Aílton Krenak
Aílton Krenak
Aílton Krenak
Fala de Ailton Krenak na Assembléia Constituinte. Fonte: Trailer do filme Índio cidadão?2
Eu espero não agredir com a minha manifestação o protocolo desta casa. Mas eu
acredito que os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como
ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela
ignorância do que significa ser um povo indígena. Povo indígena tem um jeito de
pensar, tem um jeito de viver. Tem condições fundamentais para sua existência e
para a manifestação da sua tradição, da sua vida e da sua cultura que não coloca em
risco e nunca colocaram a existência sequer dos animais que vivem ao redor das
áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Eu creio que nenhum dos
senhores nunca poderia apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que
colocaram em risco seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer
grupo humano nesse país. E hoje nós somos alvo de uma agressão que pretende
atingir na essência a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de
que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos, que
sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro para manter uma campanha incessante
de difamação. Que saiba respeitar um povo que sempre viveu à revelia de todas as
riquezas. Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no
chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como um povo que é inimigo dos
interesses do Brasil, inimigo dos interesses da nação, e que coloca em risco qualquer
desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito
milhões de quilômetros quadrados do Brasil. E os senhores são testemunha disso. Eu
agradeço a presidência desta casa, agradeço os senhores e espero não ter agredido
com as minhas palavras os sentimentos dos senhores que se encontram nesta casa.
(Fala de Ailton Krenak na Assembléia Constituinte de 1987. Fonte: Índio Cidadão?,
2014)
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
2
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q Acessado em 11 de dezembro de
2016.
3
Estas últimas foram realizadas respectivamente no Paço das Artes e no SESC Pinheiros, ambas em São
Paulo com curadoria de Moacir dos Anjos e no caso da segunda em parceria com a equipe do MAE/USP.
A equipe de curadoria da 32ª Bienal de São Paulo foi composta por Jochen Volz, Júlia Rebouças, Gabi
Ngcobo, Lars Bang Larsen e Sofía Olascoaga.
4
Organização criada em 1980, fruto do movimento indígena brasileiro nas décadas de 1970 e 1980.
216
217
5
Conforme declaração de Ailton Krenak no filme “Índio Cidadão?”, a presença de muitos indígenas
vestidos com trajes de suas respectivas etnias, pintados, adornados, causou grande impacto e
estranhamento no Congresso durante a Assembléia Nacional Constituinte. O acionar de elementos
identitários tem sido recorrente nas manifestações políticas realizadas também nos últimos anos e é um
dos aspectos enfatizados na exposição Adornos do Brasil Indígena: resistências contemporâneas.
218
como é o caso entre diversos grupos indígenas brasileiros, é para o corpo da pessoa que
se volta a atenção quando esta se encontra em período de transformação de seu status ou
condição social. A intervenção no corpo marca a passagem, transformação e neste
sentido e contexto, é inscrição da própria diferença com relação e na relação com as
demais parcelas da sociedade brasileira.
Para Schechner, toda ação, inclusive as não desempenhadas apenas por seres
humanos, pode ser analisada como performance. Para o autor, a performance seria um
“amplo espectro” de atividades que vão desde o ritual e o play (em todas as suas
variedades desconcertantes e de difícil definição) até formas populares de
entretenimento, festas, atividades da vida diária, os negócios, a medicina e os gêneros
estéticos do teatro, da dança e da música.” (Schechner, 2013: 37, 38). Neste sentido,
chamo atenção para a definição de performance como atividade, ação7 e para o como
ela pode ser produtiva na análise da ação de Krenak, uma vez que possibilita enfatizar
que algo está acontecendo. Neste sentido, a pintura corporal é importante naquele
contexto, mas não (só) por ser interessante em si – o efeito teria sido muito
possivelmente diverso se Krenak tivesse subido ao palco com o rosto já pintado e
realizado sua fala. O que confere grande potência àquele espaço/tempo específico é que
ele é sede de um acontecimento8. A questão que nos interessa aqui, é pois, o que está
acontecendo e como está acontecendo?
Muitas etnografias, e em grande medida aquelas voltadas ao estudo das artes
indígenas, mas não somente, tem destacado que para os grupos ameríndios humanidade
não é condição que está dada, mas precisa ser constantemente construída com base em
uma série de intervenções, sobretudo corporais e que envolvem a relação com diferentes
seres, humanos e não-humanos. Seria para a ação enquanto produtora de uma
humanidade específica que estaria chamando atenção a ação de Krenak?
O ritual realizado por Ailton Krenak obteve sua eficácia, resultando na
promulgação da Constituição de 1988, um marco na redefinição do estatuto jurídico dos
povos indígenas, que passam da condição de tutela à condição de sujeitos de direito,
tendo seus direitos territoriais reconhecidos, assim como sua cultura, língua costumes e
7
Para Schechner performance poderia ainda ser definida pela implicação de três ações ou operações:
ser/estar (se comportar); fazer (atividade de tudo que existe, dos quarks aos seres humanos); mostrar o
que se faz (ligado à natureza dos comportamentos humanos) (apud Féral, 2008: 198)
8
Tal como propõe Schechner a propósito das pinturas rupestres nas cavernas, mais que as pinturas em si e
o que elas possam representar, elas são interessantes por revelarem espaços onde algo aconteceu. Nas
palavras de Schechner: “As cavernas eram teatros. Eram espaços onde algo aconteceu” (Schechner,
2013:47).
220
9
Este, em texto descritivo de sua biografia e ação é identificado como liderança indígena, mas tal texto
integra o tópico “artistas contemporâneos que participam da exposição”. Neste sentido, a posição entre
sugerida por sua ação também se estende à forma como esta pessoa é referida.
221
222
10
Digo sob certos aspectos porque em suas diferenças também repousam questões insolúveis, a exemplo
da que o conceito de performance compartilha com o conceito de arte: se eles seriam ou não conceitos
transculturais.
223
não apenas poderiam ser conciliados analiticamente como se afetam mutuamente nas
práticas culturais contemporâneas.
Autores que vem se propondo a refletir sobre performance ou sobre o teatro
performativo ou pós dramático11 podem ser bastante elucidativos dos imbricamentos
entre performance artística e ritual, que estamos nos propondo a tratar aqui. Cassiano
Quilici (2015) se propõe a analisar experiências no teatro, performance e outras
modalidades de arte que não tem voltado sua ênfase ao entretenimento, mas que tem
buscado experiências de outra natureza, tendo como ponto de partida “o estranhamento
com relação a um envolvimento automático com a existência”. Para que estas
experiências possam se desenvolver, nas palavras do autor:
como “um conjunto de práticas e exercícios que configuravam modos de vida, ligadas a
diferentes escolas filosóficas” da antiguidade greco-latina, configurando uma verdadeira
“arte de viver” (Quilici, 2015: 138, 139).
As noções de “arte de viver” ou “arte da existência”, como propõe Quilici
(2015: 142), não se ajustam a categorias e divisões habituais, tais como teoria e prática,
arte e vida, ética e estética, inovação e tradição, permitindo-nos questionar temas
recorrentes na arte moderna e contemporânea. O primeiro deles diria respeito à abolir
fronteiras entre arte e vida. A noção de “arte da existência”, segundo o autor, “coloca a
discussão da arte num patamar não só estético, mas ontológico: a arte torna-se uma
forma de investigar a natureza do fazer e do agir humanos, de desvelar suas
potencialidades mais altas” (Quilici, 2015: 142). Desta perspectiva, prossegue o autor,
podemos melhor entender a proposição do performer e escultor Joseph Beuys, de que
“cada homem é um artista”. Tal concepção antropológica da arte não deve ser lida,
porém, no sentido de um “vale tudo”, mas apontaria para a arte “como parte do processo
do homem realizar a sua própria humanidade” (Quilici, 2015: 142).
A noção de “arte da existência” apontaria para a arte enquanto “um modo de
criar e cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco mesmos” (Quilici,
2015: 143), para práticas de cuidado de si e produção de humanidade. E nesta direção
poderia, tal como a noção de performance de Schechner, contemplar uma série de
formas expressivas elaboradas por culturas diversas, situadas em diferentes tempos
(como os exemplos evocados por Foucault) ou espaços (que na contemporaneidade
habitam mundos e cosmologias diversas). Não por acaso, diversos artistas modernos e
contemporâneos se interessaram em desenvolver trabalhos na relação com práticas que
remontam a rituais de povos diversos, muitas vezes ligados a diferentes matrizes
religiosas (do cristianismo, a religiões de matriz africana, budista,etc), mesmo que,
conforme Quilili, influências como o Zen budismo (apenas para citar um exemplo)
tenham sido assimiladas no meio artístico americano mais como um filosofia estética
que como prática monástica (Quilici, 2015: 146).
As “atividades” de Allan Kaprow, pela relação de ruptura que evocam com
relação aos cerimoniais cotidianos e na relação artista/público12, a prática performática
12
Quilici assim descreve os exercícios de estranhamento do cotidiano propostos por Kaprow: “O modo de
cumprimentar, de ceder a passagem para uma pessoa na porta, de sentir ou ouvir a própria respiração, as
ações mais simples são rearranjadas em roteiros simples, que buscam trazer uma percepção estranhada do
banal”. (Quilici, 2015: 144). Viver, conforme propõe Quilici (2015: 145), se transformaria então numa
experiência estética, mas esta não entendida como campo da produção humana, mas qualidade perceptiva.
225
de Marina Abramovic que se aproxima de uma ideia de “ascese”, assim como o trabalho
de John Cage, que redefine a noção de música a partir dos ruídos cotidianos e da
presença do silêncio (com influência do zen budismo), mas também práticas como as de
Lygia Clark, Helio Oiticica (este sobretudo na relação com a expressividade das práticas
sociais populares), dentre tantos outros, são alguns exemplos que, de diferentes formas
contribuíram para uma redefinição da arte e do artista a partir de práticas perceptivas,
existenciais e políticas. Noções como “acontecimento”, assim como a de “artista
propositor”, mais do que criador, são algumas das noções que emergem destas práticas
orientadas ao “aprofundamento da experiência perceptiva” (Quilici, 2015: 147).
A abordagem de Quilici nos possibilita observar os movimentos que (parte da)
arte moderna e contemporânea tem feito de modo a desfazer as fronteiras que separam
arte e vida, repensando definição e a função desta, que sob certos aspectos, dialogariam
com a forma como podem ser concebidos não apenas os rituais, mas também outras
formas expressivas relacionadas, por exemplo, aos grupos indígenas. Retomo aqui como
pontos de conexão entre o fazer artístico e os rituais e outras formas expressivas a
evocação da condição de estranhamento e liminaridade com relação à existência, a
orientação para a transformação dos sujeitos (considerando que esta se opera de
inúmeras formas), produzindo criativamente modos de relação com o mundo, com os
outros e com a existência de modo menos automático e mais potente. Este fazer artístico
independeria de um espaço específico para o jogo poético e da espetacularidade,
inserindo a atividade artística na invisibilidade do cotidiano. Enquanto um dos meios de
produzir a própria humanidade, esta abordagem da arte enquanto “arte da existência” se
aproximaria de uma abordagem antropológica, que se propõe a refletir acerca das
formas expressivas indígenas.
Para retornar à pintura corporal, acionada por Krenak na ação junto à
Assembléia Constituinte, é com referência aos sentidos que ela apresenta nos contextos
indígenas – enquanto uma arte da existência, voltada aos procedimentos constantes de
produção de humanidade que proponho que seja abordada. No deslocamento da ação a
um contexto público, político (em seu sentido estrito, governamental) a noção de
transformação (do corpo e pessoa), eficácia e produção de humanidade seguem
presentes, mas estas se dão de modo diverso, outras questões são postas em jogo e
sobretudo, estas dizem respeito a outros sujeitos postos em relação e a dinâmicas
diversas de marcam estas relações. A possibilidade de ação e eficácia das ações na
226
esfera política (da Constituinte) não está desconectada porém, das possibilidades de
ações e das relações cosmopolíticas indígenas, antes elas afetam-se mutuamente. Tanto
a ação desenvolvida por Krenak está afetada por práticas indígenas como a eficácia
visada na participação indígena na Assembléia Constituinte diz respeito à expectativa de
reconhecimento e potencialização de seus modos específicos de existência.
Ainda com relação à ação de Krenak, considerando os deslocamentos que ela
opera e seu possível imbricamento com relação à performance artística13, interessa
destacar algumas características propostas por Féral entorno da performance ou do
teatro performativo, vislumbrando possibilidades de aproximações. Dentre as
características do teatro performativo destacadas por Féral (2008: 198) estão a
transformação do ator em performer, implicando no engajamento do artista no sentido
de um maior investimento de si mesmo; a descrição dos acontecimentos centrados na
imagem e na ação em detrimento da representação e do texto; apelo a uma receptividade
diversa do espectador. A ênfase na ação, no “fazer” (enfatizado por Schchner) enquanto
ponto nevrálgico da performance cênica se conecta à noção de performatividade, cuja
origem remonta às pesquisas lingüísticas de Austin e Searle, que enfatizavam os verbos
performativos, que executam uma ação. Na performance, assim como no teatro
performativo e outras modalidades de artes em que o “fazer” torna-se crucial para a
existência da obra/evento, observa-se uma ênfase no processo, em detrimento do
produto final, do objeto ou da representação. Este aspecto é associado por Féral
enquanto amplificando o aspecto lúdico14 dos eventos e dos que participam dele (Féral,
2008: 203). Por não ser nem verdadeira nem falsa, a performance cênica, segundo Féral
desconstrói códigos e opera por meio da ambigüidade das significações. Nas suas
palavras:
a performance toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve
descontruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador (...) Essa
desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos
forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma
referência a outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a
cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética . O performer
instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido (Féral, 2008: 203,204).
13
Tal como sugere o curador de uma das exposições que ela possa ser lida.
14
Quilici (2015) também chama a atenção para o aspecto lúdico de determinadas manifestações artísticas,
“que carregam a potência do absurdo e do nonsense”, desmanchando atitudes utilitárias e conversionais.
Cita como exemplos tanto as “atividades” de Kaprow como as “máquinas inúteis” dadaístas. Nestes
casos, o lúdico emerge enquanto estratégia crítica (Quilici, 2015: 145,146).
227
Neste sentido, a ação de Krenak uma vez que parte do real ao mesmo tempo
em que visa afetá-lo por meio de um fazer lúdico que desconstrói a realidade instaurada,
desloca signos que se tornam fluidos, deslizantes, abertos a novos significados, encontra
pontos em comum com a forma como Féral caracteriza o teatro performativo. O caráter
lúdico da ação executada por Krenak também instensifica sua presença que implica
também num maior engajamento dos presentes naquele acontecimento político e nos
diversos contextos em que está sendo reativada. “A atenção do espectador se coloca na
execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução
permanente. Uma estética da presença se instaura” (Féral, 2008: 209). A vividez e
presença provocante do homem estão, para Hans-Thies Lehmann (2007: 225), em
primeiro plano na performance artística e teatro performativo.
Com relação à inter-relação primordial no teatro performativo, que conecta
performer, objetos e corpos e mais especificamente ao possível engajamento do
espectador na ação, Féral aponta para a possibilidade de o espectador, apesar do
recorrente convite ao engajamento, olhar para as ações sem engajar-se nela, de
permanecer no exterior da ação sem ser absorvido por ela. Tal aspecto poderia ser um
ponto importante de diferenciação entre a performance artística e os rituais realizados
em contextos indígenas, por exemplo, em que neste último caso, o engajamento se
apresenta enquanto condição de eficácia dos rituais e onde a noção de espectador não se
faz presente. Dentre outras possíveis distinções entre as práticas rituais realizadas em
sociedades tradicionais e aquelas desempenhadas nas performances artísticas ou no
teatro performativo, Lehmann (2007: 230), sugere que no caso destes últimos o artista
“não pode agir efetivamente como um xamã, portanto como um outsider socialmente
reconhecido e admirado que transgride limites em favor dos outros”. Na sociedade
contemporânea, prossegue o autor, “cada artista realiza o ritual por sua própria conta”
(Lehmann, 2007: 230).
Mesmo que uma abordagem acerca do ritual e da performance enquanto
ferramentas teóricas possam apontar para pontos de contato entre rituais no campo
ampliado do social e no campo restrito da arte, é preciso ter claro que as diferenças que
estão em jogo não podem ser negligenciadas, sob pena de desconsiderar a que tais ações
se propõe ou ainda mais, o que elas tem a dizer sobre o tempo, espaço e as relações
onde estão inseridas. Também cabe apontar para os perigos de definições demasiado
generalizantes dos rituais e performances artísticas, dada a grande diversidade em jogo
228
15
Para uma descrição da performance ver Fischer-Lichte (2008).
16
A autora menciona, por exemplo, que nos séculos XIII e XIV na Europa, procissões de flagelados eram
realizadas conduzindo seus rituais publicamente em frente a grandes multidões (Fischer-Lichte, 2008:
13).
229
A implicação efetiva dos espectadores num drama que oscila entre o estético e
o social ao ultrapassar a fronteira da representação via interferências efetivas no corpo
da artista (que também oscila entre sujeito e objeto17) traz à arte da performance (e
demais modalidades de arte por ela afetadas) a possibilidade de práticas que
constantemente borram fronteiras por longo tempo sustentadas no campo da arte e da
forma como esta é concebida com relação a outras esferas da vida, realinhando, através
da proposição de eventos mais do que de obras de arte, a conexão entre sentir, pensar e
agir (Fischer-Lichte, 2008: 18).
Retorno uma vez mais à ação de Krenak na Assembléia Constituinte e ao
deslocamento destas imagens a exposições de arte, considerando parte das contribuições
de Fischer-Lichte entorno da arte da performance. Esta última, como a ação política de
Krenak, conjugam a um só tempo ações no campo do social/político/ético e da estética,
visam transformações efetivas e ao mesmo tempo proporcionar uma experiência que
afete o público envolvido de forma física, sensorial, emocional, a tal ponto que os
convidem à ação. A conjunção do sentir, pensar e agir a que se refere Fischer-Lichte se
conjugam na fala e gesto de Krenak.
Ao transformar o seu próprio corpo (em gesto que poderia ser aproximado ao
do que fazem os artistas da performance) Krenak transforma o que era para ser um
discurso político em um evento, onde os presentes na Assembléia Constituinte ficam
suspensos entre a posição de “voyeur”, engajando-se emocionalmente na ação, mas
também são convocados, através da fala de Krenak, a agirem eticamente diante do
evento em curso. A transformação de seu corpo e o estado de presença evocado, como
já mencionado, dentre tantas leituras possíveis poderia ser evocativo de um momento de
passagem e transformação do estatuto da pessoa (indígena) levando em conta sua
posição na relação com o estado (de tutelado a sujeito de direito).
17
O que para Fischer-Lichte (2008: 17) constitui-se na redefinição de relações importantes às abordagens
hermenêutica e semiótica da estética.
230
Com relação à fala de Krenak, importante ressaltar que, assim como o gesto da
pintura, esta também pode ser entendida como oscilando ou mesmo se constituindo em
termos políticos e poéticos ao mesmo tempo. Tal como sugere Antonin Artaud (1993:
40) para uma proposta de teatro que leve em conta uma linguagem concreta ou “poesia
no espaço”, as palavras podem ser manipuladas enquanto objetos sólidos, com
capacidade de abalar as coisas. Nas palavras do autor,
Muito poderia ser dito sobre a potência da fala e das palavras em relação a
diversos grupos indígenas, palavras que são ditas, cantadas, que são imagens, poesias no
espaço com capacidade de presentificar mundos. Entretanto, vou me deter ao caso em
questão, enfatizando como a fala de Krenak intensificou sua própria materialidade ao
ser enunciada junto ao gesto da pintura facial, pretendendo agir sobre os espectadores.
Neste sentido, é interessante notar que a ideia de “encantamento” trazida por Arteaud
também foi acionada por Alfred Gell (2005) para uma abordagem acerca da arte
(ampliada a manifestações de outras sociedades) em artigo intitulado “A tecnologia do
encantamento e o encantamento da tecnologia” e sob certos aspectos, os sentidos
atribuídos por ambos os autores, se encontram.
A partir do exemplo das canoas das Ilhas Trobriand e suas proas esculpidas,
Gell chama atenção para os atributos de agência e intencionalidade das obras de arte,
que geram conseqüências no âmbito das relações sociais. Segundo o autor, ao chegar
em cada localidade, as canoas Trobriand geravam tal efeito de fascinação nos
trobriandeses que os impelia a dar continuidade às relações de trocas e circulação de
objetos que caracteriza o Kula, seu sistema cerimonial de trocas. Neste sentido, o autor
argumenta que o poder dos objetos provem dos processos técnicos que eles
personificam objetivamente, de modo que as perturbações causadas pelas proas são
interpretadas como “evidências do poder mágico que emana da tábua” (Gell 2005: 45 e
47), das quais resultam sua razão social e eficácia.
231
A fala e o gesto de Krenak também tem sua razão social e pretendem, através
do fascínio gerado, da comoção física e emocional produzirem sua eficácia no âmbito
das relações em questão. Krenak deixa claro nas suas palavras que as pessoas ali
presentes são co-responsáveis pelo que está em jogo naquele tempo/espaço, referindo-se
à ameaça de restrição dos direitos indígenas na redação/homologação da Constituição
Federal de modo mais restrito, mas também à responsabilidade do Estado pela violência
histórica sofrida pelos povos indígenas no Brasil. Uma ação que evoca o sentir, pensar a
agir (como sugeriu Fischer-Lichte, 2008) de quem está presente na Assembléia. Mesmo
que a ação dos presentes não possa se efetivar no exato instante de sua fala, ele ressalta
a responsabilidade de quem está presente, cuja possibilidade de atuação está no
horizonte dos acontecimentos em jogo naquele momento. As conseqüências desejadas
no âmbito das relações sociais, conforme propôs Gell (2005), assim a transformação dos
espectadores em atores, conforme sinalizou Fischer-Lichte ao tratar das performances
artísticas, se fazem presentes na ação de Krenak no contexto da Assembleia
Constituinte.
Ao serem deslocadas para espaços de exposição de arte, contudo, as imagens
da ação de Krenak possibilitam a outro público sentir e pensar diante do acontecimento
que pode ser revivido, atualizado. Mesmo deslocada de seu contexto original, a ação
não deixa de agir no mundo e sobre as pessoas que com ela estabelecem relação. Gera
efeitos nos espectadores, assim como tem integrado um movimento potencialmente
transformador no campo das artes num momento em que a (parte da) arte
contemporânea reivindica para si reaproximações com o político, com questões urgentes
em nosso tempo e com o interesse de uma revisão (ainda tímida) da história colonialista
que desconsidera as práticas expressivas, o pensamento e os modos de existência dos
povos indígenas na história do Brasil, posicionando-se diante das forças políticas
dominantes e atuantes no Estado que tem desconsiderado os direitos indígenas
garantidos pela Constituição de 1988.
Entretanto, se a possibilidade de ação dos espectadores estava clara na
execução da performance na Assembléia Constituinte, fica em aberto no âmbito da
reprodução das imagens da ação em exposições de arte contemporânea de que forma o
espectador pode engajar-se a ponto de tornar-se ator e co-responsável pelo que está em
jogo. Uma questão que pode apontar tanto para os limites desta reprodução em relação à
ação original quanto, pela atualidade das questões levantadas por Krenak e potência de
232
sua fala e gesto, impulsionar possibilidades de ação em aberto, que precisam ser
ativadas no contexto atual.
18
Durante a mesa “Resistências e poéticas indígenas” na 32ª Bienal de São Paulo, Davi Kopenawa,
comentando sobre o livro que é co-autor “A queda do céu”, declara que ele não escreveria um segundo
livro. Já o escreveu e não escreverá mais, pois difundir seu pensamento que pretende sensibilizar os não-
indígenas também implica, de alguma maneira na inserção do mundo da mercadoria que ele critica: na
produção de uma mercadoria de papel que implica na destruição de árvores, seres vivos que integram o
mundo animado ao qual ele propõe que cuidemos
233
22
Entrevista concedida a autora em 8 outubro de 2016.
23
Noção proposta por Krenak ao longo da realização da Aldeia SP: Bienal de cinema indígena.
235
24
Entrevista concedida a autora em 8 outubro de 2016.
236
25
Embora comparativamente, a 32ª Bienal tenha tido maior expressividade de obras que trabalharam com
temas que tocam em questões indígenas e que estes tenham colaborado em trabalhos de artistas,
participado de eventos que antecederam e seguiram ocorrendo ao longo da mostra e que produções
indígenas tenham sido mostradas pelo Coletivo Vídeo nas Aldeias (o que já é bastante interessante e
importante), realizadores indígenas que estão reivindicando sua presença no campo da arte
contemporânea ainda não tem espaço expressivo nestas e outras mostras que tem buscado aproximar as
artes indígenas e contemporânea.
26
Trecho da fala de Krenak na Assembleia Constituinte, 1987.
27
Ao contrário da epistemologia da modernidade ocidental em que conhecer é objetivar, o pensamento
xamânico evocado por Krenak, “é um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes, um ideal
de conhecimento (...) em que conhecer é personificar”, visa um “algo” que é “alguém”, sujeito, agente,
pessoa (Viveiros de Castro, 2002: 358).
237
Vamos pensar nessa mágica de um rio que mergulha quando o que oferecem pra ele
não é o lugar próprio para um rio. Eu acho que aquele rio [Watu - Rio Doce]
também juntou ação com o instante que estamos vivendo. O nosso rio é subterrâneo
hoje e nós vemos correr uma lama. (...) Nós estamos vendo e agindo diante de uma
situação que é mesmo escandalosa. Nós já chegamos ao ponto não só de ameaçar,
mas fazer fugir de nossas paisagens até mesmo um rio. Então, que essa incerteza que
estamos experimentando possa mover a nossa vontade por ação. Não uma ação
pontual, sobre uma ou outra coisa. Mas pensar essa terra-planeta como um
organismo vivo que exige de nós, seus filhotes, que a gente tenha isso que o nosso
pajé falou, ética da terra-planeta. (Ailton Krenak, 15 de novembro de 2016).
Referências
ADORNOS do Brasil Indígena: Resistências contemporâneas. São Paulo: SESC, USP (co-
realização), 2016. Catálogo da Exposição realizada no SESC Pinheiros, em São Paulo, de 7 de
setembro de 2016 a 8 de janeiro de 2017.
ARTAUD, Antonin. A encenação e a metafísica. In: O Teatro e seu duplo. Martins Fontes, São
Paulo, 1993.
CAIXETA, Ruben. Entrevista com Vincent Carelli. In: Catálogo do Forumdoc. BH 2009. 13º
Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo. Belo
Horizonte, 2009, p.149-160.
CATÁLOGO DA 29ª BIENAL DE SÃO PAULO: Há sempre um copo de mar para um homem
navegar/ Curadores Agnaldo Farias, Moacir dos Anjos – São Paulo: Fundação Bienal de São
Paulo, 2010.
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO A QUEDA DO CÉU. Curador Moacir dos Anjos, 2015.
Catálogo da Exposição realizada no Paço das Artes, em São Paulo de 10 de abril a 05 de junho
de 2015 e no SESC Rio Preto, em São José do Rio Preto de 18 de maio a 28 de agosto de 2016.
CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, São Paulo. Povos Indígenas no
Brasil 1987/88/89/90. (Série Aconteceu Especial, 18). São Paulo, CEDI, 1991.
DOS ANJOS, Moacir. Adorno e Luta. In: Adornos do Brasil Indígena: Resistências
contemporâneas. São Paulo: SESC, USP (co-realização), 2016. Catálogo da Exposição
realizada no SESC Pinheiros, em São Paulo, de 7 de setembro de 2016 a 8 de janeiro de 2017.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta #8,
São Paulo: Revista do PPG em Artes Cênicas, 2008.p.197-210.
FERRAZ, Marcos G. O adorno como arma da resistência indígena. In: Arte!Brasileiros. 3 de
outubro de 2016. Disponível em: http://brasileiros.com.br
FISCHER-LICHTE, Erika. The transformative power of performance. In: The transformative
power of performance. London and New York: Routledge, 2008. p.11-23.
GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Sextante Editora. Porto, 2011.
GELL, Alfred. A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia. In: Concinnitas, ano 6,
volume 1, número 8, 2005.
ÍNDIO CIDADÃO? Direção: Rodrigo Siqueira. Brasília: 7G Documenta/Machado Filmes,
2014. Documentário, 52 min.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro e Performance. In: Teatro Pós-dramático. São Paulo, Cosac
Naify, 2007. p. 223-233.
MÜLLER, Regina Polo. Ritual, Schechner e performance. In: Horizontes Antropológicos ano
11, n.4, 2005. p. 67-86.
O BRASIL DOS ÍNDIOS: UM ARQUIVO ABERTO. Publicação comissionada pela Fundação
Bienal de São Paulo em ocasião da 32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva. Vídeo nas
Aldeias, 2016.
QUILICI. Cassiano Sydow. Teatro, performance e “inquietude de si”. In: O ator-performer e as
poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015. p. 135-150.
238
239