Resenha Aranha - PDF PDF
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A Filosofia surgiu no final do século VII e início do VI a.C. na Grécia antiga. Resultou de
um processo lento e gradativo para que contribuíram vários fatores, como as viagens
marítimas, a invenção da escrita, a invenção da moeda, o nascimento da pólis (cidade-
estado). Os primeiros filósofos tinham uma preocupação cosmológica e foram
posteriormente denominados de pré-socráticos. A Filosofia surge em um mundo
povoado por concepções míticas e em oposição a elas. O mito é a forma mais primária de
compreensão da realidade. Trata-se de um tipo de saber que é afetivo, coletivo e
dogmático. Os mitos são mantidos vivos pela tradição e cumprem uma função importante
de atribuir sentido ao mundo, de explicar a realidade, de ordenar o caos. Esses primeiros
filósofos desconfiavam das explicações míticas e passam a buscar uma explicação
racional para o existente. Dessa forma, a Filosofia surge opondo-se à visão mítica
predominante na época e vai configurar-se como uma reflexão racional para explicação
do existente.
Alguém poderia perguntar, mas qual, afinal, o objeto da Filosofia? As ciências particulares
possuem objetos definidos; e a Filosofia, de qual objeto especificamente ela se ocupa?
Os pré-socráticos, por exemplo, tinham uma preocupação cosmológica, enquanto
Sócrates passa a preocupar-se mais com a questão antropológica e ética. Aristóteles
investigou sobre lógica, política, biologia entre outros temas. Outros filósofos ocuparam-se
com a teoria do conhecimento, com a estética etc. Cabe lembrar que as ciências
particulares tal como concebemos atualmente vão configurar-se a partir do século XVII,
com Galileu, antes disso, encontravam-se no bojo da Filosofia. A questão fundamental é
que a Filosofia não se define pelo objeto, como as ciências particulares, mas pela forma
de abordagem do objeto. E qual é essa forma? Segundo o filósofo e educador brasileiro,
Dermeval Saviani (2000), 1 essa forma é radical, rigorosa e de conjunto. Radical, porque a
reflexão filosófica precisa ir até a raiz do problema, investigar seus fundamentos.
Rigorosa, porque a reflexão filosófica implica sistematização apoiada no rigor de um
método próprio; De conjunto, porque ao mesmo tempo que o problema é visto em
profundidade deve ser também visto em uma perspectiva mais ampla, de conjunto, em
relação a outros elementos do contexto. Para Saviani, é nessa característica “que a
filosofia se distingue da ciência de modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da
ciência, a filosofia não tem objeto determinado; ela se dirige a qualquer aspecto da
realidade, desde que seja problemático; seu campo de ação é o problema, esteja onde
estiver” (2000, p. 17). Dessa forma, a Filosofia pode ocupar-se de problemas da esfera
política, ambiental, científica, social, educacional, entre outras. Segundo Terezinha
Azeredo Rios, a filosofia é sempre “filosofia de” alguma coisa; ela explica que:
1
SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13 ed.
Campinas, SP: Autores Associados, 2000.
Cosmológica: ETIM gr. kosmología, do gr. kósmos ‘lei, ordem, mundo, universo’ +
rad. gr. -logía ‘tratado, ciência, discurso’. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua
portuguesa)
A philo-sofia caracteriza-se então como uma reflexão que busca compreender o sentido
da realidade, do homem em sua relação com a natureza e com os outros, do trabalho do
homem e seus produtos: a cultura e a história. É enquanto re-flexão que descobrimos a
filosofia sempre como filosofia de. Às vezes tenta-se menosprezar o conhecimento
filosófico por não ter objeto próprio, na medida em que qualquer objeto pode ser objeto do
filosofar. Deve-se então retomar a afirmação de que não é pelo objeto que a filosofia se
define. Ela tem sempre como objeto os problemas que a realidade apresenta, sejam quais
forem esses problemas e o lugar em que se situam.
2 FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Muitos de vocês já devem ter-se perguntado: Qual a relação entre Filosofia e Educação?
Afinal, a Filosofia é necessária para a Educação? Por que o educador deve filosofar?
Vamos responder começando com outras perguntas: É importante refletir sobre qual ser
humano se quer formar? É importante refletir para que educar? É importante analisar os
valores que devem orientar a prática educativa? Se você respondeu sim a essas
interrogações é porque a reflexão filosófica não pode ser negligenciada pelo educador.
No item anterior foi abordado que a Filosofia não tem um objeto de estudo específico,
mas que se preocupa com diferentes problemas, colocando-se de forma crítica e reflexiva
diante deles. Assim, um dos problemas com que se ocupou e se ocupa a Filosofia é a
Educação. Daí a afirmação de Saviani: “Acreditamos, porém, que a filosofia da educação
só será mesmo indispensável à formação do educador, se ela for encarada, tal como
estamos propondo, como uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os
problemas que a realidade educacional apresenta” (2000, p.23). Configura-se, dessa
forma, a importância da reflexão para a educação. A palavra reflexão “[...] vem do verbo
latino ‘reflectere’ que significa ‘voltar atrás’. É, pois, um repensar, ou seja, um pensamento
em segundo grau” (SAVIANI, 2000, p.16). A reflexão é uma análise consciente daquilo
que se apresenta como problema. Assim, se pensar é uma atividade que se coloca em
prática espontaneamente, o mesmo não se pode dizer do refletir, porque “[...] se toda
reflexão é pensamento, nem todo pensamento é reflexão” (SAVIANI, 2000, p.16). A
reflexão implica uma atitude consciente de examinar detidamente as questões vitais da
existência humana. Dessa forma, se se defende a reflexão enquanto um valor
fundamental para a educação é necessário que essa reflexão possa ser também
adjetivada de filosófica.
O que leva o educador a filosofar são os problemas (entendido esse termo com o
significado que lhe foi consignado) que ele encontra ao realizar a tarefa educativa. E
como a educação visa o homem, é conveniente começar por uma reflexão sobre a
realidade humana, procurando descobrir quais os aspectos que ele comporta, quais as
suas exigências referindo-as sempre à situação existencial concreta do homem brasileiro,
pois é aí (ou pelo menos a partir daí) que se desenvolverá o nosso trabalho.
Assim, o exercício filosófico possibilita que as pessoas diante dos problemas respondam
com reflexão e não com idéias prontas. E, diante dos problemas que a realidade
educacional apresenta ao educador, este não deve abrir mão da reflexão filosófica.
3 O ATO DE EDUCAR*
Kant inicia seu texto Sobre a pedagogia 2 , enfatizando que o ser humano é o único ser
que precisa ser educado. Com isso, o filósofo de Königsberg chama a atenção para o fato
de que o ser humano não nasce pronto e para se desenvolver e não perecer necessita de
educação. E a educação, por sua vez, acontece de várias formas e em variados lugares e
tempos. Vejamos quais são seus propósitos gerais.
2
KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. 4 ed.
Piracicaba: Editora UNIMEP, 2004.
O mito conta que quando os deuses criaram os animais encarregaram Prometeu e
Epimeteu de distribuírem as qualidades necessárias à sobrevivência de cada grupo.
Epimeteu3 começou a distribuição sem Prometeu.4 Para alguns concedeu velocidade,
mas não força; dessa forma, poderiam fugir daqueles que dotou com força, mas não com
velocidade; alguns revestiu com peles grossas; outros dotou com garras; alguns outros
receberam asas etc. Enfim, procurou estabelecer um certo equilíbrio de modo que todas
as raças pudessem sobreviver e nenhuma pudesse desaparecer. Mas Epimeteu 3 , ue não
era muito inteligente, havia gastado quase todas as faculdades com os animais e se
esquecido do gênero humano. Foi quando chegou Prometeu 4 e constatou que realmente
havia um certo equilíbrio entre os animais, mas que o homem encontrava-se nu e
indefeso e dessa forma poderia facilmente perecer diante das ameaças do meio.
Prometeu então, resolveu roubar o fogo de Hefesto e a habilidade mecânica (técnica) de
Atena e concedê-los aos homens. Com esses dois atributos os homens ficaram providos
para se defender e sobreviver. Com a habilidade mecânica o homem pôde criar moradias,
vestimentas, armas, utensílios etc. Foram dotados também da arte de emitir sons e
palavras. Mas, mesmo assim, ainda não tinham sua vida assegurada porque viviam
separados e não uniam forças para lutar contra as feras. Quando tentaram se unir e criar
cidades não foi possível conviver, pois não possuíam a arte política. Foi quando Zeus
interveio e dotou a todos com a arte política, ou seja, com a capacidade de agir com
respeito recíproco e justiça. Aqueles que se recusassem a agir assim deveriam ser
expulsos da comunidade ou condenados à morte.
Primeira, que o gênero humano não pode viver sem a arte mecânica e sem a arte da
convivência. Segunda, que estas artes, justamente por serem tais (é dizer, artes e não
instintos ou impulsos naturais) devem ser aprendidas. (1999, p.9)
3
Do grego epimetheús: aquele que pensa depois.
4
Do grego prometheús: aquele que pensa antes.
5
REBOUL, Olivier. A filosofia da educação. Lisboa, Portugal: Edições 70.
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação
na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4)
4 CULTURA E EDUCAÇÃO*
Quando se pensa no mundo humano, costuma-se fazer uma primeira e grosseira divisão
entre “sociedades primitivas” e “sociedades civilizadas”. Tanto entre as “sociedades
primitivas” quanto entre as “sociedades civilizadas” os grupos que as compõem são muito
diversos e diferentes em relação às suas crenças e costumes. Tal questão se deve ao
fato de cada grupo humano (primitivo ou civilizado) possuir uma cultura própria para
sobreviver. Sem cultura 6 um grupo humano não sobrevive. É do interesse do grupo que a
cultura não pereça nem seja esquecida. Para isso, é preciso que seja transmitida para as
gerações mais jovens a cultura adquirida pelas gerações adultas. A cultura deve ser
aprendida e esse é o caráter mais geral e fundamental de uma cultura. Essa transmissão
da cultura é feita pela educação (Cf, ABBAGNANO e VISALBERGHI, 1999, p.11).
Embora as sociedades primitivas não possuam escolas tal como as concebemos, elas
possuem um processo educativo. Tal processo é informal, e a aprendizagem se dá nas
várias atividades cotidianas do grupo. Assim, pode-se afirmar que a educação não tem
uma única forma, mas sim que pode assumir diferentes formas de acordo com o grau de
desenvolvimento dos grupos:
De acordo com Abbagnano e Visalberghi (1999), quanto mais difícil para o grupo é a
transmissão e conservação de sua cultura, maior a tendência de atribuir um caráter sacro
a cada elemento do seu patrimônio cultural e, dessa forma, adotar uma postura
conservadora ao extremo em relação aos elementos de sua cultura imprimindo, assim,
6
Segundo Abbagnano e Visalberghi: “[...] por ‘cultura’ entenderemos o conjunto de
técnicas de uso, de produção e de comportamento, mediante os quais um grupo de
homens pode satisfazer suas necessidades [...]”. (1999, p.11) “Em resumo, uma cultura é
o conjunto das faculdades e habilidades não puramente instintivas de que dispõe um
grupo de homens para manter-se vivo singular e coletivamente (quer dizer, em grupo)”.
(1999, p.11)
um caráter estático a ela. Já as sociedades denominadas de secundárias são mais
permeáveis às mudanças. Segundo os autores, “[...] são aquelas cuja cultura está aberta
às inovações e possui instrumentos aptos para fazer-lhes frente, compreendê-las e utilizá-
las” (1999, p.13). É por meio do saber racional que estas últimas podem enfrentar o duplo
problema da conservação e da renovação dos elementos culturais considerados válidos
na sua sociedade.
Segundo expõe Jaeger (2001), em sua Paidéia: “A educação é uma função tão natural e
universal da comunidade humana, que por sua mesma evidência tarda muito tempo em
chegar à plena consciência daqueles que a recebem e a praticam” (2001, p.19). Ou seja,
embora a educação ocorra em várias épocas e lugares de modo difuso e informal, a plena
consciência do seu processo é um fruto tardio.
O ser humano precisa ser socializado para sobreviver. Desde que nasce ele é submetido
a um constante processo de aprendizagem por meio da educação informal. Através da
família, da comunidade, da Igreja, dos meios de comunicação etc., as pessoas vão
tomando contato com os conhecimentos e valores de sua sociedade, com os
comportamentos adequados a sua idade, a seu sexo, a sua classe social etc. Então
podemos dizer que, mesmo em sociedades em que não há escolas, existe educação,
uma educação informal.
À medida que a sociedade vai tornando-se mais complexa e começa a lidar com questões
como produção, divisão do trabalho e, relacionada a esta, a questão do poder, é que a
educação vai, segundo Brandão (1994), sendo vista como um problema. A partir do
momento em que a educação é concebida como um problema se faz necessário refletir
sobre sua prática. A busca de como lidar com a transmissão do saber vai levando
paulatinamente à instituição dos meios necessários a tal fim. Dessa forma, a educação
formal surge quando as sociedades se tornam mais complexas e há necessidade de
organizar a transmissão dos conhecimentos em lugar específico, como a escola.
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação
na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4)
A cultura popular individualizada “se caracteriza por ser produzida por escritores,
compositores, artistas plásticos, dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que não
vivem dentro da universidade (e, portanto, não produzem cultura erudita) nem são típicos
representantes da cultura popular (que se caracteriza pelo anonimato), tampouco da
cultura de massa (que resulta do trabalho de equipe)” (ARANHA, 2006, p. 64). É nesse
tipo de cultura que podemos classificar, por exemplo, a música de Caetano Veloso ou de
Tom Zé, o teatro de Plínio Marcos, a poesia de Manoel Bandeira, entre outros.
De acordo com o que foi abordado, fica evidente a diversidade cultural, tanto nas
diferentes sociedades como dentro de cada uma delas, nas suas diferentes
manifestações.
A educação formal é a educação que se faz de modo sistemático e busca ter clareza em
relação às questões: o que ensinar, como ensinar, quem ensinar, para que ensinar, por
que ensinar, surge quando a educação passa a ser vista como um problema e, dessa
forma, se faz necessária sua organização.
7
HAYDT, Regina Célia Cazaux. Curso de didática geral. 7 ed. São Paulo: Editora Ática,
2001.
Do ponto de vista social, é a ação que as gerações adultas exercem sobre as gerações
jovens, orientando sua conduta, por meio da transmissão do conjunto de conhecimentos,
normas, valores, crenças, usos e costumes aceitos pelo grupo social. Nesse sentido, o
termo educação tem sua origem no verbo latino educare, que significa alimentar, criar.
Esse verbo expressa, portanto, a idéia de que a educação é algo externo, concedido a
alguém. (2001, p. 11)
Outro desafio, relacionado a este, que a educação enfrenta é: como lidar com a
pluralidade cultural, referida nos itens anteriores? Há uma tendência de muitos
considerarem sua própria cultura como a única válida e verdadeira e, conseqüentemente,
as outras culturas são concebidas como “estranhas”, “exóticas” ou mesmo “inferiores”. Tal
8
Alguns autores usam o termo educare para o primeiro sentido e o termo educere para
este segundo sentido. (Cf LIBÂNEO, 2001, p.64)
concepção revela uma postura etnocêntrica, ou seja, uma visão de mundo que tem como
centro sua própria cultura, e tal postura pode levar a xenofobia, isto é, a aversão e ódio
em relação ao diferente, que sustenta práticas de violência e dominação em relação aos
considerados “outros”.
O ser humano depende da natureza para sobreviver? Vimos nos itens anteriores que o
ser humano produz cultura. Isso implica que ele estabelece relações com a natureza e
com outros seres humanos, que ele transforma seu meio. O ser humano é parte
integrante da natureza e sua sobrevivência está condicionada ao intercâmbio que realiza
com ela para satisfazer suas necessidades. Para isso, realiza trabalho. Veja o que dizem
Marx e Engels, sobre isso:
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da
natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de produzir”.
(MARX e ENGELS, A ideologia alemã (I – Feurerbach). 6 ed. São Paulo: Editora Hucitec,
1987, p.27)
Para Marx e Engels o grande diferencial do ser humano em relação aos outros seres
vivos é a sua capacidade de produzir, ou seja, de realizar trabalho. Por meio do trabalho o
ser humano produz os meios necessários para se manter vivo, ou seja, ele retira coisas
da natureza, ele interfere na natureza, ele fabrica coisas a partir da natureza. Quando se
fala em trabalho não é só no sentido do trabalho na fábrica, por exemplo, mas de toda
ação transformadora consciente de seu fim. Nesse sentido, mesmo quando os animais
modificam a natureza, por exemplo, quando o João de Barro faz sua moradia, ou um
castor faz uma pequena represa, não estão realizando trabalho. É ilustrativa a
comparação de Marx entre o mestre-de-obras e a abelha: “Mas há algo em que o pior
mestre-de-obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a
construção, ele a projeta em seu cérebro” (MARX, apud ARANHA e MARTINS, 2003,
capítulo 1).
Apenas o ser humano realiza trabalho, pois apenas ele projeta sua ação antes de
executá-la. E essa ação implica práxis. E o que vem a ser isso? Práxis é a união
interdependente e recíproca entre a teoria e a prática. Dito de outro modo:
“práxis (...) significa a união indissolúvel da teoria e da prática, porque não existe
anterioridade nem superioridade entre uma e outra, mas sim reciprocidade. Ou seja, como
práxis, qualquer ação humana é sempre carregada de teoria (explicações, justificativas,
intenções, previsões etc.). Também toda teoria, como expressão intelectual de ações
humanas já realizadas ou por realizar, é fecundada pela prática.”
(ARANHA, M. L. de Arruda. Filosofia da Educação. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006, p.76)
Será que em nossa sociedade o trabalho se dá dessa forma, contemplando essa relação
interdependente entre a teoria e a prática? Será que em nossa sociedade o trabalho é
condição de humanização do ser humano? De um modo geral, pode-se dizer que tudo
depende de como o trabalho é realizado. Vamos ver, no próximo item, algumas críticas
feitas à forma da organização do trabalho na sociedade capitalista.
8 ALIENAÇÃO E IDEOLOGIA
E o que vem a ser ideologia? Se você olhar no dicionário irá verificar que o verbete
ideologia possui muitos significados, como por exemplo: “Conjunto articulado de idéias,
valores, opiniões, crenças etc.”. “Sistema de idéias dogmaticamente organizado como um
instrumento de luta política”. “Conjunto de idéias próprias de um grupo” etc. Mas um
sentido que se tornou clássico, e que será utilizado aqui, é aquele utilizado por Marx.
Nessa perspectiva:
Dessa forma a classe que detém o poder faz uso da ideologia para fazer valer os seus
interesses e, por outro lado, a classe trabalhadora nem sempre tem a clareza e a
organização necessária para fazer valer seus interesses. Dessa forma, há uma tendência
de continuidade da dominação, uma vez que a função da ideologia é justamente essa:
“ocultar as diferenças de classe, facilitar a continuidade da dominação de uma classe
sobre a outra, assegurar a coesão entre os indivíduos e a aceitação sem críticas das
tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, simplesmente como decorrentes da
‘ordem natural das coisas” (ARANHA, 2006, p.81).
PARA REFLETIR:
Toda teoria pedagógica pressupõe uma teoria epistemológica, da qual o professor faz
uso, mesmo que ele não tenha consciência disso. Ou seja, mesmo que o professor ou a
professora não saiba qual a teoria do conhecimento sustenta sua práxis pedagógica ele
faz uso de alguma, mesmo que isso não seja claro para ele ou ela. Isso porque o ato de
educar pressupõe quem educar e como educar. Quem eu vou educar já sabe alguma
coisa? Quem eu vou educar não sabe nada, é como uma lousa em branco? Se concebo
meu aluno como uma lousa em branco, eu, professor, serei o transmissor exclusivo do
conhecimento. Se não concebo meu aluno como uma lousa em branco, meu
procedimento deverá ser diferente.
Epistemologia: reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do
conhecimento humano, especialmente nas relações que se estabelecem entre o
sujeito indagativo e o objeto inerte, as duas polaridades tradicionais do processo
cognitivo; teoria do conhecimento. (Dicionário eletrônico HOUAISS da língua
portuguesa)
Essa relação epistemológica é caracterizada pela passividade dos alunos, já que eles
devem ficar sentados, enfileirados, em silêncio, prestando atenção, para assim obterem o
conhecimento transmitido pelo professor. Tal modelo epistemológico favorece a
reprodução da ideologia e a manutenção do status quo, ou seja, da situação existente,
uma vez que não há incentivo ao questionamento, à reflexão e à criatividade. (Cf. Becker,
2001, p.18)
9
BECKER, Fernando. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2001.
10
MACHADO, Nílson José. Conhecimento e Valor. São Paulo: Moderna, 2004.
epistemológico não legitima o poder do professor, esse poder acaba, em geral,
assumindo uma forma mais dissimulada e perversa que no modelo tradicional (Cf. Becker,
2001, p.21). Segundo Becker:
Essa mesma epistemologia, que concebe o ser humano como dotado de um saber “de
nascença”, conceberá, também, dependendo das conveniências, um ser humano
desprovido da mesma capacidade, “deficitário”. Esse “déficit”, porém, não tem causa
externa; sua origem é hereditária. – Onde se detecta maior incidência de dificuldades ou
retardos de aprendizagem? – Entre os miseráveis, os malnutridos, os pobres, os
marginalizados... (...) A criança marginalizada, entregue a si mesma, em uma sala de aula
não-diretiva, produzirá, com alta probabilidade, menos, em termos de conhecimento, que
uma criança de classe média ou alta. Trata-se, aqui, de acordo com o apriorismo, de
déficit herdado; epistemologicamente legitimado, portanto (2001, p.22).
Não acredita na tese de que a mente do aluno é tabula rasa, isto é, que o aluno, frente a
um conhecimento novo, seja totalmente ignorante e tenha de aprender tudo da estaca
zero, não importando o estágio do desenvolvimento em que se encontre. Ele acredita que
tudo o que o aluno construiu até hoje em sua vida serve de patamar para continuar a
construir e que alguma porta se abrirá para o novo conhecimento – é só questão de
descobri-la; ele descobre isso por construção (2001, p.24).
11
1O termo inato indica uma ordem psicológica, significa o que já nasce com o indivíduo.
Já o termo a priori, indica uma ordem lógica do conhecimento, significa o que é anterior à
experiência.
Dermeval Saviani, no seu livro Escola e democracia, discute as questões assinaladas
acima. Segundo ele, diante do problema da marginalidade escolar e social é possível
identificar três grandes grupos, em relação ao posicionamento que adotam. Em um
primeiro grupo ele denomina que estão as “teorias não-críticas da educação” e identifica
alguns aspectos gerais comuns a elas. Para essa tendência a sociedade é concebida
como um conjunto orgânico, harmonioso, e a marginalidade é entendida como um desvio.
Assim, já que a marginalidade é um desvio, cabe à escola corrigir essa distorção. Ela
deve ser corretora dos desvios sociais e promotora da coesão social. Dessa forma, a
escola é concebida com uma certa autonomia em relação à sociedade. Ela atua
modelando a sociedade sem ser influenciada pela mesma. Saviani denomina como
teorias não-críticas: a pedagogia tradicional, a pedagogia nova e a pedagogia tecnicista.
São denominadas de não-críticas devido à forma ingênua como concebem sua relação
com a sociedade. Essa teoria é também chamada de tendência redentora, no sentido de
ser a salvadora da sociedade. Sobre as concepções dessa tendência Luckesi, no seu livro
Filosofia da educação, explica:
(...)
A partir da análise dos dois grupos anteriores, Saviani propõe uma via alternativa a estes.
Trata-se da teoria crítica. Há alguns pontos comuns entre a “teoria crítica” em relação às
“teorias crítico-reprodutivistas”. Em relação à concepção de sociedade, pode-se afirmar
que há consenso entre as duas: a sociedade é concebida com divisões de classes e estas
possuem interesses divergentes. Daí que a marginalidade é algo inerente e produzido
pela estrutura social. Em relação à concepção de educação, a teoria crítica também
concebe que a educação está condicionada pela estrutura social e é também reprodutora
da marginalidade social, uma vez que reproduz a marginalidade cultural. Mas não
entende que essa é sua única possibilidade. Uma vez que a educação, ao se fazer
consciente dos mecanismos sociais, das influências que recebe do sistema no qual está
inserida, pode atuar no sentido contrário. Ou seja, a escola com base em um projeto
social pode atuar no sentido de promover a conservação ou a transformação da
sociedade. Essa tendência é denominada por Luckesi como transformadora. Em resumo
temos:
A tendência redentora propõe uma ação pedagógica otimista, do ponto de vista político,
acreditando que a educação tem poderes quase que absolutos sobre a sociedade. A
tendência reprodutivista é crítica em relação à compreensão da educação na sociedade,
porém pessimista, não vendo qualquer saída para ela, a não ser submeterse aos seus
condicionantes. Por último, a tendência transformadora, que é crítica, recusa-se tanto ao
otimismo ilusório, quanto ao pessimismo imobilizador. Por isso, propõese compreender a
educação dentro de seus condicionantes e agir estrategicamente para a sua
transformação. Propõese desvendar e utilizar-se das próprias contradições da sociedade,
para trabalhar realisticamente (criticamente) pela sua transformação (LUCKESI, 1990, p.
51).
Kant, no seu texto “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?”, explica que liberdade
corresponde a autonomia, isto é, ser capaz de seguir as próprias leis pensadas pelo
sujeito moral e não simplesmente seguir passivamente o que é ditado. É poder fazer uso
do próprio esclarecimento. Para Kant, esclarecimento significa a saída do homem da
condição de menoridade, menoridade essa caracterizada como a incapacidade de se
utilizar o próprio entendimento sem a orientação de outrem. Para esse filósofo, a não-
saída da condição de menoridade é culpa do próprio homem, que não tem coragem de
fazer uso do seu entendimento. Segundo Kant, as causas que explicam a não-saída de
muitos homens da menoridade são a preguiça e a covardia. Por um lado, existe a
preguiça para mudar de posicionamento e, por outro, covardia para tomar tal atitude. “É
tão cômodo ser menor”. Por isso, é mais fácil continuar sendo o que se é: menor. Muitos
preferem simplesmente não pensar, já que existem aqueles que pensam por eles: o
padre, o médico, o político, entre outros. Esses tutores procuram manter os homens sob
sua orientação, prevenindo-os de que é perigoso caminhar por si mesmos. Por isso,
muitos consideram difícil e perigosa a passagem para a maioridade. Para Kant esse
perigo não é muito grande, pois após algumas quedas seria possível aprender a andar
por conta própria. Mas, para muitos, essa menoridade tornou-se quase que uma natureza
e se adquiriu amor por ela, pois nunca os deixaram sair dessa condição. A condição para
que um povo se esclareça é a liberdade. Sem ela, apenas poucos conseguem a
transformação necessária para sair da menoridade. Para Kant, liberdade significa poder
fazer uso público da própria razão em quaisquer questões. Ou seja, poder usar a razão de
forma livre e pública entre os homens sobre todos os assuntos. A liberdade ética do
sujeito moral não é algo dado, mas deve ser conquistada. Pressupõe sair da condição
cômoda, mas nefasta da dependência. Em épocas de crise social, manter a liberdade
torna-se uma tarefa mais difícil, pois se esta não está bem embasada os indivíduos
passam a desconfiar de si mesmos. Como liberdade pressupõe pensar, escolher, decidir
etc., ela é considerada muitas vezes mais como um problema do que uma conquista ou
privilégio. E como é mais cômodo ter quem assuma essa tarefa e pense pelos outros, os
homens acabam abrindo mão desse privilégio, acabam desejando e aceitando o feitiço de
Circe 12 .
Dessa forma, Kant valoriza o aprimoramento da razão como condição que possibilita ao
ser humano libertar-se de sua condição de menoridade. É necessário Sapere aude!,
ousar pensar, ousar “fazer uso do próprio entendimento”. Nessa tarefa, a educação tem
um papel fundamental.
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Ernst Cassirer: o mito
político como técnica de poder no nazismo. PUCSP: Dissertação de mestrado, 2000,
capítulo 3)
PARA REFLETIR
Como a educação pode contribuir para que o ser humano saia da sua condição de
menoridade?
12
Na Odisséia de Homero, a feiticeira Circe transformou os companheiros de Ulisses em
animais selvagens.
12 HANNAH ARENDT: CRISE NA EDUCAÇÃO *
A filósofa Hannah Arendt é autora do texto “A crise na educação”, que vem sendo
considerado clássico para reflexão sobre o papel da educação na sociedade, em uma
perspectiva filosófica. Apesar de ser um texto que reflete uma problemática que ocorria na
década de 1950, nos Estados Unidos da América, ele não permanece circunscrito à sua
época, uma vez que discute conceitos intrínsecos à questão educacional de qualquer
época.
Arendt esclarece que não é uma educadora profissional, mas que a crise oferece
oportunidade para reflexão. A crise obriga a buscar respostas e também retornar as
próprias perguntas. O que é desastroso diante de uma crise é buscar responder com
respostas prontas, com preconceitos, não desenvolvendo reflexão.
A filósofa então propõe-se refletir sobre “[...] o que podemos aprender dessa crise acerca
da essência da educação [...]” (2003, p.234), ou seja, sobre qual o verdadeiro papel da
educação em relação à civilização, sobre o fato de nascerem crianças e quais obrigações
isso acarreta para as sociedades humanas?
Pode-se afirmar que a educação se dirige especialmente à criança, que é seu objeto, e
esta se apresenta ao educador numa dupla característica: a) “[...] é nova num mundo que
lhe é estranho e se encontra em processo de formação [...]” e b) “[...]é um novo ser
humano e é um ser humano em formação [...]” (ARENDT, 2003, p. 235). Esse duplo
aspecto é característico dos seres humanos e não se aplica a outros seres vivos.
Também não é evidente por si só. Envolve um relacionamento também duplo: com o
mundo e com a vida. Os pais por meio da concepção geram um novo ser humano e o
introduzem num mundo já existente. A criança é nova em relação a esse mundo e está
em processo de formação. Os pais, ao conceberem, assumem, ou deveriam assumir, a
responsabilidade pela preservação da vida e devir da criança e pela continuidade do
mundo. (Cf. 2003, p.235) A criança precisa ser protegida dos elementos destrutivos do
mundo e o mundo, por sua vez, precisa ser protegido para não ser derrubado pelas novas
gerações.
A criança precisa ser preservada do mundo, para crescer e se desenvolver, por isso, seu
lugar é no aconchego do lar, no seio da família. Na vida familiar privada, em convivência
com os adultos, preservada da vida pública, encontra o lugar seguro para desenvolver-se.
Tudo o que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge das trevas, e, por mais forte que
seja sua tendência natural a orientar-se para a luz, mesmo assim precisa da segurança
da escuridão para poder crescer. (ARENDT, 2003, p.236)
Para Arendt, o problema da educação moderna é que ela buscou servir à criança,
estabelecendo um mundo de crianças, mas errou ao minar justamente aquilo que era
condição de possibilidade para o desenvolvimento delas. “... a educação moderna, na
medida em que procura estabelecer um mundo de crianças, destrói as condições
necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais.” (2003, p.236) A autora questiona:
como isso pode acontecer? Se a educação passada foi criticada por ver a criança como
um adulto em miniatura, como pode a educação moderna expor as crianças ao aspecto
público do mundo, que é o que mais caracteriza o mundo adulto?
Essas condições básicas para o crescimento vital foram violadas, mas não
intencionalmente, já que o objetivo era o bem-estar da criança, apesar de os resultados
não terem sido os esperados. Dessa forma, Arendt questiona: qual o papel da escola e
qual sua relação com a família e com o mundo? A escola é uma espécie de espaço
intermediário entre o espaço do lar e o espaço do mundo. Nas suas palavras:
[...] a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a
instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer
com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. (2003,
p.238)
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação
na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4)
Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior
que seja, nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em
conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém, sua autoridade
se assenta na responsabilidade que assume por este mundo. (2003, p.239)
Para Arendt, é necessário um caráter conservador para a educação, mas não para a
política. Na política, pressupõe-se, por um lado, uma igualdade entre pessoas que já
foram educadas e, por outro lado, que a conservação levaria à estagnação e destruição
de algo que deve permanecer em devir. Em relação à educação, Arendt entende que a
conservação é inerente à atividade educacional uma vez que sua “[...] tarefa é sempre
abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o
novo contra o velho, o velho contra o novo” (2003, p.242). E por que a educação deve ser
conservadora? Arendt explica o caráter dialético de tal situação:
O problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não
poder abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a
caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco
mantido coeso pela tradição. (2003, p.246)
Assim, Arendt propõe que não só educadores e professores, mas adultos de um modo
geral, devam ter uma relação apropriada com crianças e jovens, relação esta que faça
uso da autoridade e da tradição específica para eles. Nas suas palavras:
[...] devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos
um para com o outro. Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos
demais, e acima de tudo do âmbito da vida pública e política, para aplicar exclusivamente
a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados
mas não possuem validade geral, não devendo reclamar uma aplicação generalizada no
mundo dos adultos. (2003, p.246)
Para ela, a conseqüência prática dessa atitude “[...] seria uma compreensão bem clara de
que a função da escola é ensinar as crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte
de viver” (2003, p.246). Também não se deve tratar as crianças como se fossem
maduras, mas isso não significa separá-las totalmente do mundo adulto, como se a
infância tivesse uma autonomia em relação a ele.
Segundo Arendt, a relação entre adultos e crianças em geral não deve ser um problema
exclusivo da pedagogia. Cabe a todos nós essa questão, já que habitamos um mundo
comum que é renovado pelo nascimento.
*(O texto desse item foi extraído de: FERNANDES, Vladimir. Filosofia, ética e educação
na perspectiva de Ernst Cassirer. FEUSP: Tese de doutorado, 2006, cap. 4)
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