Anselmo)
182
mesma causa, ou dependem mutuamente uma da outra, o que é irracional.
Portanto, tudo o que existe, existe por uma só causa, existente por si mesma.
O terceiro argumento se baseia na hierarquia de graus de perfeição nos
seres. Quem contempla a natureza, aprecia nela a diversidade de graus de
perfeição nos seres, escala que não pode ser infinita, mas necessariamente
finita e com seu término em algo superior a todas as demais coisas, algo que
as ordene. Essa natureza é una ou múltipla? Se são muitas e iguais, devem ser
iguais por alguma essência comum, já que essência é natureza. Contudo, se
aquilo que têm em comum é distinto de suas essências e superior, será mais
perfeito que as naturezas que recebem sua perfeição.
Contudo, Anselmo procurava uma prova da existência de Deus ainda mais
simples, clara e concisa.
Seu discípulo (e posterior biógrafo) Eadmero conta e dramática gestação
da ideia. Anselmo encontrou uma grande dificuldade. Esse pensamento lhe
tirava o apetite e lhe causava insônia. Ao dar-se conta disso, imaginou que
essa idéia era uma tentação do demônio. Fez então todos os esforços para
tirá-la de seu espírito. Mas, quanto mais tentava rechaçá-la, mais ela a perse-
guia. Uma noite, o que buscava se manifestou à sua inteligência e encheu seu
coração de uma alegria e um júbilo extraordinários.
Assim, iniciou seu argumento (na obra Monológio), não a partir da realida-
de dos seres e de suas perfeições, mas da própria ideia de Deus — o método
crer para inteligir. Trata-se de um exercício dialético puro, tendo como ponto
de partida uma definição lógica de termos.
Quando afirmamos “Deus é aquilo do qual nada maior pode ser pensado”,
qualquer pessoa entende, inclusive o ateu (chamado de insipiente, ou seja,
aquele que não tem sabedoria). Ele ouve e entende o que ouve. Assim, quan-
do entende, a ideia existe em sua mente, mesmo que não concorde que ela
existe fora de sua mente, pois existir algo como ideia não é a mesma coisa
que entender que existe realmente.
O mesmo ocorre na mente do pintor, que pensa em uma coisa que vai pin-
tar que ainda não existe, mas só em sua mente. Após ter pintado o quadro,
todavia, a coisa passa a existir fora da mente do pintor.
O mesmo acontece com o néscio. Vejamos a concisão do argumento:
183
ANSELMO DE AOSTA (de Bec ou de Canterbury, 1033/34–1109) e o
Argumento Ontológico, no Proslógio, II.
Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba,
o que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o
que cremos. E certamente cremos que Tu és algo maior do qual nada mais
pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza, como quando diz o insi-
piente em seu coração “não existe Deus”?
No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer “algo maior
do qual nada pode ser cogitado”, entende o que ouve, e o que entende está
em seu intelecto, embora não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a
coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando
o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no
intelecto, mas ainda não entende que exista o que ainda não fez.
Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o que
fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelec-
to, existe algo maior do qual nada pode ser cogitado, porque, quando ouve
isso, entende e tudo o que se entende, está no intelecto.
No entanto, aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir
somente no intelecto, pois se só existe no intelecto, pode pensar-se algo que
seja maior e que também exista na realidade.
Assim, se aquilo maior do qual nada pode ser cogitado só existe no in-
telecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-se-ia
o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo.
Portanto, existe, sem dúvida, algo maior do qual nada pode ser cogitado,
tanto no intelecto quanto na realidade.
184
Anselmo afirma a existência da ideia de Deus inclusive no insipiente, o ig-
norante: até ele tem a ideia de Deus para poder negar sua existência, pois não
poderia negá-la se carecesse do conceito de Deus ou se não compreendesse
o que significa essa ideia. O problema intrínseco do argumento anselmiano é:
pode-se pensar o absoluto como existente? Quem aceite a presença de Deus
na mente humana, sem a necessidade da experiência, e afirme que existe
nela uma presença do inteligível não mediatizada pelo sensível, aceita, in-
trinsicamente, a teoria platônica do conhecimento, que mantém o inatismo das
ideias, que não requer a experiência para nada.
Por sua vez, quem defenda que só se pode alcançar o inteligível a partir
do sensível, ou seja, quem aceite como ponto de partida do conhecimento
humano os dados da experiência que nos chegam através do conhecimento
sensível, é aristotélico em sua teoria do conhecimento, e, portanto, negará a va-
lidez do argumento, porque a ideia de Deus, caso possa ser obtida, só o será,
caso se demonstre sua existência a partir da experiência dos aspectos que o
mundo proporciona aos sentidos.
seja como for, o argumento de Anselmo teve uma longa trajetória na his-
tória da Filosofia. Kant nomeou-o argumento ontológico.
185
Sala de aula Medieval
186
3
Hugo de São Vítor
(1096–1141)
Hugo de São Vitor pertenceu a uma famosa abadia próxima de Paris e famosa
na Idade Média por sua escola de natureza mística. Por isso, Hugo é, antes de
qualquer coisa, teólogo e místico, mas não desdenha a Filosofia e o estudo
das artes liberais para a compreensão das Sagradas Escrituras, o que lhe con-
fere um caráter eminentemente racionalista. Todas as ciências, para ele, de-
vem ter como objetivo a busca da verdade. São seus escritos que consolidam
as artes liberais como preparação para o estudo da Filosofia, que, por sua vez,
é um vestígio da Teologia e, por fim, da mística.
Detenhamo-nos em sua filosofia. Suas definições provêm de Boécio, Cas-
siodoro e Isidoro de Sevilha. Distingue três grandes ordens de seres: 1) Deus
e as substâncias incorpóreas, 2) as matemáticas, ou seja, as abstrações e 3)
a física, que trata dos seres corpóreos. Hugo tem um profundo sentido de
ordem, harmonia e beleza do mundo, mundo que é um reflexo da grandeza
e da beleza de Deus. Para conhecê-lo, deve-se ter um espírito disciplinado,
meditativo, dócil e contemplativo. Assim, Hugo tem uma perspectiva típica
de seu tempo, e de base platônica, que é a de maravilhamento com o mundo
físico, mundo considerado um livro aberto e pronto para ser investigado pe-
los espíritos dispostos a isso.
O conjunto do mundo compõe uma música: suas partes discordantes, em
seu cume, harmonizam-se em uma grande sinfonia. Por se basear no Timeu
de Platão, Hugo utiliza conceitos como forma e matéria que, à primeira vista,
poderiam parecer aristotélicos, mas o filósofo se vale deles em um sentido
platônico, pois a forma não é substancial (aristotélica), mas acidental. Dis-
tingue nos seres a essência (ou natureza), que é permanente, da forma, que
muda. Sua antropologia define o homem composto por uma natureza de
187
duas substâncias distintas, o corpo, mutável e mortal, e a alma, incorpórea,
invisível e imortal. Ela foi criada por Deus do nada. É única em cada homem
e se difunde por todo o seu corpo. Por isso, ele é imagem e semelhança de
Deus. Corpo e alma, substâncias distintas, unidas compõem a pessoa huma-
na, que é, essencialmente, a unidade da consciência. Para explicá-la, Hugo se
vale da harmonia musical e aplica a simbologia numérica. Essa união consiste
na música humana. O homem é um microcosmo. O número da alma é ímpar,
pois determinante e perfeito. O do corpo é par, princípio da indeterminação
e de imperfeição.
Sua obra mais conhecida é o Didascálicon (Coisas relativas à escola), projeto
pedagógico, programático e formativo do espírito do verdadeiro estudante.
A obra é dividida em seis partes. A primeira define a Filosofia como busca
da sabedoria e ordena sua classificação interna, além de tratar da divisão do
Universo e da similitude humana com Deus. Encerra com a definição do que
é natureza e qual a origem da lógica. Vejamos sua bela definição de Filosofia.
188
é este amor pela sabedoria, referindo-se à iluminação do espírito inte-
ligente pela pura sabedoria.
189
Sala de aula Medieval
190
que a antropologia cristã traz o homem para o centro do universo — o ho-
mem é o microcosmo do universo — e o enaltece por sua semelhança divina
(algo não inteiramente original, pois Platão já destacara que o homem tem
um deus que vive dentro de si, ou seja, a alma).
Inserido na natureza — entendida como arquétipo de todas as coisas, por
se encontrar na mente divina — o homem se eleva ao seu Criador, quando es-
pecula, quando raciocina. Por isso as considerações de Hugo sobre a origem
da lógica no final do livro I:
191
Mas também Hugo se vale de outros filósofos para apresentar matizes de
sua visão do que é a Filosofia:
192
A disciplina se dá quando, vivendo com louvor, compomos os [bons]
costumes, com o conhecimento (Didascálicon, III, 6).
193
A humildade é o início da disciplina [moral], e há muitos documentos sobre
ela. Os três princípios que seguem, pertencem ao aprendizado da humilda-
de: primeiro, que nenhuma ciência e nenhum escrito devem ser conside-
rados vis; segundo, que ninguém deve ter vergonha de aprender; terceiro,
quando se alcança a sabedoria não se deve desprezar os outros.
Muitas pessoas se decepcionam, pois desejam parecer sábias antes do
tempo. E assim explodem pelo inchaço da arrogância. Começam a simular
algo que de fato não são, envergonhar-se do que são e, quanto mais longe
ficam da sabedoria, menos se preocupam em ser sábios, preferindo [antes]
parecer sábios!
Conheci muitas pessoas deste tipo, isto é, que mesmo não dominando
os conhecimentos elementares de uma ciência vangloriam-se, apenas por
se interessarem pelos conhecimentos sumos. Ora, pensam ter se tornado
grandes homens simplesmente pela leitura ou pela oitiva de palavras ou de
escritos dos mais importantes filósofos. E, então, elas nos dizem: “Nós os
vimos. Conhecemos a lição destes homens. Eles frequentemente nos profe-
riam aulas. Os sumos, os famosos: sim, nós os conhecemos!”.
Todavia, coisa diversa prezo para mim, porque prefiro conhecer todas as
coisas e, ao mesmo tempo, não ser por ninguém conhecido, do que o inver-
so, a saber, conhecer nada de nada, mas ser conhecido por todos!
Veja que de fato devemos nos vangloriar não por ter “visto” Platão, mas
tão somente por conhecer o seu pensamento. Vou mais além: creio que eu
esteja sendo indigno de ser lido por vós, que, justo agora, me escutais, por-
que eu não sou Platão, nem mereci ter vivido para vê-lo. Suficiente vos seria
ter bebido da própria fonte da Filosofia, mas eis que ainda não matastes
vossa sede! E até um rei, após beber em um cálice de ouro, usa de um copo
de barro [se preciso for, e ainda sedento estiver].
Então, por qual motivo deveríamos nos envergonhar? Se ouviram Platão,
também ouviram Crisipo, corroborando o dito no Provérbio: “o que tu não
conheces, quiçá o conheça Ofelo”. A ninguém é dado o prodígio de conhecer
tudo; mas, por outro lado, não vejo pessoa alguma que não tenha recebido
naturalmente um dom especial [para alguma proeza, em sua própria vida].
194
Assim, um estudante prudente ouve com felicidade todas as teorias. E
as estuda, não desprezando qualquer escrito, pessoa ou doutrina [que lhes
chegue aos olhos]. Sem qualquer distinção, notando algum conhecimento
que lhes falte, pedem para [que] lhes sejam dados, porque não levam em
consideração o quanto conhecem, mas sim o quando ignoram!
Portanto, [os verdadeiros] estudantes repetem o dito platônico: “Mais
me inclino em aprender com modéstia o conhecimento de outras pessoas
do que inserir impudicamente [isto é, de coagi-las a aprenderem] os meus
conhecimentos”.
Por que tu te envergonhas em aprender e não de seres ignorante? Digo
que uma vergonha muito maior nasce desta segunda condição.
Por que tu desejas conhecimentos tão altos, se ainda jazes na baixeza?
Deves mais levar em conta o que tuas forças [atuais] podem pleitear [e não
o que está além de tuas reais possibilidades]. Avança com coerência quem o
faz ordenadamente, pois quem quer dar um salto [além de suas capacida-
des] acaba por cair no precipício. Logo, não se deve desejar pressa em dema-
sia [nos estudos, porque com esta devida moderação] para chegar mais cedo
à sabedoria. Deve-se aprender com comprazimento, e de qualquer pessoa,
o conhecimento que falte, porque a humildade pode tornar comum o que
naturalmente é passível de ser comumente conhecido. Serás o mais sábio,
quando quiseres aprender tudo de todos: os que recebem o conhecimento
de todos são de fato os mais ricos de todos!
Não qualifiques qualquer conhecimento de vil [ou inútil], porque toda
ciência é boa [de algum modo]. Se te deparas com um tempo livre, não dei-
xeis de, pelo menos, ler um escrito qualquer, porque se não lucrares com
tais palavras ao menos nada irás perder.
E isto porque, segundo o que penso, não há escrito que não nos proponha
um tema que possa ser de algum modo útil e desejável para nós, segundo a
ordem e o lugar convenientes. Não existe, portanto, qualquer livro sem algo
especial, isto é, sem um sentido diferente, e ainda não descoberto, e que,
quanto mais raro o for, com mais graça um pesquisador diligente o tomará.
195
Doutro lado, nada pode ser bom se tolhe o melhor, de modo que, se não
puderes ler todas as obras, preocupa-te com as que te forem mais úteis.
Digo mais: ainda que puderes ler todas elas, não deves despender todos os
teus esforços, de modo homogêneo e sem discriminação. Explico. Algumas
obras têm de ser lidas para que não sejam desconhecidas; outras devem ser
simplesmente ouvidas. Quanto a estas últimas, devemos ao menos reco-
nhecê-las, pois não são raras as vezes em que acreditamos em alguma coisa
que nunca de fato ouvimos, sendo muito mais fácil valorarmos uma infor-
mação por meio de seus frutos que [eventualmente] conheçamos.
Então, sei que tu podes ver quão necessária é esta humildade, para que
não desprezes qualquer conhecimento, aprendendo todos eles com prazer.
E assim, deves também procurar, enquanto iniciares o aprendizado de uma
ciência, não desprezar as outras. Este, aliás, é o vício da vaidade, presen-
te em pessoas que excessivamente valorizam sua própria ciência, de modo
que, como, para si mesmas, parecem ter alcançado uma posição [intelectual
ou social superior], julgam [inferiores] as outras que não possuem tal co-
nhecimento, e que, por isto, não são nem podem ser como elas.
Essa afirmação efervesce uma outra discussão [que ocorre hoje em dia]:
há alguns [homens] mentirosos, ignorantes dos temas que discutem (mas,
ainda assim, que se vangloriam do que nada sabem), acusando os mestres
mais velhos de ingenuidade, porque, segundo eles, acham que a sabedoria
nasceu e morrerá com eles. Eles afirmam categoricamente que o modo de
falar das Escrituras é tão simples que não seria necessário ouvir as lições
dos mestres, e que qualquer pessoa, simplesmente usando de sua própria
inteligência, seria capaz de penetrar no mistério da verdade divina [pre-
sente no texto das Escrituras]. Eles franzem o nariz e “fazem bico” para os
mestres, enquanto estes explicam os textos sagrados e não percebem que
injuriam a Deus, cujas palavras eles defendem belamente como sendo sim-
ples, mas maldosamente pregam que as palavras dos mestres são insípidas.
Não é meu conselho imitar tal espécie de pessoas.
O bom estudante tem de ser humilde e manso, afastado totalmente das
preocupações inanes e dos incitamentos das volúpias. Deve ser diligente e
atento, para que consiga aprender com comprazimento tudo que lhe for en-
196
sinado. Um estudante assim nunca será presunçoso quanto à sua ciência,
fugindo dos autores perversos e dogmáticos como se fossem veneno. Tem
de aprender a investigar por muito tempo um tema antes de julgá-lo, e não
desejar parecer douto, mas procurar intensivamente sê-lo de verdade. O estu-
dante deve amar os ensinamentos ditos pelos sábios, procurando tê-los sem-
pre diante de seus olhos, como se eles fossem espelhos de seu próprio rosto.
Assim, como os estudantes bem encaminhados por acaso não admitem
que conhecimentos mais obscuros penetrem em seu intelecto, eles tam-
bém não caem de imediato em um ato réprobo, ou seja, a crença de que só
seriam atos bons aqueles passíveis de serem conhecidos por eles [e maus,
todos os outros]. É justamente esta a humildade [fonte] da disciplina dos
estudantes (Didascálicon, III, 13).
197
198
módulo VI
O Renascimento do século xii
e a Escolástica
199
200
1
João de Salisbury e
o Humanismo do século xii
201
que consumiram o seu tempo e energia com Boécio que não sabem
nada que isso deve ser lamentado! (Meta. IV, 27, M243).
202
O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente
porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e tempo-
ral, elas exibem aos amigos a presença mútua e não permitem que pereçam
com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam pereci-
do, os juramentos ter-se-iam esvaído e os ofícios todos de qualquer religião
teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido se a mi-
sericórdia divina não tivesse providenciado para os mortais o uso das letras
como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos Antigos, exortação
e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada,
se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, o não
tivessem transmitido aos pósteros.
De fato, a vida breve, o torpor da negligência, as ocupações inúteis per-
mitem-nos conhecer muito pouco, e mesmo esse pouco é continuamente
dilapidado e roubado por aquele que é o defraudador da ciência e o eterno
inimigo e infiel padrasto da memória, o oblívio. Pois quem conheceria os
Alexandres e Césares, quem admiraria os estoicos e peripatéticos, se os não
tivessem dignificado as obras dos escritores? Quem imitaria o caminho,
digno de abraçar, dos apóstolos e profetas, se os não tivesse consagrado para
a posteridade a Sagrada Escritura? (...)
Nada, pois, é mais aconselhável aos que buscam a fama que merecer,
sobretudo, a graça dos letrados e escritores. Pois é-lhes inútil empreender
feitos egrégios, que trevas perpétuas hão de obscurecer, se não forem ilu-
minados pela luz das letras. Qualquer favor ou elogio que se receba de ou-
tra forma é como se Eco, conhecida nos mitos, fosse aplaudida no teatro:
acaba assim quem começa. As fiéis letras trocam essas coisas por consolo
na dor, restabelecimento no trabalho, conforto na pobreza, comedimento
na riqueza e nos prazeres. Porque o espírito se redime dos vícios e se refaz,
ainda que na adversidade, com doce e espantoso conforto, quando dirige a
agudeza da mente à leitura e redação de coisas úteis.
203
Para dar prova do amor pela erudição, o elenco de autores citados e co-
mentados em O Político é impressionante! Filósofos e poetas: Platão, Cícero,
Horácio, Sêneca, Juvenal, Catão, Lucano, Estácio, Cassiodoro, Justiniano, Ma-
cróbio, Orósio, Jerônimo, Valério Máximo, Virgílio, Enéas, Petrônio, Ovídio,
Frontino, Floro, Agostinho, Jerônimo, São Bernardo de Claraval, Plínio, Cor-
nélio Galo, Pérsio, Vegécio, Aulo Gélio, Ausônio, Entrópio, Leão, o Filósofo,
Suetônio, Salústio, Gregório Magno, Claudiano, Ivo de Chartres, Abelardo,
Graciano, Júlio Paulo Prudentíssimo, Terêncio, Sereno Sammonico, além, é
claro, da Bíblia!
Como o tratado discorre sobre muitos temas, debruçar-me-ei sobre al-
guns poucos, básicos como, por exemplo, o que é Filosofia — definição que
perpassou toda a tradição filosófica até o raiar da Modernidade, quando os
pensadores passaram a enfatizar que a Filosofia não é, mas ensina a pensar.
Assim, João de Salisbury afirma que o nome Filosofia nasceu com Pitágoras
(VII, 5) e que, se Platão disse a verdade, isto é, que o filósofo é aquele que ama
a Deus, então é a Filosofia o amor à divindade (VII, 11). A Filosofia tem graus:
204
O nobre fruto do espírito filosófico é uma generosa equanimidade da
mente e um viver na abundância e suportar a escassez, de modo que leve
tudo com alegria e desarme as vicissitudes da Fortuna. Quem alcança esse
modo de vida, o filósofo, não teme as coisas, pois não sofre os infortúnios da
existência (V, 17), até porque a vida não passa de uma aparência do real — nas
palavras do filósofo, ela é um grande teatro onde a existência tem seu grau de
farsa, de burlesco. O leitor poderá ter uma boa noção de como a Filosofia no
século XII estava embebida de classicismo com a citação a seguir, que é um
pouco longa, mas merece ser citada na íntegra.
205
A comparação de Petrônio é sem dúvida elegante: as ações praticadas pelo
homem no burburinho do mundo assemelham-se mais a uma comédia que
a um empreendimento heróico.1 Foi dito que “a vida do homem sobre a terra
é uma milícia”.2 Contudo, se o profeta houvesse podido imaginar o nosso
tempo, sem dúvida ele também haveria de dizer que a vida do homem sobre
a terra é uma comédia, na qual cada um, esquecido de si mesmo, recita a
parte do outro. Mas creio que o profeta apenas queria ensinar que aqueles a
quem a vida terrena ainda não absorveu, devem ser sempre soldados.3
De fato, os que são prisioneiros dos vícios e presas da concupiscência es-
tão destinados à pena, tal como o boi ao sacrifício, e embora seus corpos ha-
bitem a terra, já foram absorvidos e lançados ao inferno.4 Noutras palavras,
a terra é habitada por homens que não pensam no céu, e não sabem que no
céu existe algo para eles, mas aspiram somente às coisas materiais. O jugo
da milícia pesa também sobre aqueles cuja vontade não sabe realizar o que
se propôs, porque está longe do Senhor e ligada ao mundo. Caso usemos as
imagens das fábulas, eles conhecem a onda de Tântalo5, o abutre de Tício6, a
roda de Ixião7, a urna das Danaidas8 e a pedra de Sísifo.9 A vida deles é, pois,
uma milícia: uma milícia na malícia.10
Mas se esta definição não agrada, pode-se adotar uma outra, e dizer que a
vida do homem sobre a terra é uma tentação, isto é, como diz originalmente
o termo, um contínuo medir-se com o mal.
Perdido nesta tentação ou milícia, quase todo o mundo — digo quase
porque o Senhor reservou para Si sete mil justos11 — quase todo o mundo é,
ao mesmo tempo, como diz Petrônio, ator e espectador de uma comédia e, o
que é pior, não sabe mais retornar à realidade quando é necessário.
De fato, conheci crianças que imitaram por tanto tempo os balbucios
que, depois, nem mesmo querendo, conseguiram falar corretamente.
Como se costuma dizer, o hábito é esquecido com dificuldade, e o costu-
me plasma outra natureza que, “se a expulsares com o forcado, retorna por
si sorrateiramente.12 Por isso, é útil o conselho do poeta ético quando diz:
“Escolhe para ti desde criança o melhor modo de vida, e o hábito haverá de
torná-lo agradável”.13
206
Através de seu conhecimento do mundo, os grandes escritores de co-
média combatem os defeitos humanos. O configurar-se vários dos atos
introduz certa variedade na comédia. E os atores estão a serviço do que
representam, realizando-se neles o jogo da Fortuna caprichosa.14 De fato,
quem é que ora reveste de enorme poder a alguém novo e desconhecido,
elevando-o à glória do trono, ora coloca em grades hostis um rei que se ves-
tia de púrpura15 antes mesmo de nascer e, após torná-lo escravo, lança-o na
miséria mais extrema? Ou o que é — como seguidamente acontece — que
mancha as espadas infames não só com o sangue dos tiranos, mas também
com o sangue daqueles príncipes cujos súditos são débeis e até mesmo vis?
“Se a Fortuna quiser, torna-se cônsul um mestre; mas se o quiser, torna
mestre um cônsul”.16
Por isso, a vida dos homens se parece mais com uma tragédia que com
uma comédia, pois quase ninguém tem um fim alegre: por mais doces que
as coisas tenham sido, acabam amargas, e o luto sucede as grandes alegrias.
Por mais que os ímpios prosperem e enriqueçam graças ao concurso de cau-
sas favoráveis, por mais que a Fortuna se submeta a eles, no término de seus
caminhos haverá de abatê-los e será tão amarga como o absinto.
“Como é que os maus vivem, diz Jó, envelhecem e cresce seu vigor? Sua
prosperidade prospera diante deles e seus descendentes crescem sob seus
olhos; sua casa é tranqüila, sem alarmes, a vara de Deus não os atinge. Seu
touro é cada vez fecundo, sua vaca dá cria sem nunca abortar. Deixam os
filhos correrem como carneiros e os seus pequenos saltam e brincam. Can-
tam ao som do tímpano e da cítara, divertem-se ao som da flauta. Passam
seus dias na alegria e descem tranqüilamente ao sheol”.17 Que conclusão
pode ser mais amarga após a alegria anterior ou que fim pode ser mais in-
feliz depois de um caminho tão feliz? Mas este é o final daqueles que “não
tomam parte no trabalho dos homens, nem são flagelados com estes”.18
De fato, a vontade do Senhor os abate enquanto se exaltam, pois tudo
quanto acontece deve ser atribuído à Sua vontade, mais que à Fortuna, que
dele provém ou, como julgo mais provável, nem sequer existe. A respeito
dela diz o escritor ético: “Não digas que a Fortuna é cega, porque não existe”.19
207
Também Homero, naquele seu poema de tão célebre perfeição, recusou-se
a admitir a existência da Fortuna, que não é nomeada em nenhuma parte do
texto. Quis confiar somente a Deus — a quem chamou de Moipan — o gover-
no de todo o universo, sem atribuir nada à temeridade da Fortuna, que não
pode ser uma deusa, se é cega, com lá se diz e se pinta; e por outro lado seria
vã a empresa de demonstrar a cegueira daquilo que não existe na natureza.20
Também o acaso — que é definido como um acontecimento fortuito —
não existe, pois nada existe sem uma causa e uma razão procedente21, e o
pregador fiel ensina que nada acontece na terra sem um motivo.22 Contudo,
como não poucas coisas acontecem inesperadamente, para além da inten-
ção de quem age, costuma-se colocá-las sob o acaso. Em verdade, porém,
elas foram previstas por aquele que as dispôs segundo a razão, da mesma
forma daquelas que parecem determinadas pela lei natural.
Portanto, também o contingente depende da causa primeira, enquanto
tudo é reduzido a esta e, a meu juízo, a existência da causa primeira segue-
se necessariamente da posição de todas as coisas. Talvez os mais sábios ha-
verão de rir de minha ignorância, pois admito derivar a existência de Deus
a partir da existência de todas as coisas. Mas foram os peripatéticos que
me ensinaram a inferir ou a conjeturar a existência da causa a partir dos
efeitos.23 Além disso, os próprios doutores da fé tiravam das coisas aquela
causa da qual, pela qual e na qual tudo existe24, e sem a qual nada é criado
e pode existir.
Assim, quando pareço atribuir algum papel à Fortuna, não o faço em de-
trimento da causa primeira. Simplesmente como meu discurso se dirige
aos homens, utilizo a linguagem dos homens, os quais — como já afirmei
— agem em cada caso como a gorda Minerva, sem dar a razão precisa a res-
peito de nada. E se tal coisa é pacificamente admitida, por que se proibirá de
ouvir aquilo que os filósofos gentios escreveram para a utilidade pública?
“Tudo o que foi escrito, foi escrito para o nosso ensinamento, a fim de que
pela paciência e a consolação das Escrituras conservemos a esperança”.25
De fato, como não existe paz para os filhos de Adão — que nasceram para
o sofrimento, destinados à desgraça, concebidos em pecados, paridos em
dor, e que não caminham, mas antes correm para a morte, da qual nada é
208
mais triste — é necessária a perseverança e útil a consolação, que favorece
e reforça os predestinados para a vida eterna com a esperança do futuro, na
consciência do bálsamo da alegria e da imensidão da clemência divina.
“Ó guardião dos homens — diz o bem-aventurado Jó, sintetizando em si
as calamidades do gênero humano — por que me colocaste contra ti e me
tornaste um peso para mim mesmo?”.26 De fato, não existe ninguém que,
quando é atingido pela culpa, não encontre em si mesmo a causa e a matéria
de seu sofrimento. Até mesmo o testemunho da filosofia diz que a cada um
acontece de encontrar-se onde não quer, e de estar ausente de onde gostaria
de estar. É por isso que a alma fiel, à qual são concedidas as alegrias da ver-
dadeira felicidade, pede um campo irrigado acima e um irrigado abaixo.27
Por isso, a fim de adaptar os ouvidos piedosos às invenções dos gentios,
direi que o fim de todas as coisas é trágico. Mas nada tenho a objetar se se
quiser manter, como mais agradável, o nome de “comédia”, pois é sabido
também entre nós que, como diz Petrônio, quase todos se comportam como
histriões. A este respeito, um ilustre escritor de nosso tempo exprimiu com
elegância as palavras dos pagãos, ao dizer: “A sorte cega revira as ridículas
fadigas dos homens; os nossos dias são o jogo e a brincadeira dos deuses”.28
O teatro no qual acontece uma tão grande, tão admirável e tão inenarrável
tragédia, ou comédia, é perfeitamente adaptado à representação. Sua super-
fície é do tamanho da terra. É muito difícil que seja aceito quem foi excluído,
ou que seja admitido quem foi expulso, enquanto carrega a veste suja da car-
ne. É necessário despir-se totalmente desta indumenta, a fim de conseguir
passar ileso pelo buraco da agulha.29 De outra forma, ninguém sairá ileso,
talvez porque “o Estinge, que lhe passa pelo meio, o cinge nove vezes”.30
Diz o Eclesiastes: “Vi todas as coisas que existem sob o sol, e eis que tudo
é vaidade”.31 Quando a gente se afasta do sólido terreno da verdade, cai na-
quele da vaidade, que é o terreno próprio de nossa comédia, “pois a criatura
está sujeita à vaidade não por sua própria vontade”.32
Embora o local em que moramos esteja cercado por nove orbes ou esfe-
ras, contudo, um dia deveremos dele sair, e o inexorável Caronte haverá de
fazer que todos atravessem o rio com sua barca carregada de anos.33Uns su-
cedem-se aos outros e assim, passando os indivíduos, permanece a espécie
209
humana, do mesmo modo como, passando a água, a mesma corrente per-
manece no rio. “Onde se encontram aqueles poderosos que desde o início
conhecem a arte da guerra, que jogam com as aves do céu e que acumulam
o ouro em que os homens põem sua confiança, acrescentando casa a casa,
campo a campo, até os confins da terra, e que não têm limites em suas pos-
ses?”.34 E logo a Escritura dá a resposta que todos conhecem por repetida
experiência: “Desceram aos infernos e outros vieram em seus lugares”.35
É, pois, conforme a eqüidade, e não por capricho da Fortuna, que são lan-
çados nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes36; e que,
como recorda o santo Jó37, passam das águas das neves para o calor mais in-
suportável. Também é conforme a eqüidade que os que chegam aos Campos
Elíseos sejam iluminados pelo verdadeiro sol da justiça.
Mas porque excluo implicitamente que os Campos Elíseos estejam ex-
cluídos do mundo das coisas passageiras? Eles estão sem dúvida incluídos
em parte, estendendo-se a todos os espíritos justos, aos quais foi concedido
pelo Pai das Luzes de poderem dedicar-se com todo o ardor ao conhecimen-
to e ao amor do bem.38 Por isso, o poeta ético respondeu a quem, inquieto,
lhe perguntava sobre a felicidade impossível fora de si mesmo: “Aquilo que
procuras, está em toda a parte; encontra-se em Ulubras, se não lhe faltar um
ânimo justo”.39
NOTAS:
1 Petrônio (c. 27–66 a.C.). “Quanto a Petrônio, devemos reportar um pouco antes. É
certo que ele dedicava o dia ao sono, as noites aos deveres e às distrações da vida. E
assim como outros devem sua fama ao trabalho, ele a devia à preguiça, e não era tido
como um libertino e um dissipador, como muitos que dissipam seu patrimônio, mas
como um erudito no luxo. E como suas palavras e ações eram livres e providas de uma
aparência de negligência de si mesmo, elas eram recebidas mais de bom grado sob
uma aparência de simplicidade.
Malgrado tudo, foi pró-cônsul da Bitínia e, depois, cônsul, dando provas de ener-
gia e de estar à altura dos negócios públicos. Voltando aos seus vícios ou tomando
o ar de um viciado, Petrônio foi admitido entre os poucos íntimos de Nero, como
210
um árbitro de elegância, até o ponto em que o príncipe não acreditava que houvesse
nada mais encantador e delicado em seu luxo além daquilo que Petrônio lhe reco-
mendava.” — TÁCITO, An., 16, 18. “Satiricon é uma novela que, pelos lábios de um tal de
Encolp, descreve os ambientes baixos de uma grande cidade do sul da costa italiana
onde chegaram dois jovens, Ascilto e Gitão, aos quais se unirá um velho e ridículo po-
eta chamado Eumulpo. (...) A parte conservada dessa obra contém uma explicação do
banquete oferecido a Trimalcião, um libertino estúpido, personagem enriquecido de
uma maneira escandalosa, aos seus amigos; a cena é uma paródia cheia de permissi-
vidades desavergonhadas (escravos, libertos, prostitutas, mulheres de má vida, etc.).
Em resumo, trata-se de uma novela pitoresca, realista, tendendo mais para a carica-
tura que ao retrato, mas expressa com uma língua e um estilo próprio de um mestre
da arte de escrever, com uma elegância clássica e expressões da época imperial, sem
negar, contudo, o lugar para as palavras vulgares, os solecismos, os barbarismos e os
termos de baixo calão.” — VILLALBA I VARNEDA, Pere. Roma a través delshistoriadors-
clàssics. Barcelona: UniversitatAutònoma, 1996, p. 424–425.
2 Jo 7, 1.
4 Nm 16, 30, que trata da revolta de Datã e Abiram, passagem do Velho Testamento
que ignora a responsabilidade individual: “E aconteceu que, acabando de pronunciar
todas essas palavras, o solo se fendeu sob os seus pés, a terra abriu a sua boca e os en-
goliu, eles e suas famílias, bem como todos os homens de Coré e todos os seus bens.
Desceram vivos ao Xeol, eles e tudo aquilo que lhes pertencia. A terra os recobriu e
desapareceram no meio da assembléia. A seus gritos, fugiram todos os filhos de Israel
que se encontravam ao redor deles”, Nm 16, 31–33.
5 Tântalo roubou néctar e ambrosia do Olimpo para servir às suas concubinas, pe-
diu emprestado a Mercúrio o cão de Júpiter e não o devolveu, e matou o filho, Pélope,
e serviu-o aos deuses num banquete. Como castigo, foi lançado ao Tártaro. Mergulha-
do em um lago até os joelhos, foi sentenciado a não poder saciar sua fome e sede em
um vale abundante de vegetação e água: sempre que se aproximava da água, o líquido
211
escoava; ao tentar colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se para longe de seu
alcance, sob a força do vento. Este é o suplício de Tântalo: desejar algo muito próximo,
mas que está sempre inalcançável.
6 Tício (ou Titio) era filho de Elara e Zeus. Este, por medo de Hera, escondeu Elara na
Terra, e ela deu à luz Tício, um gigante (ou monstro ctônico), tentou violentar a Hera
de Leto (ou, em outras versões, a Ártemis) que, aos gritos, foi socorrida por Apolo e
Ártemis, que flecharam o monstro. Por ser imortal, foi lançado ao Tártaro, com as
pernas abertas no solo, e dois abutres (ou serpentes) passaram a comer eternamente
seu fígado. É considerado um personagem que representa a luxúria desenfreada (por
isso seu fígado é devorado: os antigos acreditavam que era o centro sede das paixões).
As fontes clássicas que citam o mito são Apolodoro, Biblioteca i, 4, 1, Homero, Odis-
séia, XI, 660–668, Pausânias, II, 30, 3; X, 4, 5 e X, 6, 5, Plutarco, AetiaGraeca 12, Higino,
Fábulas 55 e Píndaro, OdasPíticas IV, 90 e seg.
A tradição literária cristã manteve a citação de João de Salisbury. Por exemplo, o
nosso Padre Antônio Vieira (1608–1697) a cita, em seu Sermão da Primeira Dominga do
Advento (1655), III (edição eletrônica de Karina Beatriz Espíndola): “Só uma coisa há
que não pode passar, porque o que nunca foi, não pode deixar de ser, e tais parece que
foram as fábulas que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não
passaram em si mesmas, passaram naqueles casos e coisas que deram ocasiões a se
fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula de Faetonte:
no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula de Deucalion; no
estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e movimento das estrelas, passou
a fábula de trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas as noites, com
que Endimion observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula
dos seus amores com a Lua. E porque também os nossos vícios, a nossa fraca virtude,
e a nossa mesma vida passam como fábula; o amor e complacência de nós mesmos
passou na fábula de Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de Midas; a cobiça in-
saciável, na fábula de Tântalo; a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a
inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixion; o perigo de acertar com o
meio da virtude, e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de Cila e Caribde; e
finalmente a certeza da morte, a incerteza da vida, pendente sempre de um fio, passou
e está continuamente passando na fábula das Parcas. Assim envolveram e mistura-
212
ram os sábios daquele tempo o que há com o que não há, e o certo com o fabuloso;
para que nem o louvor nos desvaneça, nem a calúnia nos desanime, pois o verdadeiro
e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.”
8 Rei dos lápitas (na Tessália), após inúmeras infrações, Ixião foi condenado por
Zeus a ser amarrado a uma roda de fogo e lançado através dos ares. Os autores costu-
mam localizar esse castigo de Ixião no Tártaro.
9 As Danaidas (ou Danaides) eram cinquenta filhas de Dânao (com diferentes mu-
lheres). Desposaram cinquenta egípcios e, por incitação de Dânao, na noite de núp-
cias mataram seus maridos (exceto Hipermnestra, que poupou Linceu). Mais tarde, o
próprio Linceu assassinou as Danaidas, que, por seu crime, desceram aos Infernos e
receberam como punição a pena de encher um tonel sem fundo, o “tonel das Danai-
das), ou seja, um trabalho inútil.
10 Condenado por Júpiter aos Infernos, Sísifo sofreu a seguinte pena: rolar uma
enorme rocha por uma escarpa; sempre que atingia o cume, a rocha caía, forçando
Sísifo a recomeçar o trabalho. Em muitas passagens do Policraticus João de Salisbury
faz alusões à mitologia grega para criar analogias com sua filosofia humanista cristã.
11 Jogo de palavras muito apreciado pelos escritores medievais. Por exemplo, São
Bernardo de Claraval escreve o mesmo a respeito da milícia secular (milícia/malícia).
13 Horácio, Ep. I, 10, 24. “Poeta nascido em 65 a.C. em Venúsia, na Apúlia; filho de
um escravo libertado que dispunha de um pequeno pé-de-meia, estudou em Roma,
depois em Atenas, onde se viu arrastado pelo exército dos ‘libertadores’, Bruto e Cás-
sio, em 42 a.C., com o grau de tribuno militar. Depois da derrota de Filipos, regressou
à Itália, mas, arruinado, tornou-se escrivão para sobreviver (...) Mecenas procurou
atrair o jovem para o seu grupo de amigos, e, em 31, ofereceu-lhe uma propriedade em
Sabina. Foi nessa época que o poeta escreveu as suas Sátiras, e peças líricas, as Odes,
cujos três primeiros livros foram publicados em 23. Seguiram-se-lhes dois livros de
213
Epístolas (compreendendo a Arte Poética) e, em 17 a.C., Carmen Saeculare. Horácio mor-
reu em 8 a.C.” — GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 300.
16 A cor púrpura era um sinal de realeza. Na Idade Média, já com os merovíngios a
túnica púrpura representava o poder real: “Nessa época, Clóvis recebeu do impera-
dor Anastácio os codicilos consulares e, revestido de uma túnica purpúrea e de uma
chlamyde, na basílica do bem-aventurado Martinho, colocou sobre a cabeça um diade-
ma. Em seguida, montado a cavalo, distribuiu ao povo presente, por sua própria mão
e de muito boa vontade, ouro e prata pelo caminho situado entre a porta do átrio [da
basílica] e a igreja da cidade e, desse dia em diante, foi chamado cônsul e Augusto.” —
Gregório de Tours, DecemLibriHistoriarum II, 38.
17 Juvenal, Sátiras, VII, 197s. “... nasceu em Aquinum, na Campânia, cerca de 60 d.C.
Publicou suas primeiras Sátiras quando muito em 96 (depois da morte de Domicia-
no). Estamos mal informados sobre sua vida; talvez tenha sido soldado; em todo caso,
estava familiarizado com os retóricos. Morreu depois de 128.” — GRIMAL, Pierre. A
civilização romana, op. cit., p. 305.
19 Sl 72, 5.
20 CATÃO, Dist. 4, 3.
214
23 Jo 5, 6.
25 Rm 11, 36 e Jo 1, 3.
26 Rm 15, 4.
27 Jo 7, 20.
29 Bernardo Silvestre de Chartres (c. 1100–1169) foi um filósofo de tendência neo-
platônica, autor de uma obra dedicada a Teodorico de Chartres intitulada De universi-
tatemundisivemegacosmus et microcosmus, onde converte os atributos das Pessoas da
Trindade em atributos cosmológicos, isto é, as funções que as Pessoas realizam no
mundo (como a Potência, a Sabedoria e a Bondade). Sua filosofia está maravilhosa-
mente representada na catedral de Chartres.
30 Mt 19, 4.
36 Br 3, 19.
215
37 Mt 8, 12.
216
Para fugir do burburinho do mundo, a Filosofia preza o caminho da virtu-
de (VII, 8) e a necessidade de se ler tudo, não desprezar escrito algum (VII, 10).
Devem ter desprezo pelo dinheiro — como Sócrates, Antístenes e Diógenes
(V, 17) — e considerar a necessidade de se viver em terra estrangeira:
Trata-se de um caminho tão difícil, tão rigoroso, que são poucos os que re-
almente conseguem chegar a bom termo. A maior parte se perde na bajulação
de seus professores:
217
A filosofia contemplativa (de raiz clássica) de João de Salisbury não descon-
sidera a vida prática, a vida cotidiana. Pois o tratado O Político é, acima de
tudo um texto dedicado ao exercício do poder, ou melhor, à prática virtuosa
que o detentor do poder deve se voltar. Por exemplo, e para citarmos o últi-
mo tema do tratado, o governante deve se precaver contra os aduladores, os
bajuladores, aqueles personagens que cercam o poder em busca de benesses,
de regalias.
O governante deve ser ensinado que a verdade é amarga, mas esse fel é
mais útil e grato para a integridade da sensibilidade: é sempre preferível a
lealdade da verdade do que a maldade da mentira (III, 6). Os bajuladores são
inimigos da virtude. O governante — que deve ser aconselhado a aspirar à sa-
bedoria — deve examinar o que é por si, o que tem dentro de si, por fora, por
debaixo, acima, diante, por trás. Devem estudar filosofia (novamente surge
Platão, sempre ele!): analisar a natureza de todas as coisas: dimensão, desti-
no, qualidade, lugar, tempo, capacidade de ter, fazer, sofrer, e todas as suas
propriedades, isto é, se admitem intensidade, se são suscetíveis de aceitar
contrariedades, e se em si mesmas há algo adverso (III, 2) — agora Aristóteles!
Por isso, somente a virtude conduz à Filosofia que, por sua vez, torna as
pessoas felizes (VII, 8).
218
219
220
2
Tomás de Aquino e
Ramon Llull
2.1 A Verdade e a Sabedoria
221
“Falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer
que o ser é e que o não-ser não é” (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro
IV, 7, 1011b).
O tema é tão importante para a Filosofia que Aristóteles não se faz de roga-
do e assim define o amor à sabedoria:
Repare que, sempre que cita Aristóteles, Tomás de Aquino se refere a ele
como o filósofo, tamanha é sua admiração pelo pensador grego!
O Aquinate prossegue no tema, unindo-o à sabedoria:
222
de todo o universo. Donde, também, convir à sabedoria entregar-se,
acima de tudo, à sua consideração (Suma contra os gentios, I, I, 4a).
223
fé, filosofia e teologia têm o mesmo objetivo: a sabedoria, o conhecimento da
causa primeira e última de toda a realidade.
224
de Deus, uma perfeição, um atributo, uma virtude, princípios generalíssimos e
substanciais que cada criatura, em maior ou menor grau, participava em se-
melhança (a gradação da capacidade de participação em Deus era uma heran-
ça filosófico-ocidental da obra do Dionísio Areopagita).
Pelo conhecimento das dignidades, raciocinando, nossa inteligência se
elevaria a Deus. Por isso, elas eram, para Llull, um valor metafísico absoluto,
exemplos segundo os quais a atividade divina ad intra criou o mundo (isto
é, a partir d’Ele próprio). Elas se refletiam em todos os aspectos da Criação.
Todo o método indutivo, comparativo e demonstrativo da Arte consistia na
redução das coisas particulares aos aspectos transcendentais da realidade (as
dignidades) e, consequentemente, a comparação das coisas particulares entre
si à luz delas.
Llull compôs sua Arte também com figuras. Por exemplo, na figura 1, todas
as dignidades divinas estão unidas por linhas, o que indica que são coessen-
ciais à essência divina e mutuamente convertíveis. Assim, a Bondade de Deus
é grande, eterna, poderosa, sábia, etc.; a Grandeza é boa, eterna, poderosa,
etc.; a Eternidade é boa, sábia, poderosa, verdadeira, etc. Cada uma age na
outra, pois não há ociosidade em Deus: a Bondade não cessa de fazer o bem,
pela eternidade, com a verdade, o poder, a sabedoria, etc.; a Grandeza mag-
nifica com o poder, com a sabedoria, através da eternidade, etc.; a Eternidade
eterniza com o poder, a sabedoria, o bem, etc., e assim por diante.
Por isso, o Bem engendrado é o Filho, o engendrador o Pai, e o “engendran-
te” o Espírito Santo. Mas porque existe essa “produção ativa” em Deus? “Por-
que caso não existisse, todas as razões divinas seriam ociosas na extensão e
na duração infinitas”, e isso, para ele, é impossível! Em uma redação circular,
Llull descreve literariamente essa ativa e eterna relação entre as dignidades
divinas em seu Livro das Maravilhas (1288–1289):
225
Vontade, ela faz o bem e o engendra de Si mesma com a Eternidade, o Poder, a
Sabedoria, a Vontade. Este bem engendrado é a pessoa do Filho, e o engendra-
dor é a pessoa do Pai; e do Pai e do Filho nasce o Espírito Santo. O mesmo faz
a Bondade, a Imensidão, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade, e ao
mesmo tempo o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma natureza divina, uma
divindade, um Deus. E em Deus existe uma pessoa, o Pai, por toda a Bondade,
a Grandeza, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade, pois aquele que
engendra o Filho e faz nascer o Espírito Santo é a Bondade, a Infinitude, a
Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade.
O mesmo ocorre com o Filho e o Espírito Santo, que são cada um deles a
Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade. Por isso,
nessa obra que Deus realiza dentro de Si mesmo, são suficientes uma pater-
nidade, uma filiação e uma procissão. E como nessa obra existem a Infinitu-
de e a Eternidade, não pode haver ociosidade, nem desigualdade, maioridade
ou menoridade. Pois, se houvesse Bondade em Deus sem a criação do bem e
Infinitude sem a criação do infinito, e o mesmo da Eternidade, do Poder, da
Sabedoria e da Vontade, existiria em Deus ociosidade de Bondade, Infinitude,
Eternidade, Poder, Sabedoria e Vontade, e tal ociosidade seria contra a Bon-
dade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade de Deus. Por
isso, assim como é suficiente Deus ser em Unidade, basta à Unidade uma pa-
ternidade, uma filiação e uma espiração, pois o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são a Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade.
E como o Pai engendra o Filho com toda a Sua Bondade, Sua Infinitude, Sua
Eternidade, Seu Poder, Sua Sabedoria e Sua Vontade, existem no Filho toda a
Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade do Pai.
O mesmo ocorre com o Espírito Santo, que é toda a Bondade, a Infinitude,
a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade do Pai e do Filho, procedendo,
assim, infinita e eternamente todo o Espírito Santo de todo o Pai e de todo o
Filho e por todo o Pai e por todo o Filho. É natural existir amor entre pai e fi-
lho, e naturalmente o homem ama a virtude que nasce de seu ato de lembrar,
entender e amar. Ora, se o pai ama o filho que é engendrado de seu corpo e do
corpo da fêmea, quanto mais amaria seu filho se o engendrasse somente de
si mesmo, de todo si mesmo e igual a si mesmo! E se a alma ama seu lembrar,
226
entender e amar que nascem de sua virtude, mais amaria, se seu lembrar,
entender e amar fossem sua própria virtude e fossem ela própria!
Essa forma circular de redação tinha o objetivo de fazer o leitor (ou o ou-
vinte “infiel” — judeu ou muçulmano) ascender espiritualmente em direção
a Deus. Assim, Llull tentava explicar o inexplicável, isto é, o êxtase místico do
contato com Deus. Esta forma de redação é tipicamente medieval e se explica
também pela ideia neoplatônica que o conhecimento da alma — e, portanto,
o de Deus — se dava através de um movimento circular.
Na obra Arte Breve (1308), Llull expõe o significado de seu alfabeto e o da
sua primeira figura:
“A razão pela qual fazemos esta Arte Breve é para que a Arte Magna
seja mais facilmente conhecida, pois se se conhece esta, tanto a Arte
supracitada como as outras artes podem ser conhecidas e aprendidas
com facilidade. A finalidade dessa Arte é responder a todas as ques-
tões, sempre que se saiba o significado de cada termo.”
“Colocamos um alfabeto nessa Arte para com ele poder fazer figuras
e mesclar princípios e regras para investigar a verdade, já que por
meio de uma letra que possui muitos significados, o intelecto é mais
geral para receber muitos significados e fazer ciência. Convém saber
de memória este alfabeto, já que de outro modo o artista dessa Arte
não poderá aplicá-la bem.”
O Alfabeto
227
G significa vontade, fim, qual?, sensitiva, esperança e inveja.
H significa virtude, maioridade, quando?, vegetativa, caridade e ira.
I significa verdade, igualdade, onde?, elementativa, paciência e mentira.
K significa glória, minoridade, como e com que?, instrumentativa,
piedade e inconstância.
B
Bonitas
K M C
ag
Bonum ni
o ria M tu
Gl um ag do
s nu
o rio m
Gl
Duratio
D
Duran
Veritas
I
Verum
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Pot
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H
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n s Sapi
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ntas enti
Sapi
G F
228
Esta figura é circular, já que o sujeito se transforma em predicado e vice-
versa, como quando se diz: “a bondade é magna”, “a magnitude é boa”,
etc. Nessa figura o artista da Arte inquire a conjunção natural entre o su-
jeito e o predicado, sua disposição e proporção, para que possa encontrar
o meio termo que lhe permita chegar à conclusão.
Qualquer princípio tomado em si mesmo é absolutamente geral, como
quando se diz “bondade” ou “magnitude”. Mas quando um princípio se
refere a outro, é subalterno, como quando se diz “bondade magna”, etc.
E quando algum princípio se refere a algo singular, então é um princípio
especialíssimo, como quando se diz “a bondade de Pedro é grande”, etc.
Assim, o intelecto dispõe de uma escala ascendente e descendente, de
um princípio absolutamente geral até um não absolutamente geral nem
absolutamente especial, e de um não absolutamente geral nem absoluta-
mente especial a um absolutamente especial. O mesmo se pode dizer do
ascenso dessa escala.
Nos princípios dessa figura se encontra incluído tudo o que existe,
pois tudo o que existe ou é bom, ou é grande, etc., como Deus e o anjo,
que são bons e grandes, etc. Por isso, tudo o que é se pode reduzir aos
supracitados princípios.”
229
tipografia Milo Pro e Milo Serif Pro, projetadas
por Michael Abbink e Paul Van Der Laan, no corpo
do texto e Civitype FG no título.
capa papel supremo 300g/m²
miolo papel Offset 90g/m²
impressão xxxxxxxxxxx
230
Bento Silva Santos
Ricardo da Costa
231
ISBN: 978-85-63765-20-8
www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208
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