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Bento Silva Santos

Ricardo da Costa

Universidade Federal do Espírito Santo Filosofia


Secretaria de Ensino a Distância Licenciatura
O livro História da Filosofia Medieval percorre
didaticamente as etapas fundamentais da
filosofia na Idade Média, desde suas concepções
histórico-filosóficas, passando pelo período
patrístico até o pensamento escolástico no século
XIII. Os autores selecionados foram Agostinho,
Gregório de Nissa, Boécio, Dionísio Pseudo-
Areopagita, João Escoto Erígena, Anselmo de
Canterbury, Hugo de São Vítor, João de Salisbury,
Tomás de Aquino e Ramon Llull.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
Secretaria de Ensino a Distância

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2015
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indicando-se o nome do autor e a origem da obra). Toda reprodução foi realizada com amparo legal do regime geral de
direito de autor no Brasil.
Sumário
módulo I Portal para o Mundo Medieval
1 Os Períodos Medievais 9
1.1 A Alta Idade Média
1.2 A Idade Média Central
1.3 A Baixa Idade Média 12

2 Cronologia e sentido da Filosofia Medieval 15


2.1 Cronologia da Antiguidade Tardia, da Alta da Baixa Idade Média
2.2 O sentido da Filosofia Medieval 17

3 Conteúdo programático do curso 21


3.1 Introdução à Filosofia Medieval
3.2 Os Padres da Igreja 22
3.3 Severino Boécio (480-524) e o Dionísio Pseudo-Areopagita 24
3.4 O Renascimento Carolíngio e a Pré-Escolástica
3.5 O Renascimento do século XII e a Escolástica 25
3.6 Avaliação Nível 2 26
3.7 Atualização de Estudos

módulo II
Introdução à Filosofia Medieval
1 Das “imagens” à conceituação da Idade Média 31
1.1 As Imagens
1.2 A conceituação: Perspectivas externas e internas 37

2 As Fontes da Filosofia Medieval 45

3 A Reação contra a Civilização Medieval 47


3.1 A Renascença (século XV)
3.2 A “Reforma” Protestante (século XVI) 49
3.3 A Física Moderna

4 A Idade Média e o pensamento filosófico posterior: 53


Continuidades e Rupturas
4.1 A Filosofia Moderna e a Idade Média
4.2 Apropriação contemporânea da Filosofia Medieval 55

módulo III Os padres da Igreja


1 O Período Patrístico 63

2 A temática da Patrística com base na tradição greco-latina 67


2.1 Agostinho de Hipona 68
2.2 Gregório de Nissa “O filósofo na Cátedra Episcopal” 95


módulo IV Severino Boécio e o Dionísio Pseudo-Areopagita
1 A transição do Mundo Antigo ao Medieval: 115
Boécio, “o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos.”

2 A Querela dos Universais 121


2.1 O que é um “universal”? 124
2.2 A formulação tradicional do problema dos universais 129
2.3 A teoria do universal de Boécio como cogitatio collecta 139

3 As bases transcendentais da Filosofia Medieval: 153


O Pseudo-Dionísio Aeropagota

módulo V O Renascimento Carolíngio e a Pré-Escolástica
1 João Escoto Erígena e a Divisão da Natureza 171

2 Anselmo de Canterbury: O argumento ontológico 181

3 Hugo de São Vítor 187


módulo VI O Renascimento do século xii e a escolástica
1 João de Salisbury e o Humanismo do século xii 201

2 Tomás de Aquino e Ramon Llull 221


2.1 A verdade e a Sabedoria
2.2 As dignidades divinas como o princípio do debate filosófico 224
8
Portal para o Mundo Medieval
A disciplina História da Filosofia Medieval abarca um período de dez séculos,
desde 430 — caso tomemos como referência a morte de S. Agostinho (354–430),
módulo I
ou 476, se considerarmos a queda do Império romano do Ocidente — até o
século xiv. Naturalmente, este curso não poderá abordar todos esses séculos

Portal para o Mundo Medieval


em oito semanas. Por isso, fizemos uma seleção de autores e temas do perí-
odo medieval para expor, em grandes linhas, os aspectos fundamentais da
Filosofia e da Teologia na Idade Média.
A disciplina História da Filosofia Medieval abarca um período de dez séculos,
desde 430 — caso tomemos como referência a morte de S. Agostinho (354–430),
ou 476, se considerarmos a queda do Império romano do Ocidente — até o
século xiv. Naturalmente, este curso não poderá abordar todos esses séculos
em oito semanas. Por isso, fizemos uma seleção de autores e temas do perí-
odo medieval para expor, em grandes linhas, os aspectos fundamentais da
Filosofia e da Teologia na Idade Média.

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8
1
Os Períodos Medievais
Esse período de um milênio (do século v ao século xiv) compreende, pelo
menos, três épocas ou períodos:

1.1 A Alta Idade Média (séculos v–x)

Época da formação dos reinos bárbaro-romanos e do feudalismo, no Ociden-


te, da permanência do Império Bizantino e da formação dos Estados eslavos,
no Oriente, da forte expansão e progressiva consolidação do Islã nas terras
banhadas pelo Mediterrâneo e da primeira unificação da Europa: o Império
Carolíngio (sécs. ix-x);

1.2 A Idade Média Central (séculos xi–xiii)

Nesse período aconteceu a transformação das relações entre Oriente e Oci-


dente e uma forte renovação cultural (e econômica) no Ocidente que pro-
piciou a fundação das universidades. Dessa época destaca-se o século xiii,
o “século de ouro” da Idade Média. É o século florescente das escolas uni-
versitárias. A designação “escolástica” foi dada a essa cultura acadêmica.
Acontece, porém, que o termo “escolástica” faz referência, ao menos, a dois
fenômenos diversos: de um lado, em sua função substantiva, remete à filo-
sofia desenvolvida entre os séculos xiii e xviii, especialmente nas universi-
dades da Europa; de outro lado, em sua função adjetiva, se refere, não a uma
determinada filosofia, mas a um modus philosophandi (modo de filosofar), que
pode ser compartilhado pelas mais variadas correntes filosóficas. Nesse con-
texto, característico desse período, é o “método escolástico”, que podemos
definir do seguinte modo:

9
“Por ‘método escolástico’ entendo um método, aplicado em filosofia
(e em teologia), que se caracteriza pelo emprego, tanto para a inves-
tigação quanto para o ensino, de um sistema constante de noções,
distinções, definições, análise proposicionais, técnicas de raciocínio
e métodos de disputa, que no início haviam sido tomadas da lógica
aristotélica e boeciana, e mais tarde, de um modo mais amplo, da
própria lógica terminista” 1.

Nessa definição, encontramos dois fatos atribuídos à escolástica. Primei-


ramente, um antecedente preciso: as obras de Aristóteles e Boécio. Em se-
gundo lugar, um método preciso, cujas linhas principais são: (a) a referência
constante a um sistema de auctoritates (autoridades); (b) a leitura analítica do
pensamento dessas autoridades (nisso constitui o processo da lectio) e (c), a
apreensão hermenêutica das afirmações aí contidas, ou seja, suas afirmações
devem ser colocadas em concordância entre si e com outras autoridades2.
Portanto, a formação da escolástica está vinculada à recuperação da filoso-
fia grega, especialmente do que se convencionou chamar de “aristolelismo”,
juntamente com o conhecimento da filosofia muçulmana. Existem três “en-
tradas” de Aristóteles no Ocidente: a primeira, por meio das traduções de
Severino Boécio (séculos vi–xii), reduzida à Logica vetus (Lógica antiga) (Ca-
tegorias e Peri hermeneías); a segunda, no século xii com a Logica nova (Lógica
nova) (Tópicos, Analíticos e Sofismas); a terceira, no século xiii, com a recupe-
ração do Corpus aristotelicum completo.
Essas três etapas da recuperação de Aristóteles foram aplicadas tradicio-
nalmente ao desenvolvimento do pensamento cristão no Ocidente, fazendo-
-as coincidir, mais ou menos, com as da formação da escolástica.
A primeira (séculos ix–xi) é uma etapa gramatical, pela qual tanto a Sagra-
da Escritura quanto o estudo de obras da Antiguidade se explicariam com o
estudo da Gramática (lectio);

1  L.M. DE RIJK, La philosophie au Moyen Age. Leiden: Brill, 1985, 85.

2  M. PÉREZ CARRASCO, Pensar, recibir, interpretar. La determinación de la “escolástica” como con-


cepto historiográfico, Studium. Filosofia y Teología 30 (2012) 282.

10
A segunda (século xii) é uma etapa dialética, em que a dialética aristoté-
lica foi aplicada à explicação da Sagrada Escritura e dos textos antigos (qua-
estio, disputatio);
A terceira (século xiii) foi a filosófica, quando a explicação do dogma cristão
foi feita com base na obra completa de Aristóteles (Física, Da Alma, Metafísica).

A recepção do aristotelismo no século xiii é complexa. O aristotelismo


latino ou cristão nunca foi um aristotelismo puro, como também não o fo-
ram tampouco os aristotelismos árabe ou judaico. O aristotelismo medieval
foi sempre completado (ou corrigido) com diversas influências religiosas ou
filosóficas (sobretudo neoplatônicas). Antes de 1250, o aristotelismo latino
ainda foi muito eclético e, sobretudo, avicenisante: à influência dominante
de Aristóteles se misturaram influências secundárias: Avicena, cujas pará-
frases serviram de base para interpretar os textos do Estagirita; Avicebron,
neoplatônico judeu muito estimado nessa época; Proclo; Averróis (a partir de
1230). Entre os teólogos, o aristotelismo foi combinado com as doutrinas tra-
dicionais da teologia latina, inspiradas, sobretudo, em Agostinho, no Pseu-
do-Dionísio Areopagita e nos pré-escolásticos do século xii. A partir de 1250,
o aristotelismo se firmou, ainda que ramificado em múltiplas correntes. Em
Boaventura, o aristotelismo foi agostinizante. Em Alberto Magno, neoplatoni-
zante, pois fortemente influenciado por Proclo, pelo Pseudo-Dionísio e por
Avicena. Em Tomás de Aquino, foi tão profundamente repensado que não se
pode mais falar de aristotelismo, mas de tomismo. Com Siger de Brabante,
tornou-se heterodoxo ou paganizante, pois aceitou teses incompatíveis com a
doutrina cristã (como a eternidade do mundo).
Com base nesta breve apresentação sobre as influências medievais da filo-
sofia aristotélica, é possível corrigir certa visão interpretativa da história da
filosofia: julgou-se que o pensamento medieval fosse o produto do encontro
entre a filosofia de Aristóteles e “o modo de representação oriundo do ju-
deu-cristianismo”. Essa fórmula não faz jus à outra imagem da Idade Média
filosófica, plural, descentralizada e multicultural. Primeiramente, porque Aris-
tóteles só foi conhecido em sua totalidade no início do século xiii, cerca de
oitocentos anos após o início da Idade Média; segundo, porque relaciona en-

11
tidades que jamais existiram em estado puro; terceiro, porque deixa de lado
o complexo fenômeno da tradução — uma longa cadeia de transposições e
de adaptações que começou em Bagdá, prosseguiu na Espanha e se comple-
tou em Nápoles. Também porque neutralizou, sob a vaga expressão “modo
de representação oriundo do judeu-cristianismo”, um fenômeno complexo
no qual a cultura religiosa de três monoteísmos desempenhou um papel
fundamental: “A história da Filosofia Medieval” não é somente a história da
filosofia cristã. É a história da filosofia pagã e dos três monoteísmos (o Cris-
tianismo — grego e latino — o Islamismo e o Judaísmo) dos quais foi instru-
mento dócil ou indócil, parceiro ou concorrente.

1.3 A Baixa Idade Média (século xiv)

Os séculos xiv e xv são séculos de transição: o xiv, ainda que medieval em


seus contornos, já anunciou temas que explodiriam nos séculos seguintes,
como, por exemplo:

1) a independência da fé em relação à razão (e o contrário, naturalmente);

2) a progressiva dissolução da metafísica “tradicional”, especialmente a de


cariz aristotélico;

3) as insurgências contra a autoridade papal e as defesas do pluralismo;

4) o primado do indivíduo (tema absolutamente contrário ao que foi


mais tipicamente medieval, isto é, a força da coletividade em detrimento
da individualidade);

5) o desenvolvimento das místicas especulativas e as tentativas de siste-


matizar os conhecimentos em composições lógico-formais mistas (com in-
fluências platônicas e aristotélicas).

12
Já no século xiii surgiram as primeiras investigações científicas (especial-
mente no âmbito da ótica), que abriram a perspectiva mais tipicamente sim-
bólica da natureza e propiciaram as primeiras fissuras no edifício dialético
da escolástica. E os filósofos que se debruçaram nos temas acima elencados
foram Guilherme de Ockham, Marsílio de Pádua, Mestre Eckart e Ramon Llull
(este, um dos últimos a defender a indissolubilidade entre fé e razão). Por
isso, o século xiv é medieval, mas com traços modernos.
Do mesmo modo — embora não faça parte do escopo de nossa disciplina
—, o pensamento do século xv ainda tem peculiaridades medievais, se bem
que seja um tempo de maiores rupturas com a filosofia do passado. Cada vez
mais a predominância do pensamento aristotélico dá lugar a correntes de
influência platônica (o Humanismo será basicamente platônico), até se che-
gar a um pensador que, definitivamente, rompeu com a estrutura de mun-
do medieval: Maquiavel (não é à toa que os mais recentes compêndios de
História da Filosofia, como o de Kurt Flasch, estendam a filosofia medieval
até o pensador florentino). Para nos atermos somente a um exemplo, a Idade
Média nunca dissociou o amor do temor em seu pensamento político. O bom
governante, segundo os filósofos medievais, deveria levar em consideração
os dois sentimentos em relação a seus súditos, mas, caso tivesse que esco-
lher um deles para governar, deveria optar pelo amor. Maquiavel subverteu,
de modo incisivo, esta noção: entre ser amado e ser temido, para preservar o
poder o governante deveria ser temido! Mas isso é outra história.

13
14
2
Cronologia e sentido da
Filosofia Medieval
Nesta semana inaugural, destacamos dois aspectos desse período do pensa-
mento ocidental, para situar o leitor:

2.1 Cronologia da Antiguidade Tardia,


da Alta e da Baixa Idade Média

A filosofia medieval foi uma herança, um prolongamento da tradição de


pensamento da Antiguidade Tardia, especialmente os séculos iv e v. Enfa-
tizavam-se, nesse período final do Império Romano do Ocidente, os estudos
gramaticais (e retóricos), ambos já com influências do neoplatonismo de
Plotino e Proclo. Além disso, alguns autores desejavam preservar a tradição
filosófica clássica e tinham projetos de repassá-la aos pósteros (de modo
semelhante a Cícero que, no século i a. C., projetou repassar a tradição fi-
losófica grega aos romanos). Também idealizaram formas de estudo que se
tornaram correntes (formação de bibliotecas, leitura em silêncio, por exem-
plo). Isso se estendeu até o século vii.
Na Alta Idade Média, a dedicação ao estudo com forte base gramatical foi
mantida, o que impulsionou a primeiro renascimento medieval: o Renasci-
mento carolíngio (praticamente todos os textos antigos que chegaram até nós
são cópias feitas nesse período — exatamente com o intuito de preservar o
conhecimento clássico do esquecimento).
Na Baixa Idade Média, com o fim das últimas invasões bárbaras, desabro-
chou o pensamento filosófico em várias correntes, até a consolidação da es-
colástica no século xiii.

15
O círculo da
Filosofia

16
Destacamos, em uma Cronologia, os principais expoentes do pensamento
filosófico, do século iv até a primeira metade do xiii, para que o estudante
possa confrontar seus períodos de vida e ter uma percepção mais aguda e
clara das correntes filosóficas dos séculos medievais. Como sugestão, uma
pesquisa biográfica dos pensadores elencados na Cronologia enriquecerá so-
bremaneira sua visão sobre o pensamento e a cultura do período.

2.2 O Sentido da Filosofia Medieval

Caso pudéssemos precisar um sentido primeiro, fundacional e estruturante


de todas as filosofias medievais, o círculo da filosofia exposto no Hortus de-
liciarum (Jardim das delícias, c. 1180) da abadessa Herrada de Hohenburg (c.
1130–1195) é bastante esclarecedor. O círculo, imagem perfeita e que represen-
ta a divindade — desde Platão. Na iluminura, ao centro, a Rainha Filosofia. A
seus pés, Sócrates e Platão (o século xii ainda era platônico — e neoplatônico,
como vimos).
A Filosofia tem uma coroa de três cabeças: são a Ética, a Lógica e a Física
(segundo Platão, as três partes do ensino da Filosofia). Em suas mãos, um
imenso rolo de papel, no qual se lê: “Toda sabedoria vem de Deus; somente
os sábios podem fazer o que desejam”, sinal da preponderância da Filosofia,
ainda que a serviço da Teologia.
Sócrates e Platão estão a seus pés, porque eram considerados os filóso-
fos precursores do pensamento cristão, embora pagãos. Eram “os sábios do
mundo” e “os professores do povo”, e tinham como tarefa a exploração da
natureza profunda de todas as coisas.
O círculo interior da Rainha Filosofia e de seus discípulos Sócrates e Platão
é envolto por outro círculo, maior, onde estão as disciplinas necessárias para
o estudo da Filosofia. São as Sete Artes Liberais: a primeira parte, introdutó-
ria, chamada de Trivium, por conter a Gramática, a Dialética e a Retórica. Na
ordem: aprender a escrever e a ler corretamente, a argumentar e a fazer isso
com beleza.

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Acima, com um vestido de cor grená, a Gramática tem um livro na mão
esquerda e um látego (chicote de cordas) na direita, e diz: “Por mim, todos
podem aprender o que são as palavras, as sílabas e as cartas”.
A Retórica veste azul e tem um estilete e duas tabuinhas, e diz: “Graças a
mim, orgulhoso orador, teus discursos poderão ter vigor”.
Com sua mão direita a Dialética, de verde, aponta para um interlocutor.
Com a esquerda, segura a cabeça de um cachorro e afirma: “Meus argumentos
são rápidos como os latidos de um cachorro”.
Após aprender as disciplinas do Trivium, o aspirante à Filosofia deveria
passar para as do Quadrivium, matérias matemáticas: Aritmética, Geometria,
Música e Astronomia.
No círculo do Jardim das Delícias, a ruiva Aritmética tem um ábaco (ins-
trumento formado por uma moldura com bastões ou arames paralelos nos
quais havia bolas ou contas deslizáveis para contar) e afirma: “Baseio-me nos
números e discrimino o que existe entre eles”.
A seguir, a Geometria. Com régua e compasso ela, triunfante, afirma: “Exa-
mino as terras com exatidão”.
A Música graciosamente toca uma harpa — outros instrumentos estão jun-
tos dela (uma lira e um pequeno órgão) — e diz: “Eu ensino minha arte com a
ajuda de uma variedade de instrumentos”.
Por fim, a Astronomia veste um traje azul-celeste. Tem uma lupa (ou um
tipo de espelho) em sua mão esquerda, e aponta para as estrelas: “Eu tenho
meu nome dos corpos celestes e prevejo o futuro”.
O sentido retilíneo do círculo é claramente do físico para o metafísico
(isso porque, desde os antigos pitagóricos, os filósofos pensavam que o mun-
do fora criado pela divindade de acordo com as regras da harmonia e da or-
dem). Assim, estudar Geometria, por exemplo, significava seguir a máxima
da Academia de Platão: “Que ninguém exceto os geômetras entrem aqui”.
No grande círculo exterior há os seguintes versos: “A Filosofia ensina as
artes por sete ramos. Investiga os segredos dos elementos e de todas as coisas.
O que descobre, retém em sua memória e escreve para transmitir aos alunos”.

18
Fora do círculo, na parte inferior da iluminura, aquilo que está excluído
do âmbito da Filosofia: quatro homens (poetas e magos), sentados diante de
púlpitos. Como o texto indica, são guiados por “espíritos maus e impuros”,
e o que vem deles são contos, fábulas, frívolas poesias ou receitas de magia.
Os “maus espíritos” estão representados por pássaros negros, em oposição à
pomba branca, símbolo do Espírito Santo. Eles estão em seus ombros e falam
coisas más em seus ouvidos.
O Jardim das delícias foi redigido, conforme sua própria autora, para infor-
mar e deleitar suas monjas, e assim ajudá-las a progredir no serviço de Deus.
Esse documento do século xii é um fascinante exemplo do nível intelectual
e artístico que as mulheres oriundas de segmentos sociais elevados podiam
alcançar em uma abadia segura e rica.

19
20
3
Conteúdo programático
do curso
Nosso curso sobre a Filosofia Medieval comportará basicamente cinco sema-
nas de conteúdo teórico. Pretendemos discorrer sobre os principais autores,
conceitos e temas da Idade Média.

3.1 Introdução à Filosofia Medieval

Assim, o módulo ii é consagrada a uma introdução geral acerca das imagens


atribuídas ao mundo medieval. Em seguida, conceituaremos esse universo
do ponto de vista filosófico: não mais centrado unicamente no “Ocidente
cristão”, mas um mundo medieval “plural, descentralizado e multicultural”.
Com base na concepção de história que tem por objeto a pluralidade das ra-
cionalidades religiosas e filosóficas, uma visão da História da Filosofia Me-
dieval deve abarcar em seu seio não somente os “cristãos ocidentais”, mas
também os cristãos do Oriente, os árabes e os judeus.
Em seguida, trataremos brevemente da origem negativa do conceito de
Idade Média, surgido no Renascimento dos séculos xv–xvi, para ressaltar que
o período “medieval” não nos revela nada da forma ou do conteúdo, das ten-
dências próprias, da qualidade intrínseca ou do “espírito” da filosofia desses
tempos. Na verdade, para nós, o significado literal de “medieval” não contém
qualquer conotação de valor, uma vez que indica simplesmente uma posição
média ou intermediária. Após mencionar as fontes de acesso àquele mundo,
concluiremos com a possível relação entre a filosofia medieval e o pensamen-
to filosófico posterior, seja na modernidade, seja na filosofia contemporânea.

21
3.2 Os Padres da Igreja

No módulo iii aprofundaremos a filosofia patrística, uma vez que esse amplo
período (do século i até o século viii) traz questões que serão retomadas na Idade
Média latina e no mundo bizantino. Um tema central que percorre a Idade Média
latina é a relação entre filosofia (ou saber) e a fé (ou teologia). Essa problemática
procede do encontro histórico entre a mensagem cristã e a filosofia grega.
Para conhecer o problema das relações entre fé e razão no mundo latino,
abordamos o pensamento de Agostinho de Hipona em seu itinerário intelec-
tual descrito na obra As Confissões, Livros i–ix. Esse caminho de “conversão”
parte das inquietudes existenciais de um jovem professor de Retórica e vai
desde a leitura de obras de Cícero até a seita maniqueísta, o ceticismo acadê-
mico, o neoplatonismo e, por fim, desemboca em sua conversão ao Cristia-
nismo. O paradoxo da fé em Agostinho, com base no caminho da procura, da
busca, assemelha-se à questão que os gregos formularam sobre a procura do
saber: como é possível procurar saber aquilo que se ignora completamente
(PLATÃO, Ménon 80b–86c; ARISTÓTELES, Segundos Analíticos I, 71 a1–71b8).
A resposta remete-nos à necessidade de algum saber prévio em toda aqui-
sição de conhecimento, embora varie o modo de conceber esse saber prévio.
No caso de Agostinho, a dinâmica de um procurar a Deus não paralisa sua fé
em uma estável e eterna contemplação. Com base nesse movimento existen-
cial do quaerere, Agostinho chega ao fundo infundado de sua alma, e aí pode
não somente conhecer a Deus e a si mesmo, mas também o Deus que ele
procura. Esse conhecer, longe de ser a soma quantitativa de noções divinas,
é experienciável no agir próprio do viver. Por isso, o conhecer na experiência
fática da vida não tem o estatuto de objeto, mas de significatividade: “Deus é
para ti até mesmo a vida de tua vida”.
No mundo grego, escolhemos Gregório de Nissa, chamado de o “filósofo na
Cátedra episcopal”. Comentamos alguns aspectos de sua antropologia, na obra “A
criação do homem” (ou Sobre a formação do homem), publicada pela Editora Paulus.3

3  S. GREGÓRIO DE NISSA, A Criação do homem — A Alma e a Ressurreição — A Grande Catequese (Coleção


“Patrística”, nº 29). Introdução, tradução e notas Bento Silva Santos. São Paulo: Paulus, 2011.

22
Na vasta obra de Gregório de Nissa, é possível descortinar múltiplos e dife-
rentes interesses que revelam uma cultura filosófica profunda. Nela encon-
tramos o reflexo de sua personalidade, de suas preocupações de pensador,
bem como sua vocação de polemista, de pregador e de místico. Sua utilização
do patrimônio espiritual clássico está ligada à importância das fontes clás-
sicas e filosóficas. A concepção normativa do Cristianismo possui nisso um
influxo decisivo. No tempo de Gregório, não havia uma separação sistemáti-
ca entre Filosofia e Teologia. A utilização seletiva do patrimônio intelectual
de diferentes sistemas de pensamento correspondia ao método de trabalho de
então. O significado dos empréstimos filosóficos em Gregório de Nissa deve
levar em conta sua formulação do problema e o contexto do escrito.
Na obra A Criação do homem (ou Sobre a formação do homem), Gregório ela-
bora uma concepção do homem segundo uma imagem articulada do mundo,
conforme sua visão ontológica (de cunho platônico) que constitui o pano de
fundo unitário no qual se desdobram os diversos problemas abordados. É,
portanto, a partir desse horizonte unitário que podemos compreender o ho-
mem, sua estrutura metafísica, seu papel na criação e o significado último
de sua existência em relação a Deus. Seu tratado segue o ritmo de um drama.
A fé, como ponto de partida de sua reflexão, não suprime o “drama” da exis-
tência que, em sua estrutura originária, vivia em comunhão com Deus, sem
pecado. Ela está associada a dimensões cósmicas: há uma afinidade entre o
anthrōpos (homem) e o kosmos (mundo).
Por isso, sua especulação antropológica estrutura-se em uma lógica
constante. O homem é definido e estruturado em sua dualidade corpórea e
espiritual. Em virtude de sua constituição ontológica, ele pertence contem-
poraneamente a dois mundos: o mundo inteligível, pela sua alma, “de nature-
za e de estirpe semelhante às potências celestes”, e o mundo sensível, pelo seu
corpo. Por isso, foi criado composto de corpo e alma para participar dos bens
inteligíveis e dos bens sensíveis.

23
3.3 Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (século v)

No módulo iv examinaremos, de um lado, um tema tipicamente medieval:


a Querela dos Universais. Essa questão já foi ventilada nas disciplinas “Teo-
ria do Conhecimento” e “Lógica i”. Aqui exporemos o problema com mais
detalhes, tomando como base os estudos mais importantes consagrados ao
tema. As autoridades vinculadas ao problema são Aristóteles, Porfírio de Tiro
e Boécio. É um tema complexo e que exige atenção e compreensão precisa
dos conceitos utilizados. Por isso, o desdobramento do problema dos univer-
sais será feito de maneira didática. De outro lado, apresentamos brevemen-
te o “fundador” da mística medieval, o Dionísio Pseudo-Areopagita, filósofo
profundamente influente não só nas questões puramente metafísicas, mas
também políticas, visto que seus escritos moldaram a forma de ver e pensar
o mundo até meados do século xiv.

3.4 O Renascimento Carolíngio e a


Pré-Escolástica (séculos xi–xii)

No módulo v trataremos de um tópico muito importante para a compre-


ensão do desenvolvimento do pensamento filosófico medieval: o conceito
de renascimento e o primeiro renascimento do período: o carolíngio. Enfati-
zaremos a importância dada ao estudo da Gramática como base formadora
dos estudiosos e a preservação dos documentos antigos — desde tratados de
Medicina, Agricultura, Filosofia, etc., até poemas eróticos! A seguir, aborda-
remos os primeiros indícios de especulação filosófica: João Escoto Erígena
(ou Eriúgena), Anselmo de Canterbury e o homem do século xii, síntese do
socratismo cristão, Bernardo de Claraval.

24
3.5 O Renascimento do século xii
e a Escolástica

No módulo vi abordaremos o Renascimento do século xii e a Escolástica.


O século xii colheu os frutos da preparação intelectual (gramatical, sobre-
tudo) dos séculos precedentes. A maneira como os pensadores de então se
dedicaram à leitura dos clássicos antigos e a forma com que os inseriram em
seus próprios textos filosóficos (adornando a Filosofia com poesia clássica,
especialmente) fez com que os estudiosos denominassem o período como
Renascimento do século xii (ou seja, outro dos renascimentos medievais,
o terceiro — além do Renascimento Carolíngio e o Renascimento Otoniano). O
filósofo mais representativo de seu tempo foi João de Salisbury. Seu texto Po-
licraticus (c. 1159) é considerado o primeiro tratado de filosofia política do Oci-
dente, desde os gregos. Nessa Semana vi, examinaremos brevemente de seu
conceito basilar: o que é Filosofia?
A  Escolástica  é um método argumentativo desenvolvido nas universi-
dades medievais. Seu modelo são os escritos de Tomás de Aquino. Para o
Aquinate, selecionamos a discussão de um conceito que norteou a Filosofia
Medieval: a Verdade. O que é a Verdade? Aquino apresenta seu argumento a
respeito na obra Suma contra os gentios (c. 1260–1264). Além disso, apresen-
taremos um filósofo contemporâneo a ele que não seguiu os procedimen-
tos acadêmicos formais — foi um  outsider  — mas que cada vez mais tem
recebido a atenção dos estudiosos de filosofia medieval, a ponto de receber,
nas mais recentes publicações alemãs de compêndios de filosofia, o mesmo
espaço dedicado a Tomás de Aquino: Ramon Llull. Nossa proposta é apre-
sentar alguns excertos de seus textos, em traduções diretamente do catalão
medieval (Árvore da Ciência, O Livro das Maravilhas, A Arte Breve) para tra-
tar de um tema fundamental em seus escritos: as dignidades divinas como o
princípio do debate filosófico.

25
3.6 Avaliação Nível 2

Em sexto lugar, o módulo vii, será feita a avaliação Nível 02 sob a forma de
apresentação em grupos de temas seletos da Idade Média. Uma das visões
pejorativas acerca do período medieval é a que imagina que os filósofos me-
dievais se preocuparam apenas com a existência de Deus. Pelo contrário, em
que pese o fato de Deus ser um tópico fundamental para os pensadores do pe-
ríodo, houve uma grande variedade de temas tratados pelos filósofos medie-
vais. Assim, os seminários devem preparar apresentações em grupo baseadas
em quatro temas apresentados nos extratos de fontes de filosofia medieval.

Tema 01: o Papel das Letras na formação do filósofo em João de Salisbury


Tema 02: O Argumento Ontológico de Anselmo de Canterbury
Tema 03: A metodologia de estudo como princípio do conhecimento, em
Hugo de São Vítor
Tema 04: A linguagem em Gregório de Nissa e São Boaventura

 
3.7 Atualização de Estudos

Em sétimo lugar, no módulo viii, disponibilizaremos uma coletânea sobre


textos medievais, passagens de obras de filósofos do período com temas es-
pecíficos como forma de atualização de estudos. Além disso, serão realizadas
atividades em defasagem no que diz respeito às semanas anteriores.

1)  COSTA, Ricardo da. “As raízes clássicas da transcendência medieval”.  In:
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho (org.).  Contemplatio. Ensaios de Filosofia
Medieval. Campina Grande: EDUEPB,  2013, p. 19–42 (ISBN  978–85–7879–173–
5). Conferência proferida no dia 26 de setembro de 2011 no Centro Universi-
tário Moacyr Sreder Bastos (RJ).
Disponível em:
http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/imagens/as_raizes_classi-
cas_da_transcendencia_medieval.pdf

26
 2) COSTA, Ricardo da. “A Eternidade de Deus na filosofia de Ramon Llull (1232–1316)”. In: Mun-
dos medievales: Espacios, Sociedades y Poder. Homenaje al Profesor José Ángel García de Cortázar.
Santander:PUbliCan, Ediciones de la Universidad de Cantabria, D.L., 2012, tomo II, p. 1215–1227.
Disponível em: 
http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/da_costa_mundos_medievales_0.pdf 
 
3) COSTA, Ricardo da. “A luz deriva do bem e é imagem da bondade”: a metafísica da luz do
Pseudo Dionísio Areopagita na concepção artística do abade Suger de Saint-Denis”. In: Scin-
tilla. Revista de Filosofia e Mística Medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia de São Boaventu-
ra (FFSB), Vol. 6–n. 2–jul./dez. 2009, p. 39–52 (ISSN 1806–6526).
Disponível em: 
http://www.ricardocosta.com/artigo/luz-deriva-do-bem-e-e-imagem-da-bondade-metafi-
sica-da-luz-do-pseudo-dionisio-areopagita-na 

27
28
módulo II
Introdução à Filosofia Medieval

29
30
1
Das “imagens” à conceituação
1
da Idade Média
Para uma primeira entrada no mundo medieval, impõe-se expor brevemente
as ‘imagens” já pressupostas da Idade Média no imaginário popular para, em
seguida, conceituá-la formalmente a partir de uma perspectiva historiográ-
fica ou política.

1.1 As imagens

As imagens são muitas vezes visões não fundamentadas e frenquentemen-


te marcos implícitos de um entendimento que não espelham a verdadeira
inteleção do período medieval. Basicamente há três imagens conhecidas da
Idade Média:

A Época Obscura

Trata-se de uma imagem preconceituosa em relação ao período medieval


ainda latente nas mentes das pessoas alheias à cultura de um modo geral.
Tal imagem surgiu no século xviii em oposição ao “Iluminismo” da moder-
nidade: a Idade Média seria uma época de ignorância e de irracionalidade.
Na opinião dos iluministas do século xviii, se comparada com as ciências
e as artes de sua época, tendo como paradigma a cultura grega, “a produ-

1  Sobre essas “imagens”, baseio-me na síntese de CELINA A. LÉRTORA MENDOZA, Panorama de


la Filosofia Medieval. Buenos Aires: Ediciones FEPAI, 2001, (CD ROM), 2-5.

31
ção cultural medieval se mostra como tosca, vacilante, repleta de fantasio-
sidade, acometida por um inaceitável dogmatismo e por vários elementos
de irracionalidade”2. Nessa concepção preconcebida, levando até as últimas
consequências, é como se pudéssemos passar da Antiguidade à Modernidade
sem que a história tivesse perdido sentido pela omissão dos acontecimentos
desses dez séculos! Hoje essa concepção não é mais sustentável por qual-
quer historiador. Qualquer que seja o valor dado aos fatos ocorridos social,
política e culturalmente na Idade Média, é impossível compreender o Renas-
cimento sem a referência ao período anterior. Falar de filosofia ou de arte
implica referir-se não somente à Grécia e à Modernidade, mas também ao
período medieval, como, por exemplo, o nominalismo e o gótico.


A Etapa Intermediária

Para alguns comentadores, não se trataria de uma imagem propriamente


dita, mas de uma explicação teórica e argumentada. Nesse sentido, a Idade
Média seria o período intermediário entre duas visões do mundo contrapostas,
a saber: entre a antiguidade grega e o pensamento científico da modernida-
de. Essa concepção não faz jus ao verdadeiro lugar do pensamento medieval
na origem da concepção moderna da ciência. Longe de serem relegados para
uma condição inferior na história do pensamento ocidental, os medievais
estão na origem da ciência moderna. Vejamos então brevemente essa expli-
cação teórica. Com base no conceito de ciência do ponto de vista da história
do pensamento reflexivo e sistemático, a visão de mundo característica da
antiguidade era finitista e antropocêntrica. O mundo é entendido como “um
todo ordenado e limitado, cuja estrutura era possível representar com uma
forma gemométrica relativamente simples”3. Por exemplo, “o sistema aris-
totélico com duas esferas concêntricas, sua postulação da impossibilidade
do infinito atual (inclusive sua incompreensibilidade teórica), a assunção

2  CELINA A. LÉRTORA MENDOZA, Panorama de la Filosofia Medieval, 2.

3  Apud CELINA A. LÉRTORA MENDOZA, Panorama de la Filosofia Medieval, 4.

32
de um sistema explicativo causal que opera pautado sempre por princípios
lógico-ontológicos”. Nesta concepção o cosmo emerge transparente ao olhar
da inteligência, ou seja, todas as suas leis devem poder derivar-se de alguns
postulados ou intuições básicas4.
Em virtude de diversos fatores, essa visão do universo modificou-se subs-
tancialmente até chegar às modernas concepções do infinitismo, à superação
do geocentrismo e do antropocentrismo, à distinção entre lógica e ontologia,
etc. Na Idade Média incoporaram-se ideias religiosas com a consequente
intenção de superar as restrições intelectivas que a antiguidade colocava às
considerações do universo. Nesse sentido, houve esforços da teologia para
tornar inteligíveis as afirmações da fé em vista de uma nova mentalidade
para compreender o universo como criado por Deus. Daí a importância dada
por Alexandre Koyré (e pelos seus seguidores)5 aos conceitos propriamente
teológicos e aos enunciados em um marco justificador de algumas religiões
históricas concretas, como os de “potência divina absoluta”, “voluntarismo”,
“infinitude intensiva divina”, etc. Sem envederar para explicação detalhada
desses conceitos6, expliquemos brevemente o primeiro deles.
Havia uma tentativa, entre teólogos e filósofos, de desenvolver um siste-
ma de ordens na tentativa de dar conta da total contingência do mundo sob
a livre vontade de Deus. Afinal, “tivesse Deus desejado, o Salvador do mundo
poderia ter sido uma pedra ou um asno — aut lapis, aut asinus”7. Deus pode-
ria reverter eventos passados “porque as proposições na mente de Deus não
têm índice temporal” (Guilherme de Ockham [1285–1349]). Deus poderia nos
enganar a qualquer momento nas nossas certezas mais básicas, ou pelo me-

4  Apud CELINA A. LÉRTORA MENDOZA, Panorama de la Filosofia Medieval, 4.

5  Cf. A. Koyré, Estudos de História do Pensamento Filosófico, Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 1991.

6  Ver A. Koyré,, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Lisboa, Gradiva, s/d.

7  Apud Cf. A. ITALO, A Tradição do “Conhecimento do “Criador”. Um Ensaio sobre a Artificialização


da Natureza. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da PUC-RJ em
1999 sob a orientação de Danilo Marcondes: capítulo 3: Encontro entre Razão Filosófica e Revelação
Judaico-Cristã. “Conhecimento do Criador” e Teologia.

33
nos implantar em nós noções imediatas de coisas que não existem — notitia
intuitiva rebus non existentibus. Guilherme de Ockham argumenta de modo
perspicaz que a noção intuitiva adquirida pela percepção sensorial de algo
existente é ‘naturalmente’ infalível em prover ‘conhecimento evidente’ do
fato assentido. Mas “Deus pode causar um ato de crença através do qual acre-
dito que uma coisa que está ausente esteja presente [...] Deus pode fazer-nos
ver sem o objeto criado”. Tratava-se ao mesmo tempo de um problema teoló-
gico e epistemológico. De um lado, o problema epistemológico: definir o que
poderia ser conhecido acerca dos diferentes objetos e temas; de outro lado,
o problema teológico: como obter a certeza, ou graus de certeza, acerca da su-
bordinação ao princípio de que todo o mundo criado é contingente perante a
insondável onipotência do Criador8.
A resposta surgiu através do exame do poder de Deus e suas relações com
seus outros atributos: vontade, razão, bondade. Com base no exame desses
atributos, nasceu a distinção, desenvolvida por Alberto Magno (1200–1280)
e Tomás de Aquino (1225–1274), entre o poder de Deus considerado em si — de
potentia Dei absoluta — sem relação com a ordem da criação que estabelecera,
e seu poder ordenado — de potentia Dei ordinata — segundo o qual agia no pla-
no da criação de acordo com sua providência e bondade. A teologia medieval
introduziu essa distinção de modo a alargar ao máximo o horizonte daquilo
que era possível a Deus sem violar a razão. Assim, garantia-se o poder e a li-
berdade absolutos de Deus e mantinha-se certa estabilidade no mundo criado.
Os termos “poder absoluto” e “poder ordenado” aparecem pela primeira vez
como um par em Alexandre de Hales (1185?–1245). Hales entendia que o po-
der absoluto referia-se a tudo que pudesse vir à cabeça, contraditório ou não,
enquanto o poder ordenado referia-se ao que era lógico, moral e fisicamen-
te não repugnante. A terminologia é utilizada por outros autores segundo
a distinção herdada do escritor eclesiástico Orígenes (185?–254), entre posse
de potentia e posse de iustitia, para diferenciar a ordem real dos outros atos
possíveis de Deus.

8  Cf. A. ITALO, A Tradição do “Conhecimento do “Criador”...

34
No século xiii, para Tomás de Aquino, De potentia Dei absoluta significava
o que quer que não viole o princípio de não contradição, o que quer que rei-
vindique o status de coisa (res) dentro ou fora de qualquer ordem. Por não-con-
tradição significava para ele — non repugnantia terminorum — propriedades
lógico-formais autoevidentes. Deus não pode criar estados de coisas contradi-
tórios, porque uma coisa que se contradiga não é uma coisa. Quando pergun-
tamos sobre o que Deus pode fazer, estamos falando única e exclusivamente
daquilo que é factível, coisas, e não estados. Por potentia ordinata Tomás de
Aquino entendia a ordem da natureza, de nosso universo, como também qual-
quer outra ordem possível de coisas, desde que fosse uma ordem9.
Ora, o caminho percorrido pela imaginação teológica contribuiu para o
surgimento da imaginação científica10, de modo que esta concepção de etapa
intermediária atribuída à Idade Média não corresponde exatamente aos fatos.
Não se trata de reduzir o fenômeno moderno à mera secularização de ideias
religiosas cristãs; mas de uma resposta legítima à crise, na alta Idade Média,
gerada pela relação cristã com o mundo. Em outras palavras: a ênfase exage-
rada dada ao tema da onipotência divina, a consequente destruição da ordem
cósmica (a questão do infinito que coloca toda criação como um processo
fundamentalmente aberto) e o estatuto contingente do mundo (que é con-
sequência de concebermos o que quer que seja como criado). Diante da total
contingência do mundo, surgiram três respostas possíveis: 1) a salvação num
outro mundo; 2) a fé na bondade, graça, sabedoria e providência divina para
conosco e para com nosso mundo; 3) a construção hipotética e/ou experimen-
tal do que quer que seja possível neste mundo em particular, assegurando um
mínimo de estabilidade e o máximo de realização para o homem, havendo ou
não um Deus. E, deste modo, a mediação entre imaginário e real passou a ser
construtiva. É assim que a Era Moderna se legitima através do ideal de conhe-
cimento por criação em analogia com a ideia de criação divina. Considera-se
aqui a reivindicação de propriedade sobre a verdade produzida como aquilo

9  Cf. A. ITALO, A Tradição do “Conhecimento do “Criador”..., 45ss.

10  A. FUNKENSTEIN, Theology and the Scientific Imagination - from the middle ages to
the seventeenth century. New Jersey: Princeton University Press, 1986, 11.

35
que permitiu à modernidade reocupar11, em favor do homem, uma posição an-
tes ocupada pela máxima teológica que, na formulação de Filo de Alexandria,
diz: Solus Scire Potest Qui Fecit (Saber só pode quem faz/produz).

“A atribuição da ordem natural inteiramente às leis da natureza im-


postas de fora, pela vontade ordenativa de Deus, e a eliminação de
qualquer princípio racional intrínseco do conceito de natureza, como
o postulado por Aristóteles, fez com que a natureza fosse assimila-
da a um produto da arte. Produto da arte divina, não transparente,
como a do Timeu, à razão humana, mas completamente impenetrá-
vel [...] Daí em diante teremos uma nova relevância em analogias
entre o engenho do Divino Artífice, cujas razões o homem não poderia
penetrar, e os engenhos que podem ser compreendidos pelo homem
porque ele mesmo os fez.”12

O Encontro de Culturas

Trata-se aqui de um caracterização recente segundo a qual há um tríplice


encontro cultural. Primeiramente, temos o encontro da cultura greco-ro-
mana com a semítica do Cristianismo das origens, e esse encontro aconte-
ceu na Idade Antiga tardia e tem sua expressão histórica típica na conversão
do Imperador romano Constantino ao Cristianismo em 313. Nesse período
encontramos desde o século II até o século VIII a produção dos escritores
eclesiásticos como expressão da Filosofia Patrística. Em segundo lugar, pro-
duziu-se outro encontro cultural com as invasões bárbaras que destruíram
o Império Romano: à base de suas ruínas políticas e jurídicas, eles estabe-

11  Cf. H. Blumemberg, The Legitimacy of the Modern Age. Massachusetts: MIT Press, 1995. Com
a noção de reocupação o autor busca responder às críticas de que o pensamento moderno não
passa da “mera secularização” de questões teológico-religiosas.

12  A. C. CROMBIE, Science, Art and Nature in Medieval and Modern Thought.
Hambledon Press, 1996, 82.

36
leceram uma nova sociedade, diferente tanto da bárbara como da imperial.
No entanto, nessa nova sociedade, há certamente resquícios de ambas. Em
terceiro lugar, houve um encontro cultural com base na invasão árabe da Eu-
ropa, cujo processo iniciou-se pela península ibérica entre 711 e 716, continu-
ando por outras regiões até a queda de Bizâncio em Constantinopla no século
XV. Não há como negar a importância desses encontros culturais (pacíficos
ou violentos) para a conceituação de Filosofia medieval e, por conseguinte,
para a configuração da Europa moderna e de suas projeções.
Em virtude desse período extenso não há uma uniformidade em relação à
figura do “homem medieval”, justamente porque deparamos aí com as ma-
nifestações múltiplas da cultura (vida cotidiana, social, política, religiosa,
científica, artística, etc.). O homem do século VI ou VII tem mais coisas em
comum com um homem da antiguidade romana do que com outro homem
do século XIV, mais próximo, dos renascentistas e dos modernos13.

1.2 A conceituação:
perspectiva externa e interna

Perspectiva externa ou cronológica

Tradicionalmente chama-se Idade Média (em latim: media aetas) o período


que abrange dez séculos, isto é, a fase intermediária entre a antiguidade e os
tempos modernos ou, segundo se diz, o período compreendido entre a queda
do Império Romano do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos
turcos (1453). Esses dez séculos possuem como ponto de demarcação dois
eventos políticos. A compreensão tradicional do período medieval está cen-
trada, inconscientemente, na romanidade. O duplo destino de Roma situa-se
nas duas extremidades do processo: a queda das duas Romas imperiais. Nes-
se sentido, a história tradicional não atribui a Constantinopla uma papel cen-

13  CELINA A. LÉRTORA MENDOZA, Panorama de la Filosofia Medieval, 1. 5.

37
tral na história da Idade Média. Embora a tomada de Constantinopla (1453)
marque o fim da Idade Média, portanto, da Idade Média ocidental, a história
do Império romano do Oriente não faz parte da história ocidental. No fundo,
a visão de Idade Média confunde-se com o que é chamado de “Ocidente cris-
tão”. “Assim rejeitam-se: o que é cristão, mas não ocidental, quer dizer, os
cristãos do Oriente (confundidos numa mesma massa obscura, se não con-
denada); o que é ocidental, mas não cristão, ou seja, os árabes e os judeus”14. É
preciso levar em conta, na configuração da filosofia medieval, o aparecimen-
tio histórico de um multiculturalismo, cujos polos foram as grandes civiliza-
ções que sucederam à civilização antiga e floresceram do século VI ao século
XV, a bizantina, a islâmica, a latino-ocidental e a tradição cultural judaica
abrigada sobretudo em terras do Islã. Daí a afirmação paradoxal de Alain de
Libera em sua obra A Filosofia Medieval (1993):

“A primeira coisa que um estudante deve aprender ao abordar a Ida-


de Média é que a Idade Média não existe. A duração contínua, o re-
ferencial único em que o historiador da filosofia inscreve a sucessão
das doutrinas e das trajetórias individuais que, a seus olhos, com-
põem uma história, a ‘história da filosofia medieval’, não existem.
São várias as durações: uma duração latina, uma grega, uma árabo-
muçulmana, uma judaica [...] O historiador deve partir da existência
da pluralidade: pluralidade de culturas, de religiões, de línguas, de
centros de estudo e de produção dos saberes. Filosoficamente, o mun-
do medieval não tem centro”15.

Proibida em Atenas, a filosofia emigrará para Ásia: com o fechamento da


Academia neoplatônica em 529 por ordem do Imperador Justiniano, os filóso-
fos neoplatônicos remanescentes migram para o Oriente Médio constituindo
assim o fenômeno chamado “translatio studiorum” (translação de estudos).
Platão e Aristóteles começaram a ser “traduzidos” para o Oriente em um pro-

14  A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval. São Paulo: Loyola, 22004, 12.

15  A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, 7–8.

38
cesso de tradução extremamente complexo. Esse deslocamento se dá ora (1ª)
de Atenas para a Pérsia, ora da Pérsia para Haran..., ora (2ª) de Alexandria para
os mosteiros sírios dos séculos VII e VIII, ora, por fim, (3ª) da cultura siría-
ca para a cultura árabe, de Alexandria a Bagdad. Esses movimentos ocupam
toda a Alta Idade Média. Na mesma época, o Ocidente cristão é filosoficamente
estéril16. Só depois de seu longo sono com uma nova translatio, que vem de
Bagadad para Córdoba e, daí, para Toledo, isto é: do Oriente muçulmano para
o Ocidente muçulmano e, de lá, para o Ocidente cristão. “Foi uma translação
interna às terras do Islã, ligada à conquista muçulmana, que tornou possível
o retorno da ciência ao mundo latino”17. Portanto, a história da filosofia me-
dieval não é a história da filosofia cristã, mas a história da filosofia pagã e dos
três monoteísmos: o cristianismo — grego e latim —, o islã e o judaísmo. “É
a história de povos diferentes e línguas diversas, uma história de família(s),
de alianças e heranças, de capturas e furtos, de violências e tréguas”18. É pre-
ciso então assumir uma Idade Média plural, descentralizada e multicultural e
não mais aquela da tradição escolar definida com base no “ocidente cristão”:
portanto, com a “translação dos estudos”, o itinerário histórico da cultura in-
telectual parte da civilização antiga greco-romana, passa por Bizâncio e se
fixa definitivamente no Ocidente latino e no seu centro, Paris. Essa profunda
revisão do modelo tradicional de compreender a Idade Média implica a aber-
tura de um espaço histórico de policentrismo cultural donde encontramos a
ideia da complexidade das raízes filosóficas que despontaram, por exemplo,
no século XII e XIII. Uma história da Filosofia Medieval autêntica não pode
ignorar a pluralidade das racionalidades religiosas e filosóficas, nem tam-
pouco pode privilegiar nenhuma delas.

16  A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, 17.

17  A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, 17.

18  A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, 9.

39
Perpspectiva interna ou essencial

Antes de dar uma definição do ponto de vista interno da Filosofia Medieval no


mundio latino, convém levar em conta duas coisas. Primeiramente, o filosofar
na Idade Média latina não é a simbiose existencial de theoria e vida espiritual
típica dos filosófos da Antiguidade. Esses elementos migraram para a espiritu-
alidade e para a teologia cristãs. Em segundo lugar, não é tampouco uma práti-
ca autônoma e independente da reflexão e da pesquisa filosóficas inauguradas
por pensadores modernos. O que vem a ser o filosofar na Idade Média Latina?

“Historicamente o filosofar na Idade Média latina, a partir da segunda


metade do século XIII e no século XIV, conhece duas formas distintas:
a) A filosofia organicamente articulada à teologia e, de alguma ma-
neira, sob a sua regência normativa (“subalternada” à teologia, como
dirá Tomás de Aquino): tal é a filosofia oficialmente praticada nas Fa-
culdades de Artes das Universidades, degrau necessário para se atingir
a Faculdade de Teologia. b) E a filosofia que retoma, pela mediação do
ideal de vida filosófica renascido em terras do Islã, a tradição antiga do
exercício do filosofar como fonte do mais alto prazer e da felicidade”19.

No primeiro caso, a filosofia, não renunciando à sua especificidade de saber


racional, reconhece a primazia de um saber transracional, saber no qual a razão
aceita se exercer no interior da fé. Existe aqui, portanto, um aspecto institucio-
nal, ou seja, o exercício de um pensar filosófico por um Mestre de Teologia e no
seio da Faculdade de Teologia: um filosofar, portanto, que se contrapõe ao ideal
da vida filosófica autônoma que começava a ser preconizado por alguns mes-
tres da Faculdade de Artes como, por exemplo, em Siger de Brabante. Assim,
exemplo da primeira forma do filosofar se encontra na obra de S. Tomás de
Aquino no século XIII, século de “ouro” da Idade Média, justamente por causa
das grandes sínteses entre filosofia e teologia. A teologia filosófica de Tomás de
Aquino compõe-se harmonicamente com a teologia revelada ou sacra doctrina.

19  H. C. DE LIMA VAZ, Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997, 294.

40
A síntese entre razão e fé aparece paradigmaticamente em sua célebre Suma de
Teologia, cuja estrutura tripartida é assim anunciada pelo autor:

“Uma vez que a intenção principal desta ciência sagrada é transmitir


o conhecimento de Deus, e não só segundo o que é em si (secundum
quod in se est), mas também segundo o que é como princípio e fim
das coisas, especialmente da criatura racional, como é manifesto a
partir do que foi dito (q. 1, a. 7); tencionando nós expor esta ciência,
trataremos primeiro de Deus, em segundo lugar, do movimento da
criatura racional para Deus, e, em terceiro lugar, de Cristo, que se-
gundo a sua humanidade, é para nós via de acesso a Deus” (TOMÁS
DE AQUINO, Summa Theologiae, I, q. 2., a. 1).

Portanto, a filosofia (concebida com base predominantemente na tradição


aristotélica) aqui funcionará como “serva da teologia” em um monumental
projeto da teologia tomista medieval: A Parte I é dedicada a Deus e ao mundo
como obra de Deus. A Parte II diz repseito ao movimento da criatura racional
para Deus, isto é, os fins últimos (ecatologia), a ação e a graça (ética e espiritu-
alidade), a virtude e as leis (moral, religião e política). A Parte III (inacabada)
trata do Cristo como via de acesso a Deus e de rendenção do homem, incluin-
do a teologia da Encarnação e dos sacramentos.
No segundo caso, a filosofia não é somente uma técnica racional, mas tam-
bém uma abordagem inspirada. O próprio Platão no diálogo intitulado Fédon
descreve o movimento pelo qual o filósofo, elaborando suas noções sobre a
vida e a morte, constrói sua vida e sua imortalidade. A concepção antiga de fi-
losofia é já aqui esboçada: mudança radical na conduta da vida e a fundamen-
tação dessa mudança em uma explicação total da realidade, que abarcaria os
três campos da lógica, da física e da ética. É nessa segunda forma que podemos
ver a origem longínqua do estilo de filosofar que prevaleceu na modernidade.
Este é o caso de Alberto Magno que assume uma concepção de filosofia como
forma de vida contemplativa: o intellectus adeptus designa o estado da alma
que entrou em conjunção com o Intelecto agente separado; esse estado de
conjunção ou vida teorética é o estado que os filósofos definem como “meta

41
suprema da existência humana”; essa forma de vida é adquirida: é objeto de
um trabalho e supõe uma progressão (moveri ad continuationem); o conteúdo
dessa forma é o que Aristóteles definiu como objeto da teologia filosófica:
contemplação dos seres separados; a forma de vida característica da con-
templação filosófica pode ser chamada de “felicidade intelectual”. Alberto
Magno construiu ou reconstituiu esta concepção pelo empréstimo de fon-
tes variadas: dos peripatéticos das terras do Islã (Alfaberi, Avicena, Averróis).
Evidentemente, e também dos comentadores bizantinos da Ética a Nicômaco,
Eustrato de Nicéia e Miguel de Éfeso, de quem foi um dos primeiros leitores.
Alberto Magno transmite, portanto, a doutrina greco-árabe do “intelecto ad-
quirido” (intellectus adeptus): a ideia central é a de uma felicidade na Terra
que recompensa o esforço filosófico entendido como desligamento progres-
sivo da alma humana em relação ao sensível e aquisição do intelecto20.

20  Cf. A. DE LIBERA, A Filosofia Medieval, 395–402.

42
Porfírio e Averróis

43
44
2
As fontes da
21
Filosofia Medieval
Além dos escritos filosóficos desse período, devemos levar em conta também
um série de outras fontes: primeiramente, os escritos dos teólogos, dos juris-
tas, dos homens de ciência, dos médicos, até mesmo dos poetas, na medida
em que esses escritos apresentam um interesse filosófico; em seguida, todas
as outras fontes da história (crônicas, biografias, atos jurídicos e administra-
tivos, etc.), pois elas podem contribuir na reconstrução da vida, da atividade
literária, das relações sociais e da influência dos filósofos.
Ora, todas essas fontes, sem exceção, foram escritas à mão e conservadas
sob forma de documentos manuscritos, tendo a invenção da imprensa coin-
cidindo mais ou menos com o fim da Idade Média. A leitura dos manuscritos
da Idade Média comporta dificuldades mais ou menos consideráveis, em ra-
zão da forma e da variedade das escrituras, da deterioração dos pergaminhos,
mas sobretudo devido ao sistema de abreviação às vezes muito avançado que
é de uso corrente, no objetivo de ganhar lugar e tempo.
Além dessas dificuldades de ordem paleográfica e de crítica textual, a lite-
ratura manuscrita da Idade Média coloca uma série de problemas de crítica
literária relativos aos autores dos documentos, às circunstâncias de com-
posição e às fontes utilizadas. Acrescentemos que esses documentos são
conservados nas inumeráveis bibliotecas, frequentemente desprovidas de
catálogos satisfatórios e acessíveis.
Mas essas dificuldades inerentes ao estado das fontes vão ser agravadas
pela reação antimedieval que caracteriza o Renascimento e quase todo pen-
samento moderno até o século xix.

21  Para os tópicos seguintes, traduzimos e adaptamos F. VAN STEENBERGHEN, Introduction à l’étude de
la philosophie médiévale. Paris/Louvain: Béatrice-Nauwelaerts/PublicationsUniversitaires, 1974, 35-39.

45
46
3
A reação contra a
civilização medieval (séculos xv-xvii)

Os primórdios da Idade Moderna são marcados por uma reação violenta con-
tra a “escolástica”, isto é, contra o pensamento e o ensinamento das escolas
medievais, contra o sistema científico elaborado nas Universidades medie-
vais. Aspecto particular da reação contra a civilização medieval em seu con-
junto e, ao menos em certos casos, contra a “cristandade” medieval. Reação
tanto mais violenta, que ela não é somente condenação de um passado revo-
lucionário, mas a luta ainda atual contra uma ordem de coisas que persiste:
o papado e a Igreja subsiste; o clero conserva uma influência, um poder
e riquezas enormes; a escolástica continua ser ensinada, em latim, não so-
mente nos mosteiros, mas também nas Universidades, mesmo nos países
protestante; a “física” de Aristóteles não cessa de ser ensinada não obstante
os progressos decisivos da física moderna; outras instituições medievais so-
brevivem à crise do Renascimento e às crises ulteriores.

3.1 A Renascença (século xv)

Esse movimento artístico e literário, que nasceu na Itália e se expandiu pro-


gressivamente em toda a Europa ocidental e central, quer ser um retorno aos
valores clássicos da antigüidade clássica, para além do milênio obscuro e
bárbaro inaugurado pelas invasões e pela queda do Império Romano. Os hu-
manistas da Renascença mostram seu desprezo por toda cultura medieval.
Petrarca foi o primeiro a usar a expressão medium tempus (1373) para o período
que se insere entre o tempo do império romano e o seu próprio tempo. Os huma-
nistas criaram a expressão “Idade Média” (media tempestas aparece desde 1469;

47
Tomás de
Aquino

48
media aetas é registrado em 1518; medium aevum em 1604), dando-lhe um sentido
pejorativo: ela designa o período “intermediário” de estagnação, parêntesis esté-
ril entre duas épocas de cultura brilhante e de humanismo autêntico. Portanto,
o atributo “medieval” é uma desingação aplicada posteriormente e não determi-
nada pelo teor da filosofia que abrange. Tal atributo nada diz acerca da forma ou
do conteúdo, das tendências próprias, da qualidade intrínseca, do “espírito” da
filosofia surgida entre o século v o século xiv. Nesse sentido, “o significado ha-
bitual de ‘medieval’ comporta, ou transporta, como um preconceito cultural, o
menosprezo a que o Renascimento votou a Idade Média”22.

3.2 A “Reforma” Protestante (século xvi)

Resultado de uma longa evolução e de causas complexas, a revolta de Lutero


contra Roma explode em 1517. No plano doutrinal, a Reforma quer “protes-
tar” contra as doutrinas “papistas” e retornar ao pensamento do cristianismo
primitivo, reflexo da autêntica revelação cristã: esse movimento de Refor-
ma promoveu uma aplicação religiosa do conceito de tempo intermediário
como tempo de degeneração religiosa, ou seja, da perda de autenticidade do
cristianismo primitivo. A Reforma protestante apresenta um elemento tipi-
camente moderno, a saber: o individualismo na questão da interpretação dos
textos bíblicos. Esse individualismo associa-se à questão da autonomia, uma
vez que não se admite como critério normativo de interpretação a ideia de
tradição, tal como ocorre na Igreja Católica.

3.3 A Física Moderna

A crise da física aristotélica começa no século xiv com Jean Buridan, Alberto
de Saxe e, em Oxford, a escola franciscana do Merton College. Todo o sistema
científico de Aristóteles, dos gregos e dos árabes desmorona sob os golpes

22  Maria Leonor XAVIER, Questões de Filosofia na Idade Média. Lisboa: Edições Colibri, 2007, 18.

49
das descobertas que abalam a física, a mecânica e a astronomia tradicional. A
cosmologia deverá ser considerada independentemente de seus pressupostos me-
tafísicos e teológicos. Como quase sempre acontece na história das ideias, de
um longo processo de transição, muito mais do que de uma ruptura radical.
Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transfor-
mações que levarão à Revolução Científica:

Duas grandes transformações

Do ponto de vista da cosmologia, encontramos a demonstração da valida-


de do modelo heliocêntrico, realizada por Galileu Galilei; a formação da no-
ção de um universo infinito, cujo ponto de partida encontra-se em Nicolau
de Cusa e Giordano Bruno; há ainda a concepção do movimento dos corpos
celestes, principalmente da Terra, em decorrência do modelo heliocêntrico;
Do ponto de vista da ideia de ciência, deparamos com a valorização da ob-
servação e do método experimental, isto é, com a ciência ativa, que se opõe
à ciência contemplativa dos antigos; prevalece a utilização da matemática
como linguagem da física, proposta por Galileu sob a inspiração platônica
e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. Essa ciência ativa moderna
rompe com a separação antiga entre ciência (epistēmē), o saber teórico, e a
técnica (technē), o saber aplicado, integrando ciência e técnica. Isso permite
fazer com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvi-
mentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na
prática com base em sua aplicação na técnica.

50
51
52
4
A Idade Média
e o pensamento filosófico posterior:
continuidades e rupturas
Embora o pensamento moderno a partir de Descartes e os seus desdobramen-
tos posteriores marquem uma ruptura com o mundo medieval quanto ao
modo de pensar o mundo e o próprio homem, persistem sinais de continui-
dade dentro de uma descontinuidade. É possível encontrar raízes medievais
do pensamento moderno, bem como examinar a apropriação fenomenológica
dos medievais em vários textos de filósofos contemporâneos, dos quais se
destaca particularmente Martin Heidegger nos inícios de sua carreira docen-
te na Universidade de Freiburg (1919–1923). Quanto à persistência de temas
medievais no pensamento moderno, dispomos da síntese realizada por Ales-
sandro Ghisalberti com base em várias conferências proferidas no Brasil: As
raízes medievais do pensamento moderno. Porto Alegre: Edipucs, 2001. Sobre a
releitura fenomenológica dos medievais, publiquei recentemente um livro:
Bento Silva Santos, Fenomenologia e Idade Média. Curitiba: Editora CRV, 2013.

4.1 A Filosofia Moderna e a


Idade Média (século xvii)

Do ponto de vista filosófico-doutrinal, há alguns temas abordados pelos


pensadores modernos que permitem vislumbrar uma continudade do pen-
samento medieval. Nesse sentido, podemos falar na “presença das raízes me-
dievais da modernidade”. Em primeiro lugar, desde o final da Idade Média até

53
o século XVIII, a filosofia nunca deixou de tratar do caminho da instância da
transcendência. Essa instância transcendental ora no Renascimento (como
Marsílio Ficino e Pico della Mirandola), ora nas obras filosóficas de Descar-
tes, Leibniz, Wolff, Kant. Muitos desses pensadores modernos retomam as
demonstrações da existência de Deus, reelaborando as provas a priori ou a
posteriori. Assim, há “um itinerário especulativo que deduz, com argumen-
tos, a passagem do finito ao infinito, examinando a estrutura finita das coisas
contingentes”. Da Idade Média procede “a instância ontológica que, da aná-
lise do ser limitado, sob o princípio de não-contradição, chega à afirmação
da necessidade de ordem metafísica da existência do Ser absoluto, infinito,
perfeitíssimo, que dá razão à possibilidade do ser contingente”23.
A concepção teocêntrica do pensamento medieval sempre considerou o ho-
mem como uma figura singular no quadro mais amplo da natureza. Na pessoa
humana descortinava o ser mais nobre e mais perfeito entre todos os seres
vivos da natureza. O homem sempre manifestou aspirar a uma vida de reali-
zação e felicidade permanentes, não-interrompida pela morte. Essa aspiração
a não morrer é sinal do sentido ao qual aspira constante a existência como tal.

“Não ser é um sem-sentido para a pessoa. Isso é tão verdadeiro que,


embora nos deparemos com a morte a cada passo, embora vejamos
morrer os nossos parentes e nossos amigos, embora assistamos aos
seus enterros, ainda assim nos é extremamente difícil crer na reali-
dade da morte. Todavia, a pessoa humana não se esquiva da morte e,
assim, parece que essa aspiração seja esmagadora. Como é possível?
Sabemos que uma aspiração, que exprime a estrutura natural de um
ser, não pode ser frustrada” (Jacques Maritain)24.

Desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e chegando até os mo-


dernos, sempre encotramos pensadores que elaboraram razões em favor da
imoralidade. Há uma capacidade da inteligência de refletir sobre tudo o que

23  A. GHISALBERTI, As raízes medievais do pensamento moderno. Porto Alegre: Edipucs, 2001, 17–18.

24  Apud A. GHISALBERTI, As raízes medievais do pensamento moderno, 18.

54
participar do ser e da verdade em todo o universo: o objeto da inteligência é
universal, privado de qualquer condição material particular; por essa razão,
é imaterial. Nesse sentido, também será imaterial o ato da potência inteligente
que o conhece. Portanto, “a inteligência é uma potência imaterial que, mesmo
dependendo extrinsecamente do corpo, é imaterial pela estrutura intrínseca e,
portanto, não está sujeita em si mesma à corrupção. Que a alma humana seja
destinada à imortalidade é doutrina presente nas filosofias platônicas do Re-
nascimento, como a de Marsílio Ficino e a de Pico della Mirandola”.
Por fim, outro ponto de contato com a Modernidade está na chamada inte-
ligibilidade do mundo. Essa inteligibilidade articula-se em diversos aspectos.
Por exemplo, “a predisposição da mente humana para conhecer a realida-
de assim como ela é, sem alterar suas estruturas constitutivas, ou mesmo,
a capacidade do homem para instituir um modelo de saber rigoroso, uma
episteme forte, que construísse processos argumentativos, demosntrativos
e conclusivos que alcançassem a plena evidência cientifica”25. Portanto, a
racionalidade científica moderna se enraiza na forte paixão dos filósofos e
cientistas medievais pela razão, na sua grande fé, na lógica e na investigação
metodologicamente correta no plano da pesquisa empírica. Daí a importân-
cia de alguns métodos dessa inteligibilidade do mundo: a scientia experimen-
talis de Rogério Bacon, o princípio de verificação empírica, ou a navalha de
Ockham, a arte combinatória e a mnemotécnica de Raimundo Lúlio26.

4.2 Apropriação contemporânea da


Filosofia Medieval (século xx)

Eis um grande desafio para o filósofo medievalista: “trazer os pensadores medie-


vais para o diálogo com a Filosofia de nosso tempo”27. É com base nesse “diálogo

25  A. GHISALBERTI, As raízes medievais do pensamento moderno, 19–20.

26  Cf. A. GHISALBERTI, As raízes medievais do pensamento moderno, 19–20.

27  L. ALBERTO DE BONI, A Filosofia Medieval e a Filosofia atual, Studium. Filosofia y Teologia XV/30
(2012) 329. 333.

55
diacrônico” que deixamos de compilar e repetir o que foi dito. Nesse sentido, po-
demos dizer que “começamos a filosofar quando entramos em diálogo com os fi-
lósofos. Isto implica que discutamos com eles sobre aquilo do qual eles falam [...].
Uma coisa é averiguar as opiniões dos filósofos. Outra, inteiramente diferente, é
discutir com eles o que dizem, isto é, aquilo sobre que eles dizem”28.
O ponto de partida para uma aproximação fenomenológica da Idade Mé-
dia provém da releitura de intuições do filosofo alemão Martin Heidegger
nos inícios de sua carreira intelectual na Universidade de Freiburg. Nesse
sentido, a motivação para relacionar Fenomenologia e Idade Média se con-
centra nas potencialidades próprias de uma fenomenologia religiosa no seio do
período de 1916 a 1919 do “jovem” Heidegger, quando redigiu as notas de um
curso acadêmico não proferido — na verdade cancelado em agosto de 1918,
mas cuja redação continuou até 1919 —, intitulado Os Fundamentos filosóficos
da mística Medieval29, mas que, oficiosamente, essas notas tinham como obje-
tivo a redação de um livro sobre a “fenomenologia da consciência religiosa e
de seu mundo”30. Nesse período juvenil da investigação heideggeriana já se
descortina que a relação entre fenomenologia e religião é intrínseca em seu
aspecto formal (“Wie” = “como”) e não quanto aos conteúdos (“Was” = que
[coisa]), mesmo se mais tarde Heidegger tenha se mostrado pessoalmente
oscilante na atitude frente à religião. Essa convergência só é compreensí-
vel, caso aqui entendamos “religião” como religiosidade cristã, cuja estrutura
coincide formalmente com a da vida fática, da qual deriva a filosofia para
Heidegger. É justamente durante o período friburgense, de 1916 a 1923, que
Heidegger se opõe sobretudo à “absolutização injustificada da esfera teoréti-
co-científica”. O fenomenólogo e o crente respondem cada vez à provocação
de sua eventual coisa (Sache), que se subtrai a toda esfera teorético-científica.
De um lado, Heidegger propõe uma hermenêutica da facticidade, que deve

28  M. HEIDEGGER, Was ist das — die Philosophie? Pfullingen: Neske, 1956, 31, apud J. MAC-
DOWELL, A missão da Filosofia hoje, Sapere Aude 1/1 (2009) 20.

29  M HEIDEGGER, Fenomenologia da Vida Religiosa. Petrópolis: Vozes, 2010, 289–320.

30  O livro nunca foi escrito por Heidegger, mas essas notas revolucionárias construíram as
grandes linhas hermenêuticas de uma fenomenologia teológica (ou teológica).

56
evitar uma conceitualidade abstrata; assim ele radicaliza a fenomenologia,
cuja coisa (Sache) é a vida fática:

“Eu não experimento a mim mesmo na experiência fática da vida


nem como conexão de vivência, nem como conglomerado de atos:
nem mesmo como qualquer coisa de eu -objeto em sentido determina-
do, mas naquilo que faço, no que me acompanha e sucede, no que me
faz padecer, em meus estados de depressão e elevação, entre outros.
Eu mesmo, em momento algum, experimento meu eu em separado, mas
já sou sempre dependente do mundo circundante. Esse autoexperi-
mentar-se não é uma ‘reflexão’ teórica, não é uma ‘percepção inter-
na’ entre outras, mas experiência do mundo próprio”31.

De outro lado, em uma leitura fenomenológica do cristianismo das origens


em sua dimensão rigorosamente pré-teorética, Deus não é objeto de conheci-
mento teórico nem tampouco um ente, e o próprio conhecer mesmo se insere
na experiência fática da vida como “figuras de sentido” que revestem a for-
ma de convicções fundamentais. A fenomenologia é, portanto, um interrogar
e responder religioso secularizado32. Mesmo que Heidegger não tenha dado
continuidade aos projetos anunciados na introdução e na conclusão de sua
tese de habilitação sobre “Duns Scoto”33 (publicada em 1916), as notas por ele
elaboradas em 1918 comportam importantes indicações do modo como
ele desejou tratar fenomenologicamente o mundo medieval34.

31  M HEIDEGGER, Fenomenologia da Vida Religiosa, 17–18. Tradução modificada.

32  Cf. P. DE VITIIS, Principali interpretazioni della Vorlesung heideggeriana Del 1920–1921: Einleintug
in die Phänomenologie der Religion, in MOLINARO, A. (a cura), Heidegger e San Paolo. Interpretazione
fenomenologica dell’Epistolario paolino. Roma: Urbaniana University Press, 2008, 107–117.

33  Heidegger fala de um “estudo filosófico, mais precisamente fenomenológico dos escritos
medievais, morais e ascéticos da escolástica medieval” (Die Kategorien und Bedeutungslehre dês
Duns Scotus in Frühe Schriften [GA 1]. Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 1978, 205).

34  “Constituição da objetualidade religiosa: Deus se constitui na oração? Ou será que, de algum modo,
ele já se deu de antemão (vorgegeben) e religiosamente na fé (‘amor’)? A oração é um comportamento espe-
cífico [Verhalten ] em relação a ele [isto é, Deus]?” (M HEIDEGGER, Fenomenologia da Vida Religiosa, 293).

57
Para evidenciar essa atualidade da apropriação contemporânea da Idade
média servimo-nos de uma citação do terceiro sermão sobre o Cântico dos
Cânticos de Bernardo de Claraval do século XII, que situa a religiosidade na
esfera interior da experiência vivida: “Hoje lemos no livro da experiência
(hodie legimus in libro experientiae) [...]”. Heidegger compreende essa frase as-
sim: “Hoje queremos mover-nos de maneira compreensiva (descrevendo) no
campo da experiência pessoal. Retorno à esfera da vivência própria e auscul-
ta da revelação da própria consciência”. Trata-se de ler e pensar de outro modo
essa fórmula de Bernardo, isto é, como campo experiencial que o livro faz
abrir. Ler (legere) não é mais decifrar, mas mover-se a si mesmo, recolher, até
mesmo ser afetado. A experiência (experientia) não é mais o ato de ler, mas
vivência pessoal à qual ele reenvia. O hoje (hodie) não é o da análise, mas o da
compreensão entendida como descrição, e descrever fenomenologicamente
é atingir o eu histórico que existe interpretando seu mundo, que é também a
morada de Deus.
Além disso, Bernardo de Claraval insiste sobre a característica vivida e emi-
nentemente pessoal da experiência religiosa: “É uma fonte selada (fons signa-
tus), onde o estrangeiro não tem acesso; mas somente aquele que dela beber,
terá ainda sede” 35. Experiência interior seria equivalente à noção de “experiên-
cia fundamental” (Grunderfahrung), que torna possíveis e donde se desvelam
todas as outras experiências religiosas ou místicas. Essa “experiência funda-
mental” é primária, não somente no sentido temporal (zeitlich), mas também
no sentido fundante. Ela é, aliás, inteiramente histórica, no sentido de que esta
palavra historisch não deve indicar nada de definitivo, mas de autoresistente pri-
mário. Entre as outras experiências ou fenômenos que inquietam o místico,
enumeram-se entre outros os seguintes: a presença de Deus na alma, o recolhi-
mento interior, o silêncio, a solidão, a receptividade, a oração, etc36.

35  S. BERNARDO DE CLARVAL, Serm. in cant., III, 1: Patrologia Latina 183, col. 704 (tr. fr. BERNARD DE
CLAIRVAUX, Sermons sur le Cantique [coll. “Sources chrétiennes”, nº 14], t. I. Paris: Cerf, 1966, 101).

36  Cf. M HEIDEGGER, Fenomenologia da Vida Religiosa, 317–320.

58
Os dizeres de Bernardo de Claraval fixam um programa que serve para
enunciar uma prática fenomenológica da filosofia medieval37: certamente
retorno à fonte (e, concretamente, em nosso caso, aos medievais), mas es-
pecialmente à liberação de seu fluxo pelo “remontar à experiência” que uni-
camente lhe dá acesso. Concretamente isso significa o seguinte: nem o texto
e sua meditação (hermenêutica), nem a religião e seu estudo podem nem
devem afastar-nos do “modo de ser vivido”, do qual eles são portadores38. As-
sim, por exemplo, a partir da concepção de Eckhart sobre a relação entre o
esse de Deus e o ens da criatura como relação de criação, chegamos à mesma
conclusão, quando Turíngio afirma em sua Expositio in Ecclesiasticum 24, 21:
“Qui edunt me adhunc esuriunt” (“aqueles que me comem ainda desejam co-
mer”). Eis o sentido da metáfora para expressar a analogia entre a criatura e
o Criador, entre o ente e o Ser: comer sem estar jamais saciado, tendo sempre
mais fome. A fome ou a sede da criatura significa que o Ser não é para ela uma
posse fixa, mas uma recepção contínua do ser nele. A fome ou a sede designa
o apetite de uma coisa não possuída. Enquanto essa fome subsistir, a criatura
afirmar-se-á como ek-istente, como saída de si sob a forma constante de uma
inquietude em busca de Deus sem, contudo, jamais possuí-lo: nesse sentido,
o ente criado é pura recepção e, portanto, está na indigência; tem continua-
mente fome e sede do Ser absoluto.

37  Cf. E. FALQUE, Parler d’expérience: spiritualité monastique et philosophie mystique, in Jérôme
ALEXANDRE (ed.), L’actualité de saint Bernard, Paris: Collège des Bernardins, 2010, 135–147.

38  Cf. E. FALQUE, Dieu, la chair et l’autre. Paris:PUF, 2008, 16–19, 27–28.

59
60
módulo III

Os Padres da Igreja

61
62
1
O Período Patrístico
(séculos i-vii d.C.)

Na história do Cristianismo, a filosofia surge justamene no momento em que


alguns cristãos se posicionam em relação a ela, seja para condená-la, seja
para absorvê-la na nova religião. Desde os inícios do Cristianismo, o vocábu-
lo “filosofia” significa fundamentalmente “sabedoria pagã” sem a distinção
moderna entre saber racional emancipado e teologia ou religião.
O pensamento dos Padres da Igreja está consignado na chamada “litera-
tura patrística” que, em sentido amplo, designa o conjunto das obras cris-
tãs escritas entre os séculos I e VIII. Nem todos os escritos possuem como
autores os “Padres da Igreja”. Ora, esse título designa em sentido lato todos
os escritores eclesiásticos antigos, mortos na fé cristã e na comunhão da
Igreja católica. Falando de modo mais preciso, um “Padre (ou Pai) da Igre-
ja” apresenta quatro características: ortodoxia doutrinal, santidade de vida,
aprovação da Igreja, relativa antiguidade. Os primeiros cristãos realizavam
uma leitura altamente seletiva da filosofia grega, assumindo aquilo que con-
sideravam compatível com o Cristianismo enquanto religião revelada. Gros-
so modo, eram privilegidas a metafísica platônica, com seu dualismo entre
mundo espiritual e material (na linguagem platônica: a esfera suprassensível
e a esfera sensível), a lógica aristotélica, com seus recursos demonstrativos e
dialéticos, e a retórica dos estoicos e sua ética, com ênfase na resignação, na
austeridade e no autocontrole.
A questão nevrálgica na reflexão patrística é a relação entre o helenismo
(isto é, a filosofia grega em geral) e o cristianismo; trata-se do fenômeno sin-
gular do encontro entre filosofia grega e mensagem religiosa cristã. Para esse
fenômeno foram dadas muitas explicações, das quais destacarei aquela de
caráter mais teórico. Esse tipo de explicação descortina “algumas razões es-

63
truturais para esse extraordinário evento histórico-especulativo que foi o
encontro entre sabedoria filosófica grega e o kerigma cristão primitivo”1. Há
razões estruturais para esse encontro: a homologia (concordância) notável en-
tre a dimensão teológica da filosofia grega e o essencial teocentrismo da visão
cristã, fundado na tradição bíblica. Essa homologia convive, no entanto, com
uma radical heterologia (dissonância/discordância) na medida em que, ao mo-
vimento de constituição da theologia grega, que é um movimento de anába-
sis (subida), de ascensão do sensível ao inteligível e, finalmente, ao Primeiro
Princípio, segundo uma matriz conceitual inaugurada por Platão, contrapõe
o movimento de constituição da theologia cristã que acompanha o movimen-
to de katábasis (descida), da descida do Absoluto à contingência do mundo
e da história. No primeiro caso, o Absoluto é pensado ou atingido estatica-
mente como ápice de um movimento de ascensão intelectual. No segundo,
o Absoluto é dado como termo de um gesto de revelação e de graça. É essa a
tensão fundamental que atravessa toda a tradição filosófico-teológica cristã2.
Em resumo: o helenismo contestava metafisicamente a divindade de Cristo,
porque não conseguia justificar, no evento da Encarnação, a transcendência
de Deus com a contingência história de Jesus. Além disso, era impossível seja
uma intervenção direta e pessoal na história por parte de Deus (perspectiva
platônica), seja o acolhimento de tal intervenção divina “ad extra” por parte
do cosmo (perspectiva estoica).
Do ponto de vista da literatura patrística, a filosofia aparece ora no mun-
do grego, ora no mundo latino. Então costuma-se abordá-la sob a seguinte
nomemclatura: filosofia helênico-patrística e filosofia da patrística latina3.
De um lado, na configuração da filosofia na Patrística é fundamental o Cris-
tianismo como fato religioso. Nesse sentido pressupõe-se a revelação dada
por Deus, implicando assim um tipo de saber transracional em diálogo ou
em tensão com sabedoria humana. É importante ressaltar que o Cristianis-

1  H. C. DE LIMA VAZ, Escritos de Filosofia III: Filosofia e cultura. São Paulo: Loyola, 2002, 297s.

2  H. C. DE LIMA VAZ, Escritos de Filosofia III: Filosofia e cultura, 298.

3  Ver, por exemplo, a síntese completa de C. MORESCHINI, História da Filosofia Patrística. São
Paulo: Loyola, 2008.

64
mo não se mostrou como um fato filosófico em si mesmo, mas “como um
sistema de crenças ou como uma concepção das relações entre o homem e
Deus”. Essa concepção abrange uma abordagem experiencial do encontro do
crente com o evento Cristo, como é o caso sobretudo nas epístolas paulinas,
e uma apreensão mais teórica com a elaboração do dogma cristão ao longo
dos grandes Concílios Ecumênicos desdos primeiros séculos do Cristianis-
mo. De outro lado, enquanto fato cultural, o Cristianismo gerou uma dimen-
são cultural, uma vez que, “servindo-se de elementos tomados da filosofia
grega, deu origem a um pensamento que ocupou toda a época da humani-
dade, o período medieval latino, e que, inclusive, orientou a reflexão filosó-
fica no mundo moderno e no contemporâneo”4. Considerando a extensão e
a complexidade do período patrístico, dividido nos mundos grego e latino,
optamos por restringir a abordagem a dois representantes fundamentais do
pensamento filosófico-teológico na época dos Padres, a saber: Agostinho de
Hipona e Gregório de Nissa. O texto de Claudio Moreschini5 poderá servir
de grande utilidade para quem deseja aprofundar o pensamento dos Padres
da Igreja como um todo.

4  R. RAMÓN GUERRERO, Historia de la Filosofia Medieval. Madrid: Ediciones Akal S.A., 2002, 14.

5  C. MORESCHINI, História da Filosofia Patrística. São Paulo: Loyola, 2008.

65
66
2
A temática da Patrística
com base na tradição greco-latina
Com base nos autores escolhidos, será possível vislumbrar concretamente o
esforço de cada um para tornar aceitável o Cristianismo enquanto exercício
cristão da razão, um exercício que permitiu à razão humana contemplar no-
vas perspectivas até então desconhecidas.
De um lado, Aurélio Agostinho, considerado o mestre da Idade Média cris-
tã, julgava a filosofia como amor da sabedoria, e essa sabedoria nada mais era
do que a contemplação e posse da verdade. Enquanto investigação da verdade,
a filosofia significava para ele procurar dinamicamente a vida feliz, a felicida-
de. Sabedoria e verdade se identificavam na pessoa de Cristo, Caminho Verdade e
Vida. Mesmo dentro de um contexto literário e retórico da argumentação de
Agostinho em vários diálogos de sua fase inicial entre 386 e 391, é predomi-
nante em seu itinerário intelectual a dimensão existencial da busca pela ver-
dade no Cristianismo. De outro lado, Gregório de Nissa, o mais importante
pensador da Capadócia no século IV. Diferentemente de Agostinho de Hipona,
já conhecido por muitos cristãos, ao menos de ter ouvido falar dele, o mesmo
não acontece com o Nisseno. O leitor poderia perguntar-se: quem de fato foi
S. Gregório de Nissa? Um bispo? Um teólogo? Um pensador? Um asceta? Um
místico? Um exegeta? As numerosas obras, importantes e originais, de caráter
polêmico, expositivo, doutrinal e exegético, confirmam a figura poliédrica de
Gregório de Nissa. Ele soube sintetizar harmonicamente a visão do homem
propriamente bíblica com os elementos mais interessantes do pensamento
de algumas das figuras entre as mais importantes da cultura filosófica prece-
dente, tais como Platão, Aristóteles, Posidônio, Galeno e Orígenes. Passemos
então ao comentário sobre os dois doutores da Igreja antiga.

67
2.1 Agostinho de Hipona (354–430)

Na abordagem da principal figura do mundo latino, não abordaremos a evolu-


ção histórica do problema da relação entre fé e razão6, mas nos limitaremos à
apresentação do pensamento de Agostinho acerca desse tema, pois constituiu
o ponto de partida para ulteriores aprofundamentos ao longo da Idade Média
latina. Antes, porém, de examinar esse problema, será necessário considerar o
pensamento filosófico de Agostinho como um todo. Concretamente, tratare-
mos de três aspectos principais: 1º) a visão global da filosofia de Agostinho; 2º)
o itinerário intelectual e espiritual do filósofo; 3º) as relações entre fé e razão.

O pensamento filosófico de Agostinho

O objeto da filosofia, segundo afirma Agostinho em sua obra Soliloquia, pode


ser condensado em duas palavras: Deus e a alma: “A razão — Que coisa, por-
tanto, queres saber?... Agostinho — Desejo ter ciência de Deus e da alma. A
razão — E nada mais? Agostinho — Absolutamente nada” (Soliloquia I, 2, 7). O
conhecimento da alma é o conhecimento de si mesmo. O homem, portanto,
constitui também o objeto central da filosofia, já que o conhecimento de Deus
é o conhecimento do criador do homem, de sua “origem” (origo); através do co-
nhecimento do homem, o filósofo “se torna idôneo para compreender o princí-
pio racional do universo”7. São dois objetos estreitamente unidos da indagação
filosófica: só se chega a Deus partindo do homem, mas do homem se obtém
verdadeira ciência somente quando nele se descortina a imagem de Deus.

Agostinho, um filósofo de ocasião

Mesmo que Agostinho tenha se dedicado à filosofia todo período de sua


maturidade, isto é, desde os diálogos escritos em Cassicíaco no período de
386–387 até sua última obra contra o pelagiano Juliano de Eclano, deixada

6  Para uma visão geral, cf. U. ZILLES, Fé e Razão no pensamento medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1993

7  Cf. AGOSTINHO, De ordine II, 18, 47

68
inacabada no momento de sua morte em 430, ele não elaborou um verda-
deiro e próprio sistema filosófico. Enquanto outros na Antiguidade clássica,
como, por exemplo, Platão e Cícero, consagraram obras inteiras ao exame de
argumentos filosóficos específicos, Agostinho só o fez muito raramente. Na
primeira fase de sua atividade literária, algumas obras abordam temas filo-
sóficos específicos como, por exemplo, o ceticismo e o dogmatismo (Contra
Academicos), os problemas relativos à alma (De quantitateanimae), o mal, o
livre-arbítrio e a presciência divina (De libero arbitrio). Muitos de seus escri-
tos, mesmo aqueles que têm um profundo embasamento filosófico (como
De Trinitate, De Civitate Dei, De Genesis ad litteram) são fundamentalmente
respostas a uma série de problemas relacionados a circunstâncias pessoais,
teológicas e de política eclesial. A especulação como um fim em si mesmo,
indiferente a tais circunstâncias, jamais constitui a causa eficiente que in-
duz Agostinho a escrever, mesmo que não poucas vezes determine o campo
a partir do qual se dedica à análise de um problema filosófico particular. Se,
portanto, os escritos de Agostinho não constituem um verdadeiro e próprio
sistema, ele poderia então ser descrito como um filósofo de ocasião. Todavia,
deve-se admitir que o seu pensamento é dominado por determinados con-
ceitos fundamentais e que tal tendência pode ser descrita em termos gerais.

Duas atitudes diante da filosofia

Quanto ao seu posicionamento em relação à filosofia, Agostinho assume


duas atitudes assaz diversas, muito embora não haja traços de uma clara dis-
tinção entre os aspectos teológicos e os aspectos filosóficos de seu pensa-
mento. Em um primeiro momento, especialmente antes de sua elevação à
cátedra episcopal em 396, ele faz coincidir o horizonte noético da filosofia
com o da realidade e da verdade, atribuindo ao saber filosófico, à sabedoria,
um valor soteriológico indiscutível. Em segundo momento, isto é, a partir
de sua sagração episcopal, o horizonte hermenêutico muda radicalmente: a
razão especulativa é colocada no âmbito mais vasto da revelação, à qual com-
pete também e exclusivamente o poder salvífico: a única fonte de salvação é
Cristo, caminho, verdade e vida. Entretanto, devemos notar que, mesmo não
mais reconhecendo a autonomia da filosofia e restringindo ao máximo sua

69
utilidade, Agostinho conserva inalterada a sua concepção acerca da natureza,
da metodologia, da divisão e das finalidades da indagação filosófica. Nesse
sentido, quando procura definir filosofia, Agostinho propõe normalmente
a definição clássica de Pitágoras e Platão: “Studium vel amor sapientiae”8.
Não se trata simplesmente de uma definição nominal, mas real; é uma inda-
gação, um estudo da verdade em vista da posse da sabedoria; não é, portanto,
um estudo especulativo das causas últimas e das realidades fundamentais,
uma procura existencial cujo objetivo é a autorrealização na posse da vita
beata9. Ora, é um fato capital, para a compreensão do agostianismo, saber
que a sabedoria — objeto da filosofia — sempre se confunde com a ideia de
bem-aventurança. O que Agostinho procura é um bem cuja posse preencha
todo desejo e, em consequência, traga paz e felicidade.

Funções críticas atribuídas à filosofia

Na produção literária de Agostinho não é difícil encontrar as duas funções


principais atribuídas tradicionalmente à filosofia: uma função crítica, para
distinguir e remover todos os obstáculos que entravam a caminho para a ver-
dade, e uma função construtiva de descoberta e elucidação sistemática da ver-
dade. Embora não tematize explicitamente essa distinção, Agostinho a utiliza
já mesmo em suas primeiras obras, privilegiando mais a função crítica do que
a construtiva. Assim o exercício dessa função aparece nos três livros Contra
Academicos, compostos logo após a conversão e antes mesmo de receber o ba-
tismo: trata-se, ao mesmo tempo, de uma crítica do ceticismo e defesa do con-
ceito de acessibilidade do conhecimento. O reconhecimento da dupla função,
crítica construtiva, se encontra no prólogo ao Contra Academicos:

8 AGOSTINHO, De civitate Dei VIII, 1, 8; Contra Academicos I, 3, 7

9  Note-se que Agostinho, desde seus primeiros escritos, confronta os conceitos gregos e ro-
manos de felicidade, sabedoria e virtude com a autoridade do cristianismo. Ele assume a ética
eudaimônica que caracteriza filosofia antiga: a felicidade ou “bem-aventurança” (beatitudo) é
em si mesma acessível a todos e consiste na realização da sabedoria (sapientia).

70
“A filosofia me libertou inteiramente daquela superstição (do mani-
queísmo) na qual eu me precipitei juntamente contigo. Ela ensina, e
com razão, que não se deve ter consideração, mas somente desprezar
aquilo que se percebe com os olhos mortais, aquilo que é objeto da
percepção sensível. Ela promete mostrar com evidência a Deus, suma-
mente verdadeiro e inefável, e já se digna fazê-lo aparecer como que
através de nuvens transparentes”10.

O método de Agostinho: “Noli foras ire; in interiore homine habitat veritas”


(Não ir fora; no interior do homem habita a verdade)
Para atingir a certeza epistemológica, a filosofia poderá seguir vários
métodos. Entre os filósofos da antiguidade, havia a maiêutica de Sócrates,
a dialética de Platão e a lógica de Aristóteles e dos estoicos. Agostinho co-
nhecia esses métodos antigos e se serviu às vezes tanto da lógica quanto da
maiêutica, mas, nas obras filosóficas da juventude, privilegiou a dialética.
Todavia, em sua procura apaixonada da verdade, Agostinho seguiu um cami-
nho pessoal: o caminho da interioridade ou da introspecção. Esse caminho
consiste em procurar a verdade olhando para si mesmo, segundo a fórmula
emblemática “Noli foras ire; in interiore homine habitat veritas”. Tal fórmula é
dada como imperativo de toda a sua filosofia.
O método introspectivo de Agostinho não é uma simples análise existen-
cial, nem apresenta objetivos meramente descritivos ou fenomenológicos: seu
escopo é fundamentalmente transcendental e metafísico: o noverim me está
direcionado ao noverim te. O preceito fundamental do socratismo “Nosce te ip-
sum” (Conhece-te a ti mesmo) é, certo modo, o ponto de partida de Agostinho,
mas não sem fazê-lo passar por uma transformação. Não implica um simples
conhecimento de si, isto é, das aptidões, do caráter, temperamento, inclinações
e fraquezas particulares de cada indivíduo. Por que esse preceito do “Nosce te
ipsum”? — A fim de que a alma, sabendo o que é, viva de acordo com a sua na-

10 AGOSTINHO, Contra Academicos I, 3. Provável alusão à meditação das disciplinas liberais (ver
Solilóquios I, 6, 12; 8, 15; 13, 23). Em outras palavras: as “nuvens transparentes” (lucidae nubes)
aludiriam ao adestramento gradual ao qual o olho interior deve submeter-se para suportar a luz
ofuscante do sol inteligível, na linha do célebre mito da caverna de Platão (República 515c–516b).

71
tureza, isto é, coloque-se no lugar que lhe convém: abaixo daquele a quem deve
se submeter, acima do que ela deve dominar. Acima do corpo e abaixo de Deus.
Desse modo, segundo Agostinho, a alma que pensa em si mesma e vol-
ta, portanto, a seu interior, superará o seu próprio eu, e, nessa experiência
de imanência, chegará a elevar-se acima de si mesmo para ir até a Verdade.
Por conseguinte, conhecer efetivamente a si mesmo e conhecer a Deus não
são dois procedimentos, métodos distintos, mas duas etapas de um único
procedimento, de um único método: a verdadeira interioridade acontece só
quando se estende e se integra na metafísica. Interioridade sem metafísica é
uma interioridade superficial comparável a uma análise existencial. A alma,
através de seu desnudamento interior, isto é, o perscrutar as condições do
seu ser, do seu conhecer, do seu amar, do seu desejar com a consequente des-
coberta de sua fragilidade, não poderá deixar de entrever a fonte do seu ser,
da sua verdade, do seu bem — Deus. Isto é o resultado de uma análise atenta
e objetiva dos fatos e não um artifício sofístico ou um divertimento literário:

“Trata-se do destino da nossa vida, dos costumes, de nossa alma que


tende a superar todos os obstáculos do mundo das aparências, e depois
de abraçar a verdade, voltando, por assim dizer, ao país de sua origem,
há de triunfar do prazer e, na absoluta segurança, reinar no céu”11.

Uma vez examinada a visão global da filosofia de Agostinho, vejamos en-


tão seu itinerário intelectual e espiritual para, em seguida, tematizar e pre-
cisar as relações entre fé e razão, bem como o momento teológico da razão.

Do racionalismo à fé:
O processo de conversão de Agostinho

Basicamente existem cinco fases na evolução espiritual de Agostinho: em


primeiro lugar, o amor à filosofia graças à leitura de Hortensius de Cícero (A);
em seguida, a adesão ao maniqueísmo ao longo de nove anos (B); em terceiro

11 AGOSTINHO, Contra Academicos II, 9, 22.

72
S. Agostinho

73
lugar, do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico (C); em quarto lugar, a pas-
sagem determinante ao neoplatonismo (D); por fim, do neoplatonismo à sua
conversão ao cristianismo (E).

◊ A “primeira conversão à filosofia”12

Em 373, no curso do programa acadêmico, entregou-se com ardor à leitura do


diálogo Hortensius de Cícero, hoje perdido, aí encontrando uma concepção
radicalmente nova de vida. Essa “primeira conversão à filosofia”13 o conduziu
ao cultivo da sabedoria em si mesma, pois Cícero não recomendava nenhu-
ma escola filosófica especial; é o amor da Verdade e não somente da inte-
ligência, e a linguagem utilizada por Agostinho para descrever sua procura
é uma linguagem mística. O entusiasmo que o levava para a filosofia em si
mesma, isto é, “para o amor da própria Sabedoria” tinha um caráter religioso,
sem, porém, reconhecer explicitamente nessa procura o próprio Deus. To-
davia, nessa busca, confessa Agostinho ter sentido a ausência do nome de
Cristo: “bebera-o com leite materno o meu terno coração, e dele conservava
o mais alto preço”14. Diante dessa afirmação, é legítimo perguntar se a leitura
de Hortensius terá evocado ao jovem Agostinho lembranças de sua fé na in-
fância. Ora, segundo os fragmentos conservados dessa obra, Cícero aborda
frequentemente questões sobre as quais a doutrina cristã possui um ensi-
namento: Deus, o homem, sua vida moral e seu destino. Portanto, é muito
provável que a obra de Cícero tenha evocado à memória de Agostinho as re-
cordações de sua fé cristã.
Mesmo se a filosofia para Agostinho não é senão uma etapa para o saber
teológico, a influência do autor de Hortensius foi, no entanto, determinante.
A identificação da Sabedoria com Cristo norteou sua concepção do cristia-
nismo, interpretado no quadro da filosofia antiga, ao mesmo tempo como
doutrina da felicidade pela sabedoria e como gênero de vida ascética e con-

12  Cf. AGOSTINHO, Confessiones III, 4, 7.

13  O. DU ROY, L’intelligence de la foi en la Trinitéselon Saint Augustin. Paris, 1966, 25s.

14 AGOSTINHO, ConfessionesIII, 4, 7–8

74
templativa15. Assim, após ter sido conquistado pelo amor à sabedoria através
da leitura de Hortensius de Cícero, Agostinho inicia seu labor em busca das
fontes de um conhecimento que julgava ser o mais aceitável. Inicialmente,
não deixa de incluir também as Escrituras, mas esse primeiro contato com as
Escrituras foi acompanhado de preconceitos racionalistas que lhe impediam
penetrar na verdade transcendente contida nos livros sagrados. O estilo e a
linguagem dos livros divinos lhe pareceram assaz ordinários e toscos:

“Por tanto determinei aplicar-me às Santas Escrituras, por ver que


tais eram, e achei serem coisa não manifesta aos soberbos, nem aos
pequenos; mas que ao começo eram humildes, no progresso altas, e
cobertas de mistérios, e eu não era tal que pudesse entrar por elas,
nem dobrar a minha dureza para seguir as suas pisadas. E então
quando vi aquela Escritura não o senti, assim como agora o digo,
antes não me parecia digna de ser comparada com a eloqüência de
Túlio. Porque a minha inclinação fugia do seu humilde estilo; e a mi-
nha vista interior não penetrava o interior delas. Verdade é que ela
crescia com os pequenos, mas eu desprezava-me de ser pequeno; e
com a soberba, e inclinação que tinha, parecia-me que era grande”16.

Essa experiência dolorosa de uma insatisfação crescente aparece ainda na


passagem de um sermão dado povo:

“Eu que vos falo fui enganado outrora, quando desde jovem me aproxi-
mei pela primeira vez das Escrituras. Aproximei-me não com piedade
de quem procura humildemente, mas com a presunção de quem deseja
discutir (...) Ousei procurar com soberba aquilo que só os humildes po-
dem encontrar. Quanto sois agora mais felizes. Estivestes como filhotes
no ninho da fé e recebestes o alimento espiritual! Infeliz de mim, ao

15  Cf. G. MADEC, La notionaugustinienne de “Philosophia”, Revue de l’InstitutCatholique de Paris


18 (1986) 39–43.

16 AGOSTINHO, Confessiones III, 5

75
contrário, que julguei-me idôneo para o vôo, abandonei o ninho e caí
antes de poder voar! Mas o Senhor misericordioso me acolheu e me re-
colocou no ninho antes que os transeuntes em pisoteassem”17.

◊ Adesão ao maniqueísmo

Nesse estado de confusão e desorientação, Agostinho adere ao racionalismo


gentio-cristão dos maniqueus, que menosprezavam os simples fiéis e pro-
metiam aos seus sequazes um saber de ordem superior, bem como a prova
cabal da verdade. Trata-se, portanto, do maniqueísmo, cujo fundador foi o
persa Mani (216–274 ou 276), nascido em Basra. Mani fundou uma religião
dualista. Uma boa síntese sobre essa seita se encontra ora no Livro iii das
Confissões de Agostinho, ora na obra de Marcos Roberto Nunes Costa18. Sobre
o caráter dualista do pensamento de Mani, afirma Johannes Brachtendorf:

“A antropologia de Mani é totalmente marcada por sua visão dua-


lista básica. O corpo humano é um mal, pois é criado pelos demônios
das trevas. Em contrapartida, a alma é luz e pertence, por sua natu-
reza, ao Pai, o Grande. A alma precisa despertar por meio do nous
[intelecto], para se conscientizar de seu caráter iluminado, mas como
mostra o lamento de Adão, esse despertar não acarreta libertação
imediata. Ao contrário, a matéria ainda se esforça por entorpecer a
alma, para colocá-la a serviço do corpo. Surge, desse modo, uma luta
permanente entre o ‘o novo homem’ e o ‘velho homem’, como diz Mani
recorrendo ao apóstolo Paulo (Ed 4, 22–24). De acordo com Mani,
o velho homem totalmente mau, vive no corpo; o novo homem, to-
talmente bom, vive, ao contrário, na alma. O pecado não deriva da
vontade da alma, mas nasce do corpo, que nos momentos de incons-
ciência da alma assume o comando”19.

17 AGOSTINHO, Sermones LI, 5, 6.

18  Maniqueísmo: história, filosofia e religião. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

19  J. BRACHTENDORF, Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2008, 80.

76
Segundo a descrição feita no Livro iii das Confissões, os maniqueístas ti-
nham continuamente na boca a palavra “verdade”: “Diziam: ‘verdade, verda-
de’, e disto falavam-me continuamente”. Foi provavelmente a palavra “verdade”
que o seduziu, levando-o assim, no espaço de poucos dias, a abandonar a
fé da juventude e a abraçar o maniqueísmo. A adesão a essa seita implicava
logicamente não somente a recusa da autoridade da Escritura, mas também
o abandono da Igreja católica.
Do racionalismo maniqueísta provêm os erros de Agostinho nessa fase de
sua vida, particularmente as concepções que assumiu acerca de Deus e da
alma. Segundo os fautores da seita, Deus é luz, o que equivale a dizer que Ele
é um ente corpóreo. As almas humanas seriam simples partículas dessa luz
divina, desterradas para os corpos visíveis. A raiz mais profunda dos erros de
Agostinho era o seu próprio orgulho: “... mas como quando eu queria pensar em
meu Deus, não sabia pensar de vós senão grandeza de corpo (nem cuidava que
houvesse outra senão como esta) era a maior e quase a única causa inevitável do
meu erro”20. Todavia, a renúncia ao racionalismo deu-se sob a ação decisiva
de seu contato com Santo Ambrósio, cujas pregações escriturísticas lhe per-
mitiram aceitar o fato de que a Igreja dispõe de uma inteligência muito mais
profunda da Escritura. Sob o influxo das homilias de Ambrósio, Agostinho
superou dois grandes obstáculos que o mantinham ainda longe da Igreja: o
primeiro era representado pela linguagem marcadamente antropomórfica
da Escritura; o segundo dizia respeito à versão repugnante dada pelos mani-
queus acerca do ensinamento da Igreja católica.
Agostinho, portanto, deu-se conta do erro que cometera ao submeter a
doutrina da Igreja ao juízo imaturo de sua própria razão. Essa não funcio-
na segundo suas próprias forças; todo conhecimento verdadeiro é efeito da
iluminação do Verbo. É assim que os platônicos puderam conhecer a Deus, o
verdadeiro Deus, uno e trino, sem, porém, terem conhecido a fonte da sabe-
doria: a Sabedoria, o Verbo que é o Cristo. Nesse nome salutar se encontra “to-
tum culmen auctoritatis lúmenque rationis” (todo o cume da autoridade, toda

20 AGOSTINHO, Confessiones V, 10, 19.

77
luz da razão)21. Cristo é o princípio de coerência da doutrina agostiniana22:
Ele é, na ordem ontológica, Criador e Salvador, e, na ordem epistemológica,
fundamento da fé e da inteligência23.

◊ Do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico

A desilusão em relação ao maniquíesmo induziu Agostinho, durante a sua


permanência em Roma no ano de 383, a abraçar por certo período as doutri-
nas céticas: “Ocorreu ao pensamento ter havido uns filósofos acadêmicos,
mais prudentes do que os outros, porque julgavam que de tudo se havia de
duvidar e sustentavam que nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo
homem”24. Decepcionado, em Cartago, por seu encontro com Fausto, Agosti-
nho parte para Roma onde fica doente por ocasião de sua chegada. Ele reen-
contra ainda maniqueus com os quais partilha algumas opiniões, mas não
hesita em criticá-los. Esse período começa a terminar a partir de 384, quando
Agostinho residia em Milão. Encontrando o bispo Ambrósio, o Hiponense
ouviu suas homilias, repletas de reminiscências platônicas. Nesse ambiente
de cristãos platônicos Agostinho encontrará, juntamente com a leitura dos
“livros platônicos” em 386, o ensinamento cristão que procurava25.
A experiência da “dúvida cética” de Agostinho e o uso que é feito da dou-
trina correspondente em sua evolução intelectual devem ser interpretados
a partir de suas afirmações no Livro v das Confissões e da leitura cursiva do
Contra Academicos, mas isto pressupõe apresentar alguns elementos que di-
ficultam a compreensão das relações de Agostinho com a doutrina dos céti-
cos acadêmicos: de um lado, a questão de saber em que sentido Agostinho
adotou a posição acadêmica; de outro lado, por qual regra de coerência ele

21 AGOSTINHO, Epistula 118, 5, 33

22  Cf. J. J. O’DONNELL, The Authority of Augustine, Augustinian Studies 22 (1991) 7–35

23 AGOSTINHO, De Trinitate XIII, 19, 24

24 AGOSTINHO, Confessiones V, 10, 19.

25  Cf. AGOSTINHO, Confessiones V, 10, 18; V, 10, 19; V, 13, 23.

78
passou de Cícero à Bíblia, da Bíblia ao maniqueísmo e do maniqueísmo ao
ceticismo; enfim, se Agostinho permaneceu cético ou deixou de sê-lo, isto é,
sua relação com o (s) projeto (s) filosófico (s) e sua maneira de apreender o
sentido do (s) mesmo (s)26.
Se Agostinho, ao menos durante o tempo que vai de seu encontro com
Fausto à sua leitura dos neoplatônicos, adere às teses acadêmicas, está sob
a condição de resumir sua relação com essa doutrina em cinco proposições:
(1) a indagação acerca de uma união salvífica com a divindade (o Cristo
identificado com a sabedoria e com a verdade) condiciona suas pesquisas dou-
trinais, de sorte que é (2) uma “desesperança soteriológica” que o aproxima do
ceticismo acadêmico, mesmo se é verdade (3) que sua “desesperança gnosioló-
gica” serviu-lhe para terminar de refutar as pretensões maniqueias de possuir
a gnose verdadeira e salvífica; de outro lado (4) Agostinho parece-nos ter inter-
pretado a tese acadêmica da incapacidade do homem de formar uma represen-
tação compreensiva da verdade no sentido de uma impotência do homem em
unir-se a Deus, sem (5) ter aceitado a possibilidade de atingir a ataraxia pela
suspensão do juízo nem a beatitude pela pura pesquisa do verdadeiro.
A rigor, Agostinho não oferece uma apresentação da doutrina acadêmi-
ca, mas distribui o entendimento que dela possuía em dois pontos, desig-
nando sua própria compreensão como imperfeita: (1) deve-se duvidar de
tudo; (2) nada de verdadeiro podia ser compreendido pelo homem; (3) na
verdade os Acadêmicos tinham escondido sua “intenção”, e o verdadeiro
sentido de sua doutrina, a fim de que o “vulgar” não tivesse acesso a ela: a
prudência deles não é somente de ordem gnosiológica, mas ela dissimula
uma verdade mais profunda27.

26  Cf. sobretudo É. DUBREUCQ, Augustin etlescepticismeacadémicien, Recherches de Science Reli-


gieuse86/3 (1998) 335–365.

27  Cf. AGOSTINHO, Contra Acadêmicos III, § 37 ao § 43. Agostinho elabora nesses parágrafos uma
“hipótese histórica” sobre as vicissitudes da Academia platônica. Nessa reinterpretação da filo-
sofia de Platão discutida na Academia vê-se que Agostinho assume a tese de que houve um for-
te dogmatismo em Platão e nos desenvolvimentos posteriores estoicos e neoplatônicos. Nesse
caso, nem Platão, nem, supostamente, Arcesilau ou Carnéades seriam céticos (ou seriam ano-
malias), e esse título só conviria aos pirrônicos. Sobre a ideia de que na Academia se preservava

79
O “tempo cético” de Agostinho segundo
o Livro v das Confissões

A partir da leitura do livro v das Confissões podemos entender o “tempo cé-


tico” da seguinte maneira: se Agostinho achou sedutora a tese maniqueísta
concernente à origem do mal e à natureza da alma, ele experimentou cer-
tamente alguma repugnância em aderir às narrações cosmogônicas que a
sustentam: ele esperava Fausto como aquele que resolveria todas essas difi-
culdades que não pudera elucidar, não obstante todas suas leituras dos escri-
tos dos filósofos (isto é, a filosofia da natureza)28. Os elementos do “tempo”
cético — que caracterizariam perfeitamente a atitude dos acadêmicos — são
entendidos por Agostinho como desesperança e instabilidade.

A desesperança e o “tempo cético”

É mais de seu próprio desespero que a narração das Confissões faz nascer a
aproximação de Agostino com as posições acadêmicas que ele já conhecia
por já tê-las encontrado em Cícero. Não se trata de adotar a posição cética
como tal, suspendo o juízo para conseguir a sabedoria sob a forma da ata-
raxia; quando não se pode ter nenhuma posição afirmativa e certa, que atitu-
de assumir para melhor conduzir a vida? Agostinho tem o conhecimento de
uma tese negativa, segundo o Contra Acadêmicos (iii, 9, 18): “negant Academi-
ci sciri aliquid posse”: os acadêmicos não são, portanto, aqueles que afirmam
que o saber é inacessível ao homem, mas aqueles que negam que o homem
possa saber o que quer que seja. O coração da doutrina concerne à possibili-
dade de uma certeza vivida, e isso é fundamental para compreender como o
ceticismo acadêmico penetra na vida de Agostinho.

a parte dogmática do platonismo, ver especialmente C. LÉVY, Scepticismeetdogmatismedansl’aca-


demie: ‘l’ésoterisme” d’Arcesilas, Revue dês Études Latines 56 (1978) 335–348. Cf. também R. ROMÁN
ALCALÁ, El enigma de La AcademiaPlatônica. Escépticos contra dogmáticos en la GreciaClasica. Cor-
doba: Berenice, 2007, 35–50.

28  Cf. AGOSTINHO, Confessiones V, 7, 12.

80
“A desesperança teórica ou gnosiológica é bem menos decisiva na ma-
neira como Agostinho recebe o ceticismo acadêmico do que sua desespe-
rança vivida, que se situa no plano da questão da salvação pessoal”29.

Mas é preciso observar que a desesperança não é gerada pelo ceticismo,


mas nasce, antes de tudo, da decepção engendrada por Fausto e, a fortiori,
pelos outros maniqueus. A desesperança de Agostinho deve ser entendida
no sentido soteriológico: de que ou de quem esperar a salvação, uma vez que
o maniqueísmo se mostrou pura quimera? Segundo as Confissões, Agostinho
continuava a frequentar os maniqueus, mesmo já desesperando de poder al-
cançar a verdade por meio dessa falsa doutrina, ou seja, Agostinho, renun-
ciara a tornar-se um Eleito e, assim, assegurara sua salvação pela doutrina de
Manés. Essa desesperança concerne à salvação, e Agostinho desesperava até
mesmo de realizar sua salvação na Igreja católica, uma vez que os maniqueus
o enganaram fazendo-lhe crer ser impossível e impensável de encontrar nela
a verdade. Vejamos, portanto, algumas passagens onde aparecem o termo de-
sesperare e seus derivados:

“Comecei a desesperar (desesperare) da sua [= Fausto] capacidade


para me esclarecer... desesperei (desperans) ainda mais dos seus res-
tantes mestres... Mas, já desesperado (desperans) de poder alcançar a
verdade por meio desta falsa doutrina... desesperava (desperantem)
de poder encontrar na vossa Igreja a verdade de que me tinham apar-
tado... Comecei a amá-lo [Ambrósio], ao princípio não como mestre da
Verdade — pois desesperava (desperabam) de encontrá-la na Vossa
Igreja — mas... perdidas já todas as esperanças (desperanti) de que se
patenteasse ao homem o caminho para Vós... Desconfiava e desespe-
rava (desperabam) de encontrar a verdade... Encontrou- me em grave
perigo, na desesperação (desperatione) de buscar a verdade”30.

29  Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 344 et passim.

30 AGOSTINHO, Confessiones V, 7, 12; V, 7, 13; V, 10, 18; V, 10, 19; V, 13, 23; V, 14, 2 4; VI, 1, 1.

81
A instabilidade e o “tempo cético”

O outro elemento — a instabilidade — deve ser compreendido à luz da de-


sesperança soteriológica: não poder encontrar salvação em Deus através da
interpretação da boa doutrina significa errar em uma existência doravante
privada de todo sentido e ser condenado irremediavelmente à obscuridade e
à perda sem retorno. Na abertura do Livro vi das Confissões Agostinho resume
o estado de seu espírito na época:

“Minha mãe, forte na piedade, já tinha vindo ao meu encontro, seguin-


do-me por terra e por mar, com a segurança posta em Vós, no meio de
todos os perigos. Era ela que, nos riscos dos mares, incutia coragem
aos próprios marinheiros que costumam animar os inexperientes nave-
gadores do abismo, quando se perturbam: prometia-lhes a chegada a
salvo, porque Vós, em visão, lhe havíeis prometido isso. Encontrou-me
em grave perigo, na desesperação de buscar a verdade; mas, enfim,
descobrindo-lhe que já não era maniquéia e que também ainda não
era católico, não saltou de alegria, como quem ouve qualquer nova im-
prevista [...]. Não foi, portanto com imoderado júbilo que seu coração
estremeceu, ao ouvir que em grande parte me tinha convertido, graça
que ela todos os dias Vos pedia com lágrimas. Ainda não havia me tor-
nado adepto da verdade, mas já me tinha arrancado do erro”31.

A passagem em questão nos oferece duas coisas importantes: a viagem


marítima de Mônica tornou-se uma metáfora da existência humana. Con-
siderando a associação entre a desesperança e a verdade, emerge a seguin-
te interpretação: não saltar de alegria significa que Mônica percebeu que
seu filho, mesmo não sendo mais maniqueu, não é ainda verdadeiramente
cristão. A instabilidade da existência, expressa sob a metáfora marítima, é
o correlato da desesperança soteriológica. Quem não possui esperança de
realizar sua salvação só resta a vacuidade ontológica de uma existência efê-

31 AGOSTINHO, Confissões VI, 1, 1 (o grifo é nosso).

82
mera. É justamente esta atitude que é descrita na alternativa das doutrinas
maniquéias, acadêmica e cristã: encontrando-se na desesperação de buscar
a verdade, Agostinho abandona o maniqueísmo, mas, assim procedendo, ele
permanece desprovido de todo recurso, pois ainda não encontrou a doutrina
da salvação. Ele não “havia ainda se tornado adepto da verdade”. E esta ver-
dade é a Verdade divina, isto é, Cristo (e não somente as verdades às quais a
inteligência humana é capaz de atingir)32. Trata-se aqui novamente de uma
desesperança soteriológica.

“A passagem da doutrina maniquéia à cristã tem como ponto de liga-


ção a busca da união com Cristo; as doutrinas acadêmicas e neopla-
tônicas nada mais são do que tempos intermediários nesta busca”33.

Embora considere a doutrina acadêmica superior à maniqueia, ainda que


incapaz ao nível soteriológico, Agostinho não adota a atitude fundamental
do cético, a saber: a suspensão do juízo. Em lugar dessa atitude, Agostinho
adota a da instabilidade e a da flutuação. A julgar, portanto, pelos dizeres do
próprio Agostinho nas Confissões e pela indivisível unidade de discurso filo-
sófico e vida filosófica como marca da concepção antiga da filosofia, o seu
chamado período cético não é a descoberta da sabedoria cética, mas, antes
um “tempo de dúvida” (tempore dubitationis) do que uma construção intelec-
tual: “Por essa razão (Itaque), duvidando de tudo, à maneira dos Acadêmicos
— como os julga a opinião mais seguida — e flutuando entre todas as doutri-
nas, determinei abandonar os maniqueístas, parecendo-me que não devia,
neste tempo de dúvida, permanecer naquela seita à qual já antepunha alguns
filósofos. Porém... esses filósofos desconheciam o nome salutar de Cristo. Por-
tanto (ergo), resolvi fazer-me catecúmeno na Igreja católica”34. Comparando

32  Cf. Jo 14, 6. Ao longo de seus escritos, Agostinho utiliza frequentemente essa passagem (em
conjunção com textos paulinos: por exemplo, 1Cor 1, 24 em Contra Acadêmicos II, 1, 1, Cristo
como virtus et sapientia Dei) para falar que Cristo, Filho de Deus, Sabedoria de Deus, é a Verdade.

33  Cf. É. DUBREUCQ, Augustin et le scepticisme académicien, 344 et passim.

34 AGOSTINHO, Confessiones V, 14, 25 (o grifo é nosso).

83
os termos itaque e ergo dessa passagem com o itaque (Confesssiones iii, v, 9)
que introduz a passagem de Cícero à Bíblia e ao maniqueísmo, verificamos
o que é decisivo aos olhos de Agostinho: o nome de Cristo. Portanto, sua ati-
tude é essencialmente orientada por uma questão religiosa — como unir-se
ao Cristo? Qual é a justa doutrina depositária do nome de Cristo? — e não por
uma questão “filosófica” no sentido clássico da Antiguidade tardia:

“Mas Vós sabeis, Luz do meu coração, que naquele tempo ainda não
me eram conhecidos estes ensinamentos do Apóstolo S. Paulo [Cl 2,
8]. Apenas me deleitava, naquela exortação [o Hortênsio de Cícero], o
fato de essas palavras me excitarem fortemente e acenderem em mim
o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não esta ou
aquela seita, mas sim a própria sabedoria (ipsamsapientiam), qual-
quer que ela fosse. Uma só coisa me magoava no meio de tão grande
ardor: o nome de Cristo (nomen Christi) não se encontrava aí. [...] Por
essa razão (Itaque), dediquei o meu espírito ao estudo das Sagradas
Escrituras, e ver o que elas eram [...] Por essa razão (Itaque) caí nas
mãos de homens orgulhosamente extravagantes, demasiado carnais
e loquazes. Havia na sua boca laços do demônio e um engodo, prepa-
rado com a mistura de silabas do Vosso nome, de Nosso Senhor Jesus
Cristo e do Espírito consolador, o Espírito Santo. [...]35.

◊ O desejo de viver o otium (ócio) filosófico:


O choque libertador provocado pelo Neoplatonismo

À luz de seus primeiros escritos36 e, especialmente, do Livro vii das Confis-


sões37, sabemos que Agostinho leu alguns “livros platônicos”. Considerando
a quase simultaneidade da redação dos livros Contra Acadêmicos e De Beata

35  Ver AGOSTINHO, Confessiones III, 4, 8; III, 5, 9; III, 6, 10; V, 14, 25 (o grifo é nosso).

36 AGOSTINHO, Contra Acadêmicos (II, 2, 5) e De Beata Vita (I, 4).

37  Cf. G. MADEC, Platonismeetchristianisme. Analysedu livre VII des Confessions, in CARON, M.
(sous la direction). Saint Augustin. Paris: Cerf, 2009, 77–158.

84
Vita, é também conhecida a existência de um “círculo neoplatônico” de inte-
lectuais em Milão na mesma época da conversão de Agostinho em 386. A esse
meio neoplatônico pertencia sem dúvida S. Ambrósio, cujos Sermões permi-
tiram ao Hiponense conseguir algumas referências seguras que o conduzirão
à conversão, a saber: a descoberta do sentido espiritual da Escritura, o que lhe
permitiria abandonar uma concepção antropomórfica da divindade e aceder
à ideia de uma semelhança espiritual entre o ser humano e Deus.
Não é caso aqui de evocar a quaestio vexata que concerne à identidade des-
ses “livros platônicos”, mas, sim, chamar atenção para o fato de que a leitura
de tais livros provocou em Agostinho “um choque libertador”38. Como bem
observou Paula Oliveira e Silva, “ao conjugar a leitura dos Platonicorum com a
dos escritos de S. João e de S. Paulo, Agostinho é levado a construir, progres-
sivamente, uma simbiose entre os elementos colhidos nas mundividências
neoplatônica e cristã”39. Mas, concretamente, em que sentido podemos en-
tender o incêndio interior da alma de Agostinho após abandonar o ceticismo
acadêmico e deparar com os neoplatônicos?

Os aspectos teórico e prático do choque libertador

Esse “choque libertador” pode ser apresentado sob dois aspectos: teórico e
prático. Em primeiro lugar, o encontro com os “livros platônicos” represen-
tou uma enérgica reafirmação do primado do imaterial e uma estupenda
conquista da estrutura do suprassensível. Como o dito “Neoplatonismo” de
Agostinho se identifica pura e simplesmente com um platonismo, cuja base é
a distinção entre mundo inteligível e mundo sensível, não é difícil vislumbrar
como se revelou paulatinamente aos olhos do Hiponense a realidade inteligí-
vel em sua radical alteridade e transcendência em relação ao sensível, quan-
do elaborou uma ideia adequada de Deus e resolveu o problema da origem
do mal. A partir da leitura do Livro vii das Confissões, podemos afirmar que

38  G. MADEC, Platonisme et christianisme, 91.

39  P. OLIVEIRA E SILVA, Ordem e Ser. Ontologia da Relação em Santo Agostinho. Braga: Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007, 63–64.

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Agostinho, depois de seu contato com os neoplatônicos, foi sempre contrário
a conceber a Deus de modo antropomórfico e assim tornou-se convicto de
que Deus era incorruptível, inviolável e imutável. A imersão de Agostinho nos
livros neoplatônicos permitiu-lhe perscrutar o mundo corpóreo em si mesmo
para subir por degraus da alma até a luz imutável da Verdade que ilumina as
mentes. Compreende-se assim que a certeza obtida por Agostinho através dos
Neoplatônicos tenha desencadeado aquele incrível incêndio narrado no Livro
ii do Contra Acadêmicos (2, 5). Em segundo lugar, como consequência direta do
aspecto teórico, deu-se a renúncia definitiva às ambições mundanas. Eis aqui,
portanto, o aspecto ético da assimilação dos livros neoplatônicos. A propos-
ta neoplatônica de um “itinerarium mentis in Deum” (Itinerário da mente para
Deus) estava indissoluvelmente associada a um processo de “conversão” à in-
terioridade e de purificação moral. Segundo tais filósofos, para chegar a um
conhecimento isento de qualquer conteúdo sensível, era preciso que a alma
deslocasse a sua atenção de qualquer atração terrena — prazeres, honras, ri-
quezas — e voltasse seu olhar, antes de tudo, para si mesma enquanto rea-
lidade imaterial e, posteriormente, aos princípios supremos (o Intelecto e o
Uno), donde ela provém. Uma vez chegada àquela contemplação, a alma teria
provado a verdade bem-aventurança, e todos os chamados “bens” desejados
comumente pelo homem lhe pareceriam desprezíveis.
Além disso, a descoberta da Verdade inteligível obrigava Agostinho a re-
alizar um projeto antigo, a saber: consagrar-se completamente à sapientia
uma vez encontrada. Nesse sentido, duas passagens emblemáticas das Con-
fissões confirmam inequivocamente o que acabamos de afirmar. A primeira
é Confissões vi, 11, 18: “Admirava-me muito, ao recordar diligentemente quão
longo fora o período do tempo decorrido após os dezenove anos, idade em
que começara arder no desejo da Sabedoria propondo-me, depois de obtê-la,
abandonar todas as esperanças frívolas e todas as loucuras enganosas das vãs
paixões”. A segunda é Confissões viii, 7, 17–18, onde Agostinho recorda seu es-
tado de ânimo depois de ter ouvido a narração de Ponticiano sobre conversão
repentina de dois funcionários imperiais. Em seguida, emerge a célebre cena
do jardim. Ecce, iam certum est: a certeza que procura, Agostinho a encontrou

86
nos neoplatônicos: nenhuma desculpa mais pode ser aduzida para nutrir
ainda esperança do mundo. Passando do ceticismo acadêmico ao neoplato-
nismo, Agostinho descortinou um possível acesso à certeza da existência da
Verdade, mas falta-lhe ainda chegar à união com a própria Verdade, mas isso
era inacessível ao neoplatonismo. Só o encontro com Cristo, Verdade e Sa-
bedoria de Deus, foi possível encontrar o que ele procurava desde o início de
sua odisseia intelectual.
Portanto, depois da experiência amarga de adesão ao maniqueísmo, Agos-
tinho encontrou o neoplatonismo40 que não somente lhe possibilitou superar o
materialismo filosófico da seita maniqueísta, à qual nunca aderira com plena
convicção, mas também lhe proporcionou uma metafísica do espírito alta-
mente desenvolvida. A leitura “de alguns livros platônicos” foi comparada a
uma espécie de vivência mística, da qual se tem uma descrição sem paralelo
na literatura universal41. Mesmo tendo encontrado no neoplatonismo o que
procurava, isto é, a certeza de que existe uma realidade suprassensível, um
mundo espiritual, e, acima desse mundo, um Deus, Verdade segura e Luz imu-
tável, Agostinho não se deu por satisfeito com isso. Como havia passado pela
terrível experiência da dúvida e da desesperança, Agostinho sentiu-se na obri-
gação de ir em auxílio de todos aqueles que pudessem sofrer semelhantes difi-
culdades. É assim que tratou de refutar o ceticismo na obra Contra Academicos.
Mesmo que Agostinho tenha utilizado certas categorias platônicas ou es-
toicas em sua obra filosófica, isso não faz dele um estoico ou um platônico.
A genialidade de Agostinho consistiu em realizar um trabalho de apropriação
e de interpretação a partir da fé cristã, segundo o “princípio de coerência”
definido por G. Madec como a identificação feita por Agostinho da Sabedoria
do Hortensius, e da Inteligência divina do platonismo com o Verbo do prólogo
joanino, o Cristo42.

40  Cf. S. POQUE, L’expression de l’anabase plotinienne dans la prédication de saint Augustin et ses
sources, Recherches Augustiniennes 10 (1975) 187–215.

41  Cf. AGOSTINHO, ConfessionesVII, 10, 16

42  Cf. G. MADEC, Christus, scientia et sapientia nostra. Le principe de cohérence de la doctrine au-
gustinienne, Recherches Augustiniennes 10 (1975) 57–58.

87
◊ Do “incêndio interior da alma” à conversão ao cristianismo

A própria experiência filosófica de Agostinho nada mais é do que uma in-


terpretação de sua própria vida. E essa experiência se resume em uma busca
ininterrupta de Deus. Sendo assim, quem acompanha a evolução intelectual
e espiritual de Agostinho, descrita nos livros iii–vii das Confissões, verifi-
ca que o desejo de Deus nada tem de facultativo: trata-se de uma exigência
incoercível que trabalha o coração do homem. Essa experiência de uma in-
satisfação crescente foi sintomática em Agostinho: seu desejo de verdade o
conduziu de Hortensius à Bíblia, da Bíblia ao maniqueísmo que lhe prometia
aparentemente uma verdade mais satisfatória para sua inteligência embria-
gada de racionalidade; essa mesma exigência de verdade fez com ele se afas-
tasse dessa seita quando descobriu a falsidade da mesma; em seguida, ela o
levou do ceticismo à leitura dos Neoplatônicos43 e, por fim, destes, à leitura
das epístolas paulinas, onde leu que o homem é prisioneiro do pecado e que
ninguém pode libertar-se dele sem a graça de Jesus Cristo. A verdade total
almejada há tanto tempo por Agostinho é encontrada: ele abraçou-a em se-
tembro de 386 aos trinta e três anos de idade.
Essa experiência permanente de insatisfação no coração do homem signi-
fica que nenhum bem limitado pode saciá-lo. A inquietude da alma, segundo
Agostinho, adquire sentido, quando se fixa no desejo de Deus44. É assim que
se pode falar de “ascensão” para Deus, como também acontece na experiên-
cia mística. Ora, basta colocarmos em paralelo a experiência de Milão — no
livro vii das Confissões —, o êxtase de Óstia — relatado no livro ix —, o Sermão
lii, A Enarratio in Psalmum xli, o Tractatus in IohannisEvangelium xx, para
constatar que Agostinho utiliza sempre um esquema de “análise” de origem
platiniana para traduzir sua experiência. As etapas dessa ascensão são as se-

43  Agostinho leu alguns escritos neoplatônicos, especialmente uma parte das Enéadas de Ploti-
no na tradução do platônico cristão Mário Vitorino. Sobre o influxo do neoplatonismo em Agos-
tinho, cf. P. HADOT, L’image de la Trinité dans l’âme chez Victorinus et chez saint Augustin, Studia
Patristica 6, TU 81 (1962) 409–442.

44  Cf. I. BOCHET, Saint Augustin et le désir de Dieu. Paris, 1982, 123–130.

88
guintes: a primeira etapa é constituída pelo mundo sensível: o corpo huma-
no, a terra, o mar, o solo, a lua, as estrelas....; a segunda é a do espírito: aqui,
Agostinho evoca às vezes não somente a inteligência humana, mas também
os espíritos invisíveis; outras vezes indica também uma ascensão ao interior
do próprio espírito45; a terceira, por fim, é o próprio Ser, ou seja, Deus.
Seja como for, após sua conversão, a especulação filosófica de Agostinho
expressará o esforço de uma fé cristã que procura levar o mais longo possível
a inteligência de seu próprio conteúdo, mesmo vivendo do patrimônio neo-
platônico acumulado no primeiro entusiasmo dos anos 385–386. Portanto,
Agostinho aborda a fé cristã como homem penetrado da filosofia grega, de
seus problemas e de seus métodos.

As relações entre fé e razão

A relação entre saber e fé fora objeto de grandes discussões desde os tem-


pos de Tertuliano e Clemente de Alexandria. O primeiro se caracterizou por
uma atitude polêmica em relação à filosofia: na opinião dele existe um abis-
mo entre religião cristã e antiga filosofia, de sorte que fé e ciência estão para
ele em extrema oposição. No seio do cristianismo não há lugar para a filo-
sofia. Ainda que não seja uma fórmula histórica, a célebre expressão “credo
quia absurdum” resume bem o espírito de Tertuliano. O segundo formulou e
elucidou problemas que foram retomados posteriormente pelo pensamento
cristão. Clemente distingue dois tipos de filosofia: 1º) Uma filosofia segundo
a tradição humana, ou seja, uma filosofia que assume uma explicação física
e imanentista da realidade, sem transcender uma causa eficiente. Tais são
o epicurismo, que diviniza o prazer, o logicismo, que se contenta com vãos

45  Cf. AGOSTINHO, Confessiones VII, 17, 23: o movimento de interiorização se faz da anima, que é
o princípio animador do corpo considerado na função vital que ele exerce, e que em um nível já
mais elevado permitir sentir, ao animus, que designa a alma do homem, isto é, um princípio vital
que é ao mesmo tempo uma substância racional; em seguida, do animus à ratio, que assegura o
liame dos conhecimentos e, por fim, à intelligentia, que é o que há de mais eminente no homem
e que é iluminada diretamente pela luz divina.

89
jogos dialéticos, o materialismo (atomístico e estoico), o naturalismo dos Jô-
nicos. Uma filosofia arrogante e fechada em sua absoluta autosuficiência não
pode coadunar-se com a fé cristã; 2º) Uma filosofia segundo a tradição divina,
isto é, uma filosofia que admite a existência de um Deus transcendente, Cria-
dor e Providente, que reconhece a contingência e mutabilidade das coisas
e admite uma Providência que dirige tudo para o escopo final, que é o de
tornar-nos semelhantes a Deus. Essa filosofia se harmoniza com a doutrina
cristã, na qual naturalmente se insere46. Essa solução de Clemente foi assu-
mida por Orígenes e caracterizou o pensamento de todos os autores cristãos
dos primeiros séculos47.
Quando a adesão intelectual de Agostinho se transformou em submissão
da vontade à autoridade Cristo, isto é, a partir de sua conversão, ele procurou
aprofundar as relações entre fé e razão. Na solução agostiniana, encontram-se
o humanismo da filosofia clássica e a doutrina cristã em toda a vasta comple-
xidade de seus problemas. A descoberta do papel fundamental que compete à
autoridade no âmbito do cristianismo coincide com a descoberta da verdade
por excelência que sua alma havia almejado e para a qual Deus o tinha condu-
zido através de sua inquietação intelectual: do Hortênsio passara a Manés, de
Manés ao cetecismo acadêmico, do ceticismo acadêmico a Plotino e, por fim,
de Plotino a Paulo e a Cristo. No cristianismo chegou ao termo sua inquieta-
ção latente na busca da verdade: a luz do Verbo divino contém a centelha do
pensamento humano. Assim, vejamos a relação entre fé e razão comentando
o célebre texto do Sermão 43 que sintetiza a dupla atividade da razão: compre-
ender para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas).

◊ “Intellige ut credas” (compreende para crer)

É, antes de tudo, no âmbito do pensamento humano, que vale a fórmula in-


tellige ut credas: “Compreende para crer na palavra humana”. De modo geral,
o juízo de Agostinho sobre o valor da razão humana da filosofia coincide com

46  Cf. CLEMENTE, Stromata I, 11, Patrologia Graeca 8, 750–751, 988–998.

47  Cf. B. MONDIN, Filone e Clemente. Roma, 1984, 146–166.

90
o de Paulo na epístola aos Romanos (Rm 1, 18–22), onde se explica o porquê da
cólera divina (vv, 19–23): a inteligência como tal, partindo do mundo, deveria
chegar à sua causa; tornaram -se perfeitamente visíveis aos olhos da mente a
eterna força e majestade divina. Consequentemente, no plano cognoscitivo,
o homem acabou por perder a verdade que possuía. Seus raciocínios são va-
zios e seu pensamento move-se no meio das trevas.
Segundo o testemunho de Agostinho na obra “Cidade de Deus”, a filoso-
fia autêntica é aquela que reduz todo conhecimento em conhecimento de
Deus48, na medida em que todos os filósofos, a respeito do verdadeiro e su-
premo Deus, pensam ser o “autor da Criação, a Luz das inteligências, o fim
das ações, que dEle nos vêm o princípio da natureza, a verdade da doutrina
e a felicidade da vida”49. Ao tematizar a filosofia que mais se aproxima da
verdade da fé cristã, Agostinho evoca implicitamente o patrimônio filosófico
dos neoplatônicos que remontam a Deus como princípio do universo criado,
de todo conhecimento e toda felicidade: a filosofia platônica atingiu a Deus
como principium nostrum, lúmen nostrum, bonum nostrum (nosso princípio,
nossa luz, nosso bem). Entre todos os filósofos, Platão foi o primeiro a consi-
derar que “Deus é Autor de todas as naturezas, Dispensador da inteligência,
Inspirador do amor e conduz à vida feliz e boa”50.
Ao propor um filosofar segundo Deus, na medida em que se abre à transcen-
dência, isto é, quando Deus aparece como princípio da realidade física, da
vida intelectual e da vida moral, Agostinho deixa transparecer sua admiração
por Platão: “Em certos livros platônicos li, não com estas mesmas palavras,
mas provado com muitos e numerosos argumentos, que no princípio era o

48  A propósito dessa afirmação, devemos notar que o conhecimento de Deus, aos olhos de
Agostinho, nada mais será do que um prolongamento do conhecimento de si. O nosso conheci-
mento possui em si mesmo sua própria norma, que é a presença de Deus em nossa alma. Agos-
tinho falará diversas vezes, sobretudo no “De magistro”, de Cristo como o “Mestre interior”. A
fé em Deus não é senão o conhecimento de tudo a partir dessa norma, e a consciência dessa
presença como condição de verdade.

49 AGOSTINHO, De civitate Dei VIII, 9

50 AGOSTINHO, De civitate Dei XI, 25

91
Verbo e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo” (Jo 1, 1).51 Essa filosofia, que
é amor da sabedoria, deve traduzir-se na prática da vida. O conhecimento
de Deus deve conduzir ao amor de Deus. O verdadeiro filósofo é aquele que
ama a Deus: “Que o filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da
filosofia, gozar de Deus, amar a Deus é ser feliz”52.
Não obstante a capacidade da razão filosófica de atingir a Deus, fora do
cristianismo, a filosofia permaneceria ineficaz e restrita a um horizonte da
realidade limitado. Daí a necessidade absoluta da fé, que tem como funda-
mento não uma autoridade humana, mas divina, que é a única autoridade
“absolutamente verdadeira, certa e sumamente fidedigna”53. A fé não destrói
os direitos da razão, mas a cura, a renova, a purifica, a revigora, tornando
assim possível o movimento teológico da razão, isto é, a inteligência da fé:
“O crer nada mais é do que um pensar acompanhado de assentimento. Nem
todo aquele que pensa, crê (...), mas todo aquele que crê, pensa; e pensa cren-
do e crê pensando”. “A fé é o primeiro passo para a compreensão (...). A fé
busca, a inteligência acha (...) A inteligência se dá como recompensa à fé”54.
A relação entre inteligência e fé se inverte, quando se passa do plano natu-
ral ao âmbito sobrenatural. No plano natural, é a inteligência que condiciona
a fé; no âmbito sobrenatural, é a fé que condiciona a inteligência. Segundo
Agostinho, ninguém pode acreditar em Deus senão passando pelo caminho
da inteligência. Assim, o segundo momento da dialética entre razão e fé está
condensada na fórmula crede ut intelligas: é preciso, antes de tudo, aderir e
acreditar no pensamento divino para poder compreendê- lo: “Intellige ut cre-
das verbum meum; crede ut intelligas verbum Dei”55.

51 AGOSTINHO, Confessiones VII, 9, 13

52 AGOSTINHO, De civitate Dei VIII, 1, 8

53 AGOSTINHO, De ordine II, 9, 27

54 AGOSTINHO, De praed. sanct. 2, 5; De Trinitate XV, 2, 2; In IohannisEvangeliumtractatus XXIX, 6

55 AGOSTINHO, Sermones, Patrologia Latina 38–39; aqui: 38, 257

92
◊ “Crede ut intelligas” (crê para compreender)

Se fora do cristianismo não é possível chegar a um conhecimento vivi-


ficante de Deus, então a fé se revela como o melhor caminho para atingir
a sabedoria. Agostinho enfatiza fortemente o princípio inverso apresentado
acima: crede ut intelligas. Aos que estão fora do cristianismo, declara: “Quereis
compreender os mais altos temas da sabedoria humana? Provai em acreditar:
se credes, compreendereis”. Aos cristãos, proclama: “Quereis compreender
melhor as coisas de Deus? Se acreditardes firmemente, compreendereis mais
profundamente”. A inteligência é o prêmio da fé, a sua recompensa imediata
e, por essa razão, a filosofia depende da fé, que condiciona de certo modo o
seu nascimento e o seu desenvolvimento como, reciprocamente, depois da
aceitação da fé, essa recebe o seu desenvolvimento na filosofia56. Se existe
uma precedência da fé em relação à razão, toda a verdade presente na filoso-
fia deriva da mesma fonte da qual surge a teologia57.
Sinteticamente, são essas as grandes linhas da concepção agostiniana so-
bre fé e razão. Como cristão, Agostinho condiciona sua apresentação da Reve-
lação como fonte de razão e de filosofia, isto é, a Revelação cristã é a Verdade
por excelência, independe da própria razão; essa, ainda que ajude o homem
a compreender as verdades cristãs, não é suficiente para satisfazer as aspira-
ções mais profundas da alma humana: “Fecisti nos ad te; et inquietum est cor
nostrum, donec requiescat in te!” (Tu nos fizestes para Ti; e nosso coração está in-
quieto até que repouse em Ti)58. De fato é próprio do ser “espiritual”, enquanto
dotado de inteligência e de vontade livre, tender à Verdade absoluta e ao Bem
infinito: a inteligência não se contenta somente com verdades limitadas, mas
deseja conhecer sempre mais, e essa sede de conhecer só pode ser saciada pela
Verdade absoluta; a vontade livre, por sua vez, em sua tensão para o bem, não

56  Patrologia Latina 38, 770; 42, 183

57  Tudo quanto de bom há na filosofia pagã é parte da verdade cristã, e como “ouro” que eles na
iniustitiadetinent. Tuum erat, ubicumque erat: era tua verdade qualquer verdade fora da verdade
cristã (Confessiones VII, 9).

58 AGOSTINHO, Confessiones I, 1.

93
se satisfaz com os bens finitos, mas almeja sempre mais, isto é, tende para o
Bem infinito. Se o homem foi plasmado por Deus e se, em seu ser profundo, é,
para o seu espírito, “desejo de Deus”, a filosofia, em seu significado último, é
procura de Deus: a natureza e a filosofia estão abertas à Revelação.

Do neoplatonismo ao Cristianismo:
“um só sistema de filosofia perfeitamente verdadeira”

AGOSTINHO, Contra Acadêmicos (iii, 19, 42)

“Portanto (Itaque), nos dias de hoje, dificilmente vemos filósofos que


não sejam ou Cínicos, ou Peripatéticos, ou Platônicos, e os Cínicos, na
realidade, porque desfrutam de uma certa liberdade e licenciosidade
de vida. No que diz respeito, porém, (autem) à instrução, à doutrina
e aos costumes, com que se tem cuidado da alma, visto que não fal-
taram homens de grande agudez e habilidade para ensinar com as
suas discussões que Aristóteles e Platão se harmonizam de tal manei-
ra entre si que só aos incompetentes e aos desatentos podiam parecer
discordar entre si, foi depurado (com o transcorrer de muitos séculos
e muitas disputas), creio eu, um só sistema de filosofia perfeitamente
verdadeira (una verissimae philosophiae disciplina). Esta não é, de
fato, uma filosofia deste mundo, que os nossos textos sagrados com
toda a razão abominam, mas a de outro mundo inteligível, ao qual
esta razão sutilíssima jamais teria reconduzido as almas cegadas pe-
las multiformes trevas do erro e enlameadas com a enorme massa das
imundícies provenientes do corpo, se o sumo Deus, com uma espécie
de clemência popular, não tivesse inclinado e abaixado até o corpo
humano a autoridade do Intelecto divino, de tal modo que, incitadas
não somente pelos seus preceitos mas também pelas suas ações, as
almas pudessem ter tido a possibilidade de entrar em si mesmas e
voltar a olhar para a pátria, mesmo sem a contenda das discussões”.

94
2.2 Gregório de Nissa (ca. 335–394),
“O filósofo na Cátedra episcopal”

Dentro do arco temporal que assinala a expansão do cristianismo (em 313


com o edito de Constantino) até o fechamento da Academia neoplatônica de
Atenas por ordem do imperador Justiniano (529), destaca-se no Oriente cris-
tão a figura ímpar de Gregório de Nissa (ca. 335–394), que, dos três capadócios
— Basílio Magno (330–379) e Gregório Nazianzeno (ca. 329–390) —, se mos-
trou o mais “filósofo” de todos59. No conjunto de obras, importantes e origi-
nais, de caráter polêmico, expositivo, doutrinal e exegético, duas merecem
relevo especial em virtude das fontes filosóficas utilizadas por Gregório de
Nissa. Em primeiro lugar, o tratado exegético Sobre a formação do homem, que
é o primeiro tratado da literatura cristã antiga consagrado ao problema an-
tropológico. Nesse problema, Gregório de Nissa concilia a visão otimista da
criação material conforme a Escritura com uma concepção dualista da dis-
tinção radical entre a matéria e o espírito (de origem platônica). Em segundo
lugar, o Diálogo sobre a alma e a ressurreição, que, escrito, provavelmente em
torno do ano 379, depois da morte da irmã Macrina, constitui uma transposi-
ção cristã do Fédon platônico.
Na obra Sobre a formação do homem60, Gregório de Nissa elabora uma con-
cepção coerente acerca do homem segundo uma imagem do mundo articu-
lada conforme as orientações de uma visão ontológica que constitui o pano
de fundo unitário no qual se desdobram os diversos problemas abordados61.

59  Não é sem razão asseverar que no século IV — do I concílio Ecumênico de Nicéia (325) ao
Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) — a Patrística grega atingiu seu ápice doutrinal;
para o mundo grego, a Patrística termina no século VIII Cf. B. SALMONA, Il filosofare nei luminari
di Cappadocia. Milano: Marzorati, 1974; S. LILLA, L’Orientegreco: daí Cappadoci allo Pseudo Dionigi,
in DAL COVOLO, E. (a cura di), Storia della Teologia1: Dalle origini a Bernardo di Chiaravalle. Roma:
Dehoniane, 1995, 285–298.

60  Citamos segundo a edição clássica que se encontra em Jacques Paul MIGNE (1800–1875) (ed.),
Patrologia Græca (= PG) 44, colunas 125–256 (texto original grego e tradução latina).

61  O influxo platônico é bem atestado na literatura sobre a antropologia de Gregório de Nissa:
Cf. J. DANIÉLOU, Platonismeetthéologiemystique. Essaisurladoctrinespirituelle de Saint Grégoire de
Nysse. Paris: Aubier, 1944; H. U. VON BALTHASAR, Présence et pensée. Essai sur la philosophie reli-

95
É, portanto, a partir desse horizonte unitário que podemos compreender o
homem, a sua estrutura metafísica, o seu papel na criação e o significado
último de sua existência em relação ao Deus criador.

A divisão da realidade:
entre mundo inteligível e mundo sensível

Na tentativa de fundamentar a sua visão do homem, Gregório de Nissa parte


de uma concepção da realidade que se baseia na distinção de origem platôni-
ca entre “inteligível” e “sensível”: é essa a “suprema divisão de todos os seres”
da qual parte Gregório de Nissa em suas obras, e tal divisão corresponde à es-
fera hipercósmica, o kosmos noētós, de um lado, e o cosmo sensível, o âmbito
da matéria, de outro lado62. O hipercosmo, que fora criado anteriormente ao
cosmo, contém “o pleroma das criaturas inteligíveis”63, isto é, o mundo das
naturezas angélicas. Compreendido como uma das duas metades da criação,
o hipercosmo é um lugar (e, enquanto tal, se distingue de Deus que não é
de modo algum localizável), mas dificilmente definível: seja como for, ele se
encontra acima do cosmo (constitui o terceiro céu de Paulo), é separado dos
cosmo material, não se comunica com ele, não pode identificar-se com o éter
e não se divide em ambientes, para os inteligíveis
A outra metade da criação, o cosmo sensível (kosmos aisthētós), é constitu-
ído pelos quatro elementos que, dispostos em uma ordem hierárquica as-
cendente, do mais pesado remontam ao mais leve: terra, água, ar, fogo. Esses
elementos, que são compostos pela combinação das qualidades (frio/quente,
seco/úmido, etc.) se transformam reciprocamente em uma perene mudança
cíclica: o fogo torna-se ar; o ar, água; a água, terra; a terra, fogo. Assim se diz

giueuse de Grégoire de Nysse. Paris: Beauchesne, 1988; W. VOLKER, Gregorio di Nissa filosofo e mis-
tico. Milano: Vita e Pensiero, 1993; E. PEROLI, Il Platonismo e l’antropologia filosofica di Gregoriodi
Nissa. Milano: Vita e Pensiero, 1993.

62  Cf. por exemplo, PLATÃO, Fédon 79 a–b; República 507 b–c; 509 c; Timeu 27 d–28 a; GREGÓRIO
DE NISSA, Contra Eunomiumlibri, In GregoriiNysseni Opera I (ed. W. JAEGER). Leiden:Brill, 1960,
105, linhas 19–20.

63  GREGÓRIO DE NISSA, Explicatioapologetica in Hexaemaron, PG 44, 81 b–c

96
Gregório de Nissa

97
na Explicatio apologetica in Hexaemeron, a transformação dos elementos uns
nos outros se realiza segundo uma lei bem precisa, que “mostra uma mudan-
ça de um elemento no outro como a gênesis daquele no qual sucedeu a mu-
dança e a restauração (apokatástasis) progressiva a partir daquilo que era na
origem”64. Em consequência, os elementos se organizam no universo através
de duas espécies de movimentos: o movimento local (que corresponde à sua
mutabilidade [tropē] qualitativa) e a mudança de ordem (que corresponde à
estabilidade [stásis] da sua hierarquia imutável). Esse movimento cíclico, que
é ao mesmo tempo uma espécie de imutabilidade, torna o cosmo mutável
(treptón), opondo-o, portanto, a Deus e distinguindo-o dEle, que é o único
imutável (átreptos).
Particularmente significativa é a tese de Gregório de Nissa que deriva des-
sa concepção do caráter cíclico do movimento dos elementos. O mundo da
matéria, da realidade cósmica, é o âmbito da eterna repetição, de um mo-
vimento cíclico que continuamente retorna sobre si mesmo, sem que haja
algum progresso, alguma novidade: “tudo permanece idêntico sem mudar e
transformar-se em nada de novo”65. De fato, tudo o que acontece no cosmo
sensível, permanece para sempre nos limites inerentes a este desde o início,
e o seu incessante vir a ser não é senão um fadigoso e insensato movimento
de retorno a este início, em um “ciclo que se desenvolve ininterruptamente
sempre do mesmo modo”66.

“Este fadigoso curso do sol jamais terá fim, nem jamais cessará o eterno
suceder-se de luz e trevas, e a terra condenada a permanecer firmemen-
te imóvel, e ininterruptamente fadigam os rios que desembocam no mar
insaciável, e o mar, por sua vez, em vão recebe o afluxo das águas, aco-
lhendo em seu seio aquele eterno afluir sem jamais aumentar”67.

64  GREGÓRIO DE NISSA, Explicatioapologetica in Hexaemeron, PG 44, 112 a

65  GREGÓRIO DE NISSA, In EcclesiatenHomiliae, in GregoriiNysseni Opera V (ed. P. ALEXANDER).


Leiden: Brill, 1962, 285, 10.

66  GREGÓRIO DE NISSA, In EcclesiatenHomiliae (nota precedente), 287, 14–16

67  Ibid., 286, 1ss.

98
Quando Gregório de Nissa aplica essa forma de movimento cíclico que ca-
racteriza o cosmo sensível à questão antropológica acerca da liberdade do
homem, sem dúvida emerge um aspecto fundamental de seu pensamento
filosófico: se a alma, de fato, em vez de abrir-se ao Infinito transcendente,
direciona os próprios desejos para o mundo da matéria, então ele torna-se
vítima de sua própria lei, isto é, o homem reproduz em si mesmo o eterno re-
torno do idêntico, esse movimento cíclico entre os opostos sem progresso e
sem novidade: é a miragem do desejo que sempre renasce e sempre se esvai.
Assim procedendo, a alma imerge em um movimento ilusório que se asse-
melha àqueles que sobem através de lugar arenoso: “mesmo que caminhem
com grandes passos fadigam sem resultado, porque os pés deslizam sem-
pre mais pela areia, de modo que eles se movem, mas o movimento não os
faz progredir”68. Essa imagem exemplifica o movimento sem término e sem
progresso daquele homem que permanece ligado exclusivamente ao mundo
sensível e ao ciclo que o caracteriza.

O homem como methórios:


ponto de demarcação entre a matéria e o espírito

Gregório de Nissa reitera que o homem, em virtude da sua constituição on-


tológica, pertence contemporaneamente aos dois mundos: ao mundo inteli-
gível pela sua alma, “que é de natureza e de estirpe semelhante às potências
celestes”69, e ao mundo sensível pelo seu corpo. Nesse sentido, o homem foi
criado composto de uma alma e de um corpo, a fim de pudesse participar seja
dos bens inteligíveis, seja dos bens sensíveis: criando homem Deus “lança
nele dois princípios de criação, misturando o terreno com o divino, para que,
através de ambos, haja de modo congênere e familiar o desfrutamento de um

68  GREGÓRIO DE NISSA, De vitaMoysis, in GregoriiNysseni Opera VII/1 (ed. H. MUSURILLO). Lei-
den: Brill, 1964, 50, 2ss.

69  GREGÓRIO DE NISSA, De Oratione Dominica, PG 44, 1165 C.

99
ou do outro: de Deus, através de sua natureza divina, e dos bens terrenos atra-
vés da sensação que é da mesma espécie desses bens”70.
Considerando o homem em uma posição intermediária entre o mundo
sensível e Deus — “a natureza humana está no meio entre as duas extremida-
des opostas, entre a realidade divina e incorpórea e a vida irracional dos ani-
mais”71 —, Gregório evoca um tema caro à doutrina geral no Neoplatonismo:
“a alma humana está no confim (methórios) entre duas naturezas, das quais
uma é incorpórea, inteligível e incorruptível; a outra, corpórea, material e
irracional”72. Para Gregório, o homem é methórios entre o mundo inteligível
e o mundo sensível, não enquanto representa uma transição de um ao outro,
mas enquanto representa as características opostas e a sua liberdade deve
escolher entre elas. Uma vez purificado de sua adesão à vida presente e ma-
terial, a alma se volta com a virtude para o divino ao qual se assemelha. Acer-
ca do texto citado anteriormente, o que convém asseverar não é tanto nem
principalmente o fato de que o homem pertence às duas esferas, mas, antes
de tudo, que é livre para inclinar a uma parte ou a outra parte. É, portanto,
a liberdade que prevalece no texto em questão. Tal liberdade é considerada
em sua qualidade essencial: voltar-se ora para o sensível, ora para o inteligí-
vel. Dentro do liame existente entre a oposição matéria/espírito e bem/mal,
que é de origem platônica, Gregório introduz um novo elemento: o termo-
methórios, quando atribuído ao homem, não indica mais a sua condição de
colocar-se nos confins entre matéria e espírito, mas a condição da liberdade
como tal, na sua qualidade de constituir a fronteira entre o bem e o mal73. Nos
sermões De beatitudinibus, é valorizada a incompatibilidade absoluta entre
bem e mal: longe de indicar uma região intermediária, aqui se sustenta que
methórios indica a essência de todo intermediário!74

70  GREGÓRIO DE NISSA, De Opificiohominis, PG 44, 133 B

71  GREGÓRIO DE NISSA, De Opificiohominis, PG 44, 181 B.

72  GREGÓRIO DE NISSA, In CanticumCanticorum, in GregoriiNysseni Opera VI (ed. H. LANGERBE-


CK). Leiden: Brill, 1960, 333, 13–15.

73  Cf. J. GAÏTH, La Conception de laliberté chez Grégoire de Nysse. Paris: Vrin, 1953

74  Cf. GREGÓRIO DE NISSA, De beatitudinibus, PG 44, 1193–1302 ou In GregoriiNysseni Opera VII
(ed. J.F. CALLAHAN). Leiden: Brill, 1992; cf. também S. LILLA, NeuplatonischesGedankengut in den
‘Homilienüber die Seligpreisungen’ Gregors von Nyssa. Leiden: Brill, 2004.

100
A expressão methórios

Originalmente, methórios é principalmente um termo geográfico: in-


dica a linha de demarcação, a “fronteira”, entre duas áreas geográ-
ficas. Paralelamente, o termo, usado de maneira figurada, significa
aquilo que pode pertencer contemporaneamente a duas realidades
(por exemplo: a primavera está nos confins entre duas estações). Nes-
te sentido, methórios significa uma região intermediária, que reúne
as propriedades daquelas que esta une. A partir deste último sentido,
o termo pode atribuir-se também a Deus, uma vez que Ele é a fron-
teira entre a vida e a morte. Acerca deste termo faltam acepções de
caráter cosmológico: a extremidade do mundo sensível, que é o limite
(methórios) do mundo inteligível, é chamada pela Escritura de firma-
mento ou céu. Cf. J. DANIÉLOU, L´Être et leTemps chez Grégoire de
Nysse. Leiden: Brill, 1970, 116–132 (“Frontière”).

A distinção entre incriado (áktiston) e criado (ktistón)

A partir da divisão mais geral assumida por Gregório de Nissa entre mundo
sensível e mundo inteligível, emerge outra divisão, a saber: a distinção entre
incriado e criado. Nesse sentido, existe um evento metafísico fundamental
para o pensamento filosófico-teológico de Gregório de Nissa: a passagem do
não-ser ao ser em virtude do ato criador de Deus. Em outras palavras: o mun-
do da matéria é caracterizado pelo fato de ser essencialmente limitado: “o
peso, a figura, a superfície, a forma” são os confins entre os quais está cir-
cunscrita a matéria. A substância inteligível e imaterial, ao contrário, “escapa
a todo confim, porque não é limitada por nada”. Se a matéria se caracteriza
pela finitude, a realidade inteligível e espiritual se apresenta como aquilo
que é infinito e ilimitado. É aqui que Gregório de Nissa explica o significado
dessa infinidade, introduzindo uma distinção dentro da realidade inteligível
entre incriado e criado:

101
“Dividamos ainda uma vez a substância inteligível: uma é incriada e
criadora de tudo aquilo que existe, e é sempre aquilo que é, e sempre
permanece igual a si mesma, superior a todo acréscimo, não admite
nenhuma diminuição no bem; a outra, ao contrário, foi conduzida ao
nascimento por meio da criação e sempre volta o seu olhar à causa
primeira dos seres, e continuamente é conservada no bem graças à
participação naquele que é superior; em um certo sentido esta é sem-
pre criada, enquanto se transforma na condição melhor através de
seu crescimento naquilo que é bom, de modo que tampouco para esta
substância se consegue discernir um limite, nem se pode delinear um
confim ao seu crescimento no bem”75.

Do texto citado, deduz-se o seguinte: enquanto a infinidade do ser incriado


está em ato e, portanto, não susceptível de crescimento, o espírito criado é
infinito justamente enquanto se apresenta em perpétuo progresso, perpétuo
crescimento no bem. O aspecto fundamental da metafísica de Gregório de
Nissa é a distinção especificamente cristã entre a natureza divina incriada e
a realidade criada. Essa distinção completa e supera a divisão platônica origi-
nária da totalidade do ser em sensível e inteligível76. De fato, a realidade criada
compreende o conjunto das naturezas inteligíveis e sensíveis, que, enquanto
criadas, são colocadas em igual distância do Deus criador. A tese de Gregório
supera inequivocamente a construção ontológica do Neoplatonismo segundo
a qual existiria toda uma série de realidades intermediárias e mediadoras en-
tre o Deus incompreensível, inominável e inacessível, e o mundo real. Segun-
do Gregório de Nissa, não há nenhum plano ontológico intermediário entre
o Deus incriado e criador e as naturezas criadas. No que tange à infinidade de
Deus, todos os planos do ser, ainda que diversos e hierarquicamente distintos
uns dos outros, são, porém, planos do ser criado e, portanto, finitos, sendo
assim todos igualmente distantes, infinitamente distantes, do Deus criador.

75  GREGÓRIO DE NISSA, In CanticumCanticorum, in GregoriiNysseni Opera VI, 173, 17; 174, 1ss

76  Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunomiumlibri, in GregoriiNysseni OperaI. Leiden: Brill, 1960,
133, 28–29; I/2, 107, 20–108, 1; 171, 4–5; 209, 19–20.

102
A tropē como “mudança de progresso”

Como consequência da passagem do não-ser ao ser, a finitude caracteriza es-


sencialmente a natureza do ser criado. Diferentemente de Deus, que é o único
imutável (átreptos), o homem, como também todo criado, subjaz à mudança
(tropē), não somente enquanto corpo, mas também enquanto espírito (que
é também criado). Em relação ao espírito, sua tropē deve ser compreendida
como uma variação de qualidade: variação, portanto, não na ousia (substân-
cia/essência), mas na própria qualidade da ousia. Trata-se de um movimento
linear, que se explica através da possibilidade de escolher entre o bem e o mal.
A afirmação da mutabilidade do espírito não pertence à tradição platôni-
ca, pela qual o espírito é de per si imutável (as tropai, junto ao platonismo,
são as vicissitudes que caracterizam o mundo sensível), mas é, antes, uma
característica estoica. Para Gregório de Nissa, a vontade do homem é neces-
sariamente mutável, não porque seja livre. nem tampouco porque esteja vin-
culada ao mundo sensível, mas porque é consequência da condição criada
da liberdade. De fato, sendo a criação de per si um movimento (que do não-ser
conduz ao ser), essa característica permanece perenemente associada àquilo
que criado e, portanto, o mantém sempre em movimento.
O movimento e o vir a ser que caracterizam de modo essencial a criatura se
realizam, porém na extensão espaço-temporal, naquilo que Gregório de Nissa
chama de diástēma. É o que indica as categorias do tempo e do espaço, “con-
sideradas não como qualidades de algum modo acrescentadas ao ser finito,
mas como a substância mesma do seu ser”. O diástēma não expressa somente
a condição espaço-temporal das coisas, mas estabelece o mesmo caráter de
criaturas, ou seja, o limite e o grau da sua participação no Ser incriado. O di-
ástēma, portanto, determina de modo mais íntimo a finitude mesma do ser
enquanto criado. O ser criado está sempre em diástēma77. Diante do diástēma,

77  GREGÓRIO DE NISSA, In Ecclesiaten Homiliae, in Gregori Nysseni Opera V (ed. P. ALEXAN-
DER), 412, 14.

103
está somente a adiástatos physis de Deus78; somente em Deus, de fato, está
excluída toda diástasis e, em primeiro lugar, toda chronikòn diástēma.
Enquanto caráter essencial da finitude do ser enquanto, criado, o diástē-
ma “torna-se autoconsciência no homem”, isto é, experiência da cisão do ser
criado na separação em passado, presente e futuro, ou seja, na lembrança, na
esperança e na contínua experiência da morte e do nada, porque “a natureza
tende em tudo para a morte, e a morte cresceu estreitamente junto com a vida
que procede no tempo”79; e o tempo, em seu inapreensível fluir, arrasta con-
sigo em direção ao nada tudo aquilo que nele passa, de modo que tudo aquilo
que incide no horizonte cognoscitivo do homem é delimitado, de ambos os
lados — archē e telos — pelo nada. Nessa experiência, o homem toma consci-
ência da radical finitude da própria existência, da impossibilidade de sair dos
limites para ela determinados, de transcender o diástema.
O indissolúvel liame criatura/mutabilidade, que permite distinguir ra-
dicalmente o incriado do criado, é também aquilo que permite descobrir a
possibilidade do mal. O ser incriado [Deus], sendo imutável, não pode estar
sujeito ao mal. A sua autosuficiência no ser comporta a sua autonomia no
bem: não pode adquirir perfeição uma vez que possui toda perfeição, e dessa
perfeição não pode perder nenhum traço, porque nele a perfeição é idêntica
à própria essência. Inversamente, uma vez que o ser criado [por exemplo, o
homem,] não possui a existência por natureza, disso resulta que não possui
tampouco o bem por natureza; portanto, a possibilidade de perder o bem lhe
é congênita. A liberdade criada implica, portanto, uma intrínseca instabili-
dade que lhe impede de ser sempre imóvel, e que faz da transformação a lei

78 O diástema, enquanto caráter ontológico que determina a finitude do ser criado, compreende
toda a criação, tanto sensível como inteligível.

79  GREGÓRIO DE NISSA, De mortuisoratio, In GregoriiNysseni Opera IX (ed. G. HEIL). Leiden: Brill,
1967, 51, 18ss: “Não é inútil acrescentar ainda ao discurso o seguinte (mesmo que possa parecer
fora de toda lógica): que a natureza em tudo tende à morte é que a morte cresceu estreitamente
junto com a vida que procede no tempo. De fato, uma vez que o passado da vida se move sempre
em direção ao futuro e não volta jamais para trás, é a morte que segue sempre inseparavelmente
a energia vital. Propriedades da morte são a inatividade e a ausência de vida, e estas seguem
sempre imediatamente a energia vital. É, portanto, em tudo conforme à verdade dizer que a
morte está estreitamente ligada à vida”.

104
mesma do seu ser. E aqui a mudança é essencialmente a atitude para escolher
entre o bem e o mal.
Por fim, ao distinguir “imutabilidade” de Deus e mutabilidade da criatu-
ra, Gregório de Nissa elaborou uma concepção do espírito criado que define
esse último em sua essencial referência a Deus, mas que ao mesmo tempo
mantém plenamente a distinção entre a criatura finita e o Deus incriado e
infinito. O ato criador de Deus constitui a realidade última do ser da criatu-
ra: como recebeu de Deus a existência, assim o espírito criado que se abre à
comunicação dos dons da graça de Deus é por ela “continuamente criada”,
na medida em que recebe um perpétuo e infinito crescimento no ser. Se se
afasta de Deus, o seu crescimento no bem se detém e torna-se natureza. O
espírito criado não é, portanto, senão a faculdade de abrir-se ou de fechar-se
à comunicação dos bens de Deus; mesmo no grau mais alto de sua ascensão
para Deus, o espírito criado permanece sempre “vaso que acolhe”, ou seja,
“uma coisa cuja realidade é precisamente só essa ‘abertura”, enquanto pode
possuir aquilo que é “comunicado” (mesmo que a plena posse deste último
constitui a plena realização da sua natureza) sempre e só como Dom da graça
de Deus e não por força da sua natureza80.

80  E. PEROLI, Il Platonismo e l’antropologiafilosoficadiGregoriodiNissa, 54.

105
O HOMEM COMO VÉRTICE E COROAMENTO

“Segundo a ordem das coisas, primeiramente, surge o rebento daquilo que


nasce da terra; em seguida, vêm os animais sem razão e, depois desses, a
criação do homem. Daqui talvez aprendamos aquilo que está ao alcance de
todos: que do Criador apareceu a erva vantajosa para os viventes e as feras
dos campos em vista do homem [...]. Dos seres, existem, de um lado, o in-
teligível; de outra parte, o corpóreo. Mas deixemos agora de lado a divisão
da natureza inteligível nas próprias distinções, não é o nosso discurso. Das
naturezas corpóreas, algumas são de todo privadas de vida; outras parti-
cipam da atividade vital; entre os corpos viventes, alguns são munidos de
sensação; outros desta são privados. A natureza sensível se divide, por sua
vez, em racional e não racional, e assim, depois da natureza não animada,
sustento da figura dos seres viventes, o legislador [Moisés] diz ter sido for-
mada a vida física, que existe no germe das plantas; coloca em seguida os
seres governados segundo a sensação. Segundo, pois, a ordem lógica (ako-
louthían), entre os seres que recebem a vida da carne, de um lado, existem
os seres sensíveis que podem viver por si mesmos sem a natureza intelec-
tual e, de outro lado, o ser racional que de nenhum outro modo nasceria
no corpo se não fosse misturado à sensibilidade; por essa razão, no final
(teleutaios), depois das plantas e dos animais, foi criado o homem, uma
vez que a natureza avança para um caminho lógico em direção à perfeição”.
Deste modo, “a natureza por graus, isto é, através das propriedades da vida,
leva adiante a ascensão do inferior ao perfeito” (GREGÓRIO DE NISSA, De
Opificio hominis, Patrologia Græca 44, 144 C–145 C; 148 B–C).

106
107
Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (séc. V)

108
módulo IV
Severino Boécio (480–524) e o
Dionísio Pseudo-Areopagita (séc. V)

109
110
A quarta SEMANA versa sobre duas figuras centrais no limiar da Idade Média
e profundamente influentes ao longo de todo período medieval (por exem-
plo, o Dionísio Pseudo-Areopagita1 é um dos autores mais citados na Suma
Teológica de Tomás de Aquino no século xiii). De um lado, aquele que é a
ponte entre a cultura do mundo clássico e a do mundo medieval: SEVERINO
BOÉCIO (480–524). Segundo o testemunho do célebre medievalista Martin
Grabmann, “depois de Agostinho foi Boécio, de todos os escritos latinos da
Patrística, o que mais influenciou na Escolástica, especialmente no desenvol-
vimento do método escolástico”2. Considerado como o verdadeiro introdutor
de Aristóteles no Ocidente, Boécio pode ser chamado com razão “o primeiro
escolástico”. A obra filosófico-teológica de Boécio marca o início do que se
convencionou chamar cultura medieval e cristã. Quanto ao tema específico
deste módulo, o leitor será iniciado em uma das questões mais importantes e
complexas da Idade Média: o problema dos Universais. A via de acesso a essa
célebre questão só foi possível graças ao legado filosófico de Boécio, cujas
traduções (e comentários) constituíram o único material aristotélico conhe-
cido pela Idade Média (a chamada Logica Vetus) até que nos séculos xii e xiii
se traduziu o restante do Corpus Aristotelicum.
De outro lado, a figura de DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Ele chama-se
“Pseudo” porque se trata de escritos atribuídos a Dionísio Areopagita, mas
que não é aquele que viveu no século I da era cristã, mencionado em At 17,
343 e convertido por S. Paulo ao cristianismo. Por diversos motivos mais téc-
nicos, a crítica moderna estabeleceu que se trata de um autor anônimo pe-
las seguintes razões: a) os escritos areopagíticos foram compostos entre 482

1  DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, Dos Nomes Divinos. Introdução, tradução e notas de Bento Sil-
va Santos. São Paulo:Attar Editorial, 2004. Cf. http://www.attar.com.br/catalogo.php

2  Cf. M. LLUCH BAIXAULI, La sintesis teologica de Severino Boecio. Sobre los orígenes de la Teología
medieval. Pamplona, Universidad de Navarra, 1991, 27, nota 1.

3  “Todavia alguns homens aderiram a ele e creram: entre eles Dionísio, o Areopagita, e uma
mulher chamada Damaris, e com eles ainda outros” (At 17, 34).

111
(data em que Zenão emanou o Henotikón) e o início do século vi4; b) o autor
é de origem síria5; c) o autor frequentou provavelmente a escola de Atenas
sendo discípulo de Proclo (410–485 d. C.) e de Damáscio, último dirigente da
mesma até seu fechamento no ano 529 por parte de Justiniano6.

4  O Concílio de Calcedônia (451) condenou a doutrina de Eutiques sobre a “mistura” em Cristo


do divino e do humano, qualificando a união na única Pessoa de Cristo da natureza humana e
da divina com os adjetivos asýnkhytos (sem confusão), átreptos (sem mudança), adiaíretos (sem
divisão), akhóristos (sem separação), adjetivos presentes também na cristologia dionisiana; o
corpus, portanto, deve ser posterior a Calcedônia. Em Hierarquia Eclesiástica III, III, 436 C, o autor
alude ao Credo como parte da Missa; a introdução da profissão de fé na Eucaristia deve-se ao Pa-
triarca de Antioquia, o monofisita Pedro Fulón em 476; o corpus não pode ser anterior a essa data
(cf. R. ROQUES, L’univers Dionysien. Structure hiérarchique du monde selon le Pseudo-Denys. Paris,
Aubier, 1954, 264–265). Em 482, Zenão redigiu o henotikón, em que proibia o uso de expressões
como “duas naturezas” ou “uma natureza” referidas a Cristo; tais fórmulas não estão presentes
no corpus, razão pela qual deve ter sido escrito depois dessa data. Para o significado da fórmula
de Calcedônia.

5 Em Hierarquia Eclesiástica V, II, 509 A–509 C, Dionísio descreve a ordenação do bispo, do pres-
bítero e do diácono de forma assaz semelhante àquela que se encontra no De ordinationibus da
liturgia siríaca editada e traduzida pelo Patriarca de Antioquia, Inácio Efrem II Rahmani.

6 Em Sobre os Nomes Divinos II, 648 B, Dionísio atribui a seu mestre Hieroteu uma obra intitula-
da Elementos de Teologia. Tal é o título de uma conhecida obra de Proclo. Hieroteu não seria outro
personagem senão o próprio Proclo.

112
113
114
1
A transição do
mundo antigo ao medieval:
Boécio, “o último dos romanos e
o primeiro dos escolásticos”.
Anicio Manlio Torcuato Severino Boécio (ca. 480–524), principal ponto de
contato entre a cultura do mundo clássico e a do mundo medieval7, viveu
entre os anos decisivos da queda do Império Romano (476) e a formação,
através de Teodorico o Grande, do reino ostrogodo de Itália (526). Boécio fez
filosofia e teologia em um mundo culturalmente dissolvido e outro que ain-
da não havia se realizado. O que caracterizava os intelectuais de seu tempo
era o esforço reconpilador: reunir, classificar, sistematizar. É nesse contex-
to que compreendemos a grandeza de Boécio para as gerações posteriores.
Seu grande projeto intelectual era a tradução e comentário de toda a obra de
Aristóteles e de Platão com a seguinte intenção: as doutrinas de ambos não
se opunham, mas se completavam entre si nas questões mais fundamentais.
De Boécio chegaram até nós três gêneros de escritos — científicos, filosóficos
e teológicos —, dos quais a obra mais conhecida é a Consolação da Filosofia
(tradução brasileira: SP; Martins Fontes), escrita no cárcere, quando aguar-
dava a sentença de morte da parte do rei Teodorico. A obra é um verdadeiro
testamento filosófico, político, moral e espiritual, na qual se se entrelaçam
harmonicamente a tradição greco-latina e sua visão cristã.

7  Cf. M. LLUCH BAIXAULI, La sintesis teologica de Severino Boecio…, 27, nota 1.

115
Mulher como símbolo da Filosofia

116
Leia prosa I de BOÉCIO, Consolação da Filosofia (Extrato de fontes das “Filo-
sofias Medievais”, nº 06) e responda: como Boécio descrece seu encontro
com a Filosofia?

A sua obra filosófica adquire importância decisiva na configuração da


querela dos Universais, quando traduz em 508–509 e comenta em 510–511 a
Isagoge [Introdução às Categorias de Aristóteles] de Porfírio de Tiro: no entre-
cruzamento de duas tradições — platonismo e aristotelismo —, Porfírio recu-
sa empenhar-se em uma pesquisa difícil e formula questões que Abelardo no
século XII conhecerá através da tradução e dos comentários latinos de Boécio.
Em outras palavras: o grande mérito de Boécio foi o seu trabalho de tradução,
interpretação e assimilação dos escritos aristotélicos: o comentário de Boé-
cio à Isagoge de Porfírio, especialmente o segundo (Edito secunda), propõe
resolver a questão porfiriana sobre os gêneros e as espécies. Assim, Boécio
apresenta-se como a via de acesso à questão medieval dos universais. Dessa
tradição neoplatônica Abelardo receberá duas dimensões da questão sobre
os Universais: a dimensão ontológica de Porfírio e a gnosiológica de Boécio,
mas já interpretadas. Abelardo as incoporará à sua própria solução que vai na
linha de uma dimensão semântica.
Seguindo o exemplo de seus predecessores (especialmente o de Mário Vi-
torino)8, Boécio traduz todos os tratados (exceto os Segundos Analíticos)9 do
Organon de Aristóteles e a Isagogē de Porfírio (Dialogi in Isagogen Porphyrii,
em 508–509), escrevendo inúmeros comentários sobre os mesmos. Essas
traduções e os comentários de Boécio circularam até a primeira metade do
século XII como única fonte de conhecimento da lógica antiga e são deno-
minados na Idade Média como Logica Vetus. Antes da chegada das fontes
árabes e da tradução dos Segundos Analíticos e da Metafísica de Aristóteles,
que só estiveram em circulação na Idade Média latina somente no fim do

8  Cícero (106–43 a.C.) traduziu os termos técnicos da lógica grega para o latim, e sua tentativa
assinalou o primeiro passo para a recepção da doutrina lógica grega na cultura intelectual latina.
Mário Vitorino (= 370 d.C.) traduziu as Categorias e o Peri hermeneias de Aristóteles.

9  Foi Tiago de Venezia que, no último quarto do século XII, traduziu os Segundos Analíticos, per-
mitindo assim que o mundo latino chegasse ao conhecimento completo do Organon aristotélico.

117
século xii e inícios do século xiii, o problema dos Universais era puramen-
te ontológico10. Se Boécio não foi um tradutor neutro que teria reconstruído
alguns conteúdos objetivos sem assimilação subjetiva, é plausível afirmar
que a tradição clássica assumiu, com sua de obra de tradutor, intérprete e co-
mentador, significados novos e originais. Em relação à nossa questão, a pre-
ocupação medieval a propósito do status ontológico dos Universais surge — à
margem do projeto teórico de Porfírio e contra a sua intenção expressa, mas
a partir de seu texto — das observações de Boécio acerca de uma passagem
da Isagogē, na qual o próprio Porfírio abandona o problema como irrelevante
em um contexto lógico11.
O objetivo desta Semana consiste, primeiramente, em examinar a Querela
dos Universais com base no seguinte texto de Boécio: Segundo Comentário sobre a
‘Isagogē’ de Porfírio (Commentarium in Isagogen Porphyrii), em 510–511. Em segun-
do lugar, comentar brevemente algumas passagens da obra mística de Dionísio
Pseudo-Areopagita. Mas, para compreender a importância de Boécio, é preciso
remontar aos dados textuais, aos esquemas conceituais e às interferências de
campos teóricos que estão na origem da Querela medieval dos Universais: o pla-
tonismo com sua teoria das ideias, a ciência aristotélica que procurou explicar a
universalidade presente na cognição humana, o aspecto semântico que decorre
desse projeto aristotélico12, o neoplatonismo como tentativa de conciliar platoni-
mso e aristotelismo, o vocabulário estoico do universal, etc.

10  É só por volta do final do século XII e inícios do século XIII que todo o corpus aristotélico
estará disponível ao mundo latino: primeiramente, o resto do Organon nas traduções de Boécio
(Primeiros Analíticos, Tópicos, Refutações Sofísticas) e de Tiago de Venezia (Segundos Analíticos, por
volta de 1125–1150); em seguida, os libri naturales, ou seja, entre outros, a Physica, o De anima, o
De caelo e a Metaphysica. Esses novos textos lógicos disponíveis são chamados “Logica nova”, e
os nomes Aristóteles novus e “Segundo Aristóteles” designam, por sua vez, o conjunto de escritos
científicos aristotélicos traduzidos do grego ou do árabe doravante acessíveis.

11  Cf. S. EBBESEN, La logica scolastica dell’antichità como fonte della logica scolastica medievale, em
KRETZMANN, N.; KENNY, A. & PINBORG, J. (ed.) La logica nel medioevo. Milano, Jaca Book, 1999, 22–23.

12  “É natural perguntar exatamente o que os universais abstraídos na mente são, o que é para
eles o existir na mente, como eles estão relacionados com seus particulares, qual é seu real fun-
damento nesses particulares, qual é seu papel na constituição de nosso conhecimento universal
e como eles contribuem para a codificação e comunicação desse conhecimento nas diversas

118
Em seus dois comentários as respostas dadas às questões de Porfírio nor-
teiam-se pela preocupação da verdade e pelo respeito dos antigos13. No segun-
do comentário (editio secunda), Boécio revisa, primeiramente, os argumentos
pró e contra a existência das entidades universais e, em seguida, oferece uma
teoria que ele atribui a Alexandre de Afrodísia, uma espécie de teoria chama-
da de “realismo moderado”, segundo a qual não existem entidades universais
na ontologia do mundo; mas existiria uma base objetiva, não arbitrária, para
a formação de nossos conceitos universais e gerais sobre o mundo. A solu-
ção de Boécio pode ser resumida no seguinte slogan: os gêneros e as espé-
cies só “existem nos indivíduos, mas são pensados como universais”. Assim,
por exemplo, Sócrates e Platão, cada um deles tem sua própria humanidade
e sua própria animalidade, de sorte que existem duas humanidades e duas
animalidades. Elas são, obviamente, “múltiplas e não uma só coisa numeri-
camente”. Entretanto, através de um processo de abstração, ou o que Boécio
algumas vezes denominou de “divisão”, a mente apreende numericamente
essas distintas humanidades como uma só coisa universal, e assim também
em relação às animalidades ao nível do gênero14. Mas, para explicitar essa
solução dada ao problema dos Universais, é preciso apresentar o que vem a
ser propriamente essa questão tipicamente medieval a partir de suas origens
na filosofia antiga.

linguagens humanas. Essas questões dão um novo aspecto ao problema dos universais, ou seja,
um aspecto semântico”: G. KLIMA, Naturezas: O problema dos universais, in McGRADE, A.S. (org.),
Filosofia Medieval. Aparecida (SP): Editora Ideias & Letras, 2008, 241.

13  Cf. L. M. DE RIJK, Boèce logicien et philosophe: ses positions sémantiques et as métaphysique de
l’être, in OBERTELLO, L. (ed.) Atti. Congresso internazionale di studi boeziani (Pavia, 5–8 ottobre
1980). Roma, Herder, 1981, 141–156.

14  Cf. também a síntese de P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais. A perspectiva de Boécio,
Abelardo e Ockham. Porto Alegre, Edipucrs, 2001, 31–39.

119
120
2
A Querela dos Universais
Uma apresentação bastante simples e corrente do que se convencionou cha-
mar “o” problema dos Universais na Idade Média consistiria na questão de
determinar o que designam os termos universais da linguagem (por exemplo,
“homem” ou “rosa”) em oposição aos particulares (“João” ou “Pedro”). Des-
sa confrontação teríamos três respostas clássicas, a saber: “ontológico-me-
tafísica” (coisas), “lógico-gnosiológica” (conceitos) e “linguística” (palavras).
A essas soluções tradicionais se associam muitos dos autores que se ocupa-
ram do problema dos Universais, que foram rotulados, ao mesmo tempo e
em de diversas maneiras, como “realistas, “conceptualistas” e “nominalis-
tas”. Exemplos dessas classificações podem ser encontrados principalmen-
te em Severino Boécio no século VI, em Pedro Abelardo no século XII e em
Guilherme de Ockham no século XIV, bem como em muitos outros lógicos e
teólogos da Idade Média.
Ora, a estrutura problemática imposta aos Universais pela tríplice posição
doutrinal do realismo, do conceptualismo e do nominalismo é a que a esco-
lástica neoplatônica tardia (séculos v e vi), impôs, primeiramente, como cha-
ve de leitura, às Categorias de Aristóteles. A questão que se coloca, portanto, é
a seguinte: como e por quais razões essa chave de leitura passou das catego-
rias aos Universais? Entre os comentadores antigos de Aristóteles, existiam
três teorias acerca da natureza das categorias: em primeiro lugar, as catego-
rias são consideradas como fwnaiv, isto é, “sons vocais”; em segundo lugar,
como o[nta, seres ou “entes”; em terceiro lugar, como nohvmata, “noemas” ou
noções, ou, como diríamos hoje, “objetos de pensamento”15. Essa tríplice de-
finição dada às categorias reapareceu na Idade Média, e a evolução dessa trí-

15  Esta tripartição aparece em CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromates VIII, 8, 23, 1 (ed. Stählin, III,
94, 5–12), que distingue o[novmata (nomes), nohvmata (conceitos, dos quais os nomes são os símbolos)
e uJpokeivmena (substratos reais, dos quais os conceitos são, em nós, as impressões ou marcas).

121
ade — mediante a adaptação de vocabulário e das flutuações terminológicas
(sob a forma de palavras/nomes, conceitos e coisas)16 — sugere que por trás das
entidades historiográficas (realismo, conceptualismo, nominalismo) exis-
tem escolhas e articulações disciplinares (ontologia, psicologia, semântica)
que condensam todas as questões conexas e verdadeiras do problema dos
Universais: da teoria da percepção à teoria da cognição.

O problema dos Universais se desenvolve à base da exegese da Isa-


gogē em liame com a exegese das Categorias, desde a antiguidade
tardia até o final da Idade Média. As grandes opções filosóficas sobre
os Universais se decidem na teoria das Categorias e em seus textos
satélites como, por exemplo, o comentário de Boécio, que fez com que
os Universais entrassem na esfera ontológica da filosofia17.

Ora, para compreender essa importante questão, é preciso partir do voca-


bulário técnico utilizado (universal, gênero, espécie, etc.), das autoridades
envolvidas aqui (Aristóteles, Porfírio e Boécio) e, fundamentalmente, das
realidades histórica, textual e doutrinal, realidades tão complexas como a
própria Idade Média. Nesse sentido, é essencial levar em conta as contribui-
ções de Alain de Libera estabelecidas desde 1996 (La querelle des universaux.
De Platon à la fin du Moyen Age [A querela dos universais. De Platão ao final da

16  O termo fwnaiv, traduzido por voces (sons vocais) deu lugar progressivamente a outros termos:
sermo, nomen (em Abelardo), terminus (coma lógica “terminista” do século XIII) e terminus vocalis
(com os nominalistas do século XIV); o termo nohvmata foi substituído por conceptus, intentiones
ou por outras expressões mais próximas de Aristóteles, tais como affectiones ou passiones ani-
mae, ou terminus mentalis no século XIV; enfim, o próprio vocábulo o[nta deu lugar, portanto,
à res (coisas). Cf. A. DE LIBERA, La querelle des universaux. De Platon à la fin Du Moyen Age. Paris:
Seuil, 1996, 48s.

17  Um exemplo privilegiado do liame entre a problemática dos Universais e a doutrina das
categorias é a controvérsia entre Abelardo e Alberico sobre a categoria de substância. Ambos
interpretam diferentemente o texto de Boécio, e a posição que cada um assume mostra as ambi-
guidades do complexo aristotélico-neo-platônico na história medieval dos Universais. Cf. J. MA-
RENBON, Vocalism, Nominalism and the Commentaries on the ‘Categories’ from the Earlier Twelfth
Century, Vivarium 30/1 (1992) 51–61; cf. também do mesmo autor, The Philosophy of Peter Abelard.
Cambridge, Cambridge University Press, 1997.

122
Idade Média]. Paris: Éditions du Seuil) sobre a questão e que influenciaram
decisivamente o debate posterior sobre os Universais. A questão dos Univer-
sais não é um problema de certo modo autônomo ou autossuficiente, mas
fazia parte de um complexo de problemáticas filosóficas interdependentes:
não somente a problemática relativa ao estatuto dos gêneros e espécies, mas
também a da individuação, estreitamente associadas, e outras menos próxi-
mas, como a do objeto da definição, a relação entre abstração e intuição in-
telectual e o conhecimento do indivíduo18. O célebre problema medieval dos
Universais foi, portanto, questionado por Alain de Libera em sua “unidade
diacrônica e sincrônica” 19. Segundo este último, a “querela dos universais, tal
como é retomada no século XIV, aparece como a reativação da oposição que,
para nós, estrutura toda a história do pensamento antigo: a crítica de Platão
por Aristóteles, mas ela faz isso de uma maneira particular, que explica a sua
especificidade”20.
Considerando a amplitude da questão na Idade Média bem como a im-
portância do problema para quem estuda a filosofia medieval, naturalmente
devo restringir minha abordagem. Portanto, na introdução ao problema dos
Universais, meu objetivo consistirá, em primeiro lugar, em uma visão geral
do mesmo com base na definição de “universal” (A) a partir duas fontes da
problemática na filosofia antiga (a) e da exposição sucinta dos cinco “predi-
cáveis”, dos quais se destacam “gênero” e “espécie”, na medida em que se co-
locou o problema do estatuto das realidades correspondentes a esses termos
(b) em segundo lugar, apresentarei o texto de Porfírio de Tiro e comentarei os
diferentes modos de existência possível do universal (B). Em terceiro lugar,
apresentarei uma síntese sobre a solução dada por Boécio em seus comentá-
rios ao texto de Porfírio. Esses comentários se tornaram determinantes para
a recepção da querela na Idade Média (C)21.

18  Cf. A. DE LIBERA, La querelle des universaux, 11–65.

19  C. FERNÁNDEZ, Los universales: una revisión a la luz de la historiografia reciente, Studium. Filo-
sofia y Teología 30 (2012) 412.

20  A DE LIBERA, A Filosofia Medieval. São Paulo: Loyola, 2004, 435.

21  Ver sobretudo P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais..., passim.

123
2.1 O que é um “Universal”?

Do ponto de vista da origem, o âmbito do problema dos universais é lógico-


predicamental, embora a problemática como tal seja de caráter fundamen-
talmente ontológico. Segundo Francisco Bertelloni, “‘Universal’ é a forma
adjetival do substantivo ‘universo’ (universus), e no mundo medieval foi uti-
lizado em sua propriedade de ser unum (único, unidade) versus (em relação a)
plura (muitos)”22: concretamente significa que um único predicado se diz de
uma pluralidade de sujeitos. A pluralidade de sujeitos pode ser manifestada
ora pelos indivíduos, ora por universais. Assim, consideramos os seguintes
exemplos: de um lado, “Platão é homem”, “Sócrates é homem”. De outro lado,
“O homem é animal”, “O bruto é animal”. Nos primeiros casos a espécie “ho-
mem”, sendo universal, se predica de diferentes indivíduos. Nos demais, o
gênero “animal”, sendo também universal, se predica de diferentes espécies23.

Entre platonismo e a aristotelismo:


O problema lógico e a noção de universal de comunidade

É possível distinguir duas problemáticas dos Universais, ou duas fontes para


o problema. A primeira fonte é uma problemática mais lógica (predicabilida-
de), que encontraria sua fonte na definição aristotélica do universal, retoma-
da por Porfírio de Tiro e mais tarde por Pedro Abelardo24:

“Universal é alguma coisa apta a ser predicada de muitas”25.

22  F. BERTELLONI, Estudio preliminar, in FRORENCIA MARCHETTO, M. & TURSI, A., La cuestión
de los Universales en la Edad Media. Buenos Aires: Ediciones Winograd, 2010, 12.

23  Cf. F. BERTELLONI, Estudio preliminar, 12–13.

24 PORFÍRIO, Isagogē 17–21; ABELARDO, Logica Ingredientibus 18–20: “Aristóteles define o univer-
sal como ‘aquilo que pode ser naturalmente apto para ser predicado de muitos seres’”.

25 ARISTÓTELES, De Interpretatione 17 a 34.

124
A predicação é a noção-chave que permite distinguir particular, ou indiví-
duo, e universal: o primeiro é predicado de um só; o segundo, de vários. As-
sim, por exemplo, “animal” é um universal com relação às diferentes espécies
animais; “homem” é um universal relativamente a Sócrates, Platão, etc. Na
versão de Boécio da obra De Interpretatione de Aristóteles há uma passagem
onde se fala de res para referir-se à noção de universal em uma proposição.

“E das coisas (res) umas são universais e outras, singulares, chamo


universal ao que é apto para ser predicado de vários [sujeitos], e sin-
gular ao que não pode, por exemplo, ‘homem’ é um universal, e, ‘Pla-
tão’, porém, pertence àquelas que são singulares”26.

Nessa passagem de Aristóteles, encontramos dois tipos de coisas, singula-


res e universais. Singulares e universais separaram-se não somente por causa
de sua função lógico-proposicional, mas também por seu tipo de existência,
considerando que as coisas universais não se dão à experiência sensível de
maneira imediata como as coisas singulares. É com o uso ambíguo do termo
res, para referir-se ao universal, que chega à Idade Média a ideia de res uni-
versalis: falando do universal, as autoridades — Aristóteles, Porfírio e Boécio
—, visam tanto às coisas como às palavras, e isso evidentemente gera ambi-
guidade no interior de uma problemática já por si só assaz complexa. Assim,
por exemplo, “como compatibilizar o caráter de ‘ser predicado de vários’ às
coisas? Há coisas universais predicáveis das próprias coisas? Se esse é o caso,
a noção de predicação passa do âmbito lógico-semântico para o domínio on-
tológico, visto que a capacidade de predicação estender-se-ia das palavras às
coisas”27. Seja como for, a questão mais importante consiste em saber se é
possível tratar do universal comum objeto da ontologia.
Se a primeira grande problemática é de ordem lógica, então o tema dos
Universais, adquire grande relevância para o estudo da Filosofia Medieval,
pois toda pessoa instruída era treinada em lógica e gramática. Essas disci-

26 BOÉCIO, Comentário ao “Da interpretação” de Aristóteles, Pars Prior, Edit. C. Meiser, I, 7 (De
interpretatione 7, 17 a 38 e SS).

27  P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais, 23.

125
plinas proporcionaram técnicas de análise e um vocabulário técnico que
permeiam os escritos teológicos, filosóficos e científicos. Ao nível prático, a
lógica proveu o treinamento necessário para a participação nas disputas que
eram a característica central da instrução medieval, e cuja estrutura — com
argumentos pró e contra uma tese, seguida de uma solução - está presente em
muitas obras escritas. Ao nível teórico, a lógica, como outros assuntos, en-
volveu o estudo de textos escritos mediante leituras e comentários escritos.
O curriculum dos estudos lógicos no século xii era baseado fundamentalmen-
te na Logica vetus (a Isagogē de Porfírio, as Categorias e o Sobre a Interpretação
de Aristóteles), e o paradoxo que emerge é o seguinte: a tradição latina dispôs
por longo tempo só dessa Antiga Lógica para tratar de uma questão que, se-
gundo o próprio Porfírio, a lógica como tal não podia nem devia assumir28.
A segunda fonte do problema dos Universais repousa na noção de univer-
sal de comunidade. A possibilidade de predicação a vários é salvaguardada na
medida em que esses vários têm algo de comum. Por exemplo, os homens in-
dividuais possuem “algo de comum”: um universal como a espécie homem.
Em consequência, podemos formular proposições predicáveis deste gênero:
“Pedro é homem”; “João é homem”, etc. Eis, portanto, a noção de universal
com base em seu caráter de comunidade:

“[...] O universal, ao contrário, é comum, pois o que se chama univer-


sal é o que pertence por natureza a muitos seres” (ARISTÓTELES)29;
“Universal é aquilo que é comum (aliquod commune) a vários [...]
“Universal repousa sobre a noção de comunidade” (BOÉCIO) [...] “O
Universal é de tal modo comum que o mesmo está ao mesmo tempo
nos diferentes” (BOÉCIO, ABELARDO)30.

28  Cf. E. J. ASHWORTH, Logic Medieval, em CRAIG, E. (ed.) Encyclopedia of Philosophy 5. London-
-New York, Routledge, 1998, 746–759.

29 ARISTÓTELES, Metafísica VIII, 13, 1038b 11.

30  Apud P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais, 20–24.

126
A noção de comunidade já está presente na Metafísica de Aristóteles. Boé-
cio utiliza a expressão aliquod commune, o que permite evocar o aspecto me-
tafísico do problema refutado posteriormente por Guilherme de Ockham:
como uma coisa pode ser comum a várias, sem que se caia nas absurdidades
do platonismo da postulação da subsistência dos gêneros e das espécies fora
da mente? Acontece, porém, que nos textos de Boécio o caráter predicativo
dos universais deriva da noção de comunidade do universal: aquilo que por
semelhança é comum a muitos e está em muitos. Afirmarmos que Pedro,
Paulo e João e tantos outros indivíduos são homens (aspecto lógico — pre-
dicabilidade) só é possível porque algo de comum — a humanidade — se en-
contra em cada um deles (aspecto ontológico — noção de comunidade). Essa
noção de comunidade será posteriormente objeto das críticas de Ockham:
a humanidade é considerada como algo universal que é comum e intrínseca
tanto a Pedro quando a Paulo, porém distinta realmente deles, do ponto de
vista numérico. Portanto, Ockham invalida totalmente o universal de comu-
nidade, conservando, porém, o universal de predicação em sua interpretação
lógica31: em nome do princípio da singularidade do real, Ockham não admite
qualquer tipo ou modo de existência de uma natureza universal nos singula-
res, ou seja, extra animam. Com base em vários argumentos, Ockham mostra
as incompatibilidades e contradições em que incidem os defensores da no-
ção de comunidade de universal: indica-se a contradição que se estabelece
entre a noção de numericamente um (singular) e a noção de comum a vários
(universal), caso tais noções aconteçam simultaneamente na res universalis:
“Se a natureza é uma coisa, então é singular. Se, por outro lado, a natureza é
comum, então é universal. Ora, se a natureza é singular, então não é comum. Mas,
essa última afirmação contradiz aquilo que os defensores da opinião examinada
sustentam, ou seja, que o universal é algo comum nas coisas fora da alma”32.

31  No final do século XIV, WYCLIF distingue entre universal de causalidade e o de representação
do universal de comunidade.

32  P. LEITE JUNIOR, O Problema dos Universais, 103.

127
A querela dos Universais apresenta vários aspectos discutidos por lógicos
e teólogos na Idade Média tardia, aspectos que envolvem questões funda-
mentais da ontologia, da cosmologia e da psicologia. Mas a intenção aqui se
limita apenas a ilustrar a complexidade da querela para apresentar o “pretex-
to” do problema no questionário Porfírio de Tiro e sua recepção nas tradu-
ções e comentários de Boécio.

Os “cinco” predicáveis em particular:


Gênero, espécie, diferença específica, próprio e acidente

Uma vez que a problemática utiliza vocabulário específico da lógica aristotélica,


convém definir esses termos para compreender a origem da questão no texto de
Porfírio de Tiro. Os predicados são as diversas espécies de conceitos universais.

O gênero — é um universal relativo a inferiores especificamente diferentes


uns dos outros, e que lhes pode ser atribuído expressando sua essência de ma-
neira incompleta. Assim, por exemplo: “O homem é um animal”. Nessa pro-
posição, “animal” expressa a essência do homem, mas de modo incompleto;

A espécie — é um universal que pode ser atribuído a seus inferiores expri-


mindo sua essência de maneira completa. Assim, por exemplo: “Pedro é um
homem”. Diferentemente do gênero, a espécie expressa complemente a es-
sência do sujeito.

A diferença [específica] — é um universal que pode ser atribuído a seus in-


feriores por modo de qualificação essencial. Assim, por exemplo: “O homem
é racional”. A diferença, enquanto universal, determina o gênero qualifican-
do-o: daí o predicado “racional”.

O próprio — é um universal que expressa por modo de qualificação algu-


ma coisa que sobrevém acidentalmente à essência, mas lhe é atribuída ne-
cessariamente. “Alguma coisa” significa o modo qualitativo da predicação;

128
“acidentalmente” indica algo que não é da própria essência do sujeito; a atri-
buição necessária faz a distinção entre o próprio e o acidente. Por exemplo:
“A capacidade de rir” está em todo homem e só na espécie humana. Em ou-
tras palavras: é próprio do homem poder rir.

O acidente [predicável] — é um universal que pode ser atribuído a uma mul-


tidão, de maneira qualitativa, acidental e contingente. Por exemplo: dormir,
ser branco ou preto são acidentais com relação à espécie humana. É tudo
aquilo que se acrescenta ou se separa, sem que haja corrupção do sujeito.

2.2 A formulação tradicional do


problema dos Universais

A formulação da questão provém de um neoplatônico do século iii d.C. a sa-


ber: Porfírio, que nasceu em Tiro em 233/234 d.C., antiga cidade da Fenícia,
como se deduz de sua obra Vita Plotini (capítulos 4 e 7), foi primeiramente
discípulo de Longino em Atenas. Em 263 d.C. esteve em Roma para seguir o
ensinamento de Plotino, período em que seu pensamento atingiu a maturi-
dade. Os estudiosos assinalam que Porfírio esteve sujeito a profundas crises
de depressão33, o que o teria levado a desejar o suicídio. Aconselhado por Plo-
tino, Porfírio deixou Roma para instalar-se na Sicília, em Lilibeu (hoje Mar-
sala), onde teria reencontrado seu equilíbrio espiritual. É durante o período
siciliano que Porfírio produz grande parte de sua obra. Segundo os estudos
de H. D. Saffrey, a depressão de Porfírio seria na verdade uma crise intelec-
tual que se originou do seguinte fato34: o ataque à filosofia de Aristóteles, ou
mais precisamente, a crítica à doutrina das categorias feita por Plotino, seu

33  Sobre a “enfermidade” de Porfírio, cf. R. GOULET, Variations romanesques sur la mélancolie de
Porphyre, Hermes 110 (1982) 443–457

34  Cf. H. D. SAFFREY, Pourquoi Porphyre a-t-il édité Plotin?, em BRISSON, L.; CHERLONNEIX ET
ALII (ed.) Porphyre. La vie de Plotin II: Études d’introduction, texte grec et traduction française, com-
mentaire, notes complémentaires, bibliographie. Paris, J. Vrin, 1992, 38ss.

129
mestre — que as considerava só do ponto de vista ontológico35 — em seu en-
sinamento Sobre os gêneros do ser, conduziram-no a um posicionamento de
defesa da obra aristotélica: Porfírio repropõe a doutrina das Categorias e as
discute do ponto de vista lógico, considerando-as de grande utilidade. Assim,
em Lilibeu, Porfírio compôs dois comentários às Categorias, nos quais defen-
de “tudo aquilo que Plotino criticara em seu tratado” Sobre os gêneros do ser
e, nesse mesmo espírito, redige a Isagoge. Esse opúsculo é um texto que se
insere no clima coletivo de reação dos discípulos de Plotino à sua crítica das
Categorias de Aristóteles. Esse aspecto não platônico da Isagogē é paradoxal
e corresponde a um projeto intelectual evidenciado por Ch. Evangeliou, S.
Ebbesen e Alain de Libera36.
Ainda que Porfírio tenha escrito muitas obras na intenção de conciliar Pla-
tão e Aristóteles, sua importância reside na “recepção” medieval da Isagogē,
em uma de cujas páginas célebre passagem dá origem a conhecida querela
dos Universais. O principal responsável pelo surgimento dessa disputa filo-
sófica são as traduções latinas e os comentários de Boécio (ca. 480–524). Na
última fase de sua vida, Porfírio conduziu uma áspera polêmica contra os
cristãos, da qual se originou o tratado Contra os cristãos (em 15 livros, dos
quais existem apenas poucos fragmentos). Em suma, o espírito especulativo
de seu mestre Plotino foi predominante em Porfírio, mesmo que este tenha
feito uma concessão à teurgia em sua obra Sobre a volta da alma37. Morre em
Roma provavelmente no ano de 305.

35  Acerca do sistema aristotélico das categorias em Plotino, ver G. REALE, História da Filosofia
Antiga 4: As Escolas da Era Imperial. São Paulo, Loyola, 1994, 471s: “O sistema aristotélico das cate-
gorias não vale para o incorpóreo”. Plotino estabelece, portanto, as cinco Ideias generalíssimas do
Sofista de Platão como tábua das categorias do incorpóreo:

36  Cf. Ch. EVANGELIOU, Aristotle’s Categories and Porphyry. Leiden, E.J. Brill, 1988 (21996), 164–
181; S. EBBESEN, Porphyry’s Legacy to Logic: a Reconstruction, em SORABJI (ed.) Aristotle Transfor-
med. The Ancient Commentators and Their Influence. Ithaca/New York, Cornell University Press,
1990, 141–171; A. DE LIBERA & A.-Ph. SEGONDS, Porphyre. Isagoge. Paris, J. Vrin, 1998, VII–XII.

37  Segundo a revalorização dada ao Porfírio filósofo no âmbito da metafísica, ele admitiu a eficá-
cia da teurgia (=invocar os deuses e agir sobre eles mediante o uso de símbolos) em nível infe-
rior, embora a tenha criticado à luz do princípio da impassibilidade divina e da indiferença dos
deuses a qualquer tipo de ação humana (cf. G. REALE, História da Filosofia Antiga 4, 558ss. 546ss).

130
Uma vez considerada brevemente a vida de Porfírio, passemos ao exame
sucinto da sua obra em questão: a Isagogē.

Isagogē: uma introdução às Categorias de Aristóteles

A obra intitulada Isagogē de autoria de Porfírio de Tiro foi escrita com toda
probabilidade na Sicília entre os anos 268 e 270 durante o período sucessivo à
sua permanência em Roma, junto à escola neoplatônica de Plotino, para res-
ponder às solicitações de Crisaório, senador romano, que encontrara dificul-
dades na leitura das Categorias de Aristóteles. O breve opúsculo é igualmente
conhecido sob o título Sobre as cinco vozes, em referência às cinco noções
aristotélicas consideradas: gênero, espécie, diferença específica, próprio e
acidente. Ao termo eijsagwghv, traduzido como introdução, Porfírio não deu
um significado técnico, mas o considerável influxo exercido no âmbito da
lógica sucessiva fez com que o vocábulo adquirisse um significado específi-
co no cursus studiorum filosófico. Os comentadores antigos (Amônio, Elias,
Davi) sugeriram que a Isagogē podia assumir uma função bem mais ampla
em relação às próprias intenções de Porfírio: uma introdução às categorias
pode servir como uma introdução ao método dialético e à lógica em geral;
além disso, como uma propedêutica à filosofia em geral. Todavia, a impor-
tância da Isagogē, considerada em si mesma, pode ser resumida em quatro
pontos: a) a codificação da doutrina dos predicáveis; b) a inequívoca posição
em relação aos universais; c) o remetimento aos nexos metafísicos ontológi-
cos e henológicos; d) a construção da árvore lógica38.
Portanto, a obra Isagogē (Introdução) é uma explicação das principais no-
ções requeridas para o exame da doutrina aristotélica das Categorias, uma
explicação que adota essencialmente o ponto de vista dos “peripatéticos”, que
é o mais adaptado à lógica (logikwvteron). No quadro do curso neoplatônico, a
filosofia de Aristóteles serve como prolegômenos à filosofia de Platão. O tex-

38  Cf. G. GIRGENTI, Porfirio. Isagoge. Milano, Rusconi, 1995, 22–23; IDEM, Il pensiero forte di Porfi-
rio. Mediazione fra henologia platonica e ontologia aristotelica. Milano, Vita e Pensiero, 1996.

131
to abre-se com a formulação de um problema que se tornará na Idade Média
o problema dos Universais:

1. “Meu caro Cresaório, dado que para receber o ensinamento relativo


às categorias de Aristóteles, é necessário saber o que seja (1) o gêne-
ro, (2) o que seja a diferença, (3) o que seja a espécie, (4) o que seja
o próprio e (5) o que seja o acidente, e visto que tal conhecimento é
igualmente necessário para fornecer definições em relação a tudo que
diz respeito à divisão e à demonstração, sendo útil este estudo, vou-te
fazer uma breve exposição desses pontos, esforçando-me em percor-
rer brevemente, sob a forma de introdução, o que se encontra entre os
mais antigos, abstendo-me de entrar em questões mais profundas e
tocando somente e de modo comedido nas questões mais simples. 2.
No que concerne aos gêneros e às espécies: será que são realidades
subsistentes (uJfevsthken) em si mesmas ou se consistem apenas em
simples conceitos mentais (ejn movnai" yilai" ejpinoivai") e, admitindo
que sejam realidades subsistentes, se são corpóreas ou incorpóreas
(2), se, neste último caso, são separadas das coisas sensíveis (ejn toi"
aijsqhtoi") ou estão implicadas nelas, encontrando aí sua consistên-
cia? (3) Recuso-me a responder: este é um problema mais profundo e
que exige uma pesquisa assaz diferente e mais extensa”39.

Quanto aos diferentes modos de existência possível do universal, as três


perguntas podem ser esquematizadas da seguinte maneira:

1ª) Questão: (os gêneros e as espécies) subsistem ontologicamente (A) ou


residem em puros pensamentos? (B)

Na tipologia das soluções, a primeira propõe a alternativa do universal


subsistens em si mesmo ou in intellectibus. A alternativa (A) implica a acei-
tação da teoria platônica das Ideias (universalia ante rem = realismo exagera-

39 PORFÍRIO, Isagoge (ed. BUSSE, p. 25, 1. 10–14; trad. J. Tricot & introd. A. De Libera. Paris, Vrin,
1995, 11s).

132
do). Segundo essa teoria, as coisas sensíveis são o reflexo pálido e imperfeito
dessas Ideias. A formulação precisa da teoria se encontra no Fédon, diálogo
no qual a Ideia se torna uma realidade ontológica, uma espécie de ser que tem
as seguintes características: (a Ideia) existe “em si mesma”, é “idêntica a si
mesma”, é o “verdadeiro ser” e uma realidade “supras-sensível”. Em suma:
com tal teoria, Platão quer significar que o sensível se explica somente coma
a dimensão do suprassensível, o corruptível com o ser incorruptível, o móvel
com o imóvel, o relativo com o Absoluto, o múltiplo com o Uno.
A alternativa (B) se aproxima parcialmente da posição standard de Aris-
tóteles que concebe o universal como um conceito “posterior às coisas na
ordem do ser” (universalia post rem; De anima i, 1, 402 b 7–8), apreendido me-
diante um processo de indução abstrativa. O universal seria um ente de razão
que a mente humana cria por abstração, baseando-se na própria estrutura
ontológica do real. Mas aqui, no texto de Porfírio, a enunciação do conceito
“aristotélico” aparece codificada em um vocabulário neoplatônico: a expres-
são “simples concepções do espírito” remete à distinção, estranha ao corpus
aristotélico, entre conceitos autênticos (“noções de realidades”) e conceitos
fictícios (“noções sem correlato real”). No texto de Porfírio, porém, a tese
“aristotélica” está codificada em um vocabulário neoplatônico: a expressão
“simples conceitos mentais” evoca uma distinção entre conceitos autênticos
(como, por exemplo, a noção que concebe o ser assim: separando do triân-
gulo de bronze a figura geométrica e concebendo o triângulo em si mesmo)
e conceitos fictícios (como, por exemplo, imaginar coisas impossíveis por na-
tureza: um animal fantástico, que participa contemporaneamente da espécie
“cabra” e da espécie “cervo” [tragevlafo", hircocervus] e hipocentauro)

2ª) Questão: (os gêneros e as espécies) subsistem corporalmente ou in-


corporalmente?

A segunda questão descarta a alternativa da universal in intellectibus acei-


tando a proposta do universal subsistens em si mesmo. “Porfírio reduziu o
universal a um só modo efetivo de existência: a subsistência ontológica”40:

40  Cf. F. BERTELLONI, Estudio preliminar, 15–16.

133
Essa alternativa evidencia também a contradição interna das posições “pla-
tônica” e “aristotélica”. Ora, admitindo com Platão que o universal vem a ser
uma “realidade subsistente”, tratar-se-ia de um incorporal, mas um incorpo-
ral depreendido do sensível apresenta-se como ser abstrato: não é, portanto,
uma realidade subsistente, mas um conceito como o universal aristotélico.
Reciprocamente, se o universal é um incorporal, ou seja, um conceito abstra-
to, como pode ser simultaneamente uma realidade subsistente e “correspon-
der” aos seres reais dos quais é depreendido? Além disso, o modo ontológico
desse subsistente é igualmente um problema: o que é, com efeito, um ser
que não é nem o ser real (a coisa singular), nem o ser ideal da Ideia separada
de Platão, nem o ser mental ou psíquico do conceito abstrato de Aristóteles?
Partindo da alternativa da subsistência real dos universais, emerge aqui
uma questão que evoca o problema da natureza dos “universais” entre os
estoicos: aquilo que o pensamento pensa, reúne e separa de vários modos
são seres corporais ou incorporais? Os estoicos admitiram também, além das
coisas existentes e das palavras significantes, os conteúdos de pensamentos,
“os significados”, os quais são simples lektav (“exprimíveis” ou, em uma lin-
guagem mais precisa, “coisas expressas” ou “enunciadas” ou, ainda, “ditas”)
e que consideram incorpóreos. Para compreender o sentido do universal entre
os estoicos, tenha-se em vista o seguinte texto:

“Eles (os estóicos) dizem que ser exprimível é o que tem uma realida-
de em uma representação racional, e que uma representação racio-
nal é aquela na qual o que é representado pode ser manifestado pela
linguagem” [...] “Os estóicos dizem que há três coisas ligadas umas
às outras, o significado (shmainovmenon), o significante (shmainon) e o
portador (tugcavnon). O significante é o próprio som vocal, por exem-
plo, ‘Dion’ [por exemplo: na frase ‘Dion caminha”, os sons com os
quais eu a expresso constituem o significante]; o significado é a coisa
mesma designada por este nome, do qual apreendemos a realidade
no fundo de nosso pensamento e que os bárbaros não compreendem,
ainda que eles entendam o som vocal [por exemplo: o que digo de
Dion, isto é, que ele caminha, é uma fato incorporal]; enfim, o por-

134
tador, é o sujeito exterior, como o próprio Dion em pessoa. Há duas
dessas realidades que são corpos, a saber: o som vocal e o portador, e
uma que é incorporal, a saber: a coisa designada pelo som, isto é, um
exprimível, que pode ser verdadeiro ou falso”41.

Além desses lektav, os estoicos diziam ser “incorpóreos” também o lu-


gar, o tempo e o vazio. Portanto, o exprimível (letkovn = expresso, dito, signi-
ficado), segundo os estoicos, é “subjacente em uma representação racional,
uma representação racional é aquele que pode ser expressa na linguagem”42.
Em outras palavras: o exprimível é um ser depreendido das impressões sensíveis
que representa um estado do conhecimento onde o conteúdo da experiência sen-
sível se traduz em termos de linguagem. Nós podemos pensar um exprimível
sem dizê-lo e, sob diversos aspectos, é a constituição mesma da razão como
sistema de noções que precede e funda a possibilidade de uma linguagem.
O exprimível é, portanto, uma “coisa” (pragma) da qual “apreendemos a re-
alidade por nosso pensamento”, isto é, pela parte hegemônica da alma43.
Segundo os estoicos, o conteúdo de pensamento possui duas particularidades,
a saber: 1a) ele é a “articulação de um conteúdo imaginado em palavras”, ou
seja, não é o objeto de uma “intuição universal”; 2a) a expressão lingüística,
entretanto, não constitui o conteúdo, mas ela o traduz sem criá-lo”. A posição
estóica acerca do lektovn se distingue ao mesmo tempo da Ideia platônica e do
conceito mental aristotélico44.

3ª) Questão: (os gêneros e as espécies) subsistem separados do sensível


ou imanentes ao sensível?

41  Cf. ARNIM, H. Von (ed.), Stoicorum Veterum fragmenta II. Leipzig: Teubner, 1903, 166 (apud J.-B.
GOURINAT, La dialectique des Stoïciens. Paris: J. Vrin, 2000, 111–112. 120).

42  J.-B. GOURINAT, La dialectique des Stoïciens, 117. Cf. SEXTO EMPÍRICO, Contra os matemáticos
VIII, 70;

43  J.-B. GOURINAT, La dialectique des Stoïciens, 116.

44  Cf. A. DE LIBERA, La querelle des universaux..., 37–38.

135
A terceira questão descarta a alternativa do universal corporal, conservan-
do a proposta do universal incorporal. Assim deixa aberta a possibilidade
de que esse universal possa existir como subsistente separado do sensível
(separata) ou imanente ao sensível (in sensibilibus posita). Sob um terceiro
ponto de vista, o autor recoloca, outrossim, a oposição entre Platão e Aristó-
teles. O universal é uma Ideia separada ou uma ideia imanente ao sensível?
Na primeira alternativa — ou seja, a Ideia como uma realidade inteiramente
separada do sensível — deparamos com um abismo intransponível entre o
inteligível e o sensível; se se aceita a segunda alternativa, é preciso explicar
então como o inteligível pode estar “presente nos sensíveis”.
Formulando essas três questões, Porfírio põe em evidência o conjunto das
contradições que minam o platonismo e o aristotelismo. Trata-se de uma
apresentação diaporemática da tensão que estrutura a metafísica ocidental
em todos os aspectos: ontologia geral, teoria do conhecimento, teoria do sig-
no e da significação. Para conferir à Isagogē de Porfírio o estatuto de matriz
em relação ao problema dos Universais, é desnecessário justapor-lhe entida-
des historiográficas — realismo, nominalismo, conceptualismo — conside-
radas como categorias filosóficas imutáveis, mas, sim, tomá-lo na sequência
de suas metamorfoses, vendo-o em seu quadro estrutural originário: em seu
liame com as Categorias e, paralelamente, com o conjunto dos escritos aristo-
télico e platônico que, sob diversos degraus e segundo canais de transmissão
específicos, enquadraram-no desde a Antiguidade tardia até o fim da Idade
Média. A inteligibilidade e o conteúdo da Isagogē de Porfírio compreendem-
se, portanto, a partir do estado dos escritos filosóficos onde ela se insere. Sen-
do assim, a problemática dos universais vem a ser o produto de duas exegeses:
a de Platão e a de Aristóteles, mas também o ponto de intercessão dos dois
corpus platônicos e aristotélicos. Esses corpus variam de uma época à outra, de
um meio ao outro, de uma cultura à outra. É, portanto, como lugar de explici-
tação do debate de Aristóteles com Platão que é preciso considerar a Isagogē.
Metodologicamente, não podemos associar diretamente o conjunto da
problemática dos Universais às três questões de Porfírio. Só a partir da tra-
dição interpretativa dos textos que conduziram e estruturaram o problema
dos Universais torna-se possível compreender o paradoxo de Isagogē: Por-
fírio legou à tradição o problema que quis evitar e ele mesmo não transmi-

136
tiu nenhum dos elementos que teriam permitido construí-lo em toda a sua
amplitude. Esse procedimento é essencial para desfazer a justaposição das
grandes posições teóricas — forjadas na Idade Média sob as formas de “rea-
lismo”, “nominalismo” e “conceptualismo” — às três questões da Isagogē de
Porfírio, enquanto matriz textual das imponentes construções metafísicas
que, de Boécio à Renascença, apaixonaram os mais fervorosos espíritos.

◊ Realismo

O realismo se liga originariamente à tese platônica; afirma que os gêneros


e as espécies existem em si em mesmos, acima e fora dos indivíduos, mas
não explica absolutamente a gênese do realismo medieval que, precisamen-
te, é construído contra a imagem indireta e por muito tempo caricatural que
tem da doutrina platônica das Ideias separadas.

◊ Nominalismo

Segundo Tricot, o nominalismo pode ser relacionado com a tese de Antís-


tenes afirmando “Eu vejo um cavalo, eu não vejo a cavalidade”, mas ele não
explica como a problemática da percepção é introduzida no âmago da pro-
blemática dos Universais, nem porque as duas se reencontram somente no
nominalismo no século xiv, e não naquele do século xii, nem tampouco, a
fortiori, porque elas se reencontram, primeiramente, entre os realistas dos
séculos xiii e xiv, e não somente entre os nominalistas. Na verdade, J. Tri-
cot não explica de que modo a tese de Antístenes, ignorada pelos medievais,
pode caracterizar o nominalismo nem como, a partir de qual base e por quais
canais pôde constituir-se como posição filosófica do conjunto.

◊ Conceptualismo

Enfim, o Tricot tem razão de associar o conceptualismo à tese “aristotélica”


afirmando que “as ideias gerais existem somente na mente”, mas ele negligen-
cia o fato de que a posição de Aristóteles é tão pouco homogênea que o aristote-

137
lismo “autêntico” pôde por muito tempo passar como uma doutrina segundo a
qual os universais são, ao contrário, formas “fundadas nas coisas”45.
Em resumo: segundo a abordagem tradicional que remonta ao texto de
Porfírio de Tiro como pretexto da problemática dos Universais, tais questões
remeteriam a posições filosóficas precisas designadas como “realismo” e no-
minalismo” com as suas respectivas distinções forjadas na Idade Média: realis-
mo exagerado46 e realismo moderado47; conceptualismo e nominalismo puro48.
A primeira questão (1a) contrapõe a solução realista a uma solução nominalista
(ou, se quisermos, na forma moderada do conceptualismo49). A primeira solu-
ção se liga originariamente à tese platônica, segundo a qual os gêneros e as
espécies existem em si mesmos, acima e fora dos indivíduos50; a segunda, aos
sofistas e aos céticos. A segunda questão (2a) contrapõe, por sua vez, a posição
platônica, por assim dizer, realista espiritualista àquela realista materialista dos

45  Cf. a ambigüidade conceitual sobre “os” universais no De interpretatione 7, 17 a 39–40.

46  Esta posição, cara a Platão e aos platônicos, sustenta a existência das realidades universais,
que existem como tais independentemente da atividade cognoscitiva humana.

47  Segundo essa posição, os termos universais se referem à realidade concreta e singular, na
qual, porém, existe alguma coisa realmente universal. Essa é a posição de Aristóteles, dos aris-
totélicos, e de Tomás de Aquino no século XIII.

48  Para os nominalistas a universalidade não se encontra nas nossas ideias, mas somente nos
“nomes”, isto é, nas palavras, nos signos e símbolos; em suma, na linguagem. O representante
mais conhecido dessa posição é Guilherme de Ockham: o universal em ato só existe no intelecto,
ou seja, ele é gerado diretamente das coisas na mente do sujeito cognoscente. Cf. A. GHISALBER-
TI, Guilherme de Ockham (trad. Luís A. DE BONI). Porto Alegre, Edipucrs, 1997, 79; A propósito do
nominalismo de Ockham, cf. T. ANDRÉS, El nominalismo de Guillermo de Ockham como filosofía del
lenguaje. Madrid, Gredos, 1969; C. MICHON, Nominalisme. La théorie de la signification d’Occam.
Paris, J. Vrin, 1994.

49  Associar o conceptualismo à tese “aristotélica” afirmando que “as idéias gerais existem so-
mente no espírito” significa desconhecer o fato de que a posição de Aristóteles não é tão ho-
mogênero como sempre se pensou; ora, um aristotelismo “autêntico” permaneceu por muito
tempo como uma doutrina segundo a qual os Universais são, ao contrário, formas “fundadas nas
coisas” (cf. a ambiguidade conceitual sobre “os” universais no De interpretatione 7, 17 a 39–40).

50  Essa identificação não consubstancia, porém, a gênese do realismo medieval, que é constru-
ído contra a imagem indireta e até mesmo caricatural que tem da doutrina platônica das Ideias
separadas.

138
estoicos. Enfim, a terceira questão (3a) contrapõe expressamente a posição rea-
lista exagerada dos platônicos ao realismo moderado de Aristóteles.

2.3 A teoria do universal de Boécio como


cogitatio collecta (pensamento coligido)

Às questões deixadas em aberto por Porfírio de Tiro, Boécio procurará forne-


cer uma solução cuja fonte é Alexandre de Afrodísia, para dar conta da na-
tureza anfíbia do universal: corpóreo e particular nas coisas e incorpóreo e
universal na mente. Mas a carreira intelectual dele oscila ora em favor das
teses aristotélicas, ora pelo puro platonismo. A fidelidade a Aristóteles mani-
festa-se mais por fidelidade ao livro que estava comentando — um comentá-
rio às Categorias do Estagirita — do que por convicção pessoal51:

“Platão julga que os gêneros e as espécies não só são conhecidos como


universais, mas também que existem e subsistem separados dos cor-
pos. Aristóteles, ao contrário, pensa que esses são conhecidos como
incorpóreos e universais, mas que subsistem nas coisas sensíveis.
E não quero dizer qual opinião de ambos é a apropriada, pois é tarefa
para uma filosofia mais profunda. Em todo caso, aqui seguimos dili-
gentemente a opinião de Aristóteles não porque a julgamos a melhor,
mas porque este livro, isto é, Isagoge, foi escrito para introduzir às
Categorias, cujo autor é Aristóteles”52.

É no conexto dessa tradição que Boécio combinará as dimensões ontoló-


gica e gnosiológica para justificar sua tese a favor dos Universais: o universal
apresenta, simultaneamente, um modo de ser (subsistentia) e um modo de
ser conhecido (intellectus), expressão, cada um deles, das duas pespectivas

51  Cf. Josep-Ignasi SARANYANA, A Filosofia Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia
e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2006, 113.

52 BOÉCIO, Isagogen Porphyrii comenta [editio secunda], 167.

139
diferentes, segundo as quais podemos considerar o universal: “[...] os gê-
neros e as espécies subsistem de um modo [no sensível] e são entendidos
de outro [isto é, conhecidos independentemente dos corpos] [...]”53. A Idade
Média conhecerá a Querela dos Universais com base nas traduções latinas e
nos comentários de Boécio. O autor apresenta sua teoria da abstração e ar-
gumenta que uma metafísica basicamente nominalista não é incompatível
com uma epistemologia basicamente realista, de sorte que negar a realidade
dos Universais fora da mente humana não inviabiliza a legitimidade de nos-
so conhecimento geral. Segundo Boécio, há um modo de afirmar ao mesmo
tempo que os gêneros e as espécies são alguma coisa in rerum veritate, sem
serem substâncias, e que estão no intelecto, mas sem que sejam conceitos
vazios54. É perfeitamente possível manter simultaneamente que os gêneros e
as espécies são incorporais, ligados aos seres corporais, presentes nos sensí-
veis, mas desses separados.
Para desenvolver a posição de Boécio, examinarei aqui, primeiramente, as
reformulações da primeira pergunta de Porfírio onde se privilegia a questão
da subsistência (se [gêneros e espécies] subsistem ou se são colocados em inte-
lectos desnudos e puros): a pergunta visa à exclusão entre subsistentia, de um
lado, e intellectus, de outro lado. Os textos de Boécio apresentam, porém,
uma dimensão do universal ignorada por Porfírio, a saber: em se tratando da
questão sobre os universais, a dimensão gnosiológica55 está unida intrinse-
camente à vertente ontológica ; em segundo lugar, apresentarei a aplicação
do termo intellectus que remete inequivocamente à noção de ejpivnoia quando
Boécio inicia sua argumentação a favor dos Universais
Primeira reformulação no primeiro comentário de Boécio:

53  F. BERTELLONI, Estudio preliminar, 20–21.

54  Por exemplo, Boécio fornecerá o exemplo da intelecção de uma linha: o intelecto age por uma
separação, ou seja, concebe mentalmente por abstração a linha isolada corpo. Trata-se, portanto,
de uma intelecção que, nesse caso, não é falsa nem vazia.

55  F. BERTELLONI, Estudio preliminar, 17.

140
“[...] se (os gêneros e as espécies) são entendidos como realmente su-
bistentes e, de certo modo, entes e existentes, de sorte que compre-
endamos a espécie homem como extraída real e integralmente dos
corpos particulares ou se, em certa medida, são representados pela
imaginação do ânimo (an certe quadam animi imaginatione fingan-
tur), como naquele verso de Horácio: ‘Se um pintor quer acrescentar
um pescoço equino a uma cabeça humana [...]’, o que não existe nem
poderá existir, mas que só é pintado (figurado) por uma falsa consi-
deração da mente”56;

Segunda reformulação no segundo comentário de Boécio:

“[...] Em relação ao conceito de gênero e dos demais que sejam desse


modo pergunta-se se entendemos as espécies e os gêneros como aque-
las coisas que existem e a partir das quais captamos um conceito ver-
dadeiro, ou nós mesmos nos enganamos quando aquelas coisas que
não existem, nós as formamos com um vão pensamento do ânimo”57.

O modelo conceptualista veiculado por Boécio:

“Mas se os gêneros e as espécies e os outros (predicáveis) são apreen-


didos (captados) só pelo(s) (atos do) intelecto, (então) toda intelecção
provém de uma coisa que lhe é anteposta (cum omnis intellectus aut ex
re fiat subiecta), ou seja, como as coisas são (realmente) dispostas ou
como as coisas não são (realmente) dispostas — de fato, não se pode
ter nenhum ato de intelecção sem um objeto (nam ex nullo subiecto
fieri intellectus non potest) (...) então as coisas não são colocadas so-
mente no intelecto, mas também consistem na verdade das coisas ”58.

56 BOÉCIO, Isagogen Porphyrii comenta [editio prima], 25.

57 BOÉCIO, Isagogen Porphyrii comenta [editio secunda], 160.

58 BOÉCIO, Isagogen Porphyrii comenta [editio secunda], 163.

141
Com base nas duas reformulações da primeira pergunta de Porfírio com-
preende-se que, para Boécio, a alternativa adotada agora seja a seguinte: de
um lado, subistência ontológica e formação do pensamento ou produto da
imaginação, de outro lado. Na primeira parte da primeira pergunta refor-
mulada por Boécio, pergunta-se pela subsistência ontológica de um universal
que conhecemos (intellectus), ao passo que na segunda parte dessa mesma
pergunta apresenta a imaginatio como alternativa a ser excluída: an certe
quadam animi imaginatione fingantur. Através da dimensão gnosiológica,
Boécio supera “a unidimensionalidade do universal puramente ontológico
de Porfírio”. Resumidamente, podemos dizer o seguinte: enquanto a primei-
ra pergunta de Porfírio exclui a alternativa do universal resultante de uma
atividade intelectual com base na priodade dada à alternativa do universal
subsistindo ontologicamente, a reformulação de Boécio da mesma pergunta
elimina a alternativa do universal resultante, não da atividade do intelecto,
mas da imaginação. Por conseguinte, assim procedendo, Boécio assume o
universal que subsiste ontologicamente e que é igualmente resultado de um
processo intelectual59.
Quanto ao terceiro texto citado, a interpretação da fórmula yilh; ejpivnoia é
determinante para compreender o modelo conceptualista veiculado por Boé-
cio na primeira leitura medieval do questionário de Porfírio. Ora, para mos-
trar que os gêneros e as espécies não estão somente no pensamento, Boécio
explica que, se assim fosse o caso, eles seriam pensamentos “sem sujeito”;
portanto, não seriam pensamentos, pois não pode existir pensamento daqui-
lo que nada é. Nesse sentido, um pensamento não pode ter “sujeito” (isto é,
objeto no sentido moderno do termo) sem ele mesmo existir de algum modo,
e isso não pode ser uma simples construção do espírito. Portanto, os gêne-
ros e as espécies devem “existir na realidade” (in rerum veritate consistere). A
distinção feita no texto, que remete àquela aristotélica — a do “intelecto” e
da “sensação” — tem sua fonte imediata nas noções de incorporal e de corpo-
ral utilizadas por Alexandre de Afrodísia para explicar o mecanismo da sen-
sação: os sentidos se ligam a entidades que, mesmo sendo incorporais, são

59  F. BERTELLONI, Estudio preliminar, 17–20.

142
atreladas às realidades corporais. Em outras palavras: as faculdades sensiti-
vas apresentam à alma, enquanto incorporais, coisas que, em si mesmas, são
corporais. Como explicita Boécio, o espírito humano (animus) tem o poder
de “reunir o que está separado (disiuncta) e de separar (resolvere) o que está
unido (composita). Ora, se o espírito pode contemplar e ver separadamente
o que existe concretamente em um corpo, ele tem também a capacidade de
fazer a mesma coisa em relação aos gêneros e às espécies: recebidos por ele
“misturados aos corpos (permixta corporibus), o espírito pode “contemplar e
considerar” os gêneros e as espécies “separando os incorporais (dividens in-
coporalia)”. Segundo Boécio, os gêneros e as espécies não existem separada-
mente, como as Ideias platônicas, mas podem ser separados dos corpos e do
sensível pelo pensamento.
Boécio utiliza no texto em questão, portanto, uma noção de intellectus que
remete a uma intelecção entendida como uma certa faculdade da alma, única
capaz de apreender, ou mais precisamente, de “colher juntamente” (colligere)
os inteligíveis. Tal é a teoria do universal como cogitatio collecta, fundamen-
tada em uma ontologia que articula duas noções complementares, a saber:
as de “natureza formal” e de “semelhança essencial”. Os indivíduos que têm
a mesma natureza formal apresentam uma semelhança essencial. A função
do intelecto (ou do pensamento?) consiste em apreender essa semelhança
enquanto inteligível, sendo esta última sensível ao nível de cada realidade
particular e, desse modo, percebida pelos sentidos. Segundo essa interpre-
tação, a espécie é, portanto, “um pensamento coligido” (cogitatio collecta) a
partir da “semelhança substancial de indivíduos numericamente diferentes”
(ex individuorum dissimilium numero substantiali similitudine); o gênero, “um
pensamento coligido a partir da semelhança das espécies”60.
A originalidade de Boécio consiste, portanto, em sustentar que — a fim
de assegurar a possibilidade da passagem da sensação ao pensamento do
ponto de vista da semelhança essencial — “é o mesmo sujeito que, em um

60  “Cogitantur vero universalia nihilque aliud species esse putanda est nisi cogitatio collecta
ex individuorum dissimilium numero substantiali similitudine, genus vero cogitatio collecta
ex specierum similitudine” (BOÉCIO, Isagogen Porphyrii commenta, 165, linha 18–166 linha 2).

143
certo sentido, é universal, quando é pensado e, em um outro sentido, sin-
gular, quando é percebido sensivelmente nas coisas onde ele tem seu ser”61.
Essa argumentação certamente se assemelha às formulações peripatéticas de
Alexandre de Afrodísia que, em sua obra De anima62, identificou a apreensão
da forma sem a matéria com a do universal: a sensação capta a forma unida à
matéria — o singular (ou seja, a coisa “composta das duas); o intelecto capta
não a coisa sensível individual (“esta coisa particular”), mas seu “ser” como
tal — o universal (isto é, a forma e a essência graças aos quais a coisa indivi-
dual existe). Não é certo, porém, que o intelecto, assegurando essa apreensão,
seja identificado no espírito de Boécio ao intelecto (nou") de que fala o De
Anima de Aristóteles.
Quanto aos termos significativos da solução de Boécio, podemos resumir
seu raciocínio do seguinte modo: cogitatio collecta: existe nos indivíduos
uma semelhança segundo a essência, mesmo havendo neles uma desseme-
lhança do ponto de vista numérico; trata-se de um conceito, de uma unifica-
ção lógica, de um colocar junto segundo a razão fundado nas coisas. Por fim,
a expressão paradoxal de sua solução: subsistunt circa sensibilia, intelleguntur
autem praeter corpora: os gêneros e as espécies subsistem no âmbito dos sen-
síveis, mas são conhecidos separadamente dos corpos.

61  “Ita quoque generibus et speciebus, id est singularitati et universalitati, unum quidem su-
biectum est, sed alio modo universale est, cum cogitatur, alio singulare, cum sentitur in rebus
his in quibus esse suum habet” (BOÉCIO, Isagogen Porphyrii commenta, 167, 3–7).

62  Cf. o comentário e as notas de P. ACCATTINO & P. DONINI, em Alessandro di Afrodisia. L’anima.
Roma-Bari, Laterza, 1996

144
Questões

1ª) O que é “universal”? Exemplifique.

2ª) Quais são as duas fontes da problemática sobre os universais?


Exemplifique.

3ª) Defina e exemplifique os dois predicáveis que foram objeto da querela


dos universais.

4ª) Explique a solução de Boécio dada às questões de Porfírio? O que é


“pensamento coligido”? Exemplifique.

145
ANTOLOGIA

BOÉCIO, Comentário à ‘Isagoge’ de Porfírio (segunda versão) 63

[O ARGUMENTO A FAVOR DOS UNIVERSAIS]


[O universal coincide com a coisa existente]

“Mas se os gêneros e as espécies e os outros (predicáveis) são apreendidos


só pelos (atos do) intelecto, (então) toda intelecção provém de uma coisa
que lhe é anteposta [a partir da coisa apreendida], ou seja, como as coisas
são (realmente) dispostas ou como as coisas não são (realmente) dispostas
— de fato, não se pode ter nenhum ato de intelecção sem um objeto. (Deste
modo) se a intelecção do gênero e da espécie e dos outros predicáveis pro-
vém de um objeto de modo que as coisas estejam assim como são (realmen-
te) conhecidas, então as coisas não são colocadas somente no intelecto, mas
também consistem na natureza das coisas.

[O universal não coincide com a coisa existente]

E deveríamos outra vez perguntar qual é a sua natureza, como se procurou


fazer com a investigação precedente. De outro lado, se a intelecção do gê-
nero e dos outros predicáveis é estabelecida pelas coisas, mas não no sen-
tido em que as coisas submetidas ao intelecto estão (realmente) dispostas,
aquela intelecção que é estabelecida pelas coisas, certamente deve ser vazia,
mas não como as coisas são (realmente) dispostas; por isso, é falso o que se
compreende de modo diferente como as coisas (realmente) são.
Assim, portanto, já que o gênero e a espécie não existem e nem é verdadeiro
o conhecimento deles quando são conhecidos, não há dúvida de que toda
esta preocupação pelos cinco predicáveis deva ser abandonada, uma vez

63  Cf. Anicii Manlii Severini Boethii in Isagogen Porphyrii commenta, ed. Samuel Brandt [“Corpus
Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum”, vol. 48. 2]. Vienna, F. Tempsky, 1906, p. 163 linha 3–p.
167 linha 20.

146
que é uma investigação que não pesquisa aquilo que existe, nem aquilo que
pode ser compreendido ou proferido.

[A SOLUÇÃO]
[Faculdades do conhecimento]

No momento, esta é a questão sobre os assuntos mencionados acima. Pro-


curaremos resolvê-los, de acordo com Alexandre [de Afrodísia], raciocinan-
do deste modo: não sustentamos que todo ato intelectivo que venha através
de um objeto, sem que o mesmo objeto esteja (realmente) disposto, deva
ser visto como falso ou vazio. Uma opinião falsa ocorre, em vez de um ato
intelectivo, só nas coisas constituídas por uma composição (compositio).
De fato, se alguém compõe e une com o entendimento aquilo que a natu-
reza não permite que seja unido, ninguém ignora que isto é falso, como,
por exemplo, se alguém une um cavalo e um homem em sua imaginação e
forma um centauro. Mas se aplica este procedimento por divisão (divisio)
e por abstração, não é uma coisa real existente, mas outra coisa própria do
intelecto. Entretanto, esta intelecção não é de todo falsa. De fato, existem
muitas coisas que têm o seu ser em outros [seres], dos quais não podem
ser absolutamente separados, ou, se deles são separados, não subsistem por
nenhuma razão.
E para tornar isto claro através de um exemplo amplamente conhecido,
consideremos o seguinte: a linha é alguma coisa que existe em um corpo.
Aquilo que esta é pertence a tal corpo, ou seja, esta realiza o próprio ser me-
diante o corpo. Isto nos ensina o seguinte: se a linha estivesse separada do
corpo, não subsistiria. Quem, alguma vez, apreendeu com os sentidos uma
linha separada de um corpo? Mas a mente, quando apreende em si mesma
as coisas confusas e misturadas através dos sentidos, é capaz de distingui-
-las mediante o pensamento.
De fato, a faculdade sensitiva nos transmite, unida aos mesmos corpos,
todas as coisas incorpóreas que têm o seu ser nos corpos. Mas a mente (ani-
mus), que tem a faculdade de unir as coisas desunidas e de distinguir as
coisas unidas, distingue de tal modo as coisas que lhes são oferecidas — de

147
forma confusa e conjunta com os corpos — pelos sentidos que apreende e
vê a natureza incorpórea por si sem os corpos nos quais é realizada [concre-
tamente]. De fato, são diversas as propriedades incorpóreas misturadas nos
corpos, e separáveis do corpo.
Portanto, os gêneros e as espécies e os demais predicáveis se encontram
ou nas coisas incorpóreas, ou nas coisas que são corpóreas. Ora, se a mente
(animus) as encontra nas coisas incorpóreas, então aí tem imediatamente
uma compreensão incorpórea do gênero. Se, ao contrário, [a mente] detecta
os gêneros e as espécies nas coisas corpóreas, então segundo o seu próprio
costume remove a natureza daquilo que é incorpóreo das coisas corpóreas
e a contempla simples e pura, como se fosse a forma em si mesma64. Do
mesmo modo, quando a mente percebe essas coisas [formas ou naturezas
incorporas] misturadas aos corpos, separando-as [enquanto] incorpóreas,
contempla e examina somente as coisas incorpóreas.
Ninguém diga, portanto, que pensamos o falso a propósito da linha, vis-
to que de tal maneira a captamos com a mente como se estivesse separada
das coisas corpóreas, ainda que não possa existir separada dos corpos.
De fato, nem toda intelecção que se concebe a partir das coisas apreendi-
das, diferentes das coisas mesmas que existem, deve ser considerada falsa,
mas, como se disse acima, a única coisa que a torna falsa é dada pela com-
posição, como quando colocando juntos um homem e um cavalo pensamos
que o centauro existe [na realidade]. Mas a intelecção que faz isto median-
te divisões e abstrações eliminando aspectos que existem nas coisas, não
somente não é falsa, mas, antes, é a única capaz de encontrar aquilo que é
verdadeiro nas propriedades das coisas.
Portanto, coisas deste tipo existem nas coisas corpóreas e sensíveis, mas
são conhecidas separadamente das coisas sensíveis justamente com o obje-
tivo de contemplar a natureza e compreender as propriedades específicas.

64  A atividade própria da mente nesta condição encarnada consiste em abstrair o universal dos
corpos particulares dados à percepção.

148
[Natureza e definição dos universais]

Por essa razão, quando os gêneros e as espécies são pensados (cum genera
et species cogitantur), é porque se apreende uma semelhança a partir dos
indivíduos existentes (tunc ex singulis in quibus sunt eorum similitudo
colligitur), como a partir dos homens individuais [por exemplo] se apreen-
de uma semelhança de humanidade entre eles (ut ex singulis hominibus
inter se dissimilibus humanitatis similitudo). Tal semelhança, pensada
pela mente (quae similitudo cogitata animo) e contemplada com verdade,
torna-se uma espécie. Assim também, a semelhança de diversas espécies,
que não pode existir senão nestas espécies ou em seus [respectivos] indi-
víduos, produz o gênero quando é levada em consideração. Portanto, essas
coisas [os gêneros] existem nos singulares, mas são pensadas como univer-
sais. A espécie não deve ser considerada senão um pensamento coligido a
partir da semelhança substancial de indivíduos que são diversos do ponto
de vista numérico (species [...] cogitatio collecta ex individuorum dissimi-
lium numero substantiali similitudine). O gênero é um pensamento coli-
gido a partir da semelhança das espécies (genus vero cogitatio collecta ex
specierum similitudine). Esta semelhança torna-se sensível quando está
nos indivíduos e torna-se inteligível quando está nos universais. Assim
também, quando é sensível está nos indivíduos, mas quando é conhecida
se torna universal. Conseqüentemente, [gêneros e espécies] subsistem nas
coisas sensíveis e são conhecidos separadamente dos corpos.
Não há de fato incoveniente em que duas coisas em uma mesma coisa
[apreendida], sejam distintas pela razão, como [por exemplo] a linha con-
vexa e a linha côncava. Trata-se de realidades que têm definições diferentes
e, por essa razão, será diferente também a sua compreensão, mesmo que
se encontrem sempre no mesmo objeto. De fato, a mesma linha é convexa
e côncava. Assim também pode dizer-se o mesmo a respeito dos gêneros e
das espécies, isto é, uma mesma coisa apreendida possui singularidade e
[ao mesmo tempo] universalidade. De um modo é universal, quando é pen-
sada (alio modo universale est cum cogitatur), e, de outro modo, singular,

149
quando é percebida nessas coisas nas quais tem seu ser (alio singulare cum
sentitur in rebus his in quibus esse suum habet).

[CONCLUSÃO]

Um vez terminadas essas explicações, creio, permanece resolvida toda a


questão. De fato, gêneros e espécies subsistem de um modo, mas são co-
nhecidos de outro modo. São incorpóreos, mas junto às coisas sensíveis
subsistem como sensíveis, mas são conhecidos como se existissem por si
mesmos e não como se tivessem o seu ser em outros [seres]. Todavia, Platão
julga que os gêneros e as espécies não só são conhecidos como universais,
mas também que existem e subsistem separados dos corpos. Aristóteles, ao
contrário, pensa que esses são conhecidos como incorpóreos e universais,
mas que subsistem nas coisas sensíveis. E não quero dizer qual opinião de
ambos é a apropriada, pois é tarefa para uma filosofia mais profunda. Em
todo caso, aqui seguimos diligentemente a opinião de Aristóteles não por-
que a julgamos a melhor, mas porque este livro, isto é, Isagogē, foi escrito
para introduzir às Categorias, cujo autor é Aristóteles”.

150
151
152
3
As bases transcendentais da
Filosofia Medieval:
O Pseudo-Dionísio Areopagita
(século v)

Um autor absolutamente fundamental para se compreender o pano de fundo


místico-teológico da filosofia medieval é o Dionísio Pseudo-Areopagita, filó-
sofo desconhecido do século V e que, na Idade Média, se pensava que fosse o
Dionísio citado na Bíblia (At, xvii, 33–34) — a ele mesmo assim se referia. Na
verdade, o mais provável é que tenha sido um sírio (que teve sucesso em es-
conder sua identidade). Mas para o entendimento de sua filosofia, o conhe-
cimento da vida do autor do Corpus dionysiacum (Sobre a Hierarquia Celeste,
Sobre a Hierarquia Eclesiástica, Sobre os nomes divinos, A Teologia Mística e suas
Epístolas) não é particularmente importante, e, sim, os conceitos que propôs,
fundantes não só das meditações metafísicas medievais, mas da própria filo-
sofia política medieval, o que não deixa de ser paradigmático e revelador das
concepções existenciais dos pensadores do período.
A rigor, o Pseudo-Areopagita cristianizou o neoplatonismo de Proclo:
sua teologia negativa (ou apofática) é a negação de todos os atributos divinos
(Bem, Verdade, Justiça, etc.), por serem incompletos, inadequados para defi-
ni-lo. Assim, Deus pode ser designado por conceitos extraídos das realidades
inteligíveis (isto é, do mundo sensível, perceptível e compreendido pelos cinco
sentidos) — belo, amor, bem, etc. É seu primeiro instante interpretativo (cha-
mado por ele de teologia afirmativa). A seguir, deve-se proceder a um salto ne-
gativo-linguístico rumo ao nada: como Ele está para além dos atributos, pois é

153
superior a todos, é superior a eles, é ulterior, é mais que a essência, mais que
essencial, é supraessencial. O silêncio e as trevas são o que melhor expressam
essa realidade supraessencial (teologia negativa):

§ 5. [20]Se [Deus] supera todo discurso e todo conhecimento e é absolu-


tamente superior à inteligência e à substância [21]—pois é aquele que abar-
ca, reúne e antecipa todas as coisas, permanecendo, porém, completamente
inapreensível a quem quer que seja sem que exista a possibilidade de perce-
bê-lo, [593 B] de imaginá-lo, de pensá-lo e nomeá-lo, nem palavras, nem meio
de tocá-lo ou de conhecê-lo —, como poderemos compor nosso discurso
acerca dos nomes divinos após ter demonstrado que a Divindade super-
substancial escapa a toda expressão e transcende qualquer nome?

Por isso, todos os nomes atribuídos a Ele devem ser negados, porque ne-
nhum verdadeiramente expressa a essência divina. No entanto, ambos os
métodos, ambas as teologias — afirmativa e negativa — fundem-se em um ter-
ceiro instante hermenêutico: a teologia superlativa. Como Deus não é, mas
merece cada um desses nomes, ainda que em um sentido verdadeiramente
incompreensível e inconcebível para a ratio humana, Ele é supersubstancial,
é infinidade supersubstancial que se revela de acordo com as capacidades in-
dividuais, ao recebermos essa iluminação de cima. Eis aqui o princípio da
hierarquia, tão importante para a filosofia medieval: cada um ocupa seu lugar
específico na ordem do mundo, lugar que também desvela a própria compre-
ensão do mundo e da generosidade divina.
Cabe aqui uma explicação. Na verdade, o conceito de hierarquia foi her-
dado à filosofia medieval por Plotino (c. 204/205–270) em suas Enéadas (III,
2, 17). Trata-se da ordem das coisas que confere harmonia ao mundo. Por sua
vez, a ordem e a harmonia são expressões da filosofia clássica grega. Platão
(c. 428–348 a. C.) já tinha concebido o mundo e a alma como harmonias (Fé-
don, 86c), e ambas como inter-relacionadas — a alma com o mundo, o mundo
como alma (Timeu). A seguir, Aristóteles (384–322 a. C.) estabeleceu filoso-
ficamente a ordem serial — o antes e o depois (o próprio conhecimento das
coisas se expressa nessa ordem [Met., v, 1018 b9]). Já na esfera cristã, Agos-

154
tinho (354–430), receptor e condensador do mundo antigo, se maravilhou
com a ordem do mundo: nada está fora da ordem (mesmo a desordem, pois o
erro ocorre por uma causa). Os bens e os males estão inseridos na ordem. “Se
amas a ordem”, diz Agostinho,

Deves voltar à Poesia, porque a erudição moderada e racional das


artes liberais nos torna mais ágeis e constantes, mais limpos e mais
belos para o abraço da verdade, para apetecê-la mais ardentemente,
para obtê-la com mais afinco e para unir-se mais docemente àque-
la que se chama vida bem-aventurada (isto é, vida feliz) (Da ordem,
viii, 24).

Como sabemos da existência do estranhamento dos conceitos medievais — e


clássicos, naturalmente — é necessária outra recordação: a bem-aventurança
(citada por Agostinho na passagem em destaque) é um termo tipicamente
aristotélico! O bem-aventurado, por excelência, o sábio, é o filósofo, isto é,
aquele que exerce a vida contemplativa (Ética a Nicômaco i, 11, 1101 b24). Poste-
riormente, a filosofia estoica projetou ainda mais rumo ao cume da filosofia
a vida beata (por exemplo, Sêneca [4 a. C.–65 d. C.], De vita beata — que pode
ser traduzida como Sobre a Vida Feliz).
Feitos esses esclarecimentos introdutórios de como o arcabouço metafí-
sico antigo foi repassado à filosofia medieval, retornemos ao Pseudo-Areo-
pagita. Para o filósofo neoplatônico cristão, a causa da hierarquia do mundo
é a Bondade de Deus (§ 2, 103), e toda a diversidade retorna à unidade, é re-
conduzida à unidade que lhe é própria. Ademais, essa Bondade, bondade das
bondades, se manifesta através da Luz (que o filósofo chama de raio super-
substancial) — outro tema da filosofia clássica, a luz como expressão do Bem,
como o próprio Sol.

§ 1. [96] [693B] De fato, como o nosso sol, sem reflexão nem livre esco-
lha, mas pelo fato mesmo de que existe, ilumina as coisas que podem,
segundo a sua medida, participar da sua luz, assim também o Bem, que
é superior ao sol como o arquétipo que não tem comparação supera uma

155
imagem obscura, com a sua própria existência envia os raios da sua bon-
dade absoluta, de uma maneira proporcional, a todos os seres.

Como a filosofia medieval só pode ser compreendida com o devido co-


nhecimento da filosofia clássica! O paralelo entre o Bem e o Sol remonta a
Platão (República 507 b–509 c), sempre Platão! Essa analogia, célebre, contém
os seguintes pontos: 1. assim como o olho só pode ver um objeto visível se
um terceiro elemento — a luz, derivada do Sol — estiver presente, a mente só
pode apreender um objeto inteligível (a Ideia), se ambos forem iluminados
pelo Bem (508 d–e); 2. o Sol não torna apenas as coisas visíveis, mas também
é responsável pela sua geração e crescimento. Do mesmo modo, o Bem não
torna somente inteligíveis as ideias, mas as sustenta (509b); 3. assim como
o Sol é visível e torna a visibilidade possível, o Bem é inteligível (508 b–c);
mas 4. assim como o Sol proporciona geração e crescimento, mesmo sem
estar implicado na geração, analogamente o Bem não é uma essência, mas
está acima do ser em dignidade e poder (509 b). A comparação entre o Bem
e o Sol que, “pelo fato mesmo de ser” envia seus raios sobre todos os seres,
vem de Proclo, e está na origem do famoso adágio medieval, muito citado por
inúmeros filósofos: “Bonum diffusivum sui” (O Bem se difunde por si mesmo).
Com seus raios supersubstanciais, Deus — o Uno — tudo fundamentava,
tudo estruturava, ou seja, dava o ser de Seu ser. A ideia do Uno como funda-
mento de tudo nunca desapareceu por completo. Desde Parmênides (séc. vi
a. C.). O próprio conceito de teologia não significava o estudo científico da
Bíblia (assim como a palavra mística não tinha nada a ver com sentimentos,
êxtases ou visões). Caso “traduzamos” a palavra Deus por Uno, algo perfei-
tamente cabível no texto do Pseudo-Areopagita (já que ele próprio assim se
refere), também podemos considerar que a teologia mística significa uma re-
flexão sobre o caráter restritivo de nosso pensamento, de nosa linguagem.
Em outras palavras, é a aceitação do fato de que necessitamos receber as pa-
lavras ditas, signos das coisas, e ascender, a partir delas, rumo àquilo que é
indeterminável, rumo ao abismo, rumo ao Uno, e experimentar a iluminação
— mas não no sentido “místico” e, sim, àquilo que provém do Logos e que
permite acessar às estruturas ideais que o Uno mantém unidas.

156
“A Assunção da Virgem” (séc. xv), de
Francesco Botticini. National Gal-
lery London.

157
Essa filosofia, proveniente do mundo oriental e influenciada pela filosofia
neoplatônica, tinha uma ausência: o mundo dos homens. Ela não diz nem
uma palavra sobre a situação histórica ou política de seu tempo. Nela, nem o
papa, nem o imperador de Bizâncio tinham qualquer espaço considerativo.
A experiência histórica está ausente. O que importava eram as considerações
metafísicas sobre a estrutura do cosmo, sua hierarquia. Isso foi um traço
fundamental da filosofia do Pseudo-Areopagita que marcou indelevelmente
a forma de pensar do mundo medieval — inclusive de boa parte do Renasci-
mento. Inclusive na arte. Por exemplo, o pintoritaliano Francesco Botticini
(1446–1498), em pleno século xv, representou as hierarquias angélicas des-
critas pelo Pseudo-Dionísio no século v (Sobre a Hierarquia Celeste)!
O mundo teria que esperar séculos até os filósofos desconstruírem a har-
moniosa imagem criada por Platão. Entrementes, durante toda a Idade Média,
tudo estava em seu lugar, sem questionamento, só consideração, sem revolu-
ção (a própria palavra surge apenas em tratados sobre o movimento das estrelas
no céu!), apenas contemplação. A Filosofia tinha como principal preocupação
facilitar a ascensão do intelecto individual ao Bem em si. Por isso, a concepção
predominante era espiritualista ou, em termos filosóficos, transcendentalista.
Como raciocinavam em termos platônicos — só é real o que perdura, as mu-
danças somente oferecem o estado do mundo criado, caduco, dominado pela
não-coisa — a verdadeira realidade deveria ser invisível, inalterável, ou seja,
não-material. Por isso os escritos do Pseudo-Areopagita exerceram tanto fascí-
nio em seus leitores medievais. Através dele, uma parte (importante — platôni-
ca, estoica) da filosofia antiga foi transmitida à Idade Média. E a dominou, pelo
menos até a “descoberta” de Aristóteles no século xiii.

158
159
160
módulo V

O Renascimento Carolíngio e a
Pré-Escolástica (séculos xi–xii)

161
“Apoteose
de Oto III”,
Evangeliário
de Liuthar

162
Os intelectuais da Idade Média sentiam um grande apreço pelos modelos cul-
turais da Antiguidade, especialmente pela Grécia e por Roma. Os períodos
culturais inseridos na Idade Média e que sofreram a influência da cultura
antiga são conhecidos na historiografia como renascimentos— Renascimen-
to nortúmbrio (séculos vii–viii), Carolíngio (sécs. VIII–IX), Otoniano (século
X), Renascimento do século XII. Foram momentos em que os escritos antigos
(especialmente literários e filosóficos) foram apreciados, copiados, usados
como modelo de pensamento (na Filosofia–especialmente Platão) e modelos
artísticos (nas Artes, nas Letras, na Música). Por exemplo, os escritores do
Renascimento Carolíngio tinham uma grande admiração pelos modelos anti-
gos, que aqueles estudiosos e copistas do palácio imperial de Carlos Magno
(742–814) e seus filhos (pelo menos até Carlos III, o Gordo [839–888]) tentaram
imitar e assimilar. Eles consideravam os textos clássicos (especialmente os
mais ligados às artes do Trivium–Gramática, Dialética e Retórica) como pro-
tótipos de perfeição literária.
Com esse afã pela busca de um passado greco-romano idealizado, os ca-
rolíngios anteciparam humanistas como Petrarca (1304–1374) em sua paixão
pela busca e coleta de manuscritos antigos, tanto de autores pagãos quanto
dos santos Padres (da Patrística). Já haviam sido precedidos pelos monges-
copistas irlandeses, que haviam salvo boa parte dos escritos antigos da des-
truição por parte das tribos bárbaras. Agora, com o fim da primeira grande
onda de invasões (de povos germânicos — godos [ostrogodos e visigodos],
francos, suevos, burgúndios, anglos, saxões, jutos, frísios, alanos, alamanos,
vândalos), os carolíngios (eles próprios descendentes dessa mescla cultural
que foi a romana com a germânica) voltaram-se para a glória do passado im-
perial e, além de Roma, naturalmente, encontraram a Grécia. Descobriram
Platão. Novamente ele.
Esse momento foi o do nascimento do conceito de Europa. Na prática,
os carolíngios montaram bibliotecas — o conceito nasceu com Cassiodoro
(490–581), mas foi desenvolvido pelos mosteiros beneditinos — colecio-
naram manuais, extratos, seleções e florilégios, e mal conseguiam escon-
der uma alegria quase infantil ao entrarem em contato com os modelos da
Antiguidade (lembremos a paixão do próprio Petrarca em colecionar textos

163
antigos e sua admiração por Santo Agostinho e pelos pensadores cristãos, e
a consideração que John Wycliffe [1328–1384] demonstrou pelos escritos de
São Bernardo de Claraval [1090–1153]).
Os carolíngios conheciam muito bem a filosofia estoica de Cícero (106–43
a. C.) e Virgílio (70–19 a. C.) — no século VI, Isidoro de Sevilha (560–636) os
conhecia — mas especialmente os escritores romanos (e pagãos) dos séculos
III–IV (como Hélio Donato[m. 350] e suas obras Arte Menor e Arte Maior, além
de Prisciano de Cesareia [m. 500] e suas Instituições Gramaticais. Os carolín-
gios estavam embebendo a filosofia de uma boa formação de base, gramati-
cal. No entanto, devido às terríveis condições sociais da Europa em meados
do século VIII, não havia restado quase nada da herança grega no período
carolíngio, embora o nome “Atenas” fosse uma sólida referência ao mundo
clássico, como podemos verificar neste trecho de uma carta do professor Al-
cuíno de York (c. 735–804) ao imperador Carlos Magno:

Se muitos se inteirassem de vossas intenções, seria formada na Fran-


ça uma nova Atenas. O que digo? Uma Atenas ainda mais bela que a
antiga. Porque a nossa, enobrecida pelo ensinamento do Cristo, su-
peraria toda a sabedoria da Academia. A antiga tinha como mestres
os discípulos de Platão. Mesmo assim, formada nas sete Artes Libe-
rais, não deixou de resplandecer. Mas a nossa estaria dotada, além
disso, pela plenitude septiforme do Espírito Santo e superaria toda a
dignidade da sabedoria secular.

Como se vê nessa passagem da carta de Alcuíno, o apreço pelos clássicos


da Antiguidade era muito real no âmbito palaciano carolíngio do século IX.
Na Academia palatina (escola criada para a formação de futuros líderes ad-
ministrativos no âmbito eclesiástico e civil), os intelectuais reunidos pelo
imperador para o ensino mostraram essa consideração ao atenuar as regras
de convivência no palácio com a adoção de pseudônimos latinos, cristãos e
gregos em suas correspondências. Por exemplo, Carlos Magno era chamado
de Davi (ou Salomão), Alcuíno, Horácio, Paulino de Aquiléia (726–824), Timó-
teo, e Teodulfo de Orléans (c. 750–821), Píndaro.

164
Rábano Mauro e Alcuíno de York
diante São Martinho de Tours

165
Em várias capitulares (documentos oficiais do imperador) estão expressas
as propostas educacionais de Carlos Magno: abertura de escolas não só para
receber filhos de escravos (!!!), mas também filhos de homens livres, ensino
do Saltério, solfejo musical, canto, Gramática (especialmente a capitular Ad-
monitio generalis). Esse culto à Antiguidade por parte do Renascimento caro-
língio resultou no nascimento da Europa, na ideia de Europa.
Em que pese o centro de irradiação cultural se encontrasse no norte da
Europa, havia pelo menos outros quatro importantes centros de preservação
e leitura dos textos clássicos: Itália, Espanha, Inglaterra e Irlanda.
Na Itália, sabemos da existência da abadia de Farfa (no Lácio), do mos-
teiro beneditino de São Vicente de Volturno (Isernia) e da famosa abadia de
Bobbio (Piacenza) que, graças ao trabalho de seus copistas, forneceu textos
para muitas escolas por toda a Europa cristã. Mas o mais importante centro
cultural italiano foi a abadia de Monte Cassino, muito florescente no século
VIII até o ano de 883, quando os sarracenos a saquearam. Havia nesses mos-
teiros um grande intercâmbio de professores e de livros, o que aumentava a
noção de um fértil universo intelectual com estreitas e “internacionais” co-
nexões de estudo e de conhecimento. Por exemplo, em Vivarium, Cassiodoro
fundou um mosteiro e, além de aconselhar os monges a ler os antigos trata-
dos médicos, criou uma biblioteca e assim inaugurou a tradição bibliotecá-
ria monástica medieval, costume mantido por praticamente todos os centros
religiosos durante a Idade Média e que forneceu as bases intelectuais para o
posterior desabrochar das escolas catedralícias e das universidades nos sé-
culos XII–XIII.
Por sua vez, dois séculos antes do Renascimento carolíngio, a Hispania
visigoda (sécs. V–VIII) mantinha viva a cultura clássica em pelo menos três
centros irradiadores: Sevilha, Zaragoza e Toledo. O estudo dos clássicos con-
tinuou a ser cultivado nessas cidades, especialmente a partir da decisão do
II Concílio de Toledo (531), que determinou o ensino obrigatório das crianças
confiadas à Igreja para posterior ingresso no clero. Em Sevilha e em Zaragoza,
houve uma escola episcopal, em Toledo, duas, e em Palência, uma.

166
Biblioteca
Medieval

167
Os autores clássicos conhecidos e estudados eram: para a Poesia (muito
cultivada na época e utilizada nos textos filosóficos pelo menos desde Boé-
cio): Lucrécio (99–55 a.C.), Virgílio, Marcial (40–104) e Claudiano (c. 370–405
a. C.); para a Historiografia, extratos de Plínio, o Velho (23–79) e Salústio (86–
34 a. C.); para a Filosofia, Sêneca (4 a. C.–65 d. C.), além de serem conhecidos
resumos de Marciano Capela (séc. V) e Fulgêncio, o Mitógrafo (séc. V). Por
isso, a tradição cultural clássica na Hispania visigoda propiciou o desenvolvi-
mento do próprio Renascimento carolíngio dois séculos depois.

168
169
170
1
João Escoto Erígena (século ix) e
a Divisão da Natureza
O primeiro grande fruto filosófico dessa reforma educacional levada a cabo
por Carlos Magno foi o irlandês João Escoto Erígena (810–877). Ele “surge”
na História, quando, por volta de 850, é escolhido para dirigir, na qualidade
de Gramático, a escola palatina de Carlos II, o Calvo (823–877), neto de Car-
los Magno. Na ocasião, estava acontecendo o primeiro grande debate filosó-
fico medieval, sobre a predestinação. Um monge saxão chamado Godescalco
havia sido condenado em um sínodo (em 848, em Mogúncia) por defender
que havia uma dupla predeterminação: a dos escolhidos para salvação e a
dos condenados à danação. Sua base filosófica era o Agostinho dos últimos
escritos, além de Isidoro de Sevilha. Os bispos reunidos no concílio (espe-
cialmente Rábano Mauro [c. 780–856] e Hincmar de Reims [806–882]), além
de não aceitarem esses dois autores como autoridades, defenderam, vitorio-
samente, que sem liberdade a vida não teria sentido.
Graças a esse debate, Hincmar de Reims encomendou a Escoto Erígena um
texto sobre essa questão (Sobre a Predestinação). Nele, o filósofo defendeu que
tanto a presciência quanto a predestinação se identificam na essência divina
e que as decisões erradas dos homens não existem antes de serem cometidas,
além de não existir o castigo que merecem. Por isso, Erígena é considerado o
iniciador da filosofia medieval: tanto por defender a simplicidade divina quan-
to a responsabilidade humana pelos atos individuais (no próprio Prólogo, ele
declara sua intenção de discutir filosoficamente o problema da predestinação).
Essa confiança na razão e essa distinção entre filosofia e revelação não eram
compartilhadas por todos os pensadores de seu tempo (até porque não pode-
mos compreender o pensamento da época sem levar em conta que as discipli-
nas separadas só começaram a ser propostas pelos filósofos por volta de 1300).

171
Assim, suas teses expostas nessa primeira obra filosófica surgida na Idade
Média são as seguintes:

1. Se o Juízo ao qual os homens serão submetidos deve ser justo, é neces-


sário que os julgados sejam livres em suas opções existenciais;

2. Se Deus é livre e o homem é imagem de Deus, a sabedoria divina tem


que desejar que a vontade do homem seja livre;

3. Negar que existe o livre-arbítrio é negar que existe a vontade;


4. As Sagradas Escrituras falam de pecado, mas isso só tem sentido se se
aceita o livre-arbítrio.

Para Erígena, a liberdade não era apenas algo que o homem pudesse con-
seguir: era o próprio ser humano. O homem existe na medida que conhece
e deseja. O ser humano e sua atividade volitiva e racional são uma mesma
coisa. O problema — não para a Filosofia, mas para a Teologia — era o ques-
tionamento que o irlandês fez da existência do Inferno. Para ele, o fogo do
Inferno não era nada mais do que a ausência da bem-aventurança eterna, o
que causou um mal-estar, provocou refutações e uma condenação eclesiás-
tica formal (ainda que tenha sido protegido por Carlos, o Calvo, que muito o
considerava).
Seja como for, o tratado Sobre a Predestinação, ainda que seja avaliado
como o primeiro fruto filosófico medieval, não é sua obra principal, mas a
Divisão da Natureza.
Para o filósofo irlandês, a palavra Natureza equivale ao Ser em toda a sua
amplitude, e abarca todos os seres, de Deus a todas as realidades — inclusive
o não-ser. Por isso, estabelece quatro divisões (que se reduzem a três, pois a
primeira e a quarta coincidem):

1) A Natureza que cria e que não é criada — Deus, princípio de todas


as coisas;

172
2) A Natureza que é criada e que cria — as ideias divinas exemplares, ar-
quétipos das coisas;

3) A Natureza que é criada e que não cria — as coisas do mundo espiritu-


al, sensível e material, e

4) A Natureza que não cria e que não é criada — Deus, como fim último de
tudo e para qual retornam todas as coisas criadas.

Assim, a manifestação da Natureza ocorre em um processo dinâmico e


circular, descendente e ascendente que relembra tanto Heráclito (c. 535–475
a. C.) quanto os estoicos. De Deus procede tudo por criação e a Ele retorna,
mas conserva sua própria individualidade. Ele é a suma perfeição, o bem e a
beleza essenciais; é infinito, e nele se harmonizam todas as dissonâncias e
contradições. Para se chegar ao Seu conhecimento, temos que conhecer Suas
criaturas: da beleza, proporção e perfeição delas, temos que nos elevar ao co-
nhecimento de sua Causa. Essa é a Natureza que não cria e que não é criada.

A Natureza criada e criadora é o mundo das ideias. A criação, o mundo vi-


sível é uma teofania, reflexo do mundo das ideias: quando Deus obra fora de
Si mesmo, é para se manifestar a seres capazes de compreendê-lo. Ademais,
essas teofanias são mais que uma manifestação externa divina. São uma au-
tocriação do próprio Deus, e acrescentam algo ao ser divino. Ao criar o mun-
do do nada, Deus recriou a Si próprio. Ele era o próprio nada.

A Natureza criada e não criadora é o mundo. Os seres se encontram em uma


ordem estabelecida por Deus. A cada coisa corresponde um grau na hierar-
quia. Anjos (substâncias do mundo celeste), o homem (indivíduos particu-
lares que participam da ideia comum de Humanidade, imutável, apesar das
gerações, corrupções e variações individuais).

173
O homem é dotado de corpo e alma, unidas de modo admirável. A alma
é uma substância simples, incorpórea e carente de partes. Os sentidos per-
cebem a pluralidade e a diversidade das coisas corpóreas, sombras da ver-
dadeira realidade. A razão conhece a essência da própria alma por meio de
suas operações. A inteligência conclui o processo de elevação e unificação que
possibilita à alma a capacidade de se elevar, sair de si e, com a ajuda da graça,
reduzir as ideias exemplares à unidade absoluta e chegar a Deus.
A natureza que não cria e não é criada é Deus que, após ter concluída Sua
criação e a produção dos seres particulares, deixa de criar e fica como fina-
lidade última de tudo. E tudo que foi criado retornará a Ele. Assim, a criação
fica encerrada em dois termos, entre seu princípio e seu fim. É o Amor que
originou tudo e será o Amor que fará tudo retornar à unidade primigênia. Os
indivíduos retornarão a seu estado de unidade puríssima, a ideia exemplar
de Humanidade.

174
JOÃO ESCOTO ERÍGENA (c. 815–885),
a Natureza, a Razão e a Autoridade, na Divisão da Natureza, Livro I.1

Mestre — Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que


posso a primeira e suprema divisão de todas as coisas que ou estão ao alcance
de nossa mente ou a superam, as coisas que são e as que não são, veio-me à
mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura.2
Por acaso pensas tu de outra maneira?

Discípulo — Não. Estou totalmente de acordo, pois eu também, quando me


ponho a raciocinar, penso que as coisas são assim.
Mestre — Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral
tanto para as coisas que são como para as que não são?
Discípulo — Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que
não possa aplicar-se este nome.

Mestre — Já que estamos de acordo que este termo é geral, dize-me, te rogo,
como se faz a divisão em espécies e por diferenças3: ou, se preferes, procu-
rarei eu fazer tal divisão e tu darás depois tua opinião a respeito.

Discípulo — Começa então, pois estou impaciente para ouvir de ti a verda-


deira opinião sobre esta matéria.

1  JOÃO ESCOTO ERIÚGENA (c. 815–885). A Divisão da Natureza. In: DE BONI, Luis Alberto. Filo-
sofia Medieval — Textos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 75–83.

2  O conceito de natureza como o princípio de vida (ou substância) e de movimento de todas as


coisas existentes tal como se baseia Escoto Erígena está fundamentado em Aristóteles: “A natureza
é o princípio e a causa do movimento e do repouso da coisa à qual ela inere primariamente e
por si, não por acidente” (Física, II, 1, 192 b 20). A exclusão da acidentalidade distingue a obra da
natureza da obra do homem. Contudo, a natureza não é somente causa, mas causa final (Física, II,
8, 199 b 32): é a tese do finalismo na natureza, que também se encontra na obra de Escoto Erígena.

3  Espécie — conceito que é parte ou elemento de outro conceito, empregado por Platão, Aris-
tóteles e na Isagōgē de Porfírio: “Espécie é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é atribuído
essencialmente” (Isagogē, 4, 10). Cf. PORFÍRIO DE TIRO, Isagōgē. Introdução às “Categorias” de Aris-
tóteles. Introdução, tradução e comentário de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar Editorial, 2002.

175
Mestre — Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em
quatro espécies: a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada;
a segunda, na que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a
quarta, na que não cria e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de
opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta
fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de sua essência o não
poder ser. Parece-te bem feita esta divisão ou não?

Discípulo — Parece-me bem feita. Tenha, porém, a bondade de repeti-la,


para que fique mais clara a oposição entre estas formas.

Mestre — Creio que vês a oposição da terceira divisão com relação à primei-
ra (a primeira, com efeito, é a que cria e não é criada: à qual, portanto, põe-
se como contrária à que é criada e não cria), e a oposição da segunda com
relação à quarta, já que a segunda é da que é criada e cria, à qual, por conse-
guinte, opõe-se em toda a linha à quarta, a da que não cria e nem é criada.

Discípulo — Percebo-as claramente. Porém, deixa-me muito perplexo a


quarta espécie que introduziste. Das outras três não me atreveria a apresen-
tar qualquer dúvida, já que na primeira está designada, se não me engano,
a causa de tudo quanto existe e de que não existe; na segunda, as causas
primordiais; na terceira, aquelas coisas que se manifestam através de gera-
ção no tempo e no espaço. Por isso, penso que é necessário partir para uma
discussão mais detalhada de cada espécie.

Mestre — E pensas bem. Deixo, porém, à tua escolha determinar a ordem


que devemos seguir no raciocínio, isto é, por qual espécie de natureza de-
vemos começar.

Discípulo — Parece-me que está fora de dúvida que devemos dizer da pri-
meira, antes que de todas as demais, o que a luz que ilumina a toda mente
se digne comunicar-nos.

176
Mestre — Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas pa-
lavras a respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de to-
das, a saber, a divisão entre as coisas que são e as que não são.

Discípulo — Parece-me muito razoável e prudente. Com efeito, não vejo


outro princípio de onde deva partir nosso raciocínio, não somente porque
se trata da primeira diferenciação, mas porque parece mais obscura que as
demais, e de fato o é.

Mestre — Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coi-
sas requer cinco modos de interpretação. O primeiro parece ser aquele pelo
qual a razão nos persuade de que todas as coisas que caem sob a percepção
dos sentidos corporais ou da inteligência se dizem com a verdade e racio-
nalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência de sua natureza
escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo entendimento e
razão, parecem com razão que não são, o que não tem reta interpretação se-
não só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele criadas. E
com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, é essência de todas as coisas
aquele que é o único que verdadeiramente é, “pois — diz ele — o ser de todas
as coisas é a divindade que está sobre o ser”.4

(...)

Mestre — Assim, a verdadeira autoridade não se opõe à reta razão, nem a


reta razão à verdadeira autoridade. Pois não há dúvida alguma que ambas
dimanam de uma só fonte, a sabedoria divina.

(...)

Mestre — Que nenhuma autoridade te separe daquelas coisas que a razoável


persuasão da reta contemplação te ensinou.

4  PSEUDO-DIONISIO, O AREOPAGITA, Da hierarquia celeste, IV, 1.

177
(...)

Mestre — Aprendemos que a razão é, por natureza, anterior, enquanto a


autoridade é pelo tempo. Pois ainda que a natureza tenha sido criada simul-
taneamente com o tempo, a autoridade não começou a ser desde o início do
tempo e da natureza. A razão, contudo, nasceu desde o princípio das coisas,
com a natureza e o tempo.

Discípulo — Isso nos ensina a própria razão. Pois a autoridade procede da


reta razão, mas a razão nunca da autoridade. Toda autoridade que não seja
dada como boa pela reta razão parece que está enferma. Em contrapartida, a
verdadeira razão, por subsistir imutável e fundada nas virtudes, não preci-
sa ser corroborada pela confirmação de nenhuma autoridade. Assim, nada
me parece ser a verdadeira autoridade a não ser a verdade descoberta por
virtude da razão, e consignada pelos santos padres em seus escritos para
proveito da posteridade.

(...)

Mestre — Assim, devemos seguir a razão que investiga a verdade das coisas
e que não é oprimida por nenhuma autoridade, para que ela manifeste pu-
blicamente e difunda aquilo que no âmbito de sua inquirição buscou com
afã, e que, laboriosamente encontrou.

178
179
180
2
Anselmo de Canterbury (c.1033–1109) :
O argumento ontológico
Maior filósofo de seu tempo, Anselmo é considerado o precursor da Esco-
lástica. Depois de Escoto Erígena, é o outro fruto maduro especulativo da Fi-
losofia Medieval. Sua confiança na razão para explicar a fé fez com que ele
buscasse razões necessárias para demonstrar os mistérios da fé cristã. A razão
está a serviço da fé. Por isso, o que é mais característico de sua filosofia são as
provas da existência de Deus — que Aristóteles havia feito (em sua Metafísica)
a partir do movimento.
Na obra Monológio, Anselmo expõe três argumentos a partir da constatação
de que existem múltiplos seres finitos, desigualmente perfeitos, cujos graus
podem ser organizados em uma ordem hierárquica ascendente, até a afirma-
ção do primeiro ser, causa exemplar, eficiente e final. Trata-se de um procedi-
mento a posteriori. A prova consiste na aplicação de um realismo in extremis:
por exemplo, percebemos que existe no mundo uma variedade de coisas boas,
maiores e menores, desiguais. Como tudo tem uma causa, podemos pergun-
tar qual a origem dessa bondade, pois não deve haver uma causa particular
para cada ser, mas uma única e universal, porque o mesmo fato de possuir a
perfeição de modo imperfeito indica que essa coisa não a possui por essência,
mas por participação com a bondade absoluta existente fora das coisas. Por-
tanto, os seres são mais ou menos bons em relação à bondade, essencialmen-
te perfeita. O mesmo raciocínio se aplica à grandeza e à magnitude.
O segundo argumento baseia-se no próprio ser das coisas. Tudo quanto
existe tem uma causa. Ou existe por alguma coisa, ou existe por nada. Por
nada, nada pode existir. Assim, qual a causa da existência dos seres? Pode a
causa ser mais de uma? Se são muitas as coisas, ou todas se referem a uma

181
Eadmero
escrevendo
(biográfo de
Anselmo)

182
mesma causa, ou dependem mutuamente uma da outra, o que é irracional.
Portanto, tudo o que existe, existe por uma só causa, existente por si mesma.
O terceiro argumento se baseia na hierarquia de graus de perfeição nos
seres. Quem contempla a natureza, aprecia nela a diversidade de graus de
perfeição nos seres, escala que não pode ser infinita, mas necessariamente
finita e com seu término em algo superior a todas as demais coisas, algo que
as ordene. Essa natureza é una ou múltipla? Se são muitas e iguais, devem ser
iguais por alguma essência comum, já que essência é natureza. Contudo, se
aquilo que têm em comum é distinto de suas essências e superior, será mais
perfeito que as naturezas que recebem sua perfeição.
Contudo, Anselmo procurava uma prova da existência de Deus ainda mais
simples, clara e concisa.
Seu discípulo (e posterior biógrafo) Eadmero conta e dramática gestação
da ideia. Anselmo encontrou uma grande dificuldade. Esse pensamento lhe
tirava o apetite e lhe causava insônia. Ao dar-se conta disso, imaginou que
essa idéia era uma tentação do demônio. Fez então todos os esforços para
tirá-la de seu espírito. Mas, quanto mais tentava rechaçá-la, mais ela a perse-
guia. Uma noite, o que buscava se manifestou à sua inteligência e encheu seu
coração de uma alegria e um júbilo extraordinários.
Assim, iniciou seu argumento (na obra Monológio), não a partir da realida-
de dos seres e de suas perfeições, mas da própria ideia de Deus — o método
crer para inteligir. Trata-se de um exercício dialético puro, tendo como ponto
de partida uma definição lógica de termos.
Quando afirmamos “Deus é aquilo do qual nada maior pode ser pensado”,
qualquer pessoa entende, inclusive o ateu (chamado de insipiente, ou seja,
aquele que não tem sabedoria). Ele ouve e entende o que ouve. Assim, quan-
do entende, a ideia existe em sua mente, mesmo que não concorde que ela
existe fora de sua mente, pois existir algo como ideia não é a mesma coisa
que entender que existe realmente.
O mesmo ocorre na mente do pintor, que pensa em uma coisa que vai pin-
tar que ainda não existe, mas só em sua mente. Após ter pintado o quadro,
todavia, a coisa passa a existir fora da mente do pintor.
O mesmo acontece com o néscio. Vejamos a concisão do argumento:

183
ANSELMO DE AOSTA (de Bec ou de Canterbury, 1033/34–1109) e o
Argumento Ontológico, no Proslógio, II.

Então, oh, Senhor, Tu que dás a inteligência da fé, dá-me, para que eu saiba,
o que é necessário para entender que Tu existes tal como cremos, e que és o
que cremos. E certamente cremos que Tu és algo maior do qual nada mais
pode ser cogitado. Mas e se não existe tal natureza, como quando diz o insi-
piente em seu coração “não existe Deus”?
No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer “algo maior
do qual nada pode ser cogitado”, entende o que ouve, e o que entende está
em seu intelecto, embora não entenda que isso exista. Pois uma coisa é a
coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando
o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no
intelecto, mas ainda não entende que exista o que ainda não fez.
Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o que
fez. Portanto, o insipiente deve convencer-se que, ao menos em seu intelec-
to, existe algo maior do qual nada pode ser cogitado, porque, quando ouve
isso, entende e tudo o que se entende, está no intelecto.
No entanto, aquilo maior do qual nada pode ser cogitado não pode existir
somente no intelecto, pois se só existe no intelecto, pode pensar-se algo que
seja maior e que também exista na realidade.
Assim, se aquilo maior do qual nada pode ser cogitado só existe no in-
telecto, este mesmo ser, do qual nada maior pode ser cogitado, tornar-se-ia
o ser do qual é possível pensar algo maior, mas certamente isso é absurdo.
Portanto, existe, sem dúvida, algo maior do qual nada pode ser cogitado,
tanto no intelecto quanto na realidade.

184
Anselmo afirma a existência da ideia de Deus inclusive no insipiente, o ig-
norante: até ele tem a ideia de Deus para poder negar sua existência, pois não
poderia negá-la se carecesse do conceito de Deus ou se não compreendesse
o que significa essa ideia. O problema intrínseco do argumento anselmiano é:
pode-se pensar o absoluto como existente? Quem aceite a presença de Deus
na mente humana, sem a necessidade da experiência, e afirme que existe
nela uma presença do inteligível não mediatizada pelo sensível, aceita, in-
trinsicamente, a teoria platônica do conhecimento, que mantém o inatismo das
ideias, que não requer a experiência para nada.
Por sua vez, quem defenda que só se pode alcançar o inteligível a partir
do sensível, ou seja, quem aceite como ponto de partida do conhecimento
humano os dados da experiência que nos chegam através do conhecimento
sensível, é aristotélico em sua teoria do conhecimento, e, portanto, negará a va-
lidez do argumento, porque a ideia de Deus, caso possa ser obtida, só o será,
caso se demonstre sua existência a partir da experiência dos aspectos que o
mundo proporciona aos sentidos.
seja como for, o argumento de Anselmo teve uma longa trajetória na his-
tória da Filosofia. Kant nomeou-o argumento ontológico.

185
Sala de aula Medieval

186
3
Hugo de São Vítor
(1096–1141)

Hugo de São Vitor pertenceu a uma famosa abadia próxima de Paris e famosa
na Idade Média por sua escola de natureza mística. Por isso, Hugo é, antes de
qualquer coisa, teólogo e místico, mas não desdenha a Filosofia e o estudo
das artes liberais para a compreensão das Sagradas Escrituras, o que lhe con-
fere um caráter eminentemente racionalista. Todas as ciências, para ele, de-
vem ter como objetivo a busca da verdade. São seus escritos que consolidam
as artes liberais como preparação para o estudo da Filosofia, que, por sua vez,
é um vestígio da Teologia e, por fim, da mística.
Detenhamo-nos em sua filosofia. Suas definições provêm de Boécio, Cas-
siodoro e Isidoro de Sevilha. Distingue três grandes ordens de seres: 1) Deus
e as substâncias incorpóreas, 2) as matemáticas, ou seja, as abstrações e 3)
a física, que trata dos seres corpóreos. Hugo tem um profundo sentido de
ordem, harmonia e beleza do mundo, mundo que é um reflexo da grandeza
e da beleza de Deus. Para conhecê-lo, deve-se ter um espírito disciplinado,
meditativo, dócil e contemplativo. Assim, Hugo tem uma perspectiva típica
de seu tempo, e de base platônica, que é a de maravilhamento com o mundo
físico, mundo considerado um livro aberto e pronto para ser investigado pe-
los espíritos dispostos a isso.
O conjunto do mundo compõe uma música: suas partes discordantes, em
seu cume, harmonizam-se em uma grande sinfonia. Por se basear no Timeu
de Platão, Hugo utiliza conceitos como forma e matéria que, à primeira vista,
poderiam parecer aristotélicos, mas o filósofo se vale deles em um sentido
platônico, pois a forma não é substancial (aristotélica), mas acidental. Dis-
tingue nos seres a essência (ou natureza), que é permanente, da forma, que
muda. Sua antropologia define o homem composto por uma natureza de

187
duas substâncias distintas, o corpo, mutável e mortal, e a alma, incorpórea,
invisível e imortal. Ela foi criada por Deus do nada. É única em cada homem
e se difunde por todo o seu corpo. Por isso, ele é imagem e semelhança de
Deus. Corpo e alma, substâncias distintas, unidas compõem a pessoa huma-
na, que é, essencialmente, a unidade da consciência. Para explicá-la, Hugo se
vale da harmonia musical e aplica a simbologia numérica. Essa união consiste
na música humana. O homem é um microcosmo. O número da alma é ímpar,
pois determinante e perfeito. O do corpo é par, princípio da indeterminação
e de imperfeição.
Sua obra mais conhecida é o Didascálicon (Coisas relativas à escola), projeto
pedagógico, programático e formativo do espírito do verdadeiro estudante.
A obra é dividida em seis partes. A primeira define a Filosofia como busca
da sabedoria e ordena sua classificação interna, além de tratar da divisão do
Universo e da similitude humana com Deus. Encerra com a definição do que
é natureza e qual a origem da lógica. Vejamos sua bela definição de Filosofia.

Antes de todos, é justamente Pitágoras quem chama a busca por sa-


bedoria de filosofia, de modo que preferiu ser denominado “filósofo”,
em vez de apenas “sábio”. É belo, por este viés, chamar aos homens
que buscam a verdade não de sábios, mas de amantes da sabedo-
ria. Não há dúvidas de que a verdade total esconde-se de nós, porque
quanto mais o nosso espírito arda de amor, e quanto mais profunda
se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena.
Por meio deste pensamento, ele definiu a filosofia como a discipli-
na “das coisas verdadeiramente existentes, ou seja, as que possuem
substância imutável”. (Boécio. De institutione aritmética, I, 1)

A filosofia, então, é o amor, a procura e a amizade para com a sabe-


doria. Ela não se refere a certas ‘ferramentas’, ou seja, uma ciência di-
recionada para a fabricação, mas a uma sabedoria [de conhecimento
‘completo’, isto é, que independe de tecnologia para sua concretização].
Uma sabedoria que de nada carece, de espírito vivaz, [confundindo-se
com a] razão primeira e única de todas as coisas. A filosofia, portanto,

188
é este amor pela sabedoria, referindo-se à iluminação do espírito inte-
ligente pela pura sabedoria.

A busca pela verdade, nestes termos, pode ser percebida como um


retorno ou chamado que fazemos para nós mesmos, tal como perce-
bemos [com clareza] no estudo da sabedoria: a amizade com a divin-
dade e com seu espírito puro.

Percebemos nessa bela passagem o quanto a tradição filosófica medieval


fundamentou suas especulações meditativas na tradição greco-romana — no
caso de Hugo de São Vitor, a grega — especialmente via Boécio (que transmi-
tiu boa parte desse manancial ao mundo medieval). A Filosofia é uma busca
da sabedoria, busca amorosa, amistosa e que faz o espírito arder de paixão,
que é necessária à laboriosa procura da verdade. Ela só pode ser obtida com a
melhor utilização da tríplice potência da alma, alma racional que distingue e
nobilita os homens em relação aos animais.
A Filosofia é uma disciplina investigadora das coisas humanas e divinas.
Essa abertura às coisas humanas propicia ao filósofo uma das mais originais e
revolucionárias formas de abarcamento do mundo: é a primeira vez que a Fi-
losofia inseriu as artes mecânicas como categorias válidas do exercício huma-
no no mundo. Até Hugo de São Vitor, as artes mecânicas (ou servis) estavam
excluídas do círculo filosófico da sabedoria, tradição herdada da Grécia, que
considerava o trabalho manual algo destinado a espíritos escravos, a escravos.
Durante toda a Alta Idade Média, esse princípio norteou as sociedades me-
dievais. Com o crescimento da influência da Igreja Católica e a introdução de
conceitos existentes no Mundo Antigo, mas não valorizados, como a miseri-
córdia e o perdão, gradativamente o mundo passou de estruturas escravocratas
para servis, nas quais os homens, ainda que com muitas obrigações, não eram
mais considerados coisas que falam, mas um indivíduo também com direitos.
Naturalmente, a filosofia de Hugo, por ser monástica, católica e contem-
plativa, foi influenciada por essas novas estruturas sociais típicas do feu-
dalismo. No entanto, ela é muito mais um fruto maduro dessa corrente de
pensamento do que uma solitária meditação sem bases materiais. É por isso

189
Sala de aula Medieval

190
que a antropologia cristã traz o homem para o centro do universo — o ho-
mem é o microcosmo do universo — e o enaltece por sua semelhança divina
(algo não inteiramente original, pois Platão já destacara que o homem tem
um deus que vive dentro de si, ou seja, a alma).
Inserido na natureza — entendida como arquétipo de todas as coisas, por
se encontrar na mente divina — o homem se eleva ao seu Criador, quando es-
pecula, quando raciocina. Por isso as considerações de Hugo sobre a origem
da lógica no final do livro I:

A lógica provém da palavra grega “logos”, possuindo uma interpre-


tação dúplice, a saber, pode significar “discurso” ou “razão”. E jus-
tamente por isto é denominada de ciência racional ou de ciência do
discurso. A lógica racional é chamada de dissertativa, contendo a
dialética e a retórica. A lógica do discurso é gênero cujas espécies são
a gramática, a dialética e a retórica, contendo sob si a dissertativa
[ou seja, a técnica argumentativa]. É justamente esta lógica do dis-
curso enumerada por nós como a quarta disciplina da filosofia, tendo
seu aparecimento se dado após a teórica, a prática e a mecânica (Di-
dascálicon, I, 11).
BonumGloriosum GloriaVeritasVerumVirtuosumVirtusVolens-
VoluntasSapiensSapientiaPotensPotestasDuransDuratioMag-
numMagnitudoBonitasAKIHGFEDCB
O livro II inicia com a distinção das artes. Mas antes o filósofo retoma as
definições da Filosofia. Em primeiro lugar, a Filosofia como amor à sabedo-
ria, conforme já dissera:

“A filosofia é o amor à Sabedoria e que, de nada necessitando, signifi-


ca mente viva e razão primeira e única das coisas” (Boécio). Devemos
tomar esta definição especialmente em conformidade com o seu sen-
tido etimológico, isto é, o sentido formal do termo. A palavra grega
“philos” significa em latim amor; e “sophia”, sabedoria; de maneira
que “filosofia”, tomada literalmente, significaria “amor à sabedoria”.

191
Mas também Hugo se vale de outros filósofos para apresentar matizes de
sua visão do que é a Filosofia:

“A Filosofia é a arte das artes, e a disciplina das disciplinas” (Isidoro,


Etimologias, 2, 24, 9; Cassiodoro, Instituições, 2, 3, 5). [...] “a filoso-
fia é a meditação sobre a morte, pensamento especialmente conve-
niente aos cristãos que, desprezando a ambição das coisas mundanas
e terrenas, passam sua vida no respeito à disciplina, e vivem em bus-
ca da semelhança com a pátria futura” (Etimologias, 2, 24, 9) [...] E
mais: “a filosofia é a disciplina que tem de investigar, com respeito à
probabilidade, as razões de todas as coisas divinas e humanas” (Eti-
mologias 1, 13, 5–7).

Após descrever todas as artes liberais (gramática, dialética, retórica, arit-


mética, geometria, música e astronomia), hierarquia pertencente à tradição,
Hugo, como dissemos, insere as artes mecânicas no rol de disciplinas me-
recedoras de consideração filosófica. São elas: ciência da lã, das armas, da
navegação, da agricultura, da caça, da medicina, do teatro.
No entanto, não nos deteremos a essa conhecida parte do Disdascálicon,
pois o livro III trata do método que deve ser seguido pelos estudantes em sua
formação intelectual, tema atualíssimo, dada a crise educacional brasileira
nascida no bojo das propostas revolucionárias da década de 1970, a partir da
experimentação da monstruosa engenharia social implementada pela peda-
gogia construtivista. Sem dúvida, um solapamento de nossa cultura. Por isso,
a parte que desejamos destacar do Didascálicon para nossas meditações filo-
sóficas diz respeito à educação em si. Hugo determina que

São três os elementos necessários para o estudante: a natureza, o


exercício e a disciplina. Considera-se a natureza [ao nos referirmos
às qualidades naturais do estudante] a facilidade em ouvir o que é
pertinente [ao estudo] e reter com firmeza na memória o percebido.
O exercício, quando nos referimos à educação dos sentidos naturais,
com o trabalho [contínuo] e a constância [na repetição das tarefas].

192
A disciplina se dá quando, vivendo com louvor, compomos os [bons]
costumes, com o conhecimento (Didascálicon, III, 6).

O tema da humildade é abordado com base na gramática clássica de Quin-


tiliano: “os costumes adornam a ciência”, ou seja, o hábito moral embeleza o
conhecimento das coisas (Quintiliano, Instituições, 1, 12). O filósofo vitorino
descreve os problemas iniciais dos estudantes de Filosofia em um arrazoado
que, mutatis mutandis, pode ser lido como algo tipicamente do Brasil do início
do século XXI: a arrogância é o vício mais comum do que principiam na Filo-
sofia. Além disso, é notável a disposição de conhecer da Filosofia de Hugo (ao
contrário do que se costuma ensinar, quando se trata de educação medieval). O
filósofo incentiva o estudante a ler tudo o que lhe cair às mãos, porque consi-
dera que não há nenhum escrito inútil, nenhum conhecimento desperdiçável.

193
A humildade é o início da disciplina [moral], e há muitos documentos sobre
ela. Os três princípios que seguem, pertencem ao aprendizado da humilda-
de: primeiro, que nenhuma ciência e nenhum escrito devem ser conside-
rados vis; segundo, que ninguém deve ter vergonha de aprender; terceiro,
quando se alcança a sabedoria não se deve desprezar os outros.
Muitas pessoas se decepcionam, pois desejam parecer sábias antes do
tempo. E assim explodem pelo inchaço da arrogância. Começam a simular
algo que de fato não são, envergonhar-se do que são e, quanto mais longe
ficam da sabedoria, menos se preocupam em ser sábios, preferindo [antes]
parecer sábios!
Conheci muitas pessoas deste tipo, isto é, que mesmo não dominando
os conhecimentos elementares de uma ciência vangloriam-se, apenas por
se interessarem pelos conhecimentos sumos. Ora, pensam ter se tornado
grandes homens simplesmente pela leitura ou pela oitiva de palavras ou de
escritos dos mais importantes filósofos. E, então, elas nos dizem: “Nós os
vimos. Conhecemos a lição destes homens. Eles frequentemente nos profe-
riam aulas. Os sumos, os famosos: sim, nós os conhecemos!”.
Todavia, coisa diversa prezo para mim, porque prefiro conhecer todas as
coisas e, ao mesmo tempo, não ser por ninguém conhecido, do que o inver-
so, a saber, conhecer nada de nada, mas ser conhecido por todos!
Veja que de fato devemos nos vangloriar não por ter “visto” Platão, mas
tão somente por conhecer o seu pensamento. Vou mais além: creio que eu
esteja sendo indigno de ser lido por vós, que, justo agora, me escutais, por-
que eu não sou Platão, nem mereci ter vivido para vê-lo. Suficiente vos seria
ter bebido da própria fonte da Filosofia, mas eis que ainda não matastes
vossa sede! E até um rei, após beber em um cálice de ouro, usa de um copo
de barro [se preciso for, e ainda sedento estiver].
Então, por qual motivo deveríamos nos envergonhar? Se ouviram Platão,
também ouviram Crisipo, corroborando o dito no Provérbio: “o que tu não
conheces, quiçá o conheça Ofelo”. A ninguém é dado o prodígio de conhecer
tudo; mas, por outro lado, não vejo pessoa alguma que não tenha recebido
naturalmente um dom especial [para alguma proeza, em sua própria vida].

194
Assim, um estudante prudente ouve com felicidade todas as teorias. E
as estuda, não desprezando qualquer escrito, pessoa ou doutrina [que lhes
chegue aos olhos]. Sem qualquer distinção, notando algum conhecimento
que lhes falte, pedem para [que] lhes sejam dados, porque não levam em
consideração o quanto conhecem, mas sim o quando ignoram!
Portanto, [os verdadeiros] estudantes repetem o dito platônico: “Mais
me inclino em aprender com modéstia o conhecimento de outras pessoas
do que inserir impudicamente [isto é, de coagi-las a aprenderem] os meus
conhecimentos”.
Por que tu te envergonhas em aprender e não de seres ignorante? Digo
que uma vergonha muito maior nasce desta segunda condição.
Por que tu desejas conhecimentos tão altos, se ainda jazes na baixeza?
Deves mais levar em conta o que tuas forças [atuais] podem pleitear [e não
o que está além de tuas reais possibilidades]. Avança com coerência quem o
faz ordenadamente, pois quem quer dar um salto [além de suas capacida-
des] acaba por cair no precipício. Logo, não se deve desejar pressa em dema-
sia [nos estudos, porque com esta devida moderação] para chegar mais cedo
à sabedoria. Deve-se aprender com comprazimento, e de qualquer pessoa,
o conhecimento que falte, porque a humildade pode tornar comum o que
naturalmente é passível de ser comumente conhecido. Serás o mais sábio,
quando quiseres aprender tudo de todos: os que recebem o conhecimento
de todos são de fato os mais ricos de todos!
Não qualifiques qualquer conhecimento de vil [ou inútil], porque toda
ciência é boa [de algum modo]. Se te deparas com um tempo livre, não dei-
xeis de, pelo menos, ler um escrito qualquer, porque se não lucrares com
tais palavras ao menos nada irás perder.
E isto porque, segundo o que penso, não há escrito que não nos proponha
um tema que possa ser de algum modo útil e desejável para nós, segundo a
ordem e o lugar convenientes. Não existe, portanto, qualquer livro sem algo
especial, isto é, sem um sentido diferente, e ainda não descoberto, e que,
quanto mais raro o for, com mais graça um pesquisador diligente o tomará.

195
Doutro lado, nada pode ser bom se tolhe o melhor, de modo que, se não
puderes ler todas as obras, preocupa-te com as que te forem mais úteis.
Digo mais: ainda que puderes ler todas elas, não deves despender todos os
teus esforços, de modo homogêneo e sem discriminação. Explico. Algumas
obras têm de ser lidas para que não sejam desconhecidas; outras devem ser
simplesmente ouvidas. Quanto a estas últimas, devemos ao menos reco-
nhecê-las, pois não são raras as vezes em que acreditamos em alguma coisa
que nunca de fato ouvimos, sendo muito mais fácil valorarmos uma infor-
mação por meio de seus frutos que [eventualmente] conheçamos.
Então, sei que tu podes ver quão necessária é esta humildade, para que
não desprezes qualquer conhecimento, aprendendo todos eles com prazer.
E assim, deves também procurar, enquanto iniciares o aprendizado de uma
ciência, não desprezar as outras. Este, aliás, é o vício da vaidade, presen-
te em pessoas que excessivamente valorizam sua própria ciência, de modo
que, como, para si mesmas, parecem ter alcançado uma posição [intelectual
ou social superior], julgam [inferiores] as outras que não possuem tal co-
nhecimento, e que, por isto, não são nem podem ser como elas.
Essa afirmação efervesce uma outra discussão [que ocorre hoje em dia]:
há alguns [homens] mentirosos, ignorantes dos temas que discutem (mas,
ainda assim, que se vangloriam do que nada sabem), acusando os mestres
mais velhos de ingenuidade, porque, segundo eles, acham que a sabedoria
nasceu e morrerá com eles. Eles afirmam categoricamente que o modo de
falar das Escrituras é tão simples que não seria necessário ouvir as lições
dos mestres, e que qualquer pessoa, simplesmente usando de sua própria
inteligência, seria capaz de penetrar no mistério da verdade divina [pre-
sente no texto das Escrituras]. Eles franzem o nariz e “fazem bico” para os
mestres, enquanto estes explicam os textos sagrados e não percebem que
injuriam a Deus, cujas palavras eles defendem belamente como sendo sim-
ples, mas maldosamente pregam que as palavras dos mestres são insípidas.
Não é meu conselho imitar tal espécie de pessoas.
O bom estudante tem de ser humilde e manso, afastado totalmente das
preocupações inanes e dos incitamentos das volúpias. Deve ser diligente e
atento, para que consiga aprender com comprazimento tudo que lhe for en-

196
sinado. Um estudante assim nunca será presunçoso quanto à sua ciência,
fugindo dos autores perversos e dogmáticos como se fossem veneno. Tem
de aprender a investigar por muito tempo um tema antes de julgá-lo, e não
desejar parecer douto, mas procurar intensivamente sê-lo de verdade. O estu-
dante deve amar os ensinamentos ditos pelos sábios, procurando tê-los sem-
pre diante de seus olhos, como se eles fossem espelhos de seu próprio rosto.
Assim, como os estudantes bem encaminhados por acaso não admitem
que conhecimentos mais obscuros penetrem em seu intelecto, eles tam-
bém não caem de imediato em um ato réprobo, ou seja, a crença de que só
seriam atos bons aqueles passíveis de serem conhecidos por eles [e maus,
todos os outros]. É justamente esta a humildade [fonte] da disciplina dos
estudantes (Didascálicon, III, 13).

197
198
módulo VI
O Renascimento do século xii
e a Escolástica

199
200
1
João de Salisbury e
o Humanismo do século xii

João de Salisbury (c. 1115–1180) é o grande nome filosófico do Renascimento


do século XII. Sim, o século XII presenciou um renovado interesse nos clás-
sicos greco-romanos, o que fez com que os estudos e escritos dos pensado-
res fossem embebidos de um notável refinamento especulativo. Espírito
delicado o desse inglês educado na França (faleceu bispo de Chartres). São
duas as obras de sua pena que ganharam o mundo: Metalogicon (A Metalógi-
ca) e Policraticus (O Político).
A Metalógica é uma contundente defesa do estudo da Lógica, da Gramática
e da Retórica (ou seja, do Trivium) contra as acusações de um tal de Corni-
fício (e seus seguidores). É possível que esse Cornifício não tenha sido um
personagem real, mas uma construção literária que personificava estudan-
tes descontentes com a educação de então, e que defendiam uma redução
do número de disciplinas e obras que deveriam estudar! Esses cornificianos
acreditavam que a leitura não era sumamente relevante porque a capacidade
retórica e a perspicácia intelectual eram dons naturais (Meta. I, 8, m28). Do
mesmo modo, para eles, o estudo da linguagem e da lógica não ajudavam a
compreender o mundo (Meta. I, 6, m25). O que esses estudantes desejavam
era parecerem sábios, não serem, e apostavam na aparência de sabedoria em
carreiras lucrativas (Meta. I, 2, m13).

O que dissemos até agora foi dirigido contra Cornificius e aqueles


que, em seu conservadorismo, excluem as mais eficazes obras de Aris-
tóteles e contentam-se quase exclusivamente com Boécio. Muito mais
poderia ser dito, mas não é necessário, pois está claríssimo a todos

201
que consumiram o seu tempo e energia com Boécio que não sabem
nada que isso deve ser lamentado! (Meta. IV, 27, M243).

João defendeu vigorosamente a necessidade de uma sólida formação nas


Artes Liberais, para que os estudantes conseguissem realmente tornar-se sá-
bios e ter sucesso no “mundo real”.
Por sua vez, o Policraticus (O Político) é o primeiro tratado de filosofia po-
lítica escrito no Ocidente! Um longo tratado em que o filósofo abarca uma
variedade de temas relacionados à ética na vida política (por exemplo, se é
permitido assassinar um tirano). A forma da exposição é erudita. Aliás, logo
em seu Prólogo, o autor defende a importância das letras na preservação do co-
nhecimento em uma das mais belas passagens sobre o tema na Idade Média:

202
O fruto das letras é, por muitas razões, o mais aprazível, principalmente
porque, suprimido o empecilho de qualquer separação espacial e tempo-
ral, elas exibem aos amigos a presença mútua e não permitem que pereçam
com o tempo as coisas dignas de lembrança. Pois até as artes teriam pereci-
do, os juramentos ter-se-iam esvaído e os ofícios todos de qualquer religião
teriam ruído, e o próprio uso da boa expressão ter-se-ia corrompido se a mi-
sericórdia divina não tivesse providenciado para os mortais o uso das letras
como remédio para a fraqueza humana. O exemplo dos Antigos, exortação
e incentivo da virtude, não erigiria nem conservaria absolutamente nada,
se a solicitude piedosa dos escritores e o zelo, vencedor do descuido, o não
tivessem transmitido aos pósteros.
De fato, a vida breve, o torpor da negligência, as ocupações inúteis per-
mitem-nos conhecer muito pouco, e mesmo esse pouco é continuamente
dilapidado e roubado por aquele que é o defraudador da ciência e o eterno
inimigo e infiel padrasto da memória, o oblívio. Pois quem conheceria os
Alexandres e Césares, quem admiraria os estoicos e peripatéticos, se os não
tivessem dignificado as obras dos escritores? Quem imitaria o caminho,
digno de abraçar, dos apóstolos e profetas, se os não tivesse consagrado para
a posteridade a Sagrada Escritura? (...)
Nada, pois, é mais aconselhável aos que buscam a fama que merecer,
sobretudo, a graça dos letrados e escritores. Pois é-lhes inútil empreender
feitos egrégios, que trevas perpétuas hão de obscurecer, se não forem ilu-
minados pela luz das letras. Qualquer favor ou elogio que se receba de ou-
tra forma é como se Eco, conhecida nos mitos, fosse aplaudida no teatro:
acaba assim quem começa. As fiéis letras trocam essas coisas por consolo
na dor, restabelecimento no trabalho, conforto na pobreza, comedimento
na riqueza e nos prazeres. Porque o espírito se redime dos vícios e se refaz,
ainda que na adversidade, com doce e espantoso conforto, quando dirige a
agudeza da mente à leitura e redação de coisas úteis.

203
Para dar prova do amor pela erudição, o elenco de autores citados e co-
mentados em O Político é impressionante! Filósofos e poetas: Platão, Cícero,
Horácio, Sêneca, Juvenal, Catão, Lucano, Estácio, Cassiodoro, Justiniano, Ma-
cróbio, Orósio, Jerônimo, Valério Máximo, Virgílio, Enéas, Petrônio, Ovídio,
Frontino, Floro, Agostinho, Jerônimo, São Bernardo de Claraval, Plínio, Cor-
nélio Galo, Pérsio, Vegécio, Aulo Gélio, Ausônio, Entrópio, Leão, o Filósofo,
Suetônio, Salústio, Gregório Magno, Claudiano, Ivo de Chartres, Abelardo,
Graciano, Júlio Paulo Prudentíssimo, Terêncio, Sereno Sammonico, além, é
claro, da Bíblia!
Como o tratado discorre sobre muitos temas, debruçar-me-ei sobre al-
guns poucos, básicos como, por exemplo, o que é Filosofia — definição que
perpassou toda a tradição filosófica até o raiar da Modernidade, quando os
pensadores passaram a enfatizar que a Filosofia não é, mas ensina a pensar.
Assim, João de Salisbury afirma que o nome Filosofia nasceu com Pitágoras
(VII, 5) e que, se Platão disse a verdade, isto é, que o filósofo é aquele que ama
a Deus, então é a Filosofia o amor à divindade (VII, 11). A Filosofia tem graus:

O primeiro grau do ato de filosofar consiste em avaliar os gêneros e as


propriedades das coisas para ser capaz de reconhecer com prudência
o que há de verdadeiro em cada uma delas; o segundo consiste em
seguir fielmente a verdade que cada um descubra (mas esse caminho
dos filósofos só está claro para aquele que, abandonando o reino da
vaidade, se une à liberdade com a qual se tornam livres e, servindo-se
do Espírito, retiraram seus pescoços do jugo da iniquidade e da in-
justiça). Onde está o Espírito de Deus, está a liberdade, pois o temor
servil e complacente com o vício é morto pelo Espírito Santo. É preci-
samente o Espírito que fala com equanimidade e, sem se envergonhar
da verdade na presença dos príncipes, antepõe ou iguala os pobres de
espírito com os reis, ensina a saber falar e viver a verdade aos que tor-
na concordes com Ele. Por outro lado, quem não quer ouvir ou dizer a
verdade, é alheio ao Espírito da verdade (IV, Prólogo).

204
O nobre fruto do espírito filosófico é uma generosa equanimidade da
mente e um viver na abundância e suportar a escassez, de modo que leve
tudo com alegria e desarme as vicissitudes da Fortuna. Quem alcança esse
modo de vida, o filósofo, não teme as coisas, pois não sofre os infortúnios da
existência (V, 17), até porque a vida não passa de uma aparência do real — nas
palavras do filósofo, ela é um grande teatro onde a existência tem seu grau de
farsa, de burlesco. O leitor poderá ter uma boa noção de como a Filosofia no
século XII estava embebida de classicismo com a citação a seguir, que é um
pouco longa, mas merece ser citada na íntegra.

205
A comparação de Petrônio é sem dúvida elegante: as ações praticadas pelo
homem no burburinho do mundo assemelham-se mais a uma comédia que
a um empreendimento heróico.1 Foi dito que “a vida do homem sobre a terra
é uma milícia”.2 Contudo, se o profeta houvesse podido imaginar o nosso
tempo, sem dúvida ele também haveria de dizer que a vida do homem sobre
a terra é uma comédia, na qual cada um, esquecido de si mesmo, recita a
parte do outro. Mas creio que o profeta apenas queria ensinar que aqueles a
quem a vida terrena ainda não absorveu, devem ser sempre soldados.3
De fato, os que são prisioneiros dos vícios e presas da concupiscência es-
tão destinados à pena, tal como o boi ao sacrifício, e embora seus corpos ha-
bitem a terra, já foram absorvidos e lançados ao inferno.4 Noutras palavras,
a terra é habitada por homens que não pensam no céu, e não sabem que no
céu existe algo para eles, mas aspiram somente às coisas materiais. O jugo
da milícia pesa também sobre aqueles cuja vontade não sabe realizar o que
se propôs, porque está longe do Senhor e ligada ao mundo. Caso usemos as
imagens das fábulas, eles conhecem a onda de Tântalo5, o abutre de Tício6, a
roda de Ixião7, a urna das Danaidas8 e a pedra de Sísifo.9 A vida deles é, pois,
uma milícia: uma milícia na malícia.10
Mas se esta definição não agrada, pode-se adotar uma outra, e dizer que a
vida do homem sobre a terra é uma tentação, isto é, como diz originalmente
o termo, um contínuo medir-se com o mal.
Perdido nesta tentação ou milícia, quase todo o mundo — digo quase
porque o Senhor reservou para Si sete mil justos11 — quase todo o mundo é,
ao mesmo tempo, como diz Petrônio, ator e espectador de uma comédia e, o
que é pior, não sabe mais retornar à realidade quando é necessário.
De fato, conheci crianças que imitaram por tanto tempo os balbucios
que, depois, nem mesmo querendo, conseguiram falar corretamente.
Como se costuma dizer, o hábito é esquecido com dificuldade, e o costu-
me plasma outra natureza que, “se a expulsares com o forcado, retorna por
si sorrateiramente.12 Por isso, é útil o conselho do poeta ético quando diz:
“Escolhe para ti desde criança o melhor modo de vida, e o hábito haverá de
torná-lo agradável”.13

206
Através de seu conhecimento do mundo, os grandes escritores de co-
média combatem os defeitos humanos. O configurar-se vários dos atos
introduz certa variedade na comédia. E os atores estão a serviço do que
representam, realizando-se neles o jogo da Fortuna caprichosa.14 De fato,
quem é que ora reveste de enorme poder a alguém novo e desconhecido,
elevando-o à glória do trono, ora coloca em grades hostis um rei que se ves-
tia de púrpura15 antes mesmo de nascer e, após torná-lo escravo, lança-o na
miséria mais extrema? Ou o que é — como seguidamente acontece — que
mancha as espadas infames não só com o sangue dos tiranos, mas também
com o sangue daqueles príncipes cujos súditos são débeis e até mesmo vis?
“Se a Fortuna quiser, torna-se cônsul um mestre; mas se o quiser, torna
mestre um cônsul”.16
Por isso, a vida dos homens se parece mais com uma tragédia que com
uma comédia, pois quase ninguém tem um fim alegre: por mais doces que
as coisas tenham sido, acabam amargas, e o luto sucede as grandes alegrias.
Por mais que os ímpios prosperem e enriqueçam graças ao concurso de cau-
sas favoráveis, por mais que a Fortuna se submeta a eles, no término de seus
caminhos haverá de abatê-los e será tão amarga como o absinto.
“Como é que os maus vivem, diz Jó, envelhecem e cresce seu vigor? Sua
prosperidade prospera diante deles e seus descendentes crescem sob seus
olhos; sua casa é tranqüila, sem alarmes, a vara de Deus não os atinge. Seu
touro é cada vez fecundo, sua vaca dá cria sem nunca abortar. Deixam os
filhos correrem como carneiros e os seus pequenos saltam e brincam. Can-
tam ao som do tímpano e da cítara, divertem-se ao som da flauta. Passam
seus dias na alegria e descem tranqüilamente ao sheol”.17 Que conclusão
pode ser mais amarga após a alegria anterior ou que fim pode ser mais in-
feliz depois de um caminho tão feliz? Mas este é o final daqueles que “não
tomam parte no trabalho dos homens, nem são flagelados com estes”.18
De fato, a vontade do Senhor os abate enquanto se exaltam, pois tudo
quanto acontece deve ser atribuído à Sua vontade, mais que à Fortuna, que
dele provém ou, como julgo mais provável, nem sequer existe. A respeito
dela diz o escritor ético: “Não digas que a Fortuna é cega, porque não existe”.19

207
Também Homero, naquele seu poema de tão célebre perfeição, recusou-se
a admitir a existência da Fortuna, que não é nomeada em nenhuma parte do
texto. Quis confiar somente a Deus — a quem chamou de Moipan — o gover-
no de todo o universo, sem atribuir nada à temeridade da Fortuna, que não
pode ser uma deusa, se é cega, com lá se diz e se pinta; e por outro lado seria
vã a empresa de demonstrar a cegueira daquilo que não existe na natureza.20
Também o acaso — que é definido como um acontecimento fortuito —
não existe, pois nada existe sem uma causa e uma razão procedente21, e o
pregador fiel ensina que nada acontece na terra sem um motivo.22 Contudo,
como não poucas coisas acontecem inesperadamente, para além da inten-
ção de quem age, costuma-se colocá-las sob o acaso. Em verdade, porém,
elas foram previstas por aquele que as dispôs segundo a razão, da mesma
forma daquelas que parecem determinadas pela lei natural.
Portanto, também o contingente depende da causa primeira, enquanto
tudo é reduzido a esta e, a meu juízo, a existência da causa primeira segue-
se necessariamente da posição de todas as coisas. Talvez os mais sábios ha-
verão de rir de minha ignorância, pois admito derivar a existência de Deus
a partir da existência de todas as coisas. Mas foram os peripatéticos que
me ensinaram a inferir ou a conjeturar a existência da causa a partir dos
efeitos.23 Além disso, os próprios doutores da fé tiravam das coisas aquela
causa da qual, pela qual e na qual tudo existe24, e sem a qual nada é criado
e pode existir.
Assim, quando pareço atribuir algum papel à Fortuna, não o faço em de-
trimento da causa primeira. Simplesmente como meu discurso se dirige
aos homens, utilizo a linguagem dos homens, os quais — como já afirmei
— agem em cada caso como a gorda Minerva, sem dar a razão precisa a res-
peito de nada. E se tal coisa é pacificamente admitida, por que se proibirá de
ouvir aquilo que os filósofos gentios escreveram para a utilidade pública?
“Tudo o que foi escrito, foi escrito para o nosso ensinamento, a fim de que
pela paciência e a consolação das Escrituras conservemos a esperança”.25
De fato, como não existe paz para os filhos de Adão — que nasceram para
o sofrimento, destinados à desgraça, concebidos em pecados, paridos em
dor, e que não caminham, mas antes correm para a morte, da qual nada é

208
mais triste — é necessária a perseverança e útil a consolação, que favorece
e reforça os predestinados para a vida eterna com a esperança do futuro, na
consciência do bálsamo da alegria e da imensidão da clemência divina.
“Ó guardião dos homens — diz o bem-aventurado Jó, sintetizando em si
as calamidades do gênero humano — por que me colocaste contra ti e me
tornaste um peso para mim mesmo?”.26 De fato, não existe ninguém que,
quando é atingido pela culpa, não encontre em si mesmo a causa e a matéria
de seu sofrimento. Até mesmo o testemunho da filosofia diz que a cada um
acontece de encontrar-se onde não quer, e de estar ausente de onde gostaria
de estar. É por isso que a alma fiel, à qual são concedidas as alegrias da ver-
dadeira felicidade, pede um campo irrigado acima e um irrigado abaixo.27
Por isso, a fim de adaptar os ouvidos piedosos às invenções dos gentios,
direi que o fim de todas as coisas é trágico. Mas nada tenho a objetar se se
quiser manter, como mais agradável, o nome de “comédia”, pois é sabido
também entre nós que, como diz Petrônio, quase todos se comportam como
histriões. A este respeito, um ilustre escritor de nosso tempo exprimiu com
elegância as palavras dos pagãos, ao dizer: “A sorte cega revira as ridículas
fadigas dos homens; os nossos dias são o jogo e a brincadeira dos deuses”.28
O teatro no qual acontece uma tão grande, tão admirável e tão inenarrável
tragédia, ou comédia, é perfeitamente adaptado à representação. Sua super-
fície é do tamanho da terra. É muito difícil que seja aceito quem foi excluído,
ou que seja admitido quem foi expulso, enquanto carrega a veste suja da car-
ne. É necessário despir-se totalmente desta indumenta, a fim de conseguir
passar ileso pelo buraco da agulha.29 De outra forma, ninguém sairá ileso,
talvez porque “o Estinge, que lhe passa pelo meio, o cinge nove vezes”.30
Diz o Eclesiastes: “Vi todas as coisas que existem sob o sol, e eis que tudo
é vaidade”.31 Quando a gente se afasta do sólido terreno da verdade, cai na-
quele da vaidade, que é o terreno próprio de nossa comédia, “pois a criatura
está sujeita à vaidade não por sua própria vontade”.32
Embora o local em que moramos esteja cercado por nove orbes ou esfe-
ras, contudo, um dia deveremos dele sair, e o inexorável Caronte haverá de
fazer que todos atravessem o rio com sua barca carregada de anos.33Uns su-
cedem-se aos outros e assim, passando os indivíduos, permanece a espécie

209
humana, do mesmo modo como, passando a água, a mesma corrente per-
manece no rio. “Onde se encontram aqueles poderosos que desde o início
conhecem a arte da guerra, que jogam com as aves do céu e que acumulam
o ouro em que os homens põem sua confiança, acrescentando casa a casa,
campo a campo, até os confins da terra, e que não têm limites em suas pos-
ses?”.34 E logo a Escritura dá a resposta que todos conhecem por repetida
experiência: “Desceram aos infernos e outros vieram em seus lugares”.35
É, pois, conforme a eqüidade, e não por capricho da Fortuna, que são lan-
çados nas trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes36; e que,
como recorda o santo Jó37, passam das águas das neves para o calor mais in-
suportável. Também é conforme a eqüidade que os que chegam aos Campos
Elíseos sejam iluminados pelo verdadeiro sol da justiça.
Mas porque excluo implicitamente que os Campos Elíseos estejam ex-
cluídos do mundo das coisas passageiras? Eles estão sem dúvida incluídos
em parte, estendendo-se a todos os espíritos justos, aos quais foi concedido
pelo Pai das Luzes de poderem dedicar-se com todo o ardor ao conhecimen-
to e ao amor do bem.38 Por isso, o poeta ético respondeu a quem, inquieto,
lhe perguntava sobre a felicidade impossível fora de si mesmo: “Aquilo que
procuras, está em toda a parte; encontra-se em Ulubras, se não lhe faltar um
ânimo justo”.39

NOTAS:

1  Petrônio (c. 27–66 a.C.). “Quanto a Petrônio, devemos reportar um pouco antes. É
certo que ele dedicava o dia ao sono, as noites aos deveres e às distrações da vida. E
assim como outros devem sua fama ao trabalho, ele a devia à preguiça, e não era tido
como um libertino e um dissipador, como muitos que dissipam seu patrimônio, mas
como um erudito no luxo. E como suas palavras e ações eram livres e providas de uma
aparência de negligência de si mesmo, elas eram recebidas mais de bom grado sob
uma aparência de simplicidade.
Malgrado tudo, foi pró-cônsul da Bitínia e, depois, cônsul, dando provas de ener-
gia e de estar à altura dos negócios públicos. Voltando aos seus vícios ou tomando
o ar de um viciado, Petrônio foi admitido entre os poucos íntimos de Nero, como

210
um árbitro de elegância, até o ponto em que o príncipe não acreditava que houvesse
nada mais encantador e delicado em seu luxo além daquilo que Petrônio lhe reco-
mendava.” — TÁCITO, An., 16, 18. “Satiricon é uma novela que, pelos lábios de um tal de
Encolp, descreve os ambientes baixos de uma grande cidade do sul da costa italiana
onde chegaram dois jovens, Ascilto e Gitão, aos quais se unirá um velho e ridículo po-
eta chamado Eumulpo. (...) A parte conservada dessa obra contém uma explicação do
banquete oferecido a Trimalcião, um libertino estúpido, personagem enriquecido de
uma maneira escandalosa, aos seus amigos; a cena é uma paródia cheia de permissi-
vidades desavergonhadas (escravos, libertos, prostitutas, mulheres de má vida, etc.).
Em resumo, trata-se de uma novela pitoresca, realista, tendendo mais para a carica-
tura que ao retrato, mas expressa com uma língua e um estilo próprio de um mestre
da arte de escrever, com uma elegância clássica e expressões da época imperial, sem
negar, contudo, o lugar para as palavras vulgares, os solecismos, os barbarismos e os
termos de baixo calão.” — VILLALBA I VARNEDA, Pere. Roma a través delshistoriadors-
clàssics. Barcelona: UniversitatAutònoma, 1996, p. 424–425.

2  Jo 7, 1.

3  Isto é, soldados de Cristo.

4  Nm 16, 30, que trata da revolta de Datã e Abiram, passagem do Velho Testamento
que ignora a responsabilidade individual: “E aconteceu que, acabando de pronunciar
todas essas palavras, o solo se fendeu sob os seus pés, a terra abriu a sua boca e os en-
goliu, eles e suas famílias, bem como todos os homens de Coré e todos os seus bens.
Desceram vivos ao Xeol, eles e tudo aquilo que lhes pertencia. A terra os recobriu e
desapareceram no meio da assembléia. A seus gritos, fugiram todos os filhos de Israel
que se encontravam ao redor deles”, Nm 16, 31–33.

5  Tântalo roubou néctar e ambrosia do Olimpo para servir às suas concubinas, pe-
diu emprestado a Mercúrio o cão de Júpiter e não o devolveu, e matou o filho, Pélope,
e serviu-o aos deuses num banquete. Como castigo, foi lançado ao Tártaro. Mergulha-
do em um lago até os joelhos, foi sentenciado a não poder saciar sua fome e sede em
um vale abundante de vegetação e água: sempre que se aproximava da água, o líquido

211
escoava; ao tentar colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se para longe de seu
alcance, sob a força do vento. Este é o suplício de Tântalo: desejar algo muito próximo,
mas que está sempre inalcançável.

6  Tício (ou Titio) era filho de Elara e Zeus. Este, por medo de Hera, escondeu Elara na
Terra, e ela deu à luz Tício, um gigante (ou monstro ctônico), tentou violentar a Hera
de Leto (ou, em outras versões, a Ártemis) que, aos gritos, foi socorrida por Apolo e
Ártemis, que flecharam o monstro. Por ser imortal, foi lançado ao Tártaro, com as
pernas abertas no solo, e dois abutres (ou serpentes) passaram a comer eternamente
seu fígado. É considerado um personagem que representa a luxúria desenfreada (por
isso seu fígado é devorado: os antigos acreditavam que era o centro sede das paixões).
As fontes clássicas que citam o mito são Apolodoro, Biblioteca i, 4, 1, Homero, Odis-
séia, XI, 660–668, Pausânias, II, 30, 3; X, 4, 5 e X, 6, 5, Plutarco, AetiaGraeca 12, Higino,
Fábulas 55 e Píndaro, OdasPíticas IV, 90 e seg.
A tradição literária cristã manteve a citação de João de Salisbury. Por exemplo, o
nosso Padre Antônio Vieira (1608–1697) a cita, em seu Sermão da Primeira Dominga do
Advento (1655), III (edição eletrônica de Karina Beatriz Espíndola): “Só uma coisa há
que não pode passar, porque o que nunca foi, não pode deixar de ser, e tais parece que
foram as fábulas que neste mesmo tempo se inventaram e fingiram. Mas se elas não
passaram em si mesmas, passaram naqueles casos e coisas que deram ocasiões a se
fingirem. Na seca universal que abrasou todo o mundo, passou a fábula de Faetonte:
no dilúvio particular que inundou grande parte dele, passou a fábula de Deucalion; no
estudo com que el-rei Atlante contemplava o curso e movimento das estrelas, passou
a fábula de trazer o céu aos ombros; na especulação contínua de todas as noites, com
que Endimion observava os efeitos do planeta mais vizinho à Terra, passou a fábula
dos seus amores com a Lua. E porque também os nossos vícios, a nossa fraca virtude,
e a nossa mesma vida passam como fábula; o amor e complacência de nós mesmos
passou na fábula de Narciso; a riqueza sem juízo, na fábula de Midas; a cobiça in-
saciável, na fábula de Tântalo; a inveja do bem alheio, na fábula e abutre de Tício; a
inconstância da fortuna mais alta, na fábula e roda de Ixion; o perigo de acertar com o
meio da virtude, e não declinar aos vícios dos extremos, na fábula de Cila e Caribde; e
finalmente a certeza da morte, a incerteza da vida, pendente sempre de um fio, passou
e está continuamente passando na fábula das Parcas. Assim envolveram e mistura-

212
ram os sábios daquele tempo o que há com o que não há, e o certo com o fabuloso;
para que nem o louvor nos desvaneça, nem a calúnia nos desanime, pois o verdadeiro
e o falso, a verdade e a mentira, tudo passa.”

8  Rei dos lápitas (na Tessália), após inúmeras infrações, Ixião foi condenado por
Zeus a ser amarrado a uma roda de fogo e lançado através dos ares. Os autores costu-
mam localizar esse castigo de Ixião no Tártaro.

9  As Danaidas (ou Danaides) eram cinquenta filhas de Dânao (com diferentes mu-
lheres). Desposaram cinquenta egípcios e, por incitação de Dânao, na noite de núp-
cias mataram seus maridos (exceto Hipermnestra, que poupou Linceu). Mais tarde, o
próprio Linceu assassinou as Danaidas, que, por seu crime, desceram aos Infernos e
receberam como punição a pena de encher um tonel sem fundo, o “tonel das Danai-
das), ou seja, um trabalho inútil.

10  Condenado por Júpiter aos Infernos, Sísifo sofreu a seguinte pena: rolar uma
enorme rocha por uma escarpa; sempre que atingia o cume, a rocha caía, forçando
Sísifo a recomeçar o trabalho. Em muitas passagens do Policraticus João de Salisbury
faz alusões à mitologia grega para criar analogias com sua filosofia humanista cristã.

11  Jogo de palavras muito apreciado pelos escritores medievais. Por exemplo, São
Bernardo de Claraval escreve o mesmo a respeito da milícia secular (milícia/malícia).

12  3Rs 19, 18.

13 Horácio, Ep. I, 10, 24. “Poeta nascido em 65 a.C. em Venúsia, na Apúlia; filho de
um escravo libertado que dispunha de um pequeno pé-de-meia, estudou em Roma,
depois em Atenas, onde se viu arrastado pelo exército dos ‘libertadores’, Bruto e Cás-
sio, em 42 a.C., com o grau de tribuno militar. Depois da derrota de Filipos, regressou
à Itália, mas, arruinado, tornou-se escrivão para sobreviver (...) Mecenas procurou
atrair o jovem para o seu grupo de amigos, e, em 31, ofereceu-lhe uma propriedade em
Sabina. Foi nessa época que o poeta escreveu as suas Sátiras, e peças líricas, as Odes,
cujos três primeiros livros foram publicados em 23. Seguiram-se-lhes dois livros de

213
Epístolas (compreendendo a Arte Poética) e, em 17 a.C., Carmen Saeculare. Horácio mor-
reu em 8 a.C.” — GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 300.

14 PSEUDO-CÍCERO, Retórica a Herêncio IV, 17, 24 (Rhetorica ad Herennium, obra de Retó-


rica escrita no séc. I). No século XII circulavam várias obras apócrifas de autores latinos.

15  O tema da fortuna imperatrixmundi é muito recorrente, tanto na literatura quanto


nas filosofias medievais.

16  A cor púrpura era um sinal de realeza. Na Idade Média, já com os merovíngios a
túnica púrpura representava o poder real: “Nessa época, Clóvis recebeu do impera-
dor Anastácio os codicilos consulares e, revestido de uma túnica purpúrea e de uma
chlamyde, na basílica do bem-aventurado Martinho, colocou sobre a cabeça um diade-
ma. Em seguida, montado a cavalo, distribuiu ao povo presente, por sua própria mão
e de muito boa vontade, ouro e prata pelo caminho situado entre a porta do átrio [da
basílica] e a igreja da cidade e, desse dia em diante, foi chamado cônsul e Augusto.” —
Gregório de Tours, DecemLibriHistoriarum II, 38.

17 Juvenal, Sátiras, VII, 197s. “... nasceu em Aquinum, na Campânia, cerca de 60 d.C.
Publicou suas primeiras Sátiras quando muito em 96 (depois da morte de Domicia-
no). Estamos mal informados sobre sua vida; talvez tenha sido soldado; em todo caso,
estava familiarizado com os retóricos. Morreu depois de 128.” — GRIMAL, Pierre. A
civilização romana, op. cit., p. 305.

18  Jo 21, 7–13.

19  Sl 72, 5.

20 CATÃO, Dist. 4, 3.

21 MACRÓBIO, Sat. V, 16, 8.

22 PLATÃO, Timeu, 28a.

214
23  Jo 5, 6.

24  Ver nota 6.

25  Rm 11, 36 e Jo 1, 3.

26  Rm 15, 4.

27  Jo 7, 20.

28  Js 15, 19.

29  Bernardo Silvestre de Chartres (c. 1100–1169) foi um filósofo de tendência neo-
platônica, autor de uma obra dedicada a Teodorico de Chartres intitulada De universi-
tatemundisivemegacosmus et microcosmus, onde converte os atributos das Pessoas da
Trindade em atributos cosmológicos, isto é, as funções que as Pessoas realizam no
mundo (como a Potência, a Sabedoria e a Bondade). Sua filosofia está maravilhosa-
mente representada na catedral de Chartres.

30  Mt 19, 4.

31 VIRGÍLIO, Geórgias 4, 480.

32  Ecl 1, 14.

33  Rm, 8, 20.

34 CÍCERO, O sonho de Cipião, 4.

35  Br 3, 16–18, 26.

36  Br 3, 19.

215
37  Mt 8, 12.

38  Jo 24, 19.

39  A referência ao “Pai das Luzes” é, sem dúvida, do Pseudo-Dionísio, o Areopagita


(séc. V). HORÁCIO, Epístola I, 2, 29–30.

216
Para fugir do burburinho do mundo, a Filosofia preza o caminho da virtu-
de (VII, 8) e a necessidade de se ler tudo, não desprezar escrito algum (VII, 10).
Devem ter desprezo pelo dinheiro — como Sócrates, Antístenes e Diógenes
(V, 17) — e considerar a necessidade de se viver em terra estrangeira:

A Filosofia exige que se viva em terra estrangeira. Inclusive ela pró-


pria às vezes se faz estrangeira. Mais: nunca lamenta esse exílio. Por
isso se distancia das preocupações domésticas e das coisas da carne
para que o homem, de certo modo voltado para as coisas do espírito,
julgue alheia qualquer coisa que impeça o avanço da sabedoria. Em
todos os lugares se sente em casa e em sua terra, porque todos os lu-
gares moram dentro dele e junto da Sabedoria (VII, 14).

Trata-se de um caminho tão difícil, tão rigoroso, que são poucos os que re-
almente conseguem chegar a bom termo. A maior parte se perde na bajulação
de seus professores:

Existem poucos que se dignam serem imitadores dos acadêmicos [isto


é, dos filósofos da Academia grega], já que cada um escolhe aquilo
que vai seguir mais por gosto que pela razão.
Uns se distraem com suas próprias opiniões, outros com as dos dou-
tores, e outros com o trato da multidão. Quem duvida que aquele que
jura pela palavra de seu mestre não concorda com o que se diz, mas com
quem diz? Aquele que foi cativado pela opinião de um doutor, ladra
qualquer coisa com força, e acredita que saiu das ocultas intimidades
da Filosofia o que, na verdade, é apenas uma prova de infantilidade.
Esse está disposto a disputar qualquer idiotice, acreditando que é in-
concebível o que soa desconhecido aos seus ouvidos, e não concorda
com a razão apenas porque pensa que o que disse aquele seu mestre é
autêntico e sacrossanto!” (VII, 9).

217
A filosofia contemplativa (de raiz clássica) de João de Salisbury não descon-
sidera a vida prática, a vida cotidiana. Pois o tratado O Político é, acima de
tudo um texto dedicado ao exercício do poder, ou melhor, à prática virtuosa
que o detentor do poder deve se voltar. Por exemplo, e para citarmos o últi-
mo tema do tratado, o governante deve se precaver contra os aduladores, os
bajuladores, aqueles personagens que cercam o poder em busca de benesses,
de regalias.
O governante deve ser ensinado que a verdade é amarga, mas esse fel é
mais útil e grato para a integridade da sensibilidade: é sempre preferível a
lealdade da verdade do que a maldade da mentira (III, 6). Os bajuladores são
inimigos da virtude. O governante — que deve ser aconselhado a aspirar à sa-
bedoria — deve examinar o que é por si, o que tem dentro de si, por fora, por
debaixo, acima, diante, por trás. Devem estudar filosofia (novamente surge
Platão, sempre ele!): analisar a natureza de todas as coisas: dimensão, desti-
no, qualidade, lugar, tempo, capacidade de ter, fazer, sofrer, e todas as suas
propriedades, isto é, se admitem intensidade, se são suscetíveis de aceitar
contrariedades, e se em si mesmas há algo adverso (III, 2) — agora Aristóteles!
Por isso, somente a virtude conduz à Filosofia que, por sua vez, torna as
pessoas felizes (VII, 8).

218
219
220
2
Tomás de Aquino e
Ramon Llull
2.1 A Verdade e a Sabedoria

Tomás de Aquino é considerado, ainda hoje, um dos maiores pensadores de


todos os tempos. Seu sistema é de uma transparência lógica notável, com
perfeita conexão entre as partes e, o que costuma ser mais destacado pelos
estudiosos, de índole mais aristotélica que platônico-agostiniana. Há uma
razão e uma filosofia em seu pensamento, mas sempre como um preâmbulo
para a fé. A filosofia, ainda que autônoma, não é suficiente para perscrutar
tudo o que se pode conhecer ou dizer, já que oferece um conhecimento im-
perfeito das mesmas coisas que a teologia esclarece em relação à salvação
eterna, objetivo final de todo cristão. A fé melhora a razão, a teologia melhora
a filosofia. Caso entendamos “teologia” como “metafísica”, Aristóteles con-
cordaria com essa afirmação.
Não há espaço para abarcar o pensamento de Tomás de Aquino neste
opúsculo. Trataremos tão brevemente de um tema basilar que antecede o
desenvolvimento de uma de suas obras mais conhecidas, a Suma contra os
gentios (c. 1260–1264): a verdade.
Mas, afinal, o que é a verdade? Essa foi uma pergunta costumeiramente
feita pelos filósofos antigos. A tradição atribui a Demócrito uma das mais
antigas afirmações a respeito do tema: “É preciso falar a verdade; não, falar
muito”. Mas foram os dois alicerces da tradição filosófica grega — Platão e
Aristóteles — que deram o tom do conceito:

“Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele


que as diz como não são” (PLATÃO, Crátilo, 385b).

221
“Falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer
que o ser é e que o não-ser não é” (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro
IV, 7, 1011b).

O tema é tão importante para a Filosofia que Aristóteles não se faz de roga-
do e assim define o amor à sabedoria:

“É justo chamar a Filosofia de ciência da verdade, porque o fim da


ciência teorética é a verdade, enquanto o fim da prática é a ação”
(ARISTÓTELES, Metafísica, Livro II, 1, 993b, 19–21).

“Pois onde está o verdadeiro e o falso ocorre certa composição de pen-


samentos como se fossem uma unidade” (ARISTÓTELES,  Sobre a Alma, III,
430a26). Por isso, para o Aquinate, investigar a verdade leva o filósofo ao fim
último das coisas, isto é, à consideração do universo (que é também o prin-
cípio). Baseando-se na Metafísica de Aristóteles, Tomás de Aquino assim sin-
tetiza essa ideia:

O nome de sábio é simplesmente reservado só para quem se dedica à


consideração do fim do universo, que é também o princípio. De onde
afirma o Filósofo (ARISTÓTELES, Metafísica, I, 1, 981a; 2, 982a) que
pertence ao sábio considerar as altíssimas causas (Suma contra os
gentios, I, I, 3b).

Repare que, sempre que cita Aristóteles, Tomás de Aquino se refere a ele
como o filósofo, tamanha é sua admiração pelo pensador grego!
O Aquinate prossegue no tema, unindo-o à sabedoria:

O fim último de cada coisa é intencionado pelo seu primeiro autor


ou motor. O primeiro autor e motor do universo é o intelecto, como
mais além se verá. Convém, pois, que o fim último do universo seja o
bem do intelecto, que é a verdade. Donde ser a verdade o fim último

222
de todo o universo. Donde, também, convir à sabedoria entregar-se,
acima de tudo, à sua consideração (Suma contra os gentios, I, I, 4a).

Esclarece também o Filósofo que a Filosofia Primeira é a ciência da


verdade (ARISTÓTELES, Metafísica, II, 1, 993b), não, porém, de
qualquer verdade, mas daquela verdade que é a origem de toda a
verdade, isto é, a que pertence ao primeiro princípio do ser e de todas
as coisas. Donde também ser a verdade o princípio de toda a verdade,
já que as coisas estão dispostas na verdade como no ser (Suma contra
os gentios, I, I, 5).

A sabedoria consiste em conhecer a ordem das coisas. Esse ideal não só


afeta a vida prática, mas também o conhecimento teórico que o sábio deve
descobrir para poder contemplar o universo, conhecimento que merece o
nome de sabedoria. E como o fim do universo, pretendido por seu primeiro
motor, é um entendimento, e o pretendido é o bem do entendimento, isto
é, a verdade, consequentemente o sábio investiga a verdade. E a verdade úl-
tima e suprema, que é fonte de toda a verdade e de todo o ser é Deus, objeto
da sabedoria. Tomás de Aquino compreendeu isso nos textos dos filósofos e
especialmente na Metafísica de Aristóteles.
Por fim, essa sabedoria é, dentre todos os estudos a que o homem se dedi-
ca, o mais perfeito, o mais sublime e o mais feliz. O mais perfeito porque,
enquanto o homem se entrega ao estudo da sabedoria, participa de alguma
maneira da verdadeira felicidade. O mais sublime, porque através dele nos
aproximamos o mais possível da divina similitude, que tudo fez sabiamente.
E porque a semelhança é causa da dileção, o estudo da sabedoria une o homem
a Deus, pela amizade. O mais útil, porque pela sabedoria chega-se à imortali-
dade, e o mais alegre, porque sua companhia não é amarga nem enfadonha,
mas feliz. Por todos esses motivos, dia Tomás de Aquino, é necessário recor-
rer à razão natural, com a qual todos são obrigados a concordar. Ademais,
conclui, ao se investigar uma verdade, o filósofo pode mostrar os erros ex-
cluídos por ela, e como, segundo ele, a verdade racional concorda com a fé
da religião cristã. Isso porque a razão colabora com o conteúdo da fé: razão e

223
fé, filosofia e teologia têm o mesmo objetivo: a sabedoria, o conhecimento da
causa primeira e última de toda a realidade.

2.2 As dignidades divinas como o


princípio do debate filosófico

Ramon Llull é um filósofo de intercessão de dois mundos: o medieval e o


moderno. Viveu no século XIII, mas sua filosofia, em parte aristotélica, em
parte platônica, tem uma finalidade medieval — converter o mundo ao cato-
licismo — em uma forma moderna — combinações lógicas de letras em um
alfabeto, cada uma significando perguntas (aristotélicas) que, conforme seu
autor, podem ser aplicadas a qualquer investigação da realidade.
Sua intenção era “escrever o melhor livro do mundo contra os erros dos
infiéis”, obra que chamou de Arte. Ela era uma técnica, um modo de exposi-
ção técnico de uma ciência. Era também a maneira pela qual Llull aborda a
filosofia e a teologia: não discute um conceito isoladamente (como faziam os
contemporâneos Tomás de Aquino e Duns Scotus), mas apresenta um grupo
de conceitos, onde o que interessa é o lugar que eles ocupam e a sua relação
com os outros conceitos limítrofes. A aplicação da Arte luliana possuía cinco
usos: 1) Conhecer e amar a Deus (amar a Deus era um preceito cristão, mas
amar e conhecer a Deus era uma característica da teologia muçulmana); 2)
Amar as virtudes e odiar os vícios; 3) Confrontar as opiniões errôneas dos
infiéis por meio de razões necessárias; 4) Formular e resolver questões e 5)
Adquirir outras ciências em um breve espaço de tempo e tirar as conclusões
necessárias segundo as exigências da matéria.
No entanto, a matéria primordial era Deus. Para conhecê-lo, isto é, para
compreendê-lo, deveríamos conhecer suas dignidades, tradução da palavra
grega axioma. Originalmente essa palavra significava dignidade ou valor.
Aristóteles fez a primeira análise dessa noção e entendeu o axioma como as
proposições primeiras de que parte a demonstração, isto é, princípios que
devem ser necessariamente entendidos por quem queira aprender qualquer
coisa. Por sua vez, na filosofia luliana, dignidade era cada um dos atributos

224
de Deus, uma perfeição, um atributo, uma virtude, princípios generalíssimos e
substanciais que cada criatura, em maior ou menor grau, participava em se-
melhança (a gradação da capacidade de participação em Deus era uma heran-
ça filosófico-ocidental da obra do Dionísio Areopagita).
Pelo conhecimento das dignidades, raciocinando, nossa inteligência se
elevaria a Deus. Por isso, elas eram, para Llull, um valor metafísico absoluto,
exemplos segundo os quais a atividade divina ad intra criou o mundo (isto
é, a partir d’Ele próprio). Elas se refletiam em todos os aspectos da Criação.
Todo o método indutivo, comparativo e demonstrativo da Arte consistia na
redução das coisas particulares aos aspectos transcendentais da realidade (as
dignidades) e, consequentemente, a comparação das coisas particulares entre
si à luz delas.
Llull compôs sua Arte também com figuras. Por exemplo, na figura 1, todas
as dignidades divinas estão unidas por linhas, o que indica que são coessen-
ciais à essência divina e mutuamente convertíveis. Assim, a Bondade de Deus
é grande, eterna, poderosa, sábia, etc.; a Grandeza é boa, eterna, poderosa,
etc.; a Eternidade é boa, sábia, poderosa, verdadeira, etc. Cada uma age na
outra, pois não há ociosidade em Deus: a Bondade não cessa de fazer o bem,
pela eternidade, com a verdade, o poder, a sabedoria, etc.; a Grandeza mag-
nifica com o poder, com a sabedoria, através da eternidade, etc.; a Eternidade
eterniza com o poder, a sabedoria, o bem, etc., e assim por diante.
Por isso, o Bem engendrado é o Filho, o engendrador o Pai, e o “engendran-
te” o Espírito Santo. Mas porque existe essa “produção ativa” em Deus? “Por-
que caso não existisse, todas as razões divinas seriam ociosas na extensão e
na duração infinitas”, e isso, para ele, é impossível! Em uma redação circular,
Llull descreve literariamente essa ativa e eterna relação entre as dignidades
divinas em seu Livro das Maravilhas (1288–1289):

Amável filho, na natureza de Deus existem a Bondade, a Infinitude, a Eter-


nidade, o Poder, a Sabedoria, a Vontade, e muitas outras dignidades estão no
ser de Deus, e cada uma delas é Deus e em nenhuma delas existe ociosidade.
Por isso, a Bondade não cessa de fazer bem, isto é, produzir o bem em si mes-
ma e de si mesma, e pela Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a

225
Vontade, ela faz o bem e o engendra de Si mesma com a Eternidade, o Poder, a
Sabedoria, a Vontade. Este bem engendrado é a pessoa do Filho, e o engendra-
dor é a pessoa do Pai; e do Pai e do Filho nasce o Espírito Santo. O mesmo faz
a Bondade, a Imensidão, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade, e ao
mesmo tempo o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma natureza divina, uma
divindade, um Deus. E em Deus existe uma pessoa, o Pai, por toda a Bondade,
a Grandeza, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade, pois aquele que
engendra o Filho e faz nascer o Espírito Santo é a Bondade, a Infinitude, a
Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade.
O mesmo ocorre com o Filho e o Espírito Santo, que são cada um deles a
Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade. Por isso,
nessa obra que Deus realiza dentro de Si mesmo, são suficientes uma pater-
nidade, uma filiação e uma procissão. E como nessa obra existem a Infinitu-
de e a Eternidade, não pode haver ociosidade, nem desigualdade, maioridade
ou menoridade. Pois, se houvesse Bondade em Deus sem a criação do bem e
Infinitude sem a criação do infinito, e o mesmo da Eternidade, do Poder, da
Sabedoria e da Vontade, existiria em Deus ociosidade de Bondade, Infinitude,
Eternidade, Poder, Sabedoria e Vontade, e tal ociosidade seria contra a Bon-
dade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade de Deus. Por
isso, assim como é suficiente Deus ser em Unidade, basta à Unidade uma pa-
ternidade, uma filiação e uma espiração, pois o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são a Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade.
E como o Pai engendra o Filho com toda a Sua Bondade, Sua Infinitude, Sua
Eternidade, Seu Poder, Sua Sabedoria e Sua Vontade, existem no Filho toda a
Bondade, a Infinitude, a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade do Pai.
O mesmo ocorre com o Espírito Santo, que é toda a Bondade, a Infinitude,
a Eternidade, o Poder, a Sabedoria e a Vontade do Pai e do Filho, procedendo,
assim, infinita e eternamente todo o Espírito Santo de todo o Pai e de todo o
Filho e por todo o Pai e por todo o Filho. É natural existir amor entre pai e fi-
lho, e naturalmente o homem ama a virtude que nasce de seu ato de lembrar,
entender e amar. Ora, se o pai ama o filho que é engendrado de seu corpo e do
corpo da fêmea, quanto mais amaria seu filho se o engendrasse somente de
si mesmo, de todo si mesmo e igual a si mesmo! E se a alma ama seu lembrar,

226
entender e amar que nascem de sua virtude, mais amaria, se seu lembrar,
entender e amar fossem sua própria virtude e fossem ela própria!

Essa forma circular de redação tinha o objetivo de fazer o leitor (ou o ou-
vinte “infiel” — judeu ou muçulmano) ascender espiritualmente em direção
a Deus. Assim, Llull tentava explicar o inexplicável, isto é, o êxtase místico do
contato com Deus. Esta forma de redação é tipicamente medieval e se explica
também pela ideia neoplatônica que o conhecimento da alma — e, portanto,
o de Deus — se dava através de um movimento circular.
Na obra Arte Breve (1308), Llull expõe o significado de seu alfabeto e o da
sua primeira figura:

“A razão pela qual fazemos esta Arte Breve é para que a Arte Magna
seja mais facilmente conhecida, pois se se conhece esta, tanto a Arte
supracitada como as outras artes podem ser conhecidas e aprendidas
com facilidade. A finalidade dessa Arte é responder a todas as ques-
tões, sempre que se saiba o significado de cada termo.”

“Colocamos um alfabeto nessa Arte para com ele poder fazer figuras
e mesclar princípios e regras para investigar a verdade, já que por
meio de uma letra que possui muitos significados, o intelecto é mais
geral para receber muitos significados e fazer ciência. Convém saber
de memória este alfabeto, já que de outro modo o artista dessa Arte
não poderá aplicá-la bem.”

O Alfabeto

B significa bondade, diferença, se?, Deus, justiça e avareza.


C significa magnitude, concordância, que?, anjo, prudência e gula.
D significa eternidade ou duração, contrariedade, de que?, céu,
fortaleza e luxúria.
E significa poder, princípio, por que?, homem, temperança e soberba.
F significa sabedoria, meio, quanto?, imaginativa, fé e acídia.

227
G significa vontade, fim, qual?, sensitiva, esperança e inveja.
H significa virtude, maioridade, quando?, vegetativa, caridade e ira.
I significa verdade, igualdade, onde?, elementativa, paciência e mentira.
K significa glória, minoridade, como e com que?, instrumentativa,
piedade e inconstância.

B
Bonitas
K M C
ag
Bonum ni
o ria M tu
Gl um ag do
s nu
o rio m
Gl

Duratio
D

Duran
Veritas

I
Verum

s
Vi

ns
rt

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Pot
Vi

su

e
E
rt

Pot
m
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H
Vole ens
n s Sapi
Volu a
ntas enti
Sapi
G F

Da Segunda Parte, das quatro figuras

1. Da primeira figura, significada por A

Esta parte se divide em quatro partes, ou seja, em quatro figuras. A


primeira figura é a A. Esta figura contém em si nove princípios, a saber,
bondade, magnitude, etc., e nove letras, ou seja, B, C, D, E, etc.

228
Esta figura é circular, já que o sujeito se transforma em predicado e vice-
versa, como quando se diz: “a bondade é magna”, “a magnitude é boa”,
etc. Nessa figura o artista da Arte inquire a conjunção natural entre o su-
jeito e o predicado, sua disposição e proporção, para que possa encontrar
o meio termo que lhe permita chegar à conclusão.
Qualquer princípio tomado em si mesmo é absolutamente geral, como
quando se diz “bondade” ou “magnitude”. Mas quando um princípio se
refere a outro, é subalterno, como quando se diz “bondade magna”, etc.
E quando algum princípio se refere a algo singular, então é um princípio
especialíssimo, como quando se diz “a bondade de Pedro é grande”, etc.
Assim, o intelecto dispõe de uma escala ascendente e descendente, de
um princípio absolutamente geral até um não absolutamente geral nem
absolutamente especial, e de um não absolutamente geral nem absoluta-
mente especial a um absolutamente especial. O mesmo se pode dizer do
ascenso dessa escala.
Nos princípios dessa figura se encontra incluído tudo o que existe,
pois tudo o que existe ou é bom, ou é grande, etc., como Deus e o anjo,
que são bons e grandes, etc. Por isso, tudo o que é se pode reduzir aos
supracitados princípios.”

Os princípios básicos da Arte foram extraídos do substrato comum da cul-


tura medieval, substrato compartilhado por cristãos, judeus e muçulmanos,
e que, em boa parte, deriva da síntese neoplatônica que, durante os séculos
anteriores ao XIII, foi adaptada às três crenças monoteístas. A atribuição de
virtudes a Deus, identificadas com Sua própria essência, não era estranho à
teologia muçulmana ou judaica, pois remetia às hadras ou nomes divinos dos
teólogos do Islã, e às sephiroth da cabala hebraica. Por fim, devemos destacar
que não há referências especificamente cristãs nas dignidades divinas: con-
ceitos como a Trindade (ou Paternidade, Filiação, etc.) não entram na figura A,
característica mais moderna que medieval da filosofia de Ramon Llull.

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tipografia Milo Pro e Milo Serif Pro, projetadas
por Michael Abbink e Paul Van Der Laan, no corpo
do texto e Civitype FG no título.
capa papel supremo 300g/m²
miolo papel Offset 90g/m²
impressão xxxxxxxxxxx

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Bento Silva Santos

É professor Associado no Departamento de


Filosofia da Universidade Federal do Espírito
Santo, membro permanente do programa de pós-
graduação (Mestrado) em Filosofia e Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq, categoria 02.
Tem experiência nas áreas de Filosofia e Teologia,
com ênfase em Filosofia Medieval, atuando
principalmente nos seguintes temas: Mística,
Fenomenologia e Hermenêutica; Estratégias de
apropriação da Filosofia antiga e medieval por parte
da Filosofia contemporânea. Última publicação:
Fenomenologia e Idade Média.Curitiba: Editora
CRV,2013, 221p.
Site pessoal: http://www.bentosilvasantos.com

Ricardo da Costa

É professor do Departamento de Teoria da Arte


e Música e dos Programas de Pós-graduação
de Artes e de Filosofia da UFES e do Doutorado
internacional (à distância) do Institut Superior
d’Investigació Cooperativa IVITRA [ISIC-2012-022]
Transferencias Interculturales e Históricas en la
Europa Medieval Mediterránea.
Site pessoal: http://www.ricardocosta.com/

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ISBN: 978-85-63765-20-8
www.neaad.ufes.br
(27) 4009 2208

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