Em Nome de Kardec (Adriano Calsone)

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2 – Adriano Calsone

EM NOME DE KARDEC

Adriano Calsone

Lançado em 2015
Vivaluz Editora

Versão digitalizada: janeiro, 2017


3 – EM NOME DE KARDEC

Em nome de
Kardec
4 – Adriano Calsone

Índice

Prefácio — pag. 6
Introdução - Esclarecimentos necessários — pag. 9
Madame Blavatsky e a sua Sociedade Espírita Egípcia — pag. 15
Artista Blavatsky na França — pag. 20
Nasce a Sociedade Teosófica — pag. 22
Spiritheosophistes — pag. 29
Financiamento espiritista de Ísis sem véu — pag. 37
Surgimento da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos— pag. 41
Polêmica à vista: Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses — pag. 47
Suplemento teosófico na Revista Espírita — pag. 53
A Condessa mística e seu macaco de pelúcia — pag. 62
França, Coração do Mundo, Pátria do Esotérico? — pag. 68
Errare humanum est... — pag. 72
Regras da Sociedade Teosófica — pag. 79
A cada um segundo suas obras... — pag. 86
Diferenças entre Espiritismo e Teosofismo — pag. 92
1883 - o ano que não acabou — pag. 97
Inquietações kardecistas — pag. 100
Comitê de leitura da Revue barra artigos teosóficos — pag. 105
5 – EM NOME DE KARDEC

Kardecistas contra teosofistas — pag. 113


Helena da Índia retorna a Paris — pag. 118
H.P.B. e P.G.L. - a amizade que azedou — pag. 123
Camille Flammarion e sua S.T.O.O — pag. 128
A mulher dos cabelos de prata — pag. 132
Afinal, o que é a Teosofia? — pag. 140
Propagação do Teosofismo na França — pag. 146
Artigos na Revue sobre a Teosofia (de 1876-1889) — pag. 152
Bibliografia — pag. 159

Sobre o autor — pag. 161


6 – Adriano Calsone

Prefácio

Falar em nome do Codificador do Espiritismo. Esta é uma


responsabilidade que muitos assumem sem atinar para os impactos da
influência que exercem sobre aqueles que estão iniciando as
descobertas espirituais. Seguir Kardec é seguir os princípios revelados
pelos espíritos superiores, sob a orientação do Espírito da Verdade.
Em nossas experiências espirituais, após deixarmos o corpo
físico, chega o momento do balanço das conquistas e derrotas. Morrer
é enfrentar, acima de tudo, a verdade sobre o quanto de valor
conseguimos conquistar em nossa passagem pela Terra. Na maioria
das vezes, o resultado nos entristece. Então, somente o recomeço pode
aplacar a dor de ver desperdiçada uma encarnação. Aproveitamos ao
máximo a permanência no mundo espiritual para aprender e, com
relativa lucidez, trabalhar em nome deste Espírito da Verdade, o qual
Kardec soube honrar, desincumbindo-se com êxito de sua difícil e
árdua missão.
Falar em Nome de Kardec é assumir para a vida esse
compromisso de servir ao Bem, à Verdade, doa o que e a quem doer.
Esta obra nos brinda com reflexões preciosas. Em sua linguagem
agradável, a leitura flui com facilidade. É, de fato, um prazer
acompanhar o autor em suas descobertas sobre fatos do passado que
foram tão marcantes, a ponto de desencadearem a ruína do
Espiritismo na Europa e nos Estados Unidos. E a sua relevância está
7 – EM NOME DE KARDEC

justamente em apresentar um momento do passado que se repete no


presente.
O trabalho de fundação e divulgação do Espiritismo transferiu-
se para a pátria do Evangelho. Aos brasileiros foi concedida a
oportunidade de guardar esse tesouro espiritual e a incumbência de
resguardar e divulgar a Doutrina Espírita.
Neste momento, grandes lideranças do Movimento Espírita
retornam ao mundo espiritual. Almas valorosas que, cumprindo sua
missão, voltam para aferir os resultados e fazer a avaliação de suas
experiências terrenas. Muitos, mal retornam, já assumem novas
responsabilidades. Afinal, o descanso é a consciência serena e a paz do
dever cumprido.
Essas lideranças deixam um vazio, tal qual o Codificador outrora
deixou. E esse vazio será fatalmente preenchido. Novos trabalhadores
estarão à frente, na direção do Espiritismo no Brasil e pela sustentação
deste legado em todo o mundo.
Mais do que nunca, que as bases do trabalho de Kardec sejam
fortalecidas entre os espíritas que se comprometeram a servir em suas
fileiras. Que todos os que se dizem espíritas, realmente o sejam. São
inúmeros os desafios em distinguir-se com clareza o que é o
Espiritismo trazido pelo Espírito da Verdade, e o que se fez do
espiritismo, adaptando-o às necessidades de cada um, às influências
presentes e passadas de cada alma.
Sabemos muito bem quais são essas dificuldades. Nós as
experimentamos pessoalmente no passado, confundindo Espiritismo
com outras correntes de pensamento. Amargamos arrependimento.
Entretanto, aqui estamos, secundando os esforços daqueles que estão
na Terra para trabalhar para o Bem, servindo a Jesus. Somos muitos e
permanecemos em estreita sintonia com os que se comprometeram
em levar o Espiritismo avante. E creiam-me: nada é comparável ao
êxito espiritual. Somente aqueles que venceram, superando os
desafios naturais da jornada, conhecem a plenitude de chegar ao
8 – Adriano Calsone

termo da encarnação espiritualmente vitoriosos.


Trago sempre comigo as palavras de Erasto aos espíritas:
"Ó verdadeiros adeptos do Espiritismo! Sois os escolhidos de
Deus! Ide e pregai a palavra divina. É chegada a hora em que deveis
sacrificar à sua propagação os vossos hábitos, os vossos trabalhos, as
vossas ocupações fúteis. Ide e pregai. Convosco estão os espíritos
elevados."
O convite permanece. Aqui estamos para, juntos, prosseguirmos,
em Nome de Kardec, nessa tarefa em favor do progresso e libertação
da humanidade.
Que a paz de Jesus nos envolva a todos.
Deste vosso servo e servo de Jesus.
Camille Flammarion
(Página psicografada pela médium Sandra
Carneiro em Atibaia, 17 de junho de 2015)
9 – EM NOME DE KARDEC

Introdução
Esclarecimentos necessários

Acreditamos que a expressão Espiritismo teosófico seja um


neologismo nosso, que não consta em nenhuma literatura espírita ou
teosófica. É um termo novo, criado por nós para tentarmos
compreender, ao longo deste livro, os porquês da aliança acalorada
que fora estabelecida entre a Teosofia e a Filosofia Espírita, a partir de
1873, na França.
Allan Kardec em nada influenciou essa união vibrante, já que
havia desencarnado quatro anos antes do início dessas aproximações.
Seus pensamentos ou escritos, muito menos...
Que fique bem claro — a quem quer que seja — que este
trabalho nasceu do acaso, se é que existe acaso. Acreditamos que não!
Trata-se, portanto, da mais despretensiosa investigação
histórica do período de 1873 a 1883, década em que a Teosofia
mergulhou no Espiritismo e vice-versa, em que essa inesperada
conexão era completamente desconhecida por nós.
Assim, considerando esse recorte de análise da Teosofia no
Espiritismo, desejamos permanecer longe de qualquer especulação
sobre o que é certo ou errado diante do que ocorrera entre a doutrina
10 – Adriano Calsone

secreta, de Blavatsky, e a doutrina da terceira revelação, de Kardec.


Tudo que fora levantado neste trabalho partiu de pesquisas
primárias e secundárias, seja diretamente na fonte, por meio da
multifacetada Revista Espírita publicada depois de 1859, ou em
documentos de pesquisadores sérios ligados aos temas.
Antes de começarmos a escrever esta obra, mal sabíamos o que
era a Teosofia, embora ainda não saibamos exatamente o que ela
possa significar, já que nos pareceu ser mesmo uma doutrina secreta
— fechada e reservada a poucos — como intitularia a sua fundadora
Helena Blavatsky, em 1877, numa de suas reuniões teosóficas
americanas: "a Sociedade Teosófica tem sido, desde a sua fundação,
uma organização secreta (...)".
E se continua intimamente secreta, aberta ou fechada
atualmente, nada sabemos!
Mas o que nos conduziu a esta pesquisa?
Tudo começou quando estávamos elaborando a biografia de
Madame Kardec, e tomamos contato com Beaucoup de Lumière —
brochura inédita no meio espírita atual — que fora publicada na Paris
de 1883, por uma amiga da viúva Kardec, mulher essa bastante
corajosa, que ficou conhecida por Madame Berthe Fropo.
No referido opúsculo Muita Luz — nos pareceu ser um dossiê
com desabafos e algumas importantes revelações — a femme forte
denuncia, em tom de indignação, com provas contundentes e bem
fundamentadas, o forte envolvimento do mandatário da viúva, o Sr.
Pierre-Gaëtan Leymarie, com a Teosofia de Blavatsky.
Fropo revelará que não existia apenas essa parceria mística...
Leymarie havia se consorciado com outras tantas filosofias místicas
(estranhas) ao Espiritismo. Algumas delas, segundo Fropo —
completamente antiespíritas —, que entravam em contradição direta
com a Filosofia Espírita de Kardec, como fora o caso da própria
Sociedade Teosófica que, por meio de Blavatsky, chegou a negar a
11 – EM NOME DE KARDEC

reencarnação compreendida pelos espíritas à época.


Ou seja, a partir de 1880, os kardecistas notavam com mais
evidência que a Teosofia passou a estabelecer e ressaltar certas
incompatibilidades ideológicas com os ensinamentos dos Espíritos,
atingindo, em cheio, a imagem e as obras de Kardec.
O que nos pareceu, a princípio, meras especulações de uma
Madame Fropo indignada, que não aguentava mais constatar tantas
posturas incoerentes entre alguns (teósofos?) membros
mantenedores da Doutrina Espírita depois de Kardec, transformou-se,
para nós, em objeto sério de estudo, que colocamos agora à apreciação
do nobre leitor, a fim de que você possa tirar suas próprias conclusões.
De fato, constatamos que a Teosofia saltou de cabeça no
Espiritismo por meio da Revista Espírita. Trata-se de fato indiscutível
que apresentaremos no decorrer desta obra.
Já em 1873 aconteceria o histórico encontro parisiense
entre Leymarie e Helena Blavatsky, em que a dupla de médiuns pôde
reafirmar uma amizade que se arrastaria por pelo menos dez anos,
azedando depois as relações, entre acusações e achaques.
Em 1875, com a inauguração da Teosophical Society —
Sociedade Teosófica — nos Estados Unidos, o sentido da ponte aérea
da divulgação teosófica — América-França —, passou a ter pouso
certeiro na Revue Spirite dos tempos de Kardec. Essa aparente
distância, tendo o extenso oceano Atlântico no meio, se encurtaria
tanto que o periódico kardecista mais importante da Europa se tornou
o principal responsável pela introdução e divulgação da Teosofia na
França. O final do século 19 provou isso: enquanto o teosofismo
decolou entre misticismos e esoterismos; a Filosofia Espírita
debandou para sempre da Europa... Um verdadeiro escândalo para
muitos espiritistas da época...
Na ponta da América de um espiritualismo moderno estava os
novos teósofos: Blavatsky e o coronel Olcott. Na outra ponta, a
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europeia, com base espírita em Paris, encontravam-se os teósofos


Leymarie e o marinheiro Courmes, ambos kardecistas convictos como
também místico ocultistas...
Tudo pela fraternidade universal!
Será mesmo?
O resultado dessa parceria transatlântica se converteu, para nós,
numa prova visível ao longo desse nosso estudo: mais de 40 artigos
teosóficos publicados só na Revista Espírita, além de outros tantos
entre réplicas e tréplicas, isso tudo durante mais de uma década.
Mas o basta oficial para os teósofos, que eram autorizados a
circular com seus artigos pela Revista Espírita, se deu quando o seu
Comitê de leitura notou que as afinidades ideológicas entre as duas
filosofias chegaram a um ponto insuportável em 1883, especialmente
quando Blavatsky passou a negar publicamente o conceito de
reencarnação compreendido e já estabelecido pelos Espíritos, por
meio de Kardec, desde 1857.
Porém, depois de 1884, as ideias teosóficas na Revue seguiram
caminhos informais até meados de 1914, cessando definitivamente a
presença teosófica no período kardecista por conta da Primeira
Guerra Mundial, como também pela mudança de comando na diretoria
da Revue.
Todavia, faz-se necessário dizer aqui o quanto a própria
Teosofia da época contribuiu para a tentativa de extinguir o voraz
materialismo mundial, que também insistia em corroer a sociedade
francesa do século 19, escancarando, para seus cidadãos tricolores, a
janela do suicídio...
A negação do materialismo, em nossa opinião, talvez tenha
sido uma das maiores contribuições do teosofismo ao lado do
Espiritismo. Isso sem falar da figura magnética e ao mesmo tempo
complexa de Madame Helena Blavatsky que, pela sua curiosa
biografia, chegou a viver na miséria por longos períodos de sua vida.
13 – EM NOME DE KARDEC

Guerreira, inquieta e feminista, Helena Blavatsky passou por grandes


dificuldades no campo emocional e afetivo, sofrendo ainda muitos
preconceitos e difamações declaradas pela Igreja Católica — como
acontecera também com Kardec no Espiritismo.
Porém, sempre atenta e generosa com o próximo, Blavatsky fora
o exemplo vivo da caridade e da benevolência à frente de sua
Sociedade Teosófica, como bem constatamos no livro A verdadeira
história de Madame H. P. Blavatsky.
Sinceramente, não sabemos como se encontra hoje a
Teosofia e suas várias lojas teosóficas, muito menos se estas mantém
as configurações originais blavatsquianas de 1875 - preceitos
teosóficos iniciais que estiveram ligados ao misticismo egípcio.
Não sabemos ainda se a Teosofia brasileira atuante
estabeleceu algum laço com o Espiritismo de agora... Nem se as
simpatias e amizades entre as duas filosofias continuam como no
passado...
O que sabemos, ao certo, é que desejamos manter a mesma linha
de pensamento de Chico Xavier, quando o emérito médium bem falou,
em entrevista ao jornal Uberabense, A Flama Espírita, sobre o que
pensava da Teosofia, como também das demais escolas esotéricas
espalhadas pelo mundo:
"Acreditamos, com as instruções dos Bons Espíritos, que a
posição da Doutrina Espírita é uma posição definida. Estamos diante
do Evangelho Redivivo, porque o Espiritismo traz de novo as lições de
Jesus, interpretadas com sinceridade e verdade. Respeitamos nós
todas e quaisquer áreas do conhecimento humano relacionadas com o
Ocultismo, com o Espiritualismo em geral. Todas as escolas de
esoterismo, de conhecimentos chamados secretos, são dignas de nosso
maior acatamento. Mas, se estamos na escola da Doutrina Espírita,
com trabalho gigantesco a realizar, de nossa parte cremos que seja
nosso dever respeitar todos os movimentos espiritualistas, sem
desconsiderá-los de modo algum, mas cumprir a nossa tarefa do
14 – Adriano Calsone

Evangelho de Jesus tanto quanto eles, os movimentos espiritualistas,


estão cumprindo, com fidelidade e grandeza, os compromissos deles
diante das doutrinas orientais..."
Salve, Kardec! Slave, Raadda-Bai!
O autor
15 – EM NOME DE KARDEC

Madame Blavatsky
e a sua
Sociedade Espírita Egípcia

Em 1871, uma médium russa de 40 anos de idade, chamada


Helena Petrovna Blavatsky, fundaria a sua Société Spírite (Sociedade
Espírita) no Cairo, em plena capital do Egito.
Pelas ruas da apinhada cidade, os transeuntes egípcios
passaram a conhecê-la como a espírita russa que evocava os mortos e
que os fazia responder às suas perguntas.
Helena Petrovna Blavatsky, ou simplesmente Madame
Blavatsky, começou nessa época a dar consultas espirituais em Sekke
el Ghamma el harmar — a rua da mesquita vermelha — endereço que
costumava atrair clientes frágeis, enlutados, desejosos de estabelecer
algum contato com seus entes queridos.
Para seu novo empreendimento, Madame Blavatsky contratou
um secretário que dava garantias do sucesso espiritual de sua patroa
na evocação de um ente querido qualquer. Mas a maioria de seus
clientes costumava sair do closet de Helena Blavatsky bastante
desanimado, já que os resultados das sessões de evocação se
limitavam a alguns raps, ou seja, a algumas batidas de ocasião.
Quando os resultados apresentavam-se minguados, o mesmo
16 – Adriano Calsone

secretário era orientado por ela a dizer que os Espíritos não gostavam
de aparecer em ambientes simples, como os daquele quarto, já que as
instalações do lugar, além de serem inadequadas no ponto de vista de
Helena Blavatsky, não haviam sido purificadas corretamente para
cada fim proposto. E se mesmo assim algum cliente insistisse em pedir
o seu dinheiro de volta, que o ser reclamante voltasse alguns dias
depois para novas tentativas, numa situação diferente...
De fato, muitos clientes insatisfeitos retornavam, e o que
constatavam dessa situação diferente era uma estranha sessão
mediúnica pública, totalmente reconfigurada e apinhada de gente...
E para o intento dessas sessões públicas de efeitos físicos,
Helena Blavatsky e seus assistentes prepararam, nesse mesmo quarto,
um longo pano vermelho que escorria do teto até tapar a abertura das
portas de um grande armário. Alguns curiosos presentes indagavam:
"Isso aí é uma sessão de espetáculo barato, em vez de uma reunião
séria de evocação particular! Ora, quero meu dinheiro de volta,
imediatamente!"
Muitos clientes irritados, diante do não combinado já na
primeira consulta, passavam a acusar Blavatsky, a fundadora daquela
sociedade espírita para lá de duvidosa...
Para muitos egípcios céticos do Cairo, Madame Blavatsky
mostrava ser uma verdadeira charlatã, daquelas que penduravam
linhas no teto de closets para simular a sobrevivência dos Espíritos por
meio de uma luva postiça cheia de algodão... Era o que supostamente
ocorria nas sessões públicas da médium Blavatsky...
Diante da confusão que se formara no apartamento, Helena
Blavatsky passaria a acusar, de fraude, uma senhora que morava junto
com ela, conhecida por Madame Sébire. A confusão estava armada!
Em verdade, por trás desses vários cambalaches mediúnicos,
Helena estava enfrentando uma grande crise financeira. Infelizmente,
decepcionada consigo mesma, ela passou a pedir emprestado a seus
17 – EM NOME DE KARDEC

clientes, prometendo-lhes retribuir cada centavo com jutos.


Entretanto, ela não os pagaria com dinheiro vivo, mas com notas
promissórias...
Depois de viver em três endereços diferentes no Cairo, não
tardou para que partisse para a Rússia, a fim de visitar a irmã. Entre
frustrados e decepcionados, a sua primeira sociedade espírita não
duraria 15 dias entre calúnias e escândalos de clientes e sócios
insatisfeitos, que desistiram de frequentar as sessões mediúnicas de
Madame Blavatsky.
Tudo estava acabado para a médium de olhos claros que ganhou
certa fama na cidade mais importante do Egito!
Contrario a tudo isso, a infância russa da então espírita Helena
Blavatsky fora recheada por autênticos fenômenos espirituais e
mediúnicos, quase sempre inexplicáveis, confusos e recheados de
ataques e preconceitos. Era um passado infantil que ela própria não
gostava de recordar...
Com extrema facilidade para aprender línguas estrangeiras
e um talento musical refinado, a jovem Helena partiria para Londres
com a idade de 13 anos, a fim de melhorar suas habilidades como
pianista. Ao retornar à Rússia, ela herdaria uma biblioteca de seu
bisavô Prince Paul Wassiliévitch, contendo centenas de livros raros
sobre alquimia, magia e outras ciências ocultas, obras essas que a
permitiu iniciar-se por conta própria nas questões do oculto, passando
a lê-las com o mais intenso interesse antes mesmo dos 15 anos de
idade.
Em 1848, ela se casaria com Vassilyevitch Nikifor, ex-vice-
governador da província de Erivan, no Cáucaso, fronteira entre Europa
e Ásia. A união, frustrada, com um homem que tinha três vezes a sua
idade durou apenas três semanas. Ainda em lua de mel, muitas brigas
e ausências de concessões mútuas acabariam minando a relação do
casal. Ela decide, então, fugir do marido montada num cavalo,
conseguindo assim se refugiar na casa de seus avós, em Tbilisi, capital
18 – Adriano Calsone

da Geórgia, localizada na fronteira entre Europa e Ásia.


Todavia, os reais motivos dessa ligeira separação não se
resumiriam somente a falta de amor, diálogo ou afinidade... Um exame
médico atestaria que a recém-casada de 17 anos de idade
permaneceria virgem ainda por um bom tempo, tudo por conta de um
problema de saúde que a proibia de manter relações sexuais. Por essas
e por outras, o casamento chegara ao fim...
Tão logo, Madame Blavatsky partiu para um longo período de
viagens por todo o mundo. Diz a lenda blavatsquiana que, muitas
vezes, ela viajou sozinha buscando conhecimentos filosóficos,
espirituais e esotéricos. Alega-se ainda que, nessas viagens, ela tenha
passado por inúmeras experiências extrafísicas, entrado em contato
com vários mestres de larga sabedoria — os Mahatmas do Tibete ou
Irmãos-adeptos — em que supostamente teria recebido desses, na
condição de discípula, um suposto treinamento especial para ampliar
seus poderes paranormais de forma controlada.
Segundo apontam alguns biógrafos sobre esse período nebuloso
da vida de Helena Blavatsky, ela supostamente retornou dessas
viagens pronta para servir de instrumento aos mestres superiores, a
fim de que estes pudessem trazer a instrução necessária que o mundo
Ocidental tanto ansiava.
Segundo Blavatsky, fora nessas idas e vindas que conheceria o
seu próprio mestre, passando a chamá-lo de Moyra, um Espírito
pertencente à Grande Irmandade Branca de Mestres, Irmãos ou
Mahatmas, como ela o chamará por meio desses três termos, ou
simplesmente por M.
De tempos em tempos, esses seres espirituais ordenavam que
Madame Blavatsky mudasse de endereço, o que fez com que ela
supostamente rodopiasse três vezes em torno da Terra, penetrando
nas partes mais remotas do Mundo, incluindo o Tibete, dobrando o
Cabo da Boa Esperança, por meio dos Estados Unidos, de leste a oeste,
por meio de uma caravana de carros cobertos, na qual pôde constatar
19 – EM NOME DE KARDEC

a vida, os costumes, as práticas religiosas e mágicas de culturas as


mais variadas.
20 – Adriano Calsone

Artista Blavatsky
na França

Em março de 1873, a médium Madame Blavatsky desembarcará


em Paris, onde teria a oportunidade de conhecer pessoalmente outro
médium como ela — o Sr. Pierre-Gaëtan Leymarie — um republicano
francês que nessa época era um dos kardecistas mais importantes da
França, além de ser também o mandatário da viúva Kardec nos
destinos da Filosofia Espírita pós-Kardec.
Mas o que fez Helena Blavatsky desembarcar numa nascente
França esotérica?
Ao certo, seus guias espirituais da Fraternidade Branca
descobriram antes dela, na paragens tricolores, o terreno fértil à
propagação de uma nova escola oriental no Ocidente...
Naquela época, ela viria do Cairo com o objetivo de excursionar
por toda a Europa, aparentemente, na figura de artista, onde deu
recitais de piano, partindo depois em missão artística para a Itália,
Rússia e Londres — os próximos destinos dessa pianista concertista.
Segundo apontam alguns pesquisadores, ela também teria feito
supostos bicos em Paris, seja como importadora de penas de avestruz
ou decoradora de ambientes burgueses.
Suas andanças orientais, de país em país, traçavam o seu futuro
espiritualista ao lado dos invisíveis Mahatmas: cada vez mais a Helena
21 – EM NOME DE KARDEC

artista dava a vez para a mística Blavatsky, sendo que os Estados


Unidos seria a pátria-mãe de sua predestinação espiritual no
lançamento de um projeto esotérico, sempre sob as coordenadas dos
seres espirituais tibetanos que a acompanhavam.
Ainda em Paris, ela morou num apartamento na rue Du Palais,
em companhia do primo Nicolas Hahn e de um amigo íntimo deste, o
Sr. Lequeux. Uma doutora chamada L. M. Marquette, que passou a
frequentar os seus aposentos na cidade luz, dará o seguinte
depoimento sobre Helena Blavatsky ao lado dos Leymarie:
"Ela passava todo o tempo pintando e escrevendo, raramente saindo
do quarto. Tinha poucas amizades, entre as quais, porém, encontravam-se o
senhor e a senhora Leymarie. Tenho Madame Blavatsky na conta de uma das
mais apreciáveis e interessantes senhoras que jamais conheci (...)."

Essas trocas de amizades permitiram forjar outra troca: a das


várias correspondências entre Madame Blavatsky e Leymarie...
Antes de partir de Paris, novamente a pedido de seus guias
orientais, ela acertaria alguns detalhes com o casal Leymarie. Prometia
mantê-los informados sobre suas atividades místicas nos Estados
Unidos. Em troca, Leymarie publicaria, na Revista Espírita, as
experiências extrassensoriais que ela fosse adquirindo do outro lado
do Atlântico... Leymarie só queria ser agradável... Tudo em nome da
fraternidade universal...
De fato, um amigo de Leymarie, chamado Camille Chaigneau,
dirá que ele se tornou um grande admirador de Madame Blavatsky,
com a qual sabia ele que, eventualmente, enfrentaria algumas
dificuldades, por conta da personalidade instável dela. Mesmo assim,
ele foi o primeiro entre os iniciadores da Teosofia na França.
Mas esse Leymarie não era kardecista? Como assim, teosofista?
22 – Adriano Calsone

Nasce a
Sociedade Teosófica

Madame Blavatsky, enfim, deixaria Paris por ordem de seu


mestre e instrutor M, dito Morya, com destino a Nova York.
De um dia pra outro, e provida tão somente de dinheiro
necessário para custear a sua ida, ela comprou uma passagem de
primeira classe do Havre e partiu para a América do espiritualismo
moderno.
Anos mais tarde, no seu primeiro livro, ela explicará que "tinha
sido enviada da França para a América para provar a realidade dos
fenômenos e a falsidade das teorias espiritualistas, tendo recebido um
treinamento oculto com os sábios do Himalaia."
Ao que se especula, ela desejava criar uma irmandade de
mestres himalaios que, supostamente, a tinha selecionado para que
comunicasse a mensagem deles no mundo.
Em julho de 1873, já na América do Norte, Blavatsky foi morar
numa hospedaria para mulheres operarias, dependendo do parco
dinheiro que lhe chegava pelo trabalho de costura de gravatas com
flores artificiais, da montagem de bolsas e dos limpadores de canetas.
Enquanto isso, um membro da nobreza russa desencarnava
subitamente. Era o pai de Helena Blavatsky, o velho capitão Peter
23 – EM NOME DE KARDEC

Hahn...
Meses depois, a família enviaria, pelos correios, a sua herança de
direito por meio de uma ordem de pagamento de 1000 rublos, o que
fez com que ela mudasse imediatamente para um bairro melhor na
cidade de Nova York. Passou por Union Square, foi para East Sixteenth,
depois St. Irving Place, entre outras mudanças e novas andanças, como
acontecera na abertura de pequenos negócios imobiliários, além da
tentativa de fazer fortuna num ramo de granja à criação de frangos.
Logo que passou a conhecer a realidade dos espiritualistas
americanos, ditos modernos, todas as suas cartas à família, sob o
pseudônimo de Radda-Bai — a assinatura de seus escritos russos —
partiam dos Estados Unidos carregadas de manifestações raivosas
contra os abusos daquele espiritualismo moderno, que ela chamaria
de materialismo espiritualista.
Foram muitas as indignações que publicaria pelos jornais
americanos sobre aquelas ciências mediúnicas praticadas pelos norte-
americanos na década de 1870. Ela chegaria ao ponto de comparar as
pessoas que desencarnavam na América do Norte como sombras, ou
seja, espíritos disfarçados e altamente prejudiciais à saúde dos
médiuns, suas vítimas passivas...
Mas a sua visita os irmãos Eddy, médiuns rurais famosos à
época, foi a última gota que fez transbordar a sua curta paciência.
Depois disso, Blavatsky se tornaria uma inimiga velada do
espiritualismo americano e moderno.
Em julho de 1874, ela conheceria um homem da lei que mudaria
a vida dela para sempre... Era um profissional regulador de seguros,
conhecido por Henry Steel Olcott — que fora nomeado coronel
durante a Guerra Civil — um curioso pesquisador de fenômenos do
espiritualismo moderno.
Tão logo, Jack (ela); Maloney (ele) estabeleceram mais que uma
forte relação de amizade, e de apelidos, união essa que duraria a vida
24 – Adriano Calsone

toda de ambos...
A dupla colocaria na prática a nova escola Ocidental apregoada
pelos mestres invisíveis da Madame Radda-Bai. E em 16 de fevereiro
de 1875, ela escreverá uma correspondência a um professor chamado
H. Corson, tentando explicar ainda os motivos que a levaram aos
Estados Unidos., anos atrás:
"Eu estou aqui, neste país, enviado pelo meu Lodge, para revelar a
verdade que está por trás deste espiritualismo moderno. Esse é o meu dever
mais sagrado: lançar luzes sobre o que é, e denunciar o que não é... Talvez eu
tenha chegado aqui cem anos demasiado cedo (...)."

Eis que havia chegado, de fato, uma importante data: o dia 7 de


setembro de 1875...
O projeto de cunho orientalista dos mestres espirituais nasceria
na Terra com o nome de Theosophical Society (Sociedade Teosófica).
O primeiro objetivo original da Sociedade Teosófica seria logo
estabelecido: dedicação total à Fraternidade Universal.
Outro objetivo surgiria mais imperativo: "Estudar as filosofias
do Oriente, principalmente as da Índia, e apresentá-las gradualmente
ao público em várias obras que interpretarão as religiões exotéricas à
luz dos ensinamentos esotéricos".
Enquanto isso, personalidades do merveilleux théosophique, ou
seja, os novos filoteosofistas se reuniam no apartamento de Madame
Blavatsky: surgia a ideia de formar uma sociedade...
Porém, o que desviava a atenção dos visitantes era o exótico
objeto que havia na sala: um babuíno empalhado, com óculos, colete,
fraque e gravata, portanto sob um dos braços, um volume de A origem
das espécies, de Darwin. O pobre animal simbolizava, segundo afirmam
alguns pesquisadores, a insensatez da ciência diante da sabedoria da
religião...
A nova Sociedade Teosófica não podia parar... Entre setembro e
25 – EM NOME DE KARDEC

outubro de 1875 seriam discutidos os estatutos, para logo se


estabelecer a criação de um escritório central. Senhor Olcott será
nomeado o presidente; enquanto Madame Balvatsky, a secretária-
correspondente. E em 17 de novembro realizar-se-á a reunião
inaugural...
Consta no Programa original da Sociedade Teosófica, documento
esse elaborado por Blavatsky, que um membro cristão liberal da
Sociedade Teosófica recém-inaugurada levantou objeções ao estudo
das religiões orientais e pôs em dúvida a necessidade da abertura
daquela sociedade, dizendo ainda que se sentia no direito de julgar
outras pessoas...
A resposta de seus fundadores ao desbocado homem, não
menos dura, logo viria: "Você não tem direito a esse título! Você é
somente um filoteosofista, pois quem quer que tenha alcançado a
compreensão total do nome e da natureza de um teosofista não fará
parte do julgamento de qualquer homem ou ação (...)."
E ante que o desavisado ser quisesse retrucar algo, novo aviso
fora lançado em sua direção: "Se você quiser ser um teosofista não
deverá fazer como aqueles à sua volta, que evocam um Deus de
verdade e amor e servem às tenebrosas forças do poder, da avidez e
do acaso (...)."
Apesar dos pesares, dia após a inauguração da S.T. americana,
três pessoas seriam expulsas por calúnia e maledicência, conforme
ditava o regulamento inicial da Sociedade-mãe, que tempos depois se
tornaria obsoleto, não mais expulsando ninguém.
Rapidamente, após o surgimento da Sociedade, sua fundadora
Blavatsky embarcou na solidão de seus aposentos para escrever o seu
primeiro livro, que se chamaria Ísis sem véu — projeto editorial
complexo e gigantesco — que contará com forte apoio do íntimo
Olcott.
Incrivelmente, ambos passariam a morar no mesmo
26 – Adriano Calsone

apartamento com o babuíno — mas em quartos separados —


residência esta apinhada de animais empalhados, enfeites e
bugigangas orientais, a qual chamariam juntos de lamasterio,
lamaseria ou convento de lamas...
O que se sabe é que, pouco antes de ser inaugurada em 1875, a
Sociedade Teosófica — representada como Teosofia, ao lado de seus
teósofos ou teosofistas — girou em torno de um senhor chamado Felt,
que havia visitado o Egito, estudando as antiguidades daquele país.
Praticante da Cabala, o curioso Felt formulara uma teoria um
tanto excêntrica para explicar que os números da cabeça-de-cão e da
cabeça-de-falcão, pintados nos monumentos egípcios, não eram meros
símbolos soltos em vão, mas sim retratos dos elementais, que se
tornariam depois a representação simbólica dos espíritos à Teosofia. O
pretensioso Felt afirmava ainda ser capaz de evocar e controlar os tais
elementais, anunciando, em seguida, que havia decifrado os papiros
secretos e mágicos do antigo Egito.
Assim, a recém-nascida Sociedade Teosófica, altamente
influenciada pelas investigações in loco do Sr. Felt, assim como pelas
teorias de The hermetic brotherhood of Luxor (sociedade iniciática
ocultista conhecida como a Irmandade hermética de Luxor), teve o seu
início como uma escola egípcia de ocultismo...
Madame Blavatsky apelidaria a sua nova Sociedade de caves and
jungles of hindustan, ou melhor, "Cavernas e selvas do Industão" —
que é o atual subcontinente indiano, a região peninsular do sul da
Ásia, onde se situam a Índia, o Paquistão, Bangladesh, Nepal e Butão.
Madame Blavatsky também rotulará a sua novíssima S.T. com o
pejorativo La Société dês Malcontents Du Spiritisme, ou seja, A
Sociedade dos Descontentes do Espiritismo, indireta grosseira à
Filosofia Espírita de Allan Kardec, como também do inocente
Leymarie, médium parisiense que dizia ela ser o seu amigo.
Mas a importante conexão que Blavatsky deixaria firmada com o
27 – EM NOME DE KARDEC

Espiritismo francês, ainda em 1873, por meio daquelas trocas de


confiança com o seu pupilo kardecista Pierre-Gaëtan Leymarie, fez
com que a espírita Blavatsky olhasse com extremo zelo para a Revista
Espírita.
Sem achaques declarados — pelo menos por enquanto — ela
enxergaria o periódico espírita mais importante da França como um
veículo de comunicação mais do que essencial à difusão de suas
ideologias e projetos literários teosóficos. Estes seriam enviados a
Paris, em breve, por meio de artigos e matérias remetidas dos Estados
Unidos para a receptiva Revue Spirite fundada por Kardec, em 1858.
Embora o seu zelo sobre o que pensava à época do Espiritismo e
dos espiritistas franceses nunca fosse tão bem lapidado, Blavatsky terá
muita liberdade, por exemplo, para contar certas sinceridades neste
trecho de sua correspondência, que ela encaminharia ao mesmo
professor H. Corson, em 20 de março de 1875.
Você quer saber sobre a Revista Espírita? Vou cumprir com o seu
pedido. Conheço bem e considero o Sr. Leymarie, o editor da Revista, o meu
amigo. Esta revista ou periódico é o melhor da França. É altamente moral,
verdadeiro e interessante.
É claro que a sua direção via puramente a Kardec, para os próprios
livros da criação do mestre (sic), ao lado de seus espiritistas franceses, os re-
encarnacionistas (sic), como classifica o mesmo Kardec, que deixou a Revue
como uma herança para Leymarie.
A viúva, Madame A. Kardec, é uma das mulheres mais nobres e mais
puras que vivem.
Os espiritistas têm uma ligeira tendência para o ritualismo e para o
dogma, mas essas são apenas pequenas sombras da educação católica que
herdaram, um hábito inato nestas pessoas que saltaram tão rapidamente da
escravidão papista, do materialismo ao espiritualismo.
Sra. Corson não vai se arrepender de fazer uma assinatura com eles.
Encontrei uma falha neles para uma coisa, não na Revista Espírita, mas o
próprio ensino, ou seja, que eles são re-encarnacionistas e missionários zelosos
28 – Adriano Calsone

para consigo mesmos. Eles nunca poderiam fazer qualquer coisa comigo para
me provocar algum desgosto; nós ainda somos amigos. Monsieur e Madame
Leymarie são pessoas muito cultas, verdadeiros e sinceros como o ouro (...).

Conhecida agora nos Estados Unidos como Madame Blavatsky,


ela começaria a escrever para jornais de qualquer espécie e lugar, a
fim de chamar a atenção para os ideais em torno de seu novo
teosofismo, de modo a intrometer-se, por vez, entre espíritas e
espiritualistas do mundo todo, no uso e abuso do relativo respeito que
conquistara da classe de ocultistas e esotéricos em formação frenética
pelos continentes afora.
E como representante maior da Teosofia, Helena B. tornar-se-rá
o próprio significado do que veio a ser o teosofismo inaugural, de
maneira a se sentir a maior representante na Terra do conhecimento
de Deus, ou mesmo de todas as religiões e filosofias juntas...
Por fim, segundo diziam os próprios teosofistas da época, o
famigerado planeta Terra precisava de uma femme forte para trazer
aos materialistas do século 19 a seguinte revelação: "A humanidade
perdeu suas crenças e seu melhor ideal. O materialismo e as
pseudociências os mataram. As crianças de nosso século não têm mais
fé (...). Elas terão a fonte de todas as religiões humanas: a Teosofia
(conhecimento de Deus) irá fornecê-las (...)."
29 – EM NOME DE KARDEC

Spiritheosophistes

A partir de 1875, com a fundação da Sociedade Teosófica, dois


kardecistas se tornariam os principais responsáveis pela transmissão
das ideias teosóficas na França: Pierre-Gaëtan Leymarie (P.-G.L.) e
Dominique Albert Courmes (D.A.C.).
O primeiro, porque era um amigo e admirador de Blavatsky; o
segundo, porque descobriu a Teosofia depois de exaustivas leituras de
livros e revistas estrangeiras sobre o tema, tornando-se um teósofo
convicto, além de pioneiro na defesa da causa teosófica especialmente
em território francês.
E a Revista Espírita fundada por Kardec, por sua vez, será o
principal veículo de divulgação do teosofismo naquele país tricolor.
O primeiro, Sr. Leymarie, fará de tudo para publicar os artigos
teosóficos na Revue; enquanto o segundo, Sr. Courmes, os escreverá
sob o pseudônimo D.A.C.
Sabe-se que Leymarie fora amigo íntimo de Allan Kardec, como
também medianeiro de confiança do mestre na Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas (S.P.E.E.), que surgira em 1 de abril de 1858.
Antes de se tornar espírita, por ocasião do Golpe de Estado francês de
1851, Leymarie, como seguidor fiel das ideias republicanas, fora
considerado inimigo do regime, sendo exilado de seu país. Acredita-se
que ele, ao lado de mais de 200 socialistas utópicos, tenha vindo tentar
a vida na América do Sul... Talvez, pelo pouco que se sabe, pode ainda
30 – Adriano Calsone

ter desembarcado no Brasil...


Em 1859, anistiado e de retorno a Paris, M.P-G. Leymarie —
como ficará conhecida a sua assinatura na Revista Espírita — casou-se
aos 32 anos com a jovem Marina Duclos — dez anos mais nova que ele
— assumindo a gestão familiar de uma casa de comércio no ramo da
alfaiataria. Certo dia, ao ouvir falar das mesas girantes, fora ao
encontro de uma. Entusiasmado com o que viu, começou a participar
de algumas sessões com a esposa Marina. Assim, o socialista tornar-se-
ia espiritista convicto e amigo de Allan Kardec.
Abraçando a doutrina dos espíritos como um ardente
republicano, na S.P.E.E. ele dará exemplos iniciais de dedicação como
seguidor das ideias doutrinárias do mestre Allan Kardec.
E como seguidor dos ideais doutrinários da Teosofia, Leymarie
terá a comprovação definitiva da fidelidade que Helena Blavatsky era
devotada por ele, só que essa constatação se daria na cadeia.
Condenado como falsário, em abril de 1876, por conta do
fatídico episódio de Le Procès dês spirites (O processo dos espíritas), ele
já estava preso um ano antes, acusado como cúmplice de um fotógrafo
chamado Buguet, em que ambos supostamente teriam fraudado
fotografias de espíritos, enganando muitas pessoas enlutadas com a
garantia de que seus entes desencarnados surgiam nas tais fotografias
dos espíritos.
Curioso observar que à época do processo, Helena Blavatsky
encaminhará ao editor do Journal The Spiritual Scientist, a seguinte
nota de indignação sobre o julgamento de seu amigo parisiense P-G.L.
"O pobre editor da Revista Espírita (...) nem uma única acusação
mantida poderia ser contra ele (...) testemunho abundante em favor de sua
perfeita integridade de caráter (...) infeliz vítima do jesuitismo e da vingança
eclesiástica (...)."

Já Dominique Albert Courmes, um ex-fuzileiro naval que não


fora preso, mas que terminou a sua carreira militar como comandante
31 – EM NOME DE KARDEC

da Marinha, recebendo, ao longo de seus serviços prestados, várias


condecorações, incluindo a de oficial da legião de honra. Aposentado
voluntariamente, ele passaria a se dedicar inteiramente à divulgação
da Teosofia na França, levando, por isso, o reconhecimento histórico
de todos os teósofos, por ter veiculado, na Revista Espírita, o primeiro
artigo teosófico em terras francesas.
Tentando justificar a sua Teosofia miscigenada no Espiritismo,
no futuro ele dirá o seguinte na Revue de março de 1897:
Eu fui um estudante de Allan Kardec em minha juventude, e eu ouvi
essa grande inteligência a dizer antes de sua morte física, em 1868 (sic), que os
espíritas poderiam acolher os muitos desenvolvimentos que ainda comportam
os elementos do conhecimento, àqueles que ele havia contribuído para
importar.
Estas são as palavras que alguns anos mais tarde quando da véspera da
chegada da Teosofia, em 1875, esta acabaria trazendo esses tais
desenvolvimentos, permitindo-lhes agora considerar vê-las como uma
extensão natural do Espiritismo (...).

Com esse antigo ponto de vista, desmedido, de Courmes — o de


que a Teosofia tornou-se uma extensão natural do Espiritismo —,
começaram a pulular outros comentários tendenciosos no sentido de
que le Spiritisme est un degré d'acheminement vers la Théosophie (...),
ou seja, que o Espiritismo é um degrau para se chegar à Teosofia.
Mas o velho comandante D.A.C. demonstrou que não esteve
somente interessado nos fenômenos espirituais em torno do mestre
Kardec e de sua amada Filosofia Espírita. Ele também fazia questão de
divulgar, sempre quando surgia oportunidade, que fora um dedicado
defensor da memória do Espiritismo quando esta mais precisou dele.
Mérito esse que nós espiritistas reconhecemos largamente, mas sem
barulho...
Na Revista Espírita, mesma edição de março de 1897, D.A.C.
deixará um raro depoimento que confere a ele o título de defensor do
patrimônio kardecista.
32 – Adriano Calsone

Nós, como dissemos, contribuímos para a conservação do Espiritismo


(...).
Foi durante o terrível ano (...) o Sr. Leymarie deverá se lembrar disso.
Foi durante os últimos sete sangrentos dias da Revolta de Paris, isso em 1871,
quando a carnificina e o fogo se espalharam por todos os pontos da capital.
Atirei-me, com meus marinheiros, no meio da fornalha — uma força
me conduziu a isso — e, voluntariamente, meus jovens oficiais postaram-se à
frente da mansão onde resguardávamos os arquivos do Espiritismo. Era 24 de
maio (...)
No exato momento em que as chamas estavam para lamber o prédio,
eu já havia conseguido tirar de lá todos os documentos do Espiritismo.
Quatro dias depois lá estava eu do outro lado da cidade, em frente ao
ateliê onde confeccionavam as esculturas do monumento fúnebre do mestre,
que havia morrido recentemente. O resultado de minha ida até lá: eu as
preservei de um saque iminente (...) Estes foram os meus atos nesses terríveis
dias (...) Mas não é estranho que eles foram designados para mim?

E a contrapartida desse favor prestado à memória da Filosofia


Espírita, viria logo no parágrafo seguinte:
Bem, tendo eu assim servido à causa da literatura espírita, acreditamos
que não são menos úteis agora mostrarmos as riquezas da bibliografia
teosófica. As obras das madames Blavatsky e Anne Besant são, certamente,
notáveis e acessíveis a todos (...)

Como visto, esse sinistro envolvera em cheio a sede da Revista


Espírita e do Jornal de Estudos Psicológicos, onde Leymarie e sua
equipe, incluindo Courmes, tentaram resguardar os arquivos do
Espiritismo colecionados há décadas pelos Kardec na rue de Lille, n° 7.
Sabe-se ainda, por meio da Revue, edição de janeiro de 1914,
que o mesmo Courmes e seus valentes marinheiros, ao adentrarem no
ateliê do famoso escultor Capellaro, a fim de protegerem a estátua
funerária de Kardec, além de outras peças que hoje se encontram no
cemitério Père-Lachaise, tiveram de cobri-las com barricadas...
Diz a lenda que no espaço do ateliê de Capellaro, o grupo militar
33 – EM NOME DE KARDEC

teria esbarrado por acaso numa mesa, e em cima dela estaria aberto O
Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, onde constava uma
passagem recomendando perdão ao próximo...
O mesmo artigo de 1914 relatará que, imediatamente, o militar
Courmes e seus marinheiros fizeram meia volta e retornaram à sede
da Revue, na rue de Lille, para redobrarem a vigilância do prédio
contra a certeira invasão de saqueadores de plantão. Assim, aquela
explicação de Courmes — a de ter sido designado para proteger o
patrimônio dos Kardec — pode ter relação direta com esse
chamamento por meio d'O Evangelho e sua mensagem específica de
perdão...
Em verdade, essa Guerra Civil Parisiense, que se convencionou
chamá-la de Comuna de Paris, trouxe dias muito difíceis aos
kardecistas da Capital... A Revue, por exemplo, perderá centenas de
assinantes nessa época de sangue e lágrimas, e suas matérias pouco
seriam publicadas (por exemplo, em 1871), não passando de dez
minguados artigos ao mês. Em verdade, quem compraria um jornal
espírita com boa parte da população no caos e na miséria sem-fim?
Curioso observar ainda que vários espíritos deixariam suas
mensagens de fé e de luta diante da massacrante Comuna. Uma
entidade que se apresentaria como Luís, possivelmente São Luís — o
espírito protetor da antiga Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
— deixaria um comunicado espiritual sobre aquela guerra — com
certa ênfase republicana — registrado na Revue de maio de 1871. Eis o
seu devir:
O momento da luta está perto, a França dará o sinal. A transformação
não se estenderá somente em Paris, mas em todo o mundo (...). o início da
verdade espalhará o seu germe pelo nosso país; e o fogo latente via se
espalhar por todo o Globo; a chama divina brilhará para todos os povos; e as
mentes que ainda obscurecem nossa opinião, cairão como mágica. Este será o
reino do amor e da fraternidade universal.

Embora a Comuna fora o primeiro governo operário da história,


34 – Adriano Calsone

que introduziria reformas importantes na França, como a abolição da


pena de morte, a igualdade dos sexos, o salário dos professores
duplicado e a redução da carga-horária dos trabalhadores, esse
suposto espírito São Luís se esqueceria de mencionar que tal guerra
desumana deixaria mais de 80 mil mortos e outros 40 mil presos,
torturados e executados...
Mas voltando ao cadinho onde o teosofismo se fundia no
Espiritismo, fica a curiosidade de saber por que a dupla kardecista
Leymarie-Courmes — os spirithéosophes ou spirithéosophistes
(espiriteósofos ou espiriteosofistas — neologismos nossos) — sentia
tanta necessidade de se filiar à Sociedade Teosófica e aos ideais da
Teosofia?
Por que os dois tanto defenderem e divulgaram essa filosofia
não espírita por anos a fio, especialmente no principal periódico
criado por Kardec — a Revista Espírita?
Para Courmes, o Espiritismo fez grandes progressos desde a
década de 1850, especialmente com a publicação de sua literatura
espírita em diferentes línguas, para diversos povos em várias partes
do mundo.
Como vimos, D.A.C. acreditava fielmente que como kardecista —
estudante da Doutrina desde jovem — a Filosofia Espírita havia
evoluído à Teosofia, e que esta última poderia completar o Espiritismo
a partir de 1875 com a fundação da S.T.
Imaginava ele que o Kardecismo progrediria por meio das novas
ideias da Teosofia, que trariam suplementos à compreensão do estudo
dos espíritos elementais e elementares — defendido pelos teosofistas
com base no ocultismo egípcio firmado inicialmente por Blavatsky e
Olcott.
Para tentar justificar a presença da Teosofia mesclada à
Filosofia Espírita, Courmes ou D.A.C. o homem das três siglas, afirmará
num artigo futuro que "a Revista é uma coleção de ensaios, em vez de
35 – EM NOME DE KARDEC

um jornal dogmático".
Por fim, arrematará suas conclusões à defesa do teosofismo,
dizendo que, nos idos de 1868, "o próprio Kardec havia publicado, em
seu periódico, um estudo sobre o filosofo chinês Lao-Tsé, e que sua
filosofia também não é coerente com todos os aspectos do
Espiritismo", como dirá D.A.C.
Outro fato explicável pode estar novamente no futuro, em 1900,
quando o velho Courmes dirá num livro que acreditou que a sua
Teosofia poderia mesmo colaborar com o Espiritismo às mudanças
necessárias quanto aos dogmas espiritistas: que a Doutrina Espírita
deveria ser melhorada e complementada por novos desenvolvimentos
— como supostamente havia dito Kardec tempos atrás. Portanto, para
Courmes, a Teosofia merecia ser conhecida, lida, estudada e
aprofundada pelos espíritas franceses, assim como permitirem a sua
passagem a estudo nos demais círculos kardecistas do mundo.
Inquestionavelmente, a transmissão das ideias teosóficas — da
América à França — se deveu muito a Dominique Albert Courmes, que
reforçaria as intenções do teósofo Leymarie na Revue, principalmente
incentivando-o a publicar, dentre outras matérias, um longo artigo de
16 páginas, todas dedicadas às ideias teosóficas, isso apenas em abril
de 1878.
Já Leymarie, durante cinco anos, transitou conhecimentos
teosóficos pela Revista Espírita, sempre comunicando os leitores
kardecistas sobre os novos e velhos autores do teosofismo, como
também sofre as ações teosóficas nos Estados Unidos, e depois na
Índia, sem descuidar um minuto das reações dos leitores da Revista
que, comumente, encaminhavam suas correspondências ao escritório
da mesma Revue, ora reclamando, ora protestando contra a crescente
influência teosófica no periódico fundado por Kardec e também por
sua esposa Amélie.
Muitas vezes, Leymarie prefaciará os artigos teosóficos com a
seguinte palavra amiga: "Nós recebemos cartas de amizade muito
36 – Adriano Calsone

interessantes do coronel Olcott e de Madame Blavatsky (...)."


Para ele, a Teosofia se justificava no Espiritismo pela bandeira
levantada da fraternidade universal... E, claro, pela sua amizade
sincera com a fundadora da S.T.
Ele sempre sinalizava na Revue a sua vontade de se tornar útil,
simpático e agradável à Helena Blavatsky, ou mesmo dar a conhecer,
aos seus leitores, o melhor dessa mulher russa e espiritualista.
Suas notas e seus pequenos artigos sobre o teosofismo,
publicados na Revista Espírita, quase sempre foram pouco assinados
por ele, quando não completamente anônimos, mas sempre
reconhecíveis pelo seu estio gentil, atencioso e eficiente.
Em nossas observações e análises, chegamos à conclusão que
todas as suas comunicações teosóficas na Revue trazem adjetivos
medidos e bem posicionados, que revelam um Leymarie altamente
teosofista — ao mesmo tempo conciliador — aquele que tem no
coração a mais sincera intenção fraternal de compartilhar as ideias
místicas de sua amiga e irmã, como ele mesmo dirá, bem como
disseminar entre os kardecistas os últimos avanços teosofistas, sejam
eles ocorridos no Ocidente ou Oriente.
E quando dificuldades editoriais surgirem na Revista Espírita, ou
melhor, diante da censura da Comissão de Leitura, Leymarie tentará
atenuar os danos com as suas persuasivas, apresentando autores
teosóficos na Revue por meio de notinhas para lá de agradáveis,
sempre enfatizando a natureza humana ou social de suas abordagens
e destacando suas atividades civilizatórias que passaram, por
exemplo, a desempenhar em Adyar, na Índia, no quartel-general da
S.T.
Por fim, enquanto o editor Leymarie continuará a ser um
kardecista convicto até o fim de seus dias, que chegará em 1901, o
marinheiro Courmes tornar-se-á um teósofo persuadido, defensor da
causa teosófica até a sua morte, em 1914.
37 – EM NOME DE KARDEC

Financiamento espiritista de

Ísis sem véu


No final de 1878, desembarcava, com atraso, no endereço dos
Leymarie, em Paris, um exemplar de Ísis sem véu —obra primeira de
Madame Blavatsky.
Saída do prelo americano em 29 de setembro de 1877, com
inacreditáveis 1.200 paginas em dois volumes, os mil exemplares
iniciais das obras seriam vendidos, a toque de caixa, em incríveis 10
dias...
Helena — ainda na América — fez questão de rabiscar uma
dedicatória no par de livros, a fim de remetê-los ao casal de editores
parisienses, Leymarie e esposa. Em contrapartida, o prestativo P-G.L.
evocou uma nota interessante na Revista Espírita de janeiro de 1879,
comentando a atenção que sua admiradora prestou-lhes, dizendo ele
que "felizmente a gentil autora enviou uma cópia como presente,
contendo uma dedicatória ao senhor e à Sra. P-G.L. desta obra de
erudição, cheia de espírito socrático (...)"
Espírito socrático?
Os primeiros cinco mil volumes que desembarcaram na França
— edições essas norte-americanas e sem tradução para o idioma
38 – Adriano Calsone

francês — passaria a custar, nas livrarias, 37 francos e meio, valor bem


salgado para os padrões econômicos de uma arruinada população pós-
guerra, que ainda tentava se reerguer das misérias humanas que
assolaram o país tricolor anos antes.
Mas do que tratava exatamente a obra de estreia de Helena
Blavatsky?
Com Ísis sem véu, Madame Blavatsky inaugurava a literatura
teosófica no mundo, fundamentando, ao mesmo tempo, a sua nova
doutrina secreta, em que publicaria em Ísis parte de seu testamento
sobre os conhecimentos adquiridos durante suas supostas viagens em
busca do que chamou de verdade...
Resumidamente, o primeiro volume da referida obra aborda a
infalibilidade da ciência moderna da época, discute as ciências ocultas,
as forças ocultas e também desconhecidas da natureza, entre outros
estudos. Madame Blavatsky como escritora fluente, em alguns
idiomas, exploraria com muita erudição em Ísis sem véu, temas para lá
de subjetivos, como os das forças ocultas, os elementais e elementares,
os fenômenos psíquicos, além dos complicados conceitos sobre o
homem interior e exterior...
No seu segundo volume, ele baterá de frente com a teologia à
época, discutindo a semelhança da escrito cristã frente às religiões
orientais, como o budismo, o hinduísmo, os vedas e o zoatrismo...
Enfim, muita ousadia feminina e russa numa época em que a
Igreja Católica europeia estava de olho em cada virgula vinda do
ocultismo, recém-instalado na França.
Enquanto isso, o Jornal de Estudos Psicológicos, coordenado por
Leymarie e amigos, soltaria um artigo estrangeiro enaltecendo o livro
primeiro de Blavatsky. A matéria vinha de Madame van Calcar, uma
leitora de Haia, Países Baixos, que estava sob forte impressão à frente
de Ísis, pois, segundo ela, "Madame Blavatsky desenvolveu com
dignidade e uma rara erudição a importância desta ciência".
39 – EM NOME DE KARDEC

Van Calcar, em júbilo, congratula a nova ciência que ela


considera ser o teosofismo:
Eu aprecio ainda mais a adesão da Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos, cujas pesquisas se relacionam intimamente com o oculto; atrevo-
me a rebater a tese de vocês de que o psicológico nunca irá penetrar os
mistérios da natureza humana sem consultar as sabedorias antigas e sem
alguma experiência provinda da alta magia, com seus métodos e seus meios
(...)

E depois de passar de dois a três meses lendo Ísis sem véu,


Madame Van Calcar encerrará o seu artigo em tom poético-teosófico:
Sua Ísis ergue-se majestosamente com a Grande Pirâmide no deserto
que o materialismo criou em torno de nós, e ela levanta a mão solenemente
para o céu (...)

Mas no decorrer de 1881, aquelas mesmas edições norte-


americanas — ainda sem tradução — de Ísis sem véu estavam com
seus dias contados na França. Tudo porque Leymarie e Courmes
tiveram a nobre ideia de mandar traduzir os dois primeiros catataus
literários de Helena Blavatsky.
Para isso, a dupla contratou — certamente com dinheiro dos
sócios kardecistas da Sociedade — um dos melhores tradutores
franceses que desembarcaria em Paris só para o feito. A comunicação
dessa onerosa empreitada, e já em andamento, surgiria bastante
animada na Revista de julho:
Senhor Fortis, que assumiu a tarefa de traduzir a notável obra de
Madame Blavatsky, Ísis sem véu, nos oferece, por antecipação, o resumo do
livro. E o que nós realmente sabemos é que está bem calculado para nos
inspirar o desejo de ver publicada esta tradução (...).

E arrematará Leymarie, sob aplausos de D.A.C., tentando


justificar aos seus leitores kardecistas a importância da (ainda)
estranha Teosofia em terreno francês:
Os estudos dos teosofistas são muito parecidos com os nossos, de
modo que não temos qualquer interesse em fazer uma noção precisa deles.
40 – Adriano Calsone

Devemos ser gratos ao Sr. Fortis pela realização desta tradução tão desejada.

Mas essa grande energia empenhada por Leymarie e Courmes


na tradução das 1.200 páginas divididas em dois grandiosos volumes,
teria, para a dupla teosofista, um preço emocional mais alto do que o
monetário...
Em carta ao Sr. Bilière, Helena da América pergunta-lhe,
impaciente: "Está pronta a tradução de Ísis?"
E acelera o amigo francês do outro lado do Atlântico: "Neste
caso, poderias me enviar um exemplar?"
No silêncio de seu exótico lar americano, a agitada Blavatsky se
preocupa com as correções a ser feita na tradução francesa, ajustes
esses que os considerou estritamente necessários.
Em nova correspondência datada de 17 de janeiro de 1882,
agora ao seu fiel teósofo Courmes, Blavatsky se mostra doente e com
vontade de morrer pela tradução que demora a sair: "Que me envies
os manuscritos, vou corrigi-los com cuidado, tenho muita pressa, pois
quem sabe quanto me resta de vista (...)".
E quando finalmente Leymarie apresentou a Blavatsky a tão
esperada tradução feita pelo esforçado Fortis, dizendo ele por carta
que o profissional, diante de uma obra tão complexa e subjetiva,
poderia ter interpretado mal os seus pensamentos, imediatamente ela
atirou os originais no fogo, com o pretexto de que o tarimbado
tradutor francês não conhecia a sua Teosofia...
Inacreditavelmente, seria apenas em 1913 que os franceses
puderam, por fim, ler e conhecer a referida obra no idioma francês,
reunida, na ocasião, em quatro volumes, onde trechos desses seriam
publicados n Revista Teosófica fundada por ela.
Possivelmente, dinheiro kardecista atirado no fogo... Da inquieta
Madame Blavatsky...
41 – EM NOME DE KARDEC

Surgimento da
Sociedade Científica de
Estudos Psicológicos

Pierre-Gaëtan Leymarie estava decidido a completar as


renovações em favor da "nova geração de espíritas, em que todos os
corações batem em uníssono e se combinam intimamente para
proclamar a unidade das forças universais", como ele mesmo dirá aos
quatro ventos, ao lado dos novos espíritas teosóficos.
Em 1878, ele mudará por conta própria as sedes da Sociedade
para continuação das obras espíritas de Allan Kardec e da Livraria
Espírita, que estavam localizadas na rue de Lille, n° 7, desde o
desencarne do mestre.
E ele ainda era o mandatário de Amélie-Gabrielle Boudet, a
viúva de Kardec... Ou seja, na teoria, Leymarie deveria cumprir e não
delegar ordens...
A atual mudança para a rue Nueve-des-Petits-Champs, n° 5,
distrito do Palais-Royal, teria deixado Amélie extremamente triste, não
só porque o novo endereço estava localizado em região nobre e
famosa de Paris, mas principalmente porque fez aumentar o aluguel
em 4.600 francos.
42 – Adriano Calsone

E a decisão de promover festas no mesmo local — que deveria


obviamente ficar reservado aos trabalhos espirituais — a apavorou
demasiadamente, já que tal iniciativa espalhafatosa estava muito longe
dos resguardos e das simplicidades do mestre Kardec.
Por influência de um empresário milionário chamado Jean
Antonin Guérin, os membros da Sociedade foram convencionados a
inaugurar, nesse novo endereço, uma estranhíssima organização: a
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos.
Esse grupo, não espírita, surgia como o ideal de atrair gente de
todo o tipo, interessada nas experimentações do magnetismo animal e
das mediunidades. Mas não apenas...
Os livres-pensadores Leymarie, Guérin e demais entusiastas
retomarão os estudos das obras de Cahagnet, da doutrina de
Swedenborg e, claro, dos quatro volumes massacrantes de J-B.
Roustang — um influente advogado da cidade de Bordeaux que
coordenaria a recepção de uma extensa obra, originariamente
concebida em volumes, que seriam intitulados como Os quatro
evangelhos - revelação da revelação, ditados mecanicamente pelos
supostos espíritos evangelistas, Marcos, João, Mateus e Lucas, à
médium belga Émilie Collignon que, curiosamente, fora mãe de um
dos prefeitos de Paris.
Acontece que esses volumes já haviam sido rejeitados por
Kardec desde 1862 — naturalmente por divergirem do Espiritismo...
Todavia, o artigo segundo do estatuto de inauguração dessa
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, além de não mencionar
uma linha sequer sobre o Espiritismo, dizia ainda que "ela se
propunha ao estudo de todas as ciências que se reportam à
psicologia". Psicologia?
Um jornalista e historiador conhecido por Victor Du Bled,
enviado especial do jornal La Société Française, realizará uma visita à
sede dessa nova Sociedade Científica de Estudos Psicológicos para
43 – EM NOME DE KARDEC

constatar a seguinte miscigenação de crenças que seguirá muito longe


da doutrina dos espíritos codificada por Kardec:
(...) Passando pela porta da frente, há um grande tapete verde e, acima,
uma placa com os dizeres: Sociedade Científica de Estudos Psicológicos.
Na verdade, estes senhores acreditam ser psicólogos por excelência,
mas são espiritualistas ao grau centésimo; eles não só cuidam do Espiritismo,
como também do magnetismo, da telepatia, e eles fazem um pouco de tudo,
numa mistura muito estranha...

Tudo leva a crer que a nova Sociedade Científica de Estudos


Psicológicos passou a ser uma sociedade amplificadora das ideias
teosóficas na França. Quiçá fora criada pensando também na
divulgação do teosofismo em paragens francesas. A prova disso estará
bem documentada num pequeno artigo de Leymarie chamado Coup
d'oeil rétrospectif sur l'année 1878, em tradução livre, visão
retrospectiva do ano de 1878, publicado na capa da Revue de janeiro de
1879 com os seguintes dizeres:
Pelo órgão do coronel Olcott e de Madame Helena Blavatsky,
representantes estimados da grande doutrina com seus escritos eruditos, a
Sociedade Teosófica de Nova York se liga de intenções (grifo nosso) conosco e
com a Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, que foi fundada em maio
de 1878.

Mas o que, afinal, era e a que se destinava essa Sociedade


Científica de Estudos Psicológicos criada por Leymarie e companhia?
Tratava-se de uma sociedade mais psicológica ou mais teosófica?
Blavatsky faria dela uma possível subsidiária em Paris? Podemos,
enfim, falar dessa Sociedade Científica de Estudos Psicológicos como
uma filial teosófica que pousava pela primeira vez em território
francês?
Interessante observar que essa mesma Sociedade Científica de
Estudos Psicológicos nasceria no mês seguinte à publicação, na Revue,
do artigo Ideias teosóficas, ainda em 1878. A primeira reunião da
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos aconteceria no dia 10 de
44 – Adriano Calsone

junho, e a sua inauguração, em 25 de junho, revelando uma formação


bastante rápida e não menos precipitada.
Uma hipótese a qual podemos justificar o surgimento
arquitetado da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos dá-se ao
observarmos os objetivos da Sociedade Científica e o da Sociedade
Teosófica. De fato, seus propósitos são muito semelhantes: estudo dos
fenômenos, reflexões sobre a vida, a morte e o além-túmulo,
logicamente com diferenças nas abordagens.
Enquanto para os psicólogos da Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos estava mais do que comprovada a existência dos Espíritos
desencarnados, os que se comunicavam com os encarnados, para a
Teosofia essa relação se dava por meio de forças ocultas e diversas. E
essas explicações teosóficas iniciais causariam muita confusão à
época...
Todavia, uma Sociedade Científica de Kardecistas, obviamente
teria a liberdade de estudar as novas ideias místicas e esotéricas que
desembarcavam na França, oferecendo ao público interessado
explicações científicas, rigorosas, dos fenômenos sobrenaturais,
também por meio de conferências ou debates.
Entre os kardecistas mais ortodoxos, alguém deve ter defendido
a seguinte postura: "Ora, então por que não estudar a Teosofia, já que
somos uma sociedade científica e independente?"
Pensavam os livres-pensadores: sendo a Sociedade Científica de
Estudos Psicológicos uma divisão, um braço do Espiritismo e da
Revista Espírita ao esclarecimento da ciência e da psicologia, não
haveria motivo algum de criticas e acusações antiespíritas!
Embora Blavatsky, do outro lado do Atlântico, se concentrasse
nos seus estudos e nas experimentações ocultistas, inicialmente
egípcias; se debruçasse nos mistérios da natureza humana; nos
fenômenos paranormais à luz da sabedoria antiga e Oriental do
esoterismo, ela fornecerá aos escritórios do Boletim da sociedade
45 – EM NOME DE KARDEC

Científica de Estudos Psicológicos outras explicações para os mesmo


elementos — místicos; outros pontos de vista do mesmo
conhecimento — esotérico; estudos antigos com novas abordagens da
mesma causa — teosófica.
Mas esse editorial teosófico circulando bem debaixo do nariz
dos kardecistas não funcionaria tão bem assim ao passar dos anos. Os
pontos de vistas de alguns autores espiritistas franceses quase sempre
vinham na contramão das conclusões dos teosofistas americanos...
Um bom exemplo dessas polaridades ideológicas: à distância,
Helena discordava das ideias do filosofo roustainguiano Charles
Fauvety e também dos pensamentos espiritualistas de d'A. Froment...
Por sua vez, Leymarie e o amigo Courmes, teosofistas e kardecistas,
concordavam com Blavatsky, com Fauvety e com Froment...
Entretanto, ainda sobre a Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos, o mesmo livre-pensador Fauvety dirá num artigo futuro,
que será publicado no Boletim da Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos, edição de julho de 1883, que ela "foi fundada há alguns
anos atrás e acabou falindo, ao que parece, como resultado da
controvérsia entre o oculto da Teosofia e o Espiritismo da sociedade
psicológica".
Em verdade, os novos teosofistas franceses faziam parte do
comitê da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos e eram
naturalmente convidados a expor suas ideias em público, além de
participarem das discussões de pauta como livres-pensadores.
Segundo Faubery, ainda no seu artigo, dirá ele que: "a comissão
da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos tinha essa postura
porque acreditava que isso agradaria a Sociedade Teosófica de Paris",
cuja existência e pormenores abordaremos em outro capitulo.
Mas a chapa da fritadeira dos teosofistas da Sociedade Científica
de Estudos Psicológicos, que esquentará durante cinco anos (de 1878
a 1883), ao mesmo tempo em que estimularia e inflaria as ideias de
46 – Adriano Calsone

Blavatsky por toda a França, acabou gerando também muitas


controvérsias internas, graves o suficiente para que Helena da
América sugerisse a divisão da Sociedade em três grupos distintos. Um
racha à vista!
Concluímos que a enigmática Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos fora o órgão mais importante à divulgação e propagação
do teosofismo francês, sendo os seus integrantes maiores (os teósfos-
kardecistas-roustainguianos, Sr. Leymarie e Sr. Courmes) os pioneiros
do Movimento Teosófico na França.
A miscigenada Sociedade Científica de Estudos Psicológicos —
nascida teosófica em 1878 — encerrará suas atividades em 1883, sem
prestígio algum e ainda por cima debaixo de uma grave crise recheada
de conflitos insolúveis.
Por fim, as ações, teosofistas, provocarão reações, kardecistas,
desaguando no histórico racha do grupo científico-psicológico em três
filias teosóficas francesas diferentes, que continuarão sendo
subsidiadas à distância por Helena e Olcott.
E a Filosofia Espírita de Kardec, onde?
47 – EM NOME DE KARDEC

Polêmica à vista:
Sociedade Teosófica
dos Espíritas Franceses

Indiscutivelmente, a chegada do movimento teosófico na França


se estabelecia pela veiculação ininterrupta de dezenas de artigos
publicados na Revista Espírita.
Esse sucesso da Teosofia em terras tricolores — como o
patrocínio de kardecistas — parecia seguir uma lógica bastante
precisa: 1875 - criação da Sociedade Teosófica; 1876 - observação
(por Leymarie e Courmes) da evolução das ideias teosóficas na
América; 1877 - artigo na Revue sobre a Sociedade Teosófica de Nova
York; 1878 - publicação na Revue do suplemento Idées Théosophiques
(Ideias Teosóficas), com 17 longas páginas; e, por fim, o acinte de 1879
- a criação da Société Théosophique dês Spirites Français. Espíritas
franceses?
Isso mesmo, essa S.T.E.F. (em português) era uma filial da
Sociedade Teosófica que pousou na sede do quartel-general do
kardecismo parisiense — o escritório da Revue —, ainda sob a
responsabilidade de Amélie-Gabrielle Boudet, esposa e herdeira de
Allan Kardec.
O que, de fato, Leymarie queria com a criação de uma
inacreditável Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses?
48 – Adriano Calsone

Ao que tudo indica — com isso —, ele desejava mesmo passar


por cima dos bondosos preceitos de uma senhora de 84 anos de
idade...
Mas desde 1878, com a esquisita sobreposição da Sociedade
Científica de Estudos Psicológicos na Sociedade para continuação das
obras espíritas de Allan Kardec — criação essa da viúva Kardec —
Leymarie passaria a deixar muito claro "A nossos leitores", que "Paris
era a filial da grande escola teosófica correspondente com os amigos
da Índia (em Bombaim)". E ponto final!
Em meio a tantas sinceridades e liberdades de um livre-
pensador, nenhuma menção fora feita por ele na Revista Espírita sobre
a criação dessa Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses. Por que
será?
Certamente, o fato de tornar público aos leitores da Revue e
pagantes da Sociedade (dentro e fora da França) a informação de que
havia em curso um grupo de kardecistas interessados em estudar uma
filosofia espírita-teosófica, ou mesmo que dirigentes kardecistas
desejavam participar de um teosofismo kardecista em Paris,
repercutiria negativamente ao chegar a qualquer endereço.
Porém, querendo ou não, isso acabaria acontecendo em meados
de 1883, quando não foi mais possível manter na informalidade as
atividades daquele grupo de kardecistas teosóficos parisienses, que
minguava de tamanho a cada ano.
Todavia, para a Helena (agora na Índia), falar por carta com
Dominique Albert Courmes ou Auguste Bilière sobre uma filial da
S.T.E.F. na França se tornava bastante comum, como é o caso desta
nota da redação sobre a Théosophie et Spiritisme, escrita por um
teósofo chamado Charles Blech: "Eu tenho certeza de que você poderia
inaugurar uma filial francesa, que não faria apenas 'ornamental' (grifo
nosso), mas que seria útil de alguma forma".
Algumas linhas adiante, Helena da Índia escrevia outra
49 – EM NOME DE KARDEC

consideração "ornamental" nesse sentido, só que agora para o Dr.


Thurmam: "Uma filial em Paris sob sua direção poderia fazer
maravilhas (...)".
Acredita-se que em 1879 tenha surgido por volta de 185
curiosos em participar da Sociedade Teosófica dos Espíritas
Franceses. E mesmo que esse número não represente
necessariamente adesões, um pequeno grupo de espiritistas seria
formado com a proposta de estudar e compreender, mesmo que
informalmente, os ensinamentos ocultos e "egípcios" propostos por
Madame Blavatsky.
Entretanto, a maioria desses novos filo-teosofistas (sic), como
eram chamados os iniciados, era constituída por membros
pertencentes à escola de Kardec, o que fez com que esses não
prestassem muita atenção ao que vinha acontecendo sobre o
teosofismo nos Estados Unidos e depois na Índia, diante das novas
descobertas da Teosofia no campo místico-esotérico.
No final do século 20, Jocelyn Godwin, em sua brochura The
biginnings of Theosophy in France (Os primórdios da Teosofia na
França), reportará que em virtude de todos os membros pertencerem
à Kardec School (Escola de Kardec), durante cinco anos a Sociedade dos
Espíritas Teosóficos da França (sic), sucursal de Paris, acabaria falindo
porque seus membros permaneceram na virtual ignorance (ignorância
virtual) daquilo que Madame Blavatsky, e outros, estavam ensinando
em paragens distantes.
Finalmente Godwin, em seu opúsculo:
(...) suficientemente ocupados com os eventos em Bombaim, Adyar,
Nova York e em Londres, Blavatsky achou melhor deixá-los em paz (...).

Em abril de 1883, prevendo o fim próximo da ornamental


S.T.E.F., Blavatsky esbravejará numa carta enviada a Courmes,
justamente daquela falta de atitude dos membros da sucursal
teosófica parisiense: "A 'filial teosófica" (sic) de Paris me endereça
50 – Adriano Calsone

essa respectiva homenagem, mas reorganizá-la tornou-se impossível


(...) Depois de quatro anos ou mais eles ainda não elegeram sequer um
presidente, nem mesmo um fictício (...)".
A memória falível de Helena da Índia aponta para "depois de
quatro anos ou mais", o que deixa subentendido que a S.T.E.F. pode ter
surgido ainda durante o ano de 1878, sido inaugurada em 1879, para
durar até meados de 1883 — ocasião essa em que o Comitê de leitura
da Revue barraria os muitos artigos teosóficos intermediados por
Leymarie e Courmes, de Bombaim a Paris.
Ao que tudo indica pelo artigo de Charles Blech, La réponse dês
théosophes (A resposta dos teósofos), publicado na Revue em maio de
1883, Madame Blavatsky não encarava a S.T.E.F. como uma mera
ramificação do teosofismo em Paris.
Fato é que o nascimento dessa organização do Espiritismo
teosófico na França configurou-se para ela, muito mais do que uma
simples filial teosófica. A seguinte fala de Blavatsky não nos deixar
mentir: "A harmonia fraternal e os acordos relativos prevaleceram
durante cinco anos entre a nossa Sociedade Teosófica, com sede na
Índia, e a nossa amada filial em Paris".
Essa amada filial — a mesma S.T.E.F. — tornar-se-ia o braço
parisiense do "Centro do Poder", como seria chamada a sede oficial da
Sociedade Teosófica depois de sua transferência para a Índia, em
1879.
Para a S.T. aterrissada em Adyar, esse centro do poder deveria
reunir os verdadeiros teosofistas do mundo, ao passo que do lado de
fora da S.T. de Adyar, se consideraria todos os demais estudiosos
filoteosofistas, ou meros filósofos e sofistas.
Para seus fundadores, a ordem superior ditada pelos mestres
deveria ser respeitada e seguida nos seguintes termos, conforme
proclamará Blavatsky, em 1886: "A teosofia não deve representar
meramente uma coleção de verdades morais ou um pacote de éticas
51 – EM NOME DE KARDEC

metafísicas epitomadas em dissertações teosóficas. A teosofia tem de


ser tornada prática, e tem, portanto, de ser libertada da discussão
inútil (...)".
Porém, os muitos membros da S.T.E.F., como é o caso do maçom
Leymarie, haviam convivido diretamente com Allan Kardec, observado
e cooperado com o mestre na fundação do Espiritismo no fim da
década de 1850. Ao certo, sabiam esses senhores que os ensinamentos
dos Espíritos, contidos nas cinco obras fundamentais da Doutrina
Espírita (O Livro dos Espíritos; O Livro dos Médiuns; O Evangelho
segundo o Espiritismo; O Céu e o Inferno; e A Gênese) destoavam
sobremaneira das vivencias egípcias de 1875 que dariam corpo ao
teosofismo moderno codificado por Blavatsky e Olcott.
Isso, de certa forma, fez com que a dupla teósofa previsse que a
comunidade kardecista mundial começaria (a qualquer momento) a
denunciar, nas ideias místicas do Oriente, certo teor niilista incrustado
nos artigos teosóficos da Revue, publicados sob a responsabilidade do
Comitê de leitura, diante das forças persuasiva de Leymarie e
Courmes, para desespero da solitária viúva Kardec, que se revirava de
pavor diante de todos esses acintes, em sua residência à villa Ségur, na
Paris-Luz.
Essas ideias niilistas, de certa forma, combatiam e contrariavam
tudo aquilo que Allan Kardec havia estabelecido diante dos conceitos
positivistas da fraternidade universal, há tempos ventilados no
Espiritismo.
Niilismo (do latim nihil, nada), em sua concepção antipositivista,
nada mais é que a desvalorização e a morte do sentido; a ausência de
finalidade e de respostas aos "porquês" da humanidade... Ou seja, tudo
aquilo que a Filosofia Espírita repudiava.
Em contra partida, o que mais fez a doutrina dos Espíritos em
todos os tempos fora fornecer respostas simples e claras no combate
ao materialismo provindo desse nada niilista...
52 – Adriano Calsone

O Livro dos Espíritos, organizado por meio de perguntas e


respostas, é a prova maior desse "tudo", caminhando no sentido da
valorização da vida ou da morte, com suas respostas precisas vindas
dos Espíritos sobre os porquês da humanidade.
Resumindo: a Teosofia da época impugnava o Espiritismo a
sangue frio, se utilizando de sua própria Revista Espírita para
contradizê-la...
Inacreditavelmente, os kardecistas do principal círculo espírita
de Paris demorariam cinco anos para tomarem uma atitude!
Portanto, a suspeita de niilismo à época, justificando os ideais
teosofistas era um atentado contra tudo aquilo que o Espiritismo,
como terceira revelação, havia construído na intenção divina de trazer
os ensinamentos de Jesus à humanidade...
Ao que se sabe, no final de 1883, persistiram menos de 20
membros à frente daquela Société Théosophique des Spirites Français,
como visto, um pequeno embrião teosófico de espiritistas kardecistas
que insistia em existir por conta da chegada de Helena Blavatsky e de
coronel Olcott numa Paris em seu pleno verão.
Por fim, o pesquisador teósofo Charles Blech dirá, mais tarde,
que a curiosa S.T.E.F. (criação de Leymarie e Courmes), além de
fomentar o nascimento do Movimento Teosófico Moderno na França,
foi essencial para lançar as bases à inauguração da Société
Théosophique d'Orient et d'Occident (Sociedade Teosófica do Oriente e
do Ocidente), dada por Lady Caithness — uma espírita-católica inglesa
que também se convertera ao teosofismo.
Duquesa de Pomar, como também era chamada essa rica
feminista, por ironia do destino, se "preocupará mais com o
Espiritismo do que com a Teosofia", segundo a fala alquebrada do
velho coronel Olcott, em seu discurso presidencial de 1906, às
vésperas de seu desencarne.
53 – EM NOME DE KARDEC

Suplemento teosófico na

Revista Espírita
Allan Kardec decidiu que escreveria — sozinho — todas as
matérias do seu primeiro periódico espírita a surgir no mundo... E a
sugestão de sua criação partira do plano espiritual, por meio de uma
médium adolescente chamada Ermance Dufaux.
O ousado projeto editoria do casal Kardec se chamaria Revue
Spirite (Revista Espírita), e começou a circular em 1 de janeiro de
1858, impresso pela tipografia de Beau, a mesma de O Livro dos
Espíritos. E o dinheiro para bancar a primeira edição da Revue partira
tão somente de Amélie-Gabrielle Boudet, a esposa do Codificador.
A Revista Espírita surgiria em Paris (para o mundo) com o
subtítulo de Jornal de Estudos Psicológicos, trazendo ainda uma
epígrafe de peso logo abaixo: "Todo efeito tem uma causa. Toda efeito
inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa inteligente
está na razão da grandeza do efeito".
O que seria, a princípio, um periódico espírita que não inspirou
muita confiança em Kardec, no sentido de grandes vendagens, tão logo
passaria a dobrar o interesse de leitores por assinaturas, isso sem
esforço algum no sentido das publicidades espontâneas, obrigando o
mestre lionês a fazer novas reimpressões de anos anteriores, duas
54 – Adriano Calsone

vezes esgotadas...
Um bom exemplo disso estaria na renda da Revue que, só no ano
de 1868, já havia alcançado 660 assinantes, que pagavam 10 francos
por ano, o que gerava à Sociedade um lucro bruto de 6.600 francos
anuais...
E nos anos seguintes, passaria de 1.100 o número de seus
assinantes, tudo ainda com vantagem de não se pagar pelo papel de
impressão e, muito menos, remunerar qualquer artigo de seus
colaboradores, como vinha acontecendo há alguns anos, a pedido de
Kardec...
O número de páginas da Revue também não pararia de crescer,
chegando a atingir em determinado ano, 1.878 artigos, isso sem contar
os vários suplementos que eram anexados eventualmente.
E por falar nisso, um "suplemento teosófico" seria anexado à
Revue, na edição de abril de 1878, especialmente para reforçar o
lançamento da Teosofia em terras francesas.
Sobre os custos e gastos, um recado seria deixado na 16ª linha
do texto desse suplemento:
(...) Este sacrifício é feito pela Sociedade, sem aumento de preço da
Revista; em consequência disso, esse nosso suplemento, que contém 40
páginas, custará meio franco adicional. Quantidades maiores deverão ser
reservadas pelos assinantes (...).

Transcrito pelo velho marinheiro Courmes, e publicado por


Leymarie sob a autorização do Comitê de leitura da Revue, esse
extenso suplemento (não espírita) surgiria com dois artigos de
Courmes, um de abertura e um de fechamento, incluindo também
fragmentos da fala de Blavatsky, e outro artigo com um título bastante
curioso: Premier article du Colonel Olcott (Primeiro artigo do Coronel
Olcott)... Obviamente, em terras francesas.
Para evitar algum tipo de confusão ou mal entendido com algum
kardecista mais atento, Olcott fez questão de tentar resumir o que
55 – EM NOME DE KARDEC

vinha a ser a sua Teosofia:


Aqui, um breve resumo das ideias a que os teosofistas chegaram:
1ª Aceitamos a doutrina da imortalidade do Espírito humano, e o fato
da comunicação entre este mundo e o outro;
2ª Acreditamos na realidade, tanto objetiva como subjetiva, dos
fenômenos mediúnicos;
3ª A mediunidade pode ser naturalmente ativa ou latente (grifo nosso);
neste último caso, o seu desenvolvimento requer esforço exercido em
circunstâncias favoráveis. Estamos, portanto, em geral, em bom acordo com os
espíritas.

E a primeira contradição viria logo a seguir, na continuação de


seu item terceiro. Olcott provavelmente se esquecera de que falava
(também) para médiuns franceses e não (apenas) para os médiuns
americanos do espiritualismo moderno.
O que mais Kardec fez, desde 1857, com o aconselhamento dos
espíritos superiores, fora incentiva a prática mediúnica por meio dos
diversos grupos espíritas estabelecidos no mundo. A continuação da
fala do militar reformado, certamente não alegrou os dirigentes e
médiuns kardecistas, já que os mesmos estavam nessa prática há duas
décadas, especialmente por toda a França. Dirá Olcott:
Onde nós diferimos é no primeiro (mediunidade ativa), em que
acreditamos que não é bom incentivar ainda a mediunidade, especialmente
por causa da maneira como ela é praticada atualmente na América, expondo
as pessoas a enormes perigos físicos, psicológicos e morais, esses, muito
sensíveis e muito frequentemente produzidos no próprio investigador — uma
credulidade cega que está prestes a se transformar em fanatismo ou
dogmatismo (...).

Primeiro: ele não falava só com espiritualistas americanos.


Reportava-se aos espiritistas e médiuns, em sua maioria, instruídos e
sapientes dos riscos que a mediunidade desorientada poderia
apresentar.
56 – Adriano Calsone

É sabido ainda que Allan Kardec havia compilado O Livro dos


Médiuns especialmente para que os medianeiros do mundo pudessem
tirar suas dúvidas sobre a mediunidade em si. Portanto, advertências
teosofistas como essas estavam fora de cogitação, principalmente na
França espírita de Kardec...
Segundo: dizer que a mediunidade pode desvirtuar alguém
"expondo as pessoas a enormes perigos físicos, psicológicos e morais",
é reafirmar a todos os medianeiros responsáveis que esses correm
riscos de sofrer graves consequências, caso sejam levados ou
incentivados à prática mediúnica.
Certamente, esse discurso de Olcott fora produzido à época com
efeito raso para assustar iniciantes e fazê-los crer ou considerar que a
canalização teosófica fosse o caminho mais seguro para se comunicar
com os Elementais, quiçá com os Elementares...
Colocar temor em cima da mediunidade, do intercâmbio
mediúnico, nos leva a suspeitar que os teósofos do século 19
desejassem mesmo resguardar os caminhos (livres e sagrados) da
comunicação com os mortos...
Terceiro: esse acordo teosófico com os preceitos espíritas à
época, diante do resumo daquilo que vem a ser o teosofismo — está
bastante destoante —, principalmente porque Olcott mostrou que
desejava resguardar a prática de um tema que é de estrema
importância e relevância no Espiritismo: a mediunidade com Jesus...
Mediunidade orientada (ou de prova) jamais se configura em
"uma credulidade cega que está prestes a se transformar em fanatismo
ou dogmatismo". Só esse comentário denota o quanto Olcott esteve
desinformado e em acordo com as especificidades mediúnicas listadas
por Kardec, em O Livro dos Médiuns.
Mais adiante em seu artigo, ele resumirá novamente a sua
Teosofia, agora em seis tópicos mais corridos. Desta vez, novas
contradições com a Doutrina Espírita surgiriam às vistas dos leitores
57 – EM NOME DE KARDEC

kardecistas mais ligados nas entrelinhas:


1ª A imortalidade pessoal é condicional, possível, virtual, mas não
inevitável;

A título de esclarecimento, em O Livro dos Espíritos, numa das


ocasiões no final da referida obra, há a seguinte menção dos espíritos
sobre a questão da imortalidade da alma como uma verdade evolutiva
que não se teria como evitar:
(...) Demonstrando a existência e a imortalidade da alma, o Espiritismo
reaviva a fé no futuro, levanta os ânimos abatidos, faz suportar com resignação
as vicissitudes da vida. Ousaríeis chamar a isto um mal? Duas doutrinas se
defrontam: uma, que nega o futuro; outra, que lhe proclama e prova a
existência; uma, que nada explica; outra que explica tudo e que, por isso
mesmo, se dirige à razão; uma, que é a sanção do egoísmo; outra, que oferece
base à justiça, à caridade e ao amor do próximo. A primeira somente mostra o
presente e aniquila toda esperança; a segunda consola e desvenda o vasto
campo do futuro. Qual a mais preciosa?

Tendo como base as ideias da Teosofia à época, essa aniquila


toda esperança ao afirmar, pelo seu dirigente Sr. Olcott, que a
imortalidade da alma pode ser perfeitamente evitada...
Em 22 de dezembro de 1899, o célebre espiritista e maçom Léon
Denis participará de uma reunião de evocação espiritual nos Saons
Pain, em Paris. Na ocasião, um Espírito se apresentou como "Jean",
fornecendo ao médium da reunião uma mensagem espelhada, ou seja,
psicografada de trás para frente. A referida comunicação ostentava a
seguinte afirmação: "O Espiritismo é a única filosofia que dá a prova
material da imortalidade da alma (...)".
Assim, como evitar a imortalidade da alma se somos, em
essência, Espíritos imortais?
Certa feita, Chico Xavier afirmou, em entrevista, que "o
Espiritismo não oferece a solução desse problema como novidade,
porque o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo é um hino à
imortalidade da alma, e ele próprio nos deu o quadro inesquecível da
58 – Adriano Calsone

sua própria ressurreição (...)".


E mesmo os antigos egípcios ou os indianos com suas culturas
tão refinadas — pautas de incansáveis estudos dos teósofos —, já
acreditavam há tempos que a imortalidade da alma (para qualquer ser
vivente) era lei imutável, intocável...
No livro A Caminho da Luz — história da civilização à luz do
Espiritismo, ditado pelo Espírito Emmanuel — psicografia de
Francisco Cândido Xavier, há um capítulo que aborda os Egípcios e as
ciências psíquicas, onde o mentor de Chico explica que:
Um dos traços essenciais desse grande povo foi a preocupação
insistente e constante da Morte. A sua vida era apenas um esforço para bem
morrer. Seus papiros e afrescos estão cheios dos consoladores mistérios do
Além-túmulo.
(...) Os mistérios de Ísis e Osíris mais não eram do que símbolos das
forças espirituais que presidem aos fenômenos da morte.
As ciências psíquicas da atualidade eram familiares aos magnos
sacerdotes dos templos egípcios.
O destino e a comunicação dos mortos e a pluralidade das existências e
dos mundos eram, para eles, problemas solucionados e conhecidos (...).

Seguindo com os resumos da Teosofia, segundo Olcott, vejamos


o que vem a seguir, dito por ele:
2° Os fenômenos mediúnicos psíquicos não são produzidos por
espíritos puros, e sim, por almas (perispíritos) de encarnados ou
desencarnados, e, geralmente, com a ajuda de Elementais;

Como sabemos no Espiritismo, isso depende de vários fatores,


como das condições ambientais, do tempo e da experiência mediúnica,
além do merecimento individual dos medianeiros frente à mediação
de um Espírito puro, dito de estirpe.
Dizer que os fenômenos mediúnicos psíquicos necessitam
geralmente de ajuda de forças da natureza chamadas elementais par
serem produzidos, segue na contramão da espontaneidade e do livre-
59 – EM NOME DE KARDEC

arbítrio resguardado a qualquer espírito, portanto, essa afirmação de


Olcott vai contra os preceitos estabelecidos pelo Espiritismo, quando o
assunto é intercâmbio mediúnico.
3° 'Os elementares' são as almas (corpos astrais) impuras,
desencarnados e perecíveis; os 'elementais' são as forças da natureza;

Especificamente sobre os Elementais não fica claro para nós


kardecistas o que seriam exatamente essas forças da natureza, que
podem parecer qualquer coisa possuidora de psicosfera e energia:
seres interplanetários, deuses egípcios, extraterrestres, energia
cósmica? São os mistérios de uma doutrina secreta!
4° Sobre a passividade do médium (grifo nosso). Os adeptos ou dotados
com as marcas do poder mágico revelam, por si, suas atividades. A primeira
condição (passividade do médium) é um perigo e deve ser evitada, exceto em
excelentes condições (o segundo deve ser investigado);

Pelo que nos foi possível compreender desse item quarto de


Olcott, a passividade mediúnica "deve ser evitada" a todo custo, ao
passo que a detecção de marcas do poder mágico impregnadas nos
medianeiros, como afirmou Olcott à época, é sinal evidente de que o
iniciado no teosofismo fora o escolhido para determinada prática
mediúnica, sob a proteção ou ajuda dos mesmos elementais.
Esse ponto de vista olcottiano é completamente inverso aos
ensinamentos da Filosofia Espírita. Médiuns espiritistas não possuem
e jamais possuirão marcas de poder mágico que possam distingui-los
uns dos outros.
A mediunidade espontânea é ponto comum para qualquer ser
humano, já que todos somos médiuns. A única diferença entre um e
outro (médium) estará sempre na sua condição moral, que deve ser
atingida pelo seu próprio esforço, melhorando-se, instruindo-se,
investigando-se e, acima de tudo, evitando o mal...
5° Uma vida pura e uma sobriedade perfeita são essenciais ao exercício
do poder mágico e à aquisição da verdade espiritual. Os iniciados do Oriente se
alimentarão como os vegetais;
60 – Adriano Calsone

Com o devido respeito aos ensinamentos da Teosofia, esse


exercício do poder mágico está completamente fora de cogitação, seja
no Espiritismo do passado, como no do nosso presente.
6° Teosofistas têm as filosofias religiosas do Oriente com as melhores
guias da felicidade à Teologia Cristã, e bases mais sólidas da ciência como o
método de Aristóteles seguido hoje.

E no final de seu primeiro artigo na Revista Espírita (primeiro


dos muitos), o velho marinheiro de barbas alvas assinaria (diferente)
o seu nome em caixa alta: Henry S. Alcott.
Por fim, todos os artigos desse suplemento avulso surgiam para
mostrar que as primeiras mensagens teosóficas em solo francês
desembarcavam imponentes e triunfantes na Revue, depois que a
dupla Courmes-Leymarie observou os primeiros escritos de Blavatsky
e Olcott produzidos nos anos de 1876 e 1877.
Reações de vários leitores kardecistas também retornariam ao
escritório da Revue com força; alguns demonstraram interesses em
acolher as ideias teosofias; outros expressaram dúvidas, incertezas e
até reclamações, solicitando os sócios, ora outra, explicações
detalhadas do que vinha a ser aquelas contrariedades teosóficas que
se mostravam antiespíritas.
O seu conselho editorial, que no início abrirá várias exceções às
publicações experimentais do teosofismo, no final de 1882 passará a
exigir explicações formais de seus autores sobre o teor de qualquer
artigo teosófico a ser veiculado na Revue...
E aquele afrouxamento editorial de dantes transformar-se-á em
restrições, para depois o próprio Comitê de leitura proibir
definitivamente os artigos teosóficos, isso nos idos de 1883.
A exclusão das ideias teosóficas na Revue será inevitável no
futuro... E o possível recado (informal) seria passado à sede da S.T. em
Adyar:
Qualquer teosofista na face da Terra não poderá mais publicar
61 – EM NOME DE KARDEC

seus artigos no periódico kardecista mais conceituado do mundo. E


ponto final...
62 – Adriano Calsone

A Condessa mística
e seu macaco de pelúcia

O mapa da mina das publicações de matérias teosóficas na


Revista Espírita mostrou ser bastante rico e habitado. Durante
incríveis 38 anos, ou seja, de 1876 a 1914, seriam publicados na Revue
mais de 52 artigos (diretos e indiretos) sobre o teosofismo. Esse
relevante conteúdo teosófico seguiu das pequenas notas da Sociedade
Teosófica, textos, réplicas e correspondências de Blavatsky, Olcott e
outros, aos extensos suplementos teosóficos, cujo primeiro deles a
surgir na Revue, comentamos em capítulo anterior.
Tudo, inacreditavelmente tudo seria publicado às vistas da
viúva Kardec sem que ninguém fornecesse qualquer satisfação, seja
para ela, seja para os sócios ou leitores da Revue, e ainda com o
consentimento e apoio moral de Leymarie e Courmes, para desespero
da octogenária viúva, que seguia acabrunhada em sua residência à
Villa Ségur.
Como se sabe, os editoriais teosófico começariam a pousar na
histórica Revista em agosto de 1876, quando o militar reformado
Courmes publicará o seu primeiro artigo, Un écart Du Spiritisme en
América (Uma lacuna do Espiritismo na América), ainda com um
disfarçado cheiro de Teosofia no ar.
Ele forneceria também a sua primeira réplica pública, ao
defender objeções do coronel Olcott — personalidade americana com
63 – EM NOME DE KARDEC

a qual Courmes ainda não conhecia pessoalmente.


Mas em maio de 1877, surgiria um novo artigo teosófico na
Revista Espírita dos Kardec. Dessa vez, com o assumido título: Société
théosophique de New-York.
A ideia do artigo, bem planejada pela sua estruturação, seria a
de apresentar aos leitores kardecistas a formação da Sociedade
Teosófica e de seu extenso Comitê. Especificamente na relação dos
nomes desse Comitê, Henri S. Olcotti aparecerá como presidente (ao
lado de outros dois), ao passo que Blavatsky surge em cena como vice-
presidente (ao lado de outros 16). Curioso observar ainda que a
maioria dos nomes desses senhores e senhoras vinha representada
por siglas, como se tornaria praxe no teosofismo de época.
Em junho de 1878, apareceria na Revue Spirite um polêmico
artigo de seis páginas: Les Théosophes; Madame Blavatsky (Os teósofos;
Madame Blavatksy).
Seu misterioso autor, um repórter americano das siglas E.F.
enviaria a sua matéria pronta à França para outro misterioso "homem
das letras" ligado ao Comitê de leitura da Revue. Acontece que esse
publicista francês, ao receber a encomenda do anônimo jornalista E.F.,
talvez, confiando demais nele, acabou não lendo até o final o referido
artigo, cujo conteúdo literalmente caricaturava Blavatsky com "erros e
uma historia um pouco fantasiosa", as essas que constarão numa
réplica posterior escrita pela própria Helena.
O indecifrável E. F. iniciava o seu burlesco artigo dizendo que os
primeiros cinco mil exemplares do livro de estreia de Helena, Ísis sem
véu, começavam a ser vendido em Paris (ainda sem tradução para o
francês) a 37 francos e meio.
O enigmático homem, com sua macaquice literária, geraria
inquietações nos teósofos logo nos parágrafos seguintes, ao fornecer
pormenores sobre a residência americana de Blavatsky — a
"secretária correspondente da Sociedade Teosófica", segundo dirá o
64 – Adriano Calsone

macaqueador E.F.
Dirá ainda o repórter que "o empetecado apartamento de
Helena e Olcott possuía um vasto salão com duas grandes bibliotecas,
três escritórios e um piano com uma imagem de Buda; uma divindade
chinesa e um santuário de ouro (...)".
Seguirá o desconhecido americano E.F. com o seu relato
ambiental na provável descrição imaginativa que fará de Blavatsky e
de seu lar para lá de exótico:
Perto de uma das janelas fora colocado um enorme macaco de pelúcia,
estranhamente vestido... E a outra janela estava tapada por uma gaiola repleta
de canários (vivos).
Em frente, ao final do quarto, havia outra gaiola, dessa vez contendo
uma meia dúzia de pardais de Java, todos eles vibrados elétricos contra as
grades, sem descansarem um só minuto.
Um enorme ramo de palmeira preenche um canto da sala de estar, e
uma cabeça de tigre, com expressão feroz, mostra suas presas formidáveis
com a boca entreaberta num outro canto da mesma sala.
Madame Blavatsky oferece, aos seus visitantes, um rico cachimbo
oriental forrado com veludo e filigrana de ouro, que termina a sua extremidade
num esplendido âmbar bocal — porque em todos os seus gestos há a
indulgência graciosa de uma grande dama da aristocracia russa para com seus
fumantes fracos.
E quando convenientemente instalada em uma grande cadeira, ela me
disse, complacente, em uma linguagem colorida e rápida, por meio de seu
sotaque estrangeiro muito pronunciado, mas picante, todas as questões que
lhe foram colocadas. A condessa passou quase 30 anos na Índia; de uma
natureza mística, ela abraçou a convicção da fé budista...
Fanática de verdade, ela combate o erro onde quer que esteja, e se
apresentou a mim com uma energia incrível. A nossa conversa girou em torno
da magia: "A magia! Exclamou Madame Blavatsky, a magia é um estudo ainda
desconhecido das ciências (...)".

Ao certo, muitos leitores da Revue, especialmente os kardecistas


65 – EM NOME DE KARDEC

mais ortodoxos, devem ter repudiado essas descrições extravagantes


do interior da morada de Helena da América. Muitos espiritualistas, ao
lerem aquele artigo caricatural, ficaram boqueabertos quando fossem
comparar a vida soberba de Blavatsky — recheada de ostentações —
com o estilo sóbrio de vida de Allan Kardec levava ao lado de sua
esposa Amélie — simples e sem qualquer necessidade de excessos...
Pela descrição macaqueada do oculto E.F., a fundadora da
Sociedade Teosófica fazia questão de se apresentar por meio de uma
aparência física escalafobética, ou seja, segundo o repórter norte-
americano, ela não resguardava pudor algum diante de seu
comportamento excêntrico, desfrutando um estilo de vida não menos
estrambólico...
Diante desse cenário confuso, imaginemos, por exemplo, como
ficaram as reações daqueles operários humildes em seus distantes
centros espíritas do interior da França... Ao lerem essas minúcias
caseiras de Blavatsky, na Revue, inevitavelmente perguntariam uns
para os outros, com um enorme ponto de interrogação em suas faces
envelhecidas:
"Quem é essa 'Condessa de natureza mística' com seu 'macaco
de pelúcia', cuja residência na América mais parece um museu com
seus colecionáveis esotéricos do Oriente?"
Essas estranheza sobre a vida cotidiana de Blavatsky, narradas
por jornalistas americanos tendenciosos, ajudaram de certa forma a
forjar uma personalidade imaginária à madama, como também
colaborariam para introjetar, até os dias atuais, valores místicos à sua
imagem e personalidade.
Todas essas minúcias não passariam despercebidas aos leitores
mais perscrutadores da Revista Espírita que, certamente, seguiram
observando e acompanhando o contraste que começou a surgir diante
das inevitáveis comparações entre a conhecida simplicidade e bom-
senso do saudoso mestre Kardec, com as atuais excentricidades da
personalidade complexa de H. P. Blavatsky.
66 – Adriano Calsone

E se os sócios e leitores começassem a reclamar daquele


Espiritismo teosófico velado na Reuve?
Tão logo, sabendo que o jornalista E. F. causaria uma
macaqueação geral entre os kardecistas franceses, por meio do seu
artigo Les Théosophes; Madame Blavatsky, ela encaminhou uma nota-
réplica que fora acrescida da seguinte introdução, provavelmente
escrita por Leymarie:
(...) Uma letra de Madame H. Blavatsky nos permite corrigir o que nós
incluímos de boa-fé, que agora nós temos que corrigir para fazê-lo como um
dever e um prazer; nossa amiga pareceu bastante superestimada no artigo por
quem mal a conhece, temos certeza dessa prova. À nossa religião ficou tal
surpresa (...).

O incisivo revide, vindo diretamente da América, refletia bem a


fúria de Blavatsky, como veremos nesses trechos a seguir:
Existe uma raça de bípedes — em produção em nosso século a vapor e
iconoclasta por excelência — que as academias de ciências, até agora, não
conseguiram classificar, sob o título de 'Teratologia', ou ciência para lidar com
monstros humanos. Esses monstros, ou locus naturae, se referem aos
jornalistas que circulam por aqui, como em outros lugares (...). Com esses
senhores jornalistas americanos, eu realmente não sei por que bons cidadãos
dos Estados Unidos se preocupam em fechar suas portas já que não há
fechaduras patenteadas suficientes que resguardem os segredos sagrados de
uma família, capazes de impedi-los de escarafunchar as nossas vidas, se
intrometendo em tudo, especialmente para substituir a verdade (...).
Há cinco anos que sou vítima dessas perseguições por sensações
literárias (...)
Primeiro de tudo, para começar, eu não sou condessa, até onde eu
sei... Já para não falar que seria mais do que ridículo o título que esse senhor
em deu (...)
No entanto, a embora eu não seja condessa mesmo, eu nunca tive o
hábito de oferecer cachimbos aos meus visitantes. Por ser uma democrata,
uma viúva, acima de tudo eu não aceito isso — especialmente na minha idade
— passar por um papel ridículo e impróprio como esse (...)
67 – EM NOME DE KARDEC

Falando de minha idade, embora os jornais desse país tenham me


dado, respectivamente, e por diversas vezes, 25, 60, 86, 92 e até 103 anos, eu
nego a me ver obrigada a garantir a seus leitores que eu "passei mais de 30
anos na Índia". Esta é exatamente a minha idade — embora respeitável como
ela seja — me oponho violentamente a participar dessa linha do tempo de
fantasias...
Eu não abracei a fé budista, nem por convicção ou qualquer outra
coisa. É verdade que eu olho para a filosofia de Gautama Buddha, como o
sistema mais sublime, a mais pura de todas as lógicas e, especialmente, entre
todas as outras (...)

Mesmo respeitando e concedendo o direito à defesa pessoal de


Blavatsky, os membros do Comitê de leitura, diante desse áspero
revide, tomariam alguma atitude se a situação das réplicas e tréplicas
teosofistas, entre países transatlânticos e jornalistas tendenciosos,
fugisse completamente do controle da Revue.
Barrar os artigos do teosofismo (talvez) fosse uma maneira
sensata de cessar todos aqueles burburinhos kardecistas que se
formavam, diante das macaquices dos macaqueiros de plantão, sejam
eles periodistas da América ou da Europa.
Certamente, uma atitude sensata seria tomada antes que outro
repórter simiesco começasse a alardear que a doutrina dos espíritos
(também) estivesse a serviço dos enigmáticos mahatmas... Se é que já
não estava!
68 – Adriano Calsone

França,
Coração do Mundo,
Pátria do Esotérico?

Desde a década de 1850 a França vinha recebendo notícias


importadas dos Estados Unidos sobre o Espiritualismo Moderno,
principalmente após a histórica eclosão dos fenômenos de efeitos
físicos de Hydesville, com as irmãs Fox.
A partir de 1875, com a fundação da Sociedade Teosófica no
mesmo solo americano, os franceses do outro lado do Atlântico, já
conscientes dos assuntos espirituais (muito por conta da Filosofia
Espírita e das obras de Kardec), recepcionariam a Teosofia por meio
da generosa ajuda editorial da Revista Espírita.
Não apenas o teosofismo aportava em paisagens tricolores.
Novas correntes do pensamento espiritualista, sejam elas de origens
ocidentais ou orientais, também desembarcavam no território francês,
acompanhadas não menos das influências já estabelecidas pelas
escolas swedenborgiana, magnetista, maçônica, martinista, cabalista,
gnóstica, alquimista, rosacrucianista, teofilantropista, entre outras.
Por décadas, juntos e misturados, esses grupos comprimiram força
esotérica à formação dos primeiros ocultistas franceses do século 19.
69 – EM NOME DE KARDEC

Mas a Revolução Industrial chegava também com a negação da


vida por meio de suas máquinas poluidoras de ares e mentes... A luta
contra os excessos do materialismo e a supremacia do racionalismo
positivista precisava de braços fortes na Europa...
Para isso, o Movimento Teosófico francês faria parte da historia
dos combates antimaterialistas que avançariam século 20 adentro,
especialmente ao influenciar personalidades de varias épocas, como
fora o caso do grande pensador antroposofista Rudolf Steiner (chefe,
por dez anos, da seção teosófica austríaca e alemã); de Alexandra
David-Néel; de Christmas Humphreys; de C. W. Leadbeater; de Annie
Besant; de Alice Bailey; de Mahatma Gandhi; de Albert Einstein; de
Jiddu Krishnamurti; de Thomas Edison; de Camille Flammarion;
incluindo ainda escritores como James Joyce, Yeats, Fernando Pessoa,
T. S. Elliot, D. H. Lawrence; músicos como Mahler, Jean Sibelius,
Alexander Scriabrin, Elvis Presley; bem como artistas plásticos que
tiveram conexões com as Artes Abstrata e Simbólica , com fora o caso
de Wassily Kandinsky, Mondrian, Paul Gauguin e, mais adiante,
Salvador Dali com sua turma surrealista.
A miscigenação de crenças misticocultistas na chegada da
década de 1880 tornou-se tão grande e complexa que a aproximação
das correntes esotéricas ocidentais, com as filosofias orientais, chegou
a derivar um tipo estranho de Budismo Esotérico, a qual muitos
passariam a chamar depois de "Teosofia", cujo conhecimento secreto
provinha de supostos livros antigos preservados nos mosteiros do
Tibete.
Madame Blavatsky, por sua vez, chegará a entrar em discussões
acaloradas com outros místicos de plantão, que passariam a intitular
erroneamente essa Teosofia Budista Esotérica, segundo ela, como uma
mistura confusa de Neoplatonismo, Gnosticismo, Cabala Judaica ou
Hermetismo. As definições sobre o teosofismo continuavam
impossíveis e impraticáveis...
Mas essa onda mística e esotérica que varrerá os anos 1880
70 – Adriano Calsone

trará também algumas brechas para erros pontuais de interpretação


sobre os antigos pensamentos de Allan Kardec.
Muitos acreditavam que o mandatário da viúva Kardec, o Sr.
Pierre-Gaëtan Leymarie, havia cometido um grande deslize
exatamente no ano novo de 1882, ao expor mal as antigas convicções
do mestre lionês. O velho republicano comentará o seguinte trecho na
Revue:
Em conformidade com os pensamentos liberais do autor das cinco
obras fundamentais, esses marcham lado a lado com a Sociedade de Estudos
Psicológicos e com todas as demais sociedades espiritualistas, teosóficas,
swedenborgianas, as do magnetismo e das ciências modernas (...).

Leymarie acertará sobre os pensamentos liberais de Kardec,


mas errará ao generalizar que os seus mesmos pensamentos corriam
emparelhados, por exemplo, com os da Teosofia — filosofia essa que o
mestre de Lion sequer conhecera suas minúcias, já que desencarnaria
em 1869.
Tudo isso pode ter uma tentativa de explicação no antigo fato de
Kardec ter publicado, na Revista Espírita de 1868, um estudo sobre o
filosofo chinês Lao-Tsé, e afirmar certa feita que "se um dia a ciência
provar que o Espiritismo está errado, devemos ficar com a ciência
(...)".
Essas declarações interpretativas (ao pé da letra) fizeram com
que os muitos defensores da causa teosófica, como era o caso de
Leymarie e Courmes, lançassem mão de reflexões (prontas) como
essas — as de que os pensamentos liberais do mestre Kardec
marcham lado a lado com as demais escolas filosóficas que, em sua
maioria, prestavam contas ao ocultismo vigente.
Enquanto isso, a França se curvava cada vez mais ao esoterismo
de mestres espirituais independentes, ao misticismo de deuses
enigmáticos, numa época em que parecia haver chegado o auge do
enfraquecimento das instituições religiosas, especialmente a Católica.
71 – EM NOME DE KARDEC

As maquinações entre Igreja e Estado, além dos abusos de poder


e privilégios eclesiásticos — também na disputa pelas indulgencias —
traziam para essas instituições seculares grande vulnerabilidade,
surgindo revoltas internas e dissidências explícitas, alvo certo às
críticas de ateus, liberais e radicais.
Em verdade, crescia no Ocidente um enorme e duradouro
apetite público por formas novas e exóticas de crença religiosa, tudo
para suplementar e até mesmo substituir as imexíveis formas
ortodoxas de cristianismo.
De um lado, a chegada das tecnologias a partir da segunda
metade do século 19 esgarçava o sentido sacramental de um mundo
mantido e criado pelo poder divino; de outro, cientistas e acadêmicos
textuais e históricos, com base nas disciplinas de etimologias e da
filosofia, desfaziam o mito da Bíblia Sagrada; humanizando a figura do
próprio Cristo.
Sob estas fortes ações, o cristianismo se reduzia a pouco mais do
que uma historia interessante, com uma moral influente e restrita às
instituições cristãs e políticas, nada mais que isso. Assim, o próprio
Cristo ressurgiria, não como o único Messias, mas como um dos
muitos mestres, Àquele que dividiria espaço ao lado de Lao-Tsé,
Sócrates, Manu, Confúcio ou o próprio Buda, cujos ensinamentos
circulariam a mancheias entre os teosóficos.
A espiritualidade estava de braços dados com o misticismo e o
ocultismo. Literalmente, ambas decolariam na França, assim como em
outros países da Europa, enquanto igrejas estabelecidas há séculos
declinavam sem-fim... Mas o interesse por religião nunca seria tão
forte a partir da década de 1880.... A busca por fontes seguras, com
autoridade espiritual, reproduzia discípulos vulneráveis a mestres
carismáticos, que surgiam com a pretensão de desvendar os mistérios
do Universo.
E haja Universo para tantos mestres e mistérios numa França,
Coração do Mundo, Pátria do Esotérico...
72 – Adriano Calsone

Errare humanum est...

Madame Blavatsky já vinha insistindo em descreditar a


mediunidade compreendida pelos espíritas há décadas. Ela dizia aos
quatro ventos que o contato com os Espíritos desencarnados não tinha
importância em si, e que isso era fácil de configurar, por meio de uma
demonstração vulgar de efeito físico...
Para uma doutrina da imortalidade da alma e da comunicação
com os Espíritos, ficava difícil desconsiderar que essa incisiva
observação de Helena Blavatsky não surgia para atingir ou
desmoralizar a comunidade kardecista da época.
Em 1877, com a publicação de seu primeiro livro, Ísis sem véu,
surgirá talvez a sua mais polêmica declaração, expressada no volume I,
à página 351, agora sobre a reencarnação. Certamente, sem ter em
mãos O Livro dos Espíritos (publicado 20 anos antes de Ísis sem véu),
dirá Blavatsky o seguinte:
(...) Reencarnação, ou o aparecimento de um mesmo indivíduo, ou
melhor, de sua Mônada Astral duas vezes no mesmo planeta, não é uma regra
na natureza, mas uma exceção (grifos nossos), como o fenômeno teratológico
de um bebê de duas cabeças.
É precedido por uma violação das leis da harmonia da natureza, e só
acontece quando o último, buscando restaurar seu equilíbrio perturbado,
violentamente joga de volta à vida terrena sua Mônada Astral que tinha sido
lançada para fora do círculo da necessidade por um crime ou acidente.
73 – EM NOME DE KARDEC

Assim, em casos de aborto, de crianças que morrem antes de certa


idade, de idiotice congênita e incurável, a forma original da natureza para
produzir um ser humano perfeito, foi interrompida.
Portanto, enquanto sofre a matéria bruta de cada uma dessas várias
entidades para dispensar-se no momento da morte, através do vasto reino do
ser, do espírito e do Mônada Astral imortal do indivíduo — o último tendo sido
separado para animar um quadro e a forma para lançar sua luz divina sobre a
organização corpórea — deve-se tentar uma segunda vez para realizar o
objetivo da inteligência criativa...

Esse trecho causaria tanta estranheza no meio espírita da época


por conta de dois motivos: o primeiro era porque, em síntese,
Blavatsky afirmava que a reencarnação na Terra só é permitida "em
casos de aborto; de crianças que morrem antes de certa idade; e de
idiotice congênita e incurável". O segundo motivo — esse, mais grave,
a nosso ver: foi o seu deslize em deixar subentendido, nesse trecho de
Ísis, que os nossos irmãos que violam as "leis da harmonia da
natureza" são aberrações dela própria...
Assim, segundo Blavatsky, a reencarnação na crosta é permitida
apenas em três casos: abortos, mortes prematuras e idiotices
congênitas e incuráveis....
Acredita-se ainda que existisse um quarto caso como exceção,
mas de uma ordem completamente diferente: o das reencarnações
messiânicas voluntárias que se produziriam a cada 600 anos mais ou
menos, quer dizer, ao final de cada um dos ciclos que os caldeus
chamavam Naros, como classificaria Blavatsky.
Depois, em 1882, ela soltará um novo petardo ao afirmar que "o
erro medonho que os reencarnacionistas modernos praticam é supor
que não pode haver um retorno sobre esta Terra para formas
corporais mais baixas; que o homem deve reencarnar como homem
novo e de novo sobre esta Terra". A dúvida coletiva ficava por conta de
não haver explicações de sua parte quanto sobre o significado do
conceito "formas corporais mais baixas (...)".
74 – Adriano Calsone

A correção da fala de Blavatsky, diante daquilo que havia escrito


sobre a reencarnação em seu livro de estreia de 1877, viria somente
onze anos depois, com o lançamento de sua obra mais importante (e
madura), intitulada A doutrina secreta, publicada em 1888, em que ela
não só faz da reencarnação o seu destaque editorial, como também
coloca o homem imortal na posição de um ser concebido sete vezes
por meio de constituições ou reencarnações.
Segundo pesquisadores contemporâneos, acredita-se que essa
mudança de pensamento teosófico sobre a reencarnação e os
reencarnacionistas (como Helena Blavatsky chamava os kardecistas)
acontecera com o estabelecimento definitivo da Sociedade Teosófica
na Índia.
Mas se nos Estados Unidos, com o Espiritualismo Moderno, seus
seguidores espiritualistas já vinham negando a reencarnação —
aquela compreendida por Kardec via Espiritismo francês —; na Índia,
os mestres espirituais a enalteceram, obviamente pela concepção
Oriental de entendimento...
E em sua própria defesa, Blavatsky retornará em 1888 dizendo
que não houve contradição alguma em seus pensamentos passados
sobre a reencarnação, mas sim, "incompletude pessoal" com o que ela
descobriria mais tarde sobre o tema.
Mesmo sabendo em latim que errare humanum est (errar é
humano), ficaria tarde demais para ela acertar as contas com os
leitores da Revista Espírita...
Segundo consta na excelente obra, Secular Spirituality, de
autoria de Lynn L. Sharp, o movimento kardecista francês, que
acompanhava de perto as mudanças da Teosofia pela Revue, reagiria
rapidamente com protestos e acusações, respingando sobras de farpas
em cima do gentil P.-G. Leymarie:
(...) Leymarie enfrentaria uma série de contratempos. Primeiro, em
1889, com o fechamento de sua Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses,
75 – EM NOME DE KARDEC

depois com a tradução de algumas obras sobre os ensinamentos da Sociedade


Teosófica e de Blavatsky que, juntos, negavam tanto a realidade dos espíritos
dos mortos como sua reencarnação. (Blavatsky mais tarde mudou de ideia
sobre esse último).
Isso horrorizou totalmente os membros espíritas dessa nova Sociedade
Teosófica de Paris (...).

É fato que para a Filosofia Espírita de todos os tempos, a


reencarnação é certeza inabalável, onde a doutrina da terceira
revelação é, em si, a própria Doutrina Reencarnacionista, ou doutrina
da reencarnação — aquela que trouxe, por meio de Kardec, em sua
obra primeira, O Livro dos Espíritos, o capítulo IV - Da pluralidade das
existências, especialmente elaborada com a ajuda dos Espíritos para o
esclarecimento deste tema que, naturalmente, era bastante polêmico
no século 19.
Comecemos, então, observando a questão de número 166,
formulada por Kardec aos Espíritos:
Como pode a alma, que não alcançou a perfeição durante a vida
corpórea, acabar de depurar-se?
"Sofrendo a prova de uma nova existência."
a) — Como realizar essa nova existência? Será pela sua transformação
como Espírito?
"Depurando-se, a alma indubitavelmente experimenta uma
transformação, mas para isso necessária lhe é a prova da vida corporal."
b) — A alma passa então por muitas existências corporais?
"Sim, todos contamos muitas existências. Os que dizem o contrário
pretendem manter-vos na ignorância em que eles próprios se encontram. Esse
o desejo deles."
c) — Parece resultar desse princípio que a alma, depois de haver
deixado o corpo, toma outro, ou, então, que reencarna em novo corpo. É assim
que se deve entender?
"Evidentemente."
76 – Adriano Calsone

167) — Qual o fim objetivado com a reencarnação?


"Expiação, melhoramento progressivo da Humanidade. Sem isto, onde
a justiça?"
168) — É limitado o número das existências corporais, ou o Espírito
reencarna perpetuamente?
"A cada nova existência, o Espírito dá um passo para diante na senda
do progresso. Desde que se ache limpo de todas as impurezas, não tem mais
necessidade das provas da vida corporal."
169) — É invariável o número das encarnações para todos os Espíritos?
"Não; aquele que caminha depressa, a muitas provas se forra. Todavia,
as encarnações sucessivas são sempre muito numerosas, porquanto o
progresso é quase infinito."
170) — O que fica sendo o Espírito depois da sua última reencarnação?
"Espírito bem-aventurado; puro Espírito."

A logo a seguir, outra importante constatação dos Espíritos:


A doutrina da reencarnação, isto é, a que consiste em admitir para o
Espírito muitas existências sucessivas, é a única que corresponde à ideia que
formamos da justiça de Deus para com os homens que se acham em condição
moral inferior; a única que pode explicar o futuro e firmas as nossas
esperanças, pois que nos oferece os meios de resgatarmos os nossos erros por
novas provações. A razão no-la indica e os Espíritos a ensinam.

Ainda sobre a antiga afirmação de Blavatsky, a de que a


reencarnação na Terra é permitida apenas em três casos: "abortos,
mortes prematuras e idiotices congênitas e incuráveis", encontra-se, a
título de esclarecimento, em O Livro dos Espíritos, item específico
sobre os abortos, o que segue:
357) — Que consequências têm para o Espírito o aborto?
"É uma existência nulificada e que ele terá de recomeçar."

Sobre o tema "mortes prematuras", Kardec questionará os


amigos espirituais sobre o seguinte:
77 – EM NOME DE KARDEC

198) — Não tendo podido praticar o mal, o Espírito de uma criança que
morreu em tenra idade pertence a alguma das categorias superiores?
"Se não fez o mal, igualmente não fez o bem e Deus não o isenta das
provas que tenha de padecer. Se for um Espírito puro, não é pelo fato de ter
animado apenas uma criança, mas porque já progredira até a pureza."
199) — Por que tão frequentemente a vida se interrompe na infância?
"A curta duração da vida da criança pode representar, para o Espírito
que a animava, o complemento de existência precedentemente interrompida
antes do momento em que deveria terminar, e sua morte, também não raro,
constitui provação ou expiação para os pais."
a) — Que sucede ao Espírito de uma criança que morreu pequenina?
"Recomeça outra existência."

Kardec complementará a lição dos Espíritos com a seguinte fala,


não menos lúcida e lógica:
Se uma única existência tivesse o homem e se, extinguindo-se-lhe ela,
sua sorte ficasse decidida para a eternidade, qual seria o mérito de metade do
gênero humano, da que morre na infância, para gozar, sem esforços, da
felicidade eterna e com que direito se acharia isenta das condições, às vezes
tão duras, a que se vê submetida à outra metade?
Semelhante ordem de coisas não corresponderia à justiça de Deus.
Com a reencarnação, a igualdade é real para todos. O futuro a todos toca sem
exceção e sem favor para quem quer que seja. Os retardatários só de si
mesmos se podem queixar. Forçoso é que o homem tenha o merecimento de
seus atos, como tem deles a responsabilidade.

E por último, sobre "idiotismo, loucura", os Espíritos dirão o


seguinte:
371) — Tem alguma fundamento o pretender-se que a alma dos
cretinos e dos idiotas é de natureza inferior?
"Nenhum. Eles trazem almas humanas, não raro mais inteligentes do
que supondes, mas que sofrem da insuficiência dos meios de que dispõem
para se comunicar; da mesma forma que o mudo sofre da impossibilidade de
falar."
78 – Adriano Calsone

3712) — Que objetivo visa a providência criando seres desgraçados,


como os cretinos e os idiotas?
"Os que habitam corpos de idiotas são Espíritos sujeitos a uma punição.
Sofrem por efeito do constrangimento que experimentam e da impossibilidade
em que estão de se manifestarem mediante órgãos não desenvolvidos ou
desmantelados."
373) — Qual será o mérito da existência de seres que, como os cretinos
e os idiotas, não podendo fazer o bem e nem o mal, se acham incapacitados de
progredir?
"É uma expiação decorrente do abuso que fizeram de certas
faculdades. É um estacionamento temporário."

Portanto, para todos os efeitos e causas, dirá P.-G. Leymarie no


final de um de seus muitos artigos teosóficos publicados na Revue:
Errare humanum est...
79 – EM NOME DE KARDEC

Regras da
Sociedade Teosófica

Bertha-Victorie-Alexandrine Thierry de Maugras — mais


conhecida no meio kardecista como Madame Berthe Fropo — era
amiga dos Kardec, tendo em Amélie-Gabrielle Boudet, a esposa do
Codificador, uma confidente para todas as horas...
Ao que sabemos, depois da sórdida Guerra de 1871, as
inseparáveis Amélie-Fropo vinham promovendo concorridas sessões
de evocação espiritual na casa-máter do Espiritismo: a residência dos
Kardec na Villa Ségur, n° 39.
Esses encontros programados, onde o Espírito Kardec passaria
algumas vezes para deixar suas mensagens imperativas, ocorreram
até meados de 1883, cessando para sempre com o desencarne da
octogenária Amélie — por puro desgosto —, ao constatar ela a colcha
de retalhos (místicos e esotéricos) que havia se transformado a
Revista Espírita de seu querido esposo.
Se a Filosofia Espírita periclitava, logicamente as amigas
kardecistas não deixariam isso acontecer, e tudo que esteve ao alcance
da viúva Kardec e de Berthe Fropo fora feito, a fim de contornar o
perigo que o Espiritismo corria, segundo as duas afirmavam à época.
Um bom exemplo disso fora a publicação da brochura Beacoup
80 – Adriano Calsone

de Lumière (Muita Luz). Cansada de contatar tantas irregularidades da


Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, Madame Fropo decidiu
publicar — sozinha e por conta própria — o seu dossiê-protesto Muita
Luz, isso em 1884, pouco mais de um ano após o desencarne da sua
amiga Amélie.
A nossa intenção com a análise de alguns trechos dessa referida
brochura de Fropo é a de que não fique qualquer tipo de dúvida de
que, à época, muitos kardecistas, como fora o caso da corajosa Berthe,
reagiram abertamente diante do que chamamos nesta obra, com todo
o respeito possível, de Espiritismo teosófico.
Indignada, Madame Fropo dirá o seguinte, em sua brocura-
petardo:
Senhor Leymarie se sentindo mestre absoluto, e querendo em sua
pretensão orgulhosa passar por um estudioso, aceitou todas as sociedades
mais ou menos científicas.
Ele foi adepto (sic) da Sociedade Teosófica fundada pelo Coronel Olcott
e Madame Blavatsky, (sic) em Bombaim. Ele e a esposa receberam um brevet,
uma licença, sendo ele nomeado Presidente da França para a filial teosófica
(*). (*) ver Regras da Sociedade Theosophical (página 9). (sic)
A Societé de La libre Pensée Religieuse (Sociedade do livre pensamento
religioso), criada pelo filósofo Fauvety para os funerais de civis, possui uma
bandeira e um manto mortuário salpicados de estrelas e sóis dourados,
verdadeiros farrapos, o suficiente para rir às custas dos espíritas e do
Espiritismo.
Em seguida, uma sociedade muito difundida (de acordo com o Sr.
Leymarie), com o título de Pneumatologia Universelle (Pneumatologia
Universal), que é dividida em decúrias e centúrias, e que reúne ainda os
homens mais cultos e aqueles que pertencem às classes mais latas, recebeu
assim o Sr. Leymarie o título de Presidente da Trigésima Segunda Decúria, com
sede social em Paris. A Revista Espírita do Ocidente será o órgão desta
Sociedade. (Revista de 1 de janeiro de 1881, p. 5). (sic)
É para servir de abrigo a todas as divulgações orgulhosas que o Ser.
Kardec fundou a Revue?
81 – EM NOME DE KARDEC

Todas essas ações desesperam Madame Kardec, mas o que ela poderia
fazer sozinha, uma vez que os membros da comissão não se reuniam às
assembleias gerais, e nem sequer respondiam a suas cartas?

Como visto, essas declarações acima servem mais como


revelações do que um mero desabafo. Como o amigo leitor notará logo
abaixo, Fropo citará ainda vários artigos teosóficos, tendo ela em mãos
um documento constando as Rules of the Théosophical Society, ou seja,
as regras da Sociedade Teosófica.
Lembrando que essas regras eram válidas ao teosofismo das
décadas de 1870 e 1880, naturalmente não tendo mais
correspondência com as regras da Teosofia da atualidade. É o que
acreditamos!
E que fique bem claro que as opiniões e pontos de vistas
(abaixo) da kardecista Fropo não são os mesmos do autor kardecista
que vos escreve agora.
Mas voltando ao nosso estudo espiriteosofista, Berthe abrirá,
em seu opúsculo, um capítulo específico que chamou de Théosophisme
(teosofismo), só para falar da concordância de alguns senhores
kardecistas, em especial, Leymarie, com os regimentos teosóficos de
Blavatsky, que serviram também para dar vida à polêmica Sociedade
Teosófica dos Espíritas Franceses.
Como veremos em suas enfáticas colocações — tecidas muitas
vezes entre parênteses e em itálico — essas revelam o quanto ela
esteve desgostosa com os mandos e desmandos de P.-G.L., o
mandatário da viúva Kardec.
Afinal, criar uma filial parisiense da sociedade teosófica bem
debaixo do nariz da vovó Kardec fora, sem dúvidas, um desrespeito
tamanho com uma senhora que nasceu em 1795, e que ainda era a
bandeira do legado espírita deixado pelo esposo Kardec.
A ênfase nas palavras de Fropo — algumas vezes quase em tom
de apelo — é bastante considerável para nós pesquisadores porque
82 – Adriano Calsone

parte de uma mulher que esteve durante décadas ao lado de Allan


Kardec e de sua esposa Amélie.
Portanto, a nosso ver, tais declarações (inéditas) são autênticas,
merecendo a nossa maior consideração. Como seguem:
Teosofia
Ah! Aqui vai uma infâmia: eu culpo o Sr. Leymarie de ter rebaixado a
nossa bela filosofia à Teosofia, antes de se tornar um seguidor dessa doutrina
antiga. Esta é uma traição hedionda e nós temos que perguntar para ele quais
foram os motivos desta ação tão feia.
Eu estou olhando para os estatutos da Sociedade Teosófica fundada
pelo Coronel Olcott, presidente, e Madame Blavatsky (sic), secretária, seus
eternos fundadores.
Artigo primeiro. O objetivo da Sociedade é o de formar uma
fraternidade universal de toda a humanidade, sem distinção de raça, credo
nem de cor.
Artigo 2°. De propagar o estudo da literatura e das ciências orientais e
justificar a sua importância (pelo alto custo dos livros, sua deslealdade para
com a Srta. Miss Blackwell, vimos como era a propaganda espírita).
Artigo 3°. A Sociedade se divide em filiais, e cada uma tem o direito de
eleger um membro para representar o Conselho Geral, cuja sede será definida
em vez de ser na residência de seu fundador.
Artigo 4°. A Sociedade está sob a dependência de um Conselho Geral e
do presidente, seu fundador. Toda filial deve a sua existência à Sociedade-Mãe,
sem a autorização da qual nenhuma filial pode ser fundada ou continuada.
Artigo 5°. Nenhum oficial, nenhum membro da Sociedade Teosófica
terá o direito de pregar suas próprias crenças (Aqui o Sr. Leymarie foi incapaz
de demonstrar a importância da Doutrina de Allan Kardec, já que ele faz, ao
seu fundador e na frente de muitas testemunhas, o juramento solene à
Sociedade Teosófica).
Artigo 6°. Nenhum membro terá direito de buscar socorros peculiares a
um irmão mais rico, nem ceder a um pobre. O empréstimo é estritamente
proibido. Depois de um primeiro aviso sério, a violação dessas duas clausulas
83 – EM NOME DE KARDEC

irá resultar em suspensão ou expulsão (Eles estão longe de nosso maravilhoso


aforismo: "Fora da caridade não há salvação". Que fraternidade! E que
solidariedade!).
Artigos 7°, 8° 9°. São dedicados à formação de filiais locais, ainda sob a
autorização da Sociedade-mãe, onde seu fundador tem todo o poder.
Artigo 10°. A Sociedade possui três seções, as duas primeiras são
superiores e não estão sujeitas a quaisquer códigos de leis ou de conhecimento
público. A terceira seção inclui membros ativos e admissões, dando o direito de
participar de reuniões, o livre acesso à biblioteca, e o titular adquire a simpatia
de todos os ramos espalhados pelo universo.
Artigo 11°. A contribuição será de 25 francos.
Artigo 12°. Três tipos de membros compõem a Terceira seção.
Membros ativos, correspondentes e contribuintes.
A grade de membros correspondentes abrange pessoas de distinção e
suficientemente capazes de fornecer informações relevantes à Sociedade.
O diploma do membro honorário é exclusivamente reservado às
pessoas de destaque, ajudando a aumentar o conhecimento teosófico ou por
ter prestado grandes serviços.
Artigo 13°. Membros ativos. Qualquer pessoa tem esse direito, sem
distinção de sexo, de raça, de credo ou casta.
Os candidatos devem apresentar um pedido por escrito (Formulário A)
declarando a sua adesão aos pontos de vistas e crenças da Sociedade; esta
declaração deve ser assinada por vários membros teósofos. O candidato será
iniciado após ter passado três semanas, por meio de sinais secretos, senhas,
pelas quais os teosofistas saberão reconhecer, ao mesmo tempo em que esse,
solenemente, deixará conosco a sua honra (Formulário B) por escrito,
repetindo em voz alta o seu compromisso diante de testemunhas.
Artigo 14°. Qualquer membro que incorre na aplicação dos artigos do
Código Penal do pais em que vive, será expulso da Sociedade, depois de uma
investigação dos fatos que ele fora acusado ou condenado (E pensar que o Sr.
Leymarie se atreveu a ser nomeado Presidente da filial de Paris, com um artigo
como este!).
Artigo 15°. Qualquer membro condenado por calúnia contra um irmão
84 – Adriano Calsone

ou irmã teósofo, seja por escrito, ou por proferir palavras insultuosas contra
qualquer membro será expulso (Só por este artigo, Sr. Leymarie não poderia
ser teósofo).
— Eu gostaria de poder transmitir aos meus F.E.C. — Fréres Em
Croyance (Irmãos Em Crença), as leis gerais da Teosofia. Mas isso será difícil, eu
que não sou uma escritora, e as explicações dos iniciados mais altos são tão
confusas, contraditórias, que se torna quase impossível de obtermos uma
definição mais clara.
Vejamos o que escreve Madame Blavatsky:
Do homem.
Ele está dividido em sete elementos ou princípios...
Primeiro princípio. A física do corpo apodrece e desaparece.
Princípio 2°. A vida (fluido vital) que nos é fornecida (*) do reservatório
inesgotável da vida universal.
(*) Por quem?
Princípio 3°. O corpo astral (duplo) emanado do corpo físico, que
desaparece com o corpo quando ele deixa de existir, e que chamamos ilusório,
porque ele não tem substância e não pode durar.
Princípio 4°. A vontade que dirige os 1° e 2° princípios.
Princípio 5°. Inteligência humana ou animal, ou instinto bruto.
Princípio 7°. O Espírito, o último é o que os cristãos chamam de Logos
— e nós — nosso Deus pessoal, não sabemos de qualquer outro (grifo de
Fropo).
— Estes são os sete elementos que compõem o homem.
A morte corporal dissocia três. O corpo, o princípio vital e o corpo astral
que está constituído do duplo perfeito ou sombra ilusória do corpo físico.
São quatro os elementos que compõem o desencarnado humano.
Que parece ser a quarta forma astral do elemento.
A quinta, a inteligência, animal ou psíquica, consciência pessoal ou
sentido íntimo, a memória, o afeto, as lembranças, as aquisições, pertencentes
85 – EM NOME DE KARDEC

a ambos os homens e aos animais superiores.


Estes três princípios, matéria astral, forma astral e inteligência animal,
constituem a alma animal (ou perispírito).
O que se segue ao sexto elemento; é a inteligência superior (a razão
pura) a consciência moral no homem perfeito; o sétimo, enfim, o Espírito que
ainda não foi criado, emanação do Eterno, ou alma divina.
86 – Adriano Calsone

A cada um
segundo
suas obras...

Madame Berthe Fropo publicará ainda, em seu barulhento


opúsculo Muita Luz, mais dois itens onde comenta os conceitos e as
opiniões da Teosofia (da época) sobre temas intocáveis e de extrema
importância ao Espiritismo: reencarnação e comunicação com os
Espíritos.
Seus apelos e tons de indignação continuam bem ressaltados em
seus textos, o que nos deixa dúvidas sobre os reais motivos que a
levaram a se expor publicamente, Leymarie e companhia, por meio
desse dossiê-protesto.
Que a Filosofia Espírita esteve vulnerável na década de 1880,
não há dúvidas! Mas será que por trás de toda essa ânsia em revelar os
bastidores do Espiritismo francês, incluindo as peripécias de
Leymarie, não esteve também o apoio moral e o dinheiro da viúva
Kardec para o financiamento dessa brochura boca no trombone?
Ficam ao caro leitor tais conclusões!
Eis a continuação do trabalho investigativo dessa nobre e
corajosa mulher, que certamente enfrentou a pressão dos societários
87 – EM NOME DE KARDEC

da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, incluindo os revides


do Sr. Leymarie. A seguir:
Reencarnação
Os teosofistas admitem a reencarnação na Terra apenas uma vez, no
entanto, as crianças mortas e os idiotas podem reencarnar duas vezes porque
eles são considerados fracassos da natureza (sic).
Os homens muito bons, após a morte, passam por uma gestação mais
ou menos longa no mundo invisível, enquanto se preparam para passar com
seu 4° elemento, por uma reencarnação em outro planeta.
Os homens nem muito bons, nem muito maus, aqueles que ainda não
deixaram de fora a centelha divina da alma, não vão perder a sua imortalidade.
Eles não podem esperar por uma reencarnação após uma longa gestação por
existências erráticas numerosas.
Finalmente, entre os muitos maus, ou o sétimo elemento,
desaparecem antes mesmo da morte terrena. O sexto elemento, ou o eu
pessoal, se dissolve e é destruído pela perda que ele fez do sentido divino.
Restam ainda o 4° e o 5° elementos, que constituem um ser que os ocultistas
chamam de Elementar, e que pode viver na Terra, muito inteligente, como o é.

Comunicação dos Espíritos


Os teosofistas não admitem a comunicação dos encarnados com os
Espíritos superiores, somente os médiuns sobem até eles, e isso é muito raro.
Mas aqueles que se comunicam, principalmente com os espíritos, são os
Elementares, ou seja, os homens mortos muito maus!
Madame Blavatsky chamou esses seres infelizes de vampiros
inconscientes, trapos (do vestuário perispiritual), e eles, como ela disse,
pertencem à necromancia (magia negra), encorajando estas larvas a
desempenharem um papel de aparições materiais e psíquicas.
Mais tarde, ela acrescentou: "Os espíritas querem nos fazer crer que
todos os seus Espíritos são anjos de luz? Que eles provaram ser verdadeiros e
justos; que eles jamais mentem ou enganam alguém? Pois bem! Nós ocultistas,
dizemos que isso é uma blasfêmia horrível a nosso ver, o fato de dar a esses
88 – Adriano Calsone

seres de transição o nome sagrado de Espírito e de alma."


Ela disse, enfim: "O Espiritismo também é contrário às nossas
doutrinas; dizem que o Ocultismo Oriental é centelha de Allan Kardec."
(Boletim de Estudos Psicológicos, 15 de julho de 1883).
E esta é a doutrina que o Sr. Leymarie aceitou, a que ele aderiu, uma
vez que está engajado por um juramento solene em sua honra, por isso estava
convencido de sua superioridade sobre o Espiritismo; uma vez que ele fora
nomeado presidente da filial da França residida em Paris, onde ele fazia toda a
propaganda teosófica. Posso citar os nomes de muitos espíritas que foram
treinados por suas calorosas convicções, com o desejo de ajuda mútua à
conquista de novos adeptos...
Para provar ainda mais o seu zelo ao coronel Olcott e à Madame
Blavatsky, ele prometeu três mil francos do dinheiro de Allan Kardec ao Sr.
Frotis, para traduzir Ísis sem véu. Obra de Madame Blavatsky, foi ele mesmo
quem me disse e anunciou no Boletim da Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos, de 15 de março de 1883 (p. 42).
Faço um apelo a todos os espíritas, meus irmãos, esse homem pode
permanecer à frente do Espiritismo, uma vez que não é espírita?
Aquele que não tem fé, que tem apenas interesses, aquele que renega
a doutrina que ele mesmo deveria defender e proteger, a aviltando e
preferindo outra...
Nesse momento, ele quer entrar na fase teológica para se estabelecer
nessa religião e privar a nossa bela filosofia por meio de conferências, de
cerimônias e, mais tarde, por dogmas, tudo por amor ao dinheiro, para agradar
às ideias de Guérin, o milionário. Ele se fez Roustinista (sic), e preconizou as
ideias subversivas sobre a natureza de Jesus, na mesma hora que faz o mesmo
estudo sobre a inexistência de Cristo.
Em nome do nosso venerável mestre Kardec, não podemos deixar que
a nossa doutrina da vida permaneça nas mãos de um homem sem fé, sem
convicção e que a renegou.
Faço um apelo a todos os espíritas acionistas da sociedade anônima
fundada por Madame Allan Kardec, para se reunirem em assembleia geral; eles
têm todo o direito como acionistas. Se eles são espíritas sinceros, honestos, de
89 – EM NOME DE KARDEC

grandes corações, que desejam a felicidade de nossa humanidade inteira, pela


propagação da doutrina em toda a sua pureza, devem considerar que é bom
para eles e, especialmente, um dever, e que, se eles não se unirem, seja por
medo ou inércia, seria um abandono covarde de nossa filosofia amada, que,
acreditem em mim, está em perigo, em grande perigo. Como é que é possível
respeitar o Espiritismo quando vemos sua representação e seu avanço, dados
por pessoas sem moral, sem crença e sem lealdade?
A Revista de Allan Kardec não é mais que uma abominável rapsódia.
Sob o pretexto de ecletismo, ele insere todas as ideias mais subversivas,
distorcendo o julgamento de todos os nossos irmãos que não possuem
instrução suficiente para fazer justiça a todos esses projetos ridículos que estão
perturbados, e que podem tornar-se uma credulidade perigosa para nossa paz.
Estudemos os ensinamentos de nosso querido mestre Allan Kardec,
aceitemos o seu alto nível de inteligência condensado por trinta anos de
trabalhos persistentes e, acima de tudo, vamos compreendê-lo, aplicando em
nós mesmos, tornando-nos melhor, justos e fraternos, dedicados à
consoladora doutrina que nos foi revelada pelos Espíritos.
Jesus que nos ensinou o amor, a caridade e a fraternidade, e teve, no
entanto, em um momento de indignação, a necessidade de perseguir os
vendilhões do templo e as cintas que ele usou ainda não estão gastas.
Eu acho que cumpro essa missão que me foi reservada... Essa é
também a dos espíritas acionistas, a de agir agora para salvar a Villa Ségur que,
no pensamento do mestre, foi destinada a um abrigo para o refúgio dos
espíritas de idade. Ele queria criar, além disso, uma grande construção para
estabelecer um local para reuniões, além de um museu e uma biblioteca
espírita.

Essas expressões de indignação da femme forte Fropo — que


seriam rapidamente combatidas por Leymarie em sua brochura
Ficções e Insinuações — partiam de uma mulher forte que esteve ao
lado de um dos kardecistas mais importantes do Espiritismo: Gabriel
Delanne.
Com o consentimento de Madame Kardec, a dupla fundaria
L'Union Spirite Française (União Espírita Francesa), inaugurada em 24
90 – Adriano Calsone

de dezembro de 1882, sob supostos pedidos do Espírito Allan Kardec,


por meio de mensagens psicografadas na residência de Amélie, nos
idos de 1880.
Madame Berthe Fropo também esteve com o inestimável
Delanne à frente do jornal espiritista mais contundente do século 19:
Le Spiritisme.
Esse barulhento periódico kardecista (que perdurou por mais
de 12 anos com edições ininterruptas) esteve a serviço das penas de
Delanne e Fropo, que trabalharam juntos no mesmo escritório
publicando matérias incendiárias e artigos pontiagudos, em sua
maioria, anti-roustainguianos ou mesmo antiteosofistas.
Como reafirmava os dois parceiros, tudo era escrito e publicado
em nome da ética espírita e da integridade doutrinária — valores
esses apregoados pelo mestre Kardec e por sua amada esposa Amélie.
Por meio do Le Spiritisme, a dupla jamais deixou de denunciar
abusos, desvios, desonestidades e a típica falta de caráter, de moral e
de ética que pululavam cada vez mais entre os círculos espíritas,
principalmente os de Paris.
Eis que em 9 de novembro de 1898, a inesquecível viúva Berthe
Fropo desencarnaria com seus 67 anos de idade, em sua residência na
boulevard des Invalides, n° 34.
O jornal Le Progrès Spirite, do Sr. Laurent de Faget, seria o único
periódico espírita francês a publicar a triste notícia da precoce partida
dessa "Joana d'Arc dos kardecistas".
Sob o título de Obituário de Madame Fropo, o editor Faget a
recordará como "boa e respeitável espírita, que foi lembrada por
muitos anos como uma das mais valentes, fortes e defensoras da nossa
causa":
"Amiga devotada e sempre fiel do mestre e de sua companheira,
ela gostava de recordar a memória do senhor e da Sra. Allan Kardec —
91 – EM NOME DE KARDEC

memória essa tão cara a todos os espíritas sinceros."


Madame Fropo era a líder de um grupo kardecista e, todos os
domingos, ela se reunia com seus vários amigos espíritas, juntando-se
a um número seleto de iniciantes. Ao todo, ela lembrou ou ensinou os
mais altos princípios do Espiritismo, especialmente aproveitando o
lado filosófico e moral de nossa Doutrina. Seu exemplo vale a pena
seguir; a sua fé é para se admirar.
Sua coragem não excluiu sua bondade: quantos infelizes foram
consolados, apoiados, ajudados por ela, materialmente e moralmente!
E como ela mesma disse: À chacun selon ses oeuvres — a cada
um segundo suas obras.
92 – Adriano Calsone

Diferenças entre
Espiritismo e Teosofismo

Ainda no início de 1880, muitos espiritualistas começaram a


notar significativas desigualdades filosofias, ideológicas, morais e
comportamentais entre a doutrina dos Espíritos e a doutrina dos
mahatmas. A Revista Espírita era a prova viva disso há anos!
Teósofos franceses mais aficionados acreditavam à época que,
embora existissem algumas pequenas discordâncias entre as duas
doutrinas — a da terceira revelação e a secreta —, estava muito claro
para eles que o teosofismo surgia ao mundo como evolução do
Espiritismo...
Exageros à parte, vejamos por meio desses dois exemplos o que
começou a circular na imprensa religiosa da época, especificamente
sobre essas tais diferenças — Mahatmas do lado teosófico; Espírito da
Verdade do lado espiritista.
Um jornal chamado Le Spiritualisme Moderne, edição de maio de
1889, abrirá suas colunas com um artigo contundente, dizendo:
A doutrina teosófica, de importação mais recente na França do
Espiritismo, tem encontrado, e ainda encontra nos dias de hoje, uma forte
oposição entre os espíritas. Esta oposição é pelo menos singular. Ambas as
doutrinas, mesmo reconhecendo seus pontos fundamentais, nos parece
estranho que possam ser hostis uma com a outra (...)
93 – EM NOME DE KARDEC

Passados 34 anos, surge a Revue Apologétique, edição de junho


de 1923, que, por meio de uma matéria intitulada Théosophie et
Théosophisme (Teosofia e Teosofismo), apontava as seguintes
diferenças entre o teosofismo surgido na América e a Filosofia Espírita
nascida na França:
No início, e até mesmo antes da morte de Allan Kardec, uma corrente
de pensamento se dividiu e foi delineada no Espiritismo francês. Alguns
adeptos foram especialmente seduzidos à estranheza dos fenômenos e à
atração ao merveilleux (maravilhoso) que, justamente, coincidiu com a
ascensão das grandes descobertas científicas.
Outros se agarrariam ao aspecto doutrinário, à medida que lentamente
o Espiritismo se transformava numa Filosofia. Na França, Léon Denis é o
representante mais proeminente desta concepção (...)

Quase sem querer, querendo, a Revue Apologétique faria uma


revelação bastante relevante sobre a médium russa espírita:
Quando Madame Blavatsky veio para a França, depois de 1867, ela
iniciou sua escola esotérica com um discípulo de Allan Kardec, o Sr. V. Michal,
sendo colocada no grupo "experimental" dos espíritas.
Foi provavelmente a "Doutrina Espírita" (sic) para ela uma espécie de
casaco de pele divertido, a qual desejava, acima de tudo, fundar o seu próprio
grupo ocultista que se chamaria Clube dos Milagres.

Voltando então a 1889, o jornal Le Spiritualisme Moderne


retorna dizendo que, com efeito, o Espiritismo e a Teosofia
reconhecem a imortalidade da alma, a pluralidade das existências, a lei
de ação e reação, a evolução dos princípios e da comunicação possível
entre os vivos e os mortos.
O mesmo periódico dirá que o Espiritismo critica a Teosofia pela
extrema complicação dos seus ensinamentos, ao passo que os teósofos
afirmam que a Doutrina Espírita se limita muito facilmente à
interpretação superficial...
Em contrapartida, o referido artigo da Revue Apologétique
explicará que o Espiritismo, de fato, se apresenta como uma revelação
94 – Adriano Calsone

atual dos Espíritos, e seu testemunho é a única prova real da Doutrina


Espírita:
Muito diferente é o teosofismo; sem duvida que essa filosofia quer
primeiro dar o seu testemunho à doutrina da fé, já que são os mahatmas que
fazem as revelações; mas essa doutrina existia bem antes deles. O fato é que
quando desenvolvemos as nossas faculdades latentes, enquanto a verdade vai
se manifestando, elas serão reveladas na íntegra pela intuição de nossa alma.
É claro que esta é a doutrina esotérica, reservada para iniciados, como
para seus associados; nela há um esoterismo que serve como isca para
alcançar o sagrado — essa isca é a reencarnação —, cuja remoção de sanções
do além-túmulo modifica o seu caráter definitivo, na tentativa de reconciliar o
nosso apetite ao gozo por meio das reivindicações de justiça somadas às
indulgencias...

Em seu livro Le Spiritisme, a pesquisadora (não espírita) Yvonne


Castellan afirmará que:
A teosofia interfere no Espiritismo, todavia, as sociedades espírita e
teosófica fundirão pontos em comum (...); a Teosofia condena explicitamente a
evocação de defuntos (...). Espiritismo e Teosofia, doutrinas próximas e
distantes, em todo caso, uma interferiu na outra.

Mas o enigmático autor J.-B.D. (talvez um teósofo por detrás das


três siglas) encerrará a sua matéria no jornal Le Spiritualisme
Moderne, com um tom mais brando, quiçá imparcial, com a tentativa
de sugerir uma boa reconciliação entre teosofistas e espíritas:
(...) Não, o verdadeiro espírita, o verdadeiro teósofo, o verdadeiro
espiritualista, não deve condenar nem combater nada, exceto lutar contra o
mal e a falsidade.
Eles não devem condenar as teorias que não admitem, nem querer
impor como um artigo de fé as doutrinas que eles professam... Não!
(...) Esperamos que a nossa tentativa de reaproximação não seja em
vão; e que ainda será muito constatada a Teosofia, bem longe de ser a inimiga
do Espiritismo, vindo assim, quem sabe um dia, confirmar as doutrinas de Allan
Kardec.
95 – EM NOME DE KARDEC

Já o autor daquela mesma matéria, Théosophie et Théosofisme, o


cético A. Girard, jornalista esse da Revue Apologétique que encerrará o
seu artigo com um tom mais pessimistas, quiçá irônico, na defesa
(apologética) de que a fé pode ser comprovada pela razão, diante da
seguinte tentativa de explicar as diferenças entre a Teosofia e o
Espiritismo:
De qualquer forma, a Teosofia e o Espiritismo, que tivemos que
dissociar, de repente, unem-se pelas suas tendências profundas. Tanto uma
como a outra fazem desaparecer Deus (grifo nosso) diante da humanidade
ideal.
O Espiritismo, de fato, praticamente ignora Deus para ter de lidar
seriamente com os desencarnados, que são homens em marcha à sublimação
de seu ser.
O teosofismo é o épico do eu humano após identificar-se com o eu
divino.
Ambas são "religiões da Humanidade", ou se você preferir (e isso se
aplica especialmente ao teosofismo) teorias místicas da irreligião.

Ainda sobre essa afirmação de A. Gerard, a de que a Filosofia


Espírita faz desaparecer Deus diante da humanidade ideal, talvez esse
senhor não soubesse quem foi Allan Kardec, e que, por meio de O Livro
dos Espíritos, publicado em 1857, ele havia feito justamente o
contrário — ressurgindo Deus — ao perguntar aos Espíritos sobre
(Que é Deus?): Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas
as coisas.
Não satisfeito, o mestre lionês foi mais adiante:
Poder-se-ia dizer que Deus é o infinito?
Definição incompleta. Pobreza de linguagem humana, insuficiente para
definir o que está acima da linguagem dos homens.

Ainda inquieto, questionará novamente as entidades:


Onde se pode encontrar a prova da existência de Deus?
Num axioma que aplicais às vossas ciências. Não há efeito sem causa.
96 – Adriano Calsone

Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão


responderá.

Kardec completará o que vem a seguir:


Para crer-se em Deus, basta se lance o olhar sobre as obras da Criação.
O Universo existe, logo tem uma causa. Duvidar da existência de Deus é negar
que todo efeito tenha uma causa e avançar que o nada pôde fazer alguma
coisa.

Por fim, sobre a Doutrina Espírita como possível "teoria mística


da irreligião", talvez A. Girard ainda não saiba, mas, especialmente no
Brasil, o coração do mundo, a pátria do Evangelho, o mesmo
Espiritismo francês, ao cruzar o Atlântico para pousar em terras
tupiniquins, reconfigurar-se numa filosofia com bases cientificas e
consequências religiosas...
97 – EM NOME DE KARDEC

1883
O ano que não acabou

O ano da graça de 1883 começava muito triste para a


comunidade kardecista mundial...
Amélie-Gabrielle Boudet, a esposa do mestre lionês,
desencarnava subitamente em sua residência na Villa Ségur, no
coração de Paris...
Fora a própria Madame Berthe Fropo que deixaria registrada as
minúcias oficiais do passamento de sua amiga e viúva Kardec, detalhes
esses que até os dias de hoje não haviam pousado nos anais do
Movimento Espírita. Por que será?
Duas hipóteses ficam subentendidas:
Primeira: não houve qualquer interesse por parte dos membros
dirigentes do Espiritismo francês à época (incluindo Leymarie e
societários) de tornar públicas as circunstancias da morte de Amélie...
Segunda: as minúcias de seu desencarne à Villa Ségur foram
mantidas — em segredo — no pequeno círculo dos kardecistas de
Paris. A prova disso estará num suplemento especial comunicando a
morte de Amélie, que fora confeccionado para ser enviado (com
98 – Adriano Calsone

atrasos) aos leitores da Revista: nenhuma linha sequer sobre os


detalhes do acidente caseiro que a viúva sofrera na morada da Villa
Ségur (...)
Mas por que tanta falta de interesse ou algum possível segredo
esteve resguardado? Por que passados mais de 130 anos, nós,
kardecistas da atualidade, ainda não sabemos das circunstâncias da
morte daquela que fora a mulher mais importante da Filosofia
Espírita?
Novamente, Madame Fropo, sem papas na língua, prezando pela
verdade e transparência, resolvera revelar esses porquês em sua
brochura bilíngue Muita Luz:
Na sexta-feira, dia 19 de janeiro de 1883, ela teve um mal súbito ao
deixar a sua cama; ela caiu e bateu com a cabeça na quina do mármore de sua
cômoda, o que fez perder a consciência. Auxiliada por uma criada, eu a
coloquei para deitar, mas pelo sorriso (trejeito) de sua boca, eu notei que ela
teve uma congestão cerebral (...)
Eu fui buscar o médico, que me declarou que ela estava perdida...

Mas o que teria ocasionado essa súbita morte, já que o próprio


Leymarie dirá na Revue que a femme forte do Espiritismo, que ficou
por mais de 14 anos à frente da Doutrina, estava muito bem de saúde
(e muito lúcida) antes de partir para junto de seu amado esposo na
Espiritualidade Maior?
P.-G. Leymarie confirmará o seguinte, no famoso periódico dos
Kardec:
Madame Allan Kardec conservou todas as suas faculdades físicas,
porque na sua idade, ela lia e escrevia sem o auxílio de seus óculos; as últimas
cartas que ela enviou para os amigos, em dezembro de 1882 e janeiro de 1883,
mostra como teve o pleno uso das suas forças materiais e intelectuais (...)

No enterro, Berthe Fropo, ao lado de Gabriel Delanne, ambos


chateados, devem ter trocado olhares incisivos entre si, desviando
automaticamente suas atenções para Leymarie — aquele senhor de
99 – EM NOME DE KARDEC

barbas longas que ajudava a segurar uma das alças do caixão que
guardava os despojos mortais da mulher mais antiga e querida do
Espiritismo: a nossa vovó Kardec...
As falas seguintes, em riste, são da corajosa Fropo:
"Senhor Leymarie quis fazer o enterro pela Sociedade do Livre-
pensamento religioso. Eu me opus com força, dizendo que ela jamais
havia pertencido a essa sociedade, e que ela seria enterrada como fora
o seu marido. Eles aceitaram a minha decisão. E somente nas cartas de
participação do funeral fizeram-na membro do Comitê, ela que era a
fundadora da Sociedade Anônima!"
Ao certo, a ficha de Leymarie podia ser facilmente "levantada",
seja por Fropo ou mesmo por Delanne, até para que a dupla pudesse
encontrar alguma explicação despretensiosa sobre os motivos que
influenciaram a morte repentina de Amélie que, dias antes, vendia
saúde por onde passava...
Durante a triste cerimônia de despedida no cimetière du Père-
Lachaise, os dois amigos e editores do jornal Le Spiritisme, talvez,
como seres humanos imperfeitos, podem ter olhado para a
inconfundível figura de Leymarie a fim de escarafunchar nela as
possíveis causas que levavam a octogenária viúva Kardec de retorno à
Pátria Espiritual.
E uma sequência precisa de fatos históricos deixava algumas
evidências no ar: em 1869, após o desencarne de Kardec, Sr. Leymarie
surgira anunciando ser o herdeiro direto do mestre, frente aos
destinos do Espiritismo; em 1873, Leymarie se consorciava com
Blavatsky, escancarando a Revue à propagação das ideias teosóficas na
França e fazendo do periódico de Kardec "uma abominável rapsódia,
sob o pretexto do ecletismo", como dirá Fropo; em 1876, Leymarie
seria condenado pela justiça francesa como falsário, diante daquele
episodio da fotografia dos Espíritos, que desaguou no histórico Le
Procès dês spirites (O processo dos Espíritos); em 1878, novo escândalo
o envolvia na fundação da Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses
100 – Adriano Calsone

— grupo esse não espírita, e que fora apoiado e defendido pela então
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos com seu Boletim do Órgão
do Movimento dos Livres-Pensadores Religiosos e do Espiritualismo
Moderno.
Por fim, em meados de 1880, Sr. Leymarie (multiplural)
concluiria a sua filiação à enigmática Sociedade do Livre Pensamento
Religioso e à indecifrável sociedade da Pneumatologia Universal. Algo
mais?
Além de roustainguiano convicto, mantendo durante anos
parcerias duvidosas com o milionário J. Guérin — o mandatário de J.-
B. Roustaing —, esse mesmo P.-G. Leymarie maçom, livre-pensador,
apresentava-se ao mundo também como um "teósofo kardecista" no
molho do que se convencionou chamar de Espiritualismo Moderno de
uma França mística...
Esse "tudo ao mesmo tempo agora", vindo de um Leymarie
ocultista, místico e esotérico, que escancarou a Revista Espírita para as
filosofias (não espíritas) que desembarcavam na França a partir da
década de 1870, como dirá novamente Fropo, agora em destaque:
"desesperaram Madame Kardec (...)"
Portanto, o carregado ano de 1883 trazia ainda, com a chegada
inesperada da morte de Amélie, a saudosa simbologia kardecista do
mestre ao lado de sua amada esposa empunhando O Livro dos
Espíritos... Memórias e recordações simples de um tempo onde a
filosofia espírita, nos moldes originais defendidos por Allan Kardec —
o bom-senso encarnado — parecia nunca mais retornar...
Certamente, a morte da viúva Kardec deixou um imenso hiato
no Movimento Espiritista global, empurrando ainda mais as
influências mistiocultistas daquele fin du siècle para dentro da
Filosofia Espírita.
E se o Espiritismo francês encontrava-se confuso, miscigenado,
o que viria depois do desencarne da Sra. Amélie-Gabrielle Boudet?
101 – EM NOME DE KARDEC

Inquietações kardecistas

Depois de agosto de 1878, com primeira objeção na Revue às


ideias teosóficas, por meio da inquietação de um italiano chamdo E.
Rossi de Giustiniani, o Comitê de leitura começaria a rever as cortesias
de entrada dos artigos do teosofismo na Revista Espírita.
Com argumentos bem fundamentados, Sr. Giustiniani se juntaria
a outros leitores kardecistas antiteosóficos, muitos deles, distantes da
França, na defesa dos preceitos de Allan Kardec e de sua viúva Amélie.
O primeiro exemplo vinha diretamente da ilha de Java. Um
respeitado correspondente da Revista, o barão de Fengnagell de
Pekalongan, fora autorizado a publicar seus petardos defendendo
aquilo que a viúva Kardec sempre acreditava: que o Espiritismo deveria
ser respeitado em sua essência e autenticidade doutrinárias, apregoadas
por Kardec, sob orientação dos Espíritos e o comando geral do Espírito
da Verdade...
Outros artigos contra os largos espaços angariados pelos
teosofistas no editorial eclético da Revue seriam também remetidos de
médias e longas distâncias.
Outro exemplo estava em Élise Van Calcar, da Holanda, que
encaminhará o seu artigo: Um assinante da Revista.
Outros defensores estrangeiros surgiriam à tona, como fora o
caso do próprio milionário roustainguiano Jean Guérin, que bradará
102 – Adriano Calsone

alto de Villeneuve-de-Rions.
O filósofo e livre-pensador Charles Fauvety por sua vez,
esbravejará também de Asnières contra a Teosofia. E até a feminista
Sophie Rosen-Dufaure, que convivia pacificamente com Leymarie e
Courmes, em Paris, tentará intervier pessoalmente contra a circulação
desmedida do teosofismo no Espiritismo, por meio das reuniões da
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, que participava ao lado
de seu marido.
Por fim, um signatário francês chamado Francis Vallès, inspetor
geral de Ponts-et-chaussées (Escola Nacional de Pontes e Estradas),
assinou um polêmico artigo na Revue, opondo-se veementemente
contra a presença de matérias teosóficas no periódico kardecista mais
famoso do mundo.
As incoerências de conceitos e ideias entre as duas filosofias
começavam a surgir aos poucos de forma ainda mais contundente...
A começar que, para compreender corretamente as minúcias da
Sociedade Teosófica e de seu teosofismo, muito distantes da França, os
kardecistas franceses deveriam (necessariamente) aprender o inglês,
já que os textos de Ísis sem véu, por exemplo, ainda não haviam sido
traduzidos para o francês, por conta daquele "capricho de Blavatsky" à
tradução norte-americana.
Portanto, sem saber ao certo o teor das ideias contidas no livro
primeiro da teosofia, ficava muito difícil estabelecer opiniões
favoráveis (ou contra) às verdades teosóficas. Ser um kardecista
adepto (às cegas) da Teosofia, nem pensar!
A própria revista mensal dos teosofistas, a Théosophist, que
narrava todos os passos do teosofismo pelo mundo, era publicada
(somente) em inglês, assim como os conhecimentos contidos em O
mundo Oculto (de 1881), e o Budismo esotérico (de 1883), livros esses
escritos em inglês britânico por Sinett, além de vários artigos
teosóficos que circulavam, em sua grande maioria, em inglês
103 – EM NOME DE KARDEC

americano e outros idiomas que não necessariamente o francês.


Eis que em dezembro de 1879, um correspondente (indignado)
de nome François Vallès, por meio de seu artigo irônico, Invitation à
l'école théosophique (Convite à escola teosófica), publicado na Revue,
dirá que Ísis sem véu era um "livro (inexistente no idioma francês), e
que não nos permite sabermos, de maneira alguma, o que ele contém
(...)" Uma incongruência idiomática tamanha!
Leitores e sócios franceses da Revista, sapientes de que não
tinham obrigação alguma de conhecer outras línguas para
compreender os ensinamentos de crenças alheias e não espíritas,
devem ter estranhado sobremaneira as muitas incongruências
místicas que pousavam nas mesas do escritório da Revue.
Anos antes, os mesmos sócios e leitores do periódico de Kardec
começariam a ser alertados que existia, de fato, lacunas consideráveis
entre o teosofismo e o Espiritismo, isso quando a Teosofia ainda
morava na América, entre 1875 e 1878.
Enfim, diferenças geravam desconfianças!
Em contrapartida, ao remeter notícias francesas ao território
americano, coronel Olcott divulgará na década de 1870, que as obras
fundamentais de Allan Kardec "ainda não eram conhecidas e
reconhecidas nos Estados Unidos" por uma simples falta de tradução
do idioma francês para o inglês. Logicamente, sem compreender o que
Kardec dizia ao mundo (em francês) não se podia ajuizar valor ou dar
importância aos ensinamentos universais dos Espíritos...
Por essas e por outras, o espiritualismo moderno triunfaria por
décadas sem "concorrentes diretos" na América do Norte, negando
descaradamente qualquer tipo de reencarnação imaginável...
Em abril de 1878, Olcott apresentaria, aos leitores da Revue,
como vimos em capitulo anterior, um extenso suplemento teosófico.
Porém, ao tentar explicar que uma questão importante agitava os
Estados Unidos e a Inglaterra diante de discussões acaloradas entre
104 – Adriano Calsone

americanos e ingleses (especificamente sobre o profundo significado


dos elementais e elementares), ele confundirá ainda mais a cabeça dos
kardecistas franceses com seus emaranhados apontamentos
teosóficos, que trafegavam no sentido da natureza (reticente) dos
Espíritos que habitavam os mais altos graus da espiritualidade.
A dúvida geral seria inevitável: se Allan Kardec, por meio de O
Livro dos Médiuns, já havia codificado minuciosamente a classificação
dos Espíritos — dos maus aos angélicos — qual seria a necessidade de
colocar importância a duas novas classes (Elementais e Elementares),
que mais confundiam que explicavam?
Para engrossar ainda mais o caldo das misturas, Helena
Blavatsky encaminhará à Revue o seu mais novo artigo, Idées erronées
sur les doctrines théosophiques (Ideias errôneas sobre as doutrinas
teosóficas), onde somará outros embaraços por meio de uso de
metáforas, ao dizer que o homem é uma trindade e que seu corpo
psíquico é um Tetraktis ou maternidade (maternidade?), conceitos
esses estranhíssimos e muito distantes daqueles que os Espíritos
haviam repassado à Kardec, para que ele os publicasse na maioria de
suas cinco obras fundamentais.
E as inquietações vindas dos kardecistas começavam a se inflar
por todos os lados onde havia um exemplar com artigos teosóficos e
um leitor do periódico do mestre Allan Kardec, frente àquela
"abominável rapsódia sob o pretexto de ecletismo" que havia se
transformado a Revista Espírita, segundo denunciava a inquieta
Madame Berthe Fropo.
105 – EM NOME DE KARDEC

Comitê de leitura da
Revue
barra artigos teosóficos

Em janeiro de 1883, o teósofo D. A. Courmes lançará na Revista


Espírita um artigo de três páginas com o seguinte parágrafo
introdutório:
O Comitê de Leitura da Revista Espírita nem sempre recebe escritos
teosóficos, alegando os seguintes motivos: as informações do Sr. Olcott, de
Madame Blavatsky e de seus principais colaboradores no jornal Theosophist
estariam em oposição com os ensinamentos do Espiritismo formulados por
Allan Kardec.
Essas informações parecem nada dizer contra a Revue, edificada depois
de 25 anos; eles também não teriam, de qualquer forma, elementos como
provas suficientes; eles alegam que a Revue, enfim, não pode impor uma mão
para combater a si mesma...

A princípio, essa introdução, mais parece ser uma explicação de


Courmes aos leitores da Revista por conta da diminuição brusca de
artigos teosofistas, já que no ano anterior, em 1882, apenas três
minguadas matérias foram veiculadas em toda a Revue.
106 – Adriano Calsone

Todavia, o motivo principal de Courmes com esses parágrafos


era o de passar uma espécie de "recado" ao Comitê de redação, que já
ele havia declarado naquele momento sua oposição contrária à
publicação de qualquer artigo sobre a Teosofia.
Logo no segundo parágrafo, na continuação de suas
justificativas por meio de seu artigo, Sobre os escritos teosóficos, D.A.C.
tentará argumentar as igualdades existentes entre teosofismo e
Espiritismo, passando também um novo recado aos membros do
Comitê de leitura:
Por estas razões, pode argumentar-se que:
As ideias teosofistas diferem apenas em certos pontos e não em toda a
teoria kardecista; elas concordam, porém, com a maior parte desta teoria, e
bem mais do que o espiritualismo americano, que não admite nenhum tipo de
reencarnação.
Este ponto será ainda demonstrado através da leitura da tese
teosofista Natureza dos Espíritos, que eu encaminharei em breve ao Comitê...

Como constatamos por meio de nossas pesquisas e estudos,


também vistos em capítulos anteriores, o Espiritismo da época difere
(absolutamente) da Teosofia, especificamente quando comparamos os
conceitos de reencarnação e pluralidade das existências que foram
estabelecidos pelas duas filosofias no século 19.
Senhor D.A.C. acertará ao dizer que há discrepâncias bem
maiores entre o espiritualismo moderno e o Espiritismo codificado
por Allan Kardec na França de 1857.
A título de esclarecimento, esse artigo de Courmes, Natureza dos
Espíritos, ou não fora enviado ao Comitê, ou não autorizariam a sua
publicação, pois a referida matéria não constará nos meses
posteriores, muito menos em qualquer outro espaço editorial futuro
da Revue.
Seguindo então com as justificativas de D.A.C., encontramos os
seguintes pensamentos em seus terceiro e quarto parágrafos:
107 – EM NOME DE KARDEC

As ideias teosofistas são apresentadas sob as mesmas condições de


autenticidade, grosso modo, as quais foram os princípios kardecistas. Essas, na
verdade, provem de uma serie de depoimentos de desencarnados, obtidos
medianimicamente e ordenados, por comparação, e construídas em corpo de
doutrina por um homem, é claro, da maior razão. Mas essas também são
derivadas da investigação com pessoas honradas e eminentemente
esclarecidas e, além disso, elas estão de acordo com a tradição mais
respeitável, que tem o seu valor.
Daqui se segue um maior conhecimento da realidade do assunto e das
opiniões, mas provavelmente, a Teosofia não é a inimiga do Espiritismo, ela
simplesmente se apresenta como sua assistente ao caminho do progresso.

Essa afirmação de Courmes de que a Teosofia "se apresenta


como assistente ao caminho do progresso" do Espiritismo denunciava
a sua ideologia blavatsquiana de que o teosofismo poderia colaborar
com a Doutrina dos Espíritos no sentido de aplicar as mudanças
necessárias para se combater os dogmas espiritistas que, segundo
Courmes, mantinham-se imutáveis em Kardec desde a década de
1850.
Trocando em miúdos, D.A.C. acreditava que esse dogmatismo
espírita que, em verdade, trata-se de todos os princípios originais
estabelecidos pelos Espíritos; as conclusões empíricas levantadas por
Allan Kardec; os preceitos e as máximas da equipe do Espírito da
Verdade, ou seja, tudo isso que vinha dos ensinamentos do Cristo
deveria sofrer alterações rápidas e necessárias para se ajustar à
década mística de 1880.
Em verdade, a Teosofia de Blavatsky, de Olcott, de Leymarie e
de Courmes estava disposta a implementar uma espécie de
atualização na Filosofia Espírita, por meio de sua grande irmandade
branca de mestres, irmãos ou mahatmas que, no fundo, ninguém do
lado de fora dessa doutrina secreta sabia ao certo quem eram esses
seres astrais e quais as suas reais intenções, ao escarafuncharem os
preceitos kardecistas há tempos esclarecidos...
No quinto parágrafo de Courmes surgiriam alguns tons irônicos,
108 – Adriano Calsone

a fim de atingir novamente os membros do Comitê de leitura, que já


deveriam estar com todas as paciências esgotadas com o dedicado
teósofo D.A.C.
Por outro lado, a Revue Spirite é realmente uma coleção de estudos
(sic) e não um jornal dogmático, por que então não se admitir em suas colunas
que as opiniões veem de dentro de uma direção exclusivamente determinada;
por que não imitar o jornal Spiritualist, que inseriu os artigos em questão,
provindos do jornal Théosophist e muitos outros, sem impor, por isso, sua fé a
seus leitores?

Comandante D.A.C., literalmente perdendo as estribeiras no seu


mar agitado de reivindicações, colocará no seu artigo, com onze linhas,
uma ruidosa nota de rodapé, após essa interrogação acima, deixando
escapar o quanto se encontrava irritado com o bloqueio dos artigos
teosóficos pelo Comitê de redação:
O autor do artigo parece ignorar que muitos espíritas são intolerantes e
não querem admitir que a Revue pudesse se ocupar de teorias ou doutrinas
que não tenham sido admitidas e controladas por Allan Kardec; parece ignorar
àqueles que denunciam as tendências subversivas do Comitê de leitura e
declaram que ele quer destruir o trabalho de O Livro dos Espíritos.
Os espíritas, mais realistas que o rei, esses que assumem que as nossas
doutrinas são completas, abrangentes, inamovíveis e infalíveis, esses não
devem suportar a crítica ou a comparação; esquecendo-se de que o
movimento é a vida.
Se nós ficarmos apenas no ABC do que deve ser revelado, como foi dito
por Allan Kardec, aí sim é necessário que estudemos e comparemos se não
queremos continuar pisando no mesmo local.

Evidentemente que Courmes deixará claro, em seu incisivo


adendo acima, que "ficar apenas no ABC" ou "pisando no mesmo local"
são ações que a Filosofia Espírita vinha praticando há décadas, e que
agora havia a necessidade, segundo o militar reformado, de uma
reformulação geral pela Teosofia, ou seja, a chegada de novas
diretrizes que os teosofistas estavam dispostos a trazer aos
espiritistas...
109 – EM NOME DE KARDEC

No sétimo e último parágrafo de sua matéria-protesto, D.A.C.


reforçará a ideia de que esse "Espiritismo ortodoxo", segundo
intitulava, devia olhar para o futuro cientifico e dar voz às descobertas
das filosofias místicas e esotéricas, como era o caso da própria
Teosofia:
Allan Kardec, do resto, disse que o Espiritismo, como ele concebeu,
deveria permanecer essencialmente reconhecido, perfectível em seus
resultados, mas disse com todas as letras que a Doutrina nunca deveria viver
do passado, já que isso não nos colocaria a par de tudo o que iria acontecer.
Por isso estou inclinado a concluir que ele havia incluído, em sua
coleção de ensaios, como registro documental, a exposição de ideias
teosofistas.
Em 1868, também, este homem eminente, cuja memória é tão querida
por nós, gentilmente publicou na sua Revista um estudo sobre o filósofo chinês
Laot-Seu (sic), que eu havia enviado ao Extremo Oriente, e esta filosofia não
está de acordo com todos os aspectos do Espiritismo.
É verdade que, em 1876, em 1877, após a morte de Allan Kardec, o
Comitê de Leitura, pelo contrário, se recusou a inserção de um artigo muito
interessante sobre aparições autênticas de animais-fantasmas (sic), escrito
pela pena do príncipe Wittgenstein, e que um espírita muito avançado havia
me autorizado a traduzir.
Acredite em meus sentimentos dedicados e fraternos. D.A.C.

Ainda na edição de junho de 1883, da mesma Revue, D.A.


Courmes conseguiria ultrapassar a barreira de bloqueio teosófico
imposto pelo Comitê de leitura, para publicar mais um artigo
teosófico, intitulado: Un catéchisme Bouddhiste (Um catecismo
Budista). Desta vez ele ressurgiria sem insinuações ou ironias...
Entretanto, algumas farpas trocadas entre Madame Blavatsky e
o engenheiro ocultista Tremeschini — um dos influentes membros da
Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses — ofuscaram as rusgas
entre Courmes e o Comitê.
Um incêndio maior entre teosofistas e espiritistas franceses
110 – Adriano Calsone

roubava maiores atenções...


Até julho de 1883, nenhuma refutação havia partido da pena de
H.P.Blavatsky com destino à Paris. A partir dessa data, surgiriam nas
colunas do boletim mensal da Sociedade de Estudos Científicos e
Psicológicos (periódico esse que vinha anexado à Revista Espírita)
duras respostas de Helena Blavatsky às acusações e supostos
equívocos publicados em edições anteriores sobre o teosofismo,
principalmente as remetidas e proclamadas por Tremeschini.
Ainda em 17 de maio, completamente indignada, a senhora dos
olhos claros escreverá essa longa correspondência ao Sr. Charles
Fauvety, o editor do boletim da S.E.C.P., com sua réplica sobre as
pesadas acusações de Tremeschini.
Eis um pequeno trecho contido em sua carta:
O boletim mensal da sociedade de que você é o presidente, esse de
abril de 1883, foi lido e traduzido por um de nossos membros da filial dos
ocultistas da Sociedade Teosófica — e este deve ser o nome da filial de vocês
— assim como de todas as demais sociedades (...)
De uma forma muito inesperada, eu venho pedir-lhe justiça... Esta carta
será seguida de uma resposta formal que esperamos que você tenha a
amabilidade de publicar no seu boletim informativo.
É impossível, para mim, dentro de uma carta formal, dizer-lhe todos os
erros e as más interpretações que foram cometidas nos discursos das
conferências de 6 e 21 de março...

Blavatsky estava se referindo às conferências públicas


promovidas por Tremeschini que, segundo ela, "quando ninguém
defende o teosofismo, mas todo mundo reconhece a sua queda por um
inimigo invisível, os dois lados, amigos e inimigos, teosofistas e
espiritualistas, passam a rasgar em pedaços um sistema que não
sabem nem a primeira palavra".
Em verdade, o ruidoso italiano Tremeschini — que
curiosamente defendia a Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses,
111 – EM NOME DE KARDEC

ao lado de Courmes e Leymarie, começou a criar (por pura ignorância


sobre os preceitos teosóficos do Oriente) novas especificidades ao
teosofismo, evidenciando, por conta própria, sua falta de
conhecimento das filosofias orientais, fato esse que gerou enormes
atritos e ruídos provindos de Blavatsky e Olcott que, certamente, se
morderam de raiva na distante adyar, na Índia. Um fogo amigo à vista?
E até o final de julho, aquele texto-protesto da correspondência
de Helena ainda não havia sido publicado por Fauvety, o que a deixou
mais irritada ainda.
Ao que se sabe, o filosofo evitou publicar, na quentura do
momento, a longa e abrangente refutação dela, isso para evitar mais
incêndios verbais entre teósofos e espiritistas. O que, de fato,, não teve
como evitar fora o grande racha que se estabelecera por meio de
discussões infindáveis, tendo Blavatsky que ordenar (à distância) que
a Sociedade Científica do Espiritismo fosse repartida em três, para que
as dissidências teosóficas que se avolumavam encontrassem
definitivamente a sua paz em frentes diferentes e distintas.
Mas, enfim, o artigo A resposta dos teosofistas, escrito por Helena
Blavatsky, seria publicado no Boletim de Fauvety, ocupando trinta
infinitas páginas.
Carregado de supostos erros conceituais sobre os preceitos do
Espiritismo (possivelmente devido ao seu esquecimento do idioma
francês), Blavatsky tomou as afirmações do teósofo Tremeschini como
considerações falsas e sem fundamento algum, tentando justificar
depois, por carta à Fauvety, os porquês de tantos erros em suas
colocações:
Por dez ou onze anos eu já não tenho mais a oportunidade de falar ou
escrever em francês, então eu comecei a esquecer. Mas eu tenho a confiança
na sua intuição e, especialmente, em seu sentido íntimo de justiça.
Como já tive a honra de lhe dizer, nós nunca vamos atacar ninguém,
mas nos cabe defendermos a nós mesmos quando somos atacados
injustamente.
112 – Adriano Calsone

Tremeschini em nada agradou o Movimento Teosófico, já que nos


apresentou ao seu público como charlatães que pregam uma falsa ciência.
Portanto, faça-me o favor de não publicar tais acusações vindas dele...

Entre mortos e feridos diante desse fogo-amigo, o fato é que o


Comitê de leitura da Revista Espírita — à beira de um colapso — não
publicou sequer uma linha (isso em 1884) sobre qualquer coisa que
viesse de Blavastky, de Olcott, de Tremeschini, de Leymarie, de
Courmes, dos mahatmas, ou de qualquer outro ser ou assunto que
permeasse o ocultismo teosófico existente na face da Terra... Era um
ponto final.
113 – EM NOME DE KARDEC

Kardecistas
contra teosofistas

depois daquele grande racha, entre acusações e insinuações, e


para agradar a Sociedade Teosófica de Paris, o Comitê da Sociedade
Científica de Estudos Psicológicos pensou em abrir o seu Boletim para
novos artigos e debates, assim como promover algumas conferências
públicas, em formato de reuniões, a fim de que todos pudessem expor
suas ideias teosóficas entre os kardecistas franceses. Tudo em nome
da paz, sob o pretexto da fraternidade universal...
Mas o que era para ser um encontro amistoso acabou se
transformando numa fornalha de discussões intermináveis entre
teosofistas e kardecistas. Certo numero de membros de uma comissão
teosófica seria convocado como representantes das doutrinas do
ocultismo. Só que esses senhores presentes, quando tiveram
oportunidade de discursar suas defesas, não abriram suas bocas nas
conferências... Abster-se-iam de participar das discussões.
Todos os teosofistas franceses conhecidos foram convocados às
reuniões, mas muitos dos que estavam presentes, como vimos, ficaram
em silêncio, embora o presidente Fauvety oferecesse gentilmente a
palavra para que algum adversário tivesse a chance de colocar suas
opiniões.
114 – Adriano Calsone

Para piorar os encontros, o teósofo Tremeschini, a feminista


kardecista Sophie Rosen-Dufaure e um senhor chamado Waoquier,
entre erros de interpretações e incapacidade de tradução correta dos
conceitos da Teosofia moderna para o francês (segundo acusaria
Blavatsky por carta), acabariam atirando mais combustível na
fogueira das discussões, que haviam perdido de vez o controle e o
bom-senso.
A kardecista Sophie Rosen, personalidade influente entre os
membros do Comitê de Leitura, por meio de seu artigo L'errear de
Madame A.A. (O erro de Madame A.A.), publicado na Revue em agosto
de 1883, dirá que não conseguia compreender como o Boletim e a
Revista Espírita haviam autorizado publicações de artigos que
caminhavam na direção contrária das ideias de Allan Kardec:
Muitos assinantes lamentaram a vasta condescendência da Revue à
publicação de artigos onde as nossas melhores convicções, que adquiriram
experiências, forma desacreditadas com essa desenvoltura do que não justifica
a sombra de uma prova (...)
O Espiritismo é uma fonte suficiente de explicações e não precisa ir à
procura de novos gêneros do tipo dessa teosofia teosófica...

Uma série de artigos no Boletim da Sociedade Científica de


Estudos Psicológicos seriam trocados entre o teósofo Tremeschini e
mãe Blavatsky. Um exemplo disso está na matéria Réponse de M.
Tremeschini (Resposta do Sr. Tremeschini), onde o inquieto homem
rotula que passou a existir uma espécie de "Ocultismo teosófico
proposto por Helena Blavatsky"; uma "doutrina niilista pregada pelos
teosofistas", em atuação escancarada no movimento espírita francês.
Tão logo, de Adyar, na Índia, Madame Blavatsky esbravejará
alto, principalmente contra Tresmechini — o traidor do Movimento
Teosófico.
Em carta à Courmes, de junho de 1883, ela dirá o seguinte sobre
o tio kardecista que se mostrava antiteosófico ao cubo:
115 – EM NOME DE KARDEC

"Eles são muito estúpidos, essa Sra. Sophie Rosen e o Sr.


Warroquier... E Tremeschini, este não é apenas mesquinho, como
também muito desonesto (...)"
Como constatado, as acusações contra o teosofismo no
Espiritismo vinha também de muito longe, por meio de vários artigos
de colaboradores estrangeiros que pousavam na Revue, como fora o
caso dos novos correspondentes da Grã-Bretanha, da Holanda e outro
da distante Argélia.
Um caso típico fora o do barão de Fengnagell. Habitante de
Pekalongan, uma cidade indonésia localizada na costa norte da ilha de
Java, suas ideias entre os kardecistas franceses ganhariam certa força
em 1883, ao lado do trio Sophie Rosen, Waronquier e Tremeschini, ao
lançar uma hipótese de que a Teosofia era o retorno do Panteísmo, ou
seja, daquela doutrina filosófica (altamente) combatida por Kardec, e
caracterizada por uma extrema aproximação ou identificação total
entre Deus e o Universo.
Na concepção do barão Fengnagell, os teosofistas modernos
afirmavam (indiretamente) que o Espiritismo seria uma concepção
materialista do mundo, que confundia o Criador com a Criação...
Em contrapartida, no passado, Kardec há havia argumentado,
por meio de seu excelente comentário no item 16 de O Livro dos
Espíritos, "que não sabemos tudo o que Deus é, mas sabemos o que ele
não pode ser (...)"
Enfim, nós espíritas acreditamos que Deus não pode ser
confundido com o mundo, da mesma maneira que um artista não pode
ser confundido com suas obras...
O Espiritismo, portanto, não pode ser considerado nenhuma
forma de Panteísmo. Jamais fora ou será!
Barão de Fengnagell, mesmo escrevendo de uma longa
distância, também se opôs à interpretação feita pelos teosofistas sobre
versículos do Evangelho, a qual considerou já bem explicada numa das
116 – Adriano Calsone

obras de Kardec (O Evangelho segundo o Espiritismo), e concluiu que,


sobre esse tema, os teósofos estavam mal informados e
completamente desorientados...
Ele lamentará ainda que os mesmos teosofistas não apreciavam
o verdadeiro Espiritismo, "nossa doutrina consoladora", e teme que
"para quem admite suas ideias sem restrições só resta fazer uma
escolha entre o panteísmo e o materialismo".
As polêmicas se estenderão ainda por 14 meses, de 1882 até
1883. Alguns kardecistas franceses, os mais agitados, ainda tentavam
protestar em público, dizendo que os ensinamentos de Allan Kardec
haviam sido totalmente desviados em favor dos artigos de Helena
Blavatsky e de sua Sociedade Secreta indiana.
As acusações partiam da hipótese dela ter (sorrateiramente)
lucrado com a generosidade da Revista Espírita, de seus dirigentes e,
principalmente, da mulher mais querida do Espiritismo: a viúva Allan
Kardec.
Nessa época de embates, nem sempre amistosos, as ideias
teosóficas foram cada vez mais percebidas em contradição com a
Doutrina Espírita. Assim, os conceitos do teosofismo de Blavatsky e
Olcott, assim como as persuasivas de Courmes e Leymarie, não seriam
mais bem-vindos nas colunas editoriais da Revue.
Um suposto receio dos kardecistas franceses era o de que essas
filosofias místicas, muitas delas importadas do Oriente, pudessem
instalar um tipo de niilismo moderno no Oriente (tendo o teosofismo
na França o seu representante maior), já que os próprios teosofistas
apresentavam sua filosofia supostamente niilista, ao lado do Budismo.
Em curtas palavras: havia a dúvida no ar de que o teosofismo da
época passaria a defender a redução ao nada; ao aniquilamento; à não
existência; à destruição completa do ego, onde prevaleceria o
entendimento místico de que a maioria dos desencarnados seriam
aniquilados ao chegarem do lado de lá...
117 – EM NOME DE KARDEC

Como observamos, as maiores discussões entre espiritistas e


kardecistas da década de 1880 geraram em torno do que aconteceria
com a morte física do homem eterno ao chegar à Espiritualidade
Maior.
Espiritistas, ao lado de Kardec, já tinham a certeza da vida
eterna e da reencarnação; teosofistas, ao lado de Blavatsky, defendiam
outras formas de enxergar a pluralidade das existências e da vida
infinita...
Por fim, as discussões, os desentendimentos que observamos
provaram ser mesmo o resultado de uma (enorme) diferença de
significados cunhados sob os termos: mente, alma, Espírito,
perispírito, pluralidade das existências, reencarnação — conceitos
esses que as duas filosofias traziam à tona e reverberavam
particularmente, diante de um final de século 19 carregado de
inquietações no campo místico-religioso.
118 – Adriano Calsone

Helena da Índia
retorna a Paris

literalmente, os espiritistas franceses não estavam mais


dispostos a simpatizar com as teorias dos teosofistas indianos...
Os kardecistas à época podiam naturalmente justificar a
comunicabilidade espiritual com provas práticas experimentais, com
bases cientificas. E como justificariam os teosofistas de uma doutrina
secreta?
De forma rápida e prática, o que fornecia de substancial o
teosofismo, diante das pesquisas cientificas para provar a realidade da
imortalidade da alma?
Ademais, havia pouquíssimas informações na França sobre as
ações da sociedade teosófica que, além de manter o seu quartel-
general há milhares de quilômetros de Paris, ainda insistia em manter
os seus principais livros, como era o caso de Ísis sem véu, sem qualquer
tradução para o francês, o que acabou deixando subdesenvolvido o
pouquíssimo conhecimento teosofista por falta de literatura
específica, que ainda inexistia em terras francesas.
Manter experimentos secretos na Índia, com iniciados anônimos
ou conselheiros superiores desconhecidos, sem saber ao certo se
ocorriam (ou não) testes científicos às portas fechadas, deixavam
119 – EM NOME DE KARDEC

fortes evidências de que essa filosofia mística podia não ser tão
confiável assim para propagá-la em larga escala no País tricolor.
Por essas e por outras, foi que Madame Blavatsky decidiu, em 20
de fevereiro de 1884, viajar para a França, desembarcando
inicialmente em Marselha.
Curioso observar que na cabine do navio em que viajava, ao
atravessar o Canal de Suez, inaugurado em 1869, ela trabalhava
freneticamente na tradução francesa de Ísis sem Véu.
Porém, antes de partir do Oriente "para rever Leymarie, meu
velho amigo, e também o seu inimigo velho, Dr. Fortin" (como
comunicará à Courmes numa carta de 17 de julho de 1883), ela deixou
Madras com destino à Ootacamund, ou Ooty, no sul da Índia, "para me
salvar do calor que me cozinhava pela metade (...)"
Mas essa partida programada de Helena da Índia podia ser
especialmente justificada para tentar acabar com as disputas entre
dois grupos parisienses que seguiam polarizados: os kardecistas
franceses — que desejam ficar somente com Kardec; e os
spirithéosophistes — que queriam atualizar Kardec com as ideias
teosóficas modernas...
Chegando a Marselha somente no dia 13 de março de 1884, a
alquebrada Blavatsky surgirá acompanhada de dois hindus: Mohini
Chatterji e Padshah.
Novamente, Charles Blech dirá que "o comandante Courmes, em
grande uniforme, acompanhado por seu amigo, Barão Spedalieri,
recepcionará Blavatsky por meio de uma pomposa comitiva pela
cidade. E, para o espanto de Courmes, ela surgirá ostentado seu
vestuário um pouco excêntrico, que consistia em uma camisa
vermelha e chapéu com penas (...)"
Com as magnéticas figuras hindus ao seu lado, depois de
Marselha, a fundadora da S.T. era esperada em Nice (ainda há quase
mil quilômetros de Paris), no palácio da teósofa, espírita e médium,
120 – Adriano Calsone

Lady Caithness, a famosa Duquesa de Pomar.


Interessante dizer que nesses encontros burgueses, realizados
em alto estilo, Olcott relatará posteriormente que "uma noite fora
especialmente dedicada à Camille Flammarion, astrônomo de Paris,
que depois acabou sendo um dos membros da nossa Sociedade; ele
está em Nice, aonde uma grande plateia veio ouvir suas três palestras
que realizará no théâtre Saint-Michel (...)"
Entretanto, a chegada da comitiva em Paris se daria somente em
abril de 1884, e seria acompanhada de perto pela imprensa francesa,
que não pouparia Blavatsky, muito menos seus dois hindus, Mohini e
Padishah.
O Journal Rappel, por exemplo, estamparia na capa de seu
periódico o irônico título: Ameaça de invasão. E para o dono do artigo,
o jornalista Victor Meunier, a chegada de Helena Blavatsky na Paris-
Luz, ao lado de seus dois pupilos, tratava-se de uma "invasão budista",
que se sucedia à "epidemia do Espiritismo"; "e seus professores
seriam pior que a luta religiosa (...)"
Patrocinada interinamente por Lady Caithness, a cinquentona
Madame Blavatsky ficaria hospedada num apartamento de número 46
da rue Notre-Dame des Champs, onde havia um grande salão para
reuniões que possibilitava o atendimento de vários teosofistas
franceses e estrangeiros, que viriam para conhecer e discutir as ideias
de Helena Blavatsky.
Mas havia um problema maior para ela resolver em solo
parisiense: colocar um fim às discussões que os grupos dos
spirithéosophistes de Paris haviam inflado, principalmente sobre as
incompreensões dos conceitos teosóficos vindos da Índia, que
contradiziam sobremaneira as teorias de Allan Kardec.
Para isso, a volumosa Sra. Blavatsky teve de se deslocar, ao lado
do filosofo Charles Fauvety, do seu conforto de Paris à Asnières-sur-
Seine (há onze quilômetros de distância) para uma reunião acalorada,
121 – EM NOME DE KARDEC

a fim de discutir as inquietações que haviam se formado entre


espiritistas e teosofistas, surgidas no ano anterior.
Estariam presentes à reunião o espírita P.-G. Leymarie com sua
esposa; o romancista Eugene Nus; a maçom Maria Deraisme
(representando sua loja maçônica mista); e ainda madame Fauvety.
Todos lá estariam pagando reverências à Helena, que prometia colocar
um fim naqueles bate-bocas, estabelecendo um acordo definitivo de
paz frente ao racha que havia se constituído entre os espiriteosofistas.
Durante uma reunião "tranquila e séria de três horas", surgiram
alguns tímidos acordos. Somente...
Os kardecistas exigiram dos teósofos "evidências científicas sem
subterfúgios" sobre aquilo que defendiam das tais "verdades absolutas
avançadas (...)"
E mesmo com a inusitada cantoria de algumas estrofes em
sânscrito, da "forma maravilhosa" transmitida por alguns Espíritos
Vedas ao brâmane Mohini, a pedido de Eugene Nus e com o
consentimento de Blavatsky, os kardecistas decidiram "manter o seu
livre arbítrio e o direito de julgar severamente quaisquer novas
teorias usando a fé e razão simples", como dirá Leymarie, um ano
depois na Revue. Leymarie afirmando isso?
A arrastada reunião terminaria seca por meio de um — cuidem-
se — balbuciado às pressas por Leymarie...
Ao que tudo indica, Blavatsky pareceu sair da primeira e última
reunião bastante derrotada, quiçá desiludida... ao escrever para um
amigo chamdo Bilière, ela confessará que "cheirou no ar um pouco de
animosidade", e isso pareceu ser para ela "uma epidemia entre os
teosofistas de Paris (...)"
Madame Blavatsky tentará ainda, nos dias seguintes, realizar
conciliações à frente de seus antagonistas; recebe-os no seu endereço
provisório; tenta defender-se das histórias impossíveis que tecem
sobre a sua personalidade exótica; esquiva-se com firmes argumentos
122 – Adriano Calsone

das difamações sistemáticas lançadas pelo Dr. Fortin... Tudo em vão!


Hora de desmontar a lona e debandar para o Oriente...
A partir daquela reunião (sem muito sucesso), madame
Blavatsky, sua sociedade teosófica e o seu teosofismo não mais seriam
aceitos pelos kardecistas franceses da forma como vinha acontecendo
no passado...
A Revista Espírita, definitivamente, fechava suas largas colunas
editoriais a qualquer teosofista de plantão...
Por fim, os spirithéosophistes Courmes e Leymarie deveriam sair
de cena na mesma velocidade que entraram: num piscar de olhos!
E também já passava da hora daquela caravana de teosofistas
sair de Paris, enxugar suas lágrimas e partir imediatamente do país...
P.-G. Leymarie, por sua vez, pode ter se despedido de sua amiga
russa — velozmente — com um congelante Prenez garde à vous!
(Cuide-se!)
123 – EM NOME DE KARDEC

H.P.B. e P.G.L.
- a amizade que azedou

"Meu amigo Leymarie é fanático, e também kardecista (...) eu


confio um pouco no Sr. Bilière, mas não no Sr. Leymarie (...)"
Este pequeno trecho, escrito por Blavatsky à D.A. Courmes,
ficaria registrado numa correspondência sua, a de 17 de janeiro de
1882.
Aquela relação de amizade firmada dez anos atrás mostrava não
ser a mesma, talvez por um único motivo: maledicência!
O amigão Leymarie, amor amigo de Helena Blavastky, tornou-se
agora um ser irritante para seus olhos, já que o velho republicano de
origem humilde passou a evitar as ideias teosóficas de Blavatsky, para
empunhar ainda mais alto a bandeira kardecista.
Novamente, ela desabafaria à Courmes: "um verdadeiro
lamento. Ele me acusa de traí-los, de trair os caros espíritas (...)"
E ao Sr. Biliére, ela dirá o seguinte, em certo tom de desespero:
"Meu amigo Leymarie está muito enganado (...)"
A ruptura da amizade se dava supostamente pelo fato de
Blavatsky não compreender ao certo porque o Comitê de leitura da
124 – Adriano Calsone

Revue passou a barrar todos os escritos teosóficos. Ela poderia ter


perguntado a esmo: Por que Leymarie não usou suas influências para
evitar esse absurdo?
Mas o motivo maior de Leymarie ter esfriado com Blavatsky
(talvez) tenha sido o que ele e outros confrades passaram a ouvir dos
teósofos indianos, naquele histórico encontro que acontecera em
Asnières...
Para começar, em plena reunião, os franceses ficariam sabendo
que as privações materiais exigidas pelo quartel-general de Adyar, aos
aspirantes à Teosofia, eram tamanhas, impraticáveis ao homem
francês, quiçá, absurdas...
Madame Blavatsky notou que o maçom Leymarie, além de
permanecer ao lado dos kardecistas, respeitando os teosofistas,
cobrara da comitiva mais provas científicas, a fim de se convencer de
que estava mesmo no caminho certo frente à divulgação do teosofismo
em sua Pátria.
Em uma nota de redação, um único artigo publicado na Revista
Espírita, em dezembro de 1885, Leymarie tentará explicar aos seus
leitores os motivos (também das privações materiais) que levaram os
presentes naquela reunião de 1884 a congelarem relações francesas
com os teósofos indianos:
Depois de uma discussão seguida, tranquila e séria de três horas, as
nossas exigências muito precisas, não obtiveram soluções, nem respostas; os
nossos adversários nada concluíram, mostraram apenas argumentos sem
critérios, já conhecidos da velha filosofia, e tudo isso sem provas científicas,
sem fato brutal que pudesse confirmar suas teorias.
Para compreendê-los teríamos que ter uma formação especial, vivendo
apenas de legumes, se privando de vinhos, de líquidos fermentados, só
bebendo água potável, dormindo em uma esteira, sermos castos, em uma
palavra, eles matam o corpo para fortalecer o espírito.
Nós acreditamos e respeitamos isso, e acreditamos ainda na boa-fé dos
teosofistas presentes, mas observamos que foram incapazes de responder às
125 – EM NOME DE KARDEC

nossas perguntas (...)"

Privações materiais, fanatismos kardecistas, incapacidades dos


teósofos de responder às perguntas dos adversários, vida vegetariana,
ou seja, tudo isso pode ter colaborado para que aquela antiga amizade
entre Blavatsky e Leymarie azedasse de vez, para desespero do
comandante Courmes.
Ainda em seu artigo de 1885, Leymarie deixará escapar o
quanto esteve desgostoso com Blavatsky e os demais teósofos, na
ocasião da visita que fizeram em território francês:
Queridos teosofistas que gastaram seu tempo nos denegrindo durante
a estadia de seus mestres em Paris, assim como seus secretários, que fazem
isso por conta própria... Vocês devoraram com gosto a nossa França e a
Inglaterra; triste Madame Blavatsky e coronel Olcott, que vieram para
revolucionar o mundo intelectual europeu, mas teria sido melhor vocês terem
nos mostrado a lógica da Teosofia, sem complicações (...)

Abaixo, Leymarie se mostra como alguém que nunca fora


teósofo, muito menos teosofista ardente, já que nos parece que o
Kardecismo era suficiente para ele, que continuará pedindo respostas
ao teosofismo de 1884:
Vocês têm verdades superiores, absolutas, ditas por vocês; precisamos
provar isso corretamente, de uma maneira científica, sem subterfúgios e pelo
fato brutal; que chamamos isso especialmente de moderação e respeito por
aqueles que não aceitam suas teorias.
Vocês invalidaram a Doutrina Espírita que chamaram de enganosa e
nebulosa! Provem para nós, com linguagem simples, se Allan Kardec, com sua
compreensível lógica, não tem razão?
É fácil amontoar palavras em si, para exigir uma formação especial, de
alta iniciação, que só pode ser obtida, sucessivamente, e por meio de suas
teorias filosóficas, muito respeitáveis, provavelmente, incluindo seus chefes de
escolas que são impotentes para demonstrar-nos que os méritos aos homens,
no papel de peritos: Eugene Nus, Charles Fauvety etc.

Essa irritação tão visível do conciliador Leymarie surgia


126 – Adriano Calsone

também por conta da discordância com sua "amiga" Helena sobre as


causas dos fenômenos paranormais, frente à natureza e o papel dos
Espíritos. Sobre esse tema, Leymarie não mais aceitará as explicações
que partiam dos sábios hindus...
Em janeiro de 1886, em seu artigo na Revue, intitulado Um olhar
sobre as novas doutrinas, o seu conhecido discurso teosofista, cordial e
amoroso, havia se modificado da água para o vinho, como dirá diante
dessa dura colocação:
O Espiritismo não deixará o seu ideal aos milagrosos mahatmas; que
fiquem eles esperando debaixo de seu elmo (...)

Essa "virada de casaca" causaria certo estranhamento geral no


futuro, a começar pelo que disse um jornalista chamado Jean Bouvery,
especialmente sobre as parcerias místicas dele com a Teosofia, isso em
abril de 1901, num artigo chamado Necrologia, publicado três meses
após o desencarne de P.-G. Leymarie:
Senhor Leymarie manteve-se distante da intransigência de seu
Kardecismo para se aproximar da Teosofia — o que certamente não foi um
progresso, em minha opinião. Isso é marchar para uma velha religião
dogmática galvanizada e escovada: o Budismo.

Já a Enciclopédia Universal, edição de 1990, compreenderá, no


futuro, o esotérico Leymarie como um "zeloso propagador da
Sociedade Teosófica"...
Em 1886, a Revista Espírita seria contatada pela Socièté Atmique
de Paris, para que essa publicasse um artigo bastante negativo sobre
os teosofistas.
Sob o título bem sugestivo, eis o petardo em francês: La
Théosophie Bouddhique, c'est Le Nihilisme; em tradução livre: A
Teosofia Budista é Niilista.
Era o recado direto dos kardecistas franceses aos teosofistas
indianos, incluindo Blavatsky e coronel Olcott, com suas sobras em
Courmes, o velho D.A.C.
127 – EM NOME DE KARDEC

Novamente, o artigo seria precedido de uma nota explicativa


sobre o "dever de honrar a verdade" para permitir que "os leitores
sejam bons juízes diante da Teosofia".
Os membros da mesma Socièté Atmique de Paris deixariam um
(amargo) parágrafo final que, em verdade, refletia agora as mesmas
opiniões de Leymarie, como as do Comitê de leitura da Revue.
Mas por que querem colocar essa trágica e inestimável caricatura! Um
Budismo em Paris?

Depois de 1886, ninguém mais ouviria falar de uma


reaproximação — mesmo à distância — entre mãe Blavatsky e pai
Leymarie.
Por que será que tudo azedaria entre velhos amigos?
128 – Adriano Calsone

Camille Flammarion
e sua S.T.O.O

Em maio de 1884, o quartel-general em Adyar, na Índia,


registrava a existência de 53 teósofos franceses inscritos em sua
Sociedade Teosófica, lista essa que considerava os membros novos e
velhos da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, os
remanescentes da Sociedade Teosófica dos Espíritas Franceses, além
daqueles da Sociedade Teosófica do Oriente e do Ocidente, fundada
um ano antes na França, e que já possuía 27 membros.
O pesquisador e teósofo Charles Blech dirá que a Teosofia na
França começou oficialmente com a fundação dessa Sociedade
Teosófica do Oriente e do Ocidente, presidida pela Duquesa de Pomar,
conhecida também como Lady Caithness.
Não seriam apenas espiritistas que se juntariam à S.T. de
Blavatsky e Olcott. Sabe-se hoje que pensadores e cientistas eminentes
se converteriam às ideias do teosofismo, como fora o caso de Thomas
Edison, William Crookes, Mohandas Gandhi, Rudolf Steiner e até
Albert Einstein, décadas mais tarde.
Segundo um historiador chamado Noël Richard-Nafarre, esse
dirá que "Einstein provou que a matéria e a energia eram duas
manifestações diferentes da mesma substância universal, como
129 – EM NOME DE KARDEC

reivindicado pelos escritos de Blavatsky, cujos textos, além disso,


afirmavam a divisibilidade do átomo".
Surgira também, entre adeptos da Teosofia na década de 1880,
o astrônomo francês Camille Flammarion, que ficaria muito conhecido
no Movimento Espírita francês. Alguns diziam que ele havia se
convertido à doutrina dos espíritos ainda em 1860, ao lado do casal
Kardec; outros dizem que não, que ele fora mais teosofista que
propriamente um espiritista.
No enterro de Allan Kardec, em 1869, após o discurso de Levent,
o próximo a falar à beira de seu túmulo seria o mesmo jovem
Flammarion — um amigo muito querido dos Kardec.
A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a antiga S.P.E.E.,
decidira convidá-lo para uma ligeira palestra à tumba do mestre
Kardec. Inicialmente, o astrônomo se reportaria aos espíritas
presentes com uma fala direcionada "à natureza cientifica dos estudos
espíritas e ao perigo do Espiritismo ser arrastado para o misticismo".
Exatamente isso: "ser arrastado para o misticismo", como acontecerá
décadas depois...
O seu discurso seria tão convincente, diante de sua eloquência e
argumentação precisas que, dias depois, sob a alcunha da viúva
Kardec, os membros convidariam Flammarion a suceder o mestre na
presidência da Sociedade — o que ele recusaria de pronto:
Eu recusei, dizendo que nove décimos dos seus discípulos continuariam
a ver no Espiritismo, durante muito tempo ainda, uma religião mais do que
uma ciência, e que a identidade dos Espíritos estava longe ainda de ser
provada (...)

Mas essa recusa, diante do oferecimento de um cargo tão


importante, pode ter também alguma relação com as dúvidas que
Flammarion ainda mantinha, especialmente sobre um método de
comunicação especial, que os espíritas mantinham diante dos mortos
— método esse que os espiritistas da S.P.E.E. utilizavam (fielmente)
desde a década de 1850, por influência amorosa de Allan Kardec: a
130 – Adriano Calsone

psicografia.
Flammarion suspeitava que as comunicações psicográficas não
traduzissem condignamente as influências extrafísicas. Tratavam-se,
puramente, de reflexos cerebrais excitados, produzidos pelos próprios
medianeiros. Em uma palavra: para o astrônomo — cria fiel do
método experimental cientifico — a psicografia dava margem à
autossugestão, o que não acontecia, por exemplo, com os médiuns
mecânicos, esses sim, ma exceção no ponto de vista de Camille
Flammarion...
Outra questão que ainda mantinha o futuro autor de A
pluralidade dos mundos habitados cético e distante dos espíritas
parisienses era um experiência decepcionante que teve em certa
ocasião que acompanhou uma das sessões de estudo na S.P.E.E., tendo
o respeitável mestre Kardec à frente.
A presença do astrônomo Flammarion teria motivado a vinda de
outro astrônomo — o Espírito Galileu Galilei. O pai da revolução
científica do século 17 deixaria uma inusitada mensagem, sob o título
Uranografia Geral. Kardec, empolgadíssimo com a presença de ilustre
personalidade astral, a publicaria em seu livro A Gênese, fazendo
questão de enviar, posteriormente à Flammarion, uma cópia
autografada dessa obra, para que ele nunca mais se esquecesse
daquela experiência de ter testemunhado o nascimento de tão
preciosa mensagem de teor astronômico, a do insigne Espírito Galileu
Galilei.
Todavia, em seu livro de 1907, As forças naturais incomuns,
Flammarion deixará um depoimento (azedo) sobre este texto do
suposto Espírito Galileu:
Estas páginas astronômicas nada me ensinaram...
Eu estava prestes a concluir que elas repetiam o que eu já sabia, e que
o Espírito Galileu não tinha nada mais interessante para se fazer... Esta
mensagem, certamente, foi uma espécie de sonho acordado (...)
131 – EM NOME DE KARDEC

Mas ao contrário da extinta e informal Sociedade Teosófica dos


Espíritas Franceses, a atual Sociedade Teosófica do Oriente e do
Ocidente surge constituída no formato de uma organização oficial,
com estatuto e presidente.
No Boletim de julho de 1883, da Sociedade Científica de Estudos
Psicológicos, o filosofo Charles Fauvety dirá que "uma filial da
Sociedade Teosófica fora constituída em Paris, que será algo mais do
que aquela filial que existiu há alguns anos atrás (...)
Dizendo que "será algo mais", porque muitas novas
características são esperadas para tomar parte nela, e estes elementos
serão trazidos, tanto da aristocracia do talento, como do nome e da
fortuna. Duquesa de Pomar, "uma grande senhora", será a chefe da
Sociedade (...)"
Por fim, acredita-se que a adesão de Flammarion à S.T.O.O. deu-
se pouco tempo antes de sua visita à Nice, em março de 1884, ocasião
em que uma noite havia sido dedicada a ele, ao lado de Blavatsky e de
Lady Caithness, nas suas três palestras realizadas no théâtre Saint-
Michel.
132 – Adriano Calsone

A mulher dos
cabelos de prata

Em 1888, Madame Blavatsky publicará A doutrina secreta,


Síntese da ciência, religião e filosofia — importante obra da literatura
teosofista — que ajudará a converter muitos materialistas em
teosofistas.
De acordo com as informações contidas na excelente
Enciclopédia do Sobrenatural, editada por Richard Cavendish, os dois
volumes d'A Doutrina Secreta de Helena Blavatsky, escritos no formato
de coletânea de pensamentos científicos, filosóficos e religiosos, é
também "ligeiramente menos confusa que Ísis sem véu, já que a autora,
em grande parte, contou com a ajuda competente de Bertram
Keightley, Richard Harte e G.R.S. Mead (...)"
Eis que no dia 10 de maio de 1889, uma mulher materialista de
48 anos de idade chamada Annie Wood Besant, se converteria à
Teosofia. Rapidamente, Madame Besant se tornará celebridade no
final do século 19, reconhecida por sua agitação ideológica em favor
da reforma social e do controle da natalidade.
Imprimindo um caráter progressista ao teosofismo, Besant (que
do materialismo havia saltado para o ateísmo; e do Socialismo se
converteu à Teosofia) demonstrou grande capacidade de equilibrar o
133 – EM NOME DE KARDEC

aspecto ocultista blavatsquiano da S.T. com os ideais do coronel Olcott,


preocupado com a educação e a tradução de textos orientais.
Dedicando boa parte de sua longa vida de 85 anos de idade à
Teosofia e às causas humanitárias e sociais, Madame Besant, como
socialista e maçom do 33°, participaria ativamente do
desenvolvimento social e educacional de centenas de mulheres e
crianças inglesas e hindus, além de integrar, em 1930, ao lado de
Mahatma Gandhi, a histórica "Marcha do Sal" para a independência da
Índia.
De acordo com trechos de um livro raro de 1918, chamado
Annie Besant, presidente de La Socièté Théosophique: um abrégé de sa
vie (Annie Besant, presidente da Sociedade Teosófica: um resumo de sua
vida), do autor Aimée Blech, Madame Besant chegou a morar com
Blavatsky e outros discípulos em Londres, à avenue Road — endereço
esse que se tornaria a filial da Sociedade Teosófica da Inglaterra, onde
ela passaria a compartilhar uma (dura) vida teosófica em grupo, numa
espécie de falange.
Diz ainda a biografia de Blech que esses foram dias dificílimos
para Besant, já que Blavatsky cerceava com mãos de ferro a rotina de
seus discípulos ingleses, impondo-lhes rigorosas regras que incluíam,
dentre outros regimes, uma vida diária repleta de penitencias e
sacrifícios: início das atividades espirituais ás cinco da manhã, para
qualquer estação do ano; para os estudos transcendentais, os iniciados
de Madame Blavatsky, incluindo Besant, deveriam se reunir
pontualmente numa sala fria destinada às longas meditações e ao
desenvolvimento das faculdades internas.
Completamente subjulgada por Blavatsky, Annie Besant e o seu
grupo viveram muitos anos de provações sob as ordens da fundadora
maior do teosofismo.
Após a morte de Helena, em maio de 1891, Besant passou a
trabalhar diretamente com o coronel Olcott, que a deixaria
responsável pela divulgação da Teosofia no mundo.
134 – Adriano Calsone

Para isso, ela deveria viajar por Londres, Estados Unidos, Itália e
também por Paris, sempre divulgando a palavra teosófica por meio de
concorridas conferências, algumas realizadas três vezes num único
dia.
Ao que se sabe, A.W.B. fora uma oradora eloquente, às vezes
dramática, sustentando sua audiência sob o poderoso magnetismo de
seus olhos, e sob o feitiço de suas palavras.
Ao lado de Olcott, Besant viveu um regime de muita
criatividade, de meditação, de pesquisas ocultas e de trabalho interior.
Sob sua alcunha, ela publicaria muitas obras teosóficas, e já havia
escrito várias delas na época de sua provação londrina, ao lado da
exigente chefe Helena Blavatsky.
Antes da virada do século, a comunidade teosofista seria
convidada a participar do Premier Congrès Spirite et Spiritualiste
International de 1889 (Primeiro Congresso Espírita e Espiritualista de
1889), cuja organização ficou a cargo de P.-G. Leymarie, que se
ofereceu para fazer parte da comissão organizadora, a fim de tentar
espargir as ideias contraditórias que persistiam entre teosofistas e
espiritistas, isso, desde o histórico encontro de 1884.
A abertura desse mega evento se daria no salão de festas da
principal Loja Maçônica de Paris: o Grande Oriente da França. E a
Revista Espírita, edição de 15 de maio de 1889, traria estampada em
sua capa o anúncio de que esse congresso seria realizado em Paris, de
9 a 15 de setembro daquele mesmo ano.
Ainda segundo a Revista, só na França, deveriam comparecer
mais de 50 representantes de cidades como Lyon, Bordeaux, Tours,
Marselha e Toulouse, além da presença de mais de uma dezena de
países.
Para termos uma noção precisa das pretensões desse
Congresso, sua ideia central era promover a união universal de todas
as escolas filosóficas religiosas à época, por meio de uma aliança
135 – EM NOME DE KARDEC

internacional que se firmaria a partir daquele encontro.


Esse grandioso evento recebera em torno de 40 mil pessoas, que
estiveram à frente de 80 delegados representando mais de 34 grupos
espíritas e espiritualistas (swedenborguianos, filósofos, magnetistas,
cabalistas, budistas, maçons, teosofistas, teofilantropistas), além de
outros defensores da teoria psíquica geral.
Ainda nesse Congresso seria instituído um Comitê de
Propaganda só para organizar e divulgar a crescente e infinita
demanda de novos congressos. Todos esses encontros, que
perduraram por uma semana, foram devidamente documentados e
vendidos depois no formato de extensas brochuras, sempre sob o
pretexto da "divulgação do Espiritismo".
Curioso observar que quem presidiu a conferência de Annie
Besant fora o próprio Léon Denis, ao lado de Paul Gillard, que
"eloquentemente ouviram o seu discurso teosófico fora muito
aplaudido", segundo afirmaria o jornal Echos du Monde Théosophique.
O mesmo periódico dirá ainda que a magnética Besant conduziu
também os trabalhos do Congresso Vegetariano, sobre os vários
aspectos do Vegetarianismo, considerando o seu viés cientifico,
econômico e moral. Um dos membros dos trabalhos explanou os
pontos de vistas teosóficos sobre o vegetarianismo explicado por
Annie Besant, e ambos foram em seguida muito aplaudidos.
Annie Besant sempre se voltou à Índia, ao seu povo, cultura e
filosofia. Por meio de suas longas estadias em Varanasi, ela
estabelecera íntimos contatos com brâmanes educados nas ciências
sagradas.
Em 1903, A.W.B. se mudaria definitivamente para o quartel-
general da Sociedade Teosófica, em Adyar. A exótica residência
teosófica representa uma verdadeira construção hindu, tendo ao seu
redor um vasto parque rodeado por límpidas águas.
No Oriente, ela construiria um imponente colégio hindu, o
136 – Adriano Calsone

Central Hindu College, onde mestres teosofistas, hindus e europeus


educariam, à época, mais de 1.200 alunos em poucos anos.
Em 1908, surgiria uma grande oportunidade para a corajosa
A.W.B. Ela seria eleita presidente internacional da Sociedade
Teosófica, posição que ocuparia até o seu desencarne, ocorrido em
1933.
Mas o que faria ocupar o cargo mais importante da Sociedade
Teosófica?
A resposta para isso está na repentina morte do coronel Olcott,
em 1907, que supostamente indicou Besant como a sua sucessora
direta. Diz a lenda que Madame Blavatsky também havia deixado, por
escrito, que Besant deveria ser a sucessora primeira de Olcott à
presidência da S.T., após a morte do velho coronel.
E boatos alardeavam que uma intervenção oculta superior
também apontou A.W.B. como a dirigente maior dos destinos da
Teosofia no mundo. E esses comentários surgiram muito antes da
morte do coronel Olcott...
Mas essas supostas indicações, provindas de Olcott, de
Blavatsky ou dos Espíritos Mahatmas, não seriam aceitas com paz e
tranquilidade por alguns teósofo do alto escalão de Adyar... Ambiçoes
hostis também existiam no quartel-general teosofista.
O resultado das votações que colocaria Besant no topo do
teosofismo mundial geraram acaloradas discussões e dúvidas,
seguidas por uma grande crise reverberada por inimizades, invejas e
rivalidade antigas.
Nessa época conturbada, partidarismos seriam criados e
desfeitos; amizades floresceriam por um tempo para serem
substituídas por outras; ídolos teosóficos que estavam no alto de um
pedestal seriam pixados pela fofoca e maledicência; e os teósofos
adoradores do passado tornar-se-iam acusadores de qualquer tipo de
admiração fanática ou atração magnética por algum dirigente.
137 – EM NOME DE KARDEC

Fora nesse meio (ameaçador) que Madame Besant tornar-se-ia


a segunda presidente eleita da S.T., mesmo com dez adversário
contrários ao resultado das eleições.
Como visto, os tempos eram outros depois das mortes dos
fundadores Olcott e Blavatsky...
Segundo conta na mesma obra de Aimée Blech, Madame A.W.B.
"era grande demais para se ofender com questões puramente
pessoais, já que não guardava rancor de ninguém". O autor relatará
ainda um dado curioso sobre essas qualidades pessoais de Besant:
Na Aydar de 1912, durante um julgamento de A. Besant à frente de um
hindu de que ela havia legalmente adotado duas crianças, esse pai mudou de
ideia e as quis de volta, e um dos nossos membros de Paris, esse sentado ao
seu lado, viu sair muita piedade do olhar fixo de Besant em direção ao pai
hindu que a processava (...)

Ainda nesta rara biografia, relatará Aimée Blech que a


Sociedade Teosófica nunca foi tão bem-sucedida na gestão
presidencial de Annie Besant. Novas filiais foram erguidas e diversas
outras atividades sociais se multiplicaram pelo mundo.
A presidente, incansável, viajava para todas as partes irradiando
a palavra Teosófica no arrebatamento de corações e mentes. Dirá
novamente o biógrafo Blech:
Esta mulher, sob a profunda e penetrante aura de seus cabelos de
prata, sempre vestida de branco quando falava em público, deixava uma
impressão inesquecível em seus interlocutores. Ela parecia ler os pensamentos
de seus ouvintes; muitas vezes respondendo mentalmente a uma objeção que
esses pretendiam fazer da plateia. E havia tanta sinceridade e autoridade em
suas nobres palavras, sempre respeitadas, mesmo por céticos que a ouviam
atentamente (...)

No entanto, seria na França que a sua respeitável autoridade


espiritual se sobressairá. Ela falava francês com facilidade, sempre
encontrando a expressão certa, às vezes por meio de simbologias e
analogias impecáveis. Novamente, o biógrafo Aimée Blech deixará
138 – Adriano Calsone

outra boa lembrança da dirigente maior dos teosofistas no século 20:


Nós nunca nos esqueceremos daquela noite memorável quando ela
falou de Giordano Bruno na Sorbonne, diante de uma plateia de quatro a cinco
mil pessoas. Isso foi no dia 15 de junho de 1911.
Quando ela entrou no recinto, a sala inteira ficou de PE, como se
movida por um impulso irresistível de simpatia e respeito.
Durante a conferência, o silêncio foi perfeito e a sua preleção foi
saudada com calorosos aplausos.
Essas foram as atais influências que a nobre mulher exerceu sobre
aquela multidão, introduzindo o seu magnetismo, sua sinceridade e convicção
por meio de sua força espiritual de respeito...

Em 1913, Annie Besant enfrentaria uma das suas maiores crises


dentro da Sociedade Teosófica, isso, um ano e meio antes de estourar a
Primeira Guerra Mundial...
A crise se daria por conta de uma cisão inquietante que surgira
entre os membros de uma filial teosófica alemã, liderada pelo seu
secretário-geral Rudolf Steiner.
Os teosofistas alemães desejavam se separar (em massa) da
Sociedade-mãe de Besant para constituírem a Sociedade
Antroposófica liderada por Steiner — que se tornaria uma
personalidade intelectual de destaque, conquistando algumas
faculdades ocultas que o impunham respeito por onde passava.
Todavia, os discípulos mais próximos de Annie Besant,
indignados com as novas ideias do genial Steiner, rapidamente o
consideraram um usurpador, e chegaram mesmo a acreditar que ele
desejava, com a sua cisão alemã à distância, substituir
(sorrateiramente) a líder espiritual da Sociedade Teosófica.
Assim, entre incertezas e ameaças imagináveis, o quartel-
general da S.T., em Adyar, decidiu agilizar a ruptura com o
antroposófico Steiner, sob o consentimento e pesar de Annie Besant.
Diante dessa importante dissolução, Besant manteve uma
139 – EM NOME DE KARDEC

atitude muito elevada e de extrema tolerância para com Steiner.


Seguindo sua habitual regra de conduta, Besant reconheceu nele um
espírito altamente intelectual, criativo, de uma cultura filosófica rara,
recomendando continuamente tolerância e paciência a seus
discípulos, que, por conseguinte, ficaram bastante chateados com as
ações steinelistas vindas da despedaçada filial alemã.
Em 28 de julho de 1914, a Primeira Guerra Mundial bateu à
porta de Annie Besant... E a sua resposta contra esse grande mal
europeu veio carregada de luz e amor, nos seguintes termos:
Quanto a nós, que somos os agentes da Grande Fraternidade Branca —
essa que olha para o amor com virtude suprema; que procura fazer parte da
futura era da fraternidade e da cooperação, nós não podemos fazer melhor do
que seguirmos esses guardiões da humanidade, trabalhando ao lado deles para
o triunfo dos aliados que representam o direito contra a força. Dessa forma, a
humanidade estará salva da selvageria (...)
140 – Adriano Calsone

Afinal, o que é a
Teosofia?

Em junho de 1859, por meio da brochura O que é o Espiritismo,


Allan Kardec definiu que "o Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma
ciência de observação e uma doutrina filosófica".
O mestre Kardec dirá ainda nesse opúsculo que "como ciência
prática, envolve as revelações entre nós e os Espíritos; como filosofia,
compreende todas as consequências morais que emanam dessas
relações".
Em contrapartida, numa reunião da Sociedade Teosófica,
realizada ainda na América, em 30 de março de 1877, o seu Comitê de
organização definiu que "a Sociedade Teosófica tem sido desde a sua
fundação uma organização secreta", e que "qualquer revelação do que
está acontecendo, feita sem a permissão direta deve ser considerado
um ato desonroso (...)"
Ou seja, pelo que se compreende da Teosofia do século 19
(grosso modo), é que ela se conservou de alguma forma oculta,
escondida, algo que não ficou aparente; colocada de maneira que não
fosse visto; que se ocultou; que e dissimulou; nasceu íntima,
particular; que se limitou a um conhecimento reservado a poucos (só
aos iniciados?) em virtude do mistério que a envolve.
141 – EM NOME DE KARDEC

Como se sabe, essa postura (secreta) é completamente oposta


ao sentido do Espiritismo como Terceira Revelação — a do evangelho
redivivo de Jesus.
Todavia, acreditamos que o respeito à Teosofia (do passado e a
do presente), assim como às escolas esotéricas e aos teosofistas
sinceros, deve ser mantido por nós kardecistas em qualquer espaço ou
tempo...
Em janeiro de 1881, seis anos após a fundação da Teosofia nos
Estados Unidos, Madame Blavatsky endereçará, aos leitores da Revue,
o seu artigo: Qu'est-ce que La Théosophie? (O que é a Teosofia).
Sucintamente, dirá ela que "a Teosofia é a antiga religião da
sabedoria, a doutrina esotérica uma vez revelada, agora obscurecida.
A ideia principal é que a Teosofia parte de um Ser Supremo,
desconhecido e insondável (...)"
Assim, enquanto Kardec diz que o Espiritismo "como ciência
prática, envolve as relações entre nós e os Espíritos", e "como filosofia,
compreende todas as consequências morais que emanam dessas
relações"; Blavatsky explicará que a sua Teosofia "parte de um Ser
Supremo, desconhecido e insondável".
Quem seria exatamente esse Ser supremo? Os Elementares?
Deus?
No século 20, vários dicionários religiosos tentarão definir a
(secreta) Teosofia aos pobres mortais do mundo. Vejamos a seguir
algumas tentativas:
Em 1928, o Dictionnaire d'apologétique de La foi catholique dirá
que a Teosofia é uma "forma de espiritualidade panteísta, com base
num caráter de ensino religioso filosófico com práticas sincréticas e
ocultas do tipo espíritas"
Em 1946, o Dictionnaire de théologie catholique definirá a
Teosofia como "todas as verdades que constituem as bases para todas
142 – Adriano Calsone

as religiões. De acordo com a Sociedade Teosófica, é o 'reavivamento


de erros gnósticos, com base em uma alegada tradição esotérica'."
Os Thesaurus de l'Encyclopédia Universalis, edição de 1975,
explicará que "surgiu uma certa confusão, a partir de 1875, quando
Madame Blavatsky fundou a Sociedade Teosófica, porque aquela era
uma configuração diferente. Infelizmente, muitas vezes, é nesta
Sociedade que se pensa hoje quando alguém pronuncia a palavra
Teosofia".
No Dictionnaire des religions, ediçao de 1984, há um alerta aos
leitores de que "a busca divina pode ser feita sem qualquer dogma de
qualquer ortodoxia, tanto a filosófica como a religiosa. A Teosofia usa
uma interpretação das coisas na alegação da tradição esotérica, assim,
reservado aos iniciados, mas que pode ser determinado por
experiência pessoal. A Teosofia Oriental, que nasceu dessa corrente
Ocidental e reencontrou-se com a do Ocidente (Sociedade Teosófica),
descrita como 'teosofismo' por René Guénon, esse é a-religoso ou até
mesmo antirreligoso".
O Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique, edição de
1991, é enfático em afirmar que "não há nenhuma doutrina teosófica;
o que há é uma atitude do espírito e de uma forma de busca.
Especificamente o que a Teosofia fala: da Teosofia judaico-cristã; da
Cabala judaica; da tradição xiita; das obras escritas por Blavatsky; e do
conhecimento esotérico de Deus".
Já o Dictionnaire critique de l'ésotérisme, de 1988, deixa ainda
mais subjetivo o conceito teosófico, dizendo que a "Teosofia não é uma
doutrina, mas uma atitude de espírito e uma forma específica de
busca".
Para o Dicionário Houaiss, edição brasileira de 2009, a Teosofia
significa um "conjunto de doutrinas religiosas de caráter sincrético,
místico e iniciático, acrescidas eventualmente de reflexões filosóficas,
que buscam o conhecimento da divindade para alcançar a elevação
espiritual".
143 – EM NOME DE KARDEC

Ainda em uma das edições de 1882, do Boletim da Sociedade


Científica do Espiritismo, comandado por Leymarie e amigos, há outro
artigo intitulado Qu'est-ce la Théosophie? (O que é a Teosofia?), que
traz a sua explicação por meio de 15 conceitos, fornecidos, desta vez,
por uma autoridade espiritual, um Paramahansa do Himalaia — ser
esse que para os teósofos pertence a mais alta ordem de San Yayis. O
que seria San Yayis? Quem saberá!
Eis as definições do santo homem:
1. Teosofia é aquele ramo da perfeição humana que podemos fazer
contato com a causa eterna da natureza invisível, onde a natureza
física é apenas uma quimera;
2. Teosofia é a ciência que nos leva da animalidade à divindade;
3. Teosofia é aquele ramo da filosofia humana que, em teoria, nos
ensina o que há em nós, além da inteligência e da personalidade
individual (ego);
4. Teosofia é o ramo da química que nos permite gerar a nossa
imortalidade;
5. Teosofia é aquele ramo da pintura de nós mesmos, que o tempo não
pode apagar;
6. Teosofia é aquele ramo da agricultura que podemos guardar as
sementes, sem levantar uma árvore;
7. Teosofia é aquele ramo da ótica, que amplia o alcance da nossa visão
e nos faz ver além do físico;
8. Teosofia é aquele ramo da cirurgia humana entre a natureza física e a
natureza moral;
9. Teosofia é aquele ramo da arquitetura que nos mostra o universo em
um ovo;
10. Teosofia é aquele ramo da música que harmoniza a natureza física do
espírito;
11. Teosofia é aquele ramo da arte da jardinagem que nos ensina a tirar
os galhos das árvores que apodreceram;
144 – Adriano Calsone

12. Teosofia é aquele ramo das artes de cura, que nos ensina como a
natureza é purificada por meio das causas e efeitos;
13. Teosofia é aquele ramo da arte da engenharia que preenche o
abismo que separa a vida da morte;
14. Teosofia é a arte militar nos ensinando a domar o tempo e a morte —
os dois inimigos mais poderosos do homem;
15. Teosofia é um poder capaz de colocar-nos a saborear a doçura
requintada, contida em nosso próprio eu.

Mesmo sabendo, pelos vários dicionários que a Teosofia vem do


grego Theos: Deus ou Divino; e Sophia: a sabedoria, a ciência, o
conhecimento, vários lexicógrafos do século 20 são categóricos em
afirmar que o termo teosofia pode ser facilmente confundido, e que é
difícil definir a sua direção exata, já que este conceito escapa dos
contornos nítidos do aristotelismo formal.
Assim, os mesmos afirmam que cada teósofo poderá
ressignificar o seu próprio conceito sobre a Teosofia, interiorizando-a
da forma que achar conveniente.
Por fim, o ex-presidente da Sociedade Teosófica internacional,
Sr. Nilakantas Sri Ram, deixará a sua contribuição no sentido de tentar
significar a Teosofia:
"A palavra 'teosofia' não se encontra definida na constituição da
Sociedade Teosófica, nem em qualquer outro documento oficial da
mesma. É evidente que com isso procurou-se fazer com que cada um
de nós busque por si mesmo seu significado e sua natureza (...)".
Podemos assim descobrir o que é Teosofia tomando em
consideração esses pensamentos e escritos vindos de um passado
remoto, estudando o que chamamos a moderna literatura teosófica e
também acrescentar nossas próprias investigações e meditações. Na
própria palavra existe uma indicação para orientar essa busca. Ela
pode ser traduzida como sabedoria divina. Algumas pessoas preferem
chamá-la de "Sabedoria Espiritual"; porém, então, é necessário decidir
145 – EM NOME DE KARDEC

o que se entendo por sabedoria e por espiritual...


O que é o teosofismo, afinal?!
146 – Adriano Calsone

Propagação do
Teosofismo na França

Indiscutivelmente, a Revista Espírita deixava um legado


incalculável ao misticismo de fim de século: a propagação da teosofia
em toda a França...
Como visto, de 1876 a 1884, o teosofismo atingiu o seu auge de
divulgações ininterruptas em território francês, especialmente por
meio do antigo periódico de Allan Kardec.
Após esse período, com aquele bloqueio das colunas editoriais
na Revue, os teosofistas tiveram que encontrar novas maneiras de
propagar suas ideias entre os franceses.
Pesquisadores estrangeiros, como é o caso de Charles Blech e
Joscelyn Godwin, acreditam que o movimento teosófico efetivamente
começou na França após aquela histórica passagem da comitiva de
Blavatsky, na Paris de 1884, que teria servido também para tentar
assentar a paz entre teosofistas e espiritistas.
Em verdade, a dupla de pesquisadores acredita que essa visita
estratégica se daria para estudar, programar e impulsionar o
desenvolvimento de novas filiais a serem instaladas em Paris, como
também nas províncias, depois do retorno da comitiva à Índia. A prova
disso se confirmaria 16 anos depois...
147 – EM NOME DE KARDEC

Em 1900, a S.T. já contava com quatro importantes filiais


teosóficas em Paris: le Sentier (o Caminho), dirigida por P. Tourniel; le
Disciple (o Discípulo), sob responsabilidade de Paul Gillard; e le Lotus,
comandada pelo ex-oficial da marinha, o nosso vovô D.A.Courmes.
Pouco tempo depois, surgiria ainda a filial l'Essor, sob a
liderança de Aimée Blech, que se encarregou de divulgar
pessoalmente as ideias teosóficas na França, percorrendo longos
caminhos até as filias das províncias, a fim de orientá-las e subsidiá-
las.
Mas um relatório elaborado em 1908 aponta que já havia 24
filiais da S.T. na França, seis delas somente em Paris, onde todas
permaneciam subordinadas à seção europeia, em Londres, que
congregava todas as filiais teosóficas da Europa.
Em 1914, em plena Primeira Guerra Mundial, a somatória das
filiais teosóficas em terras francesas já chegava a 49, sendo nove
instaladas em Paris.
Em verdade, o Movimento Teosofista fora lentamente
desenvolvido na França, em comparação com outras nações europeias,
que formaram mais rapidamente as suas filiais. Portanto, pode-se
dizer que o teosofismo, além de ter desembarcado suas filiais muito
tarde em solo francês, encontrou-se por diversas vezes "defasado"
entre os iniciados franceses, também por conta da falta de traduções,
para o francês, de sua literatura teosofista, assim como pela enorme
distância que havia entre as filiais teosóficas de Paris e a Sociedade-
mãe na Índia.
Certa feita, coronel Henry Stell Olcott dirá em um de seus
retornos de inauguração de uma filial francesa, e também durante a
Convenção Anual de Adyar, que "a França fora o túmulo das filiais
teosóficas; que hoje, um novo zelo se revela".
Especificamente sobre a expressão"zelo", Olcott se refere aos
infindáveis episódios amargos com os kardecistas franceses
148 – Adriano Calsone

(ocorridos de 1878 a 1884), que a cada ano negavam a Teosofia de


Blavatsky como complemento do Espiritismo de Kardec.
E essa lentidão na formação das filiais francesas também pode
ser justificada pelas suas curtas vidas. O primeiro exemplo vem d'A
Sociedade Teosófica do Oriente e do Ocidente, que teria existência
efêmera (de 1883 a 1885).
Outra filial chamada Ísis, criada em 1887, seria desfeita em
favor da Hermès, que apareceu em 1888, para se dissolver em 1890,
substituída pela então Le Lotus...
Essa última, em especial, se manteria viva até 1899, reforçada
por sete filiais; depois Le Lotus perduraria por mais 14 anos,
expandindo o Movimento Teosófico para mais 33 filiais em todo o
território francês.
Eis que em 1913, o teosofismo teria a sua maior representação
arquitetônica em paragens francesas: uma espécie de "quartel-
general" da Sociedade Teosófica em Paris seria erguida por meio de
um ostentoso prédio com janelas em arcos inspirados no Oriente, além
dos mosaicos coloridos na fachada, que substituíam o estilo clássico
habitual...
A mega sede teosófica francesa (localizada à Square Rapp,
próxima à Torre Eiffel) surgiu na primeira década do século 20, com a
pretensão de abrigar uma sala de conferências que acomodasse ate
800 teosofistas ávidos pelos aprendizados místicos. E até os dias de
hoje, esse mesmo prédio ostenta em sua larga fachada, os seguintes
dizeres: Socièté Théosophique de France.
Enquanto a Teosofia ascendia com força no confuso século 20
que se iniciava, o Espiritismo francês decaia de cabeça para se
extinguir de vez no mar secreto das correntes místicas e esotéricas...
Ao contrário do ascendente quartel-general da Socièté
Théosophique de France, a memorável residência dos Kardec, na Villa
Ségur, já havia caído nas mãos (milionárias) de supostos herdeiros —
149 – EM NOME DE KARDEC

desconhecidos — que lutavam há décadas na justiça contra o


"herdeiro Leymarie", tudo pelo patrimônio que reivindicavam direito.
E com a extinção da Sociedade da Livraria Espírita fundada pelo
senhor e Sra. Allan Kardec, Leymarie fundou a sua própria lojinha, a
Librairie Leymarie Edite-URS, onde continuaria a publicar as obras de
Allan Kardec em vários idiomas, sempre ao lado das edições não
espíritas.
A antiga e conceituada Revista Espírita, edição de janeiro de
1897, persistia com o enigmático subtítulo Jornal de Estudos
Psicológicos e Espiritualismo Experimental que, apesar de estar para
completar 40 anos com edições ininterruptas, denunciava um editorial
muito mais eclético do que o da década anterior.
Em sua atual "tabela de matérias", numa nota sobre mudança de
endereço, Leymarie não ocultará o seu posicionamento editorial:
"Nossa livraria, como no passado, é responsável pelo fornecimento de
todos os volumes que tratam do Espiritismo, ciências psíquicas,
Espiritualismo, Magnetismo, Ocultismo, Teosofia etc."
E toda a coleção completa da famosa La Revue Spirite, com suas
dezenas de volumes (de 1858 a 1895), podia ser adquirida na nova
livraria esotérica de Leymarie pela bagatela de 150 francos.
Agora, com nova sede na rue Saint-Jacques, n° 42, o escritório da
Revista se manteria nesse endereço até a fundação da histórica Maison
des Spirite, do milionário Jean Meyer, empreendimento esse que seria
inaugurado só em 1923, onde Meyer assumiria a continuidade das
publicações da Revista Espírita.
E por incrível que pareça, essa mesma Librairie Leymarie existe
até os dias de hoje no mesmo endereço, na rue Saint-jacques, n° 42,
onde lá se pode notar uma pequena loja rebatizada como o letreiro
Librairie et Editions Leymarie, havendo ainda, acima de sua fachada,
outra enigmática placa menor trazendo os inacreditáveis dizeres (em
verde e amarelo): Occultisme Leymarie.
150 – Adriano Calsone

É interessante notar que no próprio site dessa Livraria há uma


explicação sobre como esta Loja de livros divide o expediente entre
"vendas de obras ocultistas e psíquicas" e "literatura de cartas para
uma consulta sem compromisso (...)". É fato: comércio livre de tarô e
cartomancia!
O teosofista, maçom e roustainguiano Leymarie é recordado na
França atual muito mais como um ocultista do que como um
espiritista. Não bastou ele ter vivido com os Kardec e absorvido toda a
singeleza doutrinária da Filosofia Espírita...
O que ficou do père Leymarie, e de seu eclético histórico
permeado de influências esotéricas, fora a imagem de um místico,
muito distante da simplicidade espírita que se conhece e que se deve
praticar. Não é à toa que, atualmente, os europeus enxergam o
Kardecismo francês como uma pseudorreligião...
Tudo leva a crer que, no dia 15 de novembro de 1897, père
Leymarie — o velho leão republicano, o septuagenário teosofista de
todas as decúrias e centúrias, sóis e estrelas — concederia
gratuitamente à Federação Espírita Brasileira o direito de publicar em
português todas as obras de Allan Kardec. Todavia, a autorização veio
com o expresso pedido aos febianos cariocas de manter fidelidade aos
originais do mestre.
Diz a lenda que Leymarie pode ainda ter enviado para os cofres
dessa mesma FEB de 1897 algumas relíquias do casal Kardec, talvez
aquelas mesmas que alguém conseguira salvar do "auto-de-fé de
1883", ocorrido na residência da Villa Ségur dias depois do desencarne
da viúva Kardec, e relatado minuciosamente por viúva Fropo em sua
brochura Muita Luz:
Mas o que me fez tremer de indignação, foi assistir a um verdadeiro
auto-de-fé. Senhor Vautier caminhava no jardim entre pilhas de papeis e
cartas. Quantas comunicações interessantes, quantas anotações deixadas pelo
mestre, tudo foi destruído (...)

Assim, para apagar qualquer incêndio ou pisoteadas do passado,


151 – EM NOME DE KARDEC

entraria em cena a doce figura de Dr. Bezerra de Menezes — o médico


dos pobres —, que seria o responsável por essas importantes
captações de doações francesas providas de Leymarie...
Acredita-se que, dessa maneira, entre abolicionistas e
republicanos roustainguianos de ambos os países, tenha se iniciado o
processo de transferência das tarefas de continuação da Filosofia
Espírita em terras brasileiras — muito longe do ocultismo que se
avolumava irreversivelmente pelas terras tricolores da França...
152 – Adriano Calsone

Artigos na Revue
sobre a Teosofia
(de 1876-1889)

— 40 artigos sobre a Teosofia, dos quais 24 trouxeram a assinatura de


teosofistas;
— 9 artigos contestando as ideias teosóficas;
— 1 sobre a oposição do Conselho Editorial da Revista Espírita sobre publicar
qualquer artigo que aborde a Teosofia.

No Boletim da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos e na Revista


Espírita (entre 1882 e 1883)
— 9 artigos sobre Teosofia;
— 7 artigos contestando as ideias teosóficas;
— 1 com polêmicas;
— 5 artigos trocados entre Helena Blavatsky e Mr. Tremeschini;
— 1 sobre o "mal-entendido" de Charles Fauvety.

1876

Agosto

Un écart du spiritisme en Amérique. D.A.C. (Dominique Albert Courmes)


Objections aux idées d'Olcott, p. 252.
153 – EM NOME DE KARDEC

1877

Maio

Socièté Théosophique de New York -- Le comité de la société Théosophique, p. 157.

1878

Janeiro

Coup d'oeil rétrospectif sur l'année 1877 - La Rédaction Isis unveiled. H.P.B. (Helena Pretovna
Blavatsky), p. 4.

Fevereiro

Une Rectification. D.A.C.


Révision du jugement de février 1876, p. 25.

Abril

Idées Théosophiques - artigos de H.S.O. (Henry Steel Olcott)


Fragments. H.P.B., p. 121-134.
Réflexions au sujet des idées Théosophiques. D.A.C., p. 134-137.

Junho

Les Théosophes; Madame Blavatsky. E.F., p. 214.

Julho

Les Théosophes… (continuação), p. 252.

Agosto

Les Elémentaires et les Elementals. E. Rossi de Giustiniani, p. 289


Objections aux idées théosophiques

Setembro

Le spiritualisme en Amérique. E. de Kislingbury


Traduit du Spiritualist. H.P.B. e H.S.O., p. 345
A propos du dégagement de l'Ame. Guérin, p. 355
D'aprés les théosophes
154 – Adriano Calsone

Outrubro

La véritable Mme Blavatsky - H.P.B.


Réponse aux articles de juin Juillet, p. 377
Objections aux principes des théosophes. Baron de Fengnagell Pekalongan (ile de Java) P. 388

1879

Janeiro

Coup d'oeil rétrospectif sur l'année 1878 - La Rédaction. H.P.B. et H.S.O. estimes, p. 1
Idées incorrectes sur les doctrines théosophiques. H.P.B., p. 32-39
Réponse à E. Rossi de Giustiniani

Junho

Dernières réflexions d'un Oriental à Mme. H.P. Blavatsky. E. Rossi de Giustiniani, p. 223-225

Setembro

Réponse définitive d'une théosophe à M. Rossi de Giustiniani. H.P.B., p. 367-371

Dezembro

Invitation à l'école théosophique - Fois Vallès, p. 469-475


De bien vouoir entrer dans La voie des explications

1880

Março

Ce que veulent les Théosophes, leur but. C. Steiner, p. 102-106


Discours O. Hume et Discours H.S.O. - Extrait du Pioneer Bénarès, le 12 décembre 1879

Junho

Lettre sur le Théosophisme. Elise Van Calcar, p. 219-225


Au president de la S.S.E.P.

Agosto

La clef de la Théosophie selon Le Dr. G. Wyld. G. Wyld.

Setembro

(traduit et présenté par D.A.C.) tire du Théosophist, p. 382-386


155 – EM NOME DE KARDEC

Outubro

Voyage des delegues de La Société Théosophique, p. 428-434


Lettre du Pioneer n° 1, journal officiel du Gouvernement indien (25 mai 1880)

Novembro

Qu'est-ce que la Théosophie. H.P.B., p. 450-457


A Charles Fauvety
Réponse de M. Charles Fauvety, p. 457-460

Dezembro

La première année de Théosophisme. D.A.C., p. 477-480

1881

Janeiro

A nos lecteurs - La Rédaction, p. 5


A Paris, une Branche de cette Société Théosophique...
Voyage des délégués de La Société Théosophique >> Le Pionner (Voir la Revue de Septembre
1880), p. 13-18
Sur la clef de la théosophie Tiré du Théosophist selon le docteur G. Wyld. D.A.C., p. 18
Qu'est-ce que la Théosophie? - tiré du Theosophist - par D.A.C. p. 19

Fevereiro

Travaux de la Société Théosophique - tiré du Theosphist - par D.A.C. p. 88


Leurs rapports avec le Spiritisme - D.A.C.
Du Yogisme - tiré du Theosophist - par D.A.C., p. 89

Março

Idées hindoues sur les morts - traduit du Theosophist par D.A.C. p. 132-134
Sur les Rosicruciens - ibid. p. 134
Prescience magnétique - tiré du Theosophist par D.A.C. p. 139
L'Ane de Victor Hugo - A Mme Blavatsky, secrétaire correspondant de la Société Théosphique de
Bombay (Indoustan) A.B. p. 156

Abril

Des Cycles dans l'histoire - tiré du Theosophist - D.A.C. p. 176


156 – Adriano Calsone

Julho

Conferences M. Fortis sur sa traduction d'Isis Unveiled - A. G./S.S.E.P., p. 314

Agosto

Discours de M. Leymarie - Au nom de la Société Théosophique devant la dépouille du Baron du


Potet, p. 393

1882

Janeiro

Coup d'oeil rétrospectif - La Rédaction


Nous marchons avec toutes les sociétés théosophique..., p. 2

Outrubro

The Theosophist - Bombay. Subba Row, p. 303

Novembro

Nirvana, fusion en Dieu et non avec Dieu - Note à prop Medium Mme. X. Mme Blavatsky

1883

Janeiro

A propos des Ecrits Théosophiques. D.A.C.

Sur l'opposition Du comitê de rédaction à publier tout au article la théosophie, p. 41-43

Julho

Balzac était un grand spirite. A.A. abonnée à la Revue (Oran), p. 315

Agosto

L'erreur de madame A.A. Sophie Rosen-Dufaure, p. 371

1884

Não houve publicação de artigos


157 – EM NOME DE KARDEC

1885

Dezembro

Note de la Rédaction - P.G. Leymarie sur l'entrevue de 1884 avec les responsables de la Société
théosophique, p. 743-748

1886

Janeiro

Coup d'oeil sur les doctrines nouvelles, p. 1

Março

La Théosophique bouddhique c'est le Nihilisme, p. 129


A propos du Théosophisme ou Occultisme
Armand Grelez, p. 138

1887

Janeiro

Les théosophes à Pondichéry - Victor Pujo


Le progrés de Pondichéry - 23 septembre 1883, p. 21

Fevereiro

A propos de Théosophie
Protestations contre l'article précedent, p. 64

1889

Congrés Spirite à Paris avec les théosophes

Artigos sobre objeçõe às ideias teosóficas na Revista Espírita

1876

Agosto

Un écart du spiritisme an Amérique. D.A.C., p. 25


Objections aux idées d'H.S.Olcott
158 – Adriano Calsone

1878

Agosto

Les Elémentaires et les Elementails. E. Rossi de Giustiniani, p. 289

Setembro

A propos du dégagement de l'Ame. J. Guérin, a Villeneuve de Rions, p. 355

Outubro

Objections aux principes des théosophes. Baron de Fengnagell, p. 388

1879

Junho

Dernières réflexions d'un Oriental à Mme Blavatsky. E. Rossi de Giustiniani, p. 223

Dezembro

Invitation à l'école théosophique. Fois Vallès, p. 469

1880

Novembro

Réponse à Mme Blavatsky. Charles Fauvety, p. 457

1882

Outubro

A propos du "Theosophist de Bombay". Subba Row, p. 303

1883

Janeiro

A propos des écrits théosophiques. D.A.C., p. 4

Agosto

L'erreur de Madame A.A. Sophie Rosen-Dufaure, p. 371


159 – EM NOME DE KARDEC

Bibliografia

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161 – EM NOME DE KARDEC

Sobre o autor

ADRIANO CALSONE nasceu em 15 de dezembro de 1976 em São


Caetano do Sul-SP, onde reside atualmente. Formado em Comunicação
Social e pós-graduado em mídias digitais, exerceu por alguns anos as
profissões de editor e assessor de imprensa e, atualmente, trabalha
com internet e cultura digital.
Aprendiz nos cursos de evangelização da Federação Espírita do
Estado de São Paulo, tornou-se médium, estudioso e pesquisador
espírita. Com sensibilidade às Artes Plásticas, em especial ao desenho,
pintura e escultura, migrou da psicografia à pintura mediúnica com
tintas e pasteis, surgindo, posteriormente, uma grande sintonia com o
trabalho de servir como médium aos Espíritos com essa tarefa.
Em 2013, participou do primeiro estudo científico mundial
sobre neuroimagem funcional e pintura mediúnica, que aconteceu na
Universidade de Aachen, na Alemanha.
Para complementar seus estudos doutrinários, participou como
médium da pintura por um período de três anos nos trabalhos do
GEAM - Grupo Espírita de Arte Mediúnica — coordenado por Afonso
Moreira Jr.
Após frequentar por mais de 10 anos as reuniões de
desenvolvimento mediúnico do Grupo Espírita de Trabalho Misail,
participa atualmente de um projeto itinerante que leva atendimento
fraterno às diversas casas espíritas.

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